Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A MOEDA DA SORTE
-AH, SEU FILHO-DA-PUTA PÃO-DURO! — exclamou ela no quarto de hotel vazio, mais de surpresa do que de raiva.
Então — era o seu jeito — Darlene Pullen começou a rir. Sentou na cadeira ao lado do leito vazio e amarfanhado com a moeda de 25 cents numa das mãos e o envelope de onde ela caíra na outra, olhando de um para outro e rindo até que lágrimas lhe desceram pelo rosto. Patsy, sua filha mais velha, precisava de aparelhos nos dentes. Darlene não tinha absolutamente nenhuma idéia de como ia pagá-los; preocupara-se com a questão a semana toda e, se isso não era a última gota, o que seria? E se não pudesse rir da coisa, o que poderia fazer? Comprar uma arma e dar um tiro na cabeça?
Moças diferentes deixavam em locais diferentes o envelope superimportante, chamados por elas de “o pote de mel”. Gerda, a sueca que fora prostituta no centro da cidade antes de encontrar Jesus no verão anterior, num revival em Tahoe, prendia o dela num dos espelhos do banheiro; Melissa punha o dela sob o controle remoto da tevê. Darlene sempre colocava o seu apoiado no telefone, e ao entrar naquela manhã e ver o envelope do 322 em cima do travesseiro, soube que o hóspede deixara algo para ela.
Sim, certamente. Um sanduichezinho de metal, um quarto de dólar, um Em Deus Confiamos.
Seu riso, reduzido a risadinhas, explodiu de novo num acesso de risadas.
O pote de mel tinha letras impressas, além do logotipo do hotel: as silhuetas de um cavalo e de seu cavaleiro no alto de um rochedo encerradas numa forma de diamante.
Bem-vindo a Carson City, a cidade mais simpática de Nevada! [diziam as palavras abaixo do logotipo] E bem-vindo ao The Rancher’s Hotel, a hospedagem mais simpática em Carson City! Seu quarto foi arrumado por Darlene. Se algo estiver errado, por favor, disque 0, que nós resolveremos logo. Este envelope é fornecido para o caso de você achar que tudo está a contento e quiser deixar alguma coisa extra para esta camareira.
Mais uma vez, bem-vindo a Carson e ao Rancher’s.
William Avery
Chefe do Rancho
Com muita freqüência, o pote de mel permanecia vazio — Darlene encontrara envelopes rasgados na cesta de papel, amassados num canto do quarto (como se a idéia de dar gorjeta à camareira enfurecesse alguns hóspedes), flutuando no vaso sanitário — mas às vezes havia no envelope uma simpática surpresinha, especialmente se a máquina caça-níqueis ou as mesas de jogo tivessem sido amáveis com um hóspede. E o 322 usara de fato o seu; deixara a ela um quarto de dólar, minha nossa! Isso pagaria o aparelho de dentes de Patsy e compraria aquele videogame da Sega que Paul queria do fundo do coração. Ele não teria nem que esperar até o Natal, poderia ganhá-lo como... como...
— Um presente do Dia de Ação de Graças — disse ela. — Claro, por que não? E vou pagar o pessoal da tevê a cabo, assim a gente não precisa desistir dela, e vamos poder até acrescentar o Canal Disney, e eu vou poder finalmente ir a um médico para ver as minhas costas... merda, estou rica. Se eu encontrasse esse senhor, cairia de joelhos e beijaria seus pés, porra.
Não havia possibilidade; o 322 tinha ido embora havia muito tempo. O Rancher’s provavelmente era o melhor hotel em Carson City, mas o negócio ainda era inteiramente transitório. Quando Darlene entrava pela porta dos fundos às sete horas da manhã, os hóspedes levantavam, faziam a barba, tomavam banho, em alguns casos cuidavam de suas ressacas; e enquanto ela estava no Serviço de Quarto com Gerda, Melissa e Jane (a governanta-chefe, a dos formidáveis peitos de canhão e boca obstinada pintada de vermelho), primeiro tomando café e depois enchendo o carrinho para preparar-se para o dia, os motoristas de caminhão, caubóis e vendedores pagavam as contas na recepção, com seus envelopes potes de mel cheios ou não.
O 322 — aquele cavalheiro — deixara 25 cents no seu. E provavelmente lhe deixara algo nos lençóis também, sem falar numa lembrança ou duas no vaso sem apertar a descarga. Porque alguns não conseguem parar de dar. Está em sua natureza.
Enxugando o rosto úmido com a bainha do avental, Darlene suspirou e espremeu o envelope — o 322 se dera ao trabalho de colá-lo, e ela rasgara a ponta do envelope ansiosa para ver o que havia nele. Quis jogar os 25 cents de novo no envelope e então viu que este continha um bilhete rabiscado numa folha do bloco da escrivaninha.
Sob o logotipo de cavalo-e-cavaleiro e das palavras APENAS UM BILHETE DO RANCHO, o 322 escrevera nove palavras com um lápis de ponta rombuda:
Isto é uma moeda da sorte! É verdade! Seu sortudo!
— Um bom negócio! — disse Darlene. — Com dois filhos e um marido que saiu para trabalhar há cinco anos e não voltou, bem que preciso de um pouco de sorte. Deus sabe que sim. — Então ela riu de novo, com escárnio, e deixou cair a moeda dentro do envelope. Entrou no banheiro e espiou o vaso: nada ali a não ser água clara. Bom, isso já era alguma coisa.
Continuou com suas tarefas, que não demoraram muito. O quarto de dólar era uma sacanagem de mau gosto, pensou, mas no resto o 322 fora bastante educado. Nenhuma mancha nos lençóis, nenhuma surpresa desagradável (pelo menos quatro vezes, em seus cinco anos de camareira, os cinco anos desde que Deke a deixara, tinha encontrado traços secos do que só poderia ser sêmen na tela de tevê e certa vez uma fedorenta poça de mijo na gaveta de uma cômoda), nada roubado. Havia apenas a cama por fazer, a pia e o chuveiro para lavar, e as toalhas para substituir. Enquanto fazia essas coisas, especulava sobre qual seria a aparência do 322, e que tipo de homem deixava para uma mulher tentando criar dois filhos sozinha uma gorjeta de 25 cents. Alguém que podia rir e ser mesquinho ao mesmo tempo, imaginou ela; alguém que provavelmente tinha tatuagens nos braços e parecia o personagem interpretado por Woody Harrelson no filme assassinos por natureza.
Ele não sabe coisa alguma a meu respeito, pensou ela saindo para o corredor e fechando a porta atrás de si. Provavelmente estava bêbado e achou a coisa engraçada, só isso. E de certo modo foi engraçada; senão, por que você teria rido?
Certo. Senão, por que teria rido?
Empurrando o carrinho para o 323, ela pensou que daria o quarto de dólar para Paul. Dos dois garotos, era Paul geralmente quem passava o pior pedaço. Aos sete anos, era silencioso e sofria do que parecia um resfriado perpétuo. Darlene achava que ele devia ser o único garoto a ter uma asma incipiente naquela cidade no meio do deserto.
Ela suspirou e usou sua chave privativa no 323, pensando que talvez encontrasse uma nota de 50 — ou até de 100 — no pote de mel daquele quarto. Quase sempre era a primeira coisa que pensava ao entrar. Entretanto, o envelope estava onde ela o deixara, apoiado no telefone, e embora ela verificasse apenas por desencargo de consciência, sabia que ele estaria vazio. E tinha razão.
Mas o 323 lhe deixara algo no toalete.
— Olhe só isso, a sorte já começou — disse Darlene e pôs-se a rir, enquanto apertava o botão da descarga. Era o jeito dela.
Havia uma máquina caça-níqueis — apenas uma — no saguão do Rancher’s e, embora Darlene nunca a tivesse usado nos cinco anos em que trabalhava lá, ela enfiou a mão no bolso indo para o almoço naquele dia, tateou o envelope com a ponta rasgada e foi até a cromada enganadora de otários. Não esquecera que pretendia dar a moeda a Paul, mas 25 cents não significavam nada para as crianças atualmente, e por que significariam? Não davam para comprar sequer uma mísera garrafa de Coca. E de repente ela só quis se livrar da droga da moeda. Suas costas doíam, ela estava com uma pouco habitual indigestão ácida por causa do seu café das dez horas e sentia-se tremendamente deprimida. Subitamente, o brilho do mundo sumira, e tudo parecia culpa daquela moeda nojenta... como se ela enviasse pequenos feixes de vibrações malignas de seu bolso.
Gerda saiu do elevador exatamente a tempo de ver Darlene plantar-se em frente à máquina caça-níqueis, tirar o quarto de dólar do envelope e recolhê-lo na mão.
— Você? — disse Gerda. — Você? Não, nunca... eu não acredito.
— Pois fique olhando — disse Darlene, e deixou cair a moeda na fenda onde estava escrito USE 1, 2 ou 3 MOEDAS. — Essa gracinha já era.
Começou a se afastar e então, quase como uma reflexão posterior, virou-se o suficiente para acionar a máquina. Começou a andar de novo sem se dar ao trabalho de observar a máquina, e não viu os sinos ocuparem os lugares nas janelinhas — um, dois e três. Darlene só parou de andar quando ouviu os quartos de dólar começando a chover na bandeja no fundo da máquina. Seus olhos se arregalaram e depois se estreitaram suspeitosamente, como se aquilo fosse outra piada... ou talvez o final da primeira.
— Focê ganhou! — gritou Gerda, o sotaque sueco surgindo com mais força pela sua animação. — Darlene, focê ganhou!
Ela passou rapidamente por Darlene, que simplesmente ficara onde estava, ouvindo as moedas cascatearem na bandeja. O som parecia continuar para sempre. Sortuda, pensou ela. Sortuda, sortuda.
Finalmente, os quartos de dólar pararam de cair.
— Ah, meu Deus! — disse Gerda. — Ah, meu Deus! E pensar que essa máquina pão-dura nunca me deu um tostão, depois de todas as moedas que enfiei nela! Sua sorte chegou! Deve haver 15 dólares, Darl! Imagine se você tivesse posto trrês moedas!
— Seria mais sorte do que eu posso agüentar — disse Darlene, com vontade de chorar. Não sabia por que sentia isso, mas era assim; as lágrimas queimavam o interior de seus globos oculares como um leve ácido. Gerda ajudou-a recolher as moedas da bandeja e, quando todas estavam no bolso do uniforme de Darlene, o lado da roupa pendia comicamente. O único pensamento que lhe ocorreu foi que devia comprar alguma coisa boa para Paul, um brinquedo. Quinze dólares não eram suficientes para o videogame da Sega que ele queria, nem chegavam perto, mas poderia comprar uma das coisas eletrônicas que ele sempre olhava na vitrine da Radio Shack no shopping, não pedindo, porque sabia que não podia — era doente, mas não burro —, só olhando, com olhos que pareciam sempre inflamados e lacrimejantes.
Coisa nenhuma, disse ela para si mesma. Você vai comprar um par de sapatos, é o que vai fazer... ou a droga do aparelho de dentes de Patsy. Paul não se importaria com isso, e você sabe disso.
Não, Paul não se importaria e isso era o diabo, pensou, os dedos segurando o peso das moedas no bolso, ouvido-as tilintar. Você se importava com as coisas no lugar deles. Paul sabia que os aviões, carros e barcos movidos por controle remoto da vitrine estavam fora do seu alcance, assim como o videogame da Sega e todos os jogos que se podia jogar com ele; para Paul, tais coisas existiam para serem apreciadas apenas na imaginação, como quadros numa galeria ou esculturas num museu. Para ela, entretanto...
Bem, talvez devesse comprar algo supérfluo para ele com a sorte inesperada. Algo supérfluo e simpático. Surpreendê-lo.
Surpreender a si própria.
Ela surpreendeu a si própria, não há dúvida.
Muito.
Naquela noite, decidiu ir a pé para casa em vez de tomar o ônibus. No meio da Rua North, entrou no Silver City Casino, onde jamais pisara antes. Havia trocado as moedas — 18 dólares — em notas na recepção do hotel e agora, sentindo-se como uma visitante, aproximou-se da roleta e estendeu as notas para o crupiê com a mão inteiramente dormente. Não era apenas a mão; cada nervo abaixo da superfície de sua pele parecia ter morrido, como se o comportamento súbito e aberrante os tivesse estourado como fuzíveis sobrecarregados.
Não tem importância, disse para si mesma ao trocar todos os 18 dólares por fichas de um dólar, cor-de-rosa e sem marcas, no espaço assinalado ODD. É apenas um quarto de dólar, é só o que é, não importa o que pareça em cima desse feltro, é apenas a brincadeira de mau gosto de alguém com uma camareira que ele jamais olhou nos olhos. É apenas um quarto de dólar, e você ainda está tentando se livrar dele, porque ele se multiplicou e mudou de forma, mas ainda está emitindo más vibrações.
— Encerraram-se as apostas, encerraram-se as apostas — cantarolou o homem da roleta enquanto a bolinha movia-se ao contrário da roda que girava. A bolinha caiu, quicou, parou e Darlene fechou os olhos por um momento. Quando os abriu, viu que a bolinha girava inserida na fenda número 15.
Quando o crupiê empurrou mais 18 fichas cor-de-rosa para ela, Darlene achou-as parecidas com as pastilhas Garoto amassadas. Pegou as fichas e colocou-as de novo no vermelho. O crupiê a olhou com as sobrancelhas erguidas, perguntando-lhe mudamente se tinha certeza. Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça, e ele pôs a roleta para girar. Quando o vermelho surgiu de novo, Darlene mudou sua crescente pilha de fichas para o preto.
Depois o ímpar.
Depois o par.
Darlene tinha 576 dólares à sua frente depois da última aposta, e sua cabeça partira para outro planeta. Ela não via exatamente fichas pretas, verdes e rosa diante de si; via um aparelho para os dentes e um submarino controlado pelo rádio.
Sortuda, pensou Darlene Pullen. Sortuda, sortuda.
Apostou as fichas de novo, todas elas, e o grupo de pessoas que sempre se forma atrás e à volta dos ganhadores em maré de sorte nas cidades de jogo, mesmo às cinco horas da tarde, gemeu.
— Senhora, não posso permitir a aposta sem a autorização do chefe do andar — disse o homem da roleta. Parecia consideravelmente mais acordado agora do que quando Darlene entrara com seu uniforme de rayon listrado de azul e branco. Ela apostara seu dinheiro no segundo triplo — os números de 13 a 24.
— Então é melhor chamar ele, meu bem — disse Darlene, e esperou calma, os pés sobre a Terra em Carson City, Nevada, a 11 quilômetros de onde fora aberta a primeira grande mina de prata em 1878, a cabeça em algum ponto no fundo das minas de delumínio do Planeta Churupadidalle, enquanto o chefe do andar e o homem da roleta conferenciavam e o grupo em torno murmurava. Finalmente, o chefe do andar veio até ela e pediu-lhe que escrevesse o nome, endereço e número do telefone num papel cor-de-rosa. Darlene o fez, curiosa de ver que sua letra nem parecia a mesma. Sentia-se calma, tão calma como o mais calmo mineiro de delumínio que já existira, mas suas mãos tremiam bastante.
O chefe do andar virou-se para o Sr. Roleta e girou o dedo no ar — pode rodar, garoto.
Dessa vez, o som seco da bolinha branca foi claramente audível na área à volta da roleta; o grupo ficara completamente silencioso, e a aposta de Darlene era a única no feltro. Ali era Carson City, não Montecarlo, e para Carson isso já era uma aposta-monstro. A bola chacoalhou, caiu numa fenda, pulou, caiu em outra, depois pulou de novo. Darlene fechou os olhos.
Sortuda, ela pensou e rezou. Sortuda, mamãe sortuda, garota sortuda.
O grupo de pessoas gemeu, de horror ou êxtase. Foi assim que Darlene soube que a roda se tornara vagarosa o suficiente para ser decifrada. Darlene abriu os olhos, sabendo que seu quarto de dólar finalmente se fora.
Mas não.
A bolinha branca descansava na depressão do 13 Preto.
— Ah, meu Deus, queridinha — disse uma mulher atrás dela. — Me dê sua mão, quero tocar na sua mão. — Darlene a deu e sentiu a outra mão ser pega suavemente também... pega e acariciada. De uma grande distância, bem longe das minas de delumínio onde essa fantasia se desenrolava para ela, Darlene pôde sentir primeiro duas pessoas, depois quatro, depois seis, depois oito, esfregarem-lhe suavemente as mãos tentando pegar sua sorte como um vírus de resfriado.
O Sr. Roleta empurrava pilhas e pilhas de fichas para ela.
— Quanto? — perguntou Darlene debilmente. — Quanto é isso?
— Mil setecentos e vinte e oito dólares — disse ele. — Parabéns, senhora. Se eu fosse a senhora...
— Mas não é — disse Darlene. — Quero colocar tudo num número só. Aquele ali, o 25 — apontou. Por trás dela, alguém gritou suavemente, como num êxtase sexual. — Cada cent.
— Não — disse o chefe do andar.
— Mas...
— Não — disse ele de novo. Darlene trabalhara com homens suficientes a maior Darte da vida para saber quando um deles falava com firmeza. — Política da casa, Sra. Pullen.
— Tudo bem — disse ela. — Tudo bem, seu chato. — Puxou as fichas para si, derrubando algumas pilhas. — Quanto vai me deixar apostar?
— Com licença — disse o chefe do andar.
Ausentou-se por quase cinco minutos, e durante esse tempo a roleta permaneceu silenciosa. Ninguém falou com Darlene, mas suas mãos eram tocadas repetidamente, às vezes esfregadas como se ela tivesse desmaiado. Quando o chefe do andar voltou, trazia consigo um homem alto e calvo de smoking e óculos de aro de ouro. Ele não olhou exatamente para Darlene e sim através dela.
— Oitocentos dólares — disse ele —, mas aconselho-a a não fazê-lo. — Seus olhos desceram ao uniforme dela e subiram novamente até seu rosto. — Eu acho que a senhora devia trocar suas fichas.
— Pois eu acho que o senhor não sabe porra nenhuma — disse Darlene, e o homem calvo apertou os lábios com desagrado. Ela olhou novamente o Sr. Roleta.
— Vamos lá — disse ela.
O Sr. Roleta pegou uma placa de 800 dólares, cobrindo com ela o número 25 com um floreio. Então girou a roda e a bolinha caiu. Todo o cassino silenciara profundamente agora, até mesmo o ruído contínuo das máquinas caça-níqueis. Levantando os olhos, Darlene não ficou surpresa de ver que a bancada de tevê que anteriormente vinha mostrando corridas de cavalo e partidas de boxe agora mostrava a roleta que girava... e ela, Darlene.
Sou até uma estrela de tevê. Sortuda. Sortuda. Ah, sortuda a beca.
A bolinha girou, quicou. Quase ficou presa, depois girou de novo, um pequeno dervixe branco disparando pela polida circunferência de madeira da roleta.
— As probabilidades! — ela gritou subitamente. — Quais são as probabilidades?
— Trinta para um — disse o homem calvo. — A senhora deve ganhar 24 mil dólares, madame.
Darlene fechou os olhos...
... e os abriu no 322. Ainda estava sentada na cadeira, com o envelope numa mão e o quarto de dólar que caíra dele na outra. As lágrimas de riso ainda lhe molhavam as faces.
— Sortuda — disse ela e espremeu o envelope para poder ver lá dentro. Nenhum bilhete. Só outra parte da fantasia.
Suspirando, deixou cair a moeda no bolso do uniforme e começou a limpar o 322.
Em vez de levar Paul para casa como fazia depois da escola, Patsy levou-o para o hotel.
— Ele está fungando por aí todo encatarrado — explicou à mãe, com a voz carregada de um desdém que só uma criança de 13 anos pode reunir em tal proporção. — Está tipo sufocando nele. Achei que você ia querer levar ele ao Pronto-socorro.
Paul olhou-a em silêncio com seus olhos pacientes e lacrimejantes, o nariz vermelho como as listas da bengala de açúcar. Estavam no saguão e não havia nenhum hóspede no momento, e o Sr. Avery (Tex para as arrumadeiras, que detestavam unanimemente o nojentinho) estava longe da recepção. Provavelmente de volta ao escritório, descabelando o palhaço.
Darlene pôs a palma da mão na testa de Paul, sentiu o calor que saía dali e suspirou.
— Acho que você tem razão — disse ela. — Como está se sentindo, Paul?
— Dô bem — disse ele numa voz distante como sirene de nevoeiro. Até Patsy parecia deprimida.
— Provavelmente ele vai morrer com 16 anos — disse ela. — Vai ser o único caso de AIDS espontânea na história do mundo.
— Feche essa boca suja! — disse Darlene de modo muito mais áspero do que pretendia, mas foi Paul quem pareceu ferido, encolhendo-se e desviando os olhos dela.
— Ele também é um bebê — disse Patsy desesperançada. — Um bebê mesmo.
— Não é não. Ele é sensível, só isso. E tem baixa resistência. — Vasculhou o bolso do uniforme. — Paul? Quer isso?
Ele a olhou novamente, viu a moeda e sorriu um pouco.
— O que vai fazer com isso, Paul? — Patsy perguntou enquanto ele pegava a moeda. — Levar Deirdre McCausland para sair? — Zombou.
— Fou pensar em alguba coisa — disse Paul.
— Deixe ele em paz — disse Darlene. — Não o aborreça por algum tempo, pode fazer isso?
— Posso, mas o que é que eu ganho? — Perguntou Patsy. — Vim com ele até aqui a salvo, sempre trago ele são e salvo, então vou ganhar o quê?
Aparelho de dentes, pensou Darlene, se algum dia eu puder arcar com um. Então ficou subitamente esmagada pela infelicidade, pela sensação de que a vida era uma vasta e gelada pilha de lixo — restos de delumínio, se preferir — sempre pairando sobre você, sempre na expectativa de cair e cortá-la em fatias gritantes mesmo antes de esmagá-la e lhe tirar a vida. A sorte era uma piada. Mesmo a boa sorte era apenas má sorte com o cabelo penteado.
— Mãe? Mamãe? — Patsy pareceu repentinamente preocupada. — Não quero nada não, estava só brincando.
— Tenho uma Contigo para você, se quiser — disse Darlene. — Encontrei num dos quartos e está lá no meu armário.
— Deste mês? — perguntou Patsy de modo suspeitoso.
— Deste mês, sim. Vem.
Já estavam no meio do saguão quando ouviram a moeda cair e o inequívoco ruído da alavanca e o rápido clicar dos tambores quando Paul acionou a máquina caça-níqueis ao lado da recepção.
— Ah, seu pateta, agora você está frito! — exclamou Patsy, que não parecia exatamente feliz com a coisa. — Quantas vezes mamãe já disse para não jogar dinheiro fora nessas máquinas? Caça-níqueis são para os turistas!
Mas Darlene nem se virou. Ficou olhando para a porta que levava ao país das camareiras, onde os casacos de tecido barato de Ames e Wal-Mart estavam pendurados numa fileira como sonhos que mofaram e foram descartados, onde o relógio do tempo corria, onde o ar sempre cheirava ao perfume de Melissa e à cânfora de Jane. Ficou escutando o clicar rápido dos tambores, esperando o chacoalhar das moedas na bandeja; o momento em que começaram a cair, Darlene já pensava em pedir a Melissa para dar uma olhada nas crianças enquanto ela descia até o cassino. Não levaria muito tempo.
Sortuda, pensou e fechou os olhos. Na escuridão por trás das pálpebras, o som das moedas caindo era muito alto. Soava como refugo de metal caindo na tampa de um iixão.
Tudo ia acontecer como ela imaginara, tinha certeza que seria assim. No entanto, imagem da vida como uma gigantesca pilha de refugo — uma pilha de metal desconhecido — continuava. Era como uma mancha indelével que jamais sairá de uma roupa favorita.
Mesmo assim, Patsy precisava de um aparelho de dentes, e Paul precisava ir ao médico por causa do nariz que escorria constantemente e dos olhos perpetuamente lacrimejantes; precisava também de um videogame da Sega, assim como Patsy precisava de uma roupa de baixo colorida que a fizesse sentir-se confortável e sexy, e ela própria, Darlene, precisava... de quê? Que Deke voltasse?
Claro, que Deke voltasse, pensou quase rindo. Preciso que ele volte tanto uanto preciso da puberdade de novo, ou de trabalhos de parto. Preciso... bem...
(de nada)
É, era isso. Nada de nada, zero, vazio, adiós. Dias negros, noites vazias e risos por todo o caminho.
Não preciso de coisa algum porque sou sortuda, pensou, os olhos ainda fechados. Lágrimas espremeram-se das pálpebras baixadas enquanto por trás dela Patsy gritava o mais alto que podia. “Ah, pombas! Puta que pariu, você tirou a sorte grande, Paulie! Você tirou a droga da sorte grande!”
Sortuda, pensou Darlene. Tão sortuda, ah, como tenho sorte.
Stephen King
O melhor da literatura para todos os gostos e idades