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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Perto do Coração Selvagem / Clarice Lispector
Perto do Coração Selvagem / Clarice Lispector

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Perto do Coração Selvagem

 

Este é o primeiro romance de Clarice Lispector, e talvez o que se tenha tornado mais famoso. Publicou-o, em 1944, pela Editora A Noite, quando não tinha mais que dezessete anos. Álvaro Lins, então o melhor crítico literário do país, manifestou-se imediatamente, não se furtando a escrever: "Nosso primeiro romance dentro do espírito e da técnica de Joyce e Virgínia Woolf" — autores que, de resto, Clarice ainda não lera e, segundo ela própria declarou depois, jamais viria a ler...

 

               

O PAI

A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silên­cio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? roupa-roupa-roupa. Não, não. Entre o relógio, a má­quina e o silêncio havia uma orelha à escuta, gran­de, cor-de-rosa e morta. Os três sons estavam liga­dos pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se esfregavam umas nas outras radiantes.

Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. E podia sentir como se estivesse bem próxima de seu nariz a terra quente, socada, tão cheirosa e seca, onde bem sabia, bem sabia uma ou outra minhoca se espreguiçava antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer.

Houve um momento grande, parado, sem nada dentro. Dilatou os olhos, esperou. Nada veio. Bran­co. Mas de repente num estremecimento deram cor­da no dia e tudo recomeçou a funcionar, a máqui­na trotando, o cigarro do pai fumegando, o silêncio, as folhinhas, os frangos pelados, a claridade, as coi­sas revivendo cheias de pressa como uma chaleira a ferver. Só faltava o tin-dlen do relógio que enfei­tava tanto. Fechou os olhos, fingiu escutá-lo e ao som da música inexistente e ritmada ergueu-se na ponta dos pés. Deu três passos de dança bem leves, alados.

Então subitamente olhou com desgosto para tudo como se tivesse comido demais daquela mistu­ra. "Oi, oi, oi...", gemeu baixinho cansada e de­pois pensou: o que vai acontecer agora agora agora? E sempre no pingo de tempo que vinha nada acon­tecia se ela continuava a esperar o que ia acontecer, compreende? Afastou o pensamento difícil distraindo-se com um movimento do pé descalço no assoalho de madeira poeirento. Esfregou o pé espiando de través para o pai, aguardando seu olhar impaciente e nervoso. Nada veio porém. Nada. Difícil aspirar as pessoas como o aspirador de pó.

—  Papai, inventei uma poesia.

—  Como é o nome?

—  Eu e o sol. — Sem esperar muito recitou:

— "As galinhas que estão no quintal já comeram duas minhocas mas eu não vi".

—  Sim? Que é que você e o sol têm a ver com a poesia?

Ela olhou-o um segundo. Ele não compreende­ra...

—  O sol está em cima das minhocas, papai, e eu fiz a poesia e não vi as minhocas... — Pausa.

—  Posso inventar outra agora mesmo: "Ó sol, vem brincar comigo". Outra maior:

"Vi uma nuvem pequena coitada da minhoca acho que ela não viu".

—  Lindas, pequena, lindas. Gomo é que se faz uma poesia tão bonita?

—  Não é difícil, é só ir dizendo.

Já vestira a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa onde brilhava entre todas as outras filhas. Um carro azul atravessava o corpo de Aríete, matava-a. Depois vinha a fada e a filha vivia de novo. A filha, a fada, o carro azul não eram senão Joana, do contrário seria pau a brincadeira. Sem­pre arranjava um jeito de se colocar no papel prin­cipal exatamente quando os acontecimentos ilumina­vam uma ou outra figura. Trabalhava séria, calada, os braços ao longo do corpo. Não precisava aproxi­mar-se de Aríete para brincar com ela. De longe mesmo possuía as coisas.

Divertiu-se com os papelões. Olhava-os um ins­tante e cada papelão era um aluno. Joana era a pro­fessora. Um deles bom e outro mau. Sim, sim, e daí? E agora agora agora? E sempre nada vinha se ela... pronto.

Inventou um homenzinho do tamanho do fura-bolos, de calça comprida e laço de gravata. Ela usa­va-o no bolso da farda de colégio. O homenzinho era uma pérola de bom, uma pérola de gravata, tinha a voz grossa e dizia de dentro do bolso: "Majestade Joana, podeis me escutardes um minuto, só um mi­nuto podereis interromperdes vossa sempre ocupa­ção?" E declarava depois: "Sou vosso servo, prin­cesa. É só mandar que eu faço".

—  Papai, que é que eu faço?

—  Vá estudar.

—  Já estudei.

—  Vá brincar.—  Já brinquei.

—  Então não amole.

Deu um corrupio e parou, espiando sem curio­sidade as paredes e o teto que rodavam e se desman­chavam. Andou na ponta dos pés só pisando as tá­buas escuras. Fechou os olhos e caminhou, as mãos estendidas, até encontrar um móvel. Entre ela e os objetos havia alguma coisa, mas quando agarrava essa coisa na mão, como a uma mosca, e depois es­piava — mesmo tomando cuidado para que nada escapasse — só encontrava a própria mão, rósea e desapontada. Sim, eu sei o ar, o ar! Mas não adian­tava, não explicava. Esse era um de seus segredos. Nunca se permitiria contar, mesmo a papai, que não conseguia pegar "a coisa". Tudo o que mais valia exatamente ela não podia contar. Só falava tolices com as pessoas. Quando dizia a Rute, por exemplo, alguns segredos, ficava depois com raiva de Rute. O melhor era mesmo calar. Outra coisa: se tinha alguma dor e se enquanto doía ela olhava os pon­teiros do relógio, via então que os minutos contados no relógio iam passando e a dor continuava doendo. Ou senão, mesmo quando não lhe doía nada, se fi­cava defronte do relógio espiando, o que ela não es­tava sentindo também era maior que os minutos con­tados no relógio. Agora, quando acontecia uma ale­gria ou uma raiva, corria para o relógio e observava os segundos em vão.

Foi à janela, riscou uma cruz no parapeito e cuspiu fora em linha reta. Se cuspisse mais uma vez — agora só poderia à noite — o desastre não acon­teceria e Deus seria tão amigo dela, mas tão amigo que... que o quê?

—  Papai, que é que eu faço?

—  Eu já lhe disse: vá brincar e me deixe!

—  Mas eu já brinquei, juro. Papai riu:

—  Mas brincar não termina...

—  Termina sim.

—  Invente outro brinquedo.

—  Não quero brincar nem estudar.

—  Quer fazer o quê então? Joana meditou:

—  Nada do que sei...

—  Quer voar?, pergunta papai distraído.

—  Não, responde Joana. — Pausa. — Que é que eu faço?

Papai troveja dessa vez:

—  Bata com a cabeça na parede!

Ela se afasta fazendo uma trancinha nos cabe­los escorridos. Nunca nunca nunca sim sim, canta baixinho. Aprendeu a trançar um dia desses. Vai pa­ra a mesinha dos livros, brinca com eles olhando-os a distância. Dona de casa marido filhos, verde é ho­mem, branco é mulher, encarnado pode ser filho ou filha. "Nunca" é homem ou mulher? Por que "nun­ca" não é filho nem filha? E "sim"? Oh, tinha mui­tas coisas inteiramente impossíveis. Podia-se ficar tardes inteiras pensando. Por exemplo: quem disse pela primeira vez assim: nunca?

Papai termina o trabalho e vai encontrá-la sen­tada chorando.

—  Mas que é isso, menininha? — pega-a nos braços, olha sem susto o rostinho ardente e triste. — O que é isso?

—  Não tenho nada o que fazer.Nunca nunca sim sim. Tudo era como o baru­lho do bonde antes de adormecer, até que se sente um pouco de medo e se dorme. A boca da máquina fechara como uma boca de velha, mas vinha aquilo apertando seu coração como o barulho do bonde; só que ela não ia adormecer. Era o abraço do pai. O pai medita um instante. Mas ninguém pode fazer alguma coisa pelos outros, ajuda-se. Anda tão solta a criança, tão magrinha e precoce... Respira apres­sado, balança a cabeça. Um ovinho, é isso, um ovinho vivo. O que vai ser de Joana?

 

O DIA DE JOANA

A certeza de que dou para o mal, pensava Joana.

O que seria então aquela sensação de força con­tida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a se­gurança irrefletida de uma fera? Não era no mal apenas que alguém podia respirar sem medo, acei­tando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreen­dida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconseqüências, de egoísmo e vitalidade.

Lembrou-se do marido que possivelmente a des­conheceria nessa idéia. Tentou relembrar a figura de Otávio. Mal, porém, sentia que ele saíra de casa, ela se transformava, concentrava-se em si mesma e, como se apenas tivesse sido interrompida por ele, continuava lentamente a viver o fio da infância, es­quecia-o e movia-se pelos aposentos profundamente só. Do bairro quieto, das casas afastadas, não lhe chegavam ruídos. E, livre, nem ela mesma sabia o que pensava.

Sim, ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repugnava-lhe deixar um dia esse animal solto. Por medo talvez da falta de estética. Ou receio de alguma revelação... Não, não, — repetia-se ela — é pre­ciso não ter medo de criar. No fundo de tudo possi­velmente o animal repugnava-lhe porque ainda havia nela o desejo de agradar e de ser amada por alguém poderoso como a tia morta. Para depois no entanto pisá-la, repudiá-la sem contemplações. Porque a me­lhor frase, sempre ainda a mais jovem, era: a bon­dade me dá ânsias de vomitar. A bondade era morna e leve, cheirava a carne crua guardada há muito tem­po. Sem apodrecer inteiramente apesar de tudo. Re­frescavam-na de quando em quando, botavam um pouco de tempero, o suficiente para conservá-la um pedaço de carne morna e quieta.

Um dia, antes de casar, quando sua tia ainda vivia, vira um homem guloso comendo. Espiara seus olhos arregalados, brilhantes e estúpidos, tentando não perder o menor gosto do alimento. E as mãos, as mãos. Uma delas segurando o garfo espetado num pedaço de carne sangrenta — não morna e quieta, mas vivíssima, irônica, imoral —, a outra crispando-se na toalha, arranhando-a nervosa na ânsia de já comer novo bocado. As pernas sob a mesa marca­vam compasso a uma música inaudível, a música do diabo, de pura e incontida violência. A ferocidade, a riqueza de sua cor... Avermelhada nos lábios e na base do nariz, pálida e azulada sob os olhos miú­dos. Joana estremecera arrepiada diante de seu po­bre café. Mas não saberia depois se fora por repug­nância ou por fascínio e voluptuosidade. Por ambos certamente. Sabia que o homem era uma força. Não se sentia capaz de comer como ele, era naturalmente sóbria, mas a demonstração a perturbava. Emociona­va-a também ler as histórias terríveis dos dramas

onde a maldade era fria e intensa como um banho de gelo. Como se visse alguém beber água e desco­brisse que tinha sede, sede profunda e velha. Talvez fosse apenas falta de vida: estava vivendo menos do que podia e imaginava que sua sede pedisse inunda­ções. Talvez apenas alguns goles... Ah, eis uma li­ção, eis uma lição, diria a tia: nunca ir adiante, nun­ca roubar antes de saber se o que você quer roubar existe em alguma parte honestamente reservado pa­ra você. Ou não? Roubar torna tudo mais valioso. O gosto do mal — mastigar vermelho, engolir fogo adocicado.

Não acusar-me. Buscar a base do egoísmo: tudo o que não sou não pode me interessar, há impossi­bilidade de ser além do que se é — no entanto eu me ultrapasso mesmo sem o delírio, sou mais do que eu quase normalmente —; tenho um corpo e tudo o que eu fizer é continuação de meu começo; se a civilização dos Maias não me interessa é porque nada tenho dentro de mim que se possa unir aos seus baixos-relevos; aceito tudo o que vem de mim por­que não tenho conhecimento das causas e é pos­sível que esteja pisando no vital sem saber; é essa a minha maior humildade, adivinhava ela.

O pior é que ela poderia riscar tudo o que pen­sara. Seus pensamentos eram, depois de erguidos, es­tátuas no jardim e ela passava pelo jardim olhando e seguindo o seu caminho.

Estava alegre nesse dia, bonita também. Um pouco de febre também. Por que esse romantismo: um pouco de febre? Mas a verdade é que tenho mes­mo: olhos brilhantes, essa força e essa fraqueza, ba­tidas desordenadas do coração. Quando a brisa leve, a brisa de verão, batia no seu corpo, todo ele estre­mecia de frio e calor. E então ela pensava muito rapidamente, sem poder parar de inventar. É porque estou muito nova ainda e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto — refletia. Pensar agora, por exemplo, em regatos louros. Exatamente porque não existem regatos louros, compreende? assim se foge. Sim, mas os dourados de sol, louros de certo mo­do...  Quer dizer que  na  verdade  não  imaginei. Sempre a mesma queda: nem o mal nem a imagina­ção. No primeiro, no centro final, a sensação sim­ples e sem adjetivos, tão cega quanto uma pedra rolando. Na imaginação, que só ela tem a força do mal, apenas a visão engrandecida e transformada: sob ela a verdade impassível. Mente-se e cai-se na verdade. Mesmo na liberdade, quando escolhia ale­gre novas veredas, reconhecia-as depois. Ser livre era seguir-se afinal, e eis de novo o caminho traçado. Ela só veria o que já possuía dentro de si. Perdido pois o gosto de imaginar. E o dia em que chorei? — havia certo desejo de mentir também — estudava matemática e subitamente  senti  a  impossibilidade tremenda e fria do milagre. Olho por essa janela e a única verdade, a verdade que eu não poderia dizer àquele homem, abordando-o, sem que ele fugisse de mim, a única verdade é que vivo. Sinceramente, eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é demais. Lembro-me de um estudo cromático de Bach e perco a inteligên­cia. Ele é frio e puro como gelo, no entanto pode-se dormir sobre ele. Perco a consciência, mas não im­porta, encontro a maior serenidade na alucinação. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro, nos lábios — na língua principalmente —, na superfície dos bra­ços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer. O gosto é cinzento, um pouco avermelhado, nos peda­ços velhos um pouco azulado, e move-se como ge­latina, vagarosamente. Às vezes torna-se agudo e me fere, chocando-se comigo. Muito bem, agora pensar em céu azul, por exemplo. Mas sobretudo donde vem essa certeza de estar vivendo? Não, não passo bem. Pois ninguém se faz essas perguntas e eu... Mas é que basta silenciar para só enxergar, abaixo de todas as realidades, a única irredutível, a da exis­tência. E abaixo de todas as dúvidas — o estudo cromático — sei que tudo é perfeito, porque seguiu de escala a escala o caminho fatal em relação a si mesmo. Nada escapa à perfeição das coisas, é essa a história de tudo. Mas isso não explica por que eu me emociono quando Otávio tosse e põe a mão no peito, assim. Ou senão quando fuma, e a cinza cai no seu bigode, sem que ele note. Ah, piedade é o que sinto então. Piedade é a minha forma de amor. De ódio e de comunicação. É o que me sustenta contra o mundo, assim como alguém vive pelo de­sejo, outro pelo medo. Piedade das coisas que acon­tecem sem que eu saiba. Mas estou cansada, apesar de minha alegria de hoje, alegria que não se sabe de onde vem, como a da manhãzinha de verão. Estou cansada, agora agudamente! Vamos chorar juntos, baixinho. Por ter sofrido e continuar tão docemente. A dor cansada numa lágrima simplificada. Mas ago­ra já é desejo de poesia, isso eu confesso, Deus. Dur­mamos de mãos dadas. O mundo rola e em alguma parte há coisas que não conheço. Durmamos sobre Deus e o mistério, nave quieta e frágil flutuando so­bre o mar, eis o sono.

Por que ela estava tão ardente e leve, como o ar que vem do fogão que se destampa?

O dia tinha sido igual aos outros e talvez daí viesse o acúmulo de vida. Acordara cheia da luz do dia, invadida. Ainda na cama, pensara em areia, mar, beber água do mar na casa da tia morta, em sentir, sobretudo sentir. Esperou alguns segundos sobre a cama e como nada acontecesse viveu um dia comum. Ainda não se libertara do desejo-poder-milagre, desde pequena. A fórmula se realizava tantas vezes: sentir a coisa sem possuí-la. Apenas era pre­ciso que tudo a ajudasse, a deixasse leve e pura, em jejum para receber a imaginação. Difícil como voar e sem apoio para os pés receber nos braços algo ex­tremamente precioso, uma criança por exemplo. Mes­mo só em certo ponto do jogo perdia a sensação de que estava mentindo — e tinha medo de não estar presente em todos os seus pensamentos. Quis o mar e sentiu os lençóis da cama. O dia prosseguiu e dei­xou-a atrás, sozinha.

Ainda deitada, quedara-se silenciosa, quase sem pensar como às vezes sucedia. Observava ligeiramen­te a casa cheia de sol, àquela hora, as vidraças alti­vas e brilhantes como se elas próprias fossem a luz. Otávio saíra. Ninguém em casa. E de tal modo ninguém dentro de si mesma que podia ter os pensa­mentos mais desligados da realidade, se quisesse. Se eu me visse na terra lá das estrelas ficaria só de mim. Não era noite, não havia estrelas, impossível obser­var-se a tal distância. Distraída lembrou-se então de alguém — grandes dentes separados, olhos sem cílios —, dizendo bem seguro da originalidade, mas sincero: tremendamente noturna a minha vida. De­pois de falar, esse alguém ficava parado, quieto co­mo um boi à noite; de quando em quando movia a cabeça num gesto sem lógica e finalidade para de­pois voltar a se concentrar na estupidez. Enchia todo o mundo de espanto. Ah, sim, o homem era de sua infância e junto à sua lembrança estava um molho úmido de grandes violetas, trêmulas de viço... Nesse instante mais desperta, se quisesse, com um pouco mais de abandono, Joana poderia reviver toda a in­fância... O curto tempo de vida junto ao pai, a mudança para a casa da tia, o professor ensinando-lhe a viver, a puberdade elevando-se misteriosa, o internato... o casamento com Otávio... Mas tudo isso era muito mais curto, um simples olhar surpreso esgotaria todos esses fatos.

Era um pouco de febre, sim. Se existisse peca­do, ela pecara. Toda a sua vida fora um erro, ela era fútil. Onde estava a mulher da voz? Onde esta­vam as mulheres apenas fêmeas? E a continuação do que ela iniciara quando criança? Era um pouco de febre. Resultado daqueles dias em que vagava de um lado a outro, repudiando e amando mil vezes as mesmas coisas. Daquelas noites vivendo escuras c silenciosas, as pequenas estrelas piscando no alto. A moça estendida sobre a cama, olho vigilante na penumbra. A cama esbranquiçada nadando na escuri­dão. O cansaço rastejando no seu corpo, a lucidez fugindo ao polvo. Sonhos esgarçados, inícios de vi­sões. Otávio vivendo no outro quarto. E de repente toda a lassidão da espera concentrando-se num mo­vimento nervoso e rápido do corpo, o grito mudo. Frio depois, e sono.

 

UM DIA

Um dia o amigo do pai veio de longe e abraçou-se com ele. Na hora do jantar, Joana viu estupefata e contrita uma galinha nua e amarela sobre a mesa. O pai e o homem bebiam vinho e o homem dizia de quando em quando:

—  Nem posso acreditar que tu tenhas arran­jado uma filha...

O pai voltava-se rindo para Joana e dizia:

—  Comprei na esquina...

O pai estava alegre e também ficava sério, amassando bolinhas de miolo de pão. Às vezes bebi a um grande gole de vinho. O homem virava-se para Joana e dizia:

—  Sabes que o porquinho faz ron-ron-ron? O pai respondia:

—  Tu tens jeito para isso, Alfredo... O nome do homem era Alfredo.

—  Nem vês, continuava o pai, que a guria não está mais em idade de brincar com o que o porco faz...

Todos riam e Joana também. O pai dava-lhe mais uma asa de galinha e ela ia comendo sem pão.

—  Qual a sensação de ter uma guria?, o ho­mem mastigava.

O pai enxugava a boca com o guardanapo, in­clinava a cabeça para um lado e dizia sorrindo:

—  Às vezes a de ter um ovo quente na mão. Às vezes, nenhuma: perda total de memória... Uma vez ou outra a de ter uma guria minha, minha mes­mo.

—  Guria, guria, muria, leria, seria..., cantava o homem voltado para Joana. Que é que tu vais ser quando cresceres e fores moça e tudo?

—  Quanto ao tudo ela não tem a menor idéia meu caro, declarava o pai, mas se ela não se zangar te conto seus projetos. Me disse que quando crescer vai ser herói...

O homem riu, riu, riu. Parou de repente, segu­rou o queixo de Joana e enquanto ele segurava ela não podia mastigar:

—  Não vai chorar pelo segredo revelado, não é, guria?

Depois falava-se sobre coisas que certamente tinham acontecido antes dela nascer. Às vezes mes­mo não eram sobre o tipo de coisas que acontecem, só palavras — mas também de antes dela nascer. Ela preferia mil vezes que estivesse chovendo por­que seria muito mais fácil dormir sem medo do es­curo. Os dois homens buscavam os chapéus para sair; então, ela se levantou e puxou o paletó do pai:

—  Fica mais...

Os dois homens se entreolharam e houve um ins­tante em que ela não sabia se eles haviam de ficar ou de ir. Mas quando o pai e o amigo permaneceram um pouco sérios e depois riram juntos ela soube que iam ficar. Pelo menos até que ela tivesse bastante sono para não se deitar sem ouvir chuva, sem ouvir gente, pensando no resto da casa negra, vazia e ca­lada. Eles sentaram e fumaram. A luz começava a piscar nos seus olhos e no dia seguinte, mal acor­dasse, iria espiar o quintal do vizinho, ver as gali­nhas porque ela hoje comera galinha assada.

— Eu não podia esquecê-la, dizia o pai. Não que vivesse a pensar nela. Uma vez ou outra um pen­samento, como um lembrete para pensar mais tarde. Mais tarde vinha e eu não chegava a refletir seria­mente. Era só aquela fisgada ligeira, sem dor, um ah! não esboçado, um instante de meditação vaga e esquecimento depois. Chamava-se... — olhou para Joana — chamava-se Elza. Me lembro que até lhe disse: Elza é um nome como um saco vazio. Era fina, enviesada — sabe como, não é? —, cheia de poder. Tão rápida e áspera nas conclusões, tão independente e amarga que da primeira vez em que falamos cha­mei-a de bruta! Imagine... Ela riu, depois ficou séria. Naquele tempo eu me punha a imaginar o que ela faria de noite. Porque parecia impossível que ela dormisse. Não, ela não se entregava nunca. E mes­mo aquela cor seca — felizmente a guria não pu­xou —, aquela cor não combinava com uma camisola... Ela passaria a noite a rezar, a olhar para o céu escuro, a velar por alguém. Eu tinha má memó­ria, nem me lembrava por que a chamara de bruta. Mas não tão má que a esquecesse. Via-a ainda ca­minhando sobre um areai, os passos duros, o rosto fechado e longínquo. O mais curioso, Alfredo, é que não poderia ter existido nenhum areai. No en­tanto a visão era teimosa e resistia às explicações.

O homem fumava, quase deitado na cadeira. Joana riscava com a unha o couro vermelho da velha poltrona.

—  Uma vez eu acordei com febre, de madru­gada. Parece até que ainda sinto a língua dentro da boca, quente,  seca, áspera como um trapo. Você sabe meu pavor de sofrer, prefiro vender minha alma. Pois pensei nela. Incrível. Já completara trinta e dois anos, se não me engano. Conhecera-a aos vinte, fugazmente. E num momento de angústia, dentre tan­tos amigos — e mesmo você, que eu não sabia por onde andava — nesse momento pensava nela. Era o diabo...

O amigo ria:

—  É o diabo sim...

—  Tu não imaginas sequer: nunca vi alguém ter tanta raiva das pessoas, mas raiva sincera e des­prezo também. E ser ao mesmo tempo tão boa... secamente boa. Ou estou errado? Eu é que não gos­tava daquele tipo de bondade: como se risse da gen­te. Mas me acostumei. Ela não precisava de mim. Nem eu dela, é verdade. Mas vivíamos juntos. O que eu ainda agora queria saber, dava tudo para saber, é o que ela tanto pensava. Você, como me vê e como me conhece, me acharia o tipo mais simplório perto dela. Imagine então a impressão causada na minha pobre e escassa família: foi como se eu tivesse tra­zido para o seu rosado e farto seio — lembras-te, Alfredo? — os dois riram — foi como se eu tivesse trazido o micróbio da varíola, um herege, nem sei o quê... Sei lá, eu mesmo prefiro que esse broto aí não a repita. E nem a mim, por Deus... Felizmente tenho a impressão de que Joana vai seguir seu pró­prio caminho...

—  E então?, disse o homem em seguida.

— Então... nada. Ela morreu assim que pôde. Depois o homem disse:

—  Espia, tua filha quase dorme...   Faz um ato de bondade: bota-a na cama.

Mas ela não dormia. É que entrefechando os olhos, deixando a cabeça cair de lado, valia um pou­co como se estivesse chovendo, tudo se misturava le­vemente. Assim quando ela deitasse e puxasse o len­çol estaria mais acostumada com dormir e não sen­tiria o escuro pesando sobre o seu peito. Hoje então que ela estava com medo de Elza. Mas não se pode ter medo da mãe. A mãe era como um pai. Enquanto o pai a carregava pelo corredor para o quarto, en­costou a cabeça nele, sentiu o cheiro forte que vinha dos seus braços. Dizia sem falar: não, não, não... Para animar-se pensou: amanhã, amanhã bem cedo ver as galinhas vivas.

 

O fim de sol tremia lá fora nos galhos verdes. Os pombos ciscavam a terra solta. De quando em quando vinham até a sala de aula a brisa e o silên­cio do pátio de recreio. Então tudo ficava mais leve, a voz da professora flutuava como uma bandeira branca.

— E daí em diante ele e toda a família dele foram felizes. — Pausa — as árvores mexeram no quintal, era um dia de verão. — Escrevam em resu­mo essa história para a próxima aula.

Ainda mergulhadas no conto as crianças mo­viam-se lentamente, os olhos leves, as bocas satisfei­tas.

—  O que é que se consegue quando se fica feliz?, sua voz era uma seta clara e fina. A professora olhou para Joana,

—  Repita a pergunta...?

Silêncio. A professora sorriu arrumando os li­vros.

—  Pergunte de novo, Joana, eu é que não ouvi.

—  Queria saber: depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois? — repetiu a menina com obstinação.

A mulher encarava-a surpresa.

—  Que idéia! Acho que não sei o que você quer dizer, que idéia! Faça a mesma pergunta com outras palavras...

—  Ser feliz é para se conseguir o quê?

A professora enrubesceu — nunca se sabia di­zer por que ela avermelhava. Notou toda a turma, mandou-a dispersar para o recreio.

O servente veio chamar a menina para o gabi­nete. A professora lá se achava:

—  Sente-se... Brincou muito?

—  Um pouco...

—  Que é que você vai ser quando for grande?

—  Não sei.

—  Bem. Olhe, eu tive também uma idéia — corou.

—  Pegue num pedaço de papel, escreva essa pergunta que você me fez hoje e guarde-a durante muito tempo. Quando você for grande leia-a de novo. — Olhou-a. — Quem sabe? Talvez um dia você mesma possa respondê-la de algum modo... — Perdeu o ar sério, corou. — Ou talvez isso não tenha importância e pelo menos você se divertirá com...

—  Não.

—  Não o quê? — perguntou surpresa a pro­fessora.

—  Não gosto de me divertir, disse Joana com orgulho.

A professora ficou novamente rosada:

—  Bem, vá brincar.

Quando Joana estava à porta em dois pulos, a professora chamou-a de novo, dessa vez corada até o pescoço, os olhos baixos, remexendo papéis sobre a mesa:

— Você não achou esquisito... engraçado eu mandar você escrever a pergunta para guardar?

—  Não, disse. Voltou para o pátio.

 

O PASSEIO DE JOANA

— Eu me distraio muito, disse Joana a Otávio.

Assim como o espaço rodeado por quatro pa­redes tem um valor específico, provocado não tanto pelo fato de ser espaço mas pelo de estar rodeado por paredes. Otávio transformava-a em alguma coisa que não era ela mas ele mesmo e que Joana recebia por piedade de ambos, porque os dois eram incapa­zes de se libertar pelo amor, porque aceitava sucum­bida o próprio medo de sofrer, sua incapacidade de conduzir-se além da fronteira da revolta. E também: como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?

A tarde era nua e límpida, sem começo nem fim. Pássaros leves e negros voavam nítidos no ar puro, voavam sem que os homens os acompanhassem com um olhar sequer. Bem longe a montanha pairava grossa e fechada. Havia duas maneiras de olhá-la: imaginando que estava longe e era grande, em pri­meiro lugar; em segundo, que era pequena e estava perto. Mas de qualquer modo, uma montanha estúpida, castanha e dura. Como odiava a natureza às vezes. Sem saber por que, pareceu-lhe que a última reflexão, misturada à montanha, concluía alguma coisa, batendo com a mão aberta sobre a mesa: pron­to! pesadamente. Aquilo cinzento e verde estendido dentro de Joana como um corpo preguiçoso, magro e áspero, bem dentro dela, inteiramente seco, como um sorriso sem saliva, como olhos sem sono e enervados, aquilo confirmava-se diante da montanha pa­rada. O que não conseguiria pegar com a mão es­tava agora glorioso e alto e livre e era inútil tentar resumir: ar puro, tarde de verão. Porque havia segu­ramente mais do que isso. Uma vitória inútil sobre as árvores folhudas, um sem que fazer de todas as coisas. Oh, Deus. Isso, sim, isso: se existisse Deus, é que ele teria desertado daquele mundo subitamen­te, excessivamente limpo, como uma casa ao sába­do, quieta, sem poeira, cheirando a sabão. Joana sorriu. Por que uma casa encerada e limpa deixava-a perdida como num mosteiro, desolada, vagando pe­los corredores? E muitas coisas que observava ainda. Assim, se suportava o gelo sobre o fígado, era atra­vessada por sensações longínquas e agudas, por idéias luminosas e rápidas, e se então tivesse que falar diria: sublime, com as mãos estendidas para frente, talvez os olhos cerrados.

— Então eu me distraio muito, repetiu.

Sentiu-se um galho seco, espetado no ar. Quebradiço, coberto de cascas velhas. Talvez estivesse com sede, mas não havia água por ali perto. E so­bretudo a certeza asfixiante de que se um homem a abraçasse naquele momento sentiria não a doçura macia nos nervos, mas o sumo de limão ardendo sobre eles, o corpo como madeira próxima do fogo, vergada, estalante, seca. Não podia acalentar-se di­zendo: isto é apenas uma pausa, a vida depois virá como uma onda de sangue, lavando-me, umedecendo a madeira crestada. Não podia enganar-se por­que sabia que também estava vivendo e que aqueles momentos eram o auge de alguma coisa difícil, de uma experiência dolorosa que ela devia agradecer: quase como sentir o tempo fora de si mesma, abstraindo-se.

— Eu notei, você gosta de andar, disse Otávio apanhando um graveto. Aliás você já gostava mes­mo antes de casarmos.

—  Sim, muito — respondeu.

Poderia dar-lhe um pensamento qualquer e então criaria uma nova relação entre ambos. Isso é o que mais lhe agradava, junto das pessoas. Ela não era obrigada a seguir o passado, e com uma palavra podia inventar um caminho de vida. Se dissesse: estou no terceiro mês de gravidez, pronto! entre am­bos viveria alguma coisa. Se bem que Otávio não fosse particularmente estimulante. Com ele a possi­bilidade mais próxima era a de ligar-se ao que já acontecera. Mesmo assim, sob o seu olhar "me pou­pe, me poupe", ela abria a mão de quando em quan­do e deixava um passarinho subitamente voar. Às vezes, no entanto, talvez pela qualidade do que dizia, nenhuma ponte se criava entre eles e, pelo contrá­rio, nascia um intervalo. "Otávio — dizia-lhe ela de repente —, você já pensou que um ponto, um único ponto sem dimensões, é o máximo de solidão? Um ponto não pode contar nem consigo mesmo, foi-não-foi está fora de si." Como se ela tivesse jogado uma brasa ao marido, a frase pulava de um lado para outro, escapulia-lhe das mãos até que ele se livrasse dela com outra frase, fria como cinza, cinza para cobrir o intervalo: está chovendo, estou com fome, o dia está belo. Talvez porque ela não soubesse brin­car. Mas ela o amava, àquele seu jeito de apanhar gravetos.

Aspirou o ar morno e claro da tarde, e o que nela pedia água restava tenso e rígido como quem espera de olhos vedados pelo tiro.

A noite veio e ela continuou a respirar no mes­mo ritmo estéril. Mas quando a madrugada clareou o quarto docemente, as coisas saíram frescas das sombras, ela sentiu a nova manhã insinuando-se entre os lençóis e abriu os olhos. Sentou-se sobre a cama. Dentro de si era como se não houvesse a mor­te, como se o amor pudesse fundi-la, como se a eter­nidade fosse a renovação.

 

A TIA

A viagem era longa e das moitas longínquas vinha um cheiro frio de mato molhado.

Era muito cedo de manhã e Joana mal tivera tempo de lavar o rosto. A empregada ao seu lado distraía-se soletrando os anúncios do bonde. Joana encostara a têmpora direita no banco e deixava-se atordoar pelo doce ruído das rodas, transmitido sono-lentamente pela madeira. O chão corria sob seus olhos baixos, célere, cinzento, raiado de listras ve­lozes e fugazes. Se abrisse os olhos enxergaria cada pedra, acabaria com o mistério. Mas entrefechava-os e parecia-lhe que o bonde corria mais e que se tor­nava mais forte o vento salgado e fresco do nascer do dia.

Tomara o café com um bolo esquisito, escuro — gosto de vinho e de barata — que lhe tinham fei­to comer com tanta ternura e piedade que ela se en­vergonhara de recusar. Agora pesava-lhe no estôma­go e dava-lhe uma tristeza de corpo que se juntava àquela outra tristeza — uma coisa imóvel atrás da cortina — com que dormira e acordara.

— Essa areia afundando mata um cristão, res­mungou a empregada.

Atravessou a extensão de areia que levava à casa da tia, prenunciando a praia. Debaixo dos grãos nasciam ervas magras e escuras que se retorciam asperamente à superfície da brancura fofa. A ven­tania vinha do mar invisível, trazia sal, areia, o ba­rulho cansado das águas, embaraçava as saias entre as pernas, lambendo furiosamente a pele da menina e da mulher.

—  Que ódio, disse entre dentes a criada. Uma rajada mais forte levantou-lhe a saia até o rosto, deixou nuas suas coxas escuras e musculosas. Os coqueiros se retorciam desesperados e a cla­ridade a um tempo velada e violenta se refletia no areai e no céu, sem que o sol se tivesse mostrado ainda. Meu Deus, o que acontecera com as coisas? Tudo gritava: não! não!

A casa da tia era um refúgio onde o vento e a luz não entravam. A mulher sentou-se com um sus­piro na sombria sala de espera, onde, entre os mó­veis pesados e escuros, brilhavam levemente os sor­risos dos homens emoldurados. Joana continuou de pé, mal respirando aquele cheiro morno que após a maresia forte vinha doce e parado. Mofo e chá com açúcar.

A porta para o interior da casa abriu-se final­mente e sua tia com um robe de flores grandes pre­cipitou-se sobre ela. Antes que pudesse fazer qual­quer movimento de defesa, Joana foi sepultada en­tre aquelas duas massas de carne macia e quente que tremiam com os soluços. De lá de dentro, da escuridão, como se ouvisse através de um travesseiro, escutou as lágrimas:

—  Pobre da orfãzinha!

Sentiu o rosto violentamente afastado do peito da tia por suas mãos gordas e por ela foi observada durante um segundo. A tia passava de um movimen­to para outro sem transição, em quedas rápidas e brus­cas. Nova onda de choro rebentou no seu corpo e Joana recebeu beijos angustiados pelos olhos, pela boca, pelo pescoço. A língua e a boca da tia eram moles e mornas como as de um cachorro. Joana fe­chou os olhos um instante, engoliu o enjôo e o bolo escuro que lhe subiam do estômago com arrepios por todo o corpo. A tia tirou um lenço grande e amarro­tado, assoou o nariz. A empregada continuava sen­tada, observando os quadros, as pernas largadas, a boca aberta. Os seios da tia eram profundos, podia-se meter a mão como dentro de um saco e de lá re­tirar uma surpresa, um bicho, uma caixa, quem sabe o quê. Aos soluços eles cresciam, cresciam e de den­tro da casa veio um cheiro de feijão misturado com alho. Em alguma parte, certamente, alguém beberia grandes goles de azeite. Os seios da tia podiam se­pultar uma pessoa!

—  Me deixe! — gritou Joana agudamente, ba­tendo o pé no chão, os olhos dilatados, o corpo tre­mendo.

A tia apoiou-se no piano, tonta. A criada disse:

—  Deixe mesmo, ela está mas é cansada. Joana ofegava, o rosto branco. Passou os olhos escurecidos pela salinha, perseguida. As paredes eram grossas, ela estava presa, presa! Um homem no quadro olhava-a de dentro dos bigodes e os seios da tia podiam derramar-se sobre ela, em gordura dissol­vida. Empurrou a porta pesada e fugiu.

Uma onda de vento e de areia entrou no hall, levantou as cortinas, trouxe leve ar fresco. Pela por­ta aberta, o lenço na boca tapando o soluço e a surpresa — oh o terrível desapontamento — a tia viu por alguns momentos as pernas magras e descober­tas da sobrinha correrem, correrem entre o céu e a terra, até desaparecerem rumo à praia.

Joana enxugou com as costas das mãos o rosto umedecido de beijos e lágrimas. Respirou mais pro­fundamente, sentiu ainda o gosto insosso daquela saliva morna, o perfume doce que vinha dos seios da tia. Sem se conter mais, a cólera e a repugnância su­biram-lhe em vagas violentas e inclinada para a ca­vidade entre as rochas vomitou, os olhos fechados, o corpo doloroso e vingativo.

O vento lambia-a rudemente agora. Pálida e frágil, a respiração leve, sentia-o salgado, alegre, correr pelo seu corpo, por dentro de seu corpo, revigorando-o. Entreabriu os olhos. Lá embaixo o mar brilhava em ondas de estanho, deitava-se profundo, grosso, sereno. Vinha denso e revoltado, enroscando-se ao redor de si mesmo. Depois, sobre a areia silenciosa, estirava-se... estirava-se como um corpo vivo. Além das pequenas ondas tinha o mar — o mar. O mar — disse baixo, a voz rouca.

Desceu das rochas, caminhou fracamente pela praia solitária até receber a água nos pés. De cóco­ras, as pernas trêmulas, bebeu um pouco de mar. Assim ficou descansando. Às vezes entrefechava os olhos, bem ao nível do mar e vacilava, tão aguda era a visão — apenas a linha verde comprida, unindo seus olhos à água infinitamente. O sol rompeu as nuvens e os pequenos brilhos que cintilaram sobre as águas eram foguinhos acendendo e apagando. O mar, além das ondas, olhava de longe, calado, sem chorar, sem seios. Grande, grande. Grande, sorriu ela. E, de repente, assim, sem esperar, sentiu uma coisa forte dentro de si mesma, uma coisa engraçada que fazia com que ela tremesse um pouco. Mas não era frio, nem estava triste, era uma coisa grande que vinha do mar, que vinha do gosto de sal na boca, e dela, dela própria. Não era tristeza, uma alegria qua­se horrível... Cada vez que reparava no mar e no brilho quieto do mar, sentia aquele aperto e depois afrouxamento no corpo, na cintura, no peito. Não sabia mesmo se havia de rir porque nada era pro­priamente engraçado. Pelo contrário, oh pelo con­trário, atrás daquilo estava o que acontecera ontem. Cobriu o rosto com as mãos esperando quase enver­gonhada, sentindo o calor de seu riso e de sua expi­ração ser novamente sorvido. A água corria pelos seus pés agora descalços, rosnando entre seus dedos, escapulindo clara clara como um bicho transparente. Transparente e vivo... Tinha vontade de bebê-lo, de mordê-lo devagar. Pegou-o com as mãos em con­cha. O pequeno lago quieto faiscava serenamente ao sol, amornava, escorregava, fugia. A areia chupava-o depressa-depressa, e continuava como se nunca ti­vesse conhecido a agüinha. Nela molhou o rosto, passou a língua pela palma vazia e salgada. O sal e o sol eram pequenas setas brilhantes que nasciam aqui e ali, picando-a, estirando a pele de seu rosto molhado. Sua felicidade aumentou, reuniu-se na gar­ganta como um saco de ar. Mas agora era uma ale­gria séria, sem vontade de rir. Era uma alegria quase de chorar, meu Deus. Devagar veio vindo o pensamento. Sem medo, não cinzento e choroso como viera até agora, mas nu e calado embaixo do sol co­mo a areia branca. Papai morreu. Papai morreu. Respirou vagarosamente. Papai morreu. Agora sabia mesmo que o pai morrera. Agora, junto do mar onde o brilho era uma chuva de peixe de água. O pai mor­rera como o mar era fundo! compreendeu de repen­te. O pai morrera como não se vê o fundo do mar, sentiu.

Não estava abatida de chorar. Compreendia que o pai acabara. Só isso. E sua tristeza era um cansaço grande, pesado, sem raiva. Caminhou com ele pela praia imensa. Olhava os pés escuros e finos como galhos juntos da alvura quieta onde eles afundavam e de onde se erguiam ritmadamente, numa respira­ção. Andou, andou e não havia o que fazer: o pai morrera.

Deitou-se de bruços sobre a areia, as mãos res­guardando o rosto, deixando apenas uma pequena fresta para o ar. Foi-se fazendo escuro escuro e aos poucos círculos e manchas vermelhas, bolas cheias e trêmulas surgiram, aumentando e diminuindo. Os grãos de areia picavam sua pele, nela se enterravam. Mesmo de olhos fechados sentiu que na praia as ondas eram sugadas pelo mar rapidamente rapida­mente, também de pálpebras cerradas. Depois volta­vam de manso, a palma das mãos abertas, o corpo solto. Era bom ouvir o seu barulho. Eu sou uma pessoa. E muitas coisas iam se seguir. O quê? O que acontecesse contaria a si própria. Mesmo ninguém entenderia: ela pensava uma coisa e depois não sa­bia contar igual. Sobretudo nisso de pensar tudo era impossível. Por exemplo, às vezes tinha uma idéia e surpreendida refletia: por que não pensei isto antes? Não era a mesma coisa que ver subitamente um cortezinho na mesa e dizer: ora, eu não tinha visto! Não era... Uma coisa que se pensava não existia antes de se pensar. Por exemplo, assim: a marca dos de­dos de Gustavo. Isso não vivia antes de se dizer: a marca dos dedos de Gustavo... O que se pensava passava a ser pensado. Mais ainda: nem todas as coisas que se pensam passam a existir daí em dian­te... Porque se eu digo: titia almoça com titio, eu não faço nada viver. Ou mesmo se eu resolvo: vou passear; é bom, passeio... e nada existe. Mas se eu digo, por exemplo: flores em cima do túmulo, pron­to eis uma coisa que não existia antes de eu pensar flores em cima do túmulo. A música também. Por que não tocava sozinha todas as músicas que exis­tiam? — Ela olhava o piano aberto — as músicas lá estavam contidas... Seus olhos se alargavam, es­curecidos, misteriosos. "Tudo, tudo." Foi então que começou a mentir. — Ela era uma pessoa que já começara, pois. Tudo isso era impossível de expli­car, como aquela palavra "nunca", nem masculina nem feminina. Mas mesmo assim ela não sabia quan­do dizer "sim"? Sabia. Oh, ela sabia cada vez mais. Por exemplo, o mar. O mar era muito. Tinha von­tade de afundar na areia pensando nele, ou senão de abrir bem os olhos, ficar olhando, mas depois não achava para que olhar. Na casa da tia certamente lhe dariam doces nos primeiros dias. Tomaria banho na banheira azul e branca, uma vez que ia morar na casa. E todas as noites, quando ficasse escuro, ela vestiria a camisola, iria dormir. De manhã, café com leite e biscoitos. A tia sempre fazia biscoitos grandes. Mas sem sal. Como uma pessoa de preto olhan­do pelo bonde. Ela molharia o biscoito no mar antes de comer. Daria uma mordida e voaria até casa para beber um gole de café. E assim por diante. Depois brincaria no quintal, onde havia paus e garrafas. Mas sobretudo aquele galinheiro velho sem galinhas. O cheiro era de cal e de porcarias e de coisa secan­do. Mas podia-se ficar lá dentro sentada, bem junto do chão, vendo a terra. A terra formada de tantos pe­daços que doía a cabeça de uma pessoa pensar em quantos. O galinheiro tinha grades e tudo, seria a casa dela. E havia ainda a fazenda do tio, que ela apenas conhecia, mas onde passaria dagora em dian­te as férias. Quantas coisas estava ganhando, hein? Afundou o rosto nas mãos. Oh, que medo, que medo. Mas não era só medo. Era assim como quem acaba uma coisa e diz: acabei, professora. E a professora diz: espere sentada pelos outros. E a gente fica quieta esperando, como dentro de uma igreja. Uma igreja alta e sem dizer nada. Os santos finos e delicados. Quando a gente toca são frios. Frios e divinos. E nada diz nada. Oh, o medo, o medo. Porém não era só medo. Não tenho nada o que fazer também, não sei o que fazer também. Como olhar uma coisa bo­nita, um pintinho fofo, o mar, um aperto na gargan­ta. Mas não era só isso. Olhos abertos piscando, misturados com as coisas atrás da cortina.

 

ALEGRIAS DE JOANA

A liberdade que Às vezes sentia não vinha de re­flexões nítidas, mas de um estado como feito de per­cepções por demais orgânicas para serem formula­das em pensamentos. Às vezes no fundo da sensação tremulava uma idéia que lhe dava leve consciência de sua espécie e de sua cor.

O estado para onde deslizava quando murmu­rava: eternidade. O próprio pensamento adquiria uma qualidade de eternidade. Aprofundava-se magicamente e alargava-se, sem propriamente um conteú­do e uma forma, mas sem dimensões também. A im­pressão de que se conseguisse manter-se na sensação por mais uns instantes teria uma revelação — facil­mente, como enxergar o resto do mundo apenas inclinando-se da terra para o espaço. Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizada-mente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte; a impossibilidade de ultrapassar a eternidade era eternidade; e também era eterno um sentimento em pureza absoluta, quase abstrato. So­bretudo dava idéia de eternidade a impossibilidade de saber quantos seres humanos se sucederiam após seu corpo, que um dia estaria distante do presente com a velocidade de um bólido.

Definia eternidade e as explicações nasciam fa­tais como as pancadas do coração. Delas não muda­ria um termo sequer, de tal modo eram sua verdade. Porém mal brotavam, tornavam-se vazias logicamente. Definir a eternidade como uma quantidade maior que o tempo e maior mesmo do que o tempo que a mente humana pode suportar em idéia também não permitiria, ainda assim, alcançar sua duração. Sua qualidade era exatamente não ter quantidade, não ser mensurável e divisível porque tudo o que se po­dia medir e dividir tinha um princípio e um fim. Eternidade não era a quantidade infinitamente gran­de que se desgastava, mas eternidade era a sucessão.

Então Joana compreendia subitamente que na sucessão encontrava-se o máximo de beleza, que o movimento explicava a forma — era tão alto e puro gritar: o movimento explica a forma! — e na su­cessão também se encontrava a dor porque o corpo era mais lento que o movimento de continuidade ininterrupta. A imaginação apreendia e possuía o futuro do presente, enquanto o corpo restava no co­meço do caminho, vivendo em outro ritmo, cego à experiência do espírito... Através dessas percep­ções — por meio delas Joana fazia existir alguma coisa — ela se comunicava a uma alegria suficiente em si mesma.

Havia muitas sensações boas. Subir o monte, parar no cimo e, sem olhar, sentir atrás a extensão conquistada, lá longe a fazenda. O vento fazendo esvoaçar as roupas, os cabelos. Os braços livres, o coração fechando e abrindo selvagemente, mas o rosto claro e sereno sob o sol. E sabendo principal­mente que a terra embaixo dos pés era tão profunda e tão secreta que não havia a temer a invasão do en­tendimento dissolvendo seu mistério. Tinha uma qua­lidade de glória esta sensação.

Certos momentos da música. A música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mes­mo movimento e espécie. Da mesma qualidade do pensamento tão íntimo que ao ouvi-la, este se reve­lava. Do pensamento tão íntimo que ouvindo alguém repetir as ligeiras nuances dos sons, Joana se sur­preendia como se fora invadida e espalhada. Deixa­va até de sentir a harmonia quando esta se popula­rizava — então não era mais sua. Ou mesmo quan­do a escutava várias vezes, o que destruía a seme­lhança: porque seu pensamento jamais se repetia, enquanto a música podia se renovar igual a si própria — o pensamento só era igual a música se criando. Joana não se identificava profundamente com todos os sons. Só com aqueles puros, onde o que amava não era trágico nem cômico.

Havia muita coisa a ver também. Certos instan­tes de ver valiam como "flores sobre o túmulo": o que se via passava a existir. No entanto Joana não esperava a visão num milagre nem anunciada pelo anjo Gabriel. Surpreendia-a mesmo no que já en­xergara, mas subitamente vendo pela primeira vez, subitamente compreendendo que aquilo vivia sem­pre. Assim, um cão latindo, recortado contra o céu. Isso era isolado, não precisava de mais nada para se explicar... Uma porta aberta a balançar para lá, para cá, rangendo no silêncio de uma tarde... E de repente, sim, ali estava a coisa verdadeira. Um retrato antigo de alguém que não se conhece e nunca se reconhecerá porque o retrato é antigo ou porque o retratado tornou-se pó — esta sem-intenção mo­desta provocava nela um momento quieto e bom. Também um mastro sem bandeira, ereto e mudo, fincado num dia de verão — rosto e corpo cegos. Para se ter uma visão, a coisa não precisava ser tris­te ou alegre ou se manifestar. Bastava existir, de pre­ferência parada e silenciosa, para nela se sentir a marca. Por Deus, a marca da existência... Mas isso não deveria ser buscado uma vez que tudo o que existia forçosamente existia... É que a visão con­sistia em surpreender o símbolo das coisas nas pró­prias coisas.

As descobertas vinham confusas. Mas daí tam­bém nascia certa graça. Como esclarecer a si pró­pria, por exemplo, que linhas agudas e compridas tinham claramente a marca? Eram finas e magras. Em dado momento paravam tão linhas, tão no mes­mo estado como no começo. Interrompidas, sempre interrompidas não porque terminassem, mas porque ninguém podia levá-las a um fim. Os círculos eram mais perfeitos, menos trágicos, e não a tocavam bas­tante. Círculo era trabalho de homem, acabado antes da morte, e nem Deus completá-lo-ia melhor. En­quanto linhas retas, finas, soltas — eram como pen­samentos.

Outras confusões ainda. Assim lembrava-se de Joana-menina diante do mar: a paz que vinha dos olhos do boi, a paz que vinha do corpo deitado do mar, do ventre profundo do mar, do gato endurecido sobre a calçada. Tudo é um, tudo é um..., entoara. A confusão estava no entrelaçamento do mar, do gato, do boi com ela mesma. A confusão vinha tam­bém de que não sabia se entrara "tudo é um" ainda em pequena, diante do mar, ou depois, relembrando. No entanto a confusão não trazia apenas graça, mas a realidade mesma. Parecia-lhe que se ordenasse e explicasse claramente o que sentira, teria destruído a essência de "tudo é um". Na confusão, ela era a própria verdade inconscientemente, o que talvez desse mais poder-de-vida do que conhecê-la. A essa ver­dade que, mesmo revelada, Joana não poderia usar porque não formava o seu caule, mas a raiz, pren­dendo seu corpo a tudo o que não era mais seu, im­ponderável, impalpável.

Oh, havia muitos motivos de alegria, alegria sem riso, séria, profunda, fresca. Quando descobria coisas a respeito de si mesma exatamente no mo­mento em que falava o pensamento correndo para­lelo à palavra. Um dia cantara a Otávio histórias de Joana-menina do tempo da criada que sabia brincar como ninguém. Brincava de sonhar.

—  Está dormindo?

—  Muito.

—  Então acorde, é de madrugada. . . Sonhou? A princípio sonhava com carneiros, com ir à escola, com gatos tomando leite. Aos poucos sonha­va com carneiros azuis, com ir a uma escola no meio do mato, com gatos bebendo leite em pires de ouro. E cada vez mais se adensavam os sonhos e adqui­riam cores difíceis de se diluir em palavras.

—  Sonhei que as bolas brancas vinham subin­do de dentro...

—  Que bolas? De dentro de onde?

—  Não sei, só que elas vinham...

Depois de ouvi-la, Otávio lhe dissera:

—  Agora penso que talvez tivessem abando­nado você muito cedo... a casa da tia... os estra­nhos ... depois o internato...

Joana pensara: mas havia o professor. Respon­dera:

—  Não... O que mais poderiam fazer comi­go? Ter tido uma infância não é o máximo? Nin­guém conseguiria tirá-la de mim... — e nesse ins­tante já começara a ouvir-se, curiosa.

—  Eu não voltaria um momento à minha me­ninice, continuara Otávio absorto, certamente pen­sando no tempo de sua prima Isabel e da doce Lí­dia. Nem um instante sequer.

—  Mas eu também, apressara-se Joana em res­ponder, nem um segundo. Não tenho saudade, com­preende? — E nesse momento declarou alto, deva­gar, deslumbrada. — Não é saudade, porque eu te­nho agora a minha infância mais do que enquanto ela decorria...

Sim, havia muitas coisas alegres misturadas ao sangue.

E Joana também podia pensar e sentir em vá­rios caminhos diversos, simultaneamente. Assim, en­quanto Otávio falara, apesar de ouvi-lo, observara pela janela uma velhinha ao sol, encardida, leve e rápida — um galho trêmulo à brisa. Um galho seco onde havia tanta feminilidade, pensara Joana, que a pobre poderia ter um filho se a vida não tivesse secado no seu corpo. Depois, mesmo enquanto Joa­na respondia a Otávio, lembrava-se do verso que o pai fizera especialmente para ela brincar, num dos que-é-que-eu-faço:

 

Margarida a Violeta conhecia,

uma era cega, uma bem louca vivia,

a cega sabia o que a doida dizia

e terminou vendo o que ninguém mais via...

como uma roda rodando, rodando, agitando o ar e criando brisa.

 

Mesmo sofrer era bom porque enquanto o mais baixo sofrimento se desenrolava também se existia — como um rio aparte.

E também se podia esperar o instante que vi­nha... que vinha... e de súbito se precipitava em presente e de repente se dissolvia... e outro que vinha... que vinha...

 

O BANHO

No momento em que a tia foi pagar a compra, Joana tirou o livro e meteu-o cuidadosamente entre os outros, embaixo do braço. A tia empalideceu.

Na rua a mulher buscou as palavras com cui­dado:

—  Joana... Joana, eu vi...

Joana lançou-lhe um olhar rápido. Continuou silenciosa.

—  Mas você não diz nada? — não se conteve a tia, a voz chorosa. — Meu Deus, mas o que vai ser de você?

—  Não se assuste, tia.

—  Mas uma menina ainda... Você sabe o que fez?

—  Sei...

—  Sabe... sabe a palavra...?

—  Eu roubei o livro, não é isso?

—  Mas, Deus me valha! Eu já nem sei o que faça, pois ela ainda confessa!

—  A senhora me obrigou a confessar.

—  Você acha que se pode... que se pode rou­bar?

—  Bem... talvez não.

—  Por que então... ?

—  Eu posso.

—  Você?! — gritou a tia.

—  Sim, roubei porque quis. Só roubarei quan­do quiser. Não faz mal nenhum.

—  Deus me ajude, quando faz mal Joana?

—  Quando a gente rouba e tem medo. Eu não estou contente nem triste.

A mulher olhou-a desamparada:

—  Minha filha, você é quase uma mocinha, pou­co falta para ser gente... Daqui a dias terá que abai­xar o vestido... Eu lhe imploro: prometa que não faz mais isso, prometa, prometa em nome do pai.

Joana olhou-a com curiosidade:

—  Mas se eu estou dizendo que posso tudo, que... — Eram inúteis as explicações. — Sim pro­meto. Em nome de meu pai.

Mais tarde, passando pelo quarto da tia, Joana ouviu-a, a voz baixa e entrecortada de respirações. Joana colou o ouvido à porta, naquele lugar onde até já se via a marca de sua cabeça.

—  Como um pequeno demônio... Eu, com minha idade e minha experiência, depois de ter cria­do uma filha já casada, fico fria ao lado de Joana... Eu nunca tive esse trabalho com nossa Armanda, que Deus a conserve para o seu marido. Não posso cuidar mais da menina, Alberto, juro... Eu posso tu­do, me disse ela depois de roubar... Imagine... fiquei branca. Contei a padre Felício, pedi conse­lho... Ele tremeu comigo... Ah, impossível conti­nuar! Mesmo aqui em casa, ela é sempre calada, como se não precisasse de ninguém... E quando olha é bem nos olhos, pisando a gente...

—  Sim, disse o tio devagar, o regime severo de um internato poderia amansá-la. Padre Felício tem razão Acho que se meu irmão fosse vivo não hesi­taria em matricular Joana num internato, depois de vê-la roubar... Logo esse pecado, um dos que mais ofendem a Deus... No fundo é isso o que me dói um pouco: o pai, negligente como era, não se inco­modaria de mandar Joana até mesmo para um reformatório... Tenho pena de Joana, coitada. Você sabe, nós nunca teríamos internado Armanda, mes­mo que ela roubasse a livraria inteira.

—  É diferente! É diferente! — explodiu a tia vitoriosa. Armanda, até roubando, é gente! E essa menina... Não se tem de quem ter pena nesse caso, Alberto! Eu é que sou a vítima... Mesmo quando Joana não está em casa, fico agitada. Parece loucura, mas é como se ela estivesse me vigiando... sabendo o que eu penso... Às vezes estou rindo e paro no meio, gelada. Daqui a pouco, na minha própria ca­sa, no meu lar, onde criei minha filha, terei que pe­dir desculpas não-sei-de-quê a essa guria... É uma víbora. É uma víbora fria, Alberto, nela não há amor nem gratidão. Inútil gostar dela, inútil fazer-lhe bem. Eu sinto que essa menina é capaz de matar uma pessoa...

—  Não diga isso! — exclamou o tio assusta­do. Se o pai de Joana tivesse sido outro, se levan­taria agora do túmulo!

—  Me perdoe, fico tonta, é ela ainda quem me faz dizer essas heresias... É um bicho estranho, Alberto, sem amigos e sem Deus — que me perdoe!

As mãos de Joana se mexeram independentes da sua vontade. Observou-as vagamente curiosa e esqueceu-as logo depois. O teto era branco, o teto era branco. Até seus ombros, que ela sempre consi­derara tão distantes de si mesma, palpitavam vivos, trêmulos. Quem era ela? A víbora. Sim, sim, para onde fugir? Não se sentia fraca, mas pelo contrário pos­suída de um ardor pouco comum, misturado a certa alegria, sombria e violenta. Estou sofrendo, pensou de repente e surpreendeu-se. Estou sofrendo, dizia-lhe uma consciência a parte. E subitamente esse outro ser agigantou-se e tomou o lugar do que sofria. Nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia acon­tecer... Podiam-se parar os acontecimentos e bater vazia como os segundos do relógio. Permaneceu oca por uns instantes, vigiando-se atenta, perscrutando a volta da dor. Não não a queria! E como para deter-se, cheia de fogo, esbofeteou o próprio rosto.

Fugiu mais uma vez para o professor, que não sabia ainda que ela era uma víbora...

O professor admitia-a de novo, milagrosamente. E milagrosamente ele penetrava no mundo penumbroso de Joana e lá se movia de leve, delicadamente.

—  Não é valer mais para os outros, em rela­ção ao humano ideal. É valer mais dentro de si mes­mo. Compreende, Joana?

—  Sim, sim...

Ele falava a tarde toda:

—  Afinal nessa busca de prazer está resumida a vida animal. A vida humana é mais complexa: re­sume-se na busca do prazer, no seu temor, e sobre­tudo na insatisfação dos intervalos, É um pouco sim­plista o que estou falando, mas não importa por en­quanto. Compreende? Toda ânsia é busca de prazer. Todo remorso, piedade, bondade, é o seu temor. Todo o desespero e as buscas de outros caminhos são a insatisfação. Eis aí um resumo, se você quer. Com­preende?

—  Sim.

—  Quem se recusa o prazer, quem se faz de monge, em qualquer sentido, é porque tem uma ca­pacidade enorme para o prazer, uma capacidade pe­rigosa — daí um temor maior ainda. Só quem guar­da as armas a chave é quem receia atirar sobre to­dos.

—  Sim...

—  Eu disse: quem se recusa...  Porque há os... os planos, os feitos de terra que sem adubo nunca florescerá.

—  Eu?

— Você? Não, por Deus... Você é dos que matariam para florescer.

Ela continuava a ouvi-lo e era como se os seus tios jamais tivessem existido, como se o professor e ela mesma estivessem isolados dentro da tarde, dentro da compreensão.

—  Não, realmente não sei que conselhos eu lhe daria, dizia o professor. Diga antes de tudo: o que é bom e o que é mau?

—  Não sei...

—  "Não sei" não é resposta. Aprenda a encon­trar tudo o que existe dentro de você.

—  Bom é viver..., balbuciou ela. Mau é

—  Ê?...

—  Mau é não viver...

—  Morrer? — indagou ele.

—  Não, não... — gemeu ela.

—  O quê, então? Diga.

—  Mau é não viver, só isso. Morrer já é outra coisa. Morrer é diferente do bom e do mau.

— Sim, disse ele sem entender. Bem.   Agora diga, por exemplo: qual é o maior homem da atuali­dade, para você?

Ela pensava, pensava e não respondia.

—  Qual é a coisa de que você mais gosta? — tornou ele.

O rosto de Joana se abriu, ela preparou-se para falar e de repente descobriu que não sabia o que dizer.

— Não sei, não sei, desesperou-se.

— Mas como? Por que então você estava qua­se rindo de prazer? — surpreendeu-se o professor.

—  Não sei... Ele olhou-a severo:

— Que você não saiba qual o maior homem da atualidade, apesar de conhecer muitos deles, está bem. Mas que você não saiba o que você mesma sen­te é que me desagrada.

Olhou-o aflita:

—  Olhe, a coisa de que eu mais gosto no mun­do... eu sinto aqui dentro, assim se abrindo... Quase, quase posso dizer o que é mas não posso...

—  Tente explicar, disse ele de sobrancelhas franzidas.

—  É como uma coisa que vai ser... É co­mo ...

—  É como?... — inclinou-se ele, exigindo sério.

—  É como uma vontade de respirar muito, mas também o medo... Não sei... Não sei, quase dói. É tudo... É tudo.

— Tudo?... — estranhou o professor.

Ela assentiu com a cabeça, emocionada, miste­riosa, intensa: tudo... Ele continuou a olhá-la um instante, o seu rostinho angustiado e poderoso:

—  Bem.

Ele parecia satisfeito mas ela não entendia por que, uma vez que nada chegara a dizer a respeito "daquilo". Porém se ele dizia "está bem", pensou ela ardentemente com a alma entregue, se ele dizia "está bem", era verdade.

—  Qual a pessoa que você mais admira? além de mim, além de mim, acrescentou o professor. Se você não me ajudar, não chegarei a conhecê-la, não poderei guiá-la.

—  Não sei, disse Joana, torcendo as mãos em­baixo da mesa.

—  Por que você não citou um desses grandes homens que rolam por aí? Você conhece pelo menos uma dezena deles. Você é excessivamente sincera, excessivamente, disse ele com desagrado.

—  Não sei...

—  Bem, não importa, serenou ele. Nunca sofra por não ter opiniões em relação a vários assuntos. Nunca sofra por não ser uma coisa ou por sê-la. De qualquer jeito suponho que você só aceitaria esse conselho. E acostume-se: o que você sentiu — sobre o que mais gosta no mundo — talvez tenha sido ape­nas à custa de não ter opinião precisa sobre os gran­des homens. Você terá que dar muita coisa para ter outras. — Pausa. — Aborrece-se com isso?

Joana pensou um instante, a cabeça escura in­clinada, os olhos abertos e largos.

—  Mas tendo a coisa mais alta, disse ela deva­gar, a gente por assim dizer já não tem as que estão abaixo?

O professor balançou a cabeça.

—  Não, disse ele, não. Nem sempre. Às vezes possui-se o mais alto e no fim da vida tem-se a im­pressão. .. — olhou-a de lado — tem-se a impres­são de que se está morrendo virgem. É que as coisas não são talvez mais altas e mais baixas. De qualidade diferente, entende?

Sim, que estava compreendendo as palavras, tudo o que elas continham. Mas apesar de tudo a sen­sação de que elas possuíam uma porta falsa, disfar­çada, por onde se ia encontrar seu verdadeiro sen­tido.

—  Que elas são mais do que o senhor disse — terminou Joana a explicação.

Num súbito movimento, antes de se interpretar, o professor estendeu-lhe a mão por cima da mesa. Joana estremeceu de prazer, deu-lhe a sua, enrubescida.

—  O que foi? — disse ela baixinho. E amava aquele homem como se ela mesma fosse uma erva frágil e o vento a dobrasse, a fustigasse.

Ele não respondeu, mas seus olhos eram fortes e tinham pena. O quê? — subitamente ela se assus­tou:

—  O que vai acontecer comigo?

—   Não sei — respondeu ele depois de um curto silêncio — talvez você seja feliz alguma vez, não compreendo, de uma felicidade que poucas pes­soas invejarão. Nem sei se se poderia chamar de felicidade. Talvez você não encontre mais ninguém que sinta com você, como...

A esposa do professor entrou no aposento, alta, quase bonita com aquele cabelo cobreado, curto e liso. E sobretudo as coxas altas e serenas movendo-se cegamente, mas cheias de uma segurança que assustava. O que iria o professor dizer, pensou Joana, antes que "ela" entrasse? "Mais ninguém que sinta com você, como... como eu"? Ah aquela mulher. Olhou-a fugitivamente, abaixou os olhos cheia de raiva. Lá estava o professor de novo distante, a mão recolhida, os lábios puxados para baixo, indiferente como se Joana não fosse senão sua "amiguinha", co­mo dizia a mulher.

Esta se aproximara, pousara a mão branca e longa, como de cera, mas estranhamente atraente, sobre o ombro do marido. E Joana viu, cheia de uma dor que lhe dificultava engolir a saliva, o belo con­traste entre os dois seres. Os cabelos dele ainda ne­gros, seu corpo enorme como o de um animal maior que o homem.

—  Quer o jantar agora? — perguntou a es­posa.

Ele brincava com o lápis entre os dedos:

—  Sim, vou sair mais cedo.

A mulher sorriu para Joana e retirou-se lenta­mente.

Ainda insegura, ela pensou que de novo a pas­sagem daquela criatura deixava claro que o professor era um homem e que Joana nem sequer já era "mo­ça". Também ele notaria, meu Deus, pelo menos tam­bém ele notaria quanto aquela mulher branca era odiosa, quanto ela sabia destruir qualquer conversa anterior?

—  O senhor vai dar aula hoje à noite? — per­guntou hesitante apenas para continuarem a falar. E ficou vermelha quando pronunciou as palavras, tão brancas, ditas tão sem direito... Não no tom com que a mulher dissera, bela e tranqüila: vai jan­tar mais cedo?

—  Sim, vou dar — respondeu ele e remexia os papéis sobre a mesa.

Joana se levantou para ir embora e de repente, antes mesmo que pudesse perceber seu próprio ges­to, sentou-se de novo. Debruçou-se sobre a mesa e começou a chorar escondendo os olhos. Ao redor era o silêncio e ela podia ouvir os passos abafados e va­garosos de alguém no interior da casa. Passou-se um longo minuto até sentir sobre a cabeça um peso leve, macio, a mão. A mão dele. Ouviu o som oco do co­ração, deixou de respirar. Concentrou-se inteira sobre os próprios cabelos que viviam agora acima de tudo, enormes, nervosos, grossos sob aqueles dedos estra­nhos e animados. Outra mão levantou-lhe o queixo e ela deixou-se examinar submissa e trêmula.

—  Que foi? — perguntou ele sorrindo. — Nossa conversa?

Ela não podia falar, balançou a cabeça ne­gando.

—  O quê, então? — insistiu ele com voz firme.

—  É que sou feia — respondeu obediente, a voz presa na garganta.

Ele se assustou. Abriu mais os olhos, penetrou-a com surpresa.

—  Ora — procurou ele rir depois de um ins­tante —, afinal eu quase tinha esquecido de que fa­lava com uma menininha... Quem disse que você é feia? — riu de novo. — Levante-se.

Ela ergueu-se, o coração comprimido, tendo consciência de que seus joelhos como sempre esta­vam acinzentados e opacos.

—  Um pouco sem forma ainda, convenho, mas tudo isso vai melhorar, não se perturbe, disse ele.

Ela fitou-o de dentro das últimas lágrimas. Co­mo explicar-lhe? Não queria consolo, ele não enten­dera... O professor franziu a testa àquele olhar. O quê? o quê? — perguntou a si mesmo com desagrado.

Ela conteve a respiração:

—  Eu posso esperar.

Também o professor não respirou por uns se­gundos. Perguntou, a voz igual, subitamente fria:

—  Esperar o quê?

—  Até que eu fique bonita. Bonita como "ela".

A culpa era dele mesmo, foi o seu primeiro pen­samento, como uma bofetada em seu próprio rosto. A culpa era dele por ter-se inclinado demais para Joana, por ter procurado, sim, procurado — não fuja, não fuja —, pensando que seria impunemente, sua promessa de juventude, aquele talo frágil e ar­dente. E antes que pudesse conter seu pensamento — as mãos crispadas sob a mesa —, ele veio impie­doso: o egoísmo e a fome grosseira da velhice que se aproximava. Oh, como se odiava por ter pensado nisso. "Ela", a esposa, era mais bonita? A "outra" também o era. E a "outra", de hoje à noite, tam­bém. Mas quem tinha aquela imprecisão no corpo, as pernas nervosas, seios ainda por nascer — o milagre: ainda por nascer, pensou tonto, a vista es­cura —, quem era como água clara e fresca? A fome da velhice que se aproximava. Encolheu-se aterrori­zado, furioso, covarde.

De novo a esposa entrou. Mudara de roupa pa­ra a noite, seu corpo forte e limitado agora atrás de uma fazenda azul. O marido olhou-a demoradamente, a expressão indefinida, um pouco estúpida. Ela suportou-lhe o olhar séria, enigmática, um meio sor­riso atrás do rosto. Joana diminuiu, ficou pequena e escura diante daquela pele brilhante. Sentiu a ver­gonha da cena anterior tomá-la e reduzi-la ridiculamente.

—  Já vou — disse.

A mulher — ou era engano? — a mulher olhou-a bem nos olhos, entendendo, entendendo! E em seguida levantou a cabeça, os olhos claros e cal­mos na vitória, talvez com um pouco de simpatia:

— Quando volta Joana? Precisa discutir mais freqüentemente com o professor...

Com o professor, dizia ela brincando com inti­midade, e era branca e lisa. Não miserável e sem sa­ber de nada, não abandonada, não com os joelhos sujos como Joana, como Joana! Joana levantou-se e sabia que sua saia era curta, que sua blusa colava-se ao busto minúsculo e hesitante. Fugir, correr para a praia, deitar-se de bruços sobre a areia, esconder o rosto, ouvir o barulho do mar.

Apertou a mão macia da mulher, apertou a dele grande, maior que a mão de um homem.

—  Não quer levar o livro?

Joana voltou-se e viu-o. Viu seu olhar. Ah, bri­lhou dentro dela a descoberta, um olhar como um aperto de mão, um olhar que sabia que ela desejava a praia. Mas por que tão fraco, tão sem alegria? O que acontecera afinal? Há poucas horas chamavam-na de víbora, o professor fugia, a mulher esperan­do... O que acontecia? Tudo recuava... E de sú­bito o ambiente destacou-se na sua consciência com um grito, avultou com todos os detalhes submergin­do as pessoas numa grande vaga... Seus próprios pés flutuavam. A sala onde já estivera durante tan­tas tardes refulgia no crescendo de uma orquestra, mudamente, numa vingança pela sua distração. De um momento para outro Joana descobriu a insuspei­ta potência daquele aposento quieto. Era estranho, silencioso, ausente como se nunca tivessem nele pi­sado, como se fosse uma reminiscência. As coisas haviam-se guardado até agora e então aproximavam-se de Joana, cercavam-na, brilhando na meia escuri­dão do crepúsculo. Perplexa, viu sobre a cristaleira faiscante a estátua nua, de linhas docemente apaga­das como num fim de movimento. O silêncio das ca­deiras imóveis e finas comunicou-se ao seu cérebro, esvaziou-o lentamente... Ouviu passos apressados na rua, viu a mulher grande e séria olhando-a e tam­bém aquele homem forte, de costas curvadas. Que esperavam dela? — assustou-se. Sentiu a capa dura do livro entre os dedos, longe longe como se um abis­mo a separasse de suas próprias mãos. O quê, então? Por que tinha cada criatura alguma coisa a lhe dizer? Por quê, por quê? E que exigiam, sugando-a sempre? A vertigem, rápida como um redemoinho, tomou conta de sua cabeça, fez vacilarem suas pernas. Ela estava de pé diante deles há alguns minutos, calada, sentindo a casa, mas por que as pessoas não se surpreendiam inteiramente com sua atitude para elas inexplicável? Ah, tudo era de esperar dela própria, a víbora, mesmo o que parecia estranho, a víbora, oh a dor, a alegria doendo. Os dois se destacavam das sombras, parados à sua frente e apenas no olhar do professor havia um pouco de surpresa.

— Fiquei tonta, disse-lhes à meia voz e a cristaleira continuou brilhando como um santo.

Mal falara, ainda com a vista escurecida. Joana sentiu um movimento quase imperceptível na esposa do professor. Olharam-se e qualquer coisa maldosa, ávida e humilhada na mulher fez com que Joana es­tupefata começasse a compreender... Era a segun­da vertigem naquele dia! Sim, era a segunda verti­gem naquele dia! Como um clarim... Fitou-os in­tensamente. Vou embora dessa casa, gritou-se agi­tada. E cada vez mais a sala se fechava, de um mo­mento para outro despertaria a fúria no homem e na mulher! Como a chuva que rebenta, como a chu­va que rebenta...

Na areia seus pés afundavam e emergiam de novo pesados. Já era noite, o mar rolava escuro, ner­voso, as ondas mordiam-se na praia. O vento aninha­ra-se nos seus cabelos, fazia esvoaçar como louca a franja curta. Joana não sentia mais tontura, agora um braço bruto pesava sobre seu peito, um peso bom. Alguma coisa virá em breve, pensou depressa. Era a segunda vertigem num só dia! De manhã, ao saltar da cama, e agora... Estou cada vez mais viva, soube Vagamente. Começou a correr. Estava subitamente mais livre, com mais raiva de tudo, sen­tiu triunfante. No entanto não era raiva, mas amor. Amor tão forte que só esgotava sua paixão na força do ódio. Agora sou uma víbora sozinha. Lembrou-se de que se separara realmente do professor, que de­pois daquela conversa jamais poderia voltar... Sen­tiu-o longe, no ambiente que já agora ela recordava com espanto e sem familiaridade. Sozinha...

O tio e a tia já estavam à mesa. Mas a quem deles ela diria: tenho cada vez mais força, estou crescendo, serei moça? Nem a eles, nem a ninguém. Porque também a nenhum poderei perguntar: diga-me, como são as coisas? e ouvir: também não sei, como o professor respondera. O professor ressurgiu à sua frente como no último instante, inclinado para ela, assustado ou feroz, não o sabia, mas recuando, isso, recuando. A resposta, sentiu, não importava tanto. O que valia era que a indagação fora aceita, podia existir. Sua tia retrucaria, surpresa: que coi­sas? E se chegasse a entender, certamente diria: são assim, assim e assim. Com quem Joana falaria ago­ra das coisas que existem com a naturalidade com que se fala das outras, das que estão apenas?

Coisas que existem, outras que apenas estão. . . Surpreendeu-se com o pensamento novo, inesperado, que viveria dagora em diante como flores sobre o túmulo. Que viveria, que viveria, outros pensamen­tos nasceriam e viveriam e ela própria estava mais viva. A alegria cortou-lhe o coração, feroz, iluminou-lhe o corpo. Apertou o copo entre os dedos, bebeu água com os olhos fechados como se fosse vinho, sangrento e glorioso vinho, o sangue de Deus. Sim, a nenhum deles explicaria que tudo mudava lenta­mente... Que ela guardara o sorriso como quem apaga finalmente a lâmpada e resolve deitar-se. Ago­ra as criaturas não eram admitidas no seu interior, nele fundindo-se. As relações com as pessoas torna­vam-se cada vez mais diferentes das relações que mantinha consigo mesma. A doçura da infância de­saparecia nos seus últimos traços, alguma fonte es­tancava para o exterior e o que ela oferecia aos pas­sos dos estranhos era areia incolor e seca. Mas ela caminhava para frente, sempre para a frente como se anda na praia, o vento alisando o rosto, levando para trás os cabelos.

Como entregar-lhes: é a segunda vertigem num só dia? mesmo que ardesse por confiar o segredo a alguém. Porque ninguém mais na sua vida, ninguém mais talvez haveria de lhe dizer, como o professor: vive-se e morre-se. Todos esqueciam, todos só sa­biam brincar. Olhou-os. Sua tia brincava com uma casa, uma cozinheira, um marido, uma filha casada, visitas. O tio brincava com trabalho, com uma fa­zenda, com jogo de xadrez, com jornais. Joana pro­curou analisá-los, sentindo que assim os destruiria. Sim, gostavam-se de um modo longínquo e velho. De quando em quando, ocupados com seus brinquedos, lançavam-se olhares inquietos, como para se assegu­rarem de que continuavam a existir. Depois retoma­vam a morna distância que diminuía por ocasião de algum resfriado ou de um aniversário. Dormiam jun­tos certamente pensou Joana sem prazer na malícia.

A tia estendeu-lhe o prato de pão em silêncio. O tio não levantava os olhos do prato.

A comida era uma das grandes preocupações da casa, continuou Joana. À hora das refeições, os braços apoiados pesadamente sobre a mesa, o ho­mem se alimentava arfando ligeiramente, porque so­fria do coração, e enquanto mastigava, algum farelo esquecido fora da boca, seu olhar se fixava vidrado em qualquer ponto, a atenção voltada às sensações interiores que a comida lhe produzia. A tia cruzava os pés sob a cadeira, e, as sobrancelhas franzidas, co­mia com uma curiosidade que se renovava a cada garfada, o rosto rejuvenescido e móvel. Mas por que hoje não se abandonavam nas cadeiras? Por que cui­davam de não chocar os talheres, como se alguém estivesse morto ou dormindo? Sou eu, adivinhou Joana.

Ao redor da mesa escura, sob a luz enfraque­cida pelas franjas sujas do lustre, também o silêncio se sentara nessa noite. Joana em momentos parava para ouvir o ruído das duas bocas mastigando e o tic-tac leve e nervoso do relógio. Então a mulher erguia os olhos e imobilizada com o garfo na mão, esperava ansiosa e humilde. Joana desviava a vista, vitoriosa, abaixava a cabeça numa alegria profunda que inexplicavelmente vinha misturada a um aper­to doloroso na garganta, a uma impossibilidade de soluçar.

—  Armanda não veio? — a voz de Joana apressou o tic-tac do relógio, fez nascer um súbito e rápido movimento na mesa.

Os tios se entreolharam furtivamente. Joana respirou alto: tinha medo dela, pois?

—  O marido de Armanda hoje não está de plantão, por isso ela não veio jantar aqui, respondeu finalmente a tia. E de repente, satisfeita, pôs-se a comer. O tio mastigava mais depressa. O silêncio vol­tou sem dissolver o murmúrio longínquo do mar. Eles não tinham coragem, então.

—  Quando é que eu vou para o internato? — perguntou Joana.

A terrina de sopa escorregou das mãos da tia, o caldo escuro e cínico espalhou-se rapidamente pe­la mesa. O tio abandonou os talheres sobre o prato, o rosto angustiado.

—  Como sabe que..., balbuciou confuso... Ela escutara à porta...

A toalha embebida fumegava docemente co­mo restos de um incêndio. Imóvel e fascinada como diante de algo irremediável, a mulher fitava a sopa derramada que esfriava rapidamente.

 

A água cega e surda mas alegremente não-muda brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da banheira. O quarto abafado de vapores mor­nos, os espelhos embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes.

A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brota­ram da água. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infância. Estende uma per­na, olha o pé de longe, move-o terna, lentamente como a uma asa frágil. Ergue os braços acima da ca­beça, para o teto perdido na penumbra, os olhos fe­chados, sem nenhum sentimento, só movimento. O corpo se alonga, se espreguiça, refulge úmido na meia escuridão — é uma linha tensa e trêmula. Quando abandona os braços de novo se condensa, branca e segura. Ri baixinho, move o longo pes­coço de um a outro lado, inclina a cabeça para trás — a relva é sempre fresca, alguém vai beijá-la, coelhos macios e pequenos se agasalham uns nos outros de olhos fechados. — Ri de novo, em leves murmú­rios como os da água. Alisa a cintura, os quadris, sua vida.

Imerge na banheira como no mar. Um mundo morno se fecha sobre ela silenciosamente, quieta­mente. Pequenas bolhas deslizam suaves até se apa­garem de encontro ao esmalte. A jovem sente a água pesando sobre o seu corpo, pára um instante como se lhe tivessem tocado de leve o ombro. Atenta para o que está sentindo, a invasão da maré. Que houve? Torna-se uma criatura séria, de pupilas largas e pro­fundas. Mal respira. O que houve? Os olhos abertos e mudos das coisas continuam brilhando entre os va­pores. Sobre o mesmo corpo que adivinhou alegria existe água — água. Não, não... Por quê? Seres nascidos no mundo como a água. Agita-se, procura fugir. Tudo — diz devagar como entregando uma coisa, perscrutando-se sem se entender. Tudo. E essa palavra é paz, grave e incompreensível como um ri­tual. A água cobre seu corpo. Mas o que houve? Murmura baixinho, diz sílabas mornas, fundidas.

O quarto de banho é indeciso, quase morto. As coisas e as paredes cederam, se adoçam e diluem em fumaças. A água esfria ligeiramente sobre sua pe­le e ela estremece de medo e desconforto.

Quando emerge da banheira é uma desconheci­da que não sabe o que sentir. Nada a rodeia e ela nada conhece. Está leve e triste, move-se lentamente, sem pressa por muito tempo. O frio corre com os pés gelados pelas suas costas mas ela não quer brincar, encolhe o torso ferida, infeliz. Enxuga-se sem amor, humilhada e pobre, envolve-se no roupão como em braços mornos. Fechada dentro de si, não querendo olhar, ah, não querendo olhar, desliza pelo corredor — a longa garganta vermelha e escura e discreta por onde afundará no bojo, no tudo. Tudo, tudo, repete misteriosamente. Cerra as janelas do quarto — não ver, não ouvir, não sentir. Na cama silenciosa, flu­tuante na escuridão, aconchega-se como no ventre perdido e esquece. Tudo é vago, leve e mudo.

Atrás dela alinhavam-se as camas do dormitó­rio do internato. E à frente a janela se abria para a noite.

Descobri em cima da chuva um milagre — pensava Joana —, um milagre partido em estrelas grossas, sérias e brilhantes, como um aviso parado: como um farol. O que tentam dizer? Nelas pressinto o segredo, esse brilho é o mistério impassível que ouço fluir dentro de mim, chorar em notas largas, desesperadas e românticas. Meu Deus, pelo menos comunicai-me com elas, fazei realidade meu desejo de beijá-las. De sentir nos lábios a sua luz, senti-la fulgurar dentro do corpo, deixando-o faiscante e transparente, fresco e úmido como os minutos que antecedem a madrugada. Por que surgem em mim essas sedes estranhas? A chuva e as estrelas, essa mistura fria e densa me acordou, abriu as portas de meu bosque verde e sombrio, desse bosque com chei­ro de abismo onde corre água. E uniu-o à noite. Aqui, junto à janela, o ar é mais calmo. Estrelas, es­trelas, zero. A palavra estala entre meus dentes em estilhaços frágeis. Porque não vem a chuva dentro de mim, eu quero ser estrela. Purificai-me um pouco e terei a massa desses seres que se guardam atrás da chuva. Nesse momento minha inspiração dói em todo o meu corpo. Mais um instante e ela precisará ser mais do que uma inspiração. E em vez dessa feli­cidade asfixiante, como um excesso de ar, sentirei ní­tida a impotência de ter mais do que uma inspiração, de ultrapassá-la, de possuir a própria coisa — e ser realmente uma estrela. Aonde leva a loucura, a lou­cura. No entanto é a verdade. Que importa que em aparência eu continue nesse momento no dormitório, as outras moças mortas sobre as camas, o corpo imó­vel? Que importa o que é realmente? Na verdade estou ajoelhada, nua como um animal, junto à cama, minha alma se desesperando como só o corpo de uma virgem pode se desesperar. A cama desaparece aos poucos, as paredes do aposento se afastam, tom­bam vencidas. E eu estou no mundo solta e fina como uma corça na planície. Levanto-me suave co­mo um sopro, ergo minha cabeça de flor e sonolenta, os pés leves, atravesso campos além da terra, do mundo, do tempo, de Deus. Mergulho e depois emerjo, como de nuvens, das terras ainda não possíveis, ah ainda não possíveis. Daquelas que eu ainda não soube imaginar, mas que brotarão. Ando, deslizo, continuo, continuo... Sempre, sem parar, distrain­do minha sede cansada de pousar num fim. — Onde foi que eu já vi uma lua alta no céu, branca e silencio­sa? As roupas lívidas flutuando ao vento. O mastro sem bandeira, ereto e mudo fincando no espaço... Tudo à espera da meia-noite... — Estou me enga­nando, preciso voltar. Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. E por­que a primeira verdade está na terra e no corpo. Se o brilho das estrelas dói em mim, se é possível essa comunicação distante, é que alguma coisa quase semelhante a uma estrela trêmula dentro de mim. Eis-me de volta ao corpo. Voltar ao meu corpo. Quando me surpreendo ao fundo do espelho assusto-me. Mal posso acreditar que tenho limites, que sou recortada e definida. Sinto-me espalhada no ar, pen­sando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de mim mesma. Quando me surpreendo ao espelho não me assusto porque me ache feia ou bonita. É que me descubro de outra qualidade. Depois de não me ver há muito quase esqueço que sou humana, es­queço meu passado e sou com a mesma libertação de fim e de. consciência quanto uma coisa apenas viva. Também me surpreendo, os olhos abertos para o espelho pálido, de que haja tanta coisa em mim além do conhecido, tanta coisa sempre silenciosa. Por que calada? Essas curvas sob a blusa vivem im­punemente? Por que caladas? Minha boca, meio in­fantil, tão certa de seu destino, continua igual a si mesma apesar de minha distração total. Às vezes, à minha descoberta, segue-se o amor por mim mesma, um olhar constante ao espelho, um sorriso de com­preensão para os que me fitam. Período de interro­gação ao meu corpo, de gula, de sono, de amplos passeios ao ar livre. Até que uma frase, um olhar — como o espelho — relembram-me surpresa outros segredos, os que me tornam ilimitada. Fascinada mergulho o corpo no fundo do poço, calo todas as suas fontes e sonâmbula sigo por outro caminho. — Analisar instante por instante, perceber o núcleo de cada coisa feita de tempo ou de espaço. Possuir cada momento, ligar a consciência a eles, como pequenos filamentos quase imperceptíveis mas fortes. É a vi­da? Mesmo assim ela me escaparia. Outro modo de captá-la seria viver. Mas o sonho é mais completo que a realidade, esta me afoga na inconsciência. O que importa afinal: viver ou saber que se está vi­vendo? — Palavras muito puras, gotas de cristal. Sinto a forma brilhante e úmida debatendo-se den­tro de mim. Mas onde está o que quero dizer, onde está o que devo dizer? Inspirai-me, eu tenho quase tudo; eu tenho o contorno à espera da essência; é isso? — O que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si? Utilizar-se como corpo e alma em proveito do corpo e da alma? Ou transformar sua força cm força alheia? Ou esperar que de si mesma nasça, como uma conseqüência, a solução? Nada posso dizer ainda dentro da forma. Tudo o que possuo está muito fundo dentro de mim. Um dia, depois de falar enfim, ainda terei do que viver? Ou tudo o que eu falasse estaria aquém e além da vida? — Tudo o que é forma de vida procuro afastar. Tento isolar-me para encontrar a vida em si mes­ma. No entanto apoiei-me demais no jogo que distrai e consola e quando dele me afasto, encontro-me bruscamente sem amparo. No momento em que fe­cho a porta atrás de mim, instantaneamente me des­prendo das coisas. Tudo o que foi distancia-se de mim, mergulhando surdamente nas minhas águas longínquas. Ouço-a, a queda. Alegre e plana espero por mim mesma, espero que lentamente me eleve e surja verdadeira diante de meus olhos. Em vez de me obter com a fuga, vejo-me desamparada, solitá­ria, jogada num cubículo sem dimensões, onde a luz e a sombra são fantasmas quietos. No meu inte­rior encontro o silêncio procurado. Mas dele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito — imagino já sem lucidez — minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Sem vi­ver coisas eu não encontrarei a vida, pois? Mas, mesmo assim, na solitude branca e limitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as pa­lavras que me ocorrem. No entanto não são as ver­dadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. — Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que termi­nada esta não encontrará vida própria, mais profun­da. Procurar tranqüilamente admitir que talvez só a encontre se for buscá-la nas fontes pequenas. Ou senão morrerei de sede. Talvez não tenha sido feita para as águas puras e largas, mas para as pequenas e de fácil acesso. E talvez meu desejo de outra fon­te, essa ânsia que me dá ao rosto um ar de quem caça para se alimentar, talvez essa ânsia seja uma idéia — e nada mais. Porém — os raros instantes que às vezes consigo de suficiência, de vida cega, de alegria tão intensa e tão serena como o canto de um órgão — esses instantes não provam que sou capaz de satisfazer minha busca e que esta é sede de todo o meu ser e não apenas uma idéia? Além do mais, a idéia é a verdade! grito-me. São raros os instantes. Quando ontem, na aula, repentinamente pensei, quase sem antecedentes, quase sem ligação com as coisas: o movimento explica a forma. A clara noção do perfeito, a liberdade súbita que senti... Naquele dia, na fazenda de titio, quando caí no rio.

Antes estava fechada, opaca. Mas, quando me levan­tei, foi como se tivesse nascido da água. Saí molha­da, a roupa colada à pele, os cabelos brilhantes, sol­tos. Qualquer coisa agitava-se em mim e era certa­mente meu corpo apenas. Mas num doce milagre tudo se torna transparente e isso era certamente mi­nha alma também. Nesse instante eu estava verda­deiramente no meu interior e havia silêncio. Só que meu silêncio, compreendi, era um pedaço do silên­cio do campo. E eu não me sentia desamparada. O cavalo de onde eu caíra esperava-me junto ao rio. Montei-o e voei pelas encostas que a sombra já inva­dia e refrescava. Freei as rédeas, passei a mão pelo pescoço latejante e quente do animal. Continuei a passo lento, escutando dentro de mim a felicidade, alta e pura como um céu de verão. Alisei meus bra­ços, onde ainda escorria a água. Sentia o cavalo vivo perto de mim, uma continuação do meu corpo. Am­bos respirávamos palpitantes e novos. Uma cor maciamente sombria deitara-se sobre as campinas mor­nas do último sol e a brisa leve voava devagar. É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas es­queci, sempre esqueci.

Eu estava sentada na Catedral, numa espera distraída e vaga. Respirava opressa o perfume roxo e frio das imagens. E, subitamente, antes que pu­desse compreender o que se passava, como um cataclisma, o órgão invisível desabrochou em sons cheios, trêmulos e puros. Sem melodia, quase sem música, quase apenas vibração. As paredes compridas e as altas abóbadas da igreja recebiam as notas e devol­viam-nas sonoras, nuas e intensas. Elas transpassavam-me, entrecruzavam-se dentro de mim, enchiam meus nervos de estremecimentos, meu cérebro de sons. Eu não pensava pensamentos, porém música. Insensivelmente, sob o peso do cântico, escorreguei do banco, ajoelhei-me sem rezar, aniquilada. O órgão emudeceu com a mesma subitaneidade com que ini­ciara, como uma inspiração. Continuei respirando baixinho, o corpo vibrando ainda aos últimos sons que restavam no ar num zumbido quente e translú­cido. E era tão perfeito o momento que eu nada te­mia nem agradecia e não caí na idéia de Deus. Que­ro morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta, mais do que sofrendo. Qualquer ins­tante que sucedesse àquele seria mais baixo e vazio. Queria subir e só a morte, como um fim, me daria o auge sem a queda. As pessoas se levantavam ao meu redor, movimentavam-se. Ergui-me, caminhei para a saída, frágil e pálida.

 

A MULHER DA VOZ E JOANA

Joana não a olhou mais atentamente senão quan­do ouviu sua voz. O tom baixo e curvo, sem vibra­ções, despertou-a. Fitou a mulher com curiosidade. Deveria ter vivido alguma coisa que Joana ainda não conhecera. Não compreendia aquela entonação, tão longe da vida, tão longe dos dias...

Joana lembrou-se de como uma vez, poucos meses depois de casada, dirigira-se ao marido perguntando-lhe qualquer coisa. Estavam na rua. E antes mesmo de terminar a frase, com surpresa de Otávio, ela parara — a testa franzida, o olhar diver­tido. Ah — descobrira — então ela repetia uma daquelas vozes que ouvira em solteira tantas vezes, sempre vagamente perplexa. A voz de uma mulher jovem junto de seu homem. Como a dela própria que soara naquele instante para Otávio: aguda, vazia, lançada para o alto, com notas iguais e claras. Algo inacabado, extático, um pouco saciado. Tentando gritar... Claros dias, límpidos e secos, voz e dias assexuados, meninos de coro em missa campal. E alguma coisa perdida, encaminhando-se para um brando desespero... Aquele timbre de recém-casada tinha uma história, uma história frágil que passava despercebida da dona da voz, mas não desta.

Desde aquele dia, Joana sentia as vozes, com­preendia-as ou não as compreendia. Provavelmente no fim da vida, a cada timbre ouvido uma onda de lembranças próprias subiria até sua memória, ela diria: quantas vozes eu tive...

Inclinou-se para a mulher. Chegara até ela à procura de uma casa onde morar e agradecia-se ter ido sem o marido porque, sozinha, estava mais livre para observar. E ali, sim, ali estava qualquer coisa que ela não esperara, uma pausa. Mas a outra nem a olhava sequer. Pensando pela cabeça de Otávio, Joana adivinhou que ele consideraria a mulher ape­nas vulgar, com aquele nariz grande, pálido e calmo. A criatura explicava as conveniências e inconveniên­cias da casa a alugar, e ao mesmo tempo passeava os olhos pelo chão, pela janela, pela paisagem, sem impaciência, sem interesse. O corpo limpo, os cabe­los escuros. Grande, forte. E a voz, voz de terra. Sem chocar-se com nenhum objeto, macia e longínqua como se tivesse percorrido longos caminhos sob o solo até chegar à sua garganta.

—  Casada? — perguntou Joana, debruçada so­bre ela.

—  Viúva, com um filho. — E continuou a des­tilar seu canto sobre os aluguéis da zona.

—  Não, creio que a casa não interessa, é gran­de demais para um casal, disse Joana apressada, um pouco áspera. Mas — adoçou as palavras, escondeu a avidez — posso visitá-la uma vez ou outra para conversarmos?

A outra não se surpreendeu. Alisou com uma das mãos a cintura engrossada pela maternidade e pela lentidão de movimentos:

—  Acho que vai ser difícil... Vou visitar ama­nhã meu filho. É casado. Vou viajar...

Sorria sem alegria, sem emoção. Apenas: vou viajar. O que interessava àquela mulher? — inda­gava-se Joana. Teria um amante. ..

—  Vive só, a senhora? — perguntou-lhe.

—  Minha irmã mais moça foi ser irmã de ca­ridade. Moro com a outra.

—  Não é triste viver sem um homem na ca­sa? — prosseguiu Joana.

—  Acha? — retrucou a mulher.

—  Estou perguntando se a senhora acha e não eu. Sou casada, ajuntou Joana, tentando dar um ar íntimo à conversa.

—  Ah, eu não acho triste não. — E sorria sem cor. — Bem, vou lhe pedir licença para me despedir, já que não lhe interessa a casa. Preciso lavar umas peças de roupa antes de tomar minha fresca na janela.

Joana prosseguiu seu caminho humilhada. Dé­bil mental, sem dúvida... Mas a voz? Não pôde libertar-se dela durante todo o resto da tarde. Sua imaginação corria em busca do sorriso da mulher, de seu corpo largo e quieto. Ela não tinha história, descobriu Joana devagar. Porque se lhe aconteciam coisas, estas não eram ela e não se misturavam à sua verdadeira existência. O principal — incluindo o passado, o presente e o futuro — é que estava viva. Esse o fundo da narrativa. Às vezes esse fundo aparecia apagado, de olhos cerrados, quase inexistente. Mas bastava uma pequena pausa, um pouco de silêncio, para ele agigantar-se e surgir em primeiro plano, os olhos abertos, o murmúrio leve e constante como o de água entre pedras. Por que descrever mais do que isso? É certo que lhe acon­teciam coisas vindas de fora. Perdeu ilusões, sofreu alguma pneumonia. Aconteciam-lhe coisas. Mas apenas vinham adensar ou enfraquecer o murmú­rio do seu centro. Por que contar fatos e detalhes se nenhum a dominava afinal? E se ela era apenas a vida que corria em seu corpo sem cessar?

Nunca suas interrogações foram inquietas à procura de resposta — continuou Joana descobrin­do. Nasciam mortas, sorridentes, amontoavam-se sem desejo nem esperanças. Ela não tentava qual­quer movimento para fora de si.

Muitos anos de sua existência gastou-os à ja­nela, olhando as coisas que passavam e as paradas. Mas na verdade não enxergava tanto quanto ouvia dentro de si a vida. Fascinara-a o seu ruído — como o da respiração de uma criança tenra —, o seu brilho doce — como o de uma planta recém-nascida. Ainda não se cansara de existir e bastava-se tanto que às vezes, de grande felicidade, sentia a tristeza cobri-la como a sombra de um manto, dei­xando-a fresca e silenciosa como um entardecer. Ela nada esperava. Ela era em si, o próprio fim.

Uma vez dividiu-se, inquietou-se, passou a sair e a procurar-se. Foi a lugares onde se encontra­vam homens e mulheres. Todos disseram: feliz­mente despertou, a vida é curta, precisa-se apro­veitar, antes ela era apagada, agora é que é gente. Ninguém sabia que ela estava sendo infeliz a ponto de precisar buscar a vida. Foi então que escolheu um homem, amou-o e o amor veio adensar-lhe o sangue e o mistério. Deu à luz um filho, o marido morreu depois de fecundá-la. Ela continuou e de­senvolvia-se muito bem. Juntou todos os seus pe­daços e não procurou mais as pessoas. Reencontrou a janela onde se instalava em companhia de si mesma. E agora, mais do que sempre, nunca se vira uma coisa ou uma criatura mais feliz e mais completa. Apesar de que muitos a olhavam com complacência, achando-a fraca. Pois seu espírito era tão forte que nunca ela deixara de almoçar ou jantar muito bem, sem excesso de prazer aliás. Nada do que diziam lhe importava, assim como os acontecimentos, e tudo deslizava sobre ela e ia per­der-se em águas outras que não as interiores.

Um dia, depois de viver sem tédio muitos iguais, viu-se diferente de si mesma. Estava can­sada. Andou de um lado para outro. Ela própria não sabia o que queria. Pôs-se a cantar baixinho, com a boca fechada. Depois cansou-se e passou a pensar em coisas. Mas não o conseguia inteira­mente. Dentro de si algo tentava parar. Ficou esperando e nada vinha dela para ela. Vagarosa­mente entristeceu de uma tristeza insuficiente e por isso duplamente triste. Continuou a andar por vá­rios dias e seus passos soavam como o cair de folhas mortas no chão. Ela mesma estava interiormente forrada de cinzento e nada enxergava em si senão um reflexo, como gotas esbranquiçadas a escorre­rem, um reflexo de seu ritmo antigo, agora lento e grosso. Então soube que estava esgotada e pela pri­meira vez sofreu porque realmente dividira-se em duas, uma parte diante da outra, vigiando-a, dese­jando coisas que esta não podia mais dar. Na ver­dade ela sempre fora duas, a que sabia ligeiramente que era e a que era mesmo, profundamente. Ape­nas até então as duas trabalhavam em conjunto e se confundiam. Agora a que sabia que era trabalhava sozinha, o que significava que aquela mulher estava sendo infeliz e inteligente. Tentou num último es­forço inventar alguma coisa, um pensamento, que a distraísse. Inútil. Ela só sabia viver.

Até que a ausência de si mesma acabou por fazê-la cair dentro da noite e pacificada, escurecida e fresca, começou a morrer. Depois morreu doce­mente, como se fosse um fantasma. Não se sabe de mais nada porque ela morreu. Adivinha-se apenas que no fim ela também estava sendo feliz como uma coisa ou uma criatura podem ser. Porque ela nas­cera para o essencial, para viver ou morrer. E o intermediário era-lhe o sofrimento. Sua existência foi tão completa e tão ligada à verdade que prova­velmente na hora de entregar-se e findar, teria pen­sado, se tivesse o hábito de pensar: eu nunca fui. Também não se sabe o que se fez dela. A uma vida tão bela deve ter-se seguido uma morte bela tam­bém. Certamente hoje é grãos de terra. Olha para cima, para o céu, durante todo o tempo. Às vezes chove, ela fica cheia e redonda nos seus grãos. De­pois vai secando com o estio e qualquer vento a dispersa. Ela é eterna agora.

Depois de um instante de absorção, Joana per­cebeu que a invejara, aquele ser meio morto que lhe sorria e falara num tom de voz desconhecido. Sobretudo, pensou ainda, compreende a vida porque não é suficientemente inteligente para não com­preendê-la. Mas de que valia qualquer raciocí­nio... Se se subisse ao ponto de entendê-la, sem enlouquecer no entanto, não se poderia conservar o conhecimento como conhecimento mas transfor­má-lo-iam em atitude, em atitude de vida, único modo de possuí-lo e exprimi-lo integralmente. E essa atitude não seria muito diversa daquela na qual repousava a mulher da voz. Eram tão pobres os caminhos da ação.

Teve um rápido movimento com a cabeça, im­paciente . Pegou num lápis, num papel, rabiscou em letra intencionalmente firme: "A personalidade que ignora a si mesma realiza-se mais completamente". Verdade ou mentira? Mas de certo modo vingara-se jogando sobre aquela mulher intumescida de vida seu pensamento frio e inteligente.

 

OTÁVIO

"De profundis". Joana esperou que a idéia se tor­nasse mais clara, que subisse das névoas aquela bola brilhante e leve que era o germe de um pensamento. "De profundis". Sentia-o vacilar, quase perder o equilíbrio e mergulhar para sempre em águas des­conhecidas. Ou senão, a momentos, afastar as nu­vens e crescer trêmulo, quase emergir completa­mente ... Depois o silêncio.

Fechou os olhos, vagarosamente foi descan­sando. Quando os abriu recebeu um pequeno choque. E durante longos e profundos segundos soube que aquele trecho de vida era uma mistura do que já vivera com o que ainda viveria, tudo fundido e eterno. Estranho, estranho. A luz alaranjada das 9 horas, aquela impressão de intervalo, um piano longínquo insistindo nas notas agudas, seu coração batendo apressado de encontro ao calor da manhã e, atrás de tudo, feroz, ameaçador, o silêncio latejando grosso e impalpável. Tudo desvaneceu-se. O piano interrompeu a insistência nas últimas notas e após um instante de repouso retomou docemente alguns sons do meio, em melodia nítida e fácil. E em breve ela não saberia dizer se a impressão da manhã fora verdadeira ou se apenas uma idéia. Deteve-se atenta para reconhecê-la... Um súbito cansaço confundiu-a um instante. Os nervos aban­donados, o rosto relaxado, sentiu uma leve onda de ternura por si mesma, de quase agradecimento, em­bora não soubesse por quê. Por um minuto pare­ceu-lhe que já vivera e que estava no fim. E logo em seguida, que tudo fora branco até agora, como um espaço vazio, e que ouvia longínqua e surdamente o fragor da vida se aproximando, densa, caudalosa e violenta, as ondas altas rasgando o céu, aproximan­do-se, aproximando-se... para submergi-la, para submergi-la, afogá-la asfixiando-a...

Caminhou para a janela, estendeu os braços para fora e esperou inutilmente que um pouco de brisa viesse alisá-los. Ficou assim esquecida por longo tempo. Conservava os ouvidos entrefechados por uma contração dos músculos do rosto, os olhos cerrados mal deixando passar a luz, a cabeça pro­jetada para frente. Aos poucos conseguiu realmente isolar-se. Esse estado meio inconsciente, onde pare­cia-lhe mergulhar profundamente em ar morno, cin­zento . .. Pôs-se diante do espelho e entre dentes, os olhos ardendo de ódio:

— E agora?

Não pôde deixar de notar seu próprio rosto, pequeno e aceso. Com ele distraiu-se um instante, esquecendo a raiva. Justamente sempre acontecia uma pequena coisa que a desviava da torrente prin­cipal . Era tão vulnerável. Odiava-se por isso? Não, odiar-se-ia mais se já fosse um tronco imutável até a morte, apenas capaz de dar frutos mas não de crescer dentro de si mesma. Desejava ainda mais:

renascer sempre, cortar tudo o que aprendera, o que vira, e inaugurar-se num terreno novo onde todo pe­queno ato tivesse um significado, onde o ar fosse respirado como da primeira vez. Tinha a sensação de que a vida corria espessa e vagarosa dentro dela, borbulhando como um quente lençol de lavas. Tal­vez se amasse... E se pensou longinquamente, de súbito um clarim cortasse com seu som agudo aquela manta da noite e deixasse a campina livre, verde e extensa... E então cavalos brancos e nervosos com movimentos rebeldes de pescoço e pernas, quase voando, atravessassem rios, montanhas, vales... Neles pensando, sentia o ar fresco circular dentro de si próprio como saído de alguma gruta oculta, úmida e fresca no meio do deserto.

Mas em breve voltou a si mesma, numa queda vertical. Examinou os braços, as pernas. Lá estava ela. Lá estava ela. Mas era preciso se distrair, pen­sou com dureza e ironia. Com urgência. Pois não morreria? Riu alto e olhou-se rapidamente ao espe­lho para observar o efeito do riso no rosto. Não, não o aclarava. Parecia uma gata selvagem, os olhos ar­dendo acima das faces incendiadas, pontilhadas de sardas escuras de sol, os cabelos castanhos despenteados sobre as sobrancelhas. Enxergava em si púrpura sombria e triunfante. O que fazia com que bri­lhasse tanto? O tédio... Sim, apesar de tudo havia fogo sob ele, havia fogo mesmo quando representava a morte. Talvez isso fosse o gosto de viver.

De novo a inquietação tomou-a, pura, sem ra­ciocínios. Ah, talvez eu deva andar, talvez... Fe­chou os olhos um instante, permitindo-se o nasci­mento de um gesto ou de uma frase sem lógica. Fazia sempre isso, confiava em que no fundo, embaixo das lavas, houvesse um desejo já dirigido para um fim. Às vezes, quando por um mecanismo especial, do mesmo modo como se desliza para o sono, fechava as portas da consciência e se deixava agir ou falar, recebia surpreendida — porque a percepção do gesto vinha-lhe apenas no momento de sua execução — uma bofetada de suas próprias mãos em seu próprio rosto. Às vezes ouvia palavras estranhas e loucas de sua própria boca. Mesmo sem entendê-las, elas dei­xavam-na mais leve, mais liberta. Repetiu a expe­riência, os olhos cerrados.

E de lá do fundo de si mesma, após um momen­to de silêncio e abandono, subiu, a princípio pálido e vacilante, depois cada vez mais forte e doloroso: das profundezas chamo por vós... das profundezas chamo por vós... das profundezas chamo por vós... Permaneceu ainda uns instantes parada, o rosto sem expressão, lasso e cansado como se ela tivesse tido um filho. Aos poucos foi renascendo, abriu os olhos vagarosamente e voltou à luz do dia. Frágil, respirando de leve, feliz como uma convalescente que recebesse a primeira brisa.

Então começou a pensar que na verdade rezara. Ela não. Alguma coisa mais do que ela, de que já não tinha consciência, rezara. Mas não queria orar, repetiu-se mais uma vez fracamente. Não queria por­que sabia que esse seria o remédio. Mas um remé­dio como a morfina que adormece qualquer espécie de dor. Como a morfina de que se precisa cada vez mais de maiores doses para senti-la. Não, ainda não estava tão esgotada que desejasse covardemente re­zar em vez de descobrir a dor, de sofrê-la, de possuí-la integralmente para conhecer todos os seus misté­rios. E mesmo se rezasse... Terminaria num con­vento, porque para sua fome quase toda a morfina seria pouca. E isto seria a degradação final, o vício. No entanto, por um caminho natural, se não bus­casse um deus exterior terminaria por endeusar-se, por explorar sua própria dor, amando seu passado, buscando refúgio e calor em seus próprios pensamen­tos, então já nascidos com uma vontade de obra de arte e depois servindo de alimento velho nos perío­dos estéreis. Havia o perigo de se estabelecer no so­frimento e organizar-se dentro dele, o que seria um vício também e um calmante.

O que fazer então? O que fazer para interrom­per aquele caminho, conceder-se um intervalo entre ela e ela mesma, para mais tarde poder reencontrar-se sem perigo, nova e pura?

O que fazer?

O piano foi atacado deliberadamente em esca­las fortes e uniformes. Exercícios, pensou. Exercí­cios... Sim, descobriu divertida... Por que não? Por que não tentar amar? Por que não tentar viver?

 

Música pura desenvolvendo-se numa terra sem homens, sonhava Otávio. Movimentos ainda sem ad­jetivos. Inconscientes como a vida primitiva que pul­sa nas árvores cegas e surdas, nos pequenos insetos que nascem, voam, morrem e renascem sem teste­munhas. Enquanto a música volteia e se desenvolve, vivem a madrugada, o dia forte, a noite, com uma nota constante na sinfonia, a da transformação. É a música sem apoio em coisas, em espaço ou tempo, da mesma cor que a vida e a morte. Vida e morte em idéias, isoladas do prazer e da dor. Tão distantes das qualidades humanas que poderiam se confundir com o silêncio. O silêncio. O silêncio, porque essa mú­sica seria a necessária, a única possível, projeção vi­brante da matéria. E do mesmo modo por que não se entende a matéria e não se a percebe até que os sentidos com ela se choquem, não se ouviria sua música.

E depois? — pensou. Fechar os olhos e ouvir a minha própria que se escoa vagarosa e turva como um rio barrento. A covardia é morna e eu a ela me resigno, depondo todas as armas de herói que vinte e sete anos de pensamento me concederam. O que sou hoje, nesse momento? Uma folha plana, muda, caída sobre a terra. Nenhum movimento de ar balançando-a. Mal respirando para não se acordar. Mas por que, sobretudo por que não usar as palavras pró­prias e enovelar-me, aconchegar-me em imagens? Por que me chamar de folha morta quando sou ape­nas um homem de braços cruzados?

Novamente, no meio do raciocínio inútil, veio-lhe um cansaço, um sentimento de queda. Orar, orar. Ajoelhar-se diante de Deus e pedir. O quê? A absol­vição. Uma palavra tão larga, tão cheia de sentidos. Não era culpado — ou era? de quê? sabia que sim, porém continuou com o pensamento — não era cul­pado, mas como gostaria de receber a absolvição. Sobre a testa os dedos largos e gordos de Deus, abençoando-o como um bom pai, um pai feito de terra e de mundo, contendo tudo, tudo, sem deixar de pos­suir uma partícula sequer que mais tarde pudesse lhe dizer: sim, mas eu não lhe perdoei! Cessaria então aquela acusação muda que todas as coisas aconche­gavam contra ele.

O que pensava afinal? Há quanto tempo brin­cava consigo mesmo imóvel? Teve um gesto qual­quer.

Prima Isabel entrou. "Bendito, bendito, bendi­to", dizia seu olhar apressado e míope, ansioso por se retirar. Só abandonava aquele ar de estrangeira quando se sentava ao piano. Otávio encolheu-se co­mo em pequeno. Ela então sorria, era humana, che­gava a perder o ar perfurador. Adquiria uma quali­dade plana, mais fácil. Sentada ao piano, os lábios enfarinhados e velhos, tocava Chopin, Chopin, sobre­tudo todas as valsas.

— Os dedos ficaram duros, dizia orgulhosa de tocar de cor. Falando, movia a cabeça para trás num jeito subitamente coquete, de dançarina de café. Otávio corava. Prostituta, pensava, e apagava ime­diatamente a palavra com um movimento doloroso. Mas como ousava? Lembrava-se de seu rosto incli­nado atentamente sobre ele, cuidando de suas dores de estômago. Detesto-a por isso mesmo, pensava sem lógica. E era sempre tarde: o pensamento ante­cedia-o. Prostituta — como se batesse em si mes­mo com um chicote. No entanto, mesmo quando se arrependia, voltava a pecar. Quantas vezes, em cri­ança, um instante antes de adormecer, subitamente tinha consciência de que tia Isabel estava na cama, insone, talvez sentada, os cabelos grisalhos em tran­ça, a camisola de pano grosso fechada como a de uma virgem. Sentia o remorso como um ácido espa­lhar-se pelo interior do corpo. Mas cada vez mais odiava-a por não poder amá-la.

Ela não conseguia dar mais aquela antiga sua­vidade entre uma nota e outra, como um desmaio. Um som prendia-se ao outro, áspero, sincopado, e as valsas explodiam fracas, saltitantes e falhadas. Às vezes as badaladas espaçadas e ocas do velho relógio vinham dividir a música em compassos assimétricos. Otávio ficava à espreita da pancada seguinte, o co­ração em sobressalto. Como se elas precipitassem to­das as coisas numa dança muda e docemente malu­ca. Aquelas batidas cortando implacáveis a música, sempre no mesmo tom, frio e sorridente, arremessa­vam-no para dentro de si como num vácuo sem apoio. Espiava as costas duras de sua tia, suas mãos — dois animais escuros pulando sobre as teclas ama­relas do piano. Ela se voltava e dizia-lhe, concedendo a frase por pura euforia, levemente, como quem joga flores:

—  Que é que você tem? Vou tocar uma coisa mais alegre...

Vinha uma daquelas valsas de salão, ingênuas e nervosas, as quais não se lembrava de ter ouvido mas que se uniam misteriosamente a velhos trechos em sua memória.

—  Isso não, tia, isso não...

Era cômico demais. Ele tinha medo. Pedir per­dão por não se extasiar diante de sua música, pedir perdão por achá-la insuportável desde pequeno com aquele seu cheiro de panos velhos, de jóias guarda­das, quando a via preparar o "seu chazinho contra dores", quando ela lhe prometia tocar uma coisa mui­to bonita se ele estudasse bastante. Reviu-a saindo de casa, o pó branco e leve sobre a pele cinzenta, o grande decote redondo descobrindo o pescoço onde as veias arquejavam, trágicas. Os sapatinhos rasos de menina, o guarda-chuva usado com aterrorizante de­senvoltura, como bengala. Pedir perdão por desejar — não, não! — que ela enfim morresse. — Estreme­ceu, começou a suar. Mas eu não tenho culpa! Oh! ir embora, fazer o plano do livro de direito civil, afastar-se daquele mundo horrível, repugnantemente íntimo e humano.

—  Então lá vai "Gorjeio da Primavera"... —  disse prima Isabel.

Sim, sim. Eu quero a primavera... Ajudai-me. Eu sufoco. A primavera ridícula era ainda mais pri­mavera e alegria.

—  Essa música parece uma rosa azul, disse ela voltada a meio em sua direção, sorrindo levemente maliciosa. No rosto seco e rugoso repentinamente, um veio d'água no deserto, os dois pequenos brilhan­tes tremiam de suas orelhas murchas, duas pequenas gotas úmidas, cintilantes. Ah, eram excessivamente frescas e voluptuosas... A velha possuía bens. Mas se usava os pendentes era por uma razão que ele nunca soubera: ela própria comprara as pedras, man­dara engastá-las em brincos, carregava-os como dois fantasmas sob os cabelos grisalhos e arrepiados.

Essa música parece uma rosa azul, dissera bem consciente de que só ela podia compreender. Por experiência ele sabia que deveria perguntar-lhe o significado da frase e pacientemente dar-lhe o prazer de responder, mordendo o lábio inferior:

—  Ah, isso é cá comigo.

Dessa vez no entanto o antigo jogo emocionante não se realizou. Apenas ele evitou olhar para a velha e encontrar seu desapontamento. Levantou-se e foi bater no quarto da noiva.

Ela cosia perto da janela. Fechou a porta, tran­cou-a a chave, ajoelhou-se perto dela. Encostou a cabeça no seu seio e de novo aspirou aquele perfu­me morno e adocicado de rosas velhas. Ela conti­nuava a sorrir, ausente, quase misteriosa, como se prestasse ouvido ao rolar suave de um rio dentro de seu peito.

—  Otávio, Otávio, disse ela com sua voz doce e longínqua.

Nenhum dos habitantes daquela casa, nem a prima solteirona, nem Lídia, nem os criados, viviam — pensou Otávio. Mentira, retrucou-se: só ele esta­va morto. Mas continuou: fantasmas, fantasmas. As vozes distantes, nenhuma espera, a felicidade.

—  Lídia, disse, me perdoe.

—  Mas o quê? — espantou-se ela discreta­mente.

—  Tudo.

Vagamente ela achou que deveria concordar e silenciou. Otávio, Otávio. Tão mais fácil falar com as outras criaturas. Se não o quisesse tanto, como seria difícil suportar toda aquela incompreensão da parte dele. Só se entendiam quando se beijavam, quando Otávio encostava a cabeça assim, no seu seio. Mas a vida era mais longa, pensava assustada. Haveria momentos em que olharia de frente para ele sem que sua mão pudesse alcançar a dele. E então —  o silêncio pesando. Estaria sempre separado dela e apenas se comunicariam nos instantes destacados —  nas horas de muita vida e nas horas de ameaça de morte. Mas não bastava, não bastava... A vida em comum era necessária exatamente para viver os outros momentos, pensava assustada, raciocinando com esforço. A Otávio só poderia dizer as palavras imprescindíveis, como se ele fosse um deus com pressa. Se se alongava numa daquelas conversas va­garosas e sem objetivo, que lhe davam tanto prazer, notava-lhe a impaciência ou senão o rosto excessi­vamente paciente, heróico. Otávio, Otávio... O que fazer? Sua aproximação era um toque mágico, trans­formava-a num ser realmente vivo, cada fibra res­pirando cheia de sangue. Ou senão não a agitava. Adormecia-a como se viesse simplesmente, quieta­mente, aperfeiçoá-la.

Sabia que era inútil resolver sobre o próprio destino. Amava Otávio desde o momento em que ele a quisera, desde pequenos, sob o olhar alegre da pri­ma. E sempre o amaria. Inútil seguir por outros ca­minhos, quando para um só seus passos a guiavam. Mesmo quando ele a feria, ela se refugiava nele con­tra ele. Ela era tão fraca. Em vez de sofrer ao reco­nhecer sua fraqueza, alegrava-se: sabia vagamente, sem se explicar, que desta é que vinha o seu apoio para Otávio. Sentia que ele sofria, que escondia algu­ma coisa viva e doente na sua alma e que ela só po­deria ajudá-lo usando de toda a passividade que dor­mia em seu ser.

Às vezes revoltava-se longinquamente: a vida é longa... Temia os dias, um atrás do outro, sem surpresas, de puro devotamento a um homem. A um homem que disporia de todas as forças da mulher para sua própria fogueira, num sacrifício sereno e inconsciente de tudo o que não fosse sua própria personalidade. Era uma falsa revolta, uma tentativa de libertação que vinha sobretudo com muito medo de vitória. Procurava durante alguns dias tomar uma atitude de independência, o que só realizava com um pouco de sucesso pela manhã, quando acordava, ainda sem ter visto o homem. Bastava sua presença, apenas pressentida, para toda ela anular-se e ficar à espera. À noite, sozinha no quarto, queria-o. Todos os seus nervos, todos os seus músculos doentes. Re­signou-se pois. A resignação era doce e fresca. Nas­cera para ela.

Otávio espiou-lhe os cabelos escuros, presos modestamente atrás das orelhas grandes e feias. Es­piou-lhe o corpo grosso e firme, como um tronco, as mãos sólidas e bonitas. E, de novo, como o refrão mole de uma canção, repetiu-se: "O que me liga a ela?" Tinha pena de Lídia, sabia que, mesmo sem motivo, mesmo sem conhecer outra mulher, embora ela fosse a única, ele a abandonaria alguma vez. No dia seguinte até. Por que não?

—   Sabe? — disse — sonhei essa noite com você.

Ela abriu os olhos, iluminando-se toda:

—  Mesmo? O quê?

—  Sonhei que íamos os dois por um campo cheio de flores, que eu colhia lírios para você, que você estava toda de branco.

Mas que sonho bonito... Sim, bem bonito...

—   Otávio.

—  Sim?...

—  Você não se incomoda que eu pergunte? Quando vamos casar? Não há nada que nos impe­ça... Preciso saber por causa do enxoval.

—  Só por isso?

Ela corou, contente em poder falar de alguma coisa que a enfeitasse. Tentou desajeitada mostrar-se faceira:

—  É por isso e... mesmo porque eu não que­ria esperar. É tão difícil.

—  Entendo. Mas não sei quando.

— Mas por que não imediatamente? Você pre­cisava resolver... Há tanto tempo que...

De repente Otávio ergueu-se e disse:

—  Você sabe que é mentira? Que eu não sonhei com você?

Ela olhou-o espantada, pálida.

—  Você está brincando. . .

—  Não, estou falando sério. Não sonhei com você.

—  Sonhou com quem?

—  Com ninguém. Dormi de um sono só, sem sonhos.

Ela retomou a costura.

 

Joana passou a mão pelo ventre estufado da cachorra, alisando-o com suas mãos finas. Deteve-se ligeiramente atenta.

— Ela está grávida — disse.

E havia qualquer coisa no seu olhar, nas suas mãos apalpando o corpo da cachorra que a ligava diretamente à realidade desnudando-a. Como se am­bas formassem um só bloco, sem descontinuidade. A mulher e a cadela ali estavam, vivas e nuas, com algo de feroz na comunhão. Fala com uma justeza de termos que horroriza, pensou Otávio com mal-estar, sentindo-se repentinamente inútil e afeminado. E era apenas a primeira vez em que a via.

Nela havia uma qualidade cristalina e dura que o atraía e repugnava-lhe simultaneamente, notou ele. Até o modo como andava. Sem ternura e gosto pelo próprio corpo, mas jogando-o como uma afronta aos olhos de todos, friamente. Otávio observava-a mo­ver-se e refletia que nem fisicamente era a mulher de quem ele gostaria. Preferia corpos pequenos, aca­bados, sem intenções. Ou grandes, como o da noiva, fixos, mudos. O que ele lhes dissesse seria o bastante. Aquelas linhas de Joana, frágeis, um esboço, eram inconfortáveis. Cheias de sentido, de olhos abertos, incandescentes. Não era bonita, fina demais. Mesmo sua sensualidade deveria ser diferente da dele, exces­sivamente luminosa.

Otávio procurava, desde o instante em que a conhecera, não perder nenhum de seus detalhes, di­zendo-se: que não se cristalize em mim qualquer sen­timento terno; preciso enxergá-la bem. Mas, como se adivinhasse seu exame, Joana se voltava para ele no momento preciso, sorridente, fria, pouco passiva. E tolamente ele agia, falava, confuso e apressado em obedecer-lhe. Em vez de obrigá-la a revelar-se e assim destruir-se no seu poder. E apesar daquele ar de quem ignorava as coisas mais comuns, como logo no primeiro encontro ela o precipitara em si mesmo! Jogara-o na intimidade dele próprio, esquecendo friamente as pequenas e cômodas fórmulas que o sustentavam e lhe facilitavam a comunicação com as pessoas.

Joana contou-lhe...

...O velho foi-se aproximando, a balançar o corpo gordo, o crânio liso. Chegou-se junto dela, os lábios em forma de muxoxo, os olhos arredondados, a voz chorosa. Disse, imitando o tatibitate infantil:

—  Machuquei aqui... Tá dodói... Botei remedinho, já tá melhorzinho...

Revirou os olhos e num momento as gorduras tremeram, o brilho dos lábios molhados e frouxos fulgurou docemente. Joana inclinou-se um pouco e viu suas gengivas vazias.

—  Não diz que tem pena de mim? Ela olhava-o séria. Ele não estranhou:

—  Não diz nem "tadinho"?

Era de uma pessoa se torcer de riso e de per­plexidade vê-lo baixinho, o traseiro saliente, os grandes olhos atentos, numa larga continência trê­mula. Ficou ainda silenciosa. Depois, devagar, no mesmo tom:

—  Coitadinho.

Ele riu, considerou finda a brincadeira e voltou as costas para a porta. Joana acompanhou-o com o olhar, inclinou-se um pouco para alcançá-lo todo com a vista, mal ele se afastou da mesa. Encarava-o erecta e fria, os olhos abertos, claros. Olhou para a mesa, procurou um instante, pegou num livro pe­queno e grosso. No momento em que ele punha a mão no trinco, recebeu-o na nuca, com toda a força. Voltou-se instantaneamente, a mão na cabeça, com os olhos arregalados de dor e de espanto. Joana con­tinuava na mesma posição. Bem, pensava ela, agora já perdeu aquele ar repugnante. Um velho só deveria sofrer.

Disse a voz alta e simpática:

—  Perdoe. Uma pequena lagartixa ali, em cima da porta. — Pequena pausa. — Errei na pontaria.

O velho continuou a olhá-la, sem compreender. Depois um vago terror apossou-se dele diante da­quele rosto sorridente.

—  Até logo... Não foi nada. .. — Meu Deus! — Até logo...

Quando a porta fechou-se, ela ficou ainda um tempo com o sorriso no rosto. Alçou os ombros ligei­ramente. Foi à janela, o olhar cansado e vazio:

—  Talvez eu deva ouvir música.

 

—  Sim, é verdade, joguei o livro em cima dele, respondeu Joana à pergunta de Otávio.

Ele procurou triunfar:

—  Mas você não contou isso ao velho!

—  Não, eu menti.

Otávio olhou-a, procurou em vão algum remor­so, algum sinal de confissão.

— Só depois de viver mais ou melhor, conse­guirei a desvalorização do humano, dizia-lhe Joana às vezes. Humano — eu. Humano — os homens in­dividualmente separados. Esquecê-los porque com eles minhas relações apenas podem ser sentimentais. Se eu os procuro, exijo ou dou-lhes o equivalente das velhas palavras que sempre ouvimos, "fraterni­dade", "justiça". Se elas tivessem um valor real, seu valor não estaria em ser cume, mas base de triângu­lo. Seriam a condição e não o fato em si. Porém terminam ocupando todo o espaço mental e senti­mental exatamente porque são impossíveis de se realizar, são contra a natureza. São fatais, apesar de tudo, no estado de promiscuidade em que se vive. Nesse estado transforma-se o ódio em amor, que nunca passa na verdade de procura de amor, jamais obtido senão em teoria, como no cristianismo.

Oh, poupe-me, gritava Otávio. Ela quisera pa­rar mas o cansaço e a excitação da presença do ho­mem aguçavam-lhe a mente, e as palavras rolavam sem cessar.

—  É difícil tal desvalorização do humano, con­tinuava, difícil fugir dessa atmosfera de fracasso de revolução — a adolescência —, de solidariedade com os homens na mesma impotência de conseguir. No entanto como seria bom construir alguma coisa pura, liberta do falso amor sublimizado, liberta do medo de não amar... Medo de não amar, pior do que o medo de não ser amado...

Oh, poupe-me, ouvia Joana no silêncio de Otá­vio. Mas ao mesmo tempo ela gostava de pensar alto, de desenvolver um raciocínio sem plano, seguindo-se apenas. Às vezes mesmo, por puro prazer, inven­tava reflexões: se uma pedra cai, essa pedra existe, houve uma força que fez com que ela caísse, um lu­gar de onde ela caiu, um lugar onde ela caiu, um lugar por onde ela caiu — acho que nada escapou à natureza do fato, a não ser o próprio mistério do fato. Mas agora ela falava também porque não sabia dar-se e porque sobretudo apenas pressentia, sem entender, que Otávio poderia abraçá-la e dar-lhe paz.

—  Uma noite, mal me deitara, disse-lhe ela, uma das pernas da cama partiu-se jogando-me ao chão. Depois de um movimento de cólera, porque nem ao menos tinha sono bastante para dispensar o conforto, pensei subitamente: por que motivo uma cama inteira, e não uma quebrada? Deitei-me e em breve dormia...

Ela não era bonita. Às vezes como que o espí­rito a abandonava e então revelava-se o que, por uma vigilância sobre-humana — imaginava Otávio —, jamais se descobria. No rosto que então surgia, os traços limitados e pobres não tinham beleza pró­pria. Nada restava do antigo mistério senão a cor da pele, creme, sombria, fugitiva. Se os instantes de abandono prolongavam-se e se sucediam, então ele via assustado a feiúra, e mais que a feiúra, uma es­pécie de vileza e brutalidade, alguma coisa cega e inapelável dominar o corpo de Joana como numa de­composição. Sim, sim, talvez subisse então à super­fície alguma coisa liberta do medo de não amar.

— Sim, eu sei, continuava Joana. A distância que separa os sentimentos das palavras. Já pensei nisso. E o mais curioso é que no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é, seguramente, o que eu sinto mas o que eu digo.

Ela falara do velho, falara da gravidez da ca­dela mal ele a conhecera e de repente, assustado, ele se sentira como depois de uma confissão, como se ti­vesse dito àquela estranha toda a sua vida. Que vida? A que se debatia dentro dele e que não era nada, repetiu-se com medo de surgir aos próprios olhos como grandioso e cheio de responsabilidades. — Ele nada era, nada era e nada precisava pois fazer, repe­tia-se, os olhos mentalmente fechados. — Como se tivesse contado a Joana o que não sentia senão no escuro. E o mais surpreendente de tudo: como se ela tivesse escutado e risse depois, perdoando — não como Deus, mas como o diabo —, abrindo-lhe por­tas largas para a passagem.

Sobretudo no momento em que a tocara, com­preendera: o que se seguisse entre eles seria irreme­diável. Porque quando a abraçara, sentira-a viver subitamente em seus braços como água correndo. E vendo-a tão viva, entendera esmagado e secretamen­te contente que se ela o quisesse ele nada poderia fa­zer... No momento em que finalmente a beijara sen­tira-se ele próprio de repente livre, perdoado além do que ele sabia de si mesmo, perdoado no que estava sob tudo o que ele era...

Daí em diante não havia escolha. Caíra verti­ginosamente de Lídia para Joana. Sabendo disso aju­dava-se a amá-la. Não era difícil. Uma vez ela se dis­traíra olhando pelo vidro da janela, os lábios soltos, esquecida de si mesma. Ele a chamara e o modo sua­ve e abandonado como ela voltava a cabeça e dissera: hein?... fizera-o cair dentro de si mesmo, mergu­lhando numa tonta e escura onda de amor. Otávio voltara então o rosto para o lado, não querendo vê-la.

Poderia amá-la, poderia tomar a nova e incom­preensível aventura que ela lhe oferecia. Mas con­tinuava agarrado ao primeiro impulso que o jogara contra ela. Não era como mulher, não era assim, cedida, que ele a queria... Precisava-a fria e segura. Para que ele pudesse dizer como em pequeno, refu­giado e quase vitorioso: a culpa não é minha. . .

Casariam, ver-se-iam minuto por minuto e que ela fosse pior que ele. E forte, para ensinar-lhe a não ter medo. Nem mesmo o medo de não amar... Ele a queria não para fazer sua vida com ela, mas para que ela lhe permitisse viver. Viver sobre si mesmo, sobre seu passado, sobre as pequenas vilezas que co­metera covardemente e a que covardemente conti­nuava unido. Otávio pensava que ao lado de Joana poderia continuar a pecar.

Quando Otávio a beijara, segurara-lhe as mãos, apertando-as contra seu seio, Joana mordera os lá­bios a princípio cheia de raiva porque ainda não sabia com que pensamento vestir aquela sensação violenta, como um grito, que lhe subia do peito até entontecer a cabeça. Olhou-o sem vê-lo, os olhos nublados, o corpo sofredor. Precisavam despedir-se. Afastou-se bruscamente e foi embora sem se voltar para trás, sem saudade.

No quarto, já despida sobre a cama, não con­seguia adormecer. Seu corpo pesava-lhe, existia além dela mesma como um estranho. Sentia-o palpitante, aceso. Fechou a luz e os olhos, tentou fugir, dormir. Mas continuou por longas horas a perscrutar-se, a vigiar o sangue que se arrastava grosso pelas suas veias como um animal bêbedo. E a pensar. Como não se conhecia até então. Aquelas formas finas e li­geiras, aquelas linhas delicadas de adolescente. Abriam-se, respiravam sufocadas e cheias de si mes­mas até o limite.

De madrugada a viração alisou a cama, acenou as cortinas. Joana foi serenando suavemente. A fres­cura do fim da noite acariciou-lhe o corpo dolorido. O cansaço tomou-a devagar e de repente exausta en­tregou-se a um sono profundo.

Acordou tarde e alegre. Cada célula, imagina­va, abrira-se florescente. Milagrosamente todas as energias despertas, prontas para lutar. Quando pen­sava em Otávio, respirava com cuidado como se o ar lhe fizesse mal. Durante os dias que se seguiram não o viu nem procurou vê-lo. Evitava-o mesmo co­mo se sua presença fosse dispensável.

E foi tão corpo que foi puro espírito. Atraves­sava os acontecimentos e as horas imaterial, esgueirando-se entre eles com a leveza de um instante. Mal se alimentava e seu sono era fino como um véu. Acordava muitas vezes durante a noite, sem susto, preparando-se antes de pensar para sorrir. Adorme­cia de novo sem mudar de posição, apenas cerrando os olhos. Procurou-se muito no espelho, amando-se sem vaidade. A pele serena, os lábios vivos faziam-na quase tímida voltar as costas para sua imagem, sem força para sustentar seu olhar contra o daquela mu­lher, fresco e úmido, tão brandamente claro e seguro.

Depois cessou a felicidade.

A plenitude tornou-se dolorosa e pesada e Joa­na era uma nuvem prestes a chover. Respirava mal como se dentro dela não houvesse lugar para o ar. Caminhou de um lado para outro, perplexa com a mudança. Como? — perguntava-se e sentia que es­tava sendo ingênua, aquilo tinha dois lados? Sofrer pelo mesmo motivo que a tornara terrivelmente feliz?

Carregou consigo o corpo doente, um ferido incômodo, durante os dias. A leveza fora substituída por miséria e cansaço. Saciada — um animal que matara sua sede inundando seu corpo d'água. Mas ansiosa e infeliz como se apesar de tudo restassem terras ainda não molhadas, áridas e sedentas. Sofreu sobretudo de incompreensão, sozinha, atônita. Até que encostando a testa, no vidro da janela — rua quieta, a tarde caindo, o mundo lá fora —, sentiu o rosto molhado. Chorou livremente, como se esta fosse a solução. As lágrimas corriam grossas, sem que ela contraísse um só músculo da face. Chorou tanto que não soube contar. Sentiu-se depois como se tivesse voltado às suas verdadeiras proporções, miúda, murcha, humilde. Serenamente vazia. Estava pronta.

Procurou-o então. E a nova glória e o novo sofrimento foram mais intensos e de qualidade mais insuportável.

Casou-se.

O amor veio afirmar todas as coisas velhas de cuja existência apenas sabia sem nunca ter aceito e sentido. O mundo rodava sob seus pés, havia dois sexos entre os humanos, um traço ligava a fome à saciedade, o amor dos animais, as águas das chuvas encaminhavam-se para o mar, crianças eram seres a crescer, na terra o broto se tornaria planta. Não po­deria mais negar... o quê? — perguntava-se sus­pensa. O centro luminoso das coisas, a afirmação dormindo embaixo de tudo, a harmonia existente sob o que não entendia.

Erguia-se para uma nova manhã, docemente viva. E sua felicidade era pura como o reflexo do sol na água. Cada acontecimento vibrava em seu corpo como pequenas agulhas de cristal que se espedaçassem. Depois dos momentos curtos e profundos vivia com serenidade durante largo tempo, compre­endendo, recebendo, resignando-se a tudo. Parecia-lhe fazer parte do verdadeiro mundo e estranhamente ter-se distanciado dos homens. Apesar de que nesse período conseguia estender-lhes a mão com uma fra­ternidade de que eles sentiam a fonte viva. Falavam-lhe das próprias dores e ela, embora não ouvisse, não pensasse, não falasse, tinha um olhar bom — bri­lhante e misterioso como o de uma mulher grávida.

O que sucedia então? Milagrosamente vivia, li­berta de todas as lembranças. Todo o passado se esfumaçara. E também o presente eram névoas, as doces e frescas névoas separando-a da realidade só­lida, impedindo-a de tocá-la. Se rezasse, se pen­sasse seria para agradecer ter um corpo feito para o amor. A única verdade tornou-se aquela brandura onde mergulhara. Seu rosto era leve e impreciso, boiando entre os outros rostos opacos e seguros, co­mo se ele ainda não pudesse adquirir apoio em qual­quer expressão. Todo o seu corpo e sua alma per­diam os limites, misturavam-se, fundiam-se num só caos, suave e amorfo, lento e de movimentos vagos como matéria simplesmente viva. Era a renovação perfeita, a criação.

E sua ligação com a terra era tão profunda e sua certeza tão firme — de quê? de quê? — que agora podia mentir sem se entregar. Tudo isso dei­xava-a pensar às vezes:

— Por Deus, quem sabe se não estou fazendo disto mais do que amor?

Aos poucos habituou-se ao novo estado, acos­tumou-se a respirar, a viver. Aos poucos foi envelhe­cendo dentro de si, abriu os olhos e novamente era uma estátua, não mais plástica, porém definida. Bem longe renascia a inquietação. À noite, entre os len­çóis, um movimento qualquer ou um pensamento inesperado acordava-a para si mesma. Levemente surpreendida dilatava os olhos, percebia seu corpo mergulhado na confortável felicidade. Não sofria, mas onde estava?

— Joana... Joana... — chamava-se ela do­cemente. E seu corpo mal respondia devagar, bai­xinho: Joana.

Os dias foram correndo e ela desejava achar-se mais. Chamava-se agora fortemente e não lhe basta­va respirar. A felicidade apagava-a, apagava-a... Já queria sentir-se de novo, mesmo com dor. Mas submergia cada vez mais. Amanhã, adiava, amanhã vou-me ver. O novo dia porém perpassava pela sua superfície, leve como uma tarde de estio, mal fran­zindo seus nervos.

Só não se habituara a dormir. Dormir era cada noite uma aventura, cair da claridade fácil em que vivia para o mesmo mistério, sombrio e fresco, atra­vessar a escuridão. Morrer e renascer.

 

Nunca terei pois uma diretriz, pensava meses depois de casada. Resvalo de uma verdade a outra, sempre esquecida da primeira, sempre insatisfeita. Sua vida era formada de pequenas vidas completas, de círculos inteiros, fechados, que se isolavam uns dos outros. Só que no fim de cada um deles, em vez de Joana morrer e principiar a vida noutro plano, inor­gânico ou orgânico inferior, recomeçava-a mesmo no plano humano. Apenas diversas as notas fundamen­tais. Ou apenas diversas as suplementares, e as bási­cas eternamente iguais?

Era sempre inútil ter sido feliz ou infeliz. E mesmo ter amado. Nenhuma felicidade ou infelici­dade tinha sido tão forte que tivesse transformado os elementos de sua matéria, dando-lhe um caminho único, como deve ser o verdadeiro caminho. Con­tinuo sempre me inaugurando, abrindo e fechando círculos de vida, jogando-os de lado, murchos, cheios de passado. Por que tão independentes, por que não se fundem num só bloco, servindo-me de lastro? É que eram demasiado integrais. Momentos tão inten­sos, vermelhos, condensados neles mesmos que não precisavam de passado nem de futuro para existir. Traziam um conhecimento que não servia como ex­periência — um conhecimento direto, mais como sensação do que percepção. A verdade então desco­berta era tão verdade que não podia subsistir senão no seu recipiente, no próprio fato que a provocara. Tão verdadeira, tão fatal, que vive apenas em fun­ção de sua matriz. Uma vez terminado o momento de vida, a verdade correspondente também se esgota. Não posso moldá-la, fazê-la inspirar outros instantes iguais. Nada pois me compromete.

No entanto a justificação de sua curta glória talvez não tivesse outro valor senão o de lhe dar certo prazer de raciocínio, assim como: se uma pe­dra cai, essa pedra existe, essa pedra caiu de um lu­gar, essa pedra... Ela errava tanto.

 

O CASAMENTO

Joana lembrou-se de repente, sem aviso prévio, dela mesma em pé no topo da escadaria. Não sabia se alguma vez estivera no alto de uma escada, olhando para baixo, para muita gente ocupada, vestida de cetim, com grandes leques. Muito provável mesmo que nunca tivesse vivido aquilo. Os leques, por exem­plo, não tinham consistência na sua memória. Se queria pensar neles não via na realidade leques, po­rém manchas brilhantes nadando de um lado para outro entre palavras em francês, sussurradas com cuidado por lábios juntos, para frente assim como um beijo enviado de longe. O leque principiava como leque e terminava com as palavras em fran­cês. Absurdo. Era pois mentira.

Mas apesar de tudo a impressão continuava querendo ir para frente, como se o principal estivesse além da escadaria e dos leques. Parou um instante os movimentos e só os olhos batiam rápidos, à pro­cura da sensação. Ah, sim. Desceu pela escadaria de mármore, sentindo na planta dos pés aquele medo frio de escorregar, nas mãos um suor cálido, na cin­tura uma fita apertando, puxando-a como um leve guindaste para cima. Depois o cheiro das fazendas novas, o olhar brilhante e curioso de um homem atravessando-a e deixando-lhe, como se tivesse com­primido um botão no escuro, o corpo iluminado. Ela era percorrida por longos músculos inteiros. Qual­quer pensamento descia por essas cordas polidas até tremer ali, nos tornozelos, onde a carne era macia como a de um frango.

Parava no último degrau, no largo e sem perigo, pousava levemente a palma da mão sobre o corrimão frio e liso. E sem saber por que sentia uma súbita felicidade, quase dolorosa, um quebranto no coração, como se ele fosse de massa mole e alguém mergulhasse os dedos nele, revolvendo-o maciamente. Por quê? Levantou fragilmente a mão, num gesto de recusa. Não queria saber. Mas agora já lhe surgira a pergunta e como resposta absurda veio-lhe o corrimão refulgente lançado com desenvol­tura do alto como uma serpentina envernizada em dia de carnaval. Só que não era carnaval, porque ha­via silêncio no salão, podia-se ver tudo através dele. Os reflexos úmidos das lâmpadas sobre os espelhos, os broches das damas e as fivelas dos cintos dos ho­mens comunicando-se a intervalos com o lustre, por delgados raios de luz.

Cada vez mais entendia o ambiente. Entre os homens e as mulheres não havia espaços duros, tudo se misturava molemente. De algum aquecedor in­visível subia um vapor úmido e emocionante. De novo o coração lhe doeu levemente e ela sorriu, o nariz franzido, a respiração fraca.

Houve uma pequena pausa de repouso. Foi re­cuperando aos poucos, apesar de seu esforço em con­trário, a realidade, novamente o corpo insensível, opaco e forte como uma coisa viva há muito tempo.

Enxergou o quarto, as cortinas acenando irônicas, a cama obstinadamente imóvel, inútil.. Tentou in­quieta transpor-se para o topo da escadaria, descê-la novamente. Enxergou-se caminhando, mas não sentiu mais as pernas trêmulas, nem o suor nas mãos. Então viu que esgotara a lembrança.

Ficou à espera, junto da estante de livros, onde fora buscar... o quê? Franziu a testa sem muito interesse. O quê? Procurou achar engraçada aquela impressão de que no centro da testa existia agora um buraco no lugar de onde tinham extraído a idéia do que fora buscar.

Inclinou-se pela porta e perguntou alto, os olhos fechados:

—  Que é que você queria, Otávio?

—  O de Direito Público, disse ele, e antes que prestasse de novo atenção ao caderno lançou-lhe um rápido olhar surpreso.

Levou-lhe o livro, ausente, os movimentos va­garosos. Ele esperou-o com a mão estendida, sem levantar a cabeça. Demorou um instante com o livro em sua direção, a uma pequena distância dele. Mas Otávio não notou a demora e com um pequeno mo­vimento de ombros ela colocou-o entre seus dedos.

Sentou-se numa cadeira próxima, sem como­didade, como se devesse partir daí a um instante. Aos poucos, nada acontecendo, aproximou o corpo do encosto e abandonou-se, os olhos vazios, sem pensar.

Otávio continuava no Direito Público, demorando-se em alguma linha e depois impaciente mor­dendo a unha e voltando rápido várias páginas ao mesmo tempo. Até que parava de novo, distraído, a língua passeando pelo bordo dos dentes, uma das mãos puxando com ternura os fios das sobrancelhas. Alguma palavra imobilizou-o, a mão no ar, a boca aberta como um peixe morto. De repente afastou o livro com um safanão. O olhar brilhante e ganan­cioso, escreveu depressa no caderno, parando um instante para respirar ruidosamente e, num gesto que a sobressaltou, bater nos dentes com os nós dos de­dos.

Que animal, pensou ela. Ele interrompeu o que escrevia e olhou-a aterrorizado, como se ela lhe tivesse jogado alguma coisa. Continuou a fixá-lo sem força e Otávio mexeu-se na cadeira, pensando apenas que não estava sozinho. Sorriu, tímido e im­portunado, estendeu-lhe a mão por cima da mesa. Ela afastou o corpo da cadeira e ofereceu-lhe por sua vez a ponta dos dedos. Otávio comprimiu-os rapidamente, sorridente, e logo depois, antes mesmo que ela tivesse tempo de recolher o braço, voltou-se furiosamente para o caderno, o rosto quase afun­dando nele, a mão trabalhando.

Era ele quem estava sentindo agora, pensou Joana. E, de repente, talvez de inveja, sem nenhum pensamento, odiou-o com uma força tão bruta que suas mãos se fecharam sobre os braços da poltrona e seus dentes se cerraram. Palpitou durante alguns instantes, reanimada. Temendo que o marido sen­tisse alguns instantes, obrigasse-a a disfarçá-lo e as­sim diminuir a intensidade de seu sentimento.

A culpa era dele, pensou friamente, à espreita de nova onda de raiva. A culpa era dele, a culpa era dele. Sua presença, e mais que sua presença: saber que ele existia, deixavam-na sem liberdade. Só raras vezes agora, numa rápida fugida, conseguia sentir. Isso: a culpa era dele. Como não descobrira antes? — perguntou-se vitoriosa. Ele roubava-lhe tudo, tudo. E como a frase ainda fosse fraca, pen­sou com intensidade, os olhos fechados, tudo! Sen­tiu-se melhor, pensou com mais nitidez.

Antes dele estava sempre de mãos estendidas e quanto oh quanto não recebia de surpresa! De vio­lenta surpresa, como um raio de doce surpresa, como uma chuva de pequenas luzes... Agora tinha todo o seu tempo entregue a ele e os minutos que eram seus ela os sentia concedidos, partidos em pequenos cubos de gelo que devia engolir rapida­mente, antes que se derretessem. E fustigando se para andar a galope: olhe, que esse tempo é liber­dade! olhe, pense depressa, olhe, encontre-se de­pressa, olhe... acabou-se! Agora — só mais tarde, de novo a bandeja de cubinhos de gelo e você diante dela fascinada, vendo os pingos d'água já escorrerem.

Depois ele vinha. E ela repousava enfim, com um suspiro, pesadamente. — Mas não queria re­pousar! — O sangue corria-lhe mais vagarosamente, o ritmo domesticado, como um bicho que adestrou suas passadas para caber dentro da jaula.

Lembrou-se de quando fora buscar — o quê? ah, Direito Público — na estante do topo da esca­daria, uma lembrança tão gratuita, tão livre, até ima­ginada... Como estava nova então. Água límpida correndo por dentro e por fora. Teve saudades da sensação, necessidade de sentir de novo. Olhou an­siosa de um lado para outro, procurando alguma coisa. Mas tudo ali era como era há muito. Velho. Vou deixá-lo, achou num primeiro pensamento, sem antecedentes. Abriu os olhos, à espreita de si mesma. Sabia que desse pensamento poderiam vir conse­qüências. Pelo menos antigamente, quando suas re­soluções não precisavam de grandes fatos, só de uma pequena idéia, de uma visão insignificante, para nascerem. Vou deixá-lo, repetiu-se e dessa vez do pensamento partiam pequenos filamentos prendendo-o a si mesma. Dagora em diante ele estava den­tro dela e cada vez mais os filamentos engrossariam até formarem raízes.

Quantas vezes ainda ela se proporia isso, até deixá-lo mesmo? Cansou-se previamente das peque­nas lutas que ainda teria, revoltando-se e cedendo em seguida, até o fim. Teve um rápido e impa­ciente movimento interior que se refletiu apenas num levantar imperceptível da mão. Otávio desviou por um segundo os olhos para ela e continuou como um sonâmbulo a escrever. Como ele era sensível, pensou num intervalo. Continuou seguindo-se: por que adiar? Sim, por que adiar? — perguntou-se. E a indagação era sólida, reclamava uma resposta sé­ria. Ajeitou-se na cadeira, tomou uma atitude de cerimônia, como para ouvir o que tinha a dizer.

Então Otávio suspirou alto, fechou o livro e o caderno com estrépito, jogou-os longe, exagerado, as pernas compridas estiradas para longe da cadeira. Ela olhou-o assustada, ofendida. Então... — co­meçou com ironia. Mas não sabia como continuar e esperou, olhando-o.

Ele disse, um cômico ar severo:

— Muito bem. Agora a senhora faça o favor de se aproximar e encostar a cabeça nesse valoroso peito, porque estou precisando disso.

Ela riu, só para satisfazê-lo. Mas no meio do riso já estava achando um pouco de graça. Con­tinuou sentada, tentando prosseguir: então, ele... e fazia com os lábios um jeito de desprezo e de vitória, como quem recebe as provas esperadas. En­tão, ele... Era assim? Esperava que Otávio visse sua atitude, adivinhasse sua resolução de não se mo­ver da cadeira. Ele, no entanto, como sempre, nada adivinhava e justamente nos momentos em que de­veria olhar, distraía-se com qualquer coisa. Agora, exatamente agora, lembrara-se de ajeitar o livro e o caderno jogados sobre a mesa. Nem olhava para Joana, estava certo de que ela viria? Riu um mau sorriso, pensando como ele se enganara e quantos pensamentos ela tivera sem que ele pudesse imagi­nar sequer. Sim, por que adiar?

Ele ergueu os olhos, um pouco surpreso pela demora. E como ela continuasse sentada, ficaram se olhando de longe. Ele estava intrigado.

— Então? — disse sem gosto: — Meu valo­roso...

Joana interrompeu-o com um gesto, porque não suportava a piedade que a invadira de súbito e a im­pressão de ridículo da frase, quando ela própria es­tava tão lúcida e resolvida a falar. Ele não se assus­tou com o seu movimento e ela teve que engolir a saliva com cuidado para empurrar para dentro de si a estúpida vontade de chorar que principiava a nascer mole dentro do peito.

Agora sua piedade abrangia-a também e ela via os dois juntos, coitados e infantis. Os dois iam morrer, esse mesmo homem que batera com os de­dos nos dentes, num movimento tão vivo. Ela mesma, com o topo da escadaria e toda a sua capa­cidade de querer sentir. As coisas principais assal­tavam-na em quaisquer momentos, também nos vazios, enchendo-os de significados. Quantas vezes não dera uma gorjeta exagerada ao garçom só por­que se lembrara de que ele ia morrer e não o sabia.

Olhava-o misteriosamente, séria e terna. E agora procurava emocionar-se pensando nos dois futuros mortos.

Encostou a cabeça no seu peito e lá um cora­ção batia. Pensou: mas mesmo assim, apesar da morte, vou deixá-lo um dia. Conhecia bem o pen­samento que lhe poderia vir, fortalecendo-a, se an­tes de deixá-lo se comovesse: "Eu tirei tudo o que poderia ter. Não o odeio, não o desprezo. Por que procurá-lo, mesmo que o ame? Não gosto tanto de mim a ponto de gostar das coisas de que eu gosto. Amo mais o que quero do que a mim mesma". Oh, sabia igualmente que a verdade poderia estar no contrário do que pensara. Abandonou a cabeça, comprimiu a testa na camisa branca de Otávio. Aos poucos, muito de leve, foi-se apagando a idéia de morte e já não encontrava de que rir. Seu coração era maciamente moldado. Com o ouvido ela sabia que o outro, indiferente a tudo, prosseguia nas suas batidas regulares, no seu caminho fatal. O mar.

— Adiar, só adiar, pensou Joana antes de dei­xar de pensar. Porque os últimos cubos de gelo ha­viam-se derretido e agora ela era tristemente uma mulher feliz.

 

O ABRIGO NO PROFESSOR

Joana bem se lembrava: dias antes de casar pro­curara o professor.

Subitamente precisara encontrá-lo, senti-lo fir­me e frio antes de ir embora. Porque de algum modo parecia-lhe estar traindo toda a sua vida pas­sada com o casamento. Queria rever o professor, sentir seu apoio. E quando lhe surgiu a idéia de visitá-lo, acalmara-se aliviada.

Ele haveria de lhe dar a palavra justa. Que pa­lavra? Nada, respondia-se misteriosamente, queren­do numa repentina vontade de fé e de boa espera guardar-se para ouvi-lo completamente nova, sem ter sequer uma idéia do que ia ganhar. Um dia já lhe sucedera isso: quando pela primeira vez se pre­parava para o circo, em pequena. Teve os melhores momentos aprontando-se para ele. E quando se aproximou do largo campo onde branqueava o bar­racão redondo e imenso, como uma dessas cúpulas que escondem ate certo instante o melhor prato da mesa, quando se aproximou na mão da criada, sen­tiu o medo e a angústia e a alegria trêmula no cora­ção, queria voltar, fugir. No momento em que a criada lhe disse: seu pai deu dinheiro para pipocas, então Joana olhou estupefata para as coisas, sob a tarde cheia de sol, como se elas estivessem loucas.

Sabia que o professor adoecera, que fora aban­donado pela mulher. Mas apesar de envelhecido, encontrara-o mais gordo, o olhar brilhante. Tam­bém temera a princípio que a última cena em co­mum, quando fugira assustada para a puberdade, dificultasse a visita, deixasse-os em mal-estar, na­quela mesma sala estranha e sonsa onde agora a poeira vencera o brilho.

O professor recebera-a com ar sereno e distraí­do. Com as olheiras escuras parecia uma fotografia antiga. Fazia perguntas a Joana e mal ela iniciava a resposta ele deixava de ouvir, como enfim deso­brigado . Várias vezes se interrompia, a atenção vol­tada para o relógio e para a mesinha dos remédios. Ela olhava ao redor e a meia escuridão era úmida e ofegante. O professor parecia um grande gato castrado reinando num porão.

— Agora pode abrir as janelas, disse ele. Você sabe, um pouco de escuridão e depois bastante ar; todo o organismo se beneficia, recebe vida. É como uma criança mal cuidada. Quando recebe tudo, de repente reage, refloresce, mais do que as outras, às vezes.

Joana escancarara as janelas e as portas e o ar frio entrara numa rajada triunfante. Um pouco de sol vinha pela porta atrás dele. O professor alar­gara a gola do pijama, expusera-se ao vento.

—  É assim, declarara.

Olhando-o Joana descobria que ele era apenas um velho gordo ao sol, os ralos cabelos sem resistir à brisa o grande corpo largado sobre a cadeira. E o sorriso, meu Deus, um sorriso.

Quando haviam soada três horas, repentina­mente agitara-se, parara no meio da frase e, os ges­tos medidos, o rosto ávido e grave, contara vinte go­tas dum frasco para um cálice de água. Levantara-o à altura dos olhos, observando-o, os lábios aperta­dos, inteiramente absorvido. Bebera o líquido es­curo sem medo, fitando depois o cálice com uma careta amarga e um semi-sorriso que ela não sou­bera explicar. Colocara-o sobre a mesa, batera pal­mas chamando o criado, um moleque magro e dis­traído. Esperara pela sua volta em silêncio, o olhar atento como se procurasse ouvir de longe. Só quan­do recebera o copinho lavado, após bem examiná-lo e emborcá-lo sobre um pires, tivera um leve sus­piro:

— Bem, de que estávamos falando?

Ela continuava sem atentar às próprias pala­vras, observando-o. Nenhum traço no rosto do ho­mem marcava o abandono de sua mulher. Fugitiva­mente revia aquela figura quase sempre muda, de rosto impassível e soberano, que ela temera e odia­ra. E, apesar da repulsa que a outra ainda lhe inspirava, numa reminiscência, Joana descobrira surpresa que não só então, mas talvez sempre, se sentira unida a ela, como se ambas tivessem algo se­creto e mau em comum.

Nada na fisionomia dele denunciava a partida da esposa. Havia mesmo em sua atitude e em seu olhar uma tranqüilidade como que finalmente ad­quirida, um repouso que Joana nunca lhe tinha notado antes. Perscrutava-o quase angustiada como as águas engrossadas pela chuva e cuja profundidade fosse agora impossível de avaliar. Viera ouvi-lo, sentir sua lucidez como um ponto fixo!

—  A tortura de um homem forte é maior que a de um doente — experimentara fazê-lo falar.

Ele mal erguera os olhos. Sua frase flutuava no ar, tola e tímida. Vou continuar, é exatamente de minha natureza nunca me sentir ridícula, eu me aventuro sempre, entro em todos os palcos. Otávio, pelo contrário, com uma estética tão frágil que basta um riso mais agudo para quebrá-la e torná-la mise­rável. Ele me ouviria agora inquieto ou senão sor­rindo. Otávio já estava pensando dentro dela? ela já se transformara numa mulher que ouve e espera o homem? Estava cedendo alguma coisa... Queria salvar-se, ouvir o professor, sacudi-lo. Então esse velho que estava à sua frente não se lembrava de tudo o que lhe dissera? "Pecar contra si mesma..."

—  O doente imagina o mundo e o são o pos­sui, continuara Joana. O doente pensa que não pode apenas pela sua doença e o forte sente inútil sua força.

Sim, sim, ele balançava a cabeça, tímido. Ela percebia que seu mal-estar era somente o de alguém que não deseja ser interrompido. Continuara porém até o fim, a voz morta repetindo o pensamento que tivera há muito.

—  Por isso a poesia dos poetas que sofreram é doce, terna. E a dos outros, dos que de nada foram privados, é ardente, sofredora e rebelde.

—  Sim — dizia ele ajeitando a gola frouxa do pijama.

Ela via humilhada e perplexa seu pescoço es­curo, enrugado. Sim, dizia ele de quando em quan­do sem que sua atenção, procurando um apoio, se desviasse do relógio. Como dizer-lhe que ia casar?

Às quatro horas novamente repetira-se o ri­tual . Dessa vez o moleque desviara o corpo para não receber um pontapé, porque quase deixara cair o vidro de remédio. Com a tentativa frustrada, o chi­nelo do professor voara longe e seu pé de unhas recurvas e amareladas surgira nu. O menino apa­nhara o chinelo e jogara-o até Joana, rindo, com medo de se aproximar. Depois do cálice guardado, ela aventurara a primeira palavra sobre sua doença, devagar, envergonhada, porque nunca antes haviam eles penetrado na intimidade dos próprios casos, sempre se haviam entendido fora deles mesmos.

Não seria preciso tentar maior aproximação.. . Ele tomara a direção do assunto, alisara-o lenta­mente, com vagar e volúpia explicava-lhe todos os detalhes. O ar um pouco benevolente e misterioso a princípio, achando impossível que ela entrasse no seu mundo. Mas depois de uns instantes, esquecido de sua presença, docemente empolgado, já falava abertamente.

— O médico disse que ainda não estou me­lhor. Mas vou ficar bom, eu sei mais do que todos os médicos, acrescentara. Pois se sou eu o doen­te. ..

Ele descobrira finalmente, assombrada, que ele era feliz...

Aproximavam-se as cinco horas. Sentia que ele ansiava por sua partida. Mas não o deixaria assim, ainda tentou empurrar-se. Olhara-o bem nos olhos, cruelmente. Ele lhe retribuíra um olhar morno e in­diferente de início e logo em seguida furtara-se com raiva, importunado.

 

A PEQUENA FAMÍLIA

Antes de começar a escrever, Otávio ordenava os papéis sobre a mesa minuciosamente, ajeitava a roupa em si mesmo. Gostava dos pequenos gestos e dos velhos hábitos, como vestes gastas, onde se mo­via com seriedade e segurança. Desde estudante assim se preparava para um trabalho. Depois de instalar-se junto à mesa, arrumava-a e, a consciên­cia avivada pela noção das coisas ao redor — não me perder em grandes idéias, sou também uma coisa —, deixava a pena correr um pouco livremente para libertar-se de alguma imagem ou reflexão obsedante que porventura quisesse acompanhá-lo e im­pedir a marcha do pensamento principal.

Por isso trabalhar diante dos outros era um suplício. Receava o ridículo dos pequenos rituais e sem eles não podia passar, apoiavam tanto como uma superstição. Do mesmo modo como para viver cercava-se de permitidos e tabus, das fórmulas e das concessões. Tudo tornava-se mais fácil, como ensi­nado . O que fascinava e amedrontava em Joana era exatamente a liberdade em que ela vivia, amando repentinamente certas coisas ou, em relação a ou­tras, cega, sem usá-las sequer. Pois ele se via obrigado diante do que existia. Bem dissera Joana que ele precisava ser possuído por alguém... Você pega no dinheiro com uma intimidade... — brincara Joana uma vez enquanto ele pagava uma conta num restaurante e de tal modo ela o encontrava distraído e assustara-o que, diante do garçom, irônico certa­mente, as notas e as moedas escorregaram-lhe das mãos e espalharam-se aos seus pés. Embora não se seguisse nenhuma frase irônica — bem, justiça lhe seja feita, Joana não ri — ainda guardava um argu­mento pronto desde então: mas o que fazer com o dinheiro senão guardá-lo para gastá-lo? Irritava-se, envergonhado. Sentia que o argumento não respon­dia a Joana.

A verdade é que se não tivesse dinheiro, se não possuísse os "estabelecidos", se não amasse a ordem, se não existisse a Revista de Direito, o vago plano do livro de civil, se Lídia não estivesse dividida de Joana, se Joana não fosse mulher e ele homem, se... oh, Deus, se tudo... que faria? Não, não "que faria", mas a quem se dirigiria, como se mo­veria? Impossível deslizar por entre os blocos, sem vê-los, sem deles necessitar. . .

Contrariando a regra de trabalho — uma con­cessão —, pegou no papel e no lápis mesmo antes de estar inteiramente preparado. Mas desculpou-se, não queria perder aquela nota, talvez lhe servisse um dia: "É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar determinadas coisas. É essa talvez a marca do artista. Qualquer homem pode saber mais do que ele e raciocinar com segurança, segundo a verdade. Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz ace­sa.   Na escuridão tornam-se fosforescentes".   — Pensou um pouco. Depois, apesar da concessão pro­longar-se demais, anotou: "Não é o grau que separa a inteligência do gênio, mas a qualidade. O gênio não é tanto uma questão de poder intelectivo, mas da forma por que se apresenta esse poder. Pode-se assim ser facilmente mais inteligente que um gênio. Mas o gênio é ele. Infantil esse 'o gênio é ele'. Ver em relação a Spinoza, se se pode aplicar a des­coberta". — Era dele mesmo? Toda a idéia que lhe surgia, porque se familiarizava com ela em segun­dos, vinha com o temor de tê-la roubado.

Bem, agora a ordem. Lápis largado, recomen­dou-se, libertar-me das obsessões. Um, dois, três! Lamento muito sofrer como sofro entre os bambus do noroeste desta cidade, começou. Faço o que quero — continuou —, e ninguém me obriga a es­crever a Divina Comédia. Não há outra maneira de ser senão a que é, o resto é bordado inútil e tão incô­modo como aquele, em relevo, com anjos e flores, com que prima Isabel enfeitava meus travesseiros. Quando eu estava distraído e ela vinha como uma nuvem roxa e idiota, qual o meu pensamento, diga qual, qual, mais quatro vezes qual, qual, qual, qual. Assim, assim, não fuja: "o quê? ainda estás viva? ainda não morreste?" Sim, sim, foi isso, não fugir de mim, não fugir de minha letra, como é leve e hor­rível, teia de aranha, não fugir de meus defeitos, meus defeitos, eu vos adoro, minhas qualidades são tão pequenas, iguais às dos outros homens, meus de­feitos, meu lado negativo é belo e côncavo como um abismo. O que não sou deixaria um buraco enorme na terra. Eu não agasalho meus erros, enquanto Joana não erra, eis a diferença.   Hein, hein, diga alguma coisa, rapaz. As mulheres olham para mim, as mulheres, as mulheres, minha boca, deixo crescer de novo o bigode, elas morrem de alegria e grande amor, cheio de ameixas e passas. Eu compro todas elas sem dinheiro, dinheiro guardo, se uma escor­rega numa casca lá na rua, nada há de fazer senão ter vergonha. Nada se perde, nada se cria. O ho­mem que sentisse isso, quer dizer, não apenas com­preendesse, mas adorasse, seria tão feliz como o que acredita realmente em Deus. No começo dói um pouco, mas depois a gente se acostuma. Quem es­creve esta página nasceu um dia. Agora são exata­mente sete e pouco da manhã. Há névoas lá fora, além da janela, da Janela Aberta, o grande sím­bolo. Joana diria: eu me sinto tão dentro do mundo que me parece não estar pensando, mas usando de uma nova modalidade de respirar. Adeus. Isso é o mundo, eu sou eu, está chovendo no mundo, é men­tira, eu sou um trabalhador intelectual, Joana dorme no quarto, alguém deve estar acordando agora, Joa­na diria: outro morrendo, outro ouvindo música, al­guém entrou num banheiro, isto é o mundo. Vou comover todos, chamá-los para se enternecerem co­migo. Vivo com uma mulher nua e fria, não fugir, não fugir, que me olha bem nos olhos, não fugir, que me espia, mentira, mentira, mas é verdade. Agora está deitada dormindo, dorme vencida pelo sono, vencida, vencida. É um pássaro fino numa camisola branca. Vou comover todos, não agasalho meus erros, mas que todos me agasalhem.

Endireitou o busto, alisou o cabelo, ficou sério. Agora ia trabalhar. Como se todos assistissem e aprovassem com a cabeça, cerrando os olhos no assentimento: isso, isso mesmo, muito bem. Alguém real incomodava-o e sozinho ficava solto, nervoso. "Todos" pois assistiam-no. Tossiu ligeiramente. Afastou o tinteiro com cuidado. Começou. "A tra­gédia moderna é a procura vã de adaptação do ho­mem ao estado de coisas que ele criou."

Distanciou-se um pouco, olhou o caderno, en­direitou o pijama. "De tal modo a imaginação é a base do homem — Joana de novo — que todo o mun­do que ele tem construído encontra sua justificativa na beleza da criação e não na sua utilidade, não em ser o resultado de um plano de fins adequados às ne­cessidades. Por isso é que vemos multiplicarem-se os remédios destinados a unir o homem às idéias e instituições existentes — a educação, por exemplo, tão difícil — e vemo-lo continuar sempre fora do mundo que ele construiu. O homem levanta casas para olhar e não para nelas morar. Porque tudo segue o caminho da inspiração. O determinismo não é um determinismo de fins, mas um estreito de­terminismo de causas. Brincar, inventar, seguir a formiga até seu formigueiro, misturar água com cal para ver o resultado, eis o que se faz quando se é pequeno e quando se é grande. É erro considerar que chegamos a um alto grau de pragmatismo e materialismo. Na verdade o pragmatismo — o plano orientado para um dado fim real — seria a com­preensão, a estabilidade, a felicidade, a maior vitó­ria de adaptação que o homem conseguisse. No en­tanto fazer as coisas "para quê" parece-me, perante a realidade, uma perfeição impossível de exigir do homem. O início de toda sua construção é 'por­quê'. A curiosidade, o devaneio, a imaginação — eis o que formou o mundo moderno. Seguindo a ins­piração, misturou ingredientes, criou combinações. Sua tragédia: ter que se alimentar com elas. Con­fiou em que pudesse imaginar numa vida e encon­trar-se noutra, aparte. De fato essa outra continua, mas sua purificação sobre o imaginado age lenta­mente e um homem sozinho não encontra o pensa­mento tonto de um lado e a paz da vida verdadeira noutro. Não se pode pensar impunemente." Joana pensava sem medo e sem castigo. Teria a loucura por fim ou o quê? Não podia adivinhar. Talvez sofrimento apenas.

Parou, releu. Não sair desse mundo, pensou com certo ardor. Não ter que enfrentar o resto. Só pen­sar, só pensar e ir escrevendo. Que exigissem dele artigos sobre Spinoza, mas que não fosse obrigado a advogar, a olhar e a lidar com aquelas pessoas afrontosamente humanas, desfilando, expondo-se sem vergonha.

Releu as anotações sobre a leitura anterior. — O cientista puro deixa de crer no que gosta, mas não pode impedir-se de gostar do que crê. A necessidade de gostar: marca do homem. — Não esquecer: *o amor intelectual de Deus" é o verdadeiro conhe­cimento e exclui qualquer misticismo ou adoração. — Muitas respostas encontram-se em afirmações de Spinoza. Na idéia por exemplo de que não pode haver pensamento sem extensão (modalidade de Deus) e vice-versa, não está afirmada a mortalidade da alma? É claro: mortalidade como alma distinta e raciocinante, impossibilidade clara da forma pura dos anjos de S. Tomaz. Mortalidade em relação ao humano. Imortalidade pela transformação na natureza. — Dentro do mundo não há lugar para outras criações. Há apenas oportunidade de reintegração e continuação. Tudo o que poderia existir já existe. Nada mais pode ser criado senão revelado. — Se, quanto mais evoluído o homem, mais procura sin­tetizar, abstrair e estabelecer princípios e leis para sua vida, como poderia Deus — em qualquer acep­ção, mesmo na do Deus consciente das religiões — não ter leis absolutas pela sua própria perfeição? Um Deus dotado de livre arbítrio é menor que um Deus de uma só lei. Do mesmo modo por que tanto mais verdadeiro é um conceito quanto ele é um só e não precisa transformar-se diante de cada caso parti­cular. A perfeição de Deus prova-se mais na im­possibilidade do milagre do que na sua possibilida­de. Fazer milagres, para um Deus humanizado das religiões, é ser injusto — milhares de pessoas pre­cisam igualmente e ao mesmo tempo desse milagre — ou reconhecer um erro, corrigindo-o — o que, mais do que uma bondade ou "prova de caráter", significa ter errado. — Nem o entendimento nem a vontade pertencem à natureza de Deus, diz Spi­noza . Isso me faz mais feliz e me deixa mais livre. Porque a idéia da existência de um Deus consciente nos torna horrivelmente insatisfeitos.

No topo do estudo colocaria in litteris Spinoza traduzido: "Os corpos se distinguem uns dos outros em relação ao movimento e ao repouso, à velocidade e à lentidão e não em relação à substância". Mos­trara a frase a Joana. Por quê? Encolheu os om­bros, sem procurar mais fundo a explicação. Ela se mostrara curiosa, quisera ler o livro.

Otávio estendeu a mão e tomou-o. Uma folha de caderno intercalava suas páginas. Olhou-a e des­cobriu a letra incerta de Joana. Inclinou-se com avidez. "A beleza das palavras: natureza abstrata de Deus. É como ouvir Bach." Por que preferia que ela não tivesse escrito essa frase? Joana sempre o encontrava desprevenido. Ele se envergonhava como se ela estivesse claramente mentindo e ele fos­se obrigado a enganá-la, dizendo-lhe que acreditava nela...

Ler o que ela escrevera foi como estar diante de Joana. Evocou-a e, furtando-se aos seus olhos, viu-a nos seus momentos de distração, o rosto bran­co, vago e leve. E de repente grande melancolia desceu sobre ele. Que estou fazendo afinal? — per­guntou-se e nem sabia por que se agredira tão subi­tamente. Não, não escrever hoje. E como essa era uma concessão, uma ordem indiscutível — perscrutou-se: se quisesse sinceramente poderia trabalhar? e a resposta foi resoluta: não — e uma vez que a decisão era mais poderosa que ele, sentiu-se quase alegre. Hoje alguém lhe dava o descanso. Não Deus. Não Deus, mas alguém. Muito forte.

Levantar-se-ia, arrumaria os papéis, guardaria o livro, vestiria uma roupa quente, iria ver Lídia. O conforto da Ordem. Como seria recebido por Lídia? Diante da janela aberta, olhando as crianças cami­nharem para a escola, viu-se segurar seus ombros, subitamente em cólera, talvez um pouco forçada, em face daquela mesma pergunta: que estou fazendo afinal?

— Você não tem medo? — gritara-lhe.

Lídia continuara igual.

—  Você não tem medo de seu futuro, de nosso futuro, de mim? Não sabe que...  que...  sendo apenas minha amante... só tem lugar ao meu lado?

Ela balançara a cabeça surpreendida, chorosa:

—  Mas não...

Ele sacudira-a, longinquamente envergonhado de mostrar tanta força, quanto junto de Joana, por exemplo, calava-se.

—  Não tem medo de que eu deixe você? Não sabe que se eu deixar você, você será uma mulher sem marido, sem nada... Um pobre diabo... que um dia foi abandonada pelo noivo e que se tornou amante desse noivo enquanto ele casava com ou­tra...

—  Não quero que você me deixe...

—  Ah...

—   ...mas não tenho medo...

Olhara-a espantado. Estava emagrecendo, no­tou . Mas o aspecto saudável ainda. Apesar de tudo mais nervosa, facilidade para chorar, para como­ver-se . De repente pusera-se a rir.

—  Não sei de que você é feita, juro.

Lídia rira também, contente de que tudo es­tivesse acabado. Ele se intimidara com seu olhar radiante, puxara-a para si a fim de não ver seus olhos. E permaneceram um instante abraçados, cheios de desejos diferentes.

E agora? Lídia o receberia como sempre. Es­creveu um bilhete a Joana, avisando-lhe que não al­moçaria em casa. Pobre Joana..., poderia ele di­zer se quisesse. Jamais saberia. Tão íntegra na sua altivez ignorante... Mas ele ferozmente a pouparia, ria ele, o coração batendo. Bem, amanhã es­creveria algo definitivo sobre o artigo.

Olhou-se ao espelho antes de sair, de olhos entrefechados observou o rosto bem feito, o nariz reto, os lábios redondos e carnudos. Mas afinal de nada tenho culpa, disse. Nem de ter nascido. E de re­pente não compreendeu como pudera acreditar em responsabilidade, sentir aquele peso constante, todas as horas. Ele era livre... Como tudo se simpli­ficava às vezes...

Saiu à rua, escolheu demoradamente um saco de bombons. Terminou comprando um, bastante grande, de damasco. Quando dobrasse a esquina, chuparia o primeiro bombom, as mãos nos bolsos. Seus olhos se enterneceram pensando nisso. Por que não? — perguntou-se de repente irritado. Quem disse que os grandes homens não comem bombons? Só que nas biografias ninguém se lembra de contar isso. Se Joana soubesse desse seu pensamento? Não, na verdade nunca mostrou ironia para... Teve um momento de raiva, apressou o passo.

Antes de dobrar a esquina, pegou o saco de bombons e despejou-os na sarjeta. Angustiado, viu-os misturarem-se à lama, rolarem até um vão escuro cortado de teias de aranha.

 

Continuou o caminho mais devagar, encolhido. Fazia um pouco de frio. Agora alguém deveria estar satisfeito, pensou longinquamente. Como um castigo, uma confissão.

— Mesmo os grandes homens só são verda­deiramente reconhecidos e homenageados depois de mortos. Por quê? Porque os que elogiam precisam se sentir de algum modo superior ao elogiado, pre­cisam conceder. Depois que... nasce uma superio­ridade evidente... quem elogia... conseguiu se manter... há mesmo certa condescendência... saiu... piedade, dizia-lhe Otávio.

Lídia observava-o num de seus momentos feios. Os lábios adelgaçados, a testa enrugada, o olhar estúpido — Otávio pensava. E amava-o neste instante. Sua feiúra não a excitava, não lhe causava pena. Simplesmente ligava-se mais a ele e com maior alegria. Alegria de aceitar inteiramente, de sentir que unia o que havia de verdadeiro e primi­tivo em si a alguém, independente de qualquer das idéias recebidas sobre beleza. Lembrava-se das an­tigas colegas — daquelas meninas sempre vivas, sa­bendo tudo, tendo ligação com cinemas, livros, na­moros, roupas, daquelas moças de quem nunca pu­dera aproximar-se de verdade, calada como era, sem ter propriamente o que dizer. Lembrava-se delas e sabia que haveriam de achar Otávio feio naquele instante. Pois aceitava-o tanto que desejá-lo-ia pior para provar ainda mais seu amor sem luta.

Olhava-o sem prestar atenção às suas palavras. Era doce e bom saber que entre ambos havia segre­dos tecendo uma vida fina e leve sobre a outra vida, a real. Ninguém adivinharia jamais que Otávio a beijara nas pálpebras uma vez, que ele sentira nos lábios os seus cílios e que sorrira por isso. E mila­grosamente ela compreendera tudo sem que falas­sem. Ninguém saberia que um dia tinham se que­rido tanto que haviam permanecido mudos, sérios, parados. Dentro de cada um deles acumulavam-se conhecimentos nunca devassados por estranhos. Ele fora embora um dia. Mas não importava tanto. Ela sabia que entre os dois havia "segredos", que ambos eram irremediavelmente cúmplices. Se fosse em­bora, se amasse outra mulher, iria embora e amaria outra mulher para participar-lhe depois, mesmo que nada lhe contasse. Lídia tomaria parte na sua vida de qualquer modo. Certas coisas não acontecem sem conseqüência, pensava olhando-o. Que se fuja — e nunca se estará livre... Uma vez ia caindo, ele amparou-a, endireitou seu cabelo num gesto distraí­do. Ela agradeceu-lhe com uma ligeira pressão no braço. Olharam-se com um sorriso e de repente sen­tiram-se ofuscantemente felizes... Puseram-se a an­dar mais depressa, os olhos abertos deslumbrados.

Talvez ele não se lembrasse disso particular­mente. Ela é quem tinha memória para aquelas coisas. Verdade é que a qualidade desses aconte­cimentos era tal, que não se podia rememorá-los fa­lando . Nem mesmo pensando com palavras. Só pa­rando um instante e sentindo de novo. Que ele es­quecesse. Na sua alma, porém, restaria certamente qualquer marca, clara, cor-de-rosa, anotando a sen­sação e aquela tarde. Quanto a ela — cada dia que chegava trazia-lhe nas suas águas mais lembranças de que se alimentar. E aos poucos uma certeza de felicidade, de fim alcançado, subia-lhe vagarosa pelo corpo, deixando-a satisfeita, quase saciada, quase angustiada. Quando revia Otávio olhava-o agora sem grande emoção, achando-o inferior ao que ele lhe dera. Desejava falar-lhe de sua alegria. Mas vagamente temia feri-lo, como se lhe contasse uma traição com outro homem. Ou como se quisesse escancarar-lhe sua felicidade — a ele que se dividia entre duas casas e duas mulheres —, mostrá-la su­perior à sua.

Sim, pensava longinquamente, fitando-o — há coisas indestrutíveis que acompanham o corpo até a morte como se tivessem nascido com ele. E uma delas é o que se criou entre um homem e uma mu­lher que viveram juntos certos momentos.

E quando seu filho nascesse — alisou o ven­tre que já se arredondava — eles três seriam uma pequena família. Pensou em palavras: uma pequena família. Era isso o que desejava. Como um bom fim para toda a sua história. Otávio e ela haviam sido criados juntos, pela prima comum. Vivera perto de Otávio. Ninguém passara por sua vida senão ele. Nele descobrira o homem, antes de saber sobre ho­mens e mulheres. Sem raciocínios, confusamente, reunia a espécie em Otávio. Vivia-o tanto que nun­ca sentira os outros senão como mundos fechados, estranhos, superficiais. Sempre, em todas as suas fases, perto dele. Mesmo naquele período em que se tornara sonsa, escondendo tudo o que podia, até o que não havia necessidade de esconder. Mesmo no outro, em que a olhavam nas ruas, as colegas aceitavam-na admirando seus cabelos grossos e bo­nitos. Otávio seguindo-a com os olhos... aquela certeza, nunca mais apagada, de que era alguém... Foi quando compreendeu que não era pobre, que tinha o que dar a Otávio, que havia um modo de entregar-lhe sua vida, tudo o que ela fora... Es­perara-o. Quando o alcançara, Joana viera e ele fugira. Continuou esperando. Ele voltara. Um filho nasceria. Sim, mas antes que nascesse ela reclamaria seus direitos. "Reclamar seus direitos" pa­recia-lhe uma frase que dormia desde sempre dentro dela, à espera. À espera de que ela tivesse força. Queria que a criança brotasse entre os pais. E no fundo disso tudo, desejava para si mesma "a pe­quena família".

Sorriu levemente, ouvindo Otávio discorrer so­bre qualquer coisa de que ela nem sabia o começo. Desde que o feto começara a se formar dentro de si, perdera certos trejeitos, ganhara outros, ousava avançar em certos pensamentos. Parecia-lhe que até então vivera mentindo. Seus movimentos eram mais libertos do corpo, como se agora houvesse mais es­paço no mundo para o seu ser. Havia de cuidar da criança e de Otávio, ora se havia. . . Recostou-se melhor na poltrona, o bordado escorregou para o tapete. Entrecerrou os olhos e o ventre assim crescia, farto, brilhante. Abandonou-se ao bem-estar, certa preguiça que a dominava agora freqüentemente. Não tivera o menor enjôo, nem no princípio. E sa­bia que seu parto seria simples, simples como tudo. Pousou a mão sobre os flancos ainda não deforma­dos. De algum modo desprezava bastante as outras mulheres.

Otávio surpreendeu sua expressão, assustado. Uma crueldade distraída... Perscrutou-a, sem con­seguir decifrá-la, compreendendo apenas que estava excluído daquele semi-sorriso. Porque era um sor­riso, um sorriso horrível, satisfeito, apesar dela con­servar o rosto sério, os olhos abertos, olhando para diante. O temor assaltou-o, quase gritou:

— Você nem estava ouvindo!

Lídia afastou o corpo da cadeira com um so­bressalto, novamente dele, novamente entregue:

—  Eu...

— Nem ao menos me compreendeu, repetiu fitando-a, a respiração opressa.  A cena da última vez se repetiria? Não, havia um filho dentro dela. Por que terei eu um filho? Por que eu? Exatamente eu? É estranho... Perguntar-se-ia daí a um ins­tante: o que estou fazendo afinal? Não, não...

— Mas eu faço mais do que te compreender, disse ela apressada, eu te amo...

Ele suspirou imperceptivelmente, ainda com um pouco do susto que lhe provocara a fuga da mu­lher. Verdade é que ela não voltava mais inteira­mente, como antes da gravidez. E ele mesmo lhe dera o reinado, o tolo... Sim, mas quando ela se libertasse da criança, quando ela se libertasse da criança... Poucos minutos depois, já serenado, Otá­vio se deixava invadir pelo abandono e pela moleza que tão bem sustentavam suas relações com Lídia.

 

O ENCONTRO DE OTÀVIO

A noite densa e escura foi cortada ao meio, sepa­rada em dois blocos negros de sono. Onde estava? Entre os dois pedaços, vendo-os — o que já dor­mira e o que ainda iria dormir —, isolada no sem-tempo e no sem-espaço, num intervalo vazio. Esse trecho seria descontado de seus anos de vida.

O teto e as paredes uniam-se sem arestas, cala­das, de braços cruzados, e ela estava dentro de um casulo. Joana espiou-o sem pensamentos, sem emo­ção, uma coisa olhando para outra coisa. Aos pou­cos, de um movimento com a perna, nasceu-lhe lon­ginquamente a consciência misturada a um gosto de sono na boca, estirando-se, depois por todo o corpo. O luar empalidecia o quarto, a cama. Um momento, mais um momento, mais um momento, mais um momento. De repente, como um pequeno raio, alguma coisa acendeu dentro dela, disse rapida­mente sem mover um só músculo do rosto: olhe para o lado. Continuou fixando o teto, aparente­mente sem ligar sequer, mas o coração batendo as­sustado. Olhe para o lado. Adivinhava que termi­naria olhando, vagamente sabia o que havia ao lado, mas agia como se não pretendesse olhar, como se ignorasse o resto da cama. Olhe para o lado. En­tão vencida, diante de uma multidão de caras as­sistindo à cena lá do palco, voltou lentamente a cabeça sobre o travesseiro e espiou. Lá estava um homem. Compreendeu que esperara exatamente isto.

O peito nu, os braços abertos, crucificado. Ajeitou a cabeça na posição antiga. Bem, já espiei. Mas logo em seguida levantou o corpo e apoiada sobre o próprio cotovelo fitou-o, talvez sem curio­sidade, porém exigente, esperando uma resposta. Ou atendendo a que as caras impassíveis aguarda­vam esse gesto. Lá estava um homem. Quem era? A pergunta nasceu leve, já perdida, ia carregada como uma pobre folha pelas ondas escuras. Mas antes que Joana pudesse esquecê-la inteiramente, viu-a crescer de importância, apresentar-se como nova e urgente, a voz debruçada sobre ela: quem era?

Impacientou-se, cansada da insistência da mul­tidão de faces que, em lugar de brinquedo a dirigir, agora exigia, agora exigia. Quem era? Um homem, um macho respondeu. Mas seu homem, aquele es­tranho. Olhou-o no rosto, um rosto cansado de criança dormindo. Os lábios entreabertos. As pu­pilas, sob as grossas pálpebras descidas, voltadas para dentro, mortas. Tocou-o no ombro de leve e antes mesmo que recebesse alguma impressão, re­cuou rápida, assustada. Parou um pouco, sentindo o próprio coração ressoar no peito. Ajeitou a camisola, dando-se tempo para recuar se ainda qui­sesse. Porém continuou. Aproximou seu braço claro do braço nu daquela criatura e, embora já previsse o pensamento que se seguiu, estremeceu to­cada pela diferença violenta de cor, tão firme e auda­ciosa como um grito. Havia dois corpos limitados sobre a cama. E dessa vez não podia queixar-se de se conduzir consciente à tragédia: o pensamento impusera-se sem que ela o tivesse escolhido. E se ele acordasse e a surpreendesse inclinada sobre ele? Se abrisse os olhos subitamente, estes se encontrariam tão de frente com os seus, as duas luzes cruzando-se com as outras duas luzes... Retirou-se depressa, en­colheu-se dentro de si mesma, cheia de medo, da­quele temor inconfessado das antigas noites sem chuva, na escuridão sem sono. Quantas vezes terei que viver as mesmas coisas em situações diversas? Imaginou aqueles olhos como duas placas de cobre, brilhando sem expressão. Que voz poderia sair da­quela garganta adormecida? Sons como setas gros­sas cravando-se nos móveis, nas paredes, nela pró­pria maciamente. E todos também de braços cruza­dos, olhar varando o espaço longe. Implacavelmente. Badaladas de relógio só terminam quando terminam, nada há a fazer. Ou joga-se uma pedra em cima, e depois do barulho de vidros e molas quebradas, o silêncio derramando-se de dentro como sangue. Por que não matar o homem? Tolice, esse pensamento era inteiramente forjado. Olhou-o. Medo de que "aquilo" tudo, como ao aperto de um botão — bas­taria tocá-lo — começasse a funcionar ruidosa, me­canicamente, enchendo o quarto de movimentos e de sons, vivendo. Teve medo do próprio medo, que a dei­xava isolada. Enxergou de longe do alto da lâm­pada apagada, a si mesma, perdida e miúda, coberta de luas, junto do homem que podia viver a qualquer momento.

E subitamente, traiçoeiramente, teve um medo real, tão vivo como as coisas vivas. O desconhecido que havia naquele animal que era seu, naquele ho­mem que ela só soubera amar! Medo no corpo, me­do no sangue! Talvez ele a estrangulasse, a assas­sinasse... Por que não? — assustou-se — a audá­cia com que seu próprio pensamento avançava, guiando-a como uma luzinha móvel e trêmula atra­vés do escuro. Para onde ia? Mas por que Otávio não a estrangularia? Não estavam sós? E se ele es­tivesse louco sob o sono? — Estremeceu. Teve um movimento involuntário com as pernas, afastou os lençóis, pronta para se defender, para fugir. . . Ah, se gritasse não teria medo, o medo fugiria com o grito... Otávio respondeu ao seu movimento er­guendo por sua vez as sobrancelhas, apertando os lá­bios, abrindo-os de novo e continuando morto! Ela olhava-o, olhava-o... esperava...

Não, não era perigoso. Passou as costas da mão pela testa.

Havia ainda o silêncio, o mesmo silêncio.

Talvez, quem sabe, tivesse vivido um pouco de sonho misturado com a realidade, pensou. Procurou rememorar o dia passado. Nada de importante, senão o bilhete de Otávio avisando que almoçaria fora, como vinha acontecendo quase regularmente, há tempos. Ou o medo fora mais do que uma alucinação? O quarto era agora nítido e frio. Repousou de olhos cerrados. Felizmente eram raras as noites de pesadelo.

 

Que tola tinha sido. Aproximou a mão, tentou tocá-lo. Deixou a palma estirada sobre o seu peito, a princípio de leve, quase flutuante, mas vencendo-se aos poucos. Depois de momento a momento mais confiante, abandonou-a inteiramente sobre aquele largo campo que uma vegetação ligeira cobria. Os olhos abertos, sem ver, toda a atenção voltada para si própria e para o que sentia.

Um móvel estalou, as sombras agarraram-se mais firmes no guarda-roupa.

Então nasceu-lhe uma idéia. Uma idéia tão quente que o coração acompanhou-a com pancadas fortes. Assim: aproximou-se dele, aninhou com cui­dado a cabeça no seu braço, junto de seu peito. Fi­cou parada, à espera. Aos poucos sentiu o calor do estranho transmitindo-se a ela mesma pela nuca. Ouviu o bater ritmado, longínquo e sério de um co­ração. Perscrutou-se atenta. Aquele ser vivo era seu. Aquele desconhecido, aquele outro mundo era seu. Via-o de longe, do alto da lâmpada, o corpo nu — perdido e fraco. Fraco. Como eram frágeis e delica­das suas linhas descobertas, sem proteção. Ele, ele, o homem. De uma fonte oculta veio-lhe subindo pelo corpo a angústia, enchendo-lhe todas as células, empurrando-a desamparada para o fundo da cama. Meu Deus, meu Deus. Depois, num parto doloroso, sob a respiração difícil, sentiu o óleo macio da renún­cia derramar-se dentro de si, enfim, enfim. Ele era seu.

Desejou chamá-lo, pedir-lhe apoio, pedir-lhe que dissesse palavras de apaziguamento. Mas não queria acordá-lo. Temia que ele não soubesse fazê-la subir para uma sensação mais alta, para a realização daquilo que agora era ainda um doce embrião. Sabia que mesmo nesse momento estava sozinha, que o homem acordaria distante. Que ele poderia inter­ceptar-lhe com um bloco — uma palavra distraída e morna — o estreito e luminoso caminho onde tro­peçava nos primeiros passos. No entanto imaginá-lo ignorante do que se passava dentro dela não dimi­nuía sua ternura. Aumentava-a, fazia-a maior que seu corpo e sua alma como para compensar a dis­tância do homem.

Joana sorria, mas não podia evitar que o sofri­mento começasse a lhe palpitar em todo o corpo, como uma sede amarga. Mais que sofrimento, um desejo de amor crescendo e dominando-a. Dentro de um vago e leve turbilhão, como uma rápida verti­gem, veio-lhe a consciência do mundo, de sua pró­pria vida, do passado aquém de seu nascimento, do futuro além de seu corpo. Sim, perdida como um ponto, um ponto sem dimensões, uma vez, um pen­samento. Ela nascera, ela morreria, a terra... Ve­loz, profunda a sensação: um mergulho cego numa cor — vermelha, serena e larga como um campo. A mesma consciência violenta e instantânea que a assaltava às vezes nos grandes instantes de amor, como a um afogado que vê pela última vez.

— Meu... — começou baixo.

Mas tudo o que ela pudesse dizer não bastava. Ela estava vivendo, vivendo. Espiou-o. Como ele dormia, como existia. Nunca o sentira tanto. Quan­do se unira a ele, nos primeiros tempos de casada, o deslumbramento lhe viera de seu próprio corpo des­coberto. A renovação fora sua, ela não transbordara até o homem e continuara isolada. Agora subitamente compreendia que o amor podia fazer com que se desejasse o momento que vem num impulso que era a vida... — Sentia o mundo palpitar docemente em seu peito, doía-lhe o corpo como se nele supor­tasse a feminilidade de todas as mulheres.

Silenciou de novo olhando para dentro de si. Lembrou-se: sou a onda leve que não tem outro campo senão o mar, me debato, deslizo, vôo, rindo, dando, dormindo, mas ai de mim, sempre em mim, sempre em mim. De quando era aquilo? Lido em criança? Pensado? De súbito recordou-se: ainda agora pensara-o, talvez antes de encostar o braço no de Otávio, talvez naquele momento em que tivera vontade de gritar... Cada vez mais tudo era pas­sado ... E o passado tão misterioso como o futu­ro...

Sim... e também vira, rapidamente como um carro silencioso em disparada, aquele homem que ela encontrava às vezes na rua... aquele homem que a fitava mudo, magro e afiado como uma faca. Já o sentira naquela noite de leve, encostando na sua consciência como a cabeça de um alfinete... como um pressentimento... mas em que momento? No sonho? Na vigília? Um novo fluxo de dor e de vida cresceu, inundou-a, com a angústia da prisão.

— Eu... — recomeçou tímida para Otávio.

Estava mais escuro, ela não o via senão como uma sombra. Ele se apagava cada vez mais, escorre­gava-lhe por entre as mãos, morto no fundo do sono. E ela, solitária como o tic-tac de um relógio numa casa vazia. Esperava sentada sobre a cama, os olhos engrandecidos, o frio da madrugada próxima atravessando-lhe a camisa fina. Sozinha no mundo, es­magada pelo excesso de vida, sentindo a música vi­brar alta demais para um corpo.

Mas a libertação veio e Joana tremeu ao seu impulso... Porque, branda e doce como um ama­nhecer num bosque, nasceu a inspiração... Então ela inventou o que deveria dizer. Os olhos fechados, entregue, disse baixinho palavras nascidas naquele instante, nunca antes ouvidas por alguém, ainda tenras da criação — brotos novos e frágeis. Eram menos que palavras, apenas sílabas soltas, sem sen­tido, mornas, que fluíam e se entrecruzavam, fecun­davam-se, renasciam num só ser para desmembra­rem-se em seguida, respirando, respirando...

Seus olhos se umedeceram de alegria suave e de gratidão. Falara... As palavras vindas de antes da linguagem, da fonte, da própria fonte. Aproximou-se dele, entregando-lhe sua alma e sentindo-se no entanto plena como se tivesse sorvido um mundo. Ela era como uma mulher.

As árvores escuras do jardim vigiavam secreta­mente o silêncio, ela bem sabia, bem sabia... Ador­meceu.

 

LIDIA

A manhã seguinte era de novo como um primeiro dia, sentiu Joana.

Otávio saíra cedo e ela o abençoava por isso como se ele lhe tivesse concedido intencionalmente tempo para pensar, para observar-se. Ela não que­ria precipitar-se em nenhuma atitude, sentia que qualquer de seus movimentos poderia tornar-se pre­cioso e perigoso.

Foram instantes, horas rápidas apenas. Porque ela recebeu o bilhete de Lídia convidando-a a vi­sitá-la.

Sua leitura fizera Joana sorrir antes mesmo de provocar aquelas rápidas e pesadas batidas do cora­ção. E também a lâmina fria de aço encostando no interior morno do corpo. Como se sua tia morta ressurgisse e lhe falasse, Joana imaginou-lhe o susto, sentiu seus olhos abertos — ou seriam os seus pró­prios olhos a quem ela não permitia surpresas? —: Otávio voltou para Lídia, apesar de Joana? — diria a tia.

Joana alisou os cabelos vagamente, a lâmina fria encostada ao coração quente, sorriu de novo, oh só para ganhar tempo. Mas sim, por que não continuar com Lídia? — respondeu à tia morta. A lâmi­na agora, a esse pensamento claro, oprimiu-lhe rindo os pulmões, gelada. Por que recusar acontecimentos? Ter muito ao mesmo tempo, sentir de várias manei­ras, reconhecer a vida em diversas fontes... Quem poderia impedir a alguém viver largamente?

Mais tarde caiu num estado de estranha e leve excitação. Deslizou pela casa sem destino, chorou mesmo um pouco, sem grande sofrimento, só por chorar — convenceu-se — simplesmente, como quem acena com a mão, como quem olha. Estou sofrendo?

—  indagava-se às vezes e de novo quem pensava enchia toda ela de surpresa, curiosidade e orgulho e não restava lugar para quem sofrer. Mas sua fina exaltação não lhe permitiu continuar num mesmo plano durante muito tempo. Passou logo a outro tom de comportamento, tocou um pouco de piano, esque­ceu a carta de Lídia. Quando dela se lembrava, vaga­mente, um pássaro que vem e volta, não sabia deci­dir-se, se ficar triste ou alegre, se calma ou agitada. Lembrava-se continuamente da noite anterior, a vi­draça erguida brilhava serenamente à lua, do peito nu de Otávio, da Joana que adormecera profunda­mente, quase pela primeira vez na vida, confiando-se a um homem que dormia ao seu lado. Na verdade não se distanciara da Joana cheia de ternura da vés­pera. Envergonhada, humilde e rejeitada, essa va­gara até voltar e Joana estava cada vez mais dura, mais concentrada e cada vez mais perto de si mesma — julgava. Até melhor. Só que o aço frio se reno­vava sempre, nunca esquentava. Sobretudo, no fundo de qualquer pensamento pairava um outro, perplexo, quase encantado, como no dia da morte do pai: aconteciam coisas sem que ela as inventasse...

De tarde pôde enfim observar Lídia e soube que estava tão longe dela como da mulher da voz. Olhavam-se e não podiam se odiar ou mesmo se repelir. Lídia falara, pálida e discreta, sobre vários assuntos sem interesse para nenhuma das duas. Sua gravidez nascente boiava por toda a sala, enchia-a, penetrava Joana. Até aqueles móveis apagados, com os paninhos de crochê, pareciam guardar-se no mes­mo segredo quase revelado, na mesma espera de um filho. Os olhos abertos de Lídia eram sem sombras. Que mulher bela. Os lábios cheios mas pacíficos, sem estremecimentos, como de alguém que não tem re­ceio do prazer, que o recebe sem remorsos. Que poe­sia seria a base de sua vida. Que diria aquele mur­múrio que ela adivinhava no interior de Lídia? A mulher da voz multiplicava-se em inúmeras mulhe­res... Mas onde estava afinal a divindade delas? Até nas mais fracas havia a sombra daquele conheci­mento que não se adquire com a inteligência. Inteli­gência das coisas cegas. Poder da pedra que tomban­do empurra outra que vai cair no mar e matar um peixe. Às vezes encontrava-se o mesmo poder em mulheres apenas ligeiramente mães e esposas, tímidas fêmeas do homem, como a tia, como Armanda. No entanto aquela força, a unidade na fraqueza... Oh, estava exagerando talvez, talvez a divindade das mu­lheres não fosse específica, estivesse apenas no fato de existirem. Sim, sim, aí estava a verdade: elas exis­tiam mais do que os outros, eram o símbolo da coisa na própria coisa. E a mulher era o mistério em si mes­mo, descobriu. Havia em todas elas uma qualidade de matéria-prima, alguma coisa que podia vir a defi­nir-se mas que jamais se realizava, porque sua essên­cia mesma era a de "tornar-se". Através dela exata­mente não se unia o passado ao futuro e a todos os tempos?

Lídia e Joana calaram um longo momento. Não se sentiam propriamente juntas, mas sem necessi­dade de palavras, como se na realidade se tivessem encontrado apenas para se olhar e retirar-se então. A estranheza da situação tornou-se mais nítida quan­do as duas mulheres sentiram que não estavam lu­tando. Em ambas houve um movimento de impa­ciência, ainda havia um dever a cumprir. Joana afas­tou-o, subitamente saciada:

—  Bem — o tom da própria voz acordou-a desagradavelmente —, creio que está finda a entre­vista.

Lídia assombrou-se. Mas como? pois se nada tinham dito! Sobretudo, repugnava-lhe a idéia de uma coisa inacabada:

—  Nós nada dissemos ainda... E precisamos falar...

Joana sorriu. Nesse sorriso começou a agir, não com força — o cansaço — mas exatamente como eu a impressionaria. Que tolice estou pensando afinal?

—  Não sente — disse Joana — que nos afasta­mos do motivo que nos reuniu? Se falássemos nele seria pelo menos agora sem interesse nem ardor... Deixemos tudo para outro dia.

Por um instante a figura do homem apareceu-lhes apagada, inoportuna. Mas Lídia sabia que mal aquela mulher desaparecesse, desapareceria também a inércia e o torpor em que ela a deixara, tirando- lhe a vontade de se mover. E de novo desperta, que­reria o filho. A pequena família. Fazia esforço por sair daquele sono, por abrir os olhos e lutar.

—  É absurdo perdermos essa ocasião...

Sim, compremos o artigo, compremos o artigo. Minha moleza vem de que me preparei demais para a festa. Joana riu novamente, sem alegria.

—  Sei que nada posso esperar de sua parte, retomou a grávida subitamente com força — uma nuvem destapando o sol, tudo rebrilhando de novo, insuflado de vida. Também Joana se aclarou, sentiu a nuvem descobrindo o sol, tudo borbulhando leve­mente de mãos dadas numa roda suave, como de crianças.

—  Conheço-a bem, continuou Lídia. As pala­vras caíram serenamente enfaradas no lago, deposi­tavam-se no seu fundo, sem conseqüência.

Mas de repente a moça se empurrou e à sua gra­videz, num último esforço para despertar:

—  Conheço-a, sei quanto é firme sua maldade. Agora a sala revivia.

—  Ah, sabe?

Sim, revivia, acordou Joana. Que estou dizen­do? Como ouso vir aqui? Estou longe, longe. Basta olhar para essa mulher para compreender que não se poderia gostar de mim. O aço encostou subita­mente em seu coração. Ah, o ciúme, era isso o ciúme, a mão fria amassando-a lentamente, apertando-a, diminuindo sua alma. Comigo acontece o seguinte ou senão ameaça acontecer: de um momento para outro, a certo movimento, posso me transformar numa linha. Isso! numa linha de luz, de modo que a pessoa fica só a meu lado, sem poder me pegar e à minha deficiência. Enquanto Lídia tem vários planos. A cada gesto revela-se outro aspecto de sua dimensão. Ao seu lado ninguém escorrega e se perde, porque se apóia sobre seus seios — sérios, plácidos, pálidos, enquanto os meus são fúteis — ou sobre sua barriga onde até um filho cabe. Não exagerar sua importância, em todos os ventres de mulheres pode nascer um filho. Como é bela e é mulher, serena­mente matéria-prima, apesar de todas as outras mu­lheres. O que há no ar? estou sozinha. Os lábios grandes de Lídia, de linhas vagarosas, tão bem pin­tados de claro, enquanto eu de batom escuro, sem­pre escarlate, escarlate, escarlate, o rosto branco e magro. Esses seus olhos castanhos, enormes e tran­qüilos, talvez nada tenham a dar, mas recebem tanto que ninguém poderia resistir, muito menos Otávio. Sou um bicho de plumas. Lídia de pêlos, Otávio se perde entre nós, indefeso. Como escapar ao meu bri­lho e à minha promessa de fuga e como escapar à certeza dessa mulher? Nós duas formaríamos uma união e forneceríamos à humanidade, sairíamos de manhã cedo de porta em porta, tocaríamos a cam­painha: qual é que a senhora prefere: meu ou dela? e entregaríamos um filhinho. Compreendo por que Otávio não se desligou de Lídia: ele está sempre disposto a se lançar aos pés daqueles que andam para frente. Nunca vê um monte sem enxergar ape­nas sua firmeza, nunca vê uma mulher de busto grande sem pensar em deitar a cabeça sobre ele. Co­mo sou pobre junto dela, tão segura. Ou me acendo e sou maravilhosa, fugazmente maravilhosa, ou se­não obscura, envolvo-me em cortinas. Lídia, o que quer que seja, é imutável, sempre com a mesma base clara. As minhas mãos e as dela. As minhas — esbo­çadas, solitárias, traços lançados para a frente e pa­ra trás, descuido e rapidez num pincel molhado em tinta branco-triste, estou sempre levando a mão à testa, sempre ameaçando deixá-las no ar, oh como sou fútil, só agora compreendo. As de Lídia — re­cortadas, bonitas, cobertas por uma pele elástica, rosada, amarelada, como uma flor que vi em alguma parte, mãos que repousam em cima das coisas, cheias de direção e sabedoria. Eu toda nado, flutuo, atra­vesso o que existe com os nervos, nada sou senão um desejo, a raiva, a vaguidão, impalpável como a energia. Energia? mas onde está minha força? na imprecisão, na imprecisão, na imprecisão... E vivificando-a, não a realidade, mas apenas o vago im­pulso para diante. Quero deslumbrar Lídia, tornar a conversa algo estranho, fino, escapando, mas não, mas sim, não, mas por que não? Lembrou-se subi­tamente de Otávio, mexendo e soprando a xícara de café para esfriá-la, o ar sério, interessado e ingênuo. Surpreender Lídia, sim, arrastá-la... Como naquele tempo do internato, quando subitamente precisava pôr à prova seu poder, sentir a admiração das cole­gas, com quem geralmente pouco falava. Então re­presentava friamente, inventando, brilhando como numa vingança. Do silêncio em que se escondia, saía para a luta:

— Olhem aquele homem... Toma café com leite de manhã, bem devagar, molhando o pão na xí­cara, deixando escorrer, mordendo-o, levantando-se depois pesado, triste...

As colegas olhavam, viam um homem qualquer e no entanto, apesar de surpreendidas e intencional- mente distantes a princípio, no entanto... era mila­grosamente exato! Elas chegavam a ver o homem se levantando da mesa... a xícara vazia... algumas moscas... Joana continuava a ganhar tempo, a avan­çar, os olhos acesos:

—  E aquele outro... De noite tira com es­forço os sapatos, joga-os longe, suspira, diz: o que importa é não desanimar, o que importa é não desa­nimar...

As mais fracas murmuravam já sorridentes, do­minadas: é mesmo... como é que você sabe? As outras retraíam-se. Porém terminavam ao redor de Joana, esperando que ela lhes mostrasse mais alguma coisa. Seus gestos a essa altura se tornavam leves, fe­bris, e inspirada cada vez mais tocava em todas:

— Vejam os olhos daquela mulher... redon­dos, transparentes, tremem, tremem, de um instante para outro podem cair numa gota d'água...

— E aquele olhar? — às vezes Joana era mais audaciosa, encontrando súbita timidez naquelas me­ninas que liam certos livros nos corredores da escola. E aquele olhar? de quem busca prazer onde quer que o encontre...

As colegas riam, mas aos poucos nascia alguma coisa de inquieto, doloroso e incômodo na cena. Elas terminavam por rir demais, nervosas e insatisfeitas. Joana, animada, subia sobre si mesma, prendia as moças à sua vontade e à sua palavra, cheia de uma graça ardente e cortante como ligeiras chicotadas. Até que, finalmente envoltas, elas aspiravam o seu brilhante e sufocante ar. Numa súbita saciedade, Joana parava então, os olhos secos, e corpo trêmulo sobre a vitória. Desamparadas, sentindo o  rápido afastamento de Joana e seu desprezo, também elas tombavam murchas, como envergonhadas. Alguma dizia antes de se dispersarem, cansadas umas das outras:

—  Joana fica insuportável quando está ale­gre...

Lídia corou. O "Ah, sabe?" de Joana soara tão curto, distraído e curioso, tão longe da emoção de Lídia.

—  Não tem importância, não tem importância — tentou Joana apaziguá-la. É claro que você não pode saber o que é maldade. Então vai ter um fi­lho..., continuou. Quer Otávio, o pai. É compre­ensível. Por que não trabalha para sustentar o guri? Certamente você estava esperando de mim grandes bondades, apesar do que disse agora sobre minha maldade. Mas a bondade me dá realmente ânsias de vomitar. Por que não trabalha? Assim não precisaria de Otávio. Não estou disposta a lhe ceder exatamen­te tudo. Mas me conte antes seu romance com Otá­vio, me conte como conseguiu que ele voltasse para você. Ou melhor: o que ele pensa de mim. Diga sem medo. Eu o faço muito infeliz?

—  Não sei, não tocamos no seu nome.

Eu estava então sozinha? e essa alegria de dor, o aço franzindo minha pele, esse frio que é ciúme, não, esse frio que é assim: ah, andaste tudo isso? pois tens que voltar. Mas dessa vez não recomeçarei, juro, nada reconstruirei, ficarei atrás como uma pedra lá longe, no começo do caminho. Há qualquer coisa que roda comigo, roda, roda, me atordoa, me atordoa, e me deposita tranqüilamente no mesmo lugar.

Dirigiu-se à grávida:

—  Não é possível... Ele não se libertaria tão facilmente.

—  Mas ele de certo modo detesta você! — gri­tara Lídia.

Ah, bem.

—  Você também sente isso? — perguntara Joana. — Sim, sim... Não é ódio somente, apesar de tudo. — A noite de ontem, minha ternura, não importa, no fundo eu sabia que estava só, nem ao menos fui enganada, porque sabia, sabia. — E se fosse medo também?

— Medo? Não compreendo, surpreendia-se Lí­dia, medo de quê?

— Talvez porque eu seja infeliz, medo de se aproximar. Talvez seja isso: medo de ter que sofrer também...

—  É infeliz? — indagara a outra baixo.

—  Mas não se assuste, a infelicidade nada tem a ver com a maldade, rira Joana. — O que houve afinal? Não estou presente, não estou presente, o que houve, o cansaço, vontade de sair chorando. Eu sei, eu sei: gostaria de passar pelo menos um dia vendo Lídia andar da cozinha para a sala, depois almoçando ao seu lado numa sala quieta — algumas moscas, talheres tilintando —, onde não entrasse calor, vestida num largo e velho robe florido. Depois, de tarde, sentada e olhando-a coser, dando-lhe aqui e ali uma pequena ajuda, a tesoura, a linha, à espera da hora do banho e do lanche, seria bom, seria largo e fresco. Será um pouco disso o que sempre me fal­tou? Por que é que ela é tão poderosa? O fato de eu não ter tido tardes de costura não me põe abaixo dela, suponho. Ou põe? Põe, não põe, põe, não põe.

Eu sei o que quero: uma mulher feia e limpa, com seios grandes, que me diga: que história é essa de inventar coisas? nada de dramas, venha cá imedia­tamente! — E me dê um banho morno, me vista uma camisola branca de linho, trance meus cabelos e me meta na cama, bem zangada, dizendo: o que então? fica aí solta, comendo fora de hora, capaz de pegar uma doença, deixe de inventar tragédias, pen­sa que é grande coisa na vida, tome essa xícara de caldo quente. Me levanta a cabeça com a mão, me cobre com um lençol grande, afasta alguns fios de cabelo de minha testa, já branca e fresca, e me diz antes de eu adormecer mornamente: vai ver como em pouco tempo engorda esse rosto, esquece as maluquices e fica uma boa menina. Alguém que me re­colha como a um cão humilde, que me abra a porta, me escove, me alimente, me queira severamente co­mo a um cão, só isso eu quero, como a um cão, a um filho.

—  Você gostaria de estar casada — casada de verdade — com ele? — indagou Joana.

Lídia olhara-a rapidamente, procurava saber se havia sarcasmo na pergunta:

—  Gostaria.

—  Por quê? — surpreendeu-se Joana. Não vê que nada se ganha com isso? Tudo o que há no casa­mento você já tem — Lídia corou, mas eu não tinha malícia, mulher feia e limpa. — Aposto como você passou toda a vida querendo casar.

Lídia teve um movimento de revolta: era tocada bem na ferida, friamente.

—  Sim. Toda mulher... — assentiu.

—  Isso vem contra mim. Pois eu não pensava em me casar. O mais engraçado é que ainda tenho a certeza de que não casei... Julgava mais ou me­nos isso: o casamento é o fim, depois de me casar nada mais poderá me acontecer. Imagine: ter sempre uma pessoa ao lado, não conhecer a solidão. — Meu Deus! — não estar consigo mesma nunca, nunca. E ser uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com destino traçado. Daí em diante é só esperar pela morte. Eu pensava: nem a liberdade de ser infeliz se conservava porque se arrasta consigo outra pes­soa. Há alguém que sempre a observa, que a perscruta, que acompanha todos os seus movimentos. E mesmo o cansaço da vida ter certa beleza quando é suportado sozinha e desesperada — eu pensava. Mas a dois, comendo diariamente o mesmo pão sem sal, assistindo à própria derrota na derrota do ou­tro... Isso sem contar com o peso dos hábitos re­fletidos nos hábitos do outro, o peso do leito co­mum, da mesa comum, da vida comum, preparando e ameaçando a morte comum. Eu sempre dizia: nunca.

—  Por que casou? — indagava Lídia.

—  Não sei. Só sei que esse "não sei" não é uma ignorância particular, em relação ao caso, mas o fundo das coisas. — Estou fugindo da questão, daqui a pouco ela me olhará daquele jeito que eu já conheço. — Casei certamente porque quis casar. Porque Otávio quis casar comigo.  É isso, é isso: descobri: em lugar de pedir para viver comigo sem casamento, sugeriu-me outra coisa. Aliás daria no mesmo. E eu estava tonta, Otávio é bonito, não é?

Não me lembrei de mais nada. — Pausa — Como é que você o quer: com o corpo?

—  Sim, com o corpo — balbuciara Lídia.

—  É amor.

—  E você? — atreveu-se Lídia.

—  Não tanto.

—  Mas ele me disse, ao contrário...

Lídia interrompera-se. Olhava-a com cuidado. Como Joana parecia inexperiente. Falava do amor com tanta simplicidade e clareza porque certamente nada ainda lhe tinha sido revelado através dele. Ela não caíra nas suas sombras, ainda não sentira suas transformações profundas e secretas. Senão teria, como ela própria, quase vergonha de tanta felicida­de, manter-se-ia vigilante à sua porta, protegendo da luz fria aquilo que não deveria crestar-se para continuar a viver. No entanto aquela vivacidade de Joana... o que compreendera através de Otávio... que existia vida dentro dela... Mas seu amor não abrigava, nem a Joana mesma, sentiu Lídia. Inex­periente, íntegra, intocada, podia confundir-se com uma virgem. Lídia olhava-a e tentava explicar-se o que havia de oscilante e lúcido naquele rosto. Cer­tamente o amor não a ligava nem mesmo ao amor. Enquanto ela própria, Lídia, quase um instante após o primeiro beijo, transformara-se em mulher.

—  Sim, sim, mas nada altera, prosseguia Joa­na serena. Eu o quero também mais friamente, co­mo a uma criatura, como a um homem. — Será que ela vai olhar daquele jeito medroso, assombrado, re­verente: oh, por que você fala em coisas difíceis, por que empurra coisas enormes num momento simples, me poupe, me poupe. Mas dessa vez tenho culpa, porque realmente nem sei o que pretendia dizer. Porém é assim que eu a vencerei. Lídia hesitava:

—  Isso não é mais do que amor?

—  Pode ser, disse Joana surpresa. O que im­porta é que já não é amor. — E de repente eis que vem o cansaço, o grande "para quê" me envolvendo, e eu sei que vou dizer alguma coisa. — Fique com Otávio. Tenha seu filho, seja feliz e me deixe em paz.

—  Sabe o que está dizendo? — gritara a ou­tra.

—  Sei, é claro.

—  Não gosta dele...

—  Gosto. Mas eu nunca sei o que fazer das pessoas ou das coisas de que eu gosto, elas chegam a me pesar, desde pequena. Talvez se eu gostasse realmente  com  o corpo...   Talvez me  ligasse mais... — São confidencias, Deus meu. Agora vou dizer assim: — Otávio foge de mim porque eu não trago paz a ninguém, dou aos outros sempre a mes­ma taça, faço com que digam: eu estive cego, não era paz o que eu tinha, agora é que a desejo.

—  Mesmo assim... acho — ninguém pode se lamentar...   Nem Otávio...   suponho que nem eu... — Lídia não soubera explicar, quedara-se vaga, as mãos não pousavam sobre as coisas.

—  O quê?

—  Não sei. — Olhava para Joana e procurava alguma coisa no seu rosto, intrigada, movendo a ca­beça.

—  O que é? — repetiu Joana.

—  Não consigo compreender.

Joana enrubesceu de leve:

— Também eu. Nunca penetrei no meu cora­ção.

Alguma coisa estava dita.

Joana caminhou até a janela, espiou o jardim onde brincaria o filho de Lídia, que estava agora no ventre de Lídia, que seria alimentado pelos seios de Lídia, que seria Lídia. Ou Otávio, fruto verde? Não, Lídia, a que se transmite. Se a abrissem ao meio — ruído de folhas frescas se partindo — veriam-na como uma romã aberta, sadia e rosada, translúcida como olhos claros. A base de sua vida era mansa como um regato correndo no campo. E nesse cam­po ela própria se movia segura e serena como um animal a pastar. Comparou-a com Otávio, para quem a vida nunca passaria de uma estreita aven­tura individual. E com ela mesma, usando os ou­tros para fundo sombrio onde se recortasse sua figura brilhante e alta. A poesia de Lídia: só este silêncio é minha prece, Senhor, e não sei dizer mais; sou tão feliz em sentir que me calo para sentir mais; foi em silêncio que nasceu em mim uma teia de aranha tenra e leve: esta suave incompreensão da vida que me permite viver. Ou era tudo mentira? Oh, Deus, quando mais precisava agir perdia-se em pensamen­tos inúteis. Tudo certamente mentira, era até pos­sível que Lídia fosse muito menos pura do que ima­ginava. Mas mesmo assim receava continuar ao seu lado, olhá-la sem querer com um pouco de força, fazer com que ela tomasse consciência de si própria. Preservá-la, não transformar sua cor, sua preciosa voz.

—  Ele me contou aquilo do velhinho... Jo­gou o livro sobre ele, tão velho... Antes eu com­preendi, mas agora não sei como pôde... — per­guntara Lídia.

—  Mas foi verdade.

Lídia olhava-a, os lábios entreabertos, esperando-a. E de repente sentiu com clareza que não que­ria lutar contra aquela mulher. Balançou a cabeça desnorteada. Seu rosto dissolveu-se, tremeu, seus traços hesitaram em busca de uma expressão:

—  Eu não fiz isso por querer, sabe? Não, eu não fiz... — Lídia continuava inquieta, o rosto picado por estremecimentos rápidos. — Por que ha­veria eu de querer enganá-la? Não, não é isso que eu quero dizer, não é isso...

E subitamente, sem que Joana pudesse prevê-lo, rompeu num choro livre e forte. Ela vai ter um filho, está nervosa, pensou Joana. A outra se arras­tava penosamente:

—  Eu não me incomodaria de tirar Otávio de outra mulher.  Mas não sabia que havia você... Não uma pessoa qualquer como eu, mas alguém tão... tão boa... tão sublime...

Joana sobressaltou-se. Ah, eu estive trabalhan­do para isso: consegui ser sublime... como nos antigos tempos... Não, não é inteiramente assim, não forcei a situação, como o poderia com o aço franzino e esfriando meu corpo? Não me colocar a essa luz, com o sulco na testa tão evidente. Pro­curar aquele grau de luz e sombra em que me torno subitamente polpuda, o batom escurecido em man­cha velha de sangue, o rosto esbranquiçado sob os cabelos... Encostam-me de novo a lâmina de aço no coração. Quando eu for embora ela me des­prezará é apenas no momento que está deslumbra­da. Sou fugazmente maravilhosa... Deus, Deus... caminho correndo, alucinada, o corpo voando, hesi­tando... para onde? Há uma substância assustada e leve no ar, eu consegui obtê-la, é como o instante que precede o choro de uma criança. Naquela noite, não sei quando, havia escadarias, leques se mo­vendo, luzes ternas balançando os doces raios como cabeças de mães tolerantes, havia um homem olhan­do para mim lá da linha do horizonte, eu era uma estranha, mas vencia de qualquer modo, mesmo que fosse desprezando alguma coisa. Tudo deslizava suave, em combinação muda. Já era no fim — fim de quê? da escadaria nobre e lânguida, inclinada, acenando o longo braço brilhante, o belo e orgulhoso corrimão, o fim da noite — quando eu resvalara para o centro da sala, suave como uma bolha de ar. E subitamente, forte como um trovão, porém mudo como um espanto mudo, e, subitamente, mais um passo e não pude continuar! A barra de meu ves­tido de gaze estremeceu num esgar, lutou, torceu-se, rasgou-se no canto agudo do móvel e lá ficou trê­mula, arquejante, perplexa sob meu olhar estupe­fato. E de repente as coisas haviam endurecido, uma orquestra rebentara em sons tortos e silenciara ime­diatamente, havia alguma coisa triunfante e trágica no ar. Eu descobri que no fundo não havia em mim surpresa: que tudo caminhava lentamente para aquilo e agora se precipitara no seu verdadeiro pla­no. Eu queria sair correndo, chorando com meu pobre vestido sem barra, roto e aflito. Agora as luzes brilhavam com força e orgulho, os leques desvendavam caras resplandecentes e astuciosas, lá de longe do horizonte o homem ria para mim, o corrimão retraiu-se, fechou os olhos. Ninguém precisava mais mentir, uma vez que eu já sabia tudo! Também agora me precipitarei em outro estado. Por quê? Por quê? Vou embora daqui, vou para casa, de um ins­tante para outro o rasgão no vestido, ouvir o grito lancinante da orquestra e subitamente o silêncio, to­dos os músicos caídos mortos sobre o estrado, no grande salão zangado e vazio. Olhar de frente para o rasgão, mas sempre tive medo de rebentar de so­frimento, como o grito da orquestra. Ninguém sabe até que ponto posso chegar quase em triunfo como se fosse uma criação: é uma sensação de poder extra-humano conseguida em certo grau de sofrimen­to. Porém um minuto mais e a gente não sabe se é de poder ou de absoluta impotência, assim como querer com o corpo e o cérebro movimentar um dedo e simplesmente não consegui-lo. Não é simples­mente não consegui-lo: mas todas as coisas rindo e chorando ao mesmo tempo. Não, seguramente não inventei esta situação, e é isso o que mais me sur­preende. Porque minha vontade de experiência não chegaria a provocar esse ferro frio encostando na carne morna, finalmente morna da ternura de on­tem. Oh, não se fazer de mártir: você sabe que não continuaria no mesmo estado por muito tempo: de novo abriria e fecharia círculos de vida, jogando-os de lado, murchos... Também aquele momento pas­saria, mesmo que Lídia não reclamasse Otávio, mes­mo que eu jamais viesse a saber que Otávio não a abandonara embora casado comigo. Não é que es­tou misturando a essa ameaça de dor certa alegria doce e irônica? não é que estou me querendo nesse momento? Só quando sair daqui me permitirei olhar o rasgão do vestido. Nada aconteceu, só que ontem eu iniciara a renovação e agora me retraio porque essa mulher está nervosa porque espera um filho de Otávio. Sobretudo não houve transformação essen­cial, tudo isso já existia, houve apenas o rasgão do vestido indicando as coisas. E realmente, realmente, dor de cabeça, cansaço, realmente tudo caminhava para isso.

—  Eu também posso ter um filho, disse alto. A voz soou bela e límpida.

—  Sim — murmurara Lídia assombrada.

—  Eu também posso. Por que não?

—  Não...

—  Não? Mas sim... Eu lhe darei Otávio, não agora, porém quando eu quiser. Eu terei um filho e depois lhe devolverei Otávio.

—  Mas isso é monstruoso! — gritara Lídia.

—  Mas por quê? É monstruoso ter duas mu­lheres? Você bem sabe que não. É bom estar grá­vida, imagino. Mas basta para alguém esperar um filho ou ainda é pouco?

—  A gente se sente bem, dissera Lídia arras­tada, os olhos abertos.

—  Bem?

—  Também se tem medo do parto às vezes, respondia a outra mecanicamente.

—  Não se assuste, qualquer animal tem filhos. Você terá um parto fácil e também eu. Nós duas temos a bacia larga.

—  Sim...

— Eu também quero as coisas da vida. Por que não? Pensa que sou estéril? Nem um pouco. Não tive filhos porque não quis.

Eu me sinto segurando uma criança, pensou Joana. Dorme, meu filho, dorme, eu lhe digo. O filho é morno e eu estou triste. Mas é a tristeza da felicidade, esse apaziguamento e suficiência que dei­xam o rosto plácido, longínquo. E quando meu filho me toca não me rouba pensamento como os outros. Mas depois, quando eu lhe der leite com estes seios frágeis e bonitos, meu filho crescerá de minha força e me esmagará com sua vida. Ele se distanciará de mim e eu serei a velha mãe inútil. Não me sentirei burlada. Mas vencida apenas e direi: eu nada sei, posso parir um filho e nada sei. Deus receberá mi­nha humildade e dirá: pude parir um mundo e nada sei. Estarei mais perto d'Ele e da mulher da voz. Meu filho se moverá nos meus braços e eu me direi: Joana, Joana isso é bom. Não pronunciarei outra palavra porque a verdade será o que agradar aos meus braços.

 

O HOMEM

Entre um instante e outro, entre o passado e o futuro, a vaguidão branca do intervalo. Vazio como a distância de um minuto a outro no círculo do re­lógio . O fundo dos acontecimentos erguendo-se cala­do e morto, um pouco da eternidade.

Apenas um segundo quieto talvez separando um trecho da vida ao seguinte. Nem um segundo, não pôde contá-lo em tempo, porém longo como uma linha reta infinita. Profundo, vindo de longe, — um pássaro negro, um ponto crescendo do hori­zonte, aproximando-se da consciência como uma bola arremessada do fim para o princípio. E explo­dindo diante dos olhos perplexos em essência de si­lêncio. Deixando depois de si o intervalo perfeito como um único som vibrando no ar. Renascer de­pois, guardar a memória estranha do intervalo, sem saber como misturá-lo à vida. Carregar para sem­pre o pequeno ponto vazio — deslumbrado e virgem, demasiado fugaz para se deixar desvendar.

Joana sentiu-o enquanto atravessava o pequeno jardim de Lídia, ignorando aonde iria, sabendo ape­nas que deixava atrás de si tudo o que vivera. Quan­do fechou o portãozinho, afastou-se de Lídia, de Otávio, e, de novo sozinha em si mesma, cami­nhava .

Um começo de tempestade acalmara e o ar fresco circulava docemente. Subiu de novo o morro e seu coração ainda batia sem ritmo. Procurava a paz da­queles caminhos àquela hora, entre a tarde e a noite, uma cigarra invisível sussurrando o mesmo canto. Os velhos muros úmidos em ruína, invadidos de he­ras e trepadeiras sensíveis ao vento. Parou e sem os seus passos ouvia o silêncio mover-se. Só seu corpo perturbava aquela serenidade. Imaginava-a sem sua presença e adivinhava a frescura que deveriam ter aquelas coisas mortas misturadas às outras, frágil-mente vivas como no início da criação.

As altas casas fechadas, recolhidas como tor­res. Chegava-se a um dos casarões por uma longa rua sombria e quieta, o fim do mundo. Apenas junto dele enxergava-se um declive, o nascimento de ou­tra rua e compreendia-se que não era o fim. O casarão baixo e largo, os vidros quebrados, as vene­zianas cerradas, cobertas de poeira. Conhecia bem aquele jardim onde se misturavam fofos tufos de erva, rosas vermelhas, velhas latas enferrujadas. Sob os jasmineiros em flor encontraria os jornais des­botados, pedaços de madeira úmida de antigos en­xertos. Entre as árvores pesadas e envelhecidas os pardais e os pombos beliscando desde sempre o chão. Um passarinho pousava do vôo, passeava pe­los arredores até sumir-se numa das moitas. O casa­rão orgulhoso e doce em seus escombros. Morrer ali. Àquela casa só se podia chegar quando viesse o fim. Morrer naquela terra úmida tão boa para rece- ber um corpo morto. Mas não era morte o que ela queria, tinha medo também.

Um fio d'água corria sem cessar pela parede es­cura. Joana parou um instante, olhou-o vazia, im­passível. Num de seus passeios ela já se sentara junto do portãozinho enferrujado, o rosto compri­mido às grades frias, procurando mergulhar no chei­ro úmido e escuro do quintal. Aquela quietude fe­chada, o perfume. Mas isso fora há muito tempo. Agora ela se separara do passado.

Continuou a andar. Não sentia mais o calor da febre que a conversa com Lídia provocara. Es­tava pálida e o excesso de cansaço deixava-a agora quase leve, os traços mais finos, purificados. De novo esperava um fim, o fim que jamais vinha com­pletar seus momentos. Que descesse sobre ela algo inevitável, queria ceder, submeter-se. Às vezes seus passos erravam na direção, pesavam-lhe, as pernas mal se moviam. Mas ela se empurrava, guardava-se para cair mais longe. Olhava para o chão, as ervas louras que renasciam humildemente após cada esmagamento.

Levantou os olhos e viu-o. Aquele mesmo ho­mem que a seguia freqüentemente, sem jamais se aproximar. Já o vira muitas vezes naquelas mesmas ruas, no passeio da tarde. Não se surpreendeu. Al­guma coisa teria que vir de algum modo, ela sabia. Afiado como uma faca. Sim, ainda na noite ante­rior, deitada ao lado de Otávio, ignorante do que sucederia no dia seguinte, ela se lembrara desse ho­mem . Afiado como uma faca... Numa ligeira ver­tigem, ao tentar divisá-lo de longe, viu-o multipli­cado em inúmeros vultos que enchiam trêmulos e formes o caminho. Quando passou a escuridão da vista, a testa úmida de suor, viu-o em contraste como um ponto único e pobre andando para ela, perdido na longa rua deserta. Certamente ele apenas a se­guiria, como das outras vezes. Mas ela estava can­sada e parou.

Cada vez mais a figura do homem se aproxi­mava e crescia, cada vez mais Joana se sentiu afun­dando no irremediável. Ainda poderia recuar, ainda poderia voltar as costas e ir embora, evitando-o. Nem seria fugir, ela adivinhava a humildade do ho­mem. Nada a retinha ali imóvel claramente à espera de sua aproximação. Nada a retinha, nem o medo. Mas mesmo que agora se aproximasse a morte, mes­mo a vileza, a esperança ou de novo a dor. Parara simplesmente. Estavam cortadas as veias que a liga­vam às coisas vividas, reunidas num só bloco longín­quo, exigindo uma continuação lógica, mas velhas, mortas. Só ela própria sobrevivera, ainda respi­rando. E à sua frente um novo campo, ainda sem cor a madrugada emergindo. Atravessar suas bru­mas para enxergá-lo. Não poderia recuar, não sabia por que recuar. Se ainda hesitava diante do estranho cada vez mais perto é que temia a vida que de novo se aproximava implacável. Procurava agarrar-se ao intervalo, nele existir suspensa, naquele mundo frio e abstrato, sem se mesclar ao sangue.

Ele vinha. Parou a alguns passos dela. Per­maneceram em silêncio. Ela de olhos fixos, largos e cansados. Ele trêmulo, hesitante. Ao redor as fo­lhas se moviam à brisa, um pássaro pipilava monotonamente.

O silêncio se prolongava à espera do que pu­dessem dizer. Mas nenhum dos dois descobria no outro o começo de alguma palavra. Fundiam-se am­bos na quietude. Aos poucos ele deixou de palpitar, seus olhos pousaram mais fundo no corpo da mulher, apoderaram-se suavemente dele e de seu cansaço. Olhava-a esquecido de si próprio e de sua timidez. Joana sentia-o penetrá-la e deixou-o.

Quando ele falou ela ergueu imperceptivelmente o corpo. Parecia-lhe longuíssimo o tempo que de­correra, mas quando ele pronunciou as primeiras pa­lavras sem tentar um início de conversação soube que na verdade distanciara-se incomensuravelmente do princípio.

—  Moro naquela casa, disse ele. Ela esperava.

—  Quer descansar?

Joana assentiu e ele olhou mudamente a aura luminosa que seus cabelos despenteados traçavam em torno da cabeça pequena. Foi na frente e ela seguiu-o.

Quando ele falou ela ergueu imperceptivelmente o corpo, abaixou as cortinas e a sombra esten­deu-se pelo assoalho, até a porta fechada. Apro­ximou-lhe uma poltrona velha e macia, onde ela mergulhou, as pernas encolhidas. Ele mesmo sen­tou-se no bordo da cama estreita, coberta com um lençol amarrotado. Ficou imóvel, as mãos juntas, olhando-a.

Joana fechou os olhos. Ouvia ruídos macios se prolongarem longinquamente pela casa, a exclama­ção de suave surpresa de uma criança. Como de ou­tro mundo, soou o grito fresco de um galo distante.

Atrás de tudo, água leve correndo, a respiração arquejante e compassada das árvores.

Um movimento pressentido perto de si fê-la abrir os olhos. Não o percebeu a princípio, na meia escuridão do aposento. Divisou-o aos poucos ajoe­lhado junto à cama, o rosto vacilando entre as mãos. Quis chamá-lo e não sabia como. Não queria to­cá-lo. Porém cada vez mais vinha a angústia do homem para ela mesma e Joana moveu-se sobre a poltrona, esperando seu olhar.

Ele ergueu a cabeça e Joana surpreendeu-se. Os lábios entreabertos do homem brilhavam úmidos como se uma luz o iluminasse interiormente. Seus olhos resplandeciam, mas não se poderia saber se de dor ou de misteriosa alegria. Sua testa alargara-se para o alto, seu corpo mal se equilibrava no esforço de se conter, de não vibrar.

—  O quê? — sussurrou Joana fascinada. Ele olhava-a.

—  Tenho medo, disse por fim. Fitaram-se um segundo. E ela não teve medo, mas sentiu uma alegria compacta, mais intensa que o terror, possuí-la e encher-lhe todo o corpo.

—  Eu voltarei a essa casa, disse.

Ele encarou-a subitamente apavorado, sem res­pirar. Por um instante ela esperou que ele gritasse ou inventasse um movimento louco de que ela nem podia adivinhar o começo. Os lábios do homem tre­meram um segundo. E mal se libertando do olhar de Joana, dele fugindo como doido, escondeu brusca­mente o rosto nas mãos longas e magras.

 

O ABRIGO DO HOMEM

Joana. Joana, pensava o homem aguardando sua vinda. Joana, nome nu, santa Joana, tão virgem. Como era inocente e pura. Via-lhe os traços infan­tis, as mãos eloqüentes como as de um cego. Ela não era bonita, pelo menos desde homem nunca so­nhara com aquela criatura, nunca a esperara. Talvez por isso a tivesse seguido tantas vezes na rua, mesmo sem aguardar seu olhar, talvez... Não sabia, gos­tara sempre de vê-la. Não era bonita. Ou era? Co­mo saber? Tão difícil descobrir como se nunca a tivesse visto, como se não a tivesse abraçado tantas vezes. Uma ameaça de transformação no rosto, nos movimentos, instante por instante. Mesmo no re­pouso ela era alguma coisa que ia se erguer. E o que entendia ele agora e sentia tão milagrosamente, como se ela lhe tivesse explicado? — perguntava-se. Fechou os olhos, os braços ao longo da cama. Mas apenas até o momento em que soassem os passos de Joana lá fora. Porque ele nunca ousara abandonar-se em sua presença. Inclinava-se sobre ela, espera­va-a cada segundo, absorvendo-a. Não se cansava, porém, e aquela atitude não lhe tirava a naturali­dade. Apenas lançava-o numa outra até então desconhecida. Ele era dois, agora, mas aos poucos seu novo ser nascente crescia e dominava o passado do outro. Apertou os lábios. Parecia-lhe que misterio­samente havia lógica em ter experimentado certas torturas, as serenas baixezas, a falta despreocupada de caminho, para agora receber Joana enfim. Não que o tivessem alguma vez impelido para a lama e contra seu desejo, não que se julgasse um mártir. Jamais aguardara solução. Mesmo quanto às mu­lheres, que ele espiava, espiava e largava. Mesmo aquela mulher na casa de quem ele agora se ins­talara preguiçosamente, apesar de mal suportar sua presença, uma sombra cansativa e terna. Ele cami­nhara sobre seus próprios pés, o corpo consciente, experimentando e sofrendo sem ternura para consigo mesmo, tudo concedendo friamente, ingenuamente à sua curiosidade. Considerava-se até feliz. E agora viera-lhe Joana, ela, Joana que... Quis acrescentar ao pensamento confuso mais uma palavra, a verda­deira, a difícil, porém assaltou-o de novo a idéia de que não precisava mais pensar, não precisava de nada, de nada... ela viria daqui a pouco. Daqui a pouco. Mas escute: daqui a pouco... Era assim: Joana o libertara. Cada vez mais ele necessitava de menos para viver: pensava menos, comia menos, dormia quase nada. Ela era sempre. E viria daqui a pouco.

Fechou os olhos mais intensamente, mordeu os lábios, sofrendo sem saber por quê. Abriu-os em seguida e no quarto — o quarto vazio! — subita­mente não descobriu a marca da passagem de Joa­na. Como se fosse mentira a sua existência... Er­gueu-se. Vem, gritou qualquer coisa nele ardente e mortal. Vem, repetiu baixinho, cheio de temor, o olhar perdido. Vem...

Passos quase silenciosos pisavam lá fora as fo­lhas secas. De novo Joana vinha... de novo ela o ouvia de longe.

Ele quedou-se de pé junto da cama, os olhos ausentes, um cego ouvindo música distante. Apro­ximava-se, aproximava-se... Joana. Seus passos eram cada vez mais uma realidade, a única reali­dade. Joana. Com a subitaneidade de uma punhalada, a dor estalou dentro de seu corpo, iluminou-o de alegria e perplexidade.

Quando a porta se abriu para Joana ele deixou de existir. Escorregara muito fundo dentro de si, pairava na penumbra de sua própria floresta insus­peita. Movia-se agora de leve e seus gestos eram fáceis e novos. As pupilas escurecidas e alargadas, de súbito um animal fino, assustado como uma corça. No entanto a atmosfera tornara-se tão lúcida que ele perceberia qualquer movimento de coisa viva ao seu redor. E seu corpo era apenas memória fres­ca, onde se moldariam como pela primeira vez as sensações.

O pequeno navio branco flutuava sobre gros­sas ondas, verdes, brilhantes e mal feitas — via ela deitada, espiando o pequeno quadro da parede.

— No dia 3, continuou Joana e fazia a voz clara, leve, com pequenos intervalos redondos, no dia 3 houve uma grande parada em benefício dos que nasciam. Era muito engraçado ver as pessoas cantando e empunhando bandeiras cheias de todas as não-cores. Então ergueu-se um homem tênue e rápido como a brisa que sopra quando a gente está

triste e disse de longe: eu. Ninguém ouviu, mas ele estava quase satisfeito. Foi quando se ergueu a grande ventania que sopra do noroeste e caminhou sobre todos com os grandes pés fogosos. Todos vol­taram para suas casas, murchos, crestados de calor. Tiraram os sapatos, desafogaram os colarinhos. To­dos os sangues corriam lentamente, pesadamente em todas as veias. E um grande não-ter-o-que-fazer ar­rastava-se nas almas. Nesse ínterim a terra conti­nuava a rodar, Foi quando nasceu um menino cha­mado um nome. Ele era lindo, o menino. Grandes olhos que viam, lábios finos que sentiam, rosto ma­gro que sentia, testa alta que sentia. A cabeça gran­de. Ele caminhava como quem sabe exatamente o lugar, esgueirando-se sem esforço entre a multidão. Quem fosse atrás dele chegaria. Quando ele se emo­cionava, quando se surpreendia, balançava a cabeça, assim, devagar, em não, como quem recebe mais do que esperou. Ele era lindo. E sobretudo estava vivo. E sobretudo eu o amava. Eu nascia, e meu coração era novo quando eu o via. Eu nascia, eu nascia, eu nascia. Agora um verso. O que eu quero, meu bem, é te ver sempre, meu bem. Como te vi hoje, meu bem. Mesmo que morreres, meu bem. Outro: Ouvi um dia uma flor cantando e tranqüila­mente me alegrei; depois me aproximei e, milagre, não era a flor que cantava mas um passarinho so­bre a flor.

Joana falava sonolentamente no fim.  Pelos olhos semicerrados o navio flutuava torto no qua­dro, as coisas do quarto espichavam-se, luminosas, o fim de uma dando a mão ao começo de outra. Pois se ela já sabia "que tudo era um", por que continuar a ver e a viver? O homem, de olhos fechados, mergulhara no seu ombro e ouvia sonhando sem dor­mir. A intervalos ela escutava dentro do silêncio vivo da tarde de verão movimentos abafados e vaga­rosos no assoalho frouxo de madeira. Era a mulher, a mulher, aquela mulher.

Nas primeiras vezes em que Joana viera à casa grande, desejara perguntar ao homem assim: ela é agora como sua mãe? não é mais sua amante? mesmo eu existindo ela ainda quer você em casa? Mas adiara sempre. No entanto, tão forte era a presença da outra na casa, que os três formavam um par. E jamais Joana e o homem se sentiam inteiramente sós. Joa­na também já quisera perguntar à própria mulher: mas onde, mas onde se desenrola a alma atrás de vocês? Isso porém fora um pensamento antigo. Por­que um dia a enxergara de relance, as costas gordas concentradas num bloco indissolúvel de angústia sob o vestido de renda preta. Percebera-a também em outros momentos, rápidos, passando de um quarto à sala, sorrindo depressa, escapando horrível. Então Joana descobrira que ela era alguém vivo e negro. Orelhas grossas, tristes e pesadas, com um fundo escuro de caverna. O olhar terno, fugitivo e risonho de prostituta sem glória. Os lábios úmidos, emurchecidos, grandes, tão pintados. Como ela de­via amar o homem. Os cabelos fofos eram ralos e avermelhados pelas pinturas sucessivas. E o quarto onde o homem dormia e recebia Joana, aquele quarto com as cortinas, quase sem poeira, ela o arran­jara certamente. Como quem cose a mortalha do filho. Joana, aquela mulher e a esposa do professor. O que as ligava afinal? As três graças diabólicas.

—  Amêndoas... — disse Joana, voltando-se para o homem. O mistério e a doçura das palavras: amêndoa... ouça, pronunciada com cuidado, a voz na garganta, ressoando nas profundezas da boca. Vi­bra, deixa-me longa e estirada e curva como um ar­co . Amêndoa amarga, venenosa e pura.

As três graças amargas, venenosas e puras.

—  Conte aquilo... — disse-lhe o homem.

—  O quê?

—  Do marinheiro. Se amares um marinheiro terás amado o mundo inteiro.

—  Horrível... — riu Joana. Eu sei: eu mes­ma disse que deveria ser tão verdade que já nascia com rima. Pois já nem me lembro mais.

—  Que fazia domingo na praça.  O cais do porto. . . — ajudou o homem.

Um dia, rompendo a quietude em que ficava junto de Joana ele tentara falar:

—  Eu sempre não fui nada.

—  Sim, respondeu ela.

—  Mas tudo o que houve não faria você ir em­bora...

—  Não.

—  Mesmo essa mulher... essa casa... É di­ferente, você sabe?

—  Sei.

—  Sempre fui como um mendigo, eu sei. Mas nunca pedia nada, nem precisava, nem sabia. Você veio, sabe? Eu pensava antes: nada era ruim. Mas agora... Por que você me diz sempre coisas tão lou­cas, juro, não posso...

Ela então se levantara sobre o cotovelo, subita­mente séria, o rosto debruçado sobre ele:

—  Você acredita em mim?

—  Sim... — respondeu ele assustado com sua violência.

—  Você sabe que eu não minto, que nunca minto, mesmo quando...   mesmo sempre? Sente? Diga, diga. O resto então não importaria, nada im­portaria... Quando digo essas coisas... essas coi­sas loucas, quando não quero saber de seu passado, e não quero contar sobre mim, quando eu invento palavras... Quando eu minto você sente que eu não minto?

—  Sim, sim...

Ela deixara-se cair de novo sobre a cama, os olhos fechados, cansada. Não importa, não importa se depois ele não acreditar, se correr de mim como o professor. Por enquanto junto dele podia pensar. E por enquanto também é tempo. Abriu os olhos, sorriu para ele. Um menino, é isso que ele é. Deve ter tido muitas mulheres, muito amado, atraente, com os grandes cílios, os olhos frios. Até agora foi mais consistente, eu o dissolvi um pouco. Aquela mulher espera que eu vá embora um dia finalmente. Que ele volte.

— Que fazia domingo na praça? A praça é larga e solitária, disse afinal lentamente procurando recordar e atender ao pedido do homem. Sim... Tanto sol, preso ao chão como se nascesse dele. O mar, a barriga do mar, calada, arquejante. Os pei­xes em domingo, volteando rapidamente as caudas e serenos continuando a abrir caminho. Um navio parado. Domingo. Os marinheiros passeando pelo cais, pela praça. Um vestido cor-de-rosa aparecendo e desaparecendo numa esquina. As árvores cristalizadas em domingo — domingo é qualquer coisa como árvores de Natal —, brilhando silenciosas, con­tendo, assim, assim, a respiração. Um homem pas­sando com uma mulher de vestido novo. O homem quer não ser nada, anda ao lado dela olhando-a qua­se de frente, indagando, indagando: diga, mande, pise. Ela não respondendo, sorrindo, puro domin­go. Satisfação, satisfação. Pura tristeza sem má­goa. Tristeza que parece vir de trás da mulher de cor-de-rosa. Tristeza de domingo no cais do porto, os marinheiros emprestados à terra. Essa tristeza leve é a constatação de viver. Como não se sabe de que modo usar esse conhecimento súbito, vem a tris­teza .

—  Dessa vez a história foi diferente — quei­xou-se ele depois de uma pausa.

—  Ê que estou apenas contando o que vi e não o que vejo. Não sei repetir, só sei uma vez as coisas — explicou-lhe ela.

—  Foi diferente, mas tudo o que você vê é per­feito .

Ele usava ao redor do pescoço uma correntezinha como uma pequena medalha de ouro. De um lado Santa Teresinha, de outro S. Cristóvão. Ele era devoto dos dois:

—  Mas não ligo muito a coisas de santos. Só às vezes.

Ela contara-lhe certa vez que em pequena po­dia brincar uma tarde inteira com uma palavra. Ele pedia-lhe então para inventar novas. Nunca ela o queria tanto como nesses momentos.

—  Diga de novo o que é Lalande — implorou a Joana.

—  É como lágrimas de anjo. Sabe o que é lá­grimas de anjo? Uma espécie de narcisinho, qual­quer brisa inclina ele de um lado para outro. Lalande é também mar de madrugada, quando nenhum olhar ainda viu a praia, quando o sol não nasceu. Toda a vez que eu disser: Lalande, você deve sentir a viração fresca e salgada do mar, deve andar ao longo da praia ainda escurecida, devagar, nu. Em breve você sentirá Lalande... Pode crer em mim, eu sou uma das pessoas que mais conhecem o mar.

Ele não sabia em instantes se vivia ou se estava morto, se tudo o que tinha era pouco ou demais. Quando ela falava, inventava doida, doida! A pleni­tude enchia-o tão grande como um vazio e sua an­gústia era a da limpidez do largo espaço acima das águas. Por que ficava estarrecido diante dela, estu­pefato como uma parede branca ao luar? Ou talvez fosse acordar de repente, gritar: quem é esta? ela é demais na minha vida! não posso... quero vol­tar... Mas ele não o poderia mais — sentia subita­mente e assustava-se perdido.

—  Querido — disse ela interrompendo os pen­samentos do homem.

—  Sim, sim... — Ele escondeu o rosto na­quele ombro macio e ela ficou sentindo sua res­piração percorrê-la de ida e de volta, de ida e de volta. Eles dois eram duas criaturas. Que mais im­porta? — pensava ela. Ele moveu-se, ajeitou a ca­beça na sua carne como... como uma ameba, um protozoário procurando cegamente o núcleo, o cen­tro vivo. Ou como uma criança. Lá fora o mundo se escoava, e o dia, o dia, depois a noite, depois o dia. Alguma vez haveria de partir, de separar-se de novo. Ele também. Dela? Sim, em breve ela se tor­naria pesada a ele com seu excesso de milagre. Como as outras pessoas, inexplicavelmente envergo­nhado de si próprio ansiaria por ir embora. Mas uma vingança: ele não se libertaria inteiramente. Terminaria maravilhado consigo mesmo, compro­metendo-se, cheio de uma responsabilidade indefini­da e angustiosa. Joana sorriu. Ele terminaria por odiá-la, como se ela exigisse dele alguma coisa. Como sua tia, seu tio que a respeitavam contudo, pressentindo que ela não amava os seus prazeres. Confusamente supunham-na superior e despreza­vam-na. Oh Deus, de novo estava recordando, con­tando a si mesma sua história, justificando-se... Po­deria pedir dados ao homem: eu sou assim? Mas o que sabia ele? Afundava o rosto no seu ombro, es­condia-se, possivelmente feliz naquele instante. Sa­cudi-lo, contar-lhe; homem assim era Joana, ho­mem. E assim fez-se mulher e envelheceu. Acre­ditava-se muito poderosa e sentia-se infeliz. Tão poderosa que imaginava ter escolhido os caminhos antes de neles penetrar — e apenas com o pensa­mento. Tão infeliz que, julgando-se poderosa, não sabia o que fazer de seu poder e via cada minuto perdido porque não o orientara para um fim. As­sim cresceu Joana, homem, fina como um pinheiro, muito corajosa também. Sua coragem desenvolve­ra-se dentro do quarto e à luz fechada mundos lumi­nosos se formavam sem medo e sem pudor. Ela aprendeu desde cedo a pensar e como não vira de perto nenhum ser humano senão a si mesma, des­lumbrou-se, sofreu, viveu um orgulho doloroso, às vezes leve mas quase sempre difícil de se carregar.

Como terminar a história de Joana? Se pudesse co­lher e acrescentar o olhar que surpreendera em Lídia: ninguém te amará... Sim, terminar assim: apesar de ser das criaturas soltas e sozinhas no mun­do, ninguém jamais pensou em dar alguma coisa a Joana. Não amor, entregavam-lhe sempre outro sentimento qualquer. Viveu sua vida, ávida como uma virgem — isso para o túmulo. Fez-se muitas perguntas, mas nunca pôde se responder: parava para sentir. Como nasceu um triângulo? antes em idéia? ou esta veio depois de executada a forma? um triângulo nasceria fatalmente? as coisas eram ri­cas . — Desejaria deter seu tempo na pergunta. Mas o amor a invadia. Triângulo, círculo, linhas re­tas... harmônico e misterioso como um arpejo. Onde se guarda a música enquanto não soa? — in­dagava-se. E rendida respondia: que façam harpa de meus nervos quando eu morrer.

O fim da lucidez de Joana misturou-se ao navio torto sobre as ondas, movendo-se. Bastava menear a cabeça para que as ondas a acompanhassem. Mas ela tivera coisa, ah isso tivera. Um marido, seios, um amante, uma casa, livros, cabelos cortados, uma tia, um professor. Titia, ouça-me, eu conheci Joa­na, de quem lhe falo agora. Era uma mulher fraca em relação às coisas. Tudo lhe parecia às vezes preciso demais, impossível de ser tocado. E, às ve­zes, o que usavam como ar de respirar, era peso e morte para ela. Veja se compreende a minha he­roína, titia, escute. Ela é vaga e audaciosa. Ela não ama, ela não é amada. Você terminaria notando-o como Lídia, outra mulher —uma jovem mulher cheia do próprio destino —, observou-o. No entanto o que há dentro de Joana é alguma coisa mais forte que o amor que se dá e o que há dentro dela exige mais do que o amor que se recebe. Compre­ende, titia? Eu não a chamaria de herói como eu mesma prometera a papai. Pois nela havia um medo enorme. Um medo anterior a qualquer julgamento e compreensão. — Me ocorreu agora isso: quem sabe, talvez a crença na sobrevivência futura venha de se notar que a vida sempre nos deixa intocados. — Compreende, titia? — esqueça a interrupção da vida futura — compreende? Vejo teus olhos aber­tos, me olhando com medo, com desconfiança, mas querendo mesmo assim, com tua feminilidade de velha, agora morta, é verdade, agora morta, gostar de mim, passando por cima de minha aspereza. Po­bre!, a maior revolta que senti em ti, além das que eu provocava, pode ser resumida naquele frase quase diária que ainda ouço, misturada ao teu cheiro que não posso esquecer: "oh, não poder sair à rua na roupa em que se está!" Que mais te contar? Tenho os cabelos cortados, castanho, às vezes uso franja. Vou morrer um dia. Nasci também. Havia o quarto com os dois. Ele era bonito. O quarto rodava um pou­co. Tornava-se transparente e morno um véu um véu se aproximando vindo. Eles três formavam um ca­sal e a quem contar isso? Poderia adormecer por­que o homem nunca dormia e vigiaria como a chuva caindo. Otávio também era bonito, olhos. Esse era uma criança uma ameba flores brancura mornidão como o sono por enquanto é tempo por enquanto é vida mesmo que mais tarde... Tudo como a terra uma criança Lídia uma criança Otávio terra de profundis...

 

A VíBORA

Que transponho suavemente alguma coisa...

Otávio lia enquanto o relógio estalava os se­gundos e rompia o silêncio da noite com 11 bada­ladas .

Que transponho suavemente alguma coisa... Ê a impressão. A leveza vem vindo não sei de onde. Cortinas inclinam-se sobre as próprias cinturas languidamente. Mas também a marcha negra, parada, dois olhos fitando e nada podendo dizer. Deus pou­sa numa árvore pipilando e linhas retas se dirigem inacabadas, horizontais e frias. É a impressão... Os momentos vão pingando maduros e mal tomba um ergue-se outro, de leve, o rosto pálido e pe­queno. De repente também os momentos acabam. O sem-tempo escorre pelas minhas paredes, tortuoso e cego. Aos poucos acumula-se num lago escuro e quieto e eu grito: vivi!

A noite calava as coisas lá fora, algum sapo coaxava a intervalos. Cada arbusto era um vulto imóvel e recolhido.

Longe brilhavam e tremiam pequenas luzes avermelhadas, olhos insones. Na escuridão como da água.

Os girassóis altos e finos aclaravam o jardim em pausas.

O que pensar naquele instante? Ela estava tão pura e livre que poderia escolher e não sabia. En­xergava alguma coisa, mas não conseguiria dizê-la ou pensá-la sequer, tão diluída achava-se a ima­gem na escuridão de seu corpo. Sentia-a apenas e olhava expectante pela janela como se olhasse seu próprio rosto na noite. Seria esse o máximo que atin­giria? Aproximar-se, aproximar-se, quase tocar, mas sentir atrás de si a onda sugando-a em refluxo firme e suave, sorvendo-a, deixando-lhe após a assombra­da e impalpável lembrança de uma alucinação... Mesmo naquele momento, percebendo a noite e seus próprios pensamentos indistintos, ela ainda restava separada deles, sempre um pequeno bloco fechado, assistindo, assistindo. A luzinha brilhando silencio­samente, afastada, solitária, inconquistada. Jamais se entregava.

Olhou ao redor de si mesma, a sala arfando de leve, fracamente iluminada como numa vertigem. Alçou ligeiramente a cabeça, perscrutou o espaço e tinha consciência do resto da casa que se perdia na escuridão, os objetos sérios e vagos flutuando pelos cantos. Teria que andar às apalpadelas mal atravessasse a porta. E sobretudo se fosse uma crian­ça, na casa da tia, acordando de noite, a boca seca, indo à procura de água. Sabendo as pessoas isola­das cada uma dentro do sono intransponível e se­creto. Sobretudo se fosse aquela criança e como naquela noite ou naquelas noites, ao atravessar a copa surpreendesse o luar parado no quintal como num cemitério, aquele vento livre e indeciso... Sobretudo se fosse a criança amedrontada esbarraria no escuro em objetos imprecisos e a cada toque eles se condensariam subitamente em cadeiras e mesas, em barreiras, de olhos abertos, frios, inapeláveis. Mas também aprisionados então. Depois da pan­cada a dor, o luar desnudando o terraço de cimento, a sede subindo pelo corpo como uma lembrança. A quietude profunda na casa, os telhados vizinhos imó­veis e lívidos...

De novo Joana procurou voltar à sala, à pre­sença de Otávio. Estava solta das coisas, de suas próprias coisas, por ela mesma criadas e vivas. Lar­gassem-na no deserto, na solidão das geleiras, em qualquer ponto da Terra e conservaria as mesmas mãos brancas e caídas, o mesmo desligamento qua­se sereno. Tomar uma trouxa de roupa, ir embora devagar. Não fugir, mas ir. Isso, tão doce: não fugir, mas ir... Ou gritar alto, alto e reto e in­finito, com os olhos fechados, calmos. Andar até en­contrar as luzinhas vermelhas. Tão trêmulas como num começo ou num fim. Também ela estava a morrer ou a nascer? Não, não ir: ficar presa ao ins­tante como um olhar absorto se prende ao vácuo, quieta, fixa no ar...

A trepidação de um bonde longínquo atraves­sou-a como num túnel. Um trem noturno num tú­nel. Adeus. Não, quem viaja à noite apenas olha pela janela e não dá adeus. Ninguém sabe onde estão os casebres, os corpos sujos são escuros e não precisam de luz.

— Otávio — disse porque estava perdida.

A voz de Joana riscou o quarto inexpressiva, leve, direta. Ele ergueu os olhos:

—  O que é? — indagou. E sua voz era cheia de sangue e de carne, reuniu a sala na sala, designou e definiu as coisas. Um sopro reavivando as laba­redas. Na praça vazia entrara a multidão.

Debateu-se um momento, tremeu, acordou. Tudo rebrilhava sob a lâmpada, tranqüilo e alegre como num lar. Dentro da penumbra de seu corpo a inutilidade da espera atravessou-a sonâmbula como um pássaro pela noite.

—  Otávio — repetiu.

Ele aguardava. Então de novo consciente da sala, do homem e de si mesma, suas próprias chamas cresceram um pouco, ela soube que deveria prosse­guir logicamente, que o homem esperava uma con­tinuação. Procurou um aviso, um pedido, a pala­vra certa:

—  Tenho a impressão de que você só veio para me dar um filho, disse e só agora tivera oportuni­dade de cumprir a promessa feita a Lídia. Mesmo continuar a querer o filho seria ligar-se ao futuro.

Otávio fitou-a um instante assustado, sem ternura.

—  Mas — murmurou ele depois de um tempo e sua voz era hesitante, tímida e rouca —, mas você não acha que tudo está quase terminado entre nós? — E quase desde o princípio... — aventurou.

—  Só terminará quando eu tiver um filho — repetiu ela vaga, obstinada.

Otávio abriu os olhos em sua direção, o rosto pálido e subitamente cansado sob a lâmpada da me­sa, onde o livro jazia aberto.

—  Talvez um pouco forçada a idéia, não? — perguntou com ironia.

Ela não a notou:

—  O que houve entre nós por si só não basta. Se eu ainda não lhe dei tudo, talvez você me pro­cure um dia ou eu sinta sua falta. Enquanto que depois de um filho nada nos restará senão a sepa­ração.

—  E o filho? — indagou ele. — Qual será o papel do pobre em todo este sábio arranjo?

—  Oh, ele viverá — respondeu.

—  Só isso? — tentou ele o sarcasmo.

—  Que é que se pode fazer além disso? — lançou ela no ar a pergunta, de leve, sem aguardar resposta.

Otávio, julgando-a à espera, apesar da timidez e da raiva em obedecer-lhe, concluiu hesitante:

—  Ser feliz, por exemplo.

Joana ergueu os olhos e espiou-o de longe com surpresa e certa alegria — por quê? — indagou-se Otávio assustado. Enrubesceu como se tivesse dito uma graça ridícula. Ela viu-o raivoso e encolhido no fundo da cadeira, ofendido e pisado como se lhe tivessem cuspido no rosto. Imóvel, inclinou-se no entanto para ele, cheia de piedade e mais que pie­dade — apertou os lábios, confusa — um amor cheio de lágrimas. Fechou os olhos um instante, pro­curando não vê-lo, não querê-lo mais. No fundo ainda poderia unir-se a Otávio, mal sabia ele quan­to. Bastava talvez falar-lhe sobre seus próprios me­dos, por exemplo, resumindo em palavras aquela sensação de vergonha e timidez quando chamava o garçom bem alto, todos ouviam e só ele não escuta­va. Ela riu. Otávio gostaria de saber disso. Tam­bém ligar-se-ia a ele resumindo-lhe sua vontade de fugir quando se via entre homens e mulheres risonhos e ela própria não sabia como colocar-se entre eles e provar seu corpo. Ou talvez estivesse errada e a confissão não os aproximasse. Do mesmo modo por que em pequena imaginava que, se pudesse con­tar a alguém o "mistério do dicionário", ligar-se-ia para sempre a esse alguém... Assim: depois do i era inútil procurar o i... Até o l, as letras eram ca­maradas, esparsas como feijão espalhado sobre a mesa da cozinha. Mas depois do l, elas se precipita­vam sérias, compactas e nunca se poderia achar por exemplo uma letra fácil como a entre elas. Sorriu, descerrou os olhos aos poucos e agora tranqüila, en­fraquecida, já podia enxergá-lo friamente.

—  Você bem sabe que não se trata disso. Oh, Otávio, Otávio... — murmurou depois de um ins­tante, as chamas subitamente reavivadas — que nos acontece afinal, o que nos acontece?

A voz de Otávio era áspera e rápida quando ele respondeu:

—  Você sempre me deixou só.

— Não... — assustou-se ela. — É que tudo o que eu tenho não se pode dar. Nem tomar. Eu mesma posso morrer de sede diante de mim. A soli­dão está misturada à minha essência...

—  Não — repetiu ele, obstinado, os olhos tur­vos . — Você sempre me deixou só porque quis, por­que quis.

—  Não tenho culpa — gritou Joana —, acre­dite ... Está gravado em mim que a solidão vem de que cada corpo tem irremediavelmente seu próprio fim, está gravado em mim que o amor cessa na mor­te... Minha presença sempre foi essa marca...

— Quando eu me aproximei — disse ele sardônico —, pensava que você ia me ensinar alguma coisa mais do que isso. Eu precisava — prosseguiu mais baixo — daquilo que adivinhava em você e que você sempre negou.

—  Não, não... — falou ela fragilmente. — Acredite, Otávio, meus conhecimentos mais verda­deiros atravessaram minha pele, me vieram quase traiçoeiramente... Tudo o que sei nunca aprendia e nunca poderia ensinar.

Silenciaram um instante. Num rápido mo­mento Joana viu-se sentada junto ao pai, um laço no cabelo, numa sala de espera. O pai despenteado, um pouco sujo, suado, o ar alegre. Ela sentia o laço acima de todas as coisas. Estivera brincando com os pés na terra e calçara apressada os sapatos sem la­vá-los e agora eles rangiam ásperos dentro do couro. Como podia o pai estar despreocupado, como não notava que os dois eram os mais miseráveis, que nin­guém os olhava sequer? Mas ela queria provar a todos que continuaria assim, que o pai era dela, que o protegeria, que jamais lavaria os pés. Viu-se sen­tada junto do pai e não sabia o que sucedera um instante antes da cena e um instante depois. Só uma sombra e ela recolheu-se a ela ouvindo a música da confusão murmurar em suas profundezas, impalpável, cega.

—  No entanto — prosseguia Otávio — você mesma disse: há certo instante na alegria de poder que ultrapassa o próprio medo da morte. Duas pes­soas que vivem juntas — continuou mais baixo — procuram talvez atingir esse instante.   Você não quis.

Ela não respondeu. Quando ela não lhe res­pondia, ele se assustava, voltava ao tempo de crian­ça, as pessoas zangadas e ele obrigado a prometer, a agradar, cheio de remorsos. Lembrou-se de uma antiga culpa em relação a Joana e procurou livrar-se dela imediatamente, que ela nunca mais lhe pe­sasse. E mesmo sabendo que ia falar fora de pro­pósito, não pôde conter-se:

— Você tem razão, Joana: tudo o que nos vem é matéria bruta, mas nada existe que escape à trans­figuração — começou e imediatamente seu rosto cobriu-se de vergonha diante das sobrancelhas er­guidas de Joana.  Forçou-se a continuar. — Não lembra que um dia você me disse: "a dor de hoje será amanhã tua alegria; nada existe que escape à transfiguração". Não lembra? Talvez não tenha sido exatamente assim...

—  Lembro.

—  Bem.. . Naquele instante não julguei sim­ples suas palavras. Tive até raiva, suponho...

—  Sei — disse Joana. — Você me disse que se tivesse dor de fígado eu viria depor aos seus pés a mesma magnificência inútil.

—  Sim, sim, foi isso mesmo — disse Otávio depressa assustado. Você nem se intimidou, parece-me  Mas... olhe, acho que não lhe contei: depois compreendi que não havia riqueza supérflua no que você dissera... Acho que jamais confessei isso a você, ou já? Olhe, até suponho que nessa frase esteja a verdade.  Nada existe que escape à transfigura­ção... — Corou. — Talvez o segredo esteja aí, tal­vez seja isso o que eu adivinhei em você... Há cer­tas presenças que permitem a transfiguração.

Como ela continuasse calada, ele empurrou-se mais uma vez.

—  Você promete demais... Todas as possibi­lidades que você oferece às pessoas, dentro delas pró­prias, com um olhar... não sei.

E do mesmo modo como ela não se mostrara alti­va ou diminuída quando ele ironizara da primeira vez sobre a magnificência inútil, agora ela não se rejubilava com a humildade de Otávio. Ele olhou-a. De novo não soubera ligar-se àquela mulher. De novo ela o vencia.

Havia silêncio na sala e a luz e o vazio repou­savam sobre as teclas brancas do piano aberto. Algu­ma coisa era morta, lenta e verdadeira. Seria vão reatar a alegria de viver àquele instante.

—  O que vem agora? — murmurou Otávio e dessa vez ele sucumbira ao fundo das coisas, fora arrastado à verdade de Joana.

—  Não sei — disse.

Otávio perscrutou-a. Em que refletia ela, tão distante? Parecia pairar no centro de alguma coisa móvel, o corpo flutuante, sem apoio, quase inexis­tente. Como quando ela se punha a contar fatos pas­sados e quando ele adivinhava que ela mentia. A cabeça de Joana vagava então leve, ela inclinava suavemente a testa, erguia-a, balbuciava, havia um núcleo sólido e astucioso a princípio mas depois tudo era fluido e inocente. A inspiração guiava seus movi­mentos. E Otávio olhava-a esquecido de si próprio. A angústia terminava apertando seu coração, porque se ele quisesse tocá-la não poderia, havia um círculo intransponível e impalpável ao redor daquela cria­tura, isolando-a. A amargura tomava-o então porque ele não a sentia como mulher e sua qualidade de homem tornava-se inútil e ele não podia ser outra coisa senão um homem. No jardim da prima Isabel cresciam outrora rosas brancas. Ele olhava-as mui­tas vezes perplexo, sem saber de que modo tê-las, porque diante delas seu único poder, o de criatura, era vão. Encostava-as ao rosto, aos lábios, aspirava-as. Elas continuavam a tremer delicadamente viçosas. Se ao menos elas tivessem grossas pétalas — costu­mava pensar —, se ao menos fossem duras... se ao menos ao tombarem se espatifassem no solo com um ruído seco... Sentindo penetrá-lo a graça cres­cente das flores, como a de Joana, como a de Joana quando mentia, ele era presa de um furor impoten­te: amassava-as, mastigava-as, destruía-as.

Olhando-a agora, sem saber definir aquele ros­to, quis reconstituir a antiga sensação, voltar ao jar­dim da prima Isabel.

Mas em lugar de qualquer outro pensamento, subitamente compreendeu que Joana iria embora. Sim, ele continuaria, havia Lídia, o filho, ele mesmo. Ela iria embora, ele sabia... Mas que importava, ele não precisava de Joana. Não, "não precisava", mas "não podia". E de repente não entendeu mesmo como vivera ao seu lado tanto tempo e parecia-lhe que depois de sua partida ele simplesmente teria que unir o presente àquele passado longínquo, da casa da prima Isabel, de Lídia-noiva, dos projetos de um livro sério, de suas próprias torturas mornas, doces e repugnantes como um vício, àquele passado ape­nas interrompido por Joana. Seria bom livrar-se dela, fazer o plano do livro de direito civil. Já se via ca­minhando entre suas coisas com intimidade.

Mas viu também, com estranha e súbita clareza, a si mesmo numa tarde talvez, sentindo no peito uma dor fina, franzindo os olhos, sabendo as mãos vazias sem olhá-las. A indefinível sensação de perda quan­do Joana o deixasse... Ela surgiria nele, não na sua cabeça como uma lembrança comum, mas no centro de seu corpo, vaga e lúcida, interrompendo sua vida como o badalar súbito de um sino. Ele sofreria como se estivesse mentindo coisas loucas, mas como se não pudesse expulsar a alucinação e a aspirasse cada vez mais como a um ar que no interior do corpo pudesse benditamente se transformar em água. Sen­tiria o espaço aberto e límpido no seu coração, onde nenhuma das sementes de Joana pudera cobrir de floresta, porque ela era impossuída como o pensa­mento futuro. No entanto ela era dele, sim, profun­damente, difusamente como uma música ouvida. Mi­nha, minha, não partas! — implorou do fundo do seu ser.

Mas ele não pronunciaria tais palavras porque desejava que ela partisse, não saberia o que fazer de Joana se ela ficasse. Voltaria para Lídia, grávida e larga. Aos poucos soube que escolhera a renúncia do que era mais precioso em seu ser, daquela pequena porção sofredora que ao lado de Joana con­seguia viver. E depois de um momento de dor, como se abandonasse a si próprio, os olhos fulgurando de cansaço, ele sentiu a impotência de desejar mais alguma coisa para o futuro. Perplexo, assistia afinal a sua purificação violenta e estranha, como se en­trasse lentamente num mundo inorgânico.

— Quer mesmo um filho? — perguntou ele porque, medroso da solidão em que avançara, quis subitamente ligar-se à vida, apoiar-se em Joana até poder apoiar-se em Lídia, como quem ao atravessar um abismo agarra-se às pedras pequenas até galgar a maior.

— Nós não saberíamos como fazê-lo viver..., veio a voz de Joana.

— Sim, tem razão... — disse ele assustado. E queria violentamente a presença de Lídia. Voltar, voltar para sempre. Compreendeu que esta seria a sua última noite com Joana, a última, a última...

—  Não... talvez eu tenha razão, prosseguia Joana. Talvez não se pense em nada disto antes de ter um filho. Acende-se uma lâmpada bem forte, tudo fica claro e seguro, toma-se chá todas as tardes, bor­da-se, sobretudo uma lâmpada mais clara do que esta. E o filho vive. Isso é bem verdade... tanto que você não temeu pela vida do filho de Lídia...

Nenhum músculo do rosto de Otávio se moveu, seus olhos não pestanejaram. Mas todo ele se conden­sou e sua palidez brilhou como uma vela acesa. Joa­na continuava a falar vagarosamente, mas ele não a ouviu porque aos poucos, quase sem pensamentos, a cólera veio-lhe subindo do coração pesado, ensurdeceu-lhe os ouvidos, enublou-lhe os olhos. O que..., debatia-se nele a raiva trôpega e arquejante, então ela sabia sobre Lídia, sobre o filho... sabia e silen­ciava... Ela me enganava... — A carga asfixiante cada vez pesava mais fundo dentro dele. — Admitia minha infâmia serenamente... continuava a dormir junto de mim, a me suportar... desde quando? Por quê? mas, santo Deus, por quê?!...

—  Infame.

Joana sobressaltou-se, levantou a cabeça rapidamente.

—  Vil.

Sua voz mal se continha na garganta intumescida, as veias do pescoço e da testa altejavam gros­sas, nodosas, em triunfo.

—  Foi tua tia quem te chamou de víbora. Ví­bora, sim. Víbora! Víbora! Víbora!

Agora ele gritava histérico sem se dominar. Ví­bora. Cada grito, mal se libertava da fonte convulsa, vibrava quase alegre no ar. Ela o observava a bater os punhos sobre a mesa enlouquecido, chorando de ira. Quanto tempo? Porque Joana tinha consciência, como de uma música longínqua, de que tudo conti­nuava a existir e os gritos não eram setas isoladas, mas fundiam-se no que existia. Até que subitamente exausto e vazio ele sentou-se numa cadeira, devagar. O rosto flácido, os olhos mortos, pôs-se a fitar um ponto no chão.

Os dois mergulharam em silêncio solitário e cal­mo. Passaram-se anos talvez. Tudo era límpido como uma estrela eterna e eles pairavam tão quietos que podiam sentir o tempo futuro rolando lúcido dentro de seus corpos com a espessura do longo pas­sado que instante por instante acabavam de viver.

Até que a primeira claridade da madrugada co­meçou a dissolver a noite. No jardim a escuridão es­garçava-se num véu e os girassóis tremiam à brisa nascente. Porém as luzinhas ainda vacilavam no fun­do da distância como do mar.

 

A PARTIDA DOS HOMENS

No dia seguinte ela recebeu um bilhete do homem, despedindo-se:

"Tive que ir embora por um tempo, tive que ir, vieram me buscar, Joana. Eu volto, eu volto, espere por mim. Você sabe que não sou nada, eu volto. Eu nem chegaria a ver mesmo e a ouvir se não fosse você. Se me abandonar, ainda vivo um pouco, o tempo que um passarinho fica no ar sem bater asas, depois caio, caio e morro. Joana. Só não morro ago­ra porque volto, não posso explicar mas posso ver através de você. Deus me ajude e Te ajude, única, eu volto. Nunca falei tanto a você, mas por obsé­quio: eu não estou quebrando a promessa, estou? Eu te entendo tanto tanto, tudo o que Você precisar de mim eu tenho que fazer. O Senhor te abençoe, vai aí minha medalhinha com S. Cristóvão e Santa Teresinha."

Dobrou a carta devagar. Lembrou-se do rosto do homem, nos últimos dias, seus olhos molhados, turvos, de gato doente. E ao redor a pele escurecida e arroxeada, como um crepúsculo. Para onde fora? A vida dele certamente era confusa. Confusa em fa­tos. E de certo modo ele lhe parecia sem ligação com esses fatos. A mulher que o sustentava, aquela distração em relação a si mesmo, como quem não teve um começo nem espera um fim... Para onde fora? Sofrerá muito nos últimos dias. Ela deveria ter-lhe falado, pretendera-o mesmo, mas depois, dis­traída e egoísta, esquecera.

Para onde fora? — indagou-se, os braços va­zios. O turbilhão rodava, rodava, e ela era recolo­cada no início do caminho. Olhou o bilhete onde a letra era fina e indecisa, as frases escritas com cui­dado e dificuldade. Reviu o rosto do amante e amava levemente aqueles traços claros. Fechou os olhos um instante, sentiu novamente o cheiro que vinha dos corredores sombrios daquela casa inexplorada, com apenas um aposento revelado, onde conhecera de novo o amor. Cheiro de maçãs velhas, doces e velhas, que vinha das paredes, de suas profundezas. Reviu a cama estreita que fora substituída por uma larga e fofa, a timidez alegre com que o homem abrira a porta nesse dia e espiara o rosto de Joana surpreen­dendo sua surpresa. O naviozinho sobre as ondas excessivamente verdes, quase submerso. Entrecerravam-se as pálpebras e o navio movia-se. Mas tudo deslizara sobre ela, nada a possuíra... Em resumo apenas uma pausa, uma só nota, fraca e límpida. Ela que violentara a alma daquele homem, enchera-a de uma luz cujo mal ele ainda não compreendera. Ela própria mal fora tocada. Uma pausa, uma nota leve, sem ressonância...

Agora de novo um círculo de vida que se fecha­va. E ela na casa quieta e silenciosa de Otávio; sen­tindo sua ausência em cada lugar onde no dia ante­rior ainda haviam existido seus objetos e onde agora havia um vazio ligeiramente empoeirado. Bom que não o vira sair. E bom que, nos primeiros instantes, ao notar dolorosamente a sua partida, julgara ainda possuir o amante. "Ao notar a partida de Otá­vio" ... ? — pensou ela. Mas por que mentir? Quem partira fora ela mesma e também Otávio o sabia.

Despia a roupa que vestira para ir ver o homem. A mulher de lábios úmidos e frouxos deveria estar sofrendo, sozinha e velha na casa grande. Joana nem sabia o nome dele... Não desejara sabê-lo, dissera-lhe: quero te conhecer por outras fontes, se­guir para tua alma por outros caminhos; nada de­sejo de tua vida que passou, nem teu nome, nem teus sonhos, nem a história do teu sofrimento; o mistério explica mais que a claridade; também não indagará3 de mim o que quer que seja; sou Joana, tu és um corpo vivendo, eu sou um corpo vivendo, nada mais.

Ó tola, tola, talvez tivesse sofrido então e ama­do se soubesse de seu nome, de suas esperanças e dores. É verdade que o silêncio entre eles fora assim mais perfeito. Mas de que valia... Apenas corpos vivendo. Não, não, ainda melhor assim: cada um com um corpo, empurrando-o para frente, querendo sofregamente vivê-lo. Procurando cheio dó cobiça subir sobre o outro, pedindo cheio de covardia astu­ciosa e comovente para existir melhor, melhor. Inter­rompeu-se com o vestido na mão, atenta, leve. To­mou consciência da solidão em que se achava, no centro de uma casa vazia. Otávio estava com Lídia, sentiu, foragido junto daquela mulher grávida, cheia de sementes para o mundo.

Aproximou-se da janela, sentiu frio nos ombros nus, olhou a terra onde as plantas viviam quietas. O globo movia-se e ela estava sobre ele de pé. Junto a uma janela, o céu por cima, claro, infinito. Era inú­til abrigar-se na dor de cada caso, revoltar-se contra os acontecimentos, porque os fatos eram apenas um rasgão no vestido, de novo a seta muda indicando o fundo das coisas, um rio que seca e deixa ver o leito nu.

A frescura da tarde arrepiou sua pele, Joana não conseguiu pensar nitidamente — havia alguma coisa no jardim que a deslocava para fora de seu centro, fazia-a vacilar. . . Ficou de sobreaviso. Algo tentava mover-se dentro dela, respondendo, c pelas paredes escuras de seu corpo subiam ondas leves, frescas, antigas. Quase assustada, quis trazer a sen­sação à consciência, porém cada vez mais era arras­tada para trás numa doce vertigem, por dedos sua­ves. Como se fosse de manhã. Perscrutou-se, subita­mente atenta como se tivesse avançado demais. De manhã?

De manhã. Onde estivera alguma vez, cm que terra estranha e milagrosa já pousara para agora sen­tir-lhe o perfume? Folhas secas sobre a terra úmida. O coração apertou-se-lhe devagar, abriu-se, ela não respirou um momento esperando... Era de manhã, sa­bia que era de manhã... Recuando como pela mão frágil de uma criança, ouviu, abafado como em so­nho, galinhas arranhando a terra. Uma terra quente, seca... o relógio batendo tin-dlen... tin... dlen... o sol chovendo em pequenas rosas amarelas e verme­lhas sobre as casas... Deus, o que era aquilo senão ela mesma? mas quando? não sempre...

As ondas cor-de-rosa escureciam, o sonho fu­gia. Que foi que perdi? que foi que perdi? Não era Otávio, já longe, não era o amante, o homem infeliz nunca existira. Ocorreu-lhe que este deveria estar preso, afastou o pensamento impaciente, fugindo, precipitando-se... Como se tudo participasse da mesma loucura, ouviu subitamente um galo próximo lançar seu grito violento e solitário. Mas não é de madrugada, disse trêmula, alisando a testa fria... O galo não sabia que ia morrer! O galo não sabia que ia morrer! Sim, sim: papai, que é que eu faço? Ah, perdera o compasso de um minueto... Sim... o relógio batera tin-dlen, ela erguera-se na ponta dos pés e o mundo girara muito mais leve naquele mo­mento. Havia flores em alguma parte? e uma grande vontade de se dissolver até misturar seus fios com os começos das coisas. Formar uma só substância, rósea e branda — respirando mansamente como um ventre que se ergue e se abaixa, que se ergue e se abaixa... Ou estava errada e aquele sentimento era atual? O que havia naquele instante longínquo era alguma coisa verde e vaga, a expectativa da conti­nuação, uma inocência impaciente ou paciente? es­paço vazio... Que palavra poderia exprimir que naquele tempo alguma coisa não se condensara e vivia mais livre? Olhos abertos flutuando entre fo­lhas amarelecendo, nuvens brancas e muito embaixo o campo estendido, como envolvendo a terra. E ago­ra... Talvez tivesse aprendido a falar, só isso. Mas as palavras sobrenadavam no seu mar, indissolúvel, duras. Antes era o mar puro. E apenas restava do passado, correndo dentro dela, ligeira e trêmula, um pouco da antiga água entre cascalhos, sombria, fres­ca sob as árvores, as folhas mortas e castanhas for­rando as margens. Deus, como ela afundava docemente na incompreensão de si própria. E como po­dia, muito mais ainda, abandonar-se ao refluxo fir­me e macio. E voltar. Haveria de reunir-se a si mes­ma um dia, sem as palavras duras e solitárias... Haveria de se fundir e ser de novo o mar mudo brus­co forte largo imóvel cego vivo. A morte a ligaria à infância.

Mas a grade do portão era feita por homens; e lá estava brilhando sob o sol. Ela notou-a e no cho­que da súbita percepção era de novo uma mulher. Estremeceu perdida do sonho. Quis voltar, quis vol­tar. Em que pensava? Ah, a morte a ligaria à infân­cia. A morte a ligaria à infância. Mas agora seus olhos, voltados para fora, haviam esfriado, agora a morte era outra, desde que homens faziam a grade do portão e desde que ela era mulher... A morte... E de súbito a morte era a cessação apenas... Não! gritou-se assustada, não a morte.

Corria agora à frente de si mesma, já longe de Otávio e do homem desaparecido. Não morrer. Por­que... na verdade onde estava a morte dentro dela? — indagou-se devagar, com astúcia. Dilatou os olhos, ainda não acreditando na pergunta tão nova e cheia de deslumbramento que se permitira inventar. Cami­nhou até o espelho, olhou-se — ainda viva! O pes­coço claro nascendo dos ombros delicados, ainda viva! — procurando-se. Não, ouça! ouça! não exis­tia o começo da morte dentro de si! E como atra­vessasse o próprio corpo violentamente, em busca, sentiu levantar-se de seu interior uma aragem de saúde, todo ele abrindo-se para respirar...

Não podia pois morrer, pensou então lentamen­te. Aos poucos o pensamento frágil tomou uma longa inspiração, cresceu, tornou-se compacto e intei­riço como um bloco que se ajustasse dentro de seus contornos. Não havia espaço para outra presença, para a dúvida. O coração batendo com força, ouviu-se atenta. Riu alto, um riso trêmulo e gorjeado. Não... Mas era tão claro... Não morreria por­que... porque ela não podia acabar. Isso, isso. Uma rápida visão, a de um velhinho, talvez uma mulher, uma mistura de fisionomias indistintas numa só, ba­lançando a cabeça, negando, envelhecendo. Não, disse-lhes suavemente do fundo da nova verdade, não... As fisionomias se esfumaçaram, pois se ela fora sempre. Pois seu corpo nunca precisara de nin­guém, era livre. Pois se ela andava pelas ruas. Bebia água, abolira Deus, o mundo, tudo. Não morreria. Tão fácil. Estendeu as mãos sem saber o que fazer delas depois que sabia. Talvez alisar-se, beijar-se, cheia de curiosidade e de gratidão reconhecer-se. Já sem se prender a raciocínios, pareceu-lhe tão ilógico morrer, que se deteve agora estupefata, cheia de ter­ror. Eterna? Violenta... Reflexões rapidíssimas e brilhantes como faíscas que se entrecruzavam eletricamente, fundindo-se mais em sensações do que pen­samentos. Mudava sem transição, em saltos leves, de plano a plano, cada vez mais altos, claros e tensos. E de instante a instante caía mais fundo dentro de si própria, em cavernas de luz leitosa, a respiração vibrante, cheia de medo e felicidade pela jornada, tal­vez como as quedas quando se dorme. A intuição de que eram frágeis aqueles momentos fazia-a mo­ver-se de leve com receio de se tocar, de agitar e dissolver aquele milagre, o tenro ser de luz e de ar que tentava viver dentro dela.

Novamente deslizou para a janela, respirando cuidadosamente. Mergulhada numa alegria tão fina e intensa quase como o frio do gelo, quase como a percepção da música. Ficou de lábios trêmulos, sé­rios. Eterna, eterna. Brilhantes e confusos sucediam-se largas terras castanhas, rios verdes e faiscantes, correndo com fúria e melodia. Líquidos resplande­centes como fogos derramando-se por dentro de seu corpo transparente de jarros imensos... Ela própria crescendo sobre a terra asfixiada, dividindo-se em milhares de partículas vivas, plenas de seu pensa­mento, de sua força, de sua inconsciência... Atra­vessando a limpidez sem névoas levemente, andan­do, voando...

Um pássaro lá fora voou obliquamente!

Atravessou o ar puro e desapareceu na densi­dade de uma árvore.

O silêncio ficou palpitando atrás dele em peque­nos sussurros. Há quanto tempo estivera observando-o, sem sentir.

Ah, então ela morreria.

Sim, que morreria. Simples como o pássaro voa­ra. Inclinou a cabeça para um lado, suavemente co­mo uma louca mansa: mas é fácil, tão fácil... nem é inteligente... é a morte que virá, que virá... Quantos segundos haviam decorrido? Um ou dois. Ou mais. O frio. Percebeu que por um milagre to­mara agora consciência daqueles pensamentos, que eles eram tão profundos que haviam decorrido sob outros materiais e fáceis, simultaneamente... En­quanto ela vivera o sonho, observara as coisas ao redor, usara-as mentalmente, nervosamente, como quem crispa as mãos na cortina enquanto olha a paisagem. Fechou os olhos, docemente serena e can­sada, envolvida em longos véus cinzentos. Um mo­mento ainda sentiu a ameaça de incompreensão nas­cendo do interior longínquo do corpo como um flu­xo de sangue. Eternidade é o não ser, a morte é a imortalidade — boiavam ainda, soltos restos de tormenta. E ela não sabia mais a que ligá-los, tão can­sada.

Agora a certeza de imortalidade se desvanecera para sempre. Mais uma vez ou duas na vida — tal­vez num fim de tarde, num instante de amor, no mo­mento de morrer — teria sublime inconsciência cria­dora, a intuição aguda e cega de que era realmente imortal para todo o sempre.

 

A VIAGEM

Impossível explicar. Afastava-se aos poucos da­quela zona onde as coisas têm forma fixa e arestas, onde tudo tem um nome sólido e imutável. Cada vez mais afundava na região líquida, quieta e insondável, onde pairavam névoas vagas e frescas como as da madrugada. Da madrugada erguendo-se no campo. Na fazenda do tio acordara no meio da noite. As tábuas da casa velha rangiam. De lá do primeiro andar, solta no espaço escuro, afundara os olhos na terra, procurando as plantas que se torciam enrodilhadas como víboras. Alguma coisa piscava na noite, espiando, espiando, olhos de um cão deitado, vigi­lante. O silêncio pulsava no seu sangue e ela arfava com ele. Depois a madrugada nasceu sobre as cam­pinas, rosada, úmida. As plantas eram de novo ver­des e ingênuas, o talo fremente, sensível ao sopro do vento, nascendo da morte. Já nenhum cão vigiava a fazenda, agora tudo era um, leve, sem consciência. Havia então um cavalo solto na campina quieta, a mobilidade de suas pernas apenas adivinhada. Tudo impreciso, mas de súbito na imprecisão encontrara uma nitidez que ela apenas adivinhara e não pudera possuir inteiramente. Perturbada pensara: tudo, tudo.

As palavras são seixos rolando no rio. Não fora feli­cidade o que sentira então, mas o que sentira fora fluido, docemente amorfo, instante resplandecente, instante sombrio. Sombrio como a casa que ficava na estrada coberta de árvores folhudas e poeira do cami­nho. Nela morava um velho descalço e dois filhos, grandes e belos reprodutores. O mais novo tinha olhos, sobretudo olhos, beijara-a uma vez, um dos melhores beijos que jamais sentira, e alguma coisa erguia-se no fundo de seus olhos quando ela lhe es­tendia a mão. Essa mesma mão que agora repousava sobre o espaldar de uma cadeira, como um pequeno corpinho aparte, saciado, negligente. Quando era pe­quena costumava fazê-la dançar, como a uma moci­nha tenra. Dançara-a mesmo para o homem que fu­gia ou fora preso, para o amante — e ele fascinado e angustiado terminara por apertá-la, beijá-la como se realmente a mão sozinha fosse uma mulher. Ah, vivera muito, a fazenda, o homem, as esperas. Ve­rões inteiros, onde as noites decorriam insones, dei­xavam-na pálida, os olhos escuros. Dentro da insônia, várias insônias. Conhecera perfumes. Um cheiro de verdura úmida, verdura aclarada por luzes, onde? Ela pisara então na terra molhada dos canteiros, enquanto o guarda não prestava atenção. Luzes pen­dendo de fios, balançando, assim, meditando indife­rentes, música de banda no coreto, os negros farda­dos e suados. As árvores iluminadas, o ar frio e arti­ficial de prostitutas. E sobretudo havia o que não se pode dizer: olhos e boca atrás da cortina espian­do, olhos de um cão piscando a intervalos, um rio rolando em silêncio e sem saber. Também: as plan­tas crescendo de sementes e morrendo. Também:

longe em alguma parte, um pardal sobre um galho e alguém dormindo. Tudo dissolvido. A fazenda tam­bém existia naquele mesmo instante e naquele mes­mo instante o ponteiro do relógio ia adiante, enquan­to a sensação perplexa via-se ultrapassada pelo re­lógio.

Dentro de si sentiu de novo acumular-se o tem­po vivido. A sensação era flutuante como a lembran­ça de uma casa em que se morou. Não da casa pro­priamente, mas da posição da casa dentro de si, em relação ao pai batendo na máquina, em relação ao quintal do vizinho e ao sol de tardinha. Vago, lon­gínquo mudo. Um instante... acabou-se. E não po­dia saber se depois desse tempo vivido viria uma con­tinuação ou uma renovação ou nada, como uma barreira. Ninguém impedia que ela fizesse exatamen­te o contrário de qualquer das coisas que fosse fazer: ninguém, nada... não era obrigada a seguir o pró­prio começo... Doía ou alegrava? No entanto sen­tia que essa estranha liberdade que fora sua maldi­ção, que nunca ligara nem a si própria, essa liber­dade era o que iluminava sua matéria. E sabia que daí vinha sua vida e seus momentos de glória e daí vinha a criação de cada instante futuro.

Sobrevivera como um germe ainda úmido entre as rochas ardentes e secas, pensava Joana. Naquela tarde já velha — um círculo de vida fechado, tra­balho findo —, naquela tarde em que recebera o bilhete do homem, escolhera um novo caminho. Não fugir, mas ir. Usar o dinheiro intocado do pai, a he­rança até agora abandonada, e andar, andar, ser humilde, sofrer, abalar-se na base, sem esperanças. Sobretudo sem esperanças.

Amava sua escolha e a serenidade agora alisava-lhe o rosto, permitia vir à sua consciência mo­mentos passados, mortos. Ser uma daquelas pessoas sem orgulho e sem pudor que a qualquer instante se confiam a estranhos. Assim antes da morte ligar-se-ia à infância, pela nudez. Humilhar-se afinal. Como pisar-me bastante, como abrir-me para o mundo e para a morte?

O navio flutuava levemente sobre o mar como sobre mansas mãos abertas. Inclinou-se sobre a mu­rada do convés e sentiu a ternura subindo vagarosa­mente, envolvendo-a na tristeza.

No convés os passageiros andavam de um lado para outro, suportando mal a espera do lanche, an­siosos por reunir o tempo ao tempo. Alguém disse, a voz magoada: olhe a chuva! Realmente aproximava-se a névoa cinzenta, olhos cerrados. Daí a pouco viam-se pingos largos caírem sobre as tábuas do convés, o barulho de alfinetes tombando, e sobre a água, furando-lhe imperceptivelmente a superfície. O vento esfriou, levantaram-se as golas dos casacos, os olhares subitamente inquietos, fugindo da melanco­lia como Otávio com seu medo de sofrer. De profundis...

De profundis? Alguma coisa queria falar... De profundis... Ouvir-se! prender a fugaz oportunida­de que dançava com os pés leves à beira do abismo. De profundis. Fechar as portas da consciência. A princípio perceber água corrompida, frases tontas, mas depois no meio da confusão o fio de água pura tremulando sobre a parede áspera. De profundis. Aproximar-se com cuidado, deixar escorrerem as primeiras vagas. De profundis... Cerrou os olhos, mas apenas viu penumbra. Caiu mais fundo nos pen­samentos, viu imóvel uma figura magra debruada de vermelho-claro, o desenho com um dedo úmido de sangue sobre um papel, quando se arranhara e en­quanto o pai procurava iodo. No escuro das pupilas, os pensamentos alinhados em forma geométrica, um superpondo-se ao outro como um favo de mel, alguns casulos vazios, informes, sem lugar para uma refle­xão. Formas fofas e cinzentas, como um cérebro. Mas isso ela não via realmente, procurava imaginar tal­vez. De profundis. Vejo um sonho que tive: palco es­curo abandonado, atrás de uma escada. Mas no mo­mento em que penso "palco escuro" em palavras, o sonho se esgota e fica o casulo vazio. A sensação murcha e é apenas mental. Até que as palavras "pal­co escuro" vivam bastante dentro de mim, na minha escuridão, no meu perfume, a ponto de se tornarem uma visão penumbrosa, esgarçada e impalpável, mas atrás da escada. Então terei de novo uma verdade, o meu sonho. De profundis. Por que não vem o que quer falar? Estou pronta. Fechar os olhos. Cheia de flores que se transformam em rosas à medida que o bicho treme e avança em direção ao sol do mesmo modo que a visão é muito mais rápida que a palavra, escolho o nascimento do solo para... Sem sentido. De profundis, depois virá o fio de água pura. Eu vi a neve tremer cheia de nuvens rosadas sob a função azul das vísceras cobertas de moscas ao sol, a im­pressão cinzenta, a luz verde e translúcida e fria que existe atrás das nuvens. Fechar os olhos e sentir co­mo uma cascata branca rolar a inspiração. De profundis. Deus meu eu vos espero, Deus vinde a mim. Deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar pala­vras e as palavras são mentirosas e eu continuo a so­frer, afinal o fio sobre a parede escura. Deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e Deus por que não existes den­tro de mim? por que me fizeste separada de ti? Deus vinde a mim, eu não sou nada, eu sou menos que o pó e eu te espero todos os dias e todas as noites, aju­dai-me, eu só tenho uma vida e essa vida escorre pelos meus dedos e encaminha-se para a morte sere­namente e eu nada posso fazer e apenas assisto ao meu esgotamento em cada minuto que passa, sou só no mundo, quem me quer não me conhece, quem me conhece me teme e eu sou pequena e pobre, não sa­berei que existi daqui a poucos anos, o que me resta para viver é pouco e o que me resta para viver no entanto continuará intocado e inútil, por que não te apiedas de mim? que não sou nada, dai-me o que preciso. Deus, dai-me o que preciso e não sei o que seja, minha desolação é funda como um poço e eu não me engano diante de mim e das pessoas, vinde a mim na desgraça e a desgraça é hoje, a desgraça é sempre, beijo teus pés e o pó dos teus pés, quero me dissolver em lágrimas, das profundezas chamo por vós, vinde em meu auxílio que eu não tenho peca­dos, das profundezas chamo por vós e nada responde e meu desespero é seco como as areias do deserto e minha perplexidade me sufoca, humilha-me, Deus, esse orgulho de viver me amordaça, eu não sou nada, das profundezas chamo por vós, das profundezas cha­mo por vós das profundezas chamo por vós das pro­fundezas chamo por vós...

Agora os pensamentos já se solidificavam e ela respirava como um doente que tivesse passado pelo grande perigo. Alguma coisa ainda balbuciava den­tro dela, porém seu cansaço era grande, tranqüili­zava seu rosto em máscara Usa e de olhos vazios. Das profundezas a entrega final. O fim...

Mas das profundezas como resposta, sim como resposta, avivada pelo ar que ainda penetrava no seu corpo, ergueu-se a chama queimando lúcida e pura... Das profundezas sombrias o impulso incle­mente ardendo, a vida de novo se levantando infor­me, audaz, miserável. Um soluço seco como se a tivessem sacudido, alegria rutilando em seu peito in­tensa, insuportável, oh o turbilhão. Sobretudo acla­rava-se aquele movimento constante no fundo do seu ser — agora crescia e vibrava. Aquele movimento de alguma coisa viva procurando libertar-se da água e respirar. Também como voar, sim como voar... andar na praia e receber o vento no rosto, os cabelos esvoaçantes, a glória sobre a montanha... Erguendo-se, erguendo-se, o corpo abrindo-se para o ar, entregando-se à palpitação cega do próprio sangue, notas cristalinas, tintilantes, faiscando na sua alma... Não havia desencanto ainda diante de seus próprios mistérios, ó Deus, Deus, Deus, vinde a mim não para me salvar, a salvação estaria em mim, mas para abafar-me com tua mão pesada, com o castigo, com a morte, porque sou impotente e medrosa em dar o pequeno golpe que transformará todo o meu corpo nesse centro que deseja respirar e que se ergue, que se ergue... o mesmo impulso da maré e da gê­nese, da gênese! o pequeno toque que no louco deixa viver apenas o pensamento louco, a chaga luminosa crescendo, flutuando, dominando. Oh, como se har­monizava com o que pensava e como o que pensava era grandiosamente, esmagadoramente fatal. Só te quero, Deus, para que me recolhas como a um cão quando tudo for de novo apenas sólido e completo, quando o movimento de emergir a cabeça das águas for apenas uma lembrança e quando dentro de mim só houver conhecimentos, que se usaram e se usam e por meio deles de novo se recebem e se dão coisas, oh Deus.

O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição. Talvez tivesse alguma vez modificado com sua força selva­gem o ar ao seu redor e ninguém nunca o perceberia, talvez tivesse inventado com sua respiração uma nova matéria e não o sabia, apenas sentia o que jamais sua pequena cabeça de mulher poderia compreender. Tropas de quentes pensamentos brotavam e alastra­vam-se pelo seu corpo assustado e o que neles va­lia é que encobriam um impulso vital, o que neles valia é que no instante mesmo de seu nascimento havia a substância cega e verdadeira criando-se, erguendo-se, salientando como uma bolha de ar a superfície da água, quase rompendo-a... Ela notou que ainda não adormecera, pensou que ainda haveria de estalar em fogo aberto. Que terminaria uma vez a longa gesta­ção da infância e de sua dolorosa imaturidade reben­taria seu próprio ser, enfim, enfim livre! Não, não, nenhum Deus, quero estar só. E um dia virá, sim, um dia virá em mim a capacidade tão vermelha e afirmativa quanto clara e suave, um dia o que eu fizer será cegamente seguramente inconscientemente, pisando em mim, na minha verdade, tão integralmente lançada no que fizer que serei incapaz de falar, so­bretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mes­ma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro! não haverá nenhum espaço dentro de mim para eu saber que existe o tempo, os homens, as dimensões, não haverá nenhum espaço dentro de mim para notar sequer que estarei criando instante por instante, não instante por instante: sempre fun­dido, porque então viverei, só então viverei maior do que na infância, serei brutal e malfeita como uma pedra, serei leve e vaga como o que se sente e não se entende, me ultrapassarei em ondas, ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreen­são de mim mesma em certos momentos brancos por­que basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo..

 

                                                                                            Clarice Lispector

 

                      

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