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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Meia Noite / Dean R. Koontz
Meia Noite / Dean R. Koontz

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Meia Noite

 

 Janice Capshaw gostava de correr à noite.

Quase todas as noites entre dez e onze horas, Janice vestia seu agasalho cinza. com listras azuis fosforescentes no peito e nas costas, enfiava os cabelos sob uma faixa em volta da cabeça, amarrava seus tênis e corria dez quilômetros. Tinha 35 anos, mas podia passar por 25, e atribuía seu ar de juventude ao hábito de correr que já durava vinte anos.

No domingo à noite, 21 de setembro, ela saiu de casa às dez horas e correu quatro quarteirões na direção norte, para a Ocean Avenue, a via principal de Moonlight Cove, onde virou à esquerda e começou a descer a ladeira para a praia. As lojas estavam fechadas e escuras. Fora a claridade fraca e amarelada das lâmpadas de vapor de sódio da rua, as únicas luzes eram as de alguns apartamentos em cima das lojas, do bar Knights Bridge e da igreja católica de Nossa Senhora das Mercês, que ficava aberta 24 horas por dia. Não havia nenhum carro na rua e nenhuma outra pessoa à vista. Moonlight Gove sempre fora uma cidadezinha pacata, evitando o turismo que outras comunidades costeiras perseguiam tão avidamente. Janice gostava do ritmo lento e compassado da vida ali, embora ultimamente a cidade parecesse não apenas sonolenta, mas morta.

Enquanto descia correndo a rua principal, através de poças de luz âmbar, através de camadas de sombras noturnas lançadas pelos ciprestes e pinheiros esculpidos pelo vento, não viu nenhum movimento além do seu próprio, e do avanço sinuoso e lento da neblina fina através do ar parado. Os únicos sons eram o suave slap-slap das solas de borracha dos seus tênis de corrida na calçada e de sua respiração ritmada. Segundo todas as evidências disponíveis, ela podia ser a última pessoa na face da Terra, empenhada numa solitária maratona pós-Armagedom.

Ela não gostava de se levantar ao amanhecer para correr antes de ir para o trabalho, e no verão era mais agradável correr seus dez quilômetros quando o calor do dia havia passado, embora nem a  aversão às primeiras horas, nem o calor do dia fossem a verdadeira razão para a sua preferência noturna; ela corria no mesmo horário no inverno. Exercitava-se a essa hora porque gostava da noite.

Mesmo quando criança, ela preferia a noite ao dia, gostava de se sentar no quintal depois do pôr-do-sol, sob o céu estrelado, ouvindo as rãs e os grilos. A escuridão acalmava. Abrandava os contornos bruscos do mundo, suavizava as cores muito fortes. Com a chegada do crepúsculo, o céu parecia recuar; o universo expandia-se. A noite era maior do que o dia e, em seu domínio, a vida parecia conter mais possibilidades.

Chegou ao contorno da Ocean Avenue ao pé da colina, atravessou o estacionamento a toda velocidade e entrou na praia. Acima da névoa fina, o céu abrigava apenas algumas nuvens esparsas e a irradiação amarelo-prateada da lua cheia penetrava o nevoeiro, fornecendo iluminação suficiente para que visse para onde estava indo. Em algumas noites, a cerração era densa demais e o céu muito encoberto para correr na praia. Mas agora a espuma branca das ondas da arrebentação encapelava-se do mar negro em espectrais fileiras fosforescentes e a ampla faixa de areia em forma de meia-lua reluzia palidamente entre o vaivém da maré e as colinas costeiras, e a própria névoa estava levemente afogueada pelos reflexos do luar de outono.

Ao atravessar a praia para a faixa de areia mais firme e molhada da beira d'água e virar para o sul, pretendendo correr um quilômetro e meio até a ponta da enseada, Janice sentiu-se maravilhosamente viva.

Richard — seu falecido marido que morrera de câncer há três anos — dissera que seus ritmos biológicos eram tão concentrados no período depois da meia-noite que ela era mais do que uma pessoa noturna. "Você adoraria ser uma vampira, viver entre o pôr-do-sol e a aurora", dissera ele, e Janice respondera: "Quero sugar o seu sangue." Meu Deus, como o amara. No começo, receara que a vida de mulher de pastor luterano fosse maçante, mas nunca o foi, nem por um instante. Três anos depois da morte dele, ela ainda sentia sua falta todos os dias — e mais ainda à noite. Ele fora... De repente, quando passava por um par de ciprestes torcidos de 12 metros de altura que haviam crescido no meio da praia, a meio caminho entre as colinas e a beira d'água, Janice teve certeza de que não estava sozinha na noite e na neblina. Não viu nenhum movimento e não percebeu nenhum ruído além de seus próprios passos, a respiração ruidosa e os baques surdos da pulsação cardíaca; só o instinto lhe dizia que tinha companhia.

A princípio, não ficou assustada, pois julgou que outro corredor estivesse compartilhando a praia. Alguns fanáticos pela forma física do local às vezes corriam à noite, não por escolha, como era o caso dela, mas por necessidade. Duas ou três vezes por mês, ela encontrava-os ao longo do percurso. Mas quando parou, virou-se e olhou para trás, viu apenas uma extensão deserta de areia banhada de luar, uma faixa curva de espuma luminosa e as formas turvas, mas familiares, das formações rochosas e das árvores dispersas que se projetavam aqui e ali ao longo da costa. O único som era o surdo rugido das ondas quebrando na praia.

Imaginando que seu instinto não era confiável e que estava sozinha, dirigiu-se para o sul, ao longo da praia, recuperando rapidamente o ritmo. Percorreu apenas cinqüenta metros, entretanto, antes de ver movimento pelo canto dos olhos, a cerca de nove metros a sua esquerda: um vulto rápido, encoberto pela noite e pela névoa, saindo de detrás de um cipreste cravado numa pequena duna para uma rocha esculpida pelo tempo, onde desapareceu de vista.

Janice parou bruscamente e, estreitando os olhos em direção à rocha, imaginou o que teria visto. Parecera maior do que um cachorro, talvez do tamanho de um homem, mas, tendo-o visto apenas de soslaio, não apreendera nenhum detalhe. A formação rochosa de seis metros de comprimento por um mínimo de um metro e meio de altura em determinados pontos e até três metros em outros —fora modelada pelo vento e pela chuva até se parecer a um monte de cera semiderretida, mais do que suficientemente larga para ocultar o que quer que tenha visto.

— Há alguém aí? — perguntou.

Não esperava resposta e não obteve nenhuma.

Estava apreensiva, mas não com medo. Se tivesse visto algo mais do que uma ilusão de ótica de neblina e luar, certamente teria sido um animal — e não um cachorro, porque um cachorro teria vindo em sua direção e não se comportaria de forma tão furtiva. Como não havia predadores naturais ao longo da costa que devesse temer, estava mais curiosa do que assustada.

Quedando-se imóvel, coberta por uma fina camada de suor, começou a sentir a friagem do ar. Para manter a temperatura do corpo alta, começou a correr sem sair do lugar, observando as rochas, esperando ver o animal irromper daquele esconderijo e partir a toda velocidade para o norte ou para o sul ao longo da praia.

Algumas pessoas da região criavam cavalos e os Fosters até mantinham um serviço de criação e guarda de cavalos perto do mar a cerca de quatro quilômetros dali, do outro lado do flanco norte da enseada. Talvez um dos animais sob sua guarda tivesse fugido. O que vislumbrara pelo canto do olho não era tão grande quanto um cavalo, embora pudesse ter sido um pônei. Por outro lado, ela não teria ouvido o barulho dos cascos de um pônei mesmo na areia macia? Claro, se fosse um dos cavalos dos Fosters — ou de outra pessoa —, ela devia tentar recuperá-lo ou pelo menos avisá-los onde ele poderia ser encontrado.

Finalmente, quando nada se moveu, ela correu até as rochas e as rodeou. Contra a base da formação e nas fendas na pedra viam-se algumas sombras aveludadas, mas praticamente tudo o mais era revelado pelo clarão turvo, bruxuleante, da lua e não havia nenhum animal escondido ali.

Nunca pensou seriamente na possibilidade de ter visto algo que não um outro corredor ou um animal, de que estivesse correndo sério perigo. Exceto um ou outro ato de vandalismo ou roubo — que sempre era obra de um punhado de adolescentes rebeldes — e acidentes de trânsito, a polícia local tinha pouco com que se ocupar. Crimes contra a pessoa — estupro, assalto, assassinato — eram raros num balneário tão pequeno e unido como Moonlight Cove; era quase como se, naquele recôncavo da costa, vivessem numa outra época, mais agradável do que a vivida no resto da Califórnia.

Circundando a rocha e voltando para a areia mais firme perto da linha agitada da água, Janice concluiu que se assustara com o luar e a neblina, dois hábeis embusteiros. O movimento fora imaginário; estava sozinha na praia.

Notou que a neblina cerrava-se depressa, mas continuou ao longo da curva da praia em direção à ponta sul da enseada. Tinha certeza de que chegaria lá e conseguiria voltar para a base da Ocean Avenue antes que a visibilidade declinasse muito drasticamente.

Uma brisa ergueu-se do mar e agitou a névoa que se dirigia para a terra firme, parecendo solidificá-la de um vapor diáfano numa pasta branca, como se fosse leite sendo transformado em manteiga. Quando Janice alcançou a ponta sul da reduzida faixa de areia, a brisa intensificara-se e a arrebentação também se mostrava mais agitada, lançando camadas de borrifos à medida que cada onda batia na pilha de pedras do quebra-mar artificial que fora acrescentado à ponta natural da enseada.

Alguém estava em pé naquele muro de blocos de pedra, olhando para baixo em sua direção. Janice ergueu os olhos no instante em que um manto de névoa se deslocou, revelando a silhueta do vulto recortada contra o luar.

O medo apoderou-se dela.

Embora o estranho estivesse diretamente a sua frente, ela não conseguia ver o rosto dele na escuridão. Parecia alto, com bem mais de l,80m, embora isso pudesse ser uma ilusão de perspectiva.

Fora os seus contornos, apenas os olhos eram visíveis e foram eles que provocaram medo nela. Eram de um âmbar suavemente luminoso como os olhos de um animal revelados pelos faróis de um carro.

Por um instante, espreitando-o, ficou paralisada pelo seu olhar. Iluminado por trás pela lua, assomando a sua frente, alto e imóvel, sobre trincheiras de pedras, com a pulverização das ondas explodindo a sua direita, parecia-se a um ídolo de pedra esculpida com brilhantes olhos de pedras preciosas, erguido por algum culto ao demônio numa longínqua época de trevas. Janice queria voltar-se e correr, mas não conseguia se mover, estava pregada na areia, paralisada pelo terror que até então sentira apenas em pesadelos.

Imaginou se estaria acordada. Talvez a corrida altas horas da noite fizesse parte de um pesadelo e talvez ela estivesse na cama, a salvo sob as cobertas quentes.

Então, o homem emitiu um rosnado baixo e estranho, em parte um rugido de raiva, mas também um silvo, e em parte um grito , ardente e ansioso de angústia, mas também frio, frio.

E ele se moveu.

Deixou-se cair de quatro e começou a descer o elevado quebra-mar, não como um homem comum desceria aquele amontoado de pedras, mas com agilidade e graça felinas. Em segundos a alcançaria.

Janice rompeu sua paralisia, virou-se sobre si mesma e começou a correr em direção à entrada da praia — a um quilômetro e meio de distância. Casas com janelas iluminadas erguiam-se acima do íngreme barranco que dava para a enseada e algumas possuíam degraus que levavam à praia, mas ela não tinha certeza se os encontraria na escuridão. Não desperdiçou energia em um grito, pois duvidava que alguém pudesse ouvi-la. Além do mais, se gritar diminuísse sua velocidade, ainda que ligeiramente, poderia ser alcançada e silenciada antes que alguém da cidade pudesse atender aos seus gritos.

Seu hábito de vinte anos de correr nunca fora mais importante do que agora; a questão não era mais o bom condicionamento físico mas, pressentia, sua própria sobrevivência. Apertou os braços junto aos flancos, abaixou a cabeça e correu a toda velocidade, buscando mais rapidez do que resistência, porque sentia que precisava apenas chegar ao primeiro quarteirão da Ocean Avenue para estar a salvo. Não acreditava que o homem — ou o que quer que fosse — continuasse a persegui-la pela rua habitada e iluminada.

Nuvens altas e estriadas cruzavam uma parte da face da lua. O luar turvava-se e brilhava, turvava-se e brilhava, num ritmo irregular, pulsando através da cerração que rapidamente se adensava de tal forma a criar um exército de fantasmas que a assustava e parecia acompanhá-la por todos os lados. A luz estranha e palpitante contribuía para a impressão de sonho da perseguição e ela estava em parte convencida de que se achava na cama, dormindo profundamente, mas assim mesmo não parou nem olhou por cima do ombro porque, sonho ou não, o homem com os olhos cor de âmbar ainda estava atrás dela.

Cobrira metade da distância entre a ponta da enseada e a Ocean, Avenue, sua confiança crescendo a cada passo, quando percebeu que dois dos fantasmas no nevoeiro não eram realmente fantasmas. Um estava a seis metros a sua direita e corria ereto como um homem; o outro estava à sua esquerda, a menos de cinco metros de distância, chapinhando na espuma da beira d'água, saltando nas quatro patas, do tamanho de um homem, mas certamente não um homem, pois nenhum homem poderia ser tão veloz e ágil na postura de um cão. Tinha apenas uma impressão geral de suas formas e de seus tamanhos e não podia ver seus rostos ou nenhum outro detalhe dos dois, além de seus estranhos olhos brilhantes.

De algum modo sabia que nenhum desses dois perseguidores era o homem que vira no quebra-mar. Ele estava atrás dela, correndo ereto ou nas quatro patas. Ela estava quase cercada.

Janice não tentou imaginar quem ou o que eles podiam ser. A análise desta estranha experiência teria que esperar até mais tarde; agora ela aceitava a existência do impossível, pois, como a viúva de um pastor e uma mulher profundamente espiritual, possuía a flexibilidade para se curvar diante do desconhecido e do sobrenatural quando confrontada com eles.

Impulsionada pelo medo que inicialmente a paralisara, aumentou a velocidade. Mas seus perseguidores fizeram o mesmo.

Ela ouviu um gemido peculiar e só aos poucos compreendeu que estava ouvindo sua própria voz angustiada.

Evidentemente excitadas pelo seu terror, as figuras espectrais a sua volta começaram a entoar um lamento. Suas vozes erguiam-se e diminuíam, flutuando entre uma lamúria pungente e prolongada e um ronco gutural. Pior que tudo, interrompendo os gritos ululantes, havia torrentes de palavras também, dissonantes e urgentes:

—        Peguem a vagabunda, peguem a vagabunda, peguem a vagabunda!

Em nome de Deus, o que seria aquilo? Não eram homens, certamente, entretanto podiam ficar eretos como os homens e falar como os homens, portanto o que mais podiam ser senão homens?

Janice sentiu o coração inflando no peito, batendo com força.

—        Peguem a vagabunda...

  As misteriosas figuras que a ladeavam começaram a se acercar e ela tentou imprimir mais velocidade para alcançar a dianteira, mas não conseguia se livrar de seus perseguidores. Continuavam a encurtar a distância. Podia vê-los pelo canto dos olhos, mas não ousava olhá-los porque tinha medo que a visão deles fosse tão chocante que poderia ficar paralisada outra vez, e imobilizada de horror seria derrubada.

 Foi derrubada de qualquer modo. Alguma coisa pulou em cima dela por trás. Ela caiu, um grande peso prendendo-a, e as três criaturas avançaram por cima dela, tocando-a, puxando e arrancando suas roupas.

Nuvens encobriam a maior parte da lua, e sombras desabavam sobre a praia como se fossem pedaços de um céu de pano negro.

O rosto de Janice fora pressionado com força contra a areia molhada, mas sua cabeça estava virada de lado, de modo que sua boca estava livre e ela gritou, embora não se parecesse muito a um grito, pois estava sem fôlego. Debateu-se, esperneou, agitou as mãos, tentando desesperadamente atingi-los, mas golpeando apenas o ar e a areia.

Não podia ver nada, pois a lua se encobrira completamente.

Ouviu o ruído do tecido de suas roupas rasgando-se. O homem sobre ela arrancou seu casaco Nike, rasgou-o em pedaços, arrancando sua pele no processo. Sentiu o toque quente de sua mão, que parecia áspera, mas humana.

Um pouco livre do peso do atacante, arrastou-se para a frente, tentando escapar, mas eles se precipitaram sobre ela e a esmagaram contra a areia. Desta vez estava na linha da arrebentação, o rosto na água.

Alternadamente uivando, arquejando como cachorros, sibilando e rosnando, seus agressores, fora de si, deixavam escapar repentes de palavras, enquanto a atacavam:

—        peguem-na, peguem-na, peguem-na...

—        quero, quero, quero isso, quero isso...

—        agora, agora, rápido, agora, rápido, rápido...

Puxavam as calças do seu agasalho, tentando despi-la, mas ela não tinha certeza se queriam estuprá-la ou devorá-la; talvez nem uma coisa nem outra; o que queriam, na verdade, estava além de sua compreensão. Sabia apenas que estavam dominados por uma necessidade tremendamente poderosa, pois o ar gelado estava tão denso da gana deles quanto de nevoeiro e escuridão.

Um deles empurrou seu rosto mais fundo na areia molhada e a água agora encobria todo o seu corpo, com apenas alguns centímetros de profundidade, mas o suficiente para afogá-la porque não a deixavam respirar. Sabia que ia morrer, estava presa e impotente, ia morrer, e tudo porque gostava de correr à noite.

 

No dia 13 de outubro, segunda-feira, 22 dias após a morte de Janice Capshaw, Sam Booker dirigiu seu carro alugado do Aeroporto Internacional de San Francisco até Moonlight Cove. Durante o trajeto, brincou de um jogo sinistro, embora sombriamente divertido, consigo mesmo, fazendo uma relação mental de motivos para continuar vivendo. Embora estivesse na estrada há mais de uma hora e meia, podia enumerar apenas quatro coisas: cerveja Guinness Stout, comida mexicana realmente boa, Goldie Hawn e o medo da morte. Aquela cerveja irlandesa espessa, escura, nunca deixou de agradá-lo e de pôr um breve termo às tristezas do mundo. Restaurantes que servissem boa comida mexicana eram mais difíceis de serem encontrados do que a Guinness; seu consolo era, portanto, mais difícil de ser obtido. Sam há muito estava apaixonado por Goldie Hawn — ou pela imagem que ela projetava na tela — porque ela era linda e graciosa, simples e inteligente, além de parecer achar a vida muito divertida. Suas chances de conhecer Goldie Hawn pessoalmente eram cerca de um milhão de vezes piores do que as de encontrar um esplêndido restaurante mexicano numa cidade da costa norte da Califórnia como Moonlight Cove, de modo que ficou contente por ela não ser a única razão que tinha para continuar vivendo. Ao se aproximar de seu destino, altos pinheiros e ciprestes surgiram ladeando a rodovia 1, formando um túnel cinza-esverdeado, lançando longas sombras na luz do final de tarde. O dia estava sem nuvens e, no entanto, estranhamente ameaçador: o céu era de um azul pálido, triste apesar de sua cristalina limpidez, ao contrário do azul tropical a que estava acostumado em Los Angeles. Embora a temperatura estivesse por volta de dez graus, uma luz do sol opressiva, como a claridade refletida de um campo de gelo, parecia congelar as cores da paisagem e embotá-las com uma névoa semelhante a uma geada.

Medo da morte. Esta era a melhor razão em sua lista. Embora tivesse apenas 42 anos, e 1,78m, 77 quilos e gozando de boa saúde, Sam Booker por seis vezes escapara da morte por um fio, espreitara as águas profundas e não achara o mergulho convidativo.

  Uma sinalização de estrada surgiu do lado direito da rodovia:

OCEAN AVENUE, MOONLIGHT COVE, 3KM.

Sam não temia a dor da morte, pois isto passaria num átimo de segundo. Nem temia deixar sua vida inacabada; há vários anos não nutria nenhum objetivo, esperança ou sonho, de modo que não havia nada a terminar, nenhum propósito ou sentido. Mas temia o que viria depois da morte.

Há cinco anos, mais morto do que vivo numa mesa de operações, tivera uma experiência próxima à morte. Enquanto os cirurgiões esforçavam-se para salvá-lo, ele se ergueu do seu corpo e, do teto, olhou para baixo, para seu corpo vazio e a equipe médica ao redor dele. Em seguida, viu-se correndo por um túnel, em direção a uma luz ofuscante, em direção ao Outro Lado: todo o chavão de proximidade com a morte que era o sustentáculo dos tablóides sensacionalistas. No penúltimo instante, os hábeis médicos o trouxeram de volta ao mundo dos vivos, mas não antes que tivesse podido vislumbrar o que havia além da entrada do túnel. O que vira o apavorara. A vida, embora quase sempre cruel, era preferível a enfrentar o que ele agora suspeitava que havia além dela.

Chegou à saída para a Ocean. Ao fim da rampa, como a Ocean Avenue virava para oeste, sob a rodovia Pacific Coast, uma outra placa indicava MOONLIGHT COVE SOOM.

Umas poucas casas aninhavam-se na escuridão púrpura entre as árvores nos dois lados da estrada asfaltada de duas pistas; as janelas brilhavam com uma suave luz amarela mesmo uma hora antes do cair da noite. Algumas eram de arquitetura bavária, com metade das paredes em madeira e grandes abas de telhado, que alguns construtores, nas décadas de 1940 e 1950, haviam erroneamente acreditado se harmonizar com a costa norte da Califórnia. Outras eram bangalôs estilo Monterey com as paredes cobertas de ripas brancas ou placas de ardósia, telhados de tabuinhas de cedro e elaborados — quando não rococós de contos de fadas — detalhes arquitetônicos. Como Moonlight Cove desfrutara a maior parte do seu crescimento nos últimos dez anos, um grande número de casas eram estruturas bem apresentadas, modernas, de muitas janelas, que pareciam navios arremessados sobre uma onda imensuravelmente alta e agora encalhados naquelas encostas acima do mar.

Quando Sam seguiu a Ocean Avenue entrando no distrito comercial de seis quarteirões de comprimento, uma sensação peculiar de algo errado se apoderou dele. Lojas, restaurantes, bares, um mercado, duas igrejas, a biblioteca do condado, um cinema e outros estabelecimentos comuns ladeavam a rua principal, que descia em direção ao oceano, mas aos olhos de Sam havia uma qualidade estranha, indefinível, mas intensa, a respeito da comunidade que lhe provocou um calafrio.

Não conseguia identificar as razões para sua imediata reação negativa ao lugar, embora talvez estivesse relacionada com o opressivo jogo de luz e sombra. Naquele fim de dia de outono, sob a luz melancólica do sol, a igreja católica de pedras cinzentas parecia um edifício de aço de outro planeta, erguido por nenhum objetivo humano. Uma loja de bebidas de estuque branco reluzia como se fosse feita de ossos branqueados pelo tempo. Muitas vitrinas estavam opacas pelos reflexos branco-gelo do sol em sua busca do horizonte, como se pintadas para ocultar as atividades dos que trabalhavam em seu interior. As sombras lançadas pelos edifícios, pinheiros e ciprestes eram chapadas, pontiagudas, de contornos nítidos.

Sam freou em um sinal no terceiro cruzamento, no meio do distrito comercial. Sem nenhum tráfego atrás, parou para examinar as pessoas nas calçadas. Não havia muitas à vista, oito ou dez, e elas também lhe deram a impressão de algo errado, embora seus motivos para pensar mal delas fossem menos definíveis do que aqueles que formaram sua impressão da própria cidade. Caminhavam enérgica e objetivamente, as cabeças erguidas, com um estranho ar de urgência que não parecia apropriado a uma indolente comunidade à beira-mar de apenas três mil almas.

Suspirou e continuou a descer a Ocean Avenue, dizendo a si mesmo que sua imaginação estava desenfreada. Moonlight Cove e as pessoas que a habitavam não pareceriam nem um pouco extraordinárias se ele estivesse de passagem pela cidade, estando numa longa viagem e tendo saído da rodovia costeira apenas para jantar num restaurante local. Ao invés disso, chegara com o conhecimento de que havia algo de podre ali, de modo que, claro, via sinais de agouro num cenário perfeitamente inocente.

Pelo menos foi o que disse a si mesmo. Mas não acreditava nisso.

Viera a Moonlight Cove porque pessoas haviam morrido ali, porque as explicações oficiais de suas mortes eram suspeitas e ele tinha o pressentimento de que a verdade, uma vez descoberta, seria extraordinariamente perturbadora. Ao longo dos anos, aprendera a confiar em sua intuição; esta confiança já salvara sua vida.

Estacionou o Ford alugado defronte da loja de presentes.

Para oeste, no extremo longínquo do mar cinza-azulado, o sol anêmico declinava no céu que lentamente se transformava num vermelho barrento. Sinuosos caracóis de neblina começavam a se erguer do mar encapelado.

 

  Na despensa da cozinha, sentada no chão com as costas apoiadas contra uma prateleira de enlatados, Chrissie Foster consultou o relógio. Na luz sombria da lâmpada solitária e nua no soquete no teto, ela viu que estava trancada naquele quartinho minúsculo e sem janelas há quase nove horas. Ganhara o relógio de pulso no aniversário de onze anos, mais de quatro meses atrás, e ficara exultante com ele porque não era um relógio de criança com personagens de desenho animado no mostrador. Era um relógio delicado, feminino, folheado a ouro, com números romanos ao invés de arábicos, um verdadeiro Timex como o que sua mãe usava. Examinando-o, Chrissie foi tomada de tristeza. O relógio representava uma época de felicidade e união familiar que se perdera para sempre.

Além de se sentir triste, sozinha e um pouco apreensiva pelas horas de cativeiro, estava com medo. Claro, não estava tão apavorada quanto naquela manhã, quando seu pai a carregara pela casa e a atirara na despensa. Depois, esperneando e gritando, ficara aterrorizada por causa do que havia visto. Por causa do que seus pais se tornaram. Mas aquele horror extremo não podia ser mantido; aos poucos, ele arrefeceu para uma leve febre de medo que a fazia se sentir afogueada e com calafrios ao mesmo tempo, nauseada, com dor de cabeça, quase como se estivesse pegando uma forte gripe.

Imaginou o que iriam fazer com ela quando a deixassem sair da despensa. Bem, não, não se preocupava com o que eles iriam fazer, pois tinha absoluta certeza que já sabia a resposta: iam transformá-la num deles. O que se perguntava, na verdade, era como a transformação se daria, e no que, exatamente, ela se transformaria. Sabia que sua mãe e seu pai já não eram pessoas comuns, que eram uma outra coisa, mas não tinha palavras para descrever o que eles haviam se tornado.

Seu medo aumentou pelo fato de que não encontrava palavras para explicar a si mesma o que estava acontecendo em sua própria casa, pois sempre amara as palavras e acreditava em sua força. Gostava de ler praticamente tudo: poesia, contos, romances, os jornais diários, revistas, as embalagens das caixas de cereais se não houvesse mais nada à mão. Estava na sexta série na escola, mas sua professora, a sra. Tokawa, disse que ela lia como os alunos do ginásio. Quando não estava lendo, em geral estava escrevendo histórias que inventava. No último ano, resolvera que, quando crescesse, iria escrever romances como os de Paul Zindel ou do sublimemente tolo Daniel Pinkwater ou, melhor ainda, os de André Norton.

Mas agora as palavras a traíam; sua vida ia ser muito diferente do que imaginara. Estava assustada tanto pela perda do futuro confortável, imerso em livros, que antevira, quanto pelas mudanças que haviam ocorrido com seus pais. A oito meses do seu 12º. aniversário, Chrissie tornara-se agudamente cônscia da incerteza da vida, um conhecimento sombrio para o qual não estava bem preparada.

Não que já tivesse desistido. Pretendia lutar. Não ia deixar que a transformassem sem resistência. Pouco depois de ter sido trancada na despensa, tão logo suas lágrimas secaram, examinara o conteúdo das prateleiras, à procura de uma arma. A despensa continha basicamente alimentos enlatados, engarrafados ou empacotados, mas também havia roupa lavada, material de primeiros socorros e produtos e ferramentas para pequenos consertos. Encontrara o produto ideal: uma pequena lata aerossol de WD-40, um lubrificante à base de óleo. Tinha um terço do tamanho de uma lata comum, sendo fácil de esconder. Se pudesse surpreendê-los, borrifar o líquido em seus olhos e cegá-los temporariamente, poderia escapar para a liberdade.

Como se lesse a manchete de um jornal, disse:

—        Menina Engenhosa Salva-se com Lubrificante Doméstico Comum.

Segurou a lata de WD-40 com ambas as mãos, consolando-se com isso.

De vez em quando, uma lembrança vivida e inquietante acudia a sua mente: o rosto de seu pai como o vira quando ele a atirara dentro da despensa — vermelho e inchado de raiva, os olhos com olheiras fundas, as narinas dilatadas, os lábios afastados dos dentes num esgar animal, as feições contorcidas de cólera.

—        Virei cuidar de você — dissera, espumando ao falar. — Eu voltarei.

Bateu a porta e trancou-a com uma cadeira da cozinha de espaldar reto que ele enfiou sob a maçaneta. Mais tarde, quando a casa ficou em silêncio e seus pais pareciam ter saído, Chrissie forçou a porta, empurrando-a com todas as suas forças, mas a cadeira inclinada constituía uma barricada irremovível.

Virei cuidar de você. Eu voltarei.

Seu rosto distorcido e os olhos congestionados fizeram-na pensar na descrição de Robert Louis Stevenson do assassino Hyde na história do Dr. Jekyll, que lera há alguns meses. Havia loucura em seu pai; não era mais o mesmo homem de antes.

Mais perturbadora era a lembrança do que vira no corredor de cima quando voltara para casa depois de ter perdido o ônibus da escola e surpreendera seus pais. Não. Eles já não eram seus pais. Eram alguma outra coisa.

Estremeceu.

Agarrou a lata de WD-40.

De repente, pela primeira vez em muitas horas, ouviu barulho na cozinha. A porta dos fundos da casa se abriu. Passos. Pelo menos duas, talvez três ou quatro pessoas.

—        Ela está ali dentro — disse seu pai.

O coração de Chrissie descompassou, depois encontrou um ritmo novo e mais acelerado.

—        Isto não vai ser rápido — disse um outro homem. Chrissie não reconheceu a voz cavernosa e ligeiramente dissonante. — Sabe, com crianças é mais complicado. Shaddack nem tem certeza de que já estejamos preparados para crianças. É arriscado.

—        Ela tem que ser convertida, Tucker.

Essa era a mãe de Chrissie, Sharon, embora não soasse como ela. Era sua voz, sem dúvida, mas sem sua suavidade habitual, sem a qualidade musical, natural, que fizera dela uma voz perfeita para ler contos de fada.

—        Claro, sim, ela tem que ser convertida — disse o estranho, cujo nome evidentemente era Tucker. — Eu sei disso. Shaddack também o sabe. Ele me mandou aqui, não? Só estou dizendo que pode levar mais tempo. Precisamos de um lugar onde possamos mantê-la presa e observá-la durante a conversão.

—        Aqui mesmo. No seu quarto lá em cima.

Conversão?

Tremendo, Chrissie levantou-se e ficou parada de frente para a porta.

Com um som arrastado e um estalido, a cadeira inclinada foi retirada de debaixo da maçaneta.

Ela segurou a lata na mão direita, junto ao corpo e um pouco para trás, com o dedo indicador posicionado no acionador.

A porta se abriu e seu pai olhou para ela.

Alex Foster. Chrissie tentou pensar nele como Alex Foster, não como seu pai, apenas como Alex Foster, mas era difícil negar que de algum modo ele ainda era seu pai. Além do mais, "Alex Foster" não era mais apropriado do que "pai", pois ele era alguém inteiramente novo.

Seu rosto já não estava contorcido de raiva. Parecia-se mais com ele mesmo: cabelos cheios e louros; um rosto largo e agradável com feições arrojadas; algumas sardas nas maçãs do rosto e no nariz. Entretanto, podia perceber uma terrível diferença em seus olhos. Pareciam cheios de uma terrível urgência, uma tensão nervosa. Faminto. Sim, era isso: seu pai parecia faminto... morto de fome, desesperado de fome, faminto... mas por alguma outra coisa que não comida. Não compreendia a fome dele, mas pressentia-a, uma feroz necessidade que engendrava uma constante tensão em seus músculos, uma necessidade de tamanha força, tão intensa, que parecia se desprender dele em ondas como o vapor da água fervente. Ele disse:

—        Venha aqui, Christine.

Chrissie deixou os ombros arriarem, piscou como se contivesse as lágrimas, exagerou nos tremores que a dominavam e procurou parecer frágil, assustada e derrotada. Relutantemente, adiantou-se devagar.

—        Venha, venha — disse ele impacientemente, fazendo-lhe sinal para que saísse da despensa.

Chrissie atravessou o umbral da porta e viu sua mãe, que estava ao lado e um pouco atrás de Alex. Sharon era bonita — cabelos ruivos, olhos verdes —, mas já não havia nenhuma suavidade ou ar maternal em sua aparência. Tinha o olhar duro, diferente, e cheio daquela mesma energia nervosa mal contida que tomara conta de seu marido.

Junto à mesa da cozinha, estava um estranho de calça jeans e camisa de caça quadriculada. Era evidentemente o Tucker com quem sua mãe falara: alto, magro, anguloso e de contornos nítidos. Os cabelos, cortados bem curtos, eram espetados. Os olhos negros alojavam-se sob uma fronte ossuda e escura; o nariz fortemente aqui-lino parecia uma lasca de pedra fincada no centro do seu rosto; a boca era uma fenda fina e os maxilares tão proeminentes quanto os de um predador que abatia animais pequenos e devorava metade deles com uma única mordida. Segurava uma maleta de couro preta de médico.

Seu pai estendeu os braços para segurar Chrissie conforme ela saía da despensa, e a garota agitou a lata de WD-40, atingindo-o nos olhos de uma distância de menos de meio metro. Enquanto seu pai uivava de dor e surpresa, Chrissie virou-se e atingiu sua mãe também no rosto. Meio cegos, tatearam em seu encalço, mas ela escapuliu deles e atravessou a cozinha como uma flecha.

Tucker ficou surpreso, mas conseguiu agarrá-la pelo braço.

Ela virou-se e chutou-o entre as pernas.

Ele não a soltou, mas a força fugiu de suas grandes mãos. Ela desvencilhou-se com um safanão e saiu correndo para o corredor.

 

Do leste, o crepúsculo insinuava-se em Moonlight Cove, como se fosse uma cerração não de água, mas de uma enfumaçada luz púrpura. Quando Sam Booker desceu do carro, o ar estava frio; ficou satisfeito de estar usando uma suéter de lã sob o casaco esporte de veludo. Quando uma fotocélula ativou todas as lâmpadas da rua ao mesmo tempo, ele começou a caminhar pela Ocean Avenue, olhando as vitrinas, avaliando a cidade.

Sabia que Moonlight Cove era uma cidade próspera, que o desemprego não existia — graças à New Wave Microtechnology, que se estabelecera ali há dez anos —, e entretanto ele viu sinais de uma economia em dificuldade. A loja de presentes finos Taylor e a joalheria Saenger desocuparam suas lojas; através das vidraças empoeiradas das vitrinas, viu prateleiras e balcões vazios e sombras intensas e imóveis. A New Attitudes, uma loja de roupas da moda, promovia uma liquidação final antes de encerrar suas atividades e, a julgar pela escassez de fregueses, as mercadorias estavam saindo muito devagar, mesmo com cinqüenta a setenta por cento de desconto. Depois de caminhar dois quarteirões para oeste, para o lado da praia, atravessar a rua e voltar três quarteirões pela outra calçada da Ocean Avenue, até o bar Knighfs Bridge, o crepúsculo declinara rapidamente. Uma neblina nacarada vinha do mar e o próprio ar parecia iridescente, tremeluzindo delicadamente; uma névoa cor de ameixa cobria tudo, exceto onde as luzes da rua lançavam fachos de luz amarela amortecida pela cerração e, acima de tudo isso, uma densa escuridão começava a descer.

Havia apenas um carro em movimento à vista, a três quarteirões de distância, e no momento Sam era o único pedestre. O ermo do lugar aliou-se à estranha luz do dia que findava para lhe dar a sensação de que aquela era uma cidade fantasma, habitada apenas pelos mortos. Quando o nevoeiro cada vez mais espesso isolou a colina do Pacífico, contribuiu para a ilusão de que todas as lojas nas cercanias estavam vazias, que não ofereciam nenhum artigo além de teias de aranha, silêncio e poeira.

Você é um miserável filho da mãe, disse a si mesmo. Exageradamente sinistro.

A experiência tornara-o um pessimista. O curso traumático de sua vida até o presente excluía otimismos sorridentes.

Anéis de neblina insinuavam-se em volta de suas pernas. No outro extremo do mar cada vez mais escuro, o sol pálido quase já se extinguira. Sam estremeceu e entrou no bar para tomar um drinque.

Dos três outros fregueses, nenhum parecia muito animado. Em um dos compartimentos de vinil preto à esquerda, um homem e uma mulher de meia-idade inclinavam-se um para o outro, falando em voz baixa. Um sujeito de rosto macilento, no bar, curvava-se sobre seu copo de chope, segurando-o com ambas as mãos, com um ar carrancudo, como se tivesse acabado de ver um inseto nadando na bebida.

Mantendo-se fiel ao nome, o Knighfs Bridge recendia atmosfera britânica. Um brasão de armas diferente, sem dúvida copiado de algum catálogo heráldico oficial, fora esculpido em madeira e pintado à mão e fixado no encosto de cada banco do bar. Havia uma armadura em um dos cantos. Cenas de caça à raposa pendiam das paredes.

Sam deslizou para um banco a cerca de oito metros de distância do homem de rosto macilento. O barman acorreu para atendê-lo, passando um esfregão limpo sobre o balcão de carvalho já imaculado e excessivamente lustroso.

—        Sim, senhor, o que vai beber?

Era um homem roliço sob todos os aspectos: uma pequena barriga redonda; braços carnudos com uma espessa cobertura de cabelos negros; um rosto rechonchudo; uma boca pequena demais para estar em harmonia com suas outras feições; um nariz chato e arrebitado que terminava numa bolinha redonda; olhos redondos o suficiente para lhe dar um permanente ar de surpresa.

—        Tem Guinness? — perguntou Sam.

—        É a bebida essencial de um verdadeiro bar, eu diria. Se não tivéssemos Guinness... bem, seria melhor nos transformarmos nu ma casa de chá. — Tinha uma voz suave; cada palavra que pronunciava soava tão branda e redonda quanto sua aparência. Parecia excepcionalmente ansioso em agradar. — Gostaria dela gelada ou apenas ligeiramente resfriada? Tenho das duas formas.

—        Muito pouco resfriada.

—        Muito bem! — Quando voltou com a Guinness e um copo, o barman disse: — Meu nome é Burt Peckham. Sou o proprietário.

Servindo cuidadosamente a cerveja pela lateral do copo para garantir o menor colarinho possível, Sam disse:

—        Sam Booker. Bom lugar, Burt.

—        Obrigado. Talvez possa espalhar isso por aí. Tento mantê-lo agradável e bem abastecido e costumávamos ter muita gente, mas ultimamente parece que a maior parte da cidade aderiu a um movimento abstêmio ou começou a produzir sua própria cerveja no subsolo, uma coisa ou outra.

—        Bem, é segunda-feira à noite.

—        Nos últimos dois meses, não tem sido incomum ficar meio vazio mesmo no sábado à noite, o que nunca acontecia. — O rosto redondo de Burt Peckhan enrugou-se de preocupação. Polia o balcão devagar enquanto falava. — Eu acho que essa mania de saúde que os californianos adotaram há tanto tempo foi muito longe. To dos estão permanecendo em suas casas, fazendo aeróbica diante do vídeo, comendo germe de trigo e claras em neve, ou o que quer que comam, bebendo apenas água mineral, suco de fruta e leite. Ouça, uma ou duas bebidas por dia faz bem à saúde.

Sam bebeu um pouco da Guinness, suspirou satisfeito e disse:

—        Sem dúvida, pelo gosto só pode fazer bem.

—        Pois é. Ajuda a circulação. Mantém seus intestinos em for ma. Os sacerdotes deviam exaltar suas virtudes aos domingos, ao invés de pregarem contra ela. Tudo com moderação... e isso inclui umas duas cervejas por dia. — Talvez percebendo que esfregava o bar de forma um pouco obsessiva, pendurou o esfregão no gancho e cruzou os braços sobre o peito. — Está só de passagem, Sam?

—        Na verdade — mentiu Sam —, estou fazendo uma longa via gem ao longo da costa de L. A. até a fronteira do Oregon, vagando por aí, procurando um lugar tranqüilo para me aposentar parcialmente.

—        Aposentar? Está brincando?

—        Aposentar parcialmente.

—        Mas você tem apenas... quarenta, quarenta e um?

—        Quarenta e dois.

—        O que você é? Assaltante de banco?

—        Corretor da Bolsa. Fiz alguns bons investimentos ao longo dos anos. Agora, acho que posso abandonar a corrida de ratos e viver bastante bem, apenas administrando minha própria conta. Quero me estabelecer num lugar tranqüilo, sem poluição, sem crime.

Estou farto de L. A.

—        As pessoas realmente ganham dinheiro na Bolsa? — perguntou Peckham. — Achava que era um investimento tão bom quanto uma mesa de dados em Reno. Todo mundo não perdeu tudo quando 9 mercado quebrou há alguns anos?

—        É um jogo de trouxas para o pequeno investidor, mas você pode se sair muito bem se for um corretor e se não se deixar levar pela euforia de um mercado especulativo. Nenhum mercado sobe ou desce indefinidamente; você só tem que adivinhar o momento certo para começar a nadar contra a corrente.

—        Aposentadoria aos quarenta e dois — disse Peckham admirado. — E, quando eu entrei no negócio de bar, pensei que estava feito. Disse a minha mulher: nos tempos das vacas gordas, as pessoas bebem para comemorar, no tempo das vacas magras, para esquecer, de modo que não há melhor negócio do que um bar. Agora, veja. — Indicou o salão quase vazio com um gesto largo da mão direita. — Teria me saído melhor vendendo camisinhas num mosteiro.

—        Pode me dar outra Guinness? — perguntou Sam.

—        Ora, talvez este lugar ainda dê a volta por cima!

Quando Peckham voltou com a segunda garrafa de cerveja, Sam disse:

—        Moonlight Cove pode ser o que estou procurando. Acho que vou ficar uns dias, sentir como é a cidade. Pode recomendar um motel?

—        Resta apenas um. Nunca foi uma cidade muito turística.

Acho que ninguém aqui nunca desejou muito isso. Até este verão, tínhamos quatro motéis. Agora três fecharam as portas. Não sei...

apesar de tão bonito, talvez este vilarejo esteja morrendo. Pelo que sei, não estamos perdendo população, mas... diabos, estamos perdendo alguma coisa. — Arrancou o pano do gancho outra vez e recomeçou a polir o balcão. — De qualquer forma, tente o Cove Lodge em Cypress Lane. É a última rua transversal à Ocean Avenue; estende-se ao longo do penhasco, de modo que você provavelmente terá um quarto com vista para o mar. Um lugar limpo, tranqüilo.

 

No fim do corredor do térreo, Chrissie abriu a porta da frente com um safanão. Atravessou correndo a larga varanda e desceu os degraus, tropeçou, recuperou o equilíbrio, virou à direita e disparou pelo pátio em direção aos estábulos, passando por um Honda azul que evidentemente pertencia a Tucker. As fortes pisadas de seus tênis pareciam estrondear como tiros de canhão pelo crepúsculo que rapidamente esmaecia. Gostaria de poder correr silenciosamente — e mais rápido. Mesmo que seus pais e Tucker não alcançassem a varanda da frente até ela ser engolida pelas sombras, ainda assim poderiam ouvir para onde ia.

A maior parte do céu era de um preto queimado, embora um 26      '   clarão vermelho-escuro assinalasse o horizonte oeste, como se toda a luz do dia de outubro tivesse sido reduzida àquela intensa essência rubra, que se depositara no fundo do caldeirão celestial. Um nevoeiro transparente insinuava-se vindo do mar e Chrissie esperava que se condensasse depressa, ficasse denso como pudim, porque ela iria precisar de mais cobertura.

Alcançou o primeiro dos dois longos estábulos e empurrou a enorme porteira. O cheiro familiar e não desagradável — palha, feno, ração, cavalo, linimento, couro de sela e estéreo seco — bafejou-a.

Acionou o interruptor e três lâmpadas de baixa voltagem acenderam-se, claras o suficiente para iluminar o lugar sem perturbar seus ocupantes. Dez baias de bom tamanho ladeavam a ala principal, de chão de terra batida, e cavalos curiosos espreitaram-na por cima das meias-portas. Alguns pertenciam aos pais de Chrissie, mas a maioria era guardada ali para pessoas que viviam em Moonlight Cove ou nos arredores. Os cavalos fungaram e resfolegaram e um deles relinchou baixinho quando Chrissie passou por eles em direção à última baia à esquerda, onde ficava uma égua malhada de cinza de nome Godiva.

O acesso às baias também podia ser feito por fora do prédio, embora nas estações frias as portas externas, ao estilo holandês, fossem mantidas trancadas, tanto a parte superior quanto a inferior, para impedir que o calor escapasse da estrebaria. Godiva era uma égua mansa e particularmente amistosa com Chrissie, mas ficava arisca quando alguém se aproximava no escuro; poderia empinar ou disparar se fosse assustada pela abertura da porta externa da baia àquela hora. Como Chrissie não podia perder sequer alguns segundos para acalmar sua montaria, tinha que chegar à égua por dentro do es tábulo.

Godiva já a esperava. A égua sacudiu a cabeça, agitando a crina branca, espessa e lustrosa, pela qual recebera seu nome e exalou o ar com força pelas narinas em reconhecimento à chegada da garota, Olhando para trás, para a entrada da estrebaria, esperando ver Tucker e seus pais invadirem o lugar a qualquer instante, Chrissie destrancou a meia-porta. Godiva saiu para o corredor entre as fileiras de baias.

— Seja uma dama, Godiva. Ah, por favor, seja boazinha comigo.

Não podia perder tempo em selar a égua ou passar um freio entre seus dentes. Com uma das mãos contra o flanco de Godiva, ela guiou sua montaria, passando pelo compartimento de arreios e pelo galpão de ração que ocupavam a parte posterior da estrebaria, espantando um rato que atravessou correndo a sua frente em direção a um canto escuro. Ela abriu a porteira dos fundos e o ar frio invadiu o interior.

Sem estribo para ajudá-la a subir, Chrissie era pequena demais para montar Godiva.

Havia um banco de ferreiro para ferrar cavalos no canto do compartimento de arreios. Mantendo a mão sobre Godiva para aquietá-la, Chrissie arrastou o banco com o pé, puxando-o para junto da égua.

Atrás dela, da outra ponta da estrebaria, Tucker gritou:

—        Lá está ela! O estábulo! — Ele correu em sua direção.

O banco não lhe dava muita altura e não servia como substituto de um estribo.

Podia ouvir os passos de Tucker, perto, cada vez mais perto, mas não olhou para ele. Ele gritou:

—        Peguei-a.

Chrissie agarrou a magnífica crina branca de Godiva, atirou-se contra o enorme animal e começou a içar o corpo, erguer-se, atirando a perna para cima, agarrando-se com desespero ao flanco da égua, puxando a crina com força. Deve ter machucado Godiva, mas a velha amiga era estóica. Ela não empinou nem relinchou de dor, como se algum instinto eqüino lhe dissesse que a vida de sua menina dependia de serenidade. Logo, Chrissie estava no dorso de Godiva, precariamente equilibrada, mas montada, agarrando-se com os joelhos, uma das mãos cheia de crina e, com a outra, batendo no flanco da égua.

—        Vá!

Tucker alcançou-a quando ela gritou esta única palavra, agarrou sua perna, segurou seu jeans. Os olhos fundos estavam desvairados de raiva; as narinas dilatadas e os lábios finos distendidos, arreganhando os dentes. Chutou-o embaixo do queixo e ele a soltou.

No mesmo instante, Godiva deu um salto para a frente, atravessando a porta e penetrando na noite.

—        Ela tem um cavalo! — gritou Tucker. — Está montada!

A égua malhada partiu a toda velocidade em direção à encosta aberta que levava ao mar a algumas centenas de metros de distância, onde os últimos raios de luz vermelho-escuro do pôr-do-sol lançavam manchas turvas e esparsas sobre a água negra. Mas Chrissie não queria ir para a beira-mar porque não tinha certeza da altura da maré àquela hora. Em alguns locais ao longo da costa, a praia não era larga nem na maré baixa; se a maré estivesse alta, a água profunda iria alcançar as rochas e os penhascos em alguns pontos, tornando a passagem impossível. Não podia se arriscar a cava mais para um beco sem saída com seus pais e Tucker atrás dela.   

Mesmo sem o auxílio de uma sela e em pleno galope, Chrissk conseguiu ajeitar-se numa posição melhor em cima da égua e, já que não estava inclinada para um lado como um acrobata, enterrou ambas as mãos na espessa crina branca, agarrando punhados daqueles pêlos grossos, tentando usá-los como substitutos das rédeas. Forçou Godiva a virar para a esquerda, afastando-se do mar, afastando-se também da casa, de volta ao longo dos estábulos e saindo para o caminho de oitocentos metros que levava à estrada do condado, onde era mais provável que encontrasse ajuda.

Ao invés de se rebelar contra esse grosseiro método de condução, a paciente Godiva correspondeu de imediato, virando à esquerda tão documente quanto se tivesse um freio na boca e sentisse o puxão de uma rédea. O barulho estrondoso de seus cascos ecoava das paredes do estábulo quando passaram por aquela construção.

— Você é uma grande amiga! — gritou Chrissie para a égua. — Eu te amo, menina!

Passaram com segurança ao largo da ponta leste do estábulo, por onde Chrissie entrara para pegar a égua e ela viu Tucker saindo pela porta. Ficou claramente surpreso ao vê-la partindo naquela direção, ao invés de descer para o mar. Ele começou a correr em sua direção, mas apesar de surpreendentemente rápido, não era páreo para Godiva.

Alcançaram o caminho de entrada e Chrissie manteve Godiva na margem macia, paralela à pista de superfície dura. Inclinou-se para a frente, tão junto da égua quanto possível, apavorada de cair, e cada baque duro dos cascos repercutia pelos seus ossos. Sua cabeça estava virada de lado, de modo que viu a casa à esquerda, as janelas iluminadas, mas não aconchegantes. Não era mais seu lar; era o inferno entre quatro paredes, de modo que a luz das janelas pareceu-lhe as chamas demoníacas nos aposentos de Hades.

De repente, ela viu alguma coisa atravessar correndo o gramado da frente da casa em direção ao caminho de entrada, em direção a ela. Era baixo e veloz, do tamanho de um homem mas correndo de quatro — ou assim parecia —, saltando, a cerca de vinte metros, e aproximando-se. Viu outra figura igualmente bizarra, quase do tamanho da primeira, correndo logo atrás da outra. Embora ambas as criaturas estivessem iluminadas por trás, pelas luzes da casa, Chrissie pouco podia discernir além de seus vultos, entretanto ela sabia o que eram. Não, corrigindo: ela sabia quem provavelmente eram, mas ainda não sabia o que eram, embora as tivesse visto no vestíbulo do andar de cima esta manhã; sabia o que eles haviam sido — pessoas como ela —, mas não o que eram agora.

— Vamos, Godiva, vamos!

Mesmo sem o açoite das rédeas para indicar uma velocidade maior, a égua aumentou a extensão do galope, como se compartilhasse uma ligação psíquica com Chrissie.

Logo transpuseram a casa, arremessando-se por uma campina, paralelamente ao caminho macadamizado, zunindo em direção à estrada do condado a menos de oitocentos metros a leste. A égua veloz trabalhava os poderosos músculos das ancas e seu eficiente galope era tão acalentadoramente rítmico e inebriante que Chrissie em pouco tempo deixou de sentir o aspecto sacolejante da corrida; era como se deslizassem pela superfície da terra, quase voando.

Olhou por cima do ombro e não viu as duas figuras galopantes, embora, sem dúvida, ainda a estivessem perseguindo através das sombras superpostas. Com a incandescência vermelho-turva ao longo do horizonte no ocidente desvanecendo-se em roxo escuro, com as luzes da casa rapidamente definhando e com a lua crescente começando a lançar um brilhante ponto prateado acima da linha das colinas a leste, a visibilidade era fraca.

Embora não pudesse ver os perseguidores que estavam a pé, não teve nenhuma dificuldade de localizar os faróis do Honda azul de Tucker. Diante da casa, a cerca de duzentos metros atrás dela agora, Tucker girou o veículo para a entrada de carros e uniu-se à caçada.    

Chrissie confiava bastante em que Godiva podia deixar para trás qualquer homem ou animal que não um cavalo melhor, mas sabia que a égua não podia competir com um carro. Tucker os alcançaria em segundos. O rosto do homem estava nítido em sua lembrança: a fronte ossuda, o nariz aquilino, os olhos fundos como um par de bolas de gude duras e negras. Cercava-o uma certa aura de vitalidade sobrenatural que Chrissie às vezes vira em seus pais — uma energia abundante e nervosa, associada a um estranho olhar faminto. Sabia que ele faria qualquer coisa para impedi-la de escapar, que ele poderia até tentar derrubar Godiva com o carro.

Ele não poderia, claro, usar o carro para seguir Godiva pela terra. Relutantemente, Chrissie empregou os joelhos e a crina na mão direita para desviar a égua da entrada de carros e da estrada, onde era mais provável que encontrassem ajuda depressa. Godiva correspondeu sem hesitação, e dirigiram-se para o bosque que começava no outro extremo da campina, a quinhentos metros para o sul.

Chrissie podia ver a floresta apenas como uma massa negra e eriçada, vagamente delineada contra o céu menos escuro no horizonte. Os detalhes do terreno que devia atravessar apareciam-lhe mais na lembrança do que na realidade. Rezava para que a visão noturna do animal fosse mais aguçada do que a sua.

— Isso, menina, vamos, vamos, boa menina, vamos! — gritava, encorajando a égua.   

 Faziam seu próprio vento no ar frio e parado. Chrissie percebia a respiração quente de Godiva passar por ela em penachos cristalizados e seu próprio hálito enfumaçava de sua boca aberta. Seu coração batia no mesmo ritmo dos enérgicos baques dos cascos do animal e a garota quase sentia como se ela e Godiva fossem não cavaleiro e cavalo, mas um único ser, partilhando o mesmo coração, o mesmo sangue e a mesma respiração.

Embora fugindo para salvar a vida, sentia-se tão agradavelmente excitada quanto aterrorizada e isso a deixou perplexa. Encarar a morte — ou neste caso algo talvez pior do que a morte — era estranhamente excitante, sinistramente atraente de certo modo e até um ponto que jamais imaginara. Estava quase tão aterrorizada com a inesperada excitação quanto com as pessoas que a perseguiam.

Agarrou-se com firmeza à égua cinza-mosqueada, às vezes saltando no seu dorso nu, erguendo-se perigosamente alto, mas segurando-se com força, flexionando e contraindo seus próprios músculos em sintonia com os do animal. A cada pisada dos cascos na terra, Chrissie ficava mais confiante de que conseguiriam escapar. A égua tinha força e resistência. Quando já haviam atravessado três quartos do campo aberto, e o bosque assomava diante dela, Chrissie resolveu virar para leste outra vez ao alcançarem as árvores, e não seguir em frente, para a estrada do condado, mas naquela direção indefinida e...

Godiva caiu.

A égua enfiara a pata numa depressão do terreno — um buraco de esquilo, a entrada da toca de um coelho, talvez uma vala natural de escoamento da chuva —, tropeçara e perdera o equilíbrio. Tentou se recuperar, não conseguiu, e caiu, berrando de terror.

Chrissie teve medo que sua montaria fosse cair em cima dela, de que fosse esmagada ou pelo menos quebrasse uma perna. Mas não havia nenhum estribo prendendo seus pés, nenhuma sela onde suas roupas pudessem se enganchar e porque ela instintivamente largou a crina da égua malhada foi lançada por cima da cabeça do cavalo e atirada no ar. Embora o solo fosse macio e ainda mais amortecido por uma espessa camada de capim, atingiu-o com um impacto entorpecedor, tirando o ar de seus pulmões e fazendo seus dentes chocarem-se com tanta força que teria arrancado um pedaço da língua, se esta estivesse entre eles. Mas aterrissou a cerca de três metros do cavalo e estava a salvo quanto a isso.

Godiva foi a primeira a se levantar, erguendo-se desajeitadamente um instante depois de ter caído. Os olhos arregalados de medo, passou por Chrissie a meio galope, poupando a pata dianteira direita que estava apenas distendida; se estivesse quebrada, o animal não teria se levantado.

Chrissie chamou a égua, com medo que ela fugisse. Mas sua respiração vinha em espasmos arquejantes e o nome saiu num sussurro:

— Godiva!

O animal continuou avançando para oeste, de volta para o mar e para os estábulos.

Quando Chrissie finalmente conseguiu erguer-se nas mãos e joelhos, compreendeu que um cavalo manco em nada lhe adiantaria e, portanto, não fez mais nenhum esforço para recuperar a égua. Estava ofegante e ligeiramente tonta, mas sabia que tinha que continuar correndo porque, sem dúvida, ainda estava sendo caçada. Podia ver o Honda, os faróis acesos, estacionado à beira do caminho a mais de trezentos metros ao norte. Com todo o clarão sangrento do pôr-do-sol tendo desaparecido do horizonte, a campina estava escura como breu. Não conseguia divisar se as figuras baixas, velozes, estavam lá, embora soubesse que deviam estar se aproximando e que ela cairia em suas garras em um ou dois minutos.

Levantou-se, virou-se para o sul, em direção ao bosque, cambaleou por dez ou 15 metros, até suas pernas se recuperarem do choque da queda e finalmente desatou a correr.

 

Ao longo dos anos, Sam Booker descobriu que toda a extensão da costa da Califórnia era ornamentada por encantadoras pousadas que apresentavam revestimentos de pedra de alta qualidade, madeira envelhecida, tetos abaulados, vidraças chanfradas e jardins plantados de forma exuberante e com caminhos de tijolos gastos. Apesar das imagens agradáveis que seu nome evocava e da paisagem singularmente pitoresca que desfrutava, o Cove Lodge não era nenhuma dessas jóias californianas. Era apenas uma caixa retangular, de reboco comum, de dois andares e quarenta quartos, com uma lanchonete malcuidada numa das pontas e sem piscina. As comodidades limitavam-se às máquinas automáticas de refrigerante e gelo nos dois andares. O cartaz em cima da recepção do motel não era nem espalhafatoso nem no estilo artístico de alguns neons modernos, apenas pequeno e simples — e barato.

O funcionário da noite deu-lhe um quarto no segundo andar com vista para o mar, embora a localização não importasse para Sam. A julgar pela escassez de carros no estacionamento, entretanto, quartos com vista panorâmica não estavam em falta. Cada andar do motel possuía vinte quartos em fileiras de dez, ligados por um corredor interno acarpetado com um náilon laranja de pêlo curto que fizeram seus olhos arderem. Os quartos a leste davam para Cypress Lane; os do lado oeste, para o Pacífico. Seu aposento ficava na ponta noroeste: uma cama de casal com um colchão afundado no centro e uma colcha azul-esverdeada desbotada, mesinhas-de-cabeceira com marcas de cigarro, uma televisão presa cm um suporte, mesa, duas cadeiras de espaldar reto, um móvel com marcas de cigarro, telefone, banheiro e uma grande janela emoldurando o mar noturno.

Quando desolados vendedores, numa maré de má sorte e à beira da ruína econômica cometiam suicídio na estrada, eles o faziam em quartos como aquele.

Desfez suas duas malas, arrumando as roupas no armário e nas gavetas da cômoda. Em seguida, sentou-se na borda da cama e fitou o telefone na mesinha-de-cabeceira.

Devia telefonar para Scott, seu filho, que estava de volta em casa, em Los Angeles, mas não podia fazê-lo daquele telefone. Mais tarde, se a polícia local ficasse interessada nele, iriam visitar o Cove Lodge, examinar as chamadas interurbanas, investigar os números que ele discara e tentar montar as peças de sua verdadeira identidade através das identidades das pessoas com quem falara. Para manter seu disfarce, devia usar o telefone do quarto apenas para chamar seu número de contato no escritório do Bureau em Los Angeles, uma linha de segurança que seria atendida com a frase "Birchfield Corretora. Em que posso servir-lhe?" Além do mais, nos registros da companhia telefônica aquele número estava em nome de Birchfield, a firma fantasma na qual Sam supostamente era um corretor da Bolsa; não podia levar ao FBI. Ainda não tinha nada a relatar, de modo que não tirou o fone do gancho. Quando saísse para jantar, ligaria para Scott de um telefone público.

Não queria conversar com o garoto. Seria um telefonema de dever. Sam temia-o. O diálogo com seu filho deixara de ser agradável há pelo menos três anos, quando Scott tinha treze anos e, na  época, já era órfão de mãe há um ano. Sam imaginava se o garoto; teria ido pelo caminho errado tão rápida e completamente se Karen ainda fosse viva. Esse pensamento levou-o, claro, a refletir em seu próprio papel no declínio de Scott: teria o garoto se desencaminha do independentemente da orientação que recebesse dos pais? Sua queda seria inevitável, a fraqueza estaria nele ou no seu destino?

Ou o declínio de Scott seria resultado direto do fracasso de seu pai em encontrar um modo de guiá-lo para um caminho melhor e mais; satisfatório?

Se continuasse a cismar sobre isso, iria puxar uma caneta ali! mesmo em Cove Lodge, embora não fosse vendedor.

Cerveja Guinness.

Boa comida mexicana.

Goldie Hawn.

Medo da morte.

Como lista de razões para viver, era desgraçadamente curta e muito patética para ser considerada, mas talvez tivesse o tamanho certo.

Depois de usar o banheiro, lavou as mãos e o rosto com água fria. Ainda se sentia cansado, nem um pouco refrescado.

Despiu o casaco de veludo e colocou um coldre de couro fino e flexível que retirou de uma das malas. Também trouxera uma Smith & Wesson Chiefs Special, que carregou. Enfiou-a no coldre antes de vestir o casaco outra vez. Seus casacos eram feitos para ocultarem a arma; esta não fazia nenhum volume e o coldre ajustava-se tão junto ao lado do seu corpo que a arma não podia ser vista facilmente ainda que deixasse o casaco desabotoado.

Para missões em que precisava se disfarçar, o rosto e o corpo de Sam eram tão bem talhados quanto seus casacos. Tinha l,78m, nem alto nem baixo. Pesava 77 quilos, a maior parte de ossos e músculos, pouca gordura, entretanto não era do tipo de um levantador de peso de pescoço largo em tão esplêndida forma física que chamasse atenção. Seu rosto não tinha nenhuma característica especial: nem feio, nem bonito, nem muito largo, nem muito estreito, marcado por feições nem muito angulosas, nem muito grosseiras, sem nenhuma mancha ou cicatriz. Seus cabelos castanho-claros eram cortados num estilo e tamanho tradicionalmente moderado que não seria notado nem numa época de cortes à escovinha nem de cabelos presos, à altura dos ombros.

Em todos os aspectos de sua aparência, só seus olhos eram realmente atraentes. Eram azul-acinzentados com estrias azuis mais escuras. As mulheres muitas vezes lhe diziam que eram os olhos mais bonitos que elas já haviam visto. Houve uma época em que se importava com o que as mulheres diziam dele.

Sacudiu-se, certificando-se de que o coldre estava no lugar certo.

Não esperava precisar da arma naquela noite. Ainda não começara a bisbilhotar e atrair atenção; e como ainda não incomodara ninguém, ninguém estava pronto a incomodá-lo.

Ainda assim, de agora em diante carregaria a arma. Não podia deixá-la no quarto nem trancá-la no carro alugado; se alguém comandasse uma busca, a arma seria encontrada e seu disfarce iria por água abaixo. Nenhum corretor da Bolsa de meia-idade, à procura de um refúgio onde se aposentar prematuramente, andaria armado com um de cano curto daquela fabricação e modelo. Era uma arma de policial.

Enfiando a chave do quarto no bolso, saiu para jantar.

 

Depois de ter se registrado, Tessa Jane Lockland ficou parada por um longo tempo à enorme janela de seu quarto no Cove Lodge, sem nenhuma luz acesa. Fitava o vasto e escuro Pacífico e a praia lá embaixo de onde sua irmã, Janice, supostamente se lançara numa sinistramente decidida missão de autodestruição.

A versão oficial era a de que Janice fora para a praia sozinha à noite, num estado de depressão aguda. Tomara uma dose maciça de tranqüilizantes, engolindo as cápsulas com vários goles de uma lata de refrigerante. Então, tirara as roupas e nadara sempre em frente em direção ao Japão. Perdendo a consciência por causa do remédio, logo se deixou envolver pelo frio abraço do mar e se afogou.

— Besteira — disse Tessa baixinho, como se falasse com o vago reflexo de si mesma na vidraça.

Janice Lockland Capshaw fora uma pessoa esperançosa, per manentemente otimista — uma característica tão comum aos membros do clã Lockland que parecia um traço genético. Nunca em sua vida Janice sentara-se a um canto com pena de si mesma; se tivesse tentado, em segundos teria começado a rir da tolice da autopiedade, teria se levantado e ido ao cinema ou feito uma corrida psicologicamente terapêutica. Mesmo quando Richard morreu, Janice não permitiu que a dor se transformasse em depressão, embora o amasse muito.

Portanto, o que a teria levado a uma derrocada emocional tão grande? Meditando sobre a história em que a polícia queria que ela   acreditasse, Tessa foi levada ao sarcasmo. Talvez Janice tivesse ido a um restaurante, tivesse comido um jantar ruim e ficasse tão arrasada com a experiência que o suicídio tivesse sido sua única reação possível. Claro. Ou talvez sua televisão houvesse escangalhado e ela tivesse perdido sua novela favorita, o que a fez mergulhar num desespero irreversível. Sem dúvida. Essas cenas eram tão plausíveis quanto a besteira que a polícia de Moonlight Cove e o magistrado encarregado do caso haviam colocado nos relatórios. Suicídio.

— Besteira — repetiu Tessa.

Da janela do seu quarto de motel, ela podia ver apenas uma estreita faixa da praia embaixo, onde as ondas se quebravam. A areia era vagamente revelada pela luz fria da lua crescente recém-surgida, uma fita pálida curvando-se para o sul e para o norte em torno da enseada.

Tessa sentiu-se tomada pelo desejo de ficar na praia de onde sua irmã supostamente partira naquele nado à meia-noite para a sepultura, a mesma praia para onde a maré devolvera seu corpo inchado, dilacerado, dias mais tarde. Afastou-se da janela e acendeu o abajur da mesinha-de-cabeceira. Tirou um casaco de couro marrom de um cabide no guarda-roupa, vestiu-o, pendurou a bolsa no ombro e saiu do quarto, trancando a porta. Tinha certeza — embora de forma irracional — que, pelo simples fato de ir à praia e colocar-se onde Janice supostamente estivera, iria descobrir uma pista para a verdadeira história, através de uma surpreendente revelação ou um lampejo de intuição.

 

Conforme a lua prateada erguia-se acima das escuras colinas a leste, Chrissie corria ao longo da linha das árvores, procurando um caminho para o bosque antes que seus estranhos perseguidores a encontrassem. Logo chegou à Pyramid Rock, assim denominada por causa da formação, com duas vezes o seu tamanho, que possuía três lados e terminava numa ponta arredondada pelo tempo; quando era menor, ela fantasiava que aquela rocha fora construída há muitos séculos por uma tribo geograficamente deslocada de egípcios de três centímetros de altura. Tendo brincado naquela campina e naquela floresta durante anos, estava tão familiarizada com o terreno quanto com os cômodos de sua própria casa, certamente mais à vontade  ali do que seus pais ou Tucker estariam, o que lhe dava uma vantagem. Passou pela Pyramid Rock entrando na escuridão sob as árvores, até chegar a uma estreita trilha de veados que se dirigia para o sul.

Não ouviu ninguém atrás dela e não perdeu tempo tentando ver na escuridão. Mas suspeitava que, como predadores, seus pais e Tucker seriam caçadores silenciosos, revelando-se somente quando atacavam.

Os bosques costeiros eram constituídos em sua maior parte de uma ampla variedade de pinheiros, embora florescessem também algumas árvores de resina balsâmica, suas folhas de um vermelho intenso da cor do outono à luz do dia, mas agora tão negras quanto pedaços de mortalhas. Chrissie seguiu a trilha sinuosa conforme o terreno começou a descer para um fundo desfiladeiro. Em mais da metade da floresta, as árvores cresciam bem afastadas umas das outras para permitir que o clarão glacial da lua penetrasse até a vegetação rasteira e lançasse uma crosta de luz como gelo sobre a trilha. O nevoeiro que vinha do mar ainda estava esparso demais para filtrar muito desta pálida luminosidade, mas em outros locais os galhos entrelaçados bloqueavam o luar.

Mesmo onde a luz da lua revelava o caminho, Chrissie não ousava correr, pois certamente tropeçaria nas raízes das árvores afloradas à superfície e que se espalhavam pela trilha dos veados. Aqui e ali galhos baixos apresentavam outro perigo para um corredor, mas ela andava depressa.

Como se lesse um livro de suas próprias aventuras, um livro como um daqueles de que tanto gostava, ela pensou: a jovem Chrissie caminhava com tanta segurança quanto era engenhosa e perspicaz, menos temerosa da escuridão do que da idéia de seus monstruosos perseguidores. Que menina destemida!

Logo alcançaria a base do declive, onde poderia virar para oeste em direção ao mar ou para leste em direção à estrada do condado, que cortava aquele desfiladeiro. Poucas pessoas moravam naquela região, a mais de três quilômetros da periferia de Moonlight Cove; menos pessoas ainda viviam à beira-mar, já que partes da costa eram protegidas pelas leis estaduais que proibiam construções. Embora tivesse poucas chances de encontrar ajuda na direção do Pacífico, suas perspectivas para leste não eram muito melhores, porque a estrada do condado era pouco movimentada e havia poucas casas ao longo do caminho. Além disso, Tucker devia estar vigiando a estrada com seu Honda, esperando que ela fosse naquela direção e pedisse carona ao primeiro carro que visse.

Pensando desesperadamente para onde ir, ela desceu os últimos cem metros. As árvores que ladeavam a trilha deram lugar a moitas baixas e impenetráveis de galhos emaranhados e eriçados denominadas chaparral. Algumas samambaias imensas, perfeitamente adequadas aos freqüentes nevoeiros costeiros, tomavam o caminho e Chrissie estremecia ao abrir caminho entre elas, pois sentia como se milhares de pequenas mãos a agarrassem.

Um riacho largo mas raso cortava o fundo do desfiladeiro e ela parou junto à sua margem para recuperar o fôlego. A maior parte do rio estava seca. Nesta época do ano, apenas alguns centímetros de água corriam preguiçosamente pelo meio do canal, brilhando de forma obscura sob o luar.

O ar da noite estava parado.

Nenhum som.

Rodeando o corpo com os braços, percebeu como estava frio. Dejeanse blusa quadriculada azul-clara de flanela, estava adequadamente vestida para um dia de outubro, mas não para o ar frio e úmido de uma noite de outono.

Estava enregelada, ofegante, com medo e sem saber qual deveria ser seu próximo passo, mas acima de tudo estava com raiva de si mesma por aquelas fraquezas do corpo e da mente. As maravilhosas histórias de aventura de André Norton eram repletas de jovens heroínas destemidas que podiam suportar perseguições muito mais longas — e muito mais frio e outras adversidades — do que esta, e sempre com o ânimo inquebrantável, capazes de tomar decisões rápidas e, em geral, corretas.

Reanimada ao se comparar com uma heroína de Norton, Chrissie saiu da margem do riacho. Atravessou três metros de solo argiloso trazido pela erosão das colinas causada pelas fortes chuvas da última estação e tentou saltar a faixa de água rasa e murmurejante. Aterrissou na água a poucos centímetros da outra margem, encharcando seus tênis. Ainda assim, continuou atravessando mais terreno argiloso, que se agarrava aos seus tênis molhados, galgou a margem e não se dirigiu nem para leste nem para oeste, mas para o sul, subindo o outro paredão do desfiladeiro em direção ao prolongamento da floresta.

Embora entrasse em território novo, na extremidade da parte da floresta que fora seu parque de diversões durante anos, não receava se perder. Distinguia o leste e o oeste pelo movimento do es parso nevoeiro que vinha do mar e pela posição da lua e, com estes indicadores, podia se manter no curso para o sul. Acreditava que dentro de um quilômetro e meio atingiria um grupo de casas e os amplos terrenos da New Wave Microtechnology, que ficavam entre os Estábulos Foster e a cidade de Moonlight Cove. Lá ela deveria conseguir ajuda.

Então, claro, seus verdadeiros problemas começariam. Teria que convencer alguém de que seus pais já não eram seus pais, que haviam se modificado ou foram possuídos ou dominados por algum espírito ou... força. E que queriam transformá-la em um deles.

É, pensou, boa sorte.

Ela era inteligente, franca, responsável, mas também era apenas uma menina de 11 anos. Ia ser muito difícil fazer alguém acreditar nela. Não tinha ilusões a esse respeito. Iriam ouvir, sacudir a cabeça e sorrir, e depois telefonariam a seus pais e estes soariam mais plausíveis do que ela...

Mas tenho que tentar, disse a si mesma, quando começou a subir a ribanceira do paredão sul do desfiladeiro. Se não tentar convencer alguém, o que mais posso fazer? Entregar-me? De jeito nenhum.

Atrás dela, a cerca de duzentos metros, do alto do outro paredão do desfiladeiro que descera há pouco, alguma coisa emitiu um grito agudo e estridente. Não era um grito inteiramente humano — também não era o de um animal. O primeiro guincho foi respondido por um segundo, um terceiro e cada grito era de uma criatura diferente, pois cada um tinha um tom de voz perceptivelmente distinto.

Chrissie estacou na trilha íngreme, uma das mãos contra a casca profundamente gretada de um pinheiro, sob um dossel de galhos docemente perfumados. Olhou para trás e ouviu seus perseguidores começarem a uivar, um grito ululante que lembrava o latido de um bando de coiotes... porém mais estranho, mais assustador. O som era frio, penetrava sua carne e perfurava sua medula como uma agulha.

A gritaria era provavelmente um sinal de confiança: tinham certeza de que a pegariam, de modo que já não precisavam fazer silêncio.

— O que são vocês? — murmurou ela.

Suspeitava que eles conseguiam ver como gatos no escuro.

Poderiam farejar seu cheiro, como se fossem cachorros?' Seu coração começou a bater com força, quase dolorosamente, dentro do peito.

Sentindo-se vulnerável e sozinha, voltou as costas aos caçadores lamurientos e continuou a subir com dificuldade a trilha em direção à borda sul do desfiladeiro.

 

Na base da ladeira da Ocean Avenue, Tessa Lockland caminhou pelo estacionamento vazio e desceu para a praia. A brisa noturna que vinha do Pacífico apenas começava a soprar, fraca mas fria o suficiente para ela ficar satisfeita de estar usando calças compridas, uma suéter de lã e um casaco de couro.

Atravessou a areia macia, em direção às sombras da beira-mar que ficavam além do raio de claridade do último poste de luz da rua, depois de um alto cipreste que crescera na praia e tão radicalmente modelado pelos ventos do oceano que a fazia lembrar de uma escultura de Erté, somente linhas curvas e formas fundidas. Na areia molhada à beira dágua, onde as ondas lambiam a praia a poucos centímetros de seus sapatos, Tessa olhou para oeste. A lua parcial era insuficiente para iluminar o alto-mar, vasto e encapelado; tudo que conseguia ver eram as três fileiras mais próximas de ondas baixas, de crista espumante lançando-se em sua direção, vindas da escuridão.

Tentou imaginar sua irmã parada na praia deserta, tomando trinta ou quarenta comprimidos de Valium com uma Diet Coke, depois despindo-se e mergulhando no mar gelado. Não. Não Janice.

Com crescente convicção de que as autoridades de Moonlight Cove eram idiotas incompetentes ou mentirosos, Tessa caminhou devagar para o sul ao longo da beira d'água. Na luminosidade perolada da lua incompleta, examinou a areia, os ciprestes muito separados mais adiante na praia e as formações rochosas gastas pelo tempo. Não procurava pistas materiais que pudessem lhe dizer o que acontecera a Janice; estas haviam sido apagadas pelo vento e pela maré durante as últimas três semanas. Ao invés disso, esperava que a própria paisagem e os elementos da noite — a escuridão, o vento frio e os arabescos da névoa pálida mas gradualmente mais densa — a inspirassem a desenvolver uma teoria sobre o que realmente acontecera a Janice e uma abordagem que deveria usar para provar essa teoria.

Era uma produtora cinematográfica, especializada em filmes industriais e documentários de diversos tipos. Quando em dúvida sobre o significado e o objetivo de um projeto, achava que a imersão em um determinado ponto geográfico podia inspirar a narrativa e as abordagens temáticas para fazer um filme a respeito. Nos estágios iniciais de um filme de viagens, por exemplo, passava alguns dias andando ao acaso por uma cidade como Cingapura, Hong Kong ou Rio, apenas assimilando detalhes, o que era mais produtivo do que milhares de horas de leitura e brainstorming, embora, claro, leitura e brainstorming também fizessem parte do processo.

Andara menos de duzentos metros para o sul ao longo da praia quando ouviu um grito estridente e assombrado que a fez parar de repente. O som era distante, aumentando e diminuindo, aumentando e diminuindo, depois desaparecendo.

Enregelada mais por aquele estranho grito do que pelo vivificante ar de outubro, perguntou-se o que teria ouvido. Embora em parte tivesse sido um uivo canino, tinha certeza de que não se tratava de um cachorro. Embora também se distinguisse por um guincho e um gemido felinos, estava certa de que não fora emitido por um gato; nenhum gato doméstico poderia emitir um som tão alto e, pelo que sabia, não havia pumas vagando pelas colinas da costa, certamente não perto de uma cidade do tamanho de Moonlight Cove. Quando estava prestes a continuar, o mesmo grito sobrenatural cortou a noite outra vez e tinha quase certeza que vinha do topo do penhasco que dava para a praia, mais ao sul, onde as luzes de casas de frente para o mar eram em menor número do que ao longo da parte central da enseada. Desta vez o uivo terminou numa nota alongada e mais gutural, o que podia ter sido produzido por um cão grande, embora ainda achasse que devia vir de alguma outra criatura. Alguém que vivia próximo ao penhasco devia estar criando algum exótico animal de estimação numa jaula: um lobo, talvez, ou algum enorme gato selvagem das montanhas não nativo da costa norte.

A explicação não a satisfez, tampouco, pois havia algo familiar no grito que não conseguia identificar, algo que não era próprio de um lobo ou gato selvagem. Esperou um novo uivo, mas ele não veio.

A sua volta, a escuridão aumentara. A névoa adensava-se e uma nuvem lenta e pesada atravessou o meio da lua de duas pontas.

Decidiu que poderia absorver melhor os detalhes da paisagem pela manhã e voltou na direção da iluminação da rua semi-encoberta pela cerração, na base da Ocean Avenue. Não percebeu que estava andando tão depressa — quase correndo — até sair da praia, atravessar o estacionamento e subir metade da ladeira íngreme do primeiro quarteirão da Ocean Avenue, onde percebeu a velocidade de seus passos porque de repente ouviu a própria respiração ofegante.

 

Thomas Shaddack deixava-se levar numa perfeita escuridão que não era nem quente nem fria, onde ele parecia não ter peso, onde cessava de sentir qualquer sensação contra sua pele, onde parecia sem pernas ou braços, sem musculatura ou ossos, onde parecia não ter nenhuma substância física. Uma tênue linha de pensamento ligava-o ao seu eu material e, nos mais escuros recônditos de sua mente, ainda tinha consciência de que era um homem — um homem tipo Ichabod Crane, de 1,85 de altura e 75 quilos, magro e esquelético, com um rosto fino demais, a testa alta e olhos castanhos tão claros que às vezes pareciam amarelos.

Tinha também uma vaga consciência de que estava nu e flutuava numa câmara que era o estado-da-arte em matéria de privação dos sentidos e que se parecia a um antiquado pulmão de aço, porém quatro vezes maior. A única lâmpada de baixa voltagem não estava acesa e nenhuma luz penetrava a carapaça do tanque. O líquido em que Shaddack flutuava tinha mais de um metro de profundidade, uma solução a dez por cento de sulfato de magnésio na água para flutuação máxima. Monitorada por um computador — como todo e qualquer elemento daquele ambiente —, a temperatura da água variava entre 34°, a temperatura na qual um corpo flutuante era menos afetado pela gravidade, e 37°, onde a diferença de calor entre a temperatura do corpo humano e do fluido que o cercava era mínima. Não sofria de claustrofobia. Um ou dois minutos depois de entrar no tanque e fechar a portinhola atrás de si, seu senso de confinamento desaparecia por completo.

Privado de estímulos sensoriais — nenhuma visão, nenhum som, pouco ou nenhum paladar, nenhum estímulo olfativo, nenhuma sensação de tato ou peso ou espaço ou tempo —, Shaddack deixou sua mente se libertar das enfadonhas limitações da carne, erguendo-se a alturas antes inatingíveis de compreensão e explorando idéias de tal ordem de complexidade que de outro modo estariam fora do seu alcance.

Mesmo sem o auxílio da privação sensorial, ele era um gênio. A revista Time assim o dissera, de modo que devia ser verdade. Construíra a New Wave Microtechnology de uma firma à beira da falência com um capital inicial de vinte mil dólares até uma operação de trezentos milhões de dólares por ano que concebia, pesquisava e desenvolvia microtecnologia de ponta.

No momento, entretanto, Shaddack não fazia nenhum esforço para se concentrar em problemas atuais de pesquisa. Estava usando o tanque estritamente para fins recreativos, para a indução de uma visão específica que nunca deixava de fasciná-lo e excitá-lo.

Sua visão.

Exceto por aquele frágil fio de pensamento que o prendia à realidade, ele acreditava estar dentro de uma enorme e ativa máquina, tão imensa que suas dimensões não podiam ser avaliadas com mais facilidade do que as do próprio universo. Era a paisagem de um sonho, porém infinitamente mais consistente e intensa do que um sonho. Como uma partícula transportada pelo ar para as entranhas fantasmagoricamente iluminadas daquele colossal mecanismo imaginário, ele flutuou passando por paredes maciças e colunas interconectadas de eixos propulsores girando depressa, correntes estrondosas, uma infinidade de bielas de pistões impulsionando-se, ligadas por blocos de deslizamento a bielas de conexão, que por sua vez ligavam-se por braços de manivela a eixos lubrificados, que giravam volantes de todas as dimensões. Servomotores zumbiam, compressores bufavam, distribuidores lançavam faíscas conforme a corrente elétrica percorria milhões de fios emaranhados até os extremos da estrutura.

Para Shaddack, o mais excitante a respeito do mundo visionário era a maneira como eixos propulsores de aço e pistões de liga e juntas de vedação de borracha dura e cobertas de alumínio juntavam-se a partes orgânicas para formar uma entidade revolucionária possuidora de dois tipos de vida: animação mecânica eficiente e palpitação de um tecido orgânico. Como bombas, o projetista empregara brilhantes corações humanos que pulsavam incansavelmente naquele antigo ritmo lub-dub, ligados por grossas artérias a tubulações de borracha que serpeavam pelas paredes; alguns bombeavam sangue para partes do sistema que requeriam lubrificação orgânica, enquanto outros bombeavam óleo de alta viscosidade. Incorporados a outras partes da infinita máquina havia dezenas de milhares de alvéolos pulmonares funcionando como foles e filtros; tendões e excrescências de carne semelhantes a tumores eram usados para ligar pedaços de tubos e canos de borracha com mais flexibilidade e segurança do que poderia ter sido obtido com ligações não-orgânicas comuns.

Ali estava o melhor dos sistemas orgânico e mecânico reunidos numa estrutura perfeita. Enquanto Thomas Shaddack imaginava-se percorrendo as intermináveis avenidas do seu cenário de sonho, sentia-se arrebatado, embora não compreendesse — ou se importasse —, qual a função principal que tudo aquilo teria, que produto ou serviço trabalhava para oferecer. Estava excitado pela entidade porque era eficiente no que quer que estivesse fazendo, porque suas partes orgânicas e inorgânicas eram brilhantemente integradas.

Toda a sua vida, durante a maior parte dos seus 41 anos de que se lembrava, Shaddack lutara contra as limitações da condição humana, procurando com toda a sua força e vontade elevar-se acima do destino de sua espécie. Queria ser mais do que um homem. Queria ter o poder de um deus e moldar não só o seu próprio futuro, mas o de toda a humanidade. Em sua câmara de privação dos sentidos particular, transportado por esta visão de um organismo cibernético, sentia-se mais próximo daquela ansiada metamorfose do que podia se sentir no mundo real e isso o revigorava.

Para ele, a visão não era apenas intelectualmente estimulante e emocionalmente tocante, mas intensamente erótica também. Enquanto flutuava naquela imaginária máquina semi-orgânica, observando-a pulsar e latejar, abandonava-se a um orgasmo que sentia não só em seus órgãos genitais, mas em cada fibra do corpo; na verdade, não tinha consciência de sua violenta ereção, nem das vigorosas ejaculações em torno das quais todo o seu corpo se contraía, pois percebia o prazer difuso por todo ele e não apenas concentrado em seu pênis. Fios leitosos de sêmen espalhavam-se pelo tanque escuro de solução de sulfato de magnésio.

Poucos minutos depois, o relógio automático da câmara de privação dos sentidos ativava a luz interior e fazia soar um suave alarme. Shaddack era chamado de volta de seu sonho para o mundo real de Moonlight Cove.

 

Os olhos de Chrissie Foster adaptaram-se à escuridão e ela já conseguia fazer seu caminho com mais rapidez pelo território desconhecido.

Quando chegou à borda do desfiladeiro, passou entre um par de ciprestes de Monterey e por uma outra trilha de veados que cortava a floresta na direção sul. Protegidos do vento pelas árvores ao redor, aqueles enormes ciprestes eram exuberantes e compactos, nem contorcidos nem marcados por galhos tortuosos como os que eram açoitados pelo vento à beira-mar. Por um instante, considerou subir naquelas alturas frondosas, com a esperança de que seus perseguidores passassem por baixo, sem localizá-la. Mas não ousava correr o risco; se a farejassem ou divisassem sua presença de algum outro modo, subiriam e ela não teria para onde fugir.

Apressou-se ainda mais e logo alcançou uma clareira nas árvores. Adiante, estendia-se uma campina que se inclinava de leste para oeste, como a maior parte do terreno nas imediações. A brisa intensificara-se e era forte o suficiente para agitar seus cabelos louros. A neblina não estava tão esparsa como quando fugira dos Estábulos Foster a cavalo, mas o luar ainda estava pouco filtrado para dar um aspecto de geada ao capim seco, à altura dos joelhos, que se agitava quando o vento soprava.

Enquanto atravessava correndo o campo em direção ao próximo grupo de árvores, viu um enorme caminhão, todo iluminado como se fosse uma árvore de Natal, indo para o sul pela interestadual, a quase um quilômetro e meio a leste de onde ela estava, ao longo do topo da segunda fileira de colinas costeiras. Descartou a possibilidade de pedir ajuda a alguém na distante auto-estrada, pois eram estranhos viajando para lugares longínquos, portanto com menos probabilidade ainda do que os habitantes locais de acreditar nela. Além do mais, ela lia jornais e via televisão, de modo que sabia tudo sobre maníacos assassinos que vagavam pelas estradas interestaduais e não tinha dificuldade em imaginar manchetes de tablóides resumindo sua sorte: MENINA DEVORADA POR CANIBAIS ERRANTES  NUMA CAMINHONETE DODGE; SERVIDA COM ACOMPANHAMENTO DE BRÓCOLIS E SALSA PARA DECORAR; OS OSSOS FORAM USADOS PARA SOPA.

A estrada do condado ficava oitocentos metros mais perto, ao longo dos topos das primeiras colinas, mas não se via nenhum tráfego por ela. De qualquer forma, já desistira da idéia de buscar ajuda lá, com medo de encontrar Tucker em seu Honda.

Claro que acreditava ter ouvido três vozes distintas entre os ui-vos arrepiantes dos que a perseguiam, o que significava que Tucker abandonara o carro e se unira a seus pais. Talvez, afinal de contas, pudesse se dirigir com segurança para a estrada do condado.

Pensava nessa possibilidade enquanto corria a toda velocidade pela campina. Mas antes que tivesse se decidido a mudar de direção, aqueles horripilantes gritos elevaram-se atrás dela outra vez, ainda na floresta, porém mais próximos do que antes. Duas ou três vozes uivaram simultaneamente, como se uma matilha de cães de caça estivesse em seus calcanhares, embora mais estranhos e mais selvagens do que cães comuns.

Bruscamente, Chrissie pisou no ar e se sentiu caindo no que, por um instante, pareceu um terrível abismo. Mas tratava-se apenas de um canal de drenagem de 2,50m de largura por dois metros de profundidade, que atravessava a campina, e ela rolou para o fundo dele sem se machucar.

Os guinchos agudos e ferozes de seus perseguidores estavam cada vez mais altos, mais perto e agora suas vozes tinham um timbre mais frenético... um tom de anseio, de fome.

Ergueu-se de pé desajeitadamente e começou a escalar o barranco de dois metros do canal, quando percebeu que para sua esquerda, subindo a inclinação do terreno, a vala terminava num largo aqueduto que penetrava no solo. Parou no meio do canal e considerou a nova opção.

O indistinto cano de concreto oferecia ao fraco luar uma superfície refletora apenas o suficiente para ser visível. Quando o viu, compreendeu de imediato que se tratava da principal galeria pluvial que carregava as águas da chuva para fora das estradas interestadual e do condado muito acima e a leste dela. A julgar pelos uivos estridentes de seus caçadores, sua distância de vantagem estava diminuindo. Cada vez mais receava ser abatida antes de alcançar as árvores do outro lado da campina. Talvez a galeria não tivesse saída e lhe fornecesse um refúgio não mais seguro do que o cipreste que pensara em escalar, mas resolveu arriscar.

Deslizou para o fundo da vala outra vez e correu agachada para o aqueduto. O cano tinha cerca de 1,20m de diâmetro. Abaixando-se ligeiramente podia caminhar por ele. Avançou apenas alguns passos, entretanto, antes de parar por causa de um mau cheiro tão forte que a fez sentir ânsia de vômito.

Havia alguma coisa morta e putrefata naquela passagem escura. Não podia ver o que era. Mas talvez fosse melhor assim; a visão da carcaça podia ser pior do que o cheiro. Algum animal selvagem, doente e à morte, devia ter se arrastado até ali em busca de abrigo, tendo morrido de sua doença.

Recuou para fora do cano, respirando sofregamente o ar fresco da noite.

Do norte, vieram vários uivos ululantes mesclados, que fizeram os cabelos de sua nuca se eriçarem.

Aproximavam-se depressa, estavam quase alcançando-a.

Não tinha escolha senão se esconder dentro da galeria pluvial e esperar que não a farejassem. Percebeu de repente que o animal em decomposição podia lhe ser útil, porque, se os que a caçavam pudessem farejá-la como se fossem cães de caça, o fétido odor disfarçaria seu próprio cheiro.

Tornando a entrar no aqueduto escuro como breu, seguiu o chão convexo, que subia.gradualmente por baixo da campina. Dentro de 46   dez metros pisou em algo macio e escorregadio. O terrível mau cheiro de podridão atingiu-a ainda com mais intensidade e ela compreendeu que pisara na coisa morta.

— Aahrrr.

Seu estômago se contraiu e sentiu o vômito subir, mas cerrou os dentes e recusou-se a vomitar. Quando ultrapassou a massa pútrida, parou para raspar as solas do tênis no chão de cimento do cano.

Em seguida, continuou penetrando na galeria. Correndo com os joelhos dobrados, os ombros curvados e a cabeça enfiada no pescoço, percebeu que devia parecer um anão das cavernas fugindo para dentro de sua toca secreta.

Quinze ou 18 metros depois da coisa morta não identificada, Chrissie parou, agachou-se e se virou para olhar na direção da entrada do cano. Através da abertura circular tinha uma visão da vala sob o luar e podia ver mais do que esperava porque, em contraste com a escuridão da galeria, a noite parecia mais clara do que antes, quando estava lá fora.

Tudo estava em silêncio.

Uma brisa suave fluía pelo cano através de bueiros nas estradas acima e para leste, afastando dela o odor do animal em decomposição, de modo que já não detectava nenhum vestígio do mau cheiro. O ar estava impregnado apenas de uma leve umidade, um sopro de mofo.

O silêncio apoderara-se da noite.

Prendeu a respiração por um instante e ouviu com atenção.

Nada.

Ainda agachada, mudou o peso do corpo de um pé para o outro.

Silêncio.

Imaginava se deveria prosseguir mais para dentro do aqueduto. Então imaginou se haveria cobras no cano. Não seria um lugar perfeito para cobras fazerem seus ninhos quando o ar frio da noite se aproximava e elas buscavam abrigo?

Silêncio.

Onde estavam seus pais? Tucker? Um minuto antes estavam bem atrás dela, a uma distância surpreendentemente pequena.

Silêncio.

Cascavéis eram comuns nas colinas da costa, embora não ativas nesta época do ano. Se um ninho de cascavéis...

Estava tão enervada pelo silêncio contínuo e estranho que sentia necessidade de gritar, apenas para quebrar o arrepiante feitiço.

Um grito estridente quebrou a quietude do lado de fora. Ecoou pelo túnel de concreto, passou por Chrissie e repercutiu de parede a parede ao longo da passagem atrás dela, como se os caçadores es- 47   tivessem se aproximando não só do exterior, como também das profundezas da terra às suas costas.

Vultos sombrios pularam dentro do canal à frente da galeria.

 

Sam encontrou um restaurante mexicano na Serra Street, a dois quarteirões do motel. Uma fungada dentro do lugar foi suficiente para lhe assegurar que a comida seria boa. Aquela miscelânea era o equivalente odorífico de um álbum de José Feliciano: chili em pó, chouriço fervilhando de quente, o aroma adocicado de tortillas feitas com masa harina, cilantro, pimentão, o cheiro penetrante de jalapefio chilis, cebolas...

O restaurante Perez Family era tão despretensioso quanto seu nome, um único salão retangular com compartimentos de vinil azul ao longo das paredes laterais, mesas no centro, cozinha ao fundo. Ao contrário de Burt Peckham no bar Knight's Bridge, a família Perez tinha um negócio tão próspero quanto podia administrar. À exceção de uma mesa de duas cadeiras ao fundo, à qual Sam foi conduzido por uma recepcionista adolescente, o restaurante estava lotado.

Os garçons e garçonetes vestiam-se informalmente de jeans e suéteres, a única concessão a um uniforme sendo um pequeno avental branco amarrado em torno da cintura. Sam nem sequer pediu uma Guinness, que nunca encontrara num restaurante mexicano, mas tinham Corona, que iria bem se a comida fosse boa.

A comida era muito boa. Não verdadeira e inequivocamente esplêndida, mas melhor do que tinha o direito de esperar numa cidade costeira do norte de apenas três mil habitantes. As frituras de milho eram feitas em casa, a salsa espessa e cheia de pedaços, a sopa de albondigas substanciosa e apimentada o suficiente para fazê-lo suar levemente. Quando recebeu o pedido de enchiladas de siri ao molho de tomatillo, estava praticamente convencido de que devia se mudar para Moonlight Cove o mais breve possível, ainda que isso significasse roubar um banco para financiar a aposentadoria prematura.

Quando se recobrou da surpresa com a qualidade da comida, começou a prestar tanta atenção aos seus companheiros de jantar quanto ao conteúdo do prato. Aos poucos, notou várias coisas estranhas a respeito deles.

O lugar estava insolitamente silencioso, considerando que era ocupado por oitenta a noventa pessoas. Restaurantes mexicanos de boa qualidade — com boa comida, boa cerveja e fortes margaritas — eram lugares festivos. No Perez, entretanto, os fregueses conversavam animadamente em apenas um terço das mesas. Os outros dois terços comiam em silêncio.

Depois de inclinar o copo e servir-se da nova garrafa de Corona que acabavam de colocar em sua mesa, Sam examinou alguns dos comensais silenciosos. Três homens de meia-idade sentados num dos compartimentos à direita do salão, retalhando tacos, enchiladas e chimichangas, fitando sua comida ou o espaço à frente deles, entreolhando-se às vezes, mas sem trocar nenhuma palavra. Do outro lado do salão, em outro compartimento, dois casais de adolescentes devoravam diligentemente uma travessa dupla de tira-gostos variados, nunca entremeando a refeição com conversas ou risos que seriam de esperar de jovens na sua idade. Sua concentração era tão intensa que, quanto mais Sam os observava, mais estranhos eles pareciam.

Por todo o salão, pessoas de todas as idades, em grupos de todos os tipos, estavam concentradas em sua comida. Comensais de bom apetite, consumiam tira-gostos, sopas, saladas e guarnições, assim como entradas; ao terminarem, alguns encomendavam "mais alguns tacos " ou "mais um burrito", antes de pedirem também sorvete ou pudim. Os músculos de seus maxilares avolumavam-se enquanto mastigavam e, tão logo engoliam, enfiavam mais comida na boca. Alguns comiam com a boca aberta. Outros engoliam com tanto vigor que Sam podia ouvi-los. Tinham os rostos afogueados e suados, sem dúvida devido aos molhos temperados com jalapeno, mas ninguém fazia um comentário do tipo "Rapaz, como está apimentado " ou " Que comida boa" ou mesmo o mais elementar resquício de conversa com seus companheiros.

Para o terço dos fregueses que tagarelava alegremente entre si e fazia suas refeições em um ritmo normal, a comilança quase febril da maioria parecia passar despercebida. Má educação à mesa não era raro, claro; pelo menos um quarto das pessoas que costumam jantar fora em qualquer cidade provocaria um ataque cardíaco na Srta. Boas Maneiras, se ela ousasse comer com elas. Entretanto, a gula de muitos dos fregueses do Perez Family parecia impressionante a Sam. Imaginou que os fregueses bem-educados estavam alheios ao comportamento dos outros clientes porque já haviam testemunhado aquilo muitas vezes antes.

Poderia o ar frio do mar da costa norte causar tamanho aumento de apetite? Teria algum passado étnico peculiar ou história social rompida em Moonlight Cove abrandado o desenvolvimento universal das maneiras ocidentais à mesa comumente aceitas?

O que via no restaurante Perez Family parecia um enigma para o qual qualquer sociólogo, desesperadamente em busca de um tema para sua tese de doutorado, ficaria ansioso para encontrar uma resposta. Depois de algum tempo, entretanto, Sam teve que desviar sua atenção dos fregueses mais vorazes porque o comportamento deles estava fazendo com que perdesse o próprio apetite.

Mais tarde, quando calculava a gorjeta e colocava o dinheiro sobre a mesa para pagar a conta, examinou a multidão novamente e desta vez notou que nenhum dos fregueses esfaimados bebia cerveja, margaritas ou qualquer bebida alcoólica. Tomavam água gelada ou refrigerantes e alguns bebiam leite, um copo atrás do outro, mas nenhum homem ou mulher dentre aqueles gourmands parecia abstêmio. Talvez não tivesse percebido a abstinência deles se não fosse um policial — e um bom policial — treinado não só para ob-servar, mas para pensar sobre o que observava.

Lembrou-se da escassez de bebedores no bar Knighfs Bridge. Que cultura étnica ou grupo religioso inculcara um desprezo por álcool enquanto encorajava falta de boas maneiras e gula? Não se lembrava de nenhum.

Quando Sam terminou a cerveja e se levantou para sair, dizia a si mesmo que havia exagerado em relação a algumas pessoas broncas, que essa estranha fixação em comida limitava-se a um punhado de fregueses e não era tão comum quanto parecera. Afinal, de sua mesa ao fundo, não pudera ver o salão inteiro e cada um dos fregueses. Mas, ao sair, passou por uma mesa onde três mulheres atraentes e bem-vestidas comiam esfaimadamente, em silêncio, os olhos vidrados; duas delas tinham migalhas de comida no queixo, ao que pareciam alheias, e a terceira tinha tanto farelo de frituras de milho espalhado na frente de sua suéter azul-real que parecia estar se revestindo à milanesa com a intenção de ir à cozinha, entrar no forno e virar comida.

Ficou satisfeito de sair para o ar puro da noite. Suando tanto por causa dos pratos apimentados de chili quanto pelo calor do restaurante, teve vontade de tirar o casaco, mas não pôde fazê-lo por causa da arma que carregava no coldre pendurado fio ombro. Agora, deleitava-se com o nevoeiro frio que era arrastado para leste por uma brisa suave, mas persistente.

 

 Chrissie viu-os entrar no canal de drenagem e por um instante pensou que iam escalar o outro lado do canal e sair para a campina na direção em que ela estiver a indo. Então um deles virou-se para a entrada do cano. O vulto aproximou-se da galeria de quatro, com passos furtivos e sinuosos. Embora Chrissie não pudesse ver mais do que uma figura vaga, teve dificuldade em acreditar que aquela criatura pudesse ser um de seus pais ou o homem chamado Tucker. Mas quem mais poderia ser?

Entrando no túnel de concreto, o predador espreitou para dentro da escuridão. Seus olhos tinham um brilho âmbar-esverdeado, não tão brilhantes ali quanto ao luar, menos luminosos do que tinta fosforescente, mas bastante reluzentes.

Chrissie perguntou-se até que ponto eles podiam ver na escuridão absoluta. Certamente seu olhar não poderia penetrar 25 ou trinta metros de um cano escuro até o lugar onde ela estava agachada. Visão com este alcance seria sobrenatural.

A criatura olhava diretamente em sua direção. E quem poderia dizer que aquilo com que ela estava lidando não era sobrenatural? Talvez seus pais tivessem se transformado em... lobisomens.

Estava encharcada de suor. Esperava que o mau cheiro do animal morto encobrisse o cheiro do seu corpo.

Erguendo-se das quatro patas para uma posição agachada, bloqueando a maior parte do luar à entrada do cano, o caçador avançou devagar.

Sua respiração pesada era ampliada pelas paredes curvas de concreto do aqueduto. Chrissie respirava silenciosamente, pela boca, com medo de revelar sua presença.

De repente, a apenas cerca de três metros dentro do túnel, o caçador falou numa voz áspera, sussurrante e com tal urgência que as palavras quase se emendavam numa única e longa seqüência de sílabas:

— Chrissie, você, está aí, você, você? Venha mim, Chrissie, venha mim, venha, quero você, quero, quero, preciso, minha Chrissie, minha Chrissie.

Aquela voz bizarra, fora de si, fez surgir na mente de Chrissie uma imagem aterrorizante de uma criatura em parte lagarto, parte lobo, parte ser humano, parte algo indefinível. Entretanto, suspeitava que a aparência real era até pior do que qualquer coisa que pudesse imaginar.

— Ajudar você, quero ajudar você, ajudar, agora, venha mim, venha, venha. Está aí, aí, você aí?

O pior a respeito da voz era que, apesar do timbre frio e rouco e do tom sussurrante, apesar de sua estranheza, ela lhe era familiar.

Chrissie reconheceu-a como a voz de sua mãe. Diferente, sim, mas ainda assim a voz de sua mãe.

O estômago de Chrissie contorcia-se de medo, mas estava tomada de uma outra dor também, que por um instante não conseguiu identificar. Em seguida, percebeu que sofria a dor da perda; sentia falta de sua mãe, queria sua mãe de volta, sua verdadeira mãe.

Se tivesse um daqueles pomposos crucifixos de prata como os que sempre usavam nos filmes de terror, teria se revelado, avançado para aquela terrível criatura e exigido que abandonasse o corpo de sua mãe. Um crucifixo provavelmente não funcionaria porque nada na vida real era tão fácil quanto nos filmes; além disso, o que quer que tivesse acontecido a seus pais era muito mais estranho do que vampiros e lobisomens e demônios vindos do inferno. Mas, se ela tivesse um crucifixo, teria tentado de qualquer forma. — Morte, morte, cheiro de morte, fede, morte... A mãe-criatura avançou depressa para dentro do túnel até chegar ao local onde Chrissie pisara numa massa putrefata e escorregadia. A luminosidade dos olhos brilhantes estava diretamente relacionada com a proximidade do luar, pois agora estavam opacos. Em seguida, a criatura abaixou o olhar para o animal morto no chão da galeria.

De fora da entrada do cano veio o som de algo descendo para a vala. A baques de pés e barulho de pedras seguiu-se uma outra voz, igualmente tão assustadora quanto a do caçador agora agachado sobre o animal morto. Falando para dentro do cano, disse:

—        Ela aí, aí, ela? O que achou, o quê, o quê?

—        ...guaxinim...

—        O que, o que é, o quê?

—        Guaxinim morto, podre, vermes, vermes — disse o primeiro.

Chrissie ficou paralisada de medo por ter deixado uma pegada de tênis na massa podre do guaxinim morto.

—        Chrissie? — aventurou o segundo conforme penetrava na galeria.

A voz de Tucker. Evidentemente seu pai estava à sua procura na campina ou na parte seguinte da floresta.

Ambos os caçadores remexiam-se sem parar. Chrissie podia ouvi-los raspando — garras? — o chão de concreto do cano. Ambos pareciam em pânico, também. Não, em pânico não, na verdade, porque não se percebia medo em suas vozes. Agitados. Frenéticos. Era como se em cada um deles um motor girasse cada vez mais rápido, mais rápido, quase fora de controle.

—        Chrissie aí, ela aí, ela? — perguntou Tucker.

A mãe-criatura ergueu o olhar do guaxinim morto e espreitou diretamente na direção de Chrissie através do túnel escuro.

Você não pode me ver, pensou Chrissie rezando. Estou invisível.

A luminosidade dos olhos do caçador havia esmaecido para dois pontos de prata sem brilho.

Chrissie prendeu a respiração.

Tucker disse:

—        Tenho que comer, comer, quero comer.

A criatura que fora sua mãe disse:

—        Encontrar a garota, garota, encontrar ela primeiro, depois comer, depois.

Soavam como animais selvagens magicamente dotados de uma linguagem rudimentar.

—        Agora, agora, queimando, comer agora, agora, queiman do — disse Tucker com insistência.

Chrissie tremia tanto que temia que ouvissem os tremores que a sacudiam.

Tucker disse:

—       Queimando, pequenos animais no campo, posso ouvir, sentir o cheiro, caçar, comer, comer, agora.

Chrissie prendeu a respiração.

—        Nada aqui — disse a mãe-criatura. — Só vermes, fede, va mos, comer, depois encontrar ela, comer, comer, depois encontrar ela, vamos.

Ambos os caçadores retiraram-se da galeria e desapareceram.

Chrissie ousou respirar.

Após aguardar um minuto para ter certeza de que estava realmente sozinha, ela virou-se e caminhou abaixada cada vez mais para o interior da galeria em aclive, tateando às cegas as paredes à medida que avançava, buscando uma passagem lateral. Devia ter avançado cerca de duzentos metros antes de encontrar o que procurava: um cano de drenagem que desaguava naquele, com metade do tamanho do cano principal. Esgueirou-se dentro dele, os pés primeiro e de costas, depois contorceu-se até ficar de barriga para baixo e de frente para o túnel maior. Era ali que iria passar a noite. Se voltassem à galeria para tentar detectar seu cheiro no ar mais puro depois do guaxinim em decomposição, ela estaria fora da corrente de ar que varria a galeria principal e talvez não conseguissem farejá-la.

Estava mais animada porque a impossibilidade de vasculharem mais fundo no cano era prova de que não possuíam poderes sobre naturais, não podiam tudo ver e tudo saber. Eram extraordinária mente fortes e velozes, estranhos e aterrorizantes, mas também podiam cometer erros. Começou a achar que, quando o dia clareasl se, teria cinqüenta por cento de chance de sair da floresta e encontrar ajuda antes de ser apanhada.

 

Sob as luzes do lado de fora do restaurante Perez Family, Sam Booker consultou o relógio. Apenas sete e dez.

Saiu para uma caminhada ao longo da Ocean Avenue, reunindo coragem para telefonar para Scott em Los Angeles. A perspectiva desta conversa com seu filho logo o preocupou e afastou de sua mente quaisquer pensamentos sobre os comensais glutões e sem modos.

Às sete e meia, parou em uma cabina telefônica perto de um posto de gasolina na esquina de Juniper Lane com a Ocean. Usou seu cartão de crédito para fazer uma chamada interurbana para sua casa em Sherman Oaks.

Aos dezesseis anos, Scott julgava-se suficientemente maduro para ficar em casa sozinho quando seu pai estava viajando em alguma missão. Sam não concordava inteiramente e preferia que o garoto ficasse com sua tia Edna. Mas Scott conseguiu o que queria simplesmente transformando a vida de Edna num inferno, de modo que Sam ficava relutante em fazê-la passar por essa provação.

Repetidamente instruíra o rapaz em procedimentos de segurança — manter todas as portas e janelas trancadas; saber onde estavam os extintores de incêndio; saber como sair de casa de qualquer aposento no caso de um terremoto ou outra emergência — e o ensinara a usar um revólver. No julgamento de Sam, Scott ainda era muito imaturo para ficar em casa sozinho dias seguidos; mas pelo menos o garoto estava bem preparado para qualquer eventualidade.

O telefone tocou nove vezes. Sam estava prestes a desligar, culpadamente aliviado por não ter conseguido a ligação, quando Scott atendeu.

—        Alô.

—        Sou eu, Scott. Seu pai.

  —      Sim?

Ao fundo, ouvia-se a todo volume o som de heavy-metal. Ele provavelmente estava em seu quarto, o estéreo tão alto que as janelas vibravam.

Sam disse:

—        Poderia abaixaria música?

—        Eu posso ouvi-lo — balbuciou Scott.

—        Talvez, mas eu não estou conseguindo ouvi-lo.

—        Não tenho nada a dizer, de qualquer forma.

—        Por favor, abaixe-a — disse Sam, com ênfase no "por favor".

Scott largou o receptor, que bateu na mesinha-de-cabeceira. O forte barulho feriu os ouvidos de Sam. O rapaz abaixou o volume do estéreo, mas apenas um pouco. Pegou o fone novamente e disse:

—        Sim?

—        Como vai?

—        Bem.

—        Tudo bem por aí?

—        E por que não haveria de estar?

—        Só perguntei.

Mal-humoradamente:

—        Se telefonou para saber se estou dando uma festa, não se preocupe. Não estou.

Sam contou até três, dando tempo a si mesmo para manter a voz controlada. O nevoeiro cada vez mais denso passava em espirais pela cabina telefônica de vidro.

—        Como foi a escola hoje?

—        Acha que eu não fui?

—        Sei que foi.

—        Não confia em mim.

—        Confio em você — mentiu Sam.

—        Acha que não fui.

—        E foi?

—        Sim.

—        Então, como foi?

—        Ridículo. A mesma merda de sempre.

—        Scott, por favor, sabe que já lhe pedi para não usar esse ti po de linguagem quando fala comigo — disse Sam, percebendo que estava sendo levado a um confronto contra sua vontade.

—        Sinto muito. A mesma porcaria de sempre — disse Scott de tal forma que podia estar se referindo tanto ao dia quanto a Sam.

—        Aqui é uma típica cidade do interior — disse Sam.

O garoto não respondeu.

—        Colinas cobertas de bosques descem até o oceano.   - E daí?

Seguindo a recomendação do conselheiro familiar que ele e Scott estavam freqüentando tanto juntos quanto em separado, Sam cerrou os dentes, contou novamente até três e tentou outra abordagem.

—        Já jantou?

—        Já.

—        Fez os deveres de casa?

—        Não tenho nenhum.

Sam hesitou, depois deixou passar. O conselheiro, Dr. Adamski, teria ficado orgulhoso de tal tolerância e autocontrole.

Fora da cabine telefônica, as luzes do posto adquiriram múltiplos halos e a cidade começou a desaparecer na neblina que se solidificava lentamente.

Sam disse, afinal:

—        O que vai fazer hoje à noite?

—        Eu estava ouvindo música.

Às vezes parecia a Sam que a música era parte do que tornava o garoto mal-humorado. Aquele heavy-metal frenético, barulhento, sem melodia, era um conjunto de acordes monótonos e ainda mais monótonos estribilhos atonais, tão sem sentimento e entorpecedores da mente que poderia ser a música produzida por uma civilização de máquinas inteligentes muito tempo depois de o homem ter desaparecido da face da Terra. Depois de algum tempo, Scott perdera o interesse pela maioria das bandas heavy-metal e transferira a devoção para o U2, mas sua consciência social simplista não se comparava a niilismo. Logo se interessou novamente pelo heavy metal, mas desta vez se concentrou em black metal, aquelas bandas que adotavam — ou usavam truques dramáticos — o satanismo; tornou-se cada vez mais envolvido, anti-social e sombrio. Em mais de uma ocasião, Sam considerara confiscar a coleção de discos do garoto, destruindo-os em pedacinhos e jogando-os no lixo, mas isso lhe parecera uma reação exagerada. Afinal, o próprio Sam tinha dezesseis anos quando os Beatles e os Rolling Stones começavam a entrar em cena e seus pais queixaram-se daquela música e previram que ela levaria Sam e toda a sua geração à perdição. Ele se tornara um homem de bem, apesar de John, Paul, George e Ringo e dos Stones. Era um produto de uma época de tolerância sem paralelo e não queria que sua mente se estreitasse tanto quanto a de seus pais.

—        Bem, acho melhor eu ir — disse Sam.

O garoto permaneceu em silêncio.

—        Se surgir algum problema inesperado, chame sua tia Edna.

—        Não há nada que ela possa fazer por mim que eu mesmo não possa fazer.

—        Ela o ama, Scott.

—        Sim, claro.

—        É a irmã de sua mãe; ela gostaria de amá-lo como se fosse seu próprio filho. Tudo que precisa fazer é lhe dar uma chance. — Depois de mais um período de silêncio, Sam deu um suspiro fundo e disse: — Eu também o amo, Scott.

—        É? E o que devo fazer, ficar todo derretido por dentro?

—        Não.

—        Porque eu não fico.

—        Só estava declarando um fato.

Aparentemente citando uma de suas canções favoritas, o rapaz disse:

— "Nada dura para sempre;

        até o amor é uma mentira,

                  um instrumento de manipulação;

               não Deus do outro lado do céu.”

 

Clique.

Sam ficou parado por um instante, ouvindo o ruído de discar.

—        Perfeito.

Recolocou o fone no gancho.

Sua frustração só era superada por sua raiva. Queria extravasar em alguma coisa, qualquer coisa, e fingir que estava destruindo quem ou o que quer que roubara seu filho dele.

Também experimentava uma sensação dolorida, de vazio, na boca do estômago, porque ele realmente amava Scott. A alienação do rapaz era arrasadora.

Sabia que não podia voltar para o motel. Não estava pronto para dormir e a perspectiva de passar algumas horas diante da estúpida caixinha, vendo seriados de comédia e dramas, era insuportável.

Quando abriu a cabina telefônica, anéis de nevoeiro insinuaram-se para dentro, parecendo puxá-lo para a noite. Caminhou durante uma hora pelas ruas de Moonlight Cove, entrando nos bairros residenciais, onde não havia postes de luz e onde as árvores e as casas pareciam flutuar na neblina, como se não estivessem fincadas na terra, mas tenuamente presas e em perigo de se soltarem.

Quatro quarteirões ao norte da Ocean Avenue, em Iceberry Way, quando Sam caminhava energicamente, deixando o esforço e o ar frio da noite extrair a raiva de seu íntimo, ouviu passos apressados. Alguém correndo. Três pessoas, talvez quatro. Era um som inconfundível, embora curiosamente furtivo, não a aproximação dos passos ritmados de um corredor.

Virou-se e olhou para trás, ao longo da rua imersa na escuridão Os passos cessaram.

Como a lua crescente fora engolfada pelas nuvens, o cenário, era clareado principalmente pela luz que se filtrava das janelas das casas em estilo bávaro, Monterey, inglês e espanhol, aninhadas entre pinheiros e zimbros nos dois lados da rua. A vizinhança era bem-estabelecida, em grande estilo, mas a ausência de casas modernas com janelas amplas contribuía para aumentar a escuridão. Duas propriedades naquele quarteirão possuíam iluminação de jardim estilo Malibu, coberta e dirigida para baixo, e algumas tinham lampiões nas extremidades dos caminhos de entrada, mas a névoa amortecia aqueles bolsões de iluminação. Até onde Sam podia ver, ele estava sozinho era Iceberry Way.

Recomeçou a andar, mas não avançara metade do quarteirão quando ouviu os passos apressados. Girou nos calcanhares, mas, como antes, não viu ninguém. Desta vez o som desapareceu aos poucos, como se os corredores tivessem saído da calçada pavimentada para uma superfície macia, depois entrado no espaço entre duas casas.      Talvez estivessem em outra rua. Ar frio e neblina podiam pregar peças com o som.

Entretanto, mostrava-se cauteloso e intrigado. Em silêncio, saiu da calçada rachada e levantada pelas raízes das árvores para o gra-mado da frente da casa de alguém e para a escuridão total sob um imenso cipreste. Examinou a vizinhança e logo percebeu um movimento furtivo no lado oeste da rua. Quatro vultos surgiram na esquina de uma casa, correndo agachados. Quando atravessaram um gramado parcialmente iluminado por um par de lâmpadas em postes de ferro, suas sombras distorcidas saltaram loucamente pela frente de uma casa branca de estuque. Aterrissaram numa folhagem densa antes que ele pudesse determinar seu tamanho ou qualquer coisa sobre eles.

Garotos, pensou Sam, e não estão com boas intenções.

Não sabia por que tinha tanta certeza de que eram garotos, talvez porque nem sua agilidade, nem seu comportamento fosse de adultos. Ou estavam empenhados em alguma diabrura contra algum vizinho antipático — ou estavam atrás de Sam. O instinto lhe dizia que estava sendo perseguido.

Seriam delinqüentes juvenis, um problema numa comunidade tão pequena e integrada quanto Moonlight Cove?

Toda cidade tinha alguns garotos maus. Mas no ambiente semi-58   rural de um lugar como aquele, a criminalidade juvenil raramente Incluía atividades de gangues como roubo e agressão, assalto a mão armada, espancamento ou assassinato. Na zona rural, os garotos se metiam em confusão com carros em alta velocidade, bebida, ga rolas e pequenos roubos sem sofisticação, mas não rondavam as ruas aos bandos do modo como seus congêneres o faziam nas cidades maiores.          Entretanto, Sam suspeitava do quarteto que se agachava, invisível, entre as samambaias e azaléias cobertas de sombras, do outro lado da rua e a três casas a oeste de Sam. Afinal, havia alguma coisa errada em Moonlight Cove e era possível que o problema estives-se relacionado a delinqüentes juvenis. A polícia estava ocultando a verdade sobre várias mortes ocorridas nos últimos dois meses e talvez protegessem alguém; por mais improvável que fosse, talvez estivessem encobrindo alguns garotos de famílias proeminentes, garotos que tivessem levado os privilégios de classe longe demais e ultrapassado o permissível, o comportamento civilizado.

Sam não os temia. Sabia como se proteger e portava um 38. Na verdade, gostaria de dar uma lição nos pirralhos. Mas um confronto com um grupo de adolescentes desordeiros significaria uma cena subseqüente com a polícia local e ele preferia não atrair a atenção das autoridades, com receio de atrapalhar sua investigação.

Achou estranho que pensassem em assaltá-lo numa área residencial como aquela. Um grito de alarme que ele desse atrairia as pessoas às varandas para ver o que acontecia. Claro, como queria evitar chamar atenção, ele não iria gritar.

O velho adágio de que a prudência era a melhor parte da coragem nunca fora tão apropriado como naquela circunstância. Afastou-se do cipreste onde se ocultara, saindo da rua e se aproximando da casa às escuras atrás dele. Confiante de que aqueles garotos não sabiam onde ele se metera, planejava sair sorrateiramente da vizinhança e deixá-los para trás.

Alcançou a casa, correu ao longo da parede e entrou no quintal onde um enorme balanço estava tão distorcido pelas sombras e pelo nevoeiro que parecia uma aranha gigante inclinando-se sobre ele na escuridão. No fim do quintal, saltou uma grade de ferro, atrás da qual havia uma viela estreita que dava acesso às garagens separadas das casas do quarteirão. Pretendia tomar a direção sul, de volta à Ocean Avenue e ao centro da cidade, mas um pressentimento levou-o em outra direção. Atravessando a ruela, passando por uma fileira de latões de lixo, saltou outra cerca baixa, aterrissando no gramado dos fundos de uma outra casa que dava para a rua paralela à rua Iceberry.

Tão logo deixou a viela, ouviu passos correndo naquela superfície dura. Os garotos — se é que o eram — pareciam tão rápidos, mas não tão furtivos quanto antes.

Vinham do final do quarteirão, na direção de Sam. Este teve a estranha sensação de que por algum sexto sentido eles seriam capazes de determinar em que quintal ele entrara e o atacariam antes que pudesse alcançar a próxima rua. O instinto lhe disse para parar de correr e se esconder. Estava em boa forma, sim, mas tinha quarenta e dois anos e eles sem dúvida tinham 17 ou menos, e qualquer homem de meia-idade que achasse que conseguia correr mais do que garotos era um idiota.

Ao invés de correr pelo quintal seguinte, moveu-se agilmente para a porta lateral de uma garagem de ripas de madeira, na esperança de que estivesse destrancada. Estava. Entrou na total escuridão e fechou a porta, no exato momento em que ouviu os quatro perseguidores pararem na viela diante da grande porta de correr na outra ponta da garagem. Haviam parado ali não porque soubessem onde ele estava, mas provavelmente porque tentavam decidir que direção ele tomara.

Numa escuridão sepulcral, Sam tateou em busca de um ferro-lho ou uma trava para trancar a porta por onde entrara. Não encontrou nada.

Ouviu os quatro garotos murmurarem entre si, mas não conseguia entender o que diziam. Suas vozes tinham um som estranho: sussurradas e ansiosas.

Sam permaneceu junto à porta menor. Agarrou a maçaneta com ambas as mãos para impedir que girasse, no caso de os garotos darem uma busca em torno da garagem è experimentarem a porta.

Eles silenciaram.

Ele ouviu atentamente.

Nada.

O ar frio recendia a graxa e poeira. Sam não conseguia ver nada, mas presumia que havia um ou dois carros ocupando aquela área.

Embora não estivesse com medo, começava a se sentir idiota. Como tinha se metido naquela enrascada? Era um homem adulto, um agente do FBI treinado numa variedade de técnicas de autodefesa, portando um revólver com que sabia lidar muito bem, e ainda assim escondia-se numa garagem, fugindo de quatro garotos. Entrara ali porque agira por instinto e ele em geral confiava em seu instinto, mas isso era...

Ouviu um movimento furtivo ao longo da parede externa da garagem. Retesou-se. Passos arrastados. Aproximando-se da pequena porta onde ele estava. Até onde Sam podia perceber, ouvia apenas um dos garotos.

Inclinando-se para trás, segurando a maçaneta com ambas as mãos, Sam empurrava a porta com força contra o umbral.

Os passos pararam diante dele.

Ele prendeu a respiração.

Um segundo se passou, dois, três.

Tente a maldita porta e siga em frente, pensou Sam irritado.

A cada segundo, sentia-se mais idiota e estava a ponto de enfrentar o garoto. Poderia saltar da garagem como se saísse de uma caixa de surpresas, deixar o marginalzinho apavorado e fazê-lo sair Britando pela noite.

Então ouviu uma voz do outro lado da porta, a poucos centímetros dele, e embora não soubesse o que, em nome de Deus, estava ouvindo, compreendeu de imediato que tivera razão em confiar cm seu instinto, razão em se ocultar. A voz era fina, áspera, absolutamente enregelante e as cadências ansiosas da fala eram as de um psicótico fora de si ou um viciado há muito necessitado de uma dose.

—        Queimando, preciso, preciso...

Parecia falar consigo mesmo e talvez não tivesse consciência de que o fazia, como um homem com febre balbuciava em delírio.

Um objeto duro raspou o lado externo da porta de madeira. Sam tentou imaginar o que seria.

—        Alimentar o fogo, fogo, alimentar, alimentar — dizia o garoto numa voz fina, desvairada, que era em parte um sussurro, e em parte um gemido e em parte um rosnado baixo e ameaçador.

Não se parecia com a voz de qualquer adolescente que Sam já tivesse ouvido, ou de nenhum adulto, tampouco.

Apesar do ar frio, sua testa estava coberta de suor. O objeto desconhecido arranhava a porta outra vez. O garoto estaria armado? Seria o cano de uma arma arranhando a madeira? A lâmina de uma faca? Apenas um pedaço de pau?

—        ...Queimando, queimando...

Uma garra?

Essa era uma idéia maluca. Entretanto, não conseguia descartá-la. Em sua mente estava a imagem clara de uma garra afiada e dura como um chifre — uma presa — arrancando farpas da porta ao escavar a madeira.

Sam continuou segurando a maçaneta com toda força. O suor escorria por suas têmporas.

O garoto experimentou a porta, afinal. A maçaneta girou nas mãos de Sam, mas este não deixou que ela se mexesse muito.

— ...ah, meu Deus, queima, dói, ah, meu Deus...

Sam finalmente sentiu medo. O garoto soava tão desgraçadamente estranho. Como um viciado voando em algum lugar pela órbita de Marte, só que muito pior, muito mais estranho e mais! perigoso do que qualquer excêntrico viciado em alucinógenos. Sam estava amedrontado porque não sabia com o que estava lidando. O garoto tentou abrir a porta.

Sam manteve-a firme contra o umbral.

Palavras rápidas, desenfreadas:

— ...alimentar o fogo, alimentar o fogo...

Será que pode me farejar aqui?, perguntou-se Sam e, nas circunstâncias, a bizarra idéia não parecia mais louca do que a imagem do garoto com garras.

O coração de Sam batia descompassadamente. O suor ardente penetrava pelos cantos dos olhos. Os músculos de seu pescoço, ombros e braços doíam ferozmente; estava fazendo muito mais força do que o necessário para manter a porta fechada.

Após um instante, aparentemente decidindo que sua presa não estava na garagem afinal, o garoto desistiu. Correu ao longo da lateral do prédio, voltando à viela. Enquanto se afastava às pressas, emitia uma lamúria quase inaudível; era um som de dor, de necessidade... e de excitação animal. Esforçava-se para conter aquele lamento baixo, mas escapava-lhe de qualquer modo.

Sam ouviu passos semelhantes aos de gato se aproximando de várias direções. Os outros três pseudomeliantes reuniram-se ao garoto na viela e suas vozes sussurrantes eram repletas daquele mesmo frenesi que assinalara a dele, embora agora estivessem longe demais para que Sam pudesse ouvir o que diziam. De súbito, silenciaram outra vez e, um instante depois, como se fossem integrantes de uma alcatéia reagindo instintivamente ao cheiro de caça ou perigo, correram como se fossem um só ao longo da viela, na direção norte. Logo seus passos furtivos desapareceram e a noite ficou silenciosa como um túmulo.

Durante vários minutos depois que o bando partiu, Sam continuou parado na garagem escura, segurando a maçaneta com força.

 

 O menino morto estava estatelado numa vala pluvial aberta que corria ao longo da estrada do condado do lado sudeste de Moonlight  Cove. Seu rosto lívido estava salpicado de sangue. No clarão das duas lâmpadas montadas em tripés de cada lado da vala, seus olhos arregalados olhavam fixamente, sem piscar, uma praia imensurável mente mais distante do que o vizinho Pacífico.

Parado junto a uma das lâmpadas cobertas com uma proteção, Loman Watkins olhou para baixo, para o pequeno cadáver, forçando-se a testemunhar a morte de Eddie Valdoski porque Eddie, de apenas oito anos, era seu afilhado. Loman frequentara a escola com o pai de Eddie, George, e, num sentido estritamente platônico, amara a mãe de Eddie, Nella, durante quase vinte anos. Eddie era um ótimo garoto, inteligente, curioso e bem-comportado. Fora. Mas agora... Hediondamente machucado, barbaramente mordido, arranhado e dilacerado, o pescoço quebrado, o menino não passava de um monte de lixo em decomposição, seu promissor potencial destruído, sua chama apagada, privado da vida.

Das inúmeras coisas terríveis com que Loman se defrontara em vinte anos como policial, esta provavelmente era a pior. E, por causa de seu relacionamento pessoal com a vítima, deveria estar profundamente abalado, se não arrasado. Entretanto, a visão do pequenino corpo estraçalhado mal o afetava. Tristeza, dor, raiva c uma torrente de outras emoções atingiam-no, mas apenas leve e brevemente, do modo como peixes invisíveis roçavam um nadador num mar escuro. De pesar, que deveria tê-lo perfurado como pregos, não sentia nada.

Barry Sholnick, um dos novos oficiais da recém ampliada força policial de Moonlight Cove, escancarou as pernas sobre a vala, um pé em cada lado, e tirou uma foto de Eddie Valdoski. Por um instante, os olhos vidrados do menino ficaram prateados com o reflexo do flash.

A crescente incapacidade de Loman de sentir era, estranhamente, a única coisa que evocava sentimentos fortes: apavorava-o. Estava cada vez mais assustado com seu distanciamento emocional, um indesejado, mas aparentemente irreversível, endurecimento do coração que logo o deixaria com aurículas de mármore e ventrículos de pedra comum.

Agora, era um dos membros da Nova Gente, diferente sob muitos aspectos do homem que fora um dia. Ainda parecia o mesmo — 1,75, corpulento, com um rosto largo e notavelmente inocente para um homem em sua profissão —, mas não era apenas o que parecia ser. Talvez um controle maior das emoções, uma perspectiva mais estável e crítica fossem benefícios antecipados da Mudança. Mas seriam realmente benefícios? Não sentir? Não lamentar uma perda?

Embora a noite estivesse fria, um suor salgado brotava de seu rosto, da nuca e das axilas.      O Dr. Ian Fitzgerald, o médico-legista, estava ocupado em outra parte, mas Victor Callan, proprietário da Funerária Callan e assistente do médico-legista, ajudava outro agente, Jules Timmerman, a vasculhar o terreno entre a vala e os bosques próximos. Buscavam pistas que o assassino pudesse ter deixado.

Na verdade, estavam apenas encenando para um punhado de habitantes da região que se reunira do outro lado da estrada. Ainda que pistas fossem achadas, ninguém seria detido pelo crime. Jamais haveria um julgamento. Se encontrassem o assassino de Eddie, iriam escondê-lo e lidar com ele a seu modo, a fim de ocultar a existência da Nova Gente daqueles que ainda não haviam sofrido a Mudança. Porque, sem dúvida, o assassino era o que Thomas Shaddack chamava de "regressivo", um dos pertencentes à Nova Gente que dera errado. Muito errado.

Loman afastou-se do garoto morto. Caminhou de volta pela estrada do condado, em direção à casa de Valdoski, que ficava a poucas centenas de metros ao norte, oculta pelas brumas. Ignorou os espectadores, embora um deles lhe gritasse: — Delegado? O que está acontecendo, delegado? Era uma área semi-rural, quase fora dos limites da cidade. As casas eram bem distantes umas das outras e suas luzes difusas pouco clareavam a noite. A meio caminho da casa de Valdoski, embora estivesse a uma distância em que se gritasse poderia ser ouvido pelos homens na cena do crime, sentiu-se isolado. Árvores, torturadas por muitos anos pelo vento do mar em noites muito menos calmas do que esta, curvavam-se sobre a estrada de mão dupla, os galhos desalinhados pendentes sobre o acostamento de cascalho por onde andava. Ficava imaginando movimento nos galhos acima dele, na escuridão e no nevoeiro entre os troncos contorcidos das árvores.

Colocou uma das mãos sobre a coronha do revólver que estava no coldre preso à cintura.

Loman Watkins era o delegado de Moonlight Cove há nove anos, e no último mês mais sangue fora derramado em sua jurisdição do que em todos os oito anos e onze meses precedentes. Estava convencido de que o pior estava por vir. Tinha o pressentimento de que os regressivos eram mais numerosos e um problema maior do que Shaddack se dava conta — ou estivesse disposto a admitir.

Temia os regressivos quase tanto quanto a nova, fria e desapaixonada perspectiva de si mesmo.

Ao invés de dor e alegria e tristeza, o medo absoluto era um   mecanismo de sobrevivência, de modo que talvez não perdesse o contato com ele tão completamente quanto estava perdendo com as outras emoções. Esse pensamento deixou-o mais apreensivo do que o movimento fantasma nas árvores.

Seria o medo, imaginou, a única emoção que medraria neste admirável mundo novo que estamos criando?

 

 Depois de um engordurado cheeseburger, batatas fritas saturadas de gordura e uma garrafa gelada de Dos Equis na deserta lanchonete do Cove Lodge, Tessa Lockland voltou para seu quarto, recostou-se nos travesseiros na cama e telefonou para sua mãe em San Diego. Marion atendeu o telefone à primeira chamada e Tessa disse:

—        Oi, mamãe.

—        Onde você está, Tejota?

Quando criança, Tessa nunca conseguia decidir se queria ser chamada pelo primeiro nome ou pelo segundo, Jane, de modo que sua mãe sempre a chamava pelas iniciais, como se formassem um nome.

—        Cove Lodge — disse Tessa.

—        É bom?

—        O melhor que consegui encontrar. Não é uma cidade que se preocupe em ter acomodações turísticas de primeira classe. Se não tivesse uma vista tão espetacular, o Cove Lodge seria um desses lugares capazes de sobreviver apenas exibindo filmes pornográficos em circuito fechado de tevê e alugando quartos por hora.

—        É limpo?

—        Razoavelmente.

—        Se não fosse limpo, insistiria em que se mudasse imedia tamente.

—        Mãe, quando estou na locação, fazendo um filme, nem sem pre tenho acomodações luxuosas, sabe. Quando fiz aquele documentário sobre os índios misquito na América Central, fiquei nas cabanas com eles e dormi na lama.

—        Tejota, querida, nunca diga às pessoas que dormiu na la ma. Porcos é que dormem na lama. Deve dizer que dormiu ao re- lento ou acampou, mas nunca diga que dormiu na lama. Mesmo experiências desagradáveis podem ser valiosas se a pessoa conservar o senso de dignidade e o estilo.

  —      Sim, mamãe, eu sei. A questão é que o Cove Lodge não é excelente, mas é melhor do que dormir na lama.

—        Acampar.

—        Melhor do que acampar — corrigiu-se Tessa.

Ambas ficaram em silêncio por um instante. Então, Marion disse:

—        Droga, eu devia estar aí com você.

—        Mamãe, você está com a perna quebrada.

—        Devia ter ido para Moonlight Cove assim que soube que ha viam encontrado a pobre Janice. Se eu estivesse aí, não teriam cremado o corpo. Por Deus, não teriam! Eu teria impedido isso e providenciado outra autópsia com autoridades confiáveis e agora não haveria necessidade de você se envolver. Estou com tanta raiva de mim mesma!

Tessa deixou-se afundar nos travesseiros e suspirou:

—        Mamãe, não faça isso com você mesma. Você quebrou a perna três dias antes do corpo de Janice ser encontrado. Não consegue viajar agora e também não conseguia viajar na ocasião. Não é culpa sua.

—        Houve uma época em que uma perna quebrada não me deteria.

—        Você já não tem vinte anos, mamãe.

—        Sim, eu sei, estou velha — disse Marion desconsolada. — Às vezes penso em como estou velha e fico apavorada.

—        Tem apenas sessenta e quatro anos, não aparenta nem um dia mais do que cinqüenta e quebrou a perna saltando de pára- quedas, pelo amor de Deus, de modo que não vai conseguir nenhuma piedade de mim.

—        Consolo e piedade é o que uma velha mãe espera de uma boa filha.

—        Se me pegasse chamando-a de velha ou tratando-a com piedade, me daria um chute no traseiro que eu iria parar na China.

—        A oportunidade de chutar o traseiro de uma filha de vez em quando é um dos prazeres do final da vida de uma mãe, Tejota.

Diabos, de onde surgiu aquela árvore, afinal? Eu salto de pára- quedas há trinta anos e nunca aterrissei numa árvore. Juro que ela não estava lá quando olhei para baixo na aproximação final para escolher meu ponto de aterrissagem.

Embora uma certa dose do inabalável otimismo e da espirituosidade da família Lockland viesse do falecido pai de Tessa, Bernard, uma grande parte — bem como, em grande medida, um caráter indomável — fluía da combinação de genes de Marion.

Tessa disse:

—        Esta noite, pouco antes de voltar aqui, fui até a praia onde a encontraram.

—        Deve ser terrível para você, Tejota.

—        Posso lidar com isso.

Quando Janice morreu, Tessa estava viajando pelo interior do Afeganistão, pesquisando os efeitos da guerra genocida no povo e na cultura afegãos, pretendendo escrever o roteiro de um documentário sobre o assunto. Sua mãe só conseguiu avisar Tessa da morte de Janice duas semanas depois de o corpo ter aparecido na praia de Moonlight Cove. Há cinco dias, em 8 de outubro, ela voara do Afeganistão com a sensação de ter falhado com sua irmã. Sua carga de culpa era pelo menos tão pesada quanto a de sua mãe, mas o que ela dissera era verdade: podia lidar com isso.

—        Você tinha razão, mamãe. A versão oficial cheira mal.

—        O que descobriu?

—        Nada, por enquanto. Mas fiquei parada na areia, onde ela teria tomado o Valium, onde partiu para seu último nado, onde a encontraram dois dias depois e soube que toda a história deles era lixo. Sinto em minhas entranhas, mamãe. E, de uma forma ou de outra, vou descobrir o que realmente aconteceu.

—        Precisa tomar cuidado, querida.

—        Tomarei.

—        Se Janice foi... assassinada...

—        Não se preocupe comigo.

—        E se, como suspeitamos, a polícia daí não é confiável...

—        Mamãe, tenho um metro e sessenta e um, loura, olhos azuis, esperta e com uma aparência tão perigosa quanto um esquilo de Dis ney. Toda a vida tive que lutar contra minha aparência para ser levada a sério. Todas as mulheres ou querem cuidar de mim como se fossem minha mãe ou ser minha irmã mais velha, e os homens ou querem ser meu pai ou me enganar, mas bem poucos conseguem ver além da aparência e perceber que eu tenho um cérebro que é, acredito firmemente, maior do que o de um mosquito; em geral têm que me conhecer há algum tempo. Portanto, usarei minha aparência ao invés de lutar contra ela. Ninguém aqui vai me ver como uma ameaça.

—        Manterá contato?

—        Claro.

—        Se sentir que corre perigo, vá embora, saia daí.

—        Não se preocupe.

—        Prometa que não ficará se for perigoso — insistiu Marion.

—        Prometo. Mas terá que me prometer que não vai mais saltar de aviões por um bom tempo.

—        Estou velha demais para isso, querida. Sou uma velha agora. Uma anciã. Vou ter que buscar interesses adequados à minha idade. Sempre quis aprender esqui aquático, por exemplo, e aquele documentário que você realizou sobre cross-country fez aquelas motocicletas parecerem tão divertidas.

—        Eu a adoro, mamãe.

—        Eu a amo, Tejota. Mais do que à própria vida.

—        Eu os farei pagar por Janice.

—        Se houver alguém que mereça pagar. Apenas lembre-se, Te jota, que nossa Janice se foi, mas você ainda está aqui e seu princi pal compromisso nunca deve ser para com os mortos.

 

George Valdoski estava sentado à mesa de fórmíca da cozinha. Embora suas mãos calejadas pelo trabalho se fechassem com força em volta de um copo de uísque, não conseguia impedir que tremessem; a superfície da bebida âmbar tremia sem parar.

Quando Loman Watkins entrou e fechou a porta, George nem sequer ergueu os olhos. Eddie fora seu único filho.

George era alto, de peito e ombros largos. Devido aos olhos fundos e muito juntos, lábios finos e traços acentuados, tinha uma aparência severa e mesquinha, apesar de ser um homem atraente no aspecto geral. A aparência intimidativa, entretanto, era enganosa, porque era um homem sensível, bom e de fala mansa.

—        Como você está? — perguntou Loman.

George mordeu o lábio inferior e sacudiu a cabeça como se dissesse que atravessaria aquele pesadelo, mas não encarou Loman.

—        Vou dar uma olhada em Nella — disse Loman.

Desta vez George nem sequer sacudiu a cabeça.

Enquanto Loman atravessava a cozinha profusamente iluminada, seus sapatos de sola dura rangeram no assoalho de linóleo. Parou no umbral que dava para a pequena sala de jantar e olhou para o amigo.

—        Nós encontraremos o desgraçado, George. Juro que o encontraremos.

George ergueu os olhos do uísque. Lágrimas brilhavam em seus olhos, mas não permitiu que escorressem. Era um polaco orgulhoso, cabeça dura, determinado a ser forte. Ele disse:

  —      Eddie estava brincando no quintal ao anoitecer, logo ali no quintal, de onde poderia ser visto de qualquer janela, em seu próprio quintal. Quando Nella o chamou para  jantar logo que escureceu, quando ele não veio nem respondeu, achamos que tivesse ido a casa de um dos vizinhos brincar com outros garotos, sem nos avisar como deveria.

Havia contado tudo isso antes, mais de uma vez, mas precisava repassar toda a história várias vezes, como se a repetição pudesse esgotar a dura realidade e assim mudá-la, como tocar uma fita cassete milhares de vezes pudesse apagar a música e deixar um zumbido inofensivo.

—        Começamos a procurá-lo, não conseguíamos encontrá-lo, no princípio não ficamos preocupados; na verdade, estávamos um pouco zangados com ele; mas logo começamos a ficar preocupados e um pouco assustados e eu já estava prestes a pedir sua ajuda quando o encontramos lá na vala, Jesus, todo estraçalhado na vala.

Respirou fundo duas vezes e as lágrimas contidas brilharam intensamente em seus olhos.

—        Que espécie de monstro faria isso a uma criança, levá-la para algum lugar e fazer isso e, depois, ser cruel o suficiente para trazê- la de volta aqui e abandoná-la onde a pudéssemos encontrar? Tem que ter sido desta forma, senão, teríamos ouvido... ouvido os gritos se o miserável tivesse feito tudo aquilo a Eddie em algum lugar por aqui. Tem que tê-lo levado para longe, feito o que fez e depois trazido de volta para que pudéssemos encontrá-lo. Que espécie de homem é esse, Loman? Pelo amor de Deus, que espécie de homem?

—        Psicótico — disse Loman, como dissera antes, e isto era ver dade. Os regressivos eram psicóticos. Shaddack cunhara um termo para a condição deles: psicose metamórfico-relacionada. — Provavelmente drogado — acrescentou e agora estava mentindo. Drogas, ao menos a farmacopéia ilegal convencional, nada tinham a ver com a morte de Eddie. Loman ainda estava surpreso em como era fácil para ele mentir para um velho amigo, algo que antes seria incapaz de fazer. A imoralidade de mentir era um conceito mais próprio à Antiga Gente e seu mundo turbulentamente emocional. Conceitos antiquados do que era imoral não deveriam ter mais nenhum significado para a Nova Gente, pois, caso se transformassem como Shaddack acreditava que o fariam, eficiência e conveniência e máximo desempenho seriam as únicas verdades morais.

—        O país está cheio de loucos drogados. Cérebros destruídos.

Sem valores morais, sem objetivos, exceto emoções baratas. São nossa herança da recente Era do Faça O que lhe Aprouver. Esse sujeito era um monstro alucinado por drogas, George, e juro a você que o pegaremos.

George olhou para o uísque outra vez. Tomou um gole. Então disse, mais para si mesmo do que para Loman:

— Eddie estava brincando no quintal ao anoitecer, logo ali no quintal, de onde se podia vê-lo de qualquer janela... — Sua voz sumiu aos poucos.

Relutantemente, Loman subiu as escadas para o quarto principal, para ver como Nella estava enfrentando a situação.

Ela estava deitada na cama, recostada nos travesseiros, e o Dr. Jim Worthy sentava-se em uma cadeira que aproximara da cama.. Ele era o mais jovem dos três médicos de Moonlight Cove, 38 anos, um homem sério, com um bigode muito bem aparado, óculos de aro de metal e uma predileção por gravata-borboleta.

A maleta do médico estava no chão a seus pés. Um estetoscópio pendia de seu pescoço. Enchia uma seringa anormalmente grande í de um frasco de 180 mililitros de um líquido dourado.

Worthy voltou-se para olhar para Loman. Seus olhos se encontraram e não precisaram dizer nada.

Ou por ter ouvido os passos abafados de Loman ou por ter pressentido sua presença por meios mais sutis, Nella Valdoski abriu os olhos, vermelhos e inchados de tanto chorar. Ainda era uma linda mulher de cabelos louros e feições que pareciam delicadas demais para ser obra da natureza, mais provável ser a fina arte de um grande escultor. Sua boca suavizou-se e tremeu quando pronunciou o nome dele:

—        Ah, Loman.

Ele rodeou a cama, para o lado oposto do Dr. Worthy e segurou a mão que Nella lhe estendia. Estava úmida, fria e trêmula.

—        Vou lhe dar um tranqüilizante — disse Worthy. — Ela precisa relaxar, até dormir se puder.

—        Não quero dormir — disse Nella. — Não posso dormir. Não depois... não depois deste... nunca mais depois disto.    —       Calma — disse Loman, esfregando a mão dela com delicadeza. Sentou-se na borda da cama. — É para o seu bem, Nella.

Durante metade de sua vida, Loman amara aquela mulher, a mulher de seu melhor amigo, embora nunca tivesse revelado seus sentimentos. Sempre dissera a si mesmo que se tratava de uma atração estritamente platônica. Olhando-a agora, entretanto, compreendeu que a paixão fazia parte do que sentira.

O desconcertante era que... bem, embora soubesse o que sentira por ela todos esses anos, embora se lembrasse, já não podia sentir. Seu amor, sua paixão, seu agradável embora melancólico anseio desaparecera como a maior parte de suas outras reações emocionais; ainda tinha consciência de seus sentimentos anteriores por ela, mas eram como um outro aspecto de si mesmo que se destacara do todo e se afastara, como um espírito saindo de um corpo sem vida.

Worthy colocou a seringa cheia sobre a mesinha-de-cabeceira. Desabotoou e levantou a manga da blusa de Nella, em seguida amarrou uma tira de borracha em volta do seu braço, apertada o suficiente para tornar uma veia mais visível.

Enquanto o médico esfregava o braço de Nella com um algodão embebido em álcool, ela perguntou:

—        Loman, o que vamos fazer?

—        Tudo vai ficar bem — disse ele, acariciando a mão dela.

—        Não. Como pode dizer isso? Eddie está morto. Ele era tão meigo, tão pequeno e meigo, e agora ele se foi. Nada vai ficar bem outra vez.

—        Logo vai se sentir melhor — assegurou-lhe Loman. — An tes que o perceba, a dor terá desaparecido. Não vai ter tanta impor tância quanto agora. Prometo-lhe.

Nella pestanejou e olhou-o fixamente, como se ele estivesse dizendo uma tolice, mas ela não sabia o que estava prestes a lhe acontecer.

Worthy enfiou a agulha em seu braço.

Ela contorceu-se.

O líquido dourado fluiu da seringa para a sua corrente sangüínea. Ela fechou os olhos e começou a chorar baixinho outra vez, não por causa da dor da injeção, mas pela perda de seu filho.

Talvez seja melhor não se importar tanto, não amar tanto, pensou Loman.

A seringa estava vazia.

Worthy tirou a agulha de sua veia.

Os olhos de Loman e do médico tornaram a se encontrar.

Nella estremeceu.

A Mudança exigiria mais duas injeções e alguém teria de ficar com Nella nas próximas quatro ou cinco horas, não só para administrar a droga, mas para se certificar de que ela não ferisse a si própria durante a conversão. Tornar-se uma Nova Pessoa não era um processo indolor.

Nella estremeceu de novo.

Worthy inclinou a cabeça e a luz do abajur atingiu seus óculos de aro de metal em novo ângulo, transformando as lentes em espelhos que por um instante esconderam seus olhos, dando-lhe uma aparência ameaçadoramente estranha.

Tremores, mais violentos e prolongados desta vez, sacudiram o corpo de Nella.

Da porta, George Valdoski perguntou:

  —      O que está acontecendo?

Loman estava tão concentrado em Nella que não ouviu George se aproximar. Levantou-se imediatamente e soltou a mão de Nella.

—        O doutor achou que ela precisava de...

—        Para que esta agulha de cavalo? — perguntou George, referindo-se à enorme seringa. A agulha mesmo não era maior do que uma agulha hipodérmica comum.

—        Um tranqüilizante — disse o dr. Worthy. — Ela precisa de...

—        Tranqüilizante? — interrompeu George. — Parece que lhe deu uma dose suficiente para derrubar um touro.

Loman disse:

—        Ora, George, o doutor sabe o que ele...

Na cama, Nella caiu sob o efeito da injeção. Seu corpo retesou-se de repente, as mãos dobraram-se em punhos cerrados, os dentes cerraram-se e os músculos de seus maxilares incharam. Na garganta e nas têmporas, as artérias intumesceram-se e começaram a pulsar visivelmente enquanto as batidas de seu coração se aceleravam. Seus olhos vidraram-se e ela entrou na penumbra que caracterizava a Mudança, nem consciente nem inconsciente.

— O que há de errado com ela? — perguntou George. Entre os dentes cerrados, os lábios retraídos num esgar de dor, Nella deixou escapar um gemido longo e estranho. Arqueou as costas até somente seus ombros e calcanhares ficarem em contato com a cama. Parecia tomada de uma energia violenta, como se fosse uma caldeira com excesso de pressão de vapor e por um instante pareceu que ia explodir. Em seguida, deixou-se cair no colchão, estremeceu ,  mais violentamente do que nunca e começou a suar em profusão. George olhou para Worthy, depois para Loman. Era evidente que percebia que havia alguma coisa muito errada, embora não conseguisse compreender a natureza do que estava errado.

—        Pare. — Loman sacou o revólver quando George recuou em direção ao corredor do segundo andar. — Entre, George, e deite na cama ao lado de Nella.

No vão da porta, George Valdoski ficou paralisado, olhando perplexo para o revólver, sem poder acreditar.

—        Se tentar fugir — disse Loman —, vou ter que atirar em você e não quero fazer isso.

—        Você não o faria — disse George, contando com décadas de amizade para protegê-lo.

—        Sim, eu o faria — disse Loman com frieza. — Eu o mataria se fosse preciso e encobriríamos o crime com uma história que você não iria gostar. Diríamos que o pegamos numa contradição, que en contramos provas de que foi você quem matou Eddie, matou seu próprio filho, algo a ver com perversão sexual e, quando o confrontamos com provas, você arrancou o revólver do meu coldre. Houve luta. Você foi baleado. Caso encerrado.

Vindo de alguém considerado amigo íntimo e querido, a ameaça de Loman era tão monstruosa que, a princípio, George ficou sem fala. Em seguida, enquanto entrava novamente no quarto, disse:

—        Deixaria os outros pensarem... pensarem que eu fiz aquelas coisas horríveis a Eddie? Por quê? O que está fazendo, Loman? O que diabos está fazendo? Quem... quem você está protegendo?

—        Deite-se na cama — disse Loman.

O dr. Worthy preparava outra seringa para George.

Na cama, Nella tremia sem parar, contorcendo-se, debatendo-se. O suor escorria pelo seu rosto, seus cabelos estavam úmidos e emaranhados. Seus olhos estavam abertos, mas ela parecia alheia à presença dos outros no quarto. Talvez nem tivesse consciência do que faziam. Via um lugar distante daquele quarto ou olhava para dentro de si mesma; Loman não sabia e não se lembrava de sua própria conversão, exceto que a dor era excruciante.

Aproximando-se da cama com relutância, George Valdoski disse:

—        O que está acontecendo, Loman? Por Deus, o que é isso?

O que há de errado?

—        Tudo vai dar certo — assegurou-lhe Loman. — É para o seu bem, George. Realmente é.

—        O que é para o meu bem? O que em nome de Deus...

—        Deite-se, George. Tudo vai dar certo.

—        O que está acontecendo a Nella?

—        Deite-se, George. É para o seu bem — disse Loman.

—        É para o seu bem — concordou o Dr. Worthy ao terminar de encher a seringa de um novo frasco de líquido dourado.

—        É realmente para o seu bem — disse Loman. — Confie em mim. — Com o revólver, fez sinal para que George se encaminhas se para a cama e sorriu tranqüilizadoramente.

 

 A casa de Harry Talbot era de sequóia, no estilo Bauhaus, com uma profusão de grandes janelas. Ficava a três quarteirões do centro de Moonlight Cove, do lado leste da Conquistador Avenue, assim chamada pelo fato de que conquistadores espanhóis haviam acampado naquela região há muitos séculos, quando acompanhavam o clero católico ao longo da costa da Califórnia fundando missões. Em raras ocasiões, Harry sonhava que era um desses antigos soldados, marchando para o norte em território inexplorado, e era sempre um bom sonho porque, naquelas aventuras fantasiosas, ele nunca estava preso a uma cadeira de rodas.

A maior parte de Moonlight Cove era construída em colinas arborizadas de frente para o mar e o terreno de Harry descia em ladeira até a Conquistador, fornecendo um posto de observação perfeito para um homem cuja principal atividade na vida era observar seus concidadãos. Do seu quarto no terceiro andar no canto noroeste da casa, podia ver ao menos partes de todas as ruas entre a Conquistador e a enseada — Juniper Lane, Serra Street, Roshmore Way e Cypress Lane —, assim como as ruas transversais que corriam no sentido leste-oeste. Para o norte, podia vislumbrar partes da Ocean Avenue e até mais longe. Obviamente, a largura e a profundidade do seu campo de visão teriam sido limitadas de forma drástica se sua casa não tivesse um andar a mais do que a maioria das casas ao redor e se não estivesse equipado com um telescópio refrator de 60mm f/8 e um bom par de binóculos.

Às nove e meia da noite de segunda-feira, 13 de outubro, Harry estava em seu banco feito sob medida, entre as enormes janelas voltadas para o norte e oeste, inclinado sobre a ocular do telescópio. O banco alto possuía braços e um espaldar como uma cadeira, quatro resistentes pés abertos para o máximo de equilíbrio e uma base com contrapeso para impedir que virasse com facilidade quando estivesse se erguendo para ele de sua cadeira de rodas. Tinha também um cinto de segurança, algo semelhante ao de um carro, que lhe permitia inclinar-se para a frente, para o telescópio, sem escorregar e cair no chão.

Como sua perna e seu braço esquerdos eram inteiramente inúteis, como sua perna direita era fraca demais para sustentá-lo, como podia contar apenas com seu braço direito — que, graças a Deus, os vietcongues haviam poupado —, até mesmo transferir-se da cadeira de rodas motorizada para um banco feito sob medida era um empreendimento torturante. Mas o esforço valia a pena, porque a cada ano Harry Talbot vivia mais através de seu telescópio e dos seus binóculos do que no anterior. Encarapitado no banco especial, ele às vezes quase se esquecia de sua deficiência, porque a seu modo estava participando da vida.

Seu filme preferido era Janela Indiscreta, com Jimmy Stewart. Vira-o provavelmente umas centenas de vezes.

No momento, o telescópio estava focalizado nos fundos da Funerária Callan, a única de Moonlight Cove, no lado leste da Juniper Lane, que corria paralela à Conquistador, mas ficava um quarteirão mais próxima do mar. Podia ver o local focalizando entre duas casas do lado oposto da sua própria rua, depois do grosso tronco do pinheiro Big Cone e da viela de acesso que corria entre a Juniper e a Conquistador. A funerária dava fundos para a viela e Harry tinha uma vista que incluía um canto da garagem onde o carro fúnebre ficava estacionado, a entrada dos fundos do próprio prédio e a entrada para a nova ala onde os corpos eram embalsamados e preparados para o velório ou cremados.

Nos últimos meses, andara vendo coisas estranhas na Callan. Esta noite, entretanto, nenhuma atividade incomum animava a paciente vigilância de Harry sobre o lugar.

—        Moose?

O cachorro ergueu-se do seu lugar de descanso no canto e atravessou o quarto escuro na direção de Harry. Era um labrador preto e adulto, quase invisível na escuridão. Esfregou o focinho na perna de Harry: na direita, onde ele ainda tinha alguma sensibilidade.

Estendendo a mão, Harry afagou a cabeça de Moose.

—        Pegue uma cerveja para mim, companheiro.

Moose era um cão de companhia criado e treinado pela Canine Companions for Independence, e sempre ficava feliz de ser solicitado. Correu à pequena geladeira no canto, do tipo projetado para ser usada sob o balcão em restaurantes e que podia ser aberta por um pedal.

—        Não há nenhuma aí — disse Harry. — Esqueci-me de trazer uma embalagem de seis da cozinha esta tarde.

O cachorro já descobrira que a geladeira do quarto não continha nenhuma cerveja Coors. Dirigiu-se ao corredor, as patas batendo de leve no lustroso assoalho de madeira. Nenhum dos aposentos tinha carpetes porque a cadeira de rodas deslizava melhor em superfícies duras, No corredor, o cachorro pulou, calcou o botão do elevador com uma das patas e imediatamente o ronco surdo da maquinaria do elevador encheu a casa.

Harry voltou sua atenção para o telescópio e para os fundos da Funerária Callan. O nevoeiro atravessava a cidade em ondas, algumas vezes denso e ofuscante, outras transparente. Mas os fundos da casa mortuária estavam profusamente iluminados, dando-lhe uma visão clara; pelo telescópio, ele parecia estar de pé entre as pilastras gêmeas de tijolos que flanqueavam a entrada de carros que dava acesso aos fundos da propriedade. Se a noite estivesse límpida, ele teria podido contar os rebites na porta metálica da sala de embalsama-mento e cremação.

Atrás dele, as portas do elevador se abriram. Ouviu Moose entrar no elevador. Em seguida, começou a descer para o primeiro andar.

Entediado com a Callan, Harry girou o telescópio para a esquerda, mudando o campo de visão na direção sul, para o grande terreno vazio adjacente à funerária. Ajustando o foco, olhou para a propriedade vazia e para o outro lado da rua, para a casa de Gosdale, no lado oeste da Juniper, parando à janela da sala de jantar. Com a mão boa, desatarraxou a ocular e a colocou numa mesa alta de metal ao lado do banco, substituindo-a rápida e agilmente por uma das diversas outras oculares e, assim, permitindo uma visão mais nítida dos Gosdales. Como a névoa estava numa fase mais transparente, podia ver o interior da sala de jantar dos Gosdales quase tão bem quanto se estivesse agachado na varanda com o rosto na janela. Herman e Louise Gosdale jogavam cartas com seus vizinhos, Dan e Vera Kaiser, como faziam toda segunda-feira à noite e, às vezes, às sextas-feiras.

O elevador chegou ao térreo; o motor parou de gemer e o silêncio voltou à casa. Moose estava dois andares abaixo, percorrendo o corredor em direção à cozinha.

Em noites muito claras, quando Dan Kaiser estava sentado de costas para a janela e no ângulo certo, Harry às vezes podia ver as cartas na mão do homem. Algumas vezes, sentira-se tentado a telefonar para Herman Gosdale e descrever-lhe as cartas de seu adversário, com alguns conselhos sobre como vencê-lo.

Mas não ousava revelar às pessoas como ele passava a maior parte do seu dia no quarto de dormir — às escuras à noite para evitar ser visto contra a luz — participando indiretamente de suas vidas. Não o compreenderiam. Para começar, as pessoas sem defeitos físicos ficavam apreensivas com os deficientes, pois eram capazes de acreditar que a deformidade de pernas e braços se estendia à mente. Iriam achar que era abelhudo; pior, poderiam julgá-lo um bisbilhoteiro, um voyeur degenerado.

Não era esse o caso. Harry Talbot estabelecera regras rígidas sobre a utilização de seu telescópio e binóculos e as seguia fielmente. Por exemplo, ele jamais tentaria ver uma mulher despida.

Arnella Scarlatti morava do outro lado da rua, três casas adiante da sua e ele uma vez descobrira, por acaso, que ela passava algumas noites em seu apartamento, ouvindo música e lendo, nua. Acendia apenas um pequeno abajur ao lado da cama e havia um tecido diáfano entre as cortinas laterais, e ela sempre se mantinha distante das janelas, de modo que não via necessidade de cerrar as cortinas. Na verdade, não podia ser vista por ninguém menos preparado do que Harry. Arnella era adorável. Apesar do tecido fino na janela e da meia-luz, seu corpo extraordinário revelara-se a Harry em detalhes. Atônito com sua nudez, atraído pela surpresa e pelas curvas sensuais de seu corpo de seios volumosos e longas pernas, fitara-a talvez durante um minuto. Em seguida, tão afogueado e desconcertado quanto excitado, desviara dela o raio de observação. Embora Harry não tivesse uma mulher há mais de vinte anos, nunca mais invadira o quarto de Arnella outra vez. Em muitas manhãs, olhava de soslaio pela janela lateral para sua cozinha impecável no primeiro andar e a observava no café da manhã, examinando seu rosto perfeito enquanto tomava suco de laranja com pãozinho ou torrada e ovos. Era mais linda do que suas habilidades de descrição e, pelo que sabia de sua vida, parecia boa pessoa, também. De certa forma, achava que estava apaixonado por ela, como um garoto poderia estar apaixonado pela professora para sempre fora do seu alcance, mas nunca usava seu amor não correspondido como desculpa para acariciar seu corpo despido com o olhar.

Da mesma forma, se surpreendia um de seus vizinhos em qualquer outro tipo de situação embaraçosa, desviava o olhar. Via-os brigarem entre si, sim, e observava-os rindo, comendo, jogando cartas, trapaceando as dietas, lavando louça e realizando os demais atos incontáveis da vida diária, mas não porque quisesse descobrir seus defeitos ou se sentir superior a eles. Não auferia nenhuma emoção barata de suas observações. O que queria era fazer parte de suas vidas, alcançá-los — ainda que apenas de um lado — e fazer deles uma extensão de família; queria ter razões para se importar com eles e, através deste cuidado, experimentar uma vida emocional mais rica.

O motor do elevador zumbiu de novo. Moose fora à cozinha, abrira uma das quatro portas da geladeira comercial e pegara uma garrafa gelada de Coors. Agora, voltava com a cerveja.

Harry Talbot era um homem gregário e, ao voltar da guerra com apenas um braço útil, foi aconselhado a se mudar para uma instituição para deficientes físicos, onde poderia ter vida social num ambiente acolhedor. Os conselheiros avisaram-no de que ele não seria aceito se tentasse viver no mundo dos intatos e saudáveis; disseram-lhe que iria enfrentar uma inconsciente mas dolorosa crueldade da maior parte das pessoas que encontrasse, especialmente a crueldade da impensada exclusão, e seria dominado afinal por uma profunda e terrível solidão. Mas Harry era tão teimosamente independente quanto gregário, e a perspectiva de viver numa instituição para deficientes, com a companhia exclusiva de deficientes e zeladores parecia-lhe pior do que nenhuma companhia. Agora vivia sozinho, apenas com Moose, com poucas visitas além de sua faxineira semanal, a Sra. Hunsbok (de quem ele escondia o telescópio e os binócu los no guarda-roupa). Muito do que os conselheiros avisaram-no pro vava ser verdadeiro; entretanto, não conheciam a capacidade de Harry de encontrar consolo e uma sensação suficiente de pertencer a uma família através da clandestina, mas benigna observação de seus vizinhos.             O elevador chegou ao terceiro andar. A porta abriu-se e Moose dirigiu-se em silêncio para o quarto, direto para o banco de Harry.

O telescópio ficava sobre uma plataforma com rodas e Harry afastou-o para o lado. Estendeu o braço e afagou a cabeça do ca chorro. Pegou a lata gelada da boca do labrador. Moose segurara-a pelo fundo para maior higiene. Harry colocou a cerveja entre as per nas inertes, apanhou uma caneta-lanterna da mesa do outro lado do banco e dirigiu a luz para a lata, para se certificar de que era Coors e não Diet Coke.  Estas eram as duas bebidas que o cachorro fora treinado para buscar, e em geral, o obediente animal reconhecia a diferença entre as palavras "cerveja" e "Coke" e era capaz de manter a ordem na cabeça até chegar à cozinha. Em raras ocasiões, ele esquecia-se ao longo do caminho e voltava com a bebida errada. Mais raramente ainda, trazia outros itens que nada tinham a ver com a ordem que recebera: um chinelo; um jornal; duas vezes, uma caixa fechada de biscoitos para cachorro; uma vez, um ovo cozido, carregado com tanto cuidado que a casca não se quebrou entre seus dentes; mais estranho ainda, uma escova de vaso sanitário dos apetrechos da faxineira. Quando trazia o objeto errado, Moose sempre se saía bem na segunda tentativa.

Há muito Harry concluíra que o cachorro muitas vezes não cometera um erro, mas estava apenas se divertindo com ele. Sua atenta observação de Moose o havia convencido de que os cachorros tinham o dom do senso de humor.

Dessa vez, nem erro, nem brincadeira, Moose trouxera o que lhe fora pedido. A sede de Harry aumentou à vista da lata de Coors.

Apagando a lanterna, disse:

—        Bom garoto. Bom, muito bom, ótimo garoto.

Moose choramingou de felicidade. Sentou-se atento na escuridão, aos pés do banco, esperando ser enviado em outra incumbência.

—        Vá, Moose. Vá se deitar. Esse é um bom cachorro.

Decepcionado, o labrador arrastou-se até o canto e enroscou-se no assoalho, enquanto seu dono fazia saltar a tampinha da Coors e tomava um gole longo.

Harry colocou a cerveja de lado e puxou o telescópio para a sua frente. Voltou à atenta observação da noite, da vizinhança e de sua família estendida.

Os Gosdales e os Kaisers ainda jogavam cartas.

Nada além de redemoinhos de neblina se movia na Funerária Callan.

Um quarteirão ao sul, na Conquistador, no momento iluminado pelas luzes do jardim da casa dos Sternbacks, Ray Chang, o proprietário" da única loja de televisão e aparelhos eletrônicos, vinha naquela direção. Levava seu cachorro, Jack, um excelente cão de busca, para passear. Caminhavam devagar, enquanto Jack cheirava cada árvore ao longo da calçada, procurando a árvore certa para se aliviar.

A tranqüilidade e familiaridade de cenas como aquela agradavam a Harry, mas o clima reinante foi bruscamente desfeito quando ele desviou sua atenção através da janela norte para a casa dos Simpsons. Ella e Denver Simpson moravam numa casa em estilo espanhol, de cor creme e telhas vermelhas do outro lado da Conquistador e dois quarteirões ao norte, logo depois do velho cemitério católico e um quarteirão para este lado da Ocean Avenue. Como nada no cemitério — exceto parte de uma árvore — obstruísse a visão de Harry da propriedade dos Simpsons, ele podia obter uma visão em ângulo, mas bem focalizada, de todas as janelas nos dois lados da casa. Focalizou a cozinha iluminada. Assim que a imagem na ocular passou de uma borrão indistinto para um quadro perfeitamente nítido, ele viu Ella Simpson lutando com seu marido, que a pressionava contra a geladeira; ela debatia-se em suas mãos, tentando arranhá-lo no rosto, gritando.

Um calafrio percorreu a espinha danificada por estilhaços de bala de Harry.

Compreendeu de imediato que o que ocorria na casa dos Simpsons tinha relação com outros acontecimentos desconcertantes que vira nos últimos tempos. Denver era o agente do correio de Moonlight Cove e Ella dirigia um bem-sucedido salão de beleza. Deviam estar na casa dos trinta anos, um dos poucos casais negros da cidade e, ao que Harry sabia, eram felizes no casamento. O confronto físico era tão fora de propósito que tinha que estar relacionado com os recentes acontecimentos inexplicáveis e nefastos que Harry testemunhara.

Ella conseguiu se desvencilhar de Denver. Ela dera apenas um passo cambaleante para longe dele, quando o marido deu-lhe um soco. O golpe atingiu-a no pescoço. Ela caiu. Com toda força.

No canto do quarto de Harry, Moose detectou uma nova tensão em seu dono. O cachorro ergueu a cabeça e resfolegou uma, duas vezes.

Inclinado para a frente em seu banco, concentrado na ocular, Harry viu dois homens darem um passo à frente de uma parte da cozinha dos Simpsons que estava fora do ângulo da janela. Embora não estivessem de uniforme, reconheceu-os como policiais de Moon-light Cove: Paul Hawthorne e Reese Dorn. A presença deles confirmou a sensação intuitiva de Harry de que aquele incidente fazia parte do bizarro padrão de violência e conspiração de que se conscientizara nas últimas semanas. Não pela primeira vez, pediu a Deus que pudesse compreender o que estava acontecendo em sua outrora pacata cidadezinha. Hawthorne e Dorn puxaram Ella do chão e a seguraram com firmeza. A mulher parecia estar apenas semiconsciente, atordoada com o soco que seu marido lhe desfechara.

Denver falava com Hawthorne, Dorn ou sua mulher. Impossível dizer com quem. O rosto dele estava tão intensamente transfigurado de raiva que Harry sentiu um calafrio.

Um terceiro homem entrou no campo de visão, caminhando diretamente para as janelas para fechar as venezianas. Uma onda mais densa de neblina flutuava para leste a partir do mar, encobrindo a visão, mas Harry também reconheceu aquele homem: Dr. Ian Fitzgerald, o mais velho dos três médicos de Moonlight Cove. Man-tivera uma clientela familiar na cidade por quase trinta anos e há muito era conhecido afetuosamente como Dr. Fitz. Era o médico de Harry, um homem sempre atencioso e amável, mas no momento parecia mais frio que um iceberg. Quando as palhetas das venezianas cerraram-se, Harry olhou nas feições do Dr. Fitz e viu uma dureza de expressão e uma ferocidade nos olhos que não lhe eram próprias; graças ao telescópio, Harry parecia estar a apenas trinta centímetros do velho médico e o que viu foi um rosto familiar, mas ao mesmo tempo o de um completo estranho.

Impedido de continuar espreitando o interior da cozinha, afastou o foco para ter uma visão mais ampla da casa. Estava pressionando o rosto com muita força contra a ocular; uma dor surda irradiou-se da órbita para o resto da face. Amaldiçoou o nevoeiro condensado, mas tentou relaxar. Moose ganiu inquiridoramente.

Após um minuto, uma luz surgiu no quarto no canto sudeste do segundo andar da casa dos Simpsons. Harry imediatamente focalizou uma das janelas do aposento. O quarto principal. Apesar da cerração obstruidora, ele viu Hawthorne e Dorn levarem Ella para o quarto. Atiraram-na sobre a colcha azul de matelassé na cama de casal.

Denver e o dr. Fitz entraram no quarto atrás deles. O médico colocou sua maleta de couro preta sobre a mesinha-de-cabeceira.

Denver fechou as cortinas da janela da frente que dava para Conquistador Avenue e se dirigiu para a janela que dava para o cemitério e a qual Harry focalizara. Por um instante, Denver olhou para fora da janela e Harry teve a arrepiante sensação de que o homem o vira, embora estivessem a dois quarteirões de distância, como se Denver tivesse a visão do Super-homem, um telescópio biológico interno próprio. A-mesma sensação se apoderara de Harry em outras ocasiões, quando se vira "olho no olho" com outras pessoas desta forma, muito antes de coisas estranhas começarem a acontecer em Moonlight Cove, de modo que ele sabia que Denver na verdade ignorava sua presença. Ainda assim, ficou assombrado. Em seguida, o agente do correio cerrou aquelas cortinas também, embora não tão bem quanto deveria, deixando uma fresta de cinco centímetros no centro. Tremendo, encharcado de suor frio, Harry experimentou uma série de oculares, ajustando o poder do raio de observação e tentando focalizar com nitidez, até que se aproximou tanto da janela que a lente foi tomada pela estreita fenda entre as cortinas. Parecia estar não só na janela como além dela, de pé no quarto, atrás das cortinas.

Os mantos mais densos de nevoeiro deslizavam para leste e um véu mais fino flutuava vindo do mar, melhorando a visão de Harry. Hawthorne e Dorn seguravam Ella Simpson na cama. Esta debatia-se, mas a agarravam pelos braços e pelas pernas e ela nada podia contra eles.

Denver segurou sua mulher pelo queixo e enfiou um lenço ou um pedaço de pano branco embolado em sua boca, amordaçando-a.

Harry viu de relance o rosto da mulher enquanto lutava com seus agressores. Tinha os olhos esbugalhados de terror.

— Ah, merda.

Moose levantou-se e foi até ele.

Na casa dos Simpsons, a corajosa luta de Ella fizera com que sua saia subisse. Suas calcinhas amarelo-claras estavam à vista. Os botões de sua blusa verde se abriram. Apesar disso, a cena não dava a idéia de um estupro iminente, não havia nenhum sinal de tensão sexual. O que quer que estivessem fazendo a ela devia ser até -mais ameaçador e cruel — e certamente mais estranho — do que um estupro.

O Dr. Fitz caminhou até o pé da cama, bloqueando a visão que Harry tinha de Ella e seus opressores. O médico segurava um frasco com um líquido âmbar, do qual enchia uma seringa hipodérmica.

Estavam dando uma injeção em Ella.

Mas de quê?

E por quê?

 

Depois de falar com sua mãe em San Diego, Tessa Lockland sentou- se na cama do motel e ficou assistindo a um documentário sobre natureza na PBS. Em voz alta, criticava o trabalho de câmara, a composição das tomadas, a iluminação, as técnicas de edição, a nar rativa e outros aspectos da produção, até que de repente percebeu;

que parecia tola falando sozinha. Então, zombou de si mesma, imi tando vários críticos de filmes em televisão, cada qual comentando o documentário com seu estilo, o que era engraçado porque a maio ria dos críticos de tevê eram pomposos de uma ou de outra forma, com exceção de Roger Ebert. Mesmo assim, embora se divertisse, Tessa estava falando consigo mesma, o que era excêntrico demais mesmo para uma não-conformista que atingira a idade de 33 anos sem jamais ter tido que se submeter a um emprego de nove às cinco,  Visitar a cena do "suicídio" de sua irmã deixara-a nervosa. Estava  procurando um consolo cômico naquela sinistra peregrinação. Mas  às vezes, em certos lugares, até a irrefreável e alegre descontração Lockland era inadequada.   Desligou a televisão e tirou o balde de gelo de plástico, vazio: do armário. Deixando a porta do quarto aberta de par em par, levando consigo apenas algumas moedas, dirigiu-se ao extremo sul do segundo andar onde estavam as máquinas automáticas de gelo e refrigerante.

Tessa sempre se orgulhara de conseguir evitar a rotina de nove às cinco. Absurdamente orgulhosa, na verdade, considerando que, em geral, trabalhava doze a quatorze horas por dia ao invés de oito e era um chefe mais exigente do que qualquer outro para o qual pudesse ter trabalhado num emprego comum. Sua renda não era algo de que pudesse se vangloriar tampouco. Desfrutara de alguns anos pródigos, quando não conseguiria parar de ganhar dinheiro se tentasse, mas eram em muito suplantados pelos anos em que ganhara pouco mais do que o suficiente para a sua subsistência. Fazendo a média de sua renda nos últimos doze anos, desde que saíra da escola de cinema, calculara que sua renda anual estivera em torno de 21 mil dólares, embora esse valor fosse drasticamente reajustado para baixo se ela não tivesse logo mais um ano próspero.

Embora não fosse rica, embora a produção de documentários em regime free-lance não oferecesse segurança, ela se considerava bem-sucedida e não apenas porque seu trabalho em geral fora bem- 82   aceito pelos críticos e não somente porque era abençoada com a disposição Lockland para o otimismo. Considerava-se bem-sucedida porque sempre resistira à autoridade e encontrara, em seu trabalho, um modo de ser dona do próprio destino.

No final do longo corredor, empurrou uma pesada porta de incêndio e entrou numa patamar onde as máquinas automáticas ficavam à esquerda do topo das escadas. Bem provida de refrigerantes e cerveja, a grande máquina zumbia suavemente, mas a máquina de gelo estava escangalhada e vazia. Teria que encher seu balde de gelo na máquina do andar térreo. Desceu as escadas, seus passos ecoando pelas paredes de blocos de concreto. O som era tão cavernoso e frio que parecia estar numa vasta pirâmide ou alguma outra estrutura antiga, sozinha exceto pela companhia de espíritos ocultos. Ao pé da escada, não encontrou nem máquina de gelo nem de refrigerante, mas um aviso na parede indicava que o centro de refrigerantes do andar térreo ficava na ala norte do motel. Quando conseguiu o gelo e a Coke, já devia ter gasto calorias suficientes para merecer uma Coca-Cola comum, cheia de açúcar, ao invés de uma bebida dietética.

Quando estendeu a mão para a maçaneta da porta de incêndio que dava para o corredor do andar térreo, pensou ter ouvido a porta do andar superior se abrir no topo das escadas. Se assim fosse, era a primeira indicação que tinha, desde que chegara, de que não era a única hóspede do motel. O lugar tinha um ar de abandono. Atravessou a porta de incêndio e descobriu que o corredor do térreo era acarpetado com o mesmo terrível náilon laranja do corredor de cima. O decorador tinha um gosto bizarro para cores vibrantes. Fazia-a apertar os olhos.

Teria preferido ser uma produtora de filmes mais bem-sucedida, para poder pagar acomodações que não agredissem seus sentidos. Claro, este era o único motel de Moonlight Cove, de modo que nem a riqueza poderia tê-la salvo daquele ofuscante clarão laranja. Quando chegou ao final do corredor, empurrou e atravessou outra porta de incêndio e chegou à base do vão de escadas norte, a visão de paredes cinzas de blocos de concreto e degraus de concreto pareceu-lhe atraente e repousante.

Ali, a máquina de gelo estava funcionando. Abriu a parte de cima da máquina e mergulhou o balde de plástico no depósito fundo, enchendo-o de gelo em forma de meia-lua. Colocou o balde cheio em cima da máquina. Ao fechá-la, ouviu a porta no topo das escadas se abrir com um leve, mas prolongado rangido das dobradiças. Dirigiu-se à máquina de refrigerante para pegar a Coke, esperando que alguém descesse do segundo andar. Só quando colocou a terceira moeda na fenda é que percebeu que havia algo furtivo sobre o modo como ouvira a porta se abrir: o rangido longo e baixo...j como se alguém soubesse que as dobradiças estavam enferrujadas e tentasse reduzir o barulho.

Com o dedo parado sobre o botão que selecionava Diet Coke, Tessa parou, à escuta. Nada.

Silêncio de concreto frio.

Sentiu-se exatamente como se sentira na praia no começo da noite, quando ouvira aquele grito estranho e distante. Agora, como naquela ocasião, sua pele ficou arrepiada.

Tinha a louca sensação de que havia alguém no patamar de cima, segurando a porta de incêndio aberta agora que já a atravessara. Estava esperando que ela apertasse o botão e que o guinchar das dobradiças da porta do andar de cima fosse encoberto pelo barulho da lata rolando pela canaleta.

Muitas mulheres modernas, conscientes da necessidade de serem fortes num mundo difícil, teriam ficado embaraçadas por tal apreensão e descartado o calafrio intuitivo. Mas Tessa conhecia-se muito bem. Não era dada a histeria ou paranóia e, portanto, não se perguntou nem por um instante se a morte de Janice a teria deixado sensível demais, não duvidou de sua imagem mental de uma presença hostil no patamar superior, fora do seu ângulo de visão por causa da curva da escada.

Três portas davam para aquele poço de concreto. A primeira ficava na parede sul, através da qual ela viera e pela qual poderia voltar ao corredor do andar térreo. A segunda ficava na parede oeste, que dava para os fundos do motel, onde havia um caminho estreito ou passagem de serviço entre o prédio e a borda do penhasco de frente para o mar, e a terceira na parede leste, através da qual ela poderia alcançar o estacionamento em frente ao motel. Ao invés de apertar o botão da máquina para pegar sua Coke, e largando o seu balde cheio de gelo, caminhou rápida e silenciosamente até a porta sul e a abriu.

Viu de relance um movimento no outro extremo do corredor do andar térreo. Alguém agachou-se e saiu por aquela outra porta de incêndio no vão de escadas sul. Não pôde ver o homem com clareza, somente seu vulto, pois ele não estava no carpete laranja do corredor mas na soleira da porta e, portanto, capaz de. sumir de vista em um segundo. A porta fechou-se devagar no seu rasto.

Pelo menos dois homens — presumia que fossem homens, não mulheres — a estavam espreitando.

Acima, no vão de escadas em que ela se encontrava, as dobra-   diças enferrujadas da porta produziram um rangido áspero e prolongado, quase inaudível. O outro homem evidentemente cansara-se de esperar que ela fizesse um barulho de cobertura.

Não podia entrar no corredor. Eles a capturariam.

Embora pudesse gritar na esperança de atrair a atenção de outros hóspedes e afugentar aqueles homens, ela hesitou porque receava que o motel pudesse estar tão vazio quanto parecia. Seus gritos poderiam não atrair nenhuma ajuda, enquanto permitiria a seus perseguidores saberem que estava ciente da presença deles e que já não precisavam ser cautelosos.

Alguém descia furtivamente as escadas acima dela.

Tessa virou-se, dirigiu-se à porta leste e correu para dentro da noite enevoada, ao longo da lateral do prédio, entrando no estacionamento além do qual ficava Cypress Lane. Ofegante, passou pela frente do Cove Lodge em direção ao escritório do motel, que ficava ao lado da lanchonete agora fechada.

O escritório estava aberto, a soleira da porta estava banhada num clarão de néon cor-de-rosa e amarelo, difuso pela névoa, e o homem atrás do balcão era o mesmo que fizera seu registro horas tintes. Era alto e ligeiramente obeso, na casa dos cinqüenta anos, recém-barbeado e de cabelos bem cortados, embora com um ar meio desmazelado por causa das calças de veludo marrom e da camisa de flanela vermelha e verde um pouco amarrotadas. Largou uma revista, abaixou o volume da música country no rádio, levantou-se de sua cadeira reclinável atrás da escrivaninha e se aproximou do balcão, franzindo o cenho enquanto ela lhe contava, um pouco arquejante demais, o que acontecera.

—        Bem, isto aqui não é a cidade grande, minha senhora — disse ele quando ela terminou. — É um lugar pacato, Moonlight Cove.

Não tem que se preocupar com este tipo de coisa aqui.

—        Mas aconteceu — insistiu ela, olhando nervosamente para o nevoeiro colorido pelo néon que avançava pela escuridão além da porta e da janela do escritório.

—        Ah, tenho certeza de que ouviu e viu alguém, mas está dan do uma interpretação errada a isso. Nós temos outros hóspedes. Foi o que viu e ouviu, e provavelmente eles estavam apenas pegando uma Coke ou um pouco de gelo, como a senhora. — Tinha um semblante cordial, como o de um avô, quando sorria. — Este lugar pode parecer um pouco fantasmagórico quando não há muitos hóspedes.

—        Ouça, senhor...

—        Quinn. Gordon Quinn.

—        Ouça, Sr. Quinn, não foi absolutamente assim. — Sentia- 85 

  se como uma mulher tola e assustada, embora soubesse que não era desse tipo. — Não confundi hóspedes inocentes com agressores ou atacantes. Não sou uma histérica. Aqueles sujeitos não tinham boas intenções.

—        Bem... tudo bem. Acho que está errada, mas vamos dar uma olhada.

Quinn atravessou a porta do balcão para o lado dela.

—        O senhor vai assim? — perguntou ela.

—        Assim como?

—        Desarmado?

Ele sorriu outra vez. Como antes, ela sentiu-se uma tola.

—        Minha senhora — disse ele —, em vinte e cinco anos de administração de hotel, nunca conheci um hóspede com quem não tenha conseguido lidar.

Embora o tom paternal e presunçoso de Quinn irritasse Tessa, ela não discutiu com ele, mas seguiu-o para fora do escritório, através do nevoeiro em redemoinhos até o outro extremo do prédio. Ele era grande e ela miúda, de modo que se sentiu como uma garotinha sendo escoltada de volta ao quarto por um pai resolvido a lhe mostrar que não havia nenhum monstro escondido debaixo da cama ou no armário.

Ele abriu a porta metálica pela qual ela fugira das escadas de serviço da ala norte e entraram. Não havia ninguém à espera deles.

A máquina de refrigerante roncava e um débil clique era emitido pela máquina de fazer gelo em funcionamento. Seu balde de plástico ainda estava em cima do reservatório, cheio de meias-luas de gelo.

Quinn atravessou o pequeno espaço até a porta que levava ao corredor do andar térreo e a abriu.

—        Ninguém lá — disse ele, indicando o corredor com um aceno de cabeça.

Ele abriu a porta na parede oeste e olhou para fora, para a esquerda e para a direita. Fez um sinal para que ela se aproximasse da soleira da porta e insistiu para que olhasse também.

Ela viu uma passagem de serviço ladeada por uma pequena grade, que corria paralela aos fundos do motel, entre o prédio e a borda do penhasco, iluminada por uma lâmpada noturna amarelada em cada ponta. Deserta.

—        Disse que já havia colocado seu dinheiro na máquina, mas que não pegou seu refrigerante? — perguntou Quinn, enquanto deixava a porta se fechar automaticamente.

—        Isso mesmo.

— O que queria?

  —      Bem... uma Diet Coke.

Na máquina, ele apertou o botão correspondente e uma lata rolou pela canaleta. Entregou-a a Tessa, apontou para o recipiente de plástico que ela trouxera do quarto e disse:

—        Não se esqueça do gelo.

Carregando o balde de gelo e a Coke, um rubor afogueado nas faces e uma raiva fria no coração, Tessa seguiu-o pelas escadas norte. Não havia ninguém à espreita. As dobradiças enferrujadas da porta de cima rangeram quando passaram para o corredor do segundo andar, que também estava deserto.

A porta do seu quarto estava escancarada, como ela a deixara. Hesitou em entrar.

—        Vamos dar uma olhada — disse Quinn.

O pequeno quarto, o guarda-roupa e o banheiro anexo estavam vazios.

—        Sente-se melhor? — perguntou ele.

—        Eu não estava imaginando coisas.

—        Estou certo que não — disse ele, ainda com condescendência.

Quando Quinn voltou ao corredor, Tessa disse:

—        Eles estavam lá e eram reais, mas acho que já se foram. Provavelmente fugiram quando perceberam que eu os vira e que fora buscar ajuda.

—        Bem, então está tudo bem agora — disse ele. — Está em segurança. Se foram embora, isso é quase tão bom quanto se nunca tivessem existido.

Tessa precisou de todo o autocontrole para evitar dizer mais do que "Obrigada" e fechou a porta. Na maçaneta havia um botão para trancar a porta, que ela apertou. Acima da maçaneta, havia uma trava de segurança, que ela fechou. Também havia uma corrente de segurança de metal; usou-a.

Dirigiu-se à janela e a examinou, para se certificar de que não pudesse ser aberta facilmente por um pretenso atacante. Metade dela deslizou para a esquerda quando ela pressionou um ferrolho e puxou, mas a janela não podia ser aberta pelo lado de fora, a menos que alguém quebrasse a vidraça e enfiasse a mão para destravar o ferrolho. Além do mais, como estava no segundo andar, um intru-so precisaria de uma escada.

Durante algum tempo, ficou sentada na cama, ouvindo os ruídos distantes no motel. Agora, todo ruído parecia estranho e ameaçador. Perguntou-se qual, se é que haveria alguma, seria a ligação entre sua inquietante experiência e a morte de Janice há mais de três semanas.

 

Após algumas horas na galeria pluvial sob a campina em declive, Chrissie Foster estava perturbada pela claustrofobia. Ficara presa na despensa da cozinha muito mais tempo do que estava no aqueduto e a despensa era ainda menor, mas o cano de concreto escuro como uma sepultura era de longe o pior dos dois. Talvez estivesse começando a se sentir enjaulada e sufocada por causa do efeito cumulativo de passar o dia inteiro e a maior parte da noite em lugares acanhados.

Da auto-estrada acima, onde o sistema de drenagem começava, o ronco pesado de caminhões ecoava pelos túneis, provocando em sua mente imagens de rosnantes dragões. Tapou os ouvidos para bloquear o barulho. Às vezes, os caminhões estavam bem distantes um dos outros, mas de vez em quando vinham em caravanas de seis, oito ou 12, e o ronco contínuo tornava-se opressivo, enlouquecedor.

Ou talvez sua vontade de sair do cano tivesse algo a ver com o fato de estar embaixo da terra. Deitada no escuro, ouvindo os caminhões, procurando detectar nos intervalos de silêncio a volta de seus pais ou de Tucker, Chrissie começou a se sentir num caixão de concreto, uma vítima de enterro prematuro.

Lendo em voz alta o livro imaginário de suas próprias aventuras, ela disse:

— Mal sabia a pequena Chrissie que o aqueduto estava prestes a desmoronar e se encher de terra, esmagando-a como se fosse um inseto e aprisionando-a para sempre.

Sabia que devia permanecer onde estava. Eles podiam ainda estar dando uma busca na campina e nos bosques à sua procura. Estava mais segura na galeria do que do lado de fora.

Mas era amaldiçoada por uma imaginação vivida. Embora fosse, sem dúvida alguma, a única ocupante do cano escuro onde estava deitada, ela vislumbrava companhia indesejada em inúmeras formas medonhas: sinuosas cobras, aranhas às centenas, baratas, ratos, colônias de morcegos sugadores de sangue. Por fim, começou a imaginar se ao longo dos anos uma criança não teria se arrastado para dentro dos túneis para brincar, se perdido nas ramificações da galeria e morrido ali sem jamais ser achada. O espírito dela, claro, permaneceu sem descanso, preso à Terra, pois sua morte fora injustamente prematura e não houve enterro adequado para libertar seu espírito. Agora talvez aquele fantasma, pressentindo sua presença, estava animando aqueles hediondos restos esqueléticos, arrastando o cadáver decomposto e ressequido pelo tempo em direção a ela, deixando pedaços de carne petrificada e coriácea pelo caminho. Chrissie tinha 11 anos e era bastante sensata para a idade. Repetia a si mesma que fantasmas não existiam, mas então lembrava-se de seus pais e de Tucker, que pareciam ser uma espécie de lobisomens, pelo amor de Deus, e, quando os grandes caminhões passavam pela interestadual, ela receava tapar os ouvidos com medo de que a criança morta usasse a cobertura daquele barulho para se aproximar, cada vez mais. Tinha que sair dali.

 

Quando deixou a garagem escura onde se refugiara do bando de delinqüentes drogados (que era o que tinha que acreditar que eram; não conhecia nenhum outro modo de explicá-los), Sam Booker foi para a Ocean Avenue e parou no bar Knighfs Bridge apenas o tempo suficiente para comprar uma embalagem de seis garrafas de Guinness.

Mais tarde, em seu quarto no Cove Lodge, sentou-se à pequena mesa e tomou cerveja enquanto meditava sobre os fatos do caso. No dia 5 de setembro, três líderes do Sindicato Nacional de Trabalhadores Rurais — Júlio Bustamante, sua irmã Maria Bustamante e o noivo de Maria, Ramon Sanchez — estavam indo de carro para o sul vindos da região vinícola, onde haviam conduzido negociações com os proprietários de vinhedos sobre a próxima colheita. Estavam numa caminhonete Chevy castanha, de quatro anos. Pararam para jantar em Moonlight Cove. Comeram no restaurante Perez Family e beberam margarítas demais (segundo testemunhas entre garçons e fregueses que estavam no Perez naquela noite) e, no caminho de volta para a interestadual, fizeram uma curva rápido demais; a caminhonete capotara e se incendiara. Nenhum dos três sobreviveu.

Essa história seria bastante verossímil e o FBI jamais teria entrado no caso se não fosse por algumas contradições. Para começar, segundo o relatório oficial do departamento de polícia de Moonlight Cove, Júlio Bustamente estava na direção. Mas Júlio jamais dirigira um carro na vida; além do mais, era improvável que o fizesse depois de anoitecer, porque sofria de uma forma de cegueira noturna. Além disso, segundo testemunhas citadas no relatório da polícia, Júlio e Maria e Ramon estavam todos embriagados, mas ninguém que conhecia Júlio e Ramon jamais os vira bêbados; Maria sempre fora abstêmia.

As famílias Sanchez e Bustamante, de San Francisco, também ficaram desconfiadas com o comportamento das autoridades de Moonlight Cove. Nenhuma delas foi avisada das três mortes até 10 de setembro, cinco dias depois do acidente. O delegado Loman Watkins explicara que as carteiras de identidade de Júlio, Ramon e Maria foram destruídas pelo forte incêndio e que seus corpos ficaram completamente carbonizados, impedindo uma identificação rápida das impressões digitais. E as placas da caminhonete? Curiosamente, Loman não encontrara nenhuma no veículo, ou arrancada e arremessada nas proximidades do local do acidente. Assim, com três corpos extremamente mutilados e carbonizados e sem meios de localizar o parente mais próximo a curto prazo, ele autorizara o médico-legista, Dr. lan Fitzgerald, a lavrar os atestados de óbito e em seguida dispor dos corpos para cremação.

— Não temos aqui os recursos de um necrotério de uma cidade grande, vocês compreendem — explicou Watkins. — Não podemos guardar cadáveres por muito tempo e não tínhamos como saber quanto tempo precisaríamos para identificá-los. Achamos que podiam ser viajantes ou mesmo imigrantes ilegais, e nesse caso talvez jamais pudéssemos identificá-los.

Perfeito, pensou Sam sombriamente, enquanto se recostava na cadeira e tomava um longo gole da Guinness.

Três pessoas tiveram mortes violentas, foram declaradas vítimas de acidente e cremadas antes que seus parentes fossem notificados, antes que quaisquer outras autoridades pudessem verificar, através da aplicação da moderna medicina forense, se os atestados de óbito e o relatório da polícia realmente continham toda a história.

Os Bustamantes e os Sanchez suspeitavam de crime, mas o Sindicato Nacional de Trabalhadores Rurais estava certo disso. Em 12 de setembro, o presidente do sindicato solicitou a intervenção do Federal Bureau of Investigation sob a alegação de que as forças anti-sindicalistas eram as responsáveis pelas mortes de Bustamante, Bustamante e Sanchez. Geralmente, o crime de assassinato só caía na jurisdição do FBI quando o suposto assassino atravessava a fronteira estadual ou para perpetrar o ato, ou durante sua execução ou para fugir às conseqüências do ato; ou, como neste caso, se as autoridades federais tivessem motivos para acreditar que o assassinato fora cometido em conseqüência de violação deliberada dos direitos civis das vítimas.

Em 26 de setembro, após a absurda embora costumeira demora associada à burocracia governamental e ao judiciário federal, uma equipe de seis agentes do FBI — incluindo três homens da Divisão de Investigação Científica — transferiu-se para a pitoresca Moonlight Cove por dez dias. Entrevistaram policiais, examinaram os arquivos da polícia e do médico-legista, tomaram depoimentos das testemunhas que estavam no restaurante Perez Family na noite de 5 de setembro, vasculharam os destroços da caminhonete Chevy no pátio do ferro-velho e procuraram qualquer pista que pudesse ter permanecido no local do acidente. Como Moonlight Cove não possuía indústria agrícola, não puderam encontrar ninguém interessado na questão fazendeiros-sindicato, quanto mais furiosos com ela, o que os deixava sem pessoas com motivos para matar líderes sindicais.

Durante toda a investigação, eles receberam a total e prestimosa colaboração da polícia local e do médico-legista. Loman Watkins e seus homens chegaram a se oferecer para se submeterem a testes com detectores de mentira, o que foi providenciado em seguida, e nos quais passaram sem vestígio de fraude. O médico-legista também se submeteu aos testes e demonstrou ser um homem de ilibada honestidade.

Entretanto, alguma coisa cheirava mal.

Os policiais estavam quase que ansiosos demais em cooperar. E os seis agentes do FBI sentiram que eram objeto de escárnio e desdém quando viravam as costas, embora nunca tivessem visto nenhum policial mais do que erguer uma das sobrancelhas ou dar um sorriso afetado ou trocar um olhar com alguém do local. Chame a isso Instinto do FBI, que Sam sabia ser pelo menos tão confiável quanto o de qualquer criatura selvagem.

E depois, as outras mortes tinham que ser consideradas.

Enquanto investigavam o caso Sanchez-Bustamante, os agentes examinaram os registros da polícia e do médico-legista dos últimos dois anos, para determinar qual a rotina com que mortes súbitas — acidentais ou não — costumavam ser tratadas em Moonlight Cove, para saber se as autoridades locais haviam lidado com este caso recente de forma diferente dos anteriores, o que seria uma indicação de cumplicidade policial em encobrir um crime. O que descobriram era intrigante e perturbador, mas não semelhante a nada que esperassem encontrar. Exceto por um fantástico acidente de carro envolvendo um adolescente num Dodge envenenado, Moonlight Cove fora um lugar singularmente seguro para se viver. Durante este tempo, seus habitantes não foram perturbados por morte violenta — até 28 de agosto, oito dias antes das mortes de Sanchez e dos Bustamantes, quando uma série incomum de mortalidades começou a surgir nos registros públicos.

Horas antes do amanhecer do dia 28 de agosto, os quatro membros da família Mayser foram as primeiras vítimas: Melinda, John e seus dois filhos, Carrie e Billy. Faleceram no incêndio de sua casa, que mais tarde as autoridades atribuíram ao fato de Billy brincar com fósforos. Os quatro corpos estavam tão carbonizados que a identificação só pôde ser feita pela arcada dentária.

Tendo terminado sua primeira garrafa de Guinness, Sam estendeu a mão para uma segunda, mas hesitou. Ainda tinha trabalho a fazer naquela noite. Às vezes, quando estava num estado de espírito particularmente deprimido e começava a beber cerveja preta, tinha dificuldade de parar antes de estar à beira da inconsciência. Segurando a garrafa vazia como consolo, Sam perguntou-se por que um menino, tendo deflagrado um incêndio, não teria gritado pedindo socorro e acordado seus pais quando visse que as chamas estavam fora de controle. Por que o garoto não correria antes de ser dominado pela fumaça? E que espécie de incêndio, exceto um que fosse alimentado por gasolina ou outro líquido volátil (de que não havia nenhuma menção nos relatórios policiais), se espalharia tão depressa que ninguém da família pudesse escapar e reduzisse a casa — e os corpos que lá estavam — a montes de cinzas antes que os bombeiros pudessem chegar para apagá-lo?

Mais uma vez, perfeito. Os corpos estavam tão consumidos pelo fogo que as autópsias seriam inúteis para determinar se o incêndio tinha sido provocado por Billy ou por alguém interessado em esconder as verdadeiras causas das mortes. Por sugestão do gerente da casa funerária — que era o proprietário da Funerária Callan e também o assistente do médico-legista e, portanto, um suspeito em qualquer cobertura oficial —, o parente mais próximo dos Maysers, a mãe de Melinda Mayser, autorizou a cremação dos restos mortais. Possíveis provas não destruídas pelo incêndio original foram assim suprimidas.

— Absolutamente perfeito — disse Sam em voz alta, colocando os pés sobre a outra cadeira de espaldar reto. — Maravilhosamente imaculado e perfeito. Número de mortos: quatro.

Em seguida, os Bustamantes e Sanchez em 5 de setembro. Outro incêndio. Seguido de mais cremações apressadas. Número de corpos,: sete.

Em 7 de setembro! enquanto vestígios dos vapores dos restos dos Bustamantes e de Sanchez ainda pairavam no ar acima de Moon-light Cove, um habitante de vinte anos, Jim Armes, saiu para o mar em seu barco de trinta pés, o Mary Leandra, para um passeio no começo da manhã, e nunca mais foi visto. Embora fosse um marinheiro experiente, embora o dia estivesse claro e o oceano calmo, ele aparentemente afundara numa corrente distante da costa, pois nenhum resto de naufrágio identificável fora jogado nas praias locais. Número de corpos: oito.

Em 9 de setembro, enquanto os peixes provavelmente se alimen-tavam do corpo afogado de Armes, Paula Parkins foi dilacerada por cinco dobermans. Era uma mulher de 29 anos que vivia sozinha, criando e treinando cães de guarda, numa propriedade de dois acres na periferia da cidade. Evidentemente, um dos dobermans voltara-se contra ela e os outros ficaram enlouquecidos com o cheiro de seu sangue. Os restos brutalmente dilacerados de Paula, impróprios para ficarem expostos, foram enviados num caixão lacrado para sua família em Denver. Os cachorros foram abatidos a tiros, testados contra raiva e cremados. Número de mortos: nove.

Seis dias depois de entrar no caso Bustamante-Sanchez, em 2 de outubro, o FBI mandou exumar o corpo de Paula Parkins da sepultura em Denver. Uma autópsia revelou que a mulher realmente fora mordida e arranhada até a morte por múltiplos animais atacantes.

Sam lembrava-se da parte mais interessante do relatório dessa autópsia palavra por palavra: "...entretanto, as marcas de mordidas, lacerações, cortes na cavidade do corpo e danos específicos aos seios e órgãos genitais não são inteiramente consistentes com ataques caninos. O modelo dos dentes e tamanho da mordida não combinam com o perfil dentário do doberman médio ou de outros animais reconhecidamente agressivos e capazes de atacar e conseguir dominar um adulto." E mais adiante no mesmo relatório, ao se referir à natureza específica dos atacantes de Parkins: "espécie desconhecida".

Como Paula Parkins realmente morrera? Que terror e agonia sofrerá? Quem estava tentando culpar os dobermans. E na verdade que evidências os dobermans poderiam ter fornecido sobre a natureza das próprias mortes e, portanto, sobre a verdade da versão da polícia?

Sam pensou no grito estranho e distante que ouvira naquela noite — como o de um coiote, mas não um coiote, como o de um gato, mas não um gato. E pensou também nas vozes desvairadas, horripilantes, dos garotos que o perseguiram. De certa forma tudo se encaixava. Instinto do FBI.

Espécie desconhecida.

Inquieto, Sam tentou acalmar os nervos com a Guinness. A garrafa ainda estava vazia. Bateu-a de leve, pensativamente, contra os dentes.

Seis dias depois da morte de Parkins e muito antes da exuma-ção de seu cadáver em Denver, mais duas pessoas encontraram fins prematuros em Moonlight Cove. Steve Heinz e Laura Dalcoe, solteiros, mas vivendo juntos, foram encontrados mortos em sua casa em Iceberry Way. Heinz deixou um bilhete de suicida datilografado, incoerente, sem assinatura, então matou Laura com um revólver enquanto ela dormia e se suicidou. O relatório do Dr. Ian Fitzgerald declarou oficialmente assassinato-suicídio, caso encerrado. Por sugestão do médico-legista, as famílias Dalcoe e Heinz autorizaram a cremação dos restos horrendos.

Número de corpos: onze.

—        Há uma quantidade diabólica de cremações acontecendo nes ta cidade — disse Sam em voz alta, girando a garrafa de cerveja vazia nas mãos.

A maioria das pessoas ainda preferia ter a si mesmas e a seus entes queridos embalsamados e enterrados em caixões, independentemente das condições do corpo. Na maior parte das cidades, a cremação respondia por talvez um quarto ou um quinto da destinação dos cadáveres.

Por fim, enquanto investigava o caso Bustamante-Sanchez, a equipe do FBI de San Francisco descobriu que Janice Capshaw estava relacionada como suicida por Valium. Seu corpo destruído pelo mar fora lançado na praia dois dias depois de ter desaparecido, três dias antes dos agentes chegarem para iniciar a investigação sobre a morte dos líderes sindicais.

Júlio Bustamante, Maria Bustamante, Ramon Sanchez, os quatro Maysers, Jim Armes, Paula Parkins, Steven Heinz, Laura Dalcoe, Janice Capshaw: doze mortos em menos de um mês — exatamente doze vezes mais o número de mortes violentas que ocorreram em Moonlight Cove durante os 23 meses anteriores. Em uma população de apenas três mil habitantes, doze mortes violentas em menos de três semanas era uma taxa de mortalidade impressionante.

Questionado sobre sua reação a essa estarrecedora sucessão de casos fatais, o delegado Loman Watkins disse:

—        Sim, é terrível. É meio assustador. As coisas foram tão tranqüilas durante tanto tempo que imagino que, estatisticamente, estejamos simplesmente atrasados.

Mas numa cidade daquele tamanho, ainda que distribuídas por dois anos, doze mortes violentas como aquelas ultrapassavam o ápice de quaisquer mapas estatísticos.

Os seis homens da equipe do FBI foram incapazes de encontrar a menor prova de cumplicidade de qualquer autoridade local nesses casos. E embora um polígrafo não fosse um determinador da verdade inteiramente confiável, a tecnologia não era tão precária que Loman Watkins, seus policiais, o médico-legista e o assistente deste pudessem passar pelo teste sem uma única indicação de fraude se de fato fossem culpados.

Entretanto...

Doze mortes. Quatro queimados no incêndio de uma casa. Três cremados numa caminhonete Chevy destruída. Três suicidas, dois por arma de fogo e um por Valium, todos cremados em seguida na Funerária Callan. Um perdido no mar — nenhum corpo encontrado. E a única vítima disponível para autópsia parecia não ter sido morta por cachorros, como o relatório do médico-legista afirmava, embora tivesse sido mordida e arranhada por alguma coisa, diabos.

Era o suficiente para manter o arquivo do FBI aberto. Em 9 de outubro, quatro dias depois da equipe de San Francisco ter partido de Moonlight Cove, foi tomada a decisão de se mandar um agente disfarçado para examinar certos aspectos do caso que poderiam ser mais bem explorados por um homem que não estivesse sendo observado.

Um dia depois dessa decisão, em 10 de outubro, uma carta chegou ao escritório de São Francisco que confirmava a determinação do Bureau de manter seu envolvimento. Sam também tinha esta carta na lembrança:

 

Senhores:

Tenho informações pertinentes a uma recente série de mortes na cidade de Moonlight Cove. Tenho razões para acreditar que as autoridades locais estejam envolvidas numa conspiração para encobrir os assassinatos.

Prefiro que entrem em contato comigo pessoalmente, já que não confio na privacidade de nosso telefone aqui. Devo insistir em absoluta discrição porque sou um veterano do Vietnam incapacitado, com graves limitações físicas e estou preocupado com minha capacidade de me proteger.

 

Estava assinada Harold G. Talbot.

Os registros do Exército dos Estados Unidos confirmavam que Talbot era um deficiente físico veterano do Vietnam. Fora repetidas vezes citado por bravura em combate. No dia seguinte, Sam iria visitá-lo discretamente.

Enquanto isso, considerando o trabalho que tinha a fazer esta noite, imaginou se poderia arriscar uma segunda garrafa de cerveja além do que já bebera no jantar. A embalagem de seis garrafas estava sobre a mesa diante dele. Fitou-a por um longo tempo. Guinness, boa comida mexicana, Goldie Hawn e medo da morte. A comida mexicana estava em sua barriga, mas o gosto já fora esquecido. Goldie Hawn vivia num rancho em algum lugar com Kurt Russell, a quem teve o mau gosto de preferir a um agente federal de aparência comum, marcado de cicatrizes e desesperançado. Pensou em doze homens e mulheres mortos, em corpos queimando num crematório até serem reduzidos a cinzas e lascas de ossos e pensou no assassinato e no suicídio com arma de fogo e nos cadáveres comidos pelos peixes e na mulher mutilada por mordidas e todos esses pensamentos levaram-no a filosofar morbidamente sobre o fim de toda carne. Pensou em sua mulher, morta de câncer, e pensou em Scott e em sua conversa telefônica interurbana, também, e foi então que, finalmente, abriu uma segunda cerveja.

 

Perseguida por aranhas, cobras, besouros, ratos e morcegos imaginários e pelo corpo reanimado, possivelmente imaginário, da menina morta, e pelo ronco real, mas semelhante ao de um dragão, dos caminhões distantes, Chrissie arrastou-se para fora do cano secundário onde se refugiara, caminhou encurvada pela galeria principal, pisou de novo nos restos escorregadios do guaxinim em decomposição e saiu para o canal de drenagem de solo barrento. O ar estava límpido e fusco. Apesar dos barrancos de dois metros e meio de altura da vala, do luar turvado e das estrelas escondidas pelo nevoeiro, a claustrofobia de Chrissie amainou. Respirou profundamente o ar úmido e frio, mas tentou fazê-lo com o menor ruído possível.

Prestou atenção à noite e em pouco tempo foi recompensada com aqueles gritos estranhos, ecoando debilmente pela campina, vindos da floresta ao sul. Como antes, tinha certeza de que ouvia três vozes distintas. Se sua mãe, seu pai e Tucker estavam ao sul, procurando-a na floresta que levava aos limites da propriedade da New Wave Microtechnology, ela poderia partir na mesma direção de onde viera, através dos bosques ao norte, entrando na campina onde Godiva a atirara ao chão, depois para leste, para a estrada do condado, até Moonlight Cove por este caminho, deixando-os à sua procura inutilmente, no lugar errado.

Certamente, não podia continuar onde estava.

E não podia ir para o sul, direto na direção deles.

Arrastou-se com dificuldade para fora da vala e atravessou a campina para o norte, retomando o caminho que fizera no começo da noite e, enquanto corria, contava seus infortúnios. Estava com fome porque não jantara e se sentia cansada. Os músculos de seus ombros e das costas estavam dormentes do tempo que passara no cano secundário, apertado e de concreto frio. Suas pernas doíam.

Mas qual era seu problema?, perguntou a si mesma ao chegar às árvores na borda da campina. Preferia ter sido arrastada por Tuc-ker e "convertida" em um deles?

 

  Loman Watkins deixou a casa dos Valdoskis, onde o Dr. Worthy supervisionava a conversão de Ella e George. Mais adiante na estrada do condado, seus policiais e o médico-legista colocavam o menino morto no carro fúnebre. A multidão de curiosos estava extasiada com a cena.

Loman entrou no carro de radiopatrulha e ligou o motor. O monitor compacto acendeu-se de imediato, um verde-claro. O terminal de computador estava instalado sobre o consolo entre os bancos dianteiros. Começou a piscar, indicando que o escritório central tinha um recado para ele — um que preferiram não transmitir na faixa de rádio da polícia onde podia ser interceptado mais facilmente.

Embora estivesse trabalhando com computadores móveis ligados por meio de microondas há alguns anos, às vezes ainda se surpreendia ao entrar num carro de radiopatrulha e ver o terminal de vídeo acender-se. Em grandes cidades como Los Angeles, durante a maior parte da última década, a maioria dos carros de patrulha era equipada com terminais de computador ligados aos bancos de dados centrais da polícia, mas tais maravilhas eletrônicas ainda eram raras em cidades menores e desconhecidas em jurisdições comparativamente tão minúsculas quanto Moonlight Cove. Seu departamento exibia tecnologia de última geração não porque o tesouro da cidade estivesse transbordando, mas porque a New Wave — líder em sistemas de computação móveis ligados por microondas, entre outras coisas — equipara seu escritório e seus carros com seu hardware e software em desenvolvimento, atualizando o sistema permanentemente, usando a força policial de Moonlight Cove como algo semelhante a um campo de provas para cada nova descoberta que esperava acrescentar a sua linha de produtos.

Essa era uma das muitas maneiras pelas quais Thomas Shad-dack se insinuara na estrutura de poder da comunidade antes mesmo de ter almejado o poder total através do Projeto Falcão da Lua. Na ocasião, Loman fora estúpido o suficiente para achar que a generosidade da New Wave era uma bênção. Agora sabia que a verdade era outra.

Através do seu terminal móvel, Loman podia acessar o computador central no escritório do departamento em Jacobi Street, um bloco ao sul da Ocean Avenue, para obter qualquer informação nos bancos de dados ou para "falar" com o despachante em serviço, o qual podia se comunicar com ele quase tão facilmente por computador quanto pela faixa de rádio da polícia. Além do mais, ele podia ficar sentado confortavelmente em seu carro e, através do computador do escritório central, acessar o computador do Departamento de Veículos Automotores, em Sacramento, para mandar investigar uma licença de carro, ou os bancos de dados do Departamento do Sistema Penitenciário na mesma cidade para levantar informações sobre um determinado sujeito, ou qualquer outro computador ligado à rede nacional do sistema judiciário.

Ajeitou o coldre porque estava sentado em cima do revólver. Usando o teclado sob o terminal de vídeo, ele entrou com sua senha, acessando o sistema.

A época em que toda a coleta de evidências exigia muitas andanças da polícia começou a se extinguir em meados da década de 1980. Agora somente tiras de tevê como Hunter eram forçados a correr de um lado para outro para levantar os detalhes de um caso porque isso era mais dramático do que a retratação da realidade high-tech. Dentro de pouco tempo, pensou Watkins, o detetive ia correr o risco de se tornar um apertador de botões, com o traseiro instalado durante horas em frente de um terminal móvel ou numa escrivaninha no escritório central.

O computador aceitou seu número. O terminal parou de piscar.

Claro, se todas as pessoas do mundo pertencessem à Nova Gente e se o problema dos regressivos fosse solucionado, por fim não haveria mais crime e nenhuma necessidade de policiais. Alguns criminosos eram gerados por injustiças sociais, mas todos os homens seriam iguais no mundo novo que se aproximava, tão iguais quanto uma máquina igual a outra, com os mesmos objetivos e desejos, sem nenhuma necessidade competitiva ou conflitante. A maioria dos criminosos o eram por uma deficiência genética, seu comportamento sociopata codificado em seus cromossomos; entretanto, exceto pelos elementos regressivos entre eles, a Nova Gente seria uma renovação genética perfeita. Pelo menos, este era o sonho de Shaddack.

Às vezes, Loman Watkins perguntava-se onde a liberdade se encaixava no plano. Talvez não se encaixasse. Às vezes, não parecia se importar se ela se encaixava ou não. Em outras ocasiões, sua incapacidade de se importar... bem, deixava-o apavorado.

Linhas de palavras começaram a surgir da esquerda para a direita na tela, uma linha de cada vez, em letras verde-claras sobre o fundo escuro:

 

PARA: LOMAN WATKINS

DE: SHADDACK 

JACK TUCKER NÃO DEU NOTÍCiAS DA CASA DOS FOSTERS. NINGUÉM ATENDE AO TELEFONE LÁ. É URGENTE QUE A SITUAÇÃO SEJA ESCLARECIDA. AGUARDO RELATÓRIO.

 

Shaddack tinha acesso direto ao computador do departamento de polícia do próprio terminal existente em sua casa na ponta norte da enseada. Ele podia deixar mensagens para Watkins ou qualquer dos outros homens e ninguém podia acessá-las, a não ser o próprio destinatário.

A tela ficou vazia.

Loman Watkins soltou o freio de mão, engatou a marcha do carro de patrulha e partiu para os Estábulos Foster, embora o lugar na verdade ficasse fora dos limites da cidade e, portanto, fora do seu distrito. Já não se importava com coisas como fronteiras jurisdicionais e procedimentos legais. Ainda era um tira só porque este era o papel que tinha que desempenhar até que toda a cidade tivesse passado pela Mudança. Nenhuma das antigas normas aplicava-se mais a ele porque ele era um Novo Homem. Tal desprezo pela lei o teria deixado perplexo há apenas alguns meses, mas agora sua arrogância e seu desdém pelas regras da sociedade da Antiga Gente não o comoviam nem um pouco.

Na maior parte do tempo nada o comovia mais. A cada dia, a cada hora, sentia-se menos emotivo.

Exceto pelo medo, que o seu recém-elevado estado de consciência ainda permitia: medo porque era um mecanismo de sobrevivência, útil de uma forma que amor, alegria, esperança e afeto não o eram. Na verdade, agora mesmo estava com medo. Com medo dos regressivos. Com medo de que o Projeto Falcão da Lua fosse de algum modo revelado ao mundo exterior e destruído — e ele também. Com medo de seu próprio mestre, Shaddack. Às vezes, em rápidos instantes de desolação, sentia medo de si mesmo, também, e do mundo novo que estava a caminho.

 

 Moose cochilava num canto do quarto às escuras. Roncava em seu sono, talvez caçando coelhos de cauda pompom em sonho — embora, sendo o bom cão de serviço que era, mesmo nos sonhos provavelmente realizava tarefas para seu dono.

Preso pelo cinto ao banco junto à janela, Harry inclinou-se para a ocular do telescópio e examinou os fundos da Funerária Callan, na Juniper Lane, onde o carro fúnebre acabava de estacionar na entrada de serviço. Observou Victor Callan e o assistente do agente funerário, Ned Ryedock, enquanto usavam uma maça de rodas para transferir um corpo do Cadillac preto para a ala de embalsama-mento e cremação. Dentro de um saco plástico preto, fechado por um zíper e meio vazio, o cadáver era tão pequeno que devia ser de uma criança. Em seguida, fecharam a porta e Harry nada mais pôde ver.

Às vezes, eles levantavam as persianas nas duas janelas estreitas e altas e, de sua posição elevada, Harry podia espreitar dentro daquela sala, até a mesa inclinada e de canaletas onde o morto era embalsamado e preparado para o velório. Nessas ocasiões, ele podia ver muito mais do que queria. Esta noite, entretanto, as cortinas estavam abaixadas até o parapeito.

Mudou o raio de observação para o sul ao longo da viela envolta em névoa que servia à Callan e corria entre a Conquistador e a Juniper. Não buscava nada em particular, apenas varria lentamente a área, quando viu um par de figuras grotescas. Eram rápidas e escuras, correndo a toda velocidade ao longo da viela para o amplo terreno baldio anexo à casa funerária, correndo nem de quatro nem eretos, embora mais próximo do primeiro modo do que do segundo.

Bichos-papões.       

O coração de Harry acelerou.

Já vira outros do tipo antes, três vezes nas últimas quatro semanas, embora da primeira vez não tivesse acreditado no que vira. Eram tão espectrais e estranhos e foram vistos tão de relance, que pareciam fantasmas da imaginação; assim, chamou-os de bichos-papões.

Eram mais rápidos do que os felinos. Sumiram de seu campo de visão e desapareceram no terreno vazio e escuro antes que ele pudesse se recobrar do susto e segui-los.

Começou a vasculhar a propriedade de ponta a ponta, dos fundos para a frente, procurando-os em meio ao capim de mais de um metro de altura. Arbustos também ofereciam um bom esconderijo. Azevins selvagens e algumas moitas de chaparral despontavam e barravam o nevoeiro como se fosse algodão.

Encontrou-os. Dois vultos encurvados. Do tamanho de um homem. Apenas um pouco menos pretos do que a noite. Sem formas definidas. Agachavam-se juntos no capim seco no meio do terreno, logo ao norte do imenso abeto que espalhava seus galhos (todos altos) como um dossel sobre metade da propriedade.

Tremendo, Harry aproximou-se ainda mais daquela parte do terreno e ajustou o foco. Os contornos dos papões tornaram-se mais nítidos. Seus corpos pareceram mais pálidos em contraste com a noite ao redor. Ele ainda não podia ver quaisquer detalhes das criaturas por causa da escuridão e do nevoeiro em redemoinhos.

Embora fosse muito caro e difícil de obter, desejou ter adquirido através de seus contatos militares um Tele-Tron, que era uma nova versão do dispositivo de visão noturna Star Tron, usado pela maior parte das forças armadas durante muitos anos. O Star Tron aproveitava a luz disponível — luar, luz das estrelas, qualquer resquício de luz elétrica se houvesse, a vaga luminosidade natural de certos minerais no solo e nas rochas — e ampliava-a 85 mil vezes. Com este aparelho de uma única lente, uma paisagem noturna impenetrável era transformada num crepúsculo pálido ou mesmo no cinza de um final de tarde. O Tele-Tron empregava a mesma tecnologia do Star Tron, mas era projetado para se adaptar a um telescópio. Geralmente, a luz disponível era suficiente para os propósitos de Harry e na maioria das vezes ele estava olhando através de janelas para aposentos bem iluminados; mas para examinar o rápido e furtivo bicho-papão, ele precisava de auxílio high-tech.

Os vultos sombrios olharam para oeste em direção à travessa Juniper, depois para o norte em direção à Callan, depois para o sul, para a casa que, junto com a funerária, ficava ao lado do terreno baldio. Suas cabeças moviam-se com movimentos rápidos e fluidos que fizeram Harry pensar em gatos, embora não pertencessem à família dos felinos.

Um deles olhou para trás, para leste. Como o telescópio colocava Harry diretamente no terreno com as criaturas, ele pôde ver os olhos dos monstros — dourado-claros, palidamente luminosos. Nunca vira seus olhos antes. Estremeceu, mas não somente porque fossem tão sobrenaturais. Havia algo familiar a respeito daqueles olhos, algo que atingia fundo no consciente ou no subconsciente de Harry e provocava um reconhecimento indefinido, ativando primitivas lembranças raciais carregadas em seus genes.

Sentiu-se gelado até a medula e dominado por um medo maior do que qualquer coisa que experimentara desde o Vietnam.

Cochilando, Moose ainda assim estava sintonizado com o estado de espírito de seu dono. O labrador levantou-se, sacudiu-se como se quisesse afastar o torpor do sono e se aproximou do banco. Emitiu um gemido baixo e inquiridor.

Através do telescópio Harry vislumbrou o rosto medonho de um dos papões. Viu-o apenas de relance, no máximo dois segundos, e o semblante disforme era delineado apenas pelo clarão etéreo do luar, de modo que viu muito pouco; na verdade, a luminosidade insuficiente da lua fez menos para revelar a criatura do que para aumentar o mistério em torno dela.

Mas ficou transfixado, perplexo, paralisado. Moose emitiu um interrogativo "Uuuf?" Por um instante, incapaz de erguer os olhos do telescópio ainda que sua vida dependesse disso, Harry fitou uma fisionomia de macaco, embora mais fina e mais feia e mais feroz e infinitamente mais estranha do que a cara de um macaco. Lembrou-se, também, de lobos e, na escuridão, a criatura parecia ter algo da aparência de um réptil. Julgou ter visto o brilho esmaltado de presas repulsivas, de mandíbulas abertas. Mas a luz era fraca e ele não podia ter certeza se parte do que via não era um truque das sombras ou uma distorção do nevoeiro. Parte de sua hedionda visão tinha que ser atribuída à sua imaginação febril. Um homem com um par de pernas inúteis e um braço inerte tinha que ter uma imaginação vivida se quisesse viver mais a vida.

Tão repentinamente quanto o papão olhou em sua direção, ele desviou o olhar. Ao mesmo tempo, ambas as criaturas moveram-se com uma fluidez e uma rapidez que espantaram Harry. Eram quase do tamanho dos grandes felinos da selva e quase tão rápidos. Mudou o raio de observação para segui-los e eles voaram pela escuridão, atravessando o terreno baldio para o sul, saltando por cima de uma cerca de grade de ferro e desaparecendo no quintal da casa dos Claymores, sumindo com tal presteza que ele não conseguiu mantê-los em seu campo de visão.

Continuou a procurar por eles, até a escola secundária em Roshmore, mas encontrou apenas a noite e a cerração e os prédios familiares da vizinhança. Os bichos-papões desapareceram tão bruscamente como costumavam fazer no quarto de um menino no momento em que as luzes eram acesas.

Por fim, ele levantou a cabeça do telescópio e deixou-se afundar no banco.

Moose ergueu-se de imediato, colocando as patas dianteiras no braço do banco, suplicando para ser acariciado, como se tivesse visto o que seu dono vira e precisasse ter certeza de que espíritos malignos não andavam à solta pelo mundo.

Com a mão direita boa, que no começo tremia violentamente, Harry afagou a cabeça do labrador. Em pouco tempo, o afago acalmou-o quase tanto quanto acalmou o cachorro.

Se o FBI respondesse à carta que mandara há mais de uma semana, ele não sabia se iria lhes falar sobre os bichos-papões. Contaria tudo o que vira e muita coisa poderia lhes ser útil. Mas isto... Por um lado, tinha certeza que as bestas que vislumbrara tão de relance em três ocasiões — quatro agora — de alguma forma estavam relacionadas com todos os outros eventos estranhos das últimas semanas. Eram, entretanto, de outra magnitude de estranheza e, ao falar deles, poderia parecer desmiolado, até mesmo louco, fazendo os agentes do Bureau desconsiderarem qualquer outra coisa que tivesse dito.

Estarei maluco?, perguntou-se enquanto afagava Moose. Estarei louco?

Após vinte anos de confinamento a uma cadeira de rodas, preso em casa, vivendo indiretamente através de seu telescópio e de seus binóculos, talvez estivesse tão desesperado em se envolver mais com o mundo e tão faminto de emoções que desenvolvera uma complexa fantasia de conspirações e de coisas sobrenaturais, colocando-se no centro como O Homem Que Sabia Demais, convencido de que suas ilusões eram reais. Mas isso era muito improvável. A guerra deixara seu corpo pateticamente danificado e frágil, mas sua mente estava tão ativa e clara quanto sempre fora, talvez até fortalecida pela adversidade. Essa, e não loucura, era a sua maldição.

—        Bichos-papões — disse a Moose.

O cão rosnou.

—        E agora? Será que uma noite dessas eu vou olhar para a lua e ver a silhueta de uma bruxa numa vassoura?

 

Chrissie saiu do bosque perto da Pyramid Rock, que um dia inspirara suas fantasias de egípcios de três centímetros de altura. Olhou para oeste, em direção à casa e aos Estábulos Foster, onde as luzes exibiam halos em tons do arco-íris no nevoeiro. Por um instante, considerou a idéia de voltar em busca de Godiva ou de outro cavalo. Talvez pudesse entrar na casa furtivamente e pegar um casaco. Mas concluiu que chamaria menos atenção e estaria mais a salvo a pé. Além do mais, não era tão estúpida quanto as heroínas do cinema que sempre retornavam à Casa do Mal, sabendo que o Diabo poderia encontrá-las ali. Voltou-se na direção leste-nordeste e partiu através da campina em direção à estrada do condado.

Demonstrando sua habitual inteligência (pensou ela, como se lesse um trecho de um romance de aventuras), Chrissie sabiamente afastou-se da casa amaldiçoada e desapareceu na noite, imaginando se tornaria a ver o lugar de sua infância ou a encontrar consolo nos braços de sua agora alienada família.

O capim alto e seco pelo outono açoitava suas pernas, enquanto ela corria em ângulo, na direção do centro da campina. Ao invés de permanecer junto à linha das árvores, queria estar em campo aberto, com medo de que alguma coisa saltasse sobre ela de dentro da floresta. Não acreditava que pudesse correr mais do que eles uma vez que a localizassem, ainda que tivesse um minuto de vantagem, mas pelo menos pretendia dar a si mesma uma chance de tentar. A friagem da noite se intensificara durante o tempo em que ela se refugiara no aqueduto. Sua camisa de flanela não parecia mais quente do que uma blusa de verão de mangas curtas. Se ela fosse uma heroína de aventuras da estirpe que André Norton criava, saberia como tecer um casaco do capim e de outras plantas disponíveis, com um alto fator de isolamento. Ou saberia como capturar, matar de forma indolor e tirar a pele de animais, como tingir suas peles e costurá-las, cobrindo-se com trajes tão surpreendentemente elegantes quanto práticos.

Ela tinha que parar de pensar nas heroínas desses livros. Sua comparativa inépcia a deprimia.

Já tinha o suficiente com que se sentir deprimida. Fora expulsa de sua casa. Estava sozinha, com fome, com frio, confusa, com medo, e sendo perseguida por criaturas estranhas e perigosas. Porém, mais especificamente embora seu pai e sua mãe sempre tenham sido um pouco distantes, não fossem dados a demonstrações fáceis de afeto, Chrissie os amara e agora eles estavam perdidos, talvez para sempre, transformados de um modo que ela não compreendia, vivos, mas sem alma e, portanto, o mesmo que mortos.

Quando estava a menos de trinta metros da estrada do condado de mão dupla, correndo paralelamente ao longo do caminho de entrada a mais ou menos a mesma distância, ouviu o motor de um carro. Ela viu faróis na estrada, vindos do sul. Em seguida, viu o carro, pois o nevoeiro estava mais esparso naquela direção do que para o lado do mar e a visibilidade era razoavelmente boa. Mesmo a distância, ela identificou o carro de radiopatrulha; embora não se ouvisse nenhuma sirene, luzes azuis e vermelhas giravam no teto do carro. O carro de polícia diminuiu a velocidade e entrou no caminho onde uma placa indicava Estábulos Foster.

Chrissie quase gritou, quase correu para o carro, porque sempre lhe ensinaram que os policiais eram seus amigos. Na verdade, chegou a acenar com uma das mãos, mas logo percebeu que, num mundo onde não podia confiar em seus próprios pais, ela não podia esperar que todos os policiais tivessem as melhores intenções em mente.

Assustada com a idéia de que os tiras pudessem ter sido "convertidos" da maneira como Tucker pretendera fazer com ela, da maneira como seus pais foram convertidos, ela abaixou-se, agachando-se no capim alto. Os faróis não passaram perto dela quando o carro dobrou a entrada de carros. A escuridão da campina e o nevoeiro sem dúvida tornaram-na invisível aos ocupantes do carro e ela não era tão alta que se destacasse no terreno plano. Mas não queria correr nenhum risco.

Observou o carro ir diminuindo a velocidade ao longo do caminho. Ele parou por um instante ao lado do carro de Tucker, que estava abandonado a meio caminho e depois continuou. O nevoeiro, mais denso a oeste, tragou-o.

Ela ergueu-se do mato e continuou a correr para leste, em direção à estrada do condado. Pretendia seguir aquela estrada para o sul, até Moonlight Cove. Se permanecesse alerta e cautelosa, poderia esconder-se numa vala ou atrás de uma moita de ervas daninhas toda vez que ouvisse algum carro se aproximando.

Não se revelaria a ninguém que não conhecesse. Quando chegasse à cidade, poderia ir para a igreja de Nossa Senhora das Mercês e procurar a ajuda do padre Castelli. (Ele dizia que era um padre moderno e que preferia ser chamado de padre Jim, mas Chrissie nunca fora capaz de se dirigir a ele de maneira tão informal.) Chrissie trabalhara incansavelmente no festival de verão da igreja e demonstrará sua vontade de ser coroinha no próximo ano, para grande satisfação do padre Castelli. Tinha certeza que ele gostava dela e que acreditaria em sua história, por mais louca que parecesse. Se não acreditasse nela... bem, então ela tentaria a Sra. Tokawa, sua professora da sexta série.

Chegou à estrada do condado, parou, olhou para trás, em direção à casa, que agora não passava de um conjunto de pontos luminosos no nevoeiro. Tremendo, voltou-se para o sul em direção a Moonlight Cove.

 

 A porta da frente da casa dos Fosters estava aberta para a noite.

Loman Watkins percorreu o lugar de cima a baixo. As únicas coisas estranhas que encontrou foram uma cadeira virada na cozinha e a maleta preta abandonada de Jack Tucker cheia de seringas e doses da droga com a qual se efetuava a Mudança — e uma lata de WD-40 no chão do corredor do térreo.

Fechando a porta da frente, ele saiu para a varanda, parou nos degraus que levavam ao jardim e ouviu a noite etereamente quieta. Uma brisa indolente aumentara e diminuíra de forma inconstante durante a noite, mas agora cessara por completo. O ar estava fantasmagoricamente imóvel. O nevoeiro parecia abafar todos os ruídos, deixando o mundo tão silencioso como se fosse uma vasta sepultura.

Olhando na direção dos estábulos, Loman gritou:

—        Tucker! Foster! Há alguém aí?

Um eco de sua voz voltou até ele. Era um som frio e solitário. Ninguém respondeu.

—        Tucker? Foster?

As luzes estavam acesas em uma das longas estrebarias e havia uma porta aberta na extremidade mais próxima. Achou que devia dar uma olhada.

Loman estava a meio caminho do prédio quando se ouviu um uivo ululante, como a nota oscilante de uma longínqua trombeta, vindo de bem longe ao sul, fraco mas inconfundível. Era agudo, mas gutural, cheio de ódio, anseio, excitação e necessidade. O grito estridente de um regressivo em meio a uma caçada.    Ele parou e ouviu, esperando ter interpretado mal.

  O som se repetiu. Desta vez, pôde discernir pelo menos duas vozes, talvez três. Vinham de muito longe, mais de um quilômetro c meio, de modo que seu arrepiante lamento não podia ser em resposta aos gritos de Loman.

Aqueles gritos enregelaram-no.

E encheram-no de uma estranha ansiedade.

Não.

Cerrou os punhos com tal força que as unhas cravaram-se nas palmas das mãos, e lutou para controlar a escuridão que ameaçava avolumar-se dentro dele. Tentou se concentrar na tarefa policial, no problema que tinha à mão.

Se aqueles gritos eram de Alex Foster, Sharon Foster e Jack Tucker — como era provável — onde estaria a menina, Christine? Talvez tivesse conseguido fugir quando preparavam sua conversão. A cadeira virada na cozinha, a maleta preta abandonada de Tucker e a porta da frente aberta pareciam confirmar a inquietante explicação. Em perseguição à garota, presos na excitação da caçada, os Fosters e Tucker deviam ter se rendido a uma vontade latente de regredir. Talvez não tão latente. Deviam ter regredido em outras ocasiões, de modo que desta vez haviam resvalado rápida e ansiosamente para aquele estado alterado. E agora caçavam-na na região erma ao sul — ou há muito já a teriam localizado, dilacerado-a e ainda estavam regredidos porque excitaram-se com aquele estado degradante. A noite estava fria, mas de repente Loman começou a suar. Ele queria... precisava... Não!

Horas antes, Shaddack dissera a Loman que a garota Foster perdera o ônibus da escola e, ao voltar para casa do ponto de ônibus na estrada do condado, deparara-se com seus pais quando experimentavam suas novas habilidades. Assim, a menina tinha que ser submetida à Mudança um pouco mais cedo do que o planejado, a primeira criança a ser elevada. Mas talvez "experimentando" fosse uma mentira que os Fosters haviam usado para se proteger. Talvez estivessem em profunda regressão quando a menina os encontrou, o que não podiam revelar a Shaddack sem ficarem marcados como degenerados entre os integrantes da Nova Gente.

A Mudança era destinada a elevar a humanidade; era evolução forçada.

Regressão voluntária, entretanto, era uma perversão doentia do poder conferido pela Mudança. Os que regrediam eram proscritos. E os regressivos que matavam pela emoção primária de ver sangue eram os piores de todos: psicóticos que escolheram a involução ao invés da evolução.

Os gritos distantes se fizeram ouvir outra vez.

Um estremecimento percorreu a espinha de Loman. Era um tremor agradável. Foi tomado por uma forte vontade de se despir, atirar-se ao chão e correr nu e sem peias pela noite em longas e graciosas passadas, através da campina, para dentro da floresta, onde tudo era selvagem e belo, onde a caça esperava para ser encontrada e abatida e dilacerada e...

Não.

Controle.

Autocontrole.

Os gritos distantes penetraram seu corpo.

Tinha que demonstrar autocontrole.

Seu coração batia descompassadamente.

Os gritos. Os gritos cativantes, ansiosos, selvagens...

Loman começou a tremer, depois a se sacudir violentamente e, em sua imaginação, viu-se livre da rígida postura de Homo Erectus, livre das limitações da forma e do comportamento civilizados. Se o homem primitivo dentro dele pudesse ser libertado afinal e lhe fosse permitido viver num estado natural...

Não. Impensável.

Suas pernas enfraqueceram e ele caiu, embora não de quatro, não, porque esta postura o encorajaria a se render a essas inomináveis e prementes necessidades; não, ele dobrou-se na posição fetal, de lado, os joelhos erguidos contra o peito e lutou contra o crescente desejo de regredir. Sua carne tornou-se tão quente como se estivesse há horas exposto ao sol de meio-dia do verão, mas ele sabia que o calor provinha não de fontes externas, mas de seu íntimo; o fogo nascia não apenas de seus órgãos vitais ou da medula de seus ossos, mas dos elementos dentro das paredes das células, dos bilhões de núcleos que abrigavam o material genético que faziam dele o que era. Sozinho no escuro e no nevoeiro diante da casa dos Fosters, seduzido pelo grito ecoante dos regressivos, ansiava por exercer o controle do ser físico que a Mudança lhe conferira. Mas ele sabia que, uma vez que sucumbisse a essa tentação, nunca mais seria Loman Watkins outra vez; seria um degenerado disfarçado de Loman Watkins, Mr. Hyde num corpo de onde banira o Dr. Jekyll para sempre.

Com a cabeça enfiada no peito, olhava para suas mãos, que estavam curvadas sobre o peito e, na luz turva das janelas da casa dos Fosters, ele pensou ver alguns de seus dedos começarem a se transformar. Um dor aguda percorreu sua mão direita. Sentiu os ossos triturando-se e moldando-se outra vez, os nós dos dedos intumescendo-se, os dedos encompridando, as pontas dos dedos alargando-se, nervos e tendões espessando-se, as unhas endurecendo-se e afiando-se em pontas como garras.

Gritou de absoluto pavor e repúdio e forçou-se a se agarrar à sua identidade inata, ao que restava de e sua humanidade. Resistiu ao movimento de lava de seus tecidos orgânicos. Com os dentes cerrados, repetia seu nome como se fosse um feitiço que evitaria a transformação maligna.

— Loman Watkins, Loman Watkins, Loman Watkins. O tempo passou. Talvez um minuto. Talvez dez. Uma hora. Não sabia. Sua luta para conservar sua identidade levara-o a um estado de consciência além do tempo.

Recobrou a consciência aos poucos. Com alívio, viu-se ainda no chão defronte da casa, sem ter sofrido nenhuma transformação. Estava encharcado de suor. Mas o fogo intenso em sua carne cessara. Suas mãos estavam como sempre foram, sem nenhum monstruoso alongamento dos dedos.

Por alguns instantes, prestou atenção à noite. Não ouviu mais nenhum dos gritos distantes e sentiu-se grato por aquele silêncio. Medo, a única emoção que não perdia vividez e poder a cada dia desde que se tornara um membro da Nova Gente, era agora tão agudo quanto facas dentro de seu corpo, fazendo-o gritar. Durante algum tempo receara ser um daqueles com potencial para se tornar um regressivo, e agora aquela sombria especulação provara ser verdadeira. Mas, se tivesse sucumbido ao anseio, teria perdido tanto o mundo antigo, que conhecera antes de ser convertido, e o admirável mundo novo, que Shaddack estava construindo; não pertenceria a nenhum dos dois.

Pior, estava começando a suspeitar que não era o único, que na verdade todos os da Nova Gente tinham dentro de si as sementes da involução. A cada noite, os regressivos pareciam aumentar em quantidade.

Levantou-se, trêmulo.

A camada de suor era como uma crosta de gelo em sua pele, agora que as chamas interiores haviam sido extintas.

Caminhando tropegamente em direção ao carro de radiopatrulha, Loman Watkins imaginou se a pesquisa de Shaddack — e sua aplicação tecnológica — seria tão falha que não houvesse qualquer benefício com a Mudança. Talvez fosse uma maldição absoluta. Se os regressivos não fossem uma percentagem estatisticamente insignificante da Nova Gente, se ao invés disso todos estivessem condenados a caminhar para a regressão mais cedo ou mais tarde...

Pensou em Thomas Shaddack, em sua enorme casa na ponta norte da enseada, voltada para a cidade onde bestas criadas por ele vagavam nas sombras e uma terrível desolação apoderou-se de Watkins. Como a leitura por prazer sempre fora um dos seus passatempos preferidos desde criança, ele pensou no Dr. Moreau de H. G. Wells e imaginou se Shaddack não teria se transformado nele. Moreau reencarnado. Shaddack devia ser um Moreau para a era da microtecnologia, obcecado com a visão doentia de transcendência através da fusão forçada de homem e máquina. Com certeza, ele sofria de delírios de grandeza e tinha a petulância de acreditar que podia erguer a humanidade a um patamar mais alto, assim como o Moreau original acreditava que podia transformar animais selvagens em homens e vencer Deus em Seu jogo. Se Shaddack não fosse o gênio deste século, se fosse um visionário como Moreau, então todos eles estariam condenados.

Loman entrou em seu carro e fechou a porta. Deu partida no motor e ligou o aquecedor para esquentar o seu corpo enregelado de suor.

A tela do computador acendeu, aguardando utilização.

Para proteger o Projeto Falcão da Lua — o qual, com ou sem falhas, representava o único futuro possível para ele —, tinha que presumir que a garota, Chrissie, fugira e que os Fosters e Tucker não haviam conseguido capturá-la. Tinha que mandar que alguns homens montassem guarda furtivamente ao longo da estrada do condado e nas ruas de acesso ao extremo norte de Moonlight Cove. Se a garota entrasse na cidade em busca de ajuda, poderiam detê-la. O mais provável é que ela, sem o saber, se aproximasse de alguém da Nova Gente com sua história de pais possuídos e este seria o seu fim. Ainda que abordasse alguém ainda não convertido, provavelmente não acreditariam em sua história fantástica. Mas não podia correr nenhum risco.

Tinha que falar com Shaddack sobre muitas coisas e executar várias tarefas policiais.

Tinha também que arranjar alguma coisa para comer.

Estava barbaramente faminto.

 

Alguma coisa estava errada, alguma coisa estava errada, alguma coisa, alguma coisa.

Myke Peyser correu agilmente pela floresta escura em direção 110   a sua casa no extremo sul da cidade, atravessando as colinas bra-vias, por entre as árvores, furtivo e alerta, dissimulado e veloz, nu e veloz, de volta de uma caçada, com sangue na boca, ainda excitado, mas cansado depois de duas horas de diversão caçando sua presa, passando ao largo das casas de seus vizinhos, alguns dos quais eram como ele e outros que não eram. As casas naquela região eram bem distantes umas das outras, de modo que achou relativamente fácil se deslocar de sombra em sombra, de árvore em árvore, através do capim alto, junto ao solo, encoberto pela noite, rápido e ágil, silencioso e rápido, nu e silencioso, vigoroso e ligeiro, direto para a varanda da casa de um único andar onde morava sozinho, passando pela porta destrancada, entrando na cozinha, ainda sentindo o gosto de sangue na boca, sangue, o adorável sangue, exultante por causa da caçada, mas também satisfeito de estar em casa, mas...

Alguma coisa estava errada.

Errada, errada, meu Deus, ele estava ardendo, consumido pelo fogo, quente, queimando, precisando de comida, alimentação, combustível, combustível, e isto era normal, era de se esperar — as exigências de seu metabolismo eram enormes quando estava em estado alterado —, o fogo não era errado, não o fogo interior, não a necessidade desvairada e devoradora por alimentação. O que estava errado é que ele não conseguia, não conseguia, não conseguia... Ele não conseguia voltar ao estado anterior. Excitado pelos movimentos primorosamente fluidos de seu corpo, pela maneira como seus músculos flexionavam-se e alongavam-se, flexionavam-se e alongavam-se, ele entrou na casa às escuras, vendo bastante bem sem luzes, não tão bem quanto um gato, mas melhor do que um homem, porque agora era mais do que um homem, e vagou pelos aposentos durante alguns minutos, silencioso e ágil, quase desejando encontrar um intruso, alguém para atacar, alguém para atacar, atacar, alguém para atacar, para morder e estraçalhar, mas a casa estava deserta. Em seu quarto, sentou-se no assoalho, encolheu-se de lado e chamou seu corpo de volta à sua forma de nascença, à forma familiar de Mike Peyser, à forma de um homem que andava ereto e se parecia com um homem e, em seu íntimo, sentiu um movimento em direção à normalidade, uma mudança nos tecidos, mas não uma mudança suficiente, e em seguida, um afastamento, cada vez mais distante, como uma maré vazante afastando-se da praia, para mais longe, mais longe da normalidade, de modo que tentou outra vez, mas desta vez não houve sequer um movimento, nem mesmo uma volta parcial ao que ele fora. Estava preso, capturado numa armadilha, trancado, trancado, trancado numa forma que lhe parecera a essência da liberdade, in comensuravelmente desejável, mas que agora não era uma forma desejável porque não podia se livrar dela segundo sua vontade, estava preso, preso, e entrou em pânico.

Ergueu-se num salto e correu para fora do quarto. Embora pudesse ver bastante bem no escuro, esbarrou num abajur de pé, que caiu com estrondo, o barulho áspero de vidro estilhaçado, mas continuou em direção ao pequeno corredor, à sala de estar. Um tapete de retalhos foi atirado longe. Sentia-se numa prisão; seu corpo, seu próprio corpo transformado, tornara-se sua prisão, prisão, ossos metamorfoseados servindo de grades de uma cela, barras de ferro mantendo-o cativo de dentro para fora; estava preso por sua própria carne reconfigurada. Deu a volta na sala, arrastou-se de um lado para outro, deu voltas, voltas, agitado, desvairado. As cortinas agitavam-se com o deslocamento de ar quando passava. Dava voltas entre os móveis. Uma mesinha de canto virou à sua passagem. Ele podia correr, mas não escapar. Carregava sua prisão dentro do próprio corpo. Não havia saída. Não havia saída. Nunca. A percepção deste fato fez seu coração bater ainda com mais força. Aterrorizado, frustrado, derrubou um porta-revistas, espalhando seu conteúdo, atirou longe um pesado cinzeiro de vidro e duas peças decorativas de cerâmica da mesinha de centro, estraçalhou as almofadas dos sofás até destruir tanto o tecido quanto o estofamento de espuma, quando uma terrível pressão encheu seu crânio, dor, uma  dor tão aguda, que teve vontade de gritar, mas teve medo de gritar,   medo de não conseguir mais parar.

Comida.         Combustível.

Alimentar o fogo, alimentar o fogo.

Percebeu de repente que sua incapacidade de voltar à sua forma natural podia estar relacionada a uma grave escassez de reservas energéticas necessárias para alimentar a extraordinária aceleração de seu metabolismo associado com uma transformação. Para obter o que ele estava exigindo, seu corpo tinha que produzir enormes quantidades de enzimas, hormônios e complexas substâncias químicas biologicamente ativas; em poucos minutos, o corpo tinha que sofrer uma degeneração forçada e reconstruir tecidos iguais em exigências energéticas a anos de crescimento normal e para isso precisava de combustível, material para transformar, proteínas e minerais, carboidratos em abundância.

Com fome, faminto, faminto, Peyser correu para a cozinha às escuras, agarrou o puxador da porta da geladeira, levantou-se, abriu a porta com um safanão, sibilou quando a luz feriu seus olhos, viu dois terços de um presunto de um quilo e meio, presunto sólido, presunto bom, envolto em plástico num prato azul, então agarrou-o, arrancou o plástico, atirou longe o prato, que se espatifou contra uma porta de armário, e deixou-se cair ao chão outra vez, mordeu um naco do presunto, mordeu e mordeu, mordeu com força, arrancou pedaços, mastigou vorazmente, continuou mordendo.

Adorava arrancar as roupas e buscar sua outra forma assim que anoitecia, correndo a toda velocidade para a floresta atrás da casa, subindo as colinas, onde caçava coelhos e guaxinins, raposas e esquilos, estraçalhava-os nas mãos, com os dentes, alimentava o fogo, aquela profunda queimação interior, e adorava tudo isso, adorava, não apenas porque sentisse uma liberdade tão grande nesta encarnação, mas porque isto lhe dava uma esmagadora sensação de poder, de poder divino, mais intensamente erótico do que sexo, mais gratificante do que qualquer coisa que já tivesse experimentado, poder, um poder selvagem, um poder bárbaro, o poder de um homem que dominara a natureza, transcendera suas limitações genéticas, o poder do vento e da tempestade, livre de todas as limitações humanas, solto, livre. Alimentara-se naquela noite, correndo pela floresta com a confiança de um predador implacável, tão irresistível quanto a própria escuridão, mas o que consumira não devia ter sido suficiente para permitir a volta à forma de Michael Peyser, analista de sistemas, solteiro, proprietário de um Porsche, ardente colecionador de filmes em vídeo-disco, corredor de maratonas, bebedor de Perrier...

Tendo devorado o presunto, tudo que havia, apoderou-se de outros alimentos na geladeira e também os comeu, enfiando-os na boca com as duas mãos de dedos finos: uma tigela cheia de sobras de rigatoni frio e uma almôndega; metade de uma torta de maçã que comprara no dia anterior na padaria na cidade; um tablete de manteiga, todos os 250 gramas, gordurosa e saturada, mas bom alimento, bom combustível, adequado para alimentar o fogo; quatro ovos crus; e mais, e mais. Era uma espécie de fogo que, quando alimentado, não aumentava de intensidade, mas se aplacava, diminuía, porque não era um fogo real, mas um sintoma físico da desesperadora necessidade de combustível para manter os processos metabólicos funcionando com perfeição. Logo o fogo começou a perder calor, passando de uma fogueira fragorosa a chamas crepitantes e, em seguida, a pouco mais do que brasas incandescentes.

Saciado, Mike Peyser deixou-se cair no chão, diante da geladeira aberta, em meio a restos de alimentos, pratos quebrados, cascas de ovos, embalagens e vasilhames. Encolheu-se outra vez e ordenou a si mesmo a volta à forma em que o mundo o reconheceria e mais uma vez sentiu uma mudança ocorrer em seus ossos e medula, em seu sangue e órgãos, em nervos e cartilagens, em músculos e pele, à medida que ondas de hormônios, enzimas e outras substâncias químicas orgânicas eram produzidas em seu corpo e lançadas em seu organismo, mas como antes o processo foi suspenso por uma transformação deploravelmente incompleta e seu corpo aos poucos voltou ao seu estado selvagem, regredindo de forma inexorável por mais que ele empregasse todas as suas forças, todas as suas forças, se empenhasse e lutasse em busca de sua forma superior.

A porta da geladeira se fechara. A cozinha mergulhou em sombras outra vez e Mike Peyser sentiu como se aquela escuridão não estivesse apenas a sua volta, mas também dentro dele.

Finalmente, gritou. Como temera, uma vez que começou a gritar, não conseguiu mais parar.

 

 Pouco antes da meia-noite, Sam Booker deixou o Cove Lodge. Usava casaco de couro marrom, suéter azul, jeans e tênis azuis — um traje que lhe permitia se disfarçar bem na noite, mas que não levantaria suspeitas, embora talvez fosse um pouco juvenil demais para um homem com o seu implacável temperamento melancólico. Apesar da aparência comum, o casaco tinha diversos bolsos internos admiravelmente fundos e espaçosos, onde ele carregava alguns apetrechos básicos de um ladrão ou arrombador de automóveis. Desceu as escadas da ala sul, saiu pela porta dos fundos e parou por um instante na passagem de serviço atrás do motel.

O nevoeiro denso jorrava pela face do rochedo e através da grade de ferro, levado por uma repentina brisa marinha que viera per turbar a calma da noite. Em poucas horas, a brisa levaria o nevoeiro para o interior da região, deixando a costa em relativa claridade.

Então, Sam teria terminado a tarefa que tinha pela frente e, não precisando mais da cobertura que a cerração proporcionava, iria dormir — ou mais provavelmente lutar contra a insônia — na cama de seu quarto de motel.        Estava apreensivo. Não se esquecera do bando de garotos de que fugira em Iceberry Way, horas antes. Como a verdadeira natureza deles permanecesse um mistério, continuou a pensar neles como um punhado de baderneiros, mas sabia que eram mais do que delinqüentes juvenis. Estranhamente, tinha a sensação de que sabia o que eles eram, mas tal conhecimento existia nele muito abaixo até mesmo de um plano subconsciente, nos domínios da consciência primitiva.

Dobrou a quina sul do prédio, passou pelos fundos da lanchonete, que já estava fechada e, dez minutos depois, por um caminho indireto, chegou ao edifício-sede do condado de Moonlight Cove, na Jacobi Street. Era exatamente como os agentes do Bureau de San Francisco o haviam descrito: uma estrutura de dois andares — tijolos envelhecidos pelo tempo no andar térreo, paredes brancas no andar superior — com um telhado de ardósia, venezianas verdes ladeando as janelas e grandes lampiões de ferro à entrada. O prédio do condado e o terreno onde ficava ocupavam metade de um quarteirão no lado norte da rua, mas sua arquitetura antiinstitucional harmonizava-se com a vizinhança que, a não ser por aquele prédio, era residencial. As luzes internas e externas do andar térreo estavam acesas mesmo àquela hora porque além dos gabinetes da administração do condado e da guarda costeira, o prédio abrigava o departamento de polícia, que obviamante nunca fechava.

Do outro lado da rua, fingindo estar ali para um passeio a altas horas, Sam examinou o local enquanto passava por ele. Não viu nenhuma atividade inusitada. A calçada diante da entrada principal estava deserta. Através das portas de vidro, viu um saguão profusamente iluminado.

Na esquina seguinte, tomou a direção norte e entrou na viela que havia no meio do quarteirão. A passagem de serviço sem iluminação era ladeada por árvores, arbustos e cercas que demarcavam os limites dos quintais das casas da Jacobi Street e Pacific Drive, por algumas garagens e anexos, por amontoados de latas de lixo e pelo amplo e aberto estacionamento atrás do prédio do condado. Sam entrou num nicho de uma cerca viva de dois metros e meio de altura no canto do pátio anexo ao prédio público. Embora a viela estivesse muito escura, as lâmpadas de vapor de sódio lançavam uma claridade amarelada sobre o terreno da propriedade pública, revelando doze veículos: quatro Fords antigos do tipo sem acessórios, verde cor de vômito, que era fabricado especialmente para os governos federal, estadual e dos condados; uma pickup e uma caminhonete, ambas com o emblema da cidade e a inscrição Guarda Costeira; uma máquina enorme de varrer ruas; um caminhão pesado com laterais de madeira e comporta de descarga; e quatro carros de patrulha, todos sedas Chevy.

O quarteto branco e preto era o que interessava a Sam porque eram equipados com terminais ligando-os ao computador central do departamento de polícia. Moonlight Cove possuía oito carros de polícia, um número alto para uma pacata cidadezinha costeira, cinco a mais do que outras comunidades de porte semelhante podiam se dar o luxo de manter e certamente excessivos para as necessidades. Mas tudo a respeito do departamento de polícia era maior e melhor do que o necessário, o que era uma das coisas que disparara alarmes silenciosos nas mentes dos agentes do FBI que vieram investigar as mortes de Sanchez e dos Bustamantes. Moonlight Cove possuía doze policiais em tempo integral e três em meio-expediente, além de quatro funcionários administrativos em tempo integral. Uma considerável força de trabalho. Além disso, todos recebiam salários competitivos com os níveis salariais das polícias das principais cidades da Costa Oeste, portanto excessivos para uma cidade deste porte. Tinham os melhores uniformes, os melhores móveis de escritório, um pequeno arsenal de revólveres, metralhadoras e bombas de gás lacrimogênio e — mais surpreendente ainda — estavam informatizados a tal ponto que fariam inveja aos rapazes nos abrigos do Comando Aéreo Estratégico no Colorado.

De seu incômodo esconderijo na perfumada cerca de sempre-vivas, Sam examinou o terreno por alguns minutos para ter certeza de que não havia ninguém sentado no interior de um dos veículos ou de pé nas sombras profundas ao longo dos fundos do prédio. Persianas estavam cerradas nas janelas iluminadas do andar térreo, de modo que ninguém lá dentro tinha uma visão da área de estacionamento.

Tirou um par de luvas flexíveis e macias de pele de cabra de um bolso do casaco e calçou-as.

Estava prestes a sair do esconderijo quando ouviu um ruído na viela atrás dele. Um barulho de algo raspando. No caminho por onde ele viera. Ocultando-se ainda mais para dentro da cerca, ele virou a cabeça para averiguar a fonte do barulho. Uma caixa de papelão parda e amassada, duas vezes maior que uma caixa de sapatos, deslizava pelo asfalto, impulsionada pela brisa que a cada instante agitava mais as folhas das árvores e dos arbustos. A caixa esbarrou numa lata de lixo, arrastou-se à sua volta e parou.

Fluindo pela viela, deslizando para leste ao sabor da brisa, o nevoeiro agora parecia fumaça, como se toda a cidade estivesse em chamas. Espreitando através da névoa em redemoinhos, certificou-se de que estava sozinho, então virou-se e correu para o mais próximo dos quatro carros de polícia no terreno aberto. Estava trancado.

De um bolso interno do casaco, ele tirou uma ferramenta da polícia de abrir fechaduras de automóveis que podia abrir qualquer 116   tranca sem danificar o mecanismo. Arrombou o carro, deslizou para trás do volante e fechou a porta tão rápida e silenciosamente quanto pôde.

A luz das lâmpadas de vapor de sódio que penetrava no carro era suficiente para ele ver o que fazia, embora fosse bastante experiente para trabalhar no escuro. Guardou a ferramenta e tirou uma chave de boca de outro bolso. Em segundos, tirou o cilindro de ignição do eixo do volante, deixando os fios expostos.

Detestava esta parte. Para ligar o terminal de vídeo montado no consolo do carro, tinha que ligar a ignição; o computador era mais potente do que um modelo lap-top e se comunicava com seu centro de bases de dados por transmissões de microondas de energia intensiva, retirando muita força da bateria. O nevoeiro encobriria a fumaça do cano de descarga, mas não o barulho do motor. O carro branco e preto estava estacionado a cerca de 25 metros do prédio, portanto não era provável que alguém no edifício ouvisse o barulho. Mas se alguém saísse pela porta dos fundos para tomar um pouco de ar ou para sair em um dos carros de radiopatrulha para atender a um chamado, o motor em funcionamento não deixaria de ser ouvido. Então Sam se veria numa situação de confronto à qual — dada a freqüência com que mortes violentas ocorriam naquela cidade — ele poderia não sobreviver.

Suspirando baixinho, pressionando ligeiramente o acelerador com o pé direito, ele separou os fios da ignição com uma das mãos enluvadas e enrolou juntas as pontas de contato nuas. O motor funcionou imediatamente, sem nenhum ruído áspero.

A tela de computador iluminou-se.

O sofisticado sistema de computação do departamento de polícia era fornecido de graça pela New Wave Microtechnology porque eles supostamente estavam usando Moonlight Cove como uma espécie de campo de provas para seus próprios sistemas de software. A fonte do excesso de fundos, tão evidente em todos os outros aspectos do departamento não era tão fácil de localizar, mas a suspeita era de que ela vinha da New Wave ou do maior acionista e principal diretor da New Wave, Thomas Shaddack. Qualquer cidadão era livre para dar apoio a sua polícia local ou outras ramificações do governo além de seus impostos, claro, mas, se era o que Shaddack estava fazendo, por que não era de conhecimento público? Nenhum homem inocente doa grandes somas de dinheiro a uma causa cívica com absoluto desinteresse. Se Shaddack mantinha em segredo seu apoio financeiro às autoridades locais com fundos privados, então a possibilidade de ter tiras comprados e autoridades policiais no bolso não podia ser descartada. E se a polícia de Moonlight Cove fosse um exército particular de Thomas Shaddack, concluía-se que o suspeito número um de mortes violentas ocorridas nas últimas semanas deveria estar relacionado a esta perversa aliança.

O monitor de vídeo no carro mostrou o logotipo da New Wave no canto inferior direito, assim como o logotipo da IBM teria surgido se aquele fosse um de seus computadores.

Durante a investigação do caso Sanchez-Bustamante realizada pelo escritório de San Francisco, um dos melhores agentes do FBI, Morrie Stein, esteve num carro de radiopatrulha com um dos policiais de Watkins, Reese Dorn, quando Dorn acessou o computador central para obter informações nos arquivos do departamento. Nesta época, Morrie suspeitara que o computador era mais sofisticado do que Watkins e seus homens haviam revelado, servindo-os de tal modo que excedia os limites legais da autoridade policial e isto eles não estavam dispostos a discutir, de modo que memorizou o número de código que Reese digitara no sistema. Ao voar para Los Angeles para instruir Sam sobre o caso, Morrie dissera:

— Acho que todos os policiais naquela pervertida cidadezinha têm seu próprio número de senha, mas o de Dorn deve funcionar tão bem quanto o de qualquer outro. Sam, você precisa entrar no computador deles e deixar que ele lhe envie alguns menus, ver o que ele oferece, brincar com ele quando Watkins e seus homens não estiverem olhando por cima de seu ombro. Sim, pareço paranóico, mas possuem uma parafernália high-tech demais para o tamanho e as necessidades deles, a menos que estejam fazendo alguma coisa escusa. À primeira vista, parece uma cidade como outra qualquer, até mais agradável do que muitas, bem bonita... mas, diabos, depois de algum tempo você tem a sensação de que o povoado inteiro está conectado, que você é observado onde quer que vá, que o Grande Irmão está olhando por cima do seu ombro a cada instante. Por Deus, depois de alguns dias você fica com a certeza de que está num estado policial em miniatura, onde o controle é tão sutil que você mal o percebe, mas ainda assim completo, com mão de ferro. Aqueles tiras estão subjugados, Sam; estão metidos em alguma coisa, talvez tráfico de drogas, quem sabe, e o computador faz parte do esquema.

O número de Reese Dorn era 262699 e Sam digitou-o no teclado do terminal. O logotipo da New Wave desapareceu. A tela ficou vazia por um segundo. Em seguida, surgiu um menu.

 

  ESCOLHA UMA OPÇÃO

 A.       DESPACHANTE

B.       ARQUIVOS CENTRAIS

 C.       QUADRO DE AVISOS

 D.       MODEM PARA FORA DO SISTEMA 

 

Para Sam, o primeiro item do menu indicava que um policial de patrulha podia se comunicar com o despachante no escritório central não apenas por meio da faixa de rádio da polícia com que o carro era equipado, como também através do computador. Mas por que ele se daria o trabalho de digitar perguntas ao despachante e ler as respostas transmitidas pelo terminal quando as informações poderiam ser obtidas muito mais fácil e rapidamente através do rádio? A menos que... houvesse coisas sobre as quais esses policiais não queriam falar através de freqüências de rádio que podiam ser monitoradas por qualquer um com um receptor da faixa da polícia.

Não abriu a conexão com o despachante porque teria que iniciar um diálogo, fazendo-se passar por Reese Dorn, e isso seria o mesmo que gritar "Ei, estou aqui em um dos seus carros de radiopatrulha, metendo o nariz exatamente onde não querem, então por que não vêm até aqui e o decepam?”

Em vez disso, digitou B e um novo menu apareceu.

 

ESCOLHA UMA OPÇÃO 

 A.       SITUAÇÃO... ATUAIS DETENTOS

 B.       SITUAÇÃO... ATUAIS CASOS EM JULGAMENTO 

 C.       SITUAÇÃO... CASOS EM JULGAMENTO PENDENTES

 D.       REGISTROS DE PRISÕES PASSADAS... CONDADO

 E.       REGISTROS DE PRISÕES PASSADAS... CIDADE 

 F.       CRIMINOSOS CONDENADOS VIVENDO NO CONDADO

 G.       CRIMINOSOS CONDENADOS VIVENDO NA CIDADE

 

 Apenas para se certificar de que as opções oferecidas no menu eram realmente o que aparentavam ser e não códigos para outro tipo de informação, selecionou o item F, para obter dados sobre criminosos condenados vivendo no condado. Um novo menu apareceu, oferecendo-lhe dez opções: ASSASSINATO, CHACINA, ESTUPRO, ABUSOS SEXUAIS, ATAQUE E AGRESSÃO, ASSALTO A MÃO ARMADA, ROUBO, ARROMBAMENTO E INVASÃO, OUTROS FURTOS, DELITOS DIVERSOS.

Chamou o arquivo sobre assassinato e descobriu três criminosos condenados — todos culpados de assassinato em primeiro ou  segundo grau — morando atualmente como cidadãos livres no condado, após terem cumprido penas variáveis de doze a quarenta anos por seus crimes antes de serem colocados em liberdade condicional. Seus nomes, endereços e números telefônicos apareceram na tela com os nomes das vítimas, detalhes resumidos dos crimes e as datas de confinamento; nenhum deles vivia dentro dos limites da cidade de Moonlight Cove.

Sam ergueu os olhos da tela e examinou o estacionamento. Continuava deserto. A névoa onipresente estava repleta de veios mais densos de nevoeiro que tremulavam como bandeirolas ao passarem pelo carro e ele quase se sentiu como se estivesse no fundo do mar num batiscafo, olhando para fora, para longas fitas de algas tremulando nas correntes marinhas.

Voltou ao menu principal e pediu o item C. QUADRO DE AVISOS. Era uma série de recados que Watkins e seus policiais deixaram uns para os outros e que diziam respeito a assuntos que às vezes pareciam relacionados com trabalho policial e outras particulares. A maioria era tão enigmaticamente cifrada que Sam não achou que podia decifrá-los ou que o esforço valeria a pena.

Tentou o item D no menu principal, MODEM PARA FORA DO SISTEMA, e viu-se diante de uma relação de computadores em todo o território nacional com os quais ele podia se comunicar através do modem na sede do condado vizinho. As possibilidades de conexão do departamento eram extraordinárias: LOS ANGELES DP (para departamento de polícia), SAN FRANCISCO DP, SAN DIEGO DP, DENVER DP, HOUSTON DP, DALLAS DP, PHOENIX DP, CHICAGO DP, MIAMI DP, NOVA YORK DP e várias outras cidades de grande porte; DEPARTAMENTO DE VEÍCULOS AUTOMOTORES DA CALIFÓRNIA, DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO, PATRULHA RODOVIÁRIA e muitas outras repartições governamentais com ligações menos óbvias com o trabalho policial; ARQUIVOS DE PESSOAL DO EXÉRCITO DOS ESTADOS UNIDOS, DA MARINHA, DA FORÇA AÉREA; REGISTROS CRIMINAIS DO FBI, SAJL DO FBI (Sistema de Apoio Judiciário Local, um programa relativamente novo do FBI); até o escritório de Nova York da INTERPOL, através do qual a organização internacional podia acessar seus arquivos centrais na Europa. Por que diabos uma pequena força policial da região rural da Califórnia precisava de tais fontes de informação?

E havia mais: dados aos quais até mesmo órgãos policiais inteiramente informatizados em cidades como Los Angeles não teriam acesso fácil. Por lei, alguns deles eram material que a polícia só poderia obter com um mandado judicial, como, por exemplo, os arquivos da TRW, a mais importante firma de informação de crédito do país, pois a companhia não teria concordado com a devassa em seus arquivos sem uma intimação. O sistema também oferecia entrada aos bancos de dados da CIA na Virgínia, que eram considerados protegidos contra acesso de qualquer computador além das paredes do órgão e a certos arquivos do FBI também considerados invioláveis.

Abalado, Sam saiu do MODEM PARA FORA DO SISTEMA e voltou ao menu principal.

Olhou para fora, para o estacionamento, pensativo.

Quando instruía Sam há alguns dias, Morrie Stein sugerira que a polícia de Moonlight Cove podia estar de algum modo atuando no tráfico de drogas e que a generosidade da New Wave com sistemas de computação podia indicar cumplicidade por parte de alguns funcionários não identificados daquela empresa. Mas o FBI também estava interessado na possibilidade de que a New Wave estivesse vendendo ilegalmente tecnologia de ponta de importância estratégica aos soviéticos e que ela comprara a polícia de Moonlight Cove porque, através destes contatos no sistema policial, a companhia seria alertada o mais rápido possível sobre uma possível investigação federal em suas atividades. Não tinham nenhuma explicação de como qualquer um desses dois crimes responderiam por todas aquelas mortes recentes, mas precisavam começar com alguma teoria.

No momento, Sam estava pronto a descartar tanto a idéia de que a New Wave estava negociando com os soviéticos quanto a de que alguns executivos da firma estavam envolvidos em tráfico de drogas. A extensa teia de bancos de dados que a polícia colocara à própria disposição através de modem — havia listados naquele menu! — era muito mais do que precisariam tanto para tráfico de drogas quanto para farejar suspeitas federais de possíveis conexões soviéticas na New Wave.

Haviam criado uma rede informal mais adequada às necessidades operacionais de todo um governo estadual — ou, mais precisamente, de uma pequena nação. Uma nação pequena e hostil. Esta teia de dados era destinada a dar a seu dono um enorme poder. Era como se esta cidadezinha pitoresca sofresse sob a mão de um governo megalomaníaco, cuja ilusão principal era a de que podia criar um pequeno reino de onde conquistaria um vasto território.

Hoje, Moonlight Cove; amanhã, o mundo.

— Que diabos estão fazendo? — perguntou-se Sam em voz alta.

 

 Trancada com segurança em seu quarto no Cove Lodge — vestida para dormir com calcinhas amarelo-claro e uma camiseta branca enfeitada com o rosto sorridente de Kermit —, Tessa tomava Diet Co-ke e tentava ver uma reprise do programa Tonight, mas não conseguia se interessar pela conversa que Johnny Carson tratava com uma atriz imbecil, um cantor imbecil e um comediante imbecil. Pensamento dietético para acompanhar a Diet Coke.

Quanto mais tempo transcorria de sua inquietante experiência nos corredores e nas escadas do motel, mais ela se perguntava se realmente imaginara estar sendo perseguida. Estava perturbada com a morte de Janice, afinal, preocupada com a idéia de que tivesse sido assassinato ao invés de suicídio. E ainda estava com indigestão por causa do cheeseburguer que comera no jantar, tão gorduroso que devia ter sido frito, com pão e tudo, em gordura animal. Como Scrooge no início acreditara no fantasma de Marley, Tessa começava a ver os fantasmas que a haviam amedrontado antes: talvez não passassem de um pedaço de carne não digerida, um pouco de mostarda, um bocado de queijo, um pedacinho de batata malcozida. Enquanto o atual convidado de Carson falava sobre um fim de semana que passara num festival de artes em Havana com Fidel Castro — "um grande sujeito, um sujeito muito engraçado, um sujeito piedoso" —, Tessa levantou-se da cama e dirigiu-se ao banheiro para lavar o rosto e escovar os dentes. Enquanto colocava pasta na escova, ela ouviu alguém tentar abrir a porta do quarto.

O pequeno banheiro dava para um vestíbulo ainda menor. Quando deu um passo para a soleira da porta, estava a cerca de sessenta centímetros da porta para o corredor, perto o suficiente para ver a maçaneta girando de um lado para outro enquanto alguém experimentava a fechadura. Nem sequer tentavam disfarçar. A maçaneta estalou e rangeu e a porta agitou-se contra o batente.

Ela largou a escova de dentes e correu para o telefone que estava sobre a mesinha-de-cabeceira. Nenhum ruído de discar.

Bateu repetidamente no gancho, apertou o código para chamar a telefonista, mas nada funcionava. O painel de controle do motel estava desativado. O telefone estava mudo.

 

  Diversas vezes Chrissie teve que abandonar a estrada apressadamente, escondendo-se nas moitas ao longo da beira da estrada, até que um carro ou caminhão que se aproximava tivesse passado. Um deles era um carro de polícia de Moonlight Cove, dirigindo-se para a cidade e ela tinha certeza que era o mesmo que saíra da casa. Agachou-se no meio de talos de capim alto e ficou lá até que as luzes traseiras do carro branco e preto reduziram-se a minúsculos pontos vermelhos e desapareceram em uma curva.

Havia umas poucas casas ao longo dos dois primeiros quilômetros daquela pista de asfalto de mão dupla. Chrissie conhecia algumas pessoas que moravam lá: os Thomas, os Stones, os Elswicks. Sentiu-se tentada a dirigir-se a uma daquelas residências, bater na porta e pedir ajuda. Mas não podia ter certeza de que aquelas pessoas ainda fossem a gente amável de outrora. Podiam ter mudado, também, como seus pais. Algo sobrenatural ou do espaço estava se apoderando das pessoas em Moonlight Cove e nas cercanias, e ela já vira alguns filmes assustadores e lera alguns livros apavorantes o suficiente para saber que quando tais forças atuavam, não se podia confiar em ninguém.

Estava apostando praticamente tudo no padre Castelli da igreja de Nossa Senhora das Mercês, porque ele era um homem de Deus e nenhum demônio do inferno poderia se apoderar dele. Claro, se o problema fosse de alienígenas do outro mundo, padre Castelli não estaria protegido apenas por ser um homem de Deus.

Nesse caso, se o padre tivesse sido possuído, e se Chrissie conseguisse fugir dele depois de descobrir que ele era mais um inimigo, ela iria diretamente à sra. Irene Tokawa, sua professora. A sra. To-kawa era a pessoa mais inteligente que Chrissie já conhecera. Se extraterrestres estivessem tomando conta de Moonlight Cove, a sra. Tokawa perceberia que algo estava errado antes que fosse tarde demais. Ela teria tomado algumas medidas para se proteger e seria uma das últimas em que os monstros enfiariam as garras. Garras ou tentáculos, presas, pinças ou o que quer que fossem.

Chrissie continuou a se esconder do tráfego que circulava, esgueirou-se para longe das casas espalhadas ao longo da estrada do condado e continuou vacilante, mas sem parar, em direção à cidade. A lua crescente, às vezes revelada através do nevoeiro, atravessara a maior parte do céu e logo desapareceria. Uma brisa  persistente começara a soprar a partir do oeste, acentuada por periódicas rajadas fortes o suficiente para agitar seus cabelos lisos no ar como se fossem uma chama loura erguendo-se de sua cabeça. Embora a temperatura tivesse caído apenas para dez graus, a noite parecia muito mais fria durante esses momentos de turbulência, quando a brisa, temporariamente, se tornava um vento estrondeante. O aspecto positivo era que, quanto pior se sentisse por causa do vento e do frio, menos experimentava um outro desconforto: a fome.

"Menor Encontrada Vagando Aturdida e com Fome após Encontro com Seres Espaciais", disse, lendo a manchete imaginária de uma edição de The National Enquirer que existia apenas em sua mente.

Aproximava-se do entroncamento da estrada do condado com a Holliwell, satisfeita com o progresso que fazia, quando quase caminhou para os braços daqueles que estava tentando evitar.

A leste da estrada do condado, a Holliwell era uma estrada de terra que levava às colinas, abaixo da interestadual e até a antiga e abandonada Colônia ícaro — uma casa de 12 quartos em ruínas, um celeiro e outras construções externas em desmoronamento —, onde um grupo de artistas tentou estabelecer uma sociedade comunitária ideal na década de 50. Desde então, já fora um lugar de criação de cavalos (fracassou), um local de leilões e bazar semanal (fracassou), um restaurante de comida natural (fracassou) e há muito estava abandonado. As crianças conheciam-no muito bem porque era um lugar mal-assombrado e, portanto, o palco de muitos testes de bravura. Para oeste, a Holliwell Road era pavimentada e corria ao longo do perímetro da cidade, passando por algumas das casas mais novas da região, passando pela New Wave Microtechnology chegando à ponta norte da enseada, onde Thomas Shaddack, o gênio da computação, morava numa imensa e estranha casa. Chrissie não pretendia tomar a Holiwell nem para a direita nem para a esquerda; era apenas um marco em seu caminho e, depois de atravessá-la, estaria na entrada nordeste dos limites da cidade de Moonlight Cove.

Estava a trinta metros da Holliwell quando ouviu o barulho surdo mas crescente de um motor em movimento. Saiu da estrada para uma estreita vala ao lado do acostamento, insinuou-se entre as moitas e escondeu-se atrás do tronco grosso de um velho pinheiro. No mesmo instante em que se agachava atrás da árvore, percebeu de qual direção o veículo se aproximava — oeste — e então viu seus faróis iluminarem o cruzamento logo ao sul de onde ela estava. Um caminhão surgiu em seu campo de visão na Holliwell, ignorando o sinal de pare, e freou no meio do cruzamento. O nevoeiro girava e agitava-se a sua volta.

Chrissie podia ver aquela pickup preta — reforçada, adaptada para transporte de carga — bastante bem porque, como o entroncamento da Holliwell e da estrada do condado era local de acidentes freqüentes, um único sinal de trânsito fora instalado na esquina nordeste para melhor visibilidade e como um aviso para os motoristas. O caminhão trazia a inconfundível insígnia da New Wave na porta, que ela podia reconhecer mesmo a distância porque já a vira milhares de vezes antes: um círculo branco e azul do tamanho de um prato, cuja parte de baixo era a crista de uma onda azul. O caminhão tinha uma carroceria grande e no momento sua carga era de homens; seis ou oito estavam sentados na parte de trás do caminhão.

No momento que a. pickup parou no cruzamento, dois homens saltaram pela parte traseira. Um deles foi para a esquina noroeste do cruzamento, onde havia um grupo de árvores e desapareceu entre elas, a não mais do que trinta metros do pinheiro de onde Chrissie o observava. O outro atravessou a esquina sudeste do entroncamento e assumiu posição no meio do mato e do chaparral. A pickup tomou a direção sul pela estrada do condado e afastou-se a toda velocidade.

Chrissie suspeitava que os demais homens no caminhão seriam deixados em outros pontos ao longo do perímetro leste de Moonlight Cove, onde montariam guarda. Além disso, o caminhão era grande o suficiente para transportar pelo menos vinte homens, e sem dúvida, outros haviam sido deixados ao longo do caminho conforme ele veio para leste pela Holliwell, a partir do prédio da New Wave a oeste. Estavam cercando Moonlight Cove com sentinelas. Tinha certeza de que estavam a sua procura. Vira algo que não deveria ter visto — seus pais no ato de uma transformação hedionda, despindo sua forma humana — e agora tinha que ser encontrada e "convertida" —, como Tucker dissera, antes que tivesse chance de avisar o mundo.

O barulho do caminhão preto diminuiu até desaparecer. O silêncio tomou conta do lugar como um cobertor úmido. O nevoeiro girava, agitava-se e corria em incontáveis correntes, mas os deslocamentos de ar dominantes empurravam-no inexoravelmente para as colinas escuras e cerradas.

Então, a brisa aumentou bruscamente até se tornar uma verdadeira ventania, zumbindo no mato alto, sussurrando em meio às sempre-vivas. Extraía um suave e estranhamente desolado zumbido de uma placa de sinalização próxima.

Embora Chrissie soubesse onde os dois homens haviam se aga-chado, não podia vê-los. Estavam bem escondidos.

 

O nevoeiro passava pelo carro de polícia e se dirigia para leste através da noite, levado por uma brisa que se tornava um vento forte e as idéias corriam pela mente de Sam com a mesma fluidez. Seus pensamentos eram tão perturbadores que ele teria preferido ficar sentado num estado inerme de estupefação.

De sua considerável experiência com computadores, ele sabia que parte dos recursos de um sistema podiam ser ocultados se o programador deletasse algumas opções dos menus de tarefas que apareciam na tela. Olhou para o menu principal no monitor do carro —

A. DESPACHANTE;

B. ARQUIVOS CENTRAIS;

C. QUADRO DE AVISOS;

D. MODEM PARA FORA DO SISTEMA

— e apertou E, embora nenhuma opção E fosse oferecida.

Surgiram palavras no terminal: ALÔ, POLICIAL DORN.

Havia uma opção E. Ou entrara num banco de dados secreto que exigia respostas rituais para acesso ou num sistema de informação interativo que responderia às perguntas que ele digitasse no teclado. No primeiro caso, se fossem necessárias senhas ou palavras-chave e se ele digitasse a resposta errada, estaria em apuros; o computador bloquearia seu acesso e faria soar um alarme no departamento de polícia para avisá-los que um impostor estava usando o número de Dorn.

Prosseguindo com cautela, digitou: ALÔ.

POSSO AJUDA-LO EM ALGUMA COISA?

Sam resolveu prosseguir como se aquilo fosse exatamente o que parecia ser — um programa direto, do tipo pergunta-resposta. Digitou: MENU.

A tela ficou vazia por um instante, em seguida as mesmas palavras surgiram: POSSO AJUDÁ-LO EM ALGUMA COISA?

Tentou outra vez: MENU ORIGINAL.

POSSO AJUDÁ-LO EM ALGUMA COISA?

MENU PRINCIPAL POSSO AJUDÁ-LO EM ALGUMA COISA?

Usar um sistema acessado por pergunta-resposta com o qual a pessoa não estava familiarizada significava propor comandos mais ou menos por tentativa e erro. Sam tentou outra vez: PRIMEIRO MENU.

Foi recompensado, afinal.

ESCOLHA UMA OPÇÃO 

A.        QUADRO DE PESSOAL DA NEW WAVE 

B.        PROJETO FALCÃO DA LUA

C.        SHADDACK  

 

Encontrara uma ligação secreta entre a New Wave, seu fundador Thomas Shaddack, e a polícia de Moonlight Cove. Mas ainda não sabia que ligação era essa e o que significava.

Suspeitava que a opção C deveria ligá-lo ao terminal de computador pessoal de Shaddack, permitindo-lhe ter um diálogo com este que seria mais privado do que uma conversa conduzida pela faixa de rádio da polícia. Se era este o caso, então Shaddack e os tiras locais estavam realmente envolvidos numa conspiração tão criminosa que exigia um grau muito alto de segurança. Não apertou C porque, se chamasse o computador pessoal de Shaddack e encontrasse o Chefão em pessoa na outra ponta, não haveria nenhum meio de se passar por Reese Dorn.

A opção A provavelmente iria fornecer-lhe uma relação nominal dos executivos e chefes de departamentos da New Wave, bem como provavelmente códigos que lhe permitiriam ligar-se a terminais pessoais também. Também não queria falar com nenhum deles.

Além disso, sentia que seu tempo se esgotava. Examinou o estacionamento outra vez, verificando especialmente as regiões mais mergulhadas em sombras que ficavam além do alcance das lâmpadas de vapor de sódio. Estava no carro de polícia há quinze minutos e ninguém saíra ou chegara do terreno do edifício do condado durante este tempo. Duvidava que sua sorte fosse durar muito mais tempo, e queria descobrir o máximo que pudesse nos poucos minutos que restassem antes de ser interrompido.

O PROJETO FALCÃO DA LUA parecia a mais misteriosa e interessante das três opções, de modo que apertou B e um novo menu surgiu.

 

ESCOLHA UMA DAS OPÇÕES

A.        CONVERTIDOS 

B.        A SEREM CONVERTIDOS

C.        PROGRAMAÇÃO DE CONVERSÃO – LOCAL

D.        PROGRAMAÇÃO DE CONVERSÃO - SEGUNDA ETAPA

 

Escolheu a opção A e uma coluna de nomes e endereços surgiu na tela. Eram pessoas de Moonlight Cove e no topo da coluna lia-se a anotação 1.967 CONVERTIDOS ATÉ AGORA Convertidos? De quê? Em quê? Haveria algo de religioso por trás desta conspiração? Algum culto estranho? Ou talvez "convertido" fosse usado em algum sentido eufemístico ou como um código.

A palavra provocou-lhe calafrios.

Sam descobriu que tanto podia repassar a lista quanto acessá-la em seções arrumadas em ordem alfabética. Procurou nomes de habitantes que ele conhecia ou já encontrara. Loman Watkins estava na lista de convertidos. Assim como Reese Dorn. Burt Peckham, o proprietário do bar Knight's Bridge, não estava entre os convertidos, mas toda a família Perez, certamente os mesmos que mantinham o restaurante, estava na relação.

Verificou Harold Taibot, o veterano de guerra incapacitado com quem pretendia fazer contato pela manhã. Taibot não estava na lista de convertidos.

Intrigado com o significado de tudo aquilo, Sam encerrou aquele arquivo, voltou ao menu principal e apertou B, A SEREM CONVERTIDOS. Isto trouxe uma nova lista de nomes e endereços ao VDT e a coluna era encabeçada pelas palavras 1.104 ASEREM CONVERTIDOS. Nesta relação, encontrou Burt Peckham e Harold Taibot.

Tentou C, PROGRAMAÇÃO DE CONVERSÃO - LOCAL e um submenu de três títulos apareceu:

 

A.        SEGUNDA-FEIRA, 13 DE OUTUBRO, 18:00h 

ATÉ 

TERÇA-FEIRA, 14 DE OUTUBRO, 6:00h

 B.       TERÇA-FEIRA, 14 DE OUTUBRO, 6:00h 

ATÉ

 TERÇA-FEIRA, 14 DE OUTUBRO, 18:00h

 C.       TERÇA-FEIRA, 14 DE OUTUBRO, 18:00h

 ATÉ 

MEIA-NOITE 

 

Eram 12:39, terça-feira, mais ou menos na metade do período indicado na opção A, de modo que apertou A primeiro. Surgiu uma nova lista de nomes encabeçada pela anotação 380 CONVERSÕES PROGRAMADAS.

Os cabelos finos da nuca de Sam estavam eriçados e ele não sabia por que, exceto que a palavra "conversões" perturbava-o. Fazia-o pensar naquele antigo filme com Kevin McCarthy, Vampiros de Almas.

Ele também pensou no bando que o perseguira no começo da noite. Teriam sido... convertidos?

Quando verificou Burt Peckham, descobriu o dono do bar pro- 128   gramado para conversão antes das 6:00. Entretanto, Harry Taibot não estava na lista.

O carro estremeceu.

Sam ergueu a cabeça bruscamente e estendeu a mão para o revólver no coldre sob o casaco.

Vento. Era apenas o vento. Uma série de fortes lufadas rasgara buracos no nevoeiro e sacudira o carro ligeiramente. Após um instante, o vento amainou até se tornar uma brisa forte outra vez e o tecido rasgado do nevoeiro se recompôs, mas o coração de Sam ainda batia dolorosamente.

 

Quando Tessa largou o telefone inútil, a maçaneta da porta parou de girar. Ela ficou parada junto à cama por algum tempo, ouvindo, depois aventurou-se cautelosamente no vestíbulo para colocar o ouvido junto à porta.

Ouviu vozes, mas não imediatamente além daquela porta. Estavam mais embaixo no corredor, vozes peculiares que falavam em sussurros roucos, urgentes. Não conseguia entender o que diziam.

Tinha certeza que eram os mesmos que a haviam perseguido, furtivamente, quando fora buscar gelo e uma Diet Coke. Agora estavam de volta. E de alguma forma haviam desligado os telefones, de modo que não podia pedir ajuda. Era loucura, mas estava acontecendo.

Tal persistência da parte deles indicava a Tessa que não eram agressores ou violentadores comuns, que haviam se detido nela porque era a irmã de Janice, porque ela estava lá para averiguar a morte de Janice. Entretanto, perguntou-se como teriam sabido de sua chegada à cidade e por que decidiram persegui-la tão precipitadamente, sem sequer averiguar se iria apenas resolver assuntos de Janice e partir. Só ela e sua mãe sabiam que pretendia tentar uma investigação de assassinato por conta própria.

A pele de suas pernas nuas ficou arrepiada e ela se sentiu vulnerável vestida apenas com calcinha e camiseta. Entrou depressa no guarda-roupa, vestiu calça jeans e suéter.

Não estava sozinha no motel. Havia outros hóspedes. Assim dissera o sr. Quinn. Talvez não muitos, talvez apenas mais dois ou três. Mas, se as coisas piorassem, ela poderia gritar e os 129   outros hóspedes a ouviriam e seus pretensos atacantes teriam que J fugir.

Pegou seu par de tênis, onde enfiara as meias esportivas brancas que estivera usando e voltou à porta.

Vozes baixas e roucas sussurravam e murmuravam no fim do corredor — então, um estrondo de arrepiar ecoou pelo motel, fazendo-a gritar e se encolher de susto. Um novo estrondo seguiu-se imediatamente. Ouviu uma porta ser derrubada em outro quarto.

Uma mulher berrou e um homem deu um grito, mas as outras vozes foram as que provocaram um calafrio de horror em Tessa. Havia várias delas, três ou até quatro, e soavam estranhas e assustadoramente selvagens. O corredor comum além de sua porta estava repleto de grunhidos ásperos como os de um lobo, ameaçadores rosnados, guinchos estridentes e excitados, um lamento glacial que era a essência de fome de sangue e outros sons menos descritíveis, mas o pior é que aquelas mesmas vozes inumanas, claramente pertencentes a bestas e não a seres humanos, ainda assim emitiam algumas palavras identificáveis:

— preciso, preciso... pegar ela, pegar... pegar, pegar... sangue, vagabunda, sangue...

Recostando-se na porta, apoiando-se nela para não cair, Tessa tentou se convencer de que as palavras que ouvira eram do homem e da mulher cujo quarto fora arrombado, mas sabia que isso não era verdade, porque também ouviu um homem e uma mulher gritando. Os gritos deles eram horríveis, quase insuportáveis, cheios de terror e agonia, como se estivessem sendo espancados até a morte, ou pior, muito pior, sendo dilacerados, esquartejados e estripados.

Há alguns anos, Tessa estivera na Irlanda do Norte, fazendo um documentário sobre a inutilidade da violência gratuita que havia lá. Tivera a infelicidade de estar em um cemitério, no funeral de mais um da infindável série de "mártires" — católicos e protestantes, já não importava, ambos os tinham em excesso —, quando a multidão de pranteadores se metamorfoseou em uma turba de selvagens. Saíram em bandos do pátio da igreja para as ruas próximas, em busca dos que tinham uma religião diferente, e logo se depararam com dois oficiais do Exército britânico à paisana patrulhando a área num carro sem identificação. Somente pelo seu tamanho, a multidão bloqueou a passagem do carro, cercou-o, arrebentaram as janelas e arrastaram os supostos guardiães da paz para a calçada. Os dois auxiliares técnicos de Tessa haviam fugido, mas ela se infiltrou na confusão com sua câmara apoiada no ombro e, através da lente, pareceu-lhe estar olhando além da realidade deste mundo, olhando dentro do próprio inferno. Os olhos desvairados, as feições distorcidas de ódio e fúria, o pesar pelo morto esquecido, tomados de um furor sanguinário, os pranteadores chutaram impiedosamente os ingleses caídos no chão, ergueram-nos apenas para espancá-los e esfaqueá-los, atirá-los seguidamente contra o carro até quebrar suas espinhas e rachar seus crânios, para então largá-los e pisoteá-los, dilacerá-los e esfaqueá-los outra vez, embora a esta altura ambos já estivessem mortos. Uivando e berrando, gritando insultos e slogans que se degeneravam em cadeias de sons ininteligíveis, ritmos irracionais, como um bando de urubus na carniça, eles bicavam os corpos destroçados, embora não fossem como pássaros terrestres, nem como aves de rapina ou abutres, mas como demônios que surgiam das profundezas do inferno, atacando os homens mortos não só com a intenção de devorá-los, mas com o ardente desejo de dilacerá-los e se apoderar de suas almas. Dois daqueles homens possessos notaram a presença de Tessa, agarraram sua câmara e a destruíram, e a atiraram ao chão. Por um terrível instante, teve certeza de que eles iriam destroçá-la em seu frenesi. Dois deles inclinaram-se, agarrando suas roupas. Seus rostos estavam tão desfigurados de ódio que já não pareciam humanos, mas gárgulas que adquiriram vida e desceram dos tetos das catedrais. Abandonaram tudo que era humano neles e soltaram os fantasmas codificados em seus genes das bestas primitivas de que descendiam.

— Pelo amor de Deus, não! — gritara ela. — Pelo amor de Deus, por favor!

Talvez tivesse sido a menção de Deus ou apenas o som de uma voz humana que não se transformara no rosnado rouco de uma besta, mas por alguma razão eles a soltaram e hesitaram. Ela aproveitou-se daquela trégua para fugir deles, através da multidão ensandecida, para a segurança.

O que ouvia agora, no outro extremo do corredor do motel, era exatamente igual. Ou pior.

 

Começando a suar embora o sistema de aquecimento do carro não estivesse ligado, ainda assombrado a cada repentina rajada de vento, Sam chamou o item B do submenu, que mostrou as conversões programadas das 6:00h até as 18:00h. Esses nomes eram precedidos  do cabeçalho 450 CONVERSÕES PROGRAMADAS. O nome de Harry Talbot também não constava daquela lista.

A opção C, das 18:00h de terça-feira até a meia-noite do mesmo dia, indicava que estavam programadas 274 conversões. O nome e o endereço de Harry Talbot estavam naquela terceira e última lista.

Sam somou mentalmente os números mencionados em cada um dos três períodos de conversão — 380, 450 e 274 — e verificou que o total era 1.104, o mesmo número que encabeçava a lista de conversões pendentes. Some-se 1.967 a este número, o total dos já convertidos, e o total final, 3.071, era provavelmente a população de Moonlight Cove. Da próxima vez que o relógio batesse meia-noite, dali a pouco menos de 23 horas, toda a cidade estaria convertida — o que quer que isso significasse.

Ele saiu do submenu e estava prestes a desligar o motor do carro e sair dali quando a palavra ALERTA apareceu no terminal e começou a piscar. O medo apossou-se dele porque tinha certeza que haviam descoberto um intruso bisbilhotando o sistema; ele devia ter esbarrado em algum sistema de alarme oculto no programa.

Ao invés de abrir a porta do carro e sair correndo, entretanto, observou a tela por mais alguns segundos, tomado de curiosidade.

 

VARREDURA TELEFÔNICA INDICA AGENTE DO FBI EM MOONLIGHT COVE.

LOCAL DE CHAMADA:

TELEFONE PÚBLICO, POSTO SHELL, OCEAN AVENUE.

 

O alerta dizia respeito a ele, embora não porque soubessem que, naquele instante, estava sentado em um dos carros de polícia, examinando a conspiração Falcão da Lua/New Wave. Os bastardos estavam ligados aos bancos de dados da companhia telefônica e periodicamente varriam aqueles registros para ver quem fizera chamadas e de qual telefone — até dos telefones públicos da cidade, que em circunstâncias normais podiam oferecer comunicação segura para um agente em campo. Eram paranóicos, preocupados ao extremo com segurança e eletronicamente conectados em extensão e grau mais surpreendentes a cada revelação.

 

HORA DA CHAMADA

19:31 h, SEGUNDA-FEIRA,

13 DE OUTUBRO 

 

Pelo menos não mantinham uma ligação minuto-a-minuto ou hora-a-hora com a companhia telefônica. O computador deles obviamente varria aqueles registros segundo um intervalo de tempo programado, talvez a cada quatro, seis ou oito horas. Caso contrário, estariam à sua procura logo depois de ter feito a chamada para Scott no começo da noite.

Depois da legenda DESTINO DA CHAMADA, apareceu o número de telefone de sua casa, depois seu nome e endereço em Sher-man Oaks. Seguido de:

 

CHAMADA REALIZADA POR:

SAMUEL H. BOOKER.

 

FORMA DE PAGAMENTO:

CARTÃO DE CRÉDITO DE TELEFONE.

 

TIPO DE CARTÃO:

PAGO PELA FIRMA EMPREGADORA.

 

ENDEREÇO DE REMESSA DA CONTA:

FEDERAL BUREAU OF INVESTIGATION, WASHINGTON, D.C.

 

Começariam a verificar os motéis do condado inteiro, mas como ele estava hospedado na única pousada de Moonlight Cove, a busca seria rápida. Imaginou se teria tempo de correr até o Cove Lodge, pegar seu carro e se dirigir à próxima cidade, Aberdeen Wells, de onde poderia ligar para o escritório do Bureau em San Francisco de um telefone não monitorado. Descobrira o suficiente para saber que alguma coisa diabolicamente estranha estava acontecendo na cidade, o suficiente para justificar uma intervenção das autoridades federais e uma ampla investigação.

Mas as palavras que apareceram no terminal em seguida convenceram-no de que, se voltasse ao Cove Lodge para pegar seu carro, seria capturado antes de poder sair da cidade. E, se o pegassem, ele se transformaria em mais uma horrenda morte acidental nas estatísticas.

Sabiam o endereço de sua casa, de modo que Scott podia estar em perigo também — não de imediato, não em Los Angeles, mas talvez amanhã.

 

            DIÁLOGO SOLICITADO

WATKINS: SHOLNICK, ESTÁ NA LINHA?

SHOLNICK: ESTOU AQUI.

WATKINS: VERIFIQUE O COVE LODGE.

SHOLNICK: A CAMINHO.

 

Um policial, Sholnick, já estava a caminho para averiguar se Sam estava registrado no Cove Lodge. E a história que Sam contara ao funcionário da recepção — de que era um bem-sucedido corretor da Bolsa de Los Angeles, na expectativa de uma aposentadoria prematura em alguma cidadezinha costeira — fora por água abaixo.

 

WATKINS: PETERSON?

PETERSON: AQUI.

 

Eles provavelmente não precisavam digitar seus nomes. O terminal de cada homem o identificava com o computador central e seu nome era automaticamente impresso adiante da mensagem que ele digitasse. Perfeito, rápido, simples de usar.

 

WATKINS: DÊ COBERTURA A SHOLNICK 

PETERSON: CERTO.

WATKINS: NÃO 0 MATE ATÉ PODERMOS INTERROGÁ-LO.

 

Por toda Moonlight Cove, tiras em carros de polícia conversavam entre si via computador, fora das faixas de ondas públicas, onde não podiam ser facilmente interceptados. Embora Sam os estivesse bisbilhotando sem que soubessem, percebeu que estava diante de um terrível inimigo, quase tão onisciente quanto Deus.

 

WATKINS: DANBERRY?

DANBERRY: AQUI. ESCRITÓRIO CENTRAL.

 WATKINS: BLOQUEIE A INTERSEÇÃO DA OCEAN AVENUE COM A INTERESTADUAL

DANBERRY: CERTO.

SHADDACK: E A GAROTA FOSTER?

 

Sam ficou estupefato ao ver o nome de Shaddack aparecer na tela. O alerta, ao que tudo indicava, piscara no seu computador em casa, talvez até disparando um alarme sonoro e acordando-o.

 

WATKINS: AINDA A SOLTA.

SHADDACK: NÃO PODEMOS NOS ARRISCAR A QUE B00-KER A ENCONTRE.

WATKINS: A CIDADE ESTÁ CERCADA POR SENTINELAS. ELES A PEGARÃO QUANDO ENTRAR NA CIDADE.

SHADDACK: ELA VIU DEMAIS.

 

Sam lera a respeito de Thomas Shaddack em revistas e jornais. O sujeito era uma espécie de celebridade, o gênio de computação da época, e além disso um pouco excêntrico.

Fascinado por aquele diálogo revelador, que incriminava o famoso gênio e sua força policial comprada, Sam não atentou de imediato para o significado da troca de mensagens entre o delegado Watkins e Danberry: "Danberry... Aqui. Escritório central... Bloqueie a interseção da Ocean Avenue com a interestadual... Certo." Percebeu que o policial Danberry estava no escritório central, que era o prédio do condado, e que a qualquer momento iria sair pela porta dos fundos e correr para um dos carros de polícia no estacionamento.

— Ah, merda. — Sam agarrou os fios da ignição, separando-os.

O motor engasgou e morreu e o monitor de vídeo se apagou.

Uma fração de segundo depois, Danberry abriu a porta dos fundos do edifício do condado de par em par e correu para o estacionamento.

 

 Quando a gritaria cessou, Tessa saiu de um transe de terror e dirigiu-se diretamente ao telefone outra vez. Continuava mudo.

Onde estaria Quinn? O escritório do motel estava fechado a esta hora, mas o gerente não teria um quarto anexo ao escritório? Ele reagiria ao tumulto. Ou faria parte do bando selvagem que estava no corredor?

Eles derrubaram uma porta. Podiam fazer o mesmo com a sua.

Agarrou uma das cadeiras de espaldar reto da mesa junto à janela, correu para a porta com ela, inclinou-a e enfiou-a sob a maçaneta.

Já não achava que estavam atrás dela por ser irmã de Janice e disposta a descobrir a verdade. Essa explicação não justificava o ataque aos outros hóspedes, que nada tinham a ver com Janice. Era loucura. Não compreendia o que estava acontecendo, mas percebia as implicações do que ouvira: um assassino psicótico, não, vários psicóticos, a julgar pelas vozes que ouvira, de algum culto bizarro como a família Mason talvez, ou pior, estavam à solta no motel. Já haviam assassinado duas pessoas e podiam matá-la também, evidentemente por puro prazer. Sentia-se num pesadelo.

Esperava que a qualquer instante as paredes começassem a se abaular daquele modo amorfo dos pesadelos, mas elas continuavam sólidas, fixas e as cores dos objetos eram nítidas e claras demais para que aquilo fosse um devaneio.

Calçou as meias e os tênis às pressas, apreensiva por estar descalça, como antes sua quase nudez a fizera se sentir vulnerável, como se a morte pudesse ser despistada por um guarda-roupa adequado.

Ouviu as vozes outra vez. Não mais no final do corredor. Perto de sua porta. Aproximando-se. Desejou que a porta tivesse um olho mágico, que permitisse uma visão em grande-angular, mas não havia nenhum.

Na soleira da porta, entretanto, havia uma abertura de um centímetro e meio, de modo que Tessa atirou-se ao chão, comprimiu um lado do rosto contra o carpete e espreitou o corredor. Daquele ângulo limitado, viu alguma coisa passar pela porta do seu quarto tão depressa que seus olhos não puderam acompanhá-la, embora tivesse conseguido vislumbrar seus pés, o que foi suficiente para mudar radicalmente sua percepção do que estava acontecendo. Este não era um incidente de selvageria humana semelhante à carnificina que presenciara — e na qual quase sucumbira — na Irlanda do Norte. Era, ao contrário, um encontro com o desconhecido, uma transgressão da realidade, uma repentina derrapagem do mundo normal para o sobrenatural. Eram pés peludos, de pele escura e coriácea, largos e chatos e surpreendentemente compridos, com dedos tão protuberantes e cheios de nós que quase pareciam ter as funções dos dedos das mãos.

Algo golpeou a porta. Com força.

Tessa levantou-se atabalhoadamente e correu para fora do vestíbulo. Vozes desvairadas enchiam o corredor: aquela mesma mistura estranha de sons roucos de animais interrompidos por rajadas de palavras pronunciadas de modo ofegante, mas em sua maior parte desconexas.

Rodeou a cama em direção à janela, soltou a trava e deslizou o painel móvel para o lado.

A porta estremeceu outra vez. O estrondo foi tão forte que Tessa sentiu como se estivesse dentro de um tambor. Não seria derrubada com tanta facilidade como a dos outros hóspedes, graças à cadeira, mas não resistiria a mais do que alguns golpes.

Sentou-se no parapeito, jogou as pernas para fora, olhou para 136   baixo. A passagem úmida do nevoeiro brilhava sob o fraco clarão amarelo das lâmpadas da entrada de serviço a cerca de três metros e meio abaixo da janela. Um pulo fácil.

Golpearam a porta outra vez, com mais força. Lascas de madeira voaram pelo vestíbulo.

Tessa saltou do parapeito. Aterrissou na passagem molhada e, por causa dos tênis de sola de borracha, escorregou, mas não caiu.

Do quarto do qual acabara de fugir, veio o barulho ainda mais Forte de madeira lascada, e o metal retorcido guinchou quando a Fechadura da porta começou a se fragmentar.

Estava perto do extremo norte do prédio. Julgou ter visto algo se movendo na escuridão naquela direção. Podia não ser nada além de um coágulo de nevoeiro agitando-se em redemoinhos para leste ao sabor do vento, mas não queria correr o risco, de modo que tomou a direção sul, com o vasto mar negro além da cerca a sua direita. Quando chegou ao final do prédio, um estrondo ecoou pela noite — o barulho da porta de seu quarto sendo derrubada —, seguido pelos uivos do bando ao entrar no aposento a sua procura.

 

Sam não podia sair do carro de polícia sem atrair a atenção de Danberry. Havia quatro carros de radiopatrulha à disposição do policial, portanto as chances eram de 75 por cento de que Sam não fosse descoberto se permanecesse no carro. Afundou no banco do motorista o máximo que pôde e inclinou-se para a direita, por cima do teclado do computador sobre o consolo.

Danberry dirigiu-se ao carro mais próximo da fileira.

Com a cabeça sobre o consolo, o pescoço virado de modo a poder olhar para a janela do lado do passageiro, Sam observou Danberry abrir a porta do outro carro. Rezou para que o policial se mantivesse de costas, porque o interior do carro em que Sam estava abaixado era revelado pela claridade sulfurosa das lâmpadas do estacionamento. Se Danberry apenas relanceasse o olhar em sua direção, Sam seria visto.

O tira entrou no outro carro branco e preto e bateu a porta, fazendo Sam suspirar de alívio. O motor foi ligado. Danberry arrancou do estacionamento do prédio do condado. Quando chegou à viela, acelerou e os pneus giraram e rangeram por um instante an tes de aderirem ao chão, e logo ele desapareceu.

Embora Sam quisesse reconectar os fios da ignição e ligar o computador outra vez para descobrir se Watkins e Shaddack ainda estavam conversando, sabia que não ousava se demorar mais. Conforme a caçada humana se intensificasse, os escritórios do prédio sem dúvida ficariam mais movimentados.

Como não queria que eles soubessem que andara bisbilhotando em seus computadores ou que interceptara sua conversa no terminal de vídeo — quanto maior achassem que era a sua ignorância, menos eficazes seriam em sua busca —, Sam usou suas ferramentas para recolocar o cilindro da ignição no eixo do volante. Saiu do carro, apertou o botão para trancar a porta e a fechou.

Não queria escapar pela viela porque algum carro de polícia podia entrar por uma das duas extremidades e atingi-lo com seus faróis. Preferiu precipitar-se pela estreita rua nos fundos do estacionamento e abriu um portão numa cerca simples de ferro batido. Entrou no quintal de uma casa um tanto decrépita em estilo vitoriano, cujos proprietários deixaram as ervas daninhas crescerem tão livremente que o lugar parecia habitado por uma família macabra das histórias em quadrinhos saída da pena de Gahan Wilson. Caminhou em silêncio pela lateral da casa, atravessou o jardim, saiu na Pacific Drive, a um quarteirão ao sul da avenida Ocean.

A calma da noite não era perturbada por sirenes. Não ouviu gritos, nem passos correndo, nenhum brado de alarme. Mas ele sabia que despertara uma besta de muitas cabeças e que esta Hidra singularmente perigosa estava à sua procura por toda a cidade.

 

Mike Peyser não sabia o que fazer, não sabia, estava amedrontado, confuso e amedrontado, de modo que não conseguia pensar com clareza, embora precisasse pensar clara e objetivamente como um homem, mas seu lado selvagem continuava a se impor; sua mente trabalhava com rapidez e astúcia, mas ele não conseguia manter uma linha de pensamento por mais do que alguns minutos. Pensamento; ágil, rápido, não era suficiente para resolver um problema desta ordem; tinha que pensar de forma rápida e penetrante. Mas o alcance de sua reflexão não era mais o mesmo.

  Quando conseguiu parar de gritar e erguer-se do chão da cozinha, correu para a sala de jantar às escuras, atravessou a sala de estar também com as luzes apagadas, arremessou-se pelo pequeno corredor até o quarto, depois ao banheiro principal, quase sempre de quatro, erguendo-se nos pés ao atravessar a soleira da porta do quarto, incapaz de se manter nesta posição e completamente ereto todo o tempo, mas flexível o bastante para ficar mais ou menos erguido. No banheiro, iluminado apenas pelo luar nebuloso e meio cintilante que penetrava pela pequena janela acima do boxe do chuveiro, ele agarrou a borda da pia e olhou-se no espelho do armário de remédios, onde podia ver apenas um vago reflexo de si mesmo, sem detalhes.

Queria acreditar que voltara a sua forma natural, que a sensação de estar preso numa armadilha em seu estado alterado era pura alucinação, sim, sim, queria acreditar nisso, precisava muito acreditar nisso, acreditar, embora não conseguisse ficar inteiramente ereto, embora pudesse sentir a diferença em seus dedos estranhamente compridos, no modo esquisito como sua cabeça assentava-se nos ombros e na forma como suas costas ligavam-se a seus quadris. Tinha que acreditar.

Acenda a luz, disse a si mesmo.

Não podia fazer isso.

Acenda a luz.

Tinha medo.

Precisava acender a luz e se olhar no espelho.

Mas agarrava-se à pia sem conseguir se mexer.

Acenda a luz.

Em vez disso, inclinou-se em direção ao tenebroso espelho, examinando intensamente o reflexo indistinto, vendo pouco mais do que uma pálida irradiação cor de âmbar de olhos estranhos.

Acenda a luz.

Deixou escapar um lamento estridente de angústia e terror.

Shaddack, pensou de repente. Shaddack, tinha que contar a Shaddack, Tom Shaddack saberia o que fazer, Shaddack era sua maior esperança, talvez sua única esperança, Shaddack.

Soltou a pia, deixou-se cair no chão, correu para fora do banheiro, entrando no quarto, em direção ao telefone na mesinha-de-cabeceira. Enquanto andava, numa voz alternadamente aguda e gu-tural, penetrante e sussurrante, repetia o nome como se fosse uma palavra com poderes mágicos:

— Shaddack, Shaddack, Shaddack, Shaddack...

 

Tessa Lockland refugiou-se numa lavanderia automática, aberta 24 horas, a quatro quarteirões a leste do Cove Lodge e a meio quarteirão da Ocean Avenue. Queria estar em um lugar bem iluminado e a série de lâmpadas fluorescentes no teto não permitia sombras. Sozinha na lavanderia, sentou-se numa surrada cadeira de plástico amarelo, fitando as fileiras de portinholas das secadoras, como se a compreensão estivesse para lhe ser outorgada por uma fonte cósmica que se comunicava através daqueles círculos de vidro.

Como documentarista, precisava ter um olhar crítico para os padrões na vida que dariam coerência a um filme narrativa e visualmente, portanto não tinha dificuldade em identificar padrões de escuridão, morte e forças desconhecidas naquela cidade profundamente perturbada. As criaturas fantásticas no motel certamente foram a origem dos gritos que ouvira na praia no começo da noite e sua irmã sem dúvida fora morta por aquelas mesmas criaturas, o que quer que fossem. O que de certa forma explicava por que as autoridades insistiram tanto para que Marion autorizasse a cremação do corpo de Janice — não porque seus restos estivessem corroídos pela água do mar e semidevorados pelos peixes, mas porque a cremação ocultaria ferimentos que levantariam perguntas impossíveis de serem respondidas por uma autópsia isenta. Também via reflexos da corrupção das autoridades locais na aparência física da Ocean Avenue, onde havia tantas vitrinas de lojas vazias e tantos negócios em dificuldade, algo inexplicável para uma cidade onde o desemprego era virtualmente nulo. Notara um certo ar solene nas pessoas que vira nas ruas, bem como uma pressa e uma atitude decidida que pareciam estranhas numa cidade costeira da região norte, longe do tumulto da vida moderna.

Entretanto, sua percepção dos padrões não incluía nenhuma explicação do motivo pelo qual a polícia iria querer esconder a verdadeira natureza da morte de Janice. Ou por que a cidade parecia atravessar uma recessão econômica apesar de sua prosperidade. Ou, em nome de Deus, o que seriam aquelas criaturas de pesadelo no motel. Padrões eram pistas para verdades subjacentes, mas sua capacidade de reconhecê-las não significava que pudesse encontrar as respostas e revelar as verdades que os padrões sugeriam.

Continuou sentada, tremendo, sob a claridade fluorescente, respirando vestígios dos vapores de detergentes, alvejantes, amaciantes e o persistente odor de restos de cigarro dos dois cinzeiros de pé, cheios de areia, enquanto tentava decidir o que fazer. Não perdera sua determinação de investigar a morte de Janice. Mas já não tinha a audácia de achar que podia brincar de detetive por conta própria. Precisava de ajuda e teria que obtê-la de autoridades do condado ou estaduais.

A primeira providência era sair de Moonlight Cove o mais rápido possível.

Seu carro estava no Cove Lodge, mas ela não queria voltar lá para buscá-lo. Aquelas... criaturas poderiam ainda estar no motel ou observando-o das moitas cerradas e árvores e das onipresentes sombras que eram parte integrante da cidade. Como Carmel, Califórnia, em outro ponto ao longo da costa, Moonlight Cove era uma cidade construída numa floresta costeira. Tessa adorava Carmel por sua esplêndida integração das obras do homem e da natureza, onde a geografia e a arquitetura pareciam ser o produto das mãos de um mesmo escultor. No momento, entretanto, Moonlight Cove não se beneficiava em graça e estilo de sua exuberante vegetação ou engenhosas sombras noturnas, como Carmel; ao contrário, a cidade parecia estar coberta com a mais tênue e superficial camada de civilização, sob a qual algo selvagem — até primitivo — espreitava e aguardava. Cada bosquete e cada rua escura não abrigava a beleza, mas o sobrenatural e a morte. Teria achado Moonlight Cove muito mais atraente se cada rua, viela, jardim e parque fossem iluminados com a mesma profusão de lâmpadas fluorescentes que a lavanderia automática onde se refugiara.

Talvez a polícia já tivesse aparecido no Cove Lodge a esta altura, em resposta aos gritos e à algazarra. Mas não se sentiria mais segura lá pela simples presença de tiras. Estes eram parte do problema. Iriam querer interrogá-la sobre os assassinatos dos outros hóspedes. Descobririam que Janice fora sua irmã e, embora não lhes dissesse que estava na cidade para investigar as circunstâncias de sua morte, eles suspeitariam ser esta a sua intenção. Se tivessem participado de uma conspiração para esconder a verdadeira natureza da morte de Janice, provavelmente não hesitariam em lidar com Tessa de modo firme e definitivo.

Tinha que abandonar o carro.

Mas não iria atravessar a cidade a pé à noite. Poderia pegar uma carona na interestadual — talvez até de um caminhoneiro honesto e não de um psicopata  itinerante — mas, entre Moonlight Cove e a auto-estrada, teria que atravessar uma região escura e semi-rural, onde correria risco ainda maior de encontrar outras daquelas misteriosas bestas que haviam arrombado a porta de seu quarto no motel.

Claro, foram atrás dela num lugar relativamente público e bem iluminado. Não possuía nenhuma razão real para acreditar que estava mais segura naquela lavanderia automática do que no meio da floresta. Quando a membrana da civilização se rompia e o terror primitivo se espalhava, não se estava seguro em lugar nenhum, nem mesmo nos degraus de uma igreja, como vira na Irlanda do Norte e em outros locais.

Entretanto, se apegaria à luz e evitaria a escuridão. Atravessara uma parede invisível entre a realidade que sempre conhecera e um mundo diferente, mais hostil. Enquanto permanecesse naquela Zona de Transição, era melhor acreditar que as sombras ofereciam ainda menos conforto e segurança do que os locais iluminados.

O que a deixava sem um plano de ação. Exceto continuar sentada na lavanderia e esperar o amanhecer. À luz do dia, poderia arriscar uma longa caminhada até a auto-estrada.

O vidro vazio das portinholas das secadoras devolvia seu olhar.

Uma mariposa de outono batia suavemente contra os painéis foscos de plástico suspensos sob as lâmpadas fluorescentes.

 

Impedida de entrar livremente em Moonlight Cove como planejara, Chrissie afastou-se da estrada Holliwell, voltando pelo caminho por onde viera. Permaneceu no bosque, movendo-se devagar e cautelosamente de árvore em árvore, tentando evitar fazer qualquer ruído que pudesse ser ouvido pela mais próxima das sentinelas colocadas de guarda no cruzamento.

A duzentos metros de distância, quando já não podia ser vista ou ouvida por aqueles homens, ela começou a se mover mais agressivamente. Por fim chegou a uma das casas que ladeavam a estrada do condado. A casa de fazenda de um único andar situava-se nos fundos de um amplo jardim e abrigava-se atrás de vários pinheiros e abetos, quase invisível agora que a lua começava a desaparecer. Não havia luzes acesas nem dentro nem do lado de fora da casa e reinava um silêncio absoluto.

Precisava de tempo para pensar e queria sair da noite fria e úmida. Esperando que não houvesse cachorros na casa, correu para a garagem, mantendo-se fora do caminho de cascalhos para evitar fazer qualquer barulho. Como esperava, além da ampla porta pela qual os carros entravam e saíam, havia uma pequena porta lateral. Estava destrancada. Entrou na garagem e fechou a porta.

— Chrissie Foster, agente secreto, entrou nas dependências do inimigo pela utilização intrépida e inteligente de uma porta lateral — disse em voz baixa.

A fraca claridade da lua cada vez menor penetrava pelos painéis da porta e por duas janelas altas e estreitas na parede oeste, mas era insuficiente para revelar qualquer coisa. Podia divisar apenas algumas curvas de cromados e de vidros de pára-brisas brilhando foscamente, apenas o bastante para sugerir a existência de dois carros.

Avançou para o primeiro dos veículos com a cautela de uma cega, as mãos estendidas, com receio de esbarrar em alguma coisa. O carro não estava trancado. Deslizou para trás do volante, deixando a porta aberta para a bem-vinda claridade da lâmpada no interior do veículo. Supunha que um vestígio daquela luz pudesse ser visto pelas janelas da garagem se alguém na casa acordasse e olhasse para fora, mas tinha que arriscar.

Examinou o porta-luvas, as bolsas para guardar mapas nas portas e embaixo dos bancos, na esperança de encontrar algo de comer, porque a maioria das pessoas guardava barras de chocolate, saquinhos de amendoim, biscoitos ou alguma coisa para beliscar nos carros. Embora tivesse comido no meio da tarde, quando estava trancada na despensa, não se alimentava há mais de dez horas. Seu estômago roncava. Não esperava encontrar um sundae de chocolate ou os ingredientes para um sanduíche de geléia, mas desejava ter mais sorte do que achar uma simples barra de chicletes ou um drops verde que, retirado de sob o banco, estivesse pegajoso de poeira, cotão e pêlos do carpete.

Como se lesse manchetes de um tablóide, ela disse:

—        "Fome na Terra da Abundância, Uma Tragédia Moderna, Menina Encontrada Morta na Garagem, 'Eu Queria Apenas Alguns Amendoins' Escrito Com Seu Próprio Sangue.”

No outro carro, encontrou duas barras de chocolate com amêndoas.

—        Obrigada, meu Deus. Sua amiga, Chrissie.

Devorou a primeira barra, mas a segunda ela saboreou em pequenos bocados, deixando-os se desfazerem na boca.

Enquanto comia, tentou imaginar maneiras de entrar em Moonlight Cove. Quando terminou o chocolate...

MENINA VICIADA EM CHOCOLATE ENCONTRADA MORTA EM GARAGEM DE CASO FATAL DE ESPINHAS GIGANTES 

...Já arquitetara um plano.

Sua hora de ir para a cama já passara há muito tempo e sentia-se exausta de toda aquela atividade física que ocupara a sua noite. Queria apenas permanecer no carro, a barriga cheia de chocolate com amêndoas e dormir por algumas horas antes de colocar o plano em ação. Bocejou e deixou-se afundar no banco. Sentia o corpo dolorido, e suas pálpebras estavam tão pesadas como se algum agente funerário muito ansioso tivesse colocado moedas nelas, para que fechassem com o peso.

Essa imagem de si mesma como um cadáver foi tão perturbadora que ela saiu do carro e fechou a porta. Se adormecesse no carro, provavelmente só iria acordar quando alguém a encontrasse pela manhã. Talvez as pessoas que mantinham os carros na garagem fossem convertidas, como seus pais, e nesse caso ela estaria condenada. Do lado de fora, tremendo quando o vento a açoitava, caminhou para a estrada do condado e tomou a direção norte. Passou por mais duas casas escuras e silenciosas, mais uma faixa de floresta e chegou a uma quarta casa, outra residência em estilo fazenda, de um único andar, com telhado de ardósia e paredes de sequóia. Conhecia as pessoas que moravam ali, sr. e sra. Eulane. A sra. Eulane tomava conta da lanchonete da escola. O sr. Eulane era um jardineiro muito conhecido em Moonlight Cove. Todos os dias bem cedo pela manhã, o sr. Eulane dirigia-se à cidade em seu caminhão branco, carregado de cortadores de grama, aparadores de cercas, ancinhos, enxadas, sacos de palha, fertilizantes e tudo o mais de que um jardineiro pudesse precisar; só alguns alunos já tinham chegado quando ele deixava a sra. Eulane na escola, seguindo depois para o próprio trabalho. Chrissie imaginou que poderia encontrar um lugar para se esconder na parte traseira do caminhão — que possuía laterais de madeira —, entre os apetrechos de jardinagem do sr. Eulane.

O caminhão estava na garagem dos Eulanes, que estava aberta, exatamente como a outra. Mas era a zona rural, afinal de contas, onde as pessoas ainda confiavam umas nas outras, o que era bom, exceto que dava a intrusos invasores uma facilidade maior. A única janela era pequena e na parede que não podia ser vista da casa, de modo que Chrissie arriscou acender a luz do teto quando entrou. Silenciosamente, subiu pela lateral do caminhão e meteu-se entre o equipamento de jardinagem, que estava arrumado nos dois terços posteriores da boléia, perto da porta traseira. Mais para a frente do caminhão, contra a parede da cabina, ladeada por sacos de 25 quilos de fertilizantes, estrume e terra adubada, havia uma pilha de cerca de um metro de altura de sacos de aniagem onde o sr. Eulane colocava as aparas de grama que tinham que ser transportadas para o depósito de lixo. Podia usar alguns sacos como colchão, outros como cobertores e se deitar ali até de manhã, permanecendo escondida entre a aniagem e as pilhas de sacos de 25 quilos até chegarem a Moonlight Cove.

Desceu do caminhão, apagou as luzes da garagem, depois retornou no escuro e cuidadosamente subiu no caminhão outra vez. Fez um ninho no meio dos sacos. A aniagem provocava um pouco de cócegas. Após anos de uso, estava impregnada do cheiro de grama recém-cortada, que era agradável no começo, mas logo enjoava. Pelo menos, algumas camadas de sacos de aniagem guardavam o calor de seu corpo e, dentro de poucos minutos, sentia-se aquecida pela primeira vez naquela noite.

Conforme a noite se adensava (pensava), a jovem Chrissie, disfarçando os denunciadores odores de seu corpo no aroma de grama que saturava a aniagem, escondeu-se astutamente de seus perseguidores alienígenas — ou talvez lobisomens —, cujo faro era quase tão bom quanto o de cães de caça.

 

 Sam refugiou-se temporariamente no playground às escuras da Escola Primária Thomas Jefferson na Palomino Street, região sul da cidade. Sentou-se em um dos balanços, segurando as correntes de suspensão com ambas as mãos, na verdade até se balançando um pouco, enquanto considerava as opções.

Não podia sair de Moonlight Cove de carro. Seu carro alugado estava no motel, onde ele seria preso se aparecesse. Podia roubar um automóvel, mas se lembrou da conversa pelo computador em que Loman Watkins ordenara a Danberry que montasse uma barreira na Ocean Avenue, entre a cidade e a interestadual. Eles haviam bloqueado todas as saídas.

Podia tomar outro caminho, esgueirando-se de rua em rua, até os limites da cidade, atravessando os bosques e campos até a auto-estrada. Mas Watkins também dissera algo sobre ter cercado a cidade com sentinelas, para deter a "garota Foster". Embora Sam confiasse em seus instintos e em sua capacidade de sobrevivência, não tivera nenhuma experiência em evadir-se por um território aberto desde que servira na guerra, há mais de vinte anos. Se havia homens de guarda em torno da cidade, prontos a capturarem a menina, provável que Sam caminhasse diretamente para um ou mais da homens.

Embora estivesse disposto a correr o risco de ser capturado, não podia cair nas mãos deles enquanto não conseguisse dar um telefonema ao Bureau para relatar o que sabia e pedir ajuda de emergencia. Se ele se tornasse mais um número na estatística desta capital mundial de mortes acidentais, o Bureau enviaria novos homens em seu lugar e a verdade viria à tona, embora talvez tarde demais. Enquanto balançava-se suavemente para frente e para irás no nevoeiro que se desfazia depressa, empurrado principalmente pele vento, pensou nas relações que vira no terminal de vídeo. Todos na cidade seriam "convertidos" nas próximas 23 horas. Embora não fizesse a menor idéia do que significava ser convertido, não gostava do que podia ser. E pressentia que, uma vez cumprida a programação, uma vez que todos na cidade estivessem convertidos, chegar à verdade em Moonlight Cove não seria mais fácil do que abrir uma série infinita de caixas de titânio, fechadas a laser, umas dentro das outras como um quebra-cabeça chinês.

Muito bem, portanto a primeira coisa a fazer era arranjar um telefone e ligar para o Bureau. Os telefones em Moonlight Cove estavam monitorados, mas ele não se importava se o telefonema fosse registrado na varredura de um computador ou mesmo gravado palavra por palavra. Precisava apenas de trinta segundos ou um minuto na linha com o escritório e reforços maciços estariam a caminho. Então ele teria que se manter em movimento, esquivando-se dos tiras por algumas horas, até que outros agentes chegassem.

Não podia ir a uma casa qualquer e pedir para usar o telefone porque não sabia em quem confiar. Morrie Stein dissera que, depois de estar na cidade um ou dois dias, se sentira tomado da sensação paranóica de que havia olhos seguindo-o onde quer que fosse e que o Grande Irmão estava sempre a meio metro de distância. Sam chegara a este estado de paranóia em apenas algumas horas e estava passando rapidamente para um estado de permanente tensão e suspeita, diferente de qualquer outra coisa que já experimentara depois daqueles combates na selva há duas décadas.

Um telefone público. Mas não aquele no posto de serviço Shell que usara anteriormente. Um homem procurado era tolo de voltar ao local onde se sabia que estivera antes.

De suas andanças pela cidade, lembrava-se de um, talvez dois outros telefones. Levantou-se do balanço, enfiou as mãos nos bolsos, encurvou os ombros contra o vento gelado e começou a atravessar o pátio da escola em direção à rua do outro lado.

Lembrou-se da garota Foster a que Shaddack e Watkins se referiram no computador. Quem seria ela? O que teria visto? Achava que ela podia ser uma chave para desvendar o mistério. O que quer que tivesse testemunhado devia explicar o que queriam dizer com “conversão”.

 

 As paredes pareciam sangrar. Uma exsudação vermelha, como se brotasse do reboco e escorresse pela tinta amarelo-claro em muitos fios.

Parado no meio daquele quarto do segundo andar do Cove Lodge, Loman Watkins sentiu-se repugnado com a carnificina... mas também estranhamente excitado.

O corpo do hóspede estava esparramado perto da cama desfeita, hediondamente mordido e dilacerado. Em piores condições, a mulher morta encontrava-se do lado de fora do quarto, no corredor do segundo andar, um montículo vermelho no tapete cor de laranja.

O ar recendia a sangue, bílis, fezes e urina — uma miscelânea de odores com que Loman estava se tornando cada vez mais familiarizado, conforme as vítimas dos regressivos tornavam-se mais freqüentes semana a semana, dia a dia. Desta vez, entretanto, como nunca antes, sentia uma fragrância doce e convidativa subjacente à superfície acre do mau cheiro. Respirou fundo diversas vezes, sem saber ao certo que espécie de atração aquele terrível aroma podia exercer. Mas não podia negar aquela atração — ou resistir a ela — mais do que um cão de caça podia resistir ao cheiro de uma raposa. Embora não pudesse suportar a tentadora fragrância, estava aterrorizado com sua reação a ela, e o sangue em suas veias começou a esfriar à medida que o prazer sentido no mau cheiro biológico tornava-se mais intenso.

Barry Sholnick, o policial que Loman despachara para o Cove Lodge pelo terminal de computador para prender Samuel Booker, e que encontrara morte e destruição ao invés do agente do Bureau, estava parado a um canto junto à janela, olhando fixa e intensamente para o homem morto. Estava no motel há mais tempo do que os outros, quase meia hora, tempo suficiente para começar a encarar as vítimas com o distanciamento que a polícia tinha que desenvolver, como se corpos mortos e dilacerados não fossem uma parte mais notável do cenário do que os móveis. Entretanto, Sholnick não conseguia desviar os olhos do corpo eviscerado, dos destroços e das paredes cobertos de sangue. Estava eletrizado pelos horrendos detritos e pela violência que faziam lembrar.

Detestamos o que os regressivos se tornaram e o que fazem, pensou Loman, mas de alguma forma doentia nós também os invejamos, invejamos sua definitiva liberdade.

Algo nele — e, suspeitava, em toda a Nova Gente — ansiava por se unir aos regressivos. Como ocorrera na casa dos Fosters, Loman sentia a urgência de empregar o controle corporal recém-adquirido não para se elevar, como Shaddack desejara, mas para involuir a um estado selvagem. Ansiava por retornar a um estado de consciência onde os pensamentos de propósito e significado da vida não o perturbariam, onde o desafio intelectual não existiria, onde seria uma criatura cuja existência era definida quase que inteiramente pela sensação, onde cada decisão era tomada apenas com base no que lhe desse prazer, uma condição não perturbada pelo pensamento complexo. Ah, meu Deus, livrar-se dos encargos da civilização e da inteligência superior!

Sholnick emitiu um som rouco do fundo da garganta. Loman ergueu os olhos do morto.

Nos olhos castanhos de Sholnick brilhava uma luz selvagem. Estarei tão pálido quanto ele? perguntou-se Loman. Com os olhos tão fundos e tão estranho?

Por um instante os olhos de Sholnick encontraram-se com os do delegado, depois se desviaram como se ele tivesse sido apanhado num ato vergonhoso.

O coração de Loman batia descompassadamente. Sholnick dirigiu-se à janela. Fitou o mar escuro. Tinha os pu-,   nhos cerrados ao lado do corpo.             Loman tremia.

O cheiro sombriamente doce. O cheiro da caçada, do abate.

Virou-se e saiu do quarto para o corredor, onde a visão da mulher morta — semidespida, retalhada, lacerada — não oferecia nenhum alívio. Bob Trott, uma das recentes aquisições da força policial quando esta aumentou para doze homens na semana anterior, postava-se junto ao cadáver destroçado. Era um homem corpulento, dez centímetros mais alto e quinze quilos mais pesado do que  Loman, com feições duras e angulosas. Olhava para o cadáver com  um sorriso leve e profano.

Ruborizado, a visão começando a se turvar, os olhos adquirindo um duro clarão fluorescente, Loman falou de forma ríspida:

—        Trott, acompanhe-me.

Começou a percorrer o corredor em direção ao outro quarto que fora arrombado. Trott seguiu-o com evidente relutância.

Quando Loman chegou à porta destruída daquele apartamento, Paul Amberlay, outro de seus policiais, surgiu no topo das escadas da ala norte, de volta do escritório do motel onde Loman o enviara para verificar os registros de hóspedes.

—        O casal do quarto vinte e quatro chamava-se Jenks, Sarah e Charles — informou Amberlay. Tinha 25 anos, era magro e forte, inteligente. Talvez porque o rosto do jovem policial fosse ligeira mente pontudo, com olhos fundos, ele sempre lembrava a Loman uma raposa. — São de Portland.

—        E aqui no trinta e seis?

—        Tessa Lockland, de San Diego.

Loman pestanejou.

—        Lockland?

Amberlay soletrou.

—        Quando ela se registrou?

—        Esta noite.

—        A viúva do pastor, Janice Capshaw — disse Loman. — Seu nome de solteira era Lockland. Tive que tratar com a mãe dela por telefone e ela estava em San Diego. Uma sacana difícil de convencer. Milhões de perguntas. Tive dificuldade em convencê-la a autorizar a cremação. Disse que sua outra filha estava fora do país, em um lugar muito remoto, não podia ser avisada com rapidez, mas que viria dentro de um mês para esvaziar a casa e acertar as contas da senhora Capshaw. Portanto, imagino que seja ela.

Loman conduziu-os ao quarto de Tessa Lockland, duas portas depois do número quarenta, onde Booker estava registrado. O vento zumbia na janela aberta. O local estava entulhado de móveis quebrados, roupas de cama rasgadas e cacos de vidro de uma tevê estilhaçada; mas não havia sinal de sangue. Já haviam examinado o quarto em busca de um corpo e nada haviam encontrado; a janela aberta indicava que o ocupante fugira antes que os regressivos conseguissem arrombar a porta.

—        Então, Booker está lá fora — disse Loman — e temos que presumir que ele viu os regressivos ou ouviu o massacre. Sabe que há algo de errado aqui. Não compreende, mas sabe o suficiente...sabe demais.

—        Pode apostar que saiu correndo para telefonar para o mal dito Bureau — disse Trott.

Loman concordou.

—        E agora temos também esta cadela Lockland, que certamente está pensando que sua irmã não cometeu suicídio, que foi morta pelas mesmas criaturas que mataram o casal de Portland...

—        O mais lógico para ela fazer — disse Amberlay — é vir direto a nós, à polícia. Vai cair direto em nossas mãos.

—        Talvez — disse Loman, sem se convencer. Começou a vasculhar os destroços. — Ajudem-me a encontrar a bolsa dela. Com eles arrombando a porta, deve ter saído pela janela sem parar para pegar a bolsa.

Trott encontrou-a entre a cama e uma das mesinhas-de-cabeceira.

Loman esvaziou a bolsa sobre o colchão. Agarrou a carteira, folheou a seqüência de plásticos transparentes cheios de cartões de crédito e fotografias, até encontrar a licença de motorista. De acordo com os dados da licença, a mulher tinha 1,61m, 52 quilos, loura, olhos azuis. Loman levantou a carteira de identidade para que Trott e Amberlay pudessem ver a fotografia.

—        É bonitona — disse Amberlay.

—        Gostaria de tirar um naco dessa aí — disse Trott.

A escolha de palavras de seu policial provocou um calafrio em Loman. Não pôde deixar de imaginar se Trott usara "naco" como um eufemismo para sexo ou se expressava um desejo subconsciente muito real de atacar a mulher como os regressivos haviam destroçado o casal de Portland.

—        Sabemos como ela é — disse Loman. — Isso ajuda.

As feições duras e angulosas de Trott eram inadequadas para a expressão de emoções mais ternas como afeto e encantamento, mas transmitiam perfeitamente a fome e a urgência animal de dar vazão àquela ebulição em seu íntimo.

—        Quer que a gente traga ela aqui?

—        Sim. Ela na verdade, não sabe de nada, mas por outro lado sabe demais. Sabe que o casal no fim do corredor foi assassinado, e provavelmente viu um regressivo.

—        Talvez os regressivos a tenham seguido pela janela e a al cançado — sugeriu-lhe Amberlay. — Talvez encontremos seu cor po em algum lugar lá fora, no terreno do motel.

—        Pode ser — disse Loman. — Mas, se não encontrarmos, te mos que achá-la e trazê-la para cá. Chamou Callan?

—        Sim — respondeu Amberlay.

—        Temos que mandar limpar este lugar — disse Loman. — Te mos que manter as aparências até meia-noite, até que todos na ci dade tenham passado pela Mudança. Só depois, quando Moonlight Cove estiver em segurança, poderemos nos concentrar em encon trar os regressivos e eliminá-los.

Os olhos de Trott e Amberlay encontraram os de Loman, então todos se entreolharam. Nos olhares que trocaram, Loman viu o sombrio conhecimento de que todos eles eram regressivos em potencial, que também sentiam a atração daquele estado primitivo e sem preocupações. Era uma consciência da qual ninguém ousava falar, pois declará-la era admitir que o Falcão da Lua era um projeto profundamente falho e que talvez todos eles estivessem condenados.

 

Mike Peyser ouviu o ruído de discar e, desajeitadamente, apertou os botões, que eram pequenos demais e muito juntos para seus dedos compridos e em garras. Compreendeu de repente que não podia telefonar para Shaddack, não ousava telefonar para Shaddack, embora se conhecessem há mais de vinte anos, desde a época em que estudaram em Stanford, não podia telefonar a Shaddack embora tivesse sido ele quem o transformara no que era agora, porque Shaddack o consideraria um proscrito, um regressivo, e Shaddack o mandaria prender num laboratório e, ou o trataria com toda a ternura que um vivisseccionista dedicava a um rato branco, ou o destruiria por causa da ameaça que ele representava para a conversão de Moonlight Cove em andamento. Peyser emitiu uma lamúria aguda de frustração. Arrancou o telefone da parede e atirou-o do outro lado do quarto, onde atingiu o espelho da cômoda, estilhaçando-o.

Sua repentina percepção de Shaddack como um poderoso inimigo, ao invés de um amigo e mentor, foi o último pensamento claro e racional que Peyser teve por algum tempo. Seu medo era uma armadilha que se abria sob ele, atirando-o na escuridão da mente primitiva que ele havia liberado pelo prazer de uma caçada noturna. Andou de um lado para outro pela casa, às vezes freneticamente, outras desoladamente, de cabeça baixa e ombros caídos, sem saber por que se sentia alternadamente excitado, deprimido ou ardendo de necessidades selvagens, levado mais pelas sensações do que pelo intelecto.

Aliviou-se num canto da sala de estar, cheirou a própria urina, então entrou na cozinha em busca de mais comida. De vez em quando sua mente clareava e ele tentava chamar seu corpo de volta à forma 151   mais civilizada, mas quando seus tecidos não respondiam à sua vontade, ele retornava à escuridão do pensamento animal. Em diversas ocasiões sentiu-se lúcido o bastante para apreciar a ironia de se ver reduzido à condição selvagem por um processo — a Mudança — destinado a elevá-lo à condição de super-homem, mas esta linha de pensamento era demasiado desoladora para ser suportada e uma nova descida à mente selvagem era quase bem-vinda.

Repetidamente, tanto quando preso à consciência primitiva e quando sua mente se desanuviava, ele pensava no garoto, Eddie Valdoski, o garoto, o garoto tenro, e excitava-se à lembrança de sangue, doce sangue, sangue fresco fumegando no ar frio da noite.

 

 Física e mentalmente exausta, Chrissie ainda assim não conseguia dormir. Em meio aos sacos de aniagem no fundo do caminhão do sr. Eulane, pendia da fina linha da consciência, não desejando nada além de se deixar levar e cair na inconsciência.

Sentia-se incompleta, como se algo tivesse sido deixado por fazer — e de repente começou a chorar. Enterrando o rosto na aniagem perfumada e ligeiramente áspera, chorou como não fazia há anos, com o abandono de um bebê. Chorou por sua mãe e seu pai, talvez perdidos para sempre, não levados pela morte, mas por algo maléfico, imundo, animalesco e demoníaco. Chorou pela adolescência que teria — cavalos e pastagens à beira-mar e livros lidos na praia —, mas que fora destruída. Chorou, também, por uma perda que sentia mas que não conseguia identificar com precisão, embora suspeitasse que fosse a inocência ou talvez a fé no triunfo do bem sobre o mal.

Nenhuma das heroínas das histórias de ficção que ela admirava teria se deixado levar por um choro incontrolável, e Chrissie sentia-se constrangida por sua torrente de lágrimas. Mas chorar era tão humano quanto errar e talvez ela precisasse chorar, em parte, para provar a si mesma que nenhuma semente de monstruosidade do tipo que germinara e tomara conta de seus pais fora plantada nela. Chorando, ela ainda era Chrissie. Chorar era prova de que ninguém havia roubado sua alma.

Dormiu.

 

 Sam vira outro telefone público num posto de gasolina Union 76, um quarteirão ao norte da Ocean Avenue. O posto estava fechado. As janelas estavam cobertas por uma fina camada de poeira e um aviso apressadamente escrito À VENDA pendurava-se em uma delas, como se o proprietário, na verdade, não se importasse que o lugar fosse ou não vendido e afixar o anúncio era o que se esperava que fizesse. Folhas mortas, quebradiças, e agulhas secas de pinheiro das árvores próximas haviam sido levadas pelo vento para as bombas de gasolina e acumulavam-se como montes de neve.

A cabina telefônica ficava na parede sul do prédio e era visível da rua. Sam entrou pela porta aberta, mas não a fechou, com receio de completar um circuito que acenderia a lâmpada do teto e chamaria a atenção de qualquer tira nas proximidades.

A linha estava muda. Depositou uma moeda, na esperança de que isso ativasse o ruído de discar. A linha continuou muda.

Bateu diversas vezes no gancho do receptor. Sua moeda foi devolvida.

Tentou de novo, em vão.

Achava que telefones públicos dentro de postos de gasolina ou estabelecimentos comerciais — ou adjacentes a eles — às vezes eram operados em conjunto, sendo a renda dividida entre a companhia telefônica e o negociante que permitia que o telefone fosse instalado. Talvez tivessem desligado o telefone quando o Union 76 fechou.

Entretanto, suspeitava que a polícia usara seu acesso ao computador da companhia telefônica para desativar todos os telefones públicos em Moonlight Cove. No instante em que descobriram que um agente federal disfarçado estava na cidade, podiam ter tomado medidas extremas para impedi-lo de fazer contato com o mundo exterior.

Obviamente, ele podia estar superestimando a capacidade deles. Tinha que tentar outro telefone antes de desistir de entrar em contato com o Bureau.

Em sua caminhada depois do jantar, passara por uma lavanderia automática a meio quarteirão ao norte da Ocean Avenue e dois quarteirões a oeste do posto Union 76. Tinha absoluta certeza de que, quando olhara pelas vidraças da loja, vira um telefone na parede dos fundos, ao final de uma fileira de secadoras de tamanho industrial com frentes de aço inoxidável.

  Saiu do Union 76. Mantendo-se o mais afastado possível dos postes de iluminação da rua — que iluminavam as ruas laterais somente no primeiro quarteirão ao norte e ao sul da Ocean —, seguindo por vielas sempre que possível, esgueirou-se pela cidade silenciosa, em direção ao local onde se lembrava de ter visto a lavanderia. Desejava que o vento cessasse e deixasse um pouco do nevoeiro, que se dissipava depressa.

Em um cruzamento a um quarteirão ao norte da Ocean e a meio quarteirão da lavanderia, quase se tornou visível a um policial que dirigia seu carro para o sul, para o centro da cidade. O patrulhara estava a meio quarteirão do cruzamento, rodando devagar, examinando os dois lados da rua. Felizmente, olhava para o lado oposto quando Sam atravessou correndo o inevitável foco de luz do poste da esquina.

Sam recuou atabalhoadamente e comprimiu-se contra a entrada lateral de um edifício de tijolos de três andares, que abrigava alguns dos profissionais liberais da cidade: uma placa nos fundos da entrada, à esquerda da porta, relacionava um dentista, dois advogados, um médico e um quiroprático. Se o carro da radiopatrulha virasse à esquerda e passasse por ele, provavelmente seria localizado. Mas, se seguisse em frente em direção à Ocean ou virasse à direita e se dirigisse para oeste, ele não seria visto. Apoiando-se contra a porta trancada e o mais para dentro das sombras que podia, esperando que o carro irritantemente lento chegasse ao cruzamento, Sam teve um momento de reflexão e percebeu que mesmo para uma e meia da madrugada, Moonlight Cove estava singularmente silenciosa e as ruas estranhamente desertas. Cidades pequenas tinham corujas, como as cidades grandes; deveria haver um ou dois pedestres, um carro de vez em quando, algum sinal de vida além dos carros de polícia.

O carro branco e preto virou à direita na esquina, dirigindo-se para oeste e afastando-se dele.

Embora o perigo tivesse passado, Sam continuou na entrada escura, refazendo mentalmente sua caminhada do Cove Lodge ao prédio do condado, de lá ao Union 76 e, por fim, até sua presente posição. Não se lembrava de ter passado por nenhuma casa onde houvesse música tocando, onde se ouvisse uma televisão alta ou onde o riso de convidados tardios indicasse uma festa em andamento. Não vira jovens casais trocando um último beijo em carros estacionados. Os poucos restaurantes e bares aparentemente estavam fechados e o cinema encerrara suas atividades e, exceto pelos seus movimentos e os da polícia, Moonlight Cove se parecia a uma cidade-fantasma. Suas salas de estar, quartos e cozinhas podiam ser habi-   tadas apenas por cadáveres em decomposição, ou por robôs que se fingiam de pessoas durante o dia e eram desligados à noite para economizar energia quando não era tão essencial manter a ilusão de vida.

Cada vez mais preocupado com a palavra "conversão" e seu misterioso significado no contexto daquilo que chamavam de Projeto Falcão da Lua, saiu da entrada do edifício, dobrou a esquina e correu ao longo da rua profusamente iluminada até a lavanderia. Viu o telefone enquanto abria a porta de vidro.

Correu até o meio do longo salão — secadoras à direita, uma fila dupla de máquinas de lavar, de costas umas para as outras no centro, algumas cadeiras ao final das máquinas de lavar, mais cadeiras ao longo da parede esquerda com as máquinas automáticas de doces e de sabão em pó e o balcão para a dobragem das roupas —, antes de perceber que o lugar não estava vazio. Uma loura miúda, de jeans desbotados e uma suéter azul estava sentada em uma das cadeiras amarelas de plástico. Nenhuma das máquinas de lavar ou de secar estava em funcionamento e a mulher não parecia ter uma cesta de roupas com ela.

Ficou tão surpreso de vê-la — uma pessoa viva, uma cidadã viva, naquela noite sepulcral — que parou e pestanejou.

Ela estava sentada na beira da cadeira, visivelmente tensa, os olhos arregalados. As mãos estavam apertadas no colo. Parecia manter a respiração suspensa.

Percebendo que a assustara, Sam disse:

—        Desculpe-me.

Ela fitou-o como se fosse um coelho encarando uma raposa. Ciente de que devia estar com uma expressão turbulenta, até mesmo desvairada, ele acrescentou:

—        Não sou perigoso.

—        Todos dizem isso.

—        Dizem?

—        Mas eu sou.

Confuso, ele perguntou:

—        Você é o quê?

—        Perigosa.

—        É mesmo?

Ela levantou-se.

—        Sou faixa preta.

Pela primeira vez em vários dias, um sorriso genuíno surgiu no rosto de Sam.

—        Pode matar com as mãos?

  Fitou-o por um instante, pálida e trêmula. Quando falou, sua raiva defensiva transbordava.

—        Olhe aqui, não ria de mim, seu palerma, ou vou bater tanto em você que, quando andar, vai chocalhar como um saco de vidro quebrado.

Perplexo com a veemência dela, Sam começou a assimilar as observações que fizera ao entrar. Nenhuma máquina de lavar ou secadora em funcionamento. Nenhuma cesta de roupas. Nenhuma caixa de sabão em pó ou frasco de amaciante de roupas.

—        O que há de errado? — perguntou, repentinamente des- ' confiado.

—        Nada, se ficar longe.

Imaginou se ela, de alguma forma, sabia que os tiras estavam atrás dele. Mas isso era loucura. Como poderia saber?

—        O que está fazendo aqui se não tem roupas para lavar?

—        Não é da sua conta. É o dono desta pocilga? — perguntou.

—        Não. E também não me diga que é você.

Ela fitou-o.

Ele examinou-a, percebendo aos poucos como era atraente. Tinha olhos tão penetrantemente azuis como um céu de junho e a pele tão clara quanto o ar do verão e parecia deslocada naquela costa sombria, de outubro, quanto mais numa lavanderia suja à uma e meia da manhã. Quando registrou sua beleza definitiva e completamente, observou outras coisas a seu respeito, inclusive a intensidade do seu medo, que era revelada em seus olhos, nas linhas à volta deles e na expressão de sua boca. Era um medo desproporcional a qualquer ameaça que ele pudesse representar. Se ele fosse um motoqueiro tatuado de l,95m e 150 quilos, com um revólver em uma das mãos e uma faca de 25 centímetros na outra, e se tivesse irrompido na lavanderia entoando cânticos satânicos, a total palidez de seu rosto e a expressão de terror em seus olhos seriam compreensíveis. Mas ele era apenas Sam Booker, cujo maior atributo como agente era sua aparência comum e uma certa aura inofensiva.

Perturbado pela perturbação dela, disse apenas:

—        O telefone.

—        O quê?

Sam apontou para o telefone público.

—        Sim — disse ela, como se confirmasse que se tratava de um telefone.

— Só entrei para dar um telefonema.

—        Ah.

Sem perdê-la de vista, ele dirigiu-se ao telefone, colocou a moeda   de 25 cents, mas não obteve nenhum sinal de discar. Recuperou a moeda, tentou outra vez. Nada.

—        Droga! — exclamou.

A loura aproximara-se furtivamente da porta. Parou, como se achasse que ele pudesse correr até ela e arrastá-la para dentro se tentasse sair da lavanderia.

A cidade provocara em Sam uma forte paranóia. Cada vez mais nas últimas horas ele passara a considerar todos na cidade inimigos cm potencial. E, de repente, percebia que o comportamento peculiar daquela mulher resultava de um estado mental precisamente como o dele.

—        Sim, claro, você não é daqui, de Moonlight Cove, não?

—        E daí?

—        Nem eu.

—        E daí?

—        E você viu alguma coisa.

Fitou-o.

Ele disse:

—        Algo aconteceu, você viu alguma coisa e está com medo, e aposto que tem toda razão de estar.

Ela parecia que ia desatar a correr para a porta a qualquer momento.

—        Espere — disse ele depressa. — Sou do FBI. — Sua voz fa lhou ligeiramente. — É verdade.

 

 Como era uma pessoa da noite que sempre preferira dormir durante o dia, Thomas Shaddack estava em seu escritório revestido de madeira, trajando um conjunto esportivo cinza, trabalhando em um aspecto do Falcão da Lua em um terminal de computador, quando Evan, seu criado da noite, disse-lhe pelo interfone que Loman Wat-kins estava na porta da frente.

— Mande-o à torre — disse Shaddack. — Logo irei ter com ele.

Raramente usava outra coisa além de conjuntos de moletom ultimamente. Tinha mais de vinte no guarda-roupa: dez pretos, dez cinzas e uns dois azul-marinhos. Eram mais confortáveis que outros tipos de roupa e, ao limitar sua escolha, economizava tempo que de outra forma seria desperdiçado coordenando o guarda-roupa diário, uma tarefa para a qual não era qualificado. Não tinha nenhum interesse em moda. Além do mais, era desengonçado — pés" grandes, pernas magricelas, joelhos pontudos, braços compridos, ombros ossudos — e magro demais para ficar bem mesmo em ternos de bom corte. As roupas ou assentavam de forma estranha ou enfatizavam sua magreza a tal ponto que ele parecia a Morte personificada, uma imagem infeliz reforçada pela pele branca como farinha, cabelos quase negros, feições angulosas e olhos amarelados. Usava conjuntos de moletom até para as reuniões de diretoria da New Wave. Quando se era um gênio em sua especialidade, as pessoas esperavam que fosse excêntrico. E, se sua fortuna pessoal estivesse na casa das centenas de milhões, eles aceitavam todas as excentricidades sem nenhum comentário.

Sua casa ultramoderna de concreto reforçado à beira de um penhasco no extremo norte da enseada era outra expressão de seu calculado inconformismo. Os três andares eram como as três camadas de um bolo, embora cada camada tivesse um tamanho diferente das outras — a maior no topo, a menor no meio — e não eram concêntricas, mas desalinhadas, criando um perfil que à luz do dia emprestava à casa o aspecto de uma enorme peça de escultura avantgarde. À noite, a infinidade de janelas iluminadas, parecia-se menos a uma escultura do que a uma nave-mãe de viagens interestelares de uma força alienígena invasora.

A torre era excentricidade empilhada sobre excentricidade, erguendo-se do centro do terceiro nível, pairando no ar a doze metros adicionais. Não era redonda, mas oval, e nada parecida a uma torre onde uma princesa pudesse se consumir por um príncipe ausente numa cruzada ou onde um rei mantivesse seus inimigos presos e torturados, mas algo que lembrava a torre de comando de um submarino. O amplo salão no topo, de paredes de vidro, podia ser alcançado por elevador ou por escadas que corriam em espiral por dentro da parede da torre, circundando o núcleo de metal onde o elevador estava abrigado.

Shaddack deixou Watkins esperando por dez minutos, só por prazer, então resolveu tomar o elevador para ir ao seu encontro. O interior da cabina do elevador era revestido de metal fosco, de modo que embora o mecanismo fosse lento, ele parecia estar subindo dentro do cartucho de um rifle.

Acrescentara a torre ao projeto do arquiteto quase à última hora, mas ela se tornara a parte favorita da enorme casa. Aquele posto alto oferecia vistas infinitas do calmo (ou encapelado pelo vento), reluzente do sol (ou coberto pelo manto da noite) oceano a oeste. A leste e ao sul, ele olhava de cima para toda a cidade de Moonlight Cove; seu senso de superioridade era agradavelmente reforçado pela perspectiva elevada sobre a única outra obra visível do homem. Daquele aposento, há apenas quatro meses, vira o falcão da lua pela terceira vez na vida, uma visão que poucos homens tinham o privilégio de contemplar sequer uma vez — o que ele considerou um sinal de que era destinado a se tornar o homem mais poderoso que já caminhara na face da Terra.

O elevador parou. As portas se abriram.

Quando Shaddack entrou no salão pouco iluminado que circundava o elevador, Loman Watkins levantou-se depressa de uma poltrona e disse respeitosamente:

—        Boa noite, senhor.

—        Por favor, continue sentado, delegado — disse de forma cor dial, até afável, mas com um tom sutil na voz que reforçava a com preensão mútua de que era Shaddack, e não Watkins, quem decidia o quanto a reunião seria formal ou informal.

Shaddack era o filho único de James Randolph Shaddack, um ex-juiz de Phoenix, já falecido. A família não era rica, embora solidamente de classe média alta e essa posição na escala econômica, associada ao prestígio de uma magistratura, deu a James considerável estatura em sua comunidade. E poder. Durante toda a sua infância e adolescência, Tom fora fascinado pelo modo como seu pai, um ativista político além de juiz, usara esse poder não só para adquirir benefícios materiais, mas para controlar outras pessoas. O controle — o exercício do poder pelo poder — fora o que mais atraíra James e isso também excitou profundamente seu filho, desde criança.

Agora Tom Shaddack exercia poder sobre Loman Watkins e Moonlight Cove em razão de sua riqueza, porque era o principal empregador da cidade, porque retinha as rédeas do sistema político e por causa do Projeto Falcão da Lua, assim denominado em função da visão três vezes recebida. Mas sua capacidade de manipulá-los era mais ampla do que qualquer coisa que o velho James tivesse experimentado como juiz e político sagaz. Ele possuía o poder de vida e morte sobre eles, literalmente. Se dali a uma hora decidisse que todos deveriam morrer, estariam mortos antes da meia-noite. Além disso, podia condená-los à sepultura sem maior risco de ser punido do que um deus ao lançar fogo sobre sua criação.

As únicas luzes no salão da torre ficavam ocultas num nicho sob as imensas janelas, que se estendiam do teto a cerca de 25 centímetros do chão. As lâmpadas escondidas orlavam o aposento, iluminando de forma difusa o carpete macio, mas sem lançar nenhum clarão nas imensas vidraças. Entretanto, se fosse uma noite clara, Shaddack desligaria o interruptor junto ao botão do elevador, mergulhando o aposento quase em total escuridão, de modo a que seu fantasmagórico reflexo bem como o da mobília rigidamente moderna não incidissem sobre as vidraças, entre ele e a visão do mundo sobre o qual exercia seu domínio. Entretanto, deixou as luzes acesas, porque um nevoeiro opaco ainda se agitava pelas paredes de vidro e pouco podia ser visto agora que a lua crescente encontrara o horizonte.

Descalço, Shaddack atravessou o carpete cinza-chumbo. Instalou-se em outro sofá, de frente para Loman Watkins, do outro lado de uma mesinha baixa, de mármore branco.

O policial tinha 44 anos, quase três anos mais velho do que Shaddack, mas fisicamente era o oposto deste: l,75m, noventa quilos, de ossos largos, ombros e peito largos, pescoço grosso. Seu rosto era largo também, tão aberto e franco quanto o de Shaddack era severo e astuto. Seus olhos azuis encontraram-se com o olhar castanho-amarelado de Shaddack, sustentou-o apenas por um instante, em seguida abaixou a cabeça e fitou as mãos fortes, que estavam entrelaçadas no colo com tanta força que os nós dos dedos davam a impressão de que iriam perfurar a pele distendida. O couro cabeludo queimado de sol era visível sob os cabelos castanhos cortados à escovinha.

A óbvia subserviência de Watkins agradava Shaddack, mas se sentia ainda mais gratificado pelo medo do delegado, que era evidente nos tremores que o homem lutava — com algum sucesso — para reprimir e na expressão assombrada que realçava a cor de seus olhos. Por causa do Projeto Falcão da Lua, por causa do que lhe fora feito, Loman Watkins era, em muitos aspectos, superior à maioria dos homens, mas era também agora e para sempre um escravo de Shaddack, exatamente como um rato de laboratório, preso e ligado a eletrodos, à mercê do cientista que o submetia a experiências. De certa forma, Shaddack era o criador de Watkins e possuía, aos olhos deste, a posição e o poder de um deus.

Recostando-se na poltrona, cruzando as mãos de dedos longos e pálidos sobre o peito, Shaddack sentiu seu membro crescendo, endurecendo. Não se sentia excitado por Loman Watkins, pois não possuía tendência à homossexualidade; não estava excitado por nada da aparência física de Watkins, mas pela percepção da imensa autoridade que exercia sobre o homem. O poder excitava Shaddack mais fácil e completamente do que qualquer estímulo sexual. Mesmo quando adolescente, quando via fotos de mulheres nuas em revistas eróticas, excitava-se não pela visão de seios nus, não pelas curvas de um traseiro feminino ou as linhas elegantes de longas pernas, mas pela idéia de dominar tais mulheres, controlando-as inteiramente, ter suas vidas nas mãos. Se uma mulher o olhasse com indisfarçável temor, ele a achava infinitamente mais atraente do que se o olhasse com desejo. E como reagisse mais intensamente ao terror do que ao desejo, sua excitação não dependia do sexo, da idade ou da atração física da pessoa que tremia em sua presença. Apreciando a subserviência do policial, Shaddack disse:

—        Prendeu Booker?

—        Não, senhor.

—        Por que não?

—        Ele não estava no Cove Lodge quando Sholnick chegou lá.

—        Ele tem que ser encontrado.

—        Nós o encontraremos.

—        E convertido. Não só para impedi-lo de contar a alguém o que viu... mas para termos um dos nossos dentro do Bureau. Seria um grande golpe. A presença dele aqui pode se tornar uma grande vantagem para o projeto.

—        Bem, se Booker é uma vantagem ou não, há coisas piores. Re gressivos atacaram alguns hóspedes do Cove Lodge. O próprio Quinn ou foi levado, assassinado, e deixado em local ignorado... ou era um dos regressivos e agora está foragido... fazendo o que quer que façam depois de um assassinato, talvez uivando para a maldita lua.

Com crescente perplexidade e agitação, Shaddack ouviu o relato.

Sentado na beira da poltrona, Watkins terminou, pestanejou e disse:

—        Esses regressivos me deixam apavorado.

—        São perturbadores — concordou Shaddack.

Na noite de 4 de setembro, eles haviam encurralado um regressivo, Jordan Coombs, no cinema na rua principal. Coombs era da manutenção na New Wave. Naquela noite, entretanto, ele era mais macaco do que homem, embora, na realidade, não fosse nem uma coisa nem outra, mas algo tão estranho e bárbaro que nenhuma palavra conseguiria descrever. O termo "regressivo" era apenas adequado, Shaddack descobrira, se nunca se deparasse com uma das bestas. Porque depois de ver uma das criaturas de perto, "regressivo" era um termo insuficiente para transmitir todo o horror da coisa, e na verdade nenhuma palavra servia. A tentativa de capturar Coombs vivo também fracassara, pois ele se mostrara vigoroso e agressivo demais para ser subjugado; para se salvarem, tiveram que estourar os miolos do homem.

Watkins replicou:

—        São mais do que perturbadores. Muito mais do que isso.

São... psicóticos.

—        Sei que são psicóticos — disse Shaddack, impaciente. -— Eu mesmo defini sua condição: psicose relacionada à metamorfose.

—        Eles gostam de matar.

Thomas Shaddack franziu o cenho. Não previra o problema dos regressivos e se recusava a acreditar que constituíssem mais do que uma anomalia sem importância na, de outra forma, benéfica conversão dos habitantes de Moonlight Cove.

—        Sim, está certo, gostam de matar, e em seu estado regressi vo são destinados a isso, mas temos apenas alguns poucos para iden tificar  e  eliminar.   Estatisticamente,   são   uma  percentagem insignificante daqueles que submetemos à Mudança.

—        Talvez não tão insignificante — disse Watkins com hesi tação, incapaz de encarar Shaddack, um portador relutante de más notícias. — A julgar por toda a sanguinolenta selvageria dos últimos dias, imagino que, entre os mil e novecentos convertidos até hoje de manhã, haja cinqüenta ou sessenta desses regressivos lá fora.

—        Ridículo!

Para admitir que regressivos existissem em grande número, Shaddack teria que considerar a possibilidade de que sua pesquisa fosse falha, que ele se precipitara ao utilizar suas descobertas fora do laboratório com muito pouca consideração do potencial de desastre e que sua entusiástica aplicação das descobertas revolucionárias do Projeto Falcão da Lua nas pessoas de Moonlight Cove fora um trágico erro. Não podia admitir nada semelhante.

Ansiara toda a sua vida pelo enésimo grau de poder que agora estava quase a seu alcance e era psicologicamente incapaz de recuar do rumo que traçara. Desde a puberdade negara-se certos prazeres porque, se tivesse dado vazão a determinadas necessidades, teria sido perseguido pela lei e pago um alto preço. Todos esses anos de recusa haviam criado uma tremenda pressão interna que ele precisava desesperadamente aliviar. Sublimara seus desejos anti-sociais no trabalho, concentrara suas energias em empreendimentos socialmente aceitáveis, que haviam, ironicamente, resultado em descobertas que o tornariam imune à autoridade e, portanto, livre para se deixar saciar em desejos durante longo tempo reprimidos sem medo de censura ou punição.

Além disso, não só psicologicamente, mas também em termos práticos, ele já fora longe demais para voltar atrás. Trouxera ao mundo algo revolucionário. Por causa dele, 1.900 membros da Nova Gente habitavam a Terra, tão diferentes dos outros homens e mulheres quanto CroMagnons foram diferentes de seus mais primitivos ancestrais de Neandertal. Não tinha a capacidade de desfazer o que  havia feito mais do que outros cientistas e técnicos podiam desinventar a roda ou a bomba atômica. Watkins sacudiu a cabeça.

—        Sinto muito... mas não acho que seja ridículo. Cinqüenta ou sessenta regressivos. Ou mais. Talvez muito mais.

—        Terá que provar para me convencer disso. Terá que nomeá- los para mim. É capaz de identificar sequer um deles, além de Quinn?

—        Alex e Sharon Foster, creio. E talvez até seu próprio homem, Tucker.

—        Impossível.

Watkins descreveu o que vira na propriedade dos Fosters — e os gritos que ouvira nos bosques distantes.

Com relutância, Shaddack considerou a possibilidade de Tucker ser um dos degenerados. Estava perturbado com a possibilidade de seu controle, até mesmo sobre seu círculo mais próximo, não ser tão absoluto quanto imaginava. Se não podia confiar nos homens mais próximos a ele, como podia ter certeza de sua capacidade de controlar as massas?

—        Talvez os Fosters sejam regressivos, embora duvide que is so seja verdade a respeito de Tucker. Mas ainda que Tucker seja um deles, significa que você encontrou quatro. Não cinqüenta ou sessenta. Apenas quatro. Quem são esses outros que imagina que estejam lá fora?

Loman Watkins fitou o nevoeiro, que se comprimia em padrões permanentemente em mutação contra as vidraças da sala da torre.

—        Senhor, receio que não seja fácil... Quero dizer... pense nisso. Se as autoridades federais ou estaduais souberem o que fez, se puderem entender o que fez e acreditar nisso, e se então quiserem nos impedir de levar a Mudança a todos fora de Moonlight Cove, teriam muita dificuldade em nos impedir, não? Afinal, aqueles de nós que foram convertidos... caminham entre as pessoas comuns sem serem notados. Parecemo-nos com elas, nenhuma diferença, nenhuma mudança.

—        E daí?

—        Bem... este é o mesmo problema que temos com os regres sivos. Pertencem à Nova Gente como nós, mas o que os torna dife rentes de nós, a degradação deles, é impossível de ser vista; são tão impossíveis de serem distinguidos de nós quanto somos da população não convertida da Antiga Gente.

A rígida ereção de Shaddack amenizara. Impaciente com o negativismo de Watkins, levantou-se da poltrona e aproximou-se da janela mais próxima. Parado com os punhos cerrados dentro dos bolsos do casaco, olhava fixamente para o vago reflexo de seu próprio rosto longo e lupino, fantasmagórico em sua transparência. Deparou-se com seu próprio olhar e rapidamente olhou através da imagem refletida das órbitas de seus olhos e do vidro para a escura dão lá fora, onde caprichosas brisas marinhas faziam girar o tear da noite para produzir um frágil tecido de névoa. Manteve-se de costas para Watkins, porque não queria que o homem percebesse que estava preocupado e evitou a imagem refletida de seus próprios olhos porque não queria admitir a si mesmo que sua preocupação podia estar entremeada de veios de medo.

 

 Ele insistiu para que se dirigissem às cadeiras, para que não pudessem ser vistos tão facilmente da rua. Tessa não se mostrou disposta a se sentar a seu lado. Ele explicou que estava trabalhando disfarçado e, portanto, não portava nenhuma identificação do FBI, mas mostrou-lhe tudo o mais que tinha na carteira: carteira de motorista, cartões de crédito, cartão da biblioteca, cartão de aluguel de vídeo, fotografias de seu filho e de sua falecida esposa, um cupom para um bolinho com pedaços de chocolate, de graça, em qualquer loja da cadeia Mrs. Fields, uma foto de Goldie Hawn tirada de uma revista. Um maníaco homicida carregaria um cupom de bolinho? Dentro de algum tempo, quando ele a fez relatar sua história do massacre no Cove Lodge e a interrogou sobre todos os detalhes, para se certificar de que ela lhe contara tudo e que de ele compreendera todo o episódio, Tessa começou a confiar nele. Se estivesse se fingindo de agente, sua desculpa não seria tão elaborada e tão bem sustentada.

—        Você não viu ninguém ser assassinado?

—        Eles foram mortos — insistiu ela. — Você não teria nenhuma dúvida se tivesse ouvido seus gritos. Já estive no meio de uma multidão de monstros humanos enfurecidos na Irlanda do Norte e os vi espancarem dois homens até a morte. Eu estava fazendo um documentário numa siderúrgica quando houve um derramamento de metal fundido que se espalhou pelos corpos, pelos rostos dos operários. Estive com os índios misquito nas selvas da América Central quando foram atingidos por bombas do tipo contrapessoal, milhões de pequenos estilhaços de metal pontiagudos, corpos perfurados por milhares de agulhas, e ouvi os gritos deles. Conheço o som da mor te. E este foi o pior que já ouvi.

Ele fitou-a por um longo tempo. Então disse:

—        Você parece enganosamente...

—        Bonita?

—        Sim.

—        Portanto, inocente? Portanto, ingênua?

—        Sim.

—        Minha maldição.

—        E uma vantagem às vezes?

—        Às vezes — admitiu ela. — Ouça, você sabe de alguma coi sa. Então, conte-me. O que está acontecendo nesta cidade?

—        Algo está acontecendo às pessoas daqui.

—        O quê?

—        Não sei. Não estão interessados em cinema, por exemplo.

Está fechado. E não estão interessados em artigos de luxo, bons pre sentes, esse tipo de coisa, porque estas lojas também estão fecha das. Já não se entusiasmam com champanha... — Sorriu debilmente.

— Os bares estão fechando as portas. A única coisa que parece interessá-los é comida. E assassinato.

 

Ainda de pé na sala da torre, Tom Shaddack disse:

—        Está bem, Loman, eis o que vamos fazer. Todos na New Wave foram convertidos, de modo que designarei cem deles para você, para aumentar a força policial. Pode usá-los para ajudar em suas investigações da melhor maneira que achar, começando agora.

Com tantos homens sob seu comando, certamente conseguirá pe gar um regressivo em flagrante... e é mais provável que encontre este homem, Booker, também.

A Nova Gente não precisava dormir. O novo contingente poderia entrar em ação de imediato. Shaddack continuou:

—        Eles podem patrulhar as ruas a pé e em seus carros, silenciosamente, sem chamar atenção. E com esta ajuda, você prenderá ao menos um dos regressivos, talvez todos. Se pudermos pegar ao menos um em estado degenerado, se eu tiver a oportunidade de examinar um deles, talvez possa desenvolver um teste, físico ou psicológico, com o qual possamos vasculhar a Nova Gente em busca de degenerados.

  —      Não me sinto competente para lidar com isto.

—        É um problema da polícia.

—        Não, na verdade, não é.

—        Não é diferente de você estar perseguindo um assassino comum — disse Shaddack irritado. — Aplicará as mesmas técnicas —  Mas... [ —      O que é?

—        Os regressivos podem estar entre os homens que me designar, —            Não haverá nenhum.

—        Mas... como pode ter certeza?

—        Já lhe disse que não haverá nenhum — disse Shaddack rispidamente, ainda de frente para a janela, o nevoeiro, a noite.

Ambos permaneceram em silêncio por um instante. Então, Shaddack disse:

—        Tem que empenhar todos os seus esforços em encontrar es tes degenerados. Todos, compreendeu? Quero pelo menos um deles para examinar quando tivermos submetido toda Moonlight Cove à Mudança.

—        Eu pensei...

—        Sim?

—        Bem, eu pensei...

—        Ande, vamos. O que pensou?

—        Bem... que talvez o senhor suspendesse as conversões até entendermos o que está acontecendo.

—        Droga, não! — Shaddack desviou-se da janela e olhou fi xamente para o delegado, que se encolheu, para sua satisfação. — Esses regressivos são um problema insignificante, bem insignificante. Que diabos você sabe sobre isso? Não foi você quem projetou uma nova raça, um novo mundo. Fui eu. O sonho foi meu, a visão foi minha. Eu tive a inteligência e a coragem de tornar o sonho real.

E eu sei que isso é uma anomalia que nada significa. Portanto, a Mudança ocorrerá de acordo com a programação.

Watkins abaixou os olhos para suas mãos com os nós dos dedos exangues.

Enquanto falava, Shaddack caminhava descalço, de um lado para outro, ao longo da parede curva de vidro.

— Temos uma quantidade de doses mais do que suficiente para o resto da população da cidade. De fato, iniciamos uma nova série de conversões esta noite. Centenas de pessoas estarão convertidas pela manhã, o restante até meia-noite. Até todos na cidade estarem conosco, há uma chance de sermos descobertos, o risco de alguém mandar um aviso para o mundo exterior. Agora que já superamos os problemas com a produção de biochips, temos que dominar Moonlight Cove depressa, para podermos prosseguir com a confiança que advém de ter uma base segura. Compreendeu?

Watkins assentiu.

—        Compreendeu? — repetiu Shaddack.

—        Sim. Sim, senhor.

Shaddack voltou à poltrona e sentou-se.

—        Agora, o que é este outro assunto sobre Valdoski sobre o qual você me falou?

—        Eddie Valdoski, oito anos — disse Watkins, fitando as mãos, que agora torcia, como se tentasse extrair alguma coisa delas como se extrai água de um pano. — Foi encontrado morto poucos minu tos depois das oito horas. Numa vala próxima à estrada rural. Fora... torturado... dilacerado, estripado.

—        Acha que foi um dos regressivos?

—        Sem dúvida nenhuma.

—        Quem encontrou o corpo?

—        Os pais de Eddie. Seu pai. O garoto estava brincando no quintal e de repente ele... desapareceu mais ou menos na hora do pôr-do-sol. Começaram a procurar, não conseguiam encontrá-lo, ficaram assustados, nos chamaram, continuaram as buscas enquanto estávamos a caminho... e encontraram o corpo pouco antes de meus homens chegarem.

—        Evidentemente os Valdoskis não estavam convertidos?

—        Não estavam. Mas agora estão.

Shaddack suspirou.

—        Não haverá problema por causa do garoto se eles foram tra zidos para o rebanho.

O delegado ergueu a cabeça e encontrou coragem para encarar Shaddack outra vez.

—        Mas ainda assim o garoto está morto — falou asperamente.

Shaddack disse:

—        É uma tragédia, claro. Este elemento regressivo entre a No va Gente não podia ter passado despercebido. Mas nenhum grande avanço na história da humanidade se deu sem vítimas.

—        Era um bom menino — disse o policial.

—        Você o conhecia?

Watkins pestanejou.

—        Freqüentei a escola com o pai dele, George Valdoski. Eu era o padrinho de Eddie.

Medindo palavras com cuidado, Shaddack disse:

—        É uma coisa terrível. E encontraremos o regressivo que fez isso. Encontraremos todos eles e os eliminaremos. Enquanto isso, podemos nos consolar com a idéia de que Eddie morreu por uma  grande causa.

Watkins olhou para Shaddack com indisfarçável perplexidade.

—        Grande causa? O que Eddie sabia de uma grande causa? Tinha só oito anos.

—        Ainda assim — disse Shaddack endurecendo a voz —, Eddie foi pego por um inesperado efeito colateral da conversão de  Moonlight Cove, o que o torna parte deste evento maravilhoso e histórico. — Ele sabia que Watkins fora um patriota, absurdamente orgulhoso de sua bandeira e de seu país e imaginou que ainda  existia um resquício desse sentimento no homem, mesmo depois da  conversão. — Ouça-me, Loman. Durante a Guerra da Independência, quando os colonos lutavam pela independência, alguns espectadores inocentes morreram, mulheres e crianças, não só os combatentes, e essas pessoas não morreram em vão. Foram mártires tanto quanto os soldados que morreram no campo de batalha. É o mesmo em qualquer revolução. O importante é que a justiça vença e que aqueles que morrem sejam exaltados como os que deram suas vidas por uma causa nobre. Watkins desviou os olhos.

Levantando-se da poltrona outra vez, Shaddack deu a volta na mesinha para se colocar ao lado do policial. Olhando para a cabeça baixa de Watkins, pousou a mão em seu ombro. Watkins encolheu-se ao toque.

Shaddack não moveu a mão e falou com o fervor de um pregador evangélico. Entretanto, era um evangélico frio, cuja mensagem não envolvia a paixão exaltada da convicção religiosa, mas o poder glacial da lógica, da razão.

— Você agora pertence à Nova Gente e isso não significa apenas que é mais forte e mais inteligente do que as pessoas comuns, e não significa apenas que é invulnerável a doenças e tem um poder de curar seus ferimentos maior do que qualquer coisa que um curandeiro jamais sonhou. Significa também que você tem a mente mais clara, mais racional do que a Antiga Gente. Portanto, se você considerar a morte de Eddie com cuidado e no contexto do milagre que estamos operando aqui, perceberá que o preço que ele pagou não foi grande demais. Não lide com esta situação de forma emocional, Loman; definitivamente, não é esse o procedimento de um membro da Nova Gente. Estamos construindo um mundo que será mais eficiente, mais ordenado e infinitamente mais estável precisamente porque homens e mulheres terão o poder de controlar suas emoções, visualizar cada problema e acontecimento com a isenção analítica de um computador. Encare a morte de Eddie Valdoski apenas como mais um dado no enorme fluxo de dados que significa o nascimento da Nova Gente. Você agora tem o poder de transcender as limitações emocionais humanas e, quando realmente transcendê-las, conhecerá a verdadeira paz e felicidade pela primeira vez em sua vida.

Depois de algum tempo, Loman Watkins ergueu a cabeça. Voltou-se e olhou para Shaddack.

—        Tudo isto realmente levará à paz?

—        Sim.

—        Quando não houver mais ninguém não-convertido, haverá fraternidade afinal?

—        Sim.

—        Tranqüilidade?

—        Eterna.

 

 A casa de Talbot na Conquistador era um prédio de madeira de três andares com muitas janelas amplas. A propriedade era em declive e degraus íngremes de pedra levavam da calçada à pequena varanda. Nenhum poste de luz iluminava aquele quarteirão e não havia lampiões de jardim ou no caminho de entrada na propriedade de Talbot, o que deixou Sam satisfeito.

Tessa Lockland parou junto de Sam na varanda quando ele tocou a campainha, exatamente como se mantivera durante todo o percurso desde a lavanderia. Acima do ruidoso zumbido do vento nas árvores, ele pôde ouvir a campainha soar dentro da casa.

Olhando para trás, na direção da Conquistador, Tessa disse:

—        Às vezes, parece-se mais a um necrotério do que a uma cidade, habitada por mortos, mas por outro lado...

—        Por outro lado?

—        ...apesar do silêncio e da quietude, pode-se sentir a energia do lugar, uma tremenda energia enclausurada, como se houvesse uma imensa máquina oculta bem embaixo das ruas, abaixo do solo... como se as casas, também, fossem repletas de máquinas, tudo ligado e forçando rodas e engrenagens, esperando apenas que alguém acione uma alavanca e coloque tudo em movimento.

Moonlight Cove era exatamente assim, mas Sam não pudera colocar a sensação do lugar em palavras. Tocou a campainha de novo e disse:

— Pensei que produtores de filmes tivessem que ser quase analfabetos.

—        Muitos produtores de Hollywood o são, mas sou uma documentarista proscrita, de modo que tenho permissão para pensar, desde que não exagere.

—        Quem é? — perguntou a voz metálica, assustando Sam. Veio de um alto-falante de interfone, que ele não notara. — Quem é, por favor?

Sam aproximou-se do interfone.

—        Sr. Talbot? Harold Talbot?

—        Sim. Quem é o senhor?

—        Sam Booker — respondeu em voz baixa, de modo que sua voz não ultrapassasse o perímetro da varanda de Talbot. — Desculpe- me por acordá-lo, mas vim em resposta à sua carta de 8 de outubro.

Talbot ficou em silêncio. Em seguida, ouviu-se um clique no interfone e ele disse:

—        Estou no terceiro andar. Preciso de tempo para chegar até aí. Enquanto isso, enviarei Moose. Por favor, entregue-lhe sua identidade, de modo que ele possa trazê-la para mim.

—        Não tenho nenhuma de identificação do Bureau — murmurou Sam. — Estou aqui disfarçado.

—        Carteira de motorista? — perguntou Talbot.

—        Sim.

—        É suficiente. — Desligou.

—        Moose? — perguntou Tessa.

—        Não sei quem é — disse Sam.

Esperaram quase um minuto, sentindo-se vulneráveis na varanda aberta, e ficaram ambos novamente surpresos quando um cachorro saiu pela portinhola de animais domésticos que não haviam visto, roçando-lhes as pernas. Por um instante, Sam não compreendeu do que se tratava e cambaleou para trás de surpresa, quase perdendo o equilíbrio.

Inclinando-se para afagar o cachorro, Tessa murmurou:

—        Moose?

Uma nesga de luz atravessara a pequena porta de vaivém com o cachorro; mas desaparecera quando a porta se fechara. O cachorro era preto e quase invisível na noite.

Agachando-se ao lado dele, deixando-o lamber sua mão, Sam disse:

—        Devo entregar minha identificação a você?

O cão resfolegou baixinho, como se respondesse afirmativamente.                — Você vai comê-la — disse Sam.

  Tessa replicou.

—        Não, não vai.

—        Como sabe?

—        É um bom cachorro.

—        Não confio nele.

—        Acho que é seu trabalho.

—        Hem?

—        Não confiar em ninguém.

—        E minha natureza.

—        Confie nele — insistiu ela.

Ele entregou-lhe carteira. O cachorro pegou-a da mão de Sam, segurando-a entre os dentes e voltou para dentro da casa pela portinhola.

Esperaram na varanda escura por mais alguns minutos, enquanto Sam tentava reprimir os bocejos. Passava das duas da madrugada, e ele estava considerando acrescentar um quinto item à sua lista de razões para viver: boa comida mexicana, cerveja Guinness Stout, Goldie Hawn, medo da morte e sono. Abençoado sono. Então ouviu o estalido e o chocalhar de trancas e a porta finalmente se abriu para um corredor pouco iluminado.

Harry Talbot aguardava-os em sua cadeira de rodas motorizada, vestindo pijamas azuis e um robe verde. Tinha a cabeça ligeiramente inclinada para a esquerda num ângulo inquisitivo que era parte do seu legado do Vietnam. Era atraente, embora seu rosto estivesse prematuramente envelhecido, com rugas profundas demais para um homem de quarenta anos. Seus cabelos espessos estavam grisalhos e seus olhos pareciam os de um ancião. Sam podia ver que Talbot fora um rapaz forte, embora agora estivesse um pouco flácido pelos anos de paralisia. Uma das mãos repousava no colo, a palma para cima, os dedos parcialmente dobrados, inútil. Era um monumento vivo do que poderia ter sido, de esperanças destruídas, de sonhos incinerados, um amarga lembrança da guerra comprimida entre as páginas do tempo.

Quando Tessa e Sam entraram e fecharam a porta, Harry Talbot estendeu a mão boa e disse:

— Deus, como estou contente em vê-los! Seu sorriso transformava-o de forma surpreendente. Era o sorriso autêntico, cálido, largo, luminoso de um homem que acreditava estar no colo dos deuses, com muitas bênçãos a seu favor. Moose devolveu a carteira de Sam, intacta.

 

Após deixar a casa de Shaddack na ponta norte, mas antes de voltar ao escritório central para coordenar as tarefas dos cem homens da New Wave que lhe estavam sendo enviados, Loman Watkins parou em sua casa em Iceberry Way, na zona norte da cidade. Era uma casa modesta, estilo Monterey, de dois andares e três quartos, branca com arremate azul-claro, aninhada entre os pinheiros.

Parou por um instante na entrada de automóvel, ao lado do carro de polícia, examinando o lugar. Amara-o como se fosse um castelo, mas não conseguia encontrar esse sentimento em si mesmo agora. Lembrava-se de muita felicidade relacionada à casa, a sua família, mas não podia sentir a lembrança desta felicidade. Muito riso havia abençoado a vida naquela morada, mas o riso definhara a tal ponto que sua simples lembrança era débil demais até para induzir um sorriso de recordação. Além disso, ultimamente, seus sorrisos eram contrafeitos, sem nenhum humor sustentando-os.

O estranho é que o riso e a alegria faziam parte de sua vida até recentemente, até final de agosto. Tudo se desfizera apenas nos últimos dois meses, depois da Mudança. E, no entanto, parecia uma recordação antiga.

Engraçado.

Na verdade, nem um pouco engraçado.

Quando entrou, encontrou o primeiro andar escuro e silencioso. Um cheiro vago, de mofo, pairava nos aposentos desertos.

Subiu as escadas. No corredor do segundo andar, às escuras, viu uma suave claridade ao longo da base da porta fechada do quarto de dormir de Denny. Entrou e encontrou o garoto sentado à escrivaninha, diante do computador. O micro possuía um monitor enorme e no momento esta era toda a luz existente no quarto.

Denny não desviou os olhos da tela do terminal.

O garoto estava com 18 anos, já não era uma criança; portanto, fora convertido juntamente com sua mãe, pouco depois de o próprio Loman ter sido submetido à Mudança. Era cinco centímetros mais alto do que seu pai e mais bonito. Sempre se saíra bem na escola e em testes de QI tinha resultados tão altos que Loman se sentia um pouco assustado de pensar que seu garoto era tão inteligente. Sempre se orgulhara de Denny. Agora, ao lado do filho, fitando-o, Loman tentou ressuscitar aquele orgulho, mas não conseguiu encontrá-lo. Não deixara de gostar de Denny; este nada fizera para  angariar a desaprovação de seu pai. Mas o orgulho, como tantas outras emoções, parecia um estorvo para a consciência superior da Nova Gente e interferia com seus padrões de pensamento mais eficientes.

Mesmo antes da Mudança, Denny era um fanático por computador, um desses garotos que se autodenominavam hackers, para quem os computadores eram não só instrumentos, não só jogos e diversão, mas um modo de vida. Depois da conversão, sua inteligência e capacidade foram colocadas a serviço da New Wave. Forneceram-lhe um terminal mais potente em casa e um modem ligado ao supercomputador no escritório central da New Wave — um mastodonte que, segundo a descrição de Denny, incorporava 6.500 quilômetros de fios e 33 mil unidades de processamento de alta velocidade — que, por razões que Loman não compreendia, eles chamavam de Sol, embora talvez este fosse seu nome porque todas as pesquisas na New Wave faziam uso intenso da máquina e, portanto, giravam ao seu redor.

Enquanto Loman continuava parado ao lado do filho, um enorme volume de dados passava pela tela do terminal. Palavras, números, gráficos e tabelas apareciam e desapareciam em tal velocidade que só alguém da Nova Gente, com sentidos de certa forma mais aguçados e concentração poderosamente mais intensa, poderia extrair significado deles.

Na verdade, Loman não podia lê-los porque não passara pelo treinamento que Denny recebera da New Wave. Além disso, não tinha nem tempo nem necessidade de aprender a exercer completamente seus novos poderes de concentração.

Mas Denny absorvia as contínuas ondas de dados, olhando fixamente, o olhar vazio, para a tela, sem nenhuma ruga de concentração na testa, o rosto relaxado. Desde que fora convertido, o garoto era tanto uma entidade eletrônica sólida quanto carne e sangue e esta nova parte de si mesmo relacionava-se com o computador com uma intimidade que ultrapassava qualquer relacionamento homem-máquina que qualquer pessoa da Antiga Gente experimentara.

Loman sabia que o filho estava aprendendo sobre o Projeto Falcão da Lua. Por fim, ele iria se unir ao grupo de trabalho na New Wave que aperfeiçoava o software e o hardware relacionado ao projeto, trabalhando para fazer cada geração da Nova Gente superior — e mais eficiente — à precedente.

Um interminável rio de dados corria pela tela.

Denny olhava para o monitor sem piscar por tanto tempo que lágrimas teriam se formado em seus olhos se ele fosse da Antiga Gente.

A luz dos dados permanentemente em recomposição dançava nas paredes e lançava uma contínua mancha de sombras correndo pelo quarto.

Loman colocou a mão sobre o ombro do rapaz.

Denny não ergueu os olhos nem teve qualquer reação. Seus lábios começaram a se mover, como se estivesse falando, mas não produziu nenhum som. Falava consigo mesmo, sem perceber a presença do pai.

Em um determinado momento evangélico, loquaz, Thomas Shaddack falara em desenvolver uma conexão que ligaria um computador a uma tomada cirurgicamente implantada na base da espinha humana, mesclando inteligência real e artificial. Loman não entendera por que tal coisa seria desejável ou louvável, e Shaddack dissera:

—        A Nova Gente é uma ponte entre o homem e a máquina, Loman. Mas um dia nossa espécie atravessará completamente esta ponte, se tornará una com as máquinas, porque só então a humanidade será completamente eficiente, terá todo controle.

—        Denny — disse Loman em voz baixa.

O rapaz não respondeu.

Finalmente, Loman deixou o aposento.

Do outro lado e ao final do corredor, ficava a suíte principal. Grace estava deitada na cama, no escuro.

Claro, desde a Mudança, ela não podia ficar inteiramente cega por uma mera insuficiência de luz, pois sua visão se aprimorara. Mesmo naquele quarto escuro, ela podia ver — assim como Loman — as formas dos móveis e algumas texturas, embora poucos detalhes. Para eles, o mundo noturno já não era negro, mas cinza-escuro.

Ele sentou-se na beira da cama.

—        Olá.

Ela não disse nada.

Colocou uma das mãos em sua cabeça e acariciou seus longos cabelos ruivos. Tocou seu rosto e encontrou-o molhado de lágrimas, um detalhe que nem mesmo seus olhos aprimorados puderam discernir.

Chorando. Ela estava chorando e isso o sobressaltou, porque nunca vira alguém da Nova Gente chorar.

Seu coração acelerou e um breve mas maravilhoso tremor de esperança percorreu-o. Talvez o entorpecimento das emoções fosse uma condição transitória.

—        O que foi? — perguntou. — Por que está chorando?

—        Estou com medo.

O pulsar da esperança rapidamente feneceu. O medo a levara às lágrimas, o medo e a desolação a ele associada, e ele já sabia que estes sentimentos faziam parte deste admirável mundo novo, estes e nenhum outro.

—        Com medo de quê?

—        Não consigo dormir — disse Grace.

—        Mas você não precisa dormir.

—        Não?

—        Nenhum de nós precisa mais dormir.

Antes da Mudança, homens e mulheres precisavam dormir porque o corpo humano, sendo um mecanismo estritamente biológico, era terrivelmente ineficiente. O sono era necessário para descansar e recuperar as perdas do dia, para lidar com as substâncias tóxicas absorvidas do mundo exterior e as toxinas produzidas internamente. Mas com a Nova Gente, cada processo e função corporal era esplendidamente regulado. A obra da natureza fora altamente aprimorada. Cada órgão, cada sistema, cada célula operava a um nível de eficiência muito mais alto, produzindo menos dejetos, desvencilhando-se dos dejetos muito mais depressa, limpando-se e rejuvenescendo-se a cada hora do dia. Grace sabia disso tão bem quanto ele.

—        Gostaria muito de dormir — disse ela.

—        Tudo que está sentindo é a força do hábito.

—        O dia tem muitas horas agora.

—        Nós preencheremos o tempo. O novo mundo vai ser muito ocupado.

—        O que vamos fazer neste novo mundo quando ele chegar?

—        Shaddack nos dirá.

—        Enquanto isso...

—        Paciência — disse ele.

—        Tenho medo.

—        Paciência.

—        Sinto uma enorme vontade de dormir, anseio por dormir.

—        Nós não precisamos dormir — disse ele, exibindo a paciência que a encorajara a demonstrar.

—        Nós não precisamos dormir — disse ela enigmaticamente —, mas nós precisamos dormir.

Ficaram em silêncio por alguns instantes.

Em seguida, ela tomou a mão dele nas suas e levou-a a seus seios. Estava nua.

Ele tentou se afastar dela, pois tinha medo do que podia acontecer, do que acontecera antes, desde a Mudança, quando faziam amor. Não. Amor, não. Não faziam mais amor. Faziam sexo. Não havia nenhum sentimento além da sensação física, nenhuma ternura ou afeto. Atiravam-se com força e rápido um contra o outro, em purrando e puxando, flexionando-se e contraindo-se um contra o outro, esforçando-se para ampliar ao máximo a excitação dos terminais nervosos. Nenhum dos dois se importava com o outro, só consigo mesmo, com sua própria satisfação. Agora que a vida emocional deles já não era rica, tentavam compensar esta perda com os prazeres dos sentidos, especialmente comida e sexo. Entretanto, sem o fator emocional, cada experiência era... oca, e eles tentavam preencher aquele vazio com excesso: uma simples refeição tornava-se um banquete; um banquete tornava-se uma incontrolável indulgência em gula. E sexo se degenerava em um acasalamento bestial e frenético.

Grace puxou-o para seu lado na cama. Ele não queria. Não conseguia se opor. Literalmente não conseguia se opor.

Respirando ruidosamente, estremecendo de excitação, ela rasgou suas roupas e montou-o. Emitia estranhos sons sem palavras. A excitação de Loman igualou-se à dela e avolumou-se e penetrou nela, dentro dela, dentro, perdendo toda a noção de tempo e de espaço, existindo apenas para alimentar o fogo em suas virilhas, alimentá-lo implacavelmente até se tornar um calor insuportável, calor, fricção e calor, úmido e quente, calor, alimentando o calor ao ponto extremo em que todo o seu corpo se consumiria nas chamas. Mudou de posição, esmagando-a contra a cama, penetrando-a com força, dentro dela, dentro, dentro, puxando-a contra si tão bruscamente que devia estar machucando-a, mas não se importava. Ela agarrou-o, enfiando unhas em seus braços, fazendo-os sangrar, e ele também a arranhava, porque o sangue era excitante, o cheiro de sangue, o doce cheiro, tão excitante, sangue, e não importava que se ferissem um ao outro, pois eram ferimentos superficiais e cicatrizariam em segundos, porque pertenciam à Nova Gente; seus corpos eram eficientes; o sangue fluía brevemente, logo os ferimentos se fechavam e eles agarravam-se outra e outra vez. O que realmente desejavam — o que ambos desejavam — era se deixarem levar, libertarem o espírito bárbaro que havia dentro deles, livrarem-se de todas as inibições humanas, inclusive a inibição de uma forma humana superior,  tornarem-se selvagens,  bárbaros,  regredirem, entregarem-se, porque então fazer sexo seria ainda mais excitante, excitação pura; entregarem-se e o vazio seria preenchido; sentir-se-iam realizados e, terminado o sexo, poderiam caçar juntos, caçar e matar, rápidos e silenciosos, ágeis e velozes, morder e dilacerar, morder fundo e com força, caçar e matar, esperma e sangue, sangue doce e perfumado...

Por um instante, Loman sentiu-se desorientado.

Quando recuperou a noção de tempo e de espaço, olhou para a porta, percebendo que estava aberta de par em par. Denny podia tê-los visto se tivesse vindo pelo corredor — certamente os ouvira —, mas Loman não conseguia se importar se haviam sido vistos ou ouvidos. Vergonha e recato eram mais duas vítimas fatais da Mudança.

Ao se situar no mundo à sua volta, o medo insinuou-se em seu coração e ele rapidamente tocou seu corpo — o rosto, os braços, o peito, as pernas —, para se certificar de que não estava sob nenhum aspecto diferente. No meio do ato sexual, sua ferocidade cresceu e às vezes chegou a pensar que, ao se aproximar do orgasmo, realmente mudava, regredia, ainda que ligeiramente. Mas depois de recobrar a consciência, nunca encontrava nenhuma evidência de regressão.

Estava, entretanto, pegajoso de sangue.

Acendeu a lâmpada da cabeceira.

— Desligue isso — disse Grace imediatamente.

Mas não estava satisfeito nem com sua visão noturna aprimorada. Queria olhá-la atentamente para verificar se estava de algum modo... diferente.

Ela não regredira. Ou, se tivesse regredido, já voltara a sua forma superior. Seu corpo estava lambuzado de sangue e viam-se alguns vergões em sua pele, onde ele a arranhara e onde ela ainda não completara a cicatrização.

Ele desligou a luz e sentou-se na beira da cama.

Como os poderes regenerativos de seus corpos haviam sido extensamente ampliados pela Mudança, cortes e arranhões superficiais refaziam-se em questão de minutos; podia-se, na verdade, ver a carne cicatrizando seus ferimentos. Eram imunes a doenças agora, seus sistemas imunológicos sendo agressivos demais para que mesmo o mais infeccioso vírus ou bactéria pudesse sobreviver tempo suficiente para se multiplicar. Shaddack acreditava que a expectativa de vida deles era longa, talvez centenas de anos.

Podiam ser mortos, claro, mas somente por um ferimento que dilacerasse e parasse o coração ou estraçalhasse o cérebro ou destruísse os pulmões e impedisse a oxigenação do sangue. Se uma veia ou artéria fosse seccionada, o suprimento de sangue para aquele vaso era drasticamente reduzido por alguns minutos, necessários a sua recuperação. Se um órgão vital que não o coração ou os pulmões ou o cérebro fosse danificado, o corpo podia se arrastar por algumas horas, o tempo necessário para que ocorressem reparos acelerados. Ainda não eram tão confiáveis quanto máquinas, pois morriam; com as peças sobressalentes corretas, uma máquina podia ser reconstruída até a partir de escombros e podia funcionar outra vez; mas estavam mais próximos daquele grau de resistência corporal do que qualquer pessoa fora de Moonlight Cove poderia acreditar.

Viver centenas de anos...

Às vezes, Loman meditava sobre isso.

Viver centenas de anos, conhecendo apenas o medo e a sensação física...

Levantou-se da cama, entrou no banheiro contíguo e tomou um rápido banho de chuveiro para lavar o sangue.

Não pôde encarar os próprios olhos no espelho do banheiro.

Novamente no quarto, sem acender a luz, vestiu um uniforme lavado e passado que tirou do armário.

Grace continuava deitada na cama.

Ela disse:

— Quisera poder dormir.

Pressentiu que ela ainda chorava em silêncio.

Fechou a porta ao deixar o quarto.

 

 Reuniram-se na cozinha, o que agradou Tessa porque algumas de suas melhores lembranças da infância e da adolescência envolviam conferências familiares e conversas de improviso na cozinha em sua casa em San Diego. A cozinha era o coração de uma casa e, de certa forma, o coração de uma família. De algum modo, os piores problemas tornavam-se insignificantes quando eram discutidos numa cozinha aquecida, cheirando a café e chocolate quente, beliscando um bolo ou uma torta caseira. Numa cozinha, ela sentia-se segura.       A cozinha de Harry Talbot era ampla, pois fora reformada para se adequar a um homem em cadeira de rodas, com muito espaço vago ao redor da ilha central onde se cozinhava e que era baixa — como todos os balcões ao longo das paredes — para se tornar acessível de uma posição sentada. Fora isso, era uma cozinha como muitas outras: armários num agradável tom creme; ladrilhos de cerâmica amarelo-clara; uma geladeira silenciosa. As venezianas Levolor nas janelas eram acionadas eletricamente por um botão em um dos balcões e Harry cerrou-as.

Depois de tentar telefonar e descobrir que o aparelho estava mudo, que não apenas os telefones públicos, mas todo o sistema telefônico da cidade fora interditado, Sam e Tessa sentaram-se a uma mesa redonda em um dos cantos da cozinha, por insistência de Harry, enquanto ele fazia um bule de bom café colombiano.

—        Vocês parecem enregelados. Isto lhes fará bem.

Com frio e cansados, necessitados da cafeína, Tessa não recusou a oferta. Na verdade, estava fascinada de ver que Harry, com deficiências tão graves, podia se movimentar tão bem a ponto de representar o perfeito anfitrião para visitas inesperadas.

Com a mão perfeita e alguns movimentos intrincados, apanhou um pacote de bolinhos de maçã com canela do recipiente de pães, um pedaço de bolo de chocolate da geladeira, pratos e garfos e guardanapos de papel. Quando Sam e Tessa se ofereceram para ajudar, ele recusou gentilmente a oferta com um sorriso.

Ela percebeu que ele não estava tentando provar nada a eles ou a si mesmo. Estava apenas desfrutando o fato de ter companhia, mesmo àquela hora e em circunstâncias tão bizarras. Talvez fosse um raro prazer.

—        Não tenho creme — disse ele. — Apenas leite.

—        Está ótimo — disse Sam.

—        E também receio que não tenha um bule de creme de porcelana — disse Harry colocando a caixa de leite sobre a mesa.

Tessa começou a considerar um documentário sobre Harry, sobre a coragem necessária para se manter independente em sua situação: foi atraída pelo canto da sereia de sua arte, apesar do que vivenciara nas últimas horas. Há muito tempo, entretanto, aprendera que a criatividade de um artista não podia ser suprimida; o olho de um produtor de filmes não podia ser tapado tão facilmente quanto a lente de sua câmara. Em meio à dor da morte de sua irmã, idéias para novos projetos continuaram a ocorrer-lhe, concepções narrativas, tomadas interessantes, ângulos. Mesmo no horror da guerra, correndo com rebeldes afegãos enquanto aviões soviéticos metralhavam o solo em seus calcanhares, ela se excitara com o que estava conseguindo documentar em filme e pelo que seria capaz de fazer com ele quando entrasse numa sala de edição — e sua equipe de três homens reagiu de forma muito semelhante. Já não se sentia constrangida ou culpada por ser uma artista em tempo integral, mesmo em tempos de tragédia; para ela, isso era natural, fazia parte de ser  criativa e de estar viva.

 Adaptada às suas necessidades, a cadeira de rodas de Harry incluía uma alavanca hidráulica que erguia o assento alguns centímetros, trazendo-o quase a uma altura normal de cadeira, de modo  que podia se sentar a uma mesa ou escrivaninha normal. Tomou seu lugar à mesa ao lado de Tessa e de frente para Sam.

Moose deitava-se a um canto, observando, às vezes erguendo a cabeça como se estivesse interessado na conversa, embora mais provavelmente atraído pelo cheiro do bolo de chocolate. O labrador não ficava farejando e colocando as patas em cima das pessoas, lamuriando-se para que lhe dessem um pouco de comida, e Tessa  ficou impressionada com sua disciplina.

Enquanto passavam o bule de café e devoravam os bolinhos e o bolo de chocolate, Harry disse:

—        Você me disse o que o trouxe aqui, Sam, não apenas a minha carta, mas todos esses pretensos acidentes. — Olhou para Tes sa e, como ela estivesse do seu lado direito, a permanente inclinação de sua cabeça para a esquerda dava a impressão de que ele se inclinava para trás ao observá-la, olhando-a com desconfiança ou pelo menos com ceticismo, embora sua atitude fosse desmentida por um sorriso amistoso. — Mas onde você se encaixa, Srta. Lockland?

—        Chame-me de Tessa, por favor. Bem... minha irmã era Janice Capshaw...

—        A mulher de Richard Capshaw, a mulher do pastor luterano? — perguntou, surpreso.

—        Isso mesmo.

—       Ora, eles costumavam vir me visitai. Eu não fazia parte de sua congregação, mas eles eram assim. Tornamo-nos amigos. E de pois que ele morreu, ela ainda passava aqui de vez em quando. Sua irmã era uma pessoa adorável e maravilhosa, Tessa. — Depôs a xícara de café e estendeu a mão boa para tocá-la. — Ela era minha amiga.

Tessa segurou a mão dele. Era calejada e ressecada pelo uso, e muito forte, como se toda a força frustrada de seu corpo paralisado se expressasse através daquela única extremidade.

—        Eu os observei levarem-na para o crematório da Funerária Callan — disse Harry. — Pelo meu telescópio. Sou um observador.

É o que faço da minha vida, a maior parte do tempo. Observo. — Ruborizou-se levemente. Apertou a mão de Tessa com um pouco mais de força. — Não se trata de bisbilhotar. Na verdade, não se trata de espreitar. Trata-se de... participar. Ah, eu também gosto de ler e tenho muitos livros, e penso muito também, claro, mas é a observação, principalmente, que me faz continuar vivendo. Subi remos em seguida. Eu lhes mostrarei o telescópio, todo o equipa mento. Creio que compreenderão. Espero que sim. De qualquer forma, eu os vi levarem Janice para dentro da Callan naquela noi te... embora eu não soubesse de quem se tratava até dois dias de-   pois, quando a história de sua morte estava no jornal local. Não acreditei que tivesse morrido do modo como disseram que ela morreu. Ainda não acredito.

—        Nem eu — disse Tessa. — E é por isso que estou aqui.

Com relutância e um último aperto, Harry soltou a mão de Tessa.

—        Tantos cadáveres ultimamente, a maioria levada para a Callan durante a noite e quase sempre com alguns tiras por perto, supervisionando tudo. É muito estranho para uma cidadezinha como esta.

Do outro lado da mesa, Sam disse:

—        Doze mortes acidentais ou suicídios em menos de dois meses.

—        Doze? — indagou Harry.

—        Não fazia idéia que fossem tantos assim? — perguntou Sam.

—        Ah, é mais do que isso.

Sam pestanejou.

Harry disse:

—        Vinte, pelas minhas contas.

 

 Depois que Watkins saiu, Shaddack voltou ao terminal de computador em seu escritório, restabeleceu sua ligação com Sol, o supercomputador da New Wave, e recomeçou a trabalhar em um aspecto problemático do projeto em andamento. Embora fossem duas e meia da madrugada, trabalharia mais algumas horas, pois o mais cedo que ia para a cama era ao amanhecer.

Estava ao terminal há alguns minutos quando sua linha telefônica mais privada tocou.

Até Booker ser capturado, o computador da companhia telefônica estava permitindo ligações apenas entre os que haviam sido convertidos, de um de seus números para outro de seus números. As outras linhas estavam desligadas e chamadas para fora da cidade eram interrompidas antes de se completarem. Chamadas de fora para Moonlight Cove eram atendidas por uma gravação que alegava falha do sistema, prometendo uma volta aos serviços normais dentro de 24 horas e lamentando o transtorno.

Portanto, Shaddack sabia que a pessoa que estava ligando devia ser um dos convertidos e, por se tratar de sua linha mais parti- 181   cular, devia ser um de seus auxiliares mais próximos na New Wave. Um mostrador digital na base do telefone exibia o número de onde a chamada estava sendo feita, que ele reconheceu como o de Myke Peyser. Pegou o receptor e disse:

—        Aqui é Shaddack.

A pessoa do outro lado da linha respirava ruidosamente, en-trecortadamente ao telefone, mas não disse nada. Franzindo o cenho, Shaddack disse:

—        Alô?

Apenas a respiração. Shaddack perguntou:

—        Mike, é você?

A voz que respondeu era rouca, gutural, mas com um acento estridente, sussurrante e, ainda assim, vigorosa, a voz de Peyser e no entanto não era a dele, estranha:

—        ...alguma coisa errada, errada, alguma coisa errada, não consigo mudar, não consigo... errada... errada...

Shaddack relutava em admitir que reconhecia a voz de Mike Peyser naquelas estranhas inflexões e cadências sobrenaturais. Perguntou:

—        Quem é?

—        ...preciso, preciso... preciso, quero, preciso...

—        Quem é? — inquiriu Shaddack furiosamente, mas em sua mente havia uma outra pergunta: O que é?

Do outro lado da linha ouviu-se um som que era um gemido de dor, um lamento da mais profunda angústia, um grito de frustração e um rosnado, tudo misturado em um berro áspero. O receptor caiu de sua mão com um baque ruidoso.

Shaddack colocou o receptor no gancho, voltou-se para o terminal de computador, acessou o sistema de dados da polícia e enviou uma mensagem urgente para Loman Watkins.

 

Sentado no banco no quarto do terceiro andar às escuras, inclinado para a ocular, Sam Booker examinou os fundos da Funerária Callan. A não ser por alguns finos resquícios, toda a névoa fora levada pelo vento, que ainda sacudia a janela e agitava as árvores ao longo das encostas onde a maior parte de Moonlight Cove se erguia. As lâmpadas da entrada de serviço já estavam apagadas e os fundos da funerária mergulhados na escuridão, exceto pelo fio de luz que irradiava das janelas com as venezianas cerradas na ala do crematório. Sem dúvida, estavam ocupados em alimentar as chamas com os corpos do casal que fora assassinado no Cove Lodge.

Tessa sentou-se na beira da cama atrás de Sam, afagando Moose, que se deitou com a cabeça em seu colo.

Harry estava em sua cadeira de rodas, ao lado. Usava uma lanterna tipo caneta para examinar o caderno de espiral onde registrava as atividades suspeitas na funerária.

—        A primeira, pelo menos a primeira que eu notei, foi em vinte e oito de agosto — disse Harry. — Vinte para a meia-noite. Trou xeram quatro corpos de uma vez, usando o carro fúnebre e uma ambulância. A polícia os acompanhava. Os corpos estavam em sacos plásticos apropriados, de modo que nada pude perceber sobre eles, mas os tiras e os enfermeiros da ambulância e o pessoal da Callan estavam visivelmente... bem... transtornados. Percebi isso nos rostos deles. Medo. Olhavam sem parar para as casas vizinhas e para a viela, como se receassem que alguém descobrisse o que estavam fazendo, o que pareceu estranho porque estavam apenas fazendo seu trabalho. Certo? De qualquer forma, mais tarde, no jornal do condado, li a respeito da família Mayser ter morrido num incêndio e compreendi que era ela que havia sido trazida para a Callan na quela noite. Imagino que não tenham morrido em nenhum acidente, assim como sua irmã não se suicidou.

—        Provavelmente — disse Tessa.

Ainda observando os fundos da funerária, Sam disse:

—        Tenho os Maysers na minha lista. Foram encontrados na investigação do caso Sanchez-Bustamante.

Harry limpou a garganta e disse:

—        Seis dias depois, três de setembro, dois corpos foram trazidos para a Callan pouco depois da meia-noite. E isso foi ainda mais estranho porque não vieram num carro fúnebre ou numa ambulância. Dois carros da polícia pararam nos fundos da Callan e eles descarregaram um corpo do banco traseiro de cada um deles, enrolados em lençóis manchados de sangue.

—        Três de setembro? — indagou Sam. — Não há ninguém na minha lista nesta data. Sanchez e os Bustamantes estão no dia cinco. Nenhum atestado de óbito foi emitido no dia três. Mantiveram esses dois fora dos registros oficiais.

—        Também não apareceu nada no jornal sobre alguém que tivesse morrido naquele dia — disse Harry.

Tessa perguntou:

—        Então quem eram essas duas pessoas?

—        Talvez forasteiros que tiveram a infelicidade de parar em Moonlight Cove e toparam com algo perigoso — disse Sam. — Pessoas cujas mortes podiam ser completamente encobertas, de modo que ninguém ficaria sabendo onde elas morreram. Até onde se sabe, eles simplesmente desapareceram em algum lugar da estrada.

—        Sanchez e os Bustamantes foram na noite de cinco de setembro — disse Harry —, e Jim Armes no dia sete.

—        Armes desapareceu no mar — disse Sam, levantando os olhos do telescópio e franzindo as sobrancelhas para o homem na cadeira de rodas.

—        Trouxeram o corpo para a Callan às onze da noite — disse Harry consultando o caderno de notas. — As venezianas das janelas do crematório não estavam cerradas, de modo que pude ver bem lá dentro, quase tão bem como se estivesse na sala. Eu vi o corpo...o estado em que estava. E o rosto. Uns dois dias depois, quando o jornal publicou a história sobre o desaparecimento de Armes, eu o reconheci como o sujeito que haviam colocado na fornalha na quele dia.

O amplo quarto estava imerso em sombras exceto pelo estreito facho de luz da lanterna, parcialmente bloqueado pela mão de Harry e confinado às páginas do caderno de notas. Aquelas páginas brancas pareciam brilhar com luz própria, como se fossem as folhas de um livro mágico ou sagrado — ou maldito.

O semblante preocupado de Harry Talbot estava mais difusamente iluminado pelo reflexo daquelas páginas, e a luz peculiar ressaltava as rugas de seu rosto, fazendo-o parecer mais velho do que era. Cada ruga, Sam o sabia, tinha sua origem na trágica experiência e na dor. Uma profunda compaixão dominou-o. Não era pena. Nunca poderia ter pena de alguém tão determinado quanto Talbot. Mas Sam compreendia a tristeza e a solidão da vida limitada de Talbot. Observando o homem preso à cadeira de rodas, Sam sentiu raiva dos vizinhos. Por que não haviam feito mais para Harry participar de suas vidas? Por que não o convidavam mais vezes para jantar, para celebrar as ocasiões festivas? Por que o haviam deixado tão sozinho que seu principal modo de participar da vida de sua comunidade era através de telescópio e binóculos? Sam sentiu uma dor cruciante de desespero diante da relutância das pessoas em se ajudarem mutuamente, da maneira como isolavam a si mesmos e aos outros. Com um choque, pensou em sua incapacidade de se comunicar com o próprio filho, o que o deixava ainda mais desolado.

Para Harry, ele disse:

—        O que quer dizer quando afirma que viu o estado em que estava o corpo de Armes?

—        Cortado. Lanhado.

—        Não morreu afogado?

—        Não parecia.

—        Lanhado... Exatamente o que quer dizer? — perguntou Tessa.

Sam sabia que ela estava pensando nas pessoas cujos gritos ouvira no motel — e na própria irmã. Harry hesitou, então disse:

—        Bem, eu o vi na mesa do crematório, pouco antes de o leva rem para a fornalha. Ele fora... estripado. Quase decapitado. Terrivelmente... dilacerado. Parecia pior do que se tivesse ficado sobre uma mina contrapessoal quando ela explodisse e ele fosse estilhaçado.

Permaneceram em mútuo silêncio, considerando a descrição.

Só Moose parecia impassível. Emitiu um som baixo, satisfeito, enquanto Tessa acariciava-o atrás das orelhas.

Sam pensou que não devia ser tão ruim ser uma das bestas primitivas, uma criatura feita principalmente de sensações, sem o peso de um intelecto complexo. Ou, no outro extremo... um computador genuinamente inteligente, todo intelecto e nenhum sentimento. O enorme fardo duplo da emoção e da alta inteligência pertencia apenas à raça humana e era o que tornava a vida tão difícil; as pessoas estavam sempre pensando no que sentiam, ao invés de simplesmente se deixarem levar pelo momento, ou estavam sempre tentando sentir o que achavam que deviam numa determinada situação. Pensamentos e raciocínio eram distorcidos pelas emoções — algumas em nível subconsciente, de modo que não compreendiam inteiramente por que tomavam certas decisões, agiam de determinado modo. As emoções turvam seu raciocínio; mas pensar em demasia sobre seus sentimentos tira-lhes a graça. Tentar sentir profundamente e pensar com absoluta clareza era como fazer malabarismos com seis maçãs enquanto andava para trás num monociclo em cima de um fio de arame suspenso.

—        Depois da história nos jornais sobre o desaparecimento de Armes — disse Harry —, fiquei esperando uma retificação, mas nada saiu na imprensa. Foi então que comecei a perceber que o estranho vaivém na Callan não era apenas estranho, mas provavelmente criminoso também e que os tiras faziam parte daquilo.

—        Paula Parkins também foi dilacerada — disse Sam.

      Harry assentiu.

—        Supostamente pelos seus dobermans.

     — Dobermans? — perguntou Tessa.

Na lavanderia, Sam dissera-lhe que o caso de sua irmã fora um dos muitos curiosos suicídios e mortes por acidente, mas não entrara em detalhes a respeito dos outros. Contou-lhe então rapidamente o que aconteceu a Parkins.

—        Não foram seus cachorros — concordou Tessa. — Ela foi atacada brutalmente pela mesma coisa que matou Armes. E as pes soas esta noite no Cove Lodge.

Era a primeira vez que Harry Talbot ouvia falar sobre os assassinatos no Cove Lodge. Sam teve que explicar sobre isso e sobre como ele e Tessa se encontraram na lavanderia.

Uma expressão estranha assomou ao rosto prematuramente envelhecido de Harry. Para Tessa, ele disse:

—        Hum... você não viu essas criaturas no motel? Nem um vislumbre?

—        Só o pé de um deles, por baixo da porta.

Harry começou a falar, parou, e ficou pensativamente em silêncio.

Ele sabe alguma coisa, pensou Sam. Mais do que nós.

Por alguma razão, Harry não estava pronto para partilhar o que sabia, pois voltou ao exame de seu caderno de notas sobre o colo e disse:

—        Dois dias depois da morte de Paula Parkins, um outro corpo foi trazido para a Callan, por volta das nove e meia da noite.

—        Seria dia onze de setembro? — perguntou Sam.

—        Sim.

—        Não há registro de um atestado de óbito emitido nesta data.

—        Tampouco nada nos jornais.

—        Continue.

Harry disse:

—        Quinze de setembro...

—        Steve Heinz, Laura Dalcoe. Ele supostamente a matou, de pois tirou a própria vida — disse Sam. — Briga de amantes, deveríamos acreditar.

—        Mais uma cremação apressada — observou Harry. — E três noites depois, no dia dezoito, mais dois corpos foram entregues à Callan pouco depois da uma da manhã, quando eu já estava quase indo para a cama.

—        Nenhum registro desses tampouco — disse Sam.     

 —       Mais dois forasteiros que deixaram a interestadual para uma visita ou apenas para jantar? — perguntou Tessa. — Ou talvez alguém de outra parte do condado, passando pela estrada nos limite da cidade?

—        Pode ter sido até gente do local — disse Harry. — Quero 186   dizer, sempre há algumas pessoas que não estão morando aqui há muito tempo, recém-chegados que alugam ao invés de adquirir uma casa, não têm muitos laços com a comunidade, de modo que, se quisessem encobrir suas mortes, seria possível forjar uma história aceitável sobre terem ido embora de repente, para um novo emprego, algo assim e os vizinhos aceitariam isso.

Se os vizinhos já não estivessem "convertidos" e participando do embuste, pensou Sam.

—        Em seguida, vinte e três de setembro — continuou Harry.

— Este seria o corpo de sua irmã, Tessa.

—        Sim.

—        A esta altura eu sabia que tinha que contar a alguém o que vira. Alguma autoridade. Mas quem? Não confiava em ninguém da cidade porque eu vira os tiras trazerem alguns daqueles corpos que nunca foram noticiados no jornal. O chefe de polícia do condado?

Ele acreditaria em Watkins antes de acreditar em mim, não é verdade? Droga, todo mundo acha que um aleijado é meio estranho de qualquer jeito, estranho de cabeça, eu quero dizer, eles confundem deficiência física com deficiência mental ao menos em parte, ao me nos subconscientemente. Portanto, estariam predispostos a não acre ditar em mim. E realmente é uma história estranha, todos esses corpos, cremações secretas... — Fez uma pausa. Seu rosto se anuviou. — O fato de eu ser um veterano de guerra condecorado não me tornaria mais confiável. Isso foi há muito tempo, uma história antiga para alguns deles. Na verdade... iriam colocar a guerra contra mim de alguma forma. Síndrome de estresse pós-Vietnam, é como chamariam. O pobre e velho Harry finalmente ficou maluco, não percebe?, por causa da guerra.

Até então, Harry falava como se estivesse apenas constatando um fato, sem muita emoção. Mas as palavras que acabara de pronunciar eram como um pedaço de vidro colocado sobre a superfície de um lago revolto, revelando o reino submerso — neste caso, reino de dor, solidão e alienação.

A emoção não só tomou conta de sua voz como, em alguns momentos, embargou-a:

—        Tenho que confessar, parte do motivo de eu não tentar contar a ninguém o que eu vi era porque... eu tinha medo. Eu não sabia que diabos estava acontecendo. Não tinha certeza de quais eram os riscos. Não sabia se iriam me silenciar, me levar para alimentar a fornalha da Callan uma noite. Vocês podem achar que tendo perdido tanto eu já não me importaria, não me preocuparia em perder mais, em morrer, mas não é assim, absolutamente. A vida, provavelmente, é mais preciosa para mim do que para os que são perfeitos e saudáveis. Este corpo alquebrado me restringiu tanto que passei os últimos vinte anos fora do redemoinho de ação em que a maioria das pessoas vive e tive tempo de realmente ver o mundo, sua beleza e complexidade. Por fim, minhas deficiências me levaram a apreciar e amar mais a vida. Receava que viessem me pegar, me matassem, e resolvi não contar a ninguém o que vira. Deus me ajude, se tivesse falado abertamente, se tivesse entrado em contato com o Bureau há mais tempo, talvez... algumas dessas pessoas tivessem sido salvas. Talvez sua irmã tivesse sido salva.

—        Não pense nisso nem por um instante — disse Tessa sem demora. — Se tivesse agido de outra maneira, certamente já teria virado cinzas a esta altura, retirado da fornalha da Callan e atirado no mar. O destino de minha irmã estava decidido. Você não pode ria ter feito nada.

Harry assentiu, então desligou a lanterna, mergulhando o quarto numa escuridão ainda mais profunda, embora ainda não tivesse terminado de repassar as informações contidas no caderno de notas. Sam suspeitava que a decidida generosidade de espírito de Tessa trouxera lágrimas aos olhos de Harry, e que este não queria que eles as vissem.

—        No dia vinte e cinco — continuou, sem precisar consultar o caderno —, um corpo foi trazido para a Callan às dez e quinze da noite. Estranho, também, porque não veio nem de ambulância nem no carro fúnebre nem no carro de polícia. Foi trazido por Lo- man Watkins...

—        O delegado — disse Sam para conhecimento de Tessa.

—        ...mas ele estava em seu carro particular, sem uniforme — disse Harry. — Tiraram o cadáver da mala. Estava enrolado num cobertor. As venezianas das janelas não estavam cerradas naquela noite e pude ver de perto com o telescópio. Não reconheci o corpo, mas reconheci o estado em que estava: o mesmo de Armes.

—        Dilacerado? — perguntou Sam.

—        Sim. Então o Bureau veio para a cidade em função do caso Sanchez-Bustamante e, quando li a respeito no jornal, fiquei muito aliviado porque achei que tudo iria ser esclarecido afinal, que teríamos explicações, revelações. Mas então houve mais dois corpos levados à Callan na noite de quatro de outubro...

—        Nossa equipe estava na cidade na ocasião — disse Sam —, em meio da sua investigação. Não viram nenhuma morte ser notificada durante este período. Está dizendo que aconteceu debaixo dos seus narizes?

—        Sim. Não preciso consultar o caderno de notas. Lembro-   me claramente. Os corpos foram trazidos na caminhonete de Reese Dorn. Ele é policial, mas estava à paisana naquela noite. Arrastaram os corpos para dentro da Callan e a veneziana de uma das janelas estava aberta, de modo que os vi enfiarem os dois corpos no crematório como se estivessem com muita pressa de se livrar deles. E houve mais movimentação na Callan na noite de sete de outubro, mas o nevoeiro estava muito denso, não posso jurar que fossem mais corpos sendo levados para dentro. E finalmente... esta noite. O corpo de uma criança. Uma criança pequena.

—        Mais os dois que foram mortos no Cove Lodge — disse Tessa. — O que perfaz vinte e duas vítimas, não as doze que trouxeram Sam até aqui. Esta cidade se transformou num matadouro.

—        É possível que sejam até mais do que pensamos — disse Harry.

—        Como assim?

—        Bem, afinal, não observo o lugar todas as noites, durante todo o tempo. E costumo ir para a cama por volta de uma e meia da madrugada, nunca mais tarde do que duas horas. Quem pode afirmar que não houve outras visitas que não vi, que outros corpos não foram trazidos durante as horas mortas da noite?

Meditando sobre isso, Sam olhou pela ocular outra vez. A parte de trás da Callan continuava escura e silenciosa. Lentamente, moveu o telescópio para a direita, mudando o campo de visão para o norte através da vizinhança.

Tessa perguntou:

—        Mas por que teriam sido mortas?

Ninguém tinha uma resposta.

—        E por quem? — indagou ela.

Sam examinou um cemitério mais ao norte da Conquistador, então suspirou, ergueu os olhos e lhes contou sua experiência daquela noite, em Iceberry Way.

—        Achei que fossem garotos, delinqüentes, mas agora creio que eram as mesmas criaturas que mataram aquelas pessoas no Cove Lodge, as mesmas cujo pé você viu pela fresta sob a porta.

Quase podia sentir Tessa franzindo as sobrancelhas de frustração no escuro quando perguntou:

—        Mas o que são elas?

Harry Talbot hesitou. Em seguida, disse:

—        Bichos-papões.

 

Não ousando usar sirenes, abaixando os faróis nos últimos quatrocentos metros, Loman chegou à casa de Mike Peyser às 3:10 da madrugada, com dois carros, cinco auxiliares e espingardas. Loman esperava que não tivessem que usar as armas mais do que apenas para intimidar. No único encontro anterior que tiveram com um regressivo — Jordan Coombs, no dia 4 de setembro — não estavam preparados para sua ferocidade e foram forçados a arrebentar-lhe os miolos para salvarem as próprias vidas. A Shaddack restou apenas uma carcaça para examinar. Ficara furioso com a oportunidade perdida de pesquisar a psicologia — e a fisiologia funcional — de um dos psicopatas metamórficos. Uma arma de tranqüilizante seria de pouca utilidade, infelizmente, porque regressivos eram pessoas da Nova Gente que haviam desandado e todos da Nova Gente, regressivos ou não, possuíam metabolismos radicalmente alterados que não só permitiam a regeneração magicamente rápida, mas a rápida absorção, decomposição química e rejeição de substâncias tóxicas como venenos e tranqüilizantes. A única maneira de sedar um regressivo seria fazê-lo concordar em ser colocado sob a administração intravenosa contínua de um forte sedativo, o que não era muito provável. A casa de Mike Peyser era um bangalô de um andar com varanda na frente e nos fundos, respectivamente nos lados oeste e leste, cuidadosamente conservado, num terreno de um acre e meio, protegido por algumas árvores que ainda não haviam perdido as folhas. Não havia luzes nas janelas.

Loman mandou um homem para vigiar o lado norte e outro para o sul, para impedir que Peyser fugisse por uma janela. Colocou um terceiro homem de guarda na entrada da varanda da frente para cobrir aquela porta. Com os outros dois homens — Sholnick e Penniworth — rodeou para os fundos da casa e, silenciosamente, subiu os degraus da varanda dos fundos.

Agora que o nevoeiro se dissipara, a visibilidade era boa. Mas o barulho do vento zunindo e soprando bloqueava todos os outros sons que pudessem precisar ouvir para perseguir Peyser.

Penniworth postou-se contra a parede da casa à esquerda da porta e Sholnick à direita. Ambos portavam espingardas semi-automáticas de calibre 20.

Loman experimentou a porta. Estava destrancada. Abriu-a com um empurrão e recuou um passo.

Seus auxiliares entraram na cozinha às escuras, um depois do outro, as espingardas prontas para atirar, embora soubessem que o objetivo era pegar Peyser vivo se possível. Mas não iriam se sacrificar apenas para levar a besta viva a Shaddack. No instante seguinte, um deles encontrou um interruptor de luz.

Empunhando uma calibre 12, Loman entrou na casa atrás dos outros dois homens. Travessas vazias, pratos quebrados e vasilhames sujos espalhavam-se pelo chão, assim como um pouco de rigatoni vermelho de molho de tomate, metade de uma almôndega, cascas de ovos, um naco de crosta de torta e outros restos de comida. Uma das quatro cadeiras de madeira do conjunto da cozinha estava virada no chão; uma outra fora feita em pedaços contra a bancada do armário, quebrando alguns ladrilhos de cerâmica.

Bem em frente, uma passagem em arco levava à sala de jantar. Um pouco da claridade da luz da cozinha iluminava vagamente a mesa e as cadeiras ali.

À esquerda, ao lado da geladeira, havia uma porta. Barry Sholnick abriu-a na defensiva. Prateleiras de enlatados ladeavam o patamar de uma escada, que conduzia ao porão.

— Verificaremos isso mais tarde — disse Loman em voz baixa. — Depois que tivermos percorrido a casa.

Sholnick pegou uma cadeira da mesa da cozinha e escorou a porta fechada, para que nada pudesse vir do subsolo e esgueirar-se por trás deles quando fossem para os outros cômodos.

Pararam por um instante, à escuta.

Rajadas de vento açoitavam a casa. Uma janela bateu. Do só-tão ouviu-se o rangido de vigas e de mais alto ainda o chocalhar abafado de tabuinhas de cedro soltas no teto.

Os auxiliares olharam para Loman em busca de orientação. Penniworth tinha apenas 25 anos, podia passar por 18, e tinha um rosto tão juvenil e inocente que mais parecia o propagador de uma seita religiosa que vai de porta em porta do que um policial. Sholnick era dez anos mais velho e tinha uma aparência mais séria.

Loman fez um sinal indicando a sala de jantar.

Entraram, acendendo as luzes. A sala de jantar estava deserta e eles passaram cautelosamente à sala de estar.

Penniworth apertou um interruptor na parede que acendia um abajur de cromo e latão, o qual era um dos poucos objetos que não estavam quebrados ou estraçalhados. As almofadas do sofá e das poltronas haviam sido retalhadas; chumaços de espuma do enchimento, como montículos de um fungo venenoso, espalhavam-se por toda parte. Livros haviam sido arrancados das prateleiras e rasgados em pedaços. Um abajur de cerâmica, dois jarros e o tampo de   vidro da mesinha de centro estavam estilhaçados. As portas do móvel da televisão haviam sido arrancadas e a tela fora destruída. Uma fúria cega e uma força selvagem haviam estado em ação ali.      O aposento cheirava fortemente a urina... e alguma outra coisa, menos pungente e menos familiar. Era, talvez, o cheiro da criatura responsável pelos escombros. Parte daquele mau cheiro mais sutil era o odor acre de suor, mas com algo de estranho nele também, algo que simultaneamente revirava o estômago de Loman e o contraía de medo.

À esquerda, um corredor levava aos quartos e aos banheiros. Loman manteve-o sob a mira da espingarda.

Os outros policiais entraram no vestíbulo, que se ligava à sala de estar por uma passagem em arco. Havia um guarda-roupa à direita, junto à porta da frente. Sholnick postou-se diante dele, a calibre 20 apontada. Colocando-se de lado, Penniworth abriu a porta com um safanão. Havia apenas casacos no guarda-roupa.

Haviam terminado a parte fácil da busca. À frente, havia um corredor estreito com três portas, uma entreaberta e duas abertas de par em par, aposentos escuros além delas. Havia menos espaço de manobra, mais lugares de onde um agressor podia atacar.

O vento da noite zunia nas abas do telhado. Assobiou por uma calha de chuva, produzindo um som lúgubre e baixo.

Loman nunca fora o tipo de comandante que manda seus homens para o perigo enquanto ele permanece mais atrás em posição segura. Embora tivesse abdicado do orgulho e do auto-respeito e de um senso de dever juntamente com outras atitudes e emoções da Antiga Gente, o dever ainda era um hábito seu — na verdade, menos consciente do que um hábito, mais como um reflexo — e ele agia como o faria antes da Mudança. Entrou no corredor primeiro, onde duas portas o aguardavam à esquerda e uma à direita. Locomoveu-se rapidamente para o final, para a segunda porta à esquerda, que estava entreaberta; chutou-a e à luz do corredor viu um pequeno e vazio banheiro antes da porta bater na parede, voltar e se fechar outra vez.

Penniworth cuidou do primeiro quarto à esquerda. Entrou e achou o interruptor de luz quando Loman alcançou a soleira da porta. Era um escritório com uma escrivaninha, prancheta, duas cadeiras, armários, estantes altas apinhadas de livros de lombadas em cores vivas, dois computadores. Loman entrou e cobriu o guarda-roupa, onde Penniworth cautelosamente deslizou para o lado primeiro uma e depois a outra das duas portas espelhadas.

Nada.

Barry Sholnick permaneceu no corredor, a calibre 20 apontada   para o quarto que ainda não haviam vasculhado. Quando Loman e Penniworth reuniram-se a ele, Sholnick empurrou a porta completamente com a coronha de sua espingarda. Conforme ela se abria, Sholnick saltou para trás, certo de que alguma coisa iria se atirar sobre ele da escuridão, embora nada acontecesse. Hesitou, deu um passo em direção à porta, tateou com uma das mãos em busca do interruptor de luz, encontrou-o e exclamou, recuando rapidamente para o corredor:

—        Ah, meu Deus.

Olhando além do seu auxiliar para o amplo quarto, Loman viu uma coisa hedionda agachada no chão e encolhida contra a parede mais distante. Era um regressivo, sem dúvida Peyser, mas não se parecia tanto ao regressivo Jordan Coombs quanto Loman esperava. Havia semelhanças, sim, mas não muitas.

Passando por seu auxiliar, Loman atravessou a porta.

—        Peyser?

A criatura do outro lado do quarto pestanejou, moveu a boca retorcida. Com uma voz sussurrante e gutural, selvagem e ainda assim torturada como só a voz de uma criatura ao menos parcialmente inteligente poderia ser, disse:

—        ...Peyser, Peyser, Peyser, eu, Peyser, eu, eu...

O odor de urina pairava ali também, mas aquele outro cheiro era dominante — penetrante, almiscarado.

Loman deu mais alguns passos para dentro do quarto. Penniworth seguiu-o. Sholnick permaneceu no vão da porta. Loman parou a três metros e meio de Peyser e Penniworth afastou-se para um lado, a calibre 20 em posição.

Quando encurralaram Jordan Coombs no cinema fechado no dia 4 de setembro, ele estava num estado alterado semelhante a um gorila com um corpo atarracado e vigoroso. Mike Peyser, entretanto, tinha uma aparência muito mais delgada e, agachado junto à parede do quarto, seu corpo se parecia mais ao de um lobo do que ao de um macaco. Seus quadris estavam em ângulo com sua espinha, impedindo-o de ficar de pé ou se sentar completamente ereto, e as pernas pareciam curtas demais nas coxas, longas demais na parte inferior. Estava coberto de pêlos grossos, mas não tão grossos que se pudesse chamar de pele de animal.

—        Peyser, eu, eu, eu...

O rosto de Coombs era em parte humano, embora mais como o de um primata, com testa proeminente, nariz achatado e um maxilar projetado para a frente para acomodar dentes malignamente afiados e grandes como os de um babuino. As feições hediondamente alteradas de Mike Peyser, ao contrário, sugeriam as de um lobo, ou cachorro; sua boca e nariz eram projetados para a frente num focinho deformado. A testa enorme era como a de um macaco, embora exagerada, e nos olhos injetados, no meio de órbitas fundas e escuras sob aquela saliência óssea da testa, havia um olhar de angústia e terror inteiramente humanos.       Erguendo uma das mãos e apontando para Loman, Peyser disse:

— ...ajude-me, ajude-me, alguma coisa errada, errada, erra-| da, ajude...

Loman fitou a mão transformada com medo e admiração, lembrando-se de como sua própria mão começara a mudar quando ele sentiu o impulso da regressão na casa dos Fosters no começo da noite. Dedos alongados. Nós dos dedos grandes e ásperos. Garras afiadas ao invés de unhas. Embora fossem mãos humanas na forma e no grau de destreza, por outro lado eram inteiramente estranhas.

Merda, pensou Loman, estas mãos, estas mãos. Eu as vi no cinema, ou pelo menos na tevê, quando alugamos a fita de vídeo de The Howling. Rob Bottin. Este era o nome do responsável pelos efeitos especiais que criara o lobisomem. Lembrava-se dele porque Denny fora louco por efeitos especiais antes da Mudança. Mais do que qualquer outra coisa, estas mãos se pareciam às malditas mãos do lobisomem de The Howling!

 O que era muito perturbador de contemplar. A vida imitando a fantasia. O fantástico em carne e osso. Conforme o século XX lançava se em sua última década, o progresso científico e tecnológico chegara  uma linha divisória, onde o sonho da humanidade de uma vida melhor podia ser alcançado, mas onde também os pesadelos podiam se tom realidade. Peyser era um sonho muito, muito ruim que se arrastara ps fora do subconsciente e se tornara uma criatura viva e agora não h via como fugir dele acordando; ele não iria desaparecer como os monstros que assombravam nosso sono o faziam.       —            Como posso ajudá-lo? — perguntou Loman cautelosamente.

—        Atire nele — disse Penniworth.

Loman respondeu rispidamente:

—        Não!

Peyser ergueu as duas mãos de dedos pontudos e olhou-as por um instante, como se as visse pela primeira vez. Emitiu um gemido, depois um lamento agudo e angustiado:            —       ...mudar, não consigo mudar, não consigo, tentei, quero,  preciso, quero, quero, não posso, tentei, não posso...

Da porta, Sholnick disse:

—        Meu Deus, ele está preso assim, numa armadilha. Pensei que os regressivos pudessem voltar sempre que quisessem.

—        E podem — disse Loman.

—        Ele não pode — disse Sholnick.

—        Foi o que ele disse — concordou Penniworth, a voz penetrante e nervosa. — Ele disse que não consegue mudar.

Loman disse:

—        Talvez sim, talvez não. Mas os outros regressivos podem voltar, porque se não pudessem, então já teríamos encontrado todos eles. Eles saem do estado alterado e depois se misturam a nós.

Peyser parecia alheio a eles. Fitava as mãos, emitindo um gemido no fundo da garganta como se o que visse o aterrorizasse. Então as mãos começaram a se transformar.

—        Vejam! — exclamou Loman.

Loman nunca presenciara tal transformação; foi tomado de curiosidade, perplexidade e terror. As garras retrocederam. A pele tornou-se de repente tão maleável quanto cera amolecida: abaulava-se, rebentava em bolhas, pulsava não com o fluxo rítmico de sangue nas artérias, mas estranha, obscenamente; assumia uma nova forma, como se um escultor invisível trabalhasse nele. Loman ouviu ossos moendo-se, partindo-se, à medida que se quebravam e se refaziam; a carne desfazia-se e se solidificava outra vez com um som molhado, doentio. As mãos tornaram-se quase humanas. Em seguida, os pulsos e antebraços começaram a perder um pouco de sua característica descarnada de lobo. No rosto de Peyser viam-se indicações de que o espírito humano lutava para banir o selvagem que o dominava; as feições de um predador começaram a dar lugar a um semblante mais suave e civilizado. Era como se o monstruoso Peyser fosse apenas o reflexo de uma besta em um lago de onde o verdadeiro e humano Peyser emergia.

Embora não fosse nenhum cientista, nenhum gênio da micro-tecnologia, apenas um policial com educação secundária, Loman sabia que sua profunda e rápida transformação não podia ser atribuída exclusivamente aos processos metabólicos aprimorados de forma drástica nem à capacidade de se restaurar da Nova Gente. Por maiores que fossem os fluxos de enzimas, hormônios e outras substâncias químicas biológicas que o corpo de Peyser pudesse produzir como quisesse, não havia como carne e ossos pudessem se reconstituir tão dramaticamente em tão curto período de tempo. Em dias e semanas, sim, mas não em segundos. Sem dúvida, era fisicamente impossível. Entretanto, estava acontecendo. O que significava que outra força estava atuando em Mike Peyser, algo mais do que processos biológicos, algo misterioso e assustador.

De súbito, a transformação estacionou. Loman podia perceber que Peyser lutava para recobrar a condição humana total, cerrando s dentes e as mandíbulas semi-humanas e ainda assim as de um lobo, e um olhar de desespero e de férrea determinação nos estranhos   olhos, mas em vão. Por um instante, equilibrou-se no limiar da forma humana. Parecia que se ele conseguisse forçar apenas mais um passo da transformação, apenas um pequeno passo, atravessaria a linha divisória depois da qual o resto da metamorfose ocorreria quase  que de forma automática, sem o tenaz exercício da vontade, tão facilmente quanto um rio descendo uma encosta. Mas ele não conseguia alcançar esta fronteira.

Penniworth emitiu um som baixo e estrangulado, como se compartilhasse da angústia de Peyser.

Loman olhou para seu auxiliar. O rosto de Penniworth brilhava com uma fina camada de suor.

Loman percebeu que também transpirava; sentiu uma gota de suor escorrer pela têmpora esquerda. O bangalô estava aquecido — um aquecedor a óleo ligava e desligava automaticamente —, mas não o suficiente para fazê-los suar. Era um suor frio de medo, porém mais do que isso. Ele também sentia um aperto no peito, um nó na garganta que tornava difícil engolir e sua respiração se acelerava, como se tivesse subido correndo cem degraus...

Deixando escapar um grito agudo e angustiado, Peyser começou a regredir outra vez. Com o ruído quebradiço e estilhaçante de ossos sendo refeitos, o som úmido e oleoso de carne sendo dilacerada e emendada, a selvagem criatura se reafirmou e em instantes Peyser estava como da primeira vez em que o viram: uma besta demoníaca.

Demoníaco, sim, e uma besta, mas invejavelmente poderoso e com uma estranha e terrível beleza própria. A cabeça grande, projetada para a frente, era desajeitada em comparação com a cabeça humana e a criatura não possuía a curva para dentro da espinha humana, e entretanto tinha uma sombria graça particular. Permaneceram em silêncio por um momento. Peyser encolheu-se no chão, a cabeça baixa. Da porta, Sholnick disse afinal: — Meu Deus, ele está preso.

Embora o problema de Mike Peyser pudesse ser relacionado a alguma falha na tecnologia em que a conversão da Antiga para a Nova Pessoa se baseava, Loman suspeitava que Peyser ainda possuía o poder de se reconstituir, de que podia se tornar um homem se realmente o quisesse, mas que lhe faltava o desejo de ser inteiramente humano outra vez. Tornara-se um regressivo porque achava aquele estado anormal atraente, de modo que talvez ele o achasse tão mais excitante e gratificante do que a condição humana que agora ele não queria realmente voltar ao estado superior.

Peyser ergueu a cabeça e olhou para Loman, depois para Penniworth, depois para Sholnick e, finalmente, para Loman outra vez. Seu horror diante de sua condição já não era evidente. A angústia e o terror haviam desaparecido de seus olhos. Com o focinho arreganhado, ele parecia sorrir para eles e uma nova ferocidade — tanto perturbadora quanto atraente — surgiu em seus olhos. Ergueu as mãos diante do rosto outra vez e flexionou os longos dedos, juntou as patas, examinando-se com o que parecia ser admiração.

—        ...caçar, caçar, perseguir, caçar, matar, sangue, sangue, preciso, preciso...

—       Como iremos levá-lo vivo se ele não quiser? — A voz de Penniworth soou estranhamente peculiar, gutural e um pouco arrastada.

Peyser deixou uma das mãos cair para os órgãos genitais e coçou-se levemente, distraído. Olhou para Loman outra vez, depois para a noite que se comprimia contra as janelas.

—        Sinto-me... — Sholnick deixou a frase inacabada.

Penniworth já não conseguia articular as palavras:

—        Se nós... bem, nós poderíamos...

A pressão no peito de Loman aumentara. O nó na garganta era mais forte, também, e ele ainda estava suando.

Peyser emitiu um grito baixo e ululante mais estranho do que qualquer som que Loman já tivesse ouvido, uma expressão de anseio e também um desafio animal à noite, uma afirmação do seu poder e da sua confiança em sua força e astúcia. O gemido deveria ser áspero e desagradável no confinamento do quarto, mas ao invés disso, ele provocou em Loman o mesmo anseio indescritível que o dominara do lado de fora da casa dos Fosters quando ouviu o trio de regressivos gritando uns para os outros na noite distante.

Cerrando os dentes com tanta força que seus maxilares doeram, Loman lutou para resistir àquela perversa necessidade.

Peyser emitiu outro grito, então disse:

—        Correr, caçar, livre, livre, preciso, livre, preciso, venham comigo, venham, venham, preciso, preciso...

Loman percebeu que relaxava as mãos que seguravam a calibre 12.0 cano da arma voltava-se para baixo. A boca apontava para o chão ao invés de apontar para Peyser.

—        ...correr, livre, livre, preciso...

De trás de Loman veio um grito de libertação assustador e orgástico.

Olhou para trás, para a porta do quarto, a tempo de ver Sholnick largar a arma. Transformações sutis haviam ocorrido nas mãos e no rosto do policial. Ele arrancou o casaco preto e forrado do uniforme, atirou-o longe e rasgou a camisa. As maçãs do seu rostoe os maxilares dissolviam-se e fluíam para a frente, e sua testa recuava enquanto ele buscava um estado alterado.

 

 Quando Harry Talbot terminou de lhes contar sobre os bichos-papões, Sam inclinou-se, no banco alto, para a ocular do telescópio. Girou o instrumento para a esquerda, até focalizar o terreno baldio ao lado da Callan, onde as criaturas apareceram mais recentemente.

Não tinha certeza do que procurava. Não acreditava que os papões tivessem retornado ao mesmo local precisamente a esta hora para lhe proporcionar uma conveniente olhada sobre eles. E não havia pistas nas sombras nem no mato pisado e nos arbustos onde eles tinham se agachado poucas horas antes, para lhe revelar o que poderiam ser ou em que missão estariam empenhados. Talvez estivesse apenas tentando vincular a imagem fantástica do bicho-papão macaco-cachorro-réptil ao mundo real, ligá-los em sua mente àquele terreno baldio e, deste modo, torná-los mais concretos, para que pudesse lidar com eles.

De qualquer forma, Harry tinha outra história além dessa. Enquanto permaneciam sentados no quarto às escuras, como se ouvissem histórias de fantasmas em torno de uma fogueira de acampamento, ele lhes contou como vira Denver Simpson, o dr. Fitz, Reese Dorn e Paul Hawthorne dominarem EUa Simpson, levá-la para o quarto no andar de cima e se prepararem para injetar nela um líquido dourado numa enorme seringa.

Manipulando o telescópio na direção indicada por Harry, Sam pôde encontrar e aproximar a casa dos Simpsons, do outro lado da Conquistador e imediatamente ao norte do cemitério católico. Tudo estava às escuras e em silêncio.

Da cama onde ainda tinha a cabeça do cachorro em seu colo, Tessa disse:

—        Tudo isso tem que estar ligado de alguma forma: essas mortes "acidentais", o que quer que aqueles homens estivessem fazendo a Ella Simpson e esses... bichos-papões.

—        Sim, tudo está relacionado — concordou Sam. — E a ligação é a New Wave Microtechnology.

Contou-lhes o que descobrira enquanto operava o terminal no carro de polícia atrás da sede do condado.

—        Falcão da Lua? — perguntou Tessa. — Conversões? Em que será que estão convertendo as pessoas?

—        Não sei.

—        Certamente não nesses... bichos-papões.

—        Não, não vejo propósito nisso e, além do mais, pelo que descobri, imagino que duas mil pessoas na cidade receberam... este tratamento, foram submetidas a essa mudança, o que quer que ela seja. Se houvessem tantos desses papões do Harry à solta por aí, estariam por toda a parte; a cidade estaria apinhada deles, como um zoológico na Zona de Transição.

—        Dois mil — disse Harry. — São dois terços da cidade.

—        E o resto até meia-noite — disse Sam. — Exatamente daqui a vinte e uma horas.

—        Eu também, suponho?

—        Sim. Procurei seu nome nas listas. Você está programado para conversão na etapa final, entre seis horas da tarde até meia- noite. De modo que temos cerca de quatorze horas e meia antes de virem em seu encalço.

—        Isso é loucura — disse Tessa.

—        Sim — concordou Sam. — Uma loucura total.

—        Não pode estar acontecendo — disse Harry. — Mas se não está acontecendo, por que os cabelos da minha nuca se eriçaram?

 

 — Sholnick!

Atirando longe a camisa do uniforme, livrando-se dos sapatos, louco para tirar todas as roupas e completar a regressão, Barry Sholnick ignorou Loman.

—        Barry, pare, pelo amor de Deus, não deixe que isso aconte ça— implorava Penniworth. Estava pálido e trêmulo. Olhava de Sholnick para Peyser e outra vez para Sholnick, e Loman suspeita va que Penniworth sentia a mesma urgência de se degenerar à qual Sholnick se entregara.

—        ...correr livre, caçar, sangue, sangue, preciso...

O canto insidioso de Peyser era como um prego na cabeça de Loman e queria que ele parasse. Não, na verdade, não era como um prego perfurando seu crânio, porque não era doloroso e, na realidade, era excitante e estranhamente melódico, penetrando fundo em seu ser, trespassando-o não como lança de aço, mas como música. Era por isso que queria que ele parasse: porque o atraía, envolvia-o; fazia-o querer se livrar de responsabilidades e preocupações, fugir da vida complicada demais do intelecto para uma existência estritamente baseada nas sensações, nos prazeres físicos, um mundo  cujas fronteiras eram definidas por sexo, comida e a emoção da caçada, um mundo onde disputas eram resolvidas e necessidades satisfeitas apenas pela utilização de músculos, onde ele jamais teria  que pensar outra vez ou se preocupar ou se importar.

—        ...preciso, preciso, preciso, preciso, preciso, matar...

O corpo de Sholnick dobrou-se para a frente quando sua espi- nha se modulou. Suas costas perderam a curvatura côncava que distingue a forma humana. Sua pele parecia dar lugar a escamas...

—        ...venha, rápido, rápido, a caçada, sangue, sangue...

 ...e quando o rosto de Sholnick se transformou, sua boca se abriu de forma impossível, quase de orelha a orelha, como a boca de um réptil com um riso permanente.

A pressão no peito de Loman crescia a cada segundo. Sentia-se escaldar, sufocava, mas o calor vinha de dentro dele, como se seu metabolismo se acelerasse milhares de vezes mais do que a velocidade normal, preparando-o para a transformação.

—        Não.

O suor escorria pelo seu corpo.

—        Não!

O quarto parecia-lhe um caldeirão onde ele seria reduzido à sua essência; quase podia sentir sua carne começando a se desfazer.

—        Eu quero, eu quero, eu quero, quero — dizia Penniworth, mas sacudindo violentamente a cabeça, tentando negar o que queria.

Chorava e tremia, completamente lívido.

Peyser ergueu-se de onde estava agachado e começou a avançar, afastando-se da parede. Movia-se sinuosa, agilmente, e, embora não conseguisse ficar inteiramente ereto em seu estado alterado, era mais alto do que Loman, uma figura ao mesmo tempo atraente e ameaçadora.

Sholnick encolheu-se.

Peyser arreganhou os dentes e rosnou para Loman, como se dissesse ou se une a nós ou morre.

Com um grito em parte de desespero e em parte de alegria, Neil Penniworth deixou cair sua espingarda e colocou as mãos no rosto. Como se este contato tivesse exercido uma reação química, as mãos e o rosto começaram a se transformar.

O calor explodiu dentro de Loman e ele gritou sem palavras, mas sem a alegria que Penniworth exprimira e sem o brado orgásmico de Sholnick. Enquanto ainda tinha o controle de si mesmo, ele ergueu a arma e disparou uma bala à queima-roupa em Peyser.

O tiro atingiu o regressivo no peito, atirando-o para trás contra a parede do quarto com um enorme jato de sangue que se espalhou em todas as direções. Peyser caiu, ganindo, arquejante, contorcendo-se no assoalho como um inseto pisoteado, mas não estava morto. Talvez seu coração e pulmões não tivessem sofrido danos suficientes. Se oxigênio ainda fosse transportado para seu sangue e se este fosse bombeado por todo seu corpo, ele reparava os danos; sua invulnerabilidade era de certa forma ainda maior do que a impenetrabilidade sobrenatural de um lobisomem, pois não podia ser facilmente morto nem mesmo com uma bala de prata; logo estaria de pé outra vez, mais forte do que nunca.

Loman era inundado por ondas de calor, cada qual mais forte do que a anterior. Sentia uma pressão que vinha do seu âmago, não apenas do peito, mas de todas as partes do seu corpo. Dispunha apenas de alguns segundos em que sua mente estaria clara o bastante para ele agir e sua vontade forte o suficiente para resistir. Correu para Peyser, encostou o cano da espingarda no peito contorcido do regressivo e disparou outra vez.

O coração tinha que ter sido destruído com esta bala. O corpo deu um salto do chão quando o projétil o atravessou. O rosto monstruoso de Peyser contorceu-se, então se imobilizou com os olhos abertos e sem visão, os lábios descerrando os dentes curvos, afiados e brutalmente grandes.

Alguém gritou atrás de Loman.

Virando-se, viu a criatura-Sholnick vindo em sua direção. Disparou um terceiro tiro, depois um quarto, atingindo Sholnick no peito e no estômago.

O policial caiu pesadamente e começou a se arrastar para o corredor, fugindo de Loman.

Neil Penniworth estava curvado em posição fetal no chão junto ao pé da cama. Entoava uma cantiga monotonamente, mas não sobre sangue e necessidades e sobre ser livre; entoava o nome de sua mãe, repetidamente, como se fosse um talismã verbal para protegê-lo do mal que queria se apoderar dele.

O coração de Loman batia com tanta força que o barulho parecia vir de uma fonte externa, como se alguém tocasse tímpanos em outro aposento da casa. Estava quase convencido de que podia sentir todo o seu corpo pulsando com as batidas de seu coração e que a cada pulsação ele se transformava de algum modo sutil, porém hediondo.

Dando um passo na direção do corredor, atrás de Sholnick, parando acima dele, Loman encostou o cano da espingarda nas costas do regressivo, onde achou que o coração deveria estar, e puxou o gatilho. Sholnick deixou escapar um grito agudo quando sentiu o cano da arma tocá-lo, mas estava fraco demais para rolar sobre si mesmo e arrancar a espingarda de Loman. O grito foi interrompido para sempre pela explosão.

O aposento recendia a sangue. Aquele cheiro complexo era tão doce e irresistível que tomou o lugar do canto sedutor de Peyser, induzindo Loman a regredir.

Apoiou-se na cômoda e fechou os olhos com força, tentando se dominar. Agarrava-se à espingarda com ambas as mãos, segurando-a com força não por seu valor defensivo — não tinha mais balas —, mas porque era uma arma primorosamente construída, o que significava que era uma ferramenta, um artefato da civilização, fazendo-o lembrar que era um homem, no ápice da evolução, e que não deveria sucumbir à tentação de jogar fora todas as suas ferramentas e conhecimento em troca dos prazeres e satisfações mais primitivos de uma besta.

Mas o cheiro de sangue era doce e muito tentador...

Tentando desesperadamente convencer-se de tudo que seria perdido naquela entrega, ele pensou em Grace, sua mulher, e lembrou-se o quanto a amara um dia. Mas agora ele estava além do amor, como todos da Nova Gente. Pensar em Grace não iria salvá-lo. Na verdade, imagens do recente ato lascivo e bestial que compartilharam atravessaram sua mente e ela já não era mais Grace para ele; era simplesmente uma fêmea e a lembrança daquele selvagem acasalamento excitou-o e arrastou-o ainda mais para o vórtice da regressão.

O desejo intenso de degenerar fazia-o sentir como se estivesse num redemoinho, sendo sugado, e ele pensou que era assim que o lobisomem nascente se sentia quando erguia os olhos para a noite e via, subindo no horizonte, uma lua cheia. O conflito grassava dentro dele:

...sangue...

...liberdade...

—        Não. Mente, conhecimento...

...caçar...

...matar...

—        Não. Explorar, aprender...

...comer...

...correr... ...caçar... ...acasalar... ...matar...

  —      Não, não! Música, arte, língua...

O turbilhão crescia.

Tentava resistir ao canto de sereia da selvageria com a razão, mas não parecia estar dando certo e ele, então, pensou em Denny, seu filho. Tinha que se agarrar a sua humanidade ao menos por Denny. Tentou reunir o amor que um dia sentira pelo filho, tentou deixar aquele amor se reconstruir dentro dele até poder bradá-lo, mas havia apenas um resquício de emoção no fundo da escuridão de sua mente. Sua capacidade de amar havia retrocedido dele como a matéria retrocedera do centro da existência em seguida ao Big Bang que criou o universo; seu amor por Denny estava tão distante que se parecia uma estrela fora do universo, sua luz apenas vagamente percebida, com muito pouco poder de iluminar e nenhum de aquecer. Entretanto, mesmo aquele vislumbre de sentimento era alguma coisa em torno da qual construir uma imagem de si mesmo como ser humano, humano, antes de tudo e sempre um homem, não algo que andava de quatro ou com os nós dos dedos se arrastando pelo chão, mas um homem, um homem.

Sua respiração ruidosa amainou um pouco. Seu batimento cardíaco caiu de um absurdamente rápido dub dub dub dub dub dub dub dub para talvez cem ou 120 batidas por minuto, ainda muito rápido, como se estivesse correndo, mas melhor. Sua mente também se desanuviou, embora não inteiramente, porque o aroma de sangue era um perfume irresistível.

Afastou-se da cômoda e cambaleou até Penniworth.

O policial ainda estava encurvado na posição fetal mais comprimida que um homem adulto podia conseguir. Ainda viam-se traços da besta em suas mãos e em seu rosto, mas estava consideravelmente mais humano do que animalesco. O entoar do nome de sua mãe parecia estar funcionando quase tão bem quanto a fina linha da vida do amor funcionara para Loman.

Largando sua espingarda com uma das mãos contraídas, Loman abaixou-se e puxou Penniworth pelo braço.

—        Venha, vamos sair daqui, garoto, vamos sair de perto deste cheiro.

Penniworth compreendeu e levantou-se com dificuldade. Apoiou-se em Loman e se deixou conduzir para fora do aposento, para longe dos dois regressivos mortos, pelo corredor, em direção à sala de estar.

Ali, o forte odor de urina encobriu completamente qualquer traço do cheiro de sangue trazido pelas correntes de ar que vinham do quarto. Assim estava melhor. Não era um cheiro fétido, como parecera antes, mas ácido e purificante.

 Loman instalou Penniworth numa poltrona, o único estofado da sala que não fora destruído.

—        Vai ficar bem?

Penniworth ergueu os olhos para ele, hesitou, então assentiu. Todos os sinais da besta haviam desaparecido de suas mãos e do seu semblante, embora sua pele ainda estivesse estranhamente en-crespada, ainda em transição. Seu rosto parecia estar inchado com um sério ataque de urticária, grandes grumos redondos da testa ao queixo e de orelha a orelha, e também havia longos vergalhões, em diagonal, que queimavam um vermelho intenso contra sua pele clara. Entretanto, enquanto Loman observava, esses fenômenos desapareceram e Neil Penniworth resgatou inteiramente sua humanidade. Sua humanidade física, pelo menos.

—        Tem certeza? — perguntou Loman.

—        Sim.

—        Não saia daqui.

—        Sim.

Loman entrou no vestíbulo e abriu a porta da frente. O policial que montava guarda do lado de fora estava tão tenso por causa do tiroteio e da gritaria dentro da casa que quase disparou contra seu chefe, antes de perceber quem era.

—        Que diabos está acontecendo? — perguntou o policial.

—        Contate Shaddack pelo terminal — disse Loman. — Ele tem que vir até aqui agora. Neste instante. Tenho que vê-lo agora.

 

Sam fechou as pesadas cortinas azuis e Harry acendeu um abajur de cabeceira. Embora fraca, pálida demais para afastar mais do que metade das sombras, a luz ainda assim feriu os olhos de Tessa, que já estavam cansados e injetados.

Pela primeira vez ela realmente viu o aposento. Era escassamente mobiliado: o banco; a mesa alta junto ao banco; o telescópio; uma cômoda longa, de laça preta, estilo oriental-moderno; um par de mesinhas-de-cabeceira no mesmo estilo; uma pequena geladeira a um canto; e uma cama de hospital ajustável, tamanho gigante, sem colcha, mas com muitos travesseiros e lençóis de cores vivas, com desenhos de listras, bolas e manchas em vermelho, laranja, roxo, verde, amarelo, azul e preto, como uma tela gigante pintada por um artista abstracionista demente e cego para cores.

Harry percebeu sua reação e a de Sam aos lençóis e disse: — Ora, essa é uma verdadeira história, mas primeiro vocês têm que conhecer os antecedentes. Minha faxineira, a sra. Hunsbok, vem uma vez por semana e faz a maior parte das compras para mim. Mas eu mando Moose fazer pequenas compras todos os dias, nem que seja para comprar um jornal. Ele usa seu... bem, uma espécie de alforje preso com correias em volta do corpo, uma bolsa de cada lado. Coloco um bilhete e algum dinheiro nas bolsas e ele vai ao mercado próximo daqui. É o único lugar onde vai quando está com o alforje, a menos que eu esteja com ele. O empregado do mercadinho, Jimmy Ramis, me conhece muito bem. Jimmy lê o bilhete, coloca uma caixa de leite ou algumas barras de chocolate ou o que quer que eu tenha pedido no alforje junto com o troco e Moose traz tudo para mim. É um cão de serviço muito bom e confiável, o melhor. Eles os treinam muito bem na Canine Companions for Independence. Moose nunca sai em perseguição a um gato com meu jornal ou meu leite nas costas.

O cachorro ergueu a cabeça do colo de Tessa, arfou e arreganhou os dentes, como se entendesse o elogio.

— Um dia ele voltou com algumas mercadorias que eu o enviara para pegar e também com esse jogo de lençóis e fronhas. Telefonei para Jimmy Ramis e lhe perguntei o que era aquilo, e Jimmy disse que não sabia do que eu estava falando, que nunca vira tais lençóis. Ora, o pai de Jimmy é o dono do mercado e também da Distribuidora Surplus, na estrada do condado. Ele recebe toda espécie de mercadoria que sai de linha e artigos que não venderam tão bem quanto os fabricantes esperavam, pagando dez por cento do valor, e achei que estes lençóis eram algo que ele estava tendo dificuldade de vender mesmo na Distribuidora Surplus. Jimmy sem dúvida os viu, achou que eram bastante tolos e resolveu fazer uma brincadeira comigo. Mas, ao telefone, Jimmy disse: "Harry, se eu soubesse alguma coisa a respeito dos lençóis, eu lhe diria, mas não sei." E eu respondi: "Está tentando me fazer acreditar que Moose foi aí e os comprou por conta própria, com seu próprio dinheiro?" E Jimmy retorquiu: "Bem, não, eu diria que ele os roubou em algum lugar." Eu retruquei: "E como foi que ele conseguiu colocá-los tão bem na própria bolsa?" Jimmy respondeu: "Não sei, Harry, mas esse cachorro é muito esperto, embora pareça que ele não tem bom gosto.”

Tessa percebeu como Harry se deliciava com a história e também por que ele ficava tão satisfeito com ela. Por um lado, o cachorro era filho, irmão e amigo, tudo reunido em um só, e Harry orgulhava-se de que as pessoas considerassem Moose inteligente. Mais importante ainda, a pequena piada de Jimmy tornava Harry um membro da comunidade, não apenas um inválido restrito à sua casa, mas um participante da vida da cidade. Seus dias de solidão eram marcados por bem poucos incidentes como esse.

—        E você realmente é um cachorro inteligente — disse Tessa a Moose.

Harry disse:

—        De qualquer forma, resolvi pedir por brincadeira à senho- ra Hunsbok para colocá-los na cama, mas depois acabei gostando  deles.        Depois de cerrar as cortinas da segunda janela, Sam voltou ao banco, sentou-se, girou para ficar de frente para Harry e disse:

—        São os lençóis mais espalhafatosos que já vi. Eles não tiram o seu sono?

Harry sorriu.   —       Nada pode tirar o meu sono. Durmo como um bebê. O que  faz as pessoas perderem o sono é a preocupação com o futuro, com o que possa lhes acontecer. Mas o pior já me aconteceu. Ou ficam acordados pensando no passado, como poderia ter sido, mas eu não faço isso porque não tenho coragem. — Seu sorriso anuviou-se en quanto falava. — E agora? O que fazemos em seguida?

Retirando gentilmente a cabeça de Moose de seu colo, levantando-se e limpando alguns pêlos do cachorro de seu jeams, Tessa disse:

—        Bem, os telefones não estão funcionando, de modo que Sam não pode ligar para o Bureau e, se tentarmos sair da cidade a pé, nos arriscamos a encontrar as patrulhas de Watkins ou esses bichos- papões. A menos que você conheça um radioamador que nos deixasse usar seu aparelho para enviar uma mensagem, até onde eu saiba, temos que sair de carro.

—        Há barreiras nas estradas, não se esqueça — disse Harry.

Ela disse:

—        Bem, imagino que teremos que sair num caminhão, algo grande e forte, arremessá-lo sobre a maldita barreira, chegar à auto- estrada, sair da jurisdição deles. Ainda que sejamos perseguidos por policiais do condado, tudo bem, porque Sam pode fazê-los entrar em contato com o Bureau, confirmar sua missão, e eles ficarão do nosso lado.

—        Quem é o agente federal aqui, afinal? — indagou Sam.

Tessa sentiu-se ruborizar.  —       Desculpe-me. Veja, um realizador de documentários é quase sempre seu próprio produtor, às vezes produtor, diretor e roteirista também. Isto significa que, para a parte artística funcionar, a parte prática do empreendimento tem que funcionar primeiro, de modo que estou acostumada a me preocupar com o planejamento, a logística. Não pretendia atropelá-lo.

—        Atropele sempre que quiser.

Sam sorriu, e ela gostou dele quando sorriu. Percebeu até que se sentia um pouquinho atraída por ele. Não era nem bonito nem feio, nem tampouco o que a maioria das pessoas considerava "sem graça". Era... indefinível, mas atraente. Pressentia uma tristeza nele, algo mais profundo do que as atuais preocupações com os acontecimentos de Moonlight Cove — talvez tristeza por alguma perda, talvez uma raiva há muito reprimida relacionada com alguma injustiça que tivesse sofrido, talvez um pessimismo geral originado do freqüente contato em seu trabalho com os piores elementos da sociedade. Mas, quando sorria, ele se transformava.

—        Vocês realmente pretendem sair à toda num caminhão? — perguntou Harry.

—        Talvez como último recurso — disse Sam. — Mas teríamos que achar um veículo realmente grande e roubá-lo, e isso já é uma operação em si mesma. Além do mais, devem ter armas especiais nas barreiras, carregadas com balas magnum, talvez armas automá ticas. Não gostaria de enfrentar esta artilharia nem mesmo com um caminhão Mack. Você pode entrar no inferno com um tanque, mas o diabo vai pegá-lo de qualquer jeito, de modo que é melhor não entrar lá.

—        Então, o que vamos fazer? — indagou Tessa.

—        Dormir — respondeu Sam. — Há um modo de sair daqui, um modo de entrar em contato com o Bureau. Posso vê-lo pelo canto dos olhos, mas, quando tento olhá-lo diretamente, ele desaparece, e isto acontece porque estou cansado. Preciso de algumas horas de sono para me recuperar e pensar direito.

Tessa também estava exausta, embora, depois do que aconteceu no Cove Lodge, se surpreendesse de que não só pudesse como desejasse dormir. Enquanto estava no seu quarto do motel, ouvindo os gritos das vítimas e os gritos estridentes e selvagens dos assassinos não imaginava que viesse a dormir de novo.

 

Shaddack chegou à casa de Peyser às cinco para as quatro da manhã. Dirigiu sua caminhonete cinza-chumbo com janelas pesadamente escurecidas, ao invés de seu Mercedes, porque um terminal de computador estava instalado no consolo da caminhonete, entre os bancos, onde o fabricante originalmente pretendera colocar um refrigerador embutido. Com uma noite tão repleta de acontecimentos, era uma boa idéia ter o terminal de computador ao alcance da mão, o qual, como uma aranha, tecia uma teia de seda englobando toda Moonlight Cove. Estacionou no acostamento amplo da estrada rural asfaltada, de mão dupla, em frente à casa.

Conforme Shaddack atravessava o jardim para a varanda da frente, uma trovoada distante ribombou no horizonte do oceano Pacífico. O vento forte que empurrara o nevoeiro para leste também trouxera uma tempestade do oeste. Nas últimas horas, nuvens agitadas haviam encoberto os céus, ocultando as estrelas que cintilaram brevemente entre a passagem do nevoeiro e a chegada dos cúmulos de trovoada. A noite estava muito escura e carregada. Ele estremeceu em seu casaco de caxemira, sob o qual ainda usava um conjunto de moletom.

Dois policiais estavam sentados nos carros branco e preto na entrada de automóveis. Observaram-no, os rostos pálidos do outro lado dos vidros embaçados das janelas, e ele ficou satisfeito ao perceber que o encaravam com medo e reverência, pois de certa forma os havia criado.

Loman Watkins esperava por ele na porta da frente. O lugar fora destruído. Neil Penniworth estava sentado na única peça do mobiliário que não fora destruída; parecia muito abalado e não conseguiu sustentar o olhar de Shaddack. Watkins caminhava de um lado para outro. Algumas manchas de sangue marcavam seu uniforme, mas ele não parecia ferido; se sofrerá ferimentos, tinham sido leves e já haviam cicatrizado. O mais provável é que o sangue fosse de outra pessoa.

—        O que aconteceu aqui? — perguntou Shaddack.

Ignorando a pergunta, Watkins falou a seu policial:

—        Vá para o carro, Neil. Fique junto com os outros homens.

—        Sim, senhor — disse Penniworth. Estava encolhido em sua poltrona, dobrado para a frente, olhando para os sapatos.

—        Você vai ficar bem, Neil.

—        Acho que sim.

—        Não foi uma pergunta. Foi uma afirmação: você vai ficar bem. Tem força suficiente para resistir. Já provou isso.

Penniworth assentiu, levantou-se e se dirigiu para a porta.

—        Que história é essa? — perguntou Shaddack.

Voltando-se em direção ao corredor do outro lado da sala, Wat kins disse:

—        Acompanhe-me.

Sua voz era fria e dura como gelo, moldada pelo medo e pela raiva, mas perceptivelmente isenta do respeito rancoroso com que sempre se dirigira a Shaddack, desde que fora convertido em agosto.

Aborrecido com esta mudança em Watkins, apreensivo, Shaddack franziu o cenho e o seguiu pelo corredor.

O policial parou diante de uma porta fechada, e virou-se para Shaddack.

—        Você me disse que o que fez a nós foi aprimorar nossa efi ciência biológica injetando-nos aqueles... biochips.

—        Um nome falso, na verdade. Não são chips, mas microesfe- ras incrivelmente pequenas.

Apesar dos regressivos e de alguns outros problemas que haviam surgido com o Projeto Falcão da Lua, o orgulho de Shaddack por sua descoberta continuava intocado. Erros podiam ser consertados. Problemas podiam ser solucionados no sistema. Ele ainda era o gênio de sua época; não só sentia que isso era verdade, mas sabia-o tão bem quanto sabia em que direção olhar para ver o sol nascente a cada manhã.

Gênio...

O microchip comum de silício, que tornara possível a revolução do computador, era do tamanho de uma unha e continha um milhão de circuitos gravados nele por fotolitografia. O menor circuito em um chip fora um centésimo de um fio de cabelo humano. Novas descobertas em litografia a raio X, usando aceleradores de partículas gigantes denominados síncrotrons, finalmente tornaram possível a impressão de um bilhão de circuitos em um chip, com espessura de um milionésimo do cabelo humano. Dimensões cada vez menores foram o ponto de partida para os computadores serem aperfeiçoados, melhorando tanto o funcionamento quanto a capacidade.

As microesferas desenvolvidas pela New Wave eram quatro mil vezes menores do que um microchip. Cada uma era impressa com 250 mil circuitos. Isto fora obtido pela aplicação de uma forma radicalmente nova de litografia a raio X, que tornou possível gravar circuitos em superfícies incrivelmente pequenas e sem ter que manter essas superfícies imóveis.

A conversão da Antiga Gente em Nova Gente começou com a injeção de centenas de milhares destas microesferas, em solução na corrente sangüínea. Eram biologicamente interativas em função mas o material propriamente dito era biologicamente inerte, de me do que o sistema imunológico não era acionado. Havia diferente tipos de microesferas. Algumas eram orientadas para o coração, significando que se moviam pelas veias até o coração, onde se instalavam, fixando-se nas paredes dos vasos sangüíneos que atendiam músculo cardíaco. Algumas esferas eram orientadas para o figa outras para os pulmões, outras para os rins, para os intestinos, para o cérebro e assim por diante. Estabeleciam-se em feixes neste locais e eram projetadas de tal forma que, ao se tocarem, seus circuitos se ligavam.

Esses feixes, espalhados pelo corpo, formavam cinqüenta bi Ihões de circuitos utilizáveis, que tinham o potencial de processa dados, em quantidades consideravelmente maiores do que os mais poderosos supercomputadores da década de 1980. Em certo senti do, através de uma injeção, um supercomputador fora colocado den tro do corpo humano.    Moonlight Cove e áreas adjacentes eram permanentemente banhadas em transmissões de microondas de antenas parabólicas no topo do prédio principal da New Wave. Uma fração dessas transimissões envolvia o sistema de computador da polícia e uma outra podia ser acionada para energizar as microesferas dentro de cada um da Nova Gente.

Um pequeno número de esferas era de um material diferente e servia como transformador de energia e distribuidor de força. Quando alguém da Antiga Gente recebia sua terceira injeção de microesferas, as esferas de força imediatamente alimentavam-se dessas transmissões de microondas, convertendo-as em corrente elétrica e distribuindo esta por toda a rede. A quantidade de corrente necessária para operar o sistema era extremamente pequena.

Outras esferas especializadas em cada feixe eram unidades de memória. Algumas carregavam o programa que operaria o sistema; o programa era carregado no instante em que a força entrava na rede. Shaddack disse a Watkins:

—        Há muito tempo, convenci-me de que o problema com o ani mal humano é sua natureza extremamente emocional. Eu os livrei í deste fardo. Ao fazê-lo, eu os tornei não só mais saudáveis mental mente, mas também fisicamente.

—        Como? Sei tão pouco sobre como a Mudança se efetua.

—        Você agora é um organismo cibernético, isto é, parte ho mem e parte máquina, mas não precisa compreender isso, Loman.

Você usa um telefone, entretanto não faz a menor idéia de como desenvolver um sistema telefônico a partir do zero. Não sabe como um computador funciona, entretanto pode usá-lo. E, da mesma forma, você não tem que saber como o computador dentro de você funciona para poder usá-lo.

Os olhos de Watkins estavam anuviados de medo.

—        Eu o uso... ou ele me usa?

—        Claro que ele não usa você.

—        Claro...

Shaddack perguntava-se o que teria acontecido ali naquela noite para deixar Watkins naquele estado de extrema ansiedade. Estava mais curioso do que nunca para ver o que havia no quarto, em cuja soleira da porta haviam parado. Mas também estava crucialmente cônscio de que Watkins se encontrava num estado de excitação muito perigoso e que era necessário, embora frustrante, gastar algum tempo acalmando os temores dele.

—        Loman, os feixes de microesferas dentro de você não cons tituem uma mente. O sistema não é de nenhum modo inteligente.

É um serviçal, seu criado. Ele o libera de emoções intoxicantes.

Emoções fortes — ódio, amor, inveja, ciúme, a longa lista de sensibilidades humanas — regularmente desestabilizavam as funções biológicas do corpo. Pesquisadores médicos haviam provado que diferentes emoções estimulavam a produção de diferentes substâncias químicas no cérebro e que essas substâncias, por sua vez, induziam os diversos órgãos e tecidos do corpo a aumentar ou reduzir ou alterar suas funções de uma forma menos produtiva. Shaddack estava convencido de que um homem, cujo corpo fosse comandado por suas emoções, não podia ser totalmente saudável e nunca inteiramente lúcido.

O computador-microesfera dentro de cada um da Nova Gente monitorava todos os órgãos do corpo. Quando detectava a produção de vários compostos aminoácidos e outras substâncias químicas que eram produzidas em reação a uma emoção forte, ele usava estímulos elétricos para dominar o cérebro e outros órgãos, cortando o fluxo e, assim, eliminando as conseqüências físicas de uma emoção, senão a própria emoção. Ao mesmo tempo, o computador-microesfera estimulava a copiosa produção de outros compostos que reconhecidamente inibiam essas mesmas emoções, tratando não só a causa, mas também o efeito.

—        Eu o livrei de todas as emoções, exceto o medo — disse Shaddack —, que é necessário para a autopreservação. Agora que a química do seu corpo já não sofre alterações desenfreadas, você poderá pensar com mais clareza.

—        Até onde pude notar, não me tornei um gênio de repente.

—        Bem, você pode não notar ainda uma acuidade mental maior, mas com o tempo notará.

—        Quando?

—        Quando seu corpo for inteiramente purgado dos resíduos de uma vida inteira de poluição emocional. Enquanto isso, seu computador interior — bateu de leve no peito de Watkins — também está programado para usar um complexo sistema de estímulos elé tricos para induzir o corpo a criar compostos aminoácidos inteira mente novos que mantêm seus vasos sangüíneos limpos e livres de placas e coágulos, matam células cancerosas no instante em que surgem e realizam inúmeras outras tarefas, mantendo-o muito mais saudável do que os homens comuns, sem dúvida ampliando drasticamente sua expectativa de vida.

Shaddack já esperava que o processo de recuperação fosse acelerado na Nova Gente, mas se surpreendera com a velocidade quase miraculosa com que os ferimentos cicatrizavam. Ainda não conseguia entender inteiramente como um novo tecido podia se formar de forma tão rápida e seu atual trabalho no Projeto Falcão da Lua concentrava-se em descobrir uma explicação para este efeito. A cicatrização não era conseguida sem um preço, pois o metabolismo se acelerava de forma fantástica; a gordura armazenada do corpo queimava prodigiosamente rápido para cicatrizar um ferimento em segundos ou minutos, deixando a pessoa curada muitos quilos mais magra, banhada de suor e vorazmente faminta.

Watkins franziu a testa e passou a mão trêmula pelo rosto suado.

—        De certo modo posso compreender que essa cura fosse acelerada, mas o que nos dá a capacidade de nos remodelarmos tão completamente, de regressarmos a outra forma? Certamente, nem mesmo baldes destas substâncias químicas biológicas poderiam dilacerar nosso organismo e reconstruí-lo em um ou dois minutos. Como isso pode acontecer?

Por um instante, os olhos de Shaddack encontraram-se com os do outro homem, então se desviaram, ele tossiu e disse:

—        Ouça, eu posso lhe explicar tudo isso mais tarde. Agora eu quero ver Peyser. Espero que tenha sido capaz de dominá-lo sem causar muitos danos.

Quando Shaddack estendeu a mão para abrir a porta, Watkins agarrou seu pulso, detendo-o. Shaddack ficou estupefato. Não permitia que ninguém o tocasse.

—        Tire sua mão de mim.

—        Como o corpo pode ser tão subitamente refeito?

  — Já lhe disse, discutiremos isso mais tarde.

—        Agora. — A determinação de Watkins era tão nítida que produzia rugas profundas em seu rosto. — Agora. Estou tão apavorado que não consigo pensar direito. Não posso funcionar neste nível de medo, Shaddack. Olhe para mim. Estou tremendo. Parece que vou explodir. Em milhões de pedaços. Você não sabe o que aconteceu aqui esta noite, ou se sentiria do mesmo modo. Eu tenho que saber: como nossos corpos podem se remodelar tão subitamente?

Shaddack hesitou.

—        Estou trabalhando nisso.

Surpreso, Watkins largou o pulso dele e disse:

—        Você... quer dizer que não sabe?

—        É um efeito inesperado. Estou começando a entendê-lo — o que era uma mentira —, mas ainda tenho muito trabalho a fazer.

Primeiro, ele teria que entender os fenomenais poderes curativos da Nova Gente, que sem dúvida eram um aspecto do mesmo processo que lhes permitia se metamorfosearem tão completamente em formas subumanas.

—        Você nos submeteu a isso sem saber tudo que poderia nos causar?

—        Sabia que seria um benefício, uma grande dádiva — disse Shaddack impacientemente. — Nenhum cientista pode prever inteiramente todos os efeitos colaterais. Ele tem que prosseguir com a confiança de que, sejam quais forem os efeitos colaterais que surgirem, não ultrapassarão os benefícios.

—        Mas eles ultrapassam os benefícios — disse Watkins, tão próximo da raiva quanto um Novo Homem podia chegar. — Meu Deus, como pôde fazer isso conosco?

—        Eu fiz isso por vocês.

Watkins fitou-o, então empurrou a porta do quarto e disse:

—        Dê uma olhada.

Shaddack entrou no aposento, onde o carpete estava ensopado — e algumas das paredes enfeitadas — de sangue. Fez uma careta diante do mau cheiro. Achava todos os odores biológicos repulsivos, talvez porque fossem um lembrete de que os seres humanos eram muito menos eficientes e limpos do que as máquinas. Depois de parar junto ao primeiro cadáver — que jazia com o rosto para baixo junto à porta — e examiná-lo, olhou para o outro lado do aposento, para o segundo corpo.

—        Dois deles? Dois regressivos e você matou ambos. Duas chances de estudar a psicologia desses degenerados e você desperdiçou ambas as oportunidades?

Watkins não se deixou abater pelas críticas.

  —      Foi uma situação de vida ou morte. Não poderia ter sido resolvida de outra forma.

Parecia furioso num grau inconsistente com a personalidade um Novo Homem, embora talvez a emoção que sustentasse seu comportamento glacial fosse menos raiva do que medo. O medo era aceitável.

—        Peyser estava em estado regressivo quando chegamos — continuou Watkins. — Demos uma busca na casa, e nos deparamos com ele neste quarto.

Enquanto Watkins descrevia o confronto com detalhes, Shaddack foi tomado por uma apreensão que tentou não demonstrar e que nem sequer queria admitir. Quando falou, deixou que sua voz revelasse apenas a raiva, não o medo:

—        Está me dizendo que seus homens, tanto Sholnick quanto Penniworth, são regressivos, que até você é um regressivo?

—        Sholnick era um regressivo sim. Para mim, Penniworth não é, pelo menos ainda não, porque ele conseguiu resistir à necessida de. Assim como eu também resisti. — Watkins encarava-o desafia doramente, sem desviar o olhar sequer uma vez, o que perturbou ainda mais Shaddack. — O que estou tentando lhe dizer é a mesma coisa que lhe disse com todas as letras há poucas horas em sua casa:

cada um de nós, cada desgraçado de nós é potencialmente um re gressivo. Não se trata de uma doença rara entre a Nova Gente. Está em todos nós. Você não criou homens novos e melhores mais do que as políticas de Hitler de seleção genética poderiam ter criado uma super-raça. Você não é Deus; você é o Dr. Moreau.

—        Você não vai falar assim comigo— disse Shaddack, perguntando-se quem seria este Moreau. O nome lhe era vagamente familiar, mas não conseguia identificá-lo. — Quando falar comigo, sugiro que lembre-se de quem sou.

Watkins abaixou a voz, talvez compreendendo que Shaddack podia extinguir a Nova Gente quase tão facilmente quanto soprar uma vela. Mas continuou a falar com vigor e muito pouco respeito.

—        Ainda não respondeu à pior dessas notícias.

—        E qual é?

—        Não me ouviu? Eu disse que Peyser estava preso. Ele não conseguia se refazer.

—        Duvido muito que ele tenha ficado preso num estado alterado. Os Novos Homens têm completo domínio sobre seus corpos, muito mais controle do que eu pude prever. Se não conseguia voltar à forma humana, trata-se estritamente de um bloqueio psicológico.

Ele na verdade não queria voltar.

Watkins fitou-o por um instante, então sacudiu a cabeça e disse:

—        Você não é tão ignorante assim, não? É a mesma coisa. Diabos, não importa se algo deu errado com a rede de microesferas dentro dele ou se foi estritamente psicológico. De qualquer forma, o efeito foi o mesmo, o resultado foi o mesmo: ele ficou preso, numa armadilha, trancado naquela forma degenerada.

—        Você não vai falar assim comigo — repetiu Shaddack com firmeza, como se a repetição da ordem funcionasse da mesma for ma com que se treina um cachorro.

Apesar de toda a sua superioridade psicológica e potencial para superioridade mental, a Nova Gente continuava surpreendentemente a ser gente, e, por isso, eram máquinas muito menos eficientes. Com um computador, só era preciso programar um comando uma vez. O computador o retinha e agia sempre segundo ele. Shaddack imaginou se um dia conseguiria aperfeiçoar a Nova Gente, a tal ponto que as futuras gerações funcionassem tão perfeita e confiavelmente quanto o IBM PC comum.

Encharcado de suor, pálido, os olhos estranhos e assombrados, Watkins era uma figura intimidante. Quando o policial deu dois passos para diminuir a distância entre eles, Shaddack teve medo e quis recuar, mas manteve a posição e continuou a encarar Watkins, como teria feito com um perigoso pastor alemão que o encurralasse.

—        Olhe para Sholnick — disse Watkins, indicando o corpo a seus pés.

Usou a ponta do sapato para virar o morto.

Mesmo crivado de balas e ensopado de sangue, a bizarra mutação de Sholnick era inconfundível. Seus olhos fixos e vazios eram provavelmente o aspecto mais assustador de sua aparência: amarelos com íris pretas, não a íris redonda do olho humano, mas ovais alongadas como os olhos de uma cobra.

Do lado de fora, os trovões ribombavam pela noite, um estrépito mais forte do que o que Shaddack ouvira quando atravessava o jardim de Peyser.

Watkins disse:

—        Do modo como me explicou, estes degenerados sofrem uma involução voluntária.

—        Isso mesmo.

—        Você disse que toda a história da evolução humana está encerrada em nossos genes, que ainda carregamos em nós os traços do que a espécie foi um dia e que os regressivos, de certa forma, estabelecem comunicação com esse material genético e se transformam em criaturas em algum lugar mais para trás na escada evolucionária.

—        O que quer provar?

—        Essa explicação, de algum modo louco, fez sentido quando encurralamos Coombs no cinema e pudemos olhá-lo de perto em  setembro. Era mais um macaco do que um homem, algo entre um  e outro.

—        Não faz sentido de modo louco; faz perfeito sentido.

 —       Mas, meu Deus, olhe para Sholnick. Olhe para ele! Quando eu o abati a tiros, ele havia se transformado parcialmente em alguma criatura diabólica que era parte homem, parte... diabos, eu  não sei, parte lagarto ou cobra. Está me dizendo que evoluímos de  répteis, que carregamos genes de lagarto de dez milhões de anos atrás?

Shaddack enfiou as mãos nos bolsos do casaco, com receio de revelar sua apreensão com um gesto nervoso ou um tremor.

—        A primeira vida na terra nasceu no mar, depois algo rastejou para a terra, um peixe com pernas rudimentares, e o peixe evoluiu para os primeiros répteis e, ao longo do percurso, surgiram os mamíferos. Se na verdade não possuímos fragmentos do material genético destes répteis primitivos, e eu acredito que sim, então pelo menos temos uma memória racial deste estágio de evolução codificado em nós de algum modo que não compreendemos inteiramente.

—        Você está me levando na conversa, Shaddack.

—        E você está me irritando.

—        Não dou a mínima. Venha cá, venha comigo, dê uma olha da mais de perto em Peyser. Ele era um amigo seu de muitos anos, não? Dê uma boa olhada no que ele era quando morreu.

Peyser estava caído de costas, nu, a perna direita esticada para a frente, a perna esquerda dobrada sob ele em ângulo, um dos braços atirado para o lado, o outro atravessado no peito, que fora estraçalhado pelos disparos. O corpo e o rosto, com seu focinho e seus dentes animalescos, mas ainda assim reconhecíveis como de Mike Peyser, eram os de um degenerado assustadoramente horrível, um homem-cão, um lobisomem, algo que pertencia a um espetáculo de carnaval ou a um velho filme de horror. A pele era áspera. A camada irregular de pêlos era dura como arame. As mãos pareciam vigorosas, as garras afiadas.

Como sua fascinação excedia sua repulsa e medo, Shaddack er gueu o casaco para evitar que a bainha esbarrasse no corpo ensangüentado e parou junto ao corpo de Peyser, para olhá-lo mais de  perto.

 Watkins curvou-se do outro lado do cadáver.

 Enquanto outra avalancha de trovões estrondava pelo céu da noite, o morto fitava o teto do quarto com olhos que eram humanos demais para o resto de suas feições distorcidas.

—        Vai me dizer que de algum ponto ao longo do caminho nós evoluímos de cães, lobos? — perguntou Watkins.

Shaddack não respondeu. Watkins pressionou-o.

—        Vai me dizer que temos genes de cachorro em nós que podemos utilizar quando queremos nos transformar? Devo acreditar que Deus tirou uma costela de alguma Lassie pré-histórica e fez o homem daí antes de tirar uma costela do homem e fazer a mulher?

Movido pela curiosidade, Shaddack tocou uma das mãos de Mike Peyser, que eram tão inquestionavelmente feitas para matar quanto a baioneta de um soldado. Parecia-se com carne, apenas mais fria do que a de um homem vivo.

—        Isso não pode ser explicado biologicamente — disse Wat kins, fitando Shaddack com olhos arregalados, do outro lado do cadáver. — Essa forma de lobo não é algo que Peyser pudesse arrancar da memória racial armazenada em seus genes. Então, como pôde mudar assim? Não são só os seus biochips que estão agindo aqui. É algo mais... alguma coisa mais estranha.

Shaddack assentiu.

—        Sim. — Uma explicação lhe ocorrera e excitou-se com ela.

— Algo muito mais estranho... mas talvez eu possa compreender.

—        Então, diga-me. Eu gostaria de entender. Pode crer que gostaria. Gostaria de entender muito bem. Antes que aconteça comigo.

—        Há uma teoria de que a forma é uma função da consciência.

—        Hem?

—        Afirma que somos o que pensamos que somos. Não estou falando de psicologia pop, que você pode ser o que deseja se simplesmente gostar de si mesmo, nada semelhante. Quero dizer que, fisicamente, podemos ter o potencial de ser o que pensamos, ultra passar a estase mórfica ditada por nossa herança genética.

—        Conversa fiada — disse Watkins com impaciência.

Shaddack empertigou-se. Enfiou as mãos nos bolsos outra vez.

—        Deixe-me colocar a questão da seguinte forma: a teoria diz que a consciência é o maior poder do universo, que pode moldar o mundo físico segundo sua vontade.

—        A mente sobre a matéria.

—        Correto.

—        Como algum paranormal nesses programas de televisão, do brando uma colher ou parando um relógio — disse Watkins.

—        Essas pessoas em geral são embusteiros, eu acho. Mas, sim, talvez tenhamos realmente esse poder. Apenas não sabemos como utilizá-lo porque durante milhões de anos permitimos que o mundo físico nos dominasse. Por hábito, por estase e pela preferência da

   ordem sobre o caos, continuamos à mercê do mundo físico. Mas estamos falando — disse, apontando para Sholnick e Peyser — de algo muito mais complexo e excitante do que dobrar uma colher com a força da mente. Peyser sentiu a premência de regredir, por razões que não compreendo, talvez pela simples excitação disso...

—        Pela excitação. — A voz de Watkins abaixou, tornou-se branda, quase sussurrada e tomada de um medo e de uma angústia mental tão intensos que aumentou o medo de Shaddack. — O poder animal é excitante. Necessidade animal. Você sente uma fome de animal, uma libido de animal, sede de sangue, e se sente atraído para isso porque parece tão... tão simples e poderoso, tão natural.

É a liberdade.

—        Liberdade?

—        Liberdade das responsabilidades, das preocupações, da pres são do mundo civilizado, de ter que pensar muito. A tentação de regredir é tremendamente poderosa porque você sente que a vida será mais fácil e mais excitante assim — disse Watkins, evidentemente falando de como se sentira quando atraído para um estado degenerado. — Quando você se torna uma besta, a vida é apenas-, sensação, apenas dor e prazer, sem necessidade de intelectualizar qualquer coisa. É parte disso, de qualquer forma.

Shaddack ficou em silêncio, desconcertado com a paixão com que Watkins, normalmente um homem pouco expansivo, falava da  necessidade de regressão.

Um novo trovão rugiu no céu, mais forte do que os anteriores. O primeiro estrondo do raio repercutiu pelas janelas do quarto.

A mente acelerada, Shaddack disse:

—        De qualquer forma, o importante é que, ao sentir essa necessidade de se tornar uma besta, um caçador, Peyser não regrediu ao longo da linha genética humana. Evidentemente, em sua opinião, um lobo é o maior de todos os caçadores, a forma mais desejável para uma besta predatória, de modo que ele quis ser como um lobo.

—        Tão simples — disse Watkins ceticamente.

—        Sim, tão simples. A mente acima da matéria. A metamorfose é principalmente um processo mental. Ah, sem dúvida, há transformações físicas. Mas não devemos estar falando de completa alteração da matéria... apenas de estruturas biológicas. Os nucleo- tídeos básicos continuam os mesmos, mas a seqüência em que são lidos muda drasticamente. Genes estruturais são transformados em genes operacionais por força da vontade...

A voz de Shaddack enfraqueceu-se conforme sua excitação cresceu ao nível de seu medo e deixou-o ofegante. Fora muito mais além do que esperava com o Projeto Falcão da Lua. O surpreendente resultado era a fonte tanto de sua súbita alegria quanto de seu crescente temor: alegria, porque dera aos homens a capacidade de controlar sua forma física e talvez toda a matéria, simplesmente pelo exercício da vontade; medo, porque não tinha certeza de que a Nova Gente pudesse aprender a controlar e usar seu poder de forma adequada... ou que ele pudesse continuar a controlá-los.

—        A dádiva que eu lhes proporcionei, fisiologia assistida por computador e libertação das emoções, libera o poder da mente sobre a matéria. Permite que a consciência dite a forma.

Watkins sacudia a cabeça, perplexo com o que Shaddack estava sugerindo.

—        Talvez Peyser tenha desejado se tornar o que se tornou. Tal vez tenha acontecido o mesmo com Sholnick. Mas esse não foi o meu caso. Quando fui tomado do desejo de me transformar, lutei contra isso, como um ex-viciado luta contra a necessidade irresistível de heroína. Eu não desejava aquilo. Fui tomado por ele... do modo como a força da lua cheia atua sobre um lobisomem.

—        Não — disse Shaddack. — Subconscientemente, você quis se transformar, Loman, em parte o quis, mesmo a nível consciente.

Você deve ter desejado isto até certo ponto, porque falou com tan to entusiasmo sobre o quanto a regressão era sedutora. Você resistiu usando o poder da mente sobre o corpo porque julgou a metamorfose mais assustadora do que atraente. Se você perder um pouco do medo... ou se um estado alterado se tornar apenas um pouco mais convidativo... bem, então seu equilíbrio psicológico mu dará é você se transformará. Mas não será uma força externa que estará atuando. Ela estará em sua mente.

—        Então por que Peyser não conseguiu voltar?

—        Como eu disse, e como você sugeriu, ele não queria.

—        Ele estava preso.

—        Apenas pelo próprio desejo.

Watkins olhou para o grotesco corpo do regressivo.

—        O que você fez conosco, Shaddack?

—        Não compreendeu o que eu disse?

—        O que fez conosco?

—        Isso é uma grande dádiva!

—        Não sentir nenhuma outra emoção além do medo?

—        É isso que liberta sua mente e lhe dá o poder de controlar a própria forma — disse Shaddack excitadamente. — O que não compreendo é por que todos os regressivos escolheram uma condição subumana. Certamente, você tem o poder dentro de si de sofrer uma evolução ao invés de uma involução, de se alçar da mera condição humana para algo mais elevado, mais limpo, mais puro. Talvez você até tenha o poder de se tornar um ser de pura consciência, intelecto sem qualquer forma física. Por que toda essa Nova Gente preferiu regredir?

Watkins ergueu a cabeça e seus olhos exibiam um olhar semi-morto, como se tivessem absorvido a morte da simples visão do cadáver.

—        De que vale ter o poder de um deus se não se pode experimentar também os prazeres simples de um homem?

—        Mas você pode fazer e experimentar o que quiser — disse Shaddack exasperadamente.

—        Não amor.

—        O quê?

—        Não amor, ou ódio, ou alegria ou qualquer outra emoção além do medo.

—        Mas você não precisa delas. Não tê-las é o que o liberta.

—        Você não é nenhum idiota — disse Watkins —, portanto acho que não compreende porque é psicologicamente... deturpado, pervertido.

—        Você não pode falar comigo...

—        Estou tentando lhe dizer por que todos eles escolheram uma forma subumana ao invés de sobre-humana. É porque, para uma criatura pensante de alto intelecto, não pode haver prazer sem emoção. Se negar aos homens as emoções, você lhes nega o prazer, de modo que eles buscam um estado alterado onde emoções complexas e prazer não estão ligadas, à vida de uma criatura não-inteligente.

—        Bobagem. Você está...

Watkins interrompeu-o de novo, rispidamente.

—        Ouça-me, pelo amor de Deus! Se bem me lembro, até Moreau ouviu suas criaturas.

Tinha o rosto afogueado, ao invés de pálido. Seus olhos já não pareciam semimortos; uma certa ferocidade voltara a seu olhar. Estava apenas a um ou dois passos de Shaddack e parecia crescer sobre ele, embora fosse o mais baixo dos dois. Parecia apavorado, muito apavorado... e perigoso.

Ele disse:

 —       Considere o sexo, um prazer humano básico. Para que o sexo seja inteiramente gratificante, tem que vir acompanhado de amor ou pelo menos de algum afeto. Para o homem psicologicamente desvirtuado, o sexo ainda pode ser bom se estiver ligado ao ódio ou ao orgulho da dominação; mesmo emoções negativas podem tornar o ato prazeroso para um homem doentio. Mas, feito sem absolutamente nenhuma emoção, não tem sentido, é estúpido, apenas o impulso pro- criativo de um animal, apenas a função rítmica de uma máquina.

 O clarão de um relâmpago atravessou a noite e iluminou rapidamente as janelas do quarto, seguido de um estrondo de trovão que pareceu sacudir a casa. O rápido brilho celestial foi, por um instante, mais forte do que a claridade suave da única lâmpada do quarto.

Àquela luz estranha, Shaddack julgara ter visto algo acontecer ao rosto de Loman Watkins: uma mudança nas feições. Mas quando o clarão cessou, Watkins parecia o mesmo, de modo que devia ter sido a imaginação de Shaddack.

Continuando a falar com grande ênfase, com a paixão de um medo absoluto, Watkins disse:

—        Não se trata apenas de sexo, tampouco. O mesmo acontece a outras emoções físicas. Comer, por exemplo. Sim, eu sinto o gosto de um pedaço de chocolate quando o como. Mas o gosto me dá apenas uma fração mínima da satisfação que dava antes de eu ser convertido. Você não notou?

Shaddack não respondeu e esperava que nada em seu comportamento revelasse que ele próprio não se submetera à conversão. Es tava, claro, esperando até que o processo fosse mais aprimorado através de novas gerações de Nova Gente. Mas suspeitava que Watkins não reagiria bem à descoberta de que seu criador preferira não se submeter à bênção que lhes concedera.

Watkins disse:

—        E sabe por que há menos satisfação? Antes da conversão, quando comíamos chocolate, o sabor possuía milhares de associações para nós. Quando o comíamos, subconscientemente nos lem brávamos do quanto aquele gosto estava associado a festas e comemorações de todos os tipos, e por causa de tudo isso o gosto nos fazia sentir bem. Mas agora, quando como chocolate, é apenas um gosto, um gosto bom, porém não me faz mais sentir bem. Sei que deveria; lembro-me de que "sentir-se bem" fazia parte disso antes, mas não agora. O gosto de chocolate já não provoca ecos emocionais. É uma sensação vazia, sua riqueza me foi roubada. A riqueza de tudo, exceto o medo, foi roubada de mim e agora tudo é cinza, estranho, cinza, insípido, como se eu estivesse semimorto.

O lado esquerdo da cabeça de Watkins abaulou-se. A maçã do rosto alargou-se. A orelha daquele lado começou a se transformar e ficar pontuda.

Paralisado de horror, Shaddack recuou.

Watkins seguiu-o, erguendo a voz, falando de forma arrastada, mas com o mesmo vigor, não com verdadeiro ódio, mas com medo e um desconcertante toque de selvageria:

—        Por que qualquer um de nós iria querer evoluir para uma

forma superior com ainda menos prazeres do corpo e do coração? Prazeres intelectuais não são suficientes, Shaddack. A vida é mais do que isso. Uma vida apenas intelectual é intolerável.

Conforme a testa de Watkins se curvava para trás, dissolvendo-se lentamente como uma parede de neve ao sol, um formato ósseo mais pesado começou a se formar em torno de seus olhos.

Shaddack recuou até a cômoda.

Ainda se aproximando, Watkins disse:

—        Meu Deus! Ainda não compreende? Mesmo um homem confinado a uma cama de hospital, paralisado do pescoço para baixo, tem mais em sua vida do que interesses intelectuais; ninguém lhe roubou as emoções; ninguém o reduziu a medo e intelecto puro. Precisamos de prazer, Shaddack, prazer, prazer. A vida sem ele é aterradora. O prazer faz a vida valer a pena ser vivida.

—        Pare.

—        Você tornou impossível para nós experimentar a agradável libertação da emoção, de modo que não podemos experimentar completamente os prazeres da carne, tampouco, porque somos criaturas de uma ordem superior e precisamos do aspecto emocional para realmente apreciar o prazer físico. São os dois ou nenhum nos seres humanos.

As mãos de Watkins, os punhos cerrados ao lado do corpo, tornavam-se maiores, com os nós dos dedos inchados e de uma cor marrom, as unhas afiladas.

—        Você está se transformando — disse Shaddack.

Ignorando-o, falando com a voz ainda mais arrastada conforme a forma da sua boca começava a mudar sutilmente, Watkins disse:

—        Então revertemos a uma forma alterada, selvagem. Recua mos de nosso intelecto. Na pele de uma besta, nosso único prazer é o prazer da carne, a carne, carne... mas pelo menos já não temos consciência do que perdemos, de modo que o prazer continua in tenso, tão intenso, profundo e doce, doce, tão doce. Você tornou...

tornou nossas vidas insuportáveis, insípida e morta, morta, todos mortos, mortos... de modo que temos que involuir na mente e no corpo... para encontrar uma existência que valha a pena. Temos...

temos que fugir... das horríveis restrições desta vida reduzida... desta vida tão reduzida que você nos deu. Os homens não são máquinas.

Os homens... homens... os homens não são máquinas —   Você está regredindo. Pelo amor de Deus, Loman!

Watkins parou e pareceu desorientado. Em seguida, sacudiu a  cabeça, como se quisesse se livrar da confusão mental como de uma máscara. Ergueu as mãos, olhou-as e soltou um grito de terror.

Olhou além de Shaddack, para o espelho da cômoda, e seu grito se tornou ainda mais alto, mais estridente.

Subitamente, Shaddack tomou consciência do penetrante cheiro de sangue, ao qual ele se acostumara. Watkins devia ser ainda mais afetado pelo cheiro, embora não sentisse repulsa, não, nem um pouco de repulsa, mas excitação.

Um raio brilhou e um trovão sacudiu a noite outra vez e a chuva começou a cair torrencialmente, açoitando as janelas e batendo no telhado.

Watkins olhou do espelho para Shaddack, ergueu a mão como se fosse golpeá-lo, virou-se e saiu do aposento cambaleando, para o corredor, para longe daquele penetrante odor de sangue. Lá fora, deixou-se cair de joelhos, depois de lado. Encolheu-se, tremendo violentamente, engasgado, gemendo, rosnando e entoando sem parar:

— Não, não, não, não.

 

 Quando conseguiu retroceder da linha divisória e sentir-se no controle de si mesmo, Loman sentou-se e recostou-se na parede. Estava encharcado de suor outra vez e trêmulo de fome. A transformação parcial e a energia despendida para impedi-la de se realizar completamente deixaram-no exausto. Sentia-se aliviado, mas também incompleto, como se alguma grande recompensa estivesse a seu alcance, mas que fora retirada de repente, quando conseguia tocá-la.

Um som oco, de certa forma sussurrante, envolveu-o. No início, julgou que era um barulho interior, todo em sua cabeça, talvez o ronco e o zumbido de células cerebrais explodindo e morrendo do esforço de frustrar a premência regressiva. Então, percebeu que era a chuva batendo no telhado do bangalô.

Quando abriu os olhos, sua visão estava turva. Esta clareou e ele olhou para Shaddack, parado do outro lado do corredor, um pouco além da porta do quarto aberta. Fantasmagórico, o rosto comprido, pálido o suficiente para parecer um albino, com aqueles olhos amarelados, em seu sobretudo escuro, o homem lembrava uma aparição, talvez a própria Morte.

Se fosse a Morte, Loman poderia muito bem ter-se levantado e a abraçado calorosamente.

Mas não, enquanto reunia forças para se levantar, disse:

 — Nada mais de conversões. Tem que parar as conversões. Shaddack não disse nada.

—        Não vai parar, vai?

Shaddack limitou-se a olhá-lo fixamente.

—        Você é louco — disse Loman. — É absoluta, irremediavelmente louco, e no entanto eu não tenho escolha senão fazer o que quer ou me matar.

—        Nunca mais fale comigo desse modo. Nunca. Lembre-se de quem eu sou.

—        Eu me lembro de quem você é — disse Loman. Conseguiu levantar com esforço, aturdido, fraco. — Você fez isso comigo sem o meu consentimento. E se chegar o momento em que eu não possa mais resistir à necessidade de regredir, quando afundar na bestialidade, quando já não tiver mais medo de você, eu me agarrarei ao que restar de minha mente para me lembrar de onde você está e eu irei pegá-lo.

—        Está me ameaçando? — perguntou Shaddack, evidentemente surpreso.

—        Não — disse Loman. — Ameaça não é a palavra certa.

—        É melhor que não seja mesmo. Porque se alguma coisa me acontecer, o Sol está programado para transmitir um comando que será recebido pelos feixes de microesferas dentro de vocês e...

—        ...Nos matará a todos instantaneamente — concluiu Loman.

— Sim, eu sei. Você já me disse. Se você for, todos iremos com você, exatamente como as pessoas em Jonestown anos atrás, toman do seu Koolaid envenenado e morrendo junto com o reverendo Jim.

Você é o nosso reverendo Jim Jones, um Jim Jones da era high tech, Jim Jones com um coração de silício e semicondutores comprimi dos atrás das orelhas. Não, não o estou ameaçando, reverendo Jim, porque "ameaça" é uma palavra muito dramática. Um homem que faz uma ameaça tem que estar sentindo algo muito forte, tem que estar indignado de raiva. Sou uma Nova Pessoa. Só estou com me do. É tudo que posso sentir. Medo. Portanto, não é uma ameaça.

Não, absolutamente. É uma promessa.

Shaddack atravessou o vão da porta do quarto, passando para o corredor. Uma corrente de ar frio pareceu acompanhá-lo. Talvez fosse a imaginação de Loman, mas o corredor parecia mais frio com Shaddack.

Fitaram-se por um longo instante. c      Por fim, Shaddack disse:

—        Vai continuar a fazer o que eu disser.

Não tenho escolha — observou Loman. — Foi isso que você fez comigo, deixou-me sem escolha. Estou bem na palma de sua mão, Mestre, mas não é o amor que me prende, é o medo.

— Melhor — disse Shaddack.

Voltou as costas para Loman, percorreu o corredor, atravessou a sala, saiu da casa e desapareceu na noite, na chuva.

 

 Antes do amanhecer, tendo dormido menos de uma hora, Tessa Lockland foi acordada por uma sensação fria na mão direita e em seguida a lambida rápida e quente de uma língua. Seu braço estava para fora do colchão, a mão pendente pouco acima do carpete e algo ali embaixo a estava lambendo.

Sentou-se ereta na cama, sem conseguir respirar.

Sonhara com a carnificina no Cove Lodge, de bestas apenas vislumbradas, arrastando os pés agilmente, com dentes ameaçadores e garras como lâminas curvas e afiadas. Agora, achava que o pesadelo se tornara real, que a casa de Harry fora invadida por aquelas criaturas e que a língua que provava seu gosto era apenas o prelúdio de uma mordida repentina e selvagem.

Mas tratava-se apenas de Moose. Podia vê-lo vagamente na claridade turva que entrava pela porta de uma luz no corredor do segundo andar. Finalmente, ela conseguiu respirar. Ele colocou as patas no colchão, bem treinado demais para subir na cama. Ganindo baixinho, parecia querer apenas um afago.

Tinha certeza que fechara a porta antes de ir dormir. Mas já tivera muitas provas da inteligência de Moose para saber que ele era capaz de abrir uma porta se estivesse resolvido a fazê-lo. Na verdade, percebeu que as portas internas da casa de Talbot eram equipadas com fechaduras que tornavam a tarefa mais fácil para Moose: não maçanetas redondas, mas puxadores que soltavam a trava quando pressionados por uma pata ou mão.

—        Sozinho? — perguntou ela, afagando carinhosamente o la brador atrás das orelhas.

O cachorro ganiu baixinho outra vez e deixou-se acariciar.

Grossos pingos de chuva batiam nas janelas. Caíam com tanta força que podia ouvi-los açoitando as árvores do lado de fora. O vento soprava com insistência contra a casa.

—        Bem, por mais sozinho que você esteja, companheiro, estou mil vezes mais sonolenta, portanto vai ter que cair fora.

Quando parou de acariciá-lo, ele compreendeu. Relutantemente, desceu da beira da cama, saiu em direção à porta, olhou para trás, para ela, por um instante, passou para o corredor, olhou para os dois lados e virou à esquerda.

A luz que vinha do corredor era mínima, mas a incomodava. Levantou-se e fechou a porta e, quando voltou para a cama no escuro, percebeu que não conseguiria pegar no sono imediatamente. Para começar, estava com todas as roupas — jeans, camiseta e suéter — tendo retirado apenas os sapatos e não se sentia inteiramente confortável. Mas não teve coragem de se despir, porque isto a faria se sentir tão vulnerável que não conseguiria dormir. Depois do que acontecera no Cove Lodge, Tessa queria estar preparada para se locomover rapidamente.

Além disso, estava no único quarto extra — havia um outro, mas não estava mobiliado — e o colchão e a colcha de matelassê tinham um cheiro de mofo de anos de falta de uso. Aquele quarto pertencera ao pai de Harry, já que a casa fora de seu pai, mas o Talbot pai morrera há 17 anos, três anos depois de Harry ter voltado da guerra. Tessa insistira em que não precisava de lençóis e que podia dormir apenas sobre a colcha ou, se fizesse frio, dormir sob a colcha, no colchão sem forro. Depois de tocar Moose para fora e fechar a porta, sentiu frio e, quando entrou debaixo da colcha, sentiu um novo cheiro de bolor, fraco mas desagradável.

Acima do ruído da chuva ao fundo, ouviu o zumbido do elevador subindo. Moose provavelmente o chamara. Seria sempre peripatético assim à noite?

Embora se sentisse exausta, estava acordada demais para relaxar a mente com facilidade. Seus pensamentos eram profundamente perturbadores.

Não o massacre no Cove Lodge. Não as horrendas histórias de cadáveres sendo empurrados como lixo para dentro de crematórios. Não aquela mulher, Parkins, sendo estraçalhada por alguma espécie desconhecida. Não os monstruosos caçadores noturnos. Todas essas imagens macabras sem dúvida ajudavam a determinar o canal por onde fluíam seus pensamentos, mas em grande parte representavam apenas o sombrio pano de fundo para ruminações mais pessoais sobre sua vida e o rumo que havia tomado.

Tendo chegado perto da morte tão recentemente, estava mais consciente do que nunca de sua mortalidade. A vida era finita. Nos negócios e na correria do dia-a-dia, esta verdade era quase sempre esquecida.

Agora não podia evitar pensar sobre ela e perguntou-se se não estaria levando a vida com despreocupação demais, desperdiçando anos demais. Seu trabalho era gratificante. Era uma mulher feliz; era muito difícil um Lockland se sentir infeliz, predispostos como eram ao bom humor. Mas tinha que admitir, com toda a honestidade, que não estava obtendo o que realmente desejava. Se continuasse no atual rumo, jamais o obteria.

Desejava uma família, um lugar ao qual pertencesse. Isso se devia, claro, à infância e adolescência em San Diego, onde idolatrara sua irmã mais velha, Janice, e se deleitara no amor de seu pai e de sua mãe. A imensa felicidade e segurança que conhecera em sua juventude era o que lhe permitia lidar com a miséria, o desespero e o terror com que às vezes se deparava ao trabalhar em alguns de seus mais ambiciosos documentários. As duas primeiras décadas de sua vida haviam sido tão plenas de alegria que compensavam tudo que veio depois.

O elevador chegara ao segundo andar, e descia agora com um baque suave e um renovado zumbido. Intrigava-a que Moose, tão acostumado a usar o elevador para e com seu dono, usasse-o quando sozinho à noite, embora as escadas fossem mais rápidas. Os cães, também, eram criaturas de hábitos.

Tiveram cachorros em casa quando ela era criança, primeiro um grande cão de busca dourado chamado Barney, depois um setter irlandês chamado Mickey Finn...

Janice casara-se e se mudara há 16 anos, quando Tessa tinha 18 anos e, depois disso, a entropia, a força cega da dissolução, desfizera aquela vida aconchegante que tinham em San Diego. O pai de Tessa morreu três anos depois e, logo após seu enterro, Tessa pegou a estrada para fazer seus comerciais, documentários e filmes de viagens e, embora tivesse mantido um contato regular com a irmã e a mãe, aqueles anos dourados haviam passado.

Agora Janice se fora. E Marion não viveria para sempre, mesmo que desistisse de saltar de pára-quedas.

Mais do que tudo, Tessa queria recriar aquela vida em família com um marido e filhos. Casara-se aos 23 anos, com um homem que desejava filhos mais do que a ela e quando descobriram que Tessa jamais poderia ter filhos, ele a abandonara. A adoção não era suficiente para ele. Queria filhos que fossem biologicamente seus. Quatorze meses do casamento ao divórcio. Ela ficara muito magoada.

Depois disso, atirara-se ao trabalho com uma paixão que não demonstrara anteriormente. Tinha percepção suficiente para saber que, através de sua arte, estava tentando alcançar o mundo inteiro, como se fosse uma enorme família estendida. Ao reduzir histórias e questões complexas a trinta, sessenta ou noventa minutos de filme, estava tentando condensar o mundo, reduzi-lo a essências, ao tamanho de uma família.

Mas, deitada acordada no quarto extra da casa de Harry Talbot, Tessa sabia que jamais se sentiria inteiramente satisfeita se não sacudisse sua vida de forma drástica e buscasse mais objetivamente o que tanto queria. Era impossível ser uma pessoa de sentimentos profundos sem ter amor pela humanidade, mas este amor generalizado podia se tornar rapidamente quimérico e frívolo sem uma família própria junto a si; pois, em sua família, o indivíduo via, dia a dia, aquelas coisas específicas em pessoas específicas que justificavam, por extensão, um amor mais amplo por toda a humanidade. Era partidária ferrenha da especificidade em sua arte, mas carecia dela em sua vida emocional.

Respirando poeira e o leve odor de mofo, sentia como se seu potencial como pessoa há muito estivesse relegado, sem uso, como aquele quarto. Mas sem um namorado há anos, tendo buscado refúgio no trabalho intenso, como uma mulher de 34 anos começava a se abrir para aquela parte da vida que ela tão decididamente fechara? Naquele instante sentia-se mais estéril do que quando soubera que nunca poderia ter filhos. E, no momento, encontrar uma forma de refazer sua vida parecia uma questão mais importante do que descobrir de onde vinham os bichos-papões e o que eram.

A aproximação da morte podia despertar pensamentos estranhos.

Em pouco tempo, o cansaço dominou seu tumulto interior e ela adormeceu outra vez. Exatamente quando estava pegando no sono, compreendeu que Moose devia ter vindo ao seu quarto porque pressentiu algo de errado na casa. Talvez estivesse tentando alertá-la. Mas certamente estaria mais agitado e teria latido se houvesse perigo.

Então, adormeceu.

 

Da casa de Peyser, Shaddack voltou à sua casa ultramoderna no extremo norte da enseada, mas não se demorou ali. Fez três sanduíches de presunto, embrulhou-os e os colocou num recipiente térmico com várias latas de Coca-Cola. Colocou o recipiente na caminhonete junto com dois cobertores e um travesseiro. Do armário de armas de seu escritório tirou uma Smith & Wesson .357 Magnum, uma espingarda com coronha de revólver Remington calibre 12 semi automática e bastante munição para ambas. Assim equipado, saiu na tempestade para atravessar Moonlight Cove e áreas adjacentes, pretendendo manter-se sempre em movimento, monitorando a situação por computador até que a primeira fase do Projeto Falcão da Lua estivesse concluída à meia-noite, a menos de dezenove horas.

A ameaça de Watkins deixou-o nervoso. Mantendo-se em movimento, não seria presa fácil se Watkins regredisse e, fiel à sua promessa, viesse atrás dele. À meia-noite, quando as últimas conversões estivessem realizadas, Shaddack teria consolidado o seu poder. Então, poderia se ocupar do policial.

Watkins seria capturado e algemado antes que se transformasse. Então Shaddack poderia prendê-lo no laboratório e estudar sua psicologia e fisiologia, para encontrar uma explicação para esta praga da regressão.

Não aceitava a explicação de Watkins. Não estavam regredindo para fugir da vida como Nova Gente. Para aceitar esta teoria, teria que admitir que o Projeto Falcão da Lua era um desastre irremediável, que a Mudança não era uma dádiva para a humanidade, mas uma maldição e que todo o seu trabalho não só era um engano, mas um desastre em seus efeitos. Não podia admitir tal coisa.

Como criador e mestre da Nova Gente, sentira o gosto do poder de um deus. Não estava disposto a abrir mão disso.

As ruas varridas pela chuva, na madrugada, estavam desertas, exceto pelos carros — alguns eram carros de radiopatrulha, outros não —, onde duplas de homens patrulhavam na esperança de encontrar Booker, Tessa Lockland, a menina Foster ou regressivos em busca de presas. Embora não pudessem ver através dos vidros bastante escurecidos das janelas da caminhonete, certamente sabiam a quem o veículo pertencia.

Shaddack reconheceu muitos deles, pois trabalhavam na New Wave e faziam parte do contingente de cem homens que ele emprestara ao departamento de polícia há poucas horas. Além dos pára-brisas banhados pela chuva, seus rostos pálidos flutuavam como esferas desencarnadas no interior escuro dos carros, tão inexpressivos que podiam passar por robôs ou manequins.

Outros patrulhavam a cidade a pé, mas agiam com discrição, escondidos nas sombras e vielas. Não viu nenhum deles.

Shaddack passou também por duas equipes de conversão enquanto iam rápida e silenciosamente de casa em casa. Toda vez que uma conversão era efetuada, a equipe entrava com os dados em um de seus terminais nos carros, de modo que o sistema central na New Wave pudesse acompanhar seu progresso.

Quando parou num cruzamento e usou o próprio terminal para chamar na tela a listagem atual, viu que restavam apenas cinco pessoas a serem convertidas no período de meia-noite às seis horas da manhã. Estavam ligeiramente adiantados em relação à programação.

Uma chuva forte vinha do oeste, prateada como gelo sob os faróis. As árvores sacudiam-se como se tivessem medo. E Shaddack mantinha-se em movimento, circulando pela noite como se fosse uma estranha ave de rapina que preferia caçar durante a tempestade.

 

Com Tucker no comando, eles caçaram e mataram, morderam e dilaceraram, enfiaram as garras e morderam, caçaram e mataram e comeram a presa, beberam sangue, sangue, quente e doce, espesso e quente, doce e espesso, sangue, alimentando o fogo em sua carne, esfriando o fogo com alimento. Sangue.

Tucker descobriu aos poucos que, quanto mais tempo permanecessem no estado alterado, menos intensamente o fogo queimava e era mais fácil permanecer na forma subumana. Algo lhe dizia que devia se preocupar com o fato de que era cada vez mais fácil se aferrar à forma de uma besta, mas não conseguia experimentar muita preocupação com isso, em parte porque sua mente não era mais capaz de se concentrar em pensamentos complexos por mais de alguns segundos.

Assim, correram pelos campos e colinas à luz do luar, correram e vagaram, livres, tão livres sob o luar e o nevoeiro, no nevoeiro e no vento, e Tucker os conduzira, parando apenas para matar e comer ou para se acasalar com a fêmea, que extraía o próprio prazer com uma agressividade excitante, selvagem e excitante.

Então vieram as chuvas.    Frio.    Açoitando.

Trovoadas, também, e relâmpagos no céu.

Uma parte de Tucker parecia saber o que eram os raios de luz, longos e denteados, que riscavam o céu. Mas não conseguia se lembrar com precisão e teve medo, abrigando-se sob as árvores quando a luz os surpreendia em campo aberto, reunindo-se ao outro macho e à fêmea até o céu escurecer outra vez e permanecer assim por algum tempo.

  Tucker começou a procurar um lugar onde pudessem se abrigar da tormenta. Sabia que deviam voltar para o lugar de onde vieram, para um lugar com luzes e aposentos secos, mas não conseguia se lembrar exatamente onde ficava. Além do mais, voltar significava abandonar a liberdade e assumir suas verdadeiras identidades. Não queria fazer isso. Nem o outro macho e a fêmea. Queriam correr e vagar sem rumo e matar e berrar e ser livres, livres. Se voltassem, não poderiam mais ser livres, de modo que seguiram em frente, atravessando uma estrada asfaltada, escalando morros mais altos, mantendo-se longe das poucas casas da região.

A aurora aproximava-se, ainda não surgira no horizonte a leste, mas estava vindo, e Tucker sabia que precisavam achar um abrigo, um refúgio, antes do amanhecer, um lugar onde pudessem se aconchegar, no escuro, compartilhando calor, escuridão e calor, juntos uns dos outros em segurança, com lembranças de sangue e libido, escuridão e calor e sangue e libido. Estariam fora de perigo, a salvo de um mundo onde ainda eram estranhos, a salvo também da necessidade de voltar à forma humana. Quando a noite caísse novamente, poderiam se aventurar outra vez, para correr e matar, matar, morder e matar, e talvez chegasse o dia em que haveria tantos da sua espécie no mundo que não seriam mais uma minoria, e poderiam se aventurar em plena luz do dia também, mas não agora, ainda não.

Chegaram a uma estrada de terra e Tucker teve uma lembrança indistinta de onde estava, uma noção de que a estrada o levaria a um lugar que poderia oferecer o abrigo que seu bando precisava. Seguiu-a ainda mais para o interior das colinas, encorajando seus companheiros com rosnados baixos. Em alguns minutos chegaram a um prédio, uma casa grande e antiga em ruínas, com as janelas arrombadas e a porta da frente aberta e pendendo de dobradiças quebradas. Outros prédios cinzas assomavam na chuva: um celeiro em pior estado do que a casa, várias construções isoladas, desmoronadas em sua maior parte.

Placas grandes, pintadas à mão, estavam pregadas à casa, entre duas janelas do segundo andar, uma acima da outra, com diferentes tipos de letras, como se tivesse se passado muito tempo entre a colocação da primeira e da segunda. Sabia que possuíam algum significado, mas não podia lê-las, embora se esforçasse para se lembrar da linguagem esquecida usada pela espécie a que pertencera.

Os dois integrantes de seu bando flanqueavam-no. Eles também fitavam as letras escuras no fundo branco. Símbolos sombrios na chuva e na escuridão. Sinais rúnicos estranhamente misteriosos.

 COLÔNIA ÍCAROS E embaixo:

RESTAURANTE DA ANTIGA COLÔNIA ÍCAROS COMIDA NATURAL

 

 No celeiro demolido havia outra placa — MERCADO DAS PULGAS —, mas isto não significava mais para Tucker do que as placas da casa e, depois de algum tempo, concluiu que não tinha importância que não as compreendesse. O importante é que não havia ninguém por perto, nenhum cheiro ou vibração recentes de seres humanos, de modo que o refúgio que buscava podia ser encontrado ali, uma toca, um quarto, um lugar escuro e aquecido, aquecido e escuro, seguro e escuro.

 

 Com um travesseiro e um cobertor, Sam fez sua cama no largo sofá na sala de estar, logo depois do vestíbulo no andar térreo. Quis dormir no andar térreo para que pudesse ser acordado pelo barulho de algum intruso. De acordo com a programação que Sam vira no terminal do carro de polícia, Harry Talbot não seria convertido senão na noite seguinte. Duvidava que fossem antecipar a programação apenas porque sabiam que um agente do FBI estava em Moonlight Cove. Mas não iria correr riscos desnecessários, Sam sofria de insônia com freqüência, mas ela não o incomodou naquela noite. Depois de tirar os sapatos e se estender no sofá, ouviu a chuva por alguns minutos, tentando não pensar. Logo adormeceu.

Não foi um sono sem sonhos. Raramente o era.

Sonhou com Karen, sua falecida mulher, e, como sempre nos pesadelos, ela cuspia sangue, muito macilenta, no estágio terminal do câncer, depois que a quimioterapia fracassara. Ele sabia que precisava salvá-la. Não podia. Sentia-se pequeno, impotente e com muito medo.

Mas o pesadelo não o acordou.

Por fim, o sonho mudou do hospital para um prédio escuro, em ruínas. Era uma espécie de hotel, projetado por Salvador Dali:    os corredores ramificavam-se ao acaso; alguns eram muito curtos e alguns tão longos que suas extremidades não podiam ser vistas; as paredes e assoalhos ficavam em ângulos surreais em relação uns aos outros e as portas para os quartos tinham tamanhos diferentes, algumas tão pequenas que só um rato poderia passar por elas, outras grandes o suficiente para darem passagem a um homem e outras, ainda, numa escala adequada a um gigante de dez metros.

Sentiu-se atraído para determinados quartos. Quando entrava neles, sempre encontrava alguém de seu passado ou de sua vida atual. Encontrou Scott em vários quartos e manteve conversas desconexas e insatisfatórias com ele, todas terminando numa hostilidade irracional por parte de Scott. O pesadelo tornou-se pior pela variação da idade de Scott. Às vezes, era um mal-humorado adolescente de dezesseis anos, às vezes tinha dez anos ou apenas quatro ou cinco. Mas, em todas as encarnações, mostrava-se alienado, frio, facilmente irritável e destilando ódio. "Isto não está certo, não pode ser verdade, você não era assim quando era menor", disse Sam a um Scott de sete anos e o menino fez um gesto obsceno em resposta. Em cada quarto e independentemente de sua idade, Scott estava cercado de enormes pôsteres de metaleiros vestidos em couro e correntes metálicas, exibindo símbolos satânicos na testa e nas palmas das mãos. A luz era bruxuleante e estranha. Em um canto escuro, Sam viu algo espreitando, uma criatura de que Scott tinha consciência, algo que ele não temia, mas que deixava Sam apavorado. Mas esse pesadelo também não o acordou. Em outros quartos daquele hotel surrealista, encontrou homens moribundos, sempre os mesmos — Arnie Taft e Carl Sorbino. Eram dois agentes com quem havia trabalhado e que ele vira sendo abatidos a tiros.

A entrada de um dos quartos era uma porta de carro — uma lustrosa porta de um Buick azul 54, para ser exato. Dentro, encontrou um quarto enorme, de paredes cinzas, onde estavam o banco dianteiro, o painel e o volante, nada mais do carro, como parte de um pré-histórico esqueleto perdido numa vasta extensão de areias desérticas. Uma mulher de vestido verde estava ao volante, a cabeça virada para o outro lado. Claro, sabia quem ela era e quis sair dali sem demora, mas não conseguiu. Na verdade, era atraído para ela. Sentou-se ao seu lado e de repente ele passou a ter apenas sete anos, como no dia do acidente, embora falasse com voz de adulto: "Olá, mamãe." Ela voltou-se para ele, revelando que o lado direito de seu rosto estava deformado, sem olho na órbita, o osso perfurando a pele dilacerada. Havia dentes quebrados expostos em sua face e ela, então, dirigiu-lhe a metade de um hediondo sorriso.

De súbito, estava no verdadeiro carro, tendo voltado no tempo. À frente deles, na estrada, vindo em direção a eles, estava o bêbado na pickup branca, andando em ziguezague pela dupla linha amarela, arremessando-se sobre eles a toda velocidade. Sam gritou: "Mamãe!", mas ela não conseguiu evitar a pickup desta vez, como há 35 anos. Veio para cima deles como se fosse um ímã, batendo de frente no carro em que estavam. Achava que a sensação devia ser a mesma de estar no centro da explosão de uma bomba: um grande ronco, trespassado pelo ruído estridente de metal dilacerado. Tudo escureceu. Então, quando conseguiu sair daquela escuridão, viu-se preso no meio das ferragens. Estava cara a cara com sua mãe morta, olhando dentro de sua órbita vazia. Começou a berrar.

Esse pesadelo também não conseguiu acordá-lo.

Agora estava em um hospital, como depois do acidente, pois esta fora a primeira das seis vezes em que ele quase morreu. Já não era um menino, entretanto, mas um homem feito e estava na mesa de operações, submetendo-se a uma cirurgia de emergência porque levara um tiro no peito durante o mesmo tiroteio em que Carl Sorbino morrera. Enquanto a equipe médica operava-o, ele saiu de seu corpo e ficou observando-os trabalhar em sua carcaça. Estava perplexo, mas não sentia medo, exatamente como quando não era um sonho.

No momento seguinte, estava em um túnel, correndo em direção a uma luz ofuscante, em direção ao Outro Lado. Desta vez, sabia o que iria encontrar na outra extremidade porque já estivera lá antes, na vida real ao invés de em sonho. Estava aterrorizado, não queria enfrentar aquilo de novo, não queria olhar para o Além. Mas corria cada vez mais rápido, mais rápido, mais rápido pelo túnel, disparava como uma bala por ele, seu pavor crescendo na mesma proporção da velocidade. Ter que olhar novamente para o que havia do Outro Lado era pior do que seus confrontos em sonho com Scott, pior do que o rosto destruído, com um só olho, de sua mãe, infinitamente pior (mais rápido, mais rápido), intolerável, de modo que começou a gritar (mais rápido) e gritar (mais rápido) e gritar...

Este pesadelo acordou-o.

Sentou-se ereto no sofá e calou o grito antes que ele partisse de sua garganta.

Um instante depois, percebeu que não estava sozinho na sala escura. Ouviu algo se mover diante dele e se moveu simultaneamente, sacando o revólver .38 do coldre, que ele retirara e colocara ao lado do sofá.

Era Moose.

— Ei, rapaz.

O cachorro resfolegou baixinho.

Sam estendeu a mão para afagar a cabeça escura, mas o labrador já se afastara. Como a noite lá fora estivesse apenas um pouco menos negra do que o interior da casa, as janelas eram retângulos cinza-pardos perfeitamente visíveis. Moose dirigiu-se a uma delas na lateral da casa, colocando as patas sobre o parapeito e o focinho contra o vidro.

—        Precisa ir lá fora? — perguntou Sam, embora o tivessem deixado sair por dez minutos pouco antes de irem dormir.

O cão não esboçou nenhuma reação, mas continuou parado à janela numa estranha rigidez.

—        Alguma coisa lá fora? — imaginou Sam e, ao mesmo tempo em que fazia a pergunta, soube a resposta.

Rápida e desajeitadamente, ele atravessou a sala escura. Esbarrou na mobília, mas não derrubou nada, indo se juntar ao cachorro na janela.

A noite açoitada pela chuva parecia ainda mais escura naquela última hora que antecedia o amanhecer, mas os olhos de Sam estavam adaptados à escuridão. Podia ver a lateral da casa vizinha, a apenas nove metros de distância. O terreno íngreme entre os dois prédios não era plantado com grama, mas com diversos tipos de arbustos e vários pinheiros, todos balançando-se e agitando-se sob as rajadas de vento.

Ele logo localizou os dois bichos-papões porque seus movimentos eram opostos à direção do vento e, portanto, em contraste com a dança tempestuosa da vegetação. Estavam a cerca de cinco metros de distância da janela, descendo a encosta em direção à Conquistador. Embora Sam não pudesse discernir qualquer detalhe neles, podia perceber por seus movimentos curvados e o modo de caminhar trôpego e ainda assim graciosamente excêntrico que não eram homens comuns.

Quando pararam ao lado de um dos pinheiros maiores, um deles olhou em direção à casa de Talbot e Sam viu seus olhos cor de âmbar, suavemente luminosos, completamente estranhos. Por um instante, ficou petrificado, paralisado não tanto de medo quanto de admiração. Então, percebeu que a criatura parecia estar olhando diretamente para a janela, como se pudesse vê-lo, e de repente ela deu um passo largo e elástico em direção a ele.

Sam agachou-se abaixo do parapeito, comprimindo-se contra a parede sob a janela e puxando Moose para si. O cachorro deve ter pressentido o perigo, pois não latiu, não ganiu, nem resistiu de nenhum modo, mas deitou com a barriga no chão e deixou-se ficar, imóvel e em silêncio.

Uma fração de segundo depois, acima dos ruídos da chuva e do vento, Sam ouviu movimentos furtivos do outro lado da parede contra a qual estava agachado. Um som arrastado e baixo. Arranhando.

Segurou seu .38 na mão direita, pronto para o caso de a criatura ser ousada o suficiente para quebrar o vidro e entrar.

Alguns segundos passaram-se em silêncio. Mais alguns.

Sam mantinha a mão esquerda nas costas de Moose. Podia sentir o cachorro tremendo.

Tic-tic-tic.

Após longos segundos de silêncio, aquele ruído repentino surpreendeu Sam, pois ele acabara de concluir que a criatura fora embora.

Tic-tic-tic-tic.

Ela dava pancadinhas no vidro, como se testasse a solidez da vidraça ou chamasse o homem que vira de pé ali.

Tic-tic. Pausa. Tic-tic-tic.

 

Tucker conduziu o bando para fora da lama e da chuva, na direção da varanda desabada da casa decrépita. As tábuas rangiam sob seus pesos. Uma veneziana solta batia com o vento; todas as demais haviam apodrecido e há muito foram arrancadas.

Esforçou-se para exprimir suas intenções, mas achou muito difícil se lembrar das palavras necessárias ou imitá-las. Em meio a roncos e rosnados e balbucios baixos e incompreensíveis, conseguiu dizer apenas:

—        ...aqui... esconder... aqui... seguro...

O outro macho parecia ter perdido inteiramente a fala, pois não conseguia emitir nenhuma palavra.

Com considerável dificuldade, a fêmea disse:

—        ...seguro... aqui... casa...

Tucker examinou seus dois companheiros por um instante e percebeu que haviam mudado durante as aventuras noturnas. Antes, a fêmea possuía uma característica felina: ágil, sinuosa, com orelhas de gato e dentes pontiagudos e afiados, que ela revelava quando rosnava de medo, raiva ou desejo sexual. Embora ainda conservasse algo de gato, ela se tornara mais como Tucker, mais 240'   semelhante a um lobo, com uma cabeça comprida que se projetava para a frente, formando um focinho mais canino do que felino. Exibia ancas lupinas também e pés que pareciam ter resultado de um cruzamento de homem e lobo, não possuía patas, mas também não eram mãos, que terminavam em garras mais longas e assassinas do que as de um verdadeiro lobo. O outro macho, antes singular na aparência, combinando algumas características de inseto com a forma geral de uma hiena, havia adquirido a aparência de Tucker quase completamente.

Por concordância mútua e tácita, Tucker tornara-se o líder do bando. Ao se submeterem ao seu comando, seus seguidores evidentemente haviam usado sua aparência como modelo para si mesmos. Compreendeu que isso era uma importante reviravolta nos acontecimentos, talvez até bastante sinistra.

Não sabia por que isso deveria assombrá-lo, e já não possuía a lucidez para se concentrar no assunto até compreendê-lo. A preocupação mais premente com abrigo exigia sua atenção. — ...aqui... seguro... aqui...

Conduziu-os pela porta quebrada, semi-aberta, para o saguão da casa em desintegração. O reboco estava rachado e manchado e, em alguns lugares, era completamente inexistente, com as ripas à mostra como as costelas de um cadáver em decomposição. Na sala de estar vazia, longas tiras de papel de parede soltavam-se, como se o lugar estivesse mudando de pele no processo de uma metamorfose tão drástica quanto a que Tucker e seu bando haviam sofrido. Ele seguiu os cheiros que farejava na casa e isso era interessante, não excitante, mas sem dúvida interessante. Seus companheiros seguiam-no enquanto ele investigava manchas de mofo, cogumelos que cresciam em um canto úmido da sala de jantar, colônias de fungos vagamente fosforescentes em um quarto do outro lado do saguão, vários depósitos de fezes de ratos, os restos mumificados de um pássaro, que entrara por uma das janelas sem vidraças e quebrara uma asa contra a parede, e a carcaça ainda recente de um coiote doente que se arrastara até a cozinha para morrer.

Durante a inspeção, Tucker percebeu que a casa não oferecia um refúgio ideal. Os aposentos eram grandes demais, com fortes correntes de vento, especialmente estando as janelas quebradas. Embora não houvesse cheiro humano no ar, pressentia que algumas pessoas ainda iam lá, não com freqüência, mas o bastante para causar problemas.

Na cozinha, entretanto, encontrou a entrada do porão e ficou entusiasmado com aquele abrigo subterrâneo. Conduziu os outros pelas escadas rangentes para a escuridão ainda mais profunda, onde as frias rajadas de vento não poderiam atingi-los, onde o chão e as paredes eram secos e onde o ar tinha um cheiro limpo de cimento que se desprendia das paredes de blocos de concreto.

Ele suspeitava que os invasores raramente se aventuravam pelo porão. E se o fizessem... estariam entrando em um covil de onde não conseguiriam escapar.

Era uma toca sem janelas, perfeita. Tucker percorreu o local, suas garras arranhando e batendo no chão. Farejou os cantos e examinou o forno enferrujado. Ficou satisfeito porque estariam a salvo ali. Podiam se aconchegar uns aos outros em segurança, sabendo que não seriam encontrados e que se, por acaso, isso acontecesse, poderiam bloquear a única saída e acabar com o intruso rapidamente.

Naquele esconderijo tão escuro e secreto, poderiam se transformar no que quisessem e ninguém os veria.

Esse último pensamento surpreendeu Tucker. Transformarem-se no que desejassem?

Não tinha certeza de onde viera tal pensamento ou o que significava. Percebeu de repente que, ao regredir, desencadeara algum processo que agora estava além do seu controle consciente, que uma parte mais primitiva de sua mente estava sempre no comando. O pânico apoderou-se dele. Passara a um estado alterado muitas vezes antes e sempre conseguira voltar à forma original. Mas agora... Seu medo foi agudo apenas por um instante, porque não conseguia se concentrar no problema, nem sequer sabia o que queria dizer com ' 'regredir" e logo foi distraído pela fêmea, que queria se acasalar com ele.

Logo os três estavam entrelaçados, agarrando-se uns aos outros, em movimentos rítmicos e violentos. Seus gritos excitados e estridentes erguiam-se pela casa abandonada, como vozes de fantasmas num lugar mal-assombrado.

 

Tic-tic-tic.

Sam sentiu-se tentado a se levantar, olhar pela janela e enfrentar a criatura cara a cara, pois estava ansioso para ver de perto como eram.

Mas, violentos como evidentemente eram, um confronto com certeza resultaria num ataque e num tiroteio, o que chamaria a atenção dos vizinhos e da polícia. Não podia arriscar seu atual esconderijo, pois no momento não tinha nenhum outro lugar para onde ir. Agarrou o revólver e manteve uma das mãos sobre Moose, permanecendo sob o peitoril da janela, atento. Ouviu vozes, sem palavras ou tão abafadas que estas não atravessavam com nitidez o vidro acima de sua cabeça. A segunda criatura reunira-se à primeira ao lado da casa. Seus grunhidos soaram como uma discussão em voz baixa.

Seguiu-se o silêncio.

Sam ficou agachado por algum tempo, esperando que as vozes recomeçassem ou que a criatura de olhos cor de âmbar batesse no vidro outra vez — tic-tic —, mas nada aconteceu. Finalmente, quando os músculos de suas pernas começaram a dar cãibra, tirou a mão de cima de Moose e se levantou devagar. Em parte, esperava que o bicho-papão estivesse lá, o rosto deformado pressionado contra o vidro, mas ele se fora.

Com o cachorro acompanhando-o, Sam foi de aposento em aposento no andar térreo, olhando pelas janelas nos quatro cantos da casa. Não teria ficado surpreso de encontrar aquelas criaturas tentanto forçar a entrada em algum lugar.

Mas à exceção do barulho da chuva tamborilando no telhado e jorrando das calhas, a casa estava em silêncio.

Concluiu que tinham ido embora e que seu interesse na casa fora coincidência. Não estavam procurando por ele em particular, apenas procuravam uma presa. Muito provavelmente haviam-no vislumbrado à janela e não queriam deixar que ele se fosse, caso os tivesse visto. Mas se tinham vindo acabar com ele, aparentemente decidiram que também não podiam arriscar o barulho de vidro quebrado e de um confronto violento, não no coração da cidade. Eram criaturas furtivas. Dificilmente emitiriam um uivo arrepiante que ecoasse por toda Moonlight Cove, mas somente quando tomados por alguma estranha paixão. E até agora, na maioria das vezes, haviam limitado seus ataques a pessoas relativamente isoladas.

De volta à sala de estar, enfiou o revólver no coldre outra vez e estendeu-se no sofá.

Moose ficou sentado, observando-o por algum tempo, como se fosse incapaz de acreditar que ele pudesse se deitar calmamente e dormir de novo depois de ter visto o que andava rondando na chuva.

— Alguns dos meus sonhos são piores do que o que está lá fora esta noite — disse ao cachorro. — Portanto, se eu me assustasse facilmente, talvez nunca mais quisesse dormir.   O cachorro bocejou, levantou-se e saiu para o corredor escuro,   onde pegou o elevador. O motor zumbiu quando o elevador transportou o labrador para cima.

Enquanto esperava que o sono se apoderasse dele outra vez, Sam tentou moldar seus sonhos de uma forma mais atraente, concentrando-se em algumas poucas imagens com as quais não se importaria de sonhar: boa comida mexicana, cerveja ligeiramente gelada e Goldie Hawn. Sonharia que estava num restaurante mexicano com Goldie Hawn — mais deslumbrante do que nunca —, comendo e bebendo Guinness e rindo.

Ao invés disso, quando realmente adormeceu, sonhou com seu pai, um bêbado de mau gênio, nas mãos de quem caíra aos sete anos, quando sua mãe morreu no acidente de carro.

 

Acomodada na pilha de sacos de aniagem cheirando a grama, no fundo do caminhão do jardineiro, Chrissie acordou quando a porta automática da garagem subiu com um rangido e um estardalhaço de metal. Ela quase se sentou de susto, revelando-se. Mas, lembrando-se de onde estava, enfiou a cabeça sob a última meia dúzia de sacos, que usava como cobertas. Tentou encolher-se sob a pilha de aniagem.

Ouviu a chuva batendo no telhado. Açoitava a entrada de automóvel de cascalho, logo adiante da porta aberta, produzindo um chiado como milhares de tiras de bacon numa imensa grelha. Chrissie estava com fome. Aquele barulho deixou-a com mais fome ainda.

—        Trouxe minha Iancheira, Sarah?

Chrissie não conhecia o sr. Eulane muito bem para reconhecer sua voz, mas supunha que fosse ele, pois Sarah Eulane, cuja voz Chrissie reconheceu, respondeu sem demora:

—        Ed, queria que voltasse para casa depois de me deixar na escola. Tire o dia de folga. Não devia trabalhar com um tempo tão ruim.

—        Bem, não posso cortar grama com esse aguaceiro — disse —, mas posso fazer outras coisas. Vestirei minha capa de vinil. Ela me mantém totalmente seco. Moisés podia ter atravessado o mar Vermelho com aquela capa e não teria precisado do milagre de Deus para ajudá-lo.

Respirando o ar filtrado através do tecido rústico, sujo de grama, Chrissie foi incomodada por uma coceira no nariz, por toda a cavidade nasal. Receava que fosse espirrar.

MENINA ESTÚPIDA ESPIRRA, REVELANDO-SE ÀS VORAZES CRIATURAS; DEVORADA VIVA; "ELA ERA UM PETISCO MUITO SABOROSO", DISSE A RAINHA DOS EXTRATERRESTRES, "TRAGAM MAIS DE SUAS FÊMEAS LOURAS DE ONZE ANOS.”

Abrindo a porta do passageiro, a pouco mais de um metro do esconderijo de Chrissie, Sarah disse:

—        Desse jeito você vai se matar, Ed.

—        Acha que sou alguma violeta delicada? — perguntou ele em tom de brincadeira enquanto abria a porta do motorista e entrava no caminhão.

—        Acho que você é um dente-de-leão velho e murcho.

Ele riu.

—        Você não achou isso ontem à noite.

—        Achei, sim. Mas você é o meu dente-de-leão velho e murcha e não quero que seja levado pelo vento.

Uma porta fechou-se com estrondo, em seguida a outra.

Certa de que não poderiam vê-la, Chrissie afastou a aniagem, expondo a cabeça. Apertou o nariz e respirou pela boca até a coceira nac narinas passar.

Enquanto Ed Eulane dava partida no caminhão, deixava o motor funcionar por alguns instantes, depois dava ré para fora da garagem, Chrissie pôde ouvi-los conversar na cabina às suas costas. Não conseguia distinguir tudo que diziam, mas ainda pareciam estar caçoando um do outro.

A chuva fria atingiu seu rosto e ela enfiou a cabeça embaixo da aniagem outra vez, deixando apenas uma estreita abertura por onde pudesse receber um pouco de ar fresco. Se espirrasse durante o percurso, o barulho da chuva e o ronco do motor encobririam o ruído.

Pensando na conversa que escutara na garagem e ouvindo a sra. Eulane rindo na cabina, Chrissie achou que podia confiar neles. Se fossem extraterrestres não estariam fazendo piadas tolas nem teriam aquela conversa amorosa. Talvez o fizessem se estivessem fingindo para pessoas comuns, tentando convencer o mundo de que ainda eram Ed e Sarah Eulane, mas não quando estavam a sós. Quando as criaturas estavam reunidas sem seres humanos não-convertidos por perto, provavelmente conversavam sobre... bem, planetas que haviam saqueado, o tempo em Marte, o preço do combustível de discos-voadores e receitas para servir seres humanos. Quem saberia? Mas certamente não conversavam como os Eulanes estavam fazendo.

 Por outro lado...

Talvez esses extraterrestres tivessem dominado Ed e Sarah Eu-lane apenas durante a noite e ainda não estivessem à vontade em seus papéis de seres humanos. Talvez praticassem ser humanos em particular, a fim de passarem por humanos em público. Tão certo quanto o diabo, se Chrissie se revelasse, eles provavelmente lançariam tentáculos e pinças de lagosta do peito e ou a comeriam viva, sem tempero, ou a congelariam, a fixariam numa placa e a levariam para seu mundo, para pendurá-la em um gabinete particular, ou arrancariam seu cérebro do crânio e o engatariam em sua aeronave, usando-o como mecanismo de controle barato para sua cafeteira de viagem.

Em meio a uma invasão de extraterrestres, só se devia confia em alguém com cautela e considerável deliberação. Resolveu continuar seguindo o plano original.

Os sacos plásticos de 25 quilos de fertilizante, palha e isca de caracol, empilhados dos dois lados do monte de aniagem, protegiam-na um pouco da chuva mas esta era suficiente para encharcar as camadas de cima dos sacos de aniagem. Estava relativamente seca muito aquecida quando partiram, mas logo ficou ensopada de água da chuva, saturada de cheiro de grama e fria até os ossos.

Espiava para fora constantemente para se localizar. Quando viu que saíam da estrada do condado para entrar na Ocean Avenue, afastou a aniagem encharcada e se arrastou para fora do esconderijo.

A parte traseira da cabina possuía uma janela, de modo que os Eulanes poderiam vê-la se olhassem para trás. O sr. Eulane poderia até vê-la pelo espelho retrovisor se ela não se mantivesse bem abaixada. Mas precisava ir para a parte traseira do caminhão e ficar pronta para saltar quando passassem pela Nossa Senhora das Mercês.

Engatinhando, locomoveu-se entre — e sobre — os suprimentos e ferramentas de jardinagem. Quando chegou à porta de descarga, encolheu-se, a cabeça abaixada, tremendo deploravelmente na chuva.

Atravessaram Shasta Way, o primeiro cruzamento no limite da cidade, e começaram a descer pela área comercial da Ocean Avenue. Estavam a apenas quatro quarteirões da igreja.

Chrissie surpreendeu-se ao ver que não havia ninguém nas calçadas e que nenhum carro trafegava nas ruas. Era cedo — consultou seu relógio: 7:03, mas não tão cedo que todos ainda estivessem em casa na cama. Supôs que as condições do tempo também tinham algo a ver com a aparência deserta da cidade; ninguém andaria naquele tempo, a menos que tivesse absoluta necessidade de fazê-lo.

  Havia outra possibilidade: talvez os extraterrestres tivessem dominado uma parte tão grande da população de Moonlight Cove que já não achavam necessário encenar a vida diária; a apenas algumas horas da conquista total, todos seus esforços se concentravam em procurar os últimos não possuídos. Isso era muito assustador para imaginar.

Quando estavam a um quarteirão da Nossa Senhora das Mercês, Chrissie subiu na borda de madeira branca da carroceria. Passou uma perna por cima da borda, depois a outra e se agarrou à porta de descarga com ambas as mãos, os pés sobre o amortecedor traseiro. Podia ver as partes de trás das cabeças dos Eulanes pela janela traseira da cabina e, se eles se voltassem — ou se o sr. Eulane olhasse pelo espelho retrovisor —, ela seria vista.

Esperava ser descoberta a qualquer momento por um pedestre que gritaria: "Ei, você, pendurada no caminhão, ficou maluca?" Mas não havia pedestres e chegaram ao cruzamento seguinte sem incidentes.

Os freios rangeram quando o sr. Eulane reduziu a velocidade por causa do sinal de trânsito.

Quando o caminhão parou, Chrissie saltou do veículo.

O sr. Eulane virou à esquerda na rua transversal. Dirigia-se à Escola Primária Thomas Jefferson, na Palomino, a apenas alguns quarteirões ao sul, onde a sra. Eulane trabalhava e para onde, numa manhã de terça-feira comum, Chrissie estaria indo para a sua sala da sexta série.

Atravessou correndo o cruzamento, saltou a água suja que escorria pela sarjeta e arremessou-se pelos degraus das portas da frente da Nossa Senhora das Mercês. Sentiu o calor da excitação do triunfo, pois achava que atingira o santuário contra todas as expectativas.

Com uma das mãos na rebuscada maçaneta de bronze da porta de carvalho esculpido, ela parou para olhar para cima e para baixo da avenida. As vidraças das lojas, escritórios e apartamentos estavam tão embaçadas quanto olhos com catarata. As árvores menores inclinavam-se sob o vento tempestuoso e as árvores maiores estremeciam, o que era o único movimento além da chuva violenta. O vendaval era inconstante, em rajadas; às vezes, parava de empurrar a chuva implacavelmente para leste e formava redemoinhos, fazendo-os girar por toda a extensão da Ocean Avenue, de modo que, se ela estreitasse os olhos e ignorasse o frio no ar, quase poderia acreditar que estava numa cidade fantasma, deserta, vendo demônios de poeira rodopiarem ao longo das ruas mal-assombradas.

Na esquina ao lado da igreja, um carro de polícia freou no sinal. Havia dois homens no interior do carro. Nenhum deles olhava em sua direção.

Já suspeitava que não devia confiar na polícia. Abrindo a porta da igreja, deslizou rapidamente para dentro, antes que olhassem para aquele lado.

No instante em que ultrapassou o pórtico forrado de painéis de carvalho e respirou fundo o ar impregnado de mirra e incenso, Chrissie sentiu-se segura. Atravessou a passagem em arco para a nave, mergulhou a ponta dos dedos na água benta que enchia a pia de mármore à direita, fez o sinal-da-cruz e desceu a passagem central para o quarto banco a contar de trás. Ajoelhou-se, fez o sinal-da-cruz outra vez e sentou-se.

Estava preocupada em molhar todo o banco de carvalho polido, mas não havia nada que pudesse fazer. Estava encharcada e pingando.

A missa estava em andamento. Além de si mesma, havia apenas mais dois fiéis presentes, o que parecia ser um comparecimento escandalosamente fraco. Claro, ao que podia lembrar, embora seus pais sempre freqüentassem a missa aos domingos, eles a haviam trazido para uma missa no meio da semana somente uma vez em sua vida, há muitos anos, e não tinha certeza se as missas realizadas durante a semana costumavam atrair mais fiéis. Suspeitava, entretanto, que a presença alienígena — ou demônios, ou o que quer que fossem — em Moonlight Cove era responsável pela baixa freqüência. Certamente extraterrestres não acreditavam em deuses ou, pior ainda, adoravam alguma divindade das trevas com um nome como Yahgaga ou Scogblatt.

Ficou surpresa de ver que o sacerdote que celebrava a missa, com o auxílio de um coroinha, não era o padre Castelli. Era o jovem sacerdote — o adjunto, como era chamado — que a arquidiocese designara para trabalhar com o padre Castelli em agosto. Chamava-se padre O'Brien. Seu nome de batismo era Tom e, seguindo o exemplo de seu vigário, ele às vezes insistia para que seus paroquianos o chamassem de padre Tom. Ele era simpático — embora não tão simpático, sábio e divertido quanto o padre Castelli —, mas não conseguia chamá-lo de padre Tom, da mesma forma como não conseguia chamar o sacerdote mais velho de padre Jim. Era o mesmo que dizer papa João. Seus pais às vezes conversavam sobre as mudanças ocorridas na Igreja, como se tornara menos formal ao longo dos últimos anos, e eram favoráveis a essas mudanças. Em seu coração conservador, Chrissie desejava que tivesse nascido e sido criada na época em que a missa era em latim, elegante e misteriosa, e quando não incluía o ritual absolutamente idiota de "dar paz" aos fiéis a sua volta. Assistira à missa em uma catedral de San Francisco uma vez, quando estavam de férias, e fora uma missa especial, rezada em latim, conduzida de acordo com a antiga liturgia, e ela adorara. Construir aviões cada vez mais rápidos, passar a televisão de preto e branco para cores, salvar vidas com melhor tecnologia médica, trocar aqueles velhos discos desajeitados por compact discs, todas essas mudanças eram desejáveis e boas. Mas havia certas coisas na vida que não deviam mudar, porque era a imutabilidade que se apreciava nelas. Se as pessoas vivessem num mundo de permanentes e rápidas mudanças em todas as coisas, onde buscar estabilidade, um lugar de paz, calma e quietude em meio a toda essa correria e balbúrdia? Essa verdade era tão evidente para Chrissie que não podia compreender por que os adultos não a percebiam. Os adultos às vezes eram cabeças-duras.

Assistiu apenas a alguns minutos da missa, o suficiente para fazer uma prece e pedir à Virgem Maria para interceder em seu favor e ter certeza de que o padre Castelli não estava em algum lugar da nave — sentado em um banco como um fiel comum, o que fazia às vezes — ou talvez em um dos confessionários. Em seguida, levantou-se, dobrou os joelhos, fez o sinal-da-cruz e voltou ao pórtico, onde lâmpadas elétricas em forma de velas bruxuleavam suavemente por trás dos vidros amarelados dos lustres pregados à parede. Abriu uma fresta na porta da frente, espreitando a rua varrida pela chuva.

Naquele momento um carro de polícia descia a Ocean Avenue. Não era o mesmo que vira quando entrara na igreja. Era mais novo e havia apenas um policial nele. Dirigia devagar, vasculhando as ruas como se procurasse por alguém.

Quando o carro de polícia chegou à esquina onde ficava a igreja de Nossa Senhora das Mercês, um outro carro passou, vindo da orla marítima. Não era um carro de radiopatrulha, mas um Chevy  azul. Havia dois homens dentro dele, olhando tudo minuciosamente, espreitando à direita e à esquerda em meio à chuva, como o policial fazia. E embora os homens no Chevy e o policial não se  acenassem ou fizessem nenhum outro sinal, Chrissie pressentiu que  estavam envolvidos na mesma busca. Os tiras haviam se unido a um pelotão civil em busca de alguma coisa, alguém. Eu, pensou.

Procuravam-na porque ela sabia demais. Porque no dia anterior pela manhã, no corredor do andar superior, vira os extraterrestrês em seus pais. Porque ela era o único obstáculo a sua conquista ' da humanidade. E talvez porque ela daria um prato saboroso se cozida com algumas batatas marcianas.

Até agora, embora tivesse compreendido que alienígenas estavam possuindo algumas pessoas, não vira nenhuma evidência de que comessem as pessoas, embora continuasse a acreditar que em algum lugar, naquele mesmo instante, estivessem fazendo um lanche com partes do corpo humano. Assim lhe parecia.

Depois que o carro de polícia e o Chevy azul passaram, empurrou a pesada porta mais alguns centímetros e enfiou a cabeça para fora, na chuva. Olhou para a direita e para a esquerda, depois outra vez, para ter absoluta certeza de que não havia ninguém à vista, a pé ou de carro. Satisfeita, passou para o lado de fora e correu como um dardo para a esquina da igreja. Depois de olhar em ambas as direções na rua transversal, dobrou a esquina e correu ao longo da parede lateral da igreja em direção à paróquia situada atrás dela.

A casa de dois andares era de tijolinhos com lintéis de granito esculpido e uma varanda dianteira pintada de branco com o beirai do telhado festonado, com uma aparência bastante respeitável para ser a residência perfeita de um padre. Os velhos plátanos ao longo do caminho de entrada protegiam-na da chuva, mas ela já estava encharcada. Alcançou a varanda e se aproximou da porta da frente, seus tênis fazendo um barulho rangente e chiado.

Quando estava prestes a colocar o dedo no botão da campainha, parou, hesitante. Preocupou-se com a possibilidade de estar entrando num covil alienígena — uma hipótese pouco provável, mas que não podia ser descartada. Também percebeu que o padre O'Brien devia estar rezando a missa a fim de que o padre Castelli, um homem trabalhador por natureza, pudesse desfrutar um raro sono até mais tarde, e detestaria perturbá-lo se fosse esse o caso.

A jovem Chrissie, pensou, indubitavelmente corajosa e inteligente, era, entretanto, educada demais para seu próprio bem. Enquanto hesitava junto à porta do padre, perguntando-se qual seria a etiqueta adequada para uma visita matutina, foi repentinamente atacada por alienígenas de nove olhos, babados, e devorada ali mesmo. Felizmente, estava morta demais para ouvir como arrotavam e peidavam depois de comê-la, pois sem dúvida sua sensibilidade refinada teria sido gravemente ofendida.

Tocou a campainha. Duas vezes.

Um instante depois, uma figura indistinta e estranhamente letárgica surgiu por trás dos painéis em losangos, com acabamento fosco, da parte de cima da porta. Quase virou as costas e saiu correndo, mas disse a si mesma que o vidro estava distorcendo a imagem e que a figura do outro lado não era realmente grotesca.

Padre Castelli abriu a porta e pestanejou de surpresa quando a viu. Usava calças pretas, uma camisa preta, um colarinho romano e um velho cardigã cinza, de modo que não estava dormindo, graças a Deus.

Era um homem de baixa estatura, cerca de l,65m e rechonchudo, mas não realmente gordo, com cabelos pretos, grisalhos nas têmporas. Nem seu orgulhoso nariz adunco era capaz de atenuar o efeito de suas feições suaves, que lhe davam uma aparência amável e piedosa.

Ele pestanejou outra vez — era a primeira vez que Chrissie o via sem óculos —, e perguntou:

—        Chrissie?

Sorriu e ela compreendeu que agira corretamente em procurá-lo, porque seu sorriso era cálido, franco e amável.

—        O que a traz aqui a esta hora, com este tempo? — Olhou além dela, para a varanda e o caminho de entrada mais adiante. — Onde estão seus pais?

—        Padre — ela disse, não muito surpresa de sentir a voz em bargada — Eu preciso lhe falar.

Seu sorriso vacilou.

—        Alguma coisa errada?

—        Sim, padre. Muito errada. Terrível, incrivelmente errada.

—        Então, entre, entre. Você está encharcada! — Apressou-a a passar ao vestíbulo e fechou a porta. — Minha querida menina, o que está acontecendo?

—        Alienígenas, p-p-padre — disse, quando um calafrio a fez gaguejar.

—        Vamos até a cozinha — ele disse. — É o cômodo mais quente da casa. Eu estava preparando o café da manhã.

—        Vou estragar o tapete — disse ela, indicando a passadeira oriental que se estendia ao longo do corredor, com o assoalho de carvalho em ambos os lados.

—        Ah, não se preocupe com isso. É um tapete velho, mas agüenta bem qualquer maltrato. É um pouco como eu! Gostaria de um pouco de chocolate quente? Eu estava preparando o café da manhã, inclusive um grande bule de chocolate quente.

Ela seguiu-o agradecida pelo corredor pouco iluminado, que cheirava a desinfetante de pinho e óleo com aroma de limão e vagamente a incenso.

A cozinha era aconchegante. Um assoalho de linóleo gasto e amarelo. Paredes amarelo-claras. Armários de madeira escura com puxadores de porcelana branca. Balcões de fórmica cinza e amarela. Havia eletrodomésticos — geladeira, forno elétrico, forno de microondas, torradeira, abridor de latas elétrico — como em qualquer cozinha, o que a surpreendeu, embora, ao pensar sobre o fato, não soubesse por que esperar que fosse diferente. Padres também precisavam de aparelhos domésticos. Não podiam requisitar a presença de um anjo chispante para torrar um pouco de pão ou fazer o milagre de preparar um bule de chocolate quente.

O aposento tinha um cheiro delicioso. O chocolate fervia. O pão tostava. Salsichas crepitavam no fogo baixo do fogão a gás.

Padre Castelli indicou-lhe uma das quatro cadeiras estofadas de vinil junto à mesa de cromo e fórmica, então começou a correr de um lado para outro, cuidando dela como se fosse um pintinho e ele a galinha-mãe. Subiu ao andar de cima e voltou com duas toalhas de banho limpas e fofas e disse:

—        Seque os cabelos e enxugue as roupas molhadas com uma delas, depois enrole a outra a sua volta como um xale. Vai ajudá-la a se aquecer.

Enquanto Chrissie seguia as instruções, ele dirigiu-se ao banheiro que dava para o corredor do térreo e trouxe duas aspirinas. Colocou-as sobre a mesa diante dela e disse:

—        Vou trazer um pouco de suco de laranja para você tomar.

O suco de laranja tem muita vitamina C. Aspirina e vitamina C são como um soco direto; elas acabam com a gripe antes que ela se instale.

Quando voltou com o suco, parou por um instante para olhá-la, sacudindo a cabeça, e ela imaginou que devia estar enlameada, num estado deplorável.

—        Minha pobre menina, o que você andou fazendo afinal?

Ele parecia não ter ouvido o que ela dissera sobre alienígenas assim que atravessara a soleira da porta.

—        Não, espere. Pode me contar tudo durante o café-da-manhã.

Gostaria de comer alguma coisa?

—        Sim, padre, por favor. Estou faminta. A única coisa que comi desde ontem à tarde foram duas barras de Hershey.

—        Apenas barras de Hershey? — Suspirou. — O chocolate é uma das dádivas de Deus, mas também é uma arma que o diabo utiliza para nos levar à tentação, à tentação da gula. — Deu tapi- nhas na barriga. — Eu mesmo sempre compartilho desta graça em particular, mas eu nunca — exagerou a palavra "nunca" e piscou para ela — nunca, nem uma vez, atendi ao chamado do diabo para me exceder! Mas, veja bem, se você comer só chocolate, seus dentes vão cair. Portanto... Tenho bastantes salsichas, bastantes para nós dois. Estava prestes a estalar dois ovos para mim. Gostaria de uns dois ovos?

  • Sim, por favor.

  • E torrada?

    —        Sim.

    —        Temos uns deliciosos pães doces de canela ali sobre a mesa.

    E o chocolate quente, claro.

    Chrissie tomou as duas aspirinas com o suco de laranja. Enquanto quebrava os ovos na frigideira quente, padre Castelli olhou para ela outra vez.

    —        Você está bem?

    —        Sim, padre.

    —        Tem certeza?

    —        Sim. Agora. Estou bem agora.

    —        Vai ser bom ter companhia para o café da manhã — disse ele.

    Chrissie bebeu o restante do suco. Ele continuou:

    —        Quando o padre O'Brien termina de rezar a missa, ele nunca quer comer. Estômago nervoso. — Deu uma risadinha. — To dos eles têm estômagos ruins quando são novatos. Nos primeiros meses ficam apavorados lá no altar. É um dever tão sagrado, sabe, rezar a missa, e os padres jovens sempre têm medo de se atrapalhar de modo que seja... ah, não sei... um insulto a Deus, eu acho. Mas Deus não se insulta com facilidade. Se o fizesse, já teria lavado Suas mãos em relação à humanidade há muito tempo! Todos os padres jovens cedo ou tarde chegam a esta conclusão e então se sentem bem.

    Então voltam da missa prontos para devorarem todo o orçamento semanal de comida em um único café da manhã.

    Sabia que ele falava apenas para acalmá-la. Percebera o quanto ela estava perturbada. Queria sossegá-la para que pudessem discutir o assunto de forma racional e calma. Ela não se importava. Precisava ser acalmada.

    Tendo estalado os ovos, ele virou as salsichas com um garfo, em seguida abriu uma gaveta, de onde tirou uma espátula, que colocou sobre a bancada, junto à frigideira dos ovos. Enquanto levava pratos, facas e garfos para a mesa, disse:

    —        Você parece mais do que um pouco assustada, Chrissie, co mo se tivesse visto um fantasma. Pode se acalmar agora. Depois de tanto tempo de formação e treinamento, se um jovem padre pode ter medo de cometer um erro na missa, então qualquer um pode ter medo de qualquer coisa. A maioria dos temores são criados por nós em nossa própria mente, e podemos bani-los tão facilmente quanto os criamos.

    —        Talvez esse não — disse ela.

    —        Veremos.

    Ele transferiu os ovos e as salsichas das panelas para os pratos.

    Pela primeira vez em 24 horas, o mundo parecia direito. Quando o padre Castelli colocou a comida na mesa e a encorajou a começar a comer, Chrissie suspirou de alívio e fome.

     

    Shaddack geralmente se recolhia depois da alvorada, assim, às sete da manhã de terça-feira, estava bocejando e esfregando os olhos enquanto percorria Moonlight Cove, à procura de um local para esconder a caminhonete e dormir por algumas horas em segurança, fora do alcance de Loman Watkins. O dia estava nublado, cinza e sombrio, e no entanto a claridade do sol queimava seus olhos.

    Lembrou-se de Paula Parkins, dilacerada pelos regressivos em setembro. Sua propriedade de um acre e meio era isolada, no extremo mais rural da cidade. Embora a família da mulher — no Colorado — a tivesse colocado à venda através do agente imobiliário local, ainda não fora vendida. Dirigiu-se para lá, estacionou na garagem vazia, desligou o motor e fechou a enorme porta de entrada.

    Comeu um sanduíche de presunto e bebeu uma Coke. Limpando os farelos dos dedos, acomodou-se nos cobertores na parte traseira da caminhonete e começou a adormecer.

    Nunca sofria de insônia, talvez porque tivesse tanta certeza de seu papel na vida, seu destino, e não tivesse nenhuma preocupação com o amanhã. Estava convencido de que submeteria o futuro a sua agenda.

    Durante toda a vida, Shaddack percebera sinais de sua singularidade, presságios que prenunciavam seu derradeiro triunfo em qualquer atividade que empreendesse.

    No começo, percebera esses sinais apenas porque Don Runningdeer os mostrara a ele. Runningdeer fora um índio — de qual tribo Shaddack nunca conseguiu descobrir — que trabalhava para o juiz, o pai de Shaddack, em Phoenix, como jardineiro em tempo integral e uma espécie de faz-tudo 24 horas por dia. Runningdeer era ágil e magro, com o rosto marcado pelo tempo, músculos bem delineados e mãos calejadas; seus olhos eram brilhantes e negros como petróleo, olhos singularmente intensos dos quais às vezes era preciso desviar o olhar... e dos quais às vezes não se conseguia desviar o olhar, por mais que se desejasse. O índio interessava-se pelo jovem Tommy Shaddack, deixando-o ajudar em algumas tarefas do quintal e pequenos consertos na casa, quando nem o juiz nem a mãe de Tommy estavam por perto, para desaprovar que seu filho fizesse trabalho comum ou se associasse a pessoas "de classe inferior". O que significava que ele ficava junto de Runningdeer quase todo o tempo entre os cinco e 12 anos, o período em que o índio trabalhara para o juiz, porque seus pais quase nunca estavam por perto para ver e fazer objeção.

    Uma das mais antigas e detalhadas lembranças que tinha de Runningdeer era do sinal da cobra autodevoradora...

    Tinha cinco anos e estava na varanda dos fundos da enorme casa de Phoenix, entre uma coleção de brinquedos de armar, mas estava mais interessado em Runningdeer do que nos caminhões e carros em miniatura. O índio usava jeans e botas, e estava sem camisa no sol tórrido e brilhante, podando arbustos com uma grande tesoura de cabo de madeira. Os músculos das costas, dos ombros e dos braços de Runningdeer trabalhavam com facilidade, estirando-se e contraindo-se, e Tommy estava fascinado pela força física do homem. O juiz, pai de Tommy, era magro, esquelético e pálido. O próprio Tommy, aos cinco anos, já era visivelmente filho de seu pai, louro e alto para a sua idade e deploravelmente magro. Até o dia em que mostrou a Tommy a cobra autodevoradora, Runningdeer estava trabalhando há duas semanas para os Shaddacks e Tommy sentia-se cada vez mais atraído por ele, sem saber bem por quê. Runningdeer às vezes sorria-lhe e lhe contava histórias engraçadas de coiotes, cascavéis e outros animais falantes do deserto. Às vezes, chamava Tommy de "Pequeno Chefe'', que foi o primeiro apelido que alguém lhe dera. Sua mãe sempre o chamava de Tom ou Tommy; o juiz chamava-o de Thomas. Assim, ele esparramou-se entre seus carrinhos, brincando cada vez menos com eles, até que finalmente parou de brincar e ficou observando Runningdeer, como se estivesse hipnotizado.

    Não tinha certeza de quanto tempo ficara fascinado na sombra da varanda, no ar quente e seco do dia árido, mas após algum tempo surpreendeu-se ao ouvir Runningdeer chamando-o.

    —        Pequeno Chefe, venha ver isto.

    Estava tão aturdido que no início não conseguiu responder. Seus braços e pernas não reagiam. Parecia petrificado.

    —        Venha, venha, Pequeno Chefe. Você tem que ver isto.

    Finalmente, Tommy levantou-se e correu para o gramado, pa ra as cercas vivas que circundavam a piscina e que Runningdeer es- tivera podando.

    —        Isto é uma coisa rara — disse Runningdeer em tom som brio e apontou para uma cobra verde que estava a seus pés no piso quente de sol que rodeava a piscina.

      Tommy começou a recuar de medo.

    Mas o índio pegou-o pelo braço, segurou-o junto a si e disse:

    —        Não tenha medo. É apenas uma inofensiva cobra de jardim.

    Não vai machucá-lo. Na verdade, foi enviada aqui como um sinal para você.

    Tommy fitava com os olhos arregalados o réptil de 45 centímetros, que estava enroscado formando um O, sua própria cauda na boca, como se devorasse a si mesma. A cobra estava imóvel, os olhos vítreos fixos. Tommy achou que estivesse morta, mas o índio assegurou-lhe que estava viva.

    —        Isto é um sinal importante e poderoso que todos os índios conhecem — disse Runningdeer.

    Agachou-se junto à cobra e puxou o menino para baixo, a seu lado.

    —        É um sinal — murmurou —, um símbolo sobrenatural, enviado pelos grandes espíritos, sempre para um menino, de modo que deve ter sido enviado para você. Um sinal muito poderoso.

    Olhando admirado para a cobra, Tommy disse:

    —        Sinal? O que quer dizer? Não é um sinal. É uma cobra.

    —        Um presságio. Um agouro. Um sinal sagrado — disse Runningdeer.

    Enquanto permaneciam agachados diante da cobra, ele explicou essas coisas para Tommy com uma voz intensa, sussurrante, o tempo inteiro segurando-o pelo braço. A claridade do sol refletia-se do piso de concreto. Ondas de calor tremulantes também se erguiam do concreto. A cobra permanecia tão imóvel que mais parecia uma gargantilha de bijuteria, incrivelmente detalhada, do que uma cobra real — cada escama uma esmeralda, um par de rubis idênticos para os olhos. Depois de algum tempo, Tommy deixou-se levar novamente ao estranho transe em que estivera quando estava deitado no chão da varanda e a voz de Runningdeer deslizava como uma serpente para dentro de sua cabeça, penetrando fundo em seu crânio, enroscando-se e arrastando-se em seu cérebro.

    Mais estranho ainda, começou a parecer que a voz não era realmente de Runningdeer, mas da cobra. Fitava a víbora sem pestanejar e quase se esqueceu de que Runningdeer estava ali, pois o que a cobra lhe disse era tão irresistível e excitante que preenchia os sentidos de Tommy, exigia sua atenção integral, muito embora ele não compreendesse inteiramente o que ouvia. Este é um sinal do destino, disse a cobra, um sinal de poder e destino, e você será um homem de grande poder, muito maior do que o de seu pai, um homem para quem todos vão se curvar, um homem que será obedecido, um homem que nunca temerá o futuro porque de fará o futuro e você 256   terá tudo que desejar, qualquer coisa no mundo. Mas por enquanto, disse a cobra, isto vai ser nosso segredo. Ninguém deve saber que eu trouxe esta mensagem para você, que o presságio foi comunicado, pois, se souberem que você está destinado a deter o poder sobre eles, certamente o matarão, cortarão sua garganta à noite, arrancarão seu coração e o enterrarão numa cova funda. Não devem saber que você é o futuro rei, um deus na Terra, ou o esmagarão antes que sua força tenha desabrochado completamente. Segredo. Este é o nosso segredo. Eu sou a serpente autodevoradora, e vou comer a mim mesma e desaparecer agora que transmiti essa mensagem e ninguém saberá que estive aqui. Confie no índio, mas em mais ninguém.

    Ninguém. Nunca.

    Tommy desmaiou no piso da piscina e ficou doente por dois dias. O médico não sabia o que dizer. O menino não tinha febre, nenhuma glândula linfática inchada, nem enjôo, nem dores nas juntas ou nos músculos, nenhuma espécie de dor. Estava apenas tomado por uma profunda indisposição, tão letárgico que nem se dava o trabalho de segurar uma revista em quadrinhos; ver televisão era esforço demais. Não tinha apetite. Dormia 14 horas por dia e ficava numa espécie de torpor o resto do tempo.

    — Talvez uma ligeira insolação — disse o médico —, e, se ele não sair deste estado em dois dias, nós o internaremos num hospital para fazer alguns exames.

    Durante o dia, quando o juiz estava no tribunal ou em reunião com seus sócios em investimentos, e quando a mãe de Tommy estava no clube campestre ou em algum de seus almoços beneficentes, Runningdeer entrava furtivamente na casa de vez em quando, para se sentar junto à cama do menino por dez minutos. Contava histórias a Tommy, falando naquela voz estranhamente macia e rítmica. A srta. Karval, a governanta que dormia na casa e servia de babá em tempo parcial, sabia que nem o juiz nem a sra. Shaddack aprovariam as visitas do índio ao doente ou quaisquer outras de suas associações com Tommy. Mas a srta. Karval tinha bom coração e não aprovava a falta de atenção com que os Shaddacks tratavam o filho. E ela gostava do índio. Fazia vista grossa porque não via nenhum mal naquilo — desde que Tommy prometesse não contar a seus pais quanto tempo passava em companhia de Runningdeer. Quando resolveram internar o garoto num hospital para exames, ele se recuperou e o diagnóstico de insolação do médico foi aceito. Depois disso, Tommy seguia Runningdeer de perto todos os dias desde a hora em que seu pai e sua mãe saíam de casa até a hora em que um deles voltava. Quando começou a freqüentar a escola,  vinha direto para casa depois da aula; nunca se interessava quando outras crianças o convidavam para ir a suas casas brincar, pois estava ansioso para passar algumas horas com Runningdeer antes que sua mãe ou seu pai aparecessem no final da tarde.

    E semana a semana, mês a mês, ano a ano, o índio tornou Tommy agudamente cônscio de sinais que prediziam seu glorioso — embora ainda não especificado — destino. Um punhado de trevos de quatro folhas sob a janela do quarto do menino. Um rato morto boiando na piscina. Um monte de grilos chilreantes numa das gavetas da escrivaninha do menino uma tarde quando ele voltou da escola. Ocasionalmente, apareciam moedas onde ele não as havia deixado — um centavo em cada um dos seus sapatos no guarda-roupa; um mês depois, uma moeda de dez centavos em cada bolso de cada uma de suas calças; depois ainda, um brilhante dólar de prata dentro de uma maçã que Runningdeer descascava para ele —, e o índio as olhava admirado, explicando que eram alguns dos mais poderosos sinais de todos.

    —        Segredo — sussurrou Runningdeer maravilhado no dia seguinte ao aniversário de nove anos de Tommy, quando o menino contou ter ouvido pequenos sinos tocando sob sua janela no meio da noite.

    Ao acordar, não vira nada além de uma vela acesa no gramado. Com cuidado para não acordar seus pais, saiu furtivamente para olhar a vela mais de perto, mas ela havia desaparecido.

    —        Sempre mantenha esses sinais em segredo ou perceberão que você é uma criança com um destino, que um dia terá um enorme poder sobre eles e eles o matarão agora, enquanto ainda é um meni no e fraco.

    —        Quem são "eles"? — perguntou Tommy.

    —        Eles, eles, todo mundo — disse o índio enigmaticamente.

    —        Mas quem?

    —        Seu pai, por exemplo.

    —        Ele, não.

    —        Ele, especialmente — murmurou Runningdeer. — É um homem poderoso. Sente prazer em dominar os outros, intimidar, dobrar as pessoas a sua vontade. Você viu como as pessoas se curvam e se humilham para ele.

    Na verdade, Tommy notara o respeito com que todos se dirigiam a seu pai — em particular seus muitos amigos na política —, e algumas vezes percebera de relance os olhares inquietantes e talvez mais sinceros que lhe lançavam pelas costas. Diante dele, pareciam admirá-lo e até reverenciá-lo, mas quando ele não estava olhando, pareciam não só temê-lo como odiá-lo.

    — Ele só está satisfeito quando detém todo o poder e não abre mão dele facilmente, para ninguém, nem mesmo para seu filho. Se descobrir que você está predestinado a ser mais importante e mais poderoso do que ele... ninguém poderá salvá-lo. Nem mesmo eu. Talvez se sua vida familiar fosse marcada por mais afeto, Tommy tivesse achado o aviso do índio difícil de acreditar. Mas seu pai raramente lhe falava senão de um modo superficial, e mais raramente ainda o tocava — nunca um verdadeiro abraço e jamais um beijo.

    Às vezes, Runningdeer trazia de presente para o menino um doce feito em casa. "Bala de cacto", chamava-o. Sempre havia apenas um para cada um e sempre o comiam juntos, ou sentados na varanda dos fundos, quando o índio estava em sua hora de almoço, ou quando Tommy seguia seu mentor pela propriedade de dois acres em uma série de tarefas. Logo depois de comer a bala de cacto, o garoto era tomado por um curioso estado de espírito. Sentia-se eufórico. Quando se locomovia, parecia flutuar. As cores ficavam mais intensas, mais bonitas. O mais vivido de tudo era Runningdeer: seus cabelos tornavam-se incrivelmente negros, sua pele de um bronze magnífico, os dentes luminosamente brancos, os olhos tão escuros quanto o fim do universo. Cada som — até o nítido clique-clique-clique da tesoura de jardinagem, o ronco de um avião passando acima deles a caminho do aeroporto de Phoenix, o zumbido de inseto do motor da bomba da piscina — transformava-se em música; o mundo era cheio de música, embora o mais musical de todos os sons fosse a voz de Runningdeer. Os cheiros também se tornavam mais pungentes: flores, grama cortada, o óleo com que o índio lubrifica-va ferramentas. Até o odor do suor se tornava agradável. Runningdeer cheirava a pão quente, feno e moedas de cobre.

    Tommy raramente se lembrava do que Runningdeer dizia depois de comerem a bala de cacto, mas recordava-se de que o índio lhe falava com uma intensidade especial. Muita coisa tinha a ver com o sinal do falcão da lua.

    — Se os grandes espíritos enviarem o sinal do falcão da lua, você saberá que terá um enorme poder e será invencível. Invencível! Mas, se realmente vir o falcão da lua, significará que os grandes espíritos querem algo de você em troca, um ato que provará  verdadeiramente o seu valor.

                Não se esquecera dessas palavras, mas lembrava-se de pouco  mais. Geralmente, depois de uma hora, ele ficava cansado e ia para o quarto tirar um cochilo; seus sonhos então eram particularmente  vividos, mais reais do que a vida quando estava acordado e sempre envolviam o índio. Eram sonhos ao mesmo tempo assustadores e  reconfortantes.

      Em um sábado chuvoso de novembro, quando Tommy tinha dez anos, sentou-se num banco perto da bancada ao fundo da garagem de quatro carros, olhando Runningdeer consertar uma faca elétrica que o juiz sempre usava para cortar o peru no dia de Ação de Graças e no Natal. O ar estava agradavelmente fresco e anormalmente úmido para Phoenix. Runningdeer e Tommy falavam da chuva, do feriado que se aproximava e de coisas que haviam acontecido na escola recentemente. Nem sempre conversavam sobre sinais e destino, ou Tommy não teria gostado tanto do índio; Runningdeer era um excelente ouvinte.

    Quando o índio terminou de consertar a faca elétrica, conectou o fio na tomada e ligou-a. A lâmina movia-se para frente e para trás com tanta velocidade que não se podia ver a parte cortante com nitidez.

    Tommy aplaudiu.

    —        Vê isso? — perguntou Runningdeer, erguendo a faca mais alto e olhando-a com os olhos apertados contra a claridade das lâmpadas fluorescentes do teto.

    Lampejos brilhantes saltavam da lâmina em vaivém, como se estivesse empenhada em cortar a própria luz.

    —        O quê? — perguntou Tommy.

    —        Esta faca, Pequeno Chefe. É uma máquina. Uma fria má quina, não tão importante quanto um carro, um avião ou uma cadeira de rodas elétrica. Meu irmão é... paralítico... e tem que se locomover numa cadeira de rodas elétrica. Sabia disso, Pequeno Chefe?

    —        Não.

    —        Um dos meus irmãos está morto, o outro aleijado.

    —        Sinto muito.

    —        São meio-irmãos, na verdade, mas os únicos que tenho.

    —        Como aconteceu? Por quê?

    Runningdeer ignorou as perguntas.

    —        Mesmo que o objetivo desta faca seja apenas trinchar um peru que poderia também ser cortado com a mão, ainda assim ela é eficiente e inteligente. A maioria das máquinas é mais eficiente e inteligente do que as pessoas.

    O índio abaixou ligeiramente o instrumento cortante e voltou-se para encarar Tommy. Segurou a faca ligada entre eles, olhando além da lâmina em movimento, dentro dos olhos de Tommy.

    O rapaz sentiu-se resvalar para um estado hipnótico semelhante ao que experimentava depois de comer a bala de cacto, embora não tivesse comido nenhuma.

    —        O homem branco tem muita fé nas máquinas — disse Runningdeer. — Acha que as máquinas são muito mais confiáveis e inteligentes do que as pessoas. Se você quiser ser realmente importante no mundo dos homens brancos, Pequeno Chefe, tem que se tornar o mais semelhante possível a uma máquina. Tem que ser eficiente. Tem que ser implacável como uma máquina. Tem que ser determinado em seus objetivos, não permitindo que nenhum desejo ou emoção desvie sua atenção.

    Aproximou devagar a lâmina roncante do rosto de Tommy, até que os olhos do garoto ficaram vesgos, numa tentativa de focalizar o gume da faca.

    —        Com isto, eu poderia arrancar o seu nariz, tirar um naco de seus lábios, retalhar seu rosto, cortar suas orelhas...

    Tommy tinha vontade de escorregar do banco e correr.

    Mas não conseguia se mover.

    Percebeu que o índio segurava-o por um dos pulsos.

    Ainda que não estivesse preso, não teria conseguido fugir. Estava paralisado. Não completamente por medo, tampouco. Havia algo de irresistível naquele momento; a violência em potencial era de um modo estranho... excitante.

    —        ...arrancar a bola redonda do seu queixo, escalpelá-lo, deixar o osso à mostra, e você sangraria até a morte ou morreria de uma causa ou outra, mas...

    A lâmina estava a menos de cinco centímetros de seu nariz.

    —        ...mas a máquina continuaria...

    Dois centímetros.

    —        ...a máquina continuaria a roncar e cortar, roncar e cortar...

    Um centímetro.

    —        ...porque as máquinas não morrem...

    Tommy podia sentir a brisa leve, leve, causada pela lâmina elétrica em movimento.

    —        ...as máquinas são eficientes e confiáveis. Se quiser ter su cesso no mundo do homem branco, Pequeno Chefe, tem que ser como uma máquina.

    Runningdeer desligou a faca. Colocou-a sobre a bancada.      Não soltou o pulso de Tommy.

    Aproximando-se, disse:

     — Se quiser ser alguém, se quiser agradar os espíritos e fazer o que eles lhe pedirem quando lhe enviarem o sinal do falcão da lua, então tem que ser determinado, implacável, frio, coerente, alheio às conseqüências, como uma máquina.

    Depois disso, especialmente quando comiam bala de cacto juntos, sempre conversavam sobre ser dedicado a um objetivo e confiável como uma máquina. À medida que se aproximava da  puberdade, os sonhos de Tommy eram cada vez menos repletos de referências sexuais do que de imagens do falcão da lua e de visões de pessoas que pareciam normais externamente, mas que eram feitas só de fios, transistores e conexões metálicas por dentro.

    No verão do ano em que completou 12 anos, após sete anos na companhia do índio, o garoto soube o que acontecera aos meio-irmãos de Runningdeer. Ao menos, soube-o em parte. Deduziu o resto.

    Ele e o índio estavam sentados na varanda dos fundos, almoçando e observando os arco-íris que apareciam e sumiam nos borrifos de água lançados pelos irrigadores do gramado. Ele perguntara sobre os irmãos de Runningdeer algumas vezes desde aquele dia na bancada da garagem, há mais de um ano e meio, mas o índio nunca lhe respondera. Desta vez, entretanto, Runningdeer fixou o olhar nas montanhas longínquas e semi-encobertas pela névoa, e disse:

    —        O que vou lhe contar é um segredo.

    —        Está bem.

    —        Um segredo como todos os sinais que tem recebido.

    —        Claro.

    —        Alguns homens brancos, apenas estudantes, se embebedaram e ficaram vagando, talvez procurando mulheres, com certeza procurando confusão. Encontraram meus irmãos por acaso, no estacionamento de um restaurante. Um dos meus irmãos era casado e sua mulher estava com ele, e os rapazes começaram a fazer provo cações, mas também gostaram da aparência da mulher do meu ir mão. Eles a queriam e estavam bêbados o suficiente para achar que podiam simplesmente tomá-la. Houve uma briga. Cinco contra meus dois irmãos, espancaram um deles até a morte com uma barra de ferro. O outro nunca mais andou outra vez. Levaram a mulher de meu irmão, abusaram dela.

    Tommy ficou perplexo com a revelação. Por fim, o rapaz disse:

    —        Eu odeio os homens brancos.

    Runningdeer riu.

    —        É verdade — disse Tommy. — O que aconteceu aos sujei tos que fizeram isso? Estão presos?

    —        Não houve prisão. — Runningdeer sorriu para o garoto. Um esgar feroz, sem graça. — Os pais deles eram homens poderosos.

    Dinheiro. Influência. Assim, o juiz soltou-os por "insuficiência de provas".

    —        Meu pai deveria ter sido o juiz. Ele não os deixaria escapar.

    —        Não deixaria? — perguntou o índio.

    —        Nunca.

    —        Tem certeza?

    Contrafeito, Tommy disse:

    —        Bem... claro que tenho certeza.

    O índio ficou em silêncio.

    —        Odeio os homens brancos — repetiu Tommy, desta vez motivado mais pelo desejo de agradar o índio do que por convicção.

    Runningdeer riu novamente e bateu de leve na mão de Tommy.

    Perto do final daquele mesmo verão, Runningdeer se aproximou de Tommy ao fim de um escaldante dia de agosto, com uma voz agourenta e portentosa, e disse:

    —        Hoje será noite de lua cheia, Pequeno Chefe. Vá ao quintal e observe-a por alguns instantes. Acho que esta noite o sinal final mente virá, o sinal mais importante de todos.

    Depois que a lua nasceu, o que ocorreu logo após o cair da noite, Tommy dirigiu-se ao quintal e parou na borda da piscina, onde Runningdeer lhe mostrara a serpente que se autodevorava, há sete anos. Fitou o círculo lunar por longo tempo, enquanto seu reflexo alongado cintilava na superfície da água da piscina. Era uma lua redonda e amarela, ainda bem baixa no céu, e imensa.

    Logo o juiz saiu para a varanda, chamou-o e Tommy respondeu:

    —        Estou aqui.

    O juiz uniu-se a ele perto da piscina.

    —        O que está fazendo, Thomas?

    —        Esperando...

    —        O quê?

    Nesse instante, Tommy viu a silhueta do falcão recortada contra a lua. Durante anos lhe fora dito que um dia ele o veria, fora preparado para isso e tudo que significava e, de repente, lá estava ele, imóvel por um instante no meio do vôo contra a lua clara e redonda.

    —        Lá está! — exclamou, esquecendo-se por um instante de que não podia confiar em ninguém além do índio.

    —        Lá está o quê? — perguntou o juiz.

    —        Você não viu?

    —        Apenas a lua.

    —        Não estava olhando ou teria visto.

    —        Visto o quê?

    O fato de seu pai não ter podido ver o sinal provava a Tommy que ele era realmente especial e que o presságio destinara-se apenas a seus olhos — o que o fazia lembrar-se de que não podia confiar nem no próprio pai. Disse:

    —        Ah... uma estrela cadente.

    —        Está parado aqui para ver estrelas cadentes?

      —      Na verdade, são meteoros — disse Tommy, depressa. — Sabe, esta noite a Terra deve passar por um cinturão de meteoros, de modo que haverá muitos deles.

    —        Desde quando você se interessa por astronomia?

    —        Não me interesso. — Tommy deu de ombros. — Só fiquei imaginando como seriam. Sem graça. — Virou-se e começou a se afastar da piscina, em direção à casa e, depois de alguns instantes, o juiz o seguiu.

    No dia seguinte, quarta-feira, o garoto contou a Runningdeer sobre o falcão da lua.

    —        Mas não recebi nenhuma mensagem dele. Não sei o que os grandes espíritos querem que eu faça para me pôr à prova.

    O índio sorriu e fitou-o em silêncio pelo que começou a se tornar um tempo desconfortavelmente longo. Então, disse:

    —        Pequeno Chefe, falaremos sobre isso durante o almoço.

    A srta. Karval folgava às quartas-feiras e Runningdeer e Tommy estavam sozinhos em casa. Sentaram-se em cadeiras lado a lado na varanda para o almoço. O índio não parecia ter trazido nada além de balas de cacto e Tommy não tinha apetite para nada mais.

    Há muito o rapaz deixara de comer as balas pelo seu sabor, mas devorava-as por seu efeito. E, com o passar dos anos, o efeito sobre ele tornara-se continuamente mais profundo.

    Logo o rapaz alcançava o ansiado plano onírico, onde as cores eram vivas, os sons altos, os cheiros penetrantes e tudo transmitia uma sensação aprazível e de bem-estar. Ele e o índio conversaram por quase uma hora e, ao final desse tempo, Tommy compreendeu que os grandes espíritos esperavam que ele assassinasse o pai daí a quatro dias, domingo de manhã.

    —        É meu dia de folga — disse Runningdeer —, de modo que não estarei aqui para lhe dar apoio. Mas essa provavelmente é a in tenção dos espíritos, que você prove a si mesmo sozinho. Pelo me nos, teremos os próximos dias para planejar tudo juntos, para que você esteja pronto quando chegar domingo.

    —        Sim — disse o rapaz como em um sonho. — Sim. Planeja remos tudo juntos.

    Mais tarde naquele mesmo dia, o juiz chegou em casa depois de uma reunião de negócios que se seguiu à sessão no tribunal. Queixando-se do calor, dirigiu-se diretamente para o andar de cima, para tomar um banho de chuveiro. A mãe de Tommy chegara meia hora antes. Estava numa poltrona na sala de estar, os pés sobre uma banqueta baixa e estofada, lendo o último número de Town & Country e bebericando o que ela chamava de "coquetel pré-hora 264   do coquetel". Ela mal ergueu os olhos quando o juiz anunciou do corredor sua intenção de ir tomar banho.

    Assim que seu pai subiu, Tommy encaminhou-se à cozinha e pegou uma das facas do conjunto acima do fogão.

    Runningdeer estava do lado de fora, cortando a grama. Tommy entrou na sala de estar, aproximou-se de sua mãe e a beijou no rosto. Ela ficou surpresa com o beijo, porém mais surpresa com a faca, que ele enfiou em seu peito três vezes. Ele carregou a mesma faca ao andar de cima e a enterrou no ventre do juiz, quando este saiu do chuveiro.

    Foi para seu quarto e tirou as roupas. Não havia sangue em seus sapatos, mas um pouco nas calças jeans e muito na camisa. Depois de se lavar rapidamente na pia do seu banheiro e eliminar qualquer vestígio de sangue, vestiu camisa e calças limpas. Enrolou cuidadosamente as roupas manchadas de sangue numa toalha velha e as levou para o sótão, onde as escondeu num canto atrás de um baú de marinheiro. Podia se livrar delas mais tarde.

    No térreo, passou pela sala de estar sem olhar para sua mãe morta. Dirigiu-se para a escrivaninha no gabinete do juiz e abriu a gaveta inferior direita. De trás de uma pilha de pastas de arquivo, tirou o revólver do juiz.

    Na cozinha, apagou as lâmpadas fluorescentes do teto, de modo que a única luz era a que penetrava pelas janelas, que clareava o suficiente, mas deixava algumas partes do aposento imerso em sombras frias. Colocou a faca sobre a bancada junto à geladeira, cuidadosamente posicionada nas sombras. Colocou o revólver sobre uma das cadeiras da mesa e a puxou um pouco, de modo que a arma pudesse ser facilmente apanhada, mas dificilmente vista.

    Atravessou as amplas portas que ligavam a cozinha à varanda dos fundos e gritou para chamar Runningdeer. O índio não ouviu a voz do garoto acima do barulho do cortador de grama, mas olhou por acaso e o viu acenando. Franzindo o cenho, desligou o cortador e atravessou o gramado parcialmente aparado em direção à varanda.

    —        Sim, Thomas? — disse, porque sabia que o juiz e a sra.

    Shaddack estavam em casa.

    —        Minha mãe precisa de sua ajuda para alguma coisa — disse Tommy. — Pediu-me para vir chamá-lo.

    —        Minha ajuda?

    —        Sim. Na sala de estar.

         — O que ela quer?

           — Ela precisa de ajuda para... bem, é mais fácil mostrar-lhe do que explicar.              O índio seguiu-o pelas amplas portas para a cozinha, passando pela geladeira, em direção à porta que dava para o corredor. Tommy parou bruscamente, virou-se e disse:

    —        Ah, sim, mamãe disse que você vai precisar daquela faca, aquela atrás de você sobre a bancada, perto da geladeira.

    Runningdeer virou-se, viu a faca sobre o ensombreado revestimento de ladrilhos da bancada e pegou-a. Seus olhos arregalaram-se.

    —        Pequeno Chefe, há sangue nesta faca. Há sangue...

    Tommy já pegara o revólver sobre a cadeira. Quando o índio virou-se em sua direção, surpreso, Tommy segurou a arma com as duas mãos e atirou até esvaziar o cilindro, embora o coice da arma repercutisse dolorosamente em seu braço e ombros, quase levantando-o do chão. Pelo menos dois dos disparos atingiram Runningdeer e um deles estraçalhou sua garganta.

    O índio tombou com toda força. A faca caiu de sua mão e deslizou pelo assoalho.

    Com um dos sapatos, Tommy chutou a faca para mais perto do cadáver, para parecer que o índio a estivera empunhando.

    A compreensão do garoto da mensagem dos grandes espíritos fora maior do que a de seu mentor. Eles queriam que ele se livrasse sem demora de todos que tivessem ainda que um pouco de poder sobre ele: o juiz, sua mãe e Runningdeer. Só então poderia alcançar seu grandioso destino de poder.

    Planejara os três assassinatos com a frieza de um computador, e executara-os com a determinação e a eficiência de uma máquina. Não sentiu nada. As emoções não haviam interferido em suas ações. Bem, na verdade, estava assustado e um pouco excitado — até mesmo regozijante —, mas esses sentimentos não haviam desviado sua atenção.

    Depois de fitar por alguns instantes o corpo de Runningdeer, Tommy dirigiu-se ao telefone da cozinha, discou para a polícia e relatou histericamente que o índio, gritando vingança, matara seus pais e que ele, Tommy, matara o índio com o revólver de seu pai. Mas ele não disse tudo de forma tão sucinta. Mostrou-se tão histérico que eles tiveram que arrancar dele aquela história. Na verdade, estava tão perturbado e desorientado pelo que acontecera que tiveram que perder três ou quatro tediosos minutos até conseguirem fazê-lo parar com aquela falação e dar-lhes seu nome e endereço. Mentalmente, praticara histeria toda a tarde, desde o almoço com o índio. Agora estava satisfeito em soar de forma tão convincente.

    Foi para a frente da casa, sentou-se na entrada de automóveis e chorou até a polícia chegar. Suas lágrimas eram mais autênticas do que sua histeria. Chorava de alívio.

    Vira o falcão da lua mais duas outras vezes, anos depois. Viu-o quando precisava vê-lo, quando precisava ter certeza de que um determinado caminho que desejava seguir era correto.

    Mas nunca mais matou ninguém — porque nunca mais precisou.

    Seus avós maternos levaram-no para viver com eles e criaram-no em outra parte de Phoenix. O fato de ter sofrido tal tragédia fazia com que lhe dessem praticamente tudo que queria, como se negar-lhe alguma coisa fosse insuportavelmente cruel e, talvez, a gota d'água que o faria transbordar. Ele era o único herdeiro do espólio de seu pai, que foi engordado por vultosos seguros de vida; assim, teve garantida uma educação de primeira classe e capital suficiente para começar a vida depois de obter o diploma universitário. O mundo estendia-se diante dele, cheio de oportunidades. E, graças a Runningdeer, possuía a vantagem extra de saber, sem a menor sombra de dúvida, que tinha um grande futuro e que as forças do destino e do céu queriam que conquistasse enorme poder sobre os demais homens.

    Só um louco mataria sem uma necessidade premente.

    Com raras exceções, o assassínio não era um método eficiente de resolver problemas.

    Agora, enroscado na parte de trás da caminhonete na escura garagem de Paula Parkins, Shaddack lembrou-se de que era filho do destino, de que vira o falcão da lua três vezes. Afastou da mente qualquer temor de Loman Watkins e de fracasso. Suspirou e adormeceu.

    Sonhou o mesmo sonho de sempre. A grande máquina. Metade metal e metade carne. Pistões de aço batendo. Corações humanos bombeando regularmente lubrificantes de todos os tipos. Sangue e óleo, ferro e osso, plástico e tendão, fios e nervos.

     

    Chrissie estava abismada que padres comessem tão bem. A mesa da cozinha da casa da paróquia estava repleta de comida; uma enorme travessa de salsichas, ovos, uma pilha de torradas, um pacote de pães doces, outro de bolinhos de geléia, uma tigela de batatas assadas que estavam sendo aquecidas no forno, frutas e um pacote de marshmallows para o chocolate quente. Padre Castelli era gorducho, é verdade, mas Chrissie sempre considerara os padres moderados em todas as coisas, negando-se pelo menos alguns dos prazeres da comida e da bebida, assim como se negavam o casamento. Se padre Castelli consumisse tudo aquilo numa refeição, teria o dobro do peso. Não, o triplo!

    Enquanto comiam, ela lhe contou sobre os alienígenas que se apoderaram de seus pais. Em deferência à predisposição do padre Castelli para soluções espirituais e como forma de mantê-lo interessado, ela deixou a porta aberta para possessão demoníaca, embora pessoalmente preferisse a versão de invasão de extraterrestres. Contou-lhe o que vira no corredor do andar de cima de sua casa no dia anterior, como fora trancada na despensa e, mais tarde, perseguida por seus pais e Tucker em suas estranhas formas.

    O padre manifestou perplexidade e preocupação e por diversas vezes quis saber mais detalhes, mas nem uma vez parou de comer. Na verdade, comia com tamanha satisfação que seus modos à mesa deixavam a desejar. Chrissie estava tão espantada com o desleixo dele quanto com sua voracidade. Por duas vezes sujou o queixo com gema de ovo e, quando reuniu coragem para lhe dizer, ele fez uma piada a respeito e o limpou. Mas logo em seguida ela ergueu os olhos e lá estava mais gema de ovo. Ele deixou cair alguns pequenos marshmallows e não pareceu se importar. A frente de sua camisa preta estava salpicada de migalhas de torrada, alguns minúsculos pedaços de salsicha, farelos de batata, migalhas de pão doce, de bolinhos...

    Na verdade, estava começando a achar que o padre Castelli era tão culpado do pecado da gula quanto qualquer um.

    Mas amava-o, apesar de seus hábitos alimentares, porque ele em nenhum momento duvidou de sua sanidade ou demonstrou não acreditar em sua estranha história. Ouviu-a com interesse e absoluta seriedade e pareceu genuinamente preocupado, até amedrontado, pelo que ela lhe disse.

    — Bem, Chrissie, já fizeram centenas de filmes sobre invasões de extraterrestres, criaturas hostis de outros planetas, e já escreveram talvez milhares de livros sobre o assunto, e eu sempre disse que a mente humana não pode imaginar nada que não seja possível no mundo de Deus. Então, quem sabe, hum? Quem pode afirmar que eles não pousaram aqui em Moonlight Cove? Gosto de cinema e sempre preferi filmes de terror, mas nunca imaginei que me veria no meio de um filme de terror real. — Ele estava sendo sincero. Ele nunca a tratava com paternalismo.

    Embora o padre Castelli continuasse a comer com um apetite insaciável, Chrissie terminou o café da manhã e a história ao mesmo tempo. Como a cozinha estivesse quente, secava-se depressa e  só os fundilhos de suas calças e seus tênis ainda estavam molhados. Sentia-se revigorada o suficiente para refletir no que iria fazer agora que encontrara ajuda.

    —        E agora? Temos que chamar o Exército, não acha, padre?

    —        Talvez o Exército e os Fuzileiros Navais — respondeu ele, após um momento de deliberação. — Os Fuzileiros Navais devem ser melhores nesta espécie de coisa.

    —        Acha que...

    —        O que foi, minha querida?

    —        Acha que há alguma chance... bem, alguma chance de ter meus pais de volta? Como eles eram, quero dizer.

    Ele colocou um bolinho que levava à boca de volta sobre a mesa e estendeu o braço, entre as travessas e vasilhas de comida, para segurar sua mão. Seus dedos estavam ligeiramente besuntados de manteiga, mas ela não se importava, pois ele era tão reconfortante e tranqüilizador; naquele momento, ela precisava de muito ânimo e confiança.

    —        Você se reunirá a seus pais — disse o padre Castelli com grande solidariedade. — Posso garantir-lhe com toda certeza.

    Ela mordeu o lábio inferior, tentando conter as lágrimas.

    —        Eu lhe garanto — repetiu ele.

    De súbito, o rosto dele abaulou-se. Não homogeneamente como uma bola de soprar. Mas inflava-se em alguns lugares e em outros não, ondulava-se e pulsava, como se seu crânio tivesse virado um mingau, bolos de vermes se contorcessem e serpeassem sob sua pele.

    —        Eu lhe garanto!

    Chrissie estava aterrorizada demais para gritar. Por um instante, não conseguiu se mover. Estava paralisada de medo, presa à cadeira, incapaz de concentrar controle motor suficiente até para piscar ou respirar.

    Podia ouvir os ossos dele quebrando-se, esmagando-se, saltando enquanto se estilhaçavam e se dissolviam e se remodelavam com uma velocidade incrível. Sua carne produzia um som sibilante, molhado, nojento, conforme fluía em novas formas quase com a mesma facilidade de cera quente.

    O crânio do padre inchou para cima e desceu para trás numa crista de ossos e seu rosto mal parecia humano, era parte crustáceo, parte inseto, vagamente semelhante a uma vespa, com alguma coisa de chacal também e com olhos flamejantes e ferozes.

    Por fim, Chrissie gritou numa explosão:

    —        Não!

    Seu coração batia com tanta força que doía-lhe o peito.

     —       Não, vá embora, deixe-me em paz, deixe-me ir embora!

    As mandíbulas dele se ampliaram, então se abriram quase até as orelhas num esgar ameaçador delineado por fileiras duplas de dentes afiados.

    —        Não, não!

    Ela tentou levantar-se.

    Chrissie percebeu que ele ainda segurava sua mão esquerda.

    Ele falava numa voz que fazia lembrar de modo estranho a de sua mãe e de Tucker quando a perseguiram até a entrada da galeria pluvial na noite anterior:

    —        ...preciso, preciso... quero... me dê... me dê... preciso...

    Não se parecia a seus pais quando se transformaram. Por que os alienígenas não eram todos iguais?

    Ele escancarou a boca e rosnou para ela. Uma saliva espessa e amarela grudava-se como fios de puxa-puxa dos dentes superiores aos inferiores. Algo se movia dentro de sua boca, uma língua estranha; lançou-se na direção dela como um boneco de caixa de surpresas e mostrou ser uma boca dentro da boca, um outro conjunto de dentes menores e ainda mais afiados montados sobre um suporte, destinados a alcançar locais mais difíceis e abocanhar presas que lá se escondessem.

    Padre Castelli estava se transformando em algo surpreendentemente familiar: a criatura do filme Alien. Não exatamente o monstro em todos os detalhes, mas, sem dúvida, semelhante a ele.

    Ela estava presa em um filme, exatamente como o padre dissera, um filme de horror da vida real: sem dúvida um de seus favoritos. Seria o padre Castelli capaz de assumir qualquer forma que desejasse e estaria se tornando esta besta simplesmente porque lhe agradava fazê-lo e porque era o que melhor corresponderia às expectativas de Chrissie de invasores extraterrestres?

    Isso era loucura.

    Sob as roupas, o padre também se transformava. Sua camisa sobrava em alguns lugares, como se sua substância tivesse desaparecido sob ela, mas em outras partes esticava-se nas costuras conforme seu corpo adquiria novas saliências e excrescências animalescas. Os botões da camisa saltavam. O tecido rasgava-se. O colarinho de padre abriu-se e ficou caído torto em seu pescoço hediondamente remodelado.

    Arquejando, produzindo um curioso som uh-uh-uh-uh-uh no fundo da garganta e que era incapaz de parar, Chrissie tentou soltar sua mão. Levantou-se, derrubando a cadeira, mas ainda era mantida segura com força. Ele era muito forte. Ela não conseguia se soltar.

      As mãos dele também haviam começado a se transformar. Seus dedos alongaram-se. Eram cobertos com uma substância córnea — lisa, dura, preta e brilhante —, mais como pinças com dedos do que mãos humanas.

    — ...preciso... quero, quero... preciso...

    Ela pegou sua faca de mesa, ergueu-a bem alto acima da cabeça e abaixou-a com toda força, atingindo-o no braço, logo acima do pulso, onde sua pele ainda parecia mais humana do que o resto. Esperara que a lâmina o pregasse na mesa, mas não sentiu-a trespassá-lo até a madeira embaixo.

    Seu grito foi tão estridente e agudo que pareceu vibrar pelos ossos de Chrissie.

    Sua mão demoníaca, encouraçada, espalmou-se, aberta. Ela deu um salto para longe dele. Felizmente, foi rápida porque a mão dele tornou a se fechar uma fração de segundo depois, pegando a ponta de seus dedos, mas incapaz de prendê-la.

    A porta da cozinha ficava do lado da mesa onde estava o padre. Não podia alcançá-la sem ficar de costas para ele.

    Com um grito que era metade um berro, metade um rugido, ele arrancou a faca do braço e atirou-a longe. Varreu os pratos e a comida da mesa com um único movimento do braço estranhamente transformado, que agora era dezoito ou vinte centímetros mais longo do que antes. Projetava-se dos punhos de sua camisa preta em apavorantes nódulos, planos e ganchos da matéria escura e quitino-sa que tomara o lugar de sua carne.

    Maria, Mãe de Deus, rogai por mim; Virgem Maria, rogai por mim; Virgem Mãe de Deus, rogai por mim. Por favor, pensou Chrissie.

    O padre agarrou a mesa e derrubou-a também, como se pesasse apenas alguns gramas. Ela chocou-se contra a geladeira.

    Agora nada a separava dele.

    Disso.

    Ela fingiu dirigir-se à porta da cozinha, dando alguns passos naquela direção.

    O padre — na verdade, não mais um padre; uma coisa que às vezes se fantasiava de padre — avançou para a direita, pretendendo impedir sua passagem e aprisioná-la.

    Ela virou-se sem demora, como pretendera fazer desde o início, e correu na direção contrária, para a porta aberta que levava ao corredor do andar térreo, saltando sobre torradas e salsichas espalhadas. O truque funcionou. Com os tênis molhados rangendo e chiando no linóleo, Chrissie já passara por ele antes que percebesse que, na verdade, ela estava indo para sua esquerda.

    Suspeitava que ele fosse tão rápido quanto forte. Mais rápido do que ela, sem dúvida. Podia ouvi-lo vindo em seu encalço.

    Se ao menos pudesse alcançar a porta da frente, sair para a varanda e para o jardim, provavelmente estaria salva. Suspeitava que ele não a seguiria além da casa, na rua, onde outras pessoas pudessem vê-lo. Certamente, nem todos em Moonlight Cove já haviam sido possuídos por esses alienígenas e, até que a última pessoa de verdade na cidade fosse dominada, não podiam perambular naquele estado, comendo garotinhas impunemente.

    Não estava longe. Apenas a porta da frente e mais alguns passos depois dela.

    Cobrira dois terços da distância, esperando sentir uma garra segurar sua camisa por trás, quando a porta se abriu diante dela. O outro sacerdote, padre O'Brien, atravessou a soleira da porta e pestanejou de surpresa.

    Compreendeu sem demora que também não podia confiar nele. Não poderia ter vivido na mesma casa do padre Castelli sem que a semente alienígena fosse plantada nele também. Semente, vírus, parasita pegajoso, espírito — o que quer que fosse usado para realizar a possessão, o padre O'Brien sem dúvida fora injetado ou tomado por ele.

    Impedida de recuar ou avançar, não querendo atravessar a passagem em arco à sua direita que levava à sala de estar porque era um caminho sem saída, ela agarrou o pilar do corrimão da escada, por onde estava passando, e saltou para as escadas. Correu aos tropeções para o segundo andar.

    A porta da frente bateu atrás dela.

    Quando virou no patamar e começou a subir o segundo lance de escadas, ouviu ambos começarem a segui-la.

    O corredor de cima tinha paredes brancas, assoalho de madeira escura e teto de madeira. Havia quartos de ambos os lados.

    Arremessou-se para o final do corredor, entrando num quarto mobiliado apenas com uma cômoda simples, uma mesinha-de-cabeceira, uma cama de casal com uma colcha de chenille branca, uma estante cheia de livros e um crucifixo na parede. Bateu a porta ao entrar, mas não se incomodou em tentar trancá-la ou escorá-la. Não havia tempo. Iriam colocá-la abaixo em segundos, de qualquer jeito.

    Repetindo "MariamãedeDeus, MariamãedeDeus", num murmúrio desesperado e ofegante, atravessou o quarto até a janela emoldurada por cortinas verde-esmeralda. A chuva lavava a vidraça.

    Seus perseguidores estavam no corredor. Os passos deles ressoavam pela casa.

    Agarrou os puxadores da janela de guilhotina e tentou erguê-la; não se moveu. Tateou à procura da trava, mas ela já estava solta.

    Do outro lado do corredor junto ao topo das escadas, eles escancaravam portas, procurando-a.

    A janela estava grudada com a tinta da pintura ou talvez tivesse dilatado por excesso de umidade. Afastou-se alguns passos dela.

    A porta atrás dela foi arrombada e algo rosnou.

    Sem olhar para trás, ela abaixou a cabeça, cruzou os braços sobre o rosto e atirou-se pela janela, imaginando se poderia se matar jogando-se do segundo andar, concluindo que dependia de onde aterrissasse. Grama seria bom. Calçada seria ruim. As pontas de lança da grade de ferro da cerca seriam realmente ruins.

    Ainda se ouvia o barulho de vidro estilhaçado quando ela bateu no telhado de uma varanda sessenta centímetros abaixo da janela, o que era um milagre — também não se cortara —, de modo que continuou repetindo MariamãedeDeus enquanto rolava na chuva fustigante em direção à beira do telhado. Ao alcançá-la, agarrou-se ali por um instante, o lado esquerdo sobre o telhado, o lado direito apoiado numa calha que rapidamente se soltava, e olhou para a janela.

    Algo lupino e grotesco vinha em seu encalço.

    Deixou-se cair. Aterrissou numa aléia, sobre o lado esquerdo, fazendo os ossos rangerem, batendo os dentes com tanta força que temeu que fossem se estilhaçar e raspando uma das mãos com força no concreto.

    Mas não ficou deitada, lamentando-se. Ergueu-se tropegamente e, encolhida pela dor, virou-se para correr em direção à rua. Infelizmente, não estava na frente da casa. Estava atrás, no quintal. O muro dos fundos da Nossa Senhora das Mercês limitava o gramado à sua direita e um muro de tijolos de dois metros de altura circundava o resto da propriedade.

    Por causa do muro e das árvores em ambos os lados, ela não podia ver a casa vizinha ao sul nem a outra a oeste, do outro lado da viela que corria atrás da propriedade. Se não podia ver os vizinhos da paróquia, eles também não a podiam ver, mesmo que estivessem olhando pela janela.

    Aquela privacidade explicava por que a criatura-lobo ousara sair para o telhado, perseguindo-a à luz do dia — ainda que nublado e sombrio.

    Considerou por um instante entrar na casa pela cozinha, atravessar o corredor, sair pela porta da frente, para a rua, porque seria a última coisa que eles iriam imaginar. Mas, em seguida, pensou: está louca"!    Não se deu o trabalho de gritar por socorro. Seu coração acelerado parecia ter crescido até os pulmões não terem mais espaço para se expandir, de modo que mal conseguia ar suficiente para se manter consciente, de pé e em movimento. Não tinha fôlego para gritar. Além do mais, ainda que as pessoas ouvissem seu pedido de socorro, não seriam capazes de dizer onde ela estava; quando finalmente a localizassem, estaria ou destroçada ou possuída, porque o grito a teria retardado por um ou dois segundos fatais.

    Em vez disso, mancando um pouco por causa de um músculo distendido na perna esquerda, mas sem perder tempo, atravessou a toda velocidade o extenso gramado dos fundos. Sabia que não podia escalar um paredão liso de dois metros rápido o suficiente para se salvar, especialmente com uma das mãos esfolada, de modo que examinou as árvores enquanto corria. Precisava de uma próxima ao muro; talvez pudesse subir nela, arrastar-se por um galho e pular na viela ou no quintal do vizinho.

    Acima do ruído da chuva, ouviu um rugido rouco às suas costas e ousou olhar por cima do ombro. Usando apenas os farrapos de uma camisa, inteiramente libertado de calças ou sapatos, a criatura-lobo que fora o padre O'Brien saltou da beira do telhado da varanda em seu encalço.

    Finalmente divisou uma árvore adequada — mas no instante seguinte notou um portão no muro, no canto sudoeste. Não o vira antes porque ficara oculto por alguns arbustos que ela acabara de transpor.

    Arquejando, ela abaixou a cabeça, apertou os braços junto ao corpo e correu para o portão. Golpeou a barra da trava com uma das mãos, arrancando-a da fenda onde estava embutida e arremessou-se na viela. Virando à esquerda, afastando-se da Ocean Avenue em direção à Jacobi Street, atravessou poças fundas quase até o fim do quarteirão antes de se arriscar a olhar para trás.

    Nada a havia seguido fora do portão da paróquia.

    Por duas vezes, estivera nas mãos dos alienígenas e por duas vezes conseguira escapar. Sabia que não teria tanta sorte se fosse capturada uma terceira vez.

     

    Pouco antes das nove horas, depois de menos de quatro horas de sono, Sam Booker acordou com o barulho abafado de pratos e panelas na cozinha. Sentou-se no sofá da sala. esfregou os olhos embaçados, calçou os sapatos, colocou o coldre e percorreu o corredor.

    Tessa Lockland cantarolava baixinho enquanto colocava panelas, tigelas e ingredientes sobre a bancada baixa junto ao fogão, começando a preparar o café da manhã.

    —        Bom dia — disse ela alegremente quando Sam entrou na cozinha.

    —        O que há de bom nele? — perguntou.

    —        Apenas ouça a chuva — disse ela. — A chuva sempre me faz sentir limpa e fresca.

    —        Sempre me deprime.

    —       E é bom estar numa cozinha quente e seca, ouvindo a tem pestade, mas num lugar aconchegante.

    Ele cocou a barba por fazer.

    —        Parece-me um pouco abafado aqui.

    —        Bem, de qualquer modo, ainda estamos vivos e isto é bom.

    —        Imagino que sim.

    —        Pelo amor de Deus! — Bateu uma frigideira vazia sobre o fogão e lançou um olhar mal-humorado a Sam. — Todos os agentes do FBI são como você?

    —        De que modo?

    —        São todos tão azedos?

    —        Não sou azedo.

    —        Você é um clássico senhor Limão.

    —        A vida não é um parque de diversões.

    —        Não é?

    —        A vida é dura e cruel.

    —        Talvez. Mas também não é um parque de diversões?

    —        Todos os produtores de documentários são como você?

    —        De que modo?

    —        Pollianas.

    —        Isso é ridículo. Não sou nenhuma Polliana.

    —        Ah, não?

    —        Não.

    —        Aqui estamos, presos numa cidade onde a realidade parece ter sido suspensa temporariamente, onde as pessoas são estraçalha das por uma espécie desconhecida, onde bichos-papões percorrem as ruas à noite, onde um gênio de computador louco parece ter virado a biologia humana do avesso, onde é provável que todos nós sejamos mortos ou "convertidos" antes da meia-noite e, quando eu entro aqui, você está sorrindo, animada, cantarolando uma can ção dos -Beatles.

    —        Não era dos Beatles.

    Hem?

    —        Rolling Stones.

    —        E isso faz diferença?

    Ela suspirou.

    —        Ouça, se vai ajudar a comer este café-da-manhã, vai ajudar a prepará-lo, portanto não fique aí parado me olhando com ar irritado.

    —        Está bem, certo, o que posso fazer?

    —        Primeiro, pegue o interfone e chame o Harry, acorde-o.

    Diga-lhe que o café estará pronto em... hum... quarenta minutos.

    Panquecas, ovos e presunto frito.

    Sam apertou o botão do interfone e disse:

    —        Olá, Harry.

    Harry respondeu sem demora, já acordado. Disse que desceria em meia hora.

    —        E agora? — perguntou Sam a Tessa.

    —        Pegue os ovos e o leite na geladeira, mas por favor não olhe dentro das embalagens.

    —        Por que não?

    Ela riu.

    —        Vai estragar os ovos e talhar o leite.

    —        Muito engraçada.

    —        Achei que era.

    Enquanto preparava a massa das panquecas, quebrando seis ovos numa tigela refratária e batendo-os para que pudessem ser despejados na frigideira quando precisasse deles, instruindo Sam a pôr a mesa e ajudá-la com outras pequenas tarefas, cortando cebola, fatiando o presunto, Tessa alternadamente cantarolava e cantava canções de Patti La Belle e das Pointer Sisters. Sam sabia que músicas eram porque ela lhe disse, anunciando cada canção como se fosse uma discjockey ou como se esperasse instruí-lo e descontraí-lo. Enquanto trabalhava e cantava, dançava sem sair do lugar, sacudindo o traseiro, meneando os quadris, balançando os ombros, às vezes estalando os dedos, completamente imbuída na música.

    Divertia-se genuinamente, mas ele sabia que também estava espicaçando-o um pouco e divertindo-se com isso também. Ele tentou apegar-se ao seu humor sombrio e, quando ela lhe sorriu, não devolveu o sorriso, mas diabos ela era bonita. Seu cabelo estava desalinhado, não usava maquiagem e suas roupas estavam amarrotadas por ter dormido com elas, mas a aparência levemente amarfanhada apenas contribuía para o seu charme.

    Às vezes, parava seu cantarolar baixinho para lhe fazer perguntas, mas continuava a cantar e dançar sem sair do lugar enquanto ele respondia.

    —        Já pensou no que vamos fazer para sair desta encrenca em que estamos?

    —        Tenho uma idéia.

    —        Patti La Belle, NewAttitude — disse, identificando a música que cantava. — Essa sua idéia é um profundo e obscuro segredo?

    —        Não. Mas tenho que discuti-la com Harry, obter algumas informações dele, de modo que lhes contarei durante o café.

    Por ordem dela, ele estava curvado sobre a bancada baixa, cortando finas fatias de queijo de um pedaço de Cheddar, quando ela interrompeu sua canção o suficiente para lhe perguntar:

    —        Por que disse que a vida é difícil e cruel?

    —        Porque é.

    —        Mas é também cheia de alegrias...

    —        Não.

    —        ...e beleza...

    —        Não.

    —        ...e esperança...

    —        Besteira.

    —        É, sim.

    —        Não, não é.

    —        É, sim.

    —        Não é.

    —        Por que é tão pessimista?

    —        Porque quero ser.

         — Mas por que quer ser?

    —        Meu Deus, você não desiste.

         _ Pointer Sisters, Neutron Dance.

    Cantou uma parte, dançando sem sair do lugar, enquanto colocava as cascas dos ovos e outros restos no triturador. Em seguida, interrompeu a canção para dizer:

    —        O que pode lhe ter acontecido para fazê-lo achar que a vida é só cruel e difícil?

          — Você não vai querer saber.       — Sim, quero.

        Ele terminou de cortar o queijo e colocou o cortador sobre a bancada.

          — Quer mesmo saber?       — Quero, sim.

         — Minha mãe morreu num acidente de trânsito quando eu tinha apenas sete anos. Eu estava no carro com ela, quase morri, na verdade fiquei preso nas ferragens por mais de uma hora, cara a  cara, fitando sua órbita sem olho, todo um lado de sua cabeça afundado. Depois disso, tive que ir morar com meu pai, de quem ela se divorciara, e ele era um filho da mãe de mau gênio, um alcoólatra, e não sei lhe dizer quantas vezes ele me surrou ou me amarrou numa cadeira da cozinha, deixando-me ali horas seguidas, até eu não agüentar mais e urinar nas calças e, então, ele finalmente vinha me desamarrar, via o que eu fizera e me batia por isso.

    Surpreendeu-se de como tudo saíra num jato, como se as comportas de seu subconsciente tivessem sido abertas, derramando toda a lama represada durante anos de estóico autocontrole.

    —        Assim, tão logo terminei o colégio, saí de casa, consegui fazer a faculdade, morando em miseráveis quartos alugados, compartilhando minha cama com exércitos de baratas toda noite, depois fiz concurso para o Bureau assim que pude, porque queria ver justiça no mundo, participar em trazer justiça para o mundo, talvez por ter havido tão pouca justiça em minha vida. Mas descobri que em mais da metade dos casos a justiça não triunfa. Os bandidos conseguem se safar, por mais que se faça para pegá-los, porque os bandidos em geral são muito inteligentes e os mocinhos nunca se permitem ser tão cruéis quanto deveriam para fazer o trabalho bem-feito.

    Mas, ao mesmo tempo, quando se é um agente, o que se vê principalmente é o submundo da sociedade, você lida com a escória, de um tipo ou de outro, e a cada dia isto o torna mais cínico, mais enojado com as pessoas e farto delas.

    Falava tão depressa que quase perdera o fôlego. Ela parará de cantar.

    Ele continuou com uma falta de controle incomum, falando tão depressa que suas frases às vezes se uniam.

    —       E minha mulher morreu, Karen, ela era maravilhosa, você teria gostado dela, todos gostavam dela, mas teve câncer e morreu, dolorosamente, horrivelmente, com muito sofrimento, não tão fácil como Ali McGraw no cinema, não com um simples suspiro, um sorriso e um adeus tranqüilo, mas em agonia. E depois perdi meu filho também. Ah, ele está vivo, dezesseis anos, tinha nove quando a mãe morreu, física e mentalmente vivo, mas emocionalmente mor to, com o coração apagado, frio por dentro, completamente frio por dentro. Gosta de computadores, videogames e televisão, e ouve black metal. Sabe o que é black metal! É música heavy metal com um toque satânico, que ele gosta porque lhe diz que não existem valores morais, que tudo é relativo, que sua alienação está certa, que sua frieza interior está certa, diz-lhe que tudo que ele achar bom é bom. Sabe o que ele me disse uma vez?

    Ela sacudiu a cabeça.

     —       Ele me disse: "As pessoas não têm importância. As pessoas não contam. Só as coisas são importantes. O dinheiro é importante, a bebida é importante, meu aparelho de som é importante, tudo que me faz sentir bem é importante, mas eu não sou importante.”

    Ele me diz que as bombas nucleares são importantes porque um dia vão explodir todas essas coisas boas, não porque vão explodir pessoas, afinal, as pessoas não significam nada, não passam de animais poluidores que estragam o mundo. É o que ele diz. É o que me diz que acredita. Diz que pode provar que tudo isso é verdade. Diz que, da próxima vez que eu vir um grupo de pessoas em volta de um Por che, admirando o carro, olhe bem em seus rostos e verá que se importam mais com o carro do que uns com os outros. Também não estão admirando o trabalho do homem, não, não no sentido de que estejam pensando nas pessoas que fizeram o carro. É como se o Porsche fosse um organismo vivo, como se tivesse crescido ou de alguma forma criado a si mesmo. Admiram-no por ele mesmo, não pelo que representa de capacidade e habilidade da engenharia humana.

    O carro é mais vivo do que eles. Eles extraem energia do carro, de suas linhas elegantes, de modo que o carro se torna mais real e mui to mais importante do que qualquer das pessoas que o admiram.

    —        Isso é besteira — disse Tessa com convicção.

    —        Mas é o que ele me diz, e eu sei que é bobagem, tento racionalizar com ele, mas ele tem todas as respostas, ou acha que tem.

    E às vezes eu fico pensando... se eu mesmo não fosse tão amargo a respeito da vida, tão enojado de tantas pessoas, talvez pudesse argumentar de forma mais persuasiva com ele. Se eu não fosse quem sou, seria mais capaz de salvar meu filho?

    Interrompeu-se.

    Percebeu que estava tremendo.

    Ambos fizeram silêncio por um instante.

    Então ele falou:

    —        Foi por isso que eu disse que a vida é cruel e difícil.

    —        Sinto muito, Sam.

    —        Não é culpa sua.

           — Nem sua.

          Embrulhou o queijo tipo Cheddar num papel-alumínio e  devolveu-o à geladeira, enquanto ela voltava à massa de panqueca que estava preparando.

     —       Mas você teve Karen — disse ela. — Houve amor e beleza tem sua vida.

            — É verdade.       — Bem, então...       — Mas não durou.

      —      Nada dura para sempre.

    —        Este é exatamente o meu ponto — disse ele.

    —        Mas isso não significa que não possamos apreciar uma bênção quando a temos. Se você ficar olhando sempre para a frente, imaginando quando esse momento de alegria vai terminar, nunca conhecerá nenhum prazer verdadeiro na vida.

    —        Exatamente meu ponto — repetiu ele.

    Ela largou a colher de pau na grande tigela de inox e voltou-se para encará-lo.

    —        Mas isso é errado. Quero dizer, a vida é cheia de momentos maravilhosos, de prazer, alegria... e se não agarrarmos esses mo mentos, se às vezes não desligarmos os pensamentos sobre o futuro e relaxarmos por um instante, não teremos nenhuma lembrança de alegria para levar conosco nos tempos difíceis, e nenhuma esperança.

    Ele fitou-a, admirando sua beleza e vitalidade. Mas então começou a pensar como envelheceria, ficaria flácida e morreria como tudo morre e não conseguiu mais olhar para ela. Desviou o olhar para a janela varrida pela chuva, acima da pia.

    —        Bem, desculpe-me se eu a transtornei, mas tem que admitir que você pediu para ouvir. Você insistiu em saber porque eu era o senhor Limão.

    —        Ah, você não é o senhor Limão — disse ela. — Você vai muito além. Você é um verdadeiro Apocalipse.

    Ele deu de ombros.

    Ambos voltaram às tarefas culinárias.

     

     Depois de fugir pelo portão nos fundos do jardim da paróquia, Chrissie continuou caminhando por mais de uma hora enquanto tentava decidir o que fazer. Pensara em ir para a escola e contar a história à sra. Tokawa, se o padre Castelli não a ajudasse. Mas agora não queria confiar nem mesmo na sra. Tokawa. Depois da experiência com os padres, compreendeu que os alienígenas provavelmente haviam se apoderado de todas as personalidades importantes de Moon-light Cove como o primeiro passo para a conquista. Já sabia que os padres estavam possuídos. Tinha certeza que a polícia também fora dominada, de modo que era lógico supor que os professores também estivessem entre as primeiras vítimas.

    Enquanto se deslocava de um quarteirão a outro, alternadamente maldizia a chuva e agradecia por ela. Seus sapatos, jeans e camisa de flanela estavam ensopados outra vez e sentia-se enregelada até os ossos. Mas o dia escuro e cinzento e a chuva mantinham as pessoas em suas casas e forneciam-lhe alguma cobertura. Além disso, quando o vento parou, um nevoeiro fino e frio veio do mar, nem de longe tão denso como o da noite anterior, apenas uma névoa que aderia às árvores, mas suficiente para ocultar ainda mais a passagem de uma menina pelas ruas pouco amistosas.

    A tempestade e os trovões da noite anterior também haviam passado. Já não corria o risco de ser atingida por um raio súbito, o que já era um consolo.

    JOVEM CARBONIZADA POR UM RAIO, DEPOIS DEVORADA POR ALIENÍGENAS; CRIATURAS DO ESPAÇO APRECIAM BATATAS FRITAS HUMANAS; "SE PUDERMOS FAZÊ-LAS ONDEADAS", DISSE A RAINHA DOS EXTRATERRESTRES, "FICAM PERFEITAS COM MOLHO DE CEBOLA.”

    Continuou locomovendo-se o máximo possível por quintais e vielas, atravessando ruas só quando necessário e sempre depressa, pois via muitas duplas de homens de semblantes sombrios e olhos aguçados em carros que se moviam devagar, sem dúvida patrulheiros. Por duas vezes, quase se deparou com eles em vielas também e teve que se atirar ao chão para se esconder, antes que a vissem. Aproximadamente quinze minutos após ter fugido pelo portão dos fundos da paróquia, notou mais patrulhas na região, um repentino afluxo de carros e de homens a pé. Patrulheiros a pé eram os que mais a apavoravam. Duplas de homens em capas de chuva estavam em melhores condições de conduzir uma busca e eram mais difíceis de ludibriar do que homens em carros. Estava aterrorizada de colidir com eles inadvertidamente.

    Na verdade, passou mais tempo escondida do que em movimento. Uma vez, encolheu-se por algum tempo atrás de um monte de latas de lixo numa viela. Refugiou-se sob um abeto, cujos ramos mais baixos quase tocavam o chão, como uma saia, fornecendo um esconderijo escuro e bastante seco. Por duas vezes enfiou-se embaixo de carros e ali ficou algum tempo.

    Nunca permanecia no mesmo lugar mais do que cinco ou dez minutos. Receava que alguém possuído por um alienígena a visse ao penetrar em seu esconderijo, chamasse a polícia para informar e ela fosse apanhada.

    Quando chegou ao terreno baldio na Juniper Lane, ao lado da Funerária Callan, e se escondeu na vegetação mais densa — capim alto e chaparral — começou a se perguntar se jamais conseguiria pensar em alguém a quem recorrer. Pela primeira vez desde que sua provação começara estava perdendo a esperança.

    Um enorme abeto espalhava seus galhos por uma parte do terreno e a moita em que se escondia estava dentro de seus domínios, de modo que estava ao abrigo da chuva. Mais importante ainda, encolhida no capinzal, ela não podia ser vista da rua ou das janelas das casas próximas.

    Entretanto, a cada minuto, erguia a cabeça o suficiente para olhar ao redor, a fim de se certificar de que ninguém se aproximava sorrateiramente. Durante esse reconhecimento, olhando para leste, além da viela aos fundos do terreno, em direção à Conquistador, viu parte de uma grande casa de madeira e vidro no lado leste daquela rua. A casa de Talbot. Lembrou-se imediatamente do homem na cadeira de rodas.

    Ele fora à Thomas Jefferson para falar aos alunos da quinta  e sexta séries no ano anterior, durante a Semana da Conscientização, um programa de estudos de uma semana que na maior parte era perda de tempo, embora ele tivesse sido interessante. Ele lhes falara das dificuldades e das surpreendentes habilidades das pessoas inválidas.

    No começo, Chrissie sentira pena dele, achara-o semimorto, porque parecia tão patético sentado em sua cadeira de rodas, o corpo parcialmente inutilizado, capaz de usar apenas uma das mãos, a cabeça um pouco virada e sempre inclinada para um lado. Mas depois, conforme o ouvia, percebeu que tinha um excelente senso de humor e não sentia pena de si mesmo, de modo que parecia cada vez mais absurdo ter pena dele. Tiveram a oportunidade de lhe fazer perguntas e ele mostrou-se tão solícito em discutir os detalhes íntimos de sua vida, as tristezas e alegrias, que ela passou a admirá-lo muito.

    E seu cachorro Moose fora incrível.

    Agora, olhando para a casa de madeira e vidro através das lâminas brilhantes de chuva do capim alto, pensando em Harry Talbot e Moose, Chrissie imaginou se aquele seria um local onde pudesse obter ajuda.

    Afundo de novo no mato e pensou no assunto por alguns minutos.

    Sem dúvida um paralítico preso a uma cadeira de rodas seria uma das últimas pessoas que os alienígenas se preocupariam em possuir — se é que o desejariam.

    Sentiu vergonha de si mesma por pensar desse modo. Um inválido não era um ser humano de segunda classe. Tinha tanto a oferecer a um alienígena quanto qualquer outra pessoa.

      Por outro lado... um bando de alienígenas teria uma visão esclarecida de pessoas incapacitadas? Não era esperar um pouco demais? Afinal, eram alienígenas. Seus valores não deviam ser os mesmos dos seres humanos. Se saíam por aí plantando sementes — ou rastos ou pegajosos filhotes de lesmas ou o que quer que fossem — nas pessoas, e se comiam gente, certamente não se podia esperar que tratassem inválidos com o devido respeito, assim como não ajudariam velhinhas a atravessar a rua.

    Harry Talbot.

    Quanto mais pensava nele, mais certa Chrissie ficava de que Talbot fora poupado da terrível atenção dos alienígenas.

     

    Depois de chamá-lo de Sr. Apocalipse, ela untou a chapa para que as panquecas não grudassem.

    Acendeu o forno e colocou ali uma travessa também, para onde poderia transferir as panquecas conforme as fazia, a fim de mantê-las quentes.

    Em seguida, em um tom de voz que o fez saber que ela estava disposta a persuadi-lo a reconsiderar sua árida avaliação da vida, ela disse:

    —        Diga-me...

    —        Será que ainda não vai deixar esse assunto em paz?

    —        Não.

         Ele suspirou.

    Tessa continuou:    

     —       Se você é assim tão sombrio, por que não...

    —        Se suicida?

         — Por que não? Ele riu amargamente.

    —        No caminho para cá, quando vinha de San Francisco, fiz um pequeno jogo comigo mesmo: enumerei as razões pelas quais a vida valia a pena ser vivida. Consegui descobrir apenas quatro, mas acho que são suficientes, porque ainda estou por aqui.

    —        E quais são elas?

    —        Primeiro, uma boa comida mexicana.

    —        Concordo.

    —        Segunda, cerveja Guinness Stout,

     —       Eu prefiro Heineken Dark.

    —        É boa, mas não é uma razão para viver. Guiness é uma ra zão para viver.

    —        Qual é a terceira?

           — Goldie Hawn.

    —        Conhece Goldie Hawn?

    —        Não. Talvez não queira, pois poderia me decepcionar. Falo de sua imagem nas telas, a Goldie Hawn idealizada.

    —        É a garota de seus sonhos, hem?

    —        Mais do que isso. Ela... diabos, não sei... ela parece intocada pela vida, imune, cheia de vida e feliz e inocente e... divertida.

    —        Acha que um dia a conhecerá?

    —        Deve estar brincando.

    Ela disse:

    —        Sabe de uma coisa?

    —        O quê?

    —        Se você realmente se encontrasse com Goldie Hawn, se ela viesse falar com você numa festa e dissesse alguma coisa engraçada, algo interessante, e risse daquele seu jeito, você nem sequer a reconheceria.

    —        Ah, eu a reconheceria, sim.

    —        Não, não reconheceria. Estaria tão ocupado cismando em quanto sua vida é injusta, difícil, cruel, vazia, infeliz e estúpida que não perceberia o momento. Nem sequer perceberia o momento. Estaria encoberto demais por uma névoa de melancolia para perceber quem ela era. Agora, qual a sua quarta razão para viver?

    Ele hesitou.

    —        Medo da morte.

    Ela fitou-o e pestanejou.

    —        Não compreendo. Se a vida é tão terrível, por que a morte deve ser temida?

    —        Eu passei por uma experiência próxima da morte. Foi nu ma cirurgia, para retirar uma bala do meu peito, e quase bati as botas. Eu me ergui do meu corpo, subi para o teto, observei os médicos por alguns instantes, depois me vi correndo cada vez mais rápido por um longo túnel escuro em direção a uma luz ofuscante: todo o maldito cenário.

    Ela ficou impressionada e intrigada. Seus claros olhos azuis arregalaram-se de curiosidade.

    —        E então?

    —        Eu vi o que há do outro lado.

    —        Está falando sério?

    —        Completamente.

     —       Está me dizendo que sabe que existe vida após a morte?

    —        Estou.

    —        Um Deus?

    —        Sim.

    Perplexa, ela disse:

    —        Mas se sabe que existe um Deus e que saímos deste mundo para outro, então sabe que a vida tem um propósito, um significado.

    —        E daí?

    —        Bem, é a dúvida sobre o propósito da vida que está na origem dos surtos de melancolia e depressão da maioria das pessoas.

    A maioria de nós, se tivéssemos vivenciado o que você vivenciou... bem, nunca mais nos preocuparíamos. Teríamos força para enfrentar qualquer adversidade, sabendo que havia um propósito naquilo e uma vida depois. Então o que há de errado com você? Por que não se animou depois disso? Você é um cabeça-dura ou o quê?

    —        Cabeça-dura?

    —        Responda à pergunta.

    O elevador rangeu e subiu do corredor térreo.    

     — Harry está chegando — disse Sam.      — Responda à pergunta — repetiu ela.

    —        Digamos apenas que o que eu vi não me deu esperança. Simplesmente me apavorou.

    —        Bem, não me deixe em suspense. O que viu do Outro Lado?

    —        Se eu lhe disser, vai achar que sou maluco.

    —        Não tem nada a perder. Eu já acho que você é maluco.

         Ele suspirou e sacudiu a cabeça, desejando jamais ter tocado no assunto. Como ela conseguira fazê-lo se abrir tão completamente?

    O elevador chegou ao terceiro andar e parou.      Tessa afastou-se do balcão da cozinha, aproximou-se dele r disse:

    —        Diga-me o que viu, droga.

     —       Não vai entender.

    —        O que pensa que eu sou, uma retardada?

    —        Ah, você compreenderia o que eu vi, mas não o que significou para mim.

    —        Você compreende o que significou para você?

    —        Ah, sim — disse ele solenemente.

    —        Vai me dizer por bem, ou vou ter que pegar um garfo de carne e torturá-lo até me contar?

    O elevador começou a descer do terceiro andar.

    Ele olhou para o corredor.     — Eu realmente não quero discutir isso. .  — Não quer, hem?

    —        Não.

    —        Você viu Deus e não quer discutir o assunto.

    —        Isso mesmo.

    —        A maioria das pessoas que vêem Deus... essa é a única coisa que querem discutir. A maioria das pessoas que vêem Deus... elas fundam religiões inteiras baseadas num único encontro com Ele e contam a milhões de pessoas sobre isso.

    —        Mas eu...

    —        O fato é que, segundo o que li, a maioria das pessoas que passam por uma experiência próxima à morte, se transformam pa ra sempre depois disso. E sempre para melhor. Se eram pessimistas, tornam-se otimistas. Se eram ateus, tornam-se crentes. Seus valores mudam, aprendem a amar a vida pelo que é, tornam-se incrivelmente radiantes] Mas você não. Ah, não, você se torna ainda mais amar go, ainda mais sombrio, ainda mais triste.

    O elevador chegou ao térreo e silenciou.

    —        Harry está vindo — disse Sam.

    —        Conte-me o que viu.

    —        Talvez eu possa contar a você — disse ele, surpreso ao perceber que estava disposto a discutir o assunto com ela na hora certa, no lugar certo. — Talvez a você. Mas depois.

    Moose entrou na cozinha, arquejando e mostrando os dentes para eles, e Harry surgiu em sua cadeira de rodas no vão da porta em seguida.

    —        Bom dia — disse Harry alegremente.

    —        Dormiu bem? — perguntou Tessa, dirigindo-lhe um verdadeiro sorriso de afeto que Sam invejou.

    Harry respondeu:

    —        Profundamente, mas não tão profundamente quanto um morto, graças a Deus.

    —        Panquecas? — perguntou-lhe Tessa.

    —        Pilhas, por favor.

    —        Ovos?

    —        Dúzias.

    —        Torradas?

    —        Pães inteiros.

    —        Gosto de ver um homem com apetite.

    Harry disse:

    —        Corri a noite inteira, de modo que estou faminto.

    —        Correu?

    —        Em sonhos. Perseguido pelos bichos-papões.

    Enquanto Harry pegava um pacote de ração de cachorro de baixo de uma das bancadas e enchia a vasilha de Moose a um canto, Tessa dirigiu-se à chapa, untou-a outra vez, disse a Sam que ele estava encarregado dos ovos e começou a despejar as primeiras colheradas de panqueca da tigela de massa. Após um instante, ela anunciou, começando a cantar e dançar sem sair do lugar outra vez.

    —        Patti La Belle, "Stir It Up".

    —        Ei — disse Harry —, posso lhe dar música se deseja música.

    Deslizou a cadeira de rodas até um rádio montado sob uma das bancadas e que nem Tessa nem Sam haviam visto, ligou-o e girou o botão até chegar a uma estação que tocava "I Heard it Through the Grapevine", de Gladys Knight and the Pips.

    —        Tudo bem — disse Tessa, e começou a gingar e se sacudir com tal entusiasmo que Sam não conseguia entender como conseguia despejar a massa de panqueca na chapa em porções tão certas.

    Harry riu e girou sua cadeira motorizada em círculos, como se dançasse com ela. Sam disse:

    —        Será que vocês não sabem que o mundo está desabando a nossa volta?

    Eles o ignoraram. Sam supôs que era o que merecia.

     

     Por um caminho indireto, ocultando-se na chuva e na névoa ou em qualquer sombra que divisasse, Chrissie alcançou a viela a leste da Conquistador. Entrou no quintal de Talbot por um portão numa cerca de madeira e correu de uma moita para outra, por duas vezes quase pisando em excremento de cachorro — Moose era um cachorro surpreendente, mas não inteiramente sem defeitos —, até alcançar os degraus da varanda dos fundos.

    Ouviu música vindo da casa. Era uma música antiga, do tempo em que seus pais eram adolescentes. E na verdade fora uma de suas favoritas. Embora Chrissie não lembrasse do nome da música, lembrava-se do nome do conjunto: Júnior Walker and the All-Stars. Imaginando que a música, combinada ao tamborilar da chuva, encobriria qualquer ruído que fizesse, esgueirou-se pelos degraus até a varanda e, agachada, aproximou-se da janela mais próxima. Ficou agachada sob o peitoril da janela por algum tempo, ouvindo-os. Conversavam, em geral rindo, às vezes acompanhando a canção no rádio. Não pareciam alienígenas. Pareciam pessoas comuns.

    Seriam os extraterrestres capazes de apreciar a música de Stevie Wonder, dos Four Tops e das Pointer Sisters? Improvável. Aos ouvidos humanos, a música alienígena provavelmente soava como cavaleiros em armaduras tocando gaita de foles enquanto caíam por um longo lance de escadas em meio a um bando de cachorros ladrando. Mais como Twisted Sister do que as Pointer Sisters.

    Ergueu-se apenas o suficiente para espreitar por cima do peitoril, através de uma brecha entre as cortinas. Viu o sr. Talbot em sua cadeira de rodas, Moose e uma mulher e um homem desconhecidos. O sr. Talbot marcava o compasso com a mão boa no braço de sua cadeira e Moose sacudia a cauda vigorosamente, como se estivesse fora de sintonia com a música. O outro homem usava uma espátula para tirar ovos de duas frigideiras e passá-los para os pratos, olhando com ar carrancudo para a mulher ao fazê-lo, talvez por não aprovar o modo como ela se entregava à música, mas ainda assim batendo o pé direito ao compasso da canção. A mulher preparava panquecas e as transferia para uma travessa no forno e, enquanto trabalhava, balançava-se, gingava e sacudia-se; tinha movimentos perfeitos.

    Chrissie agachou-se outra vez e pensou no que vira. Nada no comportamento deles parecia particularmente estranho se fossem pessoas, mas, se fossem alienígenas, não estariam dançando ao som do rádio enquanto preparavam o café da manhã. Chrissie não conseguia acreditar que extraterrestres — como a criatura que se fazia passar pelo padre Castelli — pudessem ter senso de humor ou ritmo. Sem dúvida, tudo que importava aos alienígenas era se apossar de novos hospedeiros e encontrar novas receitas para cozinhar tenras criancinhas.

    Entretanto, resolveu esperar até ter a oportunidade de vê-los comendo. Pelo que ouvira Tucker e sua mãe falarem na campina na noite anterior, e pelo que vira no café da manhã com a criatura do padre Castelli, achava que os alienígenas eram vorazes, cada qual com o apetite de seis homens. Se Harry Talbot e seus hóspedes não se mostrassem verdadeiros glutões à mesa, provavelmente poderia confiar neles.

     

     Loman permanecera na casa de Peyser, supervisionando a limpeza e acompanhando a transferência dos corpos dos regressivos para o carro fúnebre da Callan. Tinha medo de deixar seus homens fazerem o trabalho sozinhos, com receio de que a visão de corpos transformados ou o cheiro de sangue pudesse induzi-lo,a buscar formas alteradas para si mesmos. Sabia que todos — inclusive ele próprio. — caminhavam por um fio suspenso sobre um abismo . Pela mesma      razão, ele seguira o carro da funerária e ficara com Callan e seu assistente até os corpos de Peyser e Sholnick alimentarem as chamas incandescentes do crematório.

    Verificou o progresso da busca de Booker, da mulher Lockland e de Chrissie Foster e fez algumas mudanças no destacamento a patrulhas. Estava no escritório quando recebeu o relatório de Castelli e dirigiu-se sem demora à paróquia de Nossa Senhora das Mercês, para ouvir em primeira mão como a garota conseguiu escapar deles. Estavam cheios de desculpas, a maioria esfarrapadas. Suspeitava que haviam regredido, a fim de se divertir com a garota, só pela emoção e, enquanto brincavam com ela, lhe deram a chance de fugir. Obviamente, eles não admitiam a regressão.

    Loman reforçou o patrulhamento na área, mas não havia sinal da garota. Ela se escondera. Ainda assim, se tivesse entrado na cidade, em vez de se dirigir à auto-estrada, era provável que a pegassem e a convertessem antes do fim do dia.

    Às nove horas, ele voltou à sua casa, na Iceberry Way, para tomar o café da manhã. Desde que quase degenerara no quarto coberto do sangue de Peyser, suas roupas estavam folgadas no corpo. Perdera alguns quilos conforme seus processos catabólicos consumiram a própria carne para gerar a enorme energia necessária à regressão — e para resistir à regressão.

    A casa estava escura e silenciosa. Denny sem dúvida estava no andar de cima, diante do computador, como na noite anterior. Grace saíra para trabalhar na Thomas Jefferson, onde era professora; tinha que manter a aparência de uma vida comum até todos em Moonlight Cove terem sido convertidos.

    Até o momento, nenhuma criança de menos de doze anos fora submetida à conversão, em parte por causa de dificuldades que técnicos da New Wave tiveram em determinar a dosagem correta para conversões de pessoas mais jovens. Esses problemas foram solucionados e esta noite as crianças seriam acrescentadas ao grupo.

    Na cozinha, Loman parou por um instante, ouvindo a chuva batendo nas janelas e o tique-taque do relógio.

    Serviu-se de um copo d'água. Bebeu-o, e outro, e mais dois. Estava desidratado depois da experiência com Peyser.

    A geladeira estava abarrotada de presuntos de três quilos, rosbife, um peru semidevorado, uma travessa de costeletas de porco, peitos de frango, salsichas e pacotes de mortadela e carne seca. Os metabolismos acelerados da Nova Gente exigiam uma dieta rica em proteínas. Além do mais, tinham um fome insaciável de carne.

    Tirou um pão de centeio integral da cesta de pães e sentou-se com ele, o rosbife, o presunto e um pote de mostarda. Permaneceu à mesa por algum tempo, cortando ou arrancando grossos bocados de carne, envolvendo-os em pão untado com mostarda e enfiando os dentes nele em largas mordidas. A comida dava-lhe menos prazer sutil do que quando era uma Pessoa Antiga; agora, o aroma e o gosto da comida provocavam nele uma excitação animal, uma enorme voragem e gula. De certa forma sentia repulsa pelo modo como devorava a comida e a engolia antes de terminar de mastigar adequadamente, mas todo esforço que fazia para se conter logo dava lugar a uma consumação ainda mais febril. Caiu numa espécie de semitranse, hipnotizado pelo ritmo de mastigar e engolir. Em certo momento, ficou lúcido o suficiente para perceber que retirara os peitos de frango da geladeira e que os comia com entusiasmo, embora estivessem crus. Deixou-se cair de novo no semitranse.

    Ao terminar de comer, subiu para ver Denny.

    Quando abriu a porta do quarto do rapaz, no começo tudo parecia estar como na última vez que o vira, na noite anterior. As sombras eram menores, as cortinas estavam cerradas, o quarto às escuras exceto pela luz esverdeada do terminal. Denny estava sentado diante do computador, absorto nos dados que piscavam na tela.

    Então Loman viu algo que o arrepiou.

    Fechou os olhos.

    Aguardou.

    Abriu-os.

    Não era uma ilusão.

    Sentiu-se enjoado. Quis recuar para o corredor e fechar a porta, esquecer o que vira, ir embora. Mas não conseguia se mover, nem desviar os olhos.

    Denny havia desligado o teclado do computador e o colocado no chão ao lado da cadeira. Ele desparafusara a placa de cobertura frontal da unidade de processamento de dados. Suas mãos estavam no colo, mas já não eram propriamente mãos. Seus dedos estavam terrivelmente alongados, terminando não em extremidades e unhas, mas em fios de aparência metálica, da espessura de fios de iluminação, que penetravam sinuosamente nas entranhas do computador, ali desaparecendo.

    Denny já não precisava do teclado.

    Ele tornara-se parte do sistema. Através do computador e sua ligação por modem à New Wave, Denny se tornara parte do Sol.

    — Denny?

      Ele assumira um estado alterado, mas nada semelhante ao que os regressivos buscavam.

    —        Denny?

    O rapaz não respondeu.

    —        Denny!

    Um estalido estranho e baixo e sons eletrônicos pulsantes vieram do computador.

    Relutantemente, Loman entrou no quarto e caminhou até a escrivaninha. Olhou para o filho e estremeceu.

    A boca de Denny pendia aberta. A saliva escorria pelo queixo. Tornara-se tão arrebatado pelo seu contato com o computador que não se importara em levantar para comer ou ir ao banheiro; urinara nas calças.

    Seus olhos haviam desaparecido. Em seu lugar, havia o que pareciam ser duas esferas de prata liqüefeita, brilhantes como espelhos. Refletiam os dados que atravessavam sem parar a tela diante deles.

    A pulsação, suaves oscilações eletrônicas, não vinha do computador, mas de Denny.

     

     Os ovos estavam bons, as panquecas melhores ainda e o café forte o suficiente para pôr em risco os adornos das xícaras de porcelana, mas não tão forte que precisasse ser mastigado. Enquanto comiam, Sam descreveu o método que havia imaginado para transmitir uma mensagem da cidade para o Bureau.

     —       Seu telefone ainda está mudo, Harry. Eu tentei usá-lo esta  manhã. E não creio que possamos nos arriscar a ir para a interesta dual a pé ou de carro, não com as patrulhas e barreiras de estrada ; que montaram; isso seria um último recurso. Afinal, até onde sabemos, somos as únicas pessoas que acreditam que alguma coisa de...  errado está acontecendo aqui, e que há uma necessidade urgente de impedir que isso continue. Nós e talvez a menina Foster, aquela que os tiras mencionaram na conversa pelo terminal ontem à noite.

    —        Se for uma menina — disse Tessa —, apenas uma criança,  mesmo que seja uma adolescente, não vai ter muita chance contra eles. Temos que imaginar que irão pegá-la, se já não o fizeram.

    Sam assentiu.

    —        E se nos pegarem também, enquanto estivermos tentando sair da cidade, não restará ninguém para fazer o serviço. Portanto, primeiro temos que tentar um piano de ação de baixo risco.

    —        Existe alguma opção de baixo risco? — perguntou Harry enquanto limpava um pouco de gema no prato com um pedaço de torrada , comendo devagar e com movimentos pausados, necessários pelo fato de dispor apenas de uma das mãos.

    Despejando um pouco mais de calda sobre suas panquecas, surpreso do quanto estava comendo, atribuindo seu apetite à possibilidade de aquela ser sua última refeição, Sam disse:

    —        Sabe... esta é uma cidade toda interligada.

    —        Interligada?

    —        Por computador. A New Wave doou computadores para a polícia, para que ficassem presos à rede...

    —        E às escolas — disse Harry. — Lembro-me de ter lido a respeito nos jornais na primavera ou começo do verão. Doaram vários computadores e programas tanto para as escolas primárias quanto para as secundárias. Um gesto de envolvimento cívico, foi como o denominaram.

    —        Agora parece mais assustador do que isso, não? — indagou Tessa.

    —        Certamente.

    Tessa disse:

    —        Agora parece que talvez quisessem seus computadores nas escolas pela mesma razão que desejavam a polícia informatizada:

    para ligar todos eles à New Wave, para monitorar e controlar.

    Sam colocou o garfo sobre o prato.

    —        A New Wave emprega, o quê?, cerca de um terço da população da cidade?

    —        Provavelmente — disse Harry. — Moonlight Cove só começou a crescer realmente depois que a New Wave se instalou aqui há dez anos. De certa forma, é como uma antiga cidade industrial.

    A vida aqui não é apenas dependente do principal empregador, mas também socialmente bastante centralizada em torno dele.

    Depois de tomar um gole de café quase tão forte quanto conhaque, Sam disse:

    —        Um terço da população... o que vem a ser aproximadamente quarenta por cento dos adultos.

    Harry concordou:

    —        Creio que sim.

    —        E você tem que imaginar que todos da New Wave façam parte da conspiração, que estavam entre os primeiros a serem... convertidos.

    Tessa assentiu.

    —        Acho que isso é um fato.

    —        E são mais do que normalmente interessados em computa dores, claro, porque trabalham naquela indústria, portanto pode mos apostar que a maioria ou todos têm computadores em casa.

    Harry aquiesceu.

    —        E sem dúvida muitos, senão todos esses computadores podem se ligar através de modem diretamente à New Wave, de modo que podem trabalhar em casa à noite ou nos fins de semana, se necessário. E agora, com esse plano de conversão perto da conclusão, aposto que estão trabalhando dia e noite; os dados devem estar in do e vindo pelas linhas telefônicas quase a noite toda. Se Harry puder me indicar alguém neste quarteirão que trabalhe para a New Wave...

    —        Há vários — disse Harry.

    —        ...então eu poderia sair, ver se tem alguém em casa. A esta hora, provavelmente estão no trabalho. Se não houver ninguém, tal vez consiga fazer uma ligação para fora pelo telefone deles.

    —        Espere, espere — disse Tessa. — Que história é essa de tele fones? Os telefones não estão funcionando.

    Sam sacudiu a cabeça.

    —        Tudo que sabemos é que os telefones públicos estão mudos, como o de Harry. Mas lembre-se: a New Wave controla o computa dor da companhia telefônica, portanto provavelmente podem selecionar quais linhas vão cortar. Aposto como não cortaram as linhas daqueles que já foram... convertidos. Eles não iriam negar comunicação a si mesmos. Especialmente não agora, numa crise, e com o plano deles quase concluído. Há mais do que cinqüenta por cento de chances de que as únicas linhas que cortaram são as que imaginam que iríamos usar: telefones públicos, telefones instalados em locais públicos, como no motel, e os telefones nas casas das pessoas que ainda não foram convertidas.

     

     O medo inundou Loman Watkins, saturou-o tão completamente que, se possuísse substância, poderia ser extraído de sua carne em quantidades iguais aos rios que naquele momento despejavam-se do céu assolado pela tempestade lá fora. Temia por si mesmo, pelo que ainda poderia vir a se transformar. Temia por seu filho também, sentado diante do computador com uma aparência completamente alienígena. E também tinha medo de seu filho, não adiantava negar, apavorado com ele e incapaz de tocá-lo.

    Uma torrente de dados coruscava pela tela em ondas verdes indistintas. Os olhos prateados, líquidos, brilhantes de Denny — como poças de mercúrio em suas órbitas — refletiam os fluxos luminosos de letras, números, gráficos e tabelas. Sem piscar.

    Loman lembrou-se do que Shaddack dissera na casa de Peyser quando viu que este regredira para uma forma lupina que não podia ser parte da história genética do homem. A regressão não era simplesmente — ou mesmo basicamente — um processo físico. Era um exemplo do poder da mente sobre a matéria, da consciência ditando a forma. Como já não podiam ser pessoas comuns, e como não podiam tolerar a vida como insensíveis Nova Gente, buscavam estados alterados onde a existência era mais suportável. E o rapaz buscara aquele estado, desejara se transformar naquela coisa grotesca.

    — Denny?

    Nenhuma resposta.

    O rapaz emudecera inteiramente. Nem mesmo ruídos eletrônicos emanavam dele.

    Os fios metálicos, como os dedos do rapaz terminavam, vibravam continuamente e às vezes latejavam como se pulsações irregulares de sangue espesso e inumano os atravessassem, circulando entre partes orgânicas e não orgânicas do mecanismo.

    O coração de Loman batia tão rápido quanto seriam seus passos se pudesse fugir. Mas estava pregado no lugar pelo peso de seu medo. Começou a suar copiosamente. Esforçou-se para não vomitar a enorme refeição que acabara de fazer.

    Desesperadamente, imaginou o que deveria fazer e a primeira ; coisa que lhe ocorreu foi telefonar para Shaddack e buscar sua ajuda. Sem dúvida Shaddack compreenderia o que estava acontecendo e saberia como reverter aquela hedionda metamorfose e fazer Denny voltar à forma humana.

    Mas isso era um sonho. O Projeto Falcão da Lua estava fora de controle, seguindo caminhos sombrios até os horrores das trevas que Tom Shaddack nunca previra, nem podia evitar.

    Além do mais, Shaddack não devia ter medo do que estava acontecendo a Denny. Ficaria encantado, exultante. Shaddack veria a transformação do rapaz como um estado elevado, a ser desejado tanto quanto a degeneração dos regressivos devia ser evitada e censurada. Ali estava o que Shaddack realmente buscava, a evolução forçada do homem em máquina.

      Mesmo agora, mentalmente, Loman podia ouvir Shaddack falando agitadamente no ensangüentado quarto de Peyser: " ...o que não compreendo é por que os regressivos escolheram uma condição subumana. Certamente, você tem o poder dentro de si de sofrer uma evolução ao invés de uma involução, de se alçar da mera condição humana para algo mais elevado, mais limpo, mais puro...”

    Loman tinha certeza de que a encarnação de Denny, de olhos líquidos, prateados, não era uma forma mais elevada do que a existência humana comum, nem mais limpa ou pura. A seu modo, era era uma degeneração tanto quanto a regressão de Peyser a uma aparência lupina ou o retrocesso de Coombs a uma criatura primitiva semelhante ao macaco. Como Peyser, Denny abandonara a individualidade intelectual para fugir da consciência da vida sem emoção como uma Nova Pessoa; ao invés de se tornar mais um no bando de bestas subumanas, ele se transformara numa das muitas unidades de processamento de dados numa complexa rede de um supercomputador. Valorizara o que restou de humano nele — sua mente —, e tornara-se algo mais simples do que um gloriosamente complexo ser humano.

    Uma gota de baba caiu do queixo de Denny, formando um círculo molhado na coxa vestida de jeans.

    Você conhece o medo agora?, indagou-se Loman. Não pode amar. Assim como eu também não posso. Mas teme alguma coisa agora?

    Certamente não. Máquinas não podiam sentir terror.

    Embora a conversão de Loman o tivesse deixado incapaz de experimentar qualquer emoção além do medo, e embora suas noites e seus dias tivessem se tornado um longo sofrimento de ansiedade de intensidade variável, havia passado, de um modo perverso, a amar o medo, a alimentá-lo, porque era o único sentimento que o mantinha em contato com o homem não convertido que fora um dia. Se lhe tirassem o medo também, ele seria apenas uma máquina de carne e osso. Sua vida não teria qualquer dimensão humana.

    Denny abandonara essa última e preciosa emoção. Tudo que lhe restou para preencher seus dias sombrios foram a lógica, a razão, cadeias infinitas de cálculos, a interminável absorção e interpolação de fatos. E, se Shaddack estivesse correto sobre a longevidade da Nova Gente, esses dias se transformariam em séculos.

    Repentinamente, estranhos sons eletrônicos emanaram do rapaz outra vez. Ecoaram pelas paredes.

    Eram sons tão surpreendentes quanto os frios gritos e lamentos de algumas espécies que habitam as mais longínquas profundezas dos mares.

    Chamar Shaddack e revelar-lhe o estado de Denny seria encorajar o louco em seus objetivos insanos e demoníacos. Quando visse em que Denny se transformara, Shaddack poderia encontrar um  modo de induzir ou forçar toda a Nova Gente a se transformar em entidades cibernéticas idênticas. Essa possibilidade elevou o medo de Loman a novas alturas.         O rapaz-criatura silenciou de novo.

    Loman tirou o revólver do coldre. Sua mão tremia descontro- ladamente.

    Fluxos de dados corriam de forma ainda mais frenética pela te-la, simultaneamente nadando na superfície dos olhos vazados de Denny.

            Fitando a criatura que um dia fora seu filho, Loman arrancou lembranças do baú de sua vida pré-Mudança, tentando desesperadamente recuperar alguma coisa do que um dia sentira por Denny — o amor de pai por um filho, a suave dor de orgulho e esperança pelo futuro do rapaz. Lembrava-se de pescarias que fizeram juntos, noites passadas diante da tevê, os livros preferidos compartilhados e discutidos, longas horas durante as quais trabalharam juntos e com prazer em projetos de ciência para a escola, o Natal em que Denny ganhara a primeira bicicleta, o primeiro namoro quando ele nervosamente trouxera a filha dos Talmadges em casa para conhecer seus pais... Loman podia evocar imagens daquela época, fotografias mentais bastante detalhadas, mas sem nenhum poder de emocioná-lo. Sabia que devia sentir alguma coisa, se ia matar seu único filho, algo mais do que medo, mas já não possuía esta capacidade. Para se apegar ao que restasse de humano nele, tinha que ser capaz de verter uma lágrima, ao menos uma, quando disparasse o tiro da Smith & Wesson, mas seus olhos permaneciam secos.     

    Sem aviso, algo saltou da testa de Denny.    

    Loman deu um grito e recuou aos tropeções, surpreso. 

    No começo, achou que se tratava de uma minhoca, pois era segmentada, oleosa e brilhante, da grossura de um lápis. Mas conforme continuava a se projetar para fora, viu que era mais metálica  do que orgânica, terminando numa tomada com três vezes o diâme- tro da própria "minhoca". Como a antena de um inseto singular- mente repulsivo, aquilo serpeava para frente e para trás diante do rosto de Denny, alongando-se cada vez mais, até tocar o computador.

    Ele está desejando que isso aconteça, lembrou Loman a si mesmo.

    Aquilo era a mente sobre a matéria, e não genética em curto-  circuito. Poder da mente tornado concreto, e não apenas biologia desenfreada. Era isso que o rapaz desejara se tornar e, se essa era    a única vida que ele podia suportar agora, a única existência que desejava, então por que não permitir que a tivesse?

    A hedionda saliência semelhante a minhoca vasculhou o mecanismo exposto, onde antes estivera a tampa. Desapareceu lá dentro, fazendo alguma ligação que ajudasse o rapaz a alcançar uma união ainda mais íntima com o Sol do que poderia obter exclusivamente através de mãos alteradas e olhos de mercúrio.

    Um gemido oco, eletrônico, enregelante, escapou da boca do rapaz, embora nem seus lábios nem sua língua se movessem.

    O medo de Loman de agir foi superado pelo medo de não agir. Deu um passo à frente, encostou o cano do revólver na têmpora direita do rapaz e disparou dois tiros.

     

     Agachada na varanda dos fundos, encostada na parede da casa, erguendo-se de vez em quando para olhar cautelosamente através da janela para as três pessoas reunidas em torno da mesa da cozinha, Chrissie aos poucos começou a acreditar que podia confiar neles. Acima do ronco e do chiado monótonos da chuva, através da janela fechada, podia ouvir apenas fragmentos da conversa. Depois de algum tempo, entretanto, concluiu que eles sabiam que havia algo terrivelmente errado em Moonlight Cove. Os dois estranhos pareciam estar se escondendo na casa do sr. Talbot, e fugiam como ela. Ao que parecia, arquitetavam um plano para conseguir ajuda de autoridades de fora da cidade.

    Resolveu não bater à porta. Era de madeira sólida, sem vidraças na metade superior, de modo que não poderiam ver quem estava batendo. Ouvira o suficiente para compreender que seus nervos estavam tensos, talvez não tão abalados quanto os dela, mas definitivamente à flor da pele. Uma batida inesperada na porta provocaria neles um fulminante ataque cardíaco — ou talvez pegassem suas armas e arrebentassem a porta em pedacinhos, e ela inclusive.

    O que fez foi erguer-se bem à vista e dar uma pancadinha na janela.

    O sr. Talbot virou a cabeça num sobressalto e apontou, mas enquanto o fazia, o outro homem e a mulher puseram-se de pé num salto, com a instantaneidade de marionetes de mola. Moose latiu uma, duas vezes. As três pessoas — e o cachorro — fitaram Chrissie surpresos. Pela expressão de seus rostos, ela podia não ser uma menina de onze anos enlameada, mas um maníaco portador de uma serra elétrica, usando um capuz de couro para ocultar o rosto deformado.

    Imaginava que agora, na Moonlight Cove infestada de alienígenas, até uma menina exausta, patética, encharcada de chuva po dia ser objeto de terror para aqueles que não sabiam que ela ainda era humana. Na esperança de aplacar o temor deles, ela falou através da vidraça da janela:

    — Ajudem-me. Por favor, ajudem-me.

     

     A máquina emitiu um guincho agudo. Seu crânio estilhaçou-se sob o impacto das duas balas e ela foi arrancada do assento, caindo no chão do quarto e arrastando a cadeira consigo. Os dedos alongados soltaram-se do computador sobre a mesa. A sonda em forma de minhoca segmentada partiu-se em duas, entre o computador e a testa de onde se originava. A coisa ficou no chão, contorcendo-se em espasmos.

    Loman tinha que pensar naquilo como uma máquina. Não podia considerá-la seu filho. Era aterrorizante demais.

    O rosto estava deformado, contorcido numa máscara assimétrica, surrealista, pelo impacto dos projéteis ao atravessarem o crânio.

    Os olhos prateados apagaram-se. Agora parecia que poças de petróleo, e não de mercúrio, haviam se formado nas órbitas do crânio da criatura.

    Entre placas ósseas estilhaçadas, Loman viu não só a matéria cinzenta que já esperava, mas o que parecia ser um rolo de fios, fragmentos lustrosos que quase pareciam de cerâmica, estranhas formas geométricas. O sangue que jorrava dos ferimentos era acompanhado de anéis de fumaça azul.

    Ainda assim, a máquina berrava.

    Os estridentes gritos eletrônicos não se originavam mais do rapaz-criatura, mas do computador sobre a mesa. Eram sons tão bizarros que pareciam deslocados tanto na parte mecânica do organismo quanto na metade humana.

    Loman compreendeu que não eram gemidos inteiramente eletrônicos. Uma palavra repetia-se centenas de vezes, preenchendo linha após linha na monitor de vídeo:

    NÃO NÃO NO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO...

    Concluiu de súbito que Denny estava apenas parcialmente morto. A parte da mente do rapaz que habitara o corpo estava extinta, mas um outro fragmento de sua consciência ainda vivia no computador, mantido vivo em silício no lugar de tecido humano. Essa parte dele gritava com a voz fria de máquina. Na tela:

    ONDE ESTÁ 0 RESTO DE MIM ONDE ESTÁ O RESTO DE MIM ONDE ESTÁ O RESTO DE MIM NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO NÃO...

    Loman sentiu como se seu sangue fosse um lodo gelado bombeado por um coração tão enregelado quanto a carne no freezer lá embaixo. Nunca conhecera um frio que penetrasse tão fundo quanto esse. Ele afastou-se do corpo encolhido, que parará de se contorcer, e apontou o revólver para o computador. Esvaziou a arma na máquina, destruindo primeiro o monitor. Com as cortinas cerradas, o quarto estava quase inteiramente às escuras. Explodiu os circuitos em pedaços. Milhares de faíscas brilharam na escuridão, espalhando-se ao saltarem da unidade central de processamento. Mas com um derradeiro estremecimento e estalido, a máquina morreu e a escuridão fechou-se novamente.

    O ar transcendia a material isolante queimado. E pior.      Loman deixou o aposento e dirigiu-se ao topo das escadas. Fi-çou ali parado por um instante, apoiado no corrimão. Em seguida, desceu para o saguão.

     Recarregou o revólver, enfiou-o no coldre.      

     Saiu para a chuva.

    Entrou no carro e ligou o motor.   — Shaddack — disse em voz alta.

     

    Tessa encarregou-se da menina. Levou-a para cima, deixando Harry, Sam e Moose na cozinha e a fez tirar as roupas molhadas. — Seus dentes estão batendo, querida.

    — Tenho sorte de ainda ter dentes para bater.

    — Sua pele está azulada.

    —Tenho sorte de ter pele — disse a menina.

    — Vi que também está mancando.

    —Sim. Torci o tornozelo.

    — Tem certeza que é apenas um mau jeito?

     — Sim. Nada sério. Além do mais...     

     — Já sei — disse Tessa —, tem sorte de ainda ter tornozelos.

     — Certo. Pelo que sei, alienígenas acham tornozelos particularmente apetitosos, do mesmo modo que algumas pessoas gostam de pé de porco. Huuh.

    Ela sentou-se na beira da cama no quarto de hóspedes, um cobertor de lã enrolado no corpo, e esperou enquanto Tessa apanhava um lençol do armário de roupas de cama e vários alfinetes de segurança de uma caixa de costura que vira no mesmo armário. Tessa disse:

    —        As roupas de Harry são grandes demais para você, de modo que vamos enrolá-la num lençol por enquanto. Enquanto suas roupas estiverem na secadora, você pode descer e contar a Harry, Sam e a mim tudo que aconteceu.

    —        Foi uma verdadeira aventura — disse a menina.

    —        Sim, parece que você passou por muita coisa.

    —        Daria um grande livro.

    —        Gosta de livros?

    —        Ah, sim, adoro livros.

    Ruborizando-se, mas evidentemente decidida a ser sofisticada, ela livrou-se do cobertor e ficou de pé para que Tessa pudesse ajeitar o lençol à sua volta. Tessa prendeu-o com os alfinetes, fazendo uma espécie de toga.

    Enquanto Tessa trabalhava, Chrissie disse:

    —        Acho que escreverei um livro sobre tudo isso um dia. Será intitulado O flagelo alienígena ou talvez O reduto da rainha, porém eu não o intitularei O reduto da rainha a menos que fique compro vado que exista uma rainha em algum lugar. Talvez não se reproduzam como insetos ou mesmo como animais. Talvez tenham uma for ma de vida vegetal. Quem sabe? Se forem forma de vida vegetal, eu terei que chamar o livro de algo como Sementes espaciais ou Vegetais do infinito ou talvez Cogumelos marcianos assassinos. Às vezes é bom usar aliteração em títulos. Aliteração. Não gosta desta palavra? Soa tão bem. Gosto de palavras. Claro, sempre se pode preferir um título mais poético, assustador, como Raízes alienígenas, Folhas alienígenas. Ei, se forem vegetais, talvez estejamos com sorte, porque talvez sejam exterminados por pulgões ou lagartas de tomate, já que não terão desenvolvido imunidade contra pragas terrestres, exatamente como alguns germes minúsculos exterminaran os poderosos marcianos em Guerra dos mundos.

    Tessa relutava em revelar que seus inimigos não eram provenientes das estrelas, pois se divertia com a conversa precoce da menina. Notou, então, que a mão esquerda de Chrissie estava seriamente esfolada; o centro do ferimento parecia em carne viva.

    —        Machuquei quando caí do telhado da varanda da paróquia — disse a menina.

    —        Caiu de um telhado?

    —        Sim. Nossa, isso sim foi excitante. Sabe, a criatura-lobo vi nha pela janela atrás de mim e eu não tinha mais para onde ir. Torci o tornozelo na mesma queda e depois tive que atravessar o quintal correndo para o portão dos fundos antes que me pegassem. Sabe, srta. Lockland...

    —        Chame-me de Tessa.

    Chrissie parecia não estar acostumada a se dirigir aos adultos pelo primeiro nome. Franziu as sobrancelhas e ficou em silêncio por um instante, lutando com o convite à informalidade. Evidentemente, chegou à conclusão de que seria indelicado não usar o primeiro nome quando solicitada a fazê-lo.

    —        Certo... Tessa. Bem, de qualquer forma, não consigo re solver o que os alienígenas fariam conosco se nos pegassem. Comer nossos rins, talvez? Ou não nos comem? Talvez enfiem insetos rastejantes alienígenas em seus ouvidos e os bichinhos rastejem para o seu cérebro e o dominem. De qualquer modo, imagino que valha a pena cair de um telhado para escapar deles.

    Tendo terminado de prender a toga, Tessa conduziu Chrissie pelo corredor até o banheiro, e procurou no armário de remédios alguma coisa com que tratar a palma da mão esfolada. Encontrou um vidro de iodo com um rótulo desbotado, um rolo de esparadrapo pela metade e um pacote de compressas de gaze tão velho que a embalagem de papel de cada compressa estava amarelada do tempo. A gaze em si parecia nova e limpa e o iodo não enfraquecera, ainda estando forte o bastante para arder.

    Descalça, vestida com a toga, com os cabelos louros encaracolando-se ao secar, Chrissie sentou-se na tampa abaixada do vaso sanitário e se submeteu estoicamente ao tratamento de seu ferimento. Não protestou de nenhuma forma, não gritou — ou mesmo gemeu — de dor.

    Mas ela realmente falava:

    —        É a segunda vez que caio de um telhado, portanto imagino  devo ter um anjo da guarda me protegendo. Há cerca de um ano e meio, na primavera, esses pássaros, acho que eram estorninhos, construíram um ninho no telhado de um dos estábulos lá de casa e eu tinha que ver como eram os pássaros no ninho, de modo que, quando meus pais não estavam por perto, arranjei uma escada e esperei que a mãe dos filhotes voasse em busca de mais comida e então subi lá depressa para olhar. Vou lhe contar, antes de ganharem as penas, os passarinhos recém-nascidos são a coisa mais feia que já se viu, exceto os alienígenas, claro. São umas coisinhas enrugadas e murchas, só bicos e olhos, e umas asinhas curtas como braços deformados. Se os bebês humanos fossem tão feios ao nascer, as primeiras pessoas, há alguns milhões de anos, teriam jogado seus rebentos na privada e dado descarga, se tivessem privadas, e não teriam ousado ter mais nenhum, e toda a raça teria sido extinta antes mesmo de começar.

    Ainda aplicando o iodo sobre a ferida, tentando sem sucesso reprimir um sorriso, Tessa ergueu os olhos e viu que Chrissie tinha os olhos cerrados e apertava-os com força, enrugando o nariz, esforçando-se para ser corajosa.

    — Então os pássaros mãe e pai voltaram — continuou a menina —, viram-me junto ao ninho e voaram direto para meu rosto, gritando estridentemente. Levei um susto tão grande que escorreguei e caí do telhado. Não me machuquei nem um pouco daquela vez, embora tivesse caído sobre esterco de cavalo. O que não é nada interessante, garanto-lhe. Adoro cavalos, mas seriam muito mais adoráveis se pudéssemos ensiná-los a usar uma caixa como um gato.

    Tessa estava encantada com aquela garota.

     

     Sam inclinou-se para a frente com os cotovelos apoiados sobre a mesa da cozinha e ouviu Chrissie Foster com atenção. Embora Tessa tivesse ouvido os bichos-papões durante a chacina no Cove Lodge e visto de relance os pés de um deles por baixo da porta de seu quarto, e embora Harry os tivesse observado à distância durante a noite e em meio ao nevoeiro, e embora Sam tivesse espreitado dois deles na noite anterior pela janela da sala de Harry, a menina era a única presente que os vira de perto e mais de uma vez.

    Mas não era apenas a sua experiência singular que prendia a atenção de Sam. Também se sentia cativado por sua vivacidade, bom humor e facilidade de expressão. Ela obviamente tinha uma considerável força interior, um verdadeiro vigor, pois do contrário não teria sobrevivido à noite anterior e aos acontecimentos desta manhã. E, ainda assim, ela continuava encantadoramente inocente, corajosa, mas não endurecida. Era uma dessas crianças que lhe davam esperança por todo o maldito gênero humano.

    Uma criança como Scott costumava ser.

    E era por isso que Sam estava fascinado por Chrissie Foster. Via nela a criança que Scott fora. Antes de... mudar. Com um sentimento de pesar tão pungente que se manifestava como uma dor surda no peito e um nó na garganta, Sam a observava e ouvia, não só pelas informações que tinha a comunicar, mas com a expectativa irreal de que, examinando-a, iria compreender afinal por que seu filho perdera tanto a inocência quanto a esperança.

     

    Na escuridão do porão da Colônia ícaro, Tucker e seu bando não dormiram, pois não precisavam disso. Ficaram aconchegados na profunda escuridão. De vez em quando, ele e o outro macho copulavam com a fêmea e agarravam-se com um frenesi selvagem, provocando arranhões que sarariam sem demora, arrancando sangue um do outro apenas pelo prazer do cheiro — brincadeiras de desvairados imortais.

    O confinamento árido e escuro do abrigo de paredes de concreto contribuía para a crescente desorientação de Tucker. A cada hora, ele conseguia se lembrar menos de sua existência antes da excitante caçada da noite anterior. Deixara de ter muita noção de si mesmo. A individualidade não devia ser encorajada no bando durante a caçada e, no abrigo, era uma característica ainda menos desejável; a harmonia naquele espaço sem janelas, claustrofóbico,  exigia o abandono do eu individual pelo grupo.

    Seus sonhos acordados eram repletos de imagens de formas escuras e desenfreadas, rastejando por florestas sombrias e campos banhados de luar. Quando a lembrança da forma humana atravessava sua mente, suas origens eram um mistério para ele; mais do que isso, ficava amedrontado e mudava suas fantasias para cenas de corrida-caçada-assassinato-acasalamento, nas quais era apenas  parte do bando, um aspecto de uma única sombra, uma extensão de um organismo maior, livre da necessidade de pensar, não tendo nenhum desejo senão ser.

    Em determinado momento, ele tornou-se consciente de que abandonara a forma lupina, que se tornara demasiado limitante. Já não queria mais ser o líder do bando, pois tal posição implicava responsabilidade demais. Não queria pensar em nada. Apenas ser. Ser. As limitações de todas as formas físicas rígidas pareciam insuportáveis.

    Notou que o outro macho e a fêmea percebiam sua degeneração e seguiam seu exemplo.

    Ele sentiu sua carne fluir, os ossos dissolverem-se, órgãos e vasos abandonarem forma e função. Ele involuiu além da forma primitiva de macaco, muito além da criatura de quatro patas que rastejara do antigo oceano há milênios, além, além, até se tornar uma massa de tecido pulsante, sopa protoplásmica, latejando na escuridão do porão da Colônia Icaro.

     

    Loman tocou a campainha da casa de Shaddack, e Evan, o criado, veio atender.

    —        Desculpe, chefe Watkins, mas o Sr. Shaddack não está.

    —        Aonde foi?

    —        Não sei.

    Evan pertencia à Nova Gente. Para certificar-se de que estaria mesmo liquidado, Loman baleou-o duas vezes na cabeça e depois duas vezes no peito, enquanto ele jazia no vestíbulo, com cérebro e coração despedaçados. Ou seria processador de dados e bomba? Já nem sabia mais agora se usava terminologia biológica ou mecânica. Até que ponto eles haviam progredido no processo de se tornarem máquinas?

    Loman fechou a porta atrás de si e aproximou-se do corpo de Evan. Após remuniciar o tambor do revólver, vasculhou a enorme casa, cômodo a cômodo, à procura de Shaddack.

    Embora desejasse ser movido por uma sede de vingança, ser consumido pela raiva, e extrair satisfação marretando Shaddack até a morte, renegava essa baixeza de sentimentos. A morte de seu filho não derretera o gelo em seu coração. Não podia sentir dor ou raiva.

    Em vez disso, era conduzido pelo medo. Queria matar Shaddack antes que o louco os transformasse em algo pior do que já tinham se tornado.

    Matando Shaddack — que sempre esteve ligado ao supercomputador da New Wave por um simples artefato de telemetria cardíaca —, Loman ativaria um programa em Sol que irradiaria a ordem de morte em microondas. Aquela transmissão seria recebida por todos os computadores microesféricos ligados aos mais profundos tecidos da Nova Gente. Uma vez recebida a ordem de morte, cada computador biologicamente interativo em cada Nova Pessoa para-ria instantaneamente o coração de cada hospedeiro. Cada um dos convertidos em Moonlight Cove morreria. Ele também morreria. Mas não se preocupava. Seu medo da morte era superado por seu medo de viver, especialmente se tivesse que viver tanto como um regressivo quanto como a coisa bem mais hedionda que Denny tinha se tornado.

    Em sua mente podia se ver naquela deplorável condição — olhos cintilantes, uma sonda parecendo um verme irrompendo sangrentamente de sua testa em busca de uma obscena união com o computador. Se a pele realmente pudesse rastejar, a sua teria rastejado para fora de seu corpo.

    Não encontrando Shaddack em casa, partiu para a New Wave, otpnde certamente o criador do novo mundo estaria em seu gabinete, àatarefado em projetar locais para o inferno que ele chamava de paraíso.

     

     Pouco depois das onze horas, quando Sam saía, Tessa passou à varanda dos fundos com ele e fechou a porta, deixando Harry e Chrissie na cozinha. As árvores na parte de trás da propriedade eram altas apenas o bastante para evitar que vizinhos, mesmo os que moravam mais acima na colina, pudessem espreitar o quintal. Tinha certeza que não podiam ser vistos nas sombras da varanda.

          — Ouça — disse ela —, não faz nenhum sentido você ir  sozinho.

    — Faz pleno sentido.

    O ar estava frio e úmido. Ela passou os braços ao redor do corpo e disse:

    —        Eu poderia tocar a campainha da porta da frente, distrair alguém lá dentro, enquanto você entrava pelos fundos.

    —        Não quero ter que me preocupar com você.

    —        Posso tomar conta de mim mesma.

    —        Sim, acredito que possa — disse ele.

    —        E então?

    —        Mas eu trabalho sozinho.

    —        Você parece fazer tudo sozinho.

    Ele esboçou um tênue sorriso.

    —        Vamos começar outra briga sobre se a vida é uma festa ou o inferno na Terra?

    —        Não tivemos uma briga. Foi uma discussão.

    —        Bem, de qualquer forma, passei para missões disfarçado justamente porque consigo trabalhar muito bem sozinho. Não que ro mais um parceiro, Tessa, porque não quero ver mais nenhum morrer.

    Ela sabia que Sam se referia não só aos outros agentes que haviam morrido no cumprimento do dever com ele, mas também a sua falecida esposa.

    —        Fique com a garota — disse ele. — Cuide dela caso alguma coisa aconteça. Afinal, ela se parece com você.

    —        O quê?

    —        É uma dessas pessoas que sabem como amar a vida. Como realmente, profundamente, amá-la, não importa o que aconteça. É um talento nato e precioso.

    —        Você também sabe — disse ela.

    —        Não. Eu nunca soube.

    —        Diabos, todo mundo nasce com amor pela vida. Você ain da o tem, Sam. Apenas afastou-se dele, mas pode encontrá-lo de novo.

    —        Cuide dela — disse ele, virando-se e descendo os degraus da varanda e entrando na chuva.

    —        É melhor que você volte, desgraçado. Prometeu me contar o que viu na outra extremidade daquele túnel, no Outro Lado. É melhor que volte.

    Sam partiu através da chuva prateada e de finos aglomerados de névoa cinzenta.

    Enquanto o observava se afastar, Tessa compreendeu que, ainda que ele nunca lhe contasse sobre o Outro Lado, queria que ele voltasse por muitas outras razões tanto complexas quanto surpreendentes.

     

     A casa dos Coltranes era a terceira depois da de Talbot, na Conquistador. Dois andares. Revestimento de cedro envelhecido. Um pátio coberto no lugar de uma varanda nos fundos.

    Movendo-se depressa pela parte posterior da casa, onde a chuva ricocheteava na cobertura do pátio com um som semelhante ao fogo crepitante, Sam espreitou pelas portas corrediças de vidro para dentro da escura sala familiar e em seguida pelas amplas janelas da cozinha, também escura. Quando chegou à porta da cozinha, tirou o revólver do coldre sob o casaco de couro e manteve-o ao lado do corpo, junto à coxa.

    Ele podia ter dado a volta até a frente e tocado a campainha, o que teria parecido menos suspeito para as pessoas do lado de dentro. Mas isso significaria sair à rua, onde era mais provável ser visto não só pelos vizinhos como pelos homens que Chrissie disse estarem patrulhando a cidade.

    Bateu à porta, quatro batidas rápidas. Quando ninguém atendeu, bateu de novo, mais forte, e depois uma terceira vez, ainda mais forte. Se houvesse alguém em casa, teriam atendido.

    Harley e Sue Coltrane deviam estar na New Wave, onde trabalhavam.

    A porta estava trancada. Esperava que não houvesse nenhuma trava interna.

    Embora tivesse deixado seus outros instrumentos na casa de Harry, trouxera uma lâmina de metal fina e flexível. Filmes de televisão haviam popularizado a noção de que qualquer cartão de crédito servia de conveniente e inocente lâmina, mas esses retângulos  de plástico freqüentemente se engastavam na fenda ou saltavam antes que a lingüeta da fechadura deslizasse. Preferia as ferramentas  consagradas pelo tempo. Enfiou a lâmina entre a porta e o batente, sob a fechadura, e deslizou-a para cima, fazendo pressão ao encontrar resistência. A fechadura estalou. Experimentou a porta e não  havia nenhuma trava; abriu-se com um leve rangido.         Entrou e fechou a porta devagar, cuidando para que ela não  se trancasse. Se tivesse que sair às pressas, não queria ter que ficar às voltas com a fechadura.

    A cozinha estava iluminada apenas pela luz fraca do dia chuvoso que mal penetrava pela janela. Evidentemente, o assoalho de vinil, o revestimento das paredes e os ladrilhos eram em tons bem  suaves, pois na obscuridade tudo parecia ter um ou outro tom de cinza.

    Ficou parado por quase um minuto, ouvindo com atenção.

    Um relógio de cozinha tiquetaqueava.

    A chuva tamborilava na cobertura do pátio.   

    Os cabelos encharcados grudavam em sua testa. Afastou-os dos olhos.

    Quando se mexeu, os sapatos molhados guincharam.

    Foi diretamente para o telefone, preso à parede acima de uma  cantoneira. Quando tirou-o do gancho, não obteve sinal de discar, mas a linha também não estava muda. Estava repleta de sons estranhos: cliques, sinais regulares e leves oscilações — todos os quais  mesclavam-se numa música lamuriosa e estranha, uma trenodia eletrônica.

    Sam sentiu um frio na nuca.

    Cuidadosa, silenciosamente, recolocou-o no lugar.

    Perguntou-se que tipos de sons podiam ser ouvidos em um telefone que estava sendo usado como ligação entre dois computadores, com um modem. Um dos Coltranes estaria trabalhando em alguma parte da casa, ligado à New Wave por um computador pessoal?

    De algum modo, pressentia que o que ouvira na linha não podia ser explicado com facilidade. Era incrivelmente estranho.

    Havia uma sala de jantar depois da cozinha. As duas amplas janelas estavam cobertas por cortinas finas, o que filtrava ainda mais a luz do dia cinzento. Um armário, aparador, mesa e cadeiras eram revelados como blocos de sombras cinza-chumbo.

    Novamente parou para ouvir. Novamente não ouviu nada de incomum.

    A disposição da casa seguia um projeto californiano básico, sem  corredor no térreo. Cada aposento dava diretamente para o seguinte num desenho arejado e amplo. Por uma passagem em arco, ele  entrou na espaçosa sala de estar, satisfeito pelo fato de a casa ser  forrada com carpete, onde seus sapatos molhados não produziam  ruído.

     A sala de estar estava menos escura do que qualquer outra parte da casa que vira até então, e no entanto a cor mais viva era um  cinza perolado. As janelas a oeste eram protegidas pela varanda da  frente, mas a chuva escorria pelas que davam para o norte. A luz cinzenta do dia, atravessando as vidraças, pontilhava o aposento de  sombras das centenas de gotas de chuva que deslizavam pelo vidro,  e Sam estava tão sensível que quase podia sentir aqueles pequenos  fantasmas amebóides rastejando sobre ele.

      Entre a iluminação e seu estado de espírito, sentia como se estivesse num velho filme preto e branco. Um daqueles desolados exercícios em film noir.

    A sala de estar estava deserta, mas bruscamente se ouviu um som vindo do último aposento do térreo. No canto sudoeste. Depois do vestíbulo. O gabinete particular, muito provavelmente. Era um trinado perfurante que fez seus dentes doerem, seguido de um grito desalentado que nem era a voz de um homem nem de uma máquina, mas algo entre um e outro, uma voz semimetálica arrancada pelo medo e distorcida pelo desespero. Foi seguido de uma pulsação eletrônica baixa, como uma forte batida cardíaca.

    Em seguida, silêncio.

    Ele erguera o revólver, segurando-o diretamente à frente, pronto para atirar em qualquer coisa que se movesse. Mas tudo estava tão imóvel quanto silencioso.

    O trinado, o grito sobrenatural e a pulsação surda certamente não podiam ser associados aos bichos-papões que vira na noite anterior do lado de fora da casa de Harry ou com as demais criaturas que Chrissie descreveu. Até agora, um encontro com um deles era o que mais temia. Mas de repente a entidade desconhecida no gabinete tornou-se mais assustadora.

    Sam esperou.

    Nada mais.

    Tinha a estranha sensação de que alguma coisa ouvia seus movimentos tão apreensivamente quanto ele.

    Considerou voltar à casa de Harry para pensar em alguma outra forma de enviar uma mensagem ao Bureau, porque comida mexicana e Guinness Stout e filmes de Goldie Hawn agora pareciam muito preciosos, não apenas razões patéticas para viver, mas prazeres tão especiais que não havia palavras que pudessem descrevê-los.

    A única coisa que o impedia de sair correndo dali era Chrissie Foster. A lembrança de seus olhos vivos. Seu rosto inocente. O entusiasmo e o ânimo com que contara suas aventuras. Talvez ele tivesse falhado com Scott e fosse muito tarde para o garoto ser resgatado da beira do abismo. Mas Chrissie ainda estava viva em todo o sentido essencial da palavra — física, intelectual e emocionalmente — e dependia dele. Ninguém mais poderia salvá-la da conversão.

    Faltavam pouco mais de doze horas para a meia-noite.

    Avançou sorrateiramente ao longo da parede da sala de estar e atravessou o vestíbulo em silêncio. Permaneceu com as costas contra a parede ao lado da porta semi-aberta do aposento de onde vieram os estranhos sons.

    Alguma coisa estalou lá dentro.

    Ele empertigou-se.

    Estalidos surdos e baixos. Não o tique-tique-tique de garras como o que ouvira batendo na janela na noite anterior. Mais como uma longa série de relês sendo desarmados, dezenas de interruptores desligados, dominós caindo em cascata: clique-clique-clique-clique-clique-clique-clique...

    Silêncio mais uma vez.

    Segurando o revólver com ambas as mãos, Sam postou-se diante da porta e a abriu com um pontapé. Atravessou o umbral e adotou uma posição de atirador.

    As janelas estavam encobertas por persianas e a única luz vinha das telas de dois computadores. Ambos estavam guarnecidos de filtros que resultavam em texto preto sobre fundo de cor âmbar. Tudo no aposento que não estava imerso em sombras refletia aquele brilho dourado.

    Duas pessoas estavam sentadas diante dos terminais, uma do lado direito do aposento, a outra do esquerdo, de costas uma para a outra.

    —        Não se movam — disse Sam com firmeza.

    Elas nem se moveram, nem falaram. Estavam tão imóveis que a princípio ele pensou que estivessem mortas.

    A luz peculiar era mais brilhante e, no entanto, menos reveladora do que a obscura luz do dia que iluminava vagamente os outros aposentos. Quando seus olhos se adaptaram, Sam viu que as duas pessoas nos computadores não só estavam estranhamente rígidas, como já não eram mais pessoas. Avançou, atraído por um horror glacial.

    Indiferente a Sam, um homem despido, provavelmente Harley Coltrane, estava sentado numa cadeira móvel, giratória, ao computador à direita da porta, contra a parede oeste. Estava conectado ao terminal por um par de cabos de dois centímetros e meio de espessura que pareciam menos metálicos do que orgânicos, brilhando umidamente na claridade âmbar. Eles estendiam-se das entranhas da unidade de processamento de dados — de onde a placa de cobertura fora retirada — e penetravam no torso nu do homem, abaixo das costelas, mesclando-se sem sangue à sua carne. Eles pulsavam.

    —        Meu Deus — murmurou Sam.

    Os antebraços de Coltrane haviam perdido completamente a carne, eram apenas ossos dourados. A carne da parte superior dos braços terminava suavemente a cinco centímetros dos cotovelos; desses cotos, os ossos projetavam-se esmeradamente como perfilamentos robóticos de uma armação de metal.  As mãos esqueléticas  agarravam-se com firmeza em torno dos cabos, como se fossem apenas um par de braçadeiras.

    Quando Sam se aproximou de Coltrane e olhou mais de perto, viu que os ossos não eram tão diferenciados como deveriam, mas haviam se fundido parcialmente. Além do mais, tinham veias de metal. Enquanto observava, os cabos pulsavam com tal vigor que começaram a vibrar descontroladamente. Se não estivessem bem seguros pelas mãos em grampos, teriam se soltado ou do homem ou da máquina.

    Vá embora.

    Uma voz interior dizia-lhe para fugir, e era sua própria voz, mas não a do adulto Sam Booker. Era a voz da criança que fora um dia, e à qual seu medo o encorajava a retornar. O terror extremo é uma máquina do tempo milhares de vezes mais eficiente do que a nostalgia, arrastando-nos anos para trás, para aquele estado esquecido e intolerável de impotência em que a maior parte da infância é passada.

    Vá embora, corra, corra, vá embora!

    Sam resistia à necessidade premente de investigar.

    Queria entender. O que estava acontecendo? O que aquelas pessoas haviam se tornado? Por quê? O que isso teria a ver com os bichos-papões que vagavam pela noite? Evidentemente, através da microtecnologia, Thomas Shaddack encontrara uma forma de alterar, de forma radical e para sempre, a biologia humana. Isso estava claro para Sam, mas saber apenas isso e nada mais era como sentir que algo vivia no mar e nunca ter visto um peixe. Havia muito mais sob a superfície, misterioso.

    Vá embora.

    Nem o homem diante dele nem a mulher do outro lado do aposento pareciam sequer remotamente cônscios de sua presença. Aparentemente, não corria nenhum perigo iminente.

    Corra, dizia o menino assustado dentro dele.

    Torrentes de dados — palavras, números, tabelas e gráficos de caracteres infinitesimais — fluíam como numa corredeira pela tela âmbar, enquanto Harley Coltrane fitava sem pestanejar o monitor que cintilava sombriamente. Não podia vê-lo como um homem comum, pois não tinha olhos. Haviam sido retirados das órbitas e substituídos por um amontoado de outros sensores: minúsculas contas de vidro como rubis, pequenos nós de fios, chips de superfície ondeada de um material cerâmico, tudo firmemente instalado e ligeiramente para dentro dos buracos escuros e profundos no crânio.

    Sam segurava o revólver apenas com uma das mãos agora. Mantinha o dedo na trava do gatilho em vez de no próprio gatilho, pois tremia tanto que podia disparar um tiro sem querer.

    O peito do homem-máquina subia e descia. Sua boca pendia aberta, expelindo um hálito insuportavelmente fétido em ondas rítmicas.

    Uma pulsação rápida era visível em suas têmporas e nas artérias horrivelmente saltadas de seu pescoço. Mas havia outras pulsações onde não deveria haver: no centro da testa; ao longo de cada maxilar; em quatro pontos em seu peito e barriga; na parte superior dos braços, onde veias escuras e encordoadas haviam crescido e aflorado acima da camada de gordura subcutânea, recobertas apenas por sua pele. Seu sistema circulatório parecia ter sido redesenhado e aumentado para atender a novas funções que seu corpo estava sendo solicitado a desempenhar. Pior ainda, as batidas pulsavam num estranho ritmo sincopado, como se pelo menos dois corações batessem dentro dele.

    Um grito estridente irrompeu da boca aberta da criatura. Sam encolheu-se e berrou de susto. Pareciam-se aos sons inumanos que ouvira enquanto estava na sala de estar, que o atraíra até ali, mas que ele pensara vir do computador.

    Com um esgar, enquanto o uivo eletrônico crescia em espiral e ampliava-se em dolorosos decibéis, Sam deixou seu olhar erguer-se da boca aberta do homem-máquina para seus "olhos". Os sensores ainda reluziam nas órbitas. As contas de rubis brilhavam com uma luz interior e Sam imaginou se elas registravam sua imagem no espectro infravermelho ou por algum modo. Será que Coltrane o via de alguma forma? Talvez o homem-máquina tivesse trocado o mundo humano por uma outra realidade, passando do plano físico para um outro nível, e talvez Sam fosse uma irrelevância para ele, imperceptível.

    O grito começou a enfraquecer, então cessou bruscamente.

    Sem perceber o que fizera, Sam havia erguido o revólver e, de uma distância de aproximadamente cinqüenta centímetros, apontara-o para o rosto de Harley Coltrane. Ficou perplexo ao perceber que deslizara o dedo da trava para o gatilho e que iria destruir aquela coisa.

    Hesitou. Coltrane, afinal, ainda era um homem — ao menos até certo ponto. Quem poderia afirmar que ele não desejasse seu estado atual mais do que a vida como um ser humano comum? Quem poderia afirmar que não estivesse feliz assim? Sam sentia-se desconfortável no papel de juiz, mas ainda mais como um executor. Como um homem que acreditava que a vida era o inferno na Terra, tinha que considerar a possibilidade de o estado de Coltrane ser um aprimoramento, uma fuga.

    Entre o homem e o computador, os cabos lustrosos, semi-orgânicos, estremeceram. Sacudiram-se nas mãos esqueléticas onde estavam presos.

    O hálito fétido de Coltrane estava impregnado tanto do mau cheiro de carne em decomposição quanto de componentes eletrônicos superaquecidos.

    Sensores cintilavam e moviam-se nas órbitas sem pálpebras.

    Dourado pela luz que vinha da tela, o rosto de Coltrane parecia congelado num riso perpétuo. As veias pulsando em seus maxilares e têmporas pareciam menos reflexos das próprias batidas do seu coração do que parasitas contorcendo-se sob sua pele.

    Com um estremecimento de nojo, Sam puxou o gatilho. O tiro estrondou no lugar confinado.

    A cabeça de Coltrane saltou para trás sob o impacto do tiro à queima-roupa, depois caiu para a frente, o queixo sobre o peito, fumegando e sangrando.

    Os cabos repulsivos continuaram a inflar e encolher e inchar como se seguissem a passagem rítmica do fluido interno.

    Sam percebeu que o homem não estava inteiramente morto. Apontou a arma para o monitor de vídeo do computador.

    Uma das mãos esqueléticas de Coltrane largou o cabo em volta do qual estivera firmemente agarrada. Com estalos e rangidos de ossos nus, ela saltou e agarrou o pulso de Sam.

    Sam gritou.

    O aposento encheu-se de estalidos eletrônicos, estrépitos, sinais e trinados.

    A mão infernal segurava-o com tanta força que os dedos ossudos começaram a penetrar em sua carne, cortando-a. Sentiu o sangue quente escorrer pelo braço, sob a manga da camisa. Com um acesso de pânico, percebeu que a força sobre-humana do homem-máquina era suficiente para esmagar seu pulso e deixá-lo aleijado. No mínimo, sua mão ficaria logo dormente por falta de circulação e ele largaria o revólver.

    Coltrane lutava para erguer a cabeça semidestroçada.

    Sam pensou em sua mãe nos destroços do carro, o rosto dilacerado, sorrindo para ele, sorrindo, silenciosa e imóvel, mas sorrindo...

    Desesperadamente, chutava a cadeira de Coltrane, na esperança de fazê-la girar e deslizar para longe. As rodas haviam sido travadas.

    A mão ossuda apertou com mais força e Sam gritou. Sua visão turvou-se.

    Ainda assim, viu que a cabeça de Coltrane erguia-se lentamente, lentamente.

    Meu Deus, não quero ver este rosto deformado!

    Com o pé direito, colocando nele todas as suas forças, Sam golpeou uma, duas, três vezes os cabos entre Coltrane e o computador. Eles desprenderam-se de Coltrane, saltando de sua carne com um ruído medonho, e o homem tombou da cadeira. Ao mesmo tempo, a mão esquelética abriu-se e largou o pulso de Sam. Com um som metálico e frio, bateu no tapete de plástico duro sob a cadeira.

    Pulsações eletrônicas surdas soavam como batidas de tambor e ecoavam pelas paredes, enquanto abaixo delas uma lamúria fina oscilava continuamente por três notas.

    Arfando e quase em estado de choque, Sam segurou o pulso sangrando com a mão esquerda, como se isso pudesse amenizar a dor lancinante.

    Algo roçou em sua perna.

    Olhou para baixo e viu os cabos semi-orgânicos, como serpentes esbranquiçadas e sem cabeça, ainda ligados ao computador e repletos de vida maligna. Também pareciam ter se alongado, até atingirem quase o dobro do tamanho que possuíam quando ligavam Coltrane à máquina. Um agarrou seu tornozelo esquerdo e o outro enroscou-se em torno de sua perna direita.

    Ele tentou livrar-se.

    Seguravam-no com força.

    Enroscaram-se mais em suas pernas.

    Instintivamente, ele compreendeu que buscavam pele nua na parte superior de seu corpo e que, ao contato, penetrariam em sua carne e o tornariam parte do sistema.

    Ele ainda segurava o revólver em sua mão direita banhada de sangue. Mirou a tela.

    Os dados já não fluíam pelo campo âmbar. Em vez disso, o rosto de Coltrane olhava-o do monitor. Seus olhos haviam sido restaurados e parecia que ele podia ver Sam, pois olhava-o diretamente e falava-lhe:

    — ...preciso... preciso... quero, preciso...

    Sem compreender o que acontecia, Sam sabia que Coltrane ainda estava vivo. Ele não estava morto — ou ao menos nem todo ele sucumbira — com o seu corpo. Ele estava lá, de alguma forma, dentro da máquina.

    Como que para confirmar esta interpretação, Coltrane influenciou a tela de vidro do terminal a abandonar a superfície convexa e se adaptar aos contornos de seu rosto. O vidro tornou-se tão flexível quanto gelatina, projetando-se para fora, como se Coltrane na verdade existisse dentro da máquina, fisicamente, e agora empurrava seu rosto para fora.

    Isso era impossível. Entretanto, estava acontecendo. Harley Coltrane parecia controlar a matéria com o poder de sua mente, uma mente nem sequer mais ligada a um corpo humano.

    Sam estava hipnotizado de terror, rígido, paralisado. Seu dedo permanecia imóvel no gatilho.

    A realidade fora rasgada e, através desta fenda, um mundo de pesadelo de infinitas possibilidades malignas parecia penetrar no mundo que Sam conhecia e, repentinamente, amava.

    Um dos cabos sinuosos alcançara seu peito e abrira caminho sob sua suéter até a pele. Sentiu como se estivesse sendo tocado por lenha em brasa e a dor arrancou-o do transe.

    Disparou dois tiros no computador, estilhaçando a tela primeiro, a qual era o segundo rosto de Coltrane no qual ele descarregava o .38. Embora Sam esperasse que a máquina absorvesse a bala sem nenhum efeito, o tubo de raios catódicos implodiu como se ainda fosse feito de vidro. A outra bala explodiu as entranhas da unidade de processamento de dados, exterminando a coisa em que Coltrane se transformara.

    Os tentáculos pálidos e oleosos desprenderam-se dele. Criaram bolhas, começaram a espumar e pareciam se putrefazer diante de seus olhos.

    Estranhos sinais eletrônicos, estalidos e oscilações, não insuportavelmente altos, mas extraordinariamente penetrantes, ainda enchiam o aposento.

    Quando Sam olhou na direção da mulher que estivera sentada diante do outro computador, contra a parede leste, viu que os cabos escorregadios de muco que a ligavam à máquina haviam se alongado, permitindo-lhe virar-se na cadeira para encará-lo. Fora essas conexões semi-orgânicas e sua nudez, ela encontrava-se num estado diferente, mas não menos hediondo, do de seu marido. Seus olhos haviam desaparecido, mas as órbitas não estavam equipadas com um grande número de sensores. Em seu lugar dois globos oculares vermelhos, três vezes o tamanho de olhos comuns, preenchiam as órbitas ampliadas num rosto refeito para acomodá-los; eram menos olhos do que receptores em forma de olhos, sem dúvida desenhados para ver em muitos espectros de luz e, de fato, Sam notou uma imagem de si mesmo em cada uma das lentes vermelhas, invertidas. Suas pernas, barriga, seios, braços, garganta e rosto eram maciçamente percorridos por vasos sangüíneos intumescidos, localizados sob a pele, e que pareciam esticá-la quase ao ponto de ruptura, de modo que ela parecia uma prancha de desenho de uma ramificação de circuitos. Alguns daqueles vasos deviam realmente transportar sangue, mas alguns deles pulsavam com ondas de iluminação de rádio, umas verdes e outras de um amarelo ; sulfuroso.

    Uma sonda segmentada, semelhante a um verme, da espessura de um lápis, projetou-se de sua testa, como se disparada por uma arma, e correu em direção a Sam, cobrindo em segundos o espaço de três metros entre eles, atingindo-o acima do olho direito antes de ele poder se agachar. A ponta mordeu sua pele ao contato. Ele ouviu um zunido, como o de minúsculas lâminas girando talvez a mil rotações por minuto. O sangue escorreu de sua fronte e pelo lado do nariz. Mas ele já disparava as últimas duas balas de seu revólver no instante em que a sonda vinha em sua direção. Os dois tiros encontraram seus alvos. Um atingiu a parte superior do corpo da mulher e o outro provocou no computador às suas costas uma fogueira de faíscas e descargas elétricas estalantes que saltavam até o teto e serpeavam por alguns instantes pela parede antes de se dissiparem. A sonda amoleceu e desprendeu-se dele antes de poder ligar sua mente à dela, o que evidentemente fora a sua intenção.

    Exceto pela fraca luz do dia que penetrava pelas finas fendas entre as lâminas das persianas, o aposento estava às escuras.

    Loucamente, Sam lembrou-se de uma coisa que um especialista dissera num seminário para agentes, quando explicava como o novo sistema do Bureau funcionava: "Os computadores podem ter um desempenho melhor quando interligados, permitindo o processamento paralelo de dados.”

    Sangrando na testa e no pulso direito, recuou aos tropeções para a porta e acionou o interruptor da luz, acendendo um abajur de pé. Ficou ali parado — o mais longe possível dos dois corpos grotescos, mas ainda podendo vê-los — enquanto recarregava o revólver com as balas que tirava dos bolsos do casaco.

    O aposento estava imerso num silêncio sobrenatural.

    Nada se movia.        O coração de Sam batia com tanta força que seu peito doía.

    Por duas vezes, deixou cair os cartuchos porque suas mãos tremiam. Não se abaixou para pegá-los. Estava quase convencido de que, no momento em que não estivesse em posição de atirar com precisão ou correr, uma das criaturas mortas mostraria que não estava morta afinal e, como um relâmpago, o alcançaria cuspindo fagulhas e o dominaria antes que pudesse se levantar e evitá-la.

    Percebeu aos poucos o barulho da chuva. Depois de ter amainado durante a manhã, agora caía com mais força do que em qualquer momento desde que a tempestade começara na noite anterior. Nenhum trovão sacudia o dia, mas o furioso tamborilar da chuva — e as paredes isoladas da própria casa — provavelmente haviam abafado os tiros o suficiente para que não fossem ouvidos pelos vizinhos. Pedia a Deus que assim fosse. Caso contrário, estariam a caminho para investigar e impediriam a sua fuga.

    O sangue continuava a escorrer do ferimento na testa e um pouco entrou no olho direito. Ardeu. Limpou o olho com a manga e piscou para afastar as lágrimas o melhor que pôde.

    Seu pulso doía infernalmente. Mas, se necessário, poderia empunhar o revólver com a mão esquerda e atirar com bastante precisão de perto.

    Depois que o .38 foi recarregado, Sam avançou com cuidado pelo aposento, até o computador fumegante na mesa ao longo da parede oeste, onde o corpo transformado de Harley Coltrane estava tombado numa cadeira, os braços de osso e metal derreados. Vigiando o homem-máquina morto, retirou o telefone do modem e colocou-o no gancho. Em seguida, pegou o receptor e ficou aliviado ao ouvir o sinal de discar.

    Sua boca estava tão seca que ele não tinha certeza se seria capaz de falar claramente quando a ligação se completasse.

    Discou os números do escritório do Bureau em Los Angeles.

    A linha estalou.

    Uma pausa.

     Ouviu-se uma gravação: "Lamentamos não poder completar "sua ligação no momento.”

    Ele desligou, tentou outra vez.  

    "Lamentamos não poder completar..."       Bateu o telefone.

     Nem todos os telefones de Moonlight Cove estavam funcionando. E, evidentemente, mesmo dos que estavam em serviço, só podiam ser feitas chamadas para determinados números. Números permitidos. A companhia telefônica local fora reduzida a um sofisticado interfone para servir aos convertidos.

    Ao se afastar do telefone, ouviu algo mover-se atrás dele. Furtivamente e rápido.

    Girou nos calcanhares e viu a mulher a um metro de distância. Já não estava conectada ao computador destruído, mas um daqueles cabos de aspecto orgânico percorria o assoalho saindo da base de sua espinha até uma tomada elétrica.

    Tirando conclusões em seu terror, Sam pensou: nada mais de pipas, Dr. Frankenstein, nada mais de trovões e relâmpagos; hoje em dia nós simplesmente ligamos os monstros na tomada, dando-lhes uma carga direta, cortesia da companhia de energia elétrica.

    Ela emitia um silvo de réptil e vinha em seu encalço. Ao invés de dedos, sua mão possuía três tomadas de várias pontas semelhantes às junções com que os elementos de um computador pessoal eram conectados, embora essas pontas fossem agudas como garras.

    Sam esquivou-se para o lado, colidindo com a cadeira de onde Harley Coltrane quase caiu, atirando na criatura. Descarregou as cinco balas do .38.

    Os três primeiros tiros jogaram-na para trás e derrubaram-na. Os outros dois atravessaram o ar e arrancaram pedaços do revestimento da parede, porque estava aterrorizado demais para parar de apertar o gatilho quando ela saiu de sua linha de fogo.

    Ela tentava se levantar.

    Como um maldito vampiro, pensou ele.

    Precisava dos equivalentes high tech de uma estaca, uma cruz, uma bala de prata.

    Os circuitos-artérias que formavam uma trama sobre seu corpo nu ainda pulsavam com luz, embora em alguns lugares ela soltasse fagulhas, exatamente como os computadores quando ele lhes metera umas balas.

    O revólver estava descarregado.

    Revirou os bolsos em busca de cartuchos.

    Não havia nenhum.

    Vá embora.

    Um gemido eletrônico, não ensurdecedor, porém mais enervante do que milhares de unhas afiadas raspando um quadro-negro, emanou dela.

    Duas sondas segmentadas, semelhantes a minhocas, explodiram de seu rosto e lançaram-se sobre Sam. Ambas caíram a poucos centímetros dele — talvez um sinal de sua energia minguante — e retornaram para ela como mercúrio derramado correndo de volta para a massa-mãe.

    Mas ela estava se levantando.

    Sam correu aos tropeções para a porta, abaixou-se e pegou os dois cartuchos que deixara cair quando recarregara a arma. Abriu o cilindro, atirou fora os cartuchos vazios, enfiou as duas últimas balas.

    — preciiiiiiüiiiiiiiiiiiiiso... preciiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiso...

    Ela estava de pé, vindo em sua direção.

    Desta vez, ele segurou a Smith & Wesson com as duas mãos, mirou com cuidado e acertou-a na cabeça.

    Retire o processador de dados, pensou com um lampejo de humor negro. Único modo de parar uma determinada máquina. Retire seu processador de dados e ela não passará de um emaranhado de sucata.

    Ela tombou. A luz vermelha extinguiu-se de seus olhos inumanos; estavam negros agora. Ficou inteiramente imóvel.

    De súbito, chamas irromperam do crânio perfurado a bala, brotando do ferimento, dos olhos, das narinas, da boca aberta.

    Ele moveu-se depressa para a tomada à qual a criatura ainda estava ligada e chutou o conector semi-orgânico que ela projetara do seu corpo, soltando-o.

    As chamas continuaram a brotar.

    Não podia permitir um incêndio. Os corpos seriam achados e a vizinhança, a casa de Harry incluída, seria vasculhada de porta em porta. Olhou em torno, em busca de alguma coisa para atirar sobre ela e abafar as chamas, mas as chamas dentro de seu crânio já estavam cedendo. Em poucos instantes extinguiram-se.

    O ar tresandava a uma dúzia de odores fétidos, alguns insuportáveis.

    Sentia-se um pouco tonto. A náusea se apoderou dele. Sentiu ânsia de vômito, cerrou os dentes e resistiu.

    Embora quisesse desesperadamente sair dali, teve o cuidado de desligar ambos os computadores. Estavam inoperáveis e irremediavelmente danificados, mas ele tinha um medo irracional de que, como o homem construído pelo Dr. Frankenstein no cinema seqüência após seqüência, se reanimassem se expostos à eletricidade.

    Hesitou quando chegou à porta, apoiou-se contra o umbral para aliviar o peso de suas pernas fracas e trêmulas e examinou os estranhos corpos. Esperava que voltassem à forma normal quando mortos, como os lobisomens nos filmes — depois de receberem um tiro de bala de prata no coração ou serem surrados com uma bengala de cabo de prata — sempre se transformavam uma última vez, retornando ao próprio eu humano e torturado, livres afinal da maldição. Infelizmente, aquilo não era licantropia. Não era uma aflição sobrenatural, mas algo pior que os homens haviam causado a si mesmos, sem a ajuda de demônios ou espíritos ou outras coisas que se transformavam à noite. Os Coltranes permaneceram como estavam, monstruosos espécimes de carne e metal, sangue e silício — ser humano e máquina.

    Não conseguia compreeender como haviam se tornado o que se tornaram, mas lembrou vagamente que existia uma palavra para eles: cyborg, uma pessoa cujas funções fisiológicas eram ajudadas por um dispositivo eletrônico ou mecânico, ou dependiam dele. Pessoas que usavam marca-passo para regular corações arrítmicos eram cyborgs e isso era uma coisa boa. Aqueles cujos rins não funcionavam — e que faziam diálise regularmente — eram cyborgs, e isso também era bom. Mas, com os Coltranes, o conceito fora levado a extremos. Eles eram o lado do pesadelo da cibernética avançada, em quem não só a função fisiológica, mas a função mental passaram a ser ajudadas por uma máquina, e se tornaram dependentes dela.

    Sam começou a ter ânsias de vômito outra vez. Afastou-se depressa do aposento enfumaçado e atravessou novamente a casa até a porta da cozinha, por onde entrara.

    A cada passo, tinha certeza de que iria ouvir uma voz às suas costas, semi-humana e semi-eletrônica — "preciiiiiiiüiiiiiso" — e olharia para trás para ver um dos Coltranes arrastando-se atrás dele, reanimado por um último suprimento de energia armazenada em pilhas celulares.

     

     No portão principal da New Wave Microtechnology, na parte alta ao longo do perímetro norte de Moonlight Cove, o guarda, usando uma capa de chuva preta com o logotipo da empresa no peito, apertou os olhos para ver melhor o carro de polícia que estava chegando. Quando reconheceu Loman, fez um sinal para que passasse, sem fazê-lo parar. Loman sempre fora bem conhecido ali, mesmo antes de se tornarem Nova Gente.

    O poder, o prestígio e a rentabilidade da New Wave não eram disfarçados por dependências simples. O lugar fora projetado por um arquiteto de renome que apreciava cantos arredondados, ângulos suaves e a justaposição interessante de paredes curvas — algumas côncavas, outras convexas. Os dois amplos prédios de três andares — um erguido quatro anos depois do outro — eram recobertos de pedra amarelo-clara, possuíam enormes janelas de vidro fume e integravam-se perfeitamente à paisagem.

    Dos 1.400 empregados, quase mil viviam em Moonlight Cove. Os demais residiam em comunidades próximas. Todos eles, claro, viviam dentro do alcance eficaz da antena de transmissão de microondas no telhado do prédio principal.

    Enquanto contornava os prédios em direção ao estacionamento atrás, Loman pensou: sem dúvida, Shaddack é o nosso reverendo Jim Jones. Precisa ter certeza de que pode levar cada um de seus seguidores com ele a qualquer momento que desejar. Um faraó moderno. Quando morre, os que o servem morrem também, como se esperasse que continuassem a servi-lo no outro mundo. Merda. Será que ainda acreditamos em outro mundo?

    Não. A fé religiosa era própria da esperança e exigia envolvimento emocional.

    A Nova Gente não acreditava em Deus mais do que em Papai Noel. A única coisa em que acreditava era no poder da máquina e no destino cibernético da humanidade.

    Talvez alguns deles nem nisso acreditassem. Loman não acreditava. Não acreditava em mais nada — o que o assustava, porque um dia acreditara em muitas coisas.

    A relação entre vendas brutas e lucros da New Wave e o número de empregados era alta até para a indústria de microtecnologia e sua habilidade de pagar pelo melhor talento em seu campo refletia-se no percentual de carros de luxo nas duas imensas áreas de estacionamento. Mercedes. BMW. Porsche. Corvette. Cadillac Seville. Jaguar. Carros japoneses de último tipo, importados com todos os acessórios.

    Havia apenas metade do número usual de carros no estacionamento. Parecia que uma grande percentagem do quadro de pessoal estava em casa, trabalhando por modem. Quantos já estariam como Denny?

    Lado a lado no asfalto varrido pela chuva, aqueles carros lembravam Loman das fileiras ordenadas de tumbas num cemitério. Todos aqueles motores em repouso, todo aquele metal frio, todas aquelas centenas de pára-brisas refletindo o dia cinza e insípido de outono pareciam um pressentimento de morte. Para Loman, aquele estacionamento representava o futuro de toda a cidade: silêncio, quietude, a terrível paz eterna da sepultura.

          Se as autoridades fora de Moonlight Cove se deparassem com o que estava acontecendo ali ou se cada um da Nova Gente se tornasse um regressivo — ou pior — e o Projeto Falcão da Lua fosse um desastre, a solução não seria um refresco envenenado, como o  reverendo Jim Jones usou em Jonestown, mas comandos letais transmitidos em jatos de microondas, recebidos por computadores mi-, croesféricos dentro da Nova Gente, instantaneamente traduzidos na  linguagem do programa principal e obedecido. Milhares de corações  parariam no mesmo instante. A Nova Gente pereceria, em bloco,  Moonlight Cove em um segundo se transformaria no sepulcro dos insepultos.

            Loman atravessou o primeiro estacionamento, entrou no segundo, e dirigiu-se para a fileira de vagas reservadas para os altos executivos.

            Se eu esperar que Shaddack perceba que o Projeto Falcão da Lua deu errado e nos leve com ele, pensou Loman, ele não o fará porque se importe em remediar o que fez, não o maldito albino- aranha. Ele nos levará com ele pelo prazer de fazê-lo, só para poder partir em grande estilo, para que o mundo pasme diante de seu poder, um homem tão poderoso que podia ordenar que milhares de pessoas morressem com ele.

    Alguns psicopatas o veriam como herói, o idolatrariam. Alguns gênios nascentes poderiam querer imitá-lo. Sem dúvida, era isso que Shaddack tinha em mente. Na melhor das hipóteses, se o Falcão da Lua desse certo e toda a humanidade fosse convertida, Shaddack seria, literalmente, o dono do mundo. Na pior, se tudo desse errado e ele tivesse que se matar para evitar cair nas mãos das autoridades, ele se tornaria uma figura quase mística de inspiração dark, cuja lenda maligna encorajaria legiões de loucos e de loucos por poder, um Hitler para a era do silício.

    Loman freou no final da fileira de carros.

    Limpou o rosto suado. A mão tremia.

    Sentiu um profundo desejo de abandonar sua responsabilidade e buscar a existência despreocupada e livre de pressões do regressivo.

    Mas resistiu.

    Se Loman matasse Shaddack primeiro, antes deste ter a chance de se matar, a lenda seria maculada. Loman morreria segundos depois de Shaddack, como todos da Nova gente, mas pelo menos a lenda teria que incorporar o fato de que este Jim Jones high tech morrera nas mãos de uma das criaturas que criara. Ficaria claro que seu poder era limitado; seria visto como inteligente, mas não o suficiente, um deus fracassado, compartilhando tanto o orgulho quanto o destino do Moreau de Wells e seu trabalho seria visto mais como uma loucura.

    Loman virou à direita, dirigiu-se à fileira de vagas para os executivos e ficou decepcionado ao ver que nem o Mercedes nem a caminhonete cinza de Shaddack estavam na vaga cativa. Ainda assim ele podia estar lá. Podia ter sido levado ao escritório por outra pessoa ou ter estacionado em outro lugar.

    Loman colocou o carro de polícia na vaga de Shaddack. Desligou o motor.

    Carregava o revólver num coldre preso à cintura. Já verificara duas vezes se estava carregado. Tornou a fazê-lo.

    Entre a casa de Shaddack e a New Wave, Loman estacionara no acostamento da estrada para escrever um bilhete, que deixaria sobre o corpo de Shaddack, explicando que ele matara seu criador. Quando as autoridades do mundo exterior não convertido entrassem em Moonlight Cove, encontrariam o bilhete e saberiam.

    Executaria Shaddack não por motivos nobres. Esse magnâni-   mo auto-sacrifício requeria uma profundidade de sentimentos que ele já não podia alcançar. Assassinaria Shaddack estritamente porque tinha medo de que este viesse a saber de Denny, ou descobrisse que outros se tornaram iguais a Denny, e encontrasse um modo de fazer todos entrarem numa união perversa com as máquinas.

    Olhos de prata liqüefeita...

    Baba escorrendo da boca aberta...

    A sonda segmentada projetando-se da fronte do rapaz e buscando o calor vaginal do computador...

    Aquelas imagens enregelantes, e outras, circulavam pela mente de Loman num interminável carrossel de lembranças.

    Mataria Shaddack para evitar ser forçado a se transformar no que Denny se transformara, e a destruição da lenda de Shaddack seria apenas um efeito colateral benéfico.

    Recolocou a arma no coldre e saiu do carro. Correu pela chuva até a entrada principal, empurrou as portas de vidro trabalhado, entrou no saguão de assoalho de mármore, virou à direita, afastando-se dos elevadores, e aproximou-se do balcão de recepção. Em luxo empresarial, o local rivalizava com as mais sofisticadas sedes de companhias de tecnologia de ponta no mais famoso vale do Silício, ao sul. Detalhados ornamentos de mármore, remates de metal polido, finos castiçais de parede em cristal e modernísticos candelabros de cristal eram prova do sucesso da New Wave.

    A recepcionista de serviço era Dora Hankins. Conhecera-a toda a sua vida. Era um ano mais velha do que ele. No colégio, saíra algumas vezes com a irmã dela.

    Ergueu os olhos quando ele se aproximou, não disse nada.

    —        Shaddack? — perguntou ele.

    —        Não está.

    —        Tem certeza?

    —        Tenho.

    —        Quando deve chegar?

    —        A secretária dele deve saber.

    —        Vou subir.

    —        Está bem.

    Quando entrou num dos elevadores e apertou o três no painel de controle, Loman refletiu sobre a conversa que ele e Dora Hankins teriam mantido na época anterior à Mudança. Teriam caçoado um do outro, trocado notícias sobre suas famílias e feito comentários sobre o tempo. Agora não. Uma conversa descontraída era um prazer de seu mundo anterior. Convertidos, já não tinham necessidade disso. Na verdade, embora se recordasse de que esse tipo de conversa um dia fizera parte do mundo civilizado, Loman já não  conseguia se lembrar porque um dia a considerara importante ou  que espécie de prazer lhe dava.

             O escritório de Shaddack ficava no extremo noroeste do tercei-  ro andar. A primeira sala que dava para o corredor era o saguão de recepção, maciamente acarpetada com originais de Edward Fields, magnificamente mobiliada com bem estofados sofás de couro e mesas de metal com tampos de vidro de dois centímetros e meio de espessura. A única obra de arte era um quadro de Jasper Johns — um original, não uma reprodução.

    que acontece com artistas no novo mundo que virá? perguntou-se Loman.

            Mas sabia a resposta. Não haveria nenhum artista. A arte era  emoção materializada em pintura sobre uma tela, palavras numa página, música numa sala de concertos. Não haveria arte no mundo  novo. E, se houvesse, seria a arte do medo. As palavras usadas com mais freqüência pelo escritor seriam todas sinônimos de trevas. O músico comporia cantos fúnebres de um tipo ou outro. O pigmento mais usado pelo pintor seria o preto.

    Vicky Lanardo, a secretária executiva de Shaddack, estava à sua mesa. Ela disse:

    —        Ele não está.

    Atrás dela, a porta do enorme escritório de Shaddack estava aberta. Não havia luzes acesas. Era iluminado apenas pela luz do dia chuvoso, que penetrava pelas persianas em faixas de cor cinza.

    —        Quando chegará? — perguntou Loman.

    —        Não sei.

    —        Nenhuma reunião?

    —        Nenhuma.

    —        Sabe onde ele está?

    —        Não.

    Loman saiu. Por algum tempo, vagou pelos corredores, escritórios, laboratórios e salas técnicas semidesertos, na esperança de localizar Shaddack.

    No entanto, não levou muito tempo para concluir que Shaddack não estava rondando o local. Evidentemente, o grande homem fase mantinha em movimento naquele último dia da conversão de o Moonlight Cove.

     Por minha causa, pensou Loman. Por causa do que eu lhe disse à noite passada na casa de Peyser. Está com medo de mim e está em constante deslocamento ou se escondeu em algum lugar, tornando-se difícil de achar.

    Loman saiu do prédio, voltou ao carro de polícia e saiu à procura de seu criador.

     

    No lavabo do térreo, ao lado da cozinha, nu da cintura para cima, Sam sentava-se sobre o tampo fechado do vaso sanitário e Tessa desempenhava os mesmos cuidados de enfermeira que dedicara a Chrissie horas antes. Mas os ferimentos de Sam eram mais graves do que os da menina.

    Formando um círculo do tamanho de uma moeda de dez centavos sobre sua testa, acima do olho direito, a pele fora esfolada e, no centro do círculo, a carne inteiramente perfurada, revelando um pedacinho do osso de cerca de três milímetros de diâmetro. Estancar o fluxo de sangue daqueles minúsculos vasos capilares seccionados exigia alguns minutos de contínua pressão, seguida de uma aplicação de iodo, uma generosa camada de NuSkin e uma compressa de gaze firmemente presa com esparadrapo. Mas mesmo após todos esses esforços, a gaze lentamente escurecia-se com uma mancha vermelha.

    Enquanto Tessa cuidava dele, Sam contou-lhe o que aconteceu:

    — ...então, se eu não tivesse atirado nela naquele exato momento... se tivesse demorado um ou dois segundos, acho que aquela coisa maldita, aquela sonda, o que quer que fosse, teria perfurado meu crânio e penetrado em meu cérebro, e teria se conectado comigo da mesma forma que estava conectada ao computador.

    Abandonada a toga em troca da blusa e dos jeans secos, Chrissie estava parada na entrada do lavabo, lívida, mas querendo ouvir tudo.

    Harry trouxera sua cadeira de rodas para o vão da porta.

    Moose estava deitado aos pés de Sam, ao invés de estar aos pés de Harry. O cachorro parecia perceber que no momento o visitante precisava mais de consolo do que Harry.

    Sam estava mais frio do que o tempo passado sob a chuva gelada podia explicar. Tremia e de vez em quando os tremores que o percorriam eram tão fortes que seus dentes batiam.

    Quanto mais Sam falava, mais fria Tessa se sentia também, e com o tempo adquiriu os mesmos tremores que ele.

    Seu pulso direito fora cortado em dois lugares, quando Harley Coltrane o agarrara com sua poderosa mão ossuda. Nenhum vaso sangüíneo importante fora rompido; nenhum dos dois cortes precisava de pontos e Tessa logo estancou o sangramento. As contusões, que mal começavam a aparecer e não iriam aflorar senão dali a algumas horas, seriam piores do que os cortes. Ele queixava-se de dores na junta e que sua mão estava sem forças, mas ela não achava que nenhum osso fora quebrado ou danificado.

    —        ...como se de algum modo tivessem a capacidade de controlar sua forma física — disse Sam tremulamente —, fazer qual quer coisa que quisessem de si mesmos, a mente dominando a matéria, exatamente como Chrissie disse quando nos contou sobre o padre, aquele que começou a se transformar na criatura do filme...

    A menina assentiu.

    —        Quero dizer, eles se transformavam diante de meus olhos, criavam aquelas sondas, tentavam me agarrar. No entanto, com esse incrível controle de seus corpos, de sua substância física, aparentemente tudo em que desejavam se transformar era... algo saído de um pesadelo.

    O ferimento em seu ventre era o menor dos três. Como em sua testa, a pele fora arrancada num círculo do tamanho de uma moeda, embora a sonda que o atacou ali parecia destinada a queimar, ao invés de penetrar no corpo. A carne estava queimada e o ferimento propriamente dito bastante cauterizado.

    De sua cadeira de rodas, Harry disse:

    —        Sam, você acha que eles realmente são pessoas que se con trolam, que escolheram se tornar semelhantes a uma máquina, ou serão pessoas que de certa forma foram dominadas pela máquina, contra sua vontade?

    —        Não sei — disse Sam. — Pode ser uma coisa ou outra, suponho.

    —        Mas como poderiam ser dominadas, como isso poderia acon tecer, como tal mudança no corpo humano poderia ser conseguida?

    E como o que aconteceu aos Coltranes se liga aos bichos-papões?

    —        Não faço a menor idéia — disse Sam. — De alguma forma, tudo está relacionado com a New Wave. Tem que estar. E nenhum de nós aqui sabe muita coisa sobre esse tipo de tecnologia, de modo que não temos o conhecimento básico necessário para especular inteligentemente. Para nós pode ser até algo mágico, sobrenatural. A única forma de vir a compreender o que está acontecendo é conse guindo ajuda de fora, colocando Moonlight Cove de quarentena, tomando os laboratórios e arquivos da New Wave e reconstituindo os fatos, do modo como os oficiais do corpo de bombeiros reconstituem a história de um incêndio pelo que colhem nas cinzas.

    —        Cinzas? — perguntou Tessa quando Sam levantou-se e enquanto ela o ajudava a vestir a camisa. — Toda esta conversa sobre incêndios e cinzas, e outras coisas que você mencionou, faz parecer que acha que o que quer que esteja acontecendo em Moonlight Cove está caminhando depressa para uma explosão ou algo assim.

    —        E está mesmo — disse ele.

    No começo, tentou abotoar a camisa com uma das mãos, mas deixou que Tessa o fizesse por ele. Ela notou que a pele dele ainda estava fria e que seus tremores não estavam cedendo.

    Ele disse:

    —        Todos esses assassinatos que eles tiveram que esconder, essas criaturas que ficam à espreita à noite... há uma sensação de que um colapso começou, que o que quer que tenham tentado fazer aqui não está saindo como planejaram e que o colapso está se acelerando. — Respirava rápido demais, superficialmente demais. Parou, respirou fundo. — O que eu vi na casa dos Coltrane's... aquilo não parecia algo que alguém pudesse ter planejado, não alguma coisa que se pudesse querer fazer com as pessoas ou que elas pudessem querer para si mesmas. Parecia uma experiência fora de controle, biologia ensandecida, realidade ao avesso e juro por Deus que, se esses tipos de segredos estão escondidos nas casas destas cidades, então todo o projeto tem que estar desmoronando na New Wave neste instante, desabando sobre suas cabeças, quer o admitam ou não. Tudo está agora mesmo, neste instante, correndo para uma ex plosão, uma terrível explosão, e nós estamos no meio dela.

    Do momento que atravessara a porta da cozinha aos tropeções, chuva e sangue pingando, até o instante em que Tessa terminou de limpar seus ferimentos e fazer curativo neles, ela notara algo que a assustara mais do que sua palidez e tremores. Ele não parava de tocá-los. Ele abraçara Tessa na cozinha, quando ela arquejou diante da visão do buraco que sangrava em sua testa; abraçou-a, amparou-se nela e assegurou-lhe de que estava bem. Parecia estar principalmente tentando dizer a si mesmo que ela> Harry e Chrissie estavam bem, como se tivesse esperado voltar e encontrá-los... mudados. Abraçou Chrissie também, como se fosse sua própria filha, e disse, quando viu o quanto ela estava assustada:

    —        Tudo vai dar certo, não se preocupe, tudo vai dar certo.

    Harry estendeu uma das mãos, preocupado, e Sam agarrou-a, demorando a soltá-la. No banheiro, enquanto Tessa fazia os curativos, ele repetidamente tocava suas mãos, seus braços e uma vez colocou a mão em seu rosto como se estivesse maravilhado com a suavidade e o calor de sua pele. Estendeu a mão para tocar Chrissie também, onde ela estava, dentro do banheiro junto à porta, batendo de leve em seu ombro, segurando sua mão por um instante e apertando-a para reconfortá-la. Até então ele não costumava tocar as pessoas. Sempre fora reservado, controlado, frio, até distante.

    Mas, durante os 15 minutos que passara na casa dos Coltranes, ficara tão profundamente abalado pelo que vira que sua casca de isolamento auto-imposto se abrira; passara a querer e necessitar do contato humano que, há apenas pouco tempo, ele não havia sequer listado como tão desejável quanto boa comida mexicana, Guinness Stout e filmes de Goldie Hawn.

    Quando considerou a intensidade do horror necessário para transformá-lo tão completa e bruscamente, Tessa ficou mais assustada ainda, porque a redenção de Sam Booker parecia-se à de um pecador que, no leito de morte, vislumbrando o inferno, volta-se desesperadamente para o Deus de que um dia ele se esquivou, em busca de conforto e consolo. Estaria ele menos certo de suas chances de escapar? Talvez ele buscasse o contato humano porque, tendo se negado isso por tantos anos, acreditava que lhe restavam apenas horas para experimentar a comunhão com a própria espécie, antes que as trevas profundas e infinitas se abatessem sobre eles.

     

    Shaddack acordou do seu sonho familiar e reconfortante de partes humanas e mecânicas combinadas numa máquina de alcance mundial, de incalculável poder e propósitos misteriosos. Sentia-se, como sempre, revigorado tanto pelo sonho quanto pelo próprio sono.

    Saiu da caminhonete e espreguiçou-se. Usando ferramentas que encontrou na garagem, forçou a porta de entrada para a casa da falecida Paula Parkins. Usou o banheiro, depois lavou as mãos e o rosto.

    Ao voltar, levantou a porta grande da garagem. Levou a caminhonete para a entrada de automóvel, de onde poderia transmitir e receber melhor dados por microondas.

    A chuva ainda caía e depressões no terreno estavam cheias d'água. Alguns anéis de nevoeiro já pairavam no ar sem vento, o que provavelmente significava que os rolos de neblina que mais tarde viriam do mar para a terra seriam ainda mais densos do que na noite anterior.

    Apanhou outro sanduíche de presunto e uma Coke do recipiente térmico e comeu enquanto usava o terminal de vídeo da caminhonete para verificar o progresso do Projeto Falcão da Lua. A programação de seis da manhã às seis da tarde para as 450 conversões   ainda estava em andamento. Já às 12:30, um pouco menos de sete horas depois de iniciada a programação de doze horas, trezentas e nove pessoas haviam recebido a injeção de microesferas de amplo-espectro. As equipes de conversão estavam bem adiantadas.

    Verificou o progresso das buscas por Samuel Booker e a mulher Lockland. Nenhum dos dois fora encontrado.

    Shaddack devia preocupar-se com o desaparecimento deles. Mas não se importava. Afinal, ele vira o falcão da lua, não uma, mas três vezes, e não tinha dúvidas de que ao final conseguiria alcançar todos os seus objetivos.

    A garota Foster também não fora encontrada. Tampouco se preocupava com ela. Provavelmente deparara com alguma coisa fatal durante a noite. Às vezes, os regressivos podiam ser úteis.

    Talvez Booker e Lockland também tivessem sido vítimas dessas mesmas criaturas. Seria irônico se os regressivos — a única falha do projeto e potencialmente uma falha grave — viessem a ser os responsáveis pela manutenção do segredo do Falcão da Lua.

    Pelo terminal, ele tentou alcançar Tucker na New Wave, depois em sua casa, mas o homem não estava em nenhum dos dois locais. Watkins teria razão? Seria Tucker um regressivo e, como Peyser, incapaz de encontrar o caminho de volta à forma humana? Estaria lá fora na floresta agora, preso num estado alterado?

    Desligando o computador, Shaddack suspirou. Depois que todos tivessem sido convertidos, à meia-noite, a primeira fase do Projeto Falcão da Lua estaria encerrada. Não inteiramente. Evidentemente, teriam algumas sujeiras a limpar.

     

     No porão da Colônia ícaros, três corpos haviam se transformado em um só. A entidade resultante não possuía forma rígida, não tinha ossos, nem feições próprias. Era uma massa de tecido pulsante que vivia apesar da ausência de cérebro, coração, vasos sangüíneos, sem órgãos de qualquer espécie. Era primitiva, uma espessa sopa de proteínas, sem cérebro, mas consciente, sem olhos, mas com visão, sem ouvidos, mas ouvindo, sem intestinos, mas faminta.

    As aglomerações de microesferas de silício haviam se dissolvido naquela massa. Aquele computador interno já não podia funcionar na substância radicalmente alterada da criatura, e a besta,  por sua vez, já não tinha nenhuma utilidade para a assistência biológica que as microesferas haviam sido projetadas para oferecer. Agora, ela já não estava ligada ao Sol, o computador da New Wave. Se o transmissor de microondas de lá enviasse uma sentença de morte, ela não receberia o comando — e continuaria a viver.

    Tornara-se o dono de sua fisiologia reduzindo-se à essência básica da existência física.

    Suas três mentes também haviam se transformado em uma só. A consciência que agora habitava aquela escuridão era tão privada de uma forma complexa quanto o corpo gelatinoso e amorfo em que residia.

    Abandonara a memória porque as lembranças eram inevitavelmente de acontecimentos e relacionamentos que tinham conseqüências, e conseqüências — boas ou más — implicavam que a pessoa era responsável por suas ações. Fora a fuga da responsabilidade que levara a criatura à regressão no início. A dor era outra razão para se livrar da memória — a dor de se lembrar do que fora perdido.

    Da mesma forma, ela havia abandonado a capacidade de considerar o futuro, de planejar, de sonhar.

    Agora não tinha mais passado consciente e o conceito de futuro estava além de sua percepção. Vivia apenas o momento, sem pensar, sem sentir, sem se importar.

    Tinha uma única necessidade. Sobreviver.

    E, para sobreviver, precisava de apenas uma coisa. Alimento.

     

     A louça do café da manhã fora retirada da mesa enquanto Sam estava na casa dos Coltranes, lutando contra monstros que aparentemente eram parte humanos, parte computadores e parte zumbis — e talvez, pelo que ele sabia, parte forno de assar. Depois de feitos os curativos em Sam, Chrissie reuniu-se com ele, Tessa e Harry em torno da mesa da cozinha outra vez, para ouvi-los discutir o próximo passo a ser dado.

    Moose permaneceu ao lado de Chrissie, fitando-a com enlevados olhos castanhos, como se a adorasse mais do que à própria vida. Ela não resistia em lhe proporcionar todos os afagos e carícias atrás das orelhas que ele desejava.

    — O maior problema de nossa era — disse Sam — é como manter o progresso tecnológico em aceleração, como usá-lo para melhorar a qualidade de vida, sem ser esmagado por ele. Podemos utilizar o computador para reformular o mundo, refazer nossas vidas, sem um dia virmos a idolatrá-lo? — Piscou para Tessa e disse: — Não é uma pergunta tola.

    Tessa franziu as sobrancelhas.

    —        Eu não disse que era. Às vezes, depositamos uma confiança cega nas máquinas, uma tendência para acreditar que tudo que o computador nos diz é absoluta verdade...

    —        Para esquecer o velho ditado — aparteou Harry — que diz "Se entra lixo, sai lixo.”

    —        Exatamente — concordou Tessa. — Às vezes, quando ob- temos dados ou análises dos computadores, nós os tratamos como se as máquinas fossem infalíveis. O que é perigoso porque um pro grama de computador pode ser concebido, projetado e implementado por um louco, talvez não com a mesma facilidade de um gênio bondoso, mas certamente com a mesma eficiência.

    Sam disse:

    —        E, no entanto, as pessoas têm a tendência, não, até mesmo um desejo profundo, de querer depender das máquinas.

    —        Sim — disse Harry —, essa é a nossa maldita necessidade de nos livrarmos de responsabilidade sempre que podemos. Um desejo covarde de tirar a responsabilidade dos ombros está em nossos genes, posso jurar, e o único modo de conseguir alguma coisa neste mundo é lutando permanentemente contra nossa inclinação natural de sermos irresponsáveis. Às vezes, imagino se isso é o que obtivemos do diabo quando Eva ouviu a serpente e comeu a maçã, esta aversão à responsabilidade. É aí que se origina a maioria dos males.

    Chrissie notou que o assunto empolgava Harry. Com seu braço bom e uma pequena ajuda de sua perna parcialmente útil, empertigou-se na cadeira de rodas. A cor assomou ao seu rosto até então pálido. Cerrou o punho e fitou-o intensamente, como se segurasse algo precioso na mão fechada com força, como se segurasse a idéia e não quisesse soltá-la até tê-la explorado inteiramente.

    Disse:

    —        Os homens roubam, matam, mentem, trapaceiam porque não se sentem responsáveis pelos outros. Os políticos querem o poder e querem a consagração quando seus planos dão certo, mas raramente se levantam e assumem a responsabilidade pelo fracasso.

    O mundo está cheio de gente que quer lhe dizer como viver sua vi da, como fazer o céu aqui mesmo na Terra, mas quando suas idéias não se mostram tão boas, quando tudo termina em Dachau, Gulag ou nos assassinatos em massa que se seguiram à nossa partida do Sudeste da Ásia, viram os rostos, desviam o olhar e fingem que não tiveram nenhuma responsabilidade pelo massacre.

    Estremeceu e Chrissie estremeceu também, embora não tivesse certeza de ter compreendido inteiramente o que ele dizia.

    —        Meu Deus — continuou —, pensei nisso uma, mil, dez mil vezes, talvez por causa da guerra.

    —        Vietnam ? — perguntou Tessa.

    Harry assentiu. Ainda fitava o punho cerrado.

    —        Na guerra, para sobreviver, você tinha que ser responsável cada minuto do dia, decididamente responsável por si mesmo, por toda ação sua. Tinha que ser responsável pelos seus companheiros também, porque a sobrevivência não era algo que pudesse ser obtido sozinho. Isso talvez seja a única coisa positiva sobre lutar numa guerra. Ela clareia seu modo de pensar e o faz perceber que um senso de responsabilidade é o que diferencia os bons dos malditos. Não lastimo a guerra, nem mesmo considerando o que me aconteceu lá. Aprendi esta grande lição, aprendi a ser responsável por tudo e ainda me sinto responsável pelas pessoas pelas quais lutávamos, sempre me sentirei, e às vezes, quando penso como os abandonamos nos campos de extermínio, nas valas comuns, fico acordado à noite e choro porque eles dependiam de mim e, na medida em que eu era parte do processo, sinto-me responsável por decepcioná-los.

    Todos ficaram em silêncio.

    Chrissie sentiu uma estranha pressão no peito, a mesma sensação que sempre sentia na escola quando um professor — qualquer professor, qualquer assunto — começava a falar de algo que até ali ela desconhecia e que a impressionava tanto que mudava o modo como encarava o mundo. Não acontecia com freqüência, mas era sempre uma sensação assustadora e maravilhosa. Sentiu-a agora, por causa do que Harry dissera, mas a sensação era dez ou cem vezes mais forte do que jamais fora quando alguma idéia ou visão nova lhe era transmitida em geografia, matemática ou ciências.

    Tessa disse:

    —        Harry, acho que seu senso de responsabilidade nesse caso é excessivo.

    Ele ergueu os olhos do punho.

    —        Não. Nunca será. Seu senso de responsabilidade com os outros nunca pode ser excessivo. — Sorriu-lhe. — Mas já a co nheço o suficiente para suspeitar que você sabe disso, Tessa, quer  reconheça ou não. — Olhou para Sam e disse: — Alguns dos que vieram da guerra não viram nenhum benefício nela. Quando me reencontro com eles, sempre suspeito que são os que nunca aprenderam a lição e os evito, embora ache injusto. Não há nada que eu possa fazer. Mas quando encontro um veterano de guerra e percebo que ele aprendeu a lição, então eu lhe confio a minha vida. Diabos, eu lhe confiaria a minha alma, o que neste caso parece ser o que querem roubar. Você vai nos tirar dessa, Sam. — Descerrou o punho. — Não tenho a menor dúvida disso. Tessa pareceu surpresa. Para Sam, ela disse:

     — Você esteve no Vietnam?

        Sam assentiu.

       — Entre a faculdade e o Bureau.

     — Mas você nunca mencionou isso. Hoje cedo, quando estávamos preparando o café da manhã, quando me contou as razões por que via o mundo de forma tão diferente da minha, você falou da morte de sua mulher, do assassinato de seus parceiros, sua situação com seu filho, mas isso não.

        Sam fitou o pulso enfaixado por um instante e disse:     — A guerra é a experiência mais pessoal de minha vida.    — Que afirmação estranha.

    —        Em absoluto — disse Harry. — A mais intensa e a mais pessoal.

    Sam disse:

    —        Se não tivesse feito as pazes com isso, provavelmente ainda falaria sobre o assunto, provavelmente falaria sobre isso o tempo todo. Mas eu fiz as pazes com isso. Eu compreendi. E agora falar casualmente sobre isso com alguém que acabei de conhecer seria...

    bem, diminuir sua importância, suponho.

    Tessa olhou para Harry e disse:

        — Mas você sabia que ele esteve no Vietnam?

        — Sim.     — Simplesmente sabia, de algum modo.

        — Sim.

        Sam estivera apoiando-se sobre a mesa. Agora, recostou-se na cadeira.

    —        Harry, juro que farei tudo que puder para nos livrar dessa situação. Mas quisera entender melhor contra o que estamos lutando. Tudo vem da New Wave. Mas exatamente o que fizeram e como isso pode ser contido? E como posso esperar lidar com isso quando nem sequer sei do que se trata?

    Até então Chrissie sentira que a conversa estava muito acima  dela, embora achasse tudo fascinante e em grande parte tivesse provocado nela a sensação de estar aprendendo. Mas agora sentia que tinha que dar sua contribuição.

    —        Têm certeza que não se trata de extraterrestres?

    —        Temos — disse Tessa, sorrindo-lhe, e Sam despenteou seus cabelos.

    —        Bem — disse Chrissie —, o que quero dizer é que talvez o que tenha dado errado na New Wave é que os alienígenas aterrissaram lá e a usaram como base, e talvez eles queiram nos transformar todos em máquinas, como os Coltranes, para que possamos servir a eles como escravos, o que, pensando melhor, faz mais sentido do que querer nos comer. São alienígenas, afinal, o que significa que têm estômagos alienígenas e sucos gástricos alienígenas e nós provavelmente seríamos muito difíceis de digerir, lhes daríamos azia, talvez até diarréia.

    Sam, que estava sentado na cadeira ao lado de Chrissie, tomou-lhe as mãos e segurou-as delicadamente nas suas, cônscio de sua mão esfolada como de seu pulso ferido.

    —        Chrissie, não sei se você prestou bastante atenção no que  Harry estava dizendo...

    —        Ah, prestei, sim — respondeu sem demora. — Em tudo.

    —        Bem, então vai compreender quando eu lhe disser que querer colocar a culpa de todos esses horrores em extraterrestres é outra forma de tirar a responsabilidade de onde ela realmente se encontra: em nós, nas pessoas, em nossa própria capacidade real e enorme de fazer mal uns aos outros. É difícil acreditar que alguém, mesmo um louco, pudesse querer transformar os Coltranes naquilo em que se transformaram, mas alguém quis exatamente isso. Se tentarmos colocar a culpa em alienígenas, ou no diabo, em Deus, em entes sobrenaturais ou no que for, não vamos conseguir ver a situação com clareza suficiente para descobrir como nos salvarmos. Compreende?

    —        Um pouco.

    Ele sorriu-lhe. Tinha um sorriso muito bonito, embora não o exibisse muito.

    —        Acho que compreende mais do que um pouco.

    —        Mais do que um pouco — concordou Chrissie. — Seria bom que fossem extraterrestres, porque bastaria encontrarmos seu ninho, covil ou o que fosse, queimá-lo bem, talvez explodir sua espaçonave e tudo estaria resolvido. Mas, se não são extraterrestres, se somos nós, pessoas como nós, que fizeram tudo isso, então talvez nunca seja realmente resolvido.

     

    Com crescente frustração, Loman Watkins cruzou Moonlight Cove de uma ponta a outra várias vezes, dando voltas na chuva, em busca de Shaddack. Voltara à casa na ponta norte para se certificar de que Shaddack não regressara para lá e também para verificar a garagem e ver qual veículo estava faltando. Agora, buscava a caminhonete cinza-chumbo com os vidros escuros, mas não conseguia localizá-la.

    Onde quer que fosse, encontrava equipes de conversão e grupos de busca estavam em atividade. Embora os não convertidos talvez não notassem nada de muito anormal na presença daqueles homens pela cidade, Loman estava constantemente atento a eles.

    Nas barreiras norte e sul da estrada do condado e no bloqueio principal no extremo leste da Ocean Avenue, na saída para a interestadual, os policiais de Loman continuavam a lidar com forasteiros querendo entrar em Moonlight Cove. Rolos de fumaça dos canos de descarga erguiam-se dos carros de polícia, misturando-se aos anéis de neblina que começavam a deslizar pela chuva. As luzes de emergência vermelhas e azuis refletiam-se no macadame molhado da estrada, parecendo rios de sangue, oxigenados e privados de oxigênio, escorrendo pelo calçamento.

    Não havia muitos pretensos visitantes porque a cidade nem era sede do condado nem centro comercial importante para as pessoas das comunidades próximas. Além do mais, ficava próxima do final da estrada do condado e não havia outros locais de destino depois, de modo que não havia ninguém querendo atravessar a cidade a caminho de outro lugar. Os que realmente queriam entrar na cidade eram, se possível, convencidos a voltar, com uma história sobre um vazamento tóxico na New Wave. Os que pareciam totalmente céticos eram detidos, conduzidos à delegacia e presos em celas, até que se decidisse se seriam mortos ou convertidos. Desde o início da quarentena nas primeiras horas da manhã, apenas doze pessoas haviam sido detidas na barreira e apenas seis aprisionadas. Shaddack escolhera seu campo de provas muito bem. Moonlight Cove era relativamente isolada e, portanto, mais fácil de controlar.

    Loman pretendia mandar retirar as barreiras e dirigir-se a Aberdeen Wells, onde poderia revelar toda a história ao xerife do condado. Queria fazer o Projeto Falcão da Lua ir pelos ares.

    Já não temia a fúria de Shaddack ou a morte. Bem... não era verdade. Tinha medo de Shaddack e da morte, mas temia-os menos do que a perspectiva de se transformar em algo parecido ao que Denny se tornara. Preferia se entregar nas mãos do xerife em Aber-deen e das autoridades federais — até de cientistas que, limpando a sujeira em Moonlight Cove, pudessem se sentir tentados a dissecá-lo — do que ficar na cidade e inevitavelmente abandonar os últimos vestígios de sua humanidade à regressão ou a alguma medonha união de seu corpo e mente com um computador.

    Mas, se ordenasse a seus policiais que largassem o serviço, provocaria suspeitas e a lealdade deles estava mais com Shaddack do que com Loman, pois estavam ligados àquele pelo terror. Ainda tinham mais pavor de seu chefe da New Wave do que de qualquer outra coisa, pois não viram o que acontecera a Denny e ainda não compreendiam que seu futuro podia lhes reservar algo ainda pior do que regressão a um estado selvagem. Como as bestas de Moreau, mantinham a lei da melhor forma possível, não ousando — ao menos por enquanto — trair seu criador. Provavelmente, tentariam impedir Loman de sabotar o Projeto Falcão da Lua, e ele podia terminar morto ou, pior, trancado numa cela.

    Não podia se arriscar a revelar seu empenho contra-revolucionário, pois poderia nunca mais ter a chance de enfrentar Shaddack. Na imaginação viu-se encarcerado, com Shaddack rindo friamente dele através das barras de ferro, enquanto traziam um computador ao qual pretendiam fundi-lo.

    Olhos de prata liqüefeita...

    Continuou a circular pelo dia castigado pela chuva, apertando os olhos para ver através do pára-brisa riscado de chuva. Os limpadores de pára-brisa batiam ritmicamente, como se marcassem o tempo. Tinha a consciência aguda de que a meia-noite estava cada vez mais próxima.

    Ele era o homem-puma, à espreita, e Moreau estava lá na ilha de selva que era Moonlight Cove.

     

     No começo, a criatura mutante contentava-se em se alimentar das coisas que encontrava quando estendia finas gavinhas de si mesma pelo encanamento no chão do porão ou através das estreitas fendas  nas paredes e pela terra úmida a sua volta. Besouros. Larvas. Vermes. Já não sabia o nome de tais seres, mas consumia-os avidamente.

    Logo, entretanto, ela esgotou o suprimento de insetos e vermes num raio de dez metros. Precisava de uma refeição mais substanciosa.

    Espumava, fervilhava, talvez lutando para direcionar seus tecidos amorfos para uma forma na qual pudesse deixar o porão e caçar uma presa. Mas não possuía memória de formas anteriores e nenhum desejo de impor a si mesma uma ordem estrutural.

    A consciência que habitava aquela massa gelatinosa já não possuía o menor senso de autopercepção, e no entanto ainda era capaz de se refazer até o ponto de satisfazer suas necessidades. Repentinamente, uma dúzia de bocas sem dentes e sem lábios se abriram na forma fluida. Um som explosivo, basicamente além do alcance do ouvido humano, emanou da criatura.

    Por todo o casarão em ruínas acima da criatura amorfa, dezenas de ratos corriam de um lado para outro, beliscando algum alimento, construindo ninhos e cuidando-se. Pararam, todos ao mesmo tempo, quando o chamado ergueu-se do porão.

    A criatura podia percebê-los acima, nas paredes em desmoronamento, embora não pensasse neles como ratos, mas como pequenas massas quentes de carne viva. Alimento. Combustível. Queria-os. Precisava deles.

    Tentou expressar essa necessidade na forma de chamados sem palavras, mas irresistíveis.

    Em todos os cantos da casa, os ratos remexeram-se. Roçaram as patas dianteiras nos focinhos, como se tivessem atravessado teias de aranha e tentassem limpar aqueles fios pegajosos, grudentos, do pêlo.

    Uma pequena colônia de oito morcegos vivia no sótão e também eles reagiram ao chamado urgente. Deixaram as vigas de onde se penduravam e voaram atabalhoadamente e sem direção pelo longo aposento superior, desviando-se por um triz das paredes e uns dos outros.

    Mas nada se dirigiu para a criatura no porão. Embora o chamado tivesse alcançado os pequenos animais aos quais se destinara, não teve o efeito desejado.

    A criatura amorfa silenciou.      

    Sua inúmeras bocas se fecharam.

    Um a um os morcegos voltaram aos seus poleiros no sótão.

    Os ratos ficaram parados por um instante, como se estivessem em estado de choque, então retomaram suas atividades normais.

       Minutos depois, a besta proteínica tentou novamente com sons  diferentes, ainda além do alcance do ouvido humano, porém mais tentadores do que antes.

    Os morcegos lançaram-se de seus poleiros e revoaram pelo sótão em tal tumulto que um observador poderia pensar que montavam a mais de cem ao invés de apenas oito. O barulho do bater de suas asas ultrapassava o ruído da chuva no telhado cheio de goteiras.

    Por toda a parte, os ratos ergueram-se nas patas traseiras, atentos, as orelhas empinadas. Os que estavam no aposento térreo da casa, mais próximos à origem dos chamados, estremeceram violentamente, como se vissem diante deles um gato agachado, com os dentes arreganhados.

    Guinchando de forma estridente, os morcegos voaram através de um buraco no assoalho do sótão, para dentro de um aposento vazio no segundo andar, onde continuaram a voar em círculos, planar e mergulhar incessantemente.

    Dois ratos no andar térreo começaram a se arrastar em direção à cozinha, onde a porta para o porão estava aberta. Mas ambos pararam na soleira, confusos e amedrontados.

    Embaixo, a entidade amorfa triplicou o poder de seu chamado.

    Um dos ratos na cozinha começou a sangrar pelos ouvidos e caiu morto.

    Em cima, os morcegos começaram a bater contra as paredes, com seus radares desnorteados.

    O habitante do porão diminuiu um pouco a intensidade de seus apelos.

    Os morcegos voaram para fora do aposento, passando ao corredor, descendo o vão das escadas e percorrendo o corredor do térreo. Enquanto prosseguiam, sobrevoaram duas dúzias de ratos em disparada.

    Embaixo, as muitas bocas da criatura haviam se interligado, formando um único e largo orifício no centro da massa pulsante.

    Em rápida sucessão, os morcegos lançaram-se dentro da goela escancarada como cartas negras atiradas uma de cada vez dentro de uma lata de lixo. Envolviam-se no protoplasma úmido e eram rapidamente dissolvidos por poderosos ácidos digestivos.

    Um exército de ratos e quatro ratazanas — até dois esquilos que abandonaram ansiosamente o ninho dentro da parede da sala de jantar — correram em bando pela íngreme escada do porão, caindo uns sobre os outros, guinchando excitadamente. Lançaram-se na entidade que os aguardava.

    Após o rebuliço, a casa ficou em silêncio.

    A criatura parou seu canto de sereia. Por enquanto.

     

     O policial Neil Penniworth fora designado para patrulhar o setor noroeste de Moonlight Cove. Estava sozinho no carro porque mesmo com os cem empregados da New Wave destacados para o departamento de polícia durante a noite, a força humana era insuficiente.

    No momento, preferia trabalhar sem um parceiro. Desde o episódio na casa de Peyser, quando o cheiro de sangue e a visão da forma alterada deste incitaram Penniworth a regredir, ficara com medo de se aproximar de outras pessoas. Evitara a degeneração total na noite anterior... mas apenas por uma fração mínima. Se testemunhasse outra pessoa no ato de regredir, a necessidade urgente de fazer o mesmo podia crescer dentro dele também, e não tinha certeza de que poderia reprimir aquele sombrio desejo.

    Temia igualmente ficar sozinho. A luta para se agarrar com firmeza aos seus resquícios de humanidade, de resistir ao caos, de ser responsável, estava se esvaindo e ele ansiava por fugir desta vida nova e difícil. Sozinho, sem ninguém para ajudá-lo se começasse a abandonar sua própria forma e substância, sem ninguém para convencê-lo ou mesmo protestar contra sua degeneração, estaria perdido.

    O peso de seu medo era tão real quanto uma placa de ferro, usurpando-lhe a vida. Às vezes, tinha dificuldade de respirar, come se seus pulmões estivessem amarrados com tiras de aço e impedidos de se expandir completamente.

    As dimensões do carro branco e preto pareciam se reduzir, até se sentir tão confinado como se estivesse numa camisa-de-força. O barulho ritmado dos limpadores de pára-brisa aumentou, ao menos para seus ouvidos, até que o volume tornou-se tão retumbante quanto uma série interminável de tiros de canhão. Diversas vezes, durante a manhã e à tarde, ele parou no acostamento, abriu a porta com toda força e saiu apressado para a chuva, respirando profundamente o ar fresco.

    Ao longo do dia, entretanto, até o mundo fora do carro começou a parecer menor do que antes. Ele parou na Holliwell Road, a oitocentros metros a oeste da sede da New Wave e saiu do carro de radiopatrulha, mas não se sentiu melhor. As nuvens baixas e cinzentas negavam-lhe a visão do céu infinito. Como cortinas semitransparentes de cetim e fina seda, a chuva e a neblina separavam-no do  resto do mundo. A umidade era pegajosa, viscosa. A chuva transbordava as calhas, espumava em torrentes lamacentas pelas valas ao longo das ruas, pingava de cada galho e folha de todas as árvores, formava desenhos no asfalto, batia ocamente sobre o carro de polícia, chiava, borbulhava, atingia e fustigava seu rosto, atingia-o com tanta força que parecia estar sendo forçado a ficar de joelhos por milhares de pequenos martelos, cada qual pequeno demais para ser efetivo sozinho, mas com um brutal efeito cumulativo.

    Neil arrastou-se de volta para o carro com tanta ansiedade quanto saíra dele.

    Compreendeu que não era nem do interior claustrofóbico do carro nem da enervante presença da chuva em toda parte que ele tentava desesperadamente escapar. O verdadeiro opressor era sua vida como uma Nova Pessoa. Capaz de sentir apenas medo, estava preso em um armário emocional de dimensões tão insuportavelmente estreitas que não podia se mover. Não estava sufocando por causa de restrições e obstáculos externos; estava aprisionado por dentro, por causa do que Shaddack lhe fizera.

    O que significava que não havia fuga.

    Exceto, talvez, pela regressão.

    Neil não suportava a vida como tinha que vivê-la agora. Por outro lado, sentia-se enojado e aterrorizado pela idéia de involução para alguma forma subumana.

    Seu dilema parecia insolúvel.

    Estava tão perturbado por sua incapacidade de parar de pensar em seu infortúnio quanto pelo próprio infortúnio. Voltava-lhe constantemente ao pensamento. Não conseguia encontrar um termo para aquela situação.

    O mais próximo que conseguia de tirar sua preocupação — e um pouco do medo — da cabeça era quando trabalhava com o terminal móvel no carro de radiopatrulha. Quando verificava o quadro de avisos para ver ser havia recados para ele, quando acessava a programação do Falcão da Lua para saber como as conversões progrediam ou desempenhava qualquer outra tarefa com o computador, sua atenção ficava tão concentrada na interação com a máquina que logo a ansiedade amainava e sua inquietante claustrofobia diminuía.

    ..., Desde a adolescência, Neil se interessara por computadores, embora nunca tivesse se tornado um aficionado. Seu interesse era menos obsessivo. Começara com os jogos, claro, mas depois ganhara ,.a um PC simples. Mais tarde, comprara um modem com parte do dinheiro ganho em um emprego de verão. Embora não pudesse despender muito dinheiro com o tempo de telefone e nunca passasse horas de lazer usando o modem para alcançar muito além dos lugares mais afastados de Moonlight Cove até as fascinantes redes de dados disponíveis no mundo exterior, achava suas incursões nos sistemas on-line divertidas e absorventes.

    Agora, enquanto permanecia sentado no carro estacionado na Holliwell Road, usando o terminal, achou que o mundo interior dos computadores era admiravelmente limpo, comparativamente simples, previsível e são. Tão diferente da existência humana — fosse da Nova ou da Antiga Gente. Ali, imperavam a lógica e a razão. Caos e efeito colateral eram sempre analisados e esclarecidos. Ali, tudo era preto e branco — ou, quando cinza, este era cuidadosamente medido, quantificado e qualificado. Era mais fácil lidar com fatos frios do que com sentimentos. Um universo formado exclusivamente de dados, abstraídos de matéria e acontecimento, parecia tão mais desejável do que o universo real de frio e calor, aguçado e embotado, maciez e aspereza, sangue e morte, dor e medo. Chamando menu após menu, Neil vasculhou mais fundo os arquivos de pesquisa do Falcão da Lua dentro do Sol. Não precisava de nenhum dos dados que acessou, mas encontrou consolo no processo de obtê-los.

    Começou a ver a tela não como um tubo de raios catódicos onde as informações eram exibidas, mas como uma janela para um outro mundo. Um mundo de fatos. Um mundo livre de contradições perturbadoras... e de responsabilidade. Lá, nada poderia ser sentido; havia apenas o conhecido e o desconhecido, ou uma abundância de fatos sobre determinado assunto ou uma escassez deles, mas não sentimento; nunca sentimento; sentimento era a maldição daqueles cuja existência dependia de carne e osso.

    Uma janela para um outro mundo.

    Neil tocou a tela.

    Quisera que a janela pudesse ser aberta!, e que ele pudesse entrar no lugar da razão, da ordem, da paz.

    Com as pontas dos dedos da mão direita, traçou círculos pelo vidro aquecido da tela.

    Estranhamente, pensou em Dorothy, arrancada das planícies de Kansas com seu cachorro Totó, levada no turbilhão do tornado e caída daquele torvelinho cinzento num mundo muito mais intrigante. Se ao menos algum tornado eletrônico pudesse sair do terminal e carregá-lo para um lugar melhor...

    Seus dedos atravessaram a tela.

    Retirou a mão instantaneamente, atônito.

    O vidro não se rompera. Cadeias de números e palavras brilhavam no tubo, como antes.

    No começo, tentou convencer-se de que tivera uma alucinação. Mas não acreditava nisso.

    Flexionou os dedos. Pareciam perfeitos.

    Olhou para fora, para o dia varrido pela tempestade. Os limpadores de pára-brisa não estavam ligados. A chuva ondulava-se pelo vidro, distorcendo o mundo do outro lado; tudo lá fora parecia deturpado, transformado, estranho. Nunca poderia haver ordem, sanidade e paz num lugar assim.

    Tocou a tela do computador outra vez. Estava sólida.

    Novamente, pensou em como o mundo previsível e limpo do computador seria desejável — e como antes sua mão deslizou através do vidro, desta vez até o pulso. A tela abrira-se em torno de sua mão e fechara-se fortemente, com se fosse uma membrana orgânica. Os dados continuavam a brilhar no tubo, as palavras e números formando linhas em volta de sua mão invasora.

    Seu coração batia acelerado. Tinha medo, mas também sentia-se excitado.

    Tentou mexer os dedos naquele calor íntimo e misterioso. Não conseguia senti-los. Começou a achar que haviam se dissolvido ou sido decepados e que, quando retirasse a mão da máquina, do coto de seu pulso jorraria sangue.

    Retirou-a assim mesmo.

    Sua mão estava inteira.

    Mas já não era como antes. A carne no dorso da mão, das pontas dos dedos até o pulso, parecia ter veias de cobre e fibras óticas. Naqueles filamentos de vidro latejava uma pulsação regular e luminosa.

    Virou a mão. A parte inferior de seus dedos e a palma de sua mão assemelhavam-se à superfície do tubo de raios catódicos. Dados apareciam ali, letras verdes sobre um fundo vítreo e escuro. Quando comparou palavras e números em sua mão com os do terminal do carro, viu que eram idênticos. As informações no terminal mudaram; simultaneamente, mudaram também em sua mão.

    Subitamente, compreendeu que a regressão a uma forma bestial não era a única via de fuga aberta para ele, que podia entrar no mundo do pensamento eletrônico e da memória magnética, do conhecimento sem desejo carnal, de consciência sem sentimento. Não era estritamente uma compreensão — nem mesmo fundamentalmente — nem de natureza intelectual. Também não era uma compreensão instintiva, tampouco. Em algum nível mais profundo do que intelecto ou instinto, sabia que podia transformar-se mais completamente até do que Shaddack o transformara.

    Estendeu a mão da tela inclinada do computador para a unidade de processamento de dados no consolo entre os bancos. Tão facilmente quanto penetrara no vidro, deixou sua mão deslizar através do teclado e para dentro da tampa, nas entranhas da máquina.

    Era como um fantasma, capaz de passar através de paredes, ectoplásmico.

    Um frio subiu pelo seu braço.

    Os dados na tela foram substituídos por enigmáticos padrões de luz.

    Ele recostou-se no banco.

    O frio atingira seu ombro. Penetrou em seu pescoço.

    Ele suspirou.

    Sentiu algo acontecendo a seus olhos. Não sabia ao certo o quê. Podia olhar no espelho retrovisor. Não se importava. Resolveu cerrar os olhos e deixá-los transformarem-se no que fosse necessário, como parte desta segunda e mais completa conversão.

    Esse estado alterado era infinitamente mais atraente do que o dos regressivos. Irresistível.

    O frio estava em seu rosto agora. Sua boca estava entorpecida.

    Algo também acontecia dentro de sua cabeça. Estava tornando-se tão consciente da geografia interna dos circuitos e sinapses de seu cérebro quanto do mundo exterior. Seu corpo não era mais parte dele como antes; sentia menos através dele, como se seus nervos tivessem sido desgastados em sua maior parte; já não conseguia nem dizer se estava quente ou frio no carro, a menos que se concentrasse em acumular aqueles dados. Seu corpo era apenas o invólucro de uma máquina, afinal, e uma massa de sensores, projetados para proteger e servir seu eu interior, a mente calculadora.

    O frio estava dentro de seu cérebro.

    Era como se dezenas, depois centenas, depois milhares de gélidas aranhas corressem pela superfície de seu cérebro, penetrando-o.

    De repente, lembrou-se de que Dorothy descobrira que Oz era um pesadelo e no final desejara desesperadamente encontrar seu caminho de volta para o Kansas. Alice, também, encontrara a loucura e o terror na toca do coelho, do outro lado do espelho...

    Um milhão de frias aranhas.

    Dentro de seu crânio.

    Um bilhão.

    Frias, frias. Correndo.

     

      Ainda circulando por Moonlight Cove, à procura de Shaddack, Loman viu dois regressivos atravessarem a rua correndo.

    Estava na travessa Paddock, no extremo sul da cidade, onde as propriedades eram grandes o suficiente para as pessoas criarem cavalos. Viam-se casas de fazenda nos dois lados, com pequenos estábulos particulares ao lado ou atrás. As casas ficavam afastadas da rua, por trás de grades ou cercas brancas, depois de amplos e exuberantes jardins.

    O par de regressivos surgiu de uma densa fileira de antigas azaléias de um metro de altura, que ainda estavam cheias de folhas, mas sem flores neste final de estação. Atravessaram a estrada correndo nas quatro patas, saltaram uma vala e pularam uma cerca viva, desaparecendo.

    Embora enormes pinheiros se alinhassem ao longo dos dois lados da Paddock Lane, acrescentando suas sombras ao dia já escuro, Loman tinha certeza do que vira. Haviam sido moldadas segundo criaturas imaginárias, ao invés de qualquer animal do mundo real: em parte lobos, talvez, em parte felinos, em parte répteis. Eram ágeis e pareciam vigorosos. Um deles voltara a cabeça em sua direção e nas sombras seus olhos brilharam tão vermelhos quanto os de um rato.

    Ele diminuiu a velocidade, mas não parou. Já não se importava em identificar e prender regressivos. Por um lado, já os identificara satisfatoriamente: todos os convertidos. Sabia que só poderia detê-los se detesse Shaddack. Estava atrás de caça muito maior.

    Entretanto, sentiu-se inquieto de vê-los audaciosamente caçando em plena luz do dia, às duas e meia da tarde. Até então, tinham sido fugidias criaturas da noite, escondendo a vergonha de sua regressão, buscando seus estados alterados somente bem depois do pôr-do-sol. Se estavam preparados para se aventurarem antes do cair da noite, o Projeto Falcão da Lua estava se desintegrando em caos muito mais rápido do que esperava. Moonlight Cove não estava apenas se equilibrando à beira do inferno, mas já havia ultrapassado a borda e caído no fosso.

     

      Estavam no quarto de Harry, no terceiro andar, outra vez, onde haviam passado a última hora e meia, discutindo ansiosamente suas opções. Nenhuma luz estava acesa. A luz fraca da tarde banhava o aposento, contribuindo para o sombrio estado de ânimo.

    —        Portanto, estamos de acordo de que há duas maneiras de enviarmos uma mensagem para fora da cidade — disse Sam.

    —        Mas em qualquer dos casos — disse Tessa apreensiva —, você tem que sair lá fora e cobrir muito chão até chegar onde precisa.

    Sam encolheu os ombros.

    Tessa e Chrissie haviam tirado os sapatos e sentado na cama, recostadas na cabeceira. A menina, evidentemente, pretendia manter-se junto de Tessa; parecia ter se fixado nela do modo como um pin-tinho, recém-saído do ovo, se fixa na ave adulta mais próxima, seja ou não sua mãe.

    Tessa disse:

    —        Não vai ser tão fácil quanto deslizar até a casa dos Coltranes. Não à luz do dia.

    —        Acha que devo esperar até escurecer? — perguntou Sam.

    —        Acho. A neblina ficará mais densa, também, conforme anoitece.

    Acreditava no que dizia, embora a demora a preocupasse. Enquanto aguardavam uma oportunidade melhor, mais e mais pessoas eram convertidas. Moonlight Cove cada vez mais se transformava num ambiente estranho, perigoso e cheio de surpresas.

    Virando-se para Harry, Sam perguntou:

    —        A que horas escurece?

    Harry estava na cadeira de rodas. Moose voltara para seu dono, enfiando sua cabeça maciça sob o braço da cadeira e sobre o colo de Harry, satisfeito em ficar muito tempo sentado naquela postura incômoda em troca de uns poucos afagos e carícias e uma eventual palavra de carinho.

    Harry disse:

    —        Nessa época, o crepúsculo vem antes das seis.

    Sam estava sentado ao telescópio, embora não o estivesse usando no momento. Há poucos instantes, havia vasculhado as ruas e contou ter visto mais atividade do que antes — muitos carros e patrulhas a pé. Quanto menos habitantes locais não-convertidos restavam, mais os conspiradores por trás do Falcão da Lua tornavam-se  audaciosos em suas ações de policiamento, menos preocupados do que antes em chamar atenção para si mesmos. Consultando o relógio, Sam disse:

    —        Não posso dizer que goste da idéia de desperdiçar três horas ou mais. Quanto mais cedo enviarmos a mensagem, mais pessoas salvaremos do... do que quer que lhes estejam fazendo.

    —        Mas se for apanhado porque não esperou a noite cair — disse Tessa —, as chances de salvar qualquer pessoa tornam-se bem menores.

    —        A moça tem razão — disse Harry.

    —        Uma boa razão — disse Chrissie. — Só porque não são alie nígenas não significa que será mais fácil lidar com eles.

    Como até os telefones em funcionamento permitiam que o usuário discasse apenas para números previamente aprovados dentro da cidade, haviam abandonado esta esperança. Mas Sam percebera que qualquer PC conectado por modem com o supercomputador na New Wave — Harry disse que o chamavam de Sol — podia ser uma forma de fazer contato para fora da cidade, uma auto-estrada eletrônica onde poderiam burlar as atuais restrições nas linhas telefônicas e nos bloqueios nas estradas.

    Como Sam percebera na noite anterior quando usava o terminal no carro de polícia, o Sol mantinha contato direto com dezenas de outros computadores, inclusive vários bancos de dados do FBI, tanto os aprovados para amplo acesso quanto os restritos apenas a agentes do Bureau. Se pudesse se sentar a um terminal, ligá-lo ao Sol e, através deste, ligar-se ao computador do Bureau, poderia transmitir um pedido de socorro que apareceria nas telas dos computadores do Bureau e sairia impresso das impressoras a laser em seus escritórios.

    Presumiam, claro, que as restrições a contatos externos aplicadas a todas as linhas telefônicas da cidade não valiam para as linhas pelas quais o Sol mantinha contato com o mundo exterior. Se as ligações do Sol para fora de Moonlight Cove estivessem cortadas também, não lhes restaria nenhuma esperança.

    Compreensivelmente, Sam relutava em entrar em casas de quem trabalhava para a New Wave, com medo de encontrar outras pessoas como os Coltranes. Isso deixava apenas dois modos para obter acesso a um PC que pudesse ser ligado ao Sol.

    Primeiro, ele podia tentar entrar num carro branco e preto e usar um de seus terminais móveis, como fizera a noite anterior. Mas estavam alertas para sua presença agora, tornando mais difícil entrar furtivamente em um carro de polícia estacionado. Além disso, provavelmente todos os carros estavam em uso, enquanto os tiras   patrulhavam diligentemente em busca dele e, sem duvida, de Tessa também. E ainda que encontrasse um carro de polícia parado no estacionamento atrás do prédio municipal, aquela área devia estar muito mais movimentada do que da última vez em que esteve lá.

    Segundo, eles podiam usar os computadores da escola na Rosh-more Way. A New Wave os doara não por uma nobre preocupação com a qualidade da educação nas escolas locais, mas como mais um meio de ligar a comunidade à empresa. Sam acreditava, e Tessa concordava, que os terminais da escola provavelmente tinham capacidade de se ligarem ao Sol.

    Mas Moonlight Cove Central School, como era chamado o conjunto que englobava o primeiro e o segundo graus, ficava do lado oeste da Roshmore Way, dois quarteirões a oeste da casa de Harry e um quarteirão inteiro ao sul. Em tempos normais, era um agradável passeio de cinco minutos. Mas com as ruas vigiadas e toda casa potencialmente um posto de observação ocupado por inimigos, chegar à Central School agora sem ser visto era quase tão fácil quanto atravessar um campo minado.

    —        Além disso — disse Chrissie — ainda estão em aulas na Central. Você não poderia simplesmente entrar e usar um computador.

    —        Especialmente — disse Tessa —, quando imaginamos que os professores devem estar entre os primeiros convertidos.

    —        A que horas terminam as aulas? — perguntou Sam.

    —        Bem, na Thomas Jefferson saímos às três horas, mas continuam mais meia hora na Central.

    —        Três e meia — disse Sam.

    Consultado o relógio, Harry disse:

    —        Ainda faltam quarenta e sete minutos. Mas mesmo então, haverá atividades extraclasse, não?

    —        Certamente — disse Chrissie. — Banda, provavelmente prática de futebol, alguns outros grupos que não se reúnem durante o período de atividade regular.

    —        A que horas tudo isso estaria terminado?

    —        Sei que a banda pratica de quinze para as quatro até quinze para as cinco — disse Chrissie —, porque sou amiga de um garoto um ano mais velho do que eu que toca na banda. Eu toco clarineta.

    Também quero pertencer à banda no próximo ano. Se houver banda. Se houver próximo ano.

    —        Então, digamos... até as cinco horas o lugar está vazio.

    —        A aula de futebol vai além disso.

    —        Eles praticariam hoje, com essa chuva torrencial?

    — Acho que não.

    — Se vai esperar até cinco ou cinco e meia — disse Tessa —, pode esperar um pouco mais e ir para lá depois que escurecer.   

    Sam assentiu.

    —        Acho que sim.

    —        Sam, você está se esquecendo — disse Harry.

        — O quê?

    —        Pouco tempo depois de você sair daqui, talvez às seis em ponto, eles virão me converter.

    —        Meu Deus, é mesmo! — exclamou Sam.

    Moose retirou a cabeça do colo de seu dono e de baixo do braço da cadeira de rodas. Sentou-se ereto, as orelhas pretas empertigadas, como se entendesse o que fora dito e já antecipasse a campainha ou ouvisse uma batida na porta da frente.

    —        Acho que você realmente vai ter que esperar o anoitecer an tes de sair, para ter melhores chances — disse Harry —, mas terá que levar Tessa e Chrissie com você. Não será seguro deixá-las aqui.

    —        Teremos que levar você também — disse Chrissie imediata mente. — Você e Moose. Não sei se convertem cachorros, mas te mos que levar Moose por garantia. Não iríamos querer ficar preocupados se iriam transformá-lo numa máquina ou algo parecido.

    Moose remexeu-se.

    —        Podemos confiar em que ele não vai latir? — perguntou Chrissie. — Não iríamos querer que latisse para alguma coisa num momento decisivo. Acho que podíamos enrolar uma longa faixa de gaze em volta do seu focinho, amordaçá-lo, o que é meio cruel e provavelmente iria ferir seus sentimentos, já que amordaçá-lo significaria que não confiamos inteiramente nele, mas não iria feri-lo fisicamente, claro, e tenho certeza que mais tarde poderíamos compensá-lo com um bife suculento ou...

    Repentinamente percebendo uma solenidade incomum no silêncio de seus companheiros, a menina também calou. Pestanejou para Harry, depois para Sam e franziu as sobrancelhas para Tessa, que ainda estava sentada na cama a seu lado.

    Nuvens ainda mais escuras haviam começado a cobrir o céu desde que subiram e o quarto estava cada vez mais mergulhado nas sombras. Mas no momento Tessa podia ver o rosto de Harry Talbot quase claramente na penumbra cinzenta. Sabia o quanto ele lutava para ocultar seu medo, sendo bastante bem-sucedido, conseguindo exibir um sorriso genuíno e um inquebrantável tom de voz, traído apenas por seus olhos expressivos.

    Para Chrissie, Harry disse:

    —        Eu não vou com vocês, querida.

    —        Ah — disse a menina. Olhou novamente para ele, o olhar       deslizando de Harry para a cadeira em que estava sentado. — Mas você foi até nossa escola naquele dia para conversar conosco. Você sai de casa às vezes. Você deve ter um meio de sair. Harry sorriu.

    —        O elevador desce até a garagem ao nível do porão. Eu não dirijo mais, de modo que não há nenhum carro lá e eu posso facilmente girar minha cadeira de rodas pelo caminho de entrada até a calçada.

    —        Então, pronto! — disse Chrissie.

         Harry olhou para Sam e disse:

     — Mas eu não posso ir a lugar algum nestas ruas, íngremes como são em alguns trechos, sem a ajuda de alguém. A cadeira tem freios e o motor é bastante potente, mas quase nunca o suficiente para estas ladeiras.

    —        Estaremos com você — disse Chrissie ansiosamente. — Po demos ajudar.

    —        Minha querida, não podem se esgueirar rapidamente por três quarteirões de território ocupado e ao mesmo tempo me arrastar com vocês — disse Harry com firmeza. — Para começar, vão ter que ficar o mais longe possível das ruas, passar de um quintal para outro e entre as casas o mais que puderem, enquanto a cadeira só pode rodar na cal çada, especialmente com este tempo, com o terreno tão encharcado.

    —        Podemos carregá-lo.

    —        Não — disse Sam. — Não podemos. Não se quisermos che gar à escola e enviar uma mensagem ao Bureau. É uma distância pequena, mas cheia de perigos e temos que viajar sem pesos. Sinto muito, Harry.

    —        Não precisa se desculpar — disse Harry. — Eu não aceitaria que fosse de outra forma. Acha que quero ser arrastado ou car regado nos ombros como um saco de cimento pela cidade?

    Obviamente transtornada, Chrissie levantou-se da cama e ficou parada com os punhos cerrados ao longo do corpo. Olhou de Tessa para Sam e para Tessa outra vez, silenciosamente implorando-lhes que pensassem numa maneira de salvar Harry.

    Lá fora, o céu cinzento estava parcialmente coberto de nuvens carregadas, quase negras.

    A chuva amainara, mas Tessa pressentia que estavam apenas entrando num intervalo de calmaria, depois do qual o aguaceiro continuaria com mais força ainda.

    Tanto o abatimento físico quanto o espiritual aumentaram.       Moose ganiu baixinho.

     As lágrimas assomaram aos olhos de Chrissie e ela parecia incapaz de encarar Harry. Dirigiu-se a uma das janelas e ficou olhando para a casa vizinha e a rua mais adiante, mantendo-se afastada da vidraça para não ser vista por ninguém do lado de fora.

    Tessa queria consolá-la.

    Queria consolar Harry também.

    Mais do que isso... queria fazer tudo certo.

    Como roteirista-produtora-diretora, estava acostumada a tomar providências, assumir o comando, fazer as coisas acontecerem. Sempre sabia como resolver um problema, o que fazer numa crise, como manter as câmaras rodando uma vez iniciado o projeto. Mas agora sentia-se perdida. Nem sempre podia escrever o roteiro da realidade com a segurança com que escrevia seus filmes; às vezes, o mundo real recusava-se a obedecer suas ordens. Talvez por isso escolhera uma carreira em detrimento de uma família, mesmo depois de ter desfrutado de uma maravilhosa atmosfera familiar quando criança. O mundo real da labuta do dia-a-dia era descuidado, imprevisível, cheio de pontas soltas; não podia ter certeza de que seria capaz de amarrá-las como fazia quando tomava alguns dos seus aspectos e os reduzia a um filme primorosamente estruturado. A vida era a vida, intensa e complexa... mas um filme era apenas essência. Talvez lidassse melhor com essências do que com a vida em todos os seus extravagantes detalhes.

    Seu otimismo Lockland geneticamente recebido, antes tão luminoso como um farol, não a havia abandonado, embora, sem dúvida, houvesse se ofuscado por enquanto.

    Harry disse:

    —        Vai dar tudo certo.

    —        Como? — perguntou Sam.

    —        Provavelmente sou o último da lista — disse Harry. — Não iriam se preocupar com cegos e inválidos. Mesmo que saibamos que alguma coisa vai acontecer, não podemos sair da cidade e obter ajuda. A sra. Sagerian... ela mora em Pinecrest... é cega e aposto que nós dois somos os últimos na programação. Esperarão para lidar conosco até perto da meia-noite. Providencie para que não o façam.

    Portanto, o que tem a fazer é ir para a escola e comunicar-se com o Bureau, trazer ajuda para cá imediatamente, antes da meia-noite, e então eu estarei bem.

    Chrissie afastou-se da janela, o rosto banhado de lágrimas.

    —        Acha mesmo, Sr. Talbot? Acha realmente, honestamente, que não virão antes da meia-noite?

    Com a cabeça inclinada para o lado numa pose perpétua que era, dependendo de como fosse vista, ou jovial ou dolorosa, Harry piscou para a menina, embora ela estivesse mais longe dele do que Tessa e provavelmente não tenha visto o gesto.

      —      Se a estou enganando, querida, que Deus me atinja com um raio neste instante.

    A chuva caía, mas não se viu nenhum relâmpago.

    —        Viu? — disse Harry, sorrindo.

    Embora a menina desejasse acreditar no cenário que Harry lhe desenhara, Tessa sabia que não podiam contar com que ele fosse o último ou penúltimo no programa final de conversão. O que ele dissera fazia algum sentido, mas era perfeito demais. Como o desenvolvimento de uma narrativa no roteiro de um filme. A vida real, como ela própria acabara de se lembrar, era desarrumada, imprevisível. Desejava desesperadamente acreditar que Harry estaria a salvo até a poucos minutos da meia-noite, mas a realidade era que ele estaria correndo um risco extremo assim que o relógio soasse as seis horas e a última série de conversões começasse.

     

     Shaddack permaneceu na garagem de Paula Parkins durante a maior parte da tarde.

    Por duas vezes ele levantou a larga porta, ligou o motor da caminhonete e saiu para a entrada de automóvel para melhor monitorar o progresso de Falcão da Lua pelo terminal. Em ambas as vezes, satisfeito com os dados, ele voltou para a garagem e abaixou novamente a porta.

    O mecanismo funcionava automaticamente. Ele o projetara, construíra, finalizara e apertara o botão de partida. Agora, podia percorrer suas etapas sem ele.

    Passou horas sentado atrás do volante, sonhando acordado com o momento em que o estágio final do Falcão da Lua seria completado e todo o mundo agregado ao rebanho. Quando já não existisse nenhuma Antiga Pessoa, ele teria redefinido a palavra "poder", pois nenhum homem antes dele em toda a história teria conhecido um controle tão completo. Tendo refeito a espécie, ele podia traçar seu destino segundo seus próprios desejos. Toda a humanidade seria uma grande colmeia, zumbindo laboriosamente, servindo sua visão. Enquanto devaneava, sua ereção tornou-se tão rígida que se tornou extremamente dolorosa.

    Shaddack conhecia muitos cientistas que acreditavam que o objetivo do progresso tecnológico era aprimorar a raça humana, erguer a espécie da lama e transportá-la, finalmente, até as estrelas. Ele via as coisas de outro modo. No seu modo de pensar, o único propósito da tecnologia era concentrar poder em suas mãos. Outros pretensos recriadores do mundo haviam confiado em poder político, o que sempre acabava significando o poder da arma legal. Hitler, Stalin, Mao, Pol Pot e outros haviam buscado o poder pela intimidação e assassinato em massa, atravessando lagos de sangue em direção ao trono, e todos haviam fracassado em conseguir o que o circuito de silício estava a ponto de conferir a Shaddack. A caneta não era mais poderosa do que a espada, mas o microprocessador era mais poderoso do que vastos exércitos.

    Se soubessem o que ele empreendera e os sonhos de conquista que ainda o preocupavam, todos os outros homens de ciência diriam que ele era depravado, doente, demente. Não se importava. Estavam errados, claro. Porque não sabiam quem ele era. O filho do falcão da lua. Destruíra os que haviam se feito passar por seus pais e não fora descoberto ou punido, o que era prova de que as normas e leis que governavam outros homens não se aplicavam a ele. Seus verdadeiros pais eram forças espirituais, desencarnadas, poderosas. Eles o haviam protegido do castigo porque os assassinatos que cometera em Phoenix há tanto tempo eram uma oferenda sagrada a seus verdadeiros progenitores, uma declaração de sua fé e confiança neles. Outros cientistas não o compreenderiam porque não podiam saber que toda a existência centralizava-se nele, que o próprio universo existia apenas porque ele existia e que se um dia morresse — o que era improvável — então o universo deixaria de existir. Ele era o centro da criação. Era o único homem que importava. Os grandes espíritos lhe disseram isso. Os grandes espíritos haviam sussurrado essas verdades em seu ouvido, acordado e em sonhos, por mais de trinta anos.

    Filho do falcão da lua...

    Conforme a tarde caía, ele se sentiu cada vez mais excitado com a aproximação do término da primeira etapa do projeto e já não podia mais suportar o exílio temporário na garagem de Parkins. Embora tenha lhe parecido prudente ausentar-se dos locais onde Loman Watkins pudesse encontrá-lo, estava achando cada vez mais difícil justificar a necessidade de se esconder. Os acontecimentos na casa de Mike Peyser na noite anterior já não lhe pareciam tão catastróficos, apenas um pequeno contratempo; tinha confiança de que o problema dos regressivos seria resolvido. Sua genialidade resultava da linha direta entre ele e forças espirituais superiores e nenhuma dificuldade era insolúvel quando os grandes espíritos desejavam seu sucesso. A ameaça que sentira de Watkins diminuía progressivamente em sua memória também, até a promessa do delegado de encontrá-lo parecer vazia, até mesmo patética.

    Ele era o filho do falcão da lua. Surpreendia-se de ter esqueci-do uma verdade tão importante e ter fugido de medo. Claro, até Jesus passara seu tempo no jardim, amedrontado, e lutara com seus demônios. A garagem de Parkins era, na visão de Shaddack, seu próprio Getsêmane, onde se refugiara para se livrar das últimas dúvidas que o atormentavam.

    Ele era o filho do falcão da lua. Às quatro e meia ele ergueu a porta da garagem.      

    Deu partida na caminhonete e desceu a entrada de automóvel.

    Ele era o filho do falcão da lua.

     Entrou na estrada do condado e tomou a direção da cidade.  Ele era o filho do falcão da lua, herdeiro da coroa da luz e, à meia-noite, subiria ao trono.

     

     Pack Martin — seu verdadeiro nome era Packard porque sua mãe deu-lhe o nome de um carro que fora o orgulho de seu pai — morava num trailer no extremo sudeste da cidade. Era um trailer velho, o acabamento esmaltado desbotado e rachado como o verniz de um  jarro antigo. Estava enferrujado em diversos pontos, amassado e  assentado sobre uma base de blocos de concreto num terreno cheio  de mato. Pack sabia que muitas pessoas em Moonlight Cove consideravam sua casa uma monstruosidade, mas ele não dava a mínima. O trailer possuía uma ligação de luz improvisada, um forno a óleo e encanamento, o que bastava para atender suas necessidades. Estava aquecido, seco e tinha um lugar para guardar a cerveja. Era um verdadeiro palácio.

    Melhor ainda, o trailer fora pago há 25 anos, com o dinheiro que herdara de sua mãe, de modo que nenhuma hipoteca pairava sobre ele. Ainda tinha um pouco da herança também e raramente tocava no principal. Os juros somavam quase trezentos dólares por mês e ele também tinha sua pensão de incapacitado, recebida em função de uma queda que sofrerá três semanas depois de ser recrutado para o Exército. O único trabalho que Pack já empreendera fora toda a leitura e estudo que realizara para aprender e memorizar todos os mais complexos e sutis sintomas de danos  graves à coluna, antes de se apresentar segundo as instruções do recrutamento.

    Nascera para ser vadio. Compreendera isso desde pequeno. Ele e o trabalho nada tinham em comum. Achava que fora programa do para nascer numa família rica, mas algo dera errado e ele acabara filho de uma garçonete que fora apenas esforçada o suficiente  para deixá-lo com uma pequena herança.

    Mas não invejava ninguém. Todo mês ele comprava dez ou doze caixas de cerveja barata numa loja de descontos na estrada, tinha a sua tevê e, com um sanduíche de mostarda e mortadela de vez em quando, e umas batatas fritas, sentia-se bastante feliz.

    Às quatro horas daquela tarde de terça-feira, Pack já havia consumido quase toda a cerveja da caixa do dia, afundado em sua velha poltrona, vendo um programa de jogos em que as garotas, sempre em trajes curtos, eram muito mais interessantes do que o apresentador, os participantes ou as perguntas.

    O apresentador perguntou:

    —        Então, qual é sua escolha? Você quer o que está atrás da tela número um, tela número dois ou tela número três?

    Conversando com o aparelho, Pack disse:

    —        Fico com o que está dentro do uniforme daquela beldade, obrigado — e tomou outro gole de cerveja.

    Nesse instante, alguém bateu à porta.

    Pack não se levantou nem tomou conhecimento da batida. Não tinha amigos, portanto não tinha nenhum interesse em visitantes. Sempre eram alguns benfeitores da comunidade trazendo-lhe uma caixa de comida que ele não desejava ou oferecendo-se para cortar o mato e limpar o terreno, o que ele também não queria, porque gostava do mato.

    Bateram outra vez.

    Pack respondeu aumentando o volume da tevê.

    Bateram com mais força.

    —        Vá embora — disse Pack.

    Então, realmente esmurraram a porta, fazendo todo o maldito' trailer estremecer.

    —        Que diabos é isso? — indagou Pack. Desligou a TV e  levantou-se.

    As batidas não se repetiram, mas Pack ouviu um estranho barulho de algo arranhando a lateral do trailer.

    E o veículo estalou na base, o que às vezes acontecia quando  o vento era muito forte. Mas não havia vento.

     —       Moleques — concluiu Pack.

      A família Aikhorn, que vivia do outro lado da estrada do condado e duzentos metros ao sul, tinha filhos tão rebeldes que deviam ser mortos com injeções, conservados em formol e exibidos em algum museu de comportamento criminoso. Aqueles pestinhas divertiam-se colocando bombinhas nas fendas da base de concreto, embaixo do trailer, acordando-o com um estrondo no meio da noite.

    O barulho de raspagem na lateral do trailer cessara, mas agora dois garotos andavam no teto.

    Isso era demais. O teto de metal não vazava água, mas já vira melhores dias e era capaz de ceder ou mesmo soltar nas emendas sob o peso de dois garotos.

    Pack abriu a porta e saiu para a chuva, gritando obscenidades. Mas quando olhou para cima não viu nenhum garoto no teto. O  que viu, na verdade, foi algo saído de um filme de monstro da década de 1950, do tamanho de um homem, com mandíbulas estalando e olhos multifacetados e uma boca emoldurada por pequenas pinças. O estranho é que também viu algumas características de um rosto humano naquele semblante monstruoso, o suficiente para achar que reconhecera Daryl Aikhorn, pai dos pestinhas.

    — Preciiiiiiiiiiiiiiiso — disse a criatura, numa voz em parte de Aikhorn, em parte um zumbido de inseto.

    A criatura pulou sobre ele e, conforme vinha, um ferrão malignamente pontiagudo projetou-se de seu corpo repulsivo. Antes mesmo que o ferrão serrilhado, de um metro de comprimento, perfurasse seu ventre e o trespassasse de um lado a outro, Pack soube que os dias de cerveja, sanduíches de mortadela, fritas, cheques de pensão e lindas garotas dos programas de tevê estavam acabados.

    Randy Hapgood, de quatorze anos, chapinhou pela água lamacenta à altura da barriga da perna de uma valeta que transbordara e soltou uma exclamação de desdém, como se dissesse que a natureza teria que inventar um obstáculo mil vezes mais difícil do que aquele se quisesse intimidá-lo. Recusava-se a usar capa e galochas porque estes aparatos não ficavam bem. Tampouco se viam louras penduradas no braço de um boboca de guarda-chuva. Não havia nenhuma garota pendurada no braço de Randy, mas achava que elas ainda não tinham descoberto o quanto ele era senhor de si, calmo, indiferente ao tempo e tudo o mais que humilhava outros garotos.

    Estava encharcado e infeliz — mas assobiava alegremente para esconder o fato — quando chegou em casa da Central às vinte para as cinco, depois do ensaio da banda, que fora interrompido por causa do mau tempo. Despiu sua jaqueta de brim e pendurou-a atrás da porta da copa. Tirou os tênis ensopados também.

    —        Chegueeeeeeeei — gritou, imitando a menina de Poltergeist.

    Ninguém respondeu.

    Sabia que seus pais estavam em casa, porque as luzes estavam acesas e a porta aberta. Ultimamente, trabalhavam em casa cada vez mais. Estavam numa espécie de pesquisa de produto da New Wave e eram capazes de passar o dia inteiro nos dois terminais no andar de cima, no quarto dos fundos, sem ir ao escritório.

    Randy pegou uma lata de Coke na geladeira, abriu-a, tomou um gole e subiu para contar a Pete e Marsha como passara o dia. Não os chamava de pai e mãe e para eles estava tudo bem; eram tranqüilos. Às vezes, achava-os até indiferentes demais. Dirigiam um Porsche, suas roupas estavam sempre seis meses à frente do que todo mundo vestia e conversavam com ele sobre qualquer coisa, qualquer coisa, inclusive sexo, com tanta franqueza como se fossem seus colegas. Se um dia viesse a conhecer uma loura que quisesse se pendurar nele, teria receio de levá-la à sua casa para conhecer seus pais, com medo de que ela achasse que seu pai era infinitamente mais senhor de si do que ele. Às vezes, desejava que Pete e Marsha fossem gordos, desalinhados, com roupas fora de moda e insistissem irritantemente em serem chamados de mãe e pai. A competição na escola por notas e popularidade já era suficientemente feroz para ainda ter que sentir que também estava competindo com seus pais em casa.

    Quando chegou ao topo das escadas, chamou outra vez:

    —        Nas palavras imortais do intelectual americano moderno, John Rambo: "Yo!”

    Ainda não lhe responderam.

    Assim que Randy chegou à porta aberta do escritório no final do corredor, um calafrio percorreu-lhe a espinha. Estremeceu e franziu as sobrancelhas, mas não parou, entretanto, porque sua auto-imagem de absoluto autocontrole não lhe permitia ficar apavorado.

    Atravessou o vão da porta, com um gracejo na ponta da língua por não terem respondido aos seus chamados. Tarde demais, ficou instantaneamente paralisado no lugar, de medo.

    Pete e Marsha sentavam-se um de cada lado de uma ampla escrivaninha, onde seus terminais de computador estavam de costas um para o outro. Não, não estavam exatamente sentados; estavam atados a suas cadeiras por fios e aos computadores por inúmeros e hediondos cabos segmentados que cresciam deles — ou da máquina; era difícil dizer de qual e não só os prendiam a seus computadores, como a suas cadeira» e, finalmente, ao chão, onde desapareciam. Seus rostos ainda eram vagamente reconhecíveis, embora alterados de forma drástica, parte carne pálida e parte metal, com um aspecto ligeiramente desfeito.

    Randy não conseguia respirar.

    Mas podia mover-se e recuou aos tropeções.

    A porta bateu atrás dele.

    Ele girou nos calcanhares.

    Tentáculos — parte orgânicos, parte metálicos — irromperam da parede. O quarto inteiro parecia estranha e malignamente vivo, ou talvez as paredes estivessem cheias de máquinas alienígenas. Os tentáculos foram rápidos. Chicotearam à sua volta, prenderam seus braços, imobilizaram-no completamente e viraram-no de frente para seus pais.

    Eles ainda estavam em suas cadeiras, mas já não olhavam para os computadores. Fitavam-no com luminosos olhos verdes que pareciam ferver nas órbitas, borbulhando e espumando.

    Randy gritou. Debateu-se, mas os tentáculos seguravam-no.

    Pete abriu a boca e meia dúzia de esferas prateadas, como rolamentos de esferas, dispararam dele e atingiram Randy no peito.

    A dor explodiu pelo corpo do rapaz. Mas não durou mais do que alguns segundos. Ao contrário, a dor causticante deu lugar a uma sensação gélida e insinuante que percorreu todo seu corpo e subiu pelo seu rosto.

    Tentou gritar outra vez. Não emitiu nenhum som.

    Os tentáculos recolheram-se para dentro da parede, puxando-o com ele, até que suas costas ficaram presas no reboco.

    A sensação fria estava em sua cabeça agora. Penetrando, penetrando.

    Tentou gritar de novo. Desta vez, emitiu um som. Uma estridente oscilação eletrônica.

    Na tarde de terça-feira, usando quentes calças de lã, uma blusa de moletom e um cardigã por cima porque ultimamente tinha dificuldade de se sentir aquecida, Meg Henderson sentou-se à mesa da cozinha, junto à janela, com um copo de vinho branco, um prato de bolachas de cebola, uma fatia de queijo tipo Gouda e um livro protagonizado por Nero Wolfe, de Rex Stout. Lera todos os livros de Nero Wolfe há muitos anos, mas os estava relendo. Voltar a histórias antigas era reconfortante porque os personagens nunca muda- vam. Wolfe continuava sendo um gênio e um gourmet. Archie ainda era um homem de ação. Fritz ainda administrava a melhor cozinha   particular do mundo. Nenhum deles envelhecera desde que os encontrara pela última vez, tampouco, o que era um truque que ela gostaria de ter aprendido.

    Meg tinha oitenta anos e aparentava seus oitenta anos, cada minuto deles; não se enganava. Às vezes, quando se olhava no espelho, ficava admirada, como se não tivesse vivido com aquele rosto a maior parte do século e olhasse para uma estranha. De algum modo, esperava ver um reflexo de sua juventude porque por dentro ela ainda era aquela jovem. Felizmente, não se sentia com oitenta anos. Seus ossos estavam frágeis e seus músculos tinham praticamente tanto tônus quanto os de Jabba the Hut no terceiro filme Guerra nas estrelas que vira no vídeo na semana anterior, mas não sofria de artrite ou de outros males graves, graças a Deus. Ainda morava em seu bangalô na Concord Circíe, uma engraçada ruazinha em meia-lua que começava e terminava na Serra Avenue no extremo leste da cidade. Ela e Frank haviam comprado o lugar há quarenta anos, quando ambos eram professores na Thomas Jefferson, quando era uma escola para todas as séries. Moonlight Cove era muito menor na época. Há quatorze anos, desde que Frank morrera, ela vivia sozinha no bangalô. Ela podia sair, limpar a casa, cozinhar para si mesma, pelo que agradecia a Deus.

    Era ainda mais agradecida por sua acuidade mental. Mais do que a enfermidade física, ela temia a senilidade ou um derrame que, enquanto a deixava fisicamente funcionando, roubava-lhe a memória e alterava sua personalidade. Procurava manter a mente ativa lendo muitos livros de diversos tipos, alugando uma variedade de fitas para o videocassete e evitando a todo custo o entorpecimento mental provocado pelos programas ruins de tevê que passavam por entretenimento.

    Às quatro e meia da tarde de terça-feira, ela estava no meio do livro, embora parasse ao final de cada capítulo para olhar a chuva. Gostava de chuva. Gostava de qualquer tempo que Deus escolhesse enviar ao mundo — tempestades, chuva de granizo, vento, frio, calor — porque a variedade e os extremos da criação eram o que a tornavam tão bela.

    Enquanto olhava a chuva, que antes amainara de um feroz aguaceiro a uma chuvinha fina, mas caía outra vez com fúria, ela viu três criaturas absolutamente fantásticas, enormes e escuras, surgirem de trás das árvores nos fundos da propriedade, a cerca de 15 metros da janela onde se encontrava. Elas pararam por um instante enquanto uma névoa fina envolvia seus pés, como se fossem criaturas imaginárias, que adquiriram forma daqueles fragmentos de nevoeiro e que iriam desfazer-se tão de repente quanto surgiram. Mas, em seguida, elas correram em direção à varanda dos fundos.

    Enquanto se aproximavam depressa, a primeira impressão que Meg tivera foi reforçada. Não se pareciam a nada deste mundo... a menos talvez que aquelas carrancas grotescas pudessem ganhar vida e descer dos tetos das catedrais.

    Compreendeu sem demora que devia estar nos primeiros estágios de um derrame cerebral fulminante, porque fora isso que sempre temera que lhe acontecesse. Mas surpreendia-se que começasse  assim, com uma alucinação tão estranha.

    É só o que podia ser, claro: a alucinação que precede a explosão de um vaso sangüíneo cerebral que já devia estar inchando e pressionando o cérebro. Aguardou uma dolorosa sensação de explosão dentro de sua cabeça, esperou que seu rosto e seu corpo se distorcessem para a esquerda ou para a direita, conforme um ou outro lado ficasse paralisado.

    Mesmo quando um dos monstros quebrou a janela, inundando a mesa de cacos de vidro, derramando o vinho, derrubando Meg de sua cadeira e caindo no chão sobre ela, dentes e garras à mostra, ela admirou-se de que um derrame pudesse produzir ilusões tão vividas e convincentes, embora não se admirasse com a intensidade da dor. Sempre soubera que a morte doeria.

    Dora Hankins, a recepcionista no saguão de entrada da New Wave, estava acostumada a ver pessoas deixarem o trabalho às quatro e meia. Embora o horário normal fosse às cinco horas, muitos funcionários trabalhavam em casa, em seus próprios PCs, de modo que ninguém cumpria rigorosamente o horário de oito horas por dia. Desde que foram convertidos, não houve mais necessidade de normas, porque todos trabalhavam com o mesmo objetivo, pelo mundo novo que estava a caminho, e a única disciplina necessária era seu medo de Shaddack, o que tinham de sobra.

    Às cinco para as cinco, quando absolutamente ninguém passara pelo saguão, Dora ficou apreensiva. O prédio estava estranhamente silencioso, embora centenas de pessoas estivessem trabalhando em seus escritórios e laboratórios mais ao fundo no andar térreo e nos dois andares acima. Na verdade, o lugar parecia deserto.      

    Às cinco horas, ninguém havia encerrado a jornada de trabalho e Dora resolveu verificar o que estava acontecendo. Abandonou seu posto no balcão de recepção principal, caminhou até o final do amplo saguão de mármore, atravessou uma porta de metal e entrou num corredor menos suntuoso, com assoalho de placas de vinil. Havia escritórios em ambos os lados. Entrou na primeira sala à esquerda, onde oito mulheres trabalhavam num pool de secretárias para chefes de departamento secundários que não tinham secretárias próprias.

    As oito estavam diante de seus terminais de vídeo. À luz fluorescente, Dora não teve dificuldade de ver como máquina e carne haviam se unido intimamente.

    O medo era a única emoção que Dora sentia há semanas. Achava que o conhecia em todas as suas nuanças e graus. Mas agora o medo inundou-a com mais força, mais sombrio e intenso do que qualquer coisa que já tivesse sentido antes.

    Uma sonda reluzente projetou-se da parede à direita de Dora. Era mais metálica do que orgânica, entretanto escorria o que parecia ser um muco amarelado. O objeto atirou-se sobre uma das secretárias e sem nenhum derramamento de sangue penetrou a parte posterior de sua cabeça. Do topo da cabeça de uma outra mulher, outra sonda irrompeu, ergueu-se como uma serpente encantada ao som de uma flauta mágica, hesitou, em seguida, com incrível velocidade, chicoteou até o teto, penetrando a placa de material isolante sem destruí-la e desapareceu em direção às salas de cima.

    Dora percebeu que todos os computadores e pessoas na New Wave haviam se interligado e se transformado numa única entidade e que o próprio prédio também estava sendo rapidamente incorporado. Quis correr, mas não pôde, talvez porque soubesse que qualquer tentativa de fuga seria inútil.

    Instantes depois, eles a conectaram à rede.

    Betsy Soldonna pregava cuidadosamente um aviso na parede atrás da mesa de recepção da Biblioteca Municipal de Moonlight Cove. Fazia parte da Semana da Ficção de Suspense, uma campanha visando atrair crianças para a leitura de ficção.

    Ela era a bibliotecária assistente, mas às terças-feiras, quando sua chefe, Cora Danker, estava de folga, Betsy trabalhava sozinha. Ela gostava de Cora, mas também gostava de ficar sozinha. Cora era muito falante, preenchendo cada minuto com mexericos e suas maçantes observações sobre personagens e tramas de seus programas de tevê favoritos. Betsy, uma perpétua bibliófila obcecada por livros, adoraria conversar indefinidamente sobre o que lera, mas Cora, embora bibliotecária-chefe, quase nunca lia.

    Betsy rasgou um quarto pedaço de fita adesiva e prendeu a última ponta do cartaz na parede. Recuou um passo para admirar seu trabalho.

    Ela mesma confeccionara o cartaz. Tinha orgulho de seu modesto talento artístico. No desenho, um menino e uma menina fitavam com olhos admirados as páginas abertas do livro que seguravam nas mãos. Seus cabelos estavam em pé. As sobrancelhas da menina pareciam saltar de seu rosto como as orelhas do menino. Acima deles, lia-se: os LIVROS SÃO PARQUES DE DIVERSÃO PORTÁTEIS, CHEIOS DE EMOÇÕES E SURPRESAS.

    De trás das estantes, no outro extremo da biblioteca, veio um som estranho, um grunhido, uma tosse abafada e, em seguida, o que parecia um rosnado. Logo, o estrondo inconfundível de uma fileira de livros caindo de uma prateleira ao chão.

    A única pessoa na biblioteca, além de Betsy, era Dale Foy, um aposentado que trabalhara na caixa do supermercado Lucky até três anos atrás, quando completara 65 anos. Estava sempre em busca de livros de suspense que nunca lera e queixando-se de que nenhum deles era tão bom quanto os antigos criadores de histórias, o que significava John Buchan em vez de Robert Louis Stevenson.

    Betsy de repente teve a terrível sensação de que o Sr. Foy sofrerá um ataque cardíaco em uma das alas, de que o ouvira tentando pedir socorro e que ele derrubara os livros quando se agarrara à estante. Em sua mente, podia vê-lo contorcendo-se em agonia, com falta de ar, o rosto ficando azul e os olhos esbugalhados, uma espuma sangrenta borbulhando em seus lábios...

    Anos de leitura intensiva haviam aguçado a imaginação de Betsy até se tornar tão afiada como uma navalha feita do melhor aço alemão.

    Contornou a mesa apressadamente e correu pela ala principal, olhando para cada um dos estreitos corredores, ladeados por estantes de quase três metros de altura.

    — Sr. Foy? Sr. Foy, o senhor está bem?

    No último corredor, encontrou os livros caídos, mas nenhum sinal de Dale Foy. Intrigada, virou-se para voltar por onde viera e lá estava o Sr. Foy atrás dela. Mas mudado. E mesmo a imaginação fértil de Betsy Soldonna não poderia ter concebido aquilo em que Foy se transformara — ou o que ele estava prestes a lhe fazer. Os minutos seguintes foram tão cheios de surpresas quanto quaisquer centenas de livros que já tivesse lido, embora não houvesse um final .

      Por causa das nuvens escuras e carregadas que cobriam o céu, um crepúsculo prematuro tomou conta de Moonlight Cove e toda a cidade parecia comemorar a Semana da Ficção de Suspense da biblioteca. O dia que terminava fora, para muitos, cheio de emoções e surpresas, exatamente como um parque de diversões no mais macabro festival que jamais se instalara em suas barracas.

     

     Sam vasculhou o sótão com o facho de luz da lanterna. Tinha um assoalho de tábuas, mas nenhuma iluminação fixa. Não havia nada estocado ali, exceto poeira, teias de aranha e uma quantidade de abelhas mortas e secas que haviam construído ninhos nas vigas de madeira durante o verão e morrido ou por obra de um exterminador ou ao final de seu ciclo de vida.

    Satisfeito, voltou ao alçapão de entrada e desceu pela escada de mão, para o guarda-roupa do quarto de Harry no terceiro andar. Haviam retirado muitas das roupas que estavam penduradas para poderem abrir o alçapão e colocar ali a escada desmontável de madeira.

    Tessa, Chrissie, Harry e Moose aguardavam-no na entrada do guarda-roupa, no quarto cada vez mais escuro.

    Sam disse:

    —        É, vai servir.

    —        A última vez que estive lá em cima foi antes da guerra — disse Harry.

    —        Um pouco empoeirado, algumas aranhas, mas você estará seguro. Se não estiver no final da lista e se vierem atrás de você mais cedo, encontrarão a casa vazia e nunca pensarão no sótão. Porque como poderia um homem como você com duas pernas e um braço inválidos arrastar-se lá para cima?

    Sam não tinha certeza se acreditava no que dizia. Mas para a tranqüilidade da própria consciência, bem como a de Harry, queria acreditar.

    —        Posso levar Moose lá para cima comigo?

    —        Leve o revólver que mencionou — disse Tessa —, mas Moose não. Embora seja muito bem-comportado, ele pode latir justamente no momento errado.

     —       Será que Moose estará seguro lá embaixo... quando eles chegarem? — perguntou Chrissie.

    —        Tenho certeza que sim — disse Sam. — Não querem cachorros. Apenas pessoas.

    —        É melhor colocarmos você lá em cima, Harry — disse Tessa. — São cinco e vinte. Temos que sair daqui dentro de pouco tempo.

    O quarto enchia-se de sombras quase tão depressa como um copo enchendo-se de vinho cor-de-sangue.

     

     Nas colinas cobertas de vegetação rasteira que circundavam a abandonada Colônia ícaros, ratazanas, coelhos e algumas raposas saíram apressadamente de suas tocas e ficaram tremendo sob a chuva, ouvindo. Nos dois bosquetes mais próximos de pinheiros, eucaliptos e vidoeiros desfolhados pelo outono, um logo ao sul e outro a leste da antiga colônia, esquilos e guaxinins ficaram imóveis para prestar atenção.

    Os pássaros foram os primeiros a atender ao chamado. Apesar da chuva, voaram de seus ninhos bem protegidos nas árvores, no velho celeiro em ruínas e nas beiras do telhado desmoronado da casa principal. Grasnando e guinchando, voltearam pelo céu, dispararam e mergulharam, lançando-se diretamente para a casa. Estorninhos, cambaxirras, corvos, corujas e falcões, todos vieram numa algazarra e numa profusão de asas. Alguns arremessavam-se contra as paredes, como se estivessem cegos, chocando-se contra elas, até quebrarem o pescoço ou romperem as asas e caírem ao solo onde se debatiam e berravam estridentemente até ficarem exaustos ou morrerem. Outros, igualmente fora de si, encontravam portas e janelas abertas pelas quais entravam sem se machucar.

    Embora os animais selvagens num raio de duzentos metros tivessem ouvido o chamado, só os mais próximos reagiram obedientemente. Coelhos saltavam, esquilos corriam apressadamente, coiotes disparavam em seus passos longos e elásticos, raposas partiam a toda velocidade e guaxinins gingavam naquele seu passo curioso, pelo capim molhado, pelo mato derrubado pela chuva e pela lama, em direção à origem do canto de sereia. Alguns eram predadores e outros, por natureza, tímidas presas, mas locomoviam-se lado a lado sem conflito. Podia ser uma cena de um desenho animado de Disney: os amistosos habitantes selvagens do campo e da floresta respondendo ao som da gaita ou da viola de algum preto velho que, depois de estarem todos reunidos à sua volta, lhes contava histórias de aventuras fantásticas e maravilhosas. Mas para onde se dirigiam não havia nenhum negro bondoso contador de histórias, e a música que os atraía era sombria, fria e sem melodia.

     

      Enquanto Sam esforçava-se para erguer Harry pela escada para dentro do sótão, Tessa e Chrissie levaram a cadeira de rodas para a garagem. Era um modelo motorizado reforçado, não uma cadeira leve e dobrável, e não passava pelo alçapão. Tessa e Chrissie colocaram-na logo atrás da enorme porta da garagem, de modo a dar a impressão de que Harry chegara até ali em sua cadeira e deixara a casa, talvez no carro de algum amigo.

    —        Acha que vão acreditar? — perguntou Chrissie preocupada.

    —        Há uma possibilidade — respondeu Tessa.

    —        Talvez até achem que Harry deixou a cidade ontem, antes de montarem as barreiras nas estradas.

    Tessa concordou, mas ela sabia — e suspeitava que Chrissie também — que a chance do ardil funcionar era bastante pequena. Se Sam e Harry realmente estivessem confiantes no truque do sótão quanto fingiam estar, teriam escondido Chrissie lá também, em vez de atirarem-na no tempestuoso pesadelo de Moonlight Cove.

    Pegaram o elevador de volta ao terceiro andar, onde Sam acabava de fechar o alçapão e desmontar a escada. Moose observava-o curioso.

    —        Cinco e quarenta e dois — disse Tessa, consultando o relógio.

    Sam pegou o suporte dos cabides, que tivera que remover para abrir o alçapão, e recolocou-o nos apoios.

    —        Ajudem-me a colocar as roupas de volta no lugar.

    Camisas e calças, ainda nos cabides, haviam sido transferidas para a cama. Trabalhando juntos, passando as roupas como bombeiros amadores passam baldes d'água, rapidamente restituíram ao guarda-roupa sua aparência anterior.

    Tessa notou que manchas de sangue vivo encharcavam o espesso curativo de gaze no pulso direito de Sam. Seus ferimentos reabriram com o esforço. Embora não fossem ferimentos fatais, deviam doer muito, e tudo que o enfraquecesse ou distraísse durante a prova que tinham pela frente diminuía suas chances de sucesso.

    Fechando a porta, Sam disse:

    —        Meu Deus, detesto deixá-lo lá.

    —        Cinco e quarenta e seis — lembrou-o Tessa.

    Enquanto Tessa vestia um casaco de couro e Chrissie enfiava um blusão impermeável de náilon azul que pertencia a Harry, Sarí   recarregou o revólver. Usara todas as balas que levava nos bolsos na casa dos Coltranes. Mas Harry possuía um revólver .45 e uma pistola .38, que levara para o sótão, com uma caixa de munição para cada uma delas, de modo que Sam ficara com cerca de uma dúzia de cartuchos da .38.

    Colocando a arma no coldre, dirigiu-se ao telescópio e examinou as ruas que ficavam a oeste e ao sul, na direção da Central School.

    —        Ainda há muito movimento — disse ele.

    —        Patrulhas? — perguntou Tessa.

    —       Mas também muita chuva. E o nevoeiro está começando a se formar, mais denso e mais depressa.

    Graças à tempestade, um crepúsculo prematuro se abatera sobre eles e já esmaecia. Embora uma luz opaca ainda brilhasse acima das nuvens em movimento, era como se já tivesse anoitecido, pois mantos de sombras cobriam a cidade molhada e conturbada.

    —        Cinco e cinqüenta — disse Tessa.

    Chrissie disse:

    —        Se o senhor Talbot estiver no começo da lista, eles podem chegar aqui a qualquer momento.

    Afastando-se do telescópio, Sam disse:

    —        Certo. Vamos.

    Tessa e Chrissie seguiram-no para fora do quarto. Usaram a escada para o primeiro andar. Moose pegou o elevador.

     

    Shaddack sentia-se uma criança naquela noite.

    Circulando sem parar por Moonlight Cove, do mar às colinas, da Holliwell Road ao norte até Paddock Lane ao sul, não se lembrava de jamais ter se sentido tão bem. Mudou o esquema de patrulhamento, em grande parte para ter certeza que cobriria todo quarteirão de toda rua na cidade; a visão de cada casa e de cada cidadão a pé sob a tempestade afetava-o como nunca antes, porque logo lhes pertenceriam para fazer deles o que bem entendesse.

    Estava cheio de expectativa e excitação, como nunca se sentira desde que era criança na noite de Natal. Moonlight Cove era um enorme brinquedo e, em poucas horas, quando soasse a meia-noite, quando esta noite escura marcasse o começo do dia seguinte, ele iria poder se divertir muito com seu maravilhoso brinquedo. Poderia se dedicar a jogos com que há muito desejava brincar, mas que tivera que se negar. De agora em diante, nenhum desejo ou necessidade lhe seria negado, pois não haveria nenhum juiz, nenhuma autoridade, para castigá-lo, por mais sanguinário ou brutal que fosse o jogo.

    E como uma criança entrando furtivamente no guarda-roupa para furtar moedas do casaco do pai para comprar sorvete, estava tão extasiado com a perspectiva das recompensas que se esqueceu de que havia uma possibilidade de desastre. Minuto a minuto, a ameaça dos regressivos desvanecia-se um pouco de sua mente. Não se esqueceu inteiramente de Loman Watkins, mas já não conseguia se lembrar por que passara o dia inteiro se escondendo do delegado na garagem da casa de Parkins.

    Mais de trinta anos de implacável autocontrole, dedicação extenuante e firme em suas reservas físicas e mentais, a começar do dia em que matara seus pais e Runningdeer, trinta anos reprimindo necessidades e desejos, sublimando-os no trabalho, finalmente haviam-no levado à beira da realização de seu sonho. Não podia duvidar. Duvidar de sua missão ou se preocupar com seu resultado seria questionar seu destino sagrado e insultar os grandes espíritos que o haviam privilegiado. Era incapaz de considerar sequer um pequeno revés; desviava sua mente de qualquer incipiente idéia de desastre.

    Pressentia a presença dos grandes espíritos na tempestade.

    Pressentia-os movendo-se secretamente pela cidade.

    Estavam lá para testemunhar e aprovar sua ascensão ao trono do destino.

    Nunca mais comera bala de cacto desde o dia em que matara sua mãe, seu pai e o índio, mas ao longo dos anos fora sujeito a vividas visões do passado. Acometiam-no inesperadamente. Num instante estava neste mundo e no seguinte estava nesse outro lugar, o mundo sobrenatural paralelo a este, onde a bala de cacto sempre o levara, uma realidade onde as cores eram ao mesmo tempo mais vividas e mais sutis, onde cada objeto parecia ter mais ângulos e dimensões do que no mundo comum, onde ele parecia estranhamente sem peso — boiando como um balão de hélio — e onde as vozes dos espíritos lhe falavam. As visões haviam sido freqüentes durante o ano seguinte aos assassinatos, acometendo-o duas vezes por semana, depois haviam declinado em número — embora não em intensidade — durante a adolescência. Esses feitiços visionários, como uma fuga, que geralmente duravam uma ou duas horas, mas que   podiam durar metade de um dia, eram responsáveis em parte por sua reputação, com sua família e professores, de ser uma criança um pouco desligada. Todos mostravam-se muito compreensivos com ele, naturalmente, porque presumiam que qualquer alheamento que demonstrasse era conseqüência do dilacerante trauma que sofrerá.

    Agora, circulando em sua caminhonete, passava aos poucos àquele estado da bala de cacto. Esta visão era inesperada, também, mas não se instalou nele repentinamente, como as anteriores. Ele como... que deslizou para dentro dela, cada vez mais fundo, mais fundo. E quanto mais se aprofundava, mais suspeitava que desta vez não seria rudemente arrancado de volta desse reino de consciência superior. De agora em diante, seria um residente de ambos os mundos, que era como os próprios grandes espíritos viviam, com consciência tanto do estado superior de existência quanto do inferior. Começou até a pensar que o que estava experimentando, espiritualmente, era uma conversão própria, milhares de vezes mais profunda do que aquela a que os habitantes de Moonlight Cove foram submetidos.

    Nesse estado exaltado, tudo era especial e surpreendente para Shaddack. As luzes cintilantes da cidade varrida pela chuva pareciam jóias salpicadas pela noite que caía. A beleza prateada, líquida, da própria chuva o surpreendia, assim como o céu cinzento fabulosamente turbulento e que se ofuscava com rapidez.

    Ao frear no cruzamento da Paddock Lane com a rua Saddle-back, tocou o peito, tateando o dispositivo de telemetria que usava em um cordão no pescoço, incapaz por um instante de se lembrar do que se tratava e isso também parecia misterioso e admirável. Em seguida, lembrou-se de que o dispositivo monitorava e transmitia sua pulsação cardíaca, que era recebida por uma unidade na New Wave. Funcionava a uma distância de oito quilômetros e era eficiente até em recintos fechados. Se a recepção da batida de seu coração fosse interrompida por mais de um minuto, o Sol estava programado para enviar uma ordem de destruição, via microonda, aos computadores microesféricos contidos em toda a Nova Gente.

    Alguns minutos depois, na Bastenchurry Road, quando tocou o dispositivo, a lembrança de seu propósito novamente mostrou-se indefimvel. Pressentia que se tratava de um objeto poderoso, que quem quer que o usasse mantinha nas mãos a vida de outras pessoas e a criança nele que viajava pela fantasia decidiu que devia ser um amuleto, que lhe fora conferido pelos grandes espíritos, mais um sinal de que ele habitava os dois mundos, um pé no plano inferior dos homens comuns e outro no reino mais elevado dos grandes espíritos, os deuses da bala de cacto.

      Seu estado visionário lentamente alcançado, como uma medicação ministrada devagar a intervalos regulares de tempo, reconduzira-o à condição de sua juventude, ao menos àqueles sete anos em que estivera sob o domínio de Runningdeer. Ele era uma criança. E era um semideus. Era a criança favorita do falcão da lua, e portanto podia fazer o que quisesse a quem quisesse, a qualquer um, e, enquanto continuava a dirigir, imaginava exatamente o que gostaria de fazer... e a quem.

    De vez em quando, ele emitia um riso baixo e ligeiramente estridente, e seus olhos brilhavam como os de um menino cruel e maníaco observando os efeitos do fogo em formigas aprisionadas.

     

    Enquanto Moose andava à volta deles e sacudia o rabo com tanta força que parecia correr o risco de ser arrancado, Chrissie esperava na cozinha com Tessa e Sam para que a luz do dia agonizante se esvaísse ainda mais.

    Por fim, Sam disse:

    — Tudo bem. Fiquem perto de mim. Façam sempre o que eu disser.

    Olhou para Chrissie e Tessa por um longo instante antes de abrir a porta; sem que nenhum deles dissesse uma palavra, abraçaram-se. Tessa beijou Chrissie no rosto, depois Sam beijou-a e Chrissie beijou-os também. Não era preciso que lhe dissessem por que todos de repente sentiam-se tão afetuosos. Eles eram pessoas, pessoas reais, e expressar seus sentimentos era importante, porque antes que a noite terminasse eles podiam já não ser pessoas normais. Talvez nunca mais sentissem outra vez o que as pessoas reais sentiam, de modo que esses sentimentos tornavam-se mais preciosos a cada segundo.

    Quem saberia o que aqueles estranhos seres transformadores sentiam? Quem ia querer saber?

    Além do mais, se não chegassem à Central, seria porque um dos grupos de patrulha ou um casal de bichos-papões os capturara ao longo do caminho. Neste caso, esta podia ser a última chance de se despedirem.

    Sam conduziu-as à varanda.

    Chrissie fechou a porta com cuidado. Moose não tentou sair. Era um cachorro obediente e especial demais para tais proezas mesquinhas. Mas enfiou o focinho na abertura cada vez mais estreita da porta, farejando-a e tentando lamber sua mão, a ponto de ela temer prender seu focinho. Ele recuou no último instante, e a porta fechou-se com um estalido.

    Sam conduziu-as pelos degraus e através do quintal em direção à casa ao sul da propriedade de Harry. Nenhuma luz estava acesa ali. Chrissie torcia para que não houvesse ninguém em casa, mas imaginou que alguma criatura monstruosa estava em uma das janelas naquele momento, espreitando-os e lambendo os beiços.

    A chuva parecia mais fria do que na noite anterior quando fugia, mas provavelmente devia-se ao fato de ter acabado de sair da casa aquecida e seca. Apenas uma claridade cinza muito opaca ainda iluminava o céu a oeste. As gotas geladas e fustigantes pareciam arrancar aquele último vestígio de luz das nuvens e atirá-lo na terra, ocasionando uma escuridão úmida e profunda. Antes mesmo de alcançarem a cerca que separava o terreno de Harry do vizinho, Chrissie sentiu-se grata pelo casaco de náilon com capuz, embora fosse tão grande que a fazia se sentir uma garotinha brincando com as roupas dos pais.

    Era uma cerca de estacas, fácil de transpor. Seguiram Sam pelo quintal do vizinho até a cerca seguinte. Chrissie transpôs aquela também e entrou em outro quintal, com Tessa logo atrás dela, antes que percebesse que haviam chegado à casa dos Coltranes.

    Olhou para as janelas vazias. Nenhuma luz ali também, o que era um bom sinal, porque se houvesse luzes, significaria que alguém havia descoberto o que restara dos Coltranes depois de seu confronto com Sam.

    Atravessando o quintal em direção à próxima cerca, Chrissie foi tomada pelo medo de que os Coltranes houvessem se reanimado depois que Sam descarregara neles todas aquelas balas, de que estivessem na cozinha, olhando pelas janelas naquele exato momento, que tivessem visto seu vingador e suas duas companheiras e que já estivessem abrindo a porta da cozinha. Esperava que surgissem dois robôs chocalhando com braços e grandes mãos de metal, mais ou menos como uma versão em metal dos mortos-vivos nos velhos filmes de zumbis, antenas parabólicas de radar em miniatura girando em torno de suas cabeças, o vapor silvando por orifícios em seus corpos. Seu medo deve tê-la retardado, pois Tessa quase tropeçou nela e deu-lhe um empurrão suave para apressá-la. Chrissie agachou-se e correu para o lado sul do quintal.

    Sam ajudou-a a escalar uma grade de ferro com pontas de lança nas extremidades. Ela provavelmente teria se perfurado se tivesse que escalá-la sozinha. Chrissie no espeto.

    Havia gente na casa seguinte e Sam abrigou-se atrás de alguns arbustos para examinar o trajeto antes de continuar. Chrissie e Tessa juntaram-se a ele rapidamente.

    Enquanto pulavam a última cerca, ela havia roçado a palma machucada da mão esquerda, embora estivesse envolta em atadura. Doía, mas ela cerrou os dentes e não se queixou.

    Afastando os galhos do que parecia ser uma amoreira, Chrissie espreitou a casa, a apenas seis metros de distância. Viu quatro pessoas pelas janelas da cozinha. Preparavam o jantar. Um casal de meia-idade, um homem grisalho e uma adolescente.

    Imaginou se já teriam sido convertidos. Achava que não, mas não podia ter certeza. E já que os robôs e os bichos-papões às vezes se ocultavam em perfeitos disfarces humanos, não era possível confiar em ninguém, nem mesmo em seu melhor amigo... nem em seus pais. Exatamente como quando os alienígenas estavam assumindo o comando.

    — Mesmo que olhem para fora, não nos verão — disse Sam. — Vamos.

    Chrissie seguiu-o, saindo de trás da amoreira e atravessando o amplo gramado em direção à propriedade vizinha, agradecendo a Deus pelo nevoeiro, que a cada minuto se tornava mais denso.

    Alcançaram a casa no final do quarteirão. O lado sul daquele terreno dava de frente para a rua transversal, a Bergenwood Way, que levava à Conquistador.

    Quando estavam a dois terços do caminho pelo gramado, a menos de seis metros da rua, um carro virou a esquina a um quarteirão e meio e começou a descer a ladeira. Seguindo Sam, Chrissie atirou-se no chão encharcado porque não havia arbustos nas proximidades, atrás dos quais pudessem se esconder. Se tentassem correr uma boa distância, o motorista do carro poderia se aproximar o suficiente para avistá-los enquanto ainda estavam fugindo às pressas para se esconderem.

    Não havia postes de iluminação na Bergenwood, o que os favorecia. A última claridade cinzenta do dia já desaparecera no ocidente — outra vantagem.

    À medida que o carro se aproximava, movendo-se devagar por causa do mau tempo ou porque seus ocupantes fossem da patrulha, a luz dos faróis era difundida pela neblina, que não parecia refletir aquela luz, mas brilhar com uma luminosidade própria. Objetos na noite, numa distância de metros de ambos os lados do carro, eram revelados em parte e distorcidos de forma estranha por aquelas nuvens luminosas, presas ao chão, girando lentamente.

    Quando o carro estava a menos de um quarteirão de distância,   alguém que viajava no banco traseiro acendeu uma lanterna de mão. Dirigiu o facho de luz pela janela lateral, movimentando-o pelos gramados fronteiros das casas que davam para a Bergenwood e os gramados laterais de casas que davam para as ruas transversais. No momento, o facho de luz apontava para o lado oposto, para o outro lado da Bergenwood, na direção sul. Mas quando chegasse até onde estavam, podiam resolver iluminar as propriedades ao norte da Bergenwood.

    —        Para trás — disse Sam energicamente. — Mas mantenham- se no chão e arrastem-se. Arrastem-se.

    O carro chegou ao cruzamento, a meio quarteirão ladeira acima.

    Chrissie arrastou-se atrás de Sam, não de volta por onde vieram, mas em direção à casa próxima. Ela não via nenhum lugar onde ele pudesse se esconder, porque a balaustrada da varanda dos fundos era bastante aberta e não havia arbustos grandes. Talvez ele pretendesse se esgueirar pelo lado da casa até a patrulha passar, mas não achava que ela e Tessa alcançariam o canto da casa a tempo.

    Quando olhou por cima do ombro, viu que a lanterna ainda varria os gramados da frente e os espaços entre as casas no lado sul da rua. Entretanto, ainda tinham que se preocupar com o efeito de iluminação lateral dos faróis e esse iria varrer esse gramado em segundos.

    Estava em parte se arrastando e em parte escorregando sobre a barriga, movendo-se depressa, embora sem dúvida esmagando muitos caracóis e minhocas que haviam saído da terra para se ref estelar na grama molhada, no que ela nem queria pensar. Chegou a uma passagem de concreto junto à casa — e percebeu que Sam desaparecera.

    Estacou sobre as mãos e os joelhos, olhando para a direita e para a esquerda.

    Tessa surgiu a seu lado.

    —        Para a escada do porão, querida. Depressa!

    Arrastando-se atabalhoadamente, descobriu um conjunto externo de degraus de concreto que desciam para uma entrada de porão. Sam estava agachado ao fundo, onde a chuva acumulada borbulhava suavemente conforme escorria por um ralo defronte da porta fechada do porão. Chrissie juntou-se a ele naquele refúgio, abaixo do nível do chão, e Tessa seguiu-a. Cerca de quatro segundos depois, um facho de luz varreu a parede da casa e até brincou por instantes a alguns centímetros de suas cabeças, na borda de concreto da escada.

    Permaneceram aconchegados e em silêncio, imóveis, por mais ou menos um minuto depois que a lanterna se desviou deles e o carro passou. Chrissie tinha certeza de que algo dentro da casa os ha- via ouvido, que a porta às costas de Sam se abriria de par em par  a qualquer momento, que algo saltaria sobre eles, uma criatura em  parte lobisomem e em parte computador, rosnando e emitindo sinais, a boca cheia de dentes e de teclas, dizendo alguma coisa como: "Para serem mortos, por favor aperte entra e prossiga."         Sentiu-se aliviada quando Sam finalmente disse:

    — Vamos.

           Cruzaram de novo o gramado em direção a Bergenwood Way. Desta vez, a rua permaneceu convenientemente deserta.

    Como Harry lhes garantira, um canal de drenagem revestido de pedra corria ao longo da Bergenwood. Segundo Harry, que brincara nele quando criança, o canal tinha cerca de noventa centímetros de largura e talvez um metro e meio de profundidade. A julgar por aquelas dimensões, cerca de trinta centímetros de água de escoamento corria por ele no momento. Essas correntes eram rápidas, quase negras, reveladas ao fundo da trincheira mergulhada em sombras apenas por um brilho escuro ocasional e pelo barulho das águas turvas.

    O canal oferecia um caminho consideravelmente menos visível do que a rua aberta. Subiram alguns metros até encontrarem os suportes de ferro, cobertos de argamassa, que Harry garantira que encontrariam a cada trinta metros ao longo das seções abertas do canal. Sam desceu primeiro, Chrissie em seguida e, por último, Tessa.

    Sam agachou-se para se manter abaixo do nível da rua e Tessa curvou-se um pouco menos do que ele. Mas Chrissie não teve que se curvar nem um pouco. Ter onze anos tinha as suas vantagens, especialmente quando se estava fugindo de lobisomens ou de alienígenas vorazes ou de robôs ou de nazistas, e em uma ocasião ou outra nas últimas 24 horas ela estivera fugindo dos três primeiros, mas não de nazistas também, graças a Deus, embora ninguém soubesse o que poderia acontecer em seguida.

    As águas revoltas eram frias em torno dos calcanhares e tornozelos. Admirou-se ao descobrir que embora chegassem apenas até seus joelhos tinham uma força considerável. Empurravam e arrastavam implacavelmente, como se fossem algo vivo, com um desejo vil de derrubá-la. Não corria nenhum risco de cair desde que se mantivesse parada com os pés bem separados, mas não tinha certeza até quando poderia manter o equilíbrio enquanto caminhava. O curso d'água descia bruscamente ladeira abaixo. O velho chão de pedras, depois de várias décadas de estações de chuva, estava bem polido pela correnteza. Por causa desta combinação de fatores, o canal parecia-se a um escorrega aquático de um parque de diversões.

      Se ela caísse, seria arrastada sem trégua ladeira abaixo, até meio quarteirão da ribanceira, onde o canal se alargava e desaparecia sob a terra. Harry dissera algo sobre barras de segurança bloqueando a passagem em pequenas aberturas imediatamente antes da queda, mas imaginava que, se fosse arrastada até lá e tivesse que confiar naquelas barras, descobriria que estavam enferrujadas ou faltando, deixando uma passagem direta para o fosso. O sistema emergia outra vez na base dos penhascos, depois percorria parte da praia, descarregando a enxurrada na areia ou, durante a maré alta, no mar.

    Não tinha dificuldade em se imaginar resvalando e rolando sem nada poder fazer, engasgando com a água imunda, desesperadamente, mas sem sucesso, agarrando-se ao canal de pedra, procurando segurar-se, de repente mergulhando verticalmente cerca de sessenta metros, chocando-se contra as paredes do poço de escoamento, quebrando ossos, estilhaçando a cabeça em pedacinhos, batendo no fundo...

    Bem, sim, podia imaginar, mas não via nenhuma vantagem em fazê-lo.

    Felizmente Harry os avisara desse problema, de modo que Sam viera preparado. Sob o casaco e em volta de sua cintura, havia uma corda que ele obtivera de um velho sistema de içamento na garagem de Harry e que agora desenrolou. Embora a corda fosse velha, Sam dissera que ainda era resistente e Chrissie desejou que ele tivesse razão. Sam havia amarrado uma das pontas em torno da cintura antes de deixar a casa. Agora, ele passou a outra ponta pelo cinto de Chrissie e a amarrou em volta da cintura de Tessa, deixando aproximadamente dois metros e meio de corda entre cada um deles. Se um deles caísse — bem, evidentemente Chrissie era a que corria mais risco de cair e ser arrastada a uma morte sangrenta e molhada —, os outros poderiam se manter firmes até ela ter tempo de recuperar o equilíbrio.

    Pelo menos, esse era o plano.

    Firmemente amarrados uns aos outros, começaram a descer o canal. Sam e Tessa mantinham-se curvados para que ninguém que passasse em um carro visse suas cabeças projetando-se acima da borda de pedra do canal e Chrissie inclinou-se um pouco também, mantendo os pés bem separados, andando quase como uma criatura das cavernas, como fizera na noite anterior no aqueduto sob a campina.

    Seguindo as instruções de Sam, ela segurava a corda a sua frente com ambas as mãos, recolhendo o excesso quando se aproximava muito dele, para evitar tropeçar, e soltando-a de novo quando se atrasava alguns passos. Atrás dela, Tessa fazia o mesmo; Chrissie sentia a leve tensão da corda em seu cinto. 

      Dirigiam-se para uma galeria a meio quarteirão dali. O canal tornava-se subterrâneo na Conquistador e continuava sob a terra não apenas pelo cruzamento, mas por dois quarteirões inteiros, saindo à superfície novamente na Roshmore.

    Chrissie não parava de erguer os olhos para a entrada do cano além de Sam, não gostando do que via. Era redondo, de concreto, não de pedra. Era mais largo do que o canal retangular, com cerca de um metro e meio de diâmetro, sem dúvida para que operários pudessem entrar facilmente e limpá-lo se ficasse entupido de entulho. Entretanto, nem a forma nem o tamanho da galeria deixavam-na apreensiva. Era a absoluta escuridão que fazia os cabelos de sua nuca se arrepiarem, pois era mais escuro do que a essência da noite no fundo do próprio canal de drenagem, absoluta, completamente negro, dando a impressão de que caminhavam para a boca escancarada de algum monstro pré-histórico.

    Um carro passou devagar pela Bergenwood, outro pela Conquistador. Seus faróis eram refletidos pelas densas vagas de nevoeiro que vinham do mar, de modo que a própria noite parecia resplandecer, mas muito pouco daquela estranha luminosidade atingia o curso d'água e absolutamente nenhuma penetrava pela entrada da galeria.

    Quando Sam atravessou o limiar do túnel e, com dois passos, desapareceu por completo de vista, Chrissie seguiu-o sem hesitação, embora não sem temor. Prosseguiram num passo mais lento, pois o chão do aqueduto não era apenas em descida íngreme, mas também curvo e ainda mais traiçoeiro do que o canal de drenagem de pedra.

    Sam carregava uma lanterna, mas Chrissie sabia que ele não queria usá-la próximo a nenhuma das extremidades do túnel. O reflexo do facho de luz poderia ser visível de fora e chamar a atenção de um dos patrulheiros.

    A galeria era tão escura quanto o interior da barriga de uma baleia. Não que ela soubesse o que era a barriga de uma baleia por dentro, mas duvidava que fosse equipada com uma lâmpada ou mesmo um abajur com a cara do Pato Donald, como o que tivera em seu quarto quando era menor. A imagem da barriga da baleia parecia adequada porque tinha a sensação arrepiante de que o cano era realmente um estômago e que a água revolta era o suco digestivo e que seus tênis e as pernas de suas calças jeans já se dissolviam no líquido corrosivo.

    Foi então que caiu. Seus pés escorregaram em alguma coisa, talvez um limo que crescia no chão e que ficara tão preso ao concreto que a torrente não o arrancara. Soltou a corda e agitou os braços, tentando manter o equilíbrio, mas caiu com uma tremenda pancada na água e logo se viu levada pela corrente.

    Teve bastante presença de espírito para não gritar. Um grito atrairia a atenção das equipes de busca — ou pior.

    Arfando para respirar, cuspindo a água que entrave em sua boca, ela se chocou com as pernas de Sam, derrubando-o. Sentiu quando ele caía. Imaginou quanto tempo ficariam ali, mortos e em decomposição, no fundo do longo cano vertical, lá fora ao pé da ribanceira, antes que seus restos arroxeados e inchados fossem encontrados.

     

    Na escuridão sepulcral, Tessa ouviu a menina cair e imediatamente estacou, fincando as pernas tão apartadas e firmes quanto possível naquele chão curvo e íngreme, segurando a corda com ambas as mãos. Em um segundo, a corda retesou-se, conforme Chrissie era arrastada pela água.

    Sam grunhiu e Tessa compreendeu que a menina fora de encontro a ele. A corda afrouxou-se por um instante, mas retesou-se outra vez, puxando-a para a frente, o que ela imaginou que fosse Sam cambaleando para a freráe, tentando equilibrar-se, com a garota pressionando suas pernas e ameaçando derrubá-lo. Se Sam houvesse caído também e tivesse sido dominado pelo tumulto das águas, a corda não teria apenas se retesado; a força do arrasto teria sido suficiente para derrubar Tessa também.

    Ouviu muito barulho de pancada na água à sua frente. Um palavrão de Sam em voz baixa.

    O nível da água aumentava. No começo, achou que era imaginação, mas depois percebeu que a torrente elevara-se acima de seus joelhos.

    O pior era a maldita escuridão, não ser capaz de ver nada, virtualmente cegos, sem poder saber o que estava acontecendo.

    Bruscamente ela foi atirada para a frente outra vez. Dois, três — ah, meu Deus — meia dúzia de passos.

    Sam, não caia!

    Cambaleando, quase perdendo o equilíbrio, percebendo que estavam à beira de um desastre, Tessa inclinou-se para trás apoiada na corda, usando-a para firmar-se era vez de se projetar para frente  na esperança de afrouxar a corda outra vez. Pedia a Deus que não resistisse demais e fosse arrancada do chão.

    Cambaleou. A corda puxava-a com força pela cintura. Sem folga de corda para enrolar nas mãos, era difícil agüentar a tensão apenas com os braços.

    A pressão da água contra a parte de trás de suas pernas crescia.        Seus pés resvalavam.

     Como um videoteipe acelerado para a frente num aparelho de edição, estranhos pensamentos cruzavam sua mente, dezenas em apenas alguns segundos, todos espontâneos, e alguns deles a surpreenderam. Pensou em viver, sobreviver, não querer morrer e isso não era tão surpreendente, mas depois pensou em Chrissie, em não querer decepcionar a menina, e em sua mente viu uma imagem detalhada de Chrissie e ela juntas, numa casa confortável em algum lugar, vivendo como mãe e filha, e admirou-se do quanto desejava isso, o que parecia errado, porque os pais de Chrissie não estavam mortos, até onde sabiam, e talvez não estivessem irremediavelmente metamorfoseados, porque a conversão — ou o que quer que fosse — podia ser reversível. A família de Chrissie talvez pudesse ser reunida outra vez. Tessa não conseguia ver essa imagem em sua mente. Não parecia tanto uma possibilidade quanto ela e Chrissie juntas. Mas podia acontecer. Então, pensou em Sam, em nunca ter tido a chance de fazer amor com ele, e isso a surpreendeu, porque, embora ele fosse bastante atraente, ela não havia percebido que se sentira romanticamente atraída por ele. Obviamente, sua coragem diante do desespero espiritual era fascinante e sua cômica, mas absolutamente séria, lista de quatro razões para viver faziam dele um desafio intrigante. Será que ela poderia lhe dar uma quinta razão? Ou superar Goldie Hawn como a quarta? Mas até se encontrar à beira de uma morte por afogamento, não percebera o quanto ele a atraíra em tão pouco tempo.

    Seus pés resvalaram outra vez. Sob as águas revoltas, o chão parecia muito mais escorregadio do que no canal de pedra, como se o limo crescesse no concreto. Tessa procurou fincar os calcanhares.

    Sam praguejou baixinho. Chrissie emitiu um som engasgado e abafado.

    A profundidade da água no centro do túnel aumentara de cinqüenta a sessenta centímetros.

    Um instante depois, a corda deu um puxão e em seguida ficou completamente frouxa.

    A corda soltara-se. Sam e Chrissie haviam sido arrastados pelo túnel abaixo.

    O barulho do torvelinho das águas ecoava pelas paredes, e ecos   dos ecos sobrepunham-se a ecos anteriores. Além disso, o coração de Tessa batia com tanta força que podia ouvi-lo, mas mesmo assim deveria ter ouvido seus gritos também, quando foram arrastados pela correnteza. No entanto, por um terrível momento, fez-se silêncio.

    Em seguida, Chrissie tossiu de novo. A apenas alguns passos de distância.

    Uma lanterna foi acesa. Sam encobria a maior parte da lente com a mão.

    Chrissie estava atravessada na passagem, imprensada fora do centro da correnteza, as costas e as palmas das mãos contra a lateral do túnel.

    Sam estava de pé, com as pernas bem afastadas. A água agitava-se e espumava em volta de suas pernas. Ele se virará. Estava de frente para o alto da colina agora.

    A corda não se soltara, afinal; a tensão fora relaxada porque tanto Sam quanto Chrissie haviam recuperado o equilíbrio.

    —        Você está bem? — sussurrou Sam para a garota.

    Ela sacudiu a cabeça afirmativamente, ainda engasgada com a água suja que havia engolido. Fez uma careta de nojo, cuspiu várias vezes e exclamou:

    —        Eca!

    Olhando para Tessa, Sam perguntou:

    —        Tudo bem?

    Ela não conseguia falar. Um bolo duro formara-se em sua garganta. Engoliu em seco algumas vezes, piscou. Uma onda retardatária de alívio percorreu-a, reduzindo a pressão quase insuportável em seu peito e, por fim, ela disse:

    —        Tudo bem. Sim. Tudo bem.

     

    Sam sentiu-se aliviado quando chegaram ao fim da galeria sem outra queda. Parou por um instante, bem do lado de fora da entrada do cano de drenagem, olhando para o céu com satisfação. Por causa do espesso nevoeiro, não podia ver o céu, mas isso era uma vantagem; ainda se sentia aliviado de estar ao ar livre outra vez, ainda que mergulhado até os joelhos na água lamacenta.

    Estavam num rio agora. Ou a chuva desabava com mais força  nas colinas, no extremo leste da cidade, ou algum represamento de água se rompera. O nível da água subira depressa bem acima do meio da coxa em Sam e até quase a cintura de Chrissie e o aguaceiro caía do cano às suas costas com uma força impressionante. Manterem-se de pé naquelas cataratas estava ficando mais difícil a cada segundo.

    Ele voltou-se, puxou a menina para junto de si e disse:

    — Vou segurá-la pelo braço daqui para a frente.

    Ela assentiu.

    A noite estava escura como breu e mesmo a apenas centímetros de seu rosto ele podia ver somente uma vaga impressão de suas feições. Quando ergueu os olhos para Tessa, alguns passos atrás da menina, ela não passava de um vulto escuro que poderia nem ser Tessa.

    Segurando a menina com firmeza, ele voltou-se e olhou para o caminho à frente.

    O túnel estendera-se por dois quarteirões antes de despejar o aguaceiro em outro canal de drenagem aberto, de cerca de um quarteirão de comprimento, exatamente como Harry lembrara-se de seus tempos de criança quando, contra toda a admoestação de seus pais, ia brincar no sistema de águas pluviais. Graças a Deus pelas crianças desobedientes.

    Um quarteirão à frente, esta nova seção de canal de pedra despejava suas águas em outra galeria de concreto. Aquele cano, segundo Harry, terminava na entrada do longo escoamento vertical no extremo oeste da cidade. Supostamente, nos últimos três metros do principal canal inclinado, uma fileira de grossas barras de ferro verticais estavam dispostas a trinta centímetros de distância umas das outras e iam do chão ao teto, criando uma barreira através da qual só água e pequenos objetos podiam passar. Não havia chance de serem arrastados para aquela queda de seis metros.

    Mas Sam não queria correr o risco. Não deveria ocorrer outra queda. Depois de serem carregados até a ponta e se chocarem contra a grade de proteção, se não estivessem com os ossos quebrados, se estivessem em condições de se erguerem e saírem dali, galgando de volta a longa galeria, por uma ladeira íngreme, contra a força da investida da água, não era uma prova que estivesse disposto a considerar, quanto mais suportar.

    Durante toda a sua vida sentira que falhara com as pessoas. Embora tivesse apenas sete anos quando sua mãe morrera no acidente, sempre fora consumido pela culpa relacionada à sua morte, como se devesse ter sido capaz de salvá-la apesar de sua tenra idade e de ter ficado preso nos destroços do carro com ela. Mais tarde, Sam nunca fora capaz de agradar seu bêbado, sórdido e miserável pai — e sofrerá dolorosamente por esse fracasso. Como Harry, sentia que havia fracassado com o povo do Vietnam, embora a decisão de abandoná-los tenha sido tomada por autoridades muito superiores a ele e sobre quem não exercia a menor influência. Nenhum dos agentes do Bureau que morrera com ele havia morrido por causa dele, entretanto sentia que falhara com eles também. Falhara com Karen, de alguma forma, embora as pessoas lhe dissessem que era louco de pensar que tivesse qualquer responsabilidades por seu câncer; ele não podia deixar de pensar que se a tivesse amado mais, amado-a com mais força, ela teria encontrado forças e vontade de sobreviver. E, Deus sabia, ele falhara com seu próprio filho, Scott.

    Chrissie apertou sua mão.

    Ele retribuiu o aperto.

    Ela parecia tão pequena.

    Durante o dia, reunidos na cozinha de Harry, haviam conversado sobre responsabilidade. Agora, repentinamente, ele compreendeu que seu senso de responsabilidade era tão desenvolvido que beirava a obsessão, mas ainda concordava com o que Harry dissera: o compromisso de um homem com os outros, especialmente com amigos e família, nunca poderia ser excessivo. Nunca imaginara que um dos discernimentos mais importantes de sua vida lhe ocorreria enquanto estava num canal de drenagem, com água barrenta até a cintura, fugindo de inimigos tanto humanos quanto inumanos, mas foi onde ele lhe sobreveio. Compreendeu que seu problema não era a alacridade com que carregava a responsabilidade ou seu peso in-comum que estivesse disposto a carregar. Não, diabos, não, seu problema era que dedicara seu senso de responsabilidade a obstruir sua capacidade de lidar com o fracasso. Todo homem falhava de vez em quando e, em geral, o fracasso não estava no próprio homem, mas no papel do destino. Quando falhasse, tinha que aprender não só a continuar vivendo, como a gostar de continuar vivendo. Não podia permitir que o fracasso o destituísse da própria alegria de viver. Seria uma blasfêmia alguém virar as costas à vida desse modo, se acreditasse em Deus — e simplesmente idiota se não acreditasse. Era como dizer: os homens falham, mas eu não devo falhar, porque sou mais do que um simples homem, estou em algum lugar lá em cima entre os anjos e Deus. Compreendeu por que perdera Scott: porque perdera seu próprio amor à vida, seu senso de humor e a capacidade de compartilhar qualquer coisa importante com o garoto — ou impedir a própria queda de Scott no niilismo quando começara.

    No momento, se tentasse contar suas razões para viver, a lista teria mais de quatro itens. Teria centenas. Milhares.

    Todo esse entendimento ocorreu-lhe em um rápido instante, enquanto segurava a mão de Chrissie, como se o fluxo do tempo tivesse sido estendido por algum truque de relatividade. Compreendeu que se falhasse em salvar a menina ou Tessa, mas ele próprio saísse dessa história com vida, ainda assim teria que se regozijar com sua própria salvação e continuar vivendo. Embora a situação deles fosse tenebrosa e suas esperanças escassas, seu estado de ânimo elevou-se e ele quase riu alto. O pesadelo real que estavam vivendo em Moonlight Cove o abalara profundamente, remexendo importantes verdades dentro dele, verdades que eram simples e deveriam ter sido fáceis de perceber durante seus longos anos de tormento, mas que ele recebia com gratidão apesar de sua simplicidade e de sua prévia estupidez. Talvez a verdade fosse sempre simples quando encontrada.

    Bem, certo, talvez agora pudesse continuar mesmo que falhasse em sua responsabilidade com os outros, ainda que perdesse Chrissie e Tessa — mas, merda, não ia perdê-las. Nem pensar.

    Nem pensar.

    Continuou segurando a mão de Chrissie e avançou com cuidado pelo canal de pedra, satisfeito com a comparativa irregularidade do chão e a aderência sem limo que fornecia. A água estava funda o suficiente para lhe dar uma ligeira sensação de estar boiando, o que tornava mais difícil colocar o pé outra vez no chão cada vez que o levantava. Assim, em lugar de caminhar, ele arrastava os pés pelo fundo da água.

    Em menos de um minuto, alcançaram um conjunto de degraus de ferro embutidos na parede do canal. Tessa aproximou-se e, por alguns instantes, ficaram ali parados, agarrados ao ferro, gratos pela sensação sólida e pelo apoio que fornecia.

    Minutos depois, quando a chuva bruscamente amainou, Sam estava pronto para prosseguir. Com cuidado para não pisar nas mãos de Chrissie e de Tessa, ele subiu alguns degraus e espiou a rua.

    Nada se movia além do nevoeiro.

    Aquela seção de drenagem a céu aberto passava ao lado da Moonlight Cove Central School. O campo de esportes estava a apenas alguns metros de distância e, do outro lado daquele espaço aberto, quase invisível na escuridão e na neblina, estava o prédio da escola, iluminado apenas por umas poucas luzes de segurança.

    A propriedade era rodeada por uma cerca de quase três metros de altura. Mas Sam não se deixou desanimar por isso. Cercas sempre tinham portões.

     

    Harry aguardava no sótão, desejando o melhor, esperando o pior.

    Estava recostado na parede externa do longo e escuro aposento, enfiado no canto no extremo oposto da porta do alçapão por onde fora içado. Não havia nada naquele quarto atrás do qual pudesse se esconder.

    Mas se alguém chegasse a esvaziar o guarda-roupa do quarto de dormir principal, abrir o alçapão, armar a escada e enfiar a cabeça para dar uma olhada, talvez não fosse cuidadoso o bastante para vasculhar cada canto do local. Quando visse apenas tábuas e um emaranhado de teias de aranha na sua primeira varredura com a lanterna, talvez a desligasse e fosse embora.

    Absurdo, é claro. Qualquer um que se desse o trabalho de inspecionar o sótão iria examiná-lo adequadamente, explorando cada canto. Mas, quer essa esperança fosse absurda ou não, Harry agarrava-se a ela; era bom em nutrir esperanças, fazendo uma sopa forte de um caldo ralo, porque, durante metade de sua vida, fora a esperança que em grande parte o sustentara.

    Não se sentia desconfortável. Preparando-se para o sótão sem aquecimento, com a ajuda de Sam para acelerar o processo de se vestir, ele colocara meias de lã, calças mais quentes do que as que usava e dois suéteres.

    Engraçado, como muita gente parecia pensar que um homem paralítico não podia sentir nada em suas extremidades inertes. Em alguns casos, isso era verdade; todos os nervos estavam insensíveis, toda a sensação perdida. Mas danos à coluna vinham em milhares de formas; até o corte total da medula, o alcance das sensações com que a vítima era deixada variava muito.

    No caso de Harry, embora tivesse perdido totalmente os movimentos de um braço e uma perna e quase todos da outra perna, ele ainda podia sentir frio e calor. Quando alguma coisa o beliscava, ele percebia — se não sentia dor — pelo menos uma pressão moderada.

    Fisicamente, sentia muito menos do que quando era um homem completo; não havia dúvida a respeito. Embora tivesse certeza que poucas pessoas acreditariam nele, a invalidez enriquecera sua vida emocional. Embora por necessidade fosse quase um recluso, aprendera a compensar a ausência de contato humano. Os livros ajudaram. Os livros abriam-lhe o mundo. E o telescópio. Mas principalmente fora sua inabalável vontade de levar uma vida tão plena quanto possível que o mantivera são de mente e de coração.

    Se essas fossem suas horas finais, ele apagaria a vela sem amargura quando chegasse a hora de extinguir a chama. Lamentava o que perdera, porém, mais importante ainda, ele valorizava o que conservara. Em última análise, achava que vivera uma vida que no cômputo final fora boa, preciosa, proveitosa.

    Tinha duas armas com ele. Um revólver .45. Uma pistola .38. Se subissem ao sótão atrás dele, usaria a pistola até esvaziá-la. Depois, os faria engolir todas as balas exceto uma do revólver. O último cartucho seria para si mesmo.

    Não trouxera munição extra. Numa crise, um homem com uma única mão boa não podia recarregar uma arma rápido o suficiente para fazer do esforço mais do que um final cômico.

    O tamborilar da chuva no telhado amainara. Imaginava se seria apenas mais uma estiada na tormenta ou se ela estava finalmente cessando.

    Seria bom ver o sol de novo.

    Preocupava-se mais com Moose do que consigo mesmo. O pobre cão estava lá embaixo sozinho. Quando os bichos-papões ou seus mentores chegassem, esperava que não fizessem mal a Moose. E se viessem ao sótão e o forçassem a se matar, esperava que Moose não ficasse muito tempo sem um bom lar.

     

    Para Loman, enquanto circulava no carro de polícia, Moonlight Cove parecia tanto morta quanto fervilhando de vida.

    A julgar pelos sinais de vida comuns numa cidade pequena, o povoado era uma casca vazia, tão morta quanto qualquer cidade fantasma seca pelo sol no coração do deserto de Mojave. Lojas, bares e restaurantes estavam fechados. Até mesmo o geralmente api-nhado restaurante Perez Family estava fechado, escuro; ninguém aparecera para abrir as casas comerciais. Os únicos pedestres caminhando nos estragos da tormenta eram os patrulheiros a pé e as equipes de conversão. Da mesma forma, as unidades policiais e as patrulhas de dois homens em carros particulares eram os donos das ruas.

    Entretanto, a cidade fervia com uma vida perversa. Várias vezes, vira vultos rápidos e estranhos locomovendo-se pela escuridão e pelo nevoeiro, ainda furtivos, mas muito mais ousados do que haviam sido em outras noites. Quando parava ou reduzia a velocidade para examinar aqueles saqueadores, alguns paravam nos lugares mais sombrios para fitá-lo com maléficos olhos amarelos, verdes ou vermelhos em brasa, como se analisassem suas chances de atacar seu carro, arrancando-o de dentro dele antes que ele tivesse tempo de tirar o pé do freio e ir embora dali. Ao observá-los, sentia um profundo desejo de abandonar seu carro, suas roupas e a inflexibilidade de sua forma humana, de se unir a eles em seu mundo mais simples de caçar, comer e copular. Toda vez, ele afastava-se deles depressa e seguia em frente antes que eles — ou ele — influíssem nesses impulsos. De vez em quando passava por casas onde brilhavam luzes sobrenaturais e contra as janelas nas quais moviam-se sombras tão grotescas e medonhas que seu coração acelerava e as palmas de suas mãos ficavam úmidas, embora estivesse bem afastado e provavelmente fora do seu alcance. Não parava para investigar que criaturas habitavam aqueles lugares ou o que empreendiam, pois pressentia que estavam semelhantes ao que Denny se tornara e que eram mais perigosas, sob muitos aspectos, do que os regressivos que rondavam a cidade.

    Ele agora vivia num mundo lovecraftiano de forças cósmicas e primitivas, de entidades monstruosas caçando a presa à noite, onde seres humanos estavam reduzidos a pouco mais do que gado, onde o universo judeu-cristão de um Deus de amor fora substituído pela criação dos antigos deuses que eram impulsionados por desejos nefastos, que tinham o gosto pela crueldade e uma sede insaciável de poder. No ar, no nevoeiro em redemoinho, nas árvores escuras e gotejantes, nas ruas sem iluminação e mesmo no clarão amarelo de sódio das luzes das ruas principais, havia uma penetrante sensação de que nada de bom poderia acontecer naquela noite... mas que outra coisa poderia acontecer, por mais fantástica ou bizarra que fosse?

    Tendo lido muitos livros de ficção ao longo dos anos, estava familiarizado com Lovecraft. Não o apreciava tanto quanto a Louis L'Amour, principalmente porque este lidara com a realidade, enquanto H. P. Lovecraft vagara pelo impossível. Ou assim parecera a Loman na ocasião. Agora sabia que os homens podiam criar, no mundo real, infernos iguais a qualquer um que o mais criativo escritor pudesse imaginar.

    O desespero e o terror lovecraftiano inundavam Moonlight Cove em maiores quantidades do que a chuva recente. Enquanto dirigia por aquelas ruas transformadas, Loman mantinha o revólver no banco do carro a seu lado, bem à mão.

     Shaddack.

    Precisava encontrar Shaddack.

    Descendo a Juniper no sentido sul, parou no cruzamento com a Ocean Avenue. Ao mesmo tempo, outro carro branco e preto freou no sinal vermelho, em frente a Loman, no sentido norte.

    Não havia tráfego na Ocean. Abaixando o vidro da janela, Loman atravessou o cruzamento devagar e parou ao lado do outro carro de radiopatrulha, com apenas trinta centímetros entre eles.

    Pelo número na porta do carro, acima do emblema do departamento de polícia, Loman soube que era o carro de Neil Penniworth. Mas quando olhou pela janela lateral, não viu o jovem policial. Viu algo que um dia poderia ter sido Penniworth, ainda vagamente humano, iluminado pelas luzes do painel, mas principalmente pelo clarão do terminal de vídeo móvel. Cabos gêmeos, como os que haviam surgido da cabeça de Denny para ligá-lo mais intimamente ao seu PC, haviam crescido do crânio de Penniworth; e embora a visibilidade fosse fraca, parecia que uma daquelas pro-tuberâncias serpeava pelo volante e penetrava no painel, enquanto a outra dava voltas em direção ao computador montado no consolo. A forma do crânio de Penniworth alterara-se drasticamente, também, projetando-se para a frente, ouriçada de dispositivos pontiagudos que deviam ser sensores de algum tipo e que brilhavam foscamente como metal polido à luz do terminal; seus ombros estavam mais largos, estranhamente recortados e pontudos; parecia ter buscado com sofreguidão a forma de um robô barroco. Suas mãos não estavam ao volante, mas talvez já nem tivesse mãos; Loman suspeitava que Penniworth não só se integrara ao seu terminal de computador móvel, mas ao próprio carro de patrulha.

    Ôi:

    Penniworth virou a cabeça lentamente para fitar Loman. Em suas órbitas sem olhos, estalavam brancas descargas de eletricidade, serpeando e agitando-se sem parar. p Shaddack dissera que a liberdade de não sentir nenhuma emoção da Nova Gente conferia-lhes a habilidade de um uso muito maior do poder inato de seu cérebro, ao ponto de exercer controle mental  sobre a forma e a função da matéria. Agora, sua consciência ditava sua forma; para fugir de um mundo onde não tinham direito a nenhuma emoção, podiam se transformar no quisessem — embora não pudessem voltar a ser a Antiga Gente. Evidentemente, a vida como um cyborg era livre de angústia, pois Penniworth buscara alívio do medo e do anseio — talvez até de algum tipo de extinção —  naquela monstruosa encarnação.

    Mas o que sentiria agora? Qual era o seu propósito? E ele permanecia naquele estado alterado porque realmente preferia? Ou seria como Peyser — preso por razões físicas ou porque um aspecto aberrante de sua própria psicologia não lhe permitia reassumir a forma humana para a qual, de outra forma, ele desejava retornar?

    Loman pegou o revólver no banco a seu lado.

    Um cabo segmentado explodiu da porta do motorista do carro de Penniworth, sem estraçalhar o metal, projetando-se como se uma parte da porta tivesse derretido e se remodelado para produzir aquilo —            exceto que o objeto parecia pelo menos semi-orgânico. A sonda chocou-se com um estalo contra a janela lateral de Loman.

    O revólver escorregou da mão suada de Loman, pois não conseguia desviar os olhos da sonda para procurar o revólver.

    O vidro não se quebrou, mas um pedaço dele borbulhou e derreteu-se num instante, e a sonda serpeou para dentro do carro, diretamente para o rosto de Loman. Possuía uma boca carnuda e sugadora, como uma enguia, mas os dentes pequenos e pontiagudos dentro dela pareciam de aço.

    Ele abaixou a cabeça, esqueceu o revólver e pisou com toda a força no acelerador. O Chevy quase pareceu dar ré por uma fração de segundo; então, com um surto de força que pressionou Loman contra o assento, disparou para a frente, na direção sul da Juniper.

    Por um instante, a sonda entre os carros estendeu-se para manter o contato, passou de raspão pelo nariz de Loman, e bruscamente desapareceu, rebobinando-se para dentro do veículo de onde partira.

    Dirigiu a toda velocidade até o final da Juniper antes de reduzir a velocidade para fazer uma curva. O deslocamento de ar provocado por sua passagem zunia pelo buraco que a sonda fizera no vidro da janela.

    Os piores temores de Loman pareciam estar se revelando. As pessoas da Nova Gente que não haviam escolhido a regressão iam se transformar — ou ser transformadas por exigência de Shaddack —     em medonhos seres híbridos de homem e máquina.

    Encontrar Shaddack. Matar o criador e libertar os atormentados monstros que ele criara.

     

    Precedida por Sam e seguida por Tessa, Chrissie chapinhava pelo gramado encharcado do campo de esportes. Em alguns lugares a rel-va empapada dava lugar a uma lama pegajosa, que grudava ruidosamente em seus tênis, fazendo-a achar que ela própria parecia um extraterrestre pateta, arrastando-se de forma penosa em pés enormes, providos de sugadores. Então, ocorreu-lhe que de certa forma ela era uma alienígena em Moonlight Cove esta noite, uma espécie diferente de criatura do que a maioria dos cidadãos havia se tornado.

    Haviam atravessado dois terços do campo quando foram detidos por um grito agudo que cortou a noite tão nitidamente quanto um machado afiado cortaria um pedaço de madeira seca. A voz sobrenatural ergueu-se, diminuiu e ergueu-se de novo, bárbara e apavorante, mas familiar, o grito de uma daquelas bestas que ela imaginara serem alienígenas invasores. Embora a chuva houvesse parado, o ar estava carregado de umidade e aquele berro sobrenatural podia ser ouvido nitidamente, como as notas límpidas de uma trombeta distante.

    Pior, o grito foi imediatamente respondido por um parente excitado da besta. Pelo menos meia dúzia de gritos estridentes igualmente arrepiantes elevaram-se talvez desde tão ao sul quanto Paddock Lane até tão ao norte quanto Holliwell Road, das altas colinas no extremo leste da cidade e dos penhascos que davam para a praia a poucos quarteirões a oeste.

    De repente, Chrissie sentiu saudade da galeria fria e escura, com águas revoltas até a cintura, tão imunda que devia sair da banheira do próprio diabo. Esse terreno a céu aberto parecia muito mais perigoso em comparação.

    Um novo grito ergueu-se quando os outros arrefeceram, e estava mais perto do que qualquer outro que ouviram antes. Perto demais.

    — Vamos entrar — disse Sam com urgência.

    Chrissie começava a admitir para si mesma que talvez não desse uma boa heroína de André Norton afinal. Estava com medo, com frio, os olhos ardiam de cansaço, começava a sentir pena de si mesma e estava com fome outra vez. Estava cansada de aventuras. Ansiava por aposentos aquecidos e dias de descanso com bons livros, idas ao cinema e fatias de torta de chocolate. A essa altura, uma verdadeira heroína de histórias de aventuras já teria engendrado brilhantes estratégias que teriam levado as bestas de Moonlight Cove à destruição, teria encontrado um modo de transformar as pessoas-robôs em inofensivas máquinas de lavar carro e já estaria a caminho de ser coroada princesa do reino por aclamação dos cidadãos agradecidos e reverentes.

    Correram para o final do campo, deram a volta nas arquibancadas e atravessaram o estacionamento deserto para os fundos da escola.

      Nada os atacou.

    Obrigada, meu Deus. Sua amiga, Chrissie.

    Algo uivou outra vez.           Às vezes, até Deus parecia ter uma veia perversa.

    Havia seis portas em locais diferentes ao longo dos fundos da escola. Passaram de uma a outra enquanto Sam as experimentava e examinava as fechaduras sob o facho de luz da lanterna, encoberto por sua mão. Aparentemente, ele não pôde escolher nenhuma delas, o que a decepcionou, porque ela imaginava que agentes do FBI eram tão bem treinados que numa emergência podiam abrir um cofre de banco com cuspe e um grampo.

    Ele também experimentou algumas janelas e passou o que pareceu um longo tempo espreitando através das vidraças com sua lanterna. Não examinava os aposentos atrás delas, mas os peitoris e os batentes internos das janelas.

    Quando chegaram à última porta — que era a única que tinha vidro na parte de cima, as outras sendo retângulos lisos de metal —, Sam apagou a lanterna, olhou solenemente para Tessa e falou-lhe em voz baixa:

    —        Não creio que haja um sistema de alarme aqui. Posso estar errado. Mas não há nenhuma fita de alarme no vidro e, pelo que pude ver, nenhum fio ao longo dos batentes ou nos trincos das janelas.

    —        Esses são os únicos sistemas de alarme que podem ter? — perguntou Tessa num sussurro.

    —        Bem, há sistemas que detectam movimento, que empregam transmissores acústicos ou câmaras de vídeo. Mas seriam sofistica dos demais para uma simples escola e provavelmente sensíveis de mais para um prédio como esse.

    —        E agora?

    —        Agora eu quebro a janela.

    Chrissie esperava que ele tirasse um rolo de fita adesiva do bolso do casaco e prendesse uma das vidraças para abafar o barulho de vidro se estilhaçando e evitar que os cacos caíssem ruidosamente no assoalho interno. Era como sempre faziam nos livros. Mas ele colocou-se de lado em relação à porta, estendeu o braço e atirou-o para trás, com o cotovelo diretamente contra a vidraça quadrada de vinte centímetros de lado no canto inferior direito da parte de vidro da janela. O vidro quebrou-se e espalhou-se pelo chão com terrível estardalhaço. Talvez tivesse esquecido de trazer fita.

    Ele enfiou o braço pela abertura, procurou o trinco, abriu-o e entrou primeiro. Chrissie seguiu-o, procurando não pisar nos estilhaços de vidro.

     

     Sam acendeu a lanterna. Não a encobriu tanto quanto o fizera do lado de fora, embora tentasse manter o refluxo do facho de luz longe das janelas.

    Estavam num longo corredor. Recendia a eucalipto proveniente do desinfetante e agregador de poeira, verde, em pó, que durante anos os zeladores haviam espalhado no assoalho e depois varrido, até o piso e as paredes ficarem impregnados do cheiro. O aroma lhe era familiar da Escola Primária Thomas Jefferson e ficou decepcionada de encontrá-lo também ali. Imaginara a escola secundária como um lugar misterioso, especial, mas como podia ser misterioso e especial se usavam o mesmo desinfetante da escola primária?

    Tessa fechou silenciosamente a porta atrás deles.

    Ficaram parados, atentos, por um instante.

    A escola estava em silêncio.

    Desceram o corredor, olhando para dentro das salas de aula, dos lavatórios, dos armários de suprimentos de ambos os lados, em busca do laboratório de computadores. Em quarenta metros, alcançaram a ligação com outro corredor. Ficaram parados na interseção por um instante, as cabeças erguidas, ouvindo atentamente outra vez.

    A escola continuava silenciosa.

    E escura. A única luz em qualquer direção era a da lanterna, que Sam ainda carregava na mão esquerda, mas que já não encobria com a direita. Ele tirara o revólver do coldre e precisou da mão direita para isso.

    Após uma longa espera, Sam disse:

    — Não há ninguém aqui. :       O que parecia ser verdade.

    Por um instante, Chrissie sentiu-se melhor, mais segura.

    Por outro lado, se ele realmente acreditava que eram as únicas pessoas na escola, por que não guardava a arma?

     

    Enquanto dirigia pelo seu domínio, impaciente pela chegada da meia-noite, para a qual ainda faltavam cinco horas, Thomas Shaddack havia regredido em grande parte para um estado infantil. Agora que sua vitória estava à mão, podia livrar-se da máscara de adulto, que mantivera por tanto tempo, e sentia-se aliviado por fazê-lo. Nunca   fora um adulto, na verdade, mas um menino, cujo desenvolvimento emocional fora para sempre enclausurado na idade de 12 anos, quando a mensagem do falcão da lua não só lhe fora transmitida, mas impregnada; desse instante em diante, havia fingido um crescimento emocional até a idade adulta para combinar com o crescimento físico.

    Mas já não era necessário fingir.

    De um lado, sempre soubera disso e considerava o fato sua grande força, uma vantagem sobre os que haviam deixado a infância para trás. Um menino de 12 anos podia guardar e acalentar um sonho com mais determinação do que um adulto, pois os adultos eram constantemente distraídos por necessidades e desejos conflitantes. Um garoto no início da puberdade, entretanto, possuía a determinação para concentrar-se e dedicar-se inabalavelmente a um único Grande Sonho. Adequadamente empenhado, um garoto de 12 anos era o perfeito monomaníaco.

    O Projeto Falcão da Lua, seu Grande Sonho de poder divino, não teria frutificado se ele tivesse amadurecido normalmente. Devia seu iminente triunfo ao seu desenvolvimento interrompido.

    Era um menino outra vez, não mais em segredo, mas abertamente, ansioso para satisfazer cada capricho, para tomar o que quer que desejasse, para fazer qualquer coisa que quebrasse as regras. Garotos de 12 anos compraziam-se em quebrar regras, desafiando a autoridade. Os piores eram naturalmente anárquicos, à beira da rebeldia induzida por hormônios.

    Mas ele era mais do que anárquico. Era um garoto viajando em bala de cacto ingerida há muito tempo, mas que deixara um resíduo psíquico, senão físico. Era um garoto que sabia que era um deus. O potencial de crueldade de qualquer garoto empalidecia diante da crueldade dos deuses.

    Para passar o tempo até meia-noite, imaginava o que faria com seu poder quando o último habitante de Moonlight Cove tivesse sido subjugado ao seu comando. Algumas de suas idéias faziam-no estremecer com uma estranha mistura de nojo e excitação.

    Estava na Iceberry Way quando percebeu que o índio estava a seu lado. Surpreendeu-se quando virou a cabeça e viu Running-deer sentado no banco de passageiro. Na verdade, ele parou no meio da rua e fitou-o perplexo, atônito e com medo.

    Mas Runningdeer não o ameaçava. Na realidade, o índio nem sequer lhe falou ou olhou para ele, mas olhava diretamente para a frente, pelo pára-brisa.

    Uma lenta compreensão abateu-se sobre Shaddack. O espírito do índio era seu agora, um bem pessoal assim como a caminhonete.

      Os grandes espíritos haviam lhe dado o índio como um conselheiro, como um prêmio por ter feito de Falcão da Lua um sucesso. Mas ele, não Runningdeer, estava no comando desta vez, e o índio falaria apenas quando ele lhe dirigisse a palavra.

    —        Olá, Runningdeer — disse.

    O índio olhou para ele.

    —        Olá, Pequeno Chefe.

    —        Você é meu agora.

    —        Sim, Pequeno Chefe.

    Por um breve instante, ocorreu a Shaddack que estava louco e que Runningdeer era uma ilusão projetada por uma mente doente. Mas garotos monomaníacos não têm á capacidade de um extenso exame de sua condição mental e o pensamento desapareceu de sua mente tão depressa quanto surgira.

    Disse a Runningdeer:

    —        Fará o que eu disser.

    —        Sempre.

    Imensamente satisfeito, Shaddack tirou o pé do freio e continuou. Os faróis revelaram algo de olhos amarelados, com uma forma fantástica, bebendo de uma poça d'água na calçada. Recusou-se a considerá-la algo de importância e, quando a criatura saiu a galope, deixou que desaparecesse de seu pensamento tão rapidamente quanto desaparecera da rua imersa em sombras.

    Lançando um olhar de esguelha ao índio, disse:

    —        Sabe o que vou fazer um dia?

    —        O que é, Pequeno Chefe?

    —        Depois que tiver convertido todo mundo, não apenas as pes soas de Moonlight Cove, mas todas as pessoas do mundo, quando não houver mais ninguém contra mim, passarei algum tempo loca lizando sua família, todos os irmãos e irmãs que lhe restam, até mes mo primos, e encontrarei todos os seus filhos e todas as suas mulheres e maridos e todas as esposas e maridos de seus filhos... e os farei pagar por seus crimes, eu realmente, realmente os farei pagar. — Uma petulância queixosa insinuara-se em sua voz. Desaprovava o tom que se ouvia utilizar, mas não conseguia mudá-lo. — Matarei todos os homens, os farei em pedacinhos, pessoalmente. Vou dizer- lhes que é por causa do parentesco com você que têm que sofrer, e eles o desprezarão e o amaldiçoarão, lamentarão que você tenha existido um dia. E violarei todas as mulheres e as machucarei, ma chucarei muito, muito mesmo, e depois eu as matarei também, O que acha disso? Hem?

    — Se é o que deseja, Pequeno Chefe. — Pode estar certo de que é o que desejo.

    —        Então, assim deve ser feito.

    —        Pode estar certo que sim.

    Shaddack surpreendeu-se quando lágrimas assomaram a olhos. Parou num cruzamento e não continuou.

    —        Não foi direito o que você fez comigo.

    O índio nada disse.

    —        Diga que não foi direito!

    —        Não foi direito, Pequeno Chefe.

    —        Foi muito errado.

    —        Foi muito errado.

    Shaddack tirou um lenço do bolso e assoou o nariz. Enxugou os olhos. Logo suas lágrimas secaram.

    Sorriu para a paisagem noturna revelada através do pára-brisa. Suspirou. Olhou para Runningdeer.

    O índio olhava para frente, em silêncio.

    Shaddack disse:

    —        Claro, sem você eu talvez nunca fosse filho do falcão da lua.

     

     O laboratório de computação ficava no andar térreo, no centro do prédio, próximo a uma confluência de corredores. As janelas davam para um pátio, mas não podiam ser avistadas de nenhuma rua, o que permitia a Sam ligar as luzes do teto.

    Era um aposento amplo, arrumado como um laboratório de línguas, com cada terminal de vídeo em seu próprio cubículo de três lados. Trinta computadores — bem equipados, com sistema de disco rígido — alinhavam-se ao longo das três paredes e numa fileira dupla, de costas uns para os outros, ao longo do centro da sala.

    Olhando à volta, para a riqueza de equipamentos, Tessa disse:

    —        A New Wave sem dúvida era generosa, hem?

    —        Talvez "minuciosa" seja a palavra certa — disse Sam.

    Percorreu uma fileira de terminais, à procura de linhas telefô nicas e modems, mas não encontrou nenhum.

    Tessa e Chrissie permaneceram atrás, junto à porta aberta do laboratório, vigiando o corredor escuro.

    Sam sentou-se a uma das máquinas e ligou-a. O logotipo da New Wave apareceu no centro da tela.

    Sem telefones ou modems, talvez os computadores realmente 395   tivessem sido doados à escola para treinamento de alunos, sem a intenção de ligar as crianças à New Wave em algum estágio do Projeto Falcão da Lua.

    O logotipo desapareceu e um menu surgiu na tela. Por serem máquinas equipadas com disco rígido e de enorme capacidade, seus programas já estavam carregados e prontos para uso assim que o sistema era acionado. O menu oferecia-lhe cinco opções:

     

    A.        TREINAMENTO 1 

    B.        TREINAMENTO 2

    C.        PROCESSAMENTO DE TEXTO 

    D.        CONTABILIDADE

    E.        OUTROS

     

     Hesitou, não porque não conseguisse decidir que letra pressionar, mas porque sentiu medo de usar a máquina. Lembrava-se vivi-damente dos Coltranes. Embora tivesse lhe parecido que eles haviam escolhido se mesclar com seus computadores, que sua transformação tivera início dentro deles próprios, não tinha como saber com certeza que não havia sido ao contrário. Talvez os computadores tivessem se apoderado deles. Essa hipótese parecia-lhe impossível. Além disso, graças às observações de Harry, eles sabiam que a população de Moonlight Cove estava sendo convertida por meio de uma injeção, não por alguma força insidiosa que se transmitisse ma-gicamente pelo teclado para as pontas de seus dedos. Ainda assim, hesitava.

    Por fim, apertou E e obteve uma relação de temas escolares.

     

    A.        TODAS AS LÍNGUAS 

    B.        MATEMÁTICA

    C.        TODAS AS CIÊNCIAS

     D.       HISTÓRIA

     E.       INGLÊS

     F.       OUTROS

     

     Pressionou F . Um terceiro menu surgiu e o processo continuou até ele finalmente chegar a um menu onde a seleção final era NEW WAVE. Quando teclou essa opção, as palavras começaram a percorrer a tela.

    OLÁ, ALUNO.

    VOCÊ AGORA ESTÁ EM CONTATO COM 0 SUPERCOMPUTADOR   DA NEW WAVE MICROTECHNOLOGY.

    MEU NOME É SOL.

    ESTOU AQUI PARA SERVI-LO.

    Os computadores escolares estavam ligados diretamente à New Wave. Não havia necessidade de modems.

    GOSTARIA DE VER MENUS?

    OU DESEJA ESPECIFICAR SEU INTERESSE?

    Considerando a abundância de menus só no sistema do departamento de polícia, que ele percorrera na noite anterior no carro de ra-diopatrulha, imaginou que poderia ficar ali sentado a noite inteira apenas olhando um menu atrás do outro até encontrar o que desejava. Digitou: DEPARTAMENTO DE POLÍCIA DE MOONLIGHT COVE.

    ESTE ARQUIVO É CONFIDENCIAL POR FAVOR, NÃO TENTE PROSSEGUIR SEM 0 AUXÍLIO DE SEU PROFESSOR.

    Imaginou que os professores tivessem códigos numéricos individuais que, dependendo se eram ou não convertidos, lhes daria acesso a dados de outro modo restritos. A única maneira de encontrar um de seus códigos era tentar combinações aleatórias de dígitos, mas como nem sequer sabia quantos números havia em um código, haveria milhões, senão bilhões, de possibilidades. Podia ficar sentado ali até seus cabelos ficarem brancos e seus dentes caírem e não descobrir por sorte um número que servisse.

    Na noite anterior, ele havia usado o código pessoal de acesso ao computador do policial Reese Dorn e imaginou se ele funcionaria apenas em um determinado terminal do departamento de polícia ou se qualquer computador ligado ao Sol o aceitaria. Não tinha nada a perder. Digitou: 262699.

    A tela limpou-se. Em seguida: OLÁ, POLICIAL DORN.

    Novamente ele solicitou o sistema de dados do departamento da polícia.

    Dessa vez, foi-lhe dado.

     

    ESCOLHA UMA OPÇÃO 

    A.        DESPACHANTE

    B.        ARQUIVOS CENTRAIS 

    C.        QUADRO DE AVISO

     D.       MODEM PARA FORA DO SISTEMA 

     

      Apertou D.

    Foi-lhe apresentada uma relação de computadores em todo o país, com os quais ele podia se ligar através do modem do departamento de polícia.

    Suas mãos ficaram subitamente úmidas de suor. Tinha certeza que alguma coisa ia dar errado, simplesmente porque nada fora fácil desde que ele entrara na cidade.

    Olhou para Tessa.

    —        Tudo bem?

    Ela estreitou os olhos para o corredor escuro, em seguida piscou e disse:

    —        Parece que sim. Teve sorte?

    —        Sim... talvez. — Virou-se para o computador outra vez e disse baixinho: — Por favor...

    Examinou o longo rol de possíveis ligações para fora do sistema. Encontrou FBI KEY, que era o nome da moderna e mais sofisticada rede de computadores do Bureau — um sistema entre agências, de alta segurança, para armazenagem, recuperação e transmissão de dados localizado na agência central em Washington, que fora instalado há menos de um ano. Supostamente, ninguém a não ser agentes autorizados na agência central e nas agências de campo do Bureau, com seus próprios códigos especiais, tinham acesso ao FBI KEY.

    Grande segurança.

    Ainda esperando problemas, Sam selecionou FBI KEY. O menu desapareceu. A tela permaneceu vazia por um instante. A seguir, no visor, que era um monitor colorido, apareceu o emblema do FBI em azul e dourado. A palavra KEY surgiu sob ele.

    Em seguida, uma série de perguntas cintilaram na tela — QUAL É 0 SEU NÚMERO DE IDENTIDADE NO BUREAU? NOME? DATA DO NASCIMENTO? DATA DE ALISTAMENTO NO BUREAU? NOME DE SOLTEIRA DE SUA MÃE? — e depois de tê-las respondido, o acesso foi-lhe concedido.

    —        Consegui! — exclamou, ousando ser otimista.

    Tessa indagou:

    —        O que aconteceu?

    —        Estou no sistema principal do Bureau em Washington.

    —        Você é um especialista — disse Chrissie.

    —        Sou apenas um curioso. Mas entrei.

    —        E agora? — perguntou Tessa.

    —        Pedirei o operador em serviço em um instante. Mas primei ro quero enviar saudações a cada maldita agência no país, fazê-los se empertigarem e prestarem atenção.

    — Saudações?       

    Do extenso menu do FBI KEY, Sam solicitou o item G. TRANSMISSÃO INTERAGÊNCIA IMEDIATA. Pretendia enviar uma mensagem para cada agência do Bureau no país, não apenas para San Francisco, que era a mais próxima e da qual esperava obter ajuda. Havia uma chance em um milhão de que o operador noturno em San Francisco deixasse a mensagem passar despercebida entre centenas de outras transmissões, apesar do cabeçalho ALERTA DE AÇÃO que anexaria à mensagem. Se isso acontecesse, se alguém estivesse dormindo ao volante neste inoportuno momento, não o fariam por muito tempo, porque cada agência no país estaria pedindo ao QG mais detalhes sobre o boletim de Moonlight Cove e exigindo uma explicação sobre por que eles haviam recebido um alerta sobre uma situação fora de suas regiões.

    Ele não entendia metade do que estava acontecendo nesta cidade. Não poderia explicar, na linguagem cifrada de um boletim do Bureau, nem mesmo o quanto realmente entendia. Mas esboçou depressa um resumo que acreditava ser tão preciso quanto devia ser — e que ele esperava iria fazê-los levantar os traseiros e colocá-los para correr.

    ALERTA DE AÇÃO MOONLIGHT COVE, CALIFÓRNIA . DEZENAS DE MORTOS. SITUAÇÃO SE DETERIORANDO CENTENAS DE OUTROS PODEM MORRER EM HORAS.

    . NEW WAVE MICROTECHNOLOGY ENVOLVIDA EM EXPERIÊNCIAS ILÍCITAS COM SERES HUMANOS, SEM SEU CONHECIMENTO.

    CONSPIRAÇÃO DO MAIS ALTO GRAU.

    . MILHARES DE PESSOAS CONTAMINADAS.

    . REPITO, TODA POPULAÇÃO DÃ CIDADE CONTAMINADA.

    . SITUAÇÃO EXTREMAMENTE PERIGOSA.

    . CIDADÃOS CONTAMINADOS SOFREM PERDA DAS FACULDADES, EXIBEM TENDÊNCIA PARA EXTREMA VIOLÊNCIA REPITO, EXTREMA VIOLÊNCIA.

    . REQUISITO QUARENTENA IMEDIATA POR FORÇAS ESPECIAIS DO EXÉRCITO. TAMBÉM REQUISITO APOIO ARMADO IMEDIATO, MACIÇO, DO PESSOAL DO BUREAU.

    Forneceu sua posição na escola secundária na rua Roshmore, de modo que as forças a caminho tivessem um ponto de referência para procurá-lo, embora não tivesse certeza de que ele, Tessa e Chris-sie pudessem continuar a se refugiar com segurança ali, até os reforços chegarem. Encerrou a mensagem com seu nome e número de identificação do Bureau.

    Essa mensagem não os prepararia para o choque do que encontrariam em Moonlight Cove, mas pelo menos os faria tomar providências e os encorajaria a virem preparados para qualquer eventualidade.             Digitou TRANSMITA, mas ocorreu-lhe um pensamento e ele apagou a palavra da tela. Digitou: REPITA TRANSMISSÃO.

    O computador perguntou: NUMERO DE REPETIÇÕES?       Ele digitou: 99.

    O computador aceitou o comando.

    A seguir, ele digitou TRANSMITA novamente e apertou a tecla ENTRA.

    QUAIS AGÊNCIAS?

    Ele digitou: TODAS.

    A tela ficou vazia. Em seguida: TRANSMITINDO.

    Naquele instante, toda impressora laser do sistema KEY em toda agência de campo do Bureau no país estava imprimindo a primeira das 99 repetições de sua mensagem. O pessoal do turno da noite em toda parte logo estaria subindo pelas paredes.

    Ele quase deu vivas de contentamento.

    Mas havia algo mais a ser feito. Eles ainda não estavam livres daquela enrascada.

    Sam voltou ao menu do KEY e escolheu a opção A. OPERADOR NOTURNO. Cinco segundos depois, ele estava em contato com o agente que administrava o posto KEY no escritório central de comunicações do Bureau em Washington. Um número surgiu na tela — a identificação do operador — seguido de um nome, AN NE DENTON. Com imensa satisfação em usar alta tecnologia para provocar a queda de Thomas Shaddack, da New Wave e do Projeto Falcão da Lua, Sam iniciou uma conversa interurbana eletrônica, sem palavras, com An-ne Denton, pretendendo detalhar os horrores de Moonlight Cove.

     

    Embora Loman já não estivesse interessado nas atividades do departamento de polícia, ligava o terminal em seu carro a cada dez   minutos, para verificar o que estava acontecendo. Esperava que Shaddack entrasse em contato com membros do departamento a intervalos regulares. Se tivesse a sorte de interceptar uma conversa entre Shaddack e outros policiais, poderia localizar o sacana por alguma coisa que fosse dita.

    Não deixava o computador ligado todo o tempo porque tinha medo. Não achava que iria saltar sobre ele e sugar seu cérebro ou algo assim, mas reconhecia que operá-lo durante muito tempo poderia induzir nele a tentação de se transformar no que Neil Penni-worth e Denny se tornaram, da mesma forma que estar perto dos regressivos dera origem a uma premente necessidade de involuir. Acabara de parar no acostamento da Holliwell Road, onde sua busca incansável o levara, ligara o terminal e estava prestes a chamar o canal de diálogo para verificar se havia alguém mantendo conversa, quando a palavra ALERTA apareceu em grandes letras na tela. Tirou a mão do teclado como se alguma coisa o houvesse mordido.

    O computador disse: SOL SOLICITA DIÁLOGO.

    Sol? O supercomputador da New Wave? Por que estaria acessando o sistema do departamento de polícia?

    Antes que qualquer outro policial no escritório central ou em outro carro pudesse questionar a máquina, Loman assumiu o comando e digitou:

    DIÁLOGO CONCEDIDO. EXIJO ESCLARECIMENTO, disse o Sol. Loman digitou SIM, que poderia significar CONTINUE. Estruturando suas perguntas do próprio programa de auto-acesso, que lhe permitia monitorar seu funcionamento como se fosse um observador externo, o Sol disse:

    AS CHAMADAS TELEFÔNICAS PARA E DE NÚMEROS NÃO AUTORIZADOS EM MOONLIGHT COVE E TODOS OS NÚMEROS EXTERNOS AINDA ESTÃO RESTRITAS?

    SIM.

    AS LINHAS TELEFÔNICAS RESERVADAS DO SOL INCLUÍDAS NO QUE FOI DITO ACIMA ESTÃO INCLUÍDAS?, perguntou o computador da New Wave, falando de si próprio na terceira pessoa.

    Confuso, Loman digitou:

    ESCLAREÇA.

    Pacientemente conduzindo-o passo a passo, o Sol explicou que possuía suas próprias linhas dedicadas, fora do diretório principal, pelas quais os usuários podiam acessar outros computadores em todo o país.

    Ele já sabia disso e digitou: SIM.

    AS LINHAS TELEFÔNICAS RESERVADAS DO SOL ESTÃO INCLUÍDAS NA PROIBIÇÃO ACIMA MENCIONADA?, repetiu.

    Se tivesse o interesse de Denny por computadores teria atinado imediatamente com o que estava acontecendo, mas ainda estava confuso. Assim, digitou: POR QUÊ?, querendo dizer POR QUE PERGUNTA?

    MODEM PARA FORA DO SISTEMA AGORA EM USO.

     POR QUEM?

    SAMUEL BOOKER.

    Loman teria rido se fosse capaz de sentir alegria. O agente encontrara uma saída para fora de Moonlight Cove e agora a merda seria jogada no ventilador.

    Antes que pudesse interrogar o Sol sobre as atividades e localização de Booker, um outro nome apareceu no canto superior esquerdo da tela — SHADDACK — indicando que o próprio Moreau da New Wave estava acompanhando o diálogo pelo terminal e estava se intrometendo. Loman comprazia-se em deixar seu criador e o Sol conversarem sem interrupção.

    Shaddack pediu mais detalhes.

    O Sol respondeu:

    SISTEMA FBI KEY ACESSADO.

    Loman podia imaginar o choque de Shaddack. O comando do criador de bestas apareceu na tela: OPÇÕES. O que significava que ele queria desesperadamente um menu de opções do Sol para lidar com a situação.

    O Sol ofereceu-lhe cinco opções, sendo a quinta DESLIGAR, a qual Shaddack escolheu.

    Um instante depois, o Sol informou: LIGAÇÃO COM 0 SISTEMA FBI KEY DESLIGADO.

    Loman esperava que Booker tivesse conseguido transmitir o suficiente para acabar com Shaddack e Moonlight Cove.

    Na tela, de Shaddack para o Sol:

    TERMINAL DE BOOKER?

    QUER SABER A LOCALIZAÇÃO?

    SIM.

    MOONLIGHT COVE CENTRAL SCHOOL, LABORATÓRIO DE COMPUTAÇÃO.

    Loman estava a três minutos da Central.

    Imaginava a que distância Shaddack estaria da escola. Não importava. Perto ou longe, Shaddack iria correndo para lá para impedir que Booker comprometesse o Projeto Falcão da Lua, ou para se vingar caso este já estivesse comprometido.

    Finalmente Loman sabia onde encontrar seu criador.

     

    Quando Sam havia trocado não mais do que seis mensagens no diálogo com Anne Denton em Washington, a ligação foi interrompida. A tela ficou vazia.

    Queria acreditar que fora desconectado por problemas comuns em algum ponto ao longo da linha. Mas sabia que esse não era o caso.

    Levantou-se de sua cadeira tão depressa que a derrubou.

    Chrissie deu um salto de surpresa e Tessa disse:

    —        O que foi? O que aconteceu?

    —        Sabem que estamos aqui — disse Sam. — Estão a caminho.

     

     Harry ouviu a campainha tocar lá embaixo na casa.

    Seu estômago contraiu-se. Sentiu-se numa montanha russa, prestes a deixar a rampa de embarque.

    A campainha soou outra vez.

    Seguiu-se um longo silêncio. Sabiam que ele era aleijado. Estavam lhe dando tempo para atender.

    Finalmente, tocou outra vez.

    Consultou o relógio. Apenas 7:24. Não lhe serviu de consolo saber que não o colocaram no fim da lista.

    A campainha tocou outra vez. Em seguida, novamente. Depois, insistentemente.

    À distância, abafado pela separação de dois andares, Moose começou a latir.

     

    Tessa agarrou a mão de Chrissie. Com Sam, saíram às pressas do laboratório de computação. As pilhas da lanterna não deviam ser   novas, pois o facho de luz começava a enfraquecer. Esperava que durassem o suficiente para encontrarem a saída. De repente, a disposição da escola — que parecera simples quando não estavam numa pressa de vida ou morte para transpor suas veredas — parecia um labirinto.

    Atravessaram uma interseção de quatro corredores, entraram em outro corredor e andaram cerca de vinte metros quando Tessa percebeu que estavam indo na direção contrária.

    —        Não foi por aqui que viemos.

    —        Não importa — disse Sam. — Qualquer saída serve.

    Tiveram que percorrer mais uns dez metros antes que a fraca luz da lanterna conseguisse iluminar até o fundo do corredor, revelando tratar-se de um beco sem saída.

    —        Por aqui — disse Chrissie, largando a mão de Tessa e vol tando na escuridão por onde vieram, forçando-os a abandonarem- na ou seguirem-na.

     

     Shaddack imaginou que não teriam tentado entrar na Central de nenhum ponto que desse para a rua, onde poderiam ser vistos — o índio concordou — e, assini, deu a volta até os fundos. Passou por portas de metal que teriam oferecido uma barreira intransponível e examinou as janelas, tentando localizar uma vidraça quebrada. A última porta dos fundos, a única com vidro na parte de cima, ficava numa extensão em ângulo com o prédio. Dirigia a caminhonete naquela direção, logo antes da entrada de serviço virar para a esquerda para rodear aquela ala e, de uma distância de apenas alguns metros, com todas as outras vidraças refletindo o clarão dos faróis, sua atenção foi despertada pela ausência de uma das vidraças no canto inferior direito.

    —        Lá está — disse a Runningdeer.

    —        Sim, Pequeno Chefe.

    Estacionou junto à porta e apanhou o rifle Remington calibre 12 , com coronha de pistola, semi-automático, carregado, do chão da caminhonete, a seu lado. A caixa de munição extra estava sobre o banco de passageiros. Abriu-a, apanhou quatro ou cinco balas, enfiou-as no bolso do casaco, pegou mais quatro ou cinco, saiu do veículo e dirigiu-se para a porta com o vidro quebrado.

     

    Quatro baques surdos repercutiram pela casa, até o sótão, e Harry julgou ter ouvido vidros se quebrando à distância.

    Moose latia furiosamente. Parecia o mais perverso cão de ataque já criado, não um dócil labrador preto. Talvez ele provasse estar disposto a defender a casa e o dono, apesar de seu temperamento naturalmente obediente.

    Não faça isso, rapaz, pensou Harry. Não tente bancar o herói. Apenas se esconda em algum canto e deixe-os passar, lamba suas mãos se eles as oferecerem e não...

    O cachorro guinchou e silenciou.

    Não, pensou Harry, e uma pontada de dor percorreu-o. Havia perdido não apenas um cachorro, mas seu melhor amigo.

    Moose, também, tinha um senso de dever.

    O silêncio se instalou na casa. Estariam dando uma busca no andar térreo. O sofrimento e o medo de Harry diminuíram conforme sua raiva cresceu. Moose. Diabos, o pobre e inofensivo Moose. Podia sentir o calor da raiva em seu rosto. Queria acabar com todos eles.

    Pegou a pistola .38 com a mão boa e colocou-a no colo. Não o encontrariam logo, mas sentia-se melhor com a arma na mão.

    Quando servia, ganhara medalhas tanto por tiro com rifle quanto com revólver. Isso fora há muito tempo. Não disparara uma arma, nem em treinamento, por mais de vinte anos, desde aquela bela e distante Ásia, onde numa linda manhã de excepcional céu azul ele ficara inválido para sempre. Mantinha o .38 e o .45 sempre limpos e lubrifiçados, mais por hábito; as lições e rotinas de um soldado eram aprendidas para sempre — e agora estava satisfeito por isso.

    Um estalo.

    O ronco de uma máquina.

    O elevador.

     

     No meio do corredor certo, segurando a lanterna cada vez mais fraca na mão esquerda e o revólver na outra, exatamente quando alcançou Chrissie, Sam ouviu uma sirene aproximando-se. Não estava junto deles, mas perigosamene perto. Não conseguia saber se o carro de patrulha se aproximava pelos fundos da escola, para onde se dirigiam, ou vinha pela frente.

    Aparentemente, Chrissie também não tinha certeza. Parou de correr e perguntou:

    —        Onde, Sam, onde?

    Às costas dele, Tessa disse:

    —        Sam, a porta!

    Por um instante, não compreendeu o que ela queria dizer. Então, ele viu a porta balançando-se, aberta, no final do corredor, a cerca de trinta metros de distância, a mesma porta por onde haviam entrado. Um homem atravessou a soleira. A sirene ainda soava, aproximando-se, portanto havia outros deles a caminho, um pelotão inteiro. O sujeito que atravessara a porta era apenas o primeiro — alto, mais de l,90m, mas apenas um vulto, mal recortado contra a luz da lâmpada de segurança do lado de fora e à direita da porta, Sam disparou o .38, sem se preocupar em verificar se aquele homem era um inimigo, porque todos eram inimigos, cada um deles — seu nome era legião —, e viu que o tiro passou longe. Sua mira estava prejudicada pelo pulso ferido, que doía infernalmente depois de suas desventuras na galeria pluvial. Com o coice da arma, a dor explodiu em seu pulso e subiu até o ombro, depois desceu de novo, meu Deus, a dor percorrendo-o como ácido, do ombro às pontas dos dedos. Perdeu metade das forças da mão. Quase deixou a arma cair.

    Quando o estrondo do tiro de Sam ricocheteou pelas paredes do corredor de volta até ele, o sujeito no outro extremo abriu fogo com sua arma, mas ele possuía artilharia pesada. Um rifle. Felizmente, não tinha boa pontaria. Mirava alto demais, sem saber que o tranco atirava o cano para cima. Em conseqüência, o primeiro tiro penetrou no teto a apenas dez metros adiante dele, estilhaçando uma das lâmpadas fluorescentes apagadas e um punhado de placas de isolamento acústico. A reação dele confirmou sua falta de experiência com armas; compensou demais o tranco, abaixando o cano excessivamente enquanto puxava o gatilho pela segunda vez, e a bala seguinte atingiu o assoalho a curta distância do alvo.

    Sam não continuou como um observador inerte do fogo mal direcionado. Agarrou Chrissie e puxou-a para a esquerda, pelo corredor e por uma porta que dava para um aposento escuro, no mesmo instante em que o segundo disparo de chumbo grosso arrancava lascas do assoalho de vinil. Tessa estava logo atrás deles. Ela bateu a porta e apoiou-se contra ela, como se achasse que fosse a Mulher Maravilha e que quaisquer balas que atravessassem a porta ricocheteariam inofensivamente de suas costas.

    Sam jogou o facho de luz sobre ela.

    — Com este pulso, vou precisar das duas mãos para manejar a arma.

    Tessa varreu a sala com a fraca luz amarela. Estavam na sala da banda. À direita da porta, plataformas dispostas em fileiras uma acima da outra — cheias de cadeiras e suportes de partituras — erguiam-se até a parede. À esquerda, havia uma ampla área livre, o estrado do diretor da banda, uma escrivaninha de madeira e metal. E duas portas. Ambas abertas, dando para salas contíguas.

    Chrissie não precisou ser chamada a seguir Tessa à mais próxima daquelas portas enquanto Sam cobria a retaguarda, movendo-se de costas, cobrindo a porta do corredor pela qual haviam entrado.

    Lá fora, a sirene silenciara. Agora, haveria mais de um homem armado.

     

    Haviam feito uma busca nos dois primeiros andares. Estavam no quarto do terceiro andar.

    Harry podia ouvi-los conversando. Suas vozes chegavam até ele pelo teto deles, seu assoalho. Mas não conseguia entender o que diziam.

    Quase desejava que notassem o alçapão para o sótão dentro do guarda-roupa e resolvessem subir. Queria uma chance de derrubar uns dois deles. Por Moose. Após vinte longos anos como vítima, já estava cansado; queria uma chance de fazê-los saber que Harry Talbot ainda era um homem que deviam temer, e que embora Moose fosse apenas um cachorro, sua vida não podia ser tirada sem graves conseqüências.

     

     No nevoeiro em redemoinho, Loman viu um único carro de radio-patrulha estacionado ao lado da caminhonete de Shaddack. Esta- 407   cionou ao lado dela exatamente quando Paul Amberlay saía de trás do volante. Amberlay era magro, rijo e muito inteligente, um dos melhores policiais jovens de Loman, mas parecia um colegial agora, pequeno demais para ser um policial — e amedrontado.

    Quando Loman saiu do carro, Amberlay dirigiu-se a ele, a arma na mão, visivelmente trêmulo.

    —        Só você e eu? Onde estão os outros? É um alerta máximo.

    —        Onde estão os outros? — perguntou Loman. — Ouça, Paul.

    Ouça.

    De todos os lados da cidade, dezenas de vozes selvagens erguiam-se numa toada sobrenatural, chamando uns aos outros ou desafiando a lua oculta que flutuava acima das nuvens carregadas.

    Loman correu para a parte traseira do carro de polícia e abriu a mala. Sua unidade, como todas as outras, carregava um rifle calibre .20 para o qual nunca tivera uso na pacífica Moonlight Cove. Mas a New Wave, que generosamente equipara a força, não economizou em equipamentos ainda que considerados desnecessários. Tirou a arma do seu suporte na parede dos fundos da mala.

    Juntando-se a ele, Amberlay disse:

    —        Está me dizendo que eles regrediram, todos eles, todos os homens da força, exceto você e eu?

    —        Apenas ouça — repetiu Loman enquanto apoiava a calibre 20 no pára-choque.

    —        Mas isso é loucura! — insistiu Amberlay. — Meu Deus, Je sus, quer dizer que tudo isso está desabando sobre nós, toda a mal dita coisa?

    Loman agarrou uma caixa de munição que estava no vão da roda direita da mala, abriu a tampa.

    —        Você não sente o desejo, Paul?

    —        Não! — disse Amberlay depressa demais. — Não, eu não sinto, eu não sinto nada.

    —        Eu sinto — disse Loman, colocando cinco cartuchos na arma — um na câmara e quatro no depósito. — Ah, Paul, eu o sinto.

    Tenho vontade de arrancar as roupas e me transformar, transfor mar, e simplesmente correr, ser livre, unir-me a eles, caçar e matar e correr com eles.

    —        Eu, não, não, nunca — disse Amberlay.

    —        Mentiroso — disse Loman. Ergueu a arma carregada e dis parou à queima-roupa em Amberlay, explodindo seu cérebro.

    Não podia ter confiado no jovem oficial, não podia lhe virar as costas, não com a vontade de regredir tão forte nele e aquelas vozes na noite entoando seus cantos de sereia.

    Enquanto enfiava mais cartuchos nos bolsos, ouviu um disparo de dentro da escola.

    Imaginou se aquela arma estaria nas mãos de Booker ou de Shaddack. Esforçando-se para controlar seu crescente pavor, lutando contra a hedionda e intensa vontade de abandonar sua forma humana, Loman entrou na escola para descobrir.

     

     Tommy Shaddack ouviu outro tiro, mas não se importou muito porque, afinal, agora estavam numa guerra. Podia-se ouvir de que guerra se tratava apenas saindo na noite e ouvindo os berros dos combatentes ecoando pelas colinas até o mar. Estava mais interessado em pegar Booker, a mulher e a garota que vira no corredor, porque sabia que a mulher devia ser a maldita Lockland e a menina, Chrissie Foster, embora não pudesse imaginar como eles se reuniram.

    Guerra. Assim, ele lidava com a situação do modo como os soldados faziam nos bons filmes, abrindo a porta a pontapé, disparando para dentro da sala antes de entrar. Ninguém gritou. Imaginou que não atingira ninguém e disparou outra vez. Ainda assim, ninguém gritou e ele concluiu que já haviam saído dali. Atravessou a porta, tateou em busca do interruptor de luz, encontrou-o e descobriu que estava numa sala de música vazia.

    Evidentemente, haviam saído por uma das duas outras portas e quando percebeu isso ficou furioso, realmente furioso. A única vez na vida em que disparara uma arma fora em Phoenix, quando matara o índio com o revólver de seu pai e isto fora bem de perto, quando não podia errar. Mas ainda assim achava que era bom com armas. Afinal, meu Deus, assistira a um monte de filmes de guerra, filmes de faroeste, seriados policiais na televisão e não parecia difícil, nem um pouco difícil, bastava apontar o cano e puxar o gatilho. Mas não fora tão fácil afinal e Tommy estava com raiva, furioso, porque não deviam fazer parecer tão simples nos filmes e na tevê quando, na realidade, a arma saltava em suas mãos como se estivesse viva.

    Agora já aprendera e iria escorar-se quando atirasse, abrir as pernas e firmar-se, de modo que seus disparos não mais abrissem buracos no teto ou ricocheteassem do assoalho. Iria pegá-los na pró 409   xima vez que os atacasse e eles lamentariam tê-lo obrigado a persegui-los, por não se atirarem ao chão, mortos, quando ele os queria mortos.

     

    A porta da sala de música dava para um corredor que servia a dez salas de prática à prova de som, onde os estudantes podiam mutilar a boa música durante horas sem perturbar ninguém. Ao final daquele estreito corredor, Tessa abriu uma outra porta e acendeu a lanterna apenas o suficiente para ver que estavam num salão tão amplo quanto a sala de música. Também possuía plataformas elevadas até o fundo. Um cartaz na parede, desenhado por estudantes e até com anjos alados cantando, anunciava que aquela era a morada do Melhor Coro do Mundo.

    Enquanto Chrissie e Sam seguiam-na para dentro do aposento, uma arma disparou a distância. Parecia ter vindo do lado de fora do prédio. Mas no instante em que a porta que dava para o corredor das salas de prática fechou-se ruidosamente atrás deles, um outro tiro foi disparado, mais perto do que o primeiro, provavelmente na porta que dava para a sala de música. Em seguida, um segundo estampido do mesmo local.

    Exatamente como na sala de música, mais duas portas saíam da sala do coro, mas a primeira que ela tentou levava a um beco sem saída; dava para a sala do diretor do coro.

    Arremessaram-se em direção à outra saída, além da qual encontraram um corredor iluminado apenas por um sinal luminoso de emergência, vermelho, ligado 24 horas por dia — ESCADAS — logo à direita de onde estavam. Não SAÍDA, mas simplesmente ESCADAS, o que significava que era um vão de escadas interno, sem saída para o exterior.

    —        Leve-a para cima — ordenou Sam a Tessa.

    —        Mas...

    —        Suba! Provavelmente estão entrando no andar térreo por todas as entradas, de qualquer forma.

    —        O que você...

    —        Vou ficar um pouco aqui — respondeu.

    Uma porta abriu-se com estrondo e um disparo eclodiu na saia do coro.

    —        Andem! — sussurrou Sam.          

     

    Harry ouviu a porta do guarda-roupa se abrir no quarto embaixo.

    O sótão estava frio, mas ele suava como se estivesse numa sau-na. Talvez não tivesse precisado da segunda suéter.

    Vão embora, pensou. Vão embora.

    Em seguida, pensou, diabos, não, venham, entrem. Acham que quero viver para sempre?

     

     Sam apoiou-se sobre um dos joelhos no corredor do lado de fora da sala do coro, tomando uma posição que em parte compensasse seu pulso direito fraco. Mantinha a porta de vaivém aberta uns 15 centímetros, os braços estendidos pela abertura, o .38 seguro na mão direita, a mão esquerda segurando com firmeza o pulso direito.

    Pôde ver o sujeito atravessar a sala, a silhueta recortada contra as luzes do corredor da sala de música atrás dele. Alto. Não conseguiu ver seu rosto. Mas algo nele pareceu-lhe familiar.

    O homem armado não viu Sam. Estava apenas sendo cauteloso, atirando a esmo antes de entrar. Puxou o gatilho. O estalido soou alto no aposento vazio. Esvaziou o rifle. Sem munição.

    Isso mudou os planos de Sam. Ergueu-se num salto e atravessou a porta de vaivém, de volta à sala do coro, já não mais capaz de esperar que o sujeito acendesse as luzes do teto ou ultrapassasse a soleira da porta, porque agora era o momento de pegá-lo, antes que recarregasse a arma. Atirando enquanto avançava, Sam disparou as quatro balas restantes do .38, fazendo o possível para que cada tiro atingisse o alvo. No segundo ou terceiro disparo, o sujeito no vão da porta soltou um grito agudo, meu Deus, um grito de criança, estridente e trêmulo, enquanto se atirava de volta ao corredor das salas de prática, desaparecendo.

    Sam continuou avançando, tateando o bolso do casaco com a mão esquerda, agarrando os cartuchos sobressalentes, enquanto com a mão direita abria o cilindro do revólver e sacudia as cápsulas vazias. Quando alcançou a porta fechada para o estreito corredor que  ligava a sala do coro à sala de música, a porta por onde o homem alto desaparecera, apoiou as costas na parede, enfiou novos cartuchos na Smith & Wesson e fechou o cilindro com um estalo.

    Abriu a porta com um pontapé e olhou para o corredor, onde as luzes fluorescentes do teto estavam acesas.

    Estava deserto.

    Nenhum sangue no chão.

    Droga. Sua mão direita estava semidormente. Podia sentir o pulso inchar, tornando o curativo apertado, e agora empapado de sangue. Do modo como sua pontaria estava se deteriorando, ia ter que chegar perto do filho da mãe e pedir-lhe para morder o cano da arma para poder acertar.

    As portas para as dez salas de prática, cinco de cada lado, estavam fechadas. A porta no extremo oposto, onde o corredor dava para a sala de música, estava aberta e as luzes estavam acesas. O sujeito alto podia estar lá ou em qualquer das dez salas de prática. Mas onde quer que estivesse, provavelmente já havia enfiado pelo menos dois cartuchos na arma, de modo que o momento para persegui-lo havia passado.

    Sam retrocedeu, deixando a porta entre o corredor e a sala do coro fechar-se. No mesmo instante em que soltou a porta, enquanto ela voltava ao lugar, viu de relance o homem alto sair pela porta aberta da sala de música a cerca de 12 metros de distância.

    Era o próprio Shaddack.

    O rifle disparou.

    A porta à prova de som, fechando-se no momento crucial, era espessa suficiente para impedir a passagem dos projéteis.

    Sam virou-se e atravessou correndo a sala do coro, entrou no corredor e subiu as escadas, para onde enviara Tessa e Chrissie.

    Quando chegou ao último lance, viu-as esperando por ele no corredor, no suave clarão vermelho de outro sinal ESCADAS.

    Embaixo, Shaddack entrou no vão da escada.

    Sam virou-se, voltou ao patamar e desceu um degrau. Apoiou-se na balaustrada, olhou para baixo, vislumbrou seu perseguidor e disparou dois tiros.

    Shaddack berrou como uma criança outra vez. Agachou-se contra a parede, longe do vão central das escadas, onde não podia ser visto.

    Sam não sabia se havia acertado ou não. Talvez. O que ele realmente sabia é que Shaddack não estava mortalmente ferido; ainda avançava, passo a passo, mantendo-se junto à parede. E quando aquele desgraçado atingisse o patamar inferior, daria uma volta repentina, disparando o rifle seguidamente em quem quer que estivesse acima.

       Silenciosamente, Sam retirou-se do patamar superior, retrocedendo para o corredor mais uma vez. A luz vermelha do aviso ESCADAS derramava-se sobre os rostos de Tessa e Chrissie... uma ilusão de sangue.

     

     Um estalido. Um som arranhado.

    Clique-arranhado. Clique-arranhado.

    Harry sabia o que estava ouvindo. Cabides de roupa deslizando pela haste de metal.

    Como adivinharam? Diabos, talvez o tivessem farejado ali em cima. Afinal, suava como um cavalo. Talvez a conversão aguçasse seus sentidos.

    Os estalidos e arranhados cessaram.

    Um segundo depois, ouviu-os retirando a haste de roupas do guarda-roupa de seus suportes, a fim de que pudessem abaixar a porta do alçapão.

     

    A lanterna cada vez mais fraca não parava de piscar e Tessa precisava sacudi-la, comprimindo as pilhas, para obter mais alguns segundos de luz fraca e bruxuleante.

    Haviam saído do corredor e entrado no que descobriram ser um laboratório de química com mesas de granito, pias de metal e bancos altos de madeira. Nenhum lugar onde se esconder.

    Tentaram as janelas, esperando que houvesse um telhado logo abaixo. Não. Uma queda de dois andares diretamente no caminho de concreto.

    Ao fundo do laboratório de química havia uma porta, por onde atravessaram para uma sala de estocagem de três metros quadrados, repleta de produtos químicos em latas e frascos vedados, alguns exibindo caveiras e ossos cruzados, outros PERIGO em grandes letras vermelhas. Ela supunha que houvesse meios de utilizar o conteúdo daquele aposento como uma arma, mas não dispunham de tempo para fazer um inventário dos conteúdos, em busca de substâncias interessantes para misturar, e provavelmente voaria pelos ares com a primeira garrafa que abrissem. Pela expressão do rosto de Sam, compreendeu que ele também não via nada promissor naquele aposento.

    Uma porta aos fundos do armário de estoque abria-se para um segundo laboratório que parecia funcionar também como sala de aula de biologia. Mapas da anatomia humana penduravam-se em uma das paredes. O local também não oferecia nenhum esconderijo.

    Segurando Chrissie junto a si, Tessa olhou para Sam e murmurou:

    —        E agora? Ficamos aqui na esperança de que não nos encontre... ou seguimos em frente?

    —        Acho que é mais seguro ir em frente — disse Sam. — É mais fácil sermos encurralados se permanecermos imóveis.

    Ela assentiu.

    Ele passou por ela e Chrissie, liderando o caminho entre os bancos do laboratório, em direção à porta que dava para o corredor. De trás deles, no escuro armário de estoque de produtos químicos ou no laboratório além dele, veio um surdo, porém nítido clique.

    Sam parou, fez sinal para que Tessa e Chrissie prosseguissem e virtou-se para cobrir a saída do armário de estoque.

    Com Chrissie a seu lado, Tessa dirigiu-se à porta para o corredor, virou a maçaneta devagar, silenciosamente, e abriu a porta.

    Shaddack surgiu da escuridão do corredor, entrou no facho de luz inconstante e fraco de sua lanterna e enfiou o cano do rifle em seu estômago.

    — Você agora vai se arrepender — disse excitadamente.

     

     Abaixaram a porta do alçapão. Uma nesga de luz do guarda-roupa iluminou as vigas do telhado, mas não o canto distante onde Harry estava sentado com suas pernas inúteis estendidas.

    A mão inválida descansava no colo, enquanto a boa agarrava ferozmente a pistola.

    Seu coração batia cada vez mais forte e mais rápido do que o fazia há vinte anos, desde os campos de batalha no Sudeste da Ásia.

      Seu estômago contraía-se. Um nó na garganta mal o deixava respirar. Sentia-se tonto de medo. Mas, graças a Deus, sentia-se bastante vivo.

    Com um rangido e um estalo, armaram a escada.

     

     Tommy Shaddack enfiou o cano da arma em sua barriga e quase explodiu suas entranhas, quase a abateu, antes de perceber como ela era bonita e então já não a queria matar, pelo menos não agora, não até obrigá-la a fazer algumas coisas com ele, fazer algumas coisas para ele. Ela teria que fazer o que ele quisesse, qualquer coisa, o que lhe ordenasse, ou poderia simplesmente estraçalhá-la contra a parede, sim, ela era dele, e era melhor ela compreender isso, ou iria se arrepender, iria fazê-la se arrepender.

    Então, ele viu a garota a seu lado, uma garotinha muito bonita, apenas dez ou doze anos, e ela o excitou ainda mais. Podia tê-la primeiro e depois a mais velha, possuí-las do jeito que quisesse, obrigá-las a fazer coisas, todo tipo de coisas, e depois maltratá-las, era direito seu, não podiam lhe negar isso, não a ele, porque todo o poder estava agora em suas mãos, ele vira o falcão da lua três vezes.

    Ele avançou pela porta aberta, entrou na sala, mantendo a arma no ventre da mulher, e ela recuou para deixá-lo passar, puxando a menina com ela. Booker estava atrás deles, uma expressão atônita no semblante. Tommy Shaddack disse:

    —        Largue a arma e afaste-se dela ou transformarei esta vagabunda em geléia de morango, juro que o farei, não pode me impedir.

    Booker hesitou.

    —        Largue-a! — insistiu Tommy Shaddack.

    O agente largou o revólver e deu um passo para o lado para longe dele.

    Mantendo o cano da Remington com força contra a barriga da mulher, ele a fez avançar pouco a pouco até alcançar o interruptor de luz e acender as lâmpadas fluorescentes. A sala saiu das trevas.

    —        Muito bem, agora, todos vocês — disse Tommy Shaddack — sentem-se naqueles três bancos, perto da bancada do laborató rio, sim, lá, e não banquem os engraçadinhos.

    Ele recuou e ameaçou-os com o rifle. Pareciam apavorados e isso o fez rir.

    Tommy estava ficando excitado, realmente excitado, porque resolveu que mataria Booker na frente da mulher e da criança, não depressa e sem dor, mas devagar, o primeiro tiro nas pernas, deixá-lo-ia ficar no chão e contorcer-se um pouco, o segundo tiro na barriga, mas não de tão perto que o matasse instantaneamente, fazê-lo sofrer, fazer a mulher e a menina presenciarem tudo, mostrar-lhes quem era Tommy Shaddack, que sujeito duro, fazê-las ficarem agradecidas por serem poupadas, tão agradecidas que se lançariam de joelhos e deixariam que ele lhes fizesse coisas, todas as coisas que ele quis fazer por trinta anos e se negara, extravasar a pressão de trinta anos ali mesmo, agora, esta noite...

     

     Fora da casa, infiltrando-se no sótão pelas aberturas de ventilação nas bordas do telhado, ouviam-se uivos sobrenaturais, ponto e contraponto, primeiro solo, depois em coro. Era como se os portões do inferno tivessem sido abertos, deixando os habitantes das profundezas espalharem-se por Moonlight Cove.

    Harry temia por Sam, Tessa e Chrissie.

    Abaixo dele, a equipe de conversão armou a escada desmontável. Um deles começou a subir para o sótão.

    Harry imaginava como seriam. Seriam apenas pessoas comuns — o velho dr. Fitz com uma seringa e dois assistentes? Ou seriam bichos-papões? Ou alguns dos homens-máquina de que Sam falara?

    O primeiro passou pelo alçapão aberto. Era o dr. Worthy, o médico mais jovem da cidade.

    Harry pensou em atirar nele enquanto ainda estava na escada. Mas não disparava uma arma há vinte anos e não queria desperdiçar sua limitada munição. Melhor esperar para atirar mais de perto.

    Worthy não tinha lanterna. Não parecia precisar de uma. Olhou diretamente para o canto mais escuro, onde Harry estava recosta-do, e disse:

    —        Como sabia que viríamos, Harry?

    —        Intuição de inválido — disse Harry com sarcasmo.

    Ao longo do centro do sótão, havia espaço e altura suficientes para Worthy caminhar erguido. Endireitou-se quando ultrapassou as vigas inclinadas junto ao alçapão e, depois que avançara quatro passos, Harry disparou nele duas vezes.

      O primeiro tiro errou o alvo, mas o segundo atingiu seu peito.

    Worthy foi atirado para trás e caiu com força nas tábuas nuas do assoalho do sótão. Ficou deitado ali por um instante, contorcendo-se, em seguida sentou-se, tossiu e colocou-se de pé.

    O sangue brilhava por toda a frente de sua camisa branca perfurada. Fora atingido em cheio e, no entanto, recuperara-se em segundos.

    Harry lembrou-se do que Sam dissera sobre como os Coltranes se recusavam a continuar mortos. Destrua o processador de dados.

    Mirou na cabeça de Worthy e tornou a disparar duas vezes, mas àquela distância — cerca de oito metros — e naquele ângulo, atirando do chão, não conseguiu atingir nada. Hesitou com apenas quatro balas no pente da pistola.

    Outro homem atravessava a abertura.

    Harry disparou nele, tentando fazê-lo recuar pela escada.

    Ele avançou, impassível.

    Três balas na pistola.

    Mantendo-se à distância, o dr. Worthy disse:

    —        Harry, não estamos aqui para lhe causar nenhum mal. Não sei o que andou ouvindo ou como ouviu falar do projeto, mas não é uma coisa ruim...

    Sua voz extingiu-se e ele inclinou a cabeça para ouvir os gritos selvagens que enchiam a noite lá fora. Um olhar peculiar de anseio, visível mesmo na fraca claridade que penetrava pelo alçapão, atravessou o rosto de Worthy.

    Ele se sacudiu, pestanejou e lembrou-se de que estava tentando vender seu elixir para um freguês relutante.

    —        Não é em absoluto uma coisa ruim, Harry. Especialmente para você. Vai caminhar outra vez, Harry, caminhar como qualquer um. Será perfeito outra vez. Porque depois da Mudança, será capaz de curar-se. Ficará livre da paralisia.

    —        Não, obrigado. Não a esse preço.

    —        Que preço, Harry? — perguntou Worthy, abrindo os braços, as palmas das mãos viradas para cima. — Olhe para mim. Que preço paguei?

    —        Sua alma? — disse Harry.

    Um terceiro homem subia a escada.

     O segundo homem ouvia os uivos ululantes que entravam pelas aberturas de ventilação do sótão. Cerrou os dentes, rangeu-os  com força e começou a piscar muito depressa. Ergueu as mãos e  cobriu o rosto, como se repentinamente se sentisse angustiado.

    Worthy notou a situação de seu companheiro.

    — Vanner, você está bem?

     As mãos de Vanner... transformavam-se. Seus pulsos incharam e tornaram-se nodosos de ossos, seus dedos encompridaram-se, tudo em menos de dois segundos. Quando afastou as mãos do rosto, seu maxilar projetava-se para a frente como o de um lobisomem em meio à transformação. Sua camisa rasgou-se nas costuras e seu corpo ganhou nova configuração. Rosnou, os dentes faiscaram.

    —        ...preciso — disse Vanner — ...preciso, preciso, quero, preciso...

    —        Não! — gritou Worthy.

    O terceiro homem, que acabava de passar pela abertura, rolou no chão, transformando-se enquanto o fazia, fluindo para uma forma vagamente semelhante à de um inseto e extremamente repulsiva.

    Antes de compreender o que fazia, Harry esvaziou o .38 na criatura-inseto, atirou a arma longe, agarrou o revólver .45 a seu lado no assoalho, disparou três tiros, atingindo o cérebro da criatura pelo menos uma vez. Ela esperneou, contorceu-se, caiu de volta pela abertura e não tornou a subir.

    Vanner sofrerá uma metamorfose lupina completa e parecia ter-se modelado segundo alguma coisa que vira num filme, porque era familiar a Harry, como se tivesse visto o mesmo filme, embora não conseguisse se lembrar exatamente qual. Vanner soltou um guincho estridente em resposta às criaturas cujos gritos ressoavam pela noite.

    Rasgando furiosamente as roupas, como se a pressão que exerciam sobre sua pele o estivesse enlouquecendo, Worthy transformava-se numa besta inteiramente diferente tanto de Vanner quanto do terceiro homem. Alguma grotesca encarnação física de seus próprios desejos loucos.

    Restavam apenas três balas a Harry e ele precisava guardar a última para si próprio.

     

     Mais cedo, após sobreviver à dura prova na galeria pluvial, Sam prometera a si mesmo que iria aprender a aceitar a derrota, que estava tudo muito bem até aquele momento, quando a derrota estava diante dele outra vez.

    Ele não podia falhar, não com Chrissie e Tessa dependendo dele. Se nenhuma outra oportunidade se apresentasse, iria pelo menos saltar sobre Shaddack no momento que acreditasse que o sujeito estava pronto a puxar o gatilho.

    Avaliar esse momento poderia ser difícil. Shaddack parecia demente e falava como um. Do modo como sua mente estava em curto-circuito, ele podia puxar o gatilho no meio de uma daquelas risadas infantis, estridentes, rápidas e nervosas, sem nenhuma indicação de que chegara a hora.

    —        Levante-se — disse a Sam.

    —        O quê?

    —        Você me ouviu, droga, levante-se. Deite no chão, lá, ou eu o farei se arrepender, pode ter certeza, eu o farei se arrepender. — Indicou o local com o cano do rifle. — Levante-se e deite-se no chão agora.

    Sam não queria obedecer porque sabia que Shaddack o estava separando de Chrissie e de Tessa apenas para disparar contra ele.

    Hesitou, depois deslizou para fora do banco porque não havia mais nada que pudesse fazer. Passou entre duas bancadas do laboratório, para o espaço aberto que Shaddack indicara.

    —        Abaixe-se — disse Shaddack. — Quero ver você no chão, rastejando.

    Deixando-se cair sobre um dos joelhos, Sam enfiou a mão no bolso interno do seu casaco de couro, pegou o estilete de metal que usara para abrir a fechadura da casa dos Coltranes e o atirou longe, com o mesmo movimento do pulso que teria usado para atirar uma carta de baralho num chapéu.

    O estilete zuniu baixo pelo assoalho, em direção às janelas, até chocar-se com as travessas de um banco e tilintar contra os pés de uma bancada de mármore do laboratório.

    O louco virou o Remington na direção do barulho.

    Com um grito de raiva e determinação, Sam ergueu-se rapidamente e atirou-se sobre Shaddack.

     

    Tessa agarrou Chrissie e arrastou-a para longe dos dois homens engalfinhados, para a parede ao lado da porta que dava para o corredor. Agacharam-se ali, onde ela esperava que estivessem fora da linha de fogo.

    Sam surgira por baixo da arma antes que Shaddack pudesse se  refazer da distração. Agarrou o cano com a mão esquerda e o pulso de Shaddack com a mão direita enfraquecida, empurrando-o para trás, fazendo-o perder o equilíbrio, atirando-o contra a outra bancada.

    Quando Shaddack gritou, Sam rosnou de satisfação, como se fosse se transformar numa daquelas criaturas que uivavam à noite.

    Tessa viu-o arremessar o joelho para cima entre as pernas de Shaddack, bem no meio de sua virilha. O homem alto berrou de dor.

    —        Muito bem, Sam! — disse Chrissie com aprovação.

    Enquanto Shaddack engasgava, tossia e tentava se dobrar numa reação involuntária à dor em seus órgãos genitais, Sam arrancou o rifle de suas mãos e recuou...

    ...e um homem com uniforme da polícia entrou na sala, vindo do armário de estoques de produtos químicos, carregando o próprio rifle.

    —        Não! Largue a arma. Shaddack é meu.

     

     A criatura que fora Vanner avançou em direção a Harry, rosnando baixo na garganta, babando uma saliva amarelada. Harry atirou duas vezes, atingiu-o em ambas, mas não conseguiu matá-lo. As feridas abertas pareciam se fechar diante de seus olhos.

    Restava-lhe uma última bala.

    — ...preciso, preciso...

    Harry colocou o cano da .45 na boca, empurrou a arma contra o céu da boca, engasgando-se com o metal quente.

    A hedionda criatura semelhante a lobo assomou acima dele. A cabeça inchada era três vezes maior do que deveria, fora de proporção com o corpo. A maior parte da cabeça era tomada pela boca e a maior parte desta era de dentes, nem mesmo os dentes de um lobo, mas a arcada curva para dentro de um tubarão. Vanner não se satisfizera em se modelar inteiramente segundo apenas um dos predadores da natureza, mas quis fazer de si mesmo algo mais assassino e potencialmente destrutivo do que qualquer coisa criada pela natureza.

    Quando Vanner estava a apenas um metro dele, inclinando-se para mordê-lo, Harry tirou a arma da boca, e exclamou, atirando na cabeça da criatura:

    — Diabos, não!

    A criatura caiu de costas, bateu com estrondo no chão e permaneceu caída.

    Destrua o processador de dados.

    A exultação apoderou-se de Harry, mas durou pouco. Worthy completara sua transformação e parecia ter sido lançado num frenesi pela carnificina no sótão e pelos uivos cada vez mais altos que entravam pelas aberturas de ventilação, vindos do mundo exterior. Ele voltou os olhos luminosos para Harry e havia neles um olhar selvagem de fome.

    Não havia mais balas.

     

       Sam estava sob a mira do policial, sem espaço de manobra. Teve que largar o Remington que tirara de Shaddack.

    —        Estou do seu lado — repetiu o policial.

    —        Ninguém está do nosso lado — disse Sam.

    Shaddack ofegava e tentava se erguer. Olhava para o policial com um pavor abjeto.

    Com a mais fria premeditação que Sam já vira, sem o menor sinal de emoção, nem mesmo de raiva, o policial apontou o rifle calibre 20 para Shaddack, que já não era uma ameaça para ninguém, e disparou quatro tiros. Como se tivesse levado um soco de um gigante, Shaddack foi arremessado para trás por cima de dois bancos e contra a parede.

    O policial pôs de lado a arma e aproximou-se depressa do homem morto. Rasgou o blusão que Shaddack usava sob o casaco e arrancou um estranho objeto, uma larga medalha retangular, pendurada num cordão de ouro em volta do pescoço.

    Brandindo aquele curioso artefato, ele disse:

    —        Shaddack está morto. As batidas de seu coração não estão mais sendo transmitidas, portanto o Sol está agora mesmo execu tando seu último programa. Em mais ou menos meio minuto, to dos nós conheceremos a paz. Finalmente a paz.

    A princípio, Sam achou que o policial dizia que todos iriam morrer, que o objeto em sua mão iria matá-los, que era uma bomba ou algo assim. Ele recuou em direção à porta e percebeu que Tessa evidentemente tinha a mesma expectativa. Puxara Chrissie de onde estiveram agachadas e abrira a porta.

      Mas se era uma bomba, era silenciosa e o raio de sua pequena explosão permaneceu dentro do policial. De repente, seu rosto se contraiu. Entre dentes cerrados, disse:

    — Meu Deus.

    Não foi uma exclamação, mas uma súplica ou talvez uma descrição inadequada de algo que acabara de ver, pois naquele instante caiu morto sem nenhuma causa que Sam pudesse identificar.

     

    Quando saíram pela porta dos fundos por onde haviam entrado, a primeira coisa que Sam notou foi que a noite silenciara. Os gritos agudos dos regressivos já não ecoavam pela cidade imersa em nevoeiro.

    As chaves estavam na ignição da caminhonete.

    — Você dirige — disse ele a Tessa.

    Seu pulso estava cada vez mais inchado. Latejava com tanta força que cada pulsação de dor repercutia em cada fibra de seu corpo.

    Instalou-se no banco do passageiro.

    Chrissie enroscou-se em seu colo e ele a abraçou. Ela estava  anormalmente quieta. Estava exausta, à beira de um colapso, mas Sam sabia que a causa de seu silêncio era mais profunda do que o cansaço.

    Tessa bateu a porta e deu partida no motor. Não era preciso que lhe dissessem para onde ir.

    No caminho para a casa de Harry, descobriram que as ruas estavam apinhadas de mortos, não os corpos de homens e mulheres comuns, mas — como seus faróis revelavam sem sombra de dúvida — de criaturas saídas de um quadro de Hieronymus Bosch, formas contorcidas e fantasmagóricas. Ela dirigia devagar, evitando-os, e por duas vezes teve que subir na calçada para passar por um bando deles que haviam caído juntos, aparentemente abatidos pela mesma força oculta que derrubara o policial na Central.

    "Shaddack está morto. As batidas de seu coração não estão mais sendo transmitidas, portanto o Sol está agora mesmo executando seu último programa...”

    Depois de algum tempo, Chrissie abaixou a cabeça contra o peito de Sam e não olhou mais para fora pelo pára-brisa.

    Sam repetia-se que as criaturas caídas eram fantasmas, que coisas assim não podiam existir de verdade, nem por aplicação da mais alta tecnologia nem por bruxaria. Esperava que fossem desaparecer toda vez que um manto de neblina os ocultava efemeramente, mas, quando o nevoeiro se dissipava de novo, eles ainda estavam amontoados pelo asfalto, calçadas e jardins.

    Imerso em todo aquele horror e fealdade, não podia acreditar que fora tão tolo a ponto de passar preciosos anos de sua vida abatido e melancólico, insensível à beleza do mundo. Fora um tolo peculiar. Depois que o dia amanhecesse, nunca mais deixaria de notar uma flor e apreciar a maravilha de sua existência, a beleza que estava além da capacidade de criação do homem.

    —        Vai me contar agora? — perguntou Tessa quando estavam a um quarteirão da casa de madeira de Harry.

    —        Contar o quê?

    —        O que viu. Sua experiência com a morte. O que viu do Outro Lado que o assustou tanto?

    Ele riu entrecortadamente.

    —        Eu era um idiota.

    —        Provavelmente — disse ela. — Conte-me e deixe-me avaliar.

    —        Bem, não sei lhe dizer exatamente. Foi mais uma compreensão do que uma visão, uma percepção espiritual mais do que visual.

    —        Então, o que compreendeu?

    —        Que nós continuamos depois deste mundo — disse ele. — Que existe vida para nós em outro plano, uma vida depois da outra numa série infinita de planos... ou que vivemos outra vez neste pla no, reencarnamos. Não sei ao certo qual, mas senti isso profunda mente, compreendi isso quando cheguei ao fim daquele túnel e vi a luz, aquela luz brilhante.

    Ela olhou para ele.

    —        E foi isso que o apavorou?

    —        Sim.

    —        Que vivamos outra vez?

    —        Sim. Porque eu achava a vida tão vazia, sabe, apenas uma seqüência de tragédias, apenas sofrimento. Eu havia perdido a ca pacidade de apreciar a beleza da vida, a alegria, de modo que eu não queria morrer e ter que começar tudo de novo, não enquanto não fosse absolutamente necessário. Pelo menos nesta vida eu ha via endurecido, me tornado imune à dor, o que me dava uma van tagem sobre começar de novo como criança em uma nova encarnação.

    —        Então, sua quarta razão para viver não era tecnicamente o medo da morte — disse ela.

    —        Acho que não.

    —        Era medo de ter que viver outra vez.

    —        Sim.

    —        E agora?

    Ele pensou por um momento. Chrissie remexeu-se em seu colo. Ele acariciou seus cabelos molhados. Por fim, disse:

    —        Agora, estou ansioso para viver outra vez.

     

     Harry ouviu vozes no térreo; o elevador, depois alguém no quarto no terceiro andar. Ficou tenso, achando que dois milagres eram demais para se esperar, mas em seguida ouviu a voz de Sam chamando-o da base da escada.

    —        Aqui, Sam! A salvo! Estou bem.

    Um instante depois Sam entrou no sótão.

    —        Tessa? Chrissie? — perguntou Harry ansiosamente.

    —        Estão lá embaixo. Ambas estão bem.

    —        Graças a Deus. — Harry soltou um longo suspiro, como se estivesse preso dentro de si há horas. — Olhe para estes bárbaros, Sam.

    —        Prefiro nem olhar.

    —        Talvez Chrissie tivesse razão sobre invasores extraterrestres afinal de contas.

    —        Algo mais estranho ainda — disse Sam.

    —        O quê? — indagou Harry, enquanto Sam se ajoelhava ao lado dele e desajeitadamente tirava o corpo transformado de Worthy de cima de suas pernas.

     — Raios me partam se eu sei! — disse Sam. — Nem sei se quero saber.

     — Estamos entrando numa época em que fazemos nossa realidade, não? A ciência está nos dando esta capacidade, pouco a pouco. Só os loucos costumavam fazer isso.

    Sam nada disse.          Harry continuou:

    —        Talvez fazer a nossa própria realidade não seja prudente.

     Talvez a ordem natural seja o melhor.

    —        Talvez. Por outro lado, a ordem natural bem que podia ser melhorada aqui e ali. Acho que temos que tentar. Temos que ter   confiança em Deus que os homens que fazem os remendos não sejam como Shaddack. Você está bem, Harry?

    —        Muito bem, obrigado. — Sorriu. — Exceto, claro, que ain da sou um inválido. Vê esta coisa corpulenta que era Worthy? Esta va se inclinando para rasgar minha garganta, eu não tinha mais balas, ele já estava com as garras no meu pescoço e então ele caiu morto, bumba! Foi um milagre ou o quê?

    —        Foi um milagre na cidade inteira — disse Sam. — Parece que todos morreram quando Shaddack morreu... estavam de alguma forma ligados. Vamos, vamos tirá-lo daqui, desta sujeira.

    —        Eles mataram Moose, Sam.

    —        Que nada! A quem você pensa que Chrissie e Tessa estão fazendo festa lá embaixo?

    Harry ficou boquiaberto.

    —        Mas eu ouvi...

    —        Parece que alguém o chutou na cabeça. Tem um ferimento ensangüentado em um dos lados da cabeça. Deve ter ficado incons ciente, mas não parece ter sofrido uma concussão.

     

    Chrissie viajava na parte traseira da caminhonete com Harry e Moose, com o braço bom de Harry a sua volta e a cabeça de Moose em seu colo. Aos poucos, começou a se sentir melhor. Já não era ela mesma, não, e talvez nunca mais se sentisse a mesma, mas se sentia melhor.

    Dirigiam-se ao parque na ponta da avenida Ocean, no extremo leste da cidade. Tessa subiu o meio-fio, fazendo-os sacolejar, e estacionou em cima da grama.

    Sam abriu as portas traseiras da caminhonete para que Chrissie e Harry pudessem sentar-se lado a lado em seus cobertores e observar Tessa e Sam trabalharem.

    Com mais coragem do que Chrissie teria, Sam entrou nas áreas residenciais próximas, pisando e contornando as criaturas mortas, deu partida nos carros que estavam estacionados ao longo das ruas. Um a um, ele e Tessa trouxeram-nos para o parque e arrumaram-nos num grande círculo, com os motores ligados e os faróis voltados para o centro do círculo.

    Sam dissera que o pessoal viria em helicópteros, mesmo com   o nevoeiro, e que o círculo de luz indicaria um lugar de pouso adequado para eles. Com vinte carros, todos os faróis altos, o centro daquele círculo ficou tão claro quanto o dia. Chrissie gostou da claridade.

    Antes mesmo do local de pouso ficar inteiramente iluminado, algumas pessoas começaram a aparecer nas ruas, pessoas vivas, e sem nenhum aspecto estranho, sem presas, ferrões ou garras, ere-tas, inteiramente normais, a julgar pela aparência. Claro, Chrissie aprendera que nunca se podia julgar alguém pelas aparências porque por dentro elas podiam ser qualquer coisa; podiam ser alguma coisa que assustaria até os editores do National Enquirer. Não se podia ter certeza sequer dos próprios pais. Mas não podia pensar nisso.

    Não ousava pensar no que acontecera a seus pais. Sabia que a pouca esperança que ainda tivera de sua salvação era provavelmente falsa, mas queria se apegar a ela por mais algum tempo, de qualquer forma.

    As poucas pessoas que apareceram nas ruas começaram a ser atraídas para o parque, enquanto Tessa e Sam terminavam de trazer os últimos carros para o círculo. Todos pareciam perplexos e confusos. Quanto mais se aproximavam, mais apreensiva Chrissie ficava.

    —        São normais — assegurou-lhe Harry, abraçando-a com seu braço perfeito.

    —        Como pode ter certeza?

    —        Pode-se ver que estão se cagando de medo. Epa. Acho que não devia usar essa palavra, ficar lhe ensinando bobagens.

    —        Tudo bem — disse ela.

    Moose choramingou e revirou-se em seu colo. Provavelmente sentia a espécie de dor que somente os especialistas em karatê sentem quando quebram tijolos com as cabeças.

    —        Bem — disse Harry —, olhe para eles, estão apavorados, o que provavelmente os coloca junto de nós. Você não viu nenhum daqueles outros com medo, viu?

    Ela considerou a pergunta por um instante.

    —        Sim, vi. Aquele tira que atirou no Sr. Shaddack na escola.

    Ele estava apavorado. Tinha mais medo nos olhos, muito mais, do que eu já vi em qualquer pessoa.

    —        Bem, essas pessoas são normais, de qualquer modo — disse- lhe Harry enquanto os aturdidos sobreviventes aproximavam-se da     caminhonete. — São alguns dos que estavam programados para serem convertidos antes da meia-noite, mas ninguém chegou até eles. Ti   Deve haver outros nas casas, entrincheirados, com medo de sair,    achando que o mundo inteiro enlouqueceu, provavelmente achando que os extraterrestres estão à solta por aí, como você pensou. Além disso, se essas pessoas fossem mais alguns daqueles convertidos, não estariam caminhando para nós com tanta hesitação. Teriam galopado pela colina acima, saltado aqui e comido nossos narizes, além de todas as outras partes de nós que considerassem iguarias.

    Ela gostou daquela explicação, até sorriu ligeiramente, e relaxou um pouco.

    Mas um segundo depois, Moose ergueu a volumosa cabeça de seu colo, ganiu e pôs-se de pé.

    Adiante, as pessoas que se aproximavam da caminhonete gritaram de medo e surpresa e Chrissie ouviu Sam dizer:

    —        Mas que diabo é isso?

    Ela livrou-se de seus quentes cobertores e saiu aos tropeções da parte de trás da caminhonete para ver o que estava acontecendo.

    Atrás dela, alarmado apesar das palavras de confiança que acabara de lhe dizer, Harry perguntou:

    —        O que foi? Qual é o problema?

    Por um instante, ela não teve certeza do que assustara todos, mas logo viu os animais. Acorriam aos bandos pelo parque — dezenas de camundongos, alguns ratos de esgoto, gatos de todas as raças, meia dúzia de cachorros e talvez umas duas dúzias de esquilos que haviam se precipitado das árvores. Mais camundongos, ratos e gatos surgiam das entradas das ruas que cruzavam a avenida Ocean, subindo aos montes a rua principal, atropelando-se, desordenados, cortando o parque e voltando-se na direção da estrada do condado. Faziam-na pensar em algo que lera uma vez e não precisou ficar ali mais do que alguns segundos, observando-os passarem por ela a toda velocidade, para se lembrar: lemingues. Periodicamente, quando a população de lemingues crescia demais, aqueles pequenos roedores corriam sem parar, direto para o mar, entravam nas ondas e se afogavam. Todos esses animais estavam agindo como lemingues, precipitando-se na mesma direção, não deixando que nada se interpusesse em seus caminhos, não atraídos por nada aparente e, portanto, agindo segundo uma compulsão interna. Moose saltou da caminhonete e uniu-se à multidão em disparada.

    —        Moose, não! — gritou ela.

    Ele cambaleou, como se tivesse tropeçado no grito que ela lançou atrás dele. Olhou para trás, em seguida virou bruscamente a cabeça em direção à estrada do condado outra vez, como se tivesse sido puxado por uma corrente invisível. Desatou a correr a toda velocidade.

                —Moose!

     Ele tropeçou de novo e desta vez caiu, rolou e se ergueu tro-pegamente. De algum modo, Chrissie sabia que a imagem dos le-mingues era pertinente, que esses animais corriam para sua sepultura, embora longe do mar, em direção a alguma outra morte mais hedionda, que fazia parte de todo o resto que acontecera em Moonlight Cove. Se não fizesse Moose parar, nunca mais o veriam.

    O cachorro correu.

    Ela partiu atrás dele.

    Estava com o corpo dolorido, exausta, sentindo dor em todos os músculos e juntas, e com medo, mas encontrou força e vontade suficientes para perseguir o labrador, porque ninguém mais parecia compreender que ele e os outros animais corriam para a morte. Tessa e Sam, embora espertos como eram, não entenderam. Estavam parados, olhando o espetáculo boquiabertos. De modo que Chrissie prendeu os braços junto ao corpo, forçou as pernas e correu o mais rápido que podia, imaginando-se Chrissie Foster, a Mais Jovem Campeã Olímpica de Maratona do Mundo, dando a volta na pista, com milhares de pessoas gritando seu nome ao longo do percurso. ("Chrissie, Chrissie, Chrissie, Chrissie..."). E, enquanto corria, gritava a Moose para que parasse, porque toda vez que ele ouvia seu nome, hesitava, titubeava, e ela conseguia se aproximar mais dele. Logo ultrapassaram o parque e ela quase caiu na vala funda que ladeava a estrada do condado, saltou-a no último instante, não porque a tivesse visto a tempo, mas porque tinha os olhos em Moose e o viu pular sobre alguma coisa. Aterrissou perfeitamente, sem perder o passo. Na próxima vez em que Moose vacilou em reação ao seu nome, ela caiu sobre ele, agarrando-o, segurando-o pela coleira. Ele rosnou e tentou mordê-la, mas ela pronunciou "Moose" como se o recriminasse. Essa foi a única vez que ele tentou mordê-la mas, Deus, ele lutava com todas as forças para se soltar. Continuar a segurá-lo exigiu dela todas as suas forças e ele chegou até a arrastá-la, com todo o seu tamanho, por mais de quinze metros ao longo da estrada. Suas patas enormes cravavam-se no asfalto enquanto ele lutava para seguir a onda de pequenos animais que iam se perdendo na noite e no nevoeiro.

    Quando o cachorro se acalmou o suficiente para concordar em voltar para o parque, Tessa e Sam alcançaram Chrissie.

    —        O que está acontecendo? — perguntou Sam.

    —        Estão todos correndo para a morte — disse Chrissie. — Eu não podia deixar Moose ir com eles.

     

    —        Para a morte? Como sabe?

    —        Eu não sei. Mas... o que mais pode ser?

    Ficaram parados na estrada escura e enevoada por um instante, olhando na direção dos animais, que haviam desaparecido nas trevas.

    Tessa disse:

    —        Realmente... o que mais?

     

     A névoa dissipava-se, mas a visibilidade não ultrapassava quatrocentos metros.

    Parado com Tessa no meio do círculo de carros, Sam ouviu os helicópteros pouco depois das dez horas, antes que eles vissem suas luzes. Como o nevoeiro distorcia os sons, ele não conseguia saber de onde se aproximavam, mas imaginava que estivessem vindo do sul, ao longo da costa, mantendo-se a alguma distância no mar, onde não havia morros com que se preocupar no nevoeiro. Equipados com os mais sofisticados instrumentos, podiam voar às cegas. Os pilotos estariam usando binóculos de visão noturna, voando abaixo de 150 metros, por causa do mau tempo.

    Como o FBI mantinha um relacionamento estreito com as forças armadas, especialmente os Fuzileiros Navais, Sam já sabia o que esperar. Aquela seria uma força de reconhecimento, composta dos elementos-padrão exigidos naquelas circunstâncias: um helicóptero CH-46 transportando o grupo de reconhecimento — provavelmente doze homens destacados da Unidade de Ataque dos Fuzileiros Navais — acompanhado por dois Cobras bem armados.

    Dando voltas, olhando em todas as direções, Tessa disse:

    —        Eu não os vejo.

    —        Não vai ver — disse Sam. — Não até que estejam pratica mente em cima de nós.

    —        Voam apagados?

    —        Não. São equipados com luzes azuis, que não podem ser bem detectadas do solo, mas que lhes dão uma visão excelente pelos bi nóculos noturnos.

    Normalmente, quando atendendo a uma ameaça terrorista, o CH-46 — denominado "Cavaleiro da Noite", oficialmente, mas normalmente chamado de "A Rã" pelos civis — teria ido, com sua escolta de Cobras, para o extremo norte da cidade. Três grupos de artilharia, compostos de quatro homens cada, teriam desembarcado e vasculhado Moonlight Cove de ponta a ponta, avaliando a situação, encontrando-se no outro extremo para evacuação, caso necessário.

    Mas por causa da mensagem que Sam enviara ao Bureau antes que as ligações com o mundo exterior fossem interrompidas e porque a situação não envolvia terroristas e era, na verdade, singularmente estranha, o procedimento operacional padrão foi descartado em forma de um assalto mais audacioso. Os helicópteros sobrevoaram a cidade várias vezes, descendo a uma altura de seis a nove metros das copas das árvores. Às vezes, suas estranhas luzes azul-esverdeadas tornavam-se visíveis, mas absolutamente nada podia ser avistado de suas formas ou tamanhos; por causa de suas pás de fibra de vidro, muito mais silenciosas do que as antigas pás de metal, os helicópteros às vezes pareciam planar silenciosamente a distância e assemelhavam-se a naves extraterrestres de um mundo distante ainda mais estranho do que este.

    Por fim, começaram a sobrevoar perto do círculo de luz no parque.

    Não desceram de imediato. Com os poderosos rotores afastando o nevoeiro, varreram um holofote sobre as pessoas no parque que se encontravam fora da pista de pouso iluminada e passaram longos minutos examinando os corpos grotescos na rua.

    Finalmente, enquanto os Cobras mantinham-se no ar, o CH-46 desceu suavemente, quase com relutância, no círculo de carros. Os homens que desceram do helicóptero portavam armas automáticas, mas fora isso não se pareciam a soldados porque, graças à mensagem de Sam, estavam vestidos com roupas brancas biologicamente imunizadas carregando seus próprios tanques de suprimento de ar nas costas. Pareciam-se mais a astronautas do que a fuzileiros navais.

    O tenente Ross Dalgood, que parecia ter um rosto de bebê por trás do capacete, dirigiu-se diretamente para Sam e Tessa, deu seu nome e patente, e cumprimentou Sam pelo nome, evidentemente porque haviam lhe mostrado uma foto antes de partir em sua missão.

    —        Uma catástrofe biológica, agente Booker?

    —        Não creio — disse Sam, enquanto as pás do helicóptero di minuíram as rotações de um estalido rítmico e surdo para um ronco mais suave.

    —        Mas não sabe ao certo?

    —        Não, não sei — admitiu.

      —      Viemos na frente — disse Dalgood. — Há muito mais a ca minho: o Exército e o pessoal do seu Bureau estão vindo pela estra da. Logo estarão aqui.

    Os três — Dalgood, Sam e Tessa — passaram entre dois dos carros em círculo e aproximaram-se de uma das criaturas mortas que jazia na calçada que circundava o parque.

    —        Não acreditei no que vi lá de cima — disse Dalgood.

    —        Pois pode acreditar — disse Tessa.

    —        Que diabo é isso? — perguntou Dalgood.

    —        Bichos-papões — respondeu Sam.

     

     Tessa estava preocupada com Sam. Ela, Chrissie e Harry voltaram à casa deste à uma da madrugada, depois de serem interrogados três vezes por homens em trajes de descontaminação. Embora tenham tido terríveis pesadelos, conseguiram desfrutar algumas horas de sono. Mas Sam ficou fora a noite inteira. Não havia voltado quando terminaram o café da manhã às onze horas de quarta-feira.

    —        Ele deve se considerar indestrutível — disse ela —, mas não é.

    —        Você se importa com ele — disse Harry.

    —        Claro que eu me importo com ele.

    —        Quero dizer, você realmente se importa com ele.

    —        Bem... não sei.

    —        Eu sei.

    —        Eu também sei — disse Chrissie.

    Sam voltou à uma da tarde, sombrio e pálido. Ela preparara a cama extra com lençóis limpos e ele deixou-se cair sobre ela ainda semi vestido.

    Ela sentou-se numa cadeira ao lado da cama, observando-o dormir. De vez em quando, ele gemia e debatia-se. Chamou o nome dela e o de Chrissie — e às vezes o de Scott —, como se os tivesse perdido e vagasse à procura deles por um lugar desolado e perigoso.

    Homens do Bureau em trajes de descontaminação vieram buscá-lo às seis da tarde de quarta-feira, depois de ele ter dormido menos de cinco horas. Sam ficou ausente o resto da noite.

    A essa altura, todos os corpos, em suas distintas biologias, haviam sido recolhidos de onde haviam tombado mortos, etiquetados, colocados em sacos plásticos e resfriados para o estudo dos patolo-gistas.

    Nessa noite, Tessa e Chrissie dividiram a mesma cama. Deitada no quarto semi-escuro, onde uma toalha fora colocada sobre o abajur para fazer uma luz noturna, a menina disse:

    —        Eles se foram.

    —        Quem?

    —        Minha mãe e meu pai.

    —        Acho que sim.

    —        Mortos.

    —        Sinto muito, Chrissie.

    —        Ah, eu sei. Sei que sente. Você é muito boa. — Em seguida, por alguns minutos, ela chorou nos braços de Tessa.

    Muito mais tarde, quase adormecida, ela disse:

    —        Você conversou um pouco com Sam. Ele disse se descobri ram... sobre aqueles animais a noite passada... para onde eles corriam?

    —        Não — disse Tessa. — Ainda não têm nenhuma pista.

    —        Isso me apavora.

    —        A mim também.

    —        Quero dizer, que eles ainda não tenham nenhuma pista.

    —        Eu sei — disse Tessa. — Foi isso mesmo que eu quis dizer.

     

    Na quinta-feira de manhã, equipes de técnicos do Bureau e consultores externos do setor privado haviam examinado uma quantidade suficiente de dados sobre o Falcão da Lua no Sol para determinar que o projeto lidara estritamente com a implantação de um mecanismo de controle não-biológico, que resultará em profundas mudanças fisiológicas nas vítimas. Ninguém tinha ainda a mais leve idéia de como o dispositivo funcionava, de como as microesferas podiam ter ocasionado metamorfoses tão radicais, mas tinham certeza que nenhuma bactéria, vírus ou outro organismo engendrado estava envolvido. Era puramente uma questão de máquinas.

    As tropas do Exército, fazendo cumprir a quarentena contra intrometidos da imprensa e curiosos, ainda tinham trabalho a fazer, mas ficaram satisfeitos em poderem se livrar dos trajes quentes   e incômodos. Assim também se sentiram as centenas de cientistas e agentes do Bureau que acampavam por toda a cidade.

    Embora Sam certamente voltasse nos próximos dias, ele, Tessa e Chrissie foram liberados para evacuação bem cedo na manhã de sexta-feira. Um tribunal compreensivo, sob o conselho de muitas autoridades estaduais e federais, já havia concedido a Tessa a custódia temporária da menina. Os três despediram-se de Harry com um até breve, não um adeus, e foram içados por um dos helicópteros executivos Bell JetRanger do Bureau.

    Para impedir que os pesquisadores no local tivessem suas visões fantasiadas por notícias imprecisas e sensacionalistas, foi decretado um bloqueio em Moonlight Cove a todos os meios de comunicação, e Sam não compreendera inteiramente o impacto da história do Falcão da Lua até sobrevoarem a barreira de estrada montada pelo Exército próxima à interestadual. Centenas de veículos da imprensa espalhavam-se ao longo da estrada ou haviam estacionado nos campos. O piloto voou baixo o suficiente para Sam ver todas as câmaras voltadas para cima para filmá-los enquanto passavam sobre a multidão.

    —        Está do mesmo jeito na estrada do condado, ao norte da Holliwell Road — disse o piloto do helicóptero —, onde colocaram a outra barreira. Repórteres de todo o mundo, dormindo no chão porque não querem ir para um motel e descobrir ao acordar que Moonlight Cove foi aberta à imprensa enquanto eles dormiam.

    —        Não têm com que se preocupar — disse Sam. — Não vai ser aberta à imprensa, nem a ninguém além dos pesquisadores, du rante semanas.

    O JetRanger transportou-os ao Aeroporto Internacional de San Francisco, onde tinham reservas para três lugares num vôo para Los Angeles. No terminal, passando os olhos pelas bancas de jornais, Sam leu algumas manchetes:

    INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL POR TRÁS DA TRAGÉDIA DE COVE SUPERCOMPUTADOR ENLOUQUECE

     Isso era tolice, claro. O supercomputador da New Wave, o Sol, não era uma inteligência artificial. Nada semelhante ainda havia sido construído em nenhum lugar do mundo, embora legiões de cientistas estivessem se apressando para serem os primeiros a gerarem uma verdadeira mente eletrônica, pensante. O Sol não se enfurecera; apenas servira, como fazem todos os computadores.

    Parafraseando Shakespeare, Sam pensou: o problema não está em nossa tecnologia, mas em nós mesmos.

     Ultimamente, entretanto, as pessoas culpavam os computadores por desarranjos no sistema, do mesmo modo como há séculos membros de culturas menos sofisticadas culpavam o alinhamento de corpos celestiais.

    Tessa apontou em silêncio para outra manchete:

    EXPERIÊNCIA SECRETA DO PENTÁGONO POR TRÁS DA MISTERIOSA TRAGÉDIA

    O Pentágono era o bicho-papão favorito em alguns círculos, I quase adorado por seus males reais ou imaginários, porque acredi- 1 tar que ele fosse a origem de todos os males tornava a vida mais ' simples e fácil de compreender. Para os que se sentiam assim, o Pentágono era quase um velho e caduco monstro Frankenstein em seus sapatos de espantalho e seu terno preto pequeno demais, assustador mas compreensível, maligno e a ser evitado, mas confortavel-mente previsível e preferível em comparação a vilões piores e mais complexos.

    Chrissie tirou da prateleira uma rara edição especial de um dos maiores tablóides nacionais, repleto de histórias de Moonlight Co-ve. Mostrou-lhes o cabeçalho principal.

    EXTRATERRESTRES ATERRISSAM NA COSTA DA CALIFÓRNIA VORAZES DEVORADORES DE CARNE     HUMANA ATACAM CIDADE

     Entreolharam-se solenemente por um instante, depois sorriram. Pela primeira vez nos últimos dias, Chrissie riu. Não era um riso caloroso, apenas uma risadinha contida e devia haver um toque de ironia naquele riso que era marcante demais para uma menina de onze anos, sem mencionar um traço de melancolia, mas era uma risada. Ouvindo-a rir, Sam sentiu-se melhor.

     

    Joel Ganowicz, da UPI, estava no perímetro de Moonlight Cove, em uma ou outra barricada que bloqueava a estrada, desde a manhã de quarta-feira. Alojou-se num saco de dormir no chão, usava o bosque como toalete e pagava a um carpinteiro desempregado de Aberdeen Wells para trazer-lhe comida. Nunca em toda a sua carreira se empenhara tanto numa história, levando-o àquele extremo. E não sabia bem por quê. Claro, sem dúvida, era a maior história da década, talvez mais do que isso. Mas por que sentia aquela necessidade de ficar ali, de saber cada fragmento da verdade? Por que estava obcecado? Seu comportamento era um enigma para ele.

    Não era o único obcecado.

    Embora a história de Moonlight Cove tivesse vazado para a mídia aos poucos nos últimos três dias e tivesse sido detalhadamente explorada durante a entrevista coletiva de quatro horas na noite de quinta-feira, e embora os repórteres tivessem entrevistado exaustivamente muitos dos duzentos sobreviventes, ninguém se considerava satisfeito. O horror singular das mortes das vítimas e o número, quase três mil, muito maior do que em Jonestown, deixavam perplexos os leitores de jornais e os telespectadores, por mais que soubessem dos detalhes. Na sexta-feira de manhã, a história estava mais quente do que nunca.

    Entretanto, Joel pressentia que não era nem mesmo o horror dos fatos ou as espetaculares estatísticas que prendiam o interesse do público. Era alguma coisa mais profunda.

    Às dez horas da manhã de sexta-feira, Joel estava sentado sobre o rolo do saco de dormir em um campo junto à estrada do condado, a apenas dez metros do posto de controle policial ao norte da Holliwell, refestelando-se numa manhã surpreendentemente quente para outubro e pensando exatamente nisso. Começava a acreditar que talvez aquela notícia tivesse atingido tanto as pessoas porque se tratava não apenas do conflito relativamente moderno entre o homem e a máquina, mas do eterno conflito humano, de tempos imemoriais, entre responsabilidade e irresponsabilidade, entre civilização e barbárie, entre impulsos humanos contraditórios com relação à fé e ao niilismo.

    Joel ainda estava pensando nisso quando se levantou e começou a andar. Em algum ponto ao longo do caminho, parou de pensar sobre qualquer coisa, mas começou a andar mais energicamente.

    Não estava sozinho. Outros na barreira que bloqueava a estrada, mais da metade dos que estavam lá aguardando, voltaram-se quase como uma única pessoa na direção leste, entrando no campo, com uma súbita deliberação, sem hesitar ao longo do caminho ou ficar dando voltas, mas cortando diretamente um prado em aclive, morros cobertos de vegetação rasteira e atravessando um grupo de árvores.

     

      Os caminhantes deixavam perplexos aqueles que não haviam sentido a repentina compulsão de sair andando e alguns repórteres passaram a acompanhar o grupo durante algum tempo, primeiro fazendo perguntas, depois gritando as perguntas. Nenhum dos caminhantes respondeu.

    Joel sentia-se possuído de uma sensação de que havia um lugar onde devia ir, um lugar especial, onde nunca mais teria que se preocupar com nada, um lugar onde tudo lhe seria dado, onde não precisaria se preocupar com o futuro. Não sabia como seria o lugar, mas tinha certeza que o reconheceria quando o visse. Avançava excitadamente, compelido, atraído.

    Preciso.

    A criatura proteínica no porão da Colônia ícaro estava novamente faminta. Não morrera quando os outros filhos do Falcão da Lua faleceram, pois o computador microesférico dentro dela se dissolvera quando buscara pela primeira vez a liberdade da total ausência de forma; não fora capaz de receber a sentença de morte enviada por microondas pelo Sol. Ainda que o comando tivesse sido recebido, nada teria acontecido, pois a criatura que habitava aquele sótão não possuía coração a ser parado.

    Preciso.

    Sua necessidade de alimento era tão intensa que ela pulsava e se contorcia. Essa necessidade era mais profunda do que o mero desejo, mais terrível do que qualquer dor.

    Preciso.

    Bocas abriam-se por toda a sua superfície. O monstro gritava para o mundo numa voz que parecia silenciosa, mas que não era, uma voz que falava não aos ouvidos de suas presas, mas às suas mentes.

    E elas estavam vindo.

    Sua fome logo seria saciada.

    O coronel Lewis Tarker, comandante do acampamento do Exército no parque no extremo leste da Ocean Avenue, recebeu um chamado urgente do sargento Sperlmont, encarregado da barreira na estrada do condado. Sperlmont relatou ter perdido seis dos seus doze homens quando eles simplesmente partiram, caminhando como zumbis, com cerca de cem repórteres nas mesmas estranhas condições. — Alguma coisa está acontecendo — disse a Tarker. — Essa história ainda não acabou, senhor.

      Turker procurou imediatamente Oren Westrom, o agente do Bureau que comandava as investigações do Falcão da Lua e com quem todos os aspectos militares da operação tinham de ser coordenados.

    —        Ainda não acabou — disse Tarker a Westrom. — Acho que esses caminhantes são ainda mais esquisitos do que Sperlmont descreveu, estranhos de uma maneira que ele não soube explicar. Eu o conheço e ele está mais apavorado do que acha que está.

    Westrom, por sua vez, ordenou que o JetRanger levantasse vôo. Explicou a situação ao piloto, Jim Lobbow, e disse:

    —        Sperlmont vai mandar alguns de seus homens atrás deles por terra, ver para onde estão se dirigindo afinal... e por quê. Mas caso isso se torne difícil, quero você vendo do ar.

    —        Já estou a caminho — disse Lobbow.

    —        Abasteceu recentemente?

    —        Os tanques estão cheios até a borda.

    —        Ótimo.

    Nada dava certo para Jim Lobbow, exceto pilotar um helicóptero.

    Fora casado três vezes e todos os casamentos terminaram em divórcio. Já perdera a conta das mulheres com quem vivera; mesmo sem a pressão do casamento sobre os ombros, ele não conseguia sustentar uma relação. Tinha um único filho, do segundo casamento, mas não via o garoto mais do que três vezes por ano, nunca por mais do que um dia. Embora tivesse sido criado na religião católica e embora todos os seus irmãos e irmãs freqüentassem a igreja regularmente, isso não funcionava para Jim. O domingo sempre parecia ser a única manhã em que podia dormir até mais tarde e ir à missa durante a semana parecia-lhe muito trabalhoso. Embora sonhasse em ser empresário, toda pequena empresa que iniciava parecia fadada ao fracasso; sempre se surpreendia com a quantidade de trabalho que um negócio próprio exigia, mesmo aquele projetado para não depender de um gerenciamento presente, e mais cedo ou mais tarde ele sempre se tornava trabalhoso demais.

    Mas ninguém pilotava um helicóptero melhor do que Jim Lobbow. Podia voar em condições de tempo que ninguém mais conseguia e podia aterrissar e levantar vôo em qualquer tipo de terreno, em quaisquer condições.

    Colocou o JetRanger no ar segundo as ordens de Westrom e rumou para a barreira na estrada do condado, chegando lá na mesma hora, porque o dia estava claro e azul e a barreira ficava a apenas dois quilômetros do parque onde guardava o helicóptero. Em terra, um punhado de membros das tropas do Exército, ainda na barreira, fazia-lhe sinal para leste, para os morros.

    Lobbow dirigiu-se para onde lhe indicavam e em menos de um minuto divisou os caminhantes avançando energicamente pela vegetação dos morros, arranhando os sapatos, rasgando as roupas, mas prosseguindo apesar de todas as dificuldades. Era definitivamente estranho.

    Um zumbido estranho encheu sua cabeça. Achou que havia alguma coisa errada com os fones de ouvido e tirou-os por um instante, mas não era isso. O zumbido não parou. Na verdade, não se tratava de um zumbido, não era um som, mas uma sensação.

    E o que quero dizer com isso?, perguntou-se.

    Tentou livrar-se daquilo.

    Os caminhantes faziam uma volta na direção leste-sudeste conforme avançavam e ele voou à frente deles, em busca de algum marco, alguma coisa estranha em direção à qual pudessem estar indo. Chegou quase imediatamente à casa vitoriana em ruínas, ao celeiro desmoronado e aos outros prédios desabados.

    Havia alguma coisa no lugar que o atraía.

    Sobrevoou-o em círculo uma, duas vezes.

    Embora fosse uma verdadeira pocilga, de repente teve a louca idéia de que seria feliz ali, livre, sem mais nenhuma preocupação, nenhuma ex-mulher importunando-o, nenhuma pensão a pagar.

    Pelos morros a noroeste, os caminhantes aproximavam-se, mais de cem deles, não mais andando, mas correndo. Tropeçavam e caíam, mas levantavam-se e corriam de novo.

    E Jim sabia por que vinham. Sobrevoou a casa outra vez e era o lugar mais atraente que já vira, uma fonte de rendição. Ele queria aquela liberdade, aquela rendição, mais do que jamais desejara alguma coisa na vida. Fez o JetRanger subir verticalmente, nivelou o helicóptero, fez um giro para o sul, depois para o oeste, depois para o norte e depois para o leste, voltando novamente, para a casa, a maravilhosa casa, tinha que estar lá, tinha que ir lá, precisava ir, e arremessou o helicóptero diretamente para a varanda da frente, diretamente para a porta que pendia aberta, meio caída das dobradiças, enterrando o helicóptero no coração...

    Preciso.

    As muitas bocas da criatura entoavam sua necessidade e sabia   que por alguns instantes ela seria saciada. A criatura pulsava de excitação.

    Em seguida, vibrações. Fortes vibrações. Depois, o calor.

    Ela não recuou por causa do calor, pois havia abandonado todos os nervos e estruturas biológicas complexas necessários para registrar a dor.

    O calor não possuía nenhum significado para a besta, exceto que calor não era alimento e, portanto, não atendia as suas necessidades.

    Queimando, contorcendo-se, ela tentou entoar o canto que iria atrair o que precisava, mas as chamas avassaladoras encheram suas bocas e logo a silenciaram.

    Joel Ganowicz viu-se parado a sessenta metros de uma casa em ruínas que explodira em chamas. Era um extraordinário fogaréu, as chamas lançando-se a trinta metros para o céu claro, a fumaça negra começando a formar nuvens, as velhas paredes do lugar desabando sobre si mesmas com vivacidade, como se estivessem ansiosas para abandonar qualquer pretensão de utilidade. O calor alcançou-o, forçando-o a apertar os olhos e recuar, embora não estivesse muito próximo do incêndio. Não conseguia compreender como um pouco de madeira seca podia queimar com tal intensidade.

    Percebeu que não conseguia se lembrar de como o incêndio começara. Simplesmente viu-se ali, diante dele, de repente.

    Olhou para suas mãos. Estavam esfoladas e imundas.

    O tecido da calça no joelho direito fora arrancado e seus Rock-ports estavam muito danificados.

    Olhou em torno e ficou perplexo de ver dezenas de pessoas nas mesmas condições, esfarrapadas, sujas e atônitas. Não conseguia se lembrar de como fora parar ali, e não se lembrava de ter partido numa caminhada em grupo.

    No entanto, a casa sem dúvida estava em chamas. Não sobraria nem uma estaca, apenas um porão cheio de cinzas e brasas.

    Franziu as sobrancelhas e esfregou a testa.

    Alguma coisa havia lhe acontecido. Alguma coisa... Ele era um repórter e sua curiosidade estava voltando aos poucos. Alguma coisa acontecera e ele tinha que descobrir o quê. Alguma coisa perturbadora. Muito perturbadora. Mas pelo menos estava acabado agora.

    Estremeceu.

     

     Quando entraram na casa em Sherman Oaks, a música do aparelho de som de Scott, no andar de cima, tocava tão alto que as janelas vibravam.

    Sam galgou a escada para o segundo andar, fazendo sinal para que Tessa e Chrissie o seguissem. Elas relutavam, provavelmente constrangidas, sentindo-se deslocadas, mas ele não estava certo se poderia fazer o que tinha a fazer se subisse lá sozinho. A porta do quarto de Scott estava aberta. O rapaz estava deitado na cama, usando calças pretas dejeans e uma camisa preta. Tinha os pés voltados para a cabeceira, a cabeça nos pés da cama, em cima de travesseiros, de modo que pudesse ficar olhando todos os pôsteres na parede atrás da cama: roqueiros black-metal usando couro e correntes, alguns com as mãos sujas de sangue, alguns com os lábios ensangüentados como se fossem vampiros que tivessem acabado de se alimentar, outros segurando caveiras, um deles beijando uma caveira, um outro com as mãos erguidas em concha, cheias de vermes lustrosos.

    Scott não ouviu Sam entrar. Com a música naquele volume, não teria ouvido a explosão de uma bomba termonuclear no banheiro ao lado.

    Junto ao estéreo, Sam hesitou, perguntando-se se estaria agindo corretamente. Então, ouviu a letra da música que era berrada no aparelho, acompanhada pelos sons metálicos das cordas de uma guitarra. Era uma canção sobre o ato de assassinar os pais, beber-lhes o sangue, depois "se mandar". Ótimo. Muito interessante. Isso o fez se decidir. Deu um soco num botão e parou o compact disc no meio da música.

    Perplexo, Scott sentou-se na cama com um salto.

    —        Ei!

    Sam tirou o compact disc do aparelho, jogou-o no chão e esmagou-o sob o calcanhar.

    —        Ei, por Deus, que diabos você está fazendo?

    Quarenta ou cinqüenta compact discs, a maioria álbuns de black-metal, estavam guardados em caixas abertas numa prateleira acima do estéreo. Sam atirou-os no chão.

    —        Ei, o que é isso — disse Scott —, ficou maluco?

    —        Uma coisa que já devia ter feito há muito tempo.

      Vendo Tessa e Chrissie, paradas do lado de fora do quarto, Scott indagou:

    —        Quem diabos são elas?

    Sam respondeu:

    —        Elas, com os diabos, são amigas.

    Realmente enfurecendo-se, espumando de raiva, o rapaz disse:

    —        Que merda elas estão fazendo aqui, cara?

    Sam riu. Sentia-se um doidivanas. Não sabia bem por quê. Talvez porque finalmente estivesse fazendo algo a respeito da situação, assumindo a responsabilidade por ela. Disse, rindo novamente:

    —        A merda é que elas estão comigo.

    Lamentava expor Chrissie a tudo isso, mas então olhou-a e percebeu que ela não só não estava chocada, como ria baixinho. Compreendeu que nem todos os palavrões do mundo podiam atingi-la, não depois do que passara. Na verdade, depois do que todos eles viram em Moonlight Cove, o nülismo adolescente de Scott era engraçado e até um tanto inocente e completamente ridículo.

    Sam subiu na cama e começou a arrancar os pôsteres da parede. Scott começou a berrar com ele, a plenos pulmões, um verdadeiro acesso de cólera desta vez. Sam terminou com os pôsteres que conseguiu alcançar da cama, desceu e se dirigiu aos que estavam na outra parede.

    Scott agarrou-o.

    Delicadamente, Sam afastou o rapaz e começou a destruir os outros pôsteres.

    Scott deu-lhe um soco.

    Sam recebeu o golpe, então virou-se para ele.

    O rosto de Scott estava vermelho e brilhante, as narinas dilatadas, os olhos esbugalhados de ódio.

    Sorrindo, Sam abraçou-o com força.

    No começo, Scott não compreendeu o que estava acontecendo. Pensou que seu pai estava apenas agarrando-o, que iria puni-lo, de modo que tentou se afastar. Mas compreendeu de repente — Sam pôde ver ele compreender — que estava sendo abraçado, seu velho, em nome de Deus, o estava abraçando e na frente de outras pessoas, estranhos. Quando atingiu o entendimento, o rapaz realmente começou a lutar, contorcendo-se e debatendo-se, empurrando Sam com toda força, desesperado para fugir, porque isso não se enquadrava em sua crença num mundo sem amor, especialmente se ele começasse a corresponder.

    Então era isso, sim, droga, Sam compreendia agora. Essa era a razão por trás da alienação de Scott. Um temor de corresponder ao amor, corresponder e ser rejeitado... ou achar insuportável a responsabilidade do compromisso.

    Na verdade, por um instante, o rapaz correspondeu ao amor de seu pai com o seu próprio, abraçou-o também. Era como se o verdadeiro Scott, o garoto escondido embaixo de camadas de morbidez e cinismo, houvesse despontado e sorrido. Algo de bom restava nele, bom e puro, algo que podia ser salvo.

    Mas, em seguida, o rapaz começou a xingar Sam em termos mais explícitos e variegados do que usara antes. Sam apenas abraçou-o com mais força, estreitou-o mais, e começou a lhe dizer que o amava, que o amava desesperadamente, não da forma que dissera que o amava ao telefone quando ligara para ele de Moonlight Cove na segunda-feira à noite, não com nenhum grau de reserva causada por sua própria sensação de desamparo, porque ele já não sentia desamparo. Desta vez, quando disse a Scott que o amava, falou numa voz embargada de emoção, repetindo sem parar, exigindo que seu amor fosse ouvido.

    Scott chorava agora, e Sam não ficou surpreso de perceber que também estava chorando, mas não achava que choravam pela mesma razão ainda, porque o rapaz ainda lutava para se livrar, as forças exauridas, mas ainda lutando. Sam continuou a abraçá-lo e a lhe falar:

    — Ouça, garoto, você vai se importar comigo, de uma forma ou de outra, mais cedo ou mais tarde. Ah, sim. Vai saber que eu me importo com você e então vai se importar comigo, e não apenas comigo, não, você vai se importar consigo mesmo também e não vai parar aí tampouco, diabos, não, você vai descobrir que se importa com muita gente, que é bom se importar. Você vai se importar com aquela mulher parada lá na porta e vai se importar com aquela menina, vai se importar com ela como se importaria com uma irmã, você vai aprender, vai tirar essa máquina de dentro de você e aprender a amar e ser amado. Tem um sujeito que vai vir nos visitar, um sujeito que tem apenas uma das mãos boa e nenhuma perna boa, e ele acredita que a vida vale a pena ser vivida. Talvez ele fique por aqui uns tempos, vendo se gosta disso, vendo como se sente a respeito, porque talvez ele possa lhe mostrar o que eu fui muito lento para fazê-lo ver: que é bom, a vida é boa. E esse cara tem um cachorro, que cachorro, você vai amar aquele cachorro, provavelmente primeiro o cachorrro. — Sam riu e continuou agarrando Scott. — Você pode dizer "Saia da minha frente" para um cachorro e esperar que ele ouça e se importe, ele não vai sair da sua frente, de modo que vai ter que amá-lo primeiro. Mas depois você vai me amar, porque é isso que eu vou ser: um cachorro, apenas um cachorro ve-   lho e sorridente, andando pela casa, sempre por perto, imune aos insultos, um cachorro velho.

    Scott parará de se debater. Provavelmente estava apenas cansado. Sam tinha certeza que não havia realmente aplacado a raiva do rapaz. Não fizera mais do que arranhar a superfície. Sam deixara que o mal entrasse em suas vidas, o mal de se deixar levar pelo desespero, que ele transmitira ao garoto, e extirpá-lo ia ser uma tarefa difícil. Tinham um longo caminho a percorrer, meses de luta, talvez anos, muitos abraços, muitas ocasiões de segurá-lo com força e não deixá-lo escapar.

    Olhando por cima do ombro de Scott, viu que Tessa e Chrissie haviam entrado no quarto. Também choravam. Nos olhos delas viu uma compreensão que se igualava à sua, um reconhecimento de que a batalha por Scott apenas começara.

    Mas começara. E isso era maravilhoso. Começara.

 

                                                                                            Dean R. Koontz

 

 

                      

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