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O Barco da Ira / Somerset Maugham
O Barco da Ira / Somerset Maugham

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O Barco da Ira

 

Muito poucos livros haverá no mundo com mais substância do que este, intitulado Instruções para a Navegação e publicado pelo Departamento Hidrográfico por ordem dos Lordes Comissários do Almirantado. São alguns belos volumes encadernados (muito fragilmente) em tecidos de diferentes cores, e mesmo o mais caro deles é ainda um livro barato. Por quatro shillings pode comprar-se O Piloto do Yangtse Kiang, "que contém uma descrição e instruções para o Yangtse Kiang, desde o rio Wusung até ao ponto mais alto navegável, incluindo o Han Kiang, o Kialing Kiang e o Min Kiang"; e por três shillings pode-se adquirir a III Parte de O Piloto do Arquipélago Oriental, que compreende a ponta Nordeste das passagens das Celebes, Molucas e Gilolo, os Mares Banda e Arafura, e as costas Norte, Oeste e Sudoeste da Nova Guiné". Mas se o leitor é uma pessoa de hábitos enraizados que não quer alterar, ou tem uma ocupação que o tem amarrado a um só lugar, não lhos recomendo. Estes livros de aspeto muito prático levam-nos em espírito em viagens encantadas, e o seu estilo terra-a-terra, a sua admirável ordenação, a concisão com que o material nos é apresentado, o austero sentido prático que informa cada linha, não consegue esbater a poesia que emana das suas páginas impressas com uma doce fragrância, como a brisa condimentada que nos assalta os sentidos com um langor mais do que material quando nos aproximamos de algumas das ilhas mágicas dos mares do Levante. Falam-nos dos ancoradouros e embarcadouros, das provisões que se podem arranjar em cada local, e onde se pode encontrar água; falam-nos das luzes e bóias, marés e ventos, e do tempo que lá vamos encontrar. Dão-nos breves informações acerca da população e do comércio. E é estranho quando pensamos na serenidade com que tudo ali é posto, sem palavras a mais, e no tanto que recebemos a mais. O quê? Bem, o mistério e a beleza, o romance e a sedução do desconhecido. Não é qualquer livro que, ao folhearmos as suas páginas, nos oferece um parágrafo como este: "Provisões. Algumas aves selvagens estão preservadas, a ilha é também refúgio de um grande número de aves marinhas. Na laguna há tartarugas, bem como grandes quantidades de peixes muito variados, incluindo o salmonete cinzento, o tubarão e o cação; a rede de arrasto é aqui inútil; mas há peixe que pode ser pescado à linha. Há uma pequena provisão de enlatados e bebidas numa cabana para os náufragos. Pode-se obter boa água num poço perto do ancoradouro". Pode a imaginação querer mais material do que este para uma viagem no tempo e no espaço?

 No volume de que extraí esta passagem, os compiladores descreveram, com a mesma sobriedade, as Ilhas Alas. São constituídas por um grupo ou cadeia de ilhas "na sua maioria planas e florestadas, que se estendem por cerca de 70 milhas no sentido Este Oeste e 80 milhas no sentido Norte Sul". As informações sobre elas, dizem-nos, são escassas; há estreitos entre os diferentes grupos, e vários navios já neles passaram, mas ainda não foram completamente explorados, e a localização dos seus muitos perigos ainda não determinados; é, portanto, aconselhável evitá-los. A população do arquipélago é estimada em cerca de 8000 habitantes, dos quais 200 são chineses e 800, maometanos. Os restantes são selvagens. A ilha principal chama-se Baru, é rodeada de recifes, e é lá que vive um Administrador holandês. A sua moradia branca, de telhado vermelho, no cimo de uma pequena colina, é o objeto mais proeminente que os navios da Royal Netherlands Steam Packlet Company vêem quando, mês sim, mês não, ao subirem a caminho de Macassar, e de quatro em quatro semanas, ao descerem a caminho de Merauke, na Nova Guiné Holandesa, aportam à ilha.

 Num dado momento da história mundial, o Administrador era Mynheer Evert Gruyter, que governava o povo que habitava as Ilhas Alas com uma firmeza temperada por um agudo sentido do ridículo. Achara que tinha tido imensa piada ele ter sido colocado, aos vinte e sete anos, em cargo de tal importância, e aos trinta, ainda achava graça ao fato. Não havia comunicações por cabo entre as ilhas e Batávia, e o correio chegava com tanto atraso que mesmo que pedisse algum conselho, quando o recebesse, já seria inútil, e, por isso, acabava sempre por fazer aquilo que achava que era melhor e confiava na sua boa sorte para não vir a ter problemas com as autoridades. Era um homem de muito baixa estatura, não mais que um metro e sessenta de altura, e extremamente gordo, e de pele rosada. Por uma questão de frescura, usava o cabelo rapado e não usava barba. O rosto era redondo e vermelho. As sobrancelhas eram tão louras que mal se viam; tinha olhos pequenos, azuis e cintilantes. Sabia que o seu aspeto físico não lhe dava um ar de dignidade e, por causa do cargo que ocupava, procurava ir buscá-la à maneira elegante como sempre andava vestido. Nunca ia para a repartição, nem tomava o seu lugar no tribunal, nem andava em público senão vestido impecavelmente de branco. O stengah-shifter, com botões de latão amarelo, ficava-lhe muito apertado e revelava o fato chocante de que, embora ainda novo, tinha já uma proeminente barriga redonda. A sua cara bem disposta brilhava de suor e ele abanava-se constantemente com um leque de folha de palmeira.

 Mas em casa do Sr. Gruyter preferia usar apenas um sarongue e, então, com o seu pequeno corpo branco e rechonchudo, parecia um cômico rapazinho de dezasseis anos. Era madrugador, e o seu pequeno almoço estava sempre pronto às seis. Nunca variava. Consistia de uma fatia de papaia, três ovos fritos, frios, queijo Edam cortado fino, e uma chávena de café. Depois de o tomar, fumava um grande charuto holandês, lia os jornais, se não estivessem já lidos e relidos, e depois vestia-se para ir para a repartição.

 Uma certa manhã, enquanto estava ocupado nestas tarefas, o chefe dos criados entrou no quarto e disse-lhe que o Tuan Jones perguntava se podia falar com ele. O Sr. Gruyter estava em frente ao espelho. Tinha as calças vestidas e admirava o seu peito macio. Puxou o peito para fora de modo a fazê-lo sobressair e encolheu a barriga e, com uma boa dose de satisfação, deu três ou quatro sonoras palmadas no peito. Era um peito viril. Quando o criado trouxe o recado, ele olhava os próprios olhos no espelho e trocou com eles um sorriso levemente irônico. Interrogava-se sobre que diabo quereria o visitante. Evert Gruyter falava inglês, holandês e malaio com igual facilidade, mas pensava em holandês. E gostava disso. Achava que era uma língua agradavelmente irreverente.

 — Pede ao Tuan que espere e diz-lhe que vou já.

 Vestiu a túnica sobre o corpo nu, abotoou-o e encaminhou-se empertigado para a sala de estar. O Rev. Owen Jones pôs-se de pé.

 — Bom dia, Sr. Jones — disse o Administrador. — O senhor veio para um aperitivo antes do meu dia de trabalho?

 O Sr. Jones não sorriu.

 — Vim falar consigo sobre um assunto muito triste, Sr. Gruyter — respondeu ele.

 O Administrador não se desconcertou com o tom grave do visitante, nem com as suas palavras. Os seus olhos chispavam amigavelmente.

 — Sente-se, meu amigo, e fume um charuto.

 O Sr. Gruyter sabia muito bem que o Rev. Owen Jones não bebia nem fumava, mas qualquer coisa de traquina na sua natureza levava-o a oferecer-lhe uma bebida e um charuto sempre que se encontravam. O Sr. Jones abanou a cabeça.

 O Sr. Jones dirigia a Missão Baptista nas Ilhas Alas. A sede era em Baru, a maior de todas e a mais populosa, mas tinha casas de culto ao cuidado de ajudantes indígenas em várias ilhas do arquipélago. Era um homem alto, magro, de ar melancólico, rosto comprido, amarelo e seco, de cerca de quarenta anos. O cabelo castanho já estava branco nas têmporas e esbatia a partir da testa. Isto dava-lhe um ar de intelectualidade vazia. O Sr. Gruyter não gostava dele, mas, ao mesmo tempo, respeitava-o. Não gostava dele porque era estreito de espírito e dogmático. Sendo ele próprio um pagão alegre que apreciava as coisas boas da carne e determinado a conseguir tantas quanto as circunstâncias lhe permitissem, não tinha paciência para um homem que as condenava a todas. Achava que os costumes do país estavam bem para os seus habitantes e não tinha paciência para os enérgicos esforços do missionário no sentido de destruir um estilo de vida que há séculos resultava tão bem. Respeitava-o porque ele era honesto, zeloso e bom. O Sr. Jones, um australiano de origem galesa, era o único médico qualificado no arquipélago e era muito bom saber que se uma pessoa adoecesse não tinha de recorrer apenas ao prático chinês, e ninguém sabia melhor do que o Administrador como a competência do Sr. Jones fora útil para todos e com que espírito de caridade ele se entregara àquela missão. Por ocasião de uma epidemia de gripe, o missionário tinha feito o trabalho de dez homens e nem um qualquer tufão o impedia de ir de ilha em ilha se a sua ajuda fosse necessária.

 Vivia com a irmã numa casinha branca a cerca de meia milha da aldeia, e quando o Administrador chegou à ilha foi a bordo recebê-lo, pedindo-lhe que ficasse em sua casa até a dele estar em ordem. O Administrador aceitara e depressa viu por si próprio a simplicidade com que eles viviam. Aquilo era demais para ele. Chá nas três escassas refeições por dia, e quando ele acendeu o seu charuto O Sr. Jones pediu-lhe delicada mas firmemente a fineza de não fumar porque tanto ele como a irmã eram vigorosamente contra o tabaco. Vinte e quatro horas depois o Sr. Gruyter mudou-se para a sua casa. Fugiu em pânico, como se fugisse de uma cidade empestada. O Administrador apreciava uma boa piada e gostava de rir; conviver com uma pessoa que levava as suas graças terrivelmente a sério e que nem nunca sorria, por melhor que fosse a história, era demais para qualquer mortal. O Rev. Owen Jones era um homem de valor, mas como companhia, completamente impossível. A irmã era pior. Nenhum dos dois tinha sentido de humor, mas enquanto o missionário era de temperamento melancólico, cumprindo os seus deveres muito conscienciosamente, com a evidente convicção de que tudo no mundo estava perdido, Senhorita Jones era uma pessoa decididamente bem disposta. Olhava severamente o lado resplandecente das coisas. Com a ferocidade de um anjo vingador, esquadrinhava o lado bom do seu semelhante. Senhorita Jones ensinava na escola da missão e ajudava o irmão no seu trabalho médico. Quando ele operava, ela administrava a anestesia e era a governanta, o cirurgião ajudante e a enfermeira do pequeno hospital que o Sr. Jones acrescentara à missão. Mas o Administrador era um homenzinho obstinado e nunca perdia a sua capacidade de tirar algum divertimento da obstinada luta do Rev. Owen com as enfermidades da natureza humana, e do otimismo impiedoso de Senhorita Jones. Tinha de se divertir como podia. Os barcos holandeses vinham três vezes cada dois meses e ficavam algumas horas e nessas alturas ele podia ter uma bela papear com o capitão e o engenheiro chefe, e muito raramente um lugre da pesca de pérolas chegava da Ilha de Quinta-feira ou de Porto Darwin e durante dois ou três dias ele divertia-se à grande. Na sua maioria, eram indivíduos rudes, os pescadores de pérolas, mas cheios de coragem, e tinham bastantes bebidas a bordo, e boas histórias para contar, e o Administrador levava-os a sua casa e oferecia-lhes um belo jantar, e a festa só era de fato um sucesso quando todos ficavam tão bêbados que nem pudessem voltar para o barco nessa mesma noite. Mas além do missionário, o único branco que vivia em Baru era Ginger Ted, que era, claro, uma desgraça para a civilização. Não havia uma única coisa que se pudesse dizer a seu favor. Ele lançava o descrédito sobre a raça branca. Mas mesmo assim, se não fosse Ginger Ted, o Administrador achava que a vida na Ilha de Baru seria insuportável.

 E o que é curioso é que era exatamente por causa deste tratante que o Sr. Jones, em vez de estar a instruir os jovens pagãos sobre os mistérios da fé Baptista, estava a fazer esta visita matinal ao Sr. Gruyter.

 — Faça favor de se sentar, Sr. Jones — disse o Administrador. — Em que é que eu lhe posso ser útil?

 — Bom, eu vim falar consigo sobre aquele homem a quem chama Ginger Ted. O que é que o senhor vai fazer agora?

 — Mas, o que é que aconteceu?

 — O senhor não sabe? Pensava que o sargento lhe tivesse dito.

 — Eu não gosto que os meus funcionários venham a minha casa, a não ser que se trate de assunto urgente — disse o Administrador com imponência. — Não sou como o senhor, eu só trabalho para poder ter horas de lazer, e gosto de gozar os meus lazeres sem ser incomodado.

 Mas o Sr. Jones não ligava muito a conversas banais e não estava interessado em reflexões de caráter geral.

 — Houve uma desordem vergonhosa numa das lojas chinesas ontem à noite. Ginger Ted destruiu a loja e quase matou um chinês.

 — Outra vez bêbado, claro — disse o Administrador calmamente.

 — Claro. Quando é que ele não o está? Chamaram a polícia e ele agrediu o sargento. Foram precisos seis homens para o levar para a cadeia.

 — Ele é um tipo robusto — disse o Administrador.

 — O senhor com certeza vai mandá-lo para Macassar.

 Evert Gruyter correspondeu ao olhar ultrajado do missionário com um alegre pestanejo. Não era parvo e já sabia o que o Sr. Jones estava a preparar. Dava-lhe muito gozo espicaçá-lo um pouco.

 — Felizmente os meus poderes são tão amplos que me permitem tratar, eu próprio, da situação — respondeu ele.

 — O senhor tem o poder de deportar quem quiser, Sr. Gruyter, e tenho a certeza de que se evitariam muitos problemas se o senhor se livrasse completamente do homem.

 — Tenho, de fato, esse poder, mas também tenho a certeza de que o senhor seria a última pessoa a desejar que eu o usasse arbitrariamente.

 — Sr. Gruyter, a presença desse homem aqui é um escândalo público. Nunca está sóbrio de manhã à noite; é público que ele tem relações com mulheres umas atrás das outras.

 — Esse ponto é interessante, Sr. Jones. Sempre ouvi dizer que o excesso de álcool, embora estimule o desejo sexual, impede a sua realização. O que me está a dizer de Ginger Ted parece não confirmar essa teoria.

 O missionário corou.

 — Isso são questões psicológicas que de momento não desejo abordar — disse ele friamente. — O comportamento deste homem causa, de fato, danos ao prestígio da raça branca, e o seu exemplo é um sério obstáculo aos esforços feitos noutros campos no sentido de induzir as pessoas destas ilhas a levar uma vida menos depravada. Ele é uma pessoa mesmo má.

 — Desculpe a minha pergunta, mas já fez alguma tentativa para o regenerar?

 — Quando ele aqui caiu pela primeira vez, fiz o possível por entrar em contato com ele. Ele repeliu todas as minhas tentativas. Quando houve aquele primeiro problema, fui ter com ele e falei-lhe sem rodeios. Ele insultou-me.

 — Ninguém mais do que eu aprecia o excelente trabalho que o senhor e os outros missionários fazem nestas ilhas, mas o senhor tem a certeza de que exercem sempre a vossa atividade com todo o tato possível?

 O Administrador ficou satisfeito com esta sua frase. Era extremamente cortês, mas continha uma crítica que ele considerava válida. O missionário olhou-o gravemente. Os seus tristes olhos castanhos estavam cheios de sinceridade.

 — E Jesus Cristo agiu com tato quando expulsou os vendedores do Templo? Não, Sr. Gruyter. O tato é o subterfúgio de que os fracos se servem para não cumprirem com os seus deveres.

 A observação de Sr. Jones fez com que o Administrador sentisse um súbito desejo de uma cerveja. O missionário inclinou-se para a frente com ar muito sério.

 — Sr. Gruyter, o senhor conhece as transgressões deste homem tão bem como eu. Não preciso de lhas recordar. Não há quaisquer desculpas para ele. Desta vez ultrapassou os limites. O senhor nunca mais vai ter uma oportunidade tão boa. Peço-lhe que use dos seus poderes e o expulse de uma vez por todas.

 O Administrador piscou os olhos mais claramente do que nunca. Estava a divertir-se imenso. Pensou que os seres humanos eram muito mais divertidos quando uma pessoa não se sentia obrigada a lidar com eles para os louvar ou criticar.

 — Mas, Sr. Jones, será que eu o entendi bem? O senhor está a pedir-me que lhe garanta a deportação deste homem antes ainda de eu saber de que o acusam e de ouvir a sua defesa?

 — Não sei qual poderá ser a sua defesa.

 O Administrador levantou-se da cadeira e conseguiu realmente alguma dignidade para os seus metro e sessenta.

 — Eu estou aqui para administrar a justiça de acordo com as leis do governo holandês. Permita-me que lhe diga que fiquei extremamente surpreendido por o senhor tentar influenciar-me nas minhas funções judiciais.

 O missionário ficou ligeiramente nervoso. Nunca lhe passara pela cabeça que este frangote impudente, dez anos mais novo do que ele, pudesse adoptar tal atitude. Ia a abrir a boca para se explicar e desculpar, mas o Administrador ergueu a mãozinha grosseira.

 — Está na hora de eu ir para a repartição, Sr. Jones. Desejo-lhe um bom dia.

 O missionário, surpreendido, fez uma vênia e sem mais uma palavra saiu da sala. E teria ficado ainda mais surpreendido se visse o que o Administrador fez logo que o viu pelas costas. Um largo sorriso escarninho assomou-lhe aos lábios e, levando o polegar ao nariz, fez uma careta ao Rev. Owen Jones.

 Minutos depois foi para a repartição. O chefe dos funcionários, que era um mestiço holandês, deu-lhe a sua versão da desordem da noite anterior. Condizia bastante com a do Sr. Jones. Ia haver uma audiência nesse dia.

 — O senhor vai começar pelo Ginger Ted? — perguntou o funcionário.

 — Não vejo qualquer razão para isso. Há mais dois ou três casos que ficaram da última audiência. Vou tratar do caso dele na altura própria.

 — Pensei que, como é branco, talvez o senhor quisesse falar com ele em particular.

 — A majestade da lei não conhece diferença entre pessoas brancas e de cor, meu amigo — disse o Sr. Gruyter, algo pomposamente.

 O tribunal era uma sala quadrada, grande, com bancos de madeira em que se amontoavam indígenas de todos os gêneros, polinésios, bugis, chineses, malaios, e todos se levantaram quando a porta se abriu e um sargento anunciou a chegada do Administrador. Este entrou acompanhado do funcionário e tomou o seu lugar a uma mesa de pinho envernizado sobre um pequeno estrado. Atrás de si via-se uma gravura da Rainha Guilhermina. Despachou meia dúzia de casos e depois trouxeram Ginger Ted. Este ficou de pé na teia, algemado, com um guarda de cada lado. O Administrador olhou com ar grave, mas não conseguiu esconder o gozo do seu olhar.

 Ginger Ted estava com a ressaca. De pé, vacilava um pouco, e o seu olhar era vazio. Era um homem ainda novo, de trinta anos, talvez, de estatura um pouco mais do que mediana, um tanto gordo, com o rosto vermelho inchado, e o cabelo ruivo encaracolado desgrenhado. Não saíra da refrega incólume. Tinha um olho negro e a boca inchada e com um golpe. Vestia calças de caqui, muito sujas e esfarrapadas e a camiseta interior quase lhe fora arrancada do corpo. Um grande rasgão deixava ver o espesso tufo de pelos ruivos que lhe cobria o peito e também a surpreendente brancura da pele. O Administrador olhou para a folha da acusação. Depois de ouvir as testemunhas, depois de ver o chinês a quem Ginger Ted partira a cabeça com uma garrafa, depois de ouvir a movimentada história do sargento que fora agredido quando tentava prendê-lo, depois de ouvir o relato dos estragos provocados por Ginger Ted, que na fúria da embriaguez tinha destruído tudo aquilo que lhe veio à mão, voltou-se para o réu e falou em inglês.

 — Então, Ginger, o que é que tens a dizer em tua defesa?

 — Eu estava cego. Não me lembro de nada. Se eles dizem que eu quase o matei, se calhar foi mesmo. Eu pago os estragos se me derem um tempo.

 — Pagas, pagas, Ginger — disse o Administrador — mas eu é que te vou dar o tempo.

 Por momentos olhou para Ginger Ted em silêncio. Era uma figura nada atraente. Um homem completamente desfeito. Estava horrível. Olhar para ele causava arrepios, e se o Sr. Jones não tivesse sido tão importuno o Administrador teria ordenado a sua deportação.

 — Tu tens sido um problema desde que chegaste às ilhas, Ginger. És uma vergonha. És um ocioso incorrigível. Já foste apanhado na rua perdido de bêbado vezes sem conta. Provocas desordens umas atrás das outras. Não tens emenda. Da última vez que aqui te trouxeram disse-te que se fosses preso outra vez serias tratado severamente. Desta vez passaste os limites e estás feito. Condeno-te a seis meses de trabalhos forçados.

 — A mim?

 — Sim, a ti.

 — Juro por Deus que o mato quando sair.

 Desatou num chorrilho de imprecações sujas e blasfemas. O Sr. Gruyter ouvia-o com desprezo. Pode-se praguejar muito melhor em holandês do que em inglês, e não havia nada que Ginger Ted dissesse que ele não pudesse cobrir eficazmente.

 — Cala-te — mandou ele. — Tu me cansas.

 O Administrador repetiu a sentença em malaio e o prisioneiro, a debater-se, foi dali levado à força.

 O Sr. Gruyter sentou-se, bem disposto, para o almoço. Era espantoso como a vida podia ser divertida se se usasse de um certo engenho. Havia pessoas em Amsterdam, e até em Batávia e Surabaia, que olhavam esta sua ilha como lugar de exílio. Mal eles sabiam como era agradável e que prazer se podia tirar de coisas que pareciam pouco prometedoras. Perguntavam-lhe se ele não sentia a falta do clube e das corridas e do cinema, dos bailes que se realizavam uma vez por semana no Casino, e da companhia das senhoras holandesas. De modo nenhum. Ele gostava do conforto. A mobília da sala onde se encontrava era rica e sólida. Gostava de ler romances franceses do gênero frívolo, e apreciava a sensação de os ler uns atrás dos outros sem a inquietação provocada pela idéia de estar a perder tempo. Para ele, perder tempo parecia um grande luxo. Quando a sua imaginação de jovem se virava para pensamentos de amor, o chefe dos criados trazia-lhe para casa uma criatura morena, de olhos brilhantes, vestida com um sarongue. Tinha o cuidado de não estabelecer qualquer relação de caráter permanente. Achava que a mudança conservava a juventude. Apreciava a liberdade, e o sentido de responsabilidade não era para ele um fardo. O calor não o preocupava. Erguia-lhe um dique de água fria meia dúzia de vezes por dia, um prazer que tinha quase uma qualidade estética. Tocava piano. Escrevia aos amigos de Amsterdam. Não sentia necessidade da conversa de intelectuais. Gostava de umas boas gargalhadas, e conseguia isso tanto de um qualquer idiota como de um professor de filosofia. Tinha a noção de que era um homenzinho ilustre.

 Como qualquer bom holandês no Extremo Oriente, começava o almoço com um cálice de gim holandês. Tem um paladar acre velho, e o gosto por ele tem de ser adquirido, mas o Sr. Gruyter preferia-o a qualquer coquetel. Além disso, quando o bebia sentia que estava a manter a tradição da sua raça. A seguir, comia rystafel. Comia-o todos os dias. Enchia, de coruto, um prato de sopa com arroz e depois, com os três criados a servi-lo, servia-se do caril que um deles lhe estendia, do ovo frito que outro lhe trazia, e dos condimentos apresentados pelo terceiro. Depois, cada um deles trazia outro prato, de bacon, ou bananas, ou peixe em picles, e o prato ficava com uma enorme pirâmide. Ele mexia e misturava tudo e começava a comer. Comia devagar e com prazer. Bebia uma garrafa de cerveja.

 Enquanto comia, não pensava. A sua atenção estava toda virada para aquela massa à sua frente, e consumia-a com uma feliz concentração. Aquilo nunca o enfastiava. E depois de esvaziar o prato, pensar que no dia seguinte comeria outra vez, era uma compensação. Fartava-se tanto daquilo como nós nos fartamos de pão. Acabava a cerveja e fumava o seu charuto. O criado trazia-lhe o café. Recostava-se na cadeira e então permitia-se o luxo da reflexão.

 Divertia-o o fato de ter condenado Ginger Ted à muito merecida pena de seis meses de trabalhos forçados, e sorriu à idéia de ele a trabalhar nas estradas juntamente com os outros prisioneiros. Teria sido um disparate deportar da ilha o único homem com quem ele conseguia ter uma conversa franca, e, além disso, a satisfação que isso teria dado ao missionário teria sido mau para o caráter desse senhor. Ginger Ted era um patife e um vagabundo, mas o Administrador tinha por ele uma certa simpatia. Tinham bebido muitas cervejas juntos, e quando vinham os pescadores de pérolas de Port Darwin tinham todos uma noite em grande, embebedavam-se magnificamente todos juntos. O Administrador gostava da maneira irrefletida como Ginger Ted esbanjava o inestimável tesouro que é a vida.

 Ginger Ted caíra ali um dia de um navio que ia de Merauka para Macassar. O comandante não sabia como é que ele descobrira o caminho para lá; viajara em terceira, juntamente com os indígenas, e desembarcou nas Ilhas Alas porque gostara do seu aspecto. O Sr. Gruyter desconfiava que o atrativo das ilhas consistia talvez no fato de serem de bandeira holandesa e portanto estarem fora da jurisdição britânica. Mas ele tinha os papeis em ordem e não havia, portanto, razão para que não ficasse. Dizia que andava a comprar ostras para uma firma australiana, mas em breve veio a saber-se que as suas atividades comerciais não eram autênticas. De fato, a bebida tomava tanto do seu tempo que pouco lhe restava para outras atividades. Tinha um rendimento de duas libras por semana, enviados mensalmente de Inglaterra. O Administrador suspeitava de que esta quantia só lhe continuaria a ser paga enquanto ele se mantivesse longe das pessoas que lha mandavam. De qualquer maneira, esse dinheiro não era suficiente para lhe permitir liberdade de movimentos. Ginger Ted era reservado. O Administrador descobrira que ele era inglês, isto pelo passaporte que o descrevia como Edward Wilson, e que tinha estado na Austrália. Mas não fazia idéia da razão por que ele deixara a Inglaterra nem do que ele fizera na Austrália. Nem nunca conseguira determinar a que classe social ele pertencia. Quando uma pessoa o via de camisola interior suja e calças esfarrapadas, de capacete colonial muito gasto na cabeça, na companhia de pescadores de pérolas, e ouvia a sua conversa grosseira, obscena e analfabeta, achava que ele devia ser um simples marinheiro desertor ou um trabalhador manual, mas quando via a sua caligrafia, ficava admirada ao verificar que era a de um homem com pelo menos alguma instrução, e, quando ocasionalmente estava com ele a sós, se ele tivesse bebido apenas alguns copos e não estivesse bêbado, verificaria que ele falava de assuntos sobre os quais nem um marinheiro nem um trabalhador manual poderia saber alguma coisa. O Administrador tinha alguma sensibilidade e compreendeu que Ginger Ted não falava com ele como de inferior para superior, mas de igual para igual. A maior parte da remessa em dinheiro já estava hipotecada antes de ele a receber, e os chineses a quem ele devia andavam sempre em cima dele quando aquela carta mensal lhe era entregue, mas com o que restava continuava a embebedar-se. Era então que ele provocava as desordens, porque, quando bêbado, tornava-se violento e capaz de atos que o levavam às mãos da polícia. Até aqui o Sr. Gruyter tinha-se contentado em mantê-lo na prisão até ficar sóbrio e em dar-lhe uma reprimenda. Quando estava sem dinheiro, aproveitava quanta bebida podia de qualquer pessoa que lha desse. Rum, brandy, arak, para ele, era tudo a mesma coisa. Por duas ou três vezes, o Sr. Gruyter tinha-lhe arranjado trabalho em plantações dirigidas por chineses numa ou outra das ilhas, mas ele não conseguia ficar muito tempo e, passadas algumas semanas, voltava para Baru, para a praia. Era um milagre como ele conseguia sobreviver. Claro que sabia seduzir as pessoas. Conseguiu apanhar os vários dialetos falados nas ilhas e sabia como fazer rir os indígenas. Eles desprezavam-no, mas respeitavam a sua força física e gostavam da sua companhia. Daí que nunca lhe faltasse onde comer ou onde dormir. O que era curioso, e era isto que mais ofendia o Rev. Owen Jones, é que ele conseguia tudo o que queria das mulheres. O Administrador não conseguia imaginar o que elas viam nele. Era descuidado e bruto com elas. Recebia o que elas lhe davam, mas era incapaz de mostrar qualquer gratidão. Usava-as para seu prazer e depois enxotava-as com indiferença. Uma ou duas vezes, isto tinha-lhe trazido dissabores, e o Sr. Gruyter vira-se obrigado a condenar um pai irado por, uma noite, ter espetado uma faca nas costas de Ginger Ted, e uma chinesa tinha tentado envenenar-se ingerindo ópio porque ele a tinha abandonado. Uma vez o Sr. Jones foi ter com o Administrador em grande agitação porque o vagabundo tinha seduzido uma das suas convertidas. O Administrador concordou que aquilo era deplorável, mas apenas pôde aconselhar o Sr. Jones a manter aquelas jovens debaixo de olho. Uma coisa de que o Administrador já gostou menos foi o descobrir que uma moça que ele muito desejava, e com quem tinha andado durante várias semanas, também tinha andado a conceder os seus favores a Ginger Ted, ao mesmo tempo. Quando pensou neste incidente em particular sorriu de novo à lembrança de Ginger Ted a cumprir seis meses de trabalhos forçados. Só muito raramente nesta vida é que, no cumprimento do dever, se consegue uma vingança sobre quem nos pregou uma partida.

 Alguns dias mais tarde, o Sr. Gruyter andava a passear, em parte para fazer exercício e em parte para ver se uma certa obra que ele queria realizada estava a ser devidamente feita, quando passou por um grupo de prisioneiros a trabalhar sob as ordens de um guarda. Entre eles estava Ginger Ted. Andava vestido com o sarongue da prisão, uma túnica, que se chama baju em malaio, muito suja, e o seu velho capacete colonial. Andavam a reparar a estrada, e Ginger Ted empunhava uma pesada picareta. O caminho era estreito e o Administrador viu que tinha de passar a centímetros dele. Lembrou-se das suas ameaças. Sabia que Ginger Ted era um homem de paixões violentas, e a linguagem que ele usara na teia deixou muito claro que não achara graça nenhuma à sentença do Administrador que o condenara a seis meses de trabalhos forçados. Se Ginger Ted subitamente o atacasse com a picareta, nada o poderia salvar. Claro que o guarda o abateria imediatamente a tiro, mas entretanto a cabeça do Administrador já estaria esmigalhada. Foi com uma leve impressão estranha no estômago que o Sr. Gruyter avançou por entre o grupo de prisioneiros. Eles estavam a trabalhar aos pares a muito pouca distância uns dos outros. Fez o possível por não apressar nem abrandar o passo. Ao passar por Ginger Ted, o homem cravou a picareta no solo e levantou o olhar, e quando os olhos de ambos se cruzaram piscou o olho. O Administrador reparou no sorriso que lhe assomou aos lábios e, com dignidade oficial, prosseguiu o seu caminho. Mas aquela piscadela de olho tão deliciosamente cheia de humor sardônico encheu-o de satisfação. Se ele fosse o califa de Bagdade e não um simples funcionário público holandês subalterno teria logo libertado Ginger Ted e mandado os seus escravos dar-lhe banho e perfumá-lo, e depois de o vestirem com um manto dourado, oferecia-lhe um lauto repasto.

 Ginger Ted era um prisioneiro exemplar, e um ou dois meses depois o Administrador, na oportunidade de mandar um grupo de prisioneiros fazer alguns trabalhos numa das ilhas mais afastadas, incluiu-o nesse grupo. Nessa ilha não havia prisão e assim os dez indivíduos que ele mandou acompanhados de um guarda foram aboletados com os indígenas, e depois do dia de trabalho eram homens livres. A tarefa chegava para perfazer o que restava da pena de Ginger Ted. O Administrador falou com ele antes da partida.

 — Olha, Ginger — disse-lhe ele — tens aqui dez florins para ti para comprares tabaco quando te fores embora.

 — O senhor não me podia arranjar um pouco mais? Eu recebo regularmente oito libras por mês.

 — Acho que isto chega. E eu guardo as cartas que vierem para ti, e quando voltares já tens uma boa soma. Terás o bastante para ires para onde quiseres.

 — Sinto-me muito bem aqui — disse Ginger Ted.

 — Bem, no dia em que voltares, arranja-te e vem a minha casa para bebermos uma cerveja juntos.

 — Ótimo. Acho que nessa altura já estarei pronto para uma boa bebedeira.

 E então o acaso entrou em cena. A ilha para onde Ginger fora mandado chamava-se Maputiti, e tal como as restantes era rochosa, de vegetação muito densa e rodeada de um recife. Havia uma aldeia no meio de coqueiros, na costa oposta à entrada do recife, e outra junto a uma lagoa de água doce no meio da ilha. Alguns dos habitantes da segunda tinham-se convertido ao Cristianismo. As ligações com Baru eram efetuadas por uma lancha que tocava as várias ilhas em intervalos regulares. Transportava passageiros e mercadorias. Mas os aldeãos eram homens do mar e se tinham de comunicar urgentemente com Baru preparavam um prahu e navegavam as cinquenta milhas que os separavam. Aconteceu então que quando faltavam apenas mais quinze dias para o fim da pena de Ginger Ted, o chefe dos cristãos da aldeia do lago adoeceu subitamente. Os remédios indígenas não lhe fizeram nada e ele contorcia-se em agonia. Mandaram mensageiros a Baru implorando a ajuda do missionário; mas por pouca sorte o Sr. Jones nessa altura estava com um ataque de malária. Estava de cama e incapaz de se deslocar. Falou sobre o assunto com a irmã.

 — Deve ser uma apendicite aguda — disse-lhe ele.

 — Tu não podes ir, Owen — disse ela.

 — Não posso deixar morrer o homem.

 O Sr. Jones estava com quarenta graus de febre. Doía-lhe terrivelmente a cabeça. Toda a noite tinha delirado. Os olhos brilhavam-lhe de uma maneira estranha, e a irmã sentia que ele conservava a lucidez por simples esforço da vontade.

 — Tu não conseguias operar nesse estado.

 — Pois não. Portanto, tem de ir o Hassan.

 Hassan era o encarregado da farmácia.

 — Tu não podes confiar no Hassan. Ele nunca seria capaz de fazer uma operação sozinho. E eles não deixariam. Vou eu. O Hassan pode ficar aqui a cuidar de ti.

 — Tu não consegues tirar um apêndice.

 — Por que não? Já te vi a fazê-lo. Já fiz dúzias de pequenas intervenções.

 O Sr. Jones tinha a impressão de que não estava a perceber o que ela estava a dizer.

 — A lancha está no porto?

 — Não, foi a uma das ilhas. Mas posso ir no prahu em que os homens vieram.

 — Tu? Eu não estava a pensar em ti. Tu não podes ir.

 — Vou, sim, Owen.

 — Vais onde? — perguntou ele.

 Ela viu que o espírito do irmão andava já a vaguear. Pôs lhe uma mão calmante sobre a testa seca. Deu-lhe uma dose de remédio. Ele murmurou qualquer coisa e ela percebeu que ele já não sabia onde estava. Claro que estava preocupada com ele, mas sabia que a sua doença não era perigosa e que podia deixá-lo em segurança ao cuidado do criado da missão que a ajudava a tratar dele, e ao encarregado da farmácia. Esgueirou-se do quarto. Pôs num saco o material higiênico, uma camisola e uma muda de roupa. Um pequeno estojo com os instrumentos cirúrgicos, ligaduras e pensos anti-sépticos estava sempre preparado. Entregou-o aos dois indígenas que tinham vindo de Maputiti, informou o encarregado da farmácia sobre o que ia fazer e deu-lhe instruções no sentido de informar o irmão quando ele já pudesse entender. Ele não podia sobretudo preocupar-se com ela. Pôs o capacete colonial e partiu. A missão ficava a cerca de meia milha da aldeia. Caminhou apressadamente. Na extremidade do pontão estava o prahu à espera. Eram seis remadores. Tomou o seu lugar na ré e eles fizeram-se ao mar com uma remada rápida. Dentro do recife o mar estava calmo, mas quando saíram a barra enfrentaram uma ondulação grande. Mas esta não era a primeira viagem deste gênero que Senhorita Jones fazia e ela confiava nas boas condições de navegabilidade do barco em que se encontrava. Era meio-dia e o sol caía de um céu abafadiço. A única coisa que a preocupava era que não chegassem antes do anoitecer, e se ela achasse que seria necessário operar imediatamente só poderia contar com a luz de lanternas. Senhorita Jones era uma mulher de perto de quarenta anos. Nada no seu aspeto dava a idéia da determinação que ela acabara de revelar. Era de uma estranha graciosidade frágil que dava a idéia de que uma simples brisa a faria vacilar; era quase artificial, e fazia com que a força de caráter que depois nela se descobria parecesse positivamente inconcebível. Não tinha peito, era alta e extremamente magra. Tinha um rosto comprido, pálido, e era muito propensa a espinhos. O cabelo era liso e puxado para trás. Tinha olhos castanhos, bastante pequenos, e como estavam muito juntos davam à sua expressão um ar rabugento. O nariz era comprido e fino, levemente avermelhado. Sofria muito de dispepsia. Mas este seu mal nada podia contra a sua determinação de ver o lado positivo das coisas. Firmemente convencida de que o mundo era mau e os homens indizivelmente depravados, aproveitava qualquer pequeno vestígio de decoro que neles encontrasse com a mesma orgulhosa modéstia com que o prestidigitador tira um coelho da cartola. Era viva, desembaraçada e competente. Quando chegou à ilha, viu que não havia um momento a perder se realmente queria salvar a vida do homem. Depois de mostrar a um indígena a maneira de ministrar o anestésico, fez a operação, e nos três dias seguintes tratou do doente com extremo cuidado. Tudo correu bem e ela concluiu que o irmão não podia ter feito melhor. Esperou o tempo necessário para tirar os pontos e depois preparou-se para regressar a casa. Podia gabar-se de não ter perdido o seu tempo. Tinha prestado cuidados médicos a quem deles precisava, tinha reforçado a fé daquela pequena comunidade cristã, admoestara os fracos e lançara as sementes do bem em lugares onde se podia esperar que eles pudessem florescer e criar raízes sob a proteção da divina providência.

 A lancha, vinda de uma das outras ilhas, aportou já a tarde ia adiantada, mas estava lua cheia e eles contavam chegar a Baru antes da meia-noite. Trouxeram as suas coisas até ao molhe, e as pessoas que vieram despedir-se dela ficaram por ali a repetir os seus agradecimentos. Juntou-se uma pequena multidão. A lancha vinha carregada com sacos de copra, mas Senhorita Jones já estava habituada àquele cheiro forte e isso não a incomodava. Arranjou um lugar o mais confortável que pôde e enquanto esperava pela partida conversou com o seu rebanho agradecido. Era a única passageira. Subitamente, um grupo de indígenas surgiu de entre as árvores que emolduravam de verdura a aldeia do lago, e entre eles viu um branco. Vestia um sarongue de prisioneiro e um baju. Trazia cabelo comprido, que era ruivo. Reconheceu logo nele Ginger Ted. Estava um polícia com ele. Trocaram um aperto de mão e Ginger Ted apertou também a mão aos aldeãos que o acompanhavam. Traziam sacos de fruta e um frasco, que Senhorita Jones calculou que contivesse uma bebida alcoólica indígena, e puseram tudo na lancha. Descobriu, surpresa, que Ginger Ted ia também naquele barco. A sua pena estava terminada e tinham chegado instruções para ele regressar a Baru naquela lancha. Ele olhou-a de relance, mas não lhe baixou a cabeça — na verdade, Senhorita Jones virara-lhe a cara — e entrou. O mecânico pôs o motor a trabalhar e começaram logo a deslizar pelo canal da lagoa. Ginger Ted trepou para cima de um monte de sacos e acendeu um cigarro.

 Senhorita Jones ignorou-o. Claro que ela o conhecia muito bem. Ficou desanimada quando pensou que ele ia mais uma vez andar em Baru a provocar escândalos e a beber, um perigo para as mulheres e um espinho na carne de todas as pessoas decentes. Ela sabia os passos que o irmão já tinha dado para fazer com que ele fosse deportado e já não tinha paciência para o Administrador, que não queria reconhecer uma sua obrigação que estava bem à vista. Depois de passarem a barra, e quando já estavam em mar aberto, Ginger Ted tirou a rolha da garrafa do arak e levando esta à boca bebeu um longo trago. Depois estendeu-a aos dois mecânicos que constituíam a tripulação. Um deles era de meia idade e o outro um jovem.

 — Eu não quero que bebam nada enquanto vamos de viagem — disse Senhorita Jones gravemente ao mais velho.

 Ele sorriu-lhe e bebeu.

 — Um pouco de arak não faz mal a ninguém — respondeu ele. E passou a garrafa ao companheiro, que também bebeu.

 — Se beberem mais, faço queixa ao Administrador — disse Senhorita Jones.

 O mais velho disse qualquer coisa que ela não conseguiu perceber, mas que desconfiou que devia ter sido muito grosseiro, e passou a garrafa a Ginger Ted. Prosseguiram a viagem por uma hora ou mais. O mar estava como vidro e o sol pôs-se resplandecente. Pôs-se por detrás de uma das ilhas e durante alguns minutos transformou-a numa mística cidade dos céus. Senhorita Jones voltou-se para observar o espetáculo, e o seu coração encheu-se de gratidão pela beleza do mundo.

 — E só o homem é vil — citou ela para si própria.

 Dirigiam-se para leste. À distância via-se uma pequena ilha por onde ela sabia que iriam passar. Era desabitada. Uma ilhota rochosa coberta de densa floresta virgem. O barqueiro acendeu as lanternas. A noite caiu e o céu ficou logo densamente coberto de estrelas. A lua não nascera ainda. De repente houve uma leve sacudidela e a lancha começou a vibrar estranhamente. O motor começou a matraquear engasgado. O mecânico mais velho mandou o companheiro para o leme e rastejou para debaixo da cabina. Parecia que iam agora mais devagar. O motor parou. Ela perguntou ao jovem qual era o problema, mas ele não sabia. Ginger Ted desceu do cimo dos sacos de copra e deixou-se escorregar para debaixo da cabina. Quando ele reapareceu, ela queria perguntar-lhe o que acontecera, mas a sua dignidade não deixou. Deixou-se estar sentada ocupada com os seus pensamentos. Houve uma longa ondulação e a lancha balançou ligeiramente. O mecânico voltou a aparecer e ligou o motor. Embora matraqueando como louco, começaram a andar. A lancha vibrava da popa à proa. Iam muito devagar. Era evidente que havia qualquer problema, mas Senhorita Jones estava mais exasperada do que alarmada. A lancha devia fazer seis nós, mas agora apenas se movia muito devagar; àquela velocidade iam demorar muito a chegar a Baru, muito depois da meia-noite. O mecânico, ainda atarefado sob a cabina, gritava qualquer coisa para o homem do leme. Falavam em dialeto bugi, que Senhorita Jones pouco percebia. Mas, passado um bocado, reparou que eles tinham mudado de rumo e que parecia dirigirem-se para a pequena ilha desabitada por que deviam ter passado bem a oeste.

 — Para onde é que vamos? — perguntou ao homem do leme com súbita inquietação.

 Ele apontou para a ilhota. Ela levantou-se, dirigiu-se para a cabina e chamou o homem cá para fora.

 — O senhor não vai para ali? O que é que se passa?

 — Não posso ir para Baru — disse ele.

 — Mas tem de ir. Insisto. Ordeno-lhe que vá para Baru.

 O homem encolheu os ombros. Virou-lhe as costas e meteu-se outra vez debaixo da cabina. Então Ginger Ted dirigiu-se a ela.

 — Uma das pás da hélice partiu-se. Ele acha que só consegue chegar até àquela ilha. Temos de passar lá a noite e ele substitui a hélice amanhã de manhã quando a maré estiver baixa.

 — Eu não posso passar a noite numa ilha desabitada com três homens — exclamou ela.

 — Muitas mulheres adorariam.

 — Insisto em ir para Baru. Aconteça o que acontecer, temos de lá chegar esta noite.

 — Não se enerve, minha amiga. Temos de pôr o barco em seco para substituir a hélice, e vamos ficar muito bem na ilha.

 — Como é que se atreve a falar-me dessa maneira?! O senhor é muito insolente.

 — A senhora vai ficar bem. Temos muita bóia e vamos fazer uma ceia quando chegarmos a terra. Bebe uma gotinha de arak e vai sentir-se a arder.

 — O senhor é impertinente. Se não formos para Baru, vão todos para à prisão.

 — Nós não vamos para Baru. Não podemos ir. Vamos para aquela ilha e se a senhora não quiser, pode sair e ir a nado.

 — Oh, o senhor vai pagar por isto.

 — Cale-se, sua cabra velha — disse Ginger Ted.

 Senhorita Jones arfou de raiva. Mas controlou-se. Mesmo ali, no meio do oceano, tinha dignidade suficiente para não estar a discutir com aquele miserável. A lancha, com o motor a matraquear horrivelmente, continuava a arrastar-se. Já estava escuro como breu, e ela já não conseguia ver a ilha para que se dirigiam. A Senhorita Jones, profundamente irritada, sentou-se de lábios apertados e sobrancelhas franzidas; não estava habituada a ser contrariada. Então a lua apareceu e ela pôde ver o vulto corpulento de Ginger Ted estendido no cimo do monte de sacos de copra. O brilho do cigarro era estranhamente sinistro. Via-se agora uma vaga silhueta da ilha contra o céu. Alcançaram-na e o barqueiro levou a lancha até à praia. Subitamente, a Senhorita Jones arquejou. Compreendera agora a verdade e a raiva transformou-se em medo. O coração batia-lhe violentamente. Toda ela tremia. Sentia-se terrivelmente fraca. Viu tudo. O hélice partido era uma trama ou fora de fato um acidente? Não tinha a certeza; de qualquer maneira, ela sabia que Ginger Ted ia aproveitar a oportunidade. Ginger Ted ia violá-la. Ela conhecia o seu caráter. Era doido por mulheres. Foi isso que ele praticamente fez à moça da missão, tão boa moça que era até uma excelente costureira; ele teria sido incriminado criminalmente por isso e teria sido condenado a anos de prisão, só que infelizmente a inocente criança voltara para ele várias vezes e de fato só se tinha queixado da maneira como ele a tratava quando ele a trocou por outra. Foram falar sobre isso com o Administrador, mas ele recusou tomar medidas dizendo com aqueles seus modos bruscos que mesmo que aquilo que a moça dizia fosse verdade não lhe parecia que tivesse sido uma experiência de todo desagradável. Ginger Ted era um canalha. E ela era branca. Que hipótese tinha ela de ser poupada? Nenhuma. Ela conhecia os homens. Mas tinha de se recompor. Tinha de manter a lucidez. Tinha de ter coragem. Estava determinada a vender cara a sua virtude, e se ele a matasse - bem, preferia morrer a ceder. E se morresse, descansaria nos braços de Jesus. Por momentos uma forte luz encandeou-a e ela viu as mansões do seu Pai Celestial. Eram uma mistura grandiosa e sumtuosa de uma representação de um palácio e de uma estação de caminho de ferro. Os maquinistas e Ginger Ted saltaram da lancha e com água pela cintura juntaram-se à volta da hélice partida. Ela aproveitou a sua preocupação para tirar da caixa o estojo dos instrumentos cirúrgicos. Tirou os quatro bisturis que lá estavam e escondeu-os na roupa. Se Ginger Ted lhe tocasse não hesitaria em lhe cravar um bisturi no coração.

 — Ora bem, senhora, agora era melhor sair — disse Ginger Ted. — Ficará melhor na praia do que no barco.

 Ela pensou o mesmo. Pelo menos lá teria maior liberdade de movimentos. Sem uma palavra, trepou por cima dos sacos de copra. Ele estendeu-lhe a mão.

 — Não preciso da sua ajuda — disse ela friamente.

 — Vá para o diabo — respondeu ele.

 Era um tanto difícil sair do barco sem mostrar as pernas, mas com considerável engenho ela conseguiu.

 — É muita sorte termos alguma coisa para comer. Vamos fazer uma fogueira e depois era melhor a senhora comer qualquer coisa e beber um gole de arak.

 — Não quero nada. Só quero que me deixem em paz.

 — Não fico nada preocupado se a senhora ficar com fome.

 Ela não respondeu. Caminhou ao longo da praia, de cabeça erguida. Segurava o bisturi maior na mão fechada. A lua iluminava-lhe o caminho. Procurou um lugar para se esconder. A densa floresta vinha mesmo até à praia; mas com receio da escuridão (afinal ela era apenas uma mulher) não se atreveu a embrenhar-se nela. Não sabia que animais lá se escondiam ou que serpentes. Além disso, o instinto dizia-lhe que era melhor ter aqueles três homens debaixo de olho; assim, se eles se encaminhassem na sua direção já estaria preparada. Descobriu então um pequeno buraco. Olhou à volta. Eles pareciam ocupados nos seus esforços e não a viam. Deixou-se escorregar para dentro do buraco. Um rochedo escondia-o deles, mas ela conseguia vê-los. E viu-os a ir e vir do barco transportando coisas. Viu-os a fazerem uma fogueira que os iluminou de modo sinistro, e viu-os sentados à volta a comer, e viu a garrafa de arak a passar de um para outro. Iam todos embriagar-se. E o que é que lhe ia depois acontecer a ela? De Ginger Ted talvez ela pudesse tratar, embora a sua força a atemorizasse; mas contra três ela seria impotente. Ocorreu-lhe então a idéia louca de ir ter com Ginger Ted e implorar-lhe de joelhos que a poupasse. Ele ainda devia ter uns restos de decência, e ela sempre tivera a convicção de que há algo de bom mesmo no pior dos homens. Ele devia ter tido uma mãe. Talvez tivesse uma irmã. Ah, mas como é que se podia apelar para um homem cego de desejo e bêbado de arak? Começou a sentir uma terrível fraqueza. Receava começar a chorar. E isso de nada lhe serviria. Precisava de todo o seu autodomínio. Mordeu os lábios. Observava-os como um tigre observa a sua presa; não, como um cordeiro observa três lobos famintos. Viu-os a pôr mais lenha na fogueira e viu, à luz da fogueira, a silhueta de Ginger Ted, de sarong. Provavelmente, depois de a possuir, ia passá-la aos outros. Como é que ela ia conseguir voltar para o irmão depois de lhe ter acontecido tal coisa? Claro que ele ia ser compreensivo, mas será que ia ser o mesmo para ela? Aquilo ia destroçá-lo. E talvez ele até pensasse que ela devia ter resistido mais. Para bem dele, talvez fosse melhor não lhe contar nada. Os homens não diriam nada, naturalmente. Seriam vinte anos na prisão. Mas suponhamos que ficava grávida. Senhorita Jones cerrou instintivamente os punhos cheia de horror e quase se cortou no bisturi. Claro que a sua resistência apenas os iria enfurecer ainda mais.

 — O que é que hei-de fazer? — exclamou. — O que é que eu fiz para merecer isto?

 Caiu de joelhos e começou a rezar a Deus que a salvasse. Rezou longa e gravemente. Recordou a Deus que era virgem e mencionou justamente, para o caso de isto ter escapado à memória divina, o quanto São Paulo valorizava esta excelente condição. Depois espreitou de novo pelo rochedo. Os três homens pareciam estar a fumar e a fogueira começava a extinguir-se. Devia ser a altura de os pensamentos lascivos de Ginger Ted se voltarem para a mulher que estava ali à sua mercê. Abafou um grito, porque subitamente ele levantou-se e caminhou na sua direção. Sentiu que todos os seus músculos ficavam tensos, e, embora o coração batesse furiosamente, apertou o bisturi com firmeza na mão. Mas Ginger Ted levantara-se com outra finalidade. Senhorita Jones corou e desviou o olhar. Ele voltou calmamente para junto dos outros e, sentando-se outra vez, levou a garrafa de arak à boca. A Senhorita Jones, agachada atrás do rochedo observava com olhar tenso. A conversa à volta da fogueira esmoreceu e passado pouco tempo ela adivinhou, mais do que viu, que os dois indígenas se embrulhavam nos cobertores e se prepararam para dormir. Ela entendeu. Era disto que Ginger estava à espera. Quando eles estivessem a dormir, levantava-se cautelosamente, e, sem fazer barulho, para não acordar os outros, esgueirava-se até ela. Seria que ele não estava disposto a partilhá-la com eles, ou teria ele a consciência de que o seu ato era tão ignóbil que não queria que eles soubessem? Afinal tratava-se de um homem e de uma mulher brancos. Ele não podia ter descido tão baixo ao ponto de deixar que ela fosse submetida a violências por parte de indígenas. Mas o plano dele, que para ela era tão evidente, tinha-lhe dado uma idéia: quando o visse a vir gritaria, gritaria tão alto que acordaria os dois maquinistas. Lembrou-se então de que o mais velho, embora cego de um olho, tinha até uma cara simpática. Mas Ginger Ted não se mexeu. Ela sentia-se extremamente cansada. Começou a ter medo de não ter já forças para lhe resistir. Tinha passado já por muita coisa. Por momentos fechou os olhos.

 Quando voltou a abri-los, era já dia claro. Devia ter adormecido e, despedaçada pela emoção, devia ter estado a dormir até muito depois do amanhecer. Foi um tremendo choque. Procurou erguer-se, mas havia qualquer coisa a prender-lhe as pernas. Olhou e viu que estava coberta com dois sacos de copra vazios. Alguém viera cobri-la com eles. Ginger Ted! Deu um grito. Ocorreu-lhe de súbito a terrível idéia de que ele a tivesse violado durante o sono. Não. Isso era impossível. E no entanto ele tinha-a tido à sua mercê. Indefesa. E tinha-a poupado. Corou violentamente. Pôs-se de pé, sentindo-se um pouco perra, e compôs o vestido. O bisturi tinha-lhe caído da mão e ela apanhou-o. Pegou nos dois sacos de copra e saiu do seu esconderijo. Encaminhou-se para o barco que estava já a flutuar nas águas pouco profundas da laguna.

 — Vamos lá, Senhorita Jones — disse Ginger Ted. — Já acabamos. Eu ia precisamente agora acordá-la.

 Ela não conseguiu olhá-lo, mas sentiu-se corar até à raiz dos cabelos.

 — Não quer uma banana? — perguntou ele.

 Ela pegou na banana sem uma palavra. Estava cheia de fome e comeu-a com satisfação.

 — Suba para esta rocha e assim consegue entrar sem molhar os pés.

 Apetecia-lhe meter-se pela terra dentro, de vergonha, mas fez o que ele lhe disse. Ele pegou-lhe no braço — Céus! Aquela mão era como um torno de ferro, ela não poderia de maneira nenhuma ter lutado com ele — e ajudou-a a entrar na lancha. O maquinista pôs o motor a trabalhar e deslizaram para fora da laguna. Três horas depois estavam em Baru.

 Nessa noite, depois de oficialmente libertado, Ginger Ted foi a casa do Administrador. Já não envergava o uniforme da prisão, mas sim a camisola interior esfarrapada e os calções de caqui que trazia quando foi preso. Tinha cortado o cabelo, que agora parecia uma pequena boina ruiva encaracolada. Estava mais magro. Tinha perdido aquela gordura balofa e estava com um aspecto melhor e mais jovem. O Sr. Gruyter, com um largo sorriso amigável na cara redonda, apertou-lhe a mão e disse-lhe que se sentasse. O criado trouxe duas garrafas de cerveja.

 — Folgo em saber que não te esqueceste do meu convite, Ginger — disse o Administrador.

 — Eu nunca ia esquecer. Há seis meses que estava ansioso por isto.

 — À tua, Ginger Ted.

 — À sua, Administrador.

 Esvaziaram os copos e o Administrador bateu as palmas. O criado trouxe mais duas garrafas.

 — Bom, espero que não sintas qualquer ressentimento pela sentença que eu te dei.

 — Não tenha qualquer receio. Na altura fiquei furioso, mas já passou. Não foi lá muito mau, sabe. Uma bela porção de mulheres que havia na ilha, Administrador. O senhor devia ir lá dar-lhes uma espreitada um desses dias.

 — Tu és danado, Ginger.

 — Terrível.

 — Bela cerveja, não é?

 — Ótima.

 — Vamos beber mais umas.

 A remessa de dinheiro de Ginger Ted tinha vindo todos os meses e o Administrador já tinha cinquenta libras para lhe entregar. Depois de pagos os estragos feitos na loja do chinês, ainda sobrariam mais de trinta.

 — É uma boa maquia, Ginger. Devias fazer qualquer coisa de útil com ela.

 — É o que tenciono fazer — respondeu Ginger. — Gastá-lo.

 O Administrador suspirou.

 — Ora, o dinheiro é exatamente para isso, suponho eu.

 O Administrador contou-lhe as novidades. Não tinha acontecido nada de especial durante os últimos seis meses. O tempo nas Ilhas Alas não contava muito e o resto do mundo não contava mesmo nada.

 — Há por aí alguma guerra em algum lugar? — perguntou Ginger Ted.

 — Que eu saiba, não. O Harry Jervis encontrou uma bela pérola grande. Diz que vai pedir mil notas por ela.

 — Espero que ele as consiga.

 — E o Charles McCormack casou.

 — Esse foi sempre um bocado mole.

 Subitamente o criado entrou e disse que o Sr. Jones queria saber se podia entrar. Antes de o Administrador poder responder, o Sr. Jones entrou.

 — Não vou tomar-lhe muito tempo — disse ele. — Tenho andado todo o dia à procura deste bom homem e quando ouvi dizer que ele estava aqui achei que o senhor não se importaria que eu cá viesse.

 — Como está Senhorita Jones? — perguntou o Administrador delicadamente. — Espero que aquela noite ao relento não lhe tenha feito mal.

 — Claro que está um tanto abalada. Teve febre e eu já insisti para que ela fosse para a cama, mas não me parece que seja coisa muito grave.

 Os dois homens tinham-se erguido quando o missionário entrou, e agora o missionário dirigiu-se para Ginger Ted e estendeu a mão.

 — Quero agradecer-lhe. O senhor teve um gesto grande e nobre. A minha irmã tem razão, devemos sempre procurar o lado bom dos nossos semelhantes; peço desculpa por o ter julgado mal no passado.

 Falou em tom muito solene. Ginger Ted olhava para ele com estupefação. Não conseguira impedir que o missionário lhe tomasse a mão. Continuava a apertá-la.

 — De que diabo é que o senhor está a falar?

 — O senhor teve a minha irmã à sua mercê e poupou-a. Eu pensava que o senhor era o diabo em pessoa e estou envergonhado. Ela estava indefesa. Estava em seu poder. O senhor teve piedade dela. Agradeço-lhe do fundo do coração. Jamais esqueceremos, eu e a minha irmã. Que Deus o abençoe e proteja para sempre.

 A voz tremeu-lhe um pouco e ele virou a cabeça. Soltou a mão de Ginger Ted e dirigiu-se rapidamente para a porta. Ginger Ted observava-o com o rosto sem expressão.

 — Que raio quer ele dizer? — perguntou.

 O Administrador ria. Tentava controlar-se, mas quanto mais tentava mais ria. Todo ele abanava e viam-se as pregas da sua gorda barriga a ondular sob o sarongue. Recostou-se na cadeira e virava-se de um lado para o outro. Não se ria apenas com a cara, ria-se com o corpo todo, e até os músculos das pernas rechonchudas abanavam de hilaridade. Segurava as costelas, que lhe doíam. Ginger Ted olhava para ele de ar carregado, e como não entendia onde estava a graça, começou a ficar zangado. Pegou numa das garrafas de cerveja pelo gargalo.

 — Se o senhor não parar de rir, racho-lhe a cabeça — disse ele.

 O Administrador passou a mão pela cara. Bebeu um gole de cerveja. Suspirou e gemeu das dores de rins.

 — Ele agradeceu-te por teres respeitado a virtude de Senhorita Jones — disse ele, por fim, atabalhoadamente.

 — Eu? — exclamou Ginger Ted.

 Levou algum tempo a perceber a idéia, e quando finalmente percebeu desatou numa fúria violenta. Saiu-lhe da boca uma tal torrente de obscenidades que teria feito despertar uma força naval inteira.

 — Aquela vaca — concluiu ele. — Por quem é que ele me toma?

 — Tu tens a fama de grande mulherengo, Ginger — disse o Administrador com um riso escarninho.

 — Eu não lhe tocava nem com a ponta de um mastro. Nem nunca me passou pela cabeça. É preciso ter coragem. Vou-lhe torcer aquele maldito pescoço. Olhe lá, dê-me cá o meu dinheiro, vou apanhar uma bebedeira.

 — E eu não te vou criticar por isso — disse o Administrador.

 — Aquela vaca velha — repetiu Ginger Ted. — Aquela vaca velha.

 Estava chocado e sentia-se ofendido. Aquela insinuação abalou realmente o seu sentido de decência.

 O Administrador tinha o dinheiro ali à mão, e depois de fazer Ginger Ted assinar os necessários papeis, o entregou.

 — Vai lá embebedar-te, Ginger Ted, — disse ele — mas aviso-te, se te meteres em sarilhos, da próxima são doze meses.

 — Eu não me vou meter em sarilhos — disse Ginger Ted sombriamente. Sentia-se ferido. — Isto é um insulto, — gritou ao Administrador — é o que é, um insulto danado.

 Saiu a cambalear e enquanto caminhava ia resmungando: — Porco sujo, porco sujo. Ginger Ted andou uma semana bêbado. O Sr. Jones foi falar com o Administrador outra vez.

 — Lamento saber que o pobre homem voltou para os maus caminhos. — disse ele. — Eu e minha irmã estamos muito desapontados. Acho que não foi muito sensato dar-lhe aquele dinheiro todo de uma só vez.

 — O dinheiro era dele. Eu não tinha o direito de lho recusar.

 — Direito legal, talvez não, mas certamente o direito moral.

 Contou ao Administrador a história daquela noite tremenda na ilha. Com o seu instinto feminino, Senhorita Jones compreendera que o homem, inflamado de desejo, estava determinado a aproveitar-se dela e, decidida a defender-se até ao fim, armara-se com um bisturi. Contou ao Administrador como ela rezara e chorara e como se escondera. A sua agonia era indescritível e sabia que não poderia sobreviver àquela vergonha. Virava-se para um lado e para outro e a cada momento pensava que ele vinha. E não havia ninguém que a pudesse ajudar. Por fim adormeceu; estava esgotada, a pobrezinha, tinha sofrido mais do que qualquer ser humano pode suportar, e quando acordou descobriu que ele a cobrira com sacos de copra. Tinha-a encontrado a dormir e certamente foi a sua inocência, o seu desamparo que o sensibilizaram, não teve coragem de lhe tocar; cobriu-a delicadamente com dois sacos de copra e afastou-se silenciosamente.

 — Isto mostra que bem lá no fundo ele tem algum merecimento. A minha irmã acha que nós temos a obrigação de o salvar. Temos de fazer alguma coisa por ele.

 — Bem, eu no vosso lugar não faria nada enquanto ele não gastasse todo o dinheiro — disse o Administrador — e então, se ele não estiver na cadeia, podem fazer o que quiserem.

 Mas Ginger Ted não queria ser salvo. Cerca de quinze dias depois de ser libertado estava ele sentado num banco à porta da loja de um chinês a olhar ociosamente a rua quando viu Senhorita Jones a aproximar-se. Olhou-a fixamente por instantes e o espanto apoderou-se novamente dele. Murmurou qualquer coisa, e não pode haver dúvidas de que estes seus murmúrios eram desrespeitosos. Mas reparou então que Senhorita Jones o tinha visto, e voltou muito depressa a cabeça para o outro lado; mas percebeu que ela estava a olhar para ele. Vinha a andar com vivacidade, mas abrandou sensivelmente o andamento quando se aproximou dele. Pareceu-lhe que ela ia parar para falar com ele. Levantou-se rapidamente e foi para dentro da loja. Não se aventurou a sair pelo menos durante cinco minutos. Meia hora mais tarde, veio o próprio Sr. Jones que foi direito a Ginger Ted de mão estendida.

 — Como vai, Sr. Edward? A minha irmã disse-me que o encontraria aqui.

 Ginger Ted olhou-o com ar carrancudo e não lhe apertou a mão que ele lhe estendia. Não respondeu.

 — Teríamos imenso prazer em que o senhor viesse jantar conosco no próximo domingo. A minha irmã é uma excelente cozinheira e vai preparar-lhe um jantar verdadeiramente australiano.

 — Vá para o diabo — disse Ginger Ted.

 — O senhor não está a ser muito amável — disse o missionário, mas com um ligeiro riso para mostrar que não ficara ofendido. — O senhor de vez em quando vai visitar o Administrador, por que é que não há de vir visitar-nos a nós? Sabe bem falar com brancos de vez em quando. O que lá vai lá vai. Posso assegurar-lhe que será muito bem vindo.

 — Não tenho roupa para sair — disse Ginger Ted com ar enfadado.

 — Oh, não se preocupe com isso. Venha exatamente como está.

 — Não vou.

 — Por que não? O senhor deve ter uma razão qualquer.

 Ginger Ted não tinha papas na língua. Não hesitava em dizer aquilo que todos nós gostaríamos de dizer quando recebemos convites indesejáveis.

 — Porque não quero.

 — Tenho pena. A minha irmã vai ficar muito desapontada.

 O Sr. Jones, decidido a mostrar que não se sentia minimamente ofendido, fez um cumprimento jovial com a cabeça e afastou-se. Quarenta e oito horas mais tarde chegou misteriosamente à casa onde Ginger Ted estava instalado um pacote que continha um traje de algodão, uma camisa, um par de meias, e sapatos. Ele não estava habituado a receber presentes, e na próxima vez que esteve com o Administrador perguntou-lhe se tinha sido ele que tinha mandado aquelas coisas.

 — Nem por sombras — respondeu o Administrador. — O estado do teu guarda-roupa é-me perfeitamente indiferente.

 — Então, quem diabo poderia ter sido?

 — Não faço a mínima idéia.

 Senhorita Jones tinha de falar de vez em quando com o Administrador sobre assuntos de trabalho e pouco depois disto ela veio à repartição uma manhã falar com ele. Ela era uma mulher competente e embora geralmente quisesse que ele fizesse coisas que ele não estava disposto a fazer, não o fazia perder o seu tempo. Ficou então um pouco surpreendido ao descobrir que ela tinha vindo por um motivo muito trivial. Quando ele lhe disse que não podia tomar conhecimento do assunto em questão ela não tentou, como era seu hábito, convencê-lo e aceitou a sua recusa como definitiva. Levantou-se para se ir embora e depois, como se se tratasse de uma ideia de última hora, disse:

 — Oh, Sr. Gruyter, o meu irmão está ansioso por ter esse homem a quem chamam Ginger Ted a jantar lá em casa e eu mandei-lhe um convite para depois de amanhã. Parece-me que ele é muito envergonhado e queria pedir-lhe ao senhor se podia ir com ele.

 — É muita amável da sua parte.

 — O meu irmão pensa que devíamos fazer qualquer coisa pelo pobre homem.

 — A influência de uma mulher e esse tipo de coisas — disse o Administrador com ar sério.

 — O senhor é capaz de o convencer a ir? Tenho a certeza de que ele vai se o senhor fizer questão disso, e depois de saber o caminho, vai vir mais vezes. É tão triste deixarmos que um jovem como ele se destrua completamente.

 O Administrador levantou os olhos para ela. Ela era vários centímetros mais alta do que ele. Ele achava-a muito pouco atraente. Fazia-lhe curiosamente lembrar linho molhado a secar numa corda de roupa. Os olhos piscaram-lhe, mas manteve uma expressão composta.

 — Vou fazer o possível — disse ele.

 — Que idade tem ele? - perguntou ela.

 — De acordo com o passaporte, tem trinta e um.

 — E o seu nome verdadeiro?

 — Wilson.

 — Edward Wilson — disse ela baixinho.

 — É espantoso como ele consegue ser ainda tão forte, com a vida que tem levado — murmurou o Administrador. — É forte como um touro.

 — Estes ruivos às vezes são muito poderosos — disse a Senhorita Jones, mas a falar como se estivesse a sufocar.

 — Assim é, de fato — disse o Administrador.

 Então, sem uma razão aparente, Senhorita Jones corou. Despediu-se apressadamente do Administrador e saiu da repartição.

 — Godverdomme! — disse o Administrador.

 Continuava sem saber quem tinha mandado as roupas novas a Ginger Ted.

 Encontrou-o ainda nesse dia e perguntou-lhe se ele tinha recebido alguma coisa de Senhorita Jones. Ginger Ted tirou do bolso uma bola de papel amarrotado e lhe entregou. Era o convite, que rezava assim:

 

 Caro Senhor Wilson,

 Eu e o meu irmão teríamos muito gosto que viesse jantar conosco na próxima quinta-feira às 7:30. O Administrador teve a amabilidade de nos prometer que viria. Temos alguns discos novos australianos de que tenho a certeza que o senhor vai gostar. Creio que não fui muito simpática para com o senhor da última vez que nos encontramos, mas nessa altura eu não o conhecia muito bem, e já tenho idade suficiente para saber quando cometo um erro. Espero que me perdoe e que me conceda a sua amizade.

 Atenciosamente,

 Martha Jones

 

 O Administrador reparou que ela o tratava por Sr. Wilson e se referia à sua própria promessa em ir, portanto, quando ela lhe disse que já tinha convidado Ginger Ted tinha antecipado um pouco a verdade.

 — O que é que vais fazer?

 — Não vou, se é isso que quer saber. Que coragem danada.

 — Tens de responder à carta.

 — Pois, não vou responder.

 — Olha aqui, Ginger, vestes aquela roupa nova e vais. É um favor que me fazes. Eu tenho mesmo de ir e, que raio, tu não me vais deixar desamparado. Não te vai fazer mal nenhum, só por esta vez.

 Ginger Ted olhou desconfiado para o Administrador, mas a expressão deste era séria e os modos sinceros: não podia adivinhar que lá por dentro o holandês estava perdido de riso.

 — Que diabo é que eles querem de mim?

 — Não sei. O prazer da tua companhia, suponho.

 — Eles terão lá bebidas?

 — Não, mas tu vens a minha casa às sete e bebemos um copo antes de irmos.

 — Oh, está bem — disse Ginger Ted com enfado.

 O Administrador esfregou as mãozinhas gordas de alegria. Estava a contar com uma grande dose de gozo no jantar. Mas quando as sete horas de quinta-feira chegaram, Ginger Ted estava perdido de bêbado e o Sr. Gruyter teve de ir sozinho. - disse ao missionário e à irmã a pura verdade. O Sr. Jones abanou a cabeça.

 — Acho que não vale a pena. O homem é um caso perdido.

 Senhorita Jones ficou calada por momentos e o Administrador viu duas lágrimas correrem-lhe pelo nariz fino e comprido. Ela mordeu os lábios.

 — Ninguém é um caso perdido. Toda a gente tem algo de bom dentro de si. Vou rezar por ele todas as noites. Seria muito mau duvidar do poder de Deus.

 Talvez Senhorita Jones tivesse razão nisto, mas a divina providência escolheu uma maneira curiosa de atingir os seus fins. Ginger Ted começou a beber mais do que nunca. Andava tão desordeiro que até o próprio Sr. Gruyter acabou por perder a paciência com ele. Chegou à conclusão de que não podia continuar a tolerar a presença do homem nas ilhas e decidiu mandar deportá-lo no primeiro barco que aportasse a Baru. Aconteceu então que um homem morreu em circunstâncias misteriosas depois de ter viajado para uma das ilhas e o Administrador veio a saber que tinha havido várias mortes na mesma ilha. Mandou lá o chinês que era o médico oficial do arquipélago para tratar do assunto e em breve recebeu a informação de que as mortes se deviam à cólera. Ocorreram mais duas mortes em Baru e ele teve de admitir a idéia de que se tratava de uma epidemia.

 O Administrador praguejou quanto pôde. Praguejou em holandês, praguejou em inglês e praguejou em malaio. Depois bebeu uma cerveja e fumou um charuto. E depois começou a pensar. Ele sabia que o médico chinês não servia para nada. Era um homenzinho nervoso de Java e os indígenas recusariam obedecer às suas ordens. O Administrador era um homem eficiente e sabia perfeitamente bem o que tinha de fazer, mas não podia fazer tudo sozinho. Não gostava do Sr. Jones, mas naquela altura agradeceu o fato de ele estar ali à mão e mandou-o chamar imediatamente. Veio acompanhado da irmã.

 — O senhor sabe a razão por que quero falar consigo, Sr. Jones — disse ele abruptamente.

 — Sim, já estava à espera de um recado seu. Esta a razão por que a minha irmã veio comigo. Estamos prontos a pôr todos os nossos recursos à sua disposição. Não preciso de lhe dizer que a minha irmã é tão competente como um homem.

 — Eu sei. Fico contente com a sua ajuda.

 Começaram imediatamente a discutir os passos a dar. Tinham de ser montados pavilhões hospitalares e estações de quarentena. Os habitantes das várias aldeias das ilhas tinham de ser obrigados a tomar precauções. Em muitíssimos casos as aldeias infectadas iam buscar a água ao mesmo poço das não infectadas, e em cada caso esta dificuldade tinha de ser tratada de acordo com as circunstâncias. Era necessário mandar pessoas para dar ordens e para se assegurarem que elas eram cumpridas. A negligência tinha de ser implacavelmente punida. E o pior de tudo era que os indígenas não obedeciam a outros indígenas e as ordens dadas por polícias indígenas, eles próprios pouco convencidos da sua eficácia, eram ignoradas. Era conveniente que o Sr. Jones ficasse em Baru, onde a população era mais numerosa e os seus cuidados médicos mais necessários; e devido às obrigações oficiais que o forçavam a manter-se em contato com a sede da circunscrição, o Sr. Gruyter não podia visitar todas as ilhas pessoalmente. Tinha de ser Senhorita Jones a fazê-lo; mas os indígenas de algumas das ilhas mais distantes eram selvagens e traiçoeiros; o Administrador tinha tido já alguns problemas com eles. Não gostava da idéia de a expor ao perigo.

 — Eu não tenho medo — disse ela.

 — Acredito. Mas se lhe cortarem o pescoço eu é que vou ter problemas e, além disso, temos tanta falta de gente que eu não quero correr o risco de perder a sua ajuda.

 — Então deixe o Sr. Wilson vir comigo. Ele conhece os indígenas melhor do que ninguém e sabe falar os dialetos deles.

 — O Ginger Ted? — o Administrador ficou a olhar para ela. — Ele está precisamente a recuperar de um ataque de delirium tremens.

 — Eu sei — respondeu ela.

 — A senhora sabe muita coisa, Senhorita Jones.

 Mesmo sendo o momento tão grave o Sr. Gruyter não pôde deixar de sorrir. Lançou-lhe um olhar penetrante, mas ela enfrentou-o com frieza.

 — Não há nada como a responsabilidade para trazer ao de cima o que há dentro de um homem, e acho que uma coisa como esta poderá ser a sua edificação.

 — Achas que será prudente confiares-te durante dias seguidos a um homem tão abjeto? — perguntou o missionário.

 — Confio em Deus — respondeu ela gravemente.

 — Acha que ele lhe vai servir de alguma coisa? — perguntou o Administrador. — A senhora sabe como ele é.

 — Estou convencida que sim. — E corou. — Afinal, ninguém melhor do que eu sabe como ele é capaz de se controlar.

 O Administrador mordeu o lábio.

 — Vamos lá mandar chamá-lo.

 Entregou uma mensagem ao sargento e minutos depois Ginger Ted estava perante eles. Estava com mau aspeto. Tinha evidentemente ficado muito abatido com o recente ataque e tinha os nervos em franja. Estava todo esfarrapado e com barba de uma semana. O seu aspeto não podia ser mais reles.

 — Olha, Ginger — disse o Administrador — é por causa desta questão da cólera. Temos de obrigar os indígenas a tomar precauções e precisamos da tua ajuda.

 — Por que raio logo eu?

 — Por razão nenhuma especial. Apenas filantropia.

 — Nada feito, Administrador. Eu não sou filantropo.

 — Então a questão está arrumada. É tudo. Podes ir.

 Mas quando Ginge r Ted se dirigia já para a porta, a Senhorita Jones deteve-o.

 — A idéia foi minha                       , Sr. Wilson. Veja, querem que eu vá a Labobo e Sakunchi e os indígenas lá são tão esquisitos que fiquei com medo de ir sozinha. Pensei que se o senhor também fosse eu ficaria mais segura.

 Ele olhou-a com profunda aversão.

 — A senhora pensa que eu me importo alguma coisa se lhe cortarem o pescoço?

 Senhorita Jones olhou-o e os seus olhos encheram-se de lágrimas. Começou a chorar. Ele ficou ali a olhar para ela com ar estúpido.

 — De fato não vejo por que é que o senhor se havia de importar. — Recompôs-se e limpou os olhos. — Estou a ser idiota. Eu fico muito bem. Vou sozinha.

 — É uma loucura danada uma mulher ir a Labobo.

 Ela mostrou-lhe um leve sorriso.

 — Acho que sim, mas repare, essa é a minha função e eu não posso evitá-lo. Lamento se o meu pedido o ofendeu. Esqueça. Devo confessar que não foi muito justo da minha parte pedir-lhe que corresse tal risco.

 Ginger Ted ficou calado a olhar para ela durante um bom minuto. Mudava o peso do corpo de um pé para o outro. A sua cara grosseira parecia estar a enegrecer.

 — Bem, que diabo, faça lá como quiser — disse ele por fim. — Eu vou consigo. Quando é que quer partir?

 Partiram no dia seguinte, com medicamentos e desinfetantes, na lancha do governo. O Sr. Gruyter, depois de pôr em ordem os trabalhos necessários, partiria na direção oposta. A epidemia grassou durante quatro meses. Embora tudo tivesse sido feito para a limitar, uma após outra, todas as ilhas foram afetadas. O Administrador andava ocupado de manhã à noite. Mal regressava a Baru de uma ou outra das ilhas para aqui fazer o que era necessário, logo partia de novo. Distribuía alimentos e medicamentos. Confortava as populações aterrorizadas. Supervisava tudo. Trabalhava como um cão. Nunca falou com Ginger Ted, mas recebeu do Sr. Jones a informação de que a experiência estava a resultar melhor do que aquilo que se esperava. O biltre estava a portar-se bem. Lidava bem com os indígenas; e usando de sedução, de firmeza, ou ocasionalmente dos punhos, conseguiu fazer com que eles tomassem as medidas necessárias à sua própria segurança. Senhorita Jones podia felicitar-se pelo sucesso do esquema. Mas o Administrador andava muito cansado para se divertir. Quando a epidemia ficou debelada, ele rejubilou porque de uma população de oito mil apenas seiscentos tinham morrido.

 Finalmente podia passar ao distrito um certificado de saúde.

 Uma noite, estava ele de sarongue na varanda da sua casa a ler um romance francês com a feliz sensação de que podia uma vez mais levar as coisas calmamente, quando o chefe dos criados veio dizer-lhe que Ginger Ted queria falar com ele. Levantou-se da cadeira e gritou-lhe que entrasse. Era de companhia que ele estava mesmo a precisar. Passara-lhe exatamente pela cabeça que seria muito agradável apanhar uma bebedeira nessa noite, mas embebedar-se sozinho não tem interesse nenhum, e pusera a idéia de lado. E o Céu tinha-lhe mandado Ginger Ted na hora. Meu Deus, iam ter uma noite de barulho. Passados quatro meses, tinham direito a um pouco de diversão. Ginger Ted entrou. Trazia vestido um traje branco de algodão limpo. Estava barbeado. Parecia um outro homem.

 — Então, Ginger, mais parece que estiveste a passar um mês numa estância de repouso do que a tratar de um bando de indígenas a morrer de cólera. E olhem para a tua roupa. Acabado de sair da engomadeira?

 Ginger Ted sorriu com ar envergonhado. O criado trouxe duas garrafas de cerveja e encheu os copos.

 — Serve-te Ginger — disse o Administrador pegando no copo.

 — Acho que não vou beber nada, obrigado.

 O Administrador pousou o copo e olhou para Ginger Ted espantado.

 — Então o que é que tu tens? Não estás com sede?

 — Preferia uma chávena de chá.

 — Uma chávena de quê?

 — Agora não bebo. Eu e a Martha vamo-nos casar.

 — Ginger!

 Os olhos do Administrador quase saíam das órbitas. Coçou a careca.

 — Não pode ser, tu não podes casar com a Senhorita Jones — disse ele. — Ninguém seria capaz de casar com a Senhorita Jones.

 — Bem, eu vou-me casar com ela. Foi para lhe dizer isto que eu vim falar consigo. O Owen vai-nos casar na capela, mas também queremos casar pela lei holandesa.

 — Chega de brincadeiras, Ginger. Qual é a tua idéia?

 — Foi ela que quis. Ela apaixonou-se por mim na noite que passamos naquela ilha quando a hélice se partiu. Não é má moça, depois de a conhecermos. É a última oportunidade dela, se percebe o que quero dizer, e eu queria fazer qualquer coisa para lhe ser agradável. E ela quer alguém que trate dela, disso não há que ter dúvidas.

 — Ginger, Ginger, antes de teres tempo de dizer ai, já ela está a fazer de ti um raio de um missionário.

 — E eu era capaz de nem me importar muito com isso se conseguíssemos arranjar uma missão mesmo nossa. Ela diz que eu tenho um jeitão para os indígenas. Diz que eu posso fazer mais a um indígena em cinco minutos do que o Owen num ano. Diz que nunca encontrou ninguém com um magnetismo como aquele que eu tenho. Seria uma pena desperdiçar um tal dom.

 O Administrador olhou-o em silêncio e abanou lentamente a cabeça três ou quatro vezes. Ela apanhou-o completamente.

 — Já converti dezessete — disse Ginger Ted.

 — Tu? Não sabia que acreditavas no Cristianismo.

 — Bem, eu não tenho a certeza, mas quando falei com eles e eles vieram para o redil como cordeirinhos, bem, aquilo deu-me volta à cabeça. Caramba, disse eu, se calhar afinal sempre há alguma coisa.

 — Devias tê-la violado, Ginger. Eu não teria sido muito duro contigo. Não te teria dado mais do que três anos, e três anos passam depressa.

 — Olhe aqui, Administrador, nunca diga a ninguém que isso nunca me passou pela cabeça. O senhor sabe que as mulheres são muito susceptíveis, e ela ia ficar danada como o raio se soubesse.

 — Eu já desconfiava que ela tivesse caído por ti, mas nunca pensei que as coisas chegassem a este ponto. — O Administrador andava muito agitado para cá e para lá, na varanda. — Ouve, meu caro amigo — disse ele depois de um intervalo de reflexão — nós passamos bons bocados juntos e um amigo é um amigo. Vou-te dizer o que vou fazer, empresto-te a lancha e tu podes esconder-te numa das ilhas até passar o próximo barco e eu peço-lhes que abrandem para tu embarcares. Agora só tens uma única hipótese, que é desatar a fugir.

 Ginger Ted abanou a cabeça.

 — Não adianta, Administrador, eu sei que a sua intenção é boa, mas eu vou mesmo casar com o raio da mulher, e ponto final. O senhor não conhece a alegria de levar todos aqueles pecadores impenitentes ao arrependimento, e, ó Céus, a moça sabe fazer pudim de melaço. Já não como um tão bom desde miúdo.

 O Administrador ficou muito perturbado. Aquele patife bêbado era o seu único companheiro nas ilhas e ele não queria ficar sem ele. Descobriu que até sentia uma certa afeição por ele. No dia seguinte foi falar com o missionário.

 — Que história é esta de que ouvi falar que a sua irmã ia casar com o Ginger Ted? — perguntou-lhe ele. — É a coisa mais extraordinária de que jamais ouvi falar em toda a minha vida.

 — E contudo é verdade.

 — O senhor tem de fazer alguma coisa. É uma loucura.

 — A minha irmã é maior e tem todo o direito de fazer o que bem entender.

 — Mas o senhor não está a dizer-me que concorda com isso. O senhor conhece bem o Ginger Ted. É um vadio e não há volta a dar-lhe. Já lhe disse o risco que ela vai correr? Quero dizer, levar os pecadores ao arrependimento e esse tipo de coisas está bem, mas há limites. E acha que o leopardo alguma vez muda as cores da pele?

 Então, e pela primeira vez na sua vida, o Administrador notou um certo brilho nos olhos do missionário.

 — A minha irmã é uma mulher muito determinada, Sr. Gruyter — respondeu ele. — Desde aquela noite que eles passaram na ilha ele nunca mais teve outra hipótese.

 O Administrador arfou. Estava tão surpreendido como o profeta quando o Senhor abriu a boca da burra e ela disse para Balaam: o que é que eu te fiz para tu me bateres três vezes? Talvez o Sr. Jones fosse humano afinal.

 — Allejusus! — murmurou o Administrador.

 Antes de poderem dizer mais alguma coisa, Senhorita Jones entrou de rompante na sala. Estava radiante. Parecia dez anos mais nova. Tinha as faces coradas e o nariz já quase nem era vermelho.

 — O senhor veio-me dar os parabéns, Sr. Gruyter? — exclamou ela, e os seus modos eram joviais e muito femininos. — Como vê, afinal eu tinha razão. Toda a gente tem alguma coisa de bom. O senhor não imagina como o Edward foi extraordinário durante todo este tempo terrível. É um herói. É um santo. Até eu fiquei admirada.

 — Espero que seja muito feliz, Senhorita Jones.

 — Tenho a certeza de que o vou ser. Oh, seria maldade minha duvidar disso. Porque foi o Senhor que nos juntou.

 — Acha que sim?

 — Não acho, tenho a certeza. Não vê que se não fosse a cólera nós nunca teríamos tido a oportunidade de nos conhecermos tão bem? Nunca vi a mão de Deus manifestar-se tão claramente.

 O Administrador não pôde deixar de pensar que era um esquema muito desajeitado aquele de juntar aqueles dois à custa da morte de seiscentas pessoas inocentes, mas como não era muito versado nos caminhos da onipotência não fez qualquer observação.

 — O senhor não vai acreditar onde nós vamos passar a lua de mel — disse Senhorita Jones talvez um tanto maliciosamente.

 — A Java.

 — Não, se nos emprestar a lancha vamos para aquela ilha onde tivemos de passar a noite. Tem recordações muito ternas para ambos. Foi lá que pela primeira vez pressenti que o Edward era amável e bom. É lá que eu quero que ele receba a sua recompensa.

 O Administrador respirou fundo. Saiu rapidamente porque achou que se não bebesse já uma cerveja teria um desmaio. Nunca ficara tão chocado em toda a sua vida.

 

                                                                                            Somerset Maugham

 

 

                      

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