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1.408 / Stephen King
1.408 / Stephen King

 

 

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1.408

 

MIKE ENSLIN ESTAVA ainda à porta giratória quando viu Olin, o gerente do Hotel Dolphin, sentado numa das superestofadas poltronas da sala de estar. O coração de Mike afundou. Talvez eu devesse ter trazido o advogado novamente, pensou. Bem, agora era tarde demais. E mesmo se Olin tivesse resolvido colocar mais um ou dois obstáculos entre Mike e o quarto 1.408, isso não era de todo mau; havia compensações.

Olin estava cruzando a sala com uma rechonchuda mão estendida quando Mike deixou para trás a porta giratória. O Dolphin situava-se na Rua Sessenta e Um, perto da esquina da Quinta Avenida, pequeno mas elegante. Um casal vestido a rigor passou por Mike quando ele alcançou a mão de Olin, mudando para a mão esquerda a pequena bolsa com roupas e alguns objetos. A mulher era loura e usava um vestido preto, claro, e seu perfume leve e florido parecia sintetizar Nova York. No bar do mezanino, alguém tocava “Night and Day” como se sublinhasse tal sintetização.

— Sr. Enslin. Boa-noite.

— Sr. Olin. Algum problema?

Olin parecia magoado. Por um momento, ele relanceou os olhos pelo saguão pequeno e elegante, como se buscasse ajuda. No balcão da recepção, um homem discutia sobre entradas de teatro com a mulher, enquanto o próprio recepcionista os observava com um leve sorriso paciente. À mesa da frente, um homem, com uma aparência que só se tem após longas horas na Classe Executiva, discutia sua reserva com uma mulher num elegante terninho preto que poderia ser usado também como traje de noite. Os negócios corriam como sempre no Hotel Dolphin. Havia ajuda para todos, exceto para o pobre Sr. Olin, que caíra nas garras do escritor.

— Sr. Olin? — repetiu Mike.

— Sr. Enslin... posso falar um momento com o senhor no meu escritório?

Bem, por que não? Isso ajudaria na parte sobre o quarto 1.408, aumentaria o tom agourento pelo qual os leitores de seus livros pareciam ansiar, e não era tudo. Mike Enslin não tivera certeza até agora, apesar de todas as informações coletadas; agora tinha. Olin estava realmente com medo do quarto 1.408, e do que pudesse acontecer a Mike ali, naquela noite.

— Claro, Sr. Olin.

Olin, o bom hospedeiro, estendeu a mão para a valise de Mike.

— Permita-me.

— Não se preocupe — disse Mike. — Aqui tem apenas uma muda de roupa e uma escova de dentes.

— Tem certeza?

— Tenho — disse Mike. — Já estou usando minha camisa havaiana da sorte. — Sorriu. — É a que tem repelente contra fantasma.

Olin não sorriu. Em vez disso, suspirou, um homenzinho redondo de fraque e uma gravata com um laço cuidadoso.

— Muito bem, Sr. Enslin. Então vamos.

 

 

O gerente do hotel parecera hesitante no saguão, quase derrotado. Em seu escritório com painéis de carvalho, com as fotos do hotel pelas paredes (o Dolphin fora inaugurado em 1910 — Mike podia publicar sem o benefício das resenhas nos diários ou jornais da cidade grande, mas fazia um dever de casa), Olin parecia ganhar segurança novamente. Um tapete persa cobria o chão do escritório, e dois abajures de pé emitiam uma suave luz amarela no ambiente. Uma lâmpada com quebra-luz verde em forma de losango ocupava o meio da mesa, junto a um umedecedor. E junto a este estavam os últimos três livros de Mike Enslin. Edições populares, claro: nenhum livro tivera uma edição em capa dura. Meu anfitrião também vem fazendo um pouco de pesquisa, pensou Mike.

Mike sentou-se em frente à mesa. Esperava que Olin sentasse atrás dela, mas o gerente o surpreendeu. Instalou-se na cadeira ao lado de Mike, cruzou as pernas e inclinou-se para a frente por cima de seu comportado ventrezinho para tocar o umedecedor.

— Charuto, Sr. Enslin?

— Não fumo, obrigado.

Os olhos de Olin deslocaram-se para o cigarro atrás da orelha direita de Mike — uma ponta elegante guardada ali como um repórter dos velhos tempos guardaria o próximo cigarro, logo abaixo da etiqueta IMPRENSA enfiada na fita de seu chapéu. O cigarro tornara-se tão parte dele que por um momento Mike honestamente não sabia o que Olin estava olhando. Então riu, tirou o cigarro, olhou-o e fitou Olin novamente.

— Há nove anos que não fumo — disse. — Tive um irmão mais velho que morreu de câncer no pulmão. Larguei o hábito depois que ele morreu. O cigarro atrás da orelha... — Sacudiu os ombros. — Parte afetação, parte superstição, acho eu, Como a camisa havaiana. Ou os cigarros que a gente vê nas mesas e paredes, dentro de uma pequena caixa com um aviso dizendo QUEBRE O VIDRO EM CASO DE EMERGÊNCIA. O quarto 1.408 é um quarto de fumantes, Sr. Olin? Só para o caso de estourar uma guerra nuclear.

— Na verdade, é.

— Bem — disse Mike entusiasticamente —, isso é menos uma preocupação na vigilância noturna.

O Sr. Olin suspirou de novo, mas sem o tom desconsolado de seu suspiro do saguão. Sim, era o escritório, concluiu Mike. O escritório de Olin, seu lugar especial. Mesmo naquela tarde, quando Mike viera acompanhado por Robertson, o advogado, Olin parecera menos agitado depois de entrarem ali. E por que não? Em que outro lugar a pessoa se sente no controle das coisas senão em seu lugar especial? O escritório de Olin era um aposento com bons quadros nas paredes, um bom tapete no chão e bons charutos no umedecedor. Sem dúvida, muitos gerentes tinham administrado inúmeros negócios ali desde 1910; a seu próprio modo, o local era tão Nova York quanto a loura com seu vestido preto sem alças, seu perfume e sua inarticulada promessa de nova-iorquino sexo suave pelas madrugadas.

— Continua achando que não posso fazê-lo desistir da idéia, não é? — perguntou Olin.

— Sei que não pode — disse Mike, recolocando o cigarro atrás da orelha. Ele não alisava o cabelo para trás com Vitalis ou Wildroot Cream Oil, como os jornalistas de outrora com seus vistosos chapéus, mas ainda mudava o cigarro todos os dias, exatamente como a roupa de baixo. A pessoa transpira atrás da orelha; se ele examinasse o cigarro no final do dia antes de jogá-lo, não fumado, no toalete, poderia ver o tênue resíduo desse suor no fino papel branco. Isso não aumentava a tentação de acendê-lo. Agora já não conseguia entender como rumara por quase 20 anos — 30 guimbas por dia, às vezes 40. Por que fizera aquilo era uma pergunta ainda melhor.

Olin recolheu a pequena pilha de livros em cima do mata-borrão.

— Espero sinceramente que o senhor esteja errado.

Mike abriu o zíper do bolso lateral da bolsa e tirou de lá um minigravador Sony.

— Não se importa se eu gravar a conversa, não é, Sr. Olin?

Olin fez um gesto com a mão. Mike apertou o botão de GRAVAR e a pequena luz vermelha acendeu. A fita começou a girar.

Enquanto isso, Olin examinava lentamente a pilha de livros, lendo seus títulos. Como sempre quando via seus livros na mão de alguém, Mike Enslin sentia uma esquisita mistura de emoções: orgulho, desconforto, divertimento, desafio e vergonha. Não tinha por que sentir vergonha deles quando o vinham sustentando muito bem nos últimos cinco anos, e não tinha que dividir seus lucros com os livreiros (“putas de livros”, era como seu agente os chamava, talvez em parte com inveja), porque criara o próprio conceito. Apesar de que, após ter vendido o primeiro livro tão bem, só um idiota não teria percebido o conceito. O que havia para fazer depois de Frankenstein senão A noiva de Frankenstein?

Mesmo assim, ele havia ido para Iowa. Estudara com Jane Smiley. Participara certa vez de uma mesa-redonda com Stanley Elkin. Aspirara outrora (absolutamente ninguém em seu atual círculo de amigos e conhecidos tinha a mínima pista disso) a ser publicado como um jovem poeta de Yale. E quando o gerente do hotel começou a dizer o nome dos títulos, Mike descobriu que desejava não ter desafiado Olin com o gravador. Mais tarde, escutaria o tom comedido de Olin e imaginaria sentir neles um certo desprezo. Tocou o cigarro por trás da orelha sem notar.

— Dez noites em dez casas mal-assombradas — leu Olin. — Dez noites em dez cemitérios mal-assombrados. Dez noites em dez castelos mal-assombrados. — Olhou para Mike com um tênue sorriso nos cantos da boca. — Foi para a Escócia por causa desse. Sem falar nos bosques de Viena. E tudo deduzido do imposto de renda, certo? Assombração é a sua profissão, afinal de contas.

— O que está querendo dizer?

— O senhor é sensível em relação ao assunto, não é? — perguntou Olin.

— Sensível sim, vulnerável não. Se está esperando me convencer a sair do seu hotel criticando meus livros...

— Não, de modo nenhum. Eu só estava curioso. Mandei Marcel... é o porteiro do turno da manhã... comprar seus livros há dois dias, logo que o senhor apareceu com a sua... solicitação.

— Foi uma exigência, não uma solicitação. Ainda é. O senhor escutou o Sr. Robertson; a lei do Estado de Nova York, sem falar nas duas leis federais sobre direitos civis, proíbe que o senhor me negue hospedagem num determinado quarto, se eu pedir esse quarto e ele estiver vago. E o 1.408 está vago. Está sempre vago atualmente.

Mas o Sr. Olin não ia deixar de lado os últimos três livros de Mike — todos na lista dos mais vendidos do New York Times — ainda não. Simplesmente folheou-os uma terceira vez. A lâmpada suave refletia-se nas capas brilhantes, com grande quantidade de cor púrpura. A púrpura vendia livros de terror melhor do que qualquer outra cor, Mike soubera.

— Não tive chance de começar a lê-los até o princípio da noite — disse Olin. — Ando muito ocupado. O Dolphin é pequeno para os padrões de Nova York, mas funcionamos com uma ocupação de 90%. E geralmente um problema entra pela porta com cada hóspede.

— Como eu.

Olin sorriu ligeiramente.

— O senhor é um problema especial, Sr. Enslin. O senhor, o Sr. Robertson e todas as suas ameaças.

Mike se sentiu irritado de novo. Não fizera ameaça nenhuma, a não ser que o próprio Robertson fosse uma ameaça. E fora forçado a usar o advogado como alguém pode se ver obrigado a usar um pé-de-cabra na fechadura enferrujada e inutilizada de um cofre.

O cofre não é seu, disse uma voz dentro dele, mas as leis do estado e do país diziam o contrário. Elas afirmavam que o quarto 1.408 do Hotel Dolphin era seu se ele quisesse, na medida em que ninguém o tivesse alugado primeiro.

Teve consciência de que Olin o observava, ainda com o tênue sorriso. Como se estivesse acompanhando o diálogo interior de Mike quase palavra por palavra. Para Mike, era uma sensação desconfortável, da mesma forma como aquela reunião se tornara inesperadamente desconfortável. Parecia estar na defensiva desde que pegara o gravador (o que era geralmente intimidante) e o ligara.

— Se o que estamos fazendo aqui tem uma razão de ser, Sr. Olin, acho que a perdi de vista. E tive um dia longo. Portanto, se sua argumentação sobre o quarto 1.408 terminou, eu gostaria de subir e...

— Li um... ahh, como o senhor os chama? Ensaios? Histórias?

Bill chamava-os de pagadores-de-contas, mas não ia dizer isso com a fita girando. Mesmo a fita sendo sua.

— Contos — decidira Olin. — Li um conto de cada livro. Aquele sobre a casa Rilsby em Kansas, do livro Casas mal-assombradas...

— Ah, sim. Os assassinatos a machado. — O camarada que esquartejara seis mombros da família Eugene Rilsby nunca fora capturado.

— Exatamente. E o da noite em que o senhor passou acampado nos túmulos dos amantes que se suicidaram, no Alasca... aqueles que as pessoas dizem aparecer por Sitka... e o relato de sua noite no Castelo Gartsby. Aquele foi realmente muito divertido. Fiquei surpreso.

O ouvido de Mike estava cuidadosamente sintonizado para apreender as notas invisíveis de desprezo até nos comentários mais suaves sobre sua série Dez noites, e não tinha dúvida de ouvir, às vezes, um desprezo que não existia — poucas criaturas na Terra são tão paranóicas quanto o escritor que acredita, no fundo do coração, que está ficando pior no que faz, descobrira Mike — mas não acreditava haver nenhum desprezo ali.

— Obrigado. Acho eu — disse ele. Deu uma olhadela no gravador. Geralmente o pequeno olho vermelho do objeto parecia observar o outro sujeito, desafiando-o a dizer a coisa errada. Naquela noite, parecia estar olhando para o próprio Mike.

— Ah, sim, eu disse isso como um cumprimento. — Olin tamborilou nos livros. — Espero terminar esses... mais pela maneira de escrever. É a maneira de escrever que eu gosto. Fiquei surpreso em achar graça nas suas aventuras muito pouco sobrenaturais no Castelo Garsby, e fiquei surpreso também em ver como o senhor é bom. Como é sutil. Esperava mais machadadas e mais cortes.

Mike juntou as forças contra o que certamente viria a seguir, a variação de Olin para O que uma boa moça como você esta fazendo num lugar como este. Olin, o hoteleiro urbano, anfitrião de louras que saíam de vestido preto pela noite, que contratava homens magros e prestes a se aposentarem que dedilhavam, de smoking, velhos clássicos como “Night and Day” no bar do hotel. Olin que provavelmente lia Proust em suas noites de folga.

— Mas seus livros são perturbadores também. Se eu não tivesse dado uma olhada neles, acho que não teria me dado ao trabalho de esperar o senhor esta noite. Quando vi aquele advogado com a pasta, soube que o senhor pretendia ficar naquele quarto desgraçado, e que nada do que eu dissesse o faria desistir. Mas os livros...

Mike estendeu a mão e desligou o gravador — aquele pequeno olho fixo estava começando a deixá-lo nervoso.

— Quer saber por que estou apelando? É isso?

— Imagino que o faça pelo dinheiro — disse Olin suavemente. — Embora seja interessante que o senhor tenha interpretado dessa maneira o que eu disse.

Mike sentiu um calor no rosto. Não, aquilo não estava absolutamente correndo como ele imaginara; nunca havia desligado o gravador no meio de uma conversa. Mas Olin não era o que ele esperara. Fui desviado do caminho pelas mãos dele, pensou Mike. Essas mãozinhas gorduchas de gerente de hotel com suas nítidas meias-luas brancas de unha manicurada.

O que me preocupou... o que me assustou... foi perceber que estava lendo o trabalho de um homem inteligente e talentoso que não acredita numa única coisa que escreveu.

Não era exatamente verdade, pensou Mike. Escrevera talvez umas duas dúzias de contos em que acreditava, publicara alguns. Escrevera resmas de poesia em que acreditara durante seus primeiros 18 meses em Nova York, quando passara fome na folha de pagamento de The Village Voice. Mas acreditava que o fantasma sem cabeça de Eugene Rilsby caminhava pela fazenda abandonada de Kansas ao luar? Não. Mike passara a noite naquela fazenda, acampado nas ondulações de linóleo sujo do chão da cozinha, e não vira nada mais assustador do que dois camundongos passeando pelo rodapé. Passara uma quente noite de verão nas ruínas do castelo da Transilvânia onde Vlad Tepes supostamente ainda reinava; os únicos vampiros a aparecerem foram uma nuvem de mosquitos europeus. Durante a noite em que acampara junto ao túmulo de Jeffrey Dhamer, o assassino serial, uma figura branca manchada de sangue e com uma faca na mão realmente aparecera na escuridão às duas horas da madrugada, mas as risadinhas dos amigos da aparição entregaram o embuste; de qualquer modo, Mike Enslin não ficara muito impressionado — reconhecia um fantasma adolescente brandindo uma faca de borracha quando via um. Mas não tinha nenhuma intenção de contar isso a Olin. Ele não poderia arcar com as...

Mas podia sim. O gravador (um equívoco desde o início, compreendia agora) fora novamente posto de lado, tornando aquela reunião tão pouco gravada quanto se podia querer. Além disso, passara a admirar Olin de um modo esquisito. E, quando você admira um homem, tem vontade de lhe dizer a verdade.

— Não — disse ele. — Não acredito em espiritozinhos maus, fantasminhas e bestazinhas de pernas compridas. Acho bom que não existam, porque também não acredito que haja qualquer Deus para nos proteger deles. É nisso que acredito, mas mantive a mente aberta desde o início. Posso jamais vir a ganhar o Prêmio Pulitzer por investigar o Fantasma que Assombra o Cemitério de Monte Esperança, mas teria escrito sobre ele com justiça se ele tivesse aparecido.

Olin disse algo, apenas uma palavra, mas baixo demais para Mike entendê-la.

— Como?

— Eu disse que não. — Olin olhou-o quase pedindo desculpas.

Mike suspirou. Olin o considerava mentiroso. Quando se chega a esse ponto, as únicas escolhas são puxar seus trunfos ou abandonar totalmente a discussão.

— Por que não deixamos isso para outro dia, Sr. Olin? Vou subir e escovar os dentes. Talvez eu veja Kevin O’Malley se materializar atrás de mim no espelho do banheiro.

Mike começou a levantar da cadeira, mas Olin estendeu uma das mãos gorduchas e cuidadosamente manicuradas para detê-lo.

— Não estou chamando o senhor de mentiroso — disse —, mas, Sr. Enslin, o senhor não acredita. Fantasmas raramente aparecem para os que não acreditam neles. E quando o fazem, raramente são vistos. Ora, Eugene Rilsby poderia ter jogado boliche com sua cabeça decepada no saguão da frente da casa dele que o senhor não teria ouvido coisa alguma!

Mike levantou e curvou-se para pegar a pequena valise.

— Se é assim, não preciso me preocupar com o quarto 1.408, não é?

— Precisa sim — disse Olin. — Precisa sim. Porque não há fantasma nenhum no quarto 1.408 e nunca houve. Há algo lá... eu mesmo o senti... mas não é a presença de um espírito. Numa casa abandonada ou num velho castelo, sua falta de crença pode servir de proteção. No quarto 1.408, só o tornará mais vulnerável. Não faça isso, Sr. Enslin. É por isso que esperei o senhor esta noite, para lhe pedir, para lhe implorar... que não faça isso. De todas as pessoas na Terra que não devem entrar naquele quarto, o autor desses animados e exploradores livros sobre fantasmas verdadeiros está no alto da lista.

Mike ouviu e não ouviu ao mesmo tempo. E você desligou o gravador!, fumegou ele. Olin me constrange a ponto de eu desligar o gravador e então se transforma em Boris Karloff! Foda-se. Vou citá-lo, de qualquer maneira. Se ele não gostar, que me processe.

De repente, estava morrendo de vontade de subir, não só porque assim poderia liquidar logo sua longa noite num quarto de hotel, mas porque queria transcrever o que Olin dissera enquanto ainda estava fresco na memória.

— Tome um drinque, Sr. Enslin.

— Não, eu...

O Sr. Olin tirou do bolso do casaco uma chave em um chaveiro que era uma comprida chapa de metal. O metal parecia velho, arranhado e manchado, tendo gravado nele o número 1.408.

— Por favor — disse Olin. — Faça a minha vontade. Dê-me mais dez minutos do seu tempo, o suficiente para tomar uma pequena dose de Scotch, e eu lhe entrego esta chave. Eu daria quase tudo para poder fazê-lo mudar de opinião, mas gosto de pensar que reconheço o inevitável quando o vejo.

— Vocês ainda usam chaves aqui? — perguntou Mike. — É um toque simpático. Uma antigüidade.

— O Dolphin entrou no sistema de cartões magnéticos em 1979, Sr. Enslin, no ano em que assumi como gerente. O 1.408 é o único quarto da casa que ainda abre com chave. Não havia necessidade de colocar uma fechadura com cartão magnético naquela porta, porque nunca há ninguém ali: a última vez em que a sala foi ocupada por um hóspede pagante foi em 1978.

— Está me sacaneando! — Mike sentou novamente e mais uma vez destravou o gravador. Apertou o botão RECORD e disse: “Olin, o gerente da casa, afirma que há mais de 20 anos o quarto 1.408 não é alugado a um hóspede pagante!”

— Mas ainda bem que o 1.408 nunca precisou de fechadura com cartão magnético, porque relógios de pulso digitais não funcionam naquele quarto. Às vezes andam para trás, às vezes param, mas não se pode confiar nas horas que marcam. Não no quarto 1.408. O mesmo acontece com calculadoras de bolso e telefones celulares. Se estiver usando um bipe, Sr. Enslin, aconselho-o a desligá-lo, porque, quando estiver lá, ele vai começar a tocar direto. — Fez uma pausa. — E desligá-lo também não garante que dê certo; ele pode se ligar sozinho. A única providência segura é tirar as baterias dele. — Apertou o botão STOP do gravador sem examinar os botões; Mike imaginou que Olin deveria usar um modelo semelhante para ditar memorandos. — Na verdade, Sr. Enslin, a única providência segura é ficar fora da droga daquele quarto.

— Não posso fazer isso — disse Mike, pegando seu gravador novamente e guardando-o de volta —, mas acho que tenho tempo para uma bebida.

 

 

Enquanto Olin servia as bebidas no bar revestido de painéis de carvalho sob uma velha pintura da Quinta Avenida na virada do século XIX para o XX, Mike perguntou-lhe como sabia que dispositivos de alta tecnologia não funcionavam dentro do quarto se este não era ocupado desde 1978.

— Não quero lhe dar a impressão de que ninguém pôs os pés no 1.408 desde 1978 — respondeu Olin. — Temos arrumadeiras que fazem uma limpeza leve no quarto uma vez por mês. Isso significa...

Mike, que já vinha trabalhando em Dez quartos de hotel mal-assombrados há uns quatro meses, disse:

— Sei o que significa. — Limpeza leve num quarto desocupado incluía abrir as janelas para arejar o cômodo, espanar, jogar um desinfetante especial no vaso para deixar a água levemente azul, mudar as toalhas. Provavelmente a roupa de cama não seria mudada, não numa limpeza leve. Cogitou se deveria ter trazido o seu saco de dormir.

Palmilhando o tapete persa, vindo do bar com dois drinques nas mãos, Olin pareceu ler o pensamento de Mike:

— Os lençóis foram mudados esta tarde, Sr. Enslin.

— Por que não deixa isso de lado? Me chame de Mike.

— Acho que não vou me sentir à vontade — disse Olin, entregando a bebida a Mike. — Ao senhor.

— E ao senhor. — Mike ergueu o copo querendo brindar ao anfitrião, mas Olin recuou.

— Não, ao senhor, Sr. Enslin. Eu insisto. Hoje devemos ambos beber ao senhor. Vai precisar disso.

Mike suspirou, tocou a borda do copo contra a borda do copo de Olin e disse:

— A mim. O senhor estaria em casa num filme de horror, Sr Olin. Poderia representar o mordomo sinistro que tenta aconselhar o jovem casal a ir embora do Castelo da Danação.

Olin sentou-se.

— É um papel que não tenho representado com freqüência, graças a Deus. O quarto 1.408 não está na lista de nenhum dos sites sobre locais paranormais ou “quentes” para sensitivos...

Isso vai mudar depois do meu livro, pensou Mike bebericando.

— ...e não há nenhuma turnê sobre fantasmas que pare no Hotel Dolphin, embora façam essa turnê no Sherry-Netherland, no Plaza e no Park Lane. Temos mantido o 1.408 tão quieto quanto possível... embora a história tenha estado sempre aí para um pesquisador tenaz e com sorte ao mesmo tempo.

Mike permitiu-se um leve sorriso.

— Veronique mudou os lençóis — disse Olin. — Eu acompanhei-a. O senhor deve se sentir lisonjeado, Sr. Enslin; é quase como ter a cama arrumada pela realeza. Veronique e sua irmã vieram para o Dolphin como camareiras em 1971 ou 72. Vee, como nós a chamamos, é a empregada mais antiga do Dolphin, com pelo menos seis anos mais de casa do que eu. Desde então ela passou a governanta-chefe da casa. Acho que não muda um lençol há seis anos, mas costumava fazer todos os turnos do 1.408... ela e a irmã... até por volta de 1992. Veronique e Celeste eram gêmeas, e o vínculo entre elas parecia torná-las... como posso dizer? Não imunes ao 1.408, mas em igualdade de condições com ele... pelo menos no curto período que é preciso para se fazer uma limpeza leve no quarto.

— Não vai me dizer que essa irmã de Veronique morreu lá, vai?

— Não, de modo nenhum — disse Olin. — Ela foi embora daqui por volta de 1988, por não estar bem de saúde. Mas não descarto a possibilidade de o 1.408 ter desempenhado um papel na piora de suas condições físicas e mentais.

— Parece que construímos uma relação, Sr. Olin. Espero que não se encrespe se eu lhe disser que acho o que está me dizendo ridículo.

Olin riu.

— Tão cabeça-dura para um estudioso do mundo invisível.

— Devo isso a meus leitores — disse Mike suavemente.

— Acho que eu poderia ter deixado o 1.408 como ele é, de qualquer forma, durante a maior parte de seus dias e noites — refletiu o gerente do hotel. — Porta trancada, luzes apagadas, persíanas abaixadas para impedir o sol de desbotar o tapete, as capas no lugar, o cardápio do café-da-manhã em cima da cama... mas não posso pensar no ar ali cada vez mais sufocante e velho, como o ar de um sótão. Não posso pensar na poeira se acumulando até ficar espessa e fofa. Isso faz de mim o quê, um meticuloso ou simplesmente um obsessivo?

— Faz do senhor um gerente de hotel.

— Acho que sim. De qualquer modo, Vee e Cee lidaram com aquele quarto... muito rapidamente, entravam e saíam... até que Cee se aposentou e Vee teve sua primeira grande promoção. Depois disso, arranjei outras arrumadeiras para limpar o quarto aos pares, sempre escolhendo as que se davam bem uma com a outra...

— Esperando que esse vínculo resistisse aos bichos-papões?

— Esperando isso, sim. E pode zombar quanto quiser dos papões do quarto 1.408, Enslin, mas vai senti-los quase imediatamente, tenho certeza. Seja lá o que houver naquele quarto, não é algo tímido. Em muitas ocasiões... todas que pude... fui lá com as arrumadeiras, para supervisioná-las. — Fez uma pausa e acrescentou quase relutantemente: — Para tirá-las de lá, acho eu, se algo realmente horrível começasse a acontecer. Nada aconteceu. Várias tiveram acessos de espirro, uma teve um acesso de riso... não sei por que alguém rindo fora de controle deva ser mais assustador do que alguém soluçando, mas é... e algumas desmaiaram. Nada terrível demais, porém. Tive tempo suficiente nesses anos para realizar algumas experiências primitivas... bipes, telefones celulares, coisas assim... mas nada terrível demais. Graças a Deus. — Fez uma pausa de novo e acrescentou num tom esquisito, átono: — Uma delas ficou cega.

— O quê?

— Chamava-se Rommie Van Gelder. Estava espanando a parte de cima da televisão quando imediatamente começou a gritar. Perguntei o que tinha acontecido. Ela deixou cair o pano de pó, pôs as mãos nos olhos e gritou que estava cega... mas que podia ver as cores mais horríveis. Elas desapareceram quase na mesma rapidez com que eu a retirei do quarto, e quando a levei pelo corredor até o elevador, a visão dela começou a voltar.

— Está me contando tudo isso só para me assustar, não é, Sr. Olin? Para me afastar daqui.

— Na verdade, não. O senhor conhece a história do quarto, começando com o suicídio do seu primeiro ocupante.

Mike conhecia. Kevin O’Malley, um vendedor de máquinas de costura, suicidara-se a 13 de outubro de 1910. Um fujão que deixara para trás esposa e sete filhos.

— Cinco homens e uma mulher pularam da única janela do 1.408, Sr. Enslin. Três mulheres e um homem tomaram uma dose excessiva de pílulas naquele quarto, dois foram encontrados na cama, dois no banheiro, um na banheira e um caído no vaso. Um homem se enforcou no closet em 1970...

— Henry Storkin — disse Mike. — Aquele foi provavelmente acidental... asfixia erótica.

— Talvez. Houve também o caso de Randolph Hyde, que cortou os pulsos e a seguir decepou os órgãos genitais, por via das dúvidas, enquanto sangrava até a morte. Isso não foi asfixia erótica. A questão, Sr. Enslin, é que se o senhor não pode ser demovido de sua intenção por um registro de 12 suicídios em 68 anos, duvido que os arquejos e fibrilações de algumas camareiras o detenham.

Arquejos e fibrilações, essa é boa, pensou Mike, e cogitou se poderia roubar a frase para o livro.

— Poucas duplas que limparam o 1.408 nesses anos quiseram voltar lá mais de algumas vezes — disse Olin e terminou sua bebida com um cuidadoso golinho.

— Exceto as gêmeas francesas.

— Vee e Cee, é verdade — Olin concordou com a cabeça.

Mike não se importava muito com as empregadas e seus... como Olin os chamara? Arquejos e fibrilações. Sentia-se suavemente exasperado pela enumeração dos suicídios feita por Olin... como se Mike fosse tão tosco que tivesse deixado escapar não a existência deles, mas seu grande significado. Só que não havia significado nenhum. Abraham Lincoln e John Kennedy tinham vice-presidentes que se chamavam Johnson; os nomes Lincoln e Kennedy tinham sete letas; tanto Lincoln como Kennedy tinham sido eleitos em anos terminando em 60. O que provavam todas essas coincidências? Coisa alguma, droga.

— Os suicídios formarão um maravilhoso segmento para o meu livro — disse Mike —, mas já que o gravador está desligado, posso lhe dizer que eles se resumem ao que um estatístico conhecido meu chama de “efeito cumulativo”.

— Charles Dickens chamava-o de “efeito batata” — disse Olin.

— Como?

— Quando o fantasma de Jacob Marley apareceu pela primeira vez a Scrooge, Scrooge disse-lhe que ele só poderia ser uma bolha de mostarda ou um pedacinho de batata malpassada.

— Isso deve ser considerado engraçado? — perguntou Mike, um tanto friamente.

— Não considero nada a respeito disso engraçado, Sr. Enslin. Absolutamente nada. Ouça atentamente, por favor. A irmã de Vee, Celeste, morreu de um ataque do coração, Naquela época, ela sofria de Alzheimer num estágio médio, uma doença que a atingiu muito cedo na vida.

— Mesmo assim, a irmã dela está bem, pelo que o senhor disse antes. Uma história americana de sucesso, na verdade. Da mesma forma que o senhor, Sr. Olin, a julgar pela aparência. E quantas vezes o senhor entrou e saiu do quarto 1.408? Cem? Duzentas?

— Por períodos muito curtos — disse Olin. — Talvez seja como entrar num aposento cheio de gás venenoso. Se a pessoa prende a respiração, pode se sair bem. Vejo que não gosta dessa comparação. Sem dúvida a considera muito elaborada, talvez ridícula. Mas eu acho que é boa.

Ele cruzou os dedos sob o queixo.

— É possível também que algumas pessoas reajam mais rapidamente e mais violentamente ao seja lá o que for que viva no quarto, exatamente como alguns esportistas que praticam o mergulho são mais propensos ao mal-estar da descompressão que outros. Em quase um século de existência do Dolphin, a equipe do hotel torna-se cada vez mais consciente de que o 1.408 é um quarto envenenado. Tornou-se parte da história da casa, Sr. Enslin. Ninguém fala disso, exatamente como ninguém menciona o fato de que aqui, como na maioria dos hotéis, o 14ºandar é na verdade o 13º... mas eles sabem. Se todos os fatos e registros sobre aquele quarto estivessem disponíveis, eles contariam uma história surpreendente... mais desconfortável do que seus leitores pudessem usufruir. Por exemplo, acho que todo hotel de Nova York tem seus suicídios, mas eu apostaria minha vida que apenas no Dolphin houve uma dúzia deles num único quarto. E deixando Celeste Romandeau de lado, o que me diz das mortes naturais no 1.408? As chamadas mortes naturais?

— Quantas já ocorreram? — A idéia das chamadas mortes naturais no 1.408 não lhe ocorrera.

— Trinta — respondeu Olin. — Pelo menos 30. Trinta, que eu saiba.

— O senhor está mentindo! — As palavras saíram da boca de Mike antes que ele pudesse impedir.

— Não, Sr. Enslin, asseguro-lhe. O senhor realmente pensou que mantemos aquele quarto fechado por causa da tola superstição de velhas viúvas malucas ou de uma ridícula tradição de Nova York?... Pela idéia de que todo bom hotel antigo deve ter pelo menos um espírito inquieto, arrastando-se pela Suíte das Correntes Invisíveis?

Mike Enslin percebeu que essa idéia — não articulada, mas presente mesmo assim — pairava por seu novo livro da série Dez Noites. Ouvir Olin censurá-la no tom irritado de um cientista ante os passes de bruxaria de um nativo não ajudou a acalmar sua ansiedade.

— Temos nossas superstições e tradições no ramo hoteleiro, mas não deixamos que elas atrapalhem os negócios, Sr. Enslin. Há um velho ditado no Meio Oeste, onde comecei na minha profissão: “Não há nenhum quarto vazio, quando os homens do gado estão na cidade.” Se temos vagas, nós as preenchemos. A única exceção à regra que já fiz algum dia... e a única conversa que já tive sobre isso... foi com relação ao quarto 1.408, um quarto do 13º andar cuja soma dos números é 13.

Olin olhou Mike Enslin nos olhos.

— É um quarto não apenas de suicídios, mas de derrames, infartes e acessos epilépticos. Um homem que ficou no quarto... foi em 1973... aparentemente afogou-se num prato de sopa. O senhor sem dúvida vai dizer que isso é ridículo, mas falei com o homem que era o chefe da segurança do hotel na época, e ele viu o atestado de óbito. O poder de seja lá o que for que habita o quarto parece ser menor por volta do meio-dia, que é quando a arrumação dos quartos sempre ocorre, e mesmo assim sei de várias camareiras que trabalharam lá e que agora sofrem do coração, têm enfisema, diabete. Houve um problema de aquecimento naquele andar há três anos, e o Sr. Neal, o engenheiro-chefe da manutenção à época, entrou em vários quartos para verificar as unidades de aquecimento. O 1.408 foi um deles. O engenheiro parecia bem então... tanto no quarto quanto depois... mas morreu na tarde seguinte de uma hemorragia generalizada.

— Coincidência — disse Mike. Mesmo assim, não podia negar que Olin era bom. Se o homem fosse um conselheiro de acampamento, deixaria 90% dos garotos tão assustados que eles voltariam para casa após a primeira rodada de histórias de fantasma em torno da fogueira.

— Coincidência — repetiu Olin suavemente, não exatamente com desprezo. Estendeu a chave fora de moda no antigo chaveiro de metal fora de moda. — Como está o seu coração, Sr. Enslin? Sem falar em sua pressão sangüínea e condições psicológicas?

Mike descobriu precisar de um esforço real e consciente para levantar a mão... mas, uma vez que a pôs em movimento, tudo bem. Ela se ergueu até a chave sem o mínimo tremor nos dedos, tanto quanto pôde notar.

— Está tudo bem — disse ele, pegando o gasto chaveiro de metal. — Além disso, estou usando minha camisa havaiana da sorte.

 

 

Olin insistiu em acompanhar Mike ao 14º andar no elevador, e Mike não objetou. Estava curioso para ver se, quando estivessem fora do escritório e no corredor que levava aos elevadores, o gerente voltaria ao seu eu menos conseqüente; se ele se tornaria mais uma vez o pobre Sr. Olin, o obsequioso funcionário que caíra nas garras do escritor.

Um homem de smoking — o palpite de Mike é que era o gerente ou o maître do restaurante — os deteve, estendeu a Olin um maço fino de papéis e murmurou algo em francês para ele. Olin respondeu com um murmúrio, concordando com a cabeça, e rapidamente rabiscou sua assinatura nas folhas. O sujeito no bar tocava “Autumn in New York”. Daquela distância, soava como um eco, o tipo de música ouvida num sonho.

O homem de smoking disse Merci bien e continuou o seu caminho. Mike e o gerente do hotel continuaram andando. Olin novamente perguntou se podia carregar a pequena valise de Mike, e este novamente recusou. No elevador, os olhos dele foram atraídos para a tripla fila de botões. Tudo estava onde devia estar, não havia falhas... e mesmo assim, olhando-se mais atentamente, via-se que havia. O botão que marcava o 12ºera seguido por outro que marcava o 14º. Como se pudessem fazer o número 13 não existir omitindo-o do painel de controle do elevador. Tolice... e mesmo assim Olin estava certo: isso era feito em toda parte do mundo.

Enquanto o elevador subia, Mike disse:

— Uma coisa me dá curiosidade. Por que o senhor não cria um residente fictício para o quarto 1.408, se ele o assusta tanto como o senhor diz que assusta? Ou melhor, Sr. Olin, por que não o declara sua própria residência?

— Acho que tive medo de ser acusado de fraude pela pessoa que aplica os estatutos estaduais e federais... para o pessoal hoteleiro, as leis dos direitos civis é como o arrastar de correntes à noite para muitos de seus leitores... ou então por meus patrões, caso soubessem disso. Se não consegui convencê-lo a desistir do quarto 1.408, duvido que tivesse mais sorte em convencer o conselho de diretores da Stanley Corporation de que retirei do mercado um quarto em perfeitas condições porque tenho medo que fantasmas obriguem um caixeiro-viajante ou outro a pular pela janela e se esborrachar na Rua Sessenta e Um.

Mike considerou isso a coisa mais perturbadora que Olin já dissera. Porque ele não está tentando mais me convencer, pensou. Sejam quais forem os poderes de venda do gerente em seu escritório — talvez alguma vibração que venha do tapete persa —, ele os perde aqui fora. Competência sim, podia-se ver isso quando ele assinava as folhas do maître, mas não venda. Não magnetismo pessoal. Não aqui fora. Mas ele acredita no que diz. Acredita naquilo tudo.

Acima da porta, o 12 se apagou e deu lugar ao 14. O elevador se deteve. A porta abriu-se revelando um corredor de hotel totalmente comum, de carpete vermelho-e-ouro (definitivamente não persa) e instalações elétricas que pareciam lâmpadas a gás do século XIX.

— Aqui estamos — disse Olin. — O seu andar. Vai me desculpar se eu o deixar aqui? O 1.408 é à sua esquerda, no final do corredor. A não ser que seja absolutamente necessário, não passo daqui.

Mike Enslin saiu do elevador com pernas mais pesadas do que de costume. Virou-se para Olin, um homenzinho gorducho de terno escuro e gravata cor de vinho com um laço cuidadoso. O gerente entrelaçava as mãos manicuradas às costas, e Mike viu que o rosto dele se mostrava de uma palidez cremosa. Na testa alta e sem rugas, despontavam gotas de transpiração.

— Há um telefone no quarto, claro — disse Olin. — O senhor pode tentar, se tiver problemas... mas duvido que ele funcione. Não se o quarto não quiser.

Mike pensou numa resposta leviana, tipo pelo menos isso o faria economizar no serviço de quarto, mas sua língua parecia ainda mais pesada do que as pernas e continuou imóvel dentro da boca.

Olin retirou uma das mãos de trás das costas e Mike viu que ela tremia.

— Sr. Enslin. Mike. Não faça isso. Pelo amor de Deus...

Antes de poder terminar, a porta do elevador se fechou, silenciando-o. Mike ficou onde estava por um momento, no perfeito silêncio do hotel nova-iorquino, no andar que ninguém da equipe admitiria ser o 13º. Pensou em estender a mão e apertar o botão para chamar o elevador.

No entanto, se fizesse isso, Olin venceria. E haveria um grande buraco escancarado no lugar do melhor capítulo do seu novo livro. Os leitores poderiam não saber disso, assim como seu editor, seu agente e Robertson, o advogado... mas ele saberia.

Em vez de apertar o botão do elevador, Mike tocou no cigarro atrás da orelha — aquele gesto antigo e distraído que nem ele sabia mais que fazia —, alisando também o colarinho da sua camisa da sorte. Então começou a seguir pelo corredor na direção do 1.408, balançando a pequena valise a seu lado.

 

 

O ARTEFATO MAIS INTERESSANTE deixado na esteira da breve estada de Mike Enslin (quedurou cerca de 70 minutos) no quarto 1.408 foram os 11 minutos de fita registrados no gravador, um pouco escurecido pelo fogo, mas longe de estar destruído. O fascinante da narração era haver pouquíssima narração. E como era esquisita.

O gravador fora um presente de sua ex-mulher, de quem ficara amigo, há cinco anos. Em sua primeira “expedição sobre um caso” (a Fazenda Rilsby, em Kansas), levara-o quase como se tivesse lembrado dele no último minuto, juntamente com cinco grandes blocos amarelos e um estojo de couro com lápis apontados. Ao chegar à porta do quarto 1.408 do Hotel Dolphin, três livros depois, Mike trazia consigo apenas uma caneta e um caderno de notas, assim como cinco fitas cassete virgens de 90 minutos, além da que já colocara no gravador antes de deixar seu apartamento.

Descobrira que falar ao gravador lhe era mais últil do que tomar notas; podia recolher anedotas, algumas fantásticas, enquanto aconteciam — os morcegos que haviam mergulhado sobre ele na torre supostamente mal-assombrada do Castelo Gartsby, por exemplo. Ele guinchara como uma garota em sua primeira viagem a uma ardilosa casa mal-assombrada.

Além disso, o pequeno gravador era mais prático do que notas escritas, especialmente quando se está num gélido cemitério de New Brunswick e uma pancada de chuva e vento derrubam sua tenda às três da manhã. Não se podia tomar notas muito bem nessas circunstâncias, mas se podia falar... e fora o que Mike fizera, continuara falando enquanto lutava contra a lona molhada e ondulante da tenda, sem perder de vista o confortador olho vermelho do gravador. Ao longo dos anos e das “expedições sobre casos”, o gravador da Sony tornara-se um amigo. Mike jamais registrara uma narrativa em primeira mão de um verdadeiro acontecimento sobrenatural na fita de filamentos finos movendo-se entre os carreteis, e isso incluía os comentários entrecortados feitos no 1.408, mas provavelmente não era de surpreender que passasse a ter tal afeição por seu gravador. Caminhoneiros de longo curso passam a amar seus Kenworths e Jimmy-Petes. Escritores tratam como algo precioso determinada caneta, ou uma velha e gasta máquina de escrever; senhoras encarregadas da limpeza detestam desistir da velha Eletrolux. Mike jamais tivera que enfrentar um fantasma real ou um evento psicocinético apenas com o gravador — sua versão da cruz e da réstia de alho — para protegê-lo, mas passara com ele inúmeras noites geladas e desconfortáveis. Era cabeça-dura, mas isso não o tornava inumano.

Seus problemas com o 1.408 começaram antes de entrar no quarto. A porta estava torta.

Não muito, mas estava torta sem dúvida, ligeiramente para a esquerda. Isso o fez pensar primeiro em filmes de terror em que o diretor tentava indicar a tensão mental de um dos personagens inclinando a câmera em tomadas subjetivas. Essa associação foi seguida por outra — a aparência das portas quando se estava num barco e o tempo um tanto ruim. Elas iam para a frente e para trás, direita e esquerda, tique e taque, até que você começava a sentir a cabeça e o estômago meio revirados. Não que ele próprio se sentisse assim, de modo nenhum, mas... Sim, eu me sinto. Só um pouco.

E ele diria isso também, ainda que fosse apenas pela insinuação de Olin de que sua atitude tornava impossível para ele ser justo no campo indubitavelmente subjetivo do jornalismo fantasmagórico.

Inclinou-se (consciente de que a leve sensação no estômago sumira quando ele parará de olhar para a porta sutilmente desenquadrada), abriu o zíper da bolsa e retirou o gravador. Apertou o botão RECORD enquanto se endireitava, e viu o pequeno olho vermelho se iluminar. Então abriu a boca para dizer “A porta do quarto 1.408 oferece sua própria saudação original; parece ter sido colocada torta, levemente para a esquerda”.

Ele disse A porta, e isso foi tudo. Ouvindo-se a fita, podem-se escutar as duas palavras claramente, A porta, e então o clique do botão STOP. Porque a porta não estava torta, estava perfeitamente direita. Mike virou, olhou para a porta do 1.409 do outro lado do corredor e então novamente para a porta do 1.408. Ambas eram iguais, brancas, com placas com números dourados e maçanetas douradas. Ambas totalmente retas.

Ele se curvou, pegou a valise com a mão que segurava o gravador, com a outra mão colocou a chave na fechadura e parou.

A porta estava novamente torta.

Dessa vez inclinada ligeiramente para a direita.

— Isso é ridículo — murmurou ele, mas a sensação de náusea já retornara a seu estômago. Não era apenas uma espécie de enjôo marítimo; era enjôo marítimo. Ele fora à Inglaterra no Queen Elizabeth 2 havia uns dois anos, e certa noite o mar ficou extremamente agitado. Mike lembrava mais claramente de ficar deitado na cama de sua cabine, sempre à beira de vomitar, mas sem conseguir. E como a sensação de vertigem nauseada piorava quando ele olhava para uma porta, uma mesa ou uma cadeira... como iam para a frente e para trás... para a esquerda e para a direita... tique e taque...

Isso é culpa de Olin, pensou. É exatamente o que ele quer. Ele o induziu a isso, companheiro. Ele armou isso. Cara, como ele ia rir se pudesse vê-lo. Como...

Mike parou um instante quando percebeu que provavelmente Olin podia vê-lo. Olhou para trás, para o corredor até o elevador, mal notando que a sensação ligeiramente nauseada em seu estômago sumira no momento em que parará de fixar a porta. Acima e à esquerda dos elevadores, viu o que esperava: uma câmera de circuito fechado. Um dos detetives da casa poderia estar olhando para lá naquele exato momento, e Mike apostava que Olin estava com ele, ambos sorrindo como macacos. Vai ensiná-lo a vir aqui de advogado empunho e fazendo exigências, diria Olin. Olhe só para ele!, responderia o segurança, sorrindo mais amplamente ainda. Branco como um fantasma, e ainda nem pôs a chave na fechadura. O senhor pegou ele, chefe! Pegou ele com caniço, linha e anzol!

Uma ova que pegou, pensou Mike. Fiquei na casa Rilsby, dormi na sala onde pelo menos dois deles foram mortos — e dormi mesmo, acredite ou não. Passei uma noite junto ao túmulo de Jeffrey Dahmer e a duas lápides de distância de H.P. Lovecraft; escovei os dentes junto à banheira onde Sir David Smythe supostamente afogou as duas esposas. Há muito tempo parei de me assustar com histórias contadas em torno da fogueira. Uma ova que pegou!

Olhou para trás e a porta estava reta. Mike deu um grunhido, empurrou a chave na fechadura e girou-a. A porta se abriu e ele entrou. A porta não se fechou lentamente atrás dele quando ele apalpou a parede em busca do comutador, deixando-o em total escuridão (além disso, as luzes dos apartamentos do edifício vizinho brilhavam através da janela). Mike achou o comutador. Quando o acionou, a luz de cima, encerrada numa coleção de ornamentos de cristal, acendeu-se. Da mesma forma que o abajur de pé junto à escrivaninha, na outra extremidade do quarto.

A janela ficava acima dessa escrivaninha, para que alguém que escrevesse sentado li pudesse fazer uma pausa no trabalho e olhar a Rua Sessenta e Um lá embaixo... ou pular para lá, se o impulso o levasse a isso. Exceto...

Mike colocou a valise dentro do quarto, fechou a porta e ligou o gravador de novo. A pequena luz vermelha se acendeu.

“Segundo Olin, seis pessoas pularam da janela que estou olhando, mas não vou dar nenhum mergulho do 14º”, disse ele, desculpe, do 13º andar do Hotel Dolphin esta noite. Há uma malha de ferro ou aço protegendo a janela do lado de fora. Seguro morreu de velho. O 1.408 é o que se chama de uma suíte júnior, acho eu. O quarto tem duas cadeiras, um sofá, uma escrivaninha, um armário que provavelmente contém a tevê e talvez um minibar. O carpete no chão não é digno de nota... não faz sombra ao de Olin, podem acreditar. O papel de parede idem. Ele... um momento...”

Nesse ponto, ouve-se outro clique na fita, quando Mike aperta o STOP novamente. Toda a parca narrativa da fita gravada tem esse aspecto fragmentado, totalmente diferente das outras cerca de 150 fitas de posse do agente literário do autor... Além disso, a voz se torna continuamente mais perturbada; não é a voz de um homem trabalhando e sim a de um indivíduo perplexo que começou a falar sozinho sem perceber. A natureza elíptica das fitas e aquela crescente perturbação verbal combinam-se para dar à maioria dos ouvintes uma nítida sensação de desconforto. Muitos pedem que a fita seja desligada bem antes de ela chegar ao fim. Meras palavras escritas não podem transmitir adequadamente a crescente certeza do ouvinte de estar escutando um homem perder, se não a razão, pelo menos o controle da realidade convencional, mas mesmo palavras sem relevo sugerem que algo estava acontecendo.

Naquele momento, Mike notara os quadros nas paredes. Havia três deles: uma senhora numa escada, com traje de noite no estilo dos anos 1920; um veleiro feito à maneira de Currier & Ives; e uma natureza-morta com frutas, esse último com maçãs, laranjas e bananas pintadas num desagradável tom amarelo-laranja. Os três quadros tinham molduras de vidro e os três estavam tortos. Mike quase mencionara isso na fita, mas o que havia de tão diferente, tão digno de ser comentado em três quadros desalinhados? Que uma porta estivesse torta... bem, isso tinha um pouco do encanto daquele velho Gabinete do Dr. Caligari. Mas a porta não estava torta; seus olhos o tinham enganado por um momento, só isso.

A senhora na escada inclinava-se para a esquerda. Da mesma forma que o veleiro, que mostrava marinheiros britânicos em calças de boca-de-sino à amurada, observando um cardume de peixes voadores. As frutas amareio-alaranjadas da tigela pareciam a Mike pintadas à luz de um sufocante sol equatorial, um sol de deserto tipo Paul Bowles, e inclinavam-se para a direita. Embora Mike não fosse detalhista, andou pelo quarto endireitando os quadros. Vê-los tortos assim o deixava um pouco nauseado de novo, o que não lhe causava muita surpresa. Fica-se suscetível a essa sensação; descobrira aquilo no Queen Elizabeth 2. Tinham-lhe dito que, se a pessoa agüentasse aquele período de crescente suscetibilidade, geralmente se adaptava... “passa a ter pernas de mar”, como ainda dizem os velhos tripulantes. Mike ainda não viajara de barco o suficiente para conseguir pernas de mar, nem ligava para isso. Nesses dias, continuava com suas pernas de terra, e se o ato de endireitar os três quadros na sala de estar comum do 1.408 aquietasse suas vísceras, ótimo para ele.

Havia poeira na cobertura de vidro dos quadros. Ele passou os dedos pela natureza-morta e deixou dois sulcos paralelos. A poeira parecia gordurosa e escorregadia ao toque. Como seda antes de apodrecer, foi o que lhe veio à cabeça, mas queria ser mico de circo se ia colocar isso na fita. Como é que ele ia saber que sensação dava tocar a seda antes de ela apodrecer? Era um pensamento de bêbado.

Quando os quadros foram endireitados, ele recuou e supervisionou-os por turnos: a senhora com traje de noite junto à porta que levava ao quarto, o veleiro navegando por um dos sete mares à esquerda da escrivaninha e finalmente as desagradáveis (e pessimamente pintadas) frutas junto ao armário de tevê. Em parte, Mike esperava que ficassem tortos novamente, ou entortassem quando ele os fitasse — era assim que as coisas aconteciam em filmes como A casa na colina e em velhos episódios de Além da imaginação — mas os quadros continuaram perfeitamente retos, como ele os colocara. Não que fosse achar algo sobrenatural ou paranormal se os quadros voltassem a seu antigo estado torto; em sua experiência, a reversão era da natureza das coisas — gente que desistira de fumar (ele tocou o cigarro atrás da orelha sem notar que o fazia) queria continuar fumando, e quadros que estavam tortos desde a era de Nixon queriam continuar tortos. E eles estavam ali há muito tempo, sem dúvida, pensou Mike. Se eu os retirasse do lugar, veria uma marca mais clara no papel da parede. Ou insetos enxameando dali para fora, como acontece quando se levanta uma rocha.

Havia algo chocante e horrível nessa idéia; surgia com uma vivida imagem de insetos brancos e cegos brotando como pus vivo do papel de parede pálido e anteriormente protegido.

Mike pegou o gravador, ligou-o e disse:

“Olin certamente iniciou uma vertente de pensamento na minha cabeça. Ou uma corrente de pensamentos? Ele quis me levar a ter um chilique nervoso e foi bem-sucedido. Não pretendo...” Não pretendia o quê?

Nesse ponto da fita, Mike Enslin declara de modo perfeitamente articulado e sem vibração: “Tenho que me controlar. Imediatamente.” Isso é seguido por outro clique, quando ele desliga a fita de novo.

Fechou os olhos e respirou profundamente quatro vezes, a cada vez prendendo a respiração e contando até cinco antes de expeli-la de novo. Nunca acontecera com ele nada semelhante — não nas casas, nos cemitérios ou nos castelos supostamente assombrados. Isso não era como ser assombrado, ou como ele imaginara que devia ser; isso era como estar completamente chapado com droga ruim, ordinária.

Foi Olin quem fez isso. Olin hipnotizou-o, mas você vai escapar. Vai passar a porcaria da noite neste quarto, e não só porque é o melhor local em que já esteve na vida — deixando de lado Olin, você está perto de conseguir a melhor história de fantasma da década — mas porque Olin não vai conseguir vencer. Ele e a besteira da história das 30 pessoas que morreram não vão vencer. O único encarregado das besteiras por aqui sou eu, portanto trate só de inspirar... e expirar. Inspirar... e expirar. Inspirar... e expirar.

Continuou assim por uns 90 segundos e, quando abriu os olhos de novo, sentiu-se normal. Os quadros na parede? Ainda retos. A tigela de frutas? Ainda amarelo-alaranjadas e mais feias do que nunca. Frutas do deserto, nem há dúvida. Coma um pedaço delas e você vai cagar até doer.

Ele ligou o gravador. O olho vermelho se acendeu.

“Tive uma pequena vertigem por um ou dois minutos”, disse Mike, atravessando o quarto até a escrivaninha e a janela, com sua rede protetora do lado de fora. “Pode ter sido uma ressaca das lorotas de Olin, mas eu acho que sinto uma presença aqui.” Não sentia nada disso, claro, mas uma vez que estivesse na fita ele poderia escrever praticamente qualquer coisa que quisesse. “O ar é viciado. Nenhum bolor ou mau cheiro, Olin diz que o lugar é arejado cada vez que é limpo, mas as limpezas são rápidas e... sim... é viciado. Ei, olhe só isso.”

Na escrivaninha, havia um cinzeiro, um daqueles pequenos objetos de vidro espesso que se viam em hotéis por toda parte, e dentro dele uma caixa de fósforos com o retrato do Hotel Dolphin. Na frente do hotel, via-se um porteiro sorridente com um uniforme bem fora de moda, com dragonas, alamares dourados e um quepe que parecia saído de uma boate gay na cabeça de um motociclista machão usando apenas alguns piercings de prata pelo corpo. Carros de outra época passavam pela Quinta Avenida em frente áo hotel — Packards, Hudsons, Studebakers e Chrysler New Yorkers com grandes caudas salientes.

“Acho que a caixa de fósforos no cinzeiro é de 1955”, disse Mike, colocando-a no bolso da camisa havaiana. “Vou guardá-la como lembrança. Agora é hora de um pouco de ar fresco.”

Há um clique quando ele deposita o gravador possivelmente na escrivaninha. Ouve-se uma pausa seguida por sons vagos e uns dois grunhidos de esforço. Depois disso vem uma segunda pausa e então um som guinchado.

“Sucesso!”, diz Mike. Isso está um pouco fora do microfone, mas o que se segue é mais próximo.

“Sucesso!”, repete Mike, pegando o gravador da escrivaninha. “A metade de baixo não se mexe... parece pregada... mas a parte de cima desceu muito bem. Posso ouvir o tráfego na Quinta Avenida, e todas as buzinas têm um tom reconfortante. Alguém está tocando um saxofone, talvez na frente do Plaza, que fica do outro lado da rua, dois quarteirões adiante. Ele me lembra meu irmão.”

Mike parou abruptamente, olhando o pequeno olho vermelho, que parecia acusá-lo. Irmão? Seu irmão estava morto, outro soldado derrubado nas guerras do fumo. Então relaxou. E daí? A guerra atual era a guerra dos fantasmas, onde Michael Enslin sempre fora vencedor. Quanto a Donald Enslin...

“Meu irmão, na verdade, foi comido por lobos num inverno, no pedágio de Connecticut”, disse ele. Depois riu e desligou o gravador. Há mais na fita... um pouco mais... mas essa é a última declaração com certa coerência... isto é, a última declaração a que se pode atribuir alguma coerência.

Ele virou-se e olhou os quadros. Ainda estavam perfeitamente retos, como bons quadrinhos que eram. Mas aquela natureza-morta ali — como era feia, porra!

Ligou o gravador e disse duas palavras — laranjas fumegantes — no gravador. Então desligou-o de novo e foi da sala de estar até a porta que levava ao quarto. Fez uma pausa junto à senhora em traje de noite e tateou a escuridão buscando o comutador da luz. Teve apenas um momento para registrar

(dá a impressão de pele, de velha pele morta)

algo estranho com o papel de parede sob a palma deslizante de Mike. Então seus dedos encontraram o comutador. O quarto imundou-se da luz amarela de um daqueles dispositivos de teto enterrados em pingentes de vidro. A cama de casal escondia-se sob uma colcha amarelo-laranja.

“Por que dizer escondia-se?”, perguntou Mike ao gravador e a seguir desligou-o de novo. Entrou, fascinado pelo fumegante deserto da colcha, pelos volumes tumorosos dos travesseiros sob ela. Dormir ali? De modo nenhum, companheiro! Seria o mesmo que dormir naquela natureza-morta desgraçada, naquele quente e horrível quarto Paul Bowles que não se podia ver direito, um quarto para expatriados ingleses lunáticos e cegos pela sífilis que tinham pego ao foderem com as mães, a versão para cinema estrelada por Laurence Harvey ou Jeremy Irons, um desses atores que naturalmente associamos a atos pouco naturais...

Mike ligou o gravador e o olho vermelho surgiu. Então ele disse “Testando, um, dois, três, testando!” ao microfone, depois apertou STOP de novo. Aproximou-se da cama cuja colcha cintilava num amarelo-laranja. O papel de parede, talvez creme à luz do dia, refletia o amarelo-laranja da colcha. Duas pequenas mesas-de-cabeceira ladeavam a cama. Numa delas estava o telefone — preto, grande e a disco. Os buracos para discar pareciam surpresos olhos brancos. A outra mesa continha um prato com uma ameixa. Mike ligou o gravador e disse:

“Isso não é uma ameixa de verdade, é de plástico.” Apertou STOP de novo.

Sobre a cama havia um cardápio. Mike abordou a cama com muito cuidado para não tocar nela ou na parede, e pegou o cardápio. Tentou não tocar na colcha também, mas as pontas de seus dedos roçaram nela e ele gemeu. Era macia de um modo terrivelmente errado. Apesar disso, ele pegou o cardápio. Estava escrito em francês e, embora já houvesse passado muito tempo desde que Mike aprendera aquela língua, um dos itens do café da manhã eram pássaros assados na merda. Pelo menos parece algo que os franceses poderiam comer, pensou, dando uma risada alucinada e perturbada.

Então fechou e abriu os olhos.

O cardápio agora estava escrito em russo.

Fechou e abriu os olhos.

O cardápio agora estava escrito em italiano.

Fechou e abriu os olhos.

Não havia nenhum cardápio. Havia a xilogravura de um garotinho gritando e olhando por cima do ombro para um lobo de xilogravura que engolira sua perna esquerda até o joelho. As orelhas do lobo apontavam para trás e ele parecia um terrier com seu brinquedo favorito.

Eu não estou vendo isso, pensou Mike, e claro que não estava. Sem fechar os olhos, viu nítidas linhas de inglês, cada qual consistindo em uma tentação diferente do desjejum. Ovos, waffles, frutinhas silvestres frescas, nada de pássaros assados na merda. Mesmo assim...

Virou-se e muito lentamente saiu do pequeno espaço entre a parede e a cama, espaço que agora parecia estreito como um túmulo. Seu coração batia com tanta força que Mike podia sentir a pulsação no pescoço e nos pulsos, assim como no peito. Seus olhos latejavam nas órbitas. O 1.408 era estranho sim, o 1.408 era muito estranho. Olin dissera algo sobre gás envenenado, e era assim que Mike se sentia: como alguém que tivesse cheirado o gás ou fora forçado a fumar um haxixe forte misturado com inseticida. Olin provocara isso, claro, provavelmente com a adesão ativa e risonha do pessoal da segurança. Bombeara seu gás envenenado especial através dos respiradouros. Só porque Mike não podia ver nenhum respiradouro, não significava que não estivessem lá.

Fitou o quarto com olhos assustados e arregalados. Não havia ameixa nenhuma na mesinha à esquerda da cama. E também nenhum prato. A mesa estava vazia. Mike virou-se, começou a andar para a porta que dava para a sala de estar e parou. Havia um retrato na parede. Não tinha absoluta certeza — em seu presente estado, não podia ter certeza nem do próprio nome —, mas estava razoavelmente certo de que não havia nenhum quadro quando chegara. Era uma natureza-morta. Uma única ameixa num prato de metal sobre uma velha mesa de madeira. A luz que incidia sobre a ameixa e o prato era de um febril amarelo-alaranjado.

Luz de tango, pensou ele. O tipo de luz que faz os mortos levantarem dos túmulos e dançarem tango. O tipo de luz...

— Tenho que sair daqui — murmurou, voltando aos tropeções para a sala de estar. Seus sapatos tinham começado a fazer estranhos sons de beijo, como se o chão por baixo deles tivesse ficado mole.

Os quadros na parede da sala estavam tortos de novo e havia também outras mudanças. A senhora na escada abaixara a parte de cima de sua roupa, deixando os seios à mostra, e segurava um em cada mão. Uma gota de sangue pendia de cada mamilo. Ela fixava diretamente os olhos de Mike e sorria ferozmente. Tinha dentes afilados em pontas como um canibal. Na amurada do veleiro, os marinheiros haviam sido substituídos por uma fileira de homens e mulheres pálidos. O homem da extrema esquerda, o mais perto da proa do navio, usava um terno de lã marrom e segurava um chapéu-coco na mão. Tinha o cabelo penteado para a testa e partido ao meio acima do rosto aturdido e vazio. Mike sabia que seu nome era Kevin O’Malley, o primeiro ocupante do 1.408, um vendedor de máquinas de costura que pulara daquele quarto em outubro de 1910. À esquerda de O’Malley, havia outros que tinham morrido ali, todos com a expressão aturdida e vazia. Isso fazia com que todos parecessem parentes, membros da mesma família endogâmica e cataclismicamente retardada.

No quadro onde as frutas tinham estado, havia agora uma cabeça humana decepa-da. Uma luz amarelo-laranja nadava nas faces encovadas, nos lábios afundados, nos olhos vidrados e virados para cima, no cigarro atrás da orelha direita.

Mike cambaleou para a porta, os pés dando estalos de beijo e agora parecendo de fato grudar um pouco no chão a cada passo. A porta não abriu, é claro. A corrente pendia solta, mas a porta não abria.

Ofegando, Mike afastou-se dela e avançou com dificuldade — a sensação era essa — pelo aposento até a escrivaninha. Via as cortinas ao lado da janela que ele escancarara balançando erraticamente, mas não conseguia sentir nenhum ar fresco no rosto. Era como se o lugar estivesse engolindo o ar. Mike ainda podia ouvir as buzinas da Quinta Avenida, mas elas estavam agora muito distantes. Ainda ouvia o saxofone? Em caso positivo, o lugar roubara sua doçura e melodia, deixando apenas um fraco zumbido atonal, como o vento soprando por um buraco no pescoço de um morto ou uma garrafa de refrigerante cheia de dedos cortados ou...

Pare, Mike tentou dizer, mas não conseguia mais falar. Seu coração martelava num ritmo terrível; se fosse mais rápido, explodiria. O gravador, fiel companheiro de muitas “expedições sobre casos”, não estava mais em sua mão. Deixara-o em algum lugar. Se tivesse sido no quarto, provavelmente já teria desaparecido agora, engolido pelo aposento; e depois de digerido, seria excretado num dos quadros.

Arquejando por ar como um corredor no fim de uma longa corrida, Mike pôs a mão no peito como se quisesse acalmar o coração. O que tateou no bolso esquerdo da alegre camisa foi a pequena forma quadrada do gravador. Apalpar seu volume tão sólido e conhecido acalmou-o um pouco, de certo modo trazendo-o de volta. Teve consciência de que estava cantarolando de boca fechada... e de que o lugar parecia cantarolar com ele, como se milhares de bocas se escondessem por baixo do papel de parede suavemente desagradável. Notou que seu estômago estava agora tão nauseado que parecia oscilar na própria rede gordurenta, e sentiu o ar pressionando seus ouvidos em coágulos macios.

Mas voltara um pouco a si, o suficiente para ter certeza de que precisava pedir ajuda enquanto ainda era tempo. O pensamento de Olin sorrindo afetadamente (em seu modo atencioso de gerente de hotel nova-iorquino) e dizendo Bem que eu lhe disse não o aborrecia, e a idéia de Olin ter de algum modo lhe induzido as estranhas percepções e um terrível medo por meios químicos saíra completamente de sua cabeça. Era aquele cômodo. Era o desgraçado do cômodo.

Quis esticar a mão para o telefone antigo — gêmeo do que estava no quarto — e pegá-lo. Em vez disso, viu seu braço descer à mesa num delirante movimento em câmera lenta, tão parecido com o braço de um mergulhador que quase esperou ver bolhas saindo do membro.

Agarrou o receptor e levantou-o. Sua outra mão, tão decidida quanto a primeira, mergulhou e discou 0. Enquanto levava o receptor ao ouvido, escutou uma série de cliques como se o disco girasse novamente para sua posição original. Parecia soar como a Roda da Fortuna: quer girar a roda ou resolver o enigma? Lembre-se de que se tentar resolver o enigma e falhar, será colocado na neve ao lado do Pedágio Connecticut e os lobos comerão você.

Não escutou nenhuma campainha. Em vez disso, uma voz áspera começou a falar. “Eu disse nove! Nove! Eu disse nove! Nove! Eu disse dez! Dez! Matamos seus amigos! Cada amigo seu agora está morto! Eu disse seis! Seis!”

Mike ouvia com um horror crescente não ao que a voz dizia, mas a seu áspero vazio. Embora não fosse uma voz gerada por máquina, também não era uma voz humana. Era a voz do aposento. A presença derramando-se das paredes e do chão, a presença falando com ele do telefone não tinha nada em comum com qualquer evento assombrado ou paranormal sobre o qual lera algum dia. Havia algo diferente ali.

Não, não está ali ainda... mas está chegando. Está faminto, e você é o jantar.

O telefone caiu de seus dedos abertos e Mike se virou. O aparelho ficou pendurado pelo fio do mesmo modo que o estômago de Mike oscilava para a frente e para trás dentro dele, que ainda podia ouvir a voz áspera saindo do escuro: “Dezoito! Agora é o dezoito! Assuma o controle quando a sirene tocar! É o quatro! Eu disse quatro!”

Não notou que tirara o cigarro de trás da orelha e colocara-o na boca, ou que retirara do bolso da camisa berrante a caixa de fósforos com o porteiro de alamares dourados à antiga, assim como não notou que após nove anos finalmente tinha resolvido fumar.

Diante dele, o aposento começava a derreter.

Estava cedendo em seus ângulos e linhas retas, não em curvas mas em estranhos arcos mouriscos que feriam os olhos de Mike. O candelabro de vidro no centro do teto começou a decair como uma espessa bola de cuspe. Os quadros curvavam-se, tornando-se formas como pára-brisas de velhos cairos antigos. Vinda de trás do vidro do quadro junto à porta que dava para o quarto, a mulher dos anos 20 com os mamilos sangrando sorria com dentes de canibal. Então deu meia-volta e subiu correndo a escada novamente, movendo-se com o delirante andar abrupto e sinuoso de uma vampira num filme mudo, levantando os joelhos. O telefone continuava a emitir um som áspero e a cuspir numa voz que era agora a de uma máquina de cortar cabelo elétrica que tivesse aprendido a falar: “Cinco! Eu disse cinco! Ignore a sirene! Mesmo se você for embora deste quarto, jamais poderá deixá-lo! Oito! Eu disse oito!”

A porta para o quarto e a porta para o corredor tinham começado a desmoronar, alargando-se no meio e se tornando portais para seres possuídos de formas profanas. A luz tornou-se brilhante e quente, enchendo o lugar com um fulgor amarelo-laranja. Agora Mike podia ver rasgões no papel de parede, poros pretos que rapidamente cresciam até se transformarem em bocas. O chão afundou num arco côncavo e então Mike pôde ouvir o habitante do quarto atrás do quarto chegando, a coisa nas paredes, o dono da voz que zumbia. “Seis!” o telefone gritou. “Seis, eu disse seis, é a droga do SEIS, porra!”

Mike olhou para a caixa de fósforos em sua mão, a que retirara do cinzeiro do quarto. Que porteiro engraçado, que carros antigos engraçados com suas grandes grades cromadas... e palavras escritas no fundo que ele não via havia muito tempo, porque agora a fita abrasiva era sempre atrás.

FECHE A TAMPA ANTES DE RISCAR.

Sem pensar — não conseguia mais pensar —, Mike Enslin riscou um único fósforo, deixando o cigarro cair de sua boca ao mesmo tempo. Riscou o fósforo e imediatamente tocou com ele os outros na caixa. Houve um som de fffhut!, um forte sopro de enxofre ardente que entrou na cabeça de Mike como uma baforada de sais de cheiro, e uma chama brilhante de fósforos. E mais uma vez sem pensar, Mike segurou o buquê chamejante de fogo contra a frente da camisa. Era uma camisa barata feita na Coréia, no Camboja ou em Bornéu, agora já velha; ela pegou fogo imediatamente. Antes que as chamas subissem à frente de seus olhos, tornando o cômodo mais uma vez instável, Mike viu-o claramente, como um homem que acordou de um pesadelo, mas encontrou o pesadelo em torno de si.

Sua cabeça estava clara — a forte baforada de enxofre e o calor que se ergueu subitamente da camisa havaiana provocaram isso —, mas o lugar mantinha o aspecto insanamente pantanoso. Pantanoso não era a palavra, não chegava nem perto, mas era a única que parecia tangenciar o que acontecera ali... o que ainda acontecia. Mike estava numa caverna que derretia e apodrecia, cheia de movimentos bruscos e inclinações loucas. A porta que dava para o quarto tornara-se a entrada para a câmara interna de um sarcófago. E à esquerda, onde estivera pendurado o quadro das frutas, a parede avolumava-se na direção de Mike, abrindo-se em longas rachaduras que se escancaravam como bocas, abrindo-se para um mundo de onde algo se aproximava agora. Mike Enslin ouvia a respiração ávida e molhada da coisa e sentia o cheiro de algo vivo e perigoso. Cheirava um pouco como a jaula do leão no...

Então as chamas lamberam a parte de baixo de seu queixo, banindo seus pensamentos. O calor que subia da camisa flamejante pôs aquela oscilação novamente no mundo e, quando Mike sentiu o cheiro quebradiço dos pêlos de seu peito começando a torrar, correu de novo pelo tapete esfiapado em direção à saída. As paredes passaram a emitir um zumbido. A luz amarelo-laranja tornava-se mais firme e brilhante, como se uma mão tivesse ligado um termostato invisível. Dessa vez, quando Mike chegou à porta e girou a maçaneta, a porta se abriu. Era como se a coisa atrás da parede que se avolumava não visse nenhuma utilidade num homem ardendo; talvez não apreciasse muito carne cozida.

 

 

UMA CANÇÃO POPULAR dos anos 50 sugere que o amor faz o mundo girar, mas é provável que a coincidência seja uma aposta melhor. Rufus Dearborn, que estava naquela noite no quarto 1.414, perto dos elevadores, era um vendedor da Companhia de Máquinas de Costura Singer vindo do Texas para falar sobre a ascensão à posição de executivo. Assim, aconteceu que apoximadamente 90 anos depois que o primeiro ocupante do 1.408 pulou para a morte, outro vendedor de máquinas de costura salvou a vida do homem que pretendia escrever sobre o quarto supostamente assombrado. Ou talvez isso fosse um exagero; Mike Enslin poderia ter vivido mesmo que ninguém — especialmente um sujeito voltando de uma ida à máquina de gelo — estivesse no corredor naquele momento. Mas ter a camisa pegando fogo não é brincadeira, e Mike certamente se queimaria com muito mais gravidade se não fosse por Dearborn, que pensou rápido e se mexeu mais rápido ainda.

Não que Dearborn lembrasse com exatidão do que aconteceu. Ele construiu uma história coerente o bastante para os jornais e as câmeras de tevê (gostava muito da idéia de ser herói, o que certamente não prejudicava suas aspirações executivas), e lembrava nitidamente de ver o homem pegando fogo investir para o corredor, mas, depois disso, era tudo um borrão. Reconstruir aquilo era como tentar reconstruir o que você fez durante a pior e mais profunda bebedeira de sua vida.

De uma coisa ele tinha certeza, mas não contou aos repórteres porque não fazia sentido: o grito do homem pegando fogo parecia subir de volume como um estéreo sendo aumentado. Ele estava bem ali à frente de Dearborn, e o tom mais agudo do grito não mudou, mas o volume sim. Era como se o homem fosse um objeto incrivelmente barulhento que acabara de chegar.

Dearborn correu pelo corredor com o balde cheio de gelo na mão. O homem pegando fogo — “Vi logo que só a camisa dele estava pegando fogo”, disse aos repórteres — chegou à porta oposta ao quarto de onde tinha vindo, ricocheteou nela, cambaleou e caiu de joelhos. Foi quando Dearborn o alcançou, pôs o pé no ombro ardente do homem que gritava e abaixou-o no carpete do corredor. Então despejou nele o conteúdo do balde de gelo.

Essas coisas ficaram borradas em sua memória, mas acessíveis. Tinha noção de que a camisa ardendo parecia emitir luz demais — uma luz amarelo-laranja que o fazia pensar numa viagem que ele e o irmão haviam feito à Austrália dois anos antes. Haviam alugado um veículo com tração nas quatro rodas e partido para atravessar o Grande Deserto Australiano (alguns nativos o chamavam de o Grande Deserto Australiano Fode com Todos, descobriram os irmãos Dearborn), uma viagem infernal, fantástica mas fantasmagórica. Especialmente a grande rocha no meio, Ayers Rock. Eles a tinham alcançado ao pôr-do-sol e a luz em seus rostos masculinos era como aquela... quente e estranha... de modo nenhum parecida com uma luz terrena...

Deixou-se cair ao lado do homem ardente que agora era apenas o homem fume-gante, o homem coberto de cubos de gelo, e rolou-o para abafar as chamas que alcançavam a parte de trás da camisa. Quando o fez, viu que a pele do lado esquerdo do pescoço do homem passara a um vermelho defumado e estava coberta de bolhas, e o lobo da orelha daquele lado derretera. Mas, fora isso... fora isso...

Dearborn ergueu os olhos e teve a impressão — era loucura, mas teve a impressão de que a porta do quarto de onde o homem saíra estava cheia da luz ardente de um pôr-do-sol australiano, a quente luz de um lugar vazio onde viviam coisas que nenhum homem já viu algum dia. A luz era terrível (assim como o zumbido baixo, semelhante ao de uma máquina de cortar cabelo elétrica que tentasse desesperada-mente falar), mas era também fascinante. Quis entrar no quarto, ver o que estava por trás dele.

Talvez Mike também tenha salvo a vida de Dearborn. Certamente que sim, ao ver que Dearborn se levantava — como se Mike não tivesse mais nenhum interesse para ele — e que seu rosto estava cheio da luz fulgurante e pulsante que saía do 1.408. Lembrava-se disso melhor do que o próprio Dearborn, posteriormente, mas claro que Rufe Dearborn não fora obrigado a atear fogo em si mesmo para sobreviver. Mike agarrou a bainha da calça de Dearborn.

— Não entre ali — disse numa voz rouca e quebrada. — Você nunca sairia.

Dearborn parou, olhando o rosto avermelhado e cheio de bolhas do homem no carpete.

— É assombrado! — disse Mike, e, como se as palavras fossem um talismã, a porta do 1.408 bateu furiosamente, fazendo desaparecer a luz e o terrível zumbido que quase falava.

Rufus Dearborn, um dos melhores vendedores das Máquinas de Costura Singer que havia, correu até os elevadores e apertou o alarme de incêndio.

 

 

HÁ UMA FOTO interessante de Mike Enslin em Tratando a vítima de queimadura: Uma abordagem diagnóstica, cuja l6ªedição apareceu uns 16 meses depois da curta permanência de Mike no quarto 1.408 do Hotel Dolphin. A foto mostra apenas seu torso, mas não há dúvida de que é Mike. Pode-se dizer isso pelo quadrado branco em seu peito. A carne ali é de um vermelho raivoso, na realidade empolado em queimaduras de segundo grau em certos lugares. O quadrado branco marca o bolso esquerdo do peito da camisa que ele usava naquela noite, a camisa da sorte com o gravador no bolso.

O próprio gravador derretera nos cantos, mas ainda funciona, e sua fita sobreviveu nele. As coisas dentro dela é que não estão bem. Depois de escutá-la três ou quatro vezes, Sam Farrel, o agente de Mike, guardou-a no cofre da parede, recusando-se a registrar que seus braços magricelas e bronzeados estavam arrepiados. E naquele cofre ficou a fita desde então. Farrel não tem nenhum impulso de escutá-la de novo, nem de mostrá-la a amigos curiosos, entre eles alguns que dariam a vida para ouvi-la; o ramo editorial de Nova York é uma comunidade pequena, e as notícias correm.

Sam Farrel não gosta da voz de Mike na fita, e não gosta do que diz a voz (Meu irmão na verdade foi comido por lobos num inverno no Pedágio de Connecticut... que diabo isso significa?), e não gosta principalmente dos sons ao fundo, um ruído líquido que às vezes parece roupa muito ensaboada sacudida numa máquina de lavar, às vezes uma daquelas velhas máquinas de cortar cabelo... e às vezes, uma voz esquisita.

Enquanto Mike ainda estava no hospital, um homem chamado Olin — o gerente da droga do hotel — procurou Sam Farrel e perguntou-lhe se podia escutar a fita. Farrel repondeu-lhe que não podia, não; o que Olin podia fazer era ir embora daquele escritório o mais rápido possível, e agradecer a Deus, ao voltar para o pulgueiro onde trabalhava, por Mike Enslin não processar o hotel ou Olin por negligência.

— Tentei convencê-lo a não ficar lá — disse Olin calmamente. Sendo um homem que passava a maior parte dos dias ouvindo viajantes cansados e hóspedes petulantes implicarem com tudo, dos quartos à seleção de revistas no suporte de publicações, ele não ficou muito perturbado com o rancor de Farrel. — Tentei tudo o que podia. Se alguém foi negligente naquela noite, Sr. Farrel, foi seu cliente. Ele acreditava demais em coisa alguma. Um comportamento muito pouco sábio, muito imprudente. Imagino que ele tenha reconsiderado seu ponto de vista.

Apesar do desagrado de Farrel com a fita, ele gostaria que Mike a ouvisse, a registrasse, e quem sabe a usasse como um trampolim do qual lançar um outro livro. Porque há um livro no que aconteceu a Mike, Farrel sabe disso — não apenas um capítulo, um caso de 40 páginas, mas um livro inteiro. Um livro que poderia vender mais do que todos os três Dez Noites juntos. E claro que ele não acredita quando Mike declara que não escreverá mais histórias de fantasmas nem qualquer outra história. Os escritores dizem isso de tempos em tempos, é só. Uma explosão ocasional de prima donna é parte integrante do comportamento dos autores.

Considerando-se tudo, Mike Enslin teve sorte, e sabe disso. Poderia ter-se queimado muito mais; se não fosse por Dearborn e seu balde de gelo, ele poderia ter tido 20 ou mesmo 30 diferentes enxertos de pele em vez de apenas quatro. Tem cicatrizes no lado esquerdo do pescoço, apesar dos enxertos, mas os médicos do Boston Burn Institute disseram-lhe que as cicatrizes diminuirão sozinhas. Mike também sabe que as queimaduras, dolorosas nas semanas e meses depois daquela noite, tinham sido necessárias. Se não fosse pelos fósforos com FECHE A TAMPA ANTES DE RISCAR escrito na frente, ele teria morrido no 1.408, e seu fim teria sido inominável. Para um legista, poderia parecer um derrame ou um infarte, mas a verdadeira causa da morte teria sido muito mais maligna.

Muito mais maligna.

Mike também teve sorte em ter escrito três livros populares sobre fantasmas e assombrações antes de sair correndo de um lugar realmente assombrado — ele sabia disso também. Sam Farrel pode não acreditar que a vida de Mike como escritor esteja encerrada, mas Sam não precisa acreditar; Mike sabe disso pelos dois. Ele não consegue escrever nem um cartão-postal sem sentir toda a pele gelada e uma profunda náusea na boca do estômago. Às vezes, só olhar uma caneta (ou um gravador) o faz pensar: Os quadros estavam tortos. Tentei endireitá-los. Ele não sabe o que isso significa. Não consegue lembrar dos quadros ou de coisa alguma do quarto 1.408, e está contente. Isso é uma bênção. Sua pressão sangüínea não anda tão boa por esses dias (seu médico disse que as vítimas de queimaduras geralmente passam a ter problemas de pressão e o fez tomar remédio), seus olhos ainda o incomodam (o oftalmologista disse para ele começar a usar remédio), ele tem freqüentes problemas de coluna, sua próstata está grande demais... mas ele pode lidar com essas coisas. Mike sabe que não é a primeira pessoa a escapar do 1.408 sem escapar realmente — Olin tentou lhe dizer —, mas não é tão ruim assim. Pelo menos, ele não se lembra. Às vezes tem pesadelos; ou com muita freqüência (quase todas as malditas noites, na verdade), mas raramente lembra deles quando acorda. Principalmente uma sensação de que as coisas estão se arredondando nos cantos — derretendo-se como os cantos do gravador. Mike mora em Long Island atualmente e, quando o tempo está bom, ele dá longos passeios na praia. O mais perto que chegou de articular as lembranças dos esquisitos (muito esquisitos) 70 minutos no 1.408 ocorreu numa dessas caminhadas. “Aquilo nunca foi humano”, disse ele às ondas com voz sufocada, entrecortada. “Fantasmas... pelo menos os fantasmas foram humanos no passado. Mas a coisa na parede... aquela coisa...”

O tempo pode trazer melhoras para Mike. Ele espera por isso e tem razão em fazê-lo. O tempo pode desbotar as lembranças de Mike, assim como pode esmaecer as :icatrizes em seu pescoço. Mas, enquanto isso, ele dorme com a luz acesa para saber ande está quando acorda de um pesadelo. Mandou retirar todos os telefones da casa; sob ) local em que sua mente consciente opera, ele tem medo de pegar o telefone e ouvir uma voz inumana zumbir “É nove! Eu disse nove! Matamos seus amigos! Cada amigo seu agora está morto!”.

E quando o sol se põe nas noites claras, Mike fecha todas as persianas, venezianas e cortinas da casa. Fica mergulhado na escuridão até que o relógio lhe diga que a luz — mesmo o último fulgor no horizonte — se foi.

Ele não suporta a luz que chega ao pôr-do-sol.

Aquele amarelo se aprofundando, tornando-se laranja, como a luz do deserto australiano.

 

                                                                                            Stephen King

 

 

                      

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