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FUNDAÇÃO E IMPÉRIO
FUNDAÇÃO E IMPÉRIO

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FUNDAÇÃO E IMPÉRIO

 

A Decadência do Império Galáctico.

Era um Império colossal, alargando-se por milhões de mundos que iam de extremo a extremo da poderosa espiral dupla que formava a Via-láctea.

Esteve em declínio durante séculos antes de um homem se tornar realmente ciente dessa decadência. Este homem foi Hari Seldon, o homem que representou a única fagulha de esforço criador no meio da pressão da decadência. Criou e elevou a um alto grau de perfeição a ciência da psicohistória.

A psicohistória trabalha considerando não o homem, mas o homem-massa. Era a ciência da multidão; multidão considerada no seu total de bilhões. Podia prever as reações com.uma precisão que uma ciência menor só poderia resolver e prever com o mesmo rigor do ressalto de uma bola de bilhar. A reação de um homem não podia ser prevista utilizando a matemática; a reação de um bilhão é algo diferente.

Hari Seldon delineou as tendências sociais e econômicas da época, estendeu para a frente as curvas evolutivas e previu o acelerado declínio da civilização e o intervalo de trinta mil anos que deveria transcorrer antes de um novo Império vigoroso poder emergir das ruínas.

Era demasiado tarde para impedir esse declínio, mas não demasiado tarde para impedir o aparecimento de um interregno de barbarismo. Seldon estabeleceu duas Fundações nos "extremos opostos da Galáxia" e a sua localização foi de tal modo calculada que os acontecimentos de um milênio deviam unir-se e entrelaçar-se de tal modo que levassem ao nascimento mais rápido de um Segundo Império, mais robusto e mais duradouro.

 

Fundação (Gnome Press, 1951) contou a história de uma destas Fundações durante os dois primeiros séculos de vida.

Começa com um povoamento de cientistas físicos em Terminus, um planeta colocado na extremidade de um dos braços da espiral da Galáxia. Separados dos distúrbios do Império, esses cientistas trabalharam como compiladores de um compêndio de conhecimento universal, a Enciclopédia Galáctica, desconhecendo o profundo papel que lhes fora destinado pelo já falecido Seldon.

Como o Império se fosse corrompendo, as outras regiões caíram nas mãos de "reis" independentes. A Fundação viu-se ameaçada por eles. Contudo, atirando os insignificantes soberanos uns contra os outros, sob a orientação do primeiro prefeito, Salvor Hardin, conseguiram manter uma independência precária. Sendo os únicos possuidores da força atômica no meio de mundos que estavam perdendo a cultura e regressando ao carvão e ao petróleo, conseguiram, por isso, ganhar um ascendente. A Fundação tornou-se o centro "religioso" dos reinos vizinhos.

Vagarosamente, a Fundação criou uma economia comercial ao mesmo tempo que a Enciclopédia recuava para um plano mais distante. Os seus comerciantes, negociando com instrumentos atômicos que o Império nem sequer podia ter copiado nos seus dias de maior solidez, penetravam centenas de anos-luz através da Periferia.

Sob Hober Mallow, o primeiro Príncipe Mercador da Fundação, desenvolveram as técnicas de guerra econômica a ponto de derrotarem a República de Korell, embora este mundo fosse apoiado por uma das outras províncias que tinha saído do Império.

Decorridos duzentos anos, a Fundação era o Estado mais poderoso da Galáxia, com exceção dos remanescentes do Império que, concentrados no terço central da Via-láctea, ainda controlavam três quartos da população e da riqueza do Universo.

Parece inevitável que o próximo perigo a ser enfrentado pela Fundação fosse um último golpe do Império agonizante.

O futuro deve ser esclarecido pela batalha entre a Fundação e o Império.

 

O GENERAL

EM BUSCA DOS MÁGICOS

BEL RIOSE... Na sua carreira relativamente curta, Riose ganhou o titulo de "O Ultimo Imperial" e conseguiu-o merecidamente. Um estudo das suas campanhas revela-o como um equivalente de Peurifoy na capacidade estratégica, sendo-lhe talvez superior na habilidade que demonstrou em conduzir homens. O fato de ter nascido nos dias do declínio do Império assim lho permitia, porém era-lhe inteiramente impossível igualar a crônica de Peurifoy como conquistador. Dispôs, contudo, de algumas possibilidades quando, sendo o primeiro general do Império a fazê-lo, enfrentou a Fundação com firmeza...

Enciclopédia Galáctica

 

Bel Riose sem escolta, o que está em desacordo com aquilo que a etiqueta cortesã prescreve para o chefe de uma esquadra estacionada num sombrio sistema estelar, na Fronteira do Império Galáctico.

Bel Riose era jovem e enérgico - suficientemente enérgico para ser capaz de aceitar que o fim do Universo podia ser tão próximo como provável, provocado por uma corte onde não havia emoção e era apenas calculista - e indiscreto além disso. Circulavam a seu respeito histórias estranhas e improváveis, caprichosamente repetidas por centenas de pessoas e obscuramente conhecidas por milhares de outras, intrigadas pela última faculdade;a possibilidade de uma aventura militar dava utilização às outras duas. A combinação era subjugante.

Saiu do sujo carro terrestre de que se tinha apropriado e dirigiu-se â porta da velha mansão que era o seu destino. Bateu. O olho fotônico que movimentava a porta estava em funcionamento, contudo a porta abriu-se manualmente.

Bel Riose sorriu para o ancião:

- Sou Riose...

- Reconheço-o. - O ancião continuou imóvel e sem surpresa no seu lugar. – Que assunto o traz?

Riose desceu um degrau em sinal de submissão :

- É de paz. Se o senhor for Ducem Barr, peço-lhe o favor de me dar uns momentos de atenção.

Ducem Barr afastou-se para o lado e, no interior da casa, as paredes reluziam de calor.

O general penetrou na luz do dia.

Apalpou a parede do gabinete, depois do que olhou fixamente para as pontas dos dedos :

- O senhor conseguiu isto em Siwena? Barr sorriu fracamente:

- Não podia ser em outra parte, julgo eu. Eu próprio cuido da casa tão bem quanto posso. Tenho que lhe pedir desculpa por tê-lo obrigado a esperar â porta. O aparelho automático assinala a presença de um visitante porém não abre a porta.

- Os seus inventos estragam-se depressa? - A voz do general era ligeiramente trocista.

- Alguns deles não são muito úteis. Pode sentar-se, cavalheiro Bebe chá?

- De Siwena? Meu caro senhor, é socialmente impossível não bebê-lo.

O velho patrício retirou-se silenciosamente com uma reverência leve que fazia parte da herança cerimoniosa legada por uma remota aristocracia dos melhores dias do último século

Riose fitou as costas do seu anfitrião quando este se afastou, e a sua clássica urbanidade provocou-lhe um sentimento de indecisa irritação. Sua educação fora puramente militar; sua experiência também. Tinha, como se costuma dizer, enfrentado a morte muitas vezes; contudo uma morte sempre caracterizada por uma natureza familiar e tangível. Conseqüentemente, não havia inconseqüência no fato de o idolatrado leão da Vigésima Esquadra ter-se sentido deprimido na atmosfera bolorenta do velho aposento.

O general reconheceu as pequenas caixas de marfim preto que estavam nas prateleiras como livros. Seus títulos não lhe eram familiares. Conjecturou que a ampla estrutura existente numa das extremidades do aposento era o receptor que transmudava os livros em visão e som logo que lhe fosse feito o pedido. Nunca vira nenhum em funcionamento; porém tinha ouvido falar deles.

Ouvira uma vez contar que, havia muito tempo, durante as idades de ouro, quando o Império se estendera pela Galáxia inteira, nove casas em cada dez possuíam receptores idênticos - e idênticas filas de livros.

Porém agora havia fronteiras para vigiar: os livros eram para os velhos. E metade das histórias que se contavam a respeito dos tempos antigos eram míticas, fosse como fosse. Mais de metade.

Chegou o chá, e Riose sentou-se. Ducem Barr levantou a sua chávena.

- A sua honra.

- Muito obrigado. À sua.

Ducem Barr observou deliberadamente:

- Você disse que era novo? Trinta e cinco?

- Quase acertou. Trinta e quatro.

- Nesse caso - disse Barr, com uma ênfase cortês - não vejo melhor começo do que informá-lo pesarosamente de que não estou na posse de amuletos de amor, poções ou filtros. Nem sou capaz de influenciar, no mínimo que seja, os favores de qualquer jovem senhora com mais recursos do que você.

- Não preciso de ajudas artificiais a esse respeito, senhor. - A complacência evidentemente presente na voz do general aumentara divertidamente. - Costuma receber muitos pedidos de semelhantes produtos?

- Muitos. Infelizmente, um público mal informado tende a confundir erudição com feitiçaria, e a vida amorosa parece ser aquele fator que requer uma farta quantidade de remendos mágicos.

- E por isso pareceu-lhe muito natural que eu estivesse aqui também por isso. Mas eu sou diferente. Não associo a erudição com coisa alguma exceto com os meios de responder a perguntas obscuras.

O siweniano observou sombriamente:

- Você pode estar tão enganado como eles!

- Isso pode suceder ou não. - O jovem general pousou a sua chávena no brilhante estojo e voltou a enchê-la. Deixou cair a cápsula aromática que lhe ofereceram, com um pequeno borrifo. - Diga-me então, patrício, o que vêm a ser os mágicos? Os autênticos.

Barr pareceu espantado com aquela designação que há muito deixara de ser usada.

Respondeu:

- Não há mágicos.

- Todo mundo fala deles. Siwena está cheia de histórias a seu respeito. Há seitas alicerçadas com base neles. Há umas estranhas ligações entre eles e os grupos existentes entre os seus compatriotas, que sonham e dizem tolices a respeito dos velhos tempos a que eles denominam liberdade e autonomia. Esta matéria pode tornar-se eventualmente um perigo para o Estado.

O ancião meneou a cabeça.

- Por que é que mo pergunta? Você desconfia de alguma rebelião encabeçada por mim?

Riose encolheu os ombros.

- Nunca. Nunca. Oh, não, é uma idéia completamente ridícula. Seu pai estava exilado nesse tempo; e o senhor mesmo é um patriota e um chauvinista. É uma indelicadeza da minha parte, como seu hóspede, dizer-lhe isto, mas assim o exige a minha missão. Estará conspirando agora? Duvido. Siwena viu-se com o espírito derrotado por estas três gerações mais próximas.

O ancião replicou com dificuldade:

- Vou ser obrigado a ser tão indelicado como anfitrião como você o é como hóspede. Vejo-me obrigado a recordar-lhe que, uma vez, um vice-rei pensou como você está fazendo quanto ao desânimo dos siwenianos. Por ordem desse vice-rei meu pai tornou-se um pobre fugitivo, os meus irmãos mártires, e minha irmã uma suicida. E esse vice-rei teve uma morte suficientemente horrorosa às mãos desses mesmos escravos siwenianos.

- Ah, sim, e você tocou numa coisa que desejava lhe dizer. Há três anos que a misteriosa morte deste vice-rei deixou de ser um mistério para mim. Havia um jovem soldado da sua guarda pessoal cujas ações foram interessantes. Você foi esse soldado, porém não há necessidade de pormenores, julgo eu.

Barr estava tranqüilo.

- Nenhuma. O que é que você propõe?

- Que responda ás minhas perguntas.

- Mas não sob ameaça. Estou velho, mas não tão velho que a vida não tenha para mim um significado particular.

- Prezado senhor, estamos em tempos difíceis - disse Riose, a propósito - e tem filhos e amigos. Tem uma pátria pela qual vociferou frases de amor e loucura no passado. Olhe, se eu me decidisse a empregar a violência, não iria contentar-me com um objetivo tão limitado como bater-lhe.

Barr disse friamente:

- O que é que você quer?

Riose segurou a chávena vazia enquanto falava:

- Ouça-me, patrício. Estamos em uma época em que os soldados mais afortunados são aqueles cujas funções são comandar paradas engalanadas que passam através dos jardins do palácio imperial nos dias de festa e escoltar as naves cintilantes de prazer que transportam Sua Imperial Magnificência para os planetas de verão. Eu... eu sinto uma falta. Eu sinto uma falta aos trinta e quatro, e continuarei a sentir essa falta. Porque, veja bem, estou disposto a lutar.

- Foi por isso que eles me mandaram para cá. Eu também sou um desmancha-prazeres na corte. Não respeito a etiqueta. Ofendo os almofadinhas e os senhores almirantes, todavia também sou bom comandante de naves e de homens distribuídos de repente para ficarem isolados no espaço. Por isso Siwena é o desterro. Trata-se de um mundo fronteiriço; uma província rebelde e árida. Fica muito longe, suficientemente longe, para satisfazer todo mundo.

- E estou na mesma. Não há rebeliões para esmagar lá em baixo, e nas fronteiras do vice-rei não há revolta; pelo menos isso não sucede desde que o falecido pai de Sua Majestade Imperial, de gloriosa memória, deu o exemplo de Mountel de Paramay.

- Um imperador enérgico - murmurou Barr.

- É verdade, e precisávamos de mais assim. É ele o meu senhor, lembre-se disto. São os seus interesses que eu defendo.

Barr encolheu os ombros indiferentemente:

- E a que respeito vem essa conversa toda?

- Eu lho digo em duas palavras. Os mágicos que eu mencionei vieram do outro lado - do outro lado das defesas fronteiriças, onde as estrelas estão fracamente disseminadas...

- Onde as estrelas estão fracamente disseminadas - observou Barr. - E o frio do espaço penetra nelas!

- É uma poesia? - resmungou Riose. Os versos pareciam-lhe frívolos em tal momento.

- Seja como for, eles são da Periferia - do único local onde eu tenho liberdade de combater pela glória do Imperador.

- E isso serve os interesses de Sua Majestade Imperial e satisfaz o seu próprio gosto por um bom combate.

- Exatamente. Mas eu queria saber aquilo com que vou combater; e é para isso que peço o seu auxílio.

- Por que é que você quer saber?

Riose mordiscou casualmente um bolo.

- Porque há três anos que investigo todos os rumores, todos os mitos, todos os boatos que se referem aos mágicos - e consulto todas as bibliotecas de informação, e só dois fatos isolados são unanimemente considerados em conjunto e são, portanto, verdadeiros com toda certeza. O primeiro é que os mágicos vêm da fronteira da Galáxia, em frente de Siwena; o segundo é que seu pai encontrou uma vez um mágico, vivo e real, e falou com ele.

O idoso siweniano encolheu os ombros, e Riose continuou:

- O melhor que faria era contar-me aquilo que sabe...

Barr disse pensativamente:

- Seria interessante contar-lhe determinadas coisas. Seria uma tentativa psicohistórica de minha própria conta:

- Que espécie de tentativa?

- Psicohistórica. - Havia uma aresta desagradável no sorriso do ancião. Depois acrescentou, encrespadamente: - Você agiria melhor se bebesse mais chá. Vou ocupá-lo com uma conversa bastante demorada.

Encostou-se nas almofadas moles da cadeira. As paredes luminosas tinham amaciado o seu fulgor, passando para uma vermelhidão rosa marfim, que suavizou até o perfil duro do soldado.

Ducem Barr começou:

- Aquilo que vi pessoalmente resulta de dois acidentes; o acidente de ter nascido filho de meu pai, e o de ter nascido filho do meu país. Começou há mais de quarenta anos atrás, logo a seguir ao grande Massacre, quando meu pai estava foragido nas florestas do Sul, quando eu era artilheiro na esquadra pessoal do vice-rei. Este mesmo vice-rei, a que já me referi, que tinha ordenado o Massacre, e que morreu depois disso daquela morte cruel.

Barr sorriu com dureza, e continuou:

- Meu pai era um Patrício do Império e Senador de Siwena. Chamava-se Onum Barr.

Riose interrompeu-o impacientemente:

- Conheço muito bem as circunstâncias do seu exílio. Você não precisa gastar tempo com isso.

O siweniano ignorou esta interrupção e prosseguiu sem um desvio:

- Durante o seu exílio foi ter com ele um homem extraviado; um comerciante da fronteira da Galáxia, um homem novo que falava com um sotaque estranho, que não conhecia nada da história Imperial recente, e que estava protegido por um escudoproteção individual.

- Um escudo-proteção individual? - perguntou Riose deslumbrado. -O que você está me dizendo é extravagante. Que gerador podia ser tão poderoso que pudesse condensar um escudo do tamanho de um único homem? Pela Grande Galáxia, isso quer dizer que ele carregava cinco mil miríades-toneladas de fonte de energia atômica em volta dele num pequeno carrinho de rodas?

Barr disse tranqüilamente :

- Trata-se de um daqueles mágicos a respeito de quem você ouviu boatos, histórias e mitos. A designação "mágico" não é levianamente aplicada. Não carregava com ele um gerador suficientemente grande para ser visível, mas, pelo contrário, uma arma tão pesada como a que você possa carregar com uma mão terá tanto peso e tamanho como o escudo que ele trazia.

- É esta a história toda a respeito deles? Os mágicos nasceram dos murmúrios de um homem velho e destroçado pelo sofrimento e pelo exílio?

- A história dos mágicos é muito anterior a meu pai, cavalheiro. E a prova é mais concreta. Depois de ter deixado o meu pai, esse comerciante, a quem os homens denominam mágico, visitou um técnico na cidade onde meu pai o tinha conduzido, e ali deixou um escudo-gerador do tipo que ele trazia consigo. Esse gerador foi recuperado por meu pai depois do seu regresso do exílio, após a execução do sanguinário vice-rei. Levou um enorme tempo para achar... O gerador está pendurado na parede atrás de você, cavalheiro. Não trabalha. Nunca trabalhou senão nos dois primeiros dias; mas se olhar para ele, há de ver que não há, no Império, nenhum projetado como ele.

Bel Riose esticou-se para o cinturão de metal com tirantes que estava ajustado na parede curva. Puxou-o com um pequeno ruído de sucção até que a pequena peça, com um escudo de adesivo, lhe ficasse ao alcance da mão. Chamou-lhe a atenção o elipsóide do vértice do cinturão. Era do tamanho de uma noz.

- Isto... - disse ele.

- Era o gerador - respondeu Barr. - Realmente era o gerador. O segredo da sua construção ainda não foi descoberto até agora. As investigações subeletrônicas revelaram que se fundiu numa única massa de metal e nem todos os cuidadosos estudos dos modelos de difração foram suficientes para identificar as delicadas partes que ali existiam antes da fusão.

- Nesse caso as suas "provas" continuam a assentar na espuma de palavras não autorizadas por uma evidência concreta.

Barr encolheu os ombros:

- Você pediu-me que lhe dissesse o que sabia e ameaçou que me obrigaria a dizê-lo pela força. Se agora prefere encarar as coisas com ceticismo, que quer que lhe diga? Acha que me devo calar?

- Vamos em frente! - disse o general, asperamente.

- Continuei as pesquisas de meu pai depois de ele ter morrido, e aconteceu-me então o segundo acidente que mencionei e que me ajudou, porque Siwena era bem conhecida de Hari Seldon.

- E quem é Hari Seldon?

- Hari Seldon foi um cientista do reinado do Imperador Daluben IV. Foi um psicohistoriador; o último e o maior de todos eles. Visitou uma vez Siwena, quando Siwena era um grande centro comercial, rico em artes e ciências.

- Hum - resmungou Riose, com desagrado - onde é que há algum planeta estagnado que não se ponha a reivindicar que foi uma terra de prosperidade superabundante nos tempos antigos?

- Os tempos de que lhe estou falando datam de há dois séculos atrás, quando o Imperador dominava até á estrela mais distante; quando Siwena era um mundo interior e não uma província fronteiriça semibárbara. Nesses dias, Hari Seldon previa o declínio do poder Imperial e a eventual volta ao barbarismo da Galáxia inteira.

Riose riu-se bruscamente:

- Ele previa semelhante coisa? Nesse caso previa mal, meu bom cientista. Calculo que é este o nome que se dá a si mesmo. Porque o Império é agora mais poderoso do que aquilo que foi durante um milênio. Os seus velhos olhos estão cegos pela fria monotonia da fronteira. Volte para os mundos secretos de antigamente; volte para o ardor e para a prosperidade do centro.

O ancião meneou sombriamente a cabeça :

- A circulação cessou primeiro nas outras fronteiras. Levará quase uma década para atingir o coração. Isto é, da década aparente e evidente para toda a gente, tão distinta da década secreta que é uma velha história de alguns quinze séculos.

- E assim esse tal Hari Seldon previa uma Galáxia de barbarismo uniforme – disse Riose, bem humoradamente. - E que fez ele então?

- Estabeleceu por isso duas fundações nos dois extremos opostos da Galáxia... Fundações dos melhores, e dos mais jovens, e dos mais robustos, para procriar, crescer e desenvolver. Os mundos em que foram colocados foram cuidadosamente escolhidos; o mesmo sucedendo com a época e o meio ambiente. Tudo foi ajustado de modo a que o futuro, tal como estava previsto pela invariável matemática da psicohistória, isolasse o seu precoce isolamento do corpo principal da civilização Imperial e provesse o gradual crescimento dos germes do Segundo Império Galáctico, transformando um inevitável interregno de barbarismo de trinta mil anos a um simples milênio.

- E qual foi o fim de tudo isto? O senhor parece conhecê-lo pormenorizadamente.

- Não sei e nunca o soube - disse o patrício com compostura. - Isto é o trabalhoso resultado da articulação de determinadas provas descobertas por meu pai e um pouco mais aprofundadas por mim. A base é fraca e a existência da superestrutura foi romantizada para preencher as enormes lacunas existentes. Mas estou convencido de que isto é essencialmente verdade.

- Você deixa-se convencer facilmente.

- Julga que sim? Já conto quarenta anos de investigações.

- Ora! Quarenta anos! Eu podia acabar com a questão em quarenta dias. De fato, eu suponho que tenho obrigação. Eu devo ser... diferente.

- E como é que você faria isso?

- De uma forma evidente. Podia tornar-me um explorador. Podia descobrir essa Fundação de que fala e observá-la com os meus próprios olhos. Você disse que são duas?

- Os registros referem-se a duas. Apenas se descobriu uma prova sólida para uma, o que é compreensível, visto que a outra está colocada na ponta extrema do longo eixo da Galáxia.

- Bem, vou visitar essa que nos fica próxima. - O general já estava de pé, ajustando o cinto.

- Você sabe onde é que deve ir? - perguntou Barr.

- Num certo sentido, sei. Nos registros daquele falecido vice-rei, que vocês assassinaram em hora oportuna, há uma pequena quantidade de histórias de outros bárbaros. De fato, uma das suas filhas foi pedida em casamento por um príncipe bárbaro. Ali averiguarei qual há de ser o meu caminho.

Estendeu a mão:

- Agradeço a hospitalidade que me dispensou.

Ducem Barr tocou-lhe na mão com os dedos e fez uma reverência formal:

- Tive muita honra na sua visita.

- E anoto também as informações que me deu - continuou Bel Riose. - Haverei de agradecer-lhe quando estiver de regresso.

Ducem Barr acompanhou o seu visitante submissamente até á porta externa e disse tranqüilamente ao vê-lo desaparecer no carro terrestre:

- E se chegar a voltar.

 

OS MÁGICOS

FUNDAÇÃO... Com quarenta anos de expansão atrás dela, a Fundação enfrentou a ameaça de Riose. Os tempos épicos de Hardin e Mallow tinham desaparecido e com eles uma sólida coragem e resolução...

Enciclopédia Galáctica

 

Havia quatro homens no aposento, e esse aposento ocupava uma posição separada, pelo que ninguém podia aproximar-se. Os quatro homens olhavam tranqüilamente uns para os outros, e depois fitavam vagarosamente a mesa que os separava. Havia quatro garrafas em cima da mesa e muitos copos cheios, mas ainda ninguém lhes tinha tocado.

Nessa altura o homem que estava perto da porta estendeu o braço e começou a tamborilar um ritmo lento, surdo, em cima da mesa.

Foi ele que disse: - Vocês vão ficar aqui sentados olhando uns para os outros? Qual é o assunto de que se deve falar em primeiro lugar?

- Fale você primeiro, nesse caso - disse o homem alto que lhe estava defronte. - Você é a pessoa que deve estar mais preocupada.

Sennett Forell riu entredentes com um mau humor silencioso. - Porque você pensa que eu sou o mais rico. Bem... Ou então você espera que eu continue como tinha começado. Calculo que você não esteja se esquecendo que foi a minha própria Esquadra Comercial que capturou a nave espiã deles.

- Você é o proprietário da maior esquadra - disse o terceiro - e tem também os melhores pilotos; o que vem a ser outra maneira de dizer que você é o mais rico. Era um risco terrível; e teria sido demasiado grande para qualquer de nós.

Sennett Forell voltou a rir entredentes. - Há uma certa facilidade em arriscar os rendimentos que herdei de meu pai. Afinal de contas, o ponto essencial quando se corre um risco é que a contrapartida valha a pena. Aqui, neste caso, a prova é o fato da nave inimiga ter sido isolada e capturada sem prejuízos para nós ou informações para os outros.

Que Forell era um parente colateral afastado do falecido grande Hober Mallow era reconhecido através da Fundação. Que era filho ilegítimo de Mallow era aceito por um grupo considerável de pessoas.

O quarto homem piscou os olhinhos furtivamente. As palavras deslisaram-lhe entre os lábios finos: - Ele não é nada para dormir sobre este rico triunfo, representado pela captura dessa pequena nave. Mas, provavelmente, deverá deixar zangado o jovem depois.

- Você pensa que ele precisava de motivos? - indagou Forell, desdenhosamente.

- Julgo que sim, por isso, para o salvar do vexame, teve de criar um. - O quarto homem falou vagarosamente - Hober Mallow trabalhava de outro modo. E Salvor Hardin. Esses deixavam que os outros seguissem pelos duvidosos caminhos da força, enquanto eles manobravam pelo seguro e tranqüilamente.

Forell encolheu os ombros: - Esta nave provou já o seu valor. Os motivos são baratos e nós devemos vender este com lucro. - Havia a satisfação do comerciante nato nesta afirmação. Continuou: - O jovem é do velho Império.

- Já sabemos isso - disse o segundo homem, o mais alto dos quatro, com uma onda de descontentamento.

- Desconfiamos disso - corrigiu Forell, em voz baixa. - Um homem que chega com naves e riqueza, com propostas de amizade, e com ofertas de comércio, só é sensível ao estribilho de competição, e todavia nós estamos certos de que a máscara do lucro não é uma face afinal de contas. Mas agora...

Havia uma marca de indistinta lamentação na voz do terceiro homem quando começou a falar: - Podíamos ter sido muitíssimos mais cuidadosos. Podíamos ter averiguado primeiro o que se passava com ele. Podíamos ter averiguado primeiro antes de o termos autorizado a sair. Podíamos ter mostrado uma verdadeira prudência.

- Isto já tinha sido discutido e decidido - disse Forell. Repelia o assunto com um gesto final e positivo.

- O Governo é mole - lastimou-se o terceiro homem. - O Prefeito é um idiota.

O quarto homem olhou á volta para os outros três e tirou a ponta do charuto da boca. Deixou-a cair casualmente na fenda que estava â sua direita onde desapareceu com um silencioso silvo de desintegração.

E disse com ironia:

- Espero que o cavalheiro que falou em último lugar só o tenha feito por força do hábito. Podemos ser obrigados a lembrar aqui que nós somos o governo.

Houve um murmúrio de concordância.

Os olhinhos do quarto homem estavam fitos na mesa. - Então deixem-nos ficar somente com a administração política. Este jovem... este estrangeiro podia ter sido um possível freguês. Tem havido casos desses. Três dos nossos tentaram prendê-lo com um contrato antecipado. Nós temos um acordo - um acordo de cavalheiros - contra isso, mas tentamos.

- Foi você que o fez - resmungou o segundo homem.

- Reconheço que sim - disse o quarto, calmamente.

- Nesse caso vamos esquecer o que devíamos ter feito no princípio – interrompeu Forell impaciente - e continue com o que devemos fazer agora. Seja como for, se o tivéssemos aprisionado, ou morto, o que é que teria acontecido? Não temos a certeza das suas intenções, e o que seria pior, podíamos provavelmente destruir um Império eliminando rapidamente a vida de um homem. Podia haver navios sobre navios emboscados do outro lado, esperando exatamente que não regressasse.

- Isso mesmo - aprovou o quarto homem. - Agora, o que é que vocês tiraram da nave capturada? Eu também sou suficientemente velho para essas conversas.

- Isso pode dizer-se em algumas poucas palavras - replicou Forell, muito carrancudo. - É um general Imperial ou qualquer graduação correspondente a essa que aqui possa haver. É um homem novo que provou o seu talento militar - assim ouvi dizer - e que é o ídolo dos seus homens. Uma carreira mais ou menos romântica. As histórias que eles contam a seu respeito, não há dúvida que metade são mentiras, mas precisamente por isso o que se verifica por aí é que é um tipo de homem prodigioso.

- Quem são esses "eles"? - perguntou o segundo homem.

- A tripulação da nave capturada. Olhe, tenho todas as suas declarações registradas em microfilme, pu-las em lugar seguro. Mais tarde, se quiserem, podemos ouvi-las. Podem ouvir pessoalmente os homens falar, se pensarem que é necessário. Disse-lhes apenas o essencial.

- Como é que você conseguiu isso deles? Como é que sabe que eles lhe disseram a verdade?

Forell franziu as sobrancelhas. - Não fui nada suave, meu caro cavalheiro. Comecei por inutilizá-los, droguei-os loucamente, e servi-me da Sonda impiedosamente. Eles falaram. E vocês podem ouvi-los quando quiserem.

- Nos velhos tempos - disse o terceiro homem, com súbita falta de oportunidade – eles teriam aplicado a psicologia pura. Sem dor, sabe, mas muito seguro. Não há possibilidade de fraude.

- Bem, isso era o melhor negócio que eles tinham nos tempos antigos - disse Forell, secamente. - Agora estamos nos dias de hoje.

- Mas - disse o quarto homem - o que é que ele quer daqui, esse general, esse romântico homem-prodígio? - Havia uma persistência teimosa e aborrecida na maneira como voltava ao assunto.

Forell lançou-lhe um olhar rápido e mordaz:- Você pensa que ele confidencia os pormenores dos seus assuntos políticos com a tripulação? Eles não os conhecem. Não havia nada a tirar-lhes a este respeito, e eu experimentei, a Galáxia bem o sabe.

- O que nos deixa...

- Tirar as nossas próprias conclusões, como é evidente. - Os dedos de Forell estavam outra vez tamborilando tranqüilamente. - O jovem é um chefe militar do Império, embora esteja se passando por um principezinho de pouca importância de uma dás estrelas perdidas num canto excêntrico da Periferia. Isto só nos assegurará que os seus motivos reais nos são desconhecidos, pois ele não tiraria nenhum benefício deles se nós os conhecêssemos. Combina a natureza da sua profissão com o fato de que o Império já subvencionou um ataque contra nós no tempo de meu pai, e as possibilidades tornaram-se agora idênticas. Esse primeiro ataque falhou. Duvido que o Império nos esteja reconhecido por isso.

- Não há nada nas suas descobertas - perguntou o quarto homem cautelosamente – que nos dê uma certeza qualquer? Você não está nos escondendo nada?

Forell respondeu polidamente: - Não lhes posso esconder nada. Num caso como este não pode haver questão de rivalidade de negócios. A unidade é forçosa entre nós.

- Patriotismo? - Havia zombaria na voz do terceiro homem.

- O patriotismo que vá para o diabo - respondeu Forell tranqüilamente. - Você pensa que eu dou duas baforadas de emanação atômica pelo futuro Segundo Império? Você pensa que eu arrisco uma única missão comercial para facilitar o seu caminho? Mas... você supõe que as conquistas Imperiais podem ajudar o meu negócio ou o seu? Se o Império ganhar, haverá um grande número de corvos desejosos de carne podre para suspirar pelos despojos da batalha.

- E nós seremos os despojos - acrescentou o quarto homem, secamente.

O segundo homem rompeu bruscamente o silêncio, e mexeu o seu volume iradamente, de tal modo que a cadeira estalou sob o seu peso. - Mas porque é que estamos falando disso? O Império não pode ganhar, não acha? Temos a garantia de Seldon de que nós acabaremos por formar o Segundo Império. Trata-se apenas de mais uma crise. Já houve três antes desta.

- Só mais uma crise, claro que sim! - ponderou Forell. - Mas quando se verificaram as duas primeiras, tínhamos Salvor Hardin para nos guiar; na terceira, havia Hober Mallow. E quem temos nós agora?

Olhou sombriamente para os outros e continuou. - As leis psicohistóricas de Seldon, em que é tão confortante confiar, possuem uma contribuição variável, uma certa iniciativa normal por parte do próprio povo da Fundação. As leis de Seldon ajudam aqueles que se ajudam a si mesmos.

- As circunstâncias fazem o homem - disse o terceiro homem. - Aqui tem mais um provérbio para seu uso.

- Você não pode contar com isso, pelo menos com certeza absoluta – resmungou Forell. - O caminho que se impõe agora não parece ser esse. Se esta é a quarta crise, nesse caso Seldon tinha-a previsto. Se a previu, nesse caso ela pode ser vencida, e deve haver uma maneira de consegui-lo.

- Agora o Império está mais forte do que nós; sempre o fora. Mas é a primeira vez que estamos em risco de sofrer os seus ataques diretos, de modo que a sua solidez torna-se terrivelmente ameaçadora. Nesse caso, se pode ser vencida, deve ser mais uma vez como em todas as crises passadas por meio de um método diferente da utilização da pura força. Nós devemos descobrir o lado fraco do inimigo e atacá-lo ali.

- E qual é esse lado fraco? - perguntou o quarto homem. - Você tenciona sugerir uma teoria?

- Não. Aqui está o ponto em que preciso de ser orientado. Os nossos grandes líderes do passado viam sempre os pontos fracos dos inimigos e dirigiam-se para lá. Mas agora...

Havia um abandono na sua voz, e por um momento ninguém se arriscou a qualquer comentário.

Nessa altura o quarto homem disse: - Precisamos de espiões.

Forell virou-se para ele vivamente: - É isso mesmo! Não sei quando é que o Império atacará. Ainda devemos estar a tempo.

- Hober Mallow entrava pessoalmente nos domínios Imperiais - sugeriu o segundo homem.

Forell meneou a cabeça: - Nada assim de tão direto. Nenhum de nós é precisamente um jovem; e todos nós estamos enferrujados com as fitas vermelhas e os pormenores administrativos. Precisamente de jovens agora no campo oposto...

- Os comerciantes independentes? - perguntou o quarto homem. E Forell abanou a cabeça e murmurou: - Se ainda for a tempo...

 

A MÃO MORTA

Bel Riose interrompeu o seu aborrecido passeio para fitar esperançada-mente quando o seu ajudante entrou. - Alguma notícia do "Astral"?

- Nenhuma. O destacamento de exploração esquadrinhou o espaço, mas os instrumentos não detectaram nada. O comandante Yume informou que a Esquadra está pronta para um ataque de represália imediata.

O general abanou a cabeça. - Não, por causa de uma nave patrulha, não. Por enquanto não. Diga-lhe para duplicar... Espere! Eu escrevo o recado. Coloque-o em código e transmita-o por um raio fechado.

Escreveu enquanto falava e entregou o papel ao oficial que estava á espera. – O siweniano já chegou?

- Ainda não.

- Bem, mande-o entrar assim que chegue.

O ajudante fez uma continência crispada e saiu. Riose começou a meditar sobre a situação.

Quando a porta voltou a abrir-se, foi Ducem Barr que se deteve no limiar. Vagarosamente, nos calcanhares do ajudante que o vinha anunciar, encaminhou-se para o aposento brilhante em cuja parede havia um modelo estereoscópico da Galáxia, e no centro da qual Bel Riose estava de pé, vestindo seu uniforme de combate.

- Patrício, bom dia! - O general empurrou uma cadeira para diante, com os pés, e despediu o ajudante com um gesto e a recomendação: - Esta porta é para permanecer fechada até que eu a abra.

Ficou de pé diante do siweniano, com as pernas afastadas, a mão agarrada ao pulso da outra, atrás das costas, balançando o corpo vagarosamente, pensativamente, oscilando sobre os pés.

Então, rudemente: - Patrício, você é um súdito leal do Imperador?

Barr, que mantivera um silêncio indiferente até essa altura, enrugou a testa de maneira vaga: - Não tenho motivos para gostar das leis Imperiais.

- O que é uma maneira indireta de dizer que pode ser um traidor.

- E verdade. Mas o simples ato de não ser um traidor é também uma maneira indireta de poder vir a ser um auxiliar ativo.

- Geralmente também é verdade. Mas se recusar a sua ajuda neste ponto - disse Riose, deliberadamente - o fato será considerado traição e tratado como tal.

As sobrancelhas de Barr juntaram-se. - Reserve suas vergastadas verbais para os seus subordinados. Faça uma simples exposição das suas necessidades e podemos ver se precisa realmente de mim.

Riose sentou-se e cruzou as pernas: - Barr, tivemos uma discussão há relativamente pouco tempo, há cerca de meio ano atrás.

- A respeito dos seus mágicos?

- Isso mesmo. Você lembra-se de eu lhe ter dito que iria visitá-los.

Barr acenou que sim com a cabeça. Deixou os braços continuarem molemente no regaço: - Você preparava-se para visitá-los nos seus retiros, e esteve fora estes últimos quatro meses. Acabou encontrando-os?

- Encontrá-los? Foi isso mesmo que fiz - exclamou Riose. Tinha os lábios rígidos enquanto falava. Parecia esforçar-se para impedir que os molares se lhe desfizessem. - Patrício, eles não são mágicos; são diabos. São tão difíceis de compreender como as outras nebulosas dali. Imagine! É um mundo do tamanho de um lenço de assoar, de uma unha; com recursos tão insignificantes, forças tão diminutas, uma população tão microscópica como nunca bastariam aos mais retrógrados mundos dos poeirentos prefeitos das Estrelas Escuras. Apesar disso, é um povo tão orgulhoso e ambicioso que sonha tranqüila e metodicamente em governar a Galáxia.

- Sendo assim, estão tão seguros de si mesmos que não têm pressa nenhuma. Movem-se vagarosamente, fleumaticamente; falam nos séculos que serão necessários para isso. Absorvem mundos com vagar; deslizam através dos sistemas com lenta complacência.

- E saem-se bem. Não há ninguém que os detenha. Construíram uma comunidade porcamente comercial que enrola os seus tentáculos em volta dos sistemas mais avançados que os seus braços de brinquedo conseguem atingir. E os seus comerciantes - que é a designação que os seus agentes se dão - vão penetrando parsec após parsec nos outros mundos.

Ducem Barr interrompeu a vaga raivosa: - Qual é a parte exata desta informação; e qual é a parte que é simples palpite?

O soldado tomou fôlego e ficou calmo: - A fúria não me cega. Estou lhe dizendo que estive nos mundos mais próximos de Siwena do que da Fundação, onde o Império era um mito distante, e os comerciantes eram verdades vivas. Nós próprios fomos iludidos por comerciantes.

- Foi a própria Fundação que lhe disse que aspirava ao domínio da Galáxia?

- Iam-se dizer uma coisa dessas! - Riose tornara-se outra vez violento. - Não era assunto de que me falassem. Pessoa com responsabilidades oficiais não dizia nada. Falavam exclusivamente de negócios. Contudo falei com homens comuns. Absorvi as idéias do povo comum; o seu "manifesto destino", a sua calma aceitação de um grande futuro. É uma coisa que não se pode ocultar; um otimismo universal que eles não procuram esconder de maneira nenhuma.

O siweniano mostrou abertamente uma satisfação tranqüila: - Você deve ter verificado que parece confirmar-se completamente a reconstrução dos acontecimentos a que procedi, feita embora com os pouquíssimos elementos que tinha reunido sobre o assunto.

- Não há dúvida - replicou Riose com um sarcasmo acanhado - que é uma homenagem aos seus poderes analíticos. E é também uma demonstração enérgica e precisa dos perigos crescentes que correm os domínios de Sua Majestade Imperial.

Barr encolheu os ombros como se aquilo lhe não dissesse respeito e Riose inclinou-se para diante, para examinar a largura dos ombros do ancião, fitando-o nos olhos com curiosa brandura.

E disse: - Agora patrício, não se trata disso. Não tenho nenhum desejo de me mostrar bárbaro. Pela minha parte, a herança da hostilidade siweniana contra o Império significa um peso odioso, e hei de fazer tudo o que estiver nas minhas mãos para eliminá-lo. Porém o meu foro é militar e é impossível a interferência nos negócios civis. Provocaria a minha destituição e tornar-me-ia inútil para sempre. Compreende? Sei que compreende isso. Entre nós dois vamos deixar que a atrocidade de há quarenta anos atrás seja compensada pela vingança que você tirou do seu autor e procurar assim esquecer o que se passou. Eu preciso de sua ajuda. Sou obrigado a admitir isto francamente.

Havia um toque de urgência na voz do jovem, porém Ducem Barr meneou a cabeça delicada e deliberadamente num gesto negativo.

Riose insistiu suplicantemente: - Você não está entendendo, patrício, e eu duvido da minha habilidade para conseguir levá-lo a compreender o que quero dizer. Não posso argüir no seu próprio campo. Você é um sábio, eu não. Mas posso dizer-lhe isto: seja o que for que você pense do Império, é obrigado a admitir os seus grandes serviços. Suas forças armadas têm cometido crimes isolados, mas em geral têm sido uma força de paz e de civilização. Foi a Armada Imperial que criou a Pax Imperium que governou toda a Galáxia durante dois mil anos. Compare os dois milênios de paz sob a égide do Sol e da Nave com os dois milênios de anarquia interestelar que os precederam. Lembre-se das guerras e devastações desses tempos antigos e diga-me se, com todas as suas faltas, o Império não é digno de ser conservado.

- Compare - continuou ele vigorosamente - aquilo a que está reduzida a outra faixa da Galáxia nestes dias de autodeterminação e independência e pergunte a si mesmo se por causa de uma pequena desforra você deve obrigar Siwena a baixar da sua posição, de província colocada sob a proteção de uma poderosa Armada, para a de um mundo bárbaro numa Galáxia bárbara, todos mergulhados na sua fragmentária independência e na sua degradação e miséria comuns.

- É assim tão mau... tão depressa? - murmurou o siweniano.

- Não, admitiu Riose. - Não há dúvida que devemos estar salvos nós mesmos, mesmo quadruplicando a duração das nossas vidas. Mas é pelo Império que eu luto; ou seja, tratase de uma tradição militar que só significa alguma coisa para mim, e que não lhe posso transmitir. Trata-se de uma tradição militar construída no âmbito da Instituição Imperial a que sirvo.

- Você está se tornando místico, e eu sempre tive dificuldade em compreender o misticismo das outras pessoas.

- Não importa. Você compreende o perigo desta Fundação.

- Fui eu que lhe indiquei aquilo a que você chama perigo antes de você ter saído para fora dos limites de Siwena.

- Nesse caso você compreende que ele deve ser detido enquanto embrionário ou, então, não o poderá ser de modo algum. Você já sabia desta Fundação antes de qualquer outra pessoa ter ouvido falar nela. Você sabe mais a seu respeito do que qualquer outra pessoa no Império. Você sabe provavelmente qual é a melhor maneira de atacá-la; e você pode provavelmente prevenir-me das suas contramedidas. Vamos, deixe-nos ser amigos.

Ducem Barr corou. Disse monotonamente: - Qualquer ajuda que eu lhe pudesse dar não significaria nada. Por isso eu desejo ter completa liberdade de lhe dizer o meu parecer, para justificar o seu persistente pedido.

- Eu serei o juiz das suas intenções.

- Não, estou falando seriamente. Nem toda a força que o Império pudesse utilizar seria suficiente para esmagar este mundo de pigmeus.

- Por que não? - os olhos de Bel Riose brilharam orgulhosamente. - Não, deixe-se ficar onde está. Eu lhe direi quando é que você deve sair. Por que não? Está enganado se pensa que subestimo este inimigo que descobri, patrício - e a sua voz ganhou um acento relutante - perdi uma nave durante a viagem de regresso. Não tenho provas de que tenha caído nas mãos da Fundação; mas não foi localizada e deve ter sido simplesmente um acidente, e a nave desaparecida deve certamente encontrar-se ao longo da rota que seguimos. Não é uma perda importante - menos da décima parte de uma mordida de pulga, mas pode significar que a Fundação já iniciou as hostilidades. Semelhante ânsia e semelhante desprezo das conseqüências podem significar forças secretas das quais não conheço nada. Você pode ajudar-me respondendo a uma pergunta específica? Qual é a sua força militar?

- Não faço a mínima idéia.

- Então explique você mesmo com os seus próprios termos. Por que é que você disse que o Império não se pode defender deste pequeno inimigo?

O siweniano voltou a sentar-se uma vez mais e o seu olhar vagueou para além dos olhos fitos de Riose. Falou vagarosamente: - Porque acredito nos princípios da psicohistória. Trata-se de uma ciência estranha. Alcançou a maturidade matemática com um homem, Hari Seldon, e morreu com ele, pois nenhum homem, a partir de então, conseguiu manipular com destreza a complexidade da doutrina. Mas durante esse curto período, revelou tratar-se do mais poderoso instrumento inventado.até então para o estudo da humanidade. Sem pretender prognosticar as ações dos indivíduos, considerados pessoalmente, formulou leis capazes de análise matemática e de extrapolação para governar e predizer a ação coletiva dos grupos humanos.

- Assim...

- Foi esta psicohistória que Seldon e o grupo com que ele trabalhava aplicaram com a sua força total no estabelecimento da Fundação. O lugar, tempo e condições, tudo conspira matematicamente e assim, inevitavelmente, para o desenvolvimento do Império Universal.

A voz de Riose tremia de indignação: - Você quer dizer que essa arte pode predizer que atacarei a Fundação e perderei esta e aquela batalha por esta e aquela razão? Você está tentando dizer que eu sou um autômato estúpido seguindo um caminho predeterminado até á destruição.

- Não - replicou o velho patrício, abruptamente. - Já lhe disse que a ciência não tinha nada a ver com as ações individuais. É o vasto conjunto total da ação que pode ser previsto.

- Nesse caso nós vivemos estreitamente agarrados na mão premente da Deusa da Necessidade Histórica?

- Da necessidade Psicohistórica - corrigiu Barr, brandamente.

- E se eu puser em ação as minhas prerrogativas de desistir inteiramente de atacar? Qual é a flexibilidade da Deusa? Quais os seus recursos?

Barr encolheu os ombros: - Ataque agora ou nunca; com um único navio, ou com todo o poderio do Império; com a força militar ou servindo-se da pressão econômica; por via de uma ingênua declaração de guerra ou com emboscada traiçoeira; sirva-se de tudo o que você tiver no arsenal dos seus perfeitos exercícios de livre-arbítrio. Você estará perdido.

- Por causa da mão morta de Hari Seldon?

- Por causa da mão morta da matemática do comportamento humano que nunca pode ser parada, desviada, nem atrasada.

Encararam-se um ao outro no beco sem saída em que estavam, até que o general deu um passo atrás.

Disse simplesmente: - Vou aceitar esse desafio. É uma mão morta contra uma vontade livre.

 

O IMPERADOR

CLEON II, vulgarmente designado "O Grande' o último imperador poderoso do Primeiro Império, é importante devido ao renascimento político e artístico que se processou durante o seu longo reinado. E mais conhecido pelo romance, todavia, de sua ligação com Bel Riose, e para o homem comum ele é apenas o ''Imperador de Riose". É importante não admitir que os acontecimentos do último ano do seu reinado ofusquem os quarenta anos de...

Enciclopédia Galáctica

 

Cleon II era Senhor do Universo. Cleon II sofreu também de um mal doloroso e não diagnosticado. Para as estranhas evoluções dos negócios humanos, as duas afirmações não se excluem mutuamente, não sendo sequer particularmente incoerentes. Houve na história um número cansativamente numeroso de precedentes.

Porém a carreira de Cleon II não tem mais precedentes. Se nos debruçarmos sobre uma extensa lista de casos similares não melhoraremos o seu sofrimento pessoal com um trabalho eletrônico. Esse sofrimento tornava-o tão pequeno que o levava a pensar em onde o seu bisavô fora governador pirata de um planeta de poeira-atômica, e ele próprio repousava no palácio de verão de Ammenetik, o Grande, como se descendesse de uma linha de governadores Galácticos que se estendesse pelos tempos afora até um passado remoto. Atualmente não encontrava conforto em saber que os esforços de seu pai tinham varrido o reino de seus leprosos sinais de rebelião, devolvendo-o â paz e unidade de que desfrutara sob Stannel VI; o que trouxera como conseqüência que nos vinte e cinco anos do seu reinado nem uma sombra de revolta tivesse obscurecido sua brilhante glória.

O Imperador da Galáxia e Senhor de Tudo lastimava-se quando recostava a cabeça na reconstituinte superfície de força que existia ao redor de sua almofada. Caindo numa moleza em que nem sequer se mexia, e dominado por um formigueiro agradável, Cleon distendia-se um bocado. Soerguia-se com dificuldade e fitava morosamente as paredes distantes do quarto enorme. Era um péssimo quarto para uma pessoa só. Era excessivamente grande. Todos os quartos eram demasiado grandes. Porém era preferível estar só durante estes períodos de invalidez a suportar os galanteios dos cortesãos, a sua pródiga simpatia, a sua estupidez cortês e condescendente. Era melhor estar só do que observar aquelas máscaras insípidas atrás das quais se iam tecendo as tortuosas especulações oferecidas pelas possibilidades de morte e pelas riquezas da sucessão.

Estava dilacerado pelos pensamentos. Havia os seus três filhos; três jovens fortes e robustos, cheios de esperanças e virtudes. Onde é que se meteriam naqueles dias maus? Estavam á espera, não havia dúvida. Vigiavam-se uns aos outros; e todos vigiavam a ele.

Agitou-se desassossegadamente. E agora Brodrig pedia ansiosamente uma audiência. O Brodrig de origem humilde; fiel porque era odiado com um ódio unânime e cordial, que constituía o único ponto de harmonia entre as dúzias de panelinhas em que estava dividida a sua corte.

Brodrig, o fiel favorito, que tinha de ser fiel, e que a menos que tomasse a nave mais rápida existente na Galáxia, no dia em que o Imperador morresse, seria remetido para a câmara atômica logo no dia seguinte.

Cleon II apertou o botão liso no braço do seu grande diva, e a enorme sala que ficava no fundo do quarto dissolveu-se por transparência.

Brodrig avançou ao longo do tapete vermelho, e inclinou-se para beijar a mão flácida do Imperador.

- Como tem passado, senhor? - perguntou o Secretário Privado num tom baixo de ansiedade conveniente.

- Ainda vivo - vociferou o Imperador, exasperado - se pode dizer que se vive quando qualquer patife, capaz de ler um livro de medicina, se serve de mim como se fosse um campo virgem e receptivo para as suas experiências sem valor nenhum. Se existe um remédio imaginável, químico, físico, ou atômico, que ainda não tenha sido experimentado, e se existe alguém que tenha sabido destas experiências em qualquer canto afastado do reino, há de aparecer um dia antes para experimentá-la. E entretanto outro livro recém descoberto, ou simplesmente falsificado, será utilizado como autoridade.

- Pela memória de meu pai - rugiu ele barbaramente - parece que não há um bípede que seja capaz de estudar a doença que tem diante dos olhos, com esses mesmos olhos. Não há um que seja capaz de contar o ritmo do pulso, sem um livro dos antigos diante dele. Estou doente e eles dizem que o mal é "desconhecido". Os loucos! Se no decurso de um milênio os corpos humanos aprenderem novos métodos de morrer misteriosamente, esses métodos não foram abrangidos pelos estudos dos antigos e permanecem incuráveis para todo o sempre. Se não fosse assim os antigos estariam ainda vivos, ou então eu.

O Imperador deixou-se escorregar para trás, diminuindo o ritmo da respiração com uma praga, enquanto Brodrig o fitava com alguma dúvida. Cleon II disse impacientemente: - Quantos é que estão à espera lá fora?

E apontava com a cabeça na direção da porta.

Brodrig respondeu pacientemente: - No Grande Vestíbulo há o número habitual.

- Bem, deixemo-los esperar. Estou ocupado com os assuntos de Estado. Vá declará-lo ao Capitão da Guarda. Ou espera, esqueçamo-nos dos assuntos de Estado. Eu tinha precisamente anunciado que não daria audiência, e deixe o Capitão da Guarda que se aborreça. Os chacais podem trair-se entre eles. - O Imperador riu sem vontade.

- Corria o boato, senhor - disse Brodrig, vagarosamente - de que é o seu coração que lhe provoca perturbações.

O sorriso do Imperador levou pouco tempo a ser substituído pelo anterior sorriso de mofa. - Podem prejudicar outros mais do que a mim próprio se alguém se decidir agir prematuramente com base nesse boato. Todavia vamos ver o que é que você deseja. Pode levantar-se.

Brodrig levantou-se da posição ajoelhada perante um gesto de permissão e disse: - Há qualquer coisa que se refere ao general Bel Riose, o Governador Militar de Siwena.

- Riose? - Cleon II franziu irritadamente as sobrancelhas. - Não tenho lugar para ele. Espera, foi ele que me mandou aquela quixotesca mensagem há uns meses atrás? Sim, me lembro. Desejava permissão para entrar numa carreira de conquistador para glória do Império e do Imperador.

- Exatamente, senhor.

O Imperador riu-se brevemente: - Pensa que tenho alguns generais atrás de mim, Brodrig? Parece-me ser um curioso atavismo. Qual foi a resposta? Eu suponho que tenha tomado cuidado com ele.

- Assim fiz, senhor. Recebeu instruções para fornecer informações adicionais e para não dar nenhum passo que envolvesse uma ação naval sem ordens adicionais do Império.

- Hum. É suficiente para nos manter defendidos. Quem é esse Riose? Já esteve alguma vez na corte?

Brodrig disse que não com a cabeça e os seus lábios torceram-se levemente: - Iniciou sua carreira como cadete na Guarda há uns dez anos atrás. Tomou parte no caso de Lemul Cluster.

- O Lemul Cluster? Bem sei, a minha memória não me falha inteiramente... Foi nesse tempo que um jovem soldado salvou duas naves de um choque frontal com... ou... foi isto ou outra coisa qualquer? - Agitou impacientemente uma mão. - Não me recordo de pormenores. Foi qualquer coisa heróica.

- Foi Riose esse soldado. Promoveram-no por isso - disse Brodrig secamente – e nomearam-no para um posto no campo de batalha, como capitão de uma nave.

- E agora é Governador Militar de um sistema fronteiriço e ainda novo. Um homem capaz, Brodrig!

- Não é de confiança, senhor. Vive no passado. É um sonhador dos tempos antigos, ou antes, dos mitos de que se serviam esses tempos antigos. Alguns homens são inofensivos em si próprios, mas a sua estranha ausência de realismo torna-os loucos para os outros. - Acrescentou: -Seus homens, julgo eu, estão completamente abaixo do seu controle. Ele é um dos seus populares generais.

- É? - cismou o Imperador. - Bem, adiante Brodrig, não quero ser apenas servido por incompetentes. Eles certamente não ficam com inveja da sua própria fidelidade.

- Um traidor incompetente não é um perigo. Há muito mais razões para manter vigiados os homens capazes.

- Você entre eles, Brodrig? - Cleon II riu-se e depois fez uma careta do rida. - Bem, nesse caso, pode esquecer a preleção por enquanto. Que nova revelação há no que se refere a este jovem conquistador? Espero que não se tenha apenas limitado a reminiscências.

- Foi recebida outra mensagem, senhor, do General Riose.

- Oh? E para que efeito?

- Fez uma viagem de espionagem ao território desses bárbaros e requer uma expedição em massa. Os seus argumentos são extensos e razoavelmente aborrecidos. Não tinham importância para aborrecer Vossa Imperial Majestade até agora, durante a sua indisposição. Particularmente desde que será discutida demoradamente durante a sessão do Conselho dos Lordes. - Deitou um olhar oblíquo ao Imperador.

Cleon II franziu os sobrolhos. - Os Lordes? Será um assunto para eles, Brodrig? Isso significa uma quantidade de longas interpretações da Carta. Sempre se acaba nisso.

- Não pode ser evitado, senhor. Podia ter sido melhor se o seu augusto pai tivesse vencido a última rebelião sem ser obrigado a aceitar a Carta. Mas desde que ela existe, temos de suportá-la, por enquanto.

- Suponho que tem razão. Nesse caso os Lordes devem ser ouvidos. Mas para que esta solenidade toda, homem? Trata-se, afinal de contas, de um ponto de reduzida importância. O triunfo numa fronteira remota com tropas reduzidas dificilmente é um negócio de Estado.

Brodrig sorriu ligeiramente. Disse friamente: - É negócio de um romântico idiota; mas precisamente um romântico idiota pode ser uma arma mortal quando um rebelde não-romântico se serve dele como instrumento. Senhor, o homem era popular e continua sendo. É jovem. Se ele anexar um ou dois planetas bárbaros e errantes, tornar-se-á um conquistador. Ora, um jovem conquistador que provou a sua habilidade para excitar o entusiasmo de pilotos, mineiros, comerciantes e uma ralé da mesma espécie é perigoso em qualquer época. Ainda que lhe falte o desejo de fazer como seu augusto pai fez ao usurpador, Ricker, há ainda a hipótese de um dos nossos Lordes do Domínio se decidir a utilizá-lo como arma.

Cleon II mexeu um braço precipitadamente e retesou-se sob o efeito da dor. Relaxou-se lentamente, mas desaparecera-lhe o sorriso, e sua voz tornou-se um sussurro: - Você é um súdito precioso, Brodrig. Desconfia sempre mais do que é necessário, e eu só preciso levar em consideração metade das precauções que você sugere para estar completamente defendido. Ele poderá encontrar-se com os Lordes. Nós veremos o que eles dizem e tomaremos as nossas medidas de acordo com isso. O jovem, calculo eu, ainda não se lançou em movimentos hostis.

- Não se diz nada a esse respeito. Mas já pede reforços.

- Reforços! - Os olhos do Imperador cintilaram com espanto. - Mas que força tem ele?

- Dez naves de combate, senhor, com um complemento total de naves auxiliares. Duas dessas naves estão equipadas com motores recuperados da antiga Grande Esquadra, e uma delas tem uma bateria de artilharia da mesma origem. As outras naves não são modernas, dos últimos cinqüenta anos, porém ainda podem ser utilizadas.

- Dez naves devem parecer armamento adequado para qualquer empresa razoável. Porque, com menos de dez naves, conseguiu meu pai sua primeira vitória contra o usurpador. Quem são esses bárbaros que ele atacará?

O Secretário Privado levantou um par de sobrancelhas arrogantes: - Refere-se a eles como sendo "a Fundação".

- A Fundação? O que vem a ser isso?

- Não há nenhum registro a esse respeito, senhor. Procurei cuidadosamente nos arquivos. A área da Galáxia que ele indica coincide com a antiga província de Anacreon, que há dois séculos foi abandonada a si mesma por roubos, barbarismo e anarquia. Não há planeta conhecido pela designação de Fundação, seja como for. Havia uma vaga referência a um grupo de cientistas enviado para esta província pouco antes de ela se separar da nossa proteção. Estavam preparando uma Enciclopédia. - Sorriu fracamente. -Suponho que lhe chamavam a Enciclopédia Fundação.

- Bem - o Imperador observou-o sombriamente - isso parece-me uma fraca base para poder ir avante.

- Não estou andando para diante, senhor. Não foi recebida uma palavra sequer dessa expedição depois do aumento da anarquia nessa região. Se os seus descendentes ainda estiverem vivos e conservam o seu nome, nesse caso devem ter certamente regressado ao barbarismo.

- E para isso ele deseja reforços. - O Imperador lançou um olhar feroz ao seu secretário. - Isso é muito peculiar; propor-se combater selvagens com dez naves e pedir mais antes de lançar um ataque, é surpreendente. Já começo a me lembrar desse Riose; era um rapaz simpático, de uma família leal. Brodrig, há aqui implicações que eu não consigo compreender. Isto deve ter mais importância do que parece.

Os seus dedos brincaram preguiçosamente com o lençol brilhante que lhe cobria as pernas rígidas. Continuou: - Preciso de um homem desse tipo; de um homem que tenha visão, cérebro e lealdade, Brodrig...

O secretário inclinou a cabeça submissa: - E as naves, senhor?

- Ainda não! - O Imperador gemeu suavemente quando mudou de posição no seu leito macio. Apontou um dedo fraco: - Não, enquanto não soubermos mais alguma coisa. Convoca o Conselho dos Lordes para um dos dias desta semana. Também deve ser uma boa oportunidade para novas apropriações. Isso deve ter prioridade absoluta.

Meneou a cabeça para afastar o formigueiro doloroso da almofada com o irradiante campo de força. - Vá-se embora, Brodrig, e mande-me entrar o médico. É o pior zangão do grupo.

 

COMEÇA A GUERRA

Do ponto de irradiação de Siwena, as forças do Império encaminharam-se cautelosamente para a escuridão desconhecida da Periferia. Naves gigantescas venciam as vastas distâncias que separavam as estrelas errantes da extremidade da Galáxia, e sondavam o caminho em volta do limite que ficava mais no exterior da influência da Fundação.

Mundos isolados no seu novo barbarismo de dois séculos voltavam a sentir mais uma vez a sensação dos senhores feudais do Império, pisando o seu solo. Jurou-se lealdade perante a artilharia maciça que estava sobre suas cidades capitais.

Tinham deixado guarnições; guarnições de homens com o uniforme Imperial com a insígnia brilhante do Sol e da Nave colocada nos ombros. Os homens velhos deram notícia disso e lembraram-se uma vez mais das esquecidas narrativas dos pais dos seus avós, dos tempos em que o universo era grande, rico e pacífico, e aquele mesmo símbolo do Sol e da Nave governava tudo.

Então as grandes aves continuaram a tecer suas linhas de bases avançadas em volta da Fundação. E como cada mundo via logo designado o seu próprio lugar na estrutura, o relatório voltava para trás, para Bel Riose, que estabelecera o seu quartel-general na aridez rochosa de um planeta errante, com um sol fraco.

Agora Riose descontraía-se e sorria severamente para Ducem Barr: -Bem, o que é que você pensa, patrício?

- Eu? Mas que valor pode ter aquilo que eu penso? Não sou militar. -Ao dizer isto fingiu um olhar cansadamente desgostoso, perante a desordem cada vez maior do aposento que ia terminar na pedra, e que fora rasgado na parede de uma caverna, tendo instalado ar e luz artificiais, e calor que forneciam a única ilusão de vida na vastidão de um mundo deserto.

- Pela ajuda que lhe posso dar - murmurou ele - ou que lhe desejo dar, podia mandar-me de volta para Siwena.

- Ainda não. Ainda não. - O general virou a cadeira para o canto onde estava apoiada a esfera enorme, brilhantemente transparente, que representava a antiga prefeitura imperial de Anacreon e os seus setores vizinhos. - Mais tarde, quando isto estiver mais adiantado, você poderá regressar aos seus livros e a tudo o mais. Eu cuidarei que os bens de sua família sejam devolvidos a você e aos seus filhos para o resto da vida.

- Muito obrigado - replicou Barr, com uma ironia difusa - porém eu deposito fé no resultado feliz de tudo isto.

Riose riu-se sem jeito: - Não me indisponha outra vez contra suas lamentações. Este mapa fala mais evidentemente do que todas as suas teorias calamitosas. – Acariciou delicadamente o seu perfil arqueado e invisível. - Você é capaz de ler um mapa em projeção radial? Pode? Bem, veja por você mesmo. As estrelas douradas representam os territórios Imperiais. As estrelas vermelhas são aquelas que estão submetidas pela Fundação e as cor-de-rosa aquelas que estão provavelmente dentro da influência da esfera econômica. Agora veja...

A mão de Riose cobriu um botão arredondado, e vagarosamente uma área de brancas e ásperas cabeças de alfinete transformou-se num azul profundo. Como uma taça de fundo virado para o ar eles ficaram encaixados entre o vermelho e o cor-de-rosa.

- Estas estrelas azuis estão sendo ocupadas pelas minhas forças - disse Riose com tranqüila satisfação - e elas ainda continuam a avançar. Ainda não apareceu qualquer oposição. Os bárbaros estão tranqüilos. E, particularmente, não verificou nenhuma oposição por parte das forças da Fundação. Essas estão dormindo tranqüilamente e bem.

- Você espalha suas forças por toda a parte, não é assim? - perguntou Barr.

- Realmente - disse Riose -, e a despeito das aparências, não é assim. Os pontos-chave que guarneci e fortifiquei são relativamente poucos, porém foram cuidadosamente escolhidos. O resultado é que as forças mobilizadas são reduzidas, mas grandes os resultados estratégicos. Há muitas vantagens, mais do que pode parecer para quem não fez ainda um estudo cuidadoso das táticas espaciais, se bem que seja evidente para qualquer pessoa, por exemplo, em que eu possa lançar um ataque a partir de qualquer ponto nesta esfera cercada e, por isso, quando eu tiver terminado, será impossível à Fundação atacar pelos flancos ou pela retaguarda. Não terei flancos nem retaguarda em relação a eles. Esta estratégia do Cerco Prévio já foi anteriormente aplicada notadamente nas campanhas de Loris VI, há uns dois mil anos, mas sempre imperfeitamente; sempre com o conhecimento e a interferência combativa do inimigo. Isto é diferente.

- O caso ideal do compêndio? - A voz de Barr era lânguida e indiferente.

Riose mostrou-se impaciente: - Você ainda pensa que as minhas táticas vão falhar?

- Assim deve ser.

- Você deve compreender que não há caso na história militar em que, tendo-se completado um cerco, as forças atacantes não tenham eventualmente ganho, exceto nos casos em que exista uma força exterior suficiente para romper o cerco.

- Se você assim o diz.

- E você ainda se mantém fiel à sua doutrina?

- Decerto.

Riose encolheu os ombros: - Continuarei na mesma.

Barr deixou que o irritado silêncio durasse um momento, depois do que perguntou tranqüilamente: - Você já recebeu alguma resposta do Imperador?

Riose tirou um cigarro de um recipiente da parede, colocado atrás de sua cabeça, pôs um filtro entre os lábios e aspirou a chama cuidadosamente. Acabou por dizer: - Refere-se ao meu pedido de reforços? Já chegou, isto é tudo. É precisamente essa a resposta.

- Não mandam naves.

- Nenhuma. Já estava meio desconfiado. Francamente, patrício, eu nunca devia ter consentido que as suas teorias me enchessem de pânico a ponto de fazer um pedido antecipado de reforços. Isto colocou-me numa posição muito incômoda.

- É assunto encerrado?

- Definitivamente. As naves são difíceis. As guerras civis dos últimos dois séculos despedaçaram mais de metade da Grande Esquadra e o que restou está em condições verdadeiramente lastimáveis. Você sabe isto tão bem como sabe que as naves que construímos agora não são de primeira qualidade. Não me parece que haja um único homem na galáxia atual que seja capaz de construir um motor hiper-atômico de primeira classe.

- Sei isso muito bem - disse o siweniano. Os seus olhos estavam pensativos e meditativos. - Mas não calculava que você o soubesse também. Por isso sua Majestade Imperial não está em condições de conceder naves. A psicohistória podia ter predito isto; de fato deve tê-lo feito, com toda a certeza. Eu diria que a mão morta de Hari Seldon ganhou o primeiro assalto.

Riose respondeu duramente: - As naves que tenho bastam-me. O seu Seldon não ganhou coisa nenhuma. Se a situação se tornar mais séria, nessa altura devem estar disponíveis mais naves. Até o momento o Imperador não deve conhecer a história toda.

- Deveras? Por que é que você não lha contou?

- Foram evidentemente... as suas teorias. - Riose fitou-o sarcasticamente. - A história é, com todo o respeito que lhe é devido, altamente improvável Se a evolução que se verificar o autorizar, e se os acontecimentos me vierem dar uma prova, nesse caso, mas só então, farei referência a uma situação de emergência.

- E como elemento adicional - Riose olhou á sua volta, descuidadamente - a história, desapoiada pelos fatos, tem um cheiro de lesa majestade que só muito escassamente podia ser agradável à Sua Majestade Imperial.

O velho patrício sorriu: - Você pensa que revelar-lhe que o seu augusto trono está em perigo de subversão, devido a uma porção de bárbaros esfarrapados dos confins do universo não é aviso que possa ser compreendido ou apreciado. Nesse caso, você não espera nada dele.

- A menos que veja aparecer um enviado especial daqui a pouco.

- E por que um enviado especial?

- Trata-se de um velho costume. Um representante direto da coroa está presente em todas as campanhas militares que se processam sob os auspícios do governo.

- É verdade? Por quê?

- Trata-se de uma tradição de preservar o símbolo da chefia pessoal do Imperador em todas as campanhas. Adquiriu, todavia, a função secundária de vigiar a fidelidade dos generais. Nem sempre sucede assim a este respeito.

- Você vai achar isso inconveniente, general. Uma autoridade estranha, penso eu.

- Não duvido que assim seja - Riose corou de leve - mas não pode ser evitado...

O receptor que estava na mão do general reluziu ardentemente, e com um som intrusivo, o cilindro de comunicação estalou e saiu pela fenda. Riose foi-a desenrolando: - Ótimo! Cá está ele!

Ducem franziu os sobrolhos numa meia pergunta.

Riose esclareceu: - Você sabe que capturamos um desses comerciantes. Vivo, e com a nave intata.

- Já ouvi falar dele.

- Muito bem, estão agora mesmo trazendo-o para cá, e deve estar aqui dentro de um minuto. Pode continuar sentado, patrício. Desejo que esteja aqui quando o interrogar. Foi por isso que lhe pedi para vir hoje aqui, antes de mais nada. Você pode estar atento quando eu deixar passar pontos importantes.

O sinal da porta ressoou e um toque do general fez girar a ampla porta. O homem que estava de pé no limiar era alto e barbudo, vestindo um curto casaco de couro plástico, com um capuz empurrado para a nuca. Tinha as mãos livres, e homens armados â sua volta; não mostrou nenhuma perturbação aparente.

Avançou sem objetivo, e olhou à sua volta com olhos perscrutadores. Saudou o general com um aceno grosseiro de mão e uma meia reverência.

- Como se chama? - perguntou Riose, vagamente.

- Lathan Devers. - O comerciante meteu os dedos no amplo e vistoso cinto: - Você é o patrão?

- E você é um comerciante da Fundação?

- Exatamente. Ouça, se você é o patrão, faria melhor se dissesse aos seus mercenários que deixem o meu cargueiro em paz.

O general levantou a cabeça e olhou friamente para o prisioneiro: - Responda às perguntas. Não aceito ordens não autorizadas.

- Muito bem. Quis ser delicado. Contudo um dos seus rapazes já está pronto para ser colocado no caixão por ter metido os dedos onde não devia.

Riose transferiu o olhar para o tenente de guarda. - Este homem está falando a verdade? No seu relatório, Vrank, não havia referência a nenhuma perda.

- Não houve nenhuma, senhor - o tenente falava sufocadamente, apreensivamente - durante o ataque. Tomaram-se posteriormente algumas disposições para revistar o barco, pois começou a correr o boato de que havia uma mulher a bordo. Nesta altura, senhor, foram localizados muitos instrumentos de natureza desconhecida, instrumentos que o prisioneiro referiu serem coisas do seu comércio. Um deles lançou uns relâmpagos quando o tocaram, e o soldado que o tocou morreu.

O general virou-se novamente para o comerciante: - Quer isto dizer que o seu barco carrega explosivos atômicos?

- Pela Galáxia, claro que não. Para que? Aquele louco agarrou um punção atômico, mal e com avidez e apanhou uma desintegração máxima. É coisa que não se deve fazer. Podia perfeitamente ter apontado uma pistola-nêutron â cabeça que conseguia o mesmo resultado. Eu poderia ter evitado, se não se tivessem sentado cinco homens em cima do meu peito.

Riose fez um gesto para o guarda que se mantinha na expectativa: - pode ir-se embora. A nave capturada deve ser selada para evitar toda e qualquer intrusão. Sente-se, Devers.

O comerciante assim fez, no lugar indicado, e resistiu estoicamente ao duro exame do general Imperial e ao olhar curioso do patrício siweniano. Riose disse: - Você é um homem sensível, Devers.

- Muito obrigado. Você está impressionado pela minha cara, ou precisa de mais alguma coisa? Eu digo-lhe o que sou. Sou um bom homem de negócios.

- É a respeito da mesma coisa. Você entregou a nave quando podia ter-se decidido a desperdiçar nossas munições e ter-se destruído a si próprio como poeira eletrônica. Pode resultar disso um bom tratamento para você, se continuar dentro deste tipo de perspectiva da vida.

- Bom tratamento é o que eu mais desejo, patrão.

- Ótimo, e cooperação é o que eu mais desejo. - Riose sorriu, e disse à parte em voz baixa para Ducem Barr: - Espero que a palavra "desejo" signifique aquilo que estou imaginando. Você alguma vez ouviu esta espécie de jargão bárbaro?

Devers replicou suavemente: - Está bem. Ponho-me â sua disposição. Mas a que espécie de cooperação é que se refere, patrão? Para lhe falar honestamente, não sei onde estou. - Olhou à sua volta. - Que lugar é este, por exemplo, e qual é a sua idéia?

- Ah, já me esqueci da outra metade das apresentações. Peço desculpa. - Riose estava de bom-humor. - Este cavalheiro é Ducem Barr, Patrício do Império. Eu sou Bel Riose, Par do Império, e General de Terceira Classe das forças armadas de Sua Majestade Imperial.

O queixo do comerciante pendeu. Depois: - O Império? Isso quer dizer o velho Império que nos ensinavam na escola? Hui! Tolice! Eu sempre tive noção de que já deixara de existir de todo.

- Olhe â sua volta. Está nele - disse Riose carrancudamente.

- Podia tê-lo reconhecido, não obstante - e Lathan Devers levantou os olhos para o teto. - Foi um sujeito com ar muito cortês que pegou com muita habilidade a minha velha nave. Nenhum reino da Periferia podia tê-lo feito assim. Enrugou a testa: - Qual é o seu jogo, patrão? Ou devo chamar-lhe general?

- O jogo é a guerra.

- O Império contra a Fundação, não é?

- Isso mesmo.

- Porquê?

- Penso que você sabe porque.

O comerciante fitou-o rudemente e meneou a cabeça.

Riose deixou o outro deliberar, depois do que disse devagarinho: - Tenho a certeza de que você sabe porque.

Lathan Devers resmungou: - Está calor, aqui - e pôs-se de pé para tirar o casaco com capuz. Depois do que voltou a sentar-se e esticou as pernas.

- Sabe - replicou ele, confortavelmente - eu imagino que vocês estão pensando que eu devia lançar um grito de guerra e desatar a apontar armas à minha volta. Eu podia surpreendê-lo antes de você se poder mexer se escolhesse a minha oportunidade, e este velho parceiro, que está sentado e não diz nada, também não me poderia deter.

- Contudo você não o conseguiria - disse Riose, num tom confidencial.

- Não conseguiria - anuiu Devers, amistosamente. - Em primeiro lugar, se eu o matasse, isso não iria parar a guerra, ao que suponho. Há mais generais no lugar de onde você veio.

- Trata-se de uma dedução muito correta.

- Além do que, eu seria provavelmente abatido uns dois segundos depois de o ter derrubado, e morto logo a seguir, ou talvez demoradamente, depende. Mas se me matassem, eu nunca viria a saber em que é que consistem os seus planos. E não haveria nenhuma compensação no caso.

- Eu disse que você era um homem sensível.

- Mas há uma coisa que lhe quero dizer, patrão. Eu gostaria que me explicasse o que queria dizer quando me declarou que eu sabia porque é que vocês nos declararam guerra. Cá por mim não sei; e nunca consigo chegar ao fim em jogos de adivinhação.

- Sim? Você nunca ouviu falar de Hari Seldon?

- Não. Eu disse que não gosto de jogos de adivinhação.

Riose lançou um olhar de relance a Ducem Barr, que sorriu com breve suavidade e voltou à sua expressão de sonho interior.

Riose disse com uma careta: - Não se trata de você gostar ou não gostar de jogos, Devers. Há uma tradição, ou fábula, ou história sensata - não é isso que me preocupa – a respeito da sua Fundação, que diz que vocês acabarão por fundar o Segundo Império. Eu conheço mais ou menos uma versão pormenorizada da grande charlatanice psicohistórica de Hari Seldon, e os seus planos finais de agressão contra o Império.

- Ah sim? - Devers meneou pensativamente a cabeça. - E que é que eu lhe devo dizer de tudo isto?

- Conhece este tema? - perguntou Riose com perigosa brandura. -Você está aqui mas não para perguntar nada. Eu desejo que você saiba o que se passa a respeito da fábula de Seldon.

- Mas se é uma fábula...

- Não brinque com as palavras, Devers.

- Não estou brincando. De fato, eu desejo ser inteiramente honesto com você. Você sabe tudo o que eu sei a esse respeito. É uma estúpida tolice, já meio esquecida. Todos os mundos têm os seus contos de aventuras; você não pode proibi-los de prosseguir o seu caminho. Pois eu tenho ouvido esta espécie de conversa; Seldon, Segundo Império e assim por diante. Serve para contar á noite às crianças para que elas adormeçam ouvindo estas tolices. Os jovens projetam círculos visíveis nos seus quartos de brincadeira com os seus projetores de bolso e absorvem as emoções de Seldon. Mas isto é estritamente para pessoas não adultas. Quando muito, será para adultos não inteligentes. - O comerciante meneou a cabeça.

Os olhos do general Imperial estavam obscurecidos. - É realmente assim? Você está desperdiçando as suas mentiras, homem. Eu estive no planeta Terminus. Conheço a Fundação. Tenho-me dedicado a examiná-la com muito cuidado.

- E nesse caso põe-se-me a fazer perguntas? A mim, quando não me demoro lá dois meses cada dez anos? Você está desperdiçando o seu tempo. Vá para diante com a sua guerra, se está empenhado em correr atrás de suas fábulas.

E Barr falou pela primeira vez, maciamente: - Você está assim tão seguro da vitória da Fundação?

O comerciante virou-se. Corou de leve e uma cicatriz antiga que tinha numa têmpora tornou-se lívida: - Hm-m-m, o parceiro silencioso. O que é que você aproveitou daquilo que eu disse, doutor?

Riose meneou a cabeça muito vagarosamente para Barr, e o siweniano continuou em voz baixa: - Digo isto porque esta declaração de guerra o havia de aborrecer se você pensasse que o seu mundo poderia perdê-la, e sofrer as amargas conseqüências da derrota, ao que me parece. O meu mundo morreu uma vez, e ainda assim continua.

Lathan Devers cofiou a barba, olhou para os presentes um após outro, depois do que sorriu repentinamente: - Ele fala sempre assim, patrão? Ouça - e tornou-se sério - o que é uma derrota? Já vi guerras e já vi derrotas. O que acontece quando o vencedor assume o domínio? Quem é que fica aborrecido? Eu? Os sujeitos como eu? - Meneou a cabeça com ironia.

- Compreendam isto - o comerciante falava agora de maneira vigorosa e séria – há cinco ou seis mandões gordos que habitualmente dirigem um planeta médio. Esses recebem a paulada atrás da orelha, mas eu não vou agora perder a paz de espírito por sua causa. Veja. O povo? O populacho? Decerto alguns morrerão e os restantes haverão de ser obrigados a pagar impostos extras durante um tempo. Mas hão de acabar por se pôr de fora; e passarão a trabalhar debaixo das ordens de outros. E depois voltarão à sua antiga situação novamente em confusão.

As narinas de Ducem Barr estremeceram, e os tendões da sua velha mão direita contraíram-se, mas não disse nada.

Os olhos de Lathan Devers estavam fitos nele. Não perderam nada. E disse: - Olhe. Eu gasto a vida no espaço com minhas engenhocas de meia pataca e sujeito as minhas responsabilidades perante as Associações Comerciais. Há uns parceiros gordos lá para trás - e o seu dedo polegar apontou para trás, por cima do ombro - sentados em casa e recebendo os meus rendimentos minuto a minuto, durante o ano - livres de aborrecimentos e mais satisfeitos do que eu. Suponha que você governasse a Fundação. Você há de precisar sempre de nós. Você precisará mais de nós do que as Associações Comerciais - porque não sabe o que existe â sua volta, e nós podemos satisfazer as exigências da caixa. Podemos ficar em muito melhor situação com o Império. Pois claro que podemos; e eu sou um homem de negócio. Se ele nos trouxer mais proveitos, sou pelo Império.

E fitou os dois com irônica beligerância.

O silêncio durou dois minutos, e depois um rolo ressoou ao sair de sua fenda. O general apanhou-o e abriu-o, relanceando a escrita limpa e colocou os visores em circuito com um movimento circular.

- Prepare um plano indicando a posição de cada nave em ação. Espere ordens mantendo a armada completamente em setores defensivos.

Alcançou a capa. Quando estava a pô-la aos ombros, sussurrou a Barr num tom monótono: - Deixo-lhe o homem. Vou aguardar os resultados. Estamos em guerra e eu posso ser cruel nos fracassos. Lembre-se disso! -Saiu, com uma saudação dirigida aos dois.

Lathan Devers olhou para ele enquanto saía. - Bem, alguma coisa o picou. Onde é que ele foi?

- Para uma batalha, como é evidente - disse Barr, mal-humorado. - As forças da Fundação estão se preparando para a primeira batalha. Você faria melhor se se apressasse.

Entraram no aposento soldados armados. O seu porte era respeitoso e os seus rostos mostravam-se severos. Devers seguiu o velho e soberbo patriarca siweniano para fora do aposento.

O aposento onde os meteram era pequeno e vazio. Continha duas camas, um televisor, chuveiro e instalações sanitárias. Os soldados saíram, e a grossa porta ressoou com um estrondo vazio.

- Hum? - Devers olhou em volta de maneira desaprovadora. - Isto parece-me destinado a ser permanente.

- E é - disse Barr, brevemente. O velho siweniano virou-lhe as costas.

O comerciante perguntou irritadamente: - Qual é o seu jogo, doutor?

- Não tenho jogo nenhum. Você fica a meu cargo, mais nada.

O comerciante corou e avançou. O queixo elevou-se por cima do patrício imóvel. – Ah sim? Mas você está nesta cela comigo e quando vocês avançarem, os canhões tanto estarão apontados para você como para mim. Ouça, vocês ficaram nervosos por causa das minhas noções a respeito de guerra e paz.

Esperou sem qualquer resultado: - Muito bem, deixe-me dizer-lhe uma coisa. Você disse que o seu país foi esmagado uma vez. Por quem? Por um povo cometa de outra nebulosa?

Barr olhou para ele: - Pelo Império.

- Ah sim? Nesse caso, o que é que você está fazendo aqui?

Barr manteve um eloqüente silêncio.

O comerciante deixou cair o lábio e meneou vagarosamente a cabeça. Tirou a pulseira chata e comprida que trazia no pulso direito e segurou-a na mão: - O que é que você pensa disto? - Estendeu-a ao companheiro com a mão esquerda.

O siweniano pegou o ornamento. Imitou vagarosamente o gesto do comerciante e colocou-o no pulso. O estranho zumbir no pulso tornou-se mais rápido.

A voz de Devers mudou mais uma vez. - Veja, doutor, você agora está em condições de agir. Falo apenas por acaso. Se este aposento tem um campo elétrico a circundá-lo, eles não ouvirão coisa alguma. O que você aí tem é um Distorcedor de Campo; um genuíno invento de Mallow. Vendo-o por vinte e cinco créditos em qualquer mundo daqui até á outra extremidade. Você pode conseguir a liberdade. Conserve os lábios imóveis quando falar e mantenha-se tranqüilo. Você conseguira compreender o estratagema.

Ducem Barr ficou repentinamente aborrecido. Os olhos incômodos do comerciante estavam luminosos e animadores. Foi diminuindo suas perguntas sem ritmo.

Barr disse: - O que é que você quer? - As palavras modularam-se de entre os seus lábios imóveis.

- Eu lhe digo. Você faz tanto barulho com a boca como aquilo a que denominamos um patriota. Contudo, o seu próprio mundo foi trucidado pelo Império, e aí está você jogando as bolas com o general do Império bem educado e bem penteado. Não lhe parece que há nisto uma certa falta de sentido?

Barr disse: - Já fiz a minha parte. Um vice-rei Imperial e conquistador morreu por minha causa.

- Ah sim? Recentemente?

- Há quarenta anos.

- Há. quarenta... anos! - As palavras pareciam ter dificuldade em ganhar sentido no espírito do comerciante. Franziu os sobrolhos. - Trata-se de um longo período para conservar na memória. Esta porcaria vestida com uniforme de general sabe disso?

Barr acenou que sim.

Os olhos de Devers tornaram-se obscuros enquanto pensava.

- Você deseja que o Império vença?

E o velho patrício siweniano começou subitamente a falar com uma profunda cólera: - O Império e todas as suas obras podem perecer na catástrofe universal. Siwena inteira roga todos os dias por isso. Eu tive irmãos outrora, uma irmã, um pai. Agora tenho filhos e netos. O general sabe onde os pode encontrar.

Devers esperou.

Barr continuou num sussurro: - Mas isto não me deteria se os resultados compensassem o risco.Eles haviam de compreender a maneira como morrer.

O comerciante observou delicadamente: - Então você matou uma vez um vice-rei, heim? Sabe, estou cismando cá numas coisas. Tivemos outrora um administrador, seu nome era Hober Mallow. Visitou uma vez Siwena; é este o seu mundo, não é? Ele encontrou um homem chamado Barr.

Ducem fitou-o duramente: - O que é que você sabe sobre isso?

- Aquilo que sabem todos os comerciantes da Fundação. Você podia ser um velho companheiro encantador, colocado aqui especialmente para conseguir levar-me a dizer coisas. Claro, eles apontam-lhe pistolas desintegradoras e você odeia o Império e fará o possível por dar cabo deles. Quando conseguir isto hei de abrir-lhe o meu coração e o general não há de ficar nada satisfeito. Mas aqui não há muitas possibilidades de que isso aconteça, doutor.

- Não obstante isso mesmo, gostaria que me provasse que você é o filho de Onum Barr de Siwena - o sexto e mais novo que escapou ao massacre.

A mão de Ducem Barr agitou-se quando ele abriu a caixa de metal Uso, encaixado na parede. O objeto de metal separou-se com um estalido surdo quando ele o meteu com força nas mãos do comerciante.

- Olhe para isto - disse ele.

Devers olhou. Levou aos olhos a grossa argola central da corrente sem abertura e praguejou suavemente. - Ou isto é o monograma de Mallow, ou sou um principiante do espaço, e o modelo já tem cinqüenta anos de idade.

Levantou o olhos e sorriu.

- Aperte, doutor. Um campo atômico do tamanho de um homem é a única prova de que preciso - e estendeu-lhe a sua larga mão.

 

O FAVORITO

As pequeninas naves tinham aparecido das profundidades vazias e arremessaram-se pelo meio da Armada. Sem um choque ou uma explosão de energia, moveram-se através da área ocupada pelas naves, depois do que dispararam e desapareceram, enquanto as galeras Imperiais giravam â volta deles como animais sem ordem. Havia dois faróis silenciosos que pontilhavam o espaço como dois mosquitos pequeninos engelhados numa decomposição atômica, e o resto desaparecera.

As grandes naves realizaram buscas, depois do que regressaram à sua tarefa original, e palmo a palmo, a grande teia do Cerco continuou.

O uniforme de Brodrig era imponente; cuidadosamente cortado e cuidadosamente envergado. Passeava através dos jardins do obscuro planeta Wanda, agora temporariamente transformado em quartel-general Imperial, e estava tranqüilo; sua expressão era sombria.

Bel Riose acompanhava-o no passeio, com o seu uniforme de combate aberto no pescoço, e triste no seu monótono cinzento-escuro.

Riose indicou o banco liso e preto debaixo do fragrante feto-arbóreo, cujas largas folhas espatuladas se desenhavam fragilmente contra o sol branco.

- Veja isto, senhor. É uma relíquia do Império. Os bancos ornamentados, construídos para o amor, para o devaneio, novos e ainda em condições de serem usados, enquanto as fábricas e os palácios caem em ruínas esquecidas.

Sentou-se, enquanto o Secretário Privado de Cleon II se deixava ficar de pé, muito teso, diante dele e cortava destramente as folhas que lhe ficavam por cima, com golpes precisos de seu bastão de marfim.

Riose cruzou as pernas e ofereceu um cigarro ao outro. Tirou um para ele próprio enquanto ia dizendo:

- Era isto mesmo que esperava da iluminada sabedoria de Sua Majestade Imperial; que mandasse um observador tão competente como o senhor. Faz desaparecer qualquer ansiedade que eu pudesse ter sentido pensando que a urgência de assuntos mais importantes talvez obrigasse a esquecer, por momentos, uma pequena campanha da Periferia.

- Os olhos do Imperador estão em toda a parte - disse Brodrig, sem raciocínio. – Não devemos subestimar a importância da campanha; por ora deve parecer que se está dando uma importância exagerada as dificuldades que apresenta. É claro que não são suas pequenas naves a barreira indicada para movimentarmos nas intrincadas manobras preliminares de um cerco.

Riose ruborizou-se, porém manteve o domínio de si.

- Eu não quero arriscar as vidas dos meus homens, que são poucos, todavia, ou a destruição das minhas naves que são insubstituíveis, lançando um ataque demasiado arrojado. O estabelecimento de um Cerco força-me a concentrar todas as minhas possibilidades no último ataque, por mais difícil que possa vir a ser. Já tomei a liberdade de lhe explicar as razões militares que me levam a isto.

- Bem, bem, eu não sou militar. Neste caso, você garante-me que aquilo que consideramos como sendo patente e evidentemente correto é, na realidade, errado. Podemos conceder-lhe que assim seja. Sua cautela deixa o problema fora de causa. No seu segundo relatório, você pedia reforços. E isto contra um inimigo fraco, pequeno, e bárbaro, com o qual você não tivera ainda, nessa altura, uma única escaramuça. Pretender mais forças em tais circunstâncias era pormenor para dar ao seu pedido um sabor de quase incapacidade, ou coisa pior, pois que na sua curta carreira você ainda não pudera dar suficientes provas de arrojo e imaginação.

- Fico-lhe muito grato - disse o general, friamente - ma? devo lembrar-lhe que há uma diferença entre arrojo e cegueira. Há lugar para uma jogada decisiva se conhece o inimigo e se pode calcular os riscos pelo menos de maneira grosseira; mas pôr tudo em ação contra um inimigo desconhecido é cegueira propriamente dita. Você podia ter-me perguntado qual a razão que leva um homem a realizar, com segurança, uma corrida de obstáculos durante o dia, quando à noite esbarra com a mobília do seu quarto.

Brodrig afastou as outras palavras com um esmerado piparote dos dedos.

- É dramático, mas não satisfatório. Você observou pessoalmente este mundo bárbaro. Tem, além disso, em seu poder um prisioneiro inimigo para interrogar, esse tal comerciante. Entre você e o prisioneiro não há uma noite de distância.

- Não? Peço licença para lhe recordar que um mundo que se foi desenvolvendo durante dois séculos no isolamento, não deve considerar-se conhecido para basear um ataque inteligente apenas com o conhecimento obtido por um mês de visita. Sou soldado, não um desses heróis de filmes, com o peito em forma de barrica, que aparecem nas histórias subetéricas e trimensionais. E um único prisioneiro, e ainda por cima um prisioneiro que é um membro obscuro de um grupo econômico que não tem íntima conexão com o mundo inimigo, também não pode facilitar o conhecimento total dos segredos mais profundos da estratégia inimiga.

- Você já o interrogou?

- Já.

- E então?

- Forneceu alguns dados, mas não muito importantes. A sua nave é fraca, não tem qualquer importância. Vende umas pequenas bagatelas engraçadas, mas mais nada. Tenho comigo algumas dessas habilidades, que pretendo remeter ao Imperador como curiosidades. Naturalmente, há uma boa porção delas na nave cujo funcionamento eu não compreendo, e não trouxe nenhum técnico comigo.

- Mas você já teve consigo alguns homens que sabiam - observou Brodrig.

- Sei muito bem - replicou o general num tom levemente mordaz. -Mas esses loucos foram-se embora antes de terem satisfeito todas as minhas necessidades. Já pedi que me mandassem homens entendidos no funcionamento dos estranhos campos de circuitos atômicos que a nave contém. E não obtive resposta.

- Homens desse tipo não podem ser espalhados por toda a parte, general. Certamente que existirá, na sua vasta província, algum homem que entenda de coisas atômicas.

- Houvesse aqui apenas um já eu teria reparado os motores parados que fornecem força motriz a duas naves da minha pequena frota. Duas naves, entre as minhas pobres dez, que não podem sustentar uma batalha mais prolongada por falta de suficiente suprimento de força. Um quinto da minha força condenada a uma putrefata atividade de consolidação de posições atrás das linhas.

Os dedos do secretário tamborilaram impacientemente:

- Sua preocupação não é única a esse respeito, general. O Imperador também tem preocupações idênticas.

O general deitou fora o cigarro rasgado, que não chegara a acender, tirou outro, e encolheu os ombros:

- Bem, vamos ao seguinte ponto; há falta de técnicos de primeira classe. Podia ter feito mais progressos com o meu prisioneiro se tivesse minha Sonda Psíquica em bom estado.

As sobrancelhas do secretário levantaram-se:

- Você tem uma Sonda?

- Já muito velha e falha sempre que preciso dela. Apliquei-a enquanto o prisioneiro estava dormindo, e não consegui nada. É demais para a Sonda. Experimentei-a nos meus próprios homens e a reação foi inteiramente correta, mas sucede que não há um único homem do meu estado-maior técnico que seja capaz de me dizer por que é que falha no prisioneiro. Ducem Barr, que é um teórico de talento, embora não seja um mecânico, diz que a estrutura física do prisioneiro não pode ser afetada pela Sonda desde que, a partir da infância, ele tenha sido sujeito aos ambientes estranhos e aos estímulos neurais. Não compreendo nada disso. Mas já podia ter dado algum resultado. Guardei-a com essa esperança.

Brodrig encostou-se ao seu bastão.

- Eu verei se é possível conseguir um especialista disponível na capital. Entretanto, que homem vem a ser o que mencionou há bocadinho, o siweniano? Você conserva muitos inimigos nas suas boas graças.

- Ele conhece o inimigo. Conhece-o muito bem, e guardo-o para futuras referências e pela ajuda que me pode dar.

- Mas trata-se de um siweniano e do filho de um rebelde proscrito.

- E velho e impotente, e conserva a família como refém para responsabilizar-se pelos atos dele.

- Está bem. Penso, contudo, que devia falar com esse comerciante pessoalmente.

- Certamente - anuiu Riose, suavemente. - Como leal súdito do Imperador, aceito o seu representante pessoal como meu superior. Contudo, desde que o comerciante está numa base permanente, você terá que abandonar as áreas da frente num momento interessante.

- Sim? Mas interessante de que maneira?

- Interessante devido ao fato de o cerco se completar hoje. Interessante devido ao motivo de que dentro de uma semana, a Vigésima Esquadra da Fronteira avançará para o coração da resistência. - Riose sorriu e foi-se embora.

Brodrig sentiu-se humilhado, embora sem distinguir muito bem por que.

 

SUBORNO

O sargento Mori Luk fizera-se um soldado ideal das fileiras. Era oriundo do enorme planeta agrícola das Plêiades onde só a vida do exército podia romper os laços com o solo e com a penosa vida de trabalho duro e ingrato; era típico produto deste meio. Não tinha imaginação e enfrentava por isso o perigo sem medo, era suficientemente robusto e ágil para o enfrentar afortunadamente. Aceitava as ordens instantaneamente, conduzia inflexivelmente os homens que estavam sob as suas ordens e respeitava o seu general sem a mais insignificante divergência.

E não obstante tudo isto, era de natureza alegre. Se matava um homem no cumprimento do seu dever sem uma partícula de hesitação, fazia-o também sem uma migalha de animosidade.

Que o sargento Luk tocasse a campainha da porta antes de entrar era mais uma prova de tato, pois estaria inteiramente de acordo com as suas prerrogativas entrar sem fazer qualquer espécie de sinal.

As duas pessoas que estavam lá dentro olharam para sua refeição da tarde e uma delas arrastou os pés pelo chão para ocultar a voz ritmada que saía do transmissor de baterias de bolso com viva animação.

- Mais livros? - perguntou Lathan Devers.

O sargento puxou o pequeno rolo de filme mal enrolado e cocou o queixo: - Pertencem ao Engenheiro Orr, mas ele não deve voltar tão cedo para cá. Ele trouxe isto para mandar para os filhos, sabe, uma coisa a que você podia denominar recordação, sabe.

Ducem Barr girou o rolo nas mãos com interesse:

- E onde é que o engenheiro o conseguiu? Não tinha também um transmissor, não?

O sargento meneou a cabeça com enfado. Apontou para os restos que se viam aos pés da cama.

- Isto é a única coisa que ainda está no lugar. Este parceiro, Orr, conseguiu estes livros num daqueles mundos miseráveis que nós capturamos agora. Eles tinham um grande prédio só para isto e matamos uma porção de nativos que tentavam impedir que nos apoderássemos deles. Olhou para ele com aprazimento:

- Vai ser uma linda recordação para as crianças.

Fez uma pausa, depois do que acrescentou furtivamente:

- Há grandes notícias circulando por aí, a propósito. É só falatório, mas mesmo assim, é coisa excessivamente grande para poder ficar em segredo. O general já acabou o seu trabalhinho. - E meneou lenta e gravemente a cabeça.

- O que vem a ser isso? - perguntou Devers. - O que é que ele fez?

- Completou-se o Cerco, mais nada. - O sargento riu-se por entredentes com uma arrogância paternal. - Pôs-lhe a rolha, já pensaram? Não é mesmo um lindo trabalho? Um dos meus camaradas que é um fantasista parlante, disse que ele avançava com tanta brandura e constância como a música das esferas, seja o que for que elas sejam.

- A grande ofensiva vai ser desencadeada? - perguntou Barr suavemente.

- Espero que sim - foi a ruidosa resposta. - Tenho que voltar para a minha nave agora que a minha armada se voltou a transformar numa única peça. Estou cansado de andar por aí sentado em cima do embornal.

- Também eu? - resmungou Devers, de maneira súbita e nervosa. Prendeu um pedaço do lábio com os dentes e mordiscou-o.

O sargento fitou-o de modo hesitante, e disse:

- O melhor que tenho a fazer é ir-me embora. O capitão deve estar fazendo a ronda e não tenho interesse nenhum que ele me apanhe aqui dentro.

Fez uma pausa quando já estava à porta.

- A propósito, senhor - disse com súbita e grande timidez para o comerciante: - Ouvi isto de minha mulher. Ela disse que o pequeno frigorífico que você me deu para lhe enviar era um material muito fino. Não lhe custou nada, e coube-lhe dentro exatamente um mês de abastecimentos completamente gelados. Gostou muito dele.

- Está muito bem. Esqueça isso.

A grande porta abriu-se lentamente e voltou a fechar-se atrás do sorriso do sargento.

Ducem Barr voltou a deixar-se cair na cadeira:

- Bem, uma justa troca pelo frigorífico. Vou dar uma espiada no livro. Ah, o título sumiu.

Desenrolou mais ou menos uns cinco centímetros do filme e observou-o â luz. Depois do que murmurou:

- Bem, que me espetem uma espada no embornal, como diz o sargento. Isto é "O Jardim de Summa", Devers.

- Ah sim? - disse o comerciante, sem interesse. Empurrou para o lado a parte do jantar que não comera. - Sente-se, Barr. Escutar esta literatura dos velhos tempos não me parece trazer nada de bom. Você ouviu o que disse o sargento?

- Claro que ouvi. E por quê?

- Vai ser desencadeada a ofensiva. E nós aqui sentados!

- Onde é que você queria estar sentado?

- Você sabe o que quero dizer. Não estou habituado a ficar esperando.

- Sim? - Barr removeu cuidadosamente o filme velho do transmissor e instalou o novo. - Você contou-me uma boa porção da história da Fundação no mês passado, e parece que os grandes líderes das crises anteriores pouco mais fizeram do que permanecer sentados... e esperar.

- Ah, Barr, mas eles sabiam para onde é que deviam ir.

- Sabiam? Suponho que eles disseram fazer o que estava determinado, e apesar disso reconheço que talvez o fizessem. Mas não há prova de que essas coisas não se tenham realizado tão bem ou melhor do que se eles tivessem sabido para onde iam. As questões básicas, econômicas e sociológicas, não são dirigidas por homens individuais.

Devers riu-se desdenhosamente:

- Não há maneira eficaz de saber se essas coisas teriam trabalhado melhor ou pior, de maneira alguma. Você está querendo demonstrar que mostrar as costas não é o mesmo que mostrar o rabo. - Seus olhos estavam pensativos: - Ora veja, suponha que eu o desintegrasse!

- Quem? Riose?

- Sim.

Barr suspirou. Os seus olhos idosos estavam perturbados por causa de uma reflexão a respeito do passado remoto.

- O assassínio não é a melhor maneira de resolver estas coisas, Devers. Eu matei uma vez, sob provocação, quando tinha os meus vinte anos - mas isso não resolveu nada. Extirpei um vilão de Siwena, e não o julgo Imperial; e era o jugo Imperial e não o vilão que interessava.

- Mas Riose não é apenas um vilão, doutor. É ele que tem a responsabilidade de todos os movimentos do exército. Se não fosse ele o exército iria realizar outra tarefa. Estão presos a ele como se fossem bebês. O sargento até se baba todo quando nos referimos a ele.

- Mesmo assim. Há mais exércitos e mais líderes. Você pode-se meter num abismo. Há Brodrig, por exemplo - e ninguém consegue encher mais os ouvidos do Imperador do que ele. Ele podia pedir centenas de naves enquanto Riose é obrigado a combater com dez. Conheço-o de reputação.

- E depois? O que é que sabe a respeito dele: - Os olhos do comerciante abandonaram o desalento em que tinham caído para ganhar uma repentina vivacidade.

- Você quer um esboço breve? É um covarde de origem humilde que tem subido graças ao fato de lisonjear constantemente os caprichos do Imperador. É muito odiado pela aristocracia da corte, que também é composta de vermes, porque para ele não existem nem família nem humildade. É ele que dita a opinião do Imperador em todas as coisas, e é o instrumento do Imperador nas coisas mais desagradáveis. É falso por natureza porém leal por necessidade. Não há homem no Império tão sutil na vilania ou tão cruel nos prazeres. E diz-se que não há maneira de conseguir favores do Imperador senão por seu intermédio; e o único caminho para consegui-lo é através da infâmia.

- Raios! - Devers puxou pensativamente a barba cuidadosamente limpa. - E é esse o parceiro que o Imperador mandou para vigiar o Riose. Sabe que me ocorreu uma idéia?

- Não.

- Suponha que este Brodrig ganha aversão pelo nosso jovem e amado general.

- Provavelmente já o odeia. Não é notado pela sua capacidade de amar.

- Suponha que ele ficasse realmente cheio de aversão. O Imperador podia ouvi-lo a esse respeito, e Riose podia se ver em papos-de-aranha.

- Hum, hum. Mais ou menos provável. Mas agora o que é que você propõe para que isto aconteça?

- Não sei. Calcula que ele possa ser subornado?

O patrício sorriu delicadamente:

- Sim, de certa maneira, mas não da maneira como você subornou o sargento – não com um frigorífico de algibeira. E ainda que você atinja a sua escala de suborno, não terá riquezas para tanto. Não há talvez ninguém tão facilmente subornável, mas falta-lhe precisamente a honestidade básica de uma corrupção honesta. Ele não se deixará subornar; por nenhuma importância. Pense noutra coisa qualquer.

Devers cruzou uma perna por cima do joelho e meneou a cabeça rápida e impacientemente: - Há a primeira alusão, contudo...

Deteve-se; o sinal da porta estava brilhando novamente, e o sargento voltou a aparecer no limiar da porta. Vinha excitado, e sua face rude estava vermelha e sorridente.

- Senhor - começou, numa agitada tentativa de deferência - estou-lhe muito agradecido pelo frigorífico, e vocês sempre me têm falado com muita delicadeza, embora eu seja apenas filho de um lavrador e vocês sejam grandes senhores. - O sotaque da Plêiade aumentara enormemente, quase excessivamente para ser compreendido com facilidade, e com a excitação a sua grosseira ascendência de camponês eliminava completamente o seu porte de soldado preparado durante tanto tempo e tão cuidadosamente.

Barr pergunta suavemente:

- Que aconteceu, sargento?

- Lorde Brodrig vem vê-los. Amanhã! Eu sei, porque o capitão me disse que tivesse os meus homens preparados para uma revista amanhã para... para ele. E eu pensei... que devia avisá-los.

Barr disse:

- Muito obrigado, sargento, apreciamos muito a sua atitude. Mas está tudo em ordem, homem; não precisamos de...

Porém o olhar na face do sargento Luk estava agora inequivocamente cheio de pavor. Falou num sussurro.

- Vocês decerto não ouviram as histórias que se contam a respeito dele. Ele tem vigarizado o próprio diabo no espaço. Não, não se ria. Ainda se contam histórias mais terríveis a respeito dele. Dizem que tem homens com pistolas desintegradoras que fazem tudo o que ele manda, e quando desejam divertir-se dizem que destroem qualquer pessoa que encontram pela frente. E quando fazem isto - riem-se. Dizem também que o Imperador tem medo dele, e que ele obriga o Imperador a aumentar os impostos e que não o deixa ouvir as queixas do povo.

- E ele odeia o general, é o que se diz. Dizem que ele gostaria de matar o general, em virtude de o general ser grande e sábio. Mas não pode porque o nosso general é um competidor para toda a gente e ele sabe que Lorde Brodrig é má pessoa.

O sargento pestanejou; sorriu com uma repentina timidez que era incoerente perante a sua própria explosão e encostou as costas á porta. Meneou a cabeça, sacudidamente:

- Vocês se lembrem do que lhes estou dizendo. Esperem por eles.

E foi-se embora.

E Devers olhava para o alto, com olhos fixos:

- Isto vem pôr as coisas no nosso caminho, não lhe parece, doutor?

- É coisa que depende - replicou Barr, secamente -, de Brodrig, ou não será?

Porém Devers estava pensando, e por isso não o ouviu.

Estava pensando ativamente.

 

Lorde Brodrig desviou a cabeça quando entrou nos corredores das instalações onde vivia o homem da nave comercial, e os seus dois guardas armados seguiram-no vivamente, com as pistolas carregadas e os olhares profissionalmente carrancudos de capangas mercenários.

O Secretário Privado ia lançando à sua volta olhares perdidos que nada significavam. Se o demônio do espaço o tinha comprado, perdera qualquer marca visível de posse. Brodrig podia ser considerado, com mais razão, uma amostra do estilo da vida da corte, fazendo a sua aparição a bordo de uma nave, para animar a dura e simples fealdade de uma base militar.

O corte severo e justo do seu uniforme cintilante e imaculado reforçava-lhe a ilusão de altura, do alto da qual os seus olhos frios e sem expressão olhavam paira baixo, para o comerciante, seguindo o declive de um grande nariz. As guarnições de madrepérola dos seus punhos flutuaram como membranas quando agitou o bastão de marfim no chão diante dele e se inclinou delicadamente.

- Não - disse ele, com um pequeno gesto - você fica aqui. Esqueça-se dos seus brinquedos; não estou interessado neles.

Puxou uma cadeira à sua frente, limpou-a cuidadosamente com o lenço de tecido cintilante preso no alto do bastão branco, e sentou-se também. Devers lançou olhares do companheiro para a cadeira, mas Brodrig disse preguiçosamente:

- Vocês estão na presença de um Par do Reino. Sorriu.

Devers encolheu os ombros.

- Se vocês não estão interessados no meu estoque comercial, por que é que me detêm?

O Secretário Privado fitou-o friamente, e Devers acrescentou um lento "Senhor".

- Por discrição. - disse o secretário. - Você não vai provavelmente acreditar que eu fosse percorrer 200 parsecs através do espaço, para inspecionar bugigangas. Foi você que eu vim ver. -Tirou uma pastilha cor-de-rosa de uma caixa gravada e pô-la delicadamente entre os dentes. Sugou-a lentamente e delicadamente.

- Por exemplo - disse ele - quem é você? Você é realmente um cidadão deste mundo bárbaro que deu origem a toda esta fúria militar?

Devers meneou gravemente a cabeça.

- E você foi realmente capturado por ele depois de ter iniciado esta contenda a que ele chama guerra? Estou me referindo ao nosso jovem general.

Devers voltou a acenar que sim.

- Ora! Muito bem, meu digno estrangeiro. Estou verificando que sua fluência de linguagem é mínima. Vejo-me na obrigação de lhe indicar o caminho. Parece que o nosso general travou uma luta aparentemente sem sentido, com enormes dispêndios de energia - e isto através de um desamparado mundo que é uma picadela de pulga no fim de parte alguma, e que para um homem lógico não devia merecer um tiro de uma única pistola. Contudo o general não é falho de lógica. Pelo contrário, devo dizer que ele é extremamente inteligente. Está de acordo comigo?

- Não posso dizer outra coisa, senhor.

O Secretário examinou as unhas e continuou :

- Ouça ainda, no que se refere a este caso. O general não iria desintegrar os seus homens e barcos numa estéril procura de glória. Eu sei que ele fala da glória e da honra Imperiais, mas é inteiramente evidente que ele não tem a pretensão de ser um dos insuportáveis semideuses antigos da Idade Heróica. Há aqui mais alguma coisa do que glória - e ele toma um cuidado extremo e desnecessário consigo. Agora se você fosse meu prisioneiro e me contasse tão pouca coisa como contou ao nosso general, eu seria capaz de lhe abrir o abdome e enforcá-lo cornos seus próprios intestinos.

Devers permaneceu rijo. Os olhos moveram-se-lhe negligentemente, primeiro para um dos guardas valentões do secretário, e depois para o outro. Estavam preparados; vivamente preparados.

O secretário sorriu:

- Bem, agora você transformou-se num diabo silencioso. De acordo com o general, nem sequer uma Sonda Psíquica lhe faz impressão, e isso foi um equívoco da sua parte, certamente, pois me convenceu que o nosso jovem militar palrador estava mentindo. - Parecia estar de muito bom humor.

- Meu honesto comerciante - disse ele - eu tenho uma Sonda Psíquica pessoal, uma que lhe deve servir particularmente bem. Está vendo isto...

E entre o dedo polegar e o indicador, negligentemente levantados, apareciam, em molhos apertados, retângulos cor-de-rosa e amarelos cuja identidade era evidente.

Devers replicou apenas:

- Parece-me dinheiro.

- É mesmo dinheiro - e o melhor dinheiro do Império, pois que é garantido pelas minhas próprias propriedades, que são mais extensas do que as do próprio Imperador. - Cem mil créditos. Tudo aqui! Entre dois dedos! Seus!

- E por que, senhor? Sou bom comerciante, porém todos os meus negócios caminham em duas direções.

- Por quê? Pela verdade! O que é que o general quer, afinal de contas? Por que é que ele desencadeou esta guerra?

Lathan Devers suspirou, e meneou a cabeça pensativamente.

- Qual é o seu objetivo, afinal de contas? - Os seus olhos estavam seguindo os movimentos das mãos do secretário, enquanto este contava o dinheiro vagarosamente, nota por nota.

- Em uma palavra, o Império.

- Hum. Que ordinário! Sempre se chegou com isto ao fim. Mas porquê? Será este o caminho que leva da fronteira da Galáxia ao cume do Império tão grosseira e inevitavelmente?

- A Fundação - disse Devers, penetrantemente - tem segredos. Eles possuem livros, livros muito velhos - tão velhos que a linguagem em que estão escritos só pode ser compreendida por alguns dos homens mais eruditos. Mas os segredos estão protegidos pelo ritual e pela religião, e ninguém se pode servir deles. Eu tentei e agora aqui estou – e há lá uma sentença de morte á minha espera.

- Percebo. E esses velhos segredos? Vamos, por cem mil eu mereço os mais secretos pormenores.

- A transmutação dos elementos - esclareceu Devers, suavemente. Os olhos do secretário apertaram-se e perderam algum do seu desapego:

- Tenho ouvido dizer que a transmutação prática é impossível devido á existência das leis atômicas.

- Assim é, se forem usadas forças atômicas. Mas os antigos eram uns rapazes encantadores. Havia fontes de energia ainda maiores do que os átomos. Se a Fundação utilizasse estas fontes como eu sugeri...

Devers sentiu uma sensação leve e insinuante no estômago. A isca estava lançada; o peixe estava mordendo. O secretário disse repentinamente.

- Continue. O general, tenho a certeza, está a par de tudo isto. Mas o que é que ele tenciona fazer uma vez que tenha terminado esta ópera de truão?

Devers continuou decidido:

- Com a transmutação ele passa a controlar a economia da totalidade dos elementos superiores do Império. Os minerais deixarão de valer um espirro quando Riose puder fazer tungstênio com alumínio e irídio com ferro. Poderá eliminar um sistema de produção total baseado na escassez de certos elementos e na abundância de outros. Será a maior crise que o Império já teve, e só Riose estará em condições de travá-la. E há a questão desta nova força que mencionei, o uso da qual não estará interdita a Riose por obstáculos religiosos.

- Agora não há nada que o possa fazer parar. Ele vai agarrar a Fundação pelas costas, e uma vez que ele a tenha liquidado, será Imperador dentro de dois anos.

- Certamente - Brodrig riu-se claramente. - Irídio extraído do ferro, foi o que você disse, não foi? Vamos, vou-lhe dizer um segredo de Estado. Você sabe que a Fundação já esteve em contato com o general.

As costas de Devers retesaram-se.

- Você me parece surpreso. E por que não? Parece-me lógico agora. Eles ofereceram-lhe cem toneladas de irídio por ano para assinar a paz. Uma centena de toneladas de ferro convertido em irídio, violando os seus princípios religiosos para salvar o pelo. Bastante imparcialmente, mas numa atitude que não é incompreensível o nosso general rigidamente incorruptível recusou - pois sabe que pode conseguir o irídio e o Império também. E o pobre Cleon dizendo que ele é um general honesto. Meu comerciante tagarela, você tem direito ao seu dinheiro.

Arremessou-lho e Devers rastejou atrás das notas que voavam. Lorde Brodrig deteve-se junto da porta e voltou-se:

- Uma lembrança, comerciante. Os meus companheiros de jogo, armados com estas pistolas, não têm ouvidos, nem língua, nem educação, nem inteligência. Não podem ouvir nada, nem falar, nem escrever, nem sequer sob a influência da Sonda Psíquica. Mas são uns verdadeiros peritos em execuções interessantes. Eu comprei-o por cem mil créditos. Você deve ter vendido uma boa e respeitável mercadoria. Deve esquecer-se daquilo que vendeu para sempre e se alguma vez você... disser... repetir a nossa conversa a Riose, será executado. Mas executado á minha maneira.

E naquela delicada face apareceram umas súbitas linhas duras de ávida crueldade que transformaram o seu sorriso estudado numa bocarra vermelha e rosnadora. Durante um brevíssimo segundo, Devers viu aquele que tinha comprado ao seu comprador, e desviou dele os olhos.

Silenciosamente, Brodrig saiu á frente dos seus dois impulsivos "companheiros de jogo", com as suas pistolas, e foi para os seus aposentos.

E quando Ducem Barr lhe fez uma pergunta, ele disse com grosseira satisfação :

- Não, isso é a parte estranha do caso. Ele subornou-a.

 

Dois meses de guerra difícil tinham deixado a sua marca em Bel Riose. Havia uma pesada gravidade á sua volta; e andava com muito pouca paciência. Foi com impaciência que se dirigiu ao respeitador sargento Luk:

- Espere lá fora, soldado, e leve-me esses homens para seus aposentos assim que eu terminar. Não deixe entrar ninguém enquanto eu não chamar. Ninguém, compreende?

O sargento fez a continência e abandonou rigidamente o aposento, e Riose com um resmungo de aborrecimento remexeu nos papéis que, em cima da mesa, esperavam por despacho, atirou-os para o cimo da gaveta e fechou-a com raiva.

- Sentem-se - disse ele secamente, para os dois que estavam á espera. - Não tenho muito tempo. Falando a verdade, eu não devia estar mais aqui, porém precisava falar com vocês.

Virou-se para Ducem Barr, cujos longos dedos acariciavam com interesse o cubo de cristal em que estava gravado o simulacro do perfil da face austera de Sua Majestade Imperial, Cleon II.

- Em primeiro lugar, patrício - disse o general - o seu Seldon está perdido. Para dizer a verdade ele combate bem, mas estes homens da Fundação enxameiam como abelhas sensíveis e fogem como mulheres. Todos os planetas são defendidos imperfeitamente e, uma vez tomados, todos os planetas provocam rebeliões e por isso é tão difícil dominá-los como conquistá-los. Mas eles estão prisioneiros, e estão seguros. O seu Seldon está perdido.

- Mas ele não tem por ora nada perdido - murmurou Barr delicadamente.

- A própria Fundação manifesta menos otimismo. Ofereceram-me milhões para que eu não obrigasse este Seldon à prova final.

- Corre esse boato.

- Ah, os boatos correm à minha frente? Vocês já ouviram falar no último?

- Qual é o último?

- Ora, que Lorde Brodrig, o favorito do Imperador, é agora o segundo comandante, a seu próprio pedido.

Devers falou pela primeira vez.

- A seu próprio pedido, patrão? Para chegar onde? Ou você está subindo para dar de comer a esse parceiro? - E riu-se entredentes.

Riose replicou, calmamente:

- Não, não se pode dizer isso. Limitou-se a comprar o cargo por aquilo que eu considerava um preço justo e adequado.

- O que é que ele deu em troca?

- Deu em troca uma requisição de reforços apresentada ao Imperador.

O sorrio insolente de Devers alargou-se:

- Nesse caso ele comunicou com o Imperador, hum? E diga-me lá, patrão, você tem estado á espera desses reforços, mas eles algum dia chegarão. Certo?

- Errado! Já devem estar chegando. Cinco naves de linha rápidas e robustas, com uma mensagem pessoal de felicitações do Imperador, e mais naves a caminho. Onde é que está o erro, comerciante? - perguntou ele, com ironia.

Devers falou através dos lábios gelados:

- Não há erro nenhum!

Riose deu alguns passos para fora da mesa e encarou o comerciante, com a mão apoiada na coronha de sua pistola desintegradora.

- Eu disse, onde é que está o erro, comerciante? Parece que as notícias o perturbaram. Certamente que não lhe foi agora nascer um repentino interesse pela Fundação.

- Não nasceu.

- Pois... há alguns pontos duvidosos a seu respeito.

- Quais são eles, patrão? - Devers sorriu fracamente, e remexeu os punhos nos bolsos.

- Logo que mos diga tratarei de lhos esclarecer devidamente.

- Aí vão eles. Você foi capturado sem dificuldade. Você rendeu-se ao primeiro tiro apesar de ter uma couraça defensiva. Você se mostrou inteiramente propenso a desertar do seu mundo, e isto sem receber nada em troca. É interessante tudo isto, não é?

- Eu ansiava por estar do lado do vencedor, patrão. Sou um homem sensível; foi assim que o senhor mesmo me chamou.

Riose replicou com acento rouco e difícil:

- Admito isso! Todavia não foi capturado mais nenhum comerciante desde então. Sua nave não é uma nave comercial senão disporia da velocidade suficiente para fugir, se assim o preferisse. Não se trata de uma nave comercial senão disporia de um campo de cobertura que lhe permitisse absorver todos os golpes que lhe fossem vibrados por um cruzador rápido, no caso de ter preferido o combate. E não se trata de um comerciante senão teria combatido até â morte quando a ocasião o justificava. Os comerciantes têm sido os chefes e os instigadores dos combates de guerrilhas nos planetas ocupados e dos raides aéreos no espaço ocupado.

- Nesse caso é você o único homem sensível? Você não combate nem foge, mas torna-se traidor sem que nada o solicite. Você é único, espantosamente único - de fato, suspeitosamente único.

Devers replicou secamente:

- Estive ouvindo a sua dedução, mas você não tem nada contra mim. Aqui estou há seis meses, e tenho-me comportado bem.

- É verdade, e tenho correspondido a esse fato com um bom tratamento. Tenho mantido a sua nave sem qualquer estrago e tenho-o com muita consideração. Mas você tem-se mostrado pouco generoso. Se tivesse oferecido voluntariamente uma informação, por exemplo, a respeito das suas engenhocas, elas podiam-nos ter sido proveitosas. Os princípios atômicos por via dos quais foram construídas devem estar a ser utilizados em qualquer uma das asquerosas armas da Fundação. É assim?

- Sou apenas comerciante - disse Devers - e não um desses grandes técnicos solenes. Eu vendo o produto; mas não o fabrico.

- Bem, isso verei com pormenores. Foi por isso que o mandei chamar. Por exemplo, sua nave foi examinada e possui um campo para repelir as armas atômicas. Você nunca usou nenhum; todavia, todos os soldados da Fundação o usam. Isto torna-se evidentemente significativo de que há informações que você optou por não me dizer. É assim?

Não houve resposta. Continuou:

- E devem haver provas ainda mais concretas. Fiz uma experiência com a minha Sonda Psíquica. Voltou a falhar mais uma vez, porém em contato com o inimigo revela-se completamente eficiente.

Sua voz era secamente ameaçadora e Devers deu-se conta da pistola diretamente encostada ao seu diafragma - a pistola do general, até então no coldre.

O general disse tranqüilamente:

- Você vai tirar sua pulseira e qualquer outro ornamento metálico que traga consigo e entregar-mo. Devagar! os engenhos atômicos podem distorcer, veja bem, e a Sonda Psíquica podia só encontrar a estática. Assim está bem. Dê-me isso.

O receptor na mesa do general estava brilhando e a cápsula da mensagem saiu com um estalo da fenda, perto do lugar onde Barr estava sentado, segurando ainda o cristal trimensional do Imperador.

Riose deu alguns passos para trás da mesa, com a pistola desintegradora ainda apontada. Disse para Barr:

- E você também patrício. Sua pulseira também o condena. Você foi de alguma ajuda no início, de qualquer maneira, e não sou vingativo; porém decidirei o destino da sua família de acordo com os resultados da Sonda Psíquica.

E como Riose pegasse na mensagem-cápsula para ler, Barr levantou o cubo envolvido em cristal de Cleon e serena e metodicamente deu com ele na cabeça do general.

Sucedeu também que Devers o agarrou. Era como se um súbito demônio tivesse irrompido no ancião.

- Fora! - disse Barr, com um sussurro silvado entredentes. - Rápido! - Apanhou o desintegrador de Riose e escondeu-o na blusa.

O sargento Luk voltou-se quando eles apareceram depois do estalido da porta se ter ouvido muito perto. Barr ordenou :

- Leve-nos, sargento!

Devers fechou a porta atrás dele.

O sargento Luk conduziu-os em silêncio para os seus aposentos, e então, depois de uma breve pausa, seguiu em frente, pois havia o cano de uma pistola desintegradora encostada às suas costelas, e uma voz seca nos seus ouvidos, dizendo:

- Para a nave comercial.

Devers adiantou-se vivamente para abrir a comporta do ar, e Barr disse:

- Deixe-se ficar onde está, Luk. Você tem sido um homem decente, e não queremos matá-lo.

O sargento reconheceu o monograma da pistola. Gritou com uma fúria assoladora:

- Vocês mataram o general.

Com um grito feroz e incoerente, atirou-se cegamente contra a fúria desintegradora da pistola e desmoronou-se numa ruína desintegrada.

A nave comercial decolou por cima do planeta morto, e antes dos alarmes luminosos começarem a pestanejar contra a espumosa teia de aranha formada pelas nebulosas do céu da Galáxia, outras formas escuras decolaram.

Devers ordenou severamente:

- Segure-me isto, Barr - e deixe-me ver se eles têm alguma nave que possa competir com a minha em velocidade.

Verificou que eles não possuíam nenhuma!

E uma vez no espaço aberto, a voz do comerciante pareceu perdida e morta quando disse:

- A isca que eu forneci a Brodrig era boa demais. Até parece que eu queria empurrá-lo para os braços do general.

Lançaram-se rapidamente para as profundezas do aglomerado de estrelas que era a Galáxia.

 

PARA TRANTOR

Devers fez uma curva por cima do pequeno globo morto, esperando avistar algum tímido sinal de luz. O controle direcional estava examinando lenta e completamente o espaço com os compactos feixes de sinais que suas ondas iam lançando.

Barr observava pacientemente sentado na cama portátil baixa que estava num canto. Perguntou: - Já não há vestígios deles?

- Dos rapazes do Império? Não. - O comerciante resmungou as palavras com evidente impaciência. - Perdemos os embornais há muito tempo. Espaço! Com os saltos cegos que demos através do híper-espaço, eles não devem ter tido a sorte de saber em qual terra onde vamos pousar. Eles não nos podiam ter seguido a não ser que nos tivessem atingido, o que não conseguiram.

Encostou-se para trás e relaxou o pescoço com um puxão:

- Não sei o que estes rapazes do Império andaram mexendo por aqui. Penso que alguns dos entreplanos estão fora do alinhamento.

- Nesse caso, penso eu, você está tentando encontrar a Fundação.

- Estou chamando a Associação, ou tentando.

- A Associação? Quem são eles?

- Associação dos Comerciantes Independentes. Nunca ouviu falar dela, heim? Bem, você não deve ser o único. Nós não andamos por aí falando de nós.

Houve um silêncio momentâneo que se centrou em torno do Indicador  de Recepção que não reagia, e Barr disse: - Você já está na rota?

- Não sei. Tenho apenas uma vaga noção do lugar onde estamos, e vamos com aparelhos que não funcionam. É por isso que não estou me servindo do controle direcional. Podia levar anos, sabe.

- Podia?

Barr apontou; e Devers endireitou-se e ajustou os seus audifones.

Dentro da pequena esfera escura havia uma pequena e ardente brancura. Durante meia hora, Devers esteve atento ao frágil e rastejante fio de comunicação que chegava através do hiperespaço para ligar dois pontos colocados à distância que levaria quinhentos anos a percorrer.

Acabou por se recostar na cadeira, desesperançadamente. Olhou para cima, e tirou os audifones.

- Ouça lá, doutor. Há um chuveiro que pode utilizar, se quiser, mas é mais fácil servir-se da água quente.

Agachou-se diante de um dos armários que se alinhavam ao longo de uma parede e espreitou para o que havia lá dentro:

- Você não é vegetariano, espero?

- Sou onívoro. Mas o que vem a ser essa Associação? Você os perdeu?

- Parece. Estava na última rota, foi a única que sobrou. Não tem importância, penso eu. Tenho tudo isto em conta.

Endireitou-se e colocou os dois recipientes em cima da mesa. - Espere uns cinco minutos, doutor, depois abra-o, puxando o contato. Contém um prato, comida e garfo - uma coisa muito útil quando uma pessoa está com pressa, se não estiver interessado em coisas acessórias como guardanapos. Suponho que você deseja saber o que é que andava fazendo dentro da Associação.

- No caso de não ser segredo.

Devers meneou a cabeça: - Para você não é. O que Riose disse era verdade.

- A respeito da oferta de um tributo?

- Uh-huh. Eles ofereceram-lho, e ele recusou. As coisas estão más. Eles estão atacando os outros sóis de Loris.

- Loris está fechado para a Fundação?

- O que? Oh, ninguém o pode saber. Trata-se de um dos Quatro Reinos originais. Você podia chamar-lhe parte da linha interior de defesa. Mas não é isto que está mal. Eles tinham combatido com grandes naves que nunca foram encontradas anteriormente. E isto quer dizer que Riose não nos estava mentindo. Ele tinha recebido mais naves. Brodrig mudara de opinião, e enviara aquela mensagem.

Seus olhos estavam sombrios e juntou o recipiente da comida aos pontos de contato e esperou que ele se abrisse rapidamente. O conteúdo cozido a fogo lento exalou o seu aroma através do aposento. Ducem Barr estava comendo.

- Tanto melhor - disse Barr - para as improvisações, nesse caso. Aqui não podemos fazer nada, não podemos romper através das linhas Imperiais para regressar â Fundação; não podemos fazer nada senão esperar – esperar pacientemente. Ainda que, se Riose já alcançou a linha interior, tenho a esperança de que a nossa espera não seja muito demorada.

E Devers pousou o garfo: - Esperar, não é? - rosnou ele, com ferocidade. - Isso estará bem para você. Eu não tenho nada que estar estacado. 

- Não tem? - Barr sorriu suavemente.

- Não. E realmente vou-lhe dizer. - A irritação de Devers chegou ao máximo. - Já me cansei de estar metido neste negócio como se fosse uma coisa interessante qualquer metida numa lamela de microscópio. Eu tenho amigos por aqui e por ali, moribundos; e um mundo inteiro para acolá, a minha casa, também agonizante. Você é um estrangeiro. Você não pode saber.

- Já vi amigos mortos. - As mãos do ancião tremiam e os seus lábios e os seus olhos estavam fechados. - Você é casado?

Devers respondeu: - Os comerciantes não são casados.

- Bem, eu tenho dois filhos e um sobrinho. Eles tinham sido prevenidos mas – por qualquer razão - não podiam entrar em ação. A nossa fuga significa a sua morte. A minha filha e os meus dois netos, assim o espero, abandonaram o planeta a salvo antes deles, mas mesmo excluindo-os, já arrisquei e perdi mais do que você.

Devers estava soturnamente selvagem: - Eu sei. Mas isto é uma circunstância que não se escolhe. Você podia ter sido honesto com Riose. Eu nunca lhe perguntei...

Barr meneou a cabeça: - Isso não é coisa que se escolha, Devers. Deixe sua consciência livre; não arrisquei os meus filhos por você. Eu cooperei com Riose durante tanto tempo quanto me atrevi. Mas havia a Sonda Psíquica.

O patrício siweniano abriu os olhos e estes estavam secos com o sofrimento. – Riose chamou-me uma vez; foi há cerca de um ano atrás. Falou-me de um culto centralizado em torno dos mágicos, mas senti a verdade. Ele não andava à procura de um culto. Bem vê, faz agora quarenta anos que Siwena estava ameaçada como seu mundo. Foram esmagadas cinco revoltas. Foi então que descobri os antigos arquivos de Hari Seldon - e agora este "culto" espera.

- Espera pelo começo dos "mágicos" e está pronto. Os meus filhos são chefes daqueles que esperam. É este segredo que está no meu espírito e que a Sonda nunca devia tocar. E por isso eles deviam morrer como reféns; a alternativa é a sua morte como rebeldes e de metade de Siwena com eles. Veja que eu não tinha por onde escolher! E não sou um estrangeiro.

Os olhos de Devers apagaram-se, e Barr continuou maciamente: - É de uma vitória da Fundação que depende a esperança de Siwena. É por uma vitória da Fundação que os meus filhos são sacrificados. E Hari Seldon não pré-calculou a inevitável salvação de Siwena como fez com a Fundação. Eu não tenho a certeza pelo meu povo - só esperança.

- Mas você está todavia satisfeito por aguardar. Mesmo com a Armada Imperial em Loris.

- Eu queria ficar á espera para saber, com absoluta certeza - disse Barr com simplicidade - se eles tinham desembarcado no planeta Terminus.

O comerciante franziu os sobrolhos desesperadamente: - Não sei. Não posso realmente trabalhar com isto; não sou nenhum mágico. Psicohistória ou não, estamos numa situação terrivelmente sinistra, e estamos fracos. O que é que Seldon diz a este respeito?

- Não há nada para dizer. Já está tudo dito. Agora estamos em luta. Lá simplesmente porque não ouve as esferas girarem e os gongos soarem isso não significa que as coisas estejam menos certas.

- Talvez; porém eu me sinto satisfeito por você ter estourado o crânio de Riose. Ele é maior inimigo do que todo o seu exército.

- Estourado o seu crânio? Com Brodrig no posto de segundo comandante? - A face de Barr crispou-se com ódio. - Siwena inteira teria sido seu refém. Brodrig vem provando o seu valor há muito tempo. Existia um mundo que há cinco anos atrás perdeu um macho em cada dez - e simplesmente por não ter liquidado os impostos ainda por pagar. Este mesmo Brodrig era o recebedor de impostos. Não, Riose devia viver. Os seus castigos são favores em comparação com Brodrig.

- Mas seis meses, seis meses, na Base inimiga, sem nada para nos guiar... As mãos robustas de Devers apertaram-se uma contra a outra, de tal modo que lhe estalaram as articulações. - Nada que nos pudesse informar!

- Bem, agora vamos esperar. Você lembra-me... - Barr apalpou o bolso. - Você podia ter lembrado que lhe mostrasse isto. - E lançou a pequena esfera de metal para cima da mesa.

Devers agarrou-a: - O que vem a ser?

- A cápsula-mensagem. Aquela que Riose recebeu um pouco antes de o ter acertado. Parece-lhe que isto tenha alguma importância?

- Não sei. Depende do que tiver lá dentro! - Devers sentou-se e girou a cápsula cuidadosamente na mão.

Quando Barr saiu do banho quente, alegre, no meio da suave e morna corrente de ar seco, encontrou Devers calado e absorvido no banco de trabalho.

O siweniano começou a dar palmadas no corpo com um ritmo intenso e falou um pouco acima do som ritmado das pancadas: - O que é que você está fazendo?

Devers levantou a cabeça. Gotículas de transpiração deslisaram-lhe pela barba: - Estou pensando se posso abrir esta cápsula.

- Pode abri-la sem a característica pessoal de Riose? - Havia uma leve surpresa na voz do siweniano.

- Se não puder, devo renunciar da Associação e nunca mais comandarei uma nave para o resto da minha vida. Já fiz três análises eletrônicas do interior, e utilizei pequenas chaves de que o Império nunca ouviu falar e que foram especialmente fabricadas para a abertura de cápsulas. Bem sei que já fui ladrão, antes disto. Um comerciante é sempre um ladrão em miniatura.

Inclinou-se para a pequena esfera, e um pequeno instrumento liso sondou-a delicadamente e lançou faíscas vermelhas sempre que o contato foi mais demorado.

Comentou: - Esta cápsula é um trabalho imperfeito, felizmente. Estes rapazes Imperiais não tratam isto com muito capricho, pode-se verificar isso muito bem. Já alguma vez viu uma cápsula da Fundação? Tem metade deste tamanho e é impossível de analisar eletronicamente.

Nesse momento estava rígido, os músculos dos ombros por baixo da túnica estavam visivelmente tensos. A sua frágil Sonda carregou vagarosamente...

Estava silencioso enquanto fazia isto, mas Devers descontraiu-se e suspirou. Tinha na mão a esfera brilhante com a mensagem desenrolada como uma língua de pergaminho.

- É de Brodrig - disse ele. Acrescentou, com desdém. - O método de escrever a mensagem é de duração permanente. Se fosse uma cápsula da Fundação, a mensagem ficaria oxidada em menos de um minuto.

Mas Ducem Barr fitava-o silenciosamente. Leu a mensagem rapidamente:

 

DE: AMMEL BRODRIG, ENVIADO EXTRAORDINÁRIO DE SUA MAJESTADE IMPERIAL, SECRETÁRIO PRIVADO DO CONSELHO, E PAR DO REINO;

 

PARA: BEL RIOSE, GOVERNADOR MILITAR DE SIWENA, GENERAL DAS FORÇAS IMPERIAIS, E PAR DO REINO. SAÚDO-O.

 

PLANETA 1120 NÃO RESISTIU MUITO TEMPO. OS PLANOS DE OFENSIVA CONTINUAM REGULARMENTE COMO ESTAVA PLANEJADO. O INIMIGO ENFRAQUECE VISIVELMENTE E OS DERRADEIROS FINS EM VISTA DEVEM SER CERTAMENTE ALCANÇADOS.

 

Barr levantou a cabeça da mancha quase microscópica e exclamou amargamente: - O louco! O abandonado janota desintegrado! Isto é uma mensagem?

- Hein? - disse Devers. Estava vagamente desapontado.

- Não diz nada - resmungou Barr. - O nosso cortesão bajulador está agora brincando com os generais. Com Riose fora de campo, é ele o comandante em chefe e deve pôr o seu espírito mesquinho a vomitar os seus pomposos relatórios referentes ás campanhas militares de que ele nunca entendeu nada. "O planeta tal e tal não resistiu muito tempo". "A ofensiva continua". "O inimigo enfraquece". O pavão sem miolos.

- Bem, agora, espere um minuto. Ouça...

- Jogue-a fora. - O velho homem deu meia volta mortificado. - A Galáxia sabe que eu nunca esperei vir a ser um guia importante do mundo, mas em tempo de guerra é razoável que assuma este papel, exatamente quando a ordem mais rotineira tem de ser abandonada para não dificultar militar mente os movimentos e não conduzir finalmente a complicações. Foi por isto que me esforcei para levá-la. Mas isto! Seria melhor que a tivesse deixado ficar. Um minuto de tempo desperdiçado de Riose era mais útil do que esse mesmo minuto agora utilizado num objetivo mais construtivo.

Devers tinha-se levantado: - Você quer ouvir e parar de andar ás voltas com suas ruminações? Pelo amor de Seldon...

Puxou outra vez a mensagem e pô-la diante do nariz de Barr: - Agora leia outra vez. O que é que pensa destes "Derradeiros fins em vista"?

- A conquista da Fundação. É?

- Parece-lhe? E talvez ele queira dizer a conquista do Império. Você sabe que era isto que ele calculava que fosse o objetivo final.

- E se assim for?

- Se assim for! - O sorriso de Devers, que aparecia só de um lado da cara, estava perdido na barba. - Porque, observe então, e há de ver.

Com um dedo a malbaratada folha monogramada da mensagem-pergaminho voltou para o ponto de origem através da fenda. Desapareceu com um zunido breve e o globo fechou-se, ficando outra vez impossível de abrir. Em alguma parte do interior ouvia-se o fraco zumbido oleado dos controles como se eles recuperassem equilíbrio com movimentos ao acaso.

- Agora não há método conhecido de abrir esta cápsula sem conhecimento da característica pessoal de Riose, não é assim?

- Para o Império, não? - disse Barr.

- Nesse caso a afirmação de que aquilo que ela contém nos é desconhecido é absolutamente autêntica.

- Para o Império, assim é.

- E o Imperador pode abri-la, não pode? As Características Pessoais dos oficiais do Governo devem estar arquivadas. Assim se passa na Fundação.

- O mesmo acontece na capital Imperial.

- Nesse caso quando você, como patrício siweniano e par do reino, disser a este Cleon, a este Imperador, que o seu favorito papagaio-doméstico e o seu brilhante general estão ambos à espera para se atirarem a ele, e lhe entregar a cápsula como prova, o que é que ele pensará que são os "derradeiros fins" de Brodrig?

Barr sentou-se vagarosamente. - Espere, não o estou compreendendo. - Sorveu as bochechas e disse: - Você não está falando realmente a sério, não é?

- Estou. - Devers mostrava-se furiosamente excitado. - Ouça, nove dos últimos dez imperadores morreram com as gargantas cortadas, ou com os estômagos desintegrados por qualquer um dos seus generais com idéias demasiado ambiciosas na cabeça. Você já me contou isto por mais de uma vez. O Imperador, que é um homem velho, há de acreditar em nós e dar-se-á pressa em mandar cortar primeiro a cabeça de Riose.

Barr resmungou sem energia. - É coisa grave. Por respeito pela Galáxia, homem, você não pode vencer uma crise de Seldon por intermédio de um esquema medonho, impraticável e cheio de idéias livrescas como este. Suponha que você nunca tivesse a cápsula. Suponha que Brodrig não empregara a palavra "derradeiros". Seldon não iria depender de um acaso fortuito como este.

- Podia o acaso surgir de outra maneira qualquer, não há lei nenhuma que diga que Seldon não pode tirar vantagem desse acaso.

- Certamente. Mas... - Barr deteve-se, depois do que falou calmamente mas com visível constrangimento. - Olhe, em primeiro lugar, como é que você espera chegar ao planeta Trantor? Você não conhece a localização no espaço, e certamente não se lembra das coordenadas, já para não falar nas tábuas astronômicas. Você nem sequer sabe qual é a nossa própria posição no espaço.

- Você não pode continuar perdido no espaço - riu-se Devers. Já estava outra vez nos comandos. - Vamos descer no planeta mais próximo, e haveremos de sair de lá com posições completas e as melhores cartas de navegação que os cem mil palhaços de Brodrig puderem comprar.

- E um tiro no nosso estômago. As nossas descrições estão em todos os planetas desta zona do Império.

- Doutor - disse Devers, pacientemente - não se faz uma nogueira de uma bengala. Riose disse que a minha nave se entregara com excessiva facilidade e, irmão, não estava enganado. Esta nave tem bastante poder de fogo e bastante combustível no casco para se conservar afastada de qualquer coisa que a incomode e torna provável que encontre a profundidade aconselhável no interior da fronteira. E temos os escudos pessoais, ainda. Os rapazes do Império nunca os conseguirão descobrir, bem sabe, mas eles nem sequer pensam em descobri-los.

- Muito bem - disse Barr - muito bem. Suponha que já esteja em Trantor. E agora quer avistar-se com o Imperador? Você pensa que ele tem horas marcadas para estar no escritório?

- Calculo que vamos ter tempo de nos preocupar com isso em Trantor - disse Devers.

E Barr resmungou com impotência: - Outra vez muito bem. Há aí meio século que estava desejando fazer mais uma visita a Trantor antes de morrer. Agora estamos a caminho.

O motor hiper-atômico estava em funcionamento. As luzes piscaram e houve a rápida deslocação interior que assinalava a mudança para o híper-espaço.

 

EM TRANTOR

As estrelas eram tão compactas como joio num campo abandonado e pela primeira vez, Lathan Devers transferiu as imagens para a direita do décimo ponto de primeira importância, calculando as reduções através das hiper-regiões. Havia uma sensação claustrofóbica provocada pela necessidade de saltos que não ultrapassavam um ano-luz. Havia uma assustadora aspereza num céu que desusava sem qualquer interstício, em todas as direções. Estava-se perdendo num mar de radiação.

E no centro de um aglomerado de dez mil estrelas, que brilhavam rasgando em fragmentos a escuridão fracamente circundante, estava circulado o enorme planeta Imperial, Trantor.

Mas era mais do que um planeta; era o pulso vivo de um Império de vinte milhões de sistemas estelares. Só tinha uma função, a administração; um objetivo, o governo; um produto manufaturado, a lei.

O mundo inteiro era uma distorção funcional. Não havia um objeto vivo na sua superfície senão homens, os animais domésticos e os parasitas. Não havia fio de erva, nem fragmento de solo descoberto podia ser encontrado fora da centena de quilômetros quadrados do Palácio Imperial. Não havia água fora das terras do Palácio a não ser no vasto sistema de cisternas subterrâneas que conservavam a reserva de água de um mundo.

O lustroso, indestrutível, incorruptível metal que formava a superfície ininterrupta do planeta era a base da enorme estrutura de metal que emaranhava o planeta. Havia estruturas ligadas por estradas a pique; atadas por corredores; cheias de nichos de repartições; pavimentadas com os grandes retalhos centrais que tinham coberto quilômetros quadrados; cheio de coberturas típicas do mundo de divertimento cintilante que enchia de vida todas as noites.

Qualquer pessoa podia ter sua atividade no mundo de Trantor e não viver senão num prédio conglomerado, nem jamais ver a cidade.

Uma esquadra de naves em número maior do que todas as esquadras de guerra do Império estava todos os dias descarregando sua carga em Trantor para alimentar os quarenta bilhões de pessoas que nada forneciam em troca a não ser a realização da tarefa de desembaraçar as miríades de problemas que espiralavam através da administração central do mais complexo governo que a Humanidade alguma vez conhecera.

Vinte mundos agrícolas eram o celeiro de Trantor. Um universo era o seu escravo...

Firmemente segura pelos enormes braços metálicos que a seguravam de ambos os lados, a nave comercial repousava delicadamente no fundo da enorme rampa que conduzia para o hangar. Devers raivosamente abrira caminho através das múltiplas complicações de um mundo concebido em trabalho no papel e dedicado ao princípio do original e quatro cópias.

Fora a paragem preliminar no espaço, onde fizera sua aparição o primeiro questionário, que depois se havia de multiplicar por centenas. Houvera depois a centena de exames impertinentes, a administração rotineira de uma Sonda simples, as fotografias da nave, a Análise' Característica dos dois homens, e o subseqüente registro da mesma, a procura de contrabando, o pagamento da taxa de entrada e finalmente a questão das carteiras de identidade e o visto de visitantes.

Ducem Barr era siweniano e súdito do Imperador, mas Lathan Devers era um desconhecido que não dispunha dos documentos necessários. O oficial de serviço no momento viu-se esmagado com pedidos, contudo Devers não entrou. De fato, teria de ser ouvido pelos serviços oficiais de investigação.

Uma centena de créditos, em notas novas, amarfanhadas, garantidas pelas propriedades de Lorde Brodrig, fizeram a sua aparição vindas de algum lugar e mudaram tranqüilamente de mãos. O oficial tossiu de modo importante e ficou assegurada a sua complacência. Apareceu uma nova figura no postigo indicado. Entregou tudo rápida e eficientemente, tendo além disso incluído as características de Devers, formal e corretamente estabelecidas.

Os dois homens, comerciante e patrício, entraram em Trantor.

No hangar a nave comercial era mais uma nave para ser recolhida, fotografada, registrada, verificado o seu conteúdo, fotocopiadas as carteiras de identidade dos passageiros, e logo que tivesse sido paga a taxa indicada, registrada e recebida.

E nessa altura Devers estava num enorme terraço, dominando o sol branco e radiante, ao longo do qual havia mulheres a tagarelar, crianças a brincar e homens sorvendo calmamente bebidas e vendo os grandes televisores que faziam cintilar as notícias do Império.

Barr contou o número necessário de moedas de irídio para tirar o jornal que estava no alto de uma pilha. Era o Notícias Imperiais de Trantor, órgão do governo. Lá dentro, nas instalações do jornal, havia um leve rumor de edições adicionais que estavam sendo impressas pelo sistema de telepatia a 15.000 quilômetros de distância por túneis - 8.000 por aparelhos aéreos -tal como dez milhões de exemplares estavam sendo impressos da mesma maneira nesse momento, em dez milhões de outras instalações de jornais por todo o planeta.

Barr olhou de relance para o cabeçalho e disse secamente: - O que faremos em primeiro lugar?

Devers esforçava-se por se libertar da sua própria depressão. Estava num universo tão afastado do seu, num mundo que o comprimia com as suas trapalhadas, no meio de pessoas cujas ações eram incompreensíveis e cuja linguagem quase o era também. As cintilantes torres metálicas que o rodeavam e que continuavam ininterruptamente numa multiplicidade sem fim pelo horizonte afora; oprimiam-no; aquela vida totalmente ocupada, negligente, de um mundo metropolitano causava-lhe uma horrível sensação de isolamento e dava-lhe tamanha falta de importância que o tomavam um pigmeu.

Disse: - Parece que o melhor é sair daqui, doutor.

Barr estava calmo, e sua voz era suave: - Quis dizer-lhe isso, mas é difícil compreender quando uma pessoa ainda não viu, sei muito bem. Você sabe quantas pessoas querem avistar-se com o Imperador todos os dias? Cerca de um milhão. Sabe quantas ele atende? Umas dez. Teremos de passar por cima do serviço burocrático, o que torna as coisas ainda mais difíceis. Não temos possibilidades de pagar aos aristocratas.

- Temos quase cem mil créditos.

- Um simples par do reino pode custar isso, e precisamos de pelo menos três ou quatro para formar uma ponte adequada para chegar até o Imperador. E devem ser necessários uns cinqüenta comissários e supervisores classificados para o mesmo; estes devem custarnos, talvez, uma centena cada um. E precisaremos falar. Em primeiro lugar, eles não devem notar o seu sotaque e, em segundo, você não conhece a etiqueta do suborno Imperial. É uma arte, garanto-lhe.

A terceira página do Noticias Imperiais trazia o que ele queria e passou o jornal a Devers.

Devers leu vagarosamente. O vocabulário era estranho, mas conseguiu compreendê-lo. Olhou para cima, e os seus olhos estavam obscuros de concentração. Deu uma palmada na folha de jornal, raivosamente, com as costas da mão. - Você crê que isto pode ser de confiança?

- Dentro de certos limites - replicou Barr, calmamente. - É bastante improvável que a esquadra da Fundação tenha sido destruída. Já teriam relatado isto várias vezes, se seguissem a usual técnica de reportagem de guerra de uma capital do mundo que está afastada da atual cena de combate. O que isto significa, todavia, é que Riose ganhou outra batalha, que ele não devia ter esperado. Fala-se aí na captura de Loris. Trata-se do planeta capital do Reino de Loris?

- É - ponderou Devers - ou daquilo a que se costumava dar o nome de Reino de Loris. E não está distanciado sequer 60 anos-luz da Fundação. Doutor, temos que ir embora para começar a agir depressa.

Barr encolheu os ombros: - Você não pode agir assim em Trantor. Se tentar, acabará na ponta de um desintegrador atômico, com toda a certeza.

- Levaremos muito tempo a conseguir o que queremos?

- Um mês, se tivermos sorte. Um mês, e os nossos cem mil créditos no caso de serem suficientes. E isto é na hipótese de não se meter na cabeça do Imperador a idéia de se pôr a caminho dos Planetas de verão, onde nunca concede audiências.

- Mas a Fundação...

-... Há de tratar dela mesma, como até aqui. Olhe, vamos cuidar da questão do jantar. Estou com muito apetite. E depois a noite é nossa e podemos utilizá-la como quisermos. Nunca mais voltaremos a Trantor ou qualquer outro mundo como você bem o sabe.

 

O Agente Ministerial das Províncias Exteriores estendeu as mãos gorduchas com impotência e nobreza aos peticionários, fazendo umas solenes oscilações de cabeça. – O Imperador está indisposto, cavalheiros. É realmente inútil que eu apresente o caso ao meu superior. Sua Majestade Imperial não recebeu ninguém durante a semana.

- Ele há de receber-nos - disse Barr, com um ar circunspecto. - É apenas questão de dizer que se trata de um membro do estado-maior do Secretário Privado.

- Impossível - replicou o comissário enfático. - Seria um grande erro de minhas funções fazer pressão para tanto. A não ser que os senhores me contassem explicitamente qual é a natureza do assunto que querem tratar. Eu gostaria de ajudá-los compreendam, mas naturalmente preciso de uma coisa menos vaga, alguma coisa que eu possa apresentar ao meu superior como razão para levar o assunto adiante.

- Se o meu assunto fosse de tal caráter que pudesse ser exposto a qualquer pessoa - observou Barr, suavemente - nenhum interesse haveria para justificar um pedido de audiência com Sua Majestade Imperial. Eu proponho que você vislumbre uma possibilidade. Devo lembrar-lhe que se Sua Majestade Imperial ligar aos nossos assuntos a importância que lhe garantimos que ele lhe há de dar, você pode ficar completamente certo de que receberá as honras que lhe cabem por nos ter ajudado agora.

- Sim, mas... - o comissário encolheu os ombros, sem mais palavras.

- Há uma possibilidade - acrescentou Barr. - Naturalmente, um risco deve ter a sua compensação. É um grande favor que lhe estamos pedindo, mas já temos de lhe estar muito agradecidos pela gentileza que teve em nos dar esta oportunidade para expor os nossos problemas. Mas se você nos permitir que expressemos a nossa gratidão embora reduzidamente com...

Devers fez uma carranca. Já tinha ouvido este discurso com variações insignificantes umas vinte vezes no último mês. E acabou, como sempre, com um rápido gesto de estender umas notas meio escondidas. Aqui, porém, a história foi outra. Habitualmente as notas desapareciam imediatamente; neste caso ficaram completamente á vista, enquanto o comissário as contava vagarosamente, analisando-as tanto no verso como no anverso.

Houve uma sutil mudança de tom na sua voz: - Emitido pelo Secretário Privado, heim? Bom dinheiro!

- Voltando ao assunto de que estávamos falando... - insistiu Barr.

- Não, espere - interrompeu o comissário - vamos voltar atrás umas quantas fases. Eu realmente estou com desejo de saber o que pode ser o assunto de vocês. Este dinheiro está limpo e é novo, e vocês devem ter uma boa porção dele, pois me consta que vocês já se avistaram com outros funcionários antes de mim. Ora, vamos, de que é que se trata?

Barr disse: - Não compreendo o que você está sugerindo.

- O quê? Ora veja, eu poderia provar que vocês estão ilegalmente no planeta, pois que a identificação e o Cartão de Entrada do seu silencioso amigo são certamente irregulares. Não se trata de um súdito do Imperador.

- Nego isso.

- Não me importa nada o que você diz - replicou o comissário com repentina brusquidão. - O funcionário que assinou o seu Cartão a troco de cem créditos confessou - sob pressão - e sabemos mais do que aquilo que você pensa.

- Se está insinuando, senhor, que a soma que lhe pedimos para aceitar é insuficiente tenho em vista os riscos...

O homem sorriu: - Pelo contrário, é mais do que suficiente. - Pôs as notas de lado. - Para voltar ao que estava dizendo, é o próprio Imperador que tem mostrado muito interesse pelo caso de vocês. Não é verdade, cavalheiros, que estiveram recentemente prisioneiros do general Riose? Não é verdade que vocês escaparam do meio do seu exército, para dizer coisas com brandura, com espantosa facilidade? Não é verdade que possuem uma pequena fortuna em notas emitidas pelas propriedades de Lorde Brodrig? Em resumo, não é verdade que vocês são dois assassinos que foram aqui mandados para..

. Bem, vocês é que nos vão dizer quem lhes paga e para quê!

- Não sei - disse Barr, com uma raiva lisonjeira. - Eu nego o direito de um pequeno funcionário nos acusar de crimes. Vamo-nos embora.

- Vocês não vão embora coisa nenhuma. - O comissário levantou-se e os seus olhos não tardaram a mostrar que estava muito atento. - Vocês não precisam responder agora às minhas perguntas; podem reservar isso para mais tarde quando há de ser também mais difícil. Não sou um comissário; sou tenente da Polícia Imperial. Vocês estão presos. Trazia uma pistola desintegradora, brilhante e eficiente, na mão fechada, ao mesmo tempo que sorria: - Há homens mais importantes do que vocês que meti hoje na cadeia. Vamos metê-los num lindo abrigo, muito limpo.

Devers rosnou e puxou vagarosamente pela sua própria pistola. O tenente da Polícia sorriu mais abertamente e apertou os contatos. A linha de força desintegradora atingiu o peito de Devers com um violento sopro de destruição, mas que tocou inofensivamente sua farda e se desfez em partículas de luz.

Devers disparou por seu turno, e a cabeça do tenente ficou isolada da parte superior do torso que desapareceu. Estava ainda sorridente como se o divertisse o raio de fulgor solar que entrou através do buraco recentemente aberto na parede.

Saíram pela porta da retaguarda.

Devers disse roucamente: - Vamos depressa para a nave. Não devem demorar a dar o alarma. - Praguejou com um silvo feroz. Eis outro plano que vai por água abaixo. Parece que o espaço inteiro me lançou pragas.

Estavam no descampado que encontraram repleto de multidões atentas aos grandes televisores. Não tinham tempo a perder; menosprezaram as palavras ensurdecedoras e estrepitosas que os alcançaram. Mas Barr apanhou um exemplar das Notícias Imperiais antes de mergulhar na grande porta do hangar, de onde a nave alçou vôo precipitadamente, através de uma cavidade gigante aberta até o teto.

- Você é capaz de ir-se embora? - perguntou Barr.

Dez naves da Polícia seguiam pertinazmente a pista da nave que saíra infringindo as regras legais de saída que era radiodirecionada, e desobedeceram a todas as regras de velocidade em vigor. Atrás deles, contudo, estavam seguindo naves novinhas do Serviço Secreto, em perseguição de uma embarcação cuidadosamente descrita, tripulada por dois assassinos identificados.

- Veja você - disse Devers, e lançou-se brutalmente no hiperespaço três mil quilômetros acima da superfície de Trantor. A nave transformou-se, assim, numa massa planetária, significando inconsciência para Barr e um terrível nevoeiro de dor para Devers, mas alguns anos-luz depois o espaço por cima deles estava limpo.

O sombrio orgulho que Devers tinha pela sua nave irrompeu â superfície. Disse: - Não há uma nave Imperial que seja capaz de me perseguir seja onde for.

E depois, amargamente. - Mas não há, em parte alguma, ponto para onde possamos ir, e não podemos lutar contra eles. O que é que faremos? O que é que alguém poderia fazer?

Barr mexeu-se debilmente na sua cama. O efeito da híper-velocidade ainda não lhe tinha passado, e doíam-lhe os músculos todos. Disse: - Ninguém pode fazer coisa alguma. Está tudo terminado. Olhe!

Entregou-lhe o exemplar das Noticias Imperiais que ainda conseguira agarrar, e o cabeçalho foi suficiente para o comerciante.

- Destituídos e presos - Riose e Brodrig - murmurou Devers. Olhou de maneira vazia para Barr. - Por quê?

- A notícia não diz nada a esse respeito, mas que problema que teria surgido? A guerra com a Fundação está terminada, e neste momento, Siwena está revoltada. Leia a notícia e veja. - A sua voz estava cheia de energia. - Veja sé consegue parar em qualquer uma das províncias e descubra os pormenores que nos faltam. Se você não se importa, por mim vou dormir agora.

E assim fez.

Com saltos de gafanhoto de magnitude sempre crescente, a nave comercial estava atravessando a Galáxia no seu regresso para a Fundação.

 

O FIM DA GUERRA

Lathan Devers sentiu-se definitivamente incomodado, e vagamente ressentido. Recebera sua condecoração e suportara com muito estoicismo a oratória redundante do Prefeito que escoltara a faixa de fitas carmesim. Isto acabara com a sua parte de participação nas cerimônias, mas, naturalmente, forçaram-no formalmente a continuar ali. E era principalmente esse lado formal - de um tipo que podia se recostar para bocejar ruidosamente ou para enrolar confortavelmente um pé em volta das pernas de uma cadeira - o que lhe dava uma grande vontade de voltar para o espaço, ao qual pertencia.

A delegação siweniana, com Ducem Barr como membro que desempenhava o papel principal, assinou a Convenção, e Siwena transformou-se na primeira província a passar diretamente do domínio político do Império para uma Fundação econômica.

Cinco Naves Imperiais de comando - capturadas quando Siwena se rebelara na retaguarda das linhas da Esquadra das Fronteiras do Império - relampejaram por cima das cabeças, grandes e maciças, lançando uma saudação rimbombante ao passarem por cima da cidade.

Nada mais além de bebidas, etiqueta e umas conversas insignificantes agora...

Uma voz chamou-o. Era Forell; o homem que, Devers pensou-o friamente, podia comprar vinte dele com os lucros de uma manhã, mas um Forell que agora curvava um dedo para ele com uma condescendência genial.

Encaminhou-se para a sacada onde predominava o frio da noite, e inclinou-se delicadamente, enquanto fazia uma careta que lhe eriçava a barba. Barr também ali estava, sorridente. Disse: - Devers, você deve vir em meu socorro. Estou sendo acusado de modéstia, um crime horrível e completamente contra a natureza.

- Devers - Forell tirou o charuto apagado do canto da boca enquanto falava - Lorde Barr afirma que sua viagem à capital de Cleon não teve qualquer efeito que contribuísse para a demissão de Riose.

- Absolutamente nenhum, senhor - respondeu Devers, conciso. -Nós nunca vimos o Imperador. Os relatos que roubamos quando voltamos referiam-se ao julgamento, revelando que ele fora preso e demitido devido ao arrogante predomínio que estava assumindo e às suas ligações secretas. Havia uma confusão de opiniões a respeito do general, sendo geralmente aceito que ele tinha ligações subversivas na corte.

- E estava inocente?

- Riose? - interpôs-se Barr. - Claro! Pela Galáxia, estava! Brodrig era um traidor dos princípios gerais, mas nunca foi culpado das acusações que lhe foram feitas. Foi uma farsa judicial; mas necessária, previsível, inevitável.

- Calculo que por necessidade psicohistórica - Forell soletrou a frase sonoramente com a facilidade bem-humorada de uma longa familiaridade.

- Exatamente. - Barr tornou-se sério. - Eu jamais o compreendera até então, mas uma vez que estamos inteirados das causas, o problema tornou-se simples. Podemos ver, agora, que o substrato social do Império cria guerras de conquista que ele não pode sustentar, quando sob imperadores fracos é fracionado em parcelas por generais competentes e que se encontram na dependência de um trono sem valor e seguramente natimorto, quando sob Imperadores fortes, o Império fica congelado num rigor de paralisia em que a desintegração cessa por momentos, mas só graças aos sacrifícios de todos os progressos viáveis.

Forell resmungou através de fortes baforadas:

- Você não está sendo nada claro, Lorde Barr. 

Barr sorriu vagarosamente.

- Ahm, parece-me que sim. É difícil não ser arrastado para a psicohistória. As palavras são umas imperfeitas substitutas, cheias de fiapos, das equações matemáticas. Mas deixe-me ver agora...

Barr meditou, enquanto Forell se espreguiçava, com as costas encostadas à balaustrada, e Devers olhou para o céu aveludado e evocou atonitamente Trantor.

Nessa altura Barr continuou:

- Veja, senhor, você - e Devers, e estou convencido de que toda a gente, tinham a idéia de que derrotar o Império exigiam que primeiro se separasse o Imperador do seu general. Você, e Devers, e qualquer outra pessoa estavam certos - certos durante um determinado espaço de tempo, certos durante aquele período em que o princípio de desunião interna era o que mais nos importava.

- Mas vocês estavam errados, de qualquer maneira, pensando que esta divisão interna era coisa que podia ser provocada na sua totalidade por atos individuais, por inspiração de momento. Você, Devers, procurou subornar e mentiu. Você apelou para a ambição e para o medo. Mas não conseguiu com os seus sofrimentos. De fato, as coisas ficavam aparentemente piores depois de qualquer de suas tentativas.

- E através de tudo isto, correndo duramente por cima das pequenas ondas, o ondear de Seldon foi continuando para diante, serenamente - porém com muita irresistibilidade.

Ducem Barr virou-se e olhou por cima da balaustrada para as luzes de uma cidade alegre. Disse:

- Havia uma mão morta exaurindo tudo de nós; do poderoso general e do grande Imperador; do meu mundo e do vosso - a mão morta de Hari Seldon. Ele sabia que um homem como Riose deveria falhar, pois que o seu triunfo é que trouxe o fracasso; e quanto maior é o triunfo mais certo é o fracasso.

Forell disse secamente:

- Não posso dizer que você fale com mais clareza.

- Um momento - continuou Barr fervorosamente. - Repare bem na situação. Um general fraco nunca nos podia ter posto em perigo, evidentemente. Um general forte, durante o reinado de um Imperador fraco, nunca nos poderia ter posto em perigo, também, porque teria apontado as suas armas para um objetivo muito mais rendoso. Os acontecimentos tinham provado que três quartas partes dos Imperadores dos últimos dois séculos foram generais rebeldes e vice-reis rebeldes, antes de serem Imperadores.

- Por esse motivo a combinação de Imperador forte e general forte podia prejudicar a Fundação; pois que um Imperador forte não poderia ser destronado facilmente, e um general forte é forçado a virar-se para o exterior, a passar as fronteiras.

- Mas, o que é que mantém o Imperador forte? O que é que tornava Cleon forte? E evidente. Ele é forte, porque não permite a existência de* súditos fortes. Um cortesão que se torna excessivamente rico, ou um general que se torna excessivamente popular, são perigosos. Toda a história recente do Império prova que qualquer Imperador inteligente pode ser bastante forte.

- Riose conseguiu vitórias, pelo que o Imperador se tornou desconfiado. Todo o ambiente da época o forçou a ser desconfiado. Riose recusa um suborno? É para desconfiar; deve haver razões ocultas. O seu cortesão de mais confiança põe-se subitamente a favor de Riose? É para desconfiar; mais motivos para desconfiar. Não eram as ações individuais que eram de desconfiar. Alguma coisa mais teria de se fazer e por isso é que as nossas conspirações individuais foram desnecessárias e algum tanto inúteis.

- Foi o êxito de Riose que o tornou suspeito. Por isso foi destituído, acusado, condenado, assassinado. A Fundação voltou a vencer.

- Porque, veja bem, não há uma combinação concebível de acontecimentos que não venha a resultar na salvação da Fundação. Era inevitável, por mais que Riose fizesse, por mais que nós fizéssemos.

O magnata da Fundação meneou gravemente a cabeça:

- Seja! Mas o que aconteceria se o Imperador e o general tivessem sido a mesma pessoa? Hein? O que aconteceria então? Isto é um caso que você não poderia investigar, pois que assim você não poderia provar os seus pontos d.e vista de modo algum.

Bar encolheu os ombros:

- Eu não posso provar coisa alguma. Não conheço matemática. Mas apelo para a sua razão. Em um Império em que todos são aristocratas, todos os homens fortes, todos os piratas podem aspirar ao Trono - e, como a história mostra, muitas vezes a seguir uns aos outros - o que é que acontecia sempre a um Imperador forte que se preocupasse pessoalmente com as guerras estrangeiras no ponto mais extremo da Galáxia? Quanto tempo podia ele permanecer longe da capital antes de alguém desfraldar as bandeiras da guerra civil e forçá-lo a sair pela porta fora? A formação social do Império não tardaria a expulsá-lo, decorrido bem pouco tempo.

- Disse uma vez a Riose que nem todas as forças do Império poderiam desviar a mão morta de Hari Seldon.

- Bom! Bom! - Forell estava expansivamente satisfeito. - Nesse caso você está insinuando que o Império nunca mais pode ameaçar.

- Assim me parece, de fato - anuiu Barr. - Francamente, Cleon não deve viver mais um ano, e já deve estar começando a luta pela sucessão, o que é quase coisa natural, e isso pode querer dizer a última guerra civil do Império.

- Nesse caso - disse Forell - não há mais inimigos.

Barr mostrava-se pensativo.

- Há uma segunda Fundação.

- No outro extremo da Galáxia? Durante séculos, não.

Devers virou-se subitamente ao ouvir isto, e a sua face estava sombria quando fitou Forell:

- Talvez haja inimigos internos.

- Haverá? - perguntou Forell, friamente. - Quais, por exemplo?

- O povo, por exemplo, que se aumentar a riqueza, de ver concentrar-se excessivamente fora das mãos daqueles que a produzem. E que se pode decidir a pôr fim a esta concentração. Compreende o que quero dizer?

Vagarosamente, o olhar de Devers desviou-se com desprezo e foi invadido por uma cólera provocada pelas palavras de Forell.

 

O MULO

NOIVA E NOIVO

O MULO. Ainda se sabe menos quanto ao "Mulo" do que a respeito de qualquer outra personagem de igual importância para a história galáctica. Não se sabe qual era o verdadeiro nome; o início de sua vida é mera conjectura. Mesmo o período de sua maior nomeada é principalmente conhecido através dos olhos dos seus antagonistas e, principalmente, através dos de uma jovem noiva...

Enciclopédia Galáctica

 

O primeiro espetáculo de Haven que Bayta observou foi inteiramente o contrário de espetacular. O marido mostrou-lho lá fora - uma estrela escura perdida no meio do vácuo da extremidade da Galáxia. Tinham ultrapassado os últimos aglomerados esparsos, dirigindo-se para o lugar onde cintilavam solitariamente alguns pontos de luz extraviados.

E tudo o que ali existia era pobre e obscuro.

Torã estava inteiramente consciente do fato e tornava-o como sendo o mais próximo prelúdio para a vida de casado; faltava á Ana Vermelha a capacidade de causar impressão e os seus lábios ondularam autoconscientemente:

- Eu sei, Bay... Não se trata exatamente de uma mudança oportuna, não é? Quero eu dizer, da Fundação para isto.

- Uma mudança horrível, Torã. Eu nunca devia ter casado com você. E quando sua face se mostrou momentaneamente sofredora, antes de ele ter virado a cara, ela acrescentou com o seu "agradável sotaque" especial:

- Muito bem, tolo. Agora veja se perde esse trejeito carrancudo dos. lábios e concede-me aquele olhar especial de carneiro semimorto - igual ao que mostrava quando julgava que tinha a cabeça escondida no meu ombro, enquanto eu afagava seu cabelo cheio de eletricidade estática. Estava sempre descobrindo uma tolice qualquer, lembra-se?

- Esperava por mim para me dizer "Hei de ser feliz em qualquer parte com você, Bay" ou "Até os abismos interestelares podiam ser o meu lar, meu carinho, desde que você estivesse ao meu lado!" Suponho que se lembra disto. Apontou-lhe um dedo e tirou-o depressa antes de levar uma dentada.

Ele respondeu:

- Se eu me render, e admitir que você tem razão, vai fazer o jantar?

Ela acenou que sim, com satisfação. E ele sorriu, e voltou a olhar para ela.

Não era uma beleza de grau idêntico ao de muitas outras - ele admitia que assim fosse - mesmo se todo mundo olhasse para ela duas vezes. Tinha o cabelo escuro e brilhante, liso todavia, a boca era grande - mas as suas sobrancelhas meticulosas, de textura cerrada, separavam a testa branca e abaulada dos olhos quentes, de um tom de mogno, que estavam sempre sorridentes.

E atrás de uma fachada de prática, isenta de romantismos, resolutamente construída e constantemente defendida, que se mostrava dura perante a vida, exatamente a pequena poça de brandura que nunca se tornava evidente quando pressentia a existência da troça em alguém, mas que podia aparecer no caso de se encontrar perante alguém que a conhecesse perfeitamente - desde que esse alguém não mostrasse que estava interessado nela.

Torã ajustou desnecessariamente os comandos e decidiu distender-se. Houve um salto interestelar, e depois vários anos-luz na "reta" antes de qualquer movimento manual se tornar necessário. Inclinou-se sobre as costas do banco para olhar para dentro do paiol de mantimentos, onde Bayta ia fazendo prestidigitações com os recipientes apropriados.

Havia quase um laivo de vaidade na atitude que assumia para com Bayta. O temor satisfeito que marcava o triunfo de alguém que estivera pairando durante três anos nos limites de um complexo de inferioridade.

No fim de contas ele era um provinciano e não apenas um provinciano, mas ainda o filho de um comerciante renegado. E ela era oriunda da própria Fundação, e não apenas isso, pois podia seguir o rasto dos seus antepassados até Mallow.

E com tudo isto, sentia um pequeno tremor invadi-lo. Voltar para Haven, para o seu mundo de rochas e para as suas cidades-cavernas era bastante mau. Mas ter diante dele a hostilidade tradicional existente contra um comerciante na Fundação - reduzido a ser um nômade numa cidade residencial - era pior.

Todavia... depois de comer, o último salto!

Haven era uma chama raivosamente carmesim, e o segundo planeta era um pedaço de luz rubro como um arco dividindo a atmosfera iluminada da meia esfera de escuridão.

Bayta deu uma olhadela para a larga mesa de visão com as suas linhas que se entrecruzavam formando uma teia de aranha que centrava nitidamente Haven II.

Disse gravemente:

- Gostaria de encontrar seu pai primeiro. Se ele decidir ser antipático comigo...

- Nesse caso - disse Torã de maneira prática - seria a primeira garota bonita que lhe inspiraria uma atitude dessas. Antes de ele ter perdido o braço e ser obrigado a deixar de andar à volta da Galáxia, ele... Bem, se lhe perguntar o que se passou, ele há de dizer-lhe tudo o que aconteceu naqueles anos em que nós estivemos metidos sob um penedo. Depois de certo tempo acabei por pensar que ele estava com fantasias; porque nunca contou a mesma história duas vezes da mesma maneira...

Haven II estava arremetendo ao seu encontro. O mar cercado rodava pesadamente por baixo deles, de um cinza-ardósia no meio da obscuridade e perdia-se de vista, aqui e além, por meio dos punhados de nuvens. Havia montanhas projetando-se esfarrapadamente ao longo da costa.

O mar tornou-se enrugado quando se aproximaram e, como virassem para fora mudando de horizonte quase na parte final, avistaram um desvanecido vislumbre de praia com enormes campos de gelo.

Torã resmungou sob o efeito da violenta desaceleração:

- Fechou suas coisas?

A face rechonchuda de Bayta estava vermelha na espuma-de-esponja muito aderente, do traje de couro aquecido por dentro.

A nave baixou rangendo no campo aberto, bem no fundo do alto* planalto. Eles elevaram-se desajeitadamente na plena escuridão da noite exterior galáctica, e Bayta arfou quando o frio aumentou, e o vento fraco redemoinhou vaziamente. Tora mediu o seu ângulo e tocou levemente com o cotovelo provocando uma desajeitada corrida sobre o terreno regular e compacto em direção â mancha faiscante de luz artificial que aparecia à distância.

A guarda avançada veio ao encontro deles a meio caminho, e depois de uma sussurrada troca de palavras, continuaram a avançar. O vento e o frio desapareceram quando o portão de rocha se abriu para depois se fechar atrás deles. O interior quente, branco com paredes luminosas, estava cheio de um zumbido alvoroçado e incoerente.

Havia homens vigiando instalados ás suas mesas, e Torã apresentou os seus documentos. Houve um aceno de mão para diante depois de uma rápida olhadela e Torã sussurrou à mulher:

- O papá deve ter legalizado as formalidades. O lapso de tempo que se gasta normalmente aqui é de cinco horas.

Encaminharam-se para a abertura e Bayta disse repentinamente:

- Oh, meu...

A caverna da cidade estava iluminada pela luz do dia - a branca luz do dia de um sol novo. Não era que se tratasse de um sol, evidentemente. Aquilo que devia ser o céu estava perdido na vermelhidão desfocada de um brilho que tudo cobria. E o ar quente dispunha da densidade adequada e tinha um cheiro de folhagem.

Bayta observou:

- Isto aqui, Torã, é belo.

Torã sorriu com um ansioso deleite:

- Ora, Bay, decerto que não se parece com nenhuma das da Fundação, mas é a maior cidade de Haven II - vinte mil pessoas, sabe - e vai ver como gosta dela. Nenhum palácio de diversões, mas também nenhuma polícia secreta.

- Oh, Torie, é mesmo uma cidade de brinquedo. É toda branca e cor-de-rosa - e tão limpa.

- Bem... - Torã olhou para a cidade juntamente com ela. As casas tinham dois andares em sua maioria, eram feitas com a pedra da região cheia de veios regulares. As torres da Fundação estavam ausentes, e assim como a colossal harmonia de casas dos Velhos Reinos - mas havia ali a pequenez e a individualidade; uma relíquia da iniciativa pessoal numa Galáxia de vida de massas.

Ele disse de repente com súbita atenção:

- Bay... Ali vem o papá! Mesmo ali... onde estou apontando, tola. Não o vê?

Ela avistou-o. Era apenas a sugestão de um homem grande, acenando freneticamente, com os dedos todos esticados como se andasse às apalpadelas no ar.O estrondoso grito estava alcançando-os ali. Bayta arrastou o marido, movendo-se rapidamente por cima do relvado cuidadosamente aparado. Ela desviou os olhos para um homem pequeno, de cabelo branco, quase impossível de se ver atrás do robusto Maneta, que continuava a caminhar e a gritar.

Torã gritou por cima do ombro:

- É o meio-irmão de meu pai. Aquele que uma vez esteve na Fundação. Você já o conhece.

Eles meteram-se pelo relvado, rindo-se infantilmente, e o pai de Torã emitiu um grito final para consumar sua alegria. Segurou o casaco curto e apertou o cinto de metal gravado, o qual era uma concessão ao luxo.

Os seus olhos saltaram de um jovem pata outro, e disse logo após inalar um pouco de ar:

- Você escolheu um dia terrível para voltar para casa, rapaz!

- O que? Oh! é o dia do nascimento de Seldon, não é?

- É. Tive de alugar um carro para vir até aqui, e fui obrigado a trazer o feroz Randu para conduzi-lo. Não há um veículo público para ir seja onde for.

Tinha os olhos fitos em Bayta, e não a abandonava. Falou com ela mais suavemente:

- Tenho o seu cristal comigo - e é bom, mas pode-se ver que é obra de um amador. Tinha um pequeno cubo de transparência fora do bolso do casaco e, com a luz, a sorridente facezinha explodiu para uma vivida vida colorida com uma miniatura de Bayta.

- Essa aí? - disse Bayta. - Agora gostaria de saber porque é que Torã lhe teria mandado essa caricatura. Estou surpreendida porque se tenha dado ao trabalho de vir-me esperar, senhor.

- O que é isso? Chame-me Fran. Não sou nada do que você está pensando. Por isso, penso que você pode tomar o meu braço, e eu a levo para o carro. Até agora não imaginara que o meu rapaz soubesse o que estivesse fazendo lá por cima. Parece-me que agora sou obrigado a mudar de opinião. Penso que deverei mudar de opinião.

Torã disse ao seu meio-tio, em voz baixa:

- O que andou fazendo o velhote? Andou atrás de mulheres?

Randu enrugou completamente a face quando olhou para cima e sorriu.

- Quando se pode, Torã, quando se pode. Às vezes, a gente se lembra que vai fazer os sessenta, e isso desanima. Mas não tarda que comece a rir outra vez, esse grande diabo, e então volta a ser ele mesmo. É um comerciante á maneira antiga. Mas você, Torã. Onde foi descobrir uma mulher tão linda?

O rapaz riu entredentes e abanou os braços.

- Quer que lhe conte a história de três anos de uma vez, tio?

Foi no pequeno vestíbulo da casa que Bayta tirou sua capa de viagem e a touca e abanou os cabelos soltos. Sentou-se, cruzou as pernas, e voltou á contemplação daquele homem grande e vermelho.

Disse:

- Imagino que está fazendo contas e por isso vou ajudá-lo; idade, vinte e quatro; altura, um e sessenta e cinco; peso, cinqüenta e cinco; especialidade, história. - Ela constatou que ele mexia sempre o corpo como se quisesse ocultar que perdera um braço.

Fran inclinou-se ainda mais e disse:

- Já que você o diz... peso exato, sessenta quilos.

Riu-se ruidosamente ao vê-la corar. Depois disse, dirigindo-se a todos em geral:

- Você pode dizer sempre o peso de uma mulher calculando pelos braços - com a devida experiência, claro. Você aceita uma bebida, Bay?

- Entre outras coisas - disse ela, e saíram os dois, enquanto Torã procurava diligentemente na estante de livros, á procura de novidades.

Fran regressou sozinho e disse:

- Ela já vem.

Deixou-se cair pesadamente numa ampla cadeira de canto e pôs a sua perna esquerda, de articulações rígidas, no tamborete que estava defronte dele. Voltara o riso á sua face vermelha, e Torã virou o rosto para ele.

Fran disse:

- Bem, está em casa, rapaz, e estou satisfeito com isso. Gosto de sua mulher. Não é uma pateta choramingas.

- Eu casei com ela - observou simplesmente Torã.

- Bem, isso já é uma coisa completamente diferente, rapaz. - Tinha os olhos cheios de sombras. - Hipotecar o futuro é uma maneira tonta de agir. Na minha longa vida, e com mais experiência, nunca fiz semelhante coisa.

Randu interrompeu-o do canto onde estava tranqüilamente de pé:

- Ora, Franssart, que comparações está fazendo? Desde que se arrebentou no desastre, seis anos atrás,nunca esteve o tempo suficiente num lugar para poder requerer casamento. E a partir de então, quem ia te querer?

O maneta endireitou-se na cadeira e replicou violentamente:

- Muitas, meu velho caduco cheio de neve...

Torã observou com rápida diplomacia:

- Trata-se literalmente de uma formalidade legal, papá. A situação tem os seus convenientes.

- Muito maiores para a mulher - resmungou Fran.

- E se assim é - argüiu Randu - o rapaz é que deve decidir. O casamento é um hábito antigo entre os Fundadores.

- Os Fundadores não são os modelos indicados para serem imitados por um comerciante honesto - trovejou Fran.

Torã voltou a interrompê-lo:

- Minha mulher é Fundadora. - Olhou para um e para o outro, e depois acrescentou tranqüilamente: - Ela vem vindo.

A conversa assumiu um tom de generalidades depois da refeição da tarde, que Fran temperara com três histórias de reminiscências formadas em partes iguais de sangue, mulheres, lucros e fantasia. O pequeno televisor estava ligado, no qual estava sendo exibido, num sussurro, um drama clássico qualquer, a que ninguém dava importância.

Randu colocara-se numa posição mais confortável no assento baixo e via subir a fumaça lenta do seu comprido cachimbo, enquanto Bayta se ajoelhara em cima da macieza da pele branca da almofada, pele que ali fora ter há muito tempo no regresso de uma missão comercial, e agora se expunha apenas em ocasiões de muita cerimônia.

- Você estudou história, minha pequena? - perguntou ele, meigamente.

Bayta acenou que sim com a cabeça:

- Fui o desespero dos meus professores, mas por acaso aprendi um bocado.

- Com distinção - observou Torã, muito satisfeito - só isso!

- E que vai fazer com o que aprendeu? - perguntou Randu, suavemente.

- Do que aprendi? Agora? Aplicá-lo.

O velhote sorriu delicadamente:

- Bem, nesse caso, o que é que você pensa da situação galáctica?

- Penso - respondeu Bayta de maneira concisa - que está prestes a verificar-se uma crise de Seldon... e que ela não se apresenta inteiramente de acordo com o plano de Seldon. É uma ruptura.

(- Hum - resmungou Fran, do seu canto. - Que maneira de falar de Seldon. - Mas não voltou a dizer mais nada em voz alta). Randu mordeu o cachimbo especulativamente:

- Deveras? Por que é que diz isso? Eu fui pela Fundação, sabe, nos meus tenros anos, e também me pus uma vez a meditar grandes pensamentos dramáticos. Mas, agora, por que é que é que você diz isso?

- Bem - os olhos de Bayta enevoaram-se com pensamentos quando torceu a ponta dos seus sapatos simples na branca macieza da manta de viagem e aninhou o seu pequeno queixo numa mão roliça - parece-me que o objetivo total do plano Seldon era criar um mundo melhor do que aquele que foi o do Império Galáctico. Esse mundo estava decaindo irremediavelmente, há uns três séculos atrás, quando Seldon estabeleceu a Fundação pela primeira vez - e, se a história diz a verdade, estava decaindo em conseqüência de uma tripla doença de inércia, despotismo e má distribuição dos bens do Universo.

Randu meneou a cabeça vagarosamente, enquanto Torã fitava a mulher com olhos envaidecidos e brilhantes, e Fran, no seu canto, ia estalando a língua nos dentes, ao mesmo tempo que enchia cuidadosamente o seu copo.

Bayta prosseguiu:

- Se a história de Seldon for verdadeira, ele previa o colapso total do Império através de suas leis de psicohistória, e foi capaz de prever os necessários trinta mil anos de barbárie antes do estabelecimento de um novo Segundo Império para devolver á humanidade a civilização e a cultura. O objetivo final da sua vida de trabalho era estabelecer condições tais que pudessem assegurar um rejuvenescimento muito rápido da humanidade.

A voz profunda de Fran voltou a irromper:

- E foi por isso que ele estabeleceu as duas Fundações, honra seja feita ao seu nome.

- E foi por isso que ele estabeleceu as duas Fundações - concordou Bayta. - A nossa Fundação foi uma concentração de cientistas do Império moribundo com vista a continuar no caminho da ciência e conduzir o homem para novas alturas. E a Fundação foi por isso situada no espaço e o meio histórico era aquele que, através de cuidadosos cálculos do seu gênio, Seldon previra para dentro de um milhar de anos dar nascença a um novo e grande Império.

A moça disse brandamente:

- Trata-se de uma antiga história. Todos vocês a conhecem. Durante quase três séculos todos os seres humanos da Fundação a conheceram. Mas pensei que seria apropriada para fazer uma evocação... muito rápida. Hoje ê o aniversário do nascimento de Seldon, sabe, e mesmo sendo eu da Fundação, e vocês de Haven, temos isto em comum...

Acendeu vagarosamente um cigarro, e olhou para ele de maneira ausente:

- As leis da história são tão absolutas como as leis da física, e se as probabilidades de erro são grandes, é apenas porque a história não lida com tantos problemas humanos como a física faz átomos, sendo que se torna necessário considerar ainda variações individuais. Seldon predisse uma série de crises durante os mil anos de crescimento, cada uma das quais forçaria a uma nova mudança da nossa história para um caminho précalculado. São estas crises que nos dirigem - e portanto devemos agora estar enfrentando uma crise.

- Agora! - repetiu ela, com vigor. - Já se passou quase um século desde que se verificou a última e, neste século, cada um dos vícios do Império está sendo repetido na Fundação. Inércia! A nossa classe dirigente só conhece uma lei; nada de mudança.

- Despotismo! Só conhecem uma regra; a força. Má distribuição! Só conhecem um desejo; defender os seus bens.

- Enquanto outros morrem de fome! - rugiu Fran subitamente com uma poderosa pancada do punho no braço da cadeira. - Moça, as suas palavras são pérolas. As tripas gordurosas dos seus comilões arruínam a Fundação, enquanto os bravos comerciantes escondem sua pobreza nas escórias de mundos como Haven. É uma desgraça para Seldon, um pedaço de lama na sua cara, uma imundície na sua barba. - Levantou o seu braço ao alto, e antão a sua face alongou-se. - Se eu tivesse o braço que me falta! Se, ao menos uma vez, eles me tivessem ouvido!

- Papá - disse Torã - falar é fácil.

- Falar é fácil. Falar é fácil - o pai imitou-o rudemente. - Podemos viver aqui e morrer aqui para sempre - e você o disse, falar é fácil.

- Este é o nosso moderno Lathan Devers - disse Randu, fazendo gestos com o cachimbo - este nosso Fran. Devers morreu nas minas de escravos há uns oitenta anos atrás em companhia do seu bisavô paterno, porque lhe faltava sabedoria e lhe sobrava coragem...

- Pois, pela Galáxia, eu teria feito o mesmo se lá estivesse. - praguejou Fran. – Devers foi o maior comerciante da história - maior do que o impostor tagarela, Mallow, o adorado fundador. Se o corta-goelas, que era governador da Fundação, o matou porque ele amava a justiça, é maior a dívida de sangue que temos para com ele.

- Vamos em frente, moça - disse Randu. Vamos em frente, ou então, pela certa, ele põe-se a falar toda a noite e delira até amanhã.

- Não há mais nada para dizer - replicou ela melancolicamente. - Deve verificar-se uma crise, mas não sei como é que ela manifestar-se-á. As forças progressivas da Fundação estão terrivelmente oprimidas. Vocês, os comerciantes, podem ter vontade, mas estão perseguidos e desunidos. Se todas as forças de boa vontade dentro e fora da Fundação se pudessem unir...

O riso de Fran foi um grito rouco:

- Ouça o que ela diz, Randu, ouça o que ela diz. Dentro e fora da Fundação, é o que ela está dizendo. Moça, moça, não há esperança nesses frouxos da Fundação. No meio deles há alguns que mantêm a vontade e o resto está vencido - vencido e morto. Não há suficiente coragem nesse mundo totalmente podre para salvar a honra de um bom comerciante.

Bayta esforçou-se por protestar fracamente contra o vento que tudo submergia.

Torã levantou-se e tapou-lhe a boca com a mão.

- Papá - disse ele, friamente - você nunca esteve na Fundação. Não sabe nada a respeito dela. Eu lhe digo que o subterrâneo ali é corajoso e tem atrevimento bastante. Posso dizer-lhe que Bayta é um daqueles que...

- Muito bem, rapaz, não quis ofender. Mas, por qual razão se zangaram? - Estava verdadeiramente perturbado.

Torã prosseguiu ardorosamente:

- O que o perturba, papá, é que você tem uma perspectiva provinciana das coisas. Você pensa que porque algumas centenas de milhares de comerciantes fugiram para cavernas num planeta inútil no fim de parte alguma, eles são um grande povo. Decerto, se algum cobrador de impostos da Fundação ali aparece jamais volta a aparecer, porém isso é um heroísmo barato. O que é que você faria se a Fundação mandasse uma esquadra?

- Desintegrá-la-íamos - disse Fran, secamente.

- E ser desintegrados - com a balança a seu favor. Vocês não sabem quantos são, não têm armas, estão desorganizados - e quando a Fundação medita no valor que vocês têm, compreende logo isto. Por isso você agiria melhor se procurasse os seus aliados – na própria Fundação, se fosse capaz.

- Randu - disse Fran, olhando para o irmão como um grande touro impotente.

Randu tirou o cachimbo dos lábios.

- O rapaz tem razão, Fran. Quando você ouve os pequenos pensamentos profundos que há dentro de você, sabe que ele tem razão. Mas trata-se de pensamentos pouco confortáveis, e por isso você quer afogá-los com esse trovejar por cima de nós. Eles permanecem apesar disso. Torã, vou-lhe dizer o que é que deduzo de tudo o que se tem dito até então.

Lançou pensativamente uma baforada por um instante, depois do que mergulhou o cachimbo no cinzeiro, esperando pelo silencioso relâmpago, e tirou-o limpo. Lentamente, encheu-o outra vez com pancadas precisas do dedo mindinho.

Começou:

- Sua sugestão a respeito do interesse que a Fundação manifesta por nós, Torã, é um ponto importante. Houve duas recentes visitas ultimamente para cobranças de impostos. O ponto inquietante é que o segundo visitante apareceu acompanhado por uma nave de patrulha. Desembarcaram na Cidade de Gleiar - impedindo-nos de fazer qualquer mudança - e eles nunca mais dali saíram, naturalmente. Agora eles certamente ir-se-ão embora. Seu pai está ciente de tudo isto, Torã, realmente está a par de tudo.

- Olhe para este teimoso vadio do inferno. Ele sabe que Haven está em dificuldades e sabe que estamos impotentes, contudo vai repetindo suas fórmulas. Acarinha-as e defende-as. Mas uma vez que ele disse tudo isto, e desabafou o seu desafio, sente que confessou sua obediência como um homem e um Comerciante Touro, porque ele é tão razoável como qualquer de nós.

- De quem é que se trata? - perguntou Bayta. Ele sorriu-lhe.

- Formamos um pequeno grupo, Bayta - apenas na nossa cidade. Ainda não fizemos nada, por enquanto. Ainda não procuramos estabelecer contato com outras cidades, porém é um princípio.

- Mas para que?

Randu abanou a cabeça.

- Não sabemos, de momento. Esperamos um milagre. Decidimos que, como você disse, devia estar para ocorrer uma crise de Seldon. - Gesticulou amplamente para o alto. - A Galáxia está cheia de resíduos e detritos do Império destruído. Os generais enxameiam. Você calcula o tempo que pode ser necessário para um audacioso?

Bayta meditou, e depois meneou a cabeça decididamente, pelo que os longos cabeços lisos, com simples anéis interiores, agitaram-se-lbe em torno das orelhas.

- Não, não há possibilidade. Não há nenhum desses generais que não diga que um ataque à Fundação é um suicídio. Bel Riose, do velho Império, foi um homem superior a qualquer deles, e atacou com os recursos de uma galáxia, e não venceu porque enfrentava o Plano Seldon. Há algum general que não saiba isto?

- Mas que tal se nós os incitássemos?

- E para onde? Para uma fornalha atômica? E qual é a possibilidade que você vê de incitá-los?

- Bem, há uma... nova. Há um ou dois anos, comecei a ouvir falar de um homem esquisito a quem davam o nome de Mulo.

- O Mulo? - pensou. - Já ouviu falar dele, Torie? Torã meneou a cabeça. Ela perguntou:

- O que há a respeito dele?

- Não sei. Mas ele conseguiu vitórias, ao que dizem, com disparidades impossíveis. Pode ser que os boatos sejam exagerados, mas seria interessante, fosse como fosse, estabelecer contato com ele. Provavelmente nenhum homem, com habilidade suficiente e suficiente ambição, se resolve acreditar em Hari Seldon e nas suas leis de psicohistória. Nós podíamos encorajar esta incredulidade. Ele podia atacar.

- E a Fundação vencerá.

- Decerto - mas não necessariamente logo a seguir. Podia ser uma crise e nós podíamos tirar vantagem de tal crise para forçar um compromisso com os déspotas da Fundação. No caso de suceder o pior, eles esquecer-nos-iam durante o tempo suficiente para nos habilitar a levar o plano mais adiante.

- O que é que pensa disto, Torie?

Torã sorriu francamente e puxou por uma madeixa castanha que estava solta por cima de um olho.

- Aquilo que ele está sugerindo não nos pode ser prejudicial; mas quem é o Mulo? O que é que você sabe a seu respeito, Randu?

- Nada, por enquanto. Por isso podemos servir-nos de você, Torã, e de ; sua mulher, se ela o desejar. Falamos muitas vezes nisto, eu e o seu pai. Falamos disto vezes sem conta.

- Em que sentido, Randu? O que é que você pensa fazer conosco? - O jovem lançou um rápido olhar interrogativo á mulher.

- Vocês já tiveram lua-de-mel?

- Bem... sim... se podemos chamar â viagem da Fundação uma lua-de-mel.

- Vocês não achariam melhor passar a lua-de-mel em Kalgan? É semitropical - praias, desportos aquáticos, aves de caça - o lugar indicado para umas férias tranqüilas. Está a vinte e um mil anos-luz daqui... não é muito longe.

- Quem é que está em Kalgan?

- O Mulo! Os seus homens, pelo menos. Ocupou-o no mês passado, e sem uma batalha, embora o Condestável de Kalgan tivesse difundido uma ameaça de reduzir o planeta a pó iônico antes de abandoná-lo.

- Onde é que está agora o Condestável?

- Não se sabe - disse Randu, com um encolher de ombros. - O que é que você diz?

- O que é que nós vamos fazer?

- Não sei. Eu e Fran estamos velhos; somos uns provincianos. Os comerciantes de Haven são essencialmente provincianos. Exatamente como você disse. O nosso comércio é muito restrito, e não vagueamos pela Galáxia como fizeram os nossos antepassados.

- Cale-se, Fran! Contudo vocês dois conhecem a Galáxia. Bayta, especialmente, fala com um belo sotaque da Fundação. Nós apenas desejamos que vocês acabem por descobri-lo. Se vocês pudessem estabelecer contato... mas não nos atrevemos a esperar tanto. Suponhamos que vocês dois pensassem no caso. Vocês podiam encontrar-se com o nosso grupo todo se assim o desejassem... oh, não antes da próxima semana. Vocês precisam de algum tempo para tomar fôlego.

Houve uma pausa e nessa altura Fran trovejou:

- Quem é que deseja mais bebida? Quero dizer, depois de mim?

 

O CAPITÃO E O PREFEITO CIVIL

O capitão Han Pritcher não estava acostumado ao luxo daquilo que o acercava e também não estava nada impressionado. Como atitude geral, desencorajava as auto-analises e todas as formas de filosofia e metafísica não diretamente aliadas ao seu trabalho.

Ajudava.

O seu trabalho consistia largamente naquilo que o Departamento de Guerra chamava "informação", os sofisticados "espionagem", e os romancistas, "material para aventuras de espiões". E, desgraçadamente, a despeito das frívolas tagarelices dos televisores, "informação", "espionagem" e "material para aventuras de espiões", é nos melhores dos casos um trabalho sórdido de rotina enganadora e de pouca fidelidade. É desculpado pela sociedade desde que feito no "interesse do Estado", mas do ponto de vista de sua filosofia pessoal parecia que o capitão Han Pritcher chegava sempre á conclusão de que, mesmo neste âmbito de puro interesse, a sociedade se acomodava muito mais facilmente do que a sua própria consciência - e por isso desencorajava ele a especulação filosófica.

E agora, no luxo da antecâmara do governador civil, os seus pensamentos giravam interiormente em volta dele mesmo.

Os homens tinham ido passando sucessivamente por cima dele, sendo continuamente promovidos, embora demonstrassem menor habilidade -o que era notoriamente admitido. Resistira a uma chuva de notas agressivas e reprimendas oficiais, e sobrevivia. E prosseguiria teimosamente no seu próprio caminho, apoiado na firme crença de que a insubordinação naquele mesmo santo "interesse do Estado" devia ser reconhecida pelo valor do serviço que prestava.

Por isso ali estava na antecâmara do Prefeito civil - com cinco sol-, dados a lhe fazerem uma respeitosa guarda, e provavelmente com corte marcial à espera.

As pesadas portas de mármore abriram-se vagarosamente, silenciosamente, revelando paredes forradas com cetim, carpete de plástico vermelho, e mais duas portas de mármore embutidas de metal. Dois funcionários com trajes perfeitos de há três séculos atrás, avançaram e anunciaram:

- Audiência para o capitão Han Pritcher, da Informação.

Deram um passo atrás com uma saudação cerimoniosa quando o capitão se adiantou. Sua escolta deteve-se fora da porta, e ele entrou sozinho.

Do outro lado da porta, havia um grande aposento estranhamente simples; atrás de uma grande mesa estranhamente angulosa estava sentado um homem, quase perdido naquela imensidão.

O Prefeito civil Indbur - o terceiro que tinha sucessivamente este nome - era o neto do primeiro Indbur, que se mostrara brutal e capaz; e que  exibira a primeira qualidade de maneira espetacular devido á sua maneira de se aproveitar do poder, e o último pela habilidade com que pusera fim aos últimos remanescentes das eleições livres e ainda pela enorme habilidade com que mantinha autoridade relativamente pacífica.

O Prefeito civil era também filho do segundo Indbur, o qual fora o primeiro Prefeito civil da Fundação que sucedera no seu posto por direito de nascimento - e que só era meio parecido com o pai, pois se limitava a ser apenas brutal.

Por isso o Prefeito civil Indbur era o terceiro do nome e o segundo a suceder por direito de nascimento, e era o mais insignificante dos três, pois que não era nem brutal nem capaz - apenas um excelente guarda-livros que nascera errado.

Indbur Terceiro era uma combinação peculiar de características sintéticas de todo mundo, exceto dele próprio.

Para ele, um pomposo amor pelo arranjo geométrico era "sistema", um infatigável e febril interesse pelas minúsculas coisas da burocracia do dia a dia era "diligência", indecisão quando honesta era "cautela", e cega obstinação quando forte, "decisão".

Além disso tudo ele não desperdiçava o dinheiro, não matava homens desnecessariamente, e pensava extremamente bem.

Se as tristes reflexões do capitão Pritcher iam seguindo por aquelas linhas enquanto permanecia respeitosamente no seu lugar diante da ampla mesa, o grosseiro arranjo das suas feições restituía-o não sem perspicácia ao domínio dos acontecimentos. Ele nem tossia, movendo-se com leveza, nem arrastava os pés até que a face magra do Prefeito civil se levantou vagarosamente quando o seu ocupado buril terminou a tarefa de fazer anotações marginais, em uma folha de papel, impressas em linhas muito apertadas, foi retirado de uma pilha muito direita e colocada em cima de outra pilha também muito direita.

O Prefeito civil Indbur entrelaçou as mãos cuidadosamente diante dele, abstendo-se deliberadamente de perturbar o cuidadoso arranjo dos acessórios colocados em cima da mesa.

E disse, como identificação:

- Capitão Han Pritcher, da Informação.

E o capitão Pritcher, em estrita obediência ao protocolo, dobrou um joelho quase até o chão e inclinou a cabeça até ouvir as palavras de "à vontade."

- Levante-se, capitão Pritcher!

O Prefeito civil disse com um ar de cálida simpatia:

- Você está aqui, capitão Pritcher, por causa de determinadas ações disciplinares tomadas contra o senhor pelo seu oficial superior. Os papéis referentes a essa decisão chegaram aqui, no habitual decurso dos acontecimentos, para eu tomar conhecimento, e como não há problema na Fundação que não tenha interesse para mim, decidi incomodar-me a pedir informações adicionais a respeito do seu caso. Espero que você não esteja surpreso.

O capitão Pritcher disse, sem qualquer emoção:

- Não, Excelência. Sua justiça é proverbial.

- Ah sim? Ah sim? - Havia agrado no seu tom, e as lentes coloridas de contato que usava refletiam a luz de uma forma que dava uma cintilação austera, seca aos seus olhos.

Meticulosamente puxou para fora uma série de fichas encadernadas a metal colocando-as diante dele. As folhas de pergaminho estalavam duramente â medida que ele as ia passando, obedecendo os seus longos dedos a um desígnio, enquanto ia falando.

- Tenho aqui sua folha de serviço completa, capitão. Você tem quarenta e três anos e está prestando serviço como oficial das Forças Armadas há dezessete anos. Nasceu em Loris, de pais anacreonianos, não teve doenças infantis graves, um ataque de mio... bem, isto não tem importância... educação, pré-militar na Academia de Ciências, especialidade, hiper-motores, grau acadêmico... hum, hum, muito tom, você foi louvado... entrou no Exército como suboficial no centésimo segundo dia do ano 293 da Era Fundacional.

Piscou os olhos momentaneamente enquanto fechava o primeiro livro, e abria o segundo.

- Bem vê - disse ele - na minha administração, nada é entregue ao acaso. Ordem! Sistema!

Tirou dos lábios um glóbulo de geléia cor-de-rosa e perfumado. Era hábito, e encontrava nele satisfação. Testemunha desse fato era faltar na mesa do Prefeito o quase inevitável relâmpago-atômico para a eliminação do tabaco apagado. O Prefeito não fumava.

Não, e da mesma maneira, os seus visitantes.

A voz do Prefeito civil zumbiu, metodicamente, moduladamente, resmungadamente entremeando-lhe aqui e além comentários sussurrados de igual suavidade e do mesmo insípido louvor ou reprovação.

Vagarosamente, voltou a colocar as folhas na sua pilha original.

- Bem, capitão - disse ele, animadamente - sua folha de serviço é pouco comum. Sua habilidade é fora de série, bem se vê, e os seus serviços são preciosos, estando além de qualquer discussão. Noto que você foi duas vezes ferido no cumprimento do dever, que foi condecorado com a Ordem de Mérito por bravura que ultrapassou o que lhe era exigido pelo dever. Trata-se de fatos que não podem ser minimizados, seja por quem for.

A expressão vazia do rosto do capitão Pritcher mantinha-se cortês. Continuava rigidamente direito. O protocolo exigia que uma pessoa honrada, em audiência com o Prefeito civil, não se sentasse - um ponto talvez desnecessariamente reforçado pelo fato de a única cadeira existente no aposento ser aquela em que se sentava o Prefeito. O protocolo recomendava, entre outras coisas, que nunca se respondesse senão a perguntas formuladas diretamente.

Os olhos do Prefeito civil sondaram meticulosamente o soldado e sua voz tornou-se irada e pesada:

- Contudo, você não foi promovido nos dez últimos anos, e o relatório do seu superior volta a insistir reiteradamente na inflexível teimosia de seu caráter. Você é apresentado como um insubordinado crônico, incapaz de manter uma atitude correta para com os seus superiores oficiais, aparentemente desinteressado em manter relações de amizade com seus colegas e, ainda por cima, um grande forjador de encrencas. O que é que você tem a dizer de tudo isto, capitão?

- Excelência, parece-me estar de acordo comigo próprio. Minhas proezas a favor do Estado, e os ferimentos que recebi testemunham que isto que me parece correto a mim é também feito no interesse do Estado.

- Uma declaração de perfeito soldado, capitão, porém uma perigosa doutrina. Mais do que isso, ainda. Especificamente, você é acusado de se ter recusado, por três vezes, a realizar uma missão, mesmo perante ordens assinadas pelos meus delegados legais. O que é que você tem a dizer sobre isso?

- Excelência, a missão denunciava uma falta de estudo das circunstâncias, pois que se ignoravam problemas de primordial importância.

- Ah, e quem foi que lhe disse que os problemas de que você fala são realmente de capital importância, e no caso de o serem, quem lhe disse que eles eram desconhecidos pela ordem que lhe deram?

- Excelência, estas coisas são bastante evidentes para mim. Minha experiência e meu conhecimento dos acontecimentos - e os meus superiores não negam o valor de nenhum deles - tornam as coisas claras.

- Mas, meu excelente capitão, você não vê que está se mostrando arrogante quando decide determinar pessoalmente o caminho da Polícia de Informação, e que ultrapassa os direitos do seu superior?

- Excelência, os meus deveres são inicialmente para com o Estado, e não para com meu superior.

- Isso é ardiloso visto que o seu superior também tem o seu superior, e que esse superior sou eu, e eu sou o Estado. Mas vamos adiante, você não terá com que se queixar da minha justiça que disse há pouco ser proverbial. Evidencia-se nas suas próprias palavras a natureza da ruptura da disciplina que o conduzia a isto.

- Excelência, o meu dever é, primeiramente, para com o Estado e não me obriga a levar a vida de um marinheiro comercial reformado no mundo de Kalgan. As minhas instruções eram para dirigir a atividade da Fundação no planeta, aperfeiçoar uma organização para agir como resistência contra o Condestável de Kalgan, particularmente no que se referia à sua política estrangeira.

- Sei isso muito bem. Continue!

- Excelência, os meus relatórios acentuaram continuamente as posições estratégicas de Kalgan e dos sistemas que ele controla. Relatei as ambições do Condestável, os seus recursos, a sua determinação de estender o seu domínio e a sua essencial amizade - ou, talvez, neutralidade - em relação á Fundação.

- Li os seus relatórios cuidadosamente. Continue!

- Excelência, regressei há dois meses atrás. Durante este período, não houve indício de guerra iminente; não se verificou qualquer indício a não ser uma excessiva boa vontade de aproveitar qualquer hipótese de ataque que se possa conceber. Há um mês atrás, um desconhecido soldado de fortuna apoderou-se de Kalgan sem combate. O homem que foi antigamente Condestável de Kalgan há muito tempo que deixou aparentemente de viver. Os homens não falam em traição - falam apenas na força e no gênio deste estranho líder - desse Mulo.

- O que é que disse? - O Prefeito inclinou-se para diante, e fitou-o, ofendido.

- Excelência, é conhecido por Mulo. Pouco se fala dele, num sentido real, mas eu tenho apanhado os fios e os fragmentos do que se diz a seu respeito e separei aqueles que apresentam maiores probabilidades de verdade. Trata-se, aparentemente, de um homem vulgar de nascimento e sem representação social. O pai é desconhecido. A mãe morreu quando ele era criança. A sua instrução, a de um plebeu. Sua educação, a do mundo dos vadios, e a das zonas marginais do espaço. O único nome que tem é o de Mulo, um nome que, segundo me informaram, ele se deu a si próprio, e significando por explicação popular, a sua imensa força física, e a teimosia dos seus objetivos.

- Qual é a força militar, capitão? Não me importa o seu físico.

- Excelência, os homens falam em esquadras enormes, mas nisto podem estar influenciados pela estranha queda de Kalgan. O território que ele controla não é extenso, embora não se possam definir com exatidão os limites que realmente ocupa. Apesar de tudo, este homem deve ser investigado.

- Hum-m-m. Pois! Pois! - O Prefeito caiu num devaneio, e vagarosamente com vinte e quatro golpes do seu buril riscou seis retângulos de forma hexagonal em cima da folha branca de um bloco de papel, que rasgou, dobrando-a cuidadosamente em três partes, para depois colocá-la na vasta fenda. Ali verificou-se uma rápida e silenciosa desintegração atômica..

- Diga-me agora, capitão, qual é a alternativa que encara? Você disse-me que isto "deve" ser investigado. Não foi uma ordem de investigar que lhe deram?

- Excelência, há umas regiões esquecidas no espaço, e parece que elas nunca pagaram os impostos.

- Ah, é por aí que se vai? Você não sabe, e não tem ouvido dizer que estes homens que não pagam os impostos, são descendentes dos fantásticos comerciantes das eras primitivas da nossa história - anarquistas, rebeldes, maníacos sociais que reivindicam sua descendência de antepassados da Fundação e escarnecem da cultura da Fundação? Você não sabe, e nunca ouviu dizer, que essas regiões esquecidas do espaço são em muito maior número do que você julga; que essas regiões conspiram conjuntamente, umas com as outras, e com todos os elementos criminosos que ainda existem em todo o território da Fundação? Você não ouviu dizer, capitão?

O momentâneo arrebatamento do Prefeito desfez-se rapidamente: y

- Excelência, tenho ouvido falar de tudo isso. Mas como servidor do Estado, devo servi-lo fielmente e serve mais fielmente quem serve a Verdade. Por maiores que sejam as implicações políticas dessa ralé dos antigos comerciantes - o Condestável que herdou os destroços do velho Império tem o poder. Os comerciantes não têm nem armas nem recursos. Não têm unidade. Não sou um cobrador de impostos para receber ordens como um rapaz de recados.

- Capitão Pritcher, você é um soldado, e confia nas armas. É uma fraqueza que não deve ser confessada até o ponto em que envolve obediência para comigo. Tome cuidado. Minha justiça não é simplesmente fraqueza. Capitão, já se provou que os generais da Idade Imperial e os guerreiros da idade atual são igualmente impotentes contra nós. A ciência de Seldon que prediz o caminho da Fundação baseia-se, não num heroísmo individual, como você entende, mas nas orientações sociais e econômicas da história. Nós já passamos sucessivamente por quatro crises, não é verdade?

- Excelência, é certo que passamos. Por ora a ciência de Seldon só é conhecida pelo próprio Seldon. Nós mesmos temos apenas fé. Nas três primeiras crises, como me têm cuidadosamente ensinado, a Fundação foi comandada por líderes sensatos que previram a natureza das crises e tomaram as devidas precauções. Doutra sorte, que se pode dizer?

- É assim mesmo, capitão, mas você está omitindo a quarta crise. Ora, vamos, capitão, nós não tínhamos líder digno desse nome naquela época, e enfrentamos o hábil adversário, as pesadas armas, a poderosa força de todos eles. Todavia ganhamos graças à inevitabilidade da história.

- Excelência, isso é verdade. Mas a história que menciona tornou-se inevitável só depois de termos combatido desesperadamente durante mais de um ano. A nossa inevitável vitória custou-nos meio milhar de barcos e meio milhão de homens. Excelência, o plano de Seldon ajuda aqueles que se ajudam a si próprios.

O Prefeito civil franziu os sobrolhos e foi subitamente arrancado de sua paciente exposição. Ocorreu-lhe que havia um ardil na condescendência, visto que o capitão estava enganado se se julgava autorizado a argüir eternamente para inchar de satisfação, para chafurdar na dialética.

Disse asperamente:

- Não obstante, capitão, Seldon garantiu a vitória sobre os guerreiros, e nós não devemos, nestes tempos tão ocupados, favorecer uma dispersão de esforços. Esses comerciantes que você diz são descendentes da Fundação. Uma guerra com eles seria uma guerra civil. O plano de Seldon não faz distinções entre eles e nós, pois que eles e nós somos a Fundação. Por isso eles devem ser convencidos a unirem-se a nós. Saia e aguarde as nossas ordens.

- Excelência...

- Não lhe fiz nenhuma pergunta a que deva responder, capitão. Você vai aguardar as nossas ordens. Você deve obedecer a essas ordens. Qualquer argumento que acrescente, quer se dirija a mim quer àqueles que me representam, será considerado traição. Está desculpado, por agora.

O capitão Han Pritcher voltou a ajoelhar, depois do que se retirou com passos macios e vagarosos.

O Prefeito Indbur, terceiro de nome, e o segundo Prefeito civil da história da Fundação a receber o seu cargo por linha hereditária, recuperou o equilíbrio, e tirou mais outra folha de papel da pilha bem arrumada que estava à sua esquerda. Era um relatório a respeito dos fundos públicos poupados devido à redução da quantidade de espuma de metal eliminada nos uniformes da força policial. O Prefeito Indbur cortou uma vírgula supérflua, corrigiu uma palavra mal escrita, escreveu três anotações marginais, e colocou-a em cima da pilha bem alinhada da direita. Tirou outra folha de papel da pilha que estava à esquerda...

 

O capitão Han Pritcher da Informação encontrou uma Cápsula Pessoal à sua espera quando voltou para o quartel. Continha ordens, sublinhadas rigidamente a vermelho com a palavra "urgente" impressa por cima, e toda coberta com a maiúscula precisa "I".

O capitão Pritcher recebia ordens para se dirigir ao "mundo rebelde chamado Haven", em termos muito severos.

O capitão Han Pritcher, sozinho no seu rápido carro aéreo de um lugar, pôs-se silenciosa e calmamente a caminho de Kalgan. Dormiu nessa noite o sono de um homem afortunadamente cabeçudo.

 

O TENENTE E O PALHAÇO

Se, comentada a uma distância de vinte e um mil anos luz, a queda de Kalgan diante dos exércitos do Mulo produzira reflexos que tinham excitado a curiosidade de um velho comerciante, a apreensão de um capitão teimoso, e o aborrecimento de um Prefeito civil meticuloso - para aqueles que estavam pessoalmente em Kalgan, nada produziu e não excitou ninguém. Há uma invariável lição para a humanidade no fato de a distância no tempo, assim como no espaço, criar lendas. Deve lembrar-se, de passagem, que a lição tem sido permanentemente esquecida.

Kalgan era Kalgan. E era o único mundo neste quadrante da Galáxia que parecia não saber que o Império sucumbira, que os Stannels já não governavam havia muito tempo, que a grandeza desaparecera, e a paz também desaparecera.

Kalgan era o mundo do luxo. Com a estrutura do gênero humano a oscilar, mantinha a sua integridade como forjador de prazer, comprador de ouro e vendedor de lazer.

Escapou às desagradáveis vicissitudes da história, porque nenhum conquistador destruiria, ou pelo menos prejudicaria, seriamente um mundo repleto de belicismo para comprar a sua imunidade.

Contudo até Kalgan tinha finalmente instalado o quartel-general de um condestável e as suas meiguices tinham sido temperadas pelas exigências da guerra. Eles desbravavam matagais, modelavam praias suaves, e as suas cidades brilhantemente fascinantes repercutiam na fronteira ocupada por mercenários importados e comoviam os cidadãos. Os mundos da sua província tinham sido armados e o seu dinheiro investido em naves de combate ao invés de em subornos, pela^rimeira vez na sua história. O seu Prefeito provava, sem qualquer dúvida, que estava determinado a defender o que era seu e ávido de se apoderar do que era dos outros.

Era um dos grandes da Galáxia, um forjador de guerra e de paz, um construtor de Impérios, um fundador de dinastias.

E tratava-se de um desconhecido, com uma alcunha ridícula que pegara - e aos seus exércitos - e ao seu Império crescente e não travara ainda uma única batalha.

Por isso Kalgan estava como anteriormente, e os seus cidadãos padronizados apressavam-se a regressar â sua antiga vida, enquanto os estrangeiros profissionais da guerra se fundiam facilmente nos novos grupos que apareciam.

Outra vez como sempre, havia as cuidadosas caçadas de luxo aos animais nativos das matas que nunca contataram formas de vida humana; e naves caça-pássaros no ar, o que só era fatal para as Grandes Aves.

Nas cidades, fugitivos da Galáxia podiam escolher as variedades de prazer que lhes agradavam para gastar seu dinheiro, desde os etéreos palácios-celestes de espetáculo e fantasia que abriam suas portas para o povo mediante uma moeda de meio crédito, até os anônimos e discretos salões que só eram conhecidos por gente de grande riqueza.

Para a vasta inundação, o aparecimento de Torã e Bayta não chegava sequer a ser mais uma gota de água. Registraram sua nave num grande hangar comum na Península de Leste, e dirigiram-se para aquele ponto de encontro de classes médias, o Mar Interior - onde os prazeres eram inteiramente legais, totalmente respeitáveis, e o povo não era insuportável.

Bayta trazia consigo óculos escuros contra a luz, e um vestido branco e fino contra o calor. Com os braços aquecidos pelo calor, apenas dourados pelo sol, com as pernas cruzadas, ela olhava fixamente, com olhos firmes e abstratos, para o comprido corpo do marido, ali estendido - quase brilhante no reflexo do branco esplendor do sol.

- Não está cansado? - perguntou em primeiro lugar, porém Torã era de uma estrela vermelha agonizante. A despeito dos três anos que passara na Fundação, a luz do sol era um luxo, e durante quatro dias a sua pele, preparada de antemão para resistir aos raios solares, não sentira a aspereza das roupas, a não ser uns calções muito curtos.

Bayta chegou-se muito para ele, em cima da areia, e puseram-se a conversar num sussurro.

A voz de Torã era lúgubre, como se não fosse pronunciada por um rosto distendido:

- Não, eu admito que esteja em qualquer parte. Mas onde? E quem é ele? Este mundo não diz nada a seu respeito. Talvez ele não exista.

- Existe, sim - replicou Bayta, cujos lábios quase não chegavam a mover-se. - É um homem hábil, afinal de contas. O seu tio tem razão. É um homem que devemos utilizar - no caso de termos tempo para isso.

Houve uma curta pausa. Torã sussurrou:

- Sabe realmente o que está dizendo, Bayta? Eu estou sonhando no meio de um torpor provocado pelo sol. Todas as coisas me aparecem com uma grande nitidez, agradavelmente. - Sua voz quase desapareceu, depois do que ele insistiu:

- Lembre-se do que o Dr. Amann ensinava no colégio, Bay. A Fundação nunca se pode perder; porém o que ela pode fazer, não pode ser feito pelos seus governadores. Recorde-se que a história real da Fundação começa quando Salvor Hardin expulsou os Enciclopédicos e tomou posse do planeta Terminus como primeiro prefeito civil? E quando no século seguinte, o falecido Hober Mallow se apoderou do poder por métodos quase tão drásticos como este? Ou seja, por duas vezes os governadores foram derrotados, e por isso pode voltar a suceder. Por que é que isso não há de suceder conosco?

- Trata-se de um velho argumento repetido pelos livros, Torã. Isso não passa de um bom, porém inútil sonho.

- Será? Vamos segui-lo até o fim. O que é Haven? Não é uma parte da Fundação? É simplesmente parte do proletariado exterior, por assim dizer. Se sairmos vencedores, a vitória será sempre da Fundação, e só os governadores presentes não lucrarão.

- Há uma grande diferença entre "nós podemos" e "nós desejamos". Tudo isso é mero falatório.

Torã torceu-se:

- Olha, Bayta, você está apenas num daqueles seus momentos de humor azedo e imaturo. Por que é que deseja dar cabo desta minha brincadeira? Se não quer compreender, então vou dormir.

Porém Bayta estava esticando a cabeça, e subitamente - quase um "não o acompanho" - sorriu, e tirou os óculos para olhar para a praia lá embaixo, tendo apenas a mão em pala por cima dos olhos.

Torã olhou também, depois do que se levantou e girou os ombros para acompanhar o seu olhar.

Aparentemente, ela estava olhando para uma figura magra, de pés no ar, que caminhava sobre as mãos para divertimento de uma multidão ocasional. Era um dos mendigos acrobatas que enxameavam pela praia, que dobravam as articulações elásticas e se desmanchavam em contorções em troca de algumas moedas. Havia um guarda da praia que se encaminhava para ele e, com um gesto repentino com a mão, o palhaço pôs a mão no nariz e fez-lhe uma careta. O guarda avançou ameaçadoramente e deitou-o abaixo, todo dobrado, com um pontapé no estômago. O palhaço rolou sobre si mesmo sem interromper o movimento inicial e foi-se embora, enquanto o guarda, espumando de raiva, era cercado por uma multidão pouco satisfeita com ele.

O palhaço prosseguiu o seu caminho, esfarrapado, através da praia. Passou rapidamente por muitas pessoas, hesitou freqüentemente, acabou por parar. A multidão original dispersara-se. O guarda fora-se embora.

- Ali está um parceiro muito engraçado - disse Bayta, divertida, e Torã concordou com indiferença. O palhaço estava agora suficientemente perto para que o pudessem observar sem dificuldade. Sua face magra conjugava-se na testa com um nariz de grandes dimensões e de tipo carnudo, que parecia quase com capacidade de agarrar. Seus membros magros e compridos, e o corpo débil, acentuado pelo que, trazia vestido, moviam-se com facilidade e com graça, mas havia também a sugestão de ter sido arremessado ao acaso.

Olhar para ele obrigava a sorrir.

O palhaço pareceu repentinamente dar conta dos seus olhares, pois parou depois de ter passado por eles e, com uma volta brusca, aproximou-se. Seus olhos rasgados e castanhos fixaram-se em Bayta.

Ela pareceu inteiramente desconcertada.

O palhaço sorriu, mas só havia tristeza na sua cara rostrada, e quando falou foi com o fraseado suave e complicado dos Setores Centrais.

- Estivesse eu em condições de utilizar a capacidade que os bons Espíritos me concederam - disse ele - nesse caso eu diria que esta senhora não poderia existir - pois que nenhum homem são seria capaz de imaginar que um sonho se havia de transformar em realidade. Contudo, a minha falta de juízo dá-me fé aos olhos seduzidos e encantados.

Os olhos de Bayta arregalaram-se. E disse:

- Caramba!

Torã riu-se:

- Oh, você é enfeitiçadora. Vamos, Bay, isto merece uma moeda de cinco créditos. Dê a ele.

Porém o palhaço afastara-se com um salto :

- Não, minha senhora, não me deve ter compreendido. Eu não falo para receber dinheiro, ou seja o que for, mas apenas para louvar os seus olhos radiantes e seu rosto suave.

- Bem, nesse caso obrigado - disse Torã. - Ouça, você pensa que ela tem o sol nos olhos?

- E não falo apenas dos olhos e do rosto - balbuciou o palhaço, e suas palavras tropeçavam umas nas outras por causa da fúria com que as pronunciava - mas também do seu espírito, claro e forte - e de uma natureza tão perfeita.

Torã pôs-se de pé, desdobrou a túnica branca que trazia debaixo dos braços havia quatro dias, e enfiou-se nela.

- Agora, ouça - disse ele - suponha que me vá dizer o que deseja, e pare de aborrecer a senhora.

O palhaço deu um passo atrás, com medo, e o seu corpo mágico tremia:

- Posso-lhe garantir que não lhe desejo mal nenhum. Sou estrangeiro nesta terra, e por aquilo que tenho dito vê-se que sou apenas de espírito estouvado; há, todavia, coisas numa face que eu sou capaz de ler. Atrás da beleza desta senhora, há uma alma generosa, e que me ajudaria na minha perturbação no caso de eu ter dito alguma coisa insolente.

- Cinco créditos serão capazes de lhe fazer passar a perturbação? - perguntou Torã, de maneira áspera, estendendo-lhe a moeda.

Mas o palhaço não se mexeu para recebê-la, e Bayta disse:

- Deixe-me falar com ele, Torie. - E acrescentou rapidamente, à meia voz: - Não há razão para ficar aborrecido com a maneira como ele fala. Trata-se apenas do seu dialeto; a maneira como nós falamos provoca-lhe uma estranheza igual.

Perguntou-lhe:

- O que é que vem a ser sua perturbação? O guarda não lhe fez mal, não é? Ele não o conseguiu atingir.

- Oh, não, não se trata dele. Ele apenas não vai com a minha cara. Há outro que eu evito, e ele é uma tempestade que varre os mundos de lado a lado e os arremessa de supetão uns contra os outros. Há uma semana que ando por aqui, e tenho dormido nas ruas da cidade, e oculto-me no meio da multidão. Tenho olhado para muitas faces para que me socorram na minha desdita. E vim acabar aqui. - Repetiu a última frase num tom fraco e ansioso, e os seus olhos rasgados mostravam-se perturbados: - E vim acabar aqui.

- Agora - disse Bayta, - eu gostaria de ajudá-lo, mas realmente, amigo, eu não possuo proteção capaz contra uma tempestade que varre o mundo de ponta a ponta. Para falar a verdade, eu podia usar...

Ouviu-se uma voz alta e vigorosa dirigida a eles:

- Agora é que vai saber como elas mordem, meu chacal...

Era o guarda da praia, com o rosto rubro, e boca rosnadora, que se aproximara correndo. Tinha-lhe apontado uma pistola.

- Vocês dois segurem-no. Não o deixem ir-se embora. - Sua mão pesada caiu no ombro fraco do palhaço, que estava choramingando sob o apertão que o guarda lhe dava.

Torã perguntou:

- O que ele fez?

- O que ele fez? O que ele fez? Olhe agora, esta é muito boa! - O guarda meteu a mão dentro da bolsa que lhe pendia do cinto, e tirou um lenço vermelho, com que limpou o queixo molhado. Disse: - Vou-lhes dizer o que ele fez. Ele desertou. Só fala a respeito de Kalgan e eu tê-lo-ia reconhecido antes se ele não estivesse de pés para o ar e esta cara de falcão para cima. - E agitou sua presa com um humor cruel.

Bayta disse com sorriso:

- E de onde é que ele fugiu, senhor?

O guarda levantou a voz. Havia uma multidão á volta deles, de olhos arregalados e bisbilhotando, e com o aumento de audiência, o sentimento de importância do guarda cresceu em proporção direta.

- De onde é que ele fugiu? - declamou ele com enorme sarcasmo. -Bem, calculo que você já tenha ouvido falar no Mulo.

Pararam todas as bisbilhotices, e Bayta sentiu, de repente, uma dor seca na boca do estômago. O palhaço só tinha olhos para ela - continuando todavia a tremer sob a mão musculosa do guarda.

- E quem - continuou o guarda iradamente - podia ser esta esfarrapada peça, senão o próprio bufão de Sua Excelência que fugiu de livre e espontânea vontade? - Agitou o seu prisioneiro com um solavanco maciço. -Admite que é verdade, louco?

Houve apenas uma resposta repleta de medo, e o quase inaudível sussurro da voz de Bayta ao ouvido de Torã.

Torã deu um passo á frente, dirigindo-se ao guarda de maneira amistosa:

- Agora, meu amigo, suponha que vá tirar a mão de cima dele por um momento. Este artista que você tem aí agarrado estava dançando para nós e ainda não dançou o suficiente para justificar sua gratificação.

- Aqui! - A voz do guarda levantou-se numa repentina solicitude. - Há um prêmio...

- Há de tê-lo, no caso de provar que este é o homem que procura. Suponha que esteja enganado. Sabe muito bem que, no caso de se meter com um visitante, o caso pode ser muito sério para você.

- Mas você está interferindo com Sua Excelência e isto será sério para você. - Voltou a sacudir o palhaço. - Volte a pôr-se de pé para o ar, monte de sucata e devolver a gratificação.

A mão de Torã moveu-se rapidamente e a arma do guarda disparou, quase lhe arrancando metade de um dedo. O guarda gemeu de dor e de raiva. Torã empurrou-o violentamente para o lado, e o palhaço, solto, lançou-se atrás dele.

A multidão, que se estendia a perder de vista, deu pouca atenção ao que se passou a seguir. Havia no meio dela um esticar de pescoços, e um movimento centrífugo como se muitos tivessem decidido a pôr-se â maior distância do centro de atividade.

Houve, então, um alvoroço, e ouviu-se uma ordem tempestuosa á distância. Formou-se mecanicamente um corredor e dois homens lançaram-se por ali, com chicotes elétricos em descuidada prontidão. Em cima de cada uma das blusas cor de púrpura estava desenhada uma flecha de raio com um planeta desintegrado por baixo.

Um gigante escuro, com a farda de tenente, vinha atrás deles; escuro de pele e carrancudo.

O homem escuro falou com uma perigosa delicadeza que tinha pouca necessidade de gritos para acionar suas fantasias. Perguntou:

- Foi você o homem que nos avisou?

O guarda estava segurando a mão atingida, e respondeu com uma face distorcida pela dor:

- Eu reclamo a recompensa, poderoso, e acuso este homem...

- Você há de receber a recompensa - disse o tenente, sem olhar para ele. Virou-se rapidamente para os seus homens: - Levem-no.

Torã sentiu o palhaço agarrar-se fortemente â sua túnica. Levantou a voz e segurou-lhe a mão:

- Peço-lhe desculpa, tenente; este homem é meu amigo.

Os soldados ouviram a declaração sem pestanejar. Um deles levantou o chicote casualmente, porém a ordem do tenente voltou a fazê-lo descer.

A sua escura autoridade girou para diante e plantou o corpo quadrado diante de Torã:

- E você quem é?

E a resposta veio secamente:

- Um cidadão da Fundação.

Ele ficou pensando - juntamente com a multidão, durante um momento. O silêncio de expectativa foi quebrado por um intenso alvoroço. O nome de Mulo podia provocar medo, mas era, afinal de contas, um nome novo e dificilmente atingia tão profundamente os elementos vitais como aquela velha designação da Fundação - que destruíra o Império - e o medo de quem governava um quadrante da Galáxia com implacável despotismo. O tenente manteve o sangue-frio. Perguntou:

- Está ciente da identidade do homem que está atrás de você?

- Ouvi dizer que é um fugitivo da corte do seu comandante, mas a minha única garantia é que se trata de um amigo meu. Você precisa de provas seguras da sua identidade para poder prendê-lo.

Houve grandes acenos de cabeça entre a multidão, contudo o tenente não ligou para tal fato.

- Você tem documentos provando que é cidadão da Fundação?

- Estão na minha nave.

- Você sabe que suas atitudes são ilegais? Posso mandar matá-lo.

- Sem dúvida alguma. Mas depois de ter prendido um cidadão da Fundação, seria provável que o seu corpo fosse remetido para a Fundação - esquartejado - como compensação parcial. Isto já aconteceu com outros condestáveis.

O tenente umedeceu os lábios. A observação era verdadeira. Perguntou:

- O seu nome?

Torã decidiu tirar proveito de sua vantagem:

- Responderei às suas perguntas na minha nave. Pode procurar o número da célula no hangar; está registrada com o nome de "Bayta".

- Não vai desistir do fugitivo?

- Para o Mulo, talvez. Mande seu senhor!

A conversa degenerara em um sussurro e o tenente virou-se bruscamente para o lado.

- Dispersem a multidão! - disse ele aos seus homens, com reprimida ferocidade.

Os chicotes elétricos levantaram-se e desceram. Houve berros e um vasto ondear de dispersão e fuga.

Torã só interrompeu uma vez o seu devaneio durante o regresso ao hangar. Disse, quase consigo:

- Galáxia, Bay, que oportunidade tive! Eu estava tão assustado...

- Pois - disse ela, com voz ainda emocionada, e os seus olhos mostravam também alguma coisa semelhante â veneração - ele estava cheio de más intenções.

- Bem, entretanto não sei o que aconteceu. Eu apenas subi e apontei a pistola, que nem sequer tinha a certeza de saber usar, e conversei um bocado com ele. Não sei porque é que o fiz.

Olhou por cima das costas do banco da pequena nave aérea de curto alcance que os transportava para fora da zona da praia, para o canto onde o palhaço do Mulo rangia os dentes, dormindo, e acrescentou com desagrado:

- Foi a coisa mais difícil que fiz até hoje.

O tenente deteve-se respeitosamente diante do coronel da guarnição, e o coronel olhou para ele e disse:

- Bem feito. Fez aquilo que devia fazer.

Mas o tenente não se retirou imediatamente. Disse num tom sombrio:

- O Mulo perdeu a disputa diante de uma multidão, senhor. Vai ser necessário empreender uma ação disciplinar para se voltar â devida atmosfera de respeito.

- Essas medidas já foram tomadas.

O tenente deu meia volta, então, quase com ressentimento:

- Gostaria de acrescentar, senhor, que ordens são ordens, mas ficar firme diante daquele homem com uma arma na mão e suportar a sua absoluta insolência, foi a coisa mais difícil que fiz até hoje.

 

O MUTANTE

O "hangar" em Kalgan é uma instituição peculiar considerada em si mesma, nascida da necessidade de arrumação do vasto número de naves até ali conduzidas pelos visitantes do estrangeiro, a que se acrescentava a simultânea e conseqüente necessidade de acomodações para instalar as pessoas, provocada pelo mesmo motivo. A pessoa que, pela primeira vez, pensava na solução que evidentemente se podia dar ao caso, depressa se tornou milionária. Os seus herdeiros - tanto pelo sangue como pelas ligações financeiras - estavam naturalmente entre as pessoas mais ricas de Kalgan.

O "hangar" espalhara-se largamente ao longo de alguns milhares de quilômetros quadrados de território, e "hangar" não é termo que possa descrever suficientemente aquilo de que se tratava. É essencialmente um hotel - para naves. O estrangeiro paga adiantadamente e a sua nave é levada para um ancoradouro de onde pode tirá-la para o espaço a qualquer momento que o deseje. O visitante continua vivendo na sua nave, como sempre. São satisfeitos os serviços de assistência comum de hotelaria, tais como a renovação da reserva de alimentos e o fornecimento de medicamentos a preços especiais, ao mesmo tempo que se dá assistência à própria nave, transporte especial dentro de Kalgan, em troca de uma quantia reduzida.

Como resultado, o visitante acumula, numa única fatura, o espaço ocupado no hangare o hotel, o que é uma medida econômica. Os próprios  vendedores ocasionais servem-se do espaço terrestre, com amplos lucros. O governo cobra pesados impostos. Ninguém dá muita importância a isso. Ninguém perde. Simples!

O homem seguia o seu caminho para baixo, para as zonas sombrias dos corredores vazios que ligavam as múltiplas alas do "hangar", especulara em tempos idos a respeito da novidade e utilidade do sistema descrito mais acima, porém fizera essas reflexões em momentos mais livres de preocupações - pois era evidentemente impossível fazê-las agora.

As naves de modelo antigo, no que diz respeito â altura e á largura, estavam colocadas na zona inferior, em extensas filas de células cuidadosamente alinhadas, e o homem foi-as examinando fila após fila. Era um técnico naquilo que agora estava fazendo - e se o seu exame prévio do registro do hangar não lhe dera possibilidade de encontrar uma informação específica por meio das indicações dúbias de um vôo específico - havia ali milhares de naves - o seu conhecimento especializado podia proceder á seleção daqueles milhares até reduzi-los â nave que lhe interessava.

Verificou-se o fantasma de um suspiro no meio do silêncio, quando o homem parou e foi desaparecendo gradualmente debaixo de uma das filas, um inseto rastejando por baixo do olhar dos arrogantes monstros de metal que ali se encontravam.

Aqui e ali a cintilação de luz de uma vigia devia indicar a presença de um homem que regressara muito cedo dos prazeres organizados para os simples - ou mais privados - prazeres pessoais.

O homem parou, e teria sorrido se alguma vez tivesse sorrido. Certamente as circunvoluções do seu espírito efetuaram e equivalência mental de um sorriso.

A nave onde parou era bem brilhante e evidentemente rápida. Não se tratava de um modelo comum - e naqueles dias a maior parte das naves deste quadrante da Galáxia imitava os modelos da Fundação ou eram construídos por técnicos da Fundação. Mas este era especial. Tratava-se de uma nave da Fundação - e não só por causa das pequenas protuberâncias existentes no casco, e que eram os nós de proteção que só os barcos da Fundação deviam possuir. Havia ali outros elementos.

O homem desceu sem hesitação.

A barreira eletrônica impôs-se através da linha de barcos como um privilégio para manter o segredo na parte da manobra, que não era o mais importante de tudo. Venceu-a facilmente, e sem pôr o alarma em funcionamento, graças à utilização de uma força neutralizadora especial que tinha á sua disposição.

Assim o primeiro contato do intruso com a nave, pela parte de fora, foi o acidental e quase amigável sinal do zumbido surdo na sala de estar da nave, e que era o resultado da palma da mão encostada na pequena fotocélula da principal comporta de ar comprimido.

E quando ele ia procedendo a estes bem sucedidos exames, Torã e Bayta sentiam unicamente uma segurança incerta entre as paredes de aço do Bayta. O palhaço do Mulo informara que com aquele débil corpo usava o nome senhoril de Magnífico Giganticus, instalou-se à mesa e comeu avidamente a comida que lhe puseram â frente.

Os seus olhos tristes e castanhos só se levantaram do recipiente para seguir os movimentos de Bayta na cozinha, combinada com despensa, onde se encontravam.

- Os agradecimentos de um homem fraco são de muito pouco valor -balbuciou ele - porém vocês os têm, pois que, realmente, na semana passada me vi reduzido a umas migalhas insignificantes - e se todo o meu corpo é pequeno, já o meu apetite é habitualmente grande.

- Bem, nesse caso, coma! - disse Bayta, com um sorriso. - Não perca tempo com agradecimentos. Não há um provérbio da Galáxia Central a respeito da gratidão e que me lembro ter ouvido uma vez?

- Na verdade há, minha senhora. Ouviu-o uma vez de um homem sábio, e diz assim: "A gratidão é melhor e mais real quando não se evapora em frases vazias". Mas ai, minha senhora, eu sou apenas uma porção de frases vazias, assim me quer parecer. Quando as minhas frases vazias agradam ao Mulo, ele manda-me dar uma pequena gratificação e um grande nome - por exemplo, veja lá, chamava-me a princípio Bobo, muito simplesmente, um nome que não lhe agradava - e então quando as minhas pobres frases vazias não lhe agradavam, ele sacudia os meus pobres ossos: batia-me e açoitava-me.

Torã apareceu vindo da cabina do piloto:

- Não há agora nada a fazer senão esperar, Bay. Espero que o Mulo seja capaz de compreender que um barco da Fundação é território da Fundação.

Magnífico Giganticus, antigamente Bobo, abriu muito os olhos e exclamou.

- Quão grande é a Fundação diante da qual até os cruéis servidores do Mulo tremem.

- Você também ouviu falar da Fundação? - perguntou Bayta, com um pequeno-sorriso.

- E quem é que não ouviu? - A voz de Magnífico era um misterioso sussurro. – Há aqueles que dizem que é um mundo de grande magia, com chamas que podem consumir planetas, e segredos de grandíssima força. Dizem que nem a mais alta nobreza da Galáxia podia alcançar a nobreza e a educação considerada como inteiramente natural e própria de um simples homem que possa dizer: "Sou cidadão da Fundação", sendo ele um bárbaro mineiro do espaço, ou um zé-ninguém como eu.

Bayta disse:

- Vamos, Magnífico, você não termina de comer se continua conversando. Aqui tem mais um bocado de leite aromatizado. É bom.

Pôs um jarro em cima da mesa e arrastou Torã para fora do quarto.

- Torie, o que é que vamos fazer com ele? - e apontava com a cabeça para a cozinha.

- O que quer dizer?

- Se o Mulo chegar, o que é que nós vamos dizer?

- Bem, e que mais, Bay? - Parecia agastado, e o gesto com que atirou para trás a madeixa era testemunha disso.

Continuou impaciente mente:

- Antes de chegarmos aqui tinha uma vaga idéia de que tudo que nós tínhamos a fazer era perguntar pelo Mulo, e então tratar desse assunto -  apenas desse assunto, sabe, nada de definitivo.

- Eu sei o que você quer dizer, Torie. Eu não tinha muitas esperanças de ver o Mulo pessoalmente, mas pensava que podíamos recolher algum conhecimento, em primeira mão, a respeito desta embrulhada, e então conversar um pouco mais com as pessoas, que nós conhecemos melhor, a respeito desta intriga interestelar. Eu não sou uma espiã de romances de espionagem.

- Você não está entendendo, Bay - cruzou os braços e franziu o sobro-lho. – Estamos numa linda situação! Nunca soubera que havia uma pessoa como o Mulo, exceto nestas últimas e excêntricas notícias. Calculo que ele seja assim parecido com o seu palhaço?

Bayta fitou-o.

- Não imagino como é que ele possa ser. Não sei o que é que deva dizer ou fazer. Compreende?

O zumbido interior ressoou com o seu intermitente barulho rebarbativo. Os lábios de Bayta moveram-se sem palavras :

- O Mulo?

Magnífico estava á porta de entrada, com os olhos arregalados, com a voz reduzida a um sussurro:

- O Mulo?

Torã sussurrou:

- Estou preparado para recebê-lo.

O contato abriu a comporta de ar e a porta exterior fechou-se atrás do recém-chegado. O disco perfurado mostrou apenas a sombra de uma única pessoa.

- É apenas uma pessoa - disse Torã, com evidente alívio, e sua voz estava quase trêmula quando se curvou para o tubo de sinalização: - Quem é você?

- O melhor que tem a fazer é deixar-me entrar, não lhe parece? - As palavras saíam fracamente do receptor.

- Sou obrigado a informá-lo de que estamos num barco da Fundação e, conseqüentemente, no território da Fundação, por tratado internacional.

- Sei isso muito bem.

- Apareça com suas armas descarregadas, ou então disparo. Estou bem armado.

- Feito.

Torã abriu a porta interior e apertou o contato da pistola desintegra-dora, com o polegar apoiado no gatilho de pressão. Ouviu-se o som de passos e a porta girou e abriu-se, e Magnífico exclamou:

- Não é o Mulo. É apenas um homem.

O "homem" saudou o palhaço sombriamente:

- Exato. Eu não sou o Mulo. - Abriu os braços e estendeu as mãos: -Não estou armado, e venho aqui em missão pacífica. Você podia acalmar-se e tirar a pistola desintegradora. Sua mão não está suficientemente firme para que o meu espírito possa estar em paz.

- Quem é você? - perguntou Torã, bruscamente.

- Eu podia perguntar-lhe quem é você - disse o estrangeiro, friamente -visto que você está aqui sob falsos pretextos, não eu.

- Como assim?

- Você não pode reclamar a qualidade de cidadão da Fundação quando é um comerciante não-autorizado do planeta.

- Não é bem assim. Como é que você sabe?

- Porque eu sou cidadão da Fundação, e tenho os meus documentos para provar. Onde estão os seus?

- Penso que o melhor que tinha a fazer seria desfazer-me de você.

- Eu penso que não. Se você soubesse alguma coisa a respeito dos métodos da Fundação, e a despeito de sua impostura, você saberia que se eu não voltasse vivo para a minha nave num espaço de tempo predeterminado, sairia dali um sinal para o mais próximo estado-maior da Fundação, e duvido que suas armas pudessem ter grande efeito, falando em termos práticos.

Houve um silêncio irresoluto e então Bayta sugeriu, calmamente:

- Largue o desintegrador, Torã, e encare as coisas como são. O que ele está dizendo tem foros de verdade.

- Muito obrigado - disse o estrangeiro.

Torã pousou a pistola na cadeira que estava a seu lado:

- Suponha que você vá explicar-me tudo agora.

O estrangeiro permaneceu de pé. Tinha o esqueleto alto e os membros grandes. Sua face consistia numa sucessão de planos chatos e ásperos e era de algum modo evidente que nunca sorria; contudo os seus olhos precisavam de vigor.

Começou:

- As noticias correm, especialmente quando as coisas estão aparentemente além do que se pode acreditar. Suponho que não haja uma pessoa em Kalgan que não saiba que os homens do Mulo foram hoje atingidos por dois turistas da Fundação. Eu soube dos pormenores antes do anoitecer e, como já disse, não há no planeta turistas da Fundação, excetuando-se a mim próprio. Nós sabemos dessas coisas.

- Quem são esses "nós"?

- "Nós" somos... "nós"! Eu próprio sou um! Eu sei que vocês estavam no "hangar" - pelo menos disseram isso. Eu tinha minhas maneiras de manusear os registros, e minhas maneiras de entrar a bordo.

Virou-se para Bayta subitamente:

- Você é da Fundação - por ter lá nascido, não é?

- Se eu sou?

- Você é membro da oposição democrática - aquilo a que eles denominam "o subterrâneo". Não me lembro do seu nome, mas lembro-me muito bem de suas feições. Você saiu de lá recentemente, e não o teria feito se não se tratasse de um caso muito importante.

Bayta encolheu os ombros:

- Você sabe de tudo.

- Sei. Você saiu com um homem. É este?

- Será necessário dizer-lho?

- Não. Estou apenas procurando uma plataforma de entendimento mútuo. Julgo que a "senha" durante a semana em que você se retirou tão precipitadamente era "Seldon, Hardin e Liberdade". Porfirat Hart era o orientador da sua seção.

- Como é que você descobriu tudo isso? - Bayta tornara-se subitamente violenta. - Você veio daqui desempenhar sua atividade policial? - Torã segurou-a pelos ombros, mas ela libertou-se com um safanão e avançou.

O homem da Fundação disse tranqüilamente:

- Ninguém contou. Sei tudo apenas porque o subterrâneo fala demais em lugares duvidosos. Eu sou o capitão Han Pritcher da Informação, e também sou um orientador de seção... mas nunca gostei de me apresentar com este nome.

Fez uma pausa, depois continuou:

- Não, você não me compreendeu. Em nosso assunto é melhor exagerar a desconfiança do que a oposição. Preferia, porém, deixar estas formalidades para trás.

- Sim - disse Torã - suponho que é melhor fazê-lo.

- Posso sentar-me? Obrigado. - O capitão Pritcher estendeu uma perna muito comprida por cima do joelho e deixou um braço prender atrás das costas da cadeira. - Começarei por dizer que não sei qual o aspecto que tudo isto tem - visto do seu ângulo. Vocês dois não são da Fundação, porém não seria uma grosseira conjectura supor que são de um dos mundos comerciais independentes. Isto não me importa lá grande coisa. Mas, apenas por curiosidade, o que é que os levou a desejar viajar com este parceiro, este palhaço que vocês se esforçaram por deixar em segurança? Vocês arriscaram a vida com ele.

- Não lhe posso dizer por que.

- Hum-m-m. Bem, penso que você não o deseja fazer. Mas se vocês estão à espera que o próprio Mulo chegue atrás de uma fanfarra de buzinas, tambores e órgãos elétricos - relaxem! O Mulo jamais trabalha dessa maneira.

- O que? - disseram juntos Torã e Bayta, e no canto onde Magnífico se ocultava com ouvidos quase visivelmente esticados, houve um repentino salto de alegria.

- É assim mesmo. Eu tenho procurado entrar pessoalmente em contato com ele, e tenho feito muito mais trabalho nesse sentido do que aquele que podem realizar dois amadores. Porém não consigo. O homem não possui características pessoais, nunca consentiu que alguém o fotografasse ou simulasse, e apenas o vêem os seus assessores mais íntimos.

- É isso que explica o interesse que tem por nós, capitão? - perguntou Torã.

- Não. A chave é este palhaço. Este palhaço é uma daquelas poucas pessoas que o viram. Preciso dele. Ele pode ser a prova de que preciso - e eu preciso de uma qualquer. A Galáxia sabe - para acordar a Fundação.

- Então precisa ser acordada? - interrompeu Bayta com repentina exaltação. – Contra que? E em que papel vai você atuar como sinal de alarma, no de democrata rebelde ou no de polícia secreto e provocador?

O rosto do capitão ficou reduzido às suas linhas secas.

- Quando a Fundação inteira está ameaçada, Madame Revolucionária, tanto perecem os democratas como os tiranos. Deixe-nos salvar os tiranos de um tirano ainda maior, para depois os derrubarmos um por um.

- Qual é o grande tirano de que você está falando? - encolerizou-se Bayta.

- O Mulo! Eu conheço muita coisa a seu respeito, o bastante para ter sido a minha desgraça, se me tenho movido com menos esperteza. Mande sair o palhaço daqui. Isto é coisa que exige segredo.

- Magnífico - disse Bayta, com um gesto, e o palhaço saiu calmamente. A voz do capitão era grave e intensa, e baixou-a logo que Torã e Bayta fecharam a porta. Disse:

- O Mulo é um operador sagaz, demasiado sagaz para não compreender as vantagens do magnetismo e sedução da chefia pessoal. Se ele não as aplica, é por alguma razão. Esta razão deve ser o fato de que o contato pessoal revelaria alguma coisa que é de suma importância não mostrar.

Afastou os pormenores marginais e continuou mais animadamente:

- Eu fui por isso mesmo ao local onde ele nasceu, e interroguei as pessoas que o conheceram durante o tempo em que ele lá viveu. Poucas delas estão ainda vivas. Lembram-se do bebê que nasceu há trinta anos, da morte de sua mãe, e de sua juventude singular, O Mulo não é um ser humano!

E os seus dois ouvintes recuaram horrorizados pelas implicações que obscuramente apercebiam. Ainda não compreendiam nada, inteira ou claramente, mas a ameaça contida na frase era definitiva.

O capitão continuou:

- Trata-se de um mutante, e evidentemente pela sua carreira subseqüente, que conseguiu um grande êxito. Não sei quais são os seus poderes ou a sua exata dimensão, pois que ele é aquilo a que nossos emocionadores denominariam um "super-homem"; mas subir do nada, para chegar a vencedor do Condestável de Kalgan em dois anos, é revelador. Estão vendo o perigo, não é verdade? Pode um acidente genético de propriedades biológicas imprevisíveis ser considerado como incluído no cálculo do plano Seldon?

Bayta falou, vagarosamente:

- Não o estou compreendendo. Isto é uma espécie qualquer de complicada astúcia. Por que é que os homens do Mulo não nos mataram quando o podiam ter feito, se ele é um super-homem?

- Respondo-lhe que não sei qual é o alcance de suas mutações. Pode ainda não estar preparado para se atirar contra a Fundação, e será sinal de grande sabedoria resistir às provocações até surgir essa oportunidade. Espero que vocês me deixarão falar com o palhaço.

O capitão encarou o trêmulo Magnífico, que desconfiava deste homem alto e rude, o qual estava a encará-lo. O capitão soletrou lentamente:

- Você viu o Mulo com os seus próprios olhos?

- Vi-o perfeitamente, respeitável senhor. Eu senti o peso dos seus braços em meu próprio, também.

- Não duvido que assim fosse. Pode descrevê-lo?

- É assustador por assim dizer, respeitável senhor. É um homem de poderosa estatura. Perto dele, até o senhor seria um magricela. Tem o cabelo de carmesim vivo, e utilizando toda a minha força e todo o meu peso, eu não podia puxar-lhe os braços para baixo – uma vez que ele os tivesse estendidos - mesmo que fosse a grossura de um cabelo. – A debilidade de Magnífico parecia estar prestes a um colapso no meio de uma barafunda de braços e de pernas. - Muitas vezes, para divertir seus generais ou para divertir-se a ele mesmo, suspendia-me com um dedo, pelo meu cinto, a uma altura terrível, enquanto eu recitava poesias. Só depois do vigésimo verso me tirava dali, ou improvisava alguns com ritmo perfeito, ou voltava a pendurar-me outra vez. É um homem de força extraordinariamente superior, e os olhos dele, respeitável senhor, não se podem ver.

- O quê? O que disse agora?

- Ele usa óculos, respeitável senhor, de uma curiosa natureza. Diz-se que são opacos e que ele vê através de uma poderosa magia que transcende os poderes humanos. Ouvi dizer - e a sua voz tornou-se mais baixa e misteriosa - que ver os seus olhos é ver a morte; que ele mata com os olhos, respeitável senhor.

Os olhos de Magnífico arregalaram-se num repente, tomando-lhe o rosto todo.

Balbuciou:

- É verdade. Pela minha vida que é verdade.

Bayta aspirou profundamente:

- Isto soa-me a verdade, capitão. O que vai fazer diante de tudo isto?

- Bom, deixe-me estudar a situação. Você tem mais alguma dúvida por aqui? A barreira superior do hangar está livre?

- Posso sair a qualquer momento.

- Então saia. O Mulo pode não desejar opor-se à Fundação, porém ele corre um risco medonho deixando que o Magnífico ande adiante dele. Provavelmente ele leva as pessoas a julgá-lo pelo aspecto e proclama que é acima de tudo um pobre diabo. Por isso pode ser que haja naves à nossa espera lá em cima. Se nos perdermos no espaço, quem é que vai dar importância ao crime?

- Você tem muita razão - reconheceu Torã, sombriamente.

- De qualquer maneira, você possui um escudo e é provavelmente muito mais rápido do que eles, por isso logo que esteja na atmosfera livre prepare um círculo neutro para outro hemisfério, e depois interrompa apenas sua rota exterior para uma aceleração elevada.

- Sim - disse Bayta, friamente - e quando voltarmos para a Fundação, o que sucederá então, capitão?

- Por que, vocês são então cidadãos colaboradores da Kalgan, não são? Eu não sei nada em contrário, certo?

Ninguém respondeu. Torã pôs os comandos em ação. Houve um imperceptível solavanco.

Foi quando Torã já deixara Kalgan bem à retaguarda para tentar o seu primeiro salto interestelar, que a cara do capitão Pritcher se apresentou, pela primeira vez com rugas leves - pois nenhuma nave do Mulo tentara de qualquer maneira impedir-lhes a saída.

- Olhe como eles nos deixam levar o Magnífico daqui para fora - disse Torã. - Não é nada bom para sua história.

- A menos que - corrigiu o capitão - ele deseje que o levemos realmente daqui para fora, e nesse caso não seria nada bom para a Fundação.

Foi depois do último salto, quando dentro de uma distância de vôo neutro da Fundação, que as primeiras notícias difundidas por ultra-ondas atingiram a nave.

E havia uma notícia que era anunciada com simplicidade. Parecia que um condestável - não identificado pelo locutor aborrecido - tinha apresentado protestos à Fundação por ter sido raptado um dos membros da sua corte. O anunciador prosseguiu com notícias desportivas.

O capitão Pritcher disse friamente: - Afinal de contas, já vai um passo á nossa frente. - Acrescentou, pensativamente - está preparado para ir contra a Fundação e está servindo-se disto como uma desculpa para agir, o que nos torna as coisas mais difíceis. Vamos ser obrigados a agir antes de estarmos realmente preparados.

 

O PSICÓLOGO

Havia razão para o fato de se dizer que o elemento conhecido como "ciência pura" era a forma de vida libertadora na Fundação. Na Galáxia onde a predominância, e até a sobrevivência da Fundação continuava garantida pela superioridade de sua tecnologia e - embora a despeito dos grandes acessos de valorização da força física no último século e meio - estava ligada ao Cientista uma certa imunidade. Era necessário e sabia-o. Do mesmo modo, havia razão para o fato de Ebling Mis - só aqueles que não o conheciam lhe acrescentavam os títulos ao nome - ser a livre forma de vida da "ciência pura" da Fundação. Num mundo onde a ciência era respeitada, ele era o Cientista – com maiúscula e sem sorrisos. Ele era imprescindível, e sabia-o.

E por isso acontecia que, quando os outros se ajoelhavam aos seus pés, ele recusava a homenagem e acrescentava estrepitosamente que os seus antepassados, no seu tempo, não dobravam os joelhos diante de nenhum fedorento Prefeito civil. E, no tempo dos seus antepassados o Prefeito civil era eleito de maneira regular, e era obrigado a andar quando havia vontade, e as únicas pessoas que herdavam alguma coisa, por direito de nascimento, eram os idiotas congênitos.

E por isso sucedeu também que, quando Ebling Mis decidiu permitir que Indbur o honrasse com uma audiência, não se dobrou às habituais regras rígidas de entregar o requerimento e aguardar a resposta favorável, mas, desajeitando os seus dois casacos formais, aquele que gozava de reputação menos má e colocado de farra, na cabeça, num excêntrico chapéu de forma indescritível, e aceso, ao passar, um charuto proibido pela etiqueta, passou indiferentemente por dois guardas que bronqueavam, sem qualquer efeito, e penetrou no palácio do Prefeito.

A primeira sugestão que sua excelência teve desta intrusão foi quando ouviu, subindo do seu jardim, a barafunda gradualmente crescente de altercações e respostas berradas com grande reforço de pragas inarticuladas.

Lentamente, Indbur deixou cair a sua bela espátula; lentamente, levantou-se; e lentamente, franziu os sobrolhos. Pois que, Indbur concedia a si próprio, um dia de descanso por semana, e durante duas horas, ao começo da tarde, quando o tempo o permitia, ocupava-se do seu jardim. Ali, no seu jardim, as flores estavam dispostas em quadrados e em triângulos, conjugadas numa ordem severa de vermelho e de amarelo, com pequenas quantidades de violeta nos vértices, e o verde bordando o conjunto em linhas rígidas. Ali no seu jardim, ninguém o perturbava - ninguém!

Indbur tirou as luvas e deixou-as cair no chão, enquanto ia avançando para a pequena porta do jardim.

Inevitavelmente, perguntou: - O que quer dizer isso?

Esta mesma pergunta, com esta mesma expressão, foi lançada para a atmosfera em ocasiões semelhantes por uma incrível variedade de homens, desde que a humanidade foi criada. Não há memória de a pergunta ter sido feita com outro objetivo que não apenas o de ressalvar a dignidade pessoal.

Mas a resposta foi literal desta vez, pois o corpo de Mis entrou de mergulho pela porta adentro, com um grito e um abanão de punho cerrado para alguém que estava, contudo, agarrado aos restos da sua capa.

Indbur moveu-se na sua direção com um solene e desagrado franzir de sobrancelhas, e Mis inclinou-se para apanhar aquela ruína que era o seu chapéu, sacudindo uns salpicos de lama que lhe estavam agarrados, pô-lo debaixo do sovaco e disse:

- Olhe, Indbur, estes seus incríveis favoritos devem ser acusados de terem rasgado uma boa capa. Esta capa já passou por um amontoado de coisas.

O Prefeito deixou-se ficar ali de pé, muito rígido, olhando com desagrado, e disse com arrogância do cimo do seu metro e cinqüenta e seis: - Não me lembro nada de você ter pedido uma audiência, Mis. Certamente você não pediu que lhe fosse concedida alguma.

Ebling Mis olhou para baixo, para o Prefeito, com uma expressão que refletia aparentemente uma incredulidade cheia de surpresa: - Ga-LÁX-ia, Indbur, você não recebeu ainda o meu pedido. Entreguei-o a um lacaio vestido com um uniforme púrpura, há uns dias. Eu devia ter-lho entregue diretamente, mas sei como você admira as formalidades.

- Formalidades! - Indbur virou os olhos exasperados. - Você já ouviu alguma vez falar em organização correta? Futuramente você terá que apresentar seu pedido de audiência, feito corretamente em três vias, para que o governo saiba qual é o seu objetivo. Você terá então de esperar até que se tenha cumprido o curso habitual dos acontecimentos que lhe há de levar a notificação de quando haverá audiência, para ser recebido. E você então aparece, vestido corretamente - corretamente vestido, compreende? - e com o comportamento devido, também. Agora, vá embora.

- Mas o que é que está mal na minha roupa? - perguntou Mis, apaixonadamente. - É o melhor casaco que tenho e que estes demônios incríveis me rasgaram. Abandoná-lo-ei tão depressa assim que comunicar aquilo que tenho de lhe comunicar. Ga-LÁX-ia, se isto não envolvesse uma crise de Seldon, iria embora agora mesmo.

- Uma crise de Seldon! - Indbur deu a sua primeira amostra de interesse. Mis era um grande psicólogo - um democrata, grosseiro, e certamente rebelde, mas um psicólogo, também. Na sua incerteza, o Prefeito quase transformou em palavras de angústia interior que o apunhalou subitamente quando Mis cortou uma flor ao acaso, levando-a ás narinas para aspirar, porém, deixou-a de lado com uma torcidela de nariz.

Indbur disse friamente: - Quer acompanhar-me? Este jardim não foi feito para conversas sérias.

Sentiu-se melhor na sua alta cadeira, atrás da sua ampla mesa, da qual podia olhar para baixo para os poucos cabelos que tornavam a cabeça pelada de Mis numa coisa inefavelmente cor-de-rosa. Sentiu-se muito melhor quando Mis lançou uma série de olhares automáticos à sua volta, procurando uma cadeira que não havia e permanecendo de pé metido nas suas roupas de um corte já fora de moda. E o que mais o refez no meio de tudo foi quando, em resposta a uma cuidadosa pressão do contato indicado, um lacaio de libre apareceu submisso e apressadamente, curvando-se no seu caminho para a mesa, e colocando em cima dela um volume encadernado a metal.

- Agora - disse Indbur, cada vez mais senhor da situação - de forma a tornar a sua entrevista não autorizada o mais curta possível, apresente o seu relatório no mais reduzido número de palavras que lhe seja possível.

Ebling Mis disse vagarosamente: - Você sabe o que tenho feito nos últimos dias?

- Tenho aqui os seus relatórios - replicou o Prefeito, com satisfação - juntamente com resumos autorizados. Segundo a minha maneira de os compreender, suas investigações no campo das estruturações matemáticas da psicohistória procuraram refazer o trabalho de Hari Seldon neste plano e, eventualmente, procuram definir o projetado curso da história futura, para uso da Fundação.

- Exatamente - reconheceu, secamente. - Quando Seldon estabeleceu a Fundação pela primeira vez, foi suficientemente sensato para não incluir psicólogos entre os cientistas aqui colocados - pelo que a Fundação tem agido sempre ás cegas ao longo do curso das exigências históricas. No decurso das minhas investigações, tenho-me baseado muito em sugestões que se fundamentam no Cofre do Tempo.

- Estou a par de tudo isso, Mis. É uma perda de tempo repeti-lo.

- Não estou repetindo coisa nenhuma - gritou Mis - porque aquilo que lhe vou dizer não consta de nenhum desses relatórios.

- O que quer você dizer com isso de não estar nos relatórios? - indagou Indbur, estupidamente. - Você devia...

- Ga-LÁX-ia! Deixe que lhe diga isto á minha maneira, sua minúscula criatura ofensiva. Pare de me meter palavras pela boca dentro e de me interrogar a respeito de todos os meus relatórios ou então sairei daqui para fora e deixo que as coisas todas se esmigalhem á sua volta. Lembre-se, seu incrível louco, que a Fundação seguirá o seu caminho do começo ao fim porque o deve fazer, mas se eu sair agora daqui - você não irá com ela.

Atirando o chapéu ao chão, de tal forma que lhe saltaram os salpicos de lama que tinha agarrados, subiu os degraus da escada em que estava assentada a enorme mesa e, empurrando violentamente os papéis, sentou-se a um canto dela.

Indbur pensou furiosamente em se havia de chamar a guarda, ou se devia servir-se dos desintegradores embutidos na mesa. Porém, o rosto de Mis estava olhando para ele, de cima para baixo, e não havia outra coisa a fazer senão deixar-lhe ver uma cara com a melhor disposição possível.

- Dr. Mis - gaguejou ele, com uma formalidade sem resultado - você deve...

- Cale-se - replicou Mis, furiosamente - e ouça. Aqui nesta coisa - e a palma de sua mão estendeu-se pesadamente em cima dos elementos encadernados a metal - há uma embrulhada feita com os meus relatórios, jogue-a fora. Todos os relatórios que eu escrevo são obrigados a passar por alguns vinte funcionários, até chegarem à sua mão, e depois desta espécie de controle voltam a passar pelas mãos de outros vinte. Isto é uma maneira acurada de conseguir que nada daquilo que se lhe remete permaneça secreto. Bem, eu trago comigo qualquer coisa que é confidencial. E tão confidencial, que nem os rapazes que trabalham comigo sentem o cheiro do que está acontecendo. Eles executaram o trabalho, decerto, mas todos eles fizeram umas pecinhas sem imbricação - e fui eu que as juntei a todas. Você sabe o que vem a ser o Cofre do Tempo?

Indbur meneou negativamente a cabeça, porém Mis continuou com o seu ruidoso gozo da situação: - Bem, vou lhe dizer alguma coisa porque tive a sorte de imaginar esta incrível situação da Ga-LÁX-ia há muito tempo; sou capaz de ler no seu espírito sua pequenina fraude. Você pôs a mão direita perto de um pequeno botão que poderá chamar uns quinhentos homens armados para me porem daqui para fora, porém você tem medo daquilo que eu sei - você está com medo de uma Crise de Seldon. Além de que, se você tocar em qualquer coisa que esteja na sua mesinha, ficará sem a sua incrível cabeça antes de eles terem tempo de chegar. Você e o bandido do seu pai e o pirata do seu avô têm sido as sanguessugas da Fundação há muitíssimo tempo, seja como for.

- Isso é traição - murmurou Indbur.

- E certamente que é - anuiu Mis muito satisfeito. - mas que tem você a dizer a este respeito? Deixe que lhe conte o que se passa com o Cofre do Tempo. Este Cofre do Tempo é aquilo que Hari Seldon utilizava a princípio para nos ajudar a evitar os pontos incompletos. Em todas as crises, Seldon preparou um simulacro pessoal para ajudar e explicar. Quatro crises no total - quatro aparições. A sua primeira aparição registrou-se na altura da primeira crise. A segunda deu-se um momento depois do bom êxito da evolução da segunda crise. Os nossos antepassados estiveram presentes para ouvi-lo ambas as vezes. Na terceira e na quarta crises, ele foi ignorado - provavelmente porque não era necessário, mas recentes investigações - que não foram incluídas nesses relatórios que tem em seu poder - indicam que ele apareceu fosse como fosse, e nos prazos indicados. Compreende?

Não esperou que lhe desse resposta. O seu charuto, uma ruína esfarrapada e desfeita, foi finalmente atirado fora, rebuscou um novo charuto, e acendeu-o. Expeliu a fumaça com violência. Continuou:

- Oficialmente eu estou procurando reconstruir a ciência da psicohistória. Bem, nenhum homem está em condições de fazer isso, e não o conseguiria fazer daqui a um século, pelo menos. Porém eu tenho feito progressos aproveitando elementos mais simples e estou em condições de os utilizar como um pretexto para me meter no Cofre do Tempo. Aquilo que tenho feito envolve a determinação, com um erro insignificante que não lhe elimina a certeza, da data exata da próxima aparição de Hari Seldon, e estou em condições de lhe dizer o dia exato, por outras palavras, o momento em que a próxima crise de Seldon, a quinta, atingirá o seu apogeu.

- E quando é que isso se verificará? - perguntou Indbur, muito tenso. E Mis deixou estourar a bomba com um cuidadoso desapego: - Dentro de quatro meses - disse ele. - Quatro incríveis meses, menos dois dias.

- Quatro meses - comentou Indbur, com uma veemência incaracterística. - Impossível.

- Impossível, minha incrível visão.

- Quatro meses? Você compreende o que isso quer dizer? Se uma crise atingir o clímax dentro de quatro meses, isso quer dizer que está evoluindo há anos.

- E por que não? Há alguma lei da natureza que exija que o processo de maturação se processe à plena luz do dia?

- Mas nada está iminente. Nada pesa sobre nós. - Indbur quase torceu as mãos de ansiedade. Com um repentino e espasmódico aumento de ferocidade, guinchou: - É capaz de sair da minha mesa e deixar-me pô-la em ordem? Como você espera que eu pense?

Mis, espantado, levantou-se vagarosamente e afastou-se para um lado.

Indbur voltou a colocar os objetos nos seu nichos apropriados com um movimento febril. Depois falou rapidamente: - Você não tem o direito de aparecer aqui com essas coisas. Se você tivesse apresentado a sua teoria..

- Não se trata de uma teoria.

- Eu disse que é uma teoria. Se você a tivesse apresentado juntamente com as suas provas e argumentos, de maneira apropriada, eu tê-la-ia remetido para o Gabinete de Ciências Históricas. Ali podia ter sido devidamente discutida, e as análises resultantes ser-me-iam apresentadas, e então, decerto, havia de ser adotada a atitude mais indicada. Tal como foi feito, você incomodou-me embora não intencionalmente. Ah, aqui está.

Tinha uma folha de papel transparente e prateado na mão, abanando-a na direção do psicólogo que estava perto dele.

- Isto é um pequeno resumo que faço pessoalmente - todas as semanas - dos assuntos estrangeiros que estão em discussão. Ouça - já concluímos negociações para um tratado comercial com Mores, continuam as negociações para estabelecer outro com Lyonesse, mandamos uma delegação para celebrar outro com Bonde, recebemos algumas queixas ou coisa assim de Kalgan e prometemos estudar o assunto, protestamos contra algumas práticas comerciais muito incorretas verificadas em Asperta e eles prometeram examinar o assunto. - Os olhos piscos do prefeito chegaram ao fundo da lista de apontamentos em código, pelo que colocou cuidadosamente a folha no lugar mencionado na pasta indicada.

- Eu lhe digo, Mis, que não há uma única coisa que indique mal-estar mas apenas ordem e paz...

A porta que estava longe abriu-se de par em par e, numa coincidência muito dramática de maneira a sugerir apenas que se tratava de vida real, entrou um nobre vestido com extremo rigor.

Indbur estava meio corado. Tinha a curiosa sensação redemoinhante de irrealidade que se registra nos dias em que tudo acontece muito depressa. Depois da intrusão de Mis e das suas grosseiras exaltações, verificava-se a entrada do seu secretário, que era igualmente imprópria, e por isso mesmo perturbadora, pois que não fora anunciada e esse, pelo menos, conhecia a etiqueta.

O secretário ajoelhou-se.

Indbur perguntou com dureza: - Então?

O secretário falou para o alto: - Excelência, o capitão Pritcher das Informações, tendo regressado de Kalgan, em desobediência às suas ordens, feitas em conformidade com instruções anteriores - a sua ordem X20-513 -foi detido, e aguarda execução. Aqueles que o acompanhavam estão detidos para serem interrogados. Está sendo apresentado um relatório completo.

Indbur, em agonia, replicou: - Está sendo recebido um relatório completo. E então?

- Excelência, o capitão Pritcher relatou, de maneira vaga, a existência de intenções ofensivas por parte do novo Condestável de Kalgan. De acordo com as instruções anteriores - sua ordem X20-651 - não está sendo ouvido formalmente, porém suas informações estão sendo registradas e apresentado um relatório completo.

Indbur resmungou: - Está sendo recebido um relatório completo. E então?

- Excelência, há um quarto de hora que estão sendo recebidos relatórios da fronteira de Salinnian. Naves identificadas como sendo Kalganianas penetraram em território da Fundação, sem autorização. As naves estão armadas. Registraram-se combates.

O secretário estava dobrado a meio. Indbur permanecia de pé. Ebling Mis pessoalmente chocado, inclinou-se para o secretário, e bateu-lhe rudemente no ombro.

- Ouça, o melhor que você tem a fazer é libertar esse capitão Pritcher, e trazê-lo para cá. Vá fazer isso.

O secretário saiu, e Mis virou-se para o prefeito: - Não lhe parece que será melhor pôr sua máquina em ação, Indbur? Quatro meses, bem sabe.

Indbur deixou-se ficar de pé, com os olhos arregalados. Só um dos seus dedos parecia vivo - e entretinha-se a riscar rápidos triângulos em cima do tampo liso da mesa que tinha diante dele.

 

CONFERÊNCIA

Quando os vinte e sete mundos comerciais independentes, que só estavam unidos devido â desconfiança que tinham em relação ao planeta-mãe da Fundação, decidiram entre si realizar uma assembléia, cada um deles se considerava o maior, com uma arrogância que nascia de sua pequenez, petrificados que estavam pelo seu próprio isolamento, ao mesmo tempo que azedados pelo perigo permanente - houve negociações preliminares com o fim de eliminar uma porção de questões minúsculas e mesquinhas, suficientemente chocantes, todavia, para fazer desanimar os mais perseverantes.

Não foi fácil fixar antecipadamente numerosos pormenores como métodos de votação, tipo de representação, se por mundo ou população. Trata-se de assuntos que envolvem problemas de importância política. Não foi fácil fixar assuntos de prioridade â mesa, tanto de conselho como de jantar, pois são assuntos que envolvem importância social.

O lugar onde se devia realizar a reunião deu azo a grandes discussões -pois que era problema em que todos os elementos provinciais queriam ficar â frente. E ao cabo de delicadas manobras diplomáticas decidiu-se pelo mundo de Randole, que alguns comentadores haviam sugerido como sendo o mais indicado por razões lógicas que derivavam de sua posição central.

Randole era um mundo pequeno - e, no que se referia ao potencial militar, talvez o mais fraco dos vinte e sete. O que, como é evidente, foi mais um fator contribuindo para a lógica da escolha.

Era um mundo repartido em várias faixas de temperaturas desiguais, de que a Galáxia se gabava bastante, mas que se fazia notar pelo número de sua população. Era um mundo, por outras palavras, onde as duas zonas laterais se caracterizavam pelos excessos de calor e de frio, enquanto a vida só era possível na região cheia de pássaros, onde incidia uma luz média.

Era um mundo invariavelmente pouco convidativo para aqueles que ainda não o tinham experimentado, mas onde existiam pontos estrategicamente colocados - e a cidade de Randole estava localizada num deles.

Estendia-se ao longo de encostas de suaves inclinações, em frente das montanhas recortadas que se alinhavam ao fundo, ao longo da margem do hemisfério frio, e que se encarregavam de deter o espantoso gelo. O ar quente e seco da região tropical derramava-se sobre a cidade, enquanto a água foi carreada das montanhas - e entre as duas zonas a cidade de Randole tornava-se um jardim sem momentos mortos, nadando na manhã de um eterno junho.

Todas as casas se aninhavam no meio de jardins floridos, expostos á influência dos elementos. Todos os jardins se revelavam um terreno de horticultura poderosamente organizada, onde as plantas de luxo cresciam de maneira fantástica, destinadas ao comércio com o estrangeiro - pelo que Randole quase se transformara num mundo de produção, perdendo muitas das características de um mundo tipicamente comercial.

Assim sendo, e obedecendo a este esquema, a cidade de Randole era um pequeno ponto suave e luxuoso, no meio de um planeta horrível - um minúsculo retalho do Éden - e este foi também um fator que contribuiu para a lógica da escolha.

Os estrangeiros vindos de todos os outros vinte e seis mundos comerciais: delegados, mulheres, secretários, jornalistas, naves e tripulações, quase duplicaram a população de Randole, e os seus recursos foram obrigados a esticar-se até atingirem os seus limites máximos. Todo mundo comia e bebia à vontade, e descansava quanto lhe apetecia.

Havia no meio de tudo isto alguns fanfarrões que não tinham inteira consciência de que todo este volume da Galáxia se ia consumindo lentamente numa espécie de guerra tranqüila e soporífera. E aqueles que disso tinham consciência formavam três classes. A primeira era constituída pelos muitos que conheciam pouco e eram muito presunçosos...

Tal como o jovem piloto espacial de Haven que trazia consigo o símbolo de Haven no laço do punho, e que conseguia conservar os óculos nos olhos, para ocultá-los das moças randolianas que estavam defronte dele e sorriam debilmente. Estava dizendo:

- Atravessamos, sem medo algum, pelo meio da zona de guerra para chegarmos até aqui - e fizemo-lo de propósito. Viajamos à volta de um minuto-luz ou coisa assim, de forma neutra, direto por Horleggor...

- Horleggor? - interrompeu um nativo de pernas muito altas, que se fazia de anfitrião nessa reunião particular: - Foi esse mundo que o Mulo conquistou na semana passada, não foi?

- Onde é que ouviu dizer que o Mulo o tinha conquistado? - perguntou o piloto com arrogância.

- Na rádio da Fundação.

- O quê? Bem, o Mulo ocupou Horleggor. Nós quase esbarramos com um comboio de naves dele, e isto quando eles estavam chegando lá. Ele ainda não iniciara a ocupação quando por ali passamos, e o batedor passou num segundo.

Houve alguém que se intrometeu na conversa em voz alta: - Não se meta com isso. A Fundação acerta sempre no queixo do inimigo quando chega a hora. Espere; fique aí sentado e espere. A Fundação sabe muito bem quando de e voltar ao ataque. E então - zás. - A voz grossa sumiu e sucedeu-se-lhe um riso irônico.

- Mesmo assim - continuou o piloto de Haven, depois de uma curta pausa - como eu disse, avistamos as naves do Mulo, e pareceram-me muito boas, muito boas. É o que lhe digo - pareciam novas.

- Novas? - observou o nativo, pensativamente. - Nesse caso são eles mesmos que as constroem? - Partiu um galho que lhe pendia por cima, cheirou-o com delicadeza, depois do que triturou-o com os dentes, e os tecidos feridos deixaram escorrer uma seiva e espalharam um cheiro de hortelã. E disse: - Você quer me dizer que eles derrotaram as naves da Fundação com aparelhos construídos por eles mesmos? Ora, vamos.

- Nós os vimos, doutor. E eu sou capaz de distinguir uma nave de um cometa, sabe, são coisas que conheço bem.

O nativo dobrou-se até o chão: - Você sabe o que estou pensando. Ouça, não se deixe enganar. As guerras não podem começar sozinhas, e nós temos uma porção de cabeças astutas ruminando coisas. Eles sabem o que estão fazendo.

Uma pessoa bem intencionada disse de repente: - Você veja o que faz a Fundação. Espere pelo último minuto, e então - zás! - E riu-se exageradamente, com estupidez, abrindo a boca perto de uma moça que estava passando diante dele.

O randoliano começou a dizer: - Por exemplo, meu velho, você pensa, talvez, que os rapazes do Mulo estão galgando espaço sem obstáculos. Não-ão-ão. - E agitou um dedo horizontalmente. - Pelo caminho que estão seguindo, e desde que subam um bocado mais, vão encontrar os nossos rapazes. E havemos de metê-los em ordem, e provavelmente fomos nós que construímos aquelas naves. É mesmo assim, afinal de contas ele não pode vencer a Fundação, mas pode torná-la muito débil, e quando o fizer - nessa altura aparecemos nós.

A moça observou: - É só disso que você sabe falar, Klev? Da guerra? Você me causa tédio.

O piloto de Haven disse, num acesso de galanteria: - Mude de assunto. É melhor não entediar as garotas.

Alguém tocou um estribilho e tamborilou uma caneca acompanhando o ritmo. Os pequenos grupos de dois que se tinham formado começaram com torções e meneios, e alguns grupos similares de dois emergiram do solário que ficava ao fundo. A conversa tornou-se mais generalizada, mais variada, mais inexpressiva...

Havia ainda aqueles que conheciam um pouco mais e que eram menos inconfidentes.

Tal como aquele maneta Fran, cujo amplo volume representava Haven como delegado oficial, e que levava uma vida ardente em conseqüência disso, e cultivava novas amizades - com mulheres quando podia e com homens quando não podia ser de outro modo.

Estava na plataforma solar da casa da montanha de um dos seus novos amigos, onde repousava pela primeira vez daquilo que eventualmente lhe provava a necessidade de viver duas vidas enquanto estivesse em Randole. O novo amigo era Iwo Lyon, uma alma gêmea de Randole. A casa de Iwo estava afastada do bloco geral de casas, aparentemente mergulhada num mar de perfume floral e de rumores de insetos. A plataforma solar era constituída por uma faixa de relvado colocada num ângulo de quarenta e cinco graus, e nela se estiraçava Fran, embebendo-se completamente ao sol.

Comentou: - Não temos nada como isto, em Haven.

Iwo replicou, muito ensonado: - Daqui pode-se ver o lado frio. Há um sítio a vinte milhas daqui onde o oxigênio corre como água.

- Não pode ser.

- É mesmo.

- Bem, deixe-me dizer-lhe, Iwo... Nos velhos tempos, antes de ter ficado sem o braço, eu distribuía uns murros á minha volta, vê... e você não pode compreender isto, mas... - A história que começou a contar arrastou-se consideravelmente, e Iwo não conseguiu entendê-la.

Iwo disse, entre bocejos: - Eles não os fazem como nos tempos antigos, isso é verdade.

- Não suponho que não conseguem. Bem, agora - Fran entusiasmou-se - você não pode dizer isso. Já lhe falei no meu filho, já? Ele pertence à velha escola, se quiser. Há de tornar-se um grande comerciante, sou eu que lho digo. Trata-se de um homem à maneira antiga, da cabeça aos pés. Da cabeça aos pés, se excetuarmos o fato de estar casado.

- Você quer dizer que se casou com um contrato legal? Com uma moça?

- Isso mesmo. Não seguiu o meu exemplo. Agora estão a caminho de Kalgan, onde vão passar a lua-de-mel.

- Kalgan? Kalgan? No momento em que a Galáxia está neste estado?

Fran sorriu amplamente, e disse com um significado obscuro: - Foram para lá exatamente antes de o Mulo ter declarado guerra á Fundação.

- Ah sim?

Fran meneou afirmativamente a cabeça e inclinou-se para Iwo que continuava meio adormecido: - De fato, posso dizer-lhe uma coisa, se você ainda não se encontra a par do que está acontecendo. O meu rapaz foi para Kalgan para cumprir uma missão. Claro que não estou autorizado a revelar de que espécie de missão se trata, como deve compreender, mas você olha para a situação tal como está e calculo que possa entender o que se passa, com um pequeno esforço. Seja como for, o meu rapaz era o homem indicado para esse trabalho. Nós os comerciantes, precisamos de uma espécie de defesa. - Sorriu, de maneira astuta. - Ora, cá estamos. Não lhe posso dizer agora o que é que ele foi fazer - o meu rapaz foi para Kalgan e o Mulo pôs as suas naves em ação. O meu rapaz!

Iwo estava devidamente impressionado. Entrou por seu turno no caminho das confidencias. - Isso é bom. Você sabe, eles dizem que nós possuímos quinhentas naves prontas para lançar na batalha na hora indicada.

Fran disse autoritariamente: - Mais do que isso, talvez. Trata-se de verdadeira estratégia. É destas coisas que eu gosto. - Cocou asperamente a pele da barriga. – Mas você se esquece de que o Mulo é um rapaz ativo, também. O que aconteceu em Horleggor está dando cabo de mim.

- Ouvi dizer que ali ele perdeu umas dez naves.

- É certo, mas ele tinha mais uma centena, e a Fundação foi obrigada a retirar. É uma coisa boa ver aqueles tiranos vencidos, mas não há nada de estimulante em tudo isto.

- A pergunta que eu me faço é onde é que teria ido o Mulo buscar estas naves? Corre o boato surdo de que fomos nós que lhas fabricamos.

- Nós? Os comerciantes? Haven possui as maiores fábricas de naves entre todos os mundos independentes, e não fabricamos uma nave que não seja para nós próprios. Você quer dizer que há algum mundo que está construindo uma esquadra para o Mulo nas suas fábricas, afastando-se da combinação de ação unida? Isto é um... conto de fadas.

- Sendo assim, quem é que lhas fabrica?

E Fran encolheu os ombros: - Fabrica-as ele próprio, calculo eu. E isto também dá cabo de mim.

Fran piscou os olhos sob a luz do sol e enrolou os dedos dos pés em volta da madeira macia do descanso envernizado dos pés. Mergulhou suavemente no sono e o seu volumoso roncar misturou-se com o sibilar dos insetos.

Havia ainda, finalmente, os assuntos verdadeiramente graves que eles sabiam ser consideráveis e sobre os quais não trocaram qualquer confidencia.

Tal como Randu, o qual no quinto dia da convenção geral dos comerciantes entrou no Vestíbulo Central e encontrou os dois homens a quem pedira que ali ficassem, à espera dele. Os quinhentos bancos estavam vazios - e continuariam assim.

Randu observou rapidamente, quase antes de se sentar: - Nós três representamos cerca de metade do potencial militar dos Mundos Comerciais Independentes.

- É verdade - reconheceu Mangin de Iss - o meu colega e eu já tínhamos comentado o fato.

- Eu estou preparado - disse Randu - para falar direto e com clareza. Não estou interessado em teimosias ou em sutilezas. A nossa posição tornou-se radicalmente pior.

- Em conseqüência de... - encorajou Ovall Gri, de Mnemon.

- Da evolução que se verificou á última hora. Por favor! Vamos começar pelo início. Primeiro, a posição em que estamos foi de nossa escolha, e é indubitável que está fora do nosso controle. As nossas negociações originais não foram com o Mulo, mas com vários outros, em particular com o ex-condestável de Kalgan, a quem o Mulo derrotou, poupando-nos assim muito trabalho.

- Sim, mas esse Mulo é um substituto muito indesejável - disse Mangin. - Eu não quero deixar me prender pelos pormenores.

- Há de querer quando conhecer todos os pormenores. - Randu inclinou-se e colocou as mãos em cima da mesa com as palmas para cima, num gesto evidente.

Continuou: - Há um mês atrás mandei o meu sobrinho e a mulher do meu sobrinho para Kalgan.

- O seu sobrinho! - exclamou Ovall Gri, deveras surpreendido. - Eu não sabia que ele era seu sobrinho.

- Com que objetivo? - perguntou Mangin, secamente. - Este? - E o seu polegar enorme desenhou no ar um grande círculo fechado.

- Não. Se você quer dizer com isso guerra do Mulo com a Fundação, não. E como é que eu podia aspirar tão alto? O rapaz não conhece nada -nem da nossa organização nem dos nossos objetivos. Contei-lhe que eu era um membro menor de uma associação patriótica no interior de Haven, e a sua função em Kalgan era apenas a de um observador amador. Os meus motivos eram, devo admitir, um tanto obscuros. Necessariamente, eu estava com curiosidade de saber o que se passava a respeito do Mulo. Ele é um fenômeno estranho, porém isto já é por demais conhecido: não iria até esse ponto. Em segundo lugar, poderia efetuar um curso de instrução educacional interessante para um homem que tem experiência com a Fundação e a Fundação subterrânea, revelando possibilidades de futura utilização para nós. Você vê...

O rosto comprido de Ovall ficou reduzido a linhas verticais quando mostrou os seus grandes dentes. - Nesse caso você deve ter ficado surpreso com o resultado, desde que não haja uma palavra a respeito dos comerciantes, suponho eu, quando não há ninguém que não saiba que o seu sobrinho seqüestrou um súdito do Mulo em nome da Fundação, fornecendo ao Mulo um motivo de guerra. Galáxia, Randu, você inventa romances de espionagem. E eu que me matei sem conseguir descobrir que você tinha uma mão metida nisto. Vamos, foi um trabalho hábil.

Randu meneou a cabeça branca: - Não foi feito por mim. Nem, intencionalmente, pelo meu sobrinho, que está agora prisioneiro na Fundação, e pode não chegar a viver para ver a conclusão do. seu trabalho tão hábil. Porém conseguiu saber alguma coisa a respeito deles. A Cápsula Pessoal viajou de contrabando, de todas as maneiras possíveis, passando através da zona de guerra, tendo sido levada para Haven, e viajando daqui para acolá. Gastou um mês nestas andanças.

- E?

Randu inclinou uma mão pesada em cima da palma da outra e disse, melancolicamente: - Estou com medo que estejamos destinados a desempenhar papel idêntico ao que foi outrora desempenhado pelo condestável em Kalgan. O Mulo é um mutante!

Registrou-se uma náusea momentânea; uma tímida impressão de excitada opressão.

Randu podia facilmente ter imaginado que assim sucederia.

Quando Mangin falou, a firmeza da sua voz continuava inalterada: -Como é que você sabe?

- Só porque o meu sobrinho assim o disse, porém ele estava em Kalgan.

- Que espécie de mutante? Há muitas espécies, como sabe?

Randu forçou sua nascente impaciência a desaparecer: - Há todas as espécies de mutantes, é certo, Mangin. Todas as espécies! Mas só uma espécie de Mulo. Que espécie de mutante podia iniciar como um desconhecido, reunir um exército, estabelecer aquilo a que chamam a sua base original num asteróide de oito quilômetros, e depois capturar um planeta, depois um sistema, depois uma região e acabar por atacar a Fundação, para derrotá-la em Horleggor. E tudo isto em dois ou três anos?

Ovall Gri encolheu os ombros: - É por isso que pensa que ele acabará por derrotar a Fundação?

- Não sei ainda. Mas suponho que assim suceda.

- Desculpe, eu não posso consentir que isto vá mais adiante. Você não pode derrotar a Fundação. Olhe, não há nenhum acontecimento novo que tenhamos de considerar exceto os relatórios de um... bem, de um rapaz sem experiência. Suponha que o deixemos de parte, por enquanto. Apesar de todas as vitórias do Mulo, não fomos derrotados até agora, e a menos que ele consiga uma posição bastante melhor do que aquela que tem agora, não vejo razão para mudar de orientação. Compreende?

Randu franziu os sobrolhos e perdeu a esperança de conseguir alguma coisa para os seus argumentos. Disse para ambos: - Nós já estabelecemos algum contato com o Mulo?

- Não - foi a resposta de ambos.

- É certo, não obstante, que o tentamos, não foi? É certo que não há grande utilidade nas nossas reuniões a menos que o consigamos encontrar, não é assim? E certo que, por enquanto, nos limitamos a beber mais do que a pensar, e fazemos mais galanteios do que obras - estou citando palavras do artigo de fundo de hoje da Tribuna de Randole - e tudo porque não conseguimos estabelecer contato com o Mulo. Cavalheiros, temos quase um milhar de naves esperando ser lançadas na batalha, no momento indicado, para nos apoderarmos do controle da Fundação. Eu disse que nós poderíamos alterar a situação. Eu disse que devíamos lançar este milhar de naves agora contra o Mulo.

- Você pretende defender o Tirano Indbur e as sanguessugas da Fundação? – perguntou Mangin, com uma calma venenosa.

Randu agitou uma mão enfastiada: - Poupe-me os adjetivos. Contra o Mulo, foi o que eu disse, e não me importa quem ele possa ser.

Ovall Gri corou: - Randu, eu não tenho nada a ver com isto. Você pode apresentar sua proposta ao conselho plenário esta noite, se está particularmente sedento de política suicida.

E saiu sem mais qualquer palavra e Mangin foi atrás dele silenciosamente, deixando Randu passar vagarosamente uma hora solitária, mergulhado numa meditação interminável e insolúvel.

E no conselho plenário daquela noite, ele não disse nada.

Mas foi Ovall Gri que empurrou a porta do seu quarto na manhã seguinte; um Ovall Gri sumariamente vestido e que não se tinha barbeado nem penteado o cabelo.

Randu olhou fixamente por cima da mesa de um pequeno desjejum que já quase desaparecera, com um espanto suficientemente nítido e persistente para obrigá-lo a deixar cair o cachimbo, Ovall disse roucamente: - Mnemon foi bombardeado no espaço por um ataque traiçoeiro.

Randu arregalou os olhos: - A Fundação?

- O Mulo! - explodiu Ovall. - O Mulo! - As suas palavras precipitaram-se: - Um ataque não provocado e deliberado. A maior parte da nossa esquadra tinha-se reunido à flotilha internacional. As poucas naves que deixaram com o Esquadrão Doméstico foram insuficientes e foram eliminadas do céu. Não se verificou qualquer aterragem, e não se podia verificar pois metade dos atacantes são dados como destruídos - mas é a guerra – e eu vim aqui para perguntar como é que Haven irá agir nesta circunstância.

- Haven, tenho certeza, aderirá ao espírito da Carta da Federação. Mas, está vendo? Ele ataca-nos também.

- Este Mulo é um miserável. Estará em condições de derrotar o universo? - Vacilou e sentou-se para agarrar os pulsos de Randu: - Os nossos poucos sobreviventes relataram que o Mulo poss... que o inimigo possui uma nova arma. Um campo-atômico depressor.

- O que?

Ovall disse: - A maior parte das nossas naves perderam-se porque suas armas atômicas não conseguiram disparar. O que só podia ter acontecido por acidente ou sabotagem. Deve ter sido uma arma do Mulo. Trabalha imperfeitamente; o efeito era intermitente; havia várias formas de neutralização - os meus comunicados não são pormenorizados. Mas bem vê que este tal instrumento muda a natureza da guerra e, possivelmente, torna obsoleta toda a nossa esquadra.

Randu transformou-se num homem muito, muito velho. Sua face pendeu desalentadamente: - Receio que tenha nascido o monstro que nos irá devorar a todos. Já lhe devíamos ter dado combate...

 

O AUDIOVISOR

A casa de Ebling Mis ficava nuns arrabaldes nada pretensiosos da Cidade de Terminus e era bem conhecida pela inteligência, pelos literatos e por todos os bons leitores da Fundação. Suas notáveis características, o juízo que sobre elas se possam fazer, dependem, de modo subjetivo da fonte material em que se firma a opinião. Para um biógrafo atento, essa casa era o "símbolo do refúgio de uma realidade não-acadêmica", uma colunista da society falava emocionada e calmamente da sua "atmosfera terrivelmente masculina de descuidada desordem", um doutor em filosofia chamou-a com brusquidão "livresca, mas desorganizada", um amigo de formação não-universitária disse que "era boa para tomar uma bebida de vez em quando e você podia pôr os pés em cima do sofá" e um jovial locutor de rádio, que se vestia de maneira muito bizarra, falou da "empedernida, subterrânea, insensata vivenda do blasfemador, esquerdista e careca Ebling Mis".

Para Bayta, que não precisou esperar por audiência, pois, foi imediatamente recebida, e que levava a vantagem de dispor de informações de primeira mão, era simplesmente negligente.

Exceto durante os primeiros dias, sua prisão não lhe causara grandes aflições. Nada surgia tão distante, parecia, como aquela meia hora à espera em casa do psicólogo – talvez sob secreta observação. Depois estivera, com Torã, pelo menos...

Talvez ela conseguisse dominar sua tensão, não fosse o comprido nariz de Magnífico caído de uma forma que revelava obviamente sua própria tensão.

As pernas delgadas de Magnífico estavam dobradas por baixo do queixo, como se aquela severidade estivesse dominando-o, convencendo-o a deixar-se levar pessoalmente ao desespero, e a mão de Bayta esboçou um gesto suave e automático para acalmá-lo. Magnífico encolheu-se, depois sorriu.

- Decerto, minha senhora, deve parecer que meu corpo se recusa a acompanhar as impressões de meu espírito e está sempre esperando receber uma bofetada de outras mãos.

- Não precisa torturar-se, Magnífico. Estou aqui com você, e não consentirei que ninguém lhe bata.

Os olhos do palhaço fitaram-se nela, e depois lançou-se impetuosamente para frente: - Não tarda muito que eles me ponham longe de você - e do seu amável marido - e, palavra, pode rir-se, mas eu estava sozinho sem amigo nenhum.

- Não vou rir-me de nada. Eu também estava.

O palhaço animou-se, e abraçou-se estreitamente aos joelhos. Disse: -Você algum dia viu este homem que nos recebe? - Era uma pergunta cautelosa.

- Não. Mas trata-se de um homem famoso. Tenho-o visto em notícias aparentes e ouvi a seu respeito uma porção de coisas mais ou menos agradáveis. Penso que se trata de um homem bom, Magnífico, que não nos há de desejar mal.

- Sim? - O palhaço mexeu-se com desassossego. - Pode ser que assim seja, minha senhora, mas ele já me interrogou, e suas maneiras são tão abruptas e barulhentas que me causaram arrepios. Está cheio de palavras estranhas, e por isso as respostas às suas perguntas não me conseguiam sair da garganta nem com saca-rolhas. Quase podia compreender o romancista que uma vez brincou com a minha ignorância, num conto em que dizia, que em tais momentos o coração se aloja na traquéia e impede as pessoas de falar.

- Isto agora é diferente. Somos dois contra um, e ele não será capaz de nos assustar aos dois, não é?

- Não, minha senhora.

Nessa altura rangeu em algum lugar uma porta, e entrou pela casa dentro uma voz aguda. Exatamente do outro lado do aposento, concretizou-se em palavras com um violento: - Pela Ga-LÁX-ia, daqui para fora! - e dois policiais surgiram pela porta aberta, em rápida retirada.

Ebling Mis entrou com as sobrancelhas franzidas, depositou no chão um pacote cuidadosamente embrulhado, aproximou-se para apertar a mão de Bayta com uma pressão carinhosa. Bayta devolveu vigorosamente o cumprimento, de maneira masculina. Mis fez uma dupla reverência quando se virou para o palhaço, e lançou um olhar demorado para a moça.

Perguntou: - Casada?

- Sim. Com todas as formalidades legais.

Mis fez uma pausa. Depois continuou: - A propósito, é feliz?

- Até aqui.

Mis encolheu os ombros, e virou-se outra vez para Magnífico. Desembrulhou o pacote: - Sabe o que é isto, rapaz?

Magnífico levantou-se rápido e apoderou-se do instrumento de múltiplos botões. Foi passando os dedos pelas miríades de contatos nodosos, atirou-se subitamente para trás com uma cambalhota de alegria, ameaçando a destruição da mobília pobre.

Vociferou: - Um Audiovisor - e de uma qualidade capaz de extrair alegria do coração de um morto. - Os seus longos dedos acariciaram-no devagar e suavemente, apertando suavemente os botões, deixando-se ficar momentaneamente num botão, depois noutro – e no ar diante dele surgiu uma cor rosada, macia e brilhante, dentro do nível de visão.

Ebling Mis observou: - Muito bem, rapaz, você,disse que podia tocar uma destas engenhocas, e está com sorte. Você nunca teve uma tão harmoniosa como esta, aposto. Trouxe-a de um museu. - Virando-se então para Bayta: - Nem eu podia fazê-la, nem ninguém na Fundação pode fazê-la funcionar corretamente.

Inclinou-se muito e disse vivamente: - O palhaço não fala sem você estar presente. Deseja ajudar-me?

Ela meneou a cabeça.

- Está bem! - disse ele. - O seu estado de pavor quase se estabilizou, e tenho dúvidas que a sua força mental ofereça possibilidades de o sujeitar a uma sonda psíquica. Se quiser extrair alguma coisa dele de outra maneira, devo examiná-lo absolutamente sossegado. Compreende?

Ela voltou a menear a cabeça.

- Este Audiovisor é o primeiro passo no processo. Diz que pode contar com ele e sua reação, agora, torna quase certo que se trata de uma das grandes alegrias de sua vida. Por isso, seja bom ou mau aquilo que ele aceitar, devemos mostrar-nos interessados e apreciadores. Agora mostre-se amigável e íntima comigo. Acima de tudo, obedeça àquilo que eu sugerir, em tudo. -Houve um rápido olhar para Magnífico, encolhido a um canto do sofá, procedendo a rápidos ajustamentos dentro do instrumento. Estava completamente absorto.

Mas disse num tom confidencial a Bayta: - Algum dia ouviu um Audiovisor?

- Uma vez - disse Bayta, num tom igualmente desprendido - num concerto de instrumentos excêntricos. Não fiquei muito impressionada.

- Bem, duvido que você tenha ouvido um bom executante. Há muito poucos executantes realmente bons. Não é que se requeira um tipo especial de coordenação física - um piano multiteclado exige mais, por exemplo - mas pede, também, um certo tipo de mentalidade livremente evolucionada. Em voz mais baixa: - E sucede assim porque a nossa estrutura viva é melhor do que pensamos. Muito mais vezes do que se pensa, os bons executantes são totalmente idiotas para as outras coisas. Trata-se de uma daquelas estranhas constatações que tornam a psicologia interessante. E acrescentou, num esforço patente para apresentar uma conversa inteligente. – Você sabe como trabalham estas coisas engenhosas? Olho para elas para ver se sou capaz de compreender, e tudo o que consigo compreender daquilo é que suas radiações estimulam diretamente o centro ótico do cérebro, sem nunca tocar no nervo ótico. É evidentemente a utilização de uma sensação que nunca se verifica na natureza comum. Notável, quando se pensa nisso. O que você ouve está bem. É coisa comum. Tímpano, caracol e por aí afora.

Mas - Shh! Ele está pronto. Gostaria que você desligasse o interruptor. Ele trabalha melhor no escuro.

Na escuridão, Magnífico estava reduzido a uma simples sombra. Ebling era uma massa respirando pesadamente. Bayta sentou-se, também, arregalando os olhos ansiosamente, e da primeira vez não conseguiu ver nada. Havia um frágil, agudo trilo no ar, que ia subindo gradativamente de tom. Ficou suspenso no ar, gotejou e estorceu-se, ganhou corpo, e decaiu rapidamente, reduzindo-se a um som que fazia o efeito do rasgar-se de uma cortina delicada.

Um pequeno globo de cor pulsante cresceu com um jorro rítmico e explodiu no meio do ar em gotas disformes que ondularam e desceram como correntes oscilantes em desenhos entrelaçados. Estes fundiram-se em pequenas esferas, não havendo duas da mesma cor - e Bayta começou a descobrir coisas.

Verificou que fechando os olhos, os padrões de cores se tornavam mais claros; que todos os pequenos movimentos de cor tinham o seu próprio pequeno elemento de som; que não podia identificar as cores;e, finalmente, que os globos não eram globos, porém pequenas figuras.

Pequenas figuras; pequenas labaredas movediças, que dançavam e bruxuleavam nas suas miríades; que se retiravam para longe e regressavam de alguma parte; que se entrançavam em volta uma da outra e aglutinavam-se numa nova cor.

Incoerentemente Bayta pensou nos pequenos bulbos de cor que apareciam pela noite quando fechava as pálpebras até lhe doerem, e fitou-os pacientemente. Havia o velho efeito familiar do ponto de cor movediça com ritmo de polca, os círculos contraindo-se concentricamente, as massas disformes que estremeciam momentaneamente. E tudo isto amplo, multivariado - e cada pequeno ponto de cor era uma minúscula figura.

Arremessavam-se aos pares para ela, e ela levantava as mãos com um repentino arfar, porém eles estremeciam e durante um instante ele era o centro de uma brilhante nevada, enquanto uma luz fria lhe escorregava dos ombros e lhe descia pelos braços patinando luminosamente, irrompendo dos dedos rígidos e reunindo-se vagarosamente num foco luzindo no meio do ar. Debaixo daquilo tudo, o som de uma centena de instrumentos flutuava em líquidas correntes até ela não poder distingui-las da luz.

Ela gostaria de saber se Ebling Mis sentia a mesma coisa e, em caso negativo, o que é que ele estaria vendo. O prodígio passou, e então...

Estava olhando outra vez. As pequenas figuras - seriam pequenas figuras? – pequenas mulheres esguias com cabelos cor de fogo que giravam e se curvavam demasiado rapidamente do espírito para o foco? - Reuniam-se umas ás outras em grupos em forma de estrelas que iam girando - e a música eram risos desmaiados - risos de moças que começavam dentro do ouvido.

As estrelas desapareceram todas ao mesmo tempo, faiscando umas atrás das outras, afastando-se vagarosamente para a estrutura - e de baixo, um palácio lançou-se para o alto em rápida evolução. Cada tijolo era uma cor diminuta, cada cor uma diminuta faísca, cada faísca uma luz que feria, que mudava de intensidade e deixava nos olhos um céu ocupado por vinte minaretes cobertos de jóias.

Um tapete voador lançou-se pelo espaço, redemoinhando, planando numa trama insubstancial que mergulhava pelo espaço todo, e ali nasciam luminosas cataratas, dolorosas e ascedentes, que se corporizavam em árvores que cantavam com uma música toda particular.

Bayta sentiu-se dominada por tudo aquilo. A música nascia em volta dos seus vôos rápidos e líricos. Ela estendeu a mão para tocar numa árvore frágil e florescentes grãozinhos boiavam para baixo e murchavam, cada um deles com o seu som nítido e débil.

A música estalou em vinte címbalos, e diante dela incendiou-se uma superfície que, num jorro lançou-se em cascata por invisíveis degraus até o regaço de Bayta, onde se derramou e fluiu numa rápida corrente, levantando a ardente escuma até sua blusa, enquanto através do seu regaço se desenhava um arco-íris e sobre ele as pequenas figuras...

Uma praça e um jardim, e homens minúsculos e mulheres sobre uma ponte, expandindo-se até onde ela podia ver, torcendo-se através dos soberbos crescendos de música transformados em fios que se dirigiam para ela...

E então - pareceu nascer uma pausa assustada, um movimento hesitante, abstrato, um rápido colapso. As cores desapareceram, entrançando-se num globo que se contraiu, se avermelhou e desapareceu.

E voltou a haver apenas escuridão.

Um pé vagaroso raspou o pedal, premiu-o, e a luz inundou o aposento;a luz insípida de um sol prosaico. Bayta pestanejou até às lágrimas, enquanto pensava demoradamente naquilo que desaparecera. Ebling Mis estava reduzido a uma grossa inércia, com os olhos ainda arrasados e a boca ainda aberta.

Só o próprio Magnífico.estava desperto, e acariciou o seu audiovisor numa atitude extasiada.

- Minha senhora - suspirou ele - é de fato de um efeito dos mais mágicos. É equilibrado e responde quase além do que se podia esperar da sua delicadeza e estabilidade. Se fosse um pouco melhor, eu poderia operar maravilhas. Gostou da minha composição, minha senhora?

- Era sua? - murmurou Bayta. - De sua própria autoria?

Para seu terror, a sua tímida face lançou um olhar avermelhado para a extremidade do seu enorme nariz. - De minha autoria, sim, minha senhora. O Mulo não gostava dela mas, vezes e vezes sem conta, toquei-a para meu próprio prazer. Aconteceu uma vez, na minha juventude, que vi o palácio - um lugar gigantesco forrado com jóias que observei à distância na época do grande carnaval. Havia pessoas de um esplendor nunca sonhado até então - e uma magnificência maior do que qualquer outra que eu mais tarde visse, quando ao serviço do Mulo. Apenas criei uma pobre substituta, mas a minha pobre mente impede que possa fazer mais. O título que lhe dou é "Lembrança de Haven".

Agora, voltando a si no meio da tagarelice, Mis conseguiu regressar também à vida ativa: - Olhe - disse ele - olhe, Magnífico, você não gostaria de tocar esta mesma composição para outras pessoas?

Durante um momento, o palhaço ficou dobrado*para trás: - Para outras pessoas? - gaguejou.

- Para milhares de pessoas - exclamou Mis - nos grandes Auditórios da Fundação. Você passaria a ser o seu próprio senhor, e honrado por todos, rico, e... e - a imaginação não lhe conseguiu sugerir mais nada. - E tudo isto? Eh? Que me diz você?

- Mas como é que pode ser isso tudo, poderoso senhor, se na verdade sou apenas um pobre palhaço, incapaz de fazer as grandes coisas do mundo?

O psicólogo deu um sopro, e passou as costas da mão pela testa. Disse: - Mas você toca, homem. O mundo é seu se quiser tocar para o prefeito e para os seus Trustes comerciais. Não lhe agradaria isso?

O palhaço olhou para Bayta: - Ela poderia ir comigo?

Bayta riu-se: - Oh, certamente, meu tolo. Você ainda desejaria viver ao meu lado agora que está prestes a tornar-se rico e famoso?

- Eu desejaria estar sempre ao seu lado - replicou ele fervorosamente - e seguramente toda a riqueza da Galáxia haveria de ser sua antes de eu conseguir pagar a dívida que tenho para com a sua amabilidade.

- Mas - disse Mis, casualmente - se você me quisesse ajudar primeiro..

- Em que?

O psicólogo fez uma pausa e sorriu: - Aceitando a aplicação de uma pequena sonda de uperfície que não faz doer. Só tocarei na camada superficial do seu espírito.

Havia um fulgor de medo mórbido nos olhos de Magnífico: - Não quero sonda nenhuma. Já a vi utilizar. Esgota o espírito e deixa a cabeça completamente vazia. O Mulo utilizava-a nos traidores e depois deixava-os vaguear vazios de espírito pelas ruas, até que um golpe qualquer de misericórdia os matava. - Levantou a mão para tirar Mis da sua frente.

- Isto é uma sonda psíquica - explicou Mis pacientemente - que só prejudicará uma pessoa no caso de ser mal utilizada. A sonda que tenho em meu poder é uma sonda de superfície e nem sequer poderia fazer mal a um bebê.

- É assim mesmo, Magnífico - acrescentou Bayta. - É só para nos ajudar a vencer o Mulo e a mantê-lo longe de nós. Uma vez que isso estiver feito, você e eu ficaremos ricos e famosos para o resto das nossas vidas.

Magnífico levantou uma mão trêmula: - É capaz de me segurar a mão, nesse caso?

Bayta agarrou-a entre as suas, e o palhaço observou assustadamente a aproximação das lustrosas chapas terminais, com os olhos muito arregalados.

 

Ebling Mis descansou descuidadamente em uma das cadeiras pródiga –mente distribuídas pelos aposentos particulares do prefeito Indbur, sempre mal agradecido para as deferências que lhe mostravam e esperou pelo pequeno e excitado prefeito com muito pouca simpatia. Tirou uma ponta de charuto e deitou fora uma partícula de tabaco.

- E, incidentalmente, se deseja alguma coisa para o seu próximo concerto no Auditório Mallow, Indbur - disse ele - pode deitar todas essas engenhocas eletrônicas no cano de esgoto de onde saíram e decidir-se a ter o pequeno capricho de tocar audiovisor para si. - Indbur é uma coisa que não é deste mundo.

Indbur replicou impertinentemente: - Não o mandei chamar para ouvir conferências suas a respeito de música. O que há a respeito desse Mulo? Diga-me já. O que há a respeito desse Mulo?

- O Mulo? Bem, eu lhe digo... utilizei uma sonda de superfície e consegui pouco. Não posso utilizar a sonda psíquica porque o palhaço tem um medo horrível dela, pelo que, provavelmente, a sua resistência daria cabo dos seus incríveis fusos mentais logo que o contato se estabelecesse.  Foi por isso que vim aqui, se você ao menos conseguir parar de tamborilar com os dedos...

- Em primeiro lugar, eliminei a tensão da pressão física exercida pela idéia do Mulo. Ele é provavelmente robusto, mas a maioria das histórias fantásticas que o palhaço conta a seu respeito são, provavelmente, exageradas pela sua própria memória medrosa. O Mulo usa uns óculos estranhos e os seus olhos matam, o que torna evidente que dispõe de forças mentais.

- Já é alguma coisa para começar - murmurou o prefeito, com azedume.

- Então a sonda confirmou-o, e a partir daí temos trabalhado matematicamente.

- E daqui a quanto tempo é que viremos a saber o resultado? As suas palavras retumbantes quase me deixam surdo.

- Dentro de um mês, diria eu, e nessa altura já terei alguma coisa para lhe dizer. E também pode ser que não, certamente. Mas o que há com ele? Se isto tudo for exterior aos planos de Seldon, as nossas possibilidades são deveras reduzidas, incrivelmente reduzidas.

Indbur pôs-se a girar em volta do psicólogo todo furioso: - Agora é conosco, traidor. Mentira! O que você disse não passa de um desses criminosos rumores espalhados pelos vendedores de quinquilharias que andam a pregar o derrotismo e o pânico através da Fundação, e tornam o meu trabalho duplamente árduo.

- Eu? Eu? - Mis franziu vagarosamente os sobrolhos.

Indbur praguejou para ele: - Porque, pelas nuvens de cinza do espaço, a Fundação ganhará - a Fundação deve ganhar.

- A despeito da perda de Horleggor?

- Isso não foi uma perda. Você também engoliu essa mentira que corre, por aí. Nós nos encontramos em inferioridade numérica e traídos...

- Por quem? - perguntou Mis, desdenhosamente.

- Pelos democratas piolhentos que vivem nos esgotos - gritou Indbur por cima do ombro. - Há muito que sabia que a esquadra estava sendo ocupada por células democráticas. A maior parte delas foi eliminada, todavia permanece por explicar a rendição de vinte naves no ardor do combate. O suficiente para forçar uma derrota aparente.

- A este respeito, meu grande linguarudo, ingênuo patriota e resumo das virtudes primitivas, quais são as suas próprias ligações com os democratas?

Ebling Mis encolheu os ombros: - Você delira, dá-se conta disso? O que há depois da retirada, e da perda de metade de Siwena? Foram outra vez os democratas?

- Não. Não foram democratas - e o homenzinho sorriu secamente. -Nós nos retiramos... como a Fundação sempre se retirou perante um ataque, até que a inevitável marcha da história nos volte a arrastar. Já estou vendo os resultados. Aquilo que se denomina o subterrâneo dos democratas publicou manifestos afirmando que oferecem ajuda e fidelidade ao Governo. Pode ser que seja um artifício, uma dissimulação da sua profunda traição, porém estou fazendo bom uso disso, e a propaganda que eles estão lançando há de ter os seus efeitos, seja qual for o esquema desses rastejantes traidores. E melhor ainda do que isso...

- Ainda melhor do que isso, Indbur?

- Julgue por você mesmo. Há dois dias atrás, aquilo a que se chama a Associação dos Comerciantes Independentes declarou guerra ao Mulo, e a esquadra da Fundação foi reforçada, em conseqüência disso, com um milhar de naves. Está vendo, este Mulo está indo longe demais. Ele encontrou-nos divididos e desavindos uns com os outros e sob a pressão dos seus ataques unimo-nos e tornamo-nos fortes. Ele deve perder. É inevitável como sempre.

Mis mostrava algum ceticismo: - Nesse caso, você quer dizer que Seldon fez planos até para prever a fortuita aparição de um mutante.

- Um mutante! Eu não consigo distingui-lo de um ser humano, nem você seria capaz, se não fossem os delírios de um capitão indisciplinado, de alguns jovens estrangeiros, e mais de um prestidigitador e palhaço. E você forneceu-me a mais conclusiva evidência de tudo - você mesmo.

- Eu mesmo? - Por um momento, Mis ficou aturdido.

- Você mesmo - insistiu o prefeito. - O Cofre do Tempo abrirá dentro de nove semanas. E qual deve ser o resultado? Abre uma crise. Se este ataque do Mulo não for a crise, onde estará essa "autêntica" crise, aquela que o Cofre deverá abrir? Responda-me, sua bola de toucinho.

O psicólogo encolheu os ombros: - Muito bem, se isso o torna feliz. Faça-me um favor, porém. Apenas no caso... apenas no caso de o velho Seldon realizar sua palestra e ela for muito desagradável, espero que você me deixará estar presente â Grande Abertura.

- Muito bem. Ponha-se daqui para fora. E desapareça da minha vista durante nove semanas.

- Com incrível prazer, seu encarquilhado - murmurou Mis consigo mesmo, ao sair.

 

QUEDA DA FUNDAÇÃO

Havia uma atmosfera em volta do Cofre do Tempo impregnada de emoções que se orientavam em várias direções ao mesmo tempo. Não era uma atmosfera de decadência, pois estava bem iluminada, e bem acondicionada, e os quadros coloridos das paredes luziam vivamente, e a fila de cadeiras fixas era confortável e aparentemente destinada a uso perpétuo. Não era muito antiquada, pois três séculos não lhe tinham infligido nenhuma marca evidente. Não havia certamente nenhuma tentativa de criar medo ou respeito, pois as mobílias eram simples e para uso diário - e de fato de uma singeleza próxima da pobreza.

Posteriormente foram retirados todos os elementos acessórios, mas alguma coisa ficou e essa alguma coisa estava centralizada em volta do cubículo de vidro que dominava metade do aposento com a sua transparência vazia. Por quatro vezes, em três séculos, o vivo simulacro do próprio Hari Seldon tinha-se sentado ali e falara. Falara por duas vezes, sem dispor de qualquer audiência.

Durante três séculos e nove gerações, insistira em comparecer o ancião que vira dias do Império universal que ele próprio projetara e ainda entendia mais da Galáxia dos seus tetra-tetranetos do que os seus próprios descendentes.

O cubículo vazio esperava pacientemente.

O primeiro a chegar foi o prefeito civil Indbur III, conduzindo o seu carro terrestre de cerimônia através das ruas silenciosas, porém cheias de expectativa. Estava à sua espera a sua própria cadeira, mais elevada do que todas as outras que ali estavam arrumadas, e mais ampla. Estava colocada à frente de todas as outras, e Indbur dominava tudo, exceto o brilho cintilante dos vidros vazios que lhe ficava defronte.

O solene oficial que estava â sua esquerda inclinou a cabeça reverente: -Excelência, foram feitos preparativos, encarando a hipótese de uma ampla difusão subetérica da comunicação oficial que vossa excelência fará esta noite.

- Ótimo. Entrementes, devem continuar a ser difundidos programas especiais interplanetários referentes ao Cofre do Tempo. Decerto que não se devem insinuar no assunto previsões ou especulações de qualquer espécie. A reação popular continua a ser satisfatória?

- Excelência, é muitíssimo boa. Os rumores corruptos que dominavam ultimamente o teor dos boatos estão diminuindo. Todo mundo está a par do que se vai passar.

- Ótimo! - fez um gesto para a frente com a mão e examinou o complicado cronômetro que trazia no pescoço, para uma verificação.

Faltavam vinte minutos para o meio-dia!

Um grupo escolhido de grandes sustentáculos da administração - os chefes das grandes organizações comerciais - foi aparecendo individualmente ou aos pares com o grau de pompa apropriado ao seu "status" financeiro e lugar no favor governativo. Cada um deles apresentava-se pessoalmente, recebia uma graciosa palavra, ou duas, e ocupava a cadeira que lhe estava reservada.

De algum lugar, deslocado no meio da afetada cerimônia de tudo aquilo, Randu de Haven fez a sua aparição e abriu caminho, que não fora anunciado até a cadeira do prefeito.

- Excelência! - murmurou ele, e fez uma reverência.

Indbur franziu os sobrolhos: - Você não tem audiência marcada.

- Excelência, pedi uma para a semana.

- Lamento que os assuntos de Estado implicados na aparição de Seldon tenham...

- Excelência, lamento também, mas tenho que lhe pedir que anule sua ordem dispondo que os barcos dos Comerciantes Independentes sejam distribuídos pelas esquadras da Fundação.

Indbur ficara rubro perante a interrupção: - Não estamos em ocasião de discutir.

- Excelência, estamos na única ocasião possível - sussurrou Randu em tom premente. - Como representante dos Mundos Comerciais Independentes, tenho de lhe dizer que qualquer ordem de ação não poderá ser cumprida. Deve ser anulada a ordem antes de Seldon nos resolver o problema. Uma vez ultrapassado o estado de urgência, será demasiado tarde para uma conciliação e a nossa aliança não poderá subsistir.

Indbur fitou Randu friamente: - Você sabe que sou eu o comandante das forças armadas da Fundação? Que tenho o direito de determinar a política militar em todas as circunstâncias?

- Excelência, é assim de fato, mas algumas coisas são inoportunas.

- Não reconheço que haja qualquer inoportunidade. É perigoso permitir que os seus povos separem as esquadras nesta emergência. A ação dividida coloca-nos nas mãos do inimigo. Devemos unir-nos, embaixador, tanto militar como politicamente.

Randu sentiu os músculos da garganta contraírem-se. Omitiu a cortesia do título inicial: - Você julga que está livre de perigo agora que Seldon deve falar, e atira-se contra nós. Há um mês você estava meigo e conciliante, quando as nossas naves derrotaram o Mulo em Terei. Podia lembrar-lhe, senhor, que a Esquadra da Fundação foi derrotada em combate aberto cinco vezes, e que as naves dos Mundos Comerciais Independentes têm apresentado as suas vitórias como sendo suas.

Indbur franziu os sobrolhos perigosamente: - Você não continuará a ser bem recebido em Terminus, embaixador. O seu regresso vai ser pedido ainda esta noite, embaixador. Entretanto, suas ligações com as forças democráticas subversivas em Terminus serão - e estão sendo - investigadas.

Randu replicou: - Quando for obrigado a sair, as nossas naves irão comigo. Não sei a respeito dos seus democratas. Só sei que as naves da sua Fundação se têm rendido ao Mulo por traição dos seus oficiais superiores, não dos marinheiros, democratas ou outros quaisquer. Digo-lhe ainda que vinte naves da Fundação se entregaram em Horleggor obedecendo ás ordens do seu contra-almirante, quando estavam ilesas e fora de ação. O contra-almirante era o seu próprio associado íntimo - que presidiu ao julgamento do meu sobrinho, quando ele chegou, pela primeira vez, de Kalgan. Não é o único caso que conhecemos a este respeito e as nossas naves e homens não devem arriscar-se a ficar sob o comando de traidores potenciais.

Indbur replicou: - Você ficará sob vigilância quando sair daqui.

Randu saiu da sala sob os olhares silenciosos da insolente reunião dos governadores de Terminus.

Faltavam dez minutos para o meio-dia!

Bayta e Torã já haviam chegado também. Levantaram-se das cadeiras em que estavam sentados â retaguarda e acenaram a Randu quando este passou. Randu sorriu gentilmente:

- Afinal de contas vocês estão aqui. Como é que conseguiram isso?

- Magnífico foi o nosso estadista - sorriu Torã. - Indbur insiste na sua composição Audiovisor baseada no Cofre do Tempo, com ele próprio, não o duvide, como herói. Magnífico recusou-se a esperar sem nós, e não houve argumento capaz de o convencer ao contrário. Ebling Mis está conosco, ou estava. Anda a vadiar em qualquer parte. - Então, com um súbito acesso de ansiosa gravidade: - Mas o que é que está correndo mal, tio? Você não me parece estar muito bem disposto.

Randu meneou a cabeça: - Suponho que não. Estamos em tempos muito maus, Torã. Quando o Mulo se desfizer deles, há de chegar a nossa vez, e tenho medo.

Aproximou-se uma figura alta e solene, vestida de branco, e saudou-os com uma reverência seca.

Os olhos escuros de Bayta sorriam, quando lhe estendeu a mão: - Capitão Pritcher? Então não anda no espaço em missão?

O capitão pegou-lhe na mão e curvou-se sombriamente: - Nada disso. O Dr. Mis, segundo me parece, tem trabalhado com instrumentos no meu cérebro, mas só temporariamente. Regresso ao quartel amanhã. Que horas são?

Faltavam três minutos para as doze!

Magnífico oferecia um aspecto de miséria e de dolorosa depressão. O corpo estava curvado, no seu eterno esforço para se autoprojetar. O seu grande nariz estava comprimido pelas narinas, e os seus olhos grandes e postos no chão, lançavam chispas desassossegadamente á sua volta.

Agarrou a mão de Bayta e quando ela se sentou, ele sussurrou: - Supõe, minha senhora, que todas as grandes personagens estavam no auditório, talvez, quando eu... quando eu toquei o audiovisor?

- Todos, tenho certeza - garantiu-lhe Bayta, e apertou-lhe a mão. -Tenho certeza de que todos pensam que você é o mais maravilhoso executante da Galáxia e que o seu concerto foi o maior que eles viram, e por isso mesmo você deve endireitar-se e sentar-se corretamente. Devemos ter dignidade.

Ele sorriu debilmente com o seu falso olhar carrancudo e esticou vagarosamente suas longas pernas.

Era meio-dia...

...e o cubículo de vidro já não estava vazio.

Era duvidoso que alguém tivesse testemunhado a aparição. Era uma perfeita ruptura; um momento antes não havia ali ninguém e no momento seguinte já lá havia alguém.

No cubículo estava uma figura, numa cadeira de balanço, velha e rangen-te, da qual se levantava uma face enrugada com olhos brilhantes e vivos, e cuja voz, quando falou, era a coisa mais viva que possuía. Havia um livro colocado no seu regaço, e a sua voz ressoou repousadamente.

- Sou Hari Seldon!

Falou no meio de um silêncio, atroador devido á sua intensidade.

- Sou Hari Seldon! e não sei se está aqui alguém, pelo menos servindo-me do mero sentido da percepção, mas isto não tem importância. Receio, todavia, que se verifique um colapso no Plano. Pela primeira vez, em três séculos, as percentagens de probabilidade de ausência de desvio são de nove-quatro ponto dois.

Fez uma pausa para sorrir, depois do que acrescentou delicadamente: -Como vamos continuar, se alguém desejar sentar-se, pode fazê-lo. E se alguém desejar fumar, pode fazê-lo. Eu não estou aqui em carne e osso. Não preciso de cerimônias.

- Agora, vamos falar do problema que nos ocupa neste momento. A Fundação está, pela primeira vez, perante a hipótese, ou talvez esteja até nas últimas fases que nos vão levar a uma guerra civil. Até agora, os ataques que sempre se verificaram foram devidamente vencidos, e assim tem acontecido inevitavelmente, de acordo com as leis estritas da psicohistória. O ataque que agora consideramos é lançado por um grupo exterior da Fundação, extremamente indisciplinado, contra o excessivo autoritarismo do governo central. O procedimento foi necessário, o resultado evidente.

A dignidade da audiência formada por gente bem nascida encontrava-se a ponto de quebrar. Indbur estava ereto na sua cadeira.

Bayta olhou para a frente com olhos perturbados. O que é que o grande Seldon estava dizendo? Ela perdera uma porção de palavras...

-...Que o compromisso estabelecido é necessário de duas maneiras. A revolta dos Comerciantes Independentes introduz um elemento de nova incerteza num governo que, talvez, tenha nascido com demasiada confiança. O elemento de rivalidade está restaurado. Embora vencido, um elevado aumento da democracia...

Havia agora vozes excitadas. Os murmúrios iam crescendo na escala de som, e havia já neles laivos de pânico.

Bayta disse ao ouvido de Torã: - Por que é que ele não diz nada a respeito do Mulo? Os Comerciantes nunca se revoltaram.

Torã encolheu os ombros.

A figura sentada falava alegremente acima e através da crescente desorganização :

-...um novo governo de coalizão foi o necessário e benéfico resultado da lógica guerra civil a que foi levada a Fundação. E agora só os remanescentes do velho Império estão a caminho de nova expansão, e neles, nos anos mais próximos, de qualquer modo, não haverá problema. Decerto, eu não posso revelar a natureza das próximas provas...

Os lábios de Seldon moviam-se silenciosamente, no meio de um tumulto enorme.

Ebling Mis estava próximo de Randu, com a face rubra. Falava: - Seldon está fora do seu domínio. Ele engana-se quanto à crise. Vocês, os Comerciantes, estão planejando uma guerra civil?

Randu respondeu com voz fraca: - Estávamos preparando, sim. Abandonamo-la quando surgiu o Mulo.

- Nesse caso o Mulo é uma característica adicional que não está preparada para ser incluída na psicohistória de Seldon. Agora o que é que está acontecendo?

No meio do súbito silêncio, Bayta olhou para o cubículo e voltou a vê-lo vazio. O ardor atômico das paredes morrera, e a macia corrente de ar condicionado estava ausente.

Em alguma parte o som de uma sirena aguda e ascendendo ao longo da escala, levou Randu a formar as palavras com os lábios: - Raide do espaço!

E Ebling Mis encostou o relógio de pulso ao ouvido e escutou: - Parem já com isso, pela Ga-LÁX-ia! Há por aqui algum relógio que esteja trabalhando? - A sua voz era estridente.

Vinte relógios foram quase automaticamente levados aos ouvidos. E em menos de vinte segundos era absolutamente indubitável que nenhum deles estivesse trabalhando.

- Nesse caso - disse Mis, com uma determinação cruel e horrível - há alguma coisa que eliminou toda a força atômica no Cofre do Tempo - e o Mulo está desferindo ataques.

Ouviu-se a voz agoniada de Indbur acima do barulho: - Voltem para os seus lugares! Está a cento e cinqüenta anos-luz de distância.

- Estava - replicou Mis - há uma semana atrás. Mas agora mesmo, Terminus está sendo bombardeada.

Bayta sentiu que uma depressão a invadia brandamente. Sentiu as articulações contraírem-se excessivamente, até que a respiração forçou-a a distender-se com uma dor aguda que lhe passava pela garganta contraída.

Ia-se tornando evidente o barulho de outra multidão que se reunia lá fora. As portas abriram-se bruscamente e adentrou uma figura aterrada que falou rapidamente a Indbur, que chamara por ela.

- Excelência - sibilou - não há veículo que ande na cidade, não há uma linha de comunicação para o exterior que esteja funcionando. A Décima Esquadra foi dada como derrotada e as naves do Mulo estão no espaço exterior. O estado maior...

Indbur encolheu-se e transformou-se numa figura desanimada e impotente no meio do piso. Em todo o vestíbulo, não havia agora uma única voz que se levantasse. A multidão, que continuava a aumentar, estava aterrada de medo, mas silenciosa, e pairava ali, perigosamente, um horror de pânico.

Indbur estava excitado. Os lábios estavam-se-lhe tornando brancos. Esses lábios moveram-se antes que os olhos se abrissem, e a palavra que pronunciou foi: - Rendição!

Bayta levantou-se para gritar também - não por amargura ou humilhação - mas simples e claramente para dar vazão a um enorme desespero assustado.

Ebling Mis puxou-lhe pela manga: - Vamos embora, jovem senhora...

Afastaram-se vigorosamente da cadeira onde estava.

- Vamos sair daqui - disse ele - e traga o seu músico consigo. - Os lábios do rechonchudo cientista estavam trêmulos e sem cor.

- Magnífico - chamou Bayta, por instinto. O palhaço contraiu-se com horror. Tinha os olhos vítreos.

Ela bateu-lhe fortemente, porém com afeto. Torã debruçou-se para ele e agitou-lhe os pulsos com violência. Magnífico levantou-se inconscientemente e Torã carregou-o como se fosse um saco de batatas.

No dia seguinte, as naves de combate do Mulo, disformes e pretas, espalharam-se pelos campos de aterragem do planeta Terminus.

O general atacante desceu rapidamente pela rua vazia da Cidade de Terminus, num carro terrestre de fabrico estrangeiro, que se encaminhou para o ponto em que estava uma cidade inteira de carros atômicos inutilizados.

A proclamação de ocupação foi feita decorridos vinte e quatro horas após o minuto em que Seldon aparecera diante dos anteriores poderosos senhores da Fundação.

De todos os planetas da Fundação, só os Comerciantes Independentes continuavam vivos, e contra eles se virava agora a força do Mulo - conquistador da Fundação.

 

O INÍCIO DA PROCURA

O planeta solitário, Haven - o único planeta de um antigo sol de um setor galáctico que se espalhara desigualmente pelo vácuo intergaláctico estava cercado.

Estava cercado, considerando o termo num sentido estritamente militar, pois que não havia área do espaço situada do lado galáctico que estivesse a menos de sessenta anos-luz de distância da base avançada do Mulo. Durante os quatro meses decorridos após o momento em que se verificara a perturbadora queda da Fundação, as comunicações de Haven desapareceram como se fossem uma teia de aranha posta sobre o fio de uma navalha. As naves de Haven convergiam agora para dentro do seu mundo pátrio, e só o próprio Haven era agora uma base de combate.

E, quanto a outros aspectos, o cerco estava realmente fechado; pois que já tivera início a submissão ás idéias de desamparo e de ruína...

Bayta prosseguia vagarosamente seu caminho através da ala ladeada por cravos oscilantes, ultrapassando as filas de mesas com tampos de plástico leitoso, e dirigiu-se às cegas para o seu lugar. Deixou-se cair na cadeira alta e de braços, respondendo com saudações mecânicas ao que lhe diziam e mal conseguia ouvir, esfregando os olhos exaustos e cheios de comichão com as costas da mão cansada, e acabou por apanhar o cardápio.

Teve tempo de se dar conta de uma violenta reação mental de repugnância diante da pronunciada presença de várias travessas de fungos de cultura, que eram considerados extremamente delicados em Haven, e que a Fundação classificara como altamente impróprios para comer - e nessa altura percebeu o soluço perto dela e olhou para cima.

Até então seu conhecimento de Juddee, a loura sem relevos, de nariz chato e indiferente, limitara-se, sempre que atravessava em diagonal a sala de jantar, à reflexão superficial de que não a conhecia. E agora Juddee chorava, mordendo deploravelmente um lenço úmido, abafando os soluços de tal modo que seu rosto estava cheio de manchas vermelhas. Sua roupa informe á prova de radiação estava atirada por cima dos ombros, e a face transparente do escudo caíra-lhe no prato e ali permanecia.

Bayta juntou-se às três moças que estavam sempre falando de cremes para os ombros, eternamente aplicados e eternamente ineficazes e das loções que amaciavam os cabelos, num murmúrio incoerente.

- Qual é o problema? - sussurrou ela.

Uma delas virou-se para ela e encolheu os ombros com um discreto: -Não sei. – Depois do que, percebendo quanto o seu gesto era descomensurado, apressou-se a puxar Bayta para o lado:

- É um dia difícil para ela, parece-me. Está preocupadíssima por causa do marido.

- Anda em patrulha no espaço?

- Anda.

Bayta colocou uma mão amistosa em volta dos ombros de Juddee.

- Por que é que não vai para casa, Juddee? - Sua voz tinha um tom prático e divergia profundamente das vozes ineptas, débeis e moles que a tinham precedido.

Juddee fitou-a, meio ressentida: - Já faltei uma vez esta semana...

- Nesse caso ficará com duas faltas. Se você conseguir uma licença, sabe muito bem que poderia faltar três dias na próxima semana... por isso deve voltar agora para casa afim de mostrar o seu patriotismo. Alguma de vocês, moças, trabalha no mesmo departamento que ela? Bem, nesse caso suponho que vocês lhe tomem conta do cartão. É melhor passar primeiro pela sala de banho, Juddee, e coma os pêssegos e o creme que lhe fazem falta. Vá embora! Adeus!

Bayta voltou para o seu lugar e tornou a pegar o cardápio com uma lentidão sombria. Estas atitudes eram contagiantes. Uma garota desfeita em lágrimas devia deixar o seu departamento em estado frenético naqueles dias de nervos tensos.

Tomou uma decisão insípida, apertou o botão indicado com o cotovelo e colocou o cardápio no local apropriado.

A moça alta e escura que estava defronte dela, dizia: - Não podemos fazer muita coisa a não ser chorar, não é verdade?

Seus lábios espantosamente carnudos moviam-se pouco, e Bayta verificou que os seus fins eram cuidadosamente influenciados pela necessidade de exibir aquele sorriso artificial, que era realmente a última palavra no que respeitava a sofisticação.

Bayta perscrutou qual seria a insinuante estocada contida nas palavras pronunciadas com olhos pestanudos e saudou a diversão provocada pela chegada do almoço, quando a portinha de sua unidade se abriu pela parte de dentro e a comida apareceu. Rasgou cuidadosamente o envoltório do talher e manuseou os objetos cuidadosamente, enquanto iam arrefecendo.

E observou: - Você não pode pensar noutra coisa qualquer, Hella?

- Oh, claro que posso - respondeu Hella. - Eu posso! Agitou o cigarro com um movimento de dedos ocasional e destro dentro do pequeno nicho e o minúsculo relâmpago atômico surgiu pouco depois do lançamento.

- Por exemplo - e Hella entrelaçou as mãos magras e bem delineadas debaixo do queixo - penso que podíamos fazer um belo acordo com o Mulo e pôr fim a toda esta estupidez. Então eu não teria as... hum... facilidades de sair cedo dos lugares quando o Mulo aqui estivesse.

A testa lisa de Bayta manteve-se sem uma prega. Sua voz mostrou-se nítida e indiferente: - Quer-me parecer que você não tem nem irmão nem marido nas naves que estão em combate, ou tem?

- Não. Mas juro por todos os meus créditos que não vejo razão para sacrificar os irmãos e os maridos das outras.

- O sacrifício deve ser mais seguro do que a rendição.

- A Fundação rendeu-se e está em paz. Nossos homens estão longe e a Galáxia está contra nós.

Bayta encolheu os ombros e disse amavelmente: - Estou com medo do primeiro casal que se aborrecer com você. - Voltou ao seu prato de vegetais e comeu-o com a plena compreensão do silêncio que se fizera ao redor. Nenhuma das que se sentira chocada com o diálogo se atrevera a replicar ao cinismo de Hella.

Foi-se embora tranqüilamente, depois de ter apertado o botão que limpou a mesa, pondo-a em ordem para o próximo ocupante que a fosse substituir.

Uma outra moça, três lugares adiante, murmurou do seu lugar para Hella: - Quem é ela?

Os lábios movediços de Hella articularam com indiferença: - É a sobrinha do nosso coordenador. Você não a conhecia?

- Sim? - Os seus olhos examinaram o último relance das costas que iam desaparecendo: - O que é que ela esteve fazendo aqui?

- Exatamente uma assembléia de moças. Você não sabe que é elegante ser patriota? Isso tudo é tão democrata, que me provoca os nervos.

- Ora, Hella - disse a moça roliça que estava á sua direita. - Ela nunca põe o tio acima de nós. Por que você não a deixa em paz?

Hella ignorou a vizinha com um brilho majestoso nos olhos e acendeu outro cigarro.

A nova moça estava ouvindo a tagarelice dos olhos brilhantes que estavam do outro lado. As palavras surgiram rapidamente:

-...e ela imagina que por ter estado no Cofre... e eles contaram que o prefeito espumava de raiva e houve uma barafunda e todo tipo de coisas, sabe. Ela saiu de lá antes que o Mulo desembarcasse, e eles disseram que ela tinha a mais inteligente capacidade de fuga... conseguiu passar através do bloqueio e tudo... eu desejava muito que ela escrevesse um livro a este respeito, um destes livros de guerra muito populares, sabe. E parece que ela esteve também num desses mundos do Mulo... Kalgan, sabe... e...

Retiniu a campainha indicando que estava na hora e a sala de jantar esvaziou-se lentamente. A voz do guarda-livros zumbiu e a voz da moça interrompeu-o com os convencionais esgazeares de olhos: - Realmen-te-te-te-te? - nos pontos apropriados. As grandes luzes, do porão foram diminuindo de intensidade na gradual descida através da escuridão que queria dizer sono para aqueles que trabalhavam arduamente, quando Bayta regressou para casa.

Torã veio ter com ela à porta, com uma fatia de pão com manteiga na mão.

- Onde é que você andou? - resmungou ele, com a boca cheia. Depois acrescentou com mais nitidez: - Fiz um jantar "recozinhando" as coisas que havia. Se não estiver lá muito bom, não me censure.

Mas ela o media, com os olhos arregalados: - Torie! Onde é que está seu uniforme? Por que é que está vestido â paisana?

- Ordens, Bay. Randu subiu agora mesmo com Ebling Mis, e o que há a esse respeito, não sei. São as únicas coisas de que tenho conhecimento até agora.

- Eu também vou? - Ela encaminhou-se impetuosamente para ele. Ele beijou-a antes de lhe responder: - Julgo que sim.. Deve ser perigoso, talvez.

- O que é que não é perigoso?

- Exatamente. Oh, sim, já mandei chamar o Magnífico, porque talvez ele queira ir conosco.

- Isso quer dizer que o seu concerto na Fábrica de Máquinas terá de ser cancelado.

- É evidente.

Bayta dirigiu-se ao aposento seguinte e sentou-se diante de uma refeição que mostrava todos os sinais de ter sido " recozida". Cortou os sanduíches ao meio, com gesto eficiente, e disse:

- Essa anulação do concerto é muitíssimo desagradável. As moças da fábrica estavam ansiosas por assistir. O Magnífico também estava muito interessado. Não vale um caracol, tudo isso, porém é um tipo bastante excêntrico.

- Remexe com seus complexos maternais, Bay, é isso que ele faz. Um dia acaba por ter um filho, e nessa ocasião o Magnífico tem de se pôr a andar.

Bayta respondeu mordendo o sanduíche: - Surpreende-me que o meu complexo maternal possa resistir a esta agitação toda.

E nessa altura deixou cair o sanduíche e surgiu-lhe uma grave seriedade.

- Torie.

- Hu-m-m?

Fui hoje até a Prefeitura - ao Gabinete de Produção. Foi por isso que hoje cheguei tão tarde.

- O que é que foi fazer lá?

- Bem... - ela hesitou, incerta. - Fui ver o que se estava produzindo. Eu estava com dificuldade em compreender o que se passa na fábrica. Moral - não existe nenhuma. As moças tomam bebedeiras escandalosas sem nenhuma razão. Aquelas que não ficam doentes tornam-se rabugentas. Exatamente uns pequenos ratinhos desvairados de medo. Na minha seção, a produção não atinge um quarto daquilo que devia ser, e não há um dia em que não tenhamos a folha de presenças incompleta.

- Muito bem - disse Torã. - Foi então ao G. de P. O que é que conseguiu lá?

- Fiz uma porção de perguntas. E veja bem, Torie, está acontecendo o mesmo em todo o Haven. A produção declina, aumentando ao mesmo tempo a sedição e a deslealdade. O chefe do gabinete limitou-se a encolher os ombros - depois de permanecer sentada uma hora na antecâmara, à espera dele, e só me recebeu porque eu era sobrinha do coordenador - e disse que o assunto não era de sua alçada. Francamente, não compreendo com que é que ele se preocupa.

- Vamos, ele não quis ser grosseiro, Bay.

- Penso que não o fez de propósito. - Ela mostrava-se impetuosa: -Disse-lhe que algo não corria bem. Trata-se da mesma horrível frustração que me dominou no Cofre do Tempo quando Seldon nos abandonou Você também deve sentir coisa idêntica.

- Bem, isso já ficou para trás - continuou ela com violência bárbara.

- E nunca estaremos em condições de resistir ao Mulo. Mesmo se tivéssemos os meios materiais, faltam-nos o coração, o espírito, a coragem... Torie, não há ninguém que queira lutar.

Torã não se lembrava de Bayta ter chorado sequer alguma vez, e não chorou nem desta vez. Na verdade, não o fez. Mas Torã pôs-lhe a mão de leve no ombro e sussurrou: - Veja se esqueça disso, filha. Eu sei o que é que está pensando. Mas não há nada...

- Pois não há nada que possamos fazer! Todo mundo diz isto - e temos de nos limitar a ficar sentados, á espera que a faca nos tire a vida.

Ela voltou ao que lhe sobrava do sanduíche e do chá. Tranqüilamente, Torã estava arrumando.

Randu, no cargo de coordenador para que fora recentemente nomeado -e que era propriamente um posto de guerra da conferência de cidades de Haven, fora transferido, a pedido, para um aposento elevado, da janela do qual podia observar os telhados e os arbustos altos da cidade. Agora, no meio das luzes apagadas do abrigo, a cidade retrocedia para um plano falho de distinção dos matizes, Randu não se deu ao cuidado de meditar no simbolismo da situação.

Disse a Ebling Mis - cujos olhos claros e pequenos pareciam não ter outro interesse a não ser na taça cheia, de cor vermelha, que tinha na mão: - É costume dizer em Haven que quando as luzes do abrigo se apagam, são horas de os justos e austeros trabalhadores irem dormir.

- Você tem dormido muito, ultimamente?

- Não! Desculpe tê-lo chamado tão tarde, Mis. Seja como for, prefiro a noite a estes dias de agora. Em Haven, as pessoas concordam, de modo bastante estrito, que a falta de luz significa sono. Também sucede o mesmo comigo. Porém agora é diferente...

- Você está escondido - disse Mis, positivamente. - Você está rodeado de pessoas durante o período de trabalho, e sente os olhos e esperanças postos em você. Você não consegue suportar toda essa carga. Durante o período de sono, você é livre.

- Quer dizer que também sente o mesmo? Este miserável sentimento de derrota?

Ebling fez vagarosamente que sim com a cabeça: - Também o sinto. Trata-se de uma psicose das massas, um incrível pânico do populacho. Ga-LÁX-ia, Randu, o que é que você espera? Você tem uma cultura que evolui totalmente na crença cega e notória de que um herói popular do passado tem tudo planejado e está tomando cuidadosamente conta de todas as pequeninas peças de suas incríveis vidas. O padrão de pensamento evocado tem características de religião, e você sabe o que isto significa.

- Nem um pouquinho.

Mis não estava grandemente entusiasmado com a necessidade da explicação. Nunca o estava. Por isso resmungou, olhou fixamente para o comprido charuto que girou pensativamente entre os dedos e disse: - Caracteriza-se poderosas reações de fé. A fé não pode ser rapidamente eliminada com um.grande choque, pois em tal caso os resultados são uma completa ruptura mental. Há casos moderados - histeria, sensação mórbida de insegurança. Nos casos adiantados - loucura e suicídio.

Randu mordiscou a unha do polegar : - Quando Seldon nos faltou, ou por outras palavras, quando desapareceu aquilo que nos amparava, e nos vimos obrigados a viver apenas de nós mesmos, os nossos músculos estavam de tal modo atrofiados que não conseguimos viver sem ele.

- E isso. É uma espécie de metáfora grosseira, mas é isso.

- E você, Ebling, como se sente com seus músculos?

O psicólogo sorveu uma grande baforada do seu charuto e deixou que a fumaça saísse preguiçosamente para fora. - Emperrados, mas não atrofiados. A minha profissão trouxe como resultado um aumento de pensamento independente.

- E você vê alguma saída para isto?

- Não, mas deve haver alguma. Talvez Seldon não tenha feito previsões para o aparecimento do Mulo. Talvez ele não tenha garantido a nossa vitória Mas, nesse caso, tampouco assegurou a derrota. Ele apenas nos indicou o jogo para que o orientássemos conforme quiséssemos. O Mulo pode ser vencido.

- Como?

- Da única maneira pela qual é possível vencer alguém: de forma simples, atacando em massa os seus pontos fracos. Ora veja, Randu, o Mulo não é um super-homem. Se acabar por ser derrotado, todas as pessoas verificarão isso pessoalmente. Trata-se apenas de alguém que não conhecemos, e as lendas amontoam-se rapidamente. Supõe-se que ele seja um mutante. Bem, mas que espécie de mutação é a dele? Um mutante equivale a "super--homem" para a ignorância da humanidade, e não é nada disso.

- Pode calcular-se que todos os dias nascem vários milhões de mutantes na Galáxia. Destes vários milhões, todos, exceto um ou dois por cento, podem ser apenas detectados por meio de microscópio e de análises químicas. Destes um ou dois por cento de macromutantes, isto é, aqueles com mutações detectáveis a olho nu ou por simples exame do cérebro, todos, exceto um ou dois por cento, são excêntricos, e são encaminhados para os centros de curiosidades, os laboratórios", e a morte. Dos poucos macromutantes cujas diferenças são positivas, quase todos são inofensivas curiosidades, com uma aparência incomum em qualquer aspecto, sendo normais - e freqüentemente subnormais em muitos outros. Compreende o que estou dizendo, Randu?

- Compreendo. Mas o que vem a ser o Mulo?

- Suponho que o Mulo possa ser um mutante, podemos calcular que tem algum atributo, indubitavelmente mental, que pode ser utilizado para conquistar mundos. Quanto a outros aspectos, ele tem, com certeza, os seus defeitos, que devemos explorar. Ele não seria tão reservado, tão esquivo aos olhos dos outros, se este defeito não fosse aparente e fatal. Se for um mutante.

- E existe alternativa possível?

- Pode haver. A existência da mutação continua a firmar-se nas declarações do capitão Han Pritcher que as comunicou ao Serviço de Informações da Fundação. Tirou suas conclusões a partir de relatos muito superficiais feitos por aqueles que reivindicam ter conhecido o Mulo ou alguém que podia ter sido o Mulo - na infância ou quando era um rapazinho. Pritcher trabalhou com elementos escassos, e estes testemunhos podiam ter sido facilmente arranjados pelo Mulo, para servir os seus próprios objetivos, pois é certo que o Mulo tem sido muito auxiliado pela reputação que tem de ser um mutante-superhomem.

- Isso é interessante. Há muito tempo que pensa assim?

- Jamais pensara nisto, no sentido de lhe dar crédito. Trata-se simplesmente de uma opção a ser considerada. Por exemplo, Randu, suponha que o Mulo descobriu uma forma de radiação capaz de deprimir a energia mental tal como está em poder de uma que deprime as reações atômicas. Entende, hein? Poderia este fato explicar o que nos está acontecendo agora - e aquilo que atingiu a Fundação?

Randu parecia imerso numa melancolia quase muda.

Disse: - Há a considerar também as nossas próprias investigações feitas no palhaço do Mulo.

E agora Ebling Mis hesitava: - É também inútil. Eu falei seriamente ao Prefeito antes do colapso da Fundação, principalmente para lhe levantar o moral - parcialmente para levar os meus objetivos a bom fim. Mas, Randu, se os meus instrumentos matemáticos fossem o suficiente, nesse caso servindo-me apenas do palhaço, eu poderia analisar o Mulo completamente. Então podíamos apanhá-lo. Podíamos explicar as tênues anomalias que me impressionaram.

- Quais, por exemplo?

- Ora pense, homem. O Mulo derrotou á vontade as naves da Fundação, mas não conseguiu forças bastante para derrotar a enfraquecida esquadra dos Comerciantes Independentes, sendo obrigado a bater-se em retirada em combate aberto. A Fundação caiu com um sopro; os Comerciantes Independentes resistem contra toda a sua força. Utilizou, a princípio, os seus Campos Depressores contra as armas atômicas dos Comerciantes Independentes de Mnemon. O elemento surpresa levou-os a  perder esta batalha, porém conseguiram descobrir maneira de se opor ao Campo. Nunca mais ele foi capaz de voltar a utilizá-lo contra os Independentes.

- Mas repetidas vezes esse Campo voltou a trabalhar contra as forças da Fundação. Trabalha na própria Fundação. Por quê? Para os nossos conhecimentos presentes, é ilógico. Deve haver muitos fatores de que nós desconhecemos.

- Traição?

- Isso é coisa que não faz nenhum sentido, Randu. Um palavrão vazio de sentido. Não havia nenhum homem na Fundação que não tivesse certeza da vitória. Quem iria trair o lado que tinha certeza da vitória?

Randu encaminhou-se para a janela abaulada e olhou sem ver para o fundo indistinto. E disse: - Nós agora temos a certeza de derrotá-lo, no caso de o Mulo ter um milheiro de fraquezas; se lhe arranjarmos uma série de situações difíceis...

Não se voltou. Foi como se suas costas repentinamente dobradas, a maneira nervosa como esfregava as mãos uma na outra atrás das costas, tivessem voz. Disse: - Escapamos com facilidade depois do episódio do Cofre do Tempo, Ebling. Havia outros que podiam ter escapado como nós. Alguns assim fizeram. A maior parte deles, não. O Campo Depressor podia ter sido contracompensado. Pedia habilidade e uma certa quantidade de trabalho. Todas as naves da Armada da Fundação podiam ter rumado para Haven ou outros planetas próximos para continuar a luta, se assim o tivessem desejado. Nem um por cento o fez. Realmente, eles desertaram para o inimigo. A Fundação subterrânea, na qual muitas pessoas pareciam confiar tão exageradamente, não sofreu até agora quaisquer conseqüências mais sérias. O Mulo tem sido bastante diplomata para prometer salvaguardar a propriedade e os lucros dos grandes Comerciantes e eles firmaram acordos com ele.

Ebling Mis observou teimosamente: - Os plutocratas sempre estiveram contra nós.

- Eles sempre conservaram o poder, também. Ouça, Ebling, temos razão para supor que o Mulo e os seus agentes já estiveram em contato com homens poderosos entre os Comerciantes Independentes. Sabe-se que pelo menos dez, dos vinte e sete Mundos Comerciais, se aliaram ao Mulo. Talvez mais dez outros. Há personalidades aqui mesmo em Haven, que não se sentiriam infelizes sob o domínio do Mulo. Há aparentemente uma incrível tentação para abandonar o perigoso poder político, se lhes prometer conservar os seus negócios econômicos, acima de tudo.

- Você pensa que Haven pode derrotar o Mulo?

- Não penso que Haven lute. - E agora Randu virou a face perturbada para o psicólogo: - Penso que Haven está aguardando a rendição. Foi por isso que o mandei chamar. Mandei-o chamar para que saia de Haven.

Ebling Mis lançou uma baforada de fumo sorvendo as bochechas com espanto: - Já?

Randu parecia horrorosamente cansado: - Ebling, você é o maior psicólogo da Fundação. Os autênticos mestres psicólogos desapareceram com Seldon, contudo você é o melhor que temos. Você é a nossa única possibilidade de derrotar o Mulo. Você não pode ficar aqui; terá de ir para a parte que resta do Império.

- Para Trantor?

- Isso mesmo. O que foi antigamente o Império está hoje com os ossos à mostra, mas alguma coisa ainda deve persistir no centro. Eles levaram para lá os registros, Ebling. Você pode instruir-se ainda mais em psicologia matemática; talvez com isso você seja capaz de interpretar o cérebro do palhaço. Ele há de querer ir consigo, certamente.

Mis respondeu secamente: - Duvido que ele esteja disposto a ir, devido ao medo que tem do Mulo, a não ser que a sua sobrinha vá também com ele.

- Sei isso muito bem. Torã e Bayta vão sair daqui com você por essa única razão. E, Ebling, há mais outro grande objetivo. Hari Seldon estabeleceu duas Fundações há três séculos atrás; uma em cada extremidade da Galáxia. Você deve descobrir essa Segunda Fundação.

 

CONSPIRADOR

O palácio do prefeito - o que fora outrora o palácio do prefeito - era uma grande mancha avultada na escuridão. A cidade permanecia tranqüila sob o domínio dos conquistadores e dos bajuladores que os serviam, e sob o branco indistinto das grandes Nebulosas havendo aqui e ali uma estrela solitária, dominando o céu da Fundação.

Em três séculos a Fundação passara de um projeto particular de um pequeno grupo de cientistas para um império comercial tentacular, estendendo-se profundamente pela Galáxia e meio ano tinha-a arremessado das alturas para o estatuto de mais uma província conquistada.

O capitão Han Pritcher recusou-se a compreender isto.

A cidade soturna na noite tranqüila; o palácio escuro, ocupado pelos intrusos, eram suficientemente simbólicos, mas o capitão Han Pritcher, mesmo dentro do portão exterior do palácio, com a diminuta bomba atômica debaixo da língua, recusava-se a compreender.

Uma forma surgiu muito perto - o capitão inclinou a cabeça.

O sussurro assumiu um tom mortalmente baixo:

- O sistema de alarma é como sempre foi, capitão. Continue! Não registrará coisa alguma.

Lentamente, o capitão mergulhou através da baixa passagem abobadada, e encaminhou-se para o caminho marginado por fontes que fora o jardim de Indbur.

O dia do Cofre do Tempo verificara-se quatro meses atrás, e sua memória esbarrava nesta recordação tão vivida. Singularmente e separadamente, as impressões voltavam a aparecer, mal recebidas, sobretudo à noite.

O velho Seldon, pronunciando as suas benevolentes palavras que haviam sido tão destruidoramente prejudiciais - provocando uma confusão indescritível - Indbur, com o seu traje de prefeito incoerentemente brilhante sob a sua face contraída e inconsciente – as multidões assustadas aglomerando-se rapidamente, esperando silenciosamente pela inevitável palavra de rendição - o jovem Torã, desaparecendo por uma porta lateral com o palhaço do Mulo atravessado aos ombros.

E ele próprio, de algum modo fora de tudo, com seu carro que não funcionava. Abrindo caminho com os ombros ao longo e através da turba dos chefes que estavam abandonando a cidade - com destino desconhecido. Precipitando-se cegamente para os vários espaços que eram - que sempre o foram – as habitações de uma democracia subterrânea que durante oitenta anos, estivera em declínio e dividindo-se.

E os espaços estavam vazios.

No dia seguinte, naves pretas estrangeiras surgiram no céu mergulhando suavemente no meio dos prédios muito compactos da cidade próxima. O capitão Han Pritcher fora acumulando dentro de si uma enorme dose de desamparo e de desespero.

Pôs-se a viajar com paixão.

Em trinta dias cobrira trezentos quilômetros a pé, envergando o traje de um operário de fábricas hidropônicas cujo corpo encontrara, morto há pouco, à margem de uma estrada, e deixara crescer uma barba enorme e furiosamente avermelhada...

E descobriu que estava prestes a alcançar o subterrâneo.

A cidade chamava-se Newton, o bairro residencial era um daqueles que se caracterizaram pela elegância suave que se levantava no meio da sujidade, a casa era a de um membro anônimo de um motim, e o homem tinha olhos pequenos, um esqueleto amplo, e os punhos fechados formavam um grande volume nos bolsos, enquanto o seu corpo vigoroso se levantava imóvel à entrada da porta aberta. O capitão murmurou:

- Eu venho de Miran.

O homem devolveu o lance com ar carrancudo:

- Miran é cedo este ano.

O capitão replicou:

- Não tão cedo como no ano passado.

O homem não se afastou para o lado. Perguntou:

- Quem é você?

O capitão aspirou um imperceptível mas longo hausto de ar, e explicou calmamente:

- Sou Han Pritcher, capitão da Esquadra, e membro do Partido Democrático Subterrâneo. Poderá me deixar entrar?

O Raposo deu um passo para o lado. Informou:

- O meu verdadeiro nome é Orum Palley. Estendeu-lhe a mão. O capitão apertou-a.

O aposento estava bem arrumado, mas não havia grande profusão de coisas. A um canto levantava-se um decorativo projetor de livros, que aos olhos militarmente treinados do capitão podia facilmente mostrar ser um desintegrador de respeitável calibre, devidamente camuflado. As lentes de projeção ocultavam a porta de entrada, e o conjunto podia ser controlado à distância.

O Raposa seguiu o olhar do hóspede barbudo, e sorriu fracamente. Disse:

- É isso mesmo! Mas só no tempo de Indbur e dos seus vampiros sem coração. Não poderia fazer grande coisa contra o Mulo, não acha? Nada nos pode ajudar contra o Mulo. Você está com fome?

Os músculos das maxilas do capitão estavam tensos sob a barba, e meneou a cabeça.

- Levará um minuto se você não puder esperar. - O Raposo tirou latas de um armário e colocou duas diante do capitão Pritcher. - Meta os dedos lá dentro, e coma quando estiver suficientemente quente. O meu controlador de calor está com defeito. São coisas como esta que nos lembram que estamos em guerra - ou que estávamos.

Suas palavras rápidas tinham um tom jovial, mas só no que ele dizia havia esse tom jovial - pois que os seus olhos estavam frios e pensativos. Sentou-se diante do capitão e disse:

- Não deve haver nada porém posso prostá-to mesmo no local onde você está sentado, se houver algo a seu respeito de que eu não goste. Sabe disso?

O capitão não respondeu. As latas de conservas diante dele abriram-se com uma leve pressão.

O Raposo disse, concisamente:

- Cozido! Desculpe, realmente estamos com falta de alimentos.

- Eu sei - respondeu o capitão. Pôs-se a comer rapidamente; sem levantar a cabeça.

O Raposo continuou:

- Lembro-me de já tê-lo visto. Tento lembrar-me, porém a barba está definitivamente atrapalhando.

- Não fiz a barba nos últimos trinta dias. - Acrescentou depois, violentamente: - O que é que você deseja? Tenho a senha combinada e tenho a identificação.

O outro estendeu uma mão:

- Oh! Eu admito que você se chame Pritcher. Mas há muitos que conhecem inclusive a senha, possuem identificações e a identidade - e que estão com o Mulo. Já ouviu falar de Lewaw, hein?

- Ouvi.

- Está com o Mulo.

- O que? Ele...

- Sim. Era o homem a quem eles chamavam "Contra a Rendição". -Os lábios do Raposo agitaram-se com movimentos de riso, mas houve neles nem som nem humor. - Também sucede o mesmo com Willig. Com o Mulo! Garre e Noth. Com o Mulo! Por que é que o Pritcher não havia de estar também na mesma? De onde é que eu poderia saber?

O capitão limitou-se a menear a cabeça.

- Mas o problema não é esse - insistiu o Raposo baixinho. - Eles devem saber o meu nome, já que o Noth está ao serviço deles - por isso se você está em ordem, estamos em pior situação daquela que corri nos últimos tempos, desde que demos pelas suas naves.

O capitão tinha acabado de comer. Recostou-se:

- Se vocês não têm organização aqui, onde é que poderei encontrar? A Fundação pode ter-se rendido, mas eu não.

- Ora! Você não pode vadiar muito, capitão. Os homens da Fundação são obrigados a ter autorizações de viagem para se deslocarem de cidade para cidade. Sabe o que é? E também carteiras de identidade. Tem alguma? E sucede ainda que todos os oficiais da antiga Armada foram intimados a apresentarem-se nos quartéis mais próximos dos ocupantes. Isto é com você?

- E, sim. - A voz do capitão era seca. - Mas posso deslocar-me através do medo. Eu estava em Kalgan pouco tempo antes de eles serem vencidos pelo Mulo. Dali a um mês, nenhum dos antigos oficiais do condestável estava em liberdade, visto serem os condutores naturais de qualquer revolta. O movimento subterrâneo soube sempre que nenhuma revolução pode triunfar sem controle de, pelo menos, parte da Armada. É evidente que o Mulo também sabe isto.

O Raposo meneou a cabeça pensativamente:

- Bastante lógico. O Mulo é perfeito.

- Descartei-me do uniforme logo que pude. Deixei crescer a barba. Afinal de contas pode ser que tenha havido outros que tenham feito a mesma coisa.

- Você é casado?

- Minha mulher morreu. Não tenho filhos.

- Nesse caso você não tem reféns possíveis.

- Nenhum.

- Quer a minha opinião?

- No caso de ter alguma.

- Não sei qual é a política do Mulo ou o que é que ele pretende, porém os operários qualificados não foram prejudicados, até agora. Têm-lhes pago os salários, por enquanto. Está aumentando a produção de toda espécie de armas atômicas.

- Sim? Isso dá idéia de que se trata de uma ofensiva contínua.

- Não sei. O Mulo é um sutil filho de uma cadela, e pode estar apenas procurando reduzir os operários á submissão. Se Seldon não foi capaz de imaginar o seu aparecimento, com toda a sua psicohistória, não serei eu que me vou matar tentando fazêlo. Mas você já traz roupas de trabalho. Isso sugere alguma coisa.

- Não sou um operário qualificado.

- Você tem um curso militar atômico, não tem?

- Certamente.

- Isso chega. A Produtora de Escudos Atômicos, Ltda., está localizada na cidade. Diga-lhes que tem alguma experiência. Essa gente que garantia a Indbur o funcionamento da fábrica também lá ficou trabalhando - agora para o Mulo. Não fazem perguntas, enquanto precisarem de mais operários para fabricar suas drogas. Entregam-lhe um cartão de identidade e você pode pedir um quarto no dormitório da Corporação do bairro. E pode começar agora o trabalho.

Desta forma o capitão Han Pritcher, da Esquadra Nacional, tornou-se o operário especialista de escudos Lo Moro da 45? Fábrica Produtora de Escudos Atômicos, Ltda. E de agente da Inteligência, desceu na escala social para "conspirador" - uma designação que o levou meses depois a penetrar naquilo que fora o jardim particular de Indbur.

No jardim, o capitão Pritcher consultou o radômetro na palma da mão. O escudo interno de precaução ainda estava funcionando, e ele esperou. Durante meia hora ficou ali, preso à bomba atômica que havia em sua boca,. Ia-a rolando escrupulosamente com a língua.

O radômetro desligou numa escuridão nefasta e o capitão avançou rapidamente.

Até aqui, tudo tinha corrido bem.

Refletiu objetivamente que a existência da bomba atômica era também uma coisa perfeita; que a sua morte era a sua morte - mas também a morte do Mulo. E assim alcançaria o clímax de uma guerra particular que vinha sustentando há quatro meses; uma guerra que passara brevemente através de uma fábrica de Newton...

Durante dois meses o capitão Pritcher usara avental de chumbo e pesadas máscaras, até que todas as suas características atitudes militares tivessem perdido todas as arestas exteriores. Era um operário, recebia o seu salário, gastava as noites na cidade, e nunca discutia política.

E então, um dia, um homem tropeçou ao passar pela sua bancada, e meteu-lhe um pedaço de papel no bolso. Havia nele a palavra "Raposo". Lançou-o na câmara atômica, onde se desintegrou com um tênue silvo, emitindo a energia através de um milimicrovóltio - e voltou para o seu trabalho.

Fora essa noite â casa do Raposo, e participou de uma partida de cartas com mais dois homens que conhecia de reputação e outro que conhecia de nome e de vista. Enquanto as cartas iam passando e repassando de uns para os outros puseram-se a falar. O capitão disse:

- Trata-se de um erro fundamental. Vocês estão vivendo num passado que desapareceu de todo. Durante oitenta anos a nossa organização tem vivido â espera do momento histórico indicado. Deixamo-nos cegar pela psicohistória de Seldon, uma das primeiras proposições da qual era que as ações individuais de nada valem, que não fazem história, e que os complexos fatores sociais e econômicos passam por cima deles, transformando esses atores individuais em fantoches. - Reuniu cuidadosamente suas cartas, avaliou o seu valor e disse, quando fazia uma jogada: - Por que não matamos o Mulo?

- Ora bem, e qual seria o resultado útil que se tiraria de uma ação desse tipo? - perguntou o homem â sua esquerda, violentamente.

- Ora veja - disse o capitão, descarregando duas cartas - a atitude a tomar. Trata-se de um homem - entre trilhões. A Galáxia não irá deixar de girar pelo fato de ter morrido um homem. Mas o Mulo não é um homem, é um Mutante. Ele já transtornou o plano de Seldon, e se analisarem todas as implicações, parece que - um homem - um mutante - perturba a totalidade da psicohistória de Seldon. Se ele nunca tivesse vivido, a Fundação não teria desabado. Se ele deixasse de viver, ela deixaria de estar arrasada.

- Vamos ver: os democratas combateram os prefeitos e os comerciantes durante oitenta anos, graças á dissimulação. Trata-se de experimentar o assassínio.

- Agora? - interpôs o Raposo com frio senso comum.

O capitão replicou, vagarosamente:

- Gastei três meses raciocinando na solução mais indicada para o caso. Cheguei aqui e encontro-a em cinco minutos. - Olhou rapidamente para o homem cuja face larga e rosada sorria do lugar onde estava: - Você antigamente foi camareiro do prefeito Indbur, e não me lembro de que você pertencia ao subterrâneo.

- Nem eu, se quer que lhe diga.

- Bem, nessa casa, nas suas atribuições de camareiro, você verificava periodicamente o funcionamento do sistema de alarma do palácio.

- Verificava.

- E o Mulo está agora ocupando o palácio.

- Foi isso que se anunciou - todavia ele é um conquistador modesto que não gosta de discursos, nem de proclamações, nem de aparições em público, de qualquer natureza que sejam.

- Isso é uma velha história, e em nada nos afeta. Você, meu ex-camareiro, sabe bem aquilo que precisamos.

As cartas terminaram e o Raposo recolheu as apostas. Lentamente, deu novas cartas.

O homem que fora antigamente camareiro foi o único a levantar as cartas.

- Desculpe, capitão, eu verificava o sistema de alarma, porém tratava-se de uma rotina. Não sei nada sobre ele.

- Espero que, se o seu espírito mantiver uma memória eidética dos controles, possamos sondá-la com a profundidade suficiente - servindo-nos de uma sonda psíquica.

A face rubra do camareiro empalideceu subitamente e descaiu. As cartas que tinha à mão estremeceram com a repentina contração dos punhos:

- Uma sonda psíquica?

- Você não sentirá dor nenhuma - disse o capitão, secamente. - Sei como é que se deve usá-la. Não haverá mal nenhum se passar por uns dias de fraqueza. E se o fizer, é uma possibilidade que aceita e pela qual terá de pagar o seu preço. Há alguns entre nós, tenho a certeza disso, que a partir dos controles do alarma poderão determinar as combinações do comprimento das ondas. Há alguns entre nós que podem manufaturar uma pequena bomba controlada por relógio e eu próprio irei levá-la para dentro da casa do Mulo.

Os homens juntaram-se por cima da mesa. O capitão continuou:

- Numa noite previamente determinada estalará uma desordem na cidade de Terminus, nas vizinhanças do palácio. Não será uma verdadeira revolução. Um distúrbio... e depois toca a andar. Logo que a guarda do palácio for atraída... ou, e isso será o mínimo a conseguir, distraída...

Os preparativos duraram um mês a partir desse dia, e o capitão Han Pritcher, da Esquadra Nacional, que começara como conspirador, desceu mais ainda na escala social e tornou-se "assassino".

O capitão Han Pritcher, assassino, estava no próprio palácio, e descobriu que estava sombriamente satisfeito com a sua psicologia. Um completo sistema de alarma exterior significava poucos guardas no interior. Neste caso, queria dizer nenhum. A planta do pavimento estava nítida no seu espírito. Ele era apenas uma protuberância mo vendo-se silenciosamente ao longo da rampa bem atapetada. Mais adiante, encostou-se à parede e aguardou.

Tinha diante dele a pequena porta fechada de um aposento particular. Atrás daquela porta devia estar o mutante que vencera os invencíveis. Era cedo - a bomba ainda tinha dez minutos de vida dentro dela.

Passaram cinco minutos e não se ouvia um único som em todo o mundo. O Mulo tinha cinco minutos para viver... e os mesmos tinha o capitão Pritcher...

Lançou-se para diante num súbito impulso. O plano já não corria o risco de falhar. Quando a bomba explodisse, o palácio explodiria também com ele... o palácio inteiro.

Havia uma porta entre eles - trinta centímetros entre eles: não era nada. Mas ele desejava ver como é que o Mulo e ele iriam morrer ao mesmo tempo.

Por fim, com um gesto insolente, precipitou-se fulminante para a porta...

Abriu-a e ficou cego com a luz ofuscante.

O capitão Pritcher cambaleou, depois do que conseguiu dominar-se. O homem grave que estava de pé, a meio do pequeno aposento, diante de um aquário suspenso, fitou-o friamente.

O seu uniforme era de um preto sombrio, e como ele batesse no aquário com gesto ausente, este oscilou rapidamente e um peixe, com uma cor vivamente laranja e vermelhão, pulou de dentro.

Disse:

- Entre, capitão!

A língua do capitão estremecia com o pequeno globo de metal que criava debaixo dela um relevo detestável - o que significa a impossibilidade física de falar, como muito bem sabia o capitão. Eram os seus últimos minutos de vida.

O homem fardado continuou:

- Você agiria melhor se deitasse fora essa ridícula bola e ficasse com a boca livre para falar. Não se desintegrará.

Os minutos iam passando e com um movimento vagaroso e úmido o capitão inclinou a cabeça e cuspiu o globo prateado para a palma da mão. Atirou-o contra a parede com uma força furiosa. Ressaltou com um clarão breve e seco, rolando inofensivamente para o chão.

O homem fardado encolheu os ombros:

- Tanto trabalho para chegar a este resultado. Fosse como fosse, não teria dado bom resultado, capitão. Eu não sou o Mulo. Você teria de se satisfazer com o seu vice-rei.

- Como é que você conseguiu saber? - murmurou o capitão, rouca-mente.

- A responsabilidade pertence a um sistema eficiente de contra-espionagem. Posso citar-lhe o nome de todos os membros do seu pequeno grupo, todas as particularidades do plano...

- E deixou que isto fosse adiante?

- Por que não? Um dos meus grandes objetivos era acabar com você e com alguns outros. Particularmente com você. Já o podia ter em meu poder há alguns meses, quando estava trabalhando na Fábrica de Escudos de Newton Mas assim é melhor. Se você não tivesse indicado as várias linhas do plano, um dos meus próprios homens havia de sugerir qualquer coisa parecida, para você fazer. O resultado é absolutamente dramático e um tanto humorístico.

Os olhos do capitão estavam secos :

- Pronto, tudo acabou aqui. Não tem mais nada a dizer-me?

- Estou começando agora. Vamos, capitão, sente-se. Deixe essas atitudes heróicas para os parvos que se impressionam com isso. Capitão, você é um bom rapaz. De acordo com as informações que tenho em meu poder, foi você o primeiro a reconhecer o poder do Mulo. Desde então você tem-se interessado pessoalmente, algum tanto ousadamente, pela vida anterior do Mulo. Você foi um daqueles que andaram com o seu palhaço, o qual, incidentalmente, ainda não foi encontrado, e por isso você será integralmente pago. Naturalmente, a sua habilidade é reconhecida e o Mulo não é um daqueles que têm medo da habilidade dos seus inimigos, quando tem possibilidade de convertê-la na habilidade de um novo amigo.

- É isso que me está propondo? Oh, não!

- Oh, sim! Era esse objetivo da comédia desta noite. Você é um homem inteligente, embora suas pequenas conspirações contra o Mulo venham a terminar em comédias. Você pode apenas dignificar essa sua atividade com o nome de conspiração. Fez parte do seu treino militar o comando de naves desintegradoras em ações de desespero?

- Uma pessoa deve admitir primeiro que não tem esperança.

- Assim será - garantiu o vice-rei, delicadamente. - O Mulo conquistou a Fundação. Está transformando-a rapidamente num arsenal para consecução dos seus grandes fins.

- Que grandes fins?

- A conquista de toda a Galáxia. A reunião de todos os mundos demolidos num novo Império. A realização, seu engenhoso e desanimado patriota, do próprio sonho de Seldon, setecentos anos antes de chegar ao termo do prazo por ele idealizado. E você pode ajudarnos nessa obra.

- Posso, sem dúvida nenhuma. Mas não quero, sem dúvida nenhuma.

- Tenho conhecimento - comentou o vice-rei - de que só resistem ainda três Mundos Comerciais Independentes. Não resistirão durante muito tempo. Serão as últimas forças da Fundação a desaparecer. Você ainda continua.

- Continuo.

- Todavia você não ganhará. Fazer um recrutamento voluntário é o meio mais eficiente. Mas fazê-lo de outra forma também dará resultado. Desgraçadamente, o Mulo está ausente. Está lutando, como sempre, contra os Comerciantes que ainda resistem. Mas está em contínuo contato conosco. Você não terá que esperar muito tempo.

- Para que?

- Para conversar com ele.

- O Mulo - disse o capitão, friamente - descobrirá que há coisas que estão além da sua habilidade.

- Porém ele não perde. Eu também julgava que lhe podia resistir. Você não me reconhece? Ora vamos, você estava em Kalgan, por isso deve ter-me visto. Eu usava monóculo, uma túnica púrpura de corte severo, uma coroa alta...

O capitão murmurou aterrado :

- Você era o condestável de Kalgan.

- Isso mesmo. E agora sou o leal vice-rei do Mulo. Como vê, ele é persuasivo.

 

21. INTERLÚDIO NO ESPAÇO

 

O bloqueio continuava a apertar-se gradualmente. No vasto vazio do espaço, nem todas as naves que ainda existiam podiam dirigir-se para os seus postos de abrigo, mesmo a pouca distância. Para isso exigia-se uma nave esmeradamente construída, um piloto destro, uma dose moderada de sorte, e espaços abertos para conseguir passar.

Com os olhos friamente calmos, Torã conduzia uma nave que não aceitava submeterse à situação reinante, dirigindo-se da vizinhança de uma estrela para junto de outra. Se a vizinhança da grande massa tornava difíceis e irregulares os saltos interestelares, tornava também impossível, ou quase, a utilização dos instrumentos inimigos de detecção.

E uma vez ultrapassada a cintura de naves, penetrou na esfera inferior do espaço morto, através de cujo subéter bloqueado não era possível emitir nenhuma mensagem, e a viagem fez-se perfeitamente bem. Pela primeira vez, em três meses. Torã sentiu que rompera o isolamento.

Passou-se uma semana antes que os novos programas estúpidos e auto-laudatórios, divulgados pelo inimigo, dissessem mais alguma coisa do que os pormenores do controle crescente que ia assumindo sobre a Fundação. Foi uma semana em que a nave comercial blindada de Torã passou rapidamente por dentro e por fora da Periferia, com violentos saltos.

Ebling Mis penetrou na cabina de pilotagem e Torã levantou a cabeça, piscando os olhos, de cima das suas cartas.

- Que assunto o traz aqui? - Torã encaminhou-se para a pequena câmara central que Bayta tinha inevitavelmente transformado em sala de estar.

Mis puxou uma cadeira:

- As estrelas que me façam cócegas. Os jornalistas do Mulo estão anunciando um boletim especial. Pensei que talvez você desejasse que o ouvisse aqui, a seu lado.

- E fez muito bem. Onde é que está Bayta?

- Sentada â mesa da sala de jantar guardando os restos do cardápio - ou coisa que o valha.

Torã sentou-se na lona que servia de cama ao Magnífico e esperou. A propaganda rotineira dos "boletins especiais" do Mulo apresentava sempre a mesma monotonia. Primeiro vinha a música marcial, após o que se seguia a melíflua brandura do anunciador.

Apareciam os assuntos menos importantes, que abriam caminho para outros, marcando passo. Depois havia uma pausa. Vinham as trombetas e a crescente excitação e o clímax.

Torã suportou tudo isto. Mis pôs-se a resmungar consigo mesmo.

O leitor das notícias pronunciou, observando uma fraseologia convencional de correspondente de guerra, as untuosas palavras que transformavam em som o metal fundido e a carne desintegrada de uma batalha no espaço.

- Os esquadrões rápidos, sob as ordens do tenente-general Sammin, bateram hoje duramente as forças que procuravam atacá-lo em iss... - A face cuidadosamente inexpressiva do locutor desapareceu da tela, sumindo gradualmente, para se transformar na escuridão de um espaço onde fileiras de naves ziguezagueavam rapidamente, através do vácuo, travando uma batalha implacável. A voz continuou pelo meio da insondável trovoada...

- A mais espantosa ação da batalha foi o combate marginal entre o cruzador-pesado Cluster e três naves inimigas da classe "Nova"...

O panorama da tela mudou e definiu-se. Uma grande nave faiscou e um dos frenéticos atacantes reluziu furiosamente, girou em torno do foco, voltou para trás e tornou ao ataque. O Cluster descreveu uma curva impetuosa e surgiu a proa cintilante, que destruiu aos atacantes, dando uma volta com ponderação.

O afável e desapaixonado locutor continuou a informar com uma dicção calma, depois da desaparição da última proa e do último destroço.

Houve, então, uma pausa, aparecendo depois uma imagem e uma voz largamente parecidas com as do combate travado em Mnemon, para que a notícia fosse acrescentada com uma pormenorizada descrição de um território observado do ar - a imagem de uma cidade desintegrada - confusão e prisioneiros de guerra - e depois voltou a afastar-se.

Mnemon já não tinha muito tempo de vida.

Mais uma pausa e desta vez o som rouco dos esperados desaforos. A tela encadeou lentamente por um corredor comprido e impressionantemente cheio de soldados alinhados onde penetrou rapidamente o informador do governo, vestindo uma farda de membro do Conselho de Estado.

O silêncio era opressivo.

A voz que finalmente se ouviu era solene, vagarosa e enxuta:

- Por ordem do nosso soberano, anuncia-se que o planeta Haven, até aqui em pé de guerra por seu desejo, foi submetido e aceitou a derrota. Neste momento as forças do nosso soberano estão ocupando o planeta. A oposição foi dispersa, descoordenada, e rapidamente esmagada.

A cena voltou a desaparecer, regressando o primeiro locutor para participar, com grande pompa, que seriam noticiados outros acontecimentos logo que ocorressem.

Ouviu-se então música de dança, e Ebling Mis girou o campo que cortava a corrente.

Torã corou e deu uns passos irresolutos, sem uma palavra. O psicólogo não deu um passo para detê-lo.

Quando Bayta apareceu, vinda da cozinha, Mis continuava em silêncio. Disse:

- Eles ocuparam Haven. E Bayta perguntou :

- Já? - Os seus olhos estavam arregalados e havia neles uma certa descrença.

- Sem uma batalha. Sem um inconcebí... - Deteve-se e engoliu em seco. - É melhor você ir ter já com Torã. Isto não foi nada agradável para ele. Calculo que desta vez vamos ter de comer sem ele.

Bayta olhou na direção da cabina de pilotagem, depois do que se virou desanimadamente: - Muito bem!

Magnífico estava sentado â mesa, sem dar notícia do que acontecera. Não falou nem comeu, limitando-se a olhar fixamente para diante dele com um terror concentrado que parecia tirar-lhe toda a vitalidade do seu corpo esguio.

Ebling Mis puxou, com ar ausente, sua sobremesa de frutos gelados e disse, secamente:

- Dois mundos comerciais lutaram. Lutaram, foram derrotados,. e morreram e não se renderam... Só Haven... Exatamente como sucedeu com a Fundação...

- Mas por quê?

O psicólogo meneou a cabeça:

- Isto forma uma peça indissolúvel com a totalidade do problema. Todas as facetas excêntricas fazem uma alusão direta à natureza do Mulo. Primeiro, o problema referente à maneira como ele pôde conquistar a Fundação, com pouco derramamento de sangue, e basicamente com um único golpe, enquanto os Mundos Comerciais Independentes resistiam. As imobilizações das reações atômicas eram uma arma de pequeno alcance – já discutimos isto de fio a pavio até ficarmos doentes - e o trabalho foi feito inteiramente pela Fundação. Randu sugeriu - e as sobrancelhas espessas de Ebling contraíram-se até se unirem - que podia ter sido um Controle-Depressor de irradiação. - É possível que tenha sido isso que fez o trabalho em Haven. Mas, nesse caso, por que é que não foi utilizado em Mnemon e em Iss - que ainda agora continuam a combater com intensidade verdadeiramente demoníaca, obrigando a utilizar metade de esquadra da Fundação acrescentada às forças do Mulo para derrotá-los? Pois, reconheci as naves da Fundação no ataque.

Bayta sussurrou.

- A Fundação, agora Haven. O desastre parece roçar por nós, sem nos tocar. Escapamos sempre por um fio. Será esta a última vez?

Ebling Mis não estava ouvindo. Estava meditando consigo mesmo um outro ponto:

- Mas há outro problema... outro problema, Bayta, você se lembra daquelas notícias dizendo que o palhaço do Mulo não fora encontrado em Terminus; que se desconfiava que se pusera a caminho de Haven, ou que então fora capturado pelos seus primeiros raptores? Há qualquer coisa que lhe está ligado, Bayta, e que não desapareceu, e que nós ainda não nos incomodamos em localizar o que possa ser. O Magnífico deve saber alguma coisa que é fatal para o Mulo. Tenho a certeza disso.

Magnífico, lívido e gaguejante, protestou:

- Senhor... nobre senhor... na verdade, juro que tenho ocupado meu pobre espírito em dar satisfação a todos os seus desejos. Contei-lhe tudo aquilo que sabia até os mais íntimos pormenores, e com a sua sonda o senhor teria extraído do meu pobre espírito qualquer outra coisa que sei, mas que não sei que sei.

- Bem sei... bem sei. É uma coisa qualquer muito pequena. Uma sugestão tão pequena que nem você nem eu conseguimos saber o que possa ser. Tenho, todavia, a impressão de que acabarei por descobrir o que é... pois Mnemon e Iss acabarão por ser derrotados, e quando assim suceder, nós seremos os derradeiros remanescentes, os últimos detritos da Fundação independente.

As estrelas começaram a amontoar-se apertadamente quando penetraram no âmago da Galáxia. Começaram a sobrepor-se campos gravitacionais com intensidade suficiente para introduzir perturbações num salto interestelar que não pode ser iniciado.

Torã ficou ciente disto quando um salto atirou sua nave em cheio para dentro do fulgor de uma gigante vermelha que cintilou viciosamente, e que perdera a sua capacidade de atração, pelo que conseguiu afastar-se para o lado, porém só depois de doze horas sem dormir, atordoado de choques.

Com mapas restritos ao raio de ação, e uma experiência que ainda não estava totalmente desenvolvida, tanto operacional como matematicamente, Torã resignou-se a passar dias ocupados no cuidadoso levantamento de plantas sempre que os saltos lho permitiam.

Iniciou-se, assim, um esboço em comunidade. Ebling Mis colaborava nas observações matemáticas de Torã e Bayta fazia testes a respeito dos possíveis percursos, servindo-se dos vários métodos generalizados, procurando soluções aplicáveis na prática. Até Magnífico se atirava ao trabalho na máquina de calcular, fazendo computações rotineiras, um tipo de trabalho que, uma vez explicado, era uma fonte de grande divertimento para ele, ao mesmo tempo que se revelava extremamente eficiente.

Pelo que, decorrido um mês ou quase, Bayta estava em condições de vigiar a linha vermelha que abria o caminho serpeando através do modelo de nave trimensional, em plena Via-láctea, a meio caminho do seu centro, e comentou com prazer satírico:

- Sabe com que é que isto se parece muito? Parece-se com um verme terrestre de três metros, atormentado por uma indigestão. Finalmente, é bem capaz de nos levar outra vez para Haven.

- Sou capaz, sim - resmungou Torã, com um farfalhar irritado de seu mapa - se não se calar.

- E no meio disto tudo - continuou Bayta - talvez exista um caminho que vá direto pelo meio, reto como um meridiano de longitude.

- Sim? Bem, em primeiro lugar, minha obscura pensadora, são provavelmente necessárias quinhentas naves, durante quinhentos anos, para estudar esta rota com todos os seus pontos de referência, e os meus míseros mapas de meia pataca não me ajudam nada. Além disso, talvez essas rotas em linha reta não sejam uma boa coisa para escapar. Eles, provavelmente, entupiram-nas com as suas naves. E além disso...

- Oh, pela consideração que a Galáxia lhe merece, pare de andar para diante e para trás com sua indignação virtuosa. - E levantou as mãos ao ar.

Ele gritou:

- Está bem! Vamos embora! - E pegou-lhe nos pulsos e puxou-a para baixo, pelo que Torã, Bayta e cadeira formaram um trio emaranhado no chão. Transformaram-se numa luta arquejante e rastejante, formada sobre-tudo por risos sufocados e vários golpes desferidos em brincadeira.

Torã abandonou imediatamente a brincadeira diante da entrada esbaforida de Magnífico.

- O que é?

As rugas de ansiedade tornavam o rosto do palhaço mais comprido e enrugavam-lhe a pele, de forma esbranquiçada, por cima da enorme ponte que era o seu nariz:

- Os instrumentos estão se comportando de maneira muito esquisita, senhor. Como conheço a minha ignorância, não toquei em coisa alguma...

Em dois segundos, Torã encontrou-se na cabina de pilotagem. Disse tranqüilamente para Magnífico:

- Vá chamar Ebling Mis. Preciso dele junto de mim.

Disse a Bayta, que tentava pôr um pouco de ordem nos cabelos, servindo-se para isso dos dedos:

- Fomos detectados, Bay.

- Detectados? - E os braços de Bayta caíram: - Por quem?

- A Galáxia o sabe - resmungou Torã - porém imagino que por alguém com desintegradores já alinhados e apontados.

Sentou-se e já estava enviando para o subéter, em voz baixa, o código de identificação da nave.

E quando Ebling Mis entrou, com um roupão de banho e os olhos remelosos, Tora informou com uma calma desesperada:

- Parece que adentramos as fronteiras de um Reino local interior que se chama Autarquia de Filia.

- Nunca ouvi falar dele - disse Mis, abruptamente.

- Bem, nem eu - replicou Torã - mas estamos sendo detidos por uma nave filiana agora mesmo, e não sei quais as conseqüências que isso envolve.

O capitão-inspector da nave filiana entrou a bordo com seis homens armados atrás dele. Era pequeno, tinha cabelo ralo, lábios pequenos, e pele seca. Tossiu asperamente quando se sentou e abriu o livro que trazia debaixo do braço, numa página em branco.

- Os seus passaportes e o certificado de alfândega da nave, por favor.

- Não temos nada disso - respondeu Torã.

- Nada, hein? - E pegou um microfone que trazia suspenso ao pescoço e falou rapidamente no bocal: - Três homens e uma mulher. Os documentos não estão em ordem. - E tomou uma nota semelhante no livro.

Perguntou:

- De onde é que vocês vêm?

- Siwena - respondeu Torã cautelosamente.

- Onde fica isso?

- A trezentos mil anos-luz, oitenta graus a oeste de Trantor, quarenta graus...

- Não vale a pena, não vale a pena! - Torã podia ver o seu interrogador escrever no livro: "Ponto de origem - Periferia".

O filiano continuou:

- Para onde é que vão?

Torã respondeu:

- Setor de Trantor.

- Objetivo?

- Viagem de recreio.

- Levam alguma carga?

- Não.

- Hum-m-m. Bem, verifiquem-me isto. - Fez um aceno, e dois homens puseram-se logo em atividade, Torã não fez um movimento para interferir.

- O que foi que os trouxe ao território de Filia? - Os olhos do filiano brilharam sem amizade.

- Não sabíamos onde estávamos. Tenho falta de um mapa em condições.

- Você vai ser obrigado a pagar cem créditos por essa falta... e, claro, as importâncias habituais exigidas para pagamento dos direitos alfandegários, etc.

Voltou a falar ao microfone - mas desta vez ouviu mais do que falou. Então, para Torã:

- Sabe alguma coisa a respeito de tecnologia atômica?

- Alguma coisa - replicou Torã, pondo-se na defensiva.

- Sim? - O filiano fechou o livro e acrescentou

- Os homens da periferia têm uma sólida reputação de conhecerem < coisas. Traga uma roupa de trabalho e venha comigo.

Bayta foi atrás deles:

- O que é que vocês vão fazer com ele?

Torã afastou-a delicadamente para o lado, e perguntou friamente:

- Onde é que você deseja ir comigo?

- As nossas instalações de produção de energia precisam de uns acertos de pouca importância. Aquele terá de vir consigo. - E o seu dedo apontado mostrava diretamente Magnífico, cujos olhos castanhos estavam abertos e úmidos por um choro de medo.

- O que é que vocês pretendem fazer com ele? - perguntou Torã violentamente.

O oficial fitou-o com frieza:

- Estou informado de atividades piratas nestas vizinhanças. A descrição de um desses ladrões conhecidos condiz mais ou menos com ele. Trata-se de uma forma rotineira de identificação.

Torã hesitou, mas seis homens e seis desintegradores são argumentos eloqüentes. Abriu o armário para apanhar a roupa.

Uma hora depois subiu verticalmente do interior da nave filiana e esbravejou :

- Não há nada desarranjado nos motores que eu seja capaz de ver. Os cátodos são autênticos, os tubos L estão corretamente alimentados e as resistências das análises são perfeitas. Quem é que está encarregado disto?

O engenheiro-chefe respondeu tranqüilamente :

- Eu.

- Bem, leve-me daqui para fora.

Levaram-no para a zona dos oficiais e para a pequena antecâmara onde só havia um indiferente guarda-bandeira.

- Onde está o homem que veio comigo?

- Espere, por favor - respondeu o guarda-bandeira. Quinze minutos depois o Magnífico foi conduzido para ali.

- O que é que eles lhe fizeram? - perguntou Torã rapidamente.

- Nada. Nada mesmo. - Magnífico meneou a cabeça numa negação vagarosa.

Pagou duzentos e cinqüenta créditos para satisfazer as exigências de Filia – cinqüenta créditos pela sua libertação imediata - e voltaram a estar outras vez livres no espaço.

Bayta disse com um sorriso forçado:

- Não mandaram uma escolta atrás de nós? Não nos deram os habituais pontapés para nos pôr fora da fronteira.

E Torã replicou, carrancudamente:

- Não se tratava de um barco filiano... e não fomos abandonados por enquanto. Cheguem aqui.

Eles comprimiram-se â sua volta. Ele disse, claramente:

- Essa era uma nave da Fundação e os homens que estavam a bordo eram os do Mulo.

Ebling inclinou-se para apanhar o charuto que tinha deixado cair. Observou:

- Aqui? Mas estamos a noventa mil anos-luz da Fundação.

- E nós também estamos aqui. O que é que os impede de fazerem a mesma coisa? Galáxia, Ebling, você não se vai pôr a pensar que somos uma nave excepcional? Vi as máquinas deles, e isso é suficiente para mim. Digo-lhes que era um motor da Fundação, numa nave da Fundação.

- O que é que eles andam fazendo por aqui? - perguntou Bayta, com lógica - Quais são as possibilidades de se verificar um encontro ocasional de duas naves circulando no espaço?

- Mas o que é que isso tem de importante? - perguntou Torã, fogosamente. - Ele nos deve ter seguido.

- Seguido? - gritou Bayta. - Através do hiperespaço?

Ebling Mis interpôs-se cansadamente: - Pode-se fazer isso - desde que se disponha de uma boa nave e de um grande piloto. Porém a possibilidade não me impressiona.

- Eu não tenho dissimulado minha rota - insistiu Torã. - Percorri-a a uma velocidade média e em linha reta. Um homem cego podia ter calculado a nossa reta.

- O diabo se podia - exclamou Bayta. - Com os saltos amalucados que você deu, observando a nossa direção inicial, não há possibilidade de nos seguir. Nós saímos do salto numa direção errada mais de uma vez.

- Estamos perdendo tempo - explodiu Torã, com um ranger de dentes, - Trata-se de uma nave da Fundação tripulada por homens do Mulo. Mandou-nos parar. Revistou-nos. Tinha Magnífico - só - comigo, como refém, para poder garantir que vocês ficariam tranqüilos, em caso de haver desconfiança. E estivemos prestes a ser liquidados no espaço há pouco.

- Vamos ver agora - e Ebling Mis agarrou-o. - Você vai agora destruir-nos por causa de uma nave que julga pertencer ao inimigo? Pense, homem, aqueles estúpidos andam atrás de nós, seguindo uma rota impossível, através da parte da Galáxia que é desconhecida, conseguem localizar-nos e depois deixam-nos ir embora?

- Eles estão, porém, vendo para onde vamos.

- Nesse caso por que é que nos mandaram parar e nos deixaram continuar sob nossa responsabilidade? Você não pode coadunar as duas formas de ver, como sabe.

- Eu seguirei a minha maneira de encarar. Deixe-me em paz, Ebling, ou então devo mandá-lo dar o fora.

Magnífico saltou do seu pouso oscilante, na sua cadeira de balanço favorita. As suas grandes narinas tremiam com excitação: - Peço-lhes que perdoem interrompê-los, porém senti a minha pobre mente repentinamente preocupada com um pensamento estranho.

Bayta antecipou-se ao gesto de enfado de Torã", e estendeu a mão para Ebling: - Coragem, Magnífico, e fale. Estamos ouvindo-o com sinceridade.

Magnífico disse: - Durante a minha estadia na nave deles, que estava repleta de engenhos, senti-me.assombrado e distraído pela tagarelice daquela gente toda e pelo medo que tive. Na verdade, não me lembro de muita coisa que me aconteceu. Muitos homens olharam para mim e falaram comigo, e eu não os compreendi. Mas no meio dos últimos - tal como o fulgor de um raio de sol consegue romper através de uma cobertura entre as nuvens - havia uma cara que eu conheci. Foi um relâmpago, apenas um simples vislumbre - e logo ficou gravada na minha memória de maneira firme e brilhante.

Torã perguntou: - Quem era ele?

- O capitão que estava conosco há muito tempo, quando você me livrou da primeira vez da escravidão.

Fora intenção óbvia de Magnífico causar sensação, e o deliciado sorriso que se desenhou largamente na sombra de seu enorme nariz, atestava que a conseguira realizar com êxito.

- O capitão... Han... Pritcher? - perguntou Mis, asperamente. - Tem a certeza de que será ele? Está completamente seguro?

- Juro, senhor - e pôs a mão de fraca ossatura em cima do peito apertado. - Eu seria capaz de afirmar a verdade do que estou dizendo, mesmo diante do Mulo e era capaz de o jurar mesmo no seu nariz, mesmo que ele tivesse atrás de si toda a sua força para me obrigar a negar isto que estou dizendo.

Bayta observou com pura admiração: - Nesse caso, o que é que você sabe mais a respeito do caso?

O palhaço fitou-a ansiosamente: - Minha senhora, tenho uma teoria. Surgiu-me, já completamente definida, como se o Espírito Galáctico ma tivesse metido delicadamente no espírito. - Levantava agora a voz acima de uma objeção de Torã, que o queria interromper.

- Minha senhora - continuou, dirigindo-se exclusivamente a Bayta - se este capitão tivesse, como nós, escapado com uma nave; como nós, estivesse em viagem para cumprir um objetivo de sua própria ideação; se topou conosco por acaso - havia de suspeitar que o estávamos seguindo para lhe armar alguma cilada, tal como nós desconfiamos dele pelo mesmo motivo. Que admiração que ele tenha desempenhado sua comédia para entrar na nossa nave?

- Nesse caso, por que é que ele nos desejava a bordo de sua nave? -perguntou Torã. - Isso não faz sentido.

- Pois, por que é que ele fez isso? - bradou o palhaço, com uma repentina inspiração. - Ele mandou um subordinado que não nos conhecia, mas que nos descreveu pelo microfone. O capitão que ouviu estas descrições ficou impressionado pelo meu próprio pobre retrato - pois, na verdade, não há muita gente nesta grande Galáxia que se pareça com a minha mediocridade. Eu era a prova da identidade de todas as outras pessoas.

- E por que é que nos deixou vir embora?

- O que é que nós sabíamos da sua missão, e do sigilo que lhe está ligado? Ele andou nos espionando e verificou que não éramos um inimigo e, por isso, deixou-nos vir embora; é obrigado a pensar de forma a expor o seu plano por via do alargamento do conhecimento dele?

Bayta disse lentamente: - Não seja teimoso, Torie. Isto fornece explicações para o que aconteceu.

- Podia ter sido assim - anuiu Mis.

Torã parecia desamparado em face da resistência coletiva. Havia qualquer coisa nas fluentes explanações do palhaço que o aborrecia. Qualquer coisa estava mal no meio daquilo. Já ele estava confundido e, a despeito de sua tentativa de se dominar, sua cólera diminuía.

_ Por um momento - sussurrou ele - pensei que podíamos ter-nos encontrado com uma das naves do Mulo.

E os seus olhos estavam obscurecidos pelo sofrimento que lhe causava a perda de Haven.

Os outros compreenderam.

 

MORTE EM NEOTRANTOR

NEOTRANTOR. O pequeno planeta de Delicass, que depois recebeu o nome de Grande Saque, foi aproximadamente durante um século a sede da última dinastia do Primeiro Império. Foi um mundo obscuro e um obscuro Império e a sua existência tem apenas uma importância formalista. Debaixo do iniciador da dinastia Neotrantoriana...

Enciclopédia Galáctica

 

Neotrantor era o nome! Neotrantor! E no momento em que se lhe diz o nome ficam esgotadas, de uma única vez, todas as semelhanças do novo Trantor com o grande original. A seis anos-luz de distância, o céu do Velho Trantor ainda brilhava e a Capital Imperial da Galáxia dos séculos anteriores ainda continuava a girar através do espaço, na silenciosa e eterna repetição de suas órbitas.

Ainda havia homens residindo na Velha Trantor. Não muitos - talvez uma centena de milhões, quando cinqüenta anos antes ali formigavam quarenta bilhões. O vasto mundo de metal estava reduzido a destroços cheios de farpas. Os elevados blocos de multi-torres do singular cinturão de edifícios, foram deteriorados e vazios - embora conservando ainda os primitivos alvéolos-desintegradores e os canais de incêndio - fragmentos do Grande Saque de quarenta anos atrás.

Era estranho que um mundo que fora o centro de uma Galáxia durante dois mil anos - que governara um espaço e fora o lar de legisladores e governadores cujos caprichos se espalhavam por anos-luz - pudesse morrer num mês. Era estranho que, um mundo que se mantivera intocável através de milênio, e se mantivera igualmente intocável através das guerras civis e das revoluções palacianas de outro milênio - acabasse finalmente por morrer.

Era estranho que a Glória da Galáxia acabasse por se transformar num cadáver apodrecido.

E patético!

Ainda teriam de decorrer séculos, contudo, antes que as poderosas obras de cinqüenta gerações de pessoas decaíssem e deixassem de ser utilizadas. Só as forças do homem em declínio, só isso, iriam torná-las inúteis.

Os milhões que ficaram depois da desaparição de bilhões arrancaram a base de metal resplandecente do planeta e puseram á mostra a terra que não fora atingida por um raio de sol durante mil anos.

Cercados pelas perfeições mecânicas dos esforços humanos, rodeados pelas maravilhas industriais do gênero humano livre da tirania daquilo que o rodeava – eles regressavam à terra. Nos vastos terrenos de tráfego cresciam o trigo e o milho. Na sombra das torres, pastavam carneiros.

Mas Neotrantor existia - uma obscura aldeia de um planeta afogado na sombra do poderoso Trantor, até que uma família real, com a língua de fora, fugindo diante do fogo e das chamas do Grande Saque, correra para ela como último refúgio - e ali se refugiara, despojada de tudo, enquanto subsistia o rugido da vaga de rebelião. Dali governara com esplendor espectral sobre o remanescente do Império.

Vinte mundos agrícolas formavam um Império Galáctico.

Dagobert IX, governador de vinte mundos de cavaleiros e camponeses obstinados, era Imperador da Galáxia, Senhor do Universo.

Dagobert IX fizera vinte e cinco anos no dia em que chegara com seu pai ao território de Neotrantor. Os seus olhos e o seu espírito mantinham ainda viva a recordação da glória e do poder de que tinha desfrutado o Império nos seus dias gloriosos. Mas seu filho, que um dia viria a ser Dagobert X, nascera em Neotrantor. Os únicos mundos que conhecia eram aqueles vinte.

O carro aberto de Jord Commason era o mais requintado veículo do seu tipo em toda a Neotrantor e, afinal de contas, com justa razão. Essa circunstância estava diretamente ligada ao fato de Commason ser o maior latifundiário de Neotrantor. Em tempos idos fora o companheiro e o gênio diabólico do jovem príncipe herdeiro, que estava dominado pela garra obstinada de um Imperador de meia-idade. E agora era o companheiro e ainda o gênio diabólico de um príncipe herdeiro de meia-idade que abominava e dominava um velho imperador.

Por isso Jordan Commason, no seu carro aéreo, o qual com os seus acabamentos de madrepérola e sua decoração de ouro e luminosidades não precisava de brasão de armas para ser identificado, sobrevoava as suas terras, e as milhas de searas de trigo ondulante que lhe pertenciam, e as grandes debulhadoras e ceifeiras que eram suas, e os caseiros e os maquinistas que lhe pertenciam - e resolvia os seus problemas cautelosamente.

A seu lado estava o seu motorista curvado e mirrado, que guiava a nave cuidadosamente pelo meio das camadas elevadas de vento, e sorria.

Jord Commason falou para o vento, o ar e o céu: - Lembra-se do que lhe disse, Inchney?

O cabelo cinzento e ralo de Inchney inflamou-se luminosamente no meio do vento. O seu sorriso esboçado alargou-se-lhe de modo muito fraco pelos lábios e as rugas verticais do queixo cavaram-se como se estivessem guardando um seu eterno segredo. O sussurro de sua voz passou-lhe entredentes:

- Lembro-me, senhor, e tenho pensado nisso.

- E o que é que pensou, Inchney? - Havia alguma impaciência no tom com que a pergunta foi feita.

Inchney lembrou-se que fora jovem e belo, e que fora um aristocrata na Velha Trantor.

Inchney lembrou-se que era um velhinho desfigurado em Neotrantor, que ainda vivia por favor do fidalgo Jord Commason, e pagava esta mercê concedendo a sua sutileza quando lha pediam.

Sussurrou outra vez: - Visitantes da Fundação, senhor, é uma coisa que é conveniente não ter. Especialmente, senhor, quando eles aqui aparecem com uma única nave, e só trazem um único combatente. Como é que eles podiam ser bem recebidos?

- Bem recebidos? - perguntou Commason, sombrio. - Talvez sim. Mas aqueles homens são mágicos e talvez sejam poderosos.

- Bolas - resmungou Inchney - a distância cria uma névoa que esconde a verdade. A Fundação é apenas um mundo. Os seus cidadãos são apenas homens. Se dispararmos contra eles, eles morrem.

Inchney manteve a nave na rota. Um rio formava meandros faiscantes por baixo deles.

Voltou a sussurrar: - E não há um homem de que eles agora falam que está vencendo os mundos da Periferia?

Commason tornou-se repentinamente desconfiado: - O que é que sabe a esse respeito?

Já não havia sorriso na face do motorista: - Nada, senhor. Foi apenas uma pergunta fútil.

A hesitação do fidalgo foi curta. Disse, com uma brutalidade direta: - As perguntas que faz nunca são inúteis, e o seu método de adquirir conhecimentos mantém-se sempre fiel a um objetivo a atingir. Mas... aí tens! Chamam Mulo a esse homem, e apareceu aqui um dos seus súditos há uns meses atrás para... tratar de negócios. Estou a espera de outro... agora... para fechar o negócio.

- E esses recém-vindos? Não serão as pessoas de quem está â espera, por acaso?

- Falta-lhes a identificação que deviam trazer.

- Eles contaram que a Fundação foi capturada...

- Eu não lhe disse nada disso.

- Mas corre por aí - continuou Inchney, friamente - e se é verdade, podem nesse caso ter fugido à destruição, e podem ser considerados inimigos pelos homens do Mulo.

- Sim? - Commason mostrava-se indeciso.

- E, senhor, desde que é bem sabido que o amigo de um conquistador é apenas sua última vítima, temos de tomar algumas medidas de honesta autodefesa. Porque há muitas coisas como sondas psíquicas, e nós dispomos agora de quatro cérebros da Fundação. Existe muita coisa a respeito da Fundação que deve ser proveitoso conhecer, muita coisa até a respeito do Mulo. E nessa altura a amizade do Mulo será uma prenda menos subjugante.

Commason, na calma da atmosfera superior, virou-se com um estremecimento devido â sua primeira idéia: - Mas se a Fundação não tiver caído? Se as notícias que chegam até nós forem falsas? Dizia-se que tinham profetizado que não podia cair.

- Já se foi o tempo dos profetas, senhor.

- Mas imagine que ela não tenha caído, Inchney. Pense! Se ela não pôde cair. O Mulo faz-me promessas, na verdade... - Fora demasiado longe, e quis voltar atrás. - Isto é, mostrou ostentação. Mas as ostentações são apenas vento e as ações são concretas.

Inchney riu-se estrondosamente: - As ações são efetivamente concretas, uma vez começadas. Dificilmente alguém podia descobrir, além disso, o receio pela atividade de uma Fundação situada no outro extremo da Galáxia.

- Há ainda o príncipe - murmurou Commason, quase consigo.

- Ele também está negociando com o Mulo, senhor?

Commason não se podia esquivar rapidamente agindo sob a complacente manobra da mudança de assunto: - Não inteiramente. Não como eu estou fazendo. Mas está se tornando desorientado, mais incontrolável. Apareceu um demônio dentro dele. Se eu prender estas pessoas e ele ficar com elas para seu próprio uso - pois não lhe falta uma certa sagacidade - eu já não estarei em condições de discutir com ele. - Franziu os sobrolhos e as faces' descaíram-lhe molemente, com desagrado.

- Vi esses estrangeiros ontem, por uns momentos - disse o encarnecido motorista, sem qualquer ligação - e ela é uma mulher estranha, e sinistra. Caminha com a liberdade de um homem e tem uma palidez assustadora, em contraste com os cabelos mui negros. - Havia quase ardor no silvo rouco de sua voz sussurrada, pelo que Commason virou-se para ele com uma surpresa repentina.

Inchney continuou: - O príncipe, penso eu, não procurará pôr em ação sua sagacidade, se lhe for feita uma proposta razoável. Podia, senhor, ficar descansado, se lhe cedesse a moça...

Houve um relampejo em Commason: - É uma idéia! É uma idéia, realmente! Inchney volta para trás! E, Inchney, se tudo correr bem, haveremos de voltar a discutir esse assunto de sua liberdade.

Foi com um quase supersticioso sentido de simbolismo que Commason encontrou uma Cápsula Pessoal á sua espera, no seu gabinete particular, quando ali regressou.

Commason esboçou um leve sorriso. O homem do Mulo estava chegando e a Fundação realmente fora derrotada.

 

As idéias nebulosas de Bayta, quando as tinha, sobre um palácio Imperial, não atinavam com a realidade e, no seu íntimo, havia uma vaga sensação de desapontamento. O quarto era pequeno, quase simples, quase comum. O palácio não oferecia grande vantagem sobre a residência do prefeito que ficara atrás na Fundação... e Dagobert IX...

Bayta tinha idéias definidas a respeito da presença que devia ter um imperador. Pensava que não se devia parecer com um avô qualquer. Pensava que não devia ser fraco, lívido e enrugado - ou servir taças de chá pelas suas próprias mãos e exprimir preocupação sobre o conforto dos seus visitantes.

Porém era assim que ele era.

Dagobert IX riu-se entre dentes quando deitou chá na sua chávena.

- É um grande prazer para mim, minha querida. É um daqueles momentos em que fujo das cerimônias e dos cortesãos. Há tempos que não recebo visitas, vindas das outras províncias. O meu filho encarregou-se desses pormenores, agora que estou velho. Ainda não viram o meu filho? Um belo rapaz. Talvez um bocado teimoso. Porém é jovem. Quer mais uma cápsula de sabor? Não?

Torã esforçou-se por fazer uma interrupção: - Vossa Majestade Imperial...

- Diga.

- Vossa Majestade Imperial, não era minha intenção interromper-vos...

- Não se preocupe, não há interrupção nenhuma. Esta noite realizar-se-á a recepção oficial, mas até lá estaremos livres. Deixe ver, de onde é que você disse que vinham? Parece-me que já decorreu um largo espaço de tempo desde que se fez a última recepção oficial. Você disse que tinham vindo de Anacreon?

- Da Fundação, Imperial Majestade!

- Sim, a Fundação. Agora me lembro. Eu a tinha localizado. Fica na província de Anacreon. Nunca estive lá. O meu médico proíbe-me viagens longas. Não me lembro de ter recebido nenhum relatório recente do meu vice-rei em Anacreon. Quais são as condições que ali existem atualmente? - concluiu ele ansiosamente.

- Senhor - murmurou Torã. - Não há queixas a fazer.

- Isso é deveras agradável. Hei de elogiar o meu vice-rei.

Torã olhou desesperadamente para Ebling Mis, cuja voz brusca se fez ouvir: - Senhor, fomos avisados de que devíamos pedir-lhe autorização para podermos visitar a Biblioteca da Universidade Imperial em Trantor.

- Trantor? - perguntou o imperador, maciamente. - Trantor?

Nesse momento um olhar deu â sua face uma expressão de dor perplexa: - Trantor? - voltou a sussurrar. - Já me lembro. Estou fazendo planos para voltar para lá com uma nuvem de naves. Vocês poderão vir comigo. Em conjunto, havemos de destruir o rebelde, Gilmer. Juntos, havemos de restaurar o Império!

A sua figura dobrada endireitara-se. Sua voz havia recuperado vigor. Durante um momento seus olhos mostraram-se brilhantes. Depois, piscou as pálpebras e disse fracamente: - Gilmer morreu. Deixem ver se me consigo lembrar... Sim, sim! Gilmer morreu! Trantor morreu... Durante um momento pareceu-me... De onde foi que disse que vieram?

Magnífico sussurrou para Bayta: - É mesmo um imperador? De qualquer maneira eu pensava que os imperadores fossem maiores e mais cultos do que os homens comuns.

Bayta fez-lhe sinal para ficar tranqüilo. E disse: - Se sua Imperial Majestade quiser fazer o favor de assinar uma ordem autorizando a nossa ida a Trantor, isso seria de grande utilidade para a causa pública.

- A Trantor? - O imperador estava perturbado e não conseguia compreender.

- Senhor, o vice-rei de Anacreon, em nome de quem estamos falando, manda-nos que lhe participemos que Gilmer ainda está vivo...

- Vivo! Vivo - trovejou Dagobert. - Onde? Haverá guerra!

- Imperial Majestade, esta informação não deve ser publicada agora. As informações a respeito do lugar onde se encontra não são precisas. O vice-rei mandou que lhe participássemos o fato, e só em Trantor poderemos descobrir o lugar onde será provável encontrar o palácio em que se esconde. Uma vez descoberto...

- Sim, sim... Ele deve ser encontrado... - O velho imperador curvou-se para a parede e apertou a pequena fotocélula com um dedo trêmulo. Murmurou, depois de uma pausa sem sentido: - Os meus criados ainda não vieram. Não posso esperar por eles.

Estava rabiscando numa folha em branco, e terminou com um floreado "D". Disse: - Gilmer aprenderá a conhecer a força do seu imperador. De onde foi que vocês vieram? Anacreon? Quais são as condições que lá se verificam? O nome do imperador é poderoso?

Bayta tirou-lhe o papel dos dedos compridos: - Sua Majestade Imperial é adorado pelo povo. O seu amor por ele é perfeitamente conhecido.

- Eu gostaria de visitar o meu bom povo de Anacreon, porém o meu médico disse... Não me lembro do que me disse, mas... - Olhou para cima, com os seus penetrantes olhos pardos: - Vocês estavam falando de Gilmer?

- Não, Imperial Majestade.

- Ele não avançará mais. Voltem para trás e digam isto ao povo. Trantor agüentará! Meu pai é agora o comandante da esquadra, e o verme rebelde chamado Gilmer há de gelar no espaço com a sua canalha regicida.

Endireitou-se na cadeira e os seus olhos tornaram-se outra vez perturbados: - O que é que eu estava dizendo?

Torã levantou-se e inclinou-se para ele: - Sua Imperial Majestade tem sido muito amável conosco, porém o período de ausência que nos foi concedido já está esgotado.

Durante um momento, Dagobert IX assumiu de fato o ar de um imperador quando se levantou e ficou de pé, com as costas direitas enquanto, um a um, os seus visitantes recuavam através da porta...

...e ali intervieram vinte homens armados que fizeram um círculo á volta deles.

Uma arma de mão reluziu...

Bayta ia recuperando paulatinamente a consciência, mas sem lhe surgir a necessidade de perguntar: "Onde é que estou?" Lembrava-se claramente do velhíssimo homem que a si mesmo se chamava imperador, e dos outros homens que os esperavam fora. O formigueiro artrítico que sentia nas articulações dos dedos queria dizer que fora utilizada uma pistola de choque.

Deixou-se ficar com os olhos fechados, e prestou uma dolorosa atenção às vozes.

Havia duas. Uma era vagarosa e cautelosa, escondendo a astúcia sob a superfície deferente. A outra era rouca e grossa, quase néscia, sendo pronunciada em jatos viscosos.

Bayta não ouviu nada.

A voz rouca predominava.

Bayta conseguiu apanhar as últimas palavras: - Há de viver para sempre esse velho do diabo. Cansa-me. Aborrece-me. Commason, hei de tê-lo. Também estou ficando velho.

- Alteza, deixe-nos ver primeiro qual a utilidade que estas criaturas podem ter. Pode ser que tenhamos mais possibilidades de chegar ao poder do que aquelas que seu pai ainda possui.

A voz rouca perdeu-se num sussurro indistinto. Bayta só conseguiu apanhar esta frase:

-... a moça... mas a outra voz acariciadora tornou-se um murmúrio sujo, baixo, e rápido por entredentes seguido por uma frase de camarada e quase paternal: - Dagobert, você não tem idade. Mente quem não disser que você não parece um rapaz de vinte anos.

Riram-se os dois, e o sangue de Bayta pôs-se a correr geladamente. Dagobert... alteza... O velho imperador falara de um filho teimoso, e a sugestão contida no murmúrio que acabara de ouvir confirmava que se tratava dele. Porém quantas coisas não acontecem às pessoas na vida real...

A voz de Torã ouviu-se numa demorada e áspera corrente de pragas.

Ela abriu os olhos, e Torã, que estava debruçado por cima dela, fez uma tentativa para socorrê-la. E disse, com ferocidade: - O imperador há de responder por este banditismo. Solte-nos.

Estava ainda debruçado sobre Bayta cujos pulsos e tornozelos estavam presos á parede e ao soalho por um poderoso campo de atração.

O Voz Rouca aproximou-se de Torã. Era barrigudo, os seus olhos fitos no chão tinham um brilho escuro, e o cabelo caía-lhe pela testa. Havia uma pena colorida no seu chapéu pontiagudo, e a franja do seu gibão estava bordada com esponja metálica prateada.

Riu-se escarninhamente com grande divertimento: - O imperador? Esse pobre e inválido imperador?

- Tenho o seu salvo-conduto. Nenhum súdito pode impedir a nossa liberdade.

- Mas eu não sou um súdito, detrito do espaço. Sou o regente e o príncipe herdeiro e sou eu que assumo a direção dos negócios. O que sucede com o meu pobre e ingênuo pai, é que ele gosta de ver visitantes de vez em quando. E satisfazemos-lhe a vontade. Ele diverte a sua fantasia de trocista Imperial.

E a essa altura apareceu diante de Bayta, que o fitou desdenhosamente. Ele examinou de perto e o seu hálito tinha um fortíssimo cheiro de hortelã. Disse: - Tem uns olhos agradáveis, Commason... fica com eles mais bonitos quando estão completamente abertos. Penso que ela os há de conservar assim. Deve ser um prato exótico para um gosto exausto, eh?

Verificou-se uma agitação fútil da parte de Torã, que o príncipe herdeiro ignorou e Bayta voltou a sentir uma sensação gelada na pele. Ebling Mis ainda estava inconsciente mas, com uma sensação de surpresa, Bayta notou que os olhos de Magnífico estavam abertos, totalmente abertos, como se estivesse acordado há vários minutos. Aqueles grandes olhos castanhos giraram sobre Bayta e fitaram-na, enterrados numa face reduzida a uma massa amorfa.

Choramingou, e apontou com a cabeça para o príncipe herdeiro: - Isso que ele tem é o meu audiovisor.

O príncipe herdeiro virou-se rapidamente para a nova voz: - Isto é seu, monstro? - Tirou o instrumento do ombro a que estava pendurado, suspendeu-o pelas alças verdes, que Bayta ainda não notara.

Foi-lhe passando os dedos desajeitadamente, experimentou tocar um acorde e, para azar seu, não conseguiu nada: - Você é capaz de tocar esta coisa, monstro?

Magnífico voltou a menear a cabeça.

Torã disse repentinamente: - Vocês roubaram uma nave da Fundação. Se o imperador não nos vingar, a Fundação há de fazê-lo.

Foi o outro, Commason, que respondeu vagarosamente: - Qual Fundação? Ou o Mulo já deixou de ser o Mulo?

Ninguém lhe deu resposta. O riso do príncipe rasgou-lhe a boca de lado a lado, mostrando-lhe os dentes. O campo que ligava o palhaço foi desligado e ele mexia vigorosamente os pés. O audiovisor já estava nas suas mãos.

- Toque para nós, monstro - disse o príncipe. - Toque para nós uma serenata de amor e beleza para a minha senhora estrangeira que aqui está. Diz-lhe que a prisão grosseira do meu pai não é um palácio, mas que poderei levá-la para um onde ela nadará em água de rosas - e saber o que é o amor de um príncipe. Cante o amor de um príncipe, monstro. Pôs uma grossa coxa em rima de uma mesa de mármore e deixou cair a perna preguiçosamente, enquanto o seu sorriso fátuo despertava arrebatadoramente em Bayta uma raiva silenciosa. Os tendões de Torã tentaram forçar o campo, num esforço desesperado e doloroso. Ebling Mis movia-se e gemia.

Magnífico gaguejou: - Os meus dedos estão reduzidos a uma dureza inútil...

- Toque, monstro! - impôs o príncipe. As luzes obscureceram-se a um gesto seu dirigido a Commason e cruzou os braços na obscuridade, aguardando.

Magnífico mexeu os dedos com rápidos e rítmicos saltos de extremo a extremo do instrumento de múltiplos botões - e através do aposento irrompeu um arco-íris duro e vertiginoso. Ouviu-se um som baixo, repousante - palpitante, choroso. Transformou-se num riso sombrio, e por baixo dele ressoou um vagaroso dobre de sinos.

A escuridão parecia intensificar-se e tornar-se mais compacta. A música alcançou Bayta através das espessas dobras de mantas invisíveis. Foi alcançada por uma luz repentina, que subia das profundezas como se uma simples candeia brilhasse no fundo do abismo.

Automaticamente os seus olhos se abriram. A luz resplandesceu, porém permaneceu tênue. Moveu-se de maneira faiscante, uma cor confusa, e a música tornou-se subitamente descarada, depravada - florescendo num brusco crescendo. A luz vacilou rapidamente num movimento veloz para um ritmo perverso. Alguma coisa se enlaçou na luz. Alguma coisa que possuía venenosas escalas metálicas que se ia entrelaçando nela e nela suspirava.

Bayta lutou com uma estranha emoção, após o que se deixou cair numa agonia mental. Quase se lembrou do período do Cofre do Tempo, daqueles últimos dias de Haven. Havia esta horrorosa, aborrecida, pegajosa teia de aranha de sofrimento e desespero. Encolheu-se sob o peso daquilo que a oprimia.

A música estrondeou por cima dela, rindo-se horrivelmente, e a caligrafia de terror no lado errado do telescópio no pequeno círculo de luz perdeu-se quando se afastou febrilmente para longe. Sentia a testa simultaneamente quente e fria.

A música terminou. Devia ter durado uns quinze minutos, e Bayta viu-se inundado pelo imenso prazer da sua ausência. A luz acendeu-se, e o rosto de Magnífico permanecia fechado, lúgubre, para os seus olhos insensatos, sob as pálpebras úmidas.

- Minha senhora - gaguejou - como é que se sente?

- Bem, apesar de tudo - murmurou ela - mas por que é que você tocou uma coisa dessas?

Ela fitou as outras pessoas que se encontravam no aposento. Torã e Mis estavam flácidos e impotentes contra a parede, e seus olhos espumavam. Havia o príncipe, estranhamente imóvel, ainda com a perna pendendo da mesa. Havia Commason, respirando com dificuldade, com a boca aberta e descaída.

Commason titubeou e bocejou descuidadamente, quando Magnífico deu um passo em sua direção.

Magnífico virou-o, e com um salto, libertou os outros.

Torã investiu rapidamente e com mãos ásperas e duras agarrou o latifundiário pelo pescoço. - Você vem conosco. Vamos precisar de você -para termos certeza de que chegamos á nossa nave.

Duas horas depois, na cozinha da nave, Bayta servia um empadão, ainda quente, e Magnífico celebrou o regresso ao espaço atirando-se a ele com um magnificente desprezo pelas boas maneiras.

- Está bom, Magnífico?

- Hum-m-m-m!

- Magnífico?

- Sim, minha senhora?

- O que foi que você tocou há pouco?

O palhaço torceu-se: - Eu... eu confesso que não sei. Aprendi isto há muito tempo e o audiovisor tem um efeito muito profundo sobre o sistema nervoso. É verdade que era uma coisa diabólica, e não se destina á sua meiga inocência, minha senhora.

- Oh, isso não, Magnífico. Eu não sou tão inocente como isso. Não me lisonjeie. Eu vi algo parecido com o que eles viram?

- Espero que não. Toquei só para eles. Se viu, foi apenas uma parte... de longe.

- E já foi suficiente. Você sabe que conseguiu derrubar o príncipe?

Magnífico falou com crueldade enquanto ia comendo um grande bocado de empadão: - Matei-o, minha senhora.

- O que? - Ela engasgou-se, dolorosamente.

- Estava morto quando parei de tocar, pois caso contrário teria continuado. Não me importei com Commason. Suas maiores ameaças eram morte ou tortura. Mas, minha senhora, o príncipe olhava para você com ar perverso - e engasgou-se com uma mistura de indignação e de embaraço.

Bayta viu-se invadida por estranhas idéias que reprimiu com firmeza.

- Magnífico, você é um doido muito galante.

- Oh, minha senhora. - E meteu o nariz vermelho no empadão, pois alguém havia de deixar de comer.

Ebling Mis entrou pela porta adentro. Trantor estava perto - os seus raios metálicos luziam terrivelmente. Torã também ali se encontrava de pé.

Comentou com grande mordacidade: - Não temos nada a fazer aqui, Ebling. O homem do Mulo chegou à nossa frente.

Ebling Mis esfregou a testa com uma mão que parecia esvaziada da sua forma rechonchuda. Sua voz foi um murmúrio abstrato.

Torã estava aborrecido: - Eu disse que as pessoas sabem que a Fundação caiu. Eu disse...

- Eh? - Mis levantou a cabeça, embaraçado. Depois pousou uma mão suave no pulso de Torã, tendo-se completamente esquecido de qualquer conversa anterior: - Torã, eu... estive olhando para Trantor. Você sabe... Tenho o estranho sentimento... exatamente desde que chegamos a Neotrantor. É um impulso, um impulso forte que me está empurrando lá para dentro. Torã, eu posso fazê-lo; sinto que o posso fazer. As coisas começam a tornar-se nítidas no meu espírito - nunca foram tão nítidas.

Torã abriu os olhos - e encolheu os ombros. As palavras não lhe davam nenhuma confiança.

Perguntou, fazendo uma tentativa: - Mis?

- Sim?

- Você não viu uma nave chegar a Neotrantor quando estávamos saindo?

A resposta foi concisa: - Não.

- Eu vi. Calculo que seja imaginação, mas pareceu-me que era aquela nave filiana.

- Aquela em que viajava o capitão Han Pritcher?

- Aquela que só o espaço sabe quem está lá dentro. A informação de Magnífico... Está nos seguindo, Mis.

Ebling Mis não disse nada.

Torã continuou energicamente: - Aconteceu-lhe alguma coisa? Não está sentindo-se bem?

Os olhos de Mis estavam pensativos, luminosos e esquisitos. Não respondeu.

 

AS RUÍNAS DE TRANTOR

A localização de um objetivo no grande mundo de Trantor apresenta um problema único na Galáxia. Não há continente ou oceano para localizar a um milhar de quilômetros de distância. Não há rios, nem lagos, nem ilhas para surpreender o espetáculo através dos rasgões das nuvens.

O mundo forrado a metal era - fora - uma cidade colossal, e só o velho palácio Imperial podia ser identificado com facilidade do espaço exterior, por um estrangeiro. A Bayta circundou o mundo a uma altitude quase de carro aéreo em repetidas e trabalhosas buscas.

Das regiões polares, onde o gelo que cobria as espirais de metal, fornecia a sombria evidência de avaria ou abandono das máquinas de condicionamento da temperatura, encaminharam-se para o sul. Podiam fazer correlações ocasionais - (ou correlações presumíveis) - entre aquilo que viam e aquilo que lhes mostrava o velho mapa que tinham conseguido em Neotrantor.

Mas os equívocos desapareciam à medida que iam caminhando. A abertura na cobertura metálica do planeta media oitenta quilômetros. A zona verde fora do padrão geral estendia-se por centenas de quilômetros quadrados, incluindo a poderosa elegância das antigas residências Imperiais.

A Bayta pairava e orientava-se lentamente a ela mesma. Havia só as grandes supervias originárias para orientá-la. Compridas setas lançadas em linha reta no mapa; faixas lisas e brilhantes por baixo deles.

Aquilo que o mapa indicava ser a área da Universidade foi alcançado seguindo um cálculo de derrota já desaparecida, e a nave aterrou na superfície plana do que fora uma vez um campo de aterragem de movimento muito intenso.

Foi só quando submergiram na confusão metálica que a suave beleza aparente que se via do ar se transformou numa vaga de coisas partidas e retorcidas que ficara na esteira do Saque. Havia espirais truncadas, suaves paredes úmidas e deformadas, e surgiu até, por um instante, o vestígio de uma área de terra roçada - talvez com a extensão de várias centenas de hectares - escura e arada.

Lee Senter observava a maneira como a nave ia descendo cautelosamente, para a superfície. Era uma estranha nave, não de Neotrantor, e suspirou interiormente. Naves estranhas e negociações confusas com os homens de outro espaço, que podiam significar o fim dos curtos dias de paz, um regresso aos grandiosos tempos de outrora, repletos de morte e de luta. Senter era o chefe do grupo; estavam a seu cargo os livros antigos e lera muito a respeito desses dias. Não tinha desejo de regressar a eles.

Talvez tivessem decorrido dez minutos desde que a estranha nave começara a descer para o abrigo mais próximo, porém neste período impuseram-se demoradas recordações.

Apareceu primeiro a grande fazenda da sua infância - que permanecia apenas na sua mente como grandes multidões de gente ocupada. Depois apareceu a partida das famílias novas para novas terras. Havia dez, nessa altura; uma única criança, perplexa e assustada.

Depois houvera as novas construções; as grandes chapas de metal para serem arrancadas e postas de lado; o solo abandonado para ser cavado, arejado e revigorado; os prédios vizinhos para serem derrubados e arrasados; outros para serem transformados em residências.

Havia searas para crescer e serem ceifadas; pacíficas relações com as fazendas vizinhas a estabelecer...

Havia crescimento e expansão, e a eficiência tranqüila do autogoverno. Havia o começo de uma nova geração de jovens duros e pequenos nascidos para a terra. Havia o grande dia, quando ele fora escolhido para chefe do Grupo e pela primeira vez, desde o dia em que fizera dezoito anos, deixou de fazer a barba e viu aparecer os primeiros pelos da sua Barba de Chefe.

E agora a Galáxia podia intrometer-se e podia ser o fim do breve idílio de isolamento...

A nave aterrou. Observou silenciosamente quando a porta se abriu. Emergiram quatro pessoas, cautelosas e vigilantes. Havia três homens, diferentes, velho, novos, magros e gordo. E uma mulher caminhando no meio deles como se fosse um companheiro. As suas mãos empurraram para trás as duas madeixas de pelos brilhantes da barba quando se decidiu ir ao encontro deles.

Fez um amplo gesto de paz. Tinha as duas mãos diante dele; com as palmas duras e calosas levantadas para cima:

O jovem aproximou-se dois passos e repetiu o gesto: - Venho em paz.

O acento era estranho, mas as palavras foram compreensíveis e bem-vindas. Replicou, em voz grossa: - Em paz será recebido. Vocês serão bem recebidos pela hospitalidade do Grupo. Têm fome? Terão de comer. Têm sede? Terão de beber.

A resposta veio vagarosamente: - Ficamos-lhe muito agradecidos pela sua gentileza e levaremos boas notícias do seu Grupo quando regressarmos ao nosso mundo.

Uma resposta original, porém boa. Atrás.dele começavam a aparecer os homens do Grupo, e dos recessos das estruturas circundantes emergiram as mulheres.

Na sua residência particular, tirou a caixa decorada com espelho do seu lugar oculto na parede, e ofereceu a cada um dos visitantes os compridos charutos roliços que estavam reservados para as grandes ocasiões. Diante da mulher, hesitou. Ela ocupara um lugar no meio dos homens. Os estrangeiros, evidentemente divertidos, observavam tal desfaçatez com curiosidade. Ofereceu-lhe a caixa, de maneira rígida.

Ela aceitou um com um sorriso, e lançou uma baforada de fumo aromático, com todo o prazer que se podia esperar. Lee Senter reprimiu um sentimento de escândalo.

A conversa muito limitada, travada durante a refeição, referiu-se polidamente à maneira como se trabalhava a terra em Trantor.

Foi o velho que perguntou: - O que há a respeito, os hidropônicos? De certo, num mundo como este de Trantor, os hidropônicos devem ser a coisa indicada.

Senter abanou a cabeça lentamente. Sentia-se um pouco deslocado. O seu conhecimento do assunto derivava daquilo que lera nos livros e que não lhe era familiar: - Penso que se trata de uma maneira de cultivar, utilizando produtos químicos? Não, em Trantor não utilizamos esse sistema. Esses hidropônicos exigem um mundo industrial - por exemplo, uma grande indústria química. E quando se dá uma guerra ou uma catástrofe, quando a indústria deixa de funcionar, o povo passa fome. Nem todos os alimentos podem ser cultivados artificialmente. Alguns perdem o seu valor alimentar. A terra é mais barata, é melhor - e sempre mais digna de confiança.

- E a sua produção de alimentos é suficiente?

- Suficiente; talvez monótona. Temos criação que nos fornece ovos, e produzimos leite para os nossos produtos de queijaria - contudo a nossa dieta é reforçada com os produtos provenientes do nosso comércio externo.

- Comércio? - O jovem pareceu animado por um interesse repentino. - Vocês fazem comércio. Mas o que é que vocês exportam?

- Metal - foi a resposta breve. - Ora dê-se ao cuidado de olhar. Temos uma reserva infinita, já trabalhada. Eles vêm de Neotrantor com naves, demolem uma área determinada - aumentando o nosso espaço de cultura - e em troca dão-nos carne, frutas enlatadas, alimentos concentrados, máquinas agrícolas e coisas semelhantes. Eles levam o metal e ambas as partes lucram,

Banquetearam-se com pão e queijo, e um prato de vegetais que era indiscutivelmente delicioso. Foi durante a sobremesa de frutas cristalizadas, o único artigo do cardápio que era importado que, pela primeira vez, os estrangeiros passaram a ser mais alguma coisa do que simples visitas. O jovem apresentou um mapa de Trantor.

Lee Senter estudou-o calmamente. Apontou para ele - e disse com gravidade: - Os terrenos da Universidade são uma área estática. Ali não cultivamos nada. E, de preferência, nem sequer lá entramos. É uma das nossas poucas relíquias dos tempos passados que mantemos inalteradas.

- Nós queríamos fazer uma observação, depois de nos conhecermos. Não iremos estragar nada. A nossa nave será o nosso refém. - O velho fez esta oferta - avidamente, febrilmente.

- Nesse caso posso levá-los lá - disse Senter.

Nessa noite os estrangeiros dormiram, e nessa noite Lee Senter enviou uma mensagem para Neotrantor.

 

CONVERTIDO

A frágil vida de Trantor decorria suavemente, sem sentido, quando eles penetraram na zona dos espaçados edifícios vazios dos terrenos da Universidade. Havia ali um silêncio solene e solitário.

Os estrangeiros da Fundação nada sabiam dos turbulentos dias e noites do Saque sangrento que deixara a Universidade ilesa. Nada sabiam do período que se sucedera ao colapso do poder Imperial, quando os estudantes, com armas emprestadas, e as faces pálidas mostrando uma coragem sem experiência, formaram um corpo de voluntários para proteger e defender o santuário da ciência da Galáxia. Não sabiam nada dos Sete Dias de Combates, e do armistício que deixara a Universidade livre, quando até o palácio Imperial estremecia sob as botas de Gilmer e de seus soldados, durante o curto intervalo de seu governo.

Aquela gente da Fundação, aproximando-se pela primeira vez, compreendia apenas que, num mundo que fazia a transição de um velho mundo esvaziado para uma nova forma de vida, esta área era uma tranqüila e graciosa peça de museu, evocando uma antiga grandeza.

Eram intrusos, num certo sentido. Eram repelidos pelo vácuo meditativo. A atmosfera acadêmica parecia estar ainda viva e parecia agitar-se iradamente perante a profanação.

A biblioteca era um pequeno edifício deveras decepcionante que se alargava por um vasto subterrâneo, revelando um volume colossal de silêncio e de sonho. Ebling Mis fez uma pausa diante dos elaborados murais do aposento de recepção.

Sussurrou - alguém tinha de sussurrar ali: - Penso que vamos passar pelos gabinetescatálogos, pelo caminho que estamos seguindo. Vou ficar lá.

Tinha a testa enrugada, e as mãos tremiam-lhe: - Não quero que ninguém me perturbe, Torã. Você será capaz de me trazer as minhas refeições?

- Tudo o que você quiser. Havemos de ajudá-lo em tudo o que pudermos. Se desejar, trabalharemos sob a sua orientação...

- Não. Devo ficar sozinho.

- Você está pensando que há de acabar por encontrar aquilo de que precisa.

Ebling Mis replicou com uma certeza: - Sei que a encontrarei.

Torã e Bayta passaram a viver uma "vida doméstica" de uma maneira mais normal do que em qualquer outro período de sua vida de casados. Era a estranha espécie de "vida doméstica ". Viviam no meio da magnificência com uma simplicidade imprópria. Sua alimentação era largamente fornecida pela fazenda de Lee Senter e era paga com pequenos instrumentos atômicos que podiam ser encontrados em qualquer nave comercial.

Magnífico aprendeu a servir-se pessoalmente dos projetores no gabinete de leitura da biblioteca e devorava novelas e romances de aventuras a tal ponto que quase se esquecia de comer e de dormir, tanto como Ebling Mis.

O próprio Ebling estava completamente sepultado. Instalara uma rede que ia rebocando através do Gabinete das Referências de Psicologia. Sua face ia-se tornando adelgaçada e esvaída. O seu vigor de conservador desaparecera e as suas pragas favoritas tinham morrido, quase sem se dar por isso. Foi um período em que tanto a aparição de Torã como a de Bayta tinham o ar de serem uma intromissão violenta.

Estava mais tempo em companhia de Magnífico, que lhe trazia as refeições e muitas vezes se sentava à espera dele, durante horas, estranhamente absorto e fascinado, enquanto o envelhecido psicólogo transcrevia equações sem fim, anotava referências de um sem-número de filmes, agitava-se incansavelmente dominado por um terrível esforço mental para chegar a um fim que só ele antevia.

Torã chegou ao seu aposento às escuras e chamou com secura: -Bayta!

Bayta apareceu com ar culpado: - Sim? Quer alguma coisa, Torie?

- Claro, quero falar com você. Em que espaço é que está vivendo? Anda com esta má disposição toda desde que viemos para Trantor. O que é que aconteceu?

- Oh, Torie, cale-se - disse ela, aborrecida.

- E - Oh, Torie, cale-se! - arremedou ele, com impaciência. Depois acrescentou com repentina suavidade: - Não quer me dizer o que não está bem, Bayta? Há alguma coisa que a aborrece.

- Não! Não é nada, Torie, se você continuar assim a aborrecer-me e a tornar a aborrecer-me, é que acabo por ficar maluca. Eu estou apenas... pensando.

- Pensando em que?

- Em nada. Bem, a respeito do Mulo, e de Haven e da Fundação, e de todas as coisas. A respeito de Ebling Mis e do inferno a que ele se sujeita para descobrir qualquer coisa a respeito da Segunda Fundação, e meditando se essa descoberta nos ajudará quando a conseguirmos - e um milhão de coisas mais. Está satisfeito? - A sua voz soava com agitação.

- Se está apenas meditando, como é que há de conseguir parar? Não é agradável e não parece de grande ajuda para a situação.

A voz de Magnífico ouviu-se lá fora com um grito agitado: - Minha senhora...

- O que é? Entre...

A voz de Bayta engasgou-se repentinamente quando a porta aberta mostrou uma face ampla e áspera...

- Pritcher - exclamou Torã.

Bayta gaguejou: - Capitão! Como é que conseguiu encontrar-nos?

Han Pritcher entrou. Sua voz mostrou-se nítida e normal, e completamente despojada de sentimento: - O meu posto é agora de coronel... sob o Mulo.

- Ao serviço do... Mulo! - a voz de Torã arrastou-se.

Os três formavam um quadro. Magnífico encarou-o friamente e recuou para trás de Torã. Ninguém lhe pôs obstáculos.

Bayta disse, com as mãos trêmulas agarradas uma á outra: - Você veio prender-nos? Você passou realmente ao serviço dele?

O coronel replicou rapidamente: - Não vim para prendê-los. As minhas instruções não lhes fazem referência. No que lhe diz respeito, estou livre, e prefiro servir-me da nossa velha amizade, se me derem licença para isso.

O rosto de Torã estava torcido devido a uma fúria reprimida: - Como é que você nos encontrou? Você estava na nave filiana, nesse caso? Você seguiu-nos.

A grosseira falta de expressão do rosto de Pritcher deu indícios de ter estremecido de maneira embaraçada: - Eu estava na nave filiana! Encontrei-os da primeira vez... bem... por acaso.

- É um acaso matematicamente impossível.

- Não. Antes simplesmente improvável, até onde os meus conhecimentos chegam. Em qualquer caso, você confessou aos filianos - não há, decerto, qualquer nação que se chame atualmente Filia - que você estava dirigindo-se para o setor de Trantor, e a partir daí o Mulo estabeleceu os seus contatos com Neotrantor, e era fácil tê-los retido ali. Desgraçadamente, vocês saíram antes de eu ter chegado, mas não muito tempo antes. Tive tempo de ordenar aos fazendeiros de Trantor que me remetessem o relatório referente à sua chegada. Assim se fez e aqui estou. Posso sentar-me? Sou amigo, acreditem em mim.

Sentou-se. Torã inclinou a cabeça e pensou inutilmente. Com uma paralisada falta de emoção, Bayta preparou o chá.

Torã fitou-o asperamente: - Bem, o que é que você deseja... coronel? Em que é que consiste sua amizade? Se você não nos prende, o que vem a ser então? Uma custódia de proteção? Chame os seus homens e dê-lhes as ordens.

Pritcher meneou pacientemente a cabeça: - Não, Torã. Eu vim falar com vocês por minha própria iniciativa, para persuadi-los quanto â inutilidade do que estão fazendo. Se falhar, vou-me embora. Mais nada.

- Mais nada? Nesse caso pode começar a receitar sua propaganda, ponha fora o seu discurso, e ponha-se a andar. Eu não quero chá, Bayta.

Pritcher aceitou uma chávena, com uma grave frase de agradecimento. Olhou para Torã com uma firmeza nítida quando o sorveu ligeiramente. Acrescentou: - O Mulo é um mutante. Ele não pode ser vencido devido à verdadeira natureza da mutação...

- Por quê? Em que consiste a mutação? - perguntou Torã, com um humor birrento. - Suponho que você nos irá dizer isso agora, não?

- Vou, sim. O conhecimento que tiverem do fato não lhes dará oportunidade de o atingirem. Bem vê - ele é capaz de ajustar o equilíbrio dos sentimentos humanos. Parece um estranho insignificante mas é imbatível.

Bayta interrompeu-o: - O equilíbrio emocional? - Franziu os sobrolhos: - Você não quererá explicar-nos? Eu não consigo compreender perfeitamente.

- Quero dizer que é fácil para ele instilar num general capaz, sabem, um sentimento de completa lealdade para com o Mulo e uma fé completa na sua vitória. Os seus generais são emocionalmente controlados. Não podem trair; não o podem enfraquecer e o controle é permanente. Os seus inimigos mais capazes tornam-se os seus subordinados mais disciplinados. O condestável de Kalgan entregou o seu planeta e transformou-se no vicerei da Fundação.

- E você - acrescentou Bayta, amargamente - atraiçoa a sua causa e transforma-se no enviado do Mulo a Trantor. Estou vendo!

- Ainda não terminei. Os trabalhos de inversão do Mulo são ainda mais eficazes. O desespero é uma emoção. No momento crucial, os homens-chave da Fundação – homens-chave de Haven - desesperaram. Os seus mundos caíram sem ter sido necessário um esforço de grande monta.

- Você quer dizer com isso - sugeriu Bayta, tensamente - que a sensação que tive no Cofre do Tempo derivou do fato de o Mulo estar trabalhando com o meu controle emocional.

- E com o meu também. Com o de toda a gente. Como é que Haven teve o fim que teve?

Bayta virou-lhe as costas.

O coronel Pritcher continuou com grande seriedade: - Tal como trabalha com os mundos, assim trabalha com as pessoas, Pode pôr em ação uma força que obriga um mundo a ficar em condições de se render voluntariamente quando ele assim o deseja; você é capaz de criar um servo devotado ao seu serviço quando lhe apetece?

Torã perguntou vagarosamente: - Como é que você sabe que isso é verdade?

- E capaz de explicar a queda da Fundação e de Haven de outra maneira? Pode explicar a minha conversão de outra maneira? Pense, homem! O que é que você - ou eu - ou a totalidade da Galáxia, conseguiram fazer contra a Mulo durante este tempo todo? Teriam feito ao menos uma pequena coisa qualquer?

Torã decidiu-se a levantar o desafio: - Pela Galáxia, eu posso! - Com um súbito tom de altiva satisfação, gritou: - O seu maravilhoso Mulo teve contatos com Neotrantor, como você disse, para ali nos deterem, não foi? Esses contatos morreram ou sucedeu-lhes pior. Matamos o príncipe herdeiro e deixamos o outro reduzido a um idiota choramingas. O Mulo não nos conseguiu reter lá, e por isso não conseguiu terminar essa operação.

- Ora, não é isso, de forma alguma. Não se tratava dos nossos homens. O príncipe herdeiro era uma mediocridade sempre acharcada em vinho. O outro homem, Commason, é fenomenalmente estúpido. Era uma força no seu mundo mas isto não obstava a que fosse bêbedo, malvado, e completamente incompetente. Nós não tínhamos realmente nada a fazer com eles. Eram, num certo sentido, meras simulações...

- Foram eles que nos detiveram, ou tentaram fazê-lo.

- Tenho a dizer outra vez que não. Commason tinha um escravo pessoal - um homem chamado Inchney. A Retenção era a sua política. É velho, mas serve temporariamente aos nossos objetivos. Vocês não o conseguiriam matar, reparem bem.

Bayta redemoinhou rapidamente ao seu encontro. Não tinha tocado no seu próprio chá:

- Mas, segundo suas próprias declarações, suas próprias emoções foram influenciadas. Você adquiriu fé e confiança no Mulo, um ser não-natural, uma fé doentia no Mulo. Qual será o valor de suas opiniões? Você perdeu toda a possibilidade de ter pensamentos objetivos.

- Está enganada. - O coronel abanou lentamente a cabeça. - Só as minhas emoções estão imobilizadas. A minha razão é aquilo que sempre foi. Pode ser influenciada numa certa direção pelas minhas emoções condicionadas, mas não é forçada. E há umas quantas coisas que eu posso ver mais nitidamente agora do que quando tinha liberdade de dirigir o meu sistema emocional.

- Posso verificar que o programa do Mulo é inteligente e digno. Desde a altura em que fui... convertido, estive examinando sua carreira desde o começo, há uns sete anos atrás. Com a sua força mental de mutante, ele começou por dominar um líder triunfante e o seu bando. Com isto - e o seu poder - conquistou um planeta. Com isto - e o seu poder - estendeu suas garras até poder apanhar o condestável de Kalgan. Cada um dos seus passos abre um caminho lógico aos seguintes. Com Kalgan no bolso, ele dispunha de uma esquadra de primeira classe, e com isso - e o seu poder -podia atacar a Fundação. - A Fundação é a chave. Trata-se da maior área de concentração da Galáxia, e agora que as técnicas atômicas da Fundação estão nas suas mãos, é ele o atual senhor da Galáxia. Com estas técnicas - e o seu poder - ele pode forçar os remanescentes do Império a reconhecer o seu governo, e finalmente - com a morte do velho imperador, que está maluco e não estará muito mais tempo neste mundo - a coroá-lo seu imperador. Sê-lo-á de nome tal como o é de fato. Com isto - e o seu poder - onde há mundo na Galáxia que se lhe possa opor?

- Nestes últimos sete anos, ele fundou um novo Império. Em sete anos, outras palavras, ele deve ter efetuado tudo aquilo que a psicohistória de Seldon só podia ter feito em mais de setecentos. A Galáxia acabará por ter finalmente paz e ordem. E vocês não o conseguirão deter - do mesmo modo que não são capazes de deter o movimento de um planeta apenas com os vossos ombros.

Seguiu-se um longo silêncio à explicação de Pritcher. O chá que ficara na chávena esfriara. Ele esvaziou a chávena, voltou a enchê-la, e bebeu vagarosamente. Torã mordeu raivosamente a unha do polegar. O rosto de Bayta estava frio, distante e lívido.

Depois Bayta disse com um fio de voz: - Não estamos convencidos. Se o Mulo deseja que nos ponhamos a seu lado, que venha pessoalmente apresentar-nos suas condições. Você lutou com ele até o último momento da sua conversão, imagino eu, não foi?

- Assim sucedeu - respondeu solenemente o coronel Pritcher.

- Nesse caso, conceda-nos o mesmo privilégio.

O coronel Pritcher levantou-se. Com um ar crispado de determinação, disse: - Nesse caso vou-me embora. Como disse ao princípio, minha missão atual não tem nada a ver com o caminho de vocês. Por conseguinte, não penso que seja necessário participar suas presenças aqui. Não se trata de uma grande amabilidade. Se o Mulo desejar que vocês parem, não duvido que ele tenha outros homens designados para fazer esse trabalho, e vocês serão detidos. Mas, o que não tem grande mérito, eu não contribuirei para esse fim mais do que aquilo que é meu desejo.

- Muito obrigada - disse Bayta indistintamente.

- E faço o mesmo com o Magnífico. Onde é que ele está? Venha cá, Magnífico, não lhe quero fazer mal...

- O que é que há a respeito dele? - perguntou Bayta, com súbita animação.

- Nada. As minhas instruções também não o mencionam. Tenho ouvido dizer que andam á procura dele, porém o Mulo há de acabar por encontrá-lo quando isso se tornar indispensável. Eu não direi nada. Posso cumprimentá-los?

Bayta apertou-lhe a mão. Torã fitou-o com ar feroz, recusando-se a corresponder ao cumprimento.

Houve o deslizar descendente dos ombros de ferro do coronel. Encaminhou-se para a porta, virou-se e disse:

- Mais uma coisa. Não pensem que não estou a par da causa da obstinação de vocês. Sei que vocês andam á procura da Segunda Fundação. O Mulo, no devido tempo, há de tomar as medidas necessárias. Nada ajudará vocês... Mas já conheci vocês em outras circunstâncias; talvez haja alguma coisa na minha consciência que me anime a fazer isto; seja como for, tento ajudá-los e afastá-los do perigo final antes que seja demasiado tarde. Adeus.

Saudou repentinamente - e foi-se embora.

Bayta virou-se para o silencioso Torã e sibilou: - Eles também sabem o que se passa com a Segunda Fundação.

No recôndito da biblioteca, Ebling Mis, desconhecedor de tudo, inclinou-se sobre a faísca de luz no meio dos espaços obscuros e pôs-se a resmungar triunfantemente consigo mesmo.

 

MORTE DE UM PSICÓLOGO

Depois disso decorreram as duas últimas semanas de Ebling Mis.

E nessas duas semanas, Bayta esteve com ele três vezes. A primeira vez foi na noite seguinte àquela em que se encontraram com o coronel Pritcher. A segunda foi uma semana depois. E a terceira vez voltou a ser mais uma semana depois - no último dia – o dia da morte de Mis.

Primeiro, verificou-se a noite que se seguiu à visita do coronel Pritcher, a primeira hora da qual foi gasta pelo casal aflito numa meditação frenética e desagradável.

Bayta disse: - Torie, temos de contar isto a Ebling.

Torã observou vagarosamente: - Pensa que pode ajudá-lo?

- Nós somos apenas dois. Não podemos desprezar qualquer ajuda de valor que possa aparecer. Talvez ele possa ajudar.

Torã replicou: - Ele está mudado. Perdeu peso. Está reduzido à pele e osso; quase não se vê. - Os dedos riscaram o ar metaforicamente. - Às vezes penso que não nos poderá ajudar grande coisa - como sempre. Às vezes, penso que nada nos poderá ajudar.

- Não pode! - A voz de Bayta sofreu uma torção'e revelou uma fraqueza: - Torie, não pode! Quando você diz isto, penso no Mulo que anda atrás de nós. Deixe-me ir contar isto ao Ebling. Torie... agora!

Ebling Mis levantou a cabeça da extensa mesa, e os seus olhos turvos ficaram a observá-los enquanto se iam aproximando. O seu cabelo ralo estava eriçado, os lábios moviam-se descansadamente, sugerindo palavras.

- Eh? - perguntou ele. - Alguém deseja falar comigo?

Bayta dobrou os joelhos: - Viemos acordá-lo? Quer que nós vamos embora?

- Ir embora? Quem é? Bayta? Não, não, deixe-se ficar! Há cadeiras? Eu as vi... – Os dedos apontavam vagamente.

Torã puxou duas, Bayta sentou-se e tomou uma das flácidas mãos do psicólogo nas suas. - Podemos falar consigo, doutor? - Ela raras vezes usava este título.

- Há alguma coisa correndo mal? - Voltou a surgir nos seus olhos abstratos uma minúscula centelha. Sua face desbotada voltou a ganhar um toque de cor. - Há alguma coisa correndo mal?

Bayta respondeu: - O capitão Pritcher esteve aqui. Deixe-me ser eu a dizer, Torã. Lembra-se do capitão Pritcher, doutor?

- Lembro... lembro... - Contraiu os lábios e voltou a distendê-los. -Um homem alto. Democrata.

- Sim, esse mesmo. Ele descobriu uma mutação do Mulo. Esteve aqui, doutor, e contou-nos isso.

- Mas não há nada de novo nessa afirmação. A mutação do Mulo é correta. - E com espanto honesto: - Eu não lhes contei? Será que me esqueci de lhes contar?

- Esqueceu-se de nos contar o que? - insistiu Torã, rapidamente.

- Mas é evidente que a respeito da mutação do Mulo. Ele influi por via das emoções. Controle emocional! Eu não lhes tinha dito? Por que é que me teria esquecido? - Lentamente, pôs-se a mordiscar o lábio inferior e meditou.

Depois do que, vagarosamente, a vida subiu à sua voz e as suas pálpebras se abriram amplamente, como se no seu espírito frouxo tivesse surgido a evidência de um rasto bem definido. Falou como um sonho, olhando entre os seus dois ouvintes mais do que para qualquer deles. - É uma coisa realmente muito simples. Não exige conhecimentos especializados. Nas matemáticas da psicohistória, decerto, trabalha-se mais rapidamente, porque uma equação de terceiro grau não envolvendo mais... Nunca tinha pensado nisto. Pode ser dito com palavras comuns... grosseiramente... e tem um sentido interior, que não é habitual nos fenômenos psicohistóricos.

- Perguntem a si mesmos... O que é que pode contrariar o cuidadoso esquema de história de Hari Seldon, heim? - Olhou para um e para outro com uma ansiedade interrogativa e suave. - O que foram as previsões originais de Hari Seldon? Primeiro, que não haveria mudança fundamental na sociedade humana durante os próximos mil anos.

- Por exemplo, suponham que havia uma mudança radical na tecnologia da Galáxia, tal como a descoberta de novos princípios para a utilização da energia, ou aperfeiçoamento da aplicação da neurobiologia eletrônica. As mudanças sociais tornariam obsoletas as equações originais de Seldon. Mas isto não se verificou, não é verdade?

- Ou suponham que uma nova arma fora inventada por forças exteriores à Fundação, capaz de se opor a todos os armamentos da Fundação. Isto poderia causar um desvio ruidoso, todavia, menos certamente. Porém, foi exatamente isso o que sucedeu. O campo Depressor Atômico do Mulo foi uma arma grosseira e podia ser contrariada. E foi esta a única novidade que ele apresentou, embora sendo pobre.

- Mas havia uma segunda hipótese, mais sutil! Seldon supunha que as reações humanas aos estímulos permaneceriam constantes. Admitindo que a primeira reação se conservou correta, nesse caso a segunda deve ter falhado! Algum fator deve estar torcendo as respostas emocionais dos seres humanos, pois, caso contrário, Seldon não podia ter caído e a Fundação não podia ter caído. E que outro fator senão o Mulo?

- Estou vendo corretamente? Há alguma falha no raciocínio?

A mão roliça de Bayta apertou suavemente as dele: - Não existe nenhuma falha, Ebling.

Mis estava satisfeito como uma criança. - Isto e algo mais foram conclusões que me surgiram com relativa facilidade. Digo-lhes que algumas vezes me admirei que não tivesse entrado mais cedo no âmago do problema. Eu parecia anular o tempo em que tudo fora um mistério para mim à medida que as coisas se iam tornando do que podia ser, e seja como for, dentro de mim, vejo e compreendo. E meus amigos, as minhas teorias parecem sempre estar aumentando. Há uma força em mim... que vai sempre em frente... que eu não consigo deter... e não quero comer ou dormir... mas andar sempre para adiante... e então... e então...

A sua voz era um sussurro; a sua mão devastada e percorrida por veias azuis ficou tremendo debaixo de sua testa. Havia um frenesi nos seus olhos que desbotavam e continuavam abertos.

Disse mais calmamente: - Então eu nunca lhes dissera nada a respeito dos poderes mutantes do Mulo, hein? Mas nesse caso... quem é que lhe disse o que acontecia com eles?

- Foi o capitão Pritcher, Ebling - respondeu Bayta. - Lembra-se?

- Disse-lhes? - Havia um resquício de afronta no seu tom. - Mas como é que ele conseguiu descobri-los?

- Foi condicionado pelo Mulo. Agora é coronel, um homem do Mulo. Veio aqui aconselhar-nos a que nos rendêssemos ao Mulo, e contou-nos aquilo que você nos contou.

- Nesse caso o Mulo sabe onde estamos? Tenho de me apressar... Onde está o Magnífico? Não veio com vocês?

- O Magnífico está dormindo - esclareceu Torã, impacientemente. -Já passa da meia-noite, sabe?

- Está? Nesse caso... Eu estava dormindo quando vocês aqui chegaram?

- Estava - disse Bayta decididamente - e não vai pôr-se a trabalhar outra vez, agora. Você vai se meter na cama. Vamos embora, Torã, ajude-me. E você pare de me empurrar, Ebling, porque é só para seu bem e não quero metê-lo primeiro debaixo de um chuveiro. Tire-lhe os sapatos, Torie, e venha cá amanhã cedo e leve-o para o ar livre antes que ele enfraqueça completamente com esta vida que está levando. Olhe por você, Ebling, você está ficando coberto de teias de aranha. Tem fome?

Ebling Mis meneou a cabeça e olhou da sua cama de lona numa confusão impaciente.

- Queria que amanhã me trouxessem o Magnífico - murmurou ele.

Bayta puxou-lhe o lençol até o queixo. - Você há de ter-me aqui amanhã, com roupas limpas. Você está precisando de um banho e depois sair e visitar a fazenda, e tomar um bocado de sol em cima dessa pele.

- Não posso fazer isso - protestou Mis com voz débil. - Está ouvindo? Estou demasiado ocupado.

Seus cabelos ralos desenharam-se em cima do travesseiro como uma franja de prata em volta da cabeça. Sua voz tornou-se um murmúrio confidencial: - Vocês precisam desta Segunda Fundação, não precisam?

Torã virou-se rapidamente e inclinou-se para a cama de lona por cima dele: - O que há a respeito da Segunda Fundação, Ebling?

O psicólogo tirou um braço para fora e os seus dedos rígidos agarraram camisa de Torã: - A Fundação, onde se realizou uma grande Convenção psicológica presidida por Hari Seldon. Torã, localizei as atas desta Convenção Vinte e cinco nutridos filmes. Já estive observando vários resumos.

- E então?

- Então, você sabe que é muito fácil descobrir, a partir deles, a localização exata da Primeira Fundação, desde que se saiba tudo a respeito da psicohistória. Encontram-se ali freqüentes referências, quando estamos em condições de compreender as equações. Contudo, Torã, ninguém menciona a Segunda Fundação. Não há referência em parte alguma.

Torã franziu as sobrancelhas preocupadamente: - Quer dizer que ela não existe?

- Decerto que existe - exclamou Mis, zangado - quem foi que disse que não existia? Mas ninguém fala dela. A sua significação - e tudo o que a ela se refere - tornou-se mais secreta, mais obscura. Não compreende? É a mais importante das duas. É a mais crítica; aquela que tem importância! Consegui descobrir as atas da Convenção de Seldon. O Mulo ainda não ganhou...

Calmamente, Bayta apagou as luzes: - Durma!

Em silêncio, Torã e Bayta tomaram o caminho dos seus próprios quartos.

No dia seguinte, Ebling Mis tomou banho e penteou-se sem ajuda de ninguém, viu o sol de Trantor e sentiu o vento de Trantor pela última vez. No fim do dia estava outra vez mergulhado no gigantesco recôndito da livraria, e nunca mais dali voltou a sair.

Durante a semana que se seguiu, a vida voltou outra vez ao seu ritmo normal. O sol de Neotrantor era uma estrela calma e brilhante no céu noturno de Trantor. A fazenda estava atarefada com as sementeiras da Primavera. Os terrenos da Universidade estavam silenciosos no seu abandono. A Galáxia parecia vazia. O Mulo podia nunca ter existido.

Bayta estava meditando nisto mesmo enquanto observava Torã acendendo cuidadosamente o seu charuto, e olhando para as seções de céu azul visíveis entre os enxames de torres de metal que limitavam o horizonte.

- Está um lindo dia - disse ele.

- Está sim. Tem alguma coisa mencionada na relação, Torie?

- Claro que sim. Meio quilo de manteiga, doze ovos, uma medida de feijão... Vou agora mesmo lá embaixo, Bay. Tratei tudo direitinho.

- Ótimo. E veja que as verduras sejam da última colheita e não relíquias de museu. Viu o Magnífico, por acaso?

- Desde o desjejum que não o vejo. Parece-me que estava lá embaixo com Ebling Mis, vendo um filme.

- Muito bem. Não perca muito tempo, pois preciso dos ovos para o jantar.

Torã pôs-se a caminho virando a cabeça para trás com um sorriso e acenando com a mão.

Bayta voltou para trás quando perdeu Torã de vista entre o labirinto de metal. Hesitou diante da porta da cozinha, voltou vagarosamente pelo mesmo caminho, e entrou na colunata que levava ao elevador que servia os gabinetes interiores.

Ebling Mis estava ali, com a cabeça inclinada sobre os visores do projetor, imóvel, um corpo gelado, indagador. Magnífico encontrava-se perto dele, enroscado numa cadeira, com olhos agudos e indagadores, uma trouxa com beiços de ardósia e um nariz que tornava acentuado o seu rosto irregular.

Bayta disse devagarinho: - Magnífico...

Magnífico apressou-se a pôr-se de pé. Sua voz era um sussurro ávido: - Minha senhora!

- Magnífico - disse Bayta. - Torã foi à fazenda e só regressará daqui a bocado de tempo. Quer ser bom rapaz e ir atrás dele levar-lhe um recado que vou escrever?

- Com muito prazer, minha senhora. Os meus pequenos préstimos estão inteiramente às suas ordens, para os insignificantes usos que lhe puder dar.

Ela ficou sozinha com Ebling Mis, que não se mexera. Firmemente, ela pousou-lhe a mão no ombro. - Ebling...

O psicólogo encarou-a, com uma exclamação lamurienta; - Quem é? -Piscou os olhos. - É você, Bayta? Onde está o Magnífico?

- Mandei-o levar um recado. Preciso estar a sós com você um momento. – Foi pronunciando as suas palavras com exagerada nitidez. - Desejo falar com você, Ebling.

O psicólogo esboçou um movimento para regressar ao seu projetor, mas a mão que lhe estava pousada no ombro era firme. Ela sentiu o osso  debaixo da manga transparente. A carne parecia ter-se dissolvido muito regularmente, desde que chegaram a Trantor. Sua face estava magra, amarelada, e trazia uma barba rija de meia semana. Os seus ombros curvavam-se visivelmente, mesmo numa posição sentada.

Bayta disse: - O Magnífico não o está aborrecendo, não é, Ebling? Ele passa dia e noite aqui embaixo.

- Não, não, não! De maneira nenhuma. Por que, não compreendo. Permanece em silêncio e nunca me incomoda. Às vezes leva os filmes que já me serviram; parece adivinhar aquilo que desejo sem ser necessário eu falar. É por isso mesmo que o deixo ficar aqui.

- Muito bem... mas, Ebling, esta atitude não o surpreende? Está ouvindo o que lhe digo, Ebling? Esta atitude não o surpreende?

Ela puxou uma cadeira para o lado dele e fitou-o como se lhe quisesse ler a resposta nos olhos.

Ebling Mis meneou a cabeça: - Não. O que é que você quer dizer com isso?

- Quero dizer que o coronel Pritcher e você disseram que o Mulo pode condicionar as emoções dos seres humanos. Mas está bem certo disso? Não é o próprio Magnífico uma falha na sua teoria?

Fez-se silêncio.

Bayta reprimiu um poderoso desejo de agitar o psicólogo. - O que há de mal com você, Ebling? O Magnífico era o palhaço do Mulo. Por que é que ele não o condicionou para que lhe tivesse amor e fé? Porque, veja bem, todas as pessoas que estiveram em contato com o Mulo ficam assim determinadas.

- Mas... mas ele foi condicionado. Sim, com certeza, Bay! - Parecia ir firmando sua certeza à medida que ia falando. - Você supõe que o Mulo trata o seu palhaço de maneira que trata os seus generais? Dos últimos precisa de fé e lealdade, mas do seu palhaço ele precisa apenas de fé. Você nunca se deu conta de que o contínuo estado de pânico do Magnífico é patológico por natureza? Você supõe que é natural para um ser humano andar tão assustado como ele tem andado durante todo este tempo? Um medo prolongado torna-se cômico. Era, provavelmente, cômico para o Mulo - e proveitoso, também, pois que obscurece qualquer ajuda que pudéssemos ter obtido precocemente do Magnífico.

Bayta perguntou: - Quer dizer com isso que as informações do Magnífico a respeito do Mulo são falsas?

- Estava desencaminhado. Estava dominado por um medo patológico. O Mulo não é o gigante físico que o Magnífico pensa. É mais provavelmente um homem comum, desde que deixemos de lado suas forças mentais. Mas divertiu-se aparecendo como superhomem aos olhos do pobre Magnífico...

- O psicólogo encolheu os ombros. - Seja como for, a informação de Magnífico depressa deixará de ter importância.

- Onde é que fica, então?

Mas Mis pareceu perder-se nessa altura e regressou ao projetor.

- Onde é que fica, então? - insistiu ela. - A Segunda Fundação?

Os olhos do psicólogo fitaram-se nela. - Você ouviu dizer alguma coisa a esse respeito? Não me lembro de ter contado isso a alguém. Ainda não está inteiramente pronto. O que foi que lhe disseram?

- Nada - respondeu Bayta, intensamente. - Oh, Galáxia, não me conte nada, mas desejava que você tivesse acertado porque estou mortalmente cansada. Quando é que você saberá ao certo?

Ebling Mis olhou para ela, vagamente triste: - Bem, agora, minha... minha querida, não desejo feri-la. Esqueço-me às vezes... de quem são os meus amigos. Às vezes parece-me que não devo falar disto a ninguém. Há necessidade de mantermos o segredo - mas em relação ao Mulo, não em relação a você, minha querida. - Deu-lhe umas palmadinhas no ombro com uma débil amabilidade.

Ela teimou: - O que é que há acerca da Segunda Fundação?

A voz dele era um murmúrio automático, agudo e sibilante: - Conhece a perfeição com que Seldon ocultou o seu rasto? As atas da Convenção de Seldon não poderiam ter sido utilizadas por mim ainda há um mês atrás, antes desta estranha perspicácia ter aparecido. Ainda agora, ela me parece tênue. Os documentos publicados pela Convenção são muitas vezes aparentemente sem relação entre si; sempre obscuros. Mais de uma vez senti curiosidade de saber se os membros da Convenção sabiam que tudo isto estava no espírito de Seldon. Penso algumas vezes que ele utilizou a Convenção apenas como uma gigantesca fachada, e sem uma única ajuda ergueu a estrutura...

- Das Fundações? - sugeriu Bayta.

- Da Segunda Fundação! Para a nossa Fundação era simples. Mas a Segunda Fundação era apenas um nome. Foi mencionada, mas se havia alguma referência, estava profundamente escondida sob os elementos matemáticos. Ainda não há muito que eu apenas começara a compreender, mas durante estes sete dias, os fragmentos têm-se ido agrupando num conjunto que forma um quadro vago.

A Fundação Número Um era um mundo de cientistas físicos. Representava uma concentração da ciência agonizante da Galáxia, mantendo as condições necessárias para continuar viva. Não foram incluídos psicólogos. Era uma distorção peculiar, e deve ter tido um objetivo. A explicação habitual foi que a psicohistória de Seldon trabalhava melhor nos lugares onde os indivíduos formavam unidades de trabalho - seres humanos - sem conhecimento do que estava por acontecer, podendo, por conseguinte, reagir com naturalidade perante todas as situações. Está seguindo o que estou dizendo, minha querida...

- Estou sim, doutor.

- Então ouça atentamente. A Fundação Número Dois era um mundo de cientistas mentais. Era a imagem do nosso mundo num espelho. A psicologia, e não a física, tinha o domínio. - Triunfantemente: - Está compreendendo?

- Não.

- Mas pense, Bayta, utilize a cabeça. Hari Seldon sabia que a sua psicohistória podia prever apenas probabilidades, e não certezas. Havia sempre uma possibilidade de erro e, à medida que o tempo passava, esta margem de erro aumentava numa escala geométrica. Seldon queria naturalmente protegê-la o melhor possível contra tal possibilidade. A nossa Fundação era cientificamente vigorosa. Podia adquirir exércitos e armas. Podia contrapor a força â força. Mas podia defender-se do ataque mental de um mutante como o Mulo?

- Isto devia ser para os psicólogos da Segunda Fundação! - Bayta sentiu a excitação percorrer-lhe o corpo todo.

- Sim, sim, sim! Certamente!

- Mas eles não fizeram nada até aqui.

- E você sabe o conhecimento que eles têm disto?

Bayta meditou a pergunta: - Não sei. Você tem alguma prova de quem são eles?

- Não. Há muitos elementos acerca dos quais nada sei. A Segunda Fundação pode não ter sido estabelecida já completa, podendo por isso comparar-se com o que nós éramos. As estrelas sabem bem qual é agora a dimensão da sua força. Estarão eles suficientemente fortes para lutar com o Mulo? Estarão eles cientes do perigo, em primeiro lugar? Terão chefes capazes?

- Mas se eles estão dentro do Plano de Seldon, nesse caso o Mulo deve ser vencido pela Segunda Fundação.

- Ah - e o rosto magro de Ebling Mis contraiu-se pensativamente - é isso outra vez? Mas a Segunda Fundação foi um trabalho mais difícil do que a Primeira. A sua complexidade é imensamente maior; e conseqüentemente as suas possibilidades de erro correm paralelamente a essa complexidade. E se a Segunda Fundação não derrotar o Mulo, isso será mau - fundamentalmente mau. É o fim, pode ser o fim, da raça humana tal como a conhecemos.

- Não.

- Sim. Se os descendentes do Mulo herdarem as suas forças mentais... Compreende? O Homo sapiens não poderia rivalizar com eles. Haveria uma nova raça dominante – uma nova aristocracia - como o Homo sapiens condenado ao trabalho escravo como uma raça inferior. Não será assim?

- Sim, é isso mesmo.

- E ainda que por qualquer impossibilidade o Mulo não funde uma dinastia, estabelecerá contudo um novo Império falseado, sustentado apenas pela sua própria força. Morrerá com a sua morte; a Galáxia voltará outra vez ao ponto onde estava quando ele apareceu, exceto que deixariam de existir Fundações distintas e que podia aparecer um autêntico e saudável Segundo Império. Ficariam eliminados milhares de anos de barbárie. E não significaria fim imediato.

- O que é que nós podemos fazer? Podemos avisar a Segunda Fundação?

- Devemos, pois caso contrário é possível que continuem a viver na ignorância, que nós não podemos deixar continuar. Mas não há maneira de avisá-los.

- Não há maneira?

- Não sei onde é que eles estão localizados. Estão "na outra extremidade da Galáxia" mas isto é tudo o que se sabe, e há milhões de mundos para escolher qual será o deles.

- Mas, Ebling, isso aí não diz? - Ela apontava vagamente para os filmes que cobriam a mesa.

- Não, não dizem. Nem dizem onde posso acabar por encontrá-los - por ora. O segredo deve significar alguma coisa. Deve haver uma razão... - Voltou a aparecer-lhe nos olhos uma expressão perplexa. - Mas eu desejo que você se vá embora. Tenho perdido muito tempo, e isto está andando devagar... perdido devagar.

Inclinou-se para a frente, petulante e franzindo as sobrancelhas.

Aproximaram-se os passos macios de Magnífico. - Seu marido está em casa, minha senhora.

Ebling Mis não respondeu ao cumprimento do palhaço. Voltara ao seu projetor.

Nessa tarde Torã, tendo ouvido o que ela lhe disse, indagou: - E pens;a você que ele está realmente no caminho certo, Bay? Não está... Pensa que ele... - Sentia-se hesitante.

- Ele está no caminho certo, Torie. Ele está doente, sei isso muito bem. A mudança que nele se verificou, a perda de peso, a maneira como fala... ele está doente. Mas em tudo o que se refere ao Mulo ou á Segunda Fundação, ou em qualquer outra coisa em que ele esteja trabalhando, devemos consultá-lo, e ouvi-lo. É lúcido e claro como o céu de outro espaço. Ele sabe daquilo que fala. Acredito no que ele diz.

- Nesse caso há esperança. - Tratava-se de uma meia pergunta.

- Eu... eu não tenho pensado nisso. Talvez! Talvez não! De agora em diante passo a trazer um desintegrador comigo. - A arma de canos luzidios estava na mão enquanto falava. - Precisamente para o caso, precisamente para o caso...

- Para o caso de que?

Bayta riu-se com um laivo de histeria: - Ainda não pensei nisso. Talvez eu seja também uma maluquinha - como Ebling Mis.

Ebling Mis tinha, nessa altura, sete dias á sua frente para viver, e os sete dias escoaram-se, um após outro, tranqüilamente.

Para Torã, havia uma espécie de espanto á volta deles. Estavam cobertos pelos dias quentes e pelo silêncio intenso, com sua letargia. Todas as vidas pareciam ter perdido suas qualidades de ação, o que transformava o meio ambiente num infinito mar de hibernação.

Mis era uma entidade escondida cujo trabalho de escavação não produzia nada e não lhe dava a saber a ele mesmo. Tinha-se trancafiado ali dentro. Nem Torã nem Bayta podiam vê-lo. Só as características idas e vindas de Magnífico tornavam evidente sua existência. Magnífico, tornado silencioso e pensativo, passava com as suas grandes bandejas de comida e um ar silencioso e atento onde se evidenciava tristeza.

Bayta era uma criatura cada vez mais metida consigo. Desaparecera sua vivacidade, sua competência autogarantida oscilava. Ela, também, procurava sua própria companhia, absorta e aflita, e uma vez Torã tinha-se lançado sobre ela empunhando o desintegrador.

Ela afastara-o rapidamente do seu caminho, forçando-se a um sorriso.

- O que é que acontece com você, Bayta?

- Domino-me. Será um crime?

- Você ainda acaba perdendo a cabeça.

- Então perco-a mesmo. Pequena perda!

A vida de casado tinha prevenido Torã quanto à futilidade de discutir com uma mulher quando esta evidenciava um humor sombrio. Encolheu os ombros e deixou-a ficar.

No dia seguinte, Magnífico apareceu às pressas e esbaforido diante deles. Agarrou-os, assustado: - O doutor sábio está chamando vocês. Não está bem.

E não estava bem. Encontrava-se na cama, com os olhos desmesuradamente arregalados, desmesuradamente brilhantes. Estava sujo, irreconhecível.

- Ebling! - exclamou Bayta.

- Deixe-me falar - rosnou o psicólogo, que levantou um pouco o seu peso sobre o cotovelo, com esforço: - Deixe-me falar. Acabei: entrego-lhes o trabalho. Não tomei notas; destruí os restos de todos os diagramas. Ninguém mais os deve conhecer. Tudo deve ficar registrado nos seus espíritos.

- Magnífico - disse Bayta, com dureza direta: - Vá lá para cima! Relutantemente, o palhaço levantou-se e encaminhou-se para a saída. Os seus olhos sombrios estavam fitos em Mis.

Mis gesticulou debilmente: - Não há razão para isso; deixem-no ficar. Fique, Magnífico.

O palhaço sentou-se rapidamente. Bayta pôs-se a examinar o pavimento. Vagarosamente, vagarosamente, pôs-se a mordiscar o lábio inferior com os dentes.

Mis disse, num sussurro: - Estou convencido de que a Segunda Fundação pode ganhar, se não for prematuramente apanhada pelo Mulo. Ela tem defendido o seu próprio segredo; o segredo deve ser mantido; ela tem um objetivo. Vocês devem ir lá; a nossa informação é vital... pode estar nela a diferença total em relação ao futuro. Estão me ouvindo?

Torã exclamou, quase em agonia: - Estamos, estamos! Diga-nos como é que devemos ir, Ebling? Onde é?

- Eu lhes digo - disse a voz moribunda. Nunca chegou a dizê-lo.

Bayta, cujo rosto se tornara lívido, empunhou o seu desintegrador e disparou, com um estrondo de explosão. A parte superior de Mis desaparecera, e um buraco irregular abria-se na parede atrás dele. Dos dedos paralisados, o desintegrador de Bayta caiu no pavimento.

 

FIM DA BUSCA

Não havia uma palavra a dizer. O eco do disparo afastou-se pelos outros aposentos e reboou com um rumor rouco e agonizante. Antes de desaparecer, abafou o estrondo seco do desintegrador de Bayta ao cair no pavimento, sufocou o choro de Magnífico que se ia elevando gradualmente, afogou o inarticulado grito de Torã.

Houve um silêncio de agonia.

A cabeça de Bayta estava dobrada na obscuridade. Uma lágrima refletiu a luz quando caiu. Bayta nunca havia chorado até então.

Os músculos de Torã quase estalaram com o seu espasmo, mas não se relaxou – sentiu-se como se nunca mais devesse voltar a descerrar os dentes. A face de Magnífico era uma máscara seca e vazia de vida.

Finalmente, por entre os dentes ainda cerrados, Torã lançou para fora uma voz irreconhecível: - Nesse caso, também é uma mulher do Mulo. Ele conseguiu apanhá-la!

Bayta levantou a cabeça, e sua boca torceu-se com uma dolorosa alegria: - Eu, uma mulher de Mulo? Isso é irônico!

Sorriu - com esforço - e deitou o cabelo para trás. Vagarosamente, sua voz foi regressando ao tom normal, ou a qualquer coisa que com ele se parecia. - Já está arrumado, Torã; agora posso falar. Embora eu continue viva, não sei nada. Mas posso começar a falar...

A tensão de Torã ficara destruída por via do seu próprio peso e fê-lo passar para um entorpecimento flácido: - Falar acerca de quê, Bayta? O que há a dizer a respeito disto?

- A respeito da calamidade que nos tem seguido. Nós já tínhamos reparado nisso, Torie. Não se lembra? Quantas derrotas sucederam nos nossos calcanhares e nunca no momento em que nos podiam beliscar? Estávamos na Fundação, e ela sucumbiu desastrosamente quando os Comerciantes Independentes ainda combatiam - mas nós estávamos, nessa época, a caminho de Haven. Estávamos em Haven, e ele sucumbiu desastrosamente enquanto os outros ainda combatiam - e dessa vez também de lá tínhamos saído. Viemos para Neotrantor, e agora ele foi indubitavelmente alcançado pelo Mulo.

Torã ouviu e meneou a cabeça: - Não compreendo.

- Torie. há muitas coisas que não acontecem na vida real. Você e eu somos pessoas insignificantes; não iríamos passar de um turbilhão de problemas políticos para outro, continuamente, durante o espaço de um ano - a menos que carreguemos esse turbilhão conosco. A menos que carreguemos a origem da infecção conosco! Está entendendo o que quero dizer?

Os lábios de Torã estreitaram-se. Seu olhar fixou-se horrivelmente nos restos sangrentos do que fora uma vez um ser humano, - e sentiu mal-estar.

- Vamos para fora, Bay. Vamos para o ar livre.

Estava escuro lá fora. O vento soprou sobre eles com monótono arranco e desarranjou o cabelo de Bayta. Magnífico tinha-se arrastado atrás deles e agora rondava à sua volta sem entrar na conversa que mantinham.

Torã disse com dificuldade: - Você matou Ebling Mis porque compreendeu que ele era o foco da infecção? - Às vezes os seus olhos cravavam-se nela. - Era ele o Mulo? – Ele não conseguia, não podia compreender as implicações existentes em suas palavras.

Bayta riu-se: - O pobre Ebling, o Mulo? Galáxia, não! Não o poderia ter morto se ele fosse o Mulo. Ele teria detectado a emoção que acompanhou o meu movimento e mudá-lo-ia em amor, devoção, adoração, terror, qualquer coisa que lhe agradasse. Não, matei Ebling por que ele não era o Mulo. Matei-o porque ele sabia onde ficava a Segunda Fundação, e em dois segundos teria revelado o segredo ao Mulo.

- Teria revelado o segredo ao Mulo? - perguntou Torã estupidamente. - Revelado ao Mulo...

E nessa altura lançou uma exclamação abrupta, e virou-se para encarar com horror o palhaço, que se agachara, inconsciente e aparentemente sem compreender o que tinha ouvido.

- Não é o Magnífico? - Torã sibilou a pergunta.

Ouça! - disse Bayta. - Lembre-se do que aconteceu em Neotrantor? Oh, pense por você, Torie...

Porém ele meneou a cabeça e resmungou para ela.

Ela continuou, com ar cansado: - Houve um homem que morreu em Neotrantor. Morreu sem que ninguém lhe tivesse tocado. Não é verdade? Magnífico tocava o seu audiovisor e quando acabou, o príncipe herdeiro estava morto. Agora, não há qualquer coisa de estranho nisto? Não é singular que uma criatura com medo de tudo, aparentemente impotente por causa do terror, tenha capacidade de matar quando deseja?

- A música e os efeitos luminosos - disse Torã - têm um profundo efeito emocional...

- Sim, um efeito emocional. Um efeito até muito grande. Porém acontece que os efeitos emocionais são a especialidade do Mulo. O que, admito eu pode ser considerado uma coincidência. E uma criatura que pode matar por sugestão não pode estar tão possuída de medo. Bem, o Mulo determinou o seu espírito, suponha-se, e o fato pode ser explicado desta maneira. Porém, Torã, recordava-me de uma pequena parte da seleção do audiovisor que matou o príncipe herdeiro. Só um bocadinho - mas o suficiente para obrigar a me lembrar do mesmo sentimento de desespero que me assaltara no Cofre do Tempo e em Haven. Torã, não havia possibilidade de me enganar quanto a esse sentimento peculiar.

A face de Torã estava se tornando sombria: - Eu... também o senti. Compreendo. Jamais pensara...

- Foi então que me ocorreu a primeira sugestão. Tratava-se apenas de um sentimento vago - uma intuição, se quiser. Não havia nada em que me pudesse firmar. E nessa altura Pritcher contou-nos o que se passava com o Mulo e a sua mutação, e tudo se tornou claro, num instante. Fora o Mulo quem criara o desespero no Cofre do Tempo; foi o Mulo que criou o desespero em Neotrantor. Era a mesma emoção. Por conseguinte, o Mulo e o Magnífico eram a mesma pessoa. Não lhe parece que foi um lindo trabalho, Torie? Não é exatamente como um axioma em geometria - o todo é igual â soma das partes?

Ela estava á beira da histeria, porém dominou-se e voltou a recuperar a sobriedade fazendo um esforço. Continuou: - A descoberta assustou-me até a morte. Se o Magnífico fosse o Mulo, ele poderia identificar minhas emoções - e orientá-las para atingir os seus próprios objetivos. Não me atrevia a deixá-las conhecer. Passei a evitá-lo. Afortunadamente, ele passou a evitar-me também; estava excessivamente interessado em Ebling Mis. Planejei matar Mis antes que ele pudesse falar. Planejei-o secretamente–tão secretamente quanto me foi possível - tão secretamente que nem sequer me atrevia a confessar isso a mim mesma. Se me fora possível matar o próprio Mulo... Porém eu não podia tentar essa possibilidade. Ele havia de se aperceber disso, e teríamos perdido tudo.

Ela parecia esgotada de emoção.

Torã disse abruptamente e com determinação: - É impossível. Olhe para esta miserável criatura. Ele o Mulo? Nem sequer consegue ouvir aquilo que estamos dizendo.

Porém quando os seus olhos seguiram o dedo apontado, Magnífico estava ereto e alerta, os seus olhos brilhavam. A sua voz não tinha o menor indício de sotaque. - Ouvi o que ela disse, meu amigo. Sucede, apenas, que estive sentado meditando no fato de, com toda a minha inteligência e previdência, ter podido cometer um erro, e perder tanta coisa.

Torã deu uns passos atrás como se com medo que o palhaço lhe pudesse tocar ou que o seu hálito o pudesse contaminar.

Magnífico meneou a cabeça, e respondeu á pergunta que não chegava a ser feita: - Eu sou o Mulo.

Já não parecia grotesco; os seus lábios carnudos, seu nariz trombudo perderam as qualidades que forçavam ao riso. Tinha-lhe desaparecido o medo; o seu porte era firme. Estava no domínio da situação com uma facilidade que nascia do hábito.

Disse, francamente: - Sentem-se também. Para a frente; vocês podiam estender-se ao comprido e instalarem-se confortavelmente. A partida está jogada, e eu gostaria de lhes contar uma história. É uma fraqueza minha - desejo pessoas que me ouçam.

E quando os seus olhos se fixaram em Bayta, eram ainda os velhos, macios e escuros olhos castanhos de Magnífico, o palhaço.

- Não há realmente nada da minha infância - começou ele, mergulhando com o corpo todo numa explicação rápida e impaciente - que eu seja capaz de recordar. Talvez possam compreender isto. A minha alteração é glandular, nasci com este nariz. Não me foi possível viver uma infância normal. Minha mãe morreu antes de me poder ver. Não conheci meu pai. Cresci ao acaso; ferido e torturado em espírito, cheio de autopiedade e odiado pelos outros. Era então conhecido como sendo uma criança esquisita. Todos me evitavam; a maior parte das pessoas com aversão; algumas com medo. Ocorreram acidentes esquisitos... Bem, nunca me lembro! O suficiente para habilitar o capitão, Pritcher, nas investigações que fez a respeito da minha infância, a compreender que eu era um mutante, o que era mais do que eu tinha compreendido até atingir os meus vinte anos.

Torã e Bayta ouviam friamente. O barulho da sua voz chegava até eles, sentados no chão como eles estavam, quase desapercebidos. O palhaço - ou o Mulo - colocou-se diante deles com pequenos gestos, falando com braços cruzados.

- A noção total do meu poder fora do comum parece ter-me parecido vagarosamente, através de mudanças insignificantes. Antes de ter chegado ao fim, não o conseguia compreender. Para mim, os espíritos dos homens são mostradores, com ponteiros, que indicam as emoções dominantes. É uma imagem pobre, mas como poderei explicar isto de outra forma? Lentamente, compreendi que podia penetrar dentro desses espíritos e girar o ponteiro para o ponto que eu quisesse, e que podia fixá-lo ali para sempre.

E então levei outro tanto tempo para constatar que as outras pessoas não podiam fazêlo.

- Porém acabou por nascer em mim a consciência do poder, e com ele, o desejo de me emancipar da miserável posição de minha vida anterior. Talvez possam compreendê-lo. Não é fácil ser uma raridade - ter espírito e compreensão e ser uma exceção. Riso e crueldade! Ser diferente! Ser um intruso!.

- Vocês nunca passaram por isso!

Magnífico olhou para o céu e balançou, apoiando-se nos pés, e continuou a recordar inflexivelmente: - Porém dei-me ocasionalmente conta do que se passava, e decidi que a Galáxia e eu podíamos seguir o mesmo ritmo Vejamos, eles tiveram os seus períodos de domínio, e eu mostrara-me paciente a esse respeito - durante vinte e dois anos. A minha vez! E havia de ficar assim para o resto dos meus dias! E as desigualdades causariam muito medo â Galáxia. Um de mim! Trilhões deles!

Fez uma pausa para fitar Bayta com um olhar muito rápido: - Mas eu tinha uma fraqueza. Pessoalmente eu não era nada. Se quisesse alcançar o poder, só o podia fazer por intermédio dos outros. Só podia conseguir o êxito através de algum intermediário.

Sempre! Foi como Pritcher contou. Através de um pirata, consegui a minha primeira base asteroidal de operações. Através de um industrial consegui o meu primeiro apoio num planeta. Através de uma infinita variedade de outras pessoas, liquidei o condestável de Kalgan, venci o próprio Kalgan e consegui uma armada. Depois disto, foi a Fundação – e vocês dois entraram na história.

- A Fundação - disse ele, lentamente - foi a mais difícil tarefa com que me tinha defrontado. Para a vencer, eu teria de atrair o favor das pessoas, destruir, ou inutilizar uma extraordinária proporção da sua classe gover nante. Podia tê-lo feito de supetão – mas era possível um golpe reduzido, e não me descuidei de fazê-lo. Afinal de contas, se um homem forte pode levantar trezentos quilos, isso não significa que esteja ávido de o fazer seguidamente. O meu controle emocional não é uma tarefa fácil, e prefiro não utilizá-lo, onde não for inteiramente necessário. Por isso aceitei aliados no primeiro ataque que fiz á Fundação.

- Como meu palhaço, eu procurei o agente, ou agentes da Fundação que deviam ter sido enviados a Kalgan para investigar a minha humilde pessoa. Soube agora que era Han Pritcher que estava encarregado disso. Por um golpe de sorte, encontrei vocês ao invés dele. Sou um telepata, mas não completamente e, minha senhora, vocês eram da Fundação. Deixei-me seduzir por isso. Não era fatal que Pritcher viesse juntar-se a nós depois, porém isto foi o ponto inicial de um erro que foi fatal.

Torã mostrou-se excitado pela primeira vez. Falou num tom insultado:

- Ouça lá, agora. Você quer dizer que, quando fiz frente àquele oficial em Kalgan, apenas com uma pistola de choque, e o livrei - que você me havia controlado emocionalmente. - Sua voz era balbuciante: - Você quer dizer que tenho sido dominado a partir de então.

Apareceu um sorriso tênue no rosto de Magnífico: - E por que não? Você pensa que não é provável? Pergunte a si mesmo nesse caso... Ter-se-ia arriscado a morrer por um desconhecido grotesco que jamais vira mais gordo, se estivesse no pleno domínio do seu raciocínio? Eu imagino que vocês ficaram surpresos com os resultados quando meditaram depois neles a sangue frio.

- É certo - disse Bayta, distantemente - assim foi. É completamente angustiante.

- Sucede, porém - continuou o Mulo - que Torã não correu qualquer risco. O tenente tinha as suas próprias instruções para nos deixar ir embora. Por isso nós, os três e Pritcher, nos encaminhamos para a Fundação - e vejam como a minha campanha se iniciou instantaneamente. Quando Pritcher foi julgado em tribunal marcial, e nós estávamos presentes, eu estava ocupado, os juizes militares daquele tribunal iriam mais tarde comandar os seus esquadrões durante a guerra. Renderam-se com grande facilidade, e a minha Armada ganhou a batalha de Horleggor, e outros combates de menor importância.

- Por intermédio de Pritcher, consegui estabelecer contato como Dr. Mis, que me forneceu um audiovisor, inteiramente de sua própria vontade, o que simplificou imensamente a minha tarefa. Só que esta não decorria inteiramente de acordo com aquilo que eu desejava.

Bayta interrompeu: - Aqueles concertos! Sempre me esforcei por compreender o que é que havia com eles. Agora já estou vendo.

- Sim - continuou Magnífico - o audiovisor atua como invento desfocador. De certa forma, é um instrumento primitivo para conseguir controle emocional a partir do próprio executante. Com ele, posso manejar mais intensamente pessoas em grupo e pessoas individualmente. Os concertos que realizei em Terminus, antes de sua queda e em Haven, também antes de ter caído, contribuíram para a derrota geral. Eu podia ter obrigado o príncipe herdeiro de Neotrantor a ficar muito doente sem o audiovisor, mas não o poderia ter morto. Compreende?

- Mas Ebling Mis foi o meu contato mais importante. Ele podia ter sido... – Magnífico fez esta observação com desgosto, depois do que se apressou a continuar: - Existe uma faceta especial no emocional que vocês não conhecem. A intuição, perspicácia ou tendência para a suspeita, seja o que for que lhe quiserem denominar, pode ser tratada como uma emoção. Pelo menos, eu posso fazê-lo. Vocês não compreendem o que quero dizer, não é?

Não esperou pela negativa: - A mente humana trabalha com uma eficiência muito reduzida. Vinte por cento é a percentagem habitualmente utilizada. Quando, momentaneamente, há um relâmpago de grande força, chama-se-lhe suspeita, ou perspicácia, ou intuição. Descobri muito cedo que podia levar as pessoas a fazerem uma utilização de uma alta eficiência mental. E um processo mortal para a pessoa submetida a essa utilização, porém é proveitoso... O campo depressor atômico que utilizei na guerra contra Fundação foi o resultado da alta pressão exercida sobre um técnico de Kalgan. Outras vezes trabalho por intermédio de outras pessoas. Ebling Mis era um autêntico touro. As suas potencialidades eram eleva-d s e eu precisava dele. Já antes de minha guerra com a Fundação ter começado eu tinha enviado delegados para negociar com o Império. Foi nessa época que comecei a procurar a Segunda Fundação. Naturalmente, não a consegui encontrar. Naturalmente, soube que devia encontrá-la - e Ebling Mis foi a resposta para essa obrigação. Com o seu espírito e a sua elevada eficiência, ele podia possivelmente refazer o trabalho de Hari Seldon.

- Fê-lo parcialmente. Levei-o até o limite máximo. O processo era implacável, porém devia ser completado. Por fim já estava moribundo, mas viveu... - Voltou a interrompê-lo o desgosto. - Ele podia ter vivido ainda muito tempo. Juntos, nós três podíamos ter avançado para a Segunda Fundação. Podia ter sido a última batalha - mas por equívoco meu, perdeu-se.

Torã excitou-se e perguntou com voz áspera: - Por que é que você precisa se expandir dessa maneira? Qual foi o seu equívoco... e o que quer dizer com esta explicação?

- Porque sua mulher foi o meu equívoco. Sua mulher é uma pessoa fora de série. Jamais encontrara alguma como ela em toda a minha vida. Eu... Eu... – Quase repentinamente, a voz de Magnífico calou-se. Foi com dificuldade que se recobrou. Havia espanto à sua volta quando continuou: - Ela agradou-me antes de eu ter tido tempo de dominar suas emoções. Ela nunca se sentiu repelida por mim nem divertida comigo. Ela tinha pena de mim. Ela gostava de mim!

- Não compreendem? Não são capazes de ver o que isto significava para mim? Até essa altura nunca uma pessoa... Bem, eu... aceitei isto. As minhas próprias emoções trabalhavam em falso, apesar de ser senhor de todas as outras. Firmei isto no seu espírito, vejam bem; não exerci influência sobre ela. Acalentei o sentimento natural com demasiado agrado. Foi este o meu equívoco - o primeiro.

- Você, Torã, estava sob controle. Você nunca desconfiou de mim; nunca me interrogou; nunca viu nada de estranho ou de peculiar na minha pessoa. Por exemplo, quando a nave "filiana" nos mandou parar. Eles conheciam a nossa localização, naturalmente, porque eu estava em comunicação com eles como me tenho mantido em comunicação com os meus generais, em todas as circunstâncias. Quando eles nos mandaram parar, eu fiz tentativas para ir a bordo para controlar Han Pritcher, que lá viajava como prisioneiro. Quando o deixei, era coronel, um homem do Mulo, e no comando. O conjunto da ação decorreu inteiramente sob a sua observação, Torã. Contudo, você aceitou a explicação que dei do caso, embora estivesse cheia de trapalhadas. Compreende o que quero dizer?

Torã fez uma careta e replicou: - Como é que você consegue manter-se em comunicação com os seus generais?

- Não há nenhuma dificuldade no caso. Os transmissores de ultra-ondas são fáceis de manejar e altamente portáteis. Nem eu podia ser detectado num sentido real! Qualquer pessoa que me surpreendesse a fazê-lo esquecer-me-ia depois de eu lhe ter extirpado uma camada de sua memória. Aconteceu, ocasionalmente.

- Em Neotrantor, as minhas desvairadas emoções voltaram a dominar-me. Bayta não estava sob meu controle, mas mesmo assim jamais poderia ter desconfiado de mim se eu tivesse mantido a cabeça no lugar quanto ao príncipe. Suas intenções em relação a Bayta aborreceram-me. Matei-o. Foi um gesto desvairado. Um combate obstrutivo podia ter feito o mesmo serviço.

- E todavia as suas suspeitas podiam não se ter transformado em certezas, se eu tivesse impedido o falatório bem intencionado de Pritcher, ou tivesse dado menos atenção a Mis e mais a você... Encolheu os ombros.

- Nesse caso é o fim? - perguntou Bayta.

- É o fim, realmente.

- E então agora?

- Vou continuar com o meu programa. Que eu possa encontrar outro indivíduo com um espírito tão elevado e treinado como Ebling Mis nestes dias degenerados, é coisa de que duvido. Terei de continuar a procurar a Segunda Fundação, por outro lado. Num certo sentido, você me derrotou.

E agora Bayta estava de pé, triunfante. - Num certo sentido? Só num certo sentido? Nós derrotamo-lo inteiramente. Todas as suas vitórias fora da Fundação não valem nada, desde que a Galáxia é agora um vácuo de barbárie. A própria Fundação é uma vitória menor e é a Segunda Fundação que o há de derrotar. A sua única possibilidade estava em localizá-la e atacar antes de ela conseguir estar preparada. Você, agora, já não conseguirá vencê-la. Ela estará preparada para o receber, em todos os minutos de agora em diante. Neste momento, neste momento a máquina pode ter começado a funcionar. Você saberá - quando ela o vencer, e o seu curto prazo de poder tiver chegado ao fim, e você for apenas mais um empertigado conquistador, passando rápida e mesquinhamente pela face sangrenta da história.

Ela respirava com dificuldade, quase gaguejando, devido à veemência com que se exprimia: - E nós o derrotamos, eu e o Torã. Estou satisfeita por morrer.

Porém os olhos castanhos e melancólicos do Mulo eram os olhos castanhos, melancólicos e apaixonados do Magnífico. - Não a irei matar nem ao seu marido. É, afinal de contas, impossível que vocês dois me firam mais; e se os matasse não conseguiria com isso recuperar Ebling Mis. Os meus equívocos são inteiramente pessoais, e assumo inteira responsabilidade por eles. O seu marido e você podem continuar a viver!

- Vão em paz, por causa daquilo a que eu denomino - amizade.

Então, com um repentino toque de prece: - E entrementes eu continuo sendo o Mulo, o homem mais poderoso da Galáxia. Ainda haverei de derrotar a Segunda Fundação.

E Bayta lançou as suas últimas setas com uma certeza calma e firme: -Não conseguirá! Agora já tenho fé na sabedoria de Seldon. Você será o último governador de sua dinastia, assim como é o primeiro.

Alguma coisa foi atingida no Magnífico: - Da minha dinastia? Sim, eu pensei nisso, muitas vezes. Que podia ter fundado uma dinastia. Que podia ter uma consorte à minha altura.

Bayta surpreendeu repentinamente o sentido do brilho dos seus olhos e ficou horrorosamente gelada.

Magnífico meneou a cabeça: - Estou sentindo sua repulsa, porém isto é estúpido. Se as coisas fossem de outra maneira, eu podia fazê-la feliz com muita facilidade. Seria um arrebatamento artificial, não haveria diferença entre ele e a emoção genuína. Mas as coisas agora estão definidas. Dou a mim mesmo o nome de Mulo... mas não por causa da minha força... como é óbvio...

Deixou-os ficar, sem olhar para trás uma única vez.

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

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