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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS MORTOS VIVOS / Peter Straub
OS MORTOS VIVOS / Peter Straub

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS MORTOS VIVOS

 

Qual foi a pior coisa que você já fez? Não vou contar, mas lhe direi qual foi a pior coisa que já me aconteceu... a mais terrível...

 

Como pensava que teria dificuldades em atravessar com a menina a fronteira para o Canadá, dirigiu o carro para o sul, contornando as cidades sempre que surgiam e trafegando pelas auto-estradas anônimas, que pareciam uma terra à parte, assim como a própria viagem. A mesmice igualmente o confortava e estimulava, a tal ponto que no primeiro dia conseguiu guiar durante vinte horas. Comeram em lanchonetes da McDonald’s e em pequenos bares; quando ele sentia fome, saía da auto-estrada e pegava uma rodovia estadual paralela, sabendo que encontraria um drive-in a não mais do que vinte ou trinta qui­lômetros adiante. Acordava a menina e ambos comiam hambúr­gueres ou cachorros-quentes. A menina jamais falava além do necessário para dizer-lhe o que queria. Ela dormia durante a maior parte do tempo. Logo na primeira noite, o homem recor­dou-se das luzes que iluminavam as placas. Embora depois ficas­se comprovado que fora uma providência desnecessária, saiu da auto-estrada e seguiu por uma estradinha rural deserta e escura, pelo tempo suficiente para desatarraxar as lâmpadas pequenas e jogá-las no mato. Depois, pegou punhados de lama na beira da estrada e sujou as placas. Limpando as mãos na calça, contornou o carro e abriu a porta do lado do motorista. A menina estava dormindo, as costas empertigadas contra o encosto, a boca fechada. Parecia estar completamente serena e tranqüila. Ainda não sabia o que teria de fazer com ela.

Em West Virgínia, o homem despertou com um sobressal­to e compreendeu que estivera dormindo ao volante por alguns segundos. Deixou a auto-estrada nos arredores de Clarksburg e seguiu por uma rodovia estadual até avistar, recortado contra o céu, um cartaz vermelho luminoso a girar, com as palavras pioneer village em branco no meio. Estava mantendo os olhos abertos pela simples força de vontade. A mente não estava bem; tinha a impressão de que havia lágrimas pairando à beira dos olhos e que muito em breve começaria involuntariamente a chorar. Entrando no estacionamento do shopping center, se­guiu para a fila mais distante da entrada e encostou o carro contra uma cerca branca, de ré. Atrás dele, havia uma fábrica que produzia réplicas de animais em plástico. O pátio asfaltado da fábrica continha galinhas e vacas de plástico em tamanho gigante. Bem no meio, havia um imenso boi azul. As galinhas estavam inacabadas, eram maiores do que as vacas e estupida­mente brancas.

Diante dele, estendia-se aquele trecho quase vazio do esta­cionamento, depois havia um agrupamento de carros em fileiras e mais além os prédios baixos, cor de terra, que constituíam o shopping center.

— Podemos dar uma olhada nas galinhas? — perguntou a menina.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não vamos sair do carro. Paramos aqui só para dormir um pouco.

Trancou as portas, fechou as janelas. Sob o olhar firme e impassível da menina, o homem abaixou-se, tateou embaixo do assento e pegou um pedaço de corda, dizendo em seguida:

— Estenda as mãos.

Quase sorrindo, a menina estendeu as mãos pequenas, os punhos cerrados. Ele juntou-as e passou a corda duas vezes pelos pulsos, dando um nó; depois, amarrou também os torno­zelos da menina. Ao terminar, constatou que ainda restava muita corda. Estendeu o excesso com uma das mãos e com a outra puxou a menina rudemente para junto de si. Depois, enrolou a corda em torno de ambos, amarrando-os juntos, dando o último nó depois de haver se deitado no banco da frente.

A menina ficou deitada em cima dele, as mãos no meio da barriga do homem, a cabeça em seu peito. Respirava tranqüila e regularmente, como se não esperasse outra coisa além do que o homem acabara de fazer. O relógio no painel indicava que eram cinco e meia e o ar começava a esfriar. O homem esticou as pernas e reclinou a cabeça contra o apoio do braço. E ador­meceu em meio aos ruídos do tráfego.

Despertou com um sobressalto, o rosto coberto por uma camada de suor, e o cheiro ligeiramente irritante dos cabelos da menina em suas narinas. Já estava escuro agora, devia ter dormido por várias horas. Ninguém os descobrira... e imagine só ser encontrado no estacionamento de um shopping center em Clarksburg, West Virgínia; com uma menina amarrada a seu corpo adormecido! Resmungou, virou o corpo ligeiramente para o lado, acordou a menina. Como ele, a garota despertou instantaneamente. Inclinou a cabeça para trás e fitou-o. Não havia medo em seu olhar, apenas uma estranha intensidade. Ra­pidamente, ele desatou os nós e desenrolou a corda. Sentiu o pescoço dolorido ao sentar-se.

— Quer ir ao banheiro? — perguntou ele.

A menina assentiu.

— Onde?

— Ao lado do carro.

— Aqui mesmo? No estacionamento?

— Ouviu muito bem o que eu disse.

Ele teve outra vez a impressão de que a menina quase sor­riu. Fitou atentamente o rostinho pequeno da menina, emoldu­rado por cabelos pretos.

— Vai me deixar sair?

— Ficarei segurando sua mão.

— Mas não vai olhar?

Pela primeira vez, ela demonstrou alguma preocupação. O homem sacudiu a cabeça.

A menina estendeu a mão para a maçaneta da porta, mas o homem sacudiu novamente a cabeça, segurando-lhe o pulso firmemente.

— Pelo meu lado — disse ele.

Abriu a sua porta e saiu, ainda segurando o pulso ossudo da menina. Ela começou a se arrastar pelo assento na direção da porta, uma menina de sete ou oito anos com os cabelos pretos bem curtos, usando um vestidinho rosa de algum tecido fino. Tinha sapatos de lona nos pés, de um azul já desbotado, começando a esgarçar no alto dos calcanhares. Infantilmente, estendeu primeiro uma das pernas para fora do carro, depois retorceu o corpo para estender a outra.

O homem puxou-a na direção da cerca da fábrica. A menina virou a cabeça e fitou-o.

— Prometeu que não ia olhar.

— E não vou.

E por um momento ele não olhou, virando a cabeça para trás quando a menina se agachou, forçando-o a se inclinar para o lado. Os olhos dele vaguearam para os grotescos animais de plástico além da cerca. Depois, ouviu o barulho de tecido roçan­do contra pele e baixou os olhos. O braço esquerdo da menina estava estendido ao máximo, a fim de que pudesse ficar o mais longe possível dele. O vestido rosa ordinário foi levantado até a cintura. A menina também estava olhando para os animais de plástico. Quando ela acabou, o homem tratou de desviar os olhos, sabendo que a menina iria imediatamente observá-lo. Ela se levantou e ficou esperando que o homem lhe dissesse o que fazer em seguida. Puxou-a de volta ao carro. A menina per­guntou:

— O que você faz para ganhar a vida?

O homem riu alto, com alguma surpresa. Mas que pergunta de coquetel!

— Nada.

— Para onde estamos indo? Está me levando para algum lugar?

Ele abriu a porta do carro e ficou de pé ao lado, enquanto a menina tornava a entrar no carro.

— Algum lugar... Claro que a estou levando para algum lugar.

Ele entrou também no carro e a menina se deslocou pelo assento até a outra porta.

— Onde?

— Verá quando chegarmos.

 

Dirigiu de novo a noite inteira, a menina novamente dor­miu durante a maior parte do tempo, despertando para olhar pelo pára-brisa (ela sempre dormia sentada, como uma boneca em seus sapatos de lona e vestido rosa) e fazer-lhe estranhas perguntas:

— Você é da polícia? — perguntou a menina certa oca­sião, indagando logo em seguida, ao avistar uma placa de saída na estrada: — O que é Colúmbia?

— É uma cidade.

— Como Nova York?

— Isso mesmo.

— Como Clarksburg?

O homem assentiu.

— Vamos dormir sempre no carro?

— Nem sempre.

— Posso ligar o rádio?

Ele disse que sim e a menina inclinou-se para a frente e girou o botão. O carro foi invadido pela estática, duas ou três vozes falando ao mesmo tempo. Ela apertou outro botão e o mesmo zumbido de vozerio saiu pelo alto-falante.

— Sintonize — disse o homem.

Franzindo o cenho, concentrada, a menina começou lenta­mente a sintonizar. Um momento depois estava captando uma transmissão clara. Dolly Parton. E ela comentou:

— Adoro isso.

Durante horas, seguiram para o sul por entre canções e ritmos da country music, as estações enfraquecendo e mudando, os disc jockeys trocando de nome e sotaque, os patrocinadores se sucedendo numa lista interminável de companhias segurado­ras, pastas de dentes, sabonetes, Pepsi-Cola, remédios contra acne, agências funerárias, óleos para automóveis, relógios de pulso a preço de ocasião, utensílios de alumínio, xampus contra caspa. Só a música é que permaneceu a mesma, uma história intermi­nável e forçada, uma espécie de épico informe e monótono, em que mulheres se casavam com motoristas de caminhão e joga­dores que não prestavam, mas permaneciam ao lado deles até obter o divórcio, de homens sentados em bares tramando sedu­ções e como voltar para casa, como se uniam no maior ardor e se separavam na maior repulsa, preocupados com os filhos. Al­gumas vezes o carro não pegava, em outras a TV pifava; havia ocasiões em que os bares fechavam e o pobre infeliz era atirado na rua, os bolsos virados para fora. Não havia coisa alguma que não fosse banal, não havia qualquer frase que não fosse um clichê. Mas a menina parecia satisfeita e passiva, cochilando com Wille Nelson e acordando com Loretta Lynn. O homem sim­plesmente guiava, distraído por aquela interminável xaropada das emissoras de rádio da América.

Em determinada ocasião, ele perguntou à menina:

— Já ouviu falar de um homem chamado Edward Wanderley?

Ela não respondeu, limitando-se a fitá-lo.

— Já ouviu falar?

— Quem é ele?

— Era meu tio.

A menina sorriu.

— E já ouviu falar de um homem chamado Sears James?

Ela sacudiu a cabeça, ainda sorrindo.

— E de um homem chamado Ricky Hawthorne?

Ela sacudiu novamente a cabeça. Não adiantava continuar. O homem nem mesmo sabia por que se dera ao trabalho de perguntar. Era até possível que a menina jamais tivesse ouvido falar naqueles nomes. Ou melhor, era evidente que jamais ouvira falar.

 

Ainda na Carolina do Sul, o homem teve a impressão de que um patrulheiro rodoviário o estava seguindo: o carro da patrulha estava vinte metros atrás, mantendo a mesma distância, o que quer que ele fizesse. Teve a impressão de ver o patrulhei­ro falando pelo rádio; imediatamente reduziu sua velocidade em dez quilômetros horários e trocou de faixa; mas o carro da polícia não o ultrapassou. Sentiu um profundo tremor no peito e abdômen; visualizou o carro da patrulha chegando mais perto, a sirene ligada, forçando-o a ir para o acostamento. Depois, começariam as perguntas. Era por volta das seis horas da tarde e a auto-estrada estava apinhada. Sentia-se inexoravelmente le­vado pelo tráfego, à mercê de quem quer que estivesse no carro da patrulha... impotente, acuado. Tinha que pensar. Estava simplesmente sendo levado na direção de Charleston pelo tráfe­go, através de quilômetros e mais quilômetros de uma região desolada. Os subúrbios já eram visíveis a distância, miseráveis ajuntamentos de pequenas casas, com garagens de madeira. Não conseguia lembrar o número da auto-estrada em que estava. Avistou pelo espelho retrovisor, por trás da longa fileira de carros, depois do carro da patrulha, um caminhão velho despe­jando uma coluna de fumaça negra através de um cano parecido com uma chaminé, ao lado do motor. Receou que o patrulheiro emparelhasse com seu carro e gritasse “Pare!”. E podia imagi­nar a menina gritando, com uma vozinha estridente: “Esse ho­mem me obrigou a vir com ele! E me amarra quando dorme!” O sol do sul parecia investir violentamente contra seu rosto, entrar pelos poros. O patrulheiro passou para outra faixa e co­meçou a se aproximar dele.

“Ei, essa não é a sua filha! Quem é ela?”

E depois o meteriam numa cela, começariam a espancá-lo, trabalhando-o metodicamente com cassetetes, deixando sua pele toda roxa...

Mas nada disso aconteceu.

 

Pouco depois das oito horas da noite, parou ao lado da estrada. Era uma estrada rural estreita, terra vermelha solta empilhada no acostamento, como se tivesse sido recentemente escavada. Não mais tinha certeza do Estado em que se encontrava, se Carolina do Sul ou Geórgia. Era como se esses Estados estivessem fluidos, assim como todos os demais, como se pudes­sem vazar um para o outro, fazendo força para se estender mais um pouco, como as auto-estradas. Parecia que tudo estava erra­do. Ele estava no lugar errado: ninguém podia viver ali, nin­guém podia pensar ali, naquela paisagem brutal. Trepadeiras desconhecidas, verdes, lembrando cordas, erguiam-se pela en­costa baixa ao lado do carro. O mostrador de gasolina estava com o ponteiro lá embaixo há meia hora. Estava tudo errado, tudo mesmo. Olhou para a menina, aquela menina que seques­trara. Estava dormindo, com seu jeito de boneca, as costas empertigadas contra o encosto, os pés nos sapatos de lona es­garçados pairando acima do chão. Ela dormia demais. E se estivesse doente? E se estivesse morrendo?

A menina acordou enquanto ele a observava e disse:

— Tenho de ir ao banheiro outra vez.

— Você está bem? Não está doente?

— Tenho de ir ao banheiro.

— Está certo.

O homem se moveu para abrir a porta.

— Deixe-me ir sozinha. Não vou fugir. Não vou fazer nada. Prometo.

Ele contemplou o rosto sério da menina, os olhos pretos fixados numa pele azeitonada.

— Além do mais, aonde eu poderia ir? Nem mesmo sei onde estou.

— Também não sei.

— E então?

Tinha de acontecer mais cedo ou mais tarde: ele não podia mantê-la ao alcance de sua mão em todas as ocasiões.

— Promete? — indagou o homem, sabendo que a pergun­ta era extremamente tola.

Ela assentiu, e o homem acrescentou:

— Então está certo.

— E você promete que não vai embora com o carro?

— Prometo.

A menina abriu a porta e saiu do carro. O homem teve que fazer um tremendo esforço para não ficar observando-a; mas era um teste, tinha que se empenhar nisso. Um teste. Desejou intensamente ter aprisionado a mão da menina na sua. Ela podia estar subindo pela encosta ao lado da estrada, correndo, gritando... mas não, ela não estava gritando. Frequentemente acontecia que as coisas terríveis que ele imaginava, as coisas piores, não ocorriam; o mundo dava um solavanco e as coisas voltavam a ser como sempre tinham sido. Quando a menina voltou ao carro, ele se sentiu inundado por um alívio imenso. Acontecera novamente, nenhum buraco negro se abria para sugá-lo.

O homem fechou os olhos e viu uma auto-estrada vazia, dividida por linhas brancas, estendendo-se a sua frente. E mur­murou :

— Tenho de encontrar um motel.

A menina recostou-se no assento, esperando que ele fizesse o que bem desejasse. O rádio estava ligado baixinho, e pelo alto-falante saíam os sons de uma emissora de Augusta, Geór­gia, uma guitarra suave e cadenciada. Por um momento, uma imagem surgiu abruptamente na mente do homem: a menina morta, a língua espichada para fora da boca, os olhos esbugalha­dos. Ela não lhe oferecia a menor resistência. No instante se­guinte, ele estava de pé — era como se estivesse de pé — numa rua em Nova York, alguma rua na altura das East Fifties, uma daquelas ruas em que mulheres bem vestidas passeiam com cães pastores. Porque lá estava uma daquelas mulheres, aproximan­do-se. Era alta, usava jeans perfeitamente desbotados e uma blusa cara, um bronzeado intenso, os óculos escuros empurra­dos para o alto da cabeça. Um imenso cão pastor estava ao lado dela, meneando o traseiro, Ele estava quase perto o su­ficiente para ver as sardas expostas através dos botões supe­riores abertos da blusa da mulher.

Ah...

Mas no instante seguinte ele estava outra vez composto, ouvia a música baixa da guitarra. Antes de ligar o motor, afagou a cabeça da menina e disse:

— Temos de arrumar um motel.

Por uma hora, ele simplesmente seguiu em frente, prote­gido pelo casulo de entorpecimento, pela mecânica de guiar; estava quase sozinho na estrada escura.

— E vai me machucar? — perguntou a menina.

— Como posso saber?

— Acho que não vai. É meu amigo.

Depois, não era "como se" ele estivesse na rua em Nova York, estava mesmo naquela rua, observando a mulher com o cachorro e o bronzeado caminhando em sua direção. Avistou novamente as sardas dispersas da mulher, logo abaixo das clavículas. Sabia até qual o gosto que sentiria se passasse a língua por ali. Como acontecia freqüentemente em Nova York, não po­dia ver o sol, mas podia senti-lo, um sol intenso e agressivo. A mulher era uma estranha, sem qualquer importância... ele não devia conhecê-la, era apenas mais uma mulher... um táxi pas­sou, ele percebeu uma grade de ferro à sua direita, as letras na vitrine de um restaurante francês no outro lado da rua. O calor se irradiava do calçamento através das solas de suas botas. Em algum lugar lá em cima, um homem estava gritando a mesma palavra interminavelmente. Ele estava ali, estava mesmo: uma parcela de sua emoção deve ter transparecido no rosto, pois a mulher com o cachorro fitou-o curiosamente e depois amarrou a cara, deslocando-se rapidamente para a beira da calçada.

Será que ela podia falar? Será que alguém podia, numa espécie de experiência como aquela, qualquer que fosse, pro­nunciar frases, frases humanas comuns e audíveis? Será que se podia falar com as pessoas que se encontravam em alucinações? E será que elas podiam responder? Ele abriu a boca.

— Tenho... — que sair, ele ia dizer, mas já estava de volta ao carro parado. Havia em sua língua uma massa empa­pada, que outrora tinha sido duas batatas fritas.

Qual foi a pior coisa que você já fez?

Os mapas pareciam indicar que ele estava apenas a alguns quilômetros de Valdosta. Foi guiando sem pensar, sem se atre­ver a olhar para a menina e por isso não sabendo se ela estava acordada ou dormindo, mas sentindo mesmo assim que os olhos dela estavam fixos nele. Mais adiante, passou por uma placa que o informou estar a quinze quilômetros da Cidade Mais Amistosa do Sul.

Parecia com qualquer cidadezinha sulista: uma indústria à entrada, oficinas e estamparias, grupos surrealistas de galpões de metal corrugado, pátios coalhados de caminhões; mais adiante, casas de madeira precisando de pintura, grupos de negros parados nas esquinas, os rostos iguais na escuridão; estradas novas abrindo cicatrizes na terra e depois terminando abrupta­mente, o mato já invadindo; na cidade propriamente dita, os adolescentes circulavam interminável e indolentemente em seus carros velhos.

Passou por um prédio baixo, incongruentemente novo, um indício do Novo Sul, com uma placa em que estava escrito palmetto motor-in; fez a volta mais adiante e retornou até o prédio.

Uma garota com os cabelos armados cheios de laquê e um batom rosado nos lábios ofereceu-lhe um sorriso mecânico e sem sentido e um quarto com duas camas, "para mim e para minha filha". No livro de registro, ele escreveu: Lamar Burgess, Ridge Road, 155, Stonington, Connecticut. Depois que ele pa­gou uma diária à vista, a garota entregou-lhe a chave.

O cubículo continha duas camas de solteiro, um tapete marrom e paredes verdes, dois quadros — um gatinho com a cabeça inclinada, um índio olhando para um desfiladeiro cheio de vegetação, do alto de um penhasco — um aparelho de tele­visão, uma porta que dava para um banheiro de ladrilhos azuis. O homem ficou sentado no assento do vaso enquanto a menina se despia e deitava numa das camas.

Ao dar uma espiada para verificar o que ela estava fazendo, descobriu que a menina já se metera debaixo do lençol, deitada com o rosto virado para a parede. As roupas dela estavam espalhadas pelo chão, havia a seu lado um saco de batatas fritas quase vazio. O homem se trancou no banheiro, tirou as roupas e meteu-se debaixo do chuveiro. O que lhe proporcionou uma intensa satisfação. Por um momento, quase sentiu como se estivesse de volta a sua vida antiga, não “Lamar Burgess”, mas Don Wanderley, outrora morador em Bolinas, Califórnia, autor de duas novelas (uma das quais lhe proporcionara um bom dinheiro). Amante por algum tempo de Alma Mobley, irmão do falecido David Wanderley. E lá estava. Não adian­tava coisa alguma, não conseguia escapar. A mente era uma armadilha, um alçapão que o prendia. Como quer que tivesse chegado onde estava, o fato é que ali estava. Preso no Palmetto Motor-in. Fechou o chuveiro, todos os vestígios da bên­ção desaparecendo.

No pequeno quarto, com apenas a luz fraca por cima de sua própria cama para iluminar o ambiente fantasmagórico, o homem vestiu a calça e abriu a valise. A faca de caça estava enrolada numa camisa. Desenrolou a camisa e a faca caiu na cama.

Segurando-a pelo grosso cabo de osso, ele foi até a cama da menina. Ela dormia com a boca aberta, a transpiração bri­lhava em sua testa. Por um longo tempo, o homem ficou sen­tado ao lado dela, segurando a faca com a mão direita, pronto para usá-la.

Mas não podia naquela noite. Desistindo, cedendo, sacudiu o braço da menina, até que as pálpebras dela se entreabriram.

— Quem é você? — perguntou ele. — Quero dormir.

— Quem é você?

— Deixe-me em paz, por favor.

— Quem é você? Estou perguntando: quem é você?

— Você sabe.

— Eu sei?

— Sabe, sim. Eu lhe disse.

— Qual é o seu nome?

— Angie.

— Angie o quê?

— Angie Maule. Já lhe disse antes.

O homem mantinha a faca às costas, para que a menina não pudesse vê-la.

— Quero dormir — disse ela. — Você me acordou.

Ela lhe virou as costas novamente. Fascinado, o homem observou o sono voltar a dominá-la: as pontas dos dedos se encolheram, as pálpebras se contraíram, a respiração mudou. Parecia que ela fizera um esforço de vontade para dormir, a fim de livrar-se dele. Angie... Angela? Angela Maule. Não parecia o nome que ela lhe dera ao entrar no carro pela pri­meira vez. Minoso? Minnorsi? Algo assim, um nome italiano. Não Maule.

Ele segurou a faca com as duas mãos, o cabo preto de osso comprimido contra sua barriga nua, os cotovelos esten­didos para fora do corpo; tudo o que precisava fazer era arre­meter-se para a frente, usando toda a sua força...

Afinal, por volta das três horas da madrugada, ele voltou para sua cama.

 

Na manhã seguinte, antes de deixarem o motel, enquanto o homem examinava os mapas, a menina falou:

— Não deve fazer-me essas perguntas.

— Que perguntas?

Ele ficara de costas, a pedido da menina, enquanto ela punha o vestido rosa. Subitamente, ele teve a sensação de que precisava virar-se de qualquer maneira, imediatamente, para vê-la. Podia ver sua faca nas mãos dela (embora estivesse nova­mente guardada, enrolada na camisa), podia senti-la começando a espetar sua pele.

— Posso virar-me agora?

— Pode.

Lentamente, ainda sentindo a faca, sua própria faca, come­çando a penetrar em sua pele, ele virou-se de lado, na cadeira. A menina estava sentada na cama desarrumada, observando-o. O rosto sem nada de bonito, com uma estranha intensidade.

— Que perguntas?

— Você sabe.

— Quero que me diga.

Ela sacudiu a cabeça, não quis dizer mais nada.

— Quer ver para onde estamos indo?

A menina se aproximou, não devagar, mas calculadamente, como se não desejasse demonstrar qualquer suspeita. Apontan­do para um ponto no mapa, o homem disse:

— Estamos indo para este lugar. Panama City, na Flórida.

— Poderemos ver o mar?

— Talvez.

— E não vamos mais dormir no carro?

— Não.

— Fica muito longe?

— Poderemos chegar lá esta noite. Vamos seguir por esta estrada... esta aqui... está vendo?

— Estou... — Ela não estava interessada; ficou um pouco para o lado, entediada e cautelosa. — Acha que sou bonita?

 

Qual a pior coisa que já lhe aconteceu? O fato de ter tirado as roupas à noite, ao lado da cama de uma menina de nove anos? O fato de estar segurando uma faca? O fato de a faca querer matá-la?

 

Não. Havia outras coisas piores.

 

Não muito além da fronteira estadual e não na auto-estrada que ele indicara a Angie no mapa, mas numa estrada rural de duas faixas de tráfego, eles pararam diante de .uma construção de madeira, pintada de branco. Buddy’s Supplies.

— Quer entrar comigo, Angie?

Ela abriu a porta do seu lado e saltou, à sua maneira in­fantil, como se estivesse descendo uma escada. Ele ficou segu­rando a porta de tela para que a menina entrasse. Um homem gordo estava sentado atrás do balcão.

— Você frauda a declaração de renda — disse ele. — E é o primeiro freguês que me aparece hoje. Pode acreditar numa coisa dessas? Meio-dia e meia e é o primeiro cara que passa por essa porta! — Inclinando-se para a frente e examinando-os atentamente, o gordo acrescentou: — Não, claro que não! Você não frauda Tio Sam. Faz pior do que isso. É o cara que matou umas quatro ou cinco pessoas lá em Tallahasee há pou­cos dias.

— Como...? Só entrei para comprar alguma comida... minha filha...

— Não esquente a cabeça. Eu era da polícia. Em Allentown, Pensilvânia. Vinte anos. Comprei esta casa porque o cara me disse que dava para tirar cem dólares de lucro por semana. Há uma porção de escroques neste mundo. E quem quer que entre, posso logo dizer que tipo de escroque é. E agora estou vendo quem você é realmente. Não é um assassino, mas sim um seqüestrador.

— Não! Eu... — Ele podia sentir o suor escorrendo pelo corpo. — Minha filha...

— Não me pode enganar. Fui da polícia por vinte anos.

Ele começou a olhar freneticamente ao redor, à procura da menina. Finalmente avistou-a, diante de uma prateleira cheia de potes de manteiga de amendoim.

— Angie... Angie, venha até aqui...

— Ora, eu estava apenas querendo brincar — disse o gordo. — Não precisa ir embora só por causa disso. Ei, meni­na, vai querer um pouco dessa manteiga de amendoim?

Angie olhou para ele e assentiu.

— Pois então pegue um pote nessa prateleira e traga até aqui. Mais alguma coisa, moço?  É claro que se for Bruno Hauptmann eu terei que prendê-lo. Ainda tenho por aqui, em algum lugar, o meu revólver do tempo da polícia. E pode estar certo de que não vai ter escapatória.

O homem sabia que era tudo brincadeira. Mas nem por isso podia conter o tremor que o dominava. Um ex-policial não iria perceber? Ele se afastou, por entre as prateleiras.

— Ei, se está metido em alguma encrenca, é melhor se mandar daqui imediatamente — gritou o gordo às suas costas.

— Não, não... preciso de algumas coisas...

— Não se parece muito com a menina.

Às cegas, ele começou a tirar coisas das prateleiras, sem ver o que era. Um vidro de pickles, uma caixa de passas, pre­sunto em lata, duas ou três latas que nem mesmo viu do que eram. Levou tudo para o balcão. O gordo, Buddy, fitou-o com uma expressão desconfiada.

— Você me deixou um pouco abalado — disse ele ao gordo. — Não tenho dormido muito, estou guiando há dois dias... — Uma idéia súbita lhe ocorreu. — Tenho que levar minha filha para a avó, em Tampa... — Angie virou-se abrup­tamente, segurando dois potes de manteiga de amendoim, fi­tando-o boquiaberta — ... é que a mãe dela e eu nos separa­mos e tenho que arrumar um emprego, pôr todas as coisas outra vez em ordem... Não é mesmo, Angie?

A menina continuou com a boca entreaberta.

— Seu nome é Angie? — indagou o gordo.

Ela assentiu.

— Esse homem é seu papai?

Ele pensou que ia desmaiar.

— Agora é — respondeu a menina.

O gordo soltou uma risada.

— Agora! Ah, as crianças de hoje! Acho que a gente tem de ser um gênio para entender essas crianças. Muito bem, nervosinho, acho que vou ficar com seu dinheiro.

Ainda sentado por trás do balcão, calculou as compras, inclinando-se para um lado e apertando os botões da caixa re­gistradora.

— É melhor descansar um pouco. Está me fazendo lem­brar de um milhão de caras que meti na minha velha delegacia.

Lá fora, Wanderley disse à menina:

— Obrigado por ter dito aquilo.

— Dizer o quê? — indagou a menina, insolente e pre­sunçosamente, para depois ficar balançando a cabeça de um lado para outro, mecanicamente, e repetindo de maneira estra­nha: — Dizer o quê? Dizer o quê? Dizer o quê?

 

Em Panama City, ele parou no Gulf View Motor Lodge, com diversos bangalôs de tijolos, em péssimo estado, ao redor de uma área de estacionamento. O bangalô do gerente ficava à entrada, uma construção quadrada e separada como as outras, com uma só diferença: atrás da grande placa de vidro, onde devia estar um calor igual ao de um forno, estava senta­do um velho magro mas ainda vigoroso, com óculos de aros dourados e uma camiseta. Parecia Adolf Eichmann. A ex­pressão sombria e inflexível no rosto do homem fez com que Wanderley recordasse o que o ex-policial dissera a seu respeito e da menina: com seus cabelos louros e pele clara, não parecia absolutamente ser o pai da menina. Ele parou diante do ban­galô do gerente e saltou do carro, sentindo as palmas das mãos suadas.

Lá dentro, porém, quando ele disse que queria um quarto para si e sua filha, o velho lançou um olhar sem a menor curio­sidade para a menina de cabelos pretos no carro e disse:

— São dez dólares e meio por dia. Assine o registro. Se quiser comer alguma coisa, experimente o Eat-Mor, que fica um pouco mais adiante, na estrada. É proibido cozinhar nos bangalôs.  Está pensando em ficar mais do que uma noite, Sr... — O velho virou o livro de registro. — ...Boswell?

— Talvez até uma semana.

— Então tem que pagar as duas primeiras diárias adian­tado.

Wanderley tirou vinte e um dólares da carteira e o gerente entregou-lhe uma chave.

— Número 11, o número da sorte. Fica do outro lado do estacionamento.

O quarto tinha as paredes caiadas de branco e cheirava a desinfetante. Wanderley correu os olhos rapidamente ao redor: o mesmo tapete cinza, duas camas pequenas, com lençóis lim­pos, mas já puídos, uma televisão com tela de doze polegadas, dois quadros horríveis de flores. O quarto parecia ter mais sombras do que se podia explicar. A menina estava inspecionando a cama encostada na parede.

— O que são Dedos Mágicos? Quero experimentar. Pos­so? Por favor?

— Provavelmente não vai funcionar.

— Mas posso? Quero experimentar. Por favor?

— Está certo. Fique deitada. Tenho que sair para arru­mar mais algumas moedas. Não saia daqui até eu voltar. É preciso pôr uma moeda nesta fenda, está vendo? Quando eu voltar, poderemos comer.

A menina estava deitada na cama, assentindo impaciente­mente, olhando não para ele, mas para a moeda em sua mão.

— Vamos comer quando eu voltar. E vou tentar também lhe arrumar roupas novas. Não pode ficar usando sempre as mesmas coisas.

— Ponha a moeda!

Ele deu de ombros, empurrou a moeda na fenda e ime­diatamente ouviu um zumbido. A menina acomodou-se na cama, os braços esticados, o rosto tenso.

— Ah, é maravilhoso...

— Voltarei o mais depressa possível.

Wanderley saiu para o sol forte e pela primeira vez sentiu o cheiro do mar.

O golfo ficava muito longe, mas era visível. No outro lado da estrada que ele seguira na direção da cidade a terra abrupta­mente caía para uma desolação de mato e lixo, cortada por uma sucessão de trilhos ferroviários. Além dos trilhos, outra extensão de terra abandonada terminava numa segunda estrada, que seguia na direção de alguns galpões e armazéns. Além dessa segunda estrada, ficava o golfo do México, as águas cinzentas e espumosas.

Ele foi andando pela estrada na direção da cidade.

Na extremidade de Panama City, Wanderley entrou numa loja e comprou uma calça e duas blusas para a menina, cuecas, meias, dois shorts e uma calça cáqui para si.  

Carregando duas sacolas, saiu da loja e seguiu em direção ao centro da cidade. A fumaça de óleo diesel o envolveu; passavam incessantemente carros com o adesivo “Mantenha o sul grande” colado no pára-choque. Homens de camisas de mangas curtas e cabelos castanhos cortados bem curtos caminhavam pelas calçadas. Ao avistar um guarda uniformizado, tentando tomar um sorvete ao mesmo tempo em que preenchia uma multa por estacionamento proibido, Wanderley esgueirou-se entre uma pickup e um furgão, atravessando a rua. Um filete de suor escorreu pela sobrancelha esquerda e caiu no olho. Ele estava calmo. Mais uma vez, o desastre não acontecera.

Descobriu a estação rodoviária por acaso. Ocupava a me­tade de um quarteirão, em prédio imenso, de aparência nova, com reentrâncias para as janelas de vidro escuro. Ele pensou: “Alma Mobley, sua marca”. Passando pela porta giratória, avistou algumas pessoas sem rumo nos bancos, num grande espaço vazio. Eram as mesmas pessoas que sempre se podiam encontrar nas estações rodoviárias, uns poucos jovens-velhos, os rostos vincados e penteados complicados, algumas crianças andando a esmo, um vagabundo adormecido, três ou quatro adolescentes em botas de cowboy e cabelos caindo até os om­bros. Outro guarda estava encostado na parede, ao lado do jornaleiro. À procura dele? O pânico começou a invadi-lo, mas o guarda mal olhou em sua direção. Fingiu examinar o quadro de horários das partidas e chegadas, antes de se encaminhar, com uma indiferença exagerada, para o banheiro dos homens.

Trancou-se num reservado e tirou as roupas. Depois de vestir-se até a cintura com as roupas novas, saiu do reservado e lavou-se numa das pias. Saiu tanta sujeira que ele se lavou novamente, derramando água no chão. Passou o sabonete lí­quido esverdeado nas axilas e no pescoço. Depois, enxugou-se e vestiu uma das camisas de mangas curtas que acabara de com­prar, azul-clara, com listras vermelhas bem finas. Todas as roupas velhas foram para a sacola de compras.

Lá fora, ficou contemplando o estranho azul acinzentado e granuloso do céu. Era o tipo de céu que ele imaginava pairar para sempre sobre os baixios e pântanos muito mais ao sul da Flórida, um céu que conteria o calor, dobrando-o e triplican­do-o, provocando o fantástico crescimento do mato, fazendo as plantas esticarem suas pontas grotescas e intumescidas... o tipo de céu e disco quente de sol que deveriam sempre, agora que pensava nisso, ter pairado sobre Alma Mobley. Largou a sacola com as roupas velhas numa lata de lixo, diante de uma loja de armas.

Nas roupas novas, seu corpo parecia jovem e capaz, mais saudável do que durante todo aquele terrível inverno. Wan­derley foi avançando por aquela rua miserável do sul, um ho­mem alto e forte, na casa dos trinta anos, não mais inteiramente consciente do que estava fazendo. Passou a mão pelo rosto e sentiu o roçar da barba rala de pessoa loura; podia passar dois ou três dias sem dar a impressão de que precisava barbear-se. Uma pickup dirigida por um marinheiro, com cinco ou seis outros marinheiros na traseira, passou por Wanderley. Os ma­rinheiros gritaram alguma coisa, alguma coisa jovial e desde­nhosa.

— Eles não falaram por mal — comentou um homem que apareceu subitamente a seu lado. A cabeça, com uma enor­me verruga cheia de cabelos dividindo ao meio uma das sobran­celhas, não chegava ao ombro de Wanderley. — São todos bons rapazes.

Ele sorriu e murmurou algumas palavras de concordância, afastando-se. Não podia voltar agora para o motel, pois sentia que não estava em condições de enfrentar a menina. Experi­mentou a sensação de que poderia desmaiar. Os pés pareciam irreais nos sapatos de lona que comprara — muito abaixo, mui­to longe de seus olhos. Descobriu que estava descendo rapida­mente uma ladeira suave, na direção de uma área de cinemas e cartazes de neon. No céu granuloso, o sol pairava muito alto, parecia imóvel. As sombras dos parquímetros, muito escuras, projetavam-se na calçada; por um momento, ele ficou absolu­tamente convencido de que havia mais sombras do que par­químetros. Todas as sombras pairando sobre a rua eram inten­samente pretas. Passou pela entrada de um hotel e percebeu um vasto espaço vazio e castanho, uma imensa caverna fria, além das portas de vidro.

Quase que involuntariamente, reconhecendo um conjunto familiar e terrível de sensações, continuou em frente, sob o calor sufocante; conscientemente, tomava todo o cuidado para não pisar nas sombras dos parquímetros. O mundo era aprazível e cheio de sentido há dois anos, antes de assumir aquela forma sinistra e ameaçadora, antes do episódio de Alma Mobley, antes da morte do seu irmão. De alguma forma, literalmente ou não, ela matara David Wanderley; ele sabia que tivera muita sorte de escapar ao que quer que levara David a se jogar pela janela do hotel em Amsterdam. Somente escrever é que o trouxera de volta ao mundo; somente escrever a respeito daquilo, da terrível confusão entre ele próprio e Alma e David, como se fosse uma história de fantasma, o libertara daquilo. Era o que ele pen­sava.

Panama City? Panama City, Flórida? O que estava fazen­do ali? E o que estava fazendo com aquela menina estranha e passiva que trouxera consigo? A quem seqüestrara, ao longo de todo o sul?

Sempre fora o “extravagante”, o “irrequieto”, o contraste da força do irmão, a sua pobreza tornando-se ainda mais aguda diante do sucesso de David, suas ambições e pretensões (“Pensa mesmo que pode viver como escritor? Nem mesmo seu tio foi tão estúpido assim”, dissera o pai) contrastando com o bom senso e o esforço objetivo e árduo de David, com seus progres­sos incessantes na Faculdade de Direito e depois na firma de advocacia em que ingressara. E quando o irmão pulara pela janela para sair da vida, isso simplesmente matara a ele próprio.

Era a pior coisa que já lhe acontecera. Até o inverno pas­sado, até Milburn.

A rua esquálida deu a impressão de se abrir como uma se­pultura. Ele teve a sensação de que mais um passo pela ladeira abaixo e os cinemas inconsistentes iriam tragá-lo, continuaria a descer para sempre, numa queda interminável. Algo que não estava ali antes apareceu subitamente diante dele; contraiu os olhos para poder ver mais claramente.

Virou-se, angustiado, sob o sol forte. O cotovelo bateu no peito de alguém e ouviu-se a murmurar “Desculpe, desculpe” para uma mulher irritada, com um chapéu de sol branco. In­conscientemente, começou a subir a ladeira, rapidamente. Lá atrás, olhando para o cruzamento no fundo da ladeira, vira por um momento o túmulo do irmão: era pequeno, o mármore púr­pura, as palavras gravadas, “David Webster Wanderley, 1939-1975”. E estava bem no meio do cruzamento. Por isso, ele fugiu.

Isso mesmo, vira o túmulo de David. Só que ele não tinha nenhum túmulo. Fora cremado na Holanda e as cinzas despa­chadas de avião para a mãe. O túmulo de David, com o nome de David... Mas o que o fez subir a ladeira correndo foi o pressentimento de que aquele túmulo era para ele. E que, se ajoelhasse no meio do cruzamento e abrisse o túmulo, iria encontrar no caixão o seu próprio corpo putrefato.

Entrou no único lugar fresco e aprazível que vira no ca­minho: o saguão de um hotel. Teve que se sentar para se acal­mar; sob os olhares indiferentes de um recepcionista e da moça no balcão de jornais, afundou num sofá. O rosto estava úmido de suor. O tecido do estofamento do encosto do sofá roçava incomodamente em suas costas; inclinou-se para a frente, passou os dedos pelos cabelos, olhou para o relógio. Tinha que parecer normal, como se estivesse apenas esperando por alguém; tinha” que parar de tremer. Pelo saguão, havia algumas palmeiras pequenas, plantadas em vasos grandes. Um ventilador zumbia lá em cima. Um velho magro, num uniforme púrpura, estava parado ao lado do elevador aberto e fitava-o; quando seus olhares se encontraram, ele desviou a cabeça rapidamente.

Ao ouvir sons abruptamente, compreendeu que nada tinha ouvido desde que vira o túmulo no meio do cruzamento. Sua própria pulsação abafara todos os outros ruídos. Agora, os ruí­dos da vida do hotel flutuavam no ar úmido. Um aspirador zumbia numa escada invisível, telefones tocavam a distância, as portas do elevador se fechavam com um zunido suave. Pelo saguão, havia pequenos grupos de pessoas sentadas, conversando. Ele começou a sentir que podia enfrentar a rua nova­mente.

 

— Estou com fome — disse a menina.

— Trouxe roupas novas para você.

— Não quero roupas novas, quero apenas comer.

Ele atravessou o quarto para sentar-se na poltrona vazia.

— Pensei que estivesse cansada de usar sempre o mesmo vestido.

— Não me importo com as roupas que uso.

— Está bem. — Ele jogou a sacola em cima da cama da menina. — Apenas pensei que poderia gostar dessas roupas.

Ela não respondeu.

— Vou dar-lhe comida, se responder a algumas perguntas.

A menina afastou-se, começando a pegar os lençóis, es­tendendo-os e alisando-os.

— Qual é o seu nome?

— Já lhe disse. É Angie.

— Angie Maule?

— Não. Angie Mitchell.

Ele deixou passar.

— Por que seus pais ainda não mandaram a polícia nos procurar? Por que ainda não fomos descobertos?

— Não tenho pais.

— Todo mundo tem pais.

— Todo mundo menos os órfãos.

— Quem toma conta de você?

— Você mesmo.

— Antes de mim.

— Cale-se. Cale-se. — O rosto da menina estava sereno, com um brilho intenso.

— Você é mesmo uma órfã?

— Cale-se cale-se cale-se!

Para fazer com que ela parasse de gritar, Wanderley tirou o presunto em lata da sacola de compras.

— Está certo. Vamos comer alguma coisa. Abrirei isto.

— Ótimo. — Era como se ela nunca tivesse gritado. — Quero também a manteiga de amendoim.

Enquanto ele cortava o presunto, a menina perguntou:

— Tem dinheiro suficiente para cuidar de nós dois?

Ela comeu à sua maneira especial: primeiro, mordeu um pedaço de presunto, depois meteu os dedos na manteiga de amendoim, tirou um bocado, meteu-o na boca, mastigou tudo junto.

— Delicioso — conseguiu ela murmurar, com a boca cheia de comida.

— Se eu for dormir, você vai embora?

A menina sacudiu negativamente a cabeça.

— Mas posso dar uma volta?

— Acho que sim.

Ele estava bebendo uma lata de cerveja, da embalagem de seis que comprara numa pequena loja, ao voltar para o motel; a cerveja e a comida o estavam deixando sonolento. Sabia que, se não fosse logo para a cama, acabaria dormindo ali mesmo na poltrona.

— Não precisa amarrar-me em você — disse a menina. — Pode ficar tranqüilo que eu voltarei. Acredita em mim, não é mesmo?

Ele assentiu.

— Afinal, para onde eu poderia ir? Não tenho nenhum lugar para ir.

— Está bem! — Mais uma vez, não podia falar com a menina como desejava; ela é que estava no controle da situação. — Pode sair, mas não demore muito.

Estava se comportando como um pai; sabia que a menina o pusera nesse papel. Era ridículo.

Ficou observando-a sair. Mais tarde, rolando na cama, ouviu vagamente o estalido da porta sendo fechada e compreen­deu que ela tinha mesmo voltado.

 

Naquela noite, ficou deitado na cama, inteiramente vestido, observando-a dormir. Quando os músculos começaram a doer de se manter por tanto tempo na mesma posição, mexeu-se na cama. Assim, ao longo de um período de duas horas, ele passou de deitado de lado e apoiando a cabeça na mão para sentado com os joelhos levantados e as mãos cruzadas atrás da cabeça, depois inclinado para a frente, os cotovelos nos joelhos, vol­tando finalmente a deitar-se de lado, a cabeça apoiada na mão. Era como se todas essas posturas fossem elementos de um circuito formal. Os olhos quase não se afastavam da menina. Ela estava absolutamente imóvel. O sono a levara para algum outro lugar e deixara ali apenas seu corpo. Simplesmente dei­tada ali, ambos deitados ali, ela conseguira escapar-lhe.

Wanderley levantou-se, foi até a valise, tirou a camisa enrolada, voltou para junto de sua cama, onde ficou parado, de pé. Segurou a camisa pelo colarinho e deixou que a gravidade levasse a faca de caça para a cama, desenrolando a camisa ao cair. Batendo na cama, a faca era pesada demais para quicar. Wanderley pegou-a.

Segurando a faca novamente atrás das costas, sacudiu a menina pelo ombro. As feições dela pareceram ficar toldadas, antes que se virasse e enterrasse o rosto no travesseiro. Ele lhe segurou o ombro novamente, sentindo o osso comprido e fino, a asa sobressaindo nas costas.

— Vá embora — murmurou a menina, o rosto colado no travesseiro.

— Não. Temos que conversar.

— É muito tarde.

Sacudiu-a. Como a menina não reagisse, tentou rolá-la para o lado, à força. Apesar de pequena e magra, ela tinha força suficiente para resistir. Wanderley não conseguiu fazer com que o fitasse.

Mas ela acabou virando-se por vontade própria, como que numa atitude desdenhosa. A falta de sono era evidente em seu rosto, mas parecia adulta.

— Qual é o seu nome?

— Angie. — Sorriu tranquilamente. — Angie Maule.

— De onde você vem?

— Você sabe.

Ele assentiu.

— Como se chamavam seus pais?

— Não sei.

— Quem tomava conta de você antes de eu pegá-la?

— Isso não tem a menor importância.

— Por que não?

— Eles não são importantes. Eram apenas pessoas.

— O nome deles era Maule?

O sorriso da menina se tornou ainda mais insolente.

— Isso faz alguma diferença? De qualquer forma, você pensa que sabe de tudo.

— O que está querendo dizer com “eram apenas pessoas”?

— Eram apenas pessoas chamadas Mitchell. Mais nada.

— E mudou de nome por sua própria iniciativa?

— Qual é o problema?

— Não sei. — O que era verdade.

Ficaram se olhando, com Wanderley sentado na beira da cama, segurando a faca nas costas e sabendo que seria incapaz de usá-la, o que quer que pudesse acontecer. Imaginava que David também era incapaz de tirar uma vida... qualquer vida, a não ser a sua própria, se é que realmente o fizera. A menina provavelmente sabia que ele estava segurando a faca, pensou Wanderley, ignorando a arma simplesmente como uma ameaça. Não era uma ameaça. Provavelmente, ele próprio também não era uma ameaça. Ela jamais sentira sequer alguma apreensão por causa dele.

— Muito bem, vamos tentar outra vez — disse Wan­derley. — Quem é você?

Pela primeira vez desde que a levara para o carro, a menina sorriu de verdade. Era uma transformação, mas não do tipo que o deixasse mais tranqüilo e à vontade; e nem por isso ela parecia menos adulta.

— Você sabe.

Wanderley insistia:

— Quem é você?

Ela sorria enquanto dava a resposta espantosa:

— Eu sou você.

— Não. Eu sou eu. Você é você.

— Eu sou você.

— Quem é você? — O desespero agora o dominava e a pergunta não tinha o mesmo significado da primeira vez em que a formulara.

Depois, apenas por um segundo, ele estava de volta à rua em Nova York, e a pessoa à sua frente não era a mulher anô­nima, elegante e bronzeada, mas seu irmão David, o rosto esmigalhado e o corpo vestido nas roupas rasgadas e apodrecidas do túmulo.

...a coisa mais terrível...

 

Depois da festa de Jaffrey

Certo dia, no início de outubro, Frederick Hawthorne, um advogado de setenta anos que não perdera muita coisa com a passagem dos anos, saiu de sua casa na Melrose Avenue, em Milburn, Nova York, para seguir a pé até seu escritório, na Wheat Row, ao lado da praça. A temperatura estava um pouco mais fria do que Milburn esperava para o início do outono, mas Ricky usava seu uniforme de inverno, que consistia de sobre­tudo de tweed, cachecol de cashmere e um chapéu cinza. Ca­minhou um tanto rapidamente pela Melrose Avenue, para es­quentar o sangue, passando sob imensos carvalhos e bordos menores, já coloridos por tons de laranja e vermelho, o que era outro toque fora da estação. Era muito sujeito a resfriados e teria que passar a ir de carro para o escritório, se a temperatura caísse mais um pouco.

Até lá, porém, enquanto pudesse impedir que o vento frio entrasse por seu pescoço, apreciava a caminhada. Depois de deixar a Melrose Avenue, andando na direção da praça, já esta­va aquecido o suficiente para andar um pouco mais devagar. Ricky tinha pouco motivo para chegar depressa ao escritório: os clientes raramente apareciam antes de meio-dia. Seu sócio e amigo, Sears James, provavelmente só chegaria uns quarenta e cinco minutos depois. O que dava a Ricky tempo bastante para andar pela cidade, cumprimentando as pessoas e observando as coisas que gostava de observar.

O que mais apreciava ver era Milburn propriamente dita, a cidade em que passara toda a sua vida, exceto pelos períodos na Faculdade de Direito e no Exército. Jamais desejara viver em outro lugar, embora nos primeiros dias do casamento sua linda e irrequieta esposa alegasse que a cidade era por demais tediosa. Stella queria morar em Nova York... e o queria com extrema determinação. Fora uma das batalhas que ele vencera. Era incompreensível para Ricky que alguém pudesse achar Milburn uma cidade tediosa: observando-a atentamente ao lon­go de setenta anos, podia-se ver o século em ação. Ricky ima­ginava que, se alguém observasse Nova York pelo mesmo perío­do, o que veria seria principalmente Nova York em ação. Lá os prédios subiam e desciam depressa demais para o gosto de Ricky, tudo se movia rápido demais, envolto por um casulo de energia, rodopiando com demasiada rapidez para que se pudesse notar qualquer coisa a oeste do Hudson, a não ser as luzes de Jersey. Além do mais, Nova York devia ter umas duas centenas de milhares de advogados; Milburn tinha apenas cinco ou seis que contavam, e ele e Sears eram há quarenta anos os mais preeminentes. (Stella jamais se importara um pouco que fosse com as noções de preeminência de Milburn.)

Ricky entrou no centro comercial, que se estendia por dois quarteirões a oeste da praça, e continuou por mais dois quar­teirões pelo outro lado, passando pelo Cinema Rialto, de Clark Mulligan, onde parou por um momento para dar uma olhada nos cartazes. E o que viu fê-lo torcer o nariz. Os cartazes na frente do Rialto mostravam o rosto sujo de sangue de uma moça. O tipo de filmes que Ricky apreciava só podia agora ser visto na televisão. Para Ricky, a indústria cinematográfica per­dera o rumo quando William Powell se aposentara. (Ele achava que Clark Mulligan provavelmente concordava com esse ponto de vista.) Havia demasiados filmes modernos que eram como os seus sonhos, que se haviam tornado particularmente intensos durante o último ano.

Ricky afastou-se sumariamente do cinema e enfrentou uma perspectiva muito mais agradável. As casas originais de Milburn haviam resistido ao tempo, embora quase todas fossem agora prédios de escritórios; até mesmo as árvores eram mais jovens do que as casas. Seguiu em frente, os sapatos pretos enverni­zados pisando em folhas secas, passando por prédios muito pa­recidos com os da Wheat Row, acompanhado pelas recordações de sua infância naquelas mesmas ruas. Estava sorrindo; se alguma das pessoas a quem cumprimentava por acaso lhe per­guntasse no que estava pensando, poderia ter respondido (se se permitisse ser tão pomposo): “Ora, nas calçadas! Uma das minhas recordações mais antigas é o tempo em que puseram calçadas por toda a extensão da Candlemaker Street, até a praça. Os blocos imensos foram puxados por cavalos. Acho que as calçadas foram uma contribuição maior para a civilização do que o motor a explosão. Antigamente, tanto na primavera como no inverno, a gente tinha que chapinhar pela lama. Não se podia entrar numa sala de visitas sem levar um pouco da lama. E no verão havia poeira por toda parte!”

Evidentemente, refletiu Ricky, as salas de visitas haviam desaparecido mais ou menos na ocasião em que surgiram as calçadas.

Chegando à praça, teve outra surpresa infeliz. Algumas das árvores que margeavam o vasto espaço gramado já estavam completamente desprovidas de folhas, a maioria das outras tinha pelo menos alguns galhos nus. Ainda havia bastante cor como ele estava esperando, mas durante a noite o equilíbrio parecia ter-se alterado, e agora braços e dedos pretos e esque­léticos, os ossos das árvores, sobressaíam por entre as folhas, como placas indicando a chegada do inverno. Folhas mortas cobriam todo o chão da praça.

— Olá, Sr. Hawthorne — disse alguém a seu lado.

Ricky virou-se e deparou com Peter Barnes, que estava no último ano da escola secundária. O pai dele, vinte anos mais moço do que Ricky, pertencia ao segundo grupo dos seus ami­gos. O primeiro círculo consistia de quatro homens de sua idade; eram cinco, mas Edward Wanderley morrera há quase um ano. Mais tristeza, quando ele estava determinado a não se deixar dominar pela melancolia.

— Olá, Peter. Imagino que esteja a caminho da escola.

— As aulas só vão começar daqui a uma hora, hoje. O sistema de aquecimento pifou novamente.

Peter Barnes estava ao lado dele, um rapaz alto, de apa­rência jovial, vestindo suéter e jeans. Os cabelos pretos pare­ciam quase femininamente compridos para Ricky, mas a largura dos ombros prenunciava que, quando ele começasse a encorpar, seria muito maior do que o pai. Era de se imaginar que os cabelos compridos não parecessem tão femininos assim para as garotas.

— Está apenas dando uma volta?

— Isso mesmo. De vez em quando é divertido dar uma volta pela cidade e olhar para as coisas.

Ricky quase ficou radiante.

— Mas tem toda a razão! Sinto exatamente a mesma coisa. Sempre gostei de minhas caminhadas pela cidade. As coisas mais estranhas me passam pela cabeça. Estava agora mesmo pensando que as calçadas mudaram o mundo. Fizeram com que tudo se tornasse muito mais civilizado.

— Ah? — murmurou Peter, fitando-o com a maior curio­sidade.

— Eu sei, eu sei... mas acabei de falar que me ocorrem os pensamentos mais estranhos. Como está Walter?

— Está bem. Já foi para o banco.

— E Christina também está bem?

— Está, sim.

Havia um toque de frieza na resposta de Peter à pergunta sobre a mãe. Séria algum problema? Ricky recordou-se de que Walter se queixara, alguns meses antes, de que Christina anda­va um tanto mal-humorada. Mas para Ricky, que podia lem­brar-se da geração dos pais de Peter como adolescentes, os pro­blemas deles eram sempre um tanto fictícios. Como pessoas com o mundo inteiro ainda pela frente podiam ter problemas realmente sérios?

— Faz tempo que não conversamos assim, Peter. Seu pai já aceitou a idéia de você ir para Cornell?

Peter sorriu meio ironicamente.

— Acho que sim. Não creio que ele saiba o quanto é difícil entrar em Yale. Era muito mais fácil no tempo dele.

— Não resta a menor dúvida de que era mesmo.

Ricky estava se recordando das circunstâncias de sua últi­ma conversa com Peter Barnes. Na festa de John Jaffrey: a noite em que Edward Wanderley morrera.

— Acho que vou dar uma olhada na loja de departamen­tos — comentou Peter.

— Está certo.

Contra sua vontade, Ricky estava lembrando todos os de­talhes daquela noite. Havia ocasiões em que lhe parecia que a vida se tornara mais sombria desde aquela noite, o mundo dera uma volta irreversível.

— Acho que já vou agora — murmurou Peter, dando um passo para trás.

— Não se demore mais por minha causa. Eu estava apenas pensando.

— Sobre calçadas?

— Não, seu malandro.

Peter afastou-se, sorrindo e se despedindo, atravessando rapidamente a praça.

Ricky avistou o Lincoln de Sears James passando pelo Hotel Archer, no alto da praça, seguindo como sempre vinte quilômetros por hora mais devagar que qualquer outro carro. Ele seguiu apressadamente para a Wheat Row. A melancolia ainda não se dissipara: viu novamente os galhos esqueléticos sobressaindo por entre as folhas brilhantes, o terrível rosto ensangüentado da moça no cartaz do cinema, recordou que era a sua vez de contar a história na reunião da Sociedade Chowder naquela noite. Acelerou os passos, perguntando-se o que acon­tecera com toda a sua animação. Mas sabia o que fora: Edward Wanderley. Até mesmo Sears os acompanhara, aos outros três membros da Sociedade Chowder, naquela melancolia. Ricky tinha doze horas para pensar em algo sobre o que falar.

— Olá, Sears — disse ele, nos degraus do prédio, no mo­mento em que o sócio saltava do Lincoln. — Bom dia. Vai ser na sua casa esta noite, não é mesmo?

— Ricky, a esta hora da manhã é absolutamente proibido gorjear.

Sears se adiantou e Ricky seguiu-o pela porta, deixando Milburn para trás.

 

 (Frederick Hawthorne)

 

De todos os lugares em que habitualmente se reuniam, aquele era o predileto de Ricky: a biblioteca da casa de Sears James, com suas poltronas de couro já muito usado, as estantes altas e escuras com portas de vidro, os drinques em mesinhas redondas, gravuras nas paredes, o velho tapete Shiraz sob seus pés e a recordação de antigos charutos na atmosfera. Como jamais se entregara ao casamento, Sears James nunca tivera que fazer concessões em suas concepções suntuosas de conforto. Depois de tantos anos se reunindo, os outros homens estavam àquela altura inconscientes do prazer, relaxamento e inveja automáticos que experimentavam na biblioteca de Sears, assim como também estavam quase inconscientes do mal-estar igual­mente automático que sentiam na casa de John Jaffrey, onde a governanta, Milly Sheehan, estava sempre se intrometendo, para tornar a arrumar as coisas. Mas podiam sentir: cada um deles, Ricky Hawthorne talvez mais do que os outros, gostaria de possuir um lugar assim para si próprio. Mas Sears sempre tivera mais dinheiro do que os outros, assim como o pai dele também tivera mais do que os pais dos outros. Era uma situação imutável por cinco gerações, até se chegar ao dono de um arma­zém rural que inflexivelmente amealhara uma fortuna e trans­formara a família James em burgueses aristocratas. No tempo do avô de Sears, as mulheres da família já eram magras, trê­mulas, decorativas e inúteis, os homens caçavam e iam para Harvard, todos passavam o verão em Saratoga Springs. O pai de Sears fora professor de línguas antigas em Harvard, onde manti­nha uma terceira casa da família. O próprio Sears se tornara advogado porque, quando jovem, achava que era imoral um homem não ter uma profissão. O ano ou pouco mais que passara como professor lhe havia mostrado que não poderia ser essa a sua profissão. Quanto aos outros membros da família, primos e irmãos, a maioria sucumbira à vida fácil, acidentes de caça, cirroses ou colapsos. Mas Sears, velho amigo de Ricky, seguira em frente entre todos os perigos, até se tornar, se não o velho mais bonito de Milburn, um título que certamente cabia a Lewis Benedikt, pelo menos o mais distinto. A não ser pela barba, era uma repetição do pai, alto, calvo e corpulento, o rosto redondo com uma expressão sutil, encimando os temos completos. Os olhos ainda eram muito jovens.

Ricky imaginava que devia também ter inveja da aparência imponente de Sears. Ele próprio jamais fora particularmente atraente. Era pequeno e bem-arrumado demais para isso. So­mente o bigode é que melhorara com a idade, tornando-se mais viçoso à medida que ia ficando grisalho. Ao desenvolver uma papada, isso não o tornara mais notável, apenas fizera com que parecesse mais esperto. Ricky não se considerava particular­mente esperto. Se fosse, poderia ter evitado uma associação profissional pela qual se tornaria, oficiosamente, uma espécie de sócio júnior permanente. Mas fora seu pai, Harold Haw­thorne, quem trouxera Sears para a firma. Durante todos aqueles anos, Ricky sentira-se satisfeito, até mesmo excitado, por estar associado a seu velho amigo. Agora, acomodado numa cadeira de braços inegavelmente confortável, ele imaginou que ainda estava satisfeito; os anos os haviam unido tão seguramente quanto seu casamento com Stella, a união profissional sendo muito mais pacífica do que a doméstica, mesmo quando os clientes, na mesma sala com os dois advogados, olhassem inva­riavelmente para Sears e não para ele ao falar. Era algo que Stella jamais teria tolerado. (Diga-se de passagem que nenhuma pessoa em seu juízo perfeito, durante todos os anos do casa­mento deles, teria olhado para Ricky, se pudesse contemplar Stella.)

Isso mesmo, admitiu Ricky para si próprio, pela milésima vez, gostava dali. Era contrário a seus princípios e à sua polí­tica, provavelmente também ao puritanismo de uma religião há muito esquecida, mas a biblioteca de Sears — toda a esplên­dida casa de Sears — era um lugar onde um homem podia sentir-se à vontade. Stella não tinha o menor escrúpulo em manifestar que era também o lugar onde, com alguma reestruturação básica, uma mulher também poderia sentir-se à vontade. Ela não se importava em tratar a casa de Sears, de vez em quando, como se fosse sua. Felizmente, Sears tolerava tal ati­tude. Fora Stella, numa daquelas ocasiões (há doze anos, en­trando na biblioteca como se estivesse à frente de um pelotão de arquitetos), que lhes dera o nome, ao comentar:

— Lá estão vocês novamente! A própria Sociedade Chow­der! Vai manter meu marido longe de mim durante toda a noite, Sears? Ou será que ainda não terminaram de contar suas mentiras?

Apesar de tudo, ele achava que era a energia perpétua e as constantes alfinetadas de Stella que o impediam de sucumbir à velhice, como acontecera com John Jaffrey. Pois Jaffrey era de fato um “velho”, apesar de seis meses mais jovem do que o próprio Hawthorne, um ano menos do que Sears, e apenas cinco anos mais velho do que Lewis, o membro mais moço do grupo.

Lewis Benedikt, o homem que fora acusado de matar a esposa, estava sentado imediatamente à frente de Ricky, uma imagem de boa saúde, exuberante. À medida que o tempo passava por todos eles, subtraindo coisas, parecia acrescentar apenas para Lewis. Não era verdade quando ele era mais moço, mas agora Lewis inegavelmente se parecia com Cary Grant. O queixo dele não descaía, os cabelos resistiam à queda. Tor­nara-se quase absurdamente bonito. Naquela noite, as feições plácidas e bem-humoradas de Lewis apresentavam uma expres­são de expectativa, o que também acontecia com os outros, à exceção de Ricky. De um modo geral, as melhores histórias eram contadas ali, na casa de Sears.

— De quem é a vez esta noite? — indagou Lewis.

A pergunta era apenas uma questão de cortesia. Todos sabiam. O grupo chamado Sociedade Chowder tinha apenas umas poucas regras: usavam trajes a rigor (porque trinta anos antes Sears gostara da idéia), nunca bebiam demais (e agora já estavam mesmo um tanto velhos para isso), jamais indagavam se alguma das histórias era verídica (pois até mesmo as mentiras mais absurdas tinham algum fundo de verdade) e jamais pres­sionavam alguém que tivesse deixado de fluir temporariamente, embora as histórias fossem contadas em rodízio.

Hawthorne já estava prestes a se manifestar quando John Jaffrey interveio:

— Estive pensando... — Percebendo os olhares inquisitivos dos outros, apressou-se em explicar: — Não, sei que não é a minha vez, o que é Ótimo. Mas estive pensando que dentro de duas semanas vai fazer um ano que Edward morreu. Ele estaria aqui esta noite, se eu não tivesse insistido naquela mal­dita festa...

— Por favor, John — disse Ricky. Ele não gostava de olhar diretamente para o rosto de Jaffrey, quando deixava transparecer suas emoções tão claramente. Parecia que se podia enfiar uma agulha na pele de Jaffrey sem arrancar nenhum sangue. — Todos sabemos que você não teve a menor culpa.

— Mas aconteceu em minha casa! — insistiu Jaffrey.

— Procure acalmar-se, Doc — disse Lewis. — Não está ajudando a si mesmo com essa atitude.

— Deixe que eu próprio decida isso!

— Então não está ajudando aos demais — disse Lewis, sem perder o tom suave de bom humor. — Todos nos lembra­mos da data. Como poderíamos esquecer?

— E o que estão fazendo a respeito? Acham que se estão comportando como se nunca tivesse acontecido... como se tivesse sido algo normal, simplesmente mais um velho que bateu as botas? Se é isso, deixem-me dizer que estão redondamente enganados!

Todos estavam chocados, num silêncio forçado; até mesmo Ricky não conseguia pensar em coisa alguma que pudesse dizer naquele momento. O rosto de Jaffrey estava terrivelmente pálido.

— Mas não estão... não estão mesmo! Todos sabem o que está acontecendo conosco. Ficamos sentados a falar como um bando de vampiros. Milly já não consegue mais suportar nossa presença lá em casa. Nem sempre fomos assim. Antiga­mente, costumávamos conversar sobre todas as coisas. Nós cos­tumávamos nos divertir... e como! Mas agora isso já não mais acontece. Estamos todos apavorados. Mas não sei se vocês o estão admitindo. Pois bem: já se passou um ano e não me im­porto de confessar que estou com medo.

— Não tenho muita certeza se estou também apavorado — comentou Lewis, tomando um gole de uísque e sorrindo para Jaffrey.

— Mas também não tem certeza se não está — respondeu o médico.

Sears James tossiu com o punho fechado diante da boca e todos se viraram para fitá-lo. “Santo Deus”, pensou Ricky, “ele pode fazer isso sempre que quer, atrair a nossa atenção sem o menor esforço. Não sei por que ele pensou que não podia ser um bom professor. E não sei como cheguei a pensar que me podia manter numa posição de igualdade com ele.”

— John, todos estamos a par dos fatos — disse Sears, gentilmente. — Todos vocês foram delicados o bastante para virem até aqui esta noite, apesar do frio e de já não sermos mais tão jovens. Por favor, vamos continuar.

— Mas acontece que Edward não morreu em sua casa. E a tal de Moore, a suposta atriz, não...

— Já chega — ordenou Sears.

— Imagino que se lembra perfeitamente de como começa­mos com isso — disse Jaffrey.

Sears assentiu, assim como Ricky Hawthorne. Fora no primeiro encontro depois da estranha morte de Edward Wan­derley. Os quatro restantes estavam hesitantes; não poderiam estar mais conscientes da ausência de Edward se houvesse uma cadeira vazia entre eles. A conversa tropeçara e enguiçara atra­vés de meia dúzia de tentativas. Ricky compreendera que todos estavam imaginando se conseguiriam prosseguir com aqueles encontros. Mas sabia também que nenhum deles poderia su­portar a suspensão das reuniões. E fora então que tivera uma inspiração. Virara-se para John Jaffrey e perguntara:

— Qual foi a pior coisa que você já fez?

O Dr. Jaffrey surpreendera-o ao ficar vermelho e depois dera o tom a todas as reuniões subseqüentes, ao dizer:

— Não vou contar, mas lhe direi qual foi a pior coisa que já me aconteceu... a mais terrível...

E contara a seguir uma história de fantasma. Fora absor­vente, surpreendente... e servira para que não pensassem em Edward. Haviam adotado o esquema desde então.

— Acha realmente que é apenas coincidência? — indagou Jaffrey.

— Não estou entendendo — resmungou Sears.

— Está se fazendo de desentendido, e a coisa está debaixo de seu nariz. Começamos com isso, primeiro eu, logo depois que Edward... — Ele suspendeu a frase no meio. Ricky sabia que Jaffrey estava indeciso, sem saber se devia dizer morreu ou foi morto.

— Foi para o oeste — sugeriu ele, esperando com isso amenizar um pouco a tensão. Os olhos impassíveis de lagarto de Jaffrey, fixando-se nele, informaram-no que fracassara. Ricky recostou-se na poltrona, esperando desaparecer no ambiente suntuoso, passar tão despercebido quanto uma mancha de água num dos mapas antigos de Sears.

— De onde tirou essa expressão? — indagou Sears. Ricky recordou: era o que seu pai costumava dizer quando um cliente morria. “O velho Toby Pfaff foi para o oeste ontem à noite... A Sra. Wintergreen foi para o oeste esta manhã. Não vai ser fácil tratar da herança.” Sears sacudiu a cabeça. — É isso mes­mo, estou lembrando agora — comentou. — Mas não sei...

— Acho que alguma coisa terrivelmente estranha está acontecendo — insistiu Jaffrey.

— E o que sugere? Presumo que não esteja falando apenas para interromper os trâmites habituais.

Ricky sorriu por cima das pontas unidas dos dedos, para mostrar que não se sentia ofendido. Podia ver que Jaffrey estava se esforçando ao máximo para tratar Sears cuidadosa­mente.

— Pois tenho mesmo uma sugestão. Acho que deveríamos convidar o sobrinho de Edward para uma reunião.

— E de que isso serviria?

— Ele não é uma espécie de especialista... nesse tipo de coisa?

— O que está querendo dizer exatamente com “nesse tipo de coisa”?

Pressionado, Jaffrey não recuou.

— Talvez simplesmente o que é misterioso. Acho que ele poderia...  para ser franco, acho que ele nos poderia ajudar. — Sears estava visivelmente impaciente, mas o médico não deixou que ele o interrompesse, apressando-se em continuar: — Estou convencido de que precisamos de ajuda. Ou será que sou o único dos presentes que encontra a maior dificuldade para ter uma boa noite de sono? Será que sou o único que tem pesa­delos todas as noites? — Fez uma pausa, contemplando os outros, um a um, com o rosto encovado. — Por que não diz alguma coisa, Ricky? Sempre foi um homem sincero.

— Você não é o único, John — confirmou Ricky.

— Não, acho que não — disse Sears. Ricky fitou-o, sur­preso. Sears jamais indicara que também tinha noites horríveis, jamais o deixara transparecer em seu rosto suave e pensativo.

— Imagino que está pensando no livro dele, John.

— Isso mesmo. Ele deve ter feito alguma pesquisa... deve ter tido alguma experiência.

— Pensei que a experiência dele fosse de instabilidade mental.

— Como a nossa — declarou Jaffrey, bravamente. — Edward devia ter alguma razão para querer que seu sobrinho viesse a esta casa. Queria que Donald viesse até aqui, se algu­ma coisa lhe acontecesse. Acho que sabia que alguma coisa aconteceria. E estou pensando em mais outra coisa. Acho que lhe devemos contar a respeito de Eva Galli.

— Contar uma história inconclusa que já tem mais de cinqüenta anos? Isso é ridículo.

— A razão de não ser ridícula é justamente o fato de ser inconclusa — comentou o médico.

Ricky percebeu que Lewis estava tão surpreso quanto ele, até mesmo abalado, pelo fato de Jaffrey ter levantado a história de Eva Galli. O episódio estava sepultado no passado há cinqüenta anos, como Sears dissera; nenhum deles o mencionara desde então.

— Acha que sabe o que aconteceu com ela? — desafiou o médico.

— Ei, vamos com calma! — interveio Lewis. — Será que realmente estamos   precisando disso? Onde está querendo chegar?

— Estou simplesmente querendo descobrir o que real­mente aconteceu com Edward. Lamento muito se isso não ficou bem claro.

Sears assentiu. Ricky teve a impressão de perceber no rosto do seu sócio por tantos anos um sinal de... do quê? Alívio? É claro que Sears jamais iria admiti-lo, mas o simples fato de ter transparecido já era uma revelação para Ricky.

— Tenho algumas dúvidas quanto ao argumento —. co­mentou Sears. — Mas se isso o deixa feliz, acho que podemos escrever para o sobrinho de Edward. Temos o endereço dele em nossos arquivos, não é mesmo, Ricky? — Hawthorne as­sentiu. — Porém, para sermos democráticos, eu gostaria que houvesse antes uma votação. Devemos concordar ou discordar verbalmente, fazendo assim a votação. O que me dizem?

Tomou um gole de uísque, enquanto olhava um a um. Todos assentiram.

— Vamos começar por você, John.

— Claro que digo sim. Vamos chamá-lo.

— Lewis?

Lewis deu de ombros.

— Acho que uma coisa ou outra não faz a menor dife­rença. Podem chamá-lo, se assim quiserem.

— Isso significa um sim?

— Está bem, é um sim. Mas acho que não devemos tocar no caso de Eva Galli.

— Ricky?

Ricky olhou para o sócio e compreendeu que o sócio sabia como ele iria votar.

— Não, decididamente não. Acho que é um erro.

— Prefere continuar como estamos há um ano?

— Qualquer mudança é sempre para pior.

Sears achou graça.

— Falou como um verdadeiro advogado. Mas eu digo que sim, o que torna o resultado três contra um. Está aprovada a decisão. Vamos escrever para ele. E como o voto decisivo foi o meu, podem deixar que cuidarei de tudo.

— Acabo de me lembrar de outra coisa — disse Ricky. — Está fazendo um ano agora. E se ele quiser vender a casa? Está vazia desde que Edward morreu.

— Está inventando problemas, Ricky. Poderemos trazê-lo mais depressa para cá se ele quiser vender.

— Como pode ter certeza de que as coisas não vão ficar ainda piores?

Sentando pelo menos uma vez por mês, há mais de vinte anos, numa poltrona cobiçada, na melhor sala que ele conhecia, Ricky desejava ardentemente que nada mudasse, que pudessem continuar assim indefinidamente, a darem vazão a suas apreensões através de pesadelos e histórias. Contemplando a todos sob a luz fraca, enquanto um vento frio batia lá fora contra as ja­nelas de Sears, Ricky não desejava mais do que isso: simples­mente continuar. De certa forma, estava tão unido a eles quanto um momento atrás se considerara unido a Sears. Gradativa-mente, começou a compreender que temia por eles. Pareciam terrivelmente vulneráveis, sentados ali, fitando-o zombeteiramente, como se imaginassem que nada poderia ser pior do que uns poucos pesadelos e algumas histórias de fantasmas. Acredi­tavam na eficácia do conhecimento. Mas Ricky podia ver um plano de escuridão, projetado pela copa de um abajur, estam­par-se na testa de John Jaffrey. E pensou: “John já está mor­rendo. Há uma espécie de conhecimento que eles nunca en­frentaram, apesar das histórias que contam”. E quando tal pensamento lhe passou pela cabeça pequena e bem-arrumada, foi como se o que quer que estivesse implícito nesse conheci­mento se encontrasse em algum lugar lá fora, nos primeiros sinais do inverno, começando a envolvê-los.

— Já decidimos, Ricky — disse Sears. — Será melhor. Não podemos continuar angustiados como estamos. E agora... — Correu os olhos pelo círculo que haviam formado, esfre­gando as mãos metaforicamente, e acrescentou: — Agora que isso está resolvido, quem está na berlinda esta noite?

Dentro de Ricky Hawthorne, o passado subitamente se re­mexeu e levou à tona um momento tão vívido e completo que ele compreendeu que tinha sua história, embora nada houvesse planejado e pensasse que teria de passar. Mas dezoito horas do ano de 1945 surgiram nitidamente em sua mente e ele disse:

— Acho que sou eu,

 

Quando os outros dois se retiraram, Ricky decidiu ficar mais um pouco, dizendo-lhes que não tinha qualquer pressa em sair para o frio lá fora. Lewis comentou:

— Vai servir para levar um pouco de sangue a seu rosto, Ricky.

Mas o Dr, Jaffrey limitou-se a assentir. Estava inespera­damente frio para outubro, frio o bastante para que nevasse. Depois, sentado sozinho na biblioteca, enquanto Sears saía para renovar os drinques, Ricky pôde ouvir o barulho da ignição do carro de Lewis na rua. Ele tinha um Morgan, que importara da Inglaterra há cinco anos. Era o único carro esporte de cuja aparência Ricky realmente gostava. Mas a capota de lona não seria uma proteção adequada numa noite como aquela; e Lewis parecia estar tendo alguma dificuldade em fazer o carro pegar. Agora! Ele quase conseguira. Naqueles invernos de Nova York, era necessário realmente ter algo maior do que o pequeno Morgan de Lewis. O pobre John estaria congelado quando Lewis finalmente o levasse até Milly Sheehan e a casa imensa na esquina da Montgomery Street, a sete quarteirões dali. Milly estaria sentada na semi-escuridão da sala de espera do consultório, mantendo-se acordada a fim de poder levantar-se de um pulo assim que ouvisse o barulho da chave na porta, ajudar Jaffrey a tirar o casaco e servir-lhe um pouco de choco­late quente. Com Ricky sentado ali, escutando atentamente, o motor do carro de Lewis finalmente pegou; pôde ouvi-lo se afastando e imaginou Lewis a ajeitar o chapéu na cabeça, sorrir para John e dizer:

— Eu  não lhe disse que  esta  minha  beleza  não  falha nunca?

Depois de largar John em casa, Lewis deixaria inteiramen­te a cidade, seguindo pela Rodovia 17 até estar bem no meio do bosque, voltando à propriedade que comprara ao retornar. Fosse o que fosse que Lewis tivesse feito na Espanha, certamen­te ganhara muito dinheiro.

A casa de Ricky ficava literalmente logo depois da esqui­na, uma caminhada de menos de cinco minutos. Antigamente, ele e Sears iam a pé para o escritório no centro todos os dias; às vezes ainda o faziam, quando o tempo estava bom. “Mutt e Jeff”, como dissera Stella. O comentário era dirigido mais a Sears do que a ele. Stella jamais gostara muito de Sears. É claro que ela jamais permitia que essa antipatia submersa interferisse com suas tentativas de dominar Sears pelo menos um pouco. Ricky não tinha a menor dúvida de que Stella não o estaria esperando com uma xícara de chocolate quente. Ela já devia estar dormindo há horas, deixando apenas uma luz acesa no vestíbulo do segundo andar. Stella achava que, se o marido queria divertir-se nas casas dos amigos, deixando-a para trás, podia perfeitamente encontrar o caminho no escuro quando voltasse para sua própria casa,  esbarrando com os joelhos  nos móveis modernos de vidro e cromo que o obrigara a comprar. Sears voltou para a sala com dois drinques nas mãos e um charuto aceso na boca. Ricky comentou:

— Sears, você é provavelmente a única pessoa que eu co­nheço para quem posso de vez em quando confessar que há ocasiões em que desejaria nunca ter-me casado.

— Não desperdice sua inveja comigo, Ricky. Sou velho demais, gordo demais e cansado demais.

— Não é nenhuma dessas coisas — disse Ricky, pegando o drinque que Sears lhe estendeu. — Mas pode dar-se ao luxo de fingir que é.               

— Mas você tirou o grande prêmio, Ricky. O motivo pelo qual não faz esse comentário a ninguém mais é que os outros ficariam espantados. Afinal, Stella é uma beldade famosa. E se dissesse tal coisa à própria, pode estar certo de que ela lhe arrancaria os miolos. — Sears sentou-se na mesma poltrona que ocupara anteriormente, esticou as pernas e depois cruzou-as, na altura dos tornozelos. — Ela providenciaria rapidamente um caixão, jogaria você lá dentro e o enterraria, tudo em apenas cinco segundos, fugindo depois com um tipo atlético de qua­renta anos, cheirando a água salgada e rum ordinário. O mo­tivo pelo qual me conta isso... — Sears fez uma pausa. Ricky receou que ele fosse dizer: “Às vezes eu gostaria também que você nunca se tivesse casado”. — É que estou hors de combat. Ou devo dizer hors commerce?

Escutando o sócio falar, segurando o drinque, Ricky pen­sou em John Jaffrey e Lewis Benedikt seguindo para suas casas, em sua própria casa recentemente redecorada à sua espera. Compreendeu como suas vidas eram assentadas e acomodadas, como haviam encontrado uma rotina tranqüila e confortável.

— Qual das duas, Ricky?

— No seu caso, tenho certeza de que é hors de combat.

Ricky sorriu, consciente da intimidade entre os dois. Lem­brou-se do que dissera pouco antes, “Qualquer mudança é sem­pre para pior”, e pensou: “É verdade, que Deus nos ajude”. Subitamente, Ricky viu a todos, a seus velhos amigos e a si mesmo, como se estivessem num plano frágil e invisível, sus­penso lá no alto do céu escuro.

— Stella sabe que você tem pesadelos? — indagou Sears.

— Eu nem sabia que você também tinha — respondeu Ricky, como se fosse um gracejo.

— Não vi motivo para falar a respeito.

— E vem tendo esses pesadelos há...

Sears afundou mais um pouco na poltrona.

— E você vem tendo os seus há...

— Um ano.

— Eu também. Há um ano. Aparentemente, o mesmo está acontecendo com os outros dois.

— Lewis não parece muito abalado.

— Nada jamais abala Lewis. Ao fazê-lo, o Criador disse: “Vou dar-lhe um rosto bonito, um bom físico e um tempera­mento sereno. Mas como este é um mundo imperfeito, vou conter-me um pouco nos miolos”. Lewis ficou rico porque gos­tava das aldeias de pescadores da Espanha, não porque sou­besse o que lhes ia acontecer.

Ricky ignorou o comentário; era tudo parte da maneira com que Sears gostava de caracterizar Lewis.

— Começaram depois da morte de Edward?

Sears concordou.

— O que acha que aconteceu com Edward?

Sears deu de ombros. Todos já haviam feito aquela mesma pergunta vezes demais.

— Como está perfeitamente a par, não sei mais do que você.

— Acha que poderemos ser um pouco mais felizes se descobrirmos?

— Mas que pergunta! É algo que também não posso res­ponder, Ricky.

— Pois estou convencido de que algo de terrível nos irá acontecer. Acho que iremos atrair o desastre se convidarmos o jovem Wanderley para um encontro.

— O que está dizendo é pura superstição, uma bobagem completa — resmungou Sears. — Acho que algo terrível já nos aconteceu e que o jovem Wanderley talvez seja o homem capaz de esclarecer tudo.

— Leu o livro dele?

— O segundo? Dei uma olhada.

Era uma admissão de que o tinha lido.

— E o que achou?

— Um bom exercício no gênero. Com mais qualidades literárias do que a maioria. Umas poucas frases excelentes, um enredo razoavelmente inspirado e bem desenvolvido.

— Mas sobre o que ele possa pensar...

— Tenho a impressão de que ele não nos vai repelir pron­tamente como a um bando de velhos tolos.  Isso é o mais importante.

— Pois eu gostaria que ele nos repelisse. Não quero ver ninguém a se imiscuir em nossas vidas. Prefiro que as coisas continuem como estão.

— Mas é possível que ele bisbilhote nossas vidas e ter­mine convencendo-nos de que estamos apenas iludindo a nós mesmos. Talvez então Jaffrey pare de se atormentar por causa daquela maldita festa. Ele insistiu apenas porque queria co­nhecer aquela atrizinha ordinária, a tal de Moore.

— Estou sempre pensando naquela festa, Sears, procuran­do recordar quando a vi naquela noite.

— Eu a vi conversando com Stella.

— É o que todo mundo diz, que ela estava conversando com minha esposa. Mas para onde foi depois?

— Você está ficando tão mal quanto John. Vamos esperar pelo jovem Wanderley. Precisamos de uma mente fresca para examinar os fatos.

— Estou convencido de que nos vamos arrepender depois — falou Ricky, fazendo uma última tentativa. — Vamos ter­minar arrasados. Seremos como algum animal a comer a própria cauda. É melhor mudarmos de idéia.

— Já está “decidido, Ricky. Não seja melodramático.

Então não havia mais jeito. Nada poderia demover Sears. Ricky fez-lhe outra das perguntas que estavam em sua mente:

— Nas nossas noites, sempre sabe de antemão o que vai dizer, quando chega sua vez?

Os olhos de Sears se encontraram com os dele, maravi­lhosa e impecavelmente azuis.

— Por quê?

— Porque o mesmo não acontece comigo. Ou pelo menos na maioria das vezes. Fico sentado, esperando, de repente a história me surge na cabeça, como esta noite. É o que também acontece com você?

— Freqüentemente. Só que isso não prova coisa alguma.

— Será que também é assim com os outros?

— Não vejo razão para que não possa ser. E agora, Ricky, quero descansar um pouco e você deve ir para casa. Stella deve estar à sua espera.

Ricky não conseguiu determinar se Sears estava ou não sendo irônico. Ajeitou a gravata-borboleta, uma parte de sua vida, como a Sociedade Chowder, que Stella quase não tolerava.

—  De onde vêm essas histórias?

— De nossas memórias — respondeu Sears. — Ou, se prefere, de nossas indubitáveis inconsciências freudianas. Agora chega, Ricky. Quero ficar sozinho. E ainda tenho de lavar todos os copos antes de me deitar.

—  Posso pedir-lhe mais uma vez...

—  O que é agora?

—  ...para  não  escrever ao sobrinho de Edward?  — Ricky levantou-se, a audácia fazendo seu coração bater mais depressa.

—  Você sabe ser persistente, hein? Claro que pode sem­pre me pedir, mas ele já terá recebido minha carta na próxima vez em que nos reunirmos. Estou convencido de que é a melhor que podemos fazer.

Ricky amarrou a cara e Sears acrescentou:

—  Persistente sem ser agressivo. — Era um comentário que Stella poderia perfeitamente ter feito. Mas Sears deixou Ricky aturdido ao arrematar:  — É uma excelente qualida­de, Ricky.

Na porta, Sears ficou segurando o capote, enquanto Ricky enfiava os braços pelas mangas.

—  Achei que John estava pior do que nunca esta noite — comentou Ricky.

Sears abriu a porta para a noite escura, iluminada pelo lampião diante da casa. Uma claridade alaranjada se derramava sobre o gramado morto e a calçada estreita, cobertos de folhas mortas. Nuvens escuras e ameaçadoras deslocavam-se pelo céu negro, era como se já fosse inverno.

—  John está morrendo — disse Sears, calmamente, repe­tindo o pensamento de Ricky. — Até amanhã em Wheat Row. E apresente meus respeitos a Stella.

E a porta se fechou atrás daquele velho pequeno e muito aprumado, já começando a estremecer no ar frio da  noite.

 

 (Sears James)

 

Passavam a maior parte dos dias juntos, no escritório, mas Ricky honrou a tradição e esperou até a reunião na casa do Dr. Jaffrey para fazer a pergunta que há duas semanas não lhe saía da mente:

—  Já mandou a carta?

—  Claro! Eu disse que iria mandá-la o mais depressa possível.

—  E o que disse na carta?

—  O que combinamos. Falei também na casa e disse que esperávamos que não se decidisse a vendê-la sem antes exami­ná-la. Todas as coisas de Edward ainda estão lá, inclusive as gravações. Se não tivemos a coragem de ouvi-las, talvez ele o faça.

Estavam de pé, um pouco separados dos outros dois, à entrada das salas de estar da casa de John Jaffrey. John e Lewis estavam sentados em cadeiras vitorianas num canto da sala mais próxima, conversando com a governanta do médico, Milly Sheehan, sentada num banco diante deles, segurando uma ban­deja florida com os drinques. Como a esposa de Ricky, Milly sentia-se ressentida por ser excluída das reuniões da Sociedade Chowder; ao contrário de Stella Hawthorne, porém, ela pairava eternamente em torno da reunião, entrando abruptamente, a todo instante, com baldes de gelo, sanduíches e café. Irritava Sears quase tanto quanto uma mosca batendo contra a janela. Sob muitos aspectos, Milly era preferível a Stella Hawthorne, sendo menos exigente, menos impulsiva. E não restava a menor dúvida de que sabia cuidar de John. Sears aprovava as mulheres que serviam e ajudavam a seus amigos. E, para ele, era uma questão em aberto se Stella cuidava ou não de Ricky.

Sears olhou agora para a pessoa que o destino pusera mais perto dele que qualquer outra no mundo e compreendeu que Ricky estava pensando que ele dera um jeito de se esquivar à última pergunta. O rosto sagaz de Ricky estava tenso de im­paciência.

—  Está bem, Ricky, está bem. Disse ao rapaz que não estávamos satisfeitos com o que sabíamos a respeito da morte de seu tio. E não mencionei Eva Galli.

—  Ainda bem — murmurou Ricky, entrando na sala para se juntar aos outros.

Milly se levantou, mas Ricky sorriu e acenou para que ela sentasse outra vez no banco. Um gentleman nato, Ricky sempre fora gentil e encantador com as mulheres. Estava a pouco mais de um metro de uma cadeira, mas não se sentaria enquanto Milly não o convidasse a fazê-lo.

Sears desviou os olhos de Ricky e contemplou a sala, no segundo andar. John Jaffrey convertera todo o andar térreo da casa em consultório, com salas de espera, salas de exames, uma saleta para os medicamentos. Os outros dois aposentos peque­nos do andar térreo eram ocupados por Milly. John passava o resto de sua vida ali em cima, onde havia apenas quartos, nos velhos tempos. Sears conhecia o interior da casa de John Jaffrey pelo menos há sessenta anos. Na infância, vivera a apenas duas casas de distância, no outro lado da rua. Isto é, o prédio que ele sempre considerara como “a casa da família” ficava ali, para onde voltava nas férias do colégio interno, para onde voltava nas férias de Cambridge. Naquele tempo, a casa de Jaffrey pertencia a uma família chamada Frederickson, com dois filhos bem mais jovens do que Sears. O Sr. Frederickson era um comerciante de cereais, um homem imenso, bebedor de cerveja, os cabelos vermelhos e o rosto ainda mais vermelho, algumas vezes misteriosamente tingidos de azul. A esposa era a mulher mais desejável que Sears já vira. Era alta, os cabelos compridos cacheados, com uma tonalidade entre castanho e castanho-avermelhado, um exótico rosto jovial, seios proemi­nentes. O jovem Sears sentia-se fascinado por aqueles seios; ao falar com Viola Frederickson, tinha que fazer o maior esforço para manter os olhos no rosto dela.

No verão, ao voltar do colégio interno e nos intervalos entre as viagens para o campo, era Sears quem tomava conta dos filhos do casal. Os Frederickson não podiam dar-se ao luxo de ter uma babá em tempo integral, embora uma moça de Hollow morasse na casa, como cozinheira e arrumadeira. Era bem possível que Frederickson apreciasse a idéia de ter o filho do Professor James tomando conta de seus filhos. Sears tam­bém tinha os seus divertimentos. Gostava dos meninos e apre­ciava a idolatria deles, que muito se parecia com as dos alunos mais moços do colégio. Depois que os meninos dormiam, ele gostava de vaguear pela casa, vendo o que podia descobrir. Foi na cômoda de Abel Frederickson que viu a primeira camisa-de-vênus. Sabia que estava agindo errado, ao entrar nos aposentos onde então se encontrava, mas simplesmente não conseguia conter-se. Uma noite, abriu a escrivaninha de Viola Frederick­son e encontrou uma fotografia dela, extremamente sedutora, exótica, atraente, um ícone da outra metade da espécie. Con­templou a maneira como os seios esticavam o tecido da blusa e sua mente foi dominada pelas sensações do peso daqueles seios, de sua densidade. O pênis intumesceu-se, parecia tão duro quanto o tronco de uma árvore. Era a primeira vez que sua sexualidade o atingia com tanta força. Gemendo, as mãos com­primindo a calça, desviou-se da fotografia e avistou uma blusa de Viola Frederickson dobrada sobre a cômoda. Não pôde con­trolar-se e acariciou-a. Podia ver onde a blusa se estofava, por cima dos seios: a carne de Viola Frederickson parecia estar sob suas mãos. Desabotoou a calça e tirou o membro. Colocou-o na blusa, pensando com a parte da mente que ainda era capaz de pensar que estava realmente fazendo aquilo, que estava empur­rando a ponta do membro entre os seios dela. Gemeu alto, curvou-se sobre a blusa, uma convulsão lhe percorreu o corpo e explodiu. As bolas davam a impressão de estarem sendo apertadas num torno. Imediatamente depois, a vergonha o atingia em cheio, como um punho cerrado. Meteu a blusa em sua bolsa de livros e deu uma volta grande a caminho de casa, enrolando a peça outrora imaculada numa pedra e jogando-a no rio. Ninguém jamais mencionara a blusa roubada, mas foi tam­bém a última vez que o convidaram a tomar conta dos filhos.

Pelas janelas atrás da cabeça de Ricky Hawthorne, Sears podia ver a luz de um lampião da rua incidindo sobre o segun­do andar da casa que Eva Galli comprara, quando, por qualquer capricho ou impulso, viera para Milburn. Na maior parte do tempo, ele conseguia esquecê-la e o lugar em que ela morara. Calculou que tudo aflorara à sua mente agora por causa de alguma ligação que a mente fizera entre, Eva Galli e a cena ridícula que acabara de recordar.

“Talvez eu devesse ter saído de Milburn quando podia”, pensou ele. O quarto onde Edward Wanderley morrera, exata­mente há um ano, ficava logo ali em cima. Por um acordo tácito, nenhum deles aludira à coincidência de a reunião se rea­lizar exatamente ali, no aniversário da morte do amigo. Uma fração do pressentimento de tragédia de Ricky Hawthorne se insinuou na mente de Sears, que disse a si mesmo: “Seu velho tolo! Ainda se sente culpado por causa daquela blusa! Essa não!”

 

— É a minha vez esta noite — disse Sears, ajeitando-se da melhor forma na enorme cadeira de braços de Jaffrey e pro­curando não ficar de frente para a antiga casa de Eva Galli. — E quero falar sobre certos acontecimentos que ocorre­ram comigo quando era jovem e estava experimentando a profissão de professor, no campo, perto de Elmyra. Digo expe­rimentando porque, mesmo naquela ocasião, ao início do meu primeiro ano, não tinha certeza se estava destinado àquela profissão. Assinara um contrato de dois anos, mas estava con­vencido de que eles não me poderiam reter, se quisesse mesmo ir embora. Pois foi lá que me aconteceu uma das coisas mais terríveis da minha vida. Ou não aconteceu e imaginei tudo. De qualquer forma, fiquei apavorado e os acontecimentos acabaram tornando impossível minha permanência. É a pior história que conheço, e a mantive trancada na mente por cinqüenta anos.

“Vocês sabem quais eram os deveres de um mestre-escola naquele tempo. Não era nenhuma escola urbana, assim como também não era nenhuma escola particular exclusiva no campo. Eu deveria ter procurado outro lugar, mas naquele tempo tinha algumas idéias um tanto rebuscadas. Imaginava-me um verda­deiro Sócrates rural, levando a luz da razão para o ermo inculto. Naquele tempo, a região em torno de Elmyra era quase isso, um ermo despovoado, pelo que me lembro. Agora, porém, nem mesmo existe uma comunidade suburbana onde era o povoado. Construíram um trevo rodoviário bem no local da escola. Tudo ficou enterrado sob concreto. O lugar tinha o nome de Four Forks. Agora já não resta mais nada. Mas naquele tempo, durante o meu ano fora de Milburn, era uma aldeiazinha típica, dez ou doze casas, um armazém, uma agência dos cor­reios, o ferreiro, a escola. Todas as construções se pareciam. Eram de madeira, há anos que não recebiam uma camada de tinta, o que as deixara cinzentas, com uma aparência desoladora. A escola, é claro, só tinha uma sala, uma única sala para os oito anos do curso. Quando cheguei para a entrevista, fui informado de que ficaria hospedado com os Mather — que haviam feito a proposta mais baixa e eu logo descobriria por quê — e meu dia de trabalho começaria às seis horas da manhã. Teria que cortar lenha para a estufa da escola, acender um bom fogo, varrer tudo, guardar os livros nos lugares, bombear água... até mesmo lavar as janelas, quando houvesse necessidade.

“Às sete e meia, os alunos começariam a chegar. Minha função era a de ensinar em todos os oito anos do curso, a ler e escrever, aritmética, música, geografia, caligrafia, história... tudo, enfim. Agora eu sairia correndo diante de tal perspectiva, mas naquele tempo tinha um espírito de Abraham Lincoln por um lado e de Mark Hopkins por outro. Estava ansioso para começar. A idéia simplesmente me deixava extasiado. Estava tão aturdido que me tornara um tolo rematado. Creio que até mesmo a cidadezinha estava morrendo, só que eu não era capaz de percebê-lo. Via apenas esplendor... liberdade e esplendor. Talvez um pouco embaçado, mas assim mesmo esplendor.

“Eu não sabia de nada. Não podia imaginar como seria a maioria dos meus discípulos. Não sabia que a maioria dos mestres-escolas rurais naqueles povoados isolados eram rapazes em torno dos dezenove anos, sem muita instrução além da que estavam transmitindo. Não sabia como Four Forks era um lugar lamacento e desagradável durante a maior parte do ano. Não sabia que passaria a maior parte do tempo meio morto de fome. Não sabia que minha função exigia que me apresentasse na igreja todos os domingos, na aldeia próxima, uma viagem a pé de treze quilômetros. Não sabia o quão difícil tudo seria.

“Comecei a descobrir logo na primeira noite, quando fui para a casa dos Mather, carregando minha mala. Charlie Mather fora o agente dos Correios no povoado, mas acabara sendo substituído por Howard Hummell, quando os republicanos su­biram ao poder. Charlie Mather jamais superara seu ressenti­mento. Vivia permanentemente amargurado. Levou-me para o quarto que eu iria ocupar. O aposento estava inacabado, as pranchas do assoalho não haviam sido lixadas, o teto consistia apenas dos sarrafos com as telhas por cima.

“— Estava fazendo este quarto para nossa filha — expli­cou Mather. — Ela morreu. Menos uma boca para alimentar.

“A cama era um colchão velho no chão, com um velho cobertor do Exército em cima. No inverno, não havia naquele quarto calor suficiente para um esquimó. Mas tinha uma escri­vaninha e um lampião a querosene. Como eu ainda tinha estre­las diante dos olhos, falei que estava Ótimo, que ia adorar mo­rar ali, algo mais ou menos nesse gênero. Mather resmungou de incredulidade, como não podia deixar de acontecer.

“O jantar naquela noite foi de batatas com creme de milho.

“— Não vai comer carne aqui — informou Mather. — A não ser que economize o bastante para comprá-la. Estou recebendo para mantê-lo vivo, não para engordá-lo.

“Não me lembro de ter comido carne na mesa de Mather mais do que meia dúzia de vezes. E foram seguidas, quando alguém lhe deu um ganso e comíamos ganso invariavelmente, até que nada mais restasse. Mais tarde, os alunos começaram a me levar sanduíches de presunto e bife. Os pais sabiam que Mather era um pão-duro. O próprio Mather fazia sua refeição principal ao meio-dia, tomando a precaução de me avisar que era minha obrigação passar a hora do almoço na escola, ‘dando ajuda extra a quem precisasse e distribuindo os castigos’.

“É que eles acreditavam firmemente na eficácia da vara de marmelo. Descobri isso logo no primeiro dia em que ensi­nei. Falei em ensinar, mas não era bem isso. Tudo o que conse­guia era mantê-los mais ou menos quietos por algumas horas, fazer com que escrevessem seus nomes e formular algumas perguntas. Era impressionante. Apenas duas das meninas mais velhas sabiam ler direito, a matemática deles não ia além da adição e subtração mais simples, não eram muitos os que já tinham ouvido falar de países estrangeiros. Havia mesmo um aluno que não acreditava que existissem.

“— Esse negócio não existe, não — disse-me um garoto esquelético, em torno dos dez anos. — Quem pode imaginar um lugar onde as pessoas nem mesmo são americanas? Onde as pessoas nem mesmo falam americano?

“Ele não conseguiu falar mais nada, de tanto que ria do absurdo da idéia. Fiquei olhando, horrorizado, para seus dentes pretos, completamente estragados.

“— E o que me diz da guerra, bocó? — perguntou outro menino. — Nunca ouviu falar dos alemães?

“Antes que eu pudesse reagir, o primeiro menino pulou por cima da carteira e começou a bater no outro. Parecia que estava, literalmente, disposto a assassiná-lo. Tentei separar os dois garotos — as meninas estavam gritando sem parar — e segurei o braço do agressor.

“— Ele está certo — declarei. — Não deveria tê-lo cha­mado de nenhum nome, mas está certo. Os alemães são as pes­soas que vivem na Alemanha e a Guerra Mundial...

“Parei de falar abruptamente, porque o menino estava ros­nando para mim. Parecia um cão selvagem e pela primeira vez compreendi que era mentalmente desequilibrado, talvez retar­dado. Estava prestes a me morder.

“— Peça desculpas a seu amigo — ordenei.

“— Ele não é meu amigo.

“— Peça desculpas.

“— Ele é maluco, senhor — disse o outro menino. O rosto dele estava extremamente pálido, os olhos assustados, um olho começava a ficar roxo. — Eu não deveria ter falado aqui­lo dele.

“Perguntei ao primeiro menino como se chamava.

“— Fenny Bate — conseguiu balbuciar.

“Já estava começando a se acalmar. Mandei que o outro menino voltasse para sua carteira e depois disse:

“— Fenny, o problema é que você estava errado. A Amé­rica não é o mundo inteiro, assim como Nova York não é tudo o que existe nos Estados Unidos.

“Era complicado demais pára ele e percebi que não o tinha convencido. Por isso, levei-o para a frente da sala e o fiz sentar ali, enquanto abria o mapa no quadro-negro.

“— Tudo isto é o território dos Estados Unidos da Amé­rica. Isto aqui é o. México e isto o oceano Atlântico...

“Fenny ficou sacudindo a cabeça, com uma expressão sombria.

“— Mentira! É tudo mentira! Esses lugares não existem! Não existem!

“Ao gritar, ele empurrou a carteira, que virou ruidosa­mente. Pedi-lhe que endireitasse a carteira. Como ele ficasse simplesmente sacudindo a cabeça, começando a babar nova­mente pelos cantos da boca, eu mesmo endireitei a carteira. Algumas das outras crianças deixaram escapar uma exclamação de espanto.

“— Quer dizer que nunca viu nem ouviu falar de mapas e outros países? — indaguei.

“Ele assentiu.

“— Mas sei que é tudo mentira.

“— Quem lhe disse isso?

“Sacudiu ,a cabeça novamente, recusando-se a dizer. Se ti­vesse demonstrado algum sinal de constrangimento, eu pensaria que recebera a informação errada dos pais. Mas tal não acon­teceu. Ele estava simplesmente furioso e soturno.

“Ao meio-dia, todas as crianças pegaram seus sacos de pa­pel e saíram para comer os sanduíches no terreno ao redor da escola. Seria um exagero dizer que se tratava de um playground, embora houvesse dois balanços meio cambaios nos fundos da escola. Fiquei observando Fenny Bate. As outras crianças deixavam-no isolado. Quando ele saía de seu estupor e tentava juntar-se a um grupo, os outros se afastavam osten­sivamente, deixando-o sozinho, com as mãos nos bolsos. De vez em quando, uma menina esquelética, de cabelos louros escor­ridos, aproximava-se e lhe falava alguma coisa. Era bastante parecida com Fenny Bate e imaginei que deveria ser sua irmã. Fui verificar na minha relação de alunos e lá estava. Constance Bate, no quinto ano. Era uma das meninas mais quietas.

“Quando voltei a olhar para Fenny, descobri que um ho­mem de aparência estranha estava parado na estrada, fora do terreno da escola. E olhava para Fenny, exatamente como eu. Fenny Bate estava sentado entre nos dois, inteiramente alheio a nossa atenção. Por alguma razão, o homem me provocou um tremendo choque. Não era apenas por sua estranha aparência, que não se podia deixar de notar, metido em roupas de tra­balho, velhas, imundas e esfarrapadas, os cabelos muito pretos, as faces cor de marfim, o rosto bonito, braços e ombros pare­cendo extremamente fortes. O que mais me impressionou foi a maneira como estava olhando para Fenny Bate. Com uma expressão feroz, quase brutal. Além da aparência de selvageria, havia também uma impressão intensa e surpreendente de li­berdade na maneira como estava parado ali, uma liberdade muito mais profunda do que a simples segurança interior. Para mim, parecia extremamente perigoso. Tive a sensação de ter sido transportado para uma região onde os homens e meninos eram bestas selvagens disfarçadas. Desviei os olhos, quase assus­tado com a selvageria no rosto do homem. Quando tornei a olhar, ele já havia desaparecido.

“Minhas noções sobre o lugar foram confirmadas naquela tarde, quando já tinha quase esquecido o homem na estrada. Estava em meu quarto cheio de correntes de ar, tentando pre­parar as lições para o segundo dia na escola. Teria que intro­duzir as tábuas de multiplicação para as turmas superiores, poderia dar algumas tinturas de geografia extremamente ele­mentar... Estava pensando em coisas assim quando Sophronia Mather entrou no quarto. A primeira providência dela foi apa­gar o lampião a querosene que eu estava usando.

“— Isso é para a escuridão total, não para se usar à tarde — disse ela. — Terá de aprender a ler seus livros à luz que Deus lhe concedeu.

“Fiquei surpreso ao vê-la em meu quarto. Durante o jan­tar, na noite anterior, ela ficara calada; a julgar por seu rosto, pálido, tenso e esticado como couro de tambor, qualquer um diria que o silêncio era o seu comportamento natural. Posso assegurar-lhes que ela sabia fazer com que seu rosto fosse bas­tante expressivo. E eu ia logo descobrir que ela não sentia o menor medo de falar, a não ser com o marido.

“— Precisamos conversar, professor — disse ela. — Estão falando muito a seu respeito.

“— Já?

“— Cometeu um erro na maneira como começou... e a maneira como se começa é como se continua. Soube por Mariana Birdwood que tolerou mau comportamento na sala de aula.

“— Não creio que isso tenha acontecido.

“— É o que a filha dela, Ethel, disse.

“Não consegui ajustar um rosto ao nome de Ethel Bird­wood, embora me lembrasse de tê-la chamado. Achei que de­veria ser uma das alunas mais velhas, com quinze anos.

“— E o que Ethel Birdwood afirma que permiti?

“— Foi o que Fenny Bate fez. Ele não bateu em outro menino? E diante do seu nariz?

“— Falei com ele.

“— Falou? Pois falar não adianta. Por que não usou sua palmatória ?

“— Porque não tenho.

“Ela ficou tremendamente chocada.

“— Mas deve bater neles! É a única maneira. Deve usar a palmatória neles uma ou duas vezes por dia. E em Fenny Bate mais do que nos outros.

“— Por que especialmente nele?

“— Porque ele não presta.

“— Percebi que ele é um menino conturbado, lerdo, um tanto atrasado, mas não creio que seja tão ruim assim.

“— Pois ele é. Não presta mesmo. E as outras crianças esperam que ele apanhe. Se suas idéias são avançadas demais para nós, é melhor deixar a escola. E não são apenas as crian­ças que esperam que use a palmatória. — Virou-se, como se fosse sair. — Achei que estaria fazendo uma gentileza se lhe viesse falar antes de meu marido saber que andou negligenciando seus deveres. Espero que aceite meu conselho. Não se pode ensinar sem bater.

“— Mas o que faz com que Fenny Bate seja tão famige­rado? — indaguei, ignorando aquele último e terrível comen­tário. — Seria injusto perseguir um menino que está precisando de ajuda.

“— A palmatória é toda a ajuda de que ele está preci­sando. Ele não é apenas mau, é a própria maldade. Deve fazê-lo sangrar e mantê-lo quieto. . . mantê-lo de crista baixa. Estou apenas querendo ajudá-lo, professor. Afinal, sempre temos al­gum uso para o pouco dinheiro extra que sua estada nos pro­porciona.

“E, com isso, ela foi embora. Nem mesmo tive tempo de interrogá-la a respeito do homem estranho que vira na es­trada, na hora do almoço.

“De qualquer forma, eu não tinha a menor intenção de causar um mal ainda maior ao bode expiatório do povoado.”

(Milly Sheehan, o rosto contraído pela repulsa, largou o cinzeiro que fingia estar limpando, olhou para a janela a fim de certificar-se de que as cortinas estavam fechadas direito e foi até a porta. Sears, parando de contar a história, viu que ela deixara a porta entreaberta.

 

Sears James, parando por um momento o relato e pen­sando com alguma irritação que o hábito de escutar furtiva­mente de Milly estava se tornando menos sutil a cada mês, não sabia de um evento que acontecera na cidade naquela tarde que iria afetar as vidas de todos eles. Fora um acontecimento que, por si mesmo, nada tinha de extraordinário: a chegada num ônibus de uma jovem admirável, que saltou na esquina do banco com a biblioteca e olhou ao redor, com uma expressão de satisfação confiante, como uma mulher bem-sucedida que vol­tava para uma visita nostálgica a sua cidade natal. Era essa a impressão que ela dava, segurando uma valise pequena e sor­rindo ligeiramente, sob uma súbita queda de folhas brilhantes. Observando-a, qualquer um diria que seu sucesso era a própria medida de sua vingança. Num casaco comprido e bonito, com uma abundância de cabelos escuros, ela dava a impressão de que voltara para se regozijar pelo sucesso que alcançara, como se isso fosse a metade do prazer que sentia. Milly Sheehan, fa­zendo compras para a despensa do médico, viu-a parada no ponto, enquanto o ônibus se afastava na direção de Binghamton. Por um momento, Milly teve a impressão de que a conhe­cia. O mesmo aconteceu com Stella Hawthorne, que estava to­mando café junto à janela do Restaurante Village Pump. Ainda sorrindo, a jovem de cabelos escuros passou pela janela do restaurante. Stella virou a cabeça para observá-la atravessar a praça e subir os degraus do Hotel Archer. Seu acompanhante, professor associado1 de antropologia da Universidade Estadual de Nova York, comentou:

—  Ah, o exame de uma linda mulher por outra! Mas eu nunca a tinha visto fazer isso antes, Stel.

Stella detestava que a chamassem de “Stel”.

— Achou mesmo que ela era bonita?

— Eu seria um mentiroso se dissesse que não.

— Mas se acha que também sou bonita, então não há problema.

 

 


1 Professor de colégio ou universidade, cujas funções estão abaixo das do titular e acima das do professor assistente. (N. do E.)

Ela sorriu um tanto automaticamente para Sims, que era vinte anos mais moço e se julgava apaixonado. Voltou a olhar para o Hotel Archer, onde a jovem alta estava naquele momen­to passando pela porta, para desaparecer lá dentro no instante seguinte.

— Se não há problema, por que continua a olhar?.

— É que... — Stella fechou a boca, pensou por um instante e acrescentou: — Não foi por nada. Mas acho que é uma mulher como aquela que você deveria convidar para almo­çar, em vez de um monumento antigo e avariado pelo tempo como eu.

—  Se é isso o que pensa...

Sims tentou pegar a mão dela, por baixo da mesa. Stella afastou a mão dele com um toque dos dedos. Jamais gostara de ser acariciada em restaurantes. Naquele momento, bem que gostaria de dar uma boa bofetada em seu companheiro.

—  Dê-me uma oportunidade, Stella.

Ela fitou-o nos olhos castanhos e suaves e disse:

—  Não seria melhor que voltasse para as suas alunas?

Enquanto isso, a jovem estava se registrando no hotel. A Sra. Hardie, que dirigia o Hotel Archer junto com o filho, desde a morte do marido, saiu de seu escritório e aproximou-se da jovem deslumbrante que estava do outro lado do balcão.

— Em que posso servi-la? — indagou ela, ao mesmo tempo que pensava: “Como vou fazer para manter Jim longe dessa moça?”

— Vou precisar de um quarto com banheiro. E devo ficar no hotel até encontrar uma casa para alugar na cidade.

— Mas que bom! — exclamou a Sra. Hardie. — Está se mudando para Milburn? Acho que isso é realmente mara­vilhoso. A maioria dos jovens daqui só pensa atualmente em ir embora. É o caso do meu Jim, que vai levar suas malas para o quarto. Ele pensa que cada dia aqui é apenas mais um dia na prisão. Está querendo ir para Nova York. Por acaso você é de lá?

— Passei algum tempo em Nova York. Mas minha fa­mília outrora morou em Milburn.

— Aqui estão os nossos preços e o livro de registros. — A Sra. Hardie empurrou por cima do balcão uma folha mimeografada com os preços e o livro de registros, grande e com capa de couro. — Vai verificar que nosso hotel é muito sossegado. A maioria dos hóspedes é de residentes permanen­tes. Como se fosse uma pensão, só que com os serviços de um hotel. E não há festas barulhentas à noite.

A jovem assentira depois de ver os preços e estava agora assinando o livro de registros.

—  Não permitimos qualquer barulho fora do normal e devo dizer que não pode admitir homens em seu quarto depois das onze horas.

— Não há problema.

A jovem devolveu o livro de registros à Sra. Hardie, que leu o nome, escrito em letra clara e elegante: Anna Mostyn, com um endereço em West Eighties, em Nova York.

— Isso é Ótimo. Nunca se sabe como as moças de hoje em dia vão reagir, mas... — Fitou o rosto da nova hóspede e parou de falar abruptamente, ao perceber a total indiferença nos olhos azuis. Seu primeiro pensamento, quase inconsciente, foi de que estava na presença de uma mulher fria, para depois refletir, perfeitamente consciente, que aquela jovem não teria a menor dificuldade em controlar Jim. — Anna é um nome antiquado e bonito.

— Também acho.

A Sra. Hardie, um pouco desconcertada, tocou a campai­nha, chamando o filho. A jovem comentou:

—  E sou de fato uma pessoa meio antiquada.

—  Não disse que sua família tinha vivido aqui?

—  Disse, sim. Mas foi há muito tempo.

—  Não reconheci o nome.

—  Nem poderia reconhecer. Foi uma tia minha que viveu aqui. O nome dela era Eva Galli. Mas provavelmente não a conheceu.

A esposa de Ricky, sentada sozinha no restaurante, subi­tamente estalou os dedos e exclamou:

—  Estou ficando velha!

Recordara-se de quem era a mulher que a jovem lembrava. O garçom, um rapaz que largara a escola secundária sem conti­nuar os estudos, a julgar por sua aparência, inclinou-se sobre a mesa, sem saber como entregar a nota, depois que o cavalheiro se retirara bruscamente. Murmurou:

— Como?

— Ora, seu idiota, não precisa ficar por aqui! —.Stella se perguntou por que a metade dos rapazes que largavam os estudos na escola  secundária parecia marginais, enquanto a outra metade lembrava físicos. — Ou melhor, dê-me logo essa nota, antes de acabar desmaiando.

Jim Hardie ficou olhando furtivamente para a jovem, en­quanto subiam as escadas. Depois de abrir a porta do quarto e deixar a valise lá dentro, ele murmurou:

—  Espero que fique na cidade por um bom tempo.

—  Pensei que sua mãe tivesse dito que você detestava Milburn.

— Já não detesto tanto. — E presenteou a jovem com o olhar que derretera Penny Draeger no banco traseiro de seu carro, na noite anterior.

—  Por quê?

—  Ora... — Jim não sabia como continuar, diante da total recusa da jovem em se derreter. — Ora...  você sabe!

—  Sei?                                    

—  Você é uma dona que deixa a gente mais pra lá do que pra cá. Sabe o que estou querendo dizer. Tem muita classe. —  Decidiu ser um pouco mais audacioso do que se sentia. —  E as donas de classe me deixam aceso.

—  É mesmo?

—  É, sim — assentiu ele.

Não sabia o que pensar. Se ela fosse uma mulher experien­te, já o teria mandado embora desde o início. Mas embora o estivesse deixando ficar, não parecia interessada ou lisonjea­da... nem mesmo divertida. No instante seguinte, a jovem o surpreendeu ao fazer algo que ele estava aguardando: tirou o casaco. Não era grande coisa em matéria de seios, mas tinha boas pernas. E foi então que, inesperadamente, Jim sentiu-se totalmente dominado pela consciência do corpo dela, numa ex­plosão de pura sensualidade, muito diferente das poses afetadas de Penny Draeger e outras garotas da escola secundária com quem ele costumava ir para a cama. Era uma onda de sensualidade pura e intensa, que o fez definhar.

— Ah... — murmurou Jim, rezando desesperadamente para que ela não o mandasse embora. — Aposto que tem um emprego e tanto em Nova York. Por acaso trabalha na tele­visão ou algo assim?

— Não.

Ele se remexeu, nervosamente.

— Ah...  Será que eu podia aparecer de vez em quan­do... para falar um pouco?

—  Talvez. Você fala?

—  Ah... É... acho melhor eu descer agora, tenho mui­to trabalho a fazer, preparar todas as janelas para a tempestade, com esse frio que estamos tendo agora...

A jovem sentou-se na cama e estendeu a mão. Quando tocou na mão dela, a jovem pôs em sua palma uma nota de um dólar impecavelmente dobrada.

—  Vou dizer-lhe o que penso... Acho que os criados não deviam usar jeans. Ficam parecendo desleixados.

Jim pegou o dólar, confuso demais para agradecer, e tratou de fugir dali, o mais depressa possível.

(“Era Ann-Veronica Moore”, pensou Stella, “aquela atriz que estava na casa de John na noite em que Edward morreu.” Permitiu que o intimidado rapaz segurasse seu casaco de peles, para que o vestisse. “Mas por que deveria pensar em Ann-Ve­ronica Moore? Eu a vi apenas por alguns minutos e a jovem não se parece absolutamente com ela.”)

 

— Tomei a decisão — continuou Sears — de ajudar o po­bre coitado, Fenny Bate. Estava convencido de que não existia aquela coisa a que chamava de menino de maus bofes, a menos que a incompreensão e a crueldade o tivessem levado a se tor­nar mau. E mesmo isso se podia reparar. Quando Fenny der­rubou a carteira no dia seguinte, tornei a endireitá-la, para desagrado das outras crianças. Na hora do almoço, pedi-lhe que ficasse na sala comigo.

“As outras crianças saíram, fazendo especulações. Tenho certeza de que estavam convencidas de que eu ia dar uma surra em Fenny, quando ninguém mais pudesse ver. Depois que os outros já estavam lá fora, percebi a irmã dele à espreita, num canto escuro nos fundos da sala.

“— Não vou machucar seu irmão, Constance — decla­rei. — E se quiser, pode ficar também.

“Ah, as pobres crianças!  Ainda posso vê-las, os dentes estragados, as roupas esfarrapadas, o menino cheio de descon­fiança, ressentimento e medo, a menina apenas temerosa... pelo irmão. Ela se sentou numa cadeira e comecei a trabalhar, tentando corrigir algumas das concepções erradas de Fenny. Contei-lhe todas as histórias de exploradores que conhecia, fa­lei sobre Lewis, Clarke, Cortez, Nausen e Ponce de Léon, coisas que iria abordar para o resto da turma mais tarde. Mas não houve qualquer efeito em Fenny. Ele sabia que o mundo só se estendia por cerca de setenta ou oitenta quilômetros além de Four Forks e que as pessoas dentro dessa área constituíam toda a população mundial. Ele se atinha a essa noção com a obstinação inabalável dos estúpidos.

“— Mas quem lhe contou isso, Fenny? — indaguei. O menino sacudiu a cabeça. — Foi você quem inventou? — Ele tornou a sacudir a cabeça. — Foram seus pais?

“Lá nos fundos da sala, Constance soltou uma risadinha, em que não havia o menor vestígio de humor. Aquela risada me provocou um calafrio, despertando-me imagens de uma vida quase bestial. Naturalmente, era o que eles tinham, e as outras crianças sabiam. E conforme fui descobrir posteriormente, era muito pior e mais anti-natural do que qualquer coisa que eu poderia ter imaginado.

“Seja como for, naquele momento levantei os braços em desespero ou impaciência. A menina deve ter pensado que eu ia bater no irmão, pois gritou lá dos fundos da sala:

“— Foi Gregory!

“Fenny olhou para ela. Juro que nunca vi ninguém tão apavorado. No instante seguinte, tinha se levantado e saiu cor­rendo da sala. Chamei-o, mas de nada adiantou. Ele estava correndo desesperadamente, como para salvar a própria vida, logo desaparecendo no mato. A menina ficou parada na porta, observando-o afastar-se. Parecia agora assustada e angustiada, totalmente pálida.

“— Quem é Gregory, Constance? — perguntei. O rosto dela se contorceu. — Ele costuma passar por perto da escola? Os cabelos dele são assim?

“Pus as mãos por cima da cabeça, abrindo os dedos. E nesse instante ela também foi embora, correndo tão depressa quanto o irmão.

“Naquela tarde, os outros alunos passaram a me aceitar. Imaginaram que eu havia surrado as duas crianças Bate, pas­sando assim a participar da ordem natural das coisas. Naquela noite, ao jantar, recebi de Sophronia Mather, se não uma batata extra, pelo menos uma espécie de sorriso frio. Era evidente que Ethel Birdwood comunicara à mãe que o novo mestre-escola finalmente vira a luz da razão.

“Fenny e Constance não apareceram na escola nos dois dias seguintes. Fiquei preocupado, pensando que me compor­tara tão desastrosamente que eles podiam nunca mais voltar. No segundo dia, eu estava tão apreensivo que fiquei’ andando pelo pátio da escola durante a hora do almoço. As crianças olhavam-me como se eu fosse um perigoso lunático. Era evi­dente que achavam que o professor deveria permanecer dentro da escola, de preferência administrando a palmatória. Subita­mente, ouvi algo que me fez estacar abruptamente e virar na direção de um grupo de meninas, sentadas na relva, um tanto afetadamente. Eram as meninas maiores e entre elas estava Ethel Birdwood. Tinha certeza de que a ouvira mencionar o nome de Gregory. E pedi:

“— Fale-me a respeito de Gregory, Ethel.

“— Quem é Gregory? — perguntou ela, sorrindo. — Não há ninguém com esse nome por aqui.

“Ela me presenteou com um olhar meloso. Tenho certeza de que estava pensando na tradição rural de o mestre-escola ca­sar-se com a aluna mais velha. Aquela Ethel Birdwood era uma garota cheia de confiança e o pai dela tinha a reputação de ser bastante próspero. Eu não estava disposto a deixar as coisas por aí e insisti:

“— Acabei de ouvi-la mencionar o nome dele.

“— Deve estar enganado, Sr. James — murmurou ela, mais dengosa do que nunca.

“— Não costumo ser muito benevolente com pessoas que mentem — declarei. — Fale-me sobre esse tal de Gregory.

“É claro que todos pensaram que eu a estava ameaçando com uma surra. Outra garota veio em seu socorro:

“— Estávamos falando que Gregory consertou aquela ca­lha. — Apontou para um dos lados da escola. A calha que ali estava era obviamente nova.

“— Pois ele nunca mais vai aproximar-se desta escola, se eu puder impedi-lo.

“Afastei-me, ouvindo as risadinhas irritantes das garotas.

“Naquele dia, depois das aulas, achei que era melhor ir visitar o próprio covil do leão. Ou seja, a casa da família Bate. Sabia que ficava tão longe do povoado quanto a casa de Lewis é distante de Milburn. Segui pelo que me pareceu a estrada mais provável. Andei um bocado, uns cinco ou seis quilôme­tros, até chegar à conclusão de que provavelmente fora longe demais. Não passara por nenhuma casa. Assim, a casa dos Bate devia ser dentro do próprio bosque, e não à margem, como eu imaginara. Enveredei pelo que me pareceu uma trilha, pensando em andar de um lado para outro, na direção da ci­dade, até encontrar a casa.

“Infelizmente, acabei perdendo-me. Entrei em ravinas, subi morros, atravessei mato cerrado, sem ter a menor idéia para que lado ficava a estrada. Tudo parecia assustadoramente igual. Ao crepúsculo, tive a impressão de estar sendo vigiado. Era uma sensação extraordinariamente fantástica, como saber que um tigre estava atrás de mim, prestes a dar o bote. Vi­rei-me, ficando de costas para um olmo grande. E foi nesse momento que vi algo. Um homem entrou numa clareira a cerca de trinta metros de distância... o mesmo homem que eu vira antes. Era Gregory. Ou pelo menos foi o que pensei. Ele não disse nada, eu também não. Simplesmente fitou-me, abso­lutamente silencioso, os cabelos desgrenhados, o rosto cor de marfim. Senti ódio, um ódio profundo, a se irradiar dele. Uma atmosfera de violência irracional pairava em torno dele, junta­mente com aquele ar de estranha liberdade que eu sentira antes. Parecia um louco. Poderia ter me matado ali e ninguém jamais saberia. E podem estar certos de que vi no rosto dele a ânsia de matar. Enquanto eu esperava que ele se adiantasse para me atacar, o homem recuou para trás de uma árvore.

“Adiantei-me, lentamente.

“— O que você quer? — gritei, simulando uma bravura que não sentia.

“Não houve resposta. Avancei mais um pouco. Finalmente cheguei à árvore atrás da qual o vira esconder-se. Não havia o menor vestígio do homem. Ele simplesmente desaparecera, parecia ter sumido em pleno ar.

“Eu ainda estava perdido e agora sentia-me também amea­çado. Pois eu sabia que era esse o significado do aparecimento dele: uma ameaça. Dei alguns passos numa direção ao acaso, passei por outro amontoado cerrado de árvores. E estaquei abruptamente. Por um momento, fiquei apavorado. À minha frente, mais perto do que estivera a aparição, encontrava-se uma menina magra, vestida de andrajos, os cabelos louros escor­ridos: Constance Bate.

“— Onde está Fenny? — perguntei.

“Ela ergueu o braço esquelético e apontou para o lado. E o menino também se levantou, como... ‘como uma ser­pente saindo do cesto’ é a metáfora que me aflora ao pensa­mento. No rosto dele, parado no meio do mato, estava a expres­são característica de Fenny Bate — soturna, culpada.

“— Estava procurando a casa de vocês.

“Ambos apontaram simultaneamente na mesma direção, sem dizerem nada. Olhei através de uma brecha no mato e avistei um barraco miserável, com um cano pequeno à guisa de chaminé. Era um barraco de papelão alcatroado, como anti­gamente se encontrava aqui e ali. Agora, graças a Deus, já não existem mais. Aquele era o mais miserável que eu já tinha visto. Sei que tenho a reputação de um conservador, mas ja­mais considerei riqueza como sinônimo de virtude ou pobreza como sinônimo de vício. Contudo, aquele pequeno barracão fétido — e bastava olhar para se saber que fedia — parecia exa­lar podridão e sordidez. Não, era pior do que isso. Não era sim­plesmente o fato de as vidas que ali se levavam serem embru­tecidas pela miséria, mas serem também distorcidas, deforma­das... Senti um aperto no coração e desviei os olhos. Avistei um cachorro preto esquelético remexendo com o focinho num monte de penas que devia ter sido outrora uma galinha. Certa­mente foi por isso, pensei, que Fenny adquiriu a reputação de ser um menino ‘mau’. Os afetados habitantes de Four Forks tinham dado uma olhada no barraco sórdido em que ele mo­rava, condenando-o pelo resto da vida.

“Mas não fui até o barraco. Não acreditava nas chamadas forças do mal, mas senti a presença delas naquele momento.

“Virei-me novamente para as crianças, que tinham uma estranha expressão nos olhos.

“— Quero ver vocês na escola amanhã.

Fenny sacudiu a cabeça.

“— Mas estou querendo ajudá-los!

“Eu estava prestes a fazer um discurso. O que queria di­zer-lhe era que desejava mudar sua vida, salvá-lo, de certa forma torná-lo humano. Mas a expressão obstinada e fixa em seu rosto me deteve. Havia também algo mais. Logo percebi, com um calafrio, que algo em Fenny me fazia lembrar do mis­terioso Gregory.                                                       

“— Devem voltar à escola amanhã — insisti.

“— Gregory não quer — disse Constance. — Gregory quer que a gente fique aqui.

“— Pois eu digo que Fenny deve ir à escola e você também.

“— Vou perguntar a Gregory.

“— Ao diabo com Gregory! — gritei. — Vocês dois irão à escola amanhã!

“Tratei de me afastar. Uma estranha sensação continuou a me dominar até que encontrei novamente a estrada. Era como se me estivesse afastando da danação.

“Podem imaginar qual foi o resultado da minha expedição. Eles não apareceram na escola. As coisas transcorreram normalmente por vários dias, com Ethel Birdwood e outras garotas me lançando olhares langorosos sempre que eu lhes fazia algu­ma pergunta. Eu preparava as lições do dia seguinte naquele cubículo frio a que davam o nome de quarto, levantando-me de madrugada, antes mesmo de Febo, a fim de aprontar a escola. Alguns dias depois, Ethel começou a me trazer san­duíches para o almoço. Não demorou muito para que outras das minhas admiradoras passassem a fazer a mesma coisa. Eu costumava guardar um sanduíche no bolso, para comer em meu quarto, depois do jantar com os Mather.

“Aos domingos, fazia a longa caminhada até Footville, para a indispensável visita à igreja luterana que havia ali. Não era uma obrigação tão terrível quanto eu receara. O minis­tro era um velho alemão, Franz Gruber, que se intitulava Dr. Gruber. O título de doutor era genuíno, pois era um homem muito mais refinado e preparado do que pareciam indicar o corpo imenso e a residência em Footville, Estado de Nova York. Achei que seus sermões eram bem interessantes e decidi ter uma conversa com ele.

“Quando as crianças Bate finalmente voltaram a apare­cer na escola, pareciam ainda mais abatidas e cansadas, como bebedores depois de uma noite de intensa atividade. Aquilo tornou-se sistemático. Faltavam dois dias, apareciam um, fal­tavam três dias, apareciam dois. A cada vez, mostravam-se pio­res. O declínio de Fenny em particular era alarmante. Era como se estivesse envelhecendo prematuramente. A cada dia ficava mais magro, a pele enrugada na testa e nos cantos dos olhos. E quando eu o olhava, podia jurar que estava se rindo ironicamente de mim. . . logo Fenny Bate, que eu tinha cer­teza não possuir o equipamento mental necessário para tal sutileza. Em Fenny, aquele sorriso parecia vicioso. E me dei­xava assustado.

“Um domingo, depois da missa, decidi falar com o Dr. Gruber, na porta da igreja. Esperei para ser o último a aper­tar-lhe a mão. Depois que os outros já se tinham afastado, disse-lhe que queria seu conselho para um pequeno problema.

“Ele deve ter pensado que eu ia confessar um adultério ou algo assim. Mas se mostrou cortês e convidou-me a ir a sua casa, do outro lado da rua, em frente à igreja.

“Levou-me à sua biblioteca. Era uma sala grande, total­mente revestida de livros. Eu não via um aposento assim desde que deixara Harvard. Evidentemente, era a sala de um estu­dioso, onde um homem podia desenvolver à vontade suas idéias. A maioria dos livros era em alemão, mas havia muitos em latim e grego. Ele tinha os escritos patrísticos em fólios grandes de couro mole, comentários à Bíblia, obras de teologia, guias para o preparo de sermões. Fiquei surpreso ao ver, numa prateleira atrás de sua escrivaninha, uma pequena coleção de Lully, Fludd, Bruno, o que se podia classificar de estudos do ocultismo na Renascença. E fiquei ainda mais espantado quan­do vi alguns livros antigos sobre feitiçaria e satanismo.

"O Dr. Gruber estava fora da sala, buscando cerveja. Ao voltar, viu-me olhando para esses livros.

"— O que está vendo é a razão para a minha presença em Footville, Sr. James — disse-me ele, com seu sotaque gu­tural. — Espero que não vá considerar-me um velho meio ma­luco por causa desses livros.

"Sem que eu precisasse perguntar, ele me contou toda a história. Era o que devem estar imaginando. Fora brilhante, aprovado pelos superiores, escrevera livros. Mas quando come­çara a demonstrar muito interesse pelo que chama de ‘questões herméticas’, recebera ordem de abandonar essa linha de estu­dos. Publicara mais um trabalho a respeito e fora banido para a mais distante e remota congregação que a alta direção lute­rana pudera encontrar.

"— Agora, minhas cartas estão na mesa, como dizem meus novos conterrâneos — disse ele. — Jamais falo dessas questões herméticas em meus sermões, mas continuo a estu­dá-las. A partir desse momento, como achar melhor, você pode ir embora em paz ou dizer o que veio aqui me contar.

"Achei tais palavras um tanto pomposas e fiquei um pou­co aturdido. Mas não havia motivo para não continuar. Con­tei-lhe toda a história, sem omitir nenhum detalhe. Ele escutou atentamente. Era evidente que já ouvira falar das crianças Bate e de Gregory.

"Mais do que isso, parecia estar extremamente excitado com a história. Quando terminei, ele perguntou:

"— E tudo aconteceu exatamente como acaba de des­crever?

"— Claro!

"— Falou com mais alguém a respeito? "— Não.                                 

"— Estou muito feliz que tenha vindo procurar-me.

"Ao invés de continuar a falar, foi pegar um imenso ca­chimbo numa gaveta da escrivaninha, encheu-o e começou a fumar, sem desviar de mim os olhos protuberantes. Comecei a me sentir apreensivo e quase lamentei não ter aceitado sua sugestão anterior. Finalmente, ele me perguntou:

"— Sua senhoria jamais lhe explicou por que achava que Fenny Bate era ‘a própria maldade’?

"Sacudi a cabeça, tentando livrar-me da impressão nega­tiva que estava tendo dele.

"— Por acaso sabe por que ela pensa assim?

"— É uma história bastante conhecida — respondeu ele. — E naquele povoado é até uma história famosa.

"— E Fenny é realmente mau? — indaguei.

"— Ele não é mau, mas está corrompido e depravado — respondeu o Dr. Gruber. — Mas pelo que me contou...

"— O caso pode ser pior? Confesso que tudo está me parecendo um mistério grande demais.

"— E é muito maior do que imagina — disse ele, cal­mamente. — Se tentar explicar-lhe, tenho certeza de que se sentirá tentado, com base no que já sabe a meu respeito, a considerar-me doido. — Os olhos dele estavam mais esbugalha­dos do que nunca.

"— Se Fenny está corrompido, quem o corrompeu? — perguntei.

"— Foi Gregory — retrucou. — Não resta a menor dú­vida de que foi Gregory. É Gregory quem está por trás de tudo.

"— Mas quem é Gregory?

"— O homem que você viu. Quanto a isso, não tenho a menor dúvida. Descreveu-o com perfeição. — Abriu os dedos gorduchos por cima da cabeça, imitando o gesto que eu fizera para Constance Bate. — Posso assegurar-lhe que foi mesmo uma descrição perfeita. Mas quando souber de tudo, vai du­vidar da minha palavra.

"— Mas por quê, pelo amor de Deus?

"Sacudiu a cabeça e percebi que sua mão livre estava tre­mendo. Por um segundo, perguntei-me se não me empenhara numa conversa íntima com um louco.

"— Os pais de Fenny tiveram três filhos — informou o Dr. Gruber, soprando para o alto a fumaça do cachimbo. — Gregory Bate foi o primeiro.

"— É o irmão deles! — exclamei, abruptamente. — Bem que achei que havia alguma semelhança... Estou percebendo agora. Mas não há nada de antinatural nisso.

"— Acho que isso depende do que se passou entre eles.

"Fiz um esforço para compreender a insinuação.

"— Está querendo dizer que alguma coisa antinatural aconteceu entre eles?

"— E com a irmã também.

"Um sentimento de horror me invadiu. Podia ver diante dos olhos aquele rosto bonito e insensível, a odiosa atitude des­preocupada... a impressão que Gregory dava de ser um ho­mem livre de todas as repressões e freios. Murmurei:

“— Entre Gregory e a irmã...

“— E, como eu disse antes, entre Gregory e Fenny.

“— O que significa que ele corrompeu a ambos. Mas por que Constance não é tão condenada quanto Fenny pelo pessoal de Four Forks?

“— Não se esqueça, meu caro mestre-escola, que estamos no meio do mato. Um contato. . . antinatural, digamos assim, entre irmão e irmã, naquelas famílias miseráveis vivendo em barracas, talvez não seja tão antinatural, no final das contas.

“— Mas entre irmão e irmão... — Era como se eu esti­vesse de novo em Harvard, discutindo uma tribo de selvagens com um professor de antropologia.

“— É bem pior.

“— Por Deus, é isso mesmo! — exclamei, recordando a expressão astuta e prematuramente envelhecida no rosto de Fenny. — E agora ele está querendo afastar-me, pois receia a minha intervenção...

“— Aparentemente, é isso mesmo o que está acontecen­do. Espero que entenda o motivo.

“— Porque eu não admitiria uma coisa dessas. É o mo­tivo pelo qual ele quer livrar-se de mim.

“— Gregory quer tudo, meu caro.

“— O que está querendo dizer é que ele os quer para sempre, não é mesmo?

“— A ambos e para sempre... mas, pelo que me contou, provavelmente mais a Fenny.

“— E os pais deles não podem impedir.

“— A mãe está morta. E o pai foi embora quando Gre­gory ficou grande o bastante para bater nele.

“— Eles vivem sozinhos naquele lugar horrível?

“O Dr. Gruber assentiu.

“Era terrível. Significava que o miasma, a sensação de que o lugar era amaldiçoado, provinha das próprias crianças, do que acontecera entre elas e Gregory.

“— Mas as crianças não podem fazer alguma coisa para se defender? — indaguei.

“— Elas fizeram.

“— Fizeram o quê? — Eu estava pensando em preces, provavelmente por estar conversando com um pregador. Quan­to às outras possibilidades, minha própria experiência pessoal era a de que os habitantes do povoado não primavam muito pela caridade.

“— Não vai aceitar minha palavra somente e por isso tenho que lhe mostrar. — O Dr. Gruber levantou-se abrupta­mente e fez-me sinal para que o seguisse. — Vamos até lá fora.

“Por baixo de seu excitamento, ele parecia bastante trans­tornado. Por um momento, pensei que me julgasse tão antipá­tico e desagradável quanto eu o estava achando, com suas bafo­radas de cachimbo e os olhos esbugalhados.

“Deixamos a sala. No caminho para sairmos da casa, pas­samos por uma sala com a mesa posta para uma pessoa. Senti um cheiro de carne assada no fogo e avistei uma garrafa de cerveja aberta em cima da mesa. Talvez sua atitude desagra­dável fosse apenas porque eu lhe estava retardando o almoço.

“Bateu a porta depois que saímos. Voltamos para a igreja. Fiquei um tanto aturdido. Atravessando a rua, ele me disse, sem virar a cabeça:

“— Você sabia que Gregory era uma espécie de servente da escola e se encarregava de fazer todos os reparos necessá­rios no prédio?

“— Uma das meninas falou alguma coisa a respeito.

“Em vez de entrar na igreja, o Dr. Gruber contornou-a. ‘O que vai acontecer agora?’, perguntei-me. Um passeio pelos campos. E o que ele precisava mostrar-me para que eu acredi­tasse no que me iria dizer?

“Havia um pequeno cemitério atrás da igreja. Tive tempo, enquanto seguia o Dr. Gruber, de olhar para os nomes grava­dos nas imensas lápides do século XIX: Josiah Foote, Sarah Foote, todo o resto do clã que fundara a aldeia, outros nomes que nada significavam para mim. O Dr. Gruber parou, com um ar inconfundível de impaciência, junto a um pequeno portão nos fundos do cemitério.

“— Aqui — disse ele.                                                    

“ ‘Ora, mas que homem preguiçoso, a ponto de não que­rer abrir o portão pessoalmente!’, pensei. Inclinei-me para le­vantar a tranca.

“— Não é isso! — disse ele, bruscamente. — Olhe para baixo! Olhe para a cruz!

“Olhei para o lugar que ele estava apontando. Era uma cruz de madeira, tosca, pintada à mão, fincada no lugar onde deveria haver uma lápide, na extremidade de uma sepultura. Alguém escrevera o nome Gregory Bate no travessão horizon­tal da cruz. Olhei para o Dr. Gruber e desta vez não tive mais qualquer dúvida: ele me fitava com uma aversão óbvia.

“— Não é possível — declarei. — Isso é um absurdo. Eu o vi pessoalmente.

“— Pode ter certeza, mestre-escola, de que é este o lugar onde seu rival está enterrado.— Só muito depois é que fui pensar na sua estranha escolha das palavras. — Ou pelo menos a parte mortal dele.

“Eu estava completamente aturdido. Repeti o que já dissera:

“— Não é possível...

“Ele ignorou o comentário.

“— Certa noite, há um ano, Gregory Bate estava fazendo um trabalho qualquer no pátio da escola. No meio do trabalho, levantou a cabeça e percebeu... ou pelo menos imagino que foi isso o que aconteceu... que a calha estava precisando de um conserto. Foi até os fundos da escola, pegou a escada e subiu. Fenny e Constance viram que aquela era a oportunidade para escaparem à tirania dele. E derrubaram a escada. Gregory caiu, bateu com a cabeça na quina do prédio e morreu.

“— O que estavam eles fazendo na escola à noite?

“O Dr. Gruber deu de ombros.

“— Gregory sempre os levava aonde quer que fosse. As crianças estavam sentadas no playground.

“— Não acredito que o tenham matado deliberadamente — declarei.

“— Howard Hummell, o agente dos Correios, viu-os afas­tarem-se correndo. Foi ele quem encontrou o corpo de Gregory.

“— Mas ninguém viu realmente o que aconteceu?

“— Ninguém precisava ver, Sr. James. O que aconteceu era óbvio para todos.

“— Não está óbvio para mim — declarei, fazendo-o dar de ombros. — O que eles fizeram depois?

“— Simplesmente fugiram. Deve ter sido evidente que tinham conseguido. A parte de trás da cabeça de Gregory ficou esmagada. Fenny e a irmã desapareceram durante três semanas. Ficaram escondidos no bosque. Quando finalmente compreen­deram que não tinham para onde ir e voltaram para casa, já havíamos enterrado Gregory. Howard Hummell contara o que tinha visto e todos imaginaram a mesma coisa. É por isso que acham que Fenny é ‘a própria maldade’.

“— Mas agora... — murmurei, olhando para as letras na cruz tosca. ‘As crianças é que devem ter feito a cruz e a inscrição’, pensei. E, subitamente, esse me pareceu o mais hor­rendo de todos os detalhes.

“— Ah, sim, agora... Agora, Gregory o quer de volta. E pelo que me contou, ele já o tem de volta... tem a ambos de volta. Mas imagino que vai querer afastar Fenny da sua... influência. — Pronunciou a última palavra com uma meticulosa precisão germânica. Senti um calafrio.

“— E vai levá-lo.

“— Isso mesmo.

“— Não posso fazer nada para salvá-lo? — indaguei, quase suplicante.

“— Desconfio que ninguém pode — disse o Dr. Gruber, olhando-me como se estivesse muito longe.

“— E o senhor também não pode ajudá-lo, pelo amor de Deus?

“— Nem mesmo por Ele. Pelo que me contou, a coisa já foi longe demais. Não acreditamos em exorcismos, em minha igreja.

“— Mas acredita... — deixei a frase no meio. Meu tom era agora furioso e desdenhoso.

“— No Demônio? Acreditamos nisso.

“Afastei-me. Ele deve ter imaginado que eu iria voltar e suplicar ajuda. Mas quando continuei em frente, ele me gritou:

“— Tome cuidado, mestre-escola!

“Voltei para casa inteiramente aturdido. Não podia acre­ditar ou aceitar o que parecera irrefutável quando estava con­versando com o pregador. Contudo, ele me mostrara a sepul­tura. E eu vira com meus próprios olhos a transformação de Fenny — vira Gregory: não seria demais dizer que eu o sentira intensamente, que a impressão que me causara fora muito forte.

“Parei de andar bruscamente a cerca de um quilômetro e meio do povoado. E que acabara de constatar que Gregory Bate sabia exatamente o que eu descobrira, sabia exatamente o que eu tencionava. Um dos campos arados subia por uma colina, que se podia ver da estrada. Gregory estava parado lá em cima, olhando-me. Não mexeu um músculo sequer quando olhei em sua direção. Mas a intensidade do seu olhar se irra­diava implacavelmente e devo ter estremecido. Dava a impres­são de que ele podia ler todos os meus pensamentos. Lá no alto, abaixo das nuvens, um gavião circulava. Todos os vestí­gios de dúvida me deixaram. Tinha certeza agora de que tudo que Gruber contara era verdade.

“Tive que fazer um tremendo esforço para não sair cor­rendo. Mas não iria demonstrar covardia diante dele, por mais covarde que me sentisse por dentro. Imagino que ele estava esperando que eu corresse, parado lá em cima, os braços caídos ao longo do corpo, o rosto pálido visível apenas como uma mancha branca, a intensidade de seus sentimentos se irradian­do em minha direção. Consegui continuar o percurso e andar normalmente.

“Mal consegui engolir o jantar, não devo ter comido mais do que dois ou três bocados. Mather comentou:

“— Se prefere passar fome, sobrará mais um pouco para nós. Não me vou importar.

“Fitei-o nos olhos.

“— Fenny Bate tem um irmão, além da irmã?

“Ele retribuiu meu olhar com toda a curiosidade de que era capaz, sem responder. Insisti:

“— Ou tinha um irmão?

“— Tinha.

“— Qual era o nome desse irmão?

“— Era Gregory. Mas eu agradeceria se se abstivesse de falar a respeito dele.

“— Tinham medo dele? — indaguei, ao ver o pavor estampado  tanto nos olhos de Mather como nos da esposa.

“— Por favor, Sr. James — interveio Sophronia Mather. — Isso não vai adiantar coisa alguma.

“— Ninguém fala a respeito de Gregory Bate — declarou o marido.

“— O que aconteceu com ele?

“Mather parou de mastigar e pôs o garfo na mesa.

“— Não sei o que ouviu nem quem lhe falou sobre isso. Mas uma coisa lhe posso garantir: se algum homem já foi mal­dito, então não pode ter deixado de ser Gregory Bate. O que quer que lhe tenha acontecido foi merecido. E chega de con­versa sobre Gregory Bate.

“Enfiou mais comida na boca e a conversa foi encerrada. A Sra. Mather manteve religiosamente os olhos no prato pelo resto do jantar.

“Eu estava furioso e preocupado. Nem Fenny nem Cons­tance Bate apareceram na escola durante dois ou três dias. Pa­recia até que eu havia sonhado tudo. Continuei a dar aulas, mecanicamente, pois meus pensamentos estavam concentrados nas crianças Bate, especialmente no pobre Fenny e no perigo que corria.

“O que manteve o horror constante foi o fato de ter visto Gregory no povoado.

“Como era sábado, Four Forks estava repleta de fa­zendeiros com as esposas, que tinham vindo fazer compras. Todos os sábados, o pequeno povoado quase que adquiria um ar de feira, pelo menos em contraste com sua aparência habitual. As calçadas estavam apinhadas, o movimento no arma­zém era intenso. Havia dezenas de cavalos na rua e por toda parte se viam os rostos ansiosos de garotos, empilhados em carroças, os olhos arregalados por estarem ali. Reconheci mui­tos dos meus alunos e acenei para alguns.

“Um fazendeiro imenso, que eu nunca vira antes, bateu de repente em meu ombro e disse que queria apertar-me a mão, por ser o professor do seu filho. Agradeci e fiquei escutando-o falar por algum tempo. Subitamente, avistei Gregory por cima do ombro dele. Estava encostado na parede da agência dos Cor­reios, indiferente a tudo que o cercava, olhando para mim... e olhando intensa e fixamente, como deveria ter feito do alto do morro. Algo deve ter transparecido em meu rosto, pois o pai do aluno parou de falar e perguntou se eu estava me sentin­do bem.

“— Estou, sim — balbuciei.

“Devo ter parecido deliberadamente grosseiro, pois con­tinuei a olhar por cima do ombro dele. Ninguém mais podia ver Gregory. Todos passavam por ele, as expressões e atitudes não se alterando, e pareciam olhar através dele.

“Agora, onde antes eu vira uma liberdade sem freios, po­dia ver apenas depravação.

“Dei alguma desculpa ao fazendeiro — uma dor de ca­beça, um dente com abcesso — e virei-me para ir até o lugar em que Gregory estava. Mas ele já não estava mais lá. Havia desaparecido nos poucos segundos que eu demorara despedin­do-me do fazendeiro.

“Compreendi que a confrontação estava se aproximando e que seria Gregory quem escolheria o momento e o lugar.

“Na vez seguinte em que Fenny e Constance apareceram na escola, eu estava mais determinado do que nunca a prote­gê-los. Ambos mostravam-se pálidos e muito quietos, uma aura de estranheza os envolvia, a ponto de as outras crianças os deixarem em paz. Se não me engano, haviam se passado qua­tro dias desde que eu vira o irmão deles encostado na parede da agência dos Correios. Não podia imaginar o que acontecera com as duas crianças desde que as vira pela última vez, mas pareciam dominadas por uma doença que as fazia definhar. Davam a impressão de perdidas, distantes. Tive uma compai­xão imensa daquelas crianças esfarrapadas e miseráveis. Eu tinha que protegê-las de qualquer maneira.

“Depois que terminaram as aulas daquele dia, enquanto as outras crianças iam embora, mantive Fenny e Constance na escola. Ficaram sentados em suas carteiras, sem se queixar, atordoados, visivelmente debilitados.

“— Por que ele os deixou virem à escola? — indaguei.

Fenny fitou-me com uma expressão apática.

“— Ele quem?

“Fiquei confuso.

“— Gregory, é claro.

“Fenny sacudiu a cabeça, como para dissipar um nevoeiro.

“— Gregory? Não vemos Gregory há muito tempo;

“O choque que senti foi terrível. Eles estavam definhan­do por causa da ausência de Gregory!

“— Então o que estão fazendo com vocês mesmos?

“— Estamos indo.

“— Indo?

“Constance assentia, repetindo as palavras de Fenny.

“— Estamos indo.

“— Para onde? Para fazer o quê?

“Os dois me olhavam agora, de boca entreaberta, como se eu fosse por demais obtuso.

“— Indo encontrar-se com Gregory?

“Era terrível, mas eu não podia pensar em mais nada. Fenny sacudiu a cabeça.

“— Nunca vemos Gregory.

“— Não, nunca vemos —- repetiu Constance, deixando-me horrorizado pelo tom de pesar em sua voz. — Estamos apenas indo.

“Fenny pareceu voltar à vida por um instante, ao dizer:

“— Mas ouvi Gregory uma vez. Ele disse que isto é tudo o que existe e não há mais nada. Não há nada além disto. Não há nada como o que falou. . , como nos mapas. Não exis­te nada.

“— Mas então o que existe lá fora?— indaguei.

“— É o que a gente vê — explicou Fenny.

“— Vê?                                                                       .  

“— Quando vamos.

“— E o que vocês vêem?

“Foi Constance quem respondeu, encostando a cabeça no tampo da carteira:

“— É bonito, é muito bonito mesmo...

“Não tinha a menor idéia do que eles estavam falando, mas não estava me agradando. Pensei que, mais tarde, teria tempo de conversar mais um pouco a respeito.

“— Pois ninguém vai a lugar nenhum esta noite — declarei. — Quero que os dois passem a noite aqui comigo. Quero mantê-los a salvo.

“Fenny assentiu, mas apática e indiferentemente, como se não lhe importasse muito onde passasse a noite. Quando olhei para Constance, em busca do assentimento dela, descobri que já estava dormindo.

“— Então está combinado — falei. — Podemos arrumar lugares para dormir mais tarde. E amanhã tentarei arrumar boas camas para vocês aqui na aldeia. Não podem mais con­tinuar sozinhos lá no meio do mato, por sua própria conta.

“Fenny tornou a assentir, outra vez apaticamente. Per­cebi que ele também estava prestes a adormecer.

“— Pode encostar a cabeça na carteira, Fenny.

“Em poucos segundos, ambos estavam dormindo, a ca­beça repousando na carteira. Naquele momento, eu quase que podia concordar com a horrível declaração de Gregory: era realmente como se aquilo fosse tudo o que existisse, como se não houvesse mais nada em parte alguma, apenas eu e as duas crianças exaustas, num galpão frio a que chamavam de escola. Afinal, meu senso da realidade já sofrera muitos choques. E com os três sentados ali, o dia foi se aproximando do fim; a sala, que na melhor das hipóteses vivia mergulhada na penum­bra, tornou-se escura, cheia de sombras. Eu não tinha ânimo para acender as luzes e por isso parecia que estávamos no fundo de um poço. Eu prometera que arrumaria camas para as crian­ças na aldeia, mas aquele povoado miserável, a menos de cinqüenta metros pela estrada, parecia estar a quilômetros de distância. E mesmo que eu tivesse a energia e confiança neces­sárias para deixar os dois sozinhos, não podia imaginar quem seria capaz de recebê-los em sua casa. Se era um poço, era um poço de desesperança, e eu tinha a sensação de que estava tão perdido quanto as crianças.

“Finalmente não consegui mais agüentar, fui até Fenny e o sacudi pelo braço. Ele despertou como um animal assustado e só consegui retê-lo na carteira pela força.

“— Tenho de saber a verdade, Fenny. O que aconteceu a Gregory?

“— Ele foi embora — respondeu o menino, novamente soturno.

“— Está querendo dizer que ele morreu.

“Fenny assentiu, a boca se entreabriu e pude avistar no­vamente aqueles lamentáveis dentes podres.

“— Mas ele volta?

“O menino tornou a assentir.

“— E você o vê?

“— Ele nos vê — respondeu Fenny, firmemente. — Fica olhando e olhando. E quer tocar.

“— Tocar?

“— Como antes.

“Pus a mão na testa de Fenny. Ele estava ardendo em febre. Cada palavra que dizia abria um novo abismo.

“— Mas você puxou a escada?

“Fenny ficou olhando para a carteira, com uma expressão apática. Insisti:

“— Puxou a escada, Fenny?

“— Ele fica olhando e olhando — murmurou Fenny, como se fosse esse o fato que dominasse sua consciência.

“Pus as mãos em sua cabeça para fazê-lo olhar em minha direção. E foi nesse momento que o rosto de seu algoz apa­receu na janela, aquele rosto pálido e terrível, como se quisesse impedir Fenny de responder às minhas perguntas. Senti-me ton­to, angustiado, como se estivesse sendo comprimido contra o fundo do poço. Mas senti  também que a batalha finalmente ia ser travada. Puxei Fenny para junto de mim, tentando prote­gê-lo fisicamente.

“— Ele está aqui? — gritou Fenny. O som de sua voz fez Constance cair no chão, chorando.

“— Que importância tem isso? — berrei. — Ele não vai pegá-lo... estou com você. Ele sabe que o perdeu para sempre!

“— Onde está? — gritou Fenny novamente, empurran­do-me. — Onde está Gregory?

“— Ali! — falei, virando-me para a janela.

“Fenny já estava se desvencilhando de mim e ambos olha­mos para a janela vazia. Não havia coisa alguma lá fora, a não ser o céu escuro e vazio. Senti-me triunfante. Vencera. Agarrei o braço de Fenny com toda a força da minha vitória. Ele soltou um grito de desespero. Caiu para a frente e segurei-o. Parecia que ele estava caindo no próprio poço do inferno. Só alguns segundos depois é que percebi o que havia segurado: o coração de Fenny parara de bater e eu estava amparando um corpo sem vida. Fenny se fora para sempre.”

Olhando para o círculo de seus amigos, Sears acrescentou:

— E foi o que aconteceu. Gregory também se foi para sempre. Tive uma febre quase fatal, passei três dias sem poder sair do quartinho miserável da casa dos Mather. Quando me recuperei e pude andar novamente, Fenny já havia sido sepul­tado. Ele realmente se fora para sempre. Quis largar o emprego e deixar o povoado, mas eles exigiram que eu cumprisse o contrato e voltei a dar aulas. Estava profundamente abalado, mas podia ensinar, mecanicamente. Ao final do contrato, eu já estava até usando a palmatória. Perdera todas as minhas noções liberais. Quando finalmente fui embora, era considerado um professor excelente.

“Há mais uma coisa. No dia em que deixei o povoado, fui visitar pela primeira vez a sepultura de Fenny. Era em Footville, atrás da igreja, perto da sepultura do irmão. Fiquei olhando para as duas sepulturas, E querem saber o que senti? Não senti absolutamente nada. Estava vazio. Como se não ti­vesse nada a ver com aquilo.”

—  E o que aconteceu com a irmã? — perguntou Lewis.

— Ela não era problema. Era um menina quieta e todos sentiram pena dela.  Superestimei a mesquinhez do povoado. Uma das famílias adotou-a. Pelo que sei, trataram-na como se fosse sua própria filha. Constance acabou engravidando, ca­sou-se com o rapaz e foi embora. Mas isso só iria acontecer anos depois.

 

(Frederick Hawthorne)

 

Voltando a pé para casa, Ricky ficou surpreso ao ver neve no ar. “Vai ser um inverno terrível”, pensou ele. “Todas as estações estão ficando cada vez mais esquisitas.” À clari­dade em torno do lampião da rua, ao final da Montgomery Street, flocos de neve turbilhonavam e caíam, aderindo ao chão por algum tempo, antes de se derreter. O ar frio penetrava pelo sobretudo de tweed. Tinha uma caminhada de meia hora pela frente e lamentava não ter vindo em seu carro, o velho Buick que Stella felizmente se recusava a usar; nas noites frias, ge­ralmente ia de carro. Naquela noite, porém, quisera tempo para pensar, pois tencionara pressionar Sears para descobrir o con­teúdo da carta dele para Donald Wanderley, e para isso era necessário elaborar uma técnica. Sabia agora que fracassara em seu intento. Sears lhe dissera apenas o que desejava e nada mais. De qualquer forma, pelo ponto de vista de Ricky, o dano já estava causado; de que adiantava agora saber como a carta fora formulada? Surpreendeu-se ao suspirar ruidosamente, observando sua respiração fazer alguns flocos de neve rodopiar em padrões complicados, enquanto se derretiam.

Recentemente, todas as histórias, inclusive as suas, dei­xavam-no tenso por várias horas; mas naquela noite sentia muito mais do que isso. Estava terrivelmente angustiado. As noites de Ricky eram agora uniformemente penosas, atormen­tado pela madrugada afora com os sonhos de que falara a Sears. Não tinha a menor dúvida de que as histórias que ele e seus amigos contavam davam alguma substância aos sonhos. Não obstante, achava que a ansiedade não era uma decorrência deles. Como também não era uma decorrência das histórias con­tadas, embora a de Sears naquela noite fosse pior do que a maioria. Aliás, as histórias de todos estavam se tornando cada vez piores. Assustavam-se cada vez que se encontravam, mas não deixavam de se encontrar, pois a suspensão daquelas reu­niões seria algo ainda mais assustador. Era um conforto se reunirem, verificar que todos estavam resistindo. Até mesmo Lewis estava assustado. Se não fosse por isso, por que teria votado a favor de escrever para Donald Wanderley? Era jus­tamente isso, saber que a carta estava a caminho, em alguma mala postal, que deixava Ricky mais angustiado do que ha­bitualmente.

“Talvez eu devesse mesmo ter deixado esta cidade há mui­to tempo”, pensou ele, contemplando as casas por que passava. Praticamente não havia nenhuma na qual não tivesse entrado pelo menos uma vez, a negócios ou em visita social, para con­versar com um cliente ou jantar. “Talvez devesse ter ido para Nova York logo depois que me casei, como Stella queria.” E tal pensamento era para Ricky uma terrível deslealdade. Só gradativamente, apenas de maneira imperfeita, conseguira con­vencer Stella de que sua vida era em Milburn, com Sears James e o escritório de advocacia. O vento frio subiu por seu pescoço e empurrou o chapéu. Além da esquina, à sua frente, avistou o Lincoln preto de Sears encostado no meio-fio. Uma luz estava acesa na biblioteca de Sears. O amigo não conseguiria dormir, depois de ter contado uma história como aquela. Àquela altura, todos já conheciam os efeitos de recordar os acontecimentos do passado.

“Mas não são apenas as histórias”, pensou Ricky, “assim como também não é apenas a carta. Alguma coisa vai aconte­cer.” Era por isso que eles contavam as histórias. Ricky não era dado a premonições, mas o temor do futuro que sentira duas semanas antes, ao conversar com Sears, voltou a domi­ná-lo intensamente. Era por isso que pensara em mudar-se da cidade. Entrou na Melrose Avenue, que tinha o nome de “ave­nida” provavelmente por causa das árvores nos dois lados. Os galhos sobressaíam, tingidos de laranja pelos lampiões. Durante o dia, as últimas folhas haviam caído. “Alguma coisa vai acon­tecer a toda a cidade.” Um galho rangeu por cima da cabeça de Ricky. Um caminhão mudou de marcha ao longe, passando pela Rodovia 17; o som percorria grandes distâncias nas noites frias de Milburn. Avançando mais um pouco, Ricky pôde ver as ja­nelas iluminadas do seu próprio quarto, no terceiro andar. Os ouvidos e o nariz doíam de tanto frio. “Depois de uma vida tão longa e racional”, disse Ricky para si mesmo, “não pode começar a ficar místico agora, meu caro. Vamos precisar de toda a razão de que pudermos dispor.”

Naquele momento, perto do lugar em que se sentia mais seguro e conseguindo impor tranqüilidade à mente, Ricky teve a impressão de que alguém o estava seguindo, que alguém estava parado na esquina, fitando-o atentamente. Pôde sentir olhos extremamente frios fixados nele e pareceu-lhe que flutuavam no espaço, que eram apenas olhos que o estavam se­guindo. Sabia como esses olhos eram, claros, de uma lumino­sidade esmaecida, flutuando ao nível de seus próprios olhos. Sua ausência de sentimentos parecia terrível, como se fossem os olhos de uma máscara. Virou-se, esperando vê-los, tão inten­sa era a sensação que experimentava. Envergonhado, descobriu que estava tremendo. Claro que a rua estava vazia. Era sim­plesmente uma rua vazia, parecendo, mesmo numa noite escura, tão comum quanto um cachorro vira-lata.

“Desta vez está exagerando, meu caro”, pensou Ricky; “a culpa é sua e daquela história horrível que Sears contou.” Olhos! Parecia algo saído de um velho filme de Peter Lorre. Os olhos e... de Gregory Bate? Mas que diabo! As mãos do Dr. Orlac. “É mais do que evidente”, disse Ricky a si mesmo, “que absolutamente nada vai acontecer. Somos apenas quatro tolos que estão começando a ficar caducos. Imaginar que eu pensei.

Mas ele não pensava que os olhos estivessem às suas costas, soubera que estavam.” Era puro conhecimento.

“Mas que bobagem!”, disse Ricky quase em voz alta. O que não o impediu de encaminhar-se para a porta de sua casa um pouco mais depressa do que de costume.

A casa estava às escuras, como sempre acontecia nas noites da Sociedade Chowder. Passando os dedos pela beirada do sofá, Ricky contornou a mesinha de café na qual já esbarrara meia dúzia de vezes, em outras noites; conseguindo transpor esse obstáculo a salvo, tateou a parede, atravessando a sala de jantar e entrando na cozinha. Ali podia acender a luz sem a menor possibilidade de perturbar o sono de Stella; o outro lugar em que poderia acender a luz seria no alto da casa, no quarto de vestir, que era o resultado, assim como a mesinha de café lu­zidia em estilo italiano, da última “tempestade cerebral” da esposa. Ela ressaltara que os armários de ambos estavam atu­lhados demais, não havia lugar para guardarem as roupas fora da estação. Além do mais, o pequeno quarto ao lado do deles provavelmente jamais voltaria a ser usado, agora que Robert e Jane tinham ido embora. Assim, ao custo de oitocentos dólares, haviam-no convertido num quarto de vestir, com trilhos para cabides e espelhos, um tapete novo bastante grosso. O quarto de vestir provara uma coisa para Ricky: como Stella sempre dissera, o marido realmente tinha tantas roupas quanto ela. O que fora uma surpresa para ele, que era tão destituído de vai­dade que não tinha a menor consciência do seu dandismo ocasional.

Uma surpresa mais imediata foi a de que suas mãos estavam tremendo. Estava preparando um chá de camomila, mas pegou uma garrafa pequena no armário e despejou um pouco de uísque num copo, ao constatar que suas mãos estavam tre­mendo. “Velho idiota e nervoso!” Mas xingar-se não iria aju­dar. Ao levar o copo aos lábios, a mão ainda tremia. Era aquele maldito aniversário. O uísque, ao entrar em sua boca, tinha o gosto de óleo diesel; cuspiu tudo na pia. “Pobre Edward!” Ricky lavou o copo, apagou a luz e subiu a escada no escuro.

De pijama, saiu do quarto de vestir e atravessou o corre­dor até o quarto de dormir. Abriu a porta cuidadosamente. Stella estava deitada, respirando suavemente, no seu lado da cama. Se conseguisse contornar a cama até seu lado, sem esbar­rar na cadeira ou chutar as botas dela, sem encostar no espe­lho e fazê-lo chocalhar, poderia deitar sem perturbá-la.

E Ricky conseguiu alcançar o outro lado da cama sem des­pertá-la, metendo-se debaixo das cobertas. Gentilmente, afagou o ombro nu da esposa. Era bem provável que ela estivesse tendo um dos seus casos ou então um flerte sério. Ricky tinha a impressão de que era com o professor que Stella conhecera um ano antes; ouvira um silêncio ofegante ao telefone que era tipicamente dele. Há muito que Ricky já chegara à conclusão de que muitas coisas eram piores do que saber que a esposa ocasionalmente ia para a cama com outro homem. Stella possuía sua própria vida e ele ocupava uma parte considerável nela. Apesar do que algumas vezes sentia e dissera a Sears há duas semanas, não ser casado teria sido um empobrecimento.

Ricky acomodou-se na cama. Estava esperando pelo que sabia que iria acontecer. Recordou a sensação de olhos fixos em suas costas. Gostaria que Stella pudesse ajudá-lo, confor­tá-lo de alguma forma. Mas não querendo alarmá-la ou afligi-la, pensando que terminariam com o novo dia e achando também que eram exclusivamente seus, particulares, jamais lhe contara seus pesadelos. Assim era Ricky Hawthorne preparando-se para dormir: deitado de costas, o rosto inteligente não deixando transparecer as emoções que lhe iam por dentro, as mãos atrás da cabeça, os olhos abertos, cansado, apreensivo, ciumento, assustado.

 

Em seu quarto, no Hotel Archer, Anna Mostyn estava postada à janela, observando flocos de neve caírem na rua. Embora as luzes estivessem apagadas e já passasse da meia-noite, encontrava-se inteiramente vestida. O casaco comprido achava-se estendido sobre a cama, como se ela tivesse acabado de chegar ou estivesse prestes a sair.

Postara-se junto à janela e fumava, uma mulher alta e atraente, cabelos pretos, olhos azuis. Podia ver quase toda a extensão da rua principal, a praça deserta numa extremidade, com os bancos vazios e as árvores nuas, as fachadas apagadas das lojas, o Restaurante Village Pump e uma loja de departa­mentos; a dois quarteirões de distância, um sinal de. tráfego ficou verde para uma rua vazia. A rua principal prolongava-se por oito quarteirões, mas os prédios eram visíveis apenas como contornos escuros de fachadas de lojas ou de escritórios. No lado oposto da praça, Anna Mostyn podia divisar as fachadas escuras de duas igrejas, acima das árvores nuas. Na praça, um general de bronze da Guerra da Independência fazia um gesto imponente com um mosquete.

“Esta noite ou amanhã?”, perguntava-se ela, fumando o cigarro e contemplando a pequena cidade.

“Esta noite.”

 

Quando o sono finalmente dominou Ricky Hawthorne, parecia que ele não estava simplesmente sonhando, mas havia sido transferido fisicamente, ainda desperto, para outro quar­to, em outra casa. Estava deitado na cama, num quarto estra­nho, esperando que alguma coisa acontecesse. O quarto parecia deserto, parte de uma casa abandonada. As paredes é o assoalho eram de tábuas, a janela apenas uma moldura vazia, o sol en­trando por uma dezena de frestas. Partículas de pó turbilhonavam nos raios de sol. Ele não sabia como sabia, mas sabia que alguma coisa iria acontecer e sentia medo. Era incapaz de sair da cama; mas mesmo que seus músculos funcionassem, sabia também que não seria capaz de escapar ao que estava para acontecer. O quarto ficava no andar superior da construção; pela janela, avistava apenas nuvens cinzentas e um céu azul-pálido. Mas o que quer que fosse acontecer, viria lá de dentro, não de fora.

O corpo estava coberto por uma velha manta quadricula­da, tão desbotada que alguns dos quadrados eram brancos. Por baixo dela, suas pernas estavam paralisadas. Ao levantar os olhos, Ricky compreendeu que podia divisar todos os detalhes das tábuas com uma clareza acima do normal; podia avistar as granulações se estendendo por cada uma, como os nós se formavam, a maneira como as cabeças dos pregos sobressaíam nas extremidades. Correntes de ar penetravam no quarto, agitando a poeira aqui e ali.

Lá embaixo, nos fundos da casa, ouviu um estrondo, o barulho de uma porta sendo aberta violentamente, uma pesada porta de porão batendo contra a parede. Até mesmo o quarto lá em cima tremeu com a violência do impacto. Prestando aten­ção, Ricky pôde ouvir alguma forma complexa saindo do porão, a se arrastar; era alguma forma pesada, de animal, tendo que se espremer para passar pela abertura da porta. O que quer que fosse, começou a investigar o andar térreo, deslocando-se lentamente, pesadamente. Ricky podia imaginar o que havia lá embaixo: uma sucessão de cômodos vazios, exatamente como aquele em que estava. Haveria mato crescendo entre as tábuas do assoalho. A luz do sol estaria incidindo sobre os lados e as costas do que quer que se estivesse movendo lentamente lá embaixo, através dos cômodos vazios. A coisa fazia um ruído de sugar, depois emitia um guincho estridente. Estava à procura dele. Farejava pela casa, sabendo que ele ali estava.

Ricky fez um novo esforço para mover as pernas, mas nem mesmo conseguiu crispá-las. A coisa lá embaixo estava ro­çando nas paredes ao se deslocar pelos cômodos; a madeira rangia. Teve a impressão de ouvir o ruído de um assoalho apo­drecido quebrando.

Logo ouviu outro barulho, um barulho que estava te­mendo: a coisa passou por outra porta. Os ruídos que vinham lá de baixo tornaram-se subitamente mais altos, podia até ouvir a coisa respirando. Estava no fundo da escada.

Ouviu a coisa se lançar escada acima.

Subiu ruidosamente talvez por meia dúzia de degraus, de­pois escorregou de volta. Voltou a subir, mais lentamente, ga­nindo de impaciência, vencendo dois ou três degraus de cada vez.

O rosto de Ricky estava molhado de transpiração. O que mais o assustava era não ter certeza se estava ou não sonhando; se tivesse certeza de que era apenas um sonho, então teria apenas de agüentá-lo, esperar até que a coisa lá embaixo subisse a escada e irrompesse pelo quarto em que se encontrava — o susto iria despertá-lo. Mas não parecia absolutamente ser um sonho. Os sentidos estavam alerta; a mente, lúcida. Toda a experiência carecia da atmosfera incoerente e incorpórea de um sonho. Jamais suara em nenhum sonho. E se estava desperto, a coisa que se deslocava ruidosamente lá embaixo acabaria por alcançá-lo, inevitavelmente, já que não podia se mexer.

Os ruídos se tornaram diferentes, e Ricky compreendeu que estava no terceiro andar da casa abandonada, pois a coisa estava agora à sua procura no segundo andar. Os ruídos eram bem mais altos: o ganido, o barulho da coisa a roçar pelas pa­redes e portas. Estava se deslocando muito mais depressa, como se já o farejasse.

A poeira ainda rodopiava preguiçosamente nos raios de sol; as poucas nuvens ainda vagavam pelo céu, que parecia do início da primavera. O assoalho rangeu quando a criatura vol­tou impacientemente ao patamar.

Agora, Ricky podia ouvir sua respiração nitidamente. Lan­çou-se pelo último lanço de escada, fazendo o barulho de uma bola de demolição atingindo o lado de uma construção. Ricky tinha a sensação de que seu estômago estava forrado de gelo; sentiu que poderia vomitar a qualquer momento. . . e vomita­ria cubos de gelo. A garganta estava apertada. Sua vontade era gritar, mas pensou, mesmo sabendo que isso era impossível, que a coisa talvez não o encontrasse se não fizesse qualquer barulho. A coisa guinchava e gemia, subindo ruidosamente a escada. Um degrau da escada estalou.

Quando chegou ao patamar, diante da porta do quarto de Ricky, ele descobriu o que era: uma aranha, uma aranha gi­gantesca. Bateu contra a porta do quarto. Ele ouviu novamente o ganido. Se as aranhas ganiam, era assim que o faziam. Pernas incontáveis tocaram na porta, enquanto o ganido se tornava mais alto. Ricky sentiu um terror total, um medo primitivo, pior do que qualquer outra coisa que já experimentara.

Mas a porta não se estilhaçou em mil pedaços. Abriu-se facilmente. Uma forma alta e escura estava parada além da porta. O que quer que fosse, não era uma aranha. Ricky sen­tiu o terror se reduzir numa fração inconsciente. A coisa preta diante da porta não se mexeu por um instante, ficando parada, como se o estivesse olhando. Ricky tentou engolir em seco e conseguiu usar os braços para erguer o corpo. As tábuas áspe­ras da parede se comprimiram contra suas costas e ele pensou novamente: “Isto não é um sonho”.

A forma escura avançou pela porta.

Ricky percebeu que não era absolutamente um animal, mas sim um homem. Outro plano de escuridão se separou e depois mais outro, permitindo-lhe verificar que eram três ho­mens. Por baixo dos capuzes que encobriam parcialmente os rostos sem vida, pôde reconhecer feições familiares. Sears Ja­mes, Lewis Benedikt e John Jaffrey estavam parados diante dele. E Ricky sabia que estavam mortos.

Acordou gritando. Os olhos se abriram para as visões fa­miliares da manhã na Melrose Avenue, o quarto de tons creme, com as gravuras que Stella comprara em sua última via­gem a Londres, a janela dando para o quintal dos fundos, uma camisa pendurada no encosto de uma cadeira. A mão de Stella segurou firmemente seu ombro. O quarto parecia estranha­mente desprovido de luz. Num súbito impulso, que não foi capaz de compreender, Ricky pulou da cama — isto é, chegou o mais perto de pular da cama quanto lhe permitiam os joelhos fracos de setenta anos — e foi até a janela. Atrás dele, Stella disse:

—  O que foi?

Ele não sabia o que estava procurando, mas o que viu era inesperado: todo o quintal dos fundos, todos os telhados das casas vizinhas, tudo estava coberto de neve. .O céu também se apresentava estranhamente desprovido de luz. Ricky não sabia o que ia dizer, mas murmurou imprevistamente:

—  Nevou a noite inteira, Stella. John Jaffrey jamais de­veria ter dado aquela maldita festa.

 

Stella sentou-se na cama e falou-lhe, como se Ricky tives­se dito algo racional.

—  A festa de John não foi há um ano, Ricky? Não enten­do qual a relação que possa ter com a neve de ontem à noite.

Ricky esfregou os olhos e as faces ressequidas, e alisou o bigode.

—  Fez um ano ontem à noite. — Percebendo o que aca­bara de dizer, apressou-se em acrescentar: — Não, claro que não há qualquer relação.

—  Volte para a cama e conte-me qual é o problema, meu bem.

—  Ora, estou me sentindo perfeitamente bem!

O que não impediu Ricky de voltar para a cama. Quando já estava outra vez sob as cobertas, Stella disse:

—  Sei que não está bem. Deve ter tido um pesadelo ter­rível. Não quer contar-me o que aconteceu?

—  Não faz muito sentido.

—  Mas conte-me assim mesmo.

Ela começou a acariciar-lhe as costas e os ombros. Ricky virou-se para contemplar-lhe o rosto, sobre o travesseiro azul-escuro. Como Sears dissera, Stella era uma beldade. Já era uma beldade quando Ricky a conhecera e provavelmente continuaria a ser até o dia de sua morte. Não era uma beleza mimosa, deli­cada, mas uma beleza forte, de planos faciais retos, sobrancelhas pretas bem definidas. Os cabelos de Stella haviam ficado grisalhos aos trinta e poucos anos. Ela se recusara a pintá-los, percebendo muito antes de qualquer outra pessoa o tremendo atrativo sexual de uma cabeça grisalha combinada com um ros­to jovem. Seria mais exato dizer que o rosto de Stella jamais fora inteiramente jovem, assim como nunca seria inteiramente velho. Na verdade, a cada ano que passava, até quase completar cinqüenta anos, Stella fora consolidando sua beleza, até assu­mi-la completamente, mantendo-se a partir de então do mesmo jeito. Era dez anos mais moça do que Ricky, mas nos bons dias parecia ter apenas pouco mais de quarenta anos.

—  Vamos, Ricky, conte-me tudo. O que está acontecendo?

E Ricky pôs-se a falar do  sonho, vendo  preocupação, horror, amor e medo estamparem-se no rosto de Stella. Ela continuou a acariciar-lhe as costas e depois deslocou a mão para o peito dele. Quando Ricky terminou, ela murmurou:

—  Tem realmente sonhos assim todas as noites, meu bem?

—  Não, Stella — respondeu Ricky, olhando para o rosto dela e vendo sob as emoções superficiais do momento a própria absorção e o divertimento sempre presentes em Stella. — Este foi o pior de todos. —• Fazendo uma pausa e sorrindo, ao per­ceber os efeitos das carícias de Stella, acrescentou: — Esse foi o campeão.

—  Tem andado muito tenso ultimamente. — Stella le­vantou a mão dele e levou-a a seus lábios.

—  Tem razão.

—  Todos vocês estão tendo esses pesadelos?

—  Todos quem?

—  A Sociedade Chowder. — Pôs a mão de Ricky em seu rosto.

—  Acho que sim.

—  Não acha que todos vocês, velhos tolos, deviam tomar alguma providência?

Stella sentou-se na cama, cruzando os braços com os coto­velos para a frente e começando a tirar a camisola por cima da cabeça. A camisola finalmente saiu e ela sacudiu a cabeça, para ajeitar os cabelos de volta a seu lugar. Os dois filhos haviam deixado os seios dela flácidos, os mamilos grandes e marrons, mas o corpo envelhecera apenas um pouco mais do que o rosto.

—  Não sabemos o que fazer — confessou Ricky.

—  Pois eu sei o que fazer — disse ela, deitando de novo na cama e abrindo-lhe os braços.

Se Ricky alguma vez desejara ter permanecido solteiro como Sears, não foi o que desejou naquela manhã. Depois que terminaram, Stella disse:

—  Ah, seu velho tarado sexual! Teria renunciado a isso há muito tempo, se não fosse por mim. O que teria sido uma perda e tanto. Se não fosse por mim, seria distinto demais para sequer tirar as roupas.

—  Não é verdade, Stella.

—  E o que faria então? Perseguiria as menininhas, como Lewis Benedikt?

—  Lewis não persegue menininhas.

—  Ficaria então com as garotas na casa dos vinte anos.

—  Eu jamais faria isso.

—  O que significa que estou certa. Não teria qualquer vida sexual, como o seu precioso sócio Sears. — Ela puxou as cobertas no seu lado da cama e se levantou. — Vou tomar ba­nho primeiro.

Todas as manhãs, Stella ficava no banheiro por bastante tempo. Vestiu um roupão branco comprido, dando a impressão de que estava prestes a exortar alguém a saquear Tróia.

—  Vou dizer-lhe o que deve fazer, Ricky. Telefone agora mesmo para Sears e conte seu horrível pesadelo. Não vai con­seguir chegar a parte alguma, se pelo menos não falar a res­peito. Se bem conheço você e Sears, podem passar várias se­manas seguidas sem dizer nada de pessoal um ao outro. O que é terrível. Afinal, sobre o que costumam conversar?

—  Sobre o que conversamos? — repetiu Ricky, um tanto surpreso. — Ora, conversamos sobre questões jurídicas.

—  Essa não!

E Stella foi para o banheiro. Ao voltar, quase meia hora depois, Ricky encontrava-se sentado na cama, com uma expres­são confusa. As olheiras estavam mais fundas do que habi­tualmente.

—  O jornal ainda não chegou — comentou ele. — Fui até lá embaixo e não o encontrei.

—  Nem podia encontrar — disse Stella, largando em cima da cama a toalha e uma caixa de lenços de papel e virando-se para ir ao quarto de vestir. — Que horas pensa que são?

—  Que  horas?   Não   sei.   Meu   relógio   está  em   cima da mesa.

—  Passam alguns minutos das sete.

—  Sete?

Normalmente, eles não se levantavam antes das oito horas. Ricky ficava vagando pela casa até nove e meia, quando partia para o escritório, na Wheat Row. Embora nem ele nem Sears quisessem admiti-lo, já não tinham muito trabalho. Velhos clientes apareciam de quando em vez, havia uns poucos pro­cessos complicados que davam a impressão de que se arrastariam até a década seguinte, e sempre apareciam uns poucos problemas fiscais para serem resolvidos; mas eles podiam pas­sar dois dias da semana em casa sem que ninguém percebesse. Em sua sala no escritório, Ricky ultimamente vinha relendo o segundo livro de Donald Wanderley, procurando em vão con­vencer-se de que a presença do autor em Milburn seria de­sejável.

—  Mas do que estamos falando, afinal?

—  Acordou-nos com seu grito, se é que preciso lem­brá-lo — gritou Stella do quarto de vestir. — Estava tendo problemas com um monstro que queria devorá-lo. Ou será que já esqueceu?

—  Hum...   — murmurou Ricky. — Pensei que esti­vesse escuro lá fora.

—  Não seja evasivo — gritou Stella, voltando pouco mais de um minuto depois e parando ao lado da cama, inteiramente vestida. — Quando se começa a gritar durante o sono, está na hora de levar a coisa a sério. Sei que não vai procurar um médico. ..

— Pelo menos não vou a um psiquiatra. Minha mente está funcionando perfeitamente.

—  Era o que eu pensava. Mas já que não quer ir a um médico, deve pelo menos conversar com Sears a respeito. Não gosto de vê-lo a se corroer por dentro.

E, com isso, Stella retirou-se, descendo a escada. Ricky continuou deitado, pensando. Como dissera a Stella, fora o pior dos pesadelos. Apenas pensar a respeito agora era inquietante... e o fato de Stella ter descido também era, de certa forma, inquietante. O sonho fora extraordinariamente vívido, com os detalhes e a sensação do estado de vigília. Ricky recordou os rostos dos amigos, pobres cadáveres privados de vida. Fora ter­rível, de certa forma imoral. O choque à sua moralidade, mais ainda que o horror, é que o levara a abrir a boca e gritar. Talvez Stella estivesse certa. Sem saber como iria abordar o assunto com Sears, pegou o fone na mesinha-de-cabeceira. De­pois que o telefone de Sears tocou uma vez, Ricky compreen­deu que estava agindo por impulso, que não tinha a menor idéia do motivo que levara Stella a pensar que o amigo e sócio poderia dizer-lhe algo importante. Mas já era tarde demais para recuar, pois Sears atendeu ao telefone, dizendo alô.

—  Sou eu, Sears... Ricky.

Evidentemente, aquela era a manhã para a demonstração de incongruência de comportamento, porque a reação de Sears foi simplesmente inconcebível:

— Graças a Deus, Ricky! Deve ter sido percepção extra-sensorial. Eu já ia telefonar para você. Pode vir pegar-me em casa dentro de cinco minutos?

— Dê-me quinze minutos, Sears. O que aconteceu? — Lembrando subitamente o pesadelo, Ricky indagou: — Alguém morreu?

— Por que pergunta? — quis saber Sears, com uma voz diferente, mais ríspida.

— Não há qualquer razão concreta. Mais tarde eu conto tudo. Presumo que não iremos para Wheat Row.

— Não, não iremos. Acabo de receber um telefonema de Elmer. Ele quer a nossa presença imediatamente... está a fim de processar todo mundo. Pode apressar-se, por favor?

—  Ele pediu que fôssemos até sua fazenda? O que aconteceu, afinal?

Sears estava impaciente.                                                   

— Aparentemente, foi algo terrível. E agora trate de desligar e se aprontar rapidamente, Ricky.                                   

 

Enquanto Ricky se apressava, tomando um banho de chu­veiro bem quente, Lewis Benedikt estava correndo por uma trilha no bosque. Era o que fazia todas as manhãs, uma corrida de três quilômetros, antes de preparar o café da manhã para si e para a jovem que tivesse passado a noite em sua companhia. Naquele dia, como sempre acontecia depois das noites da So­ciedade Chowder e com muito mais freqüência do que seus amigos imaginavam, não havia jovem alguma em sua casa, e Lewis estava se empenhando na corrida mais do que costuma­va. Na noite anterior, tivera o pior pesadelo de sua vida; os efeitos ainda o afligiam e achava que uma boa corrida poderia dissipá-los; enquanto outro homem escreveria num diário, con­fidenciaria, à amante ou tomaria um drinque, Lewis fazia exer­cício. Agora, num traje de corrida azul e sapatos Adidas, ele ofegava pela trilha no bosque.

A propriedade de Lewis incluía tanto os bosques como as pastagens, além da casa de pedra, que passara a amar a partir do momento em que a vira. Era como uma fortaleza, uma casa imensa construída no princípio do século por um fazendeiro rico que gostava da aparência dos castelos que havia nas ilus­trações de Sir Walter Scott, admirados por sua esposa. Lewis não sabia nem se importava com a existência de Sir Walter, mas os muitos anos vivendo em hotel o haviam deixado com a necessidade de ter muitos quartos a seu redor. Sentiria claus­trofobia, se morasse num simples chalé. Quando decidira ven­der seu hotel à cadeia que nos seis anos anteriores lhe vinha apresentando propostas cada vez mais altas, ficara com dinheiro suficiente, mesmo depois de deduzidos os impostos, para com­prar a única casa na área de Milburn que o satisfaria real­mente, além de poder decorá-la como desejava. O revestimento das paredes, armas de fogo e lança, nem sempre agradavam às suas hóspedes femininas. Stella Hawthorne, que passara três tardes ardentes na casa de Lewis, logo depois de seu retorno, comentara que nunca antes estivera num cassino de oficiais. Ele vendera as pastagens assim que fora possível, mas conser­vara os bosques, porque lhe agradava a idéia de possuí-los.

Correndo através dos bosques, Lewis sempre via algo novo, que lhe ampliava a sensação de vida: num dia, alguns arbustos surgindo do meio da neve numa depressão ao lado do córrego; no outro, um melro de asas vermelhas, do tamanho de um gato, espiando-o do alto de um bordo. Hoje, porém, ele não estava olhando, simplesmente corria pela trilha em meio à neve, desejando que fosse impedido o que estava para acon­tecer. Talvez o jovem Wanderley pudesse endireitar tudo, fazer com que as coisas voltassem a ser como antes. A julgar por seu livro, ele já estivera pessoalmente em alguns lugares dos mais sombrios e tenebrosos. Talvez John estivesse certo e o sobri­nho de Edward pudesse pelo menos definir o que estava acon­tecendo aos quatro. Não podia ser apenas sentimento de culpa,’ depois de tantos anos. O caso de Eva Galli ocorrera há tanto tempo que envolvera cinco homens diferentes, numa terra di­ferente. Contemplando-se agora a paisagem e comparando-a com o que era na década de 20, ninguém poderia imaginar que era o mesmo lugar. Até mesmo seus bosques eram uma pai­sagem secundária, embora ele gostasse de pensar o contrário.

Ao correr, Lewis gostava de pensar na floresta imensa que outrora cobrira quase toda a extensão do norte da Amé­rica, um vasto cinturão de árvores e vegetação luxuriante, uma riqueza silenciosa, pela qual se deslocavam apenas ele e os índios. E alguns espíritos. Numa floresta interminável, podia-se acreditar em espíritos. A mitologia indígena estava repleta de espíritos, que se ajustavam perfeitamente à paisagem. Mas agora, num mundo de supermercados e campos de golfe, não havia mais lugar para os velhos e tirânicos fantasmas. “Eles ainda não. foram expulsos, Lewis. Ainda não.” Era como outra voz falando em sua mente. “Uma ova que não foram”, disse Lewis para si mesmo, passando a mão pelo rosto.

“Não aqui. Ainda não.”

Mas que droga! Ele estava metendo medo a si mesmo. É que ainda estava angustiado por aquele maldito pesadelo. Talvez fosse o momento apropriado para conversarem sobre os pesadelos, cada um descrevendo os seus. Vamos supor que todos tivessem o mesmo pesadelo. O que isso poderia signifi­car? A mente de Lewis não podia ir além disso. Mas certa­mente significava alguma coisa, e falar a respeito não poderia deixar de ajudar. Acordara apavorado naquela manhã. Abrupta­mente, o pé pisou numa poça de neve semi derretida, misturada com lama, e ele viu nitidamente a imagem final do pesadelo: os dois homens retirando os capuzes para mostrarem seus rostos devastados.

Ainda não.

Mas que diabo! Lewis parou, exatamente no meio da cor­rida, enxugando a testa com a manga do blusão. Desejava já ter concluído o exercício e estar de volta a sua cozinha, prepa­rando o café ou fritando bacon. “É mais resistente do que isso, meu velho”, disse a si mesmo; “teve de ser, desde que Linda se matou.” Encostado por um momento na cerca ao final da trilha, que fazia a volta ali e se embrenhava novamente pelo bosque, Lewis correu os olhos pelo campo que vendera. Estava agora coberto por uma fina camada de neve, uma extensão de terra irregular, iluminada pela claridade da manhã. Tudo aquilo outrora também fora floresta. Onde se ocultavam as coisas tenebrosas.

Mas se algo estava escondido, não se podia perceber agora. O ar era pesado e vazio, dava para se avistar por quase toda a extensão do vale até a Rodovia 17, por onde passavam os cami­nhões seguindo para Binghamton e Elmyra numa direção, para Newburg ou Poughkeepsie na outra. Apenas por um momen­to, os bosques às suas costas deixaram-no inquieto nervoso. Virou-se bruscamente, mas avistou apenas a tinha zigueza-gueando por entre as árvores; ouviu apenas um esquilo furioso se queixando de que iria passar um inverno faminto.

“Companheiro, todos já tivemos invernos famintos.” Le­wis estava pensando na temporada que se seguira à morte de Linda. Nada pode afugentar tanto os hóspedes quanto um suicídio público. Tinha sido mesmo a Sra. Benedikt? Mas claro que tinha! O sangue dela se espalhara por todo o pátio, o pes­coço torcido de maneira estranha. Um a um, os hóspedes ti­nham ido embora, deixando-o com um investimento de dois milhões de dólares e praticamente sem qualquer receita. Tivera que dispensar três quartos dos empregados, e pagara aos de­mais do seu próprio bolso. Três anos se haviam passado até que os negócios voltassem ao normal, seis anos para que pa­gasse todas as dívidas.

Subitamente, o que ele queria não era café e bacon, mas uma garrafa de cerveja O’Keefe. Mais de uma. A garganta estava ressequida e o peito doía.

“Isso mesmo, todos nós já tivemos invernos famintos, companheiro.” Uma garrafa de cerveja? Poderia beber um bar­ril inteiro! Recordar a morte inexplicável e sem sentido de Linda lhe dava uma vontade imensa de se embriagar.

Estava na hora de voltar. Abalado pela recordação — o rosto de Linda retornara a seus pensamentos com extrema nitidez, reclamando-o ao longo dos nove anos que já se haviam passado desde aquele momento fatídico — Lewis virou-se, ficando de costas para a cerca, e aspirou fundo. Correr e não cerveja era sua terapia agora. A trilha pelo quilômetro e meio de bosques parecia mais estreita, mais escura.

“O seu problema, Lewis, é ser um covarde.”

Fora o pesadelo que trouxera as recordações. Sears e John, nas mortalhas lúgubres, os rostos sem vida. Por que não Ricky? Se ali estavam os outros dois membros vivos da Sociedade Chowder, por que não o terceiro?

Estava suando antes mesmo de começar a correr de volta.

A trilha de retorno fazia um longo desvio para a esquer­da, antes de virar novamente na direção da casa de pedra; normalmente, aquele desvio era a parte predileta da corrida matutina de Lewis. A mata se tornava cerrada quase que imediatamente, e quinze passos adiante já se podia esquecer intei­ramente o campo aberto lá atrás. Mais do que qualquer outra parte da trilha, aquele trecho se parecia com a floresta primária, com carvalhos imensos e bétulas novas disputando os espa­ços para fincarem suas raízes, as samambaias altas se erguendo por toda parte. Mas, naquele dia, Lewis correu com tão pouco prazer quanto lhe era possível sentir. Todas aquelas árvores, imensas e incontáveis, pareciam vagamente ameaçadoras: correr para longe da casa era como correr para longe da segurança. Passando sobre a neve fina, ele acelerou a corrida, querendo voltar para casa o mais depressa que pudesse.

Quando a sensação o atingiu pela primeira vez, preferiu ignorá-la, dizendo a si mesmo que não podia permitir-se ficar mais assustado do que já estava. O que lhe surgira à mente era que havia alguém parado no início da trilha de volta, no lugar onde se erguiam as primeiras árvores. Mas sabia que não podia haver ninguém ali; seria impossível que alguém tivesse atravessado o campo sem que ele percebesse. Mas a sensação persistiu, recusou-se a ser afastada por argumentos racionais. Os olhos da pessoa que o vigiava pareciam segui-lo, aprofun­dando-se entre as árvores. Um bando de corvos deixou os galhos de uma árvore, logo acima dele. Normalmente, Lewis teria ficado deliciado com tal ocorrência; mas naquele momento teve um sobressalto ao ouvir o barulho súbito e quase caiu.

A sensação subitamente alterou-se, ficou mais intensa. A pessoa lá atrás estava vindo em seu encalço, fitando-o com olhos imensos. Angustiado, desprezando a si mesmo pelo medo que sentia, Lewis disparou de volta a sua casa, sem se atrever a olhar para trás. Sentiu os olhos acompanhando-o implacavel­mente, até chegar ao caminho que atravessava o jardim dos fundos, indo da beira da mata à porta da cozinha.

Correu desesperadamente, o peito aspirando o ar irregular e sofregamente, torceu a maçaneta da porta, entrou em casa. Bateu a porta e foi imediatamente para a janela ao lado. O caminho estava deserto e as únicas pegadas eram as suas. Mesmo assim, Lewis continuou apavorado, esquadrinhando a beira da mata. Por um momento, uma sinapse traiçoeira em seu cérebro aconselhou: “Talvez seja melhor vender a casa e deixar a cidade”. Mas não havia pegadas. Ninguém poderia estar ali, vigiando-o ao abrigo das árvores. Não poderia sentir-se tão apavorado a ponto de vender a casa, da qual precisava; não poderia ser forçado por sua própria fraqueza a trocar aquele isolamento esplêndido e confortável por um desconforto promíscuo. Lewis iria ater-se a essa decisão, tomada numa cozinha fria, no primeiro dia da nevasca.

Pôs uma chaleira com água no fogo, pegou a cafeteira na prateleira, encheu o moedor com grãos de café, manteve-o ligado até que houvesse pó suficiente. “Mas que diabo!” Abriu a geladeira, pegou uma garrafa de cerveja, abriu-a e tomou quase tudo, sem sequer sentir o gosto. Quando a cerveja bateu em seu estômago, foi surpreendido por um duplo pensamento. “Gostaria que Edward ainda estivesse vivo; e gostaria que John não tivesse insistido tanto em sua maldita festa.”

 

— Diga logo qual é o problema — pediu Ricky. — Inva­sores novamente? Já explicamos nossa posição a respeito. Ele deve saber que, mesmo ganhando, não conseguirá obter uma indenização suficiente para sequer pagar as despesas.

Estavam entrando nos contrafortes do vale Cayuga,  e Ricky guiava o velho Buick com extremo cuidado. As estradas estavam escorregadias e normalmente ele teria posto os pneus de neve antes de iniciar o percurso de treze quilômetros até a fazenda de Elmer Scales. Naquela manhã, porém, Sears não lhe dera tempo. O próprio Sears, imenso em seu chapéu preto e sobretudo preto de inverno, com gola de pele, parecia tão consciente disso quanto Ricky.

—  Concentre-se apenas em guiar, Ricky. Parece que há muito gelo nas estradas, em torno de Damascus.

—  Não estamos indo para Damascus.

—  Não tem importância.

— Por que não quis usar seu carro?

—  Mandei pôr os pneus de neve esta manhã.

Ricky soltou um grunhido, achando graça na situação. Sears estava num dos seus momentos refratários, uma conseqüência freqüente das conversas com Elmer Scales. Era um dos clientes mais antigos e mais difíceis, (Elmer fora procurá-los pela primeira vez aos quinze anos de idade, com uma longa e complexa lista de pessoas que desejava processar. Jamais haviam conseguido livrar-se dele ou alterar sua opinião de que um conflito só pode ser bem resolvido através de um processo judicial.) Um homem esquelético e nervoso, com orelhas sa­lientes e voz estridente, Scales era chamado por Sears de “Nosso Virgílio”, por causa de suas poesias, que enviava sis­tematicamente para revistas católicas e jornais locais. Ricky podia perfeitamente compreender por que as revistas sistema­ticamente devolviam as poesias. Elmer certa ocasião mostrara-lhe uma pasta repleta de memorandos de recusa. Mas os jornais haviam publicado duas ou três. Eram poesias com ima­gens extraídas da vida de Scales como fazendeiro: “Ás vacas mugem, os cordeiros balem, a glória de Deus caminha sobre pés trovejantes”. E o mesmo acontecia com Elmer Scales. Ele tinha oito filhos e uma paixão inflexível por litígios judiciais.

Uma ou duas vezes por ano, um dos sócios era convocado à fazenda de Scales, sendo levado até um buraco na cerca, por onde um caçador ou adolescente passara para entrar em sua propriedade. Elmer frequentemente identificava os invasores com um binóculo e invariavelmente queria processá-los. Sears e Ricky quase sempre conseguiam dissuadi-lo, mas ele tinha sempre dois ou três litígios judiciais de outros tipos em anda­mento. Dessa vez, porém, conforme Ricky desconfiava, a si­tuação era mais séria do que as reclamações habituais de Scales. Afinal, o fazendeiro jamais pedira antes — ou melhor, ordenara — que os dois sócios fossem procurá-lo.

— Como sabe perfeitamente, Sears, posso guiar e pensar ao mesmo tempo. E estou indo a uma velocidade extremamente cautelosa de cinqüenta quilômetros horários. Acho que pode muito bem me contar qual é o problema de Elmer desta vez.

— Alguns dos seus animais morreram — murmurou Sears, os lábios contraídos, insinuando que o simples ato de falar poderia fazê-los sair da estrada a qualquer momento.

— E por que então estamos indo até lá? Não podemos fazer os animais ressuscitarem.

—  Ele  quer falar  conosco.  E  também  chamou  Walter Hardesty.

—  O que significa que os animais não morreram simples­mente.

—  Com Elmer, quem pode saber? E agora, por favor, concentre-se em nos levar até lá em segurança,  Ricky.  Esta experiência já é horrível o bastante para não dispensar com­plicações adicionais.

Ricky lançou um olhar rápido para o sócio e pela primeira vez percebeu como o rosto de Sears estava extremamente pá­lido naquela manhã. Sob a pele macia, havia veias azuis salta­das, subitamente visíveis; as olheiras eram fundas.

—  Fique de olho na estrada — insistiu Sears.

—  Você está com uma aparência terrível.

—  Não creio que Elmer vá notar alguma coisa.

Os olhos de Ricky estavam agora fixos na estrada, o que lhe dava permissão para falar.

—  Teve uma noite horrível, Sears?

—  Acho que está começando a degelar.

Como se tratava de uma mentira gritante, Ricky ignorou o comentário.

— Teve ou não?

—  Ricky, o observador. Tive, sim.

—  Também  tive.  Stella acha que devemos conversar a respeito.

—  Como assim? Ela também vem tendo pesadelos?

—  Ela acha que falar a respeito poderá ajudar.

—  O que é típico de uma mulher. Falar só serve para abrir velhas feridas. Não ajuda a curá-las.

—  Se assim é, foi um erro convidar Donald Wanderley a vir até aqui.

Sears soltou um grunhido exasperado.

—  Foi injusto de minha parte e lamento o que disse, Sears.  Mas  acho  que devemos  falar  a  respeito  pelo  mesmo motivo que nos levou a convidar aquele garoto para um en­contro.

—  Ele não é um garoto. Deve estar com trinta e cinco anos. Talvez quarenta.

—  Sabe perfeitamente o que estou querendo dizer. — Ricky respirou fundo. — Agora, quero pedir-lhe que me perdoe antecipadamente, pois vou contar o pesadelo que tive ontem à noite. Stella disse que acordei gritando. Seja como for, foi o pior pesadelo que já tive. — Pela mudança do clima no interior do carro, Ricky compreendeu que Sears subitamente estava mais interessado. — Eu estava numa casa abandonada, no ter­ceiro andar, algum animal misterioso tentava descobrir-me. Vou passar por cima dos detalhes, mas posso garantir que a sensa­ção de perigo era terrível. Ao final do pesadelo, a besta entrou no quarto onde eu estava. Mas já não era mais monstro. Eram você, Lewis e John. E todos estavam mortos. — Lançando um rápido olhar para o companheiro, Ricky viu uma sombra na face pálida, projetada pelo chapéu.

—  Viu a nós três? Ricky assentiu.

Sears pigarreou e depois baixou um pouco a janela. O ar gelado entrou no carro. O peito de Sears se expandiu por baixo do casaco preto, alguns pêlos eriçados da gola foram alisados peia corrente de ar.

—  Mas isso é extraordinário! Quer dizer que viu mesmo a nós três?

—  Exatamente. Por quê?

—  Porque tive um sonho idêntico. Mas quando aquela coisa terrível entrou” no quarto, vi apenas dois homens: Lewis e John. Você não estava no pesadelo.

Ricky percebeu algo estranho na voz de Sears, levando um momento para identificar o que era; e quando o fez, o reconhecimento foi tão surpreendente que o levou a manter-se em silêncio até chegarem à fazenda de Elmer Scales. Era inveja.

 

— Nosso Virgílio — murmurou Sears, mais para si mes­mo, segundo a impressão de Ricky.

Ao se encaminharem lentamente para a casa isolada, de dois andares, Ricky avistou um Scales obviamente impaciente, de gorro e casaco xadrez, à espera na varanda. A casa parecia saída diretamente de uma gravura de Andrew Wyeth. O pró­prio Scales também parecia um quadro de Wyeth. Ou um tema de Norman Rockwell. As orelhas saíam por baixo das abas amarradas do gorro. Um sedã Dodge cinza estava parado diante da varanda. Ao estacionar ao lado, Ricky avistou o distintivo do xerife na porta.

—  Walt já chegou — disse ele.

Sears assentiu. Os dois saíram do carro, ajeitando os ca­sacos. Scales, agora ladeado por dois garotos trêmulos, não saiu da varanda. Estava com a expressão de excitamento intenso que precedia seus litígios judiciais mais ardorosos. A voz esganiçada gritou-lhes:

—  Já era tempo de vocês, advogados, chegarem aqui! Walt Hardesty já chegou há dez minutos!

—  Ele não precisou vir de tão longe — resmungou Sears. A aba do seu chapéu estava meio dobrada pela brisa que so­prava livremente através dos campos.

—  Sears James, acho que ainda está para nascer o homem que terá a última palavra com você. Ei, crianças, voltem para dentro de casa ou vão acabar ficando congeladas aqui fora!

Deu uma palmada em cada um, e os dois voltaram apres­sadamente para dentro da casa. Scales continuou parado na varanda, sorrindo sombriamente.

— Qual é o problema, Elmer? — indagou Ricky, acon­chegando-se no casaco e sentindo os pés já gelados nos sapatos pretos bem engraxados.

— Vão ter que andar um pouco para descobrir. Acho que vocês dois, gente da cidade, não estão convenientemente ves­tidos para uma caminhada pelos campos. Mas o azar é de vocês. Esperem um segundo que vou chamar Hardesty.

Desapareceu por um momento no interior da casa e voltou logo depois com o xerife, Walt Hardesty, que usava um casaco revestido de pêlo de ovelha e um chapéu Stetson. Aler­tado pelo comentário de Scales, Ricky olhou para os pés do xerife: ele usava grossas botas de montaria.

— Sr. James, Sr. Hawthorne... — falou ele aos dois advogados, o vapor subindo pelo bigode, que era maior e mais irregular do que o de Ricky. Naquele traje de vaqueiro, Har­desty parecia quinze anos mais jovem. — Agora que estão aqui, talvez Elmer se decida a mostrar qual é o grande mistério.

—  Mas claro que vou mostrar! — O fazendeiro desceu os degraus da varanda e seguiu pelo caminho na direção do estábulo coberto de neve. — Podem acompanhar-me e desco­brirão o que tenho para lhes mostrar.

Hardesty foi avançando ao lado de Ricky. Sears seguiu sozinho, com imensa dignidade, atrás deles.

— Está um frio terrível — comentou o xerife. — Parece que vai ser um inverno tremendamente comprido.

— Estou torcendo para que isso não aconteça — disse Ricky. — Estou velho demais para um inverno assim.

Com gestos exagerados e uma expressão que parecia de júbilo no rosto esquelético, Elmer Scales estava desprendendo um travessão da cerca de uma pastagem.

— E agora preste muita atenção, Walt — disse ele. — Veja  se consegue encontrar algum  rastro.  — Apontou  para uma linha de pegadas. — Estas são minhas, da ida e vinda esta manhã. — As pegadas de volta eram bastante espaçadas, como se Elmer tivesse corrido. — Onde está seu caderninho, Walt? Não vai tomar anotações?

— Acalme-se, Elmer — respondeu o xerife. — Quero ver primeiro qual é o problema.

— Tomou notas imediatamente quando meu garoto mais velho arrebentou o carro dele.

— Esqueça, Elmer, e trate de nos mostrar logo o que nos chamou para ver.

— Acho que vocês dois vão estragar os sapatos — disse Elmer, olhando para Sears e Ricky. — Mas não se pode fazer nada. Vamos embora.

Hardesty adiantou-se, ficando ao lado de Elmer; as costas imensas, sob o casaco volumoso, faziam com que o fazendeiro parecesse quase um menino. Ricky virou a cabeça a fim de olhar para Sears, que só naquele momento estava chegando à cerca e contemplava o campo coberto de neve com uma ex­pressão de aversão.

—  Ele poderia ter informado que iríamos precisar de sapatos de neve.

—  Está se divertindo imensamente com a situação — comentou Ricky.

—  E vai divertir-se ainda mais quando eu pegar pneu­monia  e  contratar  um  advogado para  processá-lo  — falou Sears. — Como não há alternativa, vamos embora.

Corajosamente, Sears pôs um pé bem calçado no pasto; afundou imediatamente, até os cordões.

—  Essa não! — Retirou o pé apressadamente e o sacudiu. Os outros já estavam no meio do campo. Enfiando as mãos nos bolsos do casaco, Sears acrescentou:  — Mas que diabo! Ele pode perfeitamente ir ao escritório!

—  Se você vai ficar, é melhor pelo menos eu acompa­nhá-los — disse Ricky. E se pôs a seguir os outros dois.

Walt Hardesty tinha se virado para olhá-los e estava afa­gando o bigode irregular, um típico agente da lei do oeste bravio deslocado para um campo coberto de neve do Estado de Nova York. Parecia estar sorrindo. Elmer Scales seguia em frente, indiferente aos outros. Ricky foi avançando, passando de uma pegada para outra. Atrás dele, ouviu Sears exalar ar suficiente para encher um balão e começar a segui-lo.

Em fila indiana agora, com Elmer falando e gesticulando na frente, foram caminhando pelo campo. Subitamente, com um estranho ar de júbilo triunfante, Elmer parou no alto de uma elevação. A seu lado, quase cobertas pela neve, havia pilhas de detritos. Ao chegar ao local, Hardesty se ajoelhou e cutucou uma das pilhas; depois resmungou e remexeu os de­tritos. Ricky avistou quatro patas pretas erguendo-se no ar.

Com os sapatos encharcados e os pés molhados, Ricky também chegou ao local. Sears, os braços estendidos para man­ter o equilíbrio, ainda caminhava pelo campo coberto de neve, a aba do chapéu achatada pelo vento.

—  Eu não sabia que ainda criava ovelhas — Ricky ouviu Hardesty dizer.

—  E não crio mais! — gritou Scales  — Tinha apenas essas quatro e agora todas morreram. Alguém as matou. Só as mantinha como uma homenagem aos velhos tempos. Meu pai tinha umas duzentas, mas esses animais estúpidos já não dão mais dinheiro. Só fiquei com essas porque as crianças gostavam delas.

Ricky olhou para os quatro animais mortos, caídos de lado, os olhos vidrados, a neve sobre os pêlos emaranhados. Inocentemente, perguntou:

—  O que as matou?

—  É justamente isso o que estou querendo saber! — gritou Elmer, num acesso de raiva. — E quem representa a lei por aqui é que tem de me dizer!

Hardesty, ainda ajoelhado ao lado de uma das ovelhas mortas, levantou a cabeça e fitou o fazendeiro com uma ex­pressão irritada.

— Está querendo dizer que nem mesmo sabe se estes animais morreram de causas naturais, Elmer?

— Eu sei que não! Eu sei que não! — Scales levantou os braços dramaticamente, parecendo um morcego prestes a alçar vôo.

—  E como pode saber?

—  Porque nada pode matar uma maldita ovelha! É por isso que eu sei! E que diabo poderia matar quatro de uma só vez? Ataques do coração? Essa não!

Sears juntou-se ao grupo, seus contornos imensos fazendo com que Hardesty, ajoelhado, parecesse bem pequeno. Olhando para baixo, comentou:

—  Quatro ovelhas mortas... Imagino que esteja que­rendo processá-las.

—  Como? Vocês vão descobrir o lunático que fez isso e processá-lo até que fique sem calças!

—  E quem pode ser?

—  Não sei. Mas...

—  Mas o quê? — indagou Hardesty, novamente levan­tando os olhos da ovelha morta a seus pés.

—  Vou dizer quando voltarmos para casa. Enquanto isso, senhor xerife, dê uma boa olhada, tome anotações e descubra o que ele fez com os bichos.

—  Ele?

—  Só vou falar quando voltarmos.

Com o rosto franzido, Hardesty cutucou a carcaça.

—  Para isso, Elmer, está precisando de um veterinário e não de mim. — As mãos dele, apalpando o corpo do animal, chegaram ao pescoço. — Ei. . .

—  O que foi? — gritou Elmer Scales, quase pulando de expectativa.

Ao invés de responder, Hardesty chegou-se de joelhos à ovelha mais próxima e enfiou as mãos nos pêlos abundantes do pescoço.

—  Poderia ter visto isso pessoalmente, Elmer — disse o xerife, puxando para trás a cabeça da ovelha.

—  Santo Deus! — exclamou o fazendeiro.

Os dois advogados ficaram em silêncio. Ricky olhou para a ferida exposta: o talho imenso no pescoço do animal parecia uma boca escancarada.

— Um trabalho limpo — comentou Hardesty. — Um trabalho bem-feito. Está certo, Elmer, já provocou o que queria. E agora vamos voltar para sua casa. — E limpou os dedos na neve.

—  Santo Deus! — repetiu Elmer. — As gargantas dos bichos foram cortadas? De todos eles?

Com um ar cansado, Hardesty foi puxar as cabeças dos animais restantes, antes de Confirmar:

—  De todos eles.

Vozes antigas soaram nitidamente na mente de Ricky. Ele e Sears se entreolharam, e desviaram os olhos rapidamente.

— Vou processar até o fim quem fez uma coisa dessas! — berrou Elmer. — Mas que merda! Sabia que alguma coisa estava esquisita! Eu sabia! Mas que merda!

Hardesty estava agora correndo os olhos pelo campo vazio.

—  Tem certeza de que veio até aqui só uma vez e depois voltou direto?

—  Tenho...

—  Como sabia que alguma coisa estava errada?

—  Porque  vi  as  estúpidas  ovelhas  aqui em  cima  esta manhã, ao olhar pela janela. Normalmente, quando estou lavando o rosto, a primeira coisa que avisto são esses bichos através da janela. Entende agora? — Apontou para a casa. Dava para se avistar o brilho da janela da cozinha. — Há alguma relva aqui por cima. Os estúpidos animais ficam an­dando de um lado para outro, enchendo-se de comida. Quando neva demais, levo os bichos para o estábulo. Olhei pela janela e vi os bichos como estão agora. Não podia haver a menor dúvida de que alguma coisa estava errada. Pus o casaco e as botas e subi até aqui. Depois, liguei para você e para meus advogados. Quero processar e prender quem fez isso.

— Não há quaisquer pegadas ao lado das suas — disse Hardesty, alisando o bigode.

—  Sei disso — respondeu Elmer. — Ele apagou-as.

— É possível. Mas normalmente podem ser percebidas na neve intata.

“Santo Deus ela se mexeu ela não pode ela está morta.”

— E há outra coisa — disse Ricky, rompendo o silêncio desconfiado que se criara entre os dois homens e interrom­pendo a voz lunática em sua mente. — Não há sangue.

Por um momento, os quatro homens ficaram olhando para as ovelhas mortas e para a neve recente. Era verdade.

—  Agora, não podemos deixar esta desolação? —- indagou Sears.

Elmer ainda estava olhando para a neve, engolindo em seco. Sears começou a se afastar pelo campo e os outros logo o seguiram.

 

—  Muito bem, crianças, sumam daqui e subam! — gritou Scales, ao entrarem na casa e tirarem os casacos. — Temos que conversar em particular. Vamos, saiam daqui! — Sacudiu as mãos para algumas das crianças, que olhavam fascinadas para a pistola de Walter Hardesty. — Sarah! Mitchell! Subam logo! Agora!

Foram para a cozinha. Ao entrarem, uma mulher tão magra quanto Elmer levantou-se bruscamente de uma cadeira, cruzando as mãos.

—  Sr. James, Sr. Hawthorne...  — murmurou ela. — Aceitam um café?

—  Primeiro toalhas de papel, se não se incomoda, Sra. Scales — disse Sears. — E depois o café!

—  Toalhas de papel?

—  Para enxugar meus sapatos. E tenho certeza de que o Sr. Hawthorne também está precisando de uma.

A mulher baixou os olhos, aturdida, para os sapatos do advogado.

— Oh, mas está horrível! Deixe-me ajudá-lo... — A mulher tirou um rolo de papel do armário, arrancou um pedaço grande e fez menção de ajoelhar-se aos pés de Sears.

—  Isso não será necessário — disse Sears bruscamente, tirando o papel das mãos dela.

Somente Ricky sabia que Sears estava simplesmente cons­trangido e não sendo grosseiro.

— Sr. Hawthorne...? — Um pouco intimidada pela frieza de Sears, a mulher virou-se na direção de Ricky.

—  Aceito também o papel, Sra. Scales — disse ele. — É muita bondade da sua parte. Obrigado.

Ele pegou o papel, enquanto Elmer dizia à esposa:

—  As gargantas dos bichos foram cortadas. Eu não tinha falado? Algum doido andou por aqui. E... — Fez uma pausa, a voz se alterando ao acrescentar: — era um doido que pode voar, pois não deixou pegadas.

—  Conte tudo — murmurou ela.

Elmer fitou-a com uma expressão irritada e a mulher se apressou em começar a preparar o café.

—  Contar o quê? — indagou Hardesty.

Não mais usando o traje de Wyatt Earp, o xerife voltara a assumir sua idade de cinqüenta anos. “Ele está mergulhando na garrafa mais do que nunca”, pensou Ricky, vendo as veias rompidas no rosto de Hardesty, a expressão indecisa. Pois a verdade era que, apesar de sua aparência de ranger do Texas, nariz aquilino, faces vincadas e olhos azuis de pistoleiro, Walt Hardesty era preguiçoso demais para ser um bom xerife. Era típico dele só ter examinado as outras duas ovelhas depois que isso lhe fora sugerido. E Elmer Scales estava certo; ele deveria ter tomado anotações.

O fazendeiro estava agora se aprumando, prestes a lançar sua bomba. As cordas vocais estavam saltadas no pescoço; as orelhas de morcego um pouco mais vermelhas.

—  É que eu vi o homem, entendem? — A boca de Elmer descaiu comicamente e ele contemplou um a um, lentamente.

— O homem? — murmurou a esposa, em tom irônico.

— Mas que droga, mulher! O que mais poderia ser? — Elmer bateu com a mão na mesa, estrondosamente. — Provi­dencie logo esse café e pare de me interromper! — Virou-se novamente para os outros três homens. — Tão grande quanto eu! Maior! E me olhando! A coisa mais terrível que já vi! — Desfrutando aquele momento, o fazendeiro abriu os braços. — Bem lá fora! E não estava muito longe! O que acham disso?

—  E por acaso o reconheceu? — indagou Hardesty.

—  Não o vi tão bem assim. Mas deixe-me contar como foi. — Estava andando pela cozinha, incapaz de se controlar. Ricky recordou-se de uma antiga percepção, segundo a qual Nosso Virgílio escrevia poesia porque era volúvel demais para acreditar que não era capaz. — Eu estava aqui mesmo ontem à noite, já bem tarde. Não podia dormir, nunca pude.

—  Nunca pôde — murmurou a esposa.

Soaram gritos, rangidos e baques lá em cima.

—  Esqueça o café e suba para dar um jeito nas crianças — ordenou Elmer à esposa.

Ele parou de falar, enquanto ela se retirava. Não demorou muito para que outra voz se juntasse à cacofonia lá em cima, fazendo com que os ruídos cessassem abruptamente.

—  Como eu estava dizendo, ontem à noite fiquei aqui, dando  uma  olhada  em  alguns  catálogos  de  equipamentos  e sementes. E, de repente, ouvi alguma coisa perto do estábulo. “Um ladrão!”, pensei. Levantei-me e fui até a janela. Vi que estava nevando. Lá se foi o meu trabalho de amanhã, disse para mim mesmo. E foi nesse momento que o vi. Perto do estábulo. Entre o estábulo e a casa.

—  E como ele parecia? — indagou Hardesty, ainda sem tomar anotações.

—  Não pude ver direito!   Estava escuro demais!  — A voz de Elmer passara agora para um tom de soprano. — Apenas o vi parado ali, olhando!

—  Viu-o no escuro? — perguntou Sears, em tom ente­diado.— As luzes do pátio não estavam acesas?

—  Deve estar brincando, senhor advogado! Com as contas de luz do jeito que estão, não se pode passar a noite inteira com lâmpadas acesas! Mas eu o vi e percebi que era muito grande.

—  Mas como pôde perceber tal coisa, Elmer? — indagou Hardesty.

A Sra. Scales estava agora descendo a escada sem carpete, os sapatos duros ecoando ruidosamente nos degraus de ma­deira. Ricky espirrou. Uma criança começou a assoviar. Os passos na escada cessaram abruptamente.

—  Porque vi os olhos dele! Olhando para mim! E muito acima do chão!

—  Viu apenas os olhos dele? — disse Hardesty, incré­dulo. — E que diabo havia nos olhos do tal sujeito para que pudesse vê-los assim, Elmer? Brilhavam no escuro?

—  Acabou de dizer — respondeu o fazendeiro.

Ricky virou bruscamente a cabeça para fitar Elmer, que olhou para todos com uma satisfação evidente. Sem qualquer intenção, mas não podendo conter-se, Ricky olhou em seguida para Sears, que estava do outro lado da mesa. Ele ficou tenso e imóvel ao ouvir a última pergunta de Hardesty, esforçan­do-se para que nada transparecesse em seu rosto. Percebeu a mesma determinação no rosto de Sears. E pensou: “Sears tam­bém. Significa também alguma coisa para ele”.

—  E agora espero que você o agarre, Walt. E espero também  que  meus  dois  advogados   processem  o  bunda-suja daqui até o verão. Desculpe a linguagem, meu bem.

A esposa de Elmer estava entrando na cozinha naquele momento e assentiu diante do pedido de desculpas, reconhe­cendo que se justificava, antes de tirar a cafeteira do fogo.

—  Viu alguma coisa ontem à noite, Sra. Scales? — per­guntou Hardesty.

Ricky percebeu um reconhecimento similar no rosto de Sears e compreendeu que ele próprio se denunciara.

— Tudo o que vi foi um marido assustado. Acho que essa foi a parte que ele não contou.

Elmer pigarreou, o pomo-de-adão subindo e descendo.

—  É que a coisa parecia muito esquisita. . .

—  Creio que já sabemos tudo b que é necessário — inter­veio Sears. — Agora, se nos dão licença, o Sr. Hawthorne e eu temos que voltar para a cidade.

— Vai tomar o café primeiro, Sr. James — disse a Sra. Scales, pondo uma xícara de plástico, cheia de café fumegante, diante dele, em cima da mesa. — Se vão processar algum bunda-suja daqui até o verão, certamente precisarão de todas as suas energias.

Ricky fez um esforço para exibir um sorriso, mas Walt Hardesty soltou uma risadinha.

 

Lá fora, já exibindo novamente seu traje protetor de ranger do Texas, Hardesty inclinou-se para falar baixinho pela fresta de três dedos que Sears abrira na janela do carro:

—  Precisam voltar para a cidade imediatamente?  Não podemos encontrar-nos em algum lugar para trocarmos umas palavrinhas?

—  É muito importante?

—  Talvez sim, talvez não. Mas eu gostaria de conversar com vocês.

—  Está certo. Iremos diretamente para seu gabinete.

A mão enluvada de Hardesty subiu até o queixo e coçou-o lentamente.

—  Preferiria não falar na presença dos outros rapazes.

Sentado com as mãos no volante, Ricky virou o rosto alerta para Hardesty, mas em sua mente só cabia um pensa­mento: “Está começando! Está começando e nem ao menos sabemos o que é!”

—  O que sugere, Walt? — perguntou Sears.

—  Podemos parar em algum lugar no caminho, para uma conversa  tranqüila. O que me diz do Humphrey’s, que fica logo depois dos limites da cidade, na Seven Mile Road?

—  Acho que sei onde fica.

—  Costumo   usar   a   sala   dos   fundos   como   escritório, quando preciso tratar de algum assunto confidencial. Podemos nos encontrar lá?

—  Já que insiste... — murmurou Sears, sem se dar o trabalho de consultar Ricky.

Seguiram o carro de Hardesty pelo caminho de volta à cidade, andando um pouco mais depressa dó que na ida. O reconhecimento mútuo — de que ambos conheciam a coisa assustadora que Elmer Scales vira — tornava impossível qual­quer conversa. Quando Sears finalmente falou, foi sobre um tópico aparentemente neutro:

—  Hardesty é um  tolo incompetente.  “Assuntos confi­denciais.” Seu único assunto confidencial é com uma garrafa de uísque.

— Pelo menos já sabemos agora o que ele costuma fazer durante a tarde.

Ricky deixou a estrada principal e. entrou na chamada Seven Mile Road. A taverna, a única construção à vista, era um amontoado cinzento de ângulos e pontas, a cerca de duzen­tos metros de distância, à direita.

—  Tem toda a razão. Ele deve passar as tardes tomando uísque de graça, à custa de Humphrey. Ele estaria muito me­lhor trabalhando em alguma fábrica de sapatos em Endicott.

—  O que será que ele está querendo conversar conosco?

—  Saberemos em breve.

Hardesty já estava de pé ao lado do seu carro, no esta­cionamento imenso, agora praticamente vazio. O estabeleci­mento não passava de uma taverna comum de beira de estrada, com uma fachada irregular e duas grandes janelas pretas; numa delas, estava o nome “Humphrey’s Place” em neon, e na outra o nome “Utica Club” apagando e acendendo. Ricky parou ao lado do carro do xerife. Os dois advogados saltaram para o vento frio.

—  Sigam-me — disse Hardesty, num tom de falsa bo­nomia.

Depois de se olharem com um constrangimento partilha­do, Ricky e Sears subiram os degraus de concreto atrás dele. Ricky espirrou duas vezes, violentamente, assim que entrou na taverna.

Omar Norris, um dos poucos bebedores de tempo inte­gral da cidade, estava sentado num banco, no bar; fitou-os com uma expressão espantada. O gordo Humphrey Stalladge estava se deslocando entre os reservados, limpando os cinzeiros.

—  Walt! — gritou ele, acenando em seguida com a ca­beça para Ricky e Sears.

A atitude de Hardesty mudou subitamente: dentro do bar, parecia mais alto, mais senhor de si, com um jeito que parecia indicar que os dois homens mais velhos atrás dele haviam vindo até ali a conselho seu. Stalladge olhou mais aten­tamente para Ricky e depois disse:

—  Não é o Sr. Hawthorne? — Sorriu e acrescentou: — Ora, ora...

Ricky compreendeu que Stella já estivera ali, mais de uma vez.

— Podemos ir para a sala dos fundos? — indagou Har­desty.  

—  Está sempre à sua disposição.

Stalladge acenou na direção de uma porta em que estava escrito “Particular”, espremida num canto do balcão comprido. Ficou observando os três homens atravessarem o chão empoei­rado. Ornar Norris, ainda atônito, também ficou observando-os, Hardesty com o porte de um típico agente federal, Ricky chamando atenção apenas por sua sobriedade impecável, Sears uma presença imponente, parecido (somente agora a compara­ção ocorria a Ricky) com Orson Welles.

—  Está em boa companhia hoje, Walt — gritou Stalladge lá de trás.

Sears deixou escapar alguns ruídos guturais de irritação, enquanto Hardesty agradecia o comentário com um aceno ne­gligente da mão enluvada. Com um gesto altivo, o xerife abriu a porta.

Assim que passaram para o outro lado e depois de indicar que deveriam atravessar o corredor pouco iluminado até a sala escura na sua extremidade, os ombros de Hardesty voltaram a descair e o rosto relaxou. E ele disse:

—  Vão querer alguma coisa? — Os dois advogados sa­cudiram a cabeça. — Pois eu estou sedento.

Com um sorriso contrafeito, Hardesty voltou a sair pela porta. Em silêncio, os dois advogados seguiram pelo corredor até a salinha escura nos fundos. Bem no centro estava uma mesa, coberta pelas cicatrizes de muitos cigarros e cercada por seis cadeiras. Ricky encontrou o interruptor e acendeu a luz. Entre a lâmpada invisível e a mesa havia caixas de cerveja, empilhadas até o teto. A sala cheirava a fumaça e cerveja choca; mesmo com a luz acesa, a parte da frente estava quase tão escura quanto antes.

—  O que estamos fazendo aqui? — perguntou Ricky.

Sears sentou-se numa das cadeiras, suspirou, tirou o cha­péu e colocou-o cuidadosamente na mesa.

— Se quer saber o que resultará desta fantástica excursão, Ricky, posso garantir-lhe que será nada, absolutamente nada.

—  Acho que devemos conversar sobre o que Elmer viu perto de sua casa, Sears.

—  Não na presença de Hardesty.

—  Concordo plenamente. Mas podemos falar agora.

—  Agora, não. Por favor.

—  Meus pés ainda estão frios — murmurou Ricky, ga­nhando com isso um dos raros sorrisos de Sears.

Ouviram a porta na outra extremidade do corredor se abrir. Um instante depois, Hardesty entrou na sala, com um copo de cerveja numa das mãos, a outra segurando uma garra­fa de LaBott pela metade e o chapéu. A pele dele tornara-se ligeiramente avermelhada, como se curtida pelo vento incle­mente das planícies.

—  Cerveja é a melhor coisa para uma garganta seca — comentou ele. Por baixo da neblina de cerveja que flutuou com suas palavras dava para sentir o cheiro forte e penetrante do uísque. — Consegue realmente refrigerar a serpentina.

Ricky calculou que Hardesty conseguira tomar uma dose de uísque e meia garrafa de cerveja nos poucos momentos em que estivera sozinho no bar. Depois de uma pausa, o xerife perguntou:

— Já estiveram aqui antes?

—  Não — respondeu Sears.

—  É um bom lugar. E aqui nesta sala pode-se ficar intei­ramente à vontade. Humphrey providencia para que ninguém venha incomodar, quando se precisa ter uma conversa em par­ticular. E como a casa fica mais ou menos fora de mão, ninguém provavelmente verá o xerife e os dois mais eminentes advoga­dos da cidade numa taverna.

—  À exceção de Ornar Norris.

—  Tem razão. Mas, provavelmente, ele não vai lembrar-se de coisa alguma.

Hardesty passou uma perna por cima da cadeira, como se fosse um imenso cachorro no qual pretendesse montar, ao mesmo tempo em que jogava o chapéu em cima da mesa, onde foi bater no de Sears. Depois, a garrafa de LaBott foi parar em cima da mesa. Sears aproximou seu chapéu da própria barriga, enquanto o xerife tomava um gole longo de cerveja.

—  Se me permite repetir uma pergunta que meu sócio acabou de formular, o que estamos fazendo aqui?

—  Tenho algo para lhes contar. — Os olhos de pistoleiro possuíam agora uma fulgurante sinceridade de embriaguez. — E irão compreender por que tínhamos de conversar longe dos ouvidos de Elmer.  Nunca vamos descobrir  quem ou o  que matou aquelas ovelhas. — Ele tomou outro gole de cerveja e sufocou um arroto com as costas da mão.

—  Não?

Pelo menos a lamentável exibição de Hardesty estava servindo para afastar os pensamentos de Sears de seus próprios problemas; estava agora simulando surpresa e interesse.

—  Não. Não há a menor possibilidade. Não é a primeira vez que acontece algo assim.

—  Não é? — murmurou Ricky. Estava aturdido, pro­curando imaginar quantos animais domésticos já teriam sido mortos daquela maneira na área de Milburn, sem que a coisa chegasse a seu conhecimento.

—  Claro que não! Não exatamente aqui, mas em outras partes do país.

—  Ah...   — murmurou  Ricky, voltando a recostar-se na cadeira cambaia.

—  Devem estar lembrados que há alguns anos compareci a uma convenção nacional de polícia, em Kansas City. Fui de avião, fiquei lá uma semana. Foi uma viagem realmente ex­traordinária.

Ricky recordava-se perfeitamente, pois o xerife, ao voltar, falara para o Lion’s Club, Kiwanis, Rotary, Elks, para a Asso­ciação Nacional do Rifle, a Maçonaria e a Sociedade John Birch, as organizações que haviam financiado a viagem. Ricky per­tencia a um terço delas, por obrigação. O tema dele fora a necessidade de “uma força policial moderna e bem equipada nas comunidades americanas menores”.

Segurando a garrafa de cerveja com uma das mãos, como se fosse um cachorro-quente, Hardesty continuou:

—  Uma noite, no motel, conversei com uma porção de xerifes de cidades pequenas. Eram do Kansas, Missouri e Min­nesota. E puseram-se a falar sobre esse tipo de coisa, crimes estranhos, jamais resolvidos. Pelo menos dois ou três xerifes haviam  deparado com  o  mesmo  problema  que  encontramos hoje. Uma porção de animais mortos num campo. E os bichos haviam morrido da noite para o dia. Não se podia perceber qualquer causa aparente, até se examinar os bichos e desco­brir... Sabem o quê. Os talhos eram impecáveis, como se fossem feitos por um cirurgião. E não havia sangue. Um dos caras contou que houve uma verdadeira onda de mistérios assim no vale do rio Ohio, ao final dos anos 60. Fez-me recor­dar tudo isso quando observou que não havia sangue, Sr. Hawthorne. Era de se esperar que aquelas ovelhas desatassem a balir como se estivessem doidas. E a mesma coisa aconteceu em Kansas City há um ano, pouco antes da conferência, por volta do Natal.

— Tudo isso é bobagem — disse Sears. — E não quero mais ouvir essas tolices.

—  Desculpe, Sr. James, mas não se trata de bobagem. Aconteceu realmente. Pode verificar no Kansas City Times. Em dezembro de 1973. Uma porção de gado morto, sem pega­das, sem sangue...  e os bichos estavam também sobre neve recente, como hoje. — Olhou para Ricky, piscou e esvaziou a cerveja.

—  Ninguém foi preso? — indagou Ricky.

— Nunca. Em todos os lugares em que aconteceram coi­sas assim, jamais  conseguiram descobrir algum possível  sus­peito. Era como se alguma coisa ruim houvesse chegado à cidade, fizesse sua demonstração e depois tivesse ido embora. Minha impressão é de que tudo isso constitui a idéia-chave de alguma brincadeira.

—  E que coisa? — indagou Sears, cada vez mais irritado. — Vampiros? Demônios? Tudo isso é absurdo!

—  Não era a isso que me estava referindo, Sr. James. Sei muito bem que não existem vampiros, assim como sei que o tal monstro naquele lago da Escócia não está lá. — Hardesty recostou-se na cadeira e cruzou as mãos atrás da cabeça. — Mas ninguém jamais descobriu qualquer coisa e nós também não vamos descobrir. Não há nem mesmo sentido em se inves­tigar. Estou pensando em simplesmente manter Elmer feliz, dizendo-lhe que estou trabalhando arduamente no caso.

— E isso é tudo o que tenciona fazer? — perguntou Ricky Hawthorne, incrédulo.

—  Posso mandar um homem dar uma volta pelas fazendas das proximidades e perguntar se alguém viu algo esquisito ontem à noite. Mas isso é tudo o que posso fazer.

—  E nos chamou até aqui só para dizer isso? — indagou Sears.

—  Exatamente.

—  Vamos embora, Ricky. — Sears empurrou a cadeira para trás e estendeu a mão para o chapéu.

— E eu realmente pensei que os dois mais eminentes advogados da cidade pudessem dizer-me alguma coisa.

—  E posso dizer, mas duvido que vá escutar.

—  Não precisa ser tão altivo, Sr. James. Afinal, estamos do mesmo lado, não é mesmo?

Por cima do suspiro inevitável de irritação que saiu dos pulmões de Sears, Ricky disse:

—  O que esperava que lhe pudéssemos dizer?

—  Por que acham que sabem alguma coisa a respeito do que Elmer viu ontem à noite. — O xerife passou o dedo por um sulco na testa, sorrindo. — Os dois ficaram paralisados quando Elmer começou a falar. O que significa que sabem de alguma coisa, ouviram ou viram algo que não quiseram contar a Elmer Scales. Mas espero que apóiem devidamente seu xe­rife e me contem tudo.

Sears afastou-se da cadeira.

—  Vi quatro ovelhas mortas. Não sei de mais nada. E ponto final, Walter. — Pegou o chapéu de cima da mesa e acres­centou: — Vamos embora, Ricky, para fazermos algo útil.

 

—  Ele não está certo?

Estavam virando a esquina da Wheat Row. À direita, podiam avistar os contornos imensos e cinzentos da Catedral de São Miguel; os vultos grotescos e piedosos por cima da porta e nos lados das janelas usavam agora gorros e camisas de neve, como se tivessem sido congelados no lugar.

—  A respeito do quê? — Sears acenou na direção do escritório. — Milagre dos milagres! Uma vaga bem na frente da porta!

—  A respeito do que Elmer viu.

—  Se é óbvio para Walt Hardesty, então é realmente óbvio.

—  Viu alguma coisa?

—  Vi algo que não estava lá. Tive uma alucinação. Posso apenas presumir que estava excessivamente cansado e emocionalmente abalado pela história que contei.

Cuidadosamente, Ricky entrou de ré na vaga diante do prédio em que tinham o escritório. Sears tossiu, pôs a mão na maçaneta da porta, mas não se mexeu. Para Ricky, ele dava a impressão de que já se tinha arrependido do que acabara de dizer.

—  Pelo que estou imaginando, Sears, viu mais ou menos a mesma coisa que o Nosso Virgílio.

—  Isso mesmo. — Fez uma pausa. — Ou melhor, eu a senti. Mas sei o que era. — Sears tossiu novamente, Ricky ficou tenso com a espera. — O que vi foi Fenny Bate.

—  O menino de sua história? — Ricky estava atônito.

—  O menino a quem tentei ensinar. O menino que ima­gino ter matado... que ajudei a matar.

Sears afastou a mão da porta e afundou no assento. Ago­ra, finalmente, ele parecia estar querendo falar. Ricky procurou estimulá-lo:

—  Eu não tinha certeza se... — Parou bruscamente no meio da frase, sabendo que estava prestes a quebrar uma das regras da Sociedade Chowder.

—  Se a história era verdadeira? Era, Ricky, era absolu­tamente verdadeira. Houve realmente um Fenny Bate e ele morreu.

Ricky recordou-se do vulto de Sears na janela iluminada.

—  Estava olhando pela janela da biblioteca quando o viu?

Sears meneou a cabeça.

—  Estava subindo a escada. Já era muito tarde, prova­velmente por volta das duas horas da madrugada. Eu tinha adormecido numa poltrona, depois de lavar os pratos. Não me sentia muito bem...  e me teria sentido ainda pior, se sou­besse que Elmer Scales iria acordar-me às sete horas da manhã. Apaguei  as  luzes da biblioteca,  fechei  a porta  e  comecei  a subir. E foi nesse momento que o vi, sentado na escada. Ele parecia estar dormindo. Vestia os mesmos andrajos de que eu me recordava, e os pés estavam descalços.

—  E o que você fez?

—  Fiquei  assustado demais  para fazer qualquer coisa. Não sou mais um jovem forte e vigoroso de vinte anos, Ricky. Fiquei simplesmente parado ali...  não sei por quanto tempo. Cheguei a pensar que ia ter um colapso. Apoiei-me no corri­mão. E foi nesse momento que ele acordou. — Sears estava com as mãos cruzadas à sua frente e Ricky podia ver que as apertava com toda a força. — Ele não tinha olhos, apenas buracos no lugar deles. O resto do rosto estava sorrindo. — As mãos de Sears subiram para o rosto. — Ele queria brincar, Ricky!

—  Brincar?

—  Foi o que me passou pela cabeça. Meu choque era tamanho que não podia pensar direito. Quando...  a alucina­ção... se levantou, desci correndo a escada e tranquei-me na biblioteca. Deitei no sofá. Tinha a impressão de que ele já havia ido embora, mas não tive coragem de voltar à escada. Acabei dormindo e tive o pesadelo sobre o qual falamos. Pela manhã, é claro, compreendi o que havia acontecido. Andava “vendo coisas”, na linguagem vulgar. E não podia imaginar, como continuo a não conceber agora, que tais coisas estejam exatamente no distrito de Walt Hardesty. Ou do Nosso Vir­gílio, diga-se de passagem.

—  Santo Deus, Sears!

—  É melhor esquecer, Ricky. É melhor esquecer tudo o que lhe falei, pelo menos até a chegada do jovem Wanderley.

“Santo Deus ela se mexeu ela não pode ela está morta”, disse a voz na mente de Ricky outra vez. Desviou os olhos do painel, onde os fixara enquanto Sears lhe pedia para fazer o impossível. Fitou o rosto pálido do sócio.

—  Já chega — murmurou Sears. — O que quer que seja, já chega!

“...não ponha os pés dela primeiro...”

—  Sears!

—  Não posso mais, Ricky.

Sears saiu do carro. Ricky, saindo também, pelo outro la­do, olhou por cima do carro para Sears, um homem imponente, vestido de preto. Por um momento, viu no rosto do velho amigo as feições pálidas que conhecera no pesadelo. Por trás dele, a seu redor, toda a cidade flutuava no ar invernal, como se também tivesse morrido, secretamente.

—  Mas uma coisa posso lhe dizer, Ricky. Gostaria que Edward ainda estivesse vivo. É o que frequentemente desejo.

—  Eu também — murmurou Ricky.

Mas Sears já se virara e estava começando a subir os degraus para a porta da frente. Um vento cada vez mais forte atingiu o rosto e as mãos de Ricky. Ele seguiu Sears rapida­mente, espirrando outra vez.

 

(John. Jaffrey)

 

John Jaffrey despertou de um sono conturbado, no mo­mento mesmo em que Ricky Hawthorne e Sears James estavam começando a atravessar um campo nevado na direção do que parecia ser diversas pilhas de roupa suja. Gemendo, Jaffrey correu os olhos pelo quarto. Tudo parecia estar sutilmente alte­rado, sutilmente errado. Até mesmo o ombro nu de Milly Sheehan, que dormia a seu lado, estava de certa forma errado: o ombro arredondado de Milly parecia irreal, como fumaça rosada flutuando no ar. E o mesmo acontecia com o quarto, como um todo. O papel de parede desbotado (listras azuis e listras rosa ainda mais azuis), a mesa com as pilhas de moedas, o livro (The making of a surgeon) e o abajur, as portas e as maçanetas do armário branco no outro lado, o terno cinza lis­trado que vestira no dia anterior e o smoking que usara à noite jogados descuidadamente sobre uma cadeira: tudo pare­cia destituído de diversos tons de cores, quase transparentes como o interior de uma nuvem. Ele não podia ficar naquele quarto, ao mesmo tempo familiar e irreal.

“Santo Deus ela se mexeu”, as suas próprias palavras ecoaram pelo quarto e se desvaneceram, como se tivesse aca­bado de pronunciá-las. Perseguido pelas palavras, levantou-se rapidamente.

“Santo Deus ela se mexeu...” e desta vez ele as ouviu serem pronunciadas. A voz era uniforme, sem nuanças ou vi­brações. E não era a sua. Tinha que sair daquela casa. De seus pesadelos, podia recordar apenas a última e assustadora ima­gem: antes disso, houvera a cena habitual de estar deitado num quarto vazio, paralisado, diferente de todos os quartos que já vira em sua vida, quando abruptamente chegava a besta amea­çadora, que se decompunha em Sears e Lewis mortos. Pre­sumira que todos estavam tendo o mesmo pesadelo. Mas a imagem que o impeliu a atravessar o quarto rapidamente foi outra: o rosto manchado de sangue e distorcido por escoriações de uma mulher ainda jovem, tão morta quanto Sears e Lewis no pesadelo familiar, fitando-o com olhos reluzentes e a boca sorridente. Era mais real do que qualquer coisa a seu redor, mais real do que ele próprio (“Santo Deus ela se mexeu ela não pode ela está morta”).

Mas ela havia realmente se mexido. Estava sentada e sorria.

Seu fim estava finalmente chegando, como acontecera com Edward. E ele o sabia, sem qualquer sombra de dúvida, com parte de sua mente. Sentia-se grato por isso. Um pouco sur­preso ao constatar que suas mãos não se derretiam em contato com as maçanetas de latão da cômoda, Jaffrey puxou uma ga­veta e pegou meias e cueca. Uma luz rosada espectral se espa­lhava pelo quarto. Ele se vestiu apressadamente, pegando peças ao acaso, às cegas, saiu do quarto e desceu a escada, até o andar térreo. Ali, obedecendo a um impulso que lhe fora incutido por dez anos de hábito, foi até uma pequena sala nos fundos, abriu um armário e tirou dois frascos e duas seringas descartáveis.  Sentou-se numa cadeira,  levantou  a manga esquerda, tirou as seringas das embalagens, pôs uma delas em cima da mesa de tampo de metal.

A garota no assento manchado de sangue do carro sorriu-lhe pela janela. E disse: “Depressa, John”. Ele empurrou a agulha através da proteção de borracha do frasco de insulina, encheu a seringa, puxou-a, espetou-a no próprio braço. Quando a seringa ficou vazia, puxou-a e jogou-a na cesta de papel, embaixo da mesa. Enfiou a outra seringa no segundo frasco, que continha um composto de morfina, injetando-o depois na mesma veia.

“Depressa, John.”

Nenhum dos seus amigos sabia que ele era diabético des­de sessenta e poucos anos. Também não sabiam do seu vício em morfina, que adquirira na mesma época, quando começara a aplicar a droga em si mesmo. Haviam apenas percebido os efei­tos do ritual matutino do médico a corroê-lo gradativamente.

Com as duas seringas no fundo da cesta de papel, o Dr. Jaffrey passou para o vestíbulo de entrada e sala de espera. Havia cadeiras vazias encostadas nas paredes. Numa delas esta­va sentada uma jovem com as roupas rasgadas, manchas ver­melhas no rosto, uma vermelhidão saindo da boca ao dizer “Depressa, John”.

Ele estendeu a mão para o armário, a fim de pegar o so­bretudo. Ficou surpreso ao constatar que a mão, na extremi­dade do braço estendido, estava inteira, funcionava. Teve a sensação de que alguém atrás dele o ajudava a enfiar os braços pelas mangas do sobretudo.

Às cegas, pegou um chapéu na prateleira por cima dos cabides. E cambaleou ao sair pela porta da frente.

 

O rosto estava agora lhe sorrindo de uma janela no andar superior da antiga casa de Eva Galli. “Vá em frente, agora.” Movendo-se de maneira estranha, como se estivesse embriaga­do, Jaffrey foi seguindo pela calçada, na direção do centro da cidade, os pés metidos em chinelas, não sentindo qualquer frio. Até chegar à esquina, pôde sentir aquela casa no outro lado da rua como uma presença marcante às suas costas. E na esquina, com o sobretudo aberto esvoaçando sobre a calça do terno cinza e o paletó do smoking, viu subitamente em sua mente que a casa estava pegando fogo, envolta por chamas transparentes, que chegavam mesmo a lhe esquentar as costas. Ao virar-se, no entanto, a fim de olhar, descobriu que a casa não estava pegando fogo, não havia chamas transparentes, nada acontecera.

 

Assim, no momento em que Ricky Hawthorne e Sears James estavam sentados com Walt Hardesty na cozinha de uma fazenda, tomando café, o Dr. Jaffrey, um vulto magro, com um chapéu de pescaria, sobretudo desabotoado, calça de um terno, paletó de outro, chinelas, passava rapidamente pela fren­te do Hotel Archer. Não tinha a menor idéia de onde estava, assim como não percebia que o vento frio entrava por dentro do sobretudo e o enfunava nas costas. Eleanor Hardie, pas­sando o aspirador de pó no tapete do saguão do hotel, viu-o caminhando, uma das mãos no chapéu de pescaria, e pensou: “pobre Dr. Jaffrey, deve ser duro ter que sair para ver um pa­ciente com um tempo assim”. O fundo da janela não lhe per­mitia ver as chinelas que o médico estava usando. Ela teria ficado confusa, se o tivesse visto hesitar na esquina e depois virar para o lado esquerdo da praça... voltando para a mesma direção da qual viera.

Quando Jaffrey passou diante das janelas grandes do Res­taurante Village Pump, William Webb, o jovem garçom que Stella Hawthorne intimidara, estava pondo nas mesas os guar­danapos e talheres, na direção dos fundos do salão, quando aproveitaria para fazer uma pausa e tomar uma xícara de café. Como estava mais perto do Dr. Jaffrey do que Eleanor Hardie estivera, pôde perceber em detalhes o rosto pálido e confuso do médico, por baixo do chapéu de pescaria, o sobretudo desabo­toado revelando o pescoço nu, o paletó de smoking por cima do pijama. Um pensamento lhe surgiu à mente: “O velho idiota está com amnésia”. Nas raras ocasiões em que Bill Webb vira o Dr. Jaffrey no restaurante, o médico lera um livro do prin­cípio ao fim da refeição e deixara uma gorjeta mínima. Como Jaffrey acelerasse os passos, embora a expressão em seu rosto sugerisse que não tinha a menor idéia do lugar para onde estava indo, Webb largou um punhado de talheres em cima de uma mesa e saiu correndo do restaurante.

O Dr. Jaffrey afastava-se rapidamente pela calçada. Webb correu atrás dele e foi alcançá-lo no sinal de tráfego a um quarteirão de distância. O médico, correndo, parecia um pás­saro desajeitado. Webb tocou na manga do sobretudo preto.

— Posso ajudá-lo, Dr. Jaffrey?

“Dr. Jaffrey.”

Na frente de Webb, prestes a atravessar a rua correndo, sem se dar o trabalho de olhar para o tráfego — o qual, de qualquer forma, era inexistente —, Jaffrey virou-se brusca­mente, ao ouvir a voz do garçom. Bill Webb teve então uma das experiências mais desconcertantes e perturbadoras de sua vida. Um homem a quem conhecia apenas de vista, um homem que nunca o fitara sequer com uma curiosidade polida, olha­va-o agora com um terror intenso estampado nas feições. Webb, que baixou a mão bruscamente, não tinha a menor idéia de que o médico não estava vendo seu rosto comum, lembrando ligei­ramente um sapo, mas sim o rosto de uma jovem morta, com um sorriso avermelhado.

—  Estou indo — murmurou Jaffrey, o horror ainda es­tampado no rosto. — Já estou indo...

—  Claro, claro — balbuciou Webb.

O médico virou-se correndo, chegando ao outro lado da rua sem qualquer contratempo. E continuou a correr como um pássaro desajeitado pelo lado esquerdo da Maine Street, os co­tovelos comprimidos contra o corpo, o sobretudo esvoaçando. Webb estava suficientemente abalado com o olhar que o mé­dico lhe lançara para ficar parado na esquina por um longo tempo, a boca entreaberta, olhando na direção de Jaffrey, até se lembrar que estava sem casaco e a um quarteirão do res­taurante.

 

Uma imagem perfeita formara-se na mente do Dr. Jaffrey, muito mais nítida do que os prédios pelos quais passava cor­rendo. Era a imagem da ponte de aço de duas pistas sobre o pequeno rio no qual Sears James há muito tempo jogara uma blusa envolta numa pedra grande. O chapéu de pescaria foi arrancado de sua cabeça por uma rajada de vento e, por um momento, também se tornou bastante nítido, voando pelo ar cinzento.

— Já estou indo — disse Jaffrey, novamente.

Embora em qualquer dia normal John Jaffrey pudesse ter ido diretamente para a ponte, sem sequer pensar nas ruas pelas quais tinha de seguir, naquela manhã vagueou por Mil­burn num pânico crescente, incapaz de encontrá-la. Podia ima­ginar a ponte perfeitamente, até mesmo as cabeças redondas dos rebites. Mas quando tentava imaginar sua localização, via apenas sombras indistintas. Prédios? Ele virou na Market Street, quase esperando ver a ponte se estender de um lado a outro. Vendo apenas a ponte, ele esquecera o rio.

Árvores? Um parque? A imagem que as palavras evocavam era tão forte que ele ficou surpreso, ao deixar a Market Street, em ver a seu redor apenas ruas vazias, a neve empilhada junto ao meio-fio. “Continue, doutor.” Jaffrey cambaleou para a frente, recuperou o equilíbrio amparando-se num poste de sinalização  e seguiu em frente.

Árvores? Algumas árvores, dispersas por uma paisagem? Não. Nem aqueles prédios a flutuar.

Enquanto o médico vagueava meio às cegas pelas ruas que deveria conhecer muito bem, deixando a praça e seguindo pela Washington Street, para o sul, entrando depois na Milgrim Lane, passando por casas de madeira de três cômodos, entre oficinas de lavagem de carros e drugstores, entrando no Hollow, onde havia miséria de verdade e onde se podia embrenhar pelo desconhecido tanto quanto era possível sem sair de Milburn (ali, ele poderia enfrentar algumas dificuldades, se não estivesse tão frio e se o conceito de dificuldade não tivesse perdido totalmente qualquer sentido que se lhe pudesse aplicar), diver­sas pessoas o viram passar. Os moradores do Hollow pensaram que se tratava de mais um doido, perturbado e estranhamente vestido. Quando Jaffrey, por acaso, virou na direção correta e começou a percorrer ruas tranqüilas, onde se avistavam árvores sem folhas ao final de gramados compridos, as pessoas que o viram pensaram que seu carro estava nas proximidades, já que estava sem chapéu e agora caminhava apressadamente. Um car­teiro segurou-lhe o braço e indagou:

—  Está precisando de ajuda, cara?

Mas ele também ficou paralisado pela mesma expressão de terror que detivera Bill Webb. Finalmente, o Dr. Jaffrey acabou voltando ao centro comercial.

Depois que circulou duas vezes o Benjamin Harrison Oval, passando pela pista de acesso à ponte, uma voz paciente em sua mente disse: “Dê mais uma volta e depois vire à direita, doutor”.

—  Obrigado — murmurou Jaffrey, percebendo o tom di­vertido e paciente na voz, que antes julgara inumanamente des­tituída de inflexões.

Assim, mais uma vez, exausto e semicongelado, John Jaffrey forçou-se a passar pelas oficinas de automóveis do Benjamin Harrison Oval, levantando os joelhos como um extenua­do burro de carga, até entrar finalmente na pista de acesso à ponte.

—  Mas é claro! — balbuciou ele, ao avistar a arcada cin­zenta da ponte, sobre o rio preguiçoso.

Àquela altura, já não podia mais correr, quase não con­seguia andar. Perdera uma das chinelas e o pé descalço não tinha mais qualquer sensibilidade. Sentia uma pontada ardente no flanco esquerdo, o coração batia descompassadamente e os pulmões lhe doíam muito. A ponte era uma prece atendida. Quase que se arrastou em sua direção. Aquele era o lugar a que a ponte pertencia, àquela área descampada, onde os velhos prédios de tijolos davam lugar a brejos cheios de juncos, onde o vento parecia uma mão a ampará-lo pelas costas.

“Agora, doutor.”

Jaffrey assentiu e aproximou-se do lugar em que tinha de estar. Quatro grandes festões de metal, cruzados por vigas, for­mavam linhas onduladas nos dois lados da ponte. No meio da ponte, entre a segunda e terceira curvas, havia urna viga de metal em posição vertical.

Jaffrey não sentia a mudança do concreto da pista de acesso para o aço da ponte; mas pôde sentir a ponte se me­xendo por baixo dele, levantando um pouco a cada rajada de vento mais forte. Foi para a grade na beira da ponte ao chegar à superestrutura. Segurou um dos degraus na viga central ver­tical, pôs os pés congelados no degrau inferior e tentou subir.

Mas não conseguiu.

Por um momento ficou parado assim, as mãos num de­grau, os pés em outro, como um velho pendurado numa corda, respirando tão forte que parecia estar soluçando. Conseguiu fi­nalmente erguer um pé escorregadio e colocá-lo no degrau ime­diatamente acima. Depois, recorrendo ao que sentia serem suas últimas reservas de energia, levantou o corpo. Um pouco da carne do pé descalço ficou grudada no degrau inferior. Ofe­gante, ficou parado no segundo degrau, percebendo que ainda tinha de subir mais dois degraus, antes de ficar alto o bas­tante para trepar na grade.

Uma de cada vez, transferiu as mãos para o degrau acima. Depois, moveu o pé escorregadio; e logo moveu o outro, o que sentiu ser um esforço heróico.

A dor intensa pareceu dilacerar-lhe toda a perna e ele se segurou com toda a força, o pé descalço balançando no ar frio. Por um momento, com a sensação de que o pé estava pe­gando fogo, receou que o choque pudesse fazê-lo cair de volta à ponte. E se voltasse lá para baixo, não conseguiria subir outra vez.

Cautelosamente, encostou os dedos do pé ainda ardendo no degrau. Era apoio suficiente. De novo, transferiu os braços entorpecidos para um degrau acima. O pé escorregadio também subiu um degrau... parecendo impelido por vontade própria. Tentou alçar-se, mas os braços simplesmente tremeram. A sen­sação era de que os músculos dos ombros estavam se dilacerando. Finalmente, conseguiu erguer o corpo, tendo a impres­são de ser ajudado por uma mão que o puxava para cima pelas costas. Os dedos do pé se firmaram no degrau. Estava quase chegando.

Pela primeira vez, percebeu o pé descalçado, sangrando sobre o metal. A dor aumentara consideravelmente; agora, toda a perna esquerda parecia estar em chamas. Pôs o pé em cima da grade, segurando-se firmemente com os braços exaustos, enquanto deslocava o pé direito para o lado do outro.

A água brilhava debilmente lá embaixo. O vento lhe fus­tigava os cabelos e o sobretudo.

Parado diante dele, numa plataforma, usando um casaco de tweed e gravata-borboleta, estava Ricky Hawthorne. As mãos de Ricky estavam cruzadas, num gesto característico, diante da fivela do cinto.

—  Bom trabalho, John — disse ele, em sua voz seca e bondosa. O melhor de todos eles, o mais terno, o pequeno e corneado Ricky Hawthorne.

—  Você atura demais a insolência de Sears — falou John Jaffrey,  a  voz  muito  fraca,  um  mero   sussurro.  —  Sempre aturou.

—  Sei disso. — Ricky sorriu. — Sou um subalterno na­tural. Sears sempre foi um general natural.

“Está errado”, tentou Jaffrey dizer. “Ele não é... ele...” O pensamento morreu abruptamente.

—  Mas isso não  tem  qualquer importância — disse  a voz seca. — Basta dar um passo para fora da ponte, John.

O Dr. Jaffrey estava olhando para as águas cinzentas.

—  Não posso...  Estava pensando em algo diferente... Ia...

A confusão dominou-o por completo. Olhou para cima e ficou aturdido. Edward Wanderley, que lhe era mais chegado que qualquer dos outros, estava parado no vento, ao invés de Ricky. E, como na noite da festa, usava sapatos pretos, um terno cinza de flanela, uma camisa florida. As hastes dos óculos de aros pretos estavam presas por um cordão de prata. Bonito, com os teatrais cabelos grisalhos, as roupas dispendio­sas, Edward sorriu-lhe com compaixão, preocupação, afeição.

—  Já faz algum tempo — murmurou ele.

O Dr. Jaffrey começou a chorar.

—  Já está na hora de parar com as confusões — disse-lhe Edward. — Tudo o que precisa é dar um passo à frente. É muito simples, John.

O Dr. Jaffrey assentiu.

— Dê esse passo, John. Está cansado demais para fazer qualquer outra coisa.

E o Dr. Jaffrey deu um passo para fora da ponte.

 

Lá embaixo, ao nível do rio, mas protegido do vento por uma espessa placa de metal, Ornar Norris viu-o cair na água. O corpo do médico afundou, voltou à tona por um momento e depois virou de lado, o rosto para baixo, antes de começar a ser arrastado pela correnteza.

—  Mas que merda! — murmurou Norris.

Viera para o único lugar em que pensara que poderia aca­bar em paz com uma garrafa de bourbon, sem ser interrompido por advogados, o xerife, sua mulher ou alguém mais a lhe dizer que voltasse para o removedor de neve e começasse a limpar as ruas. Despejou mais um pouco de bourbon na boca e fechou os olhos. Ao tornar a abri-los, o corpo do médico ainda estava ali, um pouco mais afundado na água, porque o sobretudo pesado começara a empurrá-lo para baixo.

—  Mas que merda! — repetiu Norris.

Tampou a garrafa, levantou-se e saiu para o vento frio, a fim de ver se podia encontrar alguém que soubesse o que fazer numa situação daquelas.

A festa de Jaffrey

 

“Give place, you ladies, and begone!

Boast not yourselves at all!

For here at hand approacheth one

Whose face will stay you all.”

 

A praise of his lady

Tottel’s Miscellany, 1557

 

Os acontecimentos descritos a seguir ocorreram um ano e um dia antes, ao anoitecer do último dia da era áurea. Nenhum deles sabia que era a sua era áurea nem que estava chegando ao fim: na verdade, encaravam suas vidas, à maneira usual de pessoas que levavam existências tranqüilas, com amigos sufi­cientes e a certeza de comida na mesa, como um processo de melhoria gradativa e até mesmo imperceptível. Tendo sobre­vivido às crises da juventude e meia-idade, pensavam que pos­suíam sabedoria bastante para enfrentar as crises iminentes da idade. Haviam conhecido guerras, adultérios, concessões e mu­danças, pensando, assim, que já tinham conhecido quase tudo o que havia para conhecer... e não tinham maiores pretensões na vida.

Contudo, havia coisas que não conheciam e que em breve iriam conhecer.

É sempre verdade, em termos pessoais, se não mesmo his­tóricos, que uma era áurea se define pelas características do cotidiano, pela sucessão oferecida de pequenas satisfações no dia-a-dia. Se ninguém na Sociedade Chowder, à exceção de Ricky Hawthorne, era realmente capaz de apreciar isso, com o tempo todos iriam percebê-lo.

 

—  Acho que não há mesmo outro jeito senão ir.

—  Por que fala assim, Stella? Sempre gostou de festas.

—  Mas  tenho  um  pressentimento  estranho  em  relação a esta.

—  Não quer conhecer a atriz?

—  Meu interesse em conhecer pequenas beldades de dezenove anos sempre foi dos mais limitados.

—  Edward   parece   ter   ficado   um   tanto   entusiasmado com ela.

—  Ora, Edward...   — Stella,  sentada diante do espe­lho, escovando os cabelos, sorriu para o reflexo de Ricky. — Acho que vale a pena ir só para ver a reação de Lewis Be­nedikt à descoberta de Edward. — No instante seguinte, o sorriso transformou-se, quando os músculos ao lado da boca se mexeram, ficando mais acentuados. — Pelo menos já é alguma coisa   ser   convidada   para   uma   das   noitadas   da   Sociedade Chowder.

—  Não é uma das nossas noites, mas uma festa — res­saltou Ricky, em vão.

— Sempre achei que deveriam permitir o acesso das mu­lheres a essas suas famosas noitadas.

—  Sei disso, Stella.

—  E é por isso que estou querendo ir.

—  Mas não é uma reunião da Sociedade Chowder. É ape­nas uma festa.

— Então quem foi que John convidou, além de você e da pequena atriz de Edward?

—  Creio que todo mundo — respondeu Ricky, falando com toda a sinceridade. — Qual foi o pressentimento que teve?

Stella inclinou a cabeça para o lado, tocou no batom com a ponta do dedo mindinho, contemplou os próprios olhos e murmurou:

—  Um arrepio de morte.

 

Sentada ao lado de Ricky, que guiava o carro pela curta distância até a Montgomery Street, Stella, que se mantivera estranhamente silenciosa desde que haviam saído de casa, disse abruptamente:

—  Bem,  se todo  mundo  vai estar presente,  talvez  se possam encontrar algumas caras novas.

Exatamente como ela tencionava, Ricky sentiu uma pon­tada zombeteira de ciúme.

— Não acha extraordinário? — A voz de Stella era jo­vial,  musical,  confidencial,  como  se  não  desejasse expressar nada que não fosse superficial.

—  O quê?

—  O fato de um de vocês estar dando uma festa. Entre as pessoas que conhecemos, as únicas que dão festas somos nós, cerca de duas vezes por ano. Não posso deixar de ficar espan­tada... John Jaffrey! E não consigo entender como Milly Sheehan permitiu uma coisa dessas!

—  Deve ser a atração irresistível do, mundo do teatro — comentou Ricky.

—  Milly não acha coisa alguma irresistível, a não ser o próprio John Jaffrey.

Stella riu da imagem do médico que podia perceber em cada olhar de sua governanta. Stella, que em determinadas questões práticas era muito mais sensata do que os homens que a cercavam, algumas vezes se divertia com a noção de que o Dr. Jaffrey era viciado em alguma droga; e estava convencida de que Milly e o patrão não ocupavam camas separadas.

Pensando em seu próprio comentário, Ricky não prestou atenção à observação da esposa. “A atração irresistível do mundo do teatro”, tão remota e improvável quanto qualquer coisa no gênero parecia em Milburn, capturara a imaginação de Jaffrey, cujo maior entusiasmo até então fora por uma boa pes­caria de truta, mas que agora estava cada vez mais obcecado, ao longo das três últimas semanas, pela jovem hóspede de Edward Wanderley. O próprio Edward se mostrara bastante reservado em relação à jovem. Era ainda muito moça e no mo­mento alcançara a situação de “estrela”, o que quer que isso pudesse significar realmente. Eram pessoas assim que propor­cionavam o sustento de Edward; portanto, nada havia de excep­cional que ele persuadisse a jovem a ser o tema de sua última autobiografia como ghost writer. O procedimento típico era o autobiografado falar num gravador por tantas semanas quantas houvesse assunto. Depois, com extrema habilidade, Edward transformava essas recordações num livro. O resto da pesquisa era efetuado através de correspondência e telefone, com qual­quer pessoa que soubesse algo ou tivesse conhecido no passado o autobiografado. A pesquisa genealógica também fazia parte do método de Edward. Ele se orgulhava de suas árvores genea­lógicas. Sempre que possível, as gravações eram feitas em sua casa. As paredes de seu gabinete estavam repletas de gravações, muitas das quais continham indiscrições suculentas e impublicáveis. Ricky tinha apenas um interesse especulativo nas personalidades e vidas sexuais de atores, imaginando que o mesmo acontecia com seus amigos. Mas quando Everybody saw the sun shine sofreu uma mudança de um mês no elenco, pe­ríodo que Ann-Veronica Moore passou em Milburn, John Jaffrey passou a ter um objetivo fixo: levar a jovem atriz à sua casa. E o mistério ainda maior fora o fato de suas insinuações e esquemas terem dado certo, com a jovem concordando em comparecer a uma festa em sua homenagem.

—  Santo Deus! — exclamou Stella, ao ver a quantidade de carros encostados no meio-fio, diante da casa de Jaffrey.

—  É a grande festa de John e ele quer ostentar o seu feito.

Estacionaram no final do quarteirão e voltaram pelo ar frio até a porta da frente. Vozes e música imediatamente os envolveram.

—  Essa não! — exclamou Ricky. — Ele está utilizando também a parte do consultório.

 

O que era verdade. Um jovem comprimido contra a porta pela multidão deixou-os entrar. Ricky reconheceu-o como o último ocupante da casa de Eva Galli. Ele aceitou os agrade­cimentos de Ricky com um sorriso diferente e depois sorriu para Stella.

— Sra. Hawthorne, não é mesmo? Já a vi na cidade, mas ainda não fomos apresentados. — Antes que Ricky tivesse tempo de se lembrar do nome do homem, ele estendeu a mão para Stella e acrescentou: — Sou Freddy Robinson. Moro no outro lado da rua.

—  Muito prazer, Sr. Robinson.

—  É uma festa e tanto.

— Também estou achando — respondeu Stella, um sor­riso incipiente inclinando os cantos da boca.

—  Os  casacos  ficam  no  consultório   aqui  embaixo,  os drinques estão sendo servidos lá em cima. Terei a maior satis­fação em providenciar-lhe um, e para o seu marido, enquanto tiram seus casacos.                         .

Stella contemplou o blazer dele, a calça axadrezada, a gravata-borboleta de veludo, a expressão ridiculamente ansiosa.

—  Não há necessidade, Sr. Robinson.

Ela e Ricky foram para o consultório, onde havia casacos pendurados por toda parte.

—  Deus do céu! — murmurou Stella. — Como aquele rapaz ganha a vida?

—  Acho que ele é corretor de seguros.

—  Eu deveria ter imaginado. Leve-me lá para cima, Ricky.

Segurando a mão fria de Stella, Ricky levou-a para fora da sala de consultas, atravessando a parte de baixo da festa, até a escada. Uma vitrola em cima de uma mesa estava to­cando música de discoteca; diversos jovens se sacudiam ao redor.

—  John sofreu uma de suas idéias — murmurou Ricky.

—  Se é que não foi insolação — disse Stella, atrás dele.

— Oi, Sr. Hawthorne!  — O cumprimento era de um rapaz alto, ainda adolescente, filho de um cliente.

—  Olá,   Peter.   Está  barulhento  demais  para  nós  aqui embaixo. Estou procurando a ala Glenn Miller.

Os olhos azuis de Peter Barnes fitaram-no inexpressiva-mente. Será que ele parecia tão estranho assim para os jovens?

—  Ei, sabe alguma coisa a respeito de Cornell?  Acho que é a universidade para onde vou. Posso conseguir a ma­trícula mais depressa. Oi, Sra. Hawthorne!

— É uma boa universidade e espero que consiga entrar — disse Ricky, enquanto Stella o cutucava vigorosamente pe­las costas.

—  Não estou nem preocupado.  Sei que vou conseguir. Saí-me muito bem nos testes. Papai está lá em cima. E quer saber de uma coisa?

—  Saber o quê? — indagou Ricky, ao mesmo tempo em que Stella o cutucava novamente.

— Todos nós fomos convidados porque somos da mesma idade de Ann-Veronica Moore, mas eles simplesmente a. leva­ram lá para cima, assim que chegou, em companhia do Sr. Wanderley. Nem mesmo chegamos a falar com ela. — Peter gesticulou na direção dos casais que estavam dançando ali embaixo. — Mas Jim Hardie conseguiu beijar a mão dela. Ele está sempre fazendo coisas assim. Assusta qualquer uma.

Ricky viu o filho de Eleanor Hardie dando uma série de passos de dança ritualista, com uma garota cujos cabelos pretos desciam até o meio das costas. Reconheceu-a. Era Penny Drae­ger, filha de um farmacêutico seu cliente. Ela se requebrou toda, girou, levantou um pé e depois encostou o traseiro na virilha de Jim Hardie.

— Ele me parece um rapaz bastante promissor — mur­murou Stella. — Pode fazer-me um favor, Peter?

—  Claro, claro... Que favor?

—  É só arrumar um espaço para que meu marido e eu possamos subir.

—  Claro, claro...  Mas querem saber de uma coisa? Só fomos convidados para conhecer Ann-Veronica Moore e depois deveríamos ir para casa. A Sra. Sheehan disse que nem mesmo poderíamos subir. Acho que eles pensaram que a garota gos­taria de dançar conosco ou algo assim, mas nem lhe deram uma oportunidade. E a Sra. Sheehan disse que vai nos expulsar por volta das dez horas. Menos ele, pelo que imagino. — Peter sacudiu a cabeça na direção de Freddy Robinson, que estava com um braço passado pelos ombros de uma risonha garota da escola secundária.

— O que é uma lamentável injustiça — disse Stella. — E agora seja um bom menino e abra uma picada pelo mato para podermos passar.

—  Claro, claro...

Peter conduziu-os através da sala apinhada até a escada, como se estivesse relutantemente comandando uma expedição de egressos do hospício local. Quando chegaram à escada e Stella já estava subindo, com a imponência habitual, Peter incli­nou-se para a frente e sussurrou ao ouvido de Ricky:

—  Pode fazer-me um favor, Sr. Hawthorne? — Ricky assentiu. — Diga alô a ela por mim. A garota é um estouro!

Ricky soltou uma risada alta, fazendo com que Stella vi­rasse a cabeça para fitá-lo, ironicamente.

—  Não foi nada, querida — murmurou ele, subindo ra­pidamente a escada para as regiões mais tranqüilas da casa.

 

John Jaffrey estava parado no vestíbulo, esfregando as mãos. Música suave, de piano, vinha da sala de estar.

— Stella! Ricky! Não é maravilhoso?

O médico gesticulou exuberantemente na direção das sa­las. Estavam tão apinhadas quanto lá embaixo, mas com ho­mens e mulheres de meia-idade, os pais dos adolescentes, os vizinhos e conhecidos de Jaffrey. Ricky avistou dois ou três prósperos fazendeiros que moravam fora da cidade, Rollo Drae­ger, o farmacêutico, Louis Price, o corretor de investimentos que já lhe dera algumas boas informações, Harlan Bautz, seu dentista, que parecia já estar meio embriagado, alguns homens que não conhecia, más provavelmente eram da universidade — lembrou que Milly Sheehan tinha um sobrinho que era pro­fessor da universidade —, Clark Mulligan, o proprietário do cinema da cidade, Walter Barnes e Edward Venuti, do banco local, ambos com camisa de gola rulê, Ned Rowles, que edi­tava o jornal de Milburn. Eleanor Hardie, segurando com as duas mãos um copo alto, na altura dos seios, estava inclinada na direção de Lewis Benedikt. Sears estava encostado numa estante, parecendo um tanto constrangido. A multidão se en­treabriu de repente e Ricky compreendeu por quê. Irmengard Draeger, a esposa do farmacêutico, estava falando ao ouvido de Sears. Ricky sabia muito bem o que ela dizia: “Fui para Skidmore três anos antes de conhecer Rollo. Não acha que me­reço algo melhor do que esta cidadezinha tacanha? Sincera­mente, se não fosse por Penny, eu faria as malas e iria embora o mais depressa possível”. Era a melodia, se não mesmo exata­mente a letra, que Irmengard vinha cantarolando nos últimos dez anos.

— Não entendo por que nunca dei uma festa antes — comentou John, com expressão radiante. — Estou me sen­tindo mais jovem esta noite do que em muitos e muitos anos.

—  Isso é maravilhoso, John — disse Stella, inclinando-se para beijá-lo na face. — E o que Milly está achando?

—  Ela não está muito satisfeita. — Ele parecia aturdido com essa constatação. — Antes de mais nada, não pôde enten­der por que eu quis dar uma festa. E também não entendeu por que tinha de convidar Ann-Veronica Moore.

A própria Milly entrou em cena naquele momento, segu­rando uma bandeja de canapés diante de Barnes e Venuti, os dois banqueiros. Pela expressão determinada em seu rosto re­chonchudo, Ricky compreendeu que ela se opusera à idéia de uma festa desde o início.

—  E por que quis convidá-la? — perguntou ele.

— Com licença, John, mas vou dar uma volta — disse Stella. — Não precisa preocupar-se em me arrumar um drin­que, Ricky. Vou pegar o de alguém que não o esteja apro­veitando.

Ela passou pela porta, seguindo na direção de Ned Rowles. Lou Price, parecendo um gângster em seu terno listrado de pa­letó jaquetão, segurou-lhe a mão e deu um beijo em seu rosto.

—  Ela é uma garota maravilhosa — murmurou John Jaffrey, enquanto os dois observavam Stella desviar-se de Lou Price com uma frase e continuar seguindo na direção de Ned Rowles. — Gostaria que houvesse um milhão como ela.

Rowles estava se virando para contemplar a aproximação de Stella, o rosto radiante de prazer. Com seu paletó de ve­ludo piquê, os cabelos cor de areia e o rosto ávido, Ned Rowles mais parecia um estudante de jornalismo do que um editor. Também beijou Stella, mas na boca, segurando-lhe as duas mãos ao fazê-lo.

— Por que eu quis convidá-la? — John inclinou a ca­beça,  e  quatro  rugas  profundas  dividiram  ao  meio o  lado do pescoço. — Não sei direito. Edward está tão fascinado pela garota que tive vontade de conhecê-la.

—  Está mesmo fascinado?

— Totalmente. Espere só para ver. E, além do mais, só costumo encontrar-me com os  pacientes, Milly Sheehan  e  a Sociedade Chowder. Achei que estava na hora de sair um pouco da casca... divertir-me um pouco, antes de cair morto.

Era um comentário muito estranho e impulsivo para John Jaffrey.  Ricky fitou o amigo, desviando os olhos de Stella, que ainda estava de mãos dadas com Ned Rowles.

—  E  quer saber o que me deixa  tonto  só de  pensar, Ricky? É que uma das mais famosas atrizes da América está neste exato momento em minha casa, lá em cima!

—  Edward está com ela?

—  Está, sim. ,Ele disse que ela precisaria de alguns mi­nutos antes de vir fazer-nos companhia. Creio que Edward a está ajudando com o casaco ou algo assim. — O rosto devas­tado de Jaffrey estava brilhando de orgulho.

— Tenho a impressão de que ela ainda não chega a ser uma das atrizes mais famosas da América, John.

Stella já seguira adiante e Ned Rowles estava dizendo alguma coisa veemente a Ed Venuti.

— Mas vai ser. É a opinião de Edward e ele sempre acertou nessas coisas. Ricky! — Jaffrey apertou o braço do amigo. — Viu os garotos dançando lá embaixo? Não é fantás­tico? Garotos se divertindo em minha casa? Achei que eles gostariam de conhecê-la. Afinal, é uma honra fantástica! Ela só vai poder permanecer aqui mais alguns dias. Edward quase que já terminou as gravações e ela tem de voltar a Nova York, a fim de reassumir seu papel na peça. E ela está aqui, em minha casa! É sensacional, Ricky!

O advogado sentiu o impulso de providenciar uma com­pressa fria para pôr na testa de Jaffrey, que estava à beira do delírio.

—  Sabia que ela surgiu subitamente do nada? Era a mais promissora aluna de seu curso de teatro e na semana seguinte estava trabalhando em Everybody saw the sun shine.

—  Não, John, não sabia.

—  Acabei de ter uma idéia maravilhosa, Ricky. É sobre a presença dela nesta casa. Eu estava parado aqui, escutando a música de discoteca dos garotos lá embaixo, ouvindo fragmen­tos de uma música de George Shearing, e pensei... lá embai­xo, está a vida ao natural, quase animal, os garotos pulando ao ritmo da música; neste andar, temos a vida mental, médicos e advogados, toda a respeitabilidade da classe média; e lá em cima está a graça, talento, beleza... e espírito. Está perce­bendo? É como a própria evolução. Ela é a coisa mais etérea que já se viu, Ricky. Ê tem apenas dezoito anos.

—  Pensei que Stella me tivesse dito que ela estava com dezenove anos.

—  Psiu!

Uma linda jovem estava descendo a escada naquele mo­mento. O vestido verde era simples, os cabelos pareciam uma nuvem. Depois de um segundo, Ricky percebeu que os olhos combinavam com o vestido. Deslocando-se com uma espécie de precisão ritmada e indolente, ela os presenteou com o menor dos sorrisos — mesmo assim radiante — e seguiu em frente, passando as pontas dos dedos pelo peito do Dr. Jaffrey, no caminho. Ricky ficou observando-a afastar-se, divertido e co­movido. Não vira nada igual desde Louise Brooks em A caixa de Pandora.

Depois, olhou para Edward Wanderley e compreendeu imediatamente que John Jaffrey estava certo. O rosto de Edward mostrou-se radiante. Obviamente estava fascinado pela garota e era igualmente óbvio que encontrava a maior dificulda­de em deixá-la sozinha apenas pelo tempo suficiente para cum­primentar os amigos. Os três homens começaram a se encami­nhar para a sala apinhada.

—  Ricky, você está Ótimo! — disse Edward, passando o braço pelos ombros do amigo. Ele era um palmo mais alto do que Ricky. Enquanto andavam, o advogado pôde sentir o cheiro de uma colônia bastante cara. — Ótimo mesmo! Mas não acha que está na hora de parar de usar gravatas-borboletas? A era de Arthur Schlesinger já passou.

—  Essa foi a era logo depois da minha — comentou Ricky.

— Ninguém é mais velho do que se sente, Ricky. Deixei de usar gravata inteiramente. Dentro de dez anos, oitenta por cento dos homens deste país só usarão gravata em casamentos e funerais. Barnes e Venuti estarão usando aquele mesmo tra­je no banco. — Correu os olhos pela sala. — Onde será que ela se meteu?

Ricky, em quem as gravatas novas despertavam o desejo de usá-las até mesmo na cama, olhou para o pescoço despro­tegido de Edward, enquanto o amigo contemplava a sala api­nhada. Estava mais enrugado do que o de John Jaffrey e ele chegou à conclusão de que era melhor não mudar seus hábitos.

—  Passei três semanas com aquela garota e posso ga­rantir que ela é o tema mais fantástico que já encontrei — comentou Edward. — Mesmo que ela atenha inventado uma boa parte das histórias, o que provavelmente aconteceu, será o melhor livro que já escrevi. Teve uma vida horrível... e põe horrível nisso! Faz a gente chorar só de ouvi-la... e mui­tas vezes eu chorei. Está sendo desperdiçada naquela peça me­díocre da Broadway.  Será uma  extraordinária  atriz  trágica, assim que sair da adolescência.

Com o rosto vermelho, Edward riu do próprio entusias­mo. Como John, ele também estava extasiado.

— Vocês dois parecem ter “contraído” aquela garota como se fosse um vírus — comentou Ricky.

John riu, e Edward disse:

— É o que vai acontecer com o mundo inteiro, Ricky. Ela possui realmente esse dom.

— Hum, hum... — murmurou Ricky, lembrando-se em seguida de outra coisa. — Seu sobrinho Donald parece estar obtendo muito sucesso com o novo livro. Parabéns.

—  É bom saber que não sou o único filho da mãe de talento na família. E isso deve ajudá-lo a superar a morte do irmão. Foi uma história estranha, muito estranha mesmo... os dois pareciam estar apaixonados pela mesma mulher. Mas não devemos pensar em nada macabro esta noite. Vamos tratar de nos divertir apenas.

John Jaffrey assentiu, na maior felicidade.

 

—  Vi seu filho lá embaixo, Walt — disse Ricky a Walter Barnes, o mais velho dos dois banqueiros. — Ele me falou da decisão que tomou. Espero que consiga.

—  Ah, sim... Pete decidiu ir para Cornell. Sempre espe­rei que ele pelo menos se candidatasse a Yale, minha velha escola. E ainda acho que ele conseguiria entrar. — Um homem corpulento, com o rosto obstinado como o do filho, Barnes estava um tanto avesso a aceitar os parabéns de Ricky. — O garoto nem mesmo está mais interessado. Diz que Cornell é boa o bastante para ele. Boa o bastante... A geração dele é ainda mais conservadora do que a minha. Cornell é o tipo de lugar antiquado onde ainda se travam batalhas de comida. Há uns nove ou dez anos, eu vivia preocupado com a possibilidade de Pete tornar-se um radical, de barba comprida e uma bomba nas mãos. Agora, receio que ele possa contentar-se com menos do que tem condições de alcançar.

Ricky emitiu alguns murmúrios vagos de simpatia.

—  Como estão seus filhos? Ainda continuam na costa do Pacífico?

—  Continuam. Robert está ensinando inglês numa escola secundária. O marido de Jane acaba de conquistar uma vice-presidência.

— Vice-presidente encarregado de quê?

— Da segurança.

— Ah,  sim... — Ambos  tomaram  um  gole  de  seus drinques, abstendo-se de tentar inventar comentários sobre o que poderia significar uma promoção a vice-presidente encar­regado da segurança numa companhia de seguros. — Estão pensando em voltar aqui para o Natal?

—  Acho que não. Ambos têm vidas muito movimentadas.

Na verdade, nenhum dos dois escrevia a Ricky e Stella há vários meses. Haviam sido crianças felizes, adolescentes mal-humorados e agora, beirando os quarenta anos, eram adultos insatisfeitos... ainda adolescentes, sob muitos aspectos. As poucas cartas de Robert mal disfarçavam as súplicas por di­nheiro; as de Jane eram superficialmente felizes, mas Ricky podia perceber o desespero nas entrelinhas. (“Estou realmente começando a gostar de mim agora”: uma declaração que signi­ficava exatamente o oposto para Ricky. A falsidade óbvia fazia-o estremecer.) Os filhos de Ricky, as antigas paixões de seu coração, eram agora como planetas distantes. Suas cartas eram dolorosas, vê-los pessoalmente era ainda pior.

—  Acho que não — repetiu ele. — Tenho quase certeza de que nenhum dos dois conseguirá vir desta vez.

—  Jane é uma moça muito bonita — comentou Wal­ter Barnes.

—  Tal mãe, tal filha.

Automaticamente, Ricky começou a correr os olhos pela sala, à procura de Stella. Avistou Milly Sheehan apresentando sua esposa a um homem alto, de ombros caídos e lábios grossos. O sobrinho professor. Barnes perguntou:

—  Viu a atriz de Edward?

—  Está por aí, em algum lugar. Eu a vi quando desceu.

—  John Jaffrey parece muito excitado  com  a  presen­ça dela.

— Ela é realmente o tipo de garota com uma beleza exci­tante — disse Ricky, rindo. — Não é de admirar que Edward esteja também excitado.

—  Pete leu numa revista que ela tem apenas dezessete anos.

—  Neste caso, ela é uma ameaça pública.

 

Ao deixar Barnes para se juntar à esposa e Milly Sheehan, Ricky avistou a jovem atriz. Estava dançando com Freddy Robinson, ao som de um disco de Count Basie. Movia-se como se fosse uma delicada máquina de precisão, os olhos irradiando um brilho esverdeado; com os braços em torno dela, Freddy Robinson parecia estupefato de tanta felicidade. É verdade que os olhos da jovem estavam brilhando, conforme Ricky podia perfeitamente perceber. Mas seria de prazer ou zombaria? A jovem virou a cabeça e seus olhos emitiram uma corrente de emoção através da sala, indo atingir Ricky. Este viu nela a pessoa que sua filha Jane, agora com excesso de peso e des­contente, sempre desejara ser. Observando-a dançar com o tolo do Freddy Robinson, Ricky compreendeu que ali estava uma pessoa que jamais teria motivos para pronunciar a frase ter­rível de que estava começando a gostar de si mesma: a jovem era a própria imagem do autocontrole e sangue-frio.

 

—  Olá, Milly — disse ele. — Está trabalhando demais.

—  Não é nada demais. Quando eu ficar bastante velha para  trabalhar,  vou  me deitar  e  morrer.  Já  comeu  alguma coisa?

—  Ainda não. Esse deve ser seu sobrinho.

—  Oh, por favor, perdoe-me! Ainda não se conheceram. — Ela tocou no braço do homem alto a seu lado. — Esse é o cérebro da família, Harold Sims. É professor na universidade e estávamos tendo uma agradável conversa com sua esposa. Harold, esse é Frederick Hawthorne, um dos maiores amigos do doutor. — Sims sorriu e Milly arrematou. — O Sr. Haw­thorne é um dos membros da Sociedade Chowder.

—  Eu estava acabando de ouvir falar na Sociedade Chow­der — disse Harold Sims, com voz profunda. — Parece inte­ressante.

—  Receio que possa ser qualquer outra coisa menos isso.

— Estou falando do ponto de vista antropológico. Venho estudando o comportamento dos grupos de interação de machos cronologicamente relacionados. O conteúdo ritualista é sempre muito forte. É verdade que vocês... ah... que os membros da   Sociedade   Chowder   sempre   usam   smoking   quando   se reúnem?

—  É, sim. Infelizmente, é o que fazemos. — Ricky olhou para Stella em busca de ajuda, mas ela já se afastara mental­mente e olhava para os dois homens com uma expressão indi­ferente,

—  Mas por que isso, exatamente?

Ricky teve a sensação de que o homem estava prestes a tirar do bolso um caderninho de anotações.

—  Há um século, pareceu uma boa idéia. Milly, por que John convidou metade da cidade, se vai deixar Freddy Ro­binson monopolizar a Srta. Moore?

Antes que Milly tivesse tempo de responder, Sims per­guntou: “

—  Conhece o trabalho de Lionel Tiger?

—  Receio ser totalmente ignorante no assunto.

—  Eu estaria interessado em assistir a uma das reuniões da Sociedade Chowder. Não se poderia dar um jeito?

Stella riu finalmente e lançou para Ricky um olhar que dizia claramente “Saia desta!”

— Infelizmente, creio que não será possível. Mas prova­velmente poderei providenciar sua presença na próxima reunião da Kiwanis.

Sims recuou, e Ricky percebeu que ele era inseguro de­mais de sua dignidade para aceitar as piadas de bom grado. Por isso, apressou-se em acrescentar:

—  Somos apenas cinco velhos que gostam de se encontrar de vez em quando. Antropologicamente, nada representamos. Não temos qualquer interesse para ninguém.

—  Interessam a mim — disse Stella. — Por que não convida o Sr. Sims e sua esposa para a próxima reunião?

—  Mas é claro! — exclamou Sims, começando a demons­trar uma alarmante exuberância de entusiasmo. — Eu gostaria de gravar a reunião para começar, e depois faríamos o vídeo...

— Está vendo aquele homem ali? — Ricky sacudiu a ca­beça na direção de Sears James, que mais do que nunca pa­recia uma nuvem de tempestade em forma humana. Ao que tudo indicava, Freddy Robinson, agora separado de Ann-Ve­ronica Moore, estava tentando vender-lhe um seguro. — Aque­le grandalhão... Ele me cortaria a garganta, se eu o convidasse para uma reunião.

Milly  ficou chocada.  Stella  empinou  o  queixo  e  disse:

—  Muito   prazer   em   conhecê-lo,   Sr.   Sims.   —   E   se afastou.

— Antropologicamente, acaba de fazer uma declaração das mais interessantes. — Sims fitou Ricky com um interesse ainda  mais profissional.  — A  Sociedade  Chowder deve  ser extraordinariamente importante para vocês.

—  Claro que é.

— Pelo que acabou de dizer, presumo que o homem apon­tado é a figura dominante no grupo... uma espécie de chefe.

— Uma observação das mais sagazes — disse Ricky. — E agora, se me dá licença, preciso falar com uma pessoa.

Depois de virar as costas e se afastar alguns passos, ouviu Sims perguntar a Milly:

— Esses dois estão realmente casados?

 

Ricky foi postar-se num canto, decidindo ficar ali por algum tempo. Tinha uma boa visão da festa e sentia-se feliz em ficar simplesmente observando as coisas, até chegar o mo­mento de voltar para casa. Terminada a música, John Jaffrey apareceu ao lado do aparelho estereofônico e colocou outro disco no prato. Lewis Benedikt estava atrás dele, com uma ex­pressão divertida. Quando a música começou a sair pelos alto-falantes, Ricky compreendeu por quê. Era um disco de Aretha Franklin, uma cantora que Ricky só conhecia pelo rádio. Onde diabo John Jaffrey fora arrumar aquele disco e há quanto tempo o teria? Provavelmente comprara-o especialmente para a festa. Era uma conjetura fascinante, mas as especulações de Ricky foram interrompidas por uma sucessão de pessoas a procurá-lo em seu canto, uma a uma.

A primeira que o descobriu foi Clark Mulligan, o pro­prietário do Rialto, o único cinema de Milburn. Os sapatos estavam inesperadamente limpos, a calça passada, a barriga contida pelos botões do casaco. Clark se arrumara direito para a noite. Presumivelmente sabia que fora convidado por causa de sua ligação com o show business. Ricky calculou que deve­ria ser a primeira vez que John convidava Clark Mulligan a ir a sua casa. Ficou contente em vê-lo; sempre se sentia contente em vê-lo. Mulligan era a única pessoa na cidade que partilhava sua paixão pelos filmes antigos. As intrigas de Hollywood dei­xavam Ricky entediado, mas ele adorava os filmes de sua época áurea.

—  Quem ela o faz lembrar? — perguntou a Mulligan.

Mulligan olhou através da sala, atentamente. A atriz esta­va com uma expressão compenetrada, ouvindo algo que Ed Venuti dizia.

—  Mary Milles Minter?

—  Lembrou-me Louise Brooks. Mas tenho a impressão de que os olhos de Louise Brooks não eram verdes.

—  Quem sabe? Ao que se diz, ela é uma excelente atriz. E parece que surgiu do nada. Ninguém sabe qualquer coisa a seu respeito.

—  Edward sabe.

—  Ele está preparando um dos seus livros, não é mesmo?

—  As entrevistas já estão quase terminando. Edward sempre teve dificuldades em despedir-se dos temas de seus livros, mas creio que desta vez será especialmente traumático. Acho que ele se apaixonou pela moça.

Naquele momento, Edward se juntara a Ed Venuti, com uma cara de ciúme, conseguindo interpor-se entre o banqueiro e a jovem atriz.

—  Eu também poderia facilmente me apaixonar por uma garota assim — disse Mulligan. — A partir do momento em que mostram os rostos na tela, eu me apaixono por todas elas. Já assistiu algum filme de Marthe Keller? — Os olhos dele se reviraram.

—  Ainda não. Mas pelas fotografias que vi, ela se parece bastante com uma moderna Constance Talmadge.

—  Está brincando? Não acha que é muito mais com Paulette Goddard?

E a partir daí, na maior felicidade, ambos passaram a falar de Chaplin, Monsieur Verdoux, Norma Shearer e John Ford, Eugene Pallette e Harry Carey, Jr., Stagecoach e The thin man, Veronica Lake e Alan Ladd, John Gilbert e Rex Bell, Jean Harlow, Charlie Farrell, Janet Gaynor, Nosferatu e Mae West, atores e filmes a que Ricky assistira quando jovem e que jamais deixara de apreciar com uma paixão juvenil, a recordação deles ajudando-o a amortecer o que um jovem dissera a res­peito dele e sua esposa.

— Aquele não era Clark Mulligan? — A segunda pessoa a se aproximar de Ricky foi Sonny Venuti, a esposa de Edward. — Ele está horrível.

A própria Sonny mudara consideravelmente nos últimos anos, passando de uma mulher esguia e bonita, com um sorriso adorável, para uma estranha esquelética, com uma expressão inquieta e aturdida permanentemente fixada nos olhos. Uma baixa do casamento. Três meses antes, ela entrara no escritório de Ricky e perguntara o que precisava fazer para conseguir o divórcio.

—  Ainda não tenho certeza se quero divorciar-me, mas estou pensando nisso. E tenho de descobrir em que situação estou. — Era verdade, havia outro homem, porém Sonny não quis revelar quem era. — Mas uma coisa posso garantir: ele é atraente e inteligente, tão perto de sofisticado quanto se pode ser nesta cidade.

Ela não deixara a menor dúvida de que o homem era Lewis. Mulheres assim sempre faziam Ricky recordar sua pró­pria filha. Ele apresentara gentilmente todas as opções, indi­cando as providências, explicando tudo cuidadosa e sucinta­mente, mesmo sabendo que Sonny jamais voltaria a seu escritório.

—  Ela não é linda?

—  E muito!

__ Conversei com ela por um instante.

—  É mesmo?

—  Ela não estava interessada. Só se interessa por homens. E tenho certeza de que adoraria você.

Naquele momento, a atriz estava falando com Stella, a menos de três metros de distância, o que parecia contradizer a declaração de Sonny Venuti. Ricky ficou observando as duas mulheres conversarem, sem ouvir o que estavam dizendo. Sonny pôs-se a explicar, demoradamente, por que a atriz iria adorá-lo. O objeto dos comentários estava escutando Stella, falando, as duas mulheres parecendo adoráveis, seguras, ligeiramente di­vertidas. Depois, Ann-Veronica Moore disse alguma coisa que deixou Stella visivelmente aturdida; a esposa de Ricky piscou rapidamente, abriu a boca, tornou a fechá-la, alisou os cabe­los... se fosse homem, teria coçado a cabeça. A atriz se afas­tou, levada por Edward Wanderley.

—  Se fosse eu, tomaria cuidado — estava dizendo Sonny Venuti. — Ela pode parecer um pequeno anjo, mas é o tipo de mulher que adora fazer gato e sapato dos homens.

—  A caixa de Pandora — murmurou Ricky, recordan­do-se de sua primeira impressão da atriz.

—  Como? Ah, sim, já sei o que é... um filme antigo. Quando o procurei naquela ocasião, falou duas vezes em Katharine Hepburn e Spencer Tracy.

—  Como estão as coisas agora, Sonny?

— Estou tentando de novo. Deus sabe que estou ten­tando. Quem pode divorciar-se em Milburn?  Mas continuo querendo descobrir quem eu sou.

Ricky pensou na filha e sentiu um aperto no coração.

Depois, foi a vez de Sears James ir encontrar-se com Ricky no canto. Pondo o copo numa mesa e encostando-se na estante, ele comentou:

— Ah, finalmente a privacidade!

— Eu não contaria tanto com isso.

—  Um jovem horrível tentou vender-me um seguro. Ele mora no outro lado da rua.

—  Eu o conheço.

Já que estavam em total acordo em relação a Freddy Ro­binson, não havia mais nada a dizer a respeito. Sears acabou rompendo o silêncio:

— Acho que Lewis vai precisar de ajuda para chegar em casa. Ele está um tanto embriagado.

—  O que não é problema. Afinal, não é uma das nossas reuniões.

— Hum, hum... Talvez ele consiga arrumar uma mulher que guie o carro até sua casa.

Ricky fitou o amigo para verificar como ele estava fazendo o comentário, mas Sears contemplava a festa com uma expres­são indiferente, obviamente entediado.

—  Já conversou com a convidada de honra?

—  Nem mesmo a vi.

—  Ela é altamente visível. Acho que está por ali...

Ricky levantou o copo na direção do lugar em que vira a atriz um momento antes, mas ela já desaparecera. Edward estava conversando com John, presumivelmente a respeito dela. Mas Ann-Veronica Moore não mais estava na sala.

—  Fique de olho em Edward. Ele vai acabar descobrindo-a, mais cedo ou mais tarde.

—  Não é o filho de Walter Barnes que está ali no bar?

Embora já passasse muito das dez horas, Peter Barnes e uma moça estavam realmente junto ao bar; o garçom que subs­tituíra Milly estava lhe servindo drinques. A governanta do Dr. Jaffrey evidentemente não tivera coragem de mandar embora os adolescentes que estavam lá embaixo; os mais audaciosos haviam invadido a festa ali em cima. A música de piano que substituíra Aretha Franklin cessara abruptamente, e Ricky viu que Jim Hardie estava examinando diversos discos, procurando decidir qual era o menos ultrapassado.

—  Temos um novo disc jockey — disse Ricky.

—  Tem razão — falou Sears. — Estou cansado e vou para casa. A música barulhenta sempre me dá vontade de sair por aí mordendo todo mundo.

E se afastou. Milly Sheehan o deteve no meio do caminho, falando-lhe nervosamente. Ricky calculou que ela estava irritada por causa da súbita invasão dos adolescentes. Sears deu de ombros; o problema não era seu.

Ricky sentiu vontade de ir para casa naquele momento, mas Stella começara a dançar com Ned Rowles. Não demorou muito para que diversas esposas atraíssem os maridos para a parte da sala mais próxima do aparelho estereofônico. Os adoles­centes dançavam freneticamente, às vezes quase graciosamente; os adultos pareciam tolas imitações ao lado deles. Ricky gemeu. Ia ser uma noite comprida. Todos haviam começado a falar mais alto, o garçom servia meia dúzia de drinques ao mesmo tempo, despejando uísque sobre uma sucessão de copos com gelo. Sears chegou à porta e desapareceu.

Christina Barnes, uma loura alta, com um rosto ansioso, aproximou-se de Ricky.

—  Já que meu filho conseguiu tomar conta da festa, o que me diz de dançar comigo, Ricky?

O advogado sorriu.

—  Lamento não poder ser um cavalheiro, Christina. Há quarenta anos que não danço.

—  Deve fazer alguma coisa muito bem para segurar Stella por todos esses anos.

Ela já havia tomado três drinques a mais.

—  Tem razão. E quer saber o que é? Jamais perdi o senso de humor.

—  Você é maravilhoso, Ricky. Eu adoraria dar-lhe alguns apertões um dia desses para tentar descobrir do que é feito.

—  De velhos cotos de lápis e livros de direito ainda mais velhos.

Desajeitadamente, ela beijou-o, roçando-lhe o queixo.

—  Sonny Venuti não foi procurá-lo há uns dois meses? Preciso conversar com você sobre o mesmo assunto.

—  Pode ir procurar-me no escritório — disse Ricky, sa­bendo que ela nunca iria.

— Com licença, Ricky, Christina... — disse Edward Wanderley, que se aproximara de Ricky pelo outro lado.

—  Vou deixar vocês, homens, tratando de seus negócios particulares.

Christina se afastou, à procura de um parceiro para dançar.

— Você a viu? Sabe onde ela está? — O rosto largo de Edward estava dominado por uma ansiedade infantil.

—  A Srta. Moore? Há algum tempo que não a vejo. Por acaso a perdeu?

—  Ela simplesmente sumiu!

—  Provavelmente está no banheiro.

—  Há vinte e cinco minutos? — Edward coçou a testa.

—  Não se preocupe com ela, Edward.

—  Não estou preocupado, apenas quero descobri-la. — Ele se ergueu na ponta dos pés, pondo-se a olhar por cima das cabeças dos dançarinos, ainda esfregando a testa. — Será que ela saiu com algum desses garotos horríveis?

—  Não faço a menor idéia.

Edward deu uma pancadinha no ombro de Ricky e saiu rapidamente da saía.

Christina Barnes e Ned Rowles apareceram no vácuo dei­xado por Edward à beira do tapete. Ricky contornou os dois, à procura de Stella. Depois de um momento, avistou-a com Jim Hardie, obviamente recusando um convite para aprender o bump. Olhou para Ricky com uma expressão de alívio e afas­tou-se do rapaz.

A música estava tão alta que tiveram de falar diretamente no ouvido um do outro.

—  É o rapaz mais avançadinho que já conheci!

—  O que ele disse?

—  Que me pareço com Arme Bancroft!

A música cessou abruptamente e todos na festa puderam ouvir a resposta de Ricky:

—  Ninguém com menos de trinta anos deveria ter per­missão para entrar num cinema.

Todos, à exceção de Edward Wanderley, que estava inter­rogando de maneira hostil Peter Barnes, viraram-se a fim de olhar para Ricky e Stella. Depois, o sempre esperançoso Freddy Robinson pegou a mão da garota de Jim Hardie, outro disco caiu no prato, e as pessoas voltaram a fazer as coisas que se costumam fazer numa festa. Edward estava falando baixinho, mas insistentemente; deu para ouvir a voz aflita de Peter Bar­nes dizendo, um momento antes de a música recomeçar:

—  Talvez ela esteja lá em cima, cara.

—  Vamos embora? — perguntou Ricky a Stella. — Sears já se foi.

—  Vamos ficar mais um pouco. Há séculos que não faze­mos nada assim. E estou me divertindo um bocado, Ricky. — Vendo a expressão desconsolada do marido, ela acrescentou: — Dance comigo, Ricky. Só esta vez.

—  Sabe que não danço — respondeu Ricky, alteando a voz para poder ser ouvido acima do barulho da música. — Pode ir divertir-se. Mas vamos embora daqui a meia hora, está certo?

Ela piscou-lhe um olho, virou-se e foi imediatamente cap­turada por Lou Price, com a aparência de gângster, sucumbindo desta vez.

Edward, sem olhar para ninguém, passou correndo.

Ricky circulou pelas margens da festa por algum tempo, recusando o drinque que o garçom lhe ofereceu. Foi falar com Milly Sheehan, que estava sentada no sofá, exausta.

—  Eu não sabia que iria acabar assim — murmurou Milly. — Vou levar horas para conseguir limpar tudo.

—  Faça John ajudá-la.

— Ele sempre ajuda — declarou Milly, com uma expres­são radiante. — É maravilhoso nessas coisas.

Ricky continuou vagueando a esmo, até chegar à escada. Havia silêncio lá em cima e lá embaixo. Será que a atriz de Edward estaria lá em cima com um dos rapazes? Ele sorriu e desceu para o sossego do andar térreo.

A parte do consultório de Jaffrey estava deserta. As luzes estavam acesas, cigarros haviam sido apagados no chão, por toda parte se podiam ver copos pela metade. As salas cheiravam a suor, cerveja e fumaça. A pequena vitrola portátil na sala da frente estava ligada, o prato girando, a agulha estalando em sulcos vazios. Ricky levantou o braço, colocou-o no suporte e desligou a vitrola. Milly teria muito trabalho ali embaixo na manhã seguinte. Olhou para o relógio. Meia-noite e meia. Atra­vés do teto, vinha o barulho da música distante.

Ricky se sentou numa das cadeiras incômodas da sala de espera, acendeu um cigarro, suspirou e relaxou. Pensou que talvez pudesse dar uma ajuda a Milly, começando a arrumar as salas ali de baixo. Mas compreendeu que precisaria de uma vas­soura. E estava cansado demais para sair à procura de uma.

Poucos minutos depois, o barulho de passos arrancou-o do leve cochilo. Empertigou-se na cadeira, escutando alguém abrir uma porta na base da escada.

—  Quem está aí? — gritou ele, sem querer constranger algum casal ilícito.

—  É você, Ricky? — John Jaffrey apareceu na sala de espera. — O que está fazendo aqui? Viu Edward?

—  Desci para ter um pouco de sossego. E vi Edward an­dando de um lado para outro à procura da Srta. Moore. Talvez ele tenha subido.

—  Estou bastante preocupado com ele, Ricky. Edward parecia tão... tão tenso. Ann-Veronica está dançando com Ned Rowles. Será que ele não viu?

— Ela desapareceu há alguns minutos.  É por isso que Edward ficou tão nervoso.

—  Pobre Edward... Mas ele não deve preocupar-se com aquela moça. Ela vale ouro. Deveria tê-la visto. Está absoluta­mente maravilhosa. Parece ainda melhor do que no início da noite.

Ricky levantou-se.

—  Quer que eu o ajude a encontrar Edward?

—  Não há necessidade. Pode continuar descansando. Eu o encontrarei sozinho. Vou verificar nos quartos, embora não tenha a menor idéia do que ele possa estar fazendo por lá...

—  Espero que ainda esteja procurando.

John virou-se, murmurando que não podia deixar de se preocupar. Voltou para as salas de consulta. Ricky seguiu-o, lentamente.

 

Harold Sims estava dançando com Stella, apertando-a fir­memente e despejando um fluxo incessante de conversa em seu ouvido. A música estava tão alta que Ricky sentiu vontade de gritar. À exceção de Sears, ninguém mais fora embora. Os jo­vens, muitos deles agora embriagados, rodopiavam sem parar, os cabelos e braços se sacudindo. A pequena atriz dançava com o editor, Lewis falava com Christina Barnes, no sofá. Ambos estavam indiferentes à presença da sonolenta Milly Sheehan, a não mais de dois palmos de distância. Ricky desejou ardente­mente estar na cama. O barulho deixava-o com dor de cabeça. Seus velhos amigos, à exceção de Sears, pareciam ter perdido o juízo. Lewis estava com a mão no joelho de Christina Barnes, os olhos mostravam-se desfocados. Será que ele estava realmen­te tentando seduzir a esposa do seu banqueiro? E na presença do marido e do filho dela?

Lá em cima, algo pesado caiu no chão. Ricky foi o único que ouviu. Saiu para o patamar e avistou John Jaffrey no alto da escada.

—  Ricky...

—  Algum problema, John?

—  É Edward...

—  Ele esbarrou em alguma coisa?

—  Suba depressa, Ricky.

O advogado subiu, ficando mais preocupado a cada degrau. John Jaffrey parecia profundamente abalado.

—  Ele derrubou alguma coisa, John? Machucou-se?

A boca de Jaffrey se abriu sem que nenhum som saísse por um momento, até que ele finalmente conseguiu balbuciar:

— Derrubei urna cadeira... e não sei o que fazer.

Ricky chegou lá em cima e olhou para o rosto angustiado do médico,

— Onde ele está?

—  No segundo quarto.

Como Jaffrey continuasse parado, Ricky avançou pelo cor­redor até a segunda porta. Olhou para trás. Jaffrey assentiu, engoliu em seco e finalmente se aproximou.

—  Aí dentro.

Ricky podia sentir a boca ressequida. Desejando estar em qualquer outro lugar, fazendo qualquer outra coisa, menos o que estava fazendo ali, estendeu a mão para a maçaneta e virou-a. A porta se abriu.

O quarto estava frio, quase não tinha móveis. Dois casa­cos, o da atriz e o de Edward, estavam estendidos sobre um colchão. Mas Ricky só tinha olhos para Edward Wanderley. Encontrava-se no chão, as mãos comprimidas contra o peito, os joelhos erguidos. O rosto dele tinha uma expressão terrível.

Ricky deu um passo para trás e quase tropeçou na cadeira que John Jaffrey derrubara. Não havia a menor dúvida de que Edward ainda estava vivo — Ricky não sabia como tinha certeza, mas o fato é que tinha —, o que não o impediu de per­guntar:

—  Tentou sentir o pulso dele?

—  Não tem mais. Já sumiu.

John estava tremendo todo, a um passo além da porta. Mú­sica e vozes subiam pela escada.

Ricky fez um tremendo esforço e se ajoelhou ao lado do corpo do amigo. Tocou uma das mãos, agarrando a camisa verde de Edward. Enfiou os dedos na parte inferior do pulso. Nada sentiu, mas também não era médico.

—  O que acha que aconteceu?

Ricky ainda não podia olhar novamente para o rosto con­torcido de Edward. John deu outro passo para o interior do quarto.

—  Um ataque cardíaco? Acha mesmo que foi isso?

—  Não sei... Provavelmente. Emoção em demasia. Mas.

Ricky olhou para Jaffrey, tirando a própria mão da mão ainda quente de Edward.

—  Mas o quê?

—  Não sei. Não posso saber. Mas olhe só para o rosto dele, Ricky!

O advogado olhou: os músculos estavam rígidos, a boca aberta como se fosse gritar, os olhos vazios. Era o rosto de um homem sendo torturado, esfolado vivo.

—  Não é próprio de um médico dizer isso, Ricky, mas parece que ele foi levado à morte pelo pavor.

Ricky assentiu e se levantou. Era exatamente assim que Edward parecia.

—  Não podemos deixar ninguém subir. Vou descer e tele­fonar pedindo uma ambulância.

 

E assim terminou a festa de Jaffrey. Ricky Hawthorne te­lefonou pedindo uma ambulância, desligou a vitrola e disse que Edward Wanderley sofrera “um acidente” fatal, despachando trinta pessoas para suas casas. Não permitiu que ninguém su­bisse. Procurou por Ann-Veronica Moore, mas a atriz já tinha ido embora.

Meia hora depois, com o corpo de Edward a caminho do hospital ou do necrotério, Ricky voltou de carro para sua casa, junto com Stella.

— Não a viu ir embora? — perguntou ele.

—  Num momento, ela estava dançando com Ned Rowles, no momento seguinte saía pela porta. Pensei que estivesse indo ao banheiro. Oh, Ricky, foi horrível!

—  Tem razão. Foi mesmo horrível.

—  Pobre Edward... Acho que ainda não estou acredi­tando.

— Eu também não. — As lágrimas afloraram aos olhos de Ricky, que, por alguns segundos, guiou às cegas, vendo à sua frente apenas manchas indistintas. Num esforço para afas­tar do pensamento a imagem do rosto de Edward, ele pergun­tou: — O que ela lhe disse que a deixou tão surpresa?

—  Quando? Mal falei com ela.

—  Na metade da festa. Eu a vi conversando com você e tive a impressão de que ela falou alguma coisa que a deixou inteiramente aturdida.

—  Ah, sim... — A voz de Stella se alterou um pouco. — Ela perguntou se eu era casada. Respondi que sim, que era a Sra. Hawthorne. E ela disse: “Ah, sim, acabei de ver seu mari­do. E parece que ele dá um bom inimigo”.

—  Não deve ter ouvido direito.

—  Claro que ouvi.

—  Não faz o menor sentido.

—  Mas foi exatamente o que ela disse.

Uma semana depois, quando Ricky telefonou para o teatro em que a jovem estava trabalhando, querendo devolver o casa­co, foi informado de que ela retornara a Nova York no dia seguinte à festa, retirara-se inesperadamente do elenco e deixara a cidade. Ninguém sabia para onde ela fora. Desaparecera intei­ramente. Era muito jovem, nova demais na profissão, não dei­xara nem mesmo reputação suficiente para criar um mito. Na­quela noite, na que parecia ser a última reunião da Sociedade Chowder, Ricky teve uma inspiração, virando-se para o apático John Jaffrey e perguntando:

—  Qual foi a pior coisa que você já fez?

E John salvou a todos ao responder:

—  Não vou contar, mas lhe direi qual foi a pior coisa que já me aconteceu.

E contou, então, uma história de fantasma.

 

A vingança do Dr. Rabbitfoot

 

“Persiga uma sombra, ela lhe foge;

Finja fugir, ela o perseguira.”

Ben Jonson

 

A idéia antiga do Dr. Rabbitfoot... a idéia para outro livro, a história da destruição de uma cidade pequena pelo Dr. Rabbitfoot, um showman ambulante que monta acampamento nos arredores, vende elixires, poções e amuletos (um preto?) e tem um pequeno espetáculo com música de jazz, dançarinas, trombones, etc. Se algum dia já conheci um cenário perfeito para essa história, o lugar é Milburn.

Primeiro a cidadezinha, depois o bom doutor. A cidade de meu tio, Milburn, é um desses lugares que parecem criar seu próprio limbo e depois se aninham nele. Não chega a ser uma cidade de verdade, não chega a ser uma comunidade rural, pois é pequena demais para ser a primeira coisa e povoada demais para a segunda, além de ser orgulhosa demais em relação a seu status. O jornal local chama-se The urbanite. Milburn parece até mesmo sentir algum orgulho de sua minúscula favela, as poucas ruas que formam o que chamam de Hollow. A impres­são que se tem é de que Milburn gosta de apontar para Hollow e dizer: vejam, temos lugares onde se precisa tomar cuidado depois do anoitecer, os tempos em que vivemos não nos deixa­ram incólumes e inocentes. É quase comédia. Se algum dia houver encrenca em Milburn, certamente não vai começar no Hollow. Três quartos dos homens trabalham em outros lugares, principalmente em Binghamton. Milburn depende da auto-es­trada para sua sobrevivência. Paira no ar uma sensação de es­tranha acomodação, de tudo continuar como sempre. Ao mes­mo tempo em que se sente também algum nervosismo. (Aposto que eles fazem intrigas uns contra os outros incessantemente.) E o nervosismo existe porque eles sentem que perderam algo para sempre, que os tempos no final das contas passaram por Milburn e os deixaram para trás, intatos. Provavelmente estou sentindo isso por causa do contraste entre esta cidadezinha e a Califórnia, onde não existe tal preocupação. Parece um tipo de ansiedade peculiar a cidadezinhas como esta. Bons lugares para o Dr. Rabbitfoot.

(Por falar em ansiedade, os três velhos que conheci hoje, amigos de meu tio, estão sofrendo terrivelmente dela. É eviden­te que está relacionado com o motivo, qualquer que seja, que os levou a me escrever, sem saber que eu estava começando a ficar tão cansado da Califórnia que teria ido para qualquer lugar onde imaginasse que poderia ser capaz de trabalhar.)

Fisicamente, é claro, é uma cidadezinha bonita. Todos esses lugares o são. Até mesmo Hollow possui uma espécie de beleza sépia dos anos 30. Há a praça municipal habitual, as árvores habituais — bordos, lariços, carvalhos, as árvores caídas cober­tas de musgos nos bosques —-, a sensação de que os bosques ao redor da cidade são mais fortes, mais profundos do que o pe­queno labirinto de ruas que as pessoas puseram em seu meio. Ao chegar, vi casas bem grandes, algumas grandes o bastante para serem chamadas de mansões.

Mesmo assim... é um lugar maravilhoso, um cenário caí­do do céu para a novela do Dr. Rabbitfoot.

Ele é preto, decididamente. Veste-se espalhafatosamente, com todo o aparato antiquado: polainas, imensos anéis, bengala, um colete berrante. É esfuziante, fala sem parar, ligeiramente sinistro, o próprio demônio. Ele o dominará, se você não tomar cuidado. Tem um sorriso assassino.

Você o vê apenas à noite, quando passa por um terreno normalmente deserto e lá está ele, parado numa plataforma diante de sua tenda, girando uma bengala, enquanto a banda de jazz está tocando. Uma música animada o envolve, assoviando por seus cabelos pretos, um saxofone lhe contrai os lábios. Ele está olhando diretamente para você. Convida-o a dar uma olhada em seu espetáculo, a comprar uma garrafa de seu elixir por um dólar. Diz que é o famoso Dr. Rabbitfoot e que tem exatamente o de que sua alma está precisando.

E se sua alma está precisando de uma bomba? Uma faca? Uma morte lenta?

O Dr. Rabbitfoot lhe dá uma piscadela. “Encontrou o que está procurando, cara. Basta tirar um dólar do bolso.”

Agora, definir o que ê óbvio: por trás dessa personagem que há anos venho desenvolvendo em minha cabeça está Alma Mobley. Também convinha a ela dar exatamente o que uma pessoa estava querendo.

Durante todo o tempo, o sorriso malicioso, as mãos flu­tuando, os olhos de um branco descorado e ofuscante... a sinistra alegria dele. “E o que dizer da pequena Alma Mobley, rapaz? O que vai fazer, se a avistar quando fechar os olhos? Ela está lá? Alguma vez já tocou num fantasma? Alguma vez já encostou a mão na pele branca de um fantasma? É seus olhos serenos... será que o estavam observando?”

 

Fui ao escritório do advogado que me escreveu, Sears Ja­mes, assim que cheguei à cidade. É um prédio branco, austero, na Wheat Row, junto à praça. O dia, cinzento pela manhã, esta­va frio e claro; antes de falar com a recepcionista, pensei que talvez fosse o início de um novo ciclo para mim. Mas a recepcio­nista disse que tanto o Sr. James como o Sr. Hawthorne tinham ido a um enterro. A nova secretária que eles haviam contra­tado também tinha ido, o que era demais, “porque ela nem co­nhecia o Dr. Jaffrey, não é mesmo? A esta altura, eles devem estar no cemitério. É o Sr. Wanderley que eles estão esperando? Também não conheceu o Dr. Jaffrey? Era um homem maravi­lhoso. Acho que estava exercendo a medicina aqui em Milburn há quarenta anos, era o homem mais bondoso que já existiu, mas não daquele tipo açucarado, sabe como é? mas quando ele punha as mãos na gente, dava para sentir a bondade fluindo para o nosso corpo”, ela continuou falando sem parar, me olhan­do, me examinando, procurando descobrir que diabo seu patrão estava querendo comigo, e depois a velha sentada na mesa tele­fônica fitou-o com um sorriso furioso e jogou seu trunfo na mesa, ela disse: “É claro que não pode saber, mas ele se matou há cinco dias. Pulou da ponte. Pode imaginar uma coisa dessas? Foi terrivelmente trágico. O Sr. James e Ricky Hawthorne ficaram muito transtornados. E ainda não se recuperaram. Ago­ra, aquela garota Anna os está fazendo ter o dobro do trabalho e aquele doido do Elmer Scales telefona todos os dias, gritando por causa de suas quatro ovelhas. . . pode imaginar o que seria capaz de levar um homem tão bom quanto o Dr. Jaffrey a fazer uma coisa dessas?”   ,

(Ele escutou o Dr. Rabbitfoot, dona.)

“Gostaria de ir ao cemitério?”

 

E ele foi. Ficava numa estrada chamada Pleasant Hill, logo à saída da cidade (a recepcionista deu uma boa orientação), cam­pos extensos morrendo sob a neve que chegara cedo demais, o vento de vez em quando atingindo uma camada de neve solta, fazendo-a levantar e acenar os braços. É estranho como esta terra parece perdida, embora as pessoas estejam andando de um lado para outro por aqui há quatrocentos anos. Parece so­frida e devastada, a alma ida ou retraída, esperando que alguma coisa aconteça para despertá-la novamente.

A placa, “Cemitério Pleasant Hill”, era de metal, cinzenta, num dos lados do portão preto de ferro batido; se não fosse por ele, à entrada do que parecia ser apenas outro campo ondulado, Don teria passado adiante. Contemplou o portão ao se aproxi­mar, perguntando-se que tipo de fazendeiro seria magnificente o bastante para erguer um portão senhorial na trilha de seu trator, diminuiu a velocidade, olhou para o caminho estreito que subia suavemente — mais do que uma simples trilha de trator, quase uma estrada — e avistou meia dúzia de carros es­tacionados no alto da colina, se é que se podia dar-lhe tal nome. E depois viu a placa. “Apenas outro campo, mas o que lá plan­taram...” Don deu uma guinada no volante e passou pelo portão.

Don deixou o carro separado dos outros, na metade da subida, e continuou a pé. Perto dele, estava a parte mais antiga do cemitério: lousas inclinadas com as inscrições em baixo-relevo, anjos de pedra erguendo os braços carregados de neve. Moças de granito protegiam os olhos com o antebraço, de onde pendia uma parte da túnica. O mato crescia entre as lousas inclinadas. O caminho estreito passava por, essa parte mais anti­ga e levava a um trecho maior, de pequenas lápides, bem con­servadas. Eram lápides roxas, cinzentas, brancas, que pareciam ainda menores pela extensão de terra ondulante que havia além, com as cercas do cemitério a uns cem metros de distância. Um carro fúnebre estava parado na parte mais baixa do cemitério. O homem que o dirigia, de chapéu preto, escondia o cigarro aceso na mão em concha, para que não fosse visto pelas poucas pessoas agrupadas em torno da sepultura mais recente. Uma mulher informe, num casaco azul-claro, se agarrava a outra, mais alta; os demais presentes se mantinham eretos e tão imóveis quanto se fossem postes. Quando avistei os dois velhos parados lado a lado, junto à sepultura, não tive a menor dúvida de que eram os dois advogados... e se não eram advogados, certamente faziam parte do elenco central. Comecei a me encaminhar na direção deles, descendo a encosta, pelo caminho es­treito. E foi então que pensei: “Se o morto era médico, por que não há mais pessoas? Onde estão seus pacientes?” Um homem de cabelos prateados, ao lado dos dois advogados, foi o primeiro a vê-lo e cutucou o maior com o cotovelo, o que usava um casaco preto com gola de pele. O grandalhão virou a cabeça para fitá-lo. Depois, o homenzinho ao lado dele, que dava a impressão de estar resfriado, também desviou os olhos do ministro, e olhou para Don, curioso. Até mesmo o ministro pa­rou de falar por um momento, enfiou a mão congelada no bolso do sobretudo e olhou para Don com uma expressão confusa.

E foi então que, finalmente, houve um sinal de boas-vindas, em contraste com o exame cauteloso: uma das mulheres bonitas, a mais jovem (seria uma filha?), fitou-o com um sor­riso genuíno.

O homem de cabelos prateados, que olhara para Don como se estivesse no cinema, afastou-se dos outros dois e aproximou-se dele, sussurrando:

—  É amigo de John?

—  Meu nome é Don Wanderley — respondeu ele, tam­bém num sussurro. — Recebi uma carta de um homem chamado Sears James e a recepcionista do seu escritório disse que poderia encontrá-lo aqui.

—  Agora que falou, posso perceber que realmente se pa­rece um pouco com Edward, — Lewis segurou-lhe o braço e apertou-o. — Escute, garoto, estamos passando por maus mo­mentos. Por isso, peço para simplesmente ficar parado aqui, sem nada dizer, até tudo terminar. Já tem algum lugar onde passar a noite?

E assim me juntei a eles, meio sustentando, meio evitando seus olhares. A mulher de casaco azul-claro estava quase inerte, amparando-se na mulher de aparência altiva; o rosto dela se contorcia incessantemente e soluçava sem parar oh não oh não. Havia a seus pés pequenos pedaços de lenços de papel coloridos, amarrotados, agitados pelo vento que soprava pela depressão. De vez em quando, um desses era impulsionado para longe e ia prender-se na cerca. Quando partimos, já havia dezenas de pa­péis coloridos presos na grade de arame da cerca.

 

(Frederick Hawthorne)

 

Ricky ficara bastante satisfeito com Stella. Enquanto os três membros restantes da sociedade procuravam ajustar-se à morte de John, somente Stella pensara na terrível situação de Milly Sheehan. Imaginava que Sears e Lewis haviam pensado a mesma coisa que ele: Milly simplesmente continuaria a viver na casa de John. Ou se achasse que a casa era grande e vazia demais para ela, Milly poderia ficar no Hotel Archer, até deci­dir para onde ir e o que fazer. Ele e Sears sabiam que Milly não tinha problemas financeiros: haviam preparado o testamento que deixava para Milly a casa de John Jaffrey e todos os saldos de suas contas bancárias. Somando tudo, ela herdara cerca de duzentos mil dólares; se decidisse ficar em Milburn, teria no banco mais do que o suficiente para pagar os impostos e levar uma vida confortável. “Somos advogados”, disse Ricky a si mes­mo, “e é assim que pensamos. Não podemos fazer nada; sempre pensamos nas trivialidades primeiro e só depois nas pessoas.”

É claro que haviam pensado muito em John Jaffrey. A notícia chegara quase ao meio-dia do dia seguinte àquele em que as premonições de Ricky haviam alcançado o auge. Ele tivera certeza de que alguma coisa terrível acontecera no mo­mento em que reconheceu a voz trêmula ao telefone como sen­do de Milly Sheehan, balbuciando:

—  É... é... o Sr. Hawthorne... ?

—  Sou eu mesmo, Milly. O que aconteceu? — Ricky ligou o interfone com a sala de Sears e disse-lhe que ficasse ou­vindo na extensão, equipada com um alto-falante. E repetiu a pergunta: — O que aconteceu, Milly?

Sabia que sua voz estaria soando alta demais para Sears, mas naquele momento sentia-se totalmente incapaz de falar bai­xo. O alto-falante reproduzia a voz do cliente num volume normal, mas triplicava o barulho feito pela pessoa na extensão. Sears imediatamente queixou-se:

—  Está me arrebentando os tímpanos.

—  Desculpe — murmurou Ricky. — Ainda está no tele­fone, Milly? É Milly quem está chamando, Sears.

—  Eu já imaginava. Podemos ajudá-la, Milly?

—  Ahnn...  — gemeu ela ao telefone, provocando um arrepio na nuca de Ricky.

O telefone ficou mudo.

—  Milly?

— Abaixe a voz — ordenou Sears.

— Ainda está no telefone, Milly?

Ricky ouviu o telefone bater ruidosamente contra alguma superfície dura. A voz que ouviu a seguir era de Walt Har­desty:

—  Aqui é o xerife. É o Sr. Hawthorne quem está falando?

—  Ele mesmo. O Sr. James está na extensão. O que está acontecendo, Walt? Milly está bem?

—  Ela está de pé neste momento, inteiramente imóvel, olhando pela janela. O que é ela afinal? Pensei que fosse a es­posa dele.

Sears interveio impacientemente, a voz soando alta como o estrondo de um canhão na sala de Ricky:

—  Ela é a governanta de John. E agora pode fazer o favor de nos dizer o que está acontecendo por aí?

—  Ela está desmoronando como se fosse a esposa. Vocês dois são os advogados do Dr. Jaffrey?

—  Somos, sim — respondeu Ricky.

—  Já sabem o que aconteceu com ele?

Os dois sócios ficaram em silêncio. Se Sears estava se sentindo como Ricky, sua garganta ficara apertada demais para conseguir falar alguma coisa.

—  Ele deu um pulo — acrescentou Hardesty. — Ei, cuidado, dona! É melhor sentar-se.

—  Ele fez o quê? — berrou Sears, a voz trovejando na sala de Ricky.

— Ele deu um mergulho do alto da ponte esta manhã. Ei, dona, fique calma e deixe-me falar!

—  O nome da dona é Sra. Sheehan — disse Sears, em tom mais normal. — Ela pode reagir melhor se chamá-la assim. E agora, como a Sra. Sheehan evidentemente desejava comunicar-se conosco mas se encontra incapaz de fazê-lo no momento, gostaria que explicasse exatamente o que aconteceu com John Jaffrey.

—  Ele deu um mergulho da...

—  Seja mais cuidadoso. Ele caiu da ponte? De que ponte?

—  A ponte sobre o rio. Qual outra ponte estava pensando que poderia ser?

—  E qual é o estado dele?

—  Está mortinho da silva. O que estava pensando que poderia ter acontecido? E pode dizer-me quem vai tomar as providências para o funeral e tudo o mais? Esta dona não está em condições...

—  Pode deixar que cuidaremos de tudo — disse Ricky.

—  E podemos cuidar também de outras coisas — acres­centou Sears furioso. — Suas maneiras são lamentáveis. E sua dicção é vergonhosa. Está bancando o idiota, Hardesty.

—  Ei, essa não!

— Essa sim! E se está imaginando que o Dr. Jaffrey co­meteu suicídio, então está realmente chafurdando num lodaçal, meu amigo. Eu o aconselharia a manter essa suposição para si mesmo.

—  Omar Norris viu tudo — disse Hardesty. — Precisa­mos de uma identificação oficial e resolver todas as formali­dades para podermos providenciar a autópsia. Por que os dois não vêm até aqui? É melhor do que ficar falando ao telefone.

Cinco segundos depois de Ricky repor o fone no gancho, Sears apareceu na porta, já enfiando os braços no casaco.

— Não pode ser verdade — disse ele. — Tem que ser algum equívoco. Mas vamos até lá assim mesmo.

A campainha do telefone voltou a soar. — Não atenda — disse Sears. Mas Ricky atendeu:

—  Pois não?

— Há uma moça na recepção que deseja falar-lhe e com o Sr. James — informou a recepcionista.

—  Diga a ela para voltar amanhã, Sra. Quast. O Dr. Jaffrey morreu esta manhã e o Sr. James e eu estamos indo para a casa dele, a fim de nos encontrarmos com Walt Hardesty.

— Mas como? — A Sra. Quast, que estava prestes a co­meter uma indiscrição, mudou de assunto ainda a tempo. — Lamento muito, Sr. Hawthorne. Quer que eu ligue para a Sra. Hawthorne?

—  Quero, sim. E diga a ela que entrarei em contato com ela assim que puder.

A esta altura, Sears já estava tendo um acesso de impa­ciência. Quando Ricky contornou a mesa, o sócio já estava no corredor, girando o chapéu na mão. Ricky pegou o seu casaco e saiu apressadamente em seu encalço. Juntos, seguiram pelo corredor. Sears resmungou:

—  Aquele idiota irresponsável! Como se alguém pudesse acreditar nas palavras de Omar Norris sobre qualquer coisa que não seja bourbon e remover neve das ruas!

Ricky estacou abruptamente e pôs a mão no braço do sócio.

—  Temos que pensar nisso, Sears. É possível que John tenha realmente se matado. — Ainda não absorvera a idéia e pôde ver que Sears estava determinado a não permitir que isso acontecesse com ele. — John não teria qualquer motivo para andar por aquela ponte, especialmente num tempo assim.

O sangue afluiu ao rosto de Sears.

—  Se pensa assim, então também é um idiota rematado.

Não quero saber se John estava observando pássaros ou fazendo qualquer outra coisa assim esdrúxula. Mas tenho certeza de que ele estava ali por algum motivo. — Os olhos dele evitaram os de Ricky. — Não sei e não posso imaginar o que era, mas tenho certeza de que havia algum motivo. Por acaso ele lhe pareceu com propensões para o suicídio ontem à noite?

—  Não, mas...

— Não vamos mais discutir. Acho melhor irmos logo de uma vez para a casa dele.

Sears saiu na frente pelo corredor e empurrou a porta da sala de recepção com o ombro. Ricky Hawthorne, apressando-se em seu encalço, saiu também para a sala de recepção e ficou ligeiramente surpreso ao deparar com uma jovem alta, de cabe­los escuros, rosto oval, as feições delicadas. O sócio estava para­do diante da moça. Ricky disse:

—  Sears, não temos tempo agora. Já disse a essa moça que voltasse amanhã.

— Ela diz... — Sears tirou o chapéu. Parecia que fora violentamente golpeado na cabeça. Murmurou para a moça: — Repita o que acabou de me falar...

E a moça anunciou:

—  Eva Galli era minha tia e procuro um emprego.

 

(A Sra. Quast desviou os olhos da moça, que se limitara a sorrir-lhe ligeiramente, corando enquanto discava para a casa dos Hawthorne. A moça afastou-se para examinar as gravuras de Kitaj, que Stella comprara há dois ou três anos, para subs­tituir as antigas gravuras de Audobon de que Ricky tanto gos­tava. Incompreensível e diferente, era o julgamento da Sra. Quast tanto sobre as gravuras de Kitaj quanto sobre a moça. “Não!”, exclamou Stella Hawthorne, ao tomar conhecimento da notícia sobre o Dr. Jaffrey. “Pobre Milly! Pobre todo mun­do, é claro. Mas terei que fazer alguma coisa por Milly.” Ao desfazer ligação, a Sra. Quast pensa: “Meu Deus! Como está claro aqui dentro!” Mas no instante seguinte, ela pensa: “Não, está escuro! Tão escuro quanto o pecado. As luzes devem ter sofrido uma pane e ficado fracas”. Mas no instante seguinte tudo está normal, a lâmpada por cima de sua mesa parece igual à de sempre, ela esfrega os olhos e sacode a cabeça grisalha... “Milly Sheehan tinha uma vida tranqüila e confortável, já estava na hora de ela cuidar de um trabalho de verdade...” e fica atônita ao ouvir o Sr. James dizer à moça que, se ela voltar amanhã, poderão conversar sobre um emprego de secretária. “Afinal, o que há de trabalho por aqui?”)

E Ricky, olhando para Sears, também ficou espantado: tra­balho de secretária? Tinham uma secretária em meio expedien­te, Mavis Hodge, que cuidava da maior parte do serviço de datilografia; a fim de arrumarem trabalho para outra secretária, teriam que começar a responder a toda a correspondência de circulares que recebiam. Mas é claro que não era a necessidade de mais gente no escritório que levava Sears a tratar a moça daquela maneira. Era aquele nome, Eva Galli, pronunciado num tom que teria o sabor de vinho do Porto, se se pudesse bebê-lo... Subitamente, Sears parecia muito cansado, a insônia e os pesadelos, a visão de Fenny Bate e Elmer Scales com suas malditas ovelhas, como John morrera, tudo se reunia para dei­xá-lo totalmente abalado, se bem que apenas por um momento. Ricky percebeu o medo e a exaustão do sócio, e compreendeu que até mesmo Sears podia desmoronar.

—  Isso mesmo, volte amanhã — disse ele para a moça.

Notou que o rosto oval e as feições delicadas eram mais do que apenas atraentes. Naquele momento, como sabia muito bem, se havia alguém que Sears não precisava recordar era Eva Galli. A Sra. Quast olhava para ele, e por isso Ricky disse-lhe que tratasse de despachar todos os telefonemas que surgissem durante a tarde, só para dizer alguma coisa.

—  Pelo que imagino, um bom amigo de vocês acaba de morrer — disse a moça para Ricky. — Lamento muito ter apa­recido num momento tão difícil. — Sorriu pesarosamente, de um modo que parecia uma preocupação genuína. — Por favor, não deixem que minha presença os atrase.

Ricky contemplou mais uma vez o rosto de raposa da moça, antes de se virar para Sears e para a porta. O sócio estava abotoando o casaco, com uma expressão pensativa, o rosto páli­do. Ricky pensou que talvez o instinto de Sears estivesse certo, que talvez o aparecimento daquela moça fosse parte do enigma, parecia até que nada mais acontecia por acaso. Era como se houvesse algum plano, como se só pudessem descobrir do que se tratava depois de reunir todas as peças.

—  Provavelmente  nem  mesmo  foi John — comentou Sears, já no carro. — Hardesty é tão incompetente que eu não ficaria surpreso se simplesmente aceitou a palavra de Ornar Norris.

Ele não terminou a frase. Ambos os sócios sabiam que o comentário não passava de fantasia. Contraindo os lábios, in­fantilmente Sears murmurou:

—  Está frio... frio demais...

Ricky assentiu, pensando finalmente em outra coisa para dizer:

—  Pelo menos Milly não vai passar fome.

Sears suspirou, parecendo achar graça.

—  E também é muito bom saber que ela nunca mais vai arrumar outro emprego que lhe proporcione o privilégio de ficar escutando atrás das portas.

E depois houve silêncio novamente, como se ambos reco­nhecessem que não restava a menor dúvida de que John Jaffrey pulara da ponte de Milburn e se afogara no rio gelado.

Depois de pegarem Hardesty na casa de Jaffrey e seguirem para a pequena cadeia da cidade, onde o corpo estava à espera do carro do necrotério, constataram que Omar Norris não se enganara. O morto era mesmo John e parecia mais devastado do que em vida. Os cabelos ralos estavam grudados na cabeça, os lábios repuxados deixavam à mostra gengivas roxas, parecia inteiramente vazio, como no pesadelo de Ricky Hawthorne.

—  Jesus... — murmurou Ricky.

Walt Hardesty sorriu e disse:

— Não é esse o nome que temos, senhor advogado.

— Dê-nos os formulários, Hardesty — falou Sears. E de­pois de uma breve pausa, como era Sears, não pôde deixar de acrescentar: — Levaremos também os pertences dele, a menos que tenha conseguido perdê-los assim como a dentadura.

Pensavam que poderiam encontrar uma pista que expli­casse a morte de Jaffrey nas poucas coisas contidas no envelope pardo que Hardesty lhes entregou. Mas não conseguiram tirar qualquer conclusão da miscelânia tirada dos bolsos de John Jaffrey. Um pente, seis botões de peitilho e abotoaduras corres­pondentes, um exemplar de The making of a surgeon, uma caneta esferográfica, um molho de chaves numa bolsinha de couro já bastante usada, três moedas de vinte e cinco cents e uma de dez cents. Sears espalhou tudo sobre seu colo, no as­sento da frente do velho Buick de Ricky.

—  Seria demais esperar um bilhete — disse ele, inclinan­do-se depois para trás e esfregando os olhos. — Estou come­çando a me sentir como um membro de uma espécie em perigo. — Voltou a se empertigar, olhou para os objetos em seu colo e acrescentou: — Quer ficar com alguma dessas coisas ou vamos entregar tudo a Milly?

—  Talvez Lewis queira ficar com os botões de peitilho e as abotoaduras.

—  Pois então pode dar para ele. Já me ia esquecendo de Lewis. Vamos ter de contar-lhe. Quer voltar para o escritório?

Ficaram sentados, atordoados, no velho carro de Ricky. Sears tirou um charuto comprido da caixa, cortou a ponta e, sem perder tempo com o ritual de cheirar e rolar entre as mãos, acendeu-o. Ricky abaixou sua janela sem se queixar; sabia que Sears estava fumando por puro reflexo, sem sequer pensar no charuto.

— É muito estranho, Ricky... John está morto e ficamos falando de suas abotoaduras.

Ricky ligou o carro.

—  Vamos voltar para a Melrose Avenue e tomar um drinque.

Sears tornou a pôr a patética coleção de objetos no envelo­pe pardo, dobrou-o ao meio e guardou-o no bolso do casaco.

—  Tome cuidado ao guiar. Já percebeu que está nevando novamente?

—  Claro que já percebi. Se começa a nevar tão cedo e depois piora ainda mais, poderemos estar soterrados pela neve antes do final do inverno. Talvez devêssemos providenciar um estoque de comida em lata, como medida de segurança.

Ricky acendeu os faróis, sabendo que Sears não demoraria a sugeri-lo. O céu cinzento que pairava sobre a cidade há sema­nas escurecera, estava agora quase preto, as nuvens pareciam ondas ameaçadoras.

—  Ainda me lembro da última vez em que ficamos isola­dos pela neve. . . — comentou Sears.

—  Foi em 1947 — disse Ricky. — Eu tinha acabado de voltar da Europa. Um inverno terrível.

—  E a ocasião anterior foi nos anos 20.

—  Em 1926. A neve quase cobriu as casas.

—  E morreram muitas pessoas. Uma vizinha minha mor­reu naquela nevasca.

—  Quem era? — indagou Ricky.

—  O nome dela era Viola Frederickson. Foi surpreendida pela nevasca em sua charrete. E ficou congelada até a morte. Os Frederickson moravam na casa que depois pertenceu a John. — Sears suspirou novamente, no momento em que Ricky entra­va na praça e passava pelo hotel. Flocos de neve, como bolas de algodão, caíam diante das janelas escuras do hotel. — Pelo amor de Deus, Ricky, feche sua janela! Está querendo conge­lar-nos?

Levantou as mãos para ajeitar melhor a gola de pele do casaco em torno do pescoço, avistando então o charuto entre os dedos.

— Desculpe, Ricky. É o hábito. — Sears baixou a janela do seu lado e jogou fora o charuto. — Um tremendo desper­dício...   

Ricky pensou no corpo de John Jaffrey estendido no catre de uma cela, em dar a notícia a Lewis, na pele arroxeada esti­cada do crânio de John. Sears tossiu:

—  Não consigo entender por que ainda não recebemos qualquer notícia do sobrinho de Edward.

—  Provavelmente ele não se interessou e nem se deu ao trabalho de responder. — Ricky percebeu que a neve já não caía com tanta intensidade. — É melhor assim.

No instante seguinte, ele pensou: “Talvez não”. O ar tinha uma estranha escuridão ao meio-dia, uma escuridão que não parecia ser afetada pelos faróis do carro. A luz dos faróis não passava de uma pequena claridade quase invisível na frente do carro. Mas os objetos e contornos da cidade pareciam brilhar, não com a claridade amarelada projetada pelos faróis, mas com o branco das nuvens, ainda se agitando e espumando lá em cima: ali brilhava subitamente uma cerca de madeira, mais além se destacava uma porta, depois os contornos de um prédio. Podia-se avistar o brilho nas pedras de uma calçada, nos chou­pos desfolhados em um gramado. A cor pálida fazia Ricky re­cordar-se do rosto de John Jaffrey. Acima dessas coisas espar­sas brilhando, o céu, além das nuvens turbilhonando, estava ainda mais escuro.

—  O que acha que aconteceu? — indagou Sears, abrup­tamente.

Ricky entrou na Melrose Avenue.

—  Quer passar antes em sua casa, Sears?

—  Não, obrigado. Tem ou não alguma opinião formada?

—  Eu gostaria de saber o que aconteceu com as ovelhas de Elmer Scales.

Pararam diante da casa de Ricky, com Sears apresentando sinais óbvios de impaciência.

—  Não sei e não me interesso em saber o que pode ter havido com as ovelhas do Nosso Virgílio.

Sears queria sair do carro, queria encerrar a conversa, teria resmungado de desespero, se Ricky mencionasse a aparição de Fenny Bate descalço e esquelético na escada de sua casa. Ricky percebeu tudo isso num relance. Depois que saltaram do carro, quando estavam subindo pelo caminho em direção à porta, ele disse:

—  Sobre aquela moça que apareceu no escritório esta manhã...

—  O que há com ela?

Ricky enfiou a chave na fechadura.

— Se quer dar a impressão de que precisamos de uma secretária, não há problema. Mas...

Stella abriu a porta por dentro, já falando:

—  Estou tão contente de vocês terem vindo! Receava que tivessem voltado para a sufocante Wheat Row, fingindo que nada havia acontecido. Pensei que fossem fingir que estavam trabalhando, deixando-me sem saber de nada. Sears, por favor, entre logo de uma vez! Não quero que todo o calor saia pela porta aberta! Entrem logo!

Os dois quase que se arrastaram para o vestíbulo, moven­do-se como velhos e cansados cavalos de carroça. Tiraram os casacos.

—  Os dois estão horríveis! — acrescentou Stella. — Quer dizer que não foi um equívoco de identidade? Era mesmo John?

—  Era John — murmurou Ricky. — E não podemos di­zer-lhe mais nada, Stella. Ao que parece, ele pulou da ponte.

—  Santo Deus! — exclamou Stella, toda a sua exuberân­cia desaparecendo  por um momento.  —   Pobre   Sociedade Chowder!

—  Amém — disse Sears.

Depois do almoço, Stella disse que ia preparar alguma coisa para Milly.

—  Talvez ela queira comer um pouco.

—  Milly? — indagou Ricky, aturdido.

—  Milly Sheehan. Será que preciso lembrar-lhe quem é ela? Não poderia deixá-la sozinha naquela casa imensa de John. Fui buscá-la de carro e trouxe-a para cá. A pobre coitada está arrasada e por isso a pus na cama. Esta manhã, ao acordar, ela não encontrou John e ficou andando pela casa, aflita, até que aquele horrível Walt Hardesty apareceu.

—  Fez muito bem — disse Ricky.

—  Se você e Sears não estivessem tão preocupados consi­go mesmos, teriam se lembrado de pensar um pouco na pobre Milly.

Sentindo-se atacado, Sears levantou a cabeça bruscamente, piscando.

—  Milly não tem preocupações. Ficou com a casa de John e uma exagerada quantia em dinheiro.

—  Exagerada, Sears? Por que não leva a bandeja que vou preparar para Milly e diz a ela como deve sentir-se grata? Acha que isso iria animá-la? Acha que ela vai sentir-se feliz só porque John Jaffrey deixou-lhe uns poucos milhares de dólares?

— Não se pode dizer que foram apenas uns poucos milhares, Stella — interveio Ricky. — John deixou para Milly quase tudo o que possuía.

—  O que não poderia deixar de acontecer — declarou Stella, retirando-se para a cozinha, furiosa, deixando a ambos aturdidos.

—  Costuma ter dificuldades em decifrar o que sua mulher fala?

—  De vez em quando. Havia um livro de código, mas creio que Stella o jogou fora depois do casamento. Vamos ligar para Lewis e contar-lhe o que aconteceu? Acho que já adiamos a comunicação por tempo demais.

—  Passe-me o telefone, Ricky.

 

(Lewis Benedikt)

 

Mesmo não estando com fome, Lewis preparou o almoço por puro hábito: requeijão, salsichão e uma fatia grossa do queijo cheddar de Otto Gruebe, feito pessoalmente pelo pró­prio, em sua pequena fábrica três quilômetros depois de Afton. Sentindo-se um pouco perturbado pelas experiências daquela ma­nhã, foi com prazer que Lewis começou a pensar no velho Otto. Era um homem simples e objetivo, o corpo lembrando o de Sears James, mas um tanto encurvado de uma vida inteira a se debruçar sobre tinas; tinha o rosto flexível de um cômico, ombros e mãos enormes. Otto fizera o seguinte comentário a respeito da morte da esposa de Lewis:

— Teve um probleminha lá na Espanha, não é mesmo? Foi o que me contaram na cidade. É uma pena, Lewis.

Depois do tato demonstrado por todo mundo, a franqueza de Otto deixara Lewis imensamente comovido. Otto, com a pele pálida e curtida de passar dez horas por dia em sua pequena fábrica de queijo, Otto, com seus cachorros caçadores de gua­xinins. . . ele jamais tivera medo de assombração em qualquer dia de sua vida. Mastigando o almoço, Lewis pensou que um dia desses, muito em breve, tinha que pegar o carro e fazer uma visita a Otto. Levaria sua arma e sairia com Otto e seus cachorros para caçar guaxinins. A obstinação germânica de Otto certamente lhe iria fazer muito bem.

Mas agora estava nevando novamente; os cachorros esta­riam latindo nos canis, e o velho Otto estaria desnatando o leite e amaldiçoando o inverno prematuro.

“Uma pena.” Isso mesmo: era uma pena. Mais do que isso: era um mistério. Como Edward.

Lewis levantou-se abruptamente e levou os pratos para a pia. Olhou para o relógio e gemeu. Eram onze e meia e o almo­ço já acabara; o resto do dia assomava à sua frente como uma montanha tenebrosa. Nem sequer tinha a perspectiva de uma conversa inconseqüente com alguma garota; como também não podia contar, já que estava tentando acalmar as coisas, com uma tarde de prazeres mais profundos com Christina Barnes.

Lewis Benedikt conseguira ser bem sucedido em algo que geralmente se considera uma impossibilidade total numa cidade pequena como Milburn: desde o primeiro mês de sua volta da Espanha, criara uma vida secreta que permanecera secreta. Cor­tejava universitárias, jovens professoras da escola secundária, cabeleireiras, as moças volúveis que vendiam cosméticos na loja de departamentos Young Brothers, qualquer garota bonita o bastante para ser ornamental. Usara sua boa aparência, charme natural e humor, assim como seu dinheiro, para fixar-se na mitologia da cidade como uma personagem certamente cômica: o playboy envelhecido, o velho sátiro. Infantilmente, maravilho­samente desinibido, Lewis levara suas namoradinhas aos melho­res restaurantes em sessenta quilômetros ao redor, oferecendo-lhes as melhores comidas e vinhos, mantendo-as extasiadas. Levava para a cama — ou era levado para a cama por — cerca de um quinto dessas moças, as que demonstravam por suas risadas que nunca poderiam levá-lo a sério. Quando um casal — como Walter e Christina Barnes — entrava em The Old Mill, perto de Kirkwood, ou no Christo’s, entre Belden e Harpursville, podia esperar deparar com a cabeça grisalha de Lewis inclinada na direção de uma jovem bonita e sorridente com um terço de sua idade.

— Olhe só o velho patife em ação novamente — podia comentar Walter Barnes.

A esposa dele sorria, mas seria muito difícil dizer o que significava aquele sorriso.

Pois Lewis usava sua reputação cômica para camuflar a seriedade de seu coração, recorria a seus romances públicos com as mocinhas para esconder seus relacionamentos mais profundos e sinceros com mulheres mais velhas. Ele podia passar as noites com as mocinhas, mas se encontrava uma ou duas vezes por semana com as mulheres a quem realmente amava, de tarde, enquanto os maridos estavam trabalhando. A primeira dessas mulheres fora Stella Hawthorne, sob muitos aspectos o menos satisfatório de seus amores, fixando os padrões para os seguin­tes. Stella era por demais espontânea e espirituosa, tratando-o com indiferença. Ela estava se divertindo, e pura diversão era o que proporcionavam a Lewis as cabeleireiras e jovens profes­soras da escola secundária. Lewis queria sentimento. Queria emoção... do que muito precisava. Stella era a única esposa de Milburn que, testada, se esquivara a tal necessidade. Stella lhe devolvera a imagem de playboy, conscientemente. Lewis a ama­ra intensamente por algum tempo, mas suas necessidades não haviam sido atendidas. Stella não queria a exacerbação dos sen­timentos de Sturm und Drang; Lewis, no fundo do seu coração carente, sabia que desejava reencontrar as emoções que Linda lhe proporcionara. O frívolo Lewis era apenas o Lewis da su­perfície. Tristemente, deixara Stella se afastar; as insinuações que fizera e a emoção que oferecera haviam-na deixado indife­rente. E sabia que Stella pensava que, depois dela, ele se lançara simplesmente a uma sucessão interminável de ligações vazias com mulheres bem mais jovens.

Em vez disso, porém, Lewis tivera, oito anos antes, uma ligação séria com Leota Mulligan, a esposa de Clark Mulligan. E depois de Leota fora a vez de Sonny Venuti, em seguida Laura Bautz, a esposa do dentista Harlan Bautz, e finalmente Christina Barnes, um caso que começara há um ano. Acalentara cada uma dessas mulheres. Amara a estabilidade delas, a afeição aos maridos, seus desejos, suas atitudes. Adorava conversar com elas. E todas essas mulheres o compreendiam e cada uma soubera exatamente o que ele estava oferecendo: mais um pseudocasamento secreto do que uma ligação amorosa.

Quando a emoção começava a se tornar gasta e repetida, estava na hora de encerrar a relação. Lewis ainda amava cada uma daquelas mulheres, ainda amava Christina Barnes, mas...

O “mas” era aquela parede que estava diante dele. A parede era o que Lewis chamava o momento em que começava a pensar que seus relacionamentos profundos eram tão triviais quanto seus romances públicos e com mulheres mais jovens. Era o momento de se retrair. E frequentemente, nos momentos de retração, Lewis se descobria a pensar em Stella Hawthorne.

Mas não podia ficar pensando na perspectiva de uma tarde com Stella Hawthorne. Fantasiar isso seria confirmar a própria insensatez para si mesmo.

O que poderia ser mais insensato do que a cena ridícula daquela manhã? Lewis afastou-se da pia e foi até a janela, olhan­do para o caminho que se embrenhava pelo bosque, recordando como correra por ali, ofegante, o coração disparado pelo terror. Era o que se podia classificar de verdadeira estupidez. A neve fofa caía lá fora, o bosque familiar parecia ter criado braços brancos, a trilha de retorno estava inofensivamente vazia, for­mando um ângulo atraentemente estranho, sem levar a parte alguma.

— Quando se cai de um cavalo, o jeito é montar de novo — disse Lewis para si mesmo.

O que acontecera? Será que ouvira... vozes? Não, não fora isso; ouvira a si mesmo, pensando. Assustara-se ao recordar com extrema nitidez a última noite de Linda viva. Isso e mais o pesadelo — Sears e John avançando em sua direção — haviam confundido suas emoções, levando-o a se comportar como al­guém de uma das histórias da Sociedade Chowder. Nenhum estranho maléfico se postara atrás dele na trilha de volta para casa. Não se podia andar pelo bosque sem se fazer ouvir. Tudo podia ser perfeitamente explicado.

Lewis subiu para seu quarto, vestiu um suéter e um casaco com capuz, desceu novamente e saiu pela porta da cozinha.

As pegadas que deixara pela manhã já estavam começando a ficar cobertas pela neve que continuava a cair. O ar estava extremamente agradável, frio e penetrante. Se não podia caçar guaxinins com Otto Gruebe, poderia pelo menos esquiar muito em breve. Lewis foi até a beira do pátio de lajes e seguiu em frente, pela trilha. Lá em cima, o céu estava escuro, com algu­mas nuvens refulgentes; uma claridade cinzenta se espalhava pelo dia. A neve nos galhos dos pinheiros brilhava, tão branca quanto o luar.

Determinado, foi avançando pela trilha por onde normal­mente voltava. Seu próprio medo o surpreendeu, fazendo formi­gar a boca e a barriga, em expectativa.

— Estou aqui e quero ver se vem apanhar-me — disse ele, sorrindo.

Não sentiu a presença de coisa alguma, a não ser o dia e o bosque, a casa atrás de si; depois de um momento, compreen­deu que até mesmo o medo desaparecera.

E agora, caminhando pela neve recente na direção do bos­que, Lewis experimentou uma percepção nova. Talvez fosse porque estivesse vendo o bosque de um ângulo diferente e pouco familiar, indo por onde habitualmente voltava, talvez fosse porque estivesse andando pela primeira vez em muitas semanas, ao invés de correr. Qualquer que fosse a razão, a verdade é que o bosque parecia uma ilustração num livro, não um bosque de verdade, mas um desenho no papel. Era um bosque de conto de fadas, parecendo perfeito demais, certinho demais, desenhado em tinta preta, para ser real. Até mesmo a trilha, serpenteando sem direção definida, parecia uma trilha de conto de fadas.

Eram a extrema claridade e definição que produziam o mis­tério. Cada galho desfolhado e pontudo, cada emaranhado de hastes, cada coisa, enfim, sobressaía separadamente, isoladamen­te, reluzindo com sua própria vida. Alguma estranha magia pairava por ali, logo além do ponto em que a visão podia alcan­çar. Ao se embrenhar mais fundo pela mata, onde a neve recente ainda não penetrara, Lewis avistou suas próprias pegadas da manhã, que também pareciam uma ilustração e parte do conto de fadas, meio fantasmagóricas, pegadas na neve vindo em sua direção.

Lewis estava inquieto demais para ficar parado depois de sua caminhada. O vazio da casa proclamava que ali não havia nenhuma mulher e não haveria por algum tempo, a menos que Christina Barnes aparecesse para uma cena final. Há semanas que uns poucos trabalhos na casa reclamavam sua atenção — precisava verificar como estava a fossa, a mesa de jantar merecia um bom polimento, assim como quase toda a prataria —, mas tudo isso poderia esperar mais um pouco. Ainda com o suéter e o casaco de capuz, Lewis vagueou pela casa, indo de um andar para outro, jamais se demorando em qualquer cômodo.

Entrou na sala de jantar. A mesa grande de mogno parecia censurá-lo; a superfície estava opaca, ligeiramente arranhada aqui e ali, das ocasiões em que servira a Comida em louça de barro espanhola, sem se dar o trabalho de usar esteiras. As flores no vaso no centro da mesa haviam definhado; umas pou­cas pétalas, como abelhas mortas, estavam caídas sobre a ma­deira. “Esperava realmente ver alguém lá fora?”, perguntou Lewis a si mesmo. “E está desapontado por não ter visto?”

Saindo da sala de jantar com o vaso de flores murchas nas mãos, Lewis avistou novamente o bosque de conto de fadas. Os galhos reluziam, os espinhos sobressaíam como tachas, insinuan­do alguma narrativa sobre a qual ele já fechara o livro.

“Ora...” Lewis sacudiu a cabeça, levando as flores mur­chas para a cozinha e jogando-as na lata de lixo. “A quem espe­rava encontrar? A si mesmo?” Inesperadamente, Lewis corou.

Largou o vaso vazio em cima da pia e saiu novamente da casa, atravessando o pátio até o antigo estábulo, que algum proprietário anterior convertera em garagem e depósito de fer­ramentas. O Morgan estava estacionado ao lado de uma ban­cada de carpintaria, coberta de chaves de parafusos, alicates e pincéis dentro de latas. Lewis abaixou a cabeça, abriu o carro e sentou-se ao volante.

Saiu da garagem e saltou do carro para fechar a porta pe­sada. Depois, voltou ao carro e seguiu pelo caminho margeado de árvores na direção da estrada. No mesmo instante sentiu que voltava a ser ele próprio: a capota de lona do Morgan sacudia-se ao vento, o ar frio lhe desmanchava os cabelos, o tanque estava quase cheio.

Quinze minutos depois, estava cercado por colinas e cam­pos abertos, com pequenos capões a intervalos. Seguiu por es­tradas secundárias, a uma velocidade de cento e dez quilômetros horários, algumas vezes acelerando até cento e trinta, quando se encontrava numa boa reta. Contornou o vale Chenago, acom­panhou o rio Tioughnioga até Whitney Point, depois virou para oeste, na direção de Richford e Caroline, no vale Cayuga. Às vezes, nas curvas, a traseira do pequeno carro derrapava um pouco, mas Lewis o controlava habilmente, sem sequer pensar no que estava fazendo. Lewis guiava muito bem, instintiva­mente.

Finalmente percebeu que estava seguindo pelo mesmo ca­minho e da mesma forma que no tempo em que era um estu­dante voltando a Cornell. A única diferença era o fato de a velocidade inebriante naquela ocasião ser de cinqüenta quilôme­tros horários.

Depois de quase duas horas guiando por pequenas estradas secundárias, passando por fazendas e parques estaduais, só para ver o que lhes tinha acontecido, Lewis podia sentir o rosto en­torpecido pelo frio. Estava no Condado de Thompkins, perto de Ithaca, uma região mais lírica do que ao redor de Bingham­ton. Chegou ao topo das colmas, onde podia avistar a estrada preta atravessando vales e serpenteando por encostas cobertas de árvores. O céu escureceu bastante, embora a tarde ainda andasse pelo meio. Lewis teve a impressão de que cairia mais neve antes do anoitecer. Depois, à sua frente, numa reta extensa o bastante para acelerar até a velocidade necessária, avistou um trecho largo da estrada onde poderia fazer o Morgan dar uma volta completa, um cavalo-de-pau. Mas recordou a si mesmo que já estava com sessenta e cinco anos, velho demais para rea­lizar proezas com um carro. Em vez disso, aproveitou o trecho mais largo para fazer a volta e seguir de novo para casa.

Indo agora mais devagar, atravessou o vale na direção de Hartford, virando para leste. Nas retas, sempre acelerava o carro um pouco, mas tomando cuidado para se manter abaixo dos cento e dez quilômetros horários. Mesmo assim, continuava sentindo bastante prazer, na velocidade e no ar frio batendo em seu rosto, no controle hábil do pequeno carro. Tudo o fazia quase sentir que era novamente um rapaz, deixando a universi­dade e voando pelas estradas de volta para casa. Uns poucos flocos de neve maiores começaram a cair.

Perto do aeroporto, nos arredores da Glen Aubrey, passou por uma fileira de bordos desfolhados e viu neles a mesma claridade refulgente do seu próprio bosque. As árvores pareciam inundadas de magia, com algum significado oculto que fazia parte de uma história complexa, heróis transformados em rapo­sas, príncipes sofrendo a maldição de um feiticeiro. Ele viu as pegadas correndo em sua direção.

“...vamos supor que saia para dar uma caminhada e veja a si mesmo correndo em sua direção, os cabelos esvoaçando, o rosto contorcido pelo medo.

Sentiu um frio por dentro, tão intenso quanto o frio no rosto. À sua frente, parada no meio da estrada, estava uma mu­lher. Teve tempo apenas para perceber o alarma na postura dela, os cabelos caídos sobre os ombros. Deu uma guinada no volante, perguntando-se de onde diabo ela saíra — “Santo Deus, ela pulou para o mesmo lado que o carro” —, ao mesmo tempo em que percebia que iria inevitavelmente atingi-la. O carro ia der­rapar de lado.

A traseira do Morgan foi deslizando lentamente na direção da mulher. Depois, todo o carro estava derrapando de lado e Lewis não mais a viu. Em pânico, deu uma guinada no volante para o outro lado. O tempo parecia ter-se reduzido a um casulo sólido, envolvendo-o, sentado num carro descontrolado. De­pois, o momento mudou, o casulo se rompeu e o tempo voltou a fluir novamente. Lewis compreendeu, mais passivo do que em qualquer outra ocasião de sua vida, que o carro saíra da estrada; tudo estava acontecendo com uma lentidão inacreditável, quase preguiçosamente, o Morgan flutuando no ar.

Tudo terminou um momento depois. O carro parou num campo, com um terrível solavanco, com a frente voltada para a estrada. Lewis não avistava em parte alguma a mulher que poderia ter atropelado. Sentiu gosto de sangue na boca; as mãos tremiam, apertando o volante com força. Talvez tivesse atingido a mulher e jogado o corpo numa vala. Teve que fazer um tre­mendo esforço para abrir a porta. Saltou. Descobriu que as pernas também estavam tremendo. Compreendeu imediatamen­te que não teria a menor possibilidade de tirar o Morgan dali. Os pneus traseiros estavam totalmente atolados no campo. Pre­cisaria de um reboque.

— Ei! — gritou ele. — Está bem? — Obrigou as pernas a se moverem, enquanto gritava novamente: — Está machu­cada?

Quase cambaleando, Lewis encaminhou-se para a estrada. Viu as marcas que o carro deixara. Os quadris lhe doíam. Sentia-se de repente muito velho.

—  Ei, moça!

Não podia avistar a jovem em parte alguma. Com o cora­ção descompassado, foi até a beira da estrada, receando o que poderia ver na vala que ali havia, braços e pernas estendidos em ângulos disformes, cabeça torcida... mas a vala continha apenas uma camada de neve intata. Olhou para um lado e outro da estrada: não havia qualquer mulher à vista.

Lewis acabou desistindo. De alguma forma, a mulher sumira tão bruscamente quanto aparecera; ou então ele simples­mente imaginara tê-la visto. Esfregou os olhos. Os quadris lhe doíam, os ossos pareciam estar roçando uns nos outros. Foi andando pela estrada, esperando achar uma casa de fazenda de onde pudesse telefonar para pedir socorro. Quando finalmente a encontrou, um homem com uma espessa barba preta e olhos animais deixou-o usar o telefone, mas obrigou-o a ficar esperan­do do lado de fora, no alpendre, até a chegada do reboque.

 

Lewis só chegou em casa depois das sete horas. Estava faminto. E bastante irritado. A moça lá estivera apenas por um momento pulando à sua frente como uma corça; depois que entrara na derrapagem, perdera-a de vista inteiramente. Mas naquela reta comprida, para onde ela poderia ter corrido, depois que ele fora parar no campo? Assim, talvez ela estivesse real­mente morta, o corpo caído numa vala. Mas até mesmo um cachorro atropelado deixaria uma marca na carroçaria do Mor­gan... e o carro estava intato.

— Mas que diabo! — exclamou ele, em voz alta.

O carro estava parado diante da casa; Lewis entrara há poucos minutos, o suficiente para se esquentar. A inquietação do meio-dia, a sensação de que se não saísse dali alguma coisa terrível iria acontecer — que algo pior do que o acidente estava apontado para ele como uma arma — voltara subitamente. Lewis subiu ao seu quarto, tirou o suéter e o casaco, vestiu uma camisa limpa, uma gravata e um blazer. Iria até o Hum­phrey’s Place, comeria um hambúrguer, tomaria algumas cerve­jas. Era o melhor que tinha a fazer naquele momento.

 

O estacionamento estava quase repleto e Lewis teve que parar numa vaga perto da estrada. A nevasca ligeira cessara ao final da tarde, mas o ar continuava frio e tão pungente que se tinha a impressão de que era possível quebrá-lo em pedaços com as mãos. Cartazes de cervejas brilhavam nas janelas do prédio comprido e cinzento; a country music, do pequeno conjunto de quatro músicos, atravessava o estacionamento até Lewis. Wabash cannonball.

Uma nota mais aguda do violino penetrou no cérebro de Lewis assim que ele entrou. Franziu o rosto e olhou para o músico tocando o instrumento, os cabelos caindo até os ombros, o quadril esquerdo e o pé direito se mexendo no ritmo. Mas os olhos do rapaz estavam fechados e ele não podia perceber a reação de Lewis. No instante seguinte, a música voltou a ser apenas música, embora a dor de cabeça de Lewis perdurasse. O bar estava apinhado e fazia tanto calor que Lewis começou a suar quase que imediatamente. Humphrey Stalladge, grande e informe, um avental por cima da camisa branca, deslocava-se de um lado para outro, por trás do balcão. Todas as mesas perto do conjunto pareciam estar ocupadas por garotos, toman­do cerveja em canecas. Olhando-os por trás, sentados ali, Lewis não podia sinceramente distinguir entre os rapazes e as moças. “E se visse a si mesmo correndo em sua direção, correndo na direção dos faróis de seu carro, os cabelos esvoaçando, o rosto contorcido pelo medo...”

—  Vai querer alguma coisa, Lewis? — perguntou Hum­phrey.

—  Duas aspirinas e uma cerveja. Estou com uma tremen­da dor de cabeça. E quero também um hambúrguer, Humphrey. Obrigado.

Na outra extremidade do balcão, tão longe do conjunto musical quanto era possível, parecendo ao mesmo tempo mo­lhado e sujo, Omar Norris era o centro das atenções de um grupo de homens. Enquanto ele falava, os olhos se esbugalha­vam e as mãos faziam movimentos amplos. Lewis sabia que, se chegasse perto o suficiente, acabaria vendo a saliva de Omar brilhando nas lapelas dos homens que o cercavam. Quando era mais jovem, as histórias de Omar sobre os meios que empre­gava para escapar do controle da esposa e os estratagemas ao melhor estilo de W. C. Fields para evitar o trabalho, embora fosse encarregado de manobrar o removedor de neve da cidade e todos os anos servisse como Papai Noel da loja de departa­mentos, ainda podiam ser bastante divertidas. Agora, porém, Lewis ficou um tanto surpreso ao constatar que alguém ainda fosse capaz de ouvir as histórias dele. Estavam até mesmo pa­gando-lhe drinques. Stalladge voltou com os comprimidos de aspirina e pôs um copo de cerveja diante dele, informando:

—  O hambúrguer já está a caminho.

Lewis pôs as aspirinas na língua e depois as engoliu. O conjunto deixara de tocar Wabash cannonball e estava atacando outra música, uma canção que ele não reconheceu. Uma das moças nas mesas diante do conjunto se virara e estava olhando para ele. Lewis fez-lhe um aceno com a cabeça.

Terminou de tomar a cerveja e olhou para o resto da mul­tidão. Havia apenas uns poucos reservados vazios na frente.  Olhou para Humphrey e apontou para o copo. Depois que es­tava cheio novamente, pegou-o e foi para um dos reservados, atravessando o bar. Se não se apressasse a ocupar um deles, seria forçado a passar a noite inteira no balcão. No meio do caminho, acenou com a cabeça para Rollo Draeger — que vinha até ali para escapar às queixas incessantes de Irmengard — e só então reconheceu o rapaz sentado ao lado da moça que o fitara: Jim Hardie, o filho de Eleanor, que ultimamente saía quase que invariavelmente com a filha de Draeger. Olhou novamente para o casal e descobriu que ambos o estavam fitando agora. Lewis achava que Jim Hardie era um rapaz meio esquisito, grande e forte, bastante louro, mas com um brilho selvagem nos olhos. Estava sempre sorrindo. Walt Hardesty dissera a Lewis que provavelmente fora Jim Hardie quem ateara fogo ao velho es­tábulo abandonado de Pugh e também incendiara um campo. O rapaz estava sorrindo naquele momento. E Lewis constatou que a moça em sua companhia era mais velha que Penny Drae­ger e também mais bonita.

Lewis recordou-se de uma época, anos antes, em que tudo era mais simples, quando ele é que estaria sentado ao lado de uma moça, escutando uma orquestra, de Noble Sissle ou Benny Goodman. A recordação fê-lo correr os olhos pela sala automa­ticamente, à procura do rosto expressivo de Stella Hawthorne. Mas sabia, desde o momento em que entrara e registrara o fato na mente semiconscientemente, que ela não estava ali.

Humphrey apareceu com o hambúrguer, olhou para o copo dele e disse:

—  Se vai beber tão depressa assim, não prefere uma caneca?

Lewis nem mesmo percebera que já havia terminado o segundo copo de cerveja.

—  Boa idéia.

—  Não me parece muito animado — comentou Hum­phrey.

O conjunto, que estivera discutindo alguma coisa, voltou a tocar neste momento, ruidosamente, poupando a Lewis a ne­cessidade de responder. As duas garçonetes que ajudavam Hum­phrey, Anni e Annie, entraram na sala, provocando uma onda de calor. Eram razão suficiente para se ficar por ali. Anni era meio cigana, os cabelos pretos encaracolados flutuando em torno de um rosto sensual; Annie parecia uma viking, com pernas fortes e bem torneadas, e lindos dentes. As duas tinham trinta e poucos anos e falavam como professoras universitárias. Vi­viam com seus homens fora da cidade e não tinham filhos. Lewis gostava muito de ambas e já saíra com as duas para jantar fora. Anni viu-o e acenou. Lewis acenou em resposta, enquanto o guitarrista, apoiado por um violino estridente, gri­tava:

 

“Você perdeu seu amor, eu perdi o meu,

então vamos encontrar

um jardim vago para semear nossos sonhos?”

 

Humphrey afastou-se, para dar instruções às garçonetes. Lewis deu uma mordida no hambúrguer.

Ao levantar os olhos, deparou com Ned Rowles parado a seu lado. Lewis alteou as sobrancelhas e, ainda mastigando, co­meçou a levantar-se e fez um gesto para que Rowles entrasse no reservado. Ele também gostava de Ned Rowles, que trans­formara The Urbanite num jornal interessante, não se limitan­do, como os típicos jornais de cidades pequenas, a notícias sobre piqueniques dos bombeiros e anúncios de vendas em mercearias.

—  Ajude-me a acabar com isto — disse ele, despejando um pouco da cerveja da caneca no copo quase vazio de Ned.

—  E eu não ganho nada? — indagou uma voz mais pro­funda e mais seca às suas costas.

Aturdido, Lewis virou a cabeça e viu Walt Hardesty fi­tando-o. O que explicava por que Lewis não vira Ned ao che­gar; ele e Hardesty estavam na sala dos fundos, onde Humphrey costumava guardar caixas de cerveja. Lewis sabia que Hardesty, que ano a ano ia se entregando à bebida tanto quanto Omar Norris, algumas vezes passava a tarde inteira na sala dos fun­dos; o xerife não bebia na presença de seus auxiliares.

—  Claro, Walt — disse ele. — Não o tinha visto. Por favor, sente-se também.

Ned Rowles fitava-o com uma expressão estranha. Lewis tinha certeza de que o editor do jornal achava Hardesty tão enfadonho quanto ele e não estava mais querendo ficar em sua companhia. Mas será que estava esperando que ele mandasse o xerife embora? O que quer que pudesse significar seu olhar, o fato é que Rowles deslizou para o outro lado do banco, a fim de dar lugar ao xerife. Hardesty ainda estava usando o casaco de sair à rua, o que indicava que a sala dos fundos era provavelmente fria. Como o universitário que parecia, Ned resistia ao máximo com apenas um casaco de tweed como única proteção contra o inverno.

Lewis logo percebeu que os dois homens o fitavam de maneira estranha e sentiu um aperto no coração. Será que, no final das contas, atropelara mesmo a moça? E será que alguém anotara a placa do seu carro? Era culpado de ter atropelado uma pessoa e fugido!

—  Tem alguma coisa de especial a falar, Walt, ou quer apenas tomar uma cerveja? — perguntou Lewis, enchendo o copo de Hardesty enquanto falava.

— Nesse momento, vou contentar-me com a cerveja, Sr. Benedikt — disse Hardesty. — Um dia terrível, hein?

—  Foi, sim.

— Terrível demais — disse Ned Rowles, passando a mão pelos cabelos que caíam pela testa e olhando para Lewis. — Não parece estar muito bem, companheiro. Talvez seja melhor ir para casa e descansar um pouco.

O comentário deixou Lewis ainda mais perplexo do que antes. Se atropelara a moça e eles soubessem disso, o xerife não o deixaria ir para casa tranquilamente.

—  Ando sentindo-me um tanto inquieto quando estou em casa — murmurou ele. — Mas me sentiria muito melhor se as pessoas parassem de dizer que estou com um aspecto horrível.

—  A vida é uma coisa terrível — comentou Ned Rowles. — Acho que ninguém pode deixar de concordar.

—  Também acho — disse Hardesty, terminando sua cer­veja e servindo-se de mais.

O rosto de Ned tinha uma expressão aflita de. . . de quê? Parecia de compaixão. Lewis despejou mais um pouco de cer­veja no copo dele. O violinista passara a tocar uma guitarra e a música estava agora tão alta que os três homens tinham de se inclinar para se fazerem ouvir. Lewis podia ouvir fragmentos da letra da música, frases berradas aos microfones.

 

“...é o caminho errado, meu bem... o caminho errado...”

 

— Estava pensando nos meus tempos de garoto, quando ia ouvir Benny Goodman — disse ele.

Ned Rowles levantou a cabeça bruscamente, parecendo confuso.

—  Benny’ Goodman? — repetiu Hardesty, desdenhosa­mente. — Pois eu gosto da country music, mas a verdadeira, não a porcaria que esses garotos tocam. Gosto de gente como Hank Williams e Jim Reeves.

Lewis pôde sentir o bafo do xerife, metade cerveja e me­tade fétido, como se ele tivesse comido lixo.

—  Mas também você é muito mais jovem do que eu — falou para o xerife.

Ned interveio na conversa:

—  Eu só queria que soubesse o quanto lamentei o que aconteceu.

Lewis fitou-o abruptamente, procurando imaginar qual a extensão da encrenca em que se metera. Hardesty estava fazen­do sinal para que Annie, a viking, trouxesse outra caneca de cerveja. Chegou minutos depois, derramando um pouco quando ela a pôs em cima da mesa. Ao se afastar, Annie piscou para Lewis.

Em algum momento, durante a manhã, Lewis se recorda­va, assim como em algum momento durante a volta no Mor­gan... bordos desfolhados... ele percebera uma estranha cla­reza, que parecia de sonho, tivera uma visão definitiva das coisas, como se estivesse olhando para um desenho... um bos­que assombrado, um castelo cercado por árvores cheias de pontas...

 

“...é o caminho errado, meu bem, o caminho errado...”

 

... mas agora ele se sentia atordoado e confuso, tudo era estranho e a piscadela de Annie parecia saída de um filme surrealista...

 

“...o caminho errado...”

 

Hardesty inclinou-se para a frente e abriu a boca. Lewis viu uma ponta de sangue no olho esquerdo do xerife, pairando abaixo da íris azul, como um ovo fertilizado.

—  Vou contar-lhe uma coisa — berrou Hardesty. — Te­mos as quatro ovelhas mortas, entende? As gargantas cortadas. Não havia sangue nem pegadas. O que acha disso?

—  Você é que é da polícia e deve dizer-me o que acha — respondeu Lewis, alteando a voz para poder ser ouvido acima do barulho da música.

—  Acho que é um mundo muito esquisito... e vai ficar cada vez mais esquisito — gritou Hardesty, lançando a Lewis um dos seus olhares de ranger do Texas. — Muito esquisito mesmo! E tenho a impressão de que” os dois advogados, seus amigos, sabem alguma coisa a respeito.

—  Creio que isso é bastante improvável — interveio. Ned Rowles. — De qualquer maneira, quero ver se um deles escre­ve alguma coisa sobre o Dr. John Jaffrey para o jornal. Isto é, a menos que você queira escrever, Lewis.

—  Escrever sobre John para The Urbanite?

— Umas cem palavras, talvez duzentas, o que achar que deve dizer a respeito dele.

—  Mas por quê?

—  Porque não vai querer certamente que Omar Norris seja o único a...

Hardesty parou de falar abruptamente, continuando de boca aberta. Parecia inteiramente desconcertado. Lewis esticou a cabeça para ver Omar Norris, do outro lado da sala apinhada, ainda sacudindo os braços e falando. No. balcão, diante dele, havia uma fileira de drinques. Aumentou a sensação que expe­rimentara durante todo o dia, de que algo terrível acontecera bem perto dele. Um acorde desafinado do violino atravessou-o como uma flecha: “É isso, é isso...”

Ned Rowles inclinou-se sobre a mesa e tocou na mão de Lewis, murmurando:

—  Eu estava certo de que você já sabia...

— Estive fora o dia inteiro. Eu... o que aconteceu?

“Um dia depois do aniversário da morte de Edward”, pensou ele, sabendo com toda a certeza que John Jaffrey estava morto. Recordou-se em seguida de que o ataque cardíaco de Edward ocorrera depois da meia-noite e que aquele dia é que era o aniversário de sua morte.

O xerife tomou um gole de cerveja e fez uma carranca para Lewis, com um ar ameaçador.

—  Ele pulou da ponte antes do meio-dia de hoje. Prova­velmente já estava morto antes de bater na água. Omar Norris viu tudo.

—  Ele pulou da ponte... — repetiu Lewis, baixinho. Por alguma razão,  desejou ter realmente  atropelado  aquela moça... era um desejo momentâneo, mas significaria que John ainda estaria vivo. — Ó Deus...

—  Pensávamos que Sears ou Ricky já o tinham informado — explicou Ned Rowles. — Eles concordaram em se encarregar de todas as providências para o funeral...

—  Ó, Deus, John vai ser enterrado...

Lágrimas surpresas afloraram aos olhos de Lewis. Ele se . levantou e começou a sair do reservado, meio desajeitadamente.

—  Poderia dar-me alguma informação útil? — perguntou Hardesty.

—  Não! Tenho que ir até lá. Não sei de nada. Tenho que ver os outros.

—  Basta avisar, se precisar de minha ajuda — gritou Ned, por cima do barulho.

Sem olhar realmente para onde estava indo, Lewis esbar­rou em Jim Hardie, que se postara sem ser visto diante do reservado.

—  Desculpe, Jim — murmurou Lewis.

Já ia passando por Jim e a moça, quando o rapaz segurou-lhe o braço.

— Esta moça queria conhecê-lo — disse Jim Hardie, com um sorriso desagradável. — Por isso, estou fazendo a apresen­tação. Ela está hospedada em nosso hotel.

—  Não tenho tempo agora. Preciso ir embora imediata­mente.

A mão firme de Jim Hardie continuou a segurar seu braço.

—  Espere um pouco. Estou apenas fazendo o que ela me pediu. Sr. Benedikt, essa é Anna Mostyn.

Pela primeira vez, desde que os olhos dos dois se haviam encontrado, Lewis olhou para a moça. Descobriu que não era mais uma moça; deveria estar em torno dos trinta anos, um a mais ou a menos. Era qualquer coisa, menos um dos flertes típicos de Jim Hardie.

—  Anna, esse é o Sr. Lewis Benedikt. Acho que ele é o velho mais atraente da região, talvez mesmo de todo o Estado. E sabe disso.

A mulher se tornava mais surpreendente quando se a olha­va. Fazia Lewis recordar alguém e ele imaginou que fosse Stella Hawthorne. Passou-lhe pela cabeça, subitamente, que já não lembrava mais como Stella fora aos trinta anos.

Uma figura arruinada de um quadro sobre as condições de vida inferiores, Omar Norris o estava apontando do balcão. Ainda sorrindo desagradavelmente, Jim Hardie largou o braço de Lewis. O rapaz com o violino jogou a cabeça para trás, femininamente, atacando outro número.

—  Sei que tem de ir embora — disse a mulher, a voz baixa, mas podendo ser ouvida nitidamente, apesar de todo o barulho. — Soube do que aconteceu com seu amigo por inter­médio de Jim e queria apenas dizer-lhe que lamento muito.

—  Eu mesmo acabei de saber — murmurou Lewis, angus­tiado pela vontade de sair imediatamente do bar. — Prazer em conhecê-la, Srta....

—  Mostyn. Espero que nos possamos encontrar novamen­te. Vou trabalhar com os seus amigos advogados.

—  É mesmo? Bom... — O significado do que ela aca­bara de falar finalmente se registrou na mente de Lewis. — Sears e Ricky lhe deram um emprego?

—  Exatamente. Acho que eles conheceram minha tia. Por acaso não a teria conhecido também? O nome dela era Eva Galli.

—  Santo Deus! — exclamou Lewis. E cambaleou para o interior do bar, antes de mudar de direção e sair correndo pela porta.

—  O velho conquistador deve estar com o cu na mão por algum motivo — murmurou Jim. — Oh, desculpe, dona... Isto é, Srta. Mostyn.

 

(A Sociedade Chowder acusada)

 

A capota de lona do Morgan rangendo, o vento zunindo, Lewis seguiu para a casa de John o mais depressa que pôde. Não sabia o que esperava encontrar ali. Talvez alguma derra­deira reunião da Sociedade Chowder, Ricky e Sears falando com racionalismo lúgubre ao lado de um caixão aberto. Ou talvez Ricky e Sears magicamente mortos e envoltos nas túni­cas pretas do seu pesadelo, três corpos num quarto do andar superior...

“Ainda não”, disse sua mente.

Parou o carro diante da casa da Montgomery Street e saltou. O vento soprou o blazer para longe do seu corpo e puxou a gravata. Lewis compreendeu que, como Ned Rowles, também estava sem sobretudo. Olhou para as janelas às escuras, desesperado, pensando que pelo menos Milly deveria estar na casa. Subiu pelo caminho e apertou a campainha. Ouviu o to­que, muito longe e fraco. Imediatamente abaixo ficava o botão da campainha do consultório, Usada pelos pacientes de John. Apertou-o também e ouviu um clamor impaciente soar logo além da porta. Parado ali no frio, como se estivesse nu, Lewis começou a tremer. Sentiu um pouco de água gelada no rosto. A princípio, pensou que fosse neve, mas no instante seguinte compreendeu que estava chorando.

Lewis bateu na porta inutilmente, virou-se, as lágrimas pa­recendo gelo em suas faces. Olhou para o outro lado da rua, vendo a antiga casa de Eva Galli.

Prendeu a respiração. Teve a impressão de vê-la novamen­te, a sedutora de sua juventude, passando por uma janela do andar térreo.

Por um momento, tudo possuía a mesma clareza e defi­nição da manhã. Lewis sentiu que seu estômago se congelava. No instante seguinte, a porta da casa se abriu e ele percebeu que o vulto que saía era um homem. Lewis passou as mãos pelo rosto. O homem obviamente queria falar-lhe. Quando ele se aproximou, Lewis reconheceu-o: era Freddy Robinson, o cor­retor de seguros. Ele era também um dos fregueses habituais do Humphrey’s Place.

—  Lewis? — gritou ele. — Lewis Benedikt? Mas que bom encontrá-lo, cara!

Lewis começou a se sentir da mesma forma que no bar: queria escapar a qualquer custo.

—  Sou eu mesmo...

—  Foi uma pena o que aconteceu com o velho Dr. Jaffrey, hein? Eu soube esta tarde. Ele não era dos seus grandes ami­gos? — Robinson estava agora perto o bastante para um aperto de mão e Lewis não pôde evitar o contato dos dedos frios do corretor de seguros. — Uma coisa terrível, hein? É o que eu costumo chamar de uma tremenda tragédia. Que coisa! — O corretor estava sacudindo a cabeça, com um ar sisudo. — Vou dizer-lhe uma coisa. O velho Dr. Jaffrey não era um homem de muita conversa, mas eu gostava um bocado dele. Sinceramente. Quando me convidou para a festa que ofereceu àquela atriz, fiquei na maior alegria. E que festa! Como me diverti! Foi uma festa espetacular. — Deve ter percebido Lewis ficar rígido, pois apressou-se em acrescentar: — Antes do final, é claro.

Lewis estava olhando para o chão, sem se dar ao trabalho de responder aos comentários tétricos. Freddy Robinson apro­veitou o silêncio para continuar a falar:

—  Ei, está parecendo meio chumbado. Não vai querer ficar aqui fora no frio, não é mesmo? Por que não vamos até minha casa e tomamos um drinque? Eu bem que gostaria que me contasse suas experiências, aproveitar um pouco os seus co­nhecimentos, verificar sua situação de seguro...  de qualquer forma, não há ninguém na casa do Dr. Jaffrey...

Como Jim Hardie, ele segurou o braço de Lewis, que pôde sentir desespero e ânsia em sua voz, apesar da angústia que o dominava. Se pudesse algemar Lewis e arrastá-lo para o outro lado da rua, Robinson certamente o faria. Lewis sabia que Ro­binson, por motivos particulares que não podia conhecer, iria grudar-se a ele como um carrapato, se permitisse.

—  Infelizmente, não vou poder — murmurou Lewis, mais polido do que habitualmente seria, por sentir a necessidade an­gustiante do corretor de seguros. — Tenho que ir falar com algumas pessoas.

—  Deve estar querendo encontrar-se com Sears James e Ricky Hawthorne — disse Robinson, já derrotado, largando o braço de Lewis. — Puxa, o que vocês fazem é sensacional e admiro realmente, todo esse negócio do clube e o resto.

— Pois não sinto a menor admiração por nós — disse Lewis, já se encaminhando para o carro. — Alguém nos está liquidando como se fôssemos moscas.

As últimas palavras foram pronunciadas quase com indi­ferença, uma simples observação para se descartar de um impor­tuno. Minutos depois, Lewis já havia esquecido o que dissera.

 

Percorreu os oito quarteirões até a casa de Ricky porque era inconcebível que Sears houvesse levado Milly Sheehan para sua casa. Ao chegar, constatou que estava certo. O velho Buick de Ricky estava parado na entrada de carros.

—  Estou vendo que já soube — disse Ricky assim que abriu a porta. — Estou contente que tenha vindo.

O nariz dele estava vermelho e Lewis pensou que fosse de muito chorar, mas logo percebeu que Ricky estava bastante resfriado.

—  Já soube, sim. Encontrei Hardesty e Ned Rowles e eles me contaram. E como você soube?

—  Hardesty telefonou para o escritório.

Os dois entraram na sala de estar e Lewis avistou Sears James, o rosto franzido por ter ouvido o nome do xerife. Stella veio da sala de jantar, arquejou e correu para abraçá-lo.

— Sinto muito, Lewis — disse ela. — É uma coisa ter­rível!

— Ainda estou achando impossível — murmurou ele.

— Talvez seja, mas não resta a menor dúvida de que era mesmo o corpo de John que foi levado para o necrotério do condado hoje — comentou Sears, com voz tensa. — Quem pode dizer o que é impossível? Todos estamos vivendo sob pressão. E pode ser que amanhã eu também pule da ponte.

Stella deu um apertão extra no braço de Lewis e foi sentar no sofá, ao lado de Ricky. A mesa de café italiana diante dele parecia ter o tamanho de um rinque de patinação no gelo.

— Está precisando de um café — disse Stella, examinan­do Lewis mais atentamente e depois levantando-se outra vez para ir à cozinha.

Sears continuou a falar, indiferente à interrupção:

— Qualquer um julgaria impossível que três homens adul­tos, como nós, tivessem que ficar reunidos em busca de alguma segurança. No entanto, aqui estamos.

Stella voltou com café para todos e a conversa estranha cessou por um momento.

—  Tentamos entrar em contato com você — disse Ricky.

—  Saí para dar uma volta.

— John é que insistiu para que escrevêssemos ao jovem Wanderley — comentou Ricky, depois de um momento.

— Escrever para quem? — indagou Stella, sem entender. Sears e Ricky explicaram. Ela comentou: — É a coisa mais absurda que já ouvi. É a mesma coisa que vocês três criarem uma porção de confusões e depois pedirem a alguém para re­solver os problemas. Eu não podia imaginar que John fizesse uma coisa dessas.

— Ele é considerado um especialista no assunto, Stella — disse Sears, um pouco exasperado. — E, em minha opinião, o suicídio de John prova que precisamos dele mais do que nunca.

—  E quando ele vai chegar?

—  Não   sei   —   admitiu   Sears,   que   parecia   abalado   e confuso.

— Se me perguntassem o que acho, eu diria que devem suspender essas reuniões da Sociedade Chowder — declarou Stella. — São realmente destrutivas. Ricky acordou gritando esta manhã. A impressão é que vocês três andaram vendo fantasmas.

Sears permaneceu controlado.

— Dois de nós viram o corpo de John. O que já é razão suficiente para parecermos um tanto abalados.

— Como... — Lewis não continuou a frase. “Como ele parecia?” era uma pergunta excepcionalmente estúpida.

—  Como o quê? — perguntou Sears.

—  Como contrataram a sobrinha de Eva Galli para se­cretária?

— Ela pediu um emprego — respondeu Sears. — Tínha­mos algum trabalho extra.

— Eva Galli? — indagou Stella. — Não era aquela mu­lher muito rica que apareceu na cidade já faz bastante tempo? Não a conheci muito bem, pois era mais velha do que eu. Ela não ia casar-se com alguém e depois simplesmente deixou a cidade?

—  Ela ia casar-se com Stringer Dedham — falou Sears, impacientemente.

—  É isso mesmo, Stringer Dedham — lembrou Stella. — Ele era um homem bonito. Houve um acidente horrível... alguma coisa que aconteceu numa fazenda. . .

—  Ele perdeu os braços numa debulhadora — informou Ricky.

—  Mas que conversa! As reuniões de vocês devem ser assim.

Os três homens haviam começado a pensar na mesma coisa.

— Quem lhe falou da Srta. Mostyn? — perguntou Sears a Lewis. — A Sra. Quast deve fazer serão só para espalhar as últimas notícias.

—  Não foi por ela que eu soube. Encontrei a jovem no Humphrey’s Place, com Jim Hardie. Ela mesma se apresentou.

A conversa morreu novamente.

Sears perguntou a Stella se não havia algum conhaque na casa. Stella disse que ia providenciar para todos e desapareceu novamente na cozinha.

Sears puxou furiosamente o casaco, tentando encontrar uma posição confortável na cadeira de couro e metal.

—  Foi você quem levou John para casa ontem à noite. Ele parecia estranho, de alguma maneira?

Lewis sacudiu a cabeça.

— Quase não conversamos. Mas ele comentou que sua história havia sido ótima.

—  E não disse mais nada?

—  Falou que estava com frio.

—  Hum...

Stella voltou com uma garrafa de Remy Martin e três copos, numa bandeja.

—  Vocês deveriam ver-se. Estão parecendo três corujas. — Eles se limitaram a assentir. — Vou deixá-los com o co­nhaque. Tenho certeza de que querem conversar sobre muitas coisas.

Stella fitou-os, com uma expressão autocrática e indulgen­te de professora primária, retirando-se em seguida da sala, sem dizer mais nada. Sua desaprovação ficou com eles.

— Ela está aflita — murmurou Ricky, à guisa de descul­pa. — Todos nós estamos. Mas Stella está mais afetada pelo que aconteceu do que deseja deixar transparecer. — Como se quisesse corrigir o comportamento da esposa, Ricky inclinou-se sobre a mesinha e despejou uma quantidade generosa de co­nhaque em cada copo. — Também estou precisando disso. Não consigo entender, Lewis, o que levou John a agir assim. Por que haveria de querer matar-se?

—  Não tenho a menor idéia do motivo — respondeu Lewis, pegando um dos copos. — E talvez seja até melhor não saber.

—  Fale alguma coisa que faça sentido, para variar — resmungou Sears. — Somos homens, Lewis, não animais. Não deveríamos ficar encolhidos de medo no escuro. — Pegou tam­bém um copo e tomou um gole. — Como espécie, ansiamos por conhecimento. Por esclarecimento. — Os olhos claros se fixa­ram em Lewis, furiosos. — Ou talvez eu o tenha compreendido mal e não tencionasse realmente defender a ignorância.

—  Sobreaniquilação, Sears — disse Ricky.

— Menos jargão, por favor, Ricky. Sobreaniquilação coisa nenhuma! Isso pode impressionar a Elmer Scales e suas ove­lhas, mas não me impressiona.

Alguma coisa acontecera com as ovelhas, Lewis sabia, só que esquecera o que era. Ele disse:

— Não estou querendo defender a ignorância, Sears. Es­tava simplesmente querendo dizer que...  Oh, diabo, já não sei mais! Acho que pretendia dizer que talvez seja demais para a gente agüentar. — O que Lewis não chegou a expressar, embora estivesse meio consciente, era que tinha medo de es­miuçar demais os últimos momentos da vida de um suicida, quer fosse amigo ou esposa.

— Estou compreendendo — murmurou Ricky.

—  Tudo  isso é besteira — disse  Sears.  — Eu  ficaria aliviado se soubesse que John estava apenas se sentindo deses­perado. São as outras explicações que me assustam.

—  Tenho a impressão de que me está faltando alguma coisa.

Essas palavras de Lewis provaram a Ricky, pela milésima vez, que o amigo não era o imbecil da imaginação de Sears. Segurando o copo com as duas mãos e com um sorriso fatalista, Ricky explicou:

— Ontem à noite, depois que fomos embora, Sears avis­tou Fenny Bate na escada de sua casa.

— Santo Deus!

— Já chega! — interveio Sears. — Ricky, eu o proíbo de continuar. O que nosso amigo está querendo dizer, Lewis, é que eu pensei tê-lo visto. Fiquei bastante assustado. Mas era uma alucinação... uma assombração, como costumavam dizer naquela região.

— Agora está vendo a coisa por outro lado — ressaltou Ricky. — Por mim, ficaria feliz se estivesse certo. E não gostaria de ver o jovem Wanderley por aqui. Acho que nos podemos arrepender no momento em que for tarde demais.

—  Creio que não me entendeu,  Ricky.  Quero  que ele venha e diga: desistam; meu tio Edward morreu de excesso de fumo e emoção, e John Jaffrey era um homem instável. Foi por isso que concordei com a sugestão de John. E continuo a achar a mesma coisa:  que ele venha, e quanto mais cedo, melhor.

—  Se é assim que pensa, concordo plenamente — falou Lewis.

—  Mas será que isso é justo para com John? — indagou Ricky.

— John também não foi justo conosco — comentou Sears.

Ele terminou o conhaque de seu copo e inclinou-se para servir-se de mais um pouco da garrafa. Passos súbitos na escada fizeram com que os três virassem a cabeça bruscamente na direção do vestíbulo.

Nessa posição, Lewis pôde ver a janela da frente da casa de Ricky e constatou, com surpresa, que estava novamente nevando. Centenas de imensos flocos batiam contra a janela escura.

Milly Sheehan entrou na sala, os cabelos achatados num lado da cabeça e desgrenhados no outro. Estava espremida num dos velhos robes de Stella.

—  Ouvi o que acabou de falar, Sears James — disse ela, a voz mais parecendo uma sirene de ambulância. — Continua a falar mal de John, mesmo depois que ele morreu.

—  Não tive a menor intenção de cometer um desrespeito, Milly — disse Sears. — Você não deveria...

— Não! Não vai livrar-se de mim agora. Não lhe vou servir um café agora, fazer uma reverência e rapapés. Tenho uma coisa para lhe dizer. John não cometeu suicídio. Escute também, Lewis Benedikt. Ele não se matou. Jamais faria isso. John foi assassinado.

—  Milly... — murmurou Ricky.

—  Pensam que sou surda? Pensam que não sei o que está acontecendo? John foi morto. E querem saber quem o matou? Pois eu sei! — Soaram outros passos descendo apressadamente a escada; desta vez, era Stella. — Sei quem o matou. Foram vocês! Vocês, a Sociedade Chowder! Mataram John com suas histórias horríveis. E você, Sears James, deixou-o desesperado com o seu Fenny Bate!

O rosto dela estava todo contorcido. Stella entrou na sala tarde demais para deter as últimas palavras de Milly:

—  Deveriam mudar o nome para Sociedade do Crime! Deveriam chamar-se Assassinos Associados!

 

E agora lá estavam eles, Assassinos Associados, sob um céu claro, em fins de outubro. Sentiam um pesar profundo, raiva, desespero, culpa; haviam falado de sepulturas e cadáveres por um ano e agora estavam enterrando um dos seus. As des­cobertas inesperadas da autópsia haviam deixado os três atur­didos e desolados. Sears tivera uma explosão, preferindo não acreditar. Ricky também não acreditara a princípio que John pudesse ter sido um viciado em drogas. “Indícios de introdução maciça, habitual e há um período considerável de substância narcótica...” e depois uma sucessão de complicados termos médicos. O fato era que o médico-legista difamara John Jaffrey publicamente. A explosão de Sears de nada adiantara, pois o legista recusou-se a alterar suas conclusões. Sears também não. alterou sua opinião de que, no decurso de uma autópsia, o le­gista passara de um profissional eficiente para um idiota incom­petente e perigoso. As descobertas do legista haviam circulado por Milburn, e alguns cidadãos ficaram do lado de Sears, en­quanto outros aceitavam as conclusões da autópsia. Mas nenhum deles compareceu ao enterro. Até mesmo o Reverendo Neil Wilkinson parecia constrangido. O enterro de um suicida e viciado em drogas!

A nova secretária, Anna, comportara-se de maneira mara­vilhosa, ajudando a enfrentar a raiva de Sears, resguardando a Sra. Quast dos seus efeitos, amparando Milly Sheehan tanto quanto Stella o fizera, e transformando inteiramente o escritó­rio. Obrigara Ricky a reconhecer que Hawthorne & James tinha bastante trabalho, se Hawthorne e James estivessem dispostos a realizá-lo. Mesmo durante o terrível período de tomar as pro­vidências para o funeral, mesmo no dia em que pegara um terno no armário de John e comprara um caixão, Ricky desco­briu que ele e James estavam respondendo a mais cartas e aten­dendo a mais telefonemas do que em muitas semanas anteriores. Estavam se encaminhando para a aposentadoria, despachando os clientes para outros escritórios, quase que automaticamente. Anna Mostyn parecia tê-los trazido de volta à vida. Ela men­cionara a tia uma única vez e de maneira inofensiva; pergun­tara como ela era. Sears quase corara e murmurara:

“Quase tão bonita quanto você, mas não tão determi­nada”.

E Anna se colocara resolutamente ao lado de Sears na questão da autópsia. Até mesmo os legistas cometem erros, res­saltara ela, com um bom senso tranqüilo e inabalável.

Ricky não tinha certeza; nem mesmo tinha certeza se isso era de alguma importância. John sempre funcionara perfeita­mente bem como médico; seu próprio corpo ficara debilitado, mas ele continuara competente para curar outros corpos. O hábito da droga, a “introdução maciça, habitual, etc”, poderia explicar a deterioração física que John apresentara? Uma injeção diária de insulina deixaria John acostumado com picadas. Ricky chegou à conclusão de que, mesmo que John tivesse sido um viciado, isso não afetava muito o que pensava a respeito dele.

Mas servia para tornar o suicídio explicável. Não fora por causa de um Fenny Bate descalço e de olhos vazios, não fora Assassinos Associados, não fora a rotina de contar histórias de fantasmas que o matara. . . a droga é que lhe corroera o cére­bro, assim como corroera o corpo. Ou então John não mais pudera suportar a “vergonha” de ser um viciado. Ou qualquer outra coisa.

Algumas vezes, era até convincente.

Enquanto isso, o nariz de Ricky continuava a escorrer e o peito ardia. Ele tinha vontade de sentar, queria esquentar-se. Milly Sheehan segurava-se em Stella como se as duas estivessem sendo fustigadas por um furacão, de vez em quando usando a outra mão para tirar mais um lenço de papel da caixa, enxugar os olhos e largá-lo no chão.

Ricky tirou um lenço úmido do bolso do casaco, assoou o nariz discretamente e tornou a guardá-lo.

Todos ouviram o carro subindo a encosta para o cemitério.

 

(dos diários de Don Wanderley)

 

Parece que sou um membro honorário da Sociedade Chow­der. É tudo muito estranho, o que faz com que seja um pouco inquietante. Talvez a parte mais estranha da minha presença aqui seja o fato de os amigos do meu tio darem a impressão de que receiam terem sido envolvidos em alguma história de horror da vida real, uma história como The nightwatcher. Foi por causa do livro que me escreveram. Pensam que sou algum profissional decidido, um especialista no sobrenatural... uma espécie de Van Helsing! Minhas impressões originais estavam certas. Todos sentem um presságio muito forte, acho que se pode mesmo dizer que estão à beira de ficar apavorados com as próprias sombras. Minha função é a de investigar tudo. E o que não me disseram expressamente, mas insinuaram, é que esperam que eu diga que não há motivos para preocupações, que há uma explicação racional e objetiva para tudo. Quanto a isso, diga-se de passagem, não tenho a menor dúvida.

E querem também que eu continue a escrever, o que de­clararam expressamente. Sears James disse:

— Não lhe pedimos para vir até aqui a fim de interrom­per sua carreira!

Ou seja: querem que eu dedique a metade do meu dia ao Dr. Rabbitfoot e a outra metade a eles. Há a impressão, ine­gável, de que parte do que eles querem é alguém com quem possam falar, simplesmente isso. Estão falando entre si há tem­po demais.

Não muito tempo depois que a secretária, Anna Mostyn, foi embora, a governanta do morto disse que queria deitar-se. Stella Hawthorne levou-a lá para cima. Ao descer, a Sra. Haw­thorne serviu-nos uísque em copos grandes. Na alta sociedade de Milburn, que creio ser esta, bebe-se uísque ao estilo inglês: puro.

Tivemos uma conversa difícil e hesitante. Stella Haw­thorne disse:

—  Espero que consiga meter um pouco de juízo na cabeça desses homens.

O que me deixou aturdido, pois ainda não me haviam explicado o verdadeiro motivo por que me chamaram. Assenti, e Lewis disse:

—  Temos de conversar a respeito. — Houve um momen­to de silêncio, até que o próprio Lewis acrescentou: — E que­remos também conversar sobre seu livro.

—  Ótimo — respondi.

Mais silêncio, desta vez rompido por Stella Hawthorne:

—  Acho melhor eu providenciar alguma comida para esses corujas. Pode fazer o favor de me dar uma ajuda, Sr. Wan­derley?

Segui-a até a cozinha, esperando que pusesse em minhas mãos travessas ou talheres. O que não esperava era que a ele­gante Sra. Hawthorne se virasse bruscamente, fechasse a porta e perguntasse:

—  Aqueles três velhos idiotas não explicaram por que queriam que o senhor viesse a Milburn?

—  Acho que arrumaram algum pretexto.

—  É melhor ser muito bom, Sr. Wanderley. Vai precisar ser um Freud para lidar com aqueles três. E quero que saiba que não aprovo sua vinda. Acho que as pessoas devem enfrentar e resolver sozinhas seus próprios problemas.

—  Eles insinuaram apenas que queriam conversar comigo a respeito de meu tio.

Mesmo com os cabelos grisalhos, calculei que ela não de­veria ter mais que quarenta e seis ou quarenta e sete anos; parecia tão bonita e firme quanto uma dessas figuras esculpidas nas proas dos navios antigos.

—  Conversar sobre seu tio? É possível. Nunca se digna­ram a me contar coisa alguma. — Compreendi nesse momento um dos motivos para a fúria dela. — Até que ponto conhecia seu tio, Sr. Wanderley?

Pedi-lhe que me tratasse por você.

—  Não o conhecia muito bem. Depois que fui para a uni­versidade e me mudei para a Califórnia, não o vi mais do que uma vez de dois em dois anos, mais ou menos. E havia já alguns anos que não o visitava, por ocasião de sua morte.

—  Mas ele lhe deixou a casa. Não achou um tanto estra­nho que os três lá na sala não tivessem sugerido que ficasse na casa?

Antes que eu tivesse tempo de falar qualquer coisa, ela mesma se encarregou de responder:

— Mesmo que não ache, pode estar certo de que eu acho. E não apenas estranho, mas também patético. Eles estão com medo de entrar na casa de Edward. Parece que fizeram uma espécie... uma espécie de acordo tácito. Nunca entraram na casa. São supersticiosos, eis o motivo.

—  Tive a impressão... quando fui ao enterro, pensei ter visto...

Hesitei, sem saber até que ponto poderia ir com ela. Stella Hawthorne não esperou que eu continuasse, e foi logo dizendo:

—  Talvez não seja tão estúpido quanto eles. Mas uma coisa lhe posso garantir, Don Wanderley: se os deixar num es­tado pior do que já estão, vai ter que se ver comigo. — Pôs as mãos nos quadris, os olhos faiscando, e o ar saiu de seus pul­mões. No instante seguinte, os olhos mudaram de expressão, e ela presenteou-me com um sorriso tenso e sofrido. E acrescen­tou: — E melhor nos apressarmos ou eles vão começar a falar de você.

Abriu a geladeira e tirou uma travessa, contendo um ros­bife do tamanho de um leitão.

—  Rosbife frio está bom para você? As facas estão na gaveta à sua direita. Pode começar a cortar.

 

Somente depois que Stella saiu de casa, um tanto abrupta­mente, para o que chamou de “um compromisso” — com a estranha cena na cozinha, tive uma noção fugaz de sua perso­nalidade, que foi confirmada pela expressão momentânea de extremo desespero no rosto de Ricky Hawthorne —, é que os três homens se abriram comigo. A escolha da palavra não foi das mais acertadas: eles não se “abriram” inteiramente, pelo menos de início; mas depois que Stella Hawthorne se retirou começaram a indicar por que me tinham pedido para vir a Milburn.

E a coisa começou como uma entrevista de emprego.

—  Eis que finalmente chegou, Sr. Wanderley — disse Sears James, servindo mais conhaque em seu copo e tirando uma caixa de charutos do bolso interno do casaco. — Aceita um charuto? Posso afiançar os seus méritos.

—  Não, obrigado — respondi. — E, por favor, chame-me de Don.

—  Está certo. Ainda não lhe dei as boas-vindas devida­mente, Don, mas vou fazê-lo  agora. Éramos  todos  grandes amigos do seu tio Edward. E sinto-me profundamente grato, o mesmo certamente acontecendo com meus dois amigos, por ter atravessado o país inteiro para vir ao nosso encontro.

—  Isso tem algo a ver com a morte do meu tio?

—  Em parte. Queremos que trabalhe para nós. — Em seguida, perguntou-me se poderia falar a respeito de The night­watcher.

—  Claro.

— Era uma novela e, assim sendo, em grande parte in­venção. Mas essa invenção foi baseada em algum caso verídico? Presumimos que fez pesquisas para o livro. Mas o que estamos querendo saber é se, no decurso de sua pesquisa, descobriu alguma evidência que confirmasse as idéias que expôs no livro. Ou talvez a pesquisa fosse inspirada por alguma ocorrência inexplicável em sua própria vida.

Eu quase podia sentir a tensão nas pontas dos meus dedos, e talvez eles também estivessem sentindo. Nada sabiam a res­peito da morte de David, mas estavam me pedindo para escla­recer tanto o mistério do livro como o da minha própria vida.

—  A invenção, como falou, foi baseada num caso verídico — respondi, vendo a tensão se dissipar.

—  Pode relatar-nos o que aconteceu?

— Não. Não é claro o bastante para mim. Além disso, é pessoal demais. Lamento, mas não posso entrar em detalhes.

—  Respeitamos sua posição — disse Sears James. — Pa­rece bastante nervoso.

—  E estou mesmo — admiti, soltando uma risada.

— Quer dizer que a situação apresentada em livro foi baseada numa situação verídica de que participou? — indagou Ricky Hawthorne, como se não estivesse prestando atenção ou não pudesse acreditar no que acabara de ouvir.

—  Exatamente.

—  E conhece outros casos similares?

—  Não:

—  Mas não rejeita o sobrenatural a priori — comentou Sears.

—  Não sei se rejeito ou não — respondi. — Como a maioria das pessoas, diga-se de passagem.

Lewis Benedikt empertigou-se na cadeira e fitou-me.

—  Mas acabou de dizer...

— Não, ele não disse — interveio Ricky Hawthorne. — Falou apenas que seu livro foi baseado num acontecimento real, não que o tivesse relatado exatamente. Não foi isso mesmo, Don?

— Mais ou menos.

— E a sua pesquisa? — insistiu Lewis.

— Confesso que não pesquisei muito.

Hawthorne suspirou e olhou para Sears com uma expres­são que parecia de ironia, na base do “Eu não disse?”

— Acho que pode ajudar-nos de qualquer forma — de­clarou Sears, como se estivesse contradizendo uma opinião ex­pressa. — Seu ceticismo nos irá fazer bem.

— Talvez... — murmurou Hawthorne.

Eu ainda estava sentindo que eles haviam invadido meu espaço mais íntimo. E perguntei:

—  O que tudo isso tem a ver com o ataque cardíaco do meu tio?

Havia muito de autodefesa na pergunta, mas era a mais certa a fazer naquele momento. E a história foi relatada, porque Sears James já decidira contar tudo.

—  Estamos tendo noites inconcebíveis. Sei que o mesmo acontecia com John. Não seria exagero dizer que tememos por nossa razão. Ou será que vocês acham que não?

Hawthorne e Lewis Benedikt davam a impressão de esta­rem recordando coisas que preferiam não lembrar. Ambos me­nearam a cabeça.

— Assim, queremos a ajuda de um especialista no as­sunto, na medida em que nos puder dar — continuou James. — O aparente suicídio de John deixou-nos profundamente aba­lados. Mesmo que ele fosse um viciado em drogas, o que não admito, não creio que fosse também um suicida em potencial.

—  O que ele estava vestindo? — indaguei, um pensa­mento desgarrado que me passou pela cabeça.

—  Vestindo? Não me lembro...  Ricky, por acaso veri­ficou as roupas dele?

Hawthorne assentiu.

— Tive que jogar tudo fora. Era a mais surpreendente mistura de roupas: o paletó do smoking, um paletó de pijama, calça de outro terno, não tinha meias.

— Foi isso o que John vestiu ao se levantar  na manhã em que morreu? — indagou Lewis, atônito. — Por que não nos contou antes?

— A princípio, fiquei tremendamente chocado. Depois, acabei esquecendo. Havia coisas demais acontecendo.

—  Mas ele era normalmente um homem meticuloso — co­mentou Lewis. — Se John se confundiu todo na hora de vestir, então sua mente deveria estar também na maior confusão.

— Precisamente — disse Sears, sorrindo-me. — Don, foi uma pergunta extremamente perceptiva. Nenhum de nós se lem­brou disso.

Percebi que ele estava começando a se agarrar em todas as racionalizações possíveis e decidi comentar:

—  Isso não simplifica as coisas. No caso em que baseei meu livro, um homem se matou e tenho certeza de que sua mente estava bastante abalada, mas jamais consegui descobrir o que lhe aconteceu realmente.

—  Está se referindo a seu irmão, não é? — indagou Ricky Hawthorne, sagazmente. O que significava que, no final das con­tas, todos sabiam; meu tio devia ter-lhes falado de David. — E foi esse o “caso” a que aludiu?

Assenti.

— Ah... — murmurou Lewis.

— Simplesmente deparei com uma história de fantasma —  comentei. — Não sei o que realmente aconteceu.

Por um momento, os três pareciam constrangidos.

— Mesmo que não esteja acostumado a fazer pesquisa — disse Sears finalmente —, tenho certeza de que é perfeitamente capaz para isso.

Ricky Hawthorne recostou-se no excêntrico sofá; a gravata-borboleta continuava impecável, mas o nariz estava vermelho e os olhos turvos. Parecia pequeno e perdido, no meio dos mó­veis gigantescos.

— Evidentemente, meus dois amigos irão sentir-se bem mais felizes se permanecer conosco por algum tempo, Sr. Wan­derley.                                          

—  Don.

—  Está certo... Don. E como parece disposto a ficar e eu me sinto exausto, sugiro que encerremos a conversa por ora, a fim de que todos possam descansar. Vai passar a noite na casa de Lewis?

—  Boa idéia — disse Lewis Benedikt, levantando-se.

— Ainda tenho mais uma pergunta — declarei. — Estão me pedindo para pensar sobre o sobrenatural... ou qualquer que seja o nome que queiram chamar... porque isso os exime de terem de pensar pessoalmente?

—  Uma pergunta perceptiva, mas imprecisa — disse Sears James, fitando-me com seus olhos azuis penetrantes. — Pensa­mos nisso durante todo o tempo.

—  O que me faz lembrar de uma coisa — disse Lewis.

—  Vamos suspender as reuniões da Sociedade Chowder? Al­guém acha que devemos?

—  Não! — respondeu Ricky, com uma estranha expres­são de desafio. — Pelo amor de Deus, não vamos suspender as reuniões. Por nós mesmos, temos de continuá-las. E Don será incluído.

É essa a situação em que me encontro. Todos esses três homens, amigos do meu tio, parecem admiráveis à sua maneira. Mas será que estão perdendo o juízo? Nem mesmo posso ter certeza se me contaram tudo. Estão assustados e sabem que dois homens do grupo, já morreram. Escrevi anteriormente neste diário que Milburn parece o tipo de cidadezinha em que o Dr. Rabbitfoot entraria em ação. Posso sentir a realidade se afas­tando, se começo a imaginar que um dos meus próprios livros está acontecendo a meu redor.

Eu quase podia começar a imaginar qual era o problema. Os dois suicídios — de David e do Dr. Jaffrey —, era esse o problema, a coincidência pura e simples. (E a Sociedade Chow­der não dá o menor indício de reconhecer que essa coincidência é a principal razão do meu interesse pelo problema deles.) Em que estou envolvido aqui? Uma história de fantasma? Ou algo pior, algo que não é simplesmente uma história? Os três velhos só têm um conhecimento vago dos acontecimentos de há dois anos. . . e não podem saber que me pediram para entrar nova­mente na parte mais estranha da minha vida, fazendo o calen­dário retornar até os dias piores e mais destrutivos ou folhear outra vez as páginas de um livro que foi a minha tentativa de resignar-me aos acontecimentos. Mas será que pode haver real­mente alguma relação, mesmo que seja apenas a ligação de uma história de fantasma levando a outra, como aconteceu com a Sociedade Chowder? E será que pode haver realmente uma li­gação concreta e objetiva entre The nightwatcher e o que acon­teceu a meu irmão?

 

Alma

 

 “Everything that has beauty has a body, and is a body;

everything that has being in the flesh:

and dreams are only drawn from the bodies that are.”

Bodiless God, D. H. Lawrence

 

(dos diários de Don Wanderley)

 

Só há um modo de responder à pergunta. Tenho que des­pender algum tempo, ao longo da próxima semana, talvez duas, escrevendo os fatos em detalhes, à medida que os recordo, envolvendo a mim mesmo, David e Alma Mobley. Quando os converti em ficção no livro, inevitavelmente acrescentei uma dose de sensacionalismo, falseando assim minhas próprias re­cordações. Se eu tivesse ficado satisfeito com isso, não pensaria em escrever a novela do Dr. Rabbitfoot, que no fundo é Alma de cara preta, Alma com seus chifres, cauda e trilha sonora. Assim como Rachel Varney, em The nightwatcher, não passava de Alma com uma roupagem de fantasia. Alma era muito mais estranha do que Rachel. O que estou querendo agora não é inventar situações e circunstâncias fictícias, mas sim registrar as circunstâncias que realmente existiram. Em The nightwatcher, tudo foi solucionado, tudo se acabou esclarecendo; na vida, nada foi esclarecido, nada jamais foi solucionado.

Conheci Alma não como Saul Malkin conheceu Rachel Varney, num jantar em Paris, mas sim num cenário extrema­mente banal. Foi em Berkeley, onde as críticas favoráveis ao meu primeiro livro haviam me valido um emprego de um ano como professor. O cargo era excepcional para um autor de um livro só e eu o levava muito a sério. Eu tinha uma turma de redação criativa e duas turmas subgraduadas de literatura ame­ricana. Eram essas duas turmas que me davam mais trabalho. Tinha que ler e estudar tantos autores que não percebia que praticamente não sobrava tempo para escrever. E se eu quase não lera Howells ou Cooper, por exemplo, não tinha a menor idéia dos estudos críticos a respeito deles, que a estrutura do curso exigia. Descobri-me totalmente absorvido numa rotina de dar as aulas, levar os trabalhos de redação criativa para casa, a fim de ler antes de jantar num bar ou café, e depois passar a noite na biblioteca verificando bibliografias. Havia ocasiões em que ainda conseguia trabalhar em alguma história minha ao voltar para o apartamento; na maioria das vezes, no entanto, os olhos me ardiam e o estômago estava embrulhado com o café do departamento de inglês, os instintos para a prosa amor­tecidos pela opressiva rotina acadêmica. De tempos em tempos, saía com uma jovem do departamento, uma livre-docente com um Ph.D. da Universidade de Wisconsin. O nome dela era Helen Kayon, e nossas mesas, juntamente com uma dúzia de outras, ficavam perto, num escritório comum do departamento. Ela lera meu primeiro livro, mas não ficara impressionada.

Helen era rigorosa em matéria de literatura, tinha medo de ensinar, descuidada de sua aparência, não possuía qualquer esperança em relação aos homens. Seus interesses eram os esco­ceses contemporâneos de Chaucer e análise lingüística; aos vinte e três anos, ela já exibia alguma coisa da ausência de pragmatismo da típica solteirona acadêmica.

—  Meu pai mudou  seu nome, Kayinski,  e, no fundo não passo de uma polonesa cabeça-dura — comentou ela.

Mas eu sabia que isso era a autodecepção clássica; ela era obstinada em relação aos escoceses chaucerianos e nada mais. Era uma jovem alta, óculos imensos, cabelos soltos, que pare­ciam estar sempre passando de um estilo para outro; eram ca­belos sem intenções definidas. Chegara à conclusão, algum tempo antes, que a coisa mais importante que tinha a oferecer à universidade, ao planeta e aos homens era sua inteligência. Era a única coisa em sua pessoa na qual confiava. Convidei-a para almoçar na terceira vez em que a vi no escritório. Helen estava fazendo a revisão de um artigo e quase caiu da cadeira. Creio que fui o primeiro homem em Berkeley a convidá-la para almoçar.

Alguns dias depois, encontrei-a no escritório, depois da minha última aula. Ela estava sentada à sua mesa, olhando para a máquina de escrever. Nosso almoço fora bastante constran­gedor. Comparando os artigos que estava tentando escrever com a minha obra, ela dissera:

—  Mas estou querendo descrever a realidade!

Ao entrar na sala, aproximei-me dela e disse:

— Estou de saída. Por que não vem comigo? Podemos tomar um drinque em algum lugar.

— Não posso. Detesto bares e ainda tenho que terminar este trabalho. Mas...   poderia acompanhar-me até em casa? Moro no alto da ladeira. Incomoda-se?

— Claro que não. É onde estou morando também.

— De qualquer forma, já estou cheia disso. O que está lendo? — Levantei o livro. — Ah, sim, Nathaniel Hawthor­ne... Só pode ser pesquisa para o seu curso.

— Lieberman acabou de me comunicar que dentro de três semanas vou dar a aula principal sobre Hawthorne. E eu não lia The house of seven gables desde os tempos da escola secundária.

—  Lieberman é preguiçoso demais para assumir a coisa pessoalmente.

Eu estava propenso a concordar; até aquele momento, três dos outros assistentes de Lieberman já haviam feito conferên­cia no lugar dele. Comentei:

— Acho que não terei qualquer problema, desde que con­siga encontrar um ângulo qualquer para dar consistência à aula, e possa terminar de ler tudo o que é necessário.

—  Pelo menos você não tem que se preocupar com um período de experiência no emprego — disse ela, gesticulando na direção da máquina de escrever.

—  Tem razão. Minha única preocupação é comer.

Fora esse o tom do nosso almoço.

—  Desculpe...

Helen abaixou a cabeça, já sofrendo. Pus a mão em seu -ombro e disse que não devia viver tão preocupada com as coisas.

Ao descermos a escada, Helen carregando uma imensa va­lise estofada por livros e ensaios, eu levando apenas The house of seven gables, uma loura alta e sardenta passou entre nós. A primeira impressão que tive de Alma Mobley foi de uma pa­lidez geral, uma indefinição espiritual sugerida pelo rosto com­prido e inexpressivo e pelos cabelos cor de palha. Os olhos re­dondos eram de um azul muito claro. Senti uma estranha mistura de atração e repulsa. À luz fraca da escada, ela parecia uma jovem atraente que passara toda a sua vida numa caverna, dava a impressão de ter o mesmo tom de branco fantasmagórico por todo o corpo.

—  Sr. Wanderley? — perguntou ela.

Quando assenti, ela murmurou seu nome, mas não enten­di direito.

— Sou estudante de pós-graduação em inglês. Gostaria de saber se posso assistir a sua aula sobre Hawthorne. Vi seu nome na programação do Professor Lieberman, no escritório do departamento.

—  Claro que pode. Mas é apenas um curso para subgraduados. Provavelmente será um desperdício de tempo para você.

— Obrigada — disse ela  simplesmente,  continuando  a subir a escada, abruptamente.

— Como ela soube quem eu era? — sussurrei para Helen.

Eu mal conseguia disfarçar o prazer que sentia pelo que imaginava ser a minha celebridade até então invisível. Mas Helen acabou com as ilusões, apontando o livro em mi­nhas mãos.

Ela morava a apenas três quarteirões do meu apartamento. . O dela era um sortimento variado de cômodos distribuídos ao acaso, no alto de uma casa antiga. Helen o partilhava com duas outras moças. Os cômodos pareciam arbitrariamente situados, assim como as coisas que estavam dentro deles. O apartamento dava a impressão de que ninguém se preocupara em determinar os lugares onde deveriam ficar as estantes, mesas e cadeiras; era como se os móveis tivessem permanecido onde haviam sido deixados pelos carregadores da mudança. Aqui havia um abajur colocado ao lado de uma poltrona, ali uma mesa com livros empilhados empurrada para baixo de uma janela, mas tudo o mais estava distribuído tão fortuitamente que era preciso es­gueirar-se entre os móveis para se alcançar o corredor.

As companheiras de apartamento de Helen também me pareceram arbitrárias. Ela as descrevera enquanto subíamos a ladeira. Uma delas, Meredith Polk, era também do Wisconsin e trabalhava como livre-docente no departamento de botânica. Ela e Helen haviam se conhecido enquanto procuravam um lugar para morar, descobriram que haviam cursado a mesma universidade e decidiram viver juntas. A terceira jovem era uma estudante de pós-graduação de teatro e chamava-se Hilary Lehardie. Helen havia comentado:

— Hilary jamais sai de seu quarto e acho que fica alta durante o dia inteiro. Toca música de rock a maior parte da noite. Tenho de usar tampões nos ouvidos. Meredith é muito melhor. Ela é muito arrebatada e acho que um pouco esquisita. Mas creio que somos amigas. Ela procura proteger-me.

—  Protegê-la do quê?

—  Do mal.

As outras duas moças estavam no apartamento quando Helen e eu chegamos. Assim que apareci, por trás de Helen, uma jovem de cabelos pretos e muito gorda, metida em jeans e camisa de malha, saiu correndo da porta da cozinha e veio lançar-me um olhar furioso, através dos óculos de lentes gros­sas. Era Meredith Polk. Helen apresentou-me como um escri­tor que estava no departamento de inglês, e Meredith disse:

—  É mesmo?

E, no instante seguinte, ela já tinha voltado para a cozi­nha. Uma música muito alta vinha de um quarto ao lado.

A jovem de óculos e cabelos pretos saiu novamente da co­zinha assim que Helen se afastou para me servir um drinque. Esgueirou-se através dos móveis e foi acomodar-se numa ca­deira de lona, perto de uma parede na qual podia-se ver o que pareciam ser centenas de cactos e outras plantas. Enfiou um cigarro na boca e ficou me olhando com uma expressão óbvia de desconfiança.

— Não é um acadêmico? Não é da equipe regular do de­partamento? — E isso de uma jovem que só tinha um ano como livre-docente, que ainda estava a muitos anos da confir­mação no cargo.

— Tenho um contrato de apenas um ano — respondi.

— Sou um escritor.

— Ah...   — Ela ficou em silêncio por um momento, antes de acrescentar: — Então, você é o cara que a levou para almoçar?   

— Exatamente.

— Ah...

A música ressoava estrondosamente.

— Hilary — disse ela, sacudindo a cabeça na direção da música. — Nossa colega de apartamento.

— E isso não a incomoda?

— Nem escuto, na maior parte do tempo. Uma questão de concentração. E é bom para as plantas.

Helen apareceu com um copo, onde havia uísque demais e uma solitária pedra de gelo flutuando em cima, como se fosse um peixinho dourado morto. E na outra mão havia uma xícara de chá para si.

—  Com licença — disse Meredith, disparando na direção de seu quarto.

—  Ah, como é bom ver um homem neste lugar horrível! —  disse Helen.

Por um momento, a preocupação e a inibição deixaram seu rosto, e eu pude perceber a inteligência real que existia por baixo do verniz acadêmico. Ela parecia bastante vulnerável, mas muito menos do que eu havia imaginado.

Fomos para a cama uma semana depois, no seu aparta­mento. Helen não era virgem e fez questão de deixar bem claro que não estava apaixonada. Explicou todo o processo de de­cisão e depois agiu com a precisão enérgica que dedicava aos escoceses chucerianos.

—  Você nunca vai apaixonar-se por mim e não  quero mesmo que isso aconteça — disse ela. — É melhor assim.

Nessa ocasião, ela passou duas noites em meu apartamen­to. Ao cair da tarde, íamos para a biblioteca, cada um desapa­recendo num recanto separado, como se não houvesse absoluta­mente qualquer emoção entre nós. O primeiro indício concreto de que a situação não era exatamente o que eu pensava acon­teceu uma semana depois, quando cheguei a casa, de tarde, e encontrei Meredith Polk à porta do apartamento. Ela ainda estava usando jeans e camisa de malha.

—  Seu filho da mãe! — murmurou ela, os dentes quase cerrados.

Abri rapidamente a porta e entrei. Meredith foi atrás, dizendo:

—  Seu miserável com uma pedra de gelo no lugar do co­ração! Está pondo em risco as possibilidades de ela conseguir a confirmação. E ainda por cima está destruindo seu coração. Trata-a como se fosse uma prostituta. Mas ela é boa demais para você. Nem mesmo vivem pelos mesmos valores. Helen está empenhada em se dedicar inteiramente à vida acadêmica, é a coisa mais importante de sua vida. Eu posso compreender, mas não creio que você seja capaz. Acho que não está inte­ressado em coisa alguma que não seja a sua vida sexual.

—  Uma coisa de cada vez, por favor. Como posso estar pondo em risco as possibilidades de ela ser confirmada como professora? Vamos esclarecer primeiro essa questão, antes de seguirmos adiante.

—  Este é o primeiro semestre dela aqui. Como sabe per­feitamente, eles nos vigiam. O que acha que todo mundo vai pensar, se uma professora nova vai para a cama com o primeiro cara que aparece?

—  Estamos em Berkeley. Não creio que alguém sequer perceba ou dê qualquer importância a isso.

—  Seu porco! A verdade é que não nota nem se importa com coisa alguma, não é mesmo? Você a ama?

—  Saia daqui!

Eu estava começando a perder o controle. Ela parecia uma rã furiosa, coaxando para mim, procurando definir seu território.

A própria Helen apareceu três horas depois, extrema­mente pálida e com uma expressão magoada. Não quis falar sobre as espantosas acusações de Meredith Polk, mas revelou que conversara com a amiga na noite anterior.

—  Meredith é muito protetora — disse ela. — Não, não esfregue as minhas costas desse jeito. Não faça isso. É tudo bobagem. O único problema é que não tenho conseguido trabalhar nas últimas noites. Acho que me sinto infeliz sempre que não estou com você. — Ela virou a cabeça para me fitar, deso­lada. — Eu não deveria ter dito isso. Mas você não me ama, não é mesmo? Não pode, não é mesmo?

—  Não há nenhuma resposta para essa pergunta. Deixe-me preparar-lhe uma xícara de chá.

Ela estava deitada na cama, no meu pequeno apartamen­to, toda enroscada como se fosse um feto.

—  Sinto-me tão culpada...

Voltei pouco depois com o chá e ela disse:

—  Gostaria que pudéssemos fazer uma viagem juntos. Poderíamos ir à Escócia. Passei todos esses anos lendo a res­peito da Escócia e jamais estive lá. — Os olhos dela estavam começando a ficar marejados de lágrimas, por detrás dos óculos. — Ah, eu faço tudo errado! Sabia que nunca deveria ter vindo para cá. Estava feliz em Madison. Não sei por que tinha de vir para a Califórnia.

—  Você pertence a este lugar mais do que eu.

—  Não — disse ela, rolando para o lado a fim de escon­der o rosto. — Você pode ir a qualquer lugar e imediatamente se ajustar. Nunca fui algo mais do que uma garota esforçada nos estudos.

—  Qual foi o último livro realmente bom, que você leu?

Ela rolou na cama outra vez, para me fitar, a curiosidade sobrepujando a angústia e o constrangimento em seu rosto. Os olhos quase fechados, pensou por um momento, antes de res­ponder :

—  The rhetoric of irony, de Wayne Booth. Para ser mais precisa, eu o reli.

—  Não tenha a menor dúvida de que pertence mesmo a Berkeley.

—  Pertenço mais a um jardim zoológico.

Era uma desculpa para tudo, tanto por Meredith Polk como pelos próprios sentimentos dela. Mas eu sabia que, se continuássemos, só iria magoá-la ainda mais. Helen estava cer­ta: não havia a menor possibilidade de eu poder algum dia amá-la.

Mais tarde, pensei que minha vida em Berkeley se trans­formara num padrão que perduraria pelo resto da vida. Exceto por meu trabalho, era uma vida essencialmente vazia. Porém, não seria melhor continuar a me encontrar com Helen do que magoá-la tremendamente pela insistência num rompimento? Num mundo dominado pelo trabalho como eu via o meu, a conveniência era um sinônimo de bondade. Quando nos separamos, havia o acordo tácito de que não nos encontraríamos por alguns dias, mas tudo o mais continuaria como antes.

Uma semana depois, no entanto, o período convencional da minha vida terminou; depois disso, encontrei-me com Helen Kayon apenas duas vezes.

 

Descobri o ângulo que estava procurando para a conferên­cia sobre Hawthorne. Estava num ensaio de R. P. Blackmure: “Quando todas as possibilidades estão eliminadas, então é que pecamos”. A idéia parecia irradiar-se por toda a obra de Hawthorne, e eu poderia relacionar os romances e contos atra­vés desse cristianismo negro, pelo impulso que havia neles para o pesadelo. . . pelo que quase era um desejo de pesadelo. Pois imaginar um pesadelo é colocar-se à sua mercê. Encontrei também uma declaração de Hawthorne que ajudava a explicar seu método: “Tenho algumas vezes produzido um efeito sin­gular e não de todo insatisfatório, no que se refere à minha própria mente, imaginando uma sucessão de incidentes em que o mecanismo espiritual do mito fantasioso se combina com as personagens e circunstâncias da vida cotidiana”. A partir do momento em que tive as idéias para estruturar a conferência, os detalhes foram se acumulando rapidamente em meu caderno de anotações.

Esse trabalho e os meus alunos de redação criativa mantiveram-me plenamente ocupado pelos cinco dias que antecede­ram a conferência. Helen e eu nos encontrávamos apenas de passagem; prometi que, assim que terminasse o trabalho ime­diato, iríamos passar um fim de semana fora. Meu irmão David possuía uma cabana no vale Still, perto de Mendocino. Disse­ra-me que a usasse à vontade, sempre que quisesse livrar-me de Berkeley por alguns dias. O que era típico da consideração permanente que David dispensava aos outros. Mas, por tei­mosia, eu me abstivera de usar a casa. Não queria ter de ficar grato a David por qualquer coisa. Depois da conferência, le­varia Helen para o vale Still e mataria dois escrúpulos com uma só cajadada.

Na manhã da conferência, reli o que D. H. Lawrence escrevera sobre Hawthorne e encontrei estes versos:

 

“And the first she does is seduce him.                       

And the first thing he does is to be seduced.

And the second thing they do is to hug their sin

[in secret, and gloat over it, and try to understand.

Which is the myth of New England]”1.

 

Era justamente isso o que eu estava procurando desde o início. Larguei a xícara de café e comecei a reestruturar minhas observações. A percepção de Lawrence ampliava a minha, eu podia ver todos os livros por um novo ângulo. Eliminei pará­grafos inteiros e escrevi novos, entre as linhas cruzadas... E esqueci de telefonar para Helen, como prometera que faria.

No final das contas, quase não recorri às anotações que fi­zera. Em determinado momento, à procura de uma metáfora, avistei Helen e Meredith Polk sentadas juntas, numa das últi­mas filas do anfiteatro repleto. Meredith Polk estava de rosto franzido, desconfiada como um guarda de Berkeley. Quando os cientistas tomam conhecimento do tipo de coisas que são dis­cutidas nos cursos de literatura, frequentemente assumem tal expressão. Helen parecia simplesmente interessada e senti-me grato por ela ter comparecido.

Quando acabei, o Professor Lieberman veio dizer-me que apreciara muito as minhas observações, e se eu não gostaria de fazer sua conferência sobre Stephen Crane dentro de dois me­ses. Ele tinha que dar uma conferência em Iowa naquela se­mana, mas queria dizer-me logo que, como eu realizara um trabalho tão “exemplar”, especialmente levando-se em consideração que não era um acadêmico... em suma, ele achava que talvez fosse possível renovar meu contrato por mais um ano.

“E a primeira coisa que ela faz é seduzi-lo.

E a primeira coisa que ele faz é ser seduzido.

E a segunda coisa que eles fazem é acalentar seu pecado

em segredo, exultantes, tentando compreender.

O que é o mito da Nova Inglaterra.” (N. do T.)

Fiquei aturdido, tanto pela chantagem como pela arrogân­cia dele. Lieberman, ainda jovem, era um homem famoso, não tanto como intelectual no sentido de Helen, mas como um “crí­tico”, um generalizador, um sub-Edmund Wilson. Eu não res­peitava seus livros, mas esperava mais dele. Os estudantes esta­vam se encaminhando para as saídas, uma massa sólida de jeans e camisetas. E foi nesse momento que avistei um rosto esperan­çosamente virado em minha direção, um corpo esguio metido não em jeans, mas num vestido branco. Lieberman era subita­mente uma interferência, um obstáculo; concordei em fazer a conferência sobre Crane só para me livrar dele.

— Ótimo, Donald — disse ele, desaparecendo.

Foi numa fração de segundo: num momento o jovem professor de terno listrado estava diante de mim, no instante se­guinte eu olhava para o rosto da moça de vestido branco. Era a mesma estudante que me detivera e a Helen na escada.

Parecia inteiramente diferente: mais saudável, com uma ligeira camada de bronzeado no rosto e nos braços. Os cabelos louros brilhavam, assim como os olhos claros, nos quais de­parei com um caleidoscópio de luzes e cores decompostas. Havia na boca duas linhas finas de ironia. Ela era extremamen­te atraente, uma das moças mais bonitas que eu já tinha visto; o que não é dizer pouco, porque Berkeley era tão povoada por beldades que se podiam avistar duas novas a cada vez que se levantava os olhos de um livro. Mas a jovem que estava diante de mim naquele momento não possuía a vulgaridade agressiva e provocante da estudante normal. Helen Kayon não tinha a menor chance.

—  Gostei muito — disse ela, as linhas nos lados da boca se contraindo como por força de uma piada particular. — No final das contas, estou feliz por ter vindo.

Pela primeira vez, ouvi o sotaque sulista, a fala arrastada típica.

—  Também estou — apressei-me em declarar. — E obri­gado pelo elogio.

—  Quer saboreá-lo em particular?

—  É um convite?

Percebi no mesmo instante que estava sendo precipitado demais, sentindo-me tão lisonjeado que havia tirado conclu­sões erradas.

—  Um o quê? Não, eu nem. mesmo tinha pensado nisso. — A boca da jovem se mexeu, formando as palavras: “Mas que idéia!”

Olhei para os fundos do anfiteatro. Helen e Meredith Polk já estavam no corredor, encaminhando-se para a saída. Helen devia ter começado a se mover no momento em que me viu olhando para a loura. Se ela realmente me conhecia tão bem quanto dissera, teria sabido exatamente o que eu estava pensando. Helen passou pela porta sem olhar para trás, mas Meredith Polk tentou assassinar-me com os olhos.

—  Está esperando alguém? — perguntou a moça.

—  Não... não é nada importante. Não gostaria de almo­çar comigo? Não comi nada hoje e estou faminto.

Eu sabia que estava me comportando com um egoísmo lamentável. Mas sabia também que aquela jovem era muito mais importante para mim do que Helen Kayon. Rompendo bruscamente com Helen, deixando-a ir embora imediatamen­te... ou seja, bancando o filho da mãe que Meredith Polk dissera que eu era... estava eliminando semanas, talvez meses, de cenas muito dolorosas. Eu não mentira para Helen; ela sempre soubera que o nosso relacionamento era bastante frágil.

A jovem que estava caminhando a meu lado pelo campus vivia em perfeita consonância com sua feminilidade. Mesmo naquela ocasião, momentos depois de tê-la visto direito pela primeira vez, ela me pareceu sem idade, até mesmo intemporal, bonita de uma forma quase hierática e mítica. O afastamento de Helen de si mesma impedira-a de ser graciosa; e ela era obviamente uma pessoa do meu próprio tempo da história. Minha primeira impressão de Alma Mobley foi de que ela po­deria caminhar com a mesma graciosidade por uma piazza ita­liana do século XVI; ou nos anos 20 (mais a propósito) poderia ter merecido um olhar de apreciação de Scott Fitzgerald, ao passar pelo Hotel Plaza com suas pernas espetaculares. Evidentemente, já havia notado as pernas dela. Eu tinha uma sensação intensa de todo o seu corpo; mas imagens de piazzas italianas e Fitzgerald no Plaza são metáforas das mais inadequadas para a sensualidade. Era como se cada célula de seu corpo possuísse uma extrema naturalidade. Não se podia imaginar nada menos típico da habitual estudante de pós-graduação de inglês em Berkeley. A graciosidade dela era tão profunda que me pareceu, já naquele momento, indicar uma passividade intensa.

Claro que estou condensando seis meses de impressões num único momento, mas a justificativa é de que as sementes das impressões já estavam presentes quando deixamos o cam­pus para ir a um restaurante. O fato de ela aceitar meu convite tão prontamente, com tanta despreocupação que insinuava jul­gamentos tácitos, continha um quê de passivo... a passividade irônica e insinuante da mulher bonita, daquela cuja beleza a isolara interiormente, como uma princesa numa torre.

Levei-a a um restaurante que já ouvira Lieberman men­cionar, caro demais para a maioria dos estudantes, caro demais para mim. Mas a cerimônia do restaurante luxuoso convinha tanto a ela como a meu senso de comemoração.

Compreendi imediatamente que era ela que eu desejava levar para a casa de David no vale Still.

O nome dela era Alma Mobley e nascera em Nova Orleans. Calculei, mais pelas maneiras dela do que por qual­quer coisa declarada explicitamente, que os pais tinham posses. O pai de Alma era pintor, e longos períodos de sua infância foram passados na Europa. Referindo-se aos pais, ela usou o tempo passado, o que me levou a pensar que eles haviam mor­rido já há algum tempo. O que também se ajustava a sua atitude, à impressão de estar desligada de tudo o mais que não fosse ela mesma.

Como Helen, ela estudara no centro-oeste. Cursara a Uni­versidade de Chicago — o que parecia quase impossível, Alma em Chicago, aquela cidade rude e turbulenta — e fora aceita para o curso de Ph.D. em Berkeley. Pelo que disse, imaginei que estava simplesmente passando pela vida acadêmica, e que não tinha a dedicação profunda de Helen. Era uma estudante de pós-graduação porque tinha talento para a mecânica do trabalho literário e era inteligente; porque era melhor do que qualquer outra coisa que pudesse pensar em fazer. E estava na Califórnia porque não gostara do clima de Chicago.

Mais uma vez, opressivamente, tive a sensação da irrelevância para ela da maioria dos acessórios de sua vida, de sua auto-suficiêricia passiva. Eu não tinha a menor dúvida de que ela era inteligente o bastante para concluir muito bem sua tese (sobre Virginia Woolf) e depois, com alguma sorte, arrumar um cargo de professora numa das pequenas faculdades espa­lhadas pela costa. No instante seguinte, bruscamente, deixan­do-me chocado, ela levou uma colher de abacate à boca e me revelou outra visão sua. Agora, eu a estava vendo como uma prostituta, uma prostituta de 1910, os cabelos torcidos exoticamente, as penas de dançarina levantadas. O corpo nu ficou à mostra por um momento. Imaginei que fosse outra imagem de isenção profissional, mas isso não explicava a força da visão. Eu fora excitado sexualmente. Alma estava falando de livros — mas não da maneira como Helen fazia, mas de um modo geral, como uma simples leitora — e olhei para o outro lado da mesa, compreendendo que queria ser o homem que impor­tava para ela. Senti o impulso de agarrar bruscamente aquela passividade e sacudi-la, fazê-la ver-me de verdade.

—  Não tem namorado? — perguntei.

Ela sacudiu a cabeça.

—  Não está apaixonada?

—  Não. — Ela sorriu, mostrando que achava a pergunta óbvia demais. — Havia um homem em Chicago, mas está acabado.

Decidi fazer uma sondagem.

—  Um dos seus professores.

—  Um dos meus professores assistentes. — Outro sorriso.

—  Apaixonou-se por ele? Era um homem casado?

Ela me fitou com uma expressão solene por um momento.

—  Não. Não foi o que está pensando. Ele não era casado e eu não me apaixonei.

Já naquele momento, pude perceber que Alma não sentia a menor dificuldade em mentir. O que não me causava qual­quer repulsa; ao contrário, servia para mostrar como a vida a afetara apenas de leve e era uma parte de tudo o que eu dese­java mudar nela.

—  Mas ele se apaixonou por você, não é mesmo? E foi por isso que resolveu deixar Chicago?

—  Quando  decidi   ir  embora,   já  estava   tudo   acabado. Alan não teve nada a ver com isso. Ele bancou o tolo, mais nada.

—  Alan?

—  Alan McKechnie. Era muito gentil.

—  Um tolo muito gentil.

—  Está determinado a saber de tudo o que aconteceu? —  indagou ela, com o seu hábito característico de acrescentar uma ironia suave e quase imperceptível que negava qualquer importância  à  pergunta.

—  Não. Fiquei apenas um pouco curioso.

Os  olhos  dela,  repletos  de  uma  luz  intensa,  encontra­ram-se com os meus.

—  Não há muito o que contar. Ele ficou... teve uma paixonite por mim. Ele era o meu orientador e de mais três ra­pazes. Nós nos encontrávamos duas vezes por semana. Percebi logo que Alan estava se interessando por mim, mas era um homem muito tímido. E muito inexperiente com as mulheres. —   Houve  novamente  uma  ligeira  inflexão  nos  olhos   e  na voz. — Saímos juntos algumas vezes. Alan não queria que nos vissem e por isso tínhamos de ir a lugares incomuns.

—  É para onde iam?

—  Bares de hotéis, lugares assim. Creio que era a pri­meira vez que ele saía com uma aluna, o que o deixava bas­tante nervoso. Tenho a impressão de que não se divertia muito na vida. Acabei chegando à conclusão de que passara a repre­sentar coisa demais para ele. Além disso, não o desejava da mesma forma como ele queria. Como já sei o que me vai per­guntar em seguida, vou logo responder. É verdade, fomos para a cama. Por algum tempo. Não foi grande coisa. Alan não era muito... físico. Comecei a pensar que ele realmente queria ir para a cama com um rapaz, mas é claro que isso seria esperar demais. Alan simplesmente não podia admitir tal possibilidade.

—  Quanto tempo durou?

—  Um ano. — Ela terminou de comer e largou o guar­danapo ao lado do prato. — Não sei por que estamos conver­sando sobre isso.

—  Do que gosta realmente?

Alma deu a impressão de estar pensando a sério por um momento.

— Deixe-me ver... gostar de verdade... Verão. Ci­nema. Romances ingleses. Acordar às seis horas e ficar contem­plando o amanhecer pela janela, quando tudo está vazio e puro. Chá com limão. O que mais? Paris. E Nice. Gosto muito de Nice. Quando eu era menina, passamos lá quatro ou cinco ve­rões seguidos. E gosto muito de boas refeições, como esta.

—  Ao que tudo indica, não vai ajustar-se muito bem à vida acadêmica. — A impressão que eu tinha era a de que ela me contara tudo e ao mesmo tempo não dissera nada.

—  É o que parece, não é mesmo? — Ela riu, como de alguma coisa sem a menor importância. — Acho que, no fundo, estou é precisando de um grande amor.

E lá estava ela novamente, a princesa encerrada na torre do seu próprio egoísmo.

—  Vamos a um cinema amanhã à noite — falei, e ela concordou.

No dia seguinte, persuadi Rex Leslie, cuja mesa ficava do outro lado da sala, a trocar de lugar comigo.

 

O cinema de arte estava exibindo La grande illusion, de Renoir, que Alma nunca vira. Depois, fomos a um café, atu­lhado de estudantes, com fragmentos de conversas das mesas ao redor se intrometendo em nossa própria. Por um instante depois que nos sentamos, experimentei um súbito sentimento de culpa e compreendi no segundo seguinte que estava com re­ceio de me encontrar com Helen Kayon. Mas aquele não era o tipo de lugar que Helen costumasse freqüentar; além do mais, àquela hora, Helen geralmente ainda estava na biblioteca. Senti um momento de intensa gratidão por não estar lá também, rompendo com uma rotina que não era propriamente minha, mas simplesmente uma imposição do emprego.

—  Um filme maravilhoso! — comentou Alma. — Ainda sinto como se o tivesse vivido.

— Quer dizer que sente os filmes profundamente?

— Claro. — Fitou-me com uma expressão de perple­xidade.

—  E a literatura?

—  Claro... Isto é, não sei direito. Mas gosto muito.

Um rapaz de barba, metido num blusão de lenhador, na mesa ao lado, disse em voz tonitruante:

—  Wenner é um ingênuo, assim como sua revista. Vol­tarei a comprá-la quando apresentar uma foto de Jerry Brown na capa.

O amigo dele declarou:

—  Wenner é Jerry Brown.

—  Assim é Berkeley — comentei para Alma.

—  Quem é Wenner?

—  Estou surpreso de que nunca tenha ouvido falar nele. Jann Wenner?

—  Quem é ele?

—  O estudante de Berkeley que fundou a Rolling Stones.

—  É uma revista?

—  Você é cheia de surpresas. Nunca ouviu realmente nada a respeito?

—  Não me interesso pela maioria das revistas. Nem se­quer olho para elas. Que espécie de revista é? O nome foi dado por causa daquele conjunto?

Assenti. Já era alguma coisa; pelo menos ela ouvira falar dos músicos.

—  Que tipo de música você gosta?

—  Também não me interesso muito por música.

—  Vamos experimentar alguns outros nomes. Sabe quem é Tom Seaver?

— Não.

—  Já ouviu falar de Willie Mays?

—  Ele não era um atleta? Também não estou muito inte­ressada em esportes.

—  Dá para notar. — Ela soltou uma risadinha. — Está se tornando cada vez mais intrigante. E o que me diz de Barbra Streisand?

Ela assumiu uma expressão zombeteira.

—  Claro que não.

—  John Ford?

—  Não.

—  Arthur Fonzarelli?

—  Não.

—  Grace Bumbry?

—  Não.

—  Desi Arnaz?

—  Não.

—  Johnny Carson?

—  Não.

—  André Previn?

—  Não.

— John Dean?

—  Não. E não me pergunte mais nada ou começarei a dizer sim a tudo.

—  O que você faz afinal? Tem certeza de que vive neste país?

—  Deixe-me experimentar com você. Já ouviu falar de Anthony Powell, Jean Rhys, Ivy Compton-Burnett, Elizabeth Jane Howard, Paul Scott, Margaret Drabble...

—  São romancistas ingleses e conheço a todos. Mas com­preendi seu argumento. Não está realmente interessada pelas coisas que não lhe interessam realmente.

—  Exatamente.

—  Nem sequer lê os jornais.

—  Não leio mesmo. E também não assisto à televisão. — Sorriu. — Acha que eu deveria ser encostada no paredão e fuzilada?

— Estou apenas interessado em saber quem são seus amigos.

— Você. É meu amigo, não é mesmo?

Por cima do comentário, por cima de toda a nossa con­versa, havia aquele verniz de ironia desinteressada. Pergun­tei-me por um momento se ela era verdadeiramente humana; sua ignorância quase total da cultura popular demonstrava, mais do que qualquer outra assertiva, o quão pouco se impor­tava com o que os outros pudessem pensar a seu respeito. O que eu julgara como sua integridade era muito mais completo do que me passara pela cabeça. Era possível que um sexto dos estudantes de pós-graduação da Califórnia jamais tivessem ouvi­do falar de um atleta como Seaver; mas quem na América po­deria ter evitado referências a Fonz?

— Mas deve ter outros amigos. Afinal, acabou de me conhecer.

—  Tenho, sim.

—  No departamento de inglês?

Não era impossível; por tudo o que eu sabia dos meus colegas, podia muito bem existir uma célula ampla de fanáticos de Virginia Woolf que jamais liam os jornais. Neles, porém, aquele alheamento ao meio ambiente seria afetação; no caso de Alma, era perfeitamente natural.

—  Não, não conheço muita gente no departamento. Co­nheci algumas pessoas que estão interessadas em ocultismo.

—  Ocultismo? — Eu não podia imaginar q que ela esta­va querendo dizer. — Sessões?  Tabuleiros  ouija?1 Madame Blavatsky? Pranchetas espíritas?

—  Não. São muito mais sérias. Pertencem a uma ordem.

Fiquei aturdido. Caíra num abismo. Imaginei o satanismo, pactos fantásticos, o que de pior havia em matéria de lunáticos na Califórnia. Ela leu meus pensamentos e acrescentou:

—  Não estou pessoalmente envolvida. Apenas conheço as pessoas.

—  Qual é o nome da ordem?

—  Oto.

— Mas... — Inclinei-me para a frente, não podendo acreditar que ouvira corretamente. — Não pode ser! Oto? Ordo...

—  Ordo Templi Orientis.

Fui dominado por um choque terrível, uma imensa incre­dulidade; e senti medo, olhando para seu lindo rosto. Oto era mais do que um grupo de malucos da Califórnia metidos em túnicas; eles eram realmente terríveis e assustadores. Sa­bia-se que eram cruéis, até mesmo brutais. Tinham algumas li­gações menores com a família Manson e fora só por isso que eu lera alguma coisa a respeito. Depois do caso Manson, parece que deixaram a Califórnia, indo provavelmente para o México. Será que ainda estavam na Califórnia? Pelo que eu lera, seria melhor que Alma tivesse conhecido os pistoleiros da Máfia; pelo menos no caso da Máfia podiam-se esperar os motivos, racionais ou não, da nossa fase do capitalismo. A Oto era matéria-prima de pesadelos.

—  E essas pessoas são suas amigas?

—  Foi o que me perguntou.

Sacudi a cabeça, ainda atônito. Ela acrescentou:

Peça que consiste de pequeno quadro apoiado em outro, maior, marcado por palavras, letras do alfabeto, etc. Desliza sobre o maior, tocando os sinais, enquanto os dedos de espiritualistas, médiuns e outros pousam levemente sobre ele. É usado para responder a perguntas e formular mensagens. (N. do E.)

—  Não se preocupe com isso. Nem com eles.  Jamais irá vê-los.

Aquilo me proporcionava uma imagem inteiramente dife­rente da vida dela; sentada à minha frente, sorrindo ligeira­mente, por um momento pareceu sinistra. Era como se eu tivesse deixado uma trilha iluminada pelo sol e me embrenhado na selva. Não pude deixar de pensar em Helen Kayon, traba­lhando nos escoceses chaucerianos na biblioteca.

—  E eu mesma não os vejo com tanta freqüência.

—  Mas já compareceu a reuniões deles? Vai a suas casas? Ela assentiu.

—  Já disse que são meus amigos. Mas não precisa preo­cupar-se com isso.

Podia ser uma mentira... outra mentira, pois eu achava que ela não me dissera a verdade o tempo todo. Mas toda a sua atitude, até mesmo a preocupação com meus sentimentos, indicava que estava sendo sincera. Alma levou a xícara de café aos lábios, sorrindo-me com um indício de preocupação; e eu a vi de pé diante de uma fogueira, segurando nas mãos alguma coisa ensangüentada...

—  Estou vendo que continua preocupado. Não precisa ficar. Não pertenço à ordem, apenas conheço algumas pessoas por lá. Como perguntou, achei que deveria saber.

—  Já compareceu a reuniões? O que costuma acontecer?

— Não posso contar. Essa é apenas outra parte da minha vida. Uma parte pequena. Não vai afetá-lo.

—  Vamos embora.

Será que eu já estava pensando, naquela ocasião, que Alma iria proporcionar-me o material para uma novela? Creio que não. Pensava que o contato dela com o grupo era provavel­mente muito menor do que insinuara; só tive uma indicação, muito mais tarde, de que talvez não fosse bem assim. Mas dis­se a mim mesmo que ela estava fantasiando, exagerando. A Oto e Virginia Woolf ? E La grande illusion? Era forçar demais.

 

Suavemente, quase provocantemente, ela me convidou a ir a seu apartamento. Não ficava muito longe do café e dava para se ir a pé. Ao deixarmos a rua mais movimentada e entrarmos numa zona escura, de casas grandes, Alma pôs-se a falar incon­sequentemente de Chicago e da vida que levara lá. Para variar, não precisei interrogá-la para obter informações sobre seu pas­sado. Tive a impressão de perceber um ligeiro tom de alívio em sua voz. Porque “confessara” seu relacionamento com a Oto? Ou porque eu não a interrogara a respeito? Concluí que a segunda opção era a mais provável. Era uma típica tarde de final de verão em Berkeley, quente e fria ao mesmo tempo — fria o bastante para se usar um casaco, mas com uma sen­sação de calor oculto no ar. Apesar da surpresa desagradável que me proporcionara, a jovem a meu lado — com sua gracio­sidade inconsciente, o espírito igualmente natural que trans­parecia em sua conversa, a beleza um tanto espectral — me estimulava, deixava-me mais feliz com a vida, como há meses não me sentia. Estar em companhia dela era como sair da hibernação.

Chegamos ao prédio em que ela morava.

— É no andar térreo — disse Alma, subindo os degraus da frente.

Pelo prazer de contemplá-la, fiquei para trás. Um pardal pousou na grade e inclinou a cabeça. Dava para sentir o cheiro de  folhas  sendo  queimadas.  Alma  virou-se,  o   rosto  imerso nas sombras do pórtico. Em algum lugar, ali perto, um ca­chorro latiu. Milagrosamente, eu ainda podia ver os olhos dela, como se brilhassem iguais a olhos de gato.

—  É tão circunspecto quanto seu livro ou vai entrar comigo?

Registrei simultaneamente o fato de que ela lera meu livro e a crítica que lhe fizera, enquanto subia rapidamente os degraus.

Não imaginara como era o apartamento dela, mas devia ter compreendido que seria inteiramente diferente da casa de­sarrumada de Helen Kayon. Alma morava sozinha, o que eu já desconfiava. Tudo na sala grande a que ela me conduziu era uniformizado por um gosto único, somente um ponto de vista; embora não obviamente, era uma das salas particulares mais luxuosas que eu já tinha visto. Estendido pelo chão, havia um tapete Bokhara, grosso e grande. A tela da lareira era flan­queada por mesas que pareciam ser Chippendale, aos meus olhos inexperientes. Diante da janela estava uma escrivaninha grande. Cadeiras listradas, ao estilo Regência; almofadões; um abajur Tiffany na escrivaninha. Compreendi que acertara ao imaginar que os pais dela tinham dinheiro e comentei:

—  Você não é a típica estudante de pós-graduação, não é mesmo?

—  Cheguei à conclusão de que era mais sensato viver com  essas  coisas  do  que  guardá-las  num  depósito.   Aceita outro café?

Assenti. Muita coisa a respeito dela agora fazia sentido, ajustava-se a um padrão que eu não havia percebido antes. Se Alma parecia alienada, era por ser realmente diferente; fora criada de um modo que noventa por cento da América não conhecem e só acreditam temporariamente: o estilo dos boê­mios excepcionalmente ricos. E se se mostrava essencialmente passiva, era porque jamais tivera que tomar uma decisão pes­soalmente. Rapidamente, imaginei uma infância de enfermeiras e babás, colégios na Suíça, férias em iates. O que explicava seu ar de intemporalidade. Fora por isso que ã imaginara a passar pela frente do Hotel Plaza, nos anos 20 de Fitzgerald. Aquele tipo de riqueza parecia pertencer a outra época.

Quando ela voltou com o café, fui logo perguntando:

—  Não gostaria de fazer uma viagem comigo, dentro de uma ou duas semanas? Podemos ficar numa casa no vale Still.

Alma franziu as sobrancelhas e inclinou a cabeça para o lado. Percebi que havia algo de andrógino em sua passividade, assim como talvez exista algo de andrógino numa prostituta.

—  É uma das jovens mais interessantes que já conheci.

—  Uma verdadeira personagem da Reader’s Digest.

—  De jeito nenhum.

Sentou-se, com os joelhos levantados, numa almofada à minha frente. Era ao mesmo tempo altamente sensual e etérea, e descartei prontamente a idéia de que poderia ter um quê de andrógino. Parecia impossível que eu tivesse acabado de pensar nisso. Sabia que tinha de ir para a cama com ela e sabia que iria; o conhecimento tornava o ato ainda mais premente.

 

“Basta deixar o dinheiro em cima da mesa, rapaz...”

 

Pela manhã, minha paixão era total. A ida para a cama ocorrera da maneira mais natural possível. Depois de conver­sarmos durante uma ou duas horas, Alma dissera:

—  Não está querendo voltar para sua casa, não é mesmo?

—  Não.

— Neste caso, é melhor passar a noite aqui.

O que se seguiu não foi a batalha de corpos habitual, a corrida frenética do sexo. Na verdade, Alma era tão passiva na cama como em tudo mais. Contudo, teve orgasmos com a maior facilidade, primeiro no estágio preliminar e depois mais inten­sos durante o período do ato propriamente dito, quando se agarrou a meu pescoço como uma criança, enquanto os qua­dris se agitavam e as pernas compridas faziam pressão contra minhas costas. Mas continuou afastada, mesmo durante essa rendição.

— Ah, eu o amo — disse ela, depois da segunda vez, agarrando os meus cabelos, mas com a pressão das mãos tão tênue quanto a voz.

Alcançando um mistério nela, encontrei outro mistério oculto. A paixão de Alma parecia provir da mesma fonte do seu ser de onde saíam os modos que exibia à mesa. Eu já fizera amor com uma dúzia de mulheres que eram “melhores de cama” do que Alma Mobley, mas com nenhuma delas experimentara aquela sensibilidade tão intensa. Alma se sentia à vontade com todas as nuanças e tonalidades dos sentimentos. Era como estar permanentemente à beira de alguma outra espécie de experiên­cia, como estar diante de uma porta por se abrir.

Compreendi pela primeira vez por que as mulheres se apaixonam pelos dom-juans, por que se humilham para per­segui-los.

E compreendi também que Alma me proporcionara uma versão altamente seletiva do seu passado. Tinha certeza de que ela fora quase tão promíscua quanto uma mulher podia ser. O que se ajustava com a Oto, com a súbita partida de Chicago; a promiscuidade parecia ser o elemento tácito do modo de ser de Alma.

O que eu queria, é claro, era suplantar todos os outros; abrir a porta e descobrir todos os mistérios dela; ter toda aquela graça e sutileza concentradas em mim. Numa fábula sufi, o elefante se apaixona por um vaga-lume e imagina que ele não brilha para qualquer outra criatura; e quando o vaga-lume voou para longe, o elefante jamais teve qualquer dúvida de que no centro de sua luz havia a imagem de um elefante.

 

O que simplesmente aconteceu foi que fiquei totalmente apaixonado. Desapareceram minhas idéias de voltar a escrever outro romance. Não podia inventar sentimentos quando estava tão intensamente dominado por eles; com o enigma de Alma diante de mim, o enigma diferente das personagens fictícias parecia artificial. Poderia cuidar disso mais tarde, mas primeiro precisava decifrar o enigma de Alma Mobley.

Pensando incessantemente em Alma, eu tinha de vê-la sempre que podia. Por dez dias, estive com ela quase todos os minutos em que não dava aulas. Histórias ainda não lidas dos meus alunos iam-se empilhando no sofá, assim como pilhas de ensaios sobre The scarlet letter. Durante esse período, nossas proezas sexuais foram incríveis. Fizemos amor em salas de aula temporariamente desertas, na sala aberta que eu partilhava com uma dúzia de outros professores. Certa ocasião, segui-a até um banheiro de mulheres e fizemos amor lá dentro, com Alma equilibrada numa pia. Um aluno da minha turma de redação criativa, depois de uma aula em que me mostrei por demais retórico, perguntou:

—  Mas como define o homem?

—  Sexual e imperfeito — respondi. 

Falei que passei com Alma “quase” todos os momentos em que não estava dando aula. As exceções foram duas noites em que ela me disse que precisava visitar uma tia em San Fran­cisco. Deu-me inclusive o nome da tia, Florence de Peyser. Mas depois que ela partiu, fui dominado pelas dúvidas. Mas Alma voltou inalterada no dia seguinte. Não pude encontrar quais­quer indícios de outro amante. Nem da Oto, que era a preo­cupação maior. E ela relatou tantos detalhes circunstanciais sobre a Sra. Peyser (um terrier Yorkshire chamado Chookie, um armário de vestidos antiquados, uma empregada chamada Rosita) que minhas suspeitas se dissiparam. Não se podia voltar de uma noite com os sinistros zumbis da oro contando histórias sobre um cachorro chamado Chookie. Se havia outros amantes, se a promiscuidade que eu sentira nela naquela pri­meira noite ainda persistia, não percebi o menor indício.

Na verdade, se alguma coisa me preocupava não era a rivalidade hipotética de outro homem, mas um comentário que Alma fizera em nossa primeira manhã juntos. E que pode ter sido simplesmente uma declaração de afeto estranhamente for­mulada:

—  Você foi aprovado.

Por um momento aflitivo, pensei que ela se estivesse re­ferindo às coisas que nos cercavam, como o vaso chinês na mesinha-de-cabeceira, a gravura emoldurada de Pissarro e o tapete felpudo. (Tudo isso me deixava mais inseguro do que estava disposto a admitir.)

—  Com que então me aprova — murmurei.

—  Não por mim. Isto é, por mim também, é claro, mas não apenas por mim.

E ela encostou um dedo em meus lábios. Um ou dois dias depois, eu já havia esquecido inteiramente esse mistério irritantemente desnecessário.

É claro que eu havia esquecido também o meu trabalho. Ou pelo menos sua maior parte. Mesmo depois das primeiras semanas freneticamente sensuais, eu passava muito menos tem­po do que antes ensinando. Estava apaixonado como nunca antes me acontecera. Era como se, por toda a minha vida, esti­vesse apenas contornando a alegria, fitando-a desconfiado, não a compreendendo; somente Alma poderia proporcioná-la. O que quer que pudesse ter-me causado desconfiança ou dúvida foi totalmente dissipado pela paixão. Se havia coisas a respeito de Alma que eu ignorava, não me importava absolutamente com isso; o que sabia era mais do que suficiente.

Tenho certeza de que foi ela quem abordou inicialmente a questão do casamento. Foi numa frase mais ou menos assim:

—  Quando nos casarmos, devemos viajar muito.

Ou então:

—  Em que tipo de casa gostaria de morar depois que nos casarmos?

A conversa passou a cair volta e meia em discussões desse tipo, sem qualquer constrangimento. Eu não sentia qualquer coação, apenas um aumento de felicidade.

—  Você foi realmente aprovado...

—  Posso conhecer sua tia um dia desses?

—  Prefiro poupá-lo — disse ela, o que não respondia à pergunta implícita. — Se nos casarmos no ano que vem, vamos passar o verão nas ilhas gregas. Tenho alguns amigos com os quais poderemos ficar... amigos de meu pai, que vivem em Poros.

—  Será que eles me aprovariam?

—  Não me importo que eles o aprovem ou não — decla­rou Alma, pegando-me a mão e fazendo meu coração disparar.

Vários dias depois, Alma comentou que depois de visi­tarmos Poros ela gostaria de passar um mês na Espanha.

—  E o que me diz de Virginia Woolf? E o seu diploma?

—  Não sou grande coisa como estudante.

É claro que eu não imaginava realmente que passaríamos meses e meses viajando, mas era uma fantasia que pelo menos parecia uma imagem do nosso futuro partilhado, como a fan­tasia da minha não-especificada aprovação continuada.

À medida que se aproximava o dia em que teria de fazer a conferência sobre Stephen Crane para Lieberman, compreendi que praticamente ainda não fizera qualquer preparativo e disse a Alma que teria de passar pelo menos umas duas noites na biblioteca.

—  De qualquer forma, será uma péssima conferência. E não me importo se Lieberman vai ou não prorrogar o meu con­trato por mais um ano, pois estou convencido de que ambos queremos deixar Berkeley o mais breve possível. Mas não posso deixar de elaborar pelo menos algumas idéias.

Ela disse que não havia problema, que estava mesmo pre­tendendo passar duas ou três noites com a Sra. Peyser.

No dia seguinte, separamo-nos com um longo abraço. Alma foi embora. Voltei para meu apartamento, onde passara muito pouco tempo no último mês e meio, arrumei algumas coisas e depois fui para a biblioteca.

No andar térreo, avistei Helen Kayon pela primeira vez desde que ela deixara o anfiteatro com Meredith Polk. Ela não me viu; estava esperando o elevador com Rex Leslie, o pro­fessor com quem eu trocara de mesa. Estavam absorvidos na conversa; enquanto eu observava,, Helen pôs a mão nas costas de Rex Leslie. Não pude deixar de sorrir, desejando-lhe sorte daquela vez, e subi pela escada.

Naquela noite, trabalhei na conferência. Não tinha nada a dizer a respeito de Stephen Crane, não estava interessado em Stephen Crane. E sempre que levantava os olhos do livro, de­parava com Alma Mobley, os olhos brilhando, a boca se en­treabrindo.

Na segunda noite da ausência de Alma, saí do aparta­mento para ir comer uma pizza e tomar uma cerveja. Avistei-a  inesperadamente parada nas sombras, ao lado de um bar cha­mado The Last Reef. Era um lugar no qual eu hesitaria em entrar, já que tinha a reputação de ser um antro de pervertidos e homossexuais à procura das chamadas emoções fortes. Fiquei paralisado; por um segundo, o que senti não foi traição, mas medo. Alma não estava sozinha e o homem em sua companhia obviamente estivera no bar, pois tinha uma garrafa de cerveja na mão. Mas, aparentemente, não era um pervertido nem um homossexual à procura de uma aventura. Era alto, a cabeça ras­pada, usava óculos escuros. Era extremamente pálido. E embo­ra estivesse vestido de maneira indefinível, de calça bege e blusão de golfe (por cima do peito nu? Tive também a impres­são de perceber alguma espécie de corrente encostada à sua pele), o homem parecia um animal, um lobo faminto em pele humana. Um menino pequeno, exausto e descalço, estava sen­tado na calçada, a seus pés. Os três formavam um grupo bas­tante estranho, parados nas sombras ao lado do bar. Alma parecia estar inteiramente à vontade na companhia do homem. Ela falava intermitentemente, o homem respondia. Pareciam mais íntimos que Helen Kayon e Rex Leslie, embora não hou­vesse entre os dois gestos de afeição familiar. O menino estava todo encolhido aos pés do homem, tremendo de vez em quando, como se receasse ser chutado. Os três davam a impressão de constituir uma família pervertida e noturna, uma típica família de Charles Addams. A graciosidade característica de Alma, e sua maneira de ser, parecia irreal e um tanto iníqua ao lado do homem que podia transformar-se em lobisomem e do me­nino patético. Recuei, pensando que o homem poderia retornar à selvageria se me visse.

Pois não havia a menor dúvida de que era assim que um lobisomem parecia. E no instante seguinte, outro pensamento me passou pela cabeça: a Oto.

O homem levantou o menino da calçada com um puxão brusco, acenou com a cabeça para Alma e entrou num carro parado junto ao meio-fio, ainda com a garrafa de cerveja na mão. O menino entrou no banco de trás. Um momento depois, o carro se afastava ruidosamente.

Mais tarde, ainda naquela noite, sem saber se estava come­tendo um erro, mas incapaz de esperar até o dia seguinte, tele­fonei para Alma.

—  Eu a vi há cerca de duas horas. Não quis incomo­dá-la. E, de qualquer forma, pensei que estivesse  em  San Francisco.

—  Aquilo lá estava muito aborrecido e voltei antes do que planejava. Não telefonei porque queria que terminasse seu trabalho. Oh, Don, meu pobre coitado!  Deve ter imaginado alguma coisa horrível!

—  Quem era o homem com quem você estava conver­sando? Cabeça raspada, óculos escuros, com um menino peque­no. .. ao lado de um bar de homossexuais.

—  Ah, então foi com ele que me viu! O nome dele é Greg. Nós nos conhecemos em Nova Orleans. Ele veio cursar a universidade aqui e acabou largando os estudos. O menino é seu irmão. Os pais morreram e Greg é quem toma conta dele. Embora eu deva dizer que não toma conta muito bem. O me­nino é retardado.

—  Ele é de Nova Orleans?

— Claro. Por que está tão desconfiado? O sobrenome dele é Benton. Morávamos na mesma rua.

Parecia plausível, desde que eu não pensasse na aparên­cia do homem a quem ela dera o nome de Greg Benton.

—  Ele está na Oto.

Alma soltou uma risada.

—  Meu pobre querido está todo confuso, não é mesmo? Não, claro que Greg não é da Oto. Não pense mais nisso, Don. Nem sei por que lhe contei.

—  Conhece realmente gente da Oto?

Ela hesitou.

—  Só alguns...

Senti-me aliviado, pensando que Alma exagerara a fim de parecer mais atraente. Talvez meu “lobisomem” fosse real­mente apenas um antigo vizinho de Nova Orleans; a visão dele, nas sombras do bar, recordara-me a primeira vez em que avis­tara a própria Alma, inteiramente sem cor, como um fantasma, na sombra da escada do campus.

—  E o que esse... Benton faz?

—  Acho que ele tem um negócio irregular de produtos farmacêuticos.

O que fazia sentido. Ajustava-se à aparência, a sua pre­sença no bar The Last Reef. Alma parecia mais próxima do constrangimento do que em qualquer outra ocasião anterior.

—  Se já acabou seu trabalho, Don, podia fazer o favor de vir até aqui para dar um beijo em sua noiva.

Eu já estava passando pela porta menos de um minuto depois.

 

Duas coisas estranhas aconteceram naquela noite. Está­vamos na cama de Alma, vigiados pelos objetos que já enu­merei. Eu tinha passado quase a noite toda mais cochilando do que dormindo. Estendi a mão e toquei de leve no braço macio e nu de Alma. Não queria acordá-la. Mas tive a sensa­ção de que ele transmitia um choque a meus dedos, não um choque elétrico, mas um choque de sentimento concentrado, um choque de repulsa. Parecia até que eu havia tocado numa lesma. Puxei a mão bruscamente. Alma virou-se na cama e mur­murou:

— Tudo bem, querido?

Murmurei qualquer coisa em resposta. Alma afagou mi­nha mão e voltou a dormir. Algum tempo depois, sonhei com ela. Via apenas seu rosto, mas não era o rosto que eu conhecia. A estranheza me fez gemer de angústia. E pela segunda vez despertei inteiramente, sem saber onde estava ou ao lado de quem me encontrava.

 

Talvez tenha sido nessa ocasião que a mudança começou, mas nosso relacionamento permaneceu superficialmente o mes­mo, pelo menos até o prolongado fim de semana no vale Still. Ainda fazíamos amor com freqüência e com plena alegria e satisfação. Alma continuava a falar jovialmente sobre a maneira como viveríamos depois do casamento. E eu continuava a amá-la, muito embora duvidando da veracidade absoluta de algumas de suas declarações. Afinal, como romancista, não era também uma espécie de mentiroso? Minha profissão consistia em inven­tar coisas e cercá-las com detalhes suficientes para que se tor­nassem plausíveis; umas poucas invenções no papel de outra pessoa não me perturbavam indevidamente. Decidíramos nos casar em Berkeley ao final do semestre, na primavera. O casa­mento parecia uma chancela formal a nossa felicidade. Mas creio que a mudança já começara, e meu recuo brusco ao con­tato com a pele de Alma, no meio da noite, foi o primeiro sinal de que se iniciara semanas antes de eu sequer percebê-la.

Um fator na mudança foi certamente a “aprovação” que eu tinha conquistado tão misteriosamente. Interroguei Alma finalmente na manhã da minha conferência sobre Crane. Era uma manhã tensa para mim, pois sabia que faria uma péssima conferência. E disse:

— Se essa aprovação que está sempre mencionando não é sua e se não é da Sra. Peyser, de quem é então? Não posso deixar de ficar imaginando coisas. Espero que não seja do seu amigo do tráfico de drogas. Ou será que é do irmão idiota dele?

Alma fitou-me, um pouco surpresa, depois sorriu e disse:

— Acho que devo lhe contar. Já somos íntimos o bastante.

—  Era o que eu imaginava.

Alma continuava a sorrir.

—  Vai parecer um tanto estranho.

—  Não me importo. Estou apenas cansado de não saber.

—  A pessoa que o está aprovando é um antigo amante meu. Espere, Don, não precisa ficar com essa cara. Não o vejo mais. Nem poderia. Ele está morto.

—  Morto? — Eu me sentei. Minha voz soava espantada e tenho certeza de que assim também era a minha expressão. Mas creio que já estava esperando algo estranho assim.

Alma assentiu, o rosto sério e divertido ao mesmo tempo, no seu habitual “efeito duplo”.’

—  É isso mesmo, Don. O nome dele é Tasker Martin.

Estou em contato com ele.

—  Está em contato com ele...

—  Constantemente.

—  Constantemente...

—  Exatamente. Converso com ele. Tasker gosta de você, Don. E gosta muito.

—  Foi ele quem me aprovou...

—  Isso mesmo. Converso com ele sobre tudo. E Tasker me disse repetidas vezes que fomos feitos um para o outro. Além disso, ele simplesmente gosta de você, Don. Se estivesse vivo, teria sido um grande amigo seu.

Fiquei olhando para ela, completamente aturdido. Depois de um momento, Alma acrescentou:

—  Eu disse que ia parecer estranho...

—  E parece mesmo.

Ela levantou as mãos. E dai?

—  Há quanto tempo... Tasker morreu?

—  Há cinco ou seis anos.

—  Outro amigo de Nova Orleans?

—  Isso mesmo.

—  E era muito chegada a ele?

—  Éramos amantes. Ele era mais velho... bem mais velho. Morreu de enfarte. E começou a falar comigo duas noi­tes depois.

—  Ele precisou de dois dias para arrumar fichas de te­lefone.

Alma não replicou.

—  Ele está falando com você neste momento?

—  Está escutando. Sente-se contente por você já saber a respeito dele.

—  Mas eu não tenho certeza se também me sinto con­tente.

—  Basta se acostumar com a idéia. Ele gosta realmente de você, Don. Vai dar tudo certo... continuará a ser exata­mente como antes.

—  Tasker costuma ligar as antenas quando estamos na cama?

—  Não sei. Acho que sim. Ele sempre gostou desse lado das coisas.

—  E é Tasker quem lhe dá algumas de suas idéias sobre o que vamos fazer depois de nos casarmos?

—  Às vezes. Foi Tasker quem se lembrou dos amigos de meu pai em Poros. Ele acha que você vai adorar a ilha.

—  E o que Tasker pensa que eu vou fazer agora que me contou a respeito dele?

—  Ele diz  que  você vai  ficar  meio  transtornado  por algum tempo e pensará que estou doida, mas acabará acostu­mando-se com a idéia. Afinal, ele está aqui e não vai a parte alguma, e você também está aqui e vamos nos casar. Don, pen­se em Tasker simplesmente como se fosse uma parte de mim.

—  E deve ser mesmo — murmurei. — Não posso por certo acreditar que você realmente mantém uma comunicação permanente com um homem que morreu há cinco anos.

Em parte, eu estava fascinado. Um hábito do século XIX, como conversar com os espíritos dos falecidos, ajustava-se per­feitamente a Alma, harmonizava até mesmo com sua passivi­dade. Mas era também arrepiante. O fantasma tagarela de Tasker Martin era obviamente uma ilusão. No caso de qualquer outra pessoa que não fosse Alma, seria o sintoma de uma doen­ça mental. Horrível também era a idéia de ser aprovado por amantes anteriores. Olhei para Alma, que me fitava com uma expressão paciente e suave de expectativa, e pensei: “Ela pa­rece mesmo um andrógino. Poderia ter sido um bonito rapaz sardento de dezenove anos”. Alma sorriu, a expectativa ainda em seu rosto. Minha vontade era fazer amor com ela, ao mes­mo tempo em que sentia uma separação entre nós. Os dedos compridos e bem-feitos estavam estendidos sobre a madeira envernizada da mesa, ligados a mãos e pulsos igualmente bo­nitos. Também me atraíam e repeliam ao mesmo tempo.

—  Vamos ter um lindo casamento, Don.

—  Você, eu e Tasker.

—  Ele bem que disse que você teria inicialmente essa reação.

A caminho da conferência, recordei-me do nativo de Nova Orleans, Greg Benton, que vira em companhia de Alma, com seu rosto rude e brutal; não pude conter um tremor.

Pois um indício da anormalidade de Alma, uma indicação de que ela não era como qualquer outra pessoa que eu conhe­cera antes, era o fato de insinuar um mundo no qual podiam existir fantasmas que davam conselhos e homens que eram lobos disfarçados. Não consigo pensar em outra maneira qualquer de me expressar. Não estou querendo dizer que Alma me fez acreditar na parafernália do sobrenatural, mas certamente su­geriu que tais coisas podiam estar pairando a nosso redor, invi­síveis. Você pisa num pedaço de chão com toda a aparência de sólido e descobre que desmorona sob seu pé; olha para baixo e, ao invés de ver relva, terra, a solidez que esperava, avista uma caverna comprida, onde coisas rastejantes correm de um lado para outro a fim de escaparem da luz. Pois aqui existe uma caverna, uma espécie de abismo, pensa você; até onde irá? Será que está por baixo de tudo e a sólida terra não passa de uma ponte para este lugar? Não, não deve; é muito provável que não seja. “Amo Alma”, disse a mim mesmo. “Va­mos nos casar no próximo verão.” Pensei em suas pernas ex­traordinárias, no rosto maravilhoso, na sensação que experi­mentava ao lado dela, de estar empenhado num jogo compreen­dido apenas pela metade.

Minha segunda conferência foi um desastre. Apresentei idéias de segunda mão, tentei relacioná-las cm vão e acabei me perdendo nas anotações que fizera, entrei em contradições. Pensando em outras coisas, disse que The red badge of courage era “uma grande história de fantasmas em que o fantasma nunca aparece”. Era impossível disfarçar minha falta de preparo e interesse pelo que estava dizendo. Houve umas poucas palmas irônicas quando acabei. Senti-me grato pelo fato de Lieberman ter ido novamente a Iowa.

Depois da conferência, fui para um bar e pedi uma dose dupla de Johnny Walker rótulo preto. Antes de ir embora, fui até a cabine telefônica nos fundos e peguei o catálogo de San Francisco. Procurei primeiro na letra P e nada encontrei. Co­mecei a suar frio. Mas quando procurei em D, lá estava “de Peyser, F.” O endereço ficava no lado direito da cidade. Talvez a terra fosse um terreno sólido no final das contas; claro que era.

 

No dia seguinte, telefonei para o escritório de David e disse-lhe que gostaria de usar sua casa no vale Still.

— Fantástico! — disse David. — E veio a calhar. Arrumei algumas pessoas para ficarem vigiando a casa, a fim de que ninguém roube nada, mas sempre quis que você a usasse, Don,

—  Tenho andado muito ocupado.

—  Como vão as mulheres por aí?

—  Estranhas e novas. Para dizer a verdade, acho que fiquei noivo.

—  Não parece ter muita certeza.

—  Estou noivo e vou casar-me no próximo verão.

—  Mas como é o nome dela? Já contou a alguém? Puxa vida! Já ouvi muitos anúncios de casamento esquisitos, mas declarado desse jeito...

Disse o nome dela e acrescentei:

—  David, não contei a mais ninguém da família. Se entrar em contato com os outros, diga que escreverei em breve. Ser noivo absorve a maior parte do meu tempo.

Ele me explicou como chegar à sua casa no vale, deu-me os nomes dos vizinhos que estavam com a chave e disse:

—  Estou feliz por você, irmãozinho.

E nos despedimos com as promessas habituais de uma correspondência permanente.

 

David comprara a propriedade no vale Still quando ainda trabalhava numa firma de advocacia da Califórnia. Com sua sagacidade habitual, escolhera o lugar cuidadosamente, queren­do que sua casa de férias tivesse bastante terreno ao redor — eram oito acres — e ficasse perto do mar. Gastara em seguida todo o dinheiro disponível para reformar e redecorar inteira­mente a casa. Ao se transferir para Nova York, David conser­vara a casa, sabendo que os preços das propriedades no vale Still ainda seriam muito valorizados. Desde então, o valor da casa provavelmente já quadruplicara, o que demonstrava cabal­mente que David não era nenhum tolo. Depois que Alma e eu pegamos as chaves com o pintor e sua esposa que trabalhava com cerâmica, a vários quilômetros da propriedade de David, pela estrada do vale, viramos num caminho de terra que seguia na direção do mar. Pudemos ouvir e cheirar o Pacífico antes mesmo de vermos a casa. Ao vê-la finalmente, Alma mur­murou:

— Don, este é o lugar onde devemos passar nossa lua-de-mel!

Eu fora enganado pela constante referência de David ao lugar como uma “cabana”. Esperava uma construção de ma­deira de dois ou três cômodos, provavelmente com os encanamentos pelo lado de fora. Em vez disso, parecia exatamente o que era: a diversão dispendiosa de um jovem e rico advogado.

—  Seu irmão deixa uma casa assim ficar vazia?

—  Acho que ele vem aqui duas ou três semanas por ano.

—  Essa não!

Eu nunca antes vira Alma tão impressionada.

—  O que Tasker acha?

—  Ele  acha  que é  incrível.  E  diz  que  parece  Nova Orleans.

Eu deveria ter imaginado.

Contudo, a descrição não era incorreta: a “cabana” de David era uma estrutura de madeira alta, de dois andares, ofuscantemente branca e espanhola na concepção, com sacadas de ferro batido preto projetando-se das janelas do andar superior. Grossas colunas flanqueavam a maciça porta da frente. Por trás da casa, podíamos avistar o interminável mar azul, lá embaixo. Peguei nossas malas no carro, subi os degraus e abri a porta. Alma seguiu-me.

Depois de passarmos por um pequeno vestíbulo ladrilha­do, entramos numa sala imensa, onde havia diversas áreas altea­das e outras rebaixadas. Um espesso carpete branco se estendia por cima de tudo. Havia imensos sofás e mesinhas de tampo de vidro em diferentes áreas da sala. As vigas expostas haviam sido polidas e envernizadas, correndo por toda a extensão do teto.

Eu já sabia o que iria encontrar antes mesmo de inspecionarmos a casa. Sabia que haveria uma sauna e um forno, um caríssimo equipamento estereofônico, um equipamento Cuisinart na cozinha, uma prateleira cheia de pornografia instru­tiva no quarto... e tudo isso avistamos de passagem pela casa. Havia também um Betamax, uma porção de bugigangas de arte decorativa, um bidê em cada banheiro... quase que imediata­mente me senti preso dentro da fantasia de outra pessoa. Não tinha a menor idéia de que David ganhara tanto dinheiro du­rante os seis anos na Califórnia; assim como também não sabia que seu gosto permanecera naquele nível.

—  Não gosta, não é mesmo? — perguntou Alma.

—  Estou espantado.

—  Qual é o nome do seu irmão?

Dei a informação.

—  E onde ele trabalha?

Ela assentiu quando falei o nome da firma, não como Rachel Varney o teria feito, com uma ironia desinteressada, mas como se estivesse conferindo o nome numa lista.

Mas não havia a menor dúvida de que Alma estava certa: eu não gostava da Xanadu de David.

De qualquer forma, ali estávamos e tínhamos que passar três noites na casa. Alma rapidamente assumiu a casa como se lhe pertencesse. Mas enquanto ela preparava a comida na co­zinha repleta de engenhocas, divertindo-se com os brinquedinhos dispendiosos de David, fui ficando cada vez mais mal-humorado. Achei que Alma se adaptara à casa de alguma maneira fantástica, passara sutilmente da estudiosa de Virginia Woolf para uma dona-de-casa suburbana; subitamente, pude vê-la empilhando mercadorias num carrinho no supermercado.

Mais uma vez, estou comprimindo impressões a respeito de Alma num único parágrafo. Mas, neste caso, estou conden­sando as impressões de dois dias apenas, e a mudança nela foi simplesmente uma questão de grau. Contudo, eu tinha a sen­sação inquietante de que, assim como em seu apartamento Alma era a mais perfeita encarnação da jovem rica e boêmia, na casa de David ela irradiava indícios de uma personalidade afeita às cozinhas com mil e uma engenhocas e às saunas domés­ticas. Passou a falar muito mais do que o habitual. As frases sobre como viveríamos depois do casamento transformaram-se em verdadeiros ensaios. Descobri onde teríamos uma base nos intervalos entre as viagens (Vermont), quantos filhos teríamos (três) e assim por diante.

E pior do que isso, Alma pôs-se a falar incessantemente sobre Tasker Martin.

— Tasker era um homem grandalhão, Don, com cabelos brancos maravilhosos, um rosto firme, os olhos azuis incrivel­mente penetrantes. O que Tasker mais gostava... Já lhe contei que Tasker... Um dia, Tasker e eu fomos...

Isso, mais que qualquer outra coisa, provocou o fim da minha paixão.

Mas, mesmo então, achei difícil aceitar que meus sen­timentos haviam mudado. Enquanto ela descrevia as persona­lidades dos nossos filhos, descobri-me a cruzar os dedos men­talmente... quase estremecendo. Percebendo o que estava fazendo, disse a mim mesmo: “Mas não está apaixonado? Não pode até mesmo agüentar a fantasia de Tasker Martin? Não é capaz de qualquer coisa por ela?”

 

O tempo contribuiu para tornar as coisas ainda piores. Embora encontrássemos sol e calor no dia em que chegamos, nossa primeira noite no vale Still foi submersa por um denso nevoeiro escuro, que perdurou pelos três dias seguintes. Ao olharmos na direção do mar pelas janelas dos fundos, tínhamos a impressão de estar cercados de mar por toda parte, um mar cinzento e a tudo amortecendo. (Evidentemente, é isso que Saul Malkin imagina em seu quarto de hotel em Paris com Rachel Varney.) Em determinados momentos, podia-se avistar quase que metade do caminho para a estrada do vale; em outras ocasiões, porém, não dava para se ver além da distância de um braço estendido. Uma lanterna naquele cinzento úmido não surtia o menor efeito.

E lá estávamos nós, as manhãs e tardes na casa de David, enquanto o nevoeiro cinzento desfilava pelas janelas e o ba­rulho das ondas quebrando na praia lá embaixo sugeria que a qualquer momento a água poderia começar a entrar por baixo da porta. Alma estava elegantemente enroscada num sofá, segu­rando uma xícara de chá e um prato onde havia uma laranja cortada em partes iguais.

—  Tasker costumava dizer que eu seria a mulher mais bonita da América quando chegasse aos trinta anos. Estou ago­ra com vinte e cinco anos e acho que vou desapontá-lo. Tas­ker dizia...

O que eu sentia era medo.

Na segunda noite, Alma se levantou da cama, inteira­mente nua, despertando-me. Sentei-me na cama, esfregando os olhos na escuridão. Alma atravessou o quarto frio e cinzento até a janela. Não havíamos fechado as cortinas. Alma parou diante da janela, de costas para mim, olhando... olhando para absolutamente nada. A janela dava para o mar. Porém, embora pudéssemos ouvir o barulho das ondas durante a noite inteira, a janela nada revelava além do cinzento a turbilhonar. As cos­tas de Alma pareciam extremamente longas e pálidas no quar­to escuro.

—  O que é, Alma? — perguntei.

Ela não se mexeu nem falou.

—  Há alguma coisa errada? — A pele dela parecia sem vida, mármore branco e frio. — O que aconteceu?

Alma virou-se lentamente e murmurou:

—  Vi um fantasma...

(Ou pelo menos foi isso o que Rachel Varney disse a Saul Malkin. Será que Alma na verdade disse “Eu sou um fan­tasma”? Não pude ter certeza, pois ela falou muito baixo. Eu já estava mais do que cansado de ouvir falar em Tasker Mar­tin, e minha reação foi um resmungo. Mas se ela tivesse dito “Eu sou um fantasma”, será que eu teria reagido de maneira diferente?)

—  Essa não, Alma! — exclamei, não tão aborrecido quan­to teria ficado durante o dia. O frio no quarto, a janela escura e o corpo pálido e esguio de mulher faziam com que a pre­sença de Tasker se tornasse mais real do que em outras cir­cunstâncias.  Senti-me um pouco assustado e acrescentei:  — Diga-lhe para ir embora e volte para a cama.

Mas não adiantou. Alma pegou o robe na cama, vestiu-o e se sentou, a cadeira virada na direção da janela.

—  Alma?

Ela não respondeu nem se virou. Deitei novamente e aca­bei adormecendo.

 

Depois do longo fim de semana no vale Still, as coisas foram se encaminhando para o seu fim inevitável. Muitas vezes pensei que Alma estava meio louca. Ela jamais explicou seu comportamento daquela noite. Depois do que aconteceu com David, perguntei-me se todas as ações dela não faziam parte do que chamei uma vez de jogo: se ela não estava deliberada e conscientemente manipulando minha mente e sentimentos. Uma jovem rica e passiva, terrorista do ocultismo, estudiosa de Virginia Woolf, semilunática... ela simplesmente não ti­nha a menor coerência.

Continuou a projetar-nos no futuro. Depois do vale Still, no entanto, comecei a inventar pretextos para evitá-la. Pen­sava que a amava, mas o amor estava ofuscado pelo medo. Tasker, Greg Benton, os zumbis da Oto... como me poderia casar com tudo isso?

Passei a sentir também uma repulsa física, além da moral. Nos dois meses subseqüentes ao vale Still, praticamente ces­samos de fazer amor, embora eu passasse algumas noites em sua cama. Quando a beijava, quando a abraçava, quando a acariciava, podia ouvir meu próprio pensamento: “Já chega”.

Minhas aulas, exceto em raros momentos de brilho com a turma de redação criativa, tornaram-se monótonas e insípidas. E eu havia parado inteiramente de escrever. Um dia Lieberman pediu-me que fosse procurá-lo em seu gabinete. Quando che­guei, foi logo dizendo:

—  Um de seus colegas descreveu-me a conferência que fez sobre Stephen Crane. Disse realmente que The red badge era uma história de fantasmas sem um fantasma? — Assenti, e ele acrescentou: — Importa-se de me explicar o que isso significa?

—  Não sei o que significa. Minha mente estava vaguean­do. E a retórica escapou ao controle.

Ele me fitou com uma expressão de repulsa.

— E achei que você tinha começado bem...

Eu sabia que não havia por que pensar em passar mais um ano em Berkeley.

 

Então, Alma desapareceu. Forçara-me, como as pessoas de­pendentes conseguem forçar as outras a fazerem o que bem desejam, a ir encontrá-la para um almoço num restaurante perto do campus. Fui para lá, ocupei uma mesa, esperei meia hora e finalmente compreendi que Alma não ia aparecer. Eu me pre­parara para ouvir mais histórias do que iríamos fazer em Vermont e não estava com fome, mas comi uma salada simples­mente porque me senti aliviado e depois fui para casa.

Alma não telefonou naquela noite. Sonhei com ela, sen­tada na proa de uma pequena embarcação, deslizando por um canal e sorrindo enigmaticamente, como se me proporcionar um dia e uma noite de liberdade fosse o último ato da charada.

Pela manhã, comecei a me preocupar. Telefonei para Alma diversas vezes durante o dia, mas ela não estava ou então deci­dira não atender. (O que me provocara uma recordação bem nítida. Uma dúzia de vezes, enquanto eu estava em seu apartamento, Alma deixara o telefone tocar até a pessoa desistir.) Telefonei mais duas vezes durante a noite e senti-me feliz por não obter uma resposta. Fiquei acordado até duas horas da ma­drugada, escrevendo uma carta de rompimento.

Antes da minha primeira aula, fui até o prédio em que Alma morava. O coração estava disparado, tinha medo de encontrá-la por acaso e ser obrigado a pronunciar as frases que pareciam muito mais convincentes no papel. Subi os degraus do prédio e constatei que as cortinas das janelas de Alma esta­vam fechadas. A porta estava trancada. Quase toquei a cam­painha. Em vez disso, porém, enfiei a carta, com a inscrição “Alma”, entre a janela e o caixilho, onde ela iria vê-la, assim que subisse a escada. E depois — não há outra palavra para descrever — fugi.

É claro que Alma sabia os horários de minhas aulas e fiquei esperando vê-la aguardando do lado de fora de uma sala de aula ou do anfiteatro, com a minha carta presunçosa na mão e uma expressão provocante no rosto. Mas cheguei ao final do dia escolar sem vê-la.

O dia seguinte foi uma repetição do anterior. Fiquei preocupado com a possibilidade de Alma ter-se matado; afastei tal preocupação; fui dar minhas aulas da tarde, telefonei para o apartamento dela, mas ninguém atendeu. Jantei num bar. De­pois, fui a pé até a rua de Alma e vi que o retângulo branco da minha traição ainda estava no mesmo lugar. Voltei para casa e pensei por um momento se devia ou não tirar o fone do gan­cho; acabei deixando. A esta altura, já estava quase disposto a admitir que desejava que ela me telefonasse.

No dia seguinte, eu tinha uma aula de literatura americana às duas horas. Para chegar ao prédio, precisava atravessar um amplo espaço calçado. O lugar estava sempre apinhado. Os estudantes instalavam ali mesinhas onde se podiam assinar pe­tições para a legalização da maconha, ou se declarar a favor do homossexualismo e em defesa das baleias. Entre os estudantes, avistei Helen Kayon, pela primeira vez desde aquela noite na biblioteca. Estava de mãos dadas com Rex Leslie. Pareciam excepcionalmente felizes, envolvidos por um contentamento animal como se fosse uma bolha. Desviei os olhos, sentindo-me um perdido na rua da amargura. Compreendi que há dois dias não fazia a barba, não tomava banho e não mudava de roupa.

Ao desviar os olhos de Helen e Rex, avistei um homem alto e pálido, a cabeça raspada, óculos escuros, fitando-me por detrás de uma fonte. O menino de expressão vazia, descalço e com um macacão esfarrapado, estava sentado a seus pés. Greg Benton parecia ainda mais assustador do que nas sombras ao lado do The Last Reef. De pé, em pleno sol, junto de uma fon­te, ele e o irmão eram aparições extraordinárias, pareciam uma dupla de tarântulas. Até mesmo os estudantes de Berkeley, que já tinham visto muita coisa em matéria de estranheza humana, desviavam-se deles. Benton não falou nem gesticulou ao per­ceber que eu o estava fitando, mas toda a sua atitude, a incli­nação da cabeça raspada, a maneira como mantinha o corpo, tudo era um gesto. E tudo expressava raiva, como se eu o ti­vesse enfurecido por ter escapado com alguma coisa. Era como um borrão furioso de escuridão na praça ensolarada; como um câncer.

No instante seguinte, compreendi que Greg Benton, por alguma razão, estava aturdido e impotente. Olhava-me com aquela expressão furiosa porque era tudo o que podia fazer. No mesmo instante, abençoei a proteção dos milhares de estu­dantes. E depois pensei que Alma estava em dificuldades. Em perigo. Ou morta.

Afastei-me de Benton e seu irmão e corri na direção do portão. Atravessei a rua e virei-me a fim de olhar para Benton, pois sentira que ele me ficara observando correr... sentira sua satisfação impiedosa. Mas ele e o irmão haviam desapa­recido. A fonte murmurava, os estudantes passavam de um lado para outro. Avistei Rex e Helen entrando num dos pré­dios. Mas o câncer   sumira.                                              

Quando cheguei à rua de Alma, meu medo parecia absur­do. Sabia que estava reagindo a meu próprio sentimento de culpa. Mas Alma não indicara nossa separação final ao me dei­xar esperando no restaurante? O fato de eu estar tão preocupado e angustiado pela segurança dela parecia uma manipulação final. Prendi a respiração. E depois constatei que as cortinas das janelas de Alma estavam entreabertas e o envelope desa­parecera.                                                           

Corri pela calçada e subi os degraus. Inclinando-me para o lado, pude olhar através da janela. Tudo desaparecera. A sala estava inteiramente vazia. E no assoalho, antes coberto pelos tapetes de Alma, avistei meu envelope. Não tinha sido aberto.

 

Voltei para meu apartamento inteiramente atordoado e assim permaneci por muitas semanas. Não podia entender o que havia acontecido. Sentia ao mesmo tempo um enorme alívio e uma enorme perda. Alma deveria ter deixado seu aparta­mento no próprio dia em que marcáramos um encontro no restaurante. Mas o que teria imaginado? Uma última brinca­deira? Ou saberia que tudo estava terminado, desde o fim de semana no vale Still? Estaria desesperada? Era muito difícil acreditar nisso.

E se eu estava tão ansioso para me livrar dela, por que sentia agora que me estava arrastando por um mundo que já não tinha mais tanto significado? Alma desaparecendo, eu fi­cava com o mundo despojado de causa e efeito, o mundo aritmético... e se não sentia mais o medo que ela despertara em mim, também perdera o mistério. O único mistério que me res­tara era o do lugar para onde Alma fora. O único não, pois havia outro mistério ainda maior: quem era Alma.

Bebi muitos durante esse período, faltei a muitas aulas. Dormia durante a maior parte do dia. Era como se estivesse dominado por alguma doença genérica, que me tirara todas as energias e me deixara sem qualquer outra ocupação que não dormir e pensar em Alma. Depois de uma semana, quando co­mecei a me sentir mais saudável, recordei que vira Benton no campus e imaginei que ele estava furioso porque a coisa com que eu conseguira escapar fora a minha vida.

Voltei a dar aulas e pouco depois deparei com Lieberman num corredor. A princípio, ele virou a cabeça, com a intenção óbvia de me ignorar. Mas mudou de idéia, fitou-me nos olhos e disse:

—  Pode ir a meu gabinete por um momento, Wanderley?

Ele também estava furioso, mas era uma raiva que eu podia enfrentar. Pensei em dizer que era apenas uma raiva humana... mas qual a raiva que não o é? A de um lobisomem?

Assim que entramos no gabinete, fui logo dizendo:

—  Sei que o desapontei. Mas minha vida saiu dos eixos bruscamente. E caí doente. Vou procurar encerrar o ano da maneira mais honrosa possível.

—  Desapontou? É uma palavra muito amena para o que aconteceu. — Ele se recostou na cadeira estofada em couro, os olhos brilhando intensamente. — Acho que nunca sofremos uma decepção tão grande com um dos nossos professores con­vidados. Depois que lhe confiei uma conferência importante, aparentemente reuniu a maior mixórdia... o pior lixo... — Fez uma pausa, controlando o ímpeto. — E faltou a mais aulas do que qualquer outro professor em nossa história desde que tivemos um poeta alcoólatra que tentou incendiar os escritórios da junta de recrutamento. Em suma, você tem se mostrado re­lapso, relaxado, preguiçoso, incompetente... uma vergonha total! Queria apenas que soubesse o que penso a seu respeito. Sozinho, conseguiu pôr em risco todo o nosso programa de pre­paração de novos escritores. E, como sabe, esse programa é zelosamente supervisionado. Temos que dar satisfações a um conselho. E terei que defendê-lo perante esse conselho, por mais que a perspectiva me desagrade.

—  Não posso culpá-lo por estar se sentindo assim — declarei. — Mas é que me envolvi numa estranha situação... e tenho a impressão de que cheguei à beira de um colapso.

—  Fico imaginando quando vocês, os chamados criado­res, vão compreender que não podem escapar impunemente a seus atos. — A explosão fê-lo sentir-se melhor. Uniu as pon­tas dos dedos diante do rosto e fitou-me por cima, acrescentan­do: — Creio que não deve estar esperando que eu lhe dê uma recomendação altamente favorável.

—  Claro que não! — Pensei por um momento. — Más gostaria de saber se lhe posso fazer uma pergunta.

Ele assentiu.

—  Já ouviu falar de um professor de inglês na Universidade de Chicago chamado Alan McKechnie? — Os olhos dele se arregalaram, cruzou as mãos. — Não sei muito bem por que estou perguntando, apenas queria saber se conhece alguma coisa a respeito dele.

—  Mas por que diabo está querendo saber?

—  Porque estou curioso, mais nada.

—  Essa não! — Lieberman se levantou e foi até a janela do gabinete, que proporcionava uma esplêndida vista do cam­pus. — Detesto rumores, como sabe perfeitamente.

O que eu sabia era que ele os adorava, como a maioria dos acadêmicos.

—  Conheci Alan ligeiramente. Participamos de um simpósio sobre Robert Frost, há cinco anos. Era um homem sólido e compenetrado. Talvez um tanto tomista demais, mas não há outro jeito em Chicago, não é mesmo? O que não o impe­dia de ter uma mente excepcional. E aposto que sua família também era maravilhosa.

—  Ele tinha filhos? Esposa?

Lieberman fitou-me com uma expressão desconfiada.

— Claro. Foi o que fez com que a coisa se tornasse ainda mais trágica. Além da perda de suas contribuições para o campo, é claro.                                                

—  Tem razão. Eu tinha esquecido.

— Mas o que você sabe afinal? Não vou difamar um co­lega só porque...  só porque...

—  Havia uma jovem — murmurei.

Lieberman assentiu, satisfeito.

—  Isso  mesmo. Ou  pelo  menos  aparentemente  havia. Ouvi falar a respeito na última convenção da Associação de Linguagem Moderna. Um dos colegas de  departamento de McKechnie contou-me a história. Ele foi simplesmente sedu­zido. A jovem o perseguiu implacavelmente. Atormentou-o até que cedesse. “La belle dame sans merci.” Era uma de suas alu­nas de pós-graduação. Essas coisas costumam acontecer, estão sempre acontecendo. Uma garota se apaixona pelo professor, consegue seduzi-lo, algumas vezes leva-o a abandonar a esposa, a maioria das vezes não. A maioria de nós tem um mínimo de bom senso. — Ele tossiu. Nesse momento, não pude deixar de pensar: “Você não passa de um bosta”. — Mas não foi o que aconteceu com McKechnie. Ele simplesmente desmoronou. A garota arruinou-o. Ao final, ele acabou se matando. E ima­gino que a garota desapareceu à meia-noite, como nas melhores histórias. O que não consigo imaginar é o que tudo isso tem a ver com você.

Alma falseara quase tudo na história de McKechnie. Perguntei-me o que mais não seria também mentira. Voltando ao apartamento, liguei para o número da Sra. de Peyser. Uma mu­lher atendeu.

—  Sra. de Peyser?

Era a própria.

—  Desculpe estar incomodando-a pelo que talvez seja um caso de equívoco de identidade, Sra. de Peyser. Quem está fa­lando é Richard Williams, do First National Bank da Califór­nia. Temos um pedido de empréstimo de uma Srta. Mobley, que indicou seu nome como referência. Estou efetuando a ve­rificação de rotina. Está designada como tia da jovem.

— Como o quê? Qual é o nome dela?      

— Alma Mobley. O problema é que ela esqueceu de for­necer seu endereço e telefone e há diversas outras Sras. de Peyser na área da baía de San Francisco. E estou precisando da informação correta para os nossos arquivos.

—  Pois esteja certo de que não sou eu! Posso garantir-lhe que jamais conheci qualquer pessoa chamada Alma Mobley!

— Não tem uma sobrinha chamada Alma Mobley, que está fazendo um curso de pós-graduação em Berkeley?

— Claro que não! Sugiro que volte a procurar essa Srta. Mobley e peça o endereço da tia dela, a fim de não ficar per­dendo tempo.

— É o que pretendo fazer agora mesmo, Sra. de Peyser.

 

O segundo semestre foi confuso e indistinto. Comecei um novo livro, mas não consegui levá-lo adiante. Não sabia o que fazer da personalidade de Alma: ela era “La belle dame sans merci”, como Lieberman dissera, ou era uma jovem nas fronteiras mais distantes da sanidade? Não sabia como tratá-la e o primeiro esboço enveredou por caminhos tão disparatados que poderia ter sido um exercício na utilização de um narrador incoerente. E senti também que o livro precisava de outro ele­mento, um elemento que eu ainda não podia determinar qual era, antes de prosseguir.

David telefonou-me em abril. Parecia excitado, feliz, mais jovem do que em muitos anos.

—  Tenho notícias surpreendentes — disse ele. — Notí­cias espantosas! Nem sei como contar!

—  Robert Redford comprou a história de sua vida para fazer um filme.

— Como? Ora, deixe disso! Falando sério, é mesmo mui­to difícil contar para você.

—  Por que não começa do princípio?

— Está bem, está bem. É exatamente isso o que vou fazer, espertinho. Há dois meses, no dia 3 de fevereiro... — era o próprio advogado em ação — ... fui a Columbus Circle, para conversar com um cliente. O tempo estava horrível e, na volta, tive de partilhar um táxi. Péssima notícia, não é mesmo? Mas descobri-me sentado ao lado da mulher mais linda que já vi na vida! Fiquei com a boca ressequida. Não sei de onde fui tirar coragem, mas acabei convidando-a para jantar. Não cos­tumo fazer uma coisa dessas!

—  Sei perfeitamente que não.

David era formal demais para convidar jovens estranhas para jantar. Jamais entrou num bar de gente sem compromis­sos, à procura de um programa, em toda a sua vida.

—  Pois essa jovem e eu nos combinamos maravilhosa­mente. Encontrei-a todas as noites daquela semana. E desde então estamos saindo juntos. Para dizer a verdade, vamos nos casar. Essa é a primeira metade da notícia.

—  Meus parabéns, David. E desejo que tenha melhor sorte do que eu.

—  Agora, vamos à outra metade, a mais difícil. O nome dessa jovem extraordinária é Alma Mobley.

—  Não é possível!

—  Espere um pouco! Sei que é um tremendo choque para você, Don. Mas Alma me contou tudo o que aconteceu entre vocês e acho que é essencial que saiba que ela lamenta pro­fundamente. Conversamos muito a respeito. Ela sabe que feriu seus sentimentos, mas sabia também que não era a mulher certa para você. E você não era o homem certo para ela. Além disso, Alma não se sentia bem na Califórnia. Diz que não con­seguia ser ela própria. E receia que você tenha ficado com uma idéia completamente errada a respeito dela.

— É justamente o que penso. Tudo nela está errado. Alma é uma espécie de bruxa, terrivelmente destrutiva.

—  Ei, vamos com calma! Não se esqueça de que vou ca­sar-me com essa moça, Don. Ela não é a pessoa que você ima­gina. Conversamos muito sobre isso. E nós dois, você e eu, também temos muito o que conversar. Eu gostaria que pe­gasse um avião para Nova York neste fim de semana, a fim de podermos conversar o quanto for necessário para esclarecer tudo. E terei o maior prazer em pagar todas as despesas.

— Tudo isso é absolutamente ridículo, David. Pergunte a ela quem foi Alan McKechnie. Escute a resposta. E depois lhe contarei a verdade.

—  Espere um instante, companheiro. Alma e eu já con­versamos sobre tudo isso. Sei que ela lhe deu uma versão adulterada do caso de McKechnie. Mas será que não pode imaginar como ela estava abalada? Por favor, Don, venha até aqui. Nós três precisamos ter uma longa conversa.

—  Não vou de jeito nenhum. Alma é uma espécie de Circe.

—  Estou no escritório neste momento, Don, mas voltarei a lhe telefonar mais para o final da semana. Está combinado? Precisamos esclarecer tudo. Não quero que meu irmão tenha qualquer ressentimento contra a mulher que vai tornar-se mi­nha esposa.

Ressentimento? O que eu sentia era horror!

David voltou a telefonar naquela noite e perguntei se já conhecera Tasker. Ou se sabia da ligação entre Alma e a Ordo Templi Orientis.

— É nisso que você está com idéias erradas, Don. Ela simplesmente inventou tudo isso. Estava se sentindo muito insegura aí na Califórnia. Além do mais, quem pode levar essas coisas a sério? Ninguém aqui em Nova York jamais ouviu falar da Oto. Na Califórnia, as pessoas ficam preocupadas com as coisas mais banais.

E a Sra. de Peyser? Alma dissera a David que eu era terrivelmente possessivo. A Sra. de Peyser fora apenas um re­curso para dispor de algum tempo para si mesma.

—  Deixe-me fazer-lhe outra pergunta, David. Algumas vezes, talvez uma única, não olhou ou tocou em Alma e sen­tiu... algo muito estranho? Como se tivesse algum escrúpulo em tocá-la, por mais que sinta naquele momento?

—  Você deve estar brincando...

David não permitiu que eu me afastasse de todo e qual­quer envolvimento com Alma Mobley, como era o meu desejo. Não queria deixar a situação como estava. Telefonava de Nova York duas ou três vezes por semana, cada vez mais aflito por minha recusa em aceitar a luz da razão.

—  Temos de esclarecer tudo, Don. Estou me sentindo terrivelmente culpado em relação a você.

—  Não precisa ficar.

— Não consigo entender sua atitude, Don. Sei que deve estar com um ressentimento terrível.  Se tivesse ocorrido o inverso, com Alma saindo da minha vida e decidindo casar-se com você, confesso que eu ficaria perturbado. Mas enquanto você não admitir seu ressentimento não poderemos resolver nada.

—  Não tenho nenhum ressentimento, David.

—  Essa não, irmãozinho! Vamos ter de conversar, mais cedo ou mais tarde. Alma e eu pensamos da mesma forma a respeito.

Um dos meus problemas era não saber até que ponto as suposições de David estavam certas. Era verdade que eu estava um pouco ressentido com David e Alma; mas seria apenas o ressentimento que me fazia sentir horror da idéia de vê-los casados?

Cerca de um mês depois, com muitas outras conversas infrutíferas no intervalo, David telefonou e disse:

—  Vai ter uma trégua nos telefonemas do seu irmão, Don. Preciso tratar de um caso em Amsterdam e vou pegar o avião para lá amanhã. Passarei cinco dias fora. Alma não vai a Amsterdam desde que era criança e me fará companhia. Eu lhe mandarei um cartão-postal. Mas quero que me faça um favor, Don: pense bastante em nossa situação, para podermos con­versar assim que eu voltar. Combinado?

—  Farei o melhor possível. Mas acho que está se preo­cupando demais com o que eu possa pensar.

—  O que você pensa é muito importante para mim.

—  Está certo, David. E também quero pedir um favor a você: tome cuidado.

E o que eu estava querendo dizer com isso?

Pensei muitas vezes que tanto David como eu subestimáramos a capacidade de maquinação de Alma. Será que ela não poderia ter tramado o seu encontro aparentemente acidental com David? E se ela o tivesse procurado deliberadamente? Quando pensava em tais possibilidades, Gregory Benton e as histórias de Tasker Martin pareciam ainda mais sinistras... como se eles também, além de Alma, estivessem espreitan­do David.

Quatro dias depois, recebi um telefonema de Nova York comunicando que David estava morto. Era um dos sócios de David, Bruce Putnam. A polícia holandesa enviara um tele­grama para o escritório.

— Quer ir até Amsterdam, Sr. Wanderley? — perguntou Putnam. — Gostaríamos que cuidasse de tudo. Peço apenas que nos mantenha informados. Seu irmão era muito estimado e respeitado aqui. Nenhum de nós consegue imaginar o que pode ter acontecido. Ao que parece, ele caiu de uma janela.

—  Tiveram alguma notícia da noiva de David?

—  E ele tinha uma noiva? Pois nunca nos contou. Ela foi à Europa com David?

—  Foi, sim. E deve ter visto tudo. Deve saber o que aconteceu. Vou pegar o primeiro avião.

Havia um avião no dia seguinte para o Aeroporto Schiphol. Assim que desembarquei, peguei um táxi e segui direto para a delegacia de polícia que expedira o telegrama para o escritório de David. Foi muito pouco o que descobri. David passara por uma janela e uma sacada com uma grade na altura do peito. O dono do hotel ouvira um grito e mais nada — nem vozes, nem discussão. A polícia achava que Alma o deixara. Ao entrar no quarto, não encontrara nenhuma das roupas dela nos armários.

Fui ao hotel, examinei a sacada e virei-me para o armário aberto. Três ternos de David estavam ali pendurados, com dois pares de sapatos por baixo. Contando o que ele devia estar usando na hora de sua morte, trouxera quatro ternos e três pares de sapatos para uma estada de cinco dias. Pobre David!

 

Tratei de providenciar a cremação e, dois dias depois, compareci ao crematório e fiquei observando o caixão de David deslizar sobre trilhos na direção de uma cortina verde de franjas.

Mais dois dias e eu estava de volta a Berkeley. Meu pe­queno apartamento parecia uma cela, terrivelmente estranho. Era como se eu me tivesse afastado irremediavelmente da pes­soa que fora nos tempos em que procurava referências para James Fenimore Cooper. Comecei a esboçar The nightwatcher e passei a preparar-me novamente para as aulas que iria dar. Uma noite, telefonei para o apartamento de Helen Kayon, pen­sando em convidá-la para tomar um drinque, a fim de poder conversar sobre Alma e meu irmão. Meredith Polk informou que Helen se casara com Rex Leslie na semana anterior. Des­cobri-me dormindo a intervalos durante o dia inteiro, mesmo indo deitar antes das dez horas da noite. Bebia muito, mas não conseguia ficar embriagado. Se sobrevivesse àquele ano, pensei, iria para o México e ficaria deitado ao sol e trabalhando em meu livro.

E escapando às minhas alucinações. Certa ocasião, acordei por volta da meia-noite e ouvi o barulho de alguém na cozinha. Levantei e fui verificar, deparando com meu irmão David, pa­rado ao lado do fogão, segurando o bule de café.

— Está dormindo demais, garoto — disse ele. — Aceita um café?

Em outra ocasião, falando sobre Henry James durante uma aula, vi numa cadeira não a jovem de cabelos vermelhos que eu sabia estar ali, mas David novamente, o rosto coberto de sangue, o terno rasgado, acenando de satisfação por constatar o quão inteligente eu podia ser ao discorrer sobre Portrait of a lady.

Mas eu tinha mais uma descoberta a fazer antes de poder ir para o México. Um dia, fui à biblioteca e, ao invés de me concentrar nas revistas literárias, peguei um exemplar do Who’s Who do ano de 1960. Era quase um ano arbitrário; mas se Alma estava com vinte e cinco anos quando eu a conhecera, então deveria ter nove ou dez anos em 1960.

Robert Mobley constava do livro. Pelo que me recordo — e me lembro muito bem, pois li diversas vezes — o registro era o seguinte:

MOBLEY, ROBERT OSGOOD, pintor e aquarelista; n. Nova Orleans, Louisiana, 23 de fevereiro de 1909; f. Felix Morton e Jessica (Osgood); formado pela Universidade de Yale em 1927; casou-se com Alice Whitney a 27 de agosto de 1936; filhos — Shelby Adam, Whitney Osgood. Expo­sições: Galeria Flagler, Nova York; Galerias Winson, Nova York; Galeria Flam, Paris; Schlegel, Zurique; Ga­leria Esperance, Roma. Prêmios: Paleta de Ouro, 1946; Prêmio da Associação Regional de Pintores Sulistas, 1952, 1955, 1958. Tem obras em: Museu Adda May Lebow, Nova Orleans; Museu de Belas-Artes de Louisiana; Insti­tuto das Artes de Chicago; Museu de Belas-Artes de San­ta Fé; Centro de Artes de Rochester; e vários outros. Serviu como capitão-de-fragata na Marinha dos Estados Unidos de 1941 a 1945. Membro da Sociedade Paleta de Ouro; Associação Regional de Pintores Sulistas; Socie­dade Americana de Aquarela; Associação Americana de Pintores; Academia Americana de Pintura a Óleo. Clubes: Links Golf; Deepdale Golf; Meadowbrook; Century (Nova York); Lyford Cay (Nassau); Garrick (Londres). Autor de: I carne this way. Residências: 38957 Canal Boulevard, Nova Orleans, Louisiana; 18, Church Row, Lon­dres, NW3, Inglaterra; Dans Le Vigne, Route de la Belle Isnard, Saint-Tropez, 83, França.

Robert Mobley, pintor rico e freqüentador dos melhores clubes, tivera dois filhos, mas nenhuma filha. Tudo o que Alma me contara — e presumivelmente a David também — não passara de invenção. Ela se apresentara com um nome falso e não tinha qualquer história; podia perfeitamente ter sido um fan­tasma. Pensei depois em Rachel Varney, uma morena de olhos escuros, com todos os acessórios da fortuna e um passado obs­curo, e compreendi que era David o elemento que estava fal­tando no livro que eu tentava escrever.

Passei quase três semanas escrevendo tudo isso e a única coisa que fiz foi recordar. Não estou mais próximo de alguma compreensão do que antes.

Mas cheguei a uma conclusão, talvez absurda. Não estou mais tão disposto a rejeitar sumariamente a idéia de que pode haver alguma relação entre The nightwatcher e o que aconteceu a David e a mim mesmo. Estou na mesma situação da Socie­dade Chowder: já não sei mais em que acreditar. Se algum dia for convidado a contar uma história para a Sociedade Chowder, vou relatar-lhes o que acabei de escrever aqui. Este relato da minha história com Alma — e não The nightwatcher — é a minha história da Sociedade Chowder. Assim, no final das contas, talvez eu não tenha desperdiçado meu tempo. Adquiri também uma base para o livro do Dr. Rabbitfoot. Estou igual­mente disposto a mudar de opinião a respeito de uma questão importante, talvez a mais importante neste momento. Quando comecei a escrever tudo isso, na noite seguinte ao enterro do Dr. Jaffrey, pensei que seria destrutivo imaginar-me no cenário e atmosfera de um dos meus livros. Contudo... eu não estava no cenário em Berkeley? Minha imaginação pode ter sido mais liberal do que eu pensava.

 

Diversas coisas estranhas estavam acontecendo em Mil­burn. Aparentemente, alguns animais domésticos, vacas e ca­valos, haviam sido mortos por alguma besta estranha. Ouvi um homem comentar numa drugstore que os bichos tinham sido mortos por tripulantes de um disco voador! E, o que era muito mais sério, um homem morrera ou fora morto. O corpo dele foi encontrado numa estação ferroviária abandonada. Era um corretor de seguros chamado Freddy Robinson. Lewis Benedikt, em particular, deu a impressão de ter sofrido um rude golpe com essa morte, embora tudo indicasse que fora acidental. Na verdade, parece que está acontecendo algo muito estranho com Lewis; ele está ficando cada vez mais abstraído e irrequieto, quase como se estivesse se culpando pela morte de Robinson.

Também tenho um pressentimento estranho, que vou re­gistrar aqui, mesmo com o risco de me sentir um idiota rema­tado ao relê-lo após alguns anos. O pressentimento é absolu­tamente infundado, é mais uma ligeira intuição do que um pressentimento: se começar a esmiuçar Milburn mais atenta­mente, fazendo o que a Sociedade Chowder está me pedindo, acabarei descobrindo o que levou David a se lançar de uma sacada de hotel em Amsterdam.

 

Mas a sensação mais estranha, a sensação que faz a adre­nalina disparar por meu corpo, é a de que estou prestes a entrar dentro de minha própria mente, a viajar pelo território de meus próprios escritos, só que desta vez sem o faz-de-conta cômodo da ficção. Não haverá Saul Malkin desta vez; apenas eu.

 

A cidade

“Narciso, contemplando sua imagem na água, chorou. Um amigo que passava viu-o e perguntou: — Por que chora, Narciso?

—  Porque meu rosto mudou — disse Narciso.

—  Chora porque envelheceu?

—  Não. É que estou vendo que não sou mais inocente. Tenho me contemplado cada vez por mais e mais tempo e assim fazendo esgotei minha inocência.”

 

Como Don registrara em seu diário, sentado no quarto 17 do Hotel Archer, reconstituindo os meses que passara com Alma Mobley, Freddy Robinson morrera em circunstâncias es­tranhas. E como Don também anotara, três vacas de um fazen­deiro chamado Norbert Clyde haviam sido mortas. O Sr. Clyde, aproximando-se do estábulo na noite da ocorrência, vira algo que o deixara apavorado. Voltara correndo para casa e não se atrevera a sair de novo até os primeiros clarões do amanhecer, quando tinha de iniciar as tarefas cotidianas e precisava sair de qualquer maneira. Sua descrição do vulto que avistara é que inspirara, entre umas poucas almas mais crédulas de Milburn, a história de uma criatura de um disco voador que Don ouvira na drugstore. Tanto Walt Hardesty como o agente rural do condado, que examinaram as vacas mortas, também ouviram a história, mas não eram crédulos o suficiente para aceitá-la. Walt Hardesty, como já sabemos, tinha suas próprias teorias; tinha o que considerava boas razões para supor que mais alguns ani­mais seriam mortos daquela maneira e depois tudo acabaria. Sua experiência com Sears James e Ricky Hawthorne levou-o a guardar tais teorias para si mesmo, sem dizer nada ao agente rural, que preferiu ignorar alguns fatos óbvios a chegar à con­clusão de que em algum lugar da região havia um cachorro imenso que se tornara um assassino. Preparou um relatório nesses termos e voltou para a sede do condado, convencido de que não havia mais nada com que se preocupar. Elmer Scales, que soubera das vacas de Norbert Clyde e era de qualquer for­ma propenso a acreditar em discos voadores, passou três noites seguidas sentado à janela da sala de sua casa, com uma espin­garda carregada no colo (“...você pode vir de Marte, rapaz, mas quero ver como vai ficar quando levar uma carga de chumbo”) Ele não poderia prever ou compreender o que estaria fazendo com aquela espingarda dois meses depois... Walt Har­desty, que teria de dar um jeito na confusão armada por Elmer, estava satisfeito em deixar as coisas em ponto morto, até o próximo acontecimento estranho. Enquanto isso, só tinha de pensar num jeito de fazer com. que os dois advogados se abris­sem... eles e o amigo deles, Sr. Lewis “Esnobe” Benedikt. Eles sabiam de alguma coisa que não estavam dizendo, assim como também sabiam de algo relacionado com a morte do seu velho companheiro, o Dr. John “Viciado” Jaffrey. Não era possível que eles aceitassem tudo aquilo como normal, disse Hardesty para si mesmo, ao deitar-se no quartinho atrás de seu gabinete. Pôs uma garrafa de uísque no chão, ao lado da cama. E o Sr. Ricky “Esnobe” Hawthorne “Chifrudo” e o Sr. Sears “Roebuck Esnobe” James não estavam absolutamente se com­portando de maneira normal.

Mas Don não sabe e por isso não pode registrar em seu diário que Milly Sheehan, depois de deixar a casa dos Hawthor­ne e voltar para a casa da Montgomery Street onde vivia com John Jaffrey, lembra uma certa manhã em que o médico não chegara a instalar os protetores contra tempestade nas janelas e ela pega um casaco e sai de casa para verificar se pode fazer o serviço sozinha. Enquanto olha para as janelas, desesperada (sabendo que jamais será capaz de levantar tão alto as pesadas peças), o Dr. Jaffrey contorna o lado da casa e sorri. Ele está usando o terno que Ricky Hawthorne escolheu para o enterro, mas não tem sapatos nem meias. A princípio, o choque de vê-lo descalço é pior do que o outro choque.

—  Milly, diga a todos para partirem... diga a todos para saírem. Tenho visto o outro lado, Milly, e é horrível. — A boca se mexe, mas as palavras parecem soar como num filme mal dublado. — Horrível. Não se esqueça de dizer a eles.

Milly desmaia. Fica sem sentidos apenas por alguns se­gundos e volta a si choramingando, os quadris doloridos da queda. Mas, apesar de todo o medo que sente, olha ao redor e não vê pegadas na neve. E compreende que estava apenas ven­do coisas... e por isso não vai dizer nada a ninguém. É por coisas assim que metem as pessoas no hospício.

—  Tudo por causa daquelas malditas histórias e do Sr. Sears James — murmura ela para si mesma, voltando para o interior da casa, a coxear.

Don, sentado sozinho no quarto 17, evidentemente não pode saber da maioria das coisas que ocorrem em Milburn, enquanto faz uma excursão de três semanas ao passado. Mal vê a neve, que continua a cair intensamente. Eleanor Hardie não economiza no aquecimento, assim como não deixa jamais de. passar o aspirador de pó no tapete do saguão. Assim, Don se sente devidamente aquecido. Uma noite, Milly Sheehan ouve o vento mudar de direção, passando a soprar para o norte e oeste. Saindo da cama para pegar outro cobertor, Milly avista estrelas entre as nuvens. Volta para a cama e fica escutando o vento soprar cada vez mais forte... e depois ainda mais forte, sa­cudindo a janela, fazendo força para entrar no quarto. A cor­tina se agita, as venezianas se sacodem ruidosamente. Pela ma­nhã, ao acordar, Milly encontra alguns flocos de neve cobrindo o peitoril da janela.

 

E aqui estão alguns dos outros acontecimentos ocorridos em Milburn naquelas duas semanas, enquanto Don Wanderley, consciente, deliberada e minuciosamente, evocava o espírito de Alma Mobley.

Walter Barnes estava sentado em seu carro no posto Exxon de Len Shaw e pensava na esposa, enquanto Len enchia o tanque. Há meses que Christina ficava andando a esmo pela casa, volta e meia olhando para o telefone. Walter finalmente começara a pensar que ela tinha um amante. Não lhe saía da cabeça a recordação nítida de um Lewis Benedikt embriagado a acariciar os joelhos de Christina na trágica festa de Jaffrey... e de uma Christina embriagada deixando-o fazer isso. Era ver­dade que Christina ainda era uma mulher atraente e ele se tor­nara um barrigudo banqueiro de cidade pequena, não a po­tência financeira que em outros tempos imaginara. Sabia que a maioria dos homens de sua turma em Milburn ficaria na maior felicidade em poder ir para a cama com Christina, mas já se haviam passado quinze anos desde que uma mulher o fitara com uma expressão provocante pela última vez. Walter sentiu-se angustiado. Mais um ano e o filho estaria indo embo­ra. Ficariam então apenas ele e Christina, procurando fingir que eram felizes. Len tossiu e disse:

—  Como está sua amiga, a Sra. Hawthorne? Achei que ela estava um pouco magra e pálida na última vez em que este­ve aqui. E pensei que tivesse pegado uma gripe forte.

—  Ela está bem — respondeu Walter Barnes, pensando que Len, como noventa por cento dos homens da cidade, inclu­sive ele próprio, também cobiçava Stella.

O que deveria fazer, pensou Walter, era fugir com Stella Hawthorne, ir para algum lugar como Pago Pago e esquecer inteiramente o que era ser solitário e casado em Milburn. Não podia saber que a solidão que iria envolvê-lo seria pior do que qualquer coíba que jamais imaginara;

e Peter Barnes, o filho do banqueiro, estava sentado em outro carro, ao lado de Jim Hardie, seguindo para uma taverna ordinária, trinta quilômetros além dos limites da cidade. Jim, que tinha quase um metro e noventa de altura e era bastante musculoso, o rapaz que ateara fogo ao velho estábulo de Pugh porque soubera que as garotas Dedham ali guardavam seus ca­valos, estava fazendo um relato de suas proezas sexuais com a nova mulher que estava hospedada no hotel, a tal de Anna. Eram histórias que jamais seriam verdadeiras, não no sentido que Jim lhes emprestava;

e Clark Mulligan estava sentado na cabine de projeção de seu cinema, assistindo a Carrie pela sexta vez e preocupado com a neve que poderia prejudicar a freqüência, imaginando se Leota providenciara outra coisa além de hambúrguer para o jantar e perguntando-se se algum dia haveria um acontecimento emocionante em sua vida;

e Lewis Benedikt vagava pelos cômodos de sua enorme casa, atormentado por um pensamento impossível: que a mu­lher que surgira à sua frente na estrada e que ele quase matara era a sua falecida esposa. A posição dos ombros, o jeito dos cabelos... quanto mais ele recordava aqueles segundos, mais angustiantemente vagos e fugazes lhe pareciam;

e Stella Hawthorne estava deitada numa cama de motel com o sobrinho de Milly Sheehan, Harold Sims, perguntando se ele não iria jamais parar de falar:

—  E depois, Stel, alguns dos rapazes do departamento estão pesquisando o mito da sobrevivência entre os ameríndios, porque dizem que toda a dinâmica de grupo deles está liqui­dada. Pode imaginar uma coisa dessas? Concluí minha tese há apenas quatro anos e  agora tudo já parece fora de moda. Johnson e Leadbeatter nem mesmo se referem mais a Lionel Tiger. Estão empenhados em trabalho de campo. E outro dia um cara me deteve no corredor e perguntou-me se já tinha lido alguma coisa sobre Manitu...  Manitu, pelo amor de Deus! O mito da sobrevivência!

—  O que é Manitu? — indagou Stella.

Mas ela não prestou a menor atenção à resposta de Ha­rold, alguma história sobre um índio que perseguia um cervo por dias seguidos, subindo uma montanha, mas quando che­gava lá em cima o cervo se virava em sua direção e já não era mais um cervo...

e Ricky Hawthorne, bem agasalhado, seguindo de carro para Wheat Row certa manhã (já tinha colocado os pneus de neve) avistou um homem usando uma japona e um gorro azul a espancar uma criança ao lado da praça. Ele diminuiu a velo­cidade a tempo de ver os pés descalços do menino afundando na neve. Por um momento, Ricky ficou tão aturdido que não pôde imaginar o que deveria fazer. Encostou o carro no meio-fio, saltou e gritou:

—  Já chega!

Mas o homem e o menino se viraram para fitá-lo com tanta intensidade que Ricky baixou o braço e voltou para o carro;

e na noite seguinte, tomando um chá de camomila, Ricky olhou pela janela do segundo andar e quase largou a xícara, vendo um rosto desconsolado a fitá-lo. . . e que prontamente desapareceu, quando ele inclinou ligeiramente a cabeça. No instante seguinte, Ricky compreendeu que era seu próprio rosto;

e Peter Barnes e Jim Hardie saíram de uma taverna à beira da estrada, e Jim, que não estava tão embriagado quanto Peter, disse:

—  Ei, acabei de ter uma grande idéia!

E os dois voltaram para Milburn às gargalhadas;

e uma mulher de cabelos pretos estava sentada de frente para a janela, num quarto às escuras do Hotel Archer, obser­vando a neve cair e sorrindo para si mesma;

e às seis e meia da tarde o corretor de seguros Freddy Robinson trancou-se em seu escritório e ligou para uma recep­cionista chamada Florence Quast, dizendo:

—  Não há necessidade de incomodar nenhum dos dois. Creio que a nova secretária poderá responder ao que estou querendo saber. Poderia dizer-me o nome dela, por gentileza? E onde está hospedada?

e a mulher no hotel continua sentada e sorri, enquanto diversos outros animais, parte da diversão, são mortos: dois novilhos no estábulo de Elmer Scales (ele acabara dormindo com a espingarda no colo) e um dos cavalos das garotas Dedham.

 

Foi assim que Freddy Robinson entrou em cena. Fora ele que cuidara das apólices de seguro das duas garotas Dedham, as filhas do falecido coronel e irmãs do há muito falecido Strin­ger Dedham. Ninguém mais se preocupava muito com as irmãs Dedham. Elas viviam fora da cidade, em sua velha casa na Willow Mile Road, tinham seus cavalos mas raramente ven­diam um, preferindo conservá-los. Eram da mesma idade que a maioria dos homens da Sociedade Chowder, mas não tinham envelhecido tão bem. Por muitos anos, elas haviam falado insis­tentemente, com verdadeira obsessão, sobre Stringer, que não morrera imediatamente quando a debulhadeira lhe arrancara os braços; ficara deitado na mesa da cozinha, envolvido em três cobertores num dia de intenso calor em agosto, balbucian­do e desmaiando, até que a vida se lhe esvaíra inteiramente. Os habitantes de Milburn haviam se cansado de ouvir falar sobre o que Stringer estava tentando dizer enquanto morria, especial­mente porque não fazia muito sentido. Nem mesmo as garotas Dedham, como ainda eram chamadas na cidade, podiam expli­car direito. O que desejavam que todos soubessem era que Stringer vira alguma coisa, ficara transtornado, porque não era tolo o bastante para deixar que a debulhadeira lhe prendesse os braços, não é mesmo? As irmãs pareciam atribuir a culpa à noiva de Stringer, Eva Galli. Por algum tempo, todos a fitaram com expressões desconfiadas. Mas, pouco depois, a Srta. Galli simplesmente sumiu da cidade e as pessoas perderam todo e qualquer interesse pelo que as irmãs pudessem pensar a res­peito dela. Trinta anos depois, não eram muitas as pessoas da cidade que ainda se lembravam de Stringer Dedham, que fora um homem bonito e um verdadeiro gentleman, que teria trans­formado a criação de cavalos num negócio próspero e lucrativo e não apenas um hobby sem muito interesse de duas velhas. As irmãs acabaram cansando-se de sua própria obsessão — de­pois de tantos anos, já não tinham tanta certeza do que Stringer tentara dizer a respeito da Srta. Galli — e chegaram à con­clusão de que seus cavalos eram melhores amigos do que os habitantes de Milburn. Vinte anos depois dessa decisão, as duas continuavam vivas, mas Nettie estava paralítica em decorrência de um derrame e a maioria dos jovens de Milburn jamais vira qualquer uma delas.

 

Freddy Robinson um dia passara de carro pela proprie­dade delas, não muito tempo depois de ter-se mudado para Milburn. O que o fizera dar a volta e subir pelo caminho até a casa fora o nome na caixa de correspondência: Coronel T. Dedham. Não sabia que Rea Dedham mandava repintar o nome do pai na caixa de correspondência a cada dois anos. Muito embora o Coronel Thomas Dedham tivesse morrido de malária em 1910, ela era supersticiosa demais para tirá-lo. Rea expli­cava tudo isso a Freddy Robinson. Ficara tão contente por ter à sua frente, no outro lado da mesa, um garboso jovem, que comprara três mil dólares em apólices de seguro. Segurara os seus cavalos. Estava pensando em Jim Hardie, mas não o dis­sera a Freddy Robinson. Jim Hardie era um rapaz de maus bofes e tinha um ressentimento contra as irmãs desde que Rea o expulsara do estábulo dos cavalos, quando ele era menino. Pelo que o jovem Robinson lhe explicara, Rea decidira que um pequeno seguro era justamente o de que estava precisando, para o caso de Jim Hardie resolver aparecer com uma lata de gasolina e uma caixa de fósforos.

Naquela ocasião, Freddy era um corretor de seguros ainda novo na profissão e sua ambição era tornar-se membro da Távola Redonda do Milhão de Dólares; oito anos depois, estava perto de consegui-lo, mas isso já não tinha qualquer impor­tância para ele. Sabia que, se operasse numa cidade maior, há muito que já o teria conseguido. Comparecera a conferências, convenções e reuniões de vendas suficientes para pensar que conhecia praticamente tudo o que havia para conhecer no ne­gócio de seguros. Sabia como ele funcionava e como vender se­guros de vida e de propriedade a um jovem fazendeiro apavo­rado, cuja alma já pertencia ao banco e acabara de dissipar todos os seus ganhos num novo sistema de ordenhar as vacas; era o tipo de homem que estava realmente precisando de um seguro. Mas oito anos de vida em Milburn haviam mudado Freddy Robinson. Não mais sentia orgulho de sua capacidade de vender, pois descobrira que se baseava na capacidade de explorar o medo e a ganância dos outros. E passara também, meio inconscientemente, a desprezar seus colegas vendedores de seguros, que no jargão da companhia eram os “bambas”.

Não fora o casamento nem os filhos que provocaram a mu­dança em Freddy, mas sim morar em frente à casa de John Jaffrey, no outro lado da rua. A princípio, achara que os ve­lhos que iam até ali uma vez por mês ou pouco mais eram extremamente cômicos, incrivelmente emproados. Quem pode­ria lembrar-se de vestir smoking numa reunião íntima? Pare­ciam exageradamente compenetrados, cinco Matusaléns pro­curando passar o tempo.

Mas Freddy não demorou a perceber que, depois das reu­niões de vendas em Nova York, voltava para casa com alívio. Seu casamento estava indo de mau a pior (ele começava a sen­tir-se atraído pelas mocinhas da escola secundária com as quais sua esposa se parecia, dois filhos antes), mas a casa era algo mais do que a Montgomery Street; era toda a cidade e a maior de Milburn, era mais sossegada e mais bonita do que qualquer outro lugar em que ele já tinha vivido. Gradativamente, Freddy foi sentindo que tinha um relacionamento secreto com Milburn. A esposa e os filhos eram eternos, mas Milburn era um oásis repousante temporário, não a localidade atrasada que inicial­mente imaginara. Certa ocasião, numa conferência, um novo corretor sentado perto de Freddy tirara da lapela o. emblema de “bamba” e o jogara na mesa, dizendo:

— Posso suportar quase tudo, menos os golpes banais mas traiçoeiros que a gente tem de aplicar!

Dois outros acontecimentos, tão corriqueiros quanto esse, contribuíram consideravelmente para a conversão de Freddy. Uma noite, passeando a esmo por Milburn, passou pela casa de Edward Wanderley, na Haven Lane, e avistou a Sociedade Chowder através de uma janela. Lá estavam eles, os Matusaléns, conversando; um levantou a mão, outro sorriu. Freddy estava se sentindo extremamente solitário e eles pareciam muito perto. Parou para contemplá-los. Depois que se mudara para Milburn, passara dos vinte e seis para os trinta e um e os ho­mens já não mais pareciam tão velhos; enquanto haviam perma­necido os mesmos, Freddy é que fora envelhecendo ao encontro deles. Não pareciam agora grotescos, mas extremamente distin­tos. Havia um outro fator em que ele nunca pensara antes: os velhos estavam se divertindo. Freddy ficou pensando no que eles estariam conversando e foi invadido pelo pressentimento de que se tratava de algo secreto — não eram negócios, espor­te, sexo ou política. Só podia ser sobre algo diferente de tudo o que já ouvira antes. Duas semanas depois, Freddy levou uma garota da escola secundária para um restaurante em Bingham­ton e viu Lewis Benedikt no outro lado da sala, com uma das garçonetes do bar de Humphrey Stalladge. (As duas haviam repelido gentilmente as cantadas de Freddy.) Ele começara a invejar a Sociedade Chowder; não se passaria muito tempo para que começasse a amar o que julgava que eles representavam, uma maneira de combinar a civilização com os bons tempos de tranqüilidade.

Lewis era o foco desses sentimentos. Mais próximo dele na idade do que os outros, mostrava o que Freddy poderia tornar-se.

Ficava observando seu ídolo no Humphrey’s Place, notan­do como ele alteava as sobrancelhas antes de responder a uma pergunta, como frequentemente inclinava a cabeça para o lado ao sorrir, como usava os olhos. Freddy começou a imitar tais maneirismos. Imitava também o que julgava ser o padrão sexual de Lewis, só que fazendo uma redução na idade, das mulheres de vinte e cinco ou vinte e seis anos de Lewis para as garotas de dezessete ou dezoito anos, que eram mesmo as que lhe interessavam. Passou a comprar blusões como os que via Lewis usando.

Quando o Dr. Jaffrey convidou-o para a festa em home­nagem a Ann-Veronica Moore, Freddy sentiu que as portas do paraíso lhe haviam sido abertas. Imaginou uma noite tranqüila, a Sociedade Chowder, ele e mais a atriz. Por isso, disse à esposa que ficasse em casa. Ao ver a multidão, começou a compor­tar-se como um tolo. Ficou no andar térreo, tímido e desapon­tado demais para aproximar-se dos homens mais velhos, aqueles com quem desejava fazer amizade; tentou puxar conversa com Stella Hawthorne; e quando finalmente reuniu coragem sufi­ciente para abordar Sears James — que sempre o aterrorizara — descobriu-se a falar sobre seguros, como se fosse uma praga que lhe tivessem rogado. Depois que o corpo de Edward Wan­derley foi encontrado, Freddy retirou-se em silêncio junto com os outros convidados.

Freddy ficou desesperado com o suicídio do Dr. Jaffrey. A Sociedade Chowder estava desmoronando antes mesmo que ele tivesse uma oportunidade de provar que era digno de inte­grá-la. Naquela noite, viu o Morgan de Lewis parar diante da casa do médico e saiu correndo para confortá-lo, querendo cau­sar boa impressão. Mas não deu certo. Estava nervoso demais, acabara de brigar com a mulher e foi incapaz de se abster de falar em seguros. Assim, perdeu Lewis novamente.

 

Assim, sem saber nada do que Stringer Dedham tentara dizer às irmãs enquanto sangrava até a morte sobre a mesa da cozinha, Freddy Robinson, cujos filhos já eram estranhos baru­lhentos e cuja esposa estava querendo o divórcio, não tinha a menor idéia do que teria pela frente quando Rea Dedham tele­fonou uma manhã e disse que ele precisava ir imediatamente à fazenda. Mas achou que a coisa que viu ao chegar, um frag­mento de lenço de seda preso numa cerca de arame, era um sinal de que estava prestes a ganhar o acesso à companhia de amigos de que tanto precisava.

A princípio, parecia simplesmente outra manhã de traba­lho, outro sinistro a ser resolvido. Rea Dedham deixou-o espe­rando por dez minutos na varanda gelada. De vez em quando, Freddy ouvia um cavalo relinchando nos estábulos. Ela final­mente apareceu, enrugada e encolhida, com um xale axadrezado por cima do vestido, dizendo que sabia quem era o culpado, sabia quem tinha feito, mas olhara a apólice e não dizia em parte alguma que não se recebia o dinheiro quando se sabia, não é isso mesmo? E ele aceitaria um café?

—  Aceito, sim, obrigado — disse Freddy, tirando alguns papéis da pasta. — Agora, se pudermos preencher estes formu­lários, a companhia começará a processá-los o mais depressa possível. Terei que dar uma olhada nos danos, é claro, Srta. Dedham. Foi algum acidente?

—  Eu já disse que sei quem foi. E não foi nenhum aci­dente. O Sr. Hardesty também está vindo para cá e assim terá de esperar só mais um pouco.

—  Portanto, trata-se de um caso de perda criminosa — disse Freddy, fazendo uma cruz num quadrado do formulário à sua frente. — Pode contar-me o que aconteceu com suas pró­prias palavras?

—  São as únicas palavras que tenho, Sr. Robinson. Mas terá de esperar até a chegada do Sr. Hardesty. Estou velha de­mais para dizer tudo duas vezes. E não vou sair de casa duas vezes com esse frio, nem mesmo por dinheiro. Brrr! — Com­primiu os braços magros contra o corpo, encolhendo-se toda e estremecendo teatralmente. — Agora, fique sentado aí quietinho e trate de tomar um café.

Freddy, que estava segurando meio sem jeito todos os seus papéis, a caneta e a valise, olhou ao redor, à procura de uma cadeira vazia. A cozinha das garotas Dedham era uma ca­verna imunda, repleta de bugigangas. Uma cadeira estava ocupa­da por dois abajures, em outra havia uma pilha de Urbanites, tão velhos que já estavam amarelados. Um espelho grande numa parede, com a moldura de carvalho, proporcionou-lhe a visão da própria imagem, uma personagem de incompetência bu­rocrática sufocada por papéis em desordem. Freddy recuou até uma parede escura, inclinou-se e derrubou de uma cadeira com o traseiro uma caixa de papelão. A caixa bateu no chão estron­dosamente. O único raio de sol que entrava na cozinha incidiu diretamente sobre ele.

—  Deus do céu, mas que barulheira! — exclamou Rea Dedham.

Freddy esticou cautelosamente as pernas e ajeitou os pa­péis no colo.

—  Cavalo morto, não é mesmo?

—  Isso mesmo. Vocês estão me devendo algum dinhei­ro... e muito dinheiro, pelo que imagino.

Freddy ouviu algo pesado rolando pela casa em direção à cozinha e soltando um gemido silencioso.

—  Vou começar imediatamente a preencher os detalhes preliminares — disse ele, abaixando rapidamente a vista, a fim de não precisar olhar para Nettie Dedham.

—  Nettie quer cumprimentá-lo — disse Rea.

Freddy não tinha outro jeito senão levantar a cabeça. Um momento depois, a porta se abriu para dentro, rangendo, dando passagem a uma pilha informe de mantas em cima de uma cadeira de rodas.

 — Olá, Srta. Dedham — murmurou Freddy, meio le­vantado, segurando a pasta com uma das mãos e os papéis com a outra.

Ele lançou um olhar rápido para a cadeira de rodas e pron­tamente voltou a se concentrar nos papéis. Nettie emitiu um ruído. A cabeça dela dava a impressão a Freddy de ser consti­tuída quase que totalmente por uma imensa boca escancarada. Nettie estava coberta por mantas até o queixo; a cabeça era puxada para trás por alguma terrível constrição dos músculos, o que lhe deixava a boca permanentemente aberta.

—  Está lembrada do gentil Sr. Robinson? — disse Rea à irmã, pondo as xícaras de café na mesa. Rea aparentemente comia todas as suas refeições em pé, pois não fez qualquer menção de sentar-se. — Ele vai providenciar o nosso dinheiro pelo pobre Chocolate. Está agora preenchendo os formulários, entende? Está preenchendo os formulários.

—  Ruarrr — murmurou Nettie, sacudindo a cabeça en­quanto a irmã falava. — Gluorrr...

—  Isso mesmo, vai providenciar nosso dinheiro — disse Rea. — Não há nada de errado com Nettie, Sr. Robinson.

—  Também acho que não — disse Freddy, tornando a desviar os olhos rapidamente e indo pousá-los num tordo empa­lhado dentro de uma campânula, cercado por folhas marrons. — Vamos tratar de negócios, está certo? Pelo que imagino, o nome do animal era...

—  O Sr. Hardesty está chegando — interrompeu Rea.

Freddy podia ouvir o barulho de outro carro aproximan­do-se da casa. Pôs a caneta e os papéis no colo. Lançou um olhar apreensivo para Nettie, que estava mexendo a boca e contemplando o teto imundo com uma expressão sonhadora. Rea largou sua xícara em cima da mesa e encaminhou-se para a porta. “Lewis abriria a porta para ela”, pensou Freddy, ainda segurando a incômoda pilha de papéis.

—  Fique sentado, pelo amor de Deus — disse a velha rispidamente.

As botas de Hardesty foram esmagando a neve e subiram para a varanda. Ele bateu duas vezes antes que Rea chegasse à porta. Freddy já vira Walt Hardesty vezes demais na taverna de Humphrey, esgueirando-se para a sala dos fundos por volta das oito horas e saindo a cambalear muito tempo depois, para con­ceder-lhe algum respeito como xerife. Ele mais parecia um fra­cassado de maus bofes, a espécie de policial que teria a maior satisfação em usar a coronha de seu revólver na cabeça de alguém. Quando Rea abriu a porta, Hardesty ficou parado na varanda, as mãos nos bolsos, os óculos escuros como uma arma­dura diante dos olhos. Não fez qualquer menção de entrar.

—  Olá, Srta. Dedham. Onde está o seu problema?

Rea ajeitou o xale e depois passou pela porta. Freddy he­sitou por um instante e depois compreendeu que ela não iria entrar novamente; largou os papéis na cadeira e foi atrás. Nettie sacudiu a cabeça para ele enquanto passava pela ca­deira de rodas.

—  Sei quem foi que fez — ele ouviu Rea dizer a Har­desty ao se aproximar, a voz estridente e indignada. — Foi aquele miserável do Jim Hardie!

—  É mesmo? — disse Hardesty. Freddy juntou-se aos dois e o xerife acenou-lhe com a cabeça, por cima de Rea. — Não demorou muito para chegar aqui, Sr. Robinson.

—  Tenho que providenciar os documentos oficiais para que o seguro seja recebido — murmurou Freddy.

—  Os caras como você estão sempre com tudo o que é preciso à mão — comentou Hardesty, com um sorriso tenso.

—  Foi Jim Hardie com certeza — insistiu Rea. — Aque­le rapaz é doido.

—  Vamos verificar tudo direitinho — disse Hardesty, já quase chegando ao estábulo. — Quando encontrou o animal morto, Srta. Rea?

—  Não fui eu que o encontrei. Temos um rapaz traba­lhando aqui atualmente. Ele vem todos os dias, dá água e for­ragem para os cavalos, muda a palha. Encontrou Chocolate caído na baia. São seiscentos dólares de carne de cavalo, Sr. Robinson, não importa quem o tenha feito.

—  Como chegou a essa cifra? — perguntou Freddy, tor­cendo o nariz diante do cheiro que vinha do estábulo.

Hardesty estava abrindo as portas. Um cavalo relinchou, outro escoiceou a parede da baia. Todos os cavalos, para os olhos inexperientes de Freddy, pareciam perigosos. Beiços e olhos enormes estavam virados em sua direção, ameaçadores.

—  Porque o pai dele foi General Hershey e a mãe Sweet Tooth, dois animais excepcionais. Justamente por isso. Pode­ríamos ter vendido General Hershey para ser garanhão em qual­quer lugar. Nettie costumava dizer que ele era como Seabiscuit.

— Seabiscuit... — repetiu Hardesty, baixinho.

—  É muito moço para se lembrar de qualquer um dos bons cavalos — disse Rea. — Pode escrever isso nos seus papéis: seiscentos dólares.

Ela os estava conduzindo pelo interior do estábulo e os ca­valos nas baias recuavam ou balançavam a cabeça, de acordo com a natureza de cada um.

—  Esses animais não andam lá muito limpos — comen­tou Hardesty.

Freddy olhou mais atentamente e viu uma imensa ca­mada de lama ressequida no flanco de um cavalo castanho.

—  Eles são meio ariscos — murmurou Freddy.

—  Um diz que eles são ariscos, o outro diz que são sujos. O problema é que estou velha demais. Bem, lá está o pobre Chocolate.

A informação era desnecessária. Os dois homens estavam olhando pela porta aberta da baia para um imenso animal aver­melhado caído no chão coberto de palha. Para Freddy, mais parecia o corpo de um rato gigantesco.

—  Mas   que  diabo!   —   exclamou   Hardesty,   entrando na baia.

Pisou entre as pernas esticadas e postou-se acima do pes­coço do animal. O cavalo na baia ao lado relinchou e Hardesty quase perdeu o equilíbrio. Equilibrou-se, apoiando o braço na parede de madeira da baia.

—  Oh, diabo! Posso ver daqui! — Estendeu a mão até o focinho do cavalo e puxou toda a cabeça para trás.

Rea Dedham gritou.

 

Os dois homens levaram-na para fora do estábulo, pas­sando por duas fileiras de cavalos aterrorizados.

—  Fique calma, fique calma — repetia Hardesty inces­santemente, como se a velha fosse também um cavalo.

—  Mas quem seria capaz de fazer uma coisa dessas? — indagou Freddy, ainda chocado pela visão do talho imenso no pescoço do animal.

—  Norbert Clyde afirma que são os marcianos. Diz, inclu­sive, que avistou um deles. Ainda não ouviu essa história?

—  Ouvi alguma coisa, mas não prestei muita atenção. Vai verificar por onde Jim Hardie andou ontem à noite?

—  Moço, eu me sentiria um bocado mais feliz se as pes­soas parassem de dizer como devo fazer meu trabalho. — Incli­nou-se sobre a velha. — Está se sentindo melhor agora, Srta. Dedham? Quer sentar-se? — Ela assentiu e Hardesty disse a Freddy: — Vou segurá-la enquanto você abre a porta do meu carro.

Ajeitaram-na no banco do carro, com as pernas para fora.

—  Pobre  Chocolate,  pobre  Chocolate... — balbuciou Rea. — Horrível... pobre Chocolate...

— Certo, certo, Srta. Dedham. Agora, quero dizer-lhe uma coisa. — Hardesty inclinou-se para a frente, apoiando um pé no carro. — Não foi Jim Hardie quem fez isso, está enten­dendo? Jim Hardie estava tomando cerveja com Pete Barnes ontem à noite. Foram para uma cervejaria perto de Glen Aubrey e sabemos que ficaram lá até quase duas horas da ma­drugada. Como eu já conhecia sua briga com Jim, achei melhor verificar antes de vir para cá.

—  Ele poderia  ter feito depois das  duas horas — co­mentou Freddy.

—  Ficou jogando cartas com Pete no porão da casa dos Barnes até amanhecer. Ou pelo menos é isso o que Pete afirma. Ultimamente, Jim vem saindo muito com Pete. Mas não creio que o garoto dos Barnes pudesse fazer uma coisa dessas ou dar cobertura a quem fizesse. Não pensa também assim?

Freddy assentiu.

—  E quando Jim não está com o garoto dos Barnes, está com a nova dona... sabe de quem estou falando. A que é um estouro, parece um modelo.

—  Sei de quem está falando. Já a vi e concordo com sua descrição.

—  Assim, não foi Jim quem matou esse cavalo. E tam­bém não matou as ovelhas de Elmer Scales. O agente rural do condado diz que foi um cachorro que virou assassino. Assim, se por acaso avistar um imenso cachorro voador, com dentes afiados como navalha, pode estar certo de que encontrou  o culpado. — O xerife fitou Freddy em silêncio por um mo­mento, antes de virar-se novamente para Rea Dedham. — Já está pronto para entrar agora? Está frio demais aqui fora para uma pessoa da sua idade. Vou levá-la para dentro e depois irei providenciar alguém para remover aquele cavalo.

Freddy afastou-se, meio empurrado por Hardesty. E disse:

—  Sabe muito bem que não foi um cachorro.

—  Claro que sei.

—  E o que acha que foi? O que está acontecendo? — Freddy olhou ao redor, sabendo que estava esquecendo alguma coisa. E subitamente se lembrou, ao avistar um pedaço de pano preso na cerca de arame farpado perto do estábulo.

—  Não quer dar um palpite?

—  Não havia sangue — murmurou Freddy, olhando para o pedaço de pano.

—  O que demonstra que é um bom observador. O agen­te rural do condado preferiu ignorar esse fato. Vai ajudar-me com a velha?

—  Deixei cair uma coisa lá atrás. Volto num instante.

Freddy encaminhou-se para o estábulo. Ouviu Hardesty resmungar, enquanto levantava Rea Dedham. Ao chegar ao estábulo, virou-se e avistou o xerife entrando com a velha na casa. Freddy foi até a cerca de arame farpado e pegou o pedaço de pano — era seda, como imaginara. Fora rasgado de um lenço que ele sabia onde vira antes.

Freddy começou — não era a palavra que ele teria esco­lhido — a maquinar.

Voltando para casa, datilografou seu relatório e despa­chou-o para a matriz, juntamente com os formulários, telefo­nando em seguida para Lewis Benedikt. Não sabia muito bem o que ia dizer a Lewis, mas achava que tinha finalmente a chave que há tanto tempo procurava.

—  Ei, Lewis, como vai? Aqui é Freddy.

—  Freddy?

—  Freddy Robinson.

—  Ah, sim...

— Está muito ocupado neste momento? Preciso falar-lhe sobre uma coisa importante.

—  Pode falar — disse Lewis, sem muito entusiasmo.

—  Está certo. Não estou tomando  seu  tempo, não é mesmo?  Muito bem...   Soube daqueles animais que foram mortos? Sabia que houve mais um? Um daqueles cavalos ve­lhos das irmãs Dedham. Eu é que fiz o seguro dos bichos. E tenho certeza de que não foi nenhum marciano que o matou. E quando digo com certeza é com certeza mesmo, entende?

Ele fez uma pausa, mas Lewis não disse nada.

—  A coisa toda é meio maluca. Aquela mulher que aca­bou de mudar para a cidade, e que sai de vez em quando com Jim Hardie, não está trabalhando para Sears e Ricky?

—  Ouvi falar alguma coisa a respeito.

Pelo tom de voz de Lewis, Freddy percebeu que deveria ter dito Hawthorne e James ao invés de Sears e Ricky.

—  Conhece-a bem?

—  Não. Importa-se de me explicar por que está pergun­tando tudo isso?

— É que acho que há mais coisa acontecendo do que o Xerife Hardesty imagina.

—  Pode explicar-se melhor, Freddy?

—  Não dá para falar tudo pelo telefone. Podemos nos encontrar em algum lugar para conversar? É que encontrei uma coisa na fazenda Dedham e não queria mostrar a Hardesty antes de conversar com você e talvez com... ahn... o Sr. Hawthorne e o Sr. James.

—  Não faço a menor idéia do que está falando, Freddy.

—  Para dizer a verdade, também não sei muito bem. Mas queria encontrar-me com você, tomar algumas cervejas, trocar umas idéias. Para ver se a gente consegue encontrar algum sen­tido nisso tudo.

—  Nisso o quê, pelo amor de Deus?

— Numas poucas idéias que tive. Acho que vocês são uns caras sensacionais e quero saber se estão metidos em algu­ma encrenca...

—  Já tenho todos os seguros de que preciso, Freddy. E não estou com a menor vontade de sair de casa. Desculpe.

— Mas quem sabe se nos encontramos no Humphrey’s Place? Conversaremos lá.

—  É uma possibilidade — disse Lewis, desligando.

Freddy pôs o fone no gancho, bastante satisfeito, conven­cido de que conseguira fisgar Lewis. Ele inevitavelmente iria telefonar assim que pensasse um pouco em tudo o que Freddy dissera. Se tudo o que Freddy estava pensando fosse verda­deiro, é claro que seu dever era procurar Hardesty. Mas havia tempo suficiente para isso. Antes de falar com o xerife, queria verificar todas as implicações possíveis. Queria ter certeza de que a Sociedade Chowder estava devidamente resguardada. Seus pensamentos eram mais ou menos nessa ordem: vira o lenço de seda do qual ficara um fragmento na cerca de arame farpado no pescoço da mulher a quem Hardesty chamara de “a nova dama”. Ela usava o lenço numa das ocasiões em que fora ao Humphrey’s Place em companhia de Jim Hardie. Rea Dedham suspeitava de que Jim Hardie matara o cavalo. Har­desty falara alguma coisa sobre uma rixa entre o garoto Hardie e as irmãs Dedham. O lenço provava que a mulher estivera na propriedade. E se ela estivera, por que não Hardie também? E se os dois haviam matado o cavalo por alguma razão, por que não poderiam ter matado também os outros animais? Norbert Clyde vira um vulto grande, com algo estranho em torno dos olhos. Poderia ter sido Jim Hardie iluminado por um raio de luar. Freddy já lera histórias sobre feiticeiras modernas, mu­lheres loucas que levam os homens a fazerem coisas absurdas. Talvez aquela mulher fosse uma delas. Mas a reputação da So­ciedade Chowder ficaria abalada se tudo fosse verdade e trans­pirasse. Podia-se fazer com que Hardie ficasse de boca fechada, mas a mulher teria que ser devidamente paga e obrigada a ir embora.

Freddy aguardou dois dias, esperando ansiosamente que Lewis lhe telefonasse. Como isso não aconteceu, decidiu que era chegado o momento de se tornar mais agressivo e ligou novamente para Lewis.

—  Sou eu outra vez, Freddy Robinson.

—  Ah, sim... — murmurou Lewis, já distante.

—  Acho que precisamos realmente nos encontrar. O que me diz? Sinceramente, Lewis, acho que devemos. Estou pen­sando apenas nos seus interesses. — Fez uma pausa, vasculhan­do a mente à procura de um apelo irrecusável, antes de acres­centar: — E se o próximo corpo for humano, Lewis? Pense nisso.

—  Está por acaso me ameaçando? Que diabo está que­rendo dizer com isso?

—  Claro que não estou ameaçando! — Freddy sentiu-se desolado. Lewis interpretara suas palavras pelo lado errado. — Não podemos encontrar-nos amanhã, na hora que achar melhor?

—  Vou caçar guaxinins amanhã — disse Lewis, imedia­tamente,

—  Puxa vida! — exclamou Freddy, aturdido com aquela nova faceta do seu ídolo. — Não sabia que fazia isso... Caça mesmo guaxinins? É sensacional, Lewis!

—  É relaxante. Costuma sair com um velho amigo, que tem cachorros treinados. Ficamos andando pelo mato, sem a menor pressa. É muito bom, para quem gosta desse tipo de coisa.

Freddy percebeu o tom de infelicidade na voz de Lewis e por um momento ficou perturbado demais para responder. Lewis aproveitou para dizer, um segundo antes de desligar:

—  Adeus.

Freddy ficou olhando para o telefone por um longo mo­mento, depois abriu a gaveta onde guardara o pedaço do lenço de seda. Se Lewis podia sair para caçar, ele também poderia. Sem realmente compreender por que sentia que era necessário, ele foi até a porta do escritório e trancou-a. Vasculhou a me­mória à procura do nome da velha que trabalhava como recep­cionista na firma de advocacia: Florence Quast. Procurou o telefone no catálogo e confundiu a velha com uma história comprida sobre uma apólice de seguro inexistente. Quando Flo­rence Quast sugeriu que entrasse em contato com o Sr. James ou o Sr. Hawthorne, Freddy apressou-se em dizer:

—  Não há necessidade de incomodar nenhum dos dois. Creio que a nova secretária poderá responder ao que estou querendo saber. Poderia dizer-me o nome dela, por gentileza? E onde está hospedada?

(Está pensando, Freddy, que de alguma forma ela estará muito em breve vivendo em sua casa? E foi por isso que tran­cou a porta do seu escritório? Queria mantê-la do lado de fora?)

Horas depois, o corretor de seguros esfregou a testa, abo­toou o casaco, limpou as palmas das mãos na calça e telefonou para o Hotel Archer.

— Terei o maior prazer em encontrá-lo, Sr. Robinson — disse a jovem, extremamente calma.

(Não está com medo de se encontrar com uma mulher bonita para uma conversa particular tarde da noite, não é mes­mo, Freddy? O que há com você, afinal? E por que pensou que ela sabia exatamente o que você iria dizer?)

 

“Está percebendo agora?”, perguntou Harold Sims a Stella Hawthorne, acariciando distraidamente o seio direito dela. “Pode entender? Tudo não passa de uma história, uma sim­ples lenda. É nesse tipo de coisa que meus colegas estão agora metidos. Meras histórias! O problema nessa coisa que os índios estavam procurando é que ela tem de aparecer, tem de se iden­tificar, não sendo somente maléfica, mas também inútil. E esperam que eu conte histórias de horror imbecis como essa, histórias estúpidas como a de alguma coisa que...”

 

—  O que está pensando, Jim? — perguntou Pete Bar­nes. — Qual é a sua grande idéia?

O ar frio entrando no carro de Jim Hardie dissipara con­sideravelmente os efeitos alcoólicos em Peter; agora, quando se concentrava, podia fazer com que os quatro fachos amarela­dos dos faróis se transformassem em apenas dois. Jim Hardie ainda estava rindo. Era uma risada mal-intencionada e deter­minada e Peter sabia que Jim, ia fazer alguma coisa a alguém, quer ele o acompanhasse ou não.

—  Ah, vai ser sensacional! — gritou Hardie, tocando a buzina.

Mesmo no escuro, o rosto dele era uma máscara vermelha, na qual os olhos eram duas pequenas fendas a luzir. Era assim que Jim Hardie sempre parecia quando estava cometendo suas façanhas mais infames. Toda vez que Peter Barnes se dava ao trabalho de pensar a respeito, sentia-se feliz por saber que dentro de um ano estaria indo para a universidade, afastan­do-se de um amigo que podia parecer tão louco quanto Jim Hardie, que era capaz de fazer coisas terríveis, quer estivesse embriagado ou não. O que era mais extraordinário, ou mais assustador, era o fato de Jim jamais perder a eficiência física ou verbal, por mais embriagado que estivesse. Meio bêbado, como agora, ele jamais engrolava as palavras nem cambaleava; totalmente bêbado, era uma figura de anarquia pura.

—  Vamos destruir algumas coisas!

—  Grande! — Peter sabia que não adiantava protestar. Além do mais, Jim sempre escapava impune de tudo o que fazia. Desde que se haviam conhecido, na escola primária, Jim Hardie sempre tivera uma boa conversa para escapar de qual­quer encrenca. Podia ser turbulento, mas não era estúpido. Nem mesmo Walt Hardesty jamais conseguira agarrá-lo por alguma coisa. Bem que desconfiara, mas não conseguira provar que fora Jim quem incendiara o estábulo do velho Pugh, só porque a idiota da Penny Draeger lhe dissera que as irmãs Dedham, às quais ele odiava, ali guardavam seus cavalos.

—  Bem que podemos aprontar algumas antes da sua ida para Cornell, hein? E é melhor você fazer tudo o que puder agora, porque já me disseram que aquele lugar é um cemitério.

Jim sempre dissera que não havia o menor sentido em ir para a universidade, mas de vez em quando deixava transpa­recer seu ressentimento pelo fato de a matrícula de Peter em Cornell já ter sido aceita, com um ano de antecedência. Peter sabia que, a depender de Jim Hardie, os dois continuariam indefinidamente a aprontar as maiores confusões, como se pu­dessem ficar com dezoito anos para sempre.

—  É o que também acontece com Milburn — disse Peter.

—  Bem na mosca, meu filho! É isso mesmo. Mas vamos pelo menos animar um pouco as coisas, hein? É o que vamos fazer esta noite. E para o caso de estar pensando que podemos ficar secos no decurso de nossas aventuras, quero que saiba que seu velho amigo James tomou as devidas providências para que isso não aconteça. — Hardie abriu o casaco e tirou uma garrafa de bourbon. — Mãos de ouro, seu bosta, mãos de ouro! — Tirou a tampa com uma das mãos e bebeu, enquanto continuava a guiar. O rosto dele ficou vermelho e tenso. — Quer um trago?

Peter sacudiu a cabeça, o cheiro deixou-o nauseado.

—  O estúpido do garçom virou as costas, entende? Zás! O imbecil sabia que a garrafa tinha sumido, mas era cagão demais para me dizer qualquer coisa. Quer saber de uma coisa, Peter? Fico meio deprimido de não encontrar competição à altura.

Ele soltou uma risada e Peter Barnes não pôde deixar de rir também.

—  Mas o que vamos fazer afinal, Jim?

Hardie estendeu-lhe novamente a garrafa e desta vez Pe­ter tomou um gole. Os faróis se dividiram, passaram a ser qua­tro. Peter sacudiu a cabeça, forçando-os a voltar a ser ape­nas dois.

—  Vamos   dar  uma  olhada  daquelas,  meu  velho,  mas vamos contemplar uma dona sensacional! — Hardie pegou no­vamente a garrafa, soltou uma risadinha, levou-a à boca, a be­bida escorrendo pelo queixo.

—  Dar uma olhada? Ela no quarto? E sem nos ver?

Peter inclinou a cabeça na direção de Hardie, que obvia­mente podia romper a manhã a todo vapor e continuar assim por todo o dia seguinte, tornando-se menos previsível a cada momento.

—  Isso mesmo, cara. Se a idéia não lhe agrada, pode pular do carro.

—  E vamos espiar uma mulher?

—  Não haveria de ser um homem, seu bosta.

—  Vamos ficar escondidos no mato e olhar...

—  Não exatamente. Vamos para um lugar muito melhor.

—  E quem é a mulher?

—  Aquela puta do hotel.

Peter ficou mais confuso do que nunca.

—  Aquela com quem você sai de vez em quando? A que veio de Nova York?

—  Essa mesma.

Jim entrou com o carro na praça, passando pelo hotel sem sequer se dar ao trabalho de olhá-lo.

—  Pensei que estivesse trepando com ela.

—  Eu estava mentindo, cara. E daí? Exagerei um pouco. A verdade é que ela nunca me deixou chegar perto. Sinto muito ter inventado uma pequena aventura com ela, está bem? Ela me fez sentir um palhaço. Levei-a para o Humphrey’s, joguei-lhe as minhas melhores conversas... e nada. Pois agora quero dar uma olhada nela sem que a puta saiba que a estou obser­vando.

Jim abaixou-se e, ignorando inteiramente a rua por um espaço de tempo temerário, tateou por baixo do assento. Quan­do se endireitou novamente, estava sorrindo e mostrando uma luneta grande.

—  Com isto! É uma luneta e tanto, meu velho! Custou-me sessenta dólares.

—  Ah... — Peter recostou-se no assento. — Pombas, nunca me meti numa dessas antes.

Um momento depois, ele percebeu que Jim estava parando o carro. Inclinou-se para a frente e deu uma espiada pela janela.

—  Oh, não! Aqui não!

—  Aqui  mesmo, meu velho. Vamos, levante logo o rabo daí.

Hardie empurrou-o pelo ombro e Peter abriu a porta, saindo do carro. A Catedral de São Miguel estava diante deles, imensa e intimidativa na escuridão.

Os dois rapazes estavam parados junto a uma porta la­teral da catedral, estremecendo em seus casacos.

— O que vai fazer agora? Arrombar a porta a pontapés? Tem um cadeado, se é que ainda não percebeu.

—  Feche a latrina, cara. Já esqueceu que trabalho num hotel? — Hardie tirou de baixo do casaco um molho de chaves. A outra mão segurava a luneta e a garrafa. — Vá dar uma mi­jada ou fazer qualquer outra coisa assim enquanto experimento as chaves.

Pondo a garrafa no degrau, inclinou-se na direção do ca­deado. Peter afastou-se, pelo lado comprido e cinzento da ca­tedral. Por aquele lado, parecia uma prisão. Abriu o zíper da calça e urinou, um jato fumegante. Depois cambaleou e apoiou um braço na catedral, ficando parado, como se imerso em pro­funda meditação, enquanto vomitava entre os pés. O vômito também saiu fumegante. Estava pensando em voltar para casa quando Jim Hardie chamou-o:

—  Ei, venha logo, boneca!

Virou-se e avistou Hardie sorrindo e sacudindo as chaves e a garrafa ao lado da porta aberta. Parecia até uma gárgula da fachada da catedral.

—  Não vou, não, Jim.

—  Ora, deixe de frescura e venha logo de uma vez!

Peter cambaleou para a frente. Hardie segurou-o e empur­rou-o pela porta adentro.

O interior da catedral estava frio e escuro, parecia um verdadeiro mar de escuridão. Peter estacou, ficou imóvel, sen­tindo um imenso espaço ao seu redor. Estendeu as mãos e tocou o ar frio. Às suas costas, podia ouvir Jim Hardie reco­lhendo todas as suas coisas.

—  Ei, onde é que meteu essa sua preciosa mão? Vamos, pegue isto aqui!

A luneta foi empurrada para a mão de Peter. Os passos de Hardie se afastaram pelo lado da catedral, ressoando. Peter virou-se e avistou os cabelos do amigo luzindo na escuridão.

—  Vamos andando. Deve haver uma escada por aqui...

Peter deu um passo para a frente e esbarrou em algum banco.

—  Quieto!

—  Não o estou vendo!

—  Mas que merda! Por aqui!

Houve um movimento na escuridão. Peter compreendeu que Jim estava acenando e avançou cautelosamente em sua direção.

—  Está vendo a escada? Vamos subir até uma espécie de varanda que há lá em cima.

—  Você já fez isso antes! — exclamou Peter, aturdido.

—  Claro! Não seja idiota. De vez em quando trago Penny para cá e trepamos nos bancos. Qual é o problema? Ela tam­bém não é católica.

Os olhos de Peter estavam começando a se ajustar à escuri­dão e a luz difusa de uma alta janela circular ajudava-o a ver o interior da igreja. Nunca antes entrara na Catedral de São Miguel. Era muito maior do que a caixa branca suburbana em que seus pais passavam uma hora na Páscoa e no dia de Natal. Colunas enormes dividiam o interior da catedral, uma toalha de altar brilhava como um fantasma. Ele arrotou e sentiu o gosto de vômito na boca. A escada que Jim apontara era larga, de tijolos, descrevendo uma curva em direção ao interior da ca­tedral.

—  A gente vai subindo e termina lá na frente, diante da praça. O quarto dela também dá para a praça, entende? Com a luneta, poderemos ver tudo direitinho.

—  É uma estupidez.

—  Explicarei tudo depois, seu cagão. Vamos subir. — E começou a subir a escada. Peter continuou parado lá embaixo. — Já sei qual é o problema — acrescentou Hardie, virando-se e descendo novamente. — Está precisando de um cigarrinho.

Sorrindo para Peter, ele tirou dois cigarros do bolso e estendeu um para Peter.

—  Aqui?

—  E por que não? Não há ninguém para ver.

Hardie acendeu os dois cigarros. A chama do isqueiro avermelhou as paredes, fazendo tudo o mais desaparecer. A fumaça contribuiu para melhorar o gosto na boca de Peter, fazendo com que parecesse menos de vômito e mais de cerveja novamente.

—  Dê uma ou duas tragadas. Assim... Está vendo como a coisa fica melhor?

Hardie soprou a fumaça. Mas com o isqueiro apagado, Peter podia apenas ouvi-lo exalar. Ele deu outra tragada em seu cigarro. Hardie estava certo. Já podia sentir-se mais calmo.

—  Vamos subir agora — disse Hardie, iniciando nova­mente a escalada, seguido por Peter.

Chegaram ao alto da escada e seguiram por uma galeria estreita até a frente da igreja. Havia ali uma janela, com um largo peitoril de pedra, dando para a praça. Jim já estava sen­tado quando Peter o alcançou.

—  Você não vai acreditar, Pete, mas uma noite dei uma trepada sensacional com Penny aqui em cima. — Largou o ci­garro no chão, apagou-o com o pé. Peter viu-o piscar malicio­samente, na claridade cinzenta da janela. — Eles ficam doidos. Não conseguem descobrir quem andou fumando por aqui. Tome um trago.

Hardie estendeu a garrafa. Peter sacudia a cabeça e entre­gou-lhe a luneta.

—  Já chegamos. Agora, pode começar a explicar. Peter sentou-se no peitoril frio, com as mãos nos bolsos do casaco. Hardie olhou para o relógio.

—  Primeiro, um pouco de magia. Olhe pela janela. — Peter olhou: a praça, os prédios escuros, as árvores desfolhadas. Não havia janelas iluminadas no Hotel Archer, no outro lado da praça. — Um, dois, três. — Em três, as luzes da praça se apagaram. — São duas horas da madrugada.

—  Um tremendo passe de mágica.

—  Se acha que a coisa é fácil, faça as luzes acenderem de novo. — Hardie virou-se, ficando de joelhos no chão e olhando pela luneta. — É uma pena que a luz do quarto dela não esteja acesa. Mas se ela chegar perto da janela, vai dar para vê-la. Quer dar uma olhada?

Peter pegou a luneta e focalizou o hotel.

—  Ela está no quarto acima da porta da frente.

—  Já focalizei a janela, mas não há nada lá. — No instan­te seguinte, Peter avistou um brilho vermelho na escuridão do interior do quarto. — Espere um pouco! Ela está lá dentro, fumando!

Hardie pegou rapidamente a luneta.

—  É isso mesmo. Ela está fumando lá dentro.

— Pode agora explicar-me por que arrombamos uma igreja só para ver essa mulher fumando?

—  No primeiro dia dela no hotel, tentei jogar-lhe uma conversa, entende? Mas ela me repeliu. Pouco depois, no en­tanto, ela mesma veio perguntar-me se eu não queria dar uma saída. Falou que queria conhecer o Humphrey’s Place. Levei-a até lá, mas ela não me deu praticamente qualquer atenção. Foi uma esnobada daquelas, cara. E disse cá comigo: por que des­perdiçar meu tempo se ela não está interessada? Quer saber por que ela quis ir até lá? Para conhecer Lewis Benedikt. Co­nhece o velho, não é mesmo? O cara que todo mundo diz que liquidou a mulher lá na França.   

—  Espanha — disse Peter, que tinha idéias muito com­plicadas a respeito de Lewis Benedikt.

—  Que diferença faz? De qualquer forma, tenho certeza de que foi só por isso que ela me pediu para levá-la ao Hum­phrey’s. O que significa que é tarada por caras que matam as esposas.

—  Não creio que ele tenha feito isso, Jim. É um bom su­jeito. Isto é, acho que parece um bom sujeito. E acho também que as mulheres ficam de vez em quando meio... meio... você sabe o que estou querendo dizer.

—  Para mim, não faz a menor diferença que ele tenha ou não liquidado a mulher. Ei, ela está se mexendo! — Hardie calou-se. Um momento depois, Peter ficou surpreso quando o amigo empurrou a luneta em sua direção. — Dê uma olhada! Depressa!

Peter levantou a luneta, procurou a janela, passou por cima do A da placa do hotel. Voltou para o A, subiu um pouco; ficou subitamente rígido. No instante seguinte, recuou involun­tariamente. A mulher estava parada na janela, sorrindo, segu­rando um cigarro, fitando-o diretamente nos olhos. Peter teve a sensação de que ia novamente vomitar.

—  Ela está olhando para nós!

—  Deixe de bobagem. Estamos do outro lado da praça e está muito escuro. Mas agora já pode entender o que estou querendo dizer.

Peter devolveu a luneta a Jim, que voltou a olhar para a mulher na janela.

—  Já posso entender o quê, Jim?

—  Ela é meio esquisita. Duas horas da madrugada e está no quarto, a luz apagada, toda vestida, fumando.

—  E daí?

—  Vivi naquele hotel durante toda a minha vida, enten­de? Por isso, sei como as pessoas se comportam em hotéis. Até mesmo os velhos morrinhas que ficam com a gente. Ficam assis­tindo à televisão, chamando a toda hora o serviço, deixam as roupas espalhadas por todo o quarto, garrafas nos armários e manchas nas mesas, dão festinhas barulhentas e depois a gente tem de esfregar os tapetes para tirar a sujeira. À noi­te, pode-se ouvi-los conversando consigo mesmos, roncando, cuspindo... pode-se ouvir tudo o que eles fazem. Pode-se até ouvi-los mijando na pia. As paredes são grossas, mas as portas não são, entende? Quando a gente está no corredor, pratica­mente pode ouvir um hóspede escovando os dentes.

—  E daí? — indagou Peter novamente.

—  E daí que ela não faz nenhuma dessas coisas. Nunca faz absolutamente qualquer barulho. Não assiste à televisão. Quase não há necessidade de limpar o quarto. Até mesmo a cama já está arrumada. Não acha muito estranho? O que será que ela faz? Dorme por cima das cobertas? Fica de pé a noite inteira?

—  Ela ainda está na janela?

—  Está sim.

—  Deixe-me dar uma olhada.

Peter pegou a luneta. A mulher ainda estava parada na janela, sorrindo ligeiramente, como se soubesse que estavam fa­lando a seu respeito. Peter estremeceu e devolveu a luneta.

—  Vou dizer-lhe mais uma coisa, Peter. Carreguei a mala dela quando chegou ao hotel. Em toda a minha vida, acho que já devo ter carregado mais de um milhão de malas. E é por isso que lhe posso afirmar; a mala daquela mulher estava vazia. Ela pode ter posto alguns jornais lá dentro, mas não havia mais do que isso. Um dia, quando ela estava no trabalho, fui dar uma olhada nos armários. Não tinha nada lá dentro. Ne­nhuma roupa. Mas ela não usa sempre a mesma roupa, cara! Como ela faz então? Usa uma roupa por cima da outra, tro­cando a ordem de vez em quando? Dois dias depois, fui veri­ficar de novo e desta vez encontrei o armário abarrotado de roupas, como se ela tivesse sabido que alguém estivera olhando ali. Foi nessa noite que ela me pediu para levá-la ao Hum­phrey’s e imaginei que ia finalmente se abrir para mim. Mas nada disso aconteceu, ela quase não falou comigo. Praticamente a única coisa que me disse foi:  “Quero que me apresente àquele homem”. Falei: “Lewis Benedikt?” Ela assentiu, como se já soubesse o nome dele. Levei-a até lá e ele fugiu como um coelho assustado.

—  Benedikt fez o quê?

—  Tive a impressão de que estava com medo dela. — Jim baixou a luneta e acendeu outro cigarro, olhando para Peter. — E quer saber de uma coisa? Eu também fiquei com medo. Há alguma coisa muito esquisita na maneira como ela olha para a gente de vez em quando.

—  Como se estivesse pensando que você andou bisbi­lhotando no quarto dela.

—  Talvez. Mas é um olhar intenso, cara. Entra por den­tro da gente. E tem ainda outras coisas. Quando a gente anda pelos corredores à noite, dá para saber quais as pessoas que estão com a luz acesa. A luz passa por baixo da porta. Pois ela nunca está com a luz acesa. Nunca mesmo! Mas uma noi­te...  não, isso é absurdo demais.

—  Conte mesmo assim.

—  Uma noite, vi uma luz tremeluzindo por baixo da porta do quarto dela. Parecia rádio ou algo assim, entende? Uma espécie de luz esverdeada. Luz fria. Não era um fogo ou qualquer Outra coisa assim e também não era das nossas lâm­padas.

—  Isso é estupidez.

—  Mas eu vi!

—  Não significa nada. Luz verde...  Essa não!

—  Não era apenas verde... parecia incandescente. Meio prateada. Foi por isso que pensei em virmos até aqui para dar uma olhada naquela mulher.

—  Pois agora que já deu, vamos voltar para casa. Meu velho vai ficar furioso, se eu chegar muito tarde.

—  Espere um pouco. — Jim Hardie olhou novamente pela luneta. — Acho que está acontecendo alguma coisa. Ela não está mais na janela. Mas que merda! — Baixou a luneta. — Ela abriu a porta e saiu. Pude vê-la no corredor.

—  Está vindo para cá!

Peter pulou rapidamente do peitoril e foi se afastando pela galeria, em direção à escada.

—  Não precisa molhar a calça, seu cagão. Ela não está vindo para cá. Não nos pode ver, lembra? Mas se ela está indo para algum lugar, eu quero saber para onde é. Vem co­migo ou não? — Jim Hardie começou a recolher suas coisas, o maço de cigarros, a garrafa, o molho de chaves. — Vamos embora. Temos que nos apressar. Ela estará saindo pela porta do hotel dentro de dois minutos.

—  Já estou indo!

Os dois percorreram rapidamente a galeria e desceram a escada. Hardie correu pela nave lateral da catedral e abriu a porta, o que proporcionou a Peter, que estava cambaleando, claridade suficiente para não esbarrar nas colunas nem nas pon­tas dos bancos. Lá fora, na noite escura, Jim meteu novamente o cadeado na porta e correu para o carro. O coração de Peter batia rapidamente, em parte de alívio por ter saído da catedral. Mas continuava tenso. Imaginou a mulher que vira na janela atravessando a praça coberta de neve na direção deles, a feiti­ceira de Branca de Neve, uma mulher que jamais acendia uma luz nem dormia na cama e que podia avistá-lo numa noite escura na janela de uma igreja no outro lado de uma comprida praça. Percebeu que a cabeça estava desanuviada. Ao se sentar no carro, ao lado de Jim, comentou:

—  Acho que o medo acaba com o porre da gente.

—  Ela não estava vindo para cá, idiota.

O que não impediu Hardie de afastar-se da catedral, indo para o lado sul da praça, tão depressa que os pneus chegaram a ranger. Peter olhou ansiosamente para a praça, uma exten­são branca interrompida apenas pelas árvores desfolhadas e a estátua escura, mas não avistou nenhuma bruxa deslizando na direção deles. A imagem em sua mente fora tão nítida que não acreditou em seus olhos e continuou esquadrinhando a praça mesmo depois de Jim ter virado na Wheat Row.

—  Ela está nos degraus — murmurou Jim, quando esta­vam quase na esquina.

Olhando para o hotel, por entre as árvores, Peter avistou a mulher descendo calmamente para a calçada. Usava um casa­co comprido, um lenço no pescoço e chapéu. Parecia tão absur­damente normal naquelas roupas, caminhando pela rua deserta depois de duas horas da madrugada, que Peter riu e estreme­ceu ao mesmo tempo.

Jim apagou os faróis e avançou devagar até o sinal. À esquerda deles e do outro lado da rua, a mulher avançava rapi­damente pela escuridão.

—  Vamos voltar para casa — sugeriu Peter.

—  Não diga besteira...  Quero ver para onde ela está indo.

—  E se ela nos avistar?

—  Isso não vai acontecer.

Hardie virou à esquerda, descendo lentamente pela praça, passando pelo hotel, os faróis ainda apagados. Embora as luzes na praça não estivessem acesas, os lampiões da rua continua­riam acesos até o amanhecer. Os dois rapazes viram a mulher passar sob um cone de luz ao final do primeiro quarteirão da Main Street. Jim avançou mais um pouco, bem devagar, depois esperou que a mulher percorresse outro quarteirão, antes de ir adiante.

—  Ela está apenas dando uma volta — disse Peter. — Sofre de insônia e costuma andar pelas ruas à noite.

— Uma ova!

— Não estou gostando nada desse negócio.

— Se quiser, pode saltar do carro e voltar para casa — sussurrou Jim, furioso. Inclinou-se por cima de Peter e abriu a porta. — Pule fora e vá correndo para casa.

Peter ficou sentado, estremecendo com a rajada de ar frio que entrou no carro, quase prestes a sair mesmo.

— Você também deveria voltar para casa, Jim.

— Mas que merda, cara! Caia fora logo de uma vez ou feche essa maldita porta! Ei, olhe só!

Os dois rapazes ficaram observando enquanto outro carro entrava na rua à frente deles e ia parar junto a um lampião, a dois quarteirões de distância. A mulher andou despreocupadamente até o carro, a porta se abriu e ela entrou.

—  Conheço aquele carro — disse Peter. — Já o vi por aí.

—  Claro que já viu, seu bocó! Um Camaro azul 72... é daquele cara metido a besta, Freddy Robinson.

Jim acelerou um pouco, enquanto o carro de Robinson se afastava.

—  Agora você já sabe o que ela faz durante a noite, Jim.

—  Talvez.

—  Talvez? O que mais poderia ser? Robinson é casado. E minha mãe soube pela Sra. Venuti que a mulher dele está querendo o divórcio.

—  É porque ele está sempre se metendo com garotinhas da escola, não é mesmo? Sabe muito bem que Freddy Robin­son gosta mesmo é das franguinhas. Nunca o viu com alguma garota?

—  Claro que já vi.

—  E quem era ela?

—  Uma garota da escola — respondeu Peter, sem querer dizer que tinha sido Penny Draeger.

—  Assim, o que quer que aquele palhaço esteja fazendo não é um simples encontro de namoradinhos. Para onde ele estará indo?

Robinson estava seguindo pela parte noroeste de Milburn, fazendo voltas como que a esmo, afastando-se cada vez mais do centro. As casas sob o céu escuro, com a neve acumulada nos jardins da frente, pareciam sinistras a Peter Barnes: a escala da noite reduzira-as para algo maior do que casas de bonecas e menor do que elas próprias. As luzes traseiras do carro de Freddy Robinson deslocavam-se à frente deles como os olhos de um gato.

Aposto como ele vai virar à direita mais adiante e depois seguir para oeste pela Bridge Road.

—  Como pode... ? — Peter não completou a pergunta, observando o. carro de Robinson fazer exatamente o que Jim acabara de prever. — Para onde ele está indo?

—  Para o único lugar por estas bandas onde não há nin­guém para aporrinhar.

—  A velha estação ferroviária.

—  Acaba de ganhar um charuto. Ou melhor, um cigarro.

Ambos os rapazes acenderam cigarros Marlboro. No ins­tante seguinte, o carro de Robinson entrou no estacionamento da estação ferroviária desativada de Milburn. A companhia tentara por muitos anos vender o prédio, que era uma casca vazia, com assoalho de madeira e um guichê. Dois velhos vagões de carga, fechados, estavam parados nos trilhos cobertos pelo mato, há tanto tempo quanto os rapazes podiam recordar-se.

Enquanto observavam, do carro todo apagado, parado na Bridge Road, a mulher saltou do Camaro, logo seguida por Robinson. Peter olhou para Jim, receando o que sabia que o amigo pretendia fazer. Hardie esperou até que Robinson e a mulher contornassem o lado da estação e depois abriu a porta do carro.

—  Não! — disse Peter.

—  Está certo. Pode ficar aqui.

—  Para que tudo isso? De que vai adiantar surpreendê-los de calças arriadas?

—  Não é isso o que eles vão fazer, seu idiota! Lá fora? Ou dentro daquela velha estação congelada e cheia de ratos? Ele tem dinheiro suficiente para pagar um motel.

—  Então o quê? — suplicou Peter.

—  Quero saber o que ela vai dizer. Afinal, não foi ela quem trouxe Robinson até aqui?

Jim Hardie saltou do carro e começou a avançar silencio­samente pela Bridge Road.

Peter pôs a mão na maçaneta da porta, empurrou-a para baixo e ouviu o estalido da tranca. Jim Hardie estava doido: por que deveria acompanhá-lo ainda mais em suas confusões sem sentido e desnecessárias? Eles já tinham arrombado uma igreja, fumado e tomado uísque lá dentro, mas Jim Hardie ainda não estava satisfeito e agora queria seguir furtivamente Freddy Robinson e aquela mulher esquisita.

“O que era aquilo?” O chão estava vibrando e Peter foi atingido por uni vento enregelante, que parecia não vir de canto algum. Mais de duas vozes pareceram soar além da esta­ção, guinchando no vento súbito. E Peter experimentou a sensação de que havia uma mão martelando dentro de sua cabeça.

A noite ficou mais densa em torno dele e pensou que fosse desmaiar; mal ouviu Jim Hardie caindo na neve um pouco à frente. No instante seguinte, tanto eles como a velha estação pareciam envolvidos por um momento de claridade pura e total.

Peter estava fora do carro, de pé sobre a terra que parecia tremer, olhando para Jim: o amigo estava sentado na neve, o corpo todo branco, as sobrancelhas luzindo, esverdeadas, como o mostrador luminoso de um relógio... a neve ficava assim vez por outra, quando refletia o luar em determinado ângulo...

Jim correu na direção da estação e Peter ainda foi capaz de pensar: “É assim que ele se mete em encrencas; não é ape­nas doido, mas também nunca desiste...”. 

 e ambos ouviram Freddy Robinson gritar.

Peter agachou-se ao lado do carro, como se estivesse es­perando que houvesse tiros. Podia ouvir os passos de Jim se afastando, na direção da estação. Os passos pararam; aterrori­zado, Peter olhou cautelosamente por cima do pára-lama do carro. As costas e as pernas cobertas por neve que brilhava intensamente, Jim estava imitando a pose dele, sem o saber, olhando pelo lado da estação.

Peter desejou que ambos estivessem a pelo menos duzen­tos metros de distância, observando através de uma luneta.

Jim avançou lentamente mais alguns metros. Peter sabia que ele agora estava em posição de ver toda a área nos fundos da estação. Além da plataforma, havia degraus de pedra des­cendo para os trilhos. Os dois vagões abandonados, cercados de mato, estavam nas extremidades da estação.

Ele sacudiu a cabeça e avistou Jim correr, meio agachado, de volta ao carro. Ao chegar, Jim não disse nada, nem mesmo olhou para ele, apenas abriu a porta do carro e entrou. Peter entrou também, os joelhos um pouco rígidos por ter ficado ajoelhado, no momento em que Jim ligava o carro.

— O que aconteceu, Jim?

— Cale a boca!

— O que você viu?

Jim pisou no acelerador e mudou a marcha; o carro dis­parou para a frente bruscamente. Uma camada de neve cobria o casaco e a calça de Jim Hardie.

—  Viu alguma coisa, Jim?

—  Não.

—  Sentiu o chão tremer? Por que Robinson gritou?

—  Não sei. Ele estava caído nos trilhos.

—  E não viu a mulher?

—  Não. Ela devia estar no outro lado.

—  Mas tenho certeza de que você viu alguma coisa. Veio de lá correndo como se o Diabo estivesse atrás de você.

—  Pelo menos eu fui até lá!

A censura serviu para fazer Peter aquietar-se. Mas Jim Hardie não ia parar por aí.

—  Seu cagão! Ficou escondido atrás do carro como se fosse uma bicha! E agora preste muita atenção: se alguém lhe perguntar onde esteve esta noite, diga que estava jogando pôquer comigo. Ficamos jogando pôquer no porão de sua casa como ontem à noite, certo?  Não aconteceu nada, entende? Tomamos algumas cervejas e depois continuamos o jogo de pôquer de onde tínhamos parado ontem à noite. Combinado?

—  Combinado. Mas...

—  Está bem! — Hardie virou-se, fitando Peter com uma expressão furiosa. — Quer mesmo saber o que vi? Pois vou contar-lhe: alguma coisa me viu!  E quer saber o quê? Havia um garotinho sentado no alto da estação. Devia estar me ob­servando o tempo todo.

Aquilo era totalmente inesperado.

—  Um garoto? Mas isso é absurdo! São quase três horas da madrugada. E está frio demais. Além disso, não existe a menor possibilidade de se subir ao telhado da estação. Nós bem que tentamos muitas vezes, quando estávamos no primário.

—  Pois o tal garoto estava lá em cima e estava me obser­vando. E posso dar-lhe outra pequena informação. — Hardie fez uma curva fechada e quase foi para cima de uma fileira de caixas de correio. — Ele estava descalço. E tenho a impressão de que além disso estava sem camisa.

Peter ficou calado.

—  Aquele garoto me provocou o maior calafrio, cara. Foi por isso que saí correndo. E acho que Freddy Robinson está morto. Assim, se alguém perguntar, passamos a noite inteira jogando pôquer.

—  O que você achar melhor.

—  Pois é isso o que eu acho melhor.

 

Omar Norris teve um despertar desagradável. Depois que a esposa o expulsara de casa, passara a noite no que considerava o seu último refúgio: um dos vagões perto da estação abando­nada. Se ouvira algum barulho durante seu sono de bêbado, agora já não se lembrava mais. Por isso, ficou bastante morti­ficado ao verificar que a pilha de roupas velhas caídas nos trilhos, conforme sua primeira impressão, era na verdade um cadáver. Não chegou a dizer “Não! Outra vez não!” (o que falou na verdade foi “Mas que merda!”), mas era isso o que estava pensando.

 

Ao longo das noites e dias subseqüentes, ocorreram em Milburn diversos acontecimentos de importância imediata va­riável. Alguns desses acontecimentos pareceram triviais às pes­soas envolvidas, outros provocaram um certo espanto ou irri­tação, e uns poucos foram marcantes e significativos. Todos, porém, eram parte do esquema que iria causar tantas mudanças em Milburn e, por isso, eram importantes.

A esposa de Freddy Robinson descobriu que o marido fizera um parcimonioso seguro de vida para si mesmo, que o “bamba” Fred, o membro em perspectiva da Távola Redonda do Milhão de Dólares, valia morto apenas quinze mil dólares. Ela deu um triste telefonema para a irmã solteira que morava em Aspen, Colorado, a qual lhe falou:

—  Eu não dizia sempre que ele não prestava? Por que não vende a casa e vem para cá, que é um lugar muito mais saudável? E como foi o acidente, minha querida?

O que era a mesma pergunta que o médico-legista do condado de Broome estava fazendo a si mesmo, diante do cadáver de um homem de trinta e quatro anos do qual haviam sido removidos quase todos os órgãos internos e o sangue. Por um momento, ele pensou em escrever por baixo de “causa mortis” a palavra “dessangramento”, mas mudou de idéia e escreveu “insulto interno maciço”, com uma longa nota em apêndice, terminando com a especulação de que o “insulto” teria sido causado por um animal desconhecido.

E Elmer Scales continuou sentado diante das janelas todas as noites, com a espingarda no colo, sem saber que a última vaca já fora morta e que o vulto que vislumbrara estava agora à procura de caça maior;

e Walter Hardesty levou um drinque para Omar Norris na saleta dos fundos do Humphrey’s Place e ouviu-o dizer que, agora que tinha tempo de pensar a respeito, era possível que tivesse ouvido um ou dois carros naquela noite e que isso não era tudo, que tinha a impressão de que houvera também algu­ma espécie de barulho e de luz.

—  Barulho? Luz? Essa não, Omar! Vamos, suma daqui! — gritou Hardesty, que ficou tomando sua cerveja depois que Omar foi embora, procurando imaginar que diabo estaria acon­tecendo;

e a excelente secretária que Hawthorne & James contra­tara disse aos patrões que queria deixar o Hotel Archer e soubera que a Sra. Robinson pusera sua casa à venda. Será que não poderiam falar com seus amigos no banco e arrumar um financiamento? Conforme se verificou, ela possuía uma ex­celente conta corrente e de poupança em San Francisco;

e Sears e Ricky se entreolharam com uma expressão sur­preendentemente próxima do alívio, como se não gostassem da idéia de aquela casa ficar vazia, e disseram que provavelmente conseguiriam resolver o problema com o Sr. Barnes;

e Lewis Benedikt prometeu a si mesmo que telefonaria para seu amigo Otto Gruebe, a fim de marcar um dia para saírem com os cachorros à caça de guaxinins;

e Larry Mulligan, preparando o corpo de Freddy Robin­son para o funeral, olhou para o rosto do cadáver e pensou: “Ele deve ter visto o Diabo chegando para levá-lo”;

e Nettie Dedham, aprisionada em sua cadeira de rodas, assim como estava também aprisionada no corpo paralítico, estava olhando pela janela da sala de jantar como gostava de fazer, enquanto Rea se ocupava em dar a refeição vespertina aos cavalos. Ela inclinou a cabeça, a fim de contemplar melhor a luz do fim de tarde sobre os campos. Foi nesse momento que avistou um vulto se aproximando. Nettie, que compreen­dia as coisas muito mais do que a irmã imaginava, ficou obser­vando o vulto se encaminhar para a casa e o estábulo. Emitiu uns poucos sons sufocados, mas sabia que Rea jamais os ouvi­ria. O vulto chegou mais perto, assustadoramente familiar. Nettie teve medo de que fosse aquele garoto da cidade de quem Rea falara... aquele garoto turbulento que a irmã indi­cara à polícia. Ela tremeu, vendo o vulto chegar cada vez mais perto, imaginando como seria a vida se o garoto fizesse alguma coisa a Rea. E no instante seguinte soltou um grito de terror e quase derrubou a cadeira de rodas. O vulto que se estava encaminhando para o estábulo era um homem: seu irmão Stringer, usando o mesmo blusão marrom que vestira no dia de sua morte, todo coberto de sangue, exatamente como no momento em que o haviam estendido em cima da mesa, antes de envolvê-lo com os cobertores. A única diferença era o fato de os braços estarem inteiros. Stringer olhou através do peque­no pátio para a janela em que estava Nettie, depois puxou o arame farpado com as mãos e passou pela cerca. Encaminhou-se para a janela. Sorriu para Nettie e depois virou-se novamente para o estábulo.

 

E Peter Barnes desceu para a cozinha, a fim de tomar o café da manhã às pressas, como sempre fazia, ainda mais agora, quando a mãe andava tão sisuda e principalmente naquele dia, ao constatar que o pai, que já deveria ter saído quinze minutos antes, ainda estava sentado à mesa, diante de uma xícara de café frio.

—  Ei, papai, está atrasado para o trabalho no banco!

— Sei disso. Queria conversar com você, Pete. Não temos conversado muito ultimamente.

—  Acho que sim. Mas será que não dá para esperar? Tenho que ir para a escola.

—  Não, Pete, não pode esperar. Já estou pensando nisso há dois dias.

—  É mesmo?

Peter despejou leite num copo, sabendo que o assunto, qualquer que fosse, provavelmente era muito sério. O pai ja­mais abordava imediatamente os assuntos mais sérios; ficava pensando a respeito, como se fossem empréstimos bancários, só apresentando-os quando já tinha um plano inteiramente ela­borado.

—  Acho que anda saindo demais com Jim Hardie — disse o pai. — Ele não presta e está lhe ensinando péssimos hábitos.

—  Isso não é verdade, papai — protestou Peter, irritado. — Já tenho idade suficiente para criar meus próprios hábitos. Além do mais, Jim não é tão ruim quanto os outros dizem... ele apenas faz coisas sem pensar de vez em quando.

—  E foi isso o que aconteceu na noite de sábado?

Peter pôs o copo em cima da mesa e fitou o pai com uma calma simulada.

—  Claro que não. Não ficamos quietos o bastante aqui em casa?

Walter Barnes tirou os óculos e limpou-os no colete.

—  Ainda insiste em dizer que ficaram jogando pôquer aqui naquela noite?

Peter concluiu que era melhor não insistir na mentira e sacudiu a cabeça.

—  Não sei onde vocês estiveram e não vou perguntar. Está com dezoito anos e tem todo o direito a uma vida parti­cular. Mas quero que saiba que, às três horas da madrugada, sua mãe teve a impressão de ouvir um barulho. Eu me levantei e percorri toda a casa, para verificar se havia alguma coisa errada. E você não estava em parte alguma. Nem Jim Hardie.

Walter pôs novamente os óculos e olhou novamente para o filho, a expressão solene. Peter sabia que chegara o momento de o pai desenvolver o plano que imaginara.

—  Não contei a sua mãe, porque não queria que ela se preocupasse com você. Ela anda muito tensa ultimamente.

—  Tem razão. Por que mamãe anda tão irritada?

—  Não sei — respondeu Walter, que na verdade tinha uma idéia aproximada do motivo. — Mas acho que ela está se sentindo meio solitária.

—  Mas ela tem uma porção de amigas! A Sra. Venuti, por exemplo, aparece aqui quase todos os dias...

—  Não tente desviar-me do assunto que estávamos tra­tando. Vou fazer-lhe algumas perguntas, Pete. Teve alguma coisa a ver com a morte do cavalo das garotas Dedham?

—  Não! — exclamou Peter, aturdido.

—  E imagino que também nada sabe a respeito do assas­sinato de Rea Dedham, não é?

Para Peter,  as irmãs Dedham  eram ilustrações de um livro de história.

—  Ela foi assassinada? Santo Deus, eu... — Correu os olhos pela cozinha, angustiado. — Eu nem mesmo sabia!

—  Era o que eu imaginava. Eu mesmo só soube ontem à noite. O rapaz que limpa o estábulo encontrou-a à tarde. Vai sair nos noticiários de hoje. E no jornal da tarde.

—  Mas por que me está perguntando tudo isso, papai?

—  Porque algumas pessoas vão pensar que Jim Hardie talvez esteja envolvido.

—  Mas isso é um absurdo!

—  Espero que seja mesmo, por causa de Eleanor Hardie. E para dizer a verdade, não posso imaginar o filho dela fazendo uma coisa dessas.

—  Jim jamais faria isso, papai. Ele pode ser meio turbu­lento, não gosta de parar no ponto em que um cara comum normalmente ficaria... — Peter parou de falar abruptamente, ouvindo as próprias palavras.

O pai suspirou.

—  Fiquei  preocupado...   todo  mundo  sabia  que  Jim tinha alguma coisa contra aquelas pobres velhas. Mas tenho certeza de que Jim nada teve a ver com o caso. De qualquer maneira, Hardesty certamente vai fazer-lhe algumas perguntas. — Walter pôs um cigarro na boca, mas não o acendeu. — Está certo, meu filho. Acho que devemos ser um pouco mais íntimos. Vai para a universidade no próximo ano e este é provavelmente nosso último ano juntos, como uma família. Vamos dar uma festa no fim de semana seguinte a este, e eu gostaria que você participasse. O que me diz?

Então era esse o plano! pensou Peter, aliviado.

—  Mas claro, papai!

—  E vai ficar durante toda a festa? Eu gostaria disso, se você pudesse integrar-se realmente nela.

—  Não há problema. — Olhando para o pai, Peter viu-o por um momento como já surpreendentemente velho. O rosto estava flácido e enrugado, marcado por toda uma vida de preo­cupações.

—  E teremos outras conversas pela manhã?

—  Sempre que quiser, papai.

—  E também não haverá mais tanto tempo passado em bares na companhia de Jim Hardie. — Era uma ordem e não uma pergunta; Peter assentiu. — Ele ainda pode envolvê-lo numa encrenca de verdade.

—  Jim não é tão ruim quanto todo mundo pensa, papai. Ele simplesmente não gosta de parar e vai sempre em fren­te e...

—  Já chega, Pete. Está na hora de você ir para a escola. Quer uma carona?

—  Prefiro ir a pé. Se for de carro, chego cedo demais.

—  Está certo, filho.

Cinco minutos depois, com os livros debaixo do braço, Peter saiu de casa. Ainda sentia no fundo do estômago o res­quício do medo que experimentara quando pensara que o pai iria interrogá-lo sobre a noite de sábado — era um episódio que ele planejava apagar do pensamento tão completamente quanto possível —, mas o medo era agora apenas uma pequena área cercada por um mar de alívio. O pai estava mais preo­cupado em aproximar-se dele do que com as coisas que pudesse ter feito junto com Jim Hardie. A noite de sábado iria esmae­cendo com a passagem do tempo e acabaria se tornando tão remota quanto as garotas Dedham.

Peter virou a esquina. O tato do pai se interpunha entre ele e a coisa misteriosa que acontecera duas noites antes. De certa forma, o pai era uma proteção contra tudo. As coisas terríveis não iriam acontecer, ele estava protegido por sua imaturidade. Se não fizesse nada errado, os terrores não iriam agarrá-lo.

Ao chegar à praça, o medo já desaparecera quase inteira­mente. O caminho normal para a escola passava pelo hotel, mas Peter não queria correr o menor risco de ver aquela mulher novamente. Por isso, decidiu fazer um desvio, entrando na Wheat Row. O ar frio fazia seu rosto arder. Os pardais piavam e sobrevoavam rapidamente a praça, em ziguezagues. Um Buick preto comprido passou por ele. Peter viu os dois velhos advo­gados, amigos de seu pai, sentados no banco da frente. Ambos pareciam extremamente pálidos e cansados. Peter acenou, e Ricky Hawthorne levantou a mão, retribuindo o cumprimento. Peter estava quase no fim da Wheat Row, passando pelo Buick estacionado, quando um tumulto na praça lhe atraiu a atenção. Um homem musculoso, um estranho, de óculos es­curos, caminhava pela neve. Usava uma japona e um gorro de tricô, mas Peter pôde perceber, pela pele branca em torno das orelhas, que a cabeça do homem era raspada. O homem estava batendo palmas, fazendo os pardais se dispersarem como a chuva de um tiro de espingarda; parecia irracional como uma besta selvagem. Ninguém mais o viu, nem os homens de negó­cios que estavam subindo os degraus do século XVIII da Wheat Row nem as secretárias que os seguiam em casacos curtos e pernas compridas. O homem bateu palmas outra vez e Peter percebeu que ele estava olhando em sua direção. E estava mostrando os dentes como um leopardo faminto. Come­çou a avançar para Peter. Paralisado, sentiu que o homem es­tava se movendo mais depressa do que seus passos podiam explicar. Virou-se para correr e avistou, sentado numa das lá­pides inclinadas diante da Catedral de São Miguel, um garoto com os cabelos desgrenhados e o rosto sorridente. O garoto, embora menos aterrador, era da mesma substância do homem. Estava também olhando para Peter, que se lembrou do que Jim Hardie dissera ter visto na estação abandonada. O rosto aparvalhado contorceu-se numa risadinha. Peter quase deixou cair seus livros. Saiu correndo e continuou a correr, sem olhar para trás.

 

(Nossa Srta. Dedham vai agora dizer umas poucas palavras)

 

Os três homens estavam sentados no corredor do terceiro andar do hospital-escola, em Binghamton. Nenhum deles es­tava satisfeito com sua presença ali: Hardesty porque descon­fiava que parecia um tolo numa cidade maior, onde ninguém sabia imediatamente de sua autoridade, e também porque esta­va convencido de que a missão era inútil; Ned Rowles porque detestava ficar longe da sede do Urbanite em quase todas as ocasiões e especialmente quando tinha de deixar a preparação de uma edição inteiramente aos cuidados de sua equipe; e Don Wanderley porque ficara tempo demais afastado do leste para guiar instintivamente bem em estradas geladas. Mas ele achara que ver a velha cuja irmã morrera tão bizarramente poderia ajudar a Sociedade Chowder.

A sugestão fora de Ricky Hawthorne:  

— Há anos que não a vejo e soube que ela sofreu um derrame há algum tempo. Mas talvez nos possa dizer alguma coisa. Isto é, se você estiver disposto a viajar num dia como o de hoje...

Ao meio-dia, estava tão escuro como se fosse quase noite; as tormentas pairavam sobre a cidade, esperando para acon­tecer.

—  Acha que pode haver alguma ligação entre a morte da irmã dela e o problema de vocês?

—  É bem possível, embora eu não acredite muito. Mas não se deve ignorar nem mesmo esses acontecimentos perifé­ricos. E deve ter pelo menos alguma relevância. Vamos ter de contar-lhe tudo depois. Agora que está aqui, não há mais sen­tido em ocultar-lhe coisa alguma. Sears pode não concordar comigo, mas Lewis provavelmente pensa como eu. — Uma pausa e Ricky acrescentara, secamente: — Além do mais, creio que lhe fará bem sair um pouco de Milburn, mesmo que por breve tempo.

O que fora verdade, pelo menos a princípio. Binghamton, quatro ou cinco vezes maior do que Milburn, era outro mundo, diferente, mais brilhante, mesmo num dia escuro e ameaçador: tráfego intenso, construções novas, jovens, os ruídos da vida urbana, e era integrada plenamente em sua época. Fazia com que Milburn voltasse para um período antigo, do romance gótico. A cidade maior permitira a Don compreender como Milburn estava isolada, o quanto era um terreno fértil para especulações como a da Sociedade Chowder — justamente o aspecto da cidade que o fizera inicialmente recordar o Dr. Rabbitfoot. Parecia até que ele havia se acostumado a isso. Em Binghamton, não havia o zumbido do macabro, não havia qualquer anormalidade à espreita para se farejar nas histórias contadas entre goles de uísque e nos pesadelos de velhos.

Mas ali no terceiro andar do hospital, Milburn voltava a predominar. Milburn estava na desconfiança e nervosismo de Hardesty, e na maneira rude como dissera:

— Que diabo está fazendo aqui? Veio de Milburn. Já o vi circulando pela cidade... inclusive no Humphrey’s.

Milburn estava até mesmo nos cabelos escorridos e no terno amarrotado de Ned Rowles; na cidade, Rowles parecia convencional e até bem vestido, mas fora dela quase parecia um matuto. Percebia-se imediatamente que o paletó era curto demais e a calça estava cheia de dobras. E o comportamento de Rowles, suave e amistoso em Milburn, parecia impregnado de timidez em Binghamton.

—  Achei meio esquisito a velha Rea morrer logo depois que encontraram o cadáver de Freddy Robinson — comentou Rowles. — Ele esteve na propriedade das garotas Dedham menos de uma semana antes de Rea morrer.

—  Como foi que ela morreu? — perguntou Don. — E quando poderemos ver a irmã dela? Não há um horário de visita agora?

—  Vamos esperar um médico aparecer para ver se pode­mos dar um jeito — disse Rowles. — E quanto à maneira como ela morreu, decidi não publicar no jornal. Não há neces­sidade de sensacionalismo para vender jornal. Mas  tenho a impressão de que muita gente na cidade deve ter tomado co­nhecimento e comentado.

—  Tenho trabalhado quase todo o tempo — disse Don.

—  Ah, um novo livro. Isso é Ótimo.

—  É isso o que esse cara faz? — indagou Hardesty. — Era só do que estávamos precisando! Um escritor! Essa não! Vou conversar com a testemunha na presença de um intrépido editor de jornal e de um escritor! E como diabos essa velha vai saber quem eu sou? Como poderá descobrir que eu sou o xerife?

“É isso o que o está preocupando”, pensou Don: “Ele parece o Wyatt Earp porque é tão inseguro que deseja que todo mundo saiba imediatamente que usa um emblema e car­rega uma arma”.

Alguma coisa deve ter transparecido em seu rosto, porque Hardesty tornou-se mais agressivo.

—  Muito bem, conte sua história. Quem o mandou aqui? Por que está em Milburn?

—  Ele é sobrinho de Edward Wanderley — disse Row­les, com voz cansada. — Está fazendo algum trabalho para Sears James e Ricky Hawthorne.

—  Oh, não, esses dois não! — resmungou Hardesty. — Eles lhe pediram que viesse até aqui para conversar com a velha?

—  O Sr. Hawthorne foi quem pediu.

—  Talvez eu deva jogar-me no chão e fingir que sou um tapete vermelho. — Hardesty acendeu um cigarro, ignorando o aviso de “Proibido fumar” no final do corredor. — Aqueles dois sabem de alguma coisa que não estão querendo contar. Têm um trunfo qualquer na manga. E bem lá em cima!

Rowles desviou os olhos, obviamente constrangido. Don fitou-o, em busca de uma explicação.

—  Vamos, meu prezado editor, conte tudo. Ele lhe per­guntou como ela morreu.

—  Não é uma história das mais agradáveis — murmurou Rowles.

—  Ele já é crescidinho. E tem as costas largas, não é mesmo?

Era outra característica do xerife: estava sempre avaliando o tamanho dos outros homens em relação a si mesmo. E como Rowles continuasse calado, Hardesty insistiu:

—  Vamos, conte logo de uma vez. Afinal, não é nenhum segredo de Estado.

—  Está certo. — Rowles encostou-se na parede, visivel­mente cansado. — Ela sangrou até a morte. Seus braços foram cortados.

—  Deus do céu! — exclamou Don, dominado por uma náusea intensa e lamentando ter vindo. — Mas quem...

—  Sabe que conseguiu pegar-me nessa pergunta? — disse Hardesty. — Talvez os seus amigos ricos possam dar alguma pista. Mas gostaria que me desse sua opinião: quem acha que poderia sair por aí fazendo operações em animais, como acon­teceu no estábulo da Srta. Dedham? E antes disso na fazenda de Norbert Clyde? E antes disso na fazenda de Elmer Scales?

—  Acha que há uma explicação para tudo isso? — Devia ser isso, imaginou Don, que os amigos do seu tio estavam lhe pedindo para descobrir.

Uma enfermeira passou nesse momento e franziu o rosto para Hardesty, que constrangido se viu forçado a apagar o cigarro. No momento seguinte, o médico saiu do quarto e disse:

—  Podem entrar agora.

 

O primeiro pensamento de Don, meio aturdido, ao ver a velha foi: “Ela está morta também!” Mas ele logo percebeu o brilho nos olhos em pânico, que se deslocavam rapidamente de um para o outro. Depois, viu a boca se mexendo silenciosa­mente e compreendeu que Nettie Dedham estava além de qual­quer possibilidade de comunicação.

Adiantando-se, Hardesty não se deixou perturbar pela boca entreaberta e os sinais de agitação, dizendo:

—  Sou o xerife, Srta. Dedham. Walt Hardesty, o xerife de Milburn.

Don contemplou a expressão de pânico nos olhos de Nettie Dedham e desejou boa sorte ao xerife. Ele virou-se para o editor, que explicou:

—  Eu sabia que ela havia sofrido um derrame, mas igno­rava que tinha ficado nesse estado.

—  Não nos encontramos quando estive outro dia na pro­priedade, mas conversei com sua irmã — estava dizendo Har­desty. — Está lembrada? Foi na ocasião em que mataram o cavalo.

Nettie Dedham emitiu um ruído de gargarejo.

—  Isso significa sim?

Ela repetiu o mesmo som.

—  Ótimo. O que significa que está lembrada e sabe quem eu sou. — O xerife sentou-se ao lado da cama e pôs-se a falar em voz baixa.

Rowles comentou para Don:

—  Ao que parece, as duas velhas eram lindas quando mocinhas. Lembro-me de meu pai falando Constantemente das garotas Dedham. Sears e Ricky também devem lembrar-se.

—  É bem possível.

—  Gostaria de falar agora sobre a morte de sua irmã — estava dizendo Walt Hardesty. — É muito importante que me conte tudo o que viu. Fale e tentarei compreender. Certo?

— Gl...

—  Lembra-se do dia?

— Gl...

—  Isso é demais! — sussurrou Don para Rowles, que se virou e foi para o outro lado da cama, olhando pela janela o céu escuro.

—  Estava sentada num lugar onde pudesse ver o estábulo onde foi encontrado o corpo de sua irmã?

—  Gl...

—  Isso é afirmativo?

— Gl...!

—  Viu alguém aproximar-se do estábulo imediatamente antes da morte de sua irmã?

—  Gl...!

—  Pode identificar essa pessoa? — Hardesty estava sen­tado, quase debruçado sobre a cama. — Se a trouxéssemos aqui, poderia fazer algum ruído para indicar que era a culpada?

A velha emitiu um ruído diferente, que Don acabou iden­tificando como sendo de choro. Sentiu-se degradado por estar presente naquele quarto.

—  Essa pessoa era um rapaz?

Outra sucessão de ruídos estrangulados. O excitamento de Hardesty estava se transformando em impaciência incontrolável.

—  Vamos supor então que foi mesmo um rapaz. Foi o garoto Hardie?’

— Ah, mas que prova irrefutável! — murmurou Rowles da janela.

—  As provas irrefutáveis que se danem! Foi ele mesmo, Srta. Dedham?

— Glorrrgue — gemeu a velha.

—  Merda! Está querendo dizer não? Não foi ele?

—  Glorrrgue.

— Pode tentar dizer o nome da pessoa que viu? Nettie Dedham estava tremendo.

—  Glngr. Glnger. — Ela fez um tremendo esforço, que Don pôde sentir em seus próprios músculos. — Glngr.

— Vamos deixar isso de lado por enquanto. Há mais coisas que estou querendo saber. — Virou a cabeça e lançou um olhar furioso para Don, que teve a impressão de perceber que havia também algum constrangimento no rosto do xerife. Hardesty virou-se outra vez para a velha e baixou a voz ainda mais. Mesmo assim, Don ainda podia ouvi-lo.

—  Por acaso ouviu alguns barulhos esquisitos? Ou viu luzes estranhas, algo assim?

A cabeça da velha oscilou; os olhos se mexeram freneti­camente.

—  Houve barulhos  ou luzes  estranhas,  Srta. Dedham? — Hardesty detestava ter de fazer aquela pergunta. Ned Row­les e Don trocaram um olhar rápido, perplexos e interessados.

Hardesty finalmente enxugou o suor da testa, desistindo.

— Não adianta. Ela acha que viu alguma coisa, mas quem pode descobrir o que foi? Vou-me embora. Vocês podem ficar ou não. Façam o que acharem melhor.

Don seguiu o xerife para fora do quarto e ficou esperando no corredor, enquanto Hardesty conversava com um médico. Quando Rowles também saiu, o rosto de menino envelhecido estava pensativo. Hardesty deixou o médico e aproximou-se dos dois, olhando para Rowles.

—  Pode ver algum sentido em tudo isso?

—  Não, Walt. Não há nada que faça o menor sentido.

—  E você?

—  Também não percebo nenhum sentido — respon­deu Don.

—  Pois estou começando a acreditar que não falta muito para passar a acreditar em discos voadores, vampiros e coisas assim — disse Hardesty, virando-se em seguida e afastando-se pelo corredor.

Ned Rowles e Don Wanderley foram atrás. Ao se apro­ximarem dos elevadores, Hardesty já estava dentro de um, apertando o botão. Antes que Don tivesse tempo de chegar perto, a porta do elevador se fechou, sem que o xerife fizesse qualquer esforço para impedi-lo. Era evidente que queria es­capar dos outros dois.

Um momento depois, outro elevador parou no andar, e Ned Rowles e Don Wanderley entraram.

—  Estive pensando no que Nettie talvez tenha tentado dizer — comentou Rowles. A porta se fechou e o elevador começou a descer. — E posso garantir-lhe que parece absurdo demais.

—  Não. ouvi, ultimamente, coisa alguma que não fosse.

—  E quem diz isso é o homem que escreveu The night watcher!

“Lá vamos nós outra vez”, pensou Don.

Abotoou o casaco ao sair do elevador e acompanhou Row­les até o estacionamento. Embora estivesse apenas de terno, Rowles não parecia estar sentindo frio.

—  Sente-se em meu carro por um momento — pediu o editor do jornal.

Don sentou-se e olhou para Rowles, que estava coçando a testa. O editor parecia muito mais velho dentro do carro, as sombras ressaltando as rugas.

—  Glnger? Não foi um som mais ou menos assim que ela emitiu na última vez? Concorda?; Ou pelo menos era muito parecido com isso, não é mesmo? Não cheguei a conhecê-lo pessoalmente, mas há muitos e muitos anos as garotas Dedham tinham um irmão e creio que não pararam de falar sobre ele por muito tempo depois que morreu...

Don voltou para Milburn sob um céu ameaçador, povoado de nuvens escuras, entre pretas, cinzentas e púrpura, com uns poucos clarões aqui e ali. Estava de volta a Milburn levando consigo parte da história de Stringer Dedham; de volta a Mil­burn, onde as pessoas estavam começando a se isolar cada vez mais, enquanto as nevascas iam se tornando piores e as. casas pareciam encolher-se ao encontro umas das outras, em busca de proteção; de volta a Milburn, onde seu tio morrera e os amigos dele sonhavam com horrores alarmantes: afastando-se do século e voltando para o isolamento de Milburn, para aque­le terrível confinamento, mais e mais parecido com sua própria mente.

 

 (Arrombamento, parte um)

 

— Meu pai disse que não devo mais me encontrar com você.

—  E daí? Vai se preocupar com isso? Quantos anos você tem? Cinco?

—  É que ele anda preocupado com alguma coisa. E não parece muito feliz.

—  Ele não parece muito feliz — arremedou Jim. — Ele é um velho. Com quantos anos está? Cinqüenta e cinco? É um cara com um trabalho chato, um carro velho, gordo demais e que sabe que o filhinho predileto vai voar do ninho dentro de nove ou dez meses. Saia pela cidade e dê uma olhada, amigo. Quantas pessoas pensa que vai encontrar com sorrisos alegres nos rostos encarquilhados? Esta cidade só tem velho, infeliz e otário. Vai deixar que eles dominem sua vida?

Jim recostou-se no banquinho do bar e sorriu para Peter, obviamente pensando que o velho argumento ainda era per­suasivo. Peter sentiu que mergulhava novamente na incerteza e ambigüidade, pois o argumento era mesmo persuasivo. As preocupações do pai não eram as suas. A questão nunca fora se amava ou não o pai, pois não tinha a menor dúvida de que amava: mas simplesmente de determinar se devia invariavel­mente obedecer às raras ordens do pai ou, como Jim dizia, “dei­xar sua vida correr solta”.

No final das contas, ele chegara a fazer algo realmente condenável em companhia de Jim? Por causa das chaves de Jim, não se podia dizer a rigor que tivessem arrombado a igreja; e depois haviam seguido uma mulher. Isso era tudo. Freddy Robinson morrera, o que era lamentável, mesmo que não gostassem dele. Mas ninguém estava dizendo que a morte de Robinson não fora natural; ele sofrera um ataque cardíaco ou caíra e batera com a cabeça...

E não houvera nenhum garoto no alto da estação.

E não houvera nenhum garoto sentado na lápide.

—  Acho que eu deveria agradecer a seu velho por ter deixado você sair esta noite.

—  A coisa também não é assim. Ele apenas pensa que devemos passar menos tempo juntos, não que não nos vejamos nunca mais. Acho que ele não gosta muito que eu freqüente lugares como este.

—  E o que há de errado com este lugar? — Jim Hardie gesticulou comicamente em torno do bar ordinário. — Ei, você aí! Este é um botequim de primeira, não é mesmo?

O garçom virou a cabeça para olhá-lo, um sorriso indife­rente no rosto.

—  É uma porra de um lugar civilizado, Lady Jane. E o Duque ali concorda comigo. Mas eu sei qual é o medo do seu velho. Não quer que o filhinho ande em más companhias. No caso, as más companhias se reduzem a uma só: eu. Assim, o pior já aconteceu. E como não tem mais jeito, o melhor é você relaxar e divertir-se.

Peter sabia que, se anotasse as coisas que Hardie dizia e fosse verificar mais tarde, descobriria todos os erros. Mas na hora, ouvindo-o falar, ficava convencido de qualquer coisa.

—  O que todos os velhos pensam que é loucura não passa de outra maneira de permanecer são. Quando se vive nesta cidade por muito tempo, corre-se o perigo de ficar com a cuca fundida. O jeito é ficar lembrando a todo instante que o resto do mundo não é uma Milburn em tamanho gigante.

Hardie olhou para Peter, tomou um gole de cerveja e sorriu. Peter divisou a luz estranha nos olhos dele e compreen­deu, como sempre soubera, que por baixo da espécie de loucura para “permanecer são” havia outra loucura, mais real.

—  Uma coisa você vai ter de reconhecer, Pete. Não houve ocasiões em que sentiu vontade de ver toda a maldita cidade pegando fogo? Tudo destruído, arrasado? É uma cidade fan­tasma, cara. Este lugar está cheio de Rip Van Winkles, aquele cara que dormiu vinte anos e ficou espantado quando acordou. É um Rip Van Winkle depois do outro, um bando de Rip Van Winkles meio malucos, com vazios no lugar do cérebro, com um xerife bêbado e botequins infames como vida social. . .

—  O que aconteceu com Penny Draeger? — interrompeu Peter. — Há umas três semanas que não sai com ela.

Jim inclinou-se sobre o balcão e pegou o copo de cerveja.

—  Um: ela soube que eu saí com a tal da Mostyn e re­solveu dar-me um gelo. Dois: os pais dela, o velho Rollie e Irmengard, souberam que Penny saiu algumas vezes com o falecido F. Robinson. E por isso a puseram de castigo. Sabe que Penny nunca me falou também que tinha saído com aquele cara? E foi bom mesmo que não tivesse falado, pois eu também teria dado um castigo nela.

—  Acha que Penny saiu com ele só porque você levou aquela mulher ao Humphrey’s?

— Como diabo vou saber por que ela fez as coisas, cara? Está vendo por acaso algum sentido nisso tudo?

—  E você vê? — Às vezes, era mais seguro devolver as perguntas de Jim.

— É uma merda... — Hardie inclinou-se todo, encos­tando a cabeça no úmido tampo de madeira do balcão. — Todas essas mulheres são um tremendo mistério pata mim. — Estava falando baixinho, como se sentisse uma profunda tris­teza, mas Peter podia ver pelo brilho em seus olhos que era apenas uma encenação. — Mas talvez você esteja certo. É bem possível que haja um sentido nessas coisas todas. Pode ser. E se há, então aquela Anna, além de não me querer dar depois de tanto provocar, ainda por cima liquidou com a vida sexual que eu tinha até então. Vendo a coisa por esse lado, não se pode ter a menor dúvida de que ela está me devendo alguma coisa. — Virou a cabeça, sem levantá-la, os olhos brilhando na direção de Peter. — O que acabou de me ocorrer, para dizer a verdade. — Continuava sentado do mesmo jeito, todo inclinado, a cabeça parecendo um objeto separado do corpo, encostada no balcão, sorrindo estranhamente para Peter. — É isso mesmo, amigo velho, ela está me devendo...

Peter engoliu em seco. Jim empertigou-se subitamente e deu um murro no balcão.

—  Ei, cara, traga mais duas cervejas para a gente!

— O que está pensando em fazer? — perguntou Peter, sabendo que inevitavelmente seria levado junto, e olhou pelas janelas sujas do bar para a escuridão manchada de branco lá fora,

— Vamos ver... O que estou mesmo querendo fazer?

Peter compreendeu, angustiado, que Jim desde o início sabia o que desejava fazer e convidá-lo para tomar uma cerveja fora apenas o primeiro passo do plano. Ele fora conduzido àquela conversa tão certamente quanto fora levado de carro pelo campo. Toda aquela história, “outra maneira de perma­necer são”, a conversa da cidade fantasma, tudo fazia parte de uma lista de argumentos que já estava na mente de Hardie.

—  O que estou mesmo querendo fazer? — repetiu Jim, inclinando a cabeça. — Acho que até mesmo este lugar fica chato depois de algumas cervejas. Assim, creio que voltar para a nossa querida Milburn talvez seja até agradável. É isso mes­mo,  penso que o melhor mesmo é voltar à nossa querida Milburn...

—  Vamos ficar longe dela — murmurou Peter.

Jim ignorou-o.

— A nossa querida amiga sensual deixou o hotel  há duas semanas. E deixou saudade, Pete, como deixou... Sinto saudade daquele rabo sensacional subindo a escada, sinto saudade daqueles olhos brilhando nos corredores, sinto saudade da mala vazia, sinto saudade do corpo espetacular. Mas tenho certeza de que você sabe para onde ela foi.

—  Foi meu pai quem arrumou o empréstimo para a com­pra da casa. — Peter assentiu mais vigorosamente do que precisava, compreendendo que estava ficando novamente em­briagado.

—  Seu velho é um gnomo dos mais prestativos, não é mesmo? — disse Jim, sorrindo jovialmente. — Garçom! — Deu um murro no balcão. — Sirva para o meu amigo e para mim uma dose do seu melhor bourbon.

Visivelmente irritado, o homem serviu as doses da mesma marca que Jim roubara anteriormente.

—  E agora, meu caro Pete, vamos voltar ao que interessa. Nossa amiga, cuja falta é tão sinceramente sentida, sai do nosso excelente hotel e vai para a casa de Robinson. Não é uma coincidência das mais curiosas? Mas creio que nós dois somos as únicas pessoas no mundo que sabem que se trata de uma coincidência. Porque somos as únicas pessoas que sabem que ela estava lá na estação quando o velho Freddy esticou as canelas.

—  Foi o coração dele — murmurou Peter.

—  É isso mesmo. Ela agarra o cara pelo coração. Pelo coração e pelos colhões. Mas não é meio esquisito? Freddy cai nos trilhos... Eu falei cair? Não foi bem isso: flutua. Não se esqueça de que eu vi acontecer. Ele flutua no ar até ficar estendido nos trilhos, como se fosse feito de papel. Depois, ela fica toda assanhada para conseguir a casa dele. Não foi isso mesmo, companheiro? Não acha também que há uma seqüência nisso?

—  Não, não acho. . .

—  Ora, Pete, não foi assim que você conseguiu sua ma­trícula em Cornell. Use suas poderosas células cerebrais, meu caro. — Pôs uma das mãos nas costas de Peter e inclinou-se na direção dele, soltando um tremendo bafo de álcool. — Nossa amiga sensual está querendo alguma coisa naquela casa. Pense um pouquinho nela, sozinha lá. Estou curioso, cara. Você não está também?  Aquele dona tão sensual desfilando pela casa de Freddy... o que ela está procurando? Dinheiro? Jóias? Tóxicos? Quem pode saber? Mas ela está procurando alguma coisa. Deslocando aquele corpinho tão sensual por todos os cômodos, verificando tudo... não acha que deve ser um espe­táculo e tanto?

—  Não posso — balbuciou Peter, sentindo o uísque pesar no estômago como se fosse óleo.

—  Acho que está chegando a hora, meu caro Pete, de entrarmos em ação...

Peter descobriu-se de pé ao lado do carro de Jim, exposto ao frio. Não conseguia lembrar-se por que estava sozinho ali. Bateu com os pés, mexeu a cabeça e chamou:

—  Ei Jim!

Hardie apareceu um momento depois, com um sorriso que lhe exibia os dentes, como um tubarão.

—  Desculpe ter deixado você esperando. Mas é que tive de dizer ao nosso amigo lá dentro o quanto apreciamos sua companhia. Ele não estava querendo acreditar e por isso tive de repetir o recado diversas vezes. Demonstrou o que se pode­ria chamar de falta de interesse. Felizmente, consegui também cuidar devidamente de nossas necessidades líquidas pelo res­tante desta noitada tão agradável. — Jim Hardie abriu parcial­mente o casaco, deixando à mostra o gargalo de uma garrafa.

—  Você ficou doido!

—  Estou doido como uma raposa matreira. — Jim abriu o carro e inclinou-se sobre o banco para destrancar a porta do lado de Peter. — Agora, vamos voltar ao tema de nossa dis­cussão anterior.

—  Você devia ir para a universidade — comentou Peter, enquanto Jim ligava o carro. — Com seu talento para besteiras, não iria demorar a liderar uma das fraternidades...

—  Sempre pensei que eu poderia dar um bom advogado — disse Jim, surpreendentemente. — Tome um trago. — Pas­sou a garrafa para Peter. — O que é um bom advogado, no final das contas, se não um cara que sabe passar a conversa nos outros? Olhe só para o velho Sears James, cara. Acho que nunca vi um cara que desse tanto a impressão de poder enga­belar qualquer um...

Peter recordou-se da última vez que vira Sears James, sentado ao volante de seu carro, o rosto extremamente pálido. Lembrou em seguida do rosto do garoto sentado na sepultura diante da Catedral de São Miguel. E insistiu:

— Vamos ficar longe daquela mulher.

— Era justamente sobre isso que eu estava querendo falar, meu caro Pete. Não chegamos ao ponto em que a miste­riosa dona está vagueando pela casa, à procura de alguma coisa? Pelo que me recordo, cara, convidei-o a imaginar essa cena.

Peter assentiu, já angustiado.

—  E faça o favor de me devolver a garrafa, se não pre­tende fazer nada com ela. Não acha que há alguma coisa na­quela casa? Não está um pouco curioso para descobrir o que pode ser? De qualquer maneira, alguma coisa está acontecendo. E você e eu, companheiro, somos as únicas pessoas que sabem disso. Estou certo até aqui?

—  Pode estar.

—  Mas que merda! — gritou Hardie, provocando um sobressalto em Peter. — O que mais posso estar? Há alguma razão para ela querer tanto aquela casa... isso é a única coisa que faz sentido. Há alguma coisa naquela casa que ela está querendo.

—  Está pensando que ela liquidou Robinson.

—  Nada sei a respeito disso. Não vi coisa alguma, a não ser o velho Freddy parecendo flutuar até ficar estendido sobre os trilhos. Mas uma coisa lhe posso garantir, meu caro: quero dar uma olhada naquela casa.

—  Oh, não! — gemeu Peter.

—  Não há nada para ter medo, Pete. Afinal, ela é apenas uma mulher. Pode ter hábitos estranhos, mas não passa de uma mulher. E não sou estúpido o bastante para entrar na casa quando ela estiver lá dentro. E se é tão cagão para ter medo de entrar junto comigo, pode dar o fora.

Sempre em frente, pela estrada escura, sempre em frente, na direção de Milburn...

—  E como vai poder saber que ela não está na casa? Afinal, você mesmo disse que ela passa a noite inteira sentada no escuro!

Basta tocar a campainha, seu burro!

 

No alto da última elevação, antes do desvio na estrada, Peter, já angustiado de tanta preocupação, contemplou as luzes de Milburn, numa pequena depressão na paisagem, dando a impressão de que se podia recolhê-las todas com a mão. Mil­burn parecia diferente, arbitrária, como uma nômade cidade de tendas; e embora Peter Barnes a tivesse conhecido por toda a sua vida — na verdade, era praticamente o único lugar que ele conhecia — o fato é que parecia agora um lugar estranho.

E no instante seguinte ele compreendeu por quê.

— Ei, Jim, olhe só! Todas as luzes do lado oeste da cidade estão apagadas.

—  A neve deve ter derrubado os fios.

—  Mas não está nevando!

—  Nevou enquanto estávamos no bar.

—  Você viu realmente um garoto sentado no alto da estação naquela noite?

— Não. Apenas pensei ter visto. Deve ter sido neve, uma folha de jornal, algo assim...  Afinal, como um garoto poderia subir até lá? Sabe muito bem que não é possível. Va­mos falar às claras, Pete: as coisas que aconteceram por lá foram meio esquisitas.

 

Na cidade, Don Wanderley estava sentado à sua escriva­ninha, no lado oeste do Hotel Archer, e subitamente viu a escuridão se espalhar pela rua abaixo de sua janela, enquanto o abajur a seu lado continuava aceso;

e Ricky Hawthorne soltou uma exclamação de espanto quando a escuridão se abateu sobre a sala de estar de sua casa. Stella disse que ia buscar velas e que devia ser novamente aquele mesmo lugar em que as linhas de eletricidade caíam pelo menos duas vezes em cada inverno;

e Sears James, trancado em sua biblioteca subitamente às escuras, ouviu o barulho de passos lépidos na escada e disse a si mesmo que estava cochilando;

e Clark Mulligan, que estava apresentando uma progra­mação de duas semanas de filmes de horror e de ficção cientí­fica, estando com a cabeça repleta de imagens lúgubres — “Pode exibir os filmes, cara, mas ninguém o obriga a assistir” —, saiu do Rialto para respirar um pouco de ar fresco, no meio de um rolo, e teve a impressão de avistar, no súbito blackout, um homem que era um lobo correr pela rua, numa missão implacável, numa pressa maligna de chegar a algum lugar (“Ninguém o obriga a ver essas porcarias, cara”).

 

(Arrombamento, parte dois)

 

Jim parou o carro a meio quarteirão da casa.

— Se ao menos as malditas luzes não se tivessem apa­gado...

Ambos ficaram olhando para a fachada escura da casa, com janelas sem cortinas, por detrás das quais nenhum vulto se mexia, nenhuma vela brilhava.

Peter Barnes pensou no que Jim Hardie vira, o corpo de Freddy Robinson flutuando pelo ar como se fosse papel, até ficar estendido sobre os trilhos cobertos de mato da estação abandonada, pensou no garoto-que-não-existia mas que tinha o hábito de se empoleirar no alto de estações ferroviárias e de lápides. E, no instante seguinte, pensou: “Eu estava certo na última vez. O medo deixa a gente sóbrio”. Olhou para Jim e viu que o amigo estava tenso de tanto excitamento.

—  Pensei que tivesse dito que ela jamais acendia as luzes. Assim, não faz a menor diferença.

—  Mesmo assim, cara, eu gostaria que as luzes não se tivessem apagado. Num lugar como este... — Jim gesticulou para as respeitáveis casas de três andares ao redor — ...um verdadeiro paraíso de porcos rotarianos, nossa amiga pode que­rer ficar igual aos vizinhos. Ela pode querer manter as luzes acesas só para ninguém pensar que é diferente dos outros. — Jim fez uma breve pausa, inclinando a cabeça. — Está lembrado da casa da Haven Lane na qual vivia aquele escritor, o tal de Wanderley? Já passou por ali à noite? Todas as casas em volta estão iluminadas e só a casa do velho Wanderley está toda escura, como uma sepultura. A coisa me dá um calafrio.

—  É isto aqui que me dá calafrio — murmurou Peter. — Além do mais, o que está pensando fazer é ilegal.

—  Pombas, cara, você se preocupa demais com as coisas, não é mesmo? — Hardie virou-se no banco para fitar o amigo nos olhos. Peter percebeu o ímpeto mal contido dele de entrar em ação, de investir contra qualquer obstáculo que o mundo tivesse posto em seu caminho. — Acha por acaso que a nossa amiga perde tempo se preocupando com o que é ou não legal? Pensa que ela deu um jeito de se apossar daquela casa porque estava preocupada com a lei... com Walt Hardesty? — Har­die sacudiu a cabeça, com uma repulsa genuína ou apenas fingindo. Peter desconfiava de que Jim estava se preparando para fazer alguma coisa, mesmo achando que era temerária.

Jim virou-se novamente para a frente e ligou o carro. Por um momento, Peter acalentou a esperança de que o amigo fosse dar uma volta pelo quarteirão e depois voltar para o hotel. Mas Jim manteve o carro em primeira e foi avançando lenta­mente pelo quarteirão, até ficarem diretamente na frente da casa.

—  Ou está comigo ou é um panaca, seu panaca.

—  O que vai fazer?

— Em primeiro lugar, vou dar uma olhada por uma das janelas de baixo. Será que tem coragem bastante para fazer pelo menos isso?

—  Não vai conseguir ver nada.

—  Ah, você está demais!

Jim saltou do carro. Peter hesitou apenas por um segundo. Depois, saltou também e seguiu Hardie pelo gramado coberto de neve, contornando a casa. Ambos andavam rapidamente, meio agachados, para não serem vistos pelos vizinhos.

Um momento depois, estavam abaixados sobre a neve, junto a uma janela lateral da casa.

—  Pelo menos tem peito bastante para dar uma olhada pela janela, Pete. Já estava na hora de deixar de ser tão cagão.

—  Pare de me falar assim — sussurrou Peter. — Já estou cheio disso.

—  E escolheu o melhor momento possível para me dizer isso. — Jim sorriu e levantou a cabeça para espiar pela janela. — Ei, dê só uma olhada!

Peter levantou a cabeça lentamente, deparando com uma pequena sala, debilmente iluminada pelo luar. Não havia mó­veis nem tapete na sala.

—  Uma dona das mais esquisitas — comentou Jim, mal contendo o riso. — Vamos dar a volta pelos fundos.

Ele se afastou rapidamente, ainda abaixado. Peter seguiu-o. Chegando aos fundos da casa, encontrou Jim Hardie encostado na parede, entre uma pequena janela e a porta.

—  Acho que ela não está, Pete. Tenho a impressão de que a casa está vazia.

Ali nos fundos, onde ninguém podia vê-los, os dois rapa­zes se sentiam mais seguros. O quintal, nos fundos, terminava num pequeno monte de neve, que era uma sebe soterrada; entre eles e a sebe, havia uma banheira de passarinho, coberta de neve como glacê num bolo. Mesmo ao fraco luar, era uma cena tranquilizadoramente banal. Não se podia ficar com medo ao lado de uma banheira de passarinho, pensou Peter, conseguindo exibir um sorriso.

—  Não está acreditando em mim, Pete?

— Não era nisso que eu estava pensando.

Os dois estavam falando normalmente.

—  Olhe você primeiro.

—  Está certo.

Peter virou-se e audaciosamente postou-se diante da janela pequena. Viu uma pia, o assoalho de madeira, um fogão que a Sra. Robinson devia ter deixado ao se mudar. Um único copo, em cima da pia, refletiu um raio de lua. Se a banheira de pas­sarinho parecia prosaica, aquela cena era de total abandono, um único copo acumulando poeira em cima da pia. Peter imedia­tamente começou a concordar com Jim que a casa estava vazia.

—  Parece que não há nada lá dentro.

Hardie assentiu, ao lado dele. Depois, subiu o pequeno degrau de concreto diante da porta dos fundos.

—  Se ouvir alguma coisa, cara, trate de sair correndo.

E ele apertou a campainha. O barulho ressoou pela casa. Os dois rapazes estavam tensos, prontos para correr, prenden­do a respiração. Mas não ouviram passos, nenhuma voz se manifestou.

—  O que me diz agora? — murmurou Jim, com um sor­riso triunfante. — Eu não estava certo?

—  Estamos fazendo tudo errado, Jim. O que deveríamos fazer é voltar para a frente da casa e agir como se tivéssemos acabado de chegar. Se alguém nos vir, seremos apenas dois caras à procura dela. Se ela não atender ao toque da campainha, faremos o que todo mundo faz: daremos uma olhada pelas ja­nelas da frente. Se alguém nos viu esgueirando-nos em torno da casa, como fizemos, deve ter chamado a polícia.

— Até que você não deixa de ter razão — concordou Jim, depois de pensar por um momento. — Vamos experimentar sua tática. Mas se ninguém atender, voltarei aqui para os fun­dos e entrarei na casa de qualquer maneira. Foi para isso que viemos até aqui, lembra-se?

Peter assentiu; ele se lembrava.

Como se também estivesse aliviado por ter encontrado um pretexto para deixar de se esconder, Jim caminhou com a maior naturalidade até a frente da casa. Com Peter seguindo-o mais devagar, Jim atravessou o gramado coberto de neve e parou diante da porta.

—  Aqui estamos, cara — disse ele.

Peter foi postar-se ao lado dele e pensou: “Não posso entrar aí”. Embora vazia, mas repleta de cômodos desocupados e do clima da pessoa que ali escolhera morar, a casa parecia estar apenas simulando a quietude que aparentava. Jim tocou a campainha.

— Estamos perdendo tempo — murmurou ele, deixando transparecer sua apreensão.

—  Espere um pouco. E procure comportar-se com natu­ralidade.

Jim enfiou as mãos nos bolsos do casaco e ficou remexendo-se diante da porta, impacientemente.

—  Acha que já é tempo suficiente?

—  Só mais um pouco.

Jim exalou uma nuvem de vapor.

—  Está certo,  mais um pouco... mais  alguns  segun­dos. Um... dois... três. E agora?

— Toque  novamente. Como se pensasse que ela está em casa.

Jim apertou a campainha pela segunda vez: o barulho estridente ressoou pelo interior da casa.

Peter olhou para um lado e outro do quarteirão. Não havia carros. Não havia luzes. Numa janela, a quatro casas de distância, podia-se avistar o brilho fraco de uma vela, mas nenhum rosto curioso observava os dois rapazes parados diante da porta da frente da casa da nova vizinha. A casa do velho Dr. Jaffrey, diretamente em frente, no outro lado da rua, tinha um aspecto melancólico, parecia estar de luto.

Parecendo não vir de parte alguma, totalmente inexpli­cável, uma música distante flutuou pelo ar. Era um trombone zumbindo, um saxofone insinuante: música de jazz, tocada ao longe, muito longe.

—  Hein? — Jim Hardie levantou a cabeça, virando-se. — Parece... o quê?

Peter pensou em caminhões abertos, músicos negros to­cando alegremente.

—  Parece carnaval.

— Tem toda a razão. Temos muito disso em Milburn. Especialmente em novembro.

—  Deve ser um disco.

—  Alguém deixou a janela aberta.

—  Só pode ser isso...

E, no entanto, como se a idéia de músicos de carnaval aparecendo subitamente para tocar em Milburn fosse por de­mais assustadora, nenhum dos dois rapazes queria admitir que os sons alegres eram vívidos em demasia para estar saindo de um disco.

—  E agora vamos olhar pela janela — disse Jim. — Fi­nalmente.

Ele desceu os degraus e encaminhou-se para a janela maior. Peter permaneceu no alpendre, esfregando as mãos suavemente, prestando atenção à música que se desvanecia: teve a impres­são de que o caminhão com os músicos estava chegando ao centro da cidade, aproximando-se da praça. Mas que sentido isso fazia? O som desapareceu.

—  Não vai nunca adivinhar o que estou vendo — dis­se Jim..

Aturdido, Peter olhou para o amigo. O rosto de Jim estava deliberadamente impassível.

—  Uma sala vazia.

—  Não de todo.

Ele sabia que Jim jamais iria lhe contar: teria de olhar pessoalmente. Peter foi também até a janela.

A princípio, viu apenas o que estava esperando: uma sala vazia, que nem mesmo tinha um tapete, com uma camada invi­sível de poeira por toda parte. No outro lado, os contornos escuros de uma arcada; no seu lado, o reflexo do próprio rosto, olhando pelo vidro.

Por um segundo de terror, experimentou a sensação de estar encurralado lá dentro, como seu reflexo, de ser forçado a atravessar a arcada escura, caminhando pelo assoalho vazio. O terror não fazia o menor sentido, da mesma forma que a mú­sica; mas, como a música, estava presente.

No instante seguinte, Peter avistou a coisa a que Jim estava se referindo: num dos lados da sala, encostada no ro­dapé, havia uma mala marrom.

—  É dela! — disse Jim, no ouvido dele. — Sabe o que isso significa?

—  Que ela ainda está na casa.

—  Não. Significa que ela ainda não encontrou o que está procurando.

Peter afastou-se da janela e contemplou o rosto vermelho e tenso de Jim.

—  Já chega de conversa, Pete. Vou entrar na casa. Vai comigo... cagão?

Peter nem pôde responder; Jim contornou-o rapidamente e afastou-se, pelo lado da casa. Segundos depois, ele ouviu o barulho de vidro quebrado. Gemeu interiormente. Virou-se e deparou com suas feições reproduzidas na janela, contraídas pelo medo e indecisão.

“Vá-se embora. Não. Tem de ajudá-lo. Vá-se embora. Não, tem...”

Peter contornou o lado da casa tão depressa quanto podia, sem correr.

Jim estava no alto dos degraus na porta dos fundos, en­fiando a mão pelo buraco que acabara de abrir no vidro. À fraca claridade, meio encurvado, ele era a própria imagem de um ladrão arrombador. Peter recordou o que Jim lhe falara: “Se o pior já aconteceu, relaxe e trate de aproveitar”.

—  Ah, é você — sussurrou Jim. — Pensei que, a esta altura, estivesse em casa, escondido debaixo da cama.

—  O que vai acontecer, se ela chegar em casa de re­pente?

—  Nós saímos correndo pelos fundos, seu idiota. Já es­queceu que há duas portas nesta casa? Ou acha que não pode correr tão depressa quanto uma mulher? — O rosto dele ficou impassível por um momento, imerso em concentração; depois houve um estalido. — Vai entrar comigo?

—  Talvez. Mas não vou roubar nada. E você também não vai.

Jim fungou desdenhosamente, abriu a porta e entrou. Pe­ter subiu os degraus e deu uma olhada para dentro. Jim estava atravessando a cozinha, embrenhando-se pelo interior da casa, sem se dar o trabalho de olhar para trás.

“O negócio é relaxar e aproveitar.” Peter passou pela por­ta. À sua frente, Hardie já estava no vestíbulo, abrindo portas e armários.

—  Não faça barulho — sussurrou Peter.

—  Não encha!

Mas os barulhos cessaram imediatamente e Peter com­preendeu que o amigo, quer admitisse ou não, também estava com medo.

—  O que você quer ver? — perguntou Peter, num sus­surro. — E o que estamos procurando, afinal?

—  Como vou saber? Só saberemos quando encontrarmos.

—  Está escuro demais aqui dentro para se ver qualquer coisa. Pode-se ver melhor lá fora.

Jim tirou a caixa de fósforos do bolso do casaco e acen­deu um.

—  Está melhor, assim?

Na verdade, estava pior; antes, eles tinham uma visão di­fusa de todo o vestíbulo, mas agora podiam ver apenas um pe­queno círculo de claridade.

—  Vamos ficar juntos — disse Peter.

—  Poderíamos percorrer a casa mais depressa, se nos separássemos.

—  De jeito nenhum!

Jim deu de ombros.

—  Como quiser.

Ele levou Peter pelo vestíbulo até a sala de estar. A casa parecia ainda mais desolada do que vista de fora. As paredes da sala, pontilhadas aqui e ali por rabiscos de crayon feitos por crianças, exibiam os retângulos brancos onde outrora estavam pendurados quadros. A pintura estava suja, descascando em vários pontos. Jim começou a dar a volta pela sala, batendo nas paredes, acendendo um fósforo depois do outro.

—  Dê uma olhada na mala.

— Ah, sim, a mala...

Jim ajoelhou-se e abriu a mala.

—  Não há nada nela.

Peter ficou olhando por cima do ombro dele, enquanto Jim virava a mala para baixo e depois a colocava novamente no chão. Peter sussurrou:

—  Não vamos encontrar nada.

—  Essa não!  Só olhamos até agora em dois cômodos e você já está querendo desistir!

Jim levantou-se abruptamente. O fósforo apagou. Por um momento, a escuridão total envolveu-os.

—  Acenda outro fósforo — sussurrou Peter.

— É melhor não. Assim, ninguém lá fora poderá avistar uma luz. Seus olhos Já vão acostumar-se à escuridão.

Ficaram parados em silêncio e na escuridão por cinco ou seis segundos, deixando que a imagem da chama desvanecesse de seus olhos, até tornar-se um ponto minúsculo na escuridão; esperaram por mais alguns segundos, enquanto os contornos escuros da casa iam se definindo ao redor deles. Peter ouviu um barulho em algum lugar da casa e teve um sobressalto.

—  Pelo amor de Deus, fique calmo!

—  O que foi isso? — sussurrou Peter, percebendo a his­teria insinuar-se em sua voz.

—  Uma escada que rangeu. Ou a porta dos fundos fe­chando direito. Não foi nada.

Peter tocou na testa com os dedos e sentiu-os tremer de encontro à pele.

— Estivemos falando, batendo nas paredes, quebramos uma janela... não acha que ela já teria aparecido se estivesse em casa?

— Acho que sim.

— Pois agora vamos dar uma olhada no outro andar.

Jim segurou a manga do casaco do amigo e puxou-o para fora dá sala, de volta ao vestíbulo. Foram até a escada. Lá em cima estava escuro, era um território novo, completamente inexplorado. Peter sentiu-se mais apreensivo do que nunca, pa­rado ali, olhando para a escada. Ainda não sentira tanto medo desde que entrara na casa.

—  Você sobe sozinho e ficarei esperando aqui, Jim.

—  Vai querer ficar sozinho na escuridão?

Peter tentou engolir em seco, mas não conseguiu. Sacudiu a cabeça.

—  Faça como achar melhor, Pete. O que quer que seja, só pode estar lá em cima.

Jim pôs o pé no segundo degrau. O tapete da escada tam­bém fora removido. Ele subiu e olhou para trás.

—  Vem ou não?

Continuou  a  subir a escada, de dois  em  dois  degraus. Peter ficou olhando; quando Jim já estava na metade da escada, ele não pôde mais resistir ao impulso de acompanhá-lo.

As luzes se acenderam bruscamente quando Jim já estava no alto da escada e Peter na metade.

—  Olá, rapazes — disse uma voz profunda e tranqüila lá de baixo.

Jim Hardie soltou um grito estridente. Peter cambaleou na escada e, meio paralisado pelo pavor, pensou que fosse escorregar e cair em cima do homem que os observava lá de baixo.

—  Deixe-me conduzi-los à presença de sua anfitriã — disse o homem, com um sorriso impassível.

Era o homem de aspecto mais estranho que Peter já vira, com um gorro azul de tricô sobre os cabelos louros encaraco­lados, como os de Harpo Marx, óculos escuros equilibrados no nariz; vestia um macacão, sem camisa, o rosto estava branco como marfim. Era o mesmo homem que encontrara na praça.

—  Ela vai ficar na maior satisfação em vê-los novamente — disse o homem. — Como os primeiros visitantes que apa­recem, podem estar certos de que terão uma recepção das mais calorosas.

O sorriso do homem se alargou, enquanto ele começava a subir a escada. Depois de galgar uns poucos degraus, ergueu a mão e tirou o gorro de tricô. Os cabelos louros encaracolados saíram junto; era uma peruca.

E quando ele tirou os óculos escuros, os olhos brilhavam num tom amarelo-dourado uniforme.

 

Parado diante da janela do hotel e olhando para a parte às escuras de Milburn, Don ouviu os sons distantes de trom­bones e saxofones se espalhando pelo ar frio e pensou: “O Dr. Rabbitfoot chega à cidade”.

O telefone às suas costas começou a tocar.

 

Sears estava de frente para a porta de sua biblioteca, escutando os passos na escada, quando o telefone tocou. Igno­rando-o, ele foi destrancar a porta e abriu-a. A escada estava vazia.

Ele foi atender ao telefone.

Lewis Benedikt, cuja mansão ficava na periferia da área afetada pela interrupção no fornecimento de energia, não ouviu música nem passos de criança. O que ouvia, trazido pelo vento, ressoando no interior da própria mente ou pairando numa lu­fada de ar que atravessava a sala de jantar e contornava a escada em sua direção, era o som mais angustiante e desesperador que conhecia: a voz lânguida e quase inaudível da esposa morta, chamando-o insistentemente:

— Lewis, Lewis...

Começara a ouvir aquela voz há vários dias, intermitente­mente. Quando o telefone tocou, ele virou-se para atendê-lo com um alívio profundo. E foi também com intenso alívio que ouviu a voz de Ricky Hawthorne dizendo:

— Comecei a ficar nervoso de estar sentado aqui em casa no escuro. Falei com Sears e com o sobrinho de Edward. Sears concordou que podemos reunir-nos em sua casa, mesmo assim imprevistamente. E acho que estamos precisando. Concorda? E vamos quebrar uma regra, indo todos como estamos.

 

Ricky pensou que o homem mais jovem estava começando a se parecer com um verdadeiro membro da Sociedade Chow­der. Por baixo da máscara de sociabilidade, que não se podia deixar de esperar num sobrinho de Edward, percebia-se clara­mente que estava bastante nervoso. Ele se recostou numa das maravilhosas poltronas de couro de Sears, tomando o uísque e olhando (com a mesma expressão divertida do tio) ao redor, contemplando o tão prezado interior da biblioteca (será que também a achava tão antiquada quanto Edward dizia que era?), falando a intervalos; mas dava para notar claramente que havia uma tensão muito grande por baixo do controle aparente.

“Talvez isso o transforme num de nós”, pensou Ricky, com­preendendo que Don era o tipo de homem que inevitavelmente se teria tornado amigo deles, se o tivessem conhecido anos e anos antes; e se tivesse nascido há quarenta anos antes, teria pertencido à Sociedade Chowder, como que por direito de nas­cimento.

Contudo, havia nele algo misterioso, uma reticência qual­quer, inexplicável. Ricky não podia imaginar o que ele estava querendo descobrir quando indagara se algum deles ouvira música no início da noite. Pressionado a respeito, Don se esqui­vara a dar explicações; pressionado mais insistentemente, aca­bara dizendo:

—  É que tive o pressentimento de que tudo o que está acontecendo tem alguma relação com o que estou escrevendo.

Tal comentário, que teria parecido egocêntrico em quais­quer outras circunstâncias, adquiria uma estranha densidade à luz de velas; cada um se remexeu em seu assento, inquieto. E Sears disse:

—  Não foi por isso que o convidamos a vir até aqui?

E Don explicou tudo. Ricky ficou escutando, aturdido, a idéia de Don para um novo livro, a descrição da personali­dade do Dr. Rabbitfoot, a informação de que ele tivera a im­pressão de ouvir a música pouco antes do telefonema.

—  Está querendo dizer que os acontecimentos nesta ci­dade são ocorrências de um livro que ainda não foi escrito? — indagou Sears, incrédulo. — Ora, isso é absurdo demais!

Pensativo, Ricky murmurou:

—  A menos... a menos... não sei direito como me expressar. A menos que as coisas aqui em Milburn tenham se concentrado ultimamente... tenham adquirido um foco que não possuíam antes.

—  Ou seja: está querendo dizer que sou o foco  — comentou Don.

—  Não sei.

—  Tudo isso é bobagem — interveio Sears. — O que aconteceu, na verdade, é que conseguimos ficar ainda mais apavorados. É esse o foco. A imaginação de um escritor nada tem a ver com os acontecimentos.

Lewis estava alheio à conversa, totalmente absorvido em alguma angústia particular. Ricky perguntou-lhe qual a sua opinião, e ele respondeu:

—  Desculpe, mas eu não estava prestando atenção. Pen­sava em outra coisa. Posso servir-me de outro drinque, Sears?

Sears assentiu, com uma expressão taciturna. Lewis estava bebendo duas vezes mais depressa do que o normal, como se seu aparecimento numa reunião metido numa camisa velha e num casaco de tweed lhe desse licença para quebrar outra das antigas regras.

—  E o que esse misterioso foco deveria indicar? — inda­gou Sears, em tom beligerante.

—  Sabe tão bem quanto eu. Em primeiro lugar e acima de tudo, a morte de John.

—  Pura coincidência.

—  As ovelhas de Elmer... e todos os outros animais que morreram.

— Não me diga que está começando a acreditar nos marcianos de Hardesty.

—  Não se lembra mais do que Hardesty nos falou? Que tudo não passava de uma espécie de jogo, de uma diversão a que se entregava alguma criatura misteriosa. O que estou que­rendo dizer é que as apostas foram aumentadas. Freddy Ro­binson. A coitada da Rea Dedham. Há alguns meses, pressenti que nossas histórias estavam evocando alguma coisa... E re­ceio, com profunda angústia, que outras pessoas também este­jam prestes a morrer. Nossas vidas e as vidas de muitas pessoas nesta cidade podem estar em perigo.

— Ainda não conseguiu anular o que eu disse — de­clarou Sears. — E fica cada vez mais evidente que está conse­guindo apavorar a si mesmo além de qualquer limite.

—  Todos estamos assustados — ressaltou Ricky. O frio intenso deixava sua voz rouca e a garganta ardendo. Mas for­çou-se a continuar: — Eu diria mesmo que estamos todos apa­vorados. Mas acho que a chegada de Don foi como ajustar uma última peça num quebra-cabeça. Quando ele se juntou a nós, foram aumentadas as forças misteriosas ou como quer que prefiram chamar as coisas que invocamos. E o fizemos com nossas histórias, enquanto Don o fazia através de seu livro e de sua imaginação. Vemos coisas, mas não acreditamos nelas. Sentimos coisas, como pessoas a nos observar, criaturas sinis­tras a nos seguir, mas preferimos ignorá-las como fantasias. Sonhamos com horrores, mas fazemos um  tremendo esforço para esquecê-los.  E  enquanto agimos  assim, três pessoas já morreram.

Lewis estava olhando para o tapete. Nervosamente, afas­tou um cinzeiro que estava na mesa a seu lado e disse:

—  Acabo de lembrar uma coisa que falei a Freddy Ro­binson na noite em que ele me abordou diante da casa de John. Disse que alguém nos estava liquidando como moscas.

—  Mas por que esse jovem, a quem nenhum de nós co­nhecia até bem pouco tempo, haveria de ser o último elemento? — indagou Sears.

—  Porque ele era o sobrinho de Edward? — sugeriu -Ricky. A idéia surgiu-lhe do nada como uma súbita inspiração. No momento seguinte, sentiu um espasmo de alívio por saber que os filhos não viriam passar o Natal em Milburn. — É isso mesmo. Porque ele é o sobrinho de Edward.

Todos os três homens mais velhos podiam sentir, quase fisicamente, a ameaça ao redor deles do que Ricky chamara de “as forças”. Eram três homens assustados, sentados à luz de velas semiderretidas, contemplando o passado.

—  É possível — disse Lewis, finalmente, esvaziando o resto do uísque que tinha no copo. — Mas não consigo entender o que houve com Freddy Robinson. Ele queria encon­trar-se comigo, chegou a telefonar-me duas vezes. Simplesmente o repeli. Fiz a promessa vaga de que poderíamos conversar algum dia num bar.

—  Acha que ele tinha alguma coisa para lhe contar antes de morrer? — perguntou Sears.

—  Se tinha, não lhe dei a menor chance de contar. Pen­sei que estava querendo vender-me um seguro.

—  Mas por que pensou assim? — indagou Sears.

—  Porque ele disse que eu ia ter problemas.

Ficaram novamente em silêncio por algum tempo, até que Lewis voltou a falar:

—  Se o tivesse encontrado, talvez ele ainda estivesse vivo.

—  Está falando como John Jaffrey, Lewis — disse Ricky. — Ele se culpava pela morte de Edward.

Os três homens olharam para Don Wanderley, que disse:

—  Talvez eu não esteja aqui só por causa de meu tio. Quero comprar meu ingresso na Sociedade Chowder.

—  Como? — explodiu Sears. — Comprar?

—  Com uma história. Não é essa a taxa de ingresso? — Ele sorriu, timidamente. — Está tudo bem nítido em minha mente, porque acabei de passar algum tempo escrevendo a his­tória num diário. — Don fez uma pausa antes de acrescentar, quebrando outra das regras do grupo: — E não se trata de ficção. Aconteceu exatamente da maneira como vou relatar. E não se pode aproveitar como ficção porque não teve um final verdadeiro. Simplesmente ficou para trás, enquanto outras coi­sas aconteciam. E se o Sr. Hawthorne (“Ricky”, o advogado, respirou fundo) está certo, então foram cinco pessoas que mor­reram e não quatro. E meu irmão foi o primeiro.

—  Sei que ambos foram noivos da mesma moça — co­mentou Ricky, recordando uma das últimas coisas que Edward lhe contara.

—  Exatamente. Ambos fomos noivos de Alma Mobley, uma jovem que conheci em Berkeley.

Os quatro se acomodaram melhor, e Don começou, tiran­do, ao estilo do Dr. Rabbitfoot, o dólar de seus jeans:

—  Creio que foi uma história de fantasma...

 

Don prendeu a atenção dos três homens mais velhos por um longo tempo, falando à luz das velas, como se fosse um lugar turbulento em sua mente. Não relatou minuciosamente, como fizera em seu diário, evocando todos os detalhes, mas contou praticamente tudo. Levou quase meia hora para chegar ao fim, concluindo:

—  Assim, o registro do Who’s Who provou que tudo o que ela dissera era falso. David estava morto e nunca mais tor­nei a vê-la. Ela simplesmente desapareceu. — Enxugou o rosto e expirou ruidosamente. — É ou não uma história de fan­tasma? Gostaria que me dissessem o que pensam a respeito.

Ninguém falou por um momento. “Diga a ele, Sears”, suplicou Ricky, silenciosamente. Olhou para seu velho amigo, que unira as pontas dos dedos, diante do rosto. “Diga tudo, Sears. Conte a ele.”

Os olhos de Sears se encontraram com os de Ricky. “Ele sabe o que estou pensando.”

—  Acho que é, tanto quanto qualquer uma das nossas histórias — disse Sears, enquanto Ricky fechava os olhos. — Baseou seu livro nesses acontecimentos?

—  Exatamente.

—  É uma história melhor que a do livro.

—  Só que não tem um final.

— Ainda não... talvez. — Sears olhou de rosto franzido para as velas, que haviam queimado até quase os pequenos castiçais de prata. “Agora”, suplicou Ricky, os olhos ainda fe­chados. — Esse jovem que você achou parecido com um lobi­somem chamava-se... Greg? Greg Benton?

Ricky tornou a abrir os olhos; se alguém o estivesse olhando naquele momento, veria a gratidão estampada em todas as suas feições. Don assentiu, obviamente não compreendendo por que isso era importante.

—  Eu o conheci sob um nome diferente — acrescentou Sears. — Há muito tempo, ele se chamava Gregory Bate. E o irmão meio demente era Fenny. — Ele sorriu, com a amargura, de um homem compelido a comer uma refeição que detesta. — Isso foi muito antes do seu... Benton... decidir exibir-se de cabeça raspada.

—  Se ele pode fazer duas aparições, então pode também fazer três — comentou Ricky. — Eu o vi na praça há menos de duas semanas.

As luzes se acenderam subitamente, intensamente claras, depois de tanto tempo de velas. Os quatro homens sentados na biblioteca de Sears, cuja distinção e aparente serenidade ha­viam sido preservadas até então pela luz das velas, tiveram subi­tamente exposto o seu aspecto lamentável, à luz mais forte e implacável. “Já parecemos meio mortos”, pensou Ricky.- Era como se as velas os tivessem atraído para um círculo mais aco­lhedor, formado pela luz fraca, o grupo e uma história; agora, eram bruscamente separados, lançados a um descampado ermo onde o vento soprava, uivando lugubremente.

— Parece que ele o ouviu — murmurou Lewis, meio embriagado. — Talvez tenha sido isso o que Freddy Robinson viu. Talvez ele tenha visto Gregory se transformando num lo­bisomem...

 

(Arrombamento, parte três)

 

Peter subiu o resto da escada para postar-se ao lado de Jim, no patamar, sem ter a menor consciência ou vontade de se mexer. O lobisomem continuou a subir, lenta e inexoravel­mente, sem a menor pressa.

—  Queriam conhecê-la, não é mesmo? — O sorriso dele era cruel. — Ela ficará muito satisfeita. E prometo que terão uma recepção e tanto.

Peter olhou ao redor, desesperado; avistou urna luz fos­forescente saindo por baixo de uma porta.

—  Ela talvez ainda não esteja em condições de recebê-los. Mas não acham que isso torna tudo ainda mais interessante? Todos gostamos de ver os nossos amigos sem suas máscaras.

“Ele está falando para nos manter imobilizados”, pensou Peter. “É como hipnotismo.”

—  Não são vocês os dois rapazes interessados em explo­rações científicas? Em. lunetas? É um prazer imenso conhecer dois jovens que possuem as mentes inquisitivas, que estão que­rendo ampliar seus conhecimentos. Há tantos jovens hoje em dia que se limitam a passar pela vida, que temem assumir qual­quer risco. . . Mas jamais se poderá dizer tal coisa a respeito de vocês, não é mesmo?

Peter olhou para o rosto de Jim Hardie; o amigo estava com a boca entreaberta.

—  Claro que não! São dois rapazes extremamente cora­josos. Estarei com vocês dentro de um momento e quero que relaxem e esperem por mim... relaxem e esperem...

Peter bateu com as costas da mão nas costas de Jim, mas ele não se mexeu. Olhou para o vulto terrível que se aproxi­mava lentamente e cometeu o erro de fitar diretamente os es­tranhos olhos dourados. Imediatamente, ouviu uma voz que parecia música, saindo não do homem, mas soando diretamente em sua cabeça: “Relaxe, Peter,  relaxe, você já vai conhe­cê-la...”

—  Jim! — gritou ele.

Hardie teve um estremecimento convulsivo e Peter com­preendeu que o amigo já estava perdido.

“Fique calmo, rapaz, não há necessidade de fazer tanto barulho...”

O homem de olhos dourados estava perto dele, esten­dendo a mão esquerda. Peter recuou bruscamente, apavorado demais para ter qualquer pensamento coerente.

A mão branca do homem foi deslizando cada vez mais para perto da mão esquerda de Jim.

Peter virou as costas e subiu pela metade o lance de esca­da seguinte. Quando olhou para trás, verificou que a luz que saía por baixo da porta no patamar possuía agora tal inten­sidade que as paredes pareciam esverdeadas; iluminado por aquela luz, Jim também estava verde.

—  Basta pegar minha mão — disse o homem.

Ele estava dois degraus abaixo de Jim, suas mãos quase se tocando. Jim roçou os dedos na palma da mão do homem. Peter olhou para o alto da escada, mas não podia abando­nar Jim.

O homem estava rindo. Peter sentiu o coração congelar e olhou novamente para baixo. O homem estava segurando o pulso de Jim com a mão esquerda. Os olhos de lobo estavam arregalados, brilhando intensamente.

Jim soltou um grito.

O homem que o segurava deslocou as mãos para a sua garganta e torceu o corpo com uma força tremenda, batendo com a cabeça de Jim na parede. Ele pisou no patamar e outra vez bateu com a cabeça do rapaz na parede, violentamente.

“Sua vez.”

Jim caiu e o homem chutou-o para o lado, como se fosse um mero saco de papel, sem qualquer peso. Na parede, havia uma mancha de sangue, como marcas de dedos deixadas por uma criança.

 

Peter saiu correndo por um corredor com portas dos dois lados; abriu uma ao acaso e entrou.

Estacou abruptamente, um passo além da porta. Os con­tornos da cabeça de um homem estavam recortados contra uma janela.

— Seja bem-vindo — disse a voz do homem, sem qual­quer inflexão. — Já a encontrou? — Ele levantou-se da cama. — Ainda não? Depois que a conhecer, nunca mais a esquecerá. É uma mulher realmente extraordinária.

O homem, ainda contornos indistintos contra a janela, começou a se aproximar de Peter, que permanecia paralisado, um passo além da porta. Quando o homem chegou mais perto, ele percebeu que era Freddy Robinson.

—  Seja bem-vindo — repetiu Robinson.

“Vou encontrá-lo.”

Passos no corredor se detiveram diante da porta do quar­to. “Tempo. Tempo. Tempo. Tempo.”

—  Sabe, não me lembro exatamente...

Em pânico, Peter correu para cima de Robinson, com os braços estendidos, tencionando empurrá-lo para o lado; no mo­mento em que os dedos tocaram na camisa dele, Robinson se dissolveu num padrão informe de pontos de luz brilhando intensamente. Peter sentiu os dedos formigar. A imagem desapa­receu instantaneamente e Peter correu pelo ar onde antes Ro­binson estivera.

—  Saia, Peter — disse a voz do lado de fora da porta. — Todos estamos querendo que saia.

Outra voz, na mente de Peter, repetiu “Tempo”.

Parado diante da cama, Peter ouviu a maçaneta girando. Subiu na cama e empurrou a janela com as mãos. A janela se abriu facilmente, como se estivesse cheia de graxa. O ar frio o envolveu. Peter sentiu a outra mente abordá-lo, dizendo que fosse até a porta, que não bancasse o tolo, não queria ver como estava tudo bem com Jim?

“Jim!”

Peter saiu pela janela no momento em que a porta se abriu. Algo correu em sua direção, mas ele já estava no telhado além da janela, pulando para o nível inferior, de. onde passou para o telhado da garagem e pulando dali para um monte de neve.

Ao passar correndo pelo carro de Jim, Peter olhou para a casa. Parecia tão solidamente comum quanto a princípio; so­mente as luzes no alto da escada e no vestíbulo estavam acesas, projetando um convidativo retângulo amarelo na calçada. Aqui­lo também parecia falar com Peter Barnes, murmurando-lhe: “Imagine a paz de estar deitado com as mãos cruzadas sobre o peito, imagine dormir sob o gelo...”

Peter continuou correndo, até chegar a casa.

 

—  Você já está embriagado, Lewis — disse Sears, rispi­damente. — Não banque o idiota além do necessário.

—  É muito curioso, Sears, mas não é difícil a gente ban­car o idiota quando se fala sobre essas coisas — respondeu Lewis.

—  É possível que tenha razão. Mas, pelo amor de Deus, pare de beber.

— Sabe, Sears, estou com o pressentimento de que nos­sos pequenos  formalismos não vão  mais servir para coisa alguma.

Ricky perguntou-lhe:

—  Quer acabar com as reuniões?

—  Afinal, que diabo nós somos? Os três mosqueteiros?

—  De certa forma, é o que somos. Só nós três restamos. E Don também, é claro.

—  Ah, Ricky, Ricky...  — Lewis sorriu. — Uma das coisas mais maravilhosas em você é o fato de ser tão leal.

—  Somente com as coisas que merecem a minha leal­dade — respondeu Ricky, espirrando ruidosamente, duas vezes. — Desculpem, mas eu nem deveria ter saído de casa. Quer realmente desistir das nossas reuniões, Lewis?

Lewis empurrou o copo para o meio da mesa e afundou na poltrona.

—  Não sei direito. Acho que não. Eu jamais conseguiria um dos excepcionais charutos de Sears, se não nos encontrásse­mos duas vezes por mês. E agora que temos um novo mem­bro... — No momento em que Sears já se preparava para explodir outra vez, Lewis levantou a cabeça e fitou-os, voltando a parecer tão bonito quanto em qualquer outra época de sua vida. — E talvez eu esteja com medo de não nos encontrarmos. Talvez acredite em tudo o que você disse, Ricky. Tive algumas experiências estranhas desde outubro... desde a noite em que Sears falou de Gregory Bate.

—  Eu também tive — murmurou Sears.

—  E eu também — acrescentou Ricky. — Não era jus­tamente isso o que estávamos dizendo?

—  É por isso que acho que nos devemos unir — dis­se Lewis. — Sei que vocês dois estão intelectualmente acima de mim e é possível que esse garoto esteja também. Mas acho que estamos  no  tipo  de  situação  em  que  devemos  decidir, acima de tudo, se vamos enfrentar as coisas juntos ou sepa­rados. Há ocasiões, lá na minha propriedade, em que fico realmente apavorado, como se houvesse alguma coisa à espreita, contando os segundos para me agarrar. Assim como agarrou e liquidou John.

—  Será  que  acreditamos  em  lobisomens?   —  indagou Ricky.

—  Não — respondeu Sears.

Lewis sacudiu a cabeça.

—  Também não acredito — disse Don. — Mas há algu­ma coisa... — Ele fez uma pausa, pensando, contemplou os três homens mais velhos, que o fitavam atentamente, expec­tantes. — Ainda não cheguei a desenvolver a coisa. Por en­quanto, é apenas uma idéia. Vou pensar mais um pouco a respeito, antes de tentar explicar.

—  Já faz algum tempo que as luzes voltaram a se acen­der — comentou Sears, incisivamente. — E tivemos uma boa história. Talvez tenhamos feito algum progresso, embora eu con­fesse que não perceba onde. Se os irmãos Bate estão em Milburn, gostaria de pressupor que eles farão o que sugere o inefável Hardesty, indo embora assim que se cansarem de nós.

Don leu a expressão nos olhos de Ricky e assentiu.

—  Espere um pouco — disse Ricky. — Desculpe, Sears, mas pedi a Don que fosse ver Nettie Dedham no hospital.

—  É mesmo? — murmurou Sears, já assumindo a sua expressão de entediado.

— Encontrei o xerife e o Sr. Rowles no hospital — disse Don. — Todos tivemos a mesma idéia.

—  Ou seja, descobrir se ela estava em condições de falar alguma coisa — explicou Ricky.

—  Ela não pôde esclarecer nada, nem mesmo é capaz de falar. — Don olhou para Ricky. — Deveria ter ligado para o hospital.

—  E liguei — respondeu Ricky.

—  Quando o xerife perguntou se ela tinha visto alguém no dia em que a irmã morreu, Nettie Dedham tentou pronun­ciar um nome. Era óbvio que estava se esforçando para isso.

—  E qual era o nome? — indagou Sears.

— O que ela conseguiu balbuciar foi um amontoado ininteligível de consoantes. Algo assim como Glnger. Isso mes­mo, Glnger. Ela o disse duas ou três vezes. Hardesty acabou desistindo, pois não conseguia encontrar nenhum sentido.

—  Acho que ninguém poderia — comentou Lewis, olhan­do para Sears.

—  No estacionamento do hospital, o Sr. Rowles chamou-me para uma conversa em seu carro e declarou que tinha a impressão de que Nettie Dedham estava tentando dizer o nome do irmão. Stringer? Não era assim que ele se chamava?

—  Stringer?  — repetiu Ricky, cobrindo os olhos  com a mão.

—  Acho que me está faltando alguma informação — co­mentou Don. — Será que alguém pode explicar-me por que isso parece tão importante?

—  Eu sabia que ia acabar acontecendo mais cedo ou mais tarde! — exclamou Lewis. — Eu sabia!

—  Trate de se controlar, Lewis — ordenou Sears. — Don, teremos primeiro de discutir o assunto entre nós. Mas acho que lhe devemos uma história equivalente à que nos contou. Não vai ouvi-la esta noite. Mas depois de termos uma conversa em particular, creio que irá tomar conhecimento da maior história da Sociedade Chowder.

—  Gostaria de pedir-lhes um favor — disse Don. — Se decidirem contar-me a história, poderemos encontrar-nos para isso na casa de meu tio?

Ele viu a relutância se estampar nos rostos dos três ho­mens, que subitamente pareciam bem mais velhos; até mesmo Lewis parecia frágil, extremamente frágil.

—  Talvez não seja má idéia — disse Ricky Hawthorne, finalmente. — Foi na casa do seu tio que tudo começou para nós. — Conseguiu sorrir para Don e acrescentou: — É isso mesmo, acho que vai ouvir a  maior história  da  Sociedade Chowder...

—  E que Deus nos proteja até lá — balbuciou Lewis.

—  E nos proteja depois — acrescentou Sears.

 

Peter Barnes entrou no quarto dos pais e sentou-se na cama, observando a mãe escovar os cabelos. Ela estava no seu ânimo distante e distraído; há meses que se vinha alternando entre uma frieza glacial, preparando as refeições de qualquer maneira e fazendo longas caminhadas sozinha, e um maternalismo intrometido. Quando estava com esse ânimo, a mãe lhe dava blusões novos, mimava-o ao jantar e o importunava por causa dos deveres de casa. Nos períodos maternais, Peter podia freqüentemente sentir que a mãe estava à beira das lágrimas; o peso das lágrimas não derramadas pairava na voz dela e exa­gerava-lhe os gestos.

—  O que há para jantar hoje, mamãe?

Ela inclinou a cabeça e olhou para o reflexo do filho no espelho por um segundo.

—  Salsicha e chucrute.

—  Ah...

Peter até que gostava de salsicha, mas sabia que o pai de­testava.

—  Era isso o que queria mesmo perguntar, Peter? — Ela não olhava para Peter desta vez, mantendo os olhos no reflexo de sua mão a puxar a escova pelos cabelos.

Peter sempre soubera que a mãe era uma mulher excepcio­nalmente atraente, talvez não uma beldade famosa como Stella Hawthorne, mas mesmo assim algo mais do que apenas bonita. Ela possuía um encanto alto e louro, uma aparência descon­traída, como um barco à vela que se vê deslizando por uma baía, empurrado pela brisa. Peter sabia que os homens a dese­javam, embora preferisse não pensar a respeito; na noite da festa oferecida à atriz, vira Lewis Benedikt acariciar os joelhos da mãe. Até aquele momento, imaginara cegamente (conforme agora pensava) que a vida adulta e o casamento implicavam uma libertação das confusões ardentes da juventude. Mas a mãe e Lewis Benedikt haviam se comportado como Jim Hardie e Penny Draeger. Além disso, pareciam um casal mais natural do que a mãe e o pai. E não muito depois da festa, Peter sentira que o casamento dos pais começava a desmoronar.

—  Era, sim, mamãe. Gosto de contemplá-la quando está escovando os cabelos.

Christina Barnes ficou imóvel por um momento, a mão levantada no alto da cabeça; depois baixou-a, numa escovadela rápida e suave. Encontrou novamente os olhos do filho, des­viou os seus rapidamente, quase como se se sentisse culpada.

—  Quem virá à sua festa amanhã à noite, mamãe?

—  As mesmas pessoas de sempre. Os amigos de seu pai. Ed e Sonny Venuti. Ricky Hawthorne e a esposa. Sears James.

—  O Sr. Benedikt virá também?

Desta vez, Christina procurou os olhos do filho delibe­radamente.

—  Não sei. É possível.  Por que pergunta?  Não gosta de Lewis?

—  Às vezes, acho que sim. Mas não o vejo com muita freqüência.

—  Ninguém o vê com muita freqüência, querido — disse ela, reanimando-se um pouco. — Lewis é um recluso, a não ser para as mulheres de vinte e cinco anos.

—  Ele não foi casado?

Christina fitou outra vez o filho, desta vez mais aten­tamente.

—  Aonde está querendo chegar com toda essa conversa, Peter? Estou apenas tentando escovar meus cabelos.

—  Desculpe.

Peter alisou a colcha da cama, nervosamente.

—  E então?

—  Acho que eu estava imaginando se você era feliz.

Christina pôs a escova na penteadeira, o cabo de marfim batendo ruidosamente na madeira.

—  Feliz? Mas claro que sou feliz, meu querido! Agora, desça e diga a seu pai para se aprontar para o jantar.

Peter saiu do quarto é desceu, seguindo para a saleta lateral onde o pai certamente estava assistindo à televisão. Era outro sinal de que as coisas estavam indo mal. Peter não podia lembrar-se do pai vendo televisão à noite em qualquer outra época anterior. Mas, nos últimos meses, ele invariavelmente levava sua pasta para a sala da televisão, dizendo que precisava trabalhar um pouco. Minutos depois, saía pela porta fechada o tema musical de Starsky e Hutch ou As Panteras.

Peter deu uma espiada na sala e viu a poltrona diante da tela acesa, amendoins salgados numa tigela sobre a mesa, um maço de cigarros e o isqueiro ao lado. Mas o pai não estava ali. A pasta dele, ainda fechada, estava no chão, encostada na poltrona.

Peter deixou a sala, com suas imagens de conforto soli­tário, seguindo pelo corredor para a cozinha. Ao entrar, de­parou com o pai, de terno marrom, largando duas azeitonas num martini.

—  Olá, Peter, meu caro escoteiro! — disse Walter Barnes.

—  Oi, papai! Mamãe mandou dizer que já vai servir o jantar.

—  Fico imaginando o que isso representará. Uma hora... uma hora e meia? Sabe por acaso o que vai ser?

—  Vai ser salsicha.

—  Essa não! Acho que vou precisar mesmo tomar alguns como este. O que me diz, Pete? — Levantou o copo, sorriu para o filho e tomou um gole.

—  Pai...

—  O que é?

Peter deu um passo para o lado, enfiou as mãos nos bol­sos, subitamente confuso, sem saber direito o que dizer.

—  Está aguardando com ansiedade sua festa?

—  Claro! Vai ver como será uma grande festa,  Pete. Tudo vai dar certo.

Walter Barnes começou a sair da cozinha, para voltar à sala da televisão. Mas algum instinto o levou a olhar para o filho, que estava balançando de um lado para outro, as mãos ainda nos bolsos, o rosto contraído pela emoção.

—  Ei, Pete, como estão as coisas? Algum problema na escola?

—  Não — respondeu Peter, continuando a balançar de um lado para outro, com uma expressão desconsolada.

—  Venha comigo.

Saíram da cozinha, Peter atrás do pai. Na porta da sala da televisão, o pai disse:

—  Soube que seu amigo Jim Hardie ainda não voltou.

—  Não.

Peter começou a suar frio. O pai pôs o martini num des­canso e acomodou-se na poltrona. Ambos olharam para a tela. O programa que estava sendo exibido era The Brady Bunch. A maioria das crianças Brady e o pai estavam rastejando em torno dos móveis da sala de estar — muito parecida com a própria sala dos Barnes — procurando por um animal de esti­mação perdido, uma tartaruga ou um gatinho (ou talvez, já que aquelas crianças Brady eram terríveis, um ratinho).

—  A mãe dele está extremamente preocupada — disse Walter Barnes, enfiando um punhado de amendoins na boca. Depois que desceram por sua garganta, ele acrescentou:  — Eleanor é uma ótima mulher, mas jamais compreendeu aquele menino.  Tem   alguma  idéia  do  lugar  para   onde  ele  possa ter ido?

—  Não — disse Peter, olhando para a caçada do ratinho como se estivesse à procura de pistas para o comportamento da vida familiar.

—  Ele simplesmente pegou o carro e sumiu.

Peter assentiu. No dia seguinte à sua fuga da casa, ele se encaminhara para a Montgomery Street na ida para a escola e vira, a meio quarteirão de distância, que o carro desapa­recera.

—  Tenho a impressão de que Rollie Draeger ficou um pouco aliviado — comentou Walter Barnes. — Provavelmente foi por pura sorte que a filha dele não engravidou.

—  Hum, hum...

—  Não tem a menor idéia do lugar para onde Jim foi?

O pai fitava-o atentamente. Peter arriscou um rápido olhar, ao responder:

—  Não.

—  Ele não disse nada a você?

—  Não — respondeu Peter, infeliz.

—  Deve estar sentindo a falta dele. Talvez esteja até um pouco preocupado. Não está?

—  Estou, sim.

Peter sentiu que estava à beira das lágrimas, como achava que de vez em quando acontecia com a mãe.

—  Pois não precisa ficar. Um garoto como ele sempre vai causar mais encrencas para os outros do que para si pró­prio. E posso dizer-lhe uma coisa: sei onde ele está.  

Peter virou a cabeça bruscamente, olhando para o pai, que acrescentou:

—  Jim está em Nova York. Deve ter fugido de Milburn, por um motivo ou outro. E fico imaginando se a fuga dele não estaria relacionada com o que aconteceu a Rea Dedham. Não acha muito estranho que ele tenha fugido dessa maneira, sem avisar nada a ninguém?

—  Ele não fugiu, papai. Não podia ter feito uma coisa dessas.

—  Apesar de tudo, não acha que está muito melhor na companhia de dois velhos como nós do que com ele? — Como Peter não concordasse como ele esperava, Walter Barnes esten­deu a mão e tocou no braço do filho. — Há uma coisa neste mundo que precisa aprender, Pete. Os criadores de encren­cas podem parecer extremamente simpáticos, mas a melhor coisa que se tem a fazer é ficar longe deles. Fique junto de pessoas como nossos amigos, como as que irá encontrar em nossa festa, e pode estar certo de que se encontrará no ca­minho. O mundo já é bastante difícil para se enfrentar, sem que haja necessidade de alguém procurar encrencas desneces­sárias. — Largou o braço de Peter. — Ei, por que não puxa uma cadeira e fica assistindo à televisão comigo? Vamos pas­sar algum tempo juntos.

Peter se sentou e fingiu estar assistindo à televisão. De tempos a tempos, ouvia o rangido do removedor de neve, pas­sando diante da casa e continuando na direção da praça.

 

No dia seguinte, as duas atmosferas — a interna e a exter­na — haviam mudado bastante. A mãe de Peter não estava com nenhum dos seus dois ânimos característicos recentes, mas deslocava-se pela casa na maior felicidade, passando o aspira­dor, tirando o pó, falando ao telefone, escutando o rádio. Em seu quarto, Peter ouvia música, entremeada com notícias sobre a nevasca. As condições de tráfego eram tão precárias que as aulas haviam sido suspensas. O pai tivera de ir a pé para o banco. Da janela do quarto, Peter o vira partindo, de chapéu, sobretudo, botas de borracha, parecendo pequeno demais. Qua­se como um russo. Diversos outros russos, seus vizinhos, ha­viam se juntado a ele, quando chegou ao final do quarteirão. As notícias sobre a nevasca repetiam um tema monótono: “Po­dem aprontar seus carros, garotos: a neve atingiu vinte centí­metros ontem à noite e prevê-se mais para o fim de semana... acidente na Rodovia 17 paralisou o tráfego entre Damascus e Windsor... acidente na Rodovia 79 paralisou o tráfego entre Oughoga e Center Village... caminhão virado na Rodovia 11, seis quilômetros ao norte de Castle Greek... Omar Norris pas­sou pouco antes do meio-dia no removedor de neve, enterrando dois carros encostados no meio-fio. Depois do almoço, a mãe fez-lhe uma sobremesa de claras batidas. Era um dia comprido, uma mortalha cinzenta interminável cobrindo tudo.

Outra vez sozinho em seu quarto, Peter procurou o nome Robinson, F. no catálogo e discou, o coração batendo forte, ameaçando sair pela boca. Depois de dois toques, alguém tirou o fone do gancho, repondo-o imediatamente.

O rádio trouxe notícias de desastres. Um homem de cin­qüenta e dois anos morreu em Lester de um ataque cardíaco, quando estava tirando a neve da entrada de sua casa; duas crianças morreram quando o carro da mãe bateu na pilastra de uma ponte, em Hillcrest. Um velho em Stambord morreu de frio, pois não tinha dinheiro para pagar a calefação.

Às seis horas da tarde, o removedor de neve passou no­vamente diante da casa, ruidosamente. A esta altura, Peter estava na sala da televisão, esperando pelo noticiário. A mãe apareceu na porta, interrompendo por um momento os prepa­rativos da festa.

—  Não se esqueça de mudar de roupa para jantar, Pete. Por que  não  faz  uma  concessão  e  concorda  em  pôr  uma gravata?

—  Será que vai aparecer alguém com este tempo?

Peter apontou para a tela, onde desfilavam imagens da neve caindo, tráfego bloqueado. Homens carregavam numa maca o corpo do homem que morrera congelado, Elmore Vesey, de setenta e seis anos, aparecendo ao fundo o seu barraco co­berto de neve.

—  Claro que todos virão. Afinal, moram perto.

Inexplicavelmente feliz, a mãe se afastou. O pai chegou em casa meia hora depois, o rosto pálido, parou na porta da sala da televisão e disse:

—  Oi, Peter. Tudo bem?

E subiu rapidamente para tomar um banho quente de ba­nheira. Às sete horas, o pai foi juntar-se a Peter na sala da televisão, martini numa das mãos, a tigela de castanhas na outra.

—  Sua mãe disse que gostaria de vê-lo de gravata. Já que ela está com tão boa disposição, por que não atendê-la esta vez?

—  Está certo.

—  Ainda não houve qualquer notícia de Jim Hardie?

—  Não.

—  Eleanor deve estar doente de preocupação.

—  Tem razão.

Peter subiu para seu quarto e deitou-se na cama. Compa­recer a uma festa, responder a todas as perguntas familiares (“Vai mesmo para Cornell?”), circular com uma bandeja e copos com drinques... era a coisa que sentia menos vontade de fazer. Gostaria de ficar enroscado debaixo de um cobertor pelo máximo de tempo que lhe permitissem. Depois, nada po­deria acontecer-lhe. A neve iria amontoar-se em torno da casa, os termostatos ficariam loucos, ele mergulharia num profundo sono...

A campainha tocou às sete e meia e Peter levantou-se. Ouviu o pai abrir a porta, vozes, drinques oferecidos. As pes­soas que haviam chegado eram os Hawthorne e outros ho­mens, cuja voz ele não reconheceu. Peter tirou a camisa e vestiu outra limpa. Ajeitou uma gravata por baixo da gola, deu o nó, penteou os cabelos com os dedos e saiu do quarto.

Ao chegar ao patamar, de onde podia ver a porta da frente, avistou o pai pendurando casacos no armário do vestí­bulo. O estranho era um homem alto, de cerca de trinta anos, louro, expressão cordial, de casaco de tweed e camisa azul, sem gravata. “Não é um advogado”, pensou Peter.

—  Um escritor! — disse a mãe naquele momento, a voz um pouco acima do normal. — Mas que interessante!

Peter estremeceu.

—  Lá está o nosso rapaz, Pete — disse o pai.

Os três convidados fitaram-no, os Hawthorne sorrindo, o estranho apenas com um olhar de interesse avaliador. Aper­taram-se as mãos. Mais uma vez, ao apertar a mão de Stella Hawthorne, Peter se perguntou como uma mulher tão velha conseguia manter uma aparência tão excepcional, como se via no cinema.

—  Prazer em vê-lo, Peter — disse Ricky Hawthorne, com um aperto de mão firme e rápido. — Está parecendo um pouco abatido.

—  Estou bem — murmurou Peter.

—  Este é Don Wanderley — disse a mãe. — É escritor e sobrinho do Sr. Wanderley. — O aperto de mão do escritor foi firme e cordial. — Ah, precisamos muito conversar sobre seus livros. Peter, pode fazer o favor de ir à cozinha e apa­nhar o gelo?

—  Parece um pouco com seu tio — comentou Peter.

—  Obrigado.

—  O gelo, Pete!

Stella Hawthorne comentou:

—  Numa noite como esta, fico pensando que o melhor é tomar drinques fumegantes.

A mãe interrompeu a risada de Peter:

—  O gelo, Pete, por favor! — e depois virou-se para Stella Hawthorne, com um  sorriso nervoso.  Ao  se afastar, Peter ouviu Ricky Hawthorne dizer para seu pai:

—  Não, as ruas ainda estão transitáveis, pelo menos por enquanto.

Ele foi à cozinha e começou a despejar o gelo no balde. A voz da mãe, alta demais, chegava a seus ouvidos.

Um momento depois, a mãe estava ao lado dele, tirando coisas do grill e olhando no forno.

—  As azeitonas e as bolachinhas já estão prontas? — Ele assentiu. — Então ponha-as numa bandeja e ofereça-as aos convidados, Pete, por favor.

Eram canapés de ovo e fígado de galinha envoltos em bacon. Ele queimou os dedos ao transferi-los para a bandeja. A mãe se aproximou por trás e beijou-o na nuca.

—  Peter, você é maravilhoso. — Sem ter bebido nada, ela se comportava como se estivesse embriagada. — O que temos de fazer agora? Os martinis já estão prontos? Depois que trou­xer essa bandeja, pegue a garrafa de martini e coloque-a em outra bandeja com os copos, está bem? Seu pai vai ajudar. E agora, o que é mesmo que preciso fazer? Ah, sim... misturar e amassar as alcaparras e anchovas. Você está lindo, Peter! Não sabe como estou contente por ter posto uma gravata!

A campainha tocou novamente, trazendo o som de mais vozes familiares: Harlan Bautz, o dentista, e Lou Price, que parecia o vilão de um filme de gângster, com as esposas, esfu­ziante e submissa, respectivamente.

Peter estava circulando com a primeira bandeja quando os Venuti chegaram. Sonny Venuti enfiou prontamente um ca­napé de ovo na boca e exclamou:

—  Divino!

Ela beijou Peter no rosto. Parecia pálida e ansiosa, os olhos esbugalhados. Ed Venuti, o sócio de seu pai, indagou, com um bafo de gim no rosto de Peter:,

—  Não consegue esperar pela hora de ir para Cornell, hein, filho?

—  Isso mesmo, senhor.

Mas Venuti não estava prestando atenção na resposta. Sol­tou uma exclamação de satisfação, quando Walter Barnes pôs um copo cheio em sua mão.

Quando Peter ofereceu a bandeja a Harlan Bautz, o den­tista deu um tapa em suas costas e disse:

— Aposto que está ansioso para ir logo para Cornell, hein, rapaz?

—  Isso mesmo, senhor.

Peter tratou de escapar para a cozinha. A mãe estava despejando uma mistura esverdeada numa caçarola fumegante.

—  Quem acabou de chegar? — Peter informou-a. Entre­gando-lhe a tigela, a mãe acrescentou: — Acabe de misturar isto e depois ponha de novo no forno. Tenho de cumprimen­tar os que chegaram. Estou me sentindo também festiva esta noite.

A mãe se retirou e Peter ficou sozinho na cozinha. Des­pejou o resto da mistura esverdeada na caçarola e mexeu com uma colher de pau. Quando estava colocando no forno, o pai apareceu e disse:

—  Onde está a bandeja de drinques? Eu não deveria ter preparado tantos martinis, pois temos um bando de bebedores de uísque. Mas vou usar a outra garrafa de cristal e os copos que estão na sala de jantar. Ei, Pete, a festa já está pegando fogo de animação. Devia conversar com o escritor. É um cama­rada dos mais interessantes. E imagine só que ele escreve no­velas de terror! Lembro-me de que Edward me falou alguma coisa a respeito... Não é extremamente interessante? Eu sabia que você iria divertir-se se passasse algum tempo com os nossos amigos. Está se divertindo, não é mesmo?

—  Como? — perguntou Peter, fechando a porta do forno.

—  Está se divertindo, não é mesmo?

—  Claro, claro...

—  Ótimo. Pois agora saia desta cozinha e vá conversar um pouco com os convidados. — Walter Barnes sacudiu a ca­beça, como que aturdido. — Sua mãe está toda animada. Está se divertindo um bocado. É ótimo vê-la assim novamente.

—  Também acho.

Peter foi para a sala de estar, carregando uma bandeja de canapés que a mãe deixara na cozinha.

Observou que a mãe parecia realmente “animada”, como o pai dissera, falando rapidamente por entre uma nuvem de fumaça, afastando-se bruscamente de Sonny Venuti para pegar um pratinho de azeitonas pretas e oferecer a Harlan Bautz.

—  Dizem que Milburn pode ficar totalmente isolada, se a nevasca continuar — comentou Stella Hawthorne, com a voz mais baixa e audível do que a da mãe e da Sra. Venuti. Talvez tenha sido justamente por isso que todas as outras conversas cessaram. — E só temos um removedor de neve. O do con­dado ficará ocupado na estrada.

Lou Price, no sofá ao lado de Sonny Venuti, disse:

—  E pensem só em quem está manobrando o nosso tra­tor de neve. O conselho jamais deveria ter-se deixado convencer pela conversa da mulher de Ornar Norris. Na maior parte do tempo, Omar está bêbado demais para saber o que faz.

—  Ora, Lou, não deve ser tão exigente. Afinal, é o único trabalho que Omar Norris faz durante o ano inteiro. . . e ele passou por aqui duas vezes hoje! — A mãe estava defendendo Omar Norris com um excesso de empenho; Peter percebeu que a todo instante ela olhava para a porta e compreendeu que sua animação era causada por alguém que ainda não chegara.

—  Ele deve estar dormindo atualmente nos vagões da estação — disse Lou Price. — Ou então na garagem de sua casa, se a mulher o está deixando chegar tão perto. Gostam de pensar num camarada assim passando por seus carros com um trator de duas toneladas?

A campainha da porta tocou e a mãe quase largou o drin­que que tinha na mão.

—  Vou   atender  —  disse  Peter,  encaminhando-se  para a porta.

Era Sears James. Por baixo da aba larga do chapéu, o rosto estava abatido e tão pálido que as faces pareciam qua­se azuis.

—  Olá, Peter. — Ao dizer isso, ele pareceu voltar ao normal, tirando o chapéu e pedindo desculpas pelo atraso.

Por cerca de vinte minutos, Peter circulou com bandejas de canapés, serviu novos drinques, esquivou-se das conversas. (Sonny Venuti, pondo dois dedos em seu rosto, disse: — Aposto que mal pode esperar o momento de deixar esta ci­dade horrível e começar a conquistar as garotas da universi­dade, hein, Peter?)

Sempre que olhava para a mãe, descobria que ela estava no meio de uma frase, os olhos se desviando para a porta da rua. Lou Price, em voz muito alta, explicava alguma coisa sobre soja para Harlan Bautz; a Sra. Bautz estava aborrecendo Stella Hawthorne com conselhos sobre redecoração (“Eu sempre digo que o melhor mesmo é usar pau-rosa.”) Ed Venuti, Ricky Hawthorne e seu pai estavam conversando num canto, sobre o desaparecimento de Jim Hardie. Peter voltou ao sossego esté­ril da cozinha, afrouxou a gravata e aninhou a cabeça num bal­cão. O telefone tocou cinco minutos depois. O rapaz ouviu a mãe gritar na sala de estar:

—  Não precisa incomodar-se, Walt. Pode deixar que vou atender.

A extensão na cozinha parou de tocar alguns segundos de­pois. A mãe estava atendendo na sala da televisão. Peter olhou para o telefone branco na parede. Talvez não fosse o que ele estava pensando; talvez fosse Jim Hardie para dizer: “Ei, cara, não se preocupe que está tudo bem comigo...” Ele tinha de saber. Mesmo que fosse o que estava pensando. Pegou o fone; escutaria apenas por um segundo.

A voz era de Lewis Benedikt e Peter sentiu um frio no coração.

—  ...não posso ir, Christina, de jeito nenhum — estava ele dizendo.— Não há a menor possibilidade. Minha estrada está coberta por quase dois metros de neve.

—  Há mais alguém na linha — disse a mãe.

—  Não seja paranóica. Além disso, Christina, seria pura perda de tempo a minha ida. Você sabe disso perfeitamente.

—  Pete? É você? Está escutando?

Peter prendeu a respiração, sem desligar.

—  Ora, é claro que Peter não está escutando. Por que iria fazê-lo?

—  Mas que diabo! Você está escutando, Pete? — A voz da mãe soava estridente como o zumbido de um marimbondo.

—  Lamento muito, Christina. Espero que continuemos amigos. E agora volte para sua festa e divirta-se.

—  Nunca pensei que fosse tão ordinário! — A mãe bateu o telefone. Um segundo depois, completamente aturdido, Peter também desligou a extensão.

Ficou parado, as pernas trêmulas, quase certo do signifi­cado do que acabara de ouvir. Virou-se, às cegas, para a janela da cozinha. Passos. A porta atrás dele se abriu e se fechou. Por detrás do seu próprio reflexo, tão vazio e desconsolado quanto na ocasião em que olhara para uma sala vazia na Montgomery Street, aparecia o rosto furioso da mãe.

—  Ouviu tudo direitinho, espião?

Nesse instante, outro reflexo surgiu entre os deles, uma mancha pálida e indistinta interpondo-se entre o rosto de Peter e o da mãe. Chegou mais perto e Peter descobriu que estava olhando não para o reflexo de um rosto pequeno, mas direta­mente para ele, no outro lado da janela: um rosto de criança suplicante e contorcido. O menino estava lhe implorando que saísse.

—  Vamos, espião, diga logo! — ordenou a mãe.

Peter soltou um grito, levando a mão fechada à boca num esforço para conter o seu som. E fechou os olhos.

No instante seguinte, os braços da mãe o envolveram, a voz começou a soar, e, suavemente, murmurando desculpas, as lágrimas, agora não apenas latentes, escorrendo-lhe quentes pelo pescoço. Peter ouviu, acima do barulho que a mãe estava fa­zendo, a voz de Sears James a dizer:

—  É isso mesmo. Don veio até aqui para tomar posse de sua casa, mas também pode ajudar-nos num pequeno pro­blema... um problema de pesquisa.

Depois, soou uma voz abafada, que podia ter sido a de Sonny Venuti. E Sears respondeu:

—  Queremos que ele investigue o caso da jovem Moore, aquela atriz que desapareceu.

Mais vozes abafadas: de surpresa, dúvida, curiosidade. Pe­ter tirou a mão da boca.

—  Está tudo bem, mamãe.

—  Sinto muito, Peter.

—  Não vou contar.

—  Não é...  não era o que está pensando, Peter. Não pode deixar que isso o transtorne.

—  Pensei que talvez fosse Jim Hardie chamando.

A campainha da porta tocou.

Christina Barnes desprendeu-se do filho, dizendo:

—  Pobre querido, com um amigo miserável que some de repente e uma mãe psicótica! — Beijou-o na cabeça. — E ainda sujei de lágrimas sua camisa limpa!

A campainha tocou novamente.

—  Mais uma pessoa chegando! — murmurou Christina Barnes. — Seu pai fará os drinques. Vamos voltar ao normal antes de aparecermos outra vez na presença dos outros, está certo?

—  É alguém que convidou?

—  Claro que é, Pete. Quem mais poderia ser?

—  Não sei... — Ele olhou novamente pela janela. Não havia ninguém ali, apenas os reflexos do rosto da mãe e do seu próprio,  luzindo  como  velas  esmaecidas  no  vidro.  — Nin­guém.

Christina se empertigou e enxugou os olhos.

—  Vou tirar a comida do forno. É melhor você ir até lá cumprimentar a pessoa que chegou.

—  E quem é?

—  Alguém que Ricky e Sears conhecem.

Peter encaminhou-se para a porta da cozinha, olhando para trás. A mãe já estava abrindo o forno e estendendo a mão para tirar a caçarola, apenas uma mulher comum apron­tando a comida para uma festa.

“Não sei mais o que é real e o que não é”, pensou Peter, saindo da cozinha. O estranho, o sobrinho do Sr. Wanderley, estava parado na arcada da sala de estar, falando:

—  Para ser franco, o que me interessa neste momento é determinar a diferença entre invenção e realidade. Um exem­plo: por acaso ouviram uma música há poucos dias, uma banda tocando em algum lugar da cidade?

—  Não ouvi nada — murmurou Sonny Venuti. — E você ouviu?

Peter estacou abruptamente, olhando para o escritor, a boca entreaberta. O pai disse:

—  Ei, Pete, quero apresentá-lo à nossa convidada.

—  Ah, eu queria ficar sentada ao lado desse lindo rapaz! —  arrulhou Sonny Venuti, sorrindo para Peter, os olhos esbu­galhados.

—  Não se esqueça de que já está comprometida comigo —  disse Lou Price.

—  Venha até aqui, escoteiro — chamou o pai.

Peter desviou-se de Don Wanderley, que o fitava com extrema curiosidade, virando-se para o pai. Sentia a boca res­sequida. O pai tinha o braço passado pelos ombros de uma mulher alta, com um rosto adorável.

Era o mesmo rosto que olhara pelo outro lado de uma luneta, através de uma praça escura, encontrando Peter.

—  Anna, esse é meu filho Pete.  Pete, essa é a Srta. Mostyn.

Os olhos dela o devoraram. Por um momento, Peter teve a sensação de que estava se interpondo entre a mulher e Don Wanderley, que Sears James e Ricky Hawthorne eram como meros espectadores de uma partida de tênis; apenas ele pró­prio, a mulher e Don Wanderley tinham importância, forman­do os vértices de um triângulo comprido e estreito. Os olhos da mulher novamente envolveram Peter e ele sentiu intensa­mente o perigo que corria.

— Acho que Peter e eu teremos muito que conversar — murmurou Anna Mostyn.

 

(dos diários de Don Wanderley)

 

O que devia ter sido minha apresentação a um círculo mais amplo da comunidade de Milburn terminou numa con­fusão desastrosa.

Peter Barnes, um rapaz alto, de cabelos pretos, que pa­rece tanto capaz como sensível, foi a bomba lançada. A prin­cípio, parecia simplesmente arredio, o que é compreensível num rapaz de dezessete anos bancando o criado na festa dos pais. Sente extrema simpatia pelos Hawthorne. Pode-se notar que também reage a Stella. Mas, por baixo do retraimento, havia algo mais, algo que gradativamente fui percebendo. Seria pânico? Desespero? Ao que parece, um amigo dele sumiu mis­teriosamente e os pais evidentemente imaginam que é esse o motivo de sua apatia. Contudo, havia mais do que isso. Tive a impressão de perceber o medo no rosto dele. Deve ter sido a Sociedade Chowder que me condicionou a isso ou então a projetar o medo nos outros. Quando estava fazendo meus co­mentários pomposos para Sonny Venuti, Peter parou abrupta­mente e ficou me olhando. Não tenho a menor dúvida de que me interrogou com os olhos e tenho a impressão de que queria desesperadamente me falar... e não sobre livros. O mais des­concertante é que tenho a impressão de que ele também ouviu a música do Dr. Rabbitfoot.

E se for verdade...

...se for verdade...

...então estamos envolvidos pela vingança do Dr. Rabbit­foot. E toda Milburn está prestes a voar pelos ares.

Estranhamente, foi algo que Anna Mostyn disse que provocou o desmaio de Peter. Tenho certeza de que ele estava tremendo quando a viu pela primeira vez. Sentia medo dela. Acontece que Anna Mostyn é uma mulher bem próxima da be­leza extraordinária, do tipo da lamentável Stella Hawthorne. Os olhos dela parecem remontar diretamente a Norfolk e Flo­rença, de onde vieram seus ancestrais, conforme diz. Aparen­temente, ela se fez indispensável a Sears e Ricky. Mas seu grande mérito é estar polidamente presente no escritório, mos­trando-se prestativa sempre que é necessário, como no dia do enterro. Ela sugere bondade, simpatia e inteligência, mas não chega a sufocar os outros com sua excelência. É discreta, quieta, uma mulher ainda jovem, independente, confiante, segura de si. É realmente retraída. Contudo, é também sensual de uma maneira inquietantemente inexplicável. Parece fria, sensualmen­te fria; é uma sensualidade que agrada e satisfaz a si mesma.

Vi-a olhar para Peter Barnes por um momento, durante o jantar, apresentando esse desafio. O rapaz estava olhando para o próprio prato, forçando o pai a ser mais exuberante e irritando a mãe. Não olhou em instante algum para Anna Mos­tyn, apesar de estar sentado ao lado dela. Os outros convidados procuraram ignorá-lo, conversando principalmente sobre o tem­po. Peter estava obviamente querendo sair da mesa o mais depressa possível. Em determinado momento, Anna segurou o queixo dele com a mão e pude sentir o tipo de olhar que o rapaz estava recebendo. Depois, ela disse calmamente que de­sejava pintar alguns cômodos de sua nova casa e achava que Peter e um ou dois colegas dele poderiam encarregar-se do ser­viço. E foi nesse instante que ele desfaleceu. Essa palavra anti­quada se ajusta perfeitamente. O rapaz desfaleceu, perdeu os sentidos, tombou para a frente, apagou-se por completo. Pensei a princípio que ele tivesse sofrido um ataque, a mesma idéia da maioria dos outros convidados. Stella Hawthorne tratou de nos acalmar, ajudou a tirar Peter da cadeira. O pai levou-o para cima. O jantar terminou pouco depois.

 

E agora observo um fato pela primeira vez: Alma Mobley, Anna Mostyn. As mesmas iniciais, a grande semelhança entre os nomes. Será que estou numa situação em que possa chamar a tudo de coincidência, de “mera coincidência”? Ela não é pa­recida com Alma Mobley sob nenhum aspecto; ao mesmo tem­po, é igual a Alma.

E sei em quê: na impressão de que transcende ao tempo. Mas enquanto Alma teria deslizado pela fachada do Hotel Plaza nos anos 20, Anna Mostyn estaria lá dentro, sorrindo para os homens com frascos de bebidas nos bolsos, homens a se pavonearem, falando de carros novos e do mercado de ações, empenhando-se ao máximo para a conquistar.

Esta noite vou pegar as páginas da novela do Dr. Rabbit­foot, levar para o incinerador do hotel e queimar tudo.

 

A caçada de guaxinins

Eva Galli e o manitu

 

 “Foi certamente  em  outubro

Nesta própria noite do ano passado

Que viajei — fiz a jornada até aqui —

Que trouxe um terrível fardo até aqui —

Ah, qual o demônio que me tentou aqui?”

Ulalume, Edgar Allan Poe

 

 (Lewis Benedikt)

 

Dois dias de mudanças no tempo: a neve parou de cair e o sol voltou a brilhar. Foram dois dias como um veranico caprichoso. A temperatura subiu acima do ponto do congela­mento pela primeira vez em um mês e meio. A praça da ci­dade transformou-se num lodaçal, evitado até mesmo pelos pombos. À medida que a neve derretia, o rio, mais escuro c rápido do que no dia em que John Jaffrey pulara da ponte, subiu até quase transbordar. Pela primeira vez em cinco anos, Walt Hardesty e seus assistentes, ajudados pelos bombeiros voluntários, empilharam sacos de areia nas margens do rio, para impedir uma inundação. Um dos assistentes do xerife, Leon Churchill, despiu-se até a cintura, pensando que talvez o pior já tivesse passado, até os dias amargos e difíceis de feve­reiro e março.

Metaforicamente, os habitantes de Milburn em geral tam­bém tiraram suas camisas. Omar Norris, na maior felicidade, voltou a dedicar-se à garrafa em tempo integral. Quando a esposa o expulsou de casa, voltou ao vagão abandonado na antiga estação sem a menor preocupação, acompanhado por uma garrafa de uísque pela metade e convencido de que a ne­vasca mais intensa acabara para sempre. A cidade relaxou du­rante esses dias de alívio temporário. Walter Barnes foi para o banco numa espalhafatosa camisa de listras rosadas e azuis e por oito horas sentiu-se maravilhosamente antifinancista. Sears e Ricky voltaram a fazer o gracejo antigo, de que Elmer Scales pretendia processar o meteorologista por inconstância. Durante dois dias, o Village Pump ficou apinhado na hora do almoço, com estranhos em viagem, depois de retidos por tanto tempo. A receita de Clark Mulligan dobrou nos dois últimos dias de seu programa duplo com filmes de Vincent Price e ele re­solveu mantê-los em exibição por mais uma semana. Uma água escura corria para as sarjetas; quem não tomasse cuidado, po­deria ficar sujo da cabeça aos pés com essa água imunda, espirrada pelos carros que passavam perto demais do meio-fio. Penny Draeger, a antiga namorada de Jim Hardie, encontrou um novo homem, um estranho de cabeça raspada e óculos escuros, que lhe disse que o chamasse de “G”, um homem excitante e mis­terioso, que vinha de algum lugar ignorado e declarava ser ma­rinheiro. Era uma emoção inebriante para Penny. À luz do sol, com o barulho de água por toda parte, Milburn parecia uma cidade mais ampla. As pessoas punham botas de borracha para manter os pés secos ao sair. Milly Sheehan contratou um rapaz que morava no mesmo quarteirão para colocar os protetores contra tempestade em todas as janelas. E o rapaz co­mentou:

— Talvez não precise disso até o Natal, Sra. Sheehan!

Stella Hawthorne, deitada na banheira, com a água quen­te perfumada, decidiu que estava na hora de mandar Harold Sims de volta às bibliotecárias solteironas, que certamente fi­cariam impressionadas com ele, Ela tinha mais o que fazer. Assim, por dois dias, muitas resoluções foram tomadas, mui­tas caminhadas empreendidas. Os homens não ficavam irritados por terem de sair de casa pela manhã e seguir de carro para seus escritórios. Naquela falsa primavera, os espíritos se reanimaram.

Mas Eleanor Hardie ficou exausta de tanta preocupação, limpando os corrimões e balcões do hotel duas vezes por dia. John Jaffrey, Edward Wanderley e os outros continuaram de­baixo da terra. Nettie Dedham foi levada para um asilo, ainda balbuciando as duas únicas sílabas que era capaz de pronun­ciar. O corpo esquelético de Elmer Scales tornou-se ainda mais esquelético, de passar as noites sentado diante da janela, com a espingarda no colo. O sol se punha mais cedo e Milburn se contraía e congelava durante a noite. As casas pareciam acon­chegar-se umas contra as outras, as ruas que cintilavam durante o dia ficavam lugubremente escuras e pareciam estreitar-se. O céu escuro tornava-se ameaçador. Os três velhos da Sociedade Chowder esqueciam os gracejos leves e sofriam através de seus pesadelos. Duas casas espaçosas permaneciam sinistramente às escuras: a casa da Montgomery Street continha horrores indes­critíveis, que tremeluziam e se deslocavam de aposento para aposento, de andar para andar; na velha casa de Edward Wanderley, na Haven Lane, tudo o que havia era mistério. E para Don Wanderley, o mistério, quando o encontrasse, iria levá-lo a Panama City, Flórida, e a uma menina que dizia “Eu sou você”.

Lewis passou o primeiro desses dois dias a remover a neve do caminho de sua propriedade, deliberadamente fazendo um esforço excessivo, trabalhando tão arduamente que come­çou a suar por baixo do traje de corrida e do casaco cáqui que usava. Por volta do meio-dia, seus braços e costas estavam doendo terrivelmente, como se nunca tivesse trabalhado na vida. Depois do almoço, Lewis cochilou por meia hora, tomou um banho de chuveiro e obrigou-se a concluir o trabalho. Com uma pá, removeu o que ainda restava de neve no caminho. A esta altura, a neve estava úmida e muito mais pesada do que na ocasião em que começara a trabalhar, às seis e meia da ma­nhã. Lewis voltou para dentro de casa, depois de. criar o que parecia uma cordilheira de neve no lado do caminho. Tomou outro banho de chuveiro, tirou o fone do gancho, tomou quatro cervejas e comeu dois hambúrgueres. Pensou que jamais con­seguiria subir a escada para ir deitar-se em seu quarto. Quando finalmente o fez, tirou as roupas com muito esforço, tão exausto estava, largando-as no chão e metendo-se por baixo das cober­tas, adormecendo imediatamente.

Jamais teve certeza se foi um sonho: de noite, ouviu um barulho terrível, o vento soprando toda a neve que removera de volta ao caminho. A sensação que tinha era a de que estava desperto e pensou ter ouvido outro ruído, como se fosse mú­sica soprada ao vento. Tirou uma conclusão: “Estou simples­mente sonhando”. Mas os músculos lhe doíam e tremiam quando saiu da cama, e a cabeça girava. Foi até a janela, que dava para o lado da casa, para o telhado do antigo estábulo e para o primeiro terço do caminho que levava a ele. Avistou a lua quase cheia pairando sobre as árvores desoladas. A próxima cena se parecia tanto com um dos filmes antigos que Ricky tanto apreciava que Lewis não teve a menor dúvida de que só podia ser ilusão. O vento soprava; como ele temia, camadas de neve se estendiam sobre o caminho; tudo era branco e preto. Um homem vestido em trajes de menestrel estava no alto da pilha de neve seguindo para a estrada. Um saxofone branco como os olhos dele pendia de sua boca. Enquanto Lewis olha­va, sem mesmo tentar forçar a mente aturdida a procurar algum sentido na visão, o músico soprou algumas notas audíveis ape­nas pela metade, depois baixou o saxofone e piscou-lhe um olho. A pele do homem era aparentemente tão negra quanto o céu e ele permanecia no alto da neve como se fosse desti­tuído de peso, pois deveria afundar até a cintura. “Não é um dos seus espíritos antigos, Lewis, ciumento de sua posse, vindo buscar os seus melros e plantas que furam a neve; volte para a cama e durma em paz.” Ainda aturdido pela exaustão, Lewis continuou a observar, enquanto o vulto se transformava: era agora John Jaffrey, Sorrindo-lhe daquela posição impossível, a graxa preta do teatro no rosto e nas mãos, os olhos brancos, dentes brancos. Lewis cambaleou de volta a sua cama.

 

Depois de ter aliviado quase toda a dor dos músculos num banho quente de chuveiro prolongado, Lewis desceu e olhou pelas janelas da sala de jantar, atônito. Quase toda a neve já desaparecera das árvores diante da casa, deixando-as molhadas e lustrosas. Poças escuras de água espalhavam-se pelo pátio calçado, que se estendia da casa ao antigo estábulo. A cordilheira de neve ao lado do caminho tinha apenas a metade da altura do dia anterior. A mudança no tempo se mantivera. Não havia nuvens no céu, que parecia meio esbranquiçado. Lewis olhou pela segunda vez para a neve ao lado do caminho e meneou a cabeça: fora apenas outro sonho. O sobrinho de Edward plantara a imagem em sua mente, com a descrição da personagem principal do livro que ainda não escrevera, o negro que tinha uma banda de música carnavalesca e um nome engraçado. “Ele está fazendo com que sonhemos seus livros”, pensou Lewis, sorrindo.

Foi até o vestíbulo, tirou as chinelas e calçou as botas. Ajeitando o casaco cáqui nos ombros, atravessou a casa até a cozinha. Pôs uma chaleira cheia de água fria no fogo e olhou pela janela. Como as árvores na frente da casa, seu bosque brilhava; a neve estava úmida e começando a ficar lamacenta sobre o gramado, mais branca e mais profunda sob as árvores além. Ele daria sua caminhada enquanto a água na chaleira fervia, voltando depois para preparar o café da manhã.

Lá fora, o calor o surpreendeu; mais do que isso, o ar agradável, parecendo fresco, dava a impressão de proporcionar uma imensa proteção, um casulo de segurança. A ameaça que havia no bosque se dissipara. Brilhando agora com as cores suaves dos troncos das árvores e do musgo, com as cores de aquarela da neve, o bosque não mais possuía aquela caracte­rística opressiva de ilustração que Lewis anteriormente sentira.

Enveredou pelo caminho de retorno, avançando sem qual­quer pressa, respirando fundo, sentindo o cheiro das folhas por baixo da neve. Sentia-se outra vez jovem e saudável, o peito cheio de um ar ameno. Lamentou ter bebido muito na casa de Sears. Era tolice culpar-se pela morte de Freddy Ro­binson; quanto aos sussurros de seu nome, não os ouvira du­rante toda a sua vida? Era neve caindo de um galho, um ba­rulho sem qualquer significado, ao qual sua alma dominada pelo sentimento de culpa emprestava um sentido que não possuía.

Precisava da companhia de uma mulher, da conversa de uma mulher. Agora que tudo acabara com Christina Barnes, poderia convidar Annie, a garçonete loura do Humphrey’s, para ir à sua casa, para um jantar e depois ouvi-la discorrer sobre pintores e livros. A conversa inteligente de Annie seria um exorcismo para as preocupações do último mês. Talvez convi­dasse Anni também, e as duas falariam de pintores e livros. Iria confundir-se um pouco, tentando acompanhar a conversa, mas inevitavelmente aprenderia alguma coisa.

Pensou em seguida que talvez fosse melhor afastar Stella Hawthorne de Ricky por uma ou duas horas, entregando-se ao prazer de ter o rosto extraordinário e a personalidade exube­rante dela à sua frente, no outro lado da mesa.

Contente, Lewis virou-se e compreendeu por que sempre correra pela trilha na direção oposta: naquele longo trecho de volta, podia-se avistar a casa mesmo de longe. Indo na outra direção, preservava por mais tempo quanto era possível a ilu­são de que era o único homem branco num continente coberto de florestas. Estava cercado por árvores seculares, a água pin­gando, e pelo sol projetando uma claridade branca.

Houve dois fatores que destruíram a ilusão de Lewis de ser Daniel Boone a se embrenhar em uma mata desconhecida. Ele alcançou o primeiro depois de dez minutos de caminhada. Na metade do caminho, avistou a parte superior de um cami­nhão de gasolina amarelo, a parte inferior oculta pelo campo inclinado, seguindo na direção de Binghamton. E assim se acabou a ilusão de Daniel Boone. Lewis seguiu pela trilha em linha reta que dava na porta da cozinha.

A esta altura, estava faminto e contente por ter-se lem­brado de comprar ovos e bacon na última vez em que estivera em Milburn. Tinha grãos de café para moer, pão para torrar, tomates para cozinhar. Depois de comer, telefonaria para as meninas e as convidaria para jantar, pedindo que lhe dissessem que livros deveria ler. Stella esperaria.

Estava na metade do caminho quando sentiu o cheiro de comida. Aturdido, esticou a cabeça. Não podia haver a menor dúvida: era o cheiro de café da manhã como o que acabara de imaginar. Café, bacon, ovos. Lewis pensou: “Christina!” De­pois que Walter partira para o trabalho e Peter saíra para a escola, ela pegara a caminhonete da família e viera até sua casa, para fazer uma cena. Ainda tinha a chave da porta dos fundos.

Não demorou muito para que Lewis estivesse perto o bas­tante para poder avistar a casa através das árvores. O cheiro de comida era cada vez mais forte. Sentindo as botas muito pe­sadas, ele continuou a avançar, pensando no que iria dizer a Christina. Seria difícil, especialmente se ela estivesse exibindo uma atitude humilde e arrependida, como o cheiro do café da manhã parecia provar que era o caso... e subitamente, quando já estava quase deixando o bosque, Lewis percebeu que o carro dela não estava parado diante da garagem.

E era ali que ela sempre deixava o carro. O local ficava fora da vista de quem passava pela estrada, perto da porta dos fundos. Era ali que todos costumavam estacionar quando iam a sua casa. Mas não apenas a caminhonete de Christina não estava estacionada ali, como também não havia nenhum outro carro.

Ele parou de andar e olhou atentamente para a casa de pedras cinzentas. Havia apenas umas poucas árvores à sua frente, o tamanho da casa fazendo com que parecessem bem pequenas, simples hastes. Por um momento, a casa parecia ainda maior do que Lewis sabia que era na realidade.

Quando uma brisa lhe trouxe mais forte os cheiros de café e bacon, Lewis contemplou a casa como se a estivesse ven­do pela primeira vez: a cópia de um arquiteto da idéia de um ilustrador de um castelo escocês, uma espécie de absurdo, a construção parecendo cintilar, como ocorrera com as árvores molhadas. Era o final de uma busca numa história. Com as botas ensopadas e o estômago faminto, Lewis ficou olhando para a casa com o coração congelado. As janelas rebrilhavam nos caixilhos.

Era o castelo de uma princesa morta, não de uma princesa cativa.

Lentamente, Lewis foi se encaminhando para a casa, dei­xando a segurança temporária do bosque. Atravessou o pátio calçado onde deveria estar o carro. O cheiro de comida era cada vez mais intenso. Cautelosamente, Lewis abriu a porta da cozinha e entrou.

A cozinha estava vazia, mas não como antes. Havia sinais de ocupação e atividade recentes por toda parte. Dois pratos estavam postos na mesa da cozinha, da melhor louça que Lewis possuía. Os talheres de prata estavam ajeitados nos lados dos pratos. Perto, havia duas velas não acesas, em pequenos cas­tiçais de prata. Havia uma lata de suco de laranja congelado em cima da pia. Lewis virou-se para o fogão: panelas vazias estavam em cima dos bicos de gás apagados. O cheiro de co­mida era muito forte. A chaleira assoviou e Lewis apagou o fogo.

Duas fatias de pão estavam ao lado da torradeira.

— Christina?

Lewis ainda estava pensando, não muito racionalmente, que podia ser uma brincadeira. Não houve resposta.

Virou-se novamente para o fogão, farejou o ar por cima das panelas. Bacon. Ovos fritos na manteiga. Supersticiosamen­te, tocou no metal frio.

A sala de jantar estava exatamente como a deixara. Ao entrar na sala de estar, descobriu que também se encontrava intata. Lewis pegou um livro do braço de uma poltrona e olhou-o com uma expressão de espanto, embora o tivesse dei­xado ali na noite anterior. Ficou parado na sala por um mo­mento, ali onde ninguém entrara, sentindo o cheiro de um café da manhã que ninguém preparara, como se a sala fosse um refúgio.

—  Christina? — chamou novamente. — Há alguém aí?

Lá em cima, soou o estalido familiar de uma porta sendo fechada.

—  Alô?

Lewis encaminhou-se para a base da escada e olhou para cima.

—  Quem está aí?

A luz do sol entrava por uma janela no patamar. Lewis avistou partículas de poeira turbilhonando preguiçosamente no alto da escada. A casa estava silenciosa; pela primeira vez seu vasto tamanho parecia uma ameaça. Lewis limpou a gar­ganta.

—  Quem está aí?

Depois de um longo tempo, começou a subir a escada. Chegando ao patamar, olhou pela janela pequena, vendo a luz do sol e as árvores gotejando lá fora. Continuou a subir até o alto.

O vestíbulo lá de cima estava bem claro, silencioso, vazio. O quarto de Lewis ficava à direita, dois quartos antigos com a parede divisória removida. Uma das portas fora lacrada, a outra substituída por um imenso bloco de madeira trabalhado à mão. Com sua pesada maçaneta de latão, a porta do quarto de Lewis fechava com um estalido característico. Fora esse o ba­rulho que ele ouvira quando ainda estava lá embaixo.

Lewis ficou parado diante da porta, incapaz de abri-la. Tossiu novamente. Podia ver o quarto, o tapete, suas chinelas ao lado da cama, o pijama sobre uma cadeira, as janelas pelas quais olhara naquela manhã. E podia ver a cama. O que fazia Lewis ter medo de abrir a porta era o fato de imaginar na cama o corpo morto há catorze anos da esposa. Levantou a mão para bater, detendo o punho a centímetros da porta. Bai­xou a mão novamente. Tocou na maçaneta.

Forçou-se a girá-la. Ouviu o estalido da porta se abrindo. Fechou os olhos e empurrou-a.

Abriu-os para a luz do sol que entrava pelas janelas com­pridas do outro lado da porta; a beira de uma cadeira, com um pijama listrado de azul sobre ela; o cheiro horrível de carne putrefata.

“Seja bem-vindo, Lewis.”

Bravamente, Lewis deu uma volta pelo quarto, indo pos­tar-se no facho de luz que entrava pelas janelas. Olhou para a cama vazia. O odor fétido dissipou-se tão depressa quanto sur­gira. Agora, Lewis, podia sentir apenas o cheiro das flores cor­tadas sobre a mesa diante da janela. Foi até a cama e, hesi­tante, encostou a mão no lençol de baixo; estava ainda quente.

Um minuto depois, Lewis estava no andar térreo, falan­do ao telefone:

—  Otto, por acaso tem medo dos fiscais de caça?

—  Essa não, Lewis! Eles fogem quando me vêem. Mas quer sair com os cachorros num dia como este? Em vez disso, por que não vem a minha casa tomar uns schnapps?

—  E depois vamos sair, Otto. Por favor...

 

Peter saiu da sala de estudos quando a sineta tocou e foi andando pelo corredor até o vestiário. Enquanto o resto da escola seguia para diferentes alas do prédio e a maior parte de sua turma ia para a sala de Miller, para a aula de história, ele fingiu estar procurando um livro em seu armário. Tony Drexler, um amigo, ficou parado a seu lado por segundos in­suportáveis, até que finalmente perguntou:

— Já teve notícias de Jim Hardie?

—  Não — disse  Peter,  enfiando-se  ainda  mais  no  ar­mário.

—  Aposto que ele está em; Greenwich Village.

—  Talvez.

—  Está na hora de irmos para a aula de história. Você leu o capítulo?

—  Não.

—  É tudo besteira. — Drexler soltou uma risada. — Até mais tarde.

Peter limitou-se a sacudir a cabeça. Não demorou muito para ficar sozinho. Deixando os livros no armário, mas pegan­do o casaco, bateu a porta de metal e atravessou rapidamente o corredor até o banheiro. Trancou-se num reservado e ficou esperando que soasse a sineta novamente.

Dez minutos depois, deu uma espiada pela porta do ba­nheiro. Não havia ninguém no corredor e ele saiu correndo, procurando fazer o mínimo de barulho possível. Desceu a es­cada sem ser visto e saiu pela porta da escola.

Cerca de cem metros para o lado, uma turma estava ten­do aula de ginástica, fazendo calistênica no campo enlameado; duas garotas já estavam correndo em torno da pista, como cas­tigo. Ninguém o viu; a escola já estava absorvida em suas ati­vidades, devidamente reguladas pelos toques da sineta.

A um quarteirão de distância, na School Road, Peter en­trou numa rua transversal, de onde seguiu em ziguezague pela cidade, evitando a praça e o distrito comercial, até chegar à Underhill Road, que levava à Rodovia 17. Correu por quase um quilômetro da Underhill Road, já agora fora da cidade, à vista apenas dos campos sem qualquer vegetação, terminando em grupos de árvores.

Aproximando-se da estrada, escalou uma elevação enla­meada e subiu por dois travessões de alumínio, pregados numa sucessão de postes brancos. Atravessou a pista até o canteiro central, pulou outra cerca de alumínio e ficou esperando por uma brecha no tráfego para atravessar até ô outro lado da es­trada. Depois, levantou o braço, com o polegar estendido, co­meçando a andar para trás.

Tinha de encontrar Lewis, precisava conversar com ele a respeito da mãe.

No fundo de sua mente, flutuava a imagem dele próprio a pular em cima de Lewis, golpeando-o com os punhos cerra­dos, destruindo-lhe o rosto...

Mas, depois, surgiu uma imagem do oposto, de Lewis rindo, Lewis dizendo-lhe que não havia motivo para ele se preocupar, pois não voltara da Espanha para ter ligações amo­rosas com as mães dos outros.

Se Lewis dissesse isso, Peter poderia contar-lhe o que realmente acontecera com Jim Hardie.

 

Peter estava pedindo carona há cerca de quinze minutos quando um carro azul finalmente parou no acostamento. O ho­mem de meia-idade ao volante inclinou-se para o lado e abriu a porta do assento de passageiro.

—  Para onde vai, filho?

Era um homem atarracado, num terno cinza amarrotado, a gravata no pescoço apertada demais. No banco de trás, havia folhetos de publicidade.

—  Vou ficar nesta estrada mesmo, a uns onze ou doze quilômetros daqui — respondeu Peter. — Avisarei quando chegarmos ao ponto em que vou descer.

E ele entrou no carro. Arrancando, o homem comentou:

—  Isso é contra os meus princípios.

—  Como?

— Contra os meus princípios. Pedir carona é algo muito perigoso, especialmente para garotos de boa aparência como você. Acho que não deveria fazê-lo.

Peter soltou uma risada estrondosa, surpreendendo tanto ao motorista como a si próprio.

O homem parou o carro à entrada do caminho da pro­priedade de Lewis, mas não quis partir sem oferecer mais al­guns conselhos.

—  Tome cuidado, filho. Nunca se sabe quem é a pessoa que se encontra nas estradas. Pode ser qualquer tipo de per­vertido. — Agarrou o braço de Peter, no momento em que es­te abria a porta. — Prometa que nunca mais vai fazer isso no­vamente. Vamos, filho, prometa.

—  Está certo. Prometo.

—  Você   não   há   de   esquecer   que   prometeu.   —   O homem largou o braço de Peter, que saiu apressadamente do carro. — Espere, filho, espere um pouco. Só um segundo. — Peter ficou se remexendo ao lado do carro, mudando o peso do corpo de um pé para outro, enquanto o homem se inclina­va e pegava um dos folhetos que estavam no banco traseiro. — Isso o ajudará, filho. Leia e guarde. Vai encontrar uma resposta.

—  Uma resposta?

—  Isso mesmo. E mostre a seus amigos. — E entregou um folheto barato a Peter. O título era The watchtower.

O motorista saiu do acostamento e acelerou. Peter en­fiou o folheto no bolso e virou-se para seguir pelo caminho da propriedade de Lewis.

O caminho já lhe havia sido apontado, mas ele jamais vi­ra a casa de Lewis. Isto é, jamais vira qualquer coisa além dos pontos mais altos do telhado, que podiam ser avistados da es­trada. E tais pontos desapareceram quando Peter começou a seguir pelo caminho. A neve derretera e a trilha brilhava inten­samente, o sol se refletindo em uma centena de pontos, que pareciam espelhos. Vendo da estrada os pontos mais elevados do telhado, Peter jamais percebera como a casa ficava longe, como estava isolada pelas árvores. Ao chegar à primeira curva, pôde avistar parcialmente a casa, por entre as árvores. E foi nesse momento, pela primeira vez, que começou a questionar o que estava fazendo.

Chegou mais perto. Uma extensão menor do caminho fa­zia uma volta na frente da casa, que parecia do tamanho de um quarteirão da cidade. As janelas facetadas refletiam a luz do sol. A parte maior do caminho seguia pelo lado da casa e ia terminar num pátio calçado, flanqueado pelo que pareceu a Peter ser um estábulo. Não podia imaginar-se entrando num lugar tão imponente; dava a impressão de que se podia andar a esmo por ali durante uma semana sem se encontrar a saída. A constatação de que Lewis era diferente, vivia em outro mun­do, lançou uma dúvida intensa sobre os planos de Peter.

Ir até ali parecia tão sinistro e ameaçador quanto entrar na casa silenciosa da Montgomery Street.

Peter foi até os fundos da casa, tentando relacionar aque­la grandeza maciça com o que pensava de Lewis. Para Peter, que nada sabia da história da casa, a impressão era de suntuo­sidade; exigia uma concepção diferente de seu proprietário. A parte dos fundos da casa, no entanto, era diferente: uma porta num pátio calçado, a fachada de madeira comum do estábulo, coisas que se situavam num nível em que Peter se sentia mais à vontade. Tinha acabado de descobrir as trilhas que levavam ao bosque quando ouviu uma voz falando em sua mente:

“Imagine Lewis na cama com sua mãe, Peter. Imagine-o deitado em cima dela”.

—  Não... — murmurou Peter.

“Imagine como ela parece, inteiramente nua, mexendo-se debaixo dele, Peter. Imagine...”

Peter ficou subitamente paralisado e a voz desapareceu ao mesmo tempo. Um carro estava subindo pelo caminho, vin­do da estrada. Por um segundo, Peter pensou se não deveria ficar bem à vista ali no pátio, para que Lewis o visse ao che­gar. Pois só podia ser ele, voltando para casa. No momento se­guinte, o carro mudou de marcha, já bastante perto da casa. Peter compreendeu que não podia ficar frente a frente com Lewis enquanto o eco da voz ainda pairava em sua mente. Correu para o lado do estábulo e ficou agachado ali. A caminho­nete da mãe entrou no pátio atrás da casa.

Peter gemeu baixinho, ouvindo uma risada em sussurro ecoar pelas tábuas pintadas do velho estábulo.

Ele se comprimiu contra a parede e ficou olhando, através dos galhos de uma roseira, enquanto a mãe saltava da caminho­nete. O rosto dela estava contraído, extremamente pálido de concentração, com uma expressão tensa e furiosa que Peter nun­ca antes vira. Enquanto observava, do lado do estábulo, a mãe inclinou-se para dentro do carro e tocou a buzina duas vezes. Depois ela se endireitou, deu a volta pela frente do carro, evi­tou as poças de água nas lajotas vermelhas do pátio e seguiu para a porta pequena nos fundos da casa. Peter pensou que ela fosse bater, mas a mãe remexeu a bolsa por um momento, ti­rou uma chave, abriu a porta e entrou. Ouviu-a gritando o no­me de Lewis.

 

Lewis deu uma guinada no volante do Morgan para des­viar-se de uma poça escura no caminho esburacado que levava aos fundos da fábrica de queijo. Era mais um galpão de ma­deira, que o próprio Otto construíra num vale próximo de Afton, perto de uma sucessão de colinas cobertas de árvores. Ca­chorros latiram nos canis ao lado da fábrica. Lewis estacionou o carro ao lado da plataforma de embarque de Otto; pulando para cima dela, foi abrir as portas de metal e entrou na fábri­ca. Aspirou o odor penetrante de leite coalhado.

— Lewis!

Otto estava parado no outro lado da pequena fábrica, à luz difusa do interior, cercado por máquinas escuras, supervi­sionando a operação, com o queijo sendo despejado em moldes redondos de madeira. À medida que cada molde ficava cheio, o filho de Otto, Karl, levava-o para a balança, anotava o peso e o número do molde, indo depois empilhá-lo a um canto. Otto disse alguma coisa a Karl e depois atravessou o assoalho de madeira para apertar a mão de Lewis.

—  Que prazer em vê-lo, meu amigo! Mas está parecendo terrivelmente cansado, Lewis. Está precisando e muito de um bom schnapps feito em casa.

—  E você parece estar muito ocupado, Otto. Mas eu fi­caria imensamente grato pelo schnapps.

—  Não precisa preocupar-se com o fato de eu parecer ocupado. Karl é que está cuidando de tudo agora. E acha que eu deveria preocupar-me com Karl? Ele é um fazedor de quei­jos. Quase tão bom quanto eu.

Lewis sorriu e Otto deu-lhe uma palmadinha afetuosa nas costas, conduzindo-o a seu escritório, uma pequena área cer­cada por tabiques, perto da plataforma de embarque. Otto aco­modou-se em sua cadeira antiquada, por trás da escrivaninha, fazendo as molas rangerem. Lewis sentou-se diante dele, no outro lado da mesa. Otto abaixou-se e tirou uma garrafa e dois copos pequenos de uma gaveta.

—  E agora, meu amigo, vamos tomar um bom trago. Para fazer seu rosto ficar vermelho outra vez.

E despejou o líquido da garrafa nos copos. O licor ardeu na garganta de Lewis; o gosto parecia o de diversas flores des­tiladas.

—  Delicioso, Otto...

—  Claro que é delicioso. Eu mesmo faço. Trouxe sua ar­ma, Lewis?

Lewis assentiu.

—  E eu que estava pensando que era o tipo de amigo que aparece em meu escritório e toma meu schnapps e come meu lindo queijo... — Otto se levantou e foi até uma gela­deira pequena no outro lado do escritório. —  ... mas du­rante todo o tempo está pensando apenas em sair daqui e ati­rar em alguma coisa.

Colocou um queijo diante de Lewis e cortou vários peda­ços com uma faca. Aquele era um dos queijos especiais que Otto fabricava para vender com seu próprio nome; as rodelas de cheddar eram comercializadas por uma companhia maior.

—  E agora me diga, Lewis: estou certo ou não estou?

—  Está, sim.

—  Era o que eu pensava. Mas não há problema, Lewis. Comprei um cachorro novo. Um cachorro muito bom. Pode ver a quatro ou cinco quilômetros de distância... e pode farejar a uns quinze quilômetros! Acho que muito em breve vou dar a esse cachorro o lugar de Karl.

O queijo estava tão delicioso quanto o schnapps.

—  Acha que está muito frio e úmido para sair com um cachorro ?

— Mas claro que não! Debaixo das árvores não está tão frio. E nós dois podemos encontrar algum animal. Talvez até mesmo uma raposa, hein?

—  E não tem medo dos fiscais de caça?

—  Mas claro que não! Eles tratam de fugir quando me encontram. Dizem para si mesmos: lá está aquele velho ale­mão doido... e com uma arma nas mãos!

—  Vamos sair para ver o cachorro, Otto.

—  Quer ver o cachorro, hein? É uma cadela, Lewis. E quando a conhecer, tenho certeza de que vai ficar de joelhos e pedi-la em casamento.

Os dois homens vestiram seus casacos e saíram do escri­tório. Lá fora, Lewis avistou um rapaz alto e esquelético, mais ou menos da idade de Peter Barnes, na plataforma de carga. Usava uma camisa púrpura e jeans apertados e estava empi­lhando as formas de queijo para o transporte. Ficou olhando para Lewis por um momento, depois desviou a cabeça e sorriu.

Ao se encaminharem para os canis, Lewis disse:

—  Contratou um novo empregado, Otto?

—  Isso mesmo. Você o viu? Foi o pobre coitado que en­controu o corpo da velha que tinha cavalos. Ela morava lá per­to de você.

—  Rea Dedham... — murmurou Lewis. Quando olhou para trás, por cima do ombro, o rapaz ainda o fitava, meio sor­rindo. Lewis engoliu em seco e tornou a olhar para a frente.

—  Isso mesmo, Lewis. Ele estava muito perturbado e não podia continuar vivendo lá por muito tempo. Ele é muito sensível, Lewis. Pediu-me um emprego e arrumou um quarto em Afton. Dei-lhe uma vassoura para varrer o chão, e o deixo limpar as máquinas e empilhar os queijos. Os negócios irão muito bem até o Natal. Depois disso, não teremos mais condi­ções de mantê-lo.

Rea Dedham, Edward e John, pensou Lewis. Era perse­guido até mesmo ali...

Otto deixou a nova cadela sair do canil e agachou-se ao lado dela, esfregando as mãos para cima e para baixo no pêlo. Era uma cachorra de caça, esguia e musculosa; não latiu nem pulou de alegria, como faziam os outros cachorros, por ter sido tirada do canil, permanecendo imóvel e atenta ao lado de Otto, os olhos azuis extremamente alerta. Lewis inclinou-se para afagá-la e a cadela aceitou sua mão, ao mesmo tempo em que lhe fa­rejava as botas.

—  Essa é Flossie — disse Otto. — Que cachorra, hein? Você é linda, minha Flossie! E agora vamos dar uma voltinha, minha Flossie?

Pela primeira vez, a cachorra demonstrou alguma anima­ção, inclinando a cabeça e abanando a cauda. O animal bem treinado, Otto feliz ao lado, a proximidade das árvores e o odor penetrante da fabricação de queijo pareciam afastar Lewis do rapaz de jeans apertados atrás dele e da Sociedade Chowder que se escondia por trás do rapaz. E ele disse:

—  Estou querendo contar-lhe uma história, Otto.

—  É mesmo? Isso e’ muito bom, Lewis. Pode contar.

—  Quero dizer-lhe como minha esposa morreu.

Otto inclinou a cabeça e por um momento, absurdamen­te, pareceu o animal ajoelhado diante dele.

—  Está certo, está certo... — assentiu Otto e, pensa­tivo, passou um dedo pela base das orelhas da cadela. — Pode contar-me tudo durante a hora ou duas que passaremos na ma­ta. Estou contente, Lewis, muito contente...

 

Lewis e Otto chamavam ao que faziam, quando saíam com rifles e um cachorro, de caçada de guaxinins. Otto vivia se animando com a possibilidade de encontrarem uma raposa. Mas a verdade é que fazia mais de um ano que não atiravam em coisa alguma. Os rifles e o cachorro eram basicamente um pretexto para vaguearem pelo bosque nas encostas acima da fábrica de queijo. Para Lewis, era uma versão mais esportiva de suas corridas matutinas. Às vezes, disparavam as armas. Ha­via ocasiões em que um dos cachorros encurralava algum ani­mal. Lewis poderia tentar o tiro, mas quase que invariavel­mente Otto olhava para o animal encurralado e furioso, no alto de uma árvore, e desatava a rir. E depois dizia:

—  Vamos embora, Lewis. Esse bicho é bonito demais. Vamos procurar outro que seja feio.

Lewis desconfiava que, se acontecesse algo assim desta vez, Flossie não iria gostar. A cadela esguia e luzidia parecia excepcionalmente profissional. Ela não saiu correndo atrás de pássaros ou esquilos, como a maioria dos outros cachorros, se­guindo sempre na frente deles, inclinando a cabeça para um lado e outro, abanando a cauda.

—  Flossie vai obrigar-nos a trabalhar — comentou Lewis.

—  Tem razão. Paguei duzentos dólares para bancar o tolo na frente de uma cachorra, hein?

Assim que saíram do vale e se embrenharam entre as ár­vores, Lewis sentiu que sua tensão se dissipava. Otto estava se exibindo com a cachorra, assoviando para fazê-la descrever uma curva, assoviando para chamá-la de volta.

Estavam agora num trecho mais denso do bosque. Como Otto previra, ali não estava tão úmido quanto no vale. Nos trechos mais expostos, a neve derretida se transformara em filetes de água e o terreno lamacento por baixo lhes sugava as botas. Mas nos trechos mais abrigados, sob uma coberta de coníferas, parecia que o degelo jamais chegaria ali. Em determi­nado momento, Lewis perdeu Otto de vista por cerca de dez minutos. Depois, passou a vislumbrar o casaco vermelho do amigo por entre as árvores, ouvindo-o comunicar-se com a ca­chorra. Lewis levou o Remington ao ombro e mirou o tronco de um pinheiro. A cachorra corria lá na frente, à procura de um cheiro qualquer.

Meia hora depois, quando Flossie finalmente encontrou um cheiro, Otto estava cansado demais para segui-la. A ca­chorra começou a latir, correndo para a direita. Otto abaixou o seu bacamarte e disse:

—  Ora, Flossie, deixe o bicho ir embora!

A cachorra ganiu, virando-se para olhar os dois, com uma expressão de incredulidade, como a dizer: “O que estão que­rendo afinal, seus palhaços?” Depois, baixou a cauda e voltou. A dez metros dos dois homens, sentou-se e começou a lamber os próprios flancos.

—  Flossie já desistiu de nós — comentou Otto. — Não estamos à altura dela. Vamos tomar um trago. — Estendeu um frasco para Lewis. — Acho que bem que estamos precisando de nos esquentar, hein?

—  Pode fazer uma fogueira por aqui?

—  Mas claro que posso! Passei há pouco por um amon­toado de árvores caídas. Há muita lenha seca ali. Basta abrir um buraco na neve, meter a lenha dentro e. . . presto! Aí está o seu fogo!

Verificando que o topo da colina ficava a menos de vinte metros acima dele, Lewis continuou a subir, enquanto Otto voltava para buscar lenha seca. Flossie, não mais interessada, ficou observando Lewis subir pelo resto do caminho com al­guma dificuldade.

Ele não esperava o que descobriu. Haviam ido mais longe do que imaginara e lá embaixo, além da encosta coberta de ár­vores, podia-se ver a faixa de uma estrada. O bosque recome­çava no outro lado dela, mas os poucos carros que por ali passavam representavam uma espoliação. Estragavam por comple­to o frágil ânimo de bem-estar que experimentava.

E, um momento depois, Lewis teve a sensação de que Milburn fora alcançá-lo até mesmo ali, procurando-o no alto de uma colina coberta de vegetação: um dos carros que se des­locavam rapidamente pela estrada era o de Stella Hawthorne.

—  Oh, Deus! — murmurou Lewis, observando o Volvo de Stella passar diretamente abaixo dele.

O carro e a mulher ao volante traziam-lhe de volta a noi­te e a manhã. Era como se tivesse armado uma barraca na praça central; até mesmo ali na mata, Milburn sussurrava a seu redor. O carro de Stella continuou a subir pela estrada. Um momento depois, ela ligou a lanterna indicadora e foi pa­rar no acostamento. Não demorou muito para que outro carro parasse ao lado. Um homem saltou e foi até a janela de Stella, batendo um pouco, até que ela finalmente abriu a porta.

Lewis virou-se e desceu pela encosta escorregadia, ao en­contro de Otto.

O amigo já acendera uma pequena fogueira. No fundo de um buraco escavado na neve, sobre uma camada de pedras, uma chama lambia um graveto. Otto largou um outro maior no buraco, depois outro, em seguida um punhado, fazendo com que a chama única se transformasse em uma dúzia. Por cima do fogo, construiu uma tenda de gravetos de dois palmos de altura.

—  Está pronto, Lewis. Pode esquentar as mãos.

—  Ainda sobrou algum schnapps?

Lewis pegou o frasco e foi sentar-se ao lado de Otto num tronco caído, do qual o amigo tirara a neve. Otto tateou os bolsos e tirou um salsichão de fabricação doméstica, cortado ao meio. Entregou uma metade a Lewis e deu uma mordida na outra. O fogo subiu pela tenda de gravetos e esquentou os tor­nozelos de Lewis, através das botas. Ele estendeu as mãos e os pés na direção da fogueira e deu uma mordida em sua me­tade do salsichão. E enquanto mastigava, ele disse:

—  Uma noite, Linda e eu fomos jantar numa das suítes do hotel que me pertencia. Linda não sobreviveu àquela noite. Otto, acho que a mesma coisa que liquidou minha esposa está agora atrás de mim.

 

Peter ergueu-se, ao lado do estábulo, atravessou rapida­mente o pátio e foi dar uma espiada pela janela da cozinha. Havia panelas no fogo, uma mesa redonda posta para duas pes­soas: a mãe viera até ali para o café da manhã. Ele ouviu pas­sos, enquanto a mãe se aprofundava pela casa, obviamente à procura de Lewis Benedikt. O que ela faria quando descobrisse que Lewis não estava em casa?

“É claro que mamãe não está correndo qualquer perigo”, disse Peter para si mesmo. “Afinal, esta não é a casa dela. As­sim, mamãe não pode estar em perigo. Descobrirá que Lewis não está e voltará para casa.” Mas a situação era parecida de­mais com a outra ocasião, ele olhando por uma janela e espe­rando junto a uma porta, enquanto outra pessoa vagueava por uma casa vazia. “Ela simplesmente voltará para casa.” Peter tocou na porta, esperando que estivesse fechada. Mas a porta se entreabriu ligeiramente.

Só que desta vez ele não entraria na casa. Estava com medo de muitas coisas. . . e a possibilidade de se encontrar com a mãe e ter de inventar uma explicação para sua presença ali era apenas uma delas.

Mas poderia dar uma explicação. Poderia dizer que queria conversar com Lewis sobre... sobre qualquer coisa. Sobre a Universidade de Cornell. Sobre as fraternidades universitárias.

Subitamente, ele avistou a cabeça esmigalhada de Jim Har­die escorregando pela parede manchada.

Peter tirou a mão da porta e recuou pelo pátio. Deu vá­rios passos para trás, olhando para os fundos da casa. De qual­quer forma, era mesmo fantasia. O rosto furioso da mãe dei­xara bem claro que ela não aceitaria qualquer conversa fiada de conselhos sobre as fraternidades universitárias.

Peter recuou ainda mais, a casa de Lewis parecendo uma fortaleza, dando a impressão por um momento de que quase se inclinava para acompanhá-lo. Uma cortina se mexeu e Peter não pôde mais se afastar. Havia alguém atrás daquela corti­na... e não era sua mãe. Podia ver apenas os dedos brancos que a puxavam. Sentiu vontade de correr, mas as pernas não se mexiam.

O vulto de mãos brancas estava aproximando o rosto do vidro e sorrindo para ele. Era Jim Hardie.

Dentro da casa, a mãe soltou um grito.

As pernas de Peter recuperaram os movimentos e ele cor­reu pelo pátio, entrando na casa.

Atravessou rapidamente a cozinha e descobriu-se numa sala de jantar. Através de uma arcada larga, podia ver os mó­veis da sala de estar, a luz do sol entrando pelas janelas da frente.

—  Mamãe — Peter correu para a sala de estar. Dois sofás de couro flanqueavam uma lareira, armas antigas estavam penduradas nas paredes. — Mamãe!

Jim Hardie entrou na sala, sorrindo. Levantou as mãos, as palmas viradas para a frente, indicando a Peter que suas intenções não eram violentas.

—  Oi! — disse ele. A voz não era a de Jim. Não era a voz de qualquer ser humano.

—  Você está morto — balbuciou Peter.

—  É uma coisa muito curiosa — respondeu a coisa que parecia com Hardie. — A gente não se sente realmente assim depois que acontece. Nem mesmo se sente dor, Peter. A sen­sação é quase agradável. Pensando bem, é decididamente agra­dável. E é claro que não precisamos nos preocupar com mais nada. O que é uma grande vantagem.

—  O que fez com minha mãe?

—  Ela está bem. Neste momento, ele está lá em cima com sua mãe. Você não pode subir. Devo conversar com você.. Oi!

Peter olhou freneticamente para a parede onde estavam algumas lanças antigas, mas ela ficava longe demais.

—  Você nem mesmo existe!  — gritou ele, quase cho­rando. — Eles o mataram!

Peter pegou um abajur numa mesinha ao lado de um dos sofás.

—  Não pode dizer que não existo, Peter, porque estou aqui. Eu já lhe disse “oi”?  É o que esperam que eu diga. Vamos...

Peter jogou o abajur contra o peito da coisa que parecia com Hardie, com toda a sua força. A coisa continuou a falar, enquanto o abajur voava em sua direção:

—  ... nos sentar e...

O abajur se espatifou na parede, em mil pedaços, que pa­reciam faiscar como centelhas.

Peter correu pela sala de estar, quase soluçando de tanta impaciência. Na outra extremidade da sala, passou por uma arcada e sentiu os pés escorregarem nos ladrilhos brancos e pretos. À direita, ficava a maciça porta da frente, à esquerda uma escada atapetada. Peter subiu a escada correndo.

Parou ao chegar no primeiro patamar, vendo que a escada continuava. Na outra extremidade de um corredor parecendo uma galeria, podia avistar o começo de outra escada, que evi­dentemente levava a outra área da casa.

—  Mamãe!

No instante seguinte, Peter ouviu um gemido, bem perto. Encaminhou-se para a porta do quarto de Lewis e abriu-a. A mãe soltou outro gemido estrangulado. Peter entrou correndo no quarto.

E parou abruptamente. O homem da casa de Anna Mos­tyn estava de pé junto a uma cama grande, que Peter sabia que só podia ser de Lewis. Um pijama listrado estava pendurado numa cadeira. O homem usava os óculos escuros e o gorro de tricô. As mãos estavam apertando o pescoço de Christina Barnes.

—  Jovem Barnes — disse ele. — É incrível como vocês, jovens, vivem bisbilhotando, como se metem no que não é da sua conta. Acho que está precisando da palmatória.

— Eles não são reais, mamãe! — balbuciou Peter. — Pode fazê-los desaparecer! — Os olhos da mãe estavam esbu­galhados, o corpo se mexia convulsivamente. — Não pode dar atenção ao que eles dizem! Entram na cabeça da gente e nos hipnotizam!

—  Não precisamos recorrer a isso — disse o homem.

Peter foi até a prateleira larga sob as janelas e pegou um vaso de flores grande.

—  Garoto — disse o homem.

Peter levantou o braço. O rosto da mãe estava ficando roxo, a língua saía pela boca. Peter soltou um gemido e recuou o braço para arremessar o vaso no homem. Duas mãos frias e pequenas agarraram-lhe o pulso. Foi envolvido por uma lufada de ar podre, o cheiro de um animal morto há vários dias.

—  Bom menino — disse o homem.

 

(Alfinete de chapéu)

 

Furioso, Harold Sims entrou no carro, obrigando Stella a se afastar para o lado, sobre o assento.

— Mas que idéia é essa? Que diabo está querendo ao se comportar desse jeito?

Stella tirou um maço de cigarros da bolsa e acendeu um. Sem dizer nada, estendeu o maço para Harold.

—  Eu perguntei que diabo está querendo! Tive de guiar quarenta quilômetros para chegar até aqui! — Afastou o maço, bruscamente.

—  Se bem me lembro, a idéia de um encontro foi sua. Pelo menos foi o que disse ao telefone.

—  Queria encontrar-me com você em sua casa! E sabia disso!

—  Marquei o encontro aqui. Não precisava vir.

—  Mas eu queria vê-la!

— Então que diferença faz se nos encontramos aqui ou em Milburn? Pode perfeitamente dizer o que está querendo aqui mesmo.

Harold Sims deu um murro no painel.

— Mas que diabo! Estou na maior tensão e não preciso que você me traga problemas adicionais! Por que quis encon­trar-se logo aqui, nesta parte da estrada tão remota?

Stella olhou ao redor.

—  Acho que é um lugar muito bonito. Não concorda? Mas, respondendo à sua pergunta, marquei o encontro aqui porque não queria recebê-lo em minha casa.

—  Não queria que eu fosse a sua casa... — Por um momento, Harold ficou com uma expressão tão aturdida que Stella compreendeu ser um enigma para ele. Os homens para os quais se era um enigma já não serviam para mais nada.

—  Não, não queria — disse ela, suavemente.

— Mas poderíamos encontrar-nos em algum bar ou res­taurante. Ou você poderia ter ido a Binghamton...

—  Queria encontrá-lo a sós.

—  Está bem, está bem, eu desisto!  — Ele ergueu as mãos, como se estivesse literalmente renunciando  a alguma coisa. — Imagino que nem mesmo está interessada em saber qual é o meu problema.

—  Há meses que me vem falando sobre seus problemas, Harold, e tenho escutado com toda a aparência de interesse.

Abruptamente, ele expirou sonoramente, pôs a mão sobre a dela e disse:

—  Vai partir comigo? Quero que vá embora em minha companhia.

—  Isso não é possível. — Stella afagou-lhe a mão e depois retirou a  sua. — Nada nesse gênero jamais  irá  acontecer, Harold.

—  Então parta comigo no ano que vem. Isso nos dará tempo suficiente para transmitir a notícia a Ricky. — Ele tornou a apertar a mão de Stella.

—  Além de ser impertinente, está bancando o tolo. Você está com quarenta e seis anos e eu tenho sessenta. E você tem que pensar em seu emprego. — Stella sentia-se quase como se estivesse falando com um de seus filhos. Desta vez, empurrou firmemente a mão de Harold e colocou-a no volante.

—  Ah, diabo! — gemeu ele. — Tenho um emprego só até o final do ano. O departamento não está recomendando minha promoção, o que significa que terei de ir embora. Holz deu-me a notícia hoje. Disse que lamentava muito, mas estava tentando orientar o departamento em uma nova direção e eu não me mostrava disposto a cooperar. Além disso, quase não tenho publicado meus trabalhos. Mas isso não é culpa minha. Você sabe muito bem que escrevi três artigos, mas enquanto todos  os  outros  antropólogos  do país  conseguem  ser  publi­cados...

—  Já ouvi tudo isso antes, Harold — interrompeu Stella, apagando o cigarro no cinzeiro do carro.

— Sei disso. Mas agora é realmente importante. Os novos caras do departamento é que estão forçando minha saída. Leadbeater recebeu uma dotação para viver numa reserva índia no próximo período e arrumou um contrato com a editora da Uni­versidade de Princeton. Enquanto isso, o livro de Johnson vai sair no próximo outono. E eu sou chutado!

O som de sua voz ultrapassou a barreira da paciência de Stella, que finalmente compreendeu o que ele estava querendo dizer.

—  Está me convidando a deixar tudo e partir em sua companhia, quando nem mesmo tem um emprego, Harold?

—  Quero você a meu lado. — Para onde pretende ir?

—  Ainda não sei. Talvez para a Califórnia.

—  Ora, Harold, você está sendo insuportavelmente banal! Está querendo viver num trailer, estacionado em algum acam­pamento? Comendo hambúrgueres? Ao invés de ficar se lamen­tando para mim, deveria estar escrevendo cartas e tentando arrumar outro emprego. E por que acha que eu gostaria de partilhar sua miséria? Fui sua amante, não sua esposa. — No último segundo, Stella conteve-se e não acrescentou o que lhe veio à cabeça: “Graças a Deus”.

Com voz abafada, Harold disse:

—  Preciso de você...

—  Isso é ridículo.

—  Preciso de você... e muito.

Stella percebeu que ele estava quase à beira das lágrimas.

—  Agora está se mostrando não apenas banal, Harold, como também está se entregando à autocompaixão. É realmente um homem que vive se lamentando, Harold. Levei muito tempo para perceber. Mas ultimamente, sempre que penso em você, vejo-o com um grande cartaz pendurado no pescoço e onde está escrito “Caso digno de pena”. Não pode deixar de reconhecer, Harold, que as coisas entre nós não têm sido muito satisfatórias nos últimos tempos.

—  Se eu a desagrado tanto, por que continuou a me ver?

—  É que você não tinha muita competição. E para ser franca, a partir de agora não tenciono continuar a vê-lo. De qualquer forma, estará ocupado demais à procura de um novo emprego para satisfazer aos meus caprichos. E estarei ocupada demais  cuidando de meu marido para ficar escutando  seus lamentos.

—  Seu marido? — disse Harold, agora realmente atur­dido.

— Exatamente. Para mim, ele é muito mais importante do que você. E neste momento está precisando de mim muito mais. Não continuarei a vê-lo, Harold.

—  Aquele nanico encarquilhado... aquele... aquele... Não é possível!

—  Tome cuidado com o que diz, Harold.

—  Mas ele é tão insignificante! Há anos que o vem pas­sando para trás! Há anos que o vem fazendo de tolo!

—  Já chega, Harold. Não vou permitir que o insulte. Se tive muitas experiências com os homens durante a minha vida, Ricky soube ajustar-se a isso. O que é mais do que você seria capaz de fazer. E se fiz alguém de tolo, foi justamente a mim mesma. Acho que já está na hora de me retirar para a respei­tabilidade. E mais uma coisa, Harold:  se não pode ver que Ricky é pelo menos quatro ou cinco vezes mais importante do que você, então está simplesmente querendo iludir-se.

—  Santo Deus! Você é uma cadela de verdade! — disse Harold, os olhos pequenos se arregalando ao máximo que era possível.

Stella sorriu.

—  “Você é a criatura mais terrível e cruel que já conhe­ci”, como Melvyn Douglas disse a Joan Crawford. Não consigo lembrar-me do nome do filme, mas Ricky sempre gostou muito dessa fala. Por que não liga para ele e pergunta o nome do filme?

—  Quando penso em todos os homens que você reduziu a pó de merda...

—  Poucos   conseguiram   efetuar   a   transformação   com tanto sucesso quanto você.

— Sua filha da puta! — exclamou Harold,  a boca  se estreitando perigosamente.

—  Como todos os homens que se entregam à autocom­paixão, você é realmente muito grosseiro, Harold. E agora quer fazer o favor de sair do meu carro?

—  Você está zangada — murmurou ele, incrédulo. — Perdi o  emprego  e  agora você  me  manda  embora.  E  está zangada!

—  Estou, mesmo. E agora saia, Harold, por favor. Volte para o seu pequeno paraíso de egocentrismo.

—  Posso muito bem ir embora agora. — Inclinou-se para a frente. — Ou posso forçá-la a ver a luz da razão, fazendo-lhe o que tanto gosta.

—  Está ameaçando violentar-me, Harold?

—  É mais do que uma simples ameaça.

— É uma promessa, não é mesmo? — disse ela, vendo pela primeira vez a brutalidade nos olhos dele. — Mas antes de começar a se babar em cima de mim, vou fazer-lhe também uma promessa.

Stella levou a mão à parte de baixo da gola do vestido e tirou um comprido alfinete de chapéu. Há anos que sempre o levava aonde quer que fosse, desde que um homem em Schenectady seguira-a durante um dia inteiro, através das lojas. Esten­deu o alfinete à sua frente e acrescentou:

—  Se fizer qualquer menção de me atacar, prometo enfiar isto em seu pescoço. — E depois sorriu; e foi o sorriso que surtiu efeito.

Harold saiu do carro apressadamente, como se tivesse acabado de receber um choque elétrico, batendo a porta, furio­samente. Stella deu marcha à ré até a cerca de proteção, fez a mudança e saiu do acostamento.

—  Vá para o diabo! — berrou Harold, batendo com o punho cerrado na palma da outra mão. — Estou torcendo

Para que sofra um acidente!

Harold Sims pegou uma pedra no acostamento e arremes­sou-a para o outro lado da estrada. Depois, ficou parado por um momento, a respiração ofegante.

—  Mas que filha da puta!

Passou os dedos pelos cabelos curtos. Estava furioso” demais para ter condições de guiar de volta à universidade. Olhou para a mata na encosta que descia, viu as poças de água gelada entre as árvores. Depois, olhou para as quatro faixas de rolamento da estrada e para a encosta além, subindo, onde o terreno estava mais seco.

 

(História)

 

—  Acabáramos de ter uma briga — disse Lewis. — Não costumávamos  brigar  com  muita  freqüência.  E  quando  por acaso acontecia, geralmente era eu que estava errado. Desta vez, a causa da briga foi o fato de eu ter despedido uma criada. Era uma moça do interior, vinda de uma localidade próxima a Málaga. Nem mesmo consigo recordar o nome dela, mas sei que era meio maluca. Ou pelo menos era o que eu pensava. — Lewis pigarreou, inclinando-se na direção do fogo. — O mo­tivo pelo qual eu pensava assim era o fato de ela ser muito impressionada com o ocultismo.  Acreditava em magia, em maus espíritos... o típico espiritualismo dos camponeses espa­nhóis. É claro que isso não me incomodava a ponto de despedi-la, apesar de ela assustar algumas das outras criadas, vendo presságios em tudo. Passarinhos no gramado, uma chuva ines­perada, um vidro  quebrado...  tudo era  um  presságio. Mas despedi-a porque se recusou a limpar um dos quartos.

—  O que é um bom motivo, Lewis.

—  Foi o que também pensei. Mas Linda achou que eu estava sendo exigente demais com a moça. Ela jamais se recusa­ra a limpar qualquer quarto antes. Mas estava transtornada pelos hóspedes, dizia que eram maus ou algo parecido. Um absurdo total.

Lewis tomou outro gole de schnapps, enquanto Otto acrescentava mais gravetos ao fogo. Flossie se aproximou, fi­cando com o traseiro perto do fogo.

—  Esses hóspedes eram espanhóis, Lewis?

—  Eram americanas, uma mulher de San Francisco cha­mada Florence de Peyser e uma menina, sua sobrinha, Alice Montgomery. Era uma garota muito bonita. A Sra. de Peyser tinha também uma criada que viajava em sua companhia, uma mexicano-americana chamada Rosita. Elas ocuparam uma das suítes  maiores,  no  alto  do  hotel.  Não   se  podiam  imaginar pessoas menos fantasmagóricas do que essas três, Otto. É claro que Rosita podia manter a suíte limpa e provavelmente o fazia. Mas nossa arrumadeira tinha a obrigação de ir lá pelo menos uma vez por dia e recusou-se. Foi por isso que a despedi. Linda queria que eu mudasse a escala de trabalho, para que outra moça se encarregasse da suíte.

Lewis fez uma pausa, olhando para o fogo.

—  Algumas pessoas nos ouviram brigar, o que também acontecia raramente. Estávamos no jardim das  rosas  e acho que gritei. Estava convencido de que se tratava de uma questão de princípios. Linda pensava a mesma coisa. Claro que fui muito estúpido. Deveria ter alterado a escala de serviço, como Linda queria. Mas era teimoso demais. Mais um ou dois dias e Linda certamente me faria mudar de idéia. Mas só que ela não viveu o bastante para isso. — Mordeu um pedaço do salsichão e ficou mastigando por algum tempo, sem sentir o menor gosto. — Naquela mesma noite, a Sra. de Peyser convidou-nos para jantar em sua suíte. Na maioria’ das noites, jantávamos a sós e ficávamos longe dos hóspedes. Mas, de vez em quando, um hóspede nos convidava para almoçar ou jantar. Achei que a Sra. de Peyser estava querendo ser gentil e aceitei o convite.

“Não deveria ter ido. Estava muito cansado, exausto mesmo. Havia trabalhado intensamente durante o dia. inteiro. Além de discutir com Linda, ajudara a carregar duzentas caixas de mantimentos para a despensa pela manhã e passara a tarde participando de um torneio de tênis. Joguei duas partidas de duplas. O que realmente precisava era de fazer uma refeição ligeira e depois ir para a cama. Mas fomos assim mesmo, subin­do para a suíte por volta das nove horas. A Sra. de Peyser serviu-nos drinques. Havíamos acertado que um garçom levaria o jantar para a suíte quando faltassem uns quinze minutos para as dez horas. Rosita nos serviria, enquanto o garçom voltaria para o restaurante.

“Tomei apenas um drinque e imediatamente senti-me meio tonto. Florence de Peyser serviu-me outro. Fiquei em tal estado que tudo o que podia fazer era tentar puxar conversa com Alice. Era uma garotinha adorável, mas jamais falava, a menos que lhe fizessem alguma pergunta. Era asfixiada pelas boas maneiras e tão passiva que se podia pensar que era meio retar­dada. Eu imaginava que os pais tinham querido livrar-se dela durante o verão, deixando-a aos cuidados da tia.

“Mais tarde, fiquei pensando que talvez meu drinque esti­vesse drogado. Comecei a me sentir muito esquisito, não exata­mente passando mal ou embriagado. Parecia que estava disso­ciado de mim, com a impressão de flutuar acima do meu corpo. Mas Florence de Peyser, que nos oferecera um passeio em seu iate, estava acima de qualquer suspeita. Era simplesmente impossível. Linda percebeu que eu não estava me sentindo bem, mas a Sra. de Peyser riu de suas preocupações e é claro que assegurei que estava tudo bem comigo.

“Nós nos sentamos para comer. Consegui engolir algumas garfadas, mas me sentia excessivamente inebriado, completa­mente tonto. Alice não disse nada durante o jantar, mas fitava-me timidamente de vez em quando, sorrindo como se eu fosse um divertimento excepcional. Mas eu não sentia a menor di­versão. Pode ter sido apenas o álcool, somando-se ao cansaço. Mas a verdade é que meus sentidos estavam um tanto estra­nhos, os dedos dormentes, assim como a boca. As cores na sala pareciam mais pálidas do que eu sabia que eram. E não conse­guia sentir o menor gosto na comida.

“Depois do jantar, a tia mandou Alice ir deitar-se. Rosita serviu um conhaque, que eu não tomei. Podia falar e talvez parecesse normal para qualquer outra pessoa exceto Linda. Mas tudo o que eu queria era deitar-me. A suíte, apesar de grande, parecia contrair-se a meu redor, comprimindo-me... compri­mindo a nós três, ainda sentados à mesa. A Sra. de Peyser manteve-nos ali, conversando. Rosita sumiu.

“A menina chamou-me do quarto. Podia ouvir sua voz dizendo repetidamente ‘Sr. Benedikt’, sempre baixinho. A Sra. de Peyser disse: ‘Será que se importa? Ela gosta muito de você’. Falei que absolutamente não me incomodava, que teria o maior prazer em desejar boa-noite à menina. Mas Linda levantou-se antes que me pudesse mexer, dizendo: ‘Está can­sado demais para ir até lá, querido. Pode deixar que vou no seu lugar’. A Sra. de Peyser protestou: ‘Não. A menina quer a ele’. Mas já era tarde demais, pois Linda estava-se encami­nhando para o quarto da menina.

“E um momento depois já era tarde demais para qualquer coisa. Linda entrou no quarto e no instante seguinte compreen­di que algo estava terrivelmente errado. Porque não houve qualquer barulho. Ouvira a menina sussurrando meu nome e deveria ter ouvido Linda falando com ela. Foi o silêncio mais ruidoso de minha. vida. Apesar de dominado por um torpor imenso, eu estava consciente de que a Sra. de Peyser me fitava fixamente. O silêncio foi-se arrastando. Acabei me levantando e encaminhei-me para o quarto.

“Linda começou a gritar antes que eu estivesse na metade do caminho. Eram gritos terríveis... penetrantes...” Lewis fez uma pausa, sacudindo a cabeça. “Abri a porta brusca­mente e entrei, ouvindo nesse momento o barulho de vidro quebrado. Linda estava parada na janela, estilhaços de vidro chovendo em cima dela. E desapareceu no instante seguinte. Fiquei chocado e aterrorizado demais para sequer falar. Por um segundo, não fui capaz de me mexer. Olhei para a menina, Alice. Ela estava de pé na cama, as costas coladas na parede. Por um segundo, por menos de um segundo, tive a impressão de que ela sorria para mim.

“Corri para a janela. Alice começou a chorar atrás de mim. Era tarde demais para ajudar Linda. Ela estava caída no pátio, morta. Uma pequena multidão, gente que saíra do res­taurante para respirar o ar fresco da noite, estava agrupada em torno do corpo. Algumas pessoas olharam para cima e viram-me debruçado sobre a janela quebrada. Uma mulher de Yorkshire soltou um grito ao me ver.”

—  Ela deve ter pensado que você havia empurrado sua esposa — comentou Otto.

—  Foi isso mesmo. Ela me fez acusações junto à polícia. Eu poderia ter passado o resto da vida numa cadeia espanhola.

—  Lewis, essa tal Sra. de Peyser e a menina não pode­riam explicar o que realmente havia acontecido?

—  Elas deixaram o hotel. A suíte estava reservada para mais uma semana. Mas enquanto eu prestava declarações à polícia, elas fizeram as malas e foram embora.

—  Mas a polícia não tentou encontrá-las?

—  Não sei. Nunca mais tornei a vê-las. E vou contar-lhe agora uma coisa muito curiosa, Otto. A história teve um final irônico. Ao se retirar, a Sra. de Peyser pagou a conta com um cartão da American Express. Fez inclusive um pequeno discurso para o funcionário da recepção, disse que lamentava muito ter de ir embora, que gostaria de poder fazer alguma coisa para me ajudar, mas era impossível continuar no hotel, depois do choque  que ela  e Alice haviam  sofrido.  Um  mês depois,  a American Express comunicou que o cartão não tinha validade. A verdadeira Sra. de Peyser estava morta e a companhia não podia saldar dívidas contraídas no nome dela. — Lewis soltou uma risada. Um dos gravetos na fogueira caiu nas brasas, espa­lhando fagulhas sobre a neve. — Ela me passou para trás — acrescentou Lewis, rindo novamente. — E então, Otto, o que acha da história?

—  Acho que é uma história tipicamente americana. De­veria ter perguntado à menina o que aconteceu, pelo menos o que a fez ficar de pé na cama.

—  Mas claro que perguntei!  Agarrei-a e sacudi-a,  mas ela se limitou a chorar. Entreguei-a à tia e tratei de descer, o mais depressa que era possível. Nunca mais tive outra oportu­nidade de falar com ela. Mas por que disse que era uma história tipicamente americana, Otto?

—  Porque, meu bom amigo, todo mundo em sua história é assombrado. Até mesmo o cartão de crédito era assombrado. E isso, meu amigo, é echt Amerikanisch.

—  É  possível... Escute, Otto, estou com vontade de ficar sozinho por um momento. Importa-se se eu der uma volta durante alguns minutos?

—  Vai levar seu rifle tão bonito?

—  Não. Não pretendo matar coisa alguma.

— Então leve a pobre Flossie junto.

—  Está certo. Vamos indo, Flossie.

A cachorra levantou-se de um pulo, plenamente alerta outra vez. E Lewis, que se sentia agora realmente incapaz de permanecer sentado e quieto ou de fingir que não fora afetado pelos sentimentos que haviam brotado de suas recordações, embrenhou-se pelo bosque.

 

(Testemunha)

 

Peter Barnes largou o vaso, nauseado com o cheiro fétido que o envolvia. Ouviu uma risadinha estridente, sentiu que o pulso já estava frio no lugar em que o menino invisível o agarrara. Já sabendo o que iria ver, virou-se para olhar. O me­nino que avistara sentado na sepultura segurava seu pulso com as duas mãos, fitando-o com a mesma expressão vazia e idiota. Os olhos eram dourados.

Peter desferiu um golpe com a mão livre, esperando que p menino esquelético e fétido se dissolvesse como a coisa pare­cida com Hardie lá embaixo. Mas o menino desviou-se do golpe e chutou-lhe o tornozelo com um pé ossudo, que o atin­giu como um malho. O pontapé jogou Peter no chão.

—  Faça-o olhar, pirralho — disse o homem.

O garoto agarrou Peter por trás, Segurando-lhe a cabeça com as mãos geladas, virando-a à força. O mau cheiro horrível se intensificou. Peter compreendeu que a cabeça do menino estava logo atrás da sua e gritou:

—  Largue-me!

Mas as mãos em sua cabeça aumentaram a pressão. A sensação era de que os lados do seu crânio estavam sendo ine­xoravelmente empurrados ao encontro um do outro.

—  Largue-me!   —   berrou   Peter   novamente,   receando desta vez que o menino lhe fosse esmagar o crânio.

Os olhos de sua mãe estavam fechados, a língua pendendo para fora.

—  Você a matou! — gritou Peter.

— Ela ainda não está morta — respondeu o homem. — Está apenas inconsciente. Precisamos dela viva. Não é mesmo, Fenny?

Peter ouviu guinchos horríveis atrás de si e disse:

— Você a estrangulou!

A pressão das mãos do menino afrouxou um pouco, voltan­do ao nível original, o suficiente para prender sua cabeça como se estivesse num torno.

—  Mas não até a morte — disse o homem, dando uma inflexão irônica às palavras. — Posso ter machucado um pouco a traquéia da pobre coitada, que provavelmente vai ficar com a garganta muito dolorida. Não acha que ela tem um lindo pescoço, Peter?

Ele baixou uma das mãos e ficou segurando Christina Barnes apenas com a outra, como se ela não pesasse mais do que um gato. Havia imensas equimoses roxas na parte exposta do pescoço.

—  Você a machucou — balbuciou Peter.

—  Receio que isso tenha de fato acontecido. E gostaria de poder prestar-lhe ó mesmo serviço. Mas nossa benfeitora, a mulher encantadora cuja casa arrombou junto com seu amigo, decidiu que o quer para si mesma. Neste momento, ela está ocupada com assuntos mais urgentes. Mas pode estar certo de que grandes coisas lhe estão reservadas, Jovem Barnes... e também para seus amigos mais velhos. E quando acontecer, nem você nem eles saberão distinguir uma coisa de outra. Não é isso mesmo, irmão idiota?

O menino aumentou um pouco a pressão na cabeça de Peter, deixando escapar um ruído que mais parecia um relincho.

—  Quem é você? — perguntou Peter.

—  Eu sou você, Peter — respondeu o homem, ainda segurando a mãe dele com apenas uma das mãos. — Não é uma resposta simples e objetiva? É claro que não é a única resposta. Um homem chamado Harold Sims, que conhece os seus amigos mais velhos, certamente diria que sou um manitu. O Sr. Donald Wanderley foi informado de que meu nome é Gregory Benton e que sou natural da cidade de Nova Orleans. É verdade que passei alguns meses extremamente agradáveis em Nova Orleans, mas não se pode dizer que eu seja natural de lá. Nasci com o nome de Gregory Bate e assim fui conhe­cido até a minha morte, no ano de 1929. Felizmente, eu havia chegado a um acordo com uma mulher encantadora conhecida como Florence de Peyser, que me poupou as habituais indig­nidades inerentes à morte, as quais eu infelizmente temia. De que está com medo, Peter? Acredita em vampiros? Em lobi­somens?

A voz vibrante ressoava na mente de Peter, embalando-o e acalmando-o, a tal ponto que ele levou um momento para compreender que lhe fora feita uma pergunta direta.

—  Não — sussurrou ele.

(“Mentiroso” foi a palavra que lhe surgiu à mente.)

Nesse momento, o homem que estava segurando sua mãe começou a se transformar e Peter soube, com todas as células de seu corpo, que estava olhando não simplesmente para um lobo, mas para um ser sobrenatural, em forma de lobo, cujo único propósito era matar, semear o terror e o caos, tirar vidas o mais selvagemente que fosse possível; percebeu que o sofri­mento e a morte eram as únicas coisas que tinham sentido para aquele ser. Compreendeu que o ser nada tinha que fosse hu­mano e apenas usava o corpo que outrora possuíra. Compreen­deu também que a criatura lhe estava permitindo contemplar suas profundezas, que toda aquela capacidade de destruição não mandava em si mesma, assim como um cachorro pertence a seu dono; outra mente a possuía e controlava, tão certa­mente quanto a criatura possuía a pureza terrível do seu mal. Tudo isso Peter compreendeu em um segundo. E o seguinte trouxe um reconhecimento ainda pior: que naquelas trevas terríveis havia um encanto mortalmente fatal.

—  Eu não... — balbuciou ele, tremendo todo.

— Mas claro que sim — disse o lobisomem, pondo no­vamente os óculos  escuros.  Percebi perfeitamente que você acredita.   Eu   poderia   transformar-me   num   vampiro   com   a mesma  facilidade.   Seria   ainda  mais  bonito.  E  talvez  mais próximo da verdade.

—  O que é você? — indagou Peter.

—  Pode chamar-me de Dr. Rabbitfoot — respondeu a criatura. — Ou pode chamar-me de Vigia Noturno.

Peter piscou os olhos rapidamente.

—  Infelizmente, terei de deixá-lo agora. Nossa benfeitora providenciará outro encontro com você e seus amigos no mo­mento propício. Antes de partirmos, porém, precisamos satis­fazer nossa fome. — A criatura sorriu, exibindo dentes muito brancos. — Segure-o firmemente.

As mãos frias comprimiram a cabeça de Peter com uma força terrível. Ele começou a chorar.

Ainda sorrindo, a criatura puxou Christina Barnes mais para perto de si. Abaixou a cabeça até o pescoço dela e abriu a boca sobre a pele. Peter tentou pular para a frente, mas as mãos implacáveis contiveram-no. A criatura começou a comer.

Peter tentou gritar e o menino morto que o segurava des­locou as mãos para cobrir-lhe a boca. Apertou a cabeça de Peter contra seu peito. O cheiro de carne putrefata, o terror e desespero que o dominavam, o horror de estar comprimido contra aquele corpo repulsivo, o horror maior de saber o que estava acontecendo com sua mãe... tudo somado era demais para Peter, que perdeu os sentidos.

 

Ele estava sozinho quando voltou a si. O fedor de putre­fação ainda pairava no quarto. Peter gemeu, ergueu o corpo, ficou ajoelhado. O vaso que ele largara estava caído no chão, a seu lado. Flores, ainda brilhantes, estavam espalhadas sobre uma poça no tapete. Peter ergueu as mãos até o rosto e sentiu nelas o cheiro horrível do menino morto que o agarrara. En­gasgou, teve uma ânsia de vômito. O cheiro fétido devia cobrir-lhe também a boca, desprendendo-se da mão do menino. Era como se sua boca e o resto do rosto estivessem cobertos por carne putrefata.

Peter saiu correndo do quarto e seguiu pelo corredor até encontrar um banheiro. Abriu a água quente e lavou o rosto e as mãos repetidas vezes, fazendo bastante espuma e depois enxaguando, pegando novamente o sabonete, esfregando-o entre as mãos. Estava chorando. Á mãe estava morta; viera procurar Lewis e eles a tinham matado. Haviam feito com ela o que faziam com animais: eram criaturas mortas que viviam de sangue, como os vampiros. Mas não eram vampiros. Tam­bém não eram lobisomens; apenas podiam fazer as pessoas pensar que eram. Haviam se vendido há muito tempo ao que quer que as possuísse. Peter recordou a luz verde saindo por baixo de uma porta e quase vomitou na pia. Ela os possuía. Eram os seus vigias noturnos, as coisas da noite. Passou o sa­bonete de Lewis pela boca, esfregando e esfregando, para se livrar do cheiro fétido das mãos de Fenny.

Peter recordou-se de Jim Hardie, sentado no balcão de um bar ordinário à beira da estrada, perguntando-lhe se não gostaria de ver toda Milburn se consumir nas chamas. Com­preendeu que, a menos que pudesse ser mais forte, mais bravo e mais inteligente do que Jim, o que iria acontecer a Milburn seria ainda pior. As criaturas da noite iriam sistematicamente destruir a cidade, transformando-a numa cidade fantasma, dei­xando para trás apenas o cheiro da morte.

“Porque isso é tudo o que elas querem”, disse Peter para si mesmo, recordando o rosto terrível de Gregory Bate. “Tudo o que elas querem é destruir.” Ele viu o rosto tenso de Jim Hardie, o rosto de Jim embriagado, lançando-se a um plano desvairado; o rosto de Sonny Venuti inclinando-se em sua direção, com os olhos esbugalhados; o rosto de sua mãe, ao deixar a caminhonete, no pátio nos fundos da casa; e, sentindo um calafrio, o rosto da atriz na festa do ano anterior, fitando-o com a boca sorridente e os olhos inexpressivos.

Largou a toalha de Lewis no chão do banheiro.

“As criaturas já estiveram aqui antes.”

Só havia uma pessoa que podia ajudá-lo, uma única pessoa que poderia pensar que ele não estava doído nem mentindo. Tinha que voltar à cidade e procurar o escritor que estava hos­pedado no hotel.

A perda da mãe novamente invadiu-o, arrancando-lhe lá­grimas; mas não tinha tempo para chorar agora. Saiu para o corredor, passou diante da porta maciça do quarto de Lewis. E balbuciou:

—  Vou detê-los, mamãe... Vou dar um jeito de agar­rá-los... Vou...                                                

Mas as palavras eram vazias, apenas o desafio de um me­nino. “Estão querendo que pense assim.”

Peter não virou a cabeça para olhar a casa enquanto corria pelo caminho, mas podia sentir a criatura lá atrás, observan­do-o e zombando de suas débeis intenções... e sabendo que sua liberdade era apenas a de um cachorro numa coleira. A qualquer segundo, poderia ser puxado bruscamente, o pescoço machucado, ficando sem poder respirar...

Compreendeu por quê, quando chegou ao final do cami­nho da propriedade de Lewis. Um carro estava estacionado à beira da estrada e lá dentro estava o testemunha-de-jeová que lhe dera uma carona, fitando-o. O homem piscou os faróis para Peter, faróis que pareciam olhos reluzentes.

—  Pode vir — chamou o homem. — Basta vir até aqui, filho.

Peter correu para a estrada. Um carro derrapou ao se desviar dele, outro parou com os pneus rangendo. Meia dúzia de buzinas soaram estridentemente. Peter chegou ao canteiro central da estrada e correu pela outra pista, que estava vazia. Ainda podia ouvir o homem a chamá-lo de seu carro:

—  Volte, filho. Não vai adiantar.

Peter desapareceu por entre a vegetação ao lado da estra­da. Em meio aos ruídos e confusões do tráfego, pôde ouvir nitidamente o testemunha-de-jeová ligando seu carro, para segui-lo de volta à cidade.

 

Cinco minutos depois de afastar-se da fogueira de Otto, Lewis começou a sentir-se cansado. As costas lhe doíam de tanto que removera neve com a pá no dia anterior, as pernas ameaçavam ceder. A cachorra caminhava a seu lado, forçan­do-o a seguir em frente, quando ele preferia simplesmente descer a encosta, de volta a seu carro. Mas mesmo isso era uma cami­nhada de pelo menos meia hora. Melhor seria seguir a cachorra por algum tempo e depois voltar para junto da fogueira.

Flossie parou e farejou o tronco de uma árvore, virou-se para verificar se ele ainda a acompanhava, depois seguiu em frente.

A pior parte da história era o fato de ter deixado que Linda entrasse sozinha no quarto da menina. Sentado à mesa de Florence de Peyser, meio tonto, ainda mais exausto do que se sentia agora, tivera a impressão de que toda a situação era de certa forma falsa, que sem saber estava representando um papel qualquer numa trama, num jogo. Fora isso o que não contara a Otto: a sensação de que algo estava errado o domi­nara durante o jantar. Por baixo da ausência de gosto da co­mida havia o leve sabor de lixo, por baixo da conversa super­ficial de Florence de Peyser havia algo que o fizera imaginar-se como uma marionete feita para dançar. Sentindo isso, por que continuara sentado, por que se esforçara para parecer normal... por que não pegara Linda pelo braço e tratara de deixar a suíte?

Don também falara algo sobre a sensação de estar parti­cipando de um jogo.

“Porque as criaturas o conheciam bastante bem para saber que ficaria. Foi por isso que ficou. Porque elas sabiam que ficaria.”

O vento fraco mudou de direção, tornou-se mais frio. A cachorra levantou o focinho, farejou e virou-se na direção do vento. Começou a se mover mais depressa.

— Flossie! — gritou Lewis.

A cachorra, já cerca de trinta metros à frente dele e visí­vel apenas quando passava entre as árvores, emergiu numa clareira e virou a cabeça para trás, olhando para Lewis. Depois, surpreendeu-o, ao abaixar a cabeça e rosnar. No instante seguin­te, Flossie havia desaparecido.

Olhando para a frente, Lewis podia avistar apenas os troncos maciços dos abetos copados, entremeados com os esqueletos desfolhados de outras árvores, sobre o terreno man­chado de branco. A neve derretida escorria lentamente pela encosta abaixo. Lewis sentia os pés extremamente frios. Final­mente ouviu a cachorra latir e seguiu na direção do ruído.

Quando a encontrou, Flossie começou a ganir. Estava no fundo de uma pequena depressão glacial, com Lewis lá em cima, na beira. Matacões como as estátuas da ilha da Páscoa, incrustados de quartzos, erguiam-se no fundo da depressão. A cachorra levantou a cabeça para fitá-lo, ganiu novamente, sa­cudiu o corpo e encostou-se num dos matacões.

—  Volte, Flossie — disse Lewis.

A cachorra deitou-se ao chão, abanando a cauda.

—  O que encontrou? — indagou ele.

Lewis entrou na depressão e escorregou por uns dois metros na lama gelada. A cachorra latiu uma vez, depois deu uma volta e tornou a comprimir-se contra o chão. Estava olhando para um grupo de abetos na extremidade do espaço vazio. Enquanto Lewis chapinhava pela lama, Flossie foi se arrastando na direção das árvores.

—  Não entre aí, Flossie!

A cachorra arrastou-se até a primeira árvore, sempre ga­nindo, desaparecendo em seguida entre os arbustos.

Lewis chamou-a várias vezes. Mas sabia que a cachorra não voltaria. Nenhum som saía do meio dos abetos. Frustrado, Lewis olhou para o céu e viu nuvens carregadas sendo impe­lidas pelo vento do norte. A trégua de dois dias da neve estava terminada.

—  Flossie!

A cachorra não apareceu. Mas olhando atentamente para a densa cortina de folhas e galhos de abetos, Lewis avistou algo espantoso. Ali estavam os contornos de uma porta. Uma massa de folhas formava a maçaneta. Era a mais perfeita ilusão ótica que ele já tivera; dava para se ver até mesmo as dobra­diças.

Lewis deu um passo à frente. Estava no lugar em que Flossie se deitara. A ilusão foi se tornando mais perfeita à medida que ele ficava mais perto das árvores. Agora, podia até divisar os grãos da madeira envernizada. Era a maneira como se alternavam as cores e sombras, verde mais escuro, verde mais claro, um padrão acidental se transformando em madeira maciça.

Era a porta do seu quarto.

Lewis subiu lentamente pelo outro lado da depressão, en­caminhando-se para a porta. Chegou perto o bastante para tocar na madeira lisa.

Sua vontade era abri-la. Ficou parado ali, as botas úmidas, sob o vento ligeiro e frio, sabendo que todas as ocorrências inexplicáveis de sua vida, desde aquele dia distante em 1929, haviam levado àquele momento: deixavam-no diante de uma porta impossível, para uma experiência imprevisível. Se estava pensando há pouco que a história da morte de Linda era — como Don dissera da história de Alma Mobley — sem sentido ou sem fim, então a explicação estava atrás daquela porta. E Lewis sabia que a porta não levava apenas a um aposento, mas a muitos.

Não podia recusar-se a abri-la. Otto, esfregando as mãos, diante de uma pequena fogueira, era apenas uma parte de uma existência, trivial demais para reivindicar seu valor... trivial demais para se manter indefinidamente. Para Lewis, que já tomara uma decisão, o passado, especialmente os últimos anos em Milburn, era uma sucessão de acontecimentos insípidos, uma longa angústia de tédio e inutilidade, para a qual lhe aparecia agora a saída.

Por isso, Lewis girou a maçaneta de latão e caiu em seu lugar no quebra-cabeça.

E entrou num quarto, como sabia que aconteceria. Reco­nheceu-o imediatamente: era o quarto ensolarado, repleto de flores espanholas, no apartamento do andar térreo em que ele e Linda viviam no hotel. Um tapete chinês sedoso estendia-se sob seus pés para todos os cantos do quarto; flores em vasos, ainda ansiosas por sol, captavam os dourados, vermelhos e azuis do tapete e os refletiam de volta. Ele se virou, viu a porta fechar e sorriu. O sol entrava pelas janelas. Olhando para fora, avistou um gramado verde, um precipício com uma grade na frente, o alto dos degraus que levavam ao mar relu­zente lá embaixo. Lewis aproximou-se da cama de dossel. Um robe azul-escuro de veludo estava dobrado ao pé da cama. Invadido por uma paz intensa, Lewis examinou todo o adorá­vel quarto.

A porta para a sala se abriu e Lewis virou-se, sorrindo para a esposa. Envolto pela mais total felicidade, encaminhou-se para a esposa, os braços estendidos. Parou abruptamente, ao verificar que ela estava chorando.

—  Qual é o problema, querida? O que aconteceu?

Ela ergueu as mãos; estava segurando o corpo de uma cachorra de pêlos curtos.

—  Um dos hóspedes encontrou-a caída no pátio. Estavam todos saindo do almoço. Quando cheguei, estavam parados ao redor, olhando para o pobre animal. Foi horrível, Lewis.

Lewis inclinou-se sobre o corpo da cachorra e beijou o rosto da esposa.

—  Pode deixar que cuidarei disso, Linda. Mas como a cachorra foi parar no pátio?

—  Disseram que alguém a jogou por uma janela... Oh, Lewis, quem no mundo seria capaz de fazer uma coisa dessas?

—  Pode deixar que vou cuidar de tudo,  minha pobre querida. Basta sentar-se aqui e esperar um instante. — Tirou o corpo da cachorra das mãos da esposa. — Vou acertar tudo. Não precisa mais preocupar-se com coisa alguma.

—  Mas o que vai fazer?

—  Acho que vou enterrá-la no jardim das rosas, ao lado de John.

—  Isso é ótimo! Maravilhoso!

Carregando o corpo da cachorra, Lewis encaminhou-se para a porta da sala, onde parou e indagou:

—  Afora isso, tudo o mais correu bem durante o almoço?

—  Esteve tudo muito bem. Florence de Peyser convidou-nos para jantar em sua suíte esta noite. Acha que vai dar para ir, depois de jogar tanto tênis? Afinal, não se esqueça de que já está com sessenta e cinco anos.

—  Não, não estou. — Lewis fitou-a com uma expressão de perplexidade. — Estou casado com você; portanto, tenho cinqüenta anos. Está me fazendo mais velho antes do tempo!

—  Foi uma distração minha. Tem toda a razão em ficar aborrecido.

—  Voltarei o mais depressa possível, com uma idéia mui­to melhor — disse Lewis, passando pela porta.

O corpo da cachorra escorregou de suas mãos e tudo mudou. O pai estava caminhando em sua direção, pela sala de estar da casa paroquial, dizendo:

—  Mais duas coisas, Lewis. Sabe perfeitamente que sua mãe merece mais um pouco de consideração. Trata esta casa como se fosse um simples hotel. Nunca tem hora para chegar. — O pai chegou à poltrona, atrás da qual Lewis estava, depois caminhou para o outro lado da sala, ainda falando: — Pelo que me disseram, de vez em quando bebe. Não sou um homem inflexível, mas não vou tolerar isso. Sabe perfeitamente que está com sessenta e cinco anos...

—  Dezessete — disse Lewis.

—  Está certo, dezessete anos. Mas não me interrompa. Não há dúvida de que pensa que já é muito crescido, tornou-se adulto. Mas não vou permitir que tome bebidas fortes enquanto viver debaixo deste teto. Entendido? E quero que co­mece a demonstrar que já é crescido ajudando sua mãe na limpeza. A partir de agora, esta sala passa a ser de sua respon­sabilidade. Deve tirar a poeira e limpá-la meticulosamente pelo menos uma vez por semana. E cuide da lareira todas as ma­nhãs. Entendido?

—  Sim, senhor.

— Ótimo! Essa é a primeira coisa. A segunda diz respeito a seus amigos. O Sr. James e o Sr. Hawthorne são ótimas pessoas e posso mesmo dizer que mantenho um excelente rela­cionamento com ambos. Mas a idade e as circunstâncias os separam. Por um lado, eles são episcopalianos, o que significa que estão a apenas um passo do papismo. Por outro, eles pos­suem muito dinheiro. O Sr. James deve ser um dos homens mais ricos do Estado de Nova York. E sabe o que isso significa em 1928, não é mesmo?

—  Sim, senhor.

—  Significa  que  não  tem   condições  de   acompanhar  o padrão de vida do filho dele. Como também não pode ficar no mesmo nível do filho do Sr. Hawthorne. Levamos uma vida respeitável e piedosa, mas não somos ricos. Se continuar a se ligar a Sears James e Ricky Hawthorne, posso prever perfeita­mente as conseqüências diretas. Eles possuem os hábitos dos filhos de homens ricos. Como já sabe, meu plano é mandá-lo para a universidade no outono. Mas será um dos estudantes mais pobres de Cornell. Não deve adquirir hábitos dispendio­sos, Lewis, pois só servirão para levá-lo à ruína. Sempre irei lamentar a generosidade de sua mãe, ao utilizar os recursos pessoais dela para proporcionar-lhe os meios que lhe permiti­ram comprar um automóvel. — Já estava iniciando outro cir­cuito pela sala. — E as pessoas já estão começando a falar sobre vocês três e aquela mulher italiana da Montgomery Street. Sei que se espera que os filhos de clérigos sejam meio turbulen­tos, mas... Ora, as palavras estão me faltando!

Ele parou no meio do circuito, a um canto da sala, e fitou Lewis nos olhos, com uma expressão extremamente grave.

—  Mas creio que me fiz entender.

—  Fez,   sim,   senhor.   Compreendi   tudo   perfeitamente: Mais alguma coisa?

—  Não. Estou um tanto embaraçado, sem saber como explicar isto. — O pai estava lhe mostrando o corpo de uma cachorra de pêlos curtos. — Estava caída no caminho para a porta da igreja, morta. E se algum membro da congregação a viu ali? Quero que dê um sumiço no corpo imediatamente.

—  Pode deixar comigo — disse Lewis. — Vou enterrá-la no jardim das rosas.

—  Faça-o imediatamente, por favor.

Lewis pegou o corpo da cachorra e encaminhou-se para a porta. Um instante antes de sair, virou-se e perguntou: — Já preparou o sermão de domingo, papai?

Ninguém respondeu. Ele estava num quarto desocupado no alto da casa da Montgomery Street. O único móvel que havia ali era uma cama. Não havia tapete no assoalho de tábuas, um papelão encerado fora pregado na única janela. Como o carro de Lewis estava com um pneu furado, Sears e Ricky tinham ido pedir emprestado o pequeno carro de Warren, en­quanto este e a esposa grávida faziam compras. Uma mulher estava estendida na cama, mas não poderia responder-lhe por­que estava morta. Um lençol cobria-lhe o corpo.

Lewis andava de um lado para outro do quarto, desejando que os amigos voltassem logo com o carro do fazendeiro. Não queria olhar para o vulto coberto na cama. Foi até a janela. Através do papelão encerado, podia ver apenas uma vaga cla­ridade alaranjada. Olhou novamente para o lençol e murmu­rou, desconsolado:

—  Linda...

Estava parado numa sala de metal, as paredes de um metal cinzento. Uma lâmpada pendia do teto. A esposa estava estendida debaixo de um lençol, numa mesa de metal. Lewis inclinou-se sobre o corpo dela e soluçou.

—  Não quero sepultá-la no açude. Vou levá-la para o jardim das rosas.

Tocou nos dedos sem vida da esposa, por baixo do lençol. Sentiu-os se contraírem e recuou bruscamente.

Enquanto olhava, horrorizado, as mãos de Linda saíram de baixo do lençol. E as mãos, muito brancas, puxaram o lençol, descobrindo o rosto. Linda sentou-se e abriu os olhos.

Lewis estava todo encolhido na outra extremidade da pequena sala. Quando a esposa tirou as pernas de cima da mesa do necrotério, ele soltou um grito de pavor. Ela estava nua, o lado esquerdo do rosto esmigalhado, ensangüentado. Lewis estendeu as mãos à sua frente, num gesto infantil de defesa e proteção. Linda sorriu-lhe e disse:

—  E o que me diz daquela pobre cachorra?

Ela estava apontando para a parte descoberta da mesa, onde uma cachorra de pêlos curtos estava estendida de lado, sobre uma poça de sangue.

Lewis virou-se, horrorizado, para olhar novamente para a esposa. Mas Stringer Dedham, os cabelos repartidos ao meio, uma camisa marrom escondendo os cotos dos braços, estava a seu lado.

—  O que você viu, Stringer? — perguntou Lewis.

Stringer sorriu.

—  Eu vi você. Foi por isso que pulei pela janela. Não seja estúpido.

—  Você me viu?.

—  Eu disse que o vi? Acho que o estúpido sou eu mesmo. Eu não o vi. Foi sua esposa quem o viu. O que eu vi foi minha garota. Vi-a pela janela, na manhã do dia em que sofri o aci­dente na debulhadeira. Puxa, devo ser mesmo estúpido!

—  Mas o que a viu fazendo? O que tentou dizer a suas irmãs?

Stringer inclinou a cabeça para trás e riu, o sangue esgui­chando por sua boca. Ele tossiu, antes de voltar a falar.

—  Puxa vida, eu mal podia acreditar! Era simplesmente espantoso, amigo. Algum dia já viu uma cobra com a cabeça cortada? Já viu a língua espichando para fora.. e a cabeça apenas um coto, uma coisa não maior do que o seu polegar? Já viu o corpo se contorcendo, esponjando-se na terra? — Strin­ger riu ruidosamente, através da espuma vermelha em sua boca. — Deus do céu, Lewis, era uma coisa horrível! Sinceramente, desde então parece que não consigo pensar direito. Parece que meu cérebro ficou todo misturado, virou um mingau, saindo pe­las orelhas. Foi como naquela ocasião em que sofri o derrame, em 1940. Está lembrado? Quando todo um lado do meu corpo ficou paralisado? E você me dava comida de bebê com uma colher? Puxa, que gosto horrível!

—  Esse não era você — protestou Lewis. — Era meu pai.

—  Eu não disse? Está tudo misturado e confuso, como se alguém me tivesse cortado a cabeça e a língua continuasse a se mexer. — Stringer exibiu um sorriso vermelho, meio embaraçado. — Ei, você não ia levar aquela pobre cachorra para jogar no açude?

—  Vou, sim, logo que eles voltarem, Estamos precisan­do do carro de Warren Scales. A esposa dele está grávida.

—  A esposa de um fazendeiro católico romano não me interessa no momento — disse o pai dele. — Bastou um ano na universidade para deixá-lo  insensível,  Lewis.  — De  seu abrigo temporário no canto da sala, ele olhou para o filho em silêncio por um longo tempo, a expressão extremamente tris­te. — E sei também que vivemos numa era de insensibilidade. A nossa era é de trevas, Lewis. Nascemos na danação e tudo o que existe para os nossos filhos é a escuridão tenebrosa. Eu gostaria de poder tê-lo educado em tempos mais estáveis, Lewis. Houve um tempo em que este país era um paraíso. Um paraíso de verdade! Os campos se estendiam até onde a vista podia alcançar, repletos com as benesses do Senhor! Quando eu era menino, filho, podia ver as Sagradas Escrituras nas teias de aranha. O Senhor nos estava observando naquele tempo, Lewis. Podíamos sentir Sua presença no sol e na chuva. Mas agora somos como aranhas dançando num fogo. — O velho baixou os olhos para o fogo de verdade que ardia na lareira, esquentando-o até a altura dos joelhos. — Tudo come­çou com a ferrovia. Tenho certeza absoluta disso, filho. A ferrovia trouxe dinheiro para homens que nunca haviam sen­tido o cheiro de dois dólares juntos em toda a vida. O cavalo-de-ferro estragou a terra e agora o colapso financeiro vai espa­lhar-se como uma mancha por todo o país. — E ficou olhando para Lewis com os olhos claros e astutos de Sears James.

—  Prometo que vou enterrá-la no jardim das rosas — disse Lewis. — Eles já devem estar voltando com o carro.

—  O carro! — O pai virou-se, com uma expressão de repulsa. — Nunca prestou atenção às coisas importantes que eu tinha para lhe dizer!   Esqueceu-se  inteiramente  de  mim. Lewis!

—  Acho que se emociona demais — murmurou Lewis. —  Vai acabar sofrendo um derrame.

—  Será feita a vontade d’Ele.

Lewis olhou para as costas rígidas do pai.

—  Vou cuidar de tudo agora. — O pai não respondeu. —  Adeus.

O pai voltou a falar, sem se virar:

—  Você jamais quis escutar-me. Mas pode estar certo, filho, de que tudo voltará para assombrá-lo. Foi seduzido por si mesmo, Lewis. Não se pode dizer nada mais triste sobre um homem. Um rosto bonito e a cabeça oca. Herdou essa sua boa aparência do tio de sua mãe, Leo. E quando ele estava com vinte e cinco anos, enfiou a mão no fogão de lenha e ali manteve-a até que ficasse queimada como uma acha de nogueira.

Lewis passou pela porta da sala de jantar. Linda estava tirando o lençol de cima de seu corpo nu, no quarto vazio lá de cima.  Sorriu-lhe, com os dentes ensangüentados,  e disse:

—  Depois disso, pode-se dizer que o tio de sua mãe foi um santo homem por toda a sua longa vida. — Os olhos dela brilhavam intensamente, ao jogar as pernas para fora da cama. Lewis recuou, indo encostar-se na parede de madeira. — Depois disso, ele viu as Sagradas Escrituras nas teias de aranha, Lewis. —  Ela avançou lentamente na direção de  Lewis,  o  quadril quebrado se contorcendo grotescamente. — Você ia jogar-me no açude. Viu as Sagradas Escrituras no açude, Lewis? Ou estava distraído contemplando seu rosto bonito?

—  Mas não está tudo terminado? — indagou Lewis.

—  Está, sim.

Ela estava agora perto o bastante para que Lewis pudesse sentir o cheiro terrível da morte. Ele empertigou o corpo contra a parede áspera.

—  O que viu no quarto daquela menina?

—  Eu vi você, Lewis. Vi o que você próprio deveria ter visto. Como isto.

 

Peter estava seguro enquanto se mantivesse escondido no mato. Um entrelaçado de galhos e ramos o escondia das vistas de quem passasse pela estrada. No outro lado, começando uns dez ou quinze metros antes, havia árvores como as que se erguiam diante da casa de Lewis. Peter encaminhou-se para essas árvores, a fim de ficar ainda mais abrigado do homem no carro. O testemunha-de-jeová ainda não saíra do acostamento; Peter podia avistar o topo do carro, um escudo de azul metáli­co, por cima dos arbustos ressequidos. O rapaz foi se afas­tando, cautelosamente, procurando ficar o mais seguro possível, passando de trás de uma árvore para outra. O carro avançou, lentamente. Continuaram assim por algum tempo, Peter avan­çando vagarosamente pelo terreno úmido, o carro mantendo-se a seu lado, como um tubarão do qual ele era o peixe-guia. Havia momentos em que o carro do testemunha ficava ligeira­mente na frente, enquanto em outras se atrasava um pouco, mas a distância em qualquer direção jamais excedendo uns cinco ou dez metros. O único consolo que Peter encontrava era que os erros do motorista indicavam que este não podia vê-lo. Ele estava simplesmente avançando pelo acostamento, esperando por um trecho desobstruído do terreno ao lado da estrada, onde pudesse avistar Peter.

O rapaz tentou visualizar a paisagem naquele lado da estrada e lembrou-se de que apenas por uns dois quilômetros, nas proximidades da casa de Lewis, é que havia uma vegetação densa onde poderia ocultar-se. A maior parte do resto do ca­minho, até o aparecimento de postos de gasolina e drive-ins que assinalava o início de Milburn, era de campos. A menos que rastejasse por valas durante mais dez quilômetros, o ho­mem no carro poderia avistá-lo, assim que deixasse o abrigo do mato.

“Venha, filho.”

O testemunha-de-jeová estava emitindo mensagens a esmo, tentando atraí-lo para o carro. Peter fechou a mente aos sus­surros tanto quando podia e embrenhou-se no mato. Talvez, se continuasse a correr, o homem no carro se afastasse o suficien­te pela estrada para permitir-lhe pensar direito.

“Venha, rapaz. Venha até aqui. Deixe-me levá-lo até ela.”

Ainda protegido pelas moitas altas e pelas árvores, Peter correu até onde podia avistar, entre troncos maciços de carva­lhos, uma cerca de arame; Além da cerca, havia um campo vazio, todo branco, coberto de neve. O carro do testemunha-de-jeová não estava à vista. Peter olhou para o lado, mas as árvores eram muito compactas e os arbustos altos demais para que pudesse ver direito a parte da estrada mais próxima. Peter chegou às últimas árvores e à cerca, contemplando o campo e perguntando-se se conseguiria atravessá-lo sem ser visto. Sabia que estaria inteiramente impotente se o homem o avistasse no campo. Poderia correr, mas o homem acabaria por alcançá-lo, mais cedo ou mais tarde, assim como a coisa na casa da Montgo­mery Street alcançara Jim.

“Ela está interessada em você, Peter.”

Era outro chamado  ao  acaso,  sem  qualquer premência.

“Ela lhe dará tudo o que desejar.”

“Ela lhe dará qualquer coisa que desejar.”

“Ela lhe dará sua mãe de volta.”

O carro azul avançou, entrando no campo de visão de Peter e indo parar um pouco além do ponto em que o campo começava. Peter estremeceu e recuou alguns passos no mato. O homem no carro virou-se de lado, o braço estendido sobre o encosto do assento. Ficou olhando, nessa posição de espera paciente, para o campo que Peter teria de atravessar. “Venha e nós lhe daremos sua mãe de volta.”

Era justamente isso o que eles fariam. Dariam sua mãe de volta. Só que ela estaria como Jim Hardie e Freddy Robin­son, os olhos vazios e uma conversa indiferente, sem mais subs­tância do que um raio de luar.

Peter sentou-se no chão úmido, tentando recordar se havia alguma outra estrada nas proximidades. Teria de continuar pelo mato ou o homem o veria ao atravessar o campo. Havia algu­ma outra estrada, correndo paralela à principal, que pudesse levá-lo de volta a Milburn?

Recordou todas as noites em que andara de carro pela região em companhia de Jim Hardie, todos os passeios a pé pelos campos nos fins de semana durante as aulas e nos verões, Podia dizer que conhecia o condado de Broome tão bem quanto seu próprio quarto.

Mas o homem paciente do carro azul tornava-lhe difícil pensar direito. Não conseguia lembrar o que acontecera com o outro lado do mato em que se encontrava. Haveria um loteamento? Teria surgido uma fábrica? Por um momento, sua mente não quis ceder a informação que ele sabia possuir, ofere­cendo em vez disso imagens de prédios vazios, por onde coisas sinistras se deslocavam por detrás de cortinas arriadas. Mas o que quer que houvesse no outro lado do mato, era para lá que teria de ir.

Peter se levantou lentamente e recuou alguns metros no mato, antes de virar as costas à estrada e correr para longe do carro. Segundos depois, recordou para onde estava correndo. Havia naquela direção uma antiga estrada de macadame, de apenas duas faixas; em Milburn, era conhecida como “a estrada velha de Binghamton”, porque fora outrora a única ligação entre as duas cidades. Estava agora obsoleta, esburacada e pe­rigosa, sendo evitada pelos motoristas. Antigamente, ao longo daquela estrada, havia diversos pequenos estabelecimentos co­merciais, como lojas de frutas, uma drugstore, até mesmo um motel. Agora, porém, quase todos esses prédios estavam vazios, alguns haviam sido demolidos. O único que ainda sobrevivia era o Mercado de Bay Tree, por ter como fregueses os mais prósperos habitantes de Milburn. A mãe de Peter sempre ia até lá para comprar frutas e legumes.

Se ele bem recordava a distância entre a antiga e a nova estrada, levaria cerca de vinte minutos para chegar ao mercado. De lá, poderia arrumar uma carona para voltar à cidade e che­gar em segurança ao hotel.

 

Quinze minutos depois, Peter estava com os pés enchar­cados, uma pontada de dor no lado do corpo e o blusão rasgado por um galho quebrado. Mas sabia que estava se aproximando da velha estrada. As árvores começavam a ficar mais espaçadas e o terreno se inclinava ligeiramente para baixo.

Agora, vendo no ar cinzento que o mato chegava ao fim, ele voltou a se aproximar da cerca e a transpôs, para os trinta metros finais. Ainda não tinha certeza se o mercado de frutas ficava à esquerda ou à direita, a que distância exatamente se encontrava. Tudo o que esperava era que estivesse à vista, com um estacionamento repleto de carros.

Continuou avançando, chapinhando na lama, espiando atra­vés das poucas árvores restantes.

“Está perdendo seu tempo, Peter. Não quer tornar a ver sua mãe?”

Ele gemeu, sentindo o contato suave da mente do testemunha-de-jeová. E sentiu um calafrio no estômago. O carro azul estava parado na estrada, à sua frente. Peter divisou no banco da frente um vulto corpulento, que sabia ser o do testemunha-de-jeová, esperando pacientemente que ele aparecesse.

O Mercado de Bay Tree estava à vista, a cerca de meio quilômetro de distância, à beira da estrada antiga, à esquerda de Peter. O carro estava virado na direção oposta. Se corresse para o mercado, o homem teria que fazer a volta com o carro na estrada estreita.

Mesmo isso não lhe daria tempo suficiente.

Peter olhou novamente para o mercado; havia diversos carros no estacionamento. Pelo menos um deles devia ser de alguém que conhecia. Tudo o que precisava fazer era chegar lá.

 

Por um momento, Peter sentiu-se como um menino de cinco anos, um garotinho trêmulo e desamparado, sem ter como defender-se e sem qualquer esperança de derrotar a criatura assassina que estava à sua espera no carro. Se rasgasse seu ca­saco em tiras, amarrando uma na outra e pondo uma extremi­dade no tanque de gasolina do carro... Mas era apenas uma má idéia, tirada dos piores filmes. Jamais conseguiria aproxi­mar-se do carro sem que o homem o visse.

Na verdade, a única coisa que poderia fazer, além de correr para longe do homem, era atravessar o campo aberto e torcer para que nada lhe acontecesse. O homem estava olhan­do para o outro lado e ele teria pelo menos algum tempo de vantagem, antes de ser avistado.

Peter separou os arames presos nas árvores e passou para o outro lado da cerca. O estacionamento do Mercado de Bay Tree ficava a uns quinhentos metros dali, em linha reta. Pren­deu a respiração e começou a avançar pelo campo.

O carro fez uma volta atrás dele e começou a avançar pela estrada, visível apenas na periferia do seu campo de visão. “Born rapaz! E muito corajoso também. Os bons não deveriam pedir carona, não é mesmo?” Peter fechou os olhos e con­tinuou a avançar pelo campo, tropeçando volta e meia.

“Um rapaz corajoso, mas estúpido.” Peter procurou ima­ginar o que o homem faria para detê-lo.

Não precisou esperar muito para descobrir.

—  Tenho de conversar com você, Peter. Abra os olhos. — A voz era a de Lewis Benedikt. Peter abriu os olhos e avistou Lewis parado vinte metros à sua frente, metido numa calça larga, botas, um blusão cáqui, tipo militar, aberto na frente.

— Você não está aqui — murmurou Peter.

—  Ora, Peter, não diga bobagem — disse Lewis, come­çando a se aproximar dele. — Pode ver-me, não é mesmo? E pode também me ouvir, não é mesmo? Portanto, estou aqui. Por favor, Peter, escute o que vou dizer. Quero falar sobre sua mãe.

—  Ela está morta.

Peter parou de andar, não querendo chegar mais perto da criatura que se apresentava como Lewis.

— Não, Peter, não está. — Lewis parou também, como se não desejasse assustar o rapaz. À beira da estrada, na altura deles, o carro parou também. — Nada é preto ou branco, Peter. Ela não estava morta quando a viu em minha casa, não é mesmo?

—  Estava, sim.

—  Não pode ter certeza, Peter. Ela simplesmente des­maiou, assim como você.

Lewis abriu os braços, sorrindo para Peter.

—  Não! Eles cortaram... cortaram a garganta dela! Eles a mataram! Da mesma forma que mataram aqueles animais! — Tornou a fechar os olhos.

—  Está enganado e posso prová-lo, Peter. Aquele homem no carro não quer machucá-lo. Vamos conversar com ele. Vamos até lá agora.

Peter abriu os olhos.

—  Foi mesmo para a cama com minha mãe?

—  As pessoas de nossa idade de vez em quando cometem erros. Fazem coisas de que se arrependem depois. Mas não teve qualquer importância, Peter. Vai descobrir isso quando chegar em casa. Tudo o que precisa fazer é ir para casa co­nosco. Sua mãe estará à espera, como sempre esteve. — Lewis continuava a sorrir, com uma expressão afetuosa de preocupa­ção. — Não a julgue impiedosamente só porque ela cometeu um erro. — Começou a avançar novamente. — Confie em mim, Peter. Sempre desejei que nos tornássemos amigos.

—  Era o que eu também queria. Mas, agora, não pode mais ser meu amigo, porque você está morto. — Peter abaixou-se e pegou dois punhados da neve úmida, espremendo entre as mãos.

—  Vai jogar-me uma bola de neve, Peter? Não acha que é uma atitude um tanto infantil?

—  Lamento por você.

Peter arremessou a bola de neve e explodiu a coisa que parecia com Lewis numa chuva de pontos de luz que caíam. E seguiu em frente, passando pelo lugar onde Lewis estivera antes parado. Sentiu o ar formigar em seu rosto. E sentiu no­vamente o formigar em sua mente, preparando-se para o ine­vitável.

Mas não se seguiram palavras. Em vez disso, veio uma onda de amargura e raiva que quase o derrubou com seu tre­mendo impacto. Era o mesmo sentimento tenebroso que ele percebera quando a criatura que segurava sua mãe tirara os óculos escuros. A violência da emoção fê-lo cambalear. Mas, desta vez, havia também um pressentimento de derrota na emoção.

Peter virou a cabeça para o lado bruscamente, surpreso; o carro acelerou pela estrada de macadame.

O alívio fez com que os joelhos de Peter se dobrassem ligeiramente. Não sabia por quê, mas vencera. Sentou-se desa­jeitadamente na neve e fez um esforço para não chorar. Depois de algum tempo, levantou-se novamente e continuou a se enca­minhar para o estacionamento do mercado. Estava atordoado e entorpecido demais para experimentar qualquer sensação; concentrou-se em fazer as pernas se movimentarem. Primeiro um passo, depois outro. Os pés estavam terrivelmente frios. Outro passo. Agora, já não estava tão longe do estacionamento.

No instante seguinte, uma paz imensa invadiu-o. A mãe estava atravessando o estacionamento, correndo em sua direção.

—  Pete!   — gritou ela, meio  soluçando.  — Graças  a Deus!

Ela alcançou os carros na extremidade do estacionamento, passou correndo por eles e continuou a avançar pelo campo. Peter ficou parado, observando-a correr em sua direção, domi­nado por sentimentos tão intensos que não era capaz de falar. Um momento depois, começou também a avançar. Percebeu que a mãe tinha uma equimose no rosto e os cabelos estavam emaranhados como os de uma cigana. Tinha uma echarpe em torno do pescoço, no meio da qual podia-se ver uma linha vermelha.

— Conseguiu escapar... — balbuciou Peter, ao mesmo tempo aturdido e aliviado.

—  Eles me tiraram da casa... aquele homem... — Ela havia parado a alguns passos de Peter. Levou a mão ao pes­coço. — Ele cortou meu pescoço... desmaiei... pensei que iam matá-lo...

—  Pensei que estivesse morta...  Oh, mamãe!

—  Pobre Pete! — Ela passou os braços em torno de si mesma. — Vamos sair daqui. Teremos de pedir uma carona para voltar à cidade. Acho que nenhum de nós dois está em condições de ir muito mais longe.

O fato de a mãe ainda poder gracejar, mesmo que debil­mente, comoveu Peter até as lágrimas. Ele pôs a mão diante dos olhos.

—  Deixe para chorar depois, Pete. Acho que vou chorar durante uma semana inteira depois que me sentar. E agora vamos procurar uma carona.

—  Como conseguiu escapar deles? — Peter foi andando ao lado da mãe. Fez menção de abraçá-la. Mas ela recuou abrup­tamente, tornando a avançar no instante seguinte, a caminho do estacionamento.

—  Acho que eles pensaram que eu estava apavorada de­mais para me mexer. E quando me levaram para fora, o ar fresco me ajudou a recuperar-me. O homem relaxou a pressão em meu braço, virei-me subitamente e bati nele com a bolsa. E depois corri para o mato. Eu os ouvi procurando-me. Acho que nunca fiquei tão assustada em toda a minha vida. Depois de algum tempo, acabaram desistindo. Estavam à sua procura?

—  Não... — balbuciou Peter, sentindo toda a tensão se dissipar. — Havia outra pessoa atrás de mim, mas foi embo­ra... não conseguiu agarrar-me...

—  Eles vão nos deixar em paz, Pete, agora que estamos longe de lá.

Ele olhou para o rosto da mãe, ela baixou os olhos.

—  Devo-lhe muitas explicações, Pete. Mas este não é o momento apropriado para conversarmos. Quero chegar em casa e fazer um curativo direito em minha garganta. E temos de pensar em alguma coisa para dizer a seu pai.

—  Não vai contar o que aconteceu?

—  Não podemos deixar as coisas serem esquecidas sem ficarmos remexendo? — indagou a mãe, suplicante. — Vou explicar-lhe tudo... quando chegar o momento. Agora, vamos apenas dar graças a Deus por estarmos vivos.

Eles chegaram ao estacionamento.

— Está certo. Mamãe, estou tão... — Peter tentou con­trolar suas emoções, porém eram fortes demais para conse­guir expressá-las. — Mas temos de falar com alguém, mamãe. O mesmo homem que a machucou também matou Jim Hardie.

Ela virou a cabeça para fitá-lo, tendo-se adiantado até o meio do estacionamento apinhado.

—  Eu já sabia disso, Pete.

—  Sabia?

—  O que eu quis dizer foi que imaginei. Vamos mais de­pressa, Pete. Meu pescoço está doendo e quero chegar logo em casa.

—  Disse que sabia...

Ela fez um gesto irritado.

—  Não fique interrogando-me, Pete.

O rapaz correu os olhos pelo estacionamento, frenetica­mente. Avistou o carro azul passando pelo lado do mercado.

—  Oh, mamãe! Eles conseguiram! Não pôde escapar deles!

—  Pare com isso, Pete! Acabo de ver alguém que pode nos dar uma carona.

Enquanto o carro se aproximava por trás dela, Pete enca­minhou-se para a mãe, fitando-a fixamente.

—  Está bem, mamãe. Já estou indo.

—  Assim é melhor, Pete. Vai ver como tudo ficará bem outra vez. Tivemos ambos um susto terrível, mas um banho quente e um bom sono vai dar resultados maravilhosos.

—  Vai precisar levar alguns pontos no pescoço — disse Peter, chegando mais perto.

—  Claro que não vou precisar, Pete. — Ela sorriu. — Basta um bom curativo. Foi só um arranhão. O que está fa­zendo, Pete? Não toque aí pois dói muito! Vai começar a san­grar de novo!

O carro azul estava agora na extremidade da fileira de carros em que eles se encontravam. Peter estendeu a mão para a mãe.

—  Não faça isso, Pete. Vamos arrumar nossa carona den­tro de um minuto...

Ele fechou os olhos com toda a força e virou o braço na direção da cabeça da mãe. Um segundo depois, sentiu os dedos formigando. Soltou um grito; uma buzina soou, terrivelmen­te alta.

Quando abriu os olhos, Peter verificou que a mãe havia desaparecido e o carro azul acelerava em sua direção. O rapaz correu para a proteção de dois carros estacionados e enfiou-se entre eles, no momento em que o carro azul passava, raspando nos outros dois e fazendo-os balançar.

Peter ficou observando o carro chegar ao final da passa­gem. No momento em que o carro fez a volta, para seguir pela passagem seguinte, ele avistou Irmengard Draeger, a mãe de Penny, sair pela porta dos fundos do mercado, carregando uma sacola de compras. Correu na direção dela, por entre os carros estacionados.

 

(Histórias)

 

No hotel, a Sra. Hardie fitou-o com uma expressão de curiosidade, mas disse qual era o quarto de Don Wanderley e depois ficou observando-o em silêncio subir a escada ao final do saguão. Peter sabia que deveria virar-se e dizer alguma coisa, mas não podia confiar em si mesmo; depois da tensão de voltar para a cidade de carona com a Sra. Draeger, não tinha a menor condição de manter uma conversa sequer superficial com a mãe de Jim.

Encontrou a porta do quarto de Don e bateu. Quando o escritor abriu, ele murmurou:

—  Sr. Wanderley...

Para Don, a presença do abalado adolescente diante de sua porta representava a chegada da certeza. Terminava o período em que as conseqüências da história final da Sociedade Chow­der — quaisquer que pudessem ser — ficariam limitadas a seus membros e uns poucos circunstantes. A expressão de trauma e desespero no rosto de Peter Barnes dizia a Don que tudo aquilo sobre o que ficara meditando em seu quarto não era mais propriedade exclusiva dele próprio e de quatro homens idosos.

— Entre, Peter. Eu estava mesmo esperando que nos pu­déssemos encontrar novamente.

O rapaz entrou no quarto como um zumbi e sentou-se numa cadeira, meio às cegas.

— Sinto muito... — balbuciou Peter, fechando a boca bruscamente, para recomeçar um instante depois: — Eu que­ro... tenho... — Piscou os olhos repetidamente. Era evi­dente que não estava em condições de continuar a falar.

— Espere um instante, Peter. — Don foi pegar uma gar­rafa de uísque na cômoda, despejou um pouco num copo de água e estendeu para Peter. — Beba um pouco e procure con­trolar-se. Depois, conte-me tudo o que aconteceu. Não perca tempo pensando que posso não acreditar em você, pois acreditarei em tudo o que me disser. E o mesmo acontecerá com o Sr. Hawthorne e o Sr. James, quando eu lhes contar.

—  “Meus amigos mais velhos”... — murmurou Peter. Em seguida, tomou um gole do uísque. — Foi assim que ele os chamou. Disse que você pensava que o nome dele era Greg Benton.

Peter se contraiu todo ao pronunciar o nome, e Don sen­tiu o choque de uma certeza lhe atingindo os nervos: qualquer que fosse o perigo para si mesmo, teria que destruir Greg Benton.

—  Com que então o conheceu...

—  Ele matou minha mãe. O irmão dele me segurou e me obrigou a olhar. Acho... acho que eles beberam o  sangue dela. Como fizeram com aqueles bichos. E ele também matou Jim Hardie. Eu o vi matando Jim, mas consegui escapar.

—  Continue, Peter.

—  E  ele  disse  que  alguém... não  consigo  lembrar  o nome... iria chamá-lo de um manitu. Sabe o que é isso?

—  Já ouvi falar.

Peter assentiu, como se tal resposta o satisfizesse.

—  E ele se transformou num lobo. Eu o vi fazendo isso. — Peter pôs o copo no chão. Olhou-o de novo, pegou-o, e tomou outro gole de uísque. As mãos tremiam tanto que quase derramou a metade da bebida. — Eles fedem... como coisas mortas, apodrecidas... tive que me esfregar e esfregar... nos lugares em que Fenny me tocou.

— Viu Benton transformar-se num lobo?

—  Vi,  sim.  Ou  melhor,  não exatamente.  Ele  tirou  os óculos.   Os  dois   têm   olhos   amarelos.   Ele  deixou-me  vê-lo. Era... não era mais nada além de ódio e morte. Parecia um raio laser.

—  Estou entendendo, Peter. Também o vi, mas jamais sem os óculos.

—  Quando ele  tira os óculos, pode fazer coisas.  Pode falar dentro da cabeça da gente. E pode fazer com que a gente veja pessoas mortas, fantasmas. Mas quando as tocamos, elas parecem explodir. Eles agarram as pessoas e as matam. Mas estão mortos também. São possuídos por outra pessoa... a quem chamam de benfeitora. Fazem tudo o que ela quer.

—  Ela? — indagou Don, recordando a mulher maravi­lhosa que segurara o queixo daquele rapaz durante um jantar.

—  Anna Mostyn. Mas ela já esteve aqui antes.

—  Sei disso, Peter. Apareceu aqui como uma atriz.

Peter exibiu uma expressão de grata surpresa.

—  Nos últimos dias, Peter, consegui imaginar uma parte da história. — Fitou em silêncio o trêmulo rapaz na cadeira por um momento, antes de acrescentar: — Mas parece que você descobriu muito mais do que eu e num tempo bem mais curto.

—  Ele disse que era eu! — exclamou Peter, com o rosto contorcido. — Disse que era eu, e quero matá-lo!

— Pois então vamos matá-lo juntos, Peter.

 

—  Eles estão aqui porque eu também estou — disse-lhe Don. — Ricky Hawthorne disse que, quando me reuni a ele, Sears e Lewis Benedikt, trouxemos essas coisas... essas cria­turas... em foco. Que foi por isso que elas se reuniram aqui. Se eu não tivesse vindo, talvez houvesse apenas algumas ove­lhas ou vacas mortas, algo assim, ficando tudo nisso. Mas essa possibilidade, a rigor, nunca existiu, Peter. Eu não podia ficar longe... e eles sabiam que eu teria de vir. Agora, podem fazer tudo o que quiserem.

Peter interrompeu-o:

—  Tudo o que ela quiser que eles façam.

—  Tem razão, Mas não estamos totalmente impotentes. Podemos reagir. E é justamente o que vamos fazer. Vamos nos livrar deles, de um jeito ou de outro. E isso é uma promessa, Peter.

—  Mas eles já estão mortos! Como poderemos matá-los? Sei que eles já estão mortos... têm aquele cheiro...

Peter estava novamente começando a entrar em pânico. Don se inclinou e tocou-lhe a mão.

—  Sei disso por causa das histórias. Essas coisas não são novas, Peter, Provavelmente existem há séculos... talvez há mais tempo. E pelo menos há centenas de anos que são comen­tadas e pessoas escrevem a respeito. Creio que são o que as pessoas costumavam chamar de vampiros e lobisomens. Prova­velmente estão por trás de milhares de histórias de fantasmas. Nas histórias... e creio que isso significa dizer no passado... as pessoas encontravam meios de fazê-las morrer novamente. Estacas de madeira cravadas no coração ou balas de prata... Está lembrado das histórias?  Mas o importante é saber que tais criaturas podem ser destruídas. E se houver necessidade de balas de prata, será isso que usaremos. Mas não creio que haja necessidade disso. Você quer vingança e eu também. E iremos consegui-la.

—  Mas isso resolve apenas o problema deles! — disse Peter, fitando Don nos olhos. — O que vamos fazer com ela?

—  Será bem mais difícil, Peter. Ela é quem comanda, é uma espécie de general. Mas a história está cheia de generais mortos. — Era uma resposta fácil, mas o rapaz ficou bem mais calmo. — Agora, Peter, é melhor contar-me tudo. Comece pela maneira como Jim morreu, se isso foi o começo. Quanto mais puder lembrar-se, mais estará ajudando. Por isso, esforce-se para contar tudo o que sabe.

 

—  Por que não contou tudo isso a mais ninguém? — perguntou Don, quando Peter acabou.

—  Porque sabia que ninguém mais acreditaria, a não ser você. Ouviu também a música.

Don assentiu. Peter acrescentou:

—  E ninguém vai acreditar, não é mesmo? Todos pensa­rão que é uma história igual aos marcianos do Scales.

—  Não será bem assim, Peter. A Sociedade Chowder vai acreditar. Ou pelo menos é o que espero.

—  Está querendo dizer que o Sr. James, o Sr. Hawthor­ne e...

—  Exatamente. — Don e o rapaz se entreolharam, sa­bendo ambos que Lewis estava morto. — Será o suficiente, Peter. Seremos quatro contra ela.

—  E quando começamos? O que vamos fazer?

—  Vou encontrar-me com os outros esta noite. Acho que você deve ir para casa. Terá que se avistar com seu pai.

—  Ele não vai acreditar em mim. Tenho certeza. Nin­guém acreditaria, a menos que... — O rapaz não concluiu a frase.

—  Quer que eu vá com você?

Peter meneou a cabeça.

— Não precisa. Não vou contar a ele. De nada adiantaria. Só falarei mais tarde.

—  Talvez seja melhor assim. E se quiser ajuda quando o momento chegar, é só me chamar, Peter. Acho que foi tre­mendamente corajoso. A maioria dos adultos  teria simples­mente  desmoronado.  Mas  terá que  ser  ainda mais  corajoso daqui por diante. Talvez seja necessário proteger seu pai, assim como a si mesmo. Não abra a porta para ninguém, a menos que tenha certeza de quem seja.

Peter assentiu.

—  Pode estar certo de que não vou abrir. Mas por que eles estão aqui? Por que ela está aqui?

—  É justamente isso o que vou descobrir esta noite.

Peter levantou-se para ir embora. Mas quando enfiou as mãos nos bolsos, tocou num folheto dobrado.

— Já ia esquecendo de uma coisa. O homem do carro azul deu-me isto depois de me levar até a casa do Benedikt.

O rapaz tirou o folheto do bolso e abriu em cima da mesa de Don. Por baixo do título, no papel ordinário, estavam escritas as seguintes palavras, em letras pretas e grandes: “O Dr. Rabbitfoot levou-me ao pecado”.

Don rasgou o folheto ao meio.

 

Harold Sims ficou andando a esmo pela parte superior do bosque, furioso consigo mesmo e com Stella Hawthorne. Os sapatos e a parte inferior da calça estavam encharcados, os sa­patos provavelmente estragados. Mas o que não estava? Per­dera o emprego; e quando finalmente pedira a Stella que fosse embora em sua companhia, depois de muitas semanas de pensar a respeito, acabara perdendo-a também. Mas que diabo! Será que ela pensara que ele dissera aquilo no impulso do momen­to? Será que ela não o conhecia bastante bem para saber que não podia ter sido isso? Harold rangeu os dentes.

“Também não esqueci que ela já tem sessenta anos”, disse Harold a si mesmo; “ao contrário, preocupei-me muito com isso.”

—  Fui ao encontro daquela sem-vergonha com as mãos limpas — disse ele em voz alta, vendo as palavras se vaporizarem a sua frente.

Stella o traíra. Stella o insultara. Podia agora perceber que Stella jamais o levara a sério.

E o que ela era, no final das contas? Uma megera velha, sem moral e com uma estrutura óssea anormal. Intelectualmen­te, praticamente não existia.

E não tinha a menor capacidade de adaptação. Era o que se podia depreender de sua visão da Califórnia. Acampamentos de trailers e hambúrgueres! Era uma mulher medíocre e per­tencia mesmo a Milburn. E ao marido insípido, sempre falan­do de filmes antigos.

—  Pois não! — disse ele, ao ouvir um arfar, bem pró­ximo. — Precisa de ajuda?

Ninguém respondeu. Harold pôs as mãos nos quadris e olhou ao redor. Havia sido um barulho humano, um som de dor.

—  Ajudarei, se me disser onde está.

Harold deu de ombros e encaminhou-se para a área de onde julgara ter vindo o ruído. Parou assim que viu o corpo caído à beira dos abetos.

Era um homem... ou o que restava de um homem. Ha­rold Sims teve que fazer um tremendo esforço para olhar. O que foi um erro, pois quase vomitou. No instante seguinte, compreendeu que teria de olhar novamente. Sentia os ouvidos zunindo. Inclinou-se para olhar a cabeça esmigalhada. Como já temia, era de fato Lewis Benedikt. Perto da cabeça dele, estava o corpo de uma cachorra. A princípio, Harold pensara que a cachorra fosse uma parte separada do corpo de Lewis.

Tremendo, Harold empertigou-se. Sua vontade era sair correndo. Qualquer que tivesse sido o animal que fizera aquilo a Lewis Benedikt, ainda estava por perto... não poderia estar a mais de um minuto de distância.

Depois, ouviu o barulho de algo avançando entre os arbus­tos e ficou apavorado demais para se mexer. Visualizou algum animal gigantesco pulando em cima dele vindo de trás dos abe­tos. Provavelmente um urso pardo. Abriu a boca, mas não conseguiu emitir qualquer som.

Um homem com um rosto que mais parecia uma abóbora-fantasma do Dia das Bruxas emergiu do meio dos abetos. Sua respiração era ofegante e empunhava um bacamarte imenso, que apontou para a barriga de Harold.

—  Fique onde está! — disse o homem.

Harold tinha certeza de que a criatura de aspecto assusta­dor ia explodi-lo ao meio e sentiu um vazio terrível por dentro.

—  Eu deveria matá-lo aqui mesmo — murmurou o homem.

—  Por favor...

—  Mas este é o seu dia de sorte, assassino. Vou levá-lo até  um  telefone e chamar  a polícia.  Por que  fez  isso  com Lewis, hein?

Como Harold não podia responder, pensando apenas que no final das contas aquele horrível camponês não iria matá-lo, Otto foi postar-se atrás dele e cutucou-o com o cano da arma.

—  Vamos, banque o soldado, Scheisskopf. Marche! Mach schnell!

 

(História antiga)

 

Don ficou esperando em seu carro pela chegada de Sears e Ricky, diante da casa de Edward Wanderley. Esperando, des­cobriu em si mesmo todas as emoções que vira pouco antes em Peter Barnes; mas a atitude do rapaz era uma censura a seu medo. Em apenas uns poucos dias, Peter Barnes fizera e com­preendera muito mais do que ele próprio e os amigos de seu tio em um mês.

Don apanhou os dois livros que pegara na biblioteca de Milburn pouco antes da visita de Peter. Confirmavam a teoria que ele formulara ao conversar com os três homens na biblio­teca de Sears; tinha a impressão de que sabia o que estavam enfrentando. Sears e Ricky lhe explicariam por quê. Depois, se a história deles se ajustasse à sua teoria, faria aquilo para que lhe tinham pedido que viesse a Milburn: apresentaria sua explicação. E se a explicação parecia absurda, era porque talvez fosse mesmo... talvez até estivesse errada. Mas a história de Peter e o exemplar do folheto The watchtower provavam que eles estavam há muito tempo à espreita, esperando por uma época em que a loucura oferecesse um panorama mais concreto dos acontecimentos do que a sanidade. Se sua mente e a de Peter Barnes estavam abaladas, então Milburn se transformara para ajustar-se ao padrão. E das sombras haviam emergido Gregory, Fenny e sua benfeitora, que deveriam ser destruídos de qualquer maneira.

“Mesmo que isso nos mate”, pensou Don. “Porque so­mos os únicos que temos uma chance de consegui-lo.”

Os faróis de um carro surgiram em meio ao turbilhão de neve caindo. Depois de um momento, Don divisou os contor­nos de um carro grande e escuro por trás dos faróis. O carro foi encostar no meio-fio, do outro lado da Haven Tone. Pri­meiro Ricky e depois Sears saltaram do velho Buick preto. Don saiu de seu próprio carro e atravessou a rua ao encontro deles.

—  Agora, foi a vez de Lewis — disse-lhe Ricky. — Já sabia?

—  Ainda não com certeza. Mas já imaginava.

Sears, que ficara escutando o diálogo, sacudiu a cabeça impacientemente.

—  Está sempre imaginando coisas. Vamos, Ricky, dê-lhe logo as chaves.

Enquanto Don abria a porta, Sears resmungou atrás dele:

—  Espero que nos conte como obteve a informação. Se Hardesty se imagina como o arauto da cidade, vou dar um jeito para que ele seja despedido.

Os três homens entraram no vestíbulo escuro. Sears tateou na parede à procura do interruptor e acendeu a luz.

—  Peter Barnes foi procurar-me esta tarde — disse Don. — Ele viu Gregory Bate matar sua mãe. E viu também o que deveria ser o fantasma de Lewis.

—  Deus do céu!— balbuciou Ricky. — Pobre Christina!

— Vamos ligar a calefação antes de falarmos qualquer outra coisa — pediu Sears. — Se tudo começa a desmoronar diante de nós, quero pelo menos estar devidamente aquecido. Os três homens começaram a vaguear pelo andar térreo da casa, removendo as capas que protegiam os móveis da poeira.

—  Vou sentir muita falta de Lewis — comentou Sears. — Costumava falar mal dele a todo instante, mas a verdade é que o amava. Ele nos proporcionava uma animação excepcional. Assim como seu tio. — Sears deixou cair uma capa de pro­teção no chão, antes de acrescentar: — E agora ele está no necrotério do condado de Chenango, aparentemente vítima do ataque brutal de algum animal. Um amigo de Lewis acusou Harold Sims do crime. Em outras circunstâncias, isso seria cô­mico. — O rosto de Sears ficou subitamente flácido. — Vamos dar uma olhada no escritório de seu tio e depois cuidaremos da calefação. Não sei se vou conseguir agüentar assim por mui­to tempo.

Sears levou Don para uma sala grande nos fundos da casa, enquanto Ricky ia ligar a caldeira do sistema de aquecimento central.

—  Era aqui que ele trabalhava.

Sears acendeu a luz, iluminando um sofá de couro, uma escrivaninha com uma máquina de escrever elétrica, um arquivo e uma máquina Xerox; numa prateleira larga, por baixo de prateleiras mais estreitas repletas de caixas brancas, havia um gravador grande e um aparelho cassete.

—  As caixas são as gravações que ele fazia para os seus livros? — indagou Don.

—  Acho que sim.

— E você, Ricky e os outros jamais vieram até aqui depois que ele morreu?

— Não. — Sears olhou para o escritório bem-arrumado. Evocava o tio de Don mais plenamente do que qualquer fotografia, irradiando o contentamento de um homem feliz com o que fazia. Essa impressão ajudava a explicar as palavras seguintes dele: Imagino que Stella lhe tenha dito que estávamos com medo de vir aqui. Talvez haja alguma verdade nisso. Mas creio que o que realmente nos impediu a vinda foi o sentimento de culpa.

—  E isso foi parte do motivo pelo qual me chamaram a Milburn.

—  Exatamente. Creio que todos nós, à exceção de Ricky, pensávamos que iria..  — Sears fez um gesto com as mãos, como se afugentasse alguma coisa. — ...de alguma forma, co­mo num passe de mágica, dissipar nosso sentimento de culpa. E John Jaffrey mais do que todos. E essa é a sabedoria da percepção tardia.

—  Porque a festa foi na casa de Jaffrey? Sears assentiu bruscamente e saiu do escritório.

—  Ainda deve haver muita lenha lá nos fundos. Por que não vai buscá-la para que possamos acender um fogo?

 

—  Essa é a história que pensávamos que nunca iríamos contar — disse Ricky, dez minutos depois. Uma garrafa de Old Parr e os copos estavam sobre a mesa empoeirada diante do sofá. — O fogo foi uma boa idéia. Dará a Sears e a mim algo para onde olharmos. Por acaso já lhe disse que fui eu que comecei tudo, perguntando a John qual a pior coisa que ele já tinha feito? John declarou que não o diria e em vez disso contou uma história de fantasma. Eu não deveria ter pergun­tado, pois sabia qual era a pior coisa que ele tinha feito. Todos sabíamos.

—  Então por que perguntou?

Ricky espirrou vigorosamente e Sears disse:

—  Aconteceu em 1929... em outubro de 1929. Foi há muito tempo. Quando Ricky perguntou a John qual a pior coisa que ele já tinha feito, tudo o quê podíamos pensar era em seu tio Edward...  pois foi uma semana depois da morte dele, Eva Galli era a última coisa que podia surgir em nossas mentes.

—  Agora atravessamos realmente o Rubicão1 — disse Ricky. — Até você falar o nome, eu ainda não tinha certeza se iríamos mesmo contar. Mas agora que chegamos a esse pon­to, o melhor é ir até o fim, sem parar. O que quer que Peter Barnes lhe tenha contado pode esperar até acabarmos... se depois disso ainda quiser permanecer na mesma sala que nos. E imagino que tudo o que aconteceu com ele deve estar de alguma forma relacionado com o caso de Eva Galli. Pronto, acabei de pronunciar o nome também.

— Ricky jamais quis que você tomasse conhecimento da história de Eva Galli, Don — explicou Sears. — Na ocasião em que lhe escrevi, ele declarou que seria um erro revolver o passado. Creio que todos concordamos com ele. Eu pelo menos concordei.

 

1 O mesmo que “Alea jacta est” (“A sorte está lançada”), expressão usada por César ao atravessar o rio Rubicão, marchando contra Roma. Design um ato de insubordinação e uma decisão irreversível. (N. do E.)

 

— Pensei que não havia o menor sentido em revolver o lodaçal e turvar novamente as águas — comentou Ricky, a voz um tanto fanhosa por causa do resfriado. — Estava convencido de que não poderia ter a menor relação com o nosso proble­ma, que era o de histórias de assombração. Pesadelos. Premo­nições. Apenas quatro velhos tolos começando a ficar caducos. Achei que era irrelevante. De qualquer forma, estava tudo mui­to confuso. Mas deveria ter pensado de outra forma, quando aquela moça apareceu à procura de um emprego. E agora que Lewis se foi...

—  Quer saber de uma coisa? — disse Sears. — Não chegamos a dar a Lewis as abotoaduras de John,

—  Esquecemos inteiramente...

Ricky tomou um gole do uísque. Ele e Sears já estavam inteiramente imersos na história, tão concentrados que Don, sentado perto deles, sentiu-se invisível.

—  Mas o que aconteceu com Eva Galli? — perguntou o escritor.

Sears e Ricky se entreolharam; depois, os olhos de Ricky se fixaram no copo, enquanto os de Sears se desviavam para o fogo.

—  Certamente que é óbvio — disse Sears. — Nós a matamos.

—  Vocês dois? — indagou Don, aturdido, pois não era a resposta que esperava.

—  Todos nós — respondeu Ricky. — A Sociedade Chow­der. Seu tio. John Jaffrey, Lewis, Sears e eu. Em outubro de 1929. Três semanas depois da Segunda-Feira Negra, quando o mercado de ações desmoronou. Mesmo aqui em Milburn po­dia-se ver o início do pânico. O pai de Lou Price, que era tam­bém corretor, matou-se com uni tiro em seu escritório. E nós matamos uma moça chamada Eva Galli. Claro que não foi um homicídio... ou pelo menos não um homicídio direto. Jamais seríamos condenados por coisa alguma... talvez nem mesmo por homicídio involuntário. Mas inevitavelmente haveria um escândalo.

— E era isso o que não podíamos enfrentar — continuou Sears. — Ricky e eu  tínhamos iniciado recentemente a carreira de advogado, trabalhando no escritório do pai dele. John se formara em medicina no ano anterior. Lewis era o filho de um clérigo. Estávamos todos na mesma situação. Nos­sas vidas ficariam arruinadas. Lentamente, se não mesmo ime­diatamente.

—  Foi por isso que tomamos a decisão de fazer o que tentamos — explicou Ricky.

— Exatamente — acrescentou  Sears. — Fizemos  algo imperdoável. Se tivéssemos trinta e três anos, ao invés de ape­nas vinte e três, provavelmente teríamos ido à polícia, assu­mindo todos os riscos. Mas éramos  muito jovens... Lewis ainda estava na adolescência. Por isso, tentamos ocultar o que acontecera. E depois, no fim...

—  No fim — interveio Ricky — éramos como persona­gens de uma de nossas histórias. Ou de sua novela. Há dois meses que venho revivendo a todo instante os dez minutos fi­nais.  Ouço  até mesmo nossas  vozes,  as coisas  que  falamos quando a colocamos no carro de Warren Scales...

—  Vamos começar do princípio — disse Sears.

—  Isso mesmo, vamos começar do princípio...

 

—  A  história  começa com  Stringer  Dedham  — disse Ricky. — Ele ia casar-se com ela. Eva Galli estava na cidade há menos de duas semanas quando Stringer procurou conquistá-la. Ele era mais velho do que Sears e eu, devia estar com trinta e um ou trinta e dois anos, e tinha condições para casar-se. Di­rigia a velha fazenda do coronel e cuidava dos estábulos, com a ajuda das irmãs. Stringer era trabalhador e tinha boas idéias. Em suma, era um camarada próspero, de boa reputação, o que se chamava de um excelente partido para qualquer uma das moças locais. E era também bem-apessoado. Minha esposa diz que Stringer foi o homem mais bonito que ela já conheceu. Todas as garotas acima da idade escolar estavam atrás dele. Mas quando Eva Galli chegou à cidade, com todo o seu di­nheiro, maneiras metropolitanas e beleza, Stringer ficou perdi­damente  apaixonado.  Ela  comprou   a  casa  da  Montgomery Street...            

—  Que casa da Montgomery Street? — indagou Don. — A mesma em que Freddy Robinson morou?

—  Exatamente. A que fica em frente à casa de John. E que é agora a casa da Srta. Mostyn. Eva Galli comprou aquela casa, redecorou-a inteiramente, tinha um piano e um gramo­fone. Fumava e bebia, usava os cabelos curtos... era uma jovem realmente avançada para a época.

—  Não de todo — interveio Sears. — Não era o que se chamava naquela época de uma garota doidivanas. De qualquer forma, o tempo para isso já havia passado. E era instruída. Lia bastante. Tinha uma conversa inteligente. Eva Galli era de fato uma mulher encantadora. Como você descreveria a aparência dela, Ricky?

—  Como uma Claire Bloom dos anos 20 — disse Ricky, prontamente.

—  Uma típica descrição de Ricky Hawthorne. Peça-lhe para descrever alguém e ele compara imediatamente com um artista de cinema. Mas acho que se pode aceitar como uma des­crição acurada. Eva Galli possuía todo esse modernismo exci­tante ou pelo menos o que era modernismo para Milburn. Mas possuía também um certo refinamento...  uma graça excep­cional.

—  Isso é verdade — continuou Ricky. — E possuía tam­bém um certo ar de mistério, que achávamos  terrivelmente atraente. Como a sua Alma Mobley. Nada sabíamos a respeito dela, a não ser o que insinuava... que tinha vivido em Nova York, aparentemente passara algum tempo em Hollywood tra­balhando como atriz em filmes mudos. Teve inclusive um pe­queno papel em China pearl, um filme de Richard Barthelmess.

Don tirou do bolso um pedaço de papel e anotou o nome do filme.

—  E obviamente ela era de descendência italiana. Mas, em determinada ocasião, disse a Stringer que seus avós ma­ternos eram ingleses. Pelo que se podia imaginar, o pai fora um homem de posses. Mas Eva ficara órfã quando ainda era uma criança, sendo criada por parentes na Califórnia. Isso era tudo o que sabíamos a seu respeito. Ela explicava que tinha vindo para Milburn à procura de paz e sossego.

—  As mulheres tentaram imediatamente colocá-la sob sua influência — disse Sears. — Não se pode esquecer que Eva também exercia a maior atração sobre elas. Uma jovem rica, que virara as costas a Hollywood, refinada, sofisticada... To­das as mulheres de alguma posição em Milburn mandaram-lhe um convite. Todos os grupos sociais femininos que aqui exis­tiam naquele tempo queriam atraí-la. Tenho a impressão de que, no fundo, queriam domá-la.

—  É isso mesmo — falou Ricky. — Queriam domá-la, fazer com que se transformasse em algo que pudessem iden­tificar. Porque havia algo mais em Eva, além de todas as qua­lidades que enumeramos. Algo estranho, quase fatalista. Lewis possuía uma imaginação extremamente romântica naquele tem­po e disse-me que Eva Galli era como uma aristocrata, uma princesa ou algo assim, que se afastara da corte e partira para morrer no campo.

—  Ela também nos afetou profundamente — murmurou Sears. — É claro que estava além do nosso alcance. Mas era o nosso ideal. E a encontrávamos de vez em quando...

—  Fazíamos-lhe a corte — comentou Ricky.

—  Exatamente. Nós lhe fazíamos a corte. Eva Galli re­cusara todos os convites que as mulheres lhe haviam apresen­tado, sempre polidamente. Mas não se importava que cinco rapazes desengonçados aparecessem em sua porta num sábado ou domingo. Seu tio Edward foi o primeiro, pois era mais ousado do que os outros quatro. A esta altura, todo mundo já sabia que Stringer Dedham estava perdidamente apaixonado por ela. Assim, de certa forma, Eva Galli estava sob a pro­teção dele... como se tivesse permanentemente um guardião a seu lado. Edward quebrou todas as convenções, ao fazer-lhe uma visita. Eva se mostrou extremamente encantadora. Não de­morou muito para que todos nós tivéssemos adquirido o hábito de, visitá-la. Stringer parecia não se importar. Gostava de nós, embora vivesse num mundo diferente.

—  Ou seja, o mundo adulto — disse Ricky. — Assim como Eva. Muito embora ela devesse  ter só dois  ou  três anos mais que nós, era como se fosse vinte anos mais velha. E nada podia ser mais decoroso do que as nossas visitas. Evidentemente, como não poderia deixar de ser, algumas das mulheres mais velhas achavam que eram escandalosas. O pai de Lewis  também  pensava  assim.  Mas  tínhamos   suficiente trânsito social para que as coisas não fossem além disso. Fa­zíamos as visitas em grupo, depois que Edward abrira o ca­minho, mais ou menos uma vez a cada duas semanas. Tínhamos ciúmes demais para permitir que um de nós fosse sozinho. As visitas eram extraordinárias. Era como escapar inteiramente ao tempo. Nada de excepcional acontecia, até mesmo a conversa era trivial. Mas tínhamos a sensação de estar num reino mágico naquelas poucas horas que passávamos com Eva. Ela nos dei­xava loucos. E o fato de ser a noiva de Stringer tornava tudo seguro.                    

—  As pessoas não cresciam tão depressa naquele tempo — comentou Sears. — Tudo isso... rapazes mal saídos da adolescência cortejando uma mulher de vinte e cinco ou vinte e seis anos, como se fosse uma sacerdotisa inatingível... deve parecer-lhe cômico. Mas era assim que pensávamos a respeito dela: além de nosso alcance. Ela pertencia a Stringer e todos pensávamos que, depois do casamento, seríamos tão bem rece­bidos na casa dele quanto éramos na casa de Eva.

Os dois homens mais velhos ficaram em silêncio por um momento, olhando para o fogo na lareira de Edward Wander­ley e tomando uísque. Don não fez qualquer esforço para esti­mulá-los a continuar, sabendo que chegara um momento crucial na história e que só terminariam o relato quando se sentissem capazes.

—  Vivíamos numa espécie de paraíso assexual pré-freudiano — disse Ricky, finalmente. — Um mundo encantado. Havia ocasiões em que até dançávamos com Eva. Mas mesmo segurando-a,  observando-a  mexer-se,  jamais  pensávamos  em sexo. Ou pelo menos não conscientemente. Não para admitir. O paraíso acabou em outubro de 1929, pouco depois que o mercado de ações e Stringer Dedham também se acabaram.

—  O paraíso morreu e fitamos o Diabo de frente — mur­murou Sears, virando a cabeça para a janela.

 

—  Olhem para a neve — disse Sears. Os outros dois acompanharam o olhar dele e viram os flocos de neve batendo contra a janela. — Se a esposa conseguiu encontrá-lo, Omar Norris vai ter que trabalhar no trator de neve antes do ama­nhecer.

Ricky tomou outro gole de uísque.

—  Estava tropicalmente quente — disse ele, derretendo a nevasca do momento com o calor inesperado de outubro de quase cinqüenta anos antes. — A debulha começou tarde na­quele ano. Parecia que o pessoal não tinha condições de se concentrar no trabalho. Muitos comentaram que as preocupa­ções com dinheiro deixaram Stringer distraído. Mas as garotas Dedham disseram que não, o problema não fora esse. Ele pas­sara pela casa de Eva Galli naquela manhã e vira alguma coisa.

—  Stringer meteu os braços na debulhadora e as irmãs culparam Eva — disse Sears. — Agonizante, envolto em co­bertores, estendido sobre a mesa da cozinha, Stringer ficou fa­lando coisas. Mas não dava para entender o que as irmãs jul­gavam tê-lo ouvido dizer. “Enterrem-na!”, foi uma das coisas. E “Retalhem-na!” Parecia até que ele vira o que ia acontecer a si mesmo.

—  E houve mais uma coisa — falou Ricky. — As garotas Dedham declararam que ele gritou algo mais, porém estava tão misturado com os outros gritos que não puderam entender di­reito. “Abelha-rainha” era o que parecia. Apenas isso. Eviden­temente Stringer estava delirando, a mente já não funcionava direito, com o choque e a dor. Morreu naquela mesa e teve um enterro de primeira poucos dias depois. Eva Galli não compa­receu ao enterro. Metade da cidade estava em Pleasant Hill, mas não a noiva. O que fez com que as línguas se soltassem.

—  As línguas das mulheres mais velhas, as mesmas mu­lheres que ela havia ignorado — continuou Sears. — Comen­taram que ela era culpada, que havia levado Stringer à ruína. É claro, que metade delas tinha filhas solteiras. Estavam de olho em Stringer, antes de Eva Galli aparecer. Disseram que ele havia descoberto alguma coisa. . . um marido abandonado ou um filho ilegítimo, algo assim. Transformaram-na numa ver­dadeira Jezebel.

—  Não sabíamos o que fazer — murmurou Ricky. — Tí­nhamos receio de visitá-la, depois da morte de Stringer. Ela podia estar sofrendo tanto quanto uma viúva, mas nada podía­mos fazer. Cabia a nossos pais consolá-la, não a nós. E se a visitássemos, a malícia feminina certamente haveria de ser des­pertada. E por isso ficamos em compasso de espera, angustia­dos, desesperados. Todos pensavam que Eva fosse fazer as malas e voltar para Nova York. Mas não podíamos esquecer as tardes que passáramos em companhia dela.

—  Pareciam ter-se tornado mais mágicas, mais pungentes —  comentou Sears. — Sabíamos agora o que havíamos per­dido. Um ideal... e uma amizade romântica, conduzida à luz de um ideal.

—  Sears está certo — murmurou Ricky. — Mas, no final das contas, nós a idealizamos ainda mais. Eva tornou-se um símbolo da dor... de um coração partido. Mandamos um bi­lhete de condolências e teríamos atravessado o fogo para visi­tá-la. O que não podíamos transpor era a convenção social implacável que a isolou. Não havia qualquer brecha por onde pudéssemos passar.

—  Em vez disso, foi ela quem nos visitou — disse Sears.

— No apartamento em que seu tio morava na ocasião. Edward era o único de nós que possuía sua própria residência. Nós costumávamos nos reunir lá para conversar e tomar aguardente de maçã. E ficávamos falando sobre as coisas que pretendía­mos fazer.

—  E falávamos também sobre ela — acrescentou Ricky. —  Conhece aquele poema de Ernest Dowson que diz “Eu lhe tenho sido fiel, ó Cynara, à minha maneira”? Lewis o descobriu e leu-o para nós. O poema penetrou fundo em nós, como uma faca afiada. “Os pálidos lírios perdidos...” Isso exigia mais aguardente de maçã. “Música mais frenética’’ e “vinho mais forte”, Ah, como éramos idiotas! Uma noite, Eva apareceu no apartamento de Edward.

— E estava desvairada — falou Sears. — Estava aterra­dora. Entrou no apartamento como um tufão.

—  Disse que se sentia terrivelmente solitária — conti­nuou Ricky. — Disse que estava cansada daquela maldita ci­dade e de todos os hipócritas que ali viviam. Queria beber e dançar, não se importava que os outros ficassem chocados. Dis­se que a cidade estava morta e era povoada por pessoas que estavam mortas e não sabiam. No que dependesse dela, podiam todos ir para o inferno. E se éramos homens de verdade e não apenas garotinhos, também pensaríamos a mesma coisa a res­peito da cidade.

— Ficamos atônitos, sem saber o que falar — disse Sears. — Lá estava a nossa deusa inatingível praguejando como um marinheiro, furiosa, comportando-se como uma rameira. “Música mais frenética” e “vinho mais forte”. Foi exatamente o que conseguimos. Edward tinha um pequeno gramofone e alguns discos. Eva nos obrigou a tocar a música de jazz mais ruidosa que ele tinha. E estava impetuosa e incontrolável, Era uma loucura. Nunca tínhamos visto uma mulher se comportar daquela maneira. E, para nós, Eva era uma espécie de ponto intermediário entre a Estátua da Liberdade e Mary Pickford. “Dance comigo, cara de sapo”, disse ela para John. Este estava tão assustado que mal se atrevia a tocá-la. Os olhos dela pa­reciam arder intensamente.

—  Tenho a impressão de que, naquele momento, o que Eva sentia era ódio — disse Ricky. — Contra nós, contra a cidade, contra  Stringer.  Mas  era  ódio  e estava  fervilhando. Um ciclone de ódio. Ela beijou Lewis enquanto estavam dan­çando e ele deu um pulo para trás, como se tivesse sido quei­mado, baixando os braços. Ela se virou e puxou Edward para dançar. O rosto dela estava terrível... rígido. Edward sempre foi mais vivido do que os outros, mas também estava abalado com o frenesi de Eva. Nosso paraíso estava desmoronando e ela o transformava ainda mais em ruínas a cada passo. A cada olhar. Parecia um demônio, como se estivesse possuída. Sabe como fica uma mulher quando está com raiva, com uma raiva profunda  e  intensa,  mergulhando  no  fundo  de  si  mesma e encontrando ódio suficiente para destruir qualquer homem... como todo esse sentimento transborda e nos atinge com uma tremenda violência? Pois era o que estava acontecendo. “Não vão beber nada, seus maricas?”, perguntou ela. E nós bebemos,

—  Foi uma cena indescritível — continuou Sears. — Ela parecia ter duas vezes o nosso tamanho. E creio que eu sabia o que estava para acontecer. Pois só havia uma coisa que podia acontecer. Éramos imaturos demais para sabermos como con­trolar uma situação daquelas.

— Não sei se eu sabia o que estava para acontecer, mas sei que acabou acontecendo — comentou Ricky. — Ela tentou seduzir Lewis.

—  Era a pior escolha possível — disse Sears. — Lewis era apenas um menino. Talvez tivesse beijado alguma garota antes daquela noite, mas certamente não fora além disso. Todos amávamos Eva, mas Lewis provavelmente a amava mais do que os outros. Foi ele inclusive quem descobriu aquele poema de Dowson. E porque ele a amava mais, ficou mais aturdido com o comportamento e o ódio dela naquela noite.

—  Ela sabia disso — acrescentou Ricky. — Ficou deli­ciada. Achou ótimo que Lewis estivesse tão chocado que mal conseguisse falar. E quando empurrou Edward para o lado e foi atrás de Lewis, este ficou paralisado de horror. Como se estivesse vendo sua mãe começar a se comportar daquela ma­neira.

—  A mãe? — indagou Sears. — É possível, é bem pos­sível... Pelo menos serve para explicar a profundidade da fan­tasia de Lewis em relação a Eva...  da nossa fantasia, para ser mais sincero. Lewis ficou completamente aturdido. Eva enlaçou-o e beijou-o. Parecia que estava devorando-lhe o rosto. Imagine... aqueles beijos repletos de ódio, toda aquela fúria devorando-lhe a boca. Deve ter sido como beijar uma navalha. Quando ela recuou a cabeça, Lewis estava todo manchado de batom. Normalmente, teria sido uma cena engraçada. Mas, na­quele momento, pareceu-nos horripilante. Era como se o rosto dele estivesse todo manchado de sangue.

—  Edward aproximou-se dela e disse: “Procure contro­lar-se, Srta. Galli”. Ou falou algo parecido. Ela virou-se brus­camente na direção dele e pudemos sentir novamente a pressão intensa de seu ódio. “Também está querendo, hein, Edward?”, disse ela. “Mas espere a sua vez. Quero Lewis primeiro. Por­que o pequeno Lewis é tão bonitinho...”

Ricky continuou:

—  É depois ela virou-se para mim e disse: “Você tam­bém vai ter, Ricky. E você também, Sears. Todos vão ter. Mas quero Lewis primeiro. Quero mostrar a ele o que aquele insu­portável Stringer Dedham viu quando deu uma espiada por minha janela”.

— Edward disse:  “Por favor, Srta. Galli” — recordou Sears. — Mas ela mandou que ele calasse a boca e tratasse de lhe tirar a blusa. Ela não usava sutiã. Os seios eram no estilo da época, pequenos e firmes, como maçãs. Ela parecia incri­velmente lasciva. “E agora, meu lindo Lewis, por que não veri­ficamos o que você é capaz de fazer?” E ela se pôs a devorar-lhe o rosto novamente.

—  Todos  pensamos  que  sabíamos  o  que  Stringer vira • através da janela: Eva Galli fazendo amor com outro homem — disse Ricky. — O que era um tremendo choque moral para todos nós, somando-se à nudez dela e ao que estava fazendo com Lewis. Ficamos terrivelmente constrangidos. Finalmente Sears e eu a seguramos pelos ombros e a afastamos de Lewis. E foi então que ela praguejou de verdade, dizendo as piores coisas que se pode imaginar. Foi horrível. “Será que não podem esperar sua vez, seus isso e aquilo?” Começou a desabotoar a saia enquanto nos xingava. Edward estava quase em lágrimas e balbuciou: “Por favor, Eva, não faça isso!” Ela deixou cair a saia. “Qual é o problema, seu maricas? Está com medo de ver como eu sou?”

—  Estávamos desesperados — continuou Sears. — Ela tirou a anágua e saiu dançando na direção de seu tio. “Acho que vou dar-lhe uma mordida, meu pequeno Edward.” Incli­nou-se na direção dele... na direção do pescoço. Edward esbo­feteou-a.

—  Com toda a força — acrescentou Ricky. — E ela esbofeteou-o de volta, com mais força ainda. Pôs todo o peso do seu corpo naquela bofetada. Soou tão alto quanto uma arma disparando. John, Sears e eu estávamos imobilizados, completa­mente impotentes. Não conseguíamos mexer-nos.

—  Se pudéssemos, talvez tivéssemos conseguido conter Lewis — falou Sears. — Mas ficamos imóveis como soldadi­nhos de chumbo, observando a cena. Ele decolou como um avião... simplesmente voou através da sala e derrubou-a. Esta­va soluçando, balbuciando, gemendo... perdera inteiramente o controle. Derrubou-a como num lance de futebol americano. Os dois desabaram como um edifício bombardeado. E fizeram, ao cair, um estrondo tão alto quanto o da Segunda-Feira Negra. Eva jamais se levantou.

—  Ela bateu com a cabeça na quina da lareira — expli­cou Ricky. — Lewis arrastou-se sobre as costas dela e ficou de joelhos a seu lado, erguendo os punhos. E foi nesse mo­mento que viu sangue escorrendo pela boca de Eva.

Os dois velhos estavam ofegantes.

—  E foi assim que aconteceu — disse Sears. — Ela esta­va morta. Nua e  morta, nós cinco parados  ao  redor, como zumbis.   Lewis   vomitou   no   chão,   e   nós   estivemos   bem perto disso. Não podíamos  acreditar no que havia  aconteci­do... no que tínhamos feito. Sei que não é desculpa, mas está­vamos  realmente  em  estado  de  choque.  Creio  que  simples­mente  nos  entregamos  e ficamos  flutuando  no  silêncio  por algum tempo.

— Pois o silêncio parecia imenso — continuou Ricky. — Envolvia-nos inteiramente... como a neve lá fora. Lewis finalmente disse: “Temos que chamar a polícia”. Mas Edward protestou: “Não! Iremos todos para a cadeia! Por assassina­to!” Sears e eu tentamos explicar-lhe que ninguém cometera um homicídio, mas Edward disse: “E vão gostar de ser expul­sos da Ordem dos Advogados? Pois será justamente isso o que vai acontecer”. John verificou o pulso e a respiração dela, mas é claro que nada encontrou. “Acho que foi assassinato”, disse ele. “Estamos perdidos.”

Sears retomou o relato:

— Ricky perguntou o que deveríamos fazer, e John dis­se: “Só há uma saída. Precisamos esconder o corpo. E esconder num lugar onde nunca seja encontrado”. Todos olhamos para o corpo, para o rosto ensangüentado, sentindo-nos derrotados. Eva tinha vencido. Era a sensação que nos dominava. O ódio dela levara-nos a algo muito próximo do homicídio, se não mes­mo homicídio em termos legais. E agora estávamos falando em ocultar o que tínhamos feito. . .  uma providência condenável, tanto legal como moralmente. E todos concordamos que era a melhor coisa a fazer.

—  E onde decidiram esconder o corpo? — indagou Don.

— Havia um velho açude a nove ou dez quilômetros da cidade. Bastante profundo. Já não existe mais. Foi aterrado e construíram um shopping center no lugar. Devia ter uns seis ou sete metros de profundidade.

—  O carro de Lewis estava com o pneu furado — disse Sears. — Envolvemos o corpo num lençol e saímos à procura de Warren Scales. Sabíamos que ele estava na cidade, fazendo compras com a esposa. Era uma ótima pessoa e gostava de nós. íamos pegar o carro emprestado e depois dizer-lhe que o arre­bentáramos por completo, comprando outro melhor. Ricky e eu contribuiríamos com as parcelas  maiores para o novo carro.

—  Warren Scales era o pai do fazendeiro que vive fa­lando que vai atirar nos marcianos? — perguntou Don.

—  Elmer foi o quarto filho de Warren, o primeiro ho­mem. Nem mesmo havia nascido na ocasião. Fomos ao centro da cidade, encontramos Warren, pedimos o carro emprestado e prometemos que o traríamos de volta dentro de uma hora. Seguimos para o apartamento de Edward e descemos pela esca­da com o corpo de Eva. Tentamos metê-la no carro.

Ricky continuou:

— Estávamos terrivelmente nervosos, assustados e aturdi­dos. Ainda não podíamos acreditar no que acontecera, no que estávamos fazendo. E tivemos a maior dificuldade em ajeitar o corpo no carro. “Vamos pôr os pés primeiro”, sugeriu alguém. Metemos o corpo no banco traseiro e o lençol ficou todo torto. Lewis começou a dizer que a cabeça dela estava presa. Puxamos o corpo para fora outra vez, até a metade. E foi nesse mo­mento que John gritou que ela tinha se mexido. Edward cha­mou-o de idiota e disse que ele, acima de qualquer outro, devia saber que ela não podia mexer-se. Não era médico?

—  Conseguimos finalmente ajeitá-la no carro.  Ricky e John tiveram de ficar no banco traseiro, junto com o corpo. Foi uma viagem de pesadelo através da cidade. — Sears fez uma breve pausa, olhando para o fogo. — Acabei de lembrar que eu é que estava guiando. Encontrava-me tão aturdido que não podia lembrar como chegar ao açude. Errei o caminho e me afastei uns seis ou sete quilômetros, até que finalmente alguém me explicou como chegar. E entramos na estradinha de terra que levava ao açude.

—  Tudo parecia extremamente nítido — comentou Ricky. —   Cada folha, cada pedra... tudo estava bastante  nítido, como uma ilustração num livro. Saltamos do carro e o mundo pareceu atingir-nos entre os olhos com um terrível impacto. “Temos mesmo que fazer isso?”, perguntou Lewis. Ele estava chorando. Edward disse: “Eu bem que gostaria que não fosse necessário”.

—  Depois, Edward foi sentar-se ao volante — disse Sears. —  O carro estava a uns dez ou quinze metros do açude, que caía até sua profundidade máxima quase que imediatamente de­pois da margem. Ele ligou a ignição, enquanto eu girava a manivela. Edward engrenou a primeira, prendeu o volante e sal­tou. O carro começou a avançar.

Os dois homens ficaram novamente em silêncio, olhando um para o outro. Foi Ricky quem voltou a falar, enquanto Sears sacudia a cabeça lentamente:

—  Depois... não sei como contar...

—  Vimos uma coisa — disse Sears. — Uma alucinação. Ou algo parecido.

—  Vocês a viram viva novamente — falou Don. — Eu já esperava por isso.

Ricky fitou-o, com uma expressão de surpresa e cansaço.

—  Isso mesmo. Vimos o rosto dela, na janela traseira do carro. Estava nos olhando... e sorrindo. Zombando de nós. Quase morremos de susto. No segundo seguinte, o carro caiu na água e começou a afundar. Todos corremos para a frente e tentamos ver alguma coisa pelas janelas laterais. Eu estava apa­vorado. Sabia que ela estava morta, tinha morrido no aparta­mento. Tinha certeza! John pulou na água no instante em que o carro começou a afundar. Ao voltar, disse que tinha olhado pela janela lateral e...

—  E não viu nada no banco traseiro — acrescentou Sears. — Foi o que ele disse.

—  O carro  afundou e nunca mais  apareceu — disse Ricky. — Ainda deve estar lá, sob trinta mil toneladas de aterro.

—  Aconteceu mais alguma coisa? — indagou Don. — Por favor, procurem recordar-se de tudo. É muito importante.

—  Aconteceram mais duas coisas — respondeu Ricky. — Mas preciso tomar outro drinque antes de contar. — Despejou um pouco de uísque em seu copo e bebeu, antes de voltar a falar: — John Jaffrey avistou um lince no outro lado do açude. E depois todos nós o vimos também. Tivemos um sobressalto. O fato de sermos vistos, até mesmo por um animal, fazia com que nos tornássemos ainda mais culpados. O lince abanou a cauda e depois desapareceu no mato.

—  Era comum a presença de linces por aqui há cin­qüenta anos?

—  Claro que não. Talvez mais ao norte ainda fossem en­contrados alguns. Essa foi uma das coisas que aconteceram. A outra foi que a casa de Eva Galli se incendiou. Quando vol­tamos à cidade, encontramos os vizinhos diante da casa, obser­vando os bombeiros voluntários tentarem apagar o incêndio.

—  Alguém viu como o incêndio começou?

Sears meneou a cabeça e Ricky continuou a contar a his­tória:

—  Aparentemente, o fogo começou por si mesmo. E cons­tatar o incêndio fez-nos sentir-nos ainda pior. Era como se também o tivéssemos provocado.

—  Um dos bombeiros voluntários fez um comentário es­tranho — recordou Sears. — Todos nós devíamos estar com expressões angustiadas, parados ali, contemplando o incêndio. Os bombeiros presumiram que estávamos preocupados com as outras casas da rua. E um deles disse que os outros prédios estavam seguros, porque o incêndio estava diminuindo. Acres­centou que, pelo que pudera ver, parecia que uma parte da casa explodira para dentro. Ele não sabia explicar, mas era essa a sua impressão. E o fogo estava restrito a essa parte da casa, no segundo andar. Pude entender o que ele estava ten­tando dizer. Dava para ver algumas das vigas, entortando-se na direção do fogo.

—  E as janelas? — disse Ricky. — As janelas estavam quebradas, mas não havia vidro no lado de fora...   tinham explodido para dentro.

—  Implodido — falou Don.

—  Isso mesmo — assentiu Ricky. — Não me lembrei da palavra. Vi isso acontecer uma vez com uma lâmpada. Seja como for, o fogo destruiu praticamente todo o segundo andar, mas não afetou o andar térreo. Um ou dois anos depois, uma família comprou a casa e reformou-a inteiramente. Todos nós tínhamos voltado a trabalhar e as pessoas já haviam deixado de comentar o que acontecera com Eva Galli.

—  Éramos os únicos que sabíamos e nada falávamos a respeito — disse Sears. — Tivemos alguns momentos angus­tiantes quando começaram a aterrar o açude, há uns quinze ou vinte anos. Mas não encontraram o carro. Simplesmente o so­terraram... com o que quer que estivesse lá dentro.

—  Não havia nada lá dentro — declarou Don. — Eva Galli está aqui em Milburn agora. Está de volta. E pela se­gunda vez.

—  De volta? — disse Ricky, levantando a cabeça brus­camente.

—  Está de volta como Anna Mostyn. E, antes disso, apa­receu  aqui como Ann-Veronica Moore.  E como Alma Mo­bley me conheceu na Califórnia e matou meu irmão em Amsterdam.

—  Está mesmo se referindo à Srta. Mostyn? — indagou Sears, incrédulo.

—  Foi isso o que matou Edward? — perguntou Ricky.

— Tenho certeza de que sim. Ele provavelmente viu a mesma coisa que Stringer...  ela deixou-o ver.

—  Não posso acreditar que a Srta. Mostyn tenha qualquer coisa a ver com Eva Galli, Stringer Dedham ou Edward — disse Sears. — É uma idéia absolutamente ridícula.

—  Mas o que ela deixou-o ver? — perguntou Ricky.

—  Ela própria mudando de forma — explicou Don. — E estou convencido de que ela deliberadamente planejou para que ele visse, sabendo que isso o faria literalmente morrer de medo. — Fez uma pausa, fitando nos olhos os dois homens mais ve­lhos, antes de acrescentar: — E há mais. É quase certo que ela saiba que nos encontramos aqui esta noite. Porque somos problemas que ainda não pôde liquidar.

 

(Sabe o que significa ter saudade de Nova Orleans?)

 

—  Mudar de forma... — murmurou Ricky.

—  Mudar de forma... essa não! — exclamou Sears, me­nos complacente. — Está querendo insinuar que Eva Galli, a pequena atriz de Edward e a nossa secretária são todas a mesma pessoa?

—  Não uma pessoa, mas o mesmo ser. O lince que vocês viram no outro lado do açude provavelmente também era ela. Só que não é absolutamente uma pessoa, Sears. Quando senti­ram o ódio de Eva Galli no dia em que ela foi ao apartamento de meu tio, creio que perceberam a parte mais verdadeira dela. Estou convencido de que ela foi até lá para incitá-los a alguma espécie de destruição... para acabar com a inocência de vocês. Mas o tiro saiu pela culatra e vocês a atingiram fundo. O que pelo menos prova que isso é possível. Agora, ela voltou para fazê-los pagar pelo que fizeram. E a mim também. Desviou-se por um momento de mim e foi atingir meu irmão, mas sabia que eu acabaria vindo para cá. E poderia então nos apanhar, um a um.

—  Era essa a teoria que estava querendo nos contar? — indagou Ricky.

Don assentiu.

—  Mas o que o leva a pensar que pode ser algo mais além de uma mera teoria, particularmente desagradável? — perguntou Sears.

—  Peter Barnes,  para começar —  respondeu Don. — Creio que a história dele convencerá até a você, Sears. E se falhar,  lerei um  trecho  de um livro  que certamente haverá de funcionar. Mas, primeiro, vamos à história de Peter. Ele foi hoje à casa de Lewis, como eu já disse antes.

E Don relatou tudo o que acontecera com Peter Barnes, a ida à estação abandonada, a morte de Freddy Robinson, a morte de Jim Hardie na casa de Anna Mostyn e os aconteci­mentos terríveis daquela manhã.

—  Por isso, creio que é inevitável a conclusão de que Anna Mostyn é a “benfeitora” que Gregory Bate mencionou. É ela que comanda Gregory e Fenny. Peter disse que soube intuitivamente que Gregory era possuído por alguma coisa, que era como um cão selvagem obedecendo a um dono diabó­lico. Juntos, eles querem destruir toda a cidade. Exatamente como o Dr. Rabbitfoot na novela que eu estava planejando.

—  Eles estão tentando fazer com que a novela se trans­forme em realidade? — indagou Ricky.

—  Creio que sim. Eles também se chamam de vigilantes noturnos. Gostam de brincar. Pensem nas iniciais. Anna Mos­tyn, Alma Mobley, Ann-Veronica Moore. Pura brincadeira. Ela queria justamente que percebêssemos a semelhança. Tenho cer­teza de que enviou Gregory e Fenny para cá porque Sears já os tinha visto antes. Ou eles surgiram há muitos anos porque ela sabia que poderia usá-los agora. E não foi por acaso que, quan­do vi Gregory na Califórnia, achei-o parecido com um lobi­somem.

—  E por que não foi algo acidental, se é isso o que está querendo afirmar? — indagou Sears.

—  Não é o que estou querendo afirmar. Mas tenho cer­teza de que criaturas como Anna Mostyn ou Eva Galli estão por trás de todas as histórias de fantasma e sobrenatural que já foram escritas — disse Don. — Estão na origem de tudo o que  nos  assusta  no  sobrenatural.  Nas  histórias,  procuramos tornar tais coisas passíveis de serem controladas. E as histórias pelo menos mostram que podemos destruí-las. Gregory Bate não é um lobisomem, tanto quanto Anna Mostyn. Ele é o que as pessoas costumam descrever como um lobisomem. Ou como um vampiro. Alimenta-se de corpos vivos. Vendeu-se à sua ben­feitora, em troca da imortalidade.

Don pegou um dos livros que trouxera.

—  Este é um livro de referência, o Dicionário padroni­zado de folclore, mitologia e lenda. Há um registro longo sob o verbete de “mudança de forma”, escrito por um professor chamado R. D. Jameson. Escutem isso: “Embora jamais tenha sido feito um censo das criaturas que mudam de forma, é astro­nômico o número das encontradas em todas as partes do mun­do”. Ele diz que tais histórias constam do folclore de todos os povos. Estende-se por três colunas, um dos registros mais longos do livro. Não creio que seja de muita ajuda para nós, exceto na medida em que esclarece que há milhares de anos se fala em tais seres, pois Jameson não informa se as lendas indicam quaisquer meios, se é que existe algum, pelos quais tais criaturas possam ser destruídas. Mas prestem atenção à ma­neira como ele conclui o registro: “Os estudos sobre as mudan­ças de forma de raposas, lontras, etc, são amplos, mas ignoram o problema central. No folclore, a mudança de forma está niti­damente relacionada com a alucinação em psicologia mórbida. Até que os fenômenos em ambas as áreas sejam meticulosamen­te estudados, não podemos ir além da observação geral de que, de fato, nada é o que parece ser”.

—  Amém — disse Ricky.

—  Exatamente. Nada é o que parece ser. Esses seres po­dem convencê-lo de que está perdendo o juízo. Isso aconteceu com todos nós. Vimos e sentimos coisas que depois descartamos como impossíveis. Não podem ser verdade, dizemos a nós mes­mos; tais coisas não acontecem. Mas a verdade é que acontecem e nós as testemunhamos. Vocês todos testemunharam. Viram Eva Galli sentada no banco do carro e um momento depois viram-na aparecer como um lince.

—  Vamos supor que um de nós tivesse levado um rifle naquele dia e atirasse no lince — disse Sears. — O que teria acontecido?

—  Creio que veriam algo extraordinário, mas não posso imaginar o quê. Talvez a criatura tivesse morrido. Talvez ti­vesse mudado para alguma outra forma. Talvez, se não sentisse grande dor, sofresse toda uma sucessão de transformações. E talvez não tivesse adiantado coisa alguma.

—  Um excesso de talvez — comentou Ricky.

—  É tudo o que temos.

—  Se aceitarmos sua teoria.

—  Se tiverem uma teoria melhor, estou disposto a escutar. Mas sabemos o que aconteceu a Freddy Robinson e Jim Hardie, por intermédio de Peter Barnes. Além disso, entrei em con­tato com o agente dela e descobri algumas coisas a respeito de Ann-Veronica Moore. Literalmente, ela não veio de parte algu­ma. Não há qualquer registro a seu respeito na cidade em que disse ter nascido. E não podia mesmo haver, porque nunca existiu uma Ann-Veronica Moore, até o dia em que ela se ma­triculou num curso de arte dramática. Ela simplesmente se apresentou na porta de um teatro, com uma história plausível e devidamente documentada, sabendo que era um meio de che­gar a Edward Wanderley.

—  Então essas... essas coisas que você pensa que exis­tem... são muito mais perigosas, porque possuem imaginação

—  comentou Sears.                                                        

—  Tem toda a razão. Adoram brincadeiras e formulam planos a longo prazo. E como o manitu dos índios, adoram exibir-se. O segundo livro que eu trouxe dá um bom exemplo disso. — Pegou o livro e mostrou a lombada aos dois homens. —  I carne this way, de Robert Mobley. Ele era o pintor que Alma afirmou ser seu pai. Cometi o erro de jamais examinar sua autobiografia, até hoje. Creio agora que ela queria que eu lesse e descobrisse que, ao dar-se o nome de Mobley, estava fazendo um trocadilho com uma aparição anterior. O quarto capítulo é intitulado “Nuvens sombrias”. Não é uma autobio­grafia muito bem escrita, mas quero ler alguns parágrafos desse capítulo.

Don abriu o livro numa página marcada. Nenhum dos dois velhos se mexeu.

— “Mesmo numa vida aparentemente tão afortunada quan­to à minha, houve períodos sombrios e turbulentos, meses e anos de sofrimento indelével. O ano de 1958 foi assim. Creio que só consegui preservar a sanidade mental concentrando-me totalmente no trabalho. Conhecendo as aquarelas de cores ale­gres e as rígidas experiências formais em óleos que caracteri­zaram o meu trabalho durante os cinco anos anteriores, as pes­soas freqüentemente me interrogam a respeito da transforma­ção estilística que levou ao meu chamado período sobrenatural. Posso dizer agora apenas que minha mente provavelmente es­tava transtornada, e o violento distúrbio das emoções encon­trou expressão no trabalho que me forcei a realizar. O pri­meiro acontecimento doloroso daquele ano foi a morte de mi­nha mãe, Jessica Osgood Mobley, cuja afeição e sábios con­selhos...” Vou pular uma ou duas páginas neste ponto. — Don passou a página. — Vamos continuar daqui. “O segundo acontecimento, ainda mais doloroso e trágico, foi a morte por suas próprias mãos, no seu décimo oitavo aniversário, do meu filho mais velho, Shelby. Mencionarei aqui apenas as circuns­tâncias que envolveram a morte de Shelby e que levaram dire­tamente ao meu trabalho no período sobrenatural, pois este livro é basicamente um relato da minha vida como pintor. Con­tudo, devo dizer que meu filho tinha um espírito alegre, ino­cente e exuberante. Estou absolutamente convencido de que somente um grande trauma moral, a descoberta de algo malé­fico até então desconhecido, poderia levá-lo ao ato trágico de acabar com a própria vida.

“ ‘Pouco depois da morte de minha mãe, uma casa grande, perto da nossa, foi vendida a uma mulher atraente e eviden­temente próspera, de quarenta e poucos anos, cuja única famí­lia consistia de uma sobrinha de catorze anos, que ficara aos seus cuidados depois da morte dos pais. A Sra. Florence de Peyser era cordial e reservada, uma mulher de maneiras encan­tadoras, que passava os invernos na Europa, assim como meus pais também costumavam fazer. Parecia ser mais representativa de outra época distinta da nossa e por algum tempo pensei em fazer o seu retrato numa aquarela, Ela colecionava quadros, conforme descobri ao ser convidado a visitá-la. Possuía até al­guns conhecimentos sobre minha obra, embora minhas abstra­ções do período só estranhamente combinassem com seus sim­bolistas franceses. Mas apesar de todo o encanto da Sra. de Peyser, a principal atração da casa logo passou a ser sua sobri­nha. A beleza de Amy Monckton era quase etérea e creio que era o ser mais feminino que já conheci. Tudo o que ela fazia, mesmo que fosse simplesmente entrar numa sala ou servir uma xícara de chá, possuía uma graciosidade intrínseca e serena. A criança era encantadora, tranqüila e recatada, tão delicada quanto (embora talvez mais inteligente) Pansy Osmond, por cuja felicidade a Isobel Archer de Henry James sacrificou-se voluntariamente. Amy era uma convidada sempre bem recebida . em nossa casa, pois meus dois filhos sentiam-se irresistivel­mente atraídos por ela.’

“E lá está ela”, comentou Don. “Uma Alma Mobley de catorze anos, sob a orientação da Sra. de Peyser. O pobre Mobley não tinha a menor idéia do que estava deixando entrar em sua casa. E continua seu relato: ‘Embora Amy fosse da mesma idade que Whitney, meu filho mais moço, foi Shelby, o sensível Shelby, que mais se afeiçoou a ela. Na ocasião, pensei que era prova da politesse de Shelby o fato de dispensar tanto tempo a uma menina quatro anos mais moça. E mesmo quando percebi os indícios óbvios de uma afeição profunda (o pobre Shelby corava quando o nome da menina era mencionado), ja­mais poderia ter imaginado que eles se entregavam a qualquer comportamento de uma espécie mórbida, degradante ou preco­ce. Na verdade, era um dos prazeres da minha vida contemplar meu filho alto e bonito passeando por nossos jardins com a linda mocinha. E não fiquei surpreso, embora talvez um pouco divertido, quando Shelby me confidenciou que iria casar-se com Amy Monckton, quando ela tivesse dezoito anos e ele vinte e dois.

“ ‘Depois de alguns meses, notei que Shelby tornara-se cada vez mais retraído. Não mais se interessava pelos amigos. Nos últimos meses de sua vida, concentrou-se exclusivamente na casa de Florence de Peyser e na jovem Amy Monckton. Recentemente, a família contratara um criado de aparência latina e sinistra, chamado Gregorio. Desconfiei de Gregorio à primeira vista e tentei alertar a Sra. de Peyser a respeito dele, mas fui informado de que ela o conhecia e a sua família há vários anos e que ele era um excelente motorista. Achei que não me cabia dizer mais nada.

“ ‘Neste breve relato, posso dizer apenas que meu filho tornou-se ansioso e pálido na aparência e furtivo no compor­tamento, durante as duas últimas semanas de sua vida. Banquei o pai severo pela primeira vez e proibi-o de qualquer contato com a família De Peyser. A atitude de Shelby levara-me a acreditar que, sob a influência nefasta de Gregorio, ele e a moça estavam experimentando drogas... talvez até uma sen­sualidade ilícita. A erva nociva e degradante, a maconha, já era encontrada naquele tempo nos bairros mais miseráveis de Nova Orleans. E eu receava também que eles estivessem parti­cipando de alguma forma ostensiva de misticismo negro. Esse tipo de coisa sempre está ligado às drogas.

“ ‘Quaisquer que tenham sido as coisas para as quais Shelby foi atraído, os resultados se mostraram trágicos. Ele desobedeceu às minhas ordens e continuou a freqüentar secre­tamente a casa da Sra. de Peyser. No último dia de agosto, voltou para casa, pegou o revólver que eu guardava na mesi­nha-de-cabeceira do meu quarto e matou-se com um tiro. Fui eu, que naquele momento estava pintando em meu estúdio, que ouvi o tiro e encontrei o corpo.

“ ‘O que aconteceu em seguida deve ter sido o resultado do choque. Não pensei em chamar a polícia ou uma ambulân­cia. Saí de casa, imaginando por qualquer motivo que a ajuda já estava a caminho. Descobri-me de repente na Tua, diante de nossa casa. E estava olhando para a residência da Sra. de Pey­ser. E o que vi ali quase me fez perder o juízo.

“ ‘Tive a impressão de avistar o motorista Gregorio numa janela do andar superior, escarnecendo de mim. A malevolência parecia irradiar-se dele. Estava exultante. Tentei gritar, mas não consegui. Olhei para baixo e deparei com algo ainda pior. Amy Monckton estava parada ao lado da casa, também olhando para mim, mas com um olhar calmo e inexpressivo, e a expres­são grave. E os pés dela não estavam tocando no chão! Amy parecia estar flutuando a uns vinte ou trinta centímetros acima da relva. Diante deles, fui dominado por um terror extremo, comprimindo as mãos contra o rosto. Quando as retirei e olhei novamente, eles haviam desaparecido.

“ ‘A Sra. de Peyser e Amy enviaram flores para o funeral de Shelby e logo depois mudaram-se para a Califórnia. Embora estivesse e ainda esteja convencido de que simplesmente ima­ginara a última visão que tive da menina e do motorista, quei­mei as flores, ao invés de usá-las para adornar o caixão de Shelby. Os quadros do meu chamado período sobrenatural, que me proponho agora analisar, foram uma decorrência dessa experiência.’ ”

Don fez uma pausa, olhando para os dois homens mais velhos.

—  Li este trecho pela primeira vez hoje. Entende agora o que eu quis dizer ao falar que eles gostam de se exibir? Querem que suas vítimas saibam ou pelo menos desconfiem que tipo de coisas lhes está acontecendo. Robert Mobley sofreu um choque tão grande que quase o desequilibrou mentalmente. Foi o período em que pintou os melhores quadros de sua vida. Alma queria que eu lesse a história e soubesse que ela tinha vivido em Nova Orleans, com Florence de Peyser e usando outro nome, e que matara um rapaz tão certamente quanto matou meu irmão.

—  E por que Anna Mostyn ainda não nos matou? — indagou  Sears. — Ela já  teve  todas  as oportunidades.  Não posso nem mesmo fingir que não estou convencido pelo que acabou de nos contar, Mas por que ela está esperando? Por que nós três ainda não estamos mortos, como os outros?

Ricky tossiu suavemente, limpando a garganta.

—  A atriz de Edward disse a Stella que eu seria um bom inimigo. Creio que ela estava esperando pelo momento em que soubéssemos exatamente o que estamos enfrentando.

—  Ou seja, agora — comentou Sears.

—  Tem algum plano? — perguntou Ricky a Don.

—  Não, não tenho um plano. Mas tenho algumas idéias. Vou voltar ao hotel, pegar minhas coisas e me instalar aqui. Talvez haja, nas gravações que ela fez com meu tio, alguma informação que possamos usar. E quero entrar na casa de Anna Mostyn. Espero que me acompanhem. Talvez possamos desco­brir alguma coisa lá.

—  E o que vai encontrar será uma longa caminhada ou um rápido mergulho — disse Sears.

—  Não creio. Acho que eles já não estão mais lá. Os três sabem que tentaremos primeiro a casa e já devem ter encon­trado algum outro lugar para ficar. — Don olhou atentamente para Sears e Ricky, antes de acrescentar: — Só resta mais uma coisa a dizer. Como Sears perguntou, o que teria acontecido se vocês tivessem atirado no lince? É justamente o que teremos de descobrir. Desta vez, teremos de atirar no lince, o que quer que possa acontecer. — Sorriu e arrematou: — Vai ser um inferno terrível.

Sears James murmurou algo afirmativo. Ricky perguntou:

—  Acha que nós três e Peter Barnes temos muitas chan­ces de sair vivos de tudo isso?

—  São bem poucas — interveio Sears. — Mas Don certamente está fazendo o que queríamos que fizesse, quando o convidamos a vir a Milburn.

—  Vamos contar a alguém? — indagou Ricky. — Deve­mos tentar convencer Hardesty?

—  Seria uma tolice — grunhiu Sears. — Seríamos meti­dos numa cela do hospício.

—  Vamos deixar que eles pensem que estão enfrentando marcianos — disse Don. — Sears está certo. Mas estou dispos­to a fazer com vocês uma aposta que não vou perder.

—  Qual?

—  Aposto  que  a   perfeita   secretária   de  vocês  não   irá trabalhar amanhã.

Depois que os homens mais velhos foram embora da casa de seu tio, Don aumentou o fogo na lareira e sentou-se no lugar que Ricky deixara quente. Enquanto a neve se acumulava no telhado e tentava entrar pelas portas e janelas, ele recordou uma noite quente e assustadora, o cheiro de folhas queimando, um pardal pousado numa cerca e um rosto pálido, já muito amado, a fitá-lo de uma porta, os olhos luminosos. E uma garota nua, olhando através de uma janela escura e pronuncian­do palavras que só agora ele compreendia: “Você é um fan­tasma”.

“Você, Donald. Você.” Era a terrível percepção no fundo de qualquer história de fantasma.

 

A cidade sitiada

Olhando para sua imagem na água, Narciso chorou.

Quando o amigo, ao passar, perguntou o motivo,

Narciso respondeu: “Choro porque perdi

minha inocência”.

Ao que o amigo disse: “Deveria

ser mais sensato e chorar porque a teve”.

 

Dezembro em Milburn: Milburn preparando-se para o Natal. A memória da cidade é longa e o mês de dezembro sempre representou determinadas coisas: açúcar-cande de bor­do, patinar no rio congelado, luzes coloridas nas árvores e lojas, esquiar nas colinas dos arredores. Em dezembro, sob vá­rios centímetros de neve, Milburn sempre assumia uma apa­rência festiva, quase magicamente bonita. Uma árvore de Natal bem grande era sempre armada na praça. Eleanor Hardie igua­lava as luzes, decorando também a fachada do Hotel Archer. As crianças faziam fila diante de Papai Noel na loja de depar­tamentos da cidade, formulando seus pedidos de Natal. Somen­te as crianças mais velhas percebiam que Papai Noel parecia-se e cheirava um pouco a Omar Norris. (Dezembro sempre recon­ciliava Omar não apenas com a esposa, mas também consigo mesmo: ele reduzia a bebida à metade e falava a seus poucos companheiros em “fazer serão lá na loja”.) Como o pai fazia antes dele, Norbert Clyde sempre levava seu velho trenó puxa­do a cavalos para a cidade, proporcionando passeios às crianças, para que pudessem saber como soavam os seus sinos... e tomassem conhecimento da sensação maravilhosa de deslizar pela neve puxadas por dois cavalos, o ar recendendo a pinheiros. E como o pai dele também costumava fazer, Elmer Scales abria um portão na cerca de suas pastagens e deixava que os moradores da cidade viessem deslizar de trenó num morro em sua propriedade; sempre se via meia dúzia de caminhonetes estacionadas ao lado da cerca e meia dúzia de pais puxando trenós com crianças excitadas pela encosta. Algumas famílias faziam puxa-puxa na cozinha, outras cozinhavam castanhas na lareira. Humphrey Stalladge instalava lâmpadas vermelhas e verdes por cima do balcão e começava a preparar seu famoso quentão. As donas-de-casa de Milburn trocavam receitas de bolos de Natal; os açougueiros recebiam encomendas de perus de dez quilos e distribuíam receitas de molhos de peru. As crianças de oito anos da escola primária recortavam árvores de Natal em papel colorido e colavam nas janelas das salas. As crianças da escola secundária estavam mais interessadas em pati­nação do que nas aulas de inglês e história, pensavam nos discos que iriam comprar com os cheques de Natal que ganhariam de tios e tias. Os Rotarys, Kiwanis e Kaycees realizavam uma gigantesca festa no salão de bailes do Hotel Archer, com três garçons importados de Binghamton, angariando vários milha­res de dólares para um fundo beneficente. Por causa dessa noite e de todos os coquetéis que os habitantes mais jovens e mais novos de Milburn ofereciam — ou seja, aqueles que ainda não pareciam inteiramente familiares a Sears e Ricky, embora morassem em Milburn há anos —, as pessoas iam trabalhar no dia seguinte com dor de cabeça e o estômago enjoado.

Neste ano, ainda houve alguns coquetéis e as mulheres ainda fizeram bolos de Natal. Mas aquele dezembro em Mil­burn foi diferente. As pessoas que se encontravam na loja de departamentos não comentavam: “Não é maravilhoso ter um Natal branco?”, mas sim “Espero que a neve não continue a subir”. Omar Norris tinha de ficar trabalhando durante o dia inteiro no removedor de neve municipal e os empregados su­balternos declararam que só vestiriam o traje de Papai Noel dele se o fumigassem primeiro. O prefeito e os assistentes de Hardesty instalaram uma imensa árvore de Natal na praça, mas Eleanor Hardie não teve ânimo de decorar a fachada do hotel; ao contrário, começou a parecer tão angustiada e desnorteada que um casal de turistas de Nova York decidiu, ao vê-la, seguir viagem até encontrar um motel à beira da estrada. E Norbert Clyde, pela primeira vez, não tirou seu trenó do estábulo; des­de que vira a “coisa” em sua propriedade entrara num estranho processo de declínio. Podia-se ouvi-lo no Humphrey’s e em outros bares nos arredores da cidade comentando que o agente rural do condado não sabia distinguir o próprio rabo do coto­velo, e que se todos tivessem um mínimo de bom senso pas­sariam a prestar mais atenção ao que Elmer Scales dizia. E Elmer Scales não abriu o portão para que as crianças da cidade pudessem deslizar de trenó por seu morro. Não estava mais jantando, escrevia poesias cada vez mais disparatadas, passava as noites sentado diante da janela, com a espingarda carregada no colo. Seus muitos filhos cuidavam de si mesmos, sentin­do-se abandonados. A neve caía o dia inteiro, a noite inteira; a princípio, a neve se acumulou até cobrir as cercas, depois foi subindo para alcançar os beirais dos telhados. As escolas foram fechadas por oito dias na segunda metade de dezembro. O sis­tema de aquecimento da escola secundária sofreu uma pane logo depois, e a junta de educação decidiu suspender as aulas até meados de janeiro, quando um técnico de calefação de Bin­ghamton pôde finalmente chegar a Milburn. A escola primá­ria também fechou. As estradas e ruas estavam extremamente perigosas e depois que o ônibus escolar caiu numa valeta duas vezes numa mesma manhã, os pais não iriam mesmo deixar que os filhos saíssem. As pessoas da idade de Ricky e Sears. — as que eram a memória da cidade — recordavam os invernos de 1947 e 1926, quando nenhum veículo entrara ou saíra de Milburn por várias semanas, o combustível acabara e muitas pes­soas idosas (que não eram mais velhas do que Ricky e Sears eram agora) haviam morrido congeladas, assim como Viola Frederickson, a mulher de cabelos avermelhados e rosto exótico.

O dezembro em Milburn pareceu menos com uma aldeia em cartão-postal de Natal e mais com uma aldeia sitiada. Os cavalos das garotas Dedham, esquecidos até mesmo por Nettie, passaram fome e acabaram morrendo em suas baias. Naquele mês de dezembro, as pessoas ficaram em suas casas mais do que costumavam. Os nervos ficaram à flor da pele... e alguns não conseguiram controlar-se. Philip Kneighler, um dos novos habitantes de Milburn, entrou em casa e deu uma surra na esposa, depois que sua máquina de remover neve quebrou, quando estava trabalhando na entrada de carro. Ronnie Byrum, um sobrinho de Harlan Bautz, fuzileiro naval, que estava em casa em licença, não gostou dos comentários inofensivos do homem a seu lado num bar e quebrou-lhe o nariz; teria que­brado também o queixo, se dois antigos colegas seus da escola secundária não lhe segurassem os braços. Dois rapazes de de­zesseis anos, Billy Byrum (irmão de Ronnie) e Anthony Ortega, provocaram uma Concussão num rapaz mais jovem, que insistiu em ficar falando durante toda a sessão das oito e meia da Noite dos mortos-vivos, no Cine Rialto de Clark Mulligan. Por toda Milburn, casais trancavam-se em suas casas, discutiam por causa dos filhos, dinheiro, programas de televisão. Um diácono da Igreja Presbiteriana do Espírito Santo — a mesma igreja na qual o pai de Lewis fora outrora pastor — trancou-se uma noite no prédio sem calefação, duas semanas antes do Natal, e se pôs a chorar, praguejar e rezar, porque pensava que estava enlouquecendo: tivera a impressão de ver o Menino Jesus nu, de pé num monte de neve diante das janelas da igreja, suplicando-lhe que saísse.

No Mercado de Bay Tree, Rhoda Flagler arrancou um punhado de cabelos louros da cabeça de Betsy Underwood, porque esta contestara o seu direito de ficar com as três últi­mas latas de purê de abóbora; com os caminhões incapazes de fazer entregas, todos os estoques estavam chegando ao fim. Em Hollow, um garçom desempregado chamado Jim Blazek esfa­queou e matou um ajudante de cozinha mulato chamado Wash­ington de Souza, porque um homem alto, de cabeça raspada, vestido como um marinheiro, disse-lhe que o outro estava se metendo com sua mulher.

Durante os sessenta e dois dias, de 1.° de dezembro a 31 de janeiro, os seguintes dez cidadãos de Milburn morreram de causas naturais: George Fleischner (62 anos), enfarte; Whitey Rudd (70 anos), desnutrição; Gabriel Fish (58 anos), exposi­ção ao frio; Omar Norris (61 anos), exposição ao frio, depois de Concussão; Marion Le Sage (73 anos), derrame; Ethel Birt (76 anos), doença de Hodkin; Dylan Griffen (5 meses), hipotermia; Harlan Bautz (55 anos), enfarte; Nettie Dedham (81 anos), derrame; Penny Draeger (18 anos), choque. Quase. todas essas pessoas morreram durante a pior das nevascas. Seus corpos, juntamente com o de Washington de Souza e diversos outros, tiveram de ser guardados, empilhados e envoltos em lençóis, numa das celas desocupadas da pequena cadeia de Wal­ter Hardesty, pois o carro fúnebre da sede do condado não podia chegar a Milburn.

A cidade isolou-se e até mesmo patinar no rio congelado foi uma atividade abandonada. A princípio, ainda se patinou como sempre; a qualquer hora do dia, podiam-se ver uns vinte ou trinta alunos da escola secundária, misturados com crianças da escola primária, deslizando de um lado para outro, fazendo piruetas, patinando para trás: uma verdadeira gravura ameri­cana. Os alunos da escola secundária podiam não tomar conhe­cimento da morte de três mulheres idosas e quatro homens igualmente idosos, podiam mesmo ignorar o falecimento de seu dentista, mas houve outra perda que os atingiu com um terrível impacto. Jim Hardie fora o melhor patinador no gelo que Milburn já conhecera; ele e Penny Draeger apresentavam exibições de dupla que pareciam aos contemporâneos tão espe­taculares quanto qualquer coisa que se podia assistir nas Olim­píadas de inverno. Peter Barnes era quase tão bom patinador quanto Jim Hardie. Naquele ano, porém, recusou-se a patinar. Mesmo depois que parou de nevar, Peter continuou sem sair de casa, Mas era Jim o que mais fazia falta; mesmo quando ele aparecia de manhã com os olhos injetados e a barba por fazer, conseguia animar a todos; não se podia observá-lo sem se ten­tar patinar um pouco melhor. Agora, nem mesmo Penny estava mais aparecendo. Como Peter Barnes, ela se recolhera à sua intimidade. Não demorou muito para que os outros patinadores começassem a ficar também em suas casas. Todos os dias, mais neve tinha que ser removida do leito do rio congelado. Alguns dos rapazes que se encarregavam desse serviço começaram a pensar que, no final das contas, Jim Hardie não fora para Nova York. Tinham o pressentimento de que acontecera algo com Jim... e fora algo sobre o qual eles preferiam não pensar muito. Vários dias antes da confirmação, eles já sabiam que Jim Hardie estava morto.

Uma tarde, durante sua folga, Bill Webb pegou no vestiá­rio os seus velhos patins, saiu do restaurante e foi até o rio, contemplando desolado a camada de meio metro de neve que ali se depositara recentemente. Para aquele inverno, a patina­ção no rio também estava morta.

Clark Mulligan nunca se deu ao trabalho de exibir o novo filme de Disney que sempre trazia para o período de Natal; em vez disso, passou toda a temporada exibindo filmes de ter­ror. Em algumas noites tinha apenas sete ou oito assistentes, em outras eram apenas dois ou três. Houve noites em que iniciou a projeção do primeiro rolo da Noite dos mortos-vivos sabendo que era o único espectador. A. matinê de sábado geral­mente atraía uns dez ou quinze garotos, que já tinham assis­tido ao filme, mas não tinham mais o que fazer. Clark Mulli­gan começou a deixar que entrassem, de graça. Todos os dias ele perdia um pouco mais de dinheiro, mas pelo menos o Rialto o mantinha longe de casa; enquanto houvesse fornecimento de energia elétrica, ele poderia manter-se aquecido e ocupado, que era tudo o que desejava. Certa noite, ele desceu à platéia para verificar se alguém entrara pela porta de emergência. Deparou com Penny Draeger, sentada ao lado de um homem de cara de lobo, usando óculos escuros. Clark voltou apressadamente para a cabine de projeção, mas tinha a certeza de que o homem lhe sorrira, antes de afastar-se. Não sabia por quê, mas isso o dei­xou assustado... e terrivelmente.

Pela primeira vez em suas vidas, quase todos os habitan­tes de Milburn encararam o tempo como maligno, uma força hostil que poderia matá-los, se permitissem. A menos que se subisse ao telhado e removesse a neve, as vigas acabariam por vergar ao peso dela e, em menos de dez minutos, a casa poderia transformar-se numa ruína frígida, inabitável até a primavera. O vento frio fazia muitas vezes a temperatura cair a vinte graus abaixo de zero. Quando se ficava na rua por mais tempo que o necessário para correr do carro até a casa, podia-se ouvir o ven­to rindo nos ouvidos, certo de que pusera todos onde desejava. Este foi um inimigo, o pior que eles conheceram. Mas depois que Walt Hardesty e um dos seus assistentes identificaram os corpos de Jim Hardie e Christina Barnes e espalhou-se a notícia do estado em que haviam sido encontrados, os habitantes de Milburn preferiram trancar as janelas e ligar a televisão, ao invés de sair para a festa do vizinho, perguntando-se se fora mesmo um urso que matara o belo Lewis Benedikt. E quando viram, como já tinha acontecido com Milly Sheehan, uma cama­da de neve contornando as janelas de tempestade, começaram a pensar no que mais poderia estar tentando entrar em suas casas. Assim, como a cidade, eles também se isolaram, trancaram-se, passaram a pensar apenas na sobrevivência. Uns poucos recorda­ram Elmer Scales, parado diante da estátua na praça, brandindo sua espingarda e falando sobre a ameaça dos marcianos. E ape­nas quatro pessoas conheciam a identidade de um inimigo muito mais hostil que o tempo inclemente.

 

(Jornada sentimental)

 

—  O noticiário da televisão mostrou que a situação está bem pior em Buffalo — comentou Ricky. Falou mais para si mesmo, como um consolo, do que por pensar que os outros dois pudessem estar interessados. Sears estava guiando o Lin­coln no seu estilo característico: durante todo o caminho até a casa de Edward, onde haviam apanhado Don, e agora de volta ao lado oeste da cidade, ele ficara debruçado sobre o volante, avançando a não mais do que vinte e cinco quilômetros horá­rios. Tocava  a buzina em  todos os cruzamentos, advertindo aos outros carros de que não tencionava parar.

—  Pare de falar bobagem, Ricky — disse ele, buzinando novamente e passando por Wheat Row, a caminho do lado norte da praça.

—  Não precisava tocar a buzina porque o sinal estava verde — comentou Ricky.

—  Todo mundo está andando depressa demais para parar.

No assento de trás, Don prendeu a respiração e rezou para que o sinal na outra extremidade da praça abrisse antes que Sears lá chegasse. Ao passarem pela frente do hotel, ele viu o sinal que dava para a Main Street passar para o amarelo; e ficou verde no momento em que Sears comprimiu toda a palma da mão contra a buzina, levando o carro comprido a cruzar a Main Street como um galeão.

Mesmo com os faróis acesos, os únicos objetos realmente visíveis eram os sinais de trânsito e as lâmpadas verdes e ver­melhas das árvores de Natal. Tudo o mais parecia dissolvido no branco que turbilhonava. Os poucos carros em movimento pareciam a princípio meros fachos de luz amarelada e depois animais grandes e informes. Don só podia divisar as cores quando os carros passavam ao lado, uma proximidade que Sears prontamente acusava, com outro toque impertinente da buzina do Lincoln.

—  O que vamos fazer quando chegarmos lá, se é que conseguiremos? — indagou Sears.

—  Apenas dar uma olhada. Pode ajudar. — Ricky fitou-o com uma expressão que era a mesma coisa que falar, e Don apressou-se em acrescentar:  — Não creio que ela esteja lá. Nem Gregory.

—  Trouxe uma arma?

—  Não tenho nenhuma arma. E você trouxe?

Ricky assentiu, exibindo uma faca de cozinha.

—  Sei que é uma tolice, mas...

Don não achava que era uma tolice; por um momento, desejou estar também armado com uma faca, se não mesmo um lança-chamas e uma granada.

—  Só por curiosidade, o que está pensando neste mo­mento? — indagou Sears.

—  Eu? — murmurou, Don.

O carro começou a deslizar lentamente para o lado e Sears deu uma ligeira guinada no volante para endireitá-lo.

—  Exatamente.

—  Estava   simplesmente   recordando   o   que   costumava acontecer quando eu cursava a escola preparatória no centro-oeste. Quando chegou o momento de escolher a universidade para a qual nos candidataríamos, os professores começaram a falar sobre “o leste”. Queriam que fôssemos para “o leste”. O que não passava de puro esnobismo. E minha escola era muito antiquada, mas poderia adquirir uma imagem favorável se uma grande porcentagem de seus alunos fosse para Harvard, Prin­ceton ou Cornell... ou até mesmo para alguma universidade estadual da costa leste. Todos pronunciavam a palavra da mesma forma que um muçulmano deve pronunciar a palavra “Me­ca”. E é exatamente onde estamos agora.

—  E você  foi  para  alguma  universidade  do  leste?  — indagou Ricky. — Não me lembro se Edward alguma vez men­cionou o assunto.

—  Não, não fui. Terminei na Califórnia, onde acredita­vam no misticismo. Não afogavam as bruxas, mas as convi­davam para fazer conferências.

—  Omar não chegou a remover a neve da Montgomery Street — comentou Sears.

Surpreso, Don virou-se para a sua janela e constatou que, enquanto conversavam, haviam chegado à rua da casa de Anna Mostyn. Sears, estava certo. Na Maple, onde estavam, a neve compacta, com cerca de cinco centímetros de altura, apre­sentava os sulcos profundos do trator de neve de Omar Nor­ris; era como um rio de leito branco entre margens altas igual­mente brancas. Na Montgomery, no entanto, a neve tinha mais de um metro de altura. Depressões profundas no meio da rua, já começando a ser enchidas por neve recente, indica­vam o lugar por onde duas ou três pessoas haviam passado para chegar à Maple.

Sears desligou a ignição, deixando acesas as luzes de esta­cionamento.

—  Se vamos ter de atravessar tudo isso, não vejo motivo para esperar.

Os três homens saltaram para a superfície vítrea da Maple Street e Sears levantou a gola de pele do casaco e suspirou.

—  E pensar que fiquei furioso por ter que enfrentar os cinco ou seis centímetros de neve do campo do Nosso Vir­gílio...

—  Detesto a idéia de entrar de novo naquela casa — murmurou Ricky.

Os três podiam avistar a casa por entre os turbilhões da neve que caía.

— Nunca arrombei uma casa antes — comentou Sears. — Como pretende entrar, Don?

—  Peter disse que Jim Hardie quebrou um vidro na por­ta dos fundos. Tudo o que precisamos fazer é enfiar a mão pela abertura e girar a maçaneta.

—  E se os encontrarmos? E se eles estiverem à nossa espera?

—  Então tentaremos travar uma luta melhor do que o Sargento  York  —  disse  Ricky.  —  Lembra-se   do   Sargento York, Don?

  Não. E nem mesmo me lembro de Audie Murphy. Vamos indo.

Ele subiu no monte de neve deixado pelo trator. A testa já estava tão gelada que parecia haver uma placa de metal gru­dada em sua pele. Quando ele e Ricky chegaram no alto do monte de neve, inclinaram-se para ajudar Sears, que continuava parado lá embaixo, com os braços estendidos, como um garo­tinho. Puxaram-no para cima. Sears avançou lentamente, como uma baleia transpondo recifes. Depois, os três desceram do monte para a neve profunda da Montgomery Street.

Afundaram na neve até os joelhos, Don percebeu que os dois. velhos estavam esperando que ele tomasse a dianteira; por isso, virou-se e começou a avançar pela rua na direção da casa de Anna Mostyn, esforçando-se para pisar nas depressões profundas deixadas por outra pessoa que por ali passara. Ricky seguia-o, aproveitando as mesmas depressões. Sears, quase ao lado dele e avançando pela neve intata, vinha por último. A parte inferior do casaco preto arrastava-se atrás dele.

Levaram vinte minutos para chegar à casa. Quando para­ram diante dela, Don olhou novamente para os dois homens mais velhos e compreendeu que não se mexeriam até que ele os forçasse. E comentou:

—  Pelo menos estará mais quente lá dentro.

— Detesto a idéia de entrar de novo nessa casa — mur­murou Ricky, não muito alto.

— Já tinha dito isso — recordou Sears. — Vamos pelos fundos, Don?

—  Exatamente.

Mais uma vez, ele seguiu na frente. Podia ouvir Ricky espirrando atrás dele, enquanto avançavam pela neve que lhes subia até a cintura. Como Jim Hardie e Peter Barnes, pararam na janela do lado da casa e deram uma espiada, vendo apenas um aposento escuro e vazio.

—  A casa está abandonada — disse Don continuando em frente, até chegar aos fundos.

Descobriu o vidro que Jim Hardie quebrara. No momento em que Ricky juntava-se a ele no degrau, enfiou a mão pela abertura e abriu a porta da cozinha. Com a respiração ofegante, Sears juntou-se aos dois.                                                     

—  Vamos sair da neve — disse ele. — Estou congelando.

Era uma das declarações mais corajosas que Don já tinha ouvido e teve de reagir com uma coragem similar. Empurrou a porta e entrou na cozinha da casa da Anna Mostyn. Sears e Ricky entraram atrás dele.

—  Aqui estamos — disse Ricky. — E pensar que já se passaram cinqüenta anos ou quase isso... Devemos nos se­parar?

—  Está com medo, Ricky? — indagou Sears, sacudindo impacientemente a neve do casaco. — Vou acreditar nesses fantasmas quando os encontrar. Você e Don podem verificar os quartos lá de cima, enquanto eu dou uma olhada aqui no térreo e no porão.

E se a declaração anterior fora uma atitude de coragem, Don sabia que aquela era uma demonstração de amizade: ne­nhum deles queria ficar sozinho na casa.

— Está certo — disse ele. — Será muita surpresa se encontrarmos alguma coisa. De qualquer forma é melhor come­çarmos a procurar logo de uma vez.

Sears foi na frente ao saírem da cozinha e passarem para o vestíbulo.

—  Podem subir — disse ele;  ou melhor, ordenou. — Não se preocupem comigo. Ganharemos tempo assim e o me­lhor é acabarmos com isso o mais depressa possível.

Don já estava na escada, mas Ricky virou-se para Sears, com uma expressão inquisitiva.

—  Se encontrar alguma coisa, solte um grito.

 

Don e Ricky Hawthorne ficaram sozinhos na escada.

—  A casa não era assim — comentou Ricky.. — Ao con­trário,   era   totalmente   diferente.   Era   muito   bonita   naquele tempo. Os aposentos lá de baixo...   e o quarto dela, lá em cima, eram simplesmente lindos e aconchegantes.

—  O mesmo acontecia com os aposentos de Alma. — Don e Ricky podiam ouvir os passos de Sears ressoando sobre as tábuas do assoalho, imediatamente abaixo deles. O som des­pertou em  Ricky uma lembrança,  que  transpareceu  em  seu rosto. — O que houve, Ricky?

—  Nada.

— Claro que houve. Toda a sua expressão se alterou.

Ricky corou.

—  É que esta é a casa com que sonhamos. Nossos pesade­los se passam aqui. Os aposentos vazios... o barulho de alguma coisa se movendo, como Sears, lá embaixo. É assim que o pesa­delo começa. Ao sonharmos, estamos num quarto... lá em cima. No último andar. — Ele subiu alguns degraus e acres­centou: — Tenho que ir até lá. Tenho que ver o quarto. Pode ajudar... a acabar com o pesadelo.

—  Irei com você.

Ao chegarem ao patamar, Ricky estacou abruptamente.

—  Peter não lhe contou que foi aqui... ? — Apontou para uma mancha escura na parede do lado.

— Foi aqui que Bate matou Jim Hardie. — Don engoliu em seco, involuntariamente. — Não vamos ficar aqui por mais tempo que o necessário.

—  Não me importo  de nos  separarmos — apressou-se Ricky em dizer. — Por que não vai verificar no antigo quarto de Eva e nos aposentos contíguos? Vou dar uma olhada no último andar. Assim acabaremos mais depressa. Se encontrar alguma coisa, eu o chamarei. Também quero sair daqui o mais depressa possível.

Don assentiu, concordando integralmente. Ricky conti­nuou a subir, enquanto ele ia abrir a porta do antigo quarto de Eva Galli.

 

Um quarto vazio, desolado; depois, o barulho de uma multidão invisível, passos abafados, sussurros, o farfalhar de papéis. Hesitante, Don deu outro passo para o interior do quarto vazio. A porta se fechou estrondosamente atrás dele..

—  Ricky? — disse ele, sabendo que sua voz não estava mais alta que os sussurros às suas costas.

A pouca claridade se acabou. A partir do momento em que não pôde mais ver as paredes, Don sentiu que estava num aposento muito maior; as paredes e o teto haviam-se expan­dido, deixando-o num espaço psíquico do qual ele não sabia como sair. Uma boca fria se comprimiu contra seu ouvido e disse ou ele teve a impressão de ouvir:

—  Seja bem-vindo.                      

Virou-se rapidamente para a fonte do barulho, só tardia­mente pensando que a boca, assim como a saudação, era ape­nas um pensamento. A mão encontrou o ar.

Como para puni-lo, jocosamente, alguém o empurrou. Don caiu sobre as mãos e joelhos. As mãos encostaram num tapete, que gradativamente foi assumindo uma cor: azul-escuro. Ele compreendeu que podia ver novamente. Levantou a cabeça e deparou com um homem de cabelos brancos, num. blazer da mesma cor que o carpete, calça cinza, sapatos pretos enverni­zados, parado a sua frente; o blazer cobria uma razoável barri­ga de prosperidade. O homem sorriu-lhe, um tanto tristemente, estendendo-lhe a mão; por trás dele, outros homens se moviam. Don soube imediatamente quem era o homem de cabelos brancos.

—  Sofreu um pequeno acidente, Don? Pegue minha mão. — O homem ajudou-o a levantar-se. — Fico contente que tenha conseguido chegar. Estávamos à sua espera.

—  Sei quem você é — declarou Don. — Seu nome é Robert Mobley.

—  Mas é claro! E sei que leu minhas memórias. E con­fesso que gostaria que tivesse apreciado melhor o estilo. Mas não tem importância, meu rapaz, não tem a menor importân­cia... E não há qualquer necessidade de pedir desculpas.

Don estava olhando ao redor do aposento, comprido e ligeiramente inclinado, terminando num pequeno palco. Ao que pudesse ver, não havia portas. As paredes de um rosa claro tinham a altura de uma catedral; lá no alto, pequenas luzes faiscavam. Na extremidade mais elevada, onde fora armado um pequeno bar, Don avistou Lewis Benedikt, usando um casaco cáqui e segurando uma garrafa de cerveja. Estava conver­sando com um homem de terno cinza, com as faces afundadas e olhos brilhantes e trágicos, que devia ser o Dr. John Jaffrey.

—  Seu filho deve estar aqui — comentou Don.

— Shelby? Tem razão. Lá está ele. — O homem sacudiu a cabeça na direção de um rapaz ainda adolescente, que retri­buiu com um sorriso. — Estamos todos aqui para um espe­táculo que promete ser extremamente divertido e emocionante,

— E estavam à minha espera.

—  Sem você, Donald, nada disso poderia ter sido provi­denciado.

—  Mas acontece que eu vou sair daqui.

—  Sair? Ora, meu rapaz, não pode sair! Receio que terá de deixar o espetáculo se desenrolar. Como já percebeu, não existem portas aqui. Mas não há o que temer, pois nada poderá causar-lhe qualquer mal.  Tudo não passa de um espetáculo, apenas sombras e imagens. Nada mais do que isso.

—  Vá para o inferno! — gritou Don. — Isto é alguma espécie de armadilha que ela preparou!

—  Está-se referindo a Amy Monckton? Ora, Donald, ela é apenas uma criança. Não pode imaginar...

Mas Don já se estava encaminhando para o lado do teatro.

— Não adianta, meu caro rapaz — gritou Mobley. — Vai ter de ficar conosco até o final do espetáculo.

Don comprimiu as mãos contra a parede, consciente de que todos estavam olhando para ele. A parede era coberta por um material claro, parecido com feltro; mas por baixo do tecido havia algo tão frio e duro quanto ferro. Ele olhou para os pomos de luz que faiscavam lá em cima. Depois, bateu na parede com a palma da mão. Não havia qualquer depressão, nenhuma porta oculta, nada além de uma superfície lisa e inviolável.

As luzes invisíveis diminuíram, assim como as imitações de estrelas. Dois homens o seguraram, um pelo braço, outro pelo ombro. Forçaram-no a virar-se para o palco, no qual bri­lhava um único refletor. No meio do facho de luz, havia um quadro para cartazes. E o cartaz que ali estava dizia:

 

Produções Rabbitfoot de Peyser

têm o orgulho de

apresentar

 

Uma mão surgiu no foco de luz e tirou o cartaz.

 

Uma Breve Mensagem do Nosso Patrocinador

 

A cortina subiu novamente, para revelar um aparelho de televisão. Don pensou que estivesse desligado até perceber alguns detalhes na tela branca: os tijolos vermelhos de uma chaminé, a “neve” que agora era neve de verdade. No instante seguinte, a cena adquiriu vida.

Apareceu um trecho da Montgomery Street, visto do alto do telhado da casa de Anna Mostyn. Don reconheceu imedia­tamente o cenário e as personagens em cena. Ele, Sears James e Ricky Hawthorne avançavam penosamente pelo meio da Montgomery Street. Ele e Ricky ficaram olhando para a casa durante todo o tempo em que apareceram em cena, enquanto Sears olhava para baixo, como se conscientemente estivesse querendo oferecer uma imagem contrastante. Não havia som e Don não pôde lembrar-se do que haviam falado ao se encami­nharem para a casa. Três rostos em doses, os cortes rápidos: suas sobrancelhas brancas pareciam soldados realizando alguma operação de limpeza numa guerra ártica. O rosto cansado de Ricky era obviamente o de um homem que estava com um ter­rível resfriado. Ele estava sofrendo, o que era muito mais óbvio para Don agora do que fora quando ainda não haviam alcançado a casa.

Depois, apareceu uma cena dele enfiando o braço pelo vidro quebrado. Uma câmara externa acompanhou os três ho­mens entrando na casa, seguiu-os através da cozinha até o vestíbulo escuro. Mais conversa sem som; uma terceira câmara mostrou Don e Ricky subindo a escada, o segundo apontando para a mancha de sangue. No rosto delicado de Ricky apareceu a mesma expressão de angústia que o rapaz vira antes. Eles se separaram e a câmara deixou Don no momento em que ele empurrava a porta do quarto de Anna Mostyn.

Inquieto, apreensivo, Don ficou observando a câmara seguir Ricky escada acima. Um corte brusco para um corredor vazio: Ricky visto em silhueta, parado no patamar, depois continuando a subir até o último andar. Outro corte: depois, chegando ao último andar, experimentando a primeira porta, entrando num quarto.

O cenário era agora o interior do quarto: Ricky passou pela porta, com a câmara observando-o como um atacante oculto. Agora, com a respiração ofegante, correndo os olhos pelo quarto, a boca entreaberta, os olhos se arregalando. . . devia ser o quarto do pesadelo, calculou Don. A câmara come­çou a avançar, sorrateiramente. No instante seguinte, a câmara ou a criatura que representava deu o bote.

Duas mãos agarraram o pescoço de Ricky, sufocando-o. Ele se debateu, empurrando os pulsos do atacante. Mas era fraco demais para conseguir romper o aperto inexorável. As mãos foram se fechando e Ricky começou a morrer: não tran­qüilamente, como nos programas de televisão que aquele “co­mercial” imitava, mas numa terrível confusão de movimentos, os olhos se esbugalhando, o sangue escorrendo pela língua es­tendida. As costas se arquearam, num esforço impotente,, flui­dos começaram a escorrer dos olhos e nariz, o rosto ficou roxo.

“Peter Barnes disse que eles podem fazer com que a gente veja coisas”, pensou Don. “E é apenas isso o que estão fazendo agora.”

Ricky Hawthorne morreu à sua frente, em cores, numa tela de vinte e seis polegadas.

 

Ricky forçou-se a abrir a porta do primeiro quarto no andar superior da casa. Naquele momento, gostaria de estar em casa, com Stella. Ela ficara bastante abalada com a morte de Lewis, embora nada soubesse da história de Peter Barnes.

“Talvez seja este o lugar em que tudo vai terminar”, pensou ele, entrando no quarto.

E teve que fazer um tremendo esforço para se manter imóvel; todo o seu instinto era o de fugir. Era o quarto do pesadelo, e cada átomo dele parecia impregnado pela angústia e desespero da Sociedade Chowder. Ali, todos haviam suado frio de tanto medo; sobre aquela cama, agora com uma manta cinza estendida sobre o colchão, cada um se debatera desespe­radamente, mas em vão, tentando mexer-se. Na prisão daquela cama miserável, haviam esperado que a vida chegasse ao fim. O quarto recendia apenas a morte; era o símbolo da morte e a terrível desolação era a sua imagem.

Ricky lembrou-se de que Sears estava ou em breve estaria no porão. Mas não havia qualquer besta selvagem no porão, assim como não havia nenhum Ricky Hawthorne imobilizado na cama, suando frio. Ele se virou lentamente, examinando todo o quarto.

Numa parede do lado estava a única anomalia, um peque­no espelho.

(“Espelho, espelho meu que na parede está. . .”, quem é o mais apavorado?)

(“Não sou eu”, disse a pequena galinha vermelha.)

Ricky contornou a cama para se aproximar do espelho. No outro lado da janela, refletia-se um pequeno trecho do céu. Pequenos flocos de neve deslizavam através da superfície e desapareciam no fundo da moldura.

Quando Ricky chegou mais perto do espelho, um sussurro de brisa veio bater em seu rosto. Ele inclinou-se para a frente e um punhado de flocos de neve tocou em seu rosto.

Cometeu o erro de olhar diretamente para o que agora julgava ser, confusamente, uma pequena janela aberta para o tempo.

Um rosto apareceu diante dele, um rosto que conhecia perfeitamente, um rosto desvairado e desorientado; depois, di­visou Elmer Scales avançando desajeitadamente pela neve, car­regando uma espingarda. Como na primeira aparição, o fazen­deiro estava coberto de sangue, o rosto esquelético que era só pele e osso. Mas havia algo em Scales que levou Ricky a pensar que “ele vira alguma coisa linda... Elmer sempre quis olhar alguma coisa linda de verdade”. O pensamento borbulhou até a superfície da mente de Ricky e aflorou bruscamente. Elmer estava gritando na tempestade, erguendo a espingarda e atiran­do num vulto pequeno, derrubando-o em meio a um esguicho de sangue.

Depois, Elmer e seu alvo desapareceram e Ricky estava olhando para as costas de Lewis. Uma mulher nua estava para­da na frente de Lewis, formulando algumas palavras, silencio­samente. “Sagradas Escrituras”, leu Ricky nos lábios dela. E depois: “Viu as Sagradas Escrituras no açude, Lewis?” A mu­lher não estava viva nem era bonita, mas Ricky avistou as características do desejo recuperado no rosto morto e compre­endeu que estava olhando para a esposa de Lewis. Tentou recuar e escapar à visão, mas descobriu que não conseguia mexer-se.

No momento em que a mulher se aproximou de Lewis, os dois se transformaram em formas irreconhecíveis. Ricky avis­tou Peter Barnes agachado a um canto da tempestade. Não, ele estava em alguma casa, algum prédio que Ricky conhecia mas não podia identificar naquele momento. Algum canto familiar, um tapete gasto, uma parede bege encurvada, uma luz difusa... um homem que parecia um lobo estava inclinado sobre o ater­rorizado Peter Barnes, sorrindo, os dentes brancos salientes. Desta vez, a imagem não se dissolveu, não houve uma nevasca misericordiosa para ocultar a cena terrível de Ricky Hawthor­ne: a criatura se inclinou sobre o trêmulo e encolhido Peter Barnes, suspendeu-o e, como um leão matando uma gazela, quebrou-lhe a espinha. E, como um leão, deu uma mordida no corpo do rapaz e começou a comê-lo.

 

Sears James inspecionou os aposentos da frente da casa e nada encontrou; era justamente isso, nada, pensou ele, o que provavelmente iriam encontrar em todo o resto da casa. Uma mala vazia dificilmente justificava pôr um pé fora de casa num tempo como aquele. Voltou para o vestíbulo, ouviu Don andar a esmo num quarto acima, verificou rapidamente a cozi­nha. Pegadas úmidas, as suas próprias, sujavam o chão. Um único copo, embaçado, estava em cima de uma prateleira empoeirada. Uma pia vazia, todas as demais prateleiras vazias. Sears esfregou as mãos para aquecê-las um pouco e voltou para o vestíbulo escuro.

Don estava agora batendo nas paredes lá em cima; Sears imaginou que estivesse à procura de algum painel secreto e sa­cudiu a cabeça. O fato de os três ainda estarem vivos e vaguean­do pela casa provava a Sears que Eva fora embora e não deixara nada para trás.

Ele abriu a porta para o porão. Degraus de madeira leva­vam à mais completa escuridão. Sears apertou o interruptor e uma luz no alto dos degraus se acendeu. A luz revelava os degraus e o chão de concreto lá embaixo, mas parecia estender-se apenas a mais uns dois ou três metros além. Aparentemente, era a única lâmpada que ali havia; o que significava, pensou Sears, que o porão não era usado. Os Robinson nunca haviam transformado o porão numa sala que a família pudesse usar.

Desceu alguns degraus e esquadrinhou a escuridão: o que podia ver era um porão parecido com todos os outros de Mil­burn, estendendo-se por baixo de toda a casa, com pouco mais de dois metros de altura, com as paredes de blocos de concreto pintadas. A velha fornalha estava quase encostada na parede, na outra extremidade, projetando uma sombra de muitos tentá­culos, que se encontravam e se fundiam na semi-escuridão. Num dos lados, estava o reservatório alto e redondo para fornecer água quente, tendo ao lado duas pias de ferro que não funcio­navam.

Sears ouviu um baque lá em cima e o coração disparou; estava muito mais nervoso do que desejava admitir. Inclinando a cabeça para trás, na direção do alto da escada, ficou prestando atenção a barulhos ou sons de sofrimento. Mas não ouviu coisa alguma. Provavelmente, o baque fora apenas uma porta sendo fechada.

“Desça e brinque no escuro, Sears.”

Sears desceu outro degrau e viu sua sombra imensa avan­çar pelo chão de concreto. “Venha, Sears.”

Ele não ouviu as palavras pronunciadas em sua mente, não viu imagens nem cenas; mas recebera uma ordem e seguiu sua sombra distendida pelo chão de concreto.

“Venha e dê uma olhada nos brinquedos que deixei para você.”

Ele chegou ao chão de concreto e experimentou uma emo­ção doentia de prazer a que não estava acostumado.

Virou-se bruscamente, receando que alguma coisa estivesse avançando em sua direção, saindo de baixo da escada de madei­ra. A luz projetava listras no concreto, passando por entre os degraus de madeira. Não havia nada ali. Ele teria que deixar a proteção da luz e ir dar uma olhada nos cantos mais escuros do porão.

Adiantou-se, desejando ardentemente ter trazido também uma faca. Sua sombra dissolveu-se na escuridão. No instante seguinte, toda dúvida o deixou e ele exclamou:

—  Santo Deus!

John Jaffrey estava surgindo na luz difusa ao lado da fornalha.

—  Sears, meu velho amigo! — A voz era totalmente des­tituída de qualquer inflexão. — Graças a Deus que você está aqui!  Eles me disseram que você viria, mas eu não sabia... isto é, eu... — Ele meneou a cabeça. — Está tudo tão con­fuso!

—  Fique longe de mim! — disse Sears.

—  Eu vi Milly, Sears. E quer saber de uma coisa? Milly não me deixou entrar em casa. Mas eu avisei-a... isto é, disse a ela que avisasse a você... e aos outros. Sobre alguma coisa que não consigo lembrar agora. — Ergueu o rosto encovado e contorceu a boca num sorriso tétrico. — Eu passei para o outro lado. Não foi isso o que Fenny lhe disse? Na sua história? E é isso mesmo. Fui para o outro lado e agora Milly não... não quer abrir... ah... — Ele levou a mão à testa. — É simples­mente terrível, Sears. Não pode ajudar-me?

Sears estava recuando, incapaz de falar.

—  Por favor, Sears! É estranho... estar aqui neste lugar novamente. Mas eles me obrigaram a vir... a fim de esperar por você. Por favor, Sears, ajude-me! Graças a Deus que você está aqui!

Jaffrey adiantou-se e ficou sob o foco de luz. Sears pôde ver que uma poeira cinzenta e fina lhe cobria o rosto e as mãos estendidas, os pés descalços. Jaffrey se deslocava com dificul­dade, quase se arrastando, como um velho enfermo e senil. Os lábios pareciam estar também cobertos por uma mistura de poeira e lágrimas ressecadas, o que denunciava mais o seu sofri­mento do que as palavras confusas e o andar trôpego. Sears, que se recordava da história de Peter Barnes sobre Lewis, fi­nalmente sentiu mais compaixão do que medo.

—  Está certo, John.

O Dr. Jaffrey, aparentemente incapaz de ver à luz da lâm­pada que pendia no alto da escada, virou-se na direção de sua voz.

Sears adiantou-se para tocar a mão estendida do Dr. Jaf­frey. No último instante, fechou os olhos. Uma sensação de formigamento surgiu em seus dedos e irradiou-se pela metade do braço. Quando ele tornou a abrir os olhos, John Jaffrey já não estava mais ali.

Sears cambaleou de encontro à escada, batendo com as costelas, dolorosamente. “Brinquedos.” Mecanicamente, come­çou a esfregar a mão no casaco. Teria de encontrar mais cria­turas trôpegas e aturdidas como John?

Não, não era isso o que teria de fazer. Sears logo descobriu o motivo para o plural. Afastou-se da luz, na direção da forna­lha, avistando uma pilha de roupas na parede do outro lado. Uma pilha de botas e trapos jogados fora; lugubremente, pare­cia com os corpos das ovelhas na fazenda de Elmer Scales, Sears sentiu o impulso de virar as costas e fugir dali. Todas as coisas realmente terríveis haviam-se reunido lá, com ele e Ricky con­gelando numa colina coberta de neve, na manhã extremamente fria. Avistou uma mão flácida, uma mecha de cabelos louros. Depois, reconheceu um dos trapos como o casaco de Christina Barnes; parecia achatado, quase vazio, estendido sobre um se­gundo corpo, achatado e vazio; o casaco envolvia uma coisa cinzenta e murcha, terminando em cabelos louros, que havia sido outrora o corpo de Christina.

Instintivamente, o grito lhe escapando dos lábios, Sears chamou os outros dois. Depois, fez um tremendo esforço para se controlar e foi até o fundo da escada, onde se pôs metodica­mente, em voz alta, sem qualquer constrangimento, a repetir os nomes dos dois homens que tinham entrado na casa em sua companhia.

 

—  Então vocês três os encontraram — disse Hardesty. — Parecem bastante abalados.

Sears e Ricky estavam sentados num sofá na casa de John Jaffrey, Don numa cadeira ao lado. O xerife, ainda de casaco e chapéu, estava encostado na beira da lareira, tentando disfarçar toda a sua irritação. Os vestígios úmidos de suas pegadas no tapete — o que fora uma fonte óbvia de irritação para Milly Sheehan, até que Hardesty a mandara sair da sala — indica­vam uma trilha circular, os calcanhares firmemente impressos, as pontas quadradas das botas.

—  E você também parece — comentou Sears.

  Acho que estou mesmo. Nunca vi corpos como aqueles dois. Nem mesmo Freddy Robinson estava naquele estado ter­rível. Alguma vez já tinha visto corpos assim, Sears James?

Sears sacudiu a cabeça. Hardesty continuou:

— Não. Você tem toda a razão. Ninguém jamais viu. E vou ter de guardá-los na cadeia, até que o carro fúnebre possa chegar aqui. E eu sou o pobre filho da puta que tem de levar a Sra Hardie e o Sr. Barnes para identificarem aquelas coisas lamentáveis. A menos que queira cumprir essa tarefa por mim, Sr. James...

—  O trabalho é seu, Walt.

—  Meu trabalho, hein? Meu trabalho é descobrir quem fez o que àquelas pessoas... e vocês dois, velhos abutres, vão ficar sentados, de braços cruzados, não é mesmo? Imagino que descobriram os corpos por acaso. Foi por acaso que arromba­ram aquela casa particular, foi por acaso que estavam dando um simples passeio num dia miserável como hoje. E devem ter pensado que um pequeno arrombamento não faria mal a nin­guém. Ah, eu deveria trancafiar vocês três na mesma cela com os corpos! Juntamente com Lewis Benedikt, aquele negro Souza e o menino Griffen, que morreu congelado porque a mamãe e o papai hippies eram ordinários demais para pôr um aquecedor no quarto dele. Era isso mesmo o que eu deveria fazer!  — Hardesty, agora inteiramente incapaz de esconder a raiva que sentia, cuspiu na lareira e deu um chute na grade de proteção. — E eu vivo naquela maldita cadeia! Acho que devia meter vocês três lá dentro para verem como é bom!

—  Acalme-se, Walt — disse Sears.

—  Claro, claro... Se vocês dois não fossem uma dupla de advogados centenários,  que não agüentam  mais nada, eu faria exatamente isso!

—  O  que estou querendo dizer, Walt — falou  Sears, calmamente —, é que se parar de nos insultar por um momento poderemos contar-lhe quem matou Jim Hardie e a Sra. Barnes. E Lewis também.

—  Vão mesmo contar? Assim está melhor. Significa que não vou precisar usar os meus porretes de borracha.

Houve silêncio por um momento e depois Hardesty acres­centou:

—  E então? Ainda estou aqui.

— Foi a mulher que se apresentou na cidade com o nome de Anna Mostyn.

Ah, essa é ótima! Muito bem, foi Anna Mostyn. Óti­mo! Foi na casa dela e por isso ela é a culpada. Bom trabalho. agora me digam:  o que ela fez com os corpos?  Sugou-os como um cachorro faz com um ovo? E quem foi que os agarrou para ela fazer o serviço? Porque tenho certeza de que nenhuma mulher seria capaz de dominar sozinha aquele doido do garoto Hardie,

—  Ela realmente teve ajuda — disse Sears. — De um homem que se apresenta com o nome de Gregory Bate ou Ben­ton. E agora trate de se segurar, Walt, porque aí vem a parte mais difícil. Bate está morto há quase cinqüenta anos. E Anna Mostyn. . .

Ele parou de falar abruptamente. Hardesty tinha fechado os olhos, com toda a força. Ricky continuou:

—  De certa forma, xerife, estava certo a respeito de tudo isso desde o início. Lembra-se do momento em que olhou as ovelhas de Elmer Scales? E nos falou sobre outros incidentes, incontáveis incidentes, que ocorreram nos anos 60?

Os olhos injetados de Hardesty voltaram a se abrir.

—  É a mesma coisa — acrescentou Ricky. — Isto é, achamos que provavelmente é a mesma coisa. Só que aqui eles estão matando pessoas.

—  E o que é essa Anna Mostyn? — indagou Hardesty, o corpo rígido. — Fantasma? Vampiro?

—  Algo assim — disse Sears. — Uma criatura capaz de mudar de forma. Mas essas palavras servem também para des­crevê-la.

—  E onde ela está agora?

—  Foi por isso que fomos até a casa. Para tentar desco­brir onde ela está.

—  E isso é tudo o que me vão contar?  Não há mais nada?

—  Não há mais nada — declarou Sears.

—  Fico imaginando se alguém é capaz de mentir tão bem quanto um advogado centenário — disse Hardesty, cuspindo no fogo outra vez. — Mas está certo. E agora deixem-me dizer-lhes uma coisa: vou irradiar um pedido de busca dessa tal Anna Mostyn e está acabado. Não vou fazer mais nada. Pelo que me diz respeito, vocês  dois, velhos abutres, e esse garoto aqui, podem passar o resto do inverno caçando fantasmas. Vocês estão completamente doidos. No que me diz respeito, perde­ram o juízo inteiramente. E se eu encontrar um maldito assas­sino que toma cerveja, come hambúrgueres e leva os filhos para passear aos domingos, então vou voltar a procurá-los e rir na cara de vocês. E cuidarei para que o pessoal daqui jamais deixe de rir sempre que alguém falar nos nomes de vocês. Estão me entendendo?

—  Não precisa gritar, Walt — disse Sears. — Tenho certeza de que todos compreendemos o que acabou de falar. E compreendemos também outra coisa.

—  E que diabo é?

—  Que você está apavorado, meu caro xerife. Mas saiba que não é o único.

 

(Conversa com G)

 

—  É realmente um marinheiro, G?

—  Hum...

—  Já esteve em muitos lugares?

— Já

—  Como pode ficar por tanto tempo em Milburn? Não tem um navio para onde precise voltar?

—  Estou de licença.

—  Por que jamais quer fazer qualquer outra coisa senão ir ao cinema?

—  Não há qualquer razão.

—  Pois eu simplesmente gosto de estar com você.

—  Hum...

—  Mas por que você nunca tira os óculos?

—  Não há qualquer razão.

—  Algum dia eu vou tirar esses óculos.

—  Mais tarde.

—  Promete?

— Prometo.

 

(Conversa com Stella)

 

O que está acontecendo conosco, Ricky? O que está acontecendo com Milburn?

— Uma coisa terrível. Prefiro não contar agora. Haverá tempo suficiente para isso, quando tudo tiver acabado.

— Está me assustando.

— Também estou assustado.

—  Pois eu estou assustada porque você está assustado.

Por algum tempo, os Hawthorne ficaram em silêncio, continuando abraçados.

—  Sabe o que matou Lewis, não é mesmo?

—  Acho que sim.

—  Acabo de descobrir uma coisa espantosa a respeito de mim mesma. Posso ser uma covarde. Por isso, não me conte, por favor.  Sei que perguntei,  mas não me conte.  Só quero saber se tudo isso vai acabar.

—  Sears e eu daremos um jeito para que acabe. Com a ajuda do jovem Wanderley.

—  E ele pode ajudá-los?

—  Pode, sim. E já está ajudando.

—  Se ao menos essa neve terrível parasse de cair. . .

—  Seria ótimo. Mas não vai parar.

—  Eu o fiz sofrer muito, Ricky. — Stella soergueu-se, apoiada no cotovelo, para fitá-lo nos olhos.

—  Fez-me sofrer mais do que a maioria das outras mu­lheres poderia. Mas raramente desejei qualquer outra mulher.

—  Lamento   profundamente   tê-lo   feito   sofrer,   Ricky. Jamais gostei de qualquer outro homem tanto quanto gosto de você. Apesar das minhas aventuras. Sabe que isso está acabado, não é mesmo?

—  Eu já imaginava.

—  Ele era um homem horrível. Entrou em meu carro à força, e subitamente compreendi como você era muito melhor do que ele. E por isso o obriguei a sair. — Stella sorriu. — Ele gritou comigo. Ao que parece, sou uma sem-vergonha.

—  Há ocasiões em que você é mesmo.

—  Só de vez em quando. Ele deve ter encontrado o corpo de Lewis logo depois que saiu do meu carro.

—  Então era isso... Fiquei pensando no que ele poderia estar fazendo lá em cima.

Silêncio. Ricky apertou o ombro da esposa, consciente do perfil inalterável a seu lado. Se ela não tivesse aquela aparên­cia, será que ele poderia suportar por tanto tempo? Contudo, se ela não tivesse aquela aparência, não seria Stella... e, por­tanto, era uma especulação impossível.

—  Gostaria que me dissesse uma coisa, meu bem — sus­surrou Stella. — Quem foi a outra mulher que você desejou?

Ricky riu. E no instante seguinte, pelo menos por algum tempo, os dois não puderam controlar o riso.

 

Dias  sem qualquer novidade:  Milburn estava congelada sobre a neve que se acumulava. Os proprietários de garagens tiraram os telefones do gancho, sabendo que já tinham trabalho suficiente de remoção de neve com seus fregueses habituais. Omar Norris levava uma garrafa em cada um dos bolsos fundos do casaco e batia com o removedor de neve da cidade em car­ros estacionados duas vezes mais do que o habitual. Estava trabalhando o triplo do normal, freqüentemente limpando as mesmas ruas duas ou três vezes por dia. Muitas vezes, quando voltava para  a garagem municipal, Omar estava tão bêbado que simplesmente desabava num catre na sala do capataz, ao invés de voltar para casa. Exemplares de The Urbanite esta­vam empilhados nos fundos das oficinas, pois os garotos jorna­leiros não tinham condições de ir buscá-los. Ned Rowles deci­diu finalmente fechar o jornal por uma semana e mandou todo mundo  para  casa,  como  um  presente  de Natal,  dizendo  ao pessoal:

— Com um tempo assim, nada vai acontecer, exceto mais um pouco desse tempo. Divirtam-se e tenham um feliz Natal.

Mas as coisas acontecem mesmo numa cidade imobilizada pela neve. Dezenas de carros derraparam para fora das ruas e estradas e por vários dias ficaram enterrados debaixo da neve. Walter Barnes ficava sentado na sala da televisão de sua casa, tomando uma sucessão de drinques e assistindo a um programa atrás do outro, com o som desligado. Peter é que preparava as refeições.

— Posso entender uma porção de coisas — disse Barnes ao filho. — Mas isto, não há a menor possibilidade. — E se entregava à bebida, em silêncio, sem parar.

Numa noite de sexta-feira Clark Mulligan colocou no pro­jetor o primeiro rolo da Noite dos mortos-vivos, para a sessão do meio-dia de sábado. Desligou todas as luzes, bateu a tranca quebrada da saída de emergência, decidiu que era melhor não se preocupar com isso e saiu para a nevasca, encontrando o corpo de Penny Draeger, meio coberto pela neve, ao lado de um carro abandonado. Bateu no rosto dela, esfregou-lhe os pulsos, mas nada que ele pudesse fazer seria capaz de devolver a respiração a Penny ou alterar a expressão em seu rosto: G afinal permitira que ela lhe tirasse os óculos escuros.

E Elmer Scales finalmente encontrou o homem de Marte.

 

Aconteceu no dia anterior ao Natal. A data nada signifi­cava para Elmer. Há semanas que ele vinha realizando suas tarefas com uma impaciência irada, dando cascudos nos filhos se chegavam perto demais e deixando aos cuidados da esposa todas as providências para o Natal. Fora ela que comprara os presentes e armara a árvore, tendo desistido de contar com qualquer ajuda de Elmer, até que ele compreendesse que a coisa que ficava esperando todas as noites não existia e jamais iria aparecer para levar um tiro. Na véspera de Natal, a Sra. Scales e as crianças foram se deitar cedo, deixando Elmer sen­tado com a espingarda no colo e papel e lápis na mesa à sua direita.

A cadeira de Elmer estava postada de frente para a janela grande. Com as luzes apagadas, ele podia avistar até o estábulo, os contornos se destacando na escuridão. Exceto nos trechos que ele limpara, a neve subia até a altura da cintura, o suficiente para retardar os movimentos de qualquer criatura que estivesse querendo pegar seus animais. Elmer não precisava de luz para escrever as frases que lhe iam surgindo na mente ao acaso; àquela altura, nem mesmo precisava olhar para o papel. Podia escrever enquanto olhava pela janela.

 

“nos verões, as velhas árvores eram altas o bastante para delas se deslizar”

 

e

 

“Senhor Senhor não é fácil ser fazendeiro”

 

e

 

“algo que não um esquilo está fazendo barulho no beiral”

 

Eram frases que ele sabia que em nada resultariam, não eram poesia, apenas absurdos, mas que tinha de escrever de qualquer maneira, porque lhe surgiam à mente. Havia ocasiões em que surgiam outras frases, parte de uma conversa que al­guém estava mantendo com seu pai. Também anotava esses fragmentos: “Warren, pode nos emprestar seu automóvel? Prometemos trazê-lo de volta o mais depressa possível. Não vai demorar. Precisamos do automóvel para resolver um problema urgente”.

Havia ocasiões em que Elmer tinha a impressão de que o pai estava a seu lado, na sala às escuras, tentando explicar-lhe algo sobre os velhos cavalos de arado que ele finalmente substituíra por um trator John Deere, procurando dizer que eram bons cavalos, “Deve cuidar deles direito, rapaz, fizeram grandes coisas por nós”, que seus cinco filhos iam gostar muito de cavalos tão mansos — cavalos mortos há vinte e cinco anos! —, tentando dizer-lhe alguma coisa sobre aquele carro. “Tome cuidado com aqueles dois garotos advogados, filho, bateram com o meu carro e o perderam, deixaram-no afundar num pân­tano ou algo assim, pagaram em dinheiro, mas não se pode confiar em garotos assim, por mais dinheiro que seus pais te­nham.” Era a mesma voz áspera soando em seus ouvidos, exa­tamente como no tempo em que o velho ainda estava vivo. Elmer escrevia tudo, misturado com poesia que não era poesia.

Depois, ele divisou um vulto deslizando na direção da janela, vindo para cima dele, através da neve e da noite, os olhos brilhando intensamente. Elmer largou o lápis brusca­mente e levantou a espingarda, quase disparando os dois canos através da janela, antes de compreender que a criatura não estava fugindo; ao contrário, sabia que ele estava ali e vinha em sua direção.

Elmer afastou a cadeira com um pontapé e ficou esperan­do. Apalpou os bolsos, para certificar-se de que estava com os cartuchos extras, depois levantou novamente a espingarda e mirou, aguardando que a coisa chegasse perto o bastante para que pudesse ver o que era realmente.

Enquanto a coisa avançava, ele começou a ter dúvidas. Se sabia que ele ali estava, esperando para explodi-la com um tiro e jogar os pedaços de volta ao estábulo, por que não estava fugindo? Ele engatilhou a espingarda. A coisa avançava pelo caminho que ele abrira, passando por entre as duas pilhas de neve. Elmer finalmente percebeu que era muito menor do que ele vira antes.

Depois, a coisa saiu do caminho e subiu pela neve para comprimir o rosto contra a janela; Elmer viu que era uma criança.

Baixou a espingarda, aturdido, inteiramente confuso. Não podia atirar numa criança. O rosto na janela fitava-o com uma expressão angustiada, um apelo frenético: era a própria ima­gem do sofrimento e angústia humanos. Com aqueles olhos amarelos, suplicava-lhe que saísse, que fosse salvá-la.

Elmer encaminhou-se para a porta, ouvindo a voz do pai atrás dele. Parou por um momento, a mão na maçaneta, a espingarda pendendo da outra mão, depois abriu a porta.

O ar gélido e flocos de neve bateram em seu rosto. A criança estava parada no caminho, a cabeça virada para o outro lado. Alguém disse:

—  Obrigado, Sr. Scales.

Elmer virou a cabeça bruscamente e deparou com o ho­mem alto em cima da pilha de neve à sua esquerda. Flutuando em cima da neve como uma pena, ele sorria gentilmente para o fazendeiro. O rosto era de marfim e os olhos eram depósitos intensos de uma centena de placas de ouro, conforme pareceu a Elmer.

Era o homem mais bonito que Elmer já tinha visto e ele compreendeu que não poderia disparar, mesmo que ficasse parado com a espingarda diante dele durante dez anos.

—  Mas... você... por que... — conseguiu Elmer bal­buciar.

—  Precisamente, Sr. Scales.

O homem desceu da pilha de neve para o caminho sem o menor esforço. Quando se postou na frente de Elmer, os olhos dourados pareciam luzir com uma imensa sabedoria.

—  Você não é marciano — balbuciou Elmer, sem nem mesmo sentir mais o frio.

—  Claro que não. Sou parte de você, Elmer. Pode per­ceber isso, não é mesmo?

Elmer assentiu, atordoado. O homem mais bonito do mundo pôs a mão em .seu ombro.

—  Estou aqui para falar sobre sua família. Não gostaria de vir conosco, Elmer?

Elmer tornou a assentir.

—  Pois então precisará cuidar de alguns detalhes. No momento, está ligeiramente... sobrecarregado? Não pode ima­ginar o mal que lhe causam as pessoas a seu redor, Elmer, Infe­lizmente, há uma coisa a respeito delas que precisa saber.

—  Conte-me.

—  Com prazer. E depois você saberá o que deve fazer, Elmer?

Elmer assentiu mais uma vez.

 

 Algumas horas depois, na véspera de Natal, Walt Har­desty acordou em seu gabinete e percebeu que a aba do chapéu tinha uma nova mancha; derrubara um copo enquanto dormia em sua mesa e o pouco uísque que ainda restava lá dentro manchara o chapéu.

—  Idiotas!   —  exclamou   Hardesty,  pensando  em   seus assistentes.

No instante seguinte, lembrou-se de que eles tinham ido para suas casas horas antes e não voltariam antes de dois dias. Endireitou o copo e olhou ao redor, piscando os olhos. A luz no escritório desarrumado fazia doer-lhe os olhos, embora pare­cesse estranhamente pálida, difusa e um tanto rosada, como numa manhã de primavera no Kansas, há quarenta anos. Har­desty tossiu e esfregou os olhos, sentindo-se um pouco como o idiota da antiga história que fora dormir um dia e acordara de cabelos brancos e barba comprida, cem anos mais velho.

—  Rip van Demerda — murmurou Hardesty.

Por um momento, empenhou-se em tirar o catarro preso na garganta. Depois, tentou limpar a aba do chapéu com a manga da camisa, mas a mancha, embora ainda úmida, já se entranhara. Levou o chapéu ao nariz. Cheirava como uma feira. “Mas que diabo!”, pensou ele. Sugou a mancha cor de café. Fios, poeira e um leve vestígio de uísque entraram em sua boca, juntamente com o. gosto desagradável de feltro úmido.

Hardesty foi até a pia no canto da sala, lavou a boca e inclinou a cabeça para contemplar-se no espelho. Lá estava real­mente Rip van Demerda, o famoso chupador de chapéu, uma vista que não lhe proporcionava mais qualquer prazer. Estava prestes a se virar quando percebeu, atrás dele e um pouco à esquerda, visível acima de seu ombro, que a porta para as celas estava escancarada.

O que era impossível. Ele só destrancava aquela porta quando Leon Churchill ou outro de seus assistentes trazia mais um corpo que ficaria esperando o momento de ser despachado para o necrotério do condado. O último fora o de Penny Drae­ger, os cabelos pretos compridos e sedosos emaranhados e cheios de sujeira e neve. Hardesty já perdera a noção do tempo transcorrido desde a descoberta dos corpos de Jim Hardie e da Sra. Barnes e o início da nevasca forte. Mas tinha a impres­são de que o corpo de Penny Draeger deveria ter chegado pelo menos dois dias antes. ... e aquela porta permanecera trancada desde então. Mas agora estava aberta. Mais do que isso, escan­carada, como se um dos corpos lá dentro tivesse resolvido sair, vendo-o dormir com a cabeça na mesa, voltando em seguida para sua cela e seu lençol.

Ele passou pelos arquivos e pela mesa escalavrada, em­purrou a porta para um lado e outro por um momento, pensativo, depois entrou pelo corredor que levava às celas. Havia ali uma porta de metal, que ele não tocara desde que havia dei­xado lá dentro o corpo de Penny Draeger. Essa porta também estava aberta.

— Deus do céu! — exclamou Hardesty.

Seus assistentes também tinham chaves da primeira porta, mas só ele tinha a chave daquela e há dois dias que nem sequer a olhava. Pegou a chave grande no molho pendurado na cintu­ra, ao lado da cartucheira, enfiou-a na fenda e ouviu o estalido do mecanismo fechando a tranca. Ficou olhando para a chave por um segundo, como se tentasse verificar se ela poderia abrir a porta sozinha. Depois, experimentou destrancar a porta; foi difícil como sempre, havendo necessidade de muita pressão para girar a chave. Ele começou a puxar a porta, quase com medo de olhar o que havia por trás dela, nas celas.

Recordou-se da história maluca que Sears James e Ricky Hawthorne lhe haviam tentado impingir: algo parecido com os filmes de terror de Clark Mulligan. Uma cortina de fumaça para o que quer que eles realmente sabiam, uma história em que só alguém muito doido poderia acreditar. Se eles fossem mais jovens, daria uma lição nos dois. Estavam querendo ridiculari­zá-lo, escondendo alguma coisa. E se não fossem advogados...

Ouviu um barulho vindo das celas.

Puxou toda a porta bruscamente e avançou pelo corredor estreito, de concreto, entre as celas. Mesmo na escuridão, o ar parecia impregnado de alguma estranha luz rosada, meio nebu­losa, bastante débil. Os corpos estavam por baixo dos lençóis, como múmias num museu. Não podia ter ouvido qualquer barulho, não havia a menor possibilidade; a menos que tivesse ouvido a própria cadeia rangendo.

Compreendeu que estava assustado e teve raiva de si mesmo por isso. Já nem podia mais determinar quem era quem, tantos havia, tantos eram os corpos cobertos por lençóis... mas sabia que os cadáveres na primeira cela à direita eram de Jim Hardie e da Sra. Barnes. Aqueles dois nunca mais poderiam fazer qualquer barulho.

Hardesty olhou para a cela em que eles estavam através das grades. Os corpos estavam estendidos sobre o chão duro, por baixo do catre, na parede do outro lado da cela, duas for­mas brancas e imóveis. Não havia nada de errado ali. “Ei, espere um instante!”, pensou ele, procurando recordar o dia em que os pusera na cela. Não deixara a Sra. Barnes em cima do catre? Tinha quase certeza... e olhou novamente para a cela. “Ei, espere um pouco, isso não é possível!”, pensou ele, começando a suar, mesmo no frio intenso que fazia nas celas sem aquecimento. Em cima do catre estava um pequeno volume branco, que só podia ser o bebê Griffen, congelado até a morte em sua própria cama.

— Não acredito! — exclamou Hardesty. — Isso sim­plesmente não é possível!

Ele pusera o bebê Griffen junto com Souza, numa cela no outro lado do corredor.

O que ele queria mesmo fazer era trancar as duas portas e abrir outra garrafa de uísque — “Saia deste lugar imediata­mente” —, mas acabou empurrando a porta da cela e entrou. Tinha de haver alguma explicação: um de seus assistentes en­trara ali e dera uma nova arrumação aos cadáveres, para haver mais espaço... mas tal não poderia ter acontecido, pois eles jamais entravam ali a não ser em sua companhia... avistou os cabelos louros de Christina Barnes saindo por baixo da beira do lençol. E apenas um segundo antes o lençol estava preso firmemente em torno da cabeça dela.

Hardesty recuou para a porta da cela, agora totalmente incapaz de continuar próximo do corpo de Christina Barnes. Chegando à porta, olhou freneticamente para os outros corpos. Todos pareciam ligeiramente diferentes, como se se tivessem mexido uns poucos centímetros, rolado para um lado, cruzado as pernas, virado a cabeça. Ele permaneceu à entrada da sala, agora desagradavelmente consciente de que estava de costas para todos os outros corpos, mas incapaz de desviar os olhos de Christina Barnes. Teve a impressão de que mais cabelos louros estavam saindo por baixo do lençol.

Quando olhou novamente para o pequeno volume no catre, sentiu o estômago se revirar. Como se o bebê morto se tivesse contorcido dentro do lençol, o alto da cabeça sem cabe­los saía agora por uma abertura no lençol, uma grotesca paródia do nascimento.

Hardesty deu um pulo para trás, saindo da cela para o corredor escuro. Embora não pudesse vê-los se mexendo, tinha a sensação de pânico de que todos os cadáveres nas celas esta­vam em movimento... que se continuasse ali no escuro por mais um segundo todos estariam virados em sua direção, como as agulhas de uma dúzia de ímãs.

De uma cela no final do corredor, uma cela que ele sabia estar vazia, veio um ruído seco e desagradável. Uma risada. Aquele som vazio penetrou fundo na mente de Hardesty, mais um pensamento do que propriamente um som. Ele foi recuan­do pelo corredor estreito, atordoado, até chegar à porta de metal, virando-se então e fechando-a violentamente.

 

(Gravações de Edward)

 

Don inclinou-se para a janela, olhando ansiosamente para a Haven Lane. Eles já deveriam ter chegado há uns quinze ou vinte minutos. Isto é, a menos que Sears estivesse ao volante. Se Sears tinha insistido em guiar, Don não tinha a menor idéia de quanto tempo poderia demorar a viagem desde a casa de Ricky. Arrastando-se pelas ruas a uma velocidade de dez ou quinze quilômetros horários, arriscando-se a uma colisão em cada cruzamento e sinal, mas indo na velocidade de Sears, pelo menos eles não morreriam. Mas poderiam ficar isolados, afas­tados da segurança que supunham ter nas casas de Ricky e de seu tio. Se ficassem sozinhos na neve lá fora, a pé, o carro enguiçado, Gregory poderia aproximar-se, falar amistosamente, esperar até que fizessem alguma coisa ou tentassem fugir.

Don afastou-se da janela e perguntou a Peter Barnes:

—  Quer um café?

—  Não, obrigado. Estou bem. Eles já chegaram?

—  Ainda não. Mas não devem demorar.

—  É uma noite terrível. A pior que já tivemos.

—  Tenho certeza de que chegarão em breve, Peter. Seu pai não se importou de você sair de casa na véspera de Natal?

—  Não. — Pela primeira vez naquela noite, Peter pare­ceu realmente infeliz. — Ele... acho que ele ainda está cho­rando a morte de mamãe! Nem me perguntou para onde eu ia.

Peter manteve firme o rosto inteligente, não permitindo que seu sofrimento transparecesse nas lágrimas que Don sabia estarem quase aflorando. Virando-se novamente para a janela, Don comprimiu as mãos contra o vidro frio, olhando para fora.

—  Estou vendo alguém chegar.

Peter levantou-se, atrás dele.

—  O carro está parando. São eles mesmo.

—  O Sr. James está instalado agora na casa do Sr. Haw­thorne?

—  A idéia foi deles. Todos nos sentimos mais seguros dessa maneira.

—  Gostaria de dizer-lhe uma coisa — falou Peter. Don virou-se novamente e olhou para o rapaz alto. — Estou con­tente por você estar aqui.

—  Se conseguirmos liquidar essas coisas antes que aca­bem conosco, Peter, será principalmente graças a você.

—  Vamos conseguir — declarou Peter, calmamente.

Don encaminhou-se para a porta; sabia que tanto ele como o rapaz estavam gratos pela companhia um do outro.

 

—  Entre — disse Don aos dois homens mais velhos. — Peter já está aqui. Como vai seu resfriado, Ricky?

Ricky Hawthorne sacudiu a cabeça.

—  Estável. Tem alguma coisa que está querendo que a gente escute?

—  Tenho, sim:  coisas que estão nas gravações de meu tio. Deixe-me ajudá-los a tirar os casacos.

Um minuto depois, Don seguia à frente dos outros dois através do vestíbulo, explicando:

—  Tive a maior dificuldade em encontrar as fitas certas. Meu tio não marcava as caixas em que as guardava. — Abriu a porta do escritório. — E foi nesse estado que a sala ficou.

Caixas brancas vazias e carretéis estavam espalhados pelo chão. Outras caixas brancas estavam empilhadas em cima da mesa. Sears tirou um carretel de uma poltrona e sentou-se. Ricky e Peter sentaram-se em cadeiras de lona, junto a uma estante. Don foi para trás da mesa.

— Tenho a impressão de que tio Edward possuía algum sistema de arquivamento,  mas  não conseguiu descobrir qual era. Assim, tive que verificar quase tudo, antes de encontrar as gravações de Ann-Veronica Moore. — Sentou-se atrás da mesa e acrescentou: — Se eu fosse outra espécie de escritor, nunca mais precisaria imaginar um enredo. Meu tio ouviu mais sujeiras extra-oficialmente do que Woodward e Bernstein.

—  Mas pelo menos conseguiu encontrá-las — disse Sears, estendendo as pernas deliberadamente para derrubar uma pilha de caixas brancas. — E você quer que escutemos algumas coi­sas. Podemos começar.

—  Os drinques estão em cima da mesa — disse Don. — E podem estar certos de que vão precisar. Sirvam-se.

Enquanto Ricky e Sears serviam-se de uísque e Peter abria uma Coca-Cola, Don descreveu a técnica de gravação do tio:

—  Ele simplesmente deixava o gravador ligado o tempo todo, querendo registrar tudo o que a pessoa dizia. E não ape­nas durante as sessões formais de gravação, mas também duran­te as refeições, enquanto tomavam drinques ou assistiam à te­levisão. Queria gravar tudo o que ocorresse à pessoa. Assim, de tempos a tempos, a pessoa ficava sozinha numa sala, com o gravador ligado. Vamos ouvir dois momentos em que isso aconteceu.

Don virou-se na cadeira e ligou o gravador na prateleira às suas costas.

—  Já deixei a fita no lugar certo. E não preciso dizer em que devem prestar atenção.

Apertou o botão e a voz de Edward Wanderley se espa­lhou pela sala, saindo dos alto-falantes grandes atrás da mesa:

“— Quer dizer que ele bateu em você porque gastou di­nheiro com aulas de arte dramática?”

Uma voz de menina respondeu:

“— Não. Ele me bateu porque eu existia.

— E como se sente a respeito agora?”

Silêncio por um momento e depois a voz de menina voltou a falar:

“— Pode arrumar-me um drinque, por favor? É muito difícil para mim falar sobre isso.

—  Claro, claro... Compreendo perfeitamente. Campari e soda?

—  Você se lembrou! Ah, como é gentil!

—  Voltarei num instante.”

Barulhos da cadeira atrás da escrivaninha rangendo, pas­sos, a porta fechando. Nos poucos segundos de silêncio que se seguiram, Don ficou olhando atentamente para Sears e Ricky. Os dois observavam os carretéis girando no gravador.

“Meus velhos amigos estão me escutando neste momen­to?” Era outra voz, mais velha, mais enérgica, mais seca. “Que­ro dizer um alô a todos vocês.”

—  É Eva! — disse Sears.

—  É a voz de Eva Galli!,

Ao invés de medo, a expressão em seu rosto era de raiva. Ricky Hawthorne dava a impressão de que seu resfriado se agravara consideravelmente.

“Nós nos separamos tão ignominiosamente, na última vez em que nos encontramos, que eu queria que soubessem que me lembro perfeitamente de todos. De você, meu caro Ricky. E de você, Sears... ah, mas que homem distinto se tor­nou! E de você, meu belo Lewis. Como é afortunado por estar aqui me escutando hoje! Nunca se perguntou o que teria acon­tecido se você tivesse entrado no quarto daquela menina, ao invés de deixar que sua esposa atendesse ao chamado dela? E meu pobre feioso John... deixe-me agradecer-lhe de antemão por uma festa tão maravilhosa. Vou me divertir imensamente em sua festa, John. E vou deixar um presente antes de me retirar... um símbolo dos presentes futuros que todos rece­berão.”

Don tirou a carretel do gravador e disse:

—  Não falem nada agora. Esperem até escutar a outra parte.

Pôs um segundo carretel no gravador e avançou a fita até um número que havia anotado num bloco. Depois, tornou a apertar o botão. Era Edward Wanderley:

“— Não quer fazer uma pequena pausa? Posso providen­ciar alguma coisa para almoçarmos.

—  Obrigado. E não se preocupe comigo. Ficarei esperan­do aqui, dando uma olhada em seus livros, enquanto apronta tudo.”

Depois que Edward deixou a sala, a voz de Eva Galli saiu novamente pelos alto-falantes.

“Olá, meus velhos amigos. E não há um jovem amigo com vocês?”

—  Não é você, Peter — disse Don. — Sou eu.

“Don Wanderley não está com vocês? Também aguardo ansiosamente o momento de vê-lo novamente, Don. Pois sabe que o farei. Visitarei cada um de vocês e agradecerei pessoal­mente o tratamento que me dispensaram há algum tempo. Espero que estejam aguardando com ansiedade as coisas ex­traordinárias que lhes estão reservadas.”

Depois, ela fez uma pausa, usando o espaçamento das frases para formar parágrafos separados.

“Eu os levarei a lugares onde nunca estiveram.

E eu verei a vida se esvair de vocês.

E verei vocês morrerem como insetos. Insetos.”

Don desligou o gravador.

—  Há mais uma fita que eu quero tocar. Mas podem entender agora por que eu achei que deviam ouvi-las.

Ricky ainda parecia abalado.

—  Ela  sabia!  Tinha certeza de que nos íamos  reunir aqui. . . e escutá-la! Ouvir suas ameaças!

—  Mas ela falou também em John e Lewis, o que é bas­tante sugestivo — comentou Sears.

—  Exatamente. Já percebeu o que isso significa. Ela não pode prever as coisas, apenas fazer boas suposições.  Pensou que um de vocês iria ouvir as gravações logo depois da morte de meu tio. Mas as fitas ficaram intocáveis durante um ano, até  que ela comemorou  o  aniversário da morte  de Edward matando John Jaffrey. Obviamente, ela estava convencida de que vocês me escreveriam e que eu viria imediatamente para tomar posse da casa de meu tio. O fato de ter incluído meu nome na gravação significava que não tinha a menor dúvida de que estariam em contato comigo. A minha vinda para cá sem­pre esteve nos planos dela.

—  E durante todo esse tempo, nós ficamos sofrendo e nos angustiando — murmurou Ricky.

—  Creio que foi ela quem causou os pesadelos de vocês. Seja como for, ela queria todos nós reunidos aqui, a fim de que nos pudesse pegar um a um. E, agora, quero que ouçam a última fita.

Don tirou o carretel que estava no aparelho e pegou o terceiro na mesa, ajustando-o devidamente. Uma voz com o sotaque sulista cadenciado saiu pelos alto-falantes:

“Don, não tivemos um tempo maravilhoso juntos? Não nos amamos? Detestei ter que deixá-lo. Estava desolada quando parti de Berkeley. Lembra-se do cheiro de folhas queimadas e do cachorro latindo a distância quando me acompanhou até casa? Era tudo maravilhoso, Don. E pense nas coisas lindas que você conseguiu! Eu estava extremamente orgulhosa de você. Pensou e pensou a meu respeito, chegou bem perto da verdade, e eu quero que você veja, quero que compreenda tudo, mantenha a mente aberta a todas as possibilidades que repre­sentamos... através das  histórias sobre Tasker Martin e a Oto...”

Don desligou o gravador.

—  É Alma Mobley. Não há necessidade de ouvirem o resto.

Peter Barnes remexeu-se na cadeira.

—  O que ela está tentando fazer?

—  Convencer-nos de sua onipotência. Deixar-nos tão apavorados que acabemos desistindo de lutar. — Inclinou-se para a frente. — Mas as gravações provam que ela não é onipo­tente. Comete erros. Portanto, seus vampiros também come­tem erros. Podem ser derrotados.

—  Acontece que você não é Knut Rockne e não estamos numa grande partida de futebol americano — disse Sears. — E agora vou voltar para casa. Isto é, para a casa de Ricky. A menos que você tenha outros fantasmas para ouvirmos.

Surpreendentemente, foi Peter quem respondeu:

—  Peço que me desculpe, Sr. James, mas acho que está enganado. Esta é uma grande partida... uma analogia estúpida, embora eu entenda por que a usou. Mas livrar-nos dessas coisas horríveis será a coisa mais importante que poderemos fazer em nossas vidas. E fico contente por termos descoberto que eles podem cometer erros. Acho que é um erro ser sarcástico em relação a tudo isso. Não teria tal atitude, se já os tivesse visto... e os visse matando alguém...

Don ficou esperando, resignado, que Sears esmagasse o rapaz com sua retórica. Mas o advogado terminou de tomar o uísque calmamente e depois inclinou-se para a frente a fim de falar com Peter, sem a menor irritação.

—  Está esquecendo uma coisa, filho. Eu já os vi. Co­nheci Eva Galli e a vi sentar-se depois de morrer. E conheci também a besta que matou sua mãe, assim como o patético irmão menor dele... o que o segurou e o obrigou a assistir à cena. Quando ele não passava de um garoto meio retardado, na escola primária, tentei salvá-lo de Gregory, assim como você deve ter tentado salvar sua mãe. E, como você, também fracas­sei. E, como você, eu me senti moralmente ofendido ao ouvir a voz da criatura, em seus vários disfarces. Voz presunçosa é uma afronta para mim. É inadmissível que ela nos provoque dessa maneira, depois de tudo o que fez. E pode estar certo de que eu estava querendo dizer que me sentiria melhor realizando alguma ação específica. — Sears levantou-se. — Sou um velho e estou acostumado a me expressar da maneira que me apraz. Há ocasiões em que, infelizmente, sou um pouco rude. :— Sor­riu para o rapaz. — O que também pode ser moralmente ofen­sivo. Mas espero que você viva por tempo suficiente para poder desfrutar esse prazer.

“Se algum dia eu precisar de um advogado”, pensou Don, “aí está o que vou querer.”

Peter também ficou impressionado, porque retribuiu o sorriso e comentou:

—  Não  sei  se  algum dia conseguirei  ter  o  mesmo es­tilo...

 

E assim, pensou Don, depois que os outros foram em­bora, as vozes nas gravações falharam: os desafios e ameaças haviam contribuído para torná-los ainda mais unidos. O co­mentário de Peter às palavras de Sears fora uma manifestação tipicamente adolescente, mas nem por isso deixara de ser um tributo; e Sears demonstrara seu reconhecimento.

Don voltou ao gravador. Alma Mobley estava aprisionada ali, numa fita magnética. Franzindo o rosto, ele acionou o aparelho. Suave a princípio, jovial, a voz dela recomeçou a falar:

“... e Alan McKechnie e todas as outras histórias através das quais eu lhe escondia a verdade. É verdade, eu não queria que você descobrisse. Sua intuição era superior à de qualquer outro. Até mesmo Florence de Peyser ficou curiosa a seu respeito. Mas de que adiantaria? Como a sua Rachel Varney, tenho vivido desde o tempo em que seu continente era ilumi­nado apenas por pequenas fogueiras na floresta, desde que os americanos se vestiam com peles e penas. Já nessa época as nossas espécies se odiavam mutuamente. Sua espécie é afável, presunçosa e confiante na superfície, neurótica, amedrontada e necessitada de conforto interior. Na verdade, detestamos vocês porque os achamos tediosos. Poderíamos ter destruído a civilização de vocês há muito tempo, mas. voluntariamente vive­mos à sua margem, provocando explosões, hostilidades e pâni­cos locais. Preferimos viver em seus sonhos e imaginações, porque apenas neles vocês se tornam interessantes.

Don, estará, cometendo um grande erro se nos subesti­mar. Pode derrotar uma nuvem, um sonho, um poema? Vocês estão à mercê de suas imaginações humanas. Ao nos procura­rem, devem sempre buscar nos lugares da imaginação. Nos lugares de seus sonhos. Mas apesar de toda essa conversa sobre imaginação, somos implacavelmente reais, tão reais quanto balas e facas — pois eles também não são instrumentos da imaginação? — e se queremos assustá-los, é para assustar até a morte. Pois você vai morrer, Donald. Primeiro seu tio, depois o médico, em seguida Lewis. Sears será o próximo e depois chegará a vez de Ricky. Depois será você e quem mais tenha recrutado para ajudá-lo. Está liquidado. E Milburn está liqui­dada junto com você.”

O sotaque de Louisiana desapareceu subitamente, a voz perdeu até a feminilidade. Era uma voz que não tinha qual­quer ressonância humana.

“Vou destruir Milburn, Donald. Meus amigos e eu vamos arrancar a alma dessa patética cidade e esmagar seus ossos entre nossos dentes.”

Houve um longo silêncio sibilante. Don tirou o carretel do gravador e jogou-o numa caixa de papelão. Vinte minutos depois, todas as fitas do tio estavam em caixas. Levou-as para a sala de estar e metodicamente jogou todas as fitas no fogo da lareira, observando-as se enrascarem, desprenderem fumaça e um cheiro desagradável, até finalmente se derreterem em bolhas gretas, sobre as achas que ardiam. Sabia que Alma esta­ria rindo se pudesse vê-lo naquele momento.

“Você já está morto, Donald.”

— Estou coisa nenhuma!

Don recordou o rosto encovado de Eleanor Hardie, no qual a idade abrira subitamente sulcos profundos. Alma estava rindo dele e da Sociedade Chowder há decênios, menospre­zando suas realizações e engendrando suas tragédias, ocultando-se nas sombras, por detrás de um rosto falso, esperando pelo momento de aparecer e gritar “Bu!”

“E Milburn está liquidada com você.”

— Não se conseguirmos pegá-la primeiro — disse ele, olhando para o fogo. — Não se desta vez atirarmos no lince.

 

O fim da Sociedade Chowder

 

 

“Pode  derrotar  uma  nuvem,  um  sonho,  um  poema?”  —  Alma Mobley

 

“E o que é inocência?”, perguntou Narciso ao amigo.

“É imaginar que sua vida é um segredo”, respondeu o amigo. “Ou, mais particularmente, que é um segredo entre você e seu espelho.”

“Estou entendendo”, disse Narciso. “É a doença para a qual a cura é olhar no espelho.”

 

Eram quase sete horas da manhã quando Ricky Haw­thorne rolou na cama e gemeu. Foi invadido por sentimentos de pânico, de urgência, fazendo com que a escuridão se tornas­se admonitória. Tinha que sair da cama, entrar em ação, evitar alguma terrível tragédia.

—  Ricky? — murmurou Stella, ao lado dele.

—  Está tudo bem, está tudo bem — respondeu ele, sen­tando-se na cama.

A janela na outra extremidade do quarto mostrava um cinza escuro, através do qual a neve caía preguiçosamente, em flocos tão grandes que pareciam bolas de neve. Ricky podia sentir o coração batendo forte. Alguém estava correndo um terrível perigo; no instante anterior ao despertar, vira uma ima­gem e soubera, sem a menor sombra de dúvida, quem era. Agora, tudo o que sabia é que lhe era impossível continuar na cama. Levantou as cobertas e pôs uma perna fora da cama.

—  Foi novamente o seu pesadelo, meu bem? — murmu­rou Stella, com voz meio rouca.

—  Não, não foi aquele pesadelo. Está tudo bem, Stella.

Afagou o ombro da esposa rapidamente e depois saiu da cama. A sensação de urgência persistia. Enfiou os pés nos chi­nelos, vestiu um robe por cima do pijama e foi até a janela.

—  Está muito transtornado, meu bem. Volte para a cama..

—  Não posso.

Ricky esfregou o rosto. Ainda tinha o sentimento incon­trolável, preso em seu peito como um passarinho numa gaiola, de que alguém que ele conhecia estava correndo um perigo mortal. A neve transformara o quintal dos fundos da casa de Ricky numa cordilheira de neve, mudando de formato a todo instante.

Foi a neve que o lembrou: a neve soprando através de um espelho na casa de Eva Galli e a visão de Elmer Scales, o rosto contorcido por uma obrigação para com uma beleza dominadora e cruel, correndo desajeitadamente pela neve, er­guendo a espingarda, transformando um vulto pequeno numa chuva de sangue. O estômago de Ricky se contraiu bruscamen­te, irradiando uma dor intensa. Ele comprimiu a mão contra a carne macia por baixo do umbigo e gemeu novamente. A fa­zenda de Elmer Scales. Onde começara o último ato da agonia da Sociedade Chowder.

—  Qual é o problema, Ricky?

—  Uma coisa que vi num espelho — disse ele, empertigando-se, agora que a dor se dissipara, sabendo que sua decla­ração era absurda para Stella. — Algum problema com Elmer Scales. Tenho que ir até a fazenda dele.

—  São sete horas da manhã de Natal, Ricky!

—  Não faz a menor diferença.

— Não pode ir até lá com um tempo assim. Telefone para ele.

—  Está  certo.  —   Ricky  encaminhou-se  para   a  porta, olhando para o rosto pálido e aturdido de Stella. — Vou tentar.

Ele estava no patamar diante do quarto, ainda com a sensação de emergência fazendo o coração bater forte, indeciso por um segundo entre correr para o quarto de vestir e pôr algumas roupas, ficando pronto para sair, e descer como estava para telefonar.

Um barulho lá embaixo decidiu-o. Pôs a mão no corrimão e desceu.

 

Sears, inteiramente vestido e com o casaco de gola de pele no braço, estava naquele momento saindo da cozinha. A expres­são de suavidade agressiva que Sears sempre exibira por toda a sua vida havia desaparecido. O rosto do velho amigo estava tão tenso quanto o de Ricky.

—  Você também — disse Sears. — Sinto muito.

—  Acabei de acordar. Sei o que está sentindo. . . e quero ir com você.

—  Não interfira, Ricky. Tudo o que vou fazer é ir até lá e dar uma olhada para me certificar de que está tudo certo. Estou me sentindo como um gato pisando em brasas.

—  Stella teve uma boa idéia. Vamos tentar telefonar para ele antes. E depois nós dois poderemos ir juntos.

Sears sacudiu a cabeça.

—  Você iria atrasar-me, Ricky. Estarei mais seguro so­zinho.

Ricky pôs a mão no braço de Sears e conduziu-o de volta ao sofá.

—  Ninguém vai a lugar nenhum enquanto não tentarmos falar com ele pelo telefone. Depois, decidiremos o que fazer.

—   Não há o que conversar. — Mesmo assim, Sears sen­tou-se no sofá. Virou o corpo, para observar Ricky pegar o telefone e colocá-lo na mesinha de café. — Sabe qual é o nú­mero dele?

—  Claro. — Ricky discou. O telefone de Elmer Scales tocou e tocou e tocou. — Vou dar tempo suficiente para ele atender.

O toque da campainha soou dez vezes, chegou a uma dú­zia. Ricky ouviu novamente o barulho forte de sua pulsação frenética.

—  Não adianta — disse Sears. — É melhor eu partir logo de  uma  vez.  Provavelmente  não conseguirei chegar lá, com as estradas do jeito que estão.

—  Ainda é muito cedo, Sears — disse Ricky, pondo o fone no gancho. — Talvez ninguém tenha ouvido a campainha do telefone.

—  Às sete... — Sears olhou para o relógio. — Às sete e dez da manhã de Natal?  Numa casa com cinco crianças? Acha mesmo que isso é provável? Sei que há algo errado por lá. E se eu conseguir chegar, talvez possa impedir que a coisa fique ainda pior. E não tenciono esperar que você se vista.

Sears levantou-se e começou a vestir o casaco.

—  Pelo menos telefone para Hardesty e diga-lhe para ir até lá em seu lugar. Sabe muito bem o que vi, nos fundos da­quela casa.

—  É uma piada de mau gosto, Ricky. Hardesty? Seria uma bobagem. Elmer não vai atirar em mim. Ambos sabemos disso.

—  Sei que ele não vai, Sears, mas mesmo assim estou preocupado. E alguma coisa que Eva está fazendo...  como o que fez a John. Não devemos deixar que ela nos separe. Se sairmos correndo cada um para um lado, poderá nos agarrar... nos destruir. Devemos telefonar para Don e chamá-lo para ir conosco. Também sei que algo terrível está acontecendo por lá. Não tenho a menor dúvida quanto a isso. Mas se tentar chegar lá sozinho, estará se expondo a algo ainda pior.

Sears contemplou o suplicante Ricky Hawthorne e a impa­ciência em seu rosto se desvaneceu.

—  Stella jamais me perdoaria se eu o deixasse sair nova­mente com este tempo horrível. E Don levaria pelo menos meia hora para chegar lá. Não pode me obrigar a esperar, Ricky.

—  Jamais pude obrigá-lo a fazer qualquer coisa que não desejasse fazer.

—  Tem toda a razão — disse Sears abotoando o casaco.

—  Você não é dispensável, Sears.

—  E quem é? Pode indicar-me uma única pessoa que seja dispensável, Ricky? Já perdi tempo demais. Portanto, não me faça esperar ainda mais falando em Hitler, Albert de Salvio, Richard Speck ou...

—  Sobre que diabo vocês dois estão falando? — Stella estava parada à entrada da sala de estar, alisando os cabelos com as palmas das mãos.

—  Obrigue seu marido a ficar na cama e despeje uísque quente pela garganta dele até eu voltar — disse Sears.

—  Não o deixe sair, Stella — suplicou Ricky. — Ele não pode ir sozinho.

—  É urgente?

—  Pelo amor de Deus! -— murmurou Sears.

Ricky assentiu.

—  Então é melhor ele ir. Só espero que consiga ligar o carro.

Sears encaminhou-se para o vestíbulo. Stella afastou-se para o lado, a fim de deixá-lo passar. Antes de entrar no vestí­bulo, Sears virou-se e olhou para Ricky e Stella.

—  Eu voltarei. Não precisa preocupar-se comigo, Ricky.

—  Deve   compreender   que   provavelmente   já   é   tarde demais.

— Provavelmente já é tarde demais há cinqüenta anos — disse Sears, virando-se outra vez e se afastando.

 

Sears pôs o chapéu e saiu para a manhã mais fria de que era capaz de se recordar. As orelhas e a ponta do nariz come­çaram imediatamente a arder; um momento depois, a parte desprotegida da testa estava também ardendo de frio. Avançou cuidadosamente pela calçada escorregadia, notando que a ne­vasca da noite anterior fora a menos intensa das últimas três semanas: apenas uns dez ou quinze centímetros de neve re­cente se acumularam sobre a anterior, o que significava que ti­nha uma boa chance de conseguir levar o imenso Lincoln até a estrada.

A chave só entrou pela metade na porta; praguejando de impaciência, Sears tirou-a e arrancou a luva para tatear os bol­sos à procura do isqueiro. O frio fazia os dedos arder, mas conseguiu acender o isqueiro. Passou a chama de um lado a outro da chave. No momento em que tinha a impressão de que os dedos estavam prestes a cair, a. chave finalmente entrou na fenda. Ele abriu a porta e ajeitou-se rapidamente no banco de couro.

E começou a tarefa interminável de fazer o motor pegar. Sears rangeu os dentes, tentou ligar o motor pela força de von­tade. Viu o rosto de Elmer Scales da mesma forma que no instante em que despertara, fitando-o com olhos aturdidos e desfocados e dizendo “Tem que vir até aqui, Sr. James, não sei o que andei fazendo, mas pelo amor de Deus venha até aqui...” O motor tossiu, engasgou, finalmente pegou. Sears apertou o acelerador, fazendo o motor rugir. Depois, balançou o carro para a frente e para trás, para tirá-lo da depressão em que estava e sair da neve que se acumulara ao redor.

Depois que o carro ficou virado para a rua, Sears pegou o instrumento de remover gelo e limpou o pára-brisa. Imensos e inofensivos flocos de neve turbilhonavam a seu redor. De­pois, usou o instrumento para abrir um buraco no gelo dire­tamente em frente do volante. O sistema de calefação do carro cuidaria do resto.

— Há coisas que é melhor você não saber, Ricky — disse ele para si mesmo, em voz alta.

Estava pensando nas pegadas de criança que vira sobre a neve diante de sua janela, por três manhãs seguidas. Na pri­meira manhã, ele fechara a cortina, para o caso de Stella apa­recer querendo limpar o quarto de hóspedes. Um dia depois, compreendera que Stella tinha um conceito extremamente flui­do em relação à limpeza da casa e que nada a faria entrar no quarto de hóspedes; ficaria esperando que sua faxineira pudesse vir de Hollow. Por mais duas manhãs, aquelas pegadas de pés descalços haviam pontilhado a neve que inexoravelmente fora subindo até a janela, mesmo no lado abrigado da casa, onde ficava o quarto de Sears. Naquela manhã, depois que o rosto aturdido de Elmer o arrancara do sono sem a menor ceri­mônia, Sears vira as pegadas no peitoril da janela. Quanto tempo ainda se passaria até que Fenny aparecesse dentro da casa dos Hawthorne, descendo e subindo a escada alegremen­te? Mais uma noite? Se Sears conseguisse afastá-lo dali, talvez pudesse ganhar mais algum tempo para Stella e Ricky.

Enquanto isso, tinha de se encontrar com Elmer Scales... “Pelo amor de Deus, venha até aqui!” Ricky também sinto­nizara aquela mensagem, qualquer que fosse. Mas, felizmente, Stella aparecera para mantê-lo em casa.

O Lincoln saiu para a rua e começou a avançar através da neve. “Há um consolo”, pensou Sears, “a esta hora da manhã, no dia de Natal, a única pessoa nas ruas será Omar Norris.”

 

Sears afastou da mente o rosto e a voz de Elmer Scales e concentrou-se em guiar. Ao que parecia, Omar trabalhara no­vamente pela maior parte da noite, porque quase todas as ruas do centro de Milburn estavam praticamente limpas, restando apenas os últimos dez ou doze centímetros de neve compacta e congelada. Nessas ruas, o único perigo era derrapar na cama­da congelada, o carro escapar ao controle e ir colidir com outro, soterrado pela neve. Sears pensou em Fenny Bate no peitoril, levantando a janela, entrando na casa, farejando o cheiro de se­res vivos... Mas não era possível. Os protetores contra tem­pestade estavam instalados e ele se certificara de que todas as janelas internas estavam trancadas.

Talvez estivesse fazendo a coisa errada, talvez fosse me­lhor dar a volta e retornar à casa de Ricky.

Mas compreendeu que não poderia fazê-lo. Avançou o sinal vermelho no alto da praça e tirou o pé do acelerador, deixando o carro deslizar pela frente do hotel. Não podia vol­tar. A voz de Elmer parecia ter-se tornado mais forte, vibrando com tons de angústia e sofrimento, de confusão (“Santo Deus, Sears, não consigo entender o que está acontecendo por aqui.”) Ele deu uma guinada no volante e endireitou o carro. O único trecho difícil seria agora a estrada, aqueles poucos quilôme­tros de colinas traiçoeiras, carros nas valas dos dois lados... Talvez fosse obrigado a andar.

“Santo Deus, Sears, não consigo imaginar por que tanto sangue... parece que aqueles invasores conseguiram finalmente entrar e agora estou apavorado, Sears, apavorado de verda­de...”

Sears apertou o acelerador uma fração de centímetro.

 

Ele parou o carro no alto da Underhill Road. Estava muito pior do que esperava. Através da neve e da semi-escuridão da manhã, podia avistar as luzes vermelhas do removedor de neve de Omar, avançando com uma lentidão irritante em direção à estrada. Uma camada de neve de três metros de altura, pare­cendo a onda ideal de um surfista, acumulara-se ao longo de todo o trecho ainda não desobstruído da Underhill Road. Se tentasse contornar o trator de Omar, o Lincoln ficaria enterra­do na neve.

Por um segundo, sentiu o impulso absurdo de fazer jus­tamente isso, pisando no acelerador e descendo pelos cinqüenta metros até o fundo da ladeira, para jogar o Lincoln contra a neve, contornando o trono em câmara lenta de Omar e empur­rando o monte de neve até a estrada. Era como se Elmer lhe estivesse dizendo para fazer precisamente isso: “Ponha esse carro em movimento, Sr. James. Preciso desesperadamente de sua ajuda... “

Sears tocou a buzina, comprimindo a mão com toda a força contra o botão. Omar virou-se para olhar. Ao ver o Lin­coln, espetou um dedo no ar. Sears podia vê-lo pela janela traseira da cabine do trator, balançando-se no assento, o rosto coberto por uma máscara de esquiar incrustada de neve. Ime­diatamente, compreendeu duas coisas: Omar estava bêbado e meio morto de exaustão; e lhe estava gritando para que fizesse a volta e não descesse a ladeira. Os pneus do Lincoln jamais conseguiriam manter um mínimo de aderência na encosta escor­regadia.

A voz insistente e persuasiva de Elmer o impedira de perceber direito a situação.

Lentamente, o Lincoln desceu alguns centímetros pela comprida ladeira. Omar desligou o trator e levantou-se, fican­do com o corpo meio para fora da cabine. Levantou a mão, a palma virada para a frente, como um guarda de trânsito. Sears pisou no pedal do freio e o Lincoln estremeceu na encosta escorregadia recentemente desobstruída. Omar estava fazendo movimentos circulares com a mão livre, dizendo-lhe para fazer a volta ou dar marcha à ré.

O carro de Sears avançou mais um palmo pela ladeira e ele puxou o freio de mão, não mais pensando em como con­trolar o carro, mas apenas tentando pará-lo. Ouviu Elmer di­zendo: “Sears... preciso... preciso...”, a voz estridente e insistente instando para que o carro continuasse a avançar.

E no instante seguinte avistou Lewis Benedikt no fundo da ladeira, correndo em sua direção, acenando com os braços para que parasse, um casaco cáqui enfunado pelo vento, os ca­belos esvoaçando. . .

“ ...preciso... preciso...”

Sears soltou o freio de mão e calcou o acelerador. O Lin­coln derrapou para a frente, os pneus traseiros gemendo, des­ceu velozmente a comprida ladeira, a traseira balançando de um lado para outro. Por trás do vulto de Lewis correndo, Sears podia avistar Omar Norris, um pouco fora de foco, de pé no trator, inteiramente imóvel.

Avançando a uma velocidade de cento e vinte quilômetros horários, o Lincoln passou através do vulto de Lewis Benedikt. Sears abriu e fechou a boca, dando uma guinada no volante para a esquerda, furiosamente. O Lincoln rodopiou e bateu no trator com o pára-lama traseiro direito, antes de mergulhar no imenso monte de neve que parecia uma onda prestes a arrebentar.

Com os olhos fechados, Sears ouviu o baque seco e assus­tador de um objeto pesado batendo no pára-brisa. Um momento depois, sentiu a atmosfera em derredor tornar-se mais densa. No interminável segundo seguinte, o carro finalmente parou, como se tivesse batido contra uma parede.

Ele abriu os olhos e descobriu que estava mergulhado na escuridão. Levou a mão direita à têmpora e sentiu que ali havia sangue; com a outra mão, ligou as luzes do interior do carro. O rosto mascarado de Omar Norris, espremido contra o pára-brisa, olhava para o assento do passageiro, os olhos destituídos de qualquer expressão. Um metro e meio de neve continha o carro como se fosse cimento.

— Agora, irmãozinho — disse uma voz profunda, no assento traseiro do carro.

Uma mão pequena, com terra por baixo das unhas, esten­deu-se para a frente, roçando no rosto de Sears.

 

A violência da própria reação surpreendeu Sears: jogou-se bruscamente para o lado, no assento, tirando o corpo de baixo do volante, sem qualquer planejamento ou premeditação, im­pelido apenas por uma repulsa incontrolável. Sentiu o rosto arranhado no lugar em que a criança tocara; e já podia sentir, no carro totalmente fechado, o cheiro forte da putrefação. Eles estavam sentados no banco traseiro, inclinados para a frente, fitando-o com olhos que brilhavam intensamente, as bocas entreabertas; a reação de Sears também os surpreendera.

A repulsa por aqueles seres repelentes deixou Sears furio­so. Não iria morrer passivamente nas mãos deles. Arremes­sou-se para a frente, grunhindo e desfechando o único soco que experimentara nos últimos sessenta anos. Acertou no rosto de Gregory Bate, rasgando a carne, mole, úmida, fétida. Um fluido viscoso e brilhante escorreu pelo corte no rosto.

— Com que então vocês podem ser feridos! — excla­mou Sears. — Por Deus, é possível.

Rosnando, os dois se arremessaram contra ele.

 

(Meio-dia, dia de Natal)

 

Ricky compreendeu que Walt Hardesty estava novamen­te embriagado no instante em que o xerife terminou de lhe balbuciar duas palavras pelo telefone. E depois de ouvir um número igual de frases, compreendeu que Milburn estava sem um xerife.

— Sabe muito bem onde pode meter esse trabalho!  — gritou Hardesty, arrotando em seguida. — Pode enfiar no rabo! Está me entendendo, Hawthorne?

—  Estou entendendo, Walt.

Ricky estava sentado no sofá. Olhou para Stella, com o rosto entre as mãos, que estava voltada para o outro lado. “Ela já está lamentando”, pensou Ricky, “já está lamentando porque o deixou partir sozinho, porque o despachou daqui sem uma bênção, sem uma palavra sequer de agradecimento.” Don Wan­derley estava agachado no chão ao lado de Stella, o braço pas­sado pelos ombros dela.

—  Pois é melhor me entender mesmo direitinho. Sabia que já fui um fuzileiro, advogado? Na Coréia. E sabia que ga­nhei três condecorações por bravura? — Um estrondo alto: Har­desty caíra da cadeira ou derrubara um abajur. Ricky não dis­sera nada. — Três condecorações! Pode chamar-me de herói que eu não me importo! E não precisava dizer-me para ir até aquela maldita fazenda! Os vizinhos foram até lá, por volta das onze horas...  e encontraram todos eles. Scales matou todo mundo. A tiros. E depois se deitou debaixo de uma árvore e estourou os miolos. A polícia estadual recolheu todos os corpos de he­licóptero. E agora me diga por que ele fez uma coisa dessas, advogado.  E  me  explique como  sabia  que havia  acontecido alguma coisa por lá.

—  Porque um dia eu tomei emprestado o carro do pai dele — disse Ricky. — Sei que isso não faz o menor sentido para você, Walt.

Don fitou-o, enquanto Stella afundava ainda mais o rosto entre as mãos.

—  E não faz mesmo! E pode tratar de arrumar um novo xerife para esta cidade. Vou embora assim que os tratores de remoção de  neve  do condado conseguirem chegar  até aqui. Posso ir para qualquer lugar... com uma ficha como a minha. Para qualquer lugar? Talvez não, por causa do que aconteceu naquela fazenda... por causa do pequeno massacre de Scales. Você e seus amigos ricos estão sabendo de alguma coisa desde o início...  e o que quer que seja, consegue fazer coisas ter­ríveis. Não é isso mesmo? E entrou na casa de Scales, não é mesmo? Entrou na cabeça dele, não é mesmo? Pode ir a qual­quer lugar,  não é  mesmo? E quem atraiu  tudo isso para Milburn, senhor advogado? Você! Não foi mesmo?

Ricky não respondeu.

— Pode dizer que foi Anna Mostyn, mas isso não passa de conversa de advogado. Sempre pensei que você fosse um idiota, Hawthorne. Mas uma coisa lhe posso garantir agora: se alguém ou alguma coisa aparecer por aqui com a idéia de me fazer ir a algum lugar, vou parti-la ao meio a tiros! Você e seus amigos que gostam de fantasias, se é que ainda lhe resta algum companheiro, podem tomar conta de tudo por aqui. Só vou ficar até que as estradas sejam desobstruídas. Mandei todos os meus assistentes para casa. E se alguém aparecer por aqui, atiro primeiro e depois faço perguntas. E depois vou embora.

—  E o que houve com Sears? — indagou Ricky, sabendo que Hardesty não diria nada enquanto hão perguntasse.  — Alguém por acaso encontrou Sears?

—  Ah, sim, Sears James...  Muito estranho, advogado, muito estranho... A polícia estadual também o encontrou. Vi­ram o carro dele meio enterrado num monte de neve, no fundo da Underhill Road, ao lado do trator de neve... Podem enter­rá-lo  quando  quiserem,  companheiro! Se  todo  mundo  nesta maldita cidade maluca não acabar primeiro todo retalhado ou com o sangue sugado! — Outro arroto e Hardesty arrematou, antes de desligar: — Estou no maior porre, advogado. E vou continuar assim. Depois, eu me mando daqui. E ao diabo com você e todo mundo que está do seu lado!

Ricky desligou também e murmurou:

—  Hardesty perdeu inteiramente o controle e Sears está morto.

Stella começou a chorar. Instantes depois, Ricky e Don formavam um pequeno círculo, os braços em torno um do outro, em busca de um conforto primitivo.

—  Eu sou o único que restou...  — murmurou Ricky no ombro da esposa. — Santo Deus, Stella, eu sou o único que restou!

 

Tarde da noite, os três — Ricky e Stella em seu quarto, Don no quarto de hóspedes — ouviram a música tocar pela cidade, os trompetes estridentes e saxofones suaves, a música bucólica da noite da alma, a música suave do outro lado da América, numa tensão extra de libertação e abandono. A banda do Dr. Rabbitfoot estava comemorando.

 

Depois do Natal, até mesmo os vizinhos pararam de se encontrar. Os poucos otimistas que ainda tinham planos para festas de Ano Novo trataram de esquecê-los. Todos os prédios públicos permaneceram fechados, a loja de departamentos Young Brothers, a biblioteca, drugstores, igrejas e escritórios; na Wheat Row, a neve subia inexoravelmente pelas fachadas dos prédios, até mesmo os bares ficaram fechados. O gordo Humphrey Stalladge não saía de sua pequena casa por trás da taverna, escutando o vento zunir e jogando pinochle com a esposa, pensando que, quando os removedores de neve do con­dado ali chegassem, começaria a ganhar mais dinheiro do que em qualquer outra ocasião; nada atraía as pessoas para os bares tanto quanto o mau tempo. A esposa comentou:

— Não fique falando como um coveiro.

E isso acabou com a conversa e também com o pinochle por algum tempo. Todos sabiam o que acontecera com Sears James e Omar Norris... e também o que Elmer Scales fizera, o que era muito pior. Alguns habitantes de Milburn desper­tavam bruscamente de madrugada, às três, quatro horas, jul­gando ver ao pé da cama um dos pobres meninos Scales, sor­rindo; não podiam identificar qual dos meninos era, mas só podia ser Davey, Butch ou Mitchell. Precisavam de uma pílula para voltar a dormir e esquecer como parecia o pequeno Davey ou Butch ou quem. quer que fosse, com as costelas brilhando por baixo da pele e o rosto encovado brilhando também.

A cidade acabou tomando conhecimento da situação do Xerife Hardesty, trancado em seu gabinete, com todos aqueles corpos esperando nas ceias. Dois dos meninos Pegran possuíam carros de neve e foram até a porta do escritório do xerife para dar uma olhada, querendo verificar se ele estava mesmo doido como todo mundo dizia. Um rosto impregnado de uísque apa­receu na janela no momento em que eles saltaram de seus car­ros: Hardesty levantou a pistola a fim de que pudessem vê-la e gritou através do vidro que, se não tirassem aquelas malditas máscaras de esquiar e mostrassem os rostos, iam acabar ficando sem rosto nenhum. Quase todos, conheciam alguém que tinha um amigo que tivera de passar pela frente do escritório do xerife e jurava que ouvira Hardesty gritando lá dentro, com alguma coisa ou consigo mesmo... ou com o que quer que pudesse deslocar-se livremente por Milburn com aquele tempo, entrando e saindo de seus sonhos, exultando nas sombras. O que quer que fosse, era o que podia explicar a música que alguns tinham ouvido por volta da meia-noite de Natal, uma música que deveria ter soado alegre, mas que em vez disso estava impregnada das mais tenebrosas emoções que conheciam. Eles enterraram a. cabeça no travesseiro e disseram a si mesmos que só podia ser um rádio ou uma ilusão provocada pelo vento. Preferiam dizer qualquer coisa a si mesmos, ao invés de acre­ditar que podia haver alguma coisa capaz de fazer um barulho tão terrível.

Peter Barnes saiu da cama naquela noite, tendo ouvido a música e imaginando que desta vez os irmãos Bate, Anna Mos­tyn e o Dr. Rabbitfoot de Don estavam efetuando uma viagem especial para buscá-lo. (Mas ele sabia que havia outra causa.) Trancou a porta e voltou para a cama, comprimindo as mãos contra os ouvidos. Mas a música frenética foi ficando cada vez mais alta, descendo por sua rua, sempre mais estridente.

Parou diretamente na frente de sua casa, interrompeu-se no meio de um acorde, como se alguém tivesse apertado subi­tamente o botão de um gravador. O silêncio era mais carregado de possibilidades do que fora a música. Peter não conseguiu mais suportar a tensão e silenciosamente saiu da cama outra vez, olhando para a rua pela janela.

Lá embaixo, no lugar onde antes observava o pai partindo para o trabalho, abatido e parecendo um russo, havia diversas pessoas em fila ao luar claro. Nada podia impedi-lo de reconhecer os vultos que estavam parados na neve recente onde deveria existir a rua. Fitavam-no com os olhos ensombreados e as bocas abertas, a cidade dos mortos. Peter jamais saberia se estavam ali apenas em sua imaginação ou se Gregory Bate e sua benfeitora haviam criado aqueles fac-símiles e feito com que se mexessem. Ou se a cadeia de Hardesty e meia dúzia de se­pulturas haviam-se aberto, deixando seus habitantes sair. Ele viu Jim Hardie olhando para sua janela, assim como o corretor de seguros Freddy Robinson, o velho Dr. Jaffrey, Lewis Be­nedikt e Harlan Bautz, que morrera quando estava removendo a neve da frente de sua casa. Omar Norris e Sears James esta­vam ao lado do dentista. O coração de Peter se confrangeu ao ver Sears; sabia que era por isso que a música soara novamente. Uma moça saiu de trás de Sears. Peter piscou os olhos, atur­dido, ao ver Penny Draeger, o rosto outrora atraente tão vazio e morto quanto os dos outros. Um pequeno grupo de crianças estava parado em silêncio por trás de um espantalho alto com uma espingarda nas mãos. Peter assentiu, murmurando para si mesmo a palavra “Scales”, a quem não conhecera. No instante seguinte, a multidão se entreabriu para permitir que sua mãe se adiantasse.

Ela não era o fantasma passando-se por pessoa viva que ele encontrara no Mercado de Bay Tree: como os outros, a mãe estava totalmente destituída de vida, vazia demais até mes­mo para o desespero. Parecia animada apenas pela necessida­de. .. uma necessidade num nível abaixo de qualquer senti­mento. Diminuída na perspectiva pelo ângulo em que Peter estava, Christina se adiantou sobre a neve até os limites da propriedade; estendeu os braços na direção do filho, a boca se mexeu. Peter sabia que não poderiam sair palavras humanas daquela boca, daquele corpo controlado; só podia ser um ge­mido ou um grito. A mãe e todos eles estavam lhe suplicando que saísse. Ou estariam implorando por um alívio em seu so­frimento, pelo descanso, pelo sono? Peter começou a chorar. Os vultos parados lá embaixo eram lúgubres, não assustadores. Olhando por sua janela, tão lamentavelmente esvaziados, pare­ciam simplesmente sonhados. Os Bate e sua benfeitora haviam-nos enviado, mas era dele, Peter, que estavam precisando. Com lágrimas nas faces, Peter afastou-se da janela;, eram tantos, tantos...

Ele se estendeu de costas na cama, os olhos abertos fixados no teto. Sabia que eles iriam embora; ou será que, olhando novamente pela janela de manhã, ainda os veria ali, congelados onde estavam, como bonecos de neve? Mas a música voltou a soar, intensamente. Eles iriam mesmo embora, seguindo a ban­da alegre do Dr. Rabbitfoot.

 

Depois que a música desapareceu ao longe, Peter levan­tou-se outra vez e foi verificar na janela. Eles haviam realmente desaparecido. Sem deixar quaisquer marcas na neve.

Desceu a escada no escuro; chegando lá embaixo, avistou uma réstia de luz que saía por baixo da porta da sala da tele­visão. Peter empurrou-a suavemente.

Pontos de luz em movimento apareciam na tela da tele­visão, divididos ao meio por uma barra preta. O cheiro forte de uísque impregnava a sala. O pai estava afundado na pol­trona, a boca entreaberta, gravata desfeita, pele do rosto e pes­coço pálida e enrugada, respirando com as inalações suaves e ruidosas de um bebê. Na mesinha ao lado dele havia uma gar­rafa quase vazia e um copo cheio, no qual o gelo se derretera. Peter foi até o aparelho de televisão e desligou-o. Depois, ter­namente, segurou o braço do pai.

—  Ah... — murmurou o pai, abrindo os olhos, turva­dos e aturdidos. — Ouvi uma música, Pete.

—  Estava sonhando.

—  Que horas são?

—  Quase uma da madrugada.

—  Eu estava pensando em sua mãe. Parece-se com ela, Pete. Os meus cabelos, o rosto dela. O que foi uma sorte. Poderia ter saído parecido comigo.

— Eu também estava pensando nela, papai.

O pai se levantou, esfregando o rosto, e lançou um olhar de inesperada lucidez para o filho.

—  Já é um homem, Pete. Estranho, só agora percebi... você já é um homem.

Constrangido, Peter não disse nada.

—  Não lhe quis contar antes, Pete. Ed Venuti me tele­fonou esta tarde... soube do ocorrido pela polícia estadual. Conhece Elmer Scales, um fazendeiro que mora logo depois da saída da cidade? Ele tinha uma hipoteca conosco. E conhece os filhos dele? Ed me contou que Scales matou todo mundo. Atirou nos filhos, depois na esposa, acabou por se matar. Esta cidade está enlouquecendo, Pete. Está cada vez mais doente e doida...

— Vamos subir, papai.

 

Por alguns dias, Milburn ficou em suspenso, como o jogo de cartas de Humphrey Stalladge com a esposa, depois que ela pronunciara uma palavra que parecera repulsiva a ambos: coveiros ou covas eram um tabu, quando todos na cidade conhe­ciam a fundo ou eram aparentados com um dos vários corpos cobertos por lençóis que estavam guardados na cadeia. Os habi­tantes de Milburn sentavam-se diante de seus aparelhos de tele­visão e comiam pizzas tiradas dos congeladores, rezando para que o fornecimento de energia elétrica não fosse interrompido. Todos se evitavam. Se alguém olhava pela janela e avistava o vizinho avançando arduamente para chegar à porta de casa, tinha a impressão de que ele parecia espectral, transformado pela tensão numa versão selvagem e conturbada de si mesmo. Podia ter certeza de que ele agrediria implacavelmente quem quer que ameaçasse seu estoque cada vez mais reduzido de alimentos. Ele também fora afetado pela música selvagem da qual todos haviam tentado escapar. E olhando-se pela janela, podia-se perceber claramente que os olhos do vizinho dificil­mente poderiam ser classificados de humanos.

E se o velho Sam (gerente do Borracheiro Horn e um grande jogador de pôquer) ou o velho Ace (capataz aposen­tado de uma fábrica de sapatos em Endicott e um tremendo chato, mas que conseguira mandar o filho para a Faculdade de Medicina) não estavam lá fora, fitando-o com uma expressão faminta que insinuava “tire seus olhos de cima de mim, des­graçado”, então era ainda pior: porque o que se via não pa­recia assassino, mas morto. As ruas estavam intransponíveis, exceto a pé, com a neve se elevando a três ou quatro metros de altura, um constante turbilhão branco no ar, o céu escuro. As casas na Haven Lane e na Melrose Avenue pareciam vazias, as janelas e cortinas fechadas contra a desolação lá fora. A neve se acumulava nos telhados e se empilhava nas ruas, as janelas refletiam o vazio desolador. Parecia que todos os habitantes de Milburn estavam deitados sob lençóis nas celas de Hardesty. Quando alguém como Clark Mulligan ou Rollo Draeger, que sempre haviam vivido em Milburn, contemplava agora a ci­dade, um calafrio lhe invadia o coração.

Era assim durante o dia. Entre o Natal e o Ano Novo, os, cidadãos comuns de Milburn, os que nunca tinham ouvido falar, de Eva Galli ou Stringer Dedham e pensavam na Sociedade Chowder (se é que pensavam) como uma coleção de peças de museu, passaram a ir deitar-se cada vez mais cedo — primeiro às dez horas, depois às nove e meia —, porque o pensamento de toda a escuridão e tempo ruim lá fora lhes dava vontade de fechar os olhos e só voltar a abri-los depois do amanhecer. Se os dias eram ameaçadores, as noites eram terríveis. O vento zumbia pelas casas, sacudindo as janelas; duas ou três vezes por noite, uma rajada gigantesca se abatia sobre as paredes, como uma enorme onda, com violência suficiente para fazer as lâmpadas oscilar. E freqüentemente os cidadãos comuns de Mil­burn tinham a impressão de ouvir vozes, misturadas com todo aquele zumbido e baques lá fora, vozes que não conseguiam dis­farçar seu júbilo. Os garotos Pegram ouviram alguma coisa bater na janela de seu quarto durante a noite; pela manhã, avistaram as pegadas de pés descalços na neve. O desesperado Walter Barnes não era a única pessoa em Milburn que pensava que toda a cidade enlouquecera.

No último dia do ano, o prefeito conseguiu finalmente entrar em contato com os três assistentes do xerife e disse-lhes que precisavam tirar Hardesty de seu escritório e levá-lo para o hospital. O prefeito estava temeroso de que os saques em breve começassem, se não conseguissem desobstruir as ruas. De­signou Leon Churchill como xerife interino. Era o maior e mais estúpido dos assistentes, o que mais provavelmente acataria ordens sem discutir. E disse a Leon que, se não consertasse imediatamente o removedor de neve de Omar Norris e come­çasse a desobstruir as ruas, iria ficar permanentemente sem em­prego. Assim, no primeiro dia do ano, Leon foi até a garagem municipal e descobriu que o trator não estava tão ruim quanto’ parecia. O carro grande de Sears James amassara algumas pla­cas, mas tudo ainda estava funcionando. Saiu com o trator pela manhã e na primeira hora passou a ter mais respeito por Omar Norris do que jamais sentira pelo prefeito.

Mas quando os assistentes chegaram ao gabinete do xe­rife, tudo o que encontraram foi uma sala vazia e um catre fétido. Walt Hardesty desaparecera em algum momento dos quatro dias anteriores. Deixara para trás seis garrafas vazias de bourbon e nenhum bilhete de despedida ou endereço onde pu­dessem encontrá-lo... e nada havia ali que indicasse o pânico incontrolável que ele sentira uma noite, quando. levantara a cabeça do tampo da mesa para servir-se de outra dose de uísque e ouvira mais barulhos partindo das celas. A princípio, Har­desty achara que os barulhos pareciam de conversa, depois como se um açougueiro batesse com a carne no cepo. Não ficara esperando que quem quer que estivesse lá atrás se aproximasse pelo corredor. Pusera o chapéu e o casaco e saíra para a ne­vasca. Conseguira chegar até a escola secundária, quando uma mão segurou seu cotovelo e uma voz tranqüila murmurou em seu ouvido:

— Já não é tempo de nos conhecermos, xerife?

Quando o removedor de neve operado por Leon desco­briu-o, Walt Hardesty parecia uma peça de marfim esculpida, uma estátua de marfim em tamanho natural de um velho de noventa anos.

 

Embora a estação meteorológica previsse mais neve por toda a primeira semana de janeiro, houve uma pausa de dois dias. Humphrey Stalladge tornou a abrir sua taverna, traba­lhando sozinho, pois Annie e Anni continuavam isoladas em suas casas no campo. Os negócios foram bastante movimenta­dos, exatamente como ele estava esperando. Seus dias eram compridos, ele trabalhava de dezesseis a dezessete horas. E quan­do a esposa apareceu para fazer hambúrgueres, ele comentou:

—  As estradas finalmente foram desobstruídas o suficiente para que o pessoal possa pôr seus carros em movimento... e o primeiro lugar para onde todo mundo vem é o bar. E aqui ficam o dia inteiro. Isso não faz sentido para você?

—  E era o que estava esperando, não é mesmo?

—  É um bom tempo para se beber.

Um bom tempo para se beber? Mais do que isso: Don . Wanderley, seguindo de carro com Peter Barnes para a casa dos Hawthorne, achava que aquele dia cinzento e escuro, ainda terrivelmente frio, era como o tempo dentro da cabeça de um bêbado. Não havia nenhuma das cenas de esplendor que ele avistara antes em Milburn: nenhum portal ou chaminé brilhava, não havia cores intensas surgindo subitamente diante dos olhos. Não havia nenhum daqueles truques de mágico. O que não estava branco parecia indistinto, meio dissolvido no cinza do tempo, que a tudo aderia; sem sombras de verdade e um sol oculto, tudo parecia estar mergulhado nas sombras.

Ele virou a cabeça e olhou para o embrulho no banco tra­seiro do carro. Eram as suas armas, sem grande valor, encon­tradas  na  casa de Edward.  Pareciam  quase  que  toscamente infantis. Agora que ele tinha um plano e os três se preparavam para lutar, até mesmo o tempo opressivo parecia insinuar der­rota. Eram apenas ele, um tenso rapaz de dezessete anos e um velho com um tremendo resfriado: por um momento, tudo pa­receu comicamente sem esperança. Mas, sem eles, a esperança simplesmente não existia.

—  O assistente do xerife não sabe remover a neve tão bem quanto Omar — comentou Peter, sentado ao lado dele.

Era um comentário apenas para quebrar o silêncio, mas Don assentiu. O rapaz estava certo. Leon tinha dificuldade em manter o trator num mesmo nível e, quando chegava ao fim, a rua ficava com um estranho aspecto de encosta cheia de pra­teleiras. As variações de até oito a dez centímetros na rua fa­ziam o carro sacolejar como se estivesse numa montanha-russa. Nos dois lados da rua, podiam-se avistar caixas de correspon­dência entortadas, atingidas pelo trator.

— Desta vez vamos fazer alguma coisa — disse o rapaz, quase num tom de pergunta.

—  Vamos tentar.

Don olhou para ele. Peter parecia um jovem soldado que participara de uma dúzia de combates em duas semanas. Fitan­do-o, podia-se sentir a amargura da adrenalina derramada.

—  Estou pronto — disse ele.

Don ouviu a firmeza na voz, mas ouviu também os ner­vos à flor da pele e imaginou se o rapaz, que já fizera muito mais do que ele e Ricky Hawthorne, seria capaz de suportar ainda mais.

—  Espere até saber o que estou pensando, Peter. Talvez possa então não querer mais participar. E se isso acontecer, pode estar certo de que compreenderei.

—  Estou pronto para o que der e vier — murmurou Peter,  estremecendo  de  forma  tão  evidente  que  Don  pôde perceber. — O que vamos fazer?

—  Voltar à casa de Anna Mostyn. Explicarei tudo quan­do chegarmos à casa de Ricky.

Peter deixou lentamente o ar escapar dos pulmões.

—  Mesmo assim, estou pronto para tudo.

 

—  Fazia parte da mensagem da gravação de Alma Mobley —  disse Don.

Ricky Hawthorne estava sentado no sofá, inclinado para a frente, olhando não para Don, mas para uma caixa de lenços de papel. Peter Barnes fitou-o rapidamente e depois desviou o olhar, encostando a cabeça no sofá. Stella Hawthorne subira mas não antes de lançar a Don um olhar óbvio de advertência.

—  Era uma mensagem para mim e eu não queria que nin­guém mais a ouvisse — explicou Don. — Especialmente Peter. Podem imaginar mais ou menos o que era.

—  Guerra psicológica — comentou Ricky.

—  Exatamente. Mas estive pensando numa coisa que ela disse e que pode explicar onde está. Creio que o disse como uma pista ou insinuação, como quer que prefiram chamar.

—  Continue — disse Ricky.

—  Ela disse que nós, seres humanos, estamos à mercê de nossas imaginações e que, se quiséssemos procurá-la ou a qual­quer um deles, deveríamos olhar nos lugares de nossos sonhos. Nos lugares de nossas imaginações.

—  Nos lugares de nossos sonhos...  — repetiu Ricky. —  Estou entendendo. É uma referência à Montgomery Street. Eu já deveria ter imaginado que ainda não acabáramos com aquela casa. — Peter estendeu um braço pelo encosto do sofá, num gesto evidente de rejeição. Ricky lhe disse: — Não o le­vamos deliberadamente na primeira vez em que lá estivemos. É claro que agora tem mais razão ainda em não querer ir. Como se sente a respeito?

—  Tenho de ir de qualquer maneira — murmurou Peter.

—  Tenho quase certeza de que só pode ser isso o que ela insinuou — continuou Ricky, ainda sondando gentilmente o rapaz. — Sears, Lewis, John e eu tivemos pesadelos que se passavam naquela casa. E quando Sears, Don e eu estivemos lá, na ocasião em que encontramos os corpos de sua mãe e de Jim, ela não nos atacou fisicamente... mas atacou nossas ima­ginações. E se isso pode servir de algum consolo, devo con­fessar que a simples idéia de voltar àquela casa também me deixa apavorado.                                                                    

Peter assentiu.

—  Não podia ser de outra forma. — Finalmente, como se a confissão de medo de outro lhe incutisse coragem, o rapaz inclinou-se para a frente e perguntou: — O que tem no embru­lho, Don?

Don abaixou-se e pegou a manta enrolada que estava no chão, ao lado da poltrona.

—  Apenas duas coisas que encontrei na casa de meu tio. Talvez possamos usá-las.

Ele pôs o embrulho em cima da mesinha e desenrolou a manta. Os três ficaram em silêncio, por um momento, olhando para o machado de cabo comprido e a faca de caça.

—  Passei a manhã toda afiando-os e passando óleo. O machado estava todo enferrujado. Edward usava-o para cortar lenha. A faca foi presente de um ator, que a utilizou num filme e deu de presente a meu tio quando seu livro foi publicado. É uma bela faca.

Peter inclinou-se e pegou a faca, comentando:

—  É bastante pesada.

Revirou-a entre as mãos. Era uma lâmina com mais de um palmo de comprimento, recurvada na ponta e com um sulco que se estendia até a base, com um cabo esculpido a mão. Era obviamente projetada para um único propósito: o de matar. Mas Don recordou-se de que não era bem assim, que essa era apenas a aparência, não o que realmente era. O verdadeiro obje­tivo era de se ajustar bem à mão de um ator, fotografar bem. A seu lado, o machado parecia brutal e desgracioso.

—  Ricky já tem sua própria faca — disse Don. — Você pode ficar com essa faca, Peter. Eu levarei o machado.

—  Vamos partir imediatamente?

—  Há alguma vantagem em esperar?

Ricky interveio na conversa:

—  Tenho de subir para dizer a Stella que vamos sair. E pedirei a ela que, se não voltarmos dentro de uma hora, tele­fone para quem esteja ocupando atualmente o escritório do xerife e diga que mande um carro à antiga casa de Robinson.

O advogado saiu da sala, encaminhando-se para a escada. Peter inclinou-se para a frente e tocou na faca, murmurando:

—  Não vai levar uma hora...

 

—  Entraremos novamente pelos fundos — disse Don a Ricky, inclinando-se a fim de falar-lhe ao ouvido. Ricky assen­tiu. — Temos de ser o mais silenciosos que for- possível.

—  Não se preocupe comigo — disse Ricky, que parecia mais velho e mais fraco do que Don jamais o vira. — Assisti ao filme em que foi usada essa faca. Tinha uma cena espetacular, uma cena comprida, mostrando como ela havia sido forjada. O homem derreteu um pedaço de asteróide ou meteorito que possuía... a faca tinha... — Ricky fez uma pausa, respiran­do pesadamente e certificando-se de que Peter Barnes o estava escutando. — A faca tinha propriedades especiais. Era a subs­tância mais resistente que já existira. Como se fosse mágica. Vinha do espaço exterior. — Ele fez outra pausa, sorrindo. — Um típico absurdo do cinema. De qualquer forma, parece mes­mo uma faca especial.

Peter tirou a faca do bolso do casaco e, por um segundo, todos a olharam novamente, quase constrangidos por aquele momento de infantilidade. Ricky comentou:

—  O espaço exterior operava maravilhas para o Coronel Bowie...  no filme.

—  Bowie...

Peter ia fazer um comentário, recordando uma aula de história na escola primária, da personagem histórica que dera seu nome àquele tipo de faca. Mas fechou a boca abruptamente, não concluindo a frase “Bowie morreu em Alamo”. Engoliu em seco, sacudiu a cabeça e virou-se na direção da casa de Eva Galli. Era o que deveria ter aprendido de Jim Hardie: a magia boa provinha apenas do esforço humano, mas a magia adversa podia vir de qualquer parte.

—  Vamos embora — disse Don, olhando firmemente para Peter, a fim de certificar-se de que o rapaz sabia o bastante para ficar calado.

 

Usando as mãos, eles removeram a neve acumulada contra a porta dos fundos, para poderem abri-la. E depois entraram na casa, em fila indiana, silenciosamente. Para Peters a casa pare­cia quase tão escura quanto na noite em que ele e Jim Hardie a haviam arrombado. Até o momento em que Don levou-o atra­vés da cozinha, não tivera certeza se conseguiria dar um só passo além do limiar. Mesmo depois, ainda receara por um momento que fosse desmaiar ou gritar, pois a escuridão da casa parecia envolvê-lo em sussurros.

No vestíbulo, Don apontou para a porta do porão. Peter e Ricky empunharam as facas. Don abriu a porta e desceram em silêncio os degraus de madeira até o porão.

Peter sabia que o porão e o patamar lá em cima seriam os piores lugares para ele. Deu uma rápida olhada embaixo da escada e viu apenas uma teia de aranha flutuando no ar. Depois, ele e Don avançaram lentamente na direção da fornalha, os canos saindo como tentáculos de um polvo, enquanto Ricky Hawthorne avançava pelo outro lado do porão. A faca que tinha na mão dava a Peter alguma força e segurança, mes­mo sabendo que em breve iria olhar o lugar em que Sears encontrara os corpos de sua mãe e Jim Hardie. Peter sabia que não iria desmaiar ou gritar, não teria qualquer reação infan­til. A faca parecia transmitir-lhe um pouco de sua compe­tência.

Chegaram à área mais escura ao lado da fornalha. Don avançou para trás da fornalha sem a menor hesitação e Peter seguiu-o, apertando com toda a força o cabo da faca. “É preciso golpear para cima”, pensou, lembrando alguma antiga história de aventura que lera. “Se a faca é desferida para baixo, fica mais fácil arrancá-la de sua mão.” Avistou Ricky aproximando-se pelo outro lado, já dando de ombros.

Don abaixou o machado; os dois homens olharam por baixo da bancada de madeira, na parede mais próxima. Peter estremeceu. Fora ali que os corpos haviam sido encontrados. Mas nada havia agora. Ele compreendeu imediatamente, pelo jeito como Don e Ricky se empertigaram, que Gregory Bate não surgira subitamente para começar a falar... que nem mesmo havia manchas de sangue. Peter percebeu que seus dois companheiros estavam esperando que ele se mexesse. Abaixou-se rapidamente e olhou embaixo da bancada. Ali havia so­mente a parede e o chão de cimento, mergulhados na semi-escuridão. Ele empertigou-se.

— Vamos agora ao último andar — sussurrou Don, e Ricky assentiu.

Ao chegarem à mancha escura no patamar, Peter apertou o cabo da faca convulsivamente e engoliu em seco. Olhou rapi­damente para trás, a fim de certificar-se de que Gregory Bate não estava parado lá embaixo, com uma peruca de Harpo Marx e óculos escuros, sorrindo. Verificou também o lanço de escada seguinte. Ricky Hawthorne virou-se para interrogá-lo com um olhar. Peter assentiu, indicando que estava tudo bem, conti­nuando a seguir os outros dois.

Diante da primeira porta, no andar superior, Ricky parou e sacudiu a cabeça. Peter levantou a faca; podia ser o quarto com que os velhos haviam sonhado, o que quer que isso pu­desse significar, mas era também o quarto em que encontrara Freddy Robinson, o quarto em que quase morrera. Don pos­tou-se na frente de Ricky e estendeu a mão para a maçaneta. Ricky fitou-o, abriu a boca, fechou de novo e assentiu. Don girou a maçaneta e empurrou a porta. Peter viu um filete de suor escorrendo subitamente pelo rosto do escritor, tão abrupta­mente como se uma torneira tivesse sido aberta. Sentiu-se res­sequido por dentro. Don passou rapidamente pela porta, er­guendo o machado enquanto avançava. As pernas de Peter levaram-no para o interior do quarto, como se um cordão invi­sível o puxasse inexoravelmente.

Peter olhou o quarto numa série de cenas isoladas, como se fossem instantâneos: Don ao lado dele, meio abaixado, o ma­chado erguido ao lado do corpo; uma cama vazia; o assoalho empoeirado; a parede- nua; a janela que ele arrombara séculos atrás; Ricky Hawthorne de pé a seu lado, a boca entreaberta, segurando a faca como se estivesse pronto a entregá-la a al­guém; uma parede com um pequeno espelho. Um quarto vazio.

Don abaixou o machado, a tensão cautelosamente deixan­do seu rosto. Ricky Hawthorne começou a andar pelo quarto, como se quisesse examinar cada centímetro antes de poder acreditar que Anna Mostyn e os Bate não estavam escondidos ali. Peter percebeu de repente que a. faca estava frouxa em sua mão; descobriu que estava relaxado. O quarto estava se­guro. E se aquele quarto era seguro, então o resto da casa tam­bém era. Olhou para Don, que alteou os cantos dos lábios num sorriso.

No instante seguinte, Peter sentiu-se meio idiota, parado dentro do quarto, sorrindo para Don. Adiantou-se, verificando todos os lugares que Ricky Hawthorne já examinara. Não havia coisa alguma debaixo da cama. Um armário vazio. Foi até a parede do outro lado; um músculo pulou em suas costas, soltando-se com um estalido, como se fosse um elástico. Peter passou os dedos pela parede. Estava fria. E suja. Uma subs­tância cinzenta saiu em seus dedos. Ele olhou para o espelho.

Inesperadamente alta, a voz de Ricky Hawthorne gritou-lhe do outro lado do quarto:

— O espelho não, Peter!

Mas já era tarde demais. Peter fora apanhado por uma brisa que saía das profundezas do espelho e virou-se, sem pen­sar, para olhar lá dentro. Seu próprio rosto estava se desvane­cendo em contornos indistintos, por baixo dos quais, no outro lado, meio flutuando, aparecia o rosto de uma mulher. Peter não a conhecia, mas sentiu-se prontamente apaixonado: sardas, claras, os cabelos sedosos, os olhos suaves e brilhantes, a boca era a mais terna que ele já vira. Ela apreendeu toda a tensão que havia em Peter, todo o seu sentimento; ele viu coisas no rosto da mulher que sabia estarem além de sua compreensão, promessas, canções e traições que não conheceria por muitos anos. Sentiu toda a superficialidade e insipidez de seus relacionamentos com as garotas que conhecera, beijara e acariciara, descobriu que as áreas nele que se haviam relacionado com as mulheres nunca haviam sido suficientes, nunca haviam sido completas. E, numa onda de ternura, numa nuvem envolvente de emoção, ela lhe estava falando. “Belo Peter, quer ser um de nós. Pois já é um de nós.” Ele não se mexeu nem falou, mas assentiu e disse sim. “E o mesmo acontece com seus amigos, Peter. Você pode viver através dos tempos, cantando a única canção que é minha canção... pode estar comigo e com eles para sempre, movendo-se como uma canção. Basta usar a sua faca, sabe como fazê-lo e faça da melhor maneira, erga a faca,. suspenda a faca, levante a faca e vire...”

Peter já estava levantando a faca quando o espelho caiu, ainda falando musicalmente, embora ele já não pudesse ouvir tão bem, pois o som era abafado por um golpe e uma voz perto de sua cabeça. O espelho bateu no chão e se quebrou.

— Era um truque, Peter — estava dizendo Ricky Haw­thorne. — Eu deveria tê-lo avisado antes, mas fiquei com re­ceio de falar. — O rosto e os olhos experientes de Ricky esta­vam tão perto do rosto de Peter que este, baixando os olhos meio aturdido, viu de forma surrealista sua gravata-borbo­leta. — Apenas um truque, Peter...

O rapaz tremeu todo e abraçou-o. Quando se separaram, Peter inclinou-se para as duas metades do espelho quebrado e estendeu a palma sobre um deles. Uma brisa deliciosa (“a única canção que é minha canção”) levantou-se do espelho. Pe­ter sentiu Ricky ficar subitamente rígido a seu lado: metade de uma boca terna rebrilhava por baixo de sua mão, mal visí­vel. Ele bateu com o calcanhar no espelho quebrado, repetidas vezes, transformando-o em fragmentos dispersos de um que­bra-cabeça.

 

Quinze minutos depois, eles estavam de volta ao carro, indo lentamente na direção do centro da cidade, seguindo pela trilha irregular das ruas já desobstruídas.

— Ela quer fazer com que nos tornemos iguais a Gregory e Fenny — comentou Peter. — Era isso o que estava querendo dizer ao falar em “viver através dos tempos”. Quer que vire­mos apenas coisas.

—  Não precisamos  deixar  que  aconteça — disse Don.

—  Há momentos em que fala com uma bravura incrível. — Peter sacudiu a cabeça. — Ela disse que eu já era um deles. Porque, quando vi Gregory transformar-se em... vocês sabem em que... ele disse que era eu. Foi como Jim. Bastava conti­nuar. Sem parar. Sem jamais duvidar.

—  E você gostava disso em Jim Hardie — disse Don. Peter assentiu, com lágrimas no rosto. — Eu também gostaria, Peter. Sempre se deve apreciar a energia e o vigor.

—  Mas ela sabe que eu sou o elo fraco — murmurou Peter, levando as mãos ao rosto. — Tentou usar-me e quase deu certo. Pode usar-me para atingir você e Ricky.

—  A diferença entre você... entre todos nós e Gregory Bate é que Gregory queria ser usado — declarou Don. — Ele escolheu esse caminho, pode-se mesmo dizer que o procurou.

—  Mas ela quase me fez adotá-lo também! — exclamou Peter. — Ah, como eu os odeio!

Ricky falou do banco de trás:

—  Eles liquidaram sua mãe, a maioria dos seus amigos e o irmão de Don, Peter. Todos os odiamos. E pode estar certo de que ela é capaz de fazer com qualquer um de nós o que fez com você lá na casa.

Enquanto Ricky falava tranqüilizadoramente do banco tra­seiro, Don continuou a guiar, sem mais se dar ao trabalho de contemplar a desolação causada pela neve. Dentro de mais uma hora a neve voltaria a cair e dali a um ou dois dias Milburn não apenas estaria completamente isolada do mundo exterior, como também seria uma armadilha mortal. Mais uma nevasca intensa provocaria uma onda de morte que levaria em sua esteira a metade dos habitantes da cidade.

—  Pare o carro — disse Peter. — Pare! — O rapaz soltou uma risada brusca. — Sei onde eles estão. O lugar dos sonhos.— A risada era estridente e trêmula, à beira da histeria. — Ela não falou em lugar dos sonhos? E qual o único lugar da cidade que permaneceu aberto durante todas as nevascas?

—  Mas de que diabo está falando? — indagou Don, vi­rando a cabeça para fitar o rosto de Peter, subitamente seguro e confiante.

—  Ali! — exclamou Peter.

Don olhou na direção apontada pelo dedo esticado do rapaz e avistou, no outro lado da rua, uma palavra, em imensas letras vermelhas iluminadas por neon:

 “Rialto”

E por baixo, em letras pretas menores, uma última prova do espírito jocoso de Anna Mostyn:

A Noite dos Mortos-vivos

 

Stella verificou a hora pela centésima vez, levantou-se para ver se seu relógio de pulso conferia com o que estava em cima da lareira. Estava três minutos adiantado, como sempre aconte­cia. Ricky e os outros haviam saído entre trinta e trinta e três minutos antes. Stella pensava que sabia como Ricky se sentia naquela manhã de Natal... se ele não saísse de casa e começasse a fazer alguma coisa, algo terrível iria acontecer. E agora Stella tinha certeza de que, se não chegasse à antiga casa de Freddy Robinson o mais depressa possível, Ricky estaria correndo um tremendo perigo. Ele disse que lhes desse uma hora para volta­rem, mas certamente era tempo demais. O que quer que tivesse assustado Ricky e o resto da Sociedade Chowder estava naquela casa, esperando para atacar novamente. Stella jamais teria des­crito a si mesma como uma feminista, mas há muito que já chegara à conclusão de que os homens presumiam que deviam fazer tudo sozinhos erroneamente. As Millys Sheehan trancavam suas portas e sofriam alucinações — ou algo parecido — quan­do seus homens morriam ou as deixavam. Se alguma catástrofe inexplicável levava seus homens, elas se encolhiam por trás de sua passividade feminina, aguardando simplesmente a leitura do testamento.

Ricky presumira que ela não tinha condições para acom­panhá-los. Até mesmo um rapaz podia ser mais útil do que ela. Stella olhou novamente para o relógio. Mais um minuto se passara.

 

Stella foi ao armário do vestíbulo e pôs o casaco; depois tirou-o, pensando que, no final das contas, talvez não pudesse mesmo ajudar Ricky.

— Mas que loucura! — exclamou ela, em voz alta, vestin­do novamente o casaco e saindo de casa.

Pelo menos não estava nevando naquele momento e Leon Churchill, que sempre a olhara com uma admiração inequívoca desde os doze anos, desobstruíra algumas das ruas. Len Shaw, do posto de gasolina, outra de suas conquistas por controle remoto, desobstruíra o caminho de carro da casa de Stella, assim que conseguira chegar até lá com seu removedor de neve. Num mundo injusto, Stella não tinha o menor escrúpulo em tirar proveito de sua aparência. Ela ligou o carro facilmente (Len, não tendo Stella, dedicara uma atenção quase erótica ao motor do Volvo) e desceu pelo caminho até a rua.

Tendo tomado a decisão de ir, Stella estava com uma pressa quase frenética de chegar à Montgomery Street. O acesso direto estava bloqueado pelas ruas não desobstruídas. Stella calcou o acelerador e seguiu pelo labirinto de ruas que Leon abrira. Resmungou ao perceber que teria de seguir até a escola secundária. De lá, passaria da School Road para a Harding Lane, depois seguiria pela Lone Pine, voltando na mesma di­reção por onde começara, entrando em seguida na Candlemaker Street e passando pelo Rialto. Elaborando mentalmente esse circuito, Stella acelerou o carro quase à sua velocidade normal. As depressões e elevações deixadas por Leon faziam-na sacudir-se toda, segurando firmemente o volante. O que não a impediu de virar rapidamente a esquina da School Road, sem perceber, à claridade difusa do dia cinzento, que o leito da rua caía brusca­mente cerca de um palmo. Quando a frente do carro bateu contra a neve acumulada, Stella calcou o acelerador, ainda pen­sando nas ruas que deveria seguir para chegar à Montgomery, depois de sair da Candlemaker.

A traseira do carro derrapou para o lado, batendo numa cerca de metal e numa caixa de correspondência, continuando depois a deslizar, de tal forma que o Volvo avançava de lado pela rua. Dominada pelo pânico, Stella deu uma guinada no volante, no momento em que o carro atingira outra das depres­sões deixadas por Leon. O carro ficou no ar por um momento, as rodas girando, depois caiu em cima da cerca de metal.

— Mas que diabo! — exclamou Stella.

Ela apertou o volante com toda a força, respirando fundo, fazendo um esforço deliberado para parar de tremer. Abriu a porta e olhou para baixo. Se pusesse as pernas para fora, ficaria apenas a cerca de um metro do chão. O carro poderia ficar onde estava. De qualquer maneira, não havia outro jeito. Seria neces­sário um reboque para tirá-lo da cerca. Stella pôs as pernas para fora do carro, respirou fundo outra vez e pulou.

O impacto foi forte, mas ela conseguiu manter o equilíbrio e permanecer de pé. Começou a avançar pela School Road, sem olhar para trás, não querendo ver o estado em que se encontra­va o carro, a porta aberta, a chave na ignição, espetado na cerca como um brinquedo. Ela precisava alcançar Ricky de qual­quer maneira. À sua frente, a cerca de quinhentos metros de distância, o prédio da escola parecia uma nuvem escura, os con­tornos indistintos.

Stella acabara de chegar à conclusão de que teria de arru­mar uma carona quando um carro azul surgiu atrás dela, emer­gindo bruscamente do dia cinzento. Pela primeira vez em sua vida, ela virou-se para o carro que se aproximava e ergueu o polegar, no gesto tradicional.

O carro azul começou a frear ao chegar perto dela. Stella abaixou o braço quando ele parou a seu lado. Ao abaixar-se e olhar pela janela, viu um homem gorducho, virado de lado, contemplando-a com um tímido sorriso de boas-vindas. Ele esti­cou-se e abriu a porta para que ela entrasse.

—  É contra os meus princípios — disse ele —, mas parece que está precisando de uma carona.

Stella entrou no carro e recostou-se no assento, esquecendo por um momento que aquele homenzinho prestativo não podia ler seus pensamentos. No instante seguinte, ela e o carro come­çaram a avançar. Stella apressou-se em dizer:

— Oh, por favor, desculpe-me! Sofri um pequeno acidente e não estou pensando direito. Tenho...

—  Por favor, Sra. Hawthorne — disse o homem, virando a cabeça e sorrindo novamente. — Não precisa perder o fôlego. Presumo que estava indo para a Montgomery Street. Não pre­cisa incomodar-se. Tudo não passou de um equívoco.

—  Você me conhece? — indagou Stella. — Mas como sabia...

O homem silenciou-a ao estender a mão com a rapidez de um boxeador e segurar-lhe os cabelos.

—  São macios...  — murmurou ele.

A voz, antes tão timidamente cativante quanto a aparência do homem, era a mais tranqüila que Stella já tinha ouvido.

 

Don foi o primeiro a ver o corpo de Clark Mulligan. O dono do cinema estava todo encolhido no tapete por trás do balcão de balas, mais um cadáver apresentando os sinais dos apetites dos irmãos Bate.

—  Você estava certo, Peter — disse ele, desviando-se do corpo. — Eles estão lá dentro.

—  Sr. Mulligan? — indagou Peter, baixinho.

Ricky aproximou-se do balcão e olhou para o outro lado.

— Oh, não! — exclamou, tirando a faca do bolso. — E ainda nem mesmo sabemos se o que vamos tentar é possível. Pelo que sabemos, vamos é precisar de estacas de madeira, balas de prata, uma fogueira ou...

—  Não  vamos  precisar  de  nenhuma  dessas  coisas  — interrompeu Peter. — Temos tudo de que precisamos aqui mesmo. — O rapaz mostrava-se extremamente pálido e evitou olhar para o corpo de Mulligan atrás do balcão. Mas a determi­nação que estava estampada em seu rosto era diferente da que Don já vira antes: era a própria negação do medo. — Essa era apenas a maneira como matavam vampiros e lobisomens antiga­mente. . . melhor dizendo, o que julgavam ser vampiros e lobi­somens. Poderiam ter usado qualquer coisa. — Olhou para Don, numa atitude de desafio. — Não é assim que pensa também?

—  É, sim. — Don não acrescentou que uma coisa era formular uma teoria numa sala confortável e segura, outra muito, diferente era apostar a própria vida nessa teoria.

—  Estou convencido de que é assim — declarou Peter, empunhando a faca, com a lâmina para cima, tão tensamente que Don pôde perceber os músculos enrijecidos ao longo do seu braço. — Sei que eles estão lá dentro. Vamos entrar.

Ricky falou nesse momento, dizendo simplesmente o que era óbvio:

—  Não temos alternativa.

Don ergueu o machado, mantendo-o à altura do peito, e entrou no auditório. Peter e Ricky seguiram-no.

 

Ele comprimiu-se contra a parede, no cinema às escuras, descobrindo que jamais cogitara da possibilidade de o filme estar sendo projetado. Vultos gigantescos se deslocavam pela tela, gritando e se agitando. Os Bate deviam ter matado Clark Mulli­gan menos de uma hora antes da chegada dos três. Clark pusera o rolo no projetor e iniciara a projeção, como fazia todos os dias, durante as tempestades. Descera em seguida, para encon­trar Gregory e Fenny à sua espera no saguão. Don foi avançando de lado, pela parede dos fundos, esquadrinhando as poltronas à sua frente, à procura de qualquer movimento.

À medida que os olhos iam se ajustando à escuridão, Don podia avistar apenas os encostos arredondados dos assentos que se estendiam à sua frente. A lâmina pesada do machado estava comprimida contra seu peito. A trilha sonora do filme enchia sua cabeça de gritos, e rodava para um cinema vazio. De todos os espetáculos que o inimigo já havia armado, Don ficou con­vencido de que aquele era certamente o mais estranho, com o horror na tela, o turbilhão de vozes se estendendo pela escuridão por todos aqueles lugares vazios. Olhou para o lado, na direção de Peter Barnes; mesmo no escuro, pôde divisar a determinação do rosto dele. Apontou para o corredor na outra extremidade. Depois inclinou-se para a frente, a fim de ver Ricky, que era apenas uma sombra encostada na parede, apontando para o cor­redor central. Peter imediatamente deslocou-se para o outro lado do cinema. Ricky encaminhou-se mais lentamente para o corredor central, verificando as posições de Peter e Don antes de inclinar-se para verificar se Gregory e Fenny não estavam escondidos na última fila. Depois, todos foram avançando ao mesmo tempo, verificando cuidadosamente cada fila.

“E se Ricky os encontrar?”, pensou Don. “Será que con­seguiremos chegar a tempo de salvá-lo? Ele é o mais exposto, ali no corredor central.”

Mas Ricky, empunhando a faca ao lado do corpo, con­tinuava a avançar pelo corredor central, verificando as filas nos dois lados calmamente, como se estivesse à procura de um in­gresso perdido... e mostrando-se tão meticuloso quanto fora na casa de Anna Mostyn.

Don avançava junto com os outros dois, empenhando-se em ver na escuridão entre as filas. Havia caixas de balas, papéis rasgados, o que parecia ser os restos de todo um inverno, entre as filas de poltronas, algumas rasgadas, outras remendadas, umas poucas com os braços quebrados... e, no meio de cada fila, um poço de escuridão que parecia querer sugá-lo. Acima dele, à frente, o filme desfilava uma sucessão de imagens que Don via como cenas desconexas sempre que levantava os olhos do chão do cinema. Cadáveres levantavam-se das sepulturas, carros derrapavam perigosamente em esquinas, um rosto apavo­rado de mulher... Don olhou para a tela e teve a impressão de estar vendo a si mesmo, filmado no porão da casa de Anna Mostyn.

Mas claro que não era isso, não podia ser isso, era apenas uma parte do filme sendo projetada, um homem diferente, num porão diferente. A família do filme se barricara num porão e a trilha sonora trovejou com o estrondo de portas sendo fecha­das. “Talvez seja assim que se possa combatê-los, simplesmente se metendo num buraco qualquer e esperando que desapare­çam... escondendo-se e fechando os olhos, na esperança de que agarrem seu irmão, seu amigo, qualquer pessoa, antes de você...”, e havia sido justamente isso que eles haviam feito, pensou Don abruptamente. Ele olhou para as filas e viu as pol­tronas ocupadas pelas vítimas de Gregory. Descobriu que Peter e Ricky o fitavam curiosamente. Ele estava duas filas atrasado. Don abaixou-se novamente, descobriu-se a olhar para um saco de pipoca amassado e, constrangido, adiantou-se rapidamente, para ficar alinhado com os companheiros.

 

Ao chegarem à primeira fila, sem encontrar coisa alguma, Don e Peter encaminharam-se para o corredor central, a fim de se juntarem a Ricky.

—  Nada — disse Don.

—  Mas eles estão aqui — murmurou Peter. — Só podem estar.

—  Ainda resta a cabine de projeção e os banheiros — disse Don. — E Mulligan devia ter alguma sala que usava como escritório.

Na tela, uma porta bateu: era o ruído de vida isolada, jun­tamente com a morte.

—  Talvez estejam no balcão — comentou Peter, olhando para a tela. — E o que há por trás da tela? Como se pode chegar até lá?

Outra porta bateu, vozes inumanas saíram pelos alto-falantes, combinando com a escalada de emoções intensas das personagens em cena. Depois, a porta se abriu com um estalido, o som produzido quando uma barra de metal comprida solta uma tranca. No instante seguinte, a porta voltou a se fechar.

—  É claro que é lá que eles... — No meio da frase, Ricky descobriu que os outros dois não lhe estavam prestando atenção. É que haviam reconhecido o som e estavam olhando para a entrada de um túnel escuro, à direita da tela. Por cima, podia-se ver uma placa em que estava escrito “saída”.

A trilha sonora estrondeava em torno deles, acompanhan­do os vultos gigantescos que apresentavam uma pantomima ro­mântica no ritmo da música, mas o que eles estavam realmente ouvindo era um ruído ligeiro e seco que se aproximava pelo corredor da saída, cada vez mais próximo da luz, um ruído pare­cido com palmas. Era o som de pés descalços.

Uma criança apareceu ao final do corredor e parou à beira da luz. Olhou para eles. Era uma aparição saída diretamente de algum estudo da pobreza rural nos anos 30, um menino peque­no, com as costelas à mostra, um rosto sujo e espectral, que jamais seria invadido por pensamentos. Ficou parado na semi-escuridão, uma baba se formando no lábio inferior. O menino ergueu os braços, estendendo as mãos à sua frente e fazendo o gesto de levantar e baixar uma barra de ferro. Depois, incli­nou a cabeça para trás e soltou uma risadinha, antes de tornar a fazer o gesto de fechar a tranca de uma porta.

—  Meu irmão está querendo informar que as portas estão trancadas — disse uma voz acima deles. Os três se viraram bruscamente, Don levantando o machado. Depararam com Gre­gory Bate, parado no palco, ao lado da cortina vermelha que flanqueava a tela. — Mas três aventureiros tão bravos não vão incomodar-se com isso, não é mesmo? Não foi o que vieram procurar aqui? Especialmente o Sr. Wanderley... que veio lá da Califórnia só para esse encontro. Fenny e eu lamentamos não termos sido devidamente apresentados. — Deslocou-se para o centro do palco, o filme passando a se projetar em seu corpo. — Estão realmente pensando que nos podem causar algum mal com essas armas medievais? Ora, senhores.

Gregory Bate abriu os braços, os olhos brilhando inten­samente. Por todo o seu corpo estavam projetadas formas gigantescas, uma mão aberta, um abajur caindo, uma porta estilhaçada. E por baixo da projeção, Don percebeu o que Bate já demonstrara para Peter Barnes: a dicção meticulosa e o com­portamento teatral não passavam de um verniz ilusório sobre uma terrível concentração, uma determinação tão implacável quanto a de uma máquina. Bate continuou parado no centro do palco, sorrindo. A voz parecia a de um deus convocando a luz quando disse:

—  Agora!

Don pulou para o lado, ouvindo alguma coisa passar zu­nindo por ele. Viu o corpo pequeno de Fenny arremessar-se contra Peter Barnes. Nenhum deles vira o menino se mexer; agora, Fenny já estava em cima de Peter, forçando os braços do rapaz contra o chão do cinema, rosnando. A faca foi jogada para o lado, tornando-se inofensiva. Fenny se contorcia por cima de Peter, soltando guinchos que se perdiam em meio aos gritos que saíam pelos alto-falantes.

Don ergueu o machado e sentiu uma mão forte a segurar-lhe o pulso. (“Não quer ser imortal?”, foi o sussurro que surgiu em sua cabeça.)

—  Não gostaria de viver para sempre? — disse Gregory Bate no ouvido dele, soprando um bafo fétido por todo o rosto de Don. — Mesmo que para isso tenha de morrer primeiro? No final das contas, é o que se poderia chamar de uma barganha cristã.

A mão obrigou-o a girar com a maior facilidade. Don sentiu as suas forças se exaurindo. Era como se a mão em seu pulso estivesse puxando sua energia, como um ímã. A outra mão de Bate segurou-lhe o queixo e levantou-o, obrigando Don a fitá-lo nos olhos. Don recordou-se do relato de Peter sobre a morte de Jim Hardie, como Bate sugara-lhe todas as forças através dos olhos. Mas era impossível não olhar. Seus pés pareciam flutuar, as pernas eram como água no fundo daquele dourado reluzente, no qual parecia haver uma sabedoria ampla e profunda, embora houvesse por baixo uma brutalidade total, uma violência incon­trolável, um vento frio e letal de inverno soprando pela floresta.

—  Olhe isso, seu desgraçado!

Para Don, a voz de Ricky parecia soar muito vaga e dis­tante. No momento seguinte, a atenção de Bate desviou-se dele e suas pernas pareceram encher-se de areia. O lado da cabeça do lobisomem passou diante de seu rosto tão lentamente quanto um sonho. Algo estava fazendo um barulho assustador. O perfil de Bate terminou de passar diante de Don, à pele de mármore, a orelha tão perfeita quanto a de uma estátua. Bate empurrou-o para longe.

—  Está vendo, seu miserável? — gritou Ricky.

Don, caído sobre o machado (“para que serve isso?”), meio espremido por trás de uma das poltronas da primeira fila, levantou os olhos, meio enevoados, e avistou Ricky Hawthorne golpeando a nuca de Fenny.

—  Mau... não... — murmurou ele, sem saber direito se tudo aquilo não era simplesmente parte da cena que se desen­rolava acima deles, vendo Gregory derrubar o velho em cima do corpo imóvel de Peter Barnes.

 

—  Não há necessidade de criar dificuldades, não é mesmo, Sra. Hawthorne? — disse o homem, sempre segurando os cabe­los de Stella. — Está me entendendo, não é mesmo?

Ele deu um puxão vigoroso nos cabelos de Stella. Sentindo uma dor intensa, ela assentiu.                                                   

—  E entendeu o que eu disse antes? Não há a menor ne­cessidade  de  ir  à  Montgomery Street... absolutamente ne­nhuma necessidade. Seu marido não está mais lá. Não encontrou o que estava procurando e por isso seguiu para outro lugar.

—  Quem é você?

—  Um amigo de uma amiga. Um bom amigo de uma boa amiga. — Ainda segurando os cabelos de Stella, o homem in­clinou-se sobre o volante para acionar a mudança automática, avançando lentamente com o carro. — E minha amiga está ansiosa para conhecê-la.

—  Largue-me! — gritou Stella.

O homem puxou-a em sua direção.

— Já chega, Sra. Hawthorne. Terá momentos emocionan­tes pela frente. Portanto... já chega! Não tente resistir. Ou a matarei aqui mesmo. O que seria um terrível desperdício. Ago­ra, quero que me prometa que ficará quieta. Vamos simplesmente até o Hollow. Está combinado? Vai ficar quieta?

Stella, aterrorizada e temendo que o punhado de cabelos fosse arrancado de sua cabeça, murmurou:

—  Está bem...

— Uma decisão das mais inteligentes. — O homem largou os cabelos e comprimiu a mão contra o lado da cabeça de Stella. — É uma mulher muito bonita, Stella.

Ela recuou, ao contato dele.

—  Vai ficar quietinha?

—  Vou.

O homem continuou a avançar vagarosamente na direção da escola secundária. Stella olhou para trás, pela janela traseira, não avistou qualquer outro carro. O seu Volvo estava trepado na cerca, ficando cada vez menor lá atrás.

—  Você vai me matar — murmurou Stella.

— Não... a menos que me obrigue a isso, Sra. Haw­thorne. Sou bastante religioso na minha vida atual. Detestaria ter que tirar uma vida humana. Afinal, nós somos pacifistas.

— Nós?

O homem contraiu os lábios, num sorriso irônico, ges­ticulando para o banco traseiro. Stella virou a cabeça para olhar e viu dezenas de exemplares do folheto The watchtower.

—  Então sua amiga é que vai matar-me. Como fez com Sears, Lewis e os outros.

—  Não será bem assim, Sra. Hawthorne. Ou melhor, tal­vez seja um pouco como aconteceu ao Sr. Benedikt. Foi o único caso de que nossa amiga tratou pessoalmente. Mas posso garantir que o Sr. Benedikt testemunhou muitas coisas excepcionais e interessantes antes de falecer.

Estavam passando nesse momento pela escola e Stella ouviu um ruído estridente e familiar, demorando alguns segundos para reconhecê-lo; olhou freneticamente pela janela e avistou o removedor de neve municipal, avançando contra uma pilha de neve de três metros de altura.

—  Na verdade, creio que se pode dizer que o Sr. Benedikt teve o melhor momento de sua vida — continuou o homem. — Posso assegurar-lhe que terá uma experiência que muitos inve­jariam... Vai conhecer pessoalmente um mistério, Sra. Hawthorne, um mistério que perdura há séculos em sua cultura. Alguns diriam que vale a pena morrer por isso. Especialmente porque a alternativa é morrer bruscamente, aqui mesmo.

Agora, até mesmo o removedor de neve estava um quartei­rão para trás. A rua desobstruída seguinte, a Harding Lane, esta­va a seis ou sete metros à frente. Stella viu-se sendo levada para longe da segurança representada por Leon e seu removedor de neve, a caminho de um perigo terrível, inteiramente passiva nas mãos daquele maníaco testemunha-de-jeová.

—  Para ser franco, Sra. Hawthorne, já que está cooperan­do com tanta boa vontade...

Stella chutou-o com toda a força, sentindo a ponta da bota entrar solidamente em contato com o tornozelo do homem. Ele soltou um grito de dor e virou-se para ela. Stella jogou-se para o lado, interpondo seu corpo entre o homem e o volante, for­çando o carro na direção do monte de neve deixado pelo trator, enquanto ele lhe golpeava a cabeça.

Bastava agora que Leon olhasse para aquele lado, pensou Stella, rezando desesperadamente para que isso acontecesse. Mas o carro chocou-se contra a neve quase silenciosamente.

O homem empurrou-a para longe do volante, comprimin­do-a de costas contra a porta, as pernas de Stella se contorcendo dolorosamente. Ela ergueu as mãos, procurando atingir-lhe o rosto. Mas o homem pôs todo o peso de seu corpo em cima dela, afastando-lhe as mãos. “Fique quieta!”, gritou o homem na mente de Stella, que quase perdeu a consciência. “Estúpida, mulher estúpida!”

Ela arregalou os olhos e fitou o rosto por cima do seu, balofo por excesso de carne, poros pretos bem abertos no nariz grosso, o suor na testa, olhos suaves e injetados. Era o rosto de um homenzinho afetado, que diria aos caronas que era contra seus princípios apanhá-los. Estava batendo no lado da cabeça de Stella e cada golpe liberava uma chuva de saliva sobre ela. “Mulher estúpida!”

Grunhindo, o homem avançou um joelho por entre as per­nas de Stella e inclinou-se para a frente, pondo-lhe as mãos na garganta.

Stella golpeou-o nos lados e depois conseguiu enfiar a mão por baixo do queixo dele. Não era suficiente. Ele continuou a apertar-lhe a garganta, a voz na mente dela repetindo “estúpida estúpida estúpida!”

Subitamente, Stella se lembrou.

Baixou as mãos, tateou a lapela do casaco com a mão direi­ta, encontrou a pérola do alfinete de chapéu. Usou toda a força de seu braço direito para enfiar o alfinete na têmpora do homem.

Os olhos suaves ficaram esbugalhados, a palavra monoto­namente repetida na mente dela tornou-se um balbuciar de vozes atônitas. “O que o que (ela) não isso (imprecação) mulher que...” As mãos do homem na garganta de Stella se afrouxa­ram, o corpo por cima dela ficou inerte.

Só então Stella pôde gritar.

 

Ela teve que se esforçar ao máximo para abrir a porta e caiu de costas para fora do carro. Por um momento, depois que rolou para o lado, ficou imóvel no chão, ofegante, sentindo o gosto de sangue em sua boca misturar-se com neve suja. Le­vantou-se com dificuldade, vendo a cabeça calva do homem pendendo para o lado do banco.

Stella virou-se e saiu correndo pela School Road, na dire­ção de Leon Churchill, que estava agora de pé ao lado do trator, olhando para algo escuro que evidentemente acabara de desco­brir. Ela gritou o primeiro nome dele, diminuiu a velocidade, passando a andar. O assistente do xerife virou-se em sua dire­ção e ficou observando-a aproximar-se.

Depois de um momento, Leon olhou novamente para a coisa escura na neve e então avançou na direção de Stella. Ela estava perturbada demais para perceber que o assistente do xerife parecia tão chocado quanto ela. Ao alcançá-la, Leon obri­gou-a a virar-se, murmurando:

—  Sra. Hawthorne, não vai querer olhar para... Mas o que aconteceu? Sofreu algum acidente, Sra. Hawthorne?

—  Acabei de matar um homem. Peguei uma carona no carro dele e o homem tentou atacar-me. E eu o matei.

—  Ele tentou atacá-la? Ah... — Leon olhou novamente para seu trator e depois concentrou-se no rosto de Stella. — Vamos dar uma olhada. Foi ali que aconteceu?  — Apontou para o carro azul. — Parece que foi um acidente.

Enquanto se encaminhavam para o carro, Stella procurou explicar:

—  Sofri um acidente com meu carro, ele parou para me dar uma carona e depois tentou atacar-me. Chegou a me ma­chucar. Eu tinha um alfinete de chapéu comprido...

—  Seja como for, pelo menos você não o matou — disse Leon, fitando-a com uma expressão quase indulgente.

—  Não me olhe com esse ar condescendente!

—  Ele não está no carro.

Leon pôs as mãos nos ombros de Stella e virou-a para que olhasse pela porta aberta para o banco vazio. Stella quase des­maiou. Leon amparou-a, tentando explicar o que havia acon­tecido:

— Provavelmente,  ficou chocada demais depois do aci­dente. O cara que lhe deu a carona foi buscar ajuda. Talvez você tenha até desmaiado por um momento. Deve ter levado uma pancada forte quando o carro saiu da rua. Não quer que eu a leve para casa no trator, Sra. Hawthorne?

—  Ele não está no carro... — murmurou Stella.

Um imenso cachorro branco pulou em cima do monte de neve no quintal da frente de uma das casas vizinhas, andou um pouco e depois pulou para a rua, numa chuva de neve.

—  Por favor, Leon, leve-me para casa.

Leon olhou para a escola, quase que ansiosamente.

—  Está certo. De qualquer forma, tenho mesmo que vol­tar para o escritório agora. Fique esperando aqui e voltarei com o trator em cinco segundos.

—  Está bem.

—  Não é lá essas coisas como veículo — comentou Leon, sorrindo.

 

—  E agora, Sr. Wanderley, vamos voltar ao assunto que estávamos discutindo — disse Bate, começando a avançar pêlo corredor por entre as poltronas na direção de Don.

Gritos, gemidos, o ruído de água correndo se espalharam pelo cinema.

“...viver para sempre”

“...viver para sempre”

Don esticou as pernas, olhando atordoado para a pilha de corpos por baixo dos degraus que davam para o palco. O rosto branco do velho estava todo contorcido, virado em sua direção, por cima do corpo de um menino descalço. Peter Barnes estava no fundo da pilha, mexendo debilmente as mãos.

— Deveríamos ter resolvido tudo há dois anos — mur­murou Bate. — Se o tivéssemos feito, muitas dificuldades seriam evitadas. Lembra-se do que aconteceu há dois anos, não é mesmo?

Don ouviu Alma Mobley dizendo “O nome dele é Greg. Nós nos conhecemos em Nova Orleans”. Recordou-se tão niti­damente de um momento que era como se o estivesse vivendo novamente: ele parado numa esquina em Berkeley e olhando aturdido para uma mulher nas sombras, ao lado de um bar chamado The Last Reef. Uma terrível sensação de traição im­pedia-o inteiramente de se mexer.

—  Tanta dificuldade, Sr. Wanderley...   Mas não acha que isso contribuiu para tornar este momento ainda melhor?

Peter Barnes, sangrando de um ferimento no rosto, des­vencilhou metade do corpo de baixo da pilha humana.

—  Alma... — Don conseguiu balbuciar.

O rosto de marfim de Bate brilhou por um instante.

—  Isso mesmo, a sua Alma. E a Alma de seu irmão. Não devemos esquecer David. Embora ele não fosse nem de longe tão divertido quanto você.

—  Divertido?

—  Isso mesmo. Nós gostamos de algum divertimento. Mas só o melhor, já que temos diversão demais à nossa dispo­sição. E agora olhe novamente para meus olhos, Donald.

Ele se abaixou para agarrar Don e fazê-lo levantar-se, sorrindo friamente. Peter grunhiu, livrando-se finalmente da pilha humana. Don olhou na direção dele, os olhos meio tur­vados, percebendo que Fenny também estava se mexendo, ro­lando para o lado, o rosto encovado exibindo um grito si­lencioso.

—  Eles machucaram Fenny — disse Don, piscando os olhos.

A mão de Bate se estendeu lentamente em sua direção. Ele jogou as pernas para a frente e desvencilhou-se de Bate, movendo-se mais depressa do que em qualquer outra ocasião anterior de sua vida. Ergueu-se, entre Gregory e Peter, que estava...

“...viver para sempre... “

...olhando para o vulto de Fenny Bate a se contorcer.

—  Eles machucaram Fenny — repetiu Don.

O significado da agonia de Fenny percorreu-lhe a mente como se fosse uma corrente elétrica. Os sons gigantescos do filme ressoavam em seus ouvidos.

—  Você não vai — disse ele a Bate, olhando por baixo das poltronas e verificando que o machado estava além do seu alcance.

—  Não?

—  Não vai viver para sempre.

—  Vivemos muito mais tempo do que você. — O verniz de civilização da voz de Bate se rachara, deixando à mostra a violência que havia por baixo. Don recuou na direção de Peter, olhando não para os olhos de Bate, mas sim para a boca.

— E você não vai viver mais outro minuto — murmurou Bate, dando um passo à frente.

—  Peter... — disse Don, virando a cabeça para trás, a fim de olhar o rapaz. Peter estava segurando a faca Bowie sobre o corpo a se contorcer de Fenny. — Agora! — gritou.

Peter cravou a faca no peito do menino. Algo branco e fétido explodiu para cima, um gêiser em erupção saindo da caixa toráxica de Fenny.

Gregory Bate lançou-se na direção de Peter, uivando e derrubando Don selvagemente sobre as primeiras filas.

 

A princípio, Ricky Hawthorne pensou que estivesse mor­to. A dor em suas costas era tão intensa e terrível que ele pensou que somente a morte ou a agonia da morte poderia explicá-la. Em seguida, viu o tapete gasto por baixo de seu rosto; e depois ouviu o grito de Don. Portanto, estava vivo. A última coisa de que podia recordar-se era de ter aberto um talho com sua faca na nuca de Fenny Bate. E no instante se­guinte um trator passara por cima dele.

Algo a seu lado se mexeu. Quando levantou a cabeça para verificar o que era, o peito nu de Fenny pulou um metro no ar, parecendo ter dois metros de comprimento. Pequenos vermes deslizavam sobre a pele branca. Ricky recuou instintivamente. Embora suas costas doessem como se estivessem quebradas, fez um tremendo esforço para sentar-se.

A seu lado, Gregory Bate estava levantando Peter Barnes do chão, uivando como se seu peito fosse uma caverna percor­rida por ventos impetuosos. Uma parte do facho do projetor pegou os braços de Gregory e o corpo de Peter, manchas pretas e brancas deslocaram-se por um segundo. Ainda uivando, Bate jogou Peter contra a tela.

Ricky não conseguiu avistar sua faca e ficou de joelhos para tatear o chão ao redor à sua procura. Os dedos encontra­ram um cabo de osso, uma lâmina comprida refletiu uma linha de luz difusa. Fenny se debateu ao lado dele, rolando para o lado e soltando um grito débil, o ar morto a lhe escapar do corpo. Ricky arrancou a faca de sob o corpo de Fenny, sentindo a mão sair toda molhada. Com extrema dificuldade, conseguiu levantar-se.

Gregory Bate estava se preparando para subir no palco, a fim de ir atrás de Peter, através do rasgão na tela. Ricky esten­deu a mão livre e segurou a japona dele pela gola. Bate ficou subitamente rígido, os reflexos tão bons e rápidos quanto os de um gato. Aterrorizado, Ricky compreendeu subitamente que Bate iria matá-lo, virando-se para destruí-lo implacavelmente com as mãos e os dentes, se não fizesse imediatamente a única coisa que lhe era possível.

Antes que Bate pudesse mexer-se, Ricky cravou a faca Bowie em suas costas.

O advogado já não conseguia ouvir mais nada, nem os ruídos da trilha sonora do filme, nem o grito que deveria ter escapado dos lábios de Bate. Ficou inteiramente imóvel, parali­sado e ensurdecido pela enormidade do que fizera. Bate caiu para trás, virando-se para mostrar a Ricky Hawthorne um rosto que ele jamais iria esquecer, os olhos repletos de vento e nevas­ca, a boca preta tão escancarada quanto uma caverna.

— Porcaria... — murmurou Ricky, quase soluçando.

Bate caiu em cima dele.

 

Don passou por cima das poltronas, empunhando o ma­chado, numa pressa desesperada de alcançar Bate, antes que ele pudesse abrir a garganta de Ricky com os dentes. Depois, avistou o corpo musculoso caído e Ricky, ofegante, saindo de baixo dele. Bate rolou para a frente do palco, conseguiu ficar de joelhos, um fluido escorrendo de sua boca.

— Afaste-se, Ricky! — gritou Don.

Mas o velho advogado estava incapacitado de se mexer. Bate começou a engatinhar na direção dele.

Don foi postar-se ao lado de Ricky; Bate inclinou a cabeça para trás e fitou-o nos olhos.

“...viver para sempre”

Don ergueu apressadamente o machado por cima da cabeça e depois baixou a lâmina afiada no pescoço de Bate, cortando fundo. Com o golpe seguinte, ele separou a cabeça do corpo.

 

Peter Barnes rastejou de volta através do rasgão na tela, aturdido pela dor e ofuscado pelo foco do projetor em seus olhos. Avançou lentamente pelos poucos metros de assoalho de madeira até a beira do palco, ouvindo uma confusão de vozes estridentes e frenéticas, pensando que poderia alcançar a faca Bowie antes que Gregory Bate o visse, o que lhe permitiria salvar pelo menos Don. Sabia que Ricky fora morto pelo primeiro golpe, pois vira sua força terrível. No instante seguinte, o foco do projetor deslocou-se de seu rosto e ele viu o que Don estava fazendo. Gregory Bate, sem cabeça, contorcia-se sob os golpes do machado; ali perto, Fenny rolava impotente de um lado para outro, coberto por uma polpa branca que se mexia.

—  Deixe-me acabar... — murmurou Peter.

Ricky e Don viraram a cabeça, os rostos extremamente pálidos, para fitá-lo. Peter desceu para a platéia do cinema e aproximou-se deles. Tirou o machado das mãos de Don e desfe­riu o golpe, a histeria e a repugnância que o dominavam fazen­do-o errar. No instante seguinte, porém, sentiu-se mais forte, tão forte quanto um lenhador, invadido por uma luz intensa. Levantou o machado sem o menor esforço, toda a dor desapare­cendo, golpeando repetidas vezes. Depois, foi cuidar de Fenny.

Quando eles eram apenas farrapos de pele e fragmentos de ossos quebrados, uma brisa saiu dos corpos destruídos, subindo pelo facho de luz que vinha do projetor e passando por Peter com tanto ímpeto que o jogou para o lado.

Depois, Peter abaixou-se e pegou a faca Bowie.

—  Santo Deus... — balbuciou Ricky, cambaleando até uma poltrona.

 

Don e Peter praticamente tiveram de carregar Ricky Haw­thorne para casa, através da tempestade de neve. Agora, eram dois os convalescentes na casa dos Hawthorne. Peter ligou para o pai e informou-o:

—  Vou ficar com os Hawthorne, papai. Estou preso aqui na casa deles. Don Wanderley e eu tivemos praticamente que trazer o Sr. Hawthorne para casa numa maca. Ele está de cama, assim como a esposa, que está passando mal depois de um pe­queno acidente com seu carro...

—  Haverá muitos acidentes nas ruas esta tarde — comen­tou Walter Barnes.

— Conseguimos chamar um médico, que deu um sedativo à Sra. Hawthorne. O médico disse que o Sr. Hawthorne está com um resfriado terrível, que pode facilmente transformar-se em pneumonia, se ele não ficar em repouso absoluto. Por isso, Don Wanderley e eu vamos ficar cuidando dos dois.

—  Deixe-me ver se entendi direito, Peter. Você estava com esse Wanderley e o Sr. Hawthorne?

—  Isso mesmo.

— Eu gostaria que me tivesse telefonado antes. Fiquei terrivelmente preocupado. Afinal, você é tudo o que tenho agora.

—  Desculpe, papai.

—  Pelo menos está em companhia de pessoas decentes. Procure voltar para casa assim que puder. Mas também não se exponha a nenhum risco desnecessário na tempestade.

—  Está bem, papai.

Peter desligou, satisfeito porque o pai parecia estar sóbrio e ainda mais satisfeito porque não fizera perguntas que ele não poderia responder.

Ele e Don fizeram uma sopa para Ricky, levando-a para o quarto de hóspedes, onde o velho advogado estava descansando, enquanto a esposa dormia sozinha no quarto do casal.

—  Não sei o que aconteceu comigo — comentou Ricky. —  Simplesmente fiquei incapaz de dar mais um passo sequer. Se eu estivesse sozinho, teria morrido de pavor no cinema.

—  Se qualquer um de nós estivesse lá sozinho... — Don não precisava acabar a frase.

—  Ou se estivéssemos apenas dois — acrescentou Peter. —  Estaríamos mortos. Ele nos poderia matar com a maior facilidade.

—  Mas acontece que não matou — disse Ricky, brusca­mente. — Don estava certo em relação a eles. E, agora, dois terços do que precisamos fazer já estão realizados.

—  Ou seja, só resta agora encontrá-la — disse Peter. — Acha que será possível?

—  Pode estar certo de que conseguiremos descobri-la, de qualquer maneira — disse Don. — Stella talvez nos possa con­tar alguma coisa. Pode ter sabido de alguma coisa... ouvido alguma coisa. Creio que não resta a menor dúvida de que o homem no carro azul era o mesmo que o perseguiu, Peter. Poderemos conversar com ela esta noite.

—  E isso irá adiantar alguma coisa? — indagou Peter. — Estamos novamente isolados pela neve. Não conseguiremos ir de carro a parte alguma, mesmo que a Sra. Hawthorne saiba de qualquer coisa.

— Se não pudermos ir de carro, iremos a pé —- declarou Don.

— É mesmo — murmurou Ricky. — Se for necessário, iremos a pé. — O velho recostou-se nos travesseiros. — Afi­nal, nos três somos agora a Sociedade Chowder. Depois que encontraram o corpo de Sears, pensei... cheguei a dizer que era o único, que restava. Fiquei terrivelmente desolado. Sears era o meu melhor amigo, era como um irmão. E sentirei muita sau­dade dele enquanto viver. Mas tenho certeza de que, quando Gregory Bate encurralou Sears, ele resistiu bravamente até o fim. Há muitos e muitos anos, empenhou-se ao máximo para salvar Fenny. E sei que novamente se empenhou ao máximo quando sua vez chegou. Por isso, não há motivo para me sentir angustiado em relação a Sears. Provavelmente, ele se saiu me­lhor do que qualquer um de nós teria conseguido sozinho.

Ricky pôs a tigela de sopa na mesinha-de-cabeceira, antes de acrescentar:

—  Mas agora existe uma nova Sociedade Chowder e aqui estamos todos. É verdade que não há uísque, não há charutos, não estamos devidamente trajados... E olhem só para mim! Nem mesmo estou usando uma gravata-borboleta! — Passou a mão pela gola aberta do pijama, sorrindo. — E posso dizer-lhes mais uma coisa: não haverá mais histórias terríveis nem pesadelos. Graças a Deus!

—  Não tenho tanta certeza assim em relação aos pesadelos — disse Peter.

 

Depois que Peter foi para seu quarto, a fim de tentar dor­mir por uma hora, Ricky sentou-se na cama e fitou Don Wan­derley, através dos óculos, com uma expressão de absoluta franqueza:

—  Don, deve ter percebido, ao chegar aqui, que eu não gostei muito de você, não me agradava sua presença aqui. Até descobrir que era muito parecido com seu tio, sob certos aspec­tos, não lhe dei muito crédito pessoalmente. Mas não preciso dizer-lhe que tudo isso mudou, não é mesmo? Mas, ora essa, aqui estou eu falando sem parar! O que havia naquela injeção que o médico me aplicou, Don?

—  Uma dose gigantesca de vitaminas.

—  Já estou me sentindo muito melhor. Como se estivesse acelerado. É claro que ainda continuo com o tremendo resfria­do, mas já o tenho há tanto tempo que o sinto como se fosse um amigo. Peço que me escute com atenção, Don. Depois do que passamos juntos, eu não poderia deixar de me sentir muito chegado a você. Se Sears era como meu irmão, sinto que você é como meu filho. Mais chegado ainda do que meu filho, para dizer a verdade. Meu filho Robert não consegue conversar comi­go. .. e eu não consigo conversar com ele. Isso acontece desde que ele tinha catorze anos. Por isso, acho que vou adotá-lo espiritualmente, se não faz nenhuma objeção.

—  Eu me sinto orgulhoso demais para objetar — respon­deu Don, apertando a mão de Ricky.

—  Tem certeza de que havia apenas vitaminas naquela injeção?

—  Tenho.

—  Se é assim que o narcótico faz a gente se sentir, acho que posso compreender como John se tornou um viciado. — Ajeitou-se melhor na cama e fechou os olhos. — Quando tudo isso tiver acabado e presumindo que ainda estejamos vivos, vamos continuar em contato para sempre. Levarei Stella em uma viagem pela Europa e de lá lhe enviarei um monte de cartões-postais.

—  Claro, claro... — Don ia acrescentar alguma coisa, mas percebeu que Ricky já estava dormindo.

 

Pouco depois das dez horas, Peter e Don, que haviam comido lá embaixo, levaram um bife grelhado, uma salada e uma garrafa de vinho tinto para o quarto de Ricky. Outro pra­to na bandeja continha um segundo bife, para Stella. Don bateu na porta e ouviu Ricky dizer:

—  Entre.

E ele entrou, carregando a pesada bandeja. Stella Haw­thorne, os cabelos envoltos por um lenço, olhou para Don ao lado do marido, na cama do quarto de hóspedes.

—  Acordei há cerca de uma hora — disse ela. — Estava me sentindo muito sozinha e por isso vim ficar com Ricky. Isso é comida? Ah, mas vocês dois são maravilhosos!

Ela sorriu para Peter, que estava timidamente parado na porta. Ricky disse:

—  Enquanto vocês dois estavam lá embaixo, tive uma pequena conversa com Stella. — Pegou a bandeja e colocou-a no colo de Stella, apanhando em seguida um dos pratos. — Mas que luxo! Stella, acho que há muitos anos que já deveríamos ter contratado empregadas.

—  Creio que certa ocasião falei nisso, Ricky.

Embora ainda visivelmente abalada e exausta pelo choque, Stella melhorara consideravelmente depois que descansara. Não parecia agora uma mulher na casa dos quarenta anos, tal­vez nunca mais voltasse a parecer, mas seus olhos estavam desanuviados.

Ricky serviu o vinho para ambos e cortou um pedaço de carne, antes de falar:

—  Não resta a menor dúvida de que o homem que atacou Stella foi o mesmo que o perseguiu, Peter. Ele chegou mesmo a dizer a Stella que era um testemunha-de-jeová.

—  Mas ele estava morto! — exclamou Stella. Por um mo­mento, o choque voltou a estampar-se plenamente em seu rosto. Ela segurou a mão de Ricky, apertando-a com força. — Estava mesmo!

—  Sei disso. — Ricky tornou a virar-se para os outros dois. — Mas depois que Stella voltou com ajuda, o corpo havia desaparecido.

—  Podem fazer o favor de me contar o que está aconte­cendo? — pediu Stella, agora à beira das lágrimas.

—  Eu contarei, Stella — disse Ricky. — Mas não agora, pois ainda não terminamos. Explicarei tudo quando chegar o verão. Quando sairmos de Milburn.

—  Sairmos de Milburn?

—  Vou levá-la à França. Iremos a Antibes e a Saint-Tropez, a todos os lugares que nos atraírem. Seremos um casal de turistas velhos, de aparência divertida. Antes, porém, terá que nos ajudar. Está bem assim para você?

O espírito pragmático de Stella predominou mais uma vez.

—  Se isso é realmente uma promessa e não apenas uma tentativa de persuasão...

—  Viu alguma coisa nas proximidades do carro quando voltou com Leon Churchill? — perguntou Don.

—  Não havia ninguém por lá — respondeu Stella, já bem mais calma.

—  E não viu qualquer outra coisa diferente, inesperada?

—  Não me lembro. Eu me sentia tão... como se tudo aquilo fosse irreal. Mas não havia nada.

—  Tem certeza? Procure lembrar-se da cena. O carro, a porta aberta, o monte de neve em que bateram...

—  Ah, sim! — disse Stella. Ricky ficou imóvel, o garfo suspenso no ar, a caminho da boca. — Você tem razão. Havia mesmo uma coisa. Vi um cachorro. Mas que importância isso tem? Ele pulou para cima do monte de neve do quintal de algu­ma casa e depois saltou para a rua. Notei-o porque era um ca­chorro muito bonito. Todo branco.

—  É isso! — disse Don.

Peter Barnes olhou de Don para Ricky, a boca entreaberta.

—  Não quer tomar um pouco de vinho, Peter? — perguntou Ricky. — E você, Don?

Don sacudiu a cabeça, mas Peter disse:

—  Quero, sim, obrigado.

Ricky estendeu-lhe seu copo.

—  Pode recordar-se de tudo o que o homem disse, Stella?

—  Foi tudo tão horrível... Pensei que ele estava louco. E depois pensei que ele me conhecia, porque chamou-me pelo nome. E disse que eu não deveria ir à Montgomery Street por­que meu marido não estava mais lá. Aonde vocês foram, afinal?

—  Eu lhe contarei enquanto tomamos um pernod... na primavera — respondeu Ricky.

—  Não se lembra de mais nada? — indagou Don. — Ele disse para onde a estava levando?

— Ao encontro de uma amiga. — Stella estremeceu. — Disse que eu veria um mistério e falou de Lewis.

—  E não disse mais nada a respeito dessa tal amiga?

—  Não. Espere um instante... Não, não falou mais nada. — Stella baixou os olhos para o prato e empurrou a bandeja para o pé da cama. — Pobre Lewis! Já chega de perguntas, por favor...

— É melhor nos deixarem a sós agora — disse Ricky.

Peter e Don já estavam na porta, quando Stella disse abrup­tamente :

— Estou me lembrando agora! Ele disse que ia levar-me para o Hollow. Tenho certeza disso.

— Já chega por hoje, senhores — disse Ricky. — Volta­remos a conversar amanhã.

 

Pela manhã, Peter e Don ficaram surpresos ao encontrar Ricky Hawthorne já na cozinha, quando desceram. Ele estava preparando ovos mexidos, parando de vez em quando para assoar o nariz com lenços de papel, de uma caixa à mão.

—  Bom dia. Querem ajudar-me a pensar no Hollow?

—  Você deveria estar na cama — disse Don.

—  Uma ova que eu vou ficar na cama! Será que não pode perceber como estamos perto? Não pode sentir o cheiro da pista?

—  O único cheiro que eu sinto é o de ovos mexidos — disse Don. — Pegue alguns pratos no armário, Peter.

—  Quantas casas existem no Hollow? Cinqüenta? Ses­senta? Não mais do que isso. E ela está numa dessas casas!

—  À nossa espera — disse Don. Peter, pondo os pratos na mesa da cozinha dos Hawthorne, parou por um momento e depois colocou o último prato bem devagar. — E deve ter caído pelo menos meio metro de neve durante a noite. E continua a nevar. Não se pode dizer que seja uma nevasca tremenda, mas é perfeitamente possível que haja outra à tarde. Há um estado de emergência provocado pela neve na maior parte do Estado. Mesmo assim quer ir até o Hollow a pé e bater em cinqüenta ou sessenta portas?

— Não, não é isso o que estou querendo. Quero apenas que pensemos um pouco. — Ricky levou a frigideira com os ovos mexidos para a mesa, servindo uma porção em cada prato. — Vamos pôr algum pão na torradeira.

Depois que tudo estava pronto, torradas, suco de laranja e café, os dois sentaram-se para comer, acompanhando Ricky. Ele parecia estar vibrando, quase exultante, sentado à mesa da cozinha num robe azul. Era óbvio que estivera pensando bastan­te sobre o Hollow e Anna Mostyn.

—  É a única parte da cidade que não conhecemos bem — disse Ricky. — E é justamente por isso que ela foi para lá. Não quer que a encontremos por enquanto. Presumivelmente, já sabe que suas criaturas estão mortas. Sabe que seus planos fo­ram retardados. Vai querer reforços, mais criaturas como os Bate ou outros iguais a ela. Stella livrou-se do único outro que havia por aqui com o alfinete de chapéu.

—  Como sabe que ele era o único outro? — indagou

Peter.

—  Porque estou convencido de que já nos teríamos encon­trado com quaisquer outros, se por acaso estivessem por aqui.

Os três comeram em silêncio por algum tempo.

—  Por isso, acho que ela se esconde, provavelmente num prédio vazio, até a chegada de reforços. Não está nos esperando. Pensará que não podemos deslocar-nos com toda essa neve.

—  E estará louca para se vingar — comentou Don.

—  Mas pode também estar com medo.

Peter levantou a cabeça bruscamente.

—  Por que diz isso?

—  Porque ajudei a matá-la uma vez antes. E vou dizer mais uma coisa: se não a encontrarmos o mais depressa possível, tudo o que conseguimos até agora estará desperdiçado. Stella e nós três conseguimos ganhar algum tempo para toda a cidade, mas assim que o tráfego exterior puder chegar aqui...

Ricky mordeu um pedaço de torrada, antes de continuar:

—  As coisas podem tornar-se ainda piores do que antes. Ela não vai ser apenas vingativa, mas raivosa. Afinal, já frustramos seus planos por duas vezes. Assim, é melhor seguirmos com todas  as nossas forças para o Hollow. E  sem perder tempo.

—  O Hollow não era originalmente o lugar onde os cria­dos moravam, no tempo em que todo mundo tinha criados? — perguntou Peter.

—  Exatamente. Mas deve haver mais alguma coisa. Estou pensando no que ela disse na gravação de Don: “Nos lugares de seus sonhos”. Encontramos um desses lugares, mas deve haver outro, algum lugar para onde seríamos atraídos, se não tivéssemos encontrado Gregory e Fenny no Rialto. Mas não consigo lembrar-me...

—  Conhece alguém que mora no Hollow? — indagou Don.

—  Claro que conheço. Vivi nesta cidade por toda a minha vida. Mas não consigo perceber qualquer relação...

—  Como era o Hollow antigamente? — perguntou Peter.

—  Antigamente? No tempo em que eu era um menino? Era um lugar muito diferente...  muito mais agradável. Bem mais limpo do que é agora, para começar. Com um pouco de depravação. Costumávamos pensar no Hollow como o bairro boêmio da cidade. Havia um pintor que vivia em Milburn na­quele tempo. Ele fazia capas de revistas. Morava no Hollow. Tinha uma barba branca espetacular e usava uma pelerine. Pare­cia-se exatamente com os pintores da nossa imaginação. Costu­mávamos passar muito tempo por lá. Havia um bar, com uma pequena banda de jazz. Lewis gostava muito de freqüentá-lo. Podia-se até dançar. Era algo assim como o Humphrey’s Place, só que menor e mais agradável.

—  Uma banda? — murmurou Peter, ao mesmo tempo em que Don também levantava a cabeça.

—  Isso mesmo — disse Ricky, sem perceber o excitamen­to dos dois. — Era uma banda pequena, apenas uns seis ou sete músicos, mas muito boa, levando-se em consideração os conjun­tos que costumavam tocar por aqui... — Pegou os pratos e levou-os para a pia, abrindo a torneira de água quente. — Mil­burn era maravilhosa naquele tempo. Costumávamos andar por quilômetros e mais quilômetros, indo ao Hollow e voltando, ouvindo música, tomando algumas cervejas, fazendo excursões pelos campos... — Com os braços mergulhados na água cheia de espuma, Ricky ficou subitamente imóvel, antes de explodir: — Deus do céu! Eu sei! Eu sei! — Ainda segurando um prato cheio de sabão, virou-se para Peter e Don. — Era Edward! Costumávamos ir ao Hollow para visitar Edward. Foi para lá que ele se mudou quando quis ter seu próprio apartamento. Meu pai detestava... — Ricky largou o prato e deu um passo para o lado, sem ver os cacos espalhados. — O dono era um dos nossos primeiros clientes negros. E o prédio ainda está lá! O conselho municipal condenou-o na primavera passada e ele de­veria ser demolido este ano. Fomos nós, Sears e eu, que arruma­mos o apartamento para Edward. — Enxugou as mãos no robe. — É isso mesmo! Tenho certeza! O apartamento de Edward, “O lugar dos seus sonhos!”

—  Porque o  apartamento  de  Edward... —   começou Don, sabendo que o velho advogado estava certo.

Ricky completou a frase por ele:

—  Foi o lugar onde Eva Galli morreu e nossos sonhos começaram. Por Deus, temos que agarrá-la.

 

Vestiram-se com as roupas mais quentes que Ricky possuía, pondo diversas camadas de roupas de baixo e duas camisas. Os outros dois não podiam abotoar as camisas de Ricky, mas elas eram pelo menos mais duas camadas para aprisionar o calor de seus corpos. Cada um pôs dois pares de meias. Até mesmo Don conseguiu enfiar os pés num par de velhas botas de Ricky.

—  Temos que viver o bastante “para conseguir isso — co­mentou Ricky, abrindo uma caixa com velhos cachecóis de lã, sentindo-se satisfeito e grato por sua afeição às roupas velhas.

—  Vamos enrolar alguns desses cachecóis no rosto. Deve ser uma caminhada de pouco mais de um quilômetro daqui até o Hollow. É uma sorte que Milburn seja uma cidade pequena. Quando tínhamos todos vinte e poucos anos, costumávamos ir a pé desta parte da cidade até o apartamento de Edward e voltar pelo menos duas a três vezes por dia.

—  Quer dizer que tem certeza de que pode encontrar o lugar? — indagou Peter.

—  Certeza quase absoluta — respondeu Ricky. — E agora vamos ver como ficamos.

Pareciam três bonecos de neve, estofados com tantas ca­madas de roupas.

—  Ah, chapéu! Tenho uma porção deles! — Ricky ajustou um chapéu de pele na cabeça de Peter, pôs em sua própria cabeça um gorro vermelho de caçador que deveria ter pelo menos meio século de existência e depois disse a Don: — Este aqui sempre foi um pouco grande para mim. — Era um chapéu mole, de tweed, que se ajustou perfeitamente à cabeça de Don. — Comprei-o para pescar com John Jaffrey e só o usei uma vez. Sempre detestei pescarias.

A princípio, as roupas de Ricky mantiveram-nos aquecidos. Ao avançarem sob a neve ligeira que caía, numa claridade inten­sa, passaram por uns poucos homens que estavam desobstruindo as entradas de suas casas, removendo a neve com pás ou máqui­nas. Crianças em trajes coloridos de inverno brincavam nos montes de neve, manchas de cores no ofuscamento de sua cla­ridade. Fazia alguns graus abaixo de zero e o frio investia impiedosamente contra as partes expostas dos rostos deles, mas podiam passar por três homens normais em alguma missão convencional, como procurar crianças desgarradas ou alguma loja aberta.

Mas mesmo antes de o tempo mudar, já lhes era difícil a caminhada. Foram os pés que começaram a sentir o frio pri­meiro, as pernas logo se cansaram do esforço intenso de avan­çar pela neve alta. Não demoraram a renunciar ao luxo de falar, pois exigia energia demais. A respiração condensava-se nos grossos cachecóis de lã, a umidade ficava fria e congelava. Don sabia que a temperatura estava baixando ainda mais depressa do que ele previra, a neve caindo com uma intensidade cada vez maior. Podia sentir os dedos comichando dentro das luvas; até mesmo as pernas começaram a experimentar o frio intenso.

Em determinadas ocasiões, quando viravam uma esquina e deparavam com alguma rua oculta por um longo monte de neve, de até cinco metros de altura, Don pensava que os três se pareciam com fotografias de exploradores polares, homens con­denados a seguir sempre em frente, interminavelmente, os lá­bios arroxeados, a pele congelada, vultos pequenos numa pai­sagem branca que não tinha fim.

Na metade do caminho para o Hollow, Don teve certeza de que a temperatura já havia caído muitos e muitos graus abaixo de zero. Os cachecóis tinham se transformado numa máscara dura em seu rosto, envernizada pela respiração. O frio afetava intensamente as mãos e os pés. Peter, Ricky e ele estavam agora atravessando a praça, erguendo os pés da neve profunda e inclinando o corpo para a frente a fim de cobrir a maior distância possível a cada passo. A árvore de Natal que o prefeito e os assistentes do xerife haviam armado na praça era visível apenas como alguns galhos verdes dispersos, saindo de uma montanha de neve. Desobstruindo a Main Street e a Wheat Row, Omar Norris acabara por enterrá-la.

Quando chegaram aos sinais de trânsito, a claridade intensa já desaparecera do ar e a neve acumulada não mais cintilava, parecendo tão cinzenta quanto o próprio ar. Don olhou para cima e avistou incontáveis flocos de neve turbilhonando por entre as nuvens escuras. Estavam agora sozinhos. Na Main Street as capotas de alguns carros pareciam pires colocados ao contrário nos montes de neve. Todos os prédios estavam fecha­dos. A neve que caía girava em torno deles, o céu escurecia rapidamente, estava quase preto.

—  E então, Ricky? — indagou Don, sentindo o gosto da lã congelada, sentindo arder-lhe as faces expostas ao ar.

—  Falta pouco — balbuciou Ricky. — Vamos continuar. Conseguirei chegar lá.

—  Como está indo, Peter?

O rapaz espiou Don por baixo do gorro coberto de neve e murmurou:

—  Ouviu o que o chefe disse. Vamos continuar.

 

A princípio, a nova queda de neve veio inofensivamente, não mais um obstáculo como a anterior, que haviam enfrentado no início da jornada. Mas depois de percorrerem mais três quarteirões, sob um vento que aumentava de intensidade a cada instante, os pés de Don pareciam dois blocos de gelo presos dolorosamente aos tornozelos. Não restava agora a menor dú­vida de que estavam passando por outra tempestade de neve, não caindo verticalmente ou rodopiando lindamente, mas des­cendo em diagonal, a intervalos, como ondas sucessivas. E ardia onde acertava. Sempre que chegavam ao final de um dos mon­tes de neve, eram atingidos diretamente, a neve soprada pelo vento indo acertar em cheio seus peitos e rostos.

Ricky caiu para trás e ficou sentado na neve, afundado até o peito, como um boneco. Peter inclinou-se, estendendo o braço. Don virou-se, para ver no que podia ajudar, sentindo o vento carregado de neve batendo em suas costas. Gritou:

—  Ricky?

—  Tive que me sentar... só um pouco...

Ele respirava fundo e Don compreendeu que o frio devia estar lhe arranhando terrivelmente a garganta, fazendo arder e congelando-lhe os pulmões.

—  Não faltam mais do que dois ou três quarteirões — balbuciou Ricky. — Ah, Deus, meus pés!

—  Acaba de me ocorrer uma idéia terrível. E se ela não estiver no apartamento?

—  Está, sim — respondeu Ricky segurando a mão de Peter e levantando-se. — Tenho certeza de que está. E só fal­tam mais uns poucos quarteirões.

Quando Don virou-se novamente de frente para a tem­pestade, ficou sem poder ver nada por um momento. Depois, avistou milhares de partículas brancas caindo rapidamente em sua direção, em diagonal, tão juntas que pareciam totalmente ligadas. Vastos lençóis semitransparentes o isolavam de Ricky e Peter. Apenas parcialmente visível a seu lado, Ricky fez um sinal para que seguissem em frente.

Don jamais soube quando finalmente entraram no Hollow. Em meio à tempestade, o lugar era igual ao resto de Milburn. Talvez os prédios parecessem um pouco mais miseráveis, talvez menos luzes brilhassem nas profundezas dos aposentos, que pareciam estar a milhares de metros de distância. Há muito tempo, ele escrevera em seu diário que aquela área parecia possuir a beleza sépia dos anos 30. Mas tal descrição parecia agora por demais remota. Tudo era de um cinza escuro, as paredes sujas, as janelas fechadas. A não ser por umas poucas luzes que brilhavam por detrás das cortinas, poder-se-ia pensar que toda a área estava deserta, abandonada. Don recordou-se de outras palavras que escrevera em seu diário: “Se algum dia houver problemas em Milburn, não vão começar no Hollow”. Os problemas haviam chegado a Milburn e tudo começara ali no Hollow, num dia ensolarado, em meados de outubro, cin­qüenta anos antes.

Os três pararam por um instante sob a fraca claridade de um lampião. Ricky Hawthorne estava cambaleando, semicer­rando os olhos para o outro lado da rua, onde se erguiam três idênticos prédios de tijolos. Mesmo com o barulho da tempes­tade, Don podia ouvir a respiração dele.

—  É ali — disse Ricky, asperamente.

—  Qual deles?

—  Não sei dizer. — Ricky sacudiu a cabeça, despejando uma chuva de neve do gorro vermelho de caça. — Simplesmen­te não sei.

O advogado continuou a olhar através da neve que caía, o rosto apontado como um cão de caça. Primeiro para o edifício à direita, depois para o prédio do meio. Finalmente ergueu a mão que empunhava a faca e usou-a para apontar as janelas no terceiro andar. Não tinham cortinas e uma delas estava entreaberta.

—  É ali. Tenho certeza. É o apartamento de Edward.

Don olhou para as janelas no alto do prédio abandonado, quase esperando avistar um rosto em uma das janelas, chaman­do-os. Um medo pior que a tempestade provocou-lhe um ca­lafrio.

O lampião da rua por cima deles se apagou bruscamente, todas as luzes ao redor sumiram de repente.

—  Finalmente aconteceu — disse Ricky. — A tempestade de neve derrubou as linhas de transmissão de energia. Vocês têm medo do escuro?

E os três atravessaram a rua, avançando com extrema difi­culdade pela neve acumulada.

 

Don empurrou a porta da frente do prédio e os outros dois o seguiram para o interior do vestíbulo. Tiraram os cache­cóis do rosto, a respiração fumegando no espaço pequeno e frio. Peter espanou a neve do chapéu de pele e da frente do casaco; nenhum deles disse nada. Ricky encostou-se na parede, parecendo um pouco fraco demais para subir a escada. Uma lâmpada apagada pendia por cima de suas cabeças.

—  Os casacos — sussurrou Don, achando que os trajes encharcados iriam retardar-lhes os movimentos.

Ele pôs o machado no chão, no escuro, desabotoou o ca­saco e tirou-o. Largou-o no chão mesmo. Depois, largou tam­bém os cachecóis, fedendo a lã molhada. O peito e os braços ainda estavam apertados pelos suéteres, mas pelo menos não sentia mais um peso intenso comprimindo-lhe os ombros. Peter também tirou o casaco e ajudou Ricky a tirar o dele.

Don divisou os rostos pálidos pairando à sua frente e per­guntou-se se aquele seria o último ato. Tinham as armas que haviam destruído os irmãos Bate, mas os três estavam tão iner­tes quanto bonecas de trapos. Os olhos de Ricky Hawthorne estavam fechados; inclinado para trás, os músculos flácidos, seu rosto era uma máscara de morte.

—  Ricky? — sussurrou Don.

—  Só um instante. — As mãos de Ricky tremiam bastante quando ele as levantou para soprar os dedos. Aspirou fundo, manteve o ar nos pulmões por um longo tempo, depois exalou. — Já estou bem. É melhor você subir na frente, Don. Eu irei na retaguarda.

Don abaixou-se e pegou o machado. Por trás dele; Peter limpou a lâmina da faca Bowie na manga. Don encontrou o primeiro degrau da escada com o pé entorpecido e subiu-o. Olhou para trás. Ricky estava atrás de Peter, apoiando-se na parede, os olhos novamente fechados.              

—  Não quer ficar aqui embaixo, Sr. Hawthorne? — sus­surrou Peter.

—  De jeito nenhum!

Com os outros dois seguindo atrás, Don subiu o primeiro lanço da escada. Outrora, há muitos e muitos anos, três jovens prósperos e bem dispostos, iniciando suas carreiras na advoca­cia e medicina, juntamente com um rapaz de dezessete anos, filho de um pregador, haviam subido e descido por aquela mesma escada; cada um estava em torno dos vinte anos, nos anos 20 do século. E por aquela escada subira também a mu­lher pela qual se haviam apaixonado, como ele também se enamorara de Alma Mobley. Don chegou ao segundo patamar e deu uma olhada no último lanço de escada. Com uma parte de sua mente, desejou avistar uma porta aberta, um aposento vazio, a neve caindo indiferente num apartamento vazio...

O que ele viu, no entanto, fê-lo recuar bruscamente. Peter olhou por cima do ombro dele e sacudiu a cabeça. Ricky final­mente apareceu no patamar a fim de olhar para a porta no alto da escada.

Uma luz fosforescente derramava-se por baixo da porta, ilu­minando o patamar e as paredes com um verde suave. Silencio­samente, os três subiram o último lanço de escada, ao encontro da luz fosforescente.

—  Em três — sussurrou Don, mantendo o machado um pouco abaixo da cabeça.

Peter e Ricky assentiram.

—  Um... dois... — Don segurou o alto do corrimão com a mão livre. — Três!

Eles bateram na porta ao mesmo tempo, arrombando-a com o impacto. Cada um ouviu uma única palavra nitidamente, só que a voz que a pronunciava era diferente para os três. A palavra era “Olá”.

 

Don Wanderley, impelido por um tremendo deslocamento de ar, virou-se ao som da voz do irmão. Uma luz quente os envolveu, foram atacados por ruídos de tráfego. As mãos e os pés estavam tão frios que podiam ter sido congelados, mas era verão. Verão em Nova York. Don reconheceu a esquina quase que imediatamente.

Ficava na East Fifties e era-lhe familiar porque ali perto, bem perto, havia um café com mesas na calçada, onde costumava encontrar-se com David sempre que ia a Nova York.

Não era uma alucinação... não era uma mera alucinação. Estava mesmo em Nova York e era verão. Don sentiu um peso na mão esquerda e olhou para baixo, descobrindo que estava segurando um machado. “Um machado? Mas para quê?” Ele o largou, como se a arma tivesse saltado em sua mão. O irmão gritou:

—  Don! Estou aqui!

Isso mesmo, ele estava segurando um machado... tinham visto uma luz esverdeada... estava se virando, bem depressa...

—  Don!

Ele olhou para o outro lado da rua e avistou David, pare­cendo saudável e extremamente próspero, parado ao lado de uma das mesas na calçada, Sorrindo-lhe e acenando. Era mesmo David, num terno azul, óculos de aviador de vidro fumé nos olhos, as hastes desaparecendo entre os cabelos louros.

—  Acorde!  — gritou David, por cima do barulho do tráfego.

Don esfregou o rosto com as mãos congeladas. Era muito importante não parecer confuso na frente de David, que o con­vidara para almoçar. David tinha algo a contar-lhe.

“Nova York?”

Mas era mesmo Nova York e lá estava David, fitando-o com uma expressão divertida, feliz por vê-lo, ansioso para con­tar-lhe alguma coisa. Don olhou para a calçada. O machado desaparecera. Ele correu por entre os carros e abraçou o irmão, sentindo o cheiro de charutos, um xampu de primeira qualida­de, água-de-colônia Aramis. Lá estava ele e David estava vivo.

—  Como se sente? — perguntou David.

—  Eu não estou aqui e você está morto — Don ouviu sua própria voz murmurar.

David pareceu ficar embaraçado, mas conseguiu disfarçar o embaraço com outro sorriso.

—  É melhor sentar-se agora, irmãozinho. Não devia mais estar falando desse jeito.

David segurou-lhe o cotovelo e levou-o para uma cadeira embaixo de um guarda-sol. Um martini com gelo estava esfriando um copo.

—  Não devia... — Don não continuou a frase. Afundou na cadeira; o tráfego de Manhattan fluía incessantemente por aquela rua aprazível. No outro lado, por cima dos carros que passavam, ele leu o nome de um restaurante francês, pintado em dourado sobre vidro escuro. Até mesmo os pés enregelados podiam sentir que a calçada estava quente.

— É melhor não falar assim — disse David. — Pedi um bife para você. Está bem? Achei que não iria querer ne­nhuma comida temperada demais. — Ele contemplava Don com uma expressão de profunda simpatia. Os óculos em moda escondiam seus olhos, mas o que sobrava do rosto bonito de David irradiava afeição. — E está gostando do terno, por falar nisso? Encontrei-o em seu armário. Agora que saiu do hospital, vai precisar comprar- novas roupas. Não quer usar minha conta corrente na Brooks?

Don olhou para o terno que estava usando, bege claro, apropriado para o verão, uma gravata listrada marrom e verde, sapatos marrons. Tudo parecia um pouco fora de moda e meio miserável, ao lado da elegância de David.

—  Agora olhe para mim e diga que estou morto — falou David.

—  Você não está morto.

David suspirou de felicidade.

—  Assim está ótimo! Deixou:me bastante preocupado. Está lembrado do que aconteceu?

—  No hospital?

—  Sofreu o pior colapso nervoso que alguém já teve, ir­mãozinho. Esteve bem perto da chamada passagem só de ida. Aconteceu logo depois que terminou aquele livro.

—  The nightwatcher?

—  Qual outro poderia ser? Você simplesmente apagou... e quando dizia alguma coisa, eram apenas absurdos, que eu estava morto e Alma era algo horrível e misterioso. Você estava no espaço exterior. Se não lembra de nada é por causa dos tratamentos de choque. Mas agora conseguimos deixá-lo em forma novamente. Conversei com o Professor Lieberman e ele disse que irá encontrá-lo novamente no outono. Ele gostou mui­to de você, Don.

—  Lieberman? Mas ele disse que eu...

—  Isso foi antes de saber como você estava doente. De qualquer forma, eu o trouxe do México e internei-o num hospi­tal particular em Riverdale. Paguei todas as contas, até você ficar completamente recuperado. O bife vai chegar dentro de um momento. É melhor você tomar logo esse martini. Fazem um ótimo martini aqui.

Obedientemente, Don tomou um gole do martini, sen­tindo o gosto forte, frio e familiar.

—  Por que estou com tanto frio? — perguntou a David. — Estou congelado.

—  São  os  efeitos  colaterais  do  tratamento  à  base  de drogas. — David afagou-lhe a mão. — Disseram-me que você sentiria esse frio por um ou dois dias, não estaria muito seguro de si mesmo... Mas posso assegurar-lhe que tudo isso vai desaparecer rapidamente. — Uma garçonete apareceu com a comi­da. Don deixou-a levar seu copo de martini.

—  Andou tendo algumas idéias estranhas e perturbadas — David estava dizendo. — Agora que está bem outra vez, vai ficar chocado ao saber o que andou falando. Pensou que minha esposa fosse alguma espécie de monstro e que me havia matado em Amsterdam. Estava absolutamente convencido de que isso era verdade. O médico disse que você simplesmente não podia enfrentar o fato de tê-la perdido. Foi por isso que jamais quis vir a Nova York para conversarmos sobre Alma. Acabou pen­sando que tudo o que escrevera em sua novela era real. Depois que despachou o livro pelo correio para seu agente, ficou sentado num quarto de hotel, sem comer, sem tomar banho, sem se levantar nem mesmo para ir ao banheiro. Tive que ir até a Cidade do México para trazê-lo de volta.

—  O que eu estava fazendo há uma hora? — indagou Don.

—  Estava tomando uma injeção de sedativo. Depois, me­teram-no num táxi e mandaram-no para cá. Achei que gostaria de ver novamente este café, que algo familiar lhe faria bem.

—  Passei um ano num hospital?

—  Quase dois anos. E só nos últimos meses é que real­mente começou a fazer grandes progressos para sua recuperação.

—  E por que não consigo lembrar-me?

—  A resposta é muito simples: porque não quer. No que lhe diz respeito, nasceu há cinco minutos. Mas, pouco a pouco, lentamente, vai acabar se recordando de tudo. Pode recuperar-se em nossa casa na praia, onde há muito sol, muita areia, algumas mulheres. A idéia não o atrai?

Don piscou, aturdido, olhando ao redor. Sentia todo o corpo estranhamente frio. Uma mulher alta estava naquele momento avançando pelo quarteirão na direção deles, puxada por um imenso cão pastor numa coleira... a mulher era esguia e bronzeada, usava óculos escuros apoiados em cima da cabe­ça. Por um momento, ela era o símbolo de tudo o que era real, a epítome de tudo o que não era alucinação ou imaginação. Não era ninguém importante, era apenas uma estranha. Mas se o que David estava lhe dizendo era verdade, aquela mulher representava a própria saúde.

—  Vai encontrar muitas mulheres — comentou David, quase rindo. — Não precisa pregar os olhos na primeira que cruza seu caminho.

—  Está agora casado com Alma — murmurou Don.

— Claro! E ela está com a maior vontade de revê-lo. — David continuava a sorrir, segurando um garfo onde estava espetado  um pedaço de carne, impecavelmente cortado. — Alma ficou bastante lisonjeada com seu livro. Está convencida de que deu uma grande contribuição à literatura! Mas eu gos­taria de dizer-lhe uma coisa, Don. — David inclinou-se sobre a mesa. — Pense um pouco nas conseqüências possíveis, se fosse verdade o que escreveu no livro. No que poderia aconte­cer, se criaturas assim realmente existissem... e você ficou absolutamente convencido de que existiam de fato.

—  Tem razão. Pensei...

— Espere um pouco, Don. Deixe-me acabar primeiro. Será que não pode perceber que seríamos fracos e insignificantes diante de criaturas assim? Vivemos... o quê? Uns míseros sessenta ou setenta anos, talvez. Elas viveriam por séculos... um século de séculos. E poderiam tornar-se qualquer coisa que desejassem. Nossas vidas são constituídas por acaso, por coin­cidência, por uma combinação às cegas de genes, enquanto tais criaturas seriam constituídas por sua própria vontade. Elas nos iriam detestar. E estariam com toda a razão. Ao lado delas, se­ríamos detestáveis.

—  Não! — protestou Don. — Está tudo errado! Essas criaturas são brutais e cruéis, vivem da morte... — Don sentiu que estava prestes a vomitar. — Não pode dizer tais coisas, David!

—  Seu problema é que ainda está escravizado à história que esteve contando a si mesmo. Apesar de já ter escapado dela, a história ainda está pairando a seu redor, persistindo em algum lugar de sua memória. O médico disse-me que jamais viu nada parecido. Quando você degringolou, passou a viver uma histó­ria. Ficava andando pelos corredores do hospital, entabulando conversas com pessoas que não existiam. Estava totalmente envolvido em algum enredo. Os médicos ficaram bastante im­pressionados. Conversava com eles, que lhe respondiam. Mas você parecia estar falando com algum cara chamado Sears ou outro chamado Ricky... — David sorriu, sacudindo a cabeça.

—  O que aconteceu no final da história? — indagou Don.

—  Como?

—  O que aconteceu ao final da história? — Don largou o garfo e a faca e inclinou-se para a frente, fitando fixamente o rosto suave do irmão.

—  Os médicos não o deixaram chegar ao final da história. Picaram com receio. Parecia que você estava fazendo tudo para ser morto. Isso era parte do seu problema. Inventou essas cria­turas fantásticas e maravilhosas e depois meteu-se na história como inimigo delas. Mas se existissem criaturas assim, jamais poderiam ser derrotadas. Por mais que se tentasse, elas sempre acabariam vencendo.

—  Não, isso não é... — Don parou de falar. Sabia que aquilo não estava correto. Podia recordar apenas vagamente a “história” a que David estava se referindo, mas tinha certeza de que o irmão estava enganado.

—  Os médicos disseram que era a maneira mais interes­sante de um escritor cometer suicídio de que já tinham ouvido falar. Por isso, não poderiam deixá-lo chegar ao final da história. Está entendendo agora? Tinham que arrancá-lo da história de qualquer maneira.

Don continuou sentado, sentindo um vento frio percorrer-lhe o corpo.

 

—  Olá e seja bem-vindo de volta — disse Sears. — Todos já tivemos o mesmo sonho, mas creio que você é o primeiro a tê-lo em uma de nossas reuniões.

— Como? — Ricky levantou a cabeça bruscamente, con­templando a amada biblioteca de Sears, as estantes protegidas por portas de vidro, as poltronas de couro formando um círculo, as janelas escuras. Imediatamente à sua frente, Sears deu uma tragada no charuto, fitando-o com uma expressão que parecia de ligeira irritação. Lewis e John, segurando seus copos de uísque e vestidos de smoking, como Sears, pareciam estar mais constrangidos do que aborrecidos.

— Que sonho? — indagou Ricky, sacudindo a cabeça. Ele também estava vestido a rigor. Pelo charuto, pela qualidade da escuridão, por mil detalhes familiares,  sabia que estava rio cenário de uma reunião da Sociedade Chowder.

— Você começou a cochilar assim que terminou de contar sua história — disse John.

—  História?

— E depois olhou para mim e declarou  solenemente: “Você está morto” — disse Sears.

—  O pesadelo... — murmurou Ricky. — Eu falei mes­mo isso? Puxa, mas que frio!

—  Em nossa idade, todos temos uma péssima circulação — comentou o Dr. Jaffrey.

—  Em que data estamos?

—  Você estava mesmo longe — disse Sears, alteando as sobrancelhas. — Estamos a 9 de outubro.

—  E Don está aqui? Onde está Don? — Ricky correu os olhos freneticamente pela biblioteca, como se o sobrinho de Edward pudesse estar escondido debaixo de alguma poltrona.

—  Essa não, Ricky! — resmungou Sears. — Deve estar lembrado que acabamos de decidir por votação que vamos escrever para ele. Seria extremamente improvável que ele apa­recesse antes de a carta ser escrita.

—  Temos que contar-lhe tudo a respeito de Eva Galli — murmurou Ricky, recordando-se da votação. — É absolutamente indispensável.

John sorriu debilmente, enquanto Lewis recostava-se na poltrona, olhando para Ricky como se pensasse que ele perdera o juízo.

—  Você muda de posição bruscamente da maneira mais espantosa possível, Ricky — comentou Sears. — Cavalheiros, já que o nosso amigo evidentemente está precisando dormir um pouco, proponho que encerremos a reunião desta noite.

— Sears... — balbuciou Ricky, subitamente impressio­nado por outra recordação.

— O que é, Ricky?

—  Na próxima vez que nos encontrarmos... quando nos encontrarmos na casa de John... não conte a história em que está pensando. Não pode de jeito nenhum contar essa história. Vai ter as conseqüências mais terríveis que se poderia imaginar.

—  Fique aqui mais um pouco, Ricky.

Sears acompanhou os outros dois homens até a porta de sua casa. Voltou com um charuto recentemente aceso” e uma garrafa.

—  Parece que está precisando de um drinque,  Ricky. Deve ter tido um sonho e tanto.

—  Fiquei adormecido por muito tempo? — Ele podia ouvir, lá embaixo na rua, o ruído de Lewis tentando fazer o Morgan pegar.

—  Dez minutos, não mais do que isso. Agora pode ex­plicar-me por que fez aquele comentário sobre uma história que irei contar na próxima reunião?

Ricky abriu a boca, tentou relembrar o que lhe parecera tão importante alguns minutos antes e compreendeu que deve­ria estar parecendo incrivelmente tolo.

—  Não sei mais. Era alguma coisa relacionada com Eva Galli.

—  Posso garantir-lhe que não ia mesmo falar sobre isso. Não creio que nenhum de nós jamais vá falar a respeito e estou convencido de que é melhor assim. Não concorda?

—  Não! Não! Temos que... — Ricky compreendeu que ia novamente falar em Donald Wanderley e corou. — Deve ter sido parte do meu sonho. A janela atrás de mim está aberta, Sears? Estou congelando. E me sinto extremamente cansado. Não consigo imaginar o que...

—  É a idade. O triste é que estamos chegando ao fim do caminho, Ricky. Todos nós. E já vivemos o bastante, não é mesmo?

Ricky meneou a cabeça.

—  John já está morrendo. Não pode perceber pelo rosto dele?

—  Tem razão, Tive a impressão... — Ricky estava pen­sando num momento no início da reunião, quando um plano de escuridão se insinuara sobre a testa de John Jaffrey; esse momento parecia agora ter ocorrido muitos anos antes. — De ter visto a morte. Foi isso o que aconteceu. E é verdade.

— Meu velho amigo. — Sears sorriu, condescendente­mente. — Estive pensando muito a respeito, e agora que você falou em Eva Galli... é como se estivéssemos remexendo em águas profundas. Mas vou contar-lhe o que andei pensando. — Sears deu outra baforada no charuto e inclinou-se maciçamente para a frente. — Acho que Edward não morreu de causas na­turais. Creio que teve uma visão de algo dotado de uma beleza tão terrível e etérea que acabou sendo morto pelo choque em seu pobre organismo mortal. Estou convencido de que há um ano, através de nossas histórias, estamos contornando as margens dessa beleza.

—  Só que não é nada de beleza — murmurou Ricky. — É algo obsceno... terrível...

—  Espere um instante, Ricky. Pense por um momento na possibilidade de existir uma outra raça de seres inteligentes... poderosos, oniscientes, deslumbrantes. Se existissem, inevita­velmente nos detestariam. Seríamos como gado, em comparação a eles. Viveriam por séculos... por um século de séculos. Sendo assim, você e eu pareceríamos crianças para eles. Seriam criados não por acaso, coincidência ou combinação às cegas de genes. Teriam  toda  a  razão  de nos  detestar. Diante deles, seríamos mesmo detestáveis. — Sears levantou-se, pôs os óculos e começou a andar de um lado para outro. — Eva Galli. Foi nessa ocasião que perdemos nossa chance, Ricky. Poderíamos ter visto coisas pelas  quais valeria a pena sacrificar nossas patéticas vidas.

—  Eles são ainda mais vaidosos do que nós, Sears. Ah, estou me lembrando agora! Os Bate! É essa a história que você não pode contar.

—  Ora, tudo isso está agora acabado. Tudo já terminou. — Sears aproximou-se da poltrona de Ricky e inclinou-se, fi­tando-o nos olhos. — Receio que, daqui por diante, todos nós estamos... Como é mesmo que se diz, hors commerce ou de combat?

—  No seu caso, Sears, tenho certeza de que é hors de combat — disse Ricky, recordando perfeitamente suas falas.

Ele estava passando mal, terrivelmente mal, o corpo tre­mendo todo, sentindo a investida do pior resfriado de sua vida; penetrara em seus pulmões como fumaça, pesava em seus bra­ços como a neve de um inverno inteiro. Sears inclinou-se no­vamente em sua direção, dizendo:

—  Isso se aplica a todos nós, Ricky. Mas foi uma jornada e tanto, não é mesmo? — Sears ajeitou o charuto no canto da boca e estendeu a mão para apalpar o pescoço de Ricky. — Pensei ter visto gânglios inchados. Terá muita sorte, se não morrer de pneumonia.

A mão imensa de Sears contornou o pescoço de Ricky. Sem poder fazer nada, Ricky espirrou.

 

—  Preste atenção ao que vou dizer, Don — pediu David. — Pode compreender as conseqüências de tudo isso? Colocou-se em tal posição que o único final lógico é a sua morte. Assim, embora conscientemente tenha imaginado que esses seres que inventou eram maléficos, inconscientemente percebeu que eram superiores. Por isso é que sua “história” era tão perigosa. Inconscientemente, de acordo com  seu  médico,  você com­preendeu que iria matar-se. Inventou algo tão superior a si mesmo que desejava entregar sua própria vida àqueles seres. E isso é muito perigoso, garoto.

Don sacudiu a cabeça, David também largou o garfo e a faca.

—  Vamos fazer uma experiência. Posso provar-lhe que está querendo viver. Combinado?

—  Sei perfeitamente que quero viver.

Don olhou para a rua incontestavelmente real e avistou a mulher incontestavelmente real caminhando pelo outro lado, ainda puxada pelo cão pastor, subindo a rua. Isto é, ela não esta­va subindo pelo outro lado, conforme Don subitamente cons­tatou; estava descendo, justamente como fizera pelo lado da rua em que ele se encontrava. Era como um filme, no qual o mesmo extra aparece em diferentes cenas, fazendo diferentes papéis, abalando o espectador com sua presença, fazendo-o re­cordar que se trata apenas de uma invenção. Não obstante, lá estava a mulher, andando rapidamente atrás do cachorro bonito, não uma invenção, mas sim uma parte integrante da rua.

—  Pois  vou prová-lo, Don. Vou pôr as mãos em sua garganta e sufocá-lo. Quando quiser que eu pare, basta dizer.

—  Mas isso é ridículo!

David inclinou-se rapidamente por cima da mesa e agarrou-lhe a garganta.

—  Pare! — gritou Don.

David contraiu os músculos, levantando-se e derrubando a mesa para o lado. A garrafa virou, o vinho derramando-se pela toalha. Nenhum dos outros clientes parecia estar prestando atenção a eles; continuaram a comer e a conversar, de maneira incontestavelmente real, espetando com o garfo uma comida incontestavelmente real e levando-a a suas bocas incontestavel­mente reais. Don tentou novamente dizer “Pare”, mas agora as mãos de David estavam apertando com toda a força e ele não conseguiu pronunciar a palavra. O rosto de David era sereno como o de um homem que escreve um relatório ou que afugenta uma mosca impertinente.

No instante seguinte, o rosto já não era mais o de David, mas a cara de um veado com urna imensa galhada, a de uma imensa coruja, talvez ambas.

Terrivelmente perto, um homem espirrou estrondosa­mente.

 

—  Olá, Peter. Com que então estava querendo dar uma olhada por trás das cenas, hein? — Clark Mulligan afastou-se da porta da cabine de projeção, convidando-o a entrar. — Foi muita gentileza sua trazê-lo, Sra. Barnes. Não tenho praticamen­te qualquer companhia aqui em cima.  Qual é o problema, Peter? Parece um pouco confuso.

Peter abriu a boca e tornou a fechá-la.

—  Eu...

—  Pode agradecer-lhe, Peter — disse sua mãe, secamente.

—  Aquele filme provavelmente deixou-o abalado — co­mentou Mulligan. — Sempre causa esse efeito nas pessoas. Já assisti a ele centenas de vezes, mas mesmo assim contínua a me impressionar. Mas não passa disso, Peter, não passa de um filme.

—  Um filme? — repetiu Peter. — Não... estávamos subindo a escada...

Ele estendeu a mão e viu a faca Bowie.

—  Foi nesse ponto que o rolo terminou. Sua mãe disse que você estava interessado em saber como tudo parece aqui de cima. Como são as únicas pessoas que estão no cinema, não há mal nenhum nisso, não é mesmo?

—  Mas que diabo está fazendo com essa faca, Peter? — perguntou a mãe. — Dê-me isso imediatamente!

—  Não! Eu tenho... eu tenho... — Peter afastou-se da mãe, correndo os olhos pela pequena cabine de projeção, totalmente confuso. Um casaco de veludo piqué estava pendura­do num gancho na parede; na de trás, estavam pregados um calendário e uma folha de papel mimeografada.

—  É melhor se acomodar, Peter — disse Mulligan. — Agora que está aqui pode ver os nossos projetores. O último rolo já está pronto para ser exibido. Eu sempre deixo tudo preparado de antemão. Quando uma pequena marca aparece em alguns fotogramas, eu sei que tenho tantos segundos para acionar...

—  O  que acontece ao final?  — perguntou  Peter. — Não consigo lembrar direito o que acontece...

—  Todos eles morrem, é claro — disse Mulligan. — Não há alternativa para o final, não é mesmo? Não acha que eles parecem incrivelmente patéticos em comparação aos seres que estão enfrentando? Afinal de contas, não passam de insignifi­cantes criaturas acidentais, enquanto os seres que estão enfren­tando são... esplêndidos, talvez seja a melhor maneira de descrevê-los. Pode assistir ao final daqui, junto comigo, se assim preferir. Algum problema, Sra. Barnes?

—  Acho que é o melhor — disse Christina, aproximando-se. — Ele caiu numa espécie de transe lá embaixo. Vamos, Peter, dê-me logo essa faca.

Peter pôs a faca às costas.

— Ora, ele já verá tudo daqui a pouco, Sra. Barnes — disse Mulligan, levantando uma alavanca no segundo projetor.

—  Ver o quê? — murmurou Peter. — Estou morrendo de frio...

—  O sistema de calefação está com defeito. Vou acabar pegando uma friagem aqui em cima. Está vendo agora, Peter? Os dois homens são mortos primeiro, é claro, e depois... Mas veja pessoalmente, Peter.

Peter inclinou-se para a frente, a fim de olhar pela aber­tura na parede. Lá estava o interior vazio do Rialto, o facho de luz se alargando à medida que se aproximava da tela...

Ao lado dele, um Ricky Hawthorne invisível espirrou rui­dosamente. Peter teve a sensação de que tudo estava mudando outra vez, as paredes da cabine de projeção pareciam oscilar, viu algo recuar bruscamente, enojado, algo com a cabeça imensa de um animal, recuando como se Ricky lhe tivesse cuspido. No instante seguinte, Clark Mulligan voltou a seu lugar de antes, dizendo:.

—  Acho que o filme está com um defeito neste ponto, mas agora já não há mais problema.

Mas a voz dele estava trêmula e Peter ouviu a mãe nova­mente :

—  Dê-me a faca, Peter.

— É tudo um truque! — gritou ele. — Outro truque sujo!

—  Não seja grosseiro, Peter — disse a mãe.

Clark Mulligan fitou-o, preocupação e surpresa estampadas no rosto. Recordando o conselho de alguma antiga história de aventura, Peter levantou a faca Bowie contra a barriga protube­rante de Mulligan. A mãe gritou, já começando a se desvanecer como tudo ao redor de Peter. Ele segurou o cabo de osso com as duas mãos e levantou a faca com toda a força. Soltou um grito de angústia e desespero, enquanto Mulligan caía por cima dos projetores, derrubando-os de seus cavaletes.

 

—  Oh, Sears... — balbuciou Ricky, sentindo a garganta arder intensamente. — Ah, meus pobres amigos...

Por um momento, todos eles estavam outra vez vivos, assim como o mundo frágil deles; a perda dos amigos e do mundo confortável e seguro em que tinham vivido fez estre­mecer todo o corpo de Ricky, as lágrimas afloraram a seus olhos.

—  Olhe, Ricky — ouviu Don dizer.

A voz era imperiosa o bastante para fazê-lo virar a cabeça. Ao ver o que estava acontecendo no chão do apartamento, Ricky bruscamente se sentou.

—  Foi Peter quem conseguiu — ouviu Don dizer a seu lado.

O rapaz estava de pé a dois metros deles, os olhos fixos no corpo da mulher caída um pouco à frente deles. Don estava de joelhos, esfregando o pescoço. Ricky fitou Don nos olhos, viu tanto horror como uma dor intensa. Ambos olharam nova­mente para Anna Mostyn.

Por um momento, ela parecia exatamente igual à mulher ainda jovem que Ricky vira pela primeira vez na sala de recepção de seu escritório na Wheat Row, um rosto adorável, os cabelos escuros; mesmo agora, o velho advogado ainda podia vislumbrar a inteligência excepcional e a falsa humanidade naquele rosto oval. A mão dela agarrou o cabo de osso que aparecia logo abaixo do esterno; o sangue escuro já escorria do ferimento profundo. A mulher se remexeu no chão, o rosto se contorcendo, os olhos tremendo. Flocos de neve esparsos entra­vam pela janela aberta e iam pousar sobre eles.

Os olhos de Anna Mostyn se arregalaram subitamente e Ricky preparou-se para resistir, pensando que ela ia dizer alguma coisa. Mas os olhos maravilhosos estavam desfocados, aparente­mente não reconheceram nenhum dos três. Uma golfada de sangue saiu do ferimento, depois outra, espalhando-se por todo o corpo de Anna Mostyn, alguns respingos indo cair nos joelhos de Ricky e Don. Ela quase sorriu, enquanto uma terceira golfa­da de sangue saía de seu corpo e formava uma poça no chão.

Por um instante apenas, como se o cadáver de Anna Mos­tyn fosse um filme, uma transparência fotográfica, os três di­visaram uma vida se contorcendo através da pele da mulher morta, não um simples veado ou uma coruja, não um corpo humano ou animai, mas uma imensa boca aberta por baixo da boca de Anna Mostyn, um corpo contido dentro das roupas ensangüentadas, a se contorcer com uma vida renitente e vio­lenta. Era um verdadeiro turbilhão, tão variado quanto uma mancha de óleo, faiscando furiosamente na direção deles, pelo momento em que esteve visível. No instante seguinte, a estra­nha forma de vida escureceu e desapareceu, tudo o que havia no chão era o corpo da mulher morta.

No segundo seguinte, o rosto de Anna Mostyn ficou incrivelmente branco, as pernas e braços se enroscaram para dentro, forçados por um vento que os outros não podiam sen­tir. A mulher morta se enroscou sobre si mesma, encolhendo-se, como um pedaço de papel jogado no fogo. Todo o corpo foi se enroscando para dentro, assim como os braços e as pernas. Anna Mostyn foi encolhendo diante deles, ficando a metade do seu tamanho original, depois um quarto, não mais se assemelhando a qualquer coisa humana, apenas um pedaço de carne torturada, enroscando-se e encolhendo diante deles, atingida e açoitada por um vento que não podiam sentir.

O próprio aposento parecia estar exalando, soltando um suspiro surpreendentemente humano, através do que ainda res­tava da garganta de Anna Mostyn. Uma luz esverdeada os en­volveu, com a intensidade de mil fósforos acesos simultaneamente. O que restava do corpo de Anna Mostyn sacudiu-se mais uma vez e depois desapareceu em si mesmo. A essa altura, Ricky estava inclinado para a frente, apoiado sobre as mãos e joelhos, vendo partículas de neve caírem no lugar em que estivera o corpo, girando num remoinho e seguindo Anna Mostyn para o outro mundo.

A treze quarteirões de distância, a casa em frente à de John Jaffrey, na Montgomery Street, implodiu. Milly Sheehan ouviu o estrondo da implosão. Correu para a janela da frente, chegando a tempo de ver a fachada da casa de Eva Galli do­brar-se para dentro como papelão e depois se romper, os tijolos soltos voando para o fogo que já ardia intensamente no centro da casa.

—  O lince! — balbuciou Ricky.

Don desviou os olhos do ponto no chão em que o corpo de Anna Mostyn se encolhera até desaparecer e avistou um pardal pousado no peitoril da janela aberta. O passarinho in­clinou a cabeça, olhando para os três. Don e Peter já estavam começando a avançar pelo aposento em sua direção, enquanto Peter continuava a olhar para o chão vazio. No instante seguin­te, o passarinho alçou vôo do peitoril e afastou-se da janela.

—  Conseguimos, não é mesmo? — indagou Peter. — Está tudo acabado agora...  conseguimos...

—  É isso mesmo, Peter — disse Ricky. — Está tudo acabado.

Por um momento, os dois homens trocaram olhares de concordância. Don se levantou e foi até a janela, aparentando, despreocupação; viu apenas a tempestade, que já começava a diminuir de intensidade. Voltou então até o lugar em que estava Peter e abraçou-o.

 

—  Como se sente? — perguntou Don.

—  Ele ainda pergunta como me sinto — disse Ricky, am­parado por vários travesseiros, em sua cama nó hospital de Binghamton. — Não é nada divertido pegar uma pneumonia. Afeta adversamente todo o organismo. Eu o aconselho a se abster de pegar uma pneumonia.

—  Tentarei, Ricky. Você quase morreu. Mal conseguiram desobstruir a estrada a tempo de uma ambulância trazê-lo para cá. Se não tivesse resistido, eu é que teria de levar sua esposa para a França nesta primavera.

—  Mas não diga isso a Stella. Ela virá correndo até aqui e vai querer arrancar do meu corpo todos os tubos de soro. — Ricky sorriu, um tanto ironicamente. — Ela está tão ansiosa em chegar à França que iria até mesmo com um garotinho como você.

—  Quanto tempo ainda terá de ficar no hospital?

—  Mais duas semanas. Excetuando a maneira como me sinto, não é tão mau assim. Stella conseguiu aterrorizar as en­fermeiras a tal ponto que elas estão cuidando de mim da melhor maneira que se poderia imaginar. Por falar nisso, obrigado pelas flores.

—  Senti muita saudade sua. E Peter também.

—  Obrigado — murmurou Ricky, simplesmente.

—  Há algo curioso em tudo isso. Eu me sinto mais che­gado a você e a Peter... e a Sears também, não posso deixar de dizer... do que a qualquer outra pessoa, desde Alma Mobley.

—  Você já sabe o que penso a respeito. Deixei tudo para trás quando aquele jovem médico me dopou totalmente. A Sociedade Chowder está morta, vida longa para a Sociedade Chowder. Sears disse-me certa vez que não gostaria de ser tão velho. Na ocasião, fiquei um pouco aturdido, mas agora con­cordo plenamente com ele. Eu gostaria de ver Peter Barnes crescer... gostaria de poder ajudá-lo. Você terá de fazer isso por mim. Afinal, nós lhe devemos as nossas vidas.

—  Sei disso. Devemos a Peter o que não ficamos devendo a seu resfriado.

—  Fiquei  inteiramente  desnorteado lá naquele aparta­mento.

—  Também fiquei.

—  Devemos dar graças a Peter. E estou contente que você tenha preferido não contar a ele.

—  É melhor assim, Ricky. Ele já passou por coisas de­mais. De qualquer forma, ainda temos que atirar num lince.

Ricky assentiu, dizendo:

—  Se não o fizermos, ela simplesmente voltará outra vez. E continuará a voltar, até que todos nós e a maioria dos nossos parentes estejamos mortos. Sustentei meus filhos por tempo de­mais para querer vê-los morrendo dessa maneira. E por mais que eu deteste dizê-lo, acho que essa é uma missão para você.

—  Não há por que detestar, pois está com toda a razão, Ricky. Foi você quem realmente destruiu tanto Gregory como Fenny. E Peter liquidou a chamada benfeitora deles. Assim, compete a mim cuidar do que ainda sobrou.

—  Não invejo sua missão, Don. Mas tenho certeza de que será bem sucedido. Está com a faca?

—  Peguei-a no chão do apartamento.

—  Ótimo! Eu detestaria pensar que a faca se perdeu. Lá naquele terrível apartamento, creio que encontrei a resposta para um dos enigmas sobre os quais Sears, eu e os outros cos­tumávamos falar. Ou seja: nós três vimos o motivo pelo qual seu tio sofreu um ataque cardíaco.

—  Também penso da mesma forma, Ricky. Foi apenas uma fração de segundo. Não pensei que tivesse visto também.

—  Pobre Edward... Ele deve ter entrado no quarto vazio da casa de John, esperando o que lhe parecia ser o pior, encontrar a sua atriz na cama com Freddy Robinson. Em vez disso... o quê? Ela deve ter tirado a máscara.

Ricky estava agora visivelmente extenuado, e Don levan­tou-se para ir embora. Pôs uma pilha de livros e um saco de laranjas na mesinha ao lado da cama.

—  Don... — Até mesmo a voz do velho advogado estava soando áspera da exaustão.

—  O que é, Ricky?

—  Não precisa ficar me mimando. Basta dar um tiro no lince.

 

Três semanas depois, quando Ricky finalmente recebeu alta do hospital, as nevascas já haviam cessado por completo. Milburn não era mais uma cidade sitiada, estava convalescendo e se recuperando tão valentemente quanto o velho advogado. Novos suprimentos chegaram às mercearias e supermercados. Rhoda Flagler avistou Bitsy Underwood no Mercado de Bay Tree, ficou vermelha como um rabanete e correu para pedir desculpas por ter-lhe puxado os cabelos.

— Foram aqueles dias terríveis — disse Bitsy. — Prova­velmente eu é que a teria espancado, se você tivesse apanhado primeiro aquela maldita abóbora.

As escolas reabriram. Os empresários e banqueiros volta­ram ao trabalho, removendo os protetores de tempestade das janelas e enfrentando as pilhas de papéis que se haviam acumulado em suas mesas. Pouco a pouco, os fanáticos por corridas e passeios a pé voltaram a aparecer nas ruas de Milburn. Annie e Anni, as duas belas garçonetes do Humphrey’s Place, lamenta­ram a morte de Lewis Benedikt e se casaram com os homens com quem viviam; as duas ficaram grávidas com uma semana de intervalo. Se nascessem meninos, ambos iriam chamar-se Lewis.

Alguns negócios nunca mais tornaram a abrir. Uns poucos homens foram à falência, pois era preciso pagar aluguel e im­postos, mesmo quando uma loja estava debaixo de um monte de neve. Outros fecharam por motivos mais sombrios. Leota Mulligan pensou em dirigir o Rialto pessoalmente, mas acabou vendendo-o a uma cadeia de cinemas e, seis meses depois, casou-se com o irmão de Clark. Larry não era tão sonhador quanto Clark, mas era um homem que merecia plena confiança e gostava dos pratos que Leota cozinhava. Ricky Hawthorne fechou o escritório de advocacia, mas um jovem advogado da cidade persuadiu-o a vender-lhe o nome e o prestígio da firma. O novo proprietário tornou a contratar Florence Quast e man­dou fazer novas placas para a porta e a fachada do prédio. Hawthorne, James passou a ser Hawthorne, James & Whitaker.

— É uma pena que o nome dele não seja Poe — comentou Ricky.

Stella não achou a menor graça no comentário.

Durante todo esse tempo, Don ficou esperando. Quando se encontrava com Ricky e Stella, conversavam sobre os folhe­tos de viagens que agora cobriam toda a enorme mesinha de café de sua casa; quando se encontrava com Peter Barnes, conversavam sobre Cornell, sobre os autores que o rapaz estava lendo no momento, sobre a maneira como o pai dele se estava ajustando à vida sem Christina. Por duas vezes, Don e Ricky foram de carro a Pleasant Hill e colocaram flores em todas as sepulturas que tinham sido abertas desde o enterro de John Jaffrey. Enterrados lado a lado, estavam Lewis, Sears, Clark Mulligan, Freddy Robinson, Harlan Bautz, Penny Draeger, Jim Hardie. Eram sepulturas novas, pilhas de terra separadas, ainda revolvidas. Com o tempo, quando a terra ficasse compactada, aquelas sepulturas recentes ganhariam suas lápides. Christina Barnes estava sepultada mais adiante, outra pilha de terra ainda recente, na carneira dupla que Walter Barnes comprara. A fa­mília de Elmer Scales fora sepultada quase no alto da colina, no jazigo da família Scales, comprado pelo avô de Elmer e que fora o primeiro a ser ali enterrado. Um anjo de pedra, já des­gastado pelo tempo, velava pela família. Os dois também subi­ram até lá para depositar flores.

—  Ainda não houve qualquer sinal de um lince — comentou Ricky, ao voltarem para a cidade.

—  Ainda não — respondeu Don.

Ambos sabiam que, quando chegasse, não seria sob a for-ma de um lince, assim como sabiam também que a espera pode ria levar meses, talvez anos.

Don lia, aguardava ansiosamente os jantares com Ricky e Stella, assistia a seqüências inteiras de filmes na televisão (Clark Gable num blusão de caçador transformando-se em Dan Duryea num terno listrado típico de gângster e depois num gracioso e vitorioso Fred Astaire num smoking da Sociedade Chowder), descobrira que não era capaz de escrever. E esperava. Freqüen­temente, acordava chorando no meio da noite. Ele também esta­va precisando curar-se.

 

Em meados de março, num dia frio e cinzento que pare­cia aqueles terríveis dias de inverno que ele e a Sociedade Chowder haviam enfrentado, o carro dos Correios entregou a Don um pacote pesado, remetido por uma firma de aluguel de filmes de Nova York. A firma levara dois meses para localizar uma cópia do filme China pearl.

Preparou o projetor do tio e montou a tela. Descobriu que as mãos lhe tremiam tanto que precisou de três tentativas para conseguir acender um cigarro. A simples idéia de assistir ao único filme em que Eva Galli trabalhara trazia-lhe de volta a aparição de Gregory Bate no Rialto, onde todos eles poderiam ter morrido. E Don descobriu que estava com medo de que Eva Galli pudesse ter o mesmo rosto de Alma Mobley.

Don ligara os alto-falantes, para o caso de alguém ter acrescentado uma trilha sonora; produzido em 1925, China pearl era um filme mudo. Ao ligar o projetor e recostar-se para assistir à fita, com um copo de uísque nas mãos para acalmar os nervos, ele descobriu que a cópia fora alterada pela companhia distribuidora. Não era simplesmente China pearl, mas o número 38 de uma série intitulada “Clássicos do Cinema Mudo”. Além de uma trilha sonora, fora acrescentado também um comentário. Don sabia que isso significava que o filme fora bastante cortado.

“Um dos maiores astros do cinema mudo foi Richard Barthelmess”, disse o narrador, em voz totalmente indiferente.

O ator apareceu na tela, andando por uma falsa rua de Cingapura. Estava cercado por filipinos e japoneses de Holly­wood, vestidos como malaios e que deveriam passar por chi­neses. O narrador continuou a falar, descrevendo a carreira de Barthelmess e depois resumindo o enredo do filme, a história de um testamento, uma pérola roubada, uma acusação falsa de assassinato; a primeira terça parte da fita fora cortada. Barthel­mess estava em Cingapura, procurando pelo verdadeiro assassi­no, que roubara “a famosa pérola do Oriente”. Ele era aju­dado por Vilma Banky, que possuía um bar “freqüentado pela ralé da beira do cais”, mas, “como uma garota de Boston, tem um coração do tamanho de Cape Cod...”

Don desligou o som. Durante dez minutos, ficou assistindo ao ator olhar com emoção para Vilma Banky, enfrentar e derru­bar os representantes da “ralé da beira do cais”, andar de barco de um lado para outro. Se Eva Galli aparecesse naquela versão tão cortada, Don esperava poder reconhecê-la. O bar de Vilma Banky abrigava diversas mulheres que abordavam os fregueses e bebiam langorosamente. Algumas daquelas prostitutas eram feias, outras muito bonitas. Don imaginou que qualquer uma delas poderia ser Eva Galli.

Mas depois apareceu uma garota, emoldurada pela porta do bar, o nevoeiro do estúdio turbilhonando atrás dela, espi­chando o beicinho para a câmara. Don contemplou o rosto sen­sual, de olhos grandes, sentindo um calafrio no coração. Ligou apressadamente o som.

“ ...a notória Sal de Cingapura”, estava dizendo o locutor. “Será que vai agarrar o nosso herói?”

É claro que não se tratava de Sal de Cingapura, pois isso não passava de uma invenção de quem escrevera o estúpido comentário. Mas Don não tinha a menor dúvida de que se tratava de Eva Galli. Ela atravessou o bar se requebrando e aproximou-se de Barthelmess, acariciando-lhe o rosto. Ele a repeliu, mas a mulher voltou a se aproximar, sentando-se em seu colo e levantando uma perna. O ator jogou-a no chão.

“E essa foi a sorte de Sal de Cingapura!”, exultou o lo­cutor.

Don desligou novamente os alto-falantes, parou o filme, e voltou ao início da seqüência em que Eva Galli entrava no bar.

Ficara esperando que ela fosse bonita, mas não era o que acontecia. Por baixo da maquilagem, era apenas uma jovem de aparência comum, muito diferente de Alma Mobley. Dava para perceber que apreciara intensamente o trabalho no cinema, desempenhando um papel que a divertira, o de uma jovem am­biciosa. Como ela teria gostado do estrelato! Como Ann-Vero­nica Moore, ela voltara a representar. Até mesmo Alma Mobley parecera apta a trabalhar no cinema. Ela poderia ter moldado aquele seu rosto bonito e passivo a mil personagens. Mas em 1925 ela calculara mal a situação, e cometera um erro. As câmaras expunham demais; o que se via ao olhar para Eva Galli na tela era uma jovem que nada tinha de simpática. A própria Alma jamais tivera uma aparência simpática. Até mesmo Anna Mostyn, quando se mostrava como realmente era, como acon­tecera na festa dos Barnes, parecia friamente perversa, impelida apenas por uma determinação inabalável. Por algum tempo, elas podiam despertar o amor humano, mas nada nelas era capaz de retribuir. E o que finalmente se descobrira era o seu vazio total. Podiam disfarçá-lo por algum tempo, mas nunca para sempre. Era esse um dos maiores erros que cometiam, um erro de seu próprio ser. Don ficou convencido de que poderia agora reconhecê-lo em qualquer lugar, em qualquer vigilante noturno que se apresentasse sob um disfarce de homem ou mulher.

 

No início de abril, Peter Barnes foi visitar Don. O rapaz, que parecera estar se recuperando do terrível inverno, afundou numa cadeira e passou as mãos pelo rosto.

—  Desculpe interrompê-lo. Se está muito ocupado, posso ir embora e voltar outro dia.

—  Pode vir procurar-me na hora em que quiser — disse Don. — Nunca deve pensar duas vezes sobre isso. E estou falando sério, Peter. Sempre terei o maior prazer em recebê-lo. É mais do que uma promessa, é uma certeza.

—  Eu já esperava mesmo que dissesse algo assim. Ricky vai partir dentro de uma ou duas semanas, não é mesmo?

—  Isso mesmo. Vou levá-los de carro ao aeroporto na próxima sexta-feira. Os dois estão muito excitados com a via­gem. Mas se quer falar com Ricky agora, basta telefonar. Tenho certeza de que ele virá imediatamente.

—  Não, por favor... Não há necessidade. Já é horrível demais eu vir aqui incomodá-lo.

—  Pelo amor de Deus, Peter! Qual é o problema que está havendo com você?

—  É que ultimamente tenho andado muito angustiado. E foi por isso que vim procurá-lo.

—  Estou contente que tenha tomado essa decisão, Peter. O que está acontecendo?

—  Estou vendo minha mãe a todo instante. Isto é, sempre sonho com ela. Tenho a sensação de que estou de volta à casa de Lewis, vendo novamente o tal de Gregory Bate agarrá-la... e sonho também com a maneira como ele ficou no chão do Rialto... todos aqueles pedaços de seu corpo esmigalhados se remexendo... recusando-se a morrer... — Peter estava à beira das lágrimas.

—  Já conversou com seu pai a respeito? Peter assentiu.

—  Tentei conversar. Quis contar-lhe tudo, mas ele se re­cusou a escutar. Não queria saber. Fitou-me como se eu fosse um garoto de cinco anos e lhe estivesse contando algum absur­do inventado. Por isso parei de falar, antes de ter começado realmente a contar qualquer coisa.

—  Não o pode culpar por isso, Peter. Nenhuma pessoa que não tenha estado conosco poderia acreditar. Se ele for capaz de escutar pelo menos uma parte sem lhe dizer que está doido, já será suficiente. Garanto que uma parte dele estava escutando. E uma parte dele estava acreditando. Tenho a im­pressão, Peter, de que há outro problema. Creio que você receia esquecer todo o horror e medo, pensando que assim estará também esquecendo sua mãe. Ela o amava profunda­mente, Peter. E agora que está morta, tendo morrido de uma maneira terrível, depois de dedicar a você todo o seu amor por dezessete ou dezoito anos, certamente ainda sobrou muita coisa. E a única coisa que você pode fazer é seguir em frente com esses resíduos de amor que sua mãe lhe deixou.

Peter assentiu novamente, e Don acrescentou:

—  Conheci certa vez uma moça que passava o dia inteiro numa biblioteca e dizia que tinha uma amiga que a protegia de todo o mal. Não sei o que aconteceu com ela, mas posso ga­rantir-lhe que ninguém é capaz de proteger alguém do mal. Nem do sofrimento. Tudo o que se pode fazer é não deixar que o mal e o sofrimento nos destruam, seguindo sempre em fren­te, até se chegar ao outro lado.

—  Sei que tudo isso é verdade, Don, só que me parece muito difícil reagir dessa maneira.

—  Mas é o que está fazendo neste exato momento, Peter. Vir até aqui e me falar é parte do esforço para chegar ao outro lado. Ir para Cornell será outro passo da maior importância. Terá tanto que estudar que não sobrará muito tempo para ficar pensando em Milburn.

—  Posso procurá-lo novamente, Don?  Depois que eu for para a universidade?

—  Pode procurar-me na hora em que bem quiser. E se eu não estiver em Milburn, pode estar certo de que lhe escreve­rei para informar onde estou, — Obrigado, Don.

 

Ricky enviou-lhe cartões-postais da França; Peter conti­nuou a visitá-lo. Don percebeu que, gradativamente, o rapaz estava começando a deixar os irmãos Bate e Anna Mostyn su­mirem no passado, no segundo plano de suas experiências. Com o tempo quente, com uma nova namorada que também estava indo para Cornell, Peter começou a relaxar.

Mas era uma falsa paz, e Don ainda esperava. Jamais dei­xava que Peter percebesse sua tensão, que se ia tornando maior a cada semana que passava.

Ele fazia questão de verificar todas as pessoas que se mu­davam para Milburn, dava uma olhada em todos os turistas que se registravam no Hotel Archer. Mas ninguém lhe trans­mitira a mesma sensação de medo que Eva Galli conseguira projetar através de cinqüenta anos. Depois de várias noites bebendo demais, Don discou o telefone de Florence de Peyser e disse:

— Aqui é Don Wanderley. Anna Mostyn está morta.

Na primeira vez, a pessoa no outro lado da linha simples­mente repôs o fone no gancho. Na segunda, uma voz de mu­lher disse:

— Não é aquele Sr. Williams do banco? Acho que seu empréstimo está prestes a ser saldado.

Na terceira vez, uma telefonista informou que aquele nú­mero fora desligado e o assinante estava com outro, que não constava do catálogo.

O outro componente da ansiedade de Don era saber que seu dinheiro estava acabando. Sua conta bancária não tinha mais que duzentos ou trezentos dólares, o suficiente apenas para uns dois meses, agora que estava novamente bebendo. Depois disso, teria que encontrar um emprego em Milburn. Só que qualquer tipo de emprego o impediria de patrulhar as ruas e lojas, procurando pelo ser cuja chegada Florence de Peyser prometera.

Ele passava duas ou três horas por dia, agora que o tempo estava quente, sentado num banco perto do playground do único parque de Milburn. “Não pode se esquecer da escala de tempo deles”, dizia a si mesmo, “não pode se esquecer que Eva Galli levou cinqüenta anos para ajustar contas com a Sociedade Chowder.” Uma criança crescendo despercebida em Milburn poderia proporcionar a Peter Barnes e a si próprio quinze ou vinte anos de aparente segurança, antes de começar a envol­vê-los em suas tramas. E quando isso acontecesse, seria alguém que todos conheceriam, uma pessoa com um lugar definido na comunidade de Milburn, não uma pessoa estranha. Desta vez, a criatura seria mais cuidadosa. O único limite para seu tempo de entrar em ação seria provavelmente o desejo de fazê-lo antes que Ricky morresse de causas naturais. O que significava que tudo poderia recomeçar dentro de dez anos.

Com quantos anos a criatura estaria agora? Oito ou nove anos. Talvez dez.

Se.

 

E foi assim que Don a encontrou. A princípio, ele ainda ficou em dúvida, observando a menina que aparecera uma tarde no playground. Ela não era bonita, nem mesmo atraente. Era sombria e sisuda, as roupas pareciam nunca estar limpas. As outras crianças evitavam-na, mas essa era uma atitude muito freqüente em se tratando de crianças. O ar de ausência que ela exibia, brincando sozinha numa gangorra, podia ser a defesa de uma criança exuberante contra a rejeição.

Mas talvez as crianças pudessem perceber as diferenças mais depressa do que os adultos.

Don sabia que teria de tomar uma decisão rapidamente, pois sua conta bancária se reduzira a apenas cento e vinte e cinco dólares. Mas se levasse a menina dali e estivesse enga­nado, como seria considerado? Um tarado?

Ele começou a levar a faca Bowie quando ia ao parque, presa no corpo, por baixo da camisa.

Mesmo que estivesse certo e a menina fosse o “lince” de Ricky, ela poderia ater-se a seu papel; se a levasse embora, ela poderia causar-lhe danos irreparáveis, não revelando coisa al­guma e esperando que a polícia os encontrasse. Mas os vigi­lantes noturnos queriam que todos eles morressem. Se estivesse certo, a menina certamente não deixaria a polícia e o sistema judiciário punirem-no por ela. Ela apreciaria conclusões mais rebuscadas.

A menina parecia não prestar a menor atenção a Don. Mas começou a aparecer nos sonhos dele, sentada de lado, observan­do-o sem qualquer expressão. Don tinha a sensação de que, mesmo quando a menina estava sentada num balanço, aparen­temente concentrada no que fazia, não deixava de observá-lo.

Don tinha apenas uma única pista concreta de que a me­nina não era a criança comum que aparentava ser e se atinha a isso com o desespero de um fanático. Na primeira vez em que a vira, ele fora dominado por um frio intenso.

 

Ele se tornou quase um acessório do parque, um homem imóvel que jamais cortava os cabelos e estava quase sempre barbado. Depois de algumas semanas, não havia quem não esperasse avistá-lo em seu lugar, assim como todos esperavam que os balanços continuassem em seus lugares. Ned Rowles publicara uma pequena reportagem a seu respeito em The Urbanite, no início da primavera. Por isso, Don era reconhe­cido e nenhum assistente do xerife o interpelava ou expulsava do parque. Ele era um escritor, presumivelmente estava pensando em um novo livro, e possuía uma casa em Milburn. Se as pessoas achavam que ele era meio estranho, ninguém se incomodava em ter um excêntrico famoso morando na cidade. Além do mais, todos sabiam que ele era amigo dos Hawthorne.

Don encerrou sua conta bancária, retirando o pouco dinheiro que ainda lhe restava. Não conseguia dormir, mesmo quando bebia demais. Sabia que estava mergulhando no mesmo processo que o levara ao colapso depois da morte de David. Todas as manhãs, colocava a faca com uma fita adesiva no lado do corpo, antes de seguir para o parque.

Sabia que, se não agisse rapidamente, um dia não conse­guiria mais levantar-se da cama. A indecisão iria impregnar e destruir todos os átomos de sua vida. Iria paralisá-lo por com­pleto. Desta vez, ele não seria nem ao menos capaz de encon­trar uma saída escrevendo um livro.

Certa manhã, fez um gesto para outra criança. Um garoto pequeno aproximou-se, timidamente.

—  Qual é o nome daquela menina? — indagou ele, apon­tando.

O menino arrastou os pés, meio atordoado, antes de res­ponder:

—  Angie.

—  Angie o quê?

—  Não sei.

—  Por que ninguém brinca com ela?

O garoto fitou-o com os olhos semicerrados, inclinando a cabeça; depois, chegando à conclusão de que podia confiar em Don, inclinou-se para a frente de uma maneira fascinante, le­vando as mãos em concha à boca para revelar um tenebroso segredo:

—  Porque ela é horrível!

E ele se afastou rapidamente. A menina continuava no balanço, para a frente e para trás, cada vez mais alto, indiferente a tudo, sem se preocupar com coisa alguma ao derredor.

Angie. Sentado ali no banco, sob o sol forte das onze ho­ras, Don sentiu um terrível calafrio por baixo das roupas suadas.

Naquela noite, no meio de algum sonho angustiado, Don caiu da cama. Levantou-se cambaleando, segurando a cabeça, com a sensação de que estava quebrada, como um prato largado no chão. Foi até a cozinha para pegar um copo de água, a fim de tomar uma aspirina, e viu — imaginou ver — Sears James sentado à mesa de jantar, jogando paciência. A alucinação fitou-o com uma expressão de repulsa e disse:

—  Já não está na hora de você endireitar? — E voltou a se concentrar na paciência.

Don voltou ao quarto e começou a jogar roupas dentro de uma valise. Pegou a faca Bowie de cima da cômoda e enrolou-a numa camisa.

Às sete horas da manhã, incapaz de esperar por mais tem­po, pegou o carro e seguiu para o parque. Sentou-se em seu banco habitual e ficou esperando.

A menina apareceu às nove horas, atravessando o gramado úmido. Usava um vestido rosa ordinário que Don já vira muitas vezes, movia-se rapidamente, envolta em seu isolamento. Esta­vam a sós pela primeira vez desde que Don pensara em vigiar o playground. Ele tossiu e a menina fitou-o.

Don pensou compreender que tudo aquilo, ele sentado em seu banco e temendo por sua sanidade mental, a menina indi­ferente a tudo, concentrada em brincar sozinha, fazia parte do jogo. Até mesmo a dúvida (que ainda se recusava a deixá-lo) era parte do jogo. Ela o cansara, enfraquecera, torturara, tão certamente quanto torturara John Jaffrey, antes de persuadi-lo a pular da ponte para um rio de águas geladas. Se é que ele estava certo...

—  Ei, você! — chamou Don.

A menina estava sentada num balanço, no outro lado do playground. Olhou para ele.

—  Ei, você.

—  O que está querendo?

—  Venha até aqui.

A menina deixou o balanço e começou a andar na direção de Don. Ele não conseguiu controlar-se, sentindo um medo súbito da menina. Ela parou a dois passos de Don, fitando-o com uma expressão ‘indecifrável nos olhos pretos.

—  Como é seu nome?

—  Angie. Ninguém jamais fala comigo.

—  Angie o quê?

—  Angie Maule.

—  Onde você mora?

—  Aqui. Na cidade.

—  Onde?

Ela apontou vagamente para leste, na direção geral do Hollow.

—  Mora com seus pais?

—  Meus pais estão mortos.

—  Então mora com quem?

—  Apenas umas pessoas.

—  Já ouviu falar de uma mulher chamada Florence de Peyser?

A menina sacudiu a cabeça. Talvez estivesse sendo sincera, talvez não. Don olhou para o sol, suando Intensamente, incapaz de falar.

—  O que você quer comigo? — perguntou a menina.

—  Quero que venha comigo.

—  Para onde?

—  Para um passeio.  

—  Está bem.

Tremendo, Don levantou-se do banco. Era tudo incrivel­mente simples. Incrivelmente simples... Ninguém os viu dei­xar o parque.

 

Qual foi a pior coisa que você já fez? Já seqüestrou uma menina sem amigos e levou-a de carro para longe sem dormir, quase sem comer, roubando quando seu próprio dinheiro se acabou... já apontou uma faca para o peito magro de uma menina?

“Qual foi a pior coisa?” Não o ato, mas as idéias em rela­ção ao ato, o filme ostentoso a se projetar na sua cabeça.”

 

—  Largue essa faca — disse a voz do seu irmão. — Está me ouvindo, não é mesmo, Don? Largue logo essa faca. Já não lhe vai servir mais para nada.

Don abriu os olhos e avistou o restaurante com cadeiras na calçada a seu redor, o mesmo letreiro dourado no outro lado da rua. David estava sentado à mesa na sua frente, ainda bonito, ainda irradiando preocupação, mas vestido num saco todo puído e esburacado, onde antes houvera um terno. As lapelas estavam cobertas por uma poeira fina, fios brancos irrompiam por toda parte.

O bife e o copo de vinho pela metade ainda estavam diante de Don; na mão esquerda tinha um garfo, na mão direita uma faca Bowie com o cabo de osso.

Don desabotoou um botão da camisa e meteu a faca entre esta e a pele.

—  Já estou cansado desses truques — disse ele. — Você não é meu irmão e não me encontro em Nova York. Estamos num quarto de motel na Flórida.

—  E você quase não tem dormido — disse o irmão. — Está realmente com um aspecto horrível. — David apoiou um cotovelo em cima da mesa e tirou da frente dos olhos os óculos escuros de aviador. — Mas talvez você esteja certo. O que já não o deixa mais tão perturbado, não é mesmo?

Don meneou a cabeça. Até mesmo os olhos do seu irmão estavam corretos. Parecia indecoroso que tivessem copiado in­clusive os olhos de seu irmão com tanta exatidão.

—  O que prova que estou certo — murmurou Don.

—  Está se referindo à garotinha no parque, não é mes­mo? Claro que estava certo em relação a ela. Tudo foi pre­parado para que a encontrasse... e não foi o que aconteceu?

—  Foi, sim.

—  Mas dentro de algumas horas, a pequena Angie, a pobre órfã, estará de volta ao parque. Não acha que daqui a uns dez ou doze anos ela estará na idade certa para Peter Barnes? É claro que o pobre Ricky já se terá matado muito antes disso.

—  Ele vai matar-se?

—  Eis algo que se pode providenciar com a maior facili­dade, meu caro irmão.

—  Não me chame de irmão.

—  Ora, mas somos de fato irmãos! — David sorriu, esta­lando os dedos.

No quarto do motel, um preto de aparência cansada re­costou-se em sua cadeira, de frente para ele, tirando um sax-tenor da correia em torno do seu pescoço.

—  É claro que já me conhece — disse ele, pondo o sa­xofone na mesinha-de-cabeceira.

—  O Dr. Rabbitfoot.

—  O único e incomparável.

O músico possuía um, rosto carregado e autoritário. Mas em vez do traje espalhafatoso de menestrel no qual Don o ima­ginara vestido, usava um terno marrom todo amarrotado, com fios iridescentes de um marrom mais claro, quase rosa, Tinha a aparência amarfanhada e cansada de quem passara a vida inteira na estrada. Os olhos do Dr. Rabbitfoot Cram tão vazios quanto os da menina, mas o branco ficara amarelado, como velhas teclas de piano.

—  Não o imaginei muito bem.

—  Não tem importância, pois não me ofendo com faci­lidade. Não poderia pensar em tudo. E para dizer a verdade, há muita coisa em que não pensou. — A voz suave e confi­dencial do músico possuía o mesmo timbre de seu saxofone. — Umas poucas vitórias fáceis não significam que tenha vencido a guerra. Parece que a todo instante tenho que lembrar as pes­soas de tal coisa. O que estou querendo dizer é que você me tem aqui, mas onde foi meter a si mesmo? Esse é um exemplo do tipo de coisa que não pode nunca esquecer, Don.

—  Tenho de fazer frente a você — disse Don.

O Dr. Rabbitfoot levantou a cabeça e riu:

e no meio da risada, que era áspera e explosiva, tão re­gular quanto uma pedra ricocheteando na água, Don estava no apartamento de Alma Mobley, todos os objetos luxuosos de volta aos antigos lugares ao derredor e Alma sentada numa al­mofada à sua frente.

—  O que não é nenhuma novidade, não é mesmo? — disse ela, ainda rindo. — Frente a frente... eis uma posição em que já fizemos muitas vezes, pelo que me lembro. E por trás também.

—  Você é desprezível — disse Don.

Aquelas transformações estavam começando a surtir efeito. Ele sentia o estômago arder, e as têmporas lhe doíam.

—  Pensei que já estivesse além de tais sentimentos — disse ela, em sua voz jovial. — Afinal, conhece mais a nosso respeito do que praticamente qualquer outra pessoa neste pla­neta. Se não gosta do nosso caráter, devia pelo menos respeitar nossas faculdades.

—  Tanto quanto respeito os truques inconsistentes de um mágico de circo. Ou de boate.

—  Neste caso, vou ter de ensiná-lo a respeitá-los.

Alma inclinou-se para a frente e era David, metade do crânio esmigalhado, o queixo quebrado, a pele aberta e sangran­do em uma dúzia de lugares.

—  Don? Pelo amor de Deus, Don...  será que não me pode ajudar?  Santo Deus, Don! — David tombou de lado sobre o tapete Bokhara, gemendo de dor. — Faça alguma coi­sa... pelo amor de Deus!

Don não podia mais suportar. Contornou rapidamente o corpo do irmão, sabendo que iriam matá-lo se por acaso se inclinasse para ajudar o irmão, abriu a porta do apartamento de Alma e gritou:

—  Não!

Descobriu que se encontrava numa sala apinhada e quente, alguma espécie de boate (“É apenas porque eu disse boate”, pen­sou ele; “ela aproveitou a palavra para me jogar aqui”), onde brancos e pretos estavam sentados juntos, de frente para um pequeno palco.

O Dr. Rabbitfoot estava sentado à beira do palco, sacu­dindo a cabeça em sua direção. O saxofone estava novamente pendurado em seu pescoço, e ele dedilhou as chaves enquanto falava:

—  Afinal, meu rapaz, você precisa respeitar-nos. Podemos pegar seu cérebro e transformá-lo em papa. — Desceu do palco e aproximou-se de Don. — Muito em breve... — e subita­mente, de maneira chocante, a voz de Alma passou a sair por sua boca imensa — ...não vai saber onde está ou o que faz, tudo por dentro de você estará tão misturado e confuso que não vai ter a menor idéia do que é ou não mentira.

Ele sorriu. Levantando o saxofone na direção de Don, vol­tou a falar com voz de Dr. Rabbitfoot:

—  Fique com este saxofone. Posso dizer às garotas que as amo através deste saxofone, o que provavelmente é uma men­tira. Ou posso dizer que estou com fome, o que certamente não é uma mentira. Ou posso dizer qualquer coisa linda, sem que ninguém saiba se é uma mentira ou não. Está vendo agora como a coisa é complicada?

—  Está quente demais aqui — murmurou Don. Ele sentia as pernas tremerem, a cabeça girava violentamente. Os outros músicos no palco estavam afinando seus instrumentos, alguns na base da nota lá, que o pianista indicava, outros percorrendo escalas. Don sentiu medo. Se eles começassem a tocar, a música poderia explodi-lo em mil pedaços. — Podemos ir embora?

—  Acho que você já percebeu tudo — respondeu o Dr. Rabbitfoot, o amarelo em torno das pupilas brilhando inten­samente.

O baterista bateu num prato e uma nota vibrante voou pelo ar úmido como se fosse um pássaro, atingindo diretamente o estômago de Don. Todos os músicos entraram em ação jun­tos, o som atingindo-o como uma gigantesca britadeira.

E ele estava andando por uma praia do Pacífico, ao lado de David, os dois descalços, uma gaivota deslizando lá em cima. Não queria olhar para David, que usava o terrível traje em farrapos da sepultura; por isso, olhou para a água e avistou ca­madas iridescentes e tremeluzentes de óleo boiando em torno deles.

—  Eles simplesmente cuidaram de tudo — David estava dizendo. — Ficaram observando-nos por tanto tempo que sa­bem de tudo, até o último detalhe. É por isso que não podemos vencer... é por isso que estou assim. Pode-se ter alguns gol­pes de sorte, como você conseguiu em Milburn. Mas pode estar certo de que eles não o deixarão escapar novamente. E, no final das contas, não é tão ruim assim.

—  Não? — sussurrou Don, quase disposto a acreditar, olhando além da cabeça horrível de David e avistando lá atrás, em cima de um penhasco, a “cabana” em que ele e Alma haviam ficado, vários milhares de anos antes.

—  É mais ou menos como na ocasião em que comecei a advogar — explicou David. — Pensava que era o máximo, Don. Estava convencido de que iria virar o escritório de pernas para o ar. Mas os velhos advogados da firma, Sears e Ricky, conheciam muitos truques, eram incrivelmente hábeis. E fui eu que acabei sendo virado de pernas para o ar. Assim, irmão... o jeito foi tratar de aprender, absorver tudo o que eles tinham para me ensinar. E cheguei à conclusão de que, se algum dia fosse para outro lugar, deveria ser exatamente como eles. Foi assim que progredi.

—  Sears e Ricky?

—  Isso mesmo, Hawthorne, James & Wanderley. D trio não era justamente esse?

—  De certa forma, era, sim — murmurou Don, piscando os olhos, sob o sol vermelho.

—  Na forma mais importante, Don. E é exatamente isso o que deve fazer agora. Precisa aprender a honrar seus supe­riores. A ter humildade. Respeito, se preferir assim. Afinal, essas criaturas vivem eternamente e nos conhecem por dentro e por fora. Quando se pensa que estão liquidadas, elas se desvencilham e voltam tão viçosas quanto flores novas... do mes­mo jeito que os velhos advogados na primeira firma em que trabalhei. Mas aprendi muito, Don, e agora tenho tudo isso.

David gesticulou a seu redor, abrangendo sua casa, o mar e o sol.

—  Tudo isso e eu também — disse Alma, agora ao lado dele, em seu vestido branco. — Como diz o seu tocador de saxofone, a coisa é complicada.

As manchas de óleo na água se aprofundaram, e as cores esquivas envolviam as canelas de Don.

—  O que está precisando, rapaz — disse o Dr. Rabbitfoot ao lado dele —, é encontrar uma saída. Tem um pingente de gelo na barriga e um furador na cabeça, está tão cansado quanto três semanas de verão da Geórgia. Tem que procurar aquela nota final. Em suma, filho, precisa de uma porta.

—  Uma porta... — repetiu Don.

Subitamente, descobriu-se olhando para uma porta alta de madeira, suspensa na areia. Um papel estava pregado na porta, ao nível dos olhos. Don adiantou-se e leu as letras datilografa­das no papel:

 

“Gulf View Motor Lodge

1. A gerência solicita que todos os hóspedes partam ao meio-dia ou paguem outra diária.

2.  Respeitamos sua propriedade; por favor, respeitem a nossa.

3.  Não é permitido fazer frituras, grelhados ou assados nas cabines.

4. A gerência deseja uma chegada cordial, uma estada feliz e uma partida intencional.

A gerência”

 

—  Está vendo? — disse David, atrás dele. — Uma par­tida intencional. Deve fazer o que a gerência está recomendando. Era sobre isso que eu estava falando. Abra a porta, Don.

Don abriu a porta e passou para o outro lado. O sol abra­sador da Flórida derramou-se sobre ele, estendendo-se sobre o asfalto faiscante do estacionamento. Angie estava de pé diante dele, segurando a porta aberta do seu carro. Don cambaleou e apoiou-se no lado escaldante de um furgão Chevrolet vermelho; o homem que se parecia com Adolf Eichmann, enclausurado em sua cabine de concreto, virou-se para fitá-lo. A luz rebrilha­va em seus óculos dourados.

Don entrou no carro.

—  Agora basta ligar o carro e sair daqui — disse o Dr. Rabbitfoot a seu lado, recostando-se no assento. — Encontrou aquela porta de que precisava, não é mesmo? Agora, tudo vai dar certo.

Don deu a partida no carro, seguindo pela pista de saída.

—  Qual é o caminho?

—  Qual é o caminho, filho? — o preto soltou uma risa­dinha, seguida por uma gargalhada explosiva. — Ora, o cami­nho para sair! É o único caminho que lhe resta. Vamos sim­plesmente resolver tudo em algum lugar nos campos ao redor, entende?

É claro que Don entendia. Além da estrada, para o outro lado de Panama City, ele podia avistar um campo amplo, como se fosse uma toalha quadriculada estendida sobre a relva, um moinho de vento girando lentamente, impelido por uma brisa perfumada.

—  Não! — disse ele. — Não faça isso!

—  Está tudo bem, filho. Basta continuar em frente.

Don olhou para a frente, divisou a linha amarela que divi­dia a estrada, e sorveu o máximo de ar, ofegante. Estava tão cansado que era capaz de adormecer ao volante.

—  Rapaz, você está fedendo como um bode. Precisa to­mar um bom banho de chuveiro.

Assim que a voz musical cessou, uma chuva forte começou a cair no pára-brisa. Don ligou os limpadores; assim que o pára-brisa ficou limpo, por um momento, pôde divisar lençóis de chuva ricocheteando na estrada, descendo de um céu que se tornara subitamente escuro.

Ele soltou um grito e, sem saber que ia fazê-lo, pisou fun­do no acelerador.

O carro saltou para a frente, guinchando, a chuva entrando pelas janelas abertas. Dispararam pela beira da estrada, mergu­lhando abaixo, na ribanceira.

 

A cabeça de Don bateu no volante e ele compreendeu que o carro estava rolando e jogando-o de um lado para outro no assento; depois o carro voltou a se endireitar, sempre descen­do, livremente agora, na direção dos trilhos do trem e do golfo. Alma Mobley estava parada nos trilhos, as mãos erguidas, como se isso pudesse detê-los, faiscando como uma lâmpada. O carro sacolejou ao passar por cima dos trilhos e continuou em frente, a velocidade aumentando, na direção da estrada se­cundária.

—  Seu branco azedo maldito! — gritou o Dr. Rabbitfoot, arremessado violentamente em cima de Don e depois jogado de volta para cima da porta.

Don sentiu uma dor súbita por baixo da camisa, passou a mão sobre ela e encontrou a faca. Desabotoou a camisa, gri­tando alguma coisa que não eram palavras. Quando o preto voltou a cair sobre ele, recebeu-o com a lâmina.

—  Maldito... branco azedo — conseguiu balbuciar o Dr. Rabbitfoot.

A faca bateu numa costela, os olhos do músico se arrega­laram, a mão se fechou em torno do pulso de Don, que fez força para a frente, com toda a sua energia. A faca de lâmina comprida passou pela costela e encontrou o coração.

O rosto de Alma Mobley apareceu através do pára-brisa, desvairado e todo pintado como o de uma velha megera, gri­tando freneticamente. A cabeça de Don estava espremida contra o pescoço do Dr. Rabbitfoot e ele sentia o sangue escorrendo sobre sua mão.

O carro se ergueu meio palmo do chão, levantado por uma explosão interna de vento que jogou Don contra a porta e ras­gou-lhe a camisa. Saltaram da estrada e cavalgaram a morte do vigilante noturno, mergulhando no golfo.

 

O carro atolou e Don ficou observando o corpo do homem se enroscar e encolher, como já acontecera com o de Anna Mos­tyn. Sentia um calor intenso no pescoço e compreendeu que a chuva havia cessado antes de ver os raios do sol atravessando a forma preta torturada, a se agitar freneticamente, de um lado para outro, no assento do carro. A água entrava por baixo das portas, alguns esguichos subiam para se ajustarem à última e macabra dança do Dr. Rabbitfoot. Lápis e mapas no painel também se levantaram, agitando-se em turbilhão.

Mil vozes gritando incessantemente cercavam Don.

— Agora, seu desgraçado — murmurou ele, esperando pelo gemido do espírito que habitava aquela forma a desa­parecer.

Um lápis a girar loucamente tornou-se subitamente invisível, uma luz esverdeada intensa a tudo coloria, como se fosse um relâmpago verde. “Branco azedo”, sibilou uma voz que não partia de lugar algum. O carro se sacudiu violentamente, hastes de cor igualmente violentas, como se o carro fosse um prisma, irromperam do centro da água, girando furiosamente.

Don mirou um ponto centímetros abaixo do redemoinho e estendeu as mãos rapidamente, jogando-se para a frente, no instante em que seus ouvidos registravam que o último silvo de voz se transformara num zumbido furioso e persistente.

As mãos se fecharam em torno de uma forma tão pequena que a princípio ele pensou ter errado. O movimento impeliu-o para a frente, as mãos unidas bateram na beira da janela e ele caiu do assento para a água.

A coisa em suas mãos picou-o ferozmente.

“Largue-me!”

Picou-o novamente e Don teve a sensação de que suas mãos estavam inchando, ficando cada vez maiores. Esfregou as palmas vigorosamente.

“Solte-me!”

Ele rolou a coisa pela palma da mão esquerda e apertou-a com os dedos da mão direita. Foi novamente picado, antes que a voz que reverberava em sua cabeça se reduzisse a um guincho débil e frenético.

Chorando agora, em parte pela dor, mas muito mais por uma sensação selvagem de triunfo que o fazia sentir como se estivesse brilhando tão intensamente quanto o sol, irradiando luz por todos os poros, Don usou a mão livre para pegar a faca no assento encharcado do carro e empurrar a porta do lado do passageiro, abrindo-a para as ondas incessantes do golfo.

No instante seguinte, a voz em sua mente voltou a aumen­tar de volume, como a trompa de um caçador. A vespa picou-o rapidamente, duas vezes, atingindo as bases dos dois dedos que a seguravam.

Soluçando, Don rastejou pelo assento, saindo para a água, que lhe batia na altura da cintura. “Está na hora de verificar o que acontece quando se atira no lince.” Ele se empertigou, avistando diversos homens, a cerca de setenta metros de distân­cia, parados diante de barracões, fitando-o atentamente, sob o sol abrasador. Um homem gordo, com um uniforme de guarda de segurança, estava correndo pela beira da água.

“Está na hora de verificar o que acontece. Está na hora de verificar.” Com a mão esquerda, ele acenou para que o guarda de segurança não se aproximasse. Baixou a mão direita para a água, a fim de atordoar a vespa.

O guarda avistou a faca em sua mão e levou a própria mão ao coldre, gritando:

—  Você está bem?

—  Afaste-se!

—  Escute aqui, companheiro...

“Solte-me!”

O guarda abaixou a mão, recuou alguns passos pela praia, o espanto expulsando a beligerância de seu rosto.

“Você tem que me largar!”

—  Uma ova que vou largar!

Don foi para a areia e ficou de joelhos, sempre apertando os dedos que seguravam a vespa: “Está na hora de atirar no lince”.

Ele ergueu a faca por cima da mão direita, inchada, arden­do intensamente, entreabriu os dedos ligeiramente. Quando uma parte do corpo da vespa ficou exposta, as pernas se debatendo, os quartos traseiros intumescidos, ele golpeou com a faca, indo atingir a palma da mão.

“Não! Não pode fazer isso!”

Don inclinou a mão e deixou cair na areia a parte cortada da vespa. Depois, tornou a golpear, cortando ao meio o que ainda restava dela.

“Não! Não! Não! Não! Não pode!”

—  Ei, moço... — disse o guarda de segurança, aproxi­mando-se novamente pela beira da água. — Cortou sua mão...

—  Não havia outro jeito.

Don largou a faca ao lado dos pedaços da vespa. A voz enorme e tonitruante se transformara num grito estridente e sibilante. O guarda, ainda de rosto vermelho e aturdido, olhou para os pedaços da vespa, ainda se contorcendo freneticamente na areia.

—  Uma vespa... — murmurou ele. — Pensei que talvez tivesse sido aquela tempestade maluca que o deixou... ah... — Coçou a boca. — Provavelmente essa vespa o picou de jeito, hein?  Mas eu não imaginava que essas coisas viviam quando estão... ah...

Don estava enrolando a camisa em torno do ferimento na mão, depois de tê-la mergulhado na água salgada, para acelerar a cura.

—  Acho que estava querendo se vingar da filha da mãe, não é mesmo? — murmurou o guarda.

—  Isso mesmo — respondeu Don, fitando os olhos do guarda e soltando uma risada. — Era exatamente o que eu queria e foi o que consegui.                   

— Conseguiu mesmo. — Os dois ficaram observando, em silêncio, por um momento, os pedaços cortados da vespa a se debaterem na areia úmida. — Acho que essa coisa nem mesmo vai desprender um fantasma.

—  Não parece provável.

Don empurrou com o sapato um pouco de areia, para co­brir os pedaços da vespa que se contorciam. Mesmo assim, as ondulações e depressões na areia indicavam que a coisa conti­nuava a se retorcer.

—  A maré vai subir e levá-la embora — disse o guarda. Ele gesticulou na direção dos barracões, dos homens curiosos que observavam a cena. — Podemos ajudá-lo em alguma coi­sa? Se quiser, podemos chamar um reboque para tirar seu carro da água.

—  É uma boa idéia. Obrigado.

—  Tem algum lugar para onde precisa ir com pressa?

— Não com pressa — respondeu Don, compreendendo subitamente o que precisava fazer em seguida. — Mas preciso encontrar-me com uma mulher em San Francisco.

Os dois começaram a se encaminhar para os barracões e para os homens curiosos. Don parou no meio do caminho e olhou para trás; viu apenas areia. Agora, nem mesmo podia determinar o lugar em que enterrara a criatura.

—  A maré vai levar a desgraçada até a metade do caminho para a Bolívia — disse o guarda gordo. — Não precisa mais se preocupar, amigo. Ela vai ser devorada pelos peixes antes das cinco horas.

Don enfiou a faca no cinto e sentiu uma onda de amor in­tenso por tudo o que era mortal, por tudo o que possuía uma vida breve e definida, por tudo o que podia gerar e inevitavel­mente morrer, por tudo o que podia viver, como aqueles ho­mens, parados ao sol. Sabia que era apenas alívio e adrenalina, mas nem por isso deixava de ser uma emoção mística, talvez sagrada. Querido Sears. Querido Lewis. Querido David. Que­rido Desconhecido. E querido Ricky, querida Stella, querido Peter. Queridos irmãos, querida humanidade.

—  Para um cara cujo carro está enferrujando na água salgada, você parece bastante feliz — comentou o guarda.

—  E estou mesmo — respondeu Don. — Mas não me, peça para explicar-lhe por quê.

 

                                                                                            Peter Straub

 

 

                      

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