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SALA DE AUTÓPISIA 4 / Stephen King
SALA DE AUTÓPISIA 4 / Stephen King

 

 

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SALA DE AUTÓPISIA 4

 

ESTÁ TÃO ESCURO que durante algum tempo — quanto exatamente não sei — penso que ainda estou inconsciente. Então, lentamente, ocorre-me a idéia de que os inconscientes não têm a sensação de movimento no escuro, acompanhada por um tênue som rítmico que só pode ser o de uma roda rangendo. E posso sentir contato, do alto da cabeça aos calcanhares. Além disso, sinto o cheiro de algo que poderia ser borracha ou vinil. Isto não é inconsciência, e há algo também... também o quê? Excessivamente racional nessas sensações para que isto seja um sonho.

Então o que será?

Quem sou eu?

E o que está me acontecendo?

A roda rangente detém seu ritmo estúpido e eu paro de me mover. Há um som deestalo à minha volta, vindo da coisa que cheira a borracha.

Uma voz:

— Qual delas eles disseram?

Uma pausa.

Segunda voz:

— Quatro, eu acho. É, quatro.

Começamos a nos mover de novo, mas de modo mais lento. Posso ouvir o tênue roçar dos pés agora, provavelmente com sapatos de sola macia, talvez tênis. Os donos das vozes são os donos dos sapatos. Eles me param de novo. Há um choque seguido por um leve uush. Acho que é o som de uma porta pneumática sendo aberta.

O que está acontecendo?, berro, mas o berro só ocorre na minha mente. Meus lábios não se mexem. Posso senti-los — e a língua também, deitada no chão da boca como uma toupeira aturdida —, mas não consigo movê-los.

A coisa em que começo a rodar de novo será uma cama que se move? Sim. Em outras palavras, uma maca sobre rodas. Já tive contato com elas há muito tempo, na desprezível aventurazinha asiática de Lyndon Johnson. Dou-me conta de que estou num hospital, de que algo ruim me aconteceu, como a explosão que quase me castrou há 20 anos, e que vou ser operado. Há um monte de respostas nessa idéia, na maioria sensatas, mas não sinto dor em lugar algum. Exceto pela questão menor de estar desarvorado de medo, sinto-me bem. E se esses homens são atendentes de hospital me empurrando para uma sala de cirurgia, por que não consigo enxergar? Por que não consigo falar?

Uma terceira voz:

— Aqui, rapazes.

Meu leito sobre rodas é empurrado numa outra direção, e a pergunta que me martela a cabeça é: Em que droga de confusão me meti?

Isso não depende de quem você é?, pergunto a mim mesmo, mas descubro que pelo menos de uma coisa eu sei. Sou Howard Cottrell, um corretor da Bolsa conhecido por alguns dos colegas como Howard, o Conquistador.

Segunda voz (vinda de um ponto acima de minha cabeça):

— Você está muito bonita hoje, doutora.

Quarta voz (fria, de mulher):

— É sempre bom ter o seu aval, Rusty. Pode se apressar um pouco? A babá está me esperando às sete. Marcou de jantar com os pais.

Às sete, às sete. Deve ser de tarde ainda, ou começo da noite, mas aqui está tudo preto, preto como seu chapéu, preto como o eu de uma marmota, preto como a meia-noite na Pérsia, e o que está acontecendo. Onde é que eu estive? O que andei fazendo? Por que não estou ocupando os telefones?

Porque é sábado, murmura uma voz lá longe. Você estava... estava...

Um som: UAQUE! Um som que eu adoro. Um som para o qual eu mais ou menos vivo. O som de... o quê? A ponta de um taco de golfe, claro. Batendo na bola pousada no pino de plástico. Fico em pé e a observo enquanto voa, mergulhando no azul...

Sou agarrado pelos ombros, panturrilhas, e levantado. Isso me assusta terrivelmente e tento gritar. Nenhum som sai de mim... — ou talvez saia um minúsculo guincho, muito menor do que o produzido pela roda lá de baixo. Provavelmente nem mesmo isso. Provavelmente é apenas minha imaginação.

Sou impelido através do ar num envelope de escuridão — Ei, não me deixem cair, tenho um problema de coluna!, tento dizer, e mais uma vez não há qualquer movimento nos lábios ou dentes; minha língua continua depositada no chão da boca, a toupeira talvez não esteja só aturdida e sim morta. Agora me ocorre uma idéia horrível que empurra o medo um ponto mais para perto do pânico: e se me abaixarem do lado errado, minha língua escorregar para trás e bloquear a traquéia? Não vou conseguir respirar! É a isso que se referem quando dizem que alguém “engoliu a língua”, não é?

Segunda voz (Rusty):

— Vai gostar dele, doutora, ele parece com Michael Bolton.

A médica:

— Quem é esse?

Terceira voz — que parece ser de um rapaz, pouco mais que um adolescente:

— É um cantor de bar branco que quer ser negro. Acho que não é ele.

Um riso acolhe essas palavras e a voz de mulher o acompanha (um pouco em dúvida). Enquanto sou posto no que parece uma mesa acolchoada, Rusty começa uma nova gracinha — aparentemente tem todo um repertório de tiradas espirituosas. Perco esse trecho de hilaridade num jorro de súbito horror. Não vou conseguir respirar se minha língua bloquear a traquéia, é o que acaba de me passar pela cabeça, mas e se eu não estiver respirando agora?

E se estiver morto? E se a morte for isto?

Combina. Combina com todo o resto, com um aconchego profilático horrível. A escuridão. O cheiro de borracha. Hoje em dia sou Howard, o Conquistador, corretor extraordinaire da Bolsa, terror do Derry Municipal Country Club, habitué do que é conhecido nos campos de golfe de todo o mundo como o buraco 19, mas em 1971 participei de uma Equipe de Assistência Médica no Delta do Mekong, um garoto assustado que às vezes acordava com os olhos marejados pelos sonhos com o cachorro da família, e imediatamente reconheço essa sensação, esse cheiro.

Deus do céu, estou num saco de guardar cadáver.

Primeira voz:

— Quer assinar isto, doutora? Lembre de escrever com força, são três cópias. Ruído de uma caneta arranhando o papel. Imagino o dono da primeira voz segurando uma prancheta para a médica.

Ah, meu Jesus, faça com que eu não esteja morto! Tento gritar e não sai nada.

Mas estou respirando... não estou? Isto é, não consigo sentir que estou respirando, mas os pulmões parecem ok, não latejam nem estão desesperados por ar como quando se nada muito no fundo. Então devo estar bem, não ê?

Bem, mas se você estivesse morto, eles não estariam aflitos por ar, estariam? Não — porque os pulmões dos mortos não precisam respirar. Os pulmões dos mortos simplesmente meio que... relaxam.

Rusty:

— O que vai fazer no sábado à noite, doutora?

Mas, se estou morto, como posso ter sensações? Sentir o cheiro deste saco? Como posso ouvir essas vozes, a médica dizendo que no próximo sábado vai dar banho no cachorro que também se chama Rusty, que coincidência, e ouvir todos eles rindo? Se estou morto, por que também não desapareci ou entrei por aquela luz branca de que sempre falam no programa da Oprah?*

Ouço o som áspero de algo rasgando e subitamente estou sob a luz branca; é ofuscante como o sol irrompendo por um tecido de nuvens num dia de inverno. Tento apertar os olhos para me proteger dela, mas não adianta. Minhas pálpebras são como persianas com a engrenagem quebrada.

Um rosto se curva sobre mim, bloqueando parte do fulgor, que vem não de algum ofuscante plano astral e sim de uma bateria de luzes fluorescentes lá em cima. O rosto é o de um homem jovem e convencionalmente bonito de uns 25 anos; parece um daqueles fortões dos seriados Baywatch ou Melrose Place da televisão. Embora perifericamente mais esperto. Exibe um monte de cabelo negro sob a touca cirúrgica verde descuidadamente colocada. Usa o avental cirúrgico também. Seus olhos são de um azul cobalto, o tipo dos olhos pelos quais as moças costumam dar a vida. Uma poeira de sardas lhe colore os malares.

— Nossa — diz ele. É a terceira voz. — Esse cara parece mesmo com Michael Bolton! Um pouco mais coroa, talvez... — Ele se debruça mais. Um dos cordões chatos que amarram seu avental cirúrgico verde no pescoço faz cócegas na minha testa. — ...mas, sim. Estou vendo. Ei, Michael, cante alguma coisa.

Ajude-me! é o que estou tentando cantar, mas só consigo olhar para seus olhos azul-escuros com minha fixidez congelada de morto; só consigo pensar se estou morto, se é assim que acontece, se todos passam por isso depois que a máquina do corpo pára de bombear. Se ainda estou vivo, como é possível que ele não tenha visto minhas pupilas se contraírem quando a luz as atinge? Mas eu sei a resposta disso... ou penso que sei. Elas não se contraíram. Por isso é tão penoso o fulgor ofuscante das lâmpadas fluorescentes.

O laço que amarra o avental cirúrgico faz cócegas em minha testa como uma pluma.

Ajude-me!, grito para o bonitão de Baywatch, provavelmente um residente ou talvez apenas um fedelho da faculdade de Medicina. Ajude-me, por favor!

Meus lábios nem sequer tremem.

O rosto recua, o laço pára de me fazer cócegas, e toda aquela luz branca atravessa meus olhos indefesos que não podem se desviar, e mergulha no meu cérebro. É uma sensação infernal, uma espécie de estupro. Vou ficar cego se tiver que fixar essa luz por muito tempo, penso, e a cegueira será um alívio.

UAQUE! O som do taco de cabeça de madeira atingindo a bola, mas um pouco desenxabido desta vez, e a sensação nas mãos é ruim. A bola está lá em cima... mas mudando de direção.... desviando-se... desviando-se para....

Merda.

Estou no mato além do campo de golfe.

Agora outro rosto curva-se para dentro de meu campo de visão. A pessoa enverga um avental cirúrgico branco em vez de verde, e exibe um incrível e desleixado chumaço de cabelos cor de laranja. QI nas últimas é a minha primeira impressão. Só pode ser Rusty. Ele mostra um grande sorriso tolo que considero um sorriso de ginásio, o típico sorriso de um garoto com uma tatuagem no bíceps fraco que diz nascido para puxar e soltar alças de sutiã com um estalo.

Michael! — exclama Rusty. — Nossa, você está com uma aparência óóótimd É uma honra! Cante para nós, garotão! Cante até estourar!

De algum ponto atrás de mim chega a fria voz da doutora, não mais preocupada sequer em fingir que se diverte com aquelas palhaçadas.

— Pare com isso, Rusty. — Então, numa direção ligeiramente diferente. — Qual é a história, Mike?

Mike, o parceiro de Rusty, é a primeira voz, e parece um tanto constrangido por trabalhar com um cara que quer ser comediante quando crescer.

— Foi encontrado no buraco 14 no Campo de Golfe Municipal de Derry. Na verdade, fora do campo, no mato depois dos gramados. Se ele não tivesse acabado de jogar uma partida de duplas, e se não tivessem visto uma de suas pernas para fora do mato, ele estaria agora sendo comido pelas formigas.

Ouço aquele som na mente de novo — UAQUE! —, só que dessa vez o som é seguido por outro, muito menos agradável: o roçar do mato baixo enquanto eu o varro com a ponta do taco. Tinha que ser o 14, onde se sabe que há sumagre venenoso. Sumagre e...

Rusty ainda está me espiando lá de cima, estúpido e ávido. Não é a morte que o interessa; é minha semelhança com Michael Bolton. Ah, sim, eu sei que ela existe, não tenho me eximido de usá-la com certas clientes. Caso contrário, envelhece logo. E nessas circunstancias... meu Deus.

— O médico que o atendeu? — pergunta a médica. — Foi Kazalian?

— Não — diz Mike, e apenas por um momento ele me olha. Pelo menos uns dez anos mais velho do que Rusty. Cabelo preto com toques grisalhos. Óculos. Como é possível que nenhuma dessas pessoas veja que não estou morto? — Na verdade, foi um médico que estava na partida de duplas que o encontrou. Sua assinatura está aqui na página um... está vendo?

Ruído de páginas sendo viradas.

— Puxa, é Jennings. Eu o conheço. Ele fez o exame médico em Noé depois que a arca ancorou no monte Ararat.

Rusty parece não ter entendido a piada, mas mesmo assim ri asperamente no meu rosto. Sinto o cheiro de cebola do seu hálito, uma certa sobra do almoço. Bem, se posso sentir cheiro de cebola, devo estar respirando. Devo, não é? Se pelo menos...

Antes que eu possa terminar o pensamento, Rusty debruça-se mais e sinto um jorro de esperança. Ele viu alguma coisa! Viu alguma coisa e vai me fazer uma respiração boca a boca. Deus o abençoe, Rusty! Deus abençoe você e seu hálito de cebola!

Mas o sorriso estúpido não muda, e em vez de colocar a boca na minha, sua mão desliza pelo meu maxilar. Então agarra um dos lados com o polegar e o outro lado com os dedos que sobram.

— Ele está vivo. — exclama Rusty. — Ele está vivo e vai cantar para O Fã-Clube Michael Bolton da Sala Quatro!

Seus dedos apertam mais — dói de um modo distante, como quando o efeito da Novocaína se dissipa — e começa a mover meu maxilar para cima e para baixo, fazendo os dentes se chocarem. “Se ela é má-ááá, ele não pode ver”, canta Rusty numa medonha voz atonal que provavelmente faria a cabeça de qualquer cantor afinado explodir. “Ela não pode fazer nada errr-aadd...” Minhas arcadas abrem e fecham ante o bruto comando de sua mão; a língua levanta e cai como um cachorro morto na superfície de uma agitada cama d’água.

— Pare com isso! — retruca a médica, parecendo realmente chocada. Talvez sentindo isso, Rusty não pára, continua alegremente. Seus dedos agora beliscam minhas faces, enquanto meus olhos imóveis fixam cegamente um ponto lá em cima.

— Vira as costas a seu melhor amigo se ela o dei...

Então ela se aproxima, uma mulher de avental cirúrgico verde com a touca cirúrgica amarrada ao pescoço e pendurada nas costas como o sombreiro de Cisco Kid, cabelo castanho curto penteado para trás, bonita mas severa — mais bonitona que bonita. Agarra Rusty com uma das mãos de unhas curtas e o empurra para longe de mim.

— Ei! — diz Rusty indignado. — Tire as mãos de mim!

— Então tire as mãos dele! — diz ela, e não há nenhuma dúvida sobre a raiva em sua voz. — Estou cansada de suas gracinhas de aluno do segundo ano, Rusty, e da próxima vez que começar com isso, vou dar queixa de você.

— Vamos todos nos acalmar — diz o bonitão de Baywatch, assistente da doutora. Parece alarmado, como se esperasse que Rusty e a chefe se engalfinhassem ali mesmo. — Vamos pôr uma pedra nisso.

— Por que ela está me sacaneando? — diz Rusty. Ainda tenta se mostrar indignado, mas agora está se lamuriando. Depois, num tom levemente diferente: — Por que você está me sacaneando assim? Está com TPM, é?

A médica, parecendo farta:

— Tire ele daqui.

Mike:

— Vamos, Rusty. Vamos assinar o boletim. Rusty:

— Tá. E respirar um pouco de ar fresco.

E eu, ouvindo tudo aquilo como se fosse de um rádio.

Os pés deles rangem na direção da porta. Rusty, agora todo amuado e ofendido, pergunta à médica por que não usa uma luz vermelha ou qualquer coisa assim para que as pessoas saibam. Sapatos macios rangem pelos ladrilhos. Repentinamente, esse som é substituído pelo som do meu taco afastando as moitas para procurar a desgraçada da bola, onde está ela, não afundou muito, tenho certeza, então onde está ela, Jesus, detesto o 14, parece que há sumagre venenoso aí, e com todo esse mato baixo é bem provável que haja...

E então algo me picou, não é? Sim, tenho quase certeza. Na panturrilha esquerda, pouco acima da meia soquete. Uma agulhada quente e viva de dor, perfeitamente concentrada no início e depois se espalhando...

...então a escuridão. Até a maca de rodinhas, aninhado num saco de guardar cadáver fechado com um zíper e escutando Mike (“Qual delas eles disseram?”) e Rusty (“Quatro, eu acho. É, quatro.”).

Acho que foi uma cobra, mas talvez ache isso por estar pensando nelas enquanto procurava a bola. Poderia ter sido um inseto, só lembro do fio único de dor e, afinal de contas, que importância tem? O importante aqui é que estou vivo e eles não sabem. É inacreditável, mas não sabem. Claro que tive azar... Conheço o Dr. Jennings, lembro de falar com ele quando nos cruzamos no buraco 11. Um sujeito bastante simpático, mas ambíguo, uma relíquia. A relíquia decretara que eu estava morto. Então Rusty, com seus estúpidos olhos verdes e seu sorriso de sala de detenção, também decretara que eu estava morto. A médica, Sta. Cisco Kid, nem sequer me olhara ainda, não para valer. Quando o fizesse, talvez...

— Detesto aquele idiota — diz ela quando a porta é fechada. Agora somos só nós três, embora a Sta. Cisco Kid pense que somos Só nós dois, claro. — Por que pego sempre os idiotas, Peter?

— Não sei — diz o Sr. Melrose Place —, mas Rusty é um caso especial, mesmo nos anais dos idiotas famosos. Morte cerebral ambulante.

Ela ri, e algo provoca um estrépito. Este é seguido por um som que me assusta muito: instrumentos de aço batendo uns contra os outros. Os médicos estão à minha esquerda e, apesar de não poder vê-los, sei o que se preparam para fazer: a autópsia. Preparam-se para me cortar. Pretendem remover o coração de Howard Cottrell e ver se uma válvula queimou ou se um embolo pifou.

Minha perna!, grito no interior da cabeça. Olhem para minha perna esquerda! Ali é que está o problema, não no coração!

Talvez meus olhos tenham se adaptado um pouco, afinal de contas. Agora posso ver, com minha visão mais aguçada, uma armação de aço inoxidável. Parece uma peça gigante de equipamento de dentista, exceto que a coisa no final não é uma broca, é um serrote. De algum ponto lá no fundo, onde o cérebro armazena as trivialidades de que você só precisa se estiver jogando Show do Milhão na TV, até o nome me aparece. É um serrote Giglí. É usado para cortar o tampo de seu crânio. Isso depois de arrancarem seu rosto como urna máscara de Halloween de criança, cabelo e tudo, claro.

Então lhe extraem o cérebro.

Clink. Clink. Clunk. Uma pausa. A seguir, um CLANK! tão alto que eu daria um pulo, se pudesse pular.

— Quer fazer o corte pericárdico? — pergunta ela.

Pete, cauteloso:

— Você quer que eu faça?

Com um tom de voz agradável, o tom de voz de alguém concedendo um favor e uma responsabilidade, a Dra. Cisco responde:

— Acho que sim.

— Muito bem — diz ele. — Vai ajudar?

— Seu confiável co-piloto — diz ela rindo, e pontua o riso com um som de snique-snique. É o som de uma tesoura cortando o ar.

Agora o pânico se bate de um lado para o outro, adejando dentro de meu crânio como um bando de estorninhos trancados no sótão. O Vietnã ocorreu há muito tempo, mas vi meia dúzia de autópsias de campo lá — o que os médicos chamavam de “espetáculo ambulante de post mortem”— e sei o que Cisco e Pancho querem fazer. A tesoura tem lâminas compridas e afiadas, muito afiadas, e a parte para pôr os dedos é bem encorpada. Mesmo assim, é preciso força para usá-la. A lâmina inferior desliza para dentro das tripas como manteiga. A seguir, snip, penetra no feixe de nervos no plexo solar e pelo tecido de carne seca de músculos e tendão acima. Então mergulha no esterno. Quando as lâminas se unem em tal momento, elas o fazem com um mastigar forte, quando as partes do osso e a armação das costelas se separam como um par de barris amarrados juntos com cordão forte. Depois a tesoura continua em frente, tesoura que parece muito com as que os açougueiros de supermercado usam para cortar as aves — snip-CRUNCH, snip-CRUNCH, snip-CRUNCH, separando osso e cortando músculo, libertando os pulmões, dirigindo-se à traquéia, transformando Howard, o Conquistador, num jantar do Dia de Ação de Graças que ninguém comerá.

Um gemido tênue e lamentoso — isso soa realmente como broca de dentista.

Pete:

— Posso...

Dra. Cisco, na verdade parecendo um pouco maternal:

— Não. Esta. — Snick-snick. Demonstrando para ele.

Não podem fazer isso, penso. Não podem me cortar... Eu vou SENTIR!

— Por quê? — pergunta ele.

— Porque é assim que eu quero — diz ela, parecendo um pouco menos maternal. — Quando estiver por sua conta, Peterzinho, vai poder fazer o que quiser. Mas, na sala de autópsia de Katie Arlen, você vai começar com a tesoura pericárdica.

Sala de autópsia. Pronto. Está dito. Queria ficar completamente arrepiado, mas nada acontece, é claro; minha pele continua lisa.

— Lembre-se — diz a Dra. Arlen (que agora está, na verdade, fazendo uma palestra) —, qualquer tolo pode aprender a usar uma máquina de ordenhar... mas o processo manual é sempre melhor. — Há algo vagamente sugestivo em seu tom. — Ok?

— Ok — diz ele.

Eles vão continuar com a coisa. Tenho que fazer algum ruído ou movimento, ou eles realmente vão continuar. Se o sangue fluir ou esguichar ao primeiro golpe da tesoura, eles saberão que algo está errado, mas aí, provavelmente, será tarde demais; aquele primeiro snip-CRUNCH já terá acontecido, e minhas costelas estarão encostadas nos braços, o coração pulsando freneticamente até parar dentro da bolsa envernizada de sangue sob as lâmpadas fluorescentes...

Concentro tudo no peito. Empurro, ou tento fazê-lo... e algo acontece.

Um som!

Emito um som!

É sobretudo dentro de minha boca fechada, mas posso também ouvi-lo e senti-lo no nariz — um zumbido baixo.

Concentrando-me, reunindo cada parcela de esforço, emito o som de novo, e desta vez ele é um pouco mais forte, vazando para fora do nariz como fumaça de cigarro: Nnnnnn... Ele me faz lembrar de um velho programa de TV de Alfred Hitchcock que vi há muito, muito tempo, em que Joseph Cotten, paralisado por um acidente de carro, finalmente é capaz de comunicar aos outros que está vivo deixando cair uma única lágrima.

No mínimo, esse minúsculo gemido de mosquito provou a mim mesmo que estou vivo, que não sou apenas um espírito retardando-se no sarcófago de argila do meu próprio corpo.

Concentrando-me num ponto, posso sentir a respiração deslizando pelo nariz e a garganta, substituindo o ar que acabei de exalar, e a seguir solto-a novamente, trabalhando mais arduamente do que trabalhei nos verões para a Lane Construction Company quando era adolescente, trabalhando mais arduamente do que já trabalhei algum dia, porque agora o faço pela minha vida e eles precisam me ouvir, Deus Todo-poderoso, precisam sim.

Nnnnnn...

— Quer ouvir um pouco de música? — a médica pergunta. — Tenho Marty Stuart, Tony Bennett...

Ele emite um som desanimado. Quase não o ouço, e não compreendo logo o que ela está dizendo... o que provavelmente é uma bênção.

— Muito bem — diz ela, rindo. — Também tenho Rolling Stones.

— Você?

— Eu. Não sou tão careta quanto pareço, Peter.

— Eu não quis dizer... — Ele parece confuso.

Me ouçam!, grito no interior da minha cabeça, fixando com olhos imóveis a luz branco-gelo. Parem de tagarelar como gralhas e me ouçam!

Posso sentir mais ar espremendo-se por minha garganta, e me vem a idéia de que, seja lá o que me aconteceu, pode estar começando a se dissipar... mas é apenas um tênue pisca-pisca na tela de meus pensamentos. Talvez esteja se dissipando, mas em pouquíssimo tempo a recuperação deixará de ser uma opção para mim. Toda a minha energia é dirigida para fazer com que ouçam, e dessa vez ouvirão, eu sei.

— Então os Stones — diz ela. — A não ser que você queira que eu saia e compre um CD de Michael Bolton em homenagem ao seu primeiro pericárdico.

— Por favor, não! — exclama ele, e ambos riem.

O som começa a sair, e está mais alto desta vez. Não tão alto como eu esperava, mas alto o bastante. Certamente alto o bastante. Eles ouvirão, eles precisam ouvir.

Então, exatamente quando começo a empurrar o som pelo nariz como um líquido solidificando-se rapidamente, a sala se enche com o estrondo de uma distorcida guitarra e a voz de Mick Jagger arrebentando as paredes: “Awww, no, it’s only rock and roll, but I LIYYKE IT...”

— Diminua! — berra a Dra. Cisco, encobrindo de modo engraçado os outros sons, e em meio a tais ruídos meu próprio som nasal, um zumbidozinho desesperado saindo pelas narinas, é tão audível quanto um sussurro numa fundição.

Agora o rosto da médica curva-se sobre mim mais uma vez e sinto um horror novo quando vejo que está usando um protetor de olhos de plexiglass e uma máscara de tecido na boca. Ela olha por cima do ombro.

— Eu abro ele para você — diz ela a Pete, e se curva com um bisturi cintilando na mão enluvada, curvando-se sobre mim em meio aos trovões de guitarra dos Rolling Stones.

Tento desesperadamente zumbir, mas não adianta. Nem eu próprio consigo me ouvir.

O bisturi paira e então corta.

Guincho internamente, mas não há dor, apenas minha camisa pólo sendo cortada em dois pedaços dos dois lados. Abrindo-se da mesma forma que a armação das minhas costelas depois que Peter, sem saber, fizer seu primeiro corte pericárdico num paciente vivo.

Sou levantado. Minha cabeça pende para trás e, por um momento, vejo Peter de cabeça para baixo, colocando seu próprio protetor de olhos, em pé junto a um balcão de aço, inventariando sua apavorante fileira de instrumentos. Destacando-se entre eles, está a enorme tesoura. Tenho apenas um vislumbre dela, de lâminas cintilando como impiedoso cetim. Então sou largado em decúbito dorsal de novo e minha camisa se foi. Agora estou nu até a cintura. Está frio na sala.

Olhe para o meu peito!, grito para a médica. Você deve estar vendo que ele sobe e desce, por mais rasa que esteja a minha respiração! Pombas, você é uma especialista, pelo amor de Deus!

Em vez disso, ela olha pela sala, erguendo a voz para ser ouvida por cima da música. (“I like it, like it, yes I do”, cantam os Stones, e acho que ouvirei esse coro idiota e fanhoso nos salões do inferno por toda a eternidade.)

— Qual é a sua aposta? Samba-canção ou sunga?

Com uma mistura de horror e fúria, percebo do que estão falando agora.

— Samba-canção! — ele exclama. — Claro! Dá só uma olhada no cara!

Babaca!, quero gritar. Provavelmente você pensa que qualquer um com mais de 40 anos usa cueca samba-canção! Provavelmente pensa que, quando chegar aos 40, vai...

A médica desabotoa minha bermuda e abaixa o zíper. Em outras circunstâncias, eu ficaria extremamente feliz que uma mulher tão bonita (um pouco severa, sim, mas mesmo assim bonita) fizesse isso. Hoje, porém...

— Perdeu, Peterzinho — diz ela. — Sunga. Dólar na caixinha.

— No dia do pagamento — diz ele, aproximando-se. Seu rosto está perto do dela; eles olham para mim através da máscara de plexiglass como um par de alienígenas do espaço olhando para um abduzido. Tento fazer com que vejam meus olhos, me vejam olhando para eles, mas esses dois idiotas estão olhando para a minha roupa de baixo.

— Aaahh, e é vermelha — diz Pete.

— Eu diria mais um rosa-pálido — diz ela. — Levante-o para mim, Peter, ele pesa uma tonelada. Não é de espantar que tenha tido um colapso. Que seja uma lição para você.

Eu estou em forma!, berro para ela. Provavelmente em melhor forma do que você, sua vaca!

Meus quadris são repentinamente lançados para cima por mãos fortes. Minhas costas estalam: o som faz meu coração dar um pulo.

— Desculpe, cara — diz Pete, e de repente sinto mais frio do que nunca quando minha bermuda e a sunga vermelha são abaixadas.

— Para cima com um — diz ela erguendo um de meus pés — para cima com outro — diz, erguendo o outro pé. — Fora os mocassins, e fora as meias...

Ela pára abruptamente e a esperança se apossa de mim mais uma vez.

— Pete.

— O que é?

— A rapaziada costuma usar bermudas e mocassins para jogar golfe?

Por trás dela (mas ali fica apenas a fonte, na verdade a música está toda em torno nós), os Rolling Stones prosseguiram para “Emotional Rescue”. “I will be your knight shining abh-mah”, canta Mick Jagger, e cogito quão funky ele dançaria com umas três bananas de dinamite de alta potência enfiadas no seu rabo magro.

— Se quer saber, esse cara estava simplesmente procurando problema — continua. — Pensei que eles usassem esses sapatos especiais, muito feios, muito específicos de golfe, com pequenas saliências nas solas...

— É, mas usá-los não é obrigatório — diz Pete. Ele estende as mãos enluvadas sobre meu rosto virado para cima, enlaça-as e faz os dedos estalarem. Quando os nós dos dedos estalam, desce um borrifo de talco como neve fina. — Pelo menos ainda não. Não é como sapatos de boliche. Se pegarem alguém jogando boliche sem os sapatos de boliche, podem mandar a pessoa para a prisão estadual.

— É mesmo?

— É.

— Quer se encarregar do exame macroscópico?

Não!, guincho eu. Não, ele é um garoto, o que é que você está FAZENDO?

Ele a olha como se esse mesmo pensamento lhe tivesse ocorrido.

— Isso... hum... não é estritamente legal, é, Katie? Isto é...

Ela olha em volta enquanto ele fala, examinando a sala de modo caricatural, e começo a perceber uma vibração que pode ser uma notícia muito ruim para mim: severa não, acho que Cisco — aliás, Dra. Katie Arlen — tem uma queda pelo Peterzinho de olhos azul-escuros. Deus do céu, eles me içaram paralisado do campo de golfe e me trouxeram para um episódio de Plantão Médico, e o episódio desta semana se chama “O amor floresce na Sala de Autópsia 4”.

— Puxa — diz ela num rouco sussurrozinho de teatro. — Não vejo ninguém por aqui, só você e eu.

— A fita...

— Ainda não foi ligada — diz ela. — E quando for, estou bem aqui do seu lado a cada passo do processo... tanto quanto alguém vai saber, de qualquer modo. E vou estar, na maior parte. Só quero largar esses gráficos e slides. Mas, se você não se sente mesmo à vontade...

Sim!, grito para ele com meu rosto imóvel. Trate de não se sentir à vontade! NADA à vontade!

Mas ele tem no máximo 24 anos, e o que vai dizer para essa mulher severa e bonita a seu lado, invadindo o seu espaço de um modo que só pode significar uma coisa? Não, mamãe, estou com medo? Além disso, ele quer ir em frente. Vejo seu desejo através protetor de olhos mexendo-se como um bando de fãs de rock acima da idade saltitando com a música dos Stones.

— Bem, na medida em que você me der cobertura se...

 

— Claro — diz ela. — Às vezes, é preciso arriscar, Peter. E, se precisar mesmo, posso fazer a fita voltar.

Ele parece espantado.

— Você pode fazer isso?

Ela sorri.

— Temos muitos segrrredos na Sala de Autópsia Quatrro, mein Herr.

— Aposto que sim — diz ele, sorrindo também. A seguir, sua mão atravessa o meu campo de visão; quando volta, segura um microfone que pende de um fio negro do teto. O microfone parece uma lágrima de aço. Vê-lo ali concretiza todo o horror de um modo inédito. Certamente não vão me cortar, vão? Pete não é nenhum veterano, mas já recebeu formação médica; certamente vai ver as marcas do que seja lá o que me mordeu enquanto eu procurava a bola no mato, e então eles vão pelo menos suspeitar. Vão ter que suspeitar.

Mesmo assim, continuo vendo a tesoura com seu impiedoso brilho de cetim — a tesoura de cortar aves que agora ocupa o centro do palco — e continuo pensando se ainda estarei vivo quando Pete retirar meu coração da cavidade do peito e erguê-lo por um momento, pingando, diante de meu olhar trancado, antes de se virar para jogá-lo na bandeja da balança. Acho que seria possível; acho mesmo. Não dizem que o cérebro pode permanecer consciente por até três minutos depois que o coração pára?

— Estou pronto, doutora — diz Peter, e agora parece quase formal. Em algum lugar, a fita está sendo gravada.

O processo da autópsia começou.

— Vamos virar essa panqueca — diz ela animada, e sou erguido com a mesma eficiência. Meu braço direito voa para um lado e cai contra a lateral da mesa, chocando-se com a aba de metal levantada que amassa o bíceps. Dói muito, a dor é quase torturante, mas eu não ligo. Rezo para a aba me cortar a pele, rezo para sangrar, algo que cadáveres de confiança não fazem.

— Upa! — diz a Dra. Arlen, que levanta meu braço e o deixa cair contra o corpo.

É do nariz agora que estou mais consciente, já que está achatado contra a mesa. E pela primeira vez meus pulmões emitem uma mensagem de aflição — uma sensação abafada de privação. Minha boca está fechada, o nariz também parcialmente fechado por esmagamento (quanto não posso dizer; não consigo sequer me sentir respirando, na verdade). E se eu sufocar assim?

Então acontece algo que afasta totalmente minha atenção do nariz. Um objeto enorme — dá a impressão de um bastão de beisebol de vidro — é enfiado rudemente pelo meu reto. Uma vez mais tento gritar e só consigo produzir um zumbido tênue e miserável.

— A sonda entrou — diz Peter. — Liguei o cronômetro.

— Boa idéia — diz ela, afastando-se. Dando espaço a ele. Deixando-o fazer o teste de direção com este bebê. Deixando-o fazer o teste de direção em mim. A música é diminuída ligeiramente.

— O indivíduo é branco, de 44 anos — diz Peter, falando para o microfone agora, falando para a posteridade. — Seu nome é Howard Randolph Cottrell, residente em Laurel Crest Lane, 1.566, aqui em Derry.

A alguma distância, a Dra. Arlen diz:

— Mary Mead.

Uma pausa. Depois novamente Peter, parecendo um tantinho desconcertado:

— A Dra. Arlen me informa que o indivíduo vive de fato em Mary Mead, que se emancipou de Derry em...

— Chega de aula de história, Pete.

Meu Deus, o que será que enfiaram no meu traseiro? Um termômetro para gado? Se ele fosse um pouco mais comprido, eu sentiria o gosto do bulbo da ponta. E eles não são entusiastas da lubrificação... mas por que seriam? Afinal, eu estou morto.

Morto.

Desculpe, doutora — diz Peter. Atrapalhado, ele procura o lugar onde parou e finalmente o encontra. — Essa informação é do formulário da ambulância. Originalmente tirada de uma licença de motorista do estado do Maine. O médico que atestou o óbito foi, hum, Frank Jennings. O indivíduo foi declarado morto no próprio local.

Agora é do meu nariz que espero que saia sangue. Por favor, digo a ele, sangre. Mas não sangre apenas. JORRE!

Ele não obedece.

— A causa da morte pode ter sido um colapso cardíaco — diz Peter. A mão leve roça pelas minhas costas nuas até a fenda de minha bunda. Rezo para que ela remova o termômetro, mas ela não o faz. — A espinha parece intacta, nada anormal detectável.

Nada anormal detectável? Nada anormal detectável? O que pensam que sou, porra? Uma mariposa?

Ele levanta a minha cabeça, as pontas dos dedos nos meus malares, e emito desesperadamente um zumbido — Nnnnnnn — sabendo que Pete provavelmente não me ouvirá com a guitarra de Keith Richards aos berros, mas esperando que ele possa sentir o som vibrando por minhas cavidades nasais.

Mas ele não sente. Em vez disso, vira a minha cabeça de um lado para o outro.

— Nenhum ferimento aparente no pescoço, nenhuma rigidez — diz ele, e fico esperando que solte minha cabeça e meu rosto bata na mesa... isso fará o nariz sangrar, a não ser que eu esteja realmente morto... mas Pete pousa minha cabeça suavemente, gentilmente, esmagando mais uma vez a ponta do meu nariz e tornando o sufocamento de novo uma possibilidade concreta.

— Nenhum ferimento visível nas costas ou nádegas — diz ele —, embora haja uma antiga cicatriz na parte superior da coxa direita que parece de um ferimento, estilhaço de granada, talvez. É uma cicatriz feia.

Era feia, e era estilhaço de granada. O fim da minha guerra. Um morteiro atirado numa área de abastecimento, dois homens mortos e um homem com sorte — eu. A cicatriz é muito mais feia na frente, e num local mais sensível, porém todo o equipamento funciona... ou funcionava, até hoje. Mais um centímetro para a esquerda, e eu talvez tivesse que usar um macaco hidráulico nos momentos íntimos.

Finalmente ele retira o termômetro — ah, Deus Todo-poderoso, o alívio — e na parede posso ver a sombra de Pete segurando o instrumento.

— Trinta e quatro — diz ele. — Puxa, nada mal. Esse cara praticamente podia estar vivo, Katie... Dra. Arlen.

— Lembre-se de onde o encontraram — diz ela do outro lado da sala. A gravação que ouviam estava num intervalo e, por um instante, escutei claramente o tom professoral da médica. — Campo de golfe? Tarde de verão? Se você constatasse 36 graus de temperatura, eu não ficaria surpresa.

— Certo, certo — ele responde, dando a impressão de ter sido castigado. A seguir: — Tudo isso não vai ficar engraçado na fita? — Tradução: Eu não vou parecer burro na fita?

— Vai parecer uma situação de aprendizado — disse ela —, o que de fato é.

— Ok, bom. Ótimo.

Seus dedos de borracha se achatam sobre minhas nádegas, depois as soltam e trilham a parte de trás das minhas coxas. Eu ficaria tenso agora, se pudesse ficar tenso.

Perna esquerda, envio a mensagem para ele. Perna esquerda, Peterzinho, panturrilha esquerda, não vê?

Ele deve ver, precisa ver, porque eu posso sentir a coisa, latejando como uma ferroada de abelha ou talvez uma injeção dada por uma enfermeira desajeitada, alguém que aplica a injeção no músculo em vez de pegar a veia.

— O indivíduo é realmente um bom exemplo de como não se deve jogar golfe de bermudas — diz Pete, e me descubro desejando que ele tivesse nascido cego. Diabo, talvez ele tivesse nascido cego, pelo menos está parecendo. — Vejo picadas de insetos de vários tipos, picadas de bicho-de-pé, arranhões...

— Mike disse que o encontraram no mato do campo de golpe — acrescenta Arlen. Ela faz um barulho infernal; parece lavar louça numa cafeteria em vez de estar praticando taxidermia. — Meu palpite é que ele teve um infarte quando procurava a bola.

— Ahn-ahn...

— Continue, Peter, você está indo bem. Acho essa afirmação extremamente discutível.

— Ok.

Mais cutucadas e sondagens. Suaves. Talvez suaves demais.

— Há picadas de mosquito na panturrilha esquerda aparentemente infectadas — diz ele, e embora seu toque continue suave, desta vez a dor é um enorme latejar que me faria gritar se eu pudesse emitir qualquer som que não fosse o zumbido em tom baixo. Ocorre-me subitamente que minha vida pode depender do tamanho da fita dos Rolling Stones que estão ouvindo... sempre imaginando que seja uma fita e não um CD que toca direto. Se ela acabar antes de me cortarem... se eu conseguir zumbir alto o suficiente para que ouçam antes que um deles ponha o outro lado da fita...

— Posso querer examinar essas picadas depois da autópsia macroscópica — diz ela —, se bem que, se estivermos certos sobre o coração, não vai haver necessidade. Ou... quer que eu as examine agora? Está preocupado com elas?

— Não, são nitidamente picadas de mosquito — diz o idiota da aldeia. — São maiores do lado esquerdo. Ele recebeu cinco... sete... oito... nossa, quase uma dúzia só na perna esquerda.

— Ele esqueceu o Repelente dos Bosques em casa.

— O repelente não é nada, ele esqueceu a digitalina — diz Pete, e eles dão uma simpática risada. Humor de sala de autópsia.

Desta vez ele me vira sozinho, provavelmente contente em usar aqueles músculos de Rapaz Sarado desenvolvidos em academias, escondendo as picadas de cobra e de mosquito por ali, camuflando-as. Estou olhando fixo a bateria de luzes fluorescentes mais uma vez. Pete recua um passo e sai do meu campo de visão. Ouço um zunido. A mesa começa a se inclinar, e eu sei por quê. Quando me cortarem, os fluidos escorrerão para os pontos de recolhimento na base. Montes de amostras para o laboratório estadual em Augusta, se alguma dúvida for levantada pela autópsia.

Concentro toda a vontade e todo o esforço para fechar os olhos enquanto Pete olha para o meu rosto, mas não consigo produzir um tique sequer. Eu queria 18 buracos de golfe na tarde de sábado, e em vez disso me transformei em Branca de Neve com cabelo no peito. E não consigo parar de pensar no que sentirei quando aquela tesoura de cortar aves se enfiar por meu ventre adentro.

Pete segura uma prancheta. Depois de consultá-la, deixa-a de lado e, a seguir, fala ao microfone. Sua voz está um pouco menos pomposa agora. Ele acaba de fazer o diagnóstico mais medonhamente errado de sua vida, mas não sabe. Então, começa a se aquecer.

— Estou iniciando a autópsia às 17h49 do dia 20 de agosto de 1994, sábado. Ergue meus lábios e examina os dentes como um homem pensando em comprar um cavalo. A seguir, puxa meu maxilar para baixo.

— Boa cor — diz ele —, e nenhuma petéquia nas faces. — A melodia do momento está sumindo nos alto-falantes e escuto um clique quando Pete pisa no pedal que interrompe a fita da gravação. — Cara, esse sujeito podia estar vivo mesmo!

Tento freneticamente emitir um zumbido, mas, no mesmo instante, a Dra. Arlen deixa cair algo que soa como uma comadre.

— Bem que ele gostaria — diz rindo. Pete ri também, e desta vez desejo que tenham um câncer inoperável que dure muito tempo.

Pete desce as mãos rapidamente pelo meu corpo, apalpando-me o peito (“Nenhuma equimose, inchação ou outros sinais exteriores de parada cardíaca”, ele diz, uma surpresa e tanto, porra), e então me apalpa.

Eu arroto.

Ele me fixa com os olhos arregalados, a boca um pouco aberta. Mais uma vez tento desesperadamente zumbir, sabendo que ele não vai escutar por causa da “Start Me Up”, mas pensando que talvez, por causa do arroto, ele finalmente esteja pronto para ver o que está bem na sua frente...

— Peça desculpas, Howie — diz a vaca da Dra. Arlen por trás de mim e dá uma risadinha. — É melhor ter cuidado, Pete, esses arrotos post mortem são os piores.

Ele abana o ar na frente de seu rosto teatralmente, depois volta ao que está fazendo. Mal toca a minha virilha, embora note que a cicatriz na parte de trás da perna direita continua até a frente.

Mas você perdeu a grande, penso, talvez porque esteja um pouco acima do lugar para onde está olhando. Não é importante, meu chapinha de Baywatch, mas você também não percebeu que AINDA ESTOU VIVO, e ISSO é importante!

Ele continua recitando ao microfone, parecendo cada vez mais à vontade (parecendo até mesmo um médico de seriado de TV), e sei que sua parceira atrás de mim, a Pollyanna da comunidade médica, acha que não vai precisar voltar a fita nessa parte do exame. O garoto está fazendo um ótimo trabalho, se a gente esquecer que o primeiro corte pericárdico dele vai ser num sujeito vivo. Finalmente, ele diz:

— Acho que estou pronto para continuar, doutora. — Mas parece hesitante.

Ela se aproxima, olha brevemente para mim e aperta o ombro de Pete.

— Ok — diz. — Vá em frente!

Agora estou tentando pôr a língua para fora. O simples gesto de insolência infantil seria suficiente... e me parece que posso sentir uma leve sensação de formigamento bem dentro dos lábios, a sensação que se tem quando finalmente o efeito de uma forte dose de Novocaína começa a se dissipar. E estou sentindo uma contração? Não, é só a minha mente querendo sentir...

Sim! Sim! Mas uma contração é tudo e, quando tento pela segunda vez, nada acontece.

Enquanto Pete pega a tesoura, os Rolling Stones passam para “Hang Fire”.

Ponham um espelho na frente do meu nariz!, grito para eles. Vai embaçar, vocês vão ver! Não podem fazer pelo menos isso?

Snick, snick, snickety-snick.

Pete movimenta a tesoura, e a luz desliza por toda a lâmina. Pela primeira vez, tenho certeza, certeza mesmo, de que essa charada louca vai percorrer o caminho inteiro até o fim. O diretor não vai congelar o quadro. O juiz não vai parar a luta no décimo round. Não vamos fazer uma pausa para uma mensagem de nossos patrocinadores. Peterzinho vai mergulhar a tesoura nas minhas tripas enquanto fico deitado aqui, desamparado, e então me abrirá como um pacote vindo pelo correio.

Ele olha hesitante para a Dra. Arlen.

Não!, uivo, minha voz reverberando pelas paredes escuras do crânio, mas de modo algum saindo pela boca. Não, por favor, não!

Ela faz um movimento afirmativo com a cabeça.

— Vá em frente. Vai se sair bem.

— Ahn... quer desligar a música?

Sim! Sim, desligue!

— Está incomodando você?

Sim! Está incomodando sim! Já o perturbou tanto que ele acha que o paciente está morto!

Bem...

— Claro — diz ela, e some do meu campo de visão. Um instante depois, Mick e Keith finalmente se foram. Tento produzir o zumbido com o nariz e descubro uma coisa horrível: agora não consigo fazer nem aquilo. Estou apavorado. O medo trancou minhas cordas vocais. Posso apenas olhar fixamente, enquanto ela se junta a ele, e os dois me contemplam lá de cima, coveiros olhando para um túmulo aberto.

— Obrigado — diz ele. Então respira profundamente e ergue a tesoura. — Iniciando o corte pericárdico.

Ele abaixa a tesoura lentamente. Eu a vejo... eu a vejo... e então ela desaparece do meu campo de visão. Um longo momento depois, sinto o frio do aço aninhar-se contra a parte superior do meu ventre nu.

Peter olha em dúvida para a médica.

— Tem certeza de que você não...

— Quer se especializar nesse campo ou não, Peter? — pergunta ela com alguma aspereza.

— Você sabe que sim, mas...

— Então corte.

Ele concorda com a cabeça, apertando os lábios. Eu fecharia os olhos se pudesse, mas é claro que não posso sequer fazer isso; posso apenas reunir as forças contra a dor que está a um ou dois segundos de distância agora — reunir as forças contra a lâmina de aço.

— Cortando — diz ele, curvando-se para a frente.

— Espere um segundo! — exclama ela.

A covinha causada pela pressão imediatamente abaixo do meu plexo solar diminui um pouco. Pete olha a médica surpreso, aborrecido, talvez com alívio porque o momento crucial foi adiado...

Sinto a mão dela, enluvada de borracha, envolver meu pênis como se pretendesse me bater uma punheta bizarra, Sexo Seguro com o Morto, e então ela diz:

— Você deixou escapar esta aqui, Pete.

Ele se inclina para a frente, examinando o que ela descobriu — a cicatriz na minha virilha, bem no alto da coxa direita, uma elevação vidrada e sem poros na carne.

A mão da médica ainda segura meu pau tirando-o do caminho, faz apenas isso; no que lhe diz respeito, poderia estar da mesma forma segurando uma almofada do sofá para que outro possa ver o tesouro que ela descobriu ali embaixo — moedas, uma carteira perdida, talvez o camundongo que o gato matou e que você não conseguiu encontrar —, mas alguma coisa está acontecendo.

Meu Deus do céu que acode as causas perdidas — alguma coisa está acontecendo,

— E olhe — diz ela. Seu dedo alisa agradavelmente uma linha que atravessa a lateral do meu testículo direito. — Olhe essas cicatrizes na linha do cabelo. Puxa, seus testículos devem ter inchado até quase o tamanho de um grapefruit.

— Sorte ele não ter perdido um ou os dois.

— Pode apostar o seu... aposte o seu você-sabe-o-quê — diz ela, e solta aquele riso suavemente sugestivo de novo. Sua mão enluvada afrouxa-se, move-se, depois empurra firmemente para baixo, tentando aumentar a área de visão. Ela está fazendo por acaso o que você pode pagar 25 ou 30 pratas para ser feito de propósito... em outras circunstâncias, claro. — É um ferimento de guerra, acho eu. Me dá aquela lupa, Pete.

— Mas eu não devia...

— Só um segundo — diz ela. — Ele não vai a lugar nenhum. — A médica está totalmente absorvida no que descobriu. Sua mão ainda está em mim, ainda pressiona para baixo, e o que aconteceu parece estar acontecendo ainda, mas talvez eu esteja enganado. Devo estar enganado ou Pete o veria, ela perceberia...

A Dra. Arlen se curva para a frente e agora posso ver apenas suas costas cobertas de tecido verde, com os laços de sua touca cirúrgica pendurados como esquisitos rabinhos de porco. Ah, minha nossa, posso sentir sua respiração em mim lá embaixo.

— Note a irradiação para fora — diz a médica. — Foi um ferimento causado por explosão de algum tipo, provavelmente há dez anos pelo menos, podíamos checar seu registro militar...

A porta se abre bruscamente. Pete lança uma exclamação de surpresa. A Dra. Arlen não, mas sua mão se contrai involuntariamente, ela está me apertando de novo e de repente o que está acontecendo é uma variação infernal da velha fantasia da Enfermeira Travessa.

— Não cortem ele! — grita alguém, e a voz é tão alta e oscilante por causa do medo que quase não reconheço Rusty. — Não cortem, tinha uma cobra na bolsa de golfe dele e ela picou Mike!

Com os olhos arregalados e a boca aberta, os dois viram-se para Rusty. A mão da Dra. Arlen ainda me agarra, mas ela tem tão pouca noção disso, pelo menos no momento, quanto Peterzinho de estar agarrando o peito esquerdo de sua roupa. A impressão é que foi ele quem teve o equipamento dilapidado.

— O que... o que é que você... — começa Pete.

— Derrubou o cara totalmente! — balbucia Rusty. — Ele vai ficar bem, acho, mas não consegue falar! Uma cobrazinha marrom que eu nunca vi em minha vida se escondeu por ali e ainda está lá agora, mas o importante não é isso! Acho que ela já picou o sujeito que trouxemos para cá. Eu acho... porra, doutora, o que está fazendo? Alisando o cara para ele viver de novo?

A Dra. Arlen olha ao redor, aturdida, inicialmente sem entender o que Rusty está falando... até perceber que segura agora um pênis quase totalmente em ereção. E enquanto grita — grita e arranca a tesoura das mãos frouxas e enluvadas de Pete —, eu me vejo pensando novamente no antigo programa de Alfred Hitchcock.

Pobre do velho Joseph Cotten, penso.

Ele só podia chorar.



 

* The Oprah Winfrey Show, popular talk show norte-americano [N. do E.].

 

                                                                                            Stephen King

 

 

                      

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