Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A TEORIA DE L. T. SOBRE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO
MEU AMIGO L.T. RARAMENTE FALA de como a sua mulher desapareceu, ou de como é provável que esteja morta, mais uma vítima do Homem do Machado. No entanto, gosta de contar como a mulher o abandonou. Faz isso com o movimento certo dos olhos, como se dissesse “Ela me enganou, rapazes... barba, cabelo e bigode!”. Às vezes conta a história para um bando de homens sentados numa das plataformas de descarregamento atrás da fábrica, almoçando ele também algo preparado por si mesmo — nenhuma Lulubelle em casa para fazer isso por ele atualmente. Em geral riem quando ele conta a história, que sempre termina com A Teoria de L.T. Sobre Animais de Estimação. Bolas, eu geralmente rio. É uma história engraçada, mesmo se a gente conhece o fim dela. Não que algum de nós o conheça — não completamente.
— Eu me mandei às quatro, como sempre — dizia L.T. — e então fui ao Deb’s Den para umas cervejas, exatamente como em quase todos os dias. Joguei um pouco no fliperama e fui para casa. Foi quando as coisas ficaram diferentes. Quando a pessoa levanta de manhã, não tem a mínima idéia do quanto a sua vida pode estar mudada ao pousar de novo a cabeça no travesseiro, à noite. “Você não conhece o dia ou a hora”, diz a Bíblia. Acredito que esta frase seja sobre a morte, mas ela se ajusta a todo o resto, rapazes. Todo o resto neste mundo. A gente nunca sabe quando está bebendo a última gota.
“Quando cheguei em casa, vi que a porta da garagem estava aberta e o pequeno Subaru que ela tinha trazido quando nos casamos desaparecera, mas no momento não achei aquilo estranho. Ela estava sempre indo de carro para algum lugar — para um brechó ou algum lugar do gênero — e deixando a porcaria da porta da garagem aberta. Eu lhe dizia ‘Lulu, se continuar fazendo isso por muito tempo, alguém vai se aproveitar. Vai entrar e roubar um ancinho ou um saco de adubo, ou até o cortador de grama. Que diabo, até um Adventista do Sétimo Dia que acabou de sair da faculdade e faz sua jornada de boas ações roubará se você puser tentação suficiente no seu caminho. E ele é a pior pessoa para ser tentada, porque é mais sensível a isso do que o resto de nós.’ Seja como for, Lulu sempre dizia ‘Vou melhorar, L.T., pelo menos vou tentar, vou mesmo, meu bem’. E tentava melhorar; só escorregava de vez em quando, como qualquer pecador comum.
“Estacionei do lado para que ela pudesse guardar o carro dela ao voltar e fechei a porta da garagem. Então entrei pela cozinha e verifiquei que a caixa de correspondência estava vazia, e a correspondência em cima da bancada. Portanto, ela deve ter ido embora depois das 11, porque o correio não chega antes dessa hora.
“Bem, Lucy estava bem ali na porta, chorando como fazem os gatos siameses... gosto daquele choro, acho bonitinho, mas Lulu sempre o detestou, talvez porque pareça um bebê chorando e ela não quer nada com bebês. ‘Para que eu ia querer um fedelho levado?’, dizia ela.
“Que Lucy estivesse junto à porta não tinha nada de incomum também. A gata me adorava. E ainda adora, agora que já tem dois anos. Nós a tínhamos desde o último ano em que fomos casados. Por aí. Parece impossível acreditar que Lulu já foi embora há um ano, e só estávamos juntos há três, para começo de conversa. Mas Lulubelle era um tipo que causava impressão nos outros. Lulubelle tinha o que eu chamo de qualidade de estrela. Sabem quem ela me lembra? Lucille Bali. Pensando bem, acho que foi por isso que batizei a gata de Lucy, embora não me lembre de ter pensado nisso na época. Pode ter sido o que chamam de associação subconsciente. Ela entrava numa sala... quero dizer, Lulubelle, não a gata... e de certo modo iluminava o lugar. Quando uma pessoa assim vai embora, você não consegue acreditar e continua esperando que ela volte.
“Então, lá estava a gata. Para começar, seu nome era Lucy, mas Lulubelle detestava tanto o comportamento da siamesa que passou a chamá-la de Pirada, e o nome pegou. Mas Lucy não era maluca, só queria ser amada. Queria ser amada mais do que qualquer outro animal que já tive na vida, e tive alguns deles.
“Seja como for, entrei na casa, peguei a gata no colo e papariquei-a um pouco. Ela subiu no meu ombro e ficou ali, ronronando e falando naquela linguagem siamesa. Depois de verificar a correspondência na bancada, pus as contas na cesta e fui à geladeira pegar algo para Lucy comer. Sempre tenho uma lata de comida de gato na geladeira, coberta por uma folha de papel laminado. Evita que Lucy se agite e fique enfiando as unhas no meu ombro quando ouve o abridor de lata. Gatos são espertos, vocês sabem. Muito mais espertos que cachorros. São diferentes de outras maneiras também. É possível que a maior divisão do mundo não se dê entre homens e mulheres, e sim entre os que gostam de gato e os que gostam de cachorro. Algum de vocês, empacotadores de carne de porco, já pensou nisso?
“Lulu ficava furiosa com o fato de haver uma lata de comida de gato na geladeira, mesmo coberta com papel laminado. Dizia que isso dava gosto de atum velho a tudo, mas eu não cedia. Na maioria das coisas eu aceitava o jeito dela, mas o negócio de comida de gato foi um dos poucos em que de fato lutei pelos meus direitos. De qualquer modo, aquilo não tinha nada a ver com comida de gato e sim com a gata. Lulu simplesmente não gostava de Lucy, só isso. A gata era dela, mas Lulu não gostava de Lucy.
“Seja como for, fui à geladeira e vi o bilhete ali, preso com um ímã em forma de legume. Era de Lulubelle. Se bem me lembro, dizia o seguinte:
“‘Querido L.T. — estou deixando você, meu bem. A não ser que volte cedo, quando você ler este bilhete já terei ido embora há muito tempo. Acho que não vai chegar cedo, você nunca chegou em todo o tempo que estivemos casados, mas pelo menos sei que vai ler isto praticamente assim que entrar, porque a primeira coisa que sempre faz quando chega em casa não é procurar por mim e dizer ‘Olá, meu bem, cheguei’ e me dar um beijo, e sim ir à geladeira e pegar o que sobrou daquela lata nojenta de comida de gato e dar de comer à Pirada. Pelo menos assim eu sei que você não vai ficar chocado quando subir e vir que o meu quadro da Última Ceia de Elvis sumiu e que minha metade do closet está praticamente vazia, e não vai pensar que fomos roubados por um ladrão que gosta de roupas de mulher (diferentemente de alguns que só se importam com o que está por baixo delas).
“‘Fico irritada com você às vezes, meu bem, mas ainda acho que você é doce e amável, e sempre será meu docinho de coco e meu bolinho de açúcar, não importa aonde nossos caminhos possam levar. É que cheguei à conclusão de que não fui talhada para ser a mulher de um empacotador de presuntada. Não digo isso de um modo presunçoso. Cheguei mesmo a ligar para o Fale que eu Escuto na semana passada quando lutava com essa decisão, acordada noite após noite (e ouvindo você roncar, cara, não quero magoá-lo, mas como você ronca!), e me deram a seguinte mensagem: ‘Uma colher quebrada pode virar um garfo.’ No início, eu não entendi, mas não desisti dela. Não sou esperta como alguns (ou como alguns pensam que são), mas eu elaboro as coisas. O melhor moinho mói lenta mas tremendamente bem, mamãe costumava dizer, e eu triturei a frase que me disseram como um moedor de pimenta num restaurante chinês, pensando até tarde da noite enquanto você roncava e sem dúvida sonhava com quantos focinhos de porco poderia enfiar numa lata de presuntada. E me ocorreu que a frase de como uma colher quebrada pode virar um garfo é uma bela coisa a se considerar. Porque um garfo tem dentes. E esses dentes podem ter que se separar, como você e eu agora, mas, mesmo assim, eles têm o mesmo cabo. Como nós. Somos seres humanos, L.T., e podemos amar e respeitar um ao outro. Apesar de todas as brigas que tivemos por causa do Frank e da Pirada, na maior parte do tempo conseguimos nos dar bem. Mas chegou a hora de buscar minha sorte em outros caminhos que não são seus, e cutucar o grande assado da vida com um trinchante diferente. Além do mais, sinto falta da minha mãe.’”
(Não posso dizer com certeza se tudo isso estava mesmo no bilhete que L.T. achou na geladeira; não parece muito provável, tenho que admitir, mas nesse ponto já havia muitos homens morrendo de rir pelos corredores — ou pelo menos na plataforma de descarga — e de fato parecia Lulubelie, isso eu posso testemunhar.)
“‘Por favor, não tente me seguir, L.T., e embora eu vá estar na casa de mamãe, e sei que você tem o número de lá, eu agradeceria se você não ligasse ou esperasse eu ligar para você. Com o tempo ligarei, mas por enquanto tenho muito o que pensar, e apesar de ter conseguido me sair bem disso, não estou ainda ‘fora do nevoeiro’. Suponho que mais tarde eu vá pedir para me divorciar de você, e acho que é justo lhe dizer isso. Nunca fui alguém de sustentar uma falsa esperança, e acho melhor ‘contar a verdade e exorcizar o demônio’. Por favor, lembre-se que faço isso com amor, e não com ódio e ressentimento. E, por favor, guarde o que me disseram e que agora digo a você: uma colher quebrada pode ser um garfo disfarçado. Com todo o amor, Lulubelie Simms.’”
L.T. fazia uma pausa nesse momento, deixando os outros digerirem o fato de que Lulubelie voltara a assinar com o nome de solteira, e rolava os olhos daquele modo que só ele conseguia fazer. Então lhes contava o P.S. que a mulher acrescentara no bilhete.
“‘Levei Frank comigo e deixei Pirada para você. Achei que provavelmente você ia querer isso. Amor, Lulu.’”
Se a família L.T. DeWitt era um garfo, Pirada e Frank eram os outros dois dentes dele. Se não era (e falando por mim mesmo, sempre achei que o casamento era mais parecido com uma faca — do tipo perigoso, com duas bordas aguçadas), Pirada e Frank podiam resumir tudo o que dera errado na união de L.T. e Lulubelie. Porque, vejam só — embora Lulubelie tivesse comprado Frank para L.T. (primeiro aniversário de casamento) e L.T. comprado Lucy, logo transformada em Pirada, para Lulubelie (segundo aniversário de casamento), cada um terminou com o animal de estimação do outro quando Lulu largou o casamento.
— Ela me comprou aquele cachorro porque eu gostava do que aparece em Frasier*— diria L.T. — É um terrier, mas não lembro agora como chamam aquela espécie. Jack alguma coisa. Jack Sprat? Jack Robinson? Jack o quê, mesmo? Sabem quando uma coisa está na ponta da língua?
Alguém diria a ele que o cachorro em Frasier era um terrier Jack Russell e L.T. concordaria enfaticamente com a cabeça.
— Isso mesmo! Certo! Exatamente! Era isso que o Frank era, um temer Jack Russell. Mas querem saber a verdade nua e crua? Daqui a uma hora já esqueci isso de novo... vai ficar no meu cérebro, mas como algo atrás de uma pedra. Daqui a uma hora estarei dizendo a mim mesmo: “Como era mesmo que o cara disse que o Frank era? Um terrier Jack Handle? Jack Rabbit? É parecido com isso, sei que é parecido.” E assim por diante. Por quê? Acho que é porque eu detestava aquele escrotinho. Aquele rato que latia. Aquela máquina de cagar revestida de pêlo. Detestei o bicho desde a primeira vez que botei os olhos nele. Pronto. Eu o pus para fora e estou contente. E sabem do que mais? Frank sentia o mesmo por mim. Foi ódio à primeira vista.
“Sabe como alguns homens treinam o cachorro para trazer os chinelos para eles? Além de não me trazer os chinelos, Frank vomitava neles. A primeira vez em que fez isso, meti o pé direito bem dentro do chinelo. Foi como enfiar o pé em tapioca quente com alguns caroços extras. Não o vi fazer isso, mas minha teoria é que ele esperou fora do quarto até ver que eu estava chegando... espreitando do lado de fora da porta do quarto, porra... depois entrou, descarregou no meu chinelo e então se escondeu debaixo da cama para assistir ao espetáculo. Cachorro desgraçado. Melhor amigo do homem uma ova. Depois disso, eu quis levar ele para o canil, tirar a coleira e tudo, mas Lulu deu um verdadeiro ataque. Quem ouvisse podia pensar que ela havia me encontrado na cozinha dando uma lavagem intestinal no cachorro.
“‘Se você levar o Frank para o canil, pode me levar também’ disse ela, começando a chorar. ‘É isso que você pensa dele e é isso que você pensa de mim. Para você, somos só um aborrecimento de que você quer se livrar. Esta é a verdade nua e crua.’ E ia por aí afora, ah, meu Deus, ah, meu Deus, meus sais, e assim por diante.
“‘Ele vomitou no meu chinelo’, eu disse.
“‘Porque vomitou no seu chinelo, vamos cortar a cabeça dele?’, disse ela. ‘Ah, meu bem, se você pudesse se ouvir.’
“‘Ah, é? Enfie o pé num chinelo cheio de vômito de cachorro e veja se gosta.’ Fui ficando irritado com aquilo.
“Mas ficar zangado com ela nunca adiantou coisa alguma. Na maioria das vezes, se eu tinha o rei, Lulu tinha o ás. Se eu tinha o ás, Lulu tinha o trunfo. Além disso, a mulher vai numa escalada, porra. Se alguma coisa acontecia e eu ficava irritado, ela ficava furiosa. Se eu ficava furioso, ela enlouquecia. Se eu enlouquecia, ela acionava a porra de um alerta vermelho máximo e esvaziava o armazém de mísseis. Estou falando que arrasava a porra da Terra. A maioria das brigas não valia a pena. Só que quase todas as vezes que a gente começava a brigar, eu esquecia disso.
“E ela continuava: ‘Ó, meu Deus. Docinho de coco enfiou o pezinho num pouquinho de cuspe.’ Nesse ponto tentei interferir e disse a ela que não era verdade, cuspe é como baba, cuspe não tem que ter esses grandes pedaços, porra, mas ela não me deixava dizer uma palavra. Naquele ponto, ela já singrava o mar em velocidade de cruzeiro, com as velas enfunadas e deitando sabedoria pelo ladrão.
“‘Deixe eu lhe dizer uma coisa, meu bem’, continuava ela. ‘Um pouco de baba no chinelo é coisa sem importância. Vocês homens cansam minha beleza. Tente ser mulher de vez em quando, Ok? Tente ser a que sempre acaba com o traseiro na pocinha de porra, ou a que vai ao banheiro no meio da noite e o cara deixou a droga da tábua do vaso levantada e você molha sua coisa naquela água gelada. Um pequeno mergulho pelada no meio da noite. Provavelmente o cara também não apertou a descarga do vaso, os homens pensam que a Fada da Urina chega às duas da manhã e cuida disso, e lá está você com a racha no mijo, e nota de repente que seus pés também estão nele, você está chapinhando por ali num monte de poças de xixi, pois os caras pensam que têm uma pontaria de Cisco Kid com aquela coisa, mas a maioria não acerta merda nenhuma, bêbados ou sóbrios, e borrifam o chão inteiro em volta do vaso antes de começarem o evento principal, porra. Venho convivendo com isso a vida toda, meu bem... um pai, quatro irmãos, um ex-marido e mais alguns companheiros de apartamento que não são da sua conta nesta altura do campeonato... e você está pronto para mandar o pobre Frank para a câmara de gás porque aconteceu de ele uma vez deixar um refluxo de baba no seu chinelo.’
“‘Meu chinelo forrado de pele’, digo, mas é apenas um tirozinho na água. Se existe algo que aprendi vivendo com Lulu, e talvez seja para meu crédito, é que sempre soube quando estava derrotado. Quando eu perdia, era conclusivo, porra. Uma coisa que eu não ia dizer de modo nenhum, ainda que tivesse certeza, era que o cachorro vomitara no meu chinelo de propósito, do mesmo modo que mijava na minha cueca de propósito se eu esquecesse de pô-la na cesta antes de sair para o trabalho. Ela podia largar as calcinhas e os sutiãs desde o inferno até Harvard, e fazia isso, mas se eu deixasse um único par de meias no canto, quando chegava em casa descobria que o merdinha do terrier tinha dado um banho de limonada nelas. Mas eu podia lá contar isso? Lulu teria marcado imediatamente um psiquiatra para mim. Faria isso mesmo sabendo que era verdade. Caso contrário, teria que levar o que eu estava dizendo a sério, e não queria fazer isso. Ela adorava Frank, sabe, e Frank adorava ela. Eram como Romeu e Julieta ou Rocky e Adrian.*
“Frank vinha até a poltrona dela enquanto assistíamos à TV, deitava no chão ao seu lado e punha o focinho sobre o seu sapato. Ficava assim a noite inteira, olhando para Lulu amorosamente, cheio de alma, e com o traseiro apontado na minha direção para que, se ele expelisse gases, eu recebesse o total benefício da coisa. Ele adorava Lulu e ela o adorava. Por quê? Só Deus sabe. O amor é um mistério para todos, exceto para os poetas, acho eu, e ninguém com a cabeça no lugar pode entender coisa alguma do que eles escrevem. Acho que a maioria deles não consegue se entender nas raras ocasiões em que acordam pra cuspir.
“Mas Lulubelle nunca me deu aquele cachorro para que fosse dela, vamos deixar isso bem claro. Sei que alguns fazem essas coisas... o sujeito dá à mulher uma viagem a Miami porque quer ir para lá, ou a mulher dá ao marido uma esteira para andar porque acha que ele devia fazer algo para diminuir a pança... mas não foi um negócio desse tipo. Estávamos loucamente apaixonados um pelo outro no início; sei que eu estava apaixonado por ela, e aposto minha vida que ela estava caída por mim. Não, ela comprou aquele bicho porque eu sempre ria muito do cachorro no Frasier. Ela queria me ver feliz, só isso. Não sabia que Frank ia ficar totalmente de quatro por ela, ou ela por ele, assim como não sabia que o cão ia desgostar tanto de mim que vomitar no meu chinelo ou mastigar a barra da cortina do meu lado da cama seria o ponto alto do seu dia.”
L.T. olhava sem sorrir para os homens sorridentes em torno, mas rolava os olhos para o céu com aquela expressão intencionalmente sofrida, fazendo os homens rirem de novo em antecipação. Geralmente eu ria também, apesar do que sabia sobre o Homem do Machado.
— Nunca fui odiado antes por homem ou animal — dizia ele — e aquilo me inquietava; aquilo me inquietava o tempo todo. Tentei ficar amigo de Frank... primeiro por minha causa, depois pelo fato de Lulu ter me dado o cachorro... mas não funcionou. Pelo que sei, ele pode ter tentado fazer a mesma coisa... como se vai saber, tratando-se de um cachorro? Se fez isso, não funcionou para ele também. Então li na Cães e Cia, acho eu, que um animal de estimação é simplesmente o pior presente que se pode dar a alguém, e concordo com isso. Quer dizer, mesmo se você gosta do animal e ele de você, pense no que esse presente quer dizer. “Olhe, querida, estou lhe dando um presente maravilhoso, uma máquina que come numa ponta e defeca na outra, e vai funcionar durante 15 anos, é pegar ou largar, porra. Feliz Natal.” Mas em geral isso você só pensa depois, entende?
“Acho que nos esforçamos ao máximo, eu e Frank. Afinal de contas, embora a gente se odiasse muito, nós dois amávamos Lulubelle. Acho que é por isso que, apesar de às vezes rosnar para mim se eu me sentava perto dela no sofá durante Murphy Broum ou qualquer outro programa, de fato ele nunca me mordeu. Mesmo assim, costumava me deixar maluco. Só pela audácia de aquela pequena bola de pêlos e olhos rosnar para mim.
“‘Olha só, ele está rosnando para mim’, dizia eu.
“Ela alisava a cabeça dele como jamais alisara a minha, a não ser que tivesse tomado umas e outras, e dizia que aquilo era apenas uma versão canina do ronronar do gato. Que ele estava feliz em estar conosco, em passar uma noite tranqüila em casa. Mas eu lhes digo uma coisa: nunca tentei afagá-lo quando ela não estava por perto. Dei comida a ele algumas vezes e nunca lhe taquei um chute (mas estaria mentindo se dissesse que não tive vontade de fazê-lo em certos momentos), mas nunca tentei afagar a cabeça dele. Acho que ele teria avançado em mim e então a gente teria passado a se dar bem. Quase como dois caras vivendo com a mesma garota bonita. Ménage à trois é como chamam isso no “Fórum” da Penthouse. Nós dois amávamos Lulu e ela amava nós dois, mas, com o tempo, comecei a perceber que os pratos da balança se desequilibravam e ela havia começado a amar Frank um pouco mais do que a mim. Talvez porque ele nunca respondesse e nunca vomitasse nos chinelos dela, e com Frank a droga da tábua do vaso nunca é problema porque ele vai lá fora. Isto é, a menos que eu esqueça um short no canto ou debaixo da cama.”
Neste ponto, L.T. ou acabava o café gelado na garrafa térmica, ou estalava os dedos, ou fazia as duas coisas. Era o seu modo de dizer que o primeiro ato terminara e que o segundo ato estava prestes a começar.
— Então, num determinado sábado, Lulu e eu fomos ao shopping. Ficamos só andando por ali, como as pessoas fazem, e passamos por uma loja de animais de estimação perto da J.C. Penney. Havia um bando de gente na frente da vitrine. “Ah, vamos ver”, disse Lulu, então fomos dar uma espiada.
“O cenário da vitrine era uma árvore artificial com galhos nus e grama de mentira, e lá estavam os gatinhos siameses, meia dúzia deles perseguindo-se entre si, subindo na árvore, batendo nas orelhas uns dos outros.
“‘Ah, eles não são as coisas mais lindinhas que existem?’, exclamou Lulu. ‘Ah que coisinhas mais lindas, Deus do céu! Olhe, meu bem, olhe!’
“‘Estou olhando’, disse eu, pensando comigo mesmo que tinha acabado de encontrar o que queria dar para Lulu no nosso aniversário. E isso foi um alívio. Eu queria lhe dar algo muito especial, algo que realmente a abalasse, porque as coisas não vinham tão bem entre nós no último ano. Lembrei de Frank, mas não estava muito preocupado com ele; gatos e cachorros sempre brigam nos desenhos animados, mas na vida real geralmente se dão bem, de acordo com a minha experiência. Geralmente se dão melhor do que as pessoas. Especialmente quando está frio lá fora.
“Para encurtar um pouco uma história longa, comprei um deles e dei a ela de aniversário. Comprei uma coleira de veludo para o filhote e coloquei um cartão nela. ‘ALÔ, Sou LUCY!’, dizia o cartão. ‘Com amor de L.T.! Feliz segundo aniversário!’
“Vocês provavelmente sabem o que vou contar agora, não é? Certo. Foi exatamente como o diabo do terrier Frank de novo, só que ao contrário. No início, eu estava feliz como pinto no lixo com Frank, e Lulubelle estava igualmente feliz com Lucy. Levantava ela no alto, falando com ela como se fosse uma criança, ‘Ah, minha pequerruchinha, minha gracinha, quem é a coisa mais linda da mamãe’, e coisas assim... até que Lucy deu um grande miado e uma patada no nariz de Lulubelle. Com as unhas de fora. A seguir, fugiu e se escondeu embaixo da mesa da cozinha. Lulu riu como se fosse a coisa mais engraçada que já lhe acontecera, o tipo do negócio que uma gatinha podia fazer, mas vi que ela estava ofendida.
“Então entrou Frank, que estava dormindo em nosso quarto, embaixo da cama do lado de Lulu, mas como Lulu dera um pequeno guincho com a patada da gata, ele saiu de lá para ver que confusão era aquela. Avistou Lucy imediatamente debaixo da mesa e foi até ela, farejando o linóleo onde ela havia estado.
“‘Faz eles pararem, meu bem, faz eles pararem, eles vão se engalfinhar’, disse Lulubelle. ‘Frank vai matar a gata.’
“‘Espere um minuto’, disse eu. ‘Vamos ver o que acontece.’
“Lucy arqueou o dorso como fazem os gatos mas não recuou, esperando que Frank se aproximasse. Lulu avançou para separá-los apesar do que eu tinha dito (ouvir não era exatamente o forte de Lulu), mas peguei-a pelo pulso, segurando-a. É melhor deixar que eles resolvam entre eles, quando é possível. É sempre melhor. E mais rápido.
“Bem, Frank foi para a beira da mesa, meteu o nariz embaixo dela e começou a emitir aquele som baixo do fundo da garganta. ‘Deixe eu ir lá, L.T., tenho que pegá-la’, disse Lulubelle. ‘Frank está rosnando para ela.’
“‘Não está não’, disse eu. ‘Está ronronando. Sei que é isso porque é igual a todas as vezes em que ele ronronou para mim.’
“Ela me lançou um olhar de ferver água fria, mas não disse nada. As únicas vezes nos três anos em que fomos casados que consegui ter a última palavra foi sempre em relação a Frank e Pirada. É estranho, mas é verdade. Qualquer outro assunto, Lulu me torrava a paciência de tanto falar. Mas quando se tratava dos bichos, parecia que ela nunca conseguia retaliar. Isso a deixava maluca.
“Frank enfiou um pouco mais a cabeça debaixo da mesa e Lucy lhe deu uma patada no focinho exatamente como dera em Lulubelle... só que, quando fez isso com Frank, ela não mostrou as garras. Achei que Frank partiria para cima dela, mas que nada. Deu só uma bufada e foi embora. Não com medo, foi mais como se pensasse ‘Ah, tudo bem, então é isso’. Voltou à sala e deitou-se na frente da tevê.
“E esse foi todo o confronto que houve entre eles. Dividiam o território de modo parecido como Lulu e eu o dividíamos no último ano que passamos juntos, quando as coisas estavam ficando ruins; o quarto era de Frank e Lulu, a cozinha minha e de Lucy (só que, no Natal, Lulubelle já a chamava de Pirada) e a sala era território neutro. Nós quatro passamos muitas noites lá no último ano, a Pirada no meu colo, Frank com o focinho no sapato de Lulu, nós humanos no sofá. Lulubelle lia um livro e eu via a Roletrando ou Flash.
“A gata não quis nada com ela desde o primeiro dia. De vez em quando, a gente podia imaginar que Frank pelo menos tentava se dar bem comigo. Sua natureza sempre vencia essa tentativa no final, e ele mastigava um de meus tênis ou dava outra mijada numa cueca, mas às vezes parecia estar se esforçando. Lambia minha mão e talvez me desse um sorriso. Mas geralmente era quando eu tinha alguma coisa na mão de que ele quisesse um naco.
“Mas os gatos são diferentes. Um gato não puxa o saco de ninguém mesmo se é de seu interesse fazer isso. Um gato não consegue ser hipócrita. Se tivéssemos mais pregadores parecidos com gatos, os Estados Unidos seriam um país religioso novamente. Se um gato gosta de você, você sabe. Se não gosta, você também sabe. Pirada jamais gostou um tiquinho de Lulu, e deixou isso bem claro desde o início. Quando eu lhe dava comida, Lucy se esfregava nas minhas pernas ronronando enquanto eu pegava a colher e enchia a tigela dela. Quando Lulu a alimentava, Lucy sentava no meio da cozinha, na frente da geladeira, observando Lulu. E só ia até a tigela quando Lulu saía da cozinha. Isso deixava Lulu doida. ‘Essa gata pensa que é a Rainha de Sabá’, dizia. Nessa época, já não usava mais a linguagem que se usa com crianças para falar com Lucy. Desistira de pegar Lucy, também. Se ela fizesse isso, geralmente saía com o pulso arranhado.
“Bem, tentei fingir que gostava de Frank e Lulu tentou fingir que gostava de Lucy, mas Lulu desistiu de fingir muito mais cedo do que eu. Talvez nenhuma das duas, a gata e a mulher, conseguisse ser hipócrita. Acho que Lucy não foi o único motivo que fez Lulu partir... bem, sei que não foi... mas tenho certeza de que ajudou Lulubelle a tomar a decisão final. Animais de estimação podem viver muito tempo, vocês sabem. Então, o presente que comprei para Lulu no nosso segundo aniversário foi realmente a gota que fez o copo derramar. Diga isso à Cães e Cia.
“A linguagem da gata talvez fosse o mais difícil para Lulu, que não conseguia suportá-la. Certa noite, Lulubelle me disse: ‘Se essa gata não parar de dar esses uivos, L.T., acho que vou bater nela com uma enciclopédia.’
“‘Isso não é uivo’, disse eu. ‘É conversa.’
“‘Bem, então gostaria que ela parasse de conversar’, respondeu Lulu.
“Lucy então pulou no meu colo e ficou em silêncio. Ela sempre fazia isso, a não ser por um pequeno e suave ronronar. Um ronronado mesmo. Cocei-a entre as orelhas, o que ela gosta, e por acaso ergui os olhos. Lulu voltou a fitar seu livro, mas, antes de fazê-lo, o que eu vi era realmente ódio. Não por mim. Por Pirada. Jogar uma enciclopédia nela? Lulu parecia querer pôr a gata entre duas enciclopédias e espremer até a morte.
“Às vezes, Lulu entrava na cozinha, pegava a gata da mesa e a expulsava de lá com violência. Certa vez, perguntei se já me vira fazer isso com Frank... ele subia na cama, sempre do lado dela, e deixava aqueles chumaços nojentos de pêlo branco. Quando eu disse isso, Lulu deu uma espécie de sorriso. Bem, pelo menos mostrou os dentes. ‘Se você algum dia tentar fazer isso, vai ficar com dois ou três dedos a menos, provavelmente’, disse ela.
“Às vezes, Lucy era de fato uma Pirada. Gatos são de veneta e às vezes ficam maníacos; qualquer pessoa que já teve um sabe disso. Os olhos deles aumentam e ficam brilhantes e ferozes, suas unhas aparecem e eles saem correndo pela casa; às vezes se levantam nas patas traseiras e empinam, boxeando o ar como se lutassem com alguma coisa que os humanos não conseguem ver. Certa noite, quando tinha mais ou menos um ano, Lucy entrou num estado desses... umas três semanas antes que eu chegasse em casa e descobrisse que Lulubelle tinha ido embora.
“Seja como for, Lucy veio correndo da cozinha, usou o assoalho de madeira como pista derrapante, pulou por cima de Frank e escalou rapidamente as cortinas da sala com as unhas, pata sobre pata, deixando uns bons buracos no tecido, com farrapos pendurados. Depois empoleirou-se no alto do trilho, olhando fixamente a sala com seus olhos azuis arregalados e alucinados, estalando a ponta da cauda de um lado para o outro.
“Frank apenas pulou um pouco e voltou a pousar o focinho no sapato de Lulubelle, que estava mergulhada no livro e levou um baita susto com a gata. Quando a olhou, pude novamente ver um ódio absoluto em sua expressão.
“‘Muito bem, agora chega’, disse ela. ‘Acabou a farra. Vamos encontrar uma boa casa para essa vaquinha de olhos azuis, e se a gente não conseguir alguém que queira uma siamesa de raça pura, vamos levar essa gata para o abrigo dos animais. Já agüentei o bastante.’
“‘Como assim?’, perguntei.
“‘Você está cego? Olhe o que ela fez nas minhas cortinas! Estão cheias de buracos!’
“‘Se quer ver cortinas com buracos’, disse eu, ‘por que não sobe e dá uma olhada na cortina do meu lado da cama? A parte de baixo dela está toda esfarrapada. Porque Frank mastiga as pontas.’
“‘Isso é diferente’, disse ela, olhando-me feroz. ‘É diferente e você sabe disso.’
“Bem, eu não ia deixar aquilo passar. De modo nenhum.
“‘Você só acha isso diferente porque gosta do cachorro que me deu e não gosta da gata que eu lhe dei’, respondi. ‘Mas vou lhe dizer uma coisa, Sra. DeWitt: se levar a gata para o abrigo dos animais por rasgar as cortinas da sala na terça, na quarta eu lhe garanto que levo o cachorro para o abrigo dos animais por mastigar as cortinas do quarto. Entendeu?’
“Ela me olhou e começou a chorar. Jogou o livro em cima de mim e me chamou de canalha, um canalha malvado. Tentei segurá-la, fazer com que ficasse parada o suficiente para que eu tentasse fazer as pazes... se é que havia um jeito de fazer as pazes sem recuar, o que eu não pretendia fazer naquele momento... mas ela soltou o braço e saiu correndo da sala, com Frank no seu encalço. Eles subiram as escadas e a porta do quarto bateu.
“Dei a ela uma meia hora para esfriar a cabeça e subi. A porta do quarto ainda estava fechada e, quando a abri, vi que empurrava Frank. Eu poderia afastá-lo, mas seria um trabalho lento, com ele estendido no chão e rosnando alto para mim. E quando digo rosnando, meus amigos, é rosnando mesmo, e não a porra de um ronronado. Se eu entrasse lá, acho que ele teria tentado solenemente me castrar na hora. Dormi no sofá naquela noite, pela primeira vez.
“Mais ou menos um mês depois, Lulubelle foi embora.”
Se L.T. tivesse ajustado bem o horário de sua história (na maioria das vezes ele fazia isso, a prática é amiga da perfeição), a sineta avisando da volta ao trabalho na W.S. Hepperton Processed Meats Plant of Ames, Iowa, teria tocado naquele ponto, poupando-o de qualquer pergunta dos novatos (os outros, mais escolados, já sabiam que era melhor não perguntar), se L.T. e Lulubelle tinham se reconciliado, ou se ele sabia onde ela estava hoje, ou — a pergunta de um milhão de dólares — se ela e Frank ainda estavam juntos. Nada como a sineta da volta-ao-trabalho para evitar as perguntas mais constrangedoras da vida.
— Bem — dizia L.T., guardando sua garrafa térmica, levantando e se espreguiçando. — Tudo isso me levou a criar o que eu chamo de A Teoria de L.T. DeWitt Sobre Animais de Estimação.
Os homens o olhavam à espera, exatamente como eu na primeira vez em que escutei a grande frase, mas eles sempre acabavam se sentindo abandonados, da mesma forma que eu; uma história boa como aquela merecia um final melhor, mas L.T. nunca mudava.
— Se seu cachorro e seu gato estão se dando melhor do que você e sua mulher — dizia — é melhor considerar a possibilidade de chegar em casa uma noite e encontrar um bilhete de despedida na porta da geladeira.
Ele contava muito esta história, como eu já disse, e, quando veio à minha casa certa noite para jantar, ele a contou à minha mulher e à minha cunhada. Minha mulher convidara Holly, que se divorciara havia quase dois anos, para que o número de rapazes e moças ficasse equilibrado. Tenho certeza de que foi só isso, porque Roslyn jamais gostara de L.T. DeWitt. A maioria das pessoas gosta, a maioria das pessoas o aceita como as mãos recebem água morna, mas Roslyn nunca foi como a maioria das pessoas. Ela não gostava da história do bilhete na geladeira nem da história dos animais de estimação — eu via que ela não gostava, embora risse nos momentos certos. Holly... porra, não sei. Nunca fui capaz de dizer o que aquela garota pensava. Na maior parte do tempo, ficava ali com as mãos no colo, sorrindo como Mona Lisa. Mas daquela vez foi minha culpa e admito isso. L.T. não queria dizer, mas eu meio que o incitei, porque o jantar estava tão quieto, só o tilintar dos talheres e copos, e eu quase podia sentir minha mulher não gostando de L.T. Parecia sair dela em ondas. E se L.T. tinha podido sentir o terrier Jack Russell não gostando dele, provavelmente estava sentindo minha mulher fazendo o mesmo. De qualquer modo, foi isso que imaginei.
Então ele contou a história principalmente para me agradar, acho eu, e rolou os olhos para os lugares certos como se dissesse “Puxa, ela me enganou direitinho, não é?”, e minha mulher dava uma risadinha aqui e ali — os risinhos pareciam tão falsos para mim como o dinheiro do jogo Banco Imobiliário — e Holly dava seu sorrisinho de Mona Lisa com as pálpebras abaixadas. Fora isso, o jantar correu muito bem e, quando terminou, L.T. disse a Roslyn que ele a agradecia por “uma refeição das Arábias” (seja lá o que isso for) e ela lhe disse que voltasse quando quisesse, ela e eu gostávamos de ver seu rosto por ali. Isso era uma mentira da parte dela, mas duvido que já tenha havido algum jantar na história do mundo em que não se dissessem algumas mentiras. Portanto, tudo correu bem, pelo menos até eu o levar de carro para casa. L.T. começou a falar dizendo que dentro de uma semana mais ou menos faria um ano que Lulubelle fora embora, o quarto aniversário deles, que tem presente de flores se você é da velha-guarda e aparelhos elétricos se você é moderninho. Então ele disse que a mãe de Lulubelle — em cuja casa a filha jamais chegou — ia colocar uma lápide com o nome de Lulubelle no cemitério local. “Sra. Simms diz que temos que encarar que Lulu morreu”, disse L.T. e irrompeu em pranto. Fiquei tão chocado que quase saí do raio da estrada.
Ele chorou tanto que, quando meu choque diminuiu, comecei a ficar com medo de que toda aquela dor trancafiada lhe causasse um derrame ou o rompimento de um vaso sangüíneo fatal, uma coisa assim. Ele balançava para a frente e para trás no banco e batia com as mãos abertas no painel do carro. Era como se houvesse um ciclone desencadeado dentro dele. Finalmente parei no acostamento da estrada e comecei a dar uns tapinhas reconfortantes no ombro dele, podia sentir seu calor através da camisa, tão quente que parecia cozinhar.
— Vamos, L.T., chega.
— Sinto falta dela — falou, com uma voz tão rouca de lágrimas que mal pude entender. — Tanto, tanto, droga. Vou para casa e não há ninguém lá, só a gata, chorando sem parar, e em pouco tempo eu também estou chorando, nós dois chorando enquanto eu encho o prato dela com a porcaria nojenta que ela come.
Virou o rosto congestionado de lágrimas para mim. Olhar para ele era mais do que eu podia suportar, mas mesmo assim suportei; senti que precisava fazer isso. Afinal de contas, quem tinha feito ele contar a história de Lucy, Frank e o bilhete na geladeira naquela noite? Não foi Mike Wallace ou Dan Rather, quanto a isso não havia dúvida. Portanto, fiquei olhando para ele, mas não ousei abraçá-lo, com medo de aquele tufão de alguma forma pulasse dele para mim, mas continuei lhe dando tapinhas tranqüilizadores no braço.
— Acho que ela está viva em algum lugar — disse ele. Sua voz parecia espessa e aquosa, mas havia nela um fraco e miserável desafio. Ele não estava me dizendo algo em que acreditava e sim em que queria acreditar, tenho certeza.
— Bem, pode acreditar nisso — falei. — Não há nenhuma lei em contrário, há? Se tivessem encontrado o corpo dela, seria diferente.
— Gosto de pensar que ela está em Nevada, cantando em algum pequeno hotel-cassino — disse ele. — Não em Vegas ou Reno, ela não teria sucesso numa cidade grande, mas em Winnemucca ou Ely eu sei que poderia conseguir. Um lugar desses. Ela simplesmente viu um aviso de PRECISA-SE DE CANTORA e desistiu de voltar para a casa da mãe. Que diabo, as duas se davam mal pra burro, pelo menos era o que Lu costumava dizer. E ela sabia cantar. Não acho que fosse ótima, mas era boa. A primeira vez que a vi, ela estava cantando na sala de estar do Marriot Hotel. Em Columbus, Ohio. Há outra possibilidade...
Ele fez uma pausa e então continuou em voz baixa.
— A prostituição é legal em Nevada, você sabe. Não em todos os condados, mas na maioria deles. Ela pode estar trabalhando num desses puteiros ou termas de lá. Muitas mulheres têm um quê de puta dentro delas. Lu tinha. Não estou dizendo que ela tenha me corneado, ou ficasse dando por aí, portanto não posso dizer como sei, mas sei. Ela... sim, ela pode estar num desses lugares.
Parou com os olhos distantes, talvez imaginando Lulubelle numa cama no quarto dos fundos de um puteiro em Nevada, Lulubelle usando apenas meias de náilon, ordenhando o pau duro de algum caubói desconhecido, enquanto do outro aposento vinha o som de Steve Searle e os Dukes cantando “Six Days on the Road” ou de uma tevê ligada. Lulubelle puteando mas viva, sem que o pequeno Subaru que a levou para o casamento, agora abandonado no acostamento da estrada, tivesse algum significado. Aos olhos de um animal, aparentemente tão atentos, ele geralmente não significaria nada.
— Posso acreditar nisso se eu quiser — disse ele, esfregando os olhos inchados com a lateral dos punhos.
— Claro que pode, L.T. — disse eu. O que os homens sorridentes que ouviam a história contada por L. T. enquanto almoçavam achariam desse homem trêmulo de faces pálidas, olhos vermelhos e pele quente?
— Que droga, eu acredito nisso — disse ele. Hesitou e depois repetiu: — Eu acredito mesmo.
Quando voltei, Roslyn estava deitada lendo, com as cobertas puxadas até o peito. Holly fora para casa enquanto eu saíra para levar L.T. Logo descobri a razão do mau humor que Roslyn demonstrava naquele momento. A mulher com o sorriso de Mona Lisa ficara bem encantada com meu amigo, talvez até fascinada por ele. E minha mulher definitivamente não aprovara.
— Como é que ele perdeu a carteira de motorista? Bebendo, não foi? — perguntou, respondendo ela própria antes que eu pudesse falar.
— Bebendo, sim. OUI. — Sentei no meu lado da cama e tirei os sapatos. — Mas isso foi mais ou menos há seis meses, e se ele continuar na linha por mais dois meses, vai recebê-la de volta. Acho que vai conseguir. Ele freqüenta os AA, sabe?
Minha mulher grunhiu, claramente pouco impressionada. Tirei a camisa, cheirei minhas axilas, pendurei a camisa novamente no closet. Eu a usara apenas por uma hora ou duas, só ao jantar.
— Sabe — disse minha mulher —, acho espantoso que a polícia não tenha vigiado L.T. mais de perto depois que a mulher desapareceu.
— Fizeram algumas perguntas a ele, mas só para conseguirem o máximo de informações. Nunca entrou em questão ele ter feito a coisa, Ros. Nunca suspeitaram dele.
— Ah, você tem tanta certeza.
— Na verdade, tenho sim. Sei algumas coisas. Lulubelle ligou para a mãe de um hotel do Colorado no dia em que foi embora, e depois ligou novamente para ela de Salt Lake City, no dia seguinte. E estava bem. Eram dois dias de semana, e L.T. estava na fábrica. Também estava na fábrica no dia em que encontraram o carro dela estacionado naquela estrada de ranchos perto de Caliente. Ele só pode ter matado a mulher se conseguiu se transportar magicamente de um lugar para outro com um piscar dos olhos. Mas ele não faria isso, amava Lulubelle.
Ela grunhiu. Esse odioso som de ceticismo que ela às vezes emite ainda me dá vontade, mesmo após 30 anos de casamento, de berrar que ela pare, ou dá ou desce, diga o que quer ou se cale. Dessa vez pensei em contar a ela como L.T. tinha chorado, que chorara como se um ciclone soprasse dentro dele, dilacerando tudo. Pensei em contar, mas não contei. As mulheres não confiam nas lágrimas dos homens. Elas podem dizer o contrário, mas no fundo não confiam mesmo.
— Talvez você mesma devesse ligar para a polícia — disse eu. — Ofereça a eles um pouco de sua ajuda especializada. Sublinhe as coisas que eles deixaram de fora, exatamente como Angela Lansbury em Assassinato por escrito.
Pus as pernas para dentro da cama. Ela apagou a luz. Ficamos deitados na escuridão e, quando ela falou de novo, seu tom era mais suave.
— Não gosto dele. Só isso. Não gosto e nunca gostei.
— É. Acho que isso está claro.
— E não gostei do jeito como ele olhou para Holly.
O que significava, como descobri posteriormente, que não tinha gostado do jeito de Holly olhar para ele. Isto é, quando não estava olhando para o próprio prato.
— Prefiro que você não o convide mais para jantar — disse ela.
Fiquei quieto. Era tarde e eu estava cansado. Fora um dia duro e uma noite mais dura ainda. A última coisa que eu queria era ter uma discussão com minha mulher quando eu estava cansado e ela preocupada. Esse é o tipo de discussão em que um dos dois vai acabar passando a noite no sofá. E o único modo de parar uma discussão dessas é ficar quieto. Num casamento, as palavras são como chuva. E a terra de um casamento está cheia de valas e arroios que podem se tornar rios furiosos num piscar de olhos. Os terapeutas acreditam na fala, mas a maioria deles é divorciada ou gay. O silêncio é o melhor amigo do casamento.
Silêncio.
Após algum tempo, minha melhor amiga virou para o lado dela, para longe de mim e para onde ela vai quando finalmente desiste do dia. Fiquei acordado um pouco mais, pensando num pequeno carro empoeirado que talvez tivesse sido branco, com a frente enfiada numa vala ao lado de uma estrada de ranchos no deserto de Nevada e não muito longe de Caliente. A porta do motorista ainda aberta, o espelho retrovisor arrancado e caído no chão, o banco da frente empapado de sangue e palmilhado pelos animais que tinham vindo farejar ou dar uma provadinha.
Naquela parte do mundo havia um homem — sempre pensam que seja um homem, quase sempre é — que esquartejara cinco mulheres, cinco em três anos, principalmente durante a época em que L.T. estava vivendo com Lulubelle. Quatro das mulheres estavam de passagem. De algum modo ele fazia com que parassem, depois as retirava do carro delas, estuprava-as, desmembrava-as com um machado e as deixava um pouco adiante para os urubus, os corvos e as doninhas. A quinta mulher era a idosa esposa de um rancheiro. A polícia chama esse assassino de o Homem do Machado. Enquanto escrevo isso, o Homem do Machado não foi capturado nem matou de novo. Se Cynthia Lulubelle Simms DeWitt foi a sexta vítima do Homem do Machado, foi a última também — pelo menos até agora. Contudo, há ainda algum questionamento a respeito de ela ter sido ou não sua sexta vítima. Se não na maioria das cabeças, a pergunta existe na parte da mente de L.T. que ainda se permite ter esperanças.
O sangue no banco não era humano, fato que a Perícia do Estado de Nevada levou apenas cinco horas para determinar. O trabalhador de rancho que encontrou o Subaru de Lulubelle viu uma nuvem de pássaros circulando a uns 800 metros de distância, e lá chegando não encontrou uma mulher esquartejada e sim um cachorro esquartejado. Pouco restou dele senão ossos e dentes; os predadores e carniceiros já tinham se banqueteado, e não tem muita carne em um terrier Jack Russel, para princípio de conversa. O Homem do Machado definitivamente pegou Frank; pode-se especular sobre o destino de Lulubelle, mas não dá para ter certeza.
Talvez ela esteja viva, pensei. Cantando “Tie a Yellow Ribbon” no The Jailhouse em Ely, ou “Take a Message to Michael” na The Rose of Santa Fe, em Hawthorne. Apoiada por um trio de vozes. Velhos tentando parecer mais jovens, de coletes vermelhos e gravatas de cordão preto. Ou talvez ela esteja distribuindo boquetes em caubóis da GM em Austin ou Endover — curvando-se para a frente até que seus seios se achatem contra as coxas debaixo de um calendário mostrando tulipas na Holanda; agarrando nádegas e mais nádegas flácidas e pensando sobre o que ver na tevê naquela noite, quando seu turno terminar. Talvez Lulubelle tivesse apenas parado no acostamento da estrada e ido a pé. Tem gente que faz isso. Eu sei, e provavelmente você também. Tem gente que simplesmente pensa “fodam-se” e vai embora a pé. Talvez ela tivesse deixado Frank para trás pensando que apareceria alguém para lhe dar um bom lar, só que quem apareceu foi o Homem do Machado e...
Mas não. Eu conheci Lulubelle e, palavra de honra, não consigo vê-la abandonando um cachorro para provavelmente torrar até a morte ou morrer de fome no ermo... Especialmente um cachorro que ela adorava, como Frank. Não, L.T. não tinha exagerado nisso; eu vi os dois juntos e sei.
Ela pode ainda estar viva em algum lugar. Tecnicamente falando, pelo menos, L.T. tem razão. Só porque não consigo imaginar um roteiro que partisse daquele carro com a porta aberta pendurada e o espelho retrovisor caído no chão e o cachorro morto e bicado pelos corvos duas elevações adiante, só porque não consigo imaginar um roteiro que levasse daquele lugar perto de Caliente a outro lugar onde Lulubelle canta ou costura ou faz boquetes em caminhoneiros, segura e anônima, não quer dizer que tal roteiro não exista. Como eu disse a L.T., não é o mesmo que tivessem encontrado o corpo dela; encontraram apenas o carro dela, e os restos do cachorro um pouco longe do carro. A própria Lulubelle poderia estar em qualquer parte. Acho que isso é possível.
Não consegui dormir e fiquei com sede. Levantei, entrei no banheiro e tirei as escovas de dentes do copo que mantemos junto à pia. Enchi-o d’água. Então sentei na tampa fechada do vaso, bebi a água e pensei no som que os gatos siameses fazem, aquele choro esquisito, como deve ser agradável se você os ama, como deve soar como a volta ao lar.
*Popular seriado norte-americano, transmitido no Brasil por um canal de tevê por assinatura. [N. do E.]
*Referência ao casal do filme Rocky — um Lutador. [N. do E.]
Stephen King
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