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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Forca na Areia / Morris West
Forca na Areia / Morris West

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Forca na Areia

 

“Vinte arcas repletas de moedas de ouro estão à bordo do Dona Lucia, um velho galeão espanhol que repousa no fundo do mar desde o século XVIII. Esse foi o terrível engodo que levou Renn Lurdigan, do Departamento de História da Universidade de Sydney, na Austrália, à minúscula ilha Barrier Reef, ao largo da costa daquele país.

Havia perigo mortal naquela ilha de corais, mas como compensação o amor de uma linda mulher enriquece a vida do jovem professor universitário, enquanto luta contra o tempo para descobrir o tesouro que constitui a fabulosa carga do navio naufragado.”

 

A carta foi entregue em meu quarto ao meio-dia e quinze mi­nutos de quarta-feira, 30 de junho. Era dirigida ao Sr. Renn Lun­digan, Departamento de História, Universidade de Sidney, Sidney, Austrália.

No bordo do envelope um sinete extravagante e um endereço em espanhol no canto inferior esquerdo. O carimbo dos correios estava ligeiramente inclinado e a letra era fina e legível.

Lembro-me perfeitamente de todas estas coisas, porque, antes de me decidir a abrir o envelope, o contemplei durante muito tempo.

Por fim, peguei na faca para papel, cortei cuidadosamente o en­velope, tirei a folha dobrada e sentei-me. Acendi um cigarro e iniciei a leitura.

O homem que escrevera a carta era o Arquivista-Chefe da cidade de Acapulco, no México.

Falava-me, com verborréia latina, do interesse que minha pes­quisa havia despertado em seu departamento. Referia-se a sua ânsia de estabelecer de uma vez para sempre um vínculo entre os nave­gadores espanhóis do século dezoito e o novo continente - Terra Australis Incognita. Dizia-me que estava muito grato por colaborar com uma personalidade tão sábia num assunto tão importante de in­vestigação histórica.

Contava-me que, em outubro de 1732, o Dona Lucia deixara Acapulco com vinte arcas de moedas de ouro para as colônias de Sua Majestade Católica, nas Ilhas Filipinas. Que o Dona Lucia nunca chegara a Manila e que se presumia que tivesse naufragado numa tempestade ou sido vitima dos piratas nos mares da China. Que a moeda de ouro, da qual eu lhe mandara um excelente molde, era de cunhagem da época do Dona Lucia e podia, de fato, ter feito parte de sua carga. Dizia-me...

Mas o resto eram frases de cortesia em que eu não estava muito interessado. Pensava numa minúscula ilha da costa de Queensland, numa das cem ilhas e recifes alinhados como fragmentos de jade e es­meralda ao longo da fila de corais do Great Barrier Reef.

Uma ilha bicorne, a pique sobre o mar por um lado, com um es­treito crescente de praia branca pelo outro. Uma ilha onde os turistas não vão no inverno, porque os mapas do Governo de Queensland dizem que não há ali água, nem passagem através dos recifes, nem abrigos para barcos de pesca ou cruzeiros de luxo.

Mas eu sabia da existência de um canal. Jeannette e eu tínhamos corrido um total de dez metros de um a outro extremo do recife e dado à praia sem um arranhão no casco de cobre. Havíamos acampado durante alguns dias no meio do pandano e descoberto uma nascente no sopé da ponta ocidental. Tínhamos passado pelo recife, pescado de arpão no preamar, até que um dia Jeannette descobriu uma moeda de ouro, obliterada, com incrustações de coral.

Depois, antes do fim do primeiro mês de nossa lua-de-mel, Jean­nette morreu com uma meningite e eu parti com novos temas para conferências, uma moeda danificada e a lembrança de uma jovem loura numa praia branca, ao sol. E o sonho de um navio-tesouro es­panhol sob os revoltos ramos de coral.

A recordação de Jeannette desvaneceu-se; mas sempre que abria a gaveta de minha mesa, a velha moeda, polida pelo manuseio diário, parecia brilhar como fogo. Minha noiva morrera, tinha-a perdido para sempre, mas o navio-tesouro continuava lá. Tinha de continuar lá, de costados apodrecidos, tombadilhos chanfrados sob o coral e as algas marinhas, enquanto peixes multicores nadavam em torno das arcas do tesouro, no porão.

Tinha de estar lá. Eu era historiador e podia prová-lo. Pelo menos devia provar que era possível que lá estivesse.

Foi o velho Anson quem me deu a chave do mistério - George Baron Anson, não ainda Almirante da Armada nem Primeiro Lorde do Almirantado, cruzando os mares durante meses consecutivos entre as Ilhas dos Ladrões e as Carolinas, à espera dos galeões que todos os anos partiam de Acapulco para Manila. George Anson que amarrava literalmente com cordas o casco avariado do navio, a fim de se agüentar durante meses, enquanto os percevejos penetravam o cos­tado, os barris de água rebentavam e os homens morriam com escor­buto sob o sol dos trópicos.

O velho navio espanhol teria largado de Acapulco em busca dos ventos de nordeste que o levassem para oeste, ao longo do Equador, até chegar a altura de virar de bordo para norte, passando pelas Ladrões, com rumo a Manila... Mas outubro já era demasiado tarde para ele. O verão descaía para Capricórnio e, se se afastasse muito para o sul, os furacões podiam apanhá-lo. E se os furacões o apa­nharam, devem tê-lo arrastado em redemoinho pelo mar, passando pelas ilhas de Bismarque e Salomão, e levado até ao Great Barrier. Ficaria então em apuros, bordejando, talvez fazendo água e sem poder abrir caminho através das ilhas e recifes. E, se a tormenta não o desmantelou, provavelmente as garras de coral acabaram por pe­netrá-lo afundando-o no recife exterior de uma ilha bicorne.

Podia ter sucedido assim e assim deve ter acontecido. Do con­trário, de onde é que provinha meu dobrão, esse estranho olho de ouro que troçava de mim no fundo da gaveta?

            Bateram à porta e a pequena loura da Secretaria entrou com uma bandeja de metal, onde se empilhavam envelopes de pagamento.

Sorriu pestanejando e desviou a bandeja para que eu visse como a blusa lhe realçava os contornos; depois proferiu a gracinha habi­tual, ao entregar-me o envelope:

- Não o gaste todo de uma vez, Sr. Lundigan.

Sorri, agradeci e respondi-lhe à altura:

- Saia comigo uma noite e gastaremos uma parte!

Soltou a risadinha de costume, ergueu mais o busto, pegou na bandeja e saiu, bamboleando os quadris.

Rasguei o envelope e despejei o conteúdo em cima do mata­borrão. Duas notas de cinco, oito de uma e prata sortida, o vencimen­to semanal - fora os descontos - de um jovem assistente de His­tória.

Tirando a pensão, dinheiro para cigarros e transportes e a libra que pedira ao Jenkins, na última terça-feira, ficava que chegasse para uma aposta no Manny's. Mas não o suficiente, nem nada que se aproximasse, para adquirir uma ilha e um barco, o equipamento de mergulho, provisões, ajudantes e tudo o mais que era necessário para iniciar a busca do tesouro afundado e trazê-lo para cima, depois de encontrado.

Mas uma aposta é sempre uma aposta e, na semana anterior, tinha visto um tipo transformar cinco libras em quinhentas, depois em mil e por fim em duas mil. Quando acabou, Manny mandou-o para casa num carro alugado, com um de seus guarda-costas como salvo-conduto. Eu presenciara e podia ser que também conseguisse o mesmo.

Nem sequer precisava de duas mil. Bastavam-me mil. Quinhen­tas para a ilha; o Governo de Queensland vende barato quando não há água, nem canais, nem portos. Cem para o equipamento de mer­gulho novo e duzentos para as despesas acessórias, que seriam multas. Talvez chegasse, se conseguisse ganhar mil libras no Man­ny's.

            Dobrei a carta do Arquivista-Chefe de Acapulco e meti-a no bolso. Tirei a moeda de ouro da gaveta e guardei-a no bolsinho interior para me dar sorte. Contei oito libras e dez xelins e meti-os num envelope. Pelo menos comeria, dormiria sob um teto, iria de bonde para o trabalho e fumaria vinte cigarros por dia, se não ganhasse as mil libras no Manny's.

Como assistente de História não tinha direito a telefone priva­tivo, pelo que tive de descer ao vestíbulo e tatear no bolso à procura de uma moeda, antes de poder telefonar.

Uma voz lacônica respondeu:

- Aqui fala Charlie.

- Aqui, o Comandante. Onde é ?

- No lugar da semana passada. A noite está livre.

- Obrigado.

Desliguei. A noite estava livre. A Polícia tinha sido bem paga e Manny não teria problemas nessa noite. Eu teria a oportunidade de ganhar as mil libras.

E pena que não conheçam Manny Mannix.

            É um rapagão. Irlandês de Brooklyn pelo lado do pai, italiano de Brooklyn pelo lado da mãe. Fora sargento de abastecimentos no Exército dos Estados Unidos, travou uma guerra galante em King's Cross e, quando ela terminou, decidiu ficar em Sidney.

Na opinião de Manny, Sidney era uma Nova York com tamanho bastante para explorar e Manny estava disposto a explorá-la. Ne­gociou em comércio, mercado negro de bebidas, automóveis usados, emigração e, quanto a lucros, também os teve, abrindo uma conta bancária que lhe permitiu adquirir um edifício de apartamentos, sociedade num cabaré e uma lista variada de mulheres que ostentava para efeitos decorativos. Nunca foi homem para deixar o amor inter­ferir em seus negócios. Corrompeu uma parte dos fiscais de jogo - o bastante para lhe garantir uma chamada telefônica antes que os carros da Polícia chegassem a sua rua .

Para Manny, isso era mais do que suficiente. Considerava a vida demasiado boa para se prender a convicções religiosas. Vestia-se bem, comia melhor e conduzia um Cadillac tão comprido como a frente de uma casa. Todavia, vestisse o que vestisse ou onde quer que jantasse, levava sempre consigo o odor da cidade, o perfume barato das mulheres estafadas e as fumaças do dinheiro ilícito.

É pena que não conheçam Manny Mannix.

            Detestá-lo-iam tanto como eu; mas não detestariam tanto como eu me detesto por beber sua bebida, por lhe escutar a verborréia e sorrir até de seus gracejos a fim de conseguir manter o privilégio de perder meu dinheiro na roleta dele; por consentir que me desse pan­cadinhas nas costas, desejando-me melhor sorte da próxima vez. Se eu ganhasse esta noite, não haveria próxima vez. Trocaria as fichas e pôr-me-ia a andar: iria para uma ilha verde e uma praia branca com um tesouro oculto, lá onde o recife mergulha nas águas profundas.

Assim, às nove horas da noite de quarta-feira, 30 de junho, tomei um táxi, saí da cidade passando pela base aérea de Rose Bay e fui até um crescente discreto, perto de Vaucluse. Na curva do crescente er­guia-se um alto muro, interrompido por dois portões de ferro.

Os portões estavam fechados à chave, mas havia uma campainha no pilar e, quando apertei o botão, surgiu um homem da casa de guarda. Disse-lhe que a noite estava livre. Não respondeu e abriu, deixando-me entrar.

Segui a pé até à casa, pela alameda coberta de areia. As cortinas estavam corridas e as persianas fechadas; mas a porta da frente estava aberta, deixando ver homens e mulheres, que poderiam muito bem ser convidados para um coquetel, e um garçom de casaco branco que atravessava o vestíbulo atapetado.

Acenei com a cabeça ao polaco de olhos tristes que guardava a porta, entreguei-lhe o sobretudo e subi para a sala grande, onde havia um bar de vidro negro e grandes janelas que permitiriam ver as luzes do porto se estivessem abertas. Mas nunca estavam..

Para bem dirigir um negócio como o de Manny, é preciso evitar a lua, as estrelas e a brisa que sopra do mar imenso. É necessário correr as cortinas e afastar o cantar dos grilos e o marulho sedoso da maré. O que é indispensável é a música e os risos, o clique da roleta e o claque das fichas, que ora se amontoam ora desaparecem no pano verde. São necessárias bebidas fortes, fumo rançoso e a ilusão mes­quinha da amizade e da comunidade.

Para dirigir um negócio como o de Manny, calçam-se sapatos reluzentes, calças pretas bem vincadas e veste-se smoking cinzento­-prateado com gravata lilás, além de um cravo vermelho na lapela. Retira-se o cotovelo de cima do balcão quando entra um cliente, dá-se uma piscadela ao modelo postado no banco do canto e diz-se:

- Viva, Comandante! Há muito que não o via.

- Olá, Manny! Há muito que andava limpo!

            Acompanhei a resposta com um sorriso e Manny gargalhou, en­gasgando-se com o charuto. Agarrou-me pelo cotovelo e conduziu-me para o banco junto ao do modelo. Tamborilou no balcão e gritou ao garçom:

- Um para o Comandante, Frank. Gim rosa. Comandante, permita que lhe apresente uma amiga minha, Miss June Dolan. June, o Comandante Lundigan. Cuidado com ele, querida. Sabe bem como são os rapazes da Marinha.

Manny tossiu, fez uma careta e o modelo lançou-me um breve sorriso profissional e um longo olhar também profissional, compa­rando minha estatura de 1,82m à de Manny e concluindo a meu des­favor. Era isso exatamente o que Manny sabia que ela faria, de outra forma nunca me teria apresentado.

                               Manny inquiriu:

- Sente-se com sorte esta noite, Comandante?

            Encolhi os ombros, estendi as mãos e fiz um trejeito de pesar com a boca. Era uma atitude um pouco teatral que me costuma sair muito bem. Jeannette tinha por hábito dizer que fazia parte de meu encanto infantil. Mas desta vez fiquei envergonhado. Achei que se pareceu muito com o sorriso lânguido do modelo de Manny.

- O costume, Manny. Mas saberei gastá-lo, se ganhar.

- Suponho que todos sabemos - disse Manny. - Diga lá o que pensa disto, Comandante?

Fechou a mão em torno dos dedos frágeis do modelo, erguendo­lhe o antebraço para mostrar um pesado bracelete de ouro com moedas pendentes. 

- Comprei-lhe isto hoje. É o aniversário da pequena e pensei: É para minha queridinha. Então, comprei-o. Foi muito caro, mas creio. que ela o merece. O que acha, Comandante?

            - Acho que vai bem com a personalidade da senhora.

            - Repare que tem espaço para mais moedas. Disse-lhe que, se for boa moça e me der sorte, lhe irei enchendo todos os elos.

- Manny, estou a seco - queixou-se o modelo numa voz in­sípida e enfadada.

Manny franziu o sobrolho, bateu no balcão e o garçom apro­ximou-se para encher o copo da moça. As moedas tiniram langui­damente quando ela retirou a mão da de Manny e se pôs a remexer na carteira. Foi então que tive uma idéia louca.

            Tirei a moeda de ouro do bolso, atirei-a ao ar e, a seguir, co­loquei-a em cima do balcão.

            - Por falar em moedas, Manny, já viu alguma como esta?

            Um fulgor de interesse brilhou nos olhos manhosos de Manny. Pegou na moeda, examinou-a e fez um pequeno corte no bordo com o diamante de seu anel.

- É ouro?

- Ouro puro. Trago-a como talismã.

Voltei a guardá-la no bolso e vi com agrado o brilho dos olhos de Manny.

- Que espécie de moeda é essa, Comandante?

- Espanhola. Século dezoito. Tem uma história.

- Gostaria de ouvi-la.         

Era esta a deixa por que eu esperava. Cheirava-lhe a ouro e Man­ny poderia estar dispósto a desembolsar notas de papel para o apa­nhar. Disse-lhe o mais desinteressadamente possível:

- O fato é que, por trás desta moeda de ouro, há uma proposta, Manny. Talvez lhe interesse.

            Os olhos de Manny toldaram-se e sua voz tomou o tom monótono e indiferente do negociante.

- Você já me conhece, Comandante. Estou sempre interessado em qualquer proposta, desde que seja rendosa e segura. Quer falar já?

Acenei negativamente com a cabeça.

- Mais tarde, Manny.

Mais tarde poderia ter mil libras e não precisar, portanto, de discutir qualquer proposta com Manny. Nem teria de voltar a falar com Manny. Nunca mais.

- Fica então para mais tarde, Comandante - anuiu Manny, voltando-se para o bar e para o modelo lânguido de seio redondo, voz insípida e astutos olhos profissionais.

Uma hora e sete minutos depois, voltei para o bar, sem um cen­tavo e completamente arrasado.                     

 

- Um drinque, Comandante? - perguntou Manny.

Recusei, aborrecido.

- Desculpe, Manny, mas não posso pagá-lo. Estou limpo. Manny deu um estalido com a língua e esboçou um gesto de con­solação.

            - Pouca sorte, Comandante, pouca sorte! Vai e vem. Parece-me que a casa deve uma bebida aos que perdem. Sente-se.

            - Não. Obrigado pela gentileza, mas vou-me embora.

            Dirigi-me para a porta, mas Manny seguiu-me. Nunca o vi tão relutante em deixar sair um cliente arruinado.

- Comandante!

- Diga, Manny.

- Referiu-se a uma proposta. Quer falar agora, em meu es­critório?

Afinal, sempre o tinha pescado. O coração pulsava-me e tinha a boca seca. Fechei os punhos, para evitar o tremor dos dedos. Tentei, todavia, fazer com que minha resposta parecesse indiferente.

            - Como queira. Não há pressa.

            - Por aqui, Comandante - disse Manny guiando-me, através de uma porta com maçaneta de couro, para um recinto atapetado na cor de cogumelo, sob um candelabro de cristal Murano.

Havia cortinados cor de cogumelo com cordões dourados; uma mesa com gavetas embutidas e uma cadeira de espaldar alto, de nogueira italiana; e ainda um sofá fantástico de brocado dourado, diante de uma lareira Adam. As bebidas estavam num armário dis­farçado por baixo de um painel pintado. As fadas de Cross tinham tomado Manny orgulhoso. Tudo era genuíno, tudo era dispendioso e o efeito resultava tanto como o vestíbulo das Nações Unidas: de igual modo deprimente.

Manny olhou-me de soslaio ao inclinar-se para as bebidas.

- Gosta, Comandante?

Dei um estalido com a língua e respondi:

- Deve-lhe ter custado uma fortuna, Manny!

Tomou isto por um cumprimento, riu e comentou:

- Até a mim me assusta. Mas trabalho aqui e creio que tenho direito ao conforto. Além disso, impressiona os clientes.

- Julguei que os clientes nunca entravam aqui, Manny!

Pisquei-lhe e sorri por cima do copo, um sorriso de camara­dagem que faz com que um homem como Manny inche o peito e se es­queça de que tem de comprar aquilo que os outros adquirem por amor.

Manny piscou por seu turno, levantando o copo.

- Às mulheres... Que Deus as abençoe.

Bebemos. Então, Manny indicou-me o sofá, enquanto ele ficava de pé, encostado à lareira Adam, com os cotovelos em cima da chaminé de mármore. Percebi a manobra. É difícil vender seja o que for a alguém que está de pé. Experimente-se. Decidi pôr-me o mais à vontade possível. Recôstei-me contra o brocado dourado, cruzei as pernas e tentei descontrair-me, à espera de que Manny iniciasse a conversa.

Os olhos de Manny voltaram a toldar-se, cobrindo-se de uma película semelhante à dos pássaros. Não havia neles luz nem brilho. Quando falou, a voz era suave, quase acariciadora.

- Em que trabalha, Comandante?

- O que interessa isso?

Manny beliscou a ponta de um charuto caro e acendeu-o com lentidão. Depois aspirou profundamente, soprou uma nuvem de fumaça e acenou com o charuto na direção da porta.          

- Lá fora, nas mesas, é claro que não interessa. As pessoas pagam o que bebem. Se perdem, pagam as fichas; se ganham, não fazem questão. E é tudo o que me importa. Você também é desses, Comandante, e gosto de o ver por aqui. Mas agora é diferente. Trata­se de negócios. Em negócios é preciso trabalhar em conjunto e, por is­so, quero saber.

Voltou a meter o charuto na boca, chupou-o e aguardou.

Ri, um riso franco e amigo, sem malícia, e perguntei-lhe:

- Só por curiosidade, Manny: o que julga que faço?

Manny soprou mais fumaça, comprimiu os lábios e respondeu:

- Muitas vezes tentei adivinhar, Comandante. Não está na ativa, embora o pareça. Aliás, é característico dos marinheiros. Podia negociar em lãs, mas não gasta para isso. Joga com cautela e, quando não tem mais fichas, desiste. Talvez agente de vendas, posto que não tenha aspecto de vendedor. Médico, dentista talvez. Como lhe disse, nunca consegui adivinhar.

- Sou historiador.

O charuto quase lhe caiu da boca.

- O quê?

- Historiador. Assistente de História na Universidade de Sid­ney.

Manny estava embaraçado. Notava-se na sombra de seus olhos. Eu tinha ganho terreno. Se o conseguisse defender, haveria proba­bilidades. Manny deixou passar algum tempo para se recompor, an­tes de me desfechar a pergunta.

- Quanto ganha?

- Mil e cem por ano; mil e duzentas com as lições particulares.

- Uma miséria - disse Manny, concisamente. - Para um tipo com miolos, é uma ninharia.

- Por isso mesmo é que estou interessado em negócios.

Manny meneou a cabeça.

- Para negociar é preciso capital. O que você tem?

Levantei-me e tornei a passar-lhe a moeda pelo nariz.

- Tenho isto.

- Quanto vale?

- Cerca de seis libras australianas, ao câmbio do ouro. Como antiguidade, cerca de trinta. Mandei-a avaliar.

- Talvez dê para começar a vender milho assado, Comandante! Mas não é para Manny Mannix.

Chegara o momento crítico. Se dissesse algo errado, estava per­dido, assim como meu tesouro naufragado. Não disse palavra. Sorri e fui até junto do armário das bebidas, para me servir de novo. Manny voltou a ficar embaraçado; e interessado também. Trouxe a bebida para junto da lareira e bebi à saúde dele. Então, desfechei-lhe:

            - O mal das pessoas como você, Manny, é julgarem que sabem tudo. Mas nunca se sabe!

            Manny corou, mas manteve-se calmo.

- Ora, diga logo, Comandante. Tenho tudo o que quero e pago­-o com a massa de sobra que tenho no banco. O que me vai dizer que eu não saiba?

            - De onde veio esta moeda, por exemplo?

            - Pois bem, despeje o saco! De onde veio?

            - De um galeão espanhol que saiu de Acapulco para Manila em outubro de 1732 e se perdeu com toda a tripulação.

            Manny descontraiu-se e riu cepticamente.

- Histórias de tesouros, hein? Essa é a burla trais vulgar. Tam­bém traz um mapa? O mapa de um antigo pirata, talvez? Vendem-se a cinco dólares em qualquer parte das Caraíbas. Os indígenas fazem­-nos e constroem proas afundadas para os turistas.

Meneei a cabeça.

- Não tenho nenhum mapa.

- Então prossiga. O que tem?

Retirei a carta do bolso e mostrei-a a ele. Leu-a a custo, pro­curando fatos por trás das frases de cortesia e do inglês pomposo. Depois olhou para mim, batendo com o polegar na carta.

- É autêntica?

- Claro! Ninguém forja um documento desses. Basta um te­legrama para verificar se é falsa ou verdadeira.

Manny anuiu com a cabeça. Até ali, ele entendia.

- Sim, sim. Suponhamos que está certo. Mas não diz o sufi­ciente. Houve um navio-tesouro e essa moeda talvez provenha dele. Mas não é certeza.

- Aí é que entro eu. Sou historiador, como já lhe disse. Meu ofício é reunir, pesar e determinar o valor das provas históricas. Recolhi provas suficientes para demonstrar que o galeão perdido poderia ter naufragado perto do local onde descobri a moeda.

- Onde foi?

Sentia-se seguro, pois já não brandia o charuto. A sombra de­saparecera-lhe dos olhos e vi a cobiça, o interesse e os cálculos do comerciante que pesa as despesas e as receitas para determinar a margem de lucro. Agora, podia manejá-lo com mais firmeza, como a um peixe cansado da corrida. Disse-lhe sem rodeios:

- O local é segredo meu. Sei onde é. Eu próprio descobri lá a moeda, mas não estou disposto a revelá-lo antes de fazermos um acordo legal e de assinarmos.

- Quanto quer?

- Se for a meias, mil libras e despesas pagas.

Estava dito. Os dados estavam lançados e nada mais havia a fazer ou a dizer. A jogada seguinte pertencia a Manny Mannix. Mas este não estava disposto a ficar por ali. Tinha outras perguntas a fazer.

            - Suponha que encontremos o navio onde diz que deve estar. Quanto poderíamos arrecadar?

            - A carta fala de vinte arcas de ouro. Não posso calcular quanto valerá, vinte, trinta mil, mais ou menos. Claro que pode ser muito mais.

            - Pode. E também pode ser que o local já tenha sido limpo e, então, não apanharemos nada.

            - Naturalmente - concordei. - Mas não foi. Eu e minha mulher descobrimos a moeda.

Manny lançou-me um olhar rápido e inquiridor.

- Não me tinha dito que era casado!

- Minha mulher morreu um mês depois do casamento. Manny pigarreou compungido.

- Pouca sorte! - Depois, fez outra pergunta: - Disse que precisava de mil para você e as despesas pagas. Que despesas tem em mente, Comandante?

            - Duas mil libras, mais ou menos. Podia fazer-se com menos, mas seria mais difícil.

            - Que gênero de despesas incluiria?

Manny estava tão interessado, tínhamos progredido tanto desde a discussão especulativa até à prática, que me esqueci de ser cau­teloso. Dei-lhe uma resposta simples e clara:

- Quinhentas para comprar a ilha, a fim de termos direito sobre a terra e a água e podermos iludir a lei relativa a descobertas de te­souros. Depois, há o barco, o criado de bordo, o equipamento sub­marino, provisões e talvez um mergulhador profissional para a última fase. Posso dar-lhe uma lista das despesas assim que chegarmos a acordo.

Tinha aberto minha própria sepultura e caminhava muito satis­feito para dentro dela. Nessa altura, porém, ainda não o sabia. Só o descobri muito mais tarde. Nem sequer percebi por que motivo Man­ny sorria. Quando se afastou para preparar um terceiro drinque, pen­sei que o fazia para selarmos nosso contrato, o que prova que eu não conhecia Manny. O que prova também que eu era o que Manny pen­sava: um historiador ingênuo que nada sabia das lições mais elemen­tares da História, tais como a vaidade dos desejos humanos, a incons­tância das mulheres e o fato de que um trouxa nunca consegue duas oportunidades iguais porque não as merece.

Manny voltou com as bebidas. Levantamos os copos e sorrimos por cima dos bordos. Depois, Manny disse com gentileza:

- Desculpe, Comandante; mas não há dados concretos.

Era o fim, como um beijo na boca.

Manny não cessava de sorrir.

            Eu não sorria; sentia-me doente, cansado e, humilhado, e tinha vontade de ir para casa. Foi então que Manny avançou para o golpe final.

- Olhe, Comandante! Para lhe provar que não tenho má von­tade, compro-lhe a moeda ao preço do mercado: trinta libras. Ficará bem no bracelete da pequena.

Ri. Não sei por que, mas ri. Atirei a moeda ao ar, apanhei-a e disse a Manny:

- Dê-me também a noite de graça no bar e é negócio fechado.

Manny olhou-me com frio desprezo. Em seguida, foi até à mesa com gavetas embutidas e tirou trinta notas novinhas, enroladas. Pôs­-lhes um elástico em volta e depositou-as em minha mão estendida. Depois, disse:

- Se é prudente, Comandante, deixe as bancas em paz e deixe­-se ficar pelo bar. As bebidas da casa estão a seu dispor.

- Obrigado, Manny - respondi. - Obrigado e boa noite!

- Boa noite - correspondeu ele. - Boa noite, trouxa.

Lembro-me de ter seguido para o bar e pedido um uísque duplo. A partir daí, nada mais.

Às nove do dia seguinte, o Reitor encontrou-me a ressonar no meio dos arbustos, diante de sua janela.

Às quatro horas da tarde, a Faculdade aceitou meu pedido de demissão e pagou-me um mês de vencimento em vez de aviso prévio. Isto deixou-me numa ridícula situação: sem trabalho, sem projetos e com pouco mais de cem libras em dinheiro. É que Manny tinha sido bondoso para comigo. Quando me despejou na rua, pregou-me as trinta libras no bolsinho com um alfinete e a seguinte nota:

"Pouca sorte, Comandante! Foi jogo franco."

Manny é assim. Um tipo amável e com sentido de humor.

 

Na sexta-feira de manhã saí para cobrar uma dívida.

Apanhei o primeiro trem para Camden, uma povoação asseada, construída com a riqueza das primeiras pessoas desembarcadas no país mais novo do mundo. As pastagens verdes estendem-se até às soleiras das portas e a estrada de betume preto serpenteia por acres e mais acres de ricos e férteis pastos, listrada pelas sombras de eucalip­tos enormes e dos salgueiros que orlam as grandes fazendas. As casas, de um cinzento desmaiado, surgem ao fundo, nas pregas da terra, e seus proprietários remontam à Primeira Armada e aos duros e bu­lhentos dias de uma colônia penal.

É uma zona limpa: região de laticínios, de gado merino, terras amenas de criadores de gado, onde nunca há seca, onde os vales são sempre verdejantes e as raízes mergulham fundo. Terra onde eu, homem da cidade desenraizado, não tinha lugar.

Em Camden tomei um táxi e percorri oito quilômetros de estrada até chegar a um portão com cadeados de ferro, por cima do qual se erguia, em forma de pérgula, a legenda seguinte: McAndrew Stud. A grande casa fica longe do portão, pelo que o motorista ficou-me ob­servando quando lhe paguei e disse que voltasse daí a uma hora. Não podia adivinhar que eu sentia vergonha de mim mesmo e precisava de caminhar por entre as árvores em flor, a fim de ganhar coragem para meu encontro com Alistair McAndrew.

O caminho subia um pouco e descia depois até à casa, um edifício baixo e comprido, abrigado pelos arbustos e rodeado de barrancos brancos e sebes que delimitavam os estábulos.

À esquerda havia um enorme prado, de onde provinha parte da produção de ferro de McAndrew; à direita, um telheiro de madeira onde um grupo de homens observava um potro sendo submetido à sela.

McAndrew encontrava-se no grupo - um celta moreno e atar­racado, em camisa cáqui e calça de montar. Estava encostado à cer­ca, na atitude descontraída de um lavrador, mas os olhos semife­chados não perdiam um pormenor do treino. De vez em quando, dava um breve conselho ao domador.

            Voltou-se ao ouvir meus passos, hesitou um momento e depois veio a meu encontro com um sorriso aberto e de mão estendida.

            - Lundigan! Até me custa acreditar! Que prazer em tornar a vê­-lo, homem!

            Fiz uma careta, apertei-lhe a mão e saudei-o com um "Olá, Mac!" muito desajeitado.

- O que o traz por estas bandas de Camden?

- Eu... Preciso falar-lhe, Mac. Isto é, se tiver tempo.

A voz ou os olhos traíram-me porque me fitou atentamente e res­pondeu:

            - Claro que tenho, homem. Todo o tempo que quiser. Descul­pe-me por um instante, enquanto falo aos rapazes.

Vi-o afastar-se para dar ordens aos homens que rodeavam o campo de treino. Caminhava com segurança e falava com autoridade, à vontade do meio de seus homens, dos cavalos e das terras mati­zadas. Lembrei-me então do dia em que o arrastei ao longo de uma praia, nas Trobrians; era um esqueleto amarelo e raquítico, o único sobrevivente de um grupo invasor que os japoneses haviam destroçado logo dois dias após o desembarque. A tremer com malária, atacado de disenteria, tinha aberto caminho até ao local de encontro e conse­guimos safá-lo do fogo da patrulha que se ocultava no meio das pal­meiras. E, agora, ali estava eu pedindo a recompensa..

McAndrew voltou e dirigimo-nos, lado a lado, para a casa.

- Quanto tempo, Renn!

- Onze, doze anos... É muito tempo, Mac!

- Minha mulher está na cidade, mas gostaria de o ver. Você fi­ca aqui, evidentemente. Tenho muito para lhe mostrar.

Acenei negativamente com a cabeça.

- Desculpe, Mac. Tenho de partir dentro de uma hora.

Ficou perplexo e um pouco sentido. Insistiu:

- Não pode chegar e partir com essa pressa toda! Tem de ficar.

- Talvez seja melhor começar por lhe dizer o motivo de minha visita.

Era uma resposta infeliz e mastigada para um homem que não se vê há doze anos; mas que fazer? Sentia-me desajeitado e grosseiro e arrependido de minha visita.

Agarrou-me pelo braço e conduziu-me pela varanda para a sala de estar. Era um grande aposento com o soalho encerado, belos tapetes, bons quadros e cadeiras de couro agrupadas em volta de uma enorme lareira de pedra.

- Esteja à vontade, Renn! Vou preparar uma bebida. Uísque?

- Obrigado.

A poltrona era funda e confortável, mas não conseguia descon­trair-me. Tinha os músculos faciais tensos e a boca seca. As mãos tremiam-me e agarrei-as com força aos braços da poltrona para as manter serenas. McAndrew chegou com os drinques, passou-me um e sentou-se do outro lado da lareira, em minha frente.

- Saúde, Renn! E bons encontros!

- A sua, Mac!

O uísque desceu lentamente, como acontece sempre que é bom, e assentou-me no estômago como uma brasa. McAndrewobservava-me preocupado.

- Anda doente, Renn?

- Doente? - Tentei rir, mas da garganta apenas me saiu um som rouco e seco: - Não, não ando. Pelo menos, ao ponto de um médico o descobrir.

- Mas descobre-o um amigo.

Sua gentileza e perplexidade, assim como sua bondade leal, in­dispuseram-me comigo mesmo. Levantei-me da cadeira e fiquei de pé, junto à lareira, encarando-o. As palavras saíam-me com dificul­dade e sentia-as arranhar-me a garganta.      

- Olhe, Mac, como amigo sou um perigo. Não vim aqui só pelo prazer de visitar você. Vim porque preciso de mil libras e você é o único que me pode ajudar a consegui-las.

McAndrew não se mostrou surpreendido. Fitou o copo e respon­deu-me:

- Neste caso, estou satisfeito por me ter procurado, Renn. Pedir mil libras a um homem a quem salvou a vida é pouco. Terá um cheque antes de partir. Agora, descanse e beba.

Foi tão simples, tão calmo e casual que me cortou a respiração. Mas, mesmo assim, não tive a elegância de aceitar e acabar de vez com aquilo. Continuei a falar louca e impetuosamente.

- Mas eu não quero isso!

- O que quer, então?

- Em primeiro lugar, quero que saiba para que preciso delas.

- Não tem de dar satisfações.

- Mas quero que saiba!

E contei-lhe tudo. Falei-lhe de Jeannette e de mim, de nossa ilha ao sol. Da moeda antiga e do velho navio de onde eu supunha que ele viera. Falei-lhe de Manny Mannix e de meu azar nas mesas de jogo no

Manny's. Contei-lhe minha demissão vergonhosa da Universidade. Despejei tudo numa orgia de autoflagelação e, quando terminei, sen­tia-me vazio e cansado.

McAndrew não disse palavra. Levantou-se, voltou a encher-me o copo e entregou-me.

- Beba, rapaz, que lhe faz bem!

Ri com azedume.

- É um velho truque que já experimentei, mas não deu resul­tado.

McAndrew sorriu e tocou-me amigavelmente no ombro.

- Isso é porque tem bebido em má companhia. Se tivesse o bom senso de vir aqui imediatamente...

            Bebemos. Pousei o copo com cuidado e, com o mesmo cuidado, tentei explicar-lhe:

- Mac, é verdade que preciso de dinheiro. Mais do que possa imaginar. Preciso por inúmeras razões que não lhe posso explicar, mas não quero seu dinheiro.

- Digamos então que é um empréstimo que pagará quando des­cobrir o navio-tesouro.

- Não, Mac. Também não quero um empréstimo. É preciso que o dinheiro seja meu. Se encontrar o que procuro, quero que seja apenas meu... Não sei se me entende. Quero qualquer coisa no gênero do que você possui: a terra, os cavalos, sua vida. É isso que preten­do extrair de meu navio-tesouro. Um lugar que seja meu, uma vida que me pertença.

- E seria feliz, sem ela?

- Não sei dizer. Mas já que não posso ter Jeannette, quero o resto. Quero tudo o que esperava compartilhar com ela, entende?

- Entendo, mas não percebo quanto ao dinheiro.

- Eu explico. Chame-me tolo, se quiser. Pretendo arranjá-lo da seguinte maneira: você tem cavalos de corrida e alguns campeões. Quando vir que há um bem cotado, a dez ou mais, avise-me. Quero que me dê uma oportunidade para colocar nele meu dinheiro. Apenas cem libras. Não prejudicará o negócio... E, se ganhar, receberei minha aposta e tirarei uma vingançazinha dos apostadores. É tudo o que quero.

McAndrew olhou-me perplexo.

            - Renn, está doido! Todas as corridas são um jogo. Todos os cavalos são um jogo. O melhor cavalo do mundo pode perder. E depois?

- Depois irei para Queensland cortar cana ou cozinhar para um tosquiador. Só lhe peço que me dê a oportunidade de apostar, Mac. A mesma possibilidade que dá aos tratadores, num bom cavalo que se esforce por ganhar.

- Mas se perde, você fica sem nada.

- Apenas cem libras, o que não é tudo.

- É tudo o que tem. Como lhe digo, pode ter o dinheiro sem ris­cos e sem qualquer compromisso.

- Era a maneira de perder o que ainda conservo: minha in­dependência.

McAndrew quedou-se pensando na proposta. Era evidente que não lhe agradava. Eu estava sendo um grande tolo. Além disso, não consentia que um homem simples e bom pagasse generosamente sua dívida. Se nessa altura soubesse o que sei hoje, teria aceito o cheque e beijado a mão que me dava. Mas eu era um historiador intratável que se recusava a aprender as lições da História e, por isso, deixei que fos­se McAndrew a dar a resposta. Fê-lo calmamente e sem constran­gimento.

- Está bem, Renn. Se me deixasse oferecer-lhe ou mesmo em­prestar-lhe o dinheiro, ficaria muito contente. Não quer e parece que compreendo o motivo. O Black Bowman corre amanhã em Randwick, na terceira corrida. Abrirá com doze e terminará mais ou menos a três; portanto, aposte cedo. É possível que ganhe. Se assim não acon­tecer, não é culpa dele nem nossa. Desejo-lhe boa sorte!

            Estendi-lhe a mão, que ele apertou nas suas. Antes de a largar, disse-me:

            - Passou um mau pedaço que ainda não acabou, Renn. Não se esqueça de que a casa de McAndrew está as suas ordens.

- Não o esquecerei e não calcula como lhe agradeço. Mas é preciso que eu siga o meu caminho e, se não chegar a bom porto, a culpa será minha e de mais ninguém.

Despedi-me e desci o longo caminho até à estrada. Num recinto ao lado, um garanhão levantou os cascos e pôs-se a galopar em redor do perímetro. Num fugaz momento, pensei que fosse o Black Bow­man, mas depois lembrei-me de que, àquela hora, devia estar descan­sando no estábulo, poupando forças para a terceira corrida de Rand­wick.

Cheguei ao hipódromo a meio da segunda corrida. A multidão ululava porque o favorito estava sendo batido no meio da reta por um magnífico desconhecido. O recinto das apostas estava deserto, como calculava, e tomei lugar junto dos postigos, onde os homens impor­tantes apostavam muito dinheiro, de modo que minhas cem libras não iriam alterar o mercado.

 É tremendo quando determinada cavalariça se lança na luta. Há milhares de libras a investir antes que as apostas desçam para três ou menos, e todos os apostadores são avisados para fazerem as apostas antes que estas se fechem. Há uma dúzia de comissários no recinto, cada um deles com o dinheiro da respectiva cavalariça no bolso; os apostadores entretêm-se a avaliar os riscos e os corredores, de olhos salientes, observam os rostos familiares daqueles homens cujo tra­balho é fazer apostas para os proprietários, os treinadores e os gran­des sindicatos de jogo. Eu tinha de bater os apostadores e os comis­sários. Tinha de apostar logo que surgisse a oportunidade. Tomei lugar junto do estrado de Bennie Armstrong, o maior apostador das corridas e esperei.

Ergueu-se um enorme clamor quando o cavalo desconhecido ganhou com apreciável vantagem. Dois minutos depois, começaram as apostas para a terceira corrida.     

Nos hipódromos australianos, cada agente de apostas tem seu quadro e as mudanças são indicadas em marcadores semelhantes aos dos salões de bilhar. Bennie apresentava doze por um contra o Black Bowman. Alguns metros adiante, um seu colega oferecia quatorze. Calculei o tempo que me levaria a atravessar a multidão para lá chegar. Não valia a pena correr o risco. Os intermediários já deviam estar colocando seu dinheiro e as apostas desceriam em trinta segun­dos. Voltei-me para Bennie com um maço de notas de cinco libras na mão erguida e gritei-lhe minha aposta:

- Mil e duzentas contra cem no Black Bowman...

            Bennie lançou-me um rápido olhar. O ajudante agarrou o di­nheiro, contou-o e meteu-o na pasta. Em seguida, acenou para Ben­nie que escreveu um bilhete e me entregou.

- Pronto! Mil e duzentas contra cem.

            Fez girar o marcador do quadro e as apostas baixaram para dez. Olhei para o outro quadro. Oito! Tivera sorte. O dinheiro dos inter­mediários já estava correndo... Antes de a barreira se erguer, Black Bowman não oferecia vantagem. Guardei o bilhete e fui para a grande arquibancada, à procura de um lugar. Tinha a boca seca e o estô­mago apertado devido à excitação. Necessitava de uma bebida, mas só de pensar na gritaria e no cheiro de álcool do bar senti-me enjoado. Engoli em seco, passei a língua pelos lábios e limpei as mãos úmidas de suor. Depois subi os degraus até junto do camarote do rádio, na arquibancada principal.

O dia estava claro, mas o sol pouco aquecia. Nos gramados, as mulheres pareciam matizadas por tons castanhos outonais. Os can­teiros eram incolores e a multidão inferior à habitual. Mas a pista es­tava em condições e a atmosfera calma, o que para mim bastava. Vi os piquetes conduzirem os cavalos para o paddock. Vi os jóqueis ves­tidos de cetim levarem as celas para as balanças. Vi as cores púrpura e ouro de McAndrew e o coração pulsou-me mais fortemente. McAn­drew escolhera Minsky para montar e, se Deus quisesse que um cavalo ganhasse os dois mil e quatrocentos metros, também teria es­colhido Minsky.

Agora, selavam os cavalos. Minsky, McAndrew e o tratador con­versavam. Evidenciavam a descontração daqueles que sabem o que fazem, que fizeram tudo o que era possível e que, a partir daí, ficam na dependência do cavalo, do jóquei e do Todo-Poderoso.

O tratador ajudou Minsky a montar, experimentou a cilha e ajustou as rédeas. Em seguida, Minsky baixou-se e McAndrew er­gueu-se para apertarem-se as mãos por cima do dorso lustroso e on­dulado de Black Bowman. Era um pequeno ritual íntimo em que eu não tomava parte. Meu dinheiro e meu futuro estavam em Black Bowman, mas eu nada tinha a ver com ele nem ele comigo. Se ga­nhasse, seria porque McAndrew o criara e seus homens o treinaram para isso e porque levava na garupa um anão com as cores de McAn­drew. Eu limitava-me a apostar e, como tal, era um parasita na pele de um cavalo de corrida.

Agora, o piquete levava-os para a pista, montado nunl pesado cavalo de caça que contrastava ridiculamente com as linhas anas e nervosas dos puros-sangues. Minsky conduzia o cavalo a trote curto e o negro garanhão avançava com a elegância de uma bailarina. Assus­tou-se e desviou-se um pouco quando um enorme baio passou por ele a meio galope, mas Minsky soube acalmá-lo, apertando um pouco as rédeas. Era sempre o mesmo Minsky, um jóquei velho e experiente. Sentia-me contente por ter apostado em sua montada.

Black Bowman ocupou o décimo lugar na barreira. Ficava no meio da pista. Não poderiam atirá-lo contra as grades nem atropelá­-lo nas curvas, e, se Minsky conseguisse um avanço, poderia correr àvontade até às últimas centenas de metros que põem à prova os mús­culos e o fôlego do cavalo, assim como a perícia e a astúcia do jóquei.

Um zumbido metálico propagava-se na atmosfera quando o locutor anunciou as posições, tentando relatar à invisível audiência a pequena confusão da barreira. Não consegui entender-lhe as pala­vras, mas peguei no binóculo e vi Black Bowman firme em seu posto, enquanto o juiz da partida alinhava os últimos três cavalos. Um já es­tava sobre a linha, mas os outros continuavam distanciados. Os jó­queis fizeram-nos voltar e ocupar suas posições. A barreira subiu e a multidão gritou. A corrida começara...

Vi o brilho purpúreo e dourado quando Minsky se distanciou do grupo. Depois perdi-o no meio dos cavalos que regularam o passo para os primeiros 800 metros.

Um ruão castrado e um pardo enorme seguiam à frente. Houve alguns que erradamente se destacaram logo de início, mas o vencedor estava no meio do grupo e ninguém poderia adivinhar qual seria, an­tes de se dispersarem depois dos 1.200 metros e de os melhores es­colherem suas posições.

Ao fim dos 1.600 metros, o mão abrandou e o pardo seguia na dianteira, mas perdendo já terreno. Nos 800 metros finais, o grupo dividiu-se em dois e vi Minsky no Black Bowman, a passo largo na cauda dos primeiros oito cavalos. Quando faltavam 400 metros, os oito continuavam juntos, mas dois já se atrasavam, continuando o Black Bowman, na cauda da primeira meia dúzia. Minsky fez uma corrida sem nada de especial até à última reta. Então, senti cair-me o coração aos pés. O favorito passou para o lado das grades e três cavalos seguiam juntos. Black Bowman ia logo atrás do quarto. Ten­tei focá-lo, mas o cavalo da frente não me permitia. Vi o jóquei do favorito servir-se do chicote. Os três primeiros cavalos alargaram o passo quando os jóqueis se debruçaram para a frente, equilibrando-se nos estribos. Se Black Bowman não arrancasse agora, estaria li­quidado e eu com ele. Foi então que eu vi, e a multidão também. Tudo de pé numa gritaria! Minsky chegara Black Bowman para o lado de fora e seguia a quatro corpos do primeiro. Estava fora da sela, comprimindo com os joelhos o pescoço do animal. Tinha a cabeça baixa, escondida atrás do cavalo, e dava-lhe toda a rédea que ele queria. O grande garanhão esticava-se. Três corpos, dois e ei-lo ao lado do da frente. Então Minsky tocou de leve com o chicote no flanco do cavalo, e este, maio sentira, arrancou num salto que lhe permitiu ganhar por um corpo e meio.

Esperei a colocação dos resultados e a verificação do peso. Apal­pei o bolso para me certificar de que o bilhete da aposta continuava lá, e saí para apanhar um táxi. Tinha agora mais mil e duzentas li­bras, mas nem por isso me sentia muito entusiasmado.

Na segunda-feira de manhã fui fazer contas no Tattersalls Club. Bennie Armstrong, como de costume, pagou com um sorriso e con­vidou-me para voltar e apostar com ele.

Estava contando as notas novinhas e colocando-as na carteira, quando Manny Mannix me bateu no ombro.

- Parece que teve um dia feliz, Comandante!

Fiz um pequeno aceno e respondi:

- Sim, não foi nada mau.

- Mais de mil, nesse pacotinho! - observou Manny.

Guardei a última nota na carteira e mordi a isca.

- Exatamente, Manny. Mais de mil.

Manny sorriu astutamente.

- Quer dizer que teve sua oportunidade, hem, Comandante?

- De fato, Manny! Tive minha oportunidade.

Sorriu, naquele seu jeito amável e bonachão, e estendeu-me a mão.

- Creio que sim, Comandante. Boa sorte.

Ignorei a mão que me estendia e fitei-o nos olhos.

- Não passa de um vigarista, Manny! - disse-lhe calmamente. Em seguida, guardei a carteira e saí do clube.

Foi o segundo erro que cometi. Chame-se alguém de vigarista e ficar-se-á com o nariz esmurrado. Mas um homem como Manny prefere mostrar como pode realmente ser vigarista.

 

Meu dinheiro estava depositado no banco e a passagem de avião reservada. Uma carta seguira pelo correio para o Departamento de Terras do Governo de Queensland, avisando de minha chegada para comprar ou arrendar uma ilha rochosa, descrita desta e daquela maneira nos mapas. Minhas coisas estavam emaladas e o aluguel pago. Dirigi-me de barco a Lane Cove para falar com Nino Ferrari.

Nino é genovês, magro, nervoso e com pequenas rugas no canto dos olhos. Fora homem-rã na Marinha de Mussolini e ajudara a afun­dar no Mediterrâneo algumas toneladas de navios aliados. Depois emigrara, e tinha agora uma oficina de artigos submarinos. Fabricava escafandros para a Marinha, arpões para os pescadores e para os rapazes que se tinham apaixonado pelas águas profundas. Seu trabalho era meticuloso e de confiança; seus conhecimentos na arte de mergulhar quase enciclopédicos.

Disse-lhe que precisava de equipamento de mergulho e dois cilindros de ar.

Interrogou-me com gravidade:

- E para esporte, Sr. Lundigan, ou para trabalho?

- Faz diferença, Nino?

- Si, si... Muita diferença.

- Por quê?

Nino torceu o pescoço e estendeu as mãos.

- Por quê? Já lhe explico. Se comprar isto para esporte, procure uma lagoa de sete metros de profundidade e pode distrair-se durante horas sem grande perigo. Passa umas férias ao sol, mergulha, admira o coral talvez um peixe-espada... e é tudo. Acautelando-se dos tu­barões e observando algumas regras simples, não corre perigo. Mas se for para trabalho...

Calou-se. Aguardei um momento e depois incitei-o a que prosseguisse.

- Se for para trabalho, Nino?

- Nesse caso, precisa de treinos, meu amigo.

- Não tenho tempo para isso.

- Então é provável que se mate, e depressa.

Fiquei pensativo. Nino não estava brincando. Era um profis­sional e nada tinha a perder em dizer-me a verdade. Perguntei a mim próprio se deveria contar a Nino. Seus olhos frios e honestos ani­maram-me, pelo que nada lhe ocultei.

- Vou tentar descobrir um navio, Nino.

Para ele, aquilo não passava de um lugar-comum. Assentiu com ar sério.

- Salvamento?

- Tesouro.

O rosto prudente de Nino abriu-se num sorriso.

- Sabe onde está?

- Sei onde deve estar. Mas preciso descobri-lo.

- Onde espera descobri-lo?

Contei-lhe. Disse-lhe o que pensava que devia ter acontecido ao Dona Lucia. Tracei a rota e mostrei-lhe como havia imaginado seu fim... afundado no recife exterior na Ilha Bicorne.

            Nino escutou atentamente, concordou com minha lógica de his­toriador e, quando terminei, muniu-se de lápis e papel e pôs-se a in­terrogar-me:

            - Primeiro, diga-me que gênero de ilha é. Uma ilhota de coral?

            - Não. É uma ilha de terra firme. Um conjunto de terra e pedra, com rochedos de um lado e uma tira de praia do outro. O coral desenvolveu-se à sua volta.

            - A toda a volta?

            - É o que o mapa indica. Mas existe um canal que descobri há anos.

Nino traçou um desenho rápido. Representava a elevação de uma ilha, um pequeno monte que se erguia acima do nível do mar. Re­presentava também um extenso banco de areia, rodeado de coral recortado. Para lá deste, um banco menor e, a seguir, uma falésia que entrava pela água. Colocou-me o esboço diante dos olhos.

- É mais ou menos isto, não é?

- Muito semelhante.

- Bom!

Voltou a pegar no lápis e fez um desenho que se ia completando à medida que falava.

- Duas coisas podem ter acontecido ao navio: ou seguiu até ao rochedo com tempo moderado, mas abalroou e afundou-se; ou foi ter aqui e deslizou pelo banco de areia para o fundo das águas... Que profundidade disse que tinha?

- Não sei. É a primeira coisa que tenho de descobrir.

Nino concordou.

- E também a mais perigosa. Mas já falaremos nisso. Se não for muito profundo e o coral não tiver ainda comido o navio, talvez tenha sorte. Mas se, pelo contrário, se afundou com a tempestade, se foi desmantelado pela rebentação das vagas... Então, desde já lhe digo que não tem uma probabilidade num milhão. A madeira teria sido desfeita e com ela as arcas, naturalmente. Mas, mesmo que assim não acontecesse, teriam ido parar no fundo e sido devoradas por duzentos anos de coral... Seria o bastante para nunca mais as encontrar, nunca mais até à consumação dos séculos.

Nino levantou a cabeça do desenho, cravando em mim seus olhos francos.

Disparei-lhe uma pergunta direta:

- Se estivesse em meu lugar, o que faria, Nino?

Sorriu, meneando a cabeça.

- Em seu lugar e com a experiência que tenho, esqueceria o navio-tesouro e guardava o dinheiro. Mas se me encontrasse no estado em que o vejo, com um sonho no coração e algumas libras no bolso, então iria procurá-lo.

Respondi com um esgar. A tensão abrandou. Começamos a falar de coisas práticas.

- Antes de mais - disse Nino, resumidamente - é necessário comprar um mapa marítimo. Anotará a profundidade das águas ao largo desse banco. Não deve ir além de 45 metros. Nesse caso, terá probabilidades. Pode-se treinar, trabalhar confortavelmente a essa profundidade, desde que observe as tabelas de descompressão. Abaixo disso, não: segue-se a zona da embriaguez, onde os mergu­lhadores se embebedam com o nitrogênio do próprio corpo, e todos os movimentos são perigosos, mesmo para os mais experientes. Creio que compreende o que quero dizer.

Acenei que sim. Conhecia os terrores das contorções quando o nitrogênio liberto explode como champanha nas articulações e nas vértebras, obrigando o mergulhador imprudente ou infeliz a rodopiar fantasticamente. Já tinha feito leituras acerca da embriaguez es­tranha e mortal que ataca os homens na zona azul, que os faz falar aos peixes, arrancar as máscaras e dançar estranhas sarabandas com a morte à espreita no profundo crepúsculo das águas.

Nino prosseguiu no interrogatório:

- Sabe que não pode fazer isso sozinho?

- Não irei só. Levo um amigo.

- Um mergulhador equipado?

- Não, só com máscara. Um velho perito em lugares baca­lhoeiros. É um ilhéu de Gilbert. Trabalhou com os japoneses e está habituado às águas profundas.

- Bem... - disse Nino, comprimindo os lábios. - Mergulhará com você, mas não poderá ajudá-lo.

- É isso que eu quero, Nino. Trabalharei só.

Encolheu os ombros.

- A vida é sua. Estou simplesmente mostrando-lhe os riscos que corre.

- Quero conhecê-los.

- Então, volto a repetir-lhe que tem de treinar.

- Posso fazê-lo sozinho?

- Pode. Dar-Ihe-ei um conjunto de regras e exercícios. Executá-­los-á diariamente, aumentando de dia para dia os mergulhos e obser­vando as tabelas de descompressão. Não deixe de seguir os exercícios e as instruções. Entendido? Sua vida depende deles. Vai entrar num novo mundo. Ou se adapta... ou morre.

Sei que fui louco em não aceitar a oferta de Nino para um curso de treinamento, antes de partir para a ilha. Mas os maus demônios aguilhoavam-me. Tinha de aproveitar antes que o sonho se desfizesse e o sabor amargo da desilusão me invadisse. Creio que Nino com­preendeu, embora não aprovasse minha loucura.

Mostrou-me o equipamento e explicou-me como funcionava. Colocou-me o mesmo e fez-me descer no lago próximo da fábrica, a fim de tentar alguns mergulhos.

Depois de vestido e enquanto bebíamos um copo de Chianti, sen­tados em sua oficina, Nino elaborou uma lista dos artigos que teria de me oferecer: tubos respiratórios, óculos de vidro inquebrável, um cin­to com pesos, barbatanas e cilindros de ar comprimido.

- Diabos me levem! - praguejou Nino. - Estou doido varrido! Já me esquecia!

- De que, Nino?

- A ilha de que fala fica perto ou longe do continente?

- A cerca de quinze milhas. Por quê?                     

- Há alguma cidade próxima?

- Há. Mas, depois de me abastecer, não quero lá voltar. É uma cidade pequena. Os visitantes são uma curiosidade e os turistas tema de conversa dos naturais, o que não me convém. Mas por quê?

Batendo com a mão na garrafa metálica de ar comprimido, Nino disse:

- Por causa disto. Duas chegam-lhe para hora e meia debaixo dágua. Mas depois tem que as encher de novo e, para isso, necessita de um compressor de três mudanças, que é pesadíssimo. Talvez nem nessa cidadezinha encontre tal máquina.

Foi a minha vez de praguejar e fi-lo com competência.

- Qual é a alternativa?

- Nenhuma. Vendo-lhe vinte garrafas, que são quase todas as que tenho. Terá de as transportar para a ilha. Darão para quinze horas debaixo dágua. Depois, será obrigado a mandá-las encher em Brisbane.

Vinte garrafas a sete libras cada uma eram cento e quarenta libras, sem contar com o frete aéreo. Quando me despedisse de Nino, teria duzentas e oitenta libras a menos e apenas quinze horas para descobrir o tesouro. Por outro lado, se não o descobrisse nessas quin­ze horas, nunca mais o conseguiria.

Só me restava pagar de bom grado e esperar que o dinheiro se transformasse em ouro reluzente, cunhado com a efígie de Sua Majestade Católica da Espanha.

Fechamos o negócio e falamos de coisas técnicas. Quando o vinho acabou, levantei-me para me despedir e Nino Ferrari pôs-me a mão no ombro. Havia vestígios de ironia em seu sorriso; mas não sei dizer se essa ironia era dirigida a mim ou a ele mesmo.

- Signor Lundigan - disse - vou-lhe contar uma coisa. Quando comecei a mergulhar no Mediterrâneo, assim que entrava num bar aparecia logo meia dúzia de indivíduos que sabiam de navios-tesouros à espera de serem recuperados. Em toda minha vida, não encontrei um único que tivesse conseguido. mais do que alguns cacos ou uma peça de mármore, ou mesmo uma estatueta de bronze. E, no entanto, sabe tão bem como eu que os tesouros da Grécia, de Roma e de Bizâncio jazem no mar continental. Se me perguntar por que lhe digo isto, é porque desejo que vá e mergulhe à procura do navio-tesouro. Descubra-o, se for capaz. Mas se não conseguir, terá feito o que o coração lhe pedia, e isso é mais importante do que todo o ouro do rei da Espanha.

Nino Ferrari é de Gênova, uma linda e esplendorosa cidade aventureira, com uma estátua de Cristóvão Colombo na praça pú­blica. O grande e velho visionário teria sentido orgulho de Nino Ferrari. Sei que, por breves instantes, Nino Ferrari também me fez sentir orgulhoso.

O funcionário do Departamento de Terras era simpático e de­licado, e estava plenamente convencido de que eu era um lunático. Informou-me de que o Governo de Queensland não estava disposto a alienar mais ilhas ao largo da costa, mas.teria prazer em me arrendar a que eu pretendia por dez, vinte ou noventa e nove anos, se a quisesse por todo esse tempo. Esclareceu que ninguém, em seu perfeito juízo, permaneceria num lugar daqueles mais de dez minutos. Não tinha água, nem canal para atravessar o recife. Quando lhe disse que não só havia água como também um canal, soltou uma risadinha e pediu-me que informasse disso o Chefe Superintendente, no caso de teimar em ser arrendatário da Coroa.

Claro que eu teimava, e muito mais ainda quando soube que o arrendamento não iria além de vinte libras por ano e que podia man­ter minha base de operações sem escamotear demasiado o capital que tanto me custara a ganhar.

O arrendamento foi feito, assinado, selado e depositado no Registro Geral. Renn Lundigan tornara-se arrendatário do Governo de Sua Majestade, com direitos à posse exclusiva de uma ilha verde com uma praia branca e um recife de coral, a quinze milhas da costa de Queensland.

A transação foi tão simples, tão trivial, que me esqueci por com­pleto de um fato importante. Assinar, selar e registrar um documento é um ato legal, irrefutável como um disco gravado, mas é também terrivelmente público. Nem de leve pensei nisso ao meter as cópias no bolso, juntamente com minha nota de crédito e os documentos de consignação de Nino Ferrari, enquanto caminhava, sob o sol ardente, para o edifício dos transportes aéreos.

O equipamento esperava-me, embalado em três caixotes de madeira. Logo se levantou o problema do transporte para minha ilha. Podia seguir por avião até à costa e depois por trem até à pequena cidade próxima da ilha, para onde o levaria numa lancha. A hipótese não me agradou. Havia o risco de demoras e estragos. Havia o risco ainda maior do falatório e do perigoso interesse que volumes tão grandes poderiam suscitar quando fossem embarcados para uma ilha onde nem sequer os turistas podiam ir para seus piqueniques e pas­seios de barco em redor do Barrier Reef.

Discuti calmamente o assunto com o funcionário dos despachos. Disse-me que havia um hidroavião duas vezes por semana para servir as ilhas turísticas de Whitsunday Passage. Meus volumes poderiam ficar numa delas, onde os iria depois buscar com uma lancha. Supôs que eu tivesse uma lancha e não o contradisse, se bem que estivesse longe da verdade. É evidente que tencionava ter uma, mas primeiro teria de a descobrir e comprá-la. Paguei a enorme conta do despacho, assinei os papéis do seguro e aceitei a garantia de que os pacotes me

seriam entregues a partir de quinta-feira, contanto que o tempo se mantivesse bom e o aparelho não se desviasse do velho Catalina.

            Em seguida, comprei uma passagem de avião para o norte, para a tarde seguinte, e fui até ao Hotel Lennon beber qualquer coisa.

Julho é a época turística de Brisbane. O sol deslocou-se para nor­te, de Capricórnio para Câncer, as chuvas terminaram, o céu apresenta-se azul e o ar tão seco que vale uma fortuna para os tu­barões da terra: taberneiros, donos de pensões e ainda os que alugam apartamentos mobiliados, desde Southport até Caloundra.

Os ricos saem de Melbourne e Sidney para o norte. Os estróinas ostentam maços de notas e as moças vendem seus encantos. Os se­manários elegantes enviam seus repórteres atrevidos e os fotógrafos andam numa roda-viva com os manequins das casas de modas. Não se consegue um quarto por amor; mas consegue-se por dinheiro, muito dinheiro. As ilhas turísticas estão superlotadas e os roteiros reproduzem páginas a cores e suplementos especiais sobre a Riviera do Pacífico Sul e o Waikiki do norte próximo.

Os sagazes homens de negócios, de roupa tropical, sorriem, pachorrentos, por cima das bebidas, no bar do Lennon, e elevam para mais mil o preço de trinta metros de dunas na zona inundada.

Era um estranho no meio deles. Seriam simpáticos para comigo como sempre o são para com os do sul, mão não deixaria de ser um forasteiro.

Saí do bar para o vestíbulo, entretido com uma caneca de cer­veja, ao mesmo tempo que observava os turistas que se dirigiam para as ilhas rochosas do norte ou para as paradas de biquínis do sul.

Invejei-lhes a despreocupação e a maior ou menor opulência. Era verdade que não possuíam ilhas; que não esperavam nem pensavam em arcas de ouro agarradas ao coral. Mas também não eram per­seguidos por maus demônios; nem tinham maléficos diabinhos a em­purrá-los para rotas solitárias, para quedas-d'água desertas que o luar frio inundava. Não eram obrigados a mergulhar nas águas profundas e a fazer companhia a monstros da floresta como os que aparecem nas gravuras. Invejei-os, se bem que a inveja seja um de­feito terrível e a autocompaixão mais perigosa ainda. Tinha arriscado e perdido muito; minha aposta custara-me muito a ganhar para que me deixasse agora invadir pelo desânimo.                                                             

Havia decidido acabar com a bebida e ir ao teatro quando a des­cobri.

Um garçom de camisa de seda e faixa escarlate conduzia-a para uma mesa sob as palmeiras. Tratava-a como a uma hóspede habitual estimada. Acrescentou mais qualquer coisa por sua própria conta, pois era jovem e ela formosa e interessada também em mostrar que a beleza lhe rebentava as costuras.

 Ele chegou-se demasiado ao puxar a cadeira e ela sorriu-lhe por cima do ombro nu, dando suas ordens com maneiras afetadas de manequim. Quando ergueu a mão, ouvi o tilintar do bracelete e vi o brilho dourado de minha moeda espanhola.

Era a garota de Manny Mannix, o modelo de olhos astutos e boca descaída, a moça que assistira a minha ruína nas mesas de jogo e me vira depois sendo posto na rua a pontapé, bêbado demais para me defender.

Senti uma mão gelada apertar-me a garganta. Se a moça estava ali, também Manny deveria estar: era como um abutre que nunca lar­ga a vítima.         

Acendi um cigarro e considerei-me tolo. A moça estava só. Já não pertencia a Manny. Fora despedida como as anteriores e viera para o norte, para a costa do ouro, investir seu capital em outro homem com uma prometedora conta bancária.

O garçom voltou com uma bebida, que ela pagou. Era bom sinal. Moças de sua espécie nunca pagam bebidas quando há alguém que o faça por elas. Senti tinir as moedas quando levou o copo aos lábios, com gestos de afetada delicadeza, como um animal bem treinado. Então surgiu-me uma idéia louca, que me restituiu a autoconfiança e o bom humor, como se fora uma droga.

Joguei fora o cigarro e dirigi-me para o tranqüilo recanto, sob as palmeiras. Ela seguiu-me nos últimos dez passos, mas seus olhos per­maneceram frios e os lábios não me desejaram as boas-vindas.

Inclinei-me para a mesa, afivelei meu sorriso infeliz e inquiri:

- Lembra-se de mim?

- Sim.

A voz condizia com a atitude. Era parada, monótona, roufenha e desagradável.

- Importa-se que me sente?

- Não.

- Obrigado.

Sentei-me. Acabou de beber e empurrou o copo para junto de mim. Era um insulto evidente.

- Pode mandar vir outra, se quiser.

- Se a puder pagar, quer você dizer!

- Oh! Eu sei que pode. Manny disse-me que você tinha di­nheiro.

            De novo senti na garganta os dedos gelados. No entanto, con­segui sorrir e dar à voz um tom indiferente.

            - Fie-se em Manny! É muito esperto.

- Não gosta muito de você, Comandante.

- O sentimento é mútuo.

Soprou uma baforada de fumaça na minha cara e queixou-se laconicamente:

- Nesse caso somos três, Comandante.

- O que quer dizer?

- Que também não gosto de Manny.

- Julguei que ele a tivesse acompanhado.

- Não. Manny agora tem outros interesses. Arranjou uma morena.

Disse-lhe que lamentava e ia acrescentar que os homens que tratam as mulheres à maneira de Manny não são homens, mas ela in­terrompeu minha pequena filípica com um gesto.

- Não diga mais nada, Comandante. Não gosta de mim nem eu gosto de você. Deixemo-nos de frases bonitas. Sabe que Manny me ofereceu sua moeda?

            Estendeu o pulso, de modo que a velha moeda ficou balançando provocadoramente diante de meu nariz.

            - Já sabia. Ele me disse que era para você.

Vi-a sorrir pela primeira vez. Umedeceu os lábios com a pequena língua ágil e os olhos brilhavam-lhe de malícia.

- Você a quer de volta?

- Quero.

- Quanto dá?

- Trinta libras. Foi quanto Manny me pagou por ela.

- Cinqüenta, Comandante. E pode levar o resto também.

Tirei a carteira e contei dez notas de cinco libras que coloquei na mesa, sem dizer palavra. Ela desapertou a pulseira e chegou-a para mim, ao mesmo tempo que guardava as notas na bolsa.

- Obrigada - disse em sua voz insípida. - Estava sem tostão.            Agora, pode pagar-me uma bebida.

            Meti uma nota de dez xelins debaixo da bandeja e levantei-me.

            - Desculpe, mas tenho de ir. É melhor caçar turistas que an­dem passeando. Eu tenho de trabalhar.

A frase soou-me como uma grosseria que era. Nem Manny Man­nix conseguiria ser tão baixo. Tentei gracejar e descobrir palavras que me desculpassem.

- Perdoe... Não devia ter dito o que disse.

Encolheu os ombros e pegou na caixa de pó-de-arroz.

- Já estou habituada. Uma coisa apenas, Comandante...

- Diga.

- Pagou-me generosamente a pulseira e, para o compensar, vou-lhe dar uma informação.

- Qual?

- Manny disse-me que você tem qualquer coisa que ele preten­de.

- É disso que ele vive, pretendendo o que os outros têm.

- Mas jurou que, desta vez, havia de o conseguir.

- Em primeiro lugar, terá de me descobrir, o que lhe levará muito tempo. E quando me encontrar...

            Começava a afastar-me quando ela me obrigou a parar.

- Quando ele o encontrar, Comandante... quando o encontrar, mata-o!

 

O avião subiu a 2.600 metros e, pela portinhola de estibordo, vi sua sombra, semelhante à de um pássaro, correr pelo tapete verde de terra que ia ficando para trás.

A leste, estava o mar, o recife e as ilhas de jade. A oeste, até per­der de vista, as planícies retalhadas por pastagens castanhas. Por baixo de nós, o fresco cinto da costa, onde as monções regam as pequenas colinas e inundam os pântanos, onde os bandos de íbis executam no lodo seus misteriosos bailados.

Ora se descobriam canaviais e plantações de abacaxis, bosques de papaias e frondosas mangueiras, ora, verdejantes pastagens com rebanhos de ovídeos. De um lado, os homens magros e de poucas falas, do norte; os cortadores de cana, os operários, os criadores de gado que passeavam com os inúmeros e ociosos tratadores. Do outro, pessoas tristes e desorientadas, uma mistura da velha e da nova raça, de sangue chinês e nipônico, das Ilhas Gilbert e de Spice.

Ora se viam casas construídas sobre estacas para que o vento as areje, soprando-lhes em volta, depois dos entorpecedores dias de canícula, ora as pujantes bungavílias que se enroscam nas colunas e nos telhados galvanizados. Aqui, os homens são ricos porque têm muito tempo a sua disposição. Seriam pobres de verdade se não tives­sem amigos entre a generosa gente de Queen. Não faltava trabalho para quem quisesse realizá-lo. E se não quisesse fazer mais nada a não ser morder hastes de erva nos degraus da varanda, pois bem, também o poderia e mandar para o inferno o resto.

A mim, Renn Lundigan, que voava bem alto entre o céu azul e a terra verde, aquilo encheu-me de uma paz estranha, uma sensação de alivio, como se me cortassem o cordão umbilical e eu nascesse para um mundo novo e livre, longe do perigo, sem recordações, para lá da angústia do desejo e do sofrimento da perda.

Meu destino era Bowen, um pequeno porto onde a vegetação luxuriante disfarça as cicatrizes dos ciclones e das súbitas tempes­tades. De Bowen teria de seguir para o sul, retrocedendo oitenta quilômetros. Talvez, à primeira vista, pareça uma loucura, visto que o avião me podia deixar em meu destino, sem o incômodo de três horas num trem velho. Mas isso de modo algum me convinha.

A cidade para onde me dirigia era ainda menor do que Bowen. Um estranho que lá chegue de avião ou é turista ou caixeiro-viajante. Como tal, é objeto de interesse cortês, mas excessivo. Todos os seus passos são comentados na fraternidade da taberna ou das calçadas por baixo das varandas.

Se, porém, chega de trem, coberto de pó, amarrotado e colérico, aceitam-no por aquilo que lhe convier: inspetor, vendedor, armador ou operário das usinas de açúcar. Se paga a conta, não fala muito, gasta pouco e mostra que sabe alguma coisa da terra, deixam-no em paz e esquecem as perguntas que tencionavam fazer, porque está demasiado calor para se lembrarem.

Meus conhecimentos da terra eram reduzidos, mas contava com Johnny para me acudir nas falhas.

Seu nome completo era Johnny Akimoto. Descendia de um mer­gulhador japonês e de uma mulher das Ilhas Gilbert. O sangue materno prevalecia e, se não fora a curiosa tez acinzentada e a fir­meza oriental dos olhos e dos ossos faciais, Johnny poderia passar por um ilhéu genuíno. Desde os tempos da escravatura, quando os ilhéus eram seqüestrados para trabalhar nos canaviais, que se encontram estes curiosos cruzamentos de raças ao longo de toda a costa de Queensland.

Johnny chegara a trabalhar nos lugres. Navegara com os mer­gulhadores de pérolas e descera às grandes profundidades. Mas quando rebentou a guerra e os mergulhadores ficaram desocupados, Johnny fez de tudo um pouco. Foi criado de americanos, maquinista num pesqueiro, motorista de caminhão e de um empreiteiro local. Todos conheciam Johnny. Todos o estimavam e, quando Jeannette e eu encalhamos durante um ciclone, foi Johnny quem remendou as velas, reparou e pintou o casco; era ele também que nos lia belos ser­mões quando estávamos em terra, durante a época fraca.

Foi ainda Johnny quem me ajudou a traçar a rota dos galeões de Acapulco. Quando lhe falei de nossas primeiras e incertas esperanças acerca do Dona Lucia, aprovou com a cabeça e prometeu que um dia mergulharia comigo no recife da Ilha Bicorne. Era um homem prudente e calmo, este Johnny Akimoto. Um homem delicado e leal, solitário e perdido no meio da simpática gente da costa.

À medida que o avião avançava para norte, ia pensando em Johnny. Depois adormeci, sonhei com Manny Mannix e a moça que me voltara a vender a moeda por cinqüenta libras. Acordei com a aeromoça inclinada sobre mim, pedindo-me que apertasse o cinto. O avião picou para a imensidade azul das águas. Fechei os olhos e, quando os reabri, notei um cata-vento de tela enfunada e uma série de barracões com telhados de zinco. Chegávamos a terra.

Sufocava-me na sala de espera, enquanto descarrregavam as bagagens. Era a meio da tarde e a brisa marítima só começaria a soprar daí a uma hora. Achei-me a conversar com um indivíduo gor­ducho, de terno de alpaca. Disse-me que era banqueiro aposentado e que ia ter com a mulher e a filha que veraneavam numa ilha de luxo, ao largo de Bowen. Também me disse quanto lhe custariam aquelas férias, mas que esperava divertir-se um pouco. Confessou-me que o calor lhe provocava irritação na pele e o frio, bronquite. Falou-me de golfe e de seu desejo de cultivar dálias para concurso. Contou-me...

- Sr. Renn Lundigan?

O empregado do aeroporto estava junto de mim.

- Eu mesmo.

- Um telegrama para o senhor. Chegou antes de o avião ater­rar.

Entregou-me um envelope amarelo-claro debruado a vermelho, com a indicação de urgente. Rasguei o envelope e desdobrei o con­teúdo. Provinha de Brisbane e fora enviado havia meia hora. A men­sagem era breve e calorosa como um aperto de mão:

BOA PESCARIA COMANDANTE STOP ATÉ BREVE STOP.

Assinado MANNY MANNIX.

Amarrotei o papel e meti-o no bolso. O banqueiro gorducho olhava-me com curiosidade. Queria continuar a conversa. Voltei-lhe as costas, deixando-o aparvalhado. De repente, senti-me doente e mais só do que nunca, exceto quando Jeannette se fora. Precisava muito falar com Johnny Akimoto.

A viagem de trem foi um tormento de lentidão. Sentia calor e es­tava coberto de pó, atacado de moscas e farto quase até à loucura por causa de dois meninos que não paravam de choramingar, enquanto a mãe os repreendia em vão, ansiosa por descansar.

Paramos em todas as estações onde o maquinista trocava impres­sões com o pessoal da estrada de ferro. Levaram-nos para um desvio e aí ficamos 45 minutos, até que passasse o trem do norte. A região ver­dejante, que me havia parecido tão rica e desejável, era afinal melan­colicamente pobre, condizendo com minha depressão. A gente sim­pática do norte era de tez escura e demasiado faladora. Os filhos, uns monstros. O serviço de transportes revelava um primitivismo incrível. Passei a considerar os cumprimentos como uma intrusão em minha intimidade; as ofertas de jornais, fruta ou limonada, como uma presunção insuportável. Quando a viagem chegou ao fim, deviam ter­-me classificado como um rústico rabugento. Tenho de concordar com eles.

O telegrama de Manny chocara-me profundamente. Depois do primeiro ímpeto de raiva, apoderou-se de mim o medo. Não acre­ditava que a ameaça de Manny de me matar fosse além de uma fan­farronice para impressionar uma mulher e, no entanto, o medo per­manecia - medo de perder uma coisa que ainda não possuía, mas pela qual havia lutado, feito projetos e corrido riscos.

Além disso, eu não desconhecia o poder de Manny, a possibi­lidade que tinha de comprar um homem aqui e uma informação ali, de planejar as jogadas como no xadrez, de me pôr em xeque, de me ludibriar, de me vencer no jogo em sagacidade, rapidez e eficiência. Pensei nos três caixotes que estavam nos escritórios aéreos de Bris­bane e perguntei a mim próprio se ele não seria capaz de provocar seu extravio.

Lembrei-me de que Manny podia fretar um avião e estar no hotel à minha espera, para me dar as boas-vindas. Não sei o que faria se lá o encontrasse.

Mas não encontrei. Era eu o único hóspede. Isso permitiu-me ocupar o melhor quarto, com cama de rede, um vasto mosquiteiro, um jarro e um lavatório rachados. Podia servir-me à vontade do único banheiro e percorrer os cinqüenta metros até ao lavabo do pátio. Podia beber sozinho na sala, levantar-me às sete e meia e tomar o pequeno almoço às oito. Podia aceitar o asmático convite de meu hos­pedeiro para me juntar aos pescadores e operários no bar, ouvindo suas obscenas histórias. Eram boa gente e receberam-me com sim­patia. Mas nada daquilo me interessava. O que eu queria era um banho de chuveiro, uma bebida e uma refeição, antes de ir ter com Johnny Akimoto.

Encontrei-o no mesmo lugar que da primeira vez: numa pequena cabana de madeira, com a mata por trás e as dunas de areia pela frente. As veredas de coral eram raspadas todos os dias com o an­cinho. Havia uma buganvília rasteira, um malvaísco, um canteiro de belas gardênias e um enorme jasmim vermelho com os ramos des­pidos levantados, como símbolos de um culto fálico.

Um candeeiro a querosene pendia de um prego, do umbral da porta, e Johnny estava sentado num caixote, ajustando anzóis e uma linha de pesca. Tinha uma flor de malvaísco no cabelo encarapinhado e apenas um calção de sarja em cima da pele.

Ergueu os olhos rapidamente, ao ouvir meus passos, e seu rosto logo se abriu num sorriso de surpresa e boas-vindas. Correu para mim de mão estendida.

- Renboss!

- É verdade, Johnnyo, Renboss!

Era o nome dos antigos e felizes tempos. Quase me fez chorar. Johnny sacudia-me a mão e dava-me pancadinhas nas costas. Fez-me sentar em outro caixote, que arrastou para o círculo de luz, rouban­do-o às sombras.

- O que o traz por aqui, Renboss? Vem por muito tempo? Como lhe corre a vida? Está bom? Parece cansado, mas deve ter sido da viagem, hem?

As perguntas sucediam-se no inglês didático da missão e não parava de me observar, procurando descobrir a verdade como uma mãe ansiosa.

Falei-lhe com franqueza.

- Vim para o ver, Johnny.

- A mim? É muito amável, Renboss. Tenho pensado muito em você e... na senhora.

- A senhora morreu, Johnny.

- Oh, não! Quando? - O desgosto lia-se em seus olhos ternos.

- Há muito tempo, Johnny. Há muito tempo que estou só.

- Não voltou a casar-se?

- Não.

- E veio aqui para ver Johnny Akimoto? É de amigo, Renboss. Agora tenho um barco, um lindo barco. Vamos para o recife, não é? Vai pescar comigo, hem? Faremos uma viagem à Ilha de Thursday... ou talvez a Moresby.

- Claro que faremos uma viagem, Johnny, mas não a Thurs­day... a minha ilha.

- A sua ilha?

Olhou-me com pasmo, mas logo sorriu contente.

- Ah, já me lembro! A ilha do tesouro, não é? Agora é sua?

- Aluguei-a, Johnny. É minha. Vamos mergulhar à procura do Dona Lucia e quero que me acompanhe.

Johnny ficou calado. Voltou para cima as palmas das mãos e dir­-se-ia que lhes estudava as linhas e as pregas. Depois, tirou os cigarros do bolso e ofereceu-me um. Nós os acendemos e ficamos fumando, es­cutando o marulho das águas e o sibilo penetrante do vento.

Quando Johnny falou, fê-lo lentamente, como um profissional:

- Para isso, Renboss, precisa de um barco.

- Tenho dinheiro para um, Johnny.

- Precisa de equipamento e de um mergulhador.

- Mergulharemos nós.

- Já alguma vez mergulhou, Renboss?

- Um pouco... Um ou dois mergulhos para treinar; nada mais.

- Então terá muito de aprender.

- Quero que me ensine, Johnny. Além disso, tenho uma série de exercícios que o fabricante do equipamento me recomendou. Disse que posso preparar-me para mergulhar a 45 metros.

- Quarenta e cinco metros! - exclamou Johnny, chocado. - É muito fundo, Renboss; demasiado fundo para mergulhar sem aparelhos.. .

- Talvez não, Johnny. Não se trata de um simples mergulho. Temos o oxigênio para respirar lá embaixo.

Johnny meneou a cabeça.

- É novidade para mim. Não me cheira nada bem.

- Acompanha-me, Johnny? Ajuda-me a comprar o barco, a arranjar provisões e...

- Não precisa de barco - interrompeu Johnny, calmamente.­ Temos o meu. É como um lugre. Estava velho quando o comprei, mas consertei-o e navegará para onde quisermos. Tem motor novo e desenvolve oito ou dez nós, se for preciso.

            - Neste caso, está bem. Alugo-lhe o barco e receberá um or­denado. Vai trabalhar comigo na ilha. Está de acordo?

            Johnny acenou afirmativamente.

            - Estou, Renboss. Fácil, rápido e sem complicações. Se tentas­se comprar um barco aqui, vender-lhe-iam um mau por um bom preço. Estamos em Reef, Renboss! Ao menor descuido, o teredo car­come-nos os barcos. É então preciso vendê-los a alguém que não saiba da existência do teredo, não lhe parece?

Assim era, com efeito. Eu conhecia o teredo, esse pequeno molus­co que corrói as madeiras nos climas quentes, devorando um barco como as formigas-brancas devoram uma casa. Só há uma defesa: forrar o barco de cobre até à linha-d'água ou pintá-lo freqüentemente com tinta de bronze até ficar impermeabilizado ao verme marinho. Os barqueiros de Queensland são como os negociantes de cavalos de Kerry... Alguns são descendentes diretos desses conhecidos biltres.

Lembrei-me ainda de outra coisa: O barco de Johnny era um lugre, uma embarcação que balouçaria rudemente quando bolinasse com o vento, mas nem por isso deixava de ser próprio para as águas profundas, seguro como um banco e resistente aos ventos. Se con­seguíssemos salvar as arcas do tesouro do Dona Lucia, estas seriam propriedade da Coroa, e eu, na qualidade de súdito, não teria direito a qualquer recompensa. Mas com o lugre de Johnny e seu conheci­mento das ilhas, poderíamos levantar ferro e navegar para norte, até encontrarmos um chinês que trocasse notas por moedas de ouro, ou um traficante que precisasse de ouro para o contrabando de armas. É um negócio corrente e rendoso nas Celebes e nos Estreitos da China. Com ouro pode-se fazer preço e ao câmbio que se quiser. Não expus meus pensamentos a Johnny, com receio de que não os aprovasse. Além disso, haveria muito tempo, mais tarde.

            Johnny fumava despreocupadamente, pensando na próxima per­gunta. Tinha o rosto na sombra, mas seus olhos não me desfitavam.

- Renboss, está com medo de qualquer coisa. O que é?

- Depois lhe contarei, Johnny. É uma longa história.

- Se vamos trabalhar juntos, Renboss, quero saber já.

Fiz-lhe a vontade. Falei-lhe de Manny Mannix e da moça do Hotel Lennon. Contei-lhe o caso do telegrama e confessei-lhe que receava Manny Mannix e o poder que o dinheiro lhe conferia.

Johnny expelia anéis de fumaça, seguindo a trajetória que o ven­to lhes imprimia. Depois, disse:

- Devíamos partir já.

- Quando quiser, Johnny. Estou pronto.

- Primeiro, precisamos de provisões.

- Quando as pode conseguir?

- Amanhã. Provisões e medicamentos. Pode haver um acidente no recife ou no mar.

- Farei uma lista, esta noite. Há alguma farmácia na cidade?

Johnny acenou afirmativamente.

            - Claro que há uma farmácia. Creio que é melhor você ir com­prar os medicamentos enquanto eu trato das provisões. A você, poderiam fazer-lhe muitas perguntas.

- Quando partimos, Johnny?

- Depois de amanhã, ao romper do dia.

- Não pode ser antes?

- Não! - disse Johnny com firmeza. - E para quê? Temos de preparar o barco e ir buscar o equipamento na ilha turística. Além disso, precisamos fazer passar o lugre por uma estreita passagem do recife. É trabalho para um dia. Seria loucura arriscar o barco inutil­mente,

- E se Manny aparece antes de partirmos?

- Por que haveria de aparecer?

            - É muito simples, Johnny. A única coisa que Manny não sabe ainda é para onde vou. Sabe que há uma ilha, mas ignora o nome e o local.

- Não tente iludir-se, Renboss! - disse Johnny gravemente. ­Não procure convencer-se do que não é verdade. Comprou essa ilha, não é? Tal como eu comprei esta barraca e este pedaço de terra?...

- Aluguei-a.

            - Vem a dar no mesmo. Assinou papéis que ficaram registrados na repartição do governo de Brisbane. Qualquer pessoa pode ir lá pagar dois xelins e seis dinheiros e saber tudo o que quiser sobre a transação, não é assim?

De fato. Muito simples, exato e sem réplica. Eu era historiador, sabia traçar o declínio de impérios e a queda de heróis, mas havia-me esquecido de uma das mais simples possibilidades legais da vida moderna. Manny Mannix não tinha que se preocupar. Bastava-lhe esperar e, depois, começar a matar. Tudo isso por dois xelins e seis dinheiros.

Ri. Não conseguia sufocar o riso. Ri até lágrimas de histerismo me correrem pelas faces e os pássaros, ocultos nos arbustos atrás da barraca, começarem a chilrear assustados.  

Johnny, de pé, observava-me um tanto inquieto. O riso deu lugar a um ataque de tosse. Pedi-lhe, estupidamente, outro cigarro. Pas­sou-me, acendeu-o e perguntou:

- Sente-se melhor, Renboss? - Estou bem, Johnny.

- Bom! Amanhã compro as provisões e você trata dos medi­camentos. Estarei de volta às três da tarde. Levamos tudo para o bar­co e deixaremos as coisas prontas antes do anoitecer. Dormiremos a bordo e, ao alvorecer, levantaremos ferro.

Tirei a carteira e estendi a Johnny cinqüenta libras em notas.

- Chega para as provisões?

- Ainda sobra, Renboss.

- Tenho o resto do dinheiro no banco. Farei contas com você amanhã ou depois, quando quiser.

- Quando acabarmos o trabalho, Renboss. - Johnny sorriu fugazmente e bateu-me no ombro.

- E se não o acabarmos? - perguntei.

- Neste caso, faremos como já lhe disse. Rumamos para norte, para Thursday, para a Nova Guiné e talvez consigamos qualquer coisa por lá, hem? Agora vá para casa e durma, Renboss. De manhã, ao acordarmos com o sol, tudo parece sempre melhor.

- Boa noite, Johnny!

- Boa noite, Renboss!

            Voltei ao hotel já com estrelás no céu. Bebi com os operários no bar e nem me recordo de ter ido para a cama. Não me lembro de nada, a não ser que fui acordado às dez da manhã pelo sol.

 

Arrastei-me penosamente para fora da cama e dirigi-me para o banheiro, a fim de lavar o sono dos olhos e o cheiro a álcool da pele. Vesti-me com lentidão, resignado, ao pensar que já era muito tarde para o pequeno almoço. Fiz a mala, paguei a conta e recusei a oferta de uma bebida da casa, preferindo uma chávena de chá quente na cozinha. Em seguida, tendo deixado a mala no bar, onde depois a iria procurar, fui a pé até uma pequena construção de madeira que era o único banco da cidade.                           

O gerente era um homem alto e rosado, de camisa fresca de linho e shorts. Quando lhe apresentei minha nota de crédito, saudou-me como se eu fora um milionário e convidou-me para ir a seu gabinete tomar uma chávena de chá. Suas maneiras tornaram-se mais frias e olhou-me de lado quando lhe disse que pretendia depositar minha nota de crédito para ficar segura e que, se não voltasse dentro de três meses, todo meu crédito passaria para uma conta em nome de Johnny Akimoto. Retirou uns papéis da gaveta da mesa e colocou-os em sua frente, em cima do mata-borrão. Depois, iniciou o interrogatório:

            - Há algum motivo para que não volté dentro de três meses, Sr. Lundigan?

            - Nenhum que eu imagine de momento, mas convém estar preparado, não lhe parece?

            - Claro! Mas para que, Sr. Lundigan?

            - Acontecem desastres, não é verdade?

- Claro, claro! Mas... - Apercebeu-se de que estava sendo in­discreto e parou a tempo, arvorando seu sorriso estudado de profis­sional. - E evidente que nosso banco fará as disposições que enten­der. Apenas terá de assinar os papéis e... é tudo. Perdoe minha curiosidade.

Este gênero de perguntas e respostas poderia prolongar-se in­definidamente. Achei que não havia mal em contar-lhe parte da his­tória e assim fiz.

- Aluguei uma ilha ao largo da costa. Sou naturalista e ando fazendo um estudo da vida marinha, entre 35 e 45 metros de profun­didade. Também sou mergulhador, o que acarreta certos riscos. Aluguei o barco de Johnny Akimoto e pago-lhe um salário semanal. Se acontecer alguma coisa, quero que ele possa reclamar sua paga e que fique com o resto como indenização.

O gerente voltou a descontrair-se. Talvez se tratasse de algo es­tranho, mas pelo menos eu não era o lunático que de início me su­pusera.

Nesse instante chegou o chá e ele pôs-se a falar de coisas sem im­portância. Aturei-o durante algum tempo com razoável cortesia, por­que queria fazer-lhe uma pergunta.

- Diga-me... Sabe alguma coisa acerca dos direitos de águas?

- Direitos de águas?

- Exatamente! Que direitos, se é que existem, tem o dono ou o arrendatário de uma ilha sobre as águas que acercam?

Pensou um momento e respondeu:

- A pergunta não é comum. Por lei e pelo que sei, os direitos do dono vão até aos limites da maré baixa; na prática, estendem-se até às orlas interiores do recife que circunda a ilha. Talvez pudesse interpor uma ação de trespasse, mas seria lento e difícil de sustentar. De qual­quer modo, não é provável que a questão se levante, não é mesmo?

- Suponho que não. Mas gosto de estar informado.

- Neste caso, receio que seja impossível ter certeza, Sr. Lun­digan. Mas - estendeu as mãos num gesto de menosprezo e sorriu ­há muita água e muitas ilhas, e de qualquer maneira sua ilha está fora dos trajetos turísticos. Se mostrar calmamente que deseja estar só, es­tou certo de que não será incomodado.          ­

Não podia falar-lhe de Manny Mannix e, portanto, não valia a pena insistir na pergunta. Anuí, sorri e observei displicentemente que os estudiosos são um bando de animais. Entregou-me os papéis para assinar.

Terminado o chá, apertamos as mãos, saí e atravessei a rua. Do outro lado, ao centro, havia um pequeno estabelecimento de fachada simples, com letras douradas na vitrina e uma jarra antiquada cheia de água colorida, por trás do vidro sujo de pó.

Dirigi-me para lá e apresentei-me ao proprietário, felizmente jovem, mas demasiado palrador. No entanto, aceitou minha história com mais prontidão do que o gerente do banco. Dispôs-se logo a aviar as receitas sem prescrição médica quando lhe pedi comprimidos de atebrim, penicilina e sulfanilamida. Comprei iodo e gaze, aspirina e um pequeno bisturi, e mandei acondicionar tudo numa pequena caixa de madeira que o jovem e tagarela farmacêutico me cedeu.

Não me seria fácil escapar. No norte, o tempo não conta e o freguês mais casual tem de contribuir para as despesas da conversa comunitária. Escutei com moderado interesse uma pequena palestra sobre o ferrão das varejeiras e dos ouriços-do-mar, e ainda sobre o perigo dos terríveis peixes-pedra. Soube, sem grande interesse, que outro naturalista passara pela cidade há uma semana - uma moça jovem e atraente, na opinião do farmacêutico, que, saído há pouco da universidade, considerava sem dúvida as moças locais pouco interes­santes.

Finalmente, consegui libertar-me, saindo com a caixa de ma­deira debaixo do braço, mas verifiquei que tinha muitas horas a minha frente antes de me encontrar com Johnny Akimoto em sua barraca, por detrás das dunas.

De súbito, o pânico invadiu-me quando de pé, na calçada quebrada em que o piche escaldava, vi a mirrada cidade desapare­cer no extremo da única rua principal. A densa verdura e as cores for­tes da buganvília e da poisettia pareciam fechar-se sobre mim, aca­brunhar-me com o excesso de sua pujança. Lembrei-me dos conselhos de Johnny Àkimoto e também do aviso de Nino Ferrari quanto aos perigos que enfrenta um mergulhador inexperiente, o que me assus­tou e fez amaldiçoar minha temeridade em me lançar, tão mal preparado, num projeto que aterrava os próprios profissionais.

A lembrança de Manny Mannix também não me largava. Per­guntava a mim mesmo o que iria fazer em seguida, onde nos encon­traríamos e que sucederia quando nos víssemos frente a frente. Reparei, então, que estava junto do edifício do correio.      

Num impulso, precipitei-me para o balcão e pedi uma chamada interurbana para Nino Ferrari. O empregado apático olhou-me como se eu lhe houvesse pedido a Torre Eiffel e depois escreveu um número num pedaço de papel e convidou-me a esperar junto da cabina.

Esperei uma hora. Quando Nino apareceu finalmente na linha, sua voz parecia fraca e distante como se tivesse sido filtrada através de linho molhado. Disse:

- Aqui fala Nino Ferrari. Quem fala daí?

- Lundigan, Nino. Renn Lundigan.

- Já? A encomenda não chegou?

- A encomenda está em ordem, Nino; sai hoje de Brisbane.

- Então, por que telefona?

- Porque estou aterrado, Nino!

Pareceu-me ouvi-lo rir, mas não tive certeza.

- De que tem medo, meu amigo?

- Creio que sou louco, Nino.

Desta vez riu de fato: uma risada sonora que me chegou em es­tilhaços, com fantásticas distorções provocadas pelos mil e quinhen­tos quilômetros do cabo.

- Já sabia que era louco. Não precisava gastar dinheiro para me dizer. Em que posso ajudá-lo?

- Em muitas coisas, Nino. Espero problemas.

- Problemas? Que espécie de problemas?      

Tinha de ser cauteloso; Não há segredos numa cabina pública de uma cidade provinciana de Queensland.

- Já lhe contei, Nino. Há uma pessoa que não gosta de mim.

- Sim, contou. Aconteceu alguma coisa?

- Por enquanto, não; mas queria saber se posso contar com você, caso haja problema.

            Houve uma longa pausa. Cheguei a pensar que nos tivessem cor­tado a ligação, mas a voz de Nino voltou a ouvir-se:

            - De que espécie de ajuda precisa? Para mergulhar?

            - Mais do que isso, talvez. Ainda não sei. Não posso adivinhar o

que vai acontecer. Limito-me a fazer conjeturas, nada mais.

Houve nova pausa. Sabia em que Nino estava pensando. Era um recém-chegado ao país. Outrora fora inimigo e, se arranjasse com­plicações, veria prejudicada a possibilidade de se naturalizar. Estava ­lhe pedindo mais do que era justo. Sabia-o, mas estava muito ater­rado para me preocupar com isso. Por fim, Nino respondeu:

- Está bem, meu caro. Se precisar de mim, chame-me. Irei no primeiro avião. Paga as passagens?

            - Pago, Nino. Obrigado.

            Riu:

            - Fico-lhe mais grato se não arranjar problemas e me deixar com meu trabalho.

            - Farei o possível, Nino mas não prometo. Contar-lhe-ei o resto por carta. Adeus por hoje e uma vez mais obrigado.

            - Adeus, amigo - disse Nino - e veja se não se mete em com­plicações.

Fez-se silêncio na linha e pousei o fone. Comprei papel de carta e escrevi a Nino Ferrari. Quando entreguei a carta no correio, senti-me menos só e mais confortado. Agora éramos três. Três homens, um bom barco e uma ilha amiga. Manny Mannix podia fazer o que lhe desse na veneta. Peguei na caixa dos remédios e segui o caminho das dunas, ao encontro de Johnny Akimoto.

O barco de Johnny encontrava-se a cem metros da costa, balan­ceando um pouco o bojo oleado. Estava aparelhado, pintado de fres­co e as chapas de metal brilhavam graças ao cuidado de Johnny. As velas eram velhas, mas diligentemente remendadas. O barco de um artista tratado por um artista. O porão situava-se ao centro e a cabina à popa. As cobertas apresentavam-se bem varridas e os móveis limpos e arrumados com zelo de marujo.

Fizemos três travessias de bote para levarmos as provisões para bordo. Depois de as condicionarmos e fecharmos o escotilhão, Johnny ocupou-se do fogão a querosene, da cozinha.

Sentei-me na tarimba a conversar, enquanto ele trabalhava.

- É um belo barco, Johnny. Agrada-me.

Fez uma careta, olhando por cima do ombro.

            - Um bom barco é como uma mulher. Se cuidamos dela, ela cuida de nós. Como viu, pus-lhe o nome Wahine, que, no dialeto da ilha, significa "mulher". É a minha mulher.

Respondi com uma careta.

- Nesse caso somos dois, Johnny.

Assentiu com a cabeça e voltou ao fogão, falando e trabalhando ao mesmo tempo.

            - Às vezes, assim acontece: há uma única mulher e, quando ela desaparece é como se não houvesse mais mulheres.

- É um sábio, Johnny! - disse-lhe.

Vi-o encolher os ombros tisnados.

- Somos uma raça perdida, Renboss. Mas não somos criançasnem loucos.

- Já alguma vez teve mulher, Johnny?

Meneou a cabeça.

            - Onde encontraria, nesta terra, uma mulher da minha raça? E se daqui saísse, onde poderia levar a vida que aqui levo? É melhor as­sim.

Houve um silêncio breve, enquanto eu fumava um cigarro e Johnny aquecia uma panela de ensopado e cortava grossas fatias de pão que untava com manteiga e colocava num prato de estanho.

Preparada a refeição, colocou-a na mesa da cabina e sentarno­nos. Voltei a ter a mesma sensação de isolamento e alívio que se apos­sara de mim durante o vôo para o norte. Este homem era meu amigo e irmão na aventura. O pequeno e confinado mundo entre as cobertas era o único mundo real; tudo o mais era ilusão e fantasmagoria.

Quando acabamos de comer, lavamos os pratos e subimos para a coberta. Sentados no escotilhão, admiramos o esplendor carmesim do sol poente e o súbito aparecimento das estrelas, muito baixas no céu purpúreo. O vento soprava na direção da terra e ouvíamos o bater das águas quando o Wahine se levantava e afocinhava ao ritmo das pe­quenas vagas.

Johnny Akimoto voltou-se para mim.

- Há uma coisa que quero que saiba, Renboss.

- O que é, Johnny?

- Este barco é meu. como se fosse minha mulher. Compreendo-­o e ele compreende-me. A bordo sou eu o patrão. Na ilha, será o con­trário. É sua: ordena e eu obedeço. Estamos entendidos?

- Combinado. Johnny.

- Então, nada mais há a dizer.

- Há ainda uma coisa. Johnny.

- Que é?

- Hoje, antes de embarcar, telefonei a um amigo de Sidney. Se houver problema. virá em nosso auxílio.

- E que espécie de homem é esse amigo?

- É italiano, Johnny, e mergulhador. Foi homem-rã da Ma­rinha italiana durante a guerra.

- Deve ser bom. Prometeu vir?

- Prometeu.

- É sempre bom ter amigos em ocasiões como esta. Desça que lhe quero mostrar uma coisa.

Atiramos os cigarros ao mar e descemos à cabina. Johnny Akimoto abriu o armário e retirou dois rifles. Eram do modelo .303s, do Exército, mas estavam oleados de fresco e a culatra deslizava sem ruído.

Johnny olhou-me. franzindo o sobrolho.

- Tenho-os há muito tempo. Nunca os usei a não ser para coelhos e cangurus. Se houver problema. estaremos prevenidos.

- E munição?

Voltou a franzir o sobrolho.          

- Duzentos cartuchos que pus em sua conta.

Guardou os rifles no armário e fechou-o.

- Agora, parece-me que deveríamos dormir. Amanhã, logo que comece a alvorecer, partiremos.

Despi-me e atirei-me na tarimba. cobrindo-me apenas com um lençol. Ouvi Johnny subir à coberta para acender as luzes do deck. Senti-o descer e apagar a lanterna da cabina. Em seguida adormeci e não me lembro de ter sonhado.

Acordamos com uma claridade fresca e grande silêncio. Banhei-­me para refrescar um pouco, enquanto Johnny ficava na coberta de rifle preparado, para o caso de aparecer algum tubarão. Quando subi para bordo pelo cabo da âncora, Johnny desceu por sua vez.

A seguir pusemos o motor a trabalhar, içamos a âncora e o Wahine movimentou-se, seguindo primeiro para leste e virando depois para sul, em direção ao canal do Whitsunday e das belas ilhas turísticas.         

Johnny ia ao leme, aprumado e orgulhoso, envaidecido com o barco que era sua mulher, soberbo de si e de sua perícia de mari­nheiro. Comemos ao sol, vendo a costa verde e dourada deslizar ao longo do tombadilho, a estibordo, e observamos como as pequenas manchas a nossa frente se iam transformando em ilhas verdejantes

debruadas a renda branca de espuma.

Era uma viagem de três horas a boa velocidade, mais uma hora para carregar. Johnny propôs que almoçássemos antes da partida para a Ilha Bicorne. Era uma questão de delicadeza, dizia, os turistas eram uma coisa: chegavam, pagavam, divertiam-se e iam embora, não deixando senão uma lembrança de risos ao longo do dia e de sus­surros sob as palmeiras, ao longo da noite. Mas com os habitantes da ilha era diferente: tinha de se tomar uma bebida, trocar impressões, notícias locais que eles próprios fabricavam e que não interessavam aos turistas que nelas tomavam parte. Havia favores a prestar: re­parar um gerador, consertar uma avaria no sistema de refrigeração, levar um recado a uma pensão de uma ilha vizinha. Sem esquecer os assuntos próprios, claro, mas sem se desligar também dos interesses da pequena família a que se pertencia.       

Recomendei-lhe cautela, recordando-lhe que, mais cedo ou mais tarde, Manny Mannix viria farejar, como um caçador, na pista de Renn Lundigan. Minhas razões não conseguiam demover Johnny Akimoto.

- É boa gente - disse. - Seja um deles e estarão com você se houver complicações. Nunca se sabe quando ou como precisaremos deles.

Não tive outro remédio senão concordar. Perguntei a mim mes­mo o que faria sem este ilhéu sereno e forte, de sangue diferente e, no entanto, muito pouco estranho, que seguia ao leme como um deus an­tigo, de músculos retesados e pele sedosa brilhando ao sol.

Estávamos a meio caminho quando Johnny me passou o leme, indo para a proa assobiar pelo vento, como faziam os capitães dos an­tigos lugres.

Não precisávamos de vento. O motor trabalhava regularmente, impelindo-nos pela água serena a oito nós bem puxados. Mas Johnny quena vento. Queria içar a vela e mostrar de que era capaz sua mulher quando a brisa enfunava a lona e a inclinava. Mas a calmaria continuava e sentia-me, satisfeito. O leme não me embaraçava e pude entregar-me à doce magia do sol e da água, ao silêncio de homens que se entendem sem necessidade de palavras.

Eram onze da manhã quando alcançamos terra: uma ilhota de coral com um edifício comprido e baixo ao centro e cabanas claras apontando entre as palmeiras. A praia de coral descia em escarpa até treze metros de água. Paramos os motores e o Wahine boiou até ao ancoradouro.

Os turistas correram em bando a nosso encontro: moças morenas em roupas de banho coloridas, rapazes morenos enlaçando os ombros das moças, habitantes da ilha com roupas estampadas ou shorts cáquis, os quais vinham atrás como pastores daquele rebanho de banhistas.

Alguns nadaram em nossa direção e tentaram subir pelo cabo da âncora, mas Johnny Akimoto não lhes permitiu a entrada a bordo. O barco pertencia-lhe e ninguém podia entrar nele sem ser convidado. Descemos para o bote e percorremos os poucos metros que nos se­paravam da praia, onde Johnny retribuiu com cortês solenidade as saudações e me apresentou, como um amigo, o Sr. Lundigan, que tinha comprado um local ali perto e vinha buscar suas coisas. Os ilhéus acolheram-me calorosamente, poucas perguntas me fizeram e contentaram-se com o que Johnny lhes dissera.

Informado de que os caixotes chegaram bem, pude descontrair-­me e gozar a cerveja fresca, a salada tropical e a franca hospitalidade dos naturais daquele recife interior.

Quando lhes disse o nome de minha ilha, riram-se. Quando os surpreendi com a notícia de que havia um canal e uma nascente, aprovaram discretamente, concluíram que o Governo não estava a par de tudo, apesar de suas pretensões. Quando teci algumas ge­neralidades acerca de exploração submarina, mostraram-se gran­demente interessados. Os nativos das ilhas revelam um orgulho natural e comovente pelas maravilhas que os cercam. Todos têm suas descobertas pessoais e seu pequeno tesouro de peças encontradas: caurins, corais raros, conchas, destroços e objetos alijados de antigos naufrágios.

Repetiram-me a história do farmacêutico sobre a estudante que por ali passara, fazendo a ligação entre as ilhas num pequeno esquife com motor de popa. Lamentei dizer-lhes que não a conhecia. Seria uma felicidade não a encontrar!

Finalmente, a refeição acabou. Não havia recados a fazer. Só nos restava embarcar os caixotes no Wahine, levantar ferro e seguir para norte, por leste, em direção à Ilha Bicorne. Arvorei um sorriso duran­te a breve cerimônia da despedida, falei de banalidades com os turis­tas que vieram dizer-nos adeus, e de novo estávamos livres, como uma brisa fresca que alegrava o coração de Johnny e enfunava a giba, aumentando em mais dois nós a velocidade desenvolvida pelo óleo diesel.

Johnny manobrava o Wahine a favor do vento com a ternura de um amante. Vigiava as amuras como um mestre. Ia ao leme, de per­nas afastadas, cabeça erguida, olhos brilhantes e dentes brancos, num arreganho de triunfo.

- É uma beleza, minha Wahine, não é, Renboss?

- Uma maravilha, Johnny! Quanto falta para chegarmos à ilha?

- Hora e meia, talvez duas.

- Ótimo, Johnny. Ainda poderemos descarregar e acampar com a luz do dia.

Anuiu, fez uma careta e deslocou um pouco o leme, para seguir a ligeira mudança do vento. Depois, pôs-se a entoar uma melodia das ilhas, quente e monótona. As palavras indígenas eram para mim um mistério, mas a melodia comoveu-me e senti-me simultaneamente triste e contente com ela. Também lhe estava grato por me ter ado­tado como amigo.

Eram três horas da tarde quando avistamos a ilha. Eu estava de pé na proa, abraçado aos estais, observando a pequena mancha cin­zenta que se transformava num borrão verde e, por último numa ilha bicorne com um crescente na praia. Em breve, pude distinguir os contornos dos rochedos e os troncos separados das enormes pisônias. Lá estava o grupo de pandas que marcava o lugar da nascente. Vi a linha de rebentação no recife exterior e o verde matizado das águas calmas da lagoa. A ilha crescia cada vez mais, enchendo o horizonte, e senti-me como se regressasse à casa paterna depois da guerra.

Voltei-me para Johnny e perguntei-lhe:

- Não vai cortar o motor? O canal é estreito e há corrente.

Respondeu-me de olhos brilhantes, num desafio:

- Entraremos à vela, Renboss... à vela!

E assim foi: de velas desfraldadas. A cem metros do recife, virou de bordo, numa manobra rápida. Alinhou o barco pela ponta ociden­tal da ilha e pelo único carvalho da praia e lançou-o para o recife como a um cavalo para a barreira. Senti-o saltar e embater na pri­meira vaga alterosa, mas Johnny venceu o obstáculo e rumou para a abertura do corredor, enquanto eu observava de boca aberta, à espera de que os corais lhe rasgassem o fundo e o descascassem até à so­brequilha.

Um minuto depois deslizávamos como sobre gelo, com a praia branca na frente, e o medo e a incerteza e Manny Mannix a mil e quinhentos quilômetros de distância. Gritei, cantei e dancei de fe­licidade na coberta, enquanto Johnny apontava o Wahine para o an­coradouro. Lançamos a âncora e recolhemos as velas. Preparávamo-­nos para lançar o bote à água quando vi qualquer coisa que destruiu toda minha alegria, como se me dessem um murro, e que me obrigou a proferir obscenidades, numa raiva fria...

No alto da praia, onde começam as árvores, erguia-se uma pequena tenda; embaixo, querenado acima da marca da maré, via-se um pequeno esquife com o motor fora da borda.

 

- Calma, Renboss. Tenha calma!

Johnny Akimoto estava a meu lado, censurando-me em sua voz, falando-me da loucura e raiva, de cólera e bom senso.

            - É a moça, Renboss. Aquela de que nos falaram na pensão, como se deve lembrar.

- Bem sei, bem sei! - gritei. - Essa pequena e infame na­turalista com suas manhas e uma coleção de nojentas lesmas mari­nhas. Por que, diabo, haveria de vir aqui? Não sabe que a ilha é minha?

            - Claro que não sabe, Renboss - respondeu Johnny com cal­ma.

            - Pois garanto-lhe que vai ficar sabendo! Vamos, Johnny, prepare o bote. Vou pô-la fora da praia em menos de vinte minutos.

            - Não vai fazer uma coisa dessas, Renboss!

            De novo, a voz de Johnny obrigou-me a parar. Senti-lhe a mão em meu braço, como que para me impedir.

            - Por que não? Não a vou deixar aqui!

            - Claro que vai. Pelo menos por esta noite. Veja, Renboss. ­Apontava para trás, na direção do recife e do canal que acabávamos de atravessar. - Está vendo? A maré começa a encher e, no canal, chega a atingir seis nós. Com um barco como o dela, com um motor de brinquedo, como poderá passar? E mesmo que o conseguisse, só daqui a três horas chegaria à ilha mais próxima, já com noite, o que é perigoso.

Não pude argumentar. Quedei-me a olhar amuado para a praia e p_nsando no motivo que levara a moça a não aparecer. Devia ter-nos visto chegar.

Johnny chamou:

- Renboss!

- Sim?

- Daqui a um ou dois minutos desembarcamos e descobrimos a moça. Dizemos-lhe quem somos e que terá de partir o mais cedo pos­sível. Mas vamos fazer isso com bons modos.

- E por quê?

- Porque é jovem e vai ficar assustada. Porque é mais fácil ser amável para com as pessoas do que grosseiro, e porque seria mau que ela começasse a espalhar por aí que você é um grosseirão que des­conhece a delicadeza do recife... E porque, enfim, somos dois ca­valheiros, Renboss.

Fitei-o. Seus olhos espertos e ternos imploravam-me que não o desapontasse. Abafei a raiva e esbocei um sorriso amarelo de descul­pa.

- Está bem, Johnny. Diabos o levem! Serei amável com essa in­telectual pedante. Mas desde já o aviso de que amanhã a porei a an­dar, ou não me chamo Renn Lundigan.

Seu rosto abriu-se num largo sorriso aprovador. Bateu-me no ombro e dirigiu-se para a popa, a fim de carregar o bote com uma parte das provisões.

            Íamos a meio caminho da praia quando dei expressão ao pen­samento que há dez minutos me preocupava:

            - Não compreendo, Johnny. A tenda está ali... o barco na praia... E a moça?

            - Está do outro lado, talvez nas lagoas.

            - Sendo assim, com a maré enchendo tão depressa, é porque é louca. Há um muro escarpado a toda a volta e, se não se acautelar, terá de passar a noite em alguma saliência desse muro.

- Talvez esteja dormindo.

- Talvez.

Johnny respondeu com um esgar a meu mau humor e voltou a curvar-se para os remos. Nada mais disse até encalharmos na areia e seguirmos para a tenda. As abas da entrada estavam abertas e as cor­das bambas. Um trabalho muito malfeito. Seria uma sorte se não lhe caísse em cima à primeira rabanada de vento. Chamei:

- Ei, aí! Não há ninguém?

Minha voz ecoou pelos cumes, mas da tenda não veio resposta. Eu seguia dois passos à frente de Johnny e, portanto, fui o primeiro a vê-la.

A princípio supus que estivesse morta. Os cabelos pretos e lisos cobriam-lhe o rosto cor de marfim. A blusa de algodão estava aberta, revelando dois pequenos seios redondos. Uma das mãos repousava frouxamente na areia e a outra no ventre. Vestia um shorts de sarja, desbotado. Tinha uma perna atirada para cima da cama de cam­panha e a outra pendente, inchada e arroxeada, desde o joelho até ao peito do pé.

Vi então, que ainda estava viva. A respiração era débil e difícil. Tomei-ihe o pulso, que estava muito fraco e incerto. Gotas de suor sulcavam-lhe o rosto, o pescoço e o peito. Dir-se-ia uma boneca de trapos, esquecida pela dona.

            Ergui os olhos para Johnny. Não proferiu palavra: abaixou-se e examinou a perna inchada. Torceu-lhe o tornozelo, até que a sola do pé ficasse voltada para cima. A moça moveu-se num espasmo rápido, mas não deu acordo de si. Johnny apontou então, com o dedo, para uma pequena linha de picadas que se estendia da mossa dos dedos até à saliência do calcanhar. Meneou gravemente a cabeça e murmurou:

- Peixe-pedra.

O peixe-pedra é o mais feio do mundo. Seu corpo castanho­ acinzentado é uma massa de excrescência semelhantes a verrugas. Cobre-o uma espessa camada de lodo imundo. A boca forma um semicírculo que abre para cima e é de um verde lívido por dentro. Ao longo do dorso saliente apresenta treze espinhos afiados como agulhas, cada um com sua bolsa de veneno. Sua picada pode matar ou inutilizar uma pessoa durante semanas, com dores horríveis. Os indígenas do norte executam a dança do peixe-pedra nas cerimônias de batismo, para que os recém-nascidos saibam o perigo que os es­pera nas fendas dos recifes de coral.

Perguntei a Johnny Akimoto:

- Morrerá, Johnny?

            - Creio que não, Renboss. Está muito doente e com febre. Adormeceu exausta pelas dores, mas talvez escape, a não ser que a perna piore.

- Temos dea levar a um médico, Johnny.

Encolheu os ombros.

- Eu sei o que os médicos fazem. Sabem tanto como nós do veneno do peixe-pedra.

            - Mas com os diabos, Johnny! Não pode ficar aqui! Não po­demos cuidar dela!

- Por que não? Temos a caixa de remédios com sulfa e outras drogas. Sabemos o que há a fazer. Além disso, se a levarmos para o continente perderemos dois dias na viagem de ida e volta.

Um tipo esperto, aquele Johnny. Um autêntico homem das ilhas, secreto e sutil. Sabia tão bem como eu que não me oporía a seus desejos.

- Está bem, Johnny. Faça como entender. Vá ao Wahine e traga os medicamentos. Traga também dois lençóis lavados.

            - Sim, Renboss,

            Lançou-me um sorriso irônico e saiu da tenda a correr.

Instalei a moça mais comodamente na cama e olhei em redor. Havia uma mesinha de armar com provetas arrolhadas contendo es­pécies marinhas. Havia frascos de acetona e clorofórmio. pinças, tesouras, bisturis e um bom microscópio. Havia uma cadeira de lona, um balde, uma bacia, tudo desmontável, uma mochila com roupas e toalhas, além de uma maleta de cosméticos. Aparentemente, a moça era na verdade estudante, conhecia o ofício e trabalhava a sério. No entanto, andava descalça pelo recife, o que era uma estupidez que lhe ia custando a vida e que podia muito bem estragar todos os meus planos para recuperar o navio-tesouro.

Instalei-a melhor na cama estreita, peguei no balde e fui à fonte que ficava por baixo do pandano. Se tivesse chegado à ilha como havia pensado, teria cantado e dançado de alegria. Assim, só sentia de­sapontamento. Enchi o balde de água fresca e, no regresso, vi Johnny Akimoto que se preparava para voltar à praia com o bote carregado.

Acenou e correspondi ao gesto, mas, apesar disso, sentia-me irritado com Johnny Akimoto. Era-lhe fácil mostrar-se benévolo e lógico numa emergência destas: a ilha era minha como o Wahine era dele... Notei que estava sendo ridículo e que a ambição frustrada podia transformar um professor desiludido numa criatura perversa. Pus-me a rir baixinho e, quando cheguei à tenda, meu humor já es­tava muito melhor.

Derramei água na bacia de lona e procurei roupa limpa na mochila. Encontrei uma toalha e uma esponja lavadas. Depois, vol­tando para junto da moça, entreguei-me à tarefa de a lavar. Tirei-lhe as roupas ensopadas e removi-lhe com a esponja o suor do corpo.

Gemeu e abriu os olhos ao sentir a água fresca. Mas sua expres­são era inconsciente e murmurava algo ininteligível. Depois, caiu para trás sobre o travesseiro molhado.

A doença nunca é bonita. Tratar um corpo enfermo desperta compaixão e não desejo. A moça aninhada em meus braços era for­mosa, sem dúvida; mas a febre e as dores em que se contorcia haviam-­lhe desfigurado a beleza e assemelhava-se a uma imagem de cera, sem força e sem paixão, quase sem vida.

Tinha acabado de a vestir quando Johnny voltou. Fez um gesto de aprovação, colocou a caixa de remédios na mesa e retirou um bis­turi, que esterilizou cuidadosamente na chama de um isqueiro. Havia tanta delicadeza e precisão em seus movimentos que pensei no que a educação e a sorte poderiam ter feito daquele homem calmo e profun­do, condenado ao isolamento entre seus irmãos por ter sangue estran­geiro.

- Deite-a - comandou Johnny. - Preciso que me ajude.

            Ajoelhamos ao fundo da cama e eu peguei no pé da moça, er­guendo-o e segurando-o com força, enquanto Johnny fazia uma in­cisão profunda ao longo da fiada de picadas. A jovem gemeu e torceu­se com dores; um jato de pus esguichou da carne inchada. Johnny es­premeu o ferimento, lavou-o, colocou nele bastante sulfa e ligou o pé com gaze. Espantado, vi-o preparar uma seringa e injetar a porção de penicilina necessária no braço a moça.

- Onde aprendeu isso, Johnny? - perguntei, sem poder ocultar minha surpresa.

            - No Exército, Renboss. Fui ajudante de enfermeiro no hospital de campanha de Salamaua.

            Tirou o êmbolo da seringa e voltou a colocá-lo cautelosamente na caixa.

- Esterilizaremos isto depois, quando tivermos água quente. Concordei docilmente:

- Está bem, Johnny.

            A moça gemia e recuperava pouco a pouco os sentidos. Ergui-a e amparei-a com os braços, enquanto Johnny desfazia a cama e vol­tava a fazê-la com um dos nossos colchões e lençóis lavados. Deitamo-la de novo e ficamos de vigia, até que deixou de gemer e adormeceu, respirando mais regular e profundamente. Então saímos, pois havia imensas coisas a fazer.

Armamos a tenda num ângulo entre os rochedos, a alguns passos da fonte. Ficava abrigada do vento e protegida do calor pela ramaria frondosa de uma velha pisônia. Cavamos um rego a toda a volta para escoar a água, no caso de chover. Construímos um fogão com pedras junto à rocha. Depois desenrolamos os sacos de dormir e dispusemos os poucos objetos pessoais fora do alcance das formigas e aranhas.

Enchemos de água o grande saco de lona e o penduramos go­tejante na estaca central da tenda, para que refrescasse. Atamos uma lona impermeável a quatro troncos de árvore e colocamos por baixo os caixotes com o equipamento, drenando o terreno em volta, como havíamos feito com a tenda. Só os inconscientes preferem poupar trabalho. O segredo de um acampamento está em mantê-lo arru­mado, limpo e seco.

Finalmente, estávamos instalados. Johnny Akimoto acendeu uma fogueira, enquanto eu ia à fonte encher uma chaleira para ferver água. Acendemos um cigarro e quedamo-nos a fumar, escutando os estalidos da lenha e observando as labaredas que enegreciam a chaleira.

Era uma pausa tranqüila e agradável. Não fora a moça da tenda no cimo da praia e teria sido um momento perfeito. Voltei-me para Johnny Akimoto:

- Agora já me pode dizer, Johnny.

- O que, Renboss?

- O que vai fazer amanhã.

- Amanhã? - perguntou Johnny calmamente. - Amanhã começaremos a trabalhar.

- E a moça, Johnny? A moça?

- Está doente, Renboss. Não poderá mexer-se por uns dias.

- Mas poderá falar, não lhe parece, Johnny? E há de ser curiosa. Todas as mulheres o são. O que lhe diremos quando nos interrogar?

- A verdade, Renboss. Dizemos-lhe que você está aprendendo a mergulhar e a usar o aparelho respiratório debaixo d’água; Não é isso o que vai fazer?

- Suponho que sim. Mas farei mais do que treinar.

Johnny atirou a ponta do cigarro no fogo.

- Se tiver juízo, Renboss, não fará mais nada. Logo que ponha a máscara e mergulhe nas águas fundas, verá que é uma criança que aprende os primeiros passos. Não se sentirá seguro, terá medo e há de julgar-se rodeado de monstros. Terá de distinguir os que são ini­migos, de saber movimentar o corpo para os exercícios mais elemen­tares, como descer, subir e deslocar-se de um ponto para outro. E fique sabendo que nada disso será tempo perdido. Há de precisar de toda a coragem e perícia quando for procurar o navio.

Por mais que tentasse, não conseguia sobrepor-me à lógica daquele ilhéu prudente. Podia desafiá-la, mas isso seria minha perda, o fim de todas as minhas esperanças. Encolhi os ombros, resignado.

- Tem razão, Johnny. Praticaremos alguns dias, talvez uma semana. Nessa altura já a moça andará por aí aborrecida, à procura de companhia. Há de querer saber o que se passa. Lembre-se de que é uma cientista. Não acreditará nas histórias que contamos aos outros.

- Nessa altura - disse Johnny com simplicidade - meto as coisas dela no Wahine e reboco seu barco para o continente.

Sentia-me derrotado, mas a irritação não me permitiria acabar a conversa daquela maneira.

- Ela está doente, Johnny. Teremos de a alimentar e tratar.

- Nós também temos de comer. Quanto a tratá-la, é só mudar o curativo de manhã e à noite. Dos remédios encarrega-se ela. Vamos instalá-la confortavelmente e a deixaremos assim até à hora das refeições.

A água da chaleira estava fervendo. Ergui-me para preparar o chá, mas Johnny Akimoto obrigou-me a sentar de novo, colocando­me a mão no ombro. Havia decisão em seus olhos e a voz era firme.

- Há uma coisa que tem de saber, Renboss. Talvez me mande embora com o barco e a moça. Se não o fizer, ficarei e não se volta a falar nisso. Sei o que deseja fazer e por que o deseja. É uma pretensão legítima do homem desejar alguma coisa com todas as suas forças. Mas também pode ser um mal. Quando mergulhava para os mer­cadores de pérolas, havia alguns que odiávamos e temíamos. Eram capazes de se dirigir para uma camada desconhecida de águas profundas. Ali podiam descobrir boas pérolas, bastantes para pagar aos mergulhadores, à tripulação e as despesas do barco, sobrando ainda uma boa parte. Mas não lhes chegava. Obrigavam os homens a mergulharem cada vez mais fundo, até rebentarem os tímpanos, até o sangue lhes jorrar das narinas e da boca, até se contorcerem e ficarem inutilizados para o trabalho. É mau, Renboss, quando a sede do dinheiro é tão grande que nos impede de pensar e ter piedade dos outros... Acabei. Agora, se quiser, vou-me embora amanhã.

A chaleira transbordava. Nuvens de vapor erguiam-se dos car­vões enegrecidos que rodeavam a fogueira. Mas nenhum de nós se moveu. Tentei falar, mas não consegui articular palavra. A vergonha embargava-me a voz. Johnny Akimoto continuava sentado e silen­cioso, à espera de que eu o aceitasse ou despedisse.

Por fim, as palavras surgiram-me. Voltei-me para ele e estendi­-lhe a mão: ­

- Desculpe, Johnny. Quero que fique.

Pegou-me na mão e um largo sorriso de contentamento inundou­-lhe o rosto.

- Eu fico, Renboss. Mas é melhor fazermos o chá. A moça deve estar acordando e há de ter fome.

Preparamos uma refeição simples e a levamos à tenda da moça.

Ela estava outra vez com febre. Tinha o rosto afogueado, o suor corria-lhe pelo corpo, mostrava-se agitada, gemia e agarrava-se com violência ao lençol, quando as dores a assaltavam, puxando-o para o pescoço.

Voltei a passar-lhe a esponja e segurei-a, enquanto Johnny lhe enfiava, por entre os dentes que batiam, alguns comprimidos. Deitamo-la de novo e fomos jantar, ao mesmo tempo que as sombras começavam a alongar-se e as primeiras rajadas de vento noturno levantavam redemoinhos de areia.

- Está pior do que eu pensava - disse Johnny. - Se a febre não desaparecer durante a noite...

- Um de nós tem de ficar junto dela, Johnny.

Assentiu com um gesto de cabeça. Estava contente por ser eu a dizê-lo.

- Era melhor trazê-la para nossa tenda, Renboss. Pode ficar na minha cama. Você ficará na sua e estará perto dela, se for preciso al­guma coisa.

Olhei-o com curiosidade, mas não consegui descobrir o que pen­sava. Perguntei-lhe:

- E você, Johnny? Não tem necessidade de sair. Podemos...

- Não, Renboss. Eu durmo lá fora.

- Não entendo.

Johnny sorriu com leve ironia:

- Ela é jovem, Renboss. Está doente e só. Se acordasse de noite e visse um negro inclinado sobre ela, ficaria assustada.

O pai de Johnny Akimoto era um exilado japonês e a mãe uma negra das Ilhas Gilbert. Johnny pertencia ao número desses desafor­tunados que têm de viver sem amor e morrer sem filhos que os per­petuem. Mas, de todos os homens que conhecia, Johnny era o mais humano.

Aconchegamos a moça nos lençóis e a transportamos para nossa tenda. Enquanto ele a instalava, fui buscar a caixa dos medicamen­tos. Quando me inclinei para apegar, vi uma pequena carteira de couro entalada entre dois frascos, em cima da mesa desmontável. Abri-a. Encerrava algumas notas de banco, selos e uma nota de crédito do Banco Comercial, em nome da Srta. Patricia Mitchell. Agora, ao menos, sabíamos seu nome e que era solteira. Dobrei o papel e voltei a guardá-lo na carteira. O resto, ela contaria mais tar­de, quando se restabelecesse... se chegasse a restabelecer-se.

Johnny parecia ter dúvidas a esse respeito. Por mim, nem queria pensar no que aconteceria se a moça morresse em nossas mãos: in­quéritos policiais, interrogatórios, histórias na imprensa, rumores por toda a costa. O segredo do Dona Lucia e do ouro do Rei de Espanha deixaria de ser um segredo.

O sol começava a se pôr quando saí da tenda: uma esfera de ouro rolando da orla do mundo para um mar de ocre e carmesim, com tons de púrpura real. Quedei-me a vê-lo desaparecer por detrás do horizonte da criação. Vi o breve resplendor do crepúsculo e as cores que sumiam na imensidade oceânica. Vi a florescência de pessegueiro ser varrida do céu pelos dedos velozes da noite. Depois, voltei-me len­tamente e dirigi-me para a tenda.

A moça continuava dominada pela febre e Johnny Akimoto es­perava-me, para me desejar uma boa noite.

 

Apenas de calção, estendi-me na cama. Não conseguia dormir. Meus nervos estavam tensos como as cordas de um piano e não me era possível abstrair dos gemidos da moça, do outro lado da tenda, nem do bater das vagas, nem do piar das aves inquietas que se empolei­ravam no pandano.

Levantei-me, acendi o candeeiro de petróleo, procurei no saco as notas que Nino me tinha dado e pus-me a estudá-las. Eram simples, secas e concisas: uma exposição elementar dos princípios do mer­gulho livre com tubo de ar estático. Referiam-se à relação entre a pressão e a profundidade; à acumulação de nitrogênio liberto no fluxo do sangue; à dinâmica dos movimentos nas águas profundas; às variações de temperatura e aos sintomas de narcose, assim como ao controle positivo dos canais de Eustáquio.

Li-as linha por linha, mas não me impressionaram. Tudo em mim eram visões: jardins de coral e peixes monstruosos com as cores do arco-íris; um navio engrinaldado de algas marinhas, com os porões pejados de arcas de ouro guardadas por terrores lendários.        

Ouvi o bater de dentes e os gemidos da moça, de novo dominada pela febre. Ergui o candeeiro e tentei observá-la. Senti-me inquieto e assustado. Tinha os lábios arroxeados e sombras enormes em volta dos olhos encovados, que fixavam cegamente a luz amarela. Pousei o candeeiro para lhe refrescar o rosto, o pescoço e as mãos. Consegui introduzir-lhe dois comprimidos por entre os lábios, obrigando-a a engoli-los com um pouco de água, que borrifou as cobertas quando o copo esbarrou na boca tremente. Voltei a acomodar-lhe a cabeça no

travesseiro, puxei uma mala para colocar seu pé, e esperei.

Eram três horas da manhã quando a febre desapareceu. Foi sacudida por espasmos, vi-a contorcer-se e os gemidos transfor­maram-se num forte borbulhar. De repente, pareceu sucumbir. Um suor sujo inundou-a, deslizando das faces para as concavidades do pescoço e do peito. Pareceu ter falta de ar e, depois, imobilizou-se.

Tomei-lhe o pulso: estava fraco, mas regular. A respiração norma­lizou-sé e, quando lhe aproximei um copo de água dos lábios, abriu os olhos e disse num murmúrio:

- Não o conheço.

Respondi com um esgar:

- Mas vai conhecer-me. Sou Renn Lundigan e você Patricia Mitchell. Vi o nome em sua carteira.

Pareceu espantada. Fechou os olhos, meneou lentamente a cabeça de um para outro lado e, quando de novo olhou para mim, vi que tinha medo.

- Estive doente, não é verdade?

- Muito doente. Pisou um peixe-pedra. Tem sorte em estar ain­da viva.

Pouco a pouco, a memória voltava-lhe. Tentou soerguer-se, mas obriguei-a, com jeito, a conservar-se deitada.

- Deixe-se ficar assim. Ficará boa, se tiver paciência.

Suspirou mal-humorada, como uma criança.

- Não me lembro deste lugar. Onde estou?

- Em minha ilha e esta é a minha tenda.

- Trouxe-me para aqui?

- Trouxe-a para a tenda, não para a ilha. Já aqui estava quando cheguei. Como não podia ficar sozinha durante a noite, achamos que ficaria melhor aqui.

- Achamos... quem?

- Johnny Akimoto e eu. Johnny é meu amigo.

- Ah!

De novo pareceu sucumbir. O corpo exausto recusava-se a obedecer. Fechou os olhos para que a julgasse adormecida, mas logo os abriu.

- Pode... pode dar-me de beber? Estou com muita sede.

Cheguei-lhe o copo aos lábios, amparando-lhe a cabeça para que bebesse. Fê-lo com avidez, engasgando-se no último gole. Ajudei-a a acomodar-se e agradeceu-me gravemente, como uma garota da es­cola.

- Muito obrigada, foi muito amável.

Voltei-me para pousar o copo e, quando a olhei de novo, já es­tava dormindo.

Aconcheguei-lhe a roupa de cama e fechei a entrada da tenda para não deixar entrar vento. Estendi-me no leito deveras cansado, mas não deprimido. Era como se tivéssemos travado uma batalha e a houvéssemos ganho. Passados poucos minutos, eu dormia também.

Johnny Akimoto trouxe-nos o pequeno almoço: truta dos corais acabada de pescar e grelhada nas brasas, pão com manteiga e chá adoçado com leite condensado. Fez uma careta ao ver no rosto da moça que acordava um sorriso e ansiedade e espanto. Fiz as apresentações.

            - Pat Mitchell, aqui tem meu amigo Johnny Akimoto. Esta é Pat, Johnny.

- Tenho de agradecer a ambos. Creio que não me lembro de nada.

- Estávamos muito preocupados, Srta. Pat - disse Johnny. Pensei que não passasse desta manhã. Vim espreitar e vi que estavam ambos dormindo. Então achei que talvez gostassem de peixe fresco para o pequeno almoço.

Colocou o prato de estanho junto à cama e deixou-se ficar vendo­-a comer, apoiada no cotovelo.

- Gosta, Srta. Pat? Era uma grande truta. De uns dois quilos. Seus olhos brilharam quando ela sorriu e respondeu baixinho:

- Está ótima. Obrigada, Johnny.

- Comemos os três e pouco falamos. O peixe era bom e o sol aquecia-nos, filtrando-se pela lona cinzenta da tenda. Vi que o rosto da moça readquiria a cor enquanto mordiscava os alimentos e sorvia grandes goles de chá quente.

Levantou a cabeça e encarou-me. Havia uma pergunta que a preocupava.

- Disse que foi um peixe-pedra?

- Exatamente. Não se lembra?

- Não. Andava no recife...

- É um perigo andar descalça pelo recife.

Zangou-se.

- Não estava descalça. Lembro-me perfeitamente. Calçava uns sapatos de lona, mas entrou-me areia em um e parei para o tirar. Desequilibrei-me e escorreguei. O pé descalço deve ter batido em           cheio no peixe-pedra.

Rimo-nos de sua fúria. Corou e prosseguiu:

- Não sei como consegui regressar. A dor era terrível e sentia­-me como que paralisada. Caí várias vezes. Lembro-me de que tive medo de ser arrastada pela maré. Depois disso, nada mais. Quanto tempo estive doente?

- Não sabemos. Quando chegamos na noite passada a encon­tramos inconsciente.

Uma idéia assaltou-a. Com cuidado, afastou o lençol e examinou a ferida.

- Foi você que pensou isto?

- Foi Johnny. Teve de a lancetar. Por uns tempos, não poderá andar.       

- De fato... Receio que não. - Parecia embaraçada. - Estas não são as roupas que eu usava... no recife!

            Voltei-me para procurar um cigarro. Foi Johnny quem respon­deu com toda a sinceridade:    

            - Estava muito doente, Srta. Pat, e Renboss teve de a lavar e mudar-lhe a roupa.

            Ficou vermelha como um pimentão. A seguir, levantou cora­josamente o queixo e disse:

            - Foram muito bons e gentis para comigo. Estou-lhes muito grata.

            - Mais chá, Srta. Pat? - perguntou Johnny, com toda a cor­tesia.

            - Obrigada, Johnny. Estou com uma sede terrível.

            Johnny pegou no recipiente de lata e foi enchê-lo de novo, no fogão, ao mesmo tempo que ela se voltava para mim.

- Disse, na noite passada, que esta ilha era sua.

- E é.

- Não sabia; não era intenção minha entrar numa propriedade alheia.

            - Não tem importância - balbuciei desajeitadamente. ­

Quando estiver boa, Johnny levá-la-á ao continente.

            - Não será preciso. Tenho meu barco, não quero incomodá-los mais.

            Era um momento crítico. A delicadeza poderia impelir-me para uma situação que procurava evitar. A moça, apesar de doente, estava­se comportando com mais elegância e dignidade do que eu. Mas per­sistia o fato de a querer fora da ilha o mais cedo possível.

            Entretanto, Johnny voltou com o chá e uma sugestão que me deu tempo para pensar.

- Esteve doente, Srta. Pat, e ainda está, embora a febre tenha desaparecido. Precisa de muito descanso. Se quiser, levamos para a praia, montamos um toldo e poderá ver-nos trabalhar.

            O rosto dela iluminou-se.

            - Gostaria imenso. Poderia dormir, tomar notas ou, como dis­se, vê-las trabalhar. Que trabalho é esse?

 - Renboss quer aprender a mergulhar e eu vou ensiná-la.

Riu alto e com vontade.

- Mas isso é esporte e não trabalho!

- Da maneira que Johnny ensina, a tarefa é dura. Espere e verá. Meus modos de aventureiro não a iludiram nem por um instante.

Cravou em mim os olhos e disse num murmúrio:

- Esta ilha é sua, Sr. Lundigan. Faça o que fizer, só ao senhor diz respeito. Prometo-lhe que tratarei de minha vida e partirei logo que possa.

Johnny Akimoto tossiu convulsivamente, balbuciou qualquer coisa a propósito de uma espinha de peixe e saiu da tenda. A Srta. Pat lançou-me um breve sorriso e recostou-se na almofada.

- Renn Lundigan, hem? Sua história deu que falar. Nunca pensei vir encontrá-lo frente a frente.

- Não percebo a que diabo se refere....

- É natural. Puseram-no a andar, não foi? Morto de bêbado debaixo da janela do Reitor, às nove da manhã!

Fiquei olhando para ela. de boca aberta e sem fala. O sorriso morreu-lhe nos lábios e pousou na minha a pequena mão suada.

- Eu o estou irritando, o que não é bonito, depois de tudo o que fez por mim. Também sou de Sidney, compreende? Sou assistente de Ciências Naturais da Universidade. O mundo é pequeno, não é?

Muito pequeno, na verdade. Pequeno como o diabo, quando o passado de um homem o persegue até à última ilha do último recife, em pleno oceano. A ira começou a fervilhar dentro de mim e trans­bordou numa incoerência de palavras:

- Pois bem, conhece-me! Mas eu é que não a quero conhecer. Não a quero aqui, mas como está doente nada posso fazer. Fique sabendo: cuidaremos de você, dar-lhe-emos de comer e tratá-la-emos enquanto estiver doente. Mas logo que possa andar, quero que se vá embora. Se não puder conduzir o barco, Johnny levá-la-á. Entretan­to, não me fale do passado. O passado morreu, terminou, acabou. Não me fale de amigos, pois não os tenho. E quando se for embora, esqueça-se de que me viu.

Rodei nos calcanhares e sai da tenda. Pareceu-me ouvi-la chorar, mas não me voltei. Pertencia àquele passado com o qual não queria nada: estava morto, completamente esquecido. Claro que isto não passava de louca e insensata ilusão, mas eu ainda era bastante tolo para a alimentar.

Johnny Akimoto levou-me num barco a remos para uma lagoa entre os rochedos, na orla interior do recife. O escaler sulcava ra­pidamente a água oleosa, e quando olhei para trás vi o pequeno abrigo na areia onde Pat Mitchell estava estendida, contemplando o mar. Fora Johnny que a levara para ali, a instalara confortavelmente, lhe deixara a água potável à mão, lhe pensara as feridas e recomen­dara os comprimidos.

Johnny, sempre Johnny... Johnny era a força e eu a fraqueza; era a calma e eu a loucura da frustração e da fuga. Remava com austera humildade e, se havia piedade em seus olhos, eu não a descortinava.

Prendemos o bote a uma cabeça negra - um desses troncos de coral, sem vida e salientes, que se encontram em todos os recifes e assemelham a um crânio sobre um pescoço atarracado. Descalcei os sapatos de borracha e pus as nadadeiras que Nino Ferrari me ven­dera. Não eram do modelo comum, com meia sola e uma tira no cal­canhar. Tinham sola completa e uma presilha no calcanhar para o mergulhador poder pisar o chão de coral sem receio do peixe-pedra ou dos ouriços-do-mar.

Afivelei o largo cinto de lona com sete pesos de chumbo e uma comprida faca de aço temperado numa bainha de couro rugoso. Fal­tavam as garrafas de oxigênio.

Os dois cilindros de ar comprimido estavam fixos em uma ar­mação leve e assentavam-me nas costas como uma mochila de alpinis­ta, graças às tiras de lona que se passavam pelos ombros e eram afiveladas por baixo, no peito. Dois tubos de borracha em espiral, revestidos de algodão, ligavam os cilindros ao disco de metal polido do regulador, que é a parte principal do pulmão mecânico. Um outro tubo do mesmo material terminava num pequeno bocal de borracha com duas asas que o mergulhador segura entre os dentes.

Coloquei o regulador e Johnny assentou-me a aparelhagem nas costas, dispondo cuidadosamente a almofada dorsal, ao mesmo tem­po que apertava as correias e as experimentava.

Faltava apenas a máscara. Mergulhei-a na água, para umedecer a borracha e lavar o vidro plástico, a fim de que não se enevoasse ao mergulhar. Enfiei-a pela cabeça, ajustei a borracha aos ossos faciais e experimentei respirar, para ver se era estanque. Depois, pas­sei a correia por trás da nuca e firmei a máscara na testa.

Johnny Akimoto seguia com interesse todos os meus movimen­tos.

- Está pronto, Renboss?

- Estou.

- Olhe antes de saltar.

Sentei-me no banco transversal do barco, observando a água clara. As poças de coral variavam em profundidade, indo de alguns centímetros até cinco ou sete metros. Esta devia ter doze metros de comprimento por cinco metros de largura e sua profundidade não ia além de quatro metros. Contudo, como todas as outras do recife, eram um verdadeiro microcosmo da vida rica e colorida do mar de coral. Algas sedosas, verdes, vermelhas e douradas, moviam-se bran­damente como que agitadas por um vento submarino. Corais de púr­pura e alfazema espalhavam-se como flores de um jardim de verão. Anêmonas rubras e brancas estendiam os tentáculos, semelhantes a pétalas de um crisântemo japonês. Corais macios com as cores do ar­co-íris pareciam frescos nas rochas. Cardumes de pequenos peixes lis­trados e com manchas deslizavam por entre a vegetação. Uma estrela azul estava imóvel no fundo de areia e um caranguejo tentava caçar de dentro da concha mosquea-

da era seu lar. Um mundo rico de colorido e estuante de vida. Senti um súbito tremor ao pensar que em breve faria parte dele.

- Pronto, Johnny.     

Teve um esgar e anuiu. Puxei a máscara para os olhos, moldei-a uma vez mais à pele, prendi o bocal entre os dentes, verifiquei a en­trada do ar e saltei da popa para a água.  O cinto de pesos levou-me imediatamente para o fundo. Mergulhei até 1,50m e fiquei suspenso naquele mundo líquido.   

Minha primeira sensação foi de pânico. Estava rodeado de monstros. Aumentadas pela máscara e pela água, as algas ondulantes asselhavam-se a florestas virgens. As anêmonas eram bocas vo­razes; os corais, árvores de uma selva antediluviana; os cardumes, exércitos de outro planeta. O caranguejo era uma coisa disforme e horrível. Comecei a arfar, a sentir náuseas e a cuspir na máscara. Es­couceei até à superfície, onde Johnny Akimoto, debruçado da amurada, ria-se de mim.

            Estendeu-me a mão e puxou-me até eu me poder agarrar às tábuas, onde me que dei a arfar e a cuspir.

            - O que aconteceu, Renboss? - perguntou Johnny Akimoto morrendo de rir e mostrando os dentes alvos.

            - Assustei-me. Mais nada. É tudo muito diferente quando se chega lá embaixo. 

            Johnny concordou com um gesto de cabeça.

            - Da primeira vez é sempre assim, Renboss. Agora, volte a olhar.

            Obedeci. Não havia monstros na poça. Era o mesmo mundo diminuto e raro de beleza liliputiana que tinha visto antes.

- Mergulhe outra vez; Renboss - comandou Johnny. - Mas tenha calma. Respire lenta e regularmente.Nade um pouco, vá até ao fundo e repare bem nas coisas que o assustaram.

Anuí com um gesto, ajustei a máscara, prendi o bocal e de novo me deixei deslizar para a água.                                                                                               

Durante um longo minuto fiquei suspenso abaixo da superfície, centrando-me no ato simples e involuntário de respirar. Acabei por acertar o ritmo. O ar escapava-se livremente dos cilindros. As bolhas do regulador subiam para a superfície com um ligeiro silvo que con­dizia com a cadência de minha respiração.

Vo1tou-me a coragem. Agitei levemente as nadadeiras e senti-me flutuar sem dificuldade em direção ao muro de coral.

De repente, parei. Um novo terror me invadia. Mãos nuas, como ramos de árvore, estendiam-se para me agarrar. De um recesso som­brio, entre o sargaço ondulante, uma boca enorme abria-se para me tragar e um par de olhos do tamanho de ostras vigiava-me com serena malevolência. Tentei cuspir a mordaça e subir à superfície, mas logo me dominei. As mãos eram simples corais em ponta de veado e a boca e os olhos pertenciam a uma pequena truta dos corais, que se voltou e fugiu com um magnífico lampejo escarlate quando estendi a mão para lhe tocar.

Agitei mais fortemente os pés e notei que me movimentava com espantosa facilidade. Os corais e as algas passavam por mim com velocidade surpreendente. Já não sentia o esforço de respirar àquela pressão. Imaginei-me um pássaro suspenso entre a terra e o céu, sen­do os braços asas abertas e o elemento que me rodeava ar e não água. Esvaziei os pulmões e vi as bolhas de ar subirem, enquanto eu descia a pique. Senti uma pressão súbita nos ouvidos e uma dor aguda nos tímpanos. Engoli como quando se aterra de avião e os tubos desen­tupiram-se, fazendo desaparecer a pressão e a dor. Toquei com as mãos na areia do fundo.

Com uma série de movimentos, que me fizeram lembrar, irre­levantemente, um acrobata num alto trapézio, consegui manter-me de pé. Não sentia peso no corpo, não havia o mínimo esforço nos movimentos líquidos de meus membros. Quando andava era como se flutuasse e quando flutuava era como se andasse. Uma grande feli­cidade e uma benevolência enorme apossaram-se de mim. Caminhei até às paredes de coral e nadei ao longo delas, sentindo as algas ro­çarem-me o rosto. Estendi os braços para tocar nos ramos, a princípio receoso, depois afoitamente, como se fossem de árvores de minha terra. Toquei com um dedo nas anêmonas e as vi recolher os tentáculos multicores. Fiquei suspenso, sem me mover, enquanto os peixes listrados nadavam em redor de mim e desapareciam assustados ao menor movimento.

Não sei quanto tempo me demorei gozando os prazeres de minha nova cidadania num mundo novo. De repente, senti frio. Olhei para meu corpo e vi-o eriçado como a pele de uma galinha. Era hora de subir. Agitando as mãos e as nadadeiras, voltei à superfície e subi no barco. Johnny disse-me que tinha permanecido vinte e cinco minutos debaixo d’água.

Libertei-me do aparelho e sentei-me para descansar. Senti o calor espalhar-se de novo pelo corpo, aumentado pelos raios de sol em minha pele nua. Johnny interrogou-me:

- Desta vez não foi tão difícil, não é?

- Absolutamente nada. Depois dos primeiros receios, o resto foi fácil, uma brincadeira de crianças.

- A primeira parte é sempre fácil - disse Johnny solenemente. - A lagoa é baixa e fechada. Não há esforços a fazer e não existe qualquer perigo: é um simples divertimento. Mas o primeiro perigo é este: o frio - comentou, inclinando-se e passando um dedo pelas veias intumescidas de minhas mãos. - Parece-lhe que não despende forças porque se move rapidamente. Mas o corpo não descansa em todo esse tempo e consome-se para manter o calor. Quando for para as águas profundas, o frio será muito maior, sentir-se-á de repente como se atravessasse a barreira entre o verão e o inverno. É por isso que não se pode permanecer muito tempo na água. Para um mer­gulhador sem aparelho, como eu, é menos perigoso. Só permaneço no fundo enquanto os pulmões agüentam, mas você pode respirar e o frio o vai penetrando e cansando sem que se aperceba.

Concordei com um aceno, lembrando-me de que Nino dissera a mesma coisa por outras palavras, e me aconselhara a usar uma ca­misa de lã quando trabalhasse debaixo dágua.

- Agora, vamo-nos - disse Johnny. - Para começar já chega. À tarde, tentaremos de novo. Entretanto, terá de comer bem e fazer exercício. Quando começar a trabalhar, verá que as forças se gastam depressa.

Desprendemos o escaler da cabeça de negro e partimos. A maré estava vazando rapidamente e, dentro de uma hora, a lagoa não pas­saria de uma língua de areia nua e os rochedos ficariam a descoberto, sem vida e feios à luz do sol, exceto nos pequenos charcos onde uma multidão de vidas chocava nos troncos de coral.

Enquanto Johnny remava com força em direção à praia, eu man­tinha os olhos fixos no ponto em que Pat Mitchell estava deitada, protegida pela lona. Perguntava a mim mesmo o que lhe iria dizer. Parecia-me difícil suprimir o fosso que eu próprio cavara. Minha decisão, porém, era irrevogável: queria que se fosse embora. Mas teríamos de passar alguns dias juntos e uma ilha tropical tanto pode ser um paraíso como um inferno, consoante os que nela vivem estão ou não de acordo.

            Johnny Akimoto impeliu o barco com uma remada forte, pousou os remos e disse:

            - A Srta. Pat está arrependida do que disse, Renboss. Quer confessar-lhe isso, mas não sabe como.

- Eu também não, Johnny. E aí é que está o problema.

Johnny sorriu indulgente.

            - Ela é boa. O que promete, cumpre. Quando chegar o mo­mento, irá embora e deixa-o em paz. Disse isso a você e a mim tam­bém.

Respondi com um esgar. Não sabia discutir com Johnny.

- Muito bem. Falarei com ela. Hei de descobrir qualquer coisa para lhe dizer, embora não veja o quê.

Voltou a mergulhar os remos na água e não proferiu mais pa­lavra. Quando alcançamos a praia, a paz reinava entre nós.

 

O sol do meio-dia batia fortemente no toldo de lona, pelo que transportamos Pat Mitchell para nossa tenda, protegida pelas ár­vores. Deixei Johnny a instalá-la e saí para mudar de roupa e preparar meu gambito de abertura.

Quando voltei, encontrei-a sozinha, soerguida na cama, com uma caixa de pó na mão. Olhei-a e vi que era formosa. Já não tinha as faces pálidas pela doença, mas sim crestadas pelo sol e com um rubor crescente de saúde. O cabelo não se apresentava escorrido e man­chado, mas bem escovado e brilhante, deixando ver os ossos finos do rosto e o queixo firme e voluntarioso, ligeiramente erguido. Os olhos eram negros e estavam velados pela vergonha. As mãos bem tor­neadas repousavam calmamente na coberta.

Era uma mulher autêntica, pequenina, redonda e perfeita como as estatuetas de ouro de jovens dos tempos antigos. A cama rangeu quando me sentei aos pés. Tirei um cigarro e ofereci-lhe outro, mas ela recusou com um gesto. Acendi-o, fumei algum tempo para me recompor e comecei a falar:

- Srta. Mitchel... Pat...

- Não, Sr. Lundigan, deixe que seja eu a falar. - Inclinou-se para a frente e falou gravemente, com cautela, como se receasse es­quecer as frases ensaiadas e que, uma vez proferidas, já não teriam significado. - O que lhe disse esta manhã é imperdoável. Fui ingrata e cruel. Não sei por que o disse, ou talvez saiba. Foi porque... porque me viu despida e não tinha esse direito e... é tudo. Peço desculpa e irei embora quando quiser. Ninguém saberá que estive aqui. Ninguém.

Recostou-se na almofada, exausta. Olhou-me receosa, na expec­tativa do que eu pudesse dizer ou fazer. Tentei sorrir, mas não fui muito bem sucedido. O sorriso é um sinal de confiança e eu estava longe disso. Disse-lhe:

- Você é que tem de me desculpar. É a primeira vez que volto a esta ilha desde... que aqui estive com minha mulher. Não posso ex-­plicar o que senti. Era como se voltasse para casa. Não suportei a idéia de que outra pessoa...

- Se intrometesse?

- Sim, tenho de confessar: se intrometesse. Mas a culpa não foi sua. Foi toda minha. Não podia adivinhar que a ilha me pertencia e, além disso, estava doente. Mas para o diabo com tudo isto! Fui um grande malcriado. Desculpe. Importa-se que mudemos de assunto?

Via-a sorrir. A barreira desaparecera. Pediu-me um cigarro. Dei-lhe, acendi-o e a conversa rumou para areias menos movediças.

Contei-lhe que ouvira falar dela no continente e que o jovem far­macêutico me parecera enamorado. Falei-lhe da impressão que causara aos ilhéus uma moça solitária que ia de uma ilha para outra, num pequeno barco. Ela riu.

- Impressionei-os? Devem ter pensado que sou maluca.

- E eu também penso. Aquilo não é barco para águas profun­das.

Encolheu os ombros.

- Serve, quando se tem cuidado e sabe esperar pelo bom tempo. A sorte tem-me acompanhado.

- Sim?

Acenou com a cabeça e prosseguiu:

- O pior foi quando me dirigia para aqui. O vento era forte e o mar estava agitado. Não me preocupei porque estava perto da praia, mas não conseguia encontrar um canal.

- E o que fez?

- Andei de um para outro lado do recife, até o descobrir.

- Perigoso.

- Sim, muito; mas nada mais havia a fazer. Mesmo quando en­trei pela estreita abertura, era como montar um cavalo selvagem. Mas consegui.

Olhei para aquelas mãos firmes que repousavam no lençol. A boca também era firme - firme e sorridente. Uma moça corajosa. Descobri que começava a simpatizar-me com ela, o que significava perigo. Fiz-lhe mais algumas perguntas:

- A profissão de naturalista é um tanto estranha para uma mulher, não é?

Ergueu o queixo e respondeu:

- Não vejo por quê. Gosto dela e julgo-me competente. Ganha­-se o suficiente e deixa-me livre para fazer aquilo de que gosto.

- Como isto, por exemplo?

- Sim.

- Em que se ocupa agora?

- Numa tese de doutoramento. A ecologia do Haliotis asinina, ou seja, Renn Lundigan, do peixe-carneiro.

Conseguira pôr-me fora do jogo com uma estocada.certeira. Não pude deixar de me sentir divertido. Foi minha vez de ser interrogado.

- E você, Renn? O que faz agora?

- Johnny já lhe disse. Aprendo a mergulhar.

- Para se distrair?

- Por esporte. Vê algum inconveniente?

- Não. É uma boa maneira de passar as férias. E depois, Renn, o que tenciona fazer? Isto é, como vai ganhar a vida? Não pode passar toda a existência no mar.

Tinha de ter cuidado. Não estava na presença de uma moça qualquer que se contenta com conversa fiada. Encolhi os ombros, ao mesmo tempo que me mostrava desolado e dizia:

- Não poderei ensinar. Nenhuma universidade me aceitaria. Como não sou mau historiador, espero encontrar neste recife matéria para um ou dois livros. Como sabe - alarguei os braços num gesto que abarcava tudo em redor - os antigos navegadores, os escravos, os caçadores de pérolas, nada disso foi ainda suficientemente ex­plorado.

Os olhos dela brilharam e a moça debruçou-se com ávido interes­se de profissional.

- Muito bem, Renn. Muito bem, não há dúvida. Com efeito, esta é a Costa Barbara da Austrália. Não falta por aqui material: pirataria, violência, romance, tudo. Se eu soubesse escrever, é o que faria. Vou-lhe mostrar uma coisa..

Abriu o fecho da caixa de cosméticos, levantou a tampa, retirou um pequeno tabuleiro e colocou-me na palmada mão um objeto redondo. Por muito tempo fiquei olhando para a moeda, sem ousar erguer os olhos.

Era uma réplica exata da velha moeda espanhola que Jeannette e eu havíamos encontrado no recife. Senti o sangue fugir-me do rosto e os lábios secos. Minha língua intumescia-se na boca. Fechei os olhos e vi meus sonhos desmoronarem-se como um castelo de cartas. Quando voltei a abri-los, a moeda fitava-me na palma da mão, um olho de ouro que não pestanejava. Encarei Pat Mitchell e perguntei baixinho:

- Onde a descobriu?

Sua resposta foi viva e sincera:

- Aqui, Renn, no recife. Foi no segundo dia, quando explorava uma lagoa. Vi o que me pareceu um fragmento de coral, chato e redondo, e apanhei-o, talvez por causa de sua forma estranha. Quan­do o tateei, vi que era de metal claro, sem brilho e coberto de lodo. Trouxe-o para a tenda, limpei-o e... saiu-me essa moeda.

- Estou vendo.

- Não parece, Renn - comentou, espantada com minha súbita mudança de humor. - Acaso não compreende o que significa essa moeda? Confirma a teoria de que os antigos navegadores passavam por aqui e que alguns naufragaram nos recifes. Como historiador, Renn, deve saber o que isso significa!

Claro que sabia. Não podia deixar de saber. Via aquela moça de volta ao continente, onde contaria uma floreada história acerca da velha moeda, até que um jornalista mais esperto a visse e escrevesse um pormenorizado artigo sobre a dita moeda. Nessa altura, come­çaria a dança. Todos os que estavam de férias na costa desceriam a minha ilha para descobrir o tesouro escondido. A não ser que...

            Devo ter proferido as últimas palavras bastante alto, pois Pat Mitchell colocou sua mão na minha e retorquiu-me, bastante confusa:

            - A não ser o que, Renn?

Estava entre a espada e a parede. Se a enganasse com uma his­tória qualquer, em breve teríamos tudo cheio de gente. Se lhe contas­se a verdade, era fazer dela uma sócia indesejável, um árbitro de minha sorte e destino.

Involuntariamente, apertei os dedos contra a moeda e senti os bordos mordiscarem-me a carne. Pensei em Johnny Akimoto e no que me dissera: "Ela é boa. O que prometer, cumpre." Se eu confiava em Johnny, também poderia confiar em Pat. Abri os dedos e olhei de novo para a moça. Havia inquietação em seus olhos e perguntou num murmúrio:

- Disse alguma coisa que não devia, Renn?

                                                             Neguei, com a cabeça.   

- Não, nada disso. Também lhe quero mostrar uma coisa.

            Retirei de debaixo da cama meu saco e apoderei-me da pulseira que tinha comprado à moça do Hotel Lennon. Coloquei-a na mão de Pat.

- A companheira de sua moeda de ouro!

Os olhos dela dilataram-se. Examinou atentamente as duas moedas e, quando voltou a falar, sua voz era um sussurro de espanto.

- É sua, Renn?

- É.

- Onde a arranjou?

- Minha mulher e eu descobrimo-la no recife, há anos. Talvez no mesmo lugar em que encontrou a sua.

- E que... que quer isto dizer?

As palavras saíram-lhe a custo, mas firmes, como moedas ati­radas a um charco de água.

- Quer dizer, minha cara, que o navio-tesouro Dona Lucia, que seguia de Acapulco para as Filipinas, naufragou nesta ilha em 1732. E Johnny Akimoto e eu estamos aqui para o encontrar.

Houve um prolongado silêncio. As duas moedas jaziam aban­donadas no lençol branco. Nenhum de nós olhava para elas; olhá­vamos um para o outro. Foi Pat Mitchell a primeira a falar:

- Obrigada por me contar, Renn. Honrou-me muito com isso. Nada receie. Quando me sentir melhor, irei embora como prometi e deixo-lhe minha moeda. Ninguém saberá o que se passou.

Não disse nada. Perante aquilo, que havia de dizer? Sentia-me exausto e doíam-me os olhos. Escondi o rosto nas mãos e premi as palmas contra as pálpebras, no velho e familiar gesto do estudante fatigado pelo trabalho noturno. Pat Mitchell afastou-me as mãos do rosto e debruçou-se sobre mim.

- É assim tão importante para você, Renn? Pode ser que nunca o encontre.

- Eu sei.

- E então?

- Nem quero pensar nisso.

- Um dia terá que pensar - disse meigamente. - Espero, para seu bem, que não se sinta muito infeliz.

Recostou-se nas almofadas e fechou os olhos. Parecia ainda menor, muito cansada e... muito desejável. Passei-lhe os dedos pelo rosto e saí.

Johnny Akimoto estava curvado sobre a fogueira, atiçando-a com pequenos paus. Endireitou-se quando me viu. Havia mil perguntas em seus olhos calmos. Disse-lhe francamente.

- Ela já sabe, Johnny.

Encarou-me e perguntou:

- Sabe o que, Renboss?

- Que estam os aqui por causa do navio-tesouro... e do resto.

- Contou-lhe?

- Tive de o fazer, Johnny. Ela encontrou isto no recife.

Atirei a moeda ao ar, apanhei-a e espalmei-a na mão. Olhou-a por muito tempo, sem falar.

- Tinha de dizer a ela, não lhe parece? Se o não fizesse...

Fitou-me e vi que estava radiante.

- Creio que procedeu muito bem, Renboss.

- Procedi, Johnny?

- Muito bem mesmo, Renboss. Agora, somos três.

Como já não havia segredos, as coisas tornaram-se mais fáceis. Todas as manhãs levávamos Pat para a praia e aí a instalávamos con­fortavelmente debaixo do toldo. Restabelecia-se rapidamente e a in­fecção recuava da barriga da perna para o tornozelo. Em breve po­deria manquejar, mas por ora teria de continuar deitada, lendo, dor­mitando, fazendo apontamentos ou contemplando a sombra ba­louçante do bote, junto do qual eu e Johnny mergulhávamos.

Trabalhávamos agora na orla exterior do recife, no pequeno e es­treito banco de areia onde a âncora tocava no fundo, a vinte metros. Ainda não havíamos começado a procurar o Dona Lucia. Tentávamos habituar o corpo e o cérebro a novas condições de pressão e profun­didade. Por mim, tinha de aprender a arte da descompressão: subir lentamente à superfície, por degraus, três ou cinco metros de cada vez, descansando depois de cada subida para impedir a acumulação do nitrogênio no sangue. A princípio, segurava-me ao cabo da ân­cora, calculando a subida como se o cabo fosse uma varinha esca­lonada. Este era, no fantástico mundo submarino, uma ligação com a realidade e, nos meus primeiros contatos com a estranheza e o terror das águas profundas, agarrava-me desesperadamente a ele, ao mes­mo tempo que me esforçava por readquirir o autodomínio.

Travei novos conhecimentos, que poderiam vir a revelar-se inimigos, mas que por ora pareciam contentar-se em considerar-me um fenômeno curioso em seu território indisputável: a comprida e es­guia cavala espanhola de boca voraz em forma de serra, a grande arraia, enorme e inchada, o imperador escarlate, a tartaruga de fIan­cos franjados e largas barbas e, de vez em quando, um tubarão cruzador.

A princípio ficava aterrado, mas depois aprendi a ficar quieto, suspenso na água azul, enquanto o peixe me fitava friamente e depois fugia rápido, quando eu soprava uma fieira de bolhas ou batia palmas como uma criança.

            Johnny pouco me disse até me ver ganhar confiança. Então falou-me dos perigos, com calma e lógica:

- Nunca se esqueça, Renboss, que é sempre perigoso! Não sabemos o que os peixes pensam e, por isso, não podemos prever seu comportamento. Um cão ou um cavalo pertencem a nosso mundo, vivem conosco há milhares de anos. Mas um peixe, sabe-se lá! Um dia, um tubarão pode atacá-lo sem mais aquela. Nada para você, detém-se, descreve um círculo e talvez se afaste. Mas no segundo imediato ataca-o como uma bala.

Fiz uma careta de desgosto:

- E depois, Johnny?

Encolheu os ombros.

- Está no mundo dos peixes, tem de lutar como um peixe: nadando, descrevendo círculos, afastando-se, tentando assustá-lo.

- E se ele não se assustar?

- Utilize a faca. Tente atingi-lo no ventre. É a única saída.

A lição era sempre a mesma: vencer o medo pela razão, dominar o perigo pela coragem e o bom senso. Nu, no mundo aquático, o homem não tem outras armas.

Por vezes, Johnny descia comigo. Então via-o nadar por cima de mim com uma máscara e uns reduzidíssimos calções, uma comprida faca numa bainha de couro, presa ao cinto. Deitava-me de costas a

observar seu corpo negro que se dobrava como uma navalha para depois se inteiriçar num largo mergulho de tesoura que o levava, em poucos segundos, a 16 ou 18 metros de profundidade. Via a pressão da água comprimir-lhe o ventre, os pulmões e as costelas, parecendo que seus olhos estalavam sob a enorme tensão. Nadava um pouco comigo, fazendo caretas por trás da máscara e gestos cômicos com as mãos antes de obliquar para cima, para o sol.

Sentia-me orgulhoso de minha recente perícia, mas a de Johnny era superior e mais antiga. Eu podia respirar porque tinha oxigênio nas garrafas que transportava às costas, podendo agüentar-me per­feitamente uma hora ou mais, mas Johnny tinha apenas os pulmões cheios de ar, sua força, destreza e calma coragem. Quando a lição terminava, regressávamos à praia no barco de remos, somando as parcelas de meus novos conhecimentos. E quando as sombras co­meçavam a adensar-se, sentávamo-nos junto ao fogo, saboreando a refeição que Johnny preparara e ouvindo a vozinha sábia de Pat Mit­chell, que, estendida no colchão, se juntava a nossa tranqüila conver­sa.

Uma noite, no escuro, ela abordou um assunto que de há muito me preocupava:

- Quanto a seu navio-tesouro, Renn....

- O que há, Pat?

- Tenho pensado nele todos estes dias. Naufragou para lá do recife, não foi?

Concordei com um gesto de cabeça:

- Julgo que sim; deve ter sido isso. Quando estava longe da ilha, admitia a possibilidade de ele se ter despedaçado contra o recife: a moeda encontrada parecia confirmar essa hipótese. Agora, já não es­tou muito seguro.

Johnny interveio:

- Eu acho que foi fora, Renboss. Tenho certeza de que foi para lá do recife.

- Em que baseia essa certeza, Johnny? - perguntou Pat.

- Já explico, Srta. Pat. Esse barco espanhol era maior do que o meu Wahine, não é verdade?

            - Muito maior, Johnny -respondi. - Umas duzentas to­neladas, talvez trezentas.

- Por isso mesmo... Ora, repare em meu Wahine. É um barco pequeno e, no entanto, mergulha a 1,50m de água. É preciso muito mar para erguer um barco desses e o atirar para o meio do recife. Parece-me mais provável que o espanhol tenha abalroado contra o recife exterior, ficando ali encravado até as águas e o vento o arras­tarem para o braço de mar, onde acabaria por afundar.

            - É possível, Johnny - disse eu. - Mas como explica a presen­ça das moedas na lagoa?

            - Era aí que queria chegar, Renn - interveio Pat, em sua voz cheia de ansiedade e convicção. - Não foi o barco; foram os homens.

            - Os homens?

- Sim. Pense no que acontece nos naufrágios. A tripulação fica descontrolada em águas não marcadas na carta. Sabe que há terra, mas ignora se é ou não habitada. O instinto natural do homem é sal­var do perigo quaisquer bens que tenha. O navio abalroa, está prestes a afundar-se. No recife, os botes não servem para nada. Os homens saltam e tentam nadar para a ilha. O que levam consigo quando sal­tam?

A voz de Johnny Akimoto ergueu-se na escuridão:

- Eu sei, Srta. Pat: a faca e a bolsa do dinheiro.

            Ali estava uma excelente hipótese, não havia dúvida. Uma lógica que me obrigou a respeitar mais aquela garota de queixo voluntarioso e olhos negros, faiscantes. Mas havia outras coisas que me interessava saber.

- Se assim foi, alguns devem ter alcançado a praia. Ora, já per­corri toda a ilha e não encontrei vestígios.

- Não, Renboss - disse Johnny. - Se o navio se desmantelou numa noite de tempestade, nenhum deles poderia sobreviver. A rebentação atirá-los-ia contra o recife, despedaçando-os. Depois dis­so, só sangue e tubarões, não lhe parece?

- Claro, Johnny. Mas também me parece outra coisa. Se sua teoria e a da Srta. Pat estão certas, é quase garantido que encon­traremos oDona Lucia no banco exterior.

- Se é que não se quebrou e foi logo ao fundo. - É a nossa oportunidade.

            Calamo-nos. Era uma teoria viável que tínhamos de verificar. Para isso, Johnny Akimoto e eu iríamos mergulhar a 20 metros, do lado de fora do recife, numa extensão de centenas de metros. Talvez a maior profundidade ainda, pois o banco era estreito em certos pontos e o Dona Lucia poderia ter deslizado pelo flanco em declive para as profundezas azuis do oceano. Se assim acontecesse, teria de ir so­zinho, uma vez que o limite de mergulho para Johnny era inferior ao meu em 20 metros.

Johnny Akimoto ergueu-se para atiçar o fogo. Fui à tenda e voltei com um cobertor para proteger as costas de Pat. Quando nos vol­tamos a sentar, ela deu-nos a novidade:

- Hoje já consegui andar.

- O quê?

- Consegui andar. A princípio custou-me, mas depois de coxear um pouco a dor abrandou.   

A voz profunda de Johnny advertiu-a:

- Não o devia ter feito, Srta. Pat. Ainda não está boa o suficien­te para imprudências.

- Não foi imprudência nenhuma, Johnny. A inchação desa­pareceu, pelo menos em parte. Se praticar um pouco todos os dias, não custará...

Notei-lhe algo de estranho na voz e olhei-a. Mas estava no escuro e apenas lhe vi o queixo erguido, voluntarioso.

            - ...agora já me pode mandar embora quando quiser.

 

Um cavaco explodiu, fazendo saltar mil centelhas, e novas la­baredas envolveram a lenha. As andorinhas do mar chiaram estriden­temente por cima da gigantesca pisônia para logo se calarem. Ouvia­se o fragor das vagas, o sussurro constante do vento, o estalido dos ramos e o ciciar das folhas e das ervas da praia.

Um grande silêncio envolveu as três pessoas em volta da fo­gueira, até que Pat Mitchell se decidiu a falar com voz firme e segura: - Leva-me, Johnny?

A resposta de Johnny rompeu as trevas:

- Renboss é quem manda, Srta. Pat. Trabalho para ele e esta ilha lhe pertence.

Transferiu assim a responsabilidade para mim. Tinha de tomar uma decisão que não me agradava e de que não via a necessidade. Irritei-me sem motivo e perguntei rudemente:

- Quer ir-se embora?

- Não.

Levantei-me e arremessei o cigarro com raiva. As palavras saíam-­me em atropelo e não reconheci minha própria voz.

- Se pode andar, também pode trabalhar: cozinhe, arrume o acampamento, marque o recife onde eu disser, fique no barco en­quanto eu e Johnny mergulhamos. Mas não tagarele, pelo amor de Deus, e não ande por aí a estorvar-nos.

            Deixei-os com esta breve e delicada fala e desci para a praia, des­confortavelmente convencido de que tinha feito figura de tolo.

A lua nascia: um grande disco frio no céu purpúreo. Sua rota refletia-se na água, assemelhando-se a uma vasta lâmina de prata on­deada. O Wahine erguia-se ao centro com seus mastros nus, como um navio fantasma.

Ao longe, na orla do recife, a espuma branca demarcava a linha de rebentação. Na abertura do canal, entre os corais, a água era revolta. Distinguia até à distância de um metro a posição das lagoas onde Pat Mitchell descobrira sua moeda e onde Jeannette e eu encon­tramos a nossa.

Jeannette. Ocorreu-me que já há muito eu não pensava nela. Quando tentei recordar seu rosto, não o consegui. O que eu via era uma cara nova, gravada nas folhas da memória, um rosto moreno e adorável de cigana, coroado de cabelos pretos. Percebi que acabava de cometer uma loucura e que não podia voltar atrás. Olhei de novo para as águas escuras, do outro lado do recife. Pensei que o treino acabara e que, no dia seguinte, começaríamos a trabalhar.

Johnny e eu marcaríamos uma linha na orla exterior do recife e daríamos busca no fundo do mar, à procura de um navio que de­saparecera havia mais de dois séculos. Se não o encontrássemos, teria de reunir toda a coragem para trocar o braço de água tranqüilo pelas profundezas desconhecidas do oceano.

Senti um calafrio e tive medo.

Os passos de Johnny na areia assustaram-me como a um animal.

- A Srta. Pat pediu-me que lhe agradecesse, Renboss.

- Sou tolo, Johnny, um grande pateta.

- Não, Renboss - declarou Johnny com mansidão - ninguém é tolo quando faz o que o coração lhe ordena.

            - Não se trata de coração, Johnny... Trata-se de tempo e con­veniência. Amanhã começaremos o trabalho.

- De acordo, Renboss.

            Levantei a mão e descrevi um arco que abarcava o setor do recife onde as moedas tinham sido encontradas.

            - Por ali, Johnny. Trinta, quarenta metros à direita do canal, até à cabeça de negro.

- É muita água, Renboss.

- Por isso mesmo é que começaremos amanhã.

- A Srta. Pat cede-nos seu barco, Renboss. É maior do que o nosso bote e mais fácil de manobrar nas águas exteriores.

            - É esperta, não é, Johnny? - perguntei com sombria ad­miração.

            - Não, Renboss, não se trata de esperteza. Quer mostrar que está grata por a deixarmos ficar.

            - Talvez, mas nem por isso deixa de saber o que quer - disse eu, encolhendo os ombros.

- Claro que sabe muito bem o que quer.

- E o que é, Johnny?

- Por que não pergunta a ela? Boa noite, Renboss.

Fez uma careta, rodou nos calcanhares e desapareceu.

Subi lentamente a praia, em direção a nossa tenda. Lavei os den­tes e refresquei demoradamente o rosto na água do balde. O fogo ex­tinguia-se em pequenas nuvens de cinza e vapor. Afrouxei um pouco as cordas por causa da umidade noturna e, antes de entrar na tenda, tirei a camisa e os sapatos. Estendi-me na cama, cobri-me com o len­çol, acendi um cigarro e fiquei de costas, contemplando na escuridão a hipnótica chama da ponta do cigarro.

Do outro lado da tenda ergueu-se uma voz pouco segura:

- Renn?

- Que é?

- Obrigada.

- Não tem que agradecer. Fiz o que achei melhor.

- Obrigada por isso, então.

Perguntei com indiferença:

- Quer um cigarro?

- Aceito, obrigada.

            Atirei o lençol para trás, atravessei a tenda, estendi-lhe um ci­garro e acendi-o. À luz bruxuleante do fósforo o rosto dela parecia um camafeu antigo, de rara beleza. Fiquei a contemplá-la até que a chama me queimou os dedos. Atirei com o fósforo para o chão e cobri-o de areia. Depois, disse-lhe com rudeza:

- Amanhã, é melhor ir para sua tenda.

- Está bem, Renn.

- Boa noite.

- Boa noite, Renn.

Voltei para a cama e puxei um cobertor, pois sentia frio. Custei a adormecer.

De manhã, ao pequeno almoço, traçamos nossos planos. A maré estava cheia e, por isso, só mais tarde poderíamos procurar nas lagoas mais relíquias do antigo naufrágio. Havia calmaria, o que facilitava o deslocamento do barco até junto do recife, impelindo-o depois, pouco a pouco, para a orla extrema do banco de areia. Tinha gasto com os treinos um terço das garrafas de ar. Seria preciso poupar as restantes, não só para as buscas, mas também para a operação de salvamento, no caso de encontrarmos o Dona Lucia. Estava preocupado. O trabalho submarino é lento e havia uma área enorme a explorar. Se tivesse de mergulhar a grande profundidade, ainda seria mais lento. Foi então que Pat Mitchell deu uma sugestão: poríamos barras do lastro do Wahine do cabo da âncora do barco pequeno e afundá-lo­-íamos até dois metros, no baixio. Eu desceria pelo cabo e, com o motor a meia velocidade, eles transportar-me-iam, varrendo desta forma toda a área de pesquisas, a todo o comprimento. Visto que tí­nhamos algumas horas de calmaria, podíamos fazer um primeiro exame nas águas superficiais. Johnny Akimoto seguraria a extre­midade de uma linha de pesca presa a meu cinto e, quando a linha se prendesse ou eu quisesse parar para examinar determinado local ou surgisse qualquer perigo, eu puxaria a linha para dar sinal. Era sim­ples, econômico e poupava tempo. Pat Mitchell ficou contente como uma garota quando concordamos com sua idéia.

Deixando Pat a manquejar, entregue à tarefa de lavar a louça e cuidar do acampamento, Johnny e eu levamos o pequeno barco até junto do Wahine. Johnny meteu as barras de chumbo num saco de es­topa e atou-o com uma corda. Retiramos dos caixotes mais três cargas de oxigênio, suficientes para três horas de trabalho. A seguir, Johnny tirou um rifle do armário da cabina e meteu três carregadores no bol­so do calção.

- Uma questão de segurança, Renboss - explicou com um es­gar.

Depois pegou numa comprida cana polida, semelhante à haste de um taco de golfe, com uma cabeça de lança com farpas na ex­tremidade.

- Para que é isso, Johnny?

- É um arpão.

- Para mim?

Os dentes brilharam-lhe num largo sorriso.

- Para mim, Renboss. Para o caso de se ver atrapalhado e eu ter de mergulhar para o proteger.

Era uma maneira terrível de me lembrar que estávamos ligados, não para um esporte de férias, mas numa empresa perigosa que tinha por objetivo a fortuna ou a morte.

Carregamos tudo no pequeno barco e Johnny, meticuloso como sempre, oleou o motor de fora da borda, limpou-o, aprestou-o e en­cheu o depósito de gasolina. Em seguida, regressamos à praia.

Pat Mitchell esperava-nos. Havia preparado o almoço e tinha-o metido numa caixa de madeira, juntamente com uma garrafa de chá frio. Meu equipamento e as barbatanas estavam na areia. Sorriu feliz quando viu que eu reparara em seus cuidados.

Despertou-me desejo vê-la ali de pé: pequena, corada e perfeita, arrapazada em sua camisa de xadrez aberta no pescoço e com shorts de sarja e um boné comicamente tombado na testa.

Metemos tudo no barco, ligamos o motor e deslizamos pela água transparente até à entrada do canal. Notei então duas coisas que me haviam escapado ao carregar o barco de Johnny: bóias de vidro cober­tas de rede, cada uma com um peso de chumbo por baixo.

- São bóias para fazer a marcação - explicou Johnny. - Nós as usamos nas armadilhas para lagostas. Agora servirão para marcar onde começamos e onde acabamos. A exploração será feita através delas. No fim, voltamos a recolhê-las.

Passamos o canal com facilidade e seguimos ao longo do recife, deixando cair as bóias, uma em cada extremo da área a pesquisar. Depois paramos o motor e içamos o cabo da âncora com o saco de las­tro.

Chegara o momento. Senti um aperto no estômago e um fiozinho de suor deslizou-me pelo lábio superior. Limpei-o com as costas da mão. Johnny Akimoto lançou-me um olhar rápido, mas não proferiu palavra. Ele e Pat ajudaram-me a colocar os tubos respiratórios e sen­ti agradavelmente os dedos sedosos dela em minha pele. Estendi a mão para a garrafa de chá e sorvi grandes goles, que fizeram desa­parecer o aperto do estômago.

- Dois puxões na linha, Johnny, quer dizer que estou pronto a seguir, três para parar e quatro para você mergulhar, porque estarei atrapalhado. Entendido?

            - Entendido, Renboss - disse Johnny, erguendo os polegares num gesto de boa sorte.

            - Felicidades, Renn - desejou Pat Mitchell, inclinando-se e beijando-me na boca.

Coloquei a máscara por cima dos olhos e das narinas, verifiquei­a e ajustei-a confortavelmente. Prendi o bocal nos dentes e desci do barco.

O peso do cinto e do equipamento fez-me mergulhar um pouco e pude ver o casco liso da embarcação, os hélices do pequeno motor e, penetrando até ao crepúsculo das águas, o cabo sarrento da âncora.

Dobrei-me como uma navalha e mergulhei obliquamente, segun­do o ângulo do cabo. Senti a dor já familiar nos ouvidos e conseqüen­te alívio quando engoli e os canais de Eustáquio se desentupiram. Um cardume de peixes-arlequim, com o corpo em forma de tubo raiado de azul-escuro e ouro e caras feias de palhaços sorridentes, afastou-se de meu caminho. O sargaço ondulante, os ramos de coral e as caver­nas sombrias lembravam uma floresta numa vertente. Uma arraia pequena passou-me por baixo do peito. A cauda comprida e barbada assemelhava-se a uma flecha, e deslocava-se com movimentos breves e sacudidos das barbatanas.

Nas sombras do recife vi o vaivém constante de outros peixes, grandes e pequenos, e à direita, na zona azul, um grupo de cavalas passava preguiçosamente, manchadas pelos raios de sol refratados na agua clara. Finalmente, cheguei ao fundo.

Tinha areia sob os pés - areia e tufos de coral - mas não os podia ver. Caminhava no meio da vegetação ondulante, verde e rubra, amarela e castanha, que me roçava com um toque úmido e sedoso. Certas algas arranhavam-me a pele como se fossem mãos grosseiras e rugosas.

A rede do lastro no extremo do cabo da âncora estava suspensa a 1,20m do fundo. Olhei para cima e vi a sombra do barco à superfície.

Tinha acabado de esticar o cabo para dar a Johnny o sinal de partida quando vi o tubarão. Não estava a mais de sete metros de dis­tância, enorme, azul, comprido como dois homens. Vi os peixes parasitas que se agarravam a seu ventre e aos bordos superiores das barbatanas dorsais. A sua frente, três peixes-pilotos listrados man­tinham-se quietos, como seu chefe. Este observava-me. Sua enorme cauda tremulava, mas ele não se movia. Soprei uma fieira de bolhas, mas não se assustou com tão infantil brincadeira. Agarrei-me ao cabo, saltei e agitei os braços, numa palhaçada. Continuava imóvel. Saltei em sua direção e vi-o afastar-se. Mas logo voltou num círculo lento e largo que o aproximou ainda mais de mim.

Firmei-me melhor no cabo e tentei ponderar a situação, sem per­der o bicho de vista. Se o atacasse, saltar-me-ia em cima com a ve­locidade de um trem rápido. Tinha duas alternativas. Uma era puxar a linha presa ao cinto e esperar que Johnny chegasse com sua faca e arpão. Mas o tubarão podia também atacá-lo e, se Johnny o ferisse, a água manchar-se-ia de sangue e outros tubarões viriam, como ca­nibais, saciar-se na carne do irmão ferido. Nesse caso, ainda que es­capássemos, o trabalho estaria acabado por esse dia. Este seria, por­tanto, o último recurso.

Experimentei a segunda alternativa. Dei dois puxões à linha e segundos depois ouvi um ronco súbito, aumentado pela água e provocado pelo motor e pelas rotações do propulsor nas mudanças denteadas.

Foi o fim do tubarão curioso. Deu uma volta com a enorme cauda e desapareceu nas sombras com tal rapidez que até os peixes-­pilotos ficaram desorientados.

Senti o esticão do cabo e logo segui com ele, de ventre para baixo, tão confortavelmente como num colchão de penas, enquanto pers­crutava o crepúsculo à minha frente, as rochas de coral à esquerda e os raios de sol filtrados pelas águas profundas, à direita.

O chão relvado subia e descia como uma paisagem campestre. Havia colinas arredondadas e pequenas depressões. Havia escarpas sulcadas pelo coral abundante, mas nada suficientemente grande que indicasse a presença de um navio naufragado. Muitas coisas podem acontecer a uma embarcação que se afunde em águas de coral. Se isso sucede num recife submerso, os corais devoram-na, sepultam-na como a selva sepultou os templos perdidos dos incas. Se naufraga num chão arenoso, pode ficar coberta, mas continuará a ter a aparên­cia tumular das antigas sepulturas. Pode suceder que a maré e as correntes a deixem inteiramente expostas, ou apenas em parte. Então as partes metálicas são picadas e comidas pela ação galvânica, o madeirame é penetrado pelos vermes, as ervas o abafam e os peixes nadam através de suas chagas. Mas sempre, até ao fim dos séculos, haverá um sinal, uma marca, uma cicatriz no fundo o mar.

Era essa cicatriz que eu procurava.

O cabo afrouxou por um momento e depois torceu-se, descreven­do um arco. O barco chegara à primeira bóia e navegava em direção ao mar, para nossa segunda travessia da área de pesquisas. Cerca de trinta metros adiante, demos a volta para percorrermos o mesmo trajeto. Olhei para o prado marinho por baixo de mim e vi, arrepiado, que descia abruptamente a uns três metros a minha esquerda.

O baixio era mais estreito do que supúnhamos e, se o Dona Lucia estava ali, descobri-lo-íamos depressa ou nunca. Uma sombra negra tapou o raio de sol que se filtrava, vindo da superfície. Olhei assus­tado: uma arraia enorme deslizava lentamente por cima de minha cabeça. Observei fascinado seu peso de toneladas suspenso por cima de mim e vi-a prosseguir com a mesma facilidade de movimentos de uma ave em vôo.

Deitado de costas, deixei-me ficar vendo-a seguir em direção contrária à do barco. Depois, dei uma reviravolta para perscrutar as águas azuis a minha frente.

De súbito, petrificante revelação monstruosa, vi-o a uns vinte metros. Uma massa disforme erguia-se do solo marítimo para o crepúsculo submarino, coberta por algas ondulantes e rodeada de areia e veios de coral semelhantes a degraus. Cardumes de peixes de todos os tamanhos entravam e saíam das cavidades escuras da ve­getação. De um lado havia um ombro redondo e do outro uma in­clinação escarpada, suavizada pelos fluidos contornos do sargaço irrequieto. Ao fundo do declive, uma coluna curta e atarracada, com grinaldas de ervas marinhas. À medida que o cabo de reboque me levava para mais perto, mais me convencia de que não estava en­ganado. Com efeito, o ombro redondo era a alta popa de um navio es­panhol. O declive era o convés inclinado. A coluna, o mastro partido.Tinha encontrado o Dona Lucia.

 

Com a mão livre, puxei a linha de pesca - uma, duas, três vezes. Ouvi o motor parar e, olhando para cima, ainda pude ver as últimas voltas do propulsor. O barco arrastou-me por sobre o convés incli­nado do Dona Lucia. Larguei o cabo, expirei e pus-me a flutuar.

Pousei com a leveza de uma folha no meio do sargaço viscoso. Mas quando procurei qualquer coisa a que me pudesse agarrar, os crescentes de coral e as conchas arranharam-me as mãos. Tirei a faca do cinto e limpei com frenética energia uma pequena área de ervas, corais e moluscos para pôr a descoberto a madeira esponjosa do con­vés.

Quantidades de peixes passavam por mim, descuidados, en­quanto abria caminho ao longo da margem do declive e parava para arrancar dois séculos de ervas marinhas da madeira partida da ba­laustrada. A meio da inclinação havia um enorme buraco quadrado, orlado de algas castanhas. Espreitei, mas logo recuei aterrado com a escuridão, rasgando a pele das mãos nas incrustações cor ali nas dos bordos. Não esperava encontrar tão depressa o navio e, por isso, não me prevenira com uma lanterna. Mas agora, que sabíamos onde es­tava, não faltaria tempo e oportunidade para vermos tudo o que ele tinha para nos mostrar.

No alto do declive havia um estrado alto, de lado, com outro por cima, menor e estreito. No alto do ombro estava o que devia ser o or­namento-remate da popa do navio espanhol.

Foi um momento de triunfo. Mas precisava de alguém com quem o partilhar. Dei quatro puxões à linha e, antes de contar até cinco, Johnny Akimoto apareceu de lança em riste, semelhante ao anjo da vingança.

Dancei para ele em cima da antiga coberta. Apontei e gesticulei comicamente, tentando falar através da mordaça do bocal.

            Quando compreendeu a razão de minha loucura, levou as mãos à cabeça e arrepanhou os lábios num esgar. Depois nadou para junto de mim, apoiou-se a meu ombro e vi-lhe os olhos maravilhados por trás dos óculos. Em seguida, bateu com os pés para subir e fez-me sinal para que o seguisse.

Comecei a subir lentamente, lembrando-me das lições que aprendera e de que mesmo um navio-tesouro não é paga bastante para as agonias estropiadoras das contorções.

Pat e Johnny içaram-me para bordo e, um minuto depois, gri­távamos, batíamos uns nos outros, ríamos como idiotas. Pat beijava­-me e eu a imitava, enquanto o barco balouçava perigosamente sob nossos pés.

Foi Johnny Akimoto quem nos chamou à razão.

- Antes que o vento nos arraste, Renboss, devíamos orientar­-nos, para podermos voltar a este local com facilidade.

            - Tem toda razão, Johnny. Temos que o fazer, para depois não andarmos às apalpadelas quando quisermos mergulhar.

Traçamos um triângulo, alinhando um dos vértices por um enor­me pandano e o outro por um rochedo saliente a que Pat deu o nome de Cabeça de Bode. Experimentamos a marcação navegando para longe e tentando voltar ao local de mergulho. Em seguida, mais como monumento do que como sinalização, lançamos uma das bóias de vidro por cima do túmulo do Dona Lucia..

Queria tornar a mergulhar antes do almoço, mas Johnny recusou com um gesto de cabeça.

- Não, Renboss, por hoje chega.

Protestei violentamente.

- Com os diabos, Johnny, ainda temos a tarde toda.

            - Johnny tem razão, Renn - disse Pat Mitchell com suavi­dade. - Você fez em meio dia o que contava fazer em semanas. Além disso, o que iria fazer lá embaixo?

- Quero lançar os olhos pelo porão.

- Não tem luz, Renboss - disse Johnny humildemente. - E, de logo, sei o que há no porão.

- Arcas com tesouros, Johnny? - zombei.

- Não. Não são arcas com tesouros.

- Então?

- Água, Renboss. Água, areia e peixes... Toneladas e toneladas de areia.

Fiquei calado. Meu triunfo estourou como uma bolha de ar.

            - É verdade, Renn - corroborou Pat Mitchell, batendo-me no joelho com simpatia. - É o que acontece a todos os navios naufra­gados. A areia vai-se acumulando por dentro e por fora. Já esperava por isso, não esperava?

Meneei tristemente a cabeça.

- Devia esperar, com efeito. Mas estava tão empenhado em descobrir o raio do navio que nem sequer pensei no que aconteceria depois. Bem... E agora, que fazemos?

- Vamos almoçar - respondeu Pat, prontamente.

Retirou grandes sanduíches de carne, bolo, biscoitos com man­teiga enlatada, queijo e quatro barras de chocolate de nata da caixa de madeira. Serviu-nos chá nas canecas de lata e conversamos en­quanto comíamos e bebíamos, embalados pelo mar.

- Renboss - começou Johnny com decisão - hoje descobrimos o navio. Foi a primeira coisa e a mais importante. O que vimos mostra que a frente do barco está profundamente enterrada no banco de areia. Há menos de metade a descoberto. Vou-lhe fazer uma pergunta a que deve saber responder. Em que parte teriam acomodado o ouro?

- Suponho que na popa. Johnny. no camarote do capitão, por baixo da coberta. Quando voltarmos para a praia, faço-lhe um de­senho para que veja como eram esses navios.

Nesse caso - prosseguiu Johnny - nossa primeira e única oportunidade é que o tesouro esteja na popa, sob as camadas supe­riores de areia.

- De fato.

- Se estiver em qualquer outro lugar. nunca o recuperaremos, a não ser com um navio-draga que retire a areia. Mesmo assim - con­cluiu, encolhendo os ombros e espalmando a mão - nem sempre as coisas correm como desejamos.

Pat Mitchell escutara com atenção e seus olhos escuros e inte­ligentes brilhavam interrogativos.

- Está pensando em qualquer coisa, Johnny. Diga o que é.

- Trata-se do seguinte, Srta. Pat. Renboss e eu pouco sabemos destes assuntos. Sou de pouca ajuda porque não posso permanecer muito tempo debaixo dágua. Aprendi a mergulhar nos lugres, mas não tenho fôlego bastante para o poder ajudar. Renboss aprendeu a mergulhar e a explorar, mas pouco mais sabe.

Tudo aquilo era verdade. Não havia resposta para a lógica inexorável do ilhéu.

Pat Mitchell voltou a interrogá-lo:

- E o que sugere, Johnny?

- Renboss tem um amigo... o homem que lhe conseguiu o equipamento.

Pat olhou para mim e concordou com um aceno.

- É verdade. Nino Ferrari. Foi homem-rã na Marinha italiana, durante a guerra.

- Como vê - continuou Johnny, em sua exposição - esse homem é um profissional. Sabe disto e conhece as ferramentas neces­árias e seu emprego. Renboss disse que ele prometeu vir, se fosse preciso. Ora, parece-me que sua ajuda é indispensável

Era de novo Johnny, o homem perdido, o estrangeiro de cérebro privilegiado, trabalhando por trás de sua testa negra e luzidia. Sorri e dei-lhe uma palmada nas costas.

- Muito bem, Johnny. É isso mesmo. Vamos fazer um pi­quenique. Amanhã de manhã leva-me a Bowen. Telefono para Sid­ney, a Nino Ferrari, e peço-lhe que venha o mais depressa possível, com todo o equipamento de que possa lançar mão. Aproveitaremos a viagem para encher de novo as garrafas de oxigênio, em Brisbane. O que lhe parece, capitão?

O rosto negro de Johnny rejubilou.

- Parece-me bem, Renboss. Levamos a Srta. Pat?

- Claro que levamos a Srta. Pat!

- Nesse caso, poderá ver como navega meu Wahine!

            Daí em diante, reinou a boa disposição. Quando acabamos de comer, jogamos os restos no mar, para os peixes, lavamos as canecas de chá, guardamos o equipamento e içamos para bordo o cabo com o lastro.

Foi então que vimos o avião.

Era um velho Dragão Rápido, semelhante aos que usam os fazendeiros para polvilhar os campos da região e aos que os negocian­tes de gado alugam quando as chuvas lhe cortam o caminho. Vinha do oeste, na direção de Bowen. Voava baixo e ouvia-o ranger como uma velha segadora. Ao aproximar-se da ilha, o piloto inclinou-se e descreveu um largo círculo em redor da vertente do rochedo e voltou em direção a nós, pela orla do recife. Voava baixo e víamos o rosto do piloto e de seu único passageiro, indistinto por trás da janela da cabina. Uma vez mais se inclinou para outro circuito da ilha... Voava agora mais baixo, sobre a areia, desenhando um oito por cima da parte posterior da ilha. Voltou novamente, para outra olhadela ao recife e a nós, e depois foi-se na direção do continente.

Olhamos uns para os outros.

- Deve ser um turista endinheirado - observou Pat.

- É muito possível - disse eu - que se trate de Manny Man­nix.

            Johnny, de rosto tenso, não proferiu palavra.

            - Quem é Manny Mannix, Renn? - indagou Pat.

            - Depois lhe digo - respondi, laconicamente. - Johnny, vamos embora.

            Fez girar o hélice e o motor arrancou aos soluços. Demos a volta e dirigimo-nos para a tenda, através das águas preguiçosas.

Nessa noite, pela primeira vez desde há anos, estive de mãos dadas com uma moça ao luar. Sentamos-nos num recôncavo relvado, protegidos da brisa e encostados a um montão de turfa espessa. À nossa volta, as raízes araneiformes do pandano formavam um ca­ramanchão que convidava à intimidade. Por cima, as largas folhas murmuravam sob a carícia do vento. Uma flor branca de gengibre perfumava a atmosfera e ramos de orquídeas pendiam dos rochedos. O mar era uma voz ciciante e uma fina esteira de prata, para lá de nosso retiro.

A princípio, não nos sentíamos muito à vontade. Falávamos de banalidades para esconder o que pensávamos, dizíamos gracejos e ríamos como estranhos que se encontram num coquetel. Depois, des­contraídos pela languidez da noite e o sussurro do mar, aproximamo-­nos mais e falamos calmamente das coisas do coração. Contei-lhe meu belo e breve amor por Jeannette, como cheguei à ilha, por que parti... como foram áridos e agitados aqueles anos, até que regressei.

Falei-lhe de meus receios e de minhas esperanças, do terrível e prolífero mundo submarino, de minha pequena odisséia à procura do Dona Lucia e da aventura dessa manhã com o tubarão. Sua mão apertou a minha com força e senti-a estremecer como se lhe pisassem a sepultura.

Depois mudou de posição e acocorou-se na minha frente, en­carando-me.

- Tenho uma coisa para lhe dizer, Renn.

- Diga.

- Está de fato interessado no dinheiro?

Era como uma fina camada de gelo. Tentei patinar para longe.

- Quem não está?

- Toda a gente precisa de dinheiro, Renn. A maioria gostaria de ter mais do que já tem, mas nem todos fazem dele o objetivo de sua vida.

            Não queria discutir, mas não pude deixar de apreciar a hábil sondagem de minha moreninha.

            - Interessa-lhe que eu queira ou não dinheiro?

            - Sim, Renn - respondeu muito séria, quase numa suplica. ­Sei o que pensa e o que pretende fazer: se conseguir o tesouro, liber­tar-se-á de uma vida que odeia. Mas duvido que seja assim tão fácil.

- E que mais?

- Ficará com grilhetas nas mãos e cadeias no coração.

Sua voz revelava amargura e havia tanta dor em seus olhos que me senti inquieto. Atraí-a e tentei levar o caso para a brincadeira.

            - Ora, querida! O que se passa? Um sermão sobre os sete pecados capitais?    

            Gritou-me:

- Sim, se é isso que pensa. Mas se quiser compreender meu ponto de vista, não se trata de um sermão: é qualquer coisa que odeio e temo.

            - O quê? O dinheiro? Aquilo por que trabalhamos cinqüenta semanas por ano?

- Não, Renn; não é.o dinheiro. É a ambição. É o medo e o ódio que vi em seus olhos esta manhã, quando os levantou para o avião e se lembrou de Manny Mannix.

A espada estava desembainhada. Sentia-a trespassar-me o co­      ração, dolorosamente. Uma sensação desagradável. Disse, lacônico:

            - Ambição, ódio, medo... O que entende disso?

            - Muito, Renn - respondeu com simplicidade. - Vivi vinte anos com tudo isso. Meu pai é riquíssimo, mas nunca teve uma hora feliz em toda a existência.

            Fiquei sem resposta. Minha irritação desapareceu e perguntei­-lhe

- Só isso?

Encarou-me de olhos brilhantes e com o queixo orgulhosamente levantado:

- Não, Renn; não é só isto. Pela primeira vez na vida encontrei um homem que me merece respeito e admiração... amor até, se ele o permitir. Quero que lute e se esforce por um prêmio. Mas se perder, gostaria de o ver sorrir para continuar a orgulhar-me dele. Eis aí, Renn. Vamos embora?

- Isso é que não!

Apertei-a nos braços, beijei-a e seus lábios corresponderam. Sen­ti seu corpo cheio de vida e os braços fortes agarrados a mim.

            De repente, o mar deixou de bramir, as estrelas apagaram-se e, se a lua brilhava por cima daquele caos, não a víamos.

Na manhã seguinte, Johnny levou-nos no Wahine até Bowen. Uma brisa ligeira soprava da praia e Johnny aproveitou-a para manobrar com perícia e orgulho seu barco. Era um passeio de recreio num mar calmo, sob um céu limpo. Mas, quando chegamos a Bowen, a cidade era um forno e nuvens de pó debaixo de nossos pés, enquanto nos dirigíamos do molhe para a rua principal.

Johnny foi comprar óleo na garagem, levando uma lata em cada mão. Pat tinha compras a fazer e deixou-me. Fui ao correio telefonar para Sidney, a Nino Ferrari.

As chamadas interurbanas não estavam muito demoradas nessa manhã, pelo que, vinte minutos depois, estava em ligação com Nino Ferrari.

- Fala Renn Lundigan.

- Problema, Renn? Tão depressa?

A voz de Nino chegava-me pouco nítida, mas percebi que era tensa.

- Ainda não, Nino. Talvez mais tarde. Para nao perdermos tempo, faça perguntas que eu respondo. Já o encontramos.

- O navio? - voz e e era quase um grito.

- Claro!

- A que profundidade?

- Vinte metros.

- Que parte?

- A da popa.

- Areia ou coral?

- Areia.

- Muita?

- Muitíssima, Nino. Toneladas.

Quase podia ouvir o cérebro metódico de Nino.

- Percebo, meu amigo. Quer que vá aí, não é?

- Sim, logo que possa. Traga toda a aparelhagem necessária. Pagarei o transporte.

            - O material é muito pouco. Se não conseguirmos, então te­remos de tomar outras medidas, compreende?

            - Perfeitamente. Pode vir aqui esta noite?

            Nino hesitou um momento. Depois, soltou uma risada breve e perguntou:

- Onde é "aqui?"

- Bowen. Há um avião que parte de Sidney. Pode?

Nino voltou a rir.

- Vejo que trabalha depressa, meu caro!

- Tem de ser, Nino. Pode acontecer que... nos interrompam.

- Nesse caso, é preferível que vá prevenido.

- Também me parece. Iremos esperá-lo no aeroporto, a você e aos aparelhos, e seguiremos logo para o barco. É tudo, Nino. Se per­der o avião, mande-me um telegrama para o aeroporto.

- Está bem - disse Nino. - Arrivederci.

- Adeus, Nino. Despache-se.

Desliguei. Ao sair da cabina fui de encontro a um homem de ter­no tropical, encostado à cabina ao lado. Quando me voltei para lhe pedir desculpa, tirou o charuto da boca e arreganhou os dentes. Era Manny Mannix.

- Bom trabalho, Comandante!

           

Manny voltou a meter o charuto na boca e atirou-me uma nuvem de fumaça na cara. Seus lábios sorriam, mas os olhos frios mediam­. me com a fixidez vulgar e velada dos vigaristas. Continuava encostado à cabina vazia. Estava descontraído e vigilante como um gato.

            - Conseguiu encontrá-lo, Comandante? - perguntou, ma­nhosamente.

- Ouça, Manny...

Agitou o charuto.

- Deixe-se disso, Comandante. Deixe-se disso. Estou falando de negócios. Sei que o encontrou. Vi-o ontem trabalhando do lado ex­terior do recife. Agora, acaba de telefonar a um amigo para que lhe traga aparelhagem de Sidney. É ou não verdade?

            - É, Manny - respondi com calma. - Mas aviso-o: se tentar meter-se nisto, mato-o.         

            - Ora! Por que não toma juízo, Comandante? Poderíamos ser sócios.

            - Não, Manny.

            Encolheu os ombros com indiferença e soprou outra nuvem de fumaça.

- Pois bem! Compro sua parte. Duas mil, em dinheiro, e todas as despesas até agora. Pegar ou largar. Se não o fizer, entro na jogada e ponho-o fora. O que me diz, Comandante?

Olhando de esguelha, vi Johnny Akimoto que subia os degraus de acesso ao correio. Ouvi o barulho das latas, ao pousá-las. Fiz-lhe sinal e veio colocar-se a meu lado.

            - Repare bem neste homem, Johnny - disse-lhe calmamente. - Olhe para ele e fixe-lhe o rosto porque pode voltar a encontrá-lo. Chama-se Manny Mannix.

Havia ódio de morte nos olhos de Johnny quando encarou Manny Mannix como se fora um animal daninho. Sua voz, porém, soou aveludada.

- Não se meta conosco, Sr. Mannix. Não se meta conosco.

Mannix deslocou-se um pouco, para atirar o resto do charuto na calçada.

            - Volte para a cozinha, negro - disse com rudeza, pondo uma das mãos no peito de Johnny, a fim de o afastar.

Johnny prendeu-lhe o pulso e o apertou tanto que os olhos de Manny se esbugalharam, e ele escancarou a boca e gotas de suor irromperam-lhe das faces lívidas.

            - Nunca matei ninguém - avisou Johnny - mas poderá acon­tecer que o mate, Sr. Mannix.

Largou o pulso e a mão de Manny caiu como morta. Então, o deixamos. Johnny pegou nas latas de óleo e descemos a rua, ao encon­tro de Pat Mitchell. Devíamos ter os pensamentos à flor da pele, pois perguntou-nos muito preocupada:

- Renn, Johnny! O que aconteceu?

Contamos-lhe.

- Mas o que pode ele fazer?

- Muito, querida. Não temos direitos sobre as águas nem licen­ça para recuperar o navio, porque não fizemos qualquer petição. Ele pode cumprir sua ameaça: entrar e pôr-nos fora do negócio.

- Pela força?

- Sim.

- Mas não andam fazendo nada de mal! Por que não pedem proteção da polícia?

- Contra quem? Manny nada fez, por enquanto. Ficaríamos com cara de tolos. Além disso, poderíamos arranjar complicações com a lei que levariam anos a resolver... Há séculos que os advogados enriquecem graças às leis sobre recuperação de navios. Não lhe parece?

- Claro que sim, Renn.

Havia tanta tristeza em sua voz que me lembrei de nossa conver­sa da noite anterior. Voltei-me para Johnny:

- O que está pensando?

- Nada, Renboss, a não ser isto: quando seu amigo chegar com o equipamento, vamos buscá-lo, o levamos para a ilha e começamos a trabalhar.

- E depois?

- Ver-se-á, Renboss, ver-se-á.

O medo e a depressão abafavam-nos como o calor abafava a sonolenta cidade tropical. Seguimos lentamente para o cais, desa­marramos o bote e remamos em direção ao Wahine, que balouçava preguiçosamente.

Johnny lançou um toldo por cima da escotilha da popa e esten­demo-nos a sorver cerveja gelada, a comer sanduíches, a conversar e a fumar ou a dormitar, à espera de que a noite chegasse. O objeto dos nossos pensamentos era o mesmo: Manny Mannix.

- Não compreendo como nos encontrou tão depressa - disse Pat.

- Muito simples, Srta. Pat - respondeu Johnny. - Soube que Renboss ganhou em Sidney dinheiro suficiente para iniciar as buscas. Não ignorava a existência de uma ilha, embora não soubesse onde ficava. Mas a empresa aérea o informou de que um passageiro chamado Lundigan partira para Brisbane. O Departamento de Terras de Brisbane cobrou-lhe dois xelins para lhe dizer que o Sr. Renn Lundigan alugara uma ilha a tal latitude e a tal longitude. O resto é uma questão de bom senso. Sabia que Renboss devia ter um barco e que este entraria num dos portos mais aptos a servir a ilha. Veio para Bowen porque tem aeroporto onde lhe seria fácil fretar um avião e investigar. O único azar foi ter ido ao correio quando Renboss estava telefonando. Posta assim a questão, é fácil, não é?

            - Facílimo! - rosnei. - Demasiado fácil para um espertalhão como Manny.

            - Estou tentando adivinhar o que fará ele a seguir; Renboss.

            - Também eu, Johnny. Há uma dúzia de coisas que ele pode fazer. Mas deve procurar qualquer coisa de novo. Manny conhece muita gente, pode subornar muita gente. Não precisa de oferecer muito para que lhe ponham um barco no caminho desejado.

- Nesse caso, esperemos - disse Pat.

- Sim, esperemos - concordou Johnny.

- Diabos me levem se espero! - interrompi. - Johnny, é capaz de atravessar o canal de noite?

            Lançou-me um olhar perspicaz, pensou um momento e acenou afirmativamente.

            - Sim, Renboss, posso fazê-lo. Esta noite a lua nasce mais tar­de.

- Ótimo! Vamos buscar Nino no aeroporto, voltamos para bor­do e partimos imediatamente. Amanhã cedo começaremos a tra­balhar. Nem Manny Mannix conseguirá ultrapassar-nos.

O avião aterrou às dez horas e vinte minutos. Nino Ferrari saiu: um homem baixo, sólido e vivo, num terno leve e de camisa aberta ao pescoço. Levantamos a bagagem - uma maleta e três caixotes de madeira. Amarramos os caixotes ao porta-bagagem de um velho táxi que nos conduziu ao cais, a velocidade vertiginosa, através das ruas esburacadas.

À meia-noite estávamos ao largo, com Johnny ao leme e nós três junto dele, esticando as pernas e discutindo a situação.

Os olhos negros de Pat aprovaram a exposição profissional e exata de Nino.

- Antes de mais nada tem de se convencer de que não há mi­lagres. O navio está cheio de areia e nem uma draga seria capaz de a retirar toda.

            - Compreendo, Nino.

- Bem, nossa única esperança é que as arcas do tesouro estejam na popa a descoberto do navio e pouco enterradas na areia para que as possamos tirar cavando com as mãos.

            Sentia-me desapontado e confessei-lhe. Respondeu-me numa voz sibilante:

- Pensou que eu chegaria com uma caixinha milagrosa que faria ir pelos ares cem toneladas de areia quando carregasse num botãozinho? Não; isso é um sonho de garoto. O que eu trouxe foi isto: mais garrafas de oxigênio porque temos de trabalhar muitas horas, os dois ao mesmo tempo, debaixo dágua; lanternas com baterias su­plementares, minas de lapas e espoletas.

            - Minas de lapas? - inquiriu Pat com os olhos esbugalhados de espanto.

            - Já explico. Mas primeiro diga-me uma coisa, Renn: há corrente junto do navio?

            - Há. Corre ao longo do recife e de través em relação à posição do navio.

- É forte?

            - Moderada.

            - Ebbene... Agora explico. Seu amigo Johnny perceberá per­feitamente o que vou dizer.

            Johnny voltou a cabeça, sorrindo ao cumprimento. Iam-se enten­der bem. Nino Ferrari prosseguiu:

- Como se deve lembrar, quando viu o barco pela primeira vez, a areia amontoava-se dos lados. Não entrou no porão porque era muito escuro, mas quando lá penetrar com as lanternas verá que tam­bém tem areia acumulada, mas em movimento. Percebe?

Acenei que sim com a cabeça.

- Vamos trabalhar da seguinte maneira: primeiro, exploramos a área fora da areia e, se não encontrarmos nada, descemos ao porão. Cavamos.. .

- Com as mãos?

- Evidentemente! Estamos debaixo dágua. Se levantarmos muita areia, flutuará a nossa volta, roubando-nos a visibilidade. Temos de trabalhar lentamente.

- E se não encontrarmos nada no porão, Nino? O que fazemos?

- Nesse caso, usamos as minas. São pequenas, visto tratar-se de um velho navio de madeira que não queremos fazer em pedaços. Fixamos as minas de um e outro lado e fazêmo-las detonar por meio de uma espoleta. O casco ficará arrombado e a corrente removerá parte da areia interior. Compreende?

Não era difícil. As frases secas de Nino demonstravam confiança e experiência. Nossa coragem, lamentavelmente diminuída depois do encontro com Manny Mannix, aumentou, se bem que Nino ainda não tivesse acabado.

- Quero que compreenda bem isto: as minas são a última fase da operação. Se depois delas descermos e não encontrarmos nada, acabou-se. Se quiser continuar, terá de pensar numa expedição com máquinas pesadas. Digo-lhe isto para que não alimente falsas es­peranças. Custam caro e são perigosas.

Respondi que compreendíamos e ficaríamos sob suas ordens durante as operações de mergulho. Depois, falei-lhe de Manny Man­nix.

Os olhos de Nino chisparam e bufou de desprezo:

            - Não me admira. Assim que cheiram ouro surgem como abutres batendo as asas em volta do cadáver. Acontece que às vezes há mesmo cadáveres e, por isso, trouxe isto.

            Procurou no bolso e tirou uma pequena Beretta azul que luziu lugubremente à luz das estrelas. Suspirou:

            - Espero não a usar. Vim para aqui em missão de paz, Mas on­de há ouro nunca há paz.

            Sabia que Pat me observava do outro lado do convés, mas não me atrevi a fitar seus olhos leais.

Já passava da meia-noite e ainda tínhamos de navegar três horas. Se queríamos começar de manhã cedo, era preciso aproveitar todos os momentos para dormir. Tirei o leme das mãos de Johnny e mandei os três para baixo, a fim de descansarem. Quando chegássemos perto da Ilha, acordaria Johnny para se encarregar da estreita travessia do recife.

Antes de descer, Pat lançou-me os braços ao pescoço e beijou­-me.

- Boa noite, marinheiro!

- Boa noite, querida!

Depois, fiquei só. Ouvia o cochichar dos meus amigos e de minha amada que se preparavam para dormir. Vi a luz da cabina extinguir­-se e, pela porta aberta, distingui a minúscula chama vermelha do cigarro de Nino. Acabou por se apagar também e a noite foi só minha, assim como o prodígio do vento, a maravilha das estrelas e a branca vela enfunada.

De manhã, Nino Ferrari assumiu o comando de nosso pequeno grupo. Acocorou-se na areia, em frente da tenda principal, com o sol a refletir-se em seu corpo pequeno e musculoso. Suas ordens foram concisas e diretas.

- Primeiramente, vamos mergulhar do Wahine. O bote é muito pequeno.

- Levantei os olhos para Johnny, que concordou.

- Por mim está bem, Renboss. Levá-lo-ei para onde quiserem.

Nino prosseguiu:

            - Levamos tudo para bordo: equipamento de mergulho, gar­rafas, lanternas, etc., assim como alimentos e água para um dia e a caixa de medicamentos, para o caso de haver acidentes.

- Eu trato disso - ofereceu-se Pat.

Nino concordou logo e continuou:

            - Vamos trabalhar a vinte metros, o que não é mau. Fá-lo-emos por períodos de meia hora, com intervalos de duas horas para descan­sar.

Parecia-me uma perda de tempo excessiva e disse-lhe. Nino res­pondeu sem azedume:

- Se trabalhássemos em águas mais profundas, fá-Io-íamos por períodos de quinze minutos, com intervalos de três horas para des­canso.

- Por quê?

- Porque, até agora, você limitava-se a mergulhar. Mas quando se trabalha debaixo dágua o esforço provoca uma descarga maior e mais rápida de nitrogênio no sangue. O risco das contorções aumen­ta, pelo que temos de compensar o risco e a fadiga com o descanso.

- Claro que faremos como diz; apenas queria saber o motivo. Mas não pouparíamos tempo se descêssemos e trabalhássemos um de cada vez? Enquanto um descansava, o outro ia adiantando serviço.

Um lampejo irônico passou pelos olhos de Nino.

- Se você fosse um mergulhador experiente, estaria de acordo. Mas não é e, por isso, o melhor será trabalharmos juntos... melhor e mais seguro.

Submeti-me com uma careta e fiz outra pergunta:

- Como marca o tempo?

- Tenho um relógio que os fabricantes garantem seu funcio­namento debaixo d’água. Mas como é fácil, e perigoso, esquecer as horas quando se trabalha, Johnny avisar-nos-á disparando para a água. A detonação ouve-se perfeitamente lá embaixo.

- E o que faremos, se encontrarem alguma coisa? - perguntou Pat.

- Para os objetos pequenos, Johnny fará descer um cesto de peixe com um peso, todas as vezes que mergulharmos. Para os gran­des - e Nino arreganhou muito os dentes - como uma arca de te­souro, atamos-lhes uma corda em volta e içamo-los para bordo... E agora, se não há mais perguntas, transportemos o material para bor­do e comecemos o trabalho.

- Só mais uma pergunta - disse Pat. - Não tem nada a ver com os mergulhos. Onde é que Nino vai dormir?

Foi Johnny Akimoto quem respondeu, um pouco precipitada­mente, ao que me pareceu, embora não soubesse explicar o motivo.

Nino dormirá na tenda principal com Renboss. Eu ficarei no Wahine.

Tudo muito simples, sem segundas intenções. Não compreendia por que me sentia preocupado.

Quarenta minutos depois, o Wahine estava ancorado do lado de fora do recife, com o Dona Lucia a vinte metros por baixo de sua quilha.

Nino Ferrari e eu estávamos sentados no escotilhão, tomando chá forte e açucarado, enquanto Johnny prendia uma corda a um cesto de peixe e Pat, acocorada à maneira dos nativos, escutava as últimas ins­truções de Nino.

- Quando descermos ao porão, acautele-se. Fora do raio de luz não verá grande coisa e lembre-se de que há vigas cobertas de coral e mariscos, além de outras saliências de toda a espécie. Se roçar nelas, poderá cortar os tubos respiratórios.

Tinha-me ocorrido a mesma idéia. Não era uma perspectiva muito agradável. Pat estremeceu impressionada ao pensar nos ter­rores desconhecidos de um mundo que nunca vira. Voltou-se para Nino e perguntou:

- E quanto ao resto, Nino? Tubarões e... e...

Nino riu.

- E os monstros que vê nos filmes? É verdade que eles existem, mas normalmente não vivem nos porões. Há peixes perigosos para o mergulhador como na terra há animais perigosos também. Em geral, porém, esses peixes têm tanto medo dos mergulhadores como estes o tem deles. Quanto ao resto - e benzeu-se com naturalidade - que Deus nos acompanhe até às profundezas.

- "Que aqueles que trabalham nas profundezas vejam as obras do Senhor e suas maravilhas."

A citação surgiu espontânea e inesperada da moça a meu lado.

- "Aqueles que clamam pelo Senhor na tribulação, Ele os sal­vará da aflição" - acrescentou Nino num italiano cantante, depois do que, sorriu e se levantou. - Está na hora de mergulharmos, meu caro. Prepare-se.

Afivelamos o equipamento e descemos por uma corda. Desta vez, eu levava uma grande lanterna espalmada, com proteção de bor­racha, e um refletor preso ao cinto. Nadamos ao longo do barco até ao cabo da âncora e descemos por ele para o crepúsculo azul. Nino seguia-me e, ao olhar para trás, vi-o esboçar um gesto de aprovação. Chegamos ao fundo, dois homens-peixes de pé, num prado ondulante agitado por vento silencioso. Os restos do Dona Lucia estavam na nossa frente, a dez metros.

Nadei para junto de Nino e pus-me a flutuar. Toquei-lhe no om­bro e apontei, excitado. Mostrou os dentes por trás da máscara e er­gueu os polegares. Vimos então o cesto enviado por Johnny e afas­tamo-nos.

Conduzi Nino através do convés escorregadio e lodoso, mostran­do-lhe o grande rombo escuro orlado de algas. Acendeu a lanterna e iluminou a escuridão. No feixe de luz vi algas vermelhas ondulando, braços nus de pequenos corais e um bando de peixinhos brilhantes que nadavam preguiçosamente na direção das trevas.

Nino apagou a lanterna e empurrou-me para cima. No topo do declive, debaixo da primeira plataforma, havia um anteparo, inter­rompido por uma porta que agora era apenas um buraco negro e es­treito, debruado por algas. Nino acendeu de novo a lanterna, apagou­a após um rápido exame e continuou a avançar. Se a cobertura con­duzia à cabina ou à escada, ainda não sabíamos.

No anteparo da primeira plataforma existia outra abertura, que conduzia obviamente à cabina, talvez à do capitão. Depois de exa­minarmos a popa, seria esta nossa primeira área de trabalho. O es­paço de coberta que se seguia era estreito e rodeado de baluartes trabalhados, com um remate de talha. Gostaria de ter arrancado as algas, as lapas e os corais para ver mais de perto, mas o tempo, o ar e nossas forças eram limitados. Não podíamos perder tudo isso com ninharias de antiquário.

Então, Nino tomou o comando. Fazendo-me sinal para que o seguisse, deu volta e nadou para a cabina, esperando por mim junto à entrada estreita e escura.

Foi um instante de terror. Com a prática, eu havia dominado meus primeiros receios do crepuscular mundo submarino - do­minado, mas não destruído. E eles voltavam agora, avassaladores, enormes e reforçados com o medo da escuridão e dos monstros des­conhecidos que poderiam ocultar-se nas trevas. De novo senti a pele eriçar-se como a de uma galinha. Nino sorriu por trás da máscara e pousou-me a mão no ombro para me dar confiança. Acendeu a lan­terna.

Não havia monstros, apenas peixes; peixes, algas e água. E mais trevas também, que minha lanterna ajudaria a dissipar. Acendi-a e segui Nino, através das algas engrinaldadas, para o interior da ca­bina.

Espreitando de lado, vi um par de olhos enormes e redondos que me fitavam e uma boca grossa que não parava de babar-se. Rodopiei e fiz incidir na estranha criatura o foco de luz. Era um enorme cher­ne que agitou a cauda e desapareceu nas sombras. Nino voltou-se e fez-me sinal para que me aproximasse. De pé, lado a lado, no chão de areia, focamos as lanternas na parede coberta de vegetação marinha que se erguia a nossa frente.

Para mim, noviço, a visão foi desapontadora. Havia saliências que poderiam ter sido vigas, um recesso que talvez tivesse sido uma alcova de tarimba, e havia uma massa disforme, à altura da cintu­ra que devia ter sido a mesa da cabina. E mais nada, a não ser os irrequietos contornos das algas e do sargaço e o alvoroço dos peixes

que entravam e saíam das raízes.

Voltamos a luz para cima. Ervas pendentes roçavam-nos o rosto. Ergui a mão e senti o vago contorno de um trave por baixo do lodo. Aproximei a luz e notei uma incrustação que poderia ser um can­deeiro do teto. Bati-lhe com a faca e desprendeu-se, caindo lentamen­te e sem peso no chão arenoso.

            Nino teve um gesto impaciente, como quem diz "Deixe isso", e ajoelhou-se na areia coberta de vegetação.

Imitei-o. Vi-o raspar com a faca, entre as ervas, a areia e os ramos de coral. Verificava a profundidade da incrustação das tábuas. A 45 centímetros, sentimos a madeira mole e encharcada.

Nino levantou-se e acenou negativamente. Não poderia haver ar­cas de tesouro sob 45 centímetros de areia. Em seguida, deslocou-se para o canto mais afastado da cabina, onde o declive fizera com que a areia se acumulasse em maior abundância.

Nino era um bom profissional, conhecedor do assunto. Voltou a ajoelhar-se e de novo se pôs a raspar com a faca e as mãos, pesquisan­do cuidadosamente com os dedos. Escolhi um lugar a um metro do dele e lancei-me também ao trabalho.

Ao fim de três minutos, bati com a mão em qualquer coisa que era indubitavelmente de madeira. Foquei a lanterna, mas nada vi.

Então, uma súbita febre se apoderou de mim e comecei a cavar freneticamente, como um cão em busca do osso enterrado. Nino es­tava junto de mim, agitando um dedo num gesto reprovador e mos­trando-me por mímica que era uma maneira perigosa de trabalhar. Depois ajoelhou-se e cavou também. A areia erguia-se em rede­moinho por cima de nós, cegando-nos. Mal tínhamos tirado uma mão cheia, logo duas ocupavam o lugar vazio. Após um trabalho insano, conseguimos limpar o suficiente para identificar minha descoberta.

Era o canto de metal de uma velha arca marítima.

Precisamente nesse instante, ouvimos um estalido semelhante ao de um ramo de árvore que se quebra. Era o tiro de aviso. Tínhamos de subir à superfície.

Olhei para Nino e apontei para a arca. Supliquei-lhe por gestos que ficássemos um pouco mais. Recusou com a cabeça e seus olhos eram inflexíveis por trás da máscara.

Para cima!, apontou.

Devagar, terrivelmente devagar, fomos subindo em direção ao assentar por cima da arca do Wahine, enquanto a areia voltava a Dona Lucia.

 

Nino e eu estendemo-nos nos colchões, por baixo do toldo, a meio do barco. Pat serviu-nos cerveja fresca e cigarros, enquanto Johnny, cantarolando, preparava na cozinha a refeição para os paxás; postas de imperador vermelho, pescado quando trabalhávamos no fundo do mar, bifes de conserva com batatas fritas de Saratoga, pês­segos enlatados e nata fresca, da caixa de gelo. Tínhamos de comer bem e descansar bastante. Nino assim ordenara, assim se faria.

Deitados ali, embalados pela branda agitação do mar, recebi a segunda lição de Nino.

- É doido varrido, Renn. Depois de tudo o que lhe recomendei, põe-se a cavar e garatujar como uma criança à procura do brinquedo que perdeu. Trabalhe devagar, homem. Poupe o ar e as forças para manter o nitrogênio venoso o mais baixo possível. Faça de conta que está fazendo amor com sua pequena. - Lançou um olhar malicioso a Pat, que corou e se retirou para a cozinha. - Calma, calma! Há de chegar a ambos os lugares, ao mesmo tempo. E a caminhada será mais agradável.

- Está bem, Nino. Venceu o primeiro round. Mas por que diabo não ficamos mais um pouco? Teríamos tirado a arca em dez minutos.

Nino apoiou-se num cotovelo e apontou para mim um dedo acusador. Havia em seus olhos um lampejo de cólera trágica.

- Ora vejam! Já está querendo dar lições! Vou dizer-lhe uma coisa, seu esperto. Sabe quanto tempo nos vai levar a libertar a arca? Quinze ou vinte minutos. Sabe o que teria acontecido se continuás­semos lá embaixo? Precisaríamos de outros vinte minutos para subir e mais meia hora para descansar, continuando sem a arca. E por quê? Porque não tínhamos o cabo pronto para a guindar. Se tivermos sor­te... se tivermos sorte, repito... acabaremos por içá-la.

- E se não tivermos?

- Ficará lá - respondeu Nino. - Receia que os peixes a co­mam ou que alguma seria a meta debaixo da cauda e fuja com ela?

Bateu com a mão livre na testa, num gesto de desdém e impa­ciência, depois recostou-se na almofada. Pat e Johnny, a salvo na coberta, premiaram com uma gargalhada a pequena e triunfante representação de Nino.

Foi servido o almoço e, enquanto comíamos, Pat dirigiu-se, sem mais preâmbulos, a Nino Ferrari:

- Há alguma possibilidade de a arca que encontraram conter um tesouro?

Nino encolheu os ombros:

- Sabe-se lá, Signorina! Talvez sim. talvez não.

- Minha experiência inclina-se para a segunda hipótese. É sem­pre bom não alimentar muitas esperanças. Pelo aspecto da cabina, diria que não descobriremos grande coisa. Se nos entregássemos à tarefa de limpar o lixo; é possível que encontrássemos uma chávena, uma faca, um prato de estanho. Mas seria um trabalho árduo que não compensaria. - Mostrou os dentes num sorriso simpático. ­Lamento desapontá-la, Signorina, mas a procura de tesouros é sem­pre uma grande desilusão. Conheço um homem que fez fortuna ao salvar um carregamento de plásticos e conheço outro que descobriu um navio-tesouro autêntico, também, e perdeu quanto tinha por não conseguir remover o lodo com a mesma rapidez com que o mar o em­pilhava.

Johnny Akimoto concordou com um aceno. Aquele genovês baixo e moreno agradava-lhe. O mar vira-os nascer a ambos e a am­bos ensinara a lição da prudência. Mas uma nuvem de preocupação cobriu o rosto de Johnny. Hesitou por um momento e depois disse:

- Renboss, a Srta. Pat não quis que lhe contasse durante o trabalho, mas parece-me que lhe devo dizer agora.

- Diga então, Johnny.

- Enquanto andavam lá embaixo, o avião voltou.

- O mesmo?

- Sim. Deu mais duas ou três voltas à ilha e foi-se.

- Diabos os levem para o inferno! - Levantei-me de um salto. Nino Ferrari obrigou-me a deitar de novo.

- Se quer mergulhar esta tarde, deixe-se ficar quietinho. Sabe perfeitamente que esse Manny não desistirá de espiar seu trabalho. Por que prejudicá-lo, só porque está irritado com esse espião?

Foi com relutância que voltei a deitar-me. Fervia de raiva e as palavras de Johnny foram como que o eco de meus próprios pensa­mentos.

- Parece-me que desta vez o caso é mais sério.

- Por que, Johnny?

A interrogação partira de Pat, preocupada.

- Porque agora, Srta. Pat, ele viu o Wahine e não o barco pequeno sabendo em conseqüência, que trabalhávamos no navio afundado. Provavelmente, vai entrar em ação.

Voltei-me para Nino.

- Johnny tem razão. Manny não tardará muito, pelo que temos de nos apressar.

Nino fez um gesto eloqüente com a mão.

- Acaso podemos andar mais depressa? Ir além daquilo que planejamos? Não. Portanto, não estraguemos a digestão. Hoje, ocupar-nos-emos da cabina e amanhã do porão. Continuaremos até que esse Manny apareça...

- Claro! Mas que faremos quando ele aparecer?

- Se soubermos usar os miolos, talvez lhe preparemos a maior surpresa de sua vida.

Nino soltou uma risadinha e voltou a fechar os olhos, Não con­segui arrancar-lhe mais palavra até à hora de descermos.

Verificamos a pressão dos tubos de ar e dos reguladores enquan­to Pat nos ajudava a equipar e Johnny prendia a rede de lastro à ex­tremidade do comprido cabo que serviria de guindaste e que leva­ríamos conosco. Depositaríamos a rede com o lastro à entrada da cabina e, depois de libertarmos a arca, Johnny guindá-la-ia, ao mes­mo tempo que nós subiríamos. Antes de colocar a máscara, Pat beijou-me nos lábios e disse-me:

- Boa sorte, Renn. Não se desespere.

- Descanse. Se não houver nenhum tesouro lá embaixo, já tenho um aqui em cima.

Saltei do barco atrás de Nino e senti o choque da água na pele demasiado quente depois de duas horas de sol no convés. A rede dolastro desceu a seguir e conduzimo-Ia através da coberta, já familiar, para a entrada da cabina.

A escuridão já não me aterrava. Esqueci-me por completo do olhar fixo dos peixes e de sua fuga precipitada para as sombras quan­do me ajoelhei com Nino no chão áspero e comecei a raspar, com fir­meza e ritmo, a areia da arca. Nino observava-me com atenção e aprovou com um gesto quando viu que eu aprendera a lição.

Tente-se enterrar uma lata de querosene no quintal e ficar-se-á surpreendido com o tamanho da cova a abrir. Mas tente-se, seis meses depois, retirar a mesma lata e ter-se-á o dobro do trabalho. Se este for feito num fim-de-semana chuvoso, dez minutos depois de iniciado estar-se-á com lama até aos joelhos. Imagine-se agora dois homens que tentam fazer o mesmo a vinte metros debaixo d’água, removendo com as mãos duzentos anos de areia fina, sargaço rasteiro e crescentes de coral. Concluir-se-á que Nino não exagerara as proporções do trabalho.

Esforçava-me numa extremidade da arca e Nino na outra. Tirava uma mancheia de areia e logo outra se depositava no buraco aberto. Partículas dispersas flutuavam na água, manchavam-nos as máscaras e esgotavam-nos a paciência. Há uns quinze minutos que traba­lhávamos quando Nino me bateu no ombro, fazendo-me sinal para olhar para seu lado.

Olhei e senti o coração cair-me aos pés. A tampa da arca fora arrombada, provavelmente na noite do naufrágio, e no interior havia apenas areia.

As dobradiças de metal estavam corroídas e os pregos de metal, que permaneciam ainda na madeira encharcada, estavam cobertos de alvéolos de coral e pequenos moluscos. Arranharam-nos as mãos, quando as metemos na arca em busca de vestígios de ouro, jóias ou adornos.

Senti entre os dedos algo rijo, mas era uma simples fivela cor­roída, talvez de metal ou de pechisbeque. Nino encontrou uma faca partida e enferrujada, também de metal comum. Quando descobri outra fivela, maior do que a primeira, sorriu tristemente por trás da máscara e acenou-me para que parasse. Sua mímica disse-me aquilo que eu já sabia.

A arca era uma vulgaríssima caixa de embarcadiço. Nada mais contivera além da roupa de terra do possuidor, os sapatos de fivela e uma faca de mar. Os vorazes organismos marinhos haviam comido tudo, com exceção da faca e das fivelas do chapéu e dos sapatos.

Contemplamos por instantes nosso paupérrimo achado. Em seguida Nino pediu-me que o ajudasse a levantar o resto da arca. Des­pejamos o conteúdo no chão, entre as algas. Nada mais descobrimos além de uma pega de metal unida a um fragmento de porcelana.

            Então, ouvimos o estalido do cartucho na água. Jogamos a arca em um canto arenoso e a vimos pousar, imponderável, entre as ervas.

            Pegando nas nossas poucas e infantis relíquias, subimos, he­sitantes, à superfície.

- Cansado, Renn?

Pat e eu estávamos sentados no escotilhão da frente, enquanto Johnny rumava em direção à praia, atravessando o canal até à lagoa, e Nino, sereno como um gato, dormia numa das tarimbas. As mãos de Pat estavam entre as minhas e sua cabeleira negra descansava em meu ombro.

- Sim, querida, estou cansado. Nino tinha razão: é um trabalho extenuante.

- Está desiludido, Renn?

- Estou. Sei que é loucura e infantilidade, mas não quero sim­patia. Sou novo nisto e tenho de aprender a ser paciente. É tudo.

- Nino disse que amanhã começarão a trabalhar no porão.

            - É verdade.

- Vai ser difícil?

- Como na cabina; com a diferença de que é maior e a areia dez vezes mais funda.

- Não parece muito prometedor, não é?

- É uma questão de sorte e nada mais.

Ficou hesitante, mas logo prosseguiu:

- Renn, tenho pensado.

- Em quê?

- Nas moedas do recife. Acha provável que uma parte da tri­pulação tenha chegado à ilha?

- E levado consigo as arcas do ouro?

- Sim.

- Querida - disse-lhe pacientemente - já discutimos isso e ouviu a opinião de Johnny. Percorri toda a ilha e não vi qualquer ves­tígio.

- Não há grutas?

- Nem uma. Apenas alguns buracos nas rochas e umas saliên­cias do lado do recife. Ou são demasiado baixas ou demasiado altas. Na ponta ocidental há uma brecha. Descobri-a com Jeannette, mas era tão úmida, bolorenta e malcheirosa das cabras que não entramos. Afora isso, absolutamente nada.

            Suspirou, contorcendo a boca num rito triste.

- Lá se foi minha bela hipótese. O melhor é deixar que você e Nino resolvam o caso, não lhe parece?

Johnny reduzira a velocidade, preparando-se para ancorar.

Levantei-me e fui para a proa, a fim de preparar o cabo. Pat seguiu­-me.

- Renn?

- Sim.

- Johnny está preocupado.

- Com quê?

- Não sei, mas quer falar com você esta noite, depois do jantar e a sós.

Lancei a âncora e o cabo seguiu-a vertiginosamente. Depois deu um esticão e o Wahine deteve-se ao mesmo tempo que a popa ro­dava, impulsionada pela corrente: O primeiro dia de trabalho findara e de novo estávamos em casa.

Tínhamos acabado de jantar. As estrelas brilhavam baixas, no céu ameno. Nino, acocorado junto ao fogo, vedava cuidadosamente a juntura do tubo de seu equipamento de mergulho e cantava em sur­dina. Pat havia ido para sua tenda escrever a tese que, incongruen­temente, faria de minha moreninha Doutora em Ciências. Vi a som­bra dela projetada pela lâmpada contra a lona iluminada da tenda. Johnny dormiria no Wahine. Desci a praia com ele.

Quando já não nos podiam ouvir, disse-me:

- Renboss, estou assustado.

- Com que, Johnny?

- Vai-se passar qualquer coisa com esse Manny Mannix.

- Já sabíamos disso, Johnny. Sempre o soubemos.

- É verdade, Renboss, mas... - gaguejou, em busca de pa­lavras que dessem forma a seu pensamento e me fizessem ver a premência da situação. - Como explicar? Lembram-me os velhos tempos dos lugres. Espalhava-se que este ou aquele havia descoberto um novo local e que trabalhava lá sossegadamente. Quando entrava no bar, era observado pelos outros com cobiça. Avaliavam sua força e coragem, a lealdade de sua tripulação. Se era forte e estimado pela tripulação, adulavam-no e ofereciam-lhe uma bebida para lhe apanharem o segredo. Mas se era fraco ou covarde, ou a tripulação o detestava, rosnavam, resmungavam e um deles desencadeava a luta. Uma garrafa voava e as navalhas luziam. Batiam-se como animais ferozes... Esse Manny é uma fera, Renboss, e lutará como eles.

Concordei gravemente. Johnny tinha razão. Manny Mannix era uma fera e tinha a coragem de uma fera. Mas era também um homem de negócios e, desde que se tratasse de dinheiro, não se arriscaria es­cusadamente. Se tomasse uma decisão, porém, não desistiria. Quem vagueia pela costa norte com dinheiro no bolso encontra com fre­qüência tipos sem escrúpulos e duros que não se detêm quanto à maneira de ganharem algum. Johnny observava-me com manifesta preocupação.

- Acha que tenho razão, Renboss?

- Tem toda a razão, Johnny.

- E que tenciona fazer?

- O que quer que eu faça?

Ponderou longamente a pergunta e, por fim, respondeu:

- Por mim, pelo mergulhador Nino e por você, diria que ficás­semos para lutar. Mas há a pequena.         

Eu compreendia. A moça era um problema. Se houvesse violên­cia, seria apanhada também. Estaria presente quando as feras co­meçassem a dilacerar-se e a despedaçar-se. E depois?... Não era coisa para mulheres - e aquela era a jovem que eu amava. Só havia uma resposta.

- Amanhã, Johnny, a mandamos embora. Se o tempo estiver bom, irá em seu pequeno barco. Não precisa ir para o continente; há duas ou três ilhas onde se poderá se instalar até que tudo se acabe.         

Johnny Akimoto endireitou-se. Era como se lhe tivessem tirada das costas um grande peso. Sorriu e apertou-me a mão.

- Acredite que é melhor assim, Renboss. Sei que não lhe agrada vê-la partir, mas é a única maneira de ficar com as mãos livres para lutar... Boa noite, Renboss!

            - Boa noite, Johnny!

            Vi-o empurrar o bote, saltar para seu interior com agilidade e remar com força e sem custo para o Wahine. Voltei a subir a praia em direção à tenda de Pat.

Levantou-se quando entrei. Beijamo-nos e ficamos abraçados al­gum tempo. Depois, sentei-a de novo em sua cadeira e acomodei-me numa mala, a seu lado. Disse-lhe sem rodeios:

- Querida, amanhã terá de partir. Vai haver barulho. Leva o barco pequeno e segue para South Esk ou para a Ilha de Ladybird. Espere lá até irmos buscar você.

Ficou olhando para mim, silenciosa. Tinha lágrimas nos olhos e seu lábio superior tremia. Conseguiu dominar-se e perguntou-me bastante calma:

- Quer que eu vá, Renn?

- Não quero que vá, mas creio que deve ir.

- E Johnny?

- Johnny é da mesma opinião.

Voltou o rosto e limpou os olhos com um lencinho. Quando vol­tou a fitar-me, tinha a boca firme e o queixo orgulhosamente levan­tado. Havia em sua voz uma tonalidade para mim desconhecida.

- Vai lutar, não vai, Renn?

- Vou.

- Por causa do navio-tesouro?

- Em parte... Mas não é só por isso.

Lenta e dolorosamente, tentei reunir as idéias que há dias se elaboravam em meu espírito:

- Agora sei que é possível que não encontremos a carga do Dona Lucia. Ainda temos uma possibilidade, claro. Mas é mais provável que esteja tão profundamente enterrada na areia que nem em um milhão de anos poderíamos chegar até ela. Neste caso, a luta seria, uma loucura monstruosa e cara. Mas, procure compreender: não e apenas disso que se trata. Há muitas outras coisas: esta vida, meus amigos, a ilha. Pela primeira vez, sinto-me um homem livre, pisando terra que é minha. É por isso que lutarei, querida. Creio que, por isso, até serei capaz de matar.

            - E sua mulher, Renn? - As palavras saíram-lhe num mur­múrio. - Sou sua mulher, não sou?

            - É, Pat, e sê-lo-á até o Dia do Juízo.

            Levantei-me e estendi o braço para a enlaçar, mas afastou-me de mansinho.

            - Então, fico com você. É meu marido e não pode mandar-me embora.

Tentei discutir, mas fechou-me a boca com beijos; tentei ameaçá-la, mas riu-me na cara. Tentei levá-la a obedecer, mas re­cusou com obstinação.

- Vá para a cama, Renn. Amanhã, tem de trabalhar. No final, teremos todo o tempo para nós, até ao Dia do Juízo, como você disse.

            Estava sem cabelo, como Sansão. Tornei a beijá-la e fui para a tenda.

Nino Ferrari continuava ao fogo, consertando o delicado me­canismo dos reguladores de ar. Ergueu os olhos quando me pressentiu e sorriu com malícia.

- Arranjou uma bela moça. Será uma boa esposa para um mer­gulhador. Um homem de águas profundas precisa dormir.

            Grunhi irritado e acocorei-me junto dele. Atirou-me um cigarro.

- Há alguma coisa que o preocupa, meu amigo?

            - Vamos ter luta. É a opinião de Johnny e a minha também.

- Com que então é isso, hem? Já assisti a cenas como essa entre os pescadores de esponjas do Egeu. Pode ser o diabo, quando o vinho corre e as navalhas de ponta se abrem. E a moça? - inquiriu, sa­cudindo o polegar por cima do ombro, num gesto significativo.

            Encolhi os ombros.

            - Queria que ela partisse, mas não quer. Nada posso fazer, a não ser expulsá-la da ilha à força.

Nino apertou o último parafuso do regulador, enrolou-o com cuidado num pano limpo para evitar a areia e voltou a colocar o aparelho no estojo, batendo com a tampa, ao fechá-lo.

- A primeira regra para um mergulhador de aparelho - disse sem mais nem menos - é limpar o regulador logo após o mergulho. Se falha lá embaixo, é um homem morto.

Houve um silêncio e ouvi o zumbido dos mosquitos na moita atrás de nós. Observei o vôo de um morcego, depois voltei-me para Nino.

- Esta manhã, quando estávamos no mar, disse que tínhamos qualquer coisa para usar contra Manny, caso ele apareça. O que é?

Olhou-me demoradamente de soslaio, depois inclinou a cabeça, examinando as costas das mãos. Quando falou, sua voz era monótona e enfadada.

- Meu caro, não se mete uma faca nas mãos de uma criança em uma arma carregada nas mãos de um homem encolerizado. A sabedoria que tenho adquiri-a num tempo de violência e destruição sangrentas. Não hesitarei em usá-las, se for necessário. Embora o considere um amigo, eu é que direi o que e como se deve fazer. To­marei a responsabilidade das conseqüências. Lamento muito, mas é uma coisa que sinto profundamente... aqui, no coração.

Tive de me contentar com aquilo. Sorri, levantei-me, bati-lhe levemente no ombro e fui-me deitar. Sonhei com uma praia em tempo de guerra, juncada de cadáveres arrastados pela maré e com um homem encurralado numa toca de raposa pelo fogo dos canhões, vin­do das palmeiras.

O homem da toca era eu; o homem por trás do canhão era Man­ny Mannix.

 

Na manhã seguinte, às sete horas, lançamos a âncora na área de trabalho. Tínhamos planejado três mergulhos e cada um deles, jun­tando-lhe o descanso e o tempo de subida e descida, gastava três horas. Eu tinha alvitrado quatro, mas Nino não se deixou convencer. Dizia que os resultados positivos não compensariam. Dois ou três dias mais tarde começaríamos a sentir os efeitos da imersão prolongada e a narcose do nitrogênio.

Íamos tentar o primeiro exame do porão. Equipamo-nos rapi­damente. Minha expectativa era enorme ao deixar o barco para seguir Nino, rodeado pelas bolhas de ar que saíam de seu aparelho e me roçavam a cara.

Uma vez mais nadamos por cima das algas oscilantes do convés até chegarmos ao rombo escancarado e orlado de lodo e corais afiados. Nino fez-me sinal para que parasse. Vi-o mergulhar obli­quamente, seguindo o raio de luz de sua lanterna. Observei seu cuidado em evitar que os tubos roçassem pelas arestas cortantes. Depois voltou o foco da lanterna em minha direção e eu nadei a seu encontro, seguindo a luz.

O espaço onde nos encontrávamos devia ser três vezes maior do que a cabina que examináramos no dia anterior. A areia obliquava para cima e a madeira, coberta de algas e sargaço, esquinava para baixo, à maneira de cunha, para a parte traseira do camarote. O foco de minha lanterna incidiu num bando de lagostas presas às tábuas do teto, a um canto. Decidi levar uma para comermos a bordo do Wahine. Senti roçar-me qualquer coisa pelas omoplatas e voltei-me assustado: era um grande calamar. À luz da lanterna, vi seus olhos redondos, o bico preto de papagaio e os tentáculos que esticavam ao fugir para cima, largando atrás de si uma mancha de tinta como um fantasma..

Nino fez-me sinal para que me juntasse a ele. Demos a volta ao porão, de pé quando o teto o permitia, ou então nadando de costas ou de bruços conforme o espaço entre a areia e a madeira.

Nossas mãos tatearam os contornos de velhos vaus por baixo das algas ondulantes e escorregadias. Marcamo-los com cuidado; servir­nos-iam quando dividíssemos a área em seções que exploraríamos dia após dia. Completado o circuito, nadamos de um para outro lado, apalpando o fundo entre a erva, a areia e o coral, em busca de algo que se parecesse com uma arca. Era trabalho rotineiro e pouco con­cludente, mas indispensável. Mais tarde iniciaríamos a tarefa ex­tenuante de remexer com as mãos e as facas centenas de metros quadrados. ­

Percorrida toda a área, Nino mandou-me parar. Ficamos por instantes suspensos, no novo elemento, sorrindo um para o outro e fazendo sinais cômicos com as mãos. Depois, Nino acenou-me para que iluminasse com a lanterna uma parede do porão. Assim fiz e ele nadou para o canto, medindo a largura com os braços estendidos, e em seguida nadou desse ponto e paralelamente à parede para o outro extremo do porão. A luz de minha lanterna seguia-o. Compreendi o que ele pretendia: delimitar uma estreita faixa de areia para nossa primeira busca.

Voltou a nadar para junto de mim e, lado a lado, iniciamos o ttabalho. Raspamos, esgravatamos, esquadrinhamos, forçando as mãos para trás e os corpos a boiar, como peixes.

Trabalhávamos apenas há alguns minutos quando ouvimos o es­tampido familiar do cartucho na superfície das águas. Paramos. Olhei para Nino e Nino para mim. Não estávamos ali há mais de um quarto de hora. Ouvimos um segundo estampido e logo um terceiro. ­

Alguma coisa não corria bem no Wahine. Nino gesticulou. Abandonamos o porão e subimos à superfície o mais depressa que pudemos.

            Johnny e Pat içaram-nos para bordo e, já na coberta, Johnny apontou para o mar, a oeste.     ­

            - Eles vêm aí, Renboss - disse, calmamente.

            Era um lugre como o Wahine, mas maior e de casco mais largo, pintado de preto. As vergas estavam nuas. Era impulsionado por máquinas, a uma velocidade de cerca de doze nós. Mais vinte minutos e alcançar-nos-ia.

Johnny Akimoto passou-me o binóculo. Assestei-o e vi que havia maquinismo amontoado na coberta, protegido por uma lona. Distin­guiam-se sombras junto da escotilha da frente e homens de tronco nu nas cobertas. Também descobri um vulto de terno branco de linho, abraçado aos estais da popa. Era Manny Mannix.

Passei o binóculo a Nino, que examinou o lugre por alguns momentos e depois o baixou.

- Material para mergulhar - disse laconicamente. - Bombas e um guindaste. Deve haver outros maquinismos na frente.

Voltei-me para Johnny Akimoto.

- Conhece o barco, Johnny?

- Conheço. É um lugre de dois motores. A matrícula diz que é da Ilha de Thursday.

Manny era um indivíduo esperto. Esperto demais e que nunca esquecia uma cara nem perdia um contato. Já anteriormente havia fretado aquele barco, quando fora para o norte, com uma licença legal de comprador, tentar adquirir o excedente da guerra que ficara pelas ilhas. Conseguira um manifesto falso e regressara com um carregamento de armas empilhadas em esquecidos depósitos mili­tares, em mais de cem ilhas solitárias. Um simples telegrama e o mes­mo barco, com o mesmo arrais e a mesma tripulação de traficantes, desceria o recife para o ir buscar em Bowen. E se surgissem dificul­dades, uma talhada para o arrais e um bônus aos marujos garanti­         riam a Manny silêncio e segurança.

- O que vai fazer, Renboss?

- Esperar, Johnny. Sentar-me aqui e esperar. Guarde o equipamento, Nino. Pat, desça e arranje-me qualquer coisa que se coma. Se vamos ter problema, será bom que coma primeiro.

Lançou-me um sorriso pálido e caminhou para a ré. Nino pôs-se a secar cuidadosamente o equipamento. Johnny Akimoto seguia a negra sombra do lugre que deslizava para nós, por sobre as águas serenas.

Quando se aproximou, vi-lhe na proa a matrícula branca, as caras barbudas e os corpos tisnados da tripulação. Vi Mannix brandir o charuto enquanto falava, mas eu continuava intrigado pelas es­tranhas formas cobertas de lona, no alto da proa. Apontei-as a John­ny, que também não descortinou o que fosse. Abaixou-se, pegou no rifle do escotilhão, retirou o cartucho vazio, substituiu-o por outro e premiu a culatra. Depois correu a mola de segurança e colocou o rifle nos embornais, com cuidado e de modo a não ser visto.

Pat e Nino voltaram para o convés com as canecas de chá e um prato de sanduíches. Sentamo-nos os quatro na escotilha a comer, en­quanto o lugre preto se aproximava cada vez mais. O sol quente, fil­trado pelo toldo, acariciava-nos. O Wahine balouçava mansamente nas aguas calmas. Não fora a tensão que nos dominava e o negro bar­co ameaçador, com sua variegada tripulação, e passaríamos por um grupo em pesca de recreio.

Aproximaram-se de nós quando terminamos a refeição. Pararam os motores trinta metros a estibordo e rumavam diretos a nossa proa. O homem do leme acionou a manivela e a âncora caiu com estrondo e salpicos de água. Ficamos então em linha, apenas com dez metros de água a separar-nos.

A tripulação debruçou-se na amurada, rindo e gritando. As­sobiaram e proferiram obscenidades quando viram uma mulher conosco. Eram uma dúzia de negros, brancos e mulatos. Alguns muito novos e outros ainda não velhos. Havia-os barbeados; outros usavam uma barba hirsuta e descuidada. Mas todos estavam quei­mados, todos eram duros e perigosos - veteranos à margem da lei, ralé das cidades.

No centro erguia-se Manny Mannix, incongruente em seu terno branco e com sua gravata berrante, de chapéu panamá na nuca e charuto no canto da boca. Tirou-o para me saudar.

- Viva, Comandante! Que belo tempo!

Não respondi. Pat, a meu lado, ficou hirta.

- Gostaria de ir a bordo, Comandante. Visita particular de negócios.

- Deixe-se ficar onde está, Manny!

Ele agitou a mão condescendente e gritou em resposta:

- Estou apenas tentando ser amável. O negócio continua em aberto, se estiver interessado.

- Não estou, Manny.

- Divido com você; Comandante: cinqüenta por cinqüenta. Repare que eu trouxe homens e máquinas para o trabalho. - Abran­geu com um gesto todo o barco e a respectiva tripulação. Se não quiser, compro-lhe sua parte nas condições que sabe.

- A resposta é não, Manny. Se o quiser, tem de o procurar.

- São águas livres, Comandante. Mostre-me seus direitos para recuperar o barco e eu vou-me embora.

            - Não tenho quaisquer direitos, Manny. Fomos os primeiros a chegar e é tudo.

Os homens alinhados no convés soltaram grandes gargalhadas. Vi a mão de Johnny baixar-se para pegar no rifle que escondera nos embornais. Detive-o antes que tocasse na arma.

            Manny Mannix voltou a dirigir-se a mim:

- Tenho testemunhas, Comandante, que podem jurar que lhe fiz uma proposta honesta quanto a uma coisa que, afinal, ainda não possui. Por isso, vou entrar em cena.

            Curvei-me, peguei no rifle e mostrei-lhe.

            - Disse-lhe que teria de lutar, Mannix.

Ouviram-se mais gargalhadas. Manny voltou-se e gritou uma or­dem a um marujo que estava distanciado, junto dos estais.

            Num instante, tirou a lona e o enigma foi decifrado. As sombras eram bombas de profundidade, empilhadas num depósito de uma ilha qualquer. Por trás havia uma pequena metralhadora assente

num tripé já carregada, e o homem com o dedo no gatilho.

- Ainda quer lutar, Comandante? - gritou Manny.

Os sequazes deliraram com a piada. Então, o rosto de Manny ensombrou-se e a voz soou diferente e venenosa:

- Vou começar, Comandante... e é para já. Leve seu barco para o interior do recife e fique lá quietinho. Se deitar de fora as orelhas antes de termos acabado, será eliminado. E se você e seu “italiano” se lembrarem de que são homens-rãs, querendo mergulhar enquanto meus rapazes descansam, não se esqueçam daquilo. - E apontou para as sinistras latas metálicas pousadas na popa. - Daremos um passeio e deixá-las-emos cair em cima de vocês, de passagem.

Era, sem dúvida, uma jogada real de Manny. A última cartada. Só nos restava vê-lo recolher as fichas e partirmos. Pela segunda vez fora batido e liquidado no jogo por Manny. Mas não lhe daria o prazer de o confessar. Pelo canto da boca, dirigi-me a meus com­panheiros.

- Nino, levante a âncora. Johnny, ligue os motores e vamos em­bora. Nada de pressa. Devagar e com calma. Pat e eu ficamos aqui.

Não fizeram perguntas. Deslocaram-se sem ruído, quase lan­guidamente, para seus postos, enquanto Manny e seus homens obser­vavam a jogada mudos de espanto e o homem da metralhadora se mantinha tenso e preparado.

Nino levantou a âncora. Ouvi os motores do Wahine engasgarem e a popa mover-se quando as adriças se enredaram e o hélice fustigou a água. Depois, e com a graça de Deus, começamos a navegar. Pat e eu continuávamos junto à amurada, e eu segurava ainda o rifle des­travado debaixo do braço. Manny não queria tiros... por enquanto... mas, se os houvesse, eu gostaria que fosse ele o primeiro a tombar.

Os observadores do lugre mantinham-se calados vendo-nos sair, com o costado ainda paralelo ao deles. Mas Johnny já girava o leme para fumar a leste, ao longo do recife, a fim de penetrarmos no canal. O homem da metralhadora fê-la rodar, visando-nos. E, de repente, ouviu-se um estrondo de gargalhadas. Soou como uma obscenidade nas águas limpas e batidas pelo sol.

            Nino, Pat e eu fomos para o convés da popa, para junto de John­ny Akimoto.

- Foi a coisa mais horrível e brutal que vi em toda minha vida - comentou Pat em tom suave e reprimido. Mas seus olhos pretos chispavam de raiva. - Foi muito cruel, muito duro.

Resmunguei, desesperado:

- Não foi pior do que eu esperava. A única surpresa foram as bombas e a metralhadora. Mas, conhecendo Manny como conheço, devia contar com isso.

- Parece-me - disse Nino Ferrari com judiciosa serenidade ­que não simpatizo muito com esse Manny. Acho que é um grande vigarista. Chamou-me "italiano", mas meu povo era gente civilizada, ao passo que ele nem sabe quem era o pai. Vou começar a pensar no caso seriamente.

Johnny Akimoto nada disse; mantinha-se ao leme, distante - ­um vulto escuro e solitário, pondo cuidados quase patéticos na manobra de regresso do Wahine. Era como se a presença do lugre negro com sua esfarrapada tripulação bastasse para o profanar a ele e ao barco que tanto amava. Seus olhos sábios refletiam uma cólera fria. A pele dos ossos faciais e do queixo estava tensa.

Não proferimos palavra até transpormos o canal e lançarmos ferro na água plácida da lagoa.

Em seguida, reunimos um conselho de guerra. As provisões e o equipamento seriam transferidos para o acampamento da praia. Mudaríamos a tenda de Pat mais para cima, para junto da nossa. Manteríamos uma vigilância de vinte e quatro horas sobre o lugre negro e suas atividades. Deixaríamos o barco pequeno e o escaler na praia, à vista do acampamento, onde dormiríamos todos. Johnny não concordou com este último ponto.

- Não, Renboss! Você e seus amigos ficam na praia. Eu prefiro o Wahine.

- Não sei se será aconselhável, Johnny. Acho que estaremos mais seguros se ficarmos juntos. Nada de mal pode acontecer ao Wahine. Eles vão assistir ao descarregamento e, se decidirem vir à praia, o que duvido, deixarão o barco em paz e dirigir-se-ão para o acampamento.

Johnny meneou a cabeça e disse numa voz segura:

- Não, Renboss. A ilha é sua, mas o Wahine é meu. Cada um guarda o que lhe pertence. Ficarei com um rifle e metade da munição; vocês levam o outro para o acampamento. Como Nino tem pistola, parece-me bem dividido. Acredite, Renboss, que assim é melhor.

Nino Ferrari concordou com um gesto em resposta a meu olhar.

- Johnny tem razão, meu amigo. Deixe-o fazer como quer. Um de nós irá todos os dias fazer-lhe companhia e levar-lhe água fresca. Ademais, o Wahine é o nosso refúgio. Tem de ser protegido e estar preparado para qualquer emergência.

Assim ficou estabelecido. Com quatro viagens de bote, trou­xemos tudo para terra, enquanto no lugre negro, toda a tarde, Manny Mannix seguia nossos movimentos. Quando a noite chegou, Nino, Pat e eu sentamo-nos junto à fogueira, vendo as luzes da âncora do Wahine subirem e descerem nas águas desertas e, mais ao longe, o brilho amarelo que irrompia das escotilhas da cabina do grande lugre.

Em sua característica maneira profissional, Nino Ferrari discutia a situação:

- O que aconteceu esta manhã foi vergonhoso, mas não adianta amaldiçoar, praguejar e irritar-se. Ao final de contas, até pode ser vantajoso para nós.

- Com mil raios! Vantajoso, como? - gritei. - Manny é o patrão. Tem equipamento, tempo e dinheiro! Se fizermos um mo­vimento, dispara-nos uma rajada. Só nos resta ficarmos aqui sentados e...

Uma mãozinha firme poüsou em meu braço e a voz calma de Pat interrompeu-me:

- Deixe o Nino falar, Renn.

Nino riu e piscou-me um olho.

            - Eu bem lhe disse que tinha arranjado uma bela mulher, meu caro. Ainda não lhe confessei, mas esta manhã, quando vi o porão, senti um abalo. Como sabe, não sou novato nestas coisas e posso garantir-lhe que mais de três quartos do porão estão enterrados na areia. Bem viu o ângulo do convés. Se pensar um pouco, concluirá que, quando o navio afocinhou, todos os móveis deslizaram. Assim, se as arcas lá estiverem, é provável que uma enorme camada de areia as cubra. Claro que há caprichos e acasos, mas não confio muito.

- Seja como for, Nino, permanece o fato de que Manny dispõe de bombas e mergulhadores. Poderá trabalhar muito mais tempo do que nós e remover a areia. Pode ficar até o conseguir.

Nino sorriu, abanando a cabeça.

- Estes amadores! É verdade que ele tem bombas. Mas que bomba utilizará num caixote tão pequeno como aquele? Quanto tem­po lhe levará a deslocar mil toneladas de areia? É certo que não lhe falta tempo, mas este custa dinheiro. Tem de pagar a tripulação, o arrais e os mergulhadores, além do frete do barco. Ao fim de alguns dias, se não encontrar as arcas, fará as malas e partirá. Por quê? Por­que é um homem de negócios e, como tal, dispôs de uma quantia limitada para gastar. Então, quando ele se for, recomeçaremos nós, com o trabalho facilitado. Compreende?

A lógica de Nino era irrefutável. Não tinha resposta para sua ar­gumentação e isso irritava-me. Vi-o impassível como um juiz, ao mes­mo tempo que Pat aprovava seu raciocínio. Senti-me envergonhado por minha desesperada ira.

            Foi então que reparamos num projetor aceso a bordo do lugre. A luz crua fazia uma grande poça na água, do lado de fora do recife. Ouvimos o matraquear de um guindaste e o pulsar distante e ritmado de uma bomba. Vimos uma sombra monstruosa que descia do lugre para a poça de luz.

Manny era homem de negócios e, como tal, sabia que tempo é dinheiro. Iria trabalhar dia e noite.

 

Toda as manhãs acordávamos ao som cadenciado das bombas. Víamos o lugre negro ancorado sobre os restos do Dona Lucia e os movimentos sonolentos dos homens no caos do convés. E víamos tam­bém Johnny Akimoto na amurada do Wahine, pescando o pequeno almoço.

Corríamos à praia para lavar o sono do corpo e, enquanto Pat confeccionava a primeira refeição do dia, Nino e eu arrumávamos o acampamento e apanhávamos a lenha dispersa pelo chão. Depois, um de nós metia-se no barco pequeno e ia passar a manhã com Johnny Akimoto, a bordo do Wahine. Johnny já não estava irritado; sorria de novo e movia-se à vontade pelo tombadilho do Wahine, como um jar­dineiro entre seus canteiros. No entanto, a sua volta pairava a pru­dência e a cautela, atitude de um homem que espera o inevitável no meio de uma paz breve e ilusória.

Em seguida, porque nada havia a fazer, levava Pat em curtos passeios de exploração através do meu reino defendido por ameias. Ensinei-lhe os nomes das árvores: casuarina, tournefortia, umbela e ameixa indígena. Mostrei-lhe os pinheiros de copa redonda que haviam nascido das sementes trazidas pelos pássaros do continente. Apontei-lhe, sob as folhas macias das pisônias, os ninhos em que dor­miam as andorinhas do mar.

Colhíamos orquídeas junto aos rochedos e sentávamo-nos à som­bra dos fetos gigantes, Seguíamos as formigas das árvores que jun­tavam as folhas e se serviam dos filhos como de lançadeiras vivas de onde saía o extenso fio sedoso que as ligava e cimentava. Nós as víamos tecer seus estábulos, currais e galerias de malha fina e macia, onde os pulgões ficam presos como gado doméstico até à altura de serem mortos e comidos, Ficávamos extasiados a observar a aranha caçadora, pendurada em sua teia apanhando os mosquitos com uma gota de cola úmida que segrega por baixo do corpo. Tentávamos, sem resultado, travar amizade com as cabras magras e felpudas, prote­gidas por uma velha lei contra as necessidades dos náufragos. Por toda a mata havia pegadas e as seguimos até à cumeada entre os dois chifres da ilha. Dali, contemplávamos as rochas castanhas lá em­baixo, batidas nos flancos pela água transparente. No cume, sozinhos como os primeiros habitantes, entre o sol e o mar, Pat e eu admi­rávamos a magnificência das ilhas verdes que continuavam as in­terrompidas praias do recife. Víamos a zona azul das águas profun­das ceder lugar ao verde-amarelo dos baixios. Descobríamos os cor­pos meio deitados dos porcos marinhos, as cabeças em forma de seta dos peixes-voadores e o vulto pequeno e negro de alguma velha tar­taruga que talvez tivesse assistido à chegada do Dona Lucia.    

Subíamos as pontas geminadas e eu indicava a fenda estreita en­tre os rochedos, que era a única aparência de uma caverna na ilha. Mas recuávamos precipitadamente, devido ao forte fedor animal que nos acolhia. Um bode barbudo deitava a cabeça fora das trevas e fazia uma careta.

Depois desses passeios, voltávamos ao acampamento, indo en­contrar Nino estendido na areia, acrestar o corpo já moreno e a fazer­nos caretas como o rei dos bodes.

Cada vez Nino me espantava mais. Para ele o tempo não contava. Havia em seu corpo magro e musculoso certa graça felina: movia-se como um gato e tinha a capacidade deste animal para se relaxar e dis­tender. Recusava-se a desperdiçar energias em especulações inúteis ou atividades sem proveito. Seu espírito, contudo, mantinha-se lúcido e afiado como o gume de uma faca.

- Estou contando os dias, meu caro - dizia - ao mesmo tem­po que os vou gozando. Digo para comigo que dentro de uma semana, dez dias, duas semanas no máximo, eles perdem a coragem e vão-se embora. Até lá, distraio-me. Há anos que não tenho umas férias como estas.

Senti um estranho remorso ao notar que pensava da mesma maneira. Fechado no pequeno círculo do recife e sem possibilidades de agir, tinha-me resignado à calma dos dias lodacentos e à paz pas­toral de meu amor por Pat Mitchell. Aquela vida agradava-nos. Com­praríamos um barco como o Wahine e veríamos nossos filhos bron­zearem-se ao sol e crescerem em robustez. Tecíamos nossos sonhos amorosos com as cores do poente e do mar.

Então, um dia, algo sucedeu a bordo do lugre. Eu estava a obser­vá-lo pelo binóculo quando notei grande agitação na coberta. Ouvi um berro longínquo que se elevou acima do ruído das bombas. Vi o grupo que jogava cartas no escotilhão interromper a partida e dirigir-­se para a ré. O corpo negro de um dos ilhéus arrastava-se pela coberta e tentava saltar do barco. Vi que o agarravam e compeliam, para depois o atirarem de cabeça contra a escotilha.

Foi espancado duramente, enquanto a tripulação ria divertida e Manny Mannix tirava o charuto da boca para gargalhar também.

Passei o binóculo a Nino Ferrari. Contemplou a cena por mo­mentos e entregou-o, depois, a Pat. Esta devolveu-me sem proferir palavra e afastou-se agoniada.

O espancamento continuou com ferocidade até que o corpo negro deixou de lutar e ficou estendido, a sangrar, na escotilha.

            Observei então uma coisa horrorosa.

            Manny Mannix fez um gesto breve e quatro homens, após momentânea hesitação, lançaram-no ao mar. A massa negra flutuou por um minuto nas águas calmas, afastando-se lentamente do lugre, ao sabor da corrente, até que surgiu a barbatana dorsal de um tu­barão e depois outra e outra. Houve tumulto e esguichos de água ao lutarem pelo petisco e depois... nada mais. Pareceu-me ver uma man­cha escura espalhar-se pelas vagas. Pousei o binóculo.

Nino Ferrari batia na areia.

- Parece-me - disse baixinho - que chegou o momento de fazermos qualquer coisa.

Nessa noite remei para o Wahine e trouxe Johnny Akimoto para terra, a fim de discutirmos. Também ele assistira ao breve e terrível drama, e seus olhos estavam intumescidos pela raiva.

Sentamo-nos os quatro em volta do fogo, vendo Nino curvar-se, alisar a areia com a palma da mão e desenhar um mapa...

- Aqui - disse - fica a ilha com a praia na frente e os ro­chedos atrás. Ali situa-se a lagoa e acolá a linha do recife. Aqui alar­ga-se e ali estreita-se, fazendo um todo com o banco de rocha por trás da ilha. O acampamento está neste ponto e o Wahine acolá. Ali - fez uma cruz na areia com o dedo - temos o lugre e o navio naufragado.

Endireitou-se e acendeu um cigarro, depois, aspirou profun­damente e soprou a fumaça pelas narinas e pela boca. Em seguida prosseguiu, com voz serena e baixa, mas cheia de emoção:

- Antes de mais nada, quero dizer-lhes que a vida de um ho­mem é preciosa e vale mais do que todo o ouro do Dona Lucia e todas as riquezas do mundo. Já vi muitos homens morrerem e alguns por culpa minha. Houve os que foram espancados até à morte, como o de hoje, mas sem que eu tomasse parte nisso. À medida que vou enve­lhecendo, mais reconheço que a morte de um homem me toca di­retamente, pois que minha vida está ligada à do meu semelhante. Digo-lhes isto para que possam compreender que o que vou propor não e uma leviandade, nem é feito com a mira no lucro, mas apenas um ato de justiça.

Calou-se e fumou por algum tempo em silêncio. Tinha os olhos velados. Nós, os outros, esperávamos tensos de expectativa. Ele pros­seguiu:

- Vou fazer o lugre ir pelos ares.

Suas palavras caíram no silêncio como pedras num charco. John­ny Akimoto respirava assobiando como um jato e Pat estava intei­riçada. Agarrou-se a meu braço e tremia violentamente. Nino Ferrari continuou com toda a calma:

- A mina de lapas é uma arma simples e segura para quem a usa: Fixa-se por baixo do casco, por aspiração, e tem um rastilho que proporciona uma margem de segurança ao atacante. Trouxe quatro para utilizar no Dona Lucia, mas é no lugre que as vou usar.

Curvou-se e recomeçou a desenhar na areia, enquanto o obser­vávamos fascinados.

- Aqui - e apontou para o ponto em que o recife se aproxi­mava da ilha, para lá da extremidade oeste... é onde a corrente co­meça. Segue pelo recife e paralelamente a ele em direção ao local on­de nossos amigos trabalham. Quando a maré enche, atinge três, tal­vez quatro nós. Um homem pode entrar aqui e descer com a corrente, não levando mais de meia hora até ao navio. Chega ao lado oposto em que os mergulhadores estão trabalhando, fixa as minas e nada, sem­pre a favor da corrente, para o canal. Daí, regressa ao Wahine. A operação completa não demorará mais de hora e meia.

Endireitou-se e fitou-nos. Seus olhos negros perscrutavam nossos rostos. Foi Johnny Akimoto o primeiro a falar.

- Creio que é uma boa idéia, Renboss. Se Nino não se importar, irei com ele.

Nino meneou a cabeça:

- Não, Johnny. É preciso nadar submerso e, por isso, irei só. - Quem irá com você sou eu - falei.

Nino encarou-me. Depois lançou um olhar rápido e prudente a Pat, que continuava agarrada a meu braço, pálida e trêmula, e disse:

- Deve compreender, meu amigo, que uma coisa destas envolve sempre certo risco... Como sabe, as espoletas e as bombas de profun­didade continuam no convés.

- A festa é minha, Nino. Portanto, irei com você.

A voz esganiçada e tremente de Pat interrompeu a discussão.

- Não vai ninguém. Esta manhã assistimos a um assassínio e is­so é assunto para a polícia. O melhor é metermo-nos no Wahine ou no barco pequeno e irmos a Bowen contar o sucedido.

Foi Johnny Akimoto que lhe respondeu com gravidade e tristeza, como um pai que tem uma verdade dolorosa a contar ao filho:

- Não, Srta. Pat. Se tentássemos abandonar o canal, voltariam a metralhadora contra nós. Além disso - hesitou para logo continuar - o que fizeram esta manhã foi à luz do dia e bem à vista. Sabem que nós o presenciamos, mas na têm receio porque, tanto quanto sei, é sua intenção matar-nos também.

Para mim e para Nino não havia dúvidas, mas Pat protestou energicamente:

- Não podem fazer uma coisa dessas, Johnny. Não se atrevem. É impossível que o façam.

- E por que não, Srta. Pat? Sabe muito bem onde estamos... a três horas de viagem do continente, tendo para além a imensidade oceânica. Vou-lhe dizer o que vão fazer. Matam-nos, atiram os corpos aos tubarões e depois destroem qualquer vestígio do acampamento. Levam as provisões para o Wahine e rebocam-no para o largo, dei­xando-o à deriva. Mais tarde, a água talvez o atire contra a costa e os jornais referir-se-ão a outro mistério do mar. É muito simples.

Perante esta cruel síntese, Pat ficou horrorizada. Escondeu o rosto nas mãos e começou a soluçar. Rodeei-lhe os ombros com um braço e atraí, para a consolar, dizendo-lhe com ternura:

            - Lamento, querida, mas Johnny tem razão. Tem de ser como diz Nino: ou eles ou nós.

            - Creio - disse Nino calmamente - que a senhora deve ir para a cama. Não são assuntos muito agradáveis.

            - Não!

            A palavra soou como uma chicotada. Levantou o rosto irado e ainda úmido de lágrimas, num desafio.

- Não me vão mandar embora como... como uma criada. Minha vida está tanto em jogo como a de vocês e por isso fico para ouvir o que têm a dizer.

Se alguma vez amei minha morena mulherzinha, foi nesse ins­tante. Sentia-me orgulhoso, grato e envergonhado perante sua co­ragem. Inclinei-me para a beijar, enquanto Nino sorria e Johnny aprovava a sua maneira calma e sábia. Começamos então a traçar planos.

- É importante - disse Nino Ferrari - que não haja luar. Eles deixam todas as noites um vigia na coberta. Os homens das bombas estão trabalhando, mas o guarda caminha armado. Embora nademos submersos, há as bolhas de ar que não enganam, se o mar estiver cal­mo.

Johnny Akimoto fez um cálculo rápido.

- Amanhã, a lua nasce às onze da noite e a maré enche às oito. Três horas para o trabalho.

Nino concordou e prosseguiu apressado:

- Bom! O importante é que aproveitemos bem o tempo. - Vol­tou-se para mim: - Há algum lugar em que possamos entrar na água sem termos de flutuar para atravessarmos os recifes? Não podemos esquecer que transportamos explosivos.

Pensei por instantes e lembrei-me de que, logo atrás da ponta oeste, na primeira saliência, havia um ponto em que os rochedos des­ciam para a água profunda e onde o mar entrava, formando uma ex­tensa língua, numa fenda da ilha. O recife interrompia-se aí e, se tivéssemos forças para lutar contra a água durante vinte metros, chegaríamos à corrente que nos levaria até ao lugre. Mostrei o local a Nino, no mapa. Interrogou-me meticulosamente e pareceu satisfeito.

- Resta-nos planejar o que vamos fazer amanhã, de modo a as­semelhar-se a outro dia qualquer. Lembrem-se de que nos observam do lugre e, portanto, sabem que Johnny está a bordo do Wahine, que eu costumo tomar banho de sol na praia e que você vai passear pela ilha com a garota. Amanhã temos de cumprir o mesmo programa. Johnny ficará a bordo e um de nós irá lá visitá-lo; talvez seja melhor ir eu, desta vez. Poderei fixar as minas embaixo, na cabina. Vocês darão o passeio de costume mas inspecionarão o lugar onde teremos de entrar na água. Quando chegar a hora, poderão guiar-nos mais facilmente até lá.

Minha admiração pelo pequeno genovês era sem limites; pla­nejava sua reduzida campanha como um grande general. A estátua de pedra de sua terra natal devia sorrir aprovadoramente. Havia, no en­tanto, um ponto que me preocupava e que fiz notar a Nino.

- Se Johnny fica no Wahine, Pat ficará aqui sozinha, o que não me agrada nada.

- Nem a mim - disse Nino. - Mas parece-me necessário. Não podemos dar-nos ao luxo de alterar nossa rotina diária. Terá de acen­der o fogo e preparar a refeição à mesma hora. Quando acabar, irápara a cama, se quiser. Deixar-lhe-ei o rifle e minha pistola, embora pense que não precisará utilizá-los. Os do lugre trabalham de noite e não se arriscarão a atravessar o canal sem luz.

Pat concordou e sorriu-me, corajosa.

- Não se preocupe, Renn; não há perigo. Não se esqueça que estou habituada. Antes de o encontrar, estava sozinha na ilha.

Submeti-me porque não tinha outra alternativa, mas prometi a mim próprio nunca mais a abandonar, caso sobrevivesse. Nino pros­seguiu, pormenorizando pacientemente as fases finais da operação:

- Logo que escureça, deixaremos o acampamento. A signorina terá sanduíches e chá quente para comermos antes de mergulhar. Convém que eles não notem grande azáfama no acampamento depois do escurecer. Quando nos metermos na água, não se esqueça de que temos de nadar muito e guardar forças para o regresso. Não se apres­se nem se fatigue; contente-se em seguir a corrente, deixando-se arrastar. Depois, quando chegarmos ao navio, mantenha-se sob a popa para que as bolhas de ar não sejam vistas pelo vigia. Fixaremos quatro minas: duas no meio do arco e as outras nas extremidades. Você transportará duas que me passará no momento próprio. De­pois...

Encolheu os ombros e espalmou as mãos num gesto cômico de resignação. Por mim, não achava muita graça.. Depois, teríamos a corrida de 800 metros no canal, antes que as minas explodissem, as bombas de profundidade rebentassem e as enormes vagas provocadas pela explosão nos embatessem nos corpos exaustos. A seguir, através da calha do agitado canal, nadar para o Wahine. Nem sequer po­díamos, na maior parte do trajeto, subir à superfície por causa da metralhadora na popa do lugre negro.

- Agora - disse Nino abruptamente - vamos para a cama e você, jovem - apontou um dedo ossudo para Pat e fez uma careta como o rei dos bodes - será a primeira. Beije seu homem, diga-lhe que o ama e vá deitar-se. O amor cansa e ele amanhã terá de nadar muito para salvar a pele.

Ela riu, beijou-me e ficou abraçada a mim por um momento. Depois, foi para sua tenda - uma figurinha cheia de coragem, de ombros quadrados e cabeça erguida.

Quando Pat já não o podia ouvir, Nino voltou-se para mim, carrancudo. Estava terrivelmente sério ao dizer-me sem rodeios:

- Suavizei a coisa por causa da moça, mas não é nada fácil. Nadaremos em águas difíceis e até aos limites de nossa provisão de ar. Pode ser que amanhã à meia-noite estejamos ambos mortos. Com­penetre-se disso.

- Eu compreendo, Nino.

            Voltou-se então para Johnny Akimoto e falou concisa e dura­mente, como um general que dá as últimas ordens a seu estado­-maior, antes da batalha:

            - Esta operação, Johnny, depende do tempo. Se nos faltar, seremos dois homens mortos. Devemos estar de volta pelas dez horas; é o limite extremo da provisão de ar. Você aguardará até às onze. Se não estivermos a bordo a essa hora, é porque morremos.

            Johnny acenou com gravidade e Nino acrescentou:

 - Não saberá, porém, se conseguimos ou não fixar as minas. Por isso, fará o seguinte: mete-se no bote e rema para a praia, o mais lentamente possível, pega na moça e leva-a para o Wahine; põe os motores a trabalhar e dirige-se a toda a velocidade para o canal. Terá uma pequena vantagem, porque eles serão obrigados a chamar os homens que se encontram no fundo do mar, o que leva tempo. Em seguida, hão de persegui-lo com tiros, compreende?

            - Muito bem - disse Johnny.

Eu também compreendia. Em sua voz seca, profissional, aos solavancos, Nino descrevia nosso funeral.

 

Johnny ia regressar ao Wahine, pelo que desci a praia com ele e ficamos os dois parados, sob as estrelas brilhantes e frias. Ambos sabíamos que este poderia ser nosso último encontro.

- Olhe por minha pequena, Johnny - pedi.

- Darei a vida por ela, Renboss - prometeu Johnny Akimoto. Falei-lhe do dinheiro no banco do continente... Disse-lhe que lhe pertencia se me acontecesse qualquer coisa, mas recusou com um ges­to de cabeça.

- Não, Renboss, não será para mim. Tem a sua wahine (¹) para sustentar.

- Ela não precisa, Johnny, nem o aceitaria. Quero que fique com ele.

É preciso ser um cavalheiro para saber aceitar um presente de graça, e Johnny Akimoto era um cavalheiro. Agradeci-lhe, só Deus sabe com que banalidade, tudo o que havia feito por mim e tentei, com frases hesitantes e desajeitadas, exprimir-lhe quanto sentira por ele: respeito, admiração e a amizade que nasce entre pessoas que beberam juntas o vinho do triunfo ou provaram as borras amargas e rançosas da derrota.

Ouviu-me até ao fim com embaraço. Depois, muito simplesmen­te, disse uma coisa estranha e bela que nunca esquecerei:

- Onde quer que esteja, Renboss, meu coração estará com você e o seu comigo. Boa noite... irmão.

Pegou-me na mão e apertou-a contra o peito nu. Depois soltou-a e foi-se. Ouvi o matraquear das toleteiras e o mergulhar dos remos, em seu regresso ao Wahine. Deus criou poucos homens como Johnny Akimoto e muitas vezes pergunto a mim mesmo se os teria criado a todos negros.

(¹) Mulher, no dialeto das ilhas (N. do T.)

O dia seguinte começou como todos os outros.

Nadamos antes do pequeno almoço. Andamos pelo acampamen­to e, quando os trabalhos ficaram concluídos, Nino meteu-se no barco pequeno e foi para o Wahine. Levava consigo uma caixa de madeira com as minas de lapas e os detonadores, protegidos por algodão. Pat e eu fomos, de mãos dadas, explorar as veredas que conduziam ao nos­so porto de partida. A ilha estava cruzada por pegadas de cabra e precisávamos de um caminho que não fosse visto da praia nem do lugre, por causa do vigia.

Nós o encontramos com certa facilidade e calculamos que Nino e eu poderíamos percorrer em quinze minutos. Descemos ao ponto que nos interessava e estudamos com cuidado, notando as saliências e cavidades das rochas e os troncos de coral submersos pela maré. Depois retrocedemos, verificando os marcos que nos guiariam na es­curidão: um tronco retorcido, uma rocha saliente, um tufo de fetos arbóreos e os botões perfumados de uma flor de gengibre.

Terminada a inspeção, abrimos caminho pelo matagal para o pequeno vale de margens relvadas e lírios pendentes das pedras. A sombra era-nos grata e a frescura aprazível. As palavras que trocamos foram simples, íntimas e tristes. Éramos um homem e uma mulher que se amavam e sabiam que as doze horas seguintes seriam decisivas para o amor e para todos os desejos. Éramos como os velhos amantes transformados em mármore na praça do mercado, de mãos dadas e oihos nos olhos, de lábios separados por um sopro de beijo e o corpo sofrendo por um eterno êxtase que nunca chegará.

            Nino Ferrari tinha razão: o amor é um luxo caro quando se tem de nadar esforçadamente para salvar a vida.

Desapontados, voltamos as costas a nosso paraíso e trocamos o matagal pelo sol.

Nino estava na praia, no lugar habitual, e não tomava banho de sol. Sentado contra um montículo de areia, examinava com o bi­nóculo o lugre negro. Quando chegamos junto dele, resmungou um cumprimento, convidou-nos a sentar com um gesto e continuou a ob­servar o barco. Depois, de testa franzida, passou-me o binóculo.

            - Diga-me o que lhe parece aquilo, meu amigo.

            Era uma cena curiosa e intrigante. Um dos mergulhadores estava sentado no meio de um pequeno círculo de espectadores com um ob­jeto escuro e quadrado aos pés. Tinham-lhe desaparafusado o elmo, que repousava ao lado, na coberta, mas o tecido de borracha estava brilhante e gotejava. Via-se que acabava de subir e apontava para o objeto escuro, gesticulando, como que a explicar onde e como o tinha encontrado.

A tripulação estava agrupada a sua volta, sem fechar o cerco, e Manny Mannix erguia-se diante do mergulhador. Não conseguia ver­-lhe o rosto mas notava o familiar floreado do charuto. Percebi que interrogava o mergulhador minuciosamente.

- Então, meu amigo, o que lhe parece.

Baixei o binóculo e voltei-me para Nino.

- Não sei bem. À primeira vista, o mergulhador trouxe qual­quer coisa do navio naufragado acerca da qual discutem.

- Não descobre o que é?

- A não ser que se trate de um objeto escuro e quadrado, nada mais sei. Sempre que tentava ver melhor, havia um palerma que mexia os pés e me impedia a visão.

            - É a arca que encontramos na cabina - disse Nino, laconi­camente.

Desatei a rir às gargalhadas. Pensar que Manny Mannix fora en­ganado e se desorientava por a arca estar vazia, era demais para mim.

Quase sufoquei de tanto rir.

            - Alegra-me que ache tanta graça, meu caro.

            A voz fria de Nino foi como uma ducha fria. Dominei-me e olhei para ele, depois para Pat. Também estava com o mesmo ar preo­cupado de Nino.

- Não percebo - disse eu. - Lamento ser tão estúpido, mas não percebo. Pode ser que eu tenha um sentido do humor muito es­pecial, mas a verdade é que acho graça... muita graça até.

- Pois não tem graça nenhuma - disse Nino de modo cortante. - Para nós, é muito pouca sorte. Há dias que andam trabalhando com bombas e mergulhadores e nada mais encontraram a não ser essa arca simples e arrombada. Devem pensar que descobrimos o tesouro e o trouxemos para terra. Concluirão que foi por isso que não lutamos e lhes deixamos a área livre, sem um protesto violento. Estou certo de que em breve nos virão buscar.

Fiquei horrorizado. A dura simplicidade da situação e o repen­tino desmoronar de todos nossos planos deixaram-me sem fala e sem capacidade para pensar. Olhei para o Wahine e vi Johnny Akimoto de pé, na popa, protegendo os olhos com as mãos para melhor observar os homens no convés do lugre. Perguntei a mim mesmo se pensaria como nós.

Voltei a assestar o binóculo e vi o círculo humano desfazer-se. Todos se movimentavam pelas cobertas com a pressa disciplinada dos que se preparam para uma tarefa urgente, mas já familiar. Vi os homens das bombas despirem a roupa ao mergulhador e o do guin­daste enrolar o cabo a toda a pressa no cilindro e cobri-lo com a lona. Passei o binóculo a Nino.

- Tem razão, Nino. Já se estão preparando para partir.

- Nesse caso - disse com brevidade - também temos de nos mexer.

Apontei para o Wahine.

- E Johnny?

- Sabe tão bem como nós o que se passa. Não o podemos ajudar, nem ele a nós. Ainda tem tempo para vir conosco, mas não creio que abandone o Wahine.

- Nino tem razão - disse Pat.

- Mas vão matá-lo!

- Parece-me que tentarão matar-nos a todos - retorquiu Nino, secamente. - Johnny tem um rifle e munição e, portanto, tantas possibilidades como nós, ou talvez mais, a não ser que se decidam a abordá-lo, do que duvido.

Houve um breve silêncio. Nós os vimos levantar ferro e ouvimos os motores. Logo em seguida, notei a agitação das águas por baixo da popa: vinham a caminho.

            - Vamos! - ordenou Nino apressadamente. - Voltemos ao acampamento, pois temos lá o que fazer.

Subimos rapidamente e chegamos ao acampamento a arfar e quase sem fôlego, mas Nino não tolerava demoras. Sua voz era uma enfiada precipitada de ordens.

-Temos vinte minutos, meia hora no máximo. Eles nunca atravessaram o canal e vão fazê-lo com cuidado. Depois irão ao Wahine e, logo a seguir, virão para aqui. Mais cedo ou mais tarde, teremos de resistir e lutar. Há algum lugar em que o possamos fazer?

Tentei pôr em ordem meus pensamentos, que pareciam carneiros tresmalhados pelo medo numa rua de aldeia. Foi Pat quem respon­deu por mim, em voz fria e controlada:

- Na ponta oeste, na fenda do rochedo. É bastante comprida e fica no ângulo entre a cumeada principal e a saliência que desce até à água. Só há um caminho para se chegar lá, que é o das cabras. Com um rifle, poderemos mantê-los a distância durante muito tempo.

- Eu não lhe dizia que arranjou uma excelente mulher? Agora, ouçam com atenção. Levem um saco com água e alimentos, o rifle e munição. Não se esqueçam da faca do cinto de mergulho para o caso de... de a munição acabar ou de ter de lutar na mata sem ruído. Sigam ambos para a tal fenda no rochedo, entendido?

- Está bem. E você, o que vai fazer? Não nos acompanha?

- Não. Mas o que vou fazer também lhes diz respeito e, por is­so, prestem atenção. Eles não podem trazer o lugre até à praia. Por conseguinte, mandarão um grupo num bote, um grupo armado que começará por dar uma busca no acampamento. Em seguida, baterão a ilha a sua procura.

Concordei com üm gesto de cabeça.

Nino prosseguiu:.   

- Quando você partir com a signorina, eu pego no ,equipamento de mergulho, na pistola e em duas minas de lapas, que é tudo quanto posso levar. Procuro um lugar na mata onde me possa esconder entre as rochas            e entrar na água sem ser visto. Assim que possa, nadarei para o lugre a fim de o minar. Colocarei um rastilho que dê para três horas e nadarei para o Wahine, flutuando do outro lado, até ter pos­sibilidades de subir a bordo. Este é o meu papel e o seu e o seguinte...

Fez uma pausa para limpar o suor do rosto com as costas da mão. Pat e eu o observamos em silêncio, cheios de admiração por aquele homenzinho queimado que possuía a gélida coragem e o cérebro de uma máquina de calcular. Ele continou:

- Sobem para a fenda do rochedo, na ponta oeste, pois dentro de uma hora ou hora e meia estarão junto de vocês. Terão então de os agüentar, não permitindo que saiam do matagal. Depois... não sei como, mas terão de o descobrir... arranjarão maneira de sair da fenda para a mata, regressando à praia, de onde nadarão para o Wahine. Se Deus quiser, já estarei a sua espera e passaremos o canal antes que se dê a explosão. Entendido?

Era claro como água. Nossas reduzidas forças estariam divi­didas: Nino de vigília atrás das rochas, Johnny no Wahine. Pat e eu encurralados em nossa toca, no alto da colina, à espera da oportu­nidade de fugirmos para a mata como feras perseguidas e de nos lan­çarmos à água. Era hora de partir. Estendi a mão a Nino, tendo este a apertado.

- Boa sorte, Nino!

- Boa sorte, amigo; e também para a jovem senhora!

Pat tomou entre as mãos o rosto. pequeno e magro de Nino e beijou-o.

- Obrigada, Nino. Que Deus o acompanhe.

            Enfiei o binóculo pelo pescoço e prendi uma lanterna ao cinto. Pegamos no rifle, na munição, no saco de água e na trouxa com alimentos e saímos para a mata. Nino ficou por instantes a olhar para as águas, depois deu meia-volta e entrou na tenda.

A meia encosta da colina paramos e olhamos para trás. Uma clareira permitia-nos ver distintamente a lagoa e o recife exterior.

O lugre negro atravessava o canal. Nós o vimos empinar-se um pouco nas águas revoltas e avançar depois para as águas calmas. Cor­taram os motores e o barco deslizou lentamente em direção ao an­coradouro do Wahine. Este ficou a cerca de três comprimentos de cabo do lugre. Praguejei baixinho. Os tipos sabiam do ofício, pois an­coraram atravessados no canal. O Wahine não poderia sair sem con­tornar de largo a outra embarcação, o que exporia cada centímetro das cobertas ao fogo da metralhadora. Nós os vimos baixar um escaler e meia dúzia de homens desceram. Quatro ocupavam-se dos remos, outro instalara-se à popa, de rifle entre os joelhos, e o sexto seguia à proa.

Olhamos para Johnny Akimoto, no meio do barco, um pouco afastado da amurada com o rifle inclinado, abaixo do quadril. Os remadores impeliram facilmente o escaler através das águas interpos­tas, até ficarem quase por baixo da popa do Wahine. Depois re­maram para trás, agüentando o impacto das águas e balouçando con­tra as vagas. Johnny Akimoto não se moveu.

Olhei para o lugre negro. Manny Mannix e o resto da tripulação estavam alinhados na coberta. Havia um homem na popa, junto da metralhadora, acocorado, visando o convés do Wahine.

Quando voltei a focar o binóculo vi que Johnny continuava na mesma posição, enquanto o indivíduo da proa do bote falava e ges­ticulava. Queria subir a bordo, mas Johnny meneava negativamente a cabeça. O indivíduo voltou a falar com gestos impacientes, como um fantoche zangado. Vi então Johnny levantar lentamente o rifle, muito lentamente. Percebi-lhe o movimento da mão quando o destravou, preparando-se para disparar.

Nesse instante, uma rajada de metralhadora derrubou-o.

 

As gaivotas levantaram dos rochedos e recifes, piando assus­tadas. Os ecos dos tiros soaram intermitentes pelo espinhaço dos picos. Aterrados, ficamos interditos vendo o corpo de Johnny Aki­moto rodopiar, cair contra a escotilha da cabina, contorcer-se, er­guer-se de novo, para depois tombar imóvel.

Pat escondeu o rosto nas mãos e trêmulos soluços sacudiam-lhe o corpo. Os ecos morreram e as gaivotas voltaram a pousar; um silêncio de morte pairou na atmosfera resplandecente, entre a ilha e o mar.

Senti um nó no estômago e vomitei. Quando levantei outra vez os olhos, vi os homens do escaler que corriam pelo navio como rata­zanas, desciam à cabina, arrancavam as escotilhas, profanavam todos os recantos do barco que fora a mulher de Johnny Akimoto. Então uma raiva imensa começou a crescer dentro de mim e uma agonia profunda e de despedaçar a alma provocou uma onda de blasfêmias e gritos de possesso, dirigidos contra os homens que haviam morto meu irmão. A raiva acabou por trasmudar-se em infinita tristeza e fomos subindo vagarosamente a colina, percorrendo depois a cumeada que conduzia à estreita fenda entre os rochedos.

Um fedor animal fortíssimo pesava sobre a entrada. Quando iluminei o interior com a lanterna, um bode baliu e precipitou-se por entre nossos pés. Tinha o pêlo comprido e malhado e cheirava hor­rivelmente. A caverna era profunda em alguns pontos. Voltei o feixe de luz para a parede do fundo e vi que havia. outra fenda; mais es­treita, para além da qual reinavam as trevas. Quando iluminei o teto, uma colônia de morcegos moveu-se, chiou e ficou em pânico. Apenas sossegaram quando fiz incidir a luz nas paredes laterais. Pat estre­meceu e chegou-se para mim. Descobri um pequeno ângulo nas paredes rochosas, afastei a imundície com a sola do sapato e pousei os alimentos e o saco de água, assim como a munição. Em seguida, voltei-me para Pat, de braço estendido:

- Quando começar o tiroteio, irá para ali, querida, de cabeça baixa e protegida pelo ângulo da rocha. Não adiantará muito quando começarem a disparar aqui para dentro e as balas fustigarem as paredes, mas sempre poderá passar-me os cartuchos.

Anuiu com um gesto de cabeça, como se não se atrevesse a falar. Tomei-lhe a mão e conduzi-a para fora, para o sol. Nas moitas, junto à caverna, descobrimos duas enormes pedras cobertas de musgo. Nós as arrastamos para a entrada, a fim de nos protegerem contra o ti­roteio e formarem um parapeito razoável sobre o caminho, embaixo.

Exploramos a mata de ambos os lados da abertura, notando com desesperada precisão cada arbusto, rocha ou tronco que nos pudesse escudar quando tivéssemos de correr para a praia. Serviu-me de pobre consolação ver que o caminho de cabras era muito escarpado junto à fenda e que, por isso, não deixaria de notar alguém que se aproximasse, vindo de baixo.

Terminado o exame e preparada nossa pequena fortificação con­tra o cerco que se aproximava deixamo-nos ficar à entrada escura da rocha, contemplando o acampamento, a praia e o mar.

As ratazanas abandonavam o navio. Haviam-no percorrido todo, espreitando e cheirando em todos os cantos, e retiravam-se insa­ciadas. O vulto negro e contorcido continuava inerte contra a esco­tilha da cabina e o Wahine balanceava nas águas como uma mulher que embala solitária sua dor.

Dirigiam-se agora para a praia - desta vez em dois botes com quatro homens cada um - indo Manny Mannix à popa da embar­cação da frente. O sol refletia-se nas costas suadas dos homens quan­do se inclinavam para os remos, eu os via mover os lábios, rir e falar, embora não me chegasse qualquer som. Vinham armados: dois com armas automáticas e os restantes com pistolas do modelo .303s. Chegaram à praia e encalharam os barcos na areia. Depois, espa­lharam-se e subiram em direção ao acampamento, com Manny Man­nix na cauda, como indivíduo prudente que era.

Seus gritos chegavam enfraquecidos até nós, enquanto pilhavam o acampamento. Viravam caixas e malas, arrancavam as tampas e afastavam-nas depois a pontapé, desapontados. Não tendo descober­to nada, pararam e reuniram-se com desalento a Manny Mannix, que arengava. Podia adivinhar-lhe o discurso: o tesouro está em algum lugar na ilha e, quando nos encontrassem, encontrariam também o tesouro. Vimo-lo então apontar para a cumeada, descrevendo um lar­go gesto que abrangia as vertentes superiores. Depois, baixou-se e pôs-se a desenhar na areia, enquanto os outros lhe seguiam os mo­vimentos. Quando se levantou, os homens alinharam-se. Manny ocupou o centro da fila e retirou do bolso interior do casaco branco um revólver negro de grande tambor. Fez um gesto e gritou qualquer coisa que não consegui ouvir, mas toda a fila avançou cautelosamente para a mata.          

Perseguiam-nos. Era hora de nos retirarmos para a fortaleza do rochedo.

Quando entramos, obriguei Pat a deitar-se de bruços, para que o ângulo do rochedo lhe protegesse a cabeça. Estava preocupado com o que podia acontecer quando Manny e seus sequazes começassem a disparar para dentro da caverna. As balas zumbiriam como abelhas irritadas, ricocheteando pelas paredes. Tive uma idéia.

Passei-lhe a lanterna, dizendo-lhe que disfarçasse a luz com a mão, e mandei-a explorar a estreita abertura da parede do fundo. Protestou, mas fi-la calar com um gesto. Ouvi-a mover-se receosa no escuro e vi a pequena chama alaranjada da lanterna brilhar-lhe entre os dedos. Algum tempo depois, disse-me baixinho:

            - É muito comprida, Renn. Não a vejo toda, mas há uma gran­de gruta à esquerda e o chão está limpo.

- Ótimo! Deite-se aí e apague a luz. Suceda o que suceder, não saia, nem que me aconteça qualquer coisa. Pensarão que estou só e não a incomodarão.

Ouvi-a soltar um grito e ia voltar-me para a tranqüilizar quando percebi vozes muito perto e o ruído de homens que caminhavam desajeitadamente pela mata.

            Avisei-a num murmúrio, mas não me ouviu.

Bebi um grande gole de água do saco, cheguei os cartuchos para junto de mim e estendi-me entre as duas pedras, em posição de fazer fogo.

Destravei o rifle e meti um cartucho na culatra. Depois, assentei o cano entre as pedras, de modo a ver a chegada, apoiei a coronha no ombro e vigiei a vereda em declive.

Era por ali que viriam; não tinham outro caminho. Podiam fazer fogo do espinhaço, subir pelo flanco da colina, mas acabariam no caminho de cabras e eu os veria.

Tentei imaginar que tática adotaria se estivesse no lugar de Man­ny. Disse para comigo que deixaria dois homens no matagal, com as armas automáticas, um de cada lado do caminho, e os mandaria cruzar fogo para dentro da caverna, varrendo-a com tiros e prenden­do-me ao solo, enquanto os outros avançariam pela orla da mata para me atacarem à queima-roupa. Um homem, apenas com um rifle de um cano, não sobreviveria por muito tempo a tal manobra. Consolei­-me à idéia de que Manny Mannix deveria ter esquecido o que lhe en­sinaram como recruta, quando da guerra de King's Cross.

Sentia o corpo dormente e dores nos braços, para não falar do ao aspero que me feria os cotovelos. O suor deslizava-me pelo rosto e o ponto de mira não se mantinha firme. Mudei de posição, descon­traindo-me pouco a pouco, à medida que o ruído se aproximava.

Tinham desistido da formação e as vozes soavam dispersas. Tropeçavam, praguejando, e gritavam uns pelos outros quando per­diam o contato no meio das árvores, dos densos arbustos e das raízes rasteiras. Imaginei-os escorrendo suor, irritados, de carnes rasgadas pelas silvas e pelos ramos, atormentados pelas moscas e mosquitos zumbidores, e sorri amargamente.

Depois, pareceu-me que voltaram a juntar-se. Os passos conver­giram para um local próximo, ao fundo da vereda, e deixaram de gritar. Ouviu-se um sussurro de vozes, logo abafado por uma torrente de palavras ininteligíveis. Depois o sussurro começou, num protesto teimoso.

Passaram-se três segundos e Manny Mannix surgiu no caminho. Tinha o terno branco sujo e amarrotado e perdera o chapéu. Tinha a cara alagada em suor e coberta de imundície, e um aspecto zangado e infeliz. A boca continuava a mover-se, ouvia o som nasal e indistinto de sua voz, mas não percebia o que dizia. Agitou perigosamente a pis­tola, apontando primeiro para o solo e varrendo depois a mata que o rodeava. Em seguida, levantou a cabeça e fitou a entrada da caverna.

Então, eu o atingi mesmo entre os olhos.

O impacto atirou-o para trás, levando-o pelo caminho abaixo, num rodopio. Contorceu-se e imobilizou-se.

Ouvi o eco de um tiro no espinhaço e o súbito alvoroço das gaivotas. Retirei o cartucho vazio e meti outro no cano. Agora vão atacar, pensei.

Mas não atacaram. Dispersaram-se e fugiram. Alguém gritou:

- Manny foi-se!

            Toda a covarde tripulação correu, tropeçando e caindo, aos berros pela encosta abaixo. Da entrada da caverna, eu disparava às cegas para a mata. Ouvi um grito de dor e o baque de um corpo; berrei e fiz fogo ininterruptamente, rindo como um louco ao escutar o agudo queixume das balas por entre as árvores. Entretanto, pergun­tava a mim próprio o que teria sido feito de Nino Ferrari.

Pat veio para junto de mim e ficamos olhando a fuga desorde­nada pela orla da mata e os tropeções que davam na pressa de alcan­çarem os escaleres. Atirei a arma fumegante para o chão e encostei-­me ao rochedo, com soluços e vômitos, tremendo como se estivesse com febre.

Quando o espasmo passou, Pat chegou-me o saco de água e bebi, engasgando-me de início, depois engolindo o líquido fresco e inodoro como se tivesse fogo no ventre. Voltei o saco e encharquei o rosto, o pescoço e o peito como para lavar a lama de um pesadelo que nem acordado me abandonava. Então, ela perdeu também o autodomínio e agarrou-se a mim a soluçar, de cabeça contra meu peito, beijou-me rindo e chorando e apertou-me contra seu propno corpo para se cer­tificar de que eu continuava vivo e inteiro... e não rígido como Man­ny, uma ruína sangrenta no caminho de cabras, com as moscas, zunindo em torno da cara esfacelada.

Depois, pegou-me na mão e conduziu-me para o interior da caverna.

Sentia-me horrivelmente cansado para a interrogar e me preocupar com mistérios. Deixei que me guiasse ao longo do chão imundo para escura fenda na parede. Pat acendeu a lanterna. Vi uma enorme câmara abobadada, três vezes maior do que a primeira, de piso arenoso e paredes rochosas, cobertas de musgo e escorrendo água.

Fez incidir o feixe de luz num canto afastado e murmurou-me:

- Veja, Renn!

Recuei aterrado. Espalhados pela areia viam-se os ossos esbran­quiçados de um esqueleto e, dois passos adiante, outro de borco... de dedos descarnados firmando-se ainda na areia. Tinha os joelhos er­guidos por baixo das costelas, numa posição fetal.

A mão de Pat tremia e a luz da lanterna tremulava no misterioso entrelaçamento dos ossos nus. Tirei-lhe a lanterna e empunhei-a com firmeza. Aproximamo-nos.

O primeiro esqueleto estava de costas e os ossos ligeiramente deslocados pelo focinhar das cabras que o haviam despido de todo o vestuário capaz de resistir aos séculos. Fora do alcance dos dedos, es­tava uma pistola antiga com coronha de madeira bolorenta e car­comida pelos vermes e a parte metálica irremediavelmente enfer­rujada.

No dedo mínimo havia um anel de ouro, solto, com um enorme rubi em bruto, que brilhava lugubremente na poeira de séculos. Mas não era tudo. Entre as costelas descarnadas via-se um punhal com­prido e pontiagudo, de lâmina enferrujada ainda enterrada na areia. O aço estava corroído, mas o cabo era todo incrustado de jóias que cintilavam à luz da lanterna.

- Foi assassinado - sussurrou Pat.

Concordei e voltei a lanterna para o outro esqueleto. Tinha os dedos enterrados na areia, a que se agarrara no derradeiro estre­buchar. O rosto estava também submerso, mas a nuca sobressaía - ­uma esfera óssea, amarelada, com um grande buraco redondo.

- Apunhalou o outro - disse eu - e, ao voltar-se, foi atingido na nuca.

- Mas há mais alguma coisa. Veja, Renn!

Foquei a lanterna e inclinei-me para a areia. Havia um monte de moedas de ouro, bem visíveis através das costelas muito brancas, apertadas contra o esterno, tal como as devia segurar na sua breve agonia.

Tínhamos descoberto o tesouro do Dona Lucia.

Pat agarrou-se, trêmula, a meu braço, màs ainda teve forças para dizer:

- Conseguiram escapar, não foi, Renn? Escaparam do nau­frágio em que todos os seus companheiros morreram e alcançaram terra com estes restos de fortuna... - um punhal com pedrarias e um saco de moedas de ouro. - Levantou a voz, num primeiro assomo de histerismo. - Tiveram sorte, receberam uma graça, mas não sou­beram aproveitá-la. Só deram valor a isto...

- Acalme-se, querida, acalme-se! - supliquei, rodeando-lhe os ombros para a consolar. - Aconteceu há duzentos anos!

Libertou-se e começou a dar-me murros no peito.

Sua voz era um grito angustiado.

            - Não acabou nem acabará nunca! Há de acontecer sempre. Lutas e mortes por isto... este refugo amarelo que as próprias cabras enjeitam. Voltou a acontecer hoje, Renn! Aconteceu a você, a mim, a Nino e a Johnny Akimoto.

De repente, ficou como se a tivessem esbofeteado. O brilho sel­vagem dos olhos extinguiu-se, a boca descaiu frouxamente e quedou­se a olhar para mim, mas sem me ver.

- Johnny morreu, Renn... Johnny Akimoto morreu...

            Deixou-se cair, mas consegui ampará-la e levei-a, como a um filho doente, para o sol.

 

Coloquei-a num leito de folhas à sombra de uma pisônia e tirei a camisa para lhe apoiar a cabeça. Aspergi-lhe o rosto e forcei-a a beber um pouco de água. Minutos depois abriu os olhos e olhou-me sem me ver. Em seguida, deixou tombar a cabeça e mergulhou no sono profundo do esgotamento extremo.

Quedei-me a admirá-la, invadido pelo desejo daquele corpo per­feito, e senti piedade, amor e gratidão pelo espírito lúcido e corajoso que nele habitava. Enquanto ela dormia, voltei a aproximar-me da boca da caverna.

Teríamos em breve uma longa caminhada e muito para nadar, mas. minha moreninha não estava em condições. Olhei para baixo, para a lagoa, e vi que os escaleres haviam acostado ao lugre negro e que a tripulação estava sendo içada para bordo pelo vigia. O Wahine continuava ancorado e o corpo de Johnny Akimoto mantinha-se es­tendido na coberta. De Nino Ferrari, nem sinal.

Sentei-me numa laje castanha, acendi um cigarro e pus-me a pensar.

O pequeno exército de vigaristas que Manny trouxera dispersara­-se e fugira ao primeiro tiro, mas não havia garantias de que não reconsiderassem e voltassem, mais organizados, para nos desco­brirem, assim como ao tesouro. Não poderíamos sair da ilha antes que desembarcassem de novo e teríamos de nadar para o Wahine en­frentando a metralhadora.

Por outro lado, se demorassem muito, as minas de lapas ex­plodiríam e as bombas de profundidade rebentariam quando o navio se afundasse. O Wahine estava ancorado tão perto que não escaparia sem danos, podendo até ser completamente destruído. Sem ninguém a bordo, podia rebentar as amarras e ser atirado contra o recife pelas primeiras vagas levantadas pela explosão.

Se assim acontecesse, seria ainda pior que antes: assassinos e vítimas abandonados numa ilha deserta. Senti arrepios, malgrado o calor do sol. A perspectiva era grotesca, mas possível. Três horas, dis­sera Nino; três horas a partir do momento em que fixasse as minas ao casco do lugre negro. Não devia ter passado mais de hora e meia des­de que Pat e eu partíramos da praia para a colina. Dando tempo a que Nino nadasse, deviam faltar duas horas para a explosão.

Perscrutei as águas verdes da lagoa em busca de qualquer indício da presença de Nino na luz refratada do sol, mas nem sombra dele. Não havia reflexos de luz e a água mantinha-se calma.

Olhei para o lugre e vi a tripulação em tumulto, gesticulando e gritando. Acusavam-se mutuamente e discutiam se valeria a pena outra incursão em busca do tesouro ou se não seria melhor aban­donarem o recife e seguir para o largo, antes que a notícia do assas­sínio chegasse ao continente. Há uma centena de ilhas entre Macassar e Bandoeng onde um homem com um barco e uma boa tripulação pode pedir quanto quiser em troca de armas de fogo de contrabando.

Reparei que os escaleres continuavam acostados, com os remos dentro e batendo de leve contra o madeirame do navio. Concluí que, se não os içassem nos vinte minutos seguintes, isso significaria que iam proceder a novas buscas para nos descobrir. Caso contrário, é porque partiriam em breve. Se, porém, não o fizessem dentro de duas horas o lugre iria pelos ares em pleno recife e haveria sangrenta car­nificina na areia alva de minha ilha.

Decidi deixar Pat dormir mais algum tempo. Depois desceríamos pata a praia e esperaríamos. Se o lugre partisse, ótimo; se ficasse, aguardaríamos a explosão e seguiríamos depois para o continente, no barco menor.

Verifiquei, assustado, que não podia avisar Nino Ferrari. Nem sequer podia dar-lhe a saber que estávamos vivos. Ainda que, pro­tegido pelo Wahine, ele tivesse assistido à fuga precipitada para a praia, isso poderia significar muitas coisas.

Tive então uma idéia. Concederia mais vinte minutos de descan­so a Pat, de modo a que pudesse agüentar o regresso à praia, e ainda teria uma hora antes de as minas explodirem. Teria assim tempo para vestir a roupa de mergulhador e nadar até ao Wahine. O problema estava em conseguir entrar na água sem que me vissem do lugre, mas se Nino conseguira, eu também conseguiria.

Tomada esta resolução, senti-me vagamente fatigado por me ser exigido mais esforço e dispêndio de energias. Olhei para Pat, que continuava adormecida, respirando profunda e regularmente, e recuperava pouco a pouco as cores. Um pequeno inseto pousou-lhe no rosto, mexeu-se desconfortavelmente e sacudiu-o com um gesto ins­tintivo, mas sem acordar.

Ali sentado, exausto, sem forças, vendo minha amada ador­mecida, toda a beleza da ilha verde a meus pés e a extensão azul das águas oceânicas que se estendem pelos quatro cantos da Terra, tomei consciência de um sentimento novo e estranho. Era uma sensação de perda e mutilação porque meu amigo estava morto, porque os últimos laivos de inocência tinham sido destruídos ao ver a nu a ruindade do mundo e ­ao matar o homem que a albergava em alto grau. Mas tam­bém senti outra coisa: uma sensação e posse e estabi1idade como se eu,

o desterrado, me visse liberto de mim mesmo, como se eu, o his­toriador cego, abrisse finalmente os olhos para o mundo e me conven­cesse de que também fazia parte de sua perturbante história.

Um homem só é adulto quando aprende esta verdade: não há misericórdia na Terra, a não ser a do Todo-Poderoso; nem há paz, nem segurança, nem propriedade enquanto o homem não se enraíza em sua terra e não desafia quantos tentam arrancá-lo dali.

Levantei-me, atirei fora o cigarro e voltei a entrar na caverna. Peguei no saco vazio de água, descosi a costura superior e levei-o para a caverna contígua. Afastei o esqueleto meio desfeito, surpreendendo­-me com sua leveza, e meti no saco as moedas sujas, que quase o en­cheram. Depois, agarrei o punhal pelas incrustações do cabo, arran­quei-o da areia e coloquei-o por cima das moedas. Estas não me queimaram e a arma não me cortou a mão.

Homens haviam morrido por aquilo e eu tinha lutado e sobre­vivido para o desfrutar. Pertencia-me e podia usá-lo bem ou mal, como entendesse.

            Ergui-me e fiquei olhando por momentos para aqueles restos es­branquiçados na areia. Nada tinham para me dizer, nem eu a eles. Um fosso de dois séculos separava-nos e suas vozes haviam sido le­vadas pelos ventos áridos do tempo.

Agarrei na lanterna e no saco e saí da caverna.

            Acordei Pat e ajudei-a a levantar-se. Lançou-me um pálido sorriso e disse:

            - Desculpe, Renn. Não foi muito bonito de minha parte, não é?

Beijei-a e cingi-a por instantes. Depois, contei-lhe o que íamos fazer. Passei-lhe o binóculo e indiquei-lhe o convés do lugre, onde os homens agora estavam silenciosos, acocorados em redor do arrais, es­cutando o que fariam a seguir. Os escaleres continuavam a balançar na água. Pat restituiu-me o binóculo.

- Renn?

- Sim, querida.

- Acha que Nino ainda está vivo?

- Claro que sim. Não o vemos porque provavelmente continua na agua. Deve estar flutuando por baixo do Wahine. poupando o úl­timo oxigênio para o regresso. Não se esqueça de que Nino já fez isto muitas vezes.

Anuiu com um aceno de cabeça e disse em voz baixa:

- Renn, quem me dera que estivesse já tudo acabado!

- Falta pouco, querida. Antes do pôr-do-sol estará tudo ter­minado.

Guardei o resto dos cartuchos no bolso, passei-lhe a trouxa dos alimentos, peguei no rifle e curvei-me para apanhar os restos do tesouro do Dona Lucia. Quando Pat os viu, olhou-me de maneira es­tranha, mas nada disse. Contudo, respondi-lhe:

- Sim, querida, vou levá-los. Lutamos por ele e os conquis­tamos. Tenho dívidas a pagar e uma casa e vida nova a construir para ambos.

Estremeceu ligeiramente e comentou:

- Têm sangue, Renn.

- Pois têm, querida. Também há sangue na ilha e na coberta do Wahine. Há sangue em todas as parcelas de terra por onde o homem passou, primeiro em missão de paz, depois para destruir pela violên­cia a paz dos que já ali se encontravam. Compreende?

- Dê-me tempo, Renn - implorou, humildemente. - Dê-me tempo e um pouco de amor e talvez chegue a compreender.

Descemos o caminho de cabras em que jazia o corpo de Manny Mannix, que começava a desfazer-se ao sol. Passamos por cima dele, sem sequer nos voltarmos para trás, e continuamos descendo por en­tre as árvores.

Quando chegamos à orla da mata, diante do acampamento, deitamo-nos no chão e afastamos as folhas para espreitar o lugre negro. Um dos escaleres já tinha sido içado e dois homens o colo­cavam em seu lugar, no convés. Estavam içando o outro.

Preparavam-se para partir.

Durante longos minutos permanecemos ali deitados, mal ousan­do acreditar. Depois, vimos recolher a âncora e ouvimos o arranque dos motores. Lentamente, o lugre negro dirigiu-se para o canal. Levantamo-nos e fomos para o acampamento.

Nino Ferrari estava estendido na areia morna, fumando um cigarro.

- Calculei que acabariam por aparecer - disse, ironicamente.

A sublime desfaçatez daquele homem cortou-me a respiração.

- Que diabo...

Fez um gesto com a mão morena e magra.

- Gastei menos tempo do que supunha. Fixei as bombas e depois nadei para o Wahine, a fim de respirar um pouco. Ouvi um tiro e, quando os vi fugir como carneiros, imaginei o que tinha acon­tecido.

- Matei Manny Mannix.

- Eu sei. Deixei-os chegar ao lugre e, enquanto estavam ocupados na discussão de sua heroicidade, voltei para a praia. Sentia­-me fatigado e precisava descansar.

            Mostrei-lhe então o saco de água com as moedas de ouro e o punhal.

Assobiou significativamente.

- Onde?

            - Na caverna por trás da fenda. Foi Pat quem as descobriu... assim como a dois esqueletos. Marinheiros que se mataram um ao outro.

            - É o que acaba sempre por acontecer - comentou Nino, com voz monótona.

Reparei que não brincava. Tinha o rosto cinzento e parecia muito cansado e velho. Na mesma voz monocórdica, respondeu à per­gunta que não me atrevi a fazer-lhe:

- Vai-se dar daqui a pouco.

            Levantou-se da areia e caminhamos os três para junto das águas. A maré enchia rapidamente e o lugre negro abria caminho ao longo do canal. Os homens no convés olhavam para trás e apontavam. Ocorreu-me a idéia de que tencionassem voltar ao navio naufragado ou que, vendo-nos, virassem de bordo depois de passado o canal e vol­tassem ao ataque.

Não o fizeram. O lugre passou o estreito e fez-se ao largo. O homem do leme manteve a rota para sul até sair da corrente do recife e depois virou para leste. O sol, a oeste, desenhava nas águas as som­bras esguias de suas vergas.

Foi então que ela se deu.

            Ouvimos o lúgubre estampido de uma explosão, logo seguido de outro. Grandes jatos de água elevaram-se no ar e o lugre pareceu er­guer-se por si mesmo até à linha da sobrequilha; para tornar a tombar no meio de um enorme jorro de água, ferindo com a quilha o elemento líquido. Vimos os corpos voarem como bonecos e precipitarem-se nas águas encapeladas. Depois, a embarcação voltou-se completamente, as vergas mergulharam, as escotilhas ficaram submersas e vimos rombos no madeirame. O mar fechou-se formando cachoeira, en­quanto os homens eram atirados para o ar como rolhas e tábuas do navio redemoinhavam nas águas revoltas.

Depois, foi a calma e o quebrar das ondas contra o recife. Alguns corpos agarravam-se aos destroços e outros boiavam como mortos. Dois ou três lutavam contra as vagas, em direção à ilha, com uma len­tidão digna de dó.

- Ainda não acabou - disse Nino Ferrari.

Passaram-se alguns segundos - longos, inexoráveis para todos nós, ali junto às águas e silenciosos. Depois, uma após outra, as bom­bas de profundidade foram explodindo. Eram quatro.

As águas jorravam de novo e mais corpos cuspidos como gotas de uma fonte. Do leito marinho saltaram peixes, algas e areia. O mar abriu-se e borbulhou como poças de lava vulcânica.  

Já não havia nadadores, apenas vultos que flutuavam, aban­donados na imensidão das águas enfurecidas. Durante horas - assim nos pareceu, embora se passassem apenas alguns minutos - ficamos petrificados, contemplando o último e terrível ato de uma sangrenta tragédia grega.

O borbulhar e a agitação acalmaram-se, as vagas enormes quebraram-se. O sol poente tingia de carmim e ouro o oceano. Vimos as barbatanas negras dos tubarões acorrerem para a mesa do ban­quete.

Pat e eu viramos as costas e dirigimo-nos lentos para a tenda. Quando olhei para trás, vi Nino Ferrari de pé, um vulto pequeno e disforme junto às águas. Protegia os olhos com a mão, a fim de melhor observar a mancha líquida e rubra de sangue.

A seu lado, sua sombra, longa e distorcida, fazia lembrar uma forca na areia.

 

Rodeada pelos braços da ilha, ergue-se uma casa. Da varanda larga e sombreada, adornada por uma trepadeira de flores brancas em forma de trombeta e um rebento de buganvília carmesim, vê-se a lagoa onde o Wahine continua ancorado.

Uma mulherzinha morena e sorridente, com um garotinho que ainda mal consegue andar, desce o caminho de coral que conduz à praia e acena para o canal. Esperam-me enquanto lanço a âncora e desprendo o bote que me levará para casa, depois de uma viagem pelas ilhas.

Subimos a vereda de mãos dadas até um recantozinho debruado a ramos de coral, com uma lápide quadrada e branca. Paramos, colho uma flor escarlate de hibisco, que coloco diante da lápide, en­quanto o menino segue fascinado este ritual.

A flor depressa definhará com o calor, mas haverá sempre outra para a substituir enquanto vivermos na nossa Ilha Bicorne. Quando meu filho for mais velho, explicar-lhe-ei o significado do local e da campa, bem como as palavras gravadas na lápide:

 Em Memória

 De um Grande e Corajoso Homem

 JOHNNY AKIMOTO

 Esta é a Sua Ilha.

 Nós, os Seus Amigos, a Guardamos para Ele.

 REQUIESCAT

 

                                                                                            Morris West

 

 

                      

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