Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TUDO É EVENTUAL / Stephen King
TUDO É EVENTUAL / Stephen King

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TUDO É EVENTUAL

 

AGORA TENHO UM bom emprego e nenhuma razão para ficar de bode. Chega de ficar zanzando por aí com os cabeças-ocas do supermercado Supr Savr, controlando o pátio onde ficam os carrinhos e sendo amolado por idiotas como Skipper. No momento em que falo, Skipper já está comendo capim pela raiz, mas, se há uma coisa que aprendi em meus 19 anos neste planeta Terra, é que não podemos relaxar. Há Skippers por toda parte.

Também chega de sair na patrulha da pizza em noites chuvosas, dirigindo meu velho Ford com o amortecedor mim, congelando a alma com a janela aberta e uma bandeirinha italiana espetada numa vareta de metal. Como se alguém em Harkerville fosse bater continência. Pizza Roma. Gorjetas de 25 cents de gente que nem enxerga você, porque ainda está pensando nos jogos de futebol na tevê. Acho que dirigir para a Pizza Roma foi o fundo do poço. De lá para cá, até dei uma volta num jato particular. Então, como é que as coisas podem estar ruins?

“É isso que dá sair da escola sem um diploma”, dizia Mamãe durante meu período de entregador. E “Você fará isso pelo resto da sua vida”. A boa e velha Mamãe. E assim por diante, até que realmente pensei em lhe escrever uma daquelas cartas especiais. Como disse, aquilo foi o fundo do poço. Sabe o que o Sr. Sharpton me falou naquela noite em seu carro? “Isso não é apenas um emprego, Dink, é uma aventura.” E tinha razão. Podia estar errado em qualquer outra coisa, mas nisso estava certo.

Acho que você está pensando no meu salário nesse famigerado emprego. Bem, tenho que dizer que não dá muito dinheiro, é melhor ficar sabendo logo. Mas um emprego não é só ganhar dinheiro ou progredir. Foi o que o Sr. Sharpton me disse. Um verdadeiro emprego tem a ver com benefícios adicionais, ele disse. Aí é que está o poder.

Sr. Sharpton. Só o vi uma vez, ao volante de seu grande e velho Mercedes-Benz, mas às vezes uma vez só já basta.

Veja isso do modo que quiser. De qualquer modo, mesmo.

 

TENHO UMA CASA, Ok? Minha própria casa. Este é o benefício número um. Às vezes ligo para Mamãe para perguntar como vai sua perna encrencada, jogar conversa fora, mas nunca a convidei para vir aqui, apesar de Harkervile ficar só a uns 100 quilômetros de distância e Mamãe estar praticamente se roendo de curiosidade. Nem tenho que visitar ela, a não ser que eu queira. Na maioria das vezes, não quero. Se você conhecesse minha mãe, também não ia querer. Sentar naquela sala enquanto ela fala sobre todos os parentes e se queixa da perna inchada não é mole. Eu também não tinha notado como a casa cheira a bosta de gato até sair de lá. Nunca vou ter um animalzinho de estimação. Animais de estimação são muito caros de se manter.

Na maior parte do tempo, eu fico aqui. Só tem um quarto, mas mesmo assim é uma excelente casa. Eventual, como Pug costumava dizer. Ele era o único cara de quem eu gostava no supermercado. Quando queria dizer que alguma coisa era realmente boa, Pug nunca dizia que ela era incrível, como a maioria das pessoas; ele dizia que a coisa era eventual. Não é engraçado? O velho Pugmeister. Imagino como estará ele. Bem, eu acho. Mas não posso ligar para ele e me certificar. Posso ligar para Mamãe, e tenho um número de emergência se alguma coisa der errado algum dia, ou se achar que alguém está se intrometendo onde não é chamado, mas não posso bater um fio para nenhum dos meus velhos amigos (como se qualquer deles, além de Pug, ligasse a mínima para Dinky Earnshaw). Regras do Sr. Sharpton.

Mas isso não tem importância. Vamos voltar à minha casa aqui em Columbia City. Quantos caras de 19 anos que largaram a escola você conhece que têm casa própria? E um carro novo? É só um Honda, é verdade, mas os primeiros três números do odômetro ainda estão zerados, e essa é a parte importante. Tem um toca-fitas e um CD, e eu não afundo o rabo no assento ao volante pensando se o diabo da coisa vai pegar, como sempre fazia com o Ford do qual Skipper debochava. O Idiotamóvel, como ele o chamava. Por que há tantos Skippers no mundo? É isso que eu fico imaginando.

Ganho algum dinheiro, por falar nisso. Mais do que o suficiente para suprir minhas necessidades. Saca só. Assisto a um seriado de televisão enquanto almoço, e nas quintas-feiras, lá pela metade do programa, escuto o estalo na fenda da correspondência. Não faço nada então, não esperam que eu faça. Como o Sr. Sharpton disse, “as regras são deles, Dink”.

Apenas continuo assistindo ao resto do meu programa. Os acontecimentos melhores das novelas sempre acontecem nos fins de semana — assassinatos nas sextas-feiras, trepadas nas segundas —, mas mesmo assim assisto até o final todos os dias. Tenho um cuidado especial em ficar na sala até o final nas quintas. Nas quintas não vou nem à cozinha para tomar mais um copo de leite. Quando o seriado acaba, desligo a tevê por um tempo — Oprah Winfrey vem a seguir, detesto o programa dela, ficar ali sentado falando besteira é para o povão — e vou até a entrada.

No chão, debaixo da fenda da correspondência, há sempre um envelope branco comum, fechado. Sem nada escrito na frente. Dentro dele tem 14 notas de cinco dólares ou sete notas de dez . É o meu dinheiro para a semana. Faço com ele o seguinte: vou ao cinema duas vezes, sempre à tarde, quando custa só quatro dólares e meio. Total: nove dólares. No sábado, encho o tanque do meu Honda, o que sai geralmente por uns sete dólares. Não dirijo muito. Não estou investido nisso, como o Pug diria. Então, até aqui, estou em 16 dólares. Como fora umas quatro vezes, no McDonald’s, no café da manhã (eggsburguer, café, duas porções de batatas sautês) ou no jantar (Quarteirão com queijo, que se danem aquelas bostas dos Mc especiais, queria saber que imbecil bolou aqueles sanduíches?). Uma vez por semana, visto uma calça esportiva de algodão e uma camisa social e vejo como a outra metade vive. Faço uma refeição bacana num lugar como o Outback ou o Friday’s, o que me custa cerca de 25 dólares, e agora já estou em 41 dólares. Então posso ir ao News Plus e comprar uma ou duas revistas de sacanagem, nada demais, só o habitual como Playboy ou Penthouse. Tentei tirar essas revistas no QUADRO DE AVISOS DO DINKY, mas não consegui. Essas eu mesmo posso comprar, e elas não desaparecem no dia de faxina ou coisa assim, mas não ficam visíveis, se você percebe aonde quero chegar, como acontece com a maioria das outras coisas. Acho que os que fazem a limpeza para o Sr. Sharpton não gostam de sacanagem. Além disso, não consigo acessar esses negócios de sexo na Internet. Já tentei, mas de alguma maneira está bloqueado. Geralmente é fácil lidar com coisas assim — a gente passa por baixo ou contorna os bloqueios, se não der para hackear direto —, mas aí é outra história.

Não quero me estender no assunto, mas não consigo ligar para disk-sexo também. O discador automático funciona, claro, e se eu quiser ligar para uma figura ao acaso, em qualquer parte do mundo, e desembuchar com a figura por algum tempo, tudo bem. Isso funciona. Mas disk-sexo não rola. Dá ocupado. Tudo bem. Segundo a minha experiência, pensar em sexo é como coçar brotoeja. Só se consegue espalhar o negócio. Além disso, sexo não é lá grande coisa, pelo menos para mim. Está ali, mas não é eventual. Mesmo assim, considerando o que estou fazendo, esse pequeno toque de caretice é meio esquisito. Quase engraçado... só que perdi o senso de humor em relação ao assunto, eu acho. E em relação a alguns outros também.

Bem, vamos voltar ao orçamento.

Se eu comprar uma Playboy, são quatro pratas e já estou em 45 dólares. Com parte do dinheiro que sobrou, posso comprar um CD, apesar de não precisar fazer isso, ou uma ou duas barras de chocolate (sei que não devia, porque a minha pele estoura de espinhas, mesmo eu quase não sendo mais um adolescente). Penso em pedir uma pizza ou comida chinesa às vezes, mas é contra as regras da TransCorp. Além do que eu me sentiria esquisito fazendo isso, como um membro da classe opressora. Lembre-se que já fui entregador de pizza. Sei o emprego nojento que é. Mesmo assim, se eu pudesse pedir, o cara da pizza não iria embora desta casa com uma gorjeta de 25 cents. Eu lhe daria cinco pratas e faria seus olhos se iluminarem.

Mas você começa a perceber o que estou querendo dizer com não precisar de um monte de dinheiro vivo, não é? Quando a manhã de quinta surge de novo, geralmente ainda tenho no mínimo oito pratas, e, às vezes, até 20. O que faço com as moedas é jogar elas no bueiro em frente à minha casa. Sei que se os vizinhos vissem isso, eles teriam um surto (larguei a escola no ginásio, mas não por ser burro, muito obrigado), então eu levo para fora o saco de lixo com os jornais (e às vezes com uma Penthouse ou Playboy enterradas no meio da pilha, não fico com essa bosta em casa por muito tempo, quem ficaria?), e enquanto o coloco no meio-fio, abro a mão com o troco e lá se vai ele pela grade do bueiro. Tlinc-tlinc-tlinc-splash. Como o truque de um mágico. Num momento você está vendo, no outro não. Um dia aquele ralo vai entupir, eles vão mandar verificar e o cara vai achar que ganhou na loteria, porra, a não ser que uma enchente ou coisa parecida empurre todas as moedas para a usina de tratamento de esgoto, ou seja lá para onde vai aquilo tudo. Mas aí já estarei longe. Não vou passar minha vida em Columbia City, isso eu posso dizer. Vou embora, e rápido. De um modo ou de outro.

Com as notas é mais fácil. Enfio elas pelo triturador de lixo da cozinha, e pronto. Outro truque de mágica, abracadabra, dinheiro vira alface. Você provavelmente acha que é muito esquisito fazer o dinheiro escorrer pelo triturador da pia. No início, eu também achava. Mas a gente se acostuma com praticamente tudo depois de fazer a coisa por algum tempo, e, além disso, há sempre outros 70 dólares entrando pela fenda da correspondência. A regra é simples: nada de malocar a grana. Termine a semana duro. Além disso, não estamos falando de milhões, só de oito ou dez dólares por semana. Um troquinho de nada, mesmo.

 

OQUADRO DE AVISOS do dinky é outro benefício adicional. Anoto o que quero durante a semana e consigo tudo que peço (a não ser revistas de sacanagem, como já disse). Talvez um dia eu fique entediado com isso, mas neste momento é como ter Papai Noel em casa o ano todo. Anoto principalmente compras de armazém, como qualquer um faz no seu quadro a giz na cozinha, mas não só compras de armazém, de jeito nenhum...

Por exemplo, posso escrever “'novo vídeo do Bruce Willis”, ou “novo CD do Weezer”, ou algo assim. Tem uma história engraçada a respeito do CD do Weezer, já que estamos falando nisso. Um dia fui a uma loja de CDs numa sexta-feira depois do meu cineminha (sempre vou à sessão da tarde de sexta, mesmo se não há nada que eu queira ver, porque é quando os faxineiros vêm), só para matar o tempo lá dentro porque chovia, o que acabou com meus planos de ir até o parque. Enquanto eu olhava os novos lançamentos, um garoto perguntou ao balconista sobre o novo CD do Weezer. O balconista disse que o CD só estaria à venda dali a uns dez dias, mas eu já tinha o CD desde a sexta anterior.

É como digo, benefícios adicionais.

Se anoto “camisa esporte” no QUADRO DE AVISOS, a coisa está lá quando eu volto para casa na noite de sexta, sempre num dos bonitos tons de terra que eu gosto tanto. Se anoto “novo jeans” ou “calça de algodão”, recebo. E tudo da Gap, que é onde eu mesmo vou quando tenho grana. Se quero um determinado tipo de loção de barba ou colônia, escrevo o nome no QUADRO DE AVISOS e ela está na bancada do banheiro quando chego em casa. Eu não namoro, mas sou louco por colônia. Vá entender.

Vou contar uma coisa que você vai achar engraçada, aposto. Uma vez anotei “Quadro de Rembrandt” no QUADRO DE AVISOS. Então passei a tarde no cinema e caminhando no parque, vendo as pessoas namorando e os cachorros abocanhando bolas lançadas no ar, pensando como seria eventual se os faxineiros de fato trouxessem o meu próprio Rembrandt, porra. Pense só, um genuíno Old Master na parede de uma casa no bairro Sunset Knoll, em Columbia City. Isso não seria totalmente eventual?

E de certo modo aconteceu. Meu Rembrandt estava pendurado na parede da sala quando cheguei em casa, acima do sofá onde ficavam os palhaços de veludo. Meu coração batia a 200 por minuto quando atravessei a sala e fui até ele. Quando cheguei perto, vi que era apenas uma cópia... sabe, uma reprodução. Fiquei desapontado, mas não muito. Quer dizer, era um Rembrandt. Mas não um Rembrandt original.

Outra vez escrevi “Fotos autografadas de Nicole Kidman” no QUADRO DE AVISOS. Acho Nicole a atriz mais bonita que existe, tenho o maior tesão por ela. E, quando cheguei em casa naquele dia, tinha um instantâneo dela, de publicidade, preso na geladeira por dois desses ímãs em forma de legume. Ela estava no balanço do Moulin Rouge. E daquela vez a coisa era pra valer. Sei disso pelo modo como estava assinado: “Para Dinky Earnshaw, com amor & beijos de Nicole.”

Ah, meu bem. Ah, doçura.

Vou lhe dizer uma coisa, meu amigo... se eu trabalhasse duro e quisesse mesmo, poderia ter um verdadeiro Rembrandt na minha parede algum dia. Com certeza. Num emprego desses, só há um caminho: o que sobe. De certo modo, é isso que assusta.

 

NUNCA TENHO QUE fazer lista de compras de mercado. Os faxineiros sabem do que eu gosto — as refeições congeladas da Stouffer, principalmente aquele negócio que se cozinha dentro do plástico, que eles chamam de tirinhas de carne ao molho branco e que Mamãe sempre chamou de titica na bandeja, morangos congelados, leite integral, filés de hambúrguer pré-moldados que só se precisa pôr na frigideira quente (detesto lidar com carne crua), pudins, os que vêm nos copos plásticos (é ruim para a minha pele, mas adoro eles), comida comum desse tipo. Se quero algo especial, anoto no QUADRO DE AVISOS DO DINKY.

Certa vez, pedi uma torta de maçã feita em casa, especificando que não podia ser do supermercado e, quando voltei ao escurecer, minha torta estava na geladeira com o resto das compras da semana. Só que não estava embrulhada, mas numa travessa azul. Foi assim que eu soube que tinha sido feita em casa. No início, hesitei um pouco em comer a torta, já que não fazia idéia de onde vinha, mas cheguei à conclusão de que estava sendo bobo. Na verdade, a gente não sabe de onde vem a comida do supermercado. Quer dizer, imaginamos que seja Ok porque está embrulhada, ou vem numa lata, ou “duplamente selada para a sua proteção”, mas alguém pode ter pego naquilo com as mãos sujas antes de ser duplamente selada. Ou dado grandes espirros melecados nela, ou até limpado o rabo com ela. Não quero ser grosseiro, mas é verdade, não? O mundo está cheio de gente estranha, e um monte não vale nada. Tenho experiência disso, pode acreditar.

Seja como for, provei a torta e estava deliciosa. Comi metade dela na sexta-feira à noite e o resto no sábado de manhã, enquanto estava em Cheyenne, Wyoming. Passei a maior parte do sábado à noite no banheiro, cagando as tripas por causa de todas aquelas maçãs, acho eu, mas não liguei. A torta valeu a pena. “Como a mamãe costumava fazer” é o que as pessoas dizem, mas não podem estar falando da minha mãe. Mamãe não sabe nem cozinhar um ovo.

 

NUNCA TIVE QUE escrever roupa de baixo no QUADRO DE AVISOS. A cada cinco semanas mais ou menos, as velhas cuecas desapareciam e lá estavam outras Zorbas novinhas em folha na minha cômoda, quatro pacotes com três peças cada ainda em suas embalagens de plástico. Duplamente seladas para a minha proteção, ah-ah. Papel higiênico, sabão para lavar roupa, sabão para lavar louça, nunca tive que anotar nada dessas porcarias. Elas simplesmente apareciam. Muito eventual, não acha?

 

NUNCA VI OS faxineiros, assim como nunca vi o cara (ou talvez seja uma garota) que entrega as 70 pratas toda quinta-feira enquanto assisto ao meu programa. Eu nunca quis ver os sujeitos. Por um lado, porque não preciso. Por outro — tá bem, é porque tenho medo deles. Da mesma forma que tive medo do Sr. Sharpton em seu grande Mercedes cinzento na noite em que me encontrei com ele.

Não almoço em casa nas sextas-feiras, Assisto ao programa de tevê e depois ando pela cidade no meu carro. Compro um hambúrguer no McDonald’s, vou a um cinema e dou um pulo no parque se o tempo estiver legal. Gosto do parque. É um bom lugar pra gente pensar, e nesses dias tenho um monte de coisas para pensar.

Se o tempo está ruim, vou ao shopping. Agora que os dias estão ficando mais curtos, penso em ir ao boliche de novo. Pelo menos vou ter alguma coisa para fazer nas sextas à tarde. Eu costumava ir lá de vez em quando com Pug.

Eu meio que sinto falta do Pug. Gostaria de poder ligar para ele só para desembuchar, contar um pouco do que anda acontecendo. Como sobre esse tal Neff, por exemplo.

Bem, cospe para cima pra ver se cai na testa.

Quando estou fora, os faxineiros limpam minha casa de parede a parede, de alto a baixo — lavam os pratos (embora eu seja muito bom nisso), o chão, as roupas sujas, mudam os lençóis, colocam toalhas limpas, renovam o estoque da geladeira, conseguem qualquer negócio que esteja escrito no QUADRO DE AVISOS. É como viver num hotel com o serviço de camareira mais eficiente (sem falar em eventual) do mundo.

Só não mexem muito no estúdio junto da sala de jantar. Conservo o lugar bem escuro, as persianas sempre abaixadas, e eles não levantam as persianas nem para deixar entrar uma réstea de claridade, como fazem no resto da casa. O estúdio também nunca cheira a spray de limão, apesar de os outros cômodos federem a limão nas noites de sexta. Às vezes é tão forte que tenho acessos de espirro. Não é uma alergia; é mais uma demonstração de protesto nasal.

Alguém passa o aspirador no chão e esvazia o cesto de lixo, mas ninguém tira do lugar os papéis que deixo na escrivaninha, por mais bagunçados e nojentos que estejam. Uma vez coloquei um pedacinho de fita adesiva nos vãos da gaveta da escrivaninha e, quando voltei de noite, a fita ainda estava lá, intacta. Não guardo nada supersecreto naquela gaveta, só queria saber.

Além disso, se o computador e o modem estão ligados quando saio, continuam assim quando volto, o VDT mostrando um dos protetores de tela (geralmente o das pessoas fazendo alguma coisa por trás das persianas no edifício alto, porque é o meu favorito). Se elas estão apagadas quando saio, estarão iguais quando volto. Eles não mexem com o estúdio de Dinky.

Pode ser que os faxineiros também tenham um certo medo de mim.

 

RECEBI O TELEFONEMA que mudou minha vida exatamente quando achei que a combinação entre Mamãe e as entregas para a Pizza Roma iam me deixar maluco. Sei que isso parece muito melodramático, mas nesse caso é verdade. O telefonema aconteceu na minha noite de folga. Mamãe tinha saído com as amigas dela para jogar bingo na Reserva, todas fumando como uma chaminé e sem dúvida rindo todas as vezes que o sujeito tirava a pedra B-12 e dizia “Muito bem, senhoras, é hora de tomar suas vitaminas”. Eu estava assistindo a um filme do Clint Eastwood na TNT e querendo estar em qualquer outro lugar do planeta Terra. Até em Saskatchewan.

O telefone tocou e pensei, ah, é o Pug, só pode ser. Então atendi com a minha voz mais suave, dizendo “Você ligou para uma Igreja Pentecostal qualquer, sucursal de Harkerville, reverendo Dinky falando”.

— Sr. Earnshaw? — disse uma voz que eu nunca tinha ouvido antes, mas que não parecia nem um pouco desconcertada ou intrigada com o meu besteirol. Eu, no entanto, tinha ficado sem jeito o bastante por nós dois. Já notou que quando a gente faz alguma coisa desse tipo ao telefone, tenta ser bacana quando atende, nunca é a pessoa que a gente espera que fosse? Soube de uma moça que atendeu o telefone dizendo “Oi, é a Helen, e quero que você me coma pra valer” porque tinha certeza de que era o namorado. Mas era o pai dela. Essa história provavelmente é inventada, como a dos jacarés nos esgotos de Nova York (ou as cartas da Penthouse), mas você sacou o que eu quero dizer.

— Ah, desculpe — disse eu, atrapalhado demais para me perguntar como é que o dono daquela estranha voz sabia que o reverendo Dinky era também o Sr. Earnshaw, isto é, Richard Ellery Earnshaw. — Pensei que fosse outra pessoa.

— Eu sou outra pessoa — disse a voz e, embora eu não risse naquele momento, ri depois. O Sr. Sharpton era outra pessoa mesmo. Seriamente, eventualmente outra pessoa.

— O que deseja? — perguntei. — Se quiser falar com a minha mãe, vou ter que dar o recado, porque ela está...

— ...jogando bingo, eu sei. De qualquer modo, eu quero falar mesmo com o senhor. Quero lhe oferecer um emprego.

Durante um momento, fiquei surpreso demais para dizer qualquer coisa. Então me ocorreu que aquilo poderia ser um trote.

— Eu já tenho emprego. Lamento.

— Entregar pizza? — disse ele, parecendo achar graça. — Bem, acho que sim. Se chama isso de emprego.

— Quem é o senhor?

— Eu me chamo Sharpton. E agora chega de conversa mole, como provavelmente o senhor diria. Posso chamá-lo de Dink?

— Claro. Posso chamá-lo de Sharpie?

— Pode me chamar do que quiser, mas ouça.

— Estou ouvindo. — E estava. Por que não? Afinal, o filme na tevê, Meu nome é Coogan, não era um dos melhores de Clint.

— Quero lhe fazer a melhor oferta de emprego que você já teve, e a melhor que terá provavelmente. Não é só um emprego, Dink, é uma aventura.

— Puxa, onde é que ouvi isso antes? — Eu estava com uma tigela de pipoca no colo e joguei um punhado delas na boca. A coisa estava ficando engraçada.

— Outros prometem, eu cumpro. Mas seria melhor que pudéssemos conversar pessoalmente. Pode se encontrar comigo?

— Você é bicha?

— Não. — Mais um vez ele parecia ter achado graça, o suficiente para que eu acreditasse no que dizia. E eu já estava com o rabo preso, como dizem, desde que atendera o telefone daquele modo espertinho. — Minha orientação sexual não tem nada a ver com isso.

— Então por que está puxando o meu saco? Não conheço ninguém que ligaria para mim às nove e meia da noite para me oferecer um emprego, porra.

— Me faça um favor. Largue o telefone um minuto e dê uma espiada na sua porta da frente.

Cada vez mais maluco. Mas o que é que eu tinha a perder? Fiz o que ele disse e achei um envelope no chão. Alguém o tinha enfiado pela fenda da correspondência enquanto eu assistia a Clint Eastwood perseguir Don Stroud pelo Central Park. O primeiro envelope de muitos, embora eu não soubesse disso então, é claro. Abri o envelope e sete notas de dez dólares caíram na minha mão. E também um bilhete.

Isso pode ser o começo de uma carreira fantástica!

Voltei para a sala, ainda olhando o dinheiro. Pode imaginar o quanto aquilo tudo era esquisito? Quase sentei em cima da tigela de pipoca. No último segundo, vi a tigela, botei-a de lado e me joguei no sofá. Peguei o telefone esperando que o Sr. Sharpton tivesse sumido, mas ele ainda estava lá.

— O que que é isso? — perguntei. — Para que essas 70 pratas? Vou ficar com elas, mas não estou te devendo nada. Eu não lhe pedi nada, porra.

— O dinheiro é todo seu — disse Sharpton —, sem compromisso. Mas vou lhe dizer uma coisa em segredo, Dink... um emprego não é só dinheiro. Um verdadeiro emprego tem a ver com benefícios adicionais. Aí é que está o poder.

— Tá bom...

— É sim. E só peço que se encontre comigo e ouça um pouco mais. Vou lhe fazer uma oferta que mudará a sua vida, se você aceitar. Vai abrir a porta para uma nova vida. Embora eu deva ser honesto e diga que provavelmente você não vai ter todas as respostas que gostaria de ter.

— E se eu resolver ir embora?

— Eu lhe darei um aperto de mão, um tapinha nas costas e lhe desejarei boa sorte.

— Quando é que você quer se encontrar comigo? — Parte de mim... a maior parte... ainda achava tudo aquilo uma brincadeira, mas a opinião de uma minoria começava a se formar. Por um lado, havia o dinheiro, que significava duas semanas de gorjetas dirigindo para a Pizza Roma, se os negócios estivessem bons. Mas foi principalmente o modo como Sharpton falava. Ele parecia ter freqüentado a escola... e não me refiro à Faculdade Estadual do Cu do Judas em Van Drusen. Na verdade, que mal podia haver? Desde o acidente de Skipper, não havia ninguém no planeta Terra que quisesse se meter comigo de um modo perigoso ou doloroso. Bem, Mamãe talvez, eu acho, mas sua única arma era a boca... e ela não fazia brincadeiras elaboradas assim. Além disso, eu não conseguia ver Mamãe dando adeus a 70 dólares. Não quando ainda havia um jogo de bingo nas proximidades.

— Esta noite — disse ele. — Agora mesmo, na verdade.

—Tudo bem, por que não? Apareça. Acho que se você jogou um envelope cheio de notas de dez dólares na minha porta, não precisa que eu lhe diga o endereço.

— Não na sua casa. Encontro você no estacionamento do Supr Savr.

Meu estômago despencou vertiginosamente como um elevador com os cabos cortados, e a conversa deixou de ter a mínima graça. Podia ser que isso tudo fosse uma espécie de armação — talvez até com tiras na jogada. Disse a mim mesmo que ninguém sabia sobre o Skipper, os tiras menos ainda, mas meu Deus do céu. Havia a carta; Skipper podia ter deixado a carta por aí. Não havia nada nela que se pudesse entender (a não ser o nome da irmã dele, mas há milhões de Debbies no mundo), assim como ninguém poderia entender as coisas que escrevi na calçada do lado de fora do pátio da Sra. Bukowski... ou era isso que eu achava antes da droga do telefonema. Mas quem poderia ter absoluta certeza? E você sabe o que dizem sobre consciência pesada. Eu não me sentia exatamente culpado em relação a Skipper, não na ocasião, mas, mesmo assim...

— O Supr Savr é o tipo do lugar esquisito para uma entrevista de emprego, não acha? Principalmente quando está fechado desde as oito da noite.

— É por isso que ele é bom, Dink. Privacidade num lugar público. Vou estacionar junto do pátio onde estão os carrinhos. Você vai reconhecer o carro... é um Mercedes grande, cinzento.

— Vou reconhecer o carro porque vai ser o único — disse eu, mas ele já tinha desligado.

Pus o telefone no gancho e coloquei o dinheiro no bolso quase sem perceber o que estava fazendo. Eu suava ligeiramente pelo corpo todo. A voz ao telefone queria encontrar comigo junto do pátio onde estão os carrinhos, onde Skipper tinha tantas vezes implicado comigo. Onde uma vez ele amassara meus dedos entre dois carrinhos do supermercado, rindo quando eu gritava. Ter os dedos amassados dói para burro. Duas das unhas ficaram pretas e caíram. Foi quando resolvi tentar a carta, e os resultados tinham sido inacreditáveis. Mesmo assim, se o fantasma de Skipper Brannigan estava no pedaço, o lugar mais provável onde iria perambular à procura de novas vítimas para torturar seria este pátio. Era possível que a voz ao telefone não tivesse escolhido o lugar por acaso. Tentei dizer a mim mesmo que era besteira, que coincidências acontecem o tempo todo, mas eu não acreditava nisso. O Sr. Sharpton sabia sobre o Skipper. De algum modo, ele sabia.

Estava com medo de me encontrar com ele, mas não tinha escolha. Se não descobrisse nada mais, pelo menos descobriria o quanto ele sabia. E a quem podia contar.

Levantei, vesti o casaco (estávamos no início da primavera e as noites eram frias — parece que as noites sempre são frias no oeste da Pensilvânia) e saí. Então voltei e deixei um bilhete para Mamãe. “Saí com uns colegas”, escrevi. “Vou estar de volta lá pela meia-noite.” Eu pretendia voltar bem antes da meia-noite, mas o bilhete me pareceu uma boa idéia. Eu não pensei muito no porquê, não naquele momento, mas posso confessar agora: se algo me acontecesse, algo ruim, eu queria ter certeza de que Mamãe chamaria a polícia.

 

HÁ DOIS TIPOS DE medo — pelo menos, esta é a minha tese. Há o medo-TV, e há o medo-verdadeiro. Acho que na maior parte da nossa vida sofremos o medo-TV. Como quando esperamos o resultado de um exame de sangue, ou quando voltamos a pé da biblioteca para casa no escuro e pensamos que uns caras mal-encarados podem estar ali na moita. Não ficamos com medo-verdadeiro dessas porcarias porque no fundo sabemos que os exames de sangue estarão bons e que não haverá nenhum cara mal-encarado na moita. Por quê? Porque coisas assim só acontecem às pessoas na tevê.

Quando vi aquele grande Mercedes cinzento, o único carro em quase um acre de estacionamento vazio, senti o medo-verdadeiro pela primeira vez desde aquele dia, no depósito com Skipper Brannigan. Aquela vez foi o mais perto que cheguei de realmente mergulhar nesse tipo de medo.

O carrão do Sr. Sharpton estava iluminado pelas lâmpadas de mercúrio amarelas do estacionamento, um grande Bochemóvel, no mínimo um 450 e provavelmente um 500. O tipo de carro que custava 25 mil naqueles dias. Ali parado junto ao pátio onde ficam os carrinhos (agora quase vazio, todos os carrinhos já trancados em segurança do lado de dentro, exceto um pobre e velho triciclo aleijado), com seus faróis traseiros ligados, vapor branco subindo no ar e o motor ronronando como um gato adormecido.

Fui de carro até ele, o coração batendo devagar, mas com força, e sentindo na boca um gosto de cobre. Eu queria simplesmente pisar no acelerador do meu Ford (que naqueles dias cheirava a pizza de pimentão) e dar o fora dali bem rápido, mas não conseguia me livrar de uma voz dizendo que o cara sabia sobre o Skipper. Eu podia retrucar dizendo que não havia nada a saber, que Charles “Skipper” Brannigan tinha sofrido um acidente ou se suicidara, os tiras não tinham certeza se fora uma coisa ou outra (é claro que não conheciam Skipper muito bem; do contrário, teriam atirado a idéia de suicídio imediatamente pela janela — caras como Skipper não se apagam de jeito nenhum, não aos 23 anos), mas isso não impediu a voz de gritar que eu estava encrencado, alguém tinha percebido a coisa, alguém pegara a carta e sacara o que acontecera.

Aquela voz não tinha a lógica a seu lado, nem precisava. Tinha bons pulmões e uma lógica que vencia no grito. Estacionei ao lado do Mercedes paradão e desci o vidro do meu carro. A janela do Mercedes desceu também. Olhamos um para o outro, eu e o Sr. Sharpton, como velhos amigos encontrando-se num Drive-In.

Não lembro muito dele agora. É esquisito, se a gente leva em conta todo o tempo que passei pensando nele desde aquela época, mas é verdade. Só lembro que ele era magro e que estava de terno, um terno bom, embora julgar um negócio desses não seja o meu ponto forte. Mesmo assim, o terno me fez relaxar um pouco. Acho que inconscientemente eu tinha a idéia de que terno significava negócios, e jeans e camiseta, farra.

— Olá, Dink — disse ele. — Eu sou Sharpton. Venha até aqui e sente-se.

— Por que a gente não fica assim? — perguntei. — Podemos conversar pela janela. As pessoas vivem fazendo isso.

Ele olhou para mim e não disse nada. Depois de alguns segundos, desliguei o Ford e saí. Não sei exatamente por que fiz isso, mas fiz. Estava mais assustado que nunca, vou te contar. Com medo-verdadeiro. Verdadeiro como a verdade. Talvez tenha sido por isso que ele conseguiu que eu fizesse o que queria.

Fiquei entre os dois carros por um minuto, olhando para o pátio dos carrinhos e pensando em Skipper. Ele era alto, com o cabelo louro e ondulado penteado para trás, tinha espinhas e lábios vermelhos como uma moça de batom. Ele dizia “Ei, Dinky, vamos ver o seu Pinky”, ou “Ei, Dinky, quer chupar o meu Pinky?”. Sabe, essas gracinhas nojentas. Às vezes, quando estávamos juntando os carrinhos, ele me perseguia com um deles e me atropelava os calcanhares gritando “Rmmmm! Rmmmra! Rmmmm!”, como na porra de uma corrida de automóvel. Por uma ou duas vezes, ele me derrubou. No intervalo do jantar, se eu estivesse com a comida no colo, ele dava um encontrão em mim com toda a força para ver se derrubava alguma coisa no chão. Você sabe do que estou falando, tenho certeza. Era como se ele ainda tivesse a mesma idéia de diversão daqueles garotos entediados que ficam sentados nas últimas fileiras da sala de aula.

Eu usava rabo-de-cavalo no trabalho, as regras do supermercado obrigavam a gente a prender o cabelo se estivesse comprido, e às vezes Skipper aparecia por trás de mim, agarrava o elástico que prendia o meu cabelo e o arrancava. Às vezes, ele ficava preso no meu cabelo e o repuxava. Às vezes, rebentava e batia no meu pescoço com um estalo. A coisa chegou a tal ponto que eu levava dois ou três elásticos extras no bolso quando ia trabalhar. Eu tentava não pensar no motivo de estar fazendo aquilo, e por que agüentava a coisa. Se fizesse isso, provavelmente ia começar a me odiar.

Certa vez me virei quando ele puxava o elástico, e ele deve ter visto algo no meu rosto, porque o sorriso de provocação foi substituído por outro. O primeiro sorriso não mostrava os dentes, mas o novo sim. Foi bem ali no depósito, onde a parede norte está sempre fria porque faz fronteira com o compartimento das carnes. Skipper levantou os punhos. Os outros caras ficaram por ali com seus almoços, olhando para nós, e eu sabia que nenhum deles me ajudaria. Nem mesmo Pug, que tem l,62m e uns 50 quilos. Skipper comeria ele como se fosse uma barra de chocolate, e Pug sabia disso.

— Vamos, bundão — disse Skipper com aquele sorriso. O elástico arrancado do meu cabelo pendia rebentado entre seus dedos como a lingüinha vermelha de um lagarto. — Como é, quer brigar comigo? Tudo bem, bundão, eu brigo com você.

O que eu queria era perguntar por que ele cismava comigo, por que eu o irritava, por que ele tinha que fazer isso com quem quer que fosse. Mas ele não ia responder. Caras como Skipper nunca respondem. Só querem arrebentar os dentes do outro. Portanto, em vez disso, eu apenas sentei e peguei meu sanduíche de novo. Se tentasse brigar com o Skipper, ele provavelmente me mandaria para o hospital. Comecei a comer, mas tinha perdido o apetite. Ele me olhou por mais um ou dois segundos e achei que ia me pegar de qualquer maneira. Mas então ele abriu os punhos. O elástico rebentado caiu no chão ao lado de um caixote de alfaces desmantelado. “Seu lixo”, disse Skipper. “Seu fodido lixo hippie de cabelo comprido.” Então se afastou. Alguns dias depois disso, ele amassou meus dedos entre dois carrinhos no Korral, e mais alguns dias depois, Skipper estava deitado no cetim, na Igreja Metodista, com o órgão tocando. Mas foi ele mesmo quem provocou. Pelo menos, era o que eu pensava então.

— Uma viagenzinha pela Alameda da Memória? — perguntou o Sr. Sharpton, e isso me empurrou de volta para o presente, Eu estava entre o carro dele e o meu, em pé próximo do pátio dos carrinhos onde Skipper nunca mais esmagaria os dedos de alguém.

— Não sei do que está falando.

— Isso não tem importância. Pule para cá, Dink, e vamos ter uma conversinha. Abri a porta do Mercedes e entrei. Cara, que cheiro. Era de couro, mas não apenas couro. Você conhece o cartão Pode-Sair-da-Cadeia, do jogo Monopólio? Quando você é bastante rico para ter um carro com o cheiro do Mercedes cinzento do Sr. Sharpton, deve ter um cartão Pode-Sair-de-Tudo-quanto-é-Lugar.

Inspirei profundamente, prendi a respiração, soltei e disse:

— Isso é eventual.

O Sr. Shapton riu, as faces recém-barbeadas cintilando às luzes do painel. Ele não perguntou o que eu queria dizer; ele sabia.

— Tudo é eventual, Dink. Ou pode ser, para a pessoa certa.

— O senhor acha?

— Eu sei. — Nem um fiapo de dúvida na voz dele.

— Gosto da sua gravata. — Disse isso só para dizer alguma coisa, mas era verdade também. A gravata não era o que eu chamaria de eventual, mas era legal. Sabe esse tipo de gravata que tem caveiras, dinossauros, pequenos tacos de golfe ou coisas assim nela toda? A dele tinha espadas espalhadas por toda ela, uma mão firme segurando cada uma.

Ele riu e passou a mão pela gravata, tipo alisando.

— É a minha gravata da sorte — disse. — Quando a ponho, sinto-me que nem o rei Arthur. — O sorriso morreu em seu rosto pouco a pouco e percebi que ele não estava brincando. — O rei Arthur juntando os melhores homens que existiram. Cavaleiros para sentar com ele à Távola Redonda e refazer o mundo.

Isso me deu um calafrio, mas tentei não demonstrar.

— O que quer de mim, Art? Que eu o ajude a procurar o Santo Graal, ou sei lá como chamam aquilo?

— A gravata não faz do homem um rei — disse ele. — Sei disso, caso você esteja pensando no assunto.

Eu me mexi, pouco à vontade.

— Bem, eu não estava tentando menosprezar o senhor...

— Não tem importância, Dink. Mesmo. A resposta à sua pergunta é que eu sou parte caçador de recompensas, parte caçador de talentos e parte destino personificado. Cigarro?

— Não fumo.

— Isso é bom, você vai viver mais. Os cigarros são assassinos. Por que outra razão as pessoas os chamariam de arromba-peito?

— Nessa o senhor me pegou.

— Espero que sim — disse o Sr. Sharpton, acendendo o cigarro. — Espero sinceramente que sim. Você é artigo de primeira categoria, Dink. Duvido que acredite nisso, mas é verdade.

— Que oferta é essa que o senhor falou?

— Conte o que aconteceu a Skipper Brannigan.

Bum, meu maior medo tinha se concretizado. Ele não podia saber, ninguém podia, mas de algum modo ele descobrira. Fiquei ali me sentindo entorpecido, o coração acelerado e a língua grudada no céu da boca como se estivesse colada lá.

— Vamos, conte. — Sua voz parecia vir de uma longa distância, como uma onda curta de rádio tarde da noite.

Recuperei a língua. Precisei me esforçar, mas consegui botar ela no lugar certo.

— Eu não fiz nada. — Minha própria voz parecia chegar na mesma horrível onda curta. — Skipper teve um acidente, só isso. Estava voltando para casa de carro e saiu da estrada. O carro capotou e caiu no rio Lockerby. Acharam água nos pulmões dele, então acho que se afogou, pelo menos tecnicamente, mas deu no jornal que ele teria morrido de qualquer modo, provavelmente. A maior parte da cabeça dele foi arrancada com a capotagem, ou é isso que o povo diz. E alguns dizem que não foi um acidente, que ele se matou, mas eu não engulo essa. Skipper estava... estava se divertindo muito com a vida para se matar.

— Sim. Você era parte dessa diversão, não era?

Eu não disse nada, mas meus lábios tremeram e meus olhos se encheram de lágrimas.

O Sr. Sharpton estendeu a mão e a pôs no meu braço. Era o tipo de coisa que a gente espera de um sujeito velho feito ele, sentado ali no grande carro alemão num estacionamento deserto, mas, quando me tocou, eu soube que não era isso, que ele não estava dando em cima de mim. Era bom ser tocado daquele modo. Até então eu não sabia como estava triste. Às vezes a gente não sabe, porque a coisa está toda ali em volta. Abaixei a cabeça. Não abri o berreiro ou coisa assim, mas as lágrimas correram pelo meu rosto. As espadas em sua gravata dobraram, depois triplicaram de número.

— Se está pensando que eu sou um tira, não se preocupe. E eu lhe dei dinheiro... isso estragaria qualquer acusação que pudesse sair disso. Mas, mesmo que eu fosse um tira, ninguém acreditaria no que realmente aconteceu com o jovem Brannigan, de qualquer modo. Nem se você confessasse numa rede de tevê. Acha que acreditariam?

— Não — sussurrei. Então, mais alto: — Agüentei muita coisa. Até que não consegui agüentar mais. Ele me fez fazer aquilo, ele mesmo provocou a coisa.

— Conte o que aconteceu — disse o Sr. Sharpton,

— Escrevi uma carta para ele. Uma carta especial.

— É, muito especial mesmo. E o que você escreveu nela para que só funcionasse para ele?

Eu sabia o que ele estava querendo dizer, mas havia mais ali. Quando você personaliza as cartas, aumenta o poder delas. Elas ficam não só perigosas como letais.

— O nome da irmã dele — disse eu. Acho que foi quando cedi completamente. — A irmã dele, Debbie.

 

SEMPRE TIVE ALGO, uma espécie de dom, e sabia disso, mas não como usar o negócio, como se chamava ou o que significava. E eu meio que sabia que tinha que manter a coisa secreta, porque os outros não tinham aquilo. Achei que podiam me pôr no circo se descobrissem. Ou na prisão.

Lembro que uma vez — muito vagamente, eu devia ter três ou quatro anos, é uma das minhas primeiras lembranças — eu estava em pé olhando o pátio lá fora por uma janela suja. Havia um cepo de cortar lenha e uma caixa de correio com uma bandeira vermelha, e então deve ter sido na época em que morávamos na casa da tia Mabel, no campo. Foi lá que moramos depois que meu pai fugiu. Mamãe arranjou um emprego na Padaria Fina de Harkerville e nos mudamos de novo para a cidade depois, quando eu tinha uns cinco anos. Sei que estávamos morando na cidade quando comecei a ir à escola. Sei disso por causa do cachorro da Sra. Bukowski, eu tinha que passar pelo puto do canibal cinco dias por semana, um bóxer com uma orelha branca. Nunca vou esquecer daquele cachorro, por falar em Alameda da Memória.

Seja como for, eu estava olhando para fora e havia umas moscas zumbindo na parte de cima da janela, você sabe como elas fazem. Eu não gostava do som, mas nem com uma revista enrolada eu podia alcançar o alto, para dar uma pancada nelas ou enxotá-las. Então, em vez disso, desenhei dois triângulos no vidro da janela empurrando a sujeira com a ponta do dedo, e fiz um círculo especial para segurar os triângulos. E assim que fiz aquilo, assim que fechei o círculo, as moscas — eram quatro ou cinco — caíram mortas no parapeito da janela. Eram grandes como confeitos — os que têm gosto de alcaçuz. Peguei uma e olhei, mas não era muito interessante; então a soltei no chão e continuei olhando pela janela.

Coisas assim aconteciam de tempos em tempos, mas nunca de propósito, nunca porque eu fizesse elas acontecerem. A primeira vez que lembro de fazer algo totalmente de propósito — quer dizer, antes de Skipper — foi quando usei essa coisa no cachorro da Sra. Bukowski. A Sra. Bukowski morava na esquina da nossa rua, quando alugamos uma casa na Avenida Dugway. Seu cachorro era mau e perigoso, toda criança do West Side tinha medo daquele filho-da-puta de orelha branca. A Sra. Bukowski deixava ele amarrado em seu pátio lateral — quer dizer, acorretado no pátio lateral — e o nojento latia para todos que passavam. Não um latido inofensivo, como o de alguns cachorros, mas do tipo que diz Se eu pudesse ter você aqui perto ou se eu pudesse ir até aí, arrancaria seu saco, garotão. Certa vez, o cachorro se soltou e mordeu o menino que entregava os jornais. O cachorro de qualquer outro provavelmente teria sido liquidado, mas o filho da Sra. Bukowski era chefe de polícia, e de algum modo ajeitou a coisa.

Eu detestava tanto aquele cachorro como detestei Skipper. De certo modo, acho que ele era Skipper. E eu tinha que passar pela casa da Sra. Bukowski para ir à escola, a não ser que me desviasse da esquina e fosse chamado de veado, e ficava aterrorizado de ver como o vira-lata corria até o final da corda, latindo com tanta força que a espuma voava de seus dentes e seu focinho. Às vezes, ele esticava a corda até o final com tanta força que chegava a se levantar, tooiiing, o que pode ter parecido engraçado para algumas pessoas, mas nunca para mim; eu tinha medo que a corda (não uma corrente, mas um velho pedaço de corda comum) rebentasse um dia e o desgraçado pulasse a cerca baixa de madeira entre o pátio da Sra. Bukowski e a Avenida Dugway, e me rasgasse a garganta.

Então, um dia, acordei com uma idéia. Quer dizer, ela estava bem ali diante de mim. Acordei com ela do mesmo modo que algumas vezes acordava com um grande e latejante tesão. Era um sábado bem cedo, o tempo estava bonito, e eu não tinha que ir a lugar algum que me obrigasse a passar pela casa da Sra. Bukowski se eu não quisesse, mas naquele dia eu quis. Saí da cama e me vesti o mais rápido que pude. Fiz tudo rápido porque não queria perder a idéia de vista. Eu perderia — como a gente perde depois os sonhos com que acorda (ou a ereção com que acorda, se quiser ser grosso) —, mas naquele momento estava tudo na minha cabeça, claro como água: palavras cercadas por triângulos e arabescos por cima deles, círculos especiais para unir toda a porcaria... dois ou três, sobrepondo-se para dar uma força extra.

Eu praticamente voei pela sala (Mamãe ainda dormia, eu ouvia seus roncos, e o uniforme rosa da padaria estava pendurado no cano do chuveiro) e entrei na cozinha. Mamãe tinha um pequeno quadro-negro junto ao telefone para anotar números e lembretes para si mesma — QUADRO DE AVISOS DE MAMÃE em vez de QUADRO DE AVISOS DE DINKY, você diria — e parei para surrupiar o pedaço de giz rosa pendurado num barbante ao lado dele. Guardei o giz no bolso e saí. Lembro da manhã linda que fazia, fria mas não gelada, o céu tão azul que parecia ter sido lavado de ponta a ponta, sem muita gente na rua ainda, a maioria do pessoal dormindo mais um pouco, como todo mundo gosta de fazer no sábado quando pode.

O cachorro da Sra. Bukowski não estava dormindo. De jeito nenhum, porra. Aquele cachorro acreditava firmemente em “servir bem, para servir sempre”, Ele me viu chegando através da cerca de madeira e jogou-se até o final da corda com a mesma força de sempre, talvez com uma força até maior, como se alguma parte do seu obtuso cerebrozinho de cão soubesse que era sábado e que eu não tinha nada para fazer ali. Ele atingiu o final da corda, tooiinng, e voltou direto para trás. Mas estava em pé de novo num segundo, esticando sua corda e latindo daquele sufocante modo estou-sendo-estrangulado-mas-não-ligo. Acho que a Sra. Bukowski estava acostumada àquele som, talvez até gostasse dele, mas sempre me espantei que os vizinhos o agüentassem.

Não prestei nenhuma atenção naquele dia. Estava excitado demais para ficar com medo. Pesquei o giz do bolso e me ajoelhei. Por um segundo, pensei que a coisa toda tivesse sumido de minha cabeça, e isso era ruim. Senti o desespero e a tristeza tentando me dominar e pensei: Não, não, não deixa, não deixa, Dinky, lute contra. Escreve qualquer coisa, mesmo que seja apenas FODA-SE O CACHORRO DA SRA. BUKOWSKI.

Mas não escrevi isso. Desenhei aquela forma, acho que era um sankofite. Uma forma esquisita, mas que era a certa, porque destrancou todo o resto. Minha cabeça se inundou com a coisa. Era maravilhoso, mas ao mesmo tempo assustador, porque era demais, porra. Durante uns cinco minutos, fiquei ajoelhado na calçada, suando como um porco e escrevendo como um demônio louco. Escrevi palavras de que nunca ouvira falar e desenhei formas que nunca tinha visto — formas que ninguém nunca tinha visto: não só sankofites, mas também japps, fouders e mirks. Escrevi e desenhei até estar coberto de pó cor-de-rosa quase até o cotovelo direito, e o pedaço de giz de Mamãe virar uma pedrinha na minha mão. O cachorro da Sra. Bukowski não morreu como as moscas, latiu para mim o tempo todo e provavelmente recuou, correu por toda a extensão da corda uma vez ou duas, mas não reparei. Eu estava num frenesi total. Jamais poderia descrever aquilo nem num milhão de anos, mas aposto que é assim que sentem os grandes músicos como Mozart e Eric Clapton quando estão escrevendo sua música, ou os pintores quando conseguem pôr na tela o seu melhor trabalho. Se alguém tivesse aparecido, eu não teria dado bola. Porra, se o próprio cachorro da Sra. Bukowski arrebentasse a corda, pulasse a cerca e se agarrasse no meu traseiro, é possível que eu também não lhe desse a mínima bola.

Foi eventual, cara. Foi tão eventual que nem consigo contar, porra.

Ninguém apareceu, embora alguns carros passassem e as pessoas neles talvez imaginassem o que aquele garoto estava fazendo ali, o que estaria desenhando na calçada, e o cachorro da Sra. Bukowski continuava latindo. No final, percebi que tinha que tornar a coisa mais forte, e o jeito era fazer isso só com o cachorro. Como não sabia o nome dele, escrevi BÓXER com o último toco do giz, fiz um círculo em volta da palavra e então desenhei uma flecha no fundo do círculo apontando para o resto. Fiquei tonto; minha cabeça latejava como quando a gente termina uma prova superdifícil, ou quando a gente vê tevê por tempo demais. Achei que ia ficar doente... mas, mesmo assim, me senti totalmente eventual.

Olhei para o cachorro — que ainda estava vivo como sempre, latindo e tipo se empinando nas patas traseiras quando a corda acabava —, mas isso não me aborreceu. Voltei para casa me sentindo muito bem mentalmente. Sabia que o cachorro da Sra. Bukowski já era. Da mesma forma que um bom pintor sabe quando pintou um bom quadro, ou um bom escritor sabe quando escreveu uma boa história. Quando o negócio está certo, acho que a gente sabe, ponto final. Você fica com a cabeça leve.

Três dias depois, o cachorro estava comendo capim pela raiz. Soube da história da melhor fonte possível quando se trata de cachorros maus e idiotas: o carteiro do bairro, um sujeito chamado Shermerhorn. Ele contou que o bóxer da Sra. Bukowski por algum motivo começou a correr em volta da árvore em que ficava amarrado e, quando chegou ao final da corda (ah-ah, final da corda), não conseguiu voltar. Como a Sra. Bukowski estava fazendo compras naquela hora, não pôde ajudar. Quando chegou em casa, encontrou o cachorro embaixo da árvore no pátio, sufocado, mortinho da silva.

A escrita na calçada ficou ali por uma semana mais ou menos; então choveu forte e de tudo aquilo só restou uma mancha cor-de-rosa. Mas até chover, a coisa estava bem nítida. E vi com meus próprios olhos que enquanto ela estava nítida ninguém andava por cima dela. Crianças a caminho da escola, senhoras indo a pé para o centro, o carteiro Shermerhorn — todos contornavam o que estava escrito no chão. Acho que nem sabiam por que faziam isso. E ninguém também nunca falou a respeito, tipo “Por que essa porcaria estranha está escrita na calçada?”, ou “O que será um negócio desses?”. (Um founder, dimbulb) Era como se nem vissem que a coisa estava ali. Mas parte deles deve ter visto. Do contrário, por que teriam se desviado da escrita?

 

NÃO CONTEI TUDO isso ao Sr. Sharpton, mas contei o que ele queria saber sobre Skipper. Eu tinha chegado à conclusão de que podia confiar nele. Talvez aquela minha parte secreta soubesse que podia confiar nele, mas acho que não. Acho que foi apenas o jeito com que ele pôs a mão no meu braço, como um pai. Não que eu tenha pai, mas posso imaginar.

Além do mais, como ele disse — mesmo se fosse um tira e me prendesse, juiz e júri nenhum iam acreditar que Skipper Brannigan tinha perdido o controle do carro e saído da estrada por causa de uma carta recebida de mim. Especialmente uma carta cheia de palavras absurdas e símbolos inventados por um entregador de pizza que levara bomba em geometria na escola. Duas vezes.

Quando terminei, um comprido silêncio ficou no lugar das minhas palavras. Finalmente Sr. Sharpton disse:

— Ele mereceu. Você sabe disso, não sabe?

E por alguma razão isso provocou tudo. A represa estourou e eu chorei como um bebê. Devo ter chorado por uns 15 minutos ou mais. O Sr. Sharpton me abraçou e me puxou contra o peito, e eu molhei a lapela de seu terno. Se alguém tivesse passado de carro e nos visto, teria pensado que éramos duas bichas, mas ninguém passou. Só eu e ele estávamos ali debaixo das lâmpadas amarelas de mercúrio, junto ao pátio dos carrinhos. Yipi-yip-yo, é bom se acostumar, senhor carrinho de compras, cantava Pug, o Supr Savr vai ser o seu novo lar. Nós ríamos até chorar.

Finalmente consegui desligar a torneira. O Sr. Sharpton me passou um lenço e eu enxuguei os olhos.

— Como soube? — perguntei. Minha voz parecia profunda e esquisita, como uma sirene de nevoeiro.

— Depois que a pessoa é descoberta, só é necessário um trabalho muito simples de detetive.

— Mas como é que fui descoberto?

— Temos algumas pessoas... uma dúzia mais ou menos ao todo... que procuram rapazes e moças como você, e que podem de fato percebê-los, Dink. Como certos satélites no espaço podem ver reatores nucleares e usinas de energia. Vocês aparecem em amarelo. Como chamas de fósforos, foi como o descobridor em questão descreveu para mim. — Ele sacudiu a cabeça e deu um sorriso irônico. — Eu gostaria de ver algo assim pelo menos uma vez na vida. Ou poder fazer o que você faz. Claro, eu também gostaria de ter um dia... um dia só já seria bom... em que pudesse pintar como Picasso ou escrever como Faulkner.

Fiquei de boca aberta.

— É verdade? Há pessoas que podem ver...

— Sim. São nossos cães de caça. Elas percorrem o país... e todos os outros países... procurando esse brilhante fulgor amarelo, pontas de fósforos na escuridão. A moça em questão estava na Rodovia 90, na realidade ia pegar um pequeno avião em Pittsburgh de volta para casa, quando viu você. Ou sentiu você. Ou seja lá o que fazem. Os descobridores, na verdade, não conhecem muito a si próprios, da mesma forma que você não sabe o que fez a Skipper. Sabe?

— O quê...

Ele ergueu a mão.

— Eu lhe disse que você não teria todas as respostas... isso é algo que terá que decidir na base do que sente, não do que sabe... mas posso lhe dizer umas duas coisas. Para começar, Dink, eu trabalho para uma companhia chamada Trans Corporation. Nosso trabalho é livrar o mundo dos Skipper Brannigans... dos grandes, aqueles que fazem a mesma coisa que o Skipper, mas em grande escala. A sede da companhia é em Chicago e temos um centro de treinamento em Peoria... onde você passará uma semana, se aceitar a minha proposta.

Eu não disse nada naquele momento, mas já sabia que ia aceitar a sua proposta. Fosse qual fosse, eu ia aceitar.

— Você é um transistor, meu jovem amigo. É melhor se acostumar com a idéia.

— E que idéia é essa?

— Uma característica. Há pessoas em nossa organização que pensam que o que você tem... o que você pode fazer... é um talento, ou uma capacidade, ou até uma espécie de defeito, mas estão enganados. O talento e a capacidade nascem da característica. A característica é geral, o talento e a capacidade são específicos.

— Vai ter que falar mais simples. Eu larguei a escola.

— Eu sei — disse ele. — Também sei que saiu não porque era burro, saiu porque não se ajustou. Nisso você é como todos os outros transistores que conheci. — Ele riu do jeito áspero como as pessoas riem quando não estão realmente achando graça. — Todos os 21. Agora ouça, e não banque o bobo. A criatividade é como uma mão no final do braço. Mas uma mão tem muitos dedos, não é?

— Bem, pelo menos cinco.

— Pense nesses dedos como capacidades. Uma pessoa criativa pode escrever, pintar, esculpir ou elaborar fórmulas matemáticas; pode dançar, cantar ou tocar um instrumento musical. Esses são os dedos, mas a criatividade é a mão que dá vida a eles. E todas as mãos são basicamente as mesmas... a forma segue a função... todas as pessoas criativas são as mesmas até onde os dedos se articulam.

“A Trans é como a mão também. Às vezes seus dedos são chamados de premonição, a capacidade de ver o futuro. Às vezes têm também a capacidade de ver o passado. Temos um rapaz que sabe quem matou John F. Kennedy, e não foi Lee Harvey Oswald; na verdade, foi uma mulher. Há a capacidade da telepatia, pirocinese, telempatia e sabe Deus quantas outras mais. Nós não sabemos, certamente; é um novo mundo, e mal começamos a explorar seu primeiro continente. Mas a Trans é diferente da criatividade de um modo vital: é muito mais rara. Uma pessoa em 800 é o que os psicólogos ocupacionais chamam de dotada. Acreditamos que possa haver apenas um transistor em cada oito milhões de pessoas.”

Isso tirou a minha respiração — a idéia de ser apenas um em oito mihões tiraria a respiração de qualquer um, não é?

— São cerca de 120 em cada bilhão de pessoas comuns — disse ele. — Achamos que não pode haver mais de três mil dos chamados transistores no mundo inteiro. Nós os estamos encontrando um a um. É um trabalho lento. A capacidade de sentir tem um nível muito baixo, mas por enquanto só temos mais ou menos uma dúzia de descobridores, e cada um recebe muito treinamento. É uma vocação difícil... mas também tremendamente compensadora. Estamos encontrando transistores e pondo-os para trabalhar. É o que queremos fazer com você, Dink: pô-lo para trabalhar. Queremos ajudá-lo a sintonizar o foco do seu talento, afiá-lo e usá-lo para a melhoria de toda a humanidade. Você não vai poder mais ver seus velhos amigos... descobrimos que não há risco maior para a segurança do que um velho amigo... e também não há exatamente uma montanha de dinheiro nisso, pelo menos no começo, mas há uma montanha de satisfação, e o que vou lhe oferecer é apenas o primeiro degrau do que pode ser uma escada muito alta.

— Não esqueça dos benefícios adicionais — disse eu, levantando a voz na última palavra para transformar a frase numa pergunta, se o Sr. Sharpton quisesse encará-la dessa forma.

Ele sorriu e deu um tapinha no meu ombro.

— Está certo — disse ele. — Os famosos benefícios adicionais.

Então comecei a ficar animado. Minhas dúvidas não haviam desaparecido, mas estavam se derretendo.

— Me conte sobre o emprego — disse eu, o coração batendo com força, mas agora sem medo. — Me faça uma oferta que eu não possa recusar.

E foi exatamente o que ele fez.

 

TRÊS SEMANAS DEPOIS, eu entrava num avião pela primeira vez na vida — e que maneira de perder o cabaço! O único passageiro num Lear 35, ouvindo o Counting Crows derramando-se dos alto-falantes quadrafônicos com uma Coca na mão, observando o altímetro subir até 42 mil pés. É mais que uma milha mais alto que a maioria dos jatos comerciais voa, me disse o piloto. E uma viagem tão macia como o fundo das calcinhas de uma moça.

Passei uma semana em Peoria, e fiquei com saudades de casa. Com saudades mesmo. Aquilo me surpreendeu pra burro. Umas duas noites chorei até dormir. Tenho vergonha de dizer isso, mas como até agora disse a verdade, não quero começar a mentir ou deixar coisas de fora.

Senti menos falta foi de Mamãe. Você pode pensar que éramos ligados, como se fosse “nós contra o mundo”, como dizem, mas minha mãe nunca foi muito amorosa ou calorosa. Não me batia na cabeça ou apagava cigarros nas minhas axilas ou coisas assim, mas e daí? Grande droga. Eu nunca tive filho nenhum e então não posso dizer com certeza, mas acho que ser um grande pai ou mãe tem a ver com o que você deixou de fazer com o seu fedelho levado. Mamãe sempre foi mais ligada aos amigos do que a mim, e à sua viagem semanal ao salão de beleza e às noites de sexta no bingo. Sua grande ambição na vida era ganhar um bingo de 20 números e voltar para casa num Monte Carlo novinho em folha. Também não estou morrendo de pena de mim por isso. Estou só contando como era.

O Sr. Sharpton ligou para Mamãe e avisou que eu fora escolhido para participar do curso de treinamento avançado em computador como estagiário da Trans Corporation, um negócio especial para rapazes sem diploma e com potencial. Dava para acreditar de fato naquela história. Fui um estudante de matemática de merda e ficava quase totalmente paralisado nas aulas de inglês, nas quais se espera que você fale, mas minhas relações com os computadores da escola sempre foram boas. Na verdade, mesmo que eu não goste de me gabar (e nunca deixei nenhum dos professores saber desse pequeno segredo), eu podia programar anéis em torno do Sr. Jacubois e Sra. Wilcoxen. Nunca liguei muito para jogos de computador — eles são estritamente para cabeças-ocas, na minha humilde opinião —, mas eu podia hackear as senhas como um filho-da-puta maluco. Às vezes, Pug aparecia para me ver fazendo aquilo.

— Não acredito — disse uma vez. — Você manda ver legal com essa coisa, cara.

Sacudi os ombros.

— Qualquer bobo pode descascar a maçã. Mas é preciso ser homem de verdade para comer o miolo.

Mamãe acreditou na coisa (ela faria mais perguntas se soubesse que a Trans Corporation estava me despachando para Illinois num jato particular, mas não sabia), e eu não senti tanta falta dela assim. Mas senti falta de Pug e de John Cassiday, que era nosso outro amigo dos dias do supermercado. John toca baixo numa banda punk, usa um piercing de ouro na sobrancelha esquerda e tem quase todos os discos do catálogo da Subpop. Chorou quando Kurt Cobain comeu capim pela raiz. Também não tentou esconder ou pôr a culpa na alergia. Disse apenas: “Estou triste porque Kurt morreu.” John é eventual.

E sentia falta de Harkerville. Perverso, mas verdadeiro. Estar no centro de treinamento em Peoria de certo modo era como nascer de novo, e acho que nascer sempre dói.

Achei que poderia encontrar algumas outras pessoas como eu — se isso fosse um livro ou um filme (ou apenas um episódio do Arquivo X), eu teria encontrado uma gata legal com peitinhos jeitosos e a capacidade de fechar portas com o poder da mente —, mas isso não aconteceu. Tenho certeza de que havia outros transistores em Peoria quando eu estava lá, mas o Dr. Wentworth e as outras pessoas que dirigiam o lugar nos deixaram cuidadosamente separados. Certa vez, perguntei por quê, mas recebi uma resposta vaga. Foi quando comecei a perceber que nem todos que tinham TRANSCORP impresso na camisa ou andavam por ali com pranchetas da TransCorp eram meus chapas, ou queriam ser o meu Papi perdido.

E a coisa se resumia em matar gente; era para isso que eu estava sendo treinado. O pessoal em Peoria não falava do negócio o tempo todo, mas ninguém tentava dourar a pílula também. Eu tinha que lembrar que os alvos eram caras ruins, ditadores, espiões, assassinos que matavam em série e, como o Sr. Sharpton disse, as pessoas faziam isso nas guerras o tempo todo. Além do mais, não era algo pessoal. Nenhuma arma, nenhuma faca, nenhum garrote. Nunca fiquei borrifado de sangue.

Como já disse, nunca mais vi o Sr. Sharpton — pelo menos até aqui —, mas falei com ele todos os dias que passei em Peoria, e isso aliviava bastante a estranheza e a dor. Falar com ele era como colocar uma compressa fria na testa. Ele me deu seu número na noite em que conversamos no Mercedes, dizendo que eu ligasse a qualquer hora. Mesmo às três da manhã, se eu me sentisse perturbado. Uma vez fiz exatamente isso. Quase desliguei quando o telefone tocou pela segunda vez, porque as pessoas podem dizer ligue a qualquer hora, mesmo às três da manhã, e na verdade não esperam que você faça isso. Mas agüentei firme. Estava com saudades de casa, sim, mas era mais do que isso. O lugar não era exatamente o que eu tinha esperado, e eu queria dizer isso ao Sr. Sharpton. Ver como é que ele recebia a coisa.

Ele atendeu na terceira chamada e, embora desse a impressão de estar sonolento (que surpresa, né?), não pareceu irritado. Falei com ele que algumas coisas que estavam fazendo ali eram muito esquisitas. O teste com aqueles flashes, por exemplo. Disseram que era um teste para epilepsia, mas...

— Dormi bem no meio dele, e quando acordei estava com dor de cabeça e foi difícil pensar. Sabe como me senti? Um arquivo depois de ter sido remexido por alguém.

— O que quer dizer, Dink? — perguntou o Sr. Sharpton.

— Acho que me hipnotizaram.

Uma breve pausa.

— Talvez tenham feito isso. É provável.

— Mas por quê? Para quê? Estou fazendo tudo o que pedem, então por que iam querer me hipnotizar?

— Não conheço todas as rotinas e procedimentos deles, mas acho que estão programando você. Colocando um monte de material de organização nos níveis inferiores de sua mente para que não tenham que drogar a parte consciente... e talvez estragar sua capacidade especial quando fizerem isso. É o mesmo que programar um disco rígido de computador, tão sinistro quanto.

— Mas o senhor não tem certeza?

— Não... como disse, treinamentos e testes não fazem parte do meu escopo. Mas vou dar alguns telefonemas e o Dr. Wentworth ligará para você. Pode ser até que seja o caso de um pedido de desculpas. Se for o caso, Dink, pode ter certeza de que será suavizado. Nossos transistores são muito raros e valiosos para serem aborrecidos desnecessariamente. Há mais alguma coisa?

Pensei um pouco e disse que não. Então agradeci e desliguei. Dizer que eu achava que tinha sido drogado também esteve na ponta da minha língua... assim como minha suspeita de que tinham me dado algo para levantar o meu ânimo e me ajudar a superar a saudade de casa, mas no final das contas resolvi não amolar o Sr. Sharpton com aquilo. Bolas, eram três horas da manhã, e se tivessem me dado algo, provavelmente era para o meu próprio bem.

 

O DR. WENTWORTH VEIO me ver no dia seguinte — era o Grande Xamã — e de fato se desculpou. Foi totalmente simpático a respeito do assunto, embora tivesse uma expressão, não sei, como se talvez o Sr. Sharpton tivesse ligado para ele dois minutos depois que desliguei e lhe dado uma espinafraçâo daquelas.

O Dr. Wentworth me levou para um passeio pelo gramado dos fundos — verde, ondulante e quase perfeito no final da primavera — e disse que lamentava por não me manter “por dentro”. O teste de epilepsia era de fato um teste de epilepsia, disse ele (e uma tomografia computadorizada também), mas, uma vez que induzia a maioria das pessoas a um estado hipnótico, geralmente o aproveitavam para dar certas “instruções básicas”. No meu caso, foram instruções sobre os programas de computador que eu estaria usando em Columbia City. O Dr. Wentworth me perguntou se eu tinha outras perguntas. Menti e disse que não.

Você provavelmente acha isso esquisito, mas não é. Quer dizer, tive uma trajetória escolar comprida e desagradável que terminou três meses antes da formatura. Tive professores de quem gostava assim como outros que detestava, mas nunca tive nenhum em quem confiasse totalmente. Eu era o tipo do garoto que sempre sentava no fundo da sala se a disposição dos lugares não fosse em ordem alfabética, e nunca participei dos debates da turma. Na maioria das vezes, dizia “Ahn?” quando era chamado, nem cavalos selvagens teriam arrancado uma pergunta de mim. O Sr. Sharpton foi o único cara que conheci capaz de sacar qual era a minha, e o velho Wentworth com sua careca, olhos agudos e os pequenos óculos sem aro não era um Sr. Sharpton. Para mim era mais fácil imaginar vacas voando para o sul no inverno do que pensar em me abrir para aquele pateta, sem falar em chorar no seu ombro.

Porra, de qualquer modo, eu não sabia mais o que perguntar. Em boa parte do tempo, eu gostava de Peoria, e estava animado com as perspectivas à frente — novo emprego, nova casa, nova cidade. As pessoas eram ótimas comigo ali. Até a comida era ótima — bolo de carne, galinha frita, milk-shakes, tudo o que eu gostava. Ok, eu não gostava dos testes, daquelas melecas que a gente tinha que fazer com uma caneta óptica da IBM, e às vezes me sentia idiota, como se tivessem posto algo no meu purê de batatas (às vezes eu também me sentia superestimulado), e houve outros momentos — pelo menos dois — em que eu tive certeza de ter sido hipnoptizado de novo. Mas e daí? Quer dizer, isso era tão importante depois de você ter sido perseguido no estacionamento de um supermercado por um maníaco que ria, imitando o barulho de um automóvel e tentando atropelar você com um carrinho de compras?

 

TIVE OUTRA CONVERSA por telefone com o Sr. Sharpton que devo mencionar. Aconteceu um dia antes de minha segunda viagem de avião, para Columbia City, onde um cara esperava com as chaves da minha nova casa. Eu já sabia sobre os faxineiros e a regra-básica-sobre-dinheiro — começar toda semana duro, terminar toda semana duro — e sabia também a quem telefonar no local se tivesse um problema. (Qualquer problema grande, eu ligaria para o Sr. Sharpton, que é tecnicamente meu “controle”.) Eu tinha mapas, uma lista de restaurantes, endereços das salas de cinema e o shopping. Tinha uma conexão com tudo, a não ser com a coisa mais importante.

— Sr. Sharpton, não sei o que fazer — disse eu. Conversava com ele do telefone perto da lanchonete. Meu quarto tinha telefone, mas naquele momento me sentia nervoso demais para sentar, quanto mais deitar. Se eles estavam pondo porcaria na minha comida, naquele dia com certeza a coisa não funcionou.

— Não posso ajudá-lo nisso, Dink — disse ele, calmo como sempre. — Lamento, companheiro.

— Como assim? O senhor tem que me ajudar! O senhor me recrutou, pombas!

— Vou lhe dar um caso hipotético. Imagine que eu seja o presidente de uma faculdade com boas dotações. Sabe o que são boas dotações?

Montes de grana. Não sou burro, já disse.

— Disse sim. Eu peço desculpas. De qualquer forma, digamos que eu, o presidente Sharpton, use parte do monte de grana da minha escola para contratar um grande romancista como escritor-residente, ou um grande pianista para ensinar música. Isso me daria o direito de dizer ao romancista o que escrever ou ao pianista o que compor?

— Provavelmente não.

— Absolutamente não. Mas, digamos que eu o fizesse. Se eu dissesse ao romancista “Escreva uma comédia sobre Betsy Ross caindo na farra com George Washington na Parada Gay”, você acha que ele poderia fazer isso?

Não consegui deixar de rir. O Sr. Sharpton tinha algo que desarmava a gente.

— Talvez — respondi. — Especialmente se o senhor desse um bônus para o cara.

— Ok, mas mesmo que ele tapasse o nariz e cuspisse o romance, este provavelmente seria muito ruim. Porque gente criativa não está sempre no controle das coisas. E quando fazem seu melhor trabalho, raramente estão no controle. Estão apenas rolando por ali, de olhos fechados, berrando iupii!

— O que tudo isso tem a ver comigo? Olhe, Sr. Sharpton, quando tento imaginar o que vou fazer em Columbia City, só vejo um tremendo vazio. Ajudando pessoas, diz o senhor. Tranformando o mundo num lugar melhor. Livrando o mundo dos Skippers. Tudo isso é ótimo, só que eu não sei como fazer isso!

— Vai saber — disse ele. — Quando a hora chegar, você vai saber.

— O senhor disse que Wentworth e seus rapazes iam ajustar o foco do meu talento, afiariam ele. Mas eles só me fizeram um monte de testes estúpidos e eu me senti como se estivesse de novo na escola. Está tudo no meu subconsciente? Está tudo no disco rígido?

— Confie em mim, Dink — disse ele. — Confie em mim, e confie em você mesmo. Então foi o que fiz. Mas ultimamente as coisas não têm andado muito bem. De modo nenhum.

Aquele Neff desgraçado — tudo de ruim começou com ele. Gostaria de nunca ter visto o seu retrato. E se eu tivesse que ver um retrato, preferiria um em que ele não estivesse sorrindo.

 

NA MINHA PRIMEIRA semana em Columbia City, eu não fiz nada. Quero dizer absolutamente zero. Não cheguei nem a ir ao cinema. Quando os faxineiros apareceram, fui ao parque, sentei num banco e senti como se o mundo inteiro me observasse. Quando chegou a hora de me livrar do dinheiro extra na quinta-feira, terminei rasgando mais de 50 dólares no triturador de lixo. E lembre-se que, naqueles dias, fazer isso ainda era novo para mim. Isso é que é se sentir esquisito — cara, você não faz idéia. Enquanto eu estava ali ouvindo o motor debaixo da pia dilacerando o dinheiro, continuava pensando em Mamãe. Se Mamãe estivesse ali e visse o que eu estava fazendo, provavelmente correria atrás de mim com uma faca de açougueiro para me fazer parar. Aquilo ali era uma dúzia de jogos de bingo de 20 números, descendo direto pelo ralo da cozinha.

Dormi pessimamente naquela semana. De vez em quando eu ia para o pequeno estúdio — não queria, mas meus pés me arrastavam até lá. Como eles dizem, os assassinos sempre voltam ao local do crime, acho. Seja como for, à porta, olhava para a tela escura do computador, para o modem da Aldeia Global, e ficava suando de culpa, constrangimento e medo. Mesmo o jeito da mesa, tão arrumada e limpa, sem um único papel ou bilhete nela, me fazia suar. Eu quase podia ouvir as paredes murmurando coisas como “Nah, nada está acontecendo aqui” e “Quem é esse imbecil, o instalador de TV a cabo?”.

Eu tinha pesadelos. Num deles, a campainha da porta toca e, quando abro, dou de cara com o Sr. Sharpton com um par de algemas.

— Estenda os pulsos, Dink. Pensamos que você era um transistor, mas obviamente estávamos errados. Às vezes acontece.

— Não, eu sou um transistor — dizia eu. — Sou um transistor, só preciso de um pouco mais de tempo para me aclimatar. Lembre-se que nunca fiquei longe de casa antes.

— Você já teve cinco anos — continua ele.

Fico atônito. Não posso acreditar. Mas parte de mim sabe que é verdade. Parece que foram dias, mas foram de fato cinco anos, porra, e eu não liguei o computador no pequeno estúdio uma só vez. Se não fosse pelos faxineiros, a mesa do computador teria três centímetros de poeira.

— Estenda as mãos, Dink. Pare de tornar isso difícil para nós dois.

— Não vou fazer isso, e o senhor não pode me obrigar.

Então ele olha para trás e quem aparece na escada, senão Skipper Branningan. Está usando seu boné vermelho de náilon, só que nele está costurado TRANSCORP em vez de SUPR SAVR.

— Você achou que tinha feito alguma coisa comigo, mas não fez — diz Skipper. — Você não podia fazer nada a ninguém. Você é só um lixo hippie.

— Vou colocar essas algemas nele — diz o Sr. Sharpton a Skipper. — Se ele me causar qualquer problema, atropele-o com um carrinho de compras.

— Totalmente eventual — diz Skipper, e acordo meio na cama, meio caído no chão, gritando.

 

ENTÃO, UNS DEZ dias depois que me mudei, tive outro sonho. Não lembro o que foi, mas deve ter sido bom porque eu sorria ao acordar. Podia sentir o sorriso no rosto, um grande sorriso feliz, como quando acordei com a idéia sobre o cachorro da Sra. Bukowski. Quase o mesmo.

Vesti um jeans e voltei para o estúdio. Liguei o computador e abri a janela FERRAMENTAS. Havia um programa ali chamado QUADRO DE AVISOS DE DINKY. Fui direto para ele e todos os meus símbolos estavam lá — círculos, triângulos, japps, mirks, rombóides, bews, smims, fouders, centenas de outros. Milhares. Talvez milhões. Bem como o Sr. Sharpton tinha dito: um novo mundo, e eu estou no litoral do primeiro continente.

Sei é que de repente a coisa estava ali à minha disposição. Eu tinha um grande computador Macintosh para trabalhar, em vez de um pedacinho de giz cor-de-rosa, e só precisava digitar palavras e os símbolos surgiam. Eu estava plugado ao máximo. Quero dizer, meu Deus. Era como ter um rio de fogo queimando no meio da cabeça. Escrevi, chamei símbolos, usei o mouse para arrastar tudo para onde tudo deveria ficar. E quando terminou, eu tinha uma carta. Uma das cartas especiais.

Mas uma carta para quem?

Para onde?

Então percebi que não tinha importância. Dando-se alguns toques para personalizar, podia-se mandar a carta para muitas pessoas... embora aquela ali parecesse ter sido escrita mais para um homem do que para uma mulher. Não sei como eu sabia disso, mas sabia. Resolvi começar com Cincinnati só porque foi a primeira cidade que me veio à cabeça. Poderia da mesma forma ter sido Zurique, na Suíça, ou Waterville, no Maine.

Tentei abrir um programa de FERRAMENTAS chamado DINKYMAIL. Antes que o computador me deixasse entrar lá, ele me instruiu para configurar o modem. Uma vez que o modem estava funcionando, o computador quis um código de área 312. O 312 é Chicago, e imagino que, no que diz respeito à companhia telefônica, todas as minhas mensagens de computador vêm da sede da TransCorp. Pouco me importava; isso era o negócio deles. Eu tinha encontrado o meu negócio e estava cuidando do assunto.

 

DINKYMAIL PRONTO

 

Cliquei em LOCAL. Já estava no estúdio há quase três horas, com uma pausa apenas para dar uma rápida mijada, e podia sentir o meu próprio cheiro, suando e fedendo como um macaco numa estufa. Não liguei. Gostava do cheiro. Estava me divertindo como nunca. Estava delirando, caralho.

Digitei CINCINNATI e cliquei EXECUTE.

 

NENHUMA LISTA PARA CINCINNATI,

 

disse o computador. Ok, nenhum problema. Tente Columbus — mais próximo de casa, de qualquer modo. E sim, pessoal! Aqui temos um bingo.

 

DOIS REGISTROS NA LISTA DE COLUMBUS

 

Havia dois números de telefone. Cliquei no de cima, curioso e com um certo medo do que poderia pular dali. Mas não foi um dossiê, um perfil ou — Deus me livre — uma foto. Havia uma única palavra.

 

MUFFIN.

 

0 quê

Mas então eu descobri. Muffin era o animal de estimação do Sr. Columbus. Provavelmente um gato. Cliquei minha carta especial novamente, transpus dois símbolos e apaguei um terceiro. Então acrescentei MUFFIN no alto, com uma flecha apontando para baixo. Pronto. Perfeito.

Pensei em quem seria o dono de Muffin, ou o que tinha feito ele para justificar a atenção da TransCorp, ou exatamente o que ia acontecer com ele. Não. A idéia de que meu condicionamento em Peoria poderia ser parcialmente responsável por esse desinteresse também jamais passou pela minha cabeça. Eu estava fazendo o que tinha que fazer, só isso. Fazendo o que tinha que fazer e feliz como um pinto no lixo.

Liguei para o número na tela. O alto-falante do computador estava ligado, mas não ouvi nenhum alô, apenas o ruidoso canto de acasalamento de outro computador. Tudo bem. A vida é mais fácil quando você subtrai o elemento humano. Então é como naquele filme, Almas em chamas, planando sobre Berlim em seu confiável B-52, olhando através de seu confiável visor de bombardeiro Norden e esperando o momento certo de apertar o confiável botão. Você pode ver nuvens de fumaça ou telhados de fábricas, mas nenhuma pessoa. Os caras que lançaram as bombas dos B-52 não precisaram ouvir os gritos das mães cujos filhos tinham acabado de ser reduzidos a vísceras, e também não precisaram ouvir ninguém dizendo alô. Um bom negócio.

Depois de ouvir um pouquinho, desliguei o alto-falante, de qualquer modo. Achei que estava me distraindo.

 

MODEM ENCONTRADO,

 

o computador lampejou, e a seguir

 

PROCURA DE E-MAIL S/N.

Digitei s e esperei. Dessa vez a espera foi maior. Acho que o computador estava voltando a Chicago de novo, e pegando o que precisava para abrir o e-mail do Sr. Columbus. Mesmo assim, uns 30 segundos depois, o computador estava de volta com

 

E-MAIL ENCONTRADO.

ENVIAR DINKYMAIL S/N.

 

Digitei S absolutamente sem hesitar. O computador lampejou

 

ENVIANDO DINKYMAIL

 

e a seguir

 

DINKYMAIL ENVIADO.

 

Isso foi tudo. Nenhum fogo de artifício.

Mas fico pensando no que aconteceu com Muffin.

Você sabe. Depois.

 

NAQUELA NOITE, liguei para o Sr. Sharpton e disse:

— Estou trabalhando.

— Isso é bom, Dink. Grande notícia. Está se sentindo melhor? — Calmo como sempre. O Sr. Sharpton é como o tempo no Taiti.

— Estou — disse eu. O fato era que me sentia bem-aventurado. Foi o melhor dia da minha vida. Dúvidas ou não, preocupações ou não, ainda digo isso. O dia mais eventual da minha vida. Era como ter um rio de fogo na cabeça, um rio de fogo, porra. Entende?

— Está se sentindo melhor, Sr. Sharpton? Aliviado?

— Estou feliz por você, mas não posso dizer que estou aliviado porque...

— ...em primeiro lugar, o senhor nunca se preocupou.

— Você resumiu a coisa.

— Em outras palavras, tudo é eventual.

Ele riu. Ele sempre ri quando eu digo isso.

— Está certo, Dink. Tudo é eventual.

— Sr. Sharpton?

— O que é?

— O senhor sabe que os e-mails nunca são totalmente seguros. Qualquer um que realmente queira pode invadir o negócio.

— Você envia uma sugestão para que o destinatário apague a mensagem de todos os arquivos, não é?

— Sim, mas não posso garantir totalmente que ele vá fazer isso.

— Mesmo se não fizerem, nada pode acontecer a alguém que esbarre por acaso com a coisa, não é? Porque a mensagem é... personalizada.

— Bem, pode dar uma dor de cabeça na pessoa, mas só isso.

— E a própria mensagem ia parecer uma bobajada.

— Ou um código.

Ele riu com vontade das minhas palavras.

— Eles que tentem invadir, hein, Dinky? Eles que tentem!

Suspirei.

— É.

— Vamos conversar sobre algo mais importante, Dink... qual foi a sensação?

— Maravilhosa, porra.

— Ótimo. Não questione uma sensação maravilhosa, Dink. Jamais questione. E desligou.

 

ÀS VEZES, TENHO que enviar cartas de verdade — imprimir as coisas que eu taco no CADERNO DE NOTAS DE DINKY, enfiar num envelope, lamber os selos e despachar a coisa para alguém em algum lugar. Professora Ann Tevitch, Universidade de Novo México em Las Cruces. Sr. Andrew Neff, a/c The New York Post, Nova York, Nova York. Billy Unger, General Delivery, Stovington, Vermont. Só nomes, mas que eram ainda mais perturbadores do que os números de telefone. Mais pessoais do que os números de telefone. Era como ver rostos nadarem até você por um segundo dentro de seu visor de bombardeiro Norden. Quero dizer, que coisa alucinada, não? Você está a 25 mil pés, nenhum rosto é permitido ali, mas mesmo assim às vezes surge alguém por um ou dois segundos.

Pensei em como um professor de universidade poderia se dar bem sem um modem (ou um cara cujo endereço era a porra de um jornal de Nova York, por falar nisso), mas nunca pensei demais. Não era obrigado a isso. Vivemos num mundo moderno, mas cartas não precisam ser enviadas por computador, afinal de contas. Ainda há o correio-lesma. E o negócio de que eu realmente precisava estava sempre no banco de dados. O fato de que Unger tivesse um carro modelo Thunderbird 1957, por exemplo. Ou que Ann Tevitch amasse alguém — talvez o marido, talvez o filho, ou o pai — chamado Simon.

E gente como Tevitch e Unger eram exceções. A maioria das pessoas que procurei e com quem entrei em contato era como aquela primeira pessoa em Columbus — totalmente equipadas para o século XXI. ENVIANDO DINKYMAIL, DINKYMAIL ENVIADO, muito bão, adeusinho, boneco.

Eu poderia ter continuado assim por muito tempo, talvez para sempre — vasculhando o banco de dados (não há nenhum horário a cumprir, nenhuma lista de cidades e alvos principais; estou completamente por minha conta... a menos que toda essa merda esteja também no meu subconsciente, bem no fundo do disco rígido), indo ao cinema de tarde, usufruindo o silêncio sem Mamãe de minha casinha e sonhando com o próximo passo escada acima, só que acordei certo dia com tesão. Trabalhei mais ou menos por uma hora vasculhando a Austrália, mas não adiantou — meu pinto continuou superando o meu cérebro, digamos assim. Fechei o computador e fui ao News Plus para ver se encontrava uma revista com mulheres bonitas de lingerie.

Quando cheguei lá, um cara lendo o Dispatch de Columbus ia saindo. Eu mesmo nunca li o jornal. Por que ter esse trabalho? É a mesma porcaria de sempre, ditadores explorando pessoas mais fracas do que eles, homens de uniforme espancando bolas de futebol, políticos beijando bebês e puxando sacos. Na maior parte, histórias sobre os Skipper Brannigans do mundo, na verdade. E eu não teria notado essa reportagem nem que a visse por acaso no suporte de jornais ao entrar, porque ela estava na parte de baixo da primeira página, debaixo da dobra. Mas aquele pateta saiu de lá com o jornal aberto e o rosto enterrado nele, porra.

Embaixo do canto direito vi o retrato sorridente de um sujeito de cabelos brancos, fumando um cachimbo. Parecia um idiota bem-humorado, provavelmente irlandês, com aquelas ruguinhas no canto dos olhos e as sobrancelhas espessas. O título por cima da foto — não era um título grande, mas dava para ler — dizia o SUICÍDIO DE NEFF AINDA INTRIGA E ENTRISTECE OS COLEGAS.

Por um ou dois segundos, pensei em não entrar no News Plus naquele dia, não estava a fim de mulheres de lingerie, afinal de contas, talvez fosse para casa e tirasse uma soneca. Se eu entrasse, provavelmente pegaria um número do Dispatch, não conseguiria evitar, e não tinha certeza se queria saber mais do que já sabia sobre aquele cara que parecia um irlandês... o que era absolutamente nada, como eu disse logo para mim mesmo, porra. Neff não era um nome tão esquisito, afinal de contas, só quatro letras, não era como Shittendookus ou Horecake, deve haver milhares de Neffs, se a gente considerar o país de costa a costa. Aquele sujeito não tinha que ser o Neff que eu conhecia, o que gostava dos discos de Frank Sinatra.

De qualquer modo, seria melhor ir embora e voltar no dia seguinte. No dia seguinte, o retrato do sujeito com o cachimbo teria sumido. No dia seguinte, o retrato ali seria de outra pessoa, no canto direito inferior da primeira página. Gente sempre morre, certo? Gente que não é superstar ou coisa assim, só famosa o suficiente para ter o retrato ali no canto direito inferior da primeira página. E às vezes as pessoas ficavam intrigadas com aquilo, do mesmo modo que o pessoal em Harkerville tinha ficado com a morte de Skipper — sem nenhum álcool no sangue, com a noite clara, a estrada seca, e sem ser do tipo suicida.

Entretanto, o mundo está cheio de mistérios assim, e às vezes é melhor não resolver. Às vezes, as soluções não são muito eventuais, sabe.

Mas a força de vontade nunca foi o meu forte. Nem sempre consigo ficar longe do chocolate, mesmo que saiba que minha pele não gosta dele, e também não consegui ficar longe do Dispatch de Columbus naquele dia. Entrei e comprei o jornal.

Voltando para casa, tive uma idéia engraçada: a de que eu não queria um jornal com o retrato de Andrew Neff na página da frente no meu lixo. Os caras que recolhiam o lixo vinham num caminhão da cidade, e certamente não tinham — não podiam ter — nada a ver com a TransCorp, mas...

Tinha um programa que eu e Pug gostávamos de assistir num verão quando éramos garotos: o Golden Years. Você provavelmente não lembra dele. Seja como for, havia um sujeito naquele programa que costumava dizer “Perfeita paranóia é perfeita consciência”. Era o seu lema. E eu tipo acreditava naquilo.

De qualquer modo, fui ao parque em vez de voltar para casa. Sentei num banco, li a reportagem e, quando terminei, enfiei o jornal numa caçapa de lixo por lá. Não gostei de fazer isso, mas pô — se o Sr. Sharpton tivesse posto um cara me seguindo e checando cada coisinha que eu jogasse fora, eu estaria completamente fodido de qualquer modo.

Não havia dúvida de que Andrew Neff, de 62 anos e colunista do Post desde 1970, se matara. Tomou um monte de pílulas o que provavelmente teria resolvido a coisa, mas ainda entrou na banheira, pôs um saco plástico na cabeça e completou a noite cortando os pulsos. Ali estava um homem que não queria saber de conselhos.

Mas não deixou nenhum bilhete, e a autópsia não encontrou qualquer sinal de doença. Seus colegas recusaram a idéia de Alzheimer, ou mesmo de um começo de caduquice. “Até o dia em que morreu, era o cara mais esperto que já conheci”, disse um sujeito chamado Pete Hamill. “Poderia ter ido ao Show do Milhão sem precisar pedir ajuda aos universitários. Não tenho idéia do motivo que levou Andy a fazer semelhante coisa.” Hamill disse também que uma das “encantadoras esquisitices” de Neff era sua completa recusa em participar da revolução informática. Nada de modem pra ele, nenhum laptop com processador de texto, nenhum verificador manual de ortografia da Franklin Electronic Publishers. Não tinha sequer um aparelho de CD em seu apartamento, disse Hamill; Neff afirmava, talvez meio brincando, que CDs eram obra do demônio. Adorava o Sinatra, mas só em vinil.

Hamill e vários outros diziam que Neff era um homem infalivelmente animado, até a tarde em que escreveu sua última coluna, foi para casa, tomou um copo de vinho e então se matou. Uma das colunistas de variedades do Post, Liz Smith, disse que dividira um pedaço de torta com Neff pouco antes de ir embora naquele dia, e que Neff parecera “um tantinho distraído, mas fora isso, estava bem”.

Distraído, certo. Com a cabeça cheia de fouders, bews e smims, você ficaria distraído também.

Neff, continuava a reportagem, fora de certo modo uma anomalia no Post, que aferra-se a uma visão mais conservadora da vida — acho que não chegam a recomendar diretamente a cadeira elétrica para o pessoal que recebe o seguro-desemprego por mais de três anos, mas sugerem que ela sempre é uma opção. Acho que Neff era o liberal da casa. Ele escrevia uma coluna chamada “Eneff Is Eneff”, em que defendia mudanças no modo como Nova York tratava as mães solteiras adolescentes, sugeria que talvez o aborto nem sempre fosse assassinato, argumentava que os alojamentos de baixa renda nos bairros periféricos eram uma máquina que perpetuava o ódio. Pouco antes de morrer, ele vinha escrevendo colunas sobre o tamanho das Forças Armadas, e se perguntava por que achávamos, como país, ser preciso continuar derramando dólares ali, quando não sobrara basicamente ninguém com quem lutar, exceto os terroristas. Afirmava que seria melhor gastarmos dinheiro criando empregos. E os leitores do Post, que teriam crucificado qualquer outra pessoa que defendesse tais idéias, adoravam quando Neff punha aquilo preto no branco. Porque ele era engraçado, charmoso. E talvez porque fosse irlandês e tivesse beijado a Blarney Stone.*

E foi mais ou menos isso. Voltei a pé para casa, mas em algum ponto do caminho peguei um desvio e acabei andando até o centro da cidade. Caminhava em ziguezague, descendo os bulevares e cortando por estacionamentos, pensando o tempo todo em Andrew Neff entrando na banheira e colocando um saco plástico na cabeça. Um saco grande, tipo quatro litros, mantém todas as suas sobras com um frescor de supermercado.

Neff era engraçado e encantador, e eu o matara. Ele abrira minha carta e ela, de algum modo, penetrara em sua cabeça. Segundo o que eu tinha lido no jornal, as palavras especiais e os símbolos devem ter levado três dias para pirar o sujeito ao ponto de ele engolir as pílulas e entrar na banheira.

Ele mereceu aquilo.

Foi o que o Sr. Sharpton disse de Skipper, e talvez tivesse razão... daquela vez. Mas será que Neff merecia? Será que tinha podres que eu desconhecia, talvez gostasse de menininhas daquele outro jeito, ou se drogasse, ou perseguisse gente fraca demais para revidar, como Skipper me perseguira com o carrinho de compras?

Queremos ajudá-lo a usar seu talento para melhorar toda a humanidade, tinha dito o Sr. Sharpton, e é claro que isso não significava apagar um cara porque ele acha que o Departamento de Defesa gasta dinheiro demais em bombas inteligentes. Bosta paranóica desse tipo é estritamente para filmes com Steven Seagal e Jean-Claude Van Damme.

Então tive uma idéia ruim — uma idéia assustadora.

Talvez a TransCorp não quisesse que Neff morresse porque ele tinha escrito aquele negócio.

Talvez quisessem que ele morresse porque as pessoas — as pessoas erradas — começariam a pensar no que ele escrevia.

— Isso é maluquice — eu disse alto, e uma mulher, vendo a vitrine de uma loja, virou-se e arregalou os olhos para mim.

Cheguei à biblioteca pública lá pelas duas horas, com as pernas doendo e a cabeça latejando. Continuei vendo Neff na banheira, com seus enrugados mamilos de velho, o cabelo branco no peito e seu bonito sorriso desaparecido, substituído por aquela vaga expressão de alienígena do Planeta X. Continuava vendo o cara colocar um saco plástico na cabeça, cantarolando de boca fechada uma melodia de Sinatra (“My Way”, talvez), enquanto o enfiava bem apertado, e depois olhava através dele, como espiamos por uma janela embaçada, para que pudesse ver o corte dos pulsos. Eu não queria ver aquele negócio, mas não conseguia parar. Meu visor de bombardeiro tinha se transformado num telescópio.

Eles tinham uma sala de computador na biblioteca, e a gente podia acessar a Internet por um preço bem razoável. Tive que conseguir um cartão da biblioteca, mas tudo bem. É bom ter um cartão de biblioteca, nunca é demais ter cartões de identificação.

Encontrar Ann Tevitch e o relato de sua morte só me custou três dólares. Com uma sensação de afundamento, vi que a história começava no canto embaixo à direita da primeira página, o Cantão Oficial dos Defuntos, e então pulei para a página dos obituários. A professora Tevitch tinha sido uma moça bonita, loura, 37 anos. Na foto, ela segurava os óculos na mão, como se quisesse que soubessem que usava óculos... mas que também vissem que tinha olhos bonitos. Isso me deixou triste e culpado.

Sua morte era surpreendentemente parecida com a de Skipper — ela chegara em casa, vinda do escritório na UNM, pouco depois do anoitecer, talvez um pouco apressada porque era a sua vez de fazer o jantar, mas que diabo, com boas condições para dirigir e grande visibilidade. Seu carro — placa personalizada DNA FAN, por acaso eu soube — tinha se desviado da estrada, capotado e aterrissado numa vala. Ela ainda estava viva quando alguém viu os faróis e a encontrou, mas nunca houve muita esperança; seus ferimentos eram graves demais.

Não havia álcool nenhum no organismo dela e seu casamento era sólido (nenhum filho, pelo menos, graças a Deus pelos pequenos favores), então a idéia de suicídio era forçada. Ann Tevitch parecia ter boas expectativas para o futuro, tinha até falado em comprar um computador para comemorar uma nova bolsa de pesquisa. Ela se recusava a ter um computador pessoal desde 1988 mais ou menos; perdera dados valiosos quando um em que trabalhara deu pau, e desde então passara a desconfiar de tais máquinas. Ela usava o do departamento quando era obrigada a fazer isso, mas era só.

O veredicto do legista fora morte acidental.

A professora Ann Tevitch, bióloga clínica, estava mergulhada na pesquisa avançada sobre AIDS na Costa Oeste. Outro cientista, este da Califórnia, disse que a morte de Ann poderia atrasar a pesquisa sobre a cura da doença por cinco anos. “Ela era um elemento-chave”, disse ele. “Inteligente sim, mas mais do que isso... ouvi um dia alguém se referir a ela como ‘uma coordenadora nata’, uma boa descrição de Ann, o tipo de pessoa que mantinha a união do grupo. Sua morte é uma grande perda para as dúzias de pessoas que a conheciam e amavam, e uma perda maior ainda para a sua causa.”

Billy Unger também foi bastante fácil de encontrar. Seu retrato vinha no alto da página do Weekly Courant de Stovington e não lá embaixo, no Cantão dos Defuntos, mas talvez porque não havia muita gente famosa em Stovington. Unger era o general William “Roll Em” Unger, que recebera a Estrela de Prata e a Estrela de Bronze na Coréia. Foi subsecretário de Defesa (Reformulação da Aquisição) na administação Kennedy, e um dos falcões realmente importantes daquela época. Matem os russos, bebam o sangue deles, mantenham a América segura para a Parada do Dia de Ação de Graças da Macy’s, esse tipo de coisa.

Então, na época em que Lyndon Johnson começou a mandar mais gente para a Guerra do Vietnã, Billy Unger sofreu uma mudança na mente e no coração. Começou a escrever cartas para os jornais e deslanchou sua carreira de articulista dizendo que lidávamos com a guerra de modo errado. Depois, afirmou que era um erro os americanos estarem no Vietnã. Então, por volta de 1975, chegou ao ponto de dizer que todas as guerras eram erradas. Isso conquistou a simpatia da maior parte do pessoal de Vermont.

Billy Unger teve sete mandatos na legislatura estadual, começando em 1978. Quando um grupo de democratas progressistas pediu a ele para concorrer ao Senado americano em 1996, ele disse que queria “ler um pouco e pensar nas suas opções”. Deduziu-se que ele estaria pronto para uma carreira política nacional em 2000, 2002, no mais tardar. Estava ficando velho, mas o pessoal de Vermont gosta de caras velhos, acho eu. O ano de 1996 passou sem que Unger fosse candidato a coisa alguma (possivelmente porque sua mulher tinha morrido de câncer) e, antes de 2002 aparecer, Unger já estava de barriga cheia de tanto comer capim pela raiz.

Um grupo pequeno mas leal em Stovington afirmava que a morte de Roll Em tinha sido um acidente, que os que recebem uma Estrela de Prata não pulam do telhado quando perderam a mulher para o câncer no ano anterior ou coisa assim, mas o resto das pessoas sublinhou que o cara não estava consertando as telhas, claro — não de pijama e às duas horas da manhã.

O veredicto foi suicídio.

Sim. Certo. Até parece.

 

SAÍ DA BIBLIOTECA e achei que ia para casa, mas, em vez disso, voltei ao mesmo banco do parque. Fiquei ali até que o sol começasse a sumir e quase todas as crianças e os cachorros brincando com discos plásticos já tivessem ido embora. E apesar de estar há três meses em Columbia City, isso era o máximo que eu fazia na rua. Acho isso triste. Pensei que fosse viver a vida inteira ali, finalmente me afastando de Mamãe e vivendo a minha vida, mas tudo que eu fazia era morgar o dia inteiro.

Se certas pessoas estivessem me vigiando, poderiam cogitar sobre o motivo da mudança de rotina. Então levantei, voltei para casa, fervi um saquinho daquela porcaria pronta e liguei a tevê. Eu tinha tevê a cabo, o pacote completo, inclusive os canais de cinema, e nunca vira uma só conta. Que beleza, não é? Liguei no canal Cinemax. Rutger Hauer representava um cego lutador de caratê. Sentei no sofá sob o meu falso Rembrandt e fiquei assistindo. Não vi o filme, mas comi minha gororoba e olhei para a tevê.

Pensei em coisas. Num colunista de jornal que tinha idéias liberais e leitores conservadores. Numa pesquisadora da AIDS que tinha uma importante função de coordenar outros pesquisadores da AIDS. Em velhos generais que mudavam de opinião. Pensei no fato de só conhecer aqueles três nomes porque não tinham modem nem e-mail.

Havia outras coisas em que pensar, também. Tipo como se podia hipnotizar um cara talentoso, ou drogá-lo, ou talvez até expô-lo a outros caras talentosos a fim de impedir que fizesse as perguntas erradas ou fizesse as coisas erradas. Tipo como você podia impedir com certeza que um cara tão talentoso não fugisse, mesmo se por acaso ele despertasse para a verdade. Você armaria a coisa para que ele levasse uma existência praticamente sem dinheiro... uma vida em que a regra número um era não malocar qualquer grana extra, nem trocado no bolso. Que tipo de cara talentoso toparia uma coisa dessas? Alguém ingênuo, com poucos amigos e quase nenhuma auto-estima. Um cara que venderia a talentosa alma a você por algumas compras de armazém e 70 pratas por semana, porque acha que é isso que vale.

Eu não queria pensar em nada disso. Tentei me concentrar em Rutger Hauer fazendo aquelas divertidas besteiradas de carateca cego (Pug teria dado gargalhadas se estivesse lá, aposto) para não ter que pensar nas outras coisas.

Duzentos, por exemplo. Havia um número em que eu não queria pensar. Duzentos. 10 x 20, 40 x 5. CC, para os antigos romanos. Eu tinha apertado o botão que trazia a mensagem DINKYMAIL ENVIADO para minha tela pelo menos 200 vezes.

E me ocorreu — pela primeira vez, como se estivesse finalmente acordando — que eu era um assassino. Um assassino em massa.

Sem dúvida. Trocando em miúdos, é isso.

Bom para a humanidade? Mau para a humanidade? Indiferente para a humanidade? Quem faz esses julgamentos? O Sr. Sharpton? Seus patrões? Os patrões de seus patrões? E isso tem importância?

Cheguei à conclusão de que isso tinha tanta importância quanto uma trepada na gaiola de um coelho. Cheguei também à conclusão de que não poderia ficar tempo demais me lamentando (mesmo comigo mesmo) de ter sido drogado, hipnotizado ou sofrido algum tipo de controle mental. A verdade é que eu vinha fazendo aquilo porque adorava a sensação que tinha ao escrever as cartas especiais, a sensação de ter um rio de fogo no meio da cabeça.

E eu vinha fazendo aquilo principalmente porque podia.

— Não é verdade — eu disse... mas não alto. Sussurrei entre dentes. Eles provavelmente não têm grampos por aqui, tenho certeza, mas é melhor ter cuidado.

Comecei a escrever isto... e o que é isto? Talvez seja um relatório. Comecei a escrever este relatório mais tarde naquela noite... na verdade, assim que o filme do Rutger Hauer acabou. Mas escrevo num caderno de notas, não no meu computador, e no velho inglês comum. Nada de sankofites, bews ou smims. Há um ladrilho solto no chão, debaixo da mesa de pingue-pongue no subsolo. É onde guardo o meu relatório. Acabo de dar uma espiada para ver como comecei. Agora tenho um bom emprego, escrevi, e nenhuma razão para mau humor. Que coisa idiota. Mas claro que qualquer bobo que consiga tapar o sol com a peneira pode passar assoviando por um cemitério.

Quando fui para a cama naquela noite, sonhei que estava no estacionamento no Supr Savr. Pug estava lá, usando sua insígnia vermelha e um chapéu como o de Mickey Mouse em Fantasia — o filme em que Mickey banca o Aprendiz de Feiticeiro. Na metade do estacionamento, os carrinhos de compras se alinhavam numa fileira. Pug levantava a mão, depois abaixava. Cada vez que fazia isso, um carrinho começava a rolar sozinho, ganhando velocidade, disparando pelo estacionamento até se chocar com a lateral de tijolos do supermercado. Ficavam amontoados lá, uma cintilante pilha de metal e rodas. Pela primeira vez na vida, Pug não sorria. Eu quis perguntar o que estava fazendo e o que significava aquilo, mas é claro que eu sabia.

— Ele tem sido bom para mim — eu disse a Pug no sonho. Estava me referindo ao Sr. Sharpton, claro. — Ele tem sido muito, muito eventual mesmo.

Pug virou-se totalmente para mim e eu vi então que não era Pug. Era Skipper, e sua cabeça tinha sido amassada até as sobrancelhas. Pedaços de crânio grudavam-se num círculo, dando a impressão de que ele usava uma coroa de ossos.

— Você não está olhando por um visor de bombardeiro — disse Skipper e sorriu. — Você é o visor. Que tal, Dinkster?

Acordei no quarto escuro, suando, com as mãos na boca para não gritar. Portanto, concluí que não gostava muito daquilo.

 

VOU LHE CONTAR, escrever isso tem sido um triste aprendizado. Tipo ei, Dink, bem-vindo ao mundo real. A imagem de triturar notas de dólar no ralo da cozinha é a que mais me ocorre quando penso no que vem acontecendo, mas sei que é apenas porque é mais fácil pensar em moer dinheiro (ou atirá-lo pela grade do bueiro) do que pensar em moer gente. Às vezes eu me detesto, às vezes tenho medo pela minha alma imortal (se é que eu tenho uma), e às vezes fico só constrangido. Confie em mim, disse o Sr. Sharpton, e foi o que eu fiz. Quer dizer, dãã, até que ponto você pode ser pateta? Digo a mim mesmo que sou apenas uma criança, da idade dos garotos que tripulavam os B-52 em que penso às vezes, que garotos têm permissão para serem patetas. Mas será que isso é verdade quando há vidas em jogo?

E ainda continuo fazendo a coisa, claro.

Sim.

No início, pensei que não podia, da mesma forma que os garotos de Mary Poppins não podiam flutuar à volta da casa quando perderam os pensamentos felizes... mas eu pude. E depois que eu sentava na frente do computador e o rio de fogo começava a correr, eu estava perdido. Entende (pelo menos espero que entenda), para isso é que fui posto no planeta Terra. Podem me censurar por fazer o que me dá aquele toque final, o que me completa?

Resposta: absolutamente sim.

Mas não consigo parar. As vezes digo a mim mesmo que continuo porque, se parar — talvez até por um dia —, eles vão saber que eu compreendi a coisa, e os faxineiros vão fazer uma parada não prevista. Só que dessa vez o que vão limpar vai ser eu. Mas esta não é a razão. Faço a coisa porque sou apenas mais um viciado, como um cara fumando crack num beco, ou uma garota dando um pico no braço. Faço a coisa pela bosta do barato, porra, e porque quando estou trabalhando no CADERNO DE NOTAS DE DINKY, tudo é eventual. É como estar preso numa armadilha de açúcar. E é tudo culpa daquele estúpido que saiu do News Plus com o Dispatch aberto, porra. Se não fosse por ele, eu só estaria vendo edifícios mergulhados no nevoeiro. Gente nenhuma, só alvos. Você é o visor do bombardeiro, Skipper tinha dito no meu sonho. Você é o visor do bombardeiro, Dinkster.

É verdade. Sei disso. Horrível, mas é verdade. Sou apenas mais um instrumento, apenas a lente pela qual o verdadeiro bombardeador olha. Apenas o botão que ele aperta.

Que bombardeiro, você pergunta?

Ora, vamos, caia na real.

Pensei em ligar para ele, que tal a maluquice? Mas talvez não seja maluquice. “Ligue a qualquer hora, Dink, mesmo às três da manhã.” Foi o que o homem disse, e tenho certeza de que falava sério — pelo menos nisso o Sr. Sharpton não estava mentindo.

Pensei em ligar para ele e dizer “Quer saber o que mais dói, Sr. Sharpton? Aquilo que o senhor disse sobre como eu poderia tornar o mundo melhor ao livrá-lo de pessoas como Skipper. A verdade é que vocês são como Skipper”.

Certo. E eu sou o carrinho de compras com que eles perseguem os outros, rindo, gritando e fazendo sons de corrida de automóvel. Além disso, meu trabalho é barato... uma pechincha. Até agora, já matei mais de 200 pessoas, e o que é que isso custou à TransCorp? Uma casinha numa cidade de terceira categoria em Ohio, 70 dólares por semana e um automóvel Honda. Mais tevê a cabo. Não quero esquecer isso.

Fiquei algum tempo ali, olhando para o telefone, depois o deixei de lado novamente. Não poderia dizer nada daquilo. Seria o mesmo que colocar um saco plástico na minha cabeça e cortar os pulsos.

Então, o que é que eu vou fazer?

Ah, meu Deus, o que é que eu vou fazer?

 

JÁ SE PASSARAM DUAS semanas desde a última vez que tirei este caderno de debaixo do ladrilho no subsolo e escrevi nele. Por duas vezes escutei a batida da fenda da correspondência nas quintas-feiras, durante o programa As the World Turns, e fui ao vestíbulo pegar o meu dinheiro. Assisti a quatro filmes, todos à tarde. Por duas vezes moí dinheiro no triturador da cozinha e joguei as moedas pela grade do bueiro, escondendo a mão por trás do saco de lixo azul, enquanto o colocava no meio-fio. Um dia fui ao News Plus pensando em comprar um número da Variations ou da Fórum, mas o Dispatch tinha uma manchete que mais uma vez liquidou qualquer tesão que eu pudesse ter: PAPA MORRE DE ATAQUE DO CORAÇÃO NA MISSÃO DE PAZ.

Eu tinha feito aquilo? Não, a reportagem dizia que ele morrera na Ásia, e eu só vinha trabalhando com o Noroeste americano naquelas últimas semanas. Mas eu poderia ter feito aquilo. Se estivesse xeretando pelo Paquistão na semana anterior, provavelmente eu teria sido o culpado.

Duas semanas vivendo num pesadelo.

Então, esta manhã, algo entrou pela fenda da correspondência. Não era uma carta, recebi apenas três ou quatro (todas de Pug, mas agora ele parou de escrever e sinto muita falta dele), mas um folheto de propaganda da Kmart que se abriu no exato momento em que eu jogava ele no lixo. E algo deslizou lá de dentro, um bilhete escrito em letras de imprensa. VOCÊ QUER CAIR FORA? dizia. EM CASO POSITIVO, MANDE A MENSAGEM “DONT STAND SO CLOSE TO ME” É A MELHOR CANÇÃO DO POLICE.

Meu coração batia com força e rapidamente como no dia em que cheguei em casa e vi a gravura de Rembrandt acima do sofá onde ficavam os palhaços de veludo.

Por baixo da mensagem, alguém desenhara um fouder. Era inofensivo ali sozinho, mas olhar para ele fez toda a saliva da minha boca secar. Era uma verdadeira mensagem, o fouder provava isso, mas quem mandara a mensagem? E como o emissário sabia de mim?

Entrei no estúdio lentamente, a cabeça baixa, pensando. Uma mensagem enfiada numa circular de publicidade. Escrita à mão e posta dentro de uma circular de publicidade. Isso significava alguém próximo. Alguém na cidade.

Liguei o computador e o modem. Acessei a Biblioteca Pública de Columbia City, onde se pode navegar barato... e em relativo anonimato. Qualquer coisa que eu mandasse passava pela TransCorp em Chicago, mas não tinha importância. Eles não iriam suspeitar de coisa alguma. Não se eu tivesse cuidado.

E se houvesse alguém lá do outro lado, claro.

Havia. Meu computador conectou-se com o computador da biblioteca e um menu lampejou na tela. Por um momento, outra coisa lampejou na minha tela também.

Um smim.

No canto inferior direito. Apenas um bruxuleio.

Mandei a mensagem sobre a melhor canção do Police e acrescentei um pequeno toque próprio no Cantão dos Defuntos: um sankofite.

Eu poderia escrever mais — as coisas tinham começado a acontecer, e acredito que logo estarão acontecendo muito rápido —, mas acho que não seria seguro. Até agora, só falei de mim mesmo. Se continuasse, ia ter que falar de outras pessoas. Mas há mais duas coisas que quero dizer.

Primeiro, que lamento pelo que fiz — até pelo que fiz a Skipper. Eu apagaria aquilo, se pudesse. Não sabia o que estava fazendo. Sei que é uma desculpa esfarrapada, mas é a única que tenho.

Segundo, decidi escrever mais uma carta especial... a mais especial de todas.

Tenho o endereço do Sr. Sharpton. E tenho algo até melhor: a lembrança de como ele alisava sua gravata da sorte enquanto estávamos no grande e caro Mercedes. O jeito amoroso como ele passava a mão nas espadas de seda. Portanto, você vê que sei o suficiente sobre ele. Sei exatamente o que acrescentar em sua carta, como fazer com que se torne eventual. Posso fechar os olhos e ver uma palavra flutuando na escuridão por trás das pálpebras — flutuando ali como fogo negro, mortal como uma flecha disparada no cérebro, e é a única palavra que importa:

EXCALIBUR.

 

                                                                                            Stephen King

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades