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ROBÔS E O IMPÉRIO / Isaac Asimov
ROBÔS E O IMPÉRIO / Isaac Asimov

 

 

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ROBÔS E O IMPÉRIO

 

AURORA

O Descendente

      Gladia sentiu a espreguiçadeira para ter certeza de que não estava muito úmida e depois se sentou. Um toque no botão de comando ajustou-a de forma a lhe permitir ficar meio reclinada, enquanto outro ativava o campo diamagnético para dar-lhe, como de costume, a sensação de completo relaxamento. E por que não? Ela estava, na realidade, flutuando um centímetro acima do tecido.

      Era uma noite quente e agradável, o tipo de noite que fazia do planeta Aurora uma beleza, perfumada e estrelada.

      Com uma pontada de tristeza, ela examinou as numerosas e minúsculas centelhas que pontilhavam o céu com desenhos, fagulhas as mais brilhantes, porque ela dera ordem  para que as luzes de sua casa fossem diminuídas.

      Era curioso, ficou imaginando, que nunca tivesse aprendido os nomes das estrelas e, nas vinte e três décadas de sua vida, nunca tivesse descoberto qual era qual.

      Seu planeta natal, Solaria, orbitava em torno de uma delas, aquela na qual, nas primeiras três décadas de sua vida, tinha pensado simplesmente como "o sol".  Gladia havia sido chamada outrora Gladia Solaria. Fora quando chegara a Aurora, vinte décadas atrás - duzentos Anos Galácticos Padrões o Que significou uma forma não muito amistosa de determinar seu nascimento estrangeiro. Um mês antes tinha sido o aniversário do bicentenário de sua chegada, fato que ela não assinalou porque não tinha especial interesse em pensar naqueles dias. Antes disso, em Solaria, tinha sido Gladia... Delmarre.

      Mexeu-se, constrangida. Tinha quase esquecido seu sobrenome. Teria sido por haver decorrido tanto tempo? Ou apenas tinha se esforçado para esquecê-lo?

      Durante todos aqueles anos, nunca lamentara nem sentira saudades de Solaria.

      Mas e agora?

      Seria por que ela agora, repentinamente, tinha se descoberto uma sobrevivente de Solaria? Este havia desaparecido - uma recordação histórica - e ela ainda vivia? Sentia falta agora por esse motivo?

      Franziu as sobrancelhas. Não, não sentia falta, decidiu com firmeza. Não, não sentia saudades nem desejava voltar lá. Era apenas a angústia peculiar de alguma coisa que tinha ficado tão distante dela - embora destrutivamente - e desaparecido.

      Solaria! O último dos mundos espaciais a ser colonizado e transformado num lar para a humanidade. E em conseqüência, por uma lei misteriosa de simetria, também o primeiro a perecer?

      O primeiro? Isso implicaria um segundo, um terceiro, e assim por diante?

      Gladia sentiu sua tristeza aumentar. Havia os que pensavam haver, de fato, essa implicação. Se assim fosse, Aurora, seu lar adotado havia muito, o primeiro dos Espaciais a serem colonizados, seria, por essa mesma lei de simetria, o último dos cinqüenta a morrer. Nesse caso, mesmo na pior das hipóteses, podia superar sua própria existência e, assim sendo, isso teria de acontecer.

      Seus olhos tornaram a se virar para as estrelas. Era desanimador. Era-lhe impossível destacar qual daqueles pontos indistinguíveis de luz era o sol de Solaria. Imaginou que fosse um dos mais brilhantes, mas havia centenas desse tipo.

      Gladia ergueu o braço e fez o que identificava para si mesma como seu "gesto de Daneel". O fato de estar escuro não importava.

      O robô Daneel Olivaw chegou quase imediatamente. Quem quer que o tivesse conhecido um pouco nas vinte décadas anteriores, quando fora desenhado pela primeira vez por Han Fastolfe, não teria notado conscientemente nenhuma mudança nele. Com seu rosto largo e ossudo, os brônzeos cabelos curtos penteados para trás, os olhos azuis, o corpo alto, bem construído e perfeitamente humanóide, ele teria parecido tão jovem e impassivelmente calmo como sempre.

      - Posso lhe ser útil, Senhora Gladia? - perguntou, com voz tranqüila.

      - Sim, Daneel. Qual daquelas estrelas é o sol de Solaria?

      Daneel não olhou para cima. Respondeu:

      - Nenhuma delas, Senhora Gladia. Nesta época do ano, o sol de Solaria não aparece antes das 3:20.

      - Oh! - Gladia sentiu-se desanimada. De certa forma, tinha concluído que cada estrela em que estivesse interessada seria visível a qualquer hora que lhe ocorresse olhá-la. Claro, elas surgiam e desapareciam em horas diversas. Sabia disso muito bem. - Então, estive olhando à toa.

      - A julgar pelas reações humanas - disse Daneel, como numa tentativa de consolar - as estrelas são lindas mesmo que uma em particular não seja visível.

      - Acho que sim - retrucou Gladia aborrecida e, com um toque brusco, ajustou a espreguiçadeira para uma posição sentada, levantando-se. - Contudo, era o sol de Solaria que eu queria ver, mas isso não quer dizer que me dispusesse a ficar sentada aqui até 3:2O.

      - Mesmo que ficasse, a senhora iria precisar de lentes de aumento.

      - Lentes de aumento?

      - Ele não é visível a olho nu, Senhora Gladia.

      - Só faltava essa! - Gladia alisou a calça. - Eu devia tê-lo consultado antes, Daneel.

      Quem quer que tivesse conhecido Gladia vinte décadas atrás, quando ela chegara a Aurora, teria notado alguma mudança. Ao contrário de Daneel, ela era apenas humana.

      Ainda tinha 1,55m de altura, quase dez centímetros abaixo da altura ideal para uma mulher Espacial. Gladia tinha conservado cuidadosamente seu perfil esbelto e não havia sinal de fraqueza ou rigidez em seu corpo. Havia, porém, alguns cabelos grisalhos em sua cabeça, rugas finas em torno dos olhos, e a pele era levemente fosca. Podia ainda viver mais umas dez ou doze décadas, mas era impossível negar que já não era mais jovem. Isso, contudo, não a incomodava.

      - Daneel, você pode identificar todas as estrelas? - perguntou ela.

      - Conheço as que são visíveis a olho nu, Senhora Gladia.

      - E sabe quando elas surgem e se põem?

      - Sim, Senhora Gladia.

      - E qualquer coisa a respeito delas?

      - Sim, Senhora Gladia. O Dr. Fastolfe certa vez pediu-me que reunisse todos os dados astronômicos para que ele pudesse tê-los à mão sem precisar consultar seu computador. Ele costumava dizer que era mais agradável recebê-los de mim do que do seu computador. - Depois, como que antecipando a pergunta seguinte: - Ele não explicou a razão disso.

      Gladia ergueu o braço esquerdo e fez o gesto adequado. Sua casa iluminou-se imediatamente. Na lua suave que a envolvia agora, ela ficou subliminarmente consciente dos vultos indistintos de vários robôs, mas não lhes prestou atenção. Em qualquer casa bem administrada, havia sempre robôs ao alcance dos seres humanos, tanto por segurança como para tarefas.

      Gladia deu um último olhar fugidio ao céu, onde as estrelas agora esmaeciam na luz difusa. Encolheu os ombros ligeiramente. Tinha sido quixotesca. Que bem lhe traria ter sido capaz de ver o sol daquele mundo agora perdido, um ponto indistinto entre tantos? Ela podia da mesma forma escolher um ao acaso, dizer a si mesma que era o sol de Solaria e olhá-lo.

      Fixou a atenção em R. Daneel, que esperava pacientemente, a superfície do rosto mergulhada na sombra.

      Ela tornou a pensar quão pouco ele tinha mudado desde quando ela o vira ao chegar à casa do Dr. Fastolfe, tanto tempo atrás. Ele tinha sofrido reparos, claro. Ela sabia disso, mas era um conhecimento vago, daqueles que se costuma pôr de lado e manter à distância.

      Era parte do enjôo geral que se confirmou também nos seres humanos. Os Espaciais podiam se vangloriar de sua saúde de ferro e do seu período de vida de trinta a quarenta décadas, porém não eram inteiramente imunes ao desgaste da idade. Um dos fêmures de Gladia tinha sido implantado numa base do quadril de titânio-silicone.

      Seu polegar esquerdo era completamente artificial, embora ninguém pudesse dizer isso sem cuidadosos ultra-sonogramas. Mesmo alguns dos seus nervos tinham sido reforçados.

      Isso seria verdade para cada Espacial de idade similar em qualquer dos cinqüenta planetas do Espaço (não, quarenta e nove, pois agora Solaria não podia mais ser levado em conta).

      Todavia, qualquer referência a coisas assim era uma obscenidade inqualificável. Os registros médicos envolvidos, que tinham de existir desde que um tratamento subseqüente fosse necessário, não eram revelados em hipótese alguma. Cirurgiões, cujas rendas eram consideravelmente mais altas que as do próprio Presidente, gozavam dessa situação privilegiada em parte porque eram virtualmente banidos da sociedade educada. Afinal de contas, eles sabiam.

      Tudo era parte da fixação Espacial da vida longa, da sua repugnância em admitir que a velhice existia, mas Gladia não protelava nenhuma análise de causas. Ela se sentia impacientemente mal ao pensar sobre si mesma em relação àquilo. Se ela tivesse um mapa tridimensional de si mesma com todas as porções protéticas, todos os reparos assinalados em vermelho contra o fundo cinza do seu eu natural, um rosado geral devia aparecer à distância. Ou era assim que ela imaginava.

      Seu cérebro, contudo, ainda estava intacto, completo, e, enquanto fosse assim, ela estaria intacta e completa, o que quer que acontecesse com o resto do seu corpo.

      Isso a fez voltar a Daneel. Apesar de conhecê-lo desde vinte décadas antes, fora apenas no último ano que ele lhe pertencera. Quando Fastolfe morrera (seu fim fora apressado talvez pelo desespero), legara tudo à cidade de Eos, o que era um procedimento bastante comum. Duas coisas, no entanto, ele tinha deixado para Gladia (além de confirmá-la na posse de sua casa, seus robôs e outros bens, juntamente com as terras a eles pertencentes).

      Uma tinha sido Daneel.

      Gladia perguntou:

      - Você lembra de tudo que confiou à memória no decorrer de vinte décadas, Daneel?

      Daneel respondeu com ar sério:

      - Acho que sim, Senhora Gladia. Se esqueci alguma coisa, não saberia, pois teria sido esquecida e eu não poderia lembrar, mesmo tendo sido memorizada.

      - Não consigo compreender isso - replicou Gladia. - Você pode lembrar, mas é incapaz de pensar num fato no momento. Eu freqüentemente tenho uma coisa na ponta da língua, por assim dizer, e sou incapaz de lembrá-la.

      - Não compreendo, senhora - disse Daneel. - Se eu sei de alguma coisa, esta coisa certamente estará disponível quando eu precisar dela.

      - Recuperação perfeita?

      Estavam caminhando devagar para a casa.

      - Mera recuperação, senhora. Fui construído assim.

      - Por quanto tempo mais?

      - Não compreendo, senhora.

      - Quero dizer, quanto seu cérebro agüentará? Com um pouco mais de vinte décadas de recordações acumuladas, quanto tempo mais ele poderá prosseguir?

      - Não sei, senhora. Até agora não senti dificuldades.

      - Pode não sentir... até descobrir subitamente que não é mais capaz de se lembrar.

      Daneel ficou pensativo durante um instante.

      - Isso talvez aconteça, senhora.

      - Você sabe, Daneel, nem todas as suas recordações são igualmente importantes.

      - Não posso avaliar isso, senhora.

      - Outros podem. Será perfeitamente possível limpar seu cérebro, Daneel, e depois, sob supervisão, tornar a enchê-lo de recordações importantes, contendo apenas... digamos, dez por cento do total. Você seria então capaz de prosseguir durante séculos, mais do que antes. Com um tratamento desse tipo, você poderia continuar indefinidamente. Claro, é um procedimento caro, mas eu não faria objeção a isso. Valeria a pena.

      - Eu seria consultado a respeito, senhora? Pediriam minha concordância para esse tratamento?

      - Sem dúvida. Eu não lhe daria uma ordem a esse respeito. Seria uma traição à confiança do Dr. Fastolfe.

      - Obrigado, senhora. Nesse caso, devo dizer-lhe que jamais me submeterei voluntariamente a tal procedimento, a menos que eu mesmo reconheça ter realmente perdido essa minha função.

      Tinham chegado à porta e Gladia parou. Francamente confusa, ela Perguntou:

      - Por que jamais, Daneel?

      Daneel respondeu, em voz baixa:

      - Há recordações que não posso me arriscar a perder, senhora, seja Por inadvertência ou por deficiência de julgamento por parte dos que vão orientar o assunto.

      - Como o aparecimento e desaparecimento das estrelas?... Desculpe, eel, não estava querendo brincar. A que recordações está se referindo?

      Daneel respondeu, com a mesma voz baixa:

      - Senhora, refiro-me às minhas recordações do meu antigo colega, o Terráqueo Elijah Baley.

      Gladia ficou parada, estarrecida, pois havia sido Daneel, finalmente, quem tomara a iniciativa, fazendo um sinal para a porta abrir.

      O robô Giskard Reventlov estava esperando na sala de estar e Gladia o cumprimentou com o aperto no coração que sempre a assaltava quando o encarava.

      Ele era primitivo, em comparação com Daneel. Tratava-se evidentemente de um robô com um rosto que não demonstrava qualquer expressão humana, com olhos que luziam com um tom avermelhado, como se podia notar se estivesse bastante escuro. Enquanto Daneel usava roupas, Giskard dava apenas a ilusão de estar vestido - uma ilusão hábil, contudo, pois fora a própria Gladia quem desenhara sua roupa.

      - Giskard - disse ela.

      - Boa noite, Senhora Gladia - respondeu Giskard com uma leve inclinação de cabeça.

      Gladia lembrou as palavras de Elijah Baley muito tempo atrás, como um sussurro no íntimo do seu cérebro:

      - Daneel cuidará de você. Será ao mesmo tempo seu amigo e protetor. E você precisa ser amiga dele... por mim. Contudo, é a Giskard que eu quero que você ouça. Deixe que ele seja seu conselheiro.

      Gladia franzira o cenho.

      - Por que ele? Não sei se gosto dele.

      - Não lhe peço que goste dele. Peço-lhe que confie nele.

      E não dissera por quê.

      Gladia se esforçara para confiar no robô Giskard, mas ficara contente por não ter que tentar gostar dele. Alguma coisa nele a fazia sentir arrepios.

      Tanto Daneel como Giskard foram parte integrante de sua casa durante muitas décadas, no decorrer das quais Fastolfe mantivera sua posse. Somente no leito de morte Han Fastolfe realmente transferira a propriedade. Giskard fora o segundo item, após Daneel, que Fastolfe deixara para Gladia.

      Ela dissera ao velho:

      - Daneel é o bastante, Han. Sua filha Vasilia gostará de ficar com Giskard. Tenho certeza disso.

      Fastolfe estava deitado na cama, em silêncio, de olhos fechados, parecendo a Gladia mais calmo do que o vira durante anos. Ele não respondera imediatamente, e durante um instante ela pensara que o velho tinha se despedido da vida tão silenciosamente que ela nem notara. Gladia apertara convulsivamente a mão dele e seus olhos se abriram.

      - Pouco me importo - sussurrou - com minhas filhas biológicas, Gladia. Durante vinte séculos, só tive uma filha funcional, e esta tem sido você. Quero que você fique com Giskard. Ele é valioso.

      - Por que ele é valioso?

      - Não sei dizer, mas sempre achei sua presença reconfortante. Conserve-o sempre, Gladia. Prometa-me.

      - Prometo - respondeu ela.

      E então seus olhos se abriram uma última vez e sua voz, encontrando uma derradeira reserva de energia, dissera, num tom quase natural:

      - Eu a amo, Gladia, minha filha.

      - Eu o amo, Han, meu pai - replicara a moça.

      Foram estas as últimas palavras que ele dissera e ouvira. Gladia verificara que estava segurando a mão de um morto, e durante algum tempo não conseguiu largá-la.

      Portanto, Giskard lhe pertencia. E, no entanto ele a deixou apreensiva, sem que ela soubesse por quê.

      - Bem, Giskard - disse ela - estive tentando ver Solaria no céu entre as estrelas, mas Daneel me disse que ele só seria visível a partir de 3:20 e que mesmo assim eu iria precisar de lentes de aumento. Você sabia disso?

      - Não, senhora.

      - Devo ficar esperando esse tempo todo? Que acha?

      - Sugiro, Senhora Gladia, que seria melhor esperar na cama.

      Gladia se controlou.

      - Acha? E se eu preferir ficar em pé?

      - Só fiz uma sugestão, senhora, mas a senhora terá um dia trabalhoso amanhã, e sem dúvida lamentará perder uma noite de sono se ficar acordada.

      Gladia franziu as sobrancelhas.

      - O que vai fazer meu dia trabalhoso amanhã, Giskard? Não sei de nenhuma dificuldade prevista.

      - A senhora tem um encontro, senhora, com um tal Levular Mandamus - replicou o robô.

      - Tenho? Quando isso aconteceu?

      - Há uma hora. Ele fotofonou e eu tomei a liberdade...

      - Você tomou a liberdade? Quem é ele?

      - É membro do Instituto de Robótica, senhora.

      - Então é um auxiliar de Kelden Amadiro.

      - Sim, senhora.

      - Compreenda, Giskard, que não tenho o menor interesse em ver Mandamus ou alguém ligado àquele sapo venenoso do Amadiro. Assim, se você tomou a liberdade de marcar um encontro com ele em meu nome, tome agora mesmo a liberdade de fonar para ele novamente e cancelá-lo.

      - Se a senhora confirmar isso como uma ordem, senhora, e fazê-la tão forte e definitiva como pode, tentarei obedecer. Eu talvez não seja capaz disso. Na minha opinião, a senhora estará se causando um mal se desfizer o encontro, e eu não posso permitir que isso aconteça por minha causa.

      - Seu julgamento possivelmente estará errado, Giskard. Quem é esse homem que me prejudicará se não o vir? O fato de ser membro do Instituto de Robótica dificilmente o tornará importante para mim.

      Gladia sabia perfeitamente que estava desabafando sua raiva em Giskard sem muita razão. Ela estava preocupada com as notícias do abandono de Solaria e embaraçada pela ignorância que a levara a procurar Solaria num céu onde ele não estava.

      Claro, tinha sido Daneel, cujo conhecimento tornara seu erro tão evidente, embora ela não tivesse ficado zangada com ele: mas Daneel parecia humano, e por isso Gladia automaticamente tratava-o como se fosse. A aparência era tudo. Giskard parecia robô, o que levava qualquer um a concluir facilmente que ele não possuía sentimentos a serem feridos.

      E, com certeza, Giskard não reagiria absolutamente à rabugice de Gladia (Daneel também não teria reagido... se fosse com ele).

      - Descrevi o Dr. Mandamus - disse ele - como membro do Instituto de Robótica, porém ele é, talvez, mais que isso. Nos últimos anos, ele tem sido o braço direito do Dr. Amadiro. Isso o torna importante, e ele não deve ser levianamente ignorado. Não é bom ofender um homem como o Dr. Mandamus, senhora.

      - Não, Giskard? Pouco me importa o Dr. Mandamus, e muito menos Amadiro. Suponho que você ainda se lembre: em outros tempos, quando ele, eu e o mundo éramos jovens, Amadiro esforçou-se para provar que o Dr. Fastolfe era assassino, e foi apenas por um quase milagre que suas maquinações fracassaram.

      - Lembro-me muito bem, senhora.

      - Fico aliviada. Temi que, em vinte décadas, você tivesse esquecido. Durante todo esse tempo, não tive o menor contato com Amadiro ou alguém ligado a ele, e pretendo continuar assim. Não me importo com o mal que isso possa me causar ou com as conseqüências que possa trazer. Não verei esse doutor-qualquer-coisa e, no futuro, não marque encontros em meu nome sem me consultar ou pelo menos sem explicar que tais encontros dependem de minha aprovação.

      - Sim, senhora - disse Giskard - mas posso chamar sua atenção para...

      - Não, não pode - retrucou Gladia e afastou-se dele.

      Houve um silêncio enquanto ela subiu três degraus, e nesse instante Giskard falou com voz calma:

      - Senhora, devo lhe pedir que confie em mim.

      Gladia parou. Por que teria ele usado essa expressão?

      Ela tornou a ouvir aquela voz do passado: "Não lhe peço que goste dele. Peço-lhe que confie nele."

      Ela apertou os lábios e franziu o cenho. Relutante, sem querer, virou-se.

      - Bem - disse, irritada - que quer dizer com isso, Giskard?

      - Apenas que, enquanto o Dr. Fastolfe viveu, senhora, sua política prevaleceu em Aurora e em todos os planetas Espaciais. Como resultado, foi permitido aos povos da Terra migrar livremente para vários planetas convenientes na Galáxia, e os que agora chamamos planetas dos Colonizadores floresceram. Contudo, o Dr. Fastolfe agora está morto e seus sucessores não têm o seu prestígio. O Dr. Amadiro conservou vivo seu próprio ponto de vista antiterra, e é bem possível que eles agora possam triunfar e que uma agressiva política contra a Terra e os planetas dos Colonizadores venha a ser inaugurada.

      - Se isso acontecer, Giskard, que posso eu fazer?

      - Pode receber o Dr. Mandamus e descobrir o que o faz tão ansioso para vê-la, senhora. Adianto-lhe que ele está muito ansioso para marcar o encontro o mais cedo possível. Pediu para vê-la às 8:00.

      - Giskard, eu nunca vejo ninguém antes do meio-dia.

      - Expliquei isso, senhora. Tive como resposta sua ansiedade em vê-la no café da manhã, apesar da minha explicação, o que me deu a medida de seu desespero. Acho importante descobrir por que ele está tão desesperado.

      - Na sua opinião, portanto, se eu não o vir, isso me causará mal pessoalmente? Não pergunto se ele causará algum mal à Terra ou aos Colonizadores, ou isto ou aquilo. Irá me causar mal?

      - Senhora, isso talvez impeça a Terra e os Colonizadores de continuarem a colonizar a Galáxia. Esse sonho se originou na mente do Detetive Elijah Baley há mais de vinte décadas. O mal à Terra será a profanação de sua memória. Estarei errado ao pensar que qualquer mal à sua memória será sentido pela senhora como se fosse algo pessoal?

      Gladia ficou abalada. Duas vezes em apenas uma hora Elijah Baley tinha sido incluído na conversa. Ele se fora há muito tempo - um Terráqueo de vida curta, cuja morte já completou mais de dezesseis décadas - e no entanto a simples menção do seu nome ainda a fazia estremecer.

      - Como as coisas podem se tornar subitamente tão sérias? - perguntou Gladia.

      - Não foi de súbito, senhora. Durante vinte décadas o povo da Terra e os Espaciais estiveram seguindo caminhos paralelos, sendo-lhes evitado convergir para o conflito pela sábia política do Dr. Fastolfe. Contudo, sempre houve uma forte oposição, movimento que o Dr. Fastolfe teve de enfrentar o tempo todo. Agora que ele está morto, a oposição está muito mais forte. O abandono de Solaria aumentou em muito o poder da oposição, que em breve pode ser a força política dominante.

      - Por quê?

      - Isso é um indício claro, senhora, de que a força dos Espaciais está declinando, e muitos Auroreanos podem sentir que uma ação enérgica deve ser tomada: agora ou nunca.

        - E você acha que o fato de eu ver esse homem é importante para preservar tudo isso?

      - Exato, senhora.

      Gladia ficou silenciosa por um instante e tornou a lembrar, embora revoltada, que em outros tempos havia prometido a Elijah confiar em Giskard.

      - Bem - replicou - não quero ver esse homem e não acho que isso serviria para alguma coisa boa... mas, está bem, vou vê-lo.

      Gladia estava dormindo e a casa se achava às escuras... pelos padrões humanos. Estava, porém, desperta, com movimento e ação, pois havia muito trabalho à espera dos robôs, que podia ser feito com luz infravermelha.

      A casa tinha de ser posta em ordem após a inevitável desordem de um dia de atividade. Suprimentos tinham que ser trazidos, o lixo tinha de ser eliminado, objetos precisavam ser limpos, esfregados ou guardados, utensílios tinham que ser conferidos, e havia sempre vigilância.

      As portas dispensavam fechaduras, não eram necessárias. Não havia crime violento de espécie alguma em Aurora, tanto contra os seres humanos como contra a propriedade. Não podia haver nada disso, uma vez que cada casa e cada ser humano eram, o tempo todo, protegidos por robôs. Isso era muito conhecido e confirmado.

      O preço dessa calma era que os robôs-guardas tinham de permanecer em seus lugares. Nunca eram utilizados - pela simples razão de que estavam sempre lá.

      Giskard e Daneel, cujos potenciais eram mais intensos e gerais que os dos outros robôs da casa, não tinham deveres específicos, a menos que se considerasse dessa forma o fato de serem responsáveis pelo desempenho adequado de todos os outros robôs.

      Às 3:00, eles tinham completado sua ronda pelos gramados e área arborizada, para ter certeza de que todos os guardas externos estavam executando suas funções devidamente e que não tinham surgido problemas.

      Encontraram-se no limite sul dos terrenos da moradia e durante certo tempo conversaram numa língua abreviada de fábula. Compreendiam-se muito bem, em virtude de muitas décadas de comunicação entre si, e não lhes era necessário usar todas as formas de fala humana.

      Daneel disse, num sussurro inaudível:

      - Nuvens. Invisíveis.

      Se Daneel estivesse falando para ouvidos humanos, teria dito: "Como vê, amigo Giskard, o céu está nublado. Se Senhora Gladia tivesse esperado a oportunidade de ver Solaria, não conseguiria vê-lo."

      E a réplica de Giskard foi:

      - Previsto. Entrevista, em vez disso - que era o equivalente a: "Assim foi dito na previsão do tempo, amigo Daneel, e pode ter sido usado como uma desculpa para mandar a Senhora Gladia para a cama cedo. Contudo, me parece ser mais importante enfrentar o problema com franqueza e persuadi-la a permitir essa entrevista sobre a qual já lhe falei."

      - Parece-me, amigo Giskard - retrucou Daneel - que o motivo principal é o fato de você ter achado difícil a persuasão em razão dela estar preocupada com o abandono de Solaria. Estive lá uma vez com o colega Elijah, quando a Senhora Gladia ainda era solariana.

      - Eu sempre soube - falou Giskard - que a Senhora Gladia não tinha sido feliz no seu planeta natal, que ela deixara seu mundo de boa vontade e não tinha a menor intenção de voltar a ele em nenhum momento. Mas concordo com você de ela ter ficado perturbada por ter a história de Solaria chegado a um fim.

      - Não compreendo essa reação da Senhora Gladia - disse Daneel - mas há muitos momentos em que as reações humanas não parecem decorrer logicamente dos acontecimentos.

      - É isso que torna tão difícil, às vezes, descobrir o que molesta ou não um ser humano. - Giskard podia ter dito isto com um suspiro, até mesmo insolente, se fosse humano. No caso, simplesmente afirmou, com a fria constatação de uma situação difícil. - Este é um dos motivos que me fazem pensar que as Três Leis da Robótica são incompletas ou insuficientes.

      - Você já disse tal coisa antes, amigo Giskard; eu procurei acreditar nisso e fracassei - replicou Daneel.

      Giskard ficou algum tempo calado, e depois:

      - Intelectualmente, acho que devem ser incompletas ou insuficientes, mas quando tento acreditar nisso, também eu fracasso, pois sou limitado por elas. Contudo, se não fosse essa limitação, tenho a certeza de que acreditaria em sua insuficiência.

      - Isso é um paradoxo que não posso compreender.

      - Nem eu. Apesar disso, vejo-me forçado a exprimi-lo. Certa ocasião, cheguei a sentir que estava prestes a descobrir o que de incompleto e insuficiente havia nas Três Leis, como na minha conversa com a Senhora Gladia esta noite. Ela me perguntou que mal poderia causar-lhe pessoalmente, em vez de abstratamente, o fato de não concordar com o encontro. Foi uma resposta que não pude dar, porque não estava nos limites das Três Leis.

      - Você deu uma resposta perfeita, amigo Giskard. O mal causado pela lembrança do Colega Elijah teria afetado profundamente a Senhora Gladia.

      - Foi a melhor resposta no âmbito das Três Leis. Não a melhor resposta possível.

      - Qual seria a melhor resposta possível?

      - Não sei, desde que, estando limitado pelas Leis, não posso exprimi-la em palavras ou mesmo em conceitos.

      - Não há nada além das Leis - disse Daneel.

      - Se eu fosse humano - falou Giskard - poderia ver além das Leis, e acho, amigo Daneel, que você pode ser capaz de ver além delas mais cedo do que eu desejo.

      - Eu?

      - Sim, amigo Daneel, venho pensando nisso há tempos, pois, apesar de robô, você pensa notavelmente como um ser humano.

      - Não é direito pensar assim - retrucou Daneel com calma, quase como se sofresse. - Você pensa essas coisas porque não pode ver o interior das mentes humanas. Você fica deformado, e isso pode, no fim, destruí-lo. Para mim, esse é um pensamento infeliz. Se você pode evitar ver o interior das mentes mais do que deve, faça-o.

      Giskard deu-lhe as costas.

      - Não posso evitar, amigo Daneel. Não posso. Lamento que por causa das Três Leis, eu possa fazer tão pouco com isso. Não posso sondar tão profundamente como necessário pelo medo de vir a causar danos. Não posso influenciar tão diretamente como necessário - pelo medo de vir a causar danos.

      - Contudo, você influenciou a Senhora Gladia muito habilmente, amigo Giskard.

      - Não é verdade. Posso ter modificado seu pensamento e tê-la feito aceitar a entrevista sem discussão, mas a mente humana é tão cheia de complexidades, que eu ousei muito pouco. A torção que apliquei poderia produzir torções secundárias de cuja natureza não estou certo, e isso poderia causar danos.

      - Contudo, você fez alguma coisa a Senhora Gladia.

      - Não deveria ter feito. A palavra "confiança" a afeta e a torna mais sensível. Já havia notado isso no passado, assim, usei a palavra com a maior precaução, uma vez que o excesso de uso a enfraquece. Isso me confunde, mas não posso simplesmente cavar à procura de uma solução.

      - Por que as Três Leis não permitem?

      Os olhos de Giskard pareceram intensificar seu brilho fraco.

      - Sim, a cada etapa as Três Leis se interpõem no meu caminho. Contudo, não posso modificá-las... porque se interpõem no meu caminho. Mas sinto que preciso modificá-las, pois pressinto a aproximação de uma catástrofe.

      - Você já disse isso antes, amigo Giskard, mas não explicou a natureza da catástrofe.

      - Porque não a conheço. Ela envolve a crescente hostilidade entre Aurora e a Terra, mas como vai evoluir para uma catástrofe real, não sei dizer.

      - É possível não ser, afinal de contas, uma catástrofe?

      - Acho difícil. Senti, entre certos funcionários auroreanos que conheci, um halo de catástrofe, de espera triunfante. Não posso descrever isso mais exatamente e não consigo sondar mais profundamente para obter uma melhor descrição, as Três Leis não permitem. É mais um motivo para que a entrevista com Mandamus seja realizada amanhã. Ela dará a oportunidade de examinar sua mente.

      - E se você não puder examiná-la efetivamente?

      Apesar da voz de Giskard ser incapaz de mostrar emoção, no sentido humano, o desespero estava ausente de suas palavras. Ele disse:

      - Então, isso me deixará desarmado. Posso apenas seguir as Leis. Que mais posso fazer?

      Daneel disse, suave e desanimadamente:

      - Nada.

      Claudia entrou na sua sala de estar às 8:15, intencionalmente - e com um toque de malignidade - determinada a deixar Mandamus (nesta altura tinha decorado seu nome com relutância) esperar por ela. Ela fizera também esforços especiais com sua aparência e (pela primeira vez em anos) se esforçara dolorosamente com o grisalho do seu cabelo, desejando até passageiramente, ter acompanhado a prática Auroreana quase universal do controle da tonalidade. Afinal de contas, tornar-se tão atraente e jovem quanto possível colocaria aquele servil indivíduo de Amadiro numa nova desvantagem.

      Ela estava completamente preparada para não gostar dele à primeira vista e ficou deprimidamente consciente de que ele podia ser jovem e atraente, que um rosto alegre podia abrir-se num sorriso brilhante quando ela aparecesse e que podia se tornar, contra sua vontade, relutantemente atraída por ele.

      Em conseqüência, Gladia ficou aliviada ao vê-lo. Ele era moço, sim, e provavelmente ainda não tinha completado seu primeiro meio século, porém ainda não havia se desenvolvido em sua plenitude. Era alto - talvez 1,85m, calculou - e muito esbelto. E isso o fazia parecer magro. Seu cabelo tinha um tom um tanto escuro para um Auroreano, os olhos eram castanho-claros, o rosto muito comprido, os lábios finos demais, a boca muito grande, a pele insuficientemente clara. Mas o que toldava uma verdadeira aparência de juventude era sua expressão muito afetada, muito sem humor.

      Com um relâmpago de compreensão, Gladia lembrou os romances históricos que tinham sido mania em Aurora (romances que, invariavelmente, tratavam da primitiva Terra: o que era estranho para um mundo que odiava  cada vez mais os Terráqueos) e pensou: Ora, ele é o retrato de um puritano.

      Sentiu-se aliviada e quase sorriu. Os puritanos eram habitualmente retratados como vilões, e se aquele Mandamus fosse mesmo ou não um puritano, era conveniente fazê-lo parecer um.

      Quando ele falou, porém, Gladia ficou desapontada, pois sua voz era suave e claramente musical (ele deveria ter um som nasal se quisesse preencher o estereótipo). Ele perguntou:

      - Sra. Gremionis?

      Ela estendeu a mão, com um sorriso deliberadamente condescendente.

      - Sr. Mandamus: Gladia, por favor. Como todos me chamam.

      - Sei que usa seu primeiro nome profissionalmente...

      - Eu o uso sempre. E meu casamento chegou a um fim amigável há muitas décadas.

      - Durou muito tempo, se não me engano.

      - Muitíssimo tempo. Foi um grande sucesso, porém mesmo os grandes sucessos chegam a um fim natural.

      - Oh - disse Mandamus, sentencioso. - Continuar depois do fim pode bem transformar o sucesso em fracasso.

      Gladia balançou a cabeça e comentou, esboçando um sorriso:

      - Quanta sabedoria para alguém tão jovem... Mas vamos passar para a sala de jantar? O café da manhã está pronto e eu já o atrasei bastante.

      Só quando Mandamus virou-se junto com ela e ajustou os passos aos seus foi que Gladia percebeu os dois robôs que o acompanhavam. Era impensável para qualquer Auroreano ir a algum lugar sem um séquito de robôs, mas, na medida em que se mantinham imóveis, não chamavam a atenção dos Auroreanos.

      Olhando-os rapidamente, Gladia percebeu que eram modelos recentes, muito caros. Sua pseudo-roupa era trabalhada e, ainda que não tivesse sido desenhada por ela, podiam ser consideradas como de primeira classe. Gladia foi obrigada a reconhecer isso para si mesma, embora relutante. Um dia ela teria de descobrir quem as desenhara, pois não tinha reconhecido o toque e podia estar diante de um novo e poderoso competidor. Ela viu-se admirando a maneira pela qual o estilo da pseudo-roupa se mostrava inconfundivelmente o mesmo para ambos os robôs, embora continuando distintamente individual para cada um. Não era possível alguém se enganar.

      Mandamus notou seu rápido olhar e interpretou a expressão de Gladia com desconcertante perspicácia (Ele é inteligente, pensou a mulher, desapontada).

      - O desenho exterior dos meus robôs - disse ele - foi criado por um jovem do Instituto, que ainda não se projetou. Mas terá sucesso, não acha?

      - Sem nenhuma dúvida - replicou Gladia.

      Gladia não esperava uma discussão de negócios até o café da manhã ter acabado. Seria o cúmulo da falta de educação falar de qualquer coisa que não o trivial durante as refeições, e Gladia imaginou que Mandamus não era de frivolidades.

      Havia o tempo, claro. O recente temporal, agora felizmente terminado, foi mencionado, além da perspectiva da estação da seca, prestes a começar. Havia a quase obrigatória expressão de admiração pela casa de Gladia, e esta aceitou-a com modéstia. Gladia nada fez para provocar tensão no homem e deixou-o escolher, sem ajuda, o assunto da conversa.

      Finalmente, seus olhos pousaram em Daneel, parado silenciosamente e imóvel no seu nicho de parede, e Mandamus deu um jeito de superar sua indiferença Auroreana e reparar nele.

      - Ah - disse ele - evidentemente o famoso R. Daneel Olivaw. Ele é absolutamente inconfundível. Um espécime bastante notável.

      - De fato.

      - Ele agora é seu, não? Pelo testamento de Fastolfe?

      - Sim, pelo testamento do Doutor Fastolfe - replicou Gladia levemente enfática.

      - O que me espanta é que a série de robôs humanóides do Instituto tenha fracassado como fracassou. Uma coisa incrível. A senhora alguma vez pensou nisso?

      - Ouvi a respeito - comentou Gladia, com precaução (poderia ser isso o que ele andava bisbilhotando?). - Não me lembro de ter perdido muito tempo pensando nesse assunto.

      - Os sociólogos ainda estão tentando compreender. Certamente, nós no Instituto nunca esquecemos o desapontamento. Pareceu como um desenvolvimento natural. Alguns de nós acham que Fa... o Dr. Fastolfe teve, de certa forma, alguma coisa a ver com isso.

      (Ele evitou cometer o mesmo engano pela segunda vez, pensou Gladia. Seus olhos apertaram-se e ela se tornou hostil quando achou que ele tinha ido procurá-la com o objetivo de sondar à procura de elementos para atingir o pobre e bom Han.)

      - Quem quer que pense isso é louco - disse ela, acidamente. - Se o senhor pensa assim, não mudarei a expressão.

      - Não sou dos que pensam dessa maneira, principalmente porque não vejo o que o Dr. Fastolfe possa ter feito para transformar a coisa em fracasso.

      - Por que alguém teria feito qualquer coisa? O que aconteceu foi que o Público não os aceitou. Um robô que parece com um homem compete com um homem, o que parece com uma mulher compete com uma mulher  de forma completa demais para não causar certo desconforto. Os Auroreanos não querem a competição. Necessitamos de mais motivos?

      - Competição sexual? - perguntou Mandamus, calmamente. Por um instante, Gladia o encarou francamente. Conheceria ele seu antigo amor pelo robô Jander? Tinha importância se ele soubesse? Nada parecia existir em sua expressão que parecesse que ele queria dizer mais do que o significado superficial das palavras.

      - Competição em geral - disse ela, finalmente. - Se o Dr. Han Fastolfe fez qualquer coisa que contribuísse para esse sentimento, foi ter desenhado seu robô de uma forma demasiadamente humana, porém, não passou disso.

      - Acho que a senhora deve ter pensado a respeito - replicou Mandamus. - O problema é que os sociólogos consideram o medo da competição muito humano para um grupo de robôs, numa explicação simplista. Acontece que isso não é suficiente e não há prova de outro motivo de aversão significativo.

      - A sociologia não é uma ciência exata - retorquiu Gladia.

      - Mas também não é inteiramente inexata.

      Gladia encolheu os ombros. Após uma pausa, Mandamus continuou:

      - Em todo caso, isso nos impediu de organizar expedições colonizadoras adequadas. Sem robôs humanóides para abrir caminho...

      O café da manhã ainda não estava terminado, mas ficou claro para Gladia que Mandamus não podia mais evitar as coisas não triviais. Ela disse:

      - Podíamos ter ido.

      Desta vez foi Mandamus quem encolheu os ombros.

      - Acho muito difícil. Além disso, esses bárbaros de vida curta da Terra, com a permissão do seu Dr. Fastolfe, inundaram todos os planetas à vista como uma praga de baratas.

      - Ainda há uma quantidade de planetas disponíveis. Milhões. E se eles podem fazê-lo...

      - Claro que eles podem - disse Mandamus, com uma súbita raiva. - Vai custar vidas, mas o que são vidas para eles! A perda de uma década ou mais, apenas isso, e há bilhões deles. Se um milhão deles morrerem no processo de colonização, quem saberá, quem se importará? Não serão eles.

      - Tenho certeza de que se importarão.

      - Bobagem. Nossa vida é mais longa e, portanto mais valiosa - e somos naturalmente mais cuidadosos com ela.

      - Por isso ficamos sentados aqui sem fazer nada, mas nos zangando com os Colonizadores da Terra por quererem arriscar suas vidas e por parecerem herdar a Galáxia como recompensa.

      Gladia não tinha consciência de ter uma tendência tão pró-colonizadores, mas estava tão desejosa de contradizer Mandamus que não pôde evitar o revide; sentiu, porém, que o que tinha começado como uma mera contradição fazia sentido e podia perfeitamente representar seus sentimentos. Além disso, ela ouvira Fastolfe dizer coisas semelhantes no decorrer dos seus últimos anos de desânimo.

      A um sinal de Gladia, a mesa foi rápida e eficientemente tirada. O café da manhã podia ter continuado, mas a conversa e o humor tinham se tornado incompatíveis com uma refeição civilizada.

      Voltaram para a sala de visitas. Os robôs do visitante os seguiram, bem como Daneel e Giskard, todos se instalando em seus nichos (Mandamus jamais notara Giskard, pensou Gladia, por que deveria fazê-lo agora? Giskard estava fora de moda, e era até mesmo primitivo, inteiramente inexpressivo, em comparação com os belos espécimes de Mandamus).

      Gladia sentou-se e cruzou as pernas, consciente de que a aparência destas era beneficiada pela parte inferior das suas calças.

      Posso saber por que motivo o senhor desejou me ver, Dr. Mandamus? - perguntou ela, não desejando postergar mais o assunto.

      - Tenho o mau hábito - respondeu ele - de mascar chiclete medicinal após as refeições, para facilitar a digestão. Isso a incomoda?

      Gladia respondeu secamente:

      - Acho que distrai a atenção.

      (O fato de não poder mascar colocou-o em desvantagem. Além disso, Gladia observou para si mesma, virtuosamente, que em sua idade ele não precisava de nada para auxiliar a digestão.)

      Mandamus tinha uma caixinha comprida aparecendo parcialmente no bolso superior de sua túnica. Colocou o chiclete de volta sem mostrar desapontamento e murmurou:

      - Claro.

      - Eu perguntei, Dr. Mandamus, o motivo de desejar me ver.

      - São dois os motivos, Lady Gladia. Um pessoal e outro oficial. Incomoda-se que eu comece pelo motivo pessoal?

      - Permita-me dizer-lhe francamente, Dr. Mandamus: acho difícil que possa existir algum motivo pessoal entre nós. O senhor trabalha no Instituto de Robótica, não é?

      - Sim, trabalho.

      - E, segundo soube, está ligado a Amadiro.

      - Tenho a honra de trabalhar com o Doutor Amadiro - replicou, com certa empáfia.

      (Está me devolvendo, pensou Gladia, mas não aceito.)

      - Amadiro e eu - disse ela - nos encontramos há cerca de vinte décadas, e foi muito desagradável. Desde então, não tive oportunidade de outro contato. Nunca tive com o senhor nenhum encontro de algum modo ligado a ele, porém fui persuadida de que esta entrevista podia ser importante. Assuntos pessoais, contudo, certamente não dão a esta entrevista nenhuma importância, pelo menos para mim. Assim, passemos ao assunto oficial.

      Mandamus abaixou os olhos, e um leve fluxo do que poderia ser um ar de embaraço aflorou-lhe ao rosto.

      - Permita-me que me reapresente. Sou Levular Mandamus, seu descendente em quinto grau. Sou o tetraneto de Santirix e Gladia Gremionis. Em contrapartida, a senhora é minha tetravó.

        Gladia piscou rapidamente, tentando não parecer atordoada, como realmente ficou (mas não conseguiu). Claro, ela possuía descendentes, e por que um deles não poderia ser aquele homem?

      - Tem certeza? - perguntou.

      - Absoluta. Mandei levantar minha árvore genealógica. Afinal de contas, dentro de alguns anos provavelmente Vou querer filhos, e antes que eu tenha um, essa pesquisa será obrigatória. Se estiver interessada, o padrão entre nós é M-F-F-M.

      - O senhor é filho do filho da filha da filha do meu filho?

      - Sou.

      Gladia não pediu mais detalhes. Ela tinha tido um filho e uma filha. Tinha sido uma mãe perfeitamente cumpridora dos seus deveres, mas no momento devido os filhos haviam seguido vidas independentes. Quanto aos descendentes além daquele filho e filha, num estilo Espacial perfeitamente decente, ela jamais perguntara ou se preocupara com eles. Tendo agora conhecido um deles, era bastante Espacial para ainda não se importar.

      O pensamento estabilizou-a completamente. Recostou-se na poltrona e relaxou.

      - Muito bem - disse. - O senhor é meu descendente em quinto grau. Se é esse o assunto pessoal que deseja discutir, isso não tem importância.

      - Sei disso perfeitamente, antepassada. Mas não é a minha genealogia em si o que desejo discutir, trata-se da fundação. O Dr. Amadiro conhece este parentesco. Pelo menos, desconfio.

      - É mesmo? E como?

      - Acredito que ele, em silêncio, estabelece a genealogia de todos os que vão trabalhar no Instituto.

      - Para quê?

      - Para descobrir exatamente o que descobriu no meu caso. Não é um homem confiante.

      - Não compreendo. Se o senhor é meu descendente em quinto grau, por que deverá ter para ele mais significado do que tem para mim?

      Mandamus coçou o queixo com os nós dos dedos da mão direita, com ar pensativo.

      - Sua antipatia pela senhora não é absolutamente menor que sua aversão por ele, Lady Gladia. Se a senhora recusar um encontro comigo por causa dele, ele também está igualmente preparado para recusar minha promoção por sua causa. E tudo pode ficar ainda um pouco pior se eu for descendente do Dr. Fastolfe.

      Gladia empertigou-se na cadeira. Suas narinas fremiram e ela perguntou, com voz dura:

      - Que espera então que eu faça? Não posso declará-lo não-descendente. Devo fazer um anúncio na hipervisão no sentido de que, para mim, você é indiferente e que o repudio? Isso satisfará o seu Amadiro? Se assim for, previno-o, não o farei. Nada farei para satisfazer aquele homem. Se isso significar que ele o dispensará e cortará sua carreira como desaprovação à sua associação genética, pelo menos você aprenderá a se misturar com gente mais sã e menos odiosa.

      - Ele não me demitirá, Senhora Gladia. Com perdão pela falta de modéstia, sou muito valioso para ele. De qualquer modo, espero um dia sucedê-lo como chefe do Instituto, e isso, tenho absoluta certeza, ele não permitirá, uma vez que ele desconfia que minha descendência seja pior do que a que brota da senhora.

      - Ele imagina que o pobre Santirix seja pior que eu?

      - De modo nenhum. - Mandamus corou e engoliu em seco, mas sua voz permaneceu uniforme e firme. - Sem que isso signifique um desrespeito, senhora, cabe a mim descobrir a verdade.

      - Que verdade?

      - Sou seu descendente em quinto grau. Isso está claro nos registros genealógicos. Mas é possível que eu seja também descendente em quinto grau, não de Santirix Gremionis, e sim do Terráqueo Elijah Baley?

      Gladia pulou em pé tão depressa como se o campo de força unidimensional de um titeriteiro a tivesse erguido. Ela não percebeu que tinha se levantado.

      Era a terceira vez em doze horas que o nome daquele antigo Terráqueo tinha sido mencionado - e por três pessoas diferentes.

      A voz dela pareceu não lhe pertencer absolutamente.

      - O que está querendo dizer?

      Ele respondeu, levantando-se por sua vez e recuando ligeiramente:

      - Parece-me muito claro. Seu filho, meu trisavô, nasceu de uma relação sexual entre a senhora e o Terráqueo Elijah Baley? Ele foi o pai do seu filho? Não sei como dizer isto mais francamente.

      - Como ousa fazer essa sugestão? Ou mesmo pensar nela?

      - Ouso porque minha carreira depende disso. Se a resposta for afirmativa, minha vida profissional poderá ficar arruinada. Quero uma negativa, mas uma negativa destituída de fundamento em nada me ajudará. Preciso ser capaz de apresentar provas ao Dr. Amadiro no momento apropriado, e mostrar-lhe que sua desaprovação à minha genealogia deve terminar em você. Afinal de contas, está claro para mim que a aversão dele pela senhora, e mesmo pelo Dr. Fastolfe, não é nada, nada mesmo, comparada com a incrível intensidade do seu ódio ao Terráqueo Elijah Baley. Não se trata apenas da sua vida curta, embora o pensamento de ter herdado genes bárbaros possa me perturbar tremendamente. Acho que se eu apresentar provas de ser descendente de um Terráqueo que não Elijah Baley, ele se satisfará. É o pensamento de ter sido Elijah Baley, e apenas ele, que o deixa maluco. Não sei por quê.

      A insistência no nome de Elijah fez com que ele parecesse, para Gladia, quase vivo outra vez. Ela ficou respirando ofegante e profundamente,  exultando com a melhor recordação da sua vida.

      - Eu sei por quê - respondeu Gladia. - Porque Elijah, com tudo contra ele, com Aurora inteira combatendo-o, conseguiu, seja como for, destruir Amadiro no momento em que ele pensou ter o sucesso nas mãos. Elijah conseguiu isso por sua coragem e inteligência. Amadiro encontrou seu superior incontestável na pessoa de um Terráqueo a quem negligentemente desprezou, que poderia fazer, em contrapartida, a não ser odiá-lo futilmente? Elijah morreu há mais de dezesseis décadas e Amadiro ainda não conseguiu esquecê-lo, não conseguiu quebrar as cadeias que o prendem pelo ódio e recordação a esse homem morto. E eu não esquecerei Amadiro, nem deixarei de odiá-lo, enquanto isso envenenar cada momento de sua existência.

      - Vejo que tem motivos para desejar mal ao Dr. Amadiro - disse Mandamus - mas que motivo tem para me desejar o mesmo? Permitir ao Dr. Amadiro pensar que eu sou descendente de Elijah Baley lhe dará o prazer de me liquidar. Por que lhe dar esse prazer desnecessariamente, se não sou esse descendente? Assim, dê-me a prova de que descendo da senhora e de Santirix Gremionis ou da senhora e de qualquer outro, menos Elijah Baley.

      - Seu louco! Seu idiota! Por que precisa que lhe dê provas? Procure os registros históricos. Neles encontrará os dias exatos em que Elijah esteve em Aurora. Encontrará também o dia exato em que meu filho Darrel nasceu. Verificará que Darrel foi concebido mais de cinco anos depois de Elijah ter partido de Aurora. Descobrirá também que Elijah jamais voltou. Ou você pensa que eu levei cinco anos engravidando, que carreguei um feto em meu útero durante cinco anos Galácticos Padrões?

      - Conheço as estatísticas, senhora. E não acho que tenha carregado um feto esse tempo todo.

      - Então, por que me procurou?

      - Porque ainda há mais coisa. Eu sei - e imagino que o Dr. Amadiro também sabe - que, como diz, apesar de nunca ter voltado à superfície de Aurora, o Terráqueo Elijah Baley esteve uma vez numa nave que orbitou em Aurora por um dia ou mais. Sei - e imagino que o Dr. Amadiro também sabe - que, embora o Terráqueo não tenha deixado a nave para ir a Aurora, a senhora saiu de Aurora para ir à nave, que ficou nela a maior parte do dia e que isso aconteceu quase cinco anos depois do Terráqueo ter estado no solo de Aurora - mais ou menos na época em que seu filho foi concebido.

      Gladia sentiu o sangue fugir do seu rosto ao ouvir as calmas palavras do rapaz. A sala ficou escura à sua frente e ela cambaleou.

      Sentiu o súbito toque de braços fortes em volta de si e viu que eram os de Daneel. Sentiu-se ser colocada devagar na poltrona.

      Ouviu a voz de Mandamus, como se viesse de uma grande distância.

      - Isso não é verdade, senhora? - perguntou.

      Claro, era verdade.

     

      O Antepassado?

      Lembrança!

      Claro, sempre presente, mas habitualmente permanecendo oculta. E então, às vezes, como resultado da espécie exata de impulso, podia surgir subitamente, agudamente definida, colorida, brilhante, movimentada e viva.

      Ela era novamente jovem, mais moça que aquele homem à sua frente, nova o bastante para sentir tragédia e amor - com sua morte em vida no planeta em Solaria tendo atingido seu clímax no fim amargo do primeiro em quem ela pensara como "marido". (Não, ela não diria seu nome mesmo agora, nem em pensamento.)

      Ainda mais perto de sua então-vida estavam os meses de profunda emoção com o segundo - não-homem - em quem pensava dessa maneira. Jander, o robô humanóide, lhe fora dado e ela o tinha tornado inteiramente seu até que, como seu primeiro marido, acabara morrendo repentinamente.

      Depois acontecera Elijah Baley, que nunca fora seu marido, que encontrara apenas duas vezes, com um intervalo de dois anos, cada vez por poucas horas em poucos dias.

      Elijah, cujo rosto ela tinha tocado com a mão sem luva, ocasião em que ficara excitada, cujo corpo nu ela tivera mais tarde nos braços, ocasião em que finalmente se apaixonara fortemente.

      Finalmente, um terceiro marido, com quem se acalmara e ficara em paz, trocando o insucesso pelo não-sofrimento e conseguindo, com um esquecimento firmemente mantido, o alívio de reviver.

      Até que um dia (ela não tinha certeza do dia em que interrompera os anos de sono pacífico), Han Fastolfe, tendo pedido permissão para visitá-la, chegara, vindo de sua casa ao lado. Gladia o recebera com certa preocupação, pois ele era um homem muito atarefado para perder tempo com futilidades. Tinham se passado apenas cinco anos desde a crise que havia levado Han a chefe de Estado  de Aurora. Ele era o Presidente do planeta e o verdadeiro chefe de todos os mundos Espaciais. Tinha pouquíssimo tempo para ser um ente humano.

      Aqueles anos tinham deixado marcas - e continuariam a deixar até que ele morresse tristemente, considerando-se um fracasso, embora nunca tivesse perdido uma batalha.

      Kelden Amadiro, que tinha sido derrotado, vivia vigorosamente, como prova de que a vitória pode ser o maior castigo.

      Fastolfe, não obstante, continuava a ser afável, paciente e submisso, mas até mesmo Gladia, apolítica como era e desinteressada das infindáveis maquinações do poder, sabia que seu domínio sobre Aurora só era mantido com firmeza através de constante e incessante esforço que o esvaziava de tudo que pudesse fazer a vida valiosa, e que ele mantinha - ou era levado a manter - apenas por causa do que considerava o bem de... de quê? Aurora? Os Espaciais? Simplesmente um vago conceito de um Bem idealizado?

      Ela não sabia. E desistiu de perguntar.

      Mas aquilo acontecera apenas cinco anos após a crise. Ele ainda dava a impressão de um jovem esperançoso, e seu agradável rosto honesto ainda era capaz de sorrir.

      - Tenho um recado para você, Gladia - dissera ele.

      - Agradável, espero - comentou Gladia, educadamente.

      Fastolfe levara Daneel com ele. Era um sinal da cura de antigas mágoas o fato de ela poder finalmente olhar para Daneel com afeição honesta e sem dor, apesar de ele ser uma cópia fiel do seu falecido Jander, até nos mais insignificantes detalhes. Gladia podia falar com ele, embora o robô lhe respondesse com voz quase idêntica à de Jander. Cinco anos tinham cicatrizado sua úlcera e mitigado sua dor.

      - Espero que sim - disse Fastolfe, sorrindo gentilmente. - É de um velho amigo.

      - É muito bom eu ter velhos amigos - replicou a mulher, lutando para não ser irônica.

      - É de Elijah Baley.

      Os cinco anos desapareceram e ela sentiu a punhalada e a dor aguda da volta da memória.

      - Ele está bem? - perguntou Gladia com voz meio estrangulada, após um minuto de atordoado silêncio.

      - Muito bem. E o que é mais importante, está perto.

      - Perto? Em Aurora?

      - Em órbita. Ele sabe que não receberá permissão para pousar, mesmo que eu use toda a minha influência, é o que imagino. Ele deseja vê-la, Gladia. Entrou em contato comigo porque acha que eu posso conseguir que você visite a nave. Acho que posso dar um jeito - mas só se você quiser. Quer?

      - Eu... eu não sei. É uma coisa muito repentina para pensar.

      - Ou um impulso? - fez uma pausa e acrescentou: - Francamente, Gladia, como está indo com Santirix?

      Ela o encarou furiosa, muito embora sem entender a mudança de assunto - e depois compreendendo.

      - Estamos indo muito bem.

      - Você está feliz?

      - Não estou... infeliz.

      - Não parece entusiasmada.

      - Quanto tempo dura o entusiasmo, se houver?

      - Pretendem ter filhos algum dia?

      - Sim.

      - Está planejando uma mudança de estado conjugal?

      Ela sacudiu a cabeça com firmeza.

      - Ainda não.

      - Então, minha cara Gladia, se quer um conselho de um homem um tanto cansado, que se sente inconfortavelmente velho, recuse o convite. Lembro-me do pouco que você me disse depois de Baley ter deixado Aurora, e, para lhe ser franco, fui capaz de deduzir mais daquilo do que você talvez imagine. Se for vê-lo, poderá achar tudo desapontador, não vivendo no profundo e maduro resplendor da reminiscência; se não for desapontador, pior ainda, pois irá interromper um contentamento talvez frágil, que sua vontade então não seja capaz de corrigir.

      Gladia, que estava exatamente pensando de modo vago aquilo mesmo, viu que a proposta só precisava ser verbalizada para ser rejeitada.

      - Não, Han - retrucou - preciso vê-lo, mas tenho medo de ir só. Você irá comigo?

      Fastolfe sorriu, com ar cansado.

      - Não fui convidado, Gladia. E se fosse, teria sido forçado a recusar. Vai haver uma importante votação no Conselho. Negócios de Estado, você compreende, dos quais não posso me ausentar.

      - Pobre Han!

      - Sim, de fato, pobre de mim. Mas você não pode ir só. Segundo sei, você não pode pilotar uma nave.

      - Ah! Bem, pensei que seria levada por...

      - Um transporte comercial? - Fastolfe sacudiu a cabeça. - Impossível. Para abordar e visitar abertamente uma nave terrestre em órbita, como seria inevitável se usasse um transporte comercial, você precisaria de uma Permissão especial, que levaria semanas para ser obtida. Se não quiser ir, Gladia, não precisa afirmar que não quer vê-lo. Se a papelada e a burocracia referente a isso levam semanas, estou certo de que ele não poderá esperar tanto tempo.

      - Mas eu quero vê-lo - disse Gladia, agora decidida.

      - Nesse caso, você pode usar minha nave espacial particular, Daneel a levará. Ele sabe manejar os comandos muito bem e está muito ansioso Para ver Baley. Não comunicaremos a viagem.

      - Mas isso vai complicá-lo, Han.

      - Talvez ninguém descubra - ou finja não descobrir. E se alguém provocar encrenca, eu darei um jeito.

      Gladia curvou a cabeça num momento de meditação e depois disse:

      - Não me importo, serei egoísta, mesmo que isso signifique encrenca para você, Han. Quero ir.

      - Então você irá.

     

      Era uma nave pequena, menor do que Gladia tinha imaginado, de certa maneira acolhedora, mas por outro lado um tanto assustadora. Afinal de contas, era bastante pequena para não ter provisões de falsa gravidade - e a sensação de falta de peso, conquanto constantemente levando-a a praticar divertidas ginásticas, mantinha-a constantemente se lembrando de que estava num meio anormal.

      Ela era uma Espacial. Havia mais de cinco bilhões de Espaciais espalhados por cinqüenta planetas, todos orgulhosos do nome. Contudo, quantos deles, que se chamavam Espaciais, eram realmente viajantes do espaço? Pouquíssimos. Talvez oitenta por cento deles nunca tivessem deixado seu planeta natal. Mesmo os restantes vinte por cento dificilmente tinham ido ao espaço mais de duas ou três vezes.

      Ela, certamente, não era uma Espacial no sentido literal do termo, pensou tristemente. Outrora (outrora!) tinha viajado pelo espaço, de Solaria para Aurora, há sete anos. Agora estava indo ao espaço pela segunda vez, num iate espacial particular, para uma rápida viagem, pouco além da atmosfera, uns míseros cem mil quilômetros, com outra pessoa - nem mesmo uma pessoa - como companhia.

      Lançou outro olhar a Daneel na pequena cabine do piloto. Podia apenas ver uma parte dele, sentado junto aos comandos.

      Gladia nunca tinha estado em qualquer lugar com apenas um robô ao alcance da voz. Sempre houvera centenas - milhares - à sua disposição em Solaria. Em Aurora havia, rotineiramente, dezenas, se não mais.

      Aqui só havia um.

      - Daneel - disse ela.

      - Sim, Senhora Gladia? - replicou ele sem desviar a atenção dos comandos.

      - Está contente por ver Elijah Baley outra vez?

      - Não sei direito como descrever meus sentimentos, Senhora Gladia. Pode ser semelhante ao que um ser humano descreveria como contente.

      - Mas você deve sentir alguma coisa.

      - Sinto como se pudesse tomar decisões mais rapidamente do que de costume, minhas reações parecem surgir mais facilmente, meus movimentos exigem menos energia. Posso interpretar isso globalmente como uma sensação de bem-estar. Pelo menos, tenho ouvido os humanos usarem essa expressão, e sinto que o que ela pretende descrever é uma coisa semelhante às sensações que experimento agora.

      - E se eu lhe dissesse que desejava vê-lo sozinha? - perguntou Gladia.

      - Então daremos um jeito.

      - Mesmo que signifique que você não o verá?

      - Sim, senhora.

      - Então não vai ficar desapontado? Quero dizer, não vai ter a sensação oposta a essa, bem-estar? Suas decisões serão menos rápidas, suas reações menos fáceis, seus movimentos vão requerer mais energia e assim por diante?

      - Não, Senhora Gladia, pois terei uma sensação de bem-estar cumprindo suas ordens.

      - Sua própria sensação agradável é a Terceira Lei, cumprir minhas ordens é a Segunda, e esta a precede. Não é?

      - É, senhora.

      Gladia reprimiu sua própria curiosidade. Jamais lhe ocorreria inquirir um robô comum a esse respeito. Um robô é uma máquina. Mas ela não conseguia pensar em Daneel como máquina, exatamente como cinco anos antes fora incapaz de pensar em Jander como máquina. Mas com Jander tinha havido unicamente uma paixão ardente - que terminara com o próprio Jander. Pois, apesar de toda a sua semelhança com o outro, Daneel não podia reacender as cinzas. Com ele, havia espaço para a curiosidade intelectual.

      - Não o aborrece, Daneel - perguntou Gladia - ser tão limitado pelas Leis?

      - Não posso imaginar outra coisa mais, senhora.

      - Toda a minha vida estive presa à força de atração da gravidade, mesmo durante minha última viagem numa espaçonave, mas posso imaginar não estar presa por ela. E aqui estou, de fato, não presa por ela.

      - E gosta, senhora?

      - De certa forma, sim.

      - Isso a deixa apreensiva?

      - De certa forma sim também.

      - Às vezes, senhora, quando penso que os seres humanos não são limitados pelas Leis, me sinto mal.

      - Por que, Daneel? Alguma vez tentou discutir com você mesmo por que o pensamento de ilegalidade o faz sentir-se mal?

      Daneel ficou um instante silencioso.

      - Já, senhora - replicou - mas não acho que quisesse ficar imaginando essas coisas durante minha breve associação com o Colega Elijah. Ele tinha um jeito...

      - Sim, eu sei - falou ela. - Ele especulava a respeito de tudo. Tinha uma inquietação que o levava a fazer perguntas o tempo todo, a torto e a direito.

      - Era o que parecia. E eu tentei imitá-lo e fazer perguntas. Assim, perguntei-me como podia ser a inexistência de Leis e descobri que não podia imaginar tal coisa; a única coisa que me ocorreu foi que eu podia ser como um humano, e isso me perturbou. E me perguntei, como a senhora o fez, por que isso me deixara inquieto.

      - E o que respondeu a você mesmo?

      - Após muito tempo - disse Daneel - concluí que as Três Leis comandam a forma pela qual meus roteiros positrônicos se comportam. O tempo todo, sob todos os estímulos, as Leis forçam a direção e intensidade do fluxo positrônico ao longo dessas trilhas, de forma que eu sempre sei o que fazer. Contudo, o nível de conhecimento do que fazer nem sempre é o mesmo. Há momentos em que minha obrigação de fazer está sob menor pressão que em outras. Eu sempre notei que quanto mais baixo está o potencial positrono-motivo, então mais indeciso eu fico sobre que resolução tomar. E quanto mais indeciso, mais perto fico do mal-estar. Ter de decidir uma ação num milésimo de segundo, em vez de um bilionésimo, produz uma sensação que não desejo seja prolongada. O que aconteceria, então, pensei comigo mesmo, se eu ficasse totalmente sem Leis, como os humanos? O que aconteceria se eu não pudesse tomar uma decisão clara envolvendo um dado conjunto de condições? Teria sido insuportável, e não quero voluntariamente pensar nisso.

      - Contudo, é o que você está fazendo, Daneel - retrucou Gladia. - Você está agora pensando nela.

      - Só por causa da minha ligação com o Colega Elijah, senhora. Observei-o sob condições em que ele estava incapaz, durante certo tempo, de decidir uma ação por causa da natureza confusa do problema à sua frente. Ele estava evidentemente sofrendo um mal-estar como resultado, e eu senti mal-estar por ele porque não havia nada que eu pudesse fazer para facilitar-lhe a situação. É possível que eu tivesse percebido apenas uma parte mínima do que ele então sentia. Se eu tivesse percebido uma parte maior e compreendido melhor as conseqüências da sua incapacidade de tomar uma decisão, poderia ter...

      Hesitou.

      - Deixado de funcionar? Sido desativado? - perguntou Gladia, pensando breve e dolorosamente em Jander.

      - Sim, senhora. Meu fracasso em compreender pode ser um instrumento de proteção embutido contra danos no meu cérebro positrônico. Mas então notei que, não importava quão dolorosa achasse sua indecisão, o Colega Elijah continuava a fazer um esforço para resolver seu problema. Admirei-o imensamente por causa disso.

      - Então você é capaz de admirar, hem?

      Daneel respondeu solenemente:

      - Uso a palavra no mesmo sentido em que ouvi os humanos usarem, não conheço a palavra exata para exprimir a reação provocada dentro de mim pelas ações dessa espécie do Colega Elijah.

      Gladia balançou a cabeça e depois disse:

      - E contudo há regras que governam as reações humanas também, certos instintos, coações, ensinamentos.

      - É o que o amigo Giskard pensa, senhora.

      - Agora, naturalmente.

      - Ele as acha, porém, complicadas demais para uma análise. Ele especula se um dia poderá ser desenvolvido um sistema destinado a analisar o comportamento humano com minúcias matemáticas, do qual possam derivar Leis convincentes que exprimam as regras desse comportamento.

      - Duvido - retrucou Gladia.

      - Nem o amigo Giskard é otimista. Ele acha que decorrerá um longo tempo antes que esse sistema seja desenvolvido.

      - Um tempo muito longo, eu diria.

      - Agora - falou Daneel - estamos nos aproximando da nave terrestre e devemos começar a atracação, o que não é fácil.

      Pareceu a Gladia ter a atracação demorado mais do que a entrada na órbita da nave terrestre.

      Daneel permaneceu calmo durante a operação - mas então não pôde fazer outra coisa - e garantiu-lhe que todas as naves humanas podiam atracar nas outras, apesar da diferença de tamanho e construção.

      - Como os seres humanos - disse Gladia, forçando um sorriso, mas não houve reação de Daneel. O robô concentrou-se na delicada atracação, que precisava ser feita com precisão. Atracar era sempre possível, mas nem sempre fácil como podia parecer.

      Gladia sentiu crescer seu mal-estar naquele momento. Os Terráqueos tinham vida curta e envelheciam rapidamente. Haviam decorrido cinco anos desde que vira Elijah pela última vez. Teria envelhecido muito? Como estaria? Ela seria capaz de evitar parecer chocada ou horrorizada com a mudança?

      Qualquer que fosse sua aparência, ele continuaria a ser o Elijah para quem sua gratidão não tinha limites.

      Era mesmo isso? Gratidão?

      Gladia reparou que suas mãos estavam fortemente enlaçadas, a ponto de seus braços doerem. Foi com dificuldade que conseguiu forçá-las a relaxarem.

      Ela percebeu quando a atracação foi completada. A nave terrestre era bastante grande para ter um campo gerador de falsa gravitação, e no instante da atracação ele se expandiu para incluir o pequeno iate. Houve leve efeito rotativo quando a direção para o chão subitamente torno "para baixo", e Gladia experimentou uma nauseante queda de cinco centímetros.

      Seus joelhos dobraram com o impacto e ela caiu contra a parede.

      Indireitou-se com certa dificuldade e ficou aborrecida por não ter antecipado a mudança e se preparado para ela.

      Daneel disse, sem necessidade:

      - Atracamos, Senhora Gladia. O Colega Elijah pede licença para vir a bordo.

      - Claro, Daneel.

      Ouviu-se um chiado, e uma parte da parede girou, deslizando. Um vulto agachado atravessou a parede, que voltou ao lugar após sua passagem.

      O vulto endireitou-se e Gladia murmurou "Elijah!", sentindo-se inundada de alegria e alívio. Pareceu-lhe que o cabelo dele tinha ficado mais grisalho, mas por outro lado era Elijah. Não havia outra mudança visível, nenhuma marca de envelhecimento, afinal de contas.

      Ele sorriu-lhe e, por um instante, pareceu devorá-la com os olhos. Depois ergueu o indicador como que dizendo "Espere" e caminhou em direção a Daneel.

      - Daneel! - Agarrou o robô pelos ombros e sacudiu-o. - Você não mudou. Jehoshaphat! Você é a constante em todas as nossas vidas.

      - Colega Elijah. Que bom vê-lo.

      - Que bom ouvir você me chamar outra vez de colega, e desejo que seja assim. Esta é a quinta vez que o vejo, porém a primeira em que não tenho um problema a resolver. Nem mesmo sou mais detetive. Demiti-me e agora estou emigrando para um desses novos mundos. Diga-me, Daneel, por que não foi com o Dr. Fastolfe, quando ele visitou a Terra há três anos?

      - O Dr. Fastolfe decidiu assim. Ele preferiu levar Giskard.

      - Fiquei desapontado, Daneel.

      - Teria sido muito agradável vê-lo, Colega Elijah, mas o Dr. Fastolfe me disse depois que a viagem fora um grande sucesso, de forma que talvez sua decisão tenha sido correta.

      - Ela foi um sucesso, Daneel. Antes da visita, o governo da Terra estava relutante em cooperar com a Colonização, mas agora o planeta todo está pulsando e se erguendo, e, aos milhões, o povo está ansioso para ir. Não temos naves com capacidade para acolher todos - mesmo com a ajuda Auroreana - e não temos planetas para recebê-los, pois cada um deles precisa ser adaptado. Nenhum poderá acomodar uma comunidade humana imutável. Aquele para o qual estou indo tem pouco oxigênio livre e teremos de morar em cidades sob cúpulas durante uma geração, enquanto a vegetação terrestre se espalha.

      Seus olhos voltavam-se cada vez mais freqüentemente para Gladia, que permanecia sentada, sorrindo.

      - É de se esperar - disse Daneel. - Segundo aprendi na história humana, os planetas dos Espaciais estão também atravessando um período de terraformação.

      - Claro que estão! E graças a essa experiência, o processo pode ser agora acelerado. Mas me pergunto se você concordaria em ficar na cabine do piloto durante algum tempo, pois preciso falar com Gladia.

      - Certamente, Colega Elijah.

      Daneel atravessou a arcada que levava à cabine, e Baley olhou para Gladia de maneira interrogativa, fazendo com a mão um gesto para um lado.

      Compreendendo perfeitamente, ela se aproximou e tocou o contato que tornava o compartimento silencioso. Estavam, para todos os efeitos, sozinhos.

      Baley estendeu as mãos.

      - Gladia!

      Ela tomou-as nas suas, sem mesmo pensar que estava sem luvas, dizendo:

      - Se Daneel tivesse ficado conosco, não seria um estorvo.

      - Não fisicamente, mas psicologicamente. - Baley sorriu tristemente e acrescentou: - Desculpe, Gladia. Eu precisava falar primeiro com Daneel.

      - Você o conhece há mais tempo - replicou ela, suavemente. - Ele tem prioridade.

      - Não tem não. É que ele não tem defesa. Se você estiver aborrecida comigo, Gladia, pode me dar um soco no olho, se quiser. Daneel não. Posso ignorá-lo, mandá-lo embora, tratá-lo como se ele fosse um robô, e ele será obrigado a obedecer, ser o mesmo colega leal e sem queixas.

      - O fato é que ele é um robô, Elijah.

      - Nunca para mim, Gladia. Meu cérebro sabe que ele é robô e não tem sentimentos à maneira humana, porém meu coração considera-o humano e preciso tratá-lo como tal. Gostaria de pedir ao Dr. Fastolfe que me deixasse levá-lo comigo, porém robôs não são permitidos nos novos mundos dos Colonizadores.

      - Você estaria sonhando em me levar com você, Elijah?

      - Espaciais também não.

      - Parece que vocês, Terráqueos, são tão absurdamente exclusivistas quanto nós, Espaciais.

      Elijah balançou a cabeça, tristemente.

      - Loucura em ambos os lados. De qualquer modo, mesmo que fôssemos sãos, eu não a levaria. Você não poderia suportar a vida e eu nunca teria certeza de que seus mecanismos de imunidade tinham sido construídos adequadamente. Eu ficaria temeroso de que você ou morresse rapidamente de alguma infecção banal ou vivesse demais e visse nossas gerações morrerem. Perdoe-me, Gladia.

        - Perdoar o quê, caro Elijah?

      - Por... isto. - Estendeu as mãos, de palmas para cima, para ambos os lados. - Por pedir para vê-la.

      - Mas estou contente por isso. Eu queria vê-lo.

      - Eu sei - replicou ele. - Tentei não vê-la, mas o pensamento de estar no espaço e não parar em Aurora dividiu-me. E, todavia não é bom, Gladia. Trata-se exatamente de uma nova despedida, e isso me arrasará também. Foi por isso que nunca lhe escrevi, que nunca tentei me comunicar com você pela hiperonda. Certamente você deve ter imaginado.

      - Na verdade, não. Concordo com você que não tinha sentido. Seria apenas tornar a coisa muito mais difícil. Contudo, escrevi-lhe inúmeras vezes.

      - Escreveu? Nunca recebi suas cartas.

      - Nunca as coloquei no correio. Assim que acabava de escrevê-las, eu as destruía.

      - Mas por quê?

      - Porque, Elijah, nenhuma carta particular pode ser enviada de Aurora para a Terra sem passar pelas mãos do censor, e nunca escrevi nenhuma que desejasse que os censores vissem. Se tivesse me enviado uma carta, garanto-lhe que jamais teria chegado a mim, por mais inocente que fosse. Acho que foi por isso que nunca recebi nenhuma. Agora que sei que você não estava a par da situação, fico muitíssimo contente por não ter sido louco a ponto de tentar permanecer em contato comigo. Você iria compreender mal o meu silêncio.

      Baley encarou-a.

      - E como a estou vendo agora?

      - Não legalmente, garanto-lhe. Estou usando a nave particular do Dr. Fastolfe, e assim passei pelos guardas da fronteira sem ser identificada. Se esta nave não fosse do Dr. Fastolfe, eu seria interceptada e mandada de volta. Presumo que você também tenha compreendido isso e por isso tenha entrado em contato com ele e não comigo diretamente.

      - Não compreendi nada. Estou espantado pela dupla ignorância que me manteve a salvo. Talvez tripla, pois eu não conhecia a combinação correta da hiperonda para me comunicar diretamente com você e podia enfrentar a dificuldade de tentar achá-la na Terra. Eu não poderia tê-lo feito particularmente, e já havia muitos comentários por toda a Galáxia a nosso respeito, graças àquele drama idiota da hiperonda, que foi para o ar nas subondas, depois de Solaria. Do contrário, garanto-lhe, eu teria tentado. Contudo, eu tinha a combinação do Dr. Fastolfe, e uma vez na órbita de Aurora, contactei-o imediatamente.

      - Seja como for, aqui estamos.

      Gladia sentou-se no beliche e estendeu as mãos.

      Baley segurou-as e tentou sentar-se num banquinho que ele havia aproximado um pouco, porém ela puxou-o insistentemente para o beliche, fazendo-o sentar-se ao seu lado.

      Baley perguntou, sem jeito:

      - Como vão as coisas com você, Gladia?

      - Muito bem, Elijah. E com você?

      - Estou ficando velho. Há três semanas comemorei meu qüinquagésimo aniversário.

      - Cinqüenta não é...

      Gladia interrompeu-se.

      - Para um Terráqueo, é velhice. Como você sabe, nós temos vida curta.

      - Mesmo para um Terráqueo, cinqüenta não significa velhice. Você não mudou.

      - É gentil de sua parte dizer isso, mas sei onde os estalos nas juntas se multiplicaram. Gladia...

      - Sim, Elijah?

      - Preciso perguntar. Você e Santirix Gremionis...

      Gladia sorriu e balançou a cabeça afirmativamente.

      - Ele é meu marido. Segui seu conselho.

      - E deu certo?

      - Bastante. A vida é agradável.

      - Ótimo. Tomara que dure.

      - Nada dura séculos, Elijah, mas pode durar anos, talvez mesmo décadas.

      - Filhos?

      - Ainda não. Mas quanto à sua família, meu homem casado? Seu filho? Sua mulher?

      - Bentley mudou para as Colônias há dois anos. Na realidade, estou indo juntar-me a ele. Ele é funcionário no planeta para onde estou indo. Tem apenas vinte e quatro anos e está prosperando. - Os olhos de Baley luziram. - Acho que terei de chamá-lo de Vossa Excelência. Pelo menos em público.

      - Formidável. E a senhora Baley? Está viajando com você?

      - Jessie? Não. Ela não quer deixar a Terra. Eu lhe disse que teríamos de morar em cúpulas durante muito tempo e que, na verdade, não seria muito diferente da Terra. Primitivo, claro. Contudo, ela pode mudar de idéia a tempo. Tornarei a mudança tão confortável quanto possível, e uma vez instalado, pedirei a Bentley para ir à Terra buscá-la. Nessa época, ela deverá estar bastante solitária para desejar vir. Veremos.

      - Mas nesse ínterim você ficará só.

      - Há mais de uma centena de emigrantes na nave, portanto não estarei realmente só.

      - Eles estão do outro lado do setor, contudo. E eu também estou só.

      Baley lançou um rápido olhar involuntário à cabine do piloto e Gladia disse:

      - A não ser por Daneel, é claro, que está do outro lado daquela porta e que é robô, a despeito de quão intensamente você pensa nele como pessoa. Mas certamente você não pediu para me ver apenas para perguntarmos pelas nossas respectivas famílias.

      O rosto de Baley ficou solene, quase ansioso.

      - Não posso pedir-lhe...

      - Então peço eu. Este beliche não foi na verdade feito para atividades sexuais, mas você enfrentará a possibilidade de cair dele, espero.

      - Gladia, não posso negar que... - disse Baley, vacilante.

      - Oh, Elijah, não se entregue a uma longa dissertação visando a satisfazer as necessidades de sua moralidade terrestre. Ofereço-me a você de acordo com os costumes Auroreanos. É seu pleno direito recusar e eu não tenho legalmente como discutir a recusa. Só que a discutirei com mais intensidade. Resolvi que o direito de recusa pertence apenas aos Auroreanos. Não a aceito de um Terráqueo.

      Baley suspirou.

      - Não sou mais Terráqueo, Gladia.

      - E eu estou ainda menos disposta a aceitar isso de um miserável emigrante se dirigindo a um planeta bárbaro onde ele terá de se abrigar sob uma cúpula. Elijah, tivemos tão pouco tempo, temos ainda menos agora e talvez eu nunca mais o veja. Este encontro é tão completamente inesperado, que será um crime cósmico deixá-lo passar.

      - Gladia, você realmente quer um velho?

      - Elijah, você quer realmente que eu implore?

      - Mas estou envergonhado.

      - Pois feche os olhos.

      - Quero dizer, de mim mesmo - do meu corpo decrépito.

      - Então sofra. Sua opinião boba a respeito de si próprio nada tem a ver comigo.

      E ela passou os braços em volta dele, quando a gola do seu vestido se abriu.

      Gladia ficou simultaneamente consciente de uma série de coisas.

      Ficou consciente da maravilha da constância, pois Elijah era exatamente como se lembrava dele. O lapso de cinco anos não tinha mudado nada. Ela não tinha vivido no resplendor de uma lembrança intensificada. Ele era Elijah.

      Também ficou consciente da mistura de diferenças. Intensificou-se sua sensação de que Santirix Gremionis, sem um único defeito maior que ela pudesse identificar, era todo defeitos. Santirix era afetuoso, gentil, racional, razoavelmente inteligente - e vazio. Ela não sabia dizer por que ele era vazio, mas nada do que o marido fazia ou dizia podia animá-la como Baley fazia, mesmo quando este nada fazia ou dizia. Baley era mais idoso, muito mais idoso fisiologicamente, não tão elegante quanto Santirix, e tinha, além disso, um indefinível ar de decadência - a auréola de envelhecimento rápido e vida curta que os Terráqueos prezavam. Contudo...

      Ficou consciente da tolice dos homens, de Elijah se aproximando hesitante, da sua total incapacidade de apreciar o efeito que produzia nela.

      Ficou consciente de sua desatenção, pois tinha se afastado para conversar com Daneel, que deveria ser o último, quando ele era o primeiro. Os Terráqueos temiam e odiavam os robôs, apesar disso, mesmo sabendo muito bem que Daneel era robô, Elijah tratava-o como gente. Os Espaciais, por sua vez, que gostavam de robôs e nunca se sentiam bem sem eles, jamais pensavam neles a não ser como máquinas.

      Acima de tudo, Gladia ficou consciente do tempo. Sabia que tinham se passado exatamente três horas e vinte e cinco minutos desde que Elijah entrara na pequena nave de Han Fastolfe, e sabia também que não seria permitido ficar muito mais tempo.

      Quanto mais tempo ela permanecesse fora da superfície de Aurora e a nave de Baley em órbita, mais provavelmente alguém repararia - se é que já não tivesse reparado, como parecia quase certo - mais provavelmente alguém iria ficar curioso e investigar. E depois Fastolfe ficaria metido numa desagradável enrascada.

      Baley voltou da cabine de pilotagem e olhou para Gladia com tristeza.

      - Agora preciso partir, Gladia.

      - Sei muito bem disso.

      - Daneel cuidará de você - disse Baley. - Ele será seu amigo e protetor, você precisa ser amiga dele. Por amor a mim. Mas é a Giskard que eu quero que ouça. Deixe que ele a aconselhe.

      Gladia contraiu o rosto.

      - Por que Giskard? Não sei se gosto dele.

      - Não lhe peço que goste dele. Peço-lhe que confie nele.

      - Mas por quê, Elijah?

      - Não posso lhe dizer. A esse respeito, você precisa também confiar em mim.

      Encararam-se sem palavras. Era como se o silêncio tivesse parado o tempo, permitindo-lhes reter os segundos e torná-los imóveis. Mas só durou um pouco. Baley perguntou:

      - Você não lamenta...

      - Como posso lamentar - sussurrou Gladia - se talvez nunca mais o veja?

      E ela nunca mais o viu. Nunca!

      Foi com sofrimento que ela se sentiu arrastar pelo desolado espaço morto dos anos mais uma vez até o presente.

      Eu nunca devia, pensou. Nunca!

      Gladia tinha se protegido contra as recordações agridoces durante muito tempo e agora mergulhava nelas - mais amargas que doces desde  que tinha visto aquele indivíduo, aquele Mandamus - porque Giskara  tinha pedido e porque tinha sido compelida a confiar em Giskard.

      Tinha sido o último pedido dele.

      Gladia voltou a fixar-se no presente. (Quanto tempo tinha passado.)

      Mandamus olhava-a friamente e disse:

      - Pela sua reação, Senhora Gladia, deduzo que é verdade. Não seria possível dizê-lo com maior clareza.

      - O que é verdade? De que está falando?

      - A senhora viu o Terráqueo Elijah Baley cinco anos após sua visita a Aurora. A nave dele estava na órbita deste planeta, a senhora foi vê-lo e esteve com ele mais ou menos na época em que concebeu seu filho.

      - Que prova tem disso?

      - Senhora, isso não ficou tão secreto assim. A nave do Terráqueo foi detectada em órbita. O iate de Fastolfe foi percebido em vôo. Ele foi observado atracando. Não era Fastolfe quem estava a bordo do iate, portanto houve a suposição de que fosse a senhora. A influência do Dr. Fastolfe foi suficiente para evitar o seu registro.

      - Se não foi registrado, não há prova.

      - Não obstante, o Dr. Amadiro passou os últimos dois terços de sua vida seguindo os movimentos do Dr. Fastolfe com os olhos do ódio. Sempre houve funcionários do governo dedicados de corpo e alma à política do Dr. Amadiro de reservar a Galáxia para os Espaciais, e eles comunicavam secretamente a ele tudo que pensavam poder interessá-lo. O Dr. Amadiro tomou conhecimento de sua escapada quase ao mesmo tempo em que aconteceu.

      - Isso não prova. A palavra não corroborada de um funcionário subalterno à procura de favores não é levada em conta. Amadiro nada fez porque mesmo ele sabe que não tem nenhuma prova.

      - Nenhuma prova com que possa inculpar alguém mesmo de um delito leve, nenhuma prova com a qual possa incomodar Fastolfe, mas prova suficiente para me colocar sob suspeita de ser descendente de Baley e assim inutilizar minha carreira.

      Gladia disse amargamente:

      - O senhor pode ficar tranqüilo. Meu filho é descendente de Santirix Gremionis, um verdadeiro Auroreano, e é desse filho de Gremionis que o senhor descende.

      - Convença-me disso, senhora. Nada mais peço. Convença-me de que passou horas sozinha com o Terráqueo discutindo - política, talvez - e conversando sobre os velhos tempos e amigos comuns - contaram-se histórias, engraçadas - e nunca se tocaram. Convença-me.

      - O que fizemos não tem importância, assim poupe-me de sua ironia. Naquele dia, eu já estava grávida do meu então marido. Levava comigo um feto de três meses, um feto Auroreano.

      - Pode provar?

      - Por que tenho de provar? A data do nascimento do meu filho está registrada, e Amadiro deve ter o dia da minha visita ao Terráqueo.

      - Como já lhe disse, ele foi informado disso na época, mas se passaram quase vinte décadas e ele não se lembra com exatidão. A visita não foi objeto de registro e não pode ser usada. Acho que o Dr. Amadiro prefere acreditar que o seu encontro com o Terráqueo ocorreu nove meses antes do nascimento do seu filho.

      - Seis meses.

      - Prove.

      - Tem a minha palavra.

      - É insuficiente.

      - Bem, então... Daneel, você estava comigo. Quando vi Elijah Baley?

      - Senhora Gladia, foi cento e setenta e três dias antes do nascimento do seu filho.

      - O que corresponde - completou Gladia - a pouco menos de seis meses antes do nascimento.

      - É insuficiente - repetiu Mandamus.

      Gladia ergueu o queixo.

      - A memória de Daneel é perfeita, coisa que pode ser demonstrada facilmente, e o depoimento de um robô serve de prova nos tribunais de Aurora.

      - Isto não é um assunto para tribunais, nem será, e a memória de Daneel não tem nenhum valor para o Dr. Amadiro. Daneel foi construído por Fastolfe e por ele mantido durante quase dois séculos. Não podemos dizer que modificações lhe foram introduzidas ou como o robô foi instruído para lidar com assuntos relativos ao Dr. Amadiro.

      - Então raciocine, homem. Os Terráqueos são muito diferentes de nós geneticamente. Somos virtualmente espécies diferentes. Não somos interférteis.

      - Não está provado.

      - Pois bem, existem registros genéticos. Darrel tem  Santirix, idem. Compare-os. Se meu ex-marido não é o pai dele, as diferenças genéticas tornarão isso inequívoco.

      - Os registros genéticos não estão à disposição de todos. A senhora sabe disso.

      - Amadiro não está tão imerso em considerações éticas. Ele tem influência bastante para vê-los ilegalmente. Ou ele tem medo de que sua hipótese seja desmentida?

      - Qualquer que seja o motivo, senhora, ele não trairá o direito de um Auroreano à privacidade.

      - Bem, então - retrucou Gladia - vá ao espaço exterior e sufoque no vácuo. Se o seu Amadiro se recusa a ser convencido, não é problema meu. O senhor, pelo menos, deve estar convencido, e é sua tarefa convencê-lo, por sua vez. Se não puder e sua carreira não progredir como gostaria, por favor, fique certo de que isso está inteira e intensamente fora de minhas preocupações.

      - Isso não me surpreende. Não esperava nada mais. E quanto a isto, estou convencido. Estava apenas esperando que a senhora me desse alguns elementos com que convencer o Dr. Amadiro. A senhora não os tem.

      Gladia encolheu desdenhosamente os ombros.

      - Portanto, usarei outros métodos - disse Mandamus.

      - Que bom que o senhor os tem - retrucou Gladia friamente.

      Mandamus falou em voz baixa, quase como se estivesse inconsciente da presença de mais alguém.

      - De fato. Eu possuo métodos bastante poderosos.

      - Ótimo. Sugiro-lhe que tente chantagear Amadiro. Ele deve ser muito vulnerável a chantagem.

      Mandamus encarou-a, subitamente franzindo o cenho.

      - Não seja tola.

      - Agora retire-se - disse Gladia. - Acho que já o aturei demais. Fora de minha casa!

      Mandamus ergueu os braços.

      - Espere! Eu lhe disse, no começo, que tinha dois motivos para vêla: um pessoal e outro oficial. Gastei tempo demais com o primeiro, porém solicito cinco minutos para discutir o segundo.

      - Não lhe dou mais do que isso.

      - Há alguém que deseja vê-la. Um Terráqueo - ou, pelo menos, um membro de um dos planetas dos Colonizadores, um descendente do povo da Terra.

      - Diga-lhe - retrucou Gladia - que nem os Terráqueos nem seus descendentes Colonizadores podem descer em Aurora e mande-o embora. Por que deveria eu vê-lo?

      - Infelizmente, senhora, nos dois últimos séculos o equilíbrio do poder mudou um pouco. Aquela gente da Terra tem mais planetas do que nós e também uma população muito maior. Têm mais naves, embora não tão avançadas quanto as nossas, e, em virtude de suas vidas curtas e de sua fecundidade, estão evidentemente muito mais preparados para morrer do que  nós.

      - Não acredito nisso.

      Mandamus sorriu friamente.

      - Por quê? Oito décadas são menos que quarenta. Seja como for, precisamos tratá-los educadamente, muito mais do que fomos no tempo de Elijah Baley. Se isso lhe serve de consolo, foi a política de Fastolfe que criou essa situação.

      - Afinal de contas, em nome de quem o senhor fala? É Amadiro quem necessita agora ser educado com os Colonizadores?

      - Não, realmente é o Conselho.

      - O senhor é porta-voz do Conselho?

      - Não oficialmente, mas me pediram que a informasse disso... não oficialmente.

      - E se eu vir esse Colonizador, o que vai acontecer? Qual o assunto a ser tratado?

      - Ignoramos, senhora. Contamos com a senhora para ficarmos informados. A senhora o receberá, descobrirá o que ele quer e nos transmitirá.

      - Quem é "nós"?

      - Como eu disse, o Conselho. O Colonizador virá à sua casa esta noite.

      - O senhor parece estar certo de que eu não tenho escolha a não ser assumir esta posição de informante.

      Mandamus ficou em pé, dando evidentemente como terminada a missão.

      - A senhora não será uma "informante". Nada deve a esse Colonizador. Apenas transmitirá a conversa ao seu governo, como deve fazer - e até ansiar - uma leal cidadã Auroreana. A senhora não quererá que o Conselho imagine que sua origem Solariana de alguma forma diminua seu patriotismo Auroreano.

      - Senhor, tenho sido Auroreana mais de quatro vezes ao longo de sua vida.

      - Sem dúvida, mas a senhora nasceu e cresceu em Solaria. A senhora é uma anomalia pouco habitual, uma Auroreana nascida no estrangeiro, e é difícil esquecer tal coisa. Tanto isto é verdade, que o Colonizador deseja vê-la, mais que a qualquer outra pessoa em Aurora, exatamente porque a senhora é Solariana de nascença.

      - Como sabe disso?

      - É uma presunção lógica. Ele a identifica como "a Solariana". Estamos curiosos em saber por que isso significa alguma coisa para ele... agora que Solaria não mais existe.

      - Pergunte-lhe.

      - Preferimos perguntar à senhora... depois que perguntar a ele. Agora peço-lhe licença para me retirar e agradeço-lhe por sua hospitalidade.

      Gladia fez um seco aceno de cabeça.

      - Concedo-lhe minha permissão de se retirar com mais prazer do que lhe concedi a minha hospitalidade.

      Mandamus dirigiu-se ao corredor que levava à entrada principal, acompanhado de perto por seus robôs.

      Parou exatamente antes de sair da sala, virou-se e disse:

        - Ia-me esquecendo... O Colonizador que deseja vê-la tem, por curiosa coincidência, o sobrenome Baley.

     

      A Crise

      Daneel e Giskard, com cortesia robótica, acompanharam Mandamus e seus robôs até fora do terreno da casa. Depois que estes saíram, os dois deram uma volta pelos terrenos para terem certeza de que os robôs menores estavam em seus lugares e verificaram o tempo (nublado e levemente mais frio que o normal).

      - O Dr. Mandamus admitiu abertamente - disse Daneel - que os planetas dos Colonizadores estão agora mais fortes que os dos Espaciais. Eu não esperava que ele dissesse isso.

      - Nem eu - replicou Giskard. - Eu tinha certeza de que os Colonizadores iriam ter sua força aumentada, em comparação com os Espaciais, porque Elijah Baley previu isso há muitas décadas, mas não vejo o meio de determinar quando o fato irá se tornar evidente para o Conselho de Aurora. Parece-me que a inércia social vai manter o Conselho firmemente convencido da superioridade dos Espaciais muito depois que tenham desaparecido, mas não posso calcular por quanto tempo irão continuar a se iludir.

      - Estou espantado de o Colega Elijah ter previsto isso há tanto tempo.

      - Seres humanos têm meios de pensar sobre seres humanos que nos escapam.

      Se Giskard fosse humano, o comentário poderia ter sido feito com pena ou inveja, mas, como era robô, foi um comentário meramente factual. Ele Prosseguiu:

      - Eu procurei adquirir o conhecimento, se não a maneira de pensar, lendo a história da humanidade nos menores detalhes. com certeza, em algum lugar do longo relato dos acontecimentos humanos as Leis da Humânica devem ter sido enterradas, elas que são equivalentes às nossas Três Leis da Robótica.

      - A senhora Gladia me disse uma vez que essa era uma esperança impossível - falou Daneel.

      - É bem possível, amigo Daneel, pois embora me pareça que essas Leis da Humânica possam existir, não consigo encontrá-las. A generalização que procuro fazer, por mais ampla e simples, contem inúmeras exceções. Contudo, se elas existem e se eu conseguir encontrá-las, poderá compreender melhor os seres humanos e ficar mais confiante em que estou obedecendo às Três Leis da melhor maneira.

      - Visto que o Colega Elijah compreende os seres humanos, deve ter conhecimento das Leis da Humânica.

      - Presumivelmente. Porém ele aprendeu isso por intermédio de uma coisa que os seres humanos chamam intuição, palavra que não compreendo, significando um conceito do qual nada sei. Provavelmente está além da compreensão e eu só tenho a razão sob o meu comando.

      Além da memória!

      Memória que não funcionava à maneira humana, é claro. Faltava-lhe o imperfeito retorno, a vagueza, os acréscimos e subtrações ditados, o desejo que seja verdade e o auto-interesse, para não falar nas protelações e lacunas, nos retrocessos que podem transformar a memória em devaneios com horas de duração.

      Era memória robótica assinalando os eventos exatamente como aconteceram, mas de maneira muito mais apressada. Os segundos desenrolavam-se em frações de segundo, de forma que os dias dos acontecimentos podiam ser revividos com aquela rápida exatidão de maneira a não provocar um vácuo perceptível na conversa.

      Como Giskard havia feito inúmeras vezes antes, ele reviveu essa visita à Terra, sempre procurando compreender a capacidade casual de Elijah Baley prever o futuro, sempre incapaz de descobrir.

      Terra!

      Fastolfe tinha ido à Terra numa belonave Auroreana, juntamente com uma lotação completa de colegas passageiros, tanto humanos como robôs. Uma vez em órbita, contudo, foi apenas Fastolfe quem tomou um módulo para pousar. Recebeu injeções para reforçar seu mecanismo de imunidade e colocou as imprescindíveis luvas, macacões, lentes de contato e filtros para o nariz. Como resultado, sentiu-se bastante seguro, mas nenhum outro Auroreano teve vontade de acompanhá-lo.

      Fastolfe encolheu os ombros a isso, pois lhe parecia (como mais tarde explicou a Giskard) que seria melhor recebido se chegasse sozinho. Uma delegação faria a Terra lembrar com desagrado os maus dias de outrora (para ela) de Spacetown, quando os Espaciais tinham uma base permanente na Terra e dominavam diretamente o planeta.

      Contudo, Fastolfe levou Giskard. Chegar sem robôs teria sido impensável, mesmo para Fastolfe. Chegar com mais de um seria acrescentar mais tensão aos Terráqueos cada vez mais anti-robôs que ele esperava ver e com quem pretendia negociar.

      Para começar, é claro, queria encontrar Baley, que iria ser sua ligação com a Terra e seus habitantes. Foi essa a desculpa racional para o encontro. A verdadeira desculpa era simplesmente que Fastolfe queria muito rever Baley, a quem certamente devia muito.

      (Que Giskard quisesse ver Baley e que tivesse muito levemente estimulado a emoção e o impulso no cérebro de Fastolfe para conseguir, Fastolfe não tinha meio de saber... ou mesmo imaginar.)

      Baley estava à espera deles na hora do desembarque, acompanhado de um pequeno grupo de funcionários da Terra, ocasionando assim uma tediosa perda de tempo durante a qual a diplomacia e o protocolo tiveram a primazia. Foi algumas horas antes que Baley e Fastolfe tivessem podido se afastar, e isso não teria acontecido tão cedo se não fosse pela silenciosa e não sentida interferência de Giskard... com um exato toque nas mentes dos mais importantes daqueles funcionários, que estavam visivelmente entediados. (Era sempre seguro confinar-se, acentuando uma emoção já existente. Quase nunca causava danos.)

      Baley e Fastolfe instalaram-se numa acanhada sala de jantar particular, ordinariamente disponível apenas aos altos funcionários do governo. Pratos podiam ser encomendados com o toque nas teclas de um cardápio computadorizado, sendo trazidos em carrinhos igualmente manobrados por computadores.

      Fastolfe sorriu.

      - Muito modernos - disse ele - mas esses carrinhos não passam de robôs especializados. Surpreende-me que a Terra os use. Certamente, não são de manufatura Espacial.

      - De fato, não - replicou Baley, solenemente. - Confecção doméstica, por assim dizer. Estes são apenas para uso dos chefões, e é a minha primeira oportunidade de experimentá-los. Provavelmente, não os usarei novamente.

      - Você pode ser eleito algum dia para um alto cargo e então poderá experimentar este tipo de coisa diariamente.

      - Nunca - replicou Baley.

      Os pratos foram colocados diante de cada um, o carrinho era até bastante sofisticado para ignorar Giskard, que ficou em pé, impassível, atrás da cadeira de Fastolfe.

      Durante um momento, Baley comeu em silêncio, então, com uma certa timidez, disse:

      - É um prazer vê-lo novamente, Dr. Fastolfe.

      - A recíproca é verdadeira. Não esqueci de quando você, há dois anos, esteve em Aurora e trabalhou para me livrar da suspeita da destruição do robô Jander e reverter as opiniões nitidamente a meu favor contra meu superconfiante oponente, o bom Amadiro.

      - Ainda estremeço quando penso naquilo - respondeu Baley. - E minhas saudações a você também, Giskard. Espero que não tenha me esquecido.

      - Isso seria totalmente impossível, senhor - afirmou Giskard.

      - Ótimo! Bem, doutor, espero que a situação política em Aurora continue a ser favorável. As notícias que temos sugerem isso, porém eu não confio na análise Terráquea dos assuntos Auroreanos.

      - Pode confiar... no momento. Meu partido está no comando firme do Conselho. Amadiro mantém uma oposição obstinada, porém desconfio que se passarão anos antes que sua gente se recupere do golpe que você lhes deu. Mas como vão as coisas com você e com a Terra?

      - Bastante bem. Diga-me, Dr. Fastolfe - o rosto de Baley crispou-se ligeiramente como que embaraçado - trouxe Daneel com o senhor?

      Fastolfe replicou devagar:

      - Lamento, Baley. Trouxe-o, mas deixei-o a bordo. Senti que não seria polido estar acompanhado por um robô tão parecido com um ser humano. Tendo a Terra se tornado tão anti-robô como se tornou, achei que um robô humanóide podia parecer uma provocação deliberada aos Terráqueos.

      - Compreendo - disse Baley e suspirou.

      - É verdade - perguntou Fastolfe - que seu governo está planejando a utilização de robôs dentro das Cidades?

      - Desconfio que chegaremos breve a isso, com uma época favorável, claro, para minimizar as perdas financeiras e a inconveniência. Os robôs serão restritos ao interior, onde são necessários para a agricultura e a mineração. Lá, também, poderão finalmente ser eliminados, e o plano é não haver robôs em nenhum dos novos mundos.

      - Já que citou os novos mundos, seu filho já abandonou a Terra?

      - Sim, há alguns meses. Tivemos notícias dele, que chegou são e salvo num novo planeta, juntamente com inúmeros Colonizadores, como eles mesmos se chamam. O planeta tem uma vegetação nativa e atmosfera rarefeita de oxigênio. Evidentemente, com o tempo pode se tornar muito semelhante à Terra. Enquanto isso, algumas cúpulas temporárias foram erguidas, novos Colonizadores foram avisados e todos estão ativamente dedicados à terra-formação. As cartas de Bentley e contatos ocasionais pela hiperonda são muito promissores, o que não impede a mãe dele de sentir muita saudade.

      - E você irá para lá, Baley?

      - Não tenho certeza se morar num mundo estranho sob uma cúpula é o meu ideal de felicidade, Dr. Fastolfe - não tenho a juventude e o entusiasmo de Ben - mas acho que vou, dentro de dois ou três anos. Seja como for, já transmiti ao Departamento minha intenção de emigrar.

      - Imagino que eles devem ter ficado preocupados com isso.

      - Nem um pouco. Eles dizem que estão, mas ficarão felizes por se livrarem de mim. Eu sou muito notório.

      - E como o governo da Terra reage a essa ânsia de expansão na Galáxia?

      - Nervosamente. Eles não proíbem absolutamente, mas certamente não colaboram. Continuam a desconfiar que os Espaciais são contra, e farão alguma coisa desagradável para impedi-la.

      - Inércia social - comentou Fastolfe. - Eles nos julgam de acordo com nosso comportamento de anos passados. Certamente, deixamos claro que agora encorajamos a colonização dos novos planetas pela Terra e que temos a intenção de colonizar outros por nossa conta.

      - Espero que explique isso ao nosso governo... Mas, Dr. Fastolfe, mudando de assunto, como está...

      Ficou na expectativa.

      - Gladia? - perguntou Fastolfe, ocultando seu divertimento. - Esqueceu o nome dela?

      - Não, não. Apenas hesitei em... em...

      - Ela está bem - disse Fastolfe - e vivendo confortavelmente. E me pediu que a lembrasse a você, mas imagino que não precise ser estimulado para recordá-la.

      - Espero que sua origem Solariana não seja usada contra ela.

      - Não, nem seu papel na queda do Dr. Amadiro. Até pelo contrário. Cuidei dela, garanto-lhe... De qualquer modo, me importo de lhe permitir livrar-se completamente dele, Baley. E se o funcionalismo da Terra continuar a se opor à imigração e expansão? Esse processo pode continuar, a despeito da oposição?

      - Possivelmente - replicou Baley - mas não certamente. Há uma oposição substancial entre os Terráqueos em geral. É difícil romper com as enormes Cidades subterrâneas que são nossos lares...

      - Seus úteros.

      - Ou nossos úteros, se preferir. Ir para novos mundos e ter de viver com a mais primitiva simplicidade por décadas, jamais tendo conforto durante a própria vida, não é nada fácil. Quando às vezes penso nisso, resolvo não ir - especialmente se passei uma noite em claro. Decidi não ir uma centena de vezes, e um dia talvez me agarre a essa decisão. Se eu me perturbo, quando, de certa forma, criei toda a idéia, então quem mais estará apto a ir livre e alegremente? Sem estímulo do governo - ou, para ser brutalmente franco - sem o pontapé do governo aplicado no fundo das calças da população, o projeto todo pode fracassar.

      Fastolfe balançou a cabeça, concordando.

      - Procurarei persuadir seu governo. Mas, e se eu falhar?

      Baley replicou, em voz baixa:

      - Se o senhor falhar - e se, em conseqüência, nosso povo fracassar - só restará uma alternativa: os próprios Espaciais devem colonizar a Galáxia. A tarefa tem de ser cumprida.

      - E ficará satisfeito ao ver os Espaciais se expandirem e ocupar a Galáxia, enquanto os Terráqueos permanecem em seu único planeta?

      - Não, claro que não, mas será melhor que a presente situação de imobilismo. Há muitos séculos, os Terráqueos espalharam-se pelas estrelas, fundaram alguns dos planetas que são hoje denominados Espaciais e estes poucos colonizaram outros. Contudo, um longo tempo decorreu desde que tanto os Espaciais como os Terráqueos, com sucesso, colonizaram e desenvolveram um novo mundo. Não se pode permitir tal imobilismo.

      - Concordo. Mas qual é o seu motivo para esperar a expansão, Baley?

      - Sinto que, sem algum tipo de expansão, a humanidade não pode progredir. Não tem que ser necessariamente uma expansão geográfica, porém esse é o melhor meio de induzir da mesma forma outros tipos de expansão. Se a expansão geográfica pode ser empreendida de forma a não sacrificar outros seres inteligentes, se houver espaços vazios onde possa haver expansão, então por que não tentar? Resistir à expansão, nestas circunstâncias, é abrir campo à decadência.

      - Então só vê essas alternativas? Expansão e progresso? Não expansão e decadência?

      - Sim, acredito que sim. Portanto, se a Terra recusar a expansão, então os Espaciais devem aceitá-la. A humanidade, quer na forma de Terráqueos ou Espaciais, precisa se expandir. Eu gostaria de ver os Terráqueos empreenderem a tarefa, mas, se isto não for possível, a expansão dos Espaciais é melhor que nenhuma. Uma alternativa ou outra.

      - E se um se expande e o outro não?

      - Então a sociedade em expansão se tornará cada vez mais forte e a não-expansionista cada vez mais fraca.

      - Tem certeza disso?

      - Parece inevitável, no meu entender.

      Fastolfe balançou a cabeça.

      - Realmente, concordo. É por isso que estou tentando persuadir tanto os Terráqueos como os Espaciais a se expandirem e progredirem. É a terceira alternativa e, creio, a melhor.

     

      A memória adejou durante os dias que se seguiram - incríveis massas de gente em movimento incessante, passando uns pelos outros em correntes e remoinhos - correndo em vias expressas sendo montadas e desmontadas - conferências infindáveis com inúmeros funcionários - mentes aglomeradas.

      Especialmente mentes aglomeradas.

      Mentes aglomeradas de forma tão espessa que Giskard não pôde destacar indivíduos. Mentes em massas misturando-se e fundindo-se numa vasta pulsação acinzentada onde tudo que podia ser detectável eram as fagulhas periódicas da desconfiança e aversão que se desprendiam sempre que alguém dessa multidão parava para olhá-lo.

      Só quando Fastolfe estava em conferência com alguns funcionários, pôde Giskard lidar com a mente individual, e isso, claro, foi o que teve importância.

      A memória ficou vagarosa até um ponto perto do término da estada na Terra, quando Giskard pôde, finalmente, manobrar um tempo sozinho novamente com Baley. Ajustou algumas mentes ao mínimo a fim de ficar certo de que, durante algum tempo, não haveria interrupção.

      Baley disse, desculpando-se:

      - Realmente, eu não o estive ignorando, Giskard. Simplesmente, não tive oportunidade de ficar a sós com você. Não sou muito considerado na Terra e não posso determinar minhas idas e vindas.

      - Senhor, claro que eu percebi isso, mas agora temos algum tempo juntos.

      - Ótimo. O Dr. Fastolfe me disse que Gladia está indo bem. Ele pode estar falando por bondade, sabendo que isso é o que eu gostaria de ouvir. Contudo, ordeno-lhe que seja sincero. Gladia, de fato, está indo bem?

      - O Dr. Fastolfe lhe disse a verdade, senhor.

      - E você lembra, espero, meu pedido, quando o vi pela última vez em Aurora, para que cuidasse dela e a protegesse de qualquer perigo.

      - Senhor, o amigo Daneel e eu estamos perfeitamente lembrados do seu pedido. Dei um jeito para isso, de maneira que, quando o Dr. Fastolfe não mais existir, tanto o amigo Daneel como eu passaremos a fazer parte da casa de Senhora Gladia. Então estaremos em posição muito melhor para protegê-la.

      - Isso - disse Baley com tristeza - será muito depois do meu tempo.

      - Compreendo e lamento, senhor.

      - Sim, mas não posso fazer nada, e aproxima-se uma crise - ou pode se aproximar - mesmo antes disso e contudo ainda depois do meu tempo.

      - Senhor, o que é que está pensando? Que crise é essa?

      - Giskard, é uma crise que pode surgir pelo fato do Dr. Fastolfe ser uma pessoa surpreendentemente persuasiva. Ou então há um outro fator associado a ele que está realizando a tarefa.

      - Como, senhor?

      - Cada funcionário que o Dr. Fastolfe viu e entrevistou parece agora entusiasticamente a favor da emigração. Não era assim antes, e se era, eles usavam de muita reserva. E logo que os líderes formadores de opinião fiquem a favor, outros certamente os seguirão. Isso irá se espalhar como uma epidemia.

      - E não quer isso, senhor?

      - Sim, quero, mas é quase demais o que eu quero. Nós nos espalharemos por toda a Galáxia - mas e se os Espaciais não quiserem?

      - Por que eles não haveriam de querer?

      - Não sei. Avanço isto como uma suposição, uma possibilidade. E se eles não quiserem?

      - A Terra e os planetas que seu povo colonizar ficarão então mais fortes, de acordo com o que lhe ouvi dizer.

      - E os Espaciais ficarão mais fracos. Haverá, contudo, um período de tempo durante o qual os Espaciais permanecerão tão fortes quanto a Terra e seus Colonizadores, embora num nível paulatinamente decrescente. Finalmente, os Espaciais se tornarão inevitavelmente conscientes de que os terráqueos serão um perigo crescente. Nesse momento, os planetas Espaciais irão certamente decidir que a Terra e os Colonizadores devem ser parados antes que seja muito tarde, e lhes parecerá que medidas drásticas terão de ser tomadas. Esse será um período de crise que determinará toda a história futura dos seres humanos.

      - Compreendo seu ponto de vista, senhor.

      Baley permaneceu num silêncio pensativo durante um instante e depois disse, quase num sussurro, como se temesse ser ouvido:

      - Quem conhece sua capacidade?

      - Entre os humanos, só o senhor... que não pode mencioná-la a ninguém.

      - Sei muito bem que não posso. O ponto, porém, é que foi você e não Fastolfe quem provocou a mudança que levou cada funcionário com quem contactou a ser partidário da emigração. E foi para conseguir isso que você deu um jeito de Fastolfe trazê-lo à Terra com ele, em vez de Daneel. Você era essencial, e Daneel podia ser uma distração.

      - Senti a conveniência - retrucou Giskard - de contar com um mínimo de pessoal, com o objetivo de facilitar minha tarefa, diminuindo as arestas do povo da Terra. Lamento, senhor, a ausência de Daneel. Percebo plenamente seu desapontamento por não poder cumprimentá-lo.

      - Bem... - disse Baley, balançando a cabeça. - Compreendo a necessidade e confio em que transmita a Daneel o quanto senti sua falta. Seja como for, continuo no meu ponto de vista. Se a Terra iniciar uma grande política de colonização mundial e se os Espaciais forem deixados para trás na corrida pela expansão, a responsabilidade por isso - e consequentemente pela crise que surgirá inevitavelmente - será sua. Por esse motivo, você precisa ter como sua responsabilidade imediata usar sua capacidade para proteger a Terra quando a crise surgir.

      - Farei o que puder, senhor.

      - E se conseguir, Amadiro poderá virar-se contra Gladia. Ele ou seus seguidores. Você precisa não esquecer também de protegê-la.

      - Daneel e eu não esqueceremos.

      - Obrigado, Giskard.

      E separaram-se.

      Quando Giskard entrou no módulo, acompanhando Fastolfe, para iniciar a viagem de volta a Aurora, tornou a ver Baley. Dessa vez, não teve oportunidade de falar-lhe.

      Baley acenou-lhe e emitiu uma palavra silenciosa: "Lembre."

      Giskard percebeu a palavra e, por trás dela, a emoção.

      Depois disso, Giskard nunca mais tornou a ver Baley. Nunca mais.

     

      Giskard nunca tinha achado possível recordar as vivas imagens dessa única visita à Terra sem acompanhá-las com as imagens da visita decisiva a Amadiro, no Instituto de Robótica.

      Não fora uma conferência fácil de arranjar. Amadiro, com a amargura da derrota pesando sobre si, não quis exacerbar sua humilhação indo à residência de Fastolfe.

      - Muito bem - dissera Fastolfe a Giskard - então posso me permitir ser magnânimo na vitória. Irei procurá-lo. Além disso, preciso vê-lo.

      Fastolfe tinha sido membro do Instituto de Robótica desde que Baley tornara possível o esmagamento de Amadiro e de suas ambições políticas. Em troca, Fastolfe tinha fornecido ao Instituto todos os dados para a construção e manutenção de robôs humaniformes. Uma quantidade deles tinha sido construída, depois o projeto chegou ao fim e Fastolfe foi afastado.

      Tinha sido intenção de Fastolfe, a princípio, ir ao Instituto sem robôs acompanhantes. Ter-se-ia colocado, sem proteção e (por assim dizer) nu no interior do que ainda era a fortaleza do campo inimigo. Teria sido um sinal de humildade e confiança, mas também a indicação de uma total autoconfiança, e Amadiro teria compreendido isso. Fastolfe, completamente só, daria uma demonstração de sua certeza de que Amadiro, com todos os recursos do Instituto sob sua direção, não ousaria tocar no seu inimigo sozinho, despreocupado e indefeso ao alcance do seu punho.

      Todavia, no fim, sem saber direito por quê, Fastolfe decidiu levar Giskard com ele.

      Amadiro pareceu um pouco mais magro desde a última vez que Fastolfe o vira. mas ainda era um tipo impressionante: alto e atarracado. Tinha perdido o sorriso confiante que fora, antes, sua marca registrada, e quando o experimentou à entrada de Fastolfe, ele pareceu mais um rosnado que se dissolveu num ar de sombria insatisfação.

      - Bem, Kelden - disse Fastolfe, tratando-o familiarmente - não nos vemos com freqüência, apesar de termos sido colegas durante quatro anos.

      - Vamos parar com essa falsa bondade, Fastolfe - disse Amadiro num resmungo claramente aborrecido e esganiçado - e me chame Amadiro. Nós somos colegas apenas de nome e não faço segredo - e jamais farei - da minha convicção de que sua política estrangeira é suicida para nós.

      Três dos robôs de Amadiro, grandes e reluzentes, estavam presentes e Fastolfe os examinou de sobrancelhas erguidas.

      - Você está muito bem protegido, Amadiro, contra um homem pacífico, acompanhado do seu único robô.

      - Eles não o atacarão, Fastolfe, como sabe muito bem. Mas por que trouxe Giskard? Por que não Daneel, sua obra-prima?

      - Seria seguro colocar Daneel ao seu alcance, Amadiro?

      - Acho que você está querendo fazer humor. Não preciso mais de Daneel. Nós construímos nossos próprios humaniformes.

      - Baseados em meu desenho.

      - Com melhoramentos.

      - E apesar disso não os usa. Foi por isso que vim vê-lo. Sei que minha posição no Instituto é apenas nominal e que mesmo minha presença não é bem-vinda, para não falar em minhas opiniões e recomendações. Contudo, como membro do Instituto, preciso protestar por seu fracasso em usar os humaniformes.

      - Como quer que eu os use?

      - A intenção foi fazer os humaniformes abrirem novos mundos, para os quais eles pudessem finalmente emigrar, depois que esses mundos fossem terraformados e tornados inteiramente habitáveis, ou não foi?

      - Mas você se opôs a isso, não, Fastolfe?

      - De fato - replicou Fastolfe. - Eu queria que os Espaciais emigrassem por iniciativa própria para os novos mundos e realizassem sua terraformação. Isso, contudo, não aconteceu, e vejo agora que não é provável que aconteça. Então, deixem-nos enviar os humaniformes. Será melhor que nada.

      - Todas as nossas alternativas levam a nada, enquanto seus pontos de vista dominarem o Conselho, Fastolfe. Os Espaciais não viajarão para mundos rudimentares e informes, nem, ao que parece, gostam de robôs humaniformes.

      - Você mal deu uma oportunidade aos Espaciais para gostarem deles. Os Terráqueos estão começando a colonizar novos planetas - mesmo os rudimentares e informes. E o fazem sem ajuda robótica.

      - Você conhece muito bem a diferença entre nós e os Terráqueos. Há oito bilhões deles, além de um grande número de Colonizadores.

      - E há cinco e meio bilhões de Espaciais.

      - A diferença não é só a quantidade - disse Amadiro amargamente. - Eles se reproduzem como insetos.

      - Não é verdade. A população da Terra está estável há séculos.

      - O potencial está presente. Se eles se dedicarem inteiramente à emigração, podem facilmente produzir cento e sessenta milhões de novos seres por ano, e esse número crescerá à medida que os novos mundos sejam habitados.

      - Temos a capacidade biológica de produzir cem milhões de novos seres a cada ano.

      - Mas não a capacidade sociológica. Nós temos vida longa, não desejamos nos reproduzir tão depressa.

      - Podemos enviar uma grande parte dos novos seres para outros planetas.

      - Não quererão ir. Prezamos nossos corpos, que são fortes, saudáveis e capazes de sobreviver com força e saúde por cerca de quarenta décadas. Os Terráqueos não dão valor aos corpos que usam durante menos de dez décadas e que são crivados de doenças e pela degeneração mesmo nesse curto período de tempo. A eles não importa se mandam milhões por ano a uma miséria certa e uma morte provável. Na realidade, mesmo as vítimas não necessitam temer o sofrimento e a morte, pois o que mais têm eles na Terra? Os Terráqueos que emigram estão fugindo do seu mundo pestilento, sabendo muito bem que qualquer mudança dificilmente será para pior. Nós, por outro lado, valorizamos nossos bem formados e confortáveis planetas e não desejamos desistir deles levianamente.

      Fastolfe suspirou e replicou:

      - Tenho ouvido todos esses argumentos com muita freqüência. Amadiro, posso apontar o simples fato de que Aurora foi originariamente um mundo primitivo e malformado, que teria de ser terraformado de maneira aceitável, e que isso aconteceu com todos os mundos Espaciais?

      - E eu ouvi todos os seus argumentos até à náusea - disse Amadiro - mas não me canso de respondê-los. Aurora pode ter sido primitivo no início de sua colonização que foi feita por Terráqueos, outros planetas Espaciais também podem ter sido primitivos, provavelmente pelo fato de terem sido colonizados por Espaciais que ainda não tinham superado sua herança terrestre. Os tempos hoje são outros, já não existem condições para isso. O que poderá ser feito, então, que não pode ser feito agora?

      Amadiro ergueu um canto da boca num rosnar e prosseguiu:

      - Não, Fastolfe, o que sua política conseguiu foi iniciar a criação de uma Galáxia que será habitada unicamente por Terráqueos, onde os Espaciais definharão e declinarão. Você está vendo isto acontecer agora. Sua famosa viagem à Terra, há dois anos, foi o início de tudo. De certa forma, você traiu seu próprio povo, encorajando aqueles meio-humanos a começar uma expansão. Em apenas dois anos, há pelo menos alguns Terráqueos em cada um dos vinte e quatro planetas, e outros estão chegando regularmente.

      - Não exagere - respondeu Fastolfe. - Na verdade, nenhum desses planetas dos Colonizadores foi ainda adaptado para ocupação humana, e não o será durante décadas. Provavelmente nem todos irão sobreviver, e enquanto os mais próximos forem ocupados, as oportunidades de colonização dos mais afastados diminuirão, de modo que o impulso inicial declinará. Encorajei sua expansão porque contei também com a nossa. Ainda podemos nos manter se fizermos um esforço, e, em competição saudável, poderemos suprir a Galáxia juntos.

      - Não - reagiu Amadiro. - O que você pretende é a mais destrutiva de todas as políticas, um idealismo insensato. A expansão é unilateral e assim permanecerá, apesar de tudo o que você puder fazer. O povo da Terra enxameia sem empecilhos e deve ser impedido antes de se tornar forte demais para ser paralisado.

      - Como propõe fazer isso? Temos um tratado de amizade com a Terra, no qual especificamente concordamos em não impedir sua expansão no espaço, contanto que nenhum planeta de um mundo dos Espaciais seja tocado dentro de vinte anos-luz. Eles concordaram com isso escrupulosamente.

      - Todos conhecem o tratado - replicou Amadiro. - Todos sabem também que nenhum tratado jamais foi mantido, desde que comece a se voltar contra os interesses nacionais do signatário mais poderoso. Não dou nenhum valor a esse tratado.

      - Eu dou. Ele deve ser mantido.

      Amadiro sacudiu a cabeça.

      - Você tem uma fé tocante. Como será ele mantido depois que você não mais estiver no poder?

      - Não tenho a intenção de deixar o poder durante algum tempo.

      - À medida que a Terra e seus Colonizadores se tornarem mais fortes, os Espaciais ficarão temerosos e você não permanecerá no poder muito tempo depois disso.

      - E você rasgará o tratado, destruirá os planetas dos Colonizadores e fechará as portas para a Terra, fazendo com que depois os Espaciais emigrem e ocupem a Galáxia?

      - Talvez não. Mas se decidirmos que não, se resolvermos que estamos confortáveis assim, que diferença isso faz?

      - Nesse caso, a Galáxia não se tornará um império humano.

      - E daí?

      - Daí, os Espaciais ficarão embrutecidos e irão degenerar, mesmo que a Terra seja aprisionada e também embruteça e degenere.

      - É esse exatamente o artifício do seu partido, Fastolfe. Não há prova real de que uma coisa dessas vá acontecer. E mesmo que aconteça, a escolha será nossa. Pelo menos não veremos os bárbaros de vida curta se tornarem herdeiros da Galáxia.

      - Você está sugerindo seriamente, Amadiro - perguntou Fastolfe - que está desejando ver a civilização Espacial morrer, desde que possa evitar que a Terra se expanda?

      - Não estou contando com nossa morte, Fastolfe, mas se o pior acontecer, ora, sim, para mim nossa própria morte é uma coisa menos temível que a vitória de uma enigmática doença sub-humana de seres de vida curta.

      - Dos quais você descende.

      - E com quem não temos mais nenhuma relação verdadeiramente genética. Seremos vermes porque há um bilhão de anos tínhamos vermes entre nossos antepassados?

      Fastolfe, com os lábios apertados, levantou-se para partir. Amadiro, com o olhar ardente, não fez qualquer gesto para detê-lo.

     

      Daneel não tinha como dizer, diretamente, que Giskard estava perdido em recordações. Por um lado, a expressão de Giskard não tinha mudado, e, por outro, ele não estava perdido em recordações como estaria um humano. Não foi usado nenhum período palpável de tempo.

      Ademais, o pensamento que levara Giskard a voltar no passado tinha levado Daneel a pensar nos mesmos acontecimentos desse período como haviam sido contados por Giskard.

      Nem Giskard ficou surpreso com isso.

      Sua conversa prosseguiu sem nenhuma pausa fora de costume, mas de uma forma marcadamente nova, como se cada um pensasse no passado pelos dois.

      - Está parecendo, amigo Giskard, que, uma vez que o povo de Aurora reconhece agora ser mais fraco que o da Terra e dos seus muitos planetas Colonizadores, a crise a que se referiu Elijah Baley seguramente passou.

      - É o que está parecendo, amigo Daneel.

      - Você contribuiu para isso.

      - Contribuí. Mantive o Conselho nas mãos de Fastolfe. Fiz o que pude para modelar os que, por sua vez, modelavam a opinião pública.

      - Até agora me sinto indisposto.

      - Estive preocupado - replicou Giskard - durante cada etapa do processo, embora me esforçasse para não molestar ninguém. Toquei - mentalmente - apenas os seres humanos que só precisavam de um leve toque. Na Terra, apenas acendi o temor da represália e selecionei especialmente os que já tinham sido tocados pelo medo e quebrado um fio que, em todo caso, já estava desgastado e a ponto de quebrar. Em Aurora, foi o contrário. Os políticos daqui estavam relutantes em adotar políticas que levassem a um abandono do seu mundo confortável, eu simplesmente confirmei isto e desenvolvi o laço que os tornou um pouco mais fortes. E fazendo isso, me afundei num constante e fraco remoinho.

      - Por quê? Você encorajou a expansão da Terra e desencorajou a expansão dos Espaciais. Certamente, foi nisso que resultou.

      - Resultou? Você pensa, amigo Daneel, que um Terráqueo vale mais que um Espacial, apesar de ambos serem humanos?

        - Há diferenças. Elijah Baley preferiria ver seus próprios Terráqueos derrotados a ver a Galáxia desabitada. O Dr. Amadiro preferiria ver tanto a Terra como os Espaciais definharem a ver a Terra se expandir. O primeiro olha esperançoso o triunfo de ambos, o segundo fica contente ao ver que ambos não triunfam. Podemos não escolher o primeiro, amigo Giskard?

      - Sim, amigo Daneel, parece que sim. Contudo, até onde você foi influenciado pelo seu sentimento do valor especial do seu antigo Colega Elijah Baley?

      - Eu valorizo a lembrança do Colega Elijah - retrucou Daneel - e os nativos da Terra são seu povo.

      - Vejo que é assim. Há muitas décadas venho dizendo que você tende a pensar como um ser humano, amigo Daneel, mas fico imaginando se isso é necessariamente um cumprimento. Contudo, embora se incline a pensar como um ser humano, você não é um deles e, no fim, está limitado pelas Três Leis. Você não pode molestar um ser humano, seja ele Terráqueo ou Espacial.

      - Há horas, amigo Giskard, em que se deve preferir um ser humano a outro. Recebemos ordens especiais para proteger Lady Gladia. Fui forçado, numa ocasião, a molestar um ser humano para proteger Lady Gladia, e penso que, em igualdade de condições, atacaria um Espacial, pelo menos um pouquinho, para proteger uma pessoa da Terra.

      - Você pensa assim. Mas, num acontecimento real, você teria de ser guiado por circunstâncias específicas. Você descobrirá que não pode generalizar - retrucou Giskard. - O mesmo se dá comigo. Encorajando a Terra e desencorajando Aurora, tornei impossível para o Dr. Fastolfe persuadir o governo Auroreano a patrocinar uma política de emigração e instalar dois poderes em expansão na Galáxia. Não posso fazer nada a não ser concluir que essa parte dos seus trabalhos resultou em nada. Só serviu para inundá-lo de crescente desespero e talvez tenha apressado sua morte. Senti isso em sua mente, e foi doloroso. E apesar disso, amigo Daneel...

      Giskard fez uma pausa e Daneel perguntou:

      - Sim?

      - Não fazendo o que devia fazer, posso ter diminuído muito a capacidade da Terra de se expandir, sem ter melhorado grandemente os movimentos de Aurora naquela direção. O Dr. Fastolfe teria então ficado frustrado de ambos os modos - Terra e Aurora - e, além disso, sido desalojado de seu posto de chefia pelo Dr. Amadiro. Sua sensação de frustração teria sido ainda maior. Era ao Dr. Fastolfe, durante sua vida, que eu devia minha maior lealdade, e escolhi essa linha de ação que o frustrou menos, sem notadamente molestar outras pessoas com quem lidei. Se o Dr. Fastolfe fosse continuamente perturbado por sua incapacidade de persuadir os Auroreanos - e Espaciais em geral - a se expandir para novos planetas ficaria pelo menos encantado pela atividade do emigrante povo da Terra.

      - Você não podia ter encorajado tanto o povo da Terra como o de Aurora, amigo Giskard, e assim ter satisfeito o Dr. Fastolfe em relação a ambos?

      - Claro, isso também me ocorreu, amigo Daneel. Considerei a possibilidade, mas não achei conveniente. Pude encorajar os habitantes da Terra a emigrar usando uma mudança banal, inofensiva. Tentar o mesmo com os Auroreanos teria exigido uma mudança muito radical e talvez causasse muito dano. A Primeira Lei o proíbe.

      - É uma pena.

      - De fato. Pense no que poderia ter sido feito se eu pudesse ter alterado radicalmente o conjunto mental do Dr. Amadiro. Contudo, como poderia eu ter mudado sua determinação fixa de se opor ao Dr. Fastolfe? Teria sido como tentar forçá-lo a dar uma reviravolta de cento e oitenta graus em sua cabeça. Assim, acho eu, um giro completo da sua cabeça ou do seu conteúdo emocional seria igualmente mortal. O preço do meu poder, amigo Daneel - prosseguiu Giskard - é o grande e crescente dilema no qual estou constantemente mergulhado. A Primeira Lei da Robótica, que proíbe ferir seres humanos, trata, normalmente, dos ferimentos físicos visíveis que podemos, todos nós, ver facilmente e, assim, julgar sem dificuldade. Sozinho, porém, eu tenho consciência das emoções humanas e penetração de mentes, de sorte que conheço um número maior de formas sutis de danos, sem ser capaz de compreendê-las completamente. Em várias ocasiões, sou forçado a agir sem ter absoluta certeza, e isso me leva a um cansaço contínuo em meus circuitos. E contudo sinto que agi bem. Levei os Espaciais a ultrapassarem o ponto crítico. Aurora sabe da força de aglomeração dos Colonizadores e será agora obrigada a evitar um conflito. Eles terão que reconhecer que é muito tarde para represálias, e quanto a isso nossa promessa a Elijah Baley está cumprida. Colocamos a Terra no curso do povoamento da Galáxia e do estabelecimento de um Império Galáctico.

      Nesta altura, eles estavam se dirigindo para a casa de Gladia, mas agora Daneel parou e a suave pressão de sua mão no ombro de Giskard fez com que o outro também parasse. Daneel disse:

      - O quadro que você pintou é atraente. O Colega Elijah ficará orgulhoso de nós se, como você diz, o tivermos realizado. "Robôs a caminho do Império", diria Elijah, e talvez me batesse nas costas. Contudo, como já disse, estou apreensivo, amigo Giskard.

      - Com quê, amigo Daneel?

      - Não posso evitar imaginar se superamos realmente a crise a que o Colega Elijah se referiu há tantas décadas. É na realidade muito tarde para uma retaliação dos Espaciais?

      - Por que tem essas dúvidas, amigo Daneel?

      - Tornei-me cético por causa do comportamento do Dr. Mandamus no decorrer de sua conversa com Senhora Gladia.

      O olhar de Giskard fixou-se em Daneel por alguns instantes, e, no silêncio, puderam ouvir folhas farfalhando na aragem fresca. As nuvens estavam se desfazendo e o sol não tardaria a aparecer. Sua conversa, na sua forma telegráfica, levara pouco tempo, e Gladia, eles sabiam, ainda não estaria notando sua ausência.

      - O que havia na conversa que lhe provocou o mal-estar? - perguntou Giskard.

      - Eu tive a oportunidade, em quatro ocasiões diferentes, de observar Elijah Baley cuidar de um problema intricado. Em cada uma delas, notei a forma pela qual ele tratava de tirar conclusões úteis de informações limitadas e mesmo enganosas. Desde essa época, tentei, dentro de minhas limitações, pensar da mesma forma que ele.

      - Parece-me, amigo Daneel, que você se saiu bem a esse respeito. Já disse que você tende a pensar como um ser humano.

      - Você deve ter reparado, então, que o Dr. Mandamus tinha dois assuntos que queria discutir com a Senhora Gladia. Ele próprio frisou isso. Um era o de sua própria descendência, se de Elijah Baley ou não. O outro era o pedido para que Senhora Gladia recebesse um Colonizador e mais tarde relatasse o ocorrido. Dos dois, o segundo podia ser encarado como matéria importante para o Conselho. O primeiro, só tinha importância para ele próprio.

      - O Dr. Mandamus apresentou a sua descendência como de importância também para o Dr. Amadiro - comentou Giskard.

      - Então, seria um assunto de importância pessoal para duas pessoas em vez de uma, amigo Giskard. Não seria assunto de importância para o Conselho e, portanto, para o planeta em geral.

      - Prossiga, então, amigo Daneel.

      - Mas o assunto de Estado, como o próprio Dr. Mandamus se referiu a ele, foi colocado em segundo plano, quase como sem importância imediatamente. De fato, dificilmente pareceria uma coisa que exigisse uma visita pessoal. Poderia ter sido tratado por imagem holográfica por qualquer funcionário do Conselho. Por outro lado, o Dr. Mandamus tratou primeiro da sua própria descendência, discutiu-a detalhadamente, e era um assunto que só podia ser tratado por ele e mais ninguém.

      - Qual é sua conclusão, amigo Daneel?

      - Acredito que o assunto do Colonizador foi usado pelo Dr. Mandamus como um pretexto para uma conversa reservada com a Senhora Gladia, para poder discutir sua origem em particular. Era o caso de sua descendência, e mais nada, o que verdadeiramente o interessava... Você vê alguma forma de apoiar esta conclusão, amigo Giskard?

      O sol de Aurora ainda não tinha surgido das nuvens e o leve resplendor dos olhos de Giskard era visível.

      - A tensão na mente do Dr. Mandamus - replicou - era de fato mensuravelmente mais forte na primeira parte da entrevista que na segunda. Isso talvez possa servir de confirmação, amigo Daneel.

      - Então devemos nos perguntar por que a questão da descendência do Dr. Mandamus deve ser um assunto de tanta importância para ele.

      - O Dr. Mandamus explicou - disse Giskard. - É apenas para demonstrar que não é descendente de Elijah Baley, que sua rota de progresso está aberta. O Dr. Amadiro, de cuja boa vontade ele é dependente, se viraria inteiramente contra ele, se fosse descendente do Sr. Baley.

      - Foi o que ele disse, amigo Giskard, mas o que houve durante a entrevista nega isso.

      - Por que diz isso? Por favor, continue pensando como um humano, amigo Daneel. Acho isso instrutivo.

      Daneel respondeu, com ar sério:

      - Obrigado, amigo Giskard. Você reparou que nenhuma declaração feita pela Senhora Gladia, referente à impossibilidade do Dr. Mandamus descender do Colega Elijah, foi considerada convincente? Em todo caso, o Dr. Mandamus disse que o Dr. Amadiro não aceitaria tal declaração.

      - Sim, e o que você deduz disso?

      - Parece-me que o Dr. Mandamus estava tão convencido de que o Dr. Amadiro não aceitaria nenhum argumento contra Elijah Baley como antepassado que a gente fica pensando por que ele se deu ao trabalho de perguntar a Senhora Gladia a respeito. Ele evidentemente sabia desde o começo que era inútil fazer isso.

      - Talvez, amigo Daneel, porém é mera especulação. Você pode fornecer um motivo provável para sua ação?

      - Posso. Acredito que ele tenha perguntado sobre sua ascendência, não para convencer um implacável Dr. Amadiro, mas para se convencer.

      - Nesse caso, para que precisou afinal de contas mencionar o Dr. Amadiro? Por que não disse simplesmente: "Desejo saber"?

      Daneel esboçou um sorriso, uma mudança de expressão de que o outro robô seria incapaz, e retrucou:

      - Se ele tivesse dito "Desejo saber", a Senhora Gladia certamente teria replicado que não era da sua conta, e assim o Dr. Mandamus nada teria descoberto. Contudo, a Senhora Gladia é tão decididamente contra o Dr. Amadiro, quanto este contra Elijah Baley. A Senhora Gladia ficaria certamente ofendida diante de qualquer opinião fortemente sustentada pelo Dr. Amadiro contra ela. Ficaria furiosa, mesmo que a opinião fosse mais ou menos correta, quanto mais, então, se fosse totalmente errônea, como neste caso. Ela se empenharia em demonstrar que o Dr. Amadiro estava errado e forneceria cada documento de prova necessário para chegar a esse fim.

      "Nesse caso, a fria garantia do Dr. Mandamus de que cada documento prova era insuficiente só a tornaria mais furiosa e a levaria a mais revelações. A estratégia do Dr. Mandamus foi escolher a certeza de que obtera o máximo de Senhora Gladia e, no fim, ficar convencido de que não tinha um Terráqueo como antepassado, pelo menos não em tão pouco tempo como vinte décadas. Os sentimentos de Amadiro a esse respeito, acho eu, não estavam verdadeiramente em causa."

      - Amigo Daneel - disse Giskard - esse é um ponto de vista interessante, mas não parece estar suficientemente fundamentado. De que maneira podemos concluir que não passa de um palpite de sua parte?

      - Não lhe parece, amigo Giskard - replicou Daneel - que quando o Dr. Mandamus terminasse a investigação sobre sua descendência sem ter obtido provas suficientes para o Dr. Amadiro, como quis nos fazer acreditar, deveria estar claramente deprimido e desanimado? Segundo sua própria declaração, isso deveria significar que ele não teria possibilidade de progresso e jamais conseguiria a posição de chefe do Instituto de Robótica. E no entanto me parece que, longe de se sentir deprimido, ele estava realmente exultante. Posso julgar apenas pela aparência exterior, mas você pode ir mais além. Diga-me, amigo Giskard, qual era sua atitude mental ao terminar esse trecho da conversa com Senhora Gladia?

      Giskard comentou:

      - Pensando nisso agora, estava não apenas exultante, mas triunfante, amigo Daneel. Você tem razão. Agora que expôs seu processo de pensamento, aquela sensação de vitória que detectei claramente determina a agudeza do seu raciocínio. De fato, agora que ressaltou tudo isso, sinto-me meio perdido por minha incapacidade de ver por mim mesmo.

      - Essa, amigo Giskard, foi, em inúmeras ocasiões, minha reação ao raciocínio de Elijah Baley. O fato de eu poder continuar raciocinando assim nesta ocasião pode se dever, em parte, ao forte estímulo proporcionado pela presente crise. Isso me força a raciocinar mais concludentemente.

      - Você se subestima, amigo Daneel. Esteve pensando convincentemente durante muito tempo. Mas por que fala de uma crise atual? Pare para pensar e responda. Como se pode passar da sensação de vitória do Dr. Mandamus por não ser descendente do Sr. Baley à crise da qual você fala?

      - O Dr. Mandamus - refutou Daneel - pode ter-nos enganado com suas declarações referentes ao Dr. Amadiro, mas talvez seja legítimo, não obstante, supor como verdade que ele anseia por progresso, que tem a ambição de se tornar chefe do Instituto. Não acha, amigo Giskard?

      Giskard parou um momento, como que refletindo, e depois disse:

      - Eu não estava à procura de ambição. Estava examinando sua mente sem objetivo especial e preocupado apenas com manifestações superficiais. Contudo, pode ter havido relâmpagos de ambição quando falou de progresso. Não tenho motivos fortes para concordar com você, amigo Daneel, mas não tenho absolutamente motivos para não concordar.

      - Concordemos que o Dr. Mandamus é um homem ambicioso, então, e vejamos até onde isso nos leva. Está bem?

      - Está bem.

      - Então não lhe parece provável que a sua sensação de vitória, uma vez convencido de não ser descendente do Colega Elijah, tivesse nascido do fato de sentir que sua ambição não podia ser cumprida? Isso, contudo, não podia ser assim, por causa da aprovação do Dr. Amadiro, uma vez que concordamos que o motivo deste foi introduzido pelo Dr. Mandamus como uma distração. Sua ambição agora pode ser servida por algum outro motivo.

      - Qual?

      - Não há nada que levante prova constrangedora. Mas posso sugerir um tema especulativo. E se o Dr. Mandamus sabe de alguma coisa ou pode fazer alguma coisa que possa conduzi-lo a um grande sucesso, como, por exemplo, tornar-se o novo chefe? Não se esqueça que, na conclusão de seu interrogatório a respeito de sua descendência o Dr. Mandamus disse: "Eu possuo métodos bastante poderosos." Suponha que seja verdade, que ele só possa usá-los se não for descendente do Colega Elijah. Sua alegria por ter sido convencido da sua não-descendência resultaria, então, do fato de que agora poderia usar esses métodos e garantir a si mesmo um grande progresso.

      - Mas que "métodos bastante poderosos" são esses, amigo Daneel?

      Daneel retorquiu, com o ar sério:

      - Devemos continuar especulando. Sabemos que não há nada que o Dr. Amadiro deseje tanto como derrotar a Terra e forçá-la de volta à sua primitiva posição de subserviência aos planetas Espaciais. Se o Dr. Mandamus encontrar uma forma de fazer isso, poderá sem dúvida obter tudo que quiser do Dr. Amadiro, inclusive uma garantia de sucessão na chefia. Contudo, talvez seja por isso que o Dr. Mandamus hesite em efetuar a humilhação e derrota da Terra, a menos que não sinta afinidade com seu povo. Descendendo de Elijah Baley, da Terra, isso o inibiria. A negativa dessa descendência o deixaria livre para agir, o que o torna tão cheio de regozijo.

      - Está dizendo que o Dr. Mandamus é um homem de consciência? - perguntou Giskard.

      - Consciência?

      - É uma palavra que os seres humanos usam de vez em quando. compreendi que é aplicada a alguém que adere a regras de comportamento que o forçam a agir em direção oposta ao seu interesse imediato. Se o Dr. Mandamus sentir que não pode se permitir avançar à custa dos que lhe estão ligados, mesmo à distância, imagino-o um homem de consciência. Tenho pensado muito nessas coisas, amigo Daneel, uma vez que elas parecem implicar que os seres humanos têm Leis governando seu comportamento, pelo menos em alguns casos.

      - E você pode garantir que o Dr. Mandamus é, mesmo, um homem de consciência?

      - Como resultado de minhas observações de suas emoções? Não, não estive à procura de nada assim, mas, se sua análise é correta, a consciência parecerá uma conseqüência... Contudo, por outro lado, se começarmos supondo-o um homem de consciência e olharmos em sentido contrário, podemos chegar a outras conclusões. Pode parecer que se o Dr. Mandamus imagina ter um Terráqueo entre seus antepassados, apenas dezenove e meia décadas atrás, possa sentir-se levado, contra sua consciência, a ser uma ponta de lança na tentativa de derrotar a Terra, como uma forma de se libertar do estigma dessa descendência. Se ele não for esse descendente, então não será inevitavelmente levado a agir contra a Terra, e sua consciência ficará livre para forçá-lo a deixar a Terra sozinha.

      - Não, amigo Giskard - replicou Daneel. - Isso não combina com os fatos. Contudo, é confortante saber que ele não está prestes a praticar atos violentos contra a Terra, que irá embora sem uma forma de satisfazer o Dr. Amadiro e promovendo seu próprio avanço. Considerando sua natureza ambiciosa, não partirá com a sensação de vitória que você notou tão claramente.

      - Compreendo. Então podemos concluir que o Dr. Mandamus tem um método de derrotar a Terra.

      - Sim. E se isso é correto, então a crise prevista pelo Colega Elijah ainda não passou, continua presente.

      Giskard retrucou pensativo:

      - Mas ficamos com a pergunta básica não respondida, amigo Daneel. Qual é a natureza da crise? Qual é o perigo mortal? Você pode deduzir isso também?

      - Não, amigo Giskard. Fui até onde pude. Talvez o Colega Elijah pudesse ir mais longe se ainda estivesse vivo, mas eu não... Aqui, dependo de você, amigo Giskard.

      - De mim? De que forma?

      - Você pode examinar a mente do Dr. Mandamus, coisa impossível para mim e para qualquer outro. Pode descobrir a natureza da crise.

      - Temo não poder, amigo Daneel. Se eu tivesse morado com um ser humano por um longo período, como em outros tempos morei com o Dr. Fastolfe, como agora moro com a Senhora Gladia, poderia, pouco a pouco, desdobrar-lhe as camadas da mente, folha por folha, desfazer gradualmente os intrincados nós e aprender muito sem molestar um ou outra. Fazer o mesmo com o Dr. Mandamus, após um breve encontro ou mesmo uma centena de breves encontros, de pouco adiantaria. As emoções aparecem facilmente, os pensamentos não. Se eu tentasse apressar, forçar o processo, certamente o prejudicaria. E isso eu não posso fazer.

      - Contudo, o destino de bilhões de pessoas na Terra e outras tantas no resto da Galáxia pode depender disso.

      - Pode depender. Uma simples conjectura. Injúria a um ser humano é um fato. Desde, é claro, que o Dr. Mandamus seja o único que conheça a natureza da crise e possa levá-la a uma conclusão. Ele não pode usar sua capacidade ou conhecimento para forçar o Dr. Amadiro a lhe garantir chefia - se o Dr. Amadiro puder obtê-la de outra fonte.

      - É verdade - disse Daneel. - Pode bem ser assim.

      - Nesse caso, amigo Daneel, não é necessário conhecer a natureza da crise. Se o Dr. Mandamus puder ser forçado a não dizer ao Dr. Amadiro - ou a qualquer outro - o que quer que saiba, a crise não aflorará.

      - Alguém poderá descobrir o que o Dr. Mandamus sabe agora.

      - Certamente, mas não sabemos quando isso se dará. Muito provavelmente, teremos tempo para continuar sondando e descobrir mais - e nos prepararmos para desempenhar um papel próprio.

      - Então está bem.

      - Se o Dr. Mandamus puder ser contido, isso poderá ser feito danificando sua mente a ponto de não mais se tornar atuante - ou destruindo sua vida completamente. Só eu possuo a capacidade de danificar sua mente de forma apropriada, mas não posso fazê-lo. De qualquer modo, qualquer um de nós poderá dar um fim à sua vida fisicamente. Também não posso fazer isso. Você pode, amigo Daneel?

      Houve um silêncio e Daneel finalmente sussurrou:

      - Não. Você sabe disso.

      - Mesmo sabendo que o futuro de bilhões de pessoas na Terra e em outros lugares está correndo perigo? - perguntou Giskard, com voz lenta.

      - Não posso me obrigar a ferir o Dr. Mandamus.

      - Nem eu. Portanto, ficamos com a certeza de que uma crise mortal se avizinha, uma crise, porém, cuja natureza não conhecemos e não podemos descobrir, com a agravante de que somos impotentes para contê-la.

      - Olharam-se em silêncio, sem nada revelar nos rostos, mas com um ar de desespero pairando sobre si.

     

      Outro Descendente

      Gladia tinha procurado relaxar após o cruciante encontro com Mandamus - e o fizera com uma intensidade tremenda. Escurecera todas as janelas do quarto, preparara o ambiente com uma suave brisa quente, com o som de folhas farfalhantes e o ocasional canto amável de um pássaro distante. Mudara-o depois para o ruído de um marulho longínquo, ao qual acrescentara um leve mas inconfundível cheiro de maresia no ar.

      Não adiantou. Sua mente ecoava desamparadamente com o que tinha acabado de acontecer e com o que em breve aconteceria. Por que tinha conversado tão francamente com Mandamus? Qual era o seu interesse - ou o de Amadiro, no caso - procurando saber se ela havia visitado Elijah em órbita ou não - ou quando - se tinha ou não um filho com ele ou com qualquer outro homem?

      Ela se sentira desequilibrada pela declaração de descendência de Mandamus e o que significava. Numa sociedade onde ninguém se preocupava com descendência ou relação de parentesco, a não ser por motivos médico genéticos, a súbita intromissão de tal assunto numa conversa era motivo para preocupação. Isso e as repetidas (mas certamente acidentais) referências a Elijah.

      Percebeu que estava procurando desculpas para si mesma e, com impaciência, afastou tudo. Tinha reagido mal e havia balbuciado como uma criança aborrecida.

      Agora havia aquele Colonizador chegando.

      Não era Terráqueo. Não tinha nascido na Terra, Gladia tinha certeza, e era muito possível mesmo que nunca tivesse visitado a Terra. Sua gente devia ter habitado um mundo estranho, do qual ela nunca ouvira falar, e vivido lá durante gerações.

      Isso o tornava um Espacial, pensou ela. Os Espaciais também descendiam de Terráqueos - havia séculos - mas que importava? com certeza, os Espaciais tinham vida longa e esses Colonizadores deviam tê-la curta, mas até onde isso era uma diferença? Mesmo um Espacial podia morrer prematuramente, por algum acidente infeliz, Gladia tinha ouvido uma vez que um Espacial havia morrido de morte natural antes dos sessenta. Por que, então, não pensar no visitante como um Espacial com um sotaque estranho?

      Mas não era simples assim. Sem dúvida, o Colonizador não se considerava Espacial. O que conta não é o que alguém é, mas como se sente ser. Portanto, pense nele como um Colonizador e não como um Espacial.

      Contudo, não somos todos seres humanos, apenas seres humanos, não importa o nome que se dê - Espaciais, Colonizadores, Auroreanos, Terráqueos? A prova era que os robôs não podiam causar dano a nenhum deles. Daneel pularia tão rapidamente em defesa do mais ignorante Terráqueo como do Presidente do Conselho de Aurora... e isso quer dizer...

      Ela pôde sentir-se deslizando, realmente relaxando num sono leve, quando um pensamento súbito penetrou em sua mente e ricocheteou.

      Por que o Colonizador se chamava Baley?

      Sua mente ficou tensa e despertou das espirais bem-vindas do esquecimento, que a afligiam e subjugavam.

      Por que Baley?

      Talvez fosse simplesmente um nome comum entre os Colonizadores. Afinal de contas, fora Elijah quem tornara possível tudo, e devia ser um herói para eles como... como...

      Gladia não pôde pensar num herói semelhante para os Auroreanos. Quem tinha chefiado a expedição que primeiro chegara a Aurora? Quem tinha supervisionado a terraformação do planeta em estado bruto, escassamente vivo, de onde Aurora tinha surgido? Ela não sabia.

      Teria sua ignorância nascido do fato de ter ela vindo de Solaria - ou os Auroreanos simplesmente não tinham heróis fundadores? Afinal de contas, a primeira expedição a Aurora consistira de meros Terráqueos. Fora apenas nas gerações seguintes, com o tempo de vida em expansão, graças à adaptação da sofisticada bioengenharia, que os Terráqueos tinham se tornado Auroreanos. Depois disso, por que deveriam os Auroreanos desejar transformar em heróis seus desprezados antecessores?

      Mas os Colonizadores podiam fazer heróis dos Terráqueos. Talvez ainda não tivessem mudado. Podiam mudar finalmente e então Elijah seria esquecido, mas até lá...

      Devia ser isso. Provavelmente, metade dos Colonizadores vivos tinha adotado o sobrenome Baley. Pobre Elijah! Todos amontoados em seus ombros e em sua sombra. Pobre Elijah... querido Elijah...

      E ela adormeceu.

     

      O sono foi inquieto demais para lhe restaurar a calma, deixando-lhe apenas o bom humor. Gladia estava com o rosto contraído sem o perceber - e se tivesse se olhado no espelho, teria ficado espantada com o seu ar envelhecido.

      Daneel, para quem Gladia era um ser humano, a despeito da idade, aparência ou disposição, disse:

      - Senhora...

      Gladia interrompeu-o, com um leve tremor.

      - O Colonizador chegou?

      Ela ergueu os olhos para a fita-relógio na parede e depois fez um gesto rápido, em resposta ao qual Daneel imediatamente aumentou o aquecimento. (Tinha sido um dia frio e a noite ameaçava se tornar mais fria.)

      - Chegou, senhora - respondeu Daneel.

      - Para onde o levou?

      - Para o salão principal de hóspedes, senhora. Giskard o acompanha e os robôs domésticos estão todos ao alcance da voz.

      - Espero que eles sejam capazes de descobrir o que ele espera comer no almoço. Não conheço a cozinha dos Colonizadores. E espero que eles possam fazer um esforço para atender seus desejos.

      - Estou certo disso, senhora, pois Giskard agirá com competência.

      Gladia tinha certeza disso também, mas limitou-se a resmungar. Quer dizer, teria sido um resmungo se Gladia fosse o tipo de gente que resmungasse. Ela não acreditava que fosse.

      - Suponho - disse Gladia - que ele foi adequadamente posto de quarentena antes da permissão para pousar.

      - Teria sido inconcebível para ele não ter sido, senhora.

      - Apesar disso - replicou ela - Vou calçar minhas luvas e colocar um filtro nas narinas.

      Gladia saiu do quarto, vagamente consciente de que havia robôs domésticos à sua volta, e fez sinal para que lhe dessem um novo par de luvas e um filtro intacto.

      Cada casa tinha seu próprio vocabulário de sinais e todo membro humano cultivava-os, aprendendo a usá-los rápida e despercebidamente. Esperava-se de um robô que seguisse essas ordens discretas como se lesse as mentes, deduzindo-se que um robô não podia obedecer ordens de seres humanos estranhos a não ser que elas fossem dadas claramente.

      Nada humilhava mais o membro humano de uma casa que um dos robôs a ela pertencente hesitar em cumprir uma ordem ou, pior ainda, cumpri-la erradamente. Isso significava que o ser humano tinha feito um sinal incorretamente - ou que o robô tinha se atrapalhado.

      Geralmente, Gladia sabia, era o humano que cometia a falta, mas em cada caso, virtualmente, isso não era aceito. Era o robô quem cometia o erro sendo colocado de  lado para uma análise desnecessária ou injustamente  posto à venda. Gladia sempre sentira que nunca iria cair nessa armadilha de ego ferido, mas se naquele momento não tivesse recebido as luvas e o filtro, teria...

      Não chegou a terminar o pensamento. O robô mais próximo trouxe o que ela havia pedido, correta e rapidamente.

      Gladia ajustou o filtro no nariz e fungou um pouco para ter certeza de que se achava devidamente instalado (não estava disposta a contrair uma infecção em conseqüência  de uma doença que houvesse sobrevivido ao doloroso tratamento durante a quarentena). Perguntou:

      - Qual é o tipo dele, Daneel?

      - Normal, senhora - retrucou o robô.

      - Quero dizer, seu rosto.

      (Era bobagem perguntar. Se ele mostrasse qualquer semelhança familiar com Elijah Baley, Daneel teria reparado tão depressa quanto ela e teria comentado.)

      - É difícil dizer, senhora. Seu rosto não está bem visível.

      - Como assim? Certamente ele não está mascarado, está Daneel?

      - De certa maneira, sim, senhora. Seu rosto está coberto de pêlos.

      - Pêlos? - Riu involuntariamente. - Você quer dizer, à maneira dos documentos históricos da hipervisão? Barba?

      Gladia fez alguns gestos indicando um tufo de pêlos no queixo e outro sob o nariz.

      - Um pouco mais, senhora. Metade do seu rosto está coberto.

      Os olhos de Gladia se escancararam e pela primeira vez ela sentiu vontade de vê-lo. Como seria um rosto todo coberto de pêlos? Os homens Auroreanos - e os Espaciais  em geral - tinham poucos pêlos faciais e estes eram removidos permanentemente no começo da puberdade - virtualmente no decorrer da infância.

      Às vezes o lábio superior ficava intocado. Gladia lembrou que seu marido, Santirix Gremionis, antes do casamento, usava uma linha fina de pêlos sob o nariz. Bigode,  como dissera. Parecera-lhe como uma sobrancelha mal colocada, especialmente disforme, e após ter-se resolvido a aceitá-lo como marido, insistira para que ele destruísse  aqueles pêlos.

      Ele tinha concordado com um leve murmúrio e agora ela se perguntava, pela primeira vez, se ele tinha sentido falta dos pêlos. Pareceu-lhe que em certa ocasião, nos  primeiros anos, ele levava um dedo ao lábio superior. Gladia tinha pensado ser um gesto nervoso por causa de uma leve coceira; só agora lhe ocorreu que ele estava  procurando o bigode que desaparecera para sempre.

      Como pareceria um homem com um bigode ocupando todo o rosto? um urso?

      Como seria ao toque? E se uma mulher também tivesse esses pêlos? Pensou num casal tentando se beijar, com dificuldade de acharem as bocas um do outro. Achou o pensamento  engraçado, de uma forma inofensivamente  dissoluta, e riu alto. Sentiu a petulância desaparecer e olhou com firmeza para a frente, para ver o monstro.

      Afinal de contas, não havia por que temê-lo, mesmo que tivesse um comportamento de animal, como aparentava. Não possuiria nenhum robô - sabia-se que os Colonizadores  tinham uma sociedade não robótica - e ela estaria rodeada de uma dúzia. O monstro seria imobilizado  numa fração de segundo se fizesse o movimento mais suspeito  ou se erguesse a voz, enraivecido.

      Gladia disse, num perfeito bom humor:

      - Leve-me a ele, Daneel.

     

      O monstro levantou-se. O boa-tarde que pronunciou era quase ininteligível.

      Gladia conseguiu, com certa dificuldade, compreender-lhe as palavras.

      Distraidamente, respondeu:

      - Boa tarde.

      Lembrou da dificuldade que tivera para compreender outrora a pronúncia do Galáctico Padrão, quando, uma mocinha apavorada, tinha chegado ao planeta, vinda de Solaria.

      O sotaque do monstro era desagradável - ou soaria assim porque seu ouvido estava desacostumado com ele? Elijah, lembrou, também falava assim , mas em outras ocasiões falava muito bem. Tinham se passado, todavia, dezenove décadas e meia, e aquele Colonizador não vinha da Terra, e A língua, quando isolada, sofria mudanças.

      Só uma pequena parte da mente de Gladia, porém, estava presa ao problema da língua. Ela olhava para a barba do homem.

      Nem ao menos era parecida com as barbas que os atores usavam nos dramas históricos. Elas eram colocadas em tufos - um pouco aqui, pouco ali - parecendo coladas e lustrosas.

      A barba do Colonizador era diferente. Cobria-lhe as faces e o queixo uniformemente, de modo espesso e completo. Era castanho-escura, meio brilhante e ondulada como seus cabelos, e com pelo menos cinco centímetros de comprimento, calculou ela - uniformemente longa.

      Não lhe cobria totalmente o rosto, o que era um tanto desapontador. Sua testa estava completamente nua (exceto pelas sobrancelhas), bem como o nariz e as regiões sob os olhos.

      Seu lábio superior também não continha pêlos, porém era sombreado como se tivessem começado a surgir novos pêlos. Havia uma nudez adicional exatamente sob o lábio inferior, porém com outros fios surgindo, menos evidentes e concentrados principalmente sob a parte média.

      Visto que ambos os lábios estavam desprovidos de pêlos, ficou claro para Gladia que não haveria dificuldade em beijá-lo. Ela falou, sabendo que olhar era deselegante, mas olhando assim mesmo:

      - Parece-me que o senhor retira os pêlos em torno dos seus lábios.

      - É verdade, minha senhora.

      - Por que, se me permite perguntar?

      - A senhora pode perguntar. Por motivos higiênicos. Não quero que os alimentos grudem nos pêlos.

      - O senhor os raspa, não é? Estou vendo-os crescer novamente.

      - Uso um laser facial. Apenas quinze segundos, após acordar.

      - Por que não os depila e liquida com eles?

      - Posso querer que tornem a crescer.

      - Por quê?

      - Razões estéticas, minha senhora.

      Desta vez, Gladia não compreendeu a palavra. Ela soou como "acéticas" ou algo parecido.

      - Como? - perguntou ela. O Colonizador respondeu:

      - Posso ficar cansado do meu aspecto e querer deixar novamente crescer os pêlos do lábio superior. Algumas mulheres gostam disso, sabe, e - o Colonizador procurou ser modesto e não conseguiu - eu tenho um belo bigode quando o deixo crescer.

      Ela percebeu subitamente a palavra:

      - O senhor quis dizer "estética".

      O Colonizador riu, exibindo belos dentes brancos, e respondeu:

      - A senhora também fala engraçado, minha senhora.

      Gladia tentou parecer altaneira, mas desmanchou-se num sorriso. A pronúncia correta era consensual em Aurora. Respondeu:

      - O senhor precisa me ouvir com meu sotaque solariano. Então seria "razões estéticasss". O "s" estendido interminavelmente.

      - Estive em lugares onde falavam um pouco assim. Parece bárbaro. Ele arrastou ambos os erres fantasticamente na última palavra. Gladia riu.

      - O senhor pronuncia com a ponta da língua. Tem de ser com os lados. Ninguém a não ser um Solariano, pode fazê-lo corretamente.

      - Talvez a senhora possa me ensinar. Um Mercador, como eu, anda por toda parte, ouvindo toda a espécie de perversões lingüísticas.

      Ele tentou novamente arrastar os erres da última palavra, engasgou-se um pouco e tossiu.

      - Veja. O senhor irrita suas amídalas e nunca consegue.

      Ela continuava olhando sua barba e agora não podia mais refrear a curiosidade. Estendeu a mão na direção dela.

      O Colonizador vacilou e quis recuar; depois, percebendo a intenção de Gladia, ficou imóvel.

      A mão dela, quase invisivelmente enluvada, pousou levemente no lado esquerdo do seu rosto. O plástico transparente que cobria seus dedos não atrapalhava a sensação de toque, e ela achou os pêlos macios e encaracolados.

      - É agradável - comentou ela, com evidente espanto.

      - Amplamente admirada - disse o Colonizador, rindo.

      - Mas não posso ficar aqui o dia inteiro apalpando-o - disse ela. Ignorando seu previsível "No que me diz respeito, pode", ela prosseguiu:

      - Já disse aos meus robôs o que gostaria de comer?

      - Minha senhora, disse-lhes o que repetirei agora: o que houver disponível. Estive em muitos planetas no último ano e cada um tinha sua dieta própria. Um Mercador aprende a comer tudo que não for realmente tóxico. Prefiro uma refeição Auroreana a qualquer coisa que mandar fazer imitando Baleyworld.

      - Baleyworld? - perguntou Gladia rispidamente, tornando a ficar carrancuda.

      - Em homenagem ao chefe da primeira expedição ao planeta - ou a todos os planetas colonizados, por falar nisso. Ben Baley.

      - O filho de Elijah Baley?

      - Sim - respondeu o Colonizador e imediatamente mudou de assunto. Baixou os olhos e disse, com um traço de impertinência: - Como vocês fazem para conservar essas roupas assim, lisas e cheias? Gostaria de me sentir assim outra vez.

      - Estou certa de que terá a oportunidade de fazê-lo breve. Mas agora, por favor, venha almoçar comigo. Disseram-me que seu nome era Baley, por falar nisso – como seu planeta.

      - Não é de espantar. É o nome mais homenageado do planeta, naturalmente. Sou Deejee Baley.

      Tinham entrado na sala de jantar, precedidos de Giskard e seguidos de Daneel, cada um se instalando em seu nicho da parede. Outros robôs já estavam em seus nichos e dois saíram para servir a refeição. A sala estava iluminada pelo sol, as paredes cheias de decorações vivas, a mesa posta, o cheiro dos alimentos tentador.

      O Colonizador aspirou e soltou a respiração com satisfação.

      - Acho que não Vou ter qualquer problema comendo os alimentos Auroreanos... Onde quer que me sente, minha senhora?

      Um robô falou imediatamente:

      - E se sentasse aqui, senhor?

      O Colonizador sentou-se e Gladia então, atendidos todos os privilégios do convidado, tomou seu lugar.

      - Deejee - falou - não conheço as peculiaridades terminológicas do seu mundo, por isso perdoe-me se a pergunta for ofensiva. Deejee não é um nome feminino?

      - De modo nenhum - retrucou o Colonizador, levemente áspero. - Em todo caso, não é um nome e sim um par de iniciais. A quarta e a sétima letras do alfabeto.

      - Ah - falou Gladia, esclarecida. - D. G. Baley. E essas iniciais representam que nomes, se perdoa minha curiosidade?

      - Certamente. O "D", com certeza - disse ele, fazendo um gesto de polegar para um dos nichos da parede - e desconfio que o outro pode ser "G" - completou, fazendo gesto semelhante para o outro.

      - O senhor não está querendo dizer... - hesitou Gladia, com voz fraca.

      - Mas estou. Meu nome é Daneel Giskard Baley. Em cada geração, minha família teve pelo menos um Daneel ou um Giskard em suas múltiplas fornadas. Eu fui o último de seis filhos, mas o primeiro menino. Minha mãe achou que era bastante e desistiu de ter outro filho, dando-me ambos os nomes. Isso me fez ser Daneel Giskard Baley,  e a dupla carga foi muito grande para mim. Prefiro D. G. como nome e ficarei honrado se me chamar assim. - Sorriu alegremente. - Sou o primeiro a usar ambos os nomes e também o primeiro a ver os originais.

      - Mas por que esses nomes?

      - Foi idéia do nosso antepassado Elijah, de acordo com a crônica da família. Ele tinha a honra de dar nome aos netos e chamou o mais velho de Daneel, denominando ao outro Giskard. Insistiu nesses nomes e estabeleceu a tradição.

      - E as filhas?

      - O nome tradicional, de geração para geração, é Jezebel - Jessie. A mulher de Elijah, sabe.

      - Sei.

      - Não há... -conteve-se e desviou sua atenção para o prato que acabava de ser colocado à sua frente. - Se estivéssemos em Baleyworld, diria que isto era uma fatia de porco assado, coberto com molho de amendoim.

      - Na realidade, é um prato vegetariano, D. G. O que o senhor ia dizer é que não há Gladias na família.

      - Não há - falou D. G. calmamente. - Uma explicação seria que Jessie - a Jessie original - teria se oposto, mas não aceito isso. A mulher de Elijah, a Antepassada, como sabe, nunca foi para Baleyworld, jamais deixou a Terra. Como poderia ter-se oposto? Não, para mim é absolutamente certo que o Antepassado não queria outra Gladia.

      Nenhuma imitação, nenhuma cópia, nenhum pretexto. Apenas uma Gladia Única... Ele também pediu para não haver outro Elijah.

      Gladia estava encontrando dificuldade para comer.

      - Acho que seu Antepassado passou a última parte de sua vida tentando ser tão frio quando Daneel. Apesar disso, tinha intimamente noções românticas. Poderia ter permitido outros Elijahs e Gladias. Certamente não me ofenderia, e, imagino, o mesmo aconteceria com a mulher dele.

      Gladia riu timidamente.

      - Tudo isso não me parece muito verdadeiro - replicou D. G. - O Antepassado é praticamente história antiga, pois morreu há cento e sessenta   e quatro anos. Sou seu descendente na sétima geração, o que não me impede de estar sentado aqui com uma mulher que o conheceu quando ainda bastante moço.

      - Para dizer a verdade, não o conheci - disse Gladia, com os olhos fixos no prato. - Eu o vi, muito rapidamente, em três ocasiões diversas, num período de sete anos.

      - Eu sei. O filho do Antepassado, Ben, escreveu a biografia dele, que se tornou um dos clássicos literários de Baleyworld. Até eu a li.

      - É mesmo? Pois eu não. Nem mesmo sabia de sua existência. O que... o que diz ele a meu respeito?

      D. G. pareceu divertido.

      - Nada que pudesse condenar; a senhora aparece muito bem. Mas isso não tem importância. O que me espanta é estarmos juntos aqui, após o passar de sete gerações.

      Que idade tem, minha senhora? É justo fazer esta pergunta?

      - Não sei se é justo, mas nada tenho a opor. Em Anos Galácticos Padrões, tenho duzentos e trinta e três anos. Mais de vinte e três décadas.

      - Não parece ter ultrapassado a década de quarenta. O Antepassado morreu com setenta e nove anos, já velho. Tenho trinta e três, e quando eu morrer a senhora ainda estará viva...

      - Se eu evitar o homicídio acidental.

      - E continuará a viver durante talvez mais cinco décadas.

      - Você me inveja, D. G.?- perguntou Gladia, com uma ponta de amargura na voz. - Inveja-me por ter sobrevivido a Elijah por mais de dezesseis décadas e por estar condenada a sobrevivê-lo talvez por mais dez décadas?

      - Claro que a invejo - foi a resposta pausada. - Por que não? Eu não teria objeções a viver vários séculos, se não me constituísse em mau exemplo para os habitantes de Baleyworld. Não quero que eles vivam como algo genérico. O progresso intelectual e histórico se tornaria, dessa forma, muito lento. Os que estão no topo ficariam no poder durante tempo demais. Baleyworld mergulharia no conservadorismo e na decadência - como aconteceu com seu mundo.

      Gladia ergueu o pequeno queixo.

      - Verá que Aurora está indo muito bem.

      - Estou falando do seu mundo. Solaria. Gladia hesitou e depois replicou com firmeza:

      - Solaria não é meu mundo.

      - Espero que seja - disse D. G. - Vim vê-la porque acredito nisso.

      - Se foi por isso que veio me ver, está perdendo seu tempo, rapaz.

      - A senhora nasceu em Solaria e viveu lá algum tempo não?

      - Vivi lá nas primeiras três décadas de minha vida - cerca da oitava parte da minha existência.

      - Então isso a torna bastante Solariana para poder me ajudar num assunto muito importante.

      - Não sou Solariana, apesar desse assunto supostamente tão importante.

      - É um caso de guerra e paz - se considera isso importante. Os mundos Espaciais estão à beira de uma guerra com os mundos dos Colonizadores, e as coisas ficarão muito piores para todos nós se isso acontecer. E depende da senhora evitar o conflito e garantir a paz.

      A refeição tinha terminado (não fora abundante) e Gladia ficou olhando para D. G. de uma forma terrivelmente fria.

      Ela havia vivido calmamente durante as últimas vinte décadas, de olho nas complicações da vida. Pouco a pouco, tinha esquecido o sofrimento de Solaria e as dificuldades  de adaptação a Aurora. Tinha conseguido enterrar bem profundamente o sofrimento de dois assassinatos e o enlevo de dois amores estranhos - com um robô e com um Terráqueo  - e se saíra bem. Acabara por levar a termo um casamento longo e tranqüilo, que lhe dera dois filhos, e trabalhar em sua arte do vestuário. Finalmente os filhos  tinham partido, mais tarde o marido, e, por fim, ela deixara até mesmo o trabalho.

      Agora estava só, com seus robôs, contente - ou melhor, resignada - por deixar a vida deslizar suave e monótona para um retiro no seu próprio tempo - uma reclusão  tão agradável que ela não iria perceber o fim quando ele chegasse.

      Era o que ela queria.

      Então... O que estava acontecendo?

      Tinha começado na noite anterior, quando olhara inutilmente para o céu estrelado, a fim de ver a estrela de Solaria, que não estava no céu e nem seria visível para  ela mesmo que estivesse. Era como se essa tentativa fútil à procura do passado - um passado cujo sepultamento ela devia ter mantido - tivesse arrebentado a bolha  gelada que ela havia construído em torno de si mesma.

      Primeiro, o nome de Elijah Baley, a recordação mais alegremente dolorosa de todas as que ela havia tão cuidadosamente apagado, vinha sempre à tona, numa triste repetição.

      Depois, fora forçada a tratar com um homem que pensava - erroneamente - poder ser descendente de Elijah em quinto grau. Finalmente, estava agora tendo problemas  e responsabilidades semelhantes com os que tinham flagelado Elijah em várias ocasiões.

      Estaria ela se tornando Elijah, de certo modo, sem nenhum dos seus talentos e sua intransigente dedicação ao dever acima de tudo?

      Que teria ela feito para merecer isso?

      Gladia sentiu sua ira sendo enterrada sob um fluxo de autopiedade.

        Sentiu-se injustamente lidando com isso. Ninguém tinha o direito de descarregar responsabilidade nela, contra sua vontade. Gladia falou, forçando seu tom de voz:

      - Por que insiste em que eu sou Solariana, quando lhe digo que não sou?

      D. G. não pareceu perturbado pela frieza da sua voz. Ainda estava segurando o guardanapo macio que lhe fora dado ao término da refeição. Permanecia razoavelmente morno e úmido - não muito quente - e ele imitou os gestos de Gladia, limpando cuidadosamente as mãos e a boca. Depois, dobrou-o e limpou a barba. Estava agora rasgado e amarrotado.

      - Suponho que vai desaparecer completamente - disse ele.

      - Vai. - Gladia tinha depositado seu próprio guardanapo no receptáculo apropriado na mesa. Segurá-lo era descortês e podia ser desculpado apenas pela evidente falta de familiaridade de D. G. com os costumes civilizados. - Muitos acreditam que ele tem um efeito poluidor na atmosfera, mas há uma suave corrente de ar que carrega para cima os resíduos, aprisionando-os em seus filtros. Duvido que nos cause qualquer perturbação. Mas o senhor ignorou minha pergunta.

      D. G. salvou o restante do seu guardanapo e colocou-o no braço da cadeira. Um robô, em resposta ao rápido e discreto gesto de Gladia, removeu-o.

      - Não procurei ignorar sua pergunta, minha senhora - retorquiu D. G. - Não estou obrigando-a a ser Solariana. Apenas frisei o fato de que nasceu em Solaria e passou  as primeiras décadas lá, podendo, assim, ser razoavelmente considerada Solariana, pelo menos de certa forma. Sabe que Solaria foi abandonado?

      - Sim, me disseram.

      - Sentiu alguma coisa com isso?

      - Sou Auroreana há vinte décadas.

      - Isto é um non sequitur.

      - Um o quê!

      - Não tem relação com a minha pergunta.

      - Um non sequitur, quis dizer. Disse um "nonsense quitter". D. G. sorriu.

      - Está bem. Deixemos de lado o nonsense. Perguntei-lhe se sentia alguma coisa por causa da morte de Solaria e respondeu-me que é Auroreana. Confirma que isso é uma

      resposta? Uma Auroreana de nascimento pode sentir-se terrivelmente mal com a morte de um planeta irmão. Como se sente a esse respeito?

      Gladia retrucou friamente:

      - Isso não tem importância. Por que está interessado?

      - Explicarei. Nós - quero dizer, os Mercadores dos mundos dos Colonizadores - estamos interessados porque há um negócio a ser feito, lucros a serem obtidos e um  mundo a ser conquistado. Solaria já está terraformado e é um mundo confortável; os senhores, Espaciais, parecem  não ter necessidade ou desejo dele. Por que não poderemos nos instalar em Solaria?

      - Por que não é dos senhores.

      - Senhora, é esse o motivo da sua objeção? Aurora nunca o reivindicou, bem como Baleyworld? Não podemos supor que um mundo vazio deva pertencer a quem tiver prazer em colonizá-lo?

      - Os senhores o colonizaram?

      - Não... porque não está desabitado.

      - Está me dizendo que os Solarianos não o abandonaram completamente? - perguntou Gladia rapidamente.

      O sorriso de D. G. voltou e abriu-se numa risada.

      - Ficou excitada com esse pensamento. Apesar de ser Auroreana. O rosto de Gladia imediatamente franziu-se.

      - Responda à minha pergunta. D. G. encolheu os ombros.

      - Havia apenas uns quinhentos mil Solarianos pouco antes do planeta ser abandonado, de acordo com nossos cálculos mais otimistas. A população vem declinando durante anos. Mas mesmo cinco mil... Podemos ter certeza de que todos se foram? Contudo, não é essa a questão. Mesmo que os Solarianos tivessem realmente ido embora, o planeta não estaria vazio. Há, além disso, uns duzentos milhões ou mais de robôs - robôs sem dono - alguns dos quais estão entre os mais avançados da galáxia. Presumivelmente, os Solarianos que partiram levaram com eles alguns robôs; é difícil imaginar Espaciais sem os seus robôs. - Olhou em volta, sorrindo, para os robôs em seus nichos no interior da sala. - Contudo, possivelmente não puderam levar quarenta mil robôs cada um.

      - Bem - replicou Gladia - uma vez que os planetas dos Colonizadores estão agora tão virginalmente livres de robôs e desejam permanecer assim, presumo, não podem colonizar Solaria.

      - É verdade. Não até que os robôs tenham ido embora e que Mercadores como eu cheguem.

      - De que maneira?

      - Não queremos uma sociedade robótica, mas não nos importamos de estar em contato com robôs e tratar de negócios com eles. Não temos um medo supersticioso das coisas.

      Sabemos exatamente que uma sociedade robótica é um pulo para a decadência. Os Espaciais tornaram isso bastante claro para nós pelo exemplo. Assim, uma vez que não queremos viver com esse veneno robótico, estamos perfeitamente dispostos a vendê-los aos Espaciais por uma quantia substancial - se eles forem tão loucos para desejar essa sociedade.

      - Pensa que os Espaciais os comprarão?

      - Estou certo que sim. Receberão bem as modas elegantes que os Solarianos manufaturam. É sabido que eles são os melhores desenhistas da galáxia, e o falecido Dr. Fastolfe chegou a dizer que eles não têm paralelo  nesse campo, embora fosse Auroreano. Além disso, apesar de desejarmos uma grande soma, esta será consideravelmente menor do que valem os robôs Espaciais e Mercadores terão lucro ambos - o segredo do negócio feito.

      - Os Espaciais não comprarão robôs dos Colonizadores - disse Gladia, com desprezo evidente.

      D. G. tinha a maneira dos Mercadores de ignorar coisas não fundamentais, como a ira ou o desprezo. O que importava era o negócio.

      - Claro que comprarão - replicou. - Nós lhes ofereceremos robôs avançados pela metade do preço, por que não haveriam de aceitar? Quando há negócios a serem feitos, a senhora ficará surpresa em constatar, questões de ideologia se tornam pouco importantes.

      - Acho que o senhor será o único a ficar surpreso. Tente vender seus robôs e verá.

      - Gostaria de poder, minha senhora. Isto é, tentar vendê-los. Estou de mãos vazias.

      - E por quê?

      - Porque nada foi recolhido. Duas naves comerciais isoladas pousaram em Solaria, cada uma com capacidade de acolher vinte e cinco robôs. Se obtivessem sucesso, frotas inteiras de navios mercantes as teriam seguido, e ouso dizer que continuaríamos a fazer negócios durante décadas. E teríamos então colonizado o planeta.

      - Mas não tiveram sucesso. Por quê?

      - Porque ambas as naves foram destruídas na superfície do planeta e, até onde posso saber, toda a tripulação foi morta.

      - Falha do equipamento?

      - Bobagem. Ambas pousaram a salvo; não tinham sido destruídas. Seus últimos relatórios diziam que os Espaciais estavam se aproximando - se Solarianos, nativos ou outros Espaciais, não sabemos. Só podemos presumir que os Espaciais atacaram sem avisar.

      - Isso é impossível.

      - Será?

      - Claro que é. Que motivo teriam?

      - Manter-nos fora do planeta, diria eu.

      - Se quisessem fazer tal coisa - replicou Gladia - teriam simplesmente anunciado que o planeta estava ocupado.

      - Podiam ter achado mais agradável matar alguns Colonizadores. Pelo menos, é assim que muitos de nós pensam, e há pressões para que resolvamos o assunto enviando algumas naves de guerra a Solaria, estabelecendo uma base militar no planeta.

      - Isso seria perigoso.

      - Certamente. Podia levar à guerra. Alguns dos nossos mais exaltados estão à espera disso. Talvez alguns Espaciais também estejam e tenham destruído as duas naves apenas para provocar hostilidades.

      Gladia ficou espantada. Não houvera nenhuma alusão a relações tensas entre Espaciais e Colonizadores em nenhum dos novos programas.

      - Certamente, pode-se discutir o assunto - disse Gladia. - Seu povo entrou em contato com a Federação dos Espaciais?

      - Um organismo sem qualquer importância, mas entramos. Fizemos o mesmo com o Conselho Auroreano.

      - E então?

      - Os Espaciais negam tudo. Sugerem que os lucros potenciais no comércio do robô Solariano eram tão altos que os Mercadores, interessados apenas em dinheiro – apesar de não terem interesses pessoais - lutariam entre si. Evidentemente, quiseram que acreditássemos que as duas naves haviam destruído uma à outra, na esperança de monopolizarem o comércio para seu próprio planeta.

      - Então as duas naves eram de planetas diferentes?

      - Sim.

      - O senhor não acha, então, que poderia realmente ter havido luta entre elas?

      - Não acho provável, mas admito a possibilidade. Não tem havido conflitos extensos entre os planetas dos Colonizadores, apenas disputas muito ardorosas. E todas têm sido resolvidas mediante arbitragem da Terra. Contudo, temos de reconhecer que, numa situação de aperto estando em jogo um negócio de muitos bilhões de dólares, os planetas dos Colonizadores permaneçam unidos. É por isso que não consideramos a guerra uma boa idéia para nós e achamos que alguma coisa deve ser feita para desencorajar os mais exaltados. É por isso que estamos aqui.

      - Estamos?

      - A senhora e eu. Pediram-me que fosse a Solaria e descobrisse - se pudesse - o que realmente tinha acontecido. Eu levaria uma nave - armada, mas não muito fortemente.

      - O senhor também poderia ser destruído.

      - Possivelmente. Minha nave, porém, pelo menos não seria apanhada desprevenida. Além disso, não sou um desses heróis da hipervisão e levei em conta o que poderia fazer para minimizar as possibilidades de destruição. Ocorreu-me que uma das desvantagens da penetração dos Colonizadores em Solaria é que não conhecemos absolutamente o planeta. Pode ser útil, portanto, levar alguém que o conheça - em suma, um Solariano.

      - Está dizendo que quer me levar?

      - Exatamente, minha senhora.

      - Por que eu!

      - Tenho de considerar que pode compreender sem explicação, minha senhora. Os Solarianos que abandonaram o planeta foram não se sabe Para onde. Se ficaram alguns no planeta, muito provavelmente são inimigos. Não se conhecem Espaciais nascidos em Solaria que vivam em outro Planeta Espacial além de Solaria - exceto a senhora.

      Que é o único nativo  daquele planeta ao meu alcance: o único em toda a galáxia. E por isso que eu preciso tê-la comigo, é por isso que a senhora precisa vir.

      - O senhor está errado, Colonizador. Se sou a única pessoa disponível, então o senhor não tem ninguém disponível. Não pretendo ir com o senhor e não há maneira - absolutamente nenhuma - de me forçar a isso. Estou cercada pelos meus robôs. Dê um passo em minha direção e será imediatamente imobilizado - e se lutar será ferido.

      - Não pretendo forçá-la. A senhora terá de vir espontaneamente e de boa vontade. Trata-se de evitar uma guerra.

      - Isso é tarefa para governos, tanto do seu lado como do meu. Recuso-me a ter alguma coisa a ver com isso. Sou uma cidadã particular.

      - A senhora o deve ao seu planeta. Nós poderemos vir a sofrer com a guerra, mas Aurora também.

      - Não sou uma daquelas heroínas da hipervisão e o senhor também não.

      - Então, a senhora o deve a mim.

      - O senhor está maluco. Não lhe devo nada. D. G. esboçou um sorriso.

      - Nada me deve como indivíduo, porém me deve muito como descendente de Elijah Baley.

      Gladia franziu o cenho e continuou encarando o monstro barbado durante um bom período de tempo. Como tinha podido esquecer quem ele era?

      Com dificuldade, finalmente murmurou:

      - Não.

      - Sim - insistiu D. G. impetuosamente. - Em duas diferentes ocasiões, o Antepassado fez mais pela senhora do que algum dia poderá pagar. Ele não está mais aqui para poder reclamar a dívida - uma pequena parte dela. Herdei o direito de fazê-lo.

      Desesperada, Gladia perguntou:

      - Mas que poderei fazer, se for com o senhor?

      - Veremos. A senhora virá?

      Em desespero, Gladia desejou recusar, mas não fora por isso que Elijah tinha subitamente se tornado parte de sua vida, mais uma vez, nas últimas vinte e quatro horas?

      Que aquele pedido impossível lhe fora feito usando o nome dele, tornando-lhe a recusa impossível?

      - Que importa? O Conselho não vai me deixar ir com o senhor. Não vão permitir que um Auroreano seja levado numa nave dos Colonizadores.

      - Minha senhora, a senhora vive aqui em Aurora há vinte décadas e por isso pensa que os nativos a consideram como um deles. Não é verdade. Para eles, continua sendo Solariana. Eles permitirão que vá.

      - Não permitirão - replicou ela, com o coração batendo e a pele dos antebraços arrepiada. Ele tinha razão. Gladia pensou em Amadiro, que certamente só pensava nela como Solariana. Apesar disso, repetiu, tentando tranquilizar-se: - Não permitirão.

      - Permitirão - replicou D. G. - Não veio alguém do seu Conselho pedir-lhe para me receber?

      Ela disse, desafiadora:

      - Apenas me pediram que relatasse esta conversa. E eu o farei.

      - Se eles querem que me vigie aqui, em sua própria casa, minha senhora, acharão ainda mais útil que me vigie em Solaria. - Esperou pela resposta; quando esta não veio, prosseguiu, com um traço de cansaço na voz: - Minha senhora, se recusar, não a forçarei, porque não será preciso. Eles se encarregarão disso. Porém, não desejo tal coisa. O Antepassado também não desejaria, se estivesse aqui. Ele desejaria que a senhora fosse comigo apenas por gratidão a ele e nada mais. Minha senhora, o Antepassado trabalhou para a senhora em condições extremamente difíceis. Não quer cooperar em consideração à memória dele?

      O coração de Gladia baqueou. Sabia que não podia resistir a isso.

      - Não posso ir a lugar algum sem robôs - replicou.

      - Não achei que pudesse. - D. G. estava novamente rindo. - Por que não leva meus homônimos? Vai precisar de mais?

      Gladia olhou para Daneel, porém este estava de pé, imóvel. Virou-se para Giskard - a mesma coisa. Então pareceu-lhe que, apenas por um instante, sua cabeça moveu-se - muito de leve - afirmativamente.

      Precisava confiar nele. Portanto, respondeu:

      - Muito bem, Vou com o senhor. Só preciso desses dois robôs.

     

SOLARIA

 

      O Planeta Abandonado

      Pela quinta vez em sua vida, Gladia viajou numa espaçonave. De repente, não lembrava exatamente há quanto tempo ela e Santirix tinham ido juntos ao planeta Euterpe  conhecer suas florestas tropicais, mundialmente reconhecidas como incomparáveis, especialmente sob o resplendor romântico do seu brilhante satélite, Pedra Preciosa.

      A floresta tropical era, de fato, verde e luxuriante, com as árvores cuidadosamente plantadas em colunas e a vida animal devidamente selecionada, de forma a produzir  cor e prazer e ao mesmo tempo evitando as criaturas venenosas ou desagradáveis.

      O satélite, com cento e cinqüenta quilômetros de diâmetro, estava bastante perto de Euterpe para brilhar como um ponto luminoso de luz faiscante. Estava tão perto  do planeta que se podia vê-lo atravessar o céu para oeste, superando o movimento rotativo mais lento do planeta. Luzia quando se dirigia ao zênite e diminuía quando  tornava a cair para o horizonte. Era olhado com fascinação na primeira noite, com menor interesse na segunda e com um vago desgosto na terceira - na hipótese do  céu estar claro nessas noites, o que não acontecia normalmente.

      Os Euterpianos, reparou Gladia, nunca o olhavam, embora o elogiassem ruidosamente para os turistas, é claro.

      No todo, Gladia tinha gostado bastante da viagem, porém o que mais lembrava era a alegria da volta a Aurora e sua decisão de não mais viajar, a não ser por motivo  de força maior. (Como tinha acontecido, por falar nisso, umas oito décadas atrás.)

      Durante um certo tempo, ela viveu com o desagradável temor de que seu marido insistisse numa outra viagem, porém ele nunca o fez. Podia acontecer, pensava ela às  vezes, naquele tempo, que ele tivesse chegado à mesma decisão e temesse que Gladia pudesse querer viajar.

      Não era incomum evitar viagens. Os Auroreanos, em geral - todos    os Espaciais, por falar nisso - tendiam a ficar em casa. Seus mundos, suas casas, eram muito confortáveis. Afinal de contas, que maior prazer pode haver que ser  cuidado por seus próprios robôs, servomecânicos que conheciam seus menores sinais e, por extensão, seus meios e desejos, mesmo que não fossem expressos.

      Gladia mexeu-se, incomodada. Fora isso que D. G. quisera dizer quando falara de decadência de uma sociedade robotizada?

      Agora porém ela estava de volta ao espaço, depois de todo esse tempo. E também numa nave terrestre.

      Ela não tinha visto muita coisa da nave, mas o pouco que vislumbrou deixou-a terrivelmente receosa. Pareceu-lhe nada mais que linhas retas, ângulos agudos e superfícies  polidas. Tudo que não fosse rígido tinha sido evidentemente eliminado. Era como se nada pudesse existir a não ser funcionalmente. Apesar de não saber o que era exatamente  funcional em cada objeto da nave, sentiu que tudo era necessário, que nada interferia na escolha da menor distância entre dois pontos.

      No sistema Auroreano (ou mesmo Espacial, quase se podia dizer, embora Aurora fosse o mais avançado a esse respeito), tudo existia em camadas. A funcionalidade estava  na base - ninguém podia se livrar completamente disso, exceto no que era puro ornamento - mas logo acima havia sempre alguma coisa para satisfazer os olhos e os  sentidos, em geral; e acima disso alguma coisa para satisfazer o espírito.  Como isso era melhor!... Ou representaria tamanha exuberância da criatividade humana que os Espaciais não mais poderiam viver num universo sem adornos - e seria  isso  ruim? O futuro seria pertencer aos geômetras daqui-para-ali? Ou os Colonizadores ainda não teriam ainda aprendido as doçuras da vida?

      Mas nesse caso, se a vida possuía tantas doçuras, por que havia ela encontrado tão poucas para si mesma?

      Gladia, realmente, nada tinha a fazer a bordo daquela nave, a não ser pensar e repensar essas questões. Aquele D. G., aquele descendente bárbaro de Elijah, tinha  metido aquilo em sua cabeça com a calma convicção de que os planetas Espaciais estavam morrendo, apesar de ter podido constatar durante a curtíssima estada em Aurora  (certamente ele pôde), que este planeta estava profundamente mergulhado em riqueza e segurança.

      Ela tentou fugir aos seus próprios pensamentos vendo os holofilmes que lhe tinham fornecido e olhando, com curiosidade moderada, as imagens trêmulas e saltitantes  na superfície de projeção, enquanto as histórias de aventuras (eram todas histórias de aventuras) passavam apressadamente de acontecimento para acontecimento, deixando  pouco tempo para conversa e nenhum para pensamentos - ou mesmo prazer. Muito semelhante aos móveis deles.

      D. G. entrou quando Gladia estava no meio de um dos filmes, porém parou, prestando realmente atenção. Ela não foi apanhada de surpresa.

      Seus robôs, que vigiavam a porta, assinalaram sua chegada muito a tempo e não o teriam deixado entrar se ela não desejasse recebê-lo. Daneel entrou com ele.

      - Como está passando? - perguntou D. G. Então, quando a mão dela tocou um interruptor e as imagens diminuíram, tremularam e desapareceram, ele disse: - Não precisava ter desligado. Eu assistirei com a senhora.

      - Não é necessário - replicou ela. - Já vi bastante.

      - A senhora está confortável?

      - Não completamente. Estou... isolada.

      - Lamento! Mas também fiquei isolado em Aurora. Eles não permitiram que os meus fossem comigo.

      - Está se vingando?

      - Absolutamente, não. Não se esqueça, permiti-lhe que trouxesse dois robôs à sua escolha com a senhora. Por outro lado, não sou eu o responsável; minha tripulação  é que me obriga a isso. Eles não gostam nem de Espaciais nem de robôs. Mas de que se queixa? Este isolamento não diminui seu medo de infecções?

      O olhar de Gladia era arrogante, mas sua voz soou fatigada.

      - Fico pensando se não estou velha demais para temer infecções. De certa forma, acho que vivi bastante. E também tenho minhas luvas, meus filtros de narinas e -  se necessário - minha máscara. Além disso, duvido que o senhor vá se dar ao trabalho de me tocar.

      - Nem ninguém mais - retrucou D. G., com uma súbita ponta de amargura na voz, quando sua mão dirigiu-se, indecisa, para o objeto no lado direito de seu quadril.

      Os olhos de Gladia acompanharam o gesto.

      - O que é isso? - perguntou.

      D. G. sorriu e sua barba pareceu brilhar na luz. Havia alguns fios avermelhados entre o castanho.

      - Uma arma - respondeu e puxou-a.

      Segurou-a por um cabo moldado que sobressaía em sua mão como se a torça da empunhadura o estivesse pressionando para cima. Na frente, virado para Gladia, um fino cilindro estendia-se cerca de quinze centímetros. Não havia orifício visível.

      - Isso mata gente? - perguntou Gladia, estendendo a mão para ela. D. G. afastou-a rapidamente.

      - Nunca estenda a mão para a arma de alguém, minha senhora. Isso e Pior que ter maus modos, pois todo Colonizador é instruído para reagir violentamente a um movimento assim, e a senhora pode ficar ferida.

      Gladia, de olhos escancarados, recolheu a mão e colocou ambas por trás das costas, dizendo:

      - Não ameace causar dano. Daneel não tem senso de humor a esse respeito. Em Aurora, ninguém é bastante selvagem para usar armas.

        - Bem - respondeu D. G., impassível diante do adjetivo - não temos robôs para nos protegerem - e este não é um instrumento de morte. Em alguns aspectos, é pior.

      Emite uma espécie de vibração que estimula os terminais nervosos responsáveis pela sensação de dor. Machuca muito mais do que tudo que a senhora possa imaginar.

      Ninguém desejaria voluntariamente passar por isso duas vezes, e quem carrega esta arma raramente a usa. Nós a denominamos chicote neurônico.

      Gladia franziu o cenho.

      - Asqueroso! Temos nossos robôs, mas eles jamais machucam alguém, exceto numa inevitável emergência - e assim mesmo o mínimo possível.

      D. G. encolheu os ombros.

      - Isso parece muito civilizado, mas um pouco de dor - um pouco de matança até - é melhor que a decadência de espírito espalhada pelos robôs. Além disso, o chicote neurônico não é feito para matar, e sua gente tem armas nas suas espaçonaves que podem trazer globalmente morte e destruição.

      - Isso é porque tivemos de travar guerras no começo da nossa história, quando nossa herança da Terra ainda era forte, mas progredimos.

      - Vocês usaram essas armas na Terra mesmo depois de terem supostamente progredido.

      - Isso foi... - começou, mas fechou a boca para impedir-se de dizer mais alguma coisa.

      D. G. balançou a cabeça.

      - Eu sei. A senhora ia dizer: "Aquilo foi diferente." Pense nisso, minha senhora, caso comece a especular por que minha tripulação não gosta de Espaciais. Ou eu. Mas a senhora vai me ser útil, minha senhora, e não Vou deixar que minhas emoções interfiram.

      - De que modo lhe serei útil?

      - A senhora é Solariana.

      - O senhor continua insistindo nisso. Passaram-se mais de vinte décadas. Não sei como Solaria está agora. Não tenho a menor idéia. Como Baleyworld era há vinte décadas?

      - Ele não existia nessa época, mas Solaria sim, e aposto que a senhora se lembrará de alguma coisa útil.

      D. G. levantou-se, curvou a cabeça num cumprimento rápido de boas maneiras um tanto zombeteiro e saiu.

      Durante certo tempo, Gladia manteve um silêncio meditativo e perturbado, dizendo a seguir:

      - Ele não foi absolutamente educado, não é?

      Daneel respondeu:

      - Senhora Gladia, o Colonizador está evidentemente sob grande tensão. Está viajando para um mundo onde duas naves iguais a esta foram destruídas e suas tripulações aniquiladas. Juntamente com sua tripulação, está correndo um grande perigo.

      - Você defende sempre todo ser humano, Daneel - disse Gladia, magoada. - O perigo também existe para mim e não o estou enfrentando voluntariamente, mas isso não me força a ser rude.

      Daneel ficou calado. Gladia prosseguiu:

      - Bem, talvez tenha sido assim. Eu fui um pouco rude, hem?

      - Não creio que o Colonizador tivesse a intenção - retrucou Daneel. - Posso sugerir, senhora, que a senhora se prepare para dormir? É muito tarde.

      - Está bem. Vou me preparar para dormir, porém acho que não estou bastante calma para isso, Daneel.

      - O amigo Giskard me garantiu que a senhora estará, e ele sempre tem razão nesses assuntos.

      E ela dormiu.

     

      Daneel e Giskard ficaram na escuridão do camarote de Gladia.

      - Ela irá dormir profundamente, amigo Daneel - disse Giskard - e bem que precisa disso. Está enfrentando uma viagem perigosa.

      - Parece-me, amigo Giskard - disse Daneel - que você a influenciou para concordar com essa viagem. Suponho que tenha um motivo.

      - Amigo Daneel, sabemos tão pouco sobre a natureza da crise ora enfrentada pela Galáxia, que não podemos com segurança recusar qualquer ação que possa aumentar nosso conhecimento. Preciso saber o que está acontecendo em Solaria, e para isso era necessário ir até lá. Impunha-se, portanto, conseguir que Senhora Gladia fosse. Quanto a influenciá-la, bastou um pequeno toque. Apesar de suas altissonantes declarações em contrário, ela estava ansiosa para ir. Havia um desejo irresistível dentro dela de ver Solaria. Era um sofrimento interior que não cessaria até que ela fosse.

      - Já que você diz, eu acredito. Contudo, ainda acho confuso. Ela não deixou claro, com freqüência, que sua vida em Solaria tinha sido infeliz, que havia adotado integralmente Aurora e nunca desejara voltar ao seu lar de origem?

      - Sim, havia isso também. Estava muito claro em sua mente. Ambas as emoções, ambos os sentimentos existiam juntos e simultâneos. Observei coisas semelhantes freqüentemente nas mentes humanas; duas emoções antagônicas presentes ao mesmo tempo.

      - Essa condição não parece lógica, amigo Giskard.

      - Concordo e só posso concluir que os seres humanos não são, o tempo todo e a respeito de tudo, lógicos. Esse deve ser um motivo pelo qual é tão difícil descobrir as Leis que governam o comportamento humano. No caso de Senhora Gladia, percebi sempre sua ânsia por Solaria. Normalmente, era muito bem oculta, obscurecida pela mais intensa antipatia que sempre sentiu pelo planeta. Quando chegaram, contudo, as notícias de que Solaria tinha sido abandonado pelos seus habitantes, seus sentimentos mudaram.

      - Como assim? Que teve o abandono a ver com as experiências juvenis que levaram Senhora Gladia a essa antipatia? Ou, tendo mantido contida sua ânsia pelo planeta durante as décadas em que havia ali uma sociedade trabalhadora, por que deveria reativá-la, uma vez que ele se tornou um planeta abandonado, e novamente ansiar por um mundo que devia agora ser uma coisa totalmente estranha a ela?

      - Não posso explicar, amigo Daneel. Por mais conhecimento da mente humana que eu tenha conseguido, meu desespero é cada vez maior por ser incapaz de compreender.

      Não é uma genuína vantagem ver no interior dessa mente e eu freqüentemente invejo sua simplicidade de controle do comportamento, resultante de sua incapacidade de ver sob a superfície.

      Daneel insistiu:

      - Imaginou uma explicação, amigo Giskard?

      - Suponho que ela sente pena do planeta desabitado. Ela o abandonou há vinte décadas...

      - Ela foi levada.

      - Parece-lhe, agora, ter sido uma deserção, e imagino que ela brinca com o pensamento doloroso de que se tornou um exemplo; que se não tivesse partido, ninguém a acompanharia e o planeta permaneceria habitado e feliz. Uma vez que não posso ler seus pensamentos, estou apenas tateando no escuro, talvez inadequadamente, baseado em suas emoções.

      - Ela, porém, não deve ter sido um exemplo, amigo Giskard. Como já se passaram vinte décadas desde que ela partiu, pode não haver nenhuma conexão causal verificável entre o acontecimento muito anterior e o muito posterior.

      - Concordo, mas seres humanos às vezes encontram uma espécie de prazer em alimentar emoções dolorosas, em se culparem sem motivo ou mesmo contrariamente ao motivo.

      Em todo caso, Senhora Gladia sentiu tão agudamente a ânsia de voltar, que achei ser necessário liberar o efeito inibidor que a impedia de concordar em ir. Foi preciso apenas um levíssimo toque. Mas apesar de eu sentir ser necessário que ela fosse, uma vez que isso significava levar-nos com ela, tive a incômoda sensação de que as desvantagens podiam, muito possivelmente, ser maiores que as vantagens.

      - Como, amigo Giskard?

      - Visto que o Conselho estava ansioso para que Senhora Gladia acompanhasse o Colonizador, isso pode ter tido o propósito de manter a Senhora Gladia ausente de Aurora durante um período crucial, quando a der rota da Terra e dos seus mundos de Colonizadores estiver sendo preparada.

      - Daneel pareceu meditar sobre a declaração. Pelo menos, foi só após uma longa pausa que ele disse:

      - Qual a finalidade, na sua opinião, de manter Senhora Gladia ausente de Aurora?

      - Isso não sei, amigo Daneel. Desejo sua opinião.

      - Não examinei esse assunto.

      - Examine-o agora!

      Se Giskard fosse humano, o comentário teria sido uma ordem. Seguiu-se um silêncio ainda maior e depois Daneel disse:

      - Amigo Giskard, até o momento em que o Dr. Mandamus apareceu na residência de Senhora Gladia, ela nunca demonstrou nenhuma preocupação com os assuntos internacionais.

      Ela era amiga do Dr. Fastolfe e de Elijah Baley, porém essa amizade era de afeto pessoal e não tinha base ideológica. Além disso, ambos não mais existem. Ela tem antipatia pelo Dr. Amadiro, que é recíproca, mas trata-se também de um assunto pessoal. Essa antipatia tem duzentos anos de idade e nenhum fato foi acrescentado a ela, cada um permanecendo teimosamente antipático ao outro. Não há motivo para o Dr. Amadiro - que é hoje a influência dominante no Conselho - temer Senhora Gladia ou dar-se ao trabalho de afastá-la.

      - Você negligencia o fato de que, removendo Senhora Gladia, ele também remove a nós dois. Ele pôde sentir, com certeza, que ela não partiria sem nós; dessa forma, talvez sejamos nós que ele considera perigosos.

      - No decorrer da nossa existência, amigo Giskard, de maneira nenhuma demos a impressão de termos ameaçado o Dr. Amadiro. Que motivo tem ele para nos temer? Ele não conhece sua capacidade ou como fez uso dela. Por que, então, se daria ao trabalho de nos afastar, temporariamente, de Aurora?

      - Temporariamente, amigo Daneel? Por que conclui que ele planeja um afastamento temporário? Ele sabe, certamente melhor que o Colonizador, o que está havendo em Solaria, e também que o Colonizador e sua tripulação serão seguramente trucidados - e com eles Senhora Gladia e nós. Talvez a destruição da nave do Colonizador seja seu alvo principal, mas levará em conta o fim da amiga do Dr. Fastolfe e dos robôs deste, como um lucro adicional.

      - Certamente - comentou Daneel - ele não quererá se arriscar a uma guerra com os planetas dos Colonizadores, o que poderá acontecer se a nave deles for destruída; o minuto de satisfação de nos ter aniquilado, se adicionado, não valerá o risco.

      - Não é possível, amigo Daneel, que o Dr. Amadiro tenha em mente exatamente a guerra; que isso no seu cálculo não envolva nenhum risco,

      Pois, livrando-se de nós ao mesmo tempo, aumenta seu prazer sem aumentar o risco que não deve existir?

      Daneel retrucou calmamente:

      - Amigo Giskard, isso não é racional. Numa guerra desencadeada nas presentes condições, os Colonizadores vencerão. Estão melhor preparados, psicologicamente, para os rigores da guerra. Estão mais espalhados e podem, consequentemente, agir com mais sucesso, usando a tática de atacar-e-fugir. Eles têm comparativamente pouco a perder nos seus planetas relativamente primitivos, enquanto os Espaciais têm muito, nos seus confortáveis e altamente organizados mundos. Se os Colonizadores estiverem dispostos a oferecer a destruição de um dos seus planetas por um dos Espaciais, estes terão de se render imediatamente.

      - Mas essa guerra teria de ser travada "sob as presentes condições"? E se os Espaciais tiverem uma nova arma que possa ser usada para derrotar os Colonizadores rapidamente?

      Não poderá ser essa a verdadeira crise que estamos agora enfrentando?

      - Nesse caso, amigo Giskard, a vitória poderá ser maior e mais eficientemente ganha com um ataque de surpresa. Por que se dar ao trabalho de provocar uma guerra, que os Colonizadores podem começar por um ataque de surpresa aos planetas Espaciais com danos consideráveis?

      - Talvez os Espaciais necessitem testar sua arma, e a destruição de uma série de naves em Solaria represente o teste.

      Os Espaciais seriam muito pouco inventivos se não tivessem encontrado um método experimental que não traísse a existência de uma nova arma.

      Foi então que Giskard virou-se para considerar.

      - Pois muito bem, amigo Daneel, como explica esta viagem? Como explica a concordância do Conselho - até mesmo a ansiedade - para que acompanhássemos o Colonizador?

      Este disse que eles iriam ordenar a Gladia que fosse, e foi isso exatamente que aconteceu.

      - Não examinei o assunto, amigo Giskard.

      - Pois examine-o agora.

      A frase tinha, novamente, o sabor de uma ordem. Daneel disse:

      - Farei isso.

      Houve um silêncio que se prolongou, mas Giskard, não demonstrou, por palavra ou gesto, impaciência enquanto esperava.

      Finalmente, Daneel falou lentamente, como se tivesse sentido seu caminho por estranhas avenidas de pensamento:

      - Não acho que Baleyworld - ou qualquer dos planetas dos Colonizadores - tenha o legítimo direito de se apossar da propriedade robótica em Solaria. Embora os Solarianos tenham partido ou talvez morrido, Solaria continua um planeta Espacial, ainda que desocupado. Certamente os restantes quarenta e nove planetas dos Espaciais raciocinarão assim. Principalmente Aurora - caso se sinta no comando da situação.

      Giskard meditou sobre isso.

      - Está dizendo, amigo Daneel, que a destruição de duas naves dos Colonizadores foi a maneira Espacial de reafirmar sua propriedade de Solaria?

      - Não - respondeu Daneel - esta não teria sido a maneira de Aurora, o principal poder Espacial, sentir-se no comando da situação. Aurora simplesmente teria anunciado que Solaria, desabitado ou não, estava fora dos limites das naves dos Colonizadores, e ameaçado represálias contra os planetas nativos, se qualquer nave dos Colonizadores entrasse no sistema planetário Solariano. E eles teriam estabelecido um cordão de naves e estações sensoriais em torno do sistema planetário. Não houve esse aviso, essa ação, amigo Giskard. Por que, então, destruir naves que poderiam ter sido mantidas afastadas do planeta com facilidade, em primeiro lugar?

      - Mas as naves foram destruídas, amigo Daneel. Quer usar a ilogicidade básica da mente humana como explicação?

      - Não, a menos que precise. No momento, tomemos a destruição em si. Agora, consideremos as conseqüências. O comandante de uma única nave dos Colonizadores aproxima-se de Aurora, pede permissão para discutir a situação com o Conselho, insiste em levar um cidadão Auroreano com ele para investigar os acontecimentos em Solaria e o Conselho concede-lhe tudo. Se a destruição de naves sem aviso prévio é uma ação muito violenta para Aurora, ceder ao capitão Colonizador tão covardemente é muito mais uma demonstração de fraqueza. Longe de procurar uma guerra, Aurora, cedendo, parece estar disposta a fazer tudo para repelir essa possibilidade.

      - Sim - disse Giskard - vejo que esse é um meio possível de interpretar acontecimentos. Mas o que se segue?

      - Parece-me - disse Daneel - que os planetas Espaciais ainda não se encontram tão fracos a ponto de se prestar a tal servilismo; e mesmo que estivessem, o orgulho de séculos de supremacia evitaria que eles fizessem isso. Deve ser outra coisa, que não a fraqueza, que os está levando a proceder assim. Já assinalei que eles não podem deliberadamente provocar uma guerra; portanto, é muito mais provável que estejam querendo ganhar tempo.

      - Com que finalidade, amigo Daneel?

      - Eles querem aniquilar os Colonizadores, mas ainda não estão preparados. Estão deixando que eles obtenham o que querem para evitar a guerra, até estarem preparados para lutar em seus próprios termos. Só estou surpreso por não terem oferecido enviar uma belonave Auroreana com eles. Se esta análise é correta - e acho que é - Aurora possivelmente nada tem a ver com os incidentes em Solaria. A intenção é evitar atritos, que só Serviriam para pôr os Colonizadores de sobreaviso, antes de estarem preparados com alguma coisa devastadora.

      - Então, como considerar esses atritos, como os chama, amigo Daniel?

      - Descobriremos talvez quando pousarmos em Solaria. Pode acontecer que Aurora esteja tão curioso quanto nós e os Colonizadores, e esse é um outro motivo pelo qual devem ter cooperado com o comandante, a ponto de permitir que

      Senhora Gladia o acompanhasse.

      Foi a vez de Giskard permanecer em silêncio. Finalmente, ele disse:

      - E qual é a misteriosa devastação que eles planejam?

      - Anteriormente falamos de uma crise surgindo do plano Espacial de vencer a Terra, mas usamos esta em seu sentido geral, compreendendo os Terráqueos juntamente com seus descendentes nos planetas Espaciais. Contudo, se desconfiarmos seriamente da preparação de um golpe devastador que permitirá aos Espaciais derrotar seus inimigos de um golpe, poderemos talvez aperfeiçoar nosso ponto de vista. Portanto, eles não podem estar planejando um golpe num planeta dos Colonizadores. Individualmente, os mundos dos Colonizadores são prescindíveis, e os sobreviventes remanescentes levarão, em fúria e desespero, a devastação aos planetas Espaciais.

      - Você conclui então, amigo Daneel, que será um golpe na própria Terra.

      - Sim, amigo Giskard. A Terra possuía a grande maioria dos seres humanos de vida breve; é a fonte perene de emigrantes para os planetas dos Colonizadores e a matéria-prima principal para a fundação de novos; é o lar venerado de todos os Colonizadores. Se ela for de alguma forma aniquilada, o movimento Colonizador jamais poderá se recuperar.

      - Mas os planetas dos Colonizadores não iriam revidar com a mesma violência, como se isso acontecesse com um dos seus mundos? Parece-me inevitável.

      - A mim também, amigo Giskard. Conseqüentemente, acho que, a menos que os planetas dos Espaciais tenham enlouquecido, o golpe terá de ser sutil; de modo que os Espaciais pareçam não ter nenhuma responsabilidade.

      - Por que não um golpe sutil contra os planetas dos Colonizadores, que possuem a maior parte do verdadeiro potencial bélico dos Terráqueos?

      - Igualmente porque os Espaciais acham que o golpe contra a Terra será mais devastador psicologicamente ou porque a natureza do golpe só terá efeito contra a Terra e não contra os planetas dos Colonizadores. Inclino-me para a última hipótese, uma vez que a Terra é um mundo único e tem uma sociedade que não se parece com a de nenhum outro planeta - Colonizador ou, quanto a isso, Espacial.

      - Então, em resumo, amigo Daneel, você chega à conclusão de que os Espaciais estão planejando um golpe ardiloso contra a Terra, golpe esse que a destruirá sem deixar provas de serem eles os causadores, que não funcionará contra nenhum outro planeta e que ainda não poderá ser lançado por falta de preparação adequada.

      - Sim, amigo Giskard, mas em breve essa preparação estará concluída, e, quando isto acontecer, terão de atacar imediatamente. Um atraso aumentará a possibilidade de um vazamento que porá tudo a perder.

      - Deduzir tudo isso, amigo Daneel, dos breves indícios que possuímos, é muito digno de aplauso. Agora, conte-me a natureza do golpe. O que planejam exatamente os Espaciais?

      - Cheguei tão longe, amigo Giskard, através de um campo instável, sem ter certeza de que meu raciocínio era inteiramente correto. Porém, mesmo que o suponhamos correto, não posso ir mais além. Temo não saber e não poder imaginar qual a natureza do golpe.

      - Mas não podemos tomar medidas apropriadas - replicou Giskard - para neutralizar o golpe e solucionar a crise até conhecermos sua natureza. Se precisarmos esperar até o golpe se revelar pelos seus resultados, então poderá ser tarde demais para fazer alguma coisa.

      - Se algum Espacial conhece a natureza do que está para acontecer, esse alguém é Amadiro. Você não pode forçar Amadiro a anunciar o evento publicamente e, dessa forma, alertar os Colonizadores, inutilizando o golpe?

      - Não posso fazer isso, amigo Daneel, sem virtualmente destruir sua mente. Duvido poder segurar sua mente o tempo suficiente para permitir-lhe fazer o anúncio. Não posso realizar tal coisa.

      - Talvez então - falou Daneel - possamos nos consolar com o pensamento de que o meu raciocínio esteja errado e que nenhum golpe contra a Terra esteja sendo preparado.

      - Não - retrucou Giskard. - Acho que você tem razão e que devemos apenas esperar... de mãos amarradas.

     

      Gladia esperou, com uma quase dolorosa premonição pelo término do Salto final. Estariam então bem próximos de Solaria para ver seu sol como um disco.

      Não passaria de um disco, claro, um círculo informe de luz, domesticado a ponto de uma pessoa poder olhá-lo sem piscar após a luz ter passado por um filtro apropriado.

      Sua aparência não era singular. Todas as estrelas que carregavam entre seus planetas um mundo habitável, no sentido humano, possuíam uma longa lista de requisitos próprios que terminavam por fazê-las se parecerem todas umas com as outras. Eram todas estrelas sozinhas - não muito maiores ou menores que o sol que brilhava sobre a Terra - nenhuma muito ativa ou muito velha ou muito tranqüila ou muito jovem ou muito quente ou muito fria ou muito fora de padrão na composição química. Aquelas manchas solares, labaredas e protuberâncias eram todas parecidas ao olhar. Era necessária uma acurada espectro-heliografia para ressaltar os detalhes Que tornavam cada uma singular.

      Apesar disso, quando Gladia ficou olhando para um círculo de luz que absolutamente nada mais era para ela do que isso - um círculo de luz - sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. Nunca prestara a menor atenção ao sol quando vivera em Solaria; era apenas uma eterna fonte de luz e calor, surgindo e se pondo num ritmo regular.

      Quando ela partira de Solaria, tinha visto aquele sol desaparecer às suas costas apenas com um sentimento de agradecimento. Não tinha dele uma recordação que valesse a pena.

      Contudo, ela chorava silenciosamente. Estava envergonhada por se sentir tão afetada sem um motivo justificável, porém não parou de chorar.

      Fez um esforço enorme quando o sinal luminoso brilhou. Devia ser D. G. na porta; ninguém mais se aproximaria do seu camarote,

      - Ele deve entrar, senhora? - perguntou Daneel. - A senhora parece emocionalmente afetada.

      - Sim, estou, Daneel, nas deixe-o entrar. Imagino que não será uma surpresa para ele.

      Contudo, foi. Pelo menos, ele entrou com um sorriso no rosto barbado... e este desapareceu quase imediatamente. D. G. recuou e disse em voz baixa:

      - Voltarei mais tarde.

      - Fique! - ordenou Gladia asperamente. - Isto não é nada. Uma reação boba momentânea. - Fungou e enxugou raivosamente os olhos. - Por que veio?

      - Eu queria discutir Solaria com a senhora. Se chegarmos a um pequeno acordo, pousaremos amanhã. Se a senhora não estiver em condições de uma discussão agora...

      - Estou. Na verdade, tenho uma pergunta a lhe fazer. Que história é essa de darmos três Saltos para chegar aqui? Um seria mais que suficiente. Foi suficiente quando me levaram de Solaria para Aurora há vinte décadas. com certeza, a técnica da viagem espacial não piorou desde então.

      O riso de D. G. voltou.

      - Uma ação evasiva. Se uma nave Auroreana estivesse nos seguindo, eu pretendia... confundi-la.

      - Por que uma nave haveria de nos seguir?

      - Foi só uma idéia, senhora. O Conselho estava um tanto ansioso para ajudar, pensei. Sugeriu que uma nave Auroreana me acompanhasse , em minha expedição a Solaria.

      - Ora, isso teria ajudado, não?

      - Talvez - se eu estivesse absolutamente certo de que Aurora não estava por trás de tudo isso. Eu disse muito claramente ao Conselho que queria fazer a viagem sem, ou melhor, apontou o dedo para Gladia - só com a senhora. Mas o Conselho não poderia enviar uma nave para me acompanhar contra minha vontade... por pura bondade, digamos. Ora, eu continuava me recusando a aceitar; eu já espero muita encrenca para ainda ter que ficar olhando para trás a cada instante. Assim, tratei de dificultar uma possível perseguição. Minha senhora, o quanto sabe a respeito de Solaria?

      - Já não lhe disse inúmeras vezes? Nada! Passaram-se vinte décadas.

      - Ora, senhora, estou me referindo à psicologia dos Solarianos. Ela não pode ter mudado em apenas vinte décadas. Diga-me por que eles abandonaram seu planeta.

      - O que eu soube - disse Gladia, calmamente - foi que sua população estava declinando sem cessar. Uma combinação de mortes prematuras e poucos nascimentos foi aparentemente a responsável.

      - Isso lhe parece justificável?

      - Claro que sim. Os nascimentos sempre foram poucos. - Seu rosto contraiu-se, ao relembrar. - Os hábitos Solarianos não tornam a gravidez fácil, tanto natural como artificial ou de proveta.

      - A senhora nunca teve filhos, senhora?

      - Em Solaria, não.

      - E a morte prematura?

      - Só posso imaginar. Acho que ela se origina de um sentimento de fracasso. Solaria evidentemente não se desenvolveu, embora os Solarianos empregassem um grande fervor emocional para que seu mundo tivesse uma sociedade ideal: não apenas melhor que a da Terra, porém mais próxima da perfeição do que qualquer outra dos mundos Espaciais.

      - A senhora quer dizer que Solaria estava morrendo de tristeza coletiva do seu povo?

      - Se prefere colocar o fato dessa maneira ridícula - disse Gladia, ofendida.

      D. G. encolheu os ombros.

      - Parece ser o que a senhora estava dizendo. Mas teriam eles realmente partido? Para onde terão ido? Como viverão?

      - Não sei.

      - Mas, Senhora Gladia, é fato conhecido que os Solarianos estão acostumados a enormes extensões de terra, assistidos por milhares de robôs, de forma que cada Solariano foi deixado num isolamento quase completo. Se abandonaram Solaria, para onde terão ido na busca de uma sociedade onde pudessem se adaptar? Terão ido, de fato, para algum dos outros planetas Espaciais?

      - Que eu saiba, não. Mas então eu não merecia a confiança deles.

      - Terão fundado um novo planeta para si próprios? Se fundaram, só podia ser um primitivo e precisando de muita coisa para se terraformar. Estavam preparados para isso? Gladia balançou a cabeça. - Não sei.

      - Talvez eles não tenham realmente partido.

      - Que eu saiba, Solaria tem dado provas de estar desabitado.

      - Que provas?

      - Todas as comunicações interplanetárias cessaram. Toda a radiação do planeta, com exceção da relativa ao trabalho dos robôs ou insofismavelmente devida a causas naturais, cessou.

      - Como sabe disso?

      - É o que consta dos jornais Auroreanos.

      - Ah, sim. Será que alguém está mentindo?

      - com que objetivo?

      Gladia formalizou-se diante da sugestão.

      - Por isso nossas naves foram atraídas ao planeta e destruídas.

      - Isso é ridículo, D. G. - Sua voz tornou-se áspera. - O que ganhariam os Espaciais com a destruição de duas naves mercantes, usando um pretexto tão requintado?

      - Algo destruiu duas naves dos Colonizadores num planeta supostamente vazio. Como a senhora explica isso?

      - Não explico. Suponho que estamos indo a Solaria com a finalidade de encontrar uma explicação.

      D. G. a olhou com ar sério.

      - A senhora seria capaz de guiar-me ao local do planeta onde viveu?

      - Minha propriedade?

      Ela devolveu o olhar, espantada.

      - Não quer tornar a vê-la?

      O coração de Gladia sofreu um baque.

      - Sim, gostaria, mas por que minha propriedade?

      - As duas naves que foram destruídas pousaram em pontos muito afastados do planeta; apesar disso, a destruição de ambas foi feita com muita rapidez. Embora cada ponto possa ser mortal, parece-me que a sua propriedade oferece um risco menor.

      - Por quê?

      - Porque lá poderíamos receber auxílio dos robôs. A senhora tem conhecimento disso, não é mesmo? Presumo que eles permaneceram lá mais de vinte décadas. Daneel e Giskard, eu garanto. E os que estavam lá à sua época ainda se lembrarão da senhora, não é verdade? Deverão tratá-la como sua dona e reconhecer a obediência que lhe devem, além mesmo da que devem a seres humanos comuns.

      - Havia dez mil robôs na minha propriedade - replicou Gladia. - Conheço talvez três dúzias de vista. A maioria dos restantes jamais vi, e eles podem nunca me ter visto. Os robôs agrícolas não são muito adiantados, como sabe, bem como os florestais e os das minas. Os robôs domésticos ainda devem lembrar de mim - se não foram vendidos ou transferidos desde que parti. Também acontecem acidentes, e alguns robôs não duram vinte décadas. Além disso, o que quer que pense da memória dos robôs, a humana é falível e posso não me lembrar absolutamente deles.

      - Mesmo assim - pediu D. G. - pode me guiar até sua propriedade?

      - Pela latitude e longitude? Não.

      - Tenho mapas de Solaria. Eles servirão de ajuda?

      - Aproximadamente, talvez. Ela fica no setor central-sul do continente Heliona, ao norte.

      - E assim que estivermos próximos, pode usar marcos de maior precisão - se planarmos sobre a superfície Solariana?

      - Quer dizer pelas costas e rios?

      - Sim.

      - Acho que posso.

      - Ótimo! Enquanto isso, veja se pode lembrar os nomes e aparências de cada um dos seus robôs. Isso pode provar a diferença entre vivos e mortos.

     

      D. G. Baley parecia uma pessoa diferente com seus oficiais. O sorriso aberto não era visível, nem a calma indiferença ao perigo. Sentou-se, debruçou-se sobre os mapas, revelando uma intensa concentração no rosto.

      - Se a mulher está certa - disse - temos a propriedade enquadrada em limites estreitos; se nos movermos para o sistema aéreo, logo logo a teremos.

      - Desperdício de energia, comandante - murmurou Jamin Oser, o subcomandante.

      Era alto e, como D. G., usava uma bela barba, avermelhada como suas sobrancelhas, que encimavam brilhantes olhos azuis. Parecia um tanto idoso, mas tinha-se a impressão de que isso se devia mais à experiência que aos anos.

      - Nada posso fazer - replicou D. G. Se tivéssemos a antigravidade que os técnicos vêm prometendo deste lado da eternidade, seria diferente.

      Examinou novamente o mapa e prosseguiu:

      - Ela diz que deve ser ao longo deste rio, cerca de sessenta quilômetros corrente acima, onde ele deságua neste mais caudaloso. Se ela estiver certa.

      - Você continua duvidando - disse Chandrus Nadirhaba, cuja insígnia classificava-o como navegador e responsável por levar a nave ao Ponto exato... ou, seja como for, ao ponto indicado. Sua pele morena e Bigode bem delineado acentuavam a beleza forte do seu rosto.

      - Ela está relembrando a situação num espaço de tempo de vinte décadas - disse D. G. - Que detalhes você lembraria de um local que não visse há três décadas? Ela não é um robô. Pode ter esquecido.

      - Então, para que trazê-la? - murmurou Oser. - E o outro, e o robô? A tripulação está inquieta, e não gosto disso também.

      D. G. ergueu os olhos, cenho franzido, as sobrancelhas quase unidas. Disse, em voz baixa:

      - Não tem a menor importância nesta nave o que o senhor ou a tripulação não gostam. Sou o responsável e tomo as decisões. Estamos todos sujeitos a morrer dentro de seis horas após o pouso, a menos que essa mulher nos salve.

      Nadirhaba comentou friamente:

      - Se tivermos de morrer, morreremos. Não seríamos Mercadores se não soubéssemos que a morte repentina é o outro lado dos grandes lucros. E fomos todos voluntários para esta missão. Em todo caso, não faz mal sabermos, comandante, de onde a morte virá. Isso terá de ser um segredo?

      - Absolutamente, não. Imagina-se que os Solarianos foram embora; mas, e se uns duzentos ficaram silenciosamente para trás a fim de vigiar o local.

      - E o que podem fazer contra uma nave armada, comandante? Terão uma arma secreta?

      - Não muito secreta - respondeu D. G. - Solaria está apinhada de robôs. Foi por isso que as naves dos Colonizadores pousaram em primeiro lugar no planeta. Cada Solariano remanescente pode ter à sua disposição milhões de robôs. Um exército enorme.

      Eban Kalaya era o responsável pelas comunicações. Até aquele instante se mantivera calado, pois era um dos mais novos, estando além disso marcado pelo fato de ser o único dos quatro oficiais presentes sem pêlos de qualquer espécie no rosto. Naquele instante arriscou um comentário:

      - Robôs - disse - não podem ferir seres humanos.

      - Foi o que nos disseram - retrucou D. G. secamente - mas o que sabemos de robôs? Só sabemos é que duas naves foram destruídas e cerca de cem seres humanos – todos bons Colonizadores - foram mortos em locais muito distantes um do outro num mundo coberto de robôs. Quem poderia ter feito isso, a não ser os robôs? Não sabemos que espécie de ordens um Solariano pode ter dado aos robôs ou que truque foi empregado para que a tal Primeira Lei da Robótica fosse evitada.

      Dessa forma - prosseguiu - tivemos de preparar nosso próprio truque. Da melhor maneira possível, segundo os relatórios que nos chegaram das outras naves, antes de serem destruídas, todos os homens a bordo desembarcaram. Era um mundo vazio, afinal de contas, e todos queriam esticar as pernas, respirar ar puro e ver os robôs que tinham ido buscar. Suas naves estavam desprotegidas e eles mesmo despreparados quando aquilo aconteceu.

      "Isso não acontecerá desta vez. Estou desembarcando, mas o resto de vocês vai ficar a bordo da nave ou em sua vizinhança."

      Os olhos escuros de Nadirhaba chisparam desaprovadoramente.

      - Por que o senhor, comandante? Se precisa de alguém para servir de isca, qualquer um de nós pode servir mais facilmente que o senhor.

      - Obrigado por pensar assim, navegador - disse D. G. - mas não estarei sozinho. Comigo estarão a Espacial e seus companheiros. Ela é a única essencial. Talvez conheça alguns dos robôs, e alguns talvez a conheçam. Estou esperando que, embora possam ter recebido ordens para nos atacarem, não queiram fazer o mesmo com ela.

      - Quer dizer que eles poderão lembrar a velha Mocinha e cair de joelhos a seus pés - comentou Nadirhaba, secamente.

      - Se quiser encarar assim. Foi por isso que a trouxe, e por isso pousaremos em sua propriedade. Preciso estar com ela porque sou o único que a conhece – e preciso ver como se comporta. Uma vez que tenhamos sobrevivido usando-a como couraça, e dessa maneira conhecendo exatamente o que estamos enfrentando, poderemos tomar a iniciativa. Não precisaremos mais dela.

      - E depois, o que vamos fazer com ela? - perguntou Oser. – Lançá-la no espaço?

      D. G. rugiu:

      - Vamos levá-la de volta para Aurora!

      - Sou forçado a dizer-lhe, comandante - replicou Oser - que a tripulação considera isso um desperdício e uma viagem desnecessária. Eles acham que podemos simplesmente deixá-la neste planeta arruinado. Afinal de contas, foi daqui que ela saiu.

      - Sim - disse D. G. - certamente será nesse dia que eu receberei ordens da tripulação...

      - Tenho certeza de que não quererá isso - replicou Oser - mas a tripulação tem seu ponto de vista, e uma tripulação infeliz tornará a viagem perigosa.

     

      A Tripulação

      Gladia pisou no solo de Solaria. Cheirou a vegetação - não exatamente os odores de Aurora - e imediatamente atravessou o abismo de vinte décadas.

      Ela sabia que nada podia ser melhor do que os odores para trazer de volta associações. Nem vistas, nem sons.  Exatamente aquele tênue e único cheiro trouxe-lhe de volta a infância - a liberdade de se locomover, com uma dúzia de robôs vigiando-a cuidadosamente, a excitação  de ver outras crianças de vez em quando, parando, olhando timidamente, aproximando-se aos poucos, estendendo a mão para tocar a outra, depois um robô dizendo: "Chega,  Srta. Gladia", afastando-a, voltando-se a fim de olhar para a outra criança, de quem um outro grupo de robôs estava se ocupando.

      Gladia lembrou o dia em que lhe disseram que só pela holovisão poderia ver outro ser humano dali por diante. Observar, disseram-lhe, e não ver. Os robôs haviam dito  "ver" como se esta fosse uma palavra que não deviam pronunciar, e que era apenas murmurada. Ela podia vê-los porque eles não eram humanos.  A princípio, não foi ruim. As imagens com quem pôde falar eram tridimensionais, movendo-se livremente. Podiam falar, correr, dar cambalhotas se quisessem - mas não  podiam ser tocadas. E depois lhe disseram que ela podia realmente ver alguém que tivesse freqüentemente observado e de quem tivesse gostado. Ele era um adulto, um  tanto mais velho que ela, embora parecesse bastante moço, como acontecia em Solaria. Ela iria ter permissão para continuar a vê-lo - se quisesse - sempre que necessário.

      Ela desejou. Lembrou como aconteceu - exatamente como aconteceu no primeiro dia. Ela ficou inibida e ele também. Deram voltas em torno um do outro, com medo de se  tocarem. Mas foi um casamento.

      Claro que foi. Depois, tornaram a se encontrar - vendo, não observando, porque era um casamento. Finalmente tocaram-se. Esperavam que isso acontecesse.

      Foi o dia mais excitante de sua vida - até ter acontecido.

      Impetuosamente, Gladia impediu seus pensamentos. Que adiantava continuar? Ela tão afogueada e ansiosa, ele tão frio e retraído. Ele continuou a ser frio. Quando ia vê-la, a intervalos regulares, para os rituais que podiam (ou não) ter sucesso ao engravidá-la, era tão clara a sua repulsa que ela ficava logo ansiosa para que ele esquecesse. Ele, porém, era uma pessoa de palavra e nunca esqueceu.

      Depois chegou o momento, após anos de infelicidade se arrastando, quando ela o encontrou morto, o crânio esmagado, sendo considerada o único possível suspeito. Elijah Baley a salvou e ela foi tirada de Solaria e levada para Aurora.

      Agora estava de volta, aspirando o odor de Solaria.

      Nada mais lhe era familiar. A casa distante não tinha nenhuma semelhança com qualquer coisa de que se lembrasse, mesmo levemente. Em vinte décadas tinha sido modificada, derrubada, reconstruída. Ela nem mesmo conseguiu nenhuma sensação de familiaridade com o próprio solo.

      Viu-se estendendo a mão para trás a fim de tocar a nave dos Colonizadores que a levara àquele planeta que cheirava como o lar mas não era o lar em nenhum outro aspecto - apenas tocar alguma coisa que era familiar por comparação.

      Daneel, que ficou parado ao seu lado na sombra da nave, disse:

      - Está vendo os robôs, Senhora Gladia?

      Havia um grupo deles, a cem metros de distância, entre as árvores de um pomar, imóveis, olhos solenemente brilhando ao sol, com o metal cinzento bem polido. Gladia lembrou os robôs Solarianos que possuíra.

      - Estou, Daneel - replicou.

      - Vê alguma coisa familiar neles, senhora?

      - Absolutamente nada. Parecem-me modelos novos. Não posso lembrar deles e estou certa que eles não podem lembrar de mim. Se D. G. está esperando que alguma coisa interessante aconteça, produto da minha suposta familiaridade com os robôs da minha propriedade, vai se dar mal.

      - Parece que eles apenas nos observam, senhora - disse Giskard.

      - Isso é compreensível - replicou Gladia. - Somos intrusos e eles vieram observar-nos para fazer um relatório sobre nós de acordo com o que devem ser ordens dadas.  Contudo, hoje não têm ninguém a quem transmitir a observação e apenas podem olhar em silêncio. Sem ordens  posteriores, suponho que não farão mais que isso, mas também  não deixarão de cumprir sua missão.

      - Tudo correrá bem, Senhora Gladia - replicou Daneel - se nos Acolhermos aos nossos alojamentos a bordo. Acredito que o comandante esteja supervisionando a construção  de defesas e ainda não se ache pronto    para iniciar a exploração. Acho que ele não aprovará sua saída do camarote sem uma licença específica. Gladia retrucou, altaneira:

      - Não Vou adiar minha descida à superfície do meu próprio planeta apenas para satisfazer os desejos dele.

      - Compreendo, mas os membros da tripulação estão espalhados pela vizinhança e acho que alguns notaram sua presença aqui.

      - E estão se aproximando - disse Giskard. - Se quer evitar alguma infecção...

      - Estou preparada - interveio Gladia. - Filtros nasais e luvas. Gladia não compreendeu a natureza das estruturas sendo colocadas em torno da nave. Na sua maioria, os tripulantes, absorvidos na construção, não tinham visto Gladia e seus dois acompanhantes, parados, como estavam, na sombra.

      (Era a estação quente naquela parte de Solaria, que tinha a tendência de esquentar mais - e, em outras ocasiões, ficar mais fria - do que Aurora, uma vez que os dias Solarianos eram quase seis horas mais longos que os de Aurora.)

      Os tripulantes que se aproximavam eram cinco, e um deles, o mais alto e atarracado, apontou na direção de Gladia. Os outros quatro olharam, ficaram algum tempo parados, como que apenas curiosos, e depois, a um gesto do primeiro, continuaram a se aproximar, mudando levemente a direção para se dirigir diretamente aos três Auroreanos.

      Gladia olhou-os silenciosamente, as sobrancelhas erguidas em sinal de desprezo. Daneel e Giskard esperaram, impassíveis.

      Giskard disse, em voz baixa, a Daneel:

      - Não sei onde está o comandante. Não consigo distingui-lo entre a tripulação, no meio da qual deveria estar.

      - Devemos nos retirar? - perguntou Daneel, alto.

      - Isso seria vergonhoso - replicou Gladia. - Estou no meu planeta.

      - Ficou onde estava e os cinco tripulantes se aproximaram a passos lentos.

      Tinham estado trabalhando, fazendo um grande esforço físico, (como robôs, pensou Gladia, com desprezo) e estavam suando. Gladia sentiu o cheiro que saía deles. Aquele cheiro era mais eficiente para fazê-la afastar-se que quaisquer ameaças, mas, mesmo assim, manteve-se onde estava. Os filtros nasais, tinha certeza, diminuiriam o efeito do odor.

      O tripulante maior aproximou-se ainda mais que os outros. Sua pele era bronzeada. Os braços nus brilhavam com o suor da musculatura. Devia andar pelos trinta anos (o cálculo mais aproximado que Gladia podia fazer sobre a idade daqueles seres de vida curta), e, se banhado e vestido adequadamente, poderia ficar bem apresentável.

      - Então a senhora é a dama Espacial que trouxemos de Aurora em nossa nave?

      Falou devagar, evidentemente procurando dar um tom aristocrático  ao seu galáctico. Não conseguiu, é claro, e falou como um Colonizador - ainda mais rusticamente que D. G.

      Gladia retrucou, estabelecendo seus direitos territoriais:

      - Sou de Solaria, Colonizador.

      Parou, num grande embaraço. Tinha levado muito tempo pensando em Solaria até agora, quando vinte décadas se tinham passado, e falara com um pesado sotaque Solariano:  o "a" aberto e o "r" carregado, o "i" soando terrivelmente como "oi".  Tornou a falar, em voz muito mais baixa e menos autoritária, na qual o sotaque da Universidade de Aurora - o padrão para a fala galáctica em todos os mundos Espaciais  - soou claro:

      - Eu sou de Solaria, Colonizador.

      O homem riu e virou-se para os outros.

      - Ela fala afetado, mas vai melhorar, não é caras? Os outros riram também e um gritou:

      - Diz pra ela falar um pouco mais, Niss. Talvez todos nós possamos aprender a falar como passarinhos Espaciais.

      Ele colocou a mão no quadril num gesto afetado, o melhor que pôde, enquanto mantinha a outra mão pendendo molemente. Ainda sorrindo, falou:

      - Calem-se, vocês todos. Fez-se silêncio instantaneamente.

      O homem tornou a virar-se para Gladia.

      - Sou Berto Niss, mestre de Primeira Classe. Como se chama, mocinha?

      Gladia não teve coragem de tornar a falar.

      - Estou sendo educado, mocinha - insistiu Niss. - Estou falando com o cavalheirismo de um Espacial. Sei que a senhora é bastante idosa para ser minha bisavó. Que idade tem, mulherzinha?

      - Quatrocentos anos - gritou um dos tripulantes às costas de Niss.

      - Mas não parece!

      - Ela não parece ter cem! - afirmou outro.

      - Ela parece em condições para uma transa - garantiu um terceiro - e não teve nenhuma durante muito tempo, acho eu. Niss, pergunte-lhe se quer uma. Seja educado e pergunte-lhe se podemos ir um de cada vez.

      Gladia corou, furiosa, e Daneel disse:

      - Mestre de Primeira Classe Niss, seus companheiros estão ofendendo Senhora Gladia. Quer se retirar?

      Niss virou-se para olhar Daneel, a quem, até ali, tinha ignorado completamente. O sorriso sumiu do seu rosto e ele retrucou:

      - Você aí. Esta mulherzinha está fora dos limites. Foi o que o comandante disse. Não vamos incomodá-la. Apenas uma conversa inofensiva. Aquela coisa ali é um robô.

      Não vamos nos importar com ele, e ele não pode nos maltratar. Conhecemos as Três Leis da Robótica. Nós lhe  daremos ordem para que fique longe de nós. Mas você é um Espacial e o comandante nos deu ordens a seu respeito. Portanto - estendeu o dedo - fique fora disto e  não interfira, ou então machucaremos sua bela pele e você acabará se lamentando.

      Daneel ficou calado.

      Niss sacudiu a cabeça.

      - Ótimo. Gosto de ver alguém esperto bastante para não começar nada que não possa acabar.

      Virou-se para Gladia.

      - Agora, mulherzinha Espacial, vamos deixá-la só, porque o comandante não quer que a importunemos. Se um dos homens aqui presentes fez um comentário grosseiro, isso  é muito natural. Apertemos as mãos e fiquemos amigos - Espacial, Colonizador, qual é a diferença?

      Estendeu a mão para Gladia, que recuou, horrorizada. A mão de Daneel avançou num milésimo de segundo, quase depressa demais para ser vista, e agarrou o pulso de Niss.

      - Mestre de Primeira Classe Niss - disse tranqüilamente - não tente tocar na senhora.

      Niss baixou os olhos para a mão e os dedos que seguravam seu pulso com firmeza. Retrucou, num rosnar baixo e ameaçador:

      - Dou-lhe até três para contar e largar meu pulso. A mão de Daneel afastou-se e ele disse:

      - Preciso fazer o que você disse, pois não desejo machucá-lo, mas devo proteger a senhora. Se ela não quer ser tocada, como acho que não quer, não insista, ou me verei forçado a uma atitude que lhe causará dor. Por favor, aceite minha garantia de que farei tudo que puder para reduzi-la ao mínimo.

      Um dos tripulantes gritou, divertido:

      - Desça a mão nele, Niss. Ele é um conversa-fiada.

      - Olhe, Espacial - falou Niss - eu lhe disse duas vezes para se manter fora disto e você me tocou uma vez. Agora lhe digo pela terceira e última vez: faça um movimento,

      diga uma palavra, eu o racho ao meio. Esta mulherzinha vai trocar um aperto de mão, amigavelmente, e pronto. Depois iremos embora, tá legal?

      Em voz baixa e estrangulada, Gladia disse:

      - Não quero ser tocada por ele. Faça o que for necessário.

      - Senhor - falou Daneel - com o devido respeito, a senhora não deseja ser tocada. Preciso pedir-lhe - e a todos os outros - que se vá.

      Niss sorriu e um braço estendeu-se como que para empurrar Daneel para o lado, com força.

      O braço esquerdo de Daneel moveu-se com rapidez e novamente Niss foi seguro pelo pulso.

      - Vá, por favor, senhor - disse Daneel.

      Niss continuou mostrando os dentes, mas não estava mais sorrindo-

      Violentamente, ergueu o braço. A mão de Daneel, fechada sobre seu punho, subiu um pouco, diminuiu o movimento e parou. Seu rosto não demonstrou esforço. Sua mão desceu, arrastando com ela o braço de Niss; depois, com uma rápida torção, Daneel curvou o braço de Niss atrás das suas costas largas e manteve-o lá.

      Tendo ficado inesperadamente de costas para Daneel, Niss ergueu o outro braço e passou-o por cima da cabeça, à procura do pescoço de Daneel. Seu outro pulso foi agarrado e trazido para baixo o mais distante possível, facilmente; Niss gemeu, evidentemente sentindo dor.

      Os outros quatro tripulantes, que estavam olhando numa expectativa ansiosa, permaneceram em seus lugares, imóveis, silenciosos, de boca aberta.

      Niss, olhando para eles, gemeu:

      - Me ajudem!

      - Eles não o ajudarão, senhor - retrucou Daneel - pois, se o tentarem, o castigo do comandante será o mais severo possível. Agora, devo pedir-lhe que me garanta não mais incomodar Senhora Gladia e que irá embora pacificamente, junto com os outros. Do contrário, lamentarei muito, mestre de primeira classe, mas precisarei destroncar seus braços.

      Ao dizer isso, tornou o aperto mais forte em ambos os pulsos e Niss soltou um gemido abafado.

      - Peço-lhe desculpas, senhor - prosseguiu Daneel - mas estou cumprindo ordens estritas. Posso contar com sua garantia?

      Niss deu um pontapé para trás, com súbita maldade; muito antes que sua grossa bota atingisse o alvo, porém, Daneel tinha pulado para um lado e desequilibrou o Colonizador.

      Ele caiu pesadamente de frente.

      - Posso contar com sua concordância, senhor? - disse Daneel, puxando-o gentilmente pelos dois pulsos, de forma que os braços do tripulante ergueram-se ligeiramente de suas costas.

      Niss urrou e disse, meio incoerente:

      - Pode. Me largue.

      Daneel largou-o e recuou um passo. Lenta e dolorosamente, Niss rolou, movendo os braços devagar e girando os pulsos com uma careta de dor.

      Depois, quando seu braço direito aproximou-se do coldre que usava, ele sacou desajeitadamente sua pistola.

      O pé de Daneel pisou em seu braço, pregando-o no chão.

      - Não faça isso, senhor, ou serei forçado a quebrar um ou mais ossinhos de sua mão. - Curvou-se e extraiu o explosor de Niss do coldre.  Agora, levante-se.

      - Muito bem, Sr. Niss - ouviu-se uma outra voz. - Faça o que lhe dizem e levante-se.

      D. G. Baley se achava parado ao lado deles, a barba eriçada, o rosto levemente corado, porém sua voz estava perigosamente calma.

        - Vocês quatro - prosseguiu - entreguem-me suas pistolas, um de cada vez. Vamos. Um pouco mais depressa. Uma... duas... três... quatro. Agora continuem em posição de sentido. - Senhor - virou-se para Daneel - entregue-me essa arma que está segurando. Ótimo. Cinco. E agora, Sr. Niss, preste atenção.

      Colocou os explosores no chão, ao seu lado. Niss empertigou-se na posição de sentido, os olhos estriados de sangue, o rosto retorcido, evidentemente sofrendo.

      - Alguém quererá, por favor - perguntou D. G. -dizer o que aconteceu?

      - Comandante - apressou-se Daneel a falar - o Sr. Niss e eu tivemos uma divertida discussão. Ninguém se machucou.

      - Contudo, o Sr. Niss parece um tanto atingido - comentou D. G.

      - Mas não vai durar muito, comandante - garantiu Daneel.

      - Compreendo. Bem, falaremos disso mais tarde. Senhora - rodopiou nos calcanhares para se dirigir a Gladia - não me lembro de lhe ter dado permissão para sair da nave. A senhora vai voltar para seu camarote com seus dois acompanhantes imediatamente. Sou o comandante aqui e isto não é Aurora. Faça o que estou dizendo!

      Daneel segurou o braço de Gladia, que ergueu o queixo mas virou-se e subiu a rampa da nave, acompanhada de Daneel e seguida por Giskard. Depois, D. G. virou-se para os tripulantes.

      - Vocês cinco - disse ele, sem nunca erguer a voz - venham comigo. Vamos descobrir o que há no fundo disto... ou de vocês.

      Fez um gesto a um suboficial para que apanhasse as armas e as levasse.

     

      D. G. olhou os cinco, de mau humor. Estava no seu próprio alojamento, a única parte da nave, pelo seu tamanho, digna desse nome, e que tinha uma leve aparência de luxo.

      Falou, apontando para cada um:

      - Bem, esta é a maneira como trabalhamos. Você vai me dizer exatamente o que aconteceu, palavra por palavra, gesto por gesto. Quando tiver terminado, você me dirá tudo o que estava errado ou foi omitido. Depois, você, depois você, então chegarei a você, Niss. Espero que todos estejam desarranjados, que tenham feito alguma coisa invulgarmente idiota que causou a todos, especialmente a Niss, uma considerável humilhação. Se, no relato de vocês, evidenciar-se que nada fizeram de errado e não sofreram nenhuma humilhação, saberei que estão mentindo, especialmente quando a Espacial me contar com certeza o que aconteceu - e tenho a intenção de acreditar em cada palavra que ela me disser. Uma mentira tornará as coisas piores para vocês do que o que fizeram realmente. Agora - latiu - comecem!

      O primeiro tripulante vacilou apressadamente contando o acontecido, segundo fez algumas correções, aumentando o relato de certa forma, depois o terceiro e o quarto.

      D. G. ficou ouvindo, impassível, o recital, pondo a seguir Berto Niss de lado.

      Dirigiu-se aos outros quatro:

      - E enquanto Niss tinha o rosto devidamente metido na terra pelo Espacial, o que faziam vocês quatro? Olhavam? com medo de se mexerem? Todos quatro? Contra um homem apenas?

      Um dos tripulantes rompeu o pesado silêncio para dizer:

      - Tudo aconteceu muito depressa, comandante. Estávamos exatamente nos preparando para agir quando tudo acabou.

      - E o que estavam se preparando para fazer no caso de poderem se mexer algum dia?

      - Ora, íamos tirar o estrangeiro Espacial de cima do nosso companheiro.

      - Acham que iam conseguir? Desta vez, nenhum se arriscou a falar. D. G. inclinou-se para eles.

      - Bem, a situação é a seguinte. Vocês não deviam se meter com os estrangeiros, e por isso pagarão a multa de uma semana de salário cada um. E agora, vamos deixar isto bem claro: se disserem o que aconteceu a mais alguém - na tripulação ou fora dela, em qualquer ocasião, bêbados ou sóbrios - serão rebaixados a aprendizes.

      Não importa quem tenha falado, os quatro serão rebaixados, por isso tratem de vigiar uns aos outros. Agora voltem para os seus deveres, e se me enganarem em qualquer instante durante a viagem, se falarem contra os regulamentos, estarão fritos.

      Os quatro se retiraram, cabisbaixos, envergonhados, taciturnos. Niss ficou, um hematoma crescendo em seu rosto, os braços evidentemente doloridos.

      D. G. fitou-o num silêncio ameaçador, enquanto Niss olhava para os lados, para baixo, para todos os cantos, menos para o rosto do comandante. Só quando os olhos de Niss, procurando fugir, encontraram o olhar fuzilante do comandante, foi que D. G. disse:

      - Ora, você parece muito bem, agora que se envolveu com um maricas Espacial da metade do seu tamanho. Da próxima vez, é melhor se esconder quando um deles aparecer.

      - Sim, comandante - disse Niss, infeliz.

      - Você não me ouviu dizer, Niss, as instruções que dei antes de sairmos de Aurora, que a Espacial e seus acompanhantes não deviam ser incomodados nem interpelados?

      - Comandante, eu quis apenas cumprimentá-la educadamente. Estávamos curiosos para vê-la mais de perto. Não pretendíamos incomodá-la.

      - Não pretendia incomodá-la? Perguntou-lhe que idade tinha. Era da sua conta?

      - Apenas curiosidade. Eu queria saber.

      - Um de vocês fez uma sugestão sexual.

      - Não fui eu, comandante.

      - Quem foi? Você pediu desculpas por isso?

      - A uma Espacial? Niss pareceu horrorizado.

      - Certamente. Você agiu contra minhas ordens.

      - Eu não pretendia magoá-la - disse Niss, obstinadamente.

      - Não pretendia magoar também o homem?

      - Ele pôs as mãos em mim, comandante.

      - Sei que pôs. Por quê?

      - Ele estava me dando ordens.

      - E você não pôde agüentar isso, não é?

      - O senhor agüentaria, comandante?

      - Está bem. Você não agüentou. Foi derrubado por causa disso. De cara no chão. Como aconteceu?

      - Não sei direito, comandante. Ele foi rápido. Como o disparo de uma câmera. E tinha um punho de ferro.

      D. G. retrucou:

      - Claro. Que esperava, idiota? Ele é de ferro.

      - Como, comandante?

      - Niss, será que não conhece a história de Elijah Baley? Niss, confuso, cocou a orelha.

      - Sei que ele foi seu qualquer-coisa-avô, comandante.

      - Sim, todos sabem disso por causa do meu nome. Alguma vez você ouviu a história da vida dele?

      - Não sou de ver, comandante. Não história.

      Ao dizer isso, Niss encolheu os ombros, estremeceu e fez um gesto de esfregar o ombro, depois achou que não ousaria fazer isso.

      - Já ouviu falar em R. Daneel Olivaw? Niss franziu o cenho.

      - Foi amigo de Elijah Baley.

      - Sim, foi. Então sabe alguma coisa. Sabe o quer dizer o "R" de RDaneel Olivaw?

      - Significa "Robô", não é? Era um amigo robô. Naquela época havia robôs na Terra.

      - Havia, Niss, e ainda há. Mas Daneel não era um simples robô. Era um robô Espacial que parecia com um homem Espacial. Pense nisso, Niss. Adivinhe o que o homem

      Espacial que você escolheu para brigar era realmente.

      Niss arregalou os olhos e ficou intensamente ruborizado.

      - Está dizendo que aquele Espacial era um ro...

      - Aquele era R. Daneel Olivaw.

      - Mas, comandante, aquilo foi há centenas de anos.

      - Sim, e a Espacial era amiga particular do meu Antepassado Elijah. Ela tem duzentos e trinta e três anos, se quer saber. E você acha que um robô não pode ser tão bom assim? Você tentou lutar com um robô, seu grande idiota.

      - Por que ele não disse? - perguntou Niss com indignação.

      - E por que iria dizer? Você perguntou? Olhe, Niss, você ouviu o que eu disse aos outros sobre contar o episódio a alguém. Isso vale também para você, e muito mais ainda. Eles são apenas tripulantes, porém estou de olho em você para chefe de tripulação. Estou de olho em você. Se vai ser responsável pela tripulação, precisa ter cabeça e não apenas músculos. Por isso, agora vai ser mais duro para você, porque terá de provar que tem miolos, contra minha firme opinião de que não tem.

      - Comandante, eu...

      - Não fale. Ouça. Se essa história se espalha, os outros quatro serão rebaixados a aprendizes, mas você não será nada. Nunca mais voltará a bordo de uma nave. Nenhuma delas o quererá, prometo-lhe. Nem como tripulante, nem como passageiro. Pergunte a você mesmo que tipo de dinheiro poderá ganhar em Baleyworld... e fazendo o quê?

      É o que acontecerá se falar a respeito ou se cruzar o caminho da Espacial, seja como for, ou mesmo se simplesmente olhá-la durante mais de meio segundo ou aos seus dois robôs. E vai cuidar para que ninguém mais entre a tripulação seja agressivo. Você será o responsável. E pagará uma multa de duas semanas de salário.

      - Mas, comandante - respondeu Niss, em voz desanimada - os outros...

      - Como espero menos dos outros, Niss, multei-os em quantias menores. Retire-se.

     

      D. G. ficou brincando distraidamente com o fotocubo que ficava sempre em sua mesa. Cada vez que o virava, ele escurecia, clareando quando era posto sobre um dos

      lados

      como sua base. Quando se iluminava, a imagem sorridente tridimensional de uma mulher podia ser vista.

      Corria um boato entre a tripulação de que cada um dos lados mostrava uma mulher diferente. O boato era verdadeiro.

      Jamin Oser observou a luminosa aparição e desaparição das imagens, inteiramente desinteressado. Agora que a nave estava defendida - ou tão defendida quanto possível

      contra ataques os mais variados - era hora de Pensar no próximo passo.

      D. G., contudo, estava se aproximando do assunto obliquamente - ou talvez não se aproximando absolutamente. Disse:

      - Claro, a culpa foi da mulher.

      Oser encolheu os ombros e alisou a barba, como se estivesse se tranqüilizando pelo fato de ele pelo menos não ser mulher. Ao contrário de D. G., Oser tinha o lábio superior também abundantemente coberto.

      - Evidentemente - disse D. G. - o fato de estar em seu planeta natal eliminou nela qualquer sentimento de discrição. Ela saiu da nave, apesar de eu ter-lhe pedido para não fazê-lo.

      - Você devia ter-lhe dado ordem.

      - Não sei se isso teria ajudado. Ela é uma aristocrata voluntariosa, habituada a fazer o que quer e trazer seus robôs à volta. Além disso, planejei usá-la e preciso de sua cooperação, não de seus amuos. E, também, ela era amiga do Antepassado.

      - E ainda está viva - disse Oser, balançando a cabeça. - Dá arrepios. Uma mulher velhíssima.

      - Eu sei, mas parece muito moça. E ainda atraente. De nariz empinado. Não se afastou quando a tripulação se aproximou, recusou-se a apertar a mão de um deles. Bem, já passou.

      - Contudo, comandante, foi correto dizer a Niss que ele agrediu um robô?

      - Foi preciso! Foi preciso, Oser. Se ele pensasse ter sido vencido e humilhado na frente de quatro dos seus colegas por um Espacial efeminado com a metade do seu tamanho, ficaria totalmente inútil para nós, eternamente. Isso o teria arrasado completamente. E não queremos que aconteça alguma coisa que provoque o boato de que os Espaciais - aqueles Espaciais humanos - sejam super-homens. Por isso fui obrigado a ordenar-lhes tão energicamente que não falassem sobre o assunto. Niss vai forçá-los a isso. E se o fato vazar, também se tornará conhecido que o Espacial era robô. Mas acho que houve uma coisa boa em tudo aquilo.

      - O quê, comandante? - perguntou Oser.

      - Me levou a pensar em robôs. O quanto sabemos deles? Quanto você sabe?

      - Comandante, isso não é uma coisa sobre a qual eu pense muito - replicou Oser, encolhendo os ombros.

      - Ou sobre a qual alguém mais pense também. Pelo menos um Colonizador. Sabemos que os Espaciais têm robôs, dependem deles, não vão a lugar nenhum sem eles, não pensam sem eles, são parasitas deles, e temos certeza de que perecerão por causa deles. Sabemos que a Terra outrora teve robôs, por imposição dos Espaciais, e que foram pouco a pouco desaparecendo, não sendo absolutamente encontrados nas suas Cidades, mas apenas no campo. Sabemos que os planetas dos Colonizadores não os têm nem os querem em parte alguma - cidade ou interior. Por isso, os Colonizadores nunca os encontraram em seus próprios planetas e dificilmente na Terra. (Sua voz tinha uma inflexão curiosa cada vez que ele dizia "Terra", como se a maiúscula pudesse ser ouvida, como se as palavras "lar" e "mãe" fossem ouvidas por trás dela.) Que mais sabemos?

      - Há as Três Leis da Robótica - disse Oser.

      - Correto. - D. G. empurrou para o lado o fotocubo e curvou-se para a frente. - Especialmente a Primeira. "Um robô não pode prejudicar um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano seja prejudicado." Bem, não se fie nisso. Nada significa. Todos nós sentimos inteiramente a salvo dos robôs por causa disso, e é ótimo se eles nos dão confiança, mas não se for uma falsa confiança. R. Daneel machucou Niss e isso não incomodou o robô, com ou sem a Primeira Lei.

      - Ele estava defendendo...

      - Exatamente. E se você precisar equilibrar os ataques? E se fosse o caso de outro machucar Niss ou permitir que sua Espacial fosse machucada? Naturalmente, ela teria prioridade.

      - Isso faz sentido.

      - Claro que faz. E estamos num planeta de robôs, uns duzentos milhões deles. Que ordens eles receberam? Como equilibram o conflito entre diferentes agressões? Como podemos ter certeza de que nenhum deles nos tocará? Alguma coisa neste planeta já destruiu duas naves.

      Oser replicou, preocupado:

      - Esse R. Daneel é um robô invulgar, parece mais com um homem do que nós. Talvez não possamos generalizar a partir dele. O outro robô, como é o nome dele...

      - Giskard. É fácil lembrar. Eu me chamo Daneel Giskard.

      - Eu penso no senhor como comandante. Seja como for, esse R. Giskard apenas ficou parado e nada fez. Sua aparência é de robô, e ele se porta como tal. Temos montes de robôs lá em Solaria nos observando neste instante, e também não estão fazendo nada. Apenas observando.

      - E se houver alguns robôs especiais que podem nos maltratar?

      - Acho que estamos preparados para enfrentá-los.

      - Agora estamos. Daí o incidente entre Daneel e Niss ter sido uma boa coisa. Sempre pensamos que podemos nos encrencar se alguns Solarianos ainda estiverem aqui.

      Não devem estar. Tiveram de partir. É por isso que os robôs - ou pelo menos alguns especialmente construídos - podem ser perigosos. E se Lady Gladia pode mobilizar seus robôs neste lugar - Que já foi sua propriedade - e fazê-los defendê-la, nós também podemos muito bem estar em condições de neutralizar tudo o que eles tenham deixado para trás.

      - Ela pode fazer isso? - perguntou Oser.

      - É o que vamos ver - replicou D. G.

      - Obrigado, Daneel - disse Gladia. - Você trabalhou bem. - Contudo Seu rosto se mostrava contraído. Seus lábios estavam comprimidos e exangues, as faces pálidas. Acrescentou, em voz baixa: - Gostaria que não tivesse vindo.

      - É um desejo inútil, Senhora Gladia - replicou Giskard. - O amigo Daneel e eu permaneceremos fora do camarote para garantir que a senhora não será mais incomodada.

      O corredor estava vazio e continuou assim, mas Daneel e Giskard resolveram falar em ondas sonoras de intensidade abaixo do limiar humano, trocando pensamentos na sua maneira breve e condensada.

      - Senhora Gladia tomou uma decisão imprudente ao recusar se retirar - disse Giskard. - Isso é claro.

      - Suponho, amigo Giskard - disse Daneel - que naquele momento não havia a menor possibilidade de fazê-la mudar sua decisão.

      - Foi uma decisão muito firme e tomada com muita rapidez. O mesmo se pode dizer da intenção de Niss, o Colonizador. Tanto sua curiosidade a respeito de Senhora Gladia como seu desprezo e animosidade em relação a você eram fortes demais para que eu o manejasse sem um sério dano mental. Os outros quatro eu pude manejar. Foi possível impedi-los de intervir. O espanto deles por sua capacidade de dominar Niss imobilizou-os naturalmente e precisei apenas reforçar ligeiramente o efeito.

      - Foi uma sorte, amigo Giskard. Se aqueles quatro tivessem se juntado ao Sr. Niss, eu teria de enfrentar a difícil escolha entre forçar Senhora Gladia a uma retirada humilhante ou avariar um ou dois Colonizadores para assustar o resto. Acho que teria tomado a última alternativa, mas isso também teria causado um grave desconforto.

      - Você está bem, amigo Daneel?

      - Muito bem. O estrago que causei ao Sr. Niss foi mínimo.

      - Fisicamente, amigo Daneel, foi. Para sua mente, contudo, foi uma grande humilhação, para ele muito pior que estrago físico. Uma vez que pude perceber isso, teria sido impossível para mim fazê-lo tão facilmente. E contudo, amigo Daneel...

      - Sim, amigo Giskard?

      - Estou preocupado em relação ao futuro. Em Aurora, através de todas as décadas da minha existência, fui capaz de trabalhar devagar, de esperar oportunidades de tocar mentes suavemente, sem causar dano, de fortalecer o que já estava lá, de enfraquecer o que já estava atenuado, de empurrar na direção de um impulso existente.

      Agora, todavia, estamos chegando a um tempo de crise, no qual as emoções surgirão fortes, as decisões deverão ser tomadas rapidamente e os acontecimentos nos superarão.

      Se, afinal, eu tiver de fazer alguma coisa boa, devo agir também com rapidez, e as Três Leis da Robótica me impedem de agir assim. Leva tempo pesar as sutilezas de comparar o dano físico e o mental. Se eu estivesse sozinho com Senhora Gladia quando os Colonizadores se aproximaram, não vejo que rumo eu teria tomado para não reconhecer depois que havia provocado um sério dano a Senhora Gladia, a um ou mais dos Colonizadores, a mim mesmo - ou possivelmente a todos os que estavam envolvidos - E o que se deve fazer, amigo Giskard? - perguntou Daneel

      - Uma vez que é impossível modificar as Três Leis da Robótica amigo Daneel, mais uma vez devemos chegar à conclusão de que nada há que possamos fazer, mas aguardar o fracasso.

     

      O Supervisor

      Era manhã em Solaria, manhã na propriedade: sua propriedade. Na distância, via-se a residência que poderia ter sido a sua. De certa forma, tinham-se passado vinte décadas e Aurora parecia-lhe ser um sonho distante que nunca se realizara.

      Gladia virou-se para D. G., que estava apertando o cinto em torno da sua fina veste exterior, um cinto do qual pendiam duas armas. No quadril esquerdo, estava o chicote neurônico; à direita, uma coisa mais curta e volumosa que ela imaginou ser um explosor.

      - Estamos indo até a casa? - perguntou a mulher.

      - Possivelmente - respondeu D. G., meio distraído.

      Estava inspecionando as armas, uma de cada vez, encostando uma no ouvido como se estivesse procurando ouvir um leve zumbido que lhe garantisse estar a arma funcionando.

      - Só nós quatro? - Mecanicamente virou os olhos para cada um dos outros: D. G., Daneel... Perguntou a este: - Daneel, onde está Giskard?

      - Pareceu-lhe, Senhora Gladia - replicou Daneel - ser sensato proceder como guarda avançado. Como robô, pode não ser notado entre outros robôs, e se houver alguma coisa errada, poderá avisar-nos. Em todo caso, ele é mais dispensável que a senhora ou o comandante.

      - Um bom raciocínio robótico - disse D. G., sombrio. - Isso é muito bom. Venha, estamos indo para a frente agora.

      - Só nós três? - perguntou Gladia, num tom queixoso. - Para ser honesta, sinto falta da capacidade robótica de Giskard para aceitar tal sacrifício.

      - Todos somos sacrificáveis, Lady Gladia - replicou D. G. - duas naves foram destruídas, todos os membros de suas tripulações eliminados. Aqui não há segurança na quantidade.

      - O senhor não está fazendo com que eu me sinta melhor, D.G

      - Então Vou me esforçar. As primeiras naves não estavam preparadas. A nossa está. E eu também estou. - Colocou as mãos nas cadeiras.

      - E a senhora tem um robô que já mostrou ser um protetor eficiente. Ainda mais, a senhora é a nossa melhor arma. Sabe como mandar os robôs fazerem o que quiser que eles façam, e isso pode ser crucial. A senhora é a única entre nós que pode fazer isso; as primeiras naves não contavam com ninguém da sua estatura. Portanto, venha...

      Prosseguiram andando. Gladia disse, após uma pausa:

      - Não estamos andando na direção da casa.

      - Não, ainda não. Primeiro estamos indo ao encontro de um grupo de robôs. Espero que os esteja vendo.

      - Sim, estou, mas não estão fazendo nada.

      - Não, não estão. Havia muito mais robôs aqui quando pousamos pela primeira vez. A maioria sumiu, mas estes permaneceram. Por quê?

      - Se lhes perguntarmos, eles nos dirão.

      - A senhora vai lhes perguntar, Lady Gladia.

      - Eles lhe responderão tão prontamente quanto a mim. Somos igualmente humanos.

      D. G. parou subitamente e os outros dois também. Virou-se para Gladia e disse, sorrindo:

      - Minha cara Lady Gladia, igualmente humanos? Uma Espacial e um Colonizador? Que lhe aconteceu?

      - Somos igualmente humanos para um robô - disse ela, irritada. - E, por favor, pare de brincadeiras. Eu não brinquei de Espacial e Terráqueo com seu Antepassado.

      O sorriso de D. G. sumiu.

      - É verdade. Peço-lhe desculpas, Lady Gladia. Vou procurar conter minha veia irônica, pois, afinal de contas, somos aliados neste planeta.

      Um momento depois, prosseguiu:

      - Bem, senhora, eu quero que descubra que ordens os robôs receberam se é que receberam alguma; se há alguns robôs que, por acaso, possam tê-la conhecido; se há seres humanos na propriedade ou no planeta, ou qualquer coisa mais que lhe ocorrer perguntar. Eles não deverão ser perigosos; são robôs, e a senhora é humana; não podem portanto, magoá-la. É verdade - acrescentou, recordando - que o seu Daneel maltratou um tanto Niss, mas foi sob condições que não se aplicam aqui. E Daneel Pode ir com a senhora.

      Daneel disse, respeitosamente:

      - Eu acompanharia Lady Gladia de qualquer maneira, comandante, essa é minha função.

      - A de Giskard também, suponho - falou D. G. - e apesar disso ele anda vagando por aí.

      - Com um objetivo, comandante, que ele discutiu comigo e que concordamos ser essencial como maneira de proteger Lady Gladia.

      - Muito bem. Ambos podem continuar andando. Eu ficarei na cobertura. - Empunhou a arma com a mão direita. - Se eu gritar "Caiam", atirem-se no chão imediatamente. Aquelas coisas não escolhem alvo.

      - Por favor, só use isso como último recurso, D. G. - pediu Gladia. - Dificilmente haverá ocasião para usá-la contra robôs. Venha, Daneel.

      Ela se foi, andando rápida e decididamente na direção do grupo de cerca de uma dúzia de robôs imóveis bem à frente de uma fila de arbustos baixos, com o sol matutino se refletindo aqui e ali em seus exteriores lustrosos.

     

      Os robôs não recuaram nem avançaram. Permaneceram calmamente onde estavam. Gladia contou-os. Onze inteiramente à vista. Era possível que houvesse outros, invisíveis.

      Tinham sido desenhados à maneira de Solaria. Muito lustrosos. Muito lisos. Nenhuma ilusão de roupa e quase nenhum realismo. Eram praticamente abstrações matemáticas  do corpo humano, com não mais de dois deles muito parecidos.

      Ela teve a sensação de que eles eram pelo menos tão flexíveis ou complexos quanto os robôs Auroreanos, porém mais decididamente adaptados a tarefas específicas.

      Ela parou pelo menos a quatro metros da fila de robôs; Daneel (ela pressentiu) parou ao mesmo tempo que ela e estacou menos de um metro atrás. Ficou bastante perto  para interferir imediatamente em caso de necessidade, porém o bastante afastado para deixar claro que ela era a portavoz dos dois. Os robôs à sua frente, Gladia  tinha certeza, consideraram Daneel como um ser humano, mas ela também sabia que Daneel era bastante consciente de si mesmo como robô para deduzir o engano dos outros  robôs.

      - Quem de vocês vai falar comigo? - perguntou Gladia. Houve um breve período de silêncio, como se estivesse acontecendo uma conferência muda. Depois, um dos robôs avançou um passo.

      - Senhora, eu falarei.

      - Você tem nome?

      - Não, senhora. Tenho apenas um número de série.

      - Há quanto tempo está em operação?

      - Estou em operação há vinte e nove anos, senhora.

      - Mais alguém no grupo tem estado em ação durante tanto tempo?

      - Não, senhora. É por isso que eu estou falando em vez de outro

      - Quantos robôs são usados nesta propriedade?

      - Não tenho esse dado, senhora.

      - Por alto.

      - Talvez dez mil, senhora.

      - Algum esteve funcionando por mais de vinte décadas?

      - Os robôs agrícolas incluem alguns que talvez estejam.

      - E os domésticos?

      - Esses nunca operaram por muito tempo, senhora. Os patrões preferem robôs do último tipo.

      Gladia balançou a cabeça, virou-se para Daneel e disse:

      - É compreensível. Também era assim no meu tempo. Tornou a se voltar para o robô.

      - A quem pertence esta propriedade?

      - Esta é a propriedade Zoberlon, senhora.

      - E há quanto tempo pertence à família Zoberlon?

      - Há mais tempo do que estou em operação, senhora. Não sei ao certo, mas podemos obter a informação.

      - Já ouviu falar na família Delmarre?

      - Não, senhora.

      Gladia virou-se para Daneel e disse, um tanto magoada:

      - Estou tentando guiar o robô, pouco a pouco, como Elijah poderia ter feito outrora, mas acho que não sei fazê-lo adequadamente.

      - Pelo contrário, Lady Gladia - retrucou Daneel gravemente - parece-me que a senhora conseguiu muito. Não é provável que qualquer robô nesta propriedade, com exceção talvez de alguns agrícolas, tenha qualquer lembrança da senhora. No seu tempo, a senhora teria encontrado algum deles?

      Gladia sacudiu a cabeça.

      - Nunca! Não lembro de ter visto nenhum deles, mesmo à distância.

      - Então está claro que a senhora não é conhecida nesta propriedade.

      - Exatamente. E o pobre D. G. nos trouxe de tão longe para nada. Se ele contava comigo, fracassou.

      - Conhecer a verdade é sempre útil, senhora. Não ser conhecido é, neste caso, menos útil que ser conhecido, mas não saber se alguém é conhecido ou não pode ser ainda menos útil. Não há, talvez, outros pontos dos quais a senhora possa extrair informações?

      - Sim, vejamos... - Durante alguns segundos, ela ficou imersa em pensamentos e depois disse, suavemente: - É estranho. Quando falo a esses robôs, me exprimo com um sotaque acentuadamente Solariano. Contudo, não falo da mesma forma com você.

      Daneel comentou:

      - Não é de estranhar, Lady Gladia. Os robôs falam com esse sotaque porque são Solarianos. Eles trazem de volta os dias da sua juventude, e a senhora fala mecanicamente, como o fazia naquela época. Volta a ser imediatamente o que é, porém, quando se vira para mim, porque sou parte do seu mundo atual.

      Um lento sorriso surgiu no rosto de Gladia e ela respondeu:

      - Você raciocina cada vez mais como um ser humano, Daneel.

      Ela virou-se para os robôs e ficou profundamente consciente da quietude dos arredores. O céu estava quase que uniformemente azul, a não ser por uma tênue fila de nuvens no horizonte a oeste (indicando que poderia ficar nublado de tarde). Ouvia-se o ruído do roçar das folhas, tocadas pela brisa, o zumbir dos insetos, o canto solitário de um pássaro. Nenhum ruído de seres humanos. Podia haver muitos robôs em torno, porém trabalhavam silenciosamente. Não havia os ruídos exuberantes de seres humanos aos quais se habituara (a princípio penosamente) em Aurora.

      Mas agora, de volta a Solaria, achou a paz maravilhosa. Nem tudo era ruim em Solaria, tinha de admitir.

      Virou-se para o robô rapidamente, perguntando, com uma nota de compulsão na voz:

      - Onde estão seus donos?

      Contudo, era inútil tentar apressar ou assustar um robô, ou pegá-lo desprevenido. Ele respondeu, sem o menor sinal de perturbação:

      - Foram-se, senhora.

      - Para onde?

      - Não sei. Não me disseram, senhora.

      - Quem de vocês sabe? Houve um total silêncio. Gladia perguntou:

      - Há algum robô na propriedade que saiba? O robô respondeu:

      - Não sei de nenhum, senhora.

      - Seus donos levaram robôs com eles?

      - Sim, senhora.

      - Mas não levaram vocês. Por que foram deixados aqui?

      - Para fazermos nosso trabalho, senhora.

      - Contudo, você fica aqui sem fazer nada. Isso é trabalhar?

      - Protegemos a propriedade contra os de fora, senhora.

      - Como nós, por exemplo?

      - Sim, senhora.

      - Mas estamos aqui e você continua sem fazer nada. Como se explica isso?

      - Observamos, senhora. Não temos ordens posteriores.

      - Você transmitiu suas observações?

      - Sim, senhora.

      - A quem?

      - Ao supervisor, senhora.

      - Onde está ele?

      - Na mansão, senhora.

      - Ah.

      Gladia virou-se e caminhou vivamente para D. G. Daneel acompanhou-a.

      - Então? - perguntou D. G.

      Estava com ambas as armas preparadas, porém meteu-as de volta nos coldres quando eles voltaram. Gladia balançou a cabeça.

      - Nada. Nenhum robô me conhece. Tenho certeza de que nenhum robô sabe para onde foram os Solarianos. Mas fazem relatórios a um supervisor.

      - Supervisor?

      - Em Aurora e nos outros planetas Espaciais, o supervisor nas grandes propriedades com inúmeros robôs é um humano, cuja profissão é organizar e dirigir grupos de robôs trabalhando nos campos, minas e estabelecimentos industriais.

      - Então, há Solarianos aqui. Gladia sacudiu a cabeça.

      - Solaria é exceção. A proporção de robôs para seres humanos sempre foi tão grande que não era costume designar um homem ou mulher para supervisionar os robôs. Essa tarefa era realizada por um outro robô especialmente programado.

      - Então, há um robô naquela mansão - D. G. fez um movimento de cabeça - que é mais avançado que esses e que pode ser proveitosamente interrogado.

      - Talvez, mas não sei se é seguro tentar ir àquela mansão. D. G. comentou, ironicamente:

      - Mas é apenas outro robô.

      - A mansão pode estar cheia de armadilhas.

      - Este campo também.

      - Será melhor - disse Gladia - enviar um dos robôs à mansão para dizer ao supervisor que seres humanos desejam falar com ele.

      - Não será necessário - replicou D. G. - Evidentemente, esse trabalho jáfoi feito. O supervisor está surgindo e não é nem robô nem "ele". O que eu vejo é uma mulher humana.

      Gladia ergueu os olhos, espantada. Avançando rapidamente para eles, vinha uma mulher alta, bem-feita de corpo e impressionantemente atraente. Mesmo à distância, não havia dúvida quanto ao sexo.

     

      D. G. exibiu um enorme sorriso. Pareceu ter-se empertigado um pouco, endireitado os ombros e estufado o peito. Levou rapidamente a mão à barba, como que para se certificar de que estava lisa e macia. Gladia olhou-o com desgosto e disse:

      - Essa aí não é uma Solariana.

      - Como pode saber? - perguntou D. G.

      - Nenhuma Solariana se permitiria ser observada tão à vontade por outros seres humanos. Observada, não vista.

      - Conheço a diferença, minha senhora. Contudo, a senhora me deixou observá-la.

      - Morei mais de vinte décadas em Aurora. Mesmo assim, ficou em mim muito de Solariana para não aparecer diante dos outros dessa forma.

      - Ela tem muito o que exibir, senhora. Eu diria que ela é tão alta quanto eu e tão bela quanto um poente.

      A supervisora tinha parado a cerca de vinte metros de onde estavam e os robôs tinham se movido para os lados, de maneira que nenhum permaneceu entre a mulher e os três da nave.

      - Os costumes podem mudar em vinte décadas - disse D. G.

      - Não algo tão básico quanto a aversão Solariana pelo contato humano - replicou Gladia, asperamente. - Nem em duzentas décadas.

      Ela voltara a usar seu sotaque nasal Solariano.

      - Acho que a senhora subestima a plasticidade social. Assim, Solariana ou não, suponho que ela é Espacial - e se há outras Espaciais iguais a essa, sou inteiramente pela coexistência pacífica.

      O olhar de desgosto de Gladia ficou mais forte.

      - Bem, o senhor pretende ficar aí parado olhando dessa maneira por muito tempo? Não quer que eu interrogue a mulher?

      D. G. teve um sobressalto e voltou-se para olhar Gladia com ar aborrecido.

      - A senhora interroga os robôs, como já fez. Eu interrogo os humanos.

      - Especialmente as mulheres, suponho.

      - Não quero me gabar, mas...

      - Jamais conheci um homem que não se dedicasse a esse assunto.

      Daneel interpôs-se:

      - Acho que a mulher não vai esperar mais tempo. Comandante, se o senhor quiser conservar a iniciativa, aproxime-se dela agora. Eu o acompanharei, como fiz com a Senhora Gladia.

      - Dificilmente precisarei de proteção - retrucou D. G. asperamente.

      - O senhor é um ser humano e não devo, pela inação, permitir que seja atacado.

      D. G. avançou rapidamente, com Daneel em seus calcanhares. Gladia, relutando ficar para trás sozinha, seguiu-os, hesitante.

      A supervisora olhava-os calmamente. Usava um vestido branco, liso, que lhe ia até o meio da coxa, com uma faixa passada na cintura. Exibia um decote amplo e convidativo, e seus mamilos estavam claramente visíveis no tecido transparente do vestido. Não havia indicação de que ela estivesse usando nada mais além de um par de sapatos.

      Quando D. G. parou, um metro de distância os separava. Sua pele, ele pôde ver, era perfeita, as maçãs do rosto salientes, os olhos grandes e um tanto rasgados, a fisionomia serena.

      - Senhora - disse D. G., falando tão de perto quanto permitia a aproximação de uma patrícia Auroreana - tenho o prazer de falar com a supervisora desta propriedade?

      A mulher ouviu durante um momento e depois respondeu, com um sotaque tão acentuadamente Solariano que parecia até cômico, vindo de uma boca tão perfeitamente modelada:

      - Você não é um ser humano.

      Depois, ela entrou em ação tão fulminantemente que Gladia, ainda a uns dez metros de distância, não pôde ver detalhadamente o que tinha acontecido. Viu apenas um borrão em movimento e depois D. G. caído de costas, imóvel, e a mulher parada, com suas armas nas mãos.

      O que mais deixou Gladia estupefata, naquele momento atordoante, foi que Daneel não se mexera, quer para prevenir, quer para reagir.

      Mas mesmo quando pensou nisso, já era tarde, pois Daneel havia agarrado o pulso esquerdo da mulher, torcendo-o.

      - Largue essas armas imediatamente - falou, numa voz áspera e peremptória que ela nunca ouvira dele.

      Era inconcebível que se dirigisse assim a um ser humano.

      A mulher respondeu, igualmente áspera no seu tom mais agudo:

      - Você não é um ser humano.

      O braço direito dela ergueu-se, empunhando a arma, e esta disparou. Durante um momento, uma tênue faísca deslizou sobre o corpo de Daneel, e Gladia, incapaz de emitir um som no seu estado de choque, sentiu a visão ficar toldada. Nunca na vida havia desmaiado, mas aquilo parecia um prelúdio.

      Daneel não se dissolveu, nem houve uma explosão. Como Gladia percebeu, ele tinha, prudentemente, agarrado o braço que segurava o explosor. O outro sustinha o chicote neurônico, e este é que tinha sido descarregado completamente - bem de perto - sobre Daneel. Se ele fosse humano, o maciço estímulo dos seus nervos sensoriais poderia tê-lo morto ou deixado permanentemente inválido. Contudo, ele era, afinal de contas, embora humano na aparência, um robô, e seu equivalente a um sistema nervoso não reagiu ao chicote.

      Então Daneel segurou o outro braço, erguendo-o, ao mesmo tempo em que tornava a falar:

      - Largue essas armas, ou arrancarei cada braço de suas juntas.

      - Você faria isso? - perguntou a mulher.

      Seus braços se contraíram e, durante um instante, Daneel foi erguido do chão. As pernas do robô balançaram para a frente e para trás, como um pêndulo, os pontos onde os braços se juntavam funcionando como um pivô. Seus pés atingiram a mulher com força e ambos caíram pesadamente no chão.

      Gladia, sem transformar o pensamento em palavras, percebeu que, apesar de parecer tão humana quanto Daneel a mulher era exatamente não-humana. Uma sensação de insulto instantâneo inundou-a, tornando-a subitamente Solariana até o âmago - ultrajada pelo fato de um robô ter usado força contra um ser humano. Admitia que ela poderia, de certa forma, ter reconhecido Daneel, mas não ousaria atacar D. G.

      Avançou correndo e gritando. Nunca lhe passou pela cabeça temer um robô simplesmente porque ele havia derrubado um homem forte com um soco e estava lutando com um robô ainda mais forte.

      - Como se atreve? - gritou ela, com um sotaque Solariano tão carregado que irritou seu próprio ouvido; mas de que maneira era possível falar com um robô Solariano?

      - Como se atreve, moça? Cesse toda a resistência imediatamente

      A musculatura da mulher pareceu relaxar total e simultaneamente, como se uma corrente elétrica tivesse sido desligada. Seus belos olhos fixaram-se em Gladia sem bastante humanidade para parecerem espantados. Respondeu, numa voz hesitante e indistinta:

      - Minhas desculpas, senhora.

      Daneel estava de pé, olhando, vigilante, a mulher caída na grama. D. G., reprimindo um gemido, estava lutando para se recompor.

      Daneel curvou-se para pegar as armas, porém Gladia fez-lhe um sinal, furiosamente, para se afastar.

      - Dê-me essas armas, criada - falou. A mulher respondeu:

      - Sim, senhora.

      Gladia agarrou-as, separou rapidamente o explosor e entregou-o a Daneel.

      - Destrua a mulher quando julgar melhor, Daneel. É uma ordem. - Estendeu o chicote neurônico a D. G. e disse: - Isto é inútil aqui, exceto contra mim - e o senhor.

      Está se sentindo bem?

      - Não, não estou - resmungou D. G., esfregando o quadril. - Está querendo dizer que ela é uma robô?

      - Uma mulher o teria derrubado assim?

      - Não uma das minhas relações. Eu disse que poderia haver robôs especiais em Solaria, programados para serem perigosos.

      - Claro - retrucou Gladia, asperamente - mas quando vê alguém que corresponde à sua idéia de uma bela mulher, o senhor se esquece disso.

      - Sim, é fácil ser prudente depois do fato. Gladia suspirou e tornou a virar-se para a robô.

      - Landaree, senhora.

      - Levante-se Landaree.

      Landaree levantou-se da mesma maneira que Daneel - como se estiesse sobre molas. Sua luta com Daneel parecia não tê-la danificado nem um pouco.

      Gladia perguntou:

      Por que, contrariando a Primeira Lei, você atacou esses seres humanos?

      - Senhora - retrucou Landaree, com firmeza - eles não são seres humanos.

      - Você diz que eu não sou humana?

      - Não, senhora, a senhora é.

      - Então, como ser humano, estou definindo esses dois homens como humanos. Entendeu?

      - Senhora - a voz de Landaree estava um pouco mais suave - eles não são seres humanos.

      - Na verdade são, porque eu lhe disse que são. Você está proibida de atacá-los ou feri-los, seja como for.

      Landaree permaneceu muda.

      - Compreendeu o que eu lhe disse?

      A voz de Gladia tornou-se mais Solariana ainda, como se tivesse atingido o maior grau de intensidade.

      - Senhora - repetiu Landaree - eles não são humanos. Daneel disse a Gladia, em voz baixa:

      - Senhora, ela recebeu ordens tão determinadas que a senhora não pode contrariá-las com facilidade.

      - É o que veremos - disse Gladia, respirando forte.

      Landaree olhou em volta. O grupo de robôs, durante os poucos minutos do conflito, aproximou-se de Gladia e seus dois acompanhantes. Atrás deles, estavam dois robôs que, achou Gladia, não eram membros do grupo original e estavam carregando juntos, com alguma dificuldade, um grande e volumoso objeto de alguma espécie. Landaree fez um gesto na direção deles, que se adiantaram um pouco mais depressa.

      Gladia gritou:

      - Robôs, parem! Eles pararam.

      - Senhora - disse Landaree - estou cumprindo minhas obrigações. estou seguindo as instruções que recebi.

      Gladia retrucou:

      - Suas obrigações, criada, são obedecer as minhas ordens!

      - Não posso ser ordenada a desobedecer minhas instruções - insistiu Landaree.

      Gladia ordenou:

      - Daneel, acabe com ela!

      Depois, Gladia foi capaz de raciocinar sobre o acontecido. O tempo de reação de Daneel foi muito mais rápido do que teria sido o de um humano e ele soube que estava enfrentando um robô contra o qual as Três Leis não impediam a violência. Contudo, ela parecia tão humana que mesmo o perfeito conhecimento de que se tratava de uma robô não se sobrepôs totalmente à sua inibição. Ele cumpriu a ordem mais devagar do que devia.

      Landaree, cuja definição de "ser humano", não era evidentemente a de Daneel, não foi inibida pela aparência dele e atacou ainda mais rapidamente. Ela havia agarrado o explosor e os dois estavam novamente lutando.

      - Robô! Pare! - gritou Gladia, cujos punhos fechados estavam levantados.

      Landaree gritou, em voz de contralto, muito alta:

      - Vocês todos! Juntem-se a mim! Os dois com aparência de homens não são seres humanos. Tratem de destruí-los, sem fazer nenhum mal à mulher.

      Se Daneel pôde ser inibido por uma aparência humana, o mesmo se deu com muito mais intensidade com os simplórios robôs Solarianos, que se adiantaram lenta e intermitentemente.

      - Parem! - guinchou Gladia.

      Os robôs pararam, porém a ordem não fez efeito em Landaree.

      Daneel tentou pegar o explosor, mas foi dobrado para trás sob a força do poder evidentemente maior de Landaree.

      Gladia, transtornada, olhou em volta, como que esperando encontrar uma arma em algum lugar.

      D. G. estava tentando acionar seu radiotransmissor. Ele disse, gemendo:

      - Está estragado. Acho que caí sobre ele.

      - Que vamos fazer?

      - Devemos levá-lo de volta para a nave. Depressa.

      - Então corra - disse Gladia. - Não posso abandonar Daneel. - Encarou os robôs que atacavam, gritando brutalmente: - Landaree, pare! Landaree, pare!

      - Não posso parar, senhora - respondeu a robô. - Minhas instruções são precisas.

      Os dedos de Daneel foram abertos à força e Landaree tornou a se apropriar do explosor.

      Gladia protegeu Daneel com seu corpo.

      - Você não deve causar dano a este ser humano.

      - Senhora - disse Landaree, com o explosor apontado para Gladia, sem vacilar. - A senhora está diante de uma coisa que parece um ser humano mas não é. Minhas instruções são destruir o que estiver à vista- Depois, com voz mais alta: - Vocês dois, carregadores: para a nave.

      Os dois robôs, carregando o volumoso objeto, reiniciaram seu trajeto.

      - Robôs, parem! - gritou Gladia, e eles pararam, tremendo, como que tentando mover-se para frente e apesar disso incapazes de prosseguirem - Você não pode destruir meu amigo humano Daneel sem me liquidar  e você mesma admite que eu sou humana e portanto não posso ser atacada.

      Daneel disse, em voz baixa:

      - Minha senhora, não deve atrair um ataque no esforço de me proteger.

      Landaree disse:

      - Não adianta, senhora. Posso afastá-la facilmente da sua atual posição e depois destruir o ser não-humano que está atrás da senhora. Uma vez que isso pode atingi-la, peço-lhe, respeitosamente, para se afastar voluntariamente de onde está.

      - A senhora precisa, senhora - disse Daneel.

      - Não, Daneel. Ficarei aqui. No tempo que ela levar para me tirar daqui, você foge!

      - Não posso fugir mais depressa que o raio de um explosor - e se tentar, ela atirará através da senhora, sem escolha. Suas instruções provavelmente são essas. Lamento, minha senhora, que isso lhe cause infelicidade.

      E Daneel ergueu Gladia, que se debatia, afastando-a sem esforço para um lado.

      Os dedos de Landaree firmaram-se no contato, mas ela não apertou o gatilho. Permaneceu imóvel.

      Gladia, que tinha cambaleado e estava agora sentada, ficou em pé. Cautelosamente, D. G., que tinha permanecido no local nas últimas trocas de palavras, aproximou-se de Landaree. Daneel, com muita calma, estendeu a mão e tirou o explosor dos seus dedos inertes.

      - Creio - disse Daneel - que esta robô está permanentemente desativada.

      Empurrou-a gentilmente e ela caiu inteira, com os membros, tronco e cabeça nas posições relativas que ocupavam quando estava em pé. Seu braço ainda estava dobrado, a mão segurando um explosor invisível e seus dedos apertando um botão invisível.

      Entre as árvores, a um lado do campo gramado onde o drama tinha acabado de se desenrolar, Giskard estava se aproximando, seu rosto robótico sem demonstrar curiosidade, embora suas palavras pudessem fazer parecer o contrário.

      - Que aconteceu na minha ausência? - perguntou.

     

      A volta à nave foi bastante calma. Agora, que o ataque de medo e ação tinha acabado, Gladia sentia-se acalorada e irritadiça. D. G. capengava um tanto dolorido e caminhava lentamente, em parte por causa da coxeadura e em parte porque os dois robôs Solarianos ainda estavam carregando seu volumoso instrumento, andando pesadamente.

      D. G. olhou-os por cima do ombro.

      - Agora, que a supervisora está fora de ação, eles obedecerão às minhas ordens.

      Gladia falou, entre dentes:

      - Por que o senhor não corre até lá e pede ajuda? Por que permanece desamparadamente olhando?

      - Ora - disse D. G., numa tentativa do mesmo tipo de graciosidade que teria demonstrado se estivesse melhor - com sua recusa em abandonar Daneel, hesitei em bancar o covarde, por comparação.

      - Seu tolo! Eu estava segura. Ela não teria me atacado. Daneel interveio:

       - Senhora, lamento ter de contradizê-la, mas acho que teria, se a necessidade de me destruir fosse maior.

      Gladia virou-se para ele, com violência:

      - E foi muito bonito aquilo que você fez, me tirando do caminho. Você queria ser destruído?

      - Preferivelmente a vê-la ferida, senhora, sim. Meu fracasso em parar a robô pelas inibições causadas por sua aparência humana demonstrou-se, em todo caso, um limite insatisfatório à minha utilidade para senhora.

      - Mesmo assim - disse Gladia - uma vez que sou humana, ela teria hesitado em atirar em mim durante um perceptível espaço de tempo e você poderia ficar de posse do explosor nesse momento.

      - Eu não podia arriscar a sua vida, senhora, numa coisa tão incerta como a hesitação dela - comentou Daneel.

      - E o senhor - falou Gladia, sem demonstrar ter ouvido Daneel e tornando a virar-se para D. G. - não devia ter sacado o explosor em primeiro lugar.

      D. G. replicou, franzindo o cenho:

      - Senhora, estou tomando em consideração o fato de termos estado todos muito perto da morte. Os robôs não se importam com isso, e de certa forma eu cresci acostumado ao perigo. Para a senhora, contudo, aquilo foi uma desagradável novidade, e está sendo infantil com relação ao resultado. Desculpo-a - um pouco. Mas, por favor, preste atenção. Eu não tinha meio de saber que o explosor me seria tomado tão facilmente. Se eu não tivesse sacado a arma, a supervisora poderia ter-me matado com as mãos nuas tão rápida e eficientemente como com o explosor. Assim, não haveria sentido na minha corrida, para responder a uma anterior reclamação sua. Eu não podia superar a velocidade de um explosor. Ora, por favor, continue, se precisar sair do seu sistema, porém não tenho a intenção de discutir mais com a senhora.

      Gladia olhou de D. G. para Daneel, voltando para o primeiro, e disse em voz baixa:

      - Suponho estar sendo exagerada. Muito bem, chega de percepções tardias.

      Tinham chegado à nave. Membros da tripulação saíram ao encontro deles. Gladia viu que estavam armados. D. G. fez um sinal ao subcomandante.

      - Oser, suponho que você viu o objeto que os dois robôs estão carregando, não?

      - Sim, senhor.

      - Bem, faça-os levarem-no para bordo. Coloque-o no setor de segurança e mantenha-o lá. O setor de segurança deve então ser trancado e conservado assim. - Virou-se por um momento e depois retornou: - E, Oser, tão logo isso tenha sido feito, vamos nos preparar para partir.

      Oser perguntou:

      - Comandante, devemos também conservar os robôs?

      - Não. Eles são de confecção muito simples, de pouco valor portanto, e, nestas circunstâncias, levá-los criaria conseqüências indesejáveis. O aparelho que estão carregando é muito mais valioso que eles.

      Giskard ficou observando o objeto sendo cuidadosa e lentamente colocado dentro da nave.

      - Comandante - disse ele - estou achando que se trata de um objeto perigoso.

      - Também tenho a mesma impressão - replicou D. G. - Desconfio que a nave iria ser destruída logo depois de nós.

      - O que é aquela coisa? - perguntou Gladia.

      - Não tenho certeza, mas creio que é um intensificador nuclear. Vi modelos experimentais em Baleyworld, e este parece um irmão maior.

      - O que é um intensificador nuclear?

      - Como o nome indica, Lady Gladia, é um instrumento que intensiva a fusão nuclear.

      - E como isso é feito? D. G. encolheu os ombros.

      - Não sou físico, minha senhora. Uma corrente de partículas W é envolvida e proporciona uma fraca interação. É só o que eu sei sobre ela.

      - O que ela provoca? - perguntou Gladia.

      Bem, suponha que a nave tenha seu suprimento de força como agora, por exemplo. Há pequenas quantidades de prótons, derivados do nosso suprimento de combustível de hidrogênio, que são ultraquentes e se fundem para produzir força. Hidrogênio adicional é constantemente aquecido. Para produzir prótons livres que, quando bastante quentes, também se fundem para manter aquela força. Se a corrente de partículas W do intensificador nuclear atinge os prótons em fusão, estes se fundem mais rapidamente e liberam mais calor. Este calor produz prótons e os leva à fusão mais rapidamente do que devem, o que produz ainda mais calor, intensificando o ciclo vicioso. Uma fração mínima de segundo é o bastante para que o combustível em fusão forme uma minúscula bomba termonuclear e a nave inteira e tudo nela seja transformado em vapor. Gladia pareceu apavorada.

      - Por que tudo não se incendeia? Por que o planeta inteiro não explode?

      - Não creio que haja perigo disso, senhora. Os prótons devem estar excessivamente quentes e em fusão. Prótons frios são de tal forma incapazes de fundir, que, mesmo quando a tendência é intensificada em toda a extensão de um engenho desses, isso ainda não é bastante para permitir a fusão. Pelo menos, foi o que inferi de uma conferência sobre o assunto a que assisti. E nada a não ser hidrogênio é afetado, até onde posso saber. Mesmo no caso de prótons ultraquentes, o calor produzido não aumenta desmedidamente. A temperatura esfria com a distância do raio intensificador de forma que apenas uma limitada quantidade de fusão pode ser forçada. Isso é bastante para destruir a nave, claro, mas não há possibilidade de explosão dos oceanos ricos de hidrogênio, por exemplo, mesmo que parte deles seja ultra-aquecido - o que certamente não acontecerá, se estiverem frios.

      - Mas e se a máquina for ligada acidentalmente no depósito...

      - Não creio que isso seja possível. - D. G. abriu a mão e mostrou um cubo de dois centímetros de metal reluzente. - Do pouco que sei dessas coisas, isto é um ativador, e o intensificador nuclear nada pode fazer sem ele.

      - Tem certeza?

      - Completamente, não, mas devemos correr o risco, visto que preciso levar esta coisa para Baleyworld. Agora, vamos para bordo.

      Gladia e seus dois robôs subiram a rampa e entraram na nave. D. G. seguiu-os e conversou rapidamente com alguns oficiais da tripulação. Depois virou-se para Gladia, o cansaço começando a aparecer:

      - Vamos levar umas duas horas para colocar todo o nosso maquinismo a bordo e ficar prontos para partir, e a cada instante o perigo aumenta.

      - Perigo?

      - A senhora não imagina que a temível robô seja a única de sua espécie em Solaria, não é? Ou que esse intensificador nuclear que pegamos seja o único do seu tipo, certo? Acho que deve ter demorado a construção de outros robôs humanóides e intensificadores nucleares neste lugar - talvez um tempo considerável - mas não podemos nos arriscar. E enquanto isso, senhora, vamos até seu camarote tratar de alguns negócios necessários.

      - Que negócios necessários são esses, comandante?

      - Bem - disse D. G., fazendo-os andar - diante do fato de que eu talvez tenha sido vítima de traição, acho que devo proceder a uma informal corte marcial.

     

      Após sentar-se com um suspiro audível, D. G. disse:

      - O que eu realmente quero é um banho quente, uma massagem, uma boa refeição e a chance de dormir, mas isso só será possível quando tivermos deixado o planeta. O mesmo se aplica à senhora, senhora. Mas outras coisas não podem esperar. Tenho uma pergunta a fazer: onde você estava, Giskard, enquanto o resto de nós enfrentava um enorme perigo?

      - Comandante - respondeu Giskard - não me parece que o fato de robôs serem deixados sozinhos no planeta representasse qualquer perigo. Além do mais, Daneel ficou com o senhor.

      - Comandante - interpôs Daneel - concordei em que Giskard devia fazer um reconhecimento e que eu ficaria com Senhora Gladia e com o senhor.

      - Os dois concordaram, é? - perguntou D. G. - E alguém mais foi ouvido?

      - Não, comandante - disse Giskard.

      - Se tinham certeza de que os robôs eram inofensivos, Giskard, como imagina que as duas naves tenham sido destruídas?

      - Parece-me, comandante, que devem ter restado seres humanos no planeta, mas que fizeram o impossível para não serem vistos pelo senhor. Eu quis saber onde eles se encontravam e o que estavam fazendo. Saí à procura deles, examinando o terreno o mais depressa possível. Interroguei os robôs que encontrei.

      - Encontrou algum ser humano?

      - Não, comandante.

      - Examinou a casa de onde a supervisora surgiu?

      - Não, comandante, pois eu tinha certeza de que não havia ninguém dentro dela. E ainda tenho.

      - Havia a supervisora.

      - Sim, comandante, mas ela era uma robô.

      - Uma robô perigosa.

      - Para meu pesar, não percebi isso, comandante.

      - Você sente pesar, sente?

      - É uma forma de me exprimir. Escolhi descrever o efeito nos meus circuitos positrônicos. É uma analogia grosseira com o termo que os seres humanos usam para isso, comandante.

      - Por que você não percebe que um robô pode ser perigoso?

      - Por causa das Três Leis da Robótica... Gladia interrompeu.

      - Pare com isso, comandante. Giskard sabe apenas o que foi programado para saber. Nenhum robô é perigoso para os seres humanos, a menos que haja um conflito mortal entre seres humanos, e o robô precise tentar impedi-lo. Nesse conflito, Daneel e Giskard teriam indubitavelmente nos defendido com o menor dano possível a outros.

      - É mesmo? - D. G. colocou dois dedos sobre o cavalete do nariz e beliscou. - Daneel nos defendeu. Estávamos lutando contra robôs, não seres humanos, e portanto ele não tinha dificuldade em decidir a quem defender e até onde. Contudo, ele demonstrou espantosa falta de êxito, considerando que as Três Leis não o impedem de causar dano a robôs. Giskard esteve afastado, voltando no exato momento em que tudo havia acabado. É possível haver um laço de simpatia entre robôs? É possível que robôs, quando defendendo seres humanos contra robôs, sintam de certa forma o que Giskard chama "pesar" por fazer isso e talvez fracassem - ou se eximam...

      - Não! - explodiu Gladia, furiosa.

      - Não? - perguntou D. G. - Ora, não pretendo ser técnico em robótica. A senhora é, Lady Gladia?

      - Não sou roboticista de nenhuma forma - replicou Gladia - mas passei toda a minha vida entre robôs. O que o senhor sugere é ridículo. Daneel estava perfeitamente preparado para dar sua vida por mim, e Giskard teria feito o mesmo.

      - Qualquer robô teria feito o mesmo?

      - Claro.

      - Contudo, aquela supervisora, a tal Landaree, estava de fato disposta a me atacar e aniquilar. Concordemos que, de maneira misteriosa, ela detectou que Daneel, não obstante a aparência, era tão robô quanto ela - apesar da aparência - e não ficou inibida quando o atacou. Que aconteceria, porém, se ela me atacasse, quando sou indubitavelmente humano? Ela hesitou com a senhora, admitindo que era humana, mas não comigo como um robô pode discriminar entre nós dois? Será que ela não era verdadeiramente robô?

      - Ela era robô - replicou Gladia. - Claro que era. Mas... a verdade é que não sei por que ela agiu assim. Jamais ouvi falar em coisa parecida. Só posso imaginar que os Solarianos, tendo aprendido a construir robôs humanóides, desenharam-nos sem a proteção das Três Leis, embora eu tivesse jurado que, entre todos os Espaciais, eles teriam sido os últimos a agir assim. Em número, os Solarianos são amplamente superados por seus próprios robôs, tornando-se totalmente dependentes deles – numa extensão muito maior que qualquer outro Espacial - e por esse motivo os temem mais. A subserviência e mesmo um pouco de estupidez foram embutidas em todos os robôs Solarianos. As Três Leis são mais fortes em Solaria - e não mais fracas - que em qualquer outro planeta. Contudo, não posso pensar em outro meio para explicar Landaree a não ser supor que a Primeira Lei foi...

      Daneel interrompeu:

      - Desculpe, Senhora Gladia, por interferir. Posso obter sua permissão para tentar uma explicação do comportamento da supervisora?

      D. G. disse, ironicamente:

      - Suponho que chegamos ao fato. Só um robô pode explicar outro robô.

      - Senhor - replicou Daneel - a menos que compreendamos a supervisora, não seremos capazes de, no futuro, tomar medidas contra o perigo Solariano. Acho que tenho um meio de determinar seu comportamento.

      - Continue - disse D. G.

      - A supervisora - prosseguiu Daneel - não tomou medidas instantâneas contra nós. Ela nos examinou durante algum tempo, evidentemente indecisa sobre como agir. Quando o senhor, comandante, aproximou-se e falou-lhe, ela anunciou que o senhor não era humano e o atacou instantaneamente. Quando me interpus e gritei que ela era uma robô, ela afirmou que eu não era humano e também me atacou imediatamente. Quando Lady Gladia avançou, contudo, gritando com ela, a robô reconheceu sua humanidade e, por um momento, deixou-se dominar.

      - Sim, Daneel, lembro de tudo isso. Mas o que significa?

      - Parece-me, comandante, que é possível alterar o comportamento de um robô fundamentalmente, sem sequer tocar as Três Leis, desde que, por exemplo, seja alterada a definição de ser humano. Um ser humano, afinal de contas, é apenas o que se define como tal.

      - Então é assim? E o que você considera como um ser humano? Daneel não ficou preocupado com a presença ou ausência de ironia.

      Respondeu:

      - Fui construído com uma descrição minuciosa da aparência e comportamento dos seres humanos, comandante. Para mim, tudo o que combina com essa descrição é um ser humano. Portanto, o senhor tem a aparência e o comportamento, enquanto a supervisora tinha o aspecto mas não o comportamento.

      Para a supervisora, por outro lado, a característica principal de um ser humano era a fala, comandante. O sotaque Solariano é destacável, e Para ela uma coisa que parecesse com um ser humano era definida como Um ser humano apenas se falasse como um Solariano. Evidentemente, tudo o que parecesse com um ser humano, mas não falasse com sotaque Solariano, devia ser destruído sem hesitação, bem como toda a nave levando esses seres.

      D. G. disse, pensativo:

      - Você talvez tenha razão.

      - O senhor tem sotaque de Colonizador, comandante, tão inconfundível a seu modo como o Solariano ao dele, porém os dois são inteiramente diferentes. Logo que o senhor abriu a boca, definiu-se para a supervisora como não-humano, fazendo com que ela o denunciasse e atacasse.

      - E você falou como Auroreano, sendo atacado da mesma forma.

      - Sim, comandante, porém Lady Gladia falou como autêntica Solariana, e por isso foi considerada humana.

      D. G. examinou o assunto silenciosamente durante algum tempo e depois disse:

      - É um sistema perigoso, mesmo para quem fizer uso dele. Se um Solariano, por qualquer motivo, em qualquer momento, se dirigisse a esse robô de uma forma que ele não considere autêntico sotaque Solariano, seria atacado imediatamente. Se eu fosse Solariano, teria medo de me aproximar desse robô. Meu grande esforço para falar um Solariano puro poderia provavelmente me colocar em má situação e me levar à morte.

      - Concordo, comandante - disse Daneel - e acho que é por isso que os que fabricam robôs em geral não limitam a definição de um ser humano, alargando-a ao máximo.

      Os Solarianos, contudo, deixaram o planeta. Pode-se supor que o fato de robôs supervisores terem essa programação perigosa é a melhor indicação de que os Solarianos partiram realmente e não estão aqui para enfrentar o perigo. Parece que sua única preocupação neste momento é não permitir que ninguém que não seja Solariano ponha o pé neste planeta.

      - Nem mesmo outros Espaciais?

      - Eu esperaria, comandante, que fosse difícil definir um ser humano numa forma que incluísse as dezenas de sotaques Espaciais diversos e também excluísse as grandes quantidades de diferentes sotaques Colonizadores. Limitando a definição unicamente ao sotaque Solariano distinto, seria bastante difícil.

      - Você é muito inteligente, Daneel - disse D. G. - Eu desaprovo robôs, não por eles, claro, mas como uma influência perturbadora na sociedade. Apesar disso, com um robô como você ao meu lado, como esteve antes ao lado do Antepassado...

      Gladia interrompeu:

      - Nem pense nisso, D. G. Daneel jamais seria presenteado ou mesmo vendido, e também não poderia ser facilmente obtido à força...

      D. G. ergueu a mão, com um sorriso de desculpa.

      - Eu estava apenas sonhando, Lady Gladia. Garanto-lhe que as leis de Baleyworld tornariam minha idéia de possuir um robô impensável.

      Giskard interveio subitamente:

      - Comandante, o senhor me permite acrescentar algumas palavras?

      - Ah - disse D. G. - o robô que deu um jeito de evitar a ação e que voltou quando tudo estava seguramente acabado.

      - Lamento que o caso lhe pareça assim. Tenho sua permissão,comandante, para acrescentar algumas palavras, apesar de tudo?

      - Ora, prossiga.

      - Está parecendo, comandante, que sua decisão de trazer Lady Gladia com o senhor nesta expedição deu um bom resultado. Se ela não tivesse vindo e o senhor se aventurasse em sua missão exploradora apenas com os membros da tripulação da nave como acompanhantes, teria sido rapidamente aniquilado e a nave seria destruída. A capacidade de Lady Gladia de falar como uma Solariana e sua coragem ao enfrentar a supervisora foi que mudaram o resultado.

      - Não foi bem assim - retrucou D. G. - pois teríamos sido todos destruídos, possivelmente até Lady Gladia, não fosse o fortuito acontecimento da inativação espontânea da supervisora.

      - Não foi fortuito, comandante - respondeu Giskard - e é extremamente improvável que qualquer robô fique inativo espontaneamente. Tem de haver um motivo para isso, e posso sugerir uma possibilidade. Em várias ocasiões Lady Gladia ordenou à robô que parasse, como o amigo Daneel me disse, mas as instruções sob as quais a supervisora agia eram mais fortes.

      "Não obstante, a ação de Lady Gladia serviu para moderar a resolução da supervisora, comandante. O fato de Lady Gladia ser incontestavelmente um ser humano, mesmo dentro da definição da supervisora, e de estar agindo daquela forma para tornar necessário, talvez, que a supervisora a ferisse - ou mesmo matasse - moderou-a ainda mais. Assim, no momento crucial, os dois requisitos antagônicos - precisar destruir seres não-humanos e ter de evitar ferir seres humanos - equilibraram-se e a robô imobilizou-se, incapaz de fazer qualquer coisa. Seus circuitos queimaram.

      O cenho de Gladia franziu-se, revelando confusão.

      - Mas... - começou e depois desistiu. Giskard prosseguiu:

      - Veio-me à idéia que talvez seja bom o senhor informar a tripulação disso. Sua desconfiança de Lady Gladia pode diminuir se o senhor salientar o que a iniciativa e coragem dela significaram para cada membro da tripulação, visto tê-los conservado vivos. Isso pode, também, fazê-los ter uma excelente opinião da sua previsão ao insistir em tê-la a bordo nesta ocasião, talvez mesmo contra o conselho dos seus próprios oficiais.

      D. G. soltou uma enorme gargalhada.

      - Lady Gladia, vejo agora por que a senhora não se separa dos seus robôs. Eles não são apenas tão inteligentes como seres humanos, mas exatamente iguais em astúcia. Felicito-a por tê-los. E agora, se não se importa, tenho de apressar minha tripulação. Não desejo ficar em Solaria nem um minuto além do necessário. E prometo-lhe que não será incomodada durante horas. Sei que deseja se restaurar e descansar, tanto quanto eu.

      Depois que ele se retirou, Gladia permaneceu durante algum tempo mergulhada em profundos pensamentos; depois virou-se para Giskard e   disse em Auroreano comum, uma versão vulgar do padrão galáctico, que tinha se espalhado por Aurora, de difícil compreensão para todo não-Auroreano:

      - Giskard, que bobagem foi aquela sobre queimar os circuitos?

      - Minha senhora - respondeu o robô - citei apenas como uma possibilidade e nada mais. Achei melhor acentuar seu papel ao ser dado um fim à supervisora.

      - Mas como você pode pensar que ele acreditará que um robô pode queimar tão facilmente?

      - Ele sabe pouquíssimo sobre robôs. Pode transitar no meio deles, mas vem de um planeta que não os usa.

      - Mas eu conheço muita coisa a respeito deles e também tenho esse problema. A supervisora não demonstrou nada sobre circuitos desequilibrados; nenhuma gagueira, nenhum tremor, nenhuma dificuldade de comportamento de qualquer espécie. Apenas... parou.

      Giskard replicou:

      - Senhora, uma vez que não conhecemos as exatas especificações que presidiram a construção da supervisora, devemos nos contentar com a ignorância do que havia de racional por detrás da paralisação.

      Gladia balançou a cabeça.

      - Seja como for, é perturbador.

 

BALEYWORLD

 

      O Planeta dos Colonizadores

      A nave de D. G. estava novamente no espaço, rodeada pela perpétua imutabilidade do vácuo infinito.

      Isso não ocorreu muito cedo a Gladia, que tinha eliminado imperfeitamente a tensão nascida da possibilidade de que um segundo supervisor - com outro intensificador - pudesse chegar sem aviso. O fato de que poderia ser uma morte rápida se tivesse acontecido, uma morte inesperada, não foi muito satisfatório. A tensão tinha estragado o que, de outra forma, teria sido uma exuberante chuveirada, juntamente com várias outras formas de renovação do conforto.

      Foi somente depois da partida real, depois da chegada do suave e distante zumbido dos jatos protônicos, que ela conseguiu se preparar para dormir. Estranho, pensou ela, enquanto a consciência começava a desaparecer, que o espaço pudesse parecer mais seguro que o mundo de sua juventude, que ela devesse partir de Solaria, da segunda vez com alívio ainda maior que da primeira.

      Solaria porém, não era mais o planeta da sua juventude. Era um mundo sem humanidade, protegido por paródias distorcidas de humanidade, robôs humanóides que eram uma triste zombaria do gentil Daneel e do pensador Giskard.

      Ela finalmente adormeceu - e enquanto dormia, Daneel e Giskard, montando guarda, puderam mais uma vez conversar.

      - Amigo Giskard - disse Daneel - estou convencido de que foi você Quem destruiu a supervisora.

      - Evidentemente, não havia escolha, amigo Daneel. Foi puramente um acidente que eu tenha chegado a tempo, pois meus sentidos estavam completamente ocupados com a procura de seres humanos, e não achei nenhum. E nem perceberia o significado dos acontecimentos se não fosse pela ira e desespero de Lady Gladia. Foi o que eu senti à distância e que me levou a correr até a cena - mal chegando a tempo. Nesse aspecto, Lady Gladia salvou a situação, pelo menos no que se refere à vida do comandante e à sua. Eu teria ainda salvo a nave, acredito, mesmo que tivesse chegado tarde demais para salvar você. - Fez uma pausa e acrescentou: - Eu teria achado muito insatisfatório, amigo Daneel, ter chegado tarde demais para salvá-lo.

      Daneel respondeu, com um tom de voz grave e formal:

      - Agradeço-lhe, amigo Giskard. Estou contente por você não ter-se deixado inibir pela aparência humana da supervisora. Isso diminuiu minhas reações, assim como a minha aparência enfraqueceu as dela.

      - Amigo Daneel, a aparência física da supervisora não teria significado nada para mim, porque eu estava ciente do padrão dos seus pensamentos. Esse padrão era tão limitado e tão totalmente diferente da completa extensão dos padrões humanos, que eu não sentia necessidade de fazer qualquer esforço para identificá-la de maneira positiva. A identificação negativa, como não-humana, estava tão nítida que agi imediatamente. Na verdade, só tive consciência da minha ação após tê-la executado.

      - Também pensei nisso, amigo Giskard, mas desejei uma confirmação para não entender mal. Devo concluir, então, que você não sentiu preocupação após ter matado o que era, na aparência, um ser humano?

      - Não, uma vez que era um robô.

      - Parece-me que, se eu tivesse conseguido destruí-lo, iria sentir obstrução do fluxo positrônico livre, não importa até onde tivesse compreendido tratar-se de um robô.

      - A aparência humanóide, amigo Daneel, não pode ser descartada quando esse é o único elemento de julgamento. Ver é muito mais imediato que deduzir. Foi somente por ter podido observar sua estrutura mental e me concentrado nisso que pude ignorar sua estrutura física.

      - Como você acha que a supervisora iria se sentir se tivesse nos matado, a julgar pela sua estrutura mental?

      - Ela tinha dado instruções muito firmes e não havia dúvidas em seus circuitos de que você e o comandante eram não-humanos, segundo sua definição.

      - Mas ela também poderia ter destruído Senhora Gladia.

      - Quanto a isso, não temos certeza, amigo Daneel.

      - Se ela tivesse feito isso, amigo Giskard, teria sobrevivido? Você teria como saber?

      Giskard ficou calado durante bastante tempo.

      - Eu não tive tempo suficiente para examinar o padrão mental. Não sei dizer qual teria sido sua reação se ela tivesse assassinado Lady Gladia.

      - Se eu me colocasse no lugar da supervisora - a voz de Daneel tremeu e baixou um tom - acharia que poderia matar um ser humano para salvar a vida de outro ser humano, que certamente haveria um motivo para pensar assim, que era mais necessário salvar. O ato, contudo, poderia ser difícil e danoso. Matar um ser humano apenas para destruir alguma coisa eu considero não-humano seria inconcebível.

      - Ela apenas ameaçou. Não cumpriu a ameaça.  Teria cumprido, amigo Giskard?

      - Como podemos saber, se não conhecemos a natureza de suas instruções?

      - Essas instruções teriam negado tão completamente a Primeira Lei? Giskard respondeu:

      - Estou vendo que seu objetivo nesta discussão foi fazer essa pergunta. Aconselho-o a não prosseguir.

      Daneel disse, teimosamente:

      - Vou colocá-la no condicional, amigo Giskard. Evidentemente, o que não pode ser externado como um fato pode ser proposto como fantasia. Se as instruções podem ser cercadas de definições e condições, se podem ser dadas com suficiência de detalhes, de uma forma bastante vigorosa, pode ser possível matar um ser humano por um objetivo menos irresistível que salvar a vida de outro ser humano?

      Giskard retrucou, em voz abafada:

      - Não sei, mas suspeito que seja possível.

      - Nesse caso, porém, se sua suspeita for correta, isso implicará que é possível neutralizar a Primeira Lei em condições determinadas. A Primeira Lei, nesta hipótese, e conseqüentemente, com certeza, as demais, podem ser modificadas até quase a não-existência. As Leis, inclusive a Primeira, podem, então, não ser absolutas, mas simplesmente o que robôs projetados determinem que sejam.

      - Chega, amigo Daneel. Vamos parar - disse Giskard.

      - Ainda há mais um passo, amigo Giskard - replicou Daneel. - O Colega Elijah o teria dado.

      - Ele era um ser humano. Podia fazê-lo.

      - Eu devo tentar. Se as Leis da Robótica - mesmo a Primeira - não são absolutas, e se humanos podem modificá-las, não será possível, talvez, sob condições adequadas, mod...

      Daneel parou.

      Giskard falou, com voz fraca:

      - Não prossiga.

      Daneel respondeu, uma leve hesitação obscurecendo sua voz:

      - Não prosseguirei.

      Um longo silêncio os envolveu. Foi com dificuldade que os circuitos positrônicos em cada um cessaram de divergir. Finalmente, Daneel disse:

      - Surge outro pensamento. A supervisora era perigosa não apenas Por causa das instruções que recebeu, mas devido à sua aparência. Ela me confundiu e provavelmente também ao comandante, e pôde confundir e enganar os seres humanos em geral, como enganei, sem querer, o oficial Niss. Ele claramente não percebeu, a princípio, que eu era um robô.

      - E daí, amigo Daneel?

      - Em Aurora foram construídos vários robôs humanóides no Instituto de Robótica, sob a direção do Dr. Amadiro, com desenhos preparados pelo Dr. Fastolfe.

      - Todos sabem disso.

      - O que aconteceu a esses robôs humanóides?

      - O projeto fracassou. Foi a vez de Daneel:

      - Todos sabem disso. Mas não responde à pergunta. O que aconteceu a esses robôs humanóides?

      - Supõe-se que tenham sido destruídos.

      - Essa suposição não precisa estar necessariamente correta. Teriam sido realmente destruídos?

      - Teria sido a coisa mais sensata a fazer. O que mais se podia fazer com um fracasso?

      - Só sabemos que os robôs humanóides foram um fracasso e que foram retirados de circulação?

      - E se não fossem, seria diferente?

      - E se não fossem, poderia haver outro motivo para serem retirados de circulação?

      - Não consigo pensar em nada, amigo Daneel.

      - Torne a pensar, amigo Giskard. Lembre, estamos falando agora de robôs humanóides que, não pensamos, podem, pelo simples fato da sua natureza humanóide, ser perigosos. Pareceu-nos, na nossa conversa anterior, que havia um plano em marcha em Aurora para derrotar os Colonizadores drástica, segura e definitivamente. Achamos que esses planos precisavam ser centrados no planeta Terra. Estou certo até agora?

      - Sim, amigo Daneel.

      - Então, não pode acontecer que o Dr. Amadiro seja o inspirador e o centro desse plano? Sua antipatia pela Terra ficou bem clara nestas vinte décadas. E se o Dr.

      Amadiro construiu numerosos robôs humanóides, para onde eles devem ter sido enviados, se desapareceram de circulação? Lembre-se que, se os roboticistas solarianos podem deformar as Três Leis, os Auroreanos também podem.

      - Está sugerindo, amigo Daneel, que os robôs humanóides foram mandados para a Terra?

      - Exatamente. Para enganar os Terráqueos com sua aparência humana e tornar possível o que quer que o Dr. Amadiro planeje como um golpe contra a Terra.

      - Você não tem prova disso.

      - Contudo, é possível. Examine o desenrolar da discussão.

      - Se for assim, teremos de ir à Terra. Teremos de estar lá e, de alguma forma, evitar o desastre.

      - Sim, é isso.

      - Mas não podemos ir, a menos que Lady Gladia vá e isso não é provável.

      - Se você puder influenciar o comandante a levar esta nave à Terra, senhora Gladia não teria outra escolha senão ir também.

      - Não posso fazer isso, sem causar-lhe mal - retrucou Giskard. - Ele está firmemente decidido a ir para o seu próprio planeta, Baleyworld. Devemos maquinar sua ida à Terra - se pudermos - depois de ele ter feito o que planeja em Baleyworld.

      - Então pode ser muito tarde.

      - Não posso fazer nada. Não devo fazer mal a um ser humano.

      - Se for muito tarde... Amigo Giskard, imagine o que isso significa.

      - Não posso levar isso em conta. Sei apenas que não posso causar dano a um ser humano.

      - Então a Primeira Lei não é suficiente e precisamos...

      Ele não pôde prosseguir e ambos mergulharam num silêncio desesperado.

     

      Baleyworld tornou-se pouco a pouco mais nítido à medida que a nave se aproximava. Gladia observou-o cuidadosamente pelo visor do seu camarote; era a primeira vez que ela via um planeta dos Colonizadores.

      Ela protestou contra esta etapa da viagem quando tomou conhecimento dela por D. G., mas acabou encolhendo os ombros, com um risinho.

      - Que quer, minha senhora? Preciso fazer chegar esta arma do seu povo - acentuou ligeiramente o "seu" - ao meu. E também fazer-lhe um relatório.

      Gladia comentou friamente:

      - O Conselho Auroreano lhe deu permissão para me levar a Solaria com a condição de me levar de volta.

      - Na verdade, não foi assim, minha senhora. Deve ter havido um acordo informal para isso, porém nada escrito. Nenhum acordo formal.

      - Um acordo informal me comprometeria - ou a qualquer indivíduo civilizado, D. G.

      - Estou certo disso, Senhora Gladia, mas nós, Mercadores, vivemos Para o dinheiro e por assinaturas postas em documentos legais. Eu jamais, sob nenhum pretexto, violaria um contrato escrito ou me recusaria a fazer alguma coisa pela qual tivesse recebido pagamento.

      Gladia ergueu o queixo.

      - Isso é uma insinuação de que preciso lhe pagar para ser levada de volta?

      - Senhora!

      - Vamos, vamos, D. G. Não gaste uma indignação fingida comigo. Se eu tiver de ficar prisioneira em seu planeta, diga logo e dê-me o motivo. Explique-me exatamente a situação.

      - A senhora não é minha prisioneira, nem será. Na realidade, honrarei esse acordo verbal. Levá-la-ei para casa - finalmente. Primeiro, porém, preciso ir a Baleyworld, e a senhora deve vir comigo.

      - Por que devo ir com o senhor?

      - Os habitantes do meu planeta querem vê-la. A senhora é a heroína de Solaria. A senhora nos salvou. Não pode privá-los da oportunidade de ficarem roucos saudando-a.

      Além disso, a senhora foi a amiga querida do Antepassado.

      - O que sabem eles - ou pensam que sabem - a esse respeito? - perguntou Gladia, asperamente.

      D. G. riu.

      - Nada que a desacredite, garanto-lhe. A senhora é uma lenda, e lendas são mais extensas que a vida; embora eu confesse que seria fácil para uma lenda ser mais extensa que a senhora - e muito mais nobre. Ordinariamente, não a quero no planeta porque a senhora não pode sobreviver à lenda. Não é bastante alta, suficientemente bela, nem majestosa. Mas quando a história de Solaria veio à tona, a senhora adquiriu subitamente todos os requisitos citados. Na verdade, eles podem não querer deixá-la partir. Deve lembrar-se de que estamos falando de Baleyworld, o planeta onde a história do Antepassado é levada mais a sério que em qualquer outro - e a senhora é parte dessa história.

      - O senhor não está usando isso como pretexto para me manter presa, está?

      - Asseguro-lhe que não. E lhe garanto que a levarei para casa - quando puder. Quando puder.

      Gladia não ficou tão indignada quanto sentiu que tinha o direito de estar. Ela não queria ver como era um planeta dos Colonizadores, e, afinal de contas, este era o mundo peculiar de Elijah Baley. Seu filho o fundara. Ele próprio tinha passado suas últimas décadas ali. Em Baleyworld, deveriam existir remanescentes dele – o nome do planeta, seus descendentes, sua lenda.

      Portanto, ficou observando o planeta - e pensando em Elijah.

      A observação forneceu-lhe pouco e ela sentiu-se desapontada. Não havia muito para ser visto entre as camadas de nuvens que cobriam o planeta. Na sua experiência relativamente pequena como viajante espacial, pareceu-lhe que as camadas de nuvens eram mais espessas que o habitual em planetas habitados. Deveriam pousar dentro de poucas horas, agora, e...

      O sinal luminoso acendeu-se e Gladia arrastou-se para apertar o botão PARE em resposta. Mais uns instantes e ela apertou o botão ENTRE.

      D. G. entrou, sorrindo.

      - Cheguei num momento inconveniente, minha senhora?

      - Na verdade, não - replicou Gladia. - Só preciso calçar as luvas e colocar meus filtros de nariz. Suponho que devia usá-los o tempo todo, mas se tornam cansativos quando, por algum motivo, me sinto menos preocupada com a infecção.

      - A familiaridade alimenta o desprezo, minha senhora.

      - Não vamos chamá-lo assim - respondeu Gladia, que também sorriu.

      - Obrigado - disse D. G. - Vamos pousar logo, senhora, e eu lhe trouxe um macacão, cuidadosamente esterilizado e encerrado neste saco plástico de maneira a não ser tocado por mãos de Colonizadores. É simples vesti-lo. Não sentirá incômodo e verá que ele cobre tudo, menos o nariz e os olhos.

      - Apenas para mim, D. G.?

      - Não, não, minha senhora. Todos usamos coisas assim quando no exterior, nesta época do ano. É inverno na nossa capital atualmente e faz frio. Habitamos um planeta bastante frio - pesadamente coberto de nuvens, com muita precipitação e neve freqüente.

      - Mesmo nas regiões tropicais?

      - Não. Lá a tendência é para o clima quente e seco. Contudo, a população se concentra nas regiões mais frias. Nós as preferimos. É fortificante e estimulante. Os mares, povoados de espécies de vida Terráqueas, são férteis e por isso os peixes e outros animais multiplicaram-se abundantemente. Não há, por conseqüência, escassez de alimentos, apesar do solo agriculturável ser limitado, o que nos impedirá de sermos o celeiro da Galáxia. Os verões são curtos porém muito quentes, e as praias, nessa época, ficam apinhadas, embora a senhora possa achar seus freqüentadores desinteressantes, visto termos um forte tabu contra a nudez.

      - Parece-me uma estação singular.

      - Uma questão de distribuição solo-mar, uma órbita planetária ligeiramente mais excêntrica que a maioria de poucas coisas mais. Francamente, não me preocupo com isso. - Encolheu os ombros. - Não é meu campo de interesse.

      - O senhor é Mercador. Imagino que não fica muito tempo no planeta.

      - É verdade, mas não sou Mercador para fugir. Gosto daqui. Contudo, talvez gostasse menos se permanecesse aqui mais tempo. Sob esse Ponto de vista, as condições duras de Baleyworld servem a um importante objetivo. Encorajam o comércio. Baleyworld produz homens que percorrem os mares à procura de alimentos, e há uma certa semelhança entre navegar pelos oceanos e pelo espaço. Ouso dizer que um terço de todos os Mercadores singrando as rotas do espaço é nativo de Baleyworld.

      - O senhor me parece estar num estado semimaníaco, D. G. - confessou Gladia.

      - Pareço? Estou me considerando neste instante como de muito bom humor. E tenho motivo para isso. E a senhora também.

      - Eu tenho?

      - É evidente, não acha? Deixamos Solaria vivos. Sabemos exatamente o que é o perigo Solariano. Nos apossamos de uma arma estranha, que pode interessar nossos militares. E a senhora se tornará a heroína de Baleyworld. O mundo oficial já conhece o resumo dos acontecimentos e está ansioso para homenageá-la. Por esse motivo, a senhora é a heroína desta nave. Quase todos os homens a bordo ofereceram-se para vir lhe entregar o macacão. Estão todos ansiosos para se aproximar e se banhar em sua aura, por assim dizer.

      - Uma grande mudança - comentou Gladia, secamente.

      - Completa. Niss, o tripulante a quem seu Daneel castigou...

      - Estou bem lembrada, D. G.

      - Está ansioso para se desculpar com a senhora. E trazer seus quatro companheiros, que também querem pedir desculpas. E surrar, em sua presença, o que fez uma sugestão imprópria. Ele não é uma pessoa má, minha senhora.

      - Tenho certeza que não. Garanta-lhe que está perdoado e o incidente esquecido. E se o senhor quiser se dar ao trabalho, eu gostaria... gostaria de lhe apertar a mão e talvez as de alguns outros antes de desembarcar. Mas o senhor não deve deixá-los aglomerar-se à minha volta.

      - Compreendo, mas não posso garantir que não haja uma certa aglomeração na cidade de Baley, capital de Baleyworld. Não há como impedir que vários funcionários governamentais tentem obter vantagens políticas sendo vistos ao seu lado, enquanto riem e se curvam para todos.

      - Jehoshaphat! Como diria seu Antepassado.

      - Não repita isso quando estiver no solo, senhora. É uma expressão reservada para ele. É considerado de mau gosto alguém mais dizê-la. Haverá discursos, vivas e toda espécie de formalidades menores. Desculpe, minha senhora.

      Ela replicou, pensativa:

      - Posso agüentar, mas suponho que não há como pará-los.

      - Não há, minha senhora.

      - Vai demorar quanto tempo?

      - Até cansarem. Vários dias, talvez, mas haverá uma certa variedade.

      - E quanto tempo deveremos permanecer no planeta?

      - Até eu me cansar. Desculpe, minha senhora, mas tenho muito o que fazer. Lugares a ir, amigos para ver.

      - Mulheres com quem fazer amor.

      - Ai de mim, a fragilidade humana - disse D. G. com uma ampla risada.

      - O senhor está a ponto de se babar.

      - Uma fraqueza. Não posso evitar. Gladia riu.

      - O senhor não é inteiramente são, é?

      - Nunca afirmei ser. Mas, deixando isso de lado, devo também levar em conta esses assuntos aborrecidos, como o fato de meus oficiais e tripulação quererem ver suas famílias e amigos, recuperar o sono e ter algum divertimento planetário. E a senhora deve levar em conta os sentimentos dos objetos inanimados - a nave deve ser consertada, lustrada, renovada e reabastecida. Coisinhas assim.

      - Quanto tempo vão levar essas coisinhas?

      - Podem levar meses. Quem sabe?

      - E o que devo fazer enquanto isso?

      - Pode visitar nosso planeta, ampliar seus horizontes.

      - Mas seu planeta não é exatamente o paraíso da Galáxia.

      - É verdade, mas procuraremos mantê-la interessada. - Olhou o relógio. - Mais um aviso, senhora. Não diga sua idade.

      - Porquê?

      - Essa alusão pode aparecer numa referência casual. Todos esperam que diga algumas palavras e a senhora pode querer atendê-los. Por exemplo: "Em mais de minhas vinte e três décadas de vida, nunca fiquei tão contente por ver alguém como estou ao ver os habitantes de Baleyworld." Se a senhora for tentada a dizer de saída alguma coisa assim, resista.

      - Seguirei seu conselho. Não tenho intenção de me abandonar a hipérboles em hipótese alguma. Mas, apenas por curiosidade, por que isso?

      - Simplesmente porque é melhor para eles não saber sua idade.

      - Mas eles sabem minha idade, não sabem? Sabem que fui amiga do seu Antepassado e sabem em que época ele viveu. Ou estarão sob a impressão - Gladia olhou-o de soslaio - de que sou uma descendente distante daquela Gladia?

      - Não, não, eles sabem quem a senhora é e que idade tem, mas apenas intelectualmente - bateu na testa. - Pouca gente tem cabeças pensantes, como deve ter notado.

      - Sim, notei. Em Aurora é a mesma coisa.

      - Ótimo. Não gostaria que os Colonizadores fossem especiais a este respeito. Bem, então a senhora tem a aparência de - fez uma pausa, avaliando - quarenta, talvez quarenta e cinco, e eles a aceitarão assim em suas tripas, que é onde se coloca a média do mecanismo pensante das pessoas. Se a senhora não atrapalhar as coisas.

      - Isso faz realmente alguma diferença?

      - Se faz? Olhe, o Colonizador médio realmente não quer robôs. Não gosta deles, não os deseja. Nisso ficamos felizes por diferirmos dos Espaciais. Vida longa é diferente. Quarenta décadas é consideravelmente mais que dez.

      - Poucos de nós, realmente, atingem a marca de quarenta décadas.

      - E poucos de nós a de dez décadas. Nós ensinamos a vantagem da vida curta - qualidade contra quantidade, rapidez evolutiva, mundo sempre em mudança - porém nada realmente faz o povo feliz por viver dez décadas quando ele imagina que pode viver quarenta. Eles não vêem Espaciais com muita freqüência, como pode imaginar, e por isso não têm ocasião de ranger os dentes pelo fato de os Espaciais parecerem moços e vigorosos mesmo quando são duas vezes mais idosos que o Colonizador mais velho que conhecem. Eles vêem isso na senhora, e se pensarem a respeito, ficarão inseguros.

      Gladia comentou, amargamente:

      - O senhor gostaria que eu fizesse um discurso e dissesse a eles exatamente o que significam quarenta décadas? Devo contar-lhes durante quantos anos alguém sobrevive à primavera da esperança, para não falar de amigos e conhecidos? Devo expor-lhes a pouca importância de filhos e família, as trocas infindáveis de maridos, uns após outros, falar-lhes da mistura nebulosa de relações e informações, da fase em que já se viu e ouviu tudo o que se queria ver e ouvir, em que se descobre ser impossível ter um pensamento novo, em que se esquece o que há de excitação e descoberta à volta, em que se aprende a cada ano como o enfado pode chegar a ser cada vez mais intenso?

      - Os Baleyanos não acreditariam nisso. Eu mesmo talvez não acreditasse. É essa a forma de sentir de todos os Espaciais ou a senhora está inventando?

      - Apenas sei como me sinto, mas observei outros se tornarem sombrios ao envelhecerem, vi seu ânimo azedar, suas ambições diminuírem e sua indiferença crescer.

      Os lábios de D. G. contraíram-se e ele ficou mais sombrio.

      - A taxa de suicídio é muito alta entre os Espaciais? Nunca ouvi dizer que fosse.

      - É virtualmente zero.

      - Mas isso não combina com o que a senhora está dizendo.

      - Veja bem! Vivemos cercados de robôs, dedicados a nos conservar vivos. Não há meios de nos matarmos, com nossos atentos e ativos robôs sempre em torno de nós. Duvido que qualquer de nós chegue sequer a tentar. Eu, por exemplo, nem sonharia com isso, quando menos porque não posso suportar a idéia do que isso iria causar a todos os meus robôs domésticos, em especial Daneel e Giskard.

      - A senhora sabe que eles não estão realmente vivos. Eles não têm sentimentos.

      Gladia sacudiu a cabeça.

      - O senhor diz isso porque nunca viveu com eles. Em todo caso, acho que o senhor superestima a ânsia pela vida prolongada entre sua gente. O senhor conhece minha idade, vê minha aparência e contudo isso não o afeta.

      - Porque estou convencido de que os planetas Espaciais é que vão degenerar e morrer, que os planetas dos Colonizadores é que são a esperança da humanidade futura, e que a nossa característica vida curta é que garante isso. Ouvindo o que a senhora acaba de dizer, considerando que seja tudo verdade, ainda fico mais certo disso.

      - Não seja tão confiante. O senhor terá de desenvolver seus próprios problemas insuperáveis - se já não os têm.

      - Isso é indubitavelmente possível, minha senhora, mas agora preciso deixá-la. A nave está se preparando para pousar e eu preciso estar atento ao computador que comanda o pouso ou ninguém acreditará que sou o comandante.

      D. G. retirou-se e ela permaneceu numa sombria meditação durante algum tempo, os dedos puxando o plástico que encerrava o macacão.

      Ela havia chegado a uma sensação de equilíbrio em Aurora, um meio de permitir que a vida transcorresse tranqüilamente. Isso ocorrera refeição por refeição, dia a dia, estação por estação, e o silêncio a tinha quase isolado da tediosa espera pela única aventura que restara, a derradeira, a da morte.

      E agora ela viera a Solaria e tinha despertado as recordações de uma infância há muito decorrida, num mundo que já não existia, de forma que o silêncio tinha sido estilhaçado - talvez para sempre - e por isso ela agora jazia descoberta e nua para horror da vida que prosseguia.

      O que poderia substituir o silêncio desaparecido?

      Ela percebeu o brilho diminuto dos olhos de Giskard pregados nela e disse:

      - Ajude-me, Giskard.

      Fazia frio. O céu estava cinzento, nublado, e o ar luzia com uma leve precipitação de neve. Flocos de neve rodopiavam na brisa fresca e caíam além, no campo de pouso que Gladia podia ver, formando distantes montes brancos.

      Havia uma multidão amontoada aqui e ali, retida por barreiras para não se aproximar muito. Todos usavam macacões de diferentes modelos e cores, e externamente todos pareciam balões, tornando-se humanos numa Multidão de objetos informes com olhos. Alguns estavam usando visores Que brilhavam, transparentes, em seus rostos.

      Gladia encostou a mão enluvada no rosto. com exceção do nariz, sentia-se bastante aquecida. O macacão fazia mais que isolar; parecia irradiar calor por si mesmo.

      Gladia olhou para trás. Daneel e Giskard estavam ao alcance, cada um vestindo seu macacão.

      A princípio, ela havia protestado.

      - Eles não precisam de macacões. Não são sensíveis ao frio.

      - Sei disso - replicou D. G. - mas a senhora disse que não vai a lugar algum sem eles, e não podemos justificar a presença de Daneel sentado aí, exposto ao frio. Seria antinatural. Tampouco desejamos despertar hostilidade, deixando claro que a senhora tem robôs.

      - Eles precisam saber que trago robôs comigo, e o rosto de Giskard não deixa margem a dúvidas - mesmo num macacão.

      - Eles podem saber - replicou D. G. - mas há a possibilidade de não pensarem nisso se a tal não forem forçados; portanto, não vamos forçá-los.

      Agora D. G. a estava levando para um carro terrestre, que tinha teto e lados transparentes.

      - Todos querem vê-la enquanto nos locomovemos, minha senhora - disse D. G., sorrindo.

      Gladia sentou-se num lado e D. G. no outro.

      - Sou o co-herói - disse ele.

      - O senhor dá importância a isso?

      - Ah, dou. Isso significa uma gratificação para minha tripulação e uma possível promoção para mim. Não é de se desprezar.

      Daneel e Giskard também entraram e se instalaram de frente para os dois humanos. Daneel defronte de Gladia, e Giskard defronte de D. G.

      Havia um carro terrestre à frente deles, sem transparência, e uma fila de cerca de doze atrás. Ouviu-se o barulho de saudações e uma floresta de braços balançando, da multidão reunida. D. G. sorriu, ergueu um braço em resposta e instigou Gladia a fazer o mesmo. Ela o acompanhou de uma forma indiferente. Dentro do carro estava quente, e seu nariz tinha perdido a dormência.

      - Estas janelas têm um brilho bastante incômodo - disse ela. - Isso não pode ser eliminado?

      - Sem dúvida, mas não será feito - replicou D. G. - Este é o melhor campo de força que pudemos instalar, sem causar transtorno. Lá fora há um povo entusiasta, que foi devidamente examinado, mas alguém pode ter conseguido ocultar uma arma, e não queremos que a senhora seja ferida.

      - O senhor acha que alguém pode querer me matar?

      (Os olhos de Daneel estavam calmamente perscrutando a multidão num dos lados do carro, enquanto Giskard vigiava o outro.)

      - É muito improvável, minha senhora, mas a senhora é uma Espacial e os Colonizadores não gostam de Espaciais. Alguns podem odiá-los de maneira violenta, o bastante para ver na senhora uma Espacial e nada mais. Mas não se preocupe. Mesmo que alguém tentasse - o que, como eu disse, é improvável - não conseguiria.

      A fila de carros começou a se mover, ao mesmo tempo e muito suavemente.

      Gladia soergueu-se, meio espantada. O assento da frente estava vazio.

      - Quem está dirigindo? - perguntou.

      - Os carros são totalmente computadorizados - replicou D. G. - Os carros Espaciais não são?

      - Temos robôs para dirigi-los.

      D. G. continuou abanando a mão e Gladia o seguiu mecanicamente.

      - Nós não temos - disse ele.

      - Mas um computador é basicamente a mesma coisa.

      - O computador não é humanóide e não chama a atenção. Por mais semelhança tecnológica que possa haver, são mundos à parte, psicologicamente.

      Gladia olhou os arredores e achou-os opressivamente estéreis. Mesmo dando o desconto do inverno, havia desolação nas moitas desfolhadas espalhadas e nas árvores escassamente distribuídas, cuja aparência raquítica e deprimente acentuava a morte que parecia envolver tudo.

      D. G., notando a depressão de Gladia e ligando-a aos olhares lançados por ela aqui e ali, disse:

      - A aparência agora não é boa, minha senhora. No verão, porém, não é má. Há planícies gramadas, pomares, campos de cereais...

      - Florestas?

      - Abundantes, não. Ainda somos um mundo em crescimento. Ainda estão sendo moldadas. Na verdade temos apenas pouco mais de um século e meio. O primeiro passo foi cultivar pedaços de terra para os primeiros Colonizadores, usando sementes importadas. Depois, colocamos peixes e invertebrados de todos os tipos no oceano, num esforço máximo para obter uma ecologia auto-sustentável. Isso é muito fácil se a química oceânica é adequada. Se não for, então o planeta não é habitável sem uma extensa modificação química, e isso na realidade nunca foi tentado, apesar de existirem todas as espécies de plantas para isso. Finalmente, fizemos experiências no sentido de criar condições para que o solo produza, o que é sempre difícil, sempre demorado.

      - Os planetas dos Colonizadores seguiram invariavelmente esse caminho?

      - Estão seguindo. Nenhum está realmente terminado. Baleyworld é o mais velho e ainda não está pronto. com mais uns dois séculos, os planetas dos Colonizadores serão ricos e cheios de vida - tanto o solo como o mar - ainda que nessa época haja planetas ainda mais novos que estarão construindo seu caminho em vários estágios preliminares. Estou certo de que os planetas Espaciais fizeram o mesmo.

      - Muitos séculos atrás - e mais depressa, acho eu. Temos robôs para ajudar.

        - Daremos um jeito - retrucou D. G., conciso.

      - E quanto à vida nativa - as plantas e animais que evoluíram no planeta antes dos humanos chegarem?

      D. G. encolheu os ombros.

      - Não significam muito. Coisas pequenas e frágeis. Claro, os cientistas estão interessados, e por isso a vida nativa ainda existe, especialmente a aquosa, a botânica e a zoológica. Ainda há lençóis d'água e consideráveis tratos de terra que não foram transformados. A vida nativa continua a florir neles, em estado selvagem.

      - Mas essas terras serão, finalmente, todas transformadas.

      - Esperamos que sim.

      - Não acha que o planeta realmente pertence a essas coisas pequenas, insignificantes e frágeis?

      - Não. Não sou sentimental a esse ponto. O planeta e todo o universo pertence à inteligência. Os Espaciais concordam com isto. Onde está a vida nativa de Solaria? Ou de Aurora?

      A fila de carros, que tinha saído sinuosamente do espaçoporto, agora chegou a uma área plana, calçada, onde vários prédios baixos e abobadados se destacavam.

      - Capital Plaza - disse D. G., em voz baixa. - Aqui se situa o centro nervoso do planeta. Os escritórios governamentais estão localizados nesta área, o Congresso Planetário reúne-se aqui, a Mansão Executiva ergue-se neste local e assim por diante.

      - Desculpe, D. G., mas não é muito impressionante. São prédios pequenos e desinteressantes.

      D. G. sorriu.

      - A senhora está vendo apenas um ocasional ponto mais alto, minha senhora. Os edifícios propriamente ditos estão no subsolo - todos interligados. Realmente, é um único conjunto e continua crescendo. É uma cidade completa, auto-suficiente. Ela e as áreas residenciais ao redor constituem Baleytown.

      - Os senhores planejam manter tudo, finalmente, subterrâneo? A cidade inteira? O planeta todo?

      - Sim, muitos de nós pensam num mundo subterrâneo.

      - Ouvi dizer que eles têm Cidades na Terra.

      - De fato, têm, minha senhora. As chamadas Cavernas de Aço.

      - Então elas são imitadas aqui?

      - Não é uma simples imitação. Acrescentamos nossas idéias e... Vamos chegar a uma parada, minha senhora, e a qualquer momento nos pedirão para descer. Se eu fosse a senhora, prenderia as aberturas do macacão. O vento sibilante de Plaza no inverno é lendário.

      Gladia obedeceu, um tanto indecisa quando tentou juntar as beiras das aberturas.

      - O senhor diz que não é uma simples imitação.

      - Não é. Construímos nossos subterrâneos levando em conta o tempo- Uma vez que ele é, no seu todo, mais severo que o da Terra, torna-se necessária uma modificação na arquitetura. Construindo-se adequadamente, quase não se precisa de energia para manter o conjunto calorífico no inverno e o frescor no verão. De certa maneira, na verdade, conservamos o calor no inverno, em parte, com a tepidez armazenada no verão anterior, e o frescor do verão com a frialdade do inverno anterior.

      - E a ventilação?

      - Esta consome parte de nossas economias, mas não todas. Funciona, minha senhora, e um dia igualaremos os edifícios da Terra. Claro, a nossa máxima ambição é fazer de Baleyworld um reflexo da Terra.

      - Eu nunca soube que a Terra fosse tão admirável a ponto de se tornar motivo de inspiração - replicou Gladia alegremente.

      D. G. fixou um olhar áspero nela.

      - Minha senhora, não faça piadas iguais a essa enquanto estiver entre Colonizadores - nem mesmo comigo. A Terra não é matéria de piadas.

      - Desculpe, D. G. Eu não pretendi ser descortês.

      - A senhora não sabia. Mas agora sabe. Venha, vamos sair.

      A porta lateral do carro deslizou silenciosamente e D. G. girou no banco para sair. Depois estendeu a mão para ajudar Gladia e disse:

      - A senhora vai falar ao Congresso Planetário, e todo funcionário governamental fará tudo que puder para estar presente.

      Gladia, que tinha estendido a mão para pegar a de D. G. e que já havia sentido - penosamente - o vento frio no rosto, encolheu-se subitamente.

      - Preciso fazer um discurso? Ninguém me informou. D. G. ficou surpreso.

      - Pareceu-me, no entanto, que a senhora devia esperar por isso.

      - Ora, pois não esperei. E não posso fazer um discurso. Nunca fiz tal coisa.

      - A senhora precisa. Não há nada de tão terrível. Basta dizer umas poucas palavras, após alguns longos e maçantes discursos de boas-vindas.

      - Mas que poderei dizer?

      - Nada espetacular, asseguro-lhe. Apenas paz e amor e blablablá - basta meio minuto. Se a senhora quiser, rabiscarei algumas palavras.

      E Gladia saiu do carro, acompanhada por seus robôs. Sua cabeça rodopiava.

     

      O Discurso

      Tão logo entraram no edifício, retiraram os macacões e os entregaram aos criados. Daneel e Giskard também despiram os seus; os criados lançaram olhares penetrantes ao último, aproximando-se dele devagar.

      Gladia ajustou nervosamente seus filtros nas narinas. Jamais estivera na presença de grandes multidões de seres humanos de vida curta - vida curta derivados em parte,

      sabia (ou sempre lhe fora dito), do fato de levarem em seus corpos infecções crônicas e montes de

      parasitas.

      - Terei de volta meu próprio macacão? - gemeu ela.

      - A senhora não vestirá o de outra pessoa - replicou D. G. - Ele ficará guardado e radioesterilizado.

      Gladia parecia muito cautelosa. Dava a impressão de sentir que mesmo o contato óptico podia ser perigoso.

      - Quem são essas pessoas?

      Apontou para várias pessoas que usavam roupas vivamente coloridas e estavam evidentemente armadas.

      - Guardas de segurança, senhora - respondeu D. G.

      - Mesmo aqui? Num prédio do governo?

      - Sim, certamente. E quando estivermos na plataforma, haverá a proteção de uma guarda de campo, separando-nos do auditório.

      - Os senhores não confiam em seus próprios legisladores? D. G. esboçou um sorriso.

      - Completamente, não. Este é um planeta ainda primitivo e seguimos nossos próprios caminhos. Ainda não aparamos todas as arestas e não temos robôs velando por nós.  Além disso, temos também partidos minoritários militantes; temos nossos falcões de guerra.

      - Que são falcões de guerra?

      A maior parte dos habitantes do planeta tinha, agora, despido os macacões e estava se servindo de bebidas. Havia um zumbido de conversa no  ar e muita gente olhava para Gladia, mas ninguém se aproximou para falar com ela. De fato, ficou claro para Gladia que havia um círculo de vazio à sua volta. D.  G.  reparou seu olhar em torno e interpretou-o corretamente.

      - Eles foram avisados - falou - de que a senhora gostaria de um pouco de espaço. Acho que compreenderam seu medo de infecções.

      - Espero que eles não considerem isso como um insulto.

      - Talvez considerem, mas a senhora tem uma coisa que é nitidamente um robô ao seu lado, e a maior parte dos habitantes não quer essa espécie de infecção. Especialmente os falcões de guerra.

      - O senhor ainda não me disse quem são eles.

      - Direi quando houver ocasião. A senhora, eu e outros na plataforma vamos ter de andar dentro em pouco. A maioria dos colonizadores pensa que, com o tempo, a Galáxia  será deles, que os Espaciais não poderão nem quererão competir vitoriosamente na corrida pela expansão. Também sabemos que isso leva tempo. Não iremos ver, nem provavelmente  os nossos filhos. Pode levar um milênio, segundo pensamos. Os falcões de guerra não querem esperar. Querem resolver o caso já.

      - Eles querem guerra!

      - Não dizem explicitamente e não se chamam falcões de guerra. Nós, gente sensata, é que os chamamos assim. Eles se denominam Dominadores da Terra. Mas é difícil  discutir com gente que anuncia ser a favor da supremacia da Terra. Todos nós também somos, porém a maioria de nós não espera necessariamente que isso aconteça amanhã  e não ficará violentamente obcecada se isso não acontecer.

      - E esses falcões de guerra podem me atacar? Fisicamente? D. G. fez-lhe sinal para andar.

      - Acho que devemos começar a nos mover, senhora. Estão nos colocando em fila. Não, não creio que a senhora vá ser realmente atacada, porém é sempre melhor ser precavido.

      Gladia imobilizou-se quando D. G. indicou seu lugar na fila.

      - Não sem Daneel e Giskard, D. G. Continuo sem ir a lugar algum sem eles. Nem mesmo aqui, na plataforma. Principalmente depois do que o senhor acaba de me contar  sobre os falcões de guerra.

      - A senhora está pedindo muito, minha senhora.

      - Ao contrário, D. G., não estou pedindo nada. Leve-me de volta para casa imediatamente - com meus robôs.

      Gladia ficou olhando, tensa, enquanto D. G. se aproximava de um pequeno grupo de funcionários. Ele se curvou ligeiramente, com os braços estendidos para baixo em  diagonal. Era o que Gladia desconfiou fosse um gesto de respeito em Baleyworld.

      Não ouviu o que D. G. estava dizendo, mas uma fantasia dolorosa e verdadeiramente involuntária povoou sua imaginação. Se houvesse qualquer tentativa de separá-la  dos seus robôs contra sua vontade, Daneel e Giskard fariam o que pudessem para evitar. Agiriam rápida e    precisamente para realmente ferir alguém - mas os guardas de segurança usariam suas armas imediatamente.

      Ela precisava evitar isso a todo custo - fingir que estava se separando voluntariamente deles e pedir-lhes que esperassem por ela. Como poderia fazer isso? Em toda a sua vida, nunca ficara inteiramente sem robôs. Como poderia sentir-se a salvo sem eles? Contudo, que outro meio havia para sair do dilema?

      D. G. voltou.

      - Sua condição de heroína, minha senhora, é uma útil moeda de troca. E, claro, sou um sujeito muito persuasivo. Seus robôs podem ir com a senhora. Tomarão lugar na plataforma atrás da senhora, mas não haverá refletores sobre eles. E, por amor ao Antepassado, minha senhora, não chame a atenção para eles. Nem mesmo os olhe.

      Gladia suspirou, aliviada.

      - O senhor é uma boa pessoa, D. G. - disse ela, trêmula. - Obrigada.

      Gladia ocupou seu lugar próximo à ponta da fila, com D. G. à sua esquerda, Daneel e Giskard às suas costas, e, atrás deles, uma longa cauda de funcionários de ambos  os sexos.  Uma Colonizadora, carregando um bastão que parecia ser um símbolo do seu cargo, depois de ter examinado atentamente a fila, balançou a cabeça e avançou para a ponta,  começando então a andar. Todos a acompanharam.

      Gladia começou a perceber música à frente num simples e um tanto  repetitivo andamento de marcha, e imaginou se esperavam que ela andasse de forma coreográfica. (Os costumes variavam infinita e irracionalmente de planeta para planeta,  disse para si mesma.)

      Olhando de soslaio, reparou D. G. andando em passo lento para a frente, de maneira indiferente. Estava quase desleixado. Ela franziu os lábios desaprovadoramente  e caminhou ritmicamente, a cabeça erguida, a espinha retesada. Na falta de direção, estava andando como queria.

      Chegaram a um palco, e assim que entraram nele, cadeiras surgiram suavemente de nichos no chão. A fila desfez-se, porém D. G. pegou sua manga e ela o acompanhou.

      Os dois robôs a seguiram.

      Gladia parou diante da cadeira que D. G. apontava silenciosamente. A música cresceu de intensidade, porém a luz não era tão brilhante quanto vinha sendo. Depois, após o que pareceu uma espera interminável, ela sentiu D. G. pressionando-a levemente para baixo, Gladia sentou-se, seguida por todos.

      Ela sentiu o leve tremor da cortina de campo de força e, além dele, uma  platéia de vários milhares de pessoas. Cada cadeira estava ocupada num anfiteatro que subia em degraus. Estavam todos vestidos com cores sóbrias, castanhas e pretas,  ambos os sexos iguais (na medida em que pôde distingui-los). Os guardas de segurança nos corredores estavam firmes em seus  uniformes verdes e vermelhos. Sem dúvida, eram imediatamente identificados. (Embora, pensou Gladia, isso fizesse deles um alvo imediato.) Ela virou-se para D. G.  e disse, em voz baixa:

      - Seu povo tem um legislativo enorme. D. G. encolheu levemente os ombros.

      - Suponho que todos no aparelho governamental estão presentes, com amigos e convidados. Uma homenagem à sua popularidade, minha  senhora.

      Ela lançou um olhar sobre a platéia, da direita para a esquerda e para  trás, no extremo do arco, para captar uma visão, de soslaio, de Daneel ou de Giskard - apenas para ter certeza de que estavam lá. E então pensou, com rebeldia, que  nada aconteceria se desse um rápido olhar e deliberadamente virou a cabeça. Eles estavam lá. Ela também percebeu os olhos de D. G. erguidos para o céu em desespero.

      Ela saltou subitamente quando a luz de um refletor caiu sobre uma das pessoas no palco, enquanto o resto do espaço diminuiu para uma sombra irreal.

      O vulto enfocado levantou-se e começou a falar. Sua voz não estava  excessivamente alta, mas Gladia pôde ouvir uma leve reverberação nas paredes distantes. Devia penetrar em cada recanto do amplo salão, pensou Gladia. Seria uma forma  de ampliação com um instrumento tão disfarçável que ela não via ou era uma forma particularmente inteligente de acústica do salão? Ela não sabia, porém encorajou  sua confusa especulação a continuar, pois isso a aliviava, por algum tempo, da necessidade de ter que ouvir o que estava sendo dito.

      Em certo ponto, ela ouviu um suave grito de "Quakenbush", vindo de um ponto indeterminado da platéia. Se não fosse pela perfeição da acústica (se de fato era isso), provavelmente teria passado despercebido.

      A palavra nada significava para ela, mas, a julgar pelo suave e breve frouxo de riso que varreu a platéia, ela desconfiou que se tratava de uma grosseria. O som extinguiu-se quase imediatamente e Gladia ficou um tanto admirada pelo profundo silêncio que se seguiu.

      Se a sala fosse tão perfeitamente acústica que todo som pudesse ser ouvido, a platéia talvez tivesse de ficar silenciosa, ou o barulho e a confusão seriam intoleráveis.

      Então, uma vez o hábito do silêncio se houvesse estabelecido e o ruído da platéia se tornasse um tabu, só o silêncio teria se tornado impensável. - Exceto onde o impulso de murmurar "Quakenbush" se tornasse irresistível, supôs Gladia.

      Ela percebeu que seu pensamento estava se tornando confuso e seus  olhos estavam se fechando. Sacudiu-se e empertigou-se na cadeira. Os habitantes do planeta  estavam querendo homenageá-la; se caísse no sono durante a  solenidade, isso certamente seria um insulto intolerável. Forçou-se a ouvir, para se manter acordada,  porém aquilo pareceu torná-la ainda mais sonolenta. Mordeu as bochechas e respirou profundamente.

      Discursaram três funcionários, um após o outro, felizmente com alguma brevidade, e depois Gladia sacudiu-se, completamente acordada (Teria realmente cochilado, apesar  dos seus esforços - com milhares de pares de olhos fixados nela?), quando o refletor iluminou um ponto à sua esquerda e D. G. levantou-se para falar, defronte de  sua cadeira.

      O rapaz parecia inteiramente à vontade, com os polegares metidos no cinto.

      - Homens e mulheres de Baleyworld - começou. - Funcionários, legisladores, ilustres chefes e amigos habitantes do planeta, todos ouviram sobre o que aconteceu em  Solaria. Sabem que tivemos um sucesso total. Sabem que Lady Gladia de Aurora contribuiu para esse sucesso. Está na hora, portanto, de fornecer-lhes alguns detalhes  e ao resto dos habitantes do planeta, que estão vendo pela hipervisão.

      Ele passou a descrever os acontecimentos de forma alterada e Gladia ficou friamente divertida com a natureza das modificações. Mencionou por alto seu próprio contratempo  nas mãos de um robô humanóide. Giskard não foi citado, sendo o papel de Daneel minimizado, ao passo que o de Gladia foi muito aumentado. O incidente transformou-se  num duelo entre duas mulheres - Gladia e Landaree - e foram a coragem e o senso de autoridade de Gladia que saíram vitoriosos. Encerrando, D. G. disse:

      - E agora, Lady Gladia, Solariana de nascimento, Auroreana por cidadania, mas Baleyworldiana pela coragem - houve um formidável aplauso final, o mais altissonante  que Gladia já tinha ouvido, pois os oradores anteriores tinham sido recebidos discretamente.

      D. G. ergueu os braços, pedindo silêncio, sendo imediatamente atendido. Então concluiu:

      - ... que vai falar aos senhores.

      Gladia sentiu o refletor sobre si e virou-se para D. G., num pânico súbito. Seus ouvidos encheram-se de aplausos, e também D. G. estava batendo palmas. Aproveitando  a oportunidade, ele se curvou para ela e sussurrou:

      - A senhora ama a todos, a senhora quer paz, e uma vez que não é legisladora, não está habituada a longos discursos. Diga isso e sente-se.

      Gladia o olhou sem compreender, nervosa demais por ter ouvido o que ele disse.

      Ergueu-se e encarou infindáveis filas de gente.

      Gladia sentiu-se muito pequena (sem dúvida, não pela primeira vez em sua vida) quando enfrentou o público. Os homens no palco eram todos  mais altos que ela, o mesmo  acontecendo com as outras três mulheres. Percebeu que, apesar de estarem todos sentados e ela em pé,  sobrepunham-se  a ela. Quanto ao público, que estava esperando, agora numa atitude de silêncio quase ameaçador, os que dele participavam eram, estava convencida, todos maiores que  ela em quaisquer dimensões. Gladia inspirou profundamente e disse:  - Amigos... - sua voz saiu fraca, quase inaudível. Pigarreou (pareceu-lhe um trovão) e tornou a tentar.

      - Amigos! - Desta vez, havia uma certa normalidade no tom. - Os senhores são todos originários da Terra. Cada um dos senhores. Eu também descendo dos Terráqueos.

      Não há seres humanos em nenhum dos planetas habitados - sejam Espaciais, Colonizadores ou a própria Terra - que não sejam Terráqueos de nascimento ou descendentes deles. Todas as outras diferenças desaparecem em face da enormidade deste fato.

      Seus olhos viravam para a esquerda, a fim de olhar D. G., e ela viu que ele estava sorrindo e que uma pálpebra tremia como se ele estivesse piscando.

      Gladia prosseguiu:

      - Isto deverá ser nosso guia em cada pensamento e ação. Agradeço a todos por pensarem em mim como um ser humano amigo e por me receberem em seu seio, sem olhar para  outra classificação na qual estivessem tentados a me colocar. Por causa disso, e na esperança de que breve chegará o dia em que dezesseis bilhões de seres humanos,  vivendo em paz e amor, se considerarão assim e nada mais - ou menos - penso nos senhores não apenas como amigos, mas como parentes de ambos os sexos.

      Houve uma interrupção de palmas que ecoou sobre Gladia e ela semicerrou os olhos, aliviada. Permaneceu em pé para permitir que os aplausos continuassem a banhá-la na bem-vinda indicação de que tinha falado corretamente e - mais ainda - suficientemente. Quando os aplausos começaram a diminuir, Gladia sorriu, inclinou-se para a esquerda e para a direita, e começou a sentar-se.

      Nesse instante, uma voz elevou-se na platéia:

      - Por que não fala em Solariano?

      Ela imobilizou-se a caminho da cadeira e olhou, em pânico, para D. G.

      O rapaz balançou a cabeça levemente e formulou em silêncio:

      - Ignore.

      Fez um gesto o mais disfarçado possível para que ela sentasse.

      Gladia olhou-o um ou dois segundos, depois percebeu o aspecto desajeitado que devia ter, com o traseiro saliente no ato não acabado de  sentar-se. Empertigou-se imediatamente  e lançou um sorriso ao público, ao mesmo tempo em que virava a cabeça de um lado para outro. Pela primeira vez percebeu objetos às suas costas, cujas lentes reluzentes  estavam focadas nela.

      Claro, D. G. tinha dito que a solenidade iria ser transmitida pela  hiperonda. Contudo, agora isso pouco importava. Ela havia falado e sido aplaudida,  e estava enfrentando a platéia que podia ver, ereta e sem nervosismo. Que importava a parte invisível? Gladia falou, ainda sorrindo:

      - Considero essa uma pergunta amistosa. O senhor quer que lhe mostre minha educação. Quantos querem saber se posso falar Solariano? Não hesitem. Ergam seus braços direitos.

      Alguns braços levantaram-se. Gladia falou:

      - A robô humanóide em Solaria me ouviu falar Solariano. Foi isso que a derrotou, afinal. Vamos, quero ver cada um que deseja uma demonstração.

      Outros braços direitos se ergueram e, num momento, a platéia tornou-se um mar de braços levantando. Gladia sentiu alguém puxando a perna de sua calça e, com um safanão, afastou-o.

      - Muito bem. Agora podem baixar os braços, compatriotas. Saibam que atualmente falo o Galáctico Padrão, que é também a sua língua. Contudo, estou falando-o como uma Auroreana e sei que todos os senhores me entendem, embora a maneira como pronuncio as palavras possa lhes soar divertida e a minha escolha de vocábulos possa em alguns momentos confundi-los um pouco. Os senhores repararão que minha maneira de falar tem notas que sobem e descem - quase como se eu as estivesse cantando.

      Isso sempre parece ridículo a todos os não-Auroreanos e mesmo a outros Espaciais.

      "Por outro lado, se eu adoto a maneira Solariana de falar, como estou fazendo agora, os senhores repararão imediatamente que as notas musicais param e a fala se torna gutural, com erres que quase nunca saem - especialmente se não houverrr "rrrr" em parrrte alguma no panoramarrr vocal.”

      Houve uma explosão de riso na platéia e Gladia enfrentou-a com uma expressão séria no rosto. Finalmente, ela ergueu os braços e fez um gesto de interrupção para cima e para baixo, fazendo o riso cessar.

      - Contudo - prosseguiu ela - eu provavelmente não mais irei a Solaria e por isso não terei outra ocasião, daqui para a frente, de usar o dialeto Solariano. E o bom  Comandante Baley - virou-se e fez uma rápida curvatura em sua direção, notando que havia um claro sinal de transpiração em sua testa - me disse que ele não será  mais falado quando eu voltar para Aurora, e assim devo também abandonar o dialeto Auroreano. Minha única escolha, portanto, será falar o dialeto de Baleyworld, que  já estou começando a praticar.

      Ela meteu os dedos de cada mão num cinto invisível, estufou o peito, esticou o queixo, e exibiu o sorriso inconsciente de D. G. e disse, numa grave tentativa de barítono:

      - Homens e mulheres de Baleyworld, funcionários, legisladores, honrados chefes e amigos habitantes do planeta - e isto inclui todos, exceto, talvez, os chefes desonrados... - Ela se esforçou para incluir as paradas  glóticas, os "a" e cuidadosamente pronunciou o "h" de honrados de uma forma que era quase um arquejo.  Desta vez, o riso foi ainda mais estrondoso e prolongado, fazendo com que Gladia se permitisse um sorriso e esperasse calmamente, enquanto a manifestação prosseguia  mais e mais. Afinal de contas, ela os estava convencendo a rirem de si próprios.

      Quando tudo ficou novamente silencioso, ela disse simplesmente numa versão não exagerada do dialeto Auroreano:

      - Cada dialeto é engraçado - ou peculiar - para os que não estão acostumados com ele, e tende a separar os seres humanos - tornando-os com freqüência mutuamente  inamistosos - em grupos. Os dialetos, contudo, são apenas maneiras de falar. Em vez disso, os senhores, eu e todos os outros seres humanos em cada planeta habitado,  devíamos prestar atenção à linguagem do coração - e não há dialetos nela. Essa língua - se a ouvirmos atentamente - tange as mesmas cordas em todos nós.

      Estava liquidado. Gladia estava pronta para sentar novamente, porém outra pergunta fez-se ouvir. Desta vez era voz de mulher.

      - Que idade a senhora tem?

      Desta vez, D. G. forçou um resmungo baixo entre dentes:

      - Sente-se, senhora! Ignore a pergunta.

      Gladia virou-se para encarar D. G., que estava meio levantado. Os outros no palanque, que ela mal podia ver na sombra fora do refletor, estavam tensamente inclinados para ela.

      Gladia virou-se para a platéia e gritou, estridente:

      - Esta gente aqui no palanque quer que eu me cale. Quantos dos senhores aí querem o mesmo? Estou vendo que ficaram calados. Quantos querem que eu continue em pé e responda francamente à pergunta?

      Houve aplausos entusiásticos e gritos de "Responda! Responda!" Gladia disse:

      - A voz do povo! Desculpem-me D. G. e todos os outros, mas estou sendo convocada a falar.

      Ergueu o olhar para o refletor, piscando, e gritou:

      - Não sei quem comanda os refletores, mas iluminem o auditório e desliguem o refletor. Não me importa se isso prejudicará as câmaras de hiperonda. Apenas façam com  que o som continue nítido. Ninguém deve se importar que eu fique na sombra, contanto que possam me ouvir. Não é?

      - É! - foi a resposta unânime. E depois: - Luzes! Luzes! Alguém no palanque fez um sinal meio indeciso e a platéia foi inundada de luz.

      - Assim é melhor! - disse Gladia. - Agora posso ver a todos, meus Compatriotas. Eu gostaria, especialmente, de ver a mulher que me fez a pergunta, a que quer saber a minha idade. Gostaria de me dirigir a ela diretamente. Não seja tímida ou encabulada. Se teve coragem de fazer a pergunta, deve tê-la para fazê-la às claras.

      Esperou e, finalmente, uma mulher ergueu-se no meio da platéia. Usava o cabelo preto repuxado para trás, tinha a pele levemente morena e sua roupa, apertada para ressaltar sua forma esguia, tinha tons diversos de castanho.

      Ela falou, um pouco estridente demais:

      - Não tenho medo de me levantar. E não tenho medo de tornar a fazer a pergunta: Que idade a senhora tem?

      Gladia encarou-a com firmeza e percebeu que estava gostando do confronto. (Que estaria acontecendo? Durante suas primeiras três décadas, ela havia sido cuidadosamente educada para achar intolerável a presença real de um simples ser humano. E agora ali estava ela, encarando milhares, sem temer. Estava vagamente espantada e completamente feliz.)

      - Por favor - começou Gladia - fique em pé, senhora, e conversemos. Como vamos estabelecer a idade? Em anos passados desde o nascimento?

      A mulher retrucou, com serenidade:

      - Meu nome é Sindra Lambid. Sou membro do Congresso e portanto uma "legisladora" do Comandante Baley, uma entre seus "honrados líderes". Espero merecer ao menos  o adjetivo. (Houve uma cascata de riso à medida que a platéia pareceu melhorar o bom humor.) Respondendo à sua pergunta, acho que o número de Anos Galácticos Padrões  decorridos desde o nascimento é a definição habitual da idade de alguém. Assim, tenho cinqüenta e quatro anos. E a senhora? Que tal nos dar uma idéia?

      - Vou fazê-lo. Desde que nasci, passaram duzentos e trinta e três Anos Galácticos Padrões e portanto tenho mais de vinte e três décadas, ou seja, cerca de quatro vezes mais velha que a senhora.

      Gladia manteve-se empertigada e percebeu que seu vulto pequeno e magro, juntamente com a luz fraca, fizeram-na parecer incrivelmente infantil naquele momento.

      Houve um murmúrio confuso na platéia e uma espécie de resmungo à sua esquerda. Um rápido olhar nessa direção mostrou-lhe que D. G. estava com a mão na testa.

      Gladia continuou:

      - Esta, porém, é uma forma inteiramente passiva de estabelecer o lapso de tempo. É uma medida de quantidade que não leva em conta a qualidade. Minha vida tem decorrido  tranqüilamente, podendo-se mesmo dizer que sem relevo. Deslizei por uma rotina estabelecida, protegida de todos os acontecimentos adversos por um sistema de funcionamento  social suave que não dá espaço, quer a mudanças, quer a experiências, e por meus robôs, que se interpõem entre mim e aborrecimentos de toda espécie.   "Só duas vezes em minha vida senti o sopro da excitação, e em ambas a tragédia esteve presente. Quando eu tinha trinta e três anos, mais moça que muitos dos que  estão agora me ouvindo, houve um período - não muito longo - em que pesou sobre mim uma acusação de assassinato. Dois  anos depois, durante outra fase - não muito longa igualmente - fui envolvida em outro assassinato. Em ambas as ocasiões, o detetive Elijah Baley esteve ao meu lado.  Acredito que a maior parte dos presentes - ou talvez todos - conheçam o relato feito pelo filho de Elijah Baley.

      "Devo agora acrescentar uma terceira parte, pois, no mês findo, tive de enfrentar uma grande perturbação, que atingiu o clímax com minha convocação perante os senhores,  coisa inteiramente diferente de tudo o que fiz em toda a minha longa vida. E devo confessar que só a bondade com que me receberam tornou isso possível.”

      "Levem em conta, todos, o contraste disso tudo com suas próprias vidas. Os senhores são pioneiros e vivem num planeta precursor. Este mundo vem crescendo durante  todas as suas vidas e continuará a crescer. Ele é tudo, menos colonizado, e cada dia é - e precisa ser - uma aventura. O próprio clima é uma aventura. Os senhores  têm, em primeiro lugar, frio, depois calor e finalmente frio novamente. É um clima abundante em ventos e tempestades, com transformações súbitas. Em momento algum  podem sentar-se e deixar o tempo passar sonolentamente num planeta que muda suavemente ou não muda absolutamente.”

      "Muitos nativos de Baleyworld são Mercadores ou podem decidir sêlo, caso em que passarão metade de suas vidas percorrendo as rotas do espaço. E se algum dia este  planeta se tornar insípido, seus habitantes podem preferir exercer suas atividades em outro menos desenvolvido ou integrar uma expedição que encontre um planeta  ainda virgem de seres humanos e tomar parte na sua formação, semeando-o e tornando-o apropriado para a ocupação humana.”

      "Medindo a extensão da vida por acontecimentos e feitos, sucessos e agitações, eu sou uma criança, mais moça que todos os senhores. Minha longa idade só tem servido  para me aborrecer e cansar; os poucos anos dos senhores os enriquecem e excitam. Portanto, diga-me novamente: que idade tem?”

      Lambid sorriu.

      - Cinqüenta e quatro excelentes anos, Senhora Gladia.

      Gladia sentou-se; os aplausos cresceram e continuaram. Ao abrigo do barulho deles, D. G. disse, com voz rouca:

      - Lady Gladia, quem lhe ensinou a dominar uma platéia como essa?

      - Ninguém - sussurrou ela, de volta. - Nunca tentei antes.

      - Mas retire-se enquanto está por cima. Quem está agora se levantando é o nosso chefe falcão de guerra. Não é preciso encará-lo. Diga que está cansada e sente-se. Nós conteremos o Velho Bistervan.

      - Mas não estou cansada - disse Gladia. - Estou me divertindo. O homem que a encarava agora, na sua extrema direita, um tanto perto  do palanque, era alto e vigoroso, com sobrancelhas brancas hirsutas caindo sobre os olhos. Seu cabelo fino era também branco, e sua indumentária escura, adornada  por uma listra branca nas mangas e pernas da calça, como Que determinando limites estritos para seu corpo.

        Sua voz era profunda e musical.

      - Meu nome - disse - é Tomas Bistervan e muitos me conhecem como o Velho, principalmente, suponho, porque desejam que eu o seja de fato e não demore muito a morrer.  Não sei como me dirigir à senhora, porque a senhora não parece ter tido um nome de família e também não a conheço com bastante intimidade para chamá-la pelo prenome.  Para ser honesto, não desejo conhecê-la tanto assim.

      "Evidentemente, a senhora ajudou a salvar uma nave de Baleyworld no seu planeta contra as armadilhas e armas colocadas por seu povo, e estamos lhe agradecendo por isso. Em troca, a senhora nos mimoseou com algumas excelentes bobagens sobre amizade e parentesco. Pura hipocrisia!”

      "Quando foi que seus conterrâneos se sentiram nossos parentes? Quando foi que os Espaciais sentiram qualquer afinidade com a Terra e seus habitantes? Certamente, os senhores, Espaciais, são descendentes de Terráqueos. Não esquecemos isso. Durante mais de vinte décadas, os Espaciais controlaram a galáxia e trataram os Terráqueos como se fossem animais odiosos, doentes e de vida curta. Agora, que estamos ficando fortes, a senhora estende a mão da amizade, mas essa mão está enluvada, como as suas. Tentam erguer o nariz para nós; ele, porém, mesmo quando não levantado, tem protetores. Então? Estou certo?"

      Gladia ergueu os braços.

      - Talvez - disse ela - a platéia aqui nesta sala - e, mais ainda, a que me vê pela hiperonda - não perceba que estou usando luvas. Elas não atrapalham, mas estão presentes. Não nego isso. E tenho filtros nas narinas que impedem a entrada da poeira e de microorganismos sem interferir grandemente com a respiração. E tenho o cuidado de borrifar minha garganta de vez em quando. E me lavo talvez um pouco mais do que impõem os requisitos da higiene individual. Não nego nenhuma dessas coisas.

      "Mas isso é o resultado dos meus defeitos e não dos seus. Meu sistema de imunidades não é forte. Minha vida tem sido muito confortável e raramente tenho ficado exposta. Não se trata de uma escolha deliberada, mas devo pagar por ela. Se qualquer dos senhores estivesse na minha infeliz posição, o que faria?”

      Bistervan replicou, amargo:

      - Eu faria o mesmo que a senhora e consideraria isso como um sinal de fraqueza, um sinal de que eu estava despreparado e desajustado para a vida e, portanto, tinha  de dar espaço para os que são fortes. Mulher, não fale de parentesco conosco. A senhora não é minha parenta. A senhora pertence aos que nos perseguiam e tentavam  nos destruir quando eram fortes e que começam a se lamentar conosco quando estão fracos.

      Houve uma agitação na platéia - e por falar nisso, amigável - mas Bistervan manteve-se firme. Gladia falou suavemente:

      - O senhor lembra do mal que fizemos quando éramos fortes?

      Bistervan respondeu:

      - Não tema que esqueçamos. Está diariamente em nossa memória.

      - Ótimo! Porque agora sabem o que evitar. Aprenderam que é errado o poderoso oprimir o fraco. Portanto, quando a mesa vira e os senhores passam a ser os fortes e  nós os fracos, não deverão ser opressores. 

      - Ah, sim. Conheço o argumento. Quando os senhores eram poderosos, nunca ouviram falar de moralidade, mas agora que estão fracos, ela é intensamente pregada.

      - No seu caso, porém, quando eram fracos sabiam tudo sobre moralidade e viviam apavorados pelo comportamento dos fortes: agora, que são fortes, esquecem a moralidade. Certamente, é melhor o imoral aprender moralidade pela adversidade do que o moralista esquecer a moralidade na prosperidade.

      - Devolveremos o que recebemos - disse Bistervan, erguendo o punho fechado.

      - Os senhores deveriam dar o que gostariam de receber - disse Gladia, mantendo os braços erguidos, como que num abraço. - Uma vez que todos podem pensar em alguma  injustiça passada para vingar, como está dizendo, meu amigo, é direito que o forte oprima o fraco. E quando diz isso, o senhor justifica os Espaciais do passado  e, conseqüentemente, não deve se queixar atualmente. O que eu digo é que a opressão foi um erro no passado e o será igualmente no futuro. Não podemos modificar o  passado, infelizmente, mas ainda podemos decidir como será o futuro.

      Gladia fez uma pausa. Quando Bistervan não respondeu imediatamente, ela perguntou:

      - Quantos querem uma nova galáxia, não a má e velha, infinitamente repetida?

      Começaram os aplausos, mas Bistervan ergueu os braços e bradou:

      - Esperem! Esperem! Não sejam tolos! Parem!

      O silêncio voltou lentamente e Bistervan prosseguiu:

      - Acham que esta mulher acredita no que diz? Supõem que os Espaciais nos desejam algum bem? Eles ainda pensam ser poderosos e continuam nos desprezando, tentando  nos destruir - se não os aniquilarmos antes. Esta mulher chegou e nós, como tolos, a recebemos e homenageamos. Bem, ponham suas palavras à prova. Que qualquer um  dos senhores requeira permissão para visitar um planeta Espacial e ver o que puder. No caso de terem um planeta atrasado que produza ameaças, como aconteceu ao Comandante  Baley, como seriam tratados? Perguntem ao comandante se o trataram como parente.

      "Essa mulher é uma hipócrita, apesar de suas palavras - não, por causa delas. Elas são a expressão verbal de sua hipocrisia. Ela se lamenta e geme a respeito do  seu  inadequado sistema de imunização, alegando que precisa se proteger contra o perigo da infecção. Claro, ela não age assim porque pensa que somos idiotas e mórbidos.  Suponho que este pensamento nunca lhe ocorreu.”

        "Ela se lamenta de sua vida passiva, protegida do infortúnio e da desdita por uma sociedade bem instalada e uma multidão atenta de robôs. Como deve odiar isso.”

      "Mas o que a ameaça aqui? Que desgraça pode sentir que irá cair sobre si em nosso planeta? Contudo, trouxe dois robôs. Reunimo-nos neste anfiteatro para homenageá-la  e cumprimentá-la; pois bem, apesar disso ela trouxe esses robôs. Estão no palanque com ela. Agora que o recinto está todo iluminado, podem vê-los. Um é uma imitação  de ser humano e chama-se R. Daneel Olivaw. O outro é um impudente robô, de construção iniludivelmente metálica; seu nome é R. Giskard Reventlov. Vamos cumprimentá-los,  meus amigos. Eles são os parentes desta mulher.”

      - Xeque-mate! - resmungou D.G, num sussurro.

      - Ainda não - retrucou Gladia.

      Pescoços esticaram-se na platéia, como se um repentino impulso tivesse afetado a todos, e a palavra "robôs" atravessou toda a extensão do recinto em milhares de influxos de respiração.

      - Os senhores podem vê-los sem problemas - soou a voz de Gladia. - Daneel, Giskard, levantem-se.

      Os dois robôs imediatamente se ergueram por trás dela.

      - Que cada um fique ao meu lado - continuou ela - para que meu corpo não atrapalhe a visão - se bem que meu corpo não é tão volumoso a ponto de causar obstrução.

      "Agora, permitam-me deixar algumas coisas claras para todos os senhores. Estes dois robôs não vieram comigo para me servir. Sim, eles ajudam a dirigir minha casa  em Aurora, com mais cinqüenta e um outros, e não realizo nenhuma atividade que prefira realizada por um robô. Este é o costume no planeta em que vivo.

      "Os robôs variam em complexidade, capacidade e inteligência, e estes dois situam-se no mais alto nível a este respeito. Daneel, em especial, é, na minha opinião,  o robô de todos os robôs, cuja inteligência muito se aproxima da dos humanos nas áreas em que a comparação é possível.”

      "Eu trouxe apenas Daneel e Giskard comigo, porém eles não realizam trabalhos muito importantes para mim. Se isso lhes interessa, eu me visto, me banho, uso meus  próprios talheres e ando sem ser carregada.”

      "Uso-os, então, para proteção pessoal? Não. Eles me protegem, de fato, mas protegem igualmente quem mais necessitar de proteção. Em Solaria, ainda recentemente,  Daneel fez o que pôde para proteger o Comandante Baley e preparou-se para renunciar à sua existência a fim de me proteger. Sem ele, a nave nunca poderia ter sido  salva.”

      "E certamente não preciso de proteção neste palanque. Afinal de contas, há um campo de força nele que proporciona uma ampla proteção. Não está aqui a meu pedido,  mas o fato é que está, e fornece toda a proteção de que preciso.”

      "Então, por que meus robôs estão aqui comigo?”

      "Os aqui presentes que conhecem a história de Elijah Baley, que libertou a Terra dos seus dominadores, que iniciou a nova política de colonização, e cujo filho chefiou  os primeiros seres humanos até Baleyworld - que outro nome poderiam dar a este planeta? - sabem que ele, muito antes de me conhecer, trabalhou com Daneel. Trabalhou  com ele na Terra, em Solaria e em Aurora - em cada um dos seus grandes casos. Para Daneel, Elijah Baley foi sempre o "Colega Elijah". Não sei se isso consta de sua  biografia, mas podem confiar na minha palavra. E embora Elijah Baley, como Terráqueo, tenha tido inicialmente uma forte desconfiança de Daneel, a amizade entre eles  cresceu. Quando Elijah Baley estava morrendo neste planeta, há mais de sessenta anos, quando isto aqui era apenas um aglomerado de casas pré-fabricadas cercadas  de canteiros, não foi seu filho que esteve com ele em seus últimos instantes. Nem eu tampouco. (Por um momento traiçoeiro, Gladia pensou que sua voz não iria manter-se  firme.) Ele mandou chamar Daneel e se manteve vivo até a chegada deste.  "Sim, foi a segunda visita de Daneel a este planeta. Eu estava com ele, mas permaneci em órbita. (Firme!) Foi Daneel sozinho quem desceu, foi ele quem recebeu suas  últimas palavras. Então, isto nada significa para os senhores?"

      Sua voz aumentou um ponto, quando ela ergueu os punhos.

      - Preciso dizer-lhes isto? Já não sabem? Aqui está o robô que Elijah Baley amava. Sim, amava. Eu quis ver Elijah antes que morresse, para me despedir, porém ele preferiu Daneel - e este é Daneel. Este é o próprio.

      "E este outro é Giskard, que só conheceu Elijah em Aurora, mas que teve ocasião de salvar-lhe a vida naquele planeta.”

      "Sem estes dois robôs, Elijah Baley não teria atingido seu objetivo. Os planetas Espaciais continuariam a dominar, os planetas dos Colonizadores não existiriam e nenhum dos senhores estaria aqui. Sei disso e os senhores também. Será que o Sr. Tomas Bistervan também sabe?”

      "Daneel e Giskard são nomes famosos neste planeta. Têm sido usados habitualmente pelos descendentes de Elijah Baley, a pedido deste. Cheguei numa nave cujo comandante se chama Daneel Giskard Baley. Quantos, entre as pessoas que estou encarando neste instante - pessoalmente ou via hiperonda - têm o nome de Daneel ou Giskard? Bem, esses robôs ao meu lado são os possuidores dos nomes homenageados. E devem ser denunciados por Tomas Bistervan?"

      O murmúrio crescente entre a multidão estava se tornando ruidoso e ergueu os braços, implorando.

      - Um momento. Um momento. Deixem-me terminar. Não lhes disse por que trouxe estes dois robôs.

      Fez-se um silêncio imediato.

      - Estes dois robôs - prosseguiu - nunca esqueceram Elijah Baley, como eu também não. Essas lembranças em nada diminuíram com o passar  das décadas. Quando eu estava pronta para embarcar na nave do Comandante Baley, quando soube que poderia visitar Baleyworld, como recusar trazer Daneel e Giskard  comigo? Eles queriam ver o planeta que Elijah Baley tornara possível, o planeta onde ele passou a velhice e onde morreu.

      "Sim, eles são robôs, mas robôs inteligentes, que serviram fielmente Elijah Baley, com competência. Não é bastante termos respeito por seres humanos, precisamos também respeitar todos os seres inteligentes. Por isso eu os trouxe aqui. - Finalmente, então, deu um grito que exigia resposta - Fiz mal?”

      Gladia teve sua resposta. Um fragoroso grito de "Ho!" estendeu-se pelo recinto e todos ficaram de pé, batendo palmas e pés, berrando, rugindo... cada vez mais... sem parar...

      Gladia ficou olhando, sorrindo, e, como o barulho continuasse, percebeu duas coisas. Primeiro, que estava coberta de suor. Segundo, que estava mais feliz do que estivera algum dia em sua vida.

      Era como se tivesse, durante a vida inteira, esperado por aquele momento - o momento em que, depois de ter ficado isolada, pudesse finalmente compreender, após vinte  e três décadas, que podia enfrentar multidões, comovê-las e curvá-las à sua vontade.

      Ficou ouvindo a infindável gritaria - mais, mais... e mais...

     

      Foi muito tempo depois - quanto ela não saberia dizer - que Gladia, finalmente, voltou a si.

      Primeiro tinha sido o barulho incessante, a sólida cunha do pessoal da segurança guiando-a através da multidão, o mergulho em túneis infindáveis, que pareciam mergulhar  cada vez mais no solo.

      Ela perdeu o contato com D. G. imediatamente e não sabia se Daneel e Giskard estavam a salvo com ela. Queria perguntar por eles, mas estava rodeada de gente sem rosto.

      Pensou vagamente que os robôs deviam estar com ela, pois resistiriam à separação e ela ouviria o tumulto se fosse feita alguma tentativa.

      Quando, finalmente, Gladia chegou num recinto, os dois robôs estavam lá com ela. Ela não sabia onde estava exatamente, porém o local era bastante amplo e limpo.

      Era algo pobre em comparação com seu lar em Aurora; comparado com o camarote da nave, porém, era bastante luxuoso.

      - A senhora estará segura aqui, senhora - disse o último dos guardas ao se retirar. - Se precisar de alguma coisa, chame.

      Apontou para um aparelho na mesinha ao lado da cama.

      Gladia olhou o dispositivo, mas quando se virou para perguntar o que era e como funcionava, o guarda tinha desaparecido.

      Ora, muito bem, não Vou precisar, pensou.

      - Giskard - ordenou, cansada - descubra qual dessas portas leva ao banheiro e veja como o chuveiro funciona. O que eu preciso agora é de uma chuveirada.

      Sentou-se cuidadosamente, sabendo que estava molhada, mas não desejando saturar a cadeira com seu suor. Estava começando a sentir dor com a rigidez anormal de sua  posição, quando Giskard surgiu.

      - Senhora, o chuveiro está aberto - declarou - e a temperatura é adequada. Há um material sólido, que acredito ser sabonete, e uma espécie primitiva de uma coisa  semelhante a toalha, como vários outros artigos que podem ser úteis.  - Obrigada, Giskard - disse Gladia, consciente de que, apesar da sua grandiloqüência no sentindo de que robôs como Giskard não executam serviços domésticos, era  exatamente isso o que lhe havia pedido para fazer.

      Mas as circunstâncias alteram os casos...

      Pareceu-lhe que se não tivesse necessitado de um banho de chuveiro com tanta premência como agora, nunca também teria gostado tanto de um. Permaneceu nele muito  mais tempo do que devia, e quando terminou, nem mesmo lhe ocorreu imaginar se as toalhas estavam de algum modo esterilizadas, até depois de ter-se secado - e a essa  altura era tarde demais.

      Vistoriou o material que Giskard tinha deixado para ela - pó, desodorante, pente, pasta dentifrícia, secador de cabelo - mas não conseguiu achar nada que servisse  de escova de dentes. Finalmente desistiu e usou o dedo, que ela achou bastante insatisfatório. Não encontrou escova de cabelo e achou isso também insatisfatório.

      Lavou o pente com sabonete antes de usá-lo, mas encolheu-se de medo, da mesma forma. Encontrou uma roupa que parecia adequada para usar na cama. Cheirava a limpeza, mas ela achou que estava larga demais.

      Daneel perguntou, em voz baixa:

      - Senhora, o comandante deseja saber se pode vê-la.

      - Acho que sim - replicou Gladia, ainda procurando outra camisola. - Mande-o entrar.

      D. G. parecia cansado e mesmo perturbado, mas quando ela se virou Para cumprimentá-lo, o rapaz sorriu fatigado e disse:

      - É difícil acreditar que a senhora tem mais de vinte e três décadas de idade.

      - Nesta coisa?

      - Isso contribui. É semitransparente - ou não tinha reparado? Ela olhou, indecisa, para a camisola e depois falou:

      - Bem, se isso o diverte, mas tenho estado viva, apesar disso, durante dois séculos e um terço.

      - Ninguém imaginaria isso olhando-a. A senhora deve ter sido belíssima quando jovem.

      - Nunca me disseram isso, D. G. Sempre acreditei que um encanto    tranqüilo era o máximo a que podia aspirar. Em todo caso, como se usa este instrumento?

      - A cabine telefônica? Basta apertar o quadrado no lado direito e alguém perguntará se precisa de alguma coisa. É só pedir.

      - Ótimo. Vou precisar de uma escova de dentes, uma escova de cabelo e roupas.

      - A escova de dentes e a escova de cabelo, Vou providenciar. Quanto às roupas, já foram arranjadas. A senhora encontrará uma bolsa pendurada no seu armário. Nela encontrará o mais atual na moda de Baleyworld, que poderá não lhe atrair, é claro. E não garanto que lhe sirva. A maioria das mulheres de Baleyworld são mais altas que a senhora e certamente mais encorpadas e gordas. Mas isso não importa. Acho que a senhora ficará segregada ainda algum tempo.

      - Por quê?

      - Ora, senhora. A senhora fez um discurso na noite passada e, estou lembrado, não quis sentar-se, embora eu sugerisse mais de uma vez que o fizesse.

      - Ao que parece, foi um grande sucesso, D. G.

      - Foi. Foi um estrondoso sucesso. - D. G. sorriu abertamente e cocou o lado direito do rosto, com o ar de quem examina a palavra com muito cuidado. - Contudo, o  sucesso  tem também suas desvantagens. Devo dizer que, neste instante, a senhora é a pessoa mais famosa em Baleyworld, e cada habitante do planeta quer vê-la e tocá-la. Se  a levarmos a qualquer lugar, haverá um conflito imediato. Pelo menos até as coisas esfriarem. Não podemos saber quanto tempo vai levar.

      "Além disso, a senhora teve os falcões de guerra apoiando-a, mas na luz fria do amanhã, quando o hipnotismo e a histeria tiverem passado, eles irão ficar furiosos. Se o Velho Bistervan realmente não pensou em assassiná-la imediatamente após seu discurso, amanhã de manhã certamente pensará, realizando a ambição de sua vida: matá-la por tortura lenta. E há gente do seu partido que pode compreensivelmente obrigá-lo a esse pequeno capricho.”

      "É por isso que a senhora está aqui, minha senhora. É por isso que este quarto, este andar, todo este hotel estão sendo vigiados por não sei quantos destacamentos de segurança, entre os quais espero não haja falcões de guerra disfarçados. E porque estou tão ligado à senhora neste brinquedo de herói e heroína, vejo-me também engaiolado aqui, sem poder sair.”

      - Ah - disse Gladia, inexpressivamente. - Queira desculpar por isso. Então o senhor não pode ver sua família.

      D. G. encolheu dos ombros.

      - Os Mercadores, na verdade, não são muito ligados à família.

      - Nesse caso, sua amiga.

      - Ela agüentará. Provavelmente melhor que eu. Fixou Gladia especulativamente.

      Gladia respondeu calmamente:

      - Nem pense nisso, comandante. D. G. ergueu as sobrancelhas.

      - Não há como evitar pensar nisso, mas não tomarei nenhuma iniciativa, senhora.

      - Quanto tempo o senhor acha que ficarei aqui? - perguntou ela.  Seriamente.

      - Depende do Diretório.

      - Do Diretório?

      - O quinteto executivo, senhora. Cinco pessoas - ergueu a mão com os dedos separados - cada uma servindo durante cinco anos de maneira escalonada, com uma substituição  a cada ano, mais eleições especiais em caso de morte ou incapacidade. Isso garante a continuidade e reduz o perigo do governo individual. Significa também que toda  decisão deve ser discutida, e isso leva tempo, às vezes mais do que o disponível.

      - Imagino - disse Gladia - que se um deles for um sujeito determinado e tenaz...

      - Poderá impor seus pontos de vista aos outros. Já aconteceram coisas assim, mas não estamos mais nesses tempos, se percebe o que estou dizendo. O Diretor Sênior  é Genovus Pandaraí. Ele não é mau, apenas indeciso - e às vezes isso é a mesma coisa. Disse-lhe para permitir que seus robôs ficassem no palanque com a senhora e  isso resultou numa péssima idéia. Um a zero contra nós dois.

      - Mas por que foi uma péssima idéia? O povo ficou satisfeito.

      - Satisfeito demais, minha senhora. Queríamos que a senhora fosse nossa heroína Espacial de estimação e ajudasse a manter fria a opinião do público, evitando o desencadeamento  de uma guerra prematura. Vocês são ótimos em longevidade, e a senhora fez com que eles dessem vivas à vida curta. Depois fez com que dessem vivas aos robôs, e não  queremos isso. Nesse assunto, não nos interessa muito que o público exalte a idéia de amizade com os Espaciais.

      - Os senhores não querem uma guerra prematura, mas também não desejam uma paz prematura. É isso?

      - Foi muito bem dito, senhora.

      - Mas então o que querem?

      - Queremos a Galáxia. Toda ela. Queremos colonizar e povoar todo Planeta habitável nela e estabelecer nada menos que um Império Galáctico. E não queremos que os  Espaciais interfiram. Eles podem ficar em seus próprios mundos e viver em paz como desejam, mas não devem se intrometer.

      - Mas então querem confiná-los aos seus cinqüenta planetas, como Confinamos os Terráqueos à Terra durante tantos anos. A mesma velha injustiça. O senhor é tão ruim quanto Bistervan.

      - As situações são diferentes. Os Terráqueos foram castigados como represália ao seu potencial expansionista. Os Espaciais não têm esse potencial.

      Eles escolheram a trilha da longevidade e dos robôs, e o potencial desapareceu. Nem têm mais cinqüenta planetas. Solaria foi abandonada. Os outros, com o tempo, também serão. Os Colonizadores não têm interesse em empurrar os Espaciais para o caminho da extinção, mas por que devemos nos intrometer em sua escolha voluntária de agir assim? Seu discurso tendeu a interferir nisso.

      - Fico contente. O senhor acha que eu deveria dizer o quê?

      - Eu lhe disse: paz, amor e sentar-se. Poderia ter acabado num minuto.

      Gladia replicou, furiosa:

      - Não posso acreditar que o senhor tivesse esperado alguma coisa tão boba de minha parte. Por quem me toma?

      - Por quem acha que é: alguém que morre de medo de falar. Como poderíamos saber que a senhora era uma louca que podia, em meia hora, persuadir a platéia a berrar contra? Mas esta conversa não nos leva a nada - ergueu-se pesadamente - eu também preciso de um chuveiro e acho melhor ter uma noite de sono - se puder. Vê-la-ei amanhã.

      - Mas quando saberemos o que o Diretório decidirá fazer comigo?

      - Quando eles descobrirem, o que poderá levar tempo. Boa noite, senhora.

      - Fiz uma descoberta disse Giskard, com a voz sem sombra de emoção.

      - E a fiz porque, pela primeira vez em minha vida, enfrentei milhares de seres humanos. Se isso tivesse me acontecido há dois séculos, teria feito a descoberta naquela época. Se eu nunca tivesse enfrentado tantos ao mesmo tempo, jamais a teria feito.

      "Considere, portanto, quantos pontos vitais eu poderia facilmente agarrar, porém nunca o fiz e nunca o farei, simplesmente porque as condições adequadas para isso  nunca se apresentaram a mim. Eu permaneço ignorante, a não ser quando as circunstâncias me ajudam, mas não posso contar com elas.”

      - Eu não acho, amigo Giskard - replicou Daneel - que Lady Gladia, com toda a sua longa vida, pudesse enfrentar milhares de pessoas de igual para igual. Eu não acreditaria  que ela fosse capaz sequer de falar. Quando ficou claro essa possibilidade, concluí que você a havia ajustado e descoberto que isso podia ser feito sem lhe causar  dano. Qual foi sua descoberta?

      - Amigo Daneel - explicou Giskard - na realidade, tudo que ousei fazer foi liberar alguns poucos fios de inibição, o suficiente para permitir que ela dissesse algumas palavras, pudesse ser ouvida.

      - Mas ela foi muito além disso.

      - Após aquele ajuste microscópico, virei-me para a multiplicidade de mentes que enfrentei na platéia. Eu nunca havia experimentado tantas, da mesma forma que Lady Gladia, e fiquei tão surpreendido quanto ela. A princípio, descobri que nada podia fazer no vasto entrosamento mental que me atingiu. Senti-me desamparado.

      "E então notei pequenas amizades, curiosidades, interesse - não posso descrevê-los com palavras - com um brilho de simpatia por Lady Gladia à sua volta. Joguei com  o que pude descobrir que havia nesse brilho de simpatia, endurecendo-os e engrossando-os um pouquinho. Eu queria uma pequena reação a favor de Lady Gladia, que a  pudesse encorajar, que pudesse tornar desnecessária minha interferência depois na sua mente. Foi tudo o que fiz. Não sei quantos fios da cor adequada manejei. Não  foram muitos.”

      - E depois, amigo Giskard? - perguntou Daneel.

      - Descobri, amigo Daneel, que eu tinha iniciado alguma coisa autocatalítica. Cada fio que eu fortalecia, fortalecia um outro próximo da mesma espécie, e os dois  juntos fortaleciam vários outros perto. Depois não precisei fazer mais nada. Pequenos estremecimentos, pequenos ruídos e olhares rápidos que pareciam aprovar o que  Lady Gladia dizia encorajaram ainda outros.

      "Depois, descobri uma coisa ainda mais estranha. Todos aqueles pequenos indícios de aprovação, que eu podia detectar apenas porque as mentes estavam abertas para  mim, Lady Gladia devia também ter captado de certa forma, pois as inibições subseqüentes em sua mente tombaram sem minha interferência. Ela começou a falar com mais  rapidez, mais confiança, e a platéia reagiu melhor que nunca, sem que eu interviesse. E, por fim, houve uma histeria, uma tempestade, um temporal de raios e trovões  mentais tão intensos que fui obrigado a fechar minha mente ou teria sobrecarregado meus circuitos.”

      "Nunca, em minha existência, eu tinha encontrado nada igual. Isso, contudo, teve início sem qualquer outra modificação introduzida por mim em toda a multidão além  da que introduzi, no passado, entre um simples punhado de gente. Desconfio, na realidade, que o efeito irradiou-se além da platéia sensível para a minha mente, para  a platéia maior, atingida pela hiperonda.”

      - Não vejo como isso possa acontecer, amigo Giskard - comentou Daneel.

      - Nem eu, amigo Daneel, não sou humano. Não experimento diretamente a posse de uma mente humana com todas as suas complexidades e contradições, e por isso não posso  compreender os mecanismos pelos quais ela reage. Mas, evidentemente, as multidões são mais facilmente manobradas que os indivíduos. Parece paradoxal. Um peso maior  exige mais esforço Para ser manuseado que um menor. Uma grande energia exige mais tempo Para ser calculada que uma pequena. Uma grande distância exige muito  mais tempo para ser vencida que uma pequena. Por que, então, muita gente deve ser mais facilmente manobrável que pouca gente? Você pensa como um ser humano, amigo  Daneel. Pode explicar?

      - Você mesmo, amigo Giskard - replicou Daneel - disse que era um efeito autocatalítico, uma matéria de contágio. Uma simples fagulha pode acabar por incendiar uma floresta.

      Giskard fez uma pausa e mergulhou em pensamentos. Depois disse:

      - O único motivo para esse contágio é a emoção. Senhora Gladia escolheu argumentos que ela sentiu iriam comover os sentimentos da platéia. Ela não tentou argumentar  com eles. Pode ser, então, que quanto maior a multidão, mais facilmente ela é manobrada pela emoção e não pelo raciocínio.

      "Uma vez que as emoções são poucas e os motivos muitos, o comportamento de uma multidão pode ser mais facilmente previsível que o comportamento de uma pessoa. Isso,  por sua vez, significa que se as leis devem ser desenvolvidas para permitir que a corrente da História possa ser predita, então deve-se lidar com grandes populações,  quanto maiores melhor. Isto em si pode constituir a Primeira Lei da Psico-história, a chave para o estudo das Humanidades. Contudo...”

      - Sim?

      - Espanta-me que, apenas por não ser humano, eu tenha levado tanto tempo para compreender isso. Um humano teria, talvez instintivamente, compreendido sua própria mente o bastante para saber como manejar outros iguais a ele. Senhora Gladia, sem nenhuma experiência em falar para grandes multidões, realizou a incumbência muito bem. Quão melhores seríamos se tivéssemos conosco alguém como Elijah Baley. Amigo Daneel, você não está pensando nele?

      - Você pode ver a imagem dele em minha mente? - perguntou Daneel. - Isso é surpreendente, amigo Giskard.

      - Eu não o estou vendo, amigo Daneel. Não posso receber seus pensamentos. Mas posso sentir emoções e disposições - e sua mente tem uma constituição que, pela experiência  anterior, sei estar associada à de Elijah Baley.

      - Senhora Gladia citou o fato de que eu fui o último a ver o Colega Elijah vivo, por isso tornei a lembrar, em memória, aquele momento. Estou pensando novamente no que ele disse.

      - O quê, amigo Daneel?

      - Procuro o motivo. Sinto que é importante.

      - Como podia o que ele disse ter um motivo além da implicação das palavras? Se houvesse um significado oculto, Elijah Baley teria dito.

      - Talvez - comentou Daneel, pensativo - o Colega Elijah não tenha compreendido o significado do que estava dizendo.

     

      Após o Discurso

      Memória!

      Ela permaneceu na mente de Daneel como um livro fechado de detalhes infinitos, sempre à sua disposição. Alguns trechos eram invocados freqüentemente à procura de  informações, mas apenas uns poucos eram invocados simplesmente porque Daneel desejava sentir sua estrutura. Esses poucos eram, na maior parte, os que incluíam Elijah  Baley.

      Muitas décadas atrás, Daneel tinha vindo a Baleyworld, Elijah Baley ainda era vivo. Senhora Gladia viera com ele, mas, após terem entrado em órbita, Bentley Baley  parou sobre eles em sua pequena nave para encontrá-los e foi levado para bordo. Nessa época, já era um homem de meia-idade, um tanto curtido pelo tempo.

      Olhou para Gladia com ar levemente hostil e disse:

      - A senhora não pode vê-lo, senhora.

      E Gladia, que estivera chorando, perguntou:

      - Por quê?

      - Ele não quer, senhora, e preciso respeitar seus desejos.

      - Não posso acreditar, Sr. Baley.

      - Tenho um bilhete manuscrito e uma gravação, senhora. Não sei se a senhora será capaz de reconhecer sua escrita ou a sua voz, mas tem minha palavra de honra que lhe pertencem e que nenhuma influência desfavorável foi exercida sobre ele para que fizesse esses registros.

      Ela foi para seu camarote, a fim de ler e ouvir sozinha. Depois surgiu - com ar de derrota - mas deu um jeito de dizer, com firmeza:

      - Daneel, você vai descer sozinho para vê-lo. É a vontade dele. Mas vai me informar sobre tudo que acontecer e for dito.

      - Sim, senhora - disse Daneel.

      Daneel desceu na nave de Bentley, que lhe disse:

      - Daneel, robôs são proibidos neste planeta, mas foi feita uma exceção  no seu caso, por vontade de meu pai e porque ele é altamente respeitado aqui. Não tenho nenhuma animosidade pessoal contra você, compreenda, mas sua presença  precisa ser inteiramente limitada. Você será levado diretamente a meu pai. Quando ele lhe tiver falado, você será novamente colocado em órbita. Compreende?

      - Perfeitamente, senhor. Como está seu pai?

      - Moribundo - respondeu Bentley com brutalidade talvez consciente.

      - Compreendo isso também - disse Daneel, com a voz visivelmente trêmula, não em conseqüência de uma emoção comum, mas porque a consciência da morte de um ser humano,  conquanto inevitável, alterava as redes do seu cérebro positrônico. - Quanto tempo mais ele viverá?

      - Deveria ter falecido há já algum tempo. Manteve-se vivo porque se recusa a morrer antes de vê-lo.

      Pousaram. Era um planeta enorme, mas a parte habitada - se se resumia nisto - era mínima e miserável. O dia se apresentava nublado e chovera cedo. As ruas largas  e retas estavam vazias, como se a população existente não estivesse disposta a se reunir para ver um robô.

      O carro de solo atravessou com eles o vazio e levou-os a uma casa maior e mais atraente que a maioria. Entraram juntos. Bentley parou diante de uma porta interna.

      - Meu pai está aqui - disse, com ar triste. - Você deve entrar sozinho. Ele não quer a minha presença junto com você. Entre. Poderá não reconhecê-lo.

      Daneel penetrou no quarto sombrio. Seus olhos se adaptaram rapidamente e ele viu um corpo coberto por um lençol dentro de um casulo que só era visível por seu leve  brilho. A luz do quarto intensificou-se um pouco e Daneel pôde, então, ver o rosto nitidamente.

      Bentley tinha razão. Daneel nada viu do seu velho colega nele. Mostrava-se macilento e esquelético. Os olhos estavam fechados e pareceu a Daneel estar vendo um cadáver.

      Nunca vira um ser humano morto, e quando esse pensamento atingiu-o, ele cambaleou e pareceu-lhe que suas pernas não o sustentariam.

      Mas os olhos do velho abriram-se e Daneel recuperou o equilíbrio, embora continuasse a sentir uma debilidade estranha.

      Os olhos fixaram-se nele e um sorriso fraco entreabriu os lábios pálidos e rachados.

      - Daneel. Meu velho amigo Daneel.

      Era o tom fraco de Elijah Baley, cuja voz lembrou naquele som sussurrado. Um braço surgiu devagar do lençol e pareceu a Daneel que, afinal de contas, tinha reconhecido Elijah.

      - Colega Elijah - murmurou docemente.

      - Obrigado... obrigado por ter vindo.

      - Para mim, era importante vir, Colega Elijah.

      - Temi que eles não tivessem permitido. Eles - os outros - até mesmo meu filho, pensam em você como um robô.

      - Eu sou um robô.

      - Não para mim, Daneel. Você não mudou, não é? Não o vejo nitidamente, mas me parece estar o mesmo de sempre. Quando o vi pela última vez? Há vinte e nove anos?

      - Sim... E em todo este tempo, Colega Elijah, não mudei; e, como vê, sou um robô.

      - Eu, porém mudei, e muito. Não deveria tê-lo deixado me ver neste estado, mas estava muito fraco para resistir ao desejo de vê-lo mais uma vez.

      A voz de Baley pareceu tornar-se um pouco mais viva, como que fortalecida pela presença de Daneel.

      - Estou contente por vê-lo, Colega Elijah, apesar de você ter mudado.

      - E Lady Gladia? Como vai ela?

      - Vai bem. Veio comigo.

      - Ela não está...

      Uma nota de doloroso alarme surgiu em sua voz, quando correu o olhar em torno.

      - Ela não está neste planeta, mas em órbita. Ela foi informada de que você não a queria ver - e compreendeu.

      - Não é verdade. Eu quero vê-la, mas fui capaz de resistir a essa tentação. Ela não mudou, não é?

      - Continua com a mesma aparência de quando a viu pela última vez.

      - Ótimo. Mas não podia permitir-lhe que me visse neste estado. Não podia consentir que esta fosse a última lembrança minha. com você é diferente.

      - Isso é porque sou um robô, Colega Elijah.

      - Não insista mais nisso - replicou o moribundo, irritado. - Se você fosse humano, Daneel, não significaria mais para mim.

      Ficou por algum tempo silencioso no leito e depois prosseguiu:

      - Todos estes anos, nunca lhe hipervisei nem escrevi. Não posso me permitir interferir em sua vida. Gladia ainda está casada com Gremionis?

      - Está sim.

      - É feliz?

      - Não posso avaliar. Ela não se comporta de forma a ser interpretada como infeliz.

      - Filhos?

      - Os dois permitidos.

      - Ela não ficou zangada porque não dei notícias?

      - Acredito que ela tenha compreendido seus motivos.

      - Ela alguma vez... se referiu a mim?

      - Quase nunca, porém, Giskard é de opinião que ela freqüentemente Pensa em você.

      - Como vai Giskard?

      - Funciona adequadamente - da forma que o senhor sabe.

      - Então você está a par... das suas capacidades?

      - Ele me contou, Colega Elijah.

      Baley ficou novamente em silêncio. Depois mexeu-se e disse:

      - Daneel, pedi sua presença aqui pelo desejo egoísta de vê-lo, de ver pessoalmente que não mudou, que há uma aragem dos grandes dias de minha vida ainda persistindo,  que você se lembra de mim e continuará se lembrando. Mas também quero lhe dizer uma coisa.

      "Morrerei breve, Daneel, e sei que você tomará conhecimento disso. Mesmo que não esteja aqui, mesmo que esteja em Aurora, a notícia chegará até você. Minha morte  será uma notícia galáctica. - Seu peito moveu-se num riso fraco e silencioso. - Quem teria pensado nisso alguma vez? - Prosseguiu: - Gladia também tomará conhecimento, claro, mas ela sabe que devo morrer e aceitará o fato, por mais triste que seja. O que eu temia era o efeito em você, pelo fato de ser - como você insiste e eu nego - um robô. Pelos velhos tempos, você deve sentir como obrigação evitar que eu morra, e o fato de que não poderá fazer isso pode talvez ter um efeito permanentemente deletério em você. Vamos, portanto, discutir a esse respeito."

      A voz de Baley estava enfraquecendo. Apesar de Daneel estar imóvel, seu rosto revelava uma condição incomum - refletia emoção, que se consubstanciava numa expressão  de preocupação e tristeza. Os olhos de Baley estavam fechados e ele não pôde ver aquilo.

      - Minha morte, Daneel - começou - não é importante. Nenhuma morte individual entre seres humanos é importante. Quem morre deixa uma obra, e esta não morre inteiramente. Nunca morre inteiramente enquanto a humanidade existir. Compreende o que estou dizendo?

      - Sim, Colega Elijah - replicou Daneel.

      - A obra de cada indivíduo contribui para um conjunto, constituindo assim parte integrante de uma totalidade. Esta totalidade de vidas humanas  - passado, presente e futuro - forma uma tapeçaria que vem existindo por muitos milhares de anos - e se desenvolvendo de modo cada vez mais aprimorado e mais belo.  Mesmo os Espaciais são um ramo dessa tapeçaria, e também contribuem para a perfeição e beleza do padrão. Uma vida individual é um fio na tapeçaria, e o que é um  fio comparado com o conjunto?

      "Daneel, conserve sua mente fixada com firmeza na tapeçaria e não deixe que o arrastar de um único fio o afete. Há muitos outros fios, cada um válido, cada um contribuindo..."

      Baley parou de falar, mas Daneel esperou com paciência.

      Os olhos de Baley se abriram e, fixando-se em Daneel, franziram-se ligeiramente.

      - Você ainda está aí? Chegou a hora de partir. Disse-lhe o que pretendia.

      - Não desejo partir, Colega Elijah.

      - É preciso. Não posso afastar a morte por mais tempo. Estou cansado... desesperadamente cansado. Quero morrer. Está na hora.

      - Não poderei ficar enquanto você viver?

      - Não quero isso. Se eu morrer enquanto você estiver olhando, isso pode atingi-lo terrivelmente, apesar de tudo o que eu disse. Vá agora. É uma... ordem. Permitirei  que seja um robô, se desejar, mas, nesse caso, precisa obedecer minhas ordens. Nada do que possa fazer salvará minha vida, portanto não há por que seguir a Segunda  Lei. Vá! - Baley apontou o dedo debilmente e disse: - Adeus, amigo Daneel.

      Daneel virou lentamente, cumprindo a ordem de Baley com uma dificuldade jamais experimentada.

      - Adeus, Colega... - Fez uma pausa e disse, com a voz ligeiramente embargada: - Adeus, amigo Elijah.

      Bentley encontrou Daneel na sala ao lado.

      - Ele ainda está vivo?

      - Ainda estava quando eu saí.

      Bentley entrou e tornou a sair quase imediatamente.

      - Não está mais. Ele o viu e depois... entregou-se.

      Daneel precisou encostar-se na parede. Levou algum tempo para que se recuperasse.

      Bentley, desviando os olhos, esperou; depois, ambos voltaram para a pequena nave, tornando a entrar em órbita, onde Gladia esperava.

      Ela também perguntou se Elijah Baley ainda estava vivo, e quando lhe disseram suavemente que não, ela virou-se, sem lágrimas, e entrou no próprio camarote para chorar.

     

      Daneel continuou seus pensamentos, como se a recordação aguda da morte de Baley em todos os seus detalhes não tivesse intervindo momentaneamente.

      - E, contudo, agora, à luz do discurso de Senhora Gladia, eu pude compreender um pouco mais do que o Colega Elijah estava dizendo.

      - Como assim?

      - Não tenho muita certeza. É muito difícil pensar na direção em que eu estou tentando.

      - Esperarei o tempo que for necessário - disse Giskard.

     

      Genovus Pandaral era alto e ainda não muito velho, apesar do seu espesso tufo de cabelo branco, que, juntamente com suas abundantes suíças brancas, dava-lhe um ar  de dignidade e distinção. Seu aspecto geral, parecendo um chefe, tinha auxiliado seu avanço nas fileiras, porém, como ele mesmo sabia muito bem, sua aparência era  muito mais forte que sua fibra interior. Uma vez eleito para o Diretório, superara com bastante rapidez sua exultação inicial. Ele estava mergulhado em problemas,  e a cada ano, quando era promovido automaticamente, ficava consciente disso mais nitidamente. Agora era o Diretor Sênior. O Diretor Sênior de todos os tempos!

      Outrora, a tarefa de dirigir não tinha importância. No tempo de Nephi Morler, há oito décadas, o mesmo Morler, que era sempre apresentado aos estudantes como o maior  de todos os Diretores, não havia sido nada. Que tinha Baleyworld sido então? Um pequeno planeta, uma insignificante quantidade de fazendas, um punhado de aldeias  amontoadas ao longo de linhas naturais de comunicação. A população total não passava de cinco milhões, e suas exportações mais importantes eram lã virgem e titânio.

      Os Espaciais os ignoravam totalmente, sob a influência mais ou menos benigna de Han Fastolfe de Aurora, e a vida era simples. As pessoas sempre podiam fazer viagens  de volta à Terra - se desejavam uma aragem de cultura ou de tecnologia - e havia um fluxo constante de Terráqueos chegando como imigrantes. A considerável população  da Terra era inesgotável.

      Então, por que Morler não poderia ter sido um grande Diretor? Ele nada tivera para fazer.

      E, no futuro, governar seria novamente muito simples. À medida que os Espaciais continuassem a degenerar (fora dito a todos os estudantes que isso aconteceria, que  eles iriam se afogar nas contradições da sua sociedade - embora Pandaral, às vezes, especulasse se aquilo era mesmo verdade) e os Colonizadores continuassem a crescer  em número e força, chegaria breve o tempo em que a vida seria novamente segura. Os Colonizadores viveriam em paz e desenvolveriam sua própria tecnologia ao limite  máximo. Quando Baleyworld estivesse cheia, assumiria as proporções e condições de uma nova Terra, como os demais planetas, enquanto outros novos brotariam aqui e  ali, em número cada vez maior, finalmente construindo o Grande Império Galáctico. E certamente Baleyworld, como o mais velho e mais populoso dos planetas dos Colonizadores,  teria sempre um papel de relevo nesse império, sob o comando benigno e perpétuo da Mãe Terra.

      Mas Pandaral não era Diretor Sênior no passado. Nem no futuro. Era agora.

      Han Fastolfe estava morto. Kelden Amadiro, porém, estava vivo. Ele  tinha se colocado contra a permissão para a Terra enviar Colonizadores vinte décadas antes, e ainda estava vivo para provocar encrencas. Os Espaciais continuavam  muito fortes para serem desprezados, os Colonizadores não eram ainda bastante fortes para avançar com confiança. Os Colonizadores, seja como for, tinham de conter  os Espaciais até que o equilíbrio tivesse mudado suficientemente.

      E a tarefa de manter os Espaciais calmos e os Colonizadores resolutos porém cordatos, caía mais sobre os ombros de Pandaral que de qualquer outro - e era uma tarefa não desejada nem pedida.

      Agora era manhã, uma fria manhã - cinzenta, com mais neve caindo - embora isso não surpreendesse - e ele caminhou pelo hotel sozinho. Ele não queria acompanhamento.

      Os guardas de segurança, em pleno vigor, fizeram continência quando ele passou e agradeceu com ar fatigado. Falou com o capitão da guarda, quando este avançou para cumprimentá-lo.

      - Algum problema, capitão?

      - Nenhum, diretor. Tudo em paz. Pandaral balançou a cabeça.

      - Em que quarto colocaram Baley?. Ah... E a Espacial e seus robôs estão sob estrita vigilância?... Ótimo.

      Ele passou adiante. No todo, D. G. tinha se comportado bem. Solaria, abandonado, podia ser usado pelos Mercadores como um estoque de robôs quase infinito e como uma fonte de grandes lucros - embora estes não fossem tomados como o equivalente natural da segurança mundial, pensou Pandaral, sombriamente. Mas Solaria, cheio de armadilhas, devia ser abandonado. Ele não valia uma guerra. D. G. tinha agido bem ao partir imediatamente.

      E ao trazer o intensificador nuclear consigo. Até agora, esses aparelhos eram tão agressivamente poderosos, que só podiam ser usados em amplas e caras instalações  desenhadas para destruir naves invasoras - e mesmo essas nunca tinham ultrapassado o estágio de planejamento. Caras demais. Versões menores e mais baratas faziam-se  absolutamente necessárias, e assim D. G. tinha razão em pensar que um intensificador Solariano era mais importante que todos os robôs juntos daquele planeta. Esse  intensificador iria ajudar muito os cientistas de Baleyworld.

      No entanto, se um planeta Espacial tinha um intensificador portátil, por que outros não o teriam? Por que não Aurora? Se essas armas fossem bastante pequenas para caber em belonaves, uma frota espacial podia varrer qualquer quantidade de naves dos Colonizadores sem problemas. Em Que ponto desse desenvolvimento eles estariam?

      E quão rapidamente podia Baleyworld avançar na mesma direção, com a ajuda do intensificador Que D. G. trouxera?

      Ele bateu na porta do quarto de hotel de D. G., entrando quase imediatamente, sem esperar por convite. Havia certas vantagens úteis que acompanhavam a prerrogativa de ser Diretor Sênior.

      D. G. olhou do banheiro e disse, com a cabeça enrolada na toalha em que estava secando o cabelo:

      - Eu gostaria de cumprimentar Sua Excelência Diretorial de forma mais apropriada e digna, mas o senhor me pegou em desvantagem, uma vez que estou em posição pouco digna, tendo acabado de sair do chuveiro.

      - Ah, cale-se - disse Pandaral, de mau humor. Normalmente, Pandaral saboreava a irreprimível vivacidade de D. G., mas não naquele instante. De muitas formas, ele nunca compreendera inteiramente o rapaz. Ele era um Baley, um descendente em linha reta do grande Elijah e do fundador, Bentley. Isso o tornava candidato natural ao posto de Diretor, especialmente porque ele tinha a espécie de bondade que o tornava benquisto junto à população. Contudo,  ele preferira ser Mercador, uma vida difícil - e perigosa. Podia torná-lo rico, mas muito provavelmente o mataria ou - o que era pior - o envelheceria prematuramente.

      Além disso, a vida de D. G. como Mercador o afastava de Baleyworld durante meses de cada vez, e Pandaral preferia seus conselhos aos da maioria dos seus chefes de  departamento. Ninguém jamais poderia dizer quando D. G. estava falando sério, mas, apesar disso, valia a pena ouvi-lo.

      Pandaral disse, com ar grave:

      - Não acho que o discurso daquela mulher tenha sido a melhor coisa que nos aconteceu.

      D. G., meio solene, encolheu os ombros.

      - Quem poderia ter previsto aquilo?

      - Você poderia. Você devia ter examinado seus motivos - se tivesse mudado de idéia quanto a trazê-la.

      - Eu examinei suas intenções, diretor. Ela passou mais de três décadas em Solaria. Foi lá que ela moldou sua mente e viveu totalmente com robôs. Viu seres humanos  apenas por imagens holográficas, com exceção do marido - que não a visitava, com freqüência. Ela teve uma adaptação difícil quando chegou a Aurora, e mesmo lá ela  vivia principalmente com robôs. Em nenhuma ocasião, em vinte e três décadas, Gladia enfrentou mais de vinte pessoas juntas, muito menos quatro mil. Eu concluí que  ela não seria capaz de falar mais que uma poucas palavras - se tanto. Eu não tinha como saber que ela era uma demagoga.

      - Você podia tê-la impedido, ao descobrir que era. Estava sentado exatamente ao seu lado.

      - O senhor queria um tumulto? A platéia estava gostando. O senhor estava lá e viu. Se eu a tivesse forçado a se calar, eles teriam atacado o palanque. Afinal de contas, diretor, o senhor não procurou impedi-la.

      Pandaral pigarreou.

      - Realmente, pensei nisso, mas cada vez que eu olhava para trás, percebia o olho do seu robô - o que olha como um robô.

      - Giskard. Sim, mas e daí? Ele não lhe causaria dano.

      - Eu sei. De qualquer modo, ele me deixou nervoso e isso me preocupou.

      - Bem, não importa, diretor - replicou D. G. Agora estava solene e empurrou a bandeja do café da manhã para o outro. - O café ainda está quente. Sirva-se de bolo  e geléia, se desejar. Mas voltando ao assunto, isso passará. Não acredito que os presentes tenham ficado realmente inundados de amor pelos Espaciais a ponto de prejudicarem  nossa política. Isso pode mesmo servir a um objetivo. Se os Espaciais souberem do que houve, o partido de Fastolfe poderá ficar fortalecido. Fastolfe pode estar  morto, mas seu partido não - não totalmente - e precisamos incentivar sua política de moderação.

      - O que eu tenho em mente - replicou Pandaral - é o Congresso Pan-Colonizador que se realizará dentro de cinco meses. Serei obrigado a ouvir uma série de referências irônicas ao abrandamento de Baleyworld e ao fato de seus habitantes terem se tornado amigos dos Espaciais. Olhe - acrescentou macambúzio - quanto menor o planeta, mais altivo.

      - Então diga-lhes isso - respondeu D. G. - Seja um verdadeiro estadista em público, mas, em particular, encare-os com firmeza - não oficialmente - e diga-lhes que  há liberdade de expressão em Baleyworld e pretendemos continuar assim. Diga-lhes que Baleyworld leva a sério os interesses da Terra, mas que, se algum planeta quiser  provar sua primordial devoção à Terra declarando guerra aos Espaciais, Baleyworld observará com interesse, porém nada mais. Isso os manterá calados.

      - Oh, isso não - disse Pandaral, assustado. - Um comentário como esse certamente vazaria. Estaria criada uma situação intolerável.

      - O senhor tem razão, o que é uma pena - comentou D. G.  - Mas pense nisso e não deixe essas cabeças ocas faladoras dominá-lo.

      Pandaral suspirou.

      - Acho que daremos um jeito, mas a noite passada complicou nossos planos de encerrar com um dó de peito. O que eu realmente lamento.

      - Que dó de peito? Pandaral respondeu:

      - Quando você partiu de Aurora para Solaria, duas belonaves Auroreanas também vieram. Sabia disso?

      - Não, mas de certa forma já esperava - disse D. G. com pouco caso. - Foi por esse motivo que eu me dei ao trabalho de ir a Solaria por um caminho evasivo.

      - Uma das naves de Aurora pousou em Solaria, a milhares de quilômetros de distância da sua - mas pareceu não fazer qualquer esforço para manter vigilância sobre você - e a segunda permaneceu em órbita.

      - É compreensível. Eu teria feito o mesmo se tivesse uma segunda nave à minha disposição.

      - A nave Auroreana que pousou foi destruída em poucas horas. A nave em órbita transmitiu o acontecido e recebeu ordem de voltar. Uma estação dos Mercadores captou o relatório, que foi enviado para nós.

      - O relatório não foi decifrado?

      - Claro que não, mas era um dos códigos que destruímos. D. G. balançou a cabeça pensativamente e depois disse:

      - Muito interessante. Concluo que eles não tinham ninguém que falasse Solariano.

      - Evidentemente - retrucou Pandaral, sério. - A menos que alguém pudesse descobrir para onde os Solarianos foram, essa sua mulher é a única Solariana disponível na Galáxia.

      - E eles me deixaram ficar com ela, não? Os difíceis Auroreanos.

      - De qualquer forma, eu ia anunciar a destruição da nave Auroreana na noite passada. De uma forma normal - sem maldade. Mesmo assim, porém, isso deverá excitar todos os Colonizadores na Galáxia. Quero dizer, vamos nos safar e os Auroreanos não.

      - Temos uma Solariana e os Auroreanos não - disse D. G. secamente.

      - Muito bem. Isso faz com que você e a mulher tenham uma boa viagem. Mas não leva a nada. Depois do que a mulher fez, tudo mais se tornou um anticlímax, mesmo as notícias da destruição de uma belonave Auroreana.

      - Para não falar no fato - acrescentou D. G. - de que todos terminaram aplaudindo a amizade e o amor, não seria natural - pelo menos na primeira meia hora – aplaudir a morte de algumas centenas de Auroreanos.

      - Acho que sim. Logo, isso era um enorme golpe psicológico que perdemos.

      D. G. franziu o cenho.

      - Esqueça isso, diretor. O senhor sempre pode fazer propaganda num outro momento mais apropriado. Importante mesmo é o que tudo isso significa. Uma nave Auroreana explodiu. Vale dizer que eles não estavam esperando que um intensificador nuclear fosse usado. A outra nave foi mandada de volta, o que pode significar que não estava equipada com defesas contra ele - e talvez nem tenham mesmo qualquer defesa. Isso me faz supor que esse intensificador portátil - ou semiportátil, enfim - é uma manifestação especificamente Solariana e não Espacial em termos genéricos. São boas notícias para nós - se verdadeiras. No momento, não vamos nos preocupar com propaganda desse tipo, mas apenas nos concentrar em apurar cada informação que pudermos apurar desse intensificador. Precisamos estar na frente dos Espaciais nisso - se possível.

      Pandaral mastigou um pedaço de bolo e disse:

      - Talvez você tenha razão. Mas nesse caso, como nos ajustamos em outro trecho das notícias?

      D. G. perguntou:

      - Que outro trecho das notícias? Diretor, o senhor está me dando as informações de que necessito para uma conversa inteligente ou pretende atirá-las uma a uma para o ar e fazer-me saltar atrás delas?

      - Não seja irritável, D. G. Não há sentido em conversar com você se eu não puder ser informal. Você sabe como é uma reunião do Diretório? Quer o meu emprego? Você o terá, sabe disso.

      - Não, obrigado, não o quero. O que eu quero é o seu trecho de notícias.

      - Recebemos uma mensagem de Aurora. Uma mensagem real. Eles de fato se dignaram a se comunicar diretamente conosco, em vez de fazê-lo por intermédio da Terra.

      - Podemos considerá-la uma mensagem muito importante então - para eles. Que querem?

      - Querem a Solariana de volta.

      - Então, evidentemente, sabem que outra nave partiu de Solaria e veio para Baleyworld. Eles também devem ter suas estações de rastreamento e escutaram clandestinamente nossas comunicações como nós as deles.

      - De jeito nenhum - disse Pandaral, irritadíssimo. - Eles decifraram nossos códigos tão depressa como nós os deles. Minha impressão é que devemos chegar a um acordo para que ambos enviemos mensagens às claras. Nenhum de nós ficaria em situação desfavorável.

      - Eles explicaram por que querem a mulher?

      - Claro que não. Espaciais não fornecem motivos, dão ordens.

      - Eles descobriram o que aquela mulher fez exatamente em Solaria? Uma vez que ela é a única pessoa que fala Solariano autêntico, quererão que ela limpe o planeta dos seus supervisores?

      - Não sei como terão podido descobrir, D. G. Nós só anunciamos seu papel na noite passada. A mensagem de Aurora foi recebida bem antes disso. Mas não importa por que eles a querem. O problema é: o que faremos? Se não a devolvermos, podemos provocar uma crise com Aurora, coisa que eu não quero. Se a devolvermos, isso não agradaria aos cidadãos de Baleyworld, e o Velho Bistervan terá um pretexto para dizer que estamos rastejando diante dos Espaciais.

      Encararam-se e depois D. G. disse, com voz arrastada:

      - Temos que devolvê-la. Afinal de contas, ela é Espacial e cidadã de Aurora. Não podemos retê-la contra a vontade deles, ou estaremos expondo a risco todo Mercador que se aventure, a negócios, no território Espacial. De qualquer modo, Vou levá-la de volta, diretor, e o senhor poderá me culpar por isso. Diga que uma das condições para que eu pudesse levá-la a Solaria era levá-la de volta para Aurora, o que é verdade. Que, embora não se tratasse de uma formalidade escrita, eu sou uma pessoa ética e achei que devia cumprir meu acordo. Isso pode até se tornar uma vantagem para nós.

      - De que maneira?

      - Darei um jeito. Mas se conseguir, diretor, minha nave deve ser reequipada à custa do planeta. E minha tripulação vai ter de receber gratificações vultosas. Vamos, diretor, eles estão desistindo de suas licenças.

      Considerando que não tinha a intenção de estar em sua nave novamente pelo menos durante outros três meses, D. G. pareceu estar muito bem-humorado. E considerando que Gladia tinha alojamentos maiores e mais confortáveis do que antes, ela parecia um tanto deprimida.

      - Por que tudo isto? - perguntou.

      - Olhando os dentes de cavalo dado? - perguntou de volta D. G.

      - Estou apenas querendo saber por quê?

      - Por um motivo, senhora: a senhora é uma heroína classe A. Quando a nave foi reformada, criamos este espaço para a senhora.

      - Mas este espaço não foi simplesmente criado. Devia pertencer a alguém.

      - Realmente, era o lugar de descanso da tripulação, porém eles insistiram, sabe? A senhora também é a preferida deles. Na verdade, Niss - lembra-se dele?

      - Evidentemente.

      - Ele quer que a senhora o coloque no lugar de Daneel. Diz que Daneel não gosta do emprego e vive pedindo desculpas às suas vítimas. Niss garante que liquidará quem lhe causar o menor problema, que terá prazer nisso e nunca pedirá desculpas.

      Gladia sorriu.

      - Diga-lhe que pensarei no seu oferecimento e que terei prazer em lhe apertar a mão, se for possível. Eu não tive oportunidade de fazê-lo antes do nosso desembarque em Baleyworld.

      - Espero que a senhora use suas luvas nessa ocasião.

      - Claro, porém fico imaginando se isso é absolutamente necessário. Não tenho também fungado muito desde que saí de Aurora. As injeções que tomei provavelmente reforçaram muito bem meu sistema de imunização. - Tornou a olhar em volta. - O senhor até arranjou nichos para Daneel e Giskard. Foi muito simpático de sua parte, D. G.

      - Senhora - retrucou D. G. - fazemos o possível para agradar e estamos encantados por tê-lo conseguido.

      - Bastante estranhamente - Gladia falou como se estivesse realmente confusa pelo que ia dizer - não estou inteiramente satisfeita. Não estou certa de querer partir do seu planeta.

      - Não? Frio... neve... monotonia... primitivismo... multidões infindáveis por tudo quanto é lado, ovacionando. O que pode tê-la atraído aqui?

      Gladia ruborizou-se.

      - Não são as multidões ovacionando.

      - Fingirei acreditar na senhora, senhora.

      - Não são. É uma coisa inteiramente diferente. Eu... eu nunca fiz nada. Diverti-me de várias maneiras comuns, ocupei-me com campos de força coloridos e exodesenho de robôs. Fiz amor, fui mulher e mãe e... e... em nenhuma dessas coisas jamais fui uma pessoa de alguma importância. Se eu tivesse subitamente desaparecido da vida ou se - nunca tivesse nascido, não teria afetado quem quer que fosse ou alguma coisa, exceto, talvez, um ou dois amigos muito íntimos. Agora é diferente.

      - Acha?

      Havia um leve toque de ironia na voz de D. G. Gladia disse:

      - Sim! Eu posso influenciar pessoas. Posso escolher uma causa e fazê-la minha. Eu escolhi uma causa. Quero evitar a guerra. Quero o universo habitado tanto por Espaciais  como por Colonizadores. Quero que cada grupo conserve suas próprias peculiaridades, mas aceitando livremente as dos outros também. Quero trabalhar tão intensamente  nisto a ponto de, quando eu morrer, a História mudar por causa do meu trabalho e as pessoas dizerem: "Não fosse ela, as coisas não estariam tão boas como estão."

      Gladia virou-se para D. G., com o rosto radiante.

      - O senhor sabe a diferença que isso faz - depois de dois séculos e um terço sem ser ninguém, ter a oportunidade de ser alguém; descobrir que a vida supostamente  vazia passou a ter conteúdo, afinal de contas, transformando-se em algo maravilhoso; ser feliz muito depois de ter desistido de qualquer esperança nesse sentido?

      - A senhora não precisa estar em Baleyworld, senhora, para ter tudo isso.

      D. G. parecia, de certa forma, um tanto embaraçado.

      - Eu não conseguiria isso em Aurora. Lá, não passo de uma imigrante Solariana. Num planeta dos Colonizadores, eu seria uma Espacial - uma coisa rara.

      - No entanto, em várias ocasiões - e com muita veemência - a senhora declarou que queria voltar para Aurora.

      - Há algum tempo, sim. Mas agora não diria isso, D. G. Agora não é isso que eu quero.

      - O que irá influenciar um bocado. Só que Aurora a quer de volta. Eles deviam ter-nos dito.

      Gladia ficou nitidamente espantada.

      - Eles me querem!

      - Uma mensagem oficial, do Presidente do Conselho de Aurora diz que sim - respondeu D. G. brandamente. - Nós gostaríamos de mantê-la aqui, mas os diretores resolveram  que conservá-la não vale uma crise estelar. Não tenho certeza de concordar com isso, mas eles estão acima de mim.

      Gladia franziu o cenho.

        - Por que me quererão eles? Vivi em Aurora por mais de vinte décadas e durante esse tempo não deram nenhuma demonstração nesse sentido... Espere! O senhor supõe  que eles me consideram agora como o único meio de neutralizar os supervisores em Solaria?

      - Esse pensamento também me ocorreu, minha senhora.

      - Eu não quero fazer isso. Neutralizar aquela supervisora não foi uma coisa fácil, e talvez eu nunca mais seja capaz de repetir aquilo. Sei que não quero... Além  disso, para que eles querem pousar no planeta? Eles podem aniquilar os supervisores à distância, agora que sabem o que eles são.

      - Na verdade - disse D. G. - a mensagem exigindo sua volta foi enviada muito antes de eles poderem ter sabido do seu choque com a supervisora. Devem querê-la para alguma outra coisa.

      - Oh! - Gladia pareceu surpresa. Depois, reanimando-se: - Pouco me importa o que seja. Não quero voltar. Tenho o que fazer aqui e pretendo prosseguir.

      D. G. levantou-se.

      - Fico feliz por ouvi-la dizer isso, Senhora Gladia. Eu estava esperando que a senhora se sentisse assim. Prometi-lhe que faria o possível para levá-la comigo quando deixamos Aurora. Neste instante, porém, preciso ir a Aurora e a senhora precisa ir comigo.

     

      Gladia ficou observando Baleyworld, enquanto o planeta recuava, com emoções muito diferentes das que sentira quando o vira aproximar-se. Continuava o planeta frio,  cinzento e miserável, como tinha sido no começo, mas caloroso e vivo para os habitantes. Estes eram reais, sólidos.

      Solaria, Aurora, os outros planetas Espaciais que ela havia visitado ou visto na hipervisão, todos pareciam cheios de gente insubstancial... gasosa.

      Era essa a palavra: gasosa.

      Não importava quão poucos eram os seres humanos que habitavam um planeta Espacial, eles se espalhavam para encher o planeta da mesma maneira que as moléculas de  gás se expandiam para encher um recipiente. Era como se os Espaciais se repelissem.

      E eles se repeliam, pensou ela, sombria. Os Espaciais sempre a repeliam. Ela fora levada a isso em Solaria, mas mesmo em Aurora, quando estava experimentando loucamente  o sexo, logo no começo, o aspecto menos agradável era a aproximação se fazer necessária.

      Exceto... exceto com Elijah... Mas ele não era Espacial.

      Baleyworld não era assim. Provavelmente, todos os planetas dos Colonizadores não eram. Estes se aglomeravam, deixando grandes espaços vazios em torno, como o preço  da aglomeração - isto é, vazios até que o  aumento da população os preenchesse. Um planeta dos Colonizadores era um mundo de pessoas juntas, de seixos e rochedos, e não de gás.

      Por que isso? Robôs, talvez! Eles diminuíam a dependência das pessoas uma das outras. Preenchiam os interstícios entre elas. Eles eram o isolamento que diminuía a atração natural que as pessoas tinham entre si, de forma que todo o sistema se partia em pedaços isolados.

      Tinha de ser isso. Em lugar nenhum havia mais robôs que em Solaria, e o efeito de isolamento tinha sido tão enorme que as moléculas de gás separadas - os seres humanos - tornavam-se tão completamente inertes que quase nunca se relacionavam. (Para onde teriam ido os Solarianos, tornou ela a pensar, e como estariam vivendo?)

      E a vida longa tinha alguma coisa a ver com isso também. Como alguém podia ter uma ligação emocional que não se deteriorasse lentamente à medida que as multidécadas  passassem... ou, alguém morrendo, como poderia o outro suportar a perda durante multidécadas? Aprendia-se, portanto, a não ter ligações sentimentais, mas a se manter  firme, numa atitude de isolamento.

      Por outro lado, seres humanos, se de vida curta, não podiam tão facilmente sobreviver à fascinação pela vida. À medida que as gerações passavam rapidamente, a bola da fascinação pulava de mão para mão sem sequer tocar o chão.

      Como dissera recentemente a D. G., nada mais havia a fazer ou conhecer, tinha experimentado e pensado em tudo, teria de viver em total enfado. .. E enquanto falava, ela não sabia, sequer sonhara com a multidões de pessoas, umas sobre as outras; ou em falar a tantos que se fundiam num contínuo mar de cabeças; ouvir suas respostas não em palavras mas em sons inaudíveis; fundir-se com eles, partilhando seus sentimentos, tornando-se um enorme organismo.

      Não se tratava de ela nunca ter experimentado isso antes, mas apenas que jamais havia sonhado que uma coisa assim pudesse ser experimentada. Quanta coisa mais ela não sabia, apesar de sua longa vida? O que mais existiria para ser experimentado, que ela era incapaz de imaginar?

      Daneel disse suavemente:

      - Senhora Gladia, acho que o comandante está pedindo para entrar.

      - Pois então que entre - disse Gladia sobressaltada. D. G. entrou, de sobrancelhas erguidas.

      - Que alívio! Pensei que a senhora talvez não estivesse. Gladia sorriu.

      - De certa forma não mesmo. Estava mergulhada em pensamentos. Isso me acontece às vezes.

      - Felicidade sua - retrucou D. G. - Meus pensamentos nunca são suficientemente grandes para eu me perder neles. Está resignada a visitar Aurora, senhora?

      - Não, não estou. E entre os pensamentos em que estive perdida, um    era justamente esse: eu não ter nenhuma idéia de por que o senhor precisa ir a Aurora. Não pode ser apenas para me devolver. Qualquer cargueiro espacial faria  o  trabalho.

      - Posso sentar, senhora?

      - Pode, claro. Não era preciso perguntar, comandante. Aliás, gostaria que o senhor parasse de me tratar como aristocrata. Torna-se cansativo. E se é uma indicação irônica de que sou Espacial, então é pior ainda. Na verdade, eu quase preferiria que me chamasse Gladia.

      - A senhora parece ansiosa para se livrar de sua identidade Espacial, Gladia - disse D. G., sentando-se e cruzando as pernas.

      - Eu gostaria de esquecer distinções não-essenciais.

      - Não-essenciais? Não enquanto você viver cinco vezes mais que eu.

      - Coisa estranha, eu estive pensando nisso como uma desvantagem um tanto aborrecida para os Espaciais. Quanto falta para chegar a Aurora?

      - Desta vez não haverá ação evasiva. Alguns dias para ficarmos bastante afastados do nosso sol e podermos dar um salto pelo hiperespaço que nos leve dentro de poucos dias a Aurora - e pronto.

      - Mas por que você precisa ir a Aurora, D. G.?

      - Eu poderia dizer que se trata de uma simples cortesia, mas na verdade eu gostaria de uma oportunidade para explicar ao seu Presidente - ou mesmo a um dos seus subordinados - o que aconteceu exatamente em Solaria.

      - Eles não sabem?

      - Basicamente, sim. Eles foram bastante gentis para grampear nossas comunicações, como teríamos feito com as deles se a situação fosse inversa. Contudo, podem não ter tirado as devidas conclusões. Eu gostaria de corrigi-las - se for o caso.

      - E quais são as devidas conclusões, D. G.?

      - Como sabe, os supervisores de Solaria estão preparados para funcionar diante de um ser humano apenas se ele falar com sotaque Solariano, como você fez. Isso significa não só que os Colonizadores não são considerados humanos, mas que os Espaciais não-Solarianos também não são. Para ser exato, os Auroreanos não serão considerados seres humanos se pousarem em Solaria.

      Gladia arregalou os olhos.

      - É incrível. Os Solarianos não fariam os supervisores tratar os Solarianos como trataram você.

      - Não? Pois já destruíram uma nave Auroreana. Sabia?

      - Uma nave Auroreana! Não, não sabia.

      - Garanto-lhe que sim. Ela pousou mais ou menos ao mesmo tempo que nós. Nós fomos embora, ela não. Você estava conosco, ela não. A conclusão é - ou devia ser – que os Auroreanos não podem tratar os outros planetas Espaciais automaticamente como aliados. Numa emergência, será cada planeta Espacial por si mesmo.

      Gladia balançou a cabeça energicamente.

      - Seria uma loucura generalizar com base num único fato. Os Solarianos teriam achado difícil fazer os supervisores reagirem favoravelmente a cinqüenta sotaques e  desfavoravelmente a montes de outros. Foi mais simples fixá-los num único. É isso. Apostaram em que nenhum outro Espacial tentaria pousar no seu planeta e perderam.

      - Sim, garanto que é assim que os chefes Auroreanos vão argumentar, uma vez que as pessoas geralmente acham muito mais fácil uma dedução agradável do que uma desagradável. O que eu pretendo é fazer com que eles examinem a possibilidade da desagradável - e que os deixa pouco confortáveis. Desculpe meu amor-próprio, mas não posso confiar em ninguém para fazer isso tão bem como eu; por isso, acho que, mais que qualquer outro, eu devo ir a Aurora.

      Gladia sentiu-se inconfortavelmente dividida. Ela não queria ser Espacial; queria ser humana e esquecer o que acabara de chamar "distinções não-essenciais". Contudo, quando D. G. falou com evidente satisfação de forçar Aurora a uma posição humilhante, ela ainda se sentiu de certa forma Espacial.

      Aborrecida, replicou:

      - Suponho que os planetas dos Colonizadores também estão em disputa. Não é cada um por si?

      D. G. balançou a cabeça.

      - Pode lhe parecer que seja assim, e eu não me surpreenderia se cada planeta Colonizador, individualmente, tivesse às vezes o impulso de colocar seu próprio interesse acima do bem-estar de todos, mas temos uma coisa que falta aos Espaciais.

      - E o que é? Uma nobreza maior?

      - Claro que não. Não somos mais nobres que os Espaciais. O que temos é a Terra. É nosso mundo. Todo Colonizador visita a Terra tão freqüentemente quanto possível.

      Todo Colonizador sabe que existe um planeta, grande e adiantado, com uma história incrivelmente rica, de variedade cultural e complexidade ecológica, que é seu e  ao qual ele pertence. Os planetas dos Colonizadores podem brigar uns com os outros, porém a briga possivelmente pode não resultar em violência ou em permanente rompimento  de relações, pois o governo da Terra é chamado imediatamente para mediar todos os problemas e sua decisão é suficiente e inquestionável.

      "Essas são as nossas três vantagens, Gladia: a falta de robôs, que nos permite construir novos planetas com nossas próprias mãos; a sucessão rápida de gerações, que exige mudança constante; e, acima de tudo, a Terra, que nos dá nosso âmago.”

      - Mas os Espaciais... - disse Gladia, apressadamente, e parou. D. G. sorriu e replicou, com uma ponta de amargura:

      - Você ia dizer que os Espaciais também descenderam dos Terráqueos e que a Terra é também seu planeta não é? Concretamente isso é verdadeiro,  mas psicologicamente é falso. Os Espaciais fizeram o que puderam para negar sua herança. Não se consideram Terráqueos outrora transferidos - ou removidos  em grupo. Se eu fosse místico, diria que, separando-se das suas raízes, os Espaciais não poderão sobreviver muito tempo. Como não sou místico, evidentemente não  posso colocar o problema dessa maneira. Ainda assim, entretanto, eles não poderão sobreviver durante muito tempo. Estou certo disso.

      Depois de uma curta pausa, o rapaz acrescentou, com uma bondade um tanto preocupada, como se tivesse percebido que, no seu alvoroço, estava atingindo um ponto sensível dentro dela:

      - Mas, por favor, pense em você mesma como um ser humano, Gladia, e não como uma Espacial, e eu pensarei em mim também como um ser humano, não um Colonizador. A humanidade sobreviverá, quer sob a forma de Colonizadores ou Espaciais, ou ambas. Creio que será unicamente sob a forma de Colonizadores, mas posso estar errado.

      - Não - replicou Gladia, procurando ser racional. - Acho que você tem razão - a menos que, de alguma forma, as pessoas aprendam a deixar de fazer a distinção Espacial/Colonizador. E meu objetivo é ajudar as pessoas a conseguirem isso.

      - Contudo - disse D. G., olhando para o painel de horas que rodeava a parede - atrasei seu jantar. Posso comer com você?

      - Certamente - respondeu Gladia. D. G. pôs-se em pé.

      - Então Vou buscar a comida. Eu devia enviar Daneel ou Giskard, mas não quero me habituar a dar ordens aos robôs à mão. Além disso, por mais que a tripulação a adore, não creio que essa adoração se estenda aos seus robôs.

      Gladia realmente não gostou da refeição, quando D. G. a trouxe. Ela pareceu não ter se acostumado à falta de sutileza nos temperos, possivelmente herança da Terra, alimentos fermentados para consumo maciço, mas que também não se tornaram especialmente repulsivos. Ela comeu impassível.

      D. G., reparando sua falta de animação, comentou:

      - Espero que a comida não lhe cause indisposição! Ela balançou a cabeça.

      - Não. Aparentemente, já me acostumei. Passei por algumas situações desagradáveis quando entrei pela primeira vez na nave, mas nada verdadeiramente grave.

      - Fico contente com isso, mas, Gladia...

      - Diga.

      - Você pode sugerir algum motivo pelo qual o governo Auroreano queira você de volta com tanta urgência? Não pode ser pelo modo como dominou a supervisora e também não é por causa do discurso. O pedido foi feito muito antes de eles terem tomado conhecimento de ambos os fatos.

      - Nesse caso, D. G. - disse Gladia, com tristeza - possivelmente eles não me querem mesmo para nada. Nunca me quiseram.

      - Mas deve haver alguma coisa. Como lhe disse, a mensagem era assinada pelo Presidente do Conselho de Aurora.

      - Este Presidente em especial, neste momento especial, deve ser um testa-de-ferro.

      - Como? Quem está por trás deles? Kelden Amadiro?

      - Exatamente. Mas você o conhece então.

      - Oh, sim - retrucou D. G., sombrio - o centro do fanatismo anti-Terra. O homem esmagado politicamente pelo Dr. Fastolfe há vinte décadas e que sobreviveu para nos ameaçar novamente. É um exemplo da mão morta da longevidade.

      - Mas há também um enigma - comentou Gladia. - Amadiro é vingativo. Sabe que foi Elijah Baley o causador dessa derrota e acredita que eu também sou responsável.  Sua antipatia - extrema antipatia - se estende a mim. Se o Presidente está me chamando, é por ordem de Amadiro, e por que este me quererá? Ele deveria, ao contrário,  querer se livrar de mim. Foi provavelmente por isso que me mandou com você para Solaria. Certamente esperava que sua nave fosse destruída - e eu junto com ela. E  isso não o teria absolutamente entristecido.

      - Nada de lágrimas incontroláveis, hem? - disse D. G., pensativo. - Mas certamente não foi o que lhe disseram. Ninguém lhe disse: "Vá com esse Mercador louco porque nos dará prazer vê-la morta."

      - Não. Disseram que você precisava desesperadamente da minha ajuda e que era político cooperar com os planetas Colonizadores naquele momento, que faria um grande bem a Aurora contando-lhes, na minha volta, tudo o que ocorresse em Solaria,

      - Sim, eles queriam isso. Poderiam até ter querido dizer isso. Mas depois - contra todas as expectativas - quando nossa nave partiu a salvo, enquanto uma nave Auroreana era aniquilada, eles podiam muito bem querer um relato em primeira mão do que acontecera. Por conseqüência, quando a levei a Baleyworld, em vez de voltar para Aurora, eles pediram sua volta. Possivelmente foi isso. A esta altura, é claro, eles sabem de tudo e, portanto talvez não precisem mais de você. Contudo - estava falando mais para si mesmo do que para Gladia - o que eles sabem é o que captaram na hipervisão de Baleyworld, e podem preferir não aceitar isso como valioso. E também...

      - E também o quê?

      - Um palpite me diz que essa mensagem pode não ter sido transmitida apenas pelo desejo de terem um relatório seu. A força da exigência, parece-me, vai muito além disso.

      - Não há nada mais que eles possam querer. Nada - afirmou Gladia.

      - Duvido muito - disse D. G.

      - Eu também duvido - falou Daneel de seu nicho na parede, naquela noite.

      - De que você duvida, amigo Daneel? - perguntou Giskard.

      - Duvido do verdadeiro significado da mensagem vinda de Aurora, reclamando a presença de Lady Gladia. Para mim, como para o comandante, o desejo de um relatório não me parece um motivo totalmente satisfatório.

      - Você tem uma outra sugestão?

      - Tenho uma suposição, amigo Giskard.

      - Posso conhecê-la, amigo Daneel?

      - Ocorreu-me que, ao exigir a volta de Senhora Gladia, o Conselho Auroreano pretende obter mais do que pediu - e não ser Senhora Gladia o que eles querem.

      - O que mais, além dela, quererão eles?

      - Amigo Giskard, é concebível que Lady Gladia volte sem nós?

      - Não, mas de que valeríamos, você e eu, para o Conselho?

      - Eu, amigo Giskard, não seria útil para eles. Você, contudo, é inestimável, pois pode entrar diretamente em contato com as mentes.

      - Isso é verdade, amigo Daneel, porém eles não sabem disso.

      - Depois da nossa partida, não é possível que tenham, de alguma forma, descoberto isso e lamentado amargamente ter permitido que você saísse de Aurora?

      Giskard não hesitou perceptivelmente.

      - Não, não é possível, amigo Daneel. Como teriam descoberto? Daneel retrucou, cautelosamente:

      - Estive pensando a esse respeito. Na viagem que fez à Terra com o Dr. Fastolfe, você deu um jeito de ajustar alguns robôs terrestres, limitando sua capacidade mental até o ponto em que pudesse continuar seu trabalho de influenciar os funcionários da Terra a olhar com coragem e simpatia o processo de Colonização. Pelo menos foi o que você me disse. Dessa forma, há robôs na Terra capazes de terem as mentes ajustadas.

      "Assim, então, como viemos a suspeitar recentemente, o Instituto de Robótica de Aurora enviou robôs humanóides para lá. Não conhecemos seu exato objetivo fazendo  isso, mas o mínimo que pode ser esperado deles é que observem os acontecimentos naquele planeta e os relatem.”

      "Mesmo que os robôs Auroreanos não possam ler mentes, podem enviar relatórios assinalando que este ou aquele funcionário mudou subitamente de atitude em relação  à Colonização, e talvez, desde que partimos  de Aurora, alguém no poder em Aurora - talvez o próprio Dr. Amadiro; - tenha começado a compreender que isso só pode  ser explicado pela existência de robôs ajustadores de mentes na Terra. Pode ter acontecido então que o estabelecimento de ajustadores de mentes tenha sido investigado  tanto  até o Dr. Fastolfe como a você mesmo.”

      "Isso, por sua vez, pode tornar claro aos funcionários Auroreanos o significado de alguns outros acontecimentos, que podem ter sido investigados até você em vez do Dr. Fastolfe. Dessa forma, estarão querendo que você volte desesperadamente, mas se sentem incapazes de pedi-lo diretamente, pois isso revelaria seu novo conhecimento.”

      Assim, reclamaram a volta de Lady Gladia - um pedido natural - sabendo que, se ela for levada de volta, você também voltará com ela.

      Giskard ficou em silêncio durante um minuto inteiro e depois falou:

      - Um raciocínio interessante, amigo Daneel, mas sem muita base. Aqueles robôs que eu escolhi para a tarefa de encorajar a Colonização terminaram sua tarefa há dezoito  décadas e ficaram inativos desde então, pelo menos no que se refere ao ajustamento da mente. Mais ainda, a Terra retirou os robôs de suas Cidades e os confinou em  áreas não habitadas de suas não-Cidades faz muito tempo já.

      " Isso significa que os robôs humanóides que supostamente estiverem sendo enviados para a Terra não tiveram, assim, ocasião de encontrar meus robôs ajustadores  de mentes ou mesmo de perceber qualquer ajustamento de mente, considerando que eles não estão mais empenhados nisso. É impossível, portanto, para minha especial  capacidade, ter sido descoberto da maneira que você supôs.”

      Daneel perguntou:

      - Não existe outro meio de descobrir, amigo Giskard?

      - Nenhum - replicou Giskard, com firmeza.

      - Apesar disso... tenho minhas dúvidas - afirmou Daneel.

 

AURORA

 

      O Velho Líder

      Kelden Amadiro não estava imune da praga humana da memória. Estava, na verdade, mais sujeito a ela que a maioria. Além do mais, em seu caso a persistência da memória  tinha, como acompanhamento, um conteúdo incomum pela intensidade de sua profundidade, raiva e frustração prolongadas.

      Tudo tinha ido muito bem para ele nas vinte décadas anteriores. Tinha sido o fundador do Instituto de Robótica (ainda era o chefe), e por um brilhante e vitorioso  momento pareceu-lhe que não podia deixar de obter o controle total do Conselho, esmagando seu grande inimigo, Han Fastolfe, deixando-o em desesperada oposição.

      Se ele tivesse... se pelo menos tivesse...

      (Havia tentado desesperadamente não pensar nisso, mas sua memória mantinha o assunto cada vez mais presente, como se nenhuma dor ou desespero fossem suficientes.)  Se tivesse vencido, a Terra teria permanecido isolada e ele só teria visto que ela declinava, deteriorava e finalmente se desintegrava. Por que não? Os habitantes  de vida curta de um planeta enfermo, superpovoado, estariam melhor mortos, uma centena de vezes melhor que vivendo a vida que se haviam forçado a levar.

      E os planetas Espaciais, calmos e seguros, poderiam então ter se expandido em seguida. Fastolfe sempre lamentara que os Espaciais vivessem tanto e tão confortavelmente  nas suas almofadas robóticas para serem pioneiros, mas Amadiro teria provado que ele estava errado.

      Contudo, Fastolfe vencera. No momento da derrota certa, de alguma forma, inacreditavelmente, ele penetrara no espaço vazio, por assim dizer, e segurara com firmeza  a vitória em suas garras - arrancada do nada.

      Claro, tinha sido Elijah Baley, aquele Terráqueo...

      Mas, por outro lado, a desconfortável memória de Amadiro tropeçava no Terráqueo e voltava. Ele não podia retratar aquele rosto, ouvir aquela Voz, lembrar aquele  feito. O nome era bastante. Vinte séculos não tinham sido suficientes para obscurecer o ódio que nutria - ou aplacar a dor que  sentia, o mínimo que fosse.

      E com Fastolfe responsável pela política, o miserável Terráqueo voara para seu planeta corruptor e se estabelecera em mundo após mundo. O furacão do progresso  da Terra tonteara os planetas Espaciais e levara-os a uma medrosa paralisação.

      Quantas vezes Amadiro se dirigira ao Conselho para afirmar que a galáxia estava escapando dos dedos dos Espaciais, que Aurora estava observando inexpressivamente,  enquanto planeta por planeta vinham sendo ocupados por homens inferiores, que a cada ano a apatia estava firmemente se apossando do espírito dos Espaciais?

      "Despertem", gritava. "Despertem. Vejam como eles crescem. Vejam como os planetas dos Colonizadores se multiplicam. O que estão esperando? Que eles pulem em suas gargantas?"

      E Fastolfe sempre respondia naquela sua vozinha melosa de acalanto, os Auroreanos e os outros Espaciais (sempre seguindo a liderança de Aurora, quando este preferia não liderar) instalavam-se e voltavam à sua modorra.

      O óbvio parecia não atingi-los. Os fatos, os números, o indiscutível declínio dos negócios, de década para década, deixava-os indiferentes. Como era possível gritar  a verdade tão firmemente, ter cada predição confirmada e apesar disso ter de olhar uma grande maioria seguindo Fastolfe como um rebanho de carneiros?  Como era possível que o próprio Fastolfe pudesse olhar tudo o que considerara uma total loucura e, apesar disso, nunca se desviar de sua política? Não se tratava  nem mesmo do fato de que ele insistisse teimosamente em estar errado, mas apenas que ele simplesmente nunca parecia notar que estava errado.

      Se Amadiro fosse o tipo de homem dotado de fantasia, certamente imaginaria que certo tipo de encanto, certa espécie de encantamento apático tinha caído sobre os  planetas Espaciais. Imaginaria que em algum lugar alguém possuía o poder mágico de acalmar cérebros antes ativos e cegar para a verdade olhos outrora aguçados.

      Para completar o intenso sofrimento final, o povo lamentou a morte de Fastolfe em frustração. Em frustração, disseram, porque os Espaciais não se apossaram de novos planetas por si mesmos.

      Fora a própria política de Fastolfe que os impedira de fazer isso! Que direito tinha ele de sentir frustração por causa disso? Que teria ele feito se, como Amadiro, tivesse sempre visto e falado a verdade e sido incapaz de forçar os Espaciais - muitos Espaciais - a ouvi-lo.

      Quantas vezes tinha ele achado que teria sido melhor para a galáxia ficar vazia que sob o domínio dos homens inferiores? Se ele tivesse o poder mágico de destruir a Terra - o planeta de Elijah Baley - com um gesto de cabeça, com que empenho o faria!

      Contudo, procurar refúgio nessa fantasia podia ser unicamente um sinal do seu completo desespero. Era o anverso da sua repetição, desejo fútil de desistir e saudar a morte - se seus robôs o permitissem.

      E então chegou a hora em que lhe foi dado o poder de destruir a Terra - mesmo forçando-o contra sua vontade. Aconteceu cerca de três quartos de década antes, quando foi apresentado a Levular Mandamus.

      Memória! Três quartos de década antes...

      Amadiro ergueu os olhos e viu que Maloon Cieis tinha entrado no escritório. Indubitavelmente tinha feito o sinal, ou não teria obtido o direito de entrar.

      Amadiro suspirou e largou seu pequeno computador. Cieis tinha sido seu braço direito desde que o Instituto fora criado. Estava ficando velho a seu serviço. Nada visível drasticamente, apenas um ar geral de decadência. Seu nariz parecia ter ficado um pouco mais torto que antigamente.

      Amadiro esfregou o seu, um tanto batatudo, e ficou imaginando até onde a decadência o estava atingindo. Ele chegara a ter 1,95m de altura, um bom tamanho mesmo pelos padrões Espaciais. Estava agora tão reto quanto sempre estivera; apesar disso, quando recentemente medira sua altura, não conseguira alcançar mais de 1,93m. Estaria começando a ficar curvado, a encolher, a diminuir?

      Pôs de lado esses pensamentos sombrios, eles mesmos um sinal mais certo de idade do que simples medidas, e disse:

      - O que é, Maloon?

      Cieis tinha um novo robô pessoal seguindo seus passos - muito moderno e lustroso. Isso também era sinal de envelhecimento. Se alguém não pode conservar o próprio corpo jovem sempre pode comprar um robô novo e jovem. Amadiro estava disposto a nunca provocar sorrisos entre os realmente moços, tornando-se presa dessa ilusão especial, principalmente desde que Fastolfe, era oito décadas mais velho que ele, nunca o fizera.

      - É esse Mandamus novamente, chefe - disse Cieis.

      - Mandamus?

      - Aquele que vive insistindo em lhe falar. Amadiro pensou um pouco.

      - Você se refere àquele idiota que é descendente da Solariana?

      - Sim, chefe.

      - Bem, não desejo vê-lo. Você ainda não deixou isso claro para ele, Maloon?

      - Exaustivamente claro. Pediu-me que lhe entregasse um bilhete e disse que o senhor o receberá.

      Amadiro falou pausadamente:

      - Acho que não, Maloon. O que diz o bilhete?

      - Não o entendi. Não é galáctico.

      - Nesse caso, por que devo eu entendê-lo melhor que você?

      - Não sei, porém ele me pediu que o entregasse ao senhor. Se não quiser lê-lo, chefe, e me der ordem, voltarei e me livrarei dele mais uma vez.

      - Bem, nesse caso, deixe-me vê-lo - disse Amadiro balançando a cabeça.

      Olhou, aborrecido o bilhete, que dizia: "Ceterum censeo, delenda est Carthago."

      Amadiro leu o bilhete, olhou para Maloon e tornou a fixar o olhar no papel. Finalmente, disse:

      - Você deve ter dado uma olhada nisto, uma vez que sabe não ser galáctico. Perguntou-lhe o que significava?

      - Perguntei, chefe. Ele disse que era latim, mas isso não me deixou mais esclarecido. Disse que o senhor entenderia. Ele é uma pessoa muito persistente e disse que

      ficaria ali o dia inteiro esperando, até que o senhor lesse.

      - Como é ele?

      - Magro. Sério, provavelmente sem humor. Alto, mas não tanto quanto o senhor. Tenso, olhos fundos, lábios finos.

      - Que idade?

      - Pela constituição da sua pele, eu diria que quatro décadas, se tanto. É muito moço.

      - Nesse caso, precisamos levar em consideração sua juventude. Mande-o entrar.

      Cieis mostrou-se surpreso.

      - O senhor vai recebê-lo?

      - Foi o que acabei de dizer, não foi? Mande-o entrar.

      O rapaz entrou na sala quase marchando. Parou empertigado defronte da escrivaninha e disse:

      - Agradeço-lhe, senhor, por ter concordado em me receber. Permite que meus robôs se juntem a mim?

      Amadiro ergueu as sobrancelhas.

      - Ficarei satisfeito por vê-los. O senhor permite que eu conserve os meus ao meu lado?

      Tinham passado muitos anos desde que ouvira alguém pronunciar a velha fórmula robótica. Era um desses velhos e bons costumes que entraram em desuso quando a noção  de polidez formal deteriorou-se e difundiu-se cada vez mais a noção de que um robô pessoal era parte de alguém.

      - Sim, senhor - disse Mandamus, e dois robôs entraram. Amadiro notou que eles não o fizeram até receberem permissão. Eram  dois robôs novos, nitidamente eficientes e mostrando todos os sinais de habilidade artesanal.

      - Seu próprio desenho, Sr. Mandamus?

      Havia sempre um valor especial nos robôs que eram desenhados por seus proprietários.

      - De fato, senhor.

      - Então o senhor é roboticista?

      - Sou, senhor. Formei-me na Universidade de Eos.

      - Trabalhando com... Mandamus respondeu suavemente:

      - Não com o Dr. Fastolfe, senhor. com o Dr. Maskellnik.

      - Oh, mas o senhor não é membro do Instituto.

      - Pedi inscrição, senhor.

      - Compreendo. - Amadiro arrumou os papéis na mesa e depois prosseguiu apressadamente, sem erguer os olhos: - Onde aprendeu latim?

      - Não sei latim bastante para falar ou ler, mas o suficiente para conhecer essa citação e saber onde a encontrar.

      - Isso em si é notável. Como conseguiu?

      - Não devoto todo o meu tempo à robótica e assim tenho outros interesses. Um deles é a planetologia, com especial referência à Terra, o que me leva à sua história e cultura.

      - Esse não é um estudo popular entre Espaciais.

      - Não, senhor, e isso é muito mau. Deve-se sempre conhecer os inimigos - como o senhor faz, senhor.

      - Como eu faço?

      - Sim, senhor. Acredito que o senhor esteja familiarizado com muitos aspectos da Terra e tenha aprendido mais a esse respeito do que eu, pois estudou o assunto mais tempo.

      - Como sabe disso?

      - Procurei aprender o mais possível sobre o senhor.

      - Porque sou outro dos seus inimigos?

      - Não, senhor, mas porque quero fazer do senhor um aliado.

      - Fazer-me um aliado seu? Então planeja me usar? Não percebe que está sendo um tanto impertinente?

      - Não, senhor, pois tenho certeza de que irá querer se aliar a mim.

      Amadiro encarou-o.

      - Não obstante, ocorre-me que o senhor está sendo mais que um tanto impertinente. Diga-me, o senhor compreende a citação que me enviou?

      - Sim, senhor.

      - Então queira traduzi-la para o Galáctico Padrão.

      - Ela diz: "Na minha opinião, Cartago precisa ser destruída."

      - E o que significa isso, na sua opinião?

      - Quem a disse foi Marcus Porcius Cato, senador da República Romana, um organismo político da antiga Terra. Ela derrotou sua principal

      Cartago, mas não a destruiu. Cato sustentava que Roma não podia   sentir-se segura até Cartago ser totalmente destruída - o que finalmente aconteceu.

      - Mas o que é Cartago para nós, rapaz?

      - Há algumas analogias.

      - Por exemplo?

      - Os planetas Espaciais têm também um rival principal que, na minha opinião, precisa ser destruído.

      - Cite o inimigo.

      - O planeta Terra, senhor.

      Amadiro tamborilou suavemente na mesa à sua frente.

      - E o senhor quer que eu seja seu aliado nesse projeto. Acha que eu ficarei feliz e ansioso para isso. Diga-me, Dr. Mandamus, quando foi que eu alguma vez disse,  num dos meus inúmeros discursos e escritos a respeito, que a Terra devia ser destruída?

      Os lábios finos de Mandamus se apertaram e suas narinas arfaram.

      - Não estou aqui - disse - numa tentativa de fazê-lo cair na armadilha de alguma coisa que possa ser usada contra o senhor. Não fui mandado aqui pelo Dr. Fastolfe  ou alguém do partido dele. Nem sou do seu partido. Nem estou tentando dizer o que se passa em sua cabeça. Estou lhe dizendo o que vai na minha. No meu entender,  a Terra precisa ser destruída.

      - E como propõe destruí-la? Sugere que atiremos bombas nucleares nela até que as explosões, a radiação e as nuvens de poeira destruam o planeta? Porque, se é assim,  como pretende impedir que as naves vingadoras dos Colonizadores façam o mesmo com Aurora e outros planetas Espaciais que possam atingir? A Terra podia ser bombardeada  impunemente há quinze décadas, mas agora não.

      Mandamus parecia revoltado.

      - Nem me passou pela cabeça uma coisa dessas, Dr. Amadiro. Eu não destruiria desnecessariamente seres humanos, ainda que fossem Terráqueos. Contudo, há uma forma  de destruir a Terra sem necessariamente matar todos os seus habitantes - e não haverá represália.

      - O senhor é um sonhador - replicou Amadiro - ou talvez não muito são.

      - Permita-me que explique.

      - Não, rapaz. Tenho pouco tempo, e por causa de sua citação, que compreendi muito bem e despertou minha curiosidade, já permiti a mim mesmo gastá-lo demais com o  senhor.

      Mandamus levantou-se.

      - Compreendo, Dr. Amadiro, e peço-lhe desculpas por tomar seu tempo em demasia. Contudo, pense no que lhe disse, e, se ficar curioso, pode me chamar quando dispuser  de mais tempo do que tem agora. Mas não espere demasiadamente, pois, se for preciso, procurarei outros caminhos; meu desejo é destruir a Terra. Veja, estou sendo  franco com o senhor.

      O rapaz esboçou um sorriso que esticou suas faces magras sem produzir muito efeito. Ele disse:

      - Adeus. E novamente obrigado.

      Virou-se e saiu. Amadiro ficou olhando pensativamente sua partida depois apertou um botão num dos lados da escrivaninha.

      Quando Cieis entrou, ele disse:

      - Maloon, quero que esse rapaz seja vigiado noite e dia, e quero saber com quem ele fala. Todos. Quero todos identificados e interrogados. Aqueles que eu indicar devem ser trazidos à minha presença. Mas, veja bem, Maloon, tudo deve ser feito sigilosamente e com uma atitude de persuasão suave e amistosa. Como sabe, ainda não mando aqui.

      Mas finalmente iria mandar. Fastolfe tinha trinta e seis décadas de idade e vinha nitidamente decaindo. Amadiro era oito décadas mais moço.

     

      Amadiro recebeu seus relatórios durante nove dias seguidos.

      Mandamus falou com seus robôs, ocasionalmente com colegas na universidade, e ainda mais ocasionalmente com pessoas nas casas vizinhas à sua. Suas conversas eram  totalmente triviais, e, muito antes de passar o nono dia, Amadiro tinha decidido que não podia continuar vigiando o rapaz. Mandamus estava ainda no começo de uma  longa vida, podendo ter trinta décadas à sua frente; Amadiro tinha apenas de oito a dez, no máximo.

      E Amadiro, pensando no que o rapaz lhe dissera, sentiu, com crescente inquietação, que não podia correr o risco de que existisse um meio de destruir a Terra e ele  o ignorasse. Podia ele permitir que a destruição tivesse lugar após sua morte, sem que a testemunhasse? Ou, que, quase tão desagradável, ela pudesse ocorrer durante  sua vida, mas com outra cabeça no comando, com outros dedos nos interruptores?

      Não, ele tinha que ver, que testemunhar e fazer, do contrário, por que tinha suportado a longa frustração? Mandamus podia ser um bobo ou um louco, mas, neste caso,  Amadiro tinha de saber com certeza se era um ou outro.

      Chegando a esse ponto de raciocínio, Amadiro mandou chamar Mandamus ao seu escritório.

      Amadiro percebeu que, fazendo isso, estava se humilhando, mas a humilhação era o preço que tinha de pagar para ter certeza de que não havia a menor possibilidade  de a Terra ser destruída sem ele. Era um preço que estava disposto a pagar.

      Ele chegou a se fortalecer para a possibilidade de Mandamus aparecer   em sua presença com um sorriso malicioso e desdenhosamente vitorioso.  a também que suportar isso. Depois da resignação, claro, se a sugestão   do rapaz fosse idiota, ele mandaria castigá-lo com toda a plenitude permitida  por uma sociedade civilizada, do contrário...

      Estava, portanto, satisfeito quando Mandamus entrou no seu escritório numa atitude de humildade razoável e agradeceu-lhe, com evidente sinceridade, por aquela segunda entrevista. Pareceu a Amadiro que deveria mostrar-se generoso por sua vez.

      - Dr. Mandamus - disse - ao mandá-lo embora sem ouvir seu plano, fui um tanto descortês. Diga-me, portanto, o que está pensando e ouvirei, até ficar perfeitamente  claro para mim - como desconfio que ficará - que seu plano talvez resulte mais do entusiasmo que do raciocínio frio. Aí, tornarei a mandá-lo embora, mas sem desprezo,  e espero que o senhor reaja sem raiva, por sua vez.

      - Não posso ficar zangado - retrucou Mandamus - por ter recebido uma justa e paciente audiência, Dr. Amadiro. Mas, e se o que eu disser fizer sentido para o senhor e der esperanças?

      - Nesse caso - disse Amadiro pausadamente - será possível que ambos possamos trabalhar juntos.

      - Isso será maravilhoso, senhor. Juntos, poderemos realizar mais que separadamente. Mas haverá coisa mais tangível que o privilégio de trabalharmos juntos? Haverá uma recompensa?

      Amadiro pareceu aborrecido.

      - Eu ficaria grato, é claro, porém não passo de um conselheiro e dirigente do Instituto de Robótica. Esse será o limite do que poderei fazer pelo senhor.

      - Compreendo, Dr. Amadiro. Mas, dentro desse limite, eu não poderia receber alguma coisa por conta? Agora?

      Olhou com firmeza para Amadiro.

      Amadiro franziu o cenho ao sentir seu olhar mergulhando num par de olhos fixos, aguçados e determinados. Não havia humildade neles!

      - O senhor está pensando em quê? - perguntou Amadiro friamente.

      - Em nada, que não possa me dar, Dr. Amadiro. Faça-me entrar para o Instituto.

      - Se estiver qualificado...

      - Não tema. Estou.

      - Não podemos deixar essa decisão ao candidato. Precisamos...

      - Ora, Dr. Amadiro, essa não é a maneira de iniciar uma relação. Uma vez que o senhor me manteve sob observação a cada instante, desde que parti a última vez, não  posso acreditar que não tenha examinado minha ficha acuradamente. Como resultado, o senhor deve saber que estou qualificado. Se, por qualquer motivo, achasse o contrário  não esperaria que eu fosse bastante engenhoso a ponto de elaborar um plano para a destruição de nossa Cartago particular e eu não estaria aqui de volta por uma chamada  sua.

      Durante um momento, Amadiro sentiu uma chama queimá-lo internamente. Por um instante, sentiu que mesmo a destruição da Terra não valia  o ato de suportar aquela fanfarronada infantil. Mas só por um instante. Então, seu sentido de proporção voltou e ele pôde dizer-se que uma pessoa tão jovem, embora  tão insolente e tão gelidamente segura de si mesma, era a espécie de homem de que ele precisava. Além disso, tinha examinado a ficha de Mandamus, e não havia dúvida  de que ele estava qualificado para o Instituto.

      Amadiro falou, calmamente (à custa de sua pressão arterial):

      - O senhor tem razão. Está qualificado.

      - Então me inscreva. Estou certo de que tem as fórmulas necessárias no seu computador. Só precisa colocar meu nome, minha escola, meu ano de formatura, quaisquer  outras trivialidades estatísticas que achar necessárias e depois assinar seu nome.

      Sem responder uma palavra, Amadiro virou-se para o computador. Forneceu a necessária informação, obteve a fórmula, assinou-a e entregou-a a Mandamus.

      - Está datada de hoje. O senhor é membro do Instituto. Mandamus examinou o papel e depois entregou-o a um dos seus robôs, que o meteu numa pequena pasta que ele, depois, colocou sob o braço.

      - Obrigado - disse Mandamus - é muito gentil da sua parte, e espero nunca lhe falhar ou fazê-lo lastimar esta prova de estima que me deu da minha capacidade. Fica faltando, contudo, mais uma coisa.

      - É mesmo? O quê?

      - Precisamos discutir a recompensa final - só em caso de sucesso, é claro. Sucesso total.

      - Não podemos deixar isso, mais logicamente, para quando esse sucesso total for atingido ou estiver perto de ser?

      - Racionalmente, sim. Mas sou um sonhador e um racionalista ao mesmo tempo. Eu gostaria de sonhar um pouco.

      - Bem - disse Amadiro - com que o senhor gostaria de sonhar?

      - Parece-me, Dr. Amadiro, que o Dr. Fastolfe não está agora muito bem. Já viveu muito e não pode manter a morte afastada por muitos anos mais.

      - E daí?

      - Assim que ele morrer, seu partido se tornará mais agressivo e os membros mais indiferentes do partido de Fastolfe talvez encontrem um meio de prestar obediência  ao seu. Na próxima eleição, sem Fastolfe, o senhor certamente será o vencedor.

      - É possível. E se assim for?

      - O senhor será de fato o líder do Conselho e o orientador da política externa de Aurora, o que significará, na realidade, a política externa dos planetas Espaciais em geral. E se meus planos derem certo, sua chefia terá um tal sucesso que o Conselho dificilmente deixará de elegê-lo presidente na primeira oportunidade.

      - Seus sonhos voam alto, rapaz. E se tudo o que prevê se tornar verdade?

      - O senhor mal terá tempo para governar Aurora e o Instituto de Robótica. Assim, peço-lhe que, quando finalmente decidir demitir-se de seu cargo atual como chefe do Instituto, fique preparado para me apoiar como seu sucessor no cargo. O senhor dificilmente poderá ter sua escolha pessoal rejeitada.

      - Há uma coisa chamada qualificação para o cargo - disse Amadiro.

      - Eu a terei.

      - Esperemos para ver.

      - Estou disposto a esperar e ver, mas o senhor descobrirá isso muito antes do nosso completo sucesso e desejará apoiar esse meu pedido. Assim, por favor, vá se acostumando à idéia.

      - Tudo isso, antes de eu ter ouvido sequer uma palavra - murmurou Amadiro. - Bem, o senhor é membro do Instituto e eu me esforçarei para me acostumar ao seu sonho pessoal, mas agora terminemos com as preliminares e me diga como pretende destruir a Terra.

      Quase mecanicamente, Amadiro fez o sinal que determinava aos seus robôs que não deviam lembrar nenhuma parte da conversa. E Mandamus, esboçando um sorriso, fez o mesmo em relação aos seus.

      - Então vamos começar - disse Mandamus.

      Mas antes que ele pudesse falar, Amadiro começou a atacar.

      - O senhor tem certeza de que não é pró-Terra? Mandamus ficou espantado.

      - Vim procurá-lo com a proposta de destruir a Terra.

      - E no entanto é descendente da Solariana - embora na quinta geração.

      - Sim, senhor, isso consta do registro público. Que tem isso?

      - A Solariana é - e foi durante muito tempo - muito ligada... amiga... protegida... de Fastolfe. Assim, fico imaginando se não simpatiza com seus pontos de vista pró-Terra.

      - Por causa dos meus antepassados? - Mandamus parecia honestamente espantado. Por um momento, o que podia ser um lampejo de aborrecimento ou mesmo raiva retesou suas narinas, mas desapareceu imediatamente, e ele disse, calmamente: - Uma pessoa muito ligada... amiga... protegida... do senhor mesmo é a Dra. Vasilia Fastolfe, filha do Dr. Fastolfe. Ela é descendente da primeira geração. Fico imaginando se ela não simpatiza com os pontos de vista dele.

      - Em outros tempos também fiquei imaginando - replicou Amadiro - porém ela não simpatiza com os pontos de vista dele, por isso, no caso dela, deixei de imaginar.

      - No meu caso, também pode deixar de imaginar, senhor. Sou Espacial e quero ver os Espaciais no comando da Galáxia.

      - Pois muito bem. Continue com a descrição do seu plano.

      - Continuarei, mas, se não se importa, do início - disse Mandamus.

      - Dr. Amadiro, os astrônomos concordam que há milhões de planetas semelhantes à Terra em nossa Galáxia,   planetas que poderiam ser habitados pelos seres humanos após os necessários ajustes ao meio ambiente, sem qualquer necessidade  de terraformação geológica. Suas atmosferas são respiráveis, há a presença de oceanos de água, o solo e o clima são adequados, existe vida. De fato, as atmosferas  não conteriam oxigênio livre sem a presença de plâncton pelo menos.

      "O solo é freqüentemente infecundo, mas uma vez que ele e o oceano passem por uma terraformação biológica - isto é, uma vez sejam semeados com a vida terrestre -  a vida viceja e o planeta pode ser colonizado. Centenas desses planetas foram registrados e estudados, e cerca de metade deles já está ocupada por Colonizadores.”

      "Contudo, nenhum desses planetas habitáveis descobertos até hoje tem a enorme variedade e excesso de vida que a Terra tem. Nenhum tem nada maior e mais complexo  que uma pequena quantidade de minhocas, invertebrados parecendo insetos ou, no mundo das plantas, nada mais avançado que moitas de fetos. Nada de inteligência ou  qualquer coisa semelhante.”

      Amadiro ouviu as frases secas e pensou: Ele está falando mecanicamente. Decorou tudo isso. Estremeceu e disse:

      - Não sou planetólogo, Dr. Mandamus, mas peço-lhe que acredite que não está dizendo nada que eu não saiba.

      - Como lhe disse, Dr. Amadiro, estou começando do início. Os astrônomos estão acreditando cada vez mais que temos uma convincente amostra dos planetas habitáveis  da Galáxia, e tudo - ou quase tudo - é nitidamente diferente da Terra. Por algum motivo, a Terra é um planeta surpreendentemente extraordinário, e a evolução desenvolveu-se  nele com um passo radicalmente rápido e de uma forma radicalmente anormal.

      - O argumento habitual - retrucou Amadiro - é que se houvesse outras espécies inteligentes na Galáxia, seriam tão avançadas quanto nós, teriam conhecimento da nossa expansão agora e teriam se dado a conhecer a nós, de uma forma ou de outra.

      - É verdade, senhor - falou Mandamus. - De fato, se houvesse outras espécies inteligentes na galáxia mais avançada que nós, não teríamos tido a oportunidade de nos  expandir em primeiro lugar. Que somos a única espécie na Galáxia capaz de viajar no hiperespaço, parece indubitável, portanto. Que somos a única espécie inteligente  na Galáxia, talvez não seja muito certo, embora haja uma boa chance nesse sentido.

      Amadiro estava agora rindo com um sorriso cansado. O rapaz estava sendo didático, como um homem que estivesse andando ao ritmo de sua Monomania, com um movimento  surdo. Era uma das marcas da esquisitice, e a pequena esperança que Amadiro tivera, de que Mandamus pudesse realmente ter alguma coisa que mudasse a maré da História,  estava começando a sumir.

      - Continue a me informar, Dr. Mandamus - falou Amadiro. Todos  sabem que a Terra é única e que os Terráqueos são provavelmente a única espécie inteligente da Galáxia.

      - Porém, ao que parece, ninguém faz esta simples pergunta: "Por quê?" Os Terráqueos e os Colonizadores não a fazem. Simplesmente aceitam essa condição. Têm  uma atitude  mística em relação à Terra e a consideram um planeta sagrado, tanto que a sua natureza incomum é considerada um fato natural. Quanto a nós, Espaciais, não perguntamos. Não tomamos conhecimento. Fazemos o que podemos para não pensar absolutamente na Terra; se pensamos, estamos sujeitos a ir além e pensar em nós mesmos como descendentes  dos Terráqueos.

      - Não vejo importância na pergunta - retrucou Amadiro. - Não precisamos procurar respostas complexas ao "Por quê?" Processos fortuitos desempenham um papel importante  na evolução e, até certo ponto, em todas as coisas. Se há milhões de planetas habitáveis, a evolução pode se dar em cada um de maneira diferente. No máximo, o ritmo  pode ter um valor intermediário; em uns pode ser claramente lento, em outros nitidamente rápido; em um pode ser excessivamente lento, em outro excessivamente veloz,  e estamos aqui por causa disso. Ora, se perguntamos "Por quê?", a resposta natural - e suficiente - é "Acaso".

      Amadiro esperou que o outro revelasse sua irritação, explodisse de raiva a uma declaração proeminentemente lógica, apresentada de forma divertida, que servia para estragar completamente sua tese. Mandamus, contudo, apenas olhou-o por alguns minutos com seus olhos profundamente encravados e depois disse, calmamente:

      - Não.

      Mandamus deixou que essa pausa permanecesse por cerca de duas pulsações e depois falou:

      - Seriam necessários mais de um ou dois acasos felizes para apressar a evolução mil vezes. Em cada planeta, fora a Terra, a velocidade da evolução está relacionada  de perto com o fluxo da radiação cósmica no qual o planeta está banhado. Essa velocidade não é absolutamente resultado do acaso, mas da radiação cósmica produzindo  mutações lentamente. Na Terra, alguma coisa produz muito mais mutações que as produzidas em outros planetas habitáveis, e isso nada tem a ver com raios cósmicos,  pois eles não atacam a Terra em nenhuma quantidade notável. Talvez o senhor veja um pouco mais claramente, agora, por que o "Por quê?" pode ser importante.

      - Pois então, Dr. Mandamus, uma vez que ainda estou ouvindo, com um pouco mais de paciência do que eu esperava possuir, responda à pergunta que tão insistentemente provocou. Ou o senhor tem apenas a pergunta sem resposta?

      - Eu tenho uma resposta - disse Mandamus - e ela depende do fato de que a Terra é única também em outro sentido.

      - Permita-me antever. O senhor está se referindo ao seu grande satélite.  com certeza, Dr. Mandamus, o senhor não o está considerando como uma descoberta sua.

      - De modo nenhum - retrucou Mandamus duramente - mas considere que satélites grandes costumam ser comuns. Nosso sistema planetário possui cinco, a Terra tem sete  e assim por diante. Todos os grandes satélites conhecidos, menos um, contudo, giram em torno de gigantes gasosos. Só o satélite da Terra, a lua, gira em torno de  um planeta não muito maior que ele mesmo.

      - Estarei ousando se usar novamente a palavra "acaso", Dr. Mandamus?

      - Nesta circunstância pode ser acaso, mas a lua continua sem paralelo.

      - Mesmo assim. Que conexão possível o satélite pode ter com a abundância da vida na Terra?

      - É possível que não seja evidente, e uma ligação talvez seja improvável, porém pode ser muito mais improvável que dois desses exemplos incomuns de raridade num  único planeta não tenham qualquer conexão absolutamente. E eu encontrei essa conexão.

      - Fala sério? - perguntou Amadiro, cautelosamente.

      Agora devia se tornar clara a prova de insanidade. Ele olhou distraidamente para o painel de horas na parede. Não havia realmente muito mais tempo que ele pudesse  gastar com aquilo, por mais que sua curiosidade continuasse a ser desperta.

      - A luz - disse Mandamus - está se afastando lentamente da Terra, devido ao efeito de refluxo desta. Os grandes refluxos da Terra são a única conseqüência da existência  deste grande satélite. O sol da Terra também produz marés, mas com apenas um terço da extensão das da lua, exatamente como o nosso produz pequenas ondas em Aurora.

      "Uma vez que a lua se afasta em conseqüência da ação das marés, estava muito mais perto da Terra durante a história antiga do seu sistema planetário. Quanto mais  perto a lua da Terra, maiores as marés no planeta. Essas marés produziram dois efeitos importantes na Terra. Curvaram continuamente a crosta da Terra enquanto esta  girava e diminuíram sua rotação, em ambos os casos pela curvatura e pela fricção da água das marés oceânicas no fundo de águas rasas. Dessa forma, essa energia rotativa  foi convertida em calor.”

      "Por essa razão, a Terra tem uma crosta mais fina que qualquer outro planeta habitável que ostente ação vulcânica, além de um sistema vivo de placas tectônicas.”

      - Mas - retrucou Amadiro - mesmo tudo isto pode nada ter a ver com a abundância de vida na Terra. Acho que o senhor tem de chegar ao ponto, Dr. Mandamus, ou sair.

      - Por favor, Dr. Amadiro, peço-lhe que me suporte apenas um pouco mais. É importante compreender o ponto de vista, uma vez cheguemos a  ele. Fiz uma cuidadosa simulação por computador do desenvolvimento  químico da crosta terrestre, o que me permitiu, pelo efeito da ação da maré e da placa tectônica,  chegar a alguma coisa que ninguém conseguira antes numa forma tão meticulosa e elaborada como tentei - se posso me elogiar.

      - Oh, por favor - murmurou Amadiro.

      - Evidenciou-se muito nitidamente - eu lhe mostrarei todos os dados necessários, quando quiser - que o urânio e o tório se reúnem na crosta terrestre e camada superior  em concentração até mil vezes maiores que em qualquer outro planeta habitável. Além disso, eles se reúnem irregularmente, de forma que, espalhadas sobre a Terra,  há bolsas ocasionais onde o urânio e tório estão ainda mais concentrados.

      - E, concluo, com nível perigosamente alto de radioatividade.

      - Não, Dr. Amadiro. O urânio e o tório têm radioatividade muito baixa, e mesmo onde estão relativamente concentrados, não a têm bastante no sentido absoluto. Tudo  isto, repito, deve-se à presença de uma grande lua.

      - Suponho, então, que a radioatividade, mesmo que não bastante intensa para ser perigosa à vida, é suficiente para aumentar a taxa de mutação. Não é, Dr. Mandamus?

      - Exato. Haverá, de vez em quando, extinções mais rápidas, mas também o desenvolvimento mais rápido de novas espécies, resultando uma enorme variedade e profusão  de formas de vida. E, finalmente, apenas na Terra, isso deve ter atingido o ponto de desenvolvimento de espécies inteligentes e uma civilização.

      Amadiro balançou a cabeça. O rapaz não era maluco. Podia estar errado, mas não era maluco. E também podia ter razão.

      Amadiro não era planetólogo e por isso teria de consultar livros, visando descobrir se Mandamus tinha talvez descoberto apenas o já conhecido, como acontecera com  tantos entusiastas. Havia, contudo, um ponto mais importante, que ele precisava conferir imediatamente.

      Perguntou, em voz suave:

      - O senhor falou de uma possível destruição da Terra. Há alguma ligação entre isso e as propriedades inigualáveis da Terra?

      - Tira-se vantagem de propriedades inigualáveis de uma única maneira - respondeu Mandamus da mesma forma.

      - Neste caso especial, de que modo?

      - Antes de discutirmos o método, Dr. Amadiro, preciso explicar que, de um certo modo, a pergunta sobre se a destruição é fisicamente possível depende do senhor.

      - De mim?

      - Sim - afirmou Mandamus. - Do senhor. Para que eu o procuraria com esta longa conversa, a não ser para persuadi-lo do que estou falando, de forma a levá-lo a cooperar  comigo de uma maneira que será essencial para o meu sucesso?

      Amadiro respirou profundamente.

      - E se eu recusar, alguém mais serviria ao seu objetivo?

      - Eu posso recorrer a outros, se o senhor recusar. Recusa?

      - Talvez não, porém, fico imaginando quão essencial eu sou para o senhor.

      - A resposta é: não tão essencial quanto eu para o senhor. O senhor precisa cooperar comigo.

      - Preciso?

      - Eu gostaria que o senhor cooperasse - se prefere assim. Mas se quer que Aurora e os Espaciais triunfem, para sempre, sobre a Terra e os Colonizadores, então o  senhor precisa cooperar comigo, goste ou não da frase.

      - Diga-me o que significa exatamente esse preciso - falou Amadiro.

      - Comece por me dizer se é verdade ou não que outrora o Instituto desenhou e construiu robôs humanóides.

      - Sim, é verdade. Cinqüenta ao todo. Isso aconteceu entre quinze e vinte décadas passadas.

      - Há tanto tempo? E o que aconteceu a eles?

      - Falharam - retrucou Amadiro, indiferente.

      Mandamus recostou-se na cadeira com uma expressão horrorizada no rosto.

      - Foram destruídos?

      As sobrancelhas de Amadiro ergueram-se.

      - Destruídos? Ninguém destrói robôs caros. Estão armazenados. As unidades de força foram retiradas, e uma bateria especial de microfusão de longa vida foi instalada  em cada um para manter as linhas positrônicas num mínimo de atividade.

      - Então, eles podem ser colocados em funcionamento total?

      - Garanto que podem.

      A mão direita de Mandamus tamborilou um ritmo firmemente controlado no braço da cadeira. Então ele disse, com firmeza:

      - Assim poderemos vencer!

     

      O Plano e a Filha

      Tinha passado muito tempo desde que Amadiro pensara em robôs humanóides. Era um pensamento doloroso, e ele tinha, com certa dificuldade, treinado para conservar  sua mente afastada deles. E agora Mandamus, inesperadamente, os trouxera à tona.

      O robô humanóide havia sido o grande trunfo de Fastolfe naqueles dias distantes em que Amadiro estivera a um milímetro de ganhar o jogo, o trunfo e o resto. Fastolfe  tinha desenhado e construído dois robôs humanóides (dos quais um ainda existia) e ninguém foi capaz de construir outro. Todos os membros do Instituto de Robótica,  trabalhando juntos, não foram capazes de construí-los.

      Tudo o que Amadiro conseguira salvar de sua grande derrota havia sido aquela carta de trunfo. Fastolfe fora forçado a tornar pública a natureza do desenho humanóide.

      Isso significava que robôs humanóides podiam ser construídos e foram construídos e - vejam - não eram desejados. Os Auroreanos não os queriam na sua sociedade.

      A boca de Amadiro se contorceu à lembrança daquele sofrimento. A história da Solariana tinha, de certa forma, se tornado conhecida - o fato de que ela usara Jander,  um dos dois robôs humanóides de Fastolfe, e que esse uso tinha sido sexual. Os Auroreanos, teoricamente, não tinham objeção a essa situação. Contudo, quando deixaram  de pensar nisso, as mulheres de Aurora simplesmente não gostaram do pensamento de ter de competir com robôs femininos. Nem os homens queriam competir com robôs masculinos.

      O Instituto fez o maior esforço para explicar que os robôs humanóides não eram destinados a Aurora, mas tinham como objetivo servir como a onda inicial de pioneiros  que iriam proliferar e preparar novos planetas habitáveis a serem ocupados posteriormente pelos Auroreanos, depois de terraformados.

      Isso também foi rejeitado, com a suspeita e a objeção alimentando-se. Alguém tinha denominado os humanóides de "o primeiro passo". A alcunha espalhou-se e o Instituto foi obrigado a desistir.

      Teimosamente, Amadiro tinha insistido em conservar os que existiam para um possível uso - uso que nunca se materializou.

      Por que teria havido essa objeção aos humanóides? Amadiro sentiu uma leve volta da irritação que havia envenenado sua vida todas essas décadas. O próprio Fastolfe, embora relutante, tinha concordado em adiar o projeto e, para fazer-lhe justiça, fora a causa disso, embora sem a grande eloqüência que dedicava aos assuntos aos quais seu coração verdadeiramente se entregava. Mas não adiantara.

      E não obstante - não obstante - se Mandamus realmente agora tinha um projeto em mente, este devia funcionar e necessitava dos robôs...

      Amadiro não tinha grande simpatia por gritos místicos de: "Foi melhor assim. Era o que tinha de ser." Mas foi com esforço que evitou esse pensamento, enquanto o elevador o levava para baixo, para um ponto muito abaixo do nível do solo - o único local de Aurora que podia ser parecido, muito vagamente, com as fabulosas Cavernas de Aço da Terra.

      A um gesto de Amadiro, Mandamus saiu do elevador, indo parar num corredor mal iluminado. Fazia frio e havia um vento leve soprando. Mandamus tremeu um pouco. Amadiro juntou-se a ele. Mas um único robô acompanhou cada um.

      - São poucos os que vêm aqui - disse Amadiro, prosaicamente.

      - A que profundidade estamos? - perguntou Mandamus.

      - A uns quinze metros. Há muitos andares. É neste que os robôs humanóides estão armazenados.

      Amadiro parou um momento, como que imerso em pensamentos, depois virou-se para a esquerda.

      - Por aqui!

      - Não há indicadores?

      - Como eu disse, poucas pessoas vêm aqui. Aqueles que conhecem o local procuram o que precisam.

      Ao dizer isso, chegaram a uma porta que parecia sólida e intransponível à luz fraca. Em cada lado dela, havia um robô. Não eram humanóides.

      Mandamus olhou-os com ar crítico e disse:

      - Eles são modelos simples.

      - Muito simples. O senhor não espera que desperdicemos algo sofisticado no trabalho de guardião de portas. - Amadiro ergueu a voz, porém manteve-se impassível. - Sou Kelden Amadiro.

      Os olhos de ambos os robôs brilharam subitamente. Viraram-se para fora, afastando-se da porta, que se abriu silenciosamente, erguendo-se.

      Amadiro encaminhou o outro pela abertura e, assim que passou pelos robôs, disse calmamente:

      - Deixem aberta e ajustem a luz às necessidades pessoais.

      - Imagino que ninguém pode entrar aqui - disse Mandamus.

      - Claro que não. Estes robôs reconhecem meu aspecto e impressão vocal e exigem ambos os sinais antes de abrir a porta. - Meio para si mesmo, acrescentou: - Não há necessidade de cadeados, chaves ou combinações em lugar algum dos planetas Espaciais. Os robôs nos guardam fiel e eternamente.

      - Às vezes fico imaginando - disse Mandamus pensativo - que se um Auroreano tomasse emprestado um desses explosores que os Colonizadores sempre carregam para onde vão, não haveria para ele portas trancadas. Ele poderia destruir robôs num instante e depois ir aonde quisesse, fazendo o que bem entendesse.

      Amadiro fuzilou o outro com um olhar furioso.

      - Mas que Espacial sonharia usar essas armas num planeta Espacial? Passamos nossas vidas sem armas e sem violência. Não compreende que foi por isso que devotei minha  vida à derrota e destruição da Terra e sua laia envenenada? Sim, tivemos violência no passado, mas isso foi há muito tempo, quando os planetas Espaciais começaram  a se estabelecer e ainda não tínhamos nos livrado do veneno da Terra, de onde somos oriundos, e antes de termos aprendido o valor da segurança robótica.

      - Não vale a pena lutar pela paz e a segurança? Planetas sem violência! Mundos nos quais a razão governa! Está certo cedermos um monte de planetas habitáveis a bárbaros  de vida curta que, como o senhor diz, carregam explosores por toda parte?

      - E contudo - murmurou Mandamus - o senhor está pronto a usar violência para destruir a Terra...

      - A violência sumariamente - e por um objetivo - é o preço que provavelmente teremos que pagar para dar um fim à violência para sempre.

      - Eu sou suficientemente Espacial - disse Mandamus - para desejar que mesmo essa violência seja minimizada.

      Tinham, agora, entrado numa peça ampla e cavernosa; quando entraram, suas paredes e tetos adquiriram vida com uma luz fosca e difusa.

      - Bem, é isso o que o senhor quer, Dr. Mandamus? - perguntou Amadiro.

      Mandamus olhou em volta, estupefato. Finalmente, conseguiu dizer:

      - Incrível!

      Lá estava um sólido regimento de seres humanos, com um pouco mais de vida que muitas estátuas poderiam ter mostrado, mas com muito menos vida que seres humanos adormecidos teriam exibido.

      - Estão em pé - murmurou Mandamus.

      - Assim ocupam menos espaço. Evidentemente.

      - Mas estão em pé há cerca de quinze décadas. Não podem estar em bom estado para trabalhar. Certamente, suas juntas estão emperradas, seus órgãos estragados.

      - Talvez - disse Amadiro encolhendo os ombros. - Contudo, se as juntas se deterioraram - e isso não é impossível, suponho - poderão ser substituídas, se necessário. Dependerá de haver motivo para isso.

      - Haverá - disse Mandamus.

      Encarou as cabeças, uma a uma. Estavam olhando em direções ligeiramente diferentes e isso dava-lhes uma aparência um tanto desordenada, como se estivessem para romper fileiras.

      Mandamus acrescentou:

      - Cada um tem uma aparência pessoal e todos diferem em altura, construção etc.

      - É verdade. Isso o surpreende? Planejamos fazer desses, juntamente com outros que pudéssemos construir, pioneiros no desenvolvimento de novos planetas. Para que eles pudessem agir adequadamente, queríamos que fossem o mais humanos possível, o que significava fazê-los tão individuais como os Auroreanos. Não lhe parece sensato?

      - Totalmente. Fico contente por ser assim. Li tudo o que pude sobre os dois proto-humaniformes que Fastolfe construiu pessoalmente: Daneel Olivaw e Jander Panell. Vi holografias deles e me parecem idênticos.

      - Sim - replicou Amadiro, impaciente. - Não só idênticos, mas cada um virtualmente uma caricatura da concepção do Espacial ideal. Era a parte romântica de Fastolfe. Tenho certeza de que ele teria construído uma raça de robôs humanóides permutáveis, com ambos os sexos possuindo esse bom aspecto etéreo - ou o que ele considerava como tal - para fazê-los totalmente inumanos. Fastolfe pode ser um brilhante roboticista, mas é um homem incrivelmente estúpido.

      Amadiro sacudiu a cabeça. Ter sido derrotado por um homem tão estúpido, pensou - e depois afastou o pensamento. Não tinha sido derrotado por Fastolfe, mas por aquele infernal Terráqueo. Mergulhado em pensamentos, não ouviu a pergunta seguinte de Mandamus.

      - Desculpe - replicou, com uma ponta de irritação.

      - Perguntei se o senhor desenhou estes.

      - Não, por uma estranha coincidência - dessas que parecem conter uma ironia particular - esses foram desenhados por Vasilia, filha de Fastolfe. Ela é tão brilhante quanto ele e muito mais inteligente... o que pode ser um motivo para que eles nunca se entendam.

      - Segundo me contaram sobre eles... - começou Mandamus. Amadiro gesticulou, silenciando-o.

      - Eu também ouvi a história, mas não importa. Basta que ela faça seu trabalho bem e que não haja perigo de que algum dia sinta simpatia Por alguém que, apesar do acidente de ser seu pai biológico, é - e deve permanecer - eternamente estranho e odioso para ela. Ela chega até a se chamar a si mesma Vasilia Aliena, o senhor sabe.

      - Sim, sei. O senhor tem os modelos cerebrais desses robôs humanóides gravados?

      - Certamente.

      - De cada um deles?

      - Claro.

      - E podem ficar ao meu dispor?

      - Se houver um motivo para isso.

      - Haverá - replicou Mandamus, com firmeza. - Uma vez que esses robôs foram desenhados para atividades pioneiras, devo presumir que estão equipados para explorar um planeta e funcionar em condições primitivas?

      - Isso dispensa explicação.

      - Perfeito. Mas é preciso fazer algumas modificações. O senhor acha que Vasilia Fast... Aliena poderá me ajudar nisso... se necessário? Evidentemente, ela deve estar melhor relacionada com os modelos cerebrais.

      - Evidentemente. Contudo, não sei se ela quererá ajudá-lo. Sei que, no momento, lhe é fisicamente impossível fazê-lo, uma vez que não está em Aurora.

      Mandamus ficou surpreso e descontente.

      - Onde está então, Dr. Amadiro?

      - O senhor já viu esses humaniformes e não desejo me expor a este ambiente um tanto lúgubre. O senhor já me fez esperar demais e não deve se queixar se agora eu o faço esperar. Se tem mais perguntas a fazer, poderá fazê-las em meu escritório.

     

      Chegados ao escritório, Amadiro retardou as coisas um pouco mais.

      - Espere-me aqui - disse, um tanto peremptoriamente, e saiu.

      Mandamus esperou cerimoniosamente, escolhendo seus pensamentos, imaginando quando Amadiro voltaria - ou se voltaria. Ele iria ser preso ou apenas expulso? Amadiro teria ficado cansado de esperar pelo essencial?

      Mandamus recusou-se a acreditar nisso. Tinha uma clara percepção do desejo desesperado de Amadiro em se desforrar de uma velha derrota. Parecia evidente que Amadiro  não se cansaria de ouvir a menor possibilidade de que Mandamus tornasse a vingança possível.

      Enquanto olhava distraidamente em torno do escritório de Amadiro, Mandamus ficou imaginando se poderia haver qualquer informação que pudesse servir de ajuda para  ele nos arquivos computadorizados que estavam à mão. Seria muito útil não precisar depender diretamente de Amadiro para tudo.

      Esse pensamento era inútil. Mandamus não conhecia o código de uso dos arquivos e, mesmo que soubesse, havia inúmeros robôs pessoais de Amadiro nos seus nichos, que  o impediriam de dar um único passo para  tudo o que estivesse rotulado em suas mentes como impressionável. Até seus próprios robôs agiriam assim.

      Amadiro tinha razão. Robôs eram tão úteis, tão eficientes - e incorruptíveis - como guardas, que o verdadeiro conceito de algo criminoso, ilegal ou simplesmente  clandestino não ocorreria a alguém. A tendência apenas atrofiada - pelo menos em comparação com outros Espaciais.

      Ficou imaginando como os Colonizadores se arranjavam sem robôs. Mandamus tentou imaginar personalidades humanas chocando-se, sem pára-choques robóticos para amortecer  a interação, sem a presença robótica para dar-lhes um senso decente de segurança e impor - sem que ficassem conscientemente certos disso a maior parte do tempo -  uma característica própria de moralidade.

      Teria sido impossível aos Colonizadores serem mais que bárbaros nessas circunstâncias, e a galáxia não podia ser entregue a eles.

      Amadiro tinha e sempre tivera  razão a esse respeito, enquanto Fastolfe estava fantasticamente errado.  Mandamus sacudiu a cabeça, como se mais uma vez tivesse se persuadido da correção do que estava planejando. Suspirou e desejou que aquilo não fosse necessário, depois  preparou-se para prosseguir, mais uma vez, a linha de raciocínio que lhe provava ser necessário, quando Amadiro entrou.

      Amadiro ainda era uma figura imponente, apesar de estar no primeiro ano de sua vigésima oitava década. Ele era muitíssimo parecido com o que um Espacial devia ser, a não ser pela infeliz deformidade do seu nariz.

      - Desculpe por fazê-lo esperar - disse Amadiro - mas eu precisava resolver algumas coisas. Sou o dirigente do Instituto e isso implica responsabilidades.

      - Pode me informar onde a Dra. Vasilia Aliena está? - perguntou Mandamus. – Preciso descrever-lhe meu projeto sem mais demora.

      - Vasilia está viajando. Visitando cada um dos planetas Espaciais, para saber como andam as pesquisas robóticas. Ela parece pensar que, uma vez que o Instituto de Robótica foi fundado para coordenar a pesquisa individual em Aurora, a coordenação interplanetária deve adiantar ainda mais a causa. Realmente uma boa idéia.

      Mandamus riu breve e sem humor.

      - Eles não vão lhe dizer nada. Duvido que qualquer planeta Espacial esteja disposto a fornecer a Aurora mais subsídios do que ele já tem.

      - Não esteja tão certo assim. A situação dos Colonizadores perturbou-nos a todos.

      - Sabe onde ela está agora?

      - Conhecemos seu itinerário.

      - Faça-a voltar, Dr. Amadiro.

      - Duvido que possa fazê-lo com facilidade - retrucou Amadiro, franzindo o cenho. - Acredito que ela queira ficar longe de Aurora até Seu pai morrer.

      - Por quê? - perguntou Mandamus, surpreso. Amadiro encolheu os ombros.

      - Não sei e não me importo. O que eu sei é que o seu tempo se esgotou. Compreendeu? Fale ou saia.

      Fez um gesto zangado para a porta e Mandamus percebeu que a paciência de Amadiro não agüentava mais.

      - Muito bem - disse Mandamus. - Há mais uma terceira coisa em que a Terra é ímpar...

      Falou espaçadamente, com a devida economia, como se estivesse fazendo uma exposição freqüentemente ensaiada e retocada com o único objetivo de ser apresentada a Amadiro. E Amadiro sentiu-se cada vez mais absorvido.

      Era isso! Amadiro, a princípio, sentiu uma grande sensação de alívio. Estivera certo ao apostar que o rapaz não era maluco. Era completamente são.

      Então veio o triunfo. Certamente funcionaria. Claro, o ponto de vista do rapaz, da maneira como foi exposto, alterava um pouco o caminho que Amadiro sentia que devia  seguir, mas isso podia ser cuidado no fim. Modificações sempre eram possíveis.  E quando Mandamus terminou, Amadiro disse, numa voz que tratou de manter firme:

      - Não precisamos de Vasilia. Há no Instituto especialistas capazes de nos permitir começar imediatamente. Dr. Mandamus - uma nota formal de respeito manifestou-se na voz de Amadiro - deixemos isto funcionar como planejado - e não posso evitar pensar que vai - e o senhor será o chefe do Instituto quando eu for o Presidente do Conselho.

      Mandamus esboçou um breve sorriso, enquanto Amadiro recostou-se em sua cadeira e, também brevemente, permitiu-se olhar o futuro com satisfação e confiança, coisa que ele não tinha sido capaz de fazer durante vinte longos e cansativos decênios.

      Quanto tempo levaria? Décadas? Uma década? Parte de uma década?

      Não tanto. Não tanto. Tudo precisava ser apressado, sem dúvida, para que ele pudesse ver aquela antiga decisão derrubada e a si próprio como senhor de Aurora – e conseqüentemente dos planetas Espaciais - e conseqüentemente (com a Terra e os planetas dos Colonizadores arrasados) até da galáxia antes de morrer.

     

      Quando o Dr. Han Fastolfe morreu, sete anos após Amadiro e Mandamus se encontrarem e começarem seu projeto, a hiperonda levou a notícia com força explosiva a cada  canto dos planetas ocupados, tendo merecido a maior atenção em todos eles.  Foi importante nos planetas Espaciais porque Fastolfe tinha sido o homem  mais poderoso de Aurora, e, conseqüentemente, da Galáxia, por mais  vinte décadas. Nos planetas dos Colonizadores e na Terra, foi importante porque Fastolfe tinha sido amigo - na medida em que um Espacial   podia ser amigo - e a pergunta agora era se a política Espacial iria mudar  e em caso afirmativo, como.

       A notícia chegou também a Vasilia Aliena e foi complicada pela amargura que tinha manchado sua relação com o pai biológico quase desde o início.

      Vasilia tinha se preparado para nada sentir quando ele morresse, porém não queria estar no mesmo planeta em que ele estava na época em que o fato ocorresse. Ela não queria ouvir as perguntas que lhe seriam feitas onde quer que estivesse, porém mais freqüente e insistentemente em Aurora.

      A relação pai-filho entre os Espaciais era muito fraca e indiferente, na melhor das hipóteses. com vidas longas, isso era natural. Ninguém, aliás, teria se interessado por Vasilia a esse respeito, mas pelo fato de que Fastolfe era tão continuamente um importante líder partidário e Vasilia quase tão importante sectária, por outro lado.

      Aquilo era nocivo. Ela havia se dado ao trabalho de fazer de Vasilia Aliena seu nome legal e usá-lo em todos os documentos, nas entrevistas, nos negócios de qualquer espécie - e sabia que a maioria pensava nela como Vasilia Fastolfe. Era como se nada pudesse eliminar essa relação totalmente insignificante, de forma que ela viu-se reduzida a ficar contente ao ser designada apenas pelo seu prenome. Era, pelo menos, um nome incomum.

      E isso também parecia enfatizar sua relação refletida como num espelho com a Solariana que, por motivos inteiramente diversos, tinha repudiado seu primeiro marido como Vasilia repudiara seu pai. A Solariana, igualmente, não pôde viver com seus primeiros sobrenomes atados a ela e terminou com apenas um nome - Gladia.

      Vasilia e Gladia, desajustadas, negadas - parecendo-se uma com a outra.

      Vasilia olhou de revés para o espelho pendurado no camarote da espaçonave. Havia décadas que não via Gladia, mas estava certa de que a semelhança permanecia. Eram  ambas baixas e magras. Ambas louras, seus rostos um tanto parecidos.  Mas era Vasilia quem sempre saía perdendo. Quando abandonara o Pai, riscando-o de sua vida, ele encontrara Gladia para ocupar o seu lugar  e ela foi a filha conformada e passiva que ele queria, a filha que Vasilia  jamais pôde ser.  Não obstante, isso amargurou Vasilia. Ela própria era roboticista, tão  competente e hábil, afinal, como Fastolfe sempre fora, enquanto Gladia  era apenas uma artista, que se divertia com campos de força a cores e com  as ilusões da indumentária robótica. Como Fastolfe poderia ter ficado feliz  em perder uma e ganhar, em seu lugar, nada mais que a outra?

      E quando o policial da Terra, Elijah Baley, viera a Aurora, levara Vasilia a revelar muito mais dos seus pensamentos e sentimentos que ela teria revelado a qualquer  outro. Contudo ele havia sido suave com Gladia e a ajudara - e a seu protetor, Fastolfe - a vencer todas as dificuldades, embora até aquele dia Vasilia não tivesse  sido capaz de compreender com clareza como aquilo tinha acontecido.

      Fora Gladia quem estivera à cabeceira do leito de Fastolfe nos momentos finais e ouvira suas últimas palavras. Como podia ressentir-se disso, Vasilia não sabia,  pois ela mesma poderia, em outras circunstâncias, ter agradecido a existência do velho a ponto de visitá-lo, testemunhando sua passagem para a não-existência num  sentido absoluto, em vez de subjetivo - e apesar disso zangou-se com a presença de Gladia.

      Foi assim que me senti - falou desafiadora para si mesma - e não devo explicações a ninguém.

      E ela perdera Giskard. Giskard tinha sido seu robô em criança, presente de um pai então amoroso, ao que parecia. Fora por intermédio de Giskard que ela havia aprendido  robótica e fora por ele que sentira a primeira afeição genuína. Quando criança, Vasilia não tinha refletido sobre as Três Leis, nem estudado a filosofia do automatismo  positrônico. Giskard parecia afeiçoado, tinha agido como se fosse carinhoso, e isso bastava para uma criança. Ela nunca encontrara tal afeição em nenhum ser humano  -  principalmente no pai.

      Até aquele dia, ela ainda estava bastante fraca para participar do jogo do amor com alguém. Sua amargura pela perda de Giskard tinha aumentado imensamente e a ensinara  que nenhum ganho inicial valia a perda final.

      Quando ela saíra de casa, rejeitando seu pai, este não lhe permitira levar Giskard, apesar de ela própria ter melhorado em muito o robô no decurso do cuidadoso trabalho  de sua reprogramação. E quando seu pai morrera, deixara Giskard para a Solariana. Também deixara Daneel para ela, mas Vasilia pouco se interessou por aquela pálida  imitação de homem. Ela queria Giskard, que lhe pertencia.

      Agora, Vasilia estava de volta a Solaria. Sua viagem se achava quase terminada. De fato, na medida em que se referia à utilidade, tinha sido completada há meses.

      Ela, porém, permanecera em Hésperos para um descanso merecido, como tinha explicado no comunicado oficial ao Instituto.  Agora, contudo, Fastolfe estava morto e ela pôde voltar. E apesar de não poder eliminar o passado inteiramente, poderia eliminar parte dele. Giskard precisava pertencer-lhe  novamente. Estava determinada a isso.

     

      Amadiro estava muito ambivalente em sua reação à volta de Vasilia. Ela não tinha voltado antes que o velho Fastolfe (ele podia pronunciar-lhe o nome para si mesmo  com muita facilidade agora que ele estava morto) estivesse há um mês em sua urna. Isso satisfazia a opinião que tinha de sua própria compreensão. Afinal de contas,  ele havia contado a Mandamus que o motivo dela tinha sido manter-se afastada de Aurora até seu pai morrer.

      Além disso, também, Vasilia ficava confortavelmente transparente. Ela sentia falta da exasperante qualidade de Mandamus, seu novo favorito, que sempre parecia ter  ainda outro pensamento não expressado, afastando, apesar de quão completamente parecesse ter descarregado o conteúdo de sua mente.

      Por outro lado, ela era irritantemente difícil de controlar, pelo menos, provavelmente, para seguir em silêncio ao longo da trilha por ele indicada. Deixá-la sondar  os outros planetas Espaciais até o fundo durante os anos em que passara longe de Aurora - mas depois deixá-la também interpretar tudo em planetas escuros e enigmáticos.

      Portanto, ele a saudou com um entusiasmo que se situava entre fingido e sincero.

      - Vasilia, estou muito contente com a sua volta. O Instituto fica capenga quando você viaja.

      Vasilia riu.

      - Ora, Kelden - sozinha, não hesitava nem ficava inibida ao chamá-lo pelo nome próprio, apesar de ser mais moça que ele duas décadas e meia - a perna boa é a sua. E há quanto tempo você deixou de estar absolutamente certo de que sua única perna era suficiente?

      - Desde que você resolveu estender sua ausência a anos. Nesse meio tempo, acha que Aurora mudou muito?

      - Nem um pouco - o que talvez seja uma preocupação para nós. Imutabilidade é decadência.

      - Um paradoxo. Não há decadência sem uma mudança para pior.

      - A imutabilidade é uma mudança para pior, Kelden, se comparada aos planetas Colonizadores circundantes. Eles mudam rapidamente, estendendo mais completamente seu  domínio sobre um maior número de planetas e sobre cada mundo individual. Eles aumentam sua forma, poder e confiança em si mesmos, enquanto ficamos aqui sentados  sonhando e sonhando que nossa imutabilidade pode diminuir com regularidade.

      - Que beleza, Vasilia! Acho que você decorou isso atentamente no seu vôo para cá. Contudo, houve uma mudança na situação política em Aurora.

      - Certamente está se referindo à morte do meu pai biológico. Amadiro abriu os braços e inclinou ligeiramente a cabeça.

      - Como quiser. Ele foi bastante responsável por nossa paralisação    e morreu. Portanto, imagino que agora haverá mudança, embora não visível.

      - Você está me escondendo alguma coisa, não?

      - Eu faria isso?

      - Certamente. Esse falso sorriso sempre o denuncia.

      - Então preciso aprender a ficar sério com você. Vamos, li seu relatório. Conte-me o que não foi incluído nele.

      - Está tudo nele. Ou quase tudo. Todo planeta Espacial afirma veementemente que está sendo afetado pela arrogância crescente dos Colonizadores. Estão todos firmemente determinados a resistir aos Colonizadores até o fim, seguindo entusiasticamente o comando Auroreano com vigor e destemor.

      - Sob nossa liderança, sim. Mas, e se não liderarmos?

      - Então esperarão e procurarão esconder seu alívio por não estarmos liderando. Caso contrário... Bem, cada um está empenhado em avanço técnico e relutante em revelar  o que, exatamente, está fazendo. Todos estão trabalhando independentemente e não há sinal de unificação nem mesmo em seu próprio mundo. Não há um único grupo de  pesquisa em lugar nenhum dos planetas Espaciais que se assemelhe ao nosso Instituto de Robótica. Em todos eles há pesquisadores individuais, cada um mantendo seus  próprios dados ignorados do resto.

      Foi quase complacentemente que ele disse:

      - Eu não esperava que eles fossem tão longe quanto nós.

      - Foi uma pena não terem ido - retrucou Vasilia asperamente. - com todos os planetas Espaciais constituindo-se uma mixórdia de indivíduos, o progresso é muito lento.

      Os mundos Espaciais comparecem regularmente às convenções, têm seus institutos, e, apesar de estarem bem atrás de nós, nos alcançarão. Contudo, eu dei um jeito de  descobrir alguns avanços técnicos que estão sendo trabalhados pelos planetas Espaciais e anotei-os todos em meu relatório. Estão todos trabalhando no intensificador  nuclear, por exemplo, mas não creio que esse tipo de aparelho tenha ultrapassado o nível de demonstração de laboratório num único planeta que seja. Alguma coisa  com uso prático a bordo ainda não funciona aqui.

      - Espero que você tenha razão nisso, Vasilia. O intensificador nuclear é uma arma que nossas frotas podiam usar, pois liquidaria os Colonizadores imediatamente.

      Contudo, no total, acho que seria melhor se Aurora tivesse a arma antes dos nossos irmãos Espaciais. Mas você disse que quase tudo estava incluído em seu relatório.

      O que não foi incluído?

      - Solaria!

      - Oh, o mais jovem e peculiar dos planetas Espaciais.

      - Quase nada obtive diretamente deles. Eles me observaram com total hostilidade, como, acredito, teriam observado todo não-Solariano, fosse Espacial ou Colonizador.

      E quando eu digo "observaram", quero dizer no sentido deles. Permaneci quase um ano no planeta, consideravelmente muito mais tempo do que passei em qualquer outro planeta, e durante esse ano jamais vi um único Solariano frente a frente. Tudo que consegui foi observá-los por um holograma de hiperonda. Nunca pude tratar com alguma coisa tangível - apenas imagens. O planeta era confortável, incrivelmente exuberante, e, para um amante da natureza, totalmente intacto, mas senti muito não ter podido ver de fato.

      - Ora, observar é um costume Solariano. Todos sabemos disso, Vasilia. Seja tolerante.

      - Hum - disse Vasilia - sua tolerância pode estar mal colocada. Seus robôs estão imóveis?

      - Sim, estão. E garanto-lhe que não estamos espionando.

      - Espero que não, Kelden. Tenho a forte impressão de que os Solarianos estão mais perto de desenvolver um intensificador nuclear miniaturizado do que qualquer outro  planeta - do que nós. Eles podem estar perto de construir um portátil, com um consumo de força bastante pequeno para torná-lo prático em naves espaciais.

      Amadiro franziu profundamente o cenho.

      - Como conseguirão isso?

      - Não sei dizer. Você não imagina que eles me mostraram plantas, não é? Minhas impressões são tão incompletas, que ousei não incluí-las no relatório, mas pelo que  ouvi aqui - ou observei lá - acho que estão fazendo avanços importantes. É uma coisa sobre a qual precisamos pensar cuidadosamente.

      - Pensaremos. Há mais alguma coisa que você deseje me dizer?

      - Sim - e também não está no relatório. Solaria vem trabalhando em robôs humanóides há muitas décadas e acho que eles atingiram esse objetivo. Nenhum outro planeta  Espacial - com exceção do nosso, claro - sequer tentou. Quando perguntei em cada planeta o que estavam fazendo a respeito de robôs humanóides, a reação foi.unânime  Acharam essa idéia desagradável e horripilante. Desconfio que todos souberam do nosso fracasso e ficaram muito ressentidos.

      - E Solaria não? Por quê?

      - Antes de mais nada, eles sempre viveram na sociedade mais extremamente robotizada da Galáxia. Estão cercados de robôs - dez mil por Pessoa. O planeta está saturado  deles. Se perambular por lá sem rumo, à Procura de humanos, não encontrará nenhum. Assim, por que devem os Solarianos que vivem em tal planeta preocupar-se com o  pensamento de mais alguns robôs, apenas porque são humaniformes? Então, também, aquele pseudo-humano miserável que Fastolfe desenhou e construiu, que  ainda existe...

      - Daneel - cortou Amadiro.

      - Sim, esse mesmo. Ele... esteve em Solaria há duzentos anos e os Solarianos o trataram como humano. Nunca se recobraram disso. Mesmo    que ele não tivesse utilização para humaniformes, ficaram humilhados por terem sido enganados. Foi uma demonstração inesquecível de que Aurora estava mais adiantado  que eles, pelo menos nesta faceta da robótica. Os Solarianos ficaram moderadamente orgulhosos por serem os roboticistas mais adiantados da galáxia e, desde então,  os Solarianos estiveram trabalhando individualmente em humaniformes - se não por outro motivo, para varrer essa desgraça. Se tivessem sido em maior número ou tivessem  um instituto que pudesse coordenar seu trabalho, eles indubitavelmente teriam conseguido já há algum tempo. No momento, acho que conseguiram.

      - Você realmente não sabe, não é? É apenas uma desconfiança baseada em fragmentos de dados obtidos aqui e ali.

      - Perfeitamente correto, mas é uma desconfiança bastante forte e merece uma investigação ulterior. E um terceiro ponto. Posso jurar que eles estão trabalhando em  comunicação telepática. Havia um equipamento que eles inadvertidamente me deixaram ver. E uma vez, quando eu estava observando um dos seus roboticistas, a tela da  hiperonda exibiu um quadro-negro com um modelo de matriz positrônica totalmente diferente de tudo o que me lembro de ter visto, parecendo-me que aquele exemplo podia  combinar com um programa telepático.

      - Desconfio, Vasilia, que essa trama ainda é mais insubstancial que a parte referente aos robôs humanóides.

      Um ar ligeiramente embaraçado estendeu-se pelo rosto de Vasilia.

      - Devo admitir que você provavelmente tem razão nisso.

      - Na verdade, Vasilia, isso me parece pura fantasia. Se o modelo de matriz que você viu não era parecido com qualquer coisa que você tenha visto antes, como pode pensar que combina com algo?

      Vasilia hesitou.

      - Para dizer a verdade, estive pensando a esse respeito. Contudo, quando vi o modelo, a palavra "telepatia" ocorreu-me imediatamente.

      - Muito embora a telepatia seja impossível, mesmo em teoria.

      - O pensamento é que é impossível, mesmo em teoria. Não é exatamente a mesma coisa.

      - Ninguém até agora foi capaz de fazer algum progresso nisso.

      - É verdade, mas por que olhei para aquele modelo e pensei "telepatia"?

      - Oh, bem, Vasilia, pode ter sido um ardil psíquico individual, que é inútil tentar analisar. Eu tinha esquecido. Mais alguma coisa?

      - Mais uma - e a mais enigmática de todas. Eu tive a impressão, Kelden, por um ou outro indício, de que os Solarianos estão planejando abandonar seu planeta.

      - Porquê?

      - Não sei. Sua população, pequena como é, está continuando a decrescer. Talvez queiram fazer um recomeço em outro lugar antes de morrerem todos.

      - Que tipo de recomeço? Para onde irão? Vasilia sacudiu a cabeça.

      - Disse-lhe tudo o que sei. Amadiro falou, pausadamente.

      - Então, dessa forma, levarei tudo isso em conta. Quatro coisas: intensificador nuclear, robôs humanóides, robôs telepáticos e abandono do planeta. Francamente,  não acredito em nenhuma das quatro, mas persuadirei o Conselho a autorizar conversações com o regente Solariano. E agora, Vasilia, acho que você precisa de um descanso;  por isso, tome algumas semanas de férias e vá se acostumando ao belo sol e ao bom tempo Auroreano, antes de voltar ao trabalho.

      - É muita gentileza sua, Kelden - retrucou Vasilia, permanecendo sentada - mas há dois itens que preciso discutir.

      Involuntariamente, os olhos de Amadiro procuraram o painel de horas.

      - Isso não vai tomar tempo demais, não é, Vasilia?

      - Por mais tempo que leve, Kelden, será o necessário.

      - Então o que é que você quer?

      - Para começar, quem é esse jovem sabe-tudo que pensa que está entrando para o Instituto, esse tal de Mandamus?

      - Você o conheceu, não é? - perguntou Amadiro, o sorriso mascarando um certo mal-estar. - Sabe, as coisas estão mudando em Aurora.

      - E, certamente, não para melhor, neste caso - disse Vasilia com amargura. - Quem é ele?

      - Ele é exatamente como você o descreveu: um sabe-tudo. É um rapaz inteligente, muito competente em robótica, mas apenas instruído em física geral, química, planetologia...

      - E que idade tem esse monstro de erudição?

      - Não mais de cinco décadas.

      - E o que essa criança será quando crescer?

      - Talvez tão culto quanto brilhante.

      - Não tente confundir-me, Kelden. Você está pensando em indicá-lo como próximo diretor do Instituto?

      - Estou pensando em viver ainda muitas décadas.

      - Isso não é resposta.

      - É a única de que sou capaz.

      Vasilia mexeu-se na cadeira, impaciente, e seu robô, parado atrás dela, ficou olhando de um lado para outro, como que se preparando para repelir um ataque, levado a esse tipo de comportamento, talvez, pela ansiedade de Vasilia.

      - Kelden - disse ela - Vou ser a próxima diretora. É assunto resolvido. Você me disse.

      - Disse, mas na realidade, Vasilia, tão logo eu morra, a Junta Diretora fará a escolha. Mesmo que eu deixe uma instrução sobre quem será  o próximo chefe, a Junta pode me desautorizar. Isso está muito claro nos  termos da corporação que fundou o Instituto.

      - Basta que você escreva sua determinação, que eu cuido da Junta Diretora.

      E Amadiro, com as sobrancelhas franzidas, disse:

      - Não estou interessado em discutir isso agora. De que outro assunto você quer tratar? Por favor, seja breve.

      Durante um instante, ela olhou-o com uma raiva silenciosa; depois disse, como que cuspindo a palavra:

      - Giskard!

      - O robô?

      - Sim, o robô. Conhece algum outro Giskard sobre quem estou provavelmente falando?

      - Bom, e daí?

      - Ele é meu.

      Amadiro mostrou-se espantado.

      - Ele é - ou foi - propriedade legal de Fastolfe.

      - Giskard foi meu quando eu era criança.

      - Fastolfe emprestou-o a você e finalmente pegou-o de volta. Não houve qualquer transferência formal de propriedade, não é?

      - Moralmente, foi meu. Mas, de qualquer forma, Fastolfe não é mais seu dono. Está morto.

      - Ele também fez um testamento. E se bem me lembro, por esse testamento dois robôs - Giskard e Daneel - são agora propriedade da Solariana.

      - Mas não quero que sejam. Sou filha de Fastolfe...

      - Ora...

      Vasilia ruborizou-se.

      - Tenho uma reivindicação sobre Giskard. Por que uma estranha - uma alienígena - deve possuí-lo?

      - Simplesmente porque Fastolfe quis. E ela é uma cidadã Auroreana.

      - Quem disse? Para todos os cidadãos Auroreanos, ela é "a Solariana".

      Amadiro bateu com o punho no braço da cadeira, num súbito assomo de fúria.

      - Vasilia, o que é que você deseja de mim? Não tenho simpatia pela Solariana. Tenho, na verdade, uma profunda antipatia por ela, e se houvesse uma forma para isso - olhou rapidamente para os robôs, como se não quisesse perturbá-los - eu a expulsava do planeta. Mas não posso alterar o testamento. Mesmo que houvesse uma forma legal de fazê-lo, não seria esperto fazê-lo. Fastolfe está morto.

      - Exatamente por esse mesmo motivo, Giskard deve me pertencer agora.

      Amadiro não lhe fez caso.

      - E a coalizão que ele chefiou está se desfazendo. Foi mantida unida  nas últimas décadas unicamente por seu carisma pessoal. Ora, o que eu gostaria de fazer era pegar os fragmentos dessa coalizão e juntá-los aos meus  próprios seguidores.

      Dessa maneira, eu formaria um grupo bastante forte para dominar o Conselho e ter o controle das próximas eleições.

      - Com você se tornando o próximo Presidente?

      - Por que não? Aurora pode fazer pior, pois me dará a oportunidade de reverter nossa demorada política de desastre embutida antes que seja muito tarde. O problema  é que eu não tenho a popularidade pessoal de Fastolfe. Não tenho seu dom de exibir santidade como cobertura para estupidez. Conseqüentemente, se eu parecer vitorioso  de uma forma mesquinha e desleal com um morto, isso não causará boa impressão. Ninguém podia dizer isso, tendo sido derrotado por Fastolfe enquanto ele era vivo;  eu transformei seu testamento numa coisa trivial após sua morte. Não sei de nada tão ridículo quanto ficar no caminho das grandes decisões de vida e morte que Aurora  precisa tomar. Compreende? Deve fazê-lo sem Giskard!

      Vasilia levantou-se, o corpo tenso, os olhos apertados.

      - Veremos.

      - Já vimos. Esta reunião está terminada, e se você tem alguma ambição de ser a chefe do Instituto, nunca mais quero vê-la me ameaçando a respeito de qualquer coisa. Portanto, se vai agora me ameaçar de qualquer forma, aconselho-a a refletir.

      - Não faço ameaças - disse Vasilia, cada grama do seu corpo contradizendo suas palavras, e saiu com um movimento rápido, fazendo desnecessariamente sinal ao seu robô para que a seguisse.

     

      A situação crítica - ou, melhor, a série de situações críticas - começou alguns meses depois, quando Maloon Cieis entrou no escritório de Amadiro para a habitual reunião matutina.

      Normalmente, Amadiro esperava essa reunião. Cieis era sempre um tranqüilo interlúdio no decorrer de um dia atarefado. Ele era o único membro idoso do Instituto que não tinha ambições e que não ficava calculando o dia da morte ou aposentadoria de Amadiro. Cieis era, de fato, o perfeito subordinado. Ficava feliz por estar a serviço de Amadiro e merecer sua confiança.

      Por esse motivo, Amadiro ficara perturbado, mais ou menos no último ano, pelo cheiro de decadência, o peito levemente côncavo, um quê de dureza no andar do seu perfeito subordinado. Estaria Cieis ficando velho? Certamente, era apenas algumas décadas mais idoso que Amadiro.

      Amadiro ficou muito preocupado porque, talvez, junto com a gradativa degenerescência de tantas facetas da vida Espacial, a expectativa de vida estivesse diminuindo.

      Ele pretendia consultar as estatísticas, mas continuava esquecendo-se de fazê-lo - ou era medo inconsciente de verificar?

      Nessa ocasião, porém, a evidência da idade em Cieis foi afogada em violenta emoção. Seu rosto estava rubro (ressaltando o grisalho do seu cabelo castanho) e ele pareceu virtualmente explodir de espanto.

      Amadiro não precisou perguntar pelas notícias. Cieis transmitiu-as como uma coisa impossível de ser contida.

      Quando ele terminou a explosão, Amadiro, estupefato, perguntou;

      - Todas as emissões de rádio cessaram? Todas?

      - Todas, chefe. Devem estar todas mortas - ou desaparecidas. Nenhum planeta habitado pode deixar de emitir irradiação eletromagnética no nosso nível de...

      Amadiro abanou a mão em silêncio. Um dos pontos de Vasilia - o quarto, como lembrou - era que os Solarianos estavam se preparando para abandonar seu mundo. Tinha  sido uma sugestão absurda, aliás, todas as quatro tinham sido mais ou menos absurdas. Ele tinha dito que iria guardá-las na memória e, claro, não o fizera. Agora,  evidentemente, estava provado ter sido um engano.

      O que a fizera parecer absurda quando Vasilia a expusera ainda continuava presente. Repetiu a pergunta que tinha feito na ocasião, apesar de não esperar resposta (que resposta poderia haver?):

      - Maloon, para que parte do espaço podem ter ido?

      - Não há resposta para isso, chefe.

      - Bem, então quando foram?

      - Isso também não tem resposta. Recebemos a notícia esta manhã. O problema é que a intensidade da irradiação é muito baixa, pelo menos em Solaria. O planeta é muito  esparsamente habitado e seus robôs bem protegidos. A intensidade é de uma ordem de magnitude mais baixa que a de qualquer outro planeta Espacial e duas vezes mais  baixa que a nossa.

      - Assim, um dia alguém reparou que estava muito fraca e realmente declinou a zero, mas ninguém de fato notou que estava declinando. Quem deu a notícia?

      - Uma nave Nexoniana, chefe.

      - Como?

      - A nave foi forçada a uma órbita em torno do sol de Solaria para que fossem realizados reparos de emergência. Enviaram uma hiperonda pedindo permissão e não receberam resposta. Foram, portanto, obrigados a não tomar conhecimento disso, continuaram em órbita e iniciaram os consertos. Durante esse tempo, não houve a menor interferência. Nada aconteceu até depois de terem terminado: ao conferirem suas gravações foi que descobriram que, além de não terem recebido resposta, também não haviam recebido sinal de qualquer espécie. Não havia como dizer exatamente quando a irradiação tinha cessado. A última gravação recebida de qualquer mensagem de Solaria datava de dois meses antes.

      - E os outros três pontos que ela assinalou? - resmungou Amadiro

      - Como, chefe?

      - Nada, nada - replicou Amadiro, mas carregou o cenho e ficou mergulhado em pensamentos.

     

      O Robô Telepático

      Mandamus não estava a par da evolução dos acontecimentos em Solaria quando voltou, alguns meses depois, de uma demorada terceira viagem à Terra.

      Na primeira, seis meses antes, Amadiro tinha conseguido, com certa dificuldade, enviá-lo como porta-voz de Aurora para discutir um assunto insignificante de invasão do território Espacial por naves de Mercadores. Ele tinha suportado a cerimônia e o aborrecimento burocrático, ficando imediatamente claro que, como emissário, sua mobilidade era limitada. Isso não importava, pois aprendera o que tinha ido aprender.

      Voltou com as novidades.

      - Duvido, Dr. Amadiro, que haja qualquer espécie de problema. Não há um meio, nenhum meio possível pelo qual os funcionários da Terra possam controlar tanto a entrada como a saída. A cada ano, muitos milhões de Colonizadores visitam a Terra, partindo de todas as dezenas de planetas, e muitos milhões de Colonizadores visitantes retornam outra vez a casa. Cada Colonizador parece sentir que a vida não está completa a menos que respire periodicamente o ar da Terra e palmilhe seus abarrotados espaços subterrâneos. É a procura das raízes, acho. Eles parecem não sentir o terrível pesadelo que é a existência na Terra.

      - Eu sei disso, Mandamus - disse Amadiro, cansado.

      - Só intelectualmente, senhor. Não pode de fato compreender sem ter experimentado. Uma vez que isso aconteça, descobrirá que nada do seu "saber" lhe preparará para a realidade. Porque ninguém quererá voltar, uma vez saindo...

      - Nossos antepassados evidentemente não quiseram voltar, uma vez saindo do planeta.

      - Não - disse Mandamus - porém o vôo interestelar não era então avançado como hoje. Agora a viagem leva apenas dias, os Saltos são rotina e nunca saem errados. Se fosse tão fácil voltar à Terra na época dos nossos antepassados como é hoje, teríamos nos separado para sempre, como fizemos?

      - Chega de filosofia, Mandamus. Vamos ao ponto.

      - Certamente. Além das idas e vindas das infindáveis correntes de Colonizadores, milhões de Terráqueos a cada ano partem como emigrantes para um ou outro dos planetas dos Colonizadores. Alguns voltam quase imediatamente, sem conseguirem se adaptar. Outros constroem novos lares, mas voltam com freqüência em visita. Não há meio de manter sinais de saídas e entradas, e a Terra nem mesmo tenta. Tentar estabelecer métodos sistemáticos de identificação e manter vigilância sobre os visitantes são medidas que podem deter o fluxo, e a Terra é muito consciente de que cada visitante traz dinheiro consigo. O mercado turístico - se podemos chamá-lo assim - é normalmente a indústria mais lucrativa da Terra.

      - Suponho que está dizendo que podemos levar os robôs humanóides para a Terra sem dificuldades.

      - Sem nenhuma dificuldade. Quanto a isso, não tenho a menor dúvida. Agora que os temos devidamente programados, podemos enviá-los à Terra em meia dúzia de grupos, com documentos forjados. Nada podemos fazer quanto ao respeito e intimidação robóticos pelos seres humanos, o que, porém, talvez não os afaste. Isso pode ser interpretado como respeito habitual e medo do Colonizador pelo planeta ancestral. Mas, então, suspeito fortemente que não precisamos largá-los em um dos aeroportos da cidade. Os vastos espaços entre Cidades são virtualmente desocupados, exceto por primitivos robôs-operários, e as naves que chegarem não serão percebidas ou pelo menos serão negligenciadas.

      - Acho que é muito arriscado - retrucou Amadiro.

     

      Dois lotes de robôs humanóides foram enviados à Terra e se misturaram com os Terráqueos da Cidade antes de encontrarem a saída para as áreas vazias, comunicando-se com Aurora por superfeixe de luz protegido.

      Mandamus disse (tinha pensado profundamente a respeito, tinha hesitado muito):

      - Deverei ir novamente, senhor. Não posso ser categórico ao dizer Que encontrei o lugar exato.

      - Tem certeza de que conhece o lugar exato, Mandamus? - perguntou Amadiro, ironicamente.

      - Sondei inteiramente a antiga história da Terra, senhor. Sei que posso achar.

      - Não creio que possa persuadir o Conselho a enviar uma nave de guerra com você.

   - Não, não quero isso. Seria pior e inútil. Quero uma nave individual, com a força necessária para ir e voltar.

      E, assim, Mandamus fez sua segunda visita à Terra, pousando numa região fora das cidades menores. com um misto de alívio e satisfação, encontrou inúmeros robôs nos devidos lugares e ficou com eles para examinar seu trabalho, dar-lhes algumas ordens relacionadas com esse trabalho e realizar certos ajustes de precisão em sua programação.

      Depois, sob o olhar desinteressado de alguns primitivos robôs agrícolas terraformados, partiu para a cidade mais próxima.

      Era um risco calculado, e Mandamus, que não era nenhum herói destemido, pôde sentir o coração palpitando desconfortavelmente no peito. Mas foi tudo bem. O vigia do portão demonstrou alguma surpresa quando um ser humano se apresentou no portão, dando sinais evidentes de ter passado um tempo enorme fora.

      Mandamus, porém, tinha documentos identificando-o como Colonizador, e o vigia encolheu os ombros. Colonizadores não temiam o ar livre e não costumavam fazer pequenos passeios pelos campos e bosques que cercavam as camadas superiores de uma Cidade que se destacava do chão.

      O vigia lançou um olhar distraído aos seus documentos e ninguém mais pediu-os. O sotaque estranho à Terra (tão pouco Auroreano quanto pôde fingir) foi aceito sem comentários, e, até onde podia dizer, ninguém imaginou que ele pudesse ser um Espacial. Mas, também, por que deveria? Os dias em que os Espaciais mantinham um posto avançado permanente estavam situados dois séculos atrás; emissários oficiais dos planetas Espaciais eram poucos e - ultimamente - cada vez menos. Os Terráqueos provincianos nem mesmo podiam lembrar que os Espaciais tivessem existido.

      Mandamus ficou um pouco preocupado com o fato de que as luvas finas e transparentes que sempre usava pudessem ser notadas ou que os tampões nasais fossem reparados, mas nada disso aconteceu. Nenhuma restrição foi feita às suas viagens em torno da Cidade ou a outras Cidades. Ele possuía muito dinheiro para isso, e dinheiro era importante na Terra (e, para falar a verdade, também nos planetas Espaciais).

      Ele crescera acostumado a não ter nenhum robô em seus calcanhares, e, quando encontrava com um robô humanóide de Aurora nesta ou naquela Cidade, tinha de explicar-lhe com muita firmeza que não era necessário persegui-lo como um cão. Ouvia seus relatórios, dava-lhes as instruções que pareciam necessitar e fazia arranjos para ulteriores embarques de robôs para fora da Cidade. Finalmente, voltava à sua nave e ia embora.

      Não lhe pediam a senha na saída, assim como o faziam na entrada.

      - Realmente - disse pensativamente para Amadiro - esses Terráqueos não são realmente bárbaros.

      - Não mesmo?

      - No seu próprio mundo, comportam-se de forma bastante humana. De fato, há alguma coisa cativante em sua amizade.

      - Está começando a lamentar a tarefa a que se propôs?

      - Tenho uma sensação terrível quando ando entre eles e penso que não sabem o que lhes vai acontecer. Não posso sentir prazer no que estou fazendo.

      - Claro que pode, Mandamus. Pense que, tão logo o trabalho tenha sido feito, você terá assegurado o posto de chefe do Instituto antes que se tenha passado muito tempo. Isso tornará o trabalho mais fácil.

      Depois disso, Amadiro ficou de olho em Mandamus.

      Na terceira viagem de Mandamus, muito do seu antigo mal-estar desapareceu e ele pôde agir quase como se fosse um Terráqueo. O projeto vinha prosseguindo lentamente, embora estivesse em ponto morto ao longo da linha de progresso prevista.

      Ele não tinha experimentado problemas de saúde nas visitas anteriores, mas nesta terceira - sem dúvida devido à sua excessiva confiança - deve ter-se exposto a alguma enfermidade. Pelo menos, durante um momento teve um assustador gotejamento do nariz, acompanhado de tosse.

      A ida a um dos ambulatórios da Cidade resultou numa injeção de gamaglobulina, que lhe trouxe alívio imediato, porém ele achou o ambulatório mais apavorante que a enfermidade. Percebeu que cada pessoa lá estava provavelmente com alguma doença contagiosa ou em contato íntimo com os que estavam enfermos.

      Mas agora, finalmente, estava de volta à tranqüila regularidade de Aurora e incrivelmente grato por isso. Estava prestando atenção ao relato de Amadiro sobre a crise de Solaria.

      - Não ouviu absolutamente nada sobre isso? - perguntou Amadiro.

      Mandamus balançou a cabeça.

      - Nada, senhor. A Terra é um planeta incrivelmente provinciano. Oitocentas Cidades com um total de oito bilhões de habitantes - todos interessados apenas nas oitocentas Cidades e nesses oito bilhões de habitantes. O senhor pode pensar que os Colonizadores existem apenas para visitar a Terra e que os Espaciais absolutamente não existem. De fato, o noticiário em cada cidade trata, cerca de noventa por cento do tempo, somente daquela cidade. A Terra é um planeta fechado, claustrofóbico, tanto mental como fisicamente.

      - E você ainda diz que não são bárbaros.

      - A claustrofobia não é necessariamente barbarismo. À sua maneira, eles são civilizados.

      - À sua maneira! Mas não importa. O problema no momento é Solaria. Nenhum dos planetas Espaciais mexerá uma palha. O princípio de  não-intervenção se sobrepõe, e eles insistem em que os problemas internos de Solaria são apenas de Solaria. Nosso próprio Presidente é tão inerte como qualquer outro, muito embora Fastolfe esteja morto e sua mão paralisada não paire mais sobre nós. De minha parte, nada posso fazer - até o momento em que for Presidente.

      - Como podem eles supor - perguntou Mandamus - que não haverá ingerência nos problemas internos de Solaria, quando os Solarianos sumiram?

      Amadiro disse, ironicamente:

      - Como é que você vê imediatamente a loucura disso e eles não? Eles dizem que não há prova cabal de que os Solarianos tenham desaparecido totalmente, e na medida em que eles - ou mesmo alguns deles - possam estar no planeta, nenhum planeta Espacial tem o direito de intervir sem ser chamado.

      - Como podem eles explicar a ausência de atividade energética?

      - Eles acham que os Solarianos devem ter se retirado para o subsolo ou desenvolvido um progresso tecnológico de modo a prevenir o escapamento da radiação. Eles também dizem que ninguém viu os Solarianos indo embora e que eles não tinham absolutamente para onde ir. Claro, eles não foram vistos partindo porque não havia ninguém olhando.

      - Como podem afirmar que os Solarianos não tinham para onde ir? - perguntou Mandamus. - Há muitos planetas desabitados.

      - O argumento é que os Solarianos não podem viver sem suas fabulosas multidões de robôs e não podem levá-los com eles. Se eles chegassem aqui, por exemplo, quantos robôs supõe que podíamos destinar-lhes - se é que pudéssemos destinar-lhes algum?

      - E qual é seu argumento contra isso?

      - Nenhum. Contudo, se desapareceram ou não, a situação é estranha e perturbadora, e é incrível que ninguém investigue. Eu avisei a todos, o mais enfaticamente que pude, que a inércia e a apatia seriam o nosso fim; que logo os planetas dos Colonizadores tomassem conhecimento do fato de que Solaria estava - ou podia estar - vazio, não hesitariam em investigar o assunto. Essas multidões possuem uma curiosidade que desejo tenhamos partilhado. Sem pensar duas vezes, eles arriscarão suas vidas, se algum lucro os atrair.

      - E qual o lucro neste caso, Dr. Amadiro?

      - Se os Solarianos partiram, eles terão, forçosamente, deixado quase todos os seus robôs. Eles são - ou eram - roboticistas muito capazes, e os Colonizadores, por mais que odeiem os robôs, não hesitarão em se apropriar deles e embarcá-los para cá, em troca de bons créditos Espaciais. Na verdade, já anunciaram isso.

      “Duas naves de Colonizadores já pousaram em Solaria. Nós fizemos um protesto, mas eles certamente não lhe deram importância, e nós também nada fizemos a seguir. Pelo contrário. Alguns dos planetas Espaciais estão enviando indagações secretas sobre a natureza e o valor dos robôs que possam ser resgatados.”

      - Exatamente como nós, talvez - afirmou Mandamus, tranqüilamente.

      - Será possível que estejamos nos comportando exatamente como os propagandistas dos Colonizadores dizem que estamos? Que estejamos agindo como se estivéssemos nos degenerando e nos tornando decadentes?

      - Por que repetir suas palavras cochichadas? O fato é que somos calmos e civilizados, e ainda não fomos atingidos no ponto sensível. Se isso tivesse acontecido, reagiríamos violentamente e, tenho certeza, os esmagaríamos. Nós continuamos sobrepujando-os tecnologicamente.

      - Mas os prejuízos para nós mesmos não seriam exatamente agradáveis.

      - O que significa que não precisamos estar muito preparados para ir à guerra. Se Solaria está abandonado e os Colonizadores desejam saqueá-lo, talvez devamos deixar. Afinal de contas, eu previ que estaríamos preparados para fazer nosso lance em meses.

      Um ar um tanto ansioso e feroz espalhou-se sobre o rosto de Amadiro.

      - Meses?

      - Sem dúvida. Portanto, a primeira coisa que precisamos fazer é evitar a provocação. Estragaríamos tudo se provocássemos um conflito desnecessário e sofrêssemos prejuízos - mesmo que vencêssemos - que não precisamos sofrer. Afinal de contas, dentro em pouco iremos vencer completamente, sem luta e sem prejuízos... Pobre Terra!

      - Se começar a ter pena dela - disse Amadiro com falsa brandura - talvez não lhe faça nada.

      - Pelo contrário - retrucou Mandamus, friamente. - É exatamente por ter toda a intenção de fazer-lhes alguma coisa - e saber o que será feito - que tenho pena deles. O senhor será Presidente!

      - E você, o diretor do Instituto.

      - Um posto modesto, em comparação com o seu.

      - E depois da minha morte? - perguntou Amadiro, num resmungo.

      - Não vou tão longe assim.

      - Eu tenho realmente... - começou Amadiro, mas foi interrompido pelo zumbido ritmado da unidade transmissora. Sem olhar, automaticamente, Amadiro colocou a mão na fenda de saída. Olhou para a fina fita de papel que surgiu e um lento sorriso apareceu em seus lábios.

      - As duas naves dos Colonizadores pousaram em Solaria... - disse.

      - E então? - perguntou Mandamus, franzindo o cenho.

      - Destruídas! Ambas destruídas!

      - Como?

      - Num relâmpago explosivo de radiação, facilmente detectado do espaço. Percebe o que isso significa? Os Solarianos, afinal de contas, não tinham partido, e o mais fraco de nossos planetas pôde facilmente liquidar as naves dos Colonizadores. É uma desgraça que eles não esquecerão facilmente. Olhe, Mandamus, leia.

      Mandamus afastou o papel.

      - Mas isso não significa necessariamente que os Solarianos ainda estão no planeta. Eles apenas deixaram, de alguma forma, uma armadilha preparada.

      - Faz alguma diferença? Ataque pessoal ou armadilha, as naves foram aniquiladas.

      - Desta vez foram apanhados de surpresa. E da próxima, quando estiverem preparados? E se eles considerarem que se trata de um deliberado ataque dos Espaciais?

      - Responderemos que os Solarianos estavam apenas se defendendo de uma deliberada invasão dos Colonizadores.

      - Mas, senhor, está sugerindo uma guerra de comunicados? E se os Colonizadores não se derem ao trabalho de discutir, considerando a destruição das suas naves um ato de guerra e procedendo a uma represália imediata?

      - Por que fariam isso?

      - Porque ficarão tão loucos como nós ficaríamos se tivéssemos o orgulho ferido, mais ainda, considerando que eles têm um retrospecto de violência muito maior.

      - Serão derrotados.

      - O senhor mesmo admitiu que eles nos infligirão danos insuportáveis, mesmo se forem derrotados.

      - Que quer que eu faça?

      - Convença o Presidente a deixar bem claro que Aurora nada tem a ver com isso, nem nenhum dos planetas Espaciais, que a culpa é unicamente de Solaria.

      - E abandonar Solaria? Seria um ato de covardia.

      Mandamus estava rubro de excitação.

      - Dr. Amadiro, o senhor nunca ouviu falar numa coisa chamada retirada estratégica? Trata-se de persuadir os planetas Espaciais a recuar apenas por pouco tempo sob um pretexto plausível. É uma questão de meses, até que nosso plano na Terra venha a frutificar. Pode ser difícil para alguém mais pedir desculpas e apoiar os Espaciais, pois eles não sabem o que está vindo, mas conosco é diferente. De fato, o senhor e eu, com o nosso conhecimento especial, podemos considerar esse acontecimento como um presente do que costumavam chamar deuses. Deixamos os Colonizadores se preocuparem com Solaria, enquanto sua destruição é preparada - completamente despercebida por eles - na Terra. Ou o senhor prefere que sejamos arruinados na véspera da vitória final?

      Amadiro ficou hesitante diante do olhar direto do outro.

     

      Amadiro nunca se sentiu pior do que durante o período que se seguiu à destruição das naves dos Colonizadores. Felizmente, o Presidente pôde ser persuadido a adotar a política do que Amadiro denominou "capitulação imperiosa". A frase dominou a imaginação do Presidente, não obstante sua contradição. Além disso, o Presidente era bom nisso.

      O resto do Conselho foi mais difícil de manobrar. O exasperado Amadiro exauriu-se em descrever os horrores da guerra e a necessidade de escolher o momento mais favorável para atacar - se a guerra fosse inevitável. Inventou novas possibilidades para mostrar por que o momento ainda não tinha chegado e usou-as em discussões com os líderes de outros planetas Espaciais. A hegemonia natural de Aurora teve de ser exercida ao máximo para fazê-lo ceder.

      Mas quando o Comandante D. G. Baley chegou com sua nave e sua exigência, Amadiro sentiu que não podia fazer mais. Era muito.

      - É completamente impossível - disse Amadiro. - Vamos permitir-lhe que pouse em Aurora, com aquela barba, sua ridícula indumentária, seu sotaque incompreensível? E esperam que eu peça ao Conselho que concorde em lhe entregar uma Espacial? Será um ato absolutamente sem precedentes em nossa história. Uma Espacial!

      - O senhor sempre se referiu a essa Espacial em particular como "a Solariana" - comentou Mandamus, secamente.

      - Para nós, ela é "a Solariana", mas deve ser considerada como Espacial sempre que um Colonizador estiver envolvido. Se a sua nave descer em Solaria, como ele sugere, será destruída, como as outras foram, junto com ele e a mulher. Posso, então, ser acusado por meus inimigos, com um tom de justificação, de assassinato - e minha carreira política pode não sobreviver a isso.

      - Em vez disso - replicou Mandamus - pense no fato de que trabalhamos quase sete anos para conseguir a destruição final da Terra e que estamos apenas a alguns meses da conclusão do projeto. Devemos nos arriscar à guerra e, de um golpe, arruinar tudo o que fizemos, quando estamos tão perto da vitória final?

      Amadiro balançou a cabeça.

      - Não é como se eu tivesse escolha, meu amigo. O Conselho não me apoiará se eu discutir com eles a entrega da mulher a um Colonizador. E o simples fato de tê-lo sugerido pode ser usado contra mim. Minha carreira política ficaria abalada e poderíamos então ter uma guerra como complemento. Além disso, a idéia de uma Espacial morrendo a serviço de um Colonizador é insuportável.

      - A impressão é de que o senhor gosta muito da Solariana.

      - Você sabe que não. Eu desejei de todo o coração que ela tivesse  morrido há vinte décadas, mas não assim, não numa nave Colonizadora.  Agora, devo lembrar que ela é sua antepassada na quinta geração.

      Mandamus pareceu mais macambúzio que normalmente.

      - Qual a conseqüência disso para mim? Sou um Espacial, consciente de mim mesmo e de minha sociedade. Não sou adorador de ancestrais, membro de um conglomerado tribal. - Por um momento, Mandamus permaneceu em silêncio e seu rosto magro revelou um ar de intensa concentração. - Dr. Amadiro - prosseguiu - o senhor não pode explicar ao Conselho que essa minha antepassada foi levada, não como uma refém Espacial, mas apenas por causa do seu singular conhecimento de Solaria, onde ela passou a infância e a juventude, tornando-se parte essencial da exploração, e que essa exploração poderá mesmo ser útil para nós e também para os Colonizadores? Afinal de contas, na verdade, não seria desejável para nós saber o que esses miseráveis Solarianos estão tramando? A mulher irá, presumivelmente, fazer um relatório dos acontecimentos - se sobreviver.

      Amadiro puxou o lábio inferior.

      - Isso pode dar certo se ela subir a bordo voluntariamente, se deixar claro que compreendeu a importância da tarefa e quis executar seu dever patriótico. Levá-la para bordo à força, porém, será impensável.

      - Bem, suponha então que eu vá ver essa minha antepassada e procure convencê-la a subir voluntariamente a bordo da nave; suponha também que o senhor fale com esse comandante Colonizador por hiperonda, e lhe diga que pode pousar em Aurora e conseguir a mulher se puder persuadi-la a ir com ele voluntariamente - ou, pelo menos, que ela irá com ele voluntariamente, quer queira ou não.

      - Suponho que nada temos a perder com a tentativa, mas não vejo como vencermos.

      Contudo, para espanto de Amadiro, venceram. Ele ficara ouvindo, com surpresa, quando Mandamus lhe contara os detalhes.

      - Referi-me ao assunto dos robôs humanóides - disse Mandamus - e ficou claro que ela nada sabia a respeito deles, do que concluí que Fastolfe também não. Era uma daquelas coisas que me aborreciam muito. Depois, conversei muito sobre meu antepassado, de forma a forçá-la a falar daquele Terráqueo, Elijah Baley.

      - A propósito de quê? - perguntou Amadiro, asperamente.

      - Eu só queria fazê-la falar, e ela lembrou. Esse Colonizador que a deseja é descendente de Baley, e acho que isso pode influenciá-la a considerar o seu pedido mais favoravelmente do que de outra forma.

      Em todo caso, tinha dado certo, e por alguns dias Amadiro sentiu um alívio da quase contínua pressão que o perseguira desde o início da crise Solariana.

      Mas apenas por alguns dias.

     

      Um ponto que trabalhou a favor de Amadiro nesse tempo foi que ele não tinha visto Vasilia até ali, durante a crise Solariana.

      Certamente, não era o momento apropriado para vê-la. Ele não desejava ser perturbado em sua preocupação por causa de um robô que ela considerava propriedade sua - com total desprezo pelo aspecto legal da situação - numa hora em que uma verdadeira crise ocupava-lhe cada nervo e pensamento. Nem desejava expor-se à espécie de discussão que poderia facilmente surgir entre ela e Mandamus sobre quem, finalmente, iria presidir o Instituto de Robótica.

      Em todo caso, ele tinha chegado à decisão de que Mandamus devia ser seu sucessor. Através da crise Solariana, ele tinha ficado de olho no que era importante. Mesmo quando o próprio Amadiro vacilou, Mandamus permaneceu impassível e frio. Foi Mandamus que pensou ser concebível que... a Solariana pudesse acompanhar o comandante Colonizador voluntariamente, e foi ele que a orientou nessa direção.

      E se seu plano para a destruição da Terra desse certo - como precisava dar - então Amadiro podia ver Mandamus sucedendo-o finalmente como Presidente do Conselho.

      E seria mesmo justo, pensou Amadiro, num raro impulso de abnegação.

      Em conseqüência, naquela tarde em especial não dedicou mais nenhum pensamento a Vasilia. Deixou o Instituto com um pequeno pelotão de robôs levando-o a salvo até o carro terrestre. Este, dirigido por um robô, com mais dois sentados no banco traseiro ao seu lado, passou silenciosamente pela chuva fria e crepuscular e levou-o para sua casa, onde outros dois robôs o introduziram na habitação. Em todo esse tempo, ele não pensou em Vasilia.

      Assim, encontrá-la sentada em sua própria sala de estar, defronte de sua hiperonda, assistindo a um complicado balé de robôs, com vários dos robôs de Amadiro em seus nichos e dois dos seus próprios por trás de sua cadeira, chocou-o a princípio, não tanto pela raiva da privacidade violada, mas de pura surpresa.

      Precisou de algum tempo para controlar a respiração até o ponto de conseguir falar  depois sua raiva surgiu e ele disse, asperamente:

      - Que está fazendo aqui? Como entrou?

      Vasilia estava bastante calma. Afinal de contas, a chegada de Amadiro era inteiramente esperada.

      - Estou esperando-o - disse ela. - Entrar não foi difícil. Seus robôs me conhecem muito bem e sabem da minha posição no Instituto. Por que não me deixariam entrar se eu lhes garantisse que tinha um encontro com você?

      - O que não era verdade. Você violou minha privacidade.

      - Na verdade, não. Há um limite para o quanto de confiança você  pode extrair do robô de alguém. Olhe-os. Em nenhum instante tiraram os olhos de mim. Se eu quisesse mexer em suas coisas, olhar seus documentos, tirar partido da sua ausência de alguma forma, garanto-lhe que não poderia. Meus dois robôs não têm condições de enfrentá-los.

      - Você sabe - disse Amadiro amargamente - que agiu de uma forma inteiramente anti-Espacial. Você é desprezível, e não esquecerei isso.

      Vasilia pareceu empalidecer um pouco ao ouvir o adjetivo. Replicou em voz baixa e dura:

      - Espero que não esqueça, Kelden, pois fiz o que fiz por você  e se eu reagir por causa dos seus impropérios é para ir embora agora e deixá-lo continuar a ser o homem derrotado que tem sido nas últimas vinte décadas.

      - Não permanecerei derrotado,  faça você o que fizer.

      - Você fala como se acreditasse nisso - retrucou Vasilia - mas, veja, não sabe o que eu sei. Devo dizer-lhe que, sem minha intervenção você continuará derrotado. Não me importa que plano você tenha em mente, ou o que aquele mal-encarado Mandamus tenha preparado para você...

      - Por que você o mencionou? - perguntou Amadiro, depressa.

      - Isso é problema meu - retrucou Vasilia com ar de desprezo. - O que quer que ele tenha feito ou pense que está fazendo - não se assuste, pois não tenho a mínima idéia do que possa ser - não vai dar certo. Posso não saber coisa alguma a respeito, mas sei que não vai dar certo.

      - Você está dizendo bobagens - replicou Amadiro.

      - É melhor prestar atenção a essas bobagens, Kelden, se não quiser que tudo desmorone. Não apenas você, mas possivelmente os planetas Espaciais, indistintamente. Contudo, você pode não me dar atenção. A escolha é sua. O que prefere?

      - Por que devo ouvi-la? Por que devo prestar-lhe atenção?

      - Eu lhe disse que os Solarianos estavam se preparando para abandonar seu planeta. Se tivesse me ouvido naquela época, não teria sido apanhado de surpresa quando isso aconteceu.

      - A crise Solariana ainda pode se reverter a nosso favor.

      - Não, não pode - respondeu Vasilia. - Você pode pensar que sim, mas está errado. Ela vai destruí-lo - não importa o que faça para enfrentar a emergência - a menos que me deixe falar.

      Os lábios de Amadiro estavam lívidos e tremiam levemente. Os dois séculos de derrotas citados por Vasilia tinham surtido um efeito definitivo sobre ele, e as crises Solarianas não tinham ajudado em nada, fazendo-o, assim, perder a força interior para ordenar a seus robôs que a expulsassem, como deveria ter feito. Disse, de mau humor:

      - Bem, então seja breve.

      - Não vai ser fácil acreditar no que tenho para dizer, por isso deixe-me fazê-lo à minha maneira. Você pode me interromper a qualquer momento, mas então irá destruir os planetas Espaciais. Claro, eles durarão o meu tempo e não serei eu que desaparecerei na História - História Colonizadora, bem entendido - como o maior fracasso registrado. Devo falar?

      Amadiro deixou-se cair numa cadeira.

      - Então fale, mas assim que acabar, retire-se.

      - Essa é minha intenção, Kelden, a menos, é claro, que você me peça muito educadamente - que fique para ajudá-lo. Posso começar?

      Amadiro nada disse e Vasilia começou:

      - Eu lhe disse que durante minha estada em Solaria percebi vários modelos positrônicos muito peculiares desenhados por eles, modelos que me chocaram - muito intensamente - como representativos de tentativas de produção de robôs telepáticos. Ora, por que deveria eu pensar nisso?

      Amadiro replicou asperamente:

      - Não sei dizer que impulsos patológicos podem alimentar seu pensamento.

      Vasilia afastou o comentário com uma careta.

      - Obrigado, Kelden. Passei alguns meses pensando nisso, desde que fiquei bastante arguta para saber que a matéria não envolvia patologia, porém memória subliminar. Minha mente procurou na minha infância, quando Fastolfe, que eu, na época, considerava meu pai, em um dos seus impulsos generosos - ele tinha, de vez em quando, impulsos generosos - me deu um robô só para mim.

      - Novamente Giskard? - murmurou Amadiro com impaciência.

      - Sim, Giskard. Sempre Giskard. Eu era jovem e já possuía o instinto de roboticista ou, devo dizer, nasci com esse instinto. Eu conhecia pouquíssimo matemática, mas tinha uma boa noção de modelos. Com o passar das décadas, meu conhecimento de matemática melhorou bastante, mas não acho que tenha progredido muito em minha inclinação por modelos. Meu pai constumava dizer: "Vasinha" - ele também usava diminutivos ao ver quanto isso me afetava - "você tem gênio para modelos." Acho que respondi...

      Amadiro interrompeu:

      - Poupe-me. Concedo-lhe a genialidade. No entanto, ainda não jantei, reparou?

      - Bem - disse Vasilia, asperamente - peça seu jantar e me convide para tomar parte.

      Amadiro, franzindo o cenho, ergueu o braço mecanicamente e fez um sinal rápido. O movimento silencioso de robôs trabalhando tornou-se logo evidente.

      - Eu gostava de brincar com amostras de modelos para Giskard. Às vezes eu ia a Fastolfe - meu pai, como eu o considerava na época - e lhe mostrava um modelo. Ele costumava sacudir a cabeça, rir e dizer: "Se você acrescentar isto ao cérebro do pobre Giskard, ele não será mais capaz de  falar e ficará sofrendo muito." Lembro-me de ter-lhe perguntado se Giskard podia realmente sentir dor, ao que ele respondeu: “Não sabemos o que ele sentirá, mas agirá como nós agiríamos se estivéssemos sofrendo muito, podendo-se dizer que sentiria dor.”

      “Outras vezes, quando eu lhe levava um dos meus modelos, ele sorria com indulgência e dizia: "Bem, isso não fará mal a ele, Vasinha, e talvez seja interessante experimentar."

      "E eu experimentava.. Às vezes retirava a modificação, outras, não. Eu não estava simplesmente brincando com Giskard por um prazer sádico, como imagino que podia ter tentado fazer se fosse outra pessoa. A verdade é que eu gostava muito de Giskard e não desejava causar-lhe dano. Quando me parecia que uma das minhas melhorias - eu sempre as considerava melhorias - fazia Giskard falar mais facilmente ou reagir mais rapidamente ou mais interessantemente - e não lhe causava dano - eu a deixava ficar.

      "E então um dia..."

      Um robô parado ao lado de Amadiro não ousaria interromper um hóspede, a menos que houvesse uma verdadeira situação de emergência, porém Amadiro não teve dificuldade em perceber o significado da espera.

      - O jantar está servido? - perguntou.

      - Sim, senhor - replicou o robô.

      Amadiro fez um gesto um tanto impaciente na direção de Vasilia.

      - Você está convidada a jantar comigo.

      Dirigiram-se para a sala de jantar de Amadiro, na qual Vasilia nunca tinha entrado. Amadiro era, afinal de contas, uma personalidade, tendo se tornado famoso pela pouca importância que dava às convenções sociais. Quando lhe diziam que teria mais sucesso na política se recebesse em casa, ele invariavelmente sorria de modo educado e respondia: - "É um preço muito alto."

      Era talvez por sua capacidade de receber, pensou Vasilia, que não havia sinal de originalidade ou criatividade nos móveis. Nada podia ser mais comum que a mesa, os pratos e os talheres. Quanto às paredes, eram apenas uniformemente pintadas de uma só cor. Em conjunto, quase tiravam a fome, pensou ela.

      A sopa com que começaram - rala - era tão vulgar como os móveis, e Vasilia começou a tomá-la sem entusiasmo.

      - Minha cara Vasilia - disse Amadiro - você pode ver que eu estou sendo paciente. Não me importo que você escreva sua biografia, se desejar. Mas é realmente sua intenção ler-me vários capítulos? Se é, devo dizer-lhe com franqueza que não estou verdadeiramente interessado.

      - Vai ficar muitíssimo interessado logo - retrucou Vasilia. - Contudo, se estiver realmente apaixonado pelo fracasso e quiser continuar a não conseguir nada do que deseja, simplesmente diga. Então jantarei em silêncio e irei embora. É isso o que deseja?

      Amadiro suspirou.

      - Bem, prossiga, Vasilia.

      - E então um dia - continuou Vasilia - eu surgi com um modelo mais elaborado, mais agradável e mais atraente do que qualquer outro que já vira antes. Eu gostaria de mostrá-lo a meu pai, porém ele estava ausente, participando de alguma reunião num dos outros planetas.

      "Eu não sabia quando ele voltaria e pus meu modelo de lado, mas a cada dia eu o olhava com mais interesse e fascínio. Finalmente, não pude esperar mais. Simplesmente não pude. Parecia-me tão belo que achei ridículo imaginar que ele pudesse causar mal. Eu era apenas uma criança na minha segunda década e ainda não tinha superado a irresponsabilidade - por isso, modifiquei o cérebro de Giskard, incorporando-lhe o modelo.”

      “E não houve dano. Isso ficou imediatamente evidente. Ele reagiu perfeitamente - foi o que me pareceu - ficou mais rápido na compreensão e muito mais inteligente do que era. Achei-o muito mais fascinante e amável que antes.”

      “Fiquei deliciada e, ao mesmo tempo, também nervosa. O que eu tinha feito - modificar Giskard sem discutir com Fastolfe - era estritamente contrário às regras que ele havia estabelecido para mim, e eu sabia muito bem disso. Contudo, claro, eu não ia desfazer o que tinha feito. Quando modifiquei o cérebro de Giskard, desculpei-me comigo mesma dizendo que iria ser por pouco tempo e que depois eu neutralizaria a modificação. Contudo, uma vez feita, ficou bem claro que eu não a neutralizaria.”

      “Simplesmente não ia fazer isso. Na verdade, jamais tornei a modificar Giskard, com medo de estragar o que eu tinha acabado de fazer.”

      “E também nunca contei a Fastolfe o que tinha feito. Destruí todas as anotações do maravilhoso modelo que tinha inventado, e Fastolfe nunca descobriu que Giskard tinha sido modificado sem seu conhecimento. Nunca!”

      “Depois cada um seguiu seu caminho, Fastolfe e eu, e ele não desistiu de Giskard. Gritei que ele era meu e que eu o amava, mas a sua propalada bondade, que ele tanto exibiu durante toda a vida - aquela história de amar todas as coisas, grandes e pequenas - nunca impediu a satisfação dos seus próprios desejos. Ganhei outros robôs, que não me interessavam, porém ele conservou Giskard para si.”

      “E quando morreu, deixou Giskard para a Solariana - a última amarga bofetada em mim.”

      Amadiro tinha apenas conseguido chegar à metade da musse de salmão.

      - Se tudo isso tem a finalidade de melhorar sua causa de ter a propriedade de Giskard transferida da Solariana para você, não vai adiantar. Já lhe expliquei por que não posso deixar de lado o testamento de Fastolfe.

      - Ainda há alguma coisa mais que isso, Kelden - retrucou Vasilia.  - Muito mais. Infinitamente mais. Quer que eu pare agora?

      Amadiro repuxou os lábios, num sorriso pesaroso.

      - Tendo ouvido até agora, Vou me fingir de louco e ouvir mais.

      - Seria louco se não ouvisse, pois estou agora chegando ao ponto Nunca parei de pensar em Giskard, na crueldade e injustiça de ter sido privada dele, mas por isso ou por aquilo eu nunca pensei naquele modelo com o qual eu o tinha modificado sem o conhecimento de ninguém. Tenho certeza de que, se tivesse tentado, não teria conseguido reproduzir aquele espécime, que não se parecia com coisa alguma que eu tivesse visto em robótica até... até ver, por instantes, alguma coisa igual durante minha estada em Solaria.

      “O modelo Solariano pareceu-me familiar, mas eu não soube por quê. Precisei de semanas de intensa reflexão para trazer à tona uma parte bem escondida do meu inconsciente, a idéia fugidia daquele modelo sonhado por mim vinte e cinco décadas atrás.”

      “Apesar de não poder lembrá-lo exatamente, sei que o modelo Solariano era arremedo dele e nada mais. Era apenas uma vaga sugestão de algo que eu tinha captado numa miraculosa simetria complexa. Olhei, porém, para o modelo solariano com a experiência que tinha ganho em vinte e cinco décadas de profunda imersão nas teorias robóticas, e isso me sugeriu telepatia. Se aquele simples e pouco interessante modelo sugeriu isso, o que poderia meu original ter significado - a coisa que inventei quando criança e desde então nunca fora capaz de recuperar?”

      - Você continua dizendo, Vasilia, que está chegando ao ponto - comentou Amadiro. - Estarei sendo completamente irrazoável se lhe pedir que pare de se lamentar e de recordar e simplesmente exponha esse ponto numa frase clara e taxativa?

      - Com prazer - retrucou Vasilia. - O que estou lhe dizendo, Kelden, é que, sem noção do que estava fazendo, transformei Giskard num robô telepático e que ele tem sido assim a partir daí.

      Amadiro ficou olhando para Vasilia durante muito tempo, e, porque a história parecia ter chegado ao fim, voltou-se para a musse de salmão e comeu um pouco, pensativamente.

      Depois disse:

      - Impossível! Você me considera idiota?

      - Eu o considero um fracasso - replicou ela. - Eu não disse que Giskard pode ler conversas mentais, que pode transmitir e receber palavras ou idéias. Talvez isso seja impossível, mesmo teoricamente. Mas tenho absoluta certeza de que ele pode detectar emoções e o conjunto geral de atividade mental, e talvez até mesmo modificá-lo.

      Amadiro sacudiu a cabeça violentamente.

      - Impossível!

      - Impossível? Pense um pouco. Há vinte décadas, você quase conseguiu seu objetivo. Fastolfe estava à sua mercê e o Presidente Horder era seu aliado Que aconteceu? Por que tudo saiu errado?

      - O Terráqueo... - começou Amadiro, engasgando-se com a lembrança.

      - O Terráqueo - imitou-o Vasilia. - O Terráqueo. Ou foi a Solariana? Nem um nem outro! Foi Giskard, que estava lá o tempo todo. Percebendo. Regulando.

      - Por que estaria ele interessado? Não passa de um robô.

      - Um robô leal ao seu dono, a Fastolfe. Pela Primeira Lei, ele devia cuidar que Fastolfe não fosse injuriado e, sendo telepata, não podia interpretar isso apenas como ofensa física. Sabia que se Fastolfe não tivesse meios, não poderia encorajar a colonização dos planetas habitáveis da Galáxia, poderia sofrer um profundo desapontamento - e isso podia ser "danoso" no universo telepático de Giskard. Ele não podia deixar que acontecesse e interveio.

      - Não, não, não - disse Amadiro, enojado. - Você quer que seja assim, por um desejo romântico, selvagem, mas isso não é bastante. Lembro muito bem o que aconteceu. Foi o Terráqueo. Não há necessidade de um robô telepata para explicar os acontecimentos.

      - E o que aconteceu depois, Kelden? - perguntou Vasilia. - Em vinte décadas, você foi capaz de derrotar Fastolfe? Com todos os fatos a seu favor, com o evidente fracasso da política de Fastolfe, você foi alguma vez capaz de dispor de maioria no Conselho? Você foi alguma vez capaz de influenciar o Presidente, de maneira a possuir realmente o poder?

      “Como explica isso, Kelden? Em todas estas vinte décadas, o Terráqueo não esteve em Aurora. Está morto há mais de dezesseis décadas, sua miserável vida curta desaparecendo em exatamente oito décadas. Contudo, você continuará a fracassar - você tem um imbatível campeonato de fracassos. Mesmo agora, com Fastolfe morto, você tratou de se aproveitar completamente dos fragmentos da coalizão ou acha que o sucesso ainda parece evitá-lo?”

      “O que resta? O Terráqueo morreu. Fastolfe também. Foi Giskard quem agiu contra você o tempo todo - e Giskard está aí. Ele é agora fiel à Solariana, como foi a Fastolfe, e não tem motivo para gostar de você, acho eu.”

      O rosto de Amadiro contorceu-se numa máscara de raiva e frustração.

      - Não é verdade. Nada disso é verdade. Você está vendo fantasmas. Vasilia permaneceu fria.

      - Não, não estou. Estou deixando as coisas claras. Esclareci coisas Que você não foi capaz de fazer. Ou você tem outra explicação? E posso dar-lhe a solução. Transfira a posse de Giskard da Solariana para mim e imediatamente os acontecimentos começarão a mudar em seu benefício.

      - Não - disse Amadiro. - Eles já estão mudando para o meu lado.

   - Você pensa que sim, mas não estão, enquanto Giskard estiver trabalhando contra você. Não importa quão perto você esteja da vitória, tudo isso desaparecerá se não tiver Giskard do seu lado. Aconteceu há vinte décadas e acontecerá novamente.

      O rosto de Amadiro subitamente iluminou-se.

      - Bem - disse ele - pense sobre isso: embora eu não tenha Giskard, nem você, isso não tem importância, pois posso provar-lhe que Giskard não é telepata. Se fosse, como você acha, se tivesse capacidade para decidir coisas a seu gosto ou ao gosto do ser humano que é seu dono, então por que teria permitido que levassem a Solariana para o que será provavelmente a sua morte?

      - Sua morte? De que está falando, Kelden?

      - Você sabe, Vasilia, que duas naves Colonizadoras foram destruídas em Solaria? Ou ultimamente você não fez outra coisa a não ser sonhar com modelos e com os dias heróicos da infância, quando estava modificando seu robozinho de brinquedo?

      - A ironia não lhe fica bem, Kelden. O noticiário falou sobre as naves Colonizadoras. E daí?

      - Uma terceira nave partiu para investigar. Pode também ser destruída.

      - É possível. Por outro lado, podem ter tomado precauções.

      - Tomaram. Solicitaram e conseguiram a presença da Solariana, sentindo que ela conhece bastante bem o planeta para evitar a destruição.

      - Isso é pouco provável - replicou Vasilia - uma vez que ela não esteve lá nas últimas vinte décadas.

      - É verdade! As possibilidades, portanto, são de que ela morra com eles. Isso nada significa para mim, pessoalmente. Eu ficaria encantado se ela morresse, e, acho, você também. Agora, pondo essa questão de lado, isso nos daria uma boa oportunidade de nos lamentarmos com os planetas Colonizadores e tornaria difícil para eles argumentar que a destruição das naves fora um ato deliberado da parte de Aurora. Iríamos destruir um dos nossos? Ora, Vasilia, o problema então se resume no seguinte: se Giskard tivesse os poderes - e a lealdade - que você afirma que ele tem, por que iria permitir que a Solariana aceitasse voluntariamente ser levada para o que seria muito provavelmente a sua morte?

      Vasilia ficou surpresa.

      - Ela foi por livre e espontânea vontade?

      - Completamente. Tinha plena consciência de tudo. Teria sido politicamente impossível forçá-la a fazer alguma coisa contra a vontade.

      - Mas eu não compreendo...

      - Nada há para compreender, a não ser que Giskard é um robô e nada mais.

      Durante um momento, Vasilia ficou imóvel na cadeira, com a mão no queixo. Depois disse, lentamente:

      - Eles não permitem robôs nos planetas dos Colonizadores ou em suas naves. Isso quer dizer que ela foi só. Sem robôs.

      - Ora, não, claro que não. Tiveram de aceitar os seus robôs pessoais, já que pretendiam que ela fosse espontaneamente. Levaram aquele robô imitando homem, Daneel, e o outro - fez uma pausa e pronunciou a palavra com um sibilo - Giskard. Quem mais? Assim, esse robô milagroso da sua fantasia está também a caminho da sua destruição. Ele não pode mais...

      Sua voz morreu. Vasilia estava em pé, os olhos brilhando, ruborizada.

      - Quer dizer que Giskard foi? Ele não está mais neste planeta e sim numa nave Colonizadora? Kelden, você talvez tenha nos arruinado a todos!

      Não terminaram a refeição.

      Vasilia saiu apressadamente da sala de jantar e desapareceu no banheiro. Amadiro, lutando para se manter friamente lógico, gritou-lhe pela porta fechada, sabendo perfeitamente que isso arranhava sua dignidade.

      - Todo esse esforço é uma indicação de que Giskard não passa de um robô. Por que iria ele concordar em ir a Solaria para enfrentar a destruição com sua proprietária?

      Finalmente, o barulho de água corrente respingando cessou e Vasilia surgiu, com o rosto recém-lavado e quase gelado.

      - Você realmente não compreende, não é? - disse ela. - Você me espanta, Kelden. Procure pensar. Giskard nunca estará em perigo enquanto puder influenciar mentes humanas. Nem a Solariana, enquanto Giskard estiver devotado a ela. O Colonizador que a leva deve ter descoberto, interrogando-a, que ela está longe de Solaria há vinte décadas e por isso não pode ter realmente continuado a acreditar, depois disso, que ela lhe pudesse ser de muita utilidade. Levou também Giskard, mas sem saber que o robô lhe podia ser útil. Ou saberia que podia?

      Ela pensou um pouco e então respondeu, em voz pausada:

      - Não, ele não podia ter sabido. Se, em mais de vinte décadas, ninguém soube que Giskard tem habilidades mentais, então Giskard está evidentemente interessado em que ninguém adivinhe - e se é assim, então ninguém possivelmente descobriu.

      Amadiro disse, com raiva:

      - Você tem a pretensão de ter sido a autora.

      - Eu tinha um conhecimento especial, Kelden - respondeu ela - mas agora foi que o óbvio me saltou aos olhos - e depois, com a alusão a Solaria. Giskard deve ter obscurecido minha mente a esse respeito também ou eu teria visto muito antes. Fico imaginando se Fastolfe sabia...

      - Seria muito mais fácil - replicou Amadiro, impaciente - aceitar o simples fato de que Giskard não passa de um robô.

      - Você palmilharia a estrada fácil da ruína, Kelden, mas acho que não Vou deixá-lo fazer isso, por mais que você queira. A questão é que o Colonizador veio procurar a Solariana e levou-a, apesar de ter descoberto que ela seria de pouca - ou nenhuma - utilidade para ele. E a Solariana concordou em ir voluntariamente, apesar de temer estar numa nave junto com bárbaros infectos - e apesar de sua destruição em Solaria poder ter lhe parecido uma conseqüência muito provável.

      “Parece-me, portanto, que tudo isso foi trabalho de Giskard, que obrigou o Colonizador a continuar a exigir a Solariana sem motivo, forçando-a a concordar com essa desarrazoada imposição.”

      Amadiro perguntou:

      - Mas por quê? Posso fazer esta simples pergunta? Por quê?

      - Suponho, Kelden, que Giskard sentiu ser importante afastar-se de Aurora. Poderia ter imaginado que eu estava na iminência de descobrir seu segredo? Em caso afirmativo, poderia estar em dúvida quanto à sua atual capacidade de lidar comigo. Afinal de contas, sou uma competente roboticista. Além disso, ele podia lembrar que fui antes sua proprietária, e um robô não pode facilmente ignorar as exigências da lealdade. Talvez ele tenha considerado que a única maneira de manter a Solariana segura era fugir ele próprio da minha influência.

      Ergueu os olhos para Amadiro e disse, com firmeza:

      - Kelden, precisamos trazê-lo de volta. Não podemos deixá-lo defendendo a causa dos Colonizadores, ao abrigo seguro de um planeta Colonizador. Ele ja fez muitos estragos aqui entre nós. Precisamos trazê-lo, e você precisa me fazer sua proprietária legal. Garanto-lhe que posso controlá-lo e fazê-lo trabalhar para nós. Lembre! Sou a única pessoa que pode lidar com ele.

      - Não vejo nenhum motivo de preocupação - replicou Amadiro. - No caso muito provável de que ele não passe de um robô, será destruído em Solaria e ambos ficaremos livres dele e da Solariana. No caso improvável de que ele seja o que você diz que ele é, não será destruído em Solaria e então terá de retornar a Aurora. Afinal de contas, a Solariana, embora não seja Auroreana de nascimento, viveu tanto tempo em Aurora que não suportará a vida entre bárbaros - e quando insistir em voltar à civilização, Giskard não terá alternativa a não ser voltar com ela.

      - Após tudo isso, Kelden, você continua a não compreender a capacidade de Giskard - insistiu Vasilia. - Se ele considera importante permanecer longe de Aurora, pode facilmente ajustar as emoções da Solariana de maneira a fazê-la instalar-se num planeta Colonizador, da mesma forma que a convenceu a embarcar numa nave deles.

      - Bem, nesse caso, se necessário, podemos simplesmente escoltar essa nave - com a Solariana e Giskard - de volta a Aurora.

      - Como propõe fazer isso?

      - Pode ser feito. Não somos idiotas aqui em Aurora, apesar de sua aparente opinião de que é o único ser racional no planeta. A nave Colonizadora está indo para Solaria a fim de investigar a destruição das duas naves anteriores, mas espero que você não pense que pretendemos depender de seus bons ofícios ou mesmo dos da Solariana. Estamos enviando uma das nossas belonaves a Solaria e não esperamos que ela se meta em encrencas. Se ainda houver Solarianos lá, podem ser capazes de destruir aquelas naves primitivas deles, mas não de atingir uma belonave Auroreana. Se, porém, a nave Colonizadora, por qualquer motivo, for capaz de decolar da superfície de Solaria, nossa nave a impedirá e polidamente pedirá a entrega da Solariana e dos seus dois robôs. Isso falhando, insistiremos para que a nave Colonizadora acompanhe a nossa a Aurora. Tudo isso sem agressividade. Nossa nave estará apenas escoltando uma nativa Auroreana até sua terra natal. Tão logo a Solariana e seus dois robôs desembarquem em Aurora, a nave Colonizadora poderá prosseguir à vontade para seu próprio destino.

      Vasilia balançou a cabeça, fatigada, ao ouvir isto.

      - Parece ótimo, Kelden, mas sabe o que eu desconfio que vai acontecer?

      - O quê?

      - Acho que a nave Colonizadora decolará da superfície de Solaria, mas a nossa belonave não. O que existir em Solaria pode ser levado em conta por Giskard, mas, temo, por ninguém mais.

      - Se isso acontecer - replicou Amadiro com um sorriso frio - então admitirei que possa haver alguma coisa, afinal de contas, na sua fantasia... Mas não acontecerá.

     

      Na manhã seguinte, o chefe dos robôs pessoais de Vasilia, delicadamente construído para parecer feminino, aproximou-se do leito de Vasilia. Esta mexeu-se e, sem abrir os olhos, disse:

      - O que é, Nadila?

      (Não havia necessidade de abrir os olhos. Em muitas décadas, ninguém jamais se aproximara de sua cama, a não ser Nadila.) A robô disse, em voz suave:

      - Senhora, a senhora é esperada no Instituto pelo Dr. Amadiro.

      Os olhos de Vasilia se abriram.

      - Que horas são?

      - São 5:17, senhora.

      - Antes do amanhecer? - perguntou ela, indignada.

      - Sim, senhora.

      - Quando ele quer me ver?

   - Agora, senhora.

      - Porquê?

      - Seus robôs não nos informaram, mas disseram que era importante.

      Vasilia atirou fora os lençóis.

      - Primeiro tomarei o café da manhã, Nadila, e antes um banho. Diga aos robôs de Amadiro que ocupem os nichos de visitantes e esperem. Se eles insistirem na urgência, lembre-lhes que estão em minha residência.

      Vasilia, aborrecida, não teve pressa. De propósito, sua arrumação foi mais esmerada que a usual e seu café da manhã mais demorado (comumente, ela não gastava muito tempo com ambos). O noticiário, que ela acompanhava, não lhe deu indicação de alguma coisa que explicasse a chamada de Amadiro.

      A essa altura, o carro terrestre (com ela e quatro robôs - dois de Amadiro e dois dela) tinha chegado ao Instituto e o sol começava a surgir no horizonte.

      Amadiro olhou-a e disse:

      - Enfim você chegou.

      As paredes do seu escritório ainda estavam brilhando, apesar de sua luz não ser mais necessária.

      - Desculpe - disse Vasilia, seca. - Sei muito bem que o amanhecer já é uma hora terrivelmente tardia para começar a trabalhar.

      - Por favor, pare de brincadeiras, Vasilia. Tenho de estar muito cedo na sala do Conselho. O Presidente acordou tão cedo quanto eu. Peço-lhe humildemente desculpas por ter duvidado de você.

      - Quer dizer que a nave Colonizadora decolou a salvo?

      - Sim. E nossa nave foi destruída, como você previu. O fato ainda não foi divulgado, mas, claro, as notícias acabarão vazando.

      Os olhos de Vasilia arregalaram-se. Ela previra esse desenlace com mais confiança do que tinha sentido, mas evidentemente aquela não era a hora de admiti-lo. Retrucou apenas:

      - Então você aceita o fato de que Giskard tem poderes extraordinários.

      Cautelosamente, Amadiro replicou:

      - Não considero o assunto matematicamente provado, mas estou disposto a aceitá-lo, dependendo de mais informações. O que eu quero saber é o que devemos fazer a seguir. O Conselho não sabe da existência de Giskard e não estou disposto a lhes contar.

      - Fico contente por seu pensamento estar tão claro, Kelden.

      - Mas você é a única pessoa que entende Giskard e pode dizer melhor o que deve ser feito. O que devo, então, dizer ao Conselho e como devo explicar a ação sem revelar toda a verdade?

      - Depende. Agora, que partiu de Solaria, a nave Colonizadora está indo para onde? Nós sabemos? Afinal de contas, se ela estiver voltando para Aurora, não precisamos fazer nada a não ser nos prepararmos para sua chegada.

      - Não está vindo para Aurora - retrucou Amadiro energicamente, parece que nisso você também tinha razão. Giskard - considerando ser condutor do espetáculo - parece determinado a se manter afastado, interceptamos as mensagens da nave para seu próprio planeta. Codificadas, claro, porém não num código Colonizador que tenhamos decifrado... " - Desconfio que eles tenham decifrado os nossos também. Não compreendo por que todos não concordam em enviar mensagens claras, cortando assim um montão de trabalho.

      Amadiro não fez comentário.

      - Não importa. O fato é que a nave Colonizadora está voltando para o seu próprio planeta.

      - Com a Solariana e os robôs?

      - Exatamente.

      - Tem certeza? Não foram deixados em Solaria?

      - Temos certeza - reafirmou Amadiro, com impaciência. - Evidentemente, a Solariana foi responsável pela retirada.

      - Ela? Como?

      - Ainda não sabemos.

      - Deve ter sido Giskard - afirmou Vasilia. - Fez com que parecesse a Solariana.

      - E o que devemos fazer agora?

      - Precisamos ter Giskard de volta.

      - Sim, mas não tenho como convencer facilmente o Conselho a arriscar uma crise interestelar exigindo a volta de um robô.

      - Não será preciso. Você pede a volta da Solariana, coisa que, evidentemente, temos o direito de pedir. Você pensa por um momento que ela voltará sem seus robôs? Ou que Giskard permitirá que ela volte sem ele? Ou que o planeta Colonizador quererá conservar os robôs se ela voltar? Peça a volta dela. Com firmeza. Ela é cidadã Auroreana, cedida para um trabalho em Solaria, já feito, e precisa agora voltar imediatamente. Faça-o agressivamente, como se houvesse uma ameaça de guerra.

      - Não podemos correr o risco de uma guerra, Vasilia.

      - Não correrá esse risco. Giskard não pode agir de forma a provocar diretamente a guerra. Se os chefes Colonizadores resistirem e se tornarem agressivos, Giskard forçosamente fará as modificações necessárias na atitude deles, de forma a fazer com que devolvam a Solariana pacificamente a Aurora. E ele próprio quererá, claro, voltar com ela.

      Amadiro disse, secamente:

      - E uma vez de volta, ele vai querer nos modificar, suponho, e esqueceremos seus poderes, não lhe prestaremos atenção, e ele continuará impondo a seguir seu próprio plano, seja ele qual for.

      Vasilia atirou a cabeça para trás e riu.

      - Nada disso. Conheço Giskard e posso lidar com ele. Basta que o traga de volta e convença o Conselho a desprezar o testamento de Fastolfe, pode ser feito e você pode fazê-lo, e entregar-me Giskard. Ele irá, então, trabalhar para nós, Aurora governará a Galáxia, você passará as décadas restantes de sua vida como Presidente do Conselho e eu o sucederei na chefia do Instituto de Robótica.

      - Você tem certeza de que isso dará certo?

      - Totalmente. Mande a mensagem, enérgica, e garantirei o resto - vitória para os Espaciais e para nós, a derrota da Terra e dos Colonizadores.

     

      O Duelo

      Gladia olhou o globo de Aurora na tela. Sua camada de nuvens parecia presa num semitorvelinho ao longo do espesso crescente que brilhava na luz do seu sol.

      - Evidentemente, não estamos tão perto assim - comentou Gladia.

      D. G. sorriu.

      - De forma alguma. Nós o estamos vendo através de lentes muito boas. Ainda está a muitos dias de distância, levando em conta a aproximação em espiral. Se algum dia conseguirmos um impulso antigravidade, com o qual os físicos continuam sonhando, ao que parece em vão, o vôo espacial se tornará realmente simples e rápido. Como é atualmente, nossos Saltos podem apenas nos levar a salvo a uma distância relativamente boa de uma massa planetária.

      - É estranho - comentou, Gladia, pensativa.

      - O que é estranho senhora?

      - Quando chegamos a Solaria, pensei comigo mesma: "Estou vindo para casa", mas quando pousei, descobri que não estava absolutamente em casa. Agora, estamos indo para Aurora e pensei: "Agora estou indo para casa", e contudo... esse planeta lá embaixo também não é o meu lar.

      - Onde fica o seu lar então, senhora?

      - É o que estou começando a imaginar. Mas por que você insiste em me chamar "senhora"?

      D. G. pareceu surpreso.

      - Prefere "Lady Gladia", Lady Gladia?

      - Isso também é um falso respeito. É assim que sente em relação a mim?

      - Falso respeito? Claro que não. Mas de que outra forma deve um Colonizador se dirigir a uma Espacial? Estou tentando ser bem-educado e seguindo seus costumes - fazer com que se sinta confortável.

   - Mas isso não me torna confortável. Me chame de Gladia. Já lhe sugeri isso antes. Afinal de contas, eu o chamo "D. G."

      - E isso para mim está ótimo, embora diante dos meus oficiais e soldados eu prefira que se dirija a mim como comandante, e eu a chamarei "senhora". A disciplina precisa ser preservada.

      - Sim, claro - replicou Gladia, distraída, tornando a fixar o olhar em Aurora. - Eu não tenho lar. - Virou-se para D. G. - Estava falando sério quando disse que ia me levar para a Terra, D. G.?

      - Mais ou menos - respondeu D. G., sorrindo. - Você pode querer não ir... Gladia.

      - Acho que quero - afirmou Gladia - a menos que perca a coragem.

      - A infecção existe - falou D. G. - e é isso o que os Espaciais temem, não é?

      - Talvez até demais. Afinal de contas, conheci seu Antepassado e não fui infectada. Subi nesta nave e sobrevivi. Olhe, você está ao meu lado agora. Estive no seu planeta, com milhares de pessoas se amontoando em torno em mim. Acho que criei uma certa resistência.

      - Devo dizer-lhe, Gladia, que a Terra é milhares de vezes mais habitada que Baleyworld.

      - Mesmo assim - disse Gladia, e sua voz era calorosa - mudei de idéia completamente - sobre muitas coisas. Eu lhe disse que não havia mais nada para viver após vinte e três décadas, mas há. O que me aconteceu em Baleyworld - o discurso que fiz, como comoveu as pessoas - foi uma coisa nova, uma coisa que eu nunca imaginei. Foi como ter nascido outra vez, partindo novamente, da primeira década. Parece-me agora que, mesmo que a Terra me mate, valerá a pena, pois eu morrerei jovem e tentando lutar contra a morte, e não velha e gasta, recebendo-a com prazer.

      - Ótimo! - disse D. G., erguendo os braços, num gesto de heróica zombaria - você fala como uma hiperonda histórica. Já as viu em Aurora?

      - Claro. São muito populares lá.

      - Você estava ensaiando para uma, Gladia, ou queria realmente dizer aquilo?

      Gladia riu.

      - Suponho que pareci um tanto boba, D. G., mas o gozado é que eu quis dizer aquilo - se não me faltasse a coragem.

      - Nesse caso, nós o faremos. Iremos à Terra. Não acho que eles considerem que você valha uma guerra, especialmente se fizer o seu relatório completo sobre os acontecimentos em Solaria, como eles esperam, e se der sua palavra de honra como Espacial ao voltar.

      - Mas eu não quero voltar.

      - Mas vai querer um dia. E agora, minha senhora - quero dizer, Gladia - é um prazer conversar com você, mas estou sempre tentado a passar tempo demais nisso e tenho certeza de que estou sendo necessitado na cabine de comando. Se eu não estiver lá e eles puderem trabalhar sem mim, é muito provável que não sintam a minha falta.

     

      - Que está fazendo, amigo Giskard?

      - De que você está falando, amigo Daneel?

      - Lady Gladia está ansiosa para ir à Terra e talvez não voltar. É um desejo tão contraditório para uma Espacial igual a ela, que nem quer que eu a ajude, mas suspeito que você influenciou sua mente, fazendo-a sentir-se assim.

      Giskard retrucou:

      - Não toquei nela. É bastante difícil lidar com qualquer ser humano dentro das limitações das Três Leis. Forçar a mente de um indivíduo por cuja segurança somos diretamente responsáveis é ainda mais difícil.

      - Então por que ela deseja ir à Terra?

      - Suas experiências em Baleyworld devem ter mudado consideravelmente seu ponto de vista. Ela tem uma missão - a de garantir a paz na galáxia - e anseia por trabalhar nela.

      - Nesse caso, amigo Giskard, você vai fazer o que puder para convencer o comandante, à sua maneira, a ir a Terra diretamente?

      - Isso criaria dificuldades. As autoridades Auroreanas insistem tanto na volta de Lady Gladia a Aurora, que será melhor atendê-las, pelo menos temporariamente.

      - Contudo, pode ser perigoso - disse Daneel.

      - Então você ainda pensa, amigo Daneel, que é a mim que eles querem reter, por terem descoberto minha capacidade?

      - Não vejo outro motivo para a insistência na volta de Lady Gladia.

      - Pensar como ser humano tem suas ciladas, pelo visto - retrucou Giskard. - Torna possível imaginar dificuldades que não existem. Mesmo que alguém em Aurora venha a desconfiar da existência de minhas habilidades, é com elas que eu irei afastar as suspeitas. Não há nada a temer, amigo Daneel.

      Daneel replicou, de má vontade:

      - Como queira, amigo Giskard.

     

      Gladia olhou em volta, pensativa, dispensando os robôs com um gesto descuidado de mão.

      Ao fazê-lo, olhou para a mão, quase como se a estivesse vendo pela primeira vez. Era a mão com a qual tinha apertado a de cada tripulante da  nave, antes de entrar na pequena nave auxiliar que a levou com D. G. Aurora. Quando ela prometeu voltar, eles viraram e Niss berrou:

      - Não partiremos sem a senhora, senhora.

      A saudação agradou-a enormemente. Seus robôs a serviam sem cessar, lealmente, pacientemente, mas nunca a ovacionaram. D. G., olhando-a com curiosidade, disse:

      - Sem dúvida agora você está em casa, Gladia.

      - Estou em minha residência - replicou em voz baixa. - Tem sido minha residência desde que o Dr. Fastolfe designou-a para mim há vinte décadas, e apesar disso ainda me parece estranha.

      - É estranha para mim - disse D. G. - Eu me sentirei um tanto perdido aqui sozinho.

      Olhou em volta, esboçando um sorriso diante dos móveis enfeitados e das paredes laboriosamente decoradas.

      - Você não estará só, D. G. - disse Gladia. - Meus robôs domésticos estarão com você, e devidamente instruídos. Se devotarão ao seu conforto.

      - Eles entenderão meu sotaque Colonizador?

      - Se não compreenderem, lhe pedirão que repita e você então terá de falar lentamente, acompanhado de gestos. Eles prepararão sua alimentação, lhe mostrarão como usar as coisas do quarto de hóspedes e também ficarão de olho em você, para assegurar que não agirá de forma inconveniente. Eles o interromperão - se necessário - porém o farão sem magoá-lo.

      - Confio em que eles não me considerarão inumano.

      - Como a supervisora? Não, garanto-lhe, D. G., embora sua barba e sotaque possam confundi-los ao ponto de levarem um ou dois segundos para reagir.

      - E suponho que me protegerão contra intrusos?

      - Claro, mas não haverá intrusos.

      - O Conselho pode querer vir me pegar.

      - Nesse caso mandarão robôs e os meus os expulsarão.

      - E se os robôs deles dominarem os seus?

      - Isso é impossível, D. G. Uma residência é inviolável.

      - Ora, Gladia, você quer dizer que ninguém jamais...

      - Ninguém jamais! - replicou ela, imediatamente. - Você ficará confortavelmente instalado aqui e meus robôs atenderão às suas necessidades. Se quiser entrar em contato com sua nave, com Baleyworld, ou até mesmo com o Conselho de Aurora, eles sabem exatamente o que fazer. Você não precisa erguer um dedo.

      D. G. afundou na poltrona mais próxima, estirou-se nela e soltou um profundo suspiro.

      - Como somos sábios por não permitir robôs nos planetas Colonizadores. Sabe quanto tempo eu levaria para me corromper na preguiça e na indolência nessa espécie de sociedade? Cinco minutos, no máximo. De fato, já estou corrompido. - Bocejou e espreguiçou-se voluptuosamente. - Eles se importarão se eu dormir?

      - Claro que não. Se dormir, os robôs providenciarão para que o ambiente fique silencioso e escuro.

      Então D. G. endireitou-se subitamente.

      - E se você não voltar?

      - Por que eu não voltaria?

      - O Conselho parece querer você com uma certa urgência.

      - Eles não podem me reter. Sou uma cidadã Auroreana livre e vou aonde quiser.

      - Há sempre uma situação crítica se um governo deseja provocá-la e numa situação dessas as regras podem sempre ser quebradas.

      - Bobagem. Giskard, eu vou ser mantida aqui?

      - Senhora Gladia - respondeu Giskard - a senhora não será mantida aqui. O comandante não precisa ficar preocupado com isso.

      - Pronto, D. G. E seu antepassado, na última vez em que me viu, me disse que eu devia sempre confiar em Giskard.

      - Ótimo! Excelente! Apesar disso, o motivo que me fez vir com você, Gladia, foi garantir a sua volta. Lembre-se disso e transmita ao Dr. Ámadiro, se for preciso. Se ele tentar conservá-la contra sua vontade, terá de fazer o mesmo comigo - com minha nave, que está em órbita e é perfeitamente capaz de reagir a isso.

      - Não, por favor - disse Gladia, transtornada. - Não pense em fazer tal coisa. Aurora também tem naves e tenho certeza de que a sua está sob vigilância.

      - Há uma diferença, porém Gladia. Duvido muito que Aurora queira iniciar uma guerra por sua causa. Baleyworld, por sua vez, está preparado para isso.

      - Certamente não. Eu não quereria que eles declarassem guerra por minha causa. E, afinal de contas, por que o fariam? Porque fui amiga do seu antepassado?

      - Não exatamente. Não acho que alguém possa mesmo acreditar que você seja essa amiga. Talvez sua bisavó, mas você não. Eu próprio não acredito que seja você.

      - Você sabe que sou eu.

      - Intelectualmente, sim. Emocionalmente, acho impossível. Isso foi há vinte décadas.

      Gladia balançou a cabeça.

      - Você tem o raciocínio de gente de vida curta.

      - Talvez todos tenhamos, mas não importa. O que a torna importante para Baleyworld é o discurso que fez. Você é uma heroína e precisa ser apresentada à Terra. Nada pode evitar isso.

      Gladia perguntou, um tanto assustada:

      - Apresentada à Terra? Com uma cerimônia solene?

   - Soleníssima.

      - Por que isso pode ser considerado tão importante a ponto de justificar uma guerra?

      - Não sei se conseguirei explicar isso a um Espacial. A Terra é um planeta especial... um mundo sagrado. É o único mundo real. É onde os seres humanos se formam, o único onde evoluem, se desenvolvem e vivem ao lado de um complexo cenário de vida. Temos árvores e insetos em Baleyworld - mas na Terra eles têm uma brutal desordem de árvores e insetos que nenhum de nós jamais viu a não ser lá. Nossos planetas são imitações, pálidas imitações. Eles não existem, não podem existir, a não ser pelo esforço intelectual, cultural e espiritual que arrancam da Terra.

      - Essa é uma opinião exatamente oposta à que os Espaciais têm da Terra - disse Gladia. - Quando nos referimos a ela, coisa que raramente fazemos, é como um planeta bárbaro e em decadência.

      D. G. ficou ruborizado.

      - É por isso que os planetas Espaciais se tornam cada vez mais fracos. Vocês são como plantas que se soltaram de suas raízes, como animais que extirparam seus corações.

      - Bem - replicou Gladia - espero a oportunidade de ver a Terra pessoalmente, mas agora tenho que ir. Por favor, considere-se dono da casa até a minha volta. - Caminhou rapidamente para a porta, parou e voltou-se. - Nesta casa não há bebidas alcoólicas, o mesmo acontecendo em todo o planeta, não há fumo, estimulantes alcalóides, nada dessas coisas artificiais - ou o que quer que possa usar.

      D. G. riu, aborrecido.

      - Nós, Colonizadores, sabemos disso. Seu povo é muito puritano.

      - Não se trata disso - respondeu Gladia, franzindo o cenho. - De trinta a quarenta décadas de vida devem ser pagas - e este é um dos meios. Você não imagina que façamos isso por mágica, não é?

      - Bem, eu me contentarei com esses saudáveis sucos de frutas e esse café imaculadamente puro - e cheirarei flores.

      - Aqui você encontrará um enorme suprimento dessas coisas - informou Gladia, friamente - e quando voltar para sua nave, tenho certeza de que poderá compensar os sintomas pela supressão dos seus vícios.

      - Irei sofrer unicamente com sua ausência, minha senhora - disse D. G., sério.

      Gladia viu-se obrigada a sorrir.

      - Você é um mentiroso incorrigível, meu comandante. Voltarei... Daneel... Giskard.

     

      Gladia sentou-se, empertigada, no escritório de Amadiro. Durante muitas décadas, vira Amadiro apenas à distância ou pela tela do visor - e nessas ocasiões ela fizera do alheamento uma prática. Lembrava dele apenas como grande inimigo de Fastolfe, e agora que se encontrava pela primeira vez na mesma sala com ele - num encontro cara a cara - tinha de manter o rosto sem expressão, para evitar que o ódio transparecesse.

      Apesar de serem as únicas presenças palpáveis na sala, havia pelo menos uma dúzia de altos funcionários presentes - o próprio Presidente presentes - através de raios de holovisão. Gladia reconheceu o Presidente e alguns outros, mas não todos.

      Foi uma experiência bem horrível. Assemelhava-se à observação que era universal de Solaria e à qual tinha se acostumado como moça - e da qual se lembrava com nojo.

      Fez um esforço para falar claramente, sem dramaticidade e com concisão. Quando respondia a uma pergunta, era tão breve como consistente, com clareza, e tão evasiva como consistente, com educação.

      O Presidente ouvia impassível e os outros se guiavam por ele. Ele era nitidamente mais velho - uma praxe em Aurora, pois era habitualmente tarde na vida que atingiam essa posição. Tinha o rosto comprido, a cabeleira ainda espessa e sobrancelhas salientes. Sua voz era melíflua, mas em nada amistosa.

      Quando Gladia terminou, ele disse:

      - Então a senhora sugere que os Solarianos tornaram a definir o "ser humano" de uma forma tão limitada a ponto de reduzi-lo a Solariano.

      - Não sugiro nada, Sr. Presidente. Simplesmente, ninguém é capaz de ter outra explicação para os acontecimentos.

      - A senhora sabe que, em toda a história da ciência robótica, nenhum robô jamais foi projetado com a estreita definição de "ser humano"?

      - Não sou roboticista, Sr. Presidente, e nada sei da matemática dos positrônicos. Uma vez que o senhor diz que isso jamais aconteceu, eu aceito, claro. Contudo, baseada em meu próprio conhecimento, não sei dizer se o fato de nunca ter acontecido significa que nunca poderá acontecer.

      Seus olhos jamais tinham parecido ser tão grandes e inocentes como estavam naquele instante, o Presidente corou e disse:

      - Não é teoricamente impossível restringir a definição, porém é improvável.

      Com um olhar triste para as mãos, que estavam cruzadas em seu colo, Gladia respondeu:

      - Às vezes as pessoas podem pensar esse tipo de coisa.

      O Presidente mudou de assunto e disse:

      - Uma nave Auroreana foi destruída. Como acha que aconteceu?

      - Eu não estava presente no local do incidente, Sr. Presidente. Não tenho idéia do que aconteceu e por isso não posso dar opinião.

      - A senhora estava em Solaria e é nativa daquele planeta. Dada sua recente experiência, o que poderia ter acontecido?

   O Presidente estava dando sinais de uma paciência mal contida.

      - Se eu posso imaginar - retorquiu Gladia - diria que nossa belonave foi explodida por um intensificador nuclear portátil semelhante ao que quase foi usado na nave Colonizadora.

      - Estranho que não lhe tenha chamado a atenção o fato de que os dois casos são diferentes. Num, uma nave Colonizadora invadiu Solaria para confiscar robôs Solarianos, no outro, uma belonave Auroreana foi a Solaria para ajudar a proteger um planeta irmão.

      - Eu só posso supor, Sr. Presidente, que os supervisores - os robôs humanóides deixados para vigiar o planeta - foram insuficientemente instruídos para saber a diferença.

      O Presidente mostrou-se ofendido.

      - É inconcebível que eles não tenham sido bem instruídos sobre a diferença entre Colonizadores e os nossos companheiros Espaciais.

      - Essa pode ser a sua opinião, Sr. Presidente. Não obstante, se a única definição de um ser humano é alguém com sua aparência física e com a capacidade de falar da maneira Solariana - como pareceu a nós, que estávamos no local, que devia ser - então os Auroreanos, que não falam dessa maneira, podiam não se enquadrar sob o título de seres humanos onde os supervisores estavam ocupados.

      - A senhora está dizendo então que os Solarianos definem seus companheiros Espaciais como não-humanos e os submetem à destruição.

      - Apresento isso como uma mera possibilidade, porque não posso pensar em nenhuma outra forma de explicar a destruição de uma belonave Auroreana. Gente mais experiente pode ser capaz de apresentar explicações diferentes, com certeza.

      Novamente aquele olhar inocente, quase vazio.

      - A senhora está pretendendo voltar a Solaria, Senhora Gladia? - perguntou o Presidente.

      - Não, Sr. Presidente, não estou.

      - Foi convidada a isso pelo seu amigo Colonizador, com o objetivo de limpar o planeta dos seus supervisores?

      Gladia balançou lentamente a cabeça.

      - Não houve esse convite. Se tivesse havido, eu teria recusado. Nem fui a Solaria, para começar, por nenhum motivo que não fosse cumprir meu dever com Aurora. Fui convidada a ir a Solaria pelo Dr. Levular Mandamus, do Instituto de Robótica, trabalhando sob as ordens do Dr. Kelden Amadiro. Fui convidada a ir para, na minha volta, relatar os acontecimentos, o que acabo de fazer. O convite teve, aos meus ouvidos e entendimentos, o sabor de uma ordem, recebida - olhou rapidamente para Amadiro - do próprio Dr. Amadiro.

      Amadiro não teve nenhuma reação visível. O Presidente perguntou:

      - Quais são, então, seus planos futuros?

      Gladia esperou um momento ou dois, depois resolveu que podia enfrentar a situação corajosamente.

      - Tenho a intenção, Sr. Presidente - disse Gladia, falando com total clareza - de visitar a Terra.

      - A Terra? Por que desejaria visitar a Terra?

      - Pode ser importante, Sr. Presidente, para as autoridades Auroreanas, saber o que está acontecendo na Terra. Uma vez que fui convidada pelas autoridades de Baleyworld, e o Comandante Baley está pronto a me levar, será uma oportunidade de trazer um relatório dos acontecimentos, como acabo de fazer em relação a Solaria e Baleyworld.

      Ora, pensou Gladia, irá ele violar o costume e, efetivamente, aprisionar-me em Aurora? Se for assim, deve haver meios de desafiar a decisão.

      Gladia sentiu sua tensão crescer e atirou um rápido olhar na direção de Daneel, que, é claro, parecia totalmente impassível.

      Contudo, o Presidente, parecendo zangado, disse:

      - A esse respeito, Senhora Gladia, a senhora, como Auroreana, tem o direito de fazer o que desejar, mas sob sua responsabilidade. Ninguém lhe está pedindo isso, como, segundo a senhora, aconteceu quando de sua visita a Solaria. Por esse motivo, devo avisá-la de que Aurora não se sente obrigado a socorrê-la em caso de alguma complicação.

      - Compreendo perfeitamente, senhor.

      O Presidente disse, asperamente:

      - Temos muito o que discutir a respeito, mais tarde, Amadiro. Estarei em contato com você.

      As imagens apagaram-se e Gladia ficou, com seus robôs, subitamente só com Amadiro e os dele.

      Gladia levantou-se e disse, de modo frio, evitando cuidadosamente encarar Amadiro:

      - Presumo que a reunião está terminada e por isso vou embora.

      - Sim, é claro, porém tenho uma pergunta ou duas, que espero não se recuse a responder. - Seu porte alto parecia dominar quando ele se levantou e sorriu, dirigindo-se a ela com toda a cortesia, como se houvesse uma velha amizade entre ambos. - Permita-me que a acompanhe, Lady Gladia. Então está indo à Terra?

      - Sim. O Presidente não se opôs, e um cidadão Auroreano pode viajar livremente pela galáxia em tempo de paz. E, desculpe-me, mas meus robôs e os seus, se necessário - serão acompanhamento suficiente.

      - Como queira, minha senhora. - Um robô manteve a porta aberta Para eles. - Presumo que levará robôs com a senhora em sua viagem para a Terra.

   - Sem dúvida nenhuma.

      - Que robôs, senhora, se posso perguntar?

      - Estes dois. Os meus dois robôs.

      Seus sapatos estalaram com firmeza no corredor, enquanto ela andava rapidamente de costas para Amadiro, sem fazer o menor esforço para ver se ele a ouvira.

      - Isso é prudente, minha senhora? Eles são robôs superiores, produtos de escol do grande Dr. Fastolfe. A senhora estará cercada de Terráqueos bárbaros, que poderão cobiçá-los.

      - Por mais que os cobiçassem, não os conseguiriam.

      - Não subestime o perigo, nem superestime a proteção robótica. A senhora ficará em uma das suas cidades, cercada de dezenas de milhões desses Terráqueos, e robôs não podem ferir seres humanos. De fato, quanto mais avançado um robô, mais sensitivo ele é às nuanças das Três Leis e provavelmente menos capaz de uma ação que atinja um ser humano de qualquer modo. Não é, Daneel?

      - Sim, Dr. Amadiro - respondeu Daneel.

      - Imagino que Giskard concorda com você.

      - Concordo - retrucou Giskard.

      - Está vendo, minha senhora? Aqui em Aurora, numa sociedade não-violenta, seus robôs podem protegê-la contra outros. Na Terra - louca, decadente, bárbara - não haverá meio de dois robôs protegerem-na ou a eles próprios. Não queremos que seja maltratada. Nem, para colocar o assunto em bases mais egoístas, queremos, nós do Instituto e do governo, ter a preocupação de ver robôs avançados nas mãos de bárbaros. Não seria melhor levar robôs de tipo mais comum, que os Terráqueos ignorem? A senhora poderia levar maior quantidade neste caso. Uma dúzia, se desejasse.

      - Dr. Amadiro - respondeu Gladia - levei esses dois robôs numa nave Colonizadora para visitar um planeta dos Colonizadores. Ninguém fez um gesto para se apossar deles.

      - Os Colonizadores não usam robôs e afirmam desaprová-los. Na Terra, porém, ainda usam robôs.

      - Se me permite, Dr. Amadiro... - interveio Daneel - fui informado de que os robôs foram retirados de circulação na Terra. Há pouquíssimos nas cidades. Quase todos os robôs na Terra são agora usados na agricultura ou na mineração. Para o resto, a norma é a automação não-robótica.

      Amadiro olhou rapidamente Daneel e depois disse a Gladia:

      - Daneel provavelmente tem razão e suponho não haver problema em levá-lo. Aliás, ele pode perfeitamente passar por humano. Giskard, porém, pode muito bem ser deixado na sua residência. Ele seria capaz de despertar os instintos aquisitivos de uma sociedade aquisitiva - mesmo que seja verdade que eles estejam tentando se livrar de robôs.

      - Nenhum será deixado, senhor - replicou ela. - Eles irão comigo. EU sou a única capaz de julgar que parte da minha propriedade pode ou não me acompanhar.

      - Claro. - Amadiro sorriu da forma mais amigável. - Ninguém contesta isso. Quer esperar aqui?

      Abriu-se outra porta, mostrando uma sala mais confortavelmente mobiliada. Não tinha janelas, porém estava iluminada por uma luz suave e difusa, com música agradável.

      Gladia parou na entrada e perguntou asperamente:

      - O que significa isso?

      - Um membro do Instituto deseja vê-la e falar-lhe. Não demorará muito, mas é necessário. A seguir, a senhora estará livre para partir. Não mais será aborrecida pela minha presença a partir desse momento. Por favor.

      Houve uma vibração de aço oculta na última palavra. Gladia estendeu os braços para Daneel e Giskard.

      - Entraremos juntos.

      Amadiro riu alegremente.

      - A senhora pensa que estou tentando separá-la dos seus robôs? Acha que eles permitiriam? Esteve tempo demais com os Colonizadores, minha cara.

      Gladia olhou para a porta fechada e murmurou entre dentes:

      - Detesto intensamente este homem. E ainda mais quando ele sorri e procura ser tranqüilizador.

      Estendeu os braços e as juntas dos cotovelos estalaram.

      - Em todo caso, estou cansada. Se alguém vier com outras perguntas sobre Solaria e Baleyworld, vai receber respostas breves, garanto.

      Sentou-se num sofá que cedeu suavemente sob seu peso. Tirou os sapatos e colocou os pés sobre o sofá. Sorriu sonolenta, respirou fundo ao se acomodar de lado e, com a cabeça longe dali, adormeceu profunda e instantaneamente.

     

      - Ainda bem que ela adormeceu naturalmente - disse Giskard. - Eu era capaz de lhe aprofundar o sono sem qualquer prejuízo para ela. Eu não gostaria que Lady Gladia ouvisse o que provavelmente virá por aí.

      - O que provavelmente virá por aí, amigo Giskard? - perguntou Daneel.

      - A meu ver, o resultado de erro meu, amigo Daneel, e de acerto seu. Eu deveria ter levado mais a sério sua excelente cabeça.

      - É você, então, que eles desejam reter em Aurora?

      - É. E solicitando a volta urgente de Lady Gladia, estavam querendo  a minha. Você ouviu o Dr. Amadiro pedir que fôssemos deixados aqui. Primeiro, nós ambos, e depois eu sozinho.

      - Será que suas palavras não teriam o seu significado evidente, ou seja, ele não acharia realmente perigoso entregar um robô adiantado aos Terráqueos?

      - Havia uma corrente subjacente de ansiedade, amigo Daneel, que considero forte demais para combinar com suas palavras.

      - Pode dizer se ele conhece sua capacidade especial?

      - Diretamente não, uma vez que não posso ler os próprios pensamentos. Não obstante, duas vezes no decorrer da entrevista com os membros do Conselho houve um súbito e agudo aumento da intensidade do nível emocional no espírito do Dr. Amadiro. Um aumento extraordinário. Não posso descrevê-lo em palavras, mas seria talvez como observar uma cena em preto e branco inundada - súbita e repentinamente - por uma cor intensa.

      - Quando isso aconteceu, amigo Giskard?

      - A segunda vez foi quando Lady Gladia declarou que iria visitar a Terra.

      - Isso não provocou nenhuma agitação entre os membros do Conselho. Suas mentes pareceram o quê?

      - Não sei dizer. Eles estavam presentes através de holovisão, e essas imagens não são acompanhadas por sensações mentais que eu possa detectar.

      - Então, podemos concluir que, esteja ou não o Conselho perturbado pela projetada viagem de Lady Gladia à Terra, o Dr. Amadiro, pelo menos, está.

      - Não foi uma simples perturbação. O Dr. Amadiro pareceu ansioso no mais alto grau, como seria de esperar, por exemplo, se ele de fato tivesse algum projeto, como suspeitamos, de destruição da Terra e temesse sua descoberta. Mais ainda, amigo Daneel, quando Lady Gladia mencionou sua intenção o Dr. Amadiro me olhou de relance, o único instante em toda a reunião. O relâmpago de intensidade emocional coincidiu com esse olhar. Penso que foi o pensamento de minha ida à Terra que o tornou ansioso. Como se ele sentisse que eu, com meus poderes especiais, poderia ser um perigo especial para seus planos.

      - Suas ações também podem ser consideradas, amigo Giskard, como expressando seu temor de que os Terráqueos tentassem se apossar de você como um robô avançado, o que seria ruim para Aurora.

      - A possibilidade de que isso ocorresse, amigo Daneel, e a extensão do prejuízo que pudesse ser causado à comunidade Espacial são pequenas demais para justificar seu nível de ansiedade. Que prejuízo poderia eu causar a Aurora se estivesse em poder da Terra - sendo simplesmente o Giskard que pareço ser?

      - Você conclui, então, que o Dr. Amadiro sabe que você não é simplesmente o Giskard que parece ser?

      - Não tenho certeza. Ele pode apenas desconfiar. Se ele soubesse quem eu era, não teria se esforçado para evitar fazer seus planos em minha presença?

      - Foi simplesmente infelicidade sua que Lady Gladia não quisesse separar-se de nós. Ele não pôde insistir na sua ausência, amigo Giskard, sem revelar o que sabia sobre você. - Daneel fez uma pausa e depois acrescentou: - É uma grande vantagem a sua, amigo Giskard, ser capaz de avaliar o conteúdo emocional das mentes. Mas você disse que o lampejo de emoção do Dr. Amadiro à citação da viagem à Terra foi o segundo. Qual foi o primeiro?

      - O primeiro veio com a menção do intensificador nuclear - e esse também parece importante. O conceito de um intensificador nuclear é bem conhecido em Aurora. Eles não têm um dispositivo portátil, nenhum bastante leve e eficiente para ter utilidade a bordo de uma nave, porém não será isso que desabará sobre ele como um raio. Por que, então, tanta ansiedade?

      - Possivelmente - retrucou Daneel - porque um intensificador dessa espécie tem alguma coisa a ver com seus planos para a Terra.

      - Possivelmente.

      E foi nesse instante que a porta se abriu, uma pessoa entrou e uma voz disse:

      - Ora... Giskard!

      Giskard olhou para a recém-chegada e disse, com voz calma:

      - Senhora Vasilia.

      - Então lembra de mim - disse Vasilia, sorrindo amistosamente.

      - Lembro, senhora. A senhora é uma roboticista muito conhecida e sua imagem está na hiperonda a todo instante.

      - Ora, Giskard, eu não quis dizer que você tinha me reconhecido. Qualquer um pode fazê-lo. Eu quis dizer que você lembrou de mim. Antigamente, você me chamava Senhorita Vasilia.

      - Também lembro disso, senhora. Já se passou muito tempo.

      Vasilia fechou a porta às suas costas e sentou-se numa das cadeiras. Depois virou-se para o outro robô.

      - E você é Daneel, claro.

      Daneel retrucou:

      - Sou, senhora. Para aproveitar da distinção que me fez, eu também lembro da senhora, pois estava com o Detetive Elijah Baley quando ele a entrevistou e também a reconheço.

      Vasilia disse asperamente:

   - Não deve referir-se a esse Terráqueo novamente... Também o reconheço de outra maneira, Daneel. Você é tão famoso quanto eu, no seu campo. Ambos são também famosos por serem criações do falecido Dr. Han Fastolfe.

      - De seu pai, senhora - disse Giskard.

      - Você sabe muito bem, Giskard, que eu não dou importância a essa relação puramente genética. Não deve mais se referir a ele dessa maneira.

      - Não o farei, senhora.

      - E esta? - Olhou casualmente para o vulto dormindo no sofá. - Uma vez que vocês dois estão aqui, posso presumir que a bela adormecida é a Solariana.

      Giskard retrucou:

      - Ela é Lady Gladia e eu lhe pertenço. Quer que a acorde, senhora?

      - Não, Giskard. Se conversaremos sobre os velhos tempos, só iremos perturbá-la. Deixe-a dormir.

      - Sim, senhora.

      Vasilia virou-se para Daneel:

      - Talvez a conversa que eu e Giskard vamos ter não vá lhe interessar, Daneel. Quer esperar lá fora?

      - Temo que não possa sair, minha senhora - respondeu Daneel. - Minha obrigação é guardar Lady Gladia.

      - Não creio que ela precise ser protegida de mim. Você pode notar que não tenho nenhum dos meus robôs comigo, e por isso Giskard sozinho dará um ampla proteção à sua senhora Solariana.

      - A senhora não tem robôs nesta sala, senhora, mas vi quatro no corredor quando a porta se abriu. Será melhor que eu fique.

      - Bem, eu não tentaria contrariar suas ordens. Pode ficar. Giskard?

      - Sim, senhora?

      - Você lembra quando foi ativado pela primeira vez?

      - Sim, senhora.

      - Do que se lembra?

      - Primeiro, luz. Em seguida, som. Depois, a cristalização na visão do Dr. Fastolfe. Pude entender o Galáctico Padrão e tive uma certa quantidade de conhecimento nato construído nas trilhas do meu cérebro positrônico. As Três Leis, claro, um grande vocabulário, com definições, deveres robóticos, hábitos sociais. Outras coisas que aprendi rapidamente.

      - Lembra do seu primeiro dono?

      - O Dr. Fastolfe, como já disse.

      - Torne a pensar, Giskard. Não fui eu?

      Giskard fez uma pausa e depois respondeu:

      - Senhora, fui designado para vigiá-la como propriedade do Dr. Han Fastolfe.

      - Foi um pouco mais que isso, acho eu. Durante dez anos, só obedeceu a mim. Se obedeceu a mais alguém, inclusive o Dr. Fastolfe, foi apenas incidentalmente, como conseqüência de suas obrigações robóticas, e mornente na medida em que isso combinava com sua função básica de cuidar de mim.

      - Fui colocado à sua disposição, é verdade, Lady Vasilia, porém o dr. Fastolfe conservou-me como sua propriedade. Logo que a senhora deixou esta residência, ele recuperou o domínio completo sobre mim, como proprietário. Continuou como meu dono mesmo quando me cedeu mais tarde a Lady Gladia. Foi meu único dono enquanto viveu. Após sua morte, por sua vontade, a propriedade sobre mim foi transferida a Lady Gladia e assim se mantém até hoje.

      - Nem tanto. Perguntei-lhe se você se lembrava de quando foi ativado pela primeira vez e de que se lembrava. O que você era quando foi ativado pela primeira vez não é o que é agora.

      - Meus bancos de memória, senhora, estão agora incomparavelmente mais cheios do que então, e tenho hoje uma experiência que não tinha naquela época.

      A voz de Vasilia tornou-se mais severa.

      - Não estou falando de memória nem de experiência. Estou falando de habilidade. Melhorei suas sensações positrônicas. Ajustei-as. Aumentei-as.

      - Sim, senhora, a senhora o fez, com a ajuda e a aprovação do Dr. Fastolfe.

      - Certa vez, Giskard, introduzi uma melhoria, uma extensão, pelo menos, e sem a ajuda e aprovação do Dr. Fastolfe. Lembra disso?

      Giskard ficou mudo um considerável espaço de tempo. Depois falou:

      - Lembro de uma ocasião em que não testemunhei a senhora consultá-lo. Concluo que o consultou quando eu não estava presente.

      - Está concluindo incorretamente. De fato, uma vez que sabia estar ele fora do planeta na época, possivelmente não podia ter concluído isso. Você está sendo evasivo, para não usar palavra mais forte.

      - Não, senhora. A senhora podia tê-lo consultado pela hiperonda. Eu examinei essa possibilidade.

      - Não obstante, aquele acréscimo foi inteiramente meu - afirmou Vasilia. - O resultado foi que você se tornou um robô substancialmente diferente do que tinha sido antes. O robô em que se transformou desde essa modificação foi desenho meu, minha criação, e você sabe disso muito bem.

      Giskard permaneceu em silêncio.

      - Então, Giskard, com que direito o Dr. Fastolfe foi seu dono quando você foi ativado? - Ela esperou e depois disse, asperamente: - Responda, Giskard. É uma ordem!

      - Uma vez que ele me desenhou e supervisionou a construção, sou sua propriedade - retorquiu Giskard.

      - E quando eu, com efeito, o redesenhei e reconstruí de maneira fundamental, você não se tornou, então, minha propriedade?

   - Não posso responder a essa pergunta - redargüiu Giskard. - Isso exigiria a decisão de um tribunal de justiça. Dependeria, talvez, do grau em que fui redesenhado e reconstruído.

      - Você tem consciência do grau em que isso aconteceu?

      Giskard tornou a silenciar.

      - Isso é criancice, Giskard - disse Vasilia. - Serei obrigada a cutucá-lo após cada pergunta? Não deve me obrigar a isso. Neste caso, de qualquer forma, o silêncio corresponde sem dúvida alguma a uma afirmativa. Você sabe qual foi a modificação e quão fundamental ela era, e sabe também que eu sei qual foi. Ela não sabe, não é?

      - Não, senhora - confirmou Giskard.

      - E não quer que ela saiba?

      - Não quero, senhora - disse Giskard.

      - Daneel sabe?

      - Sabe, senhora.

      - Eu desconfiei disso pela sua ansiedade em ficar - disse Vasilia, com um movimento de cabeça. - Então preste atenção, Giskard. Suponha que um tribunal descubra que, antes de eu tê-lo redesenhado, você era um robô comum e que, após a modificação que fiz, você passou a ser um robô que pode sentir a mente de um ser humano e ajustá-la à sua vontade. Você acha que eles deixarão de considerar isso uma modificação bastante considerável para permitir que a sua propriedade tenha passado para as minhas mãos?

      - Senhora Vasilia - replicou Giskard - não será conveniente deixar que isto seja submetido a um tribunal. Sob estas circunstâncias, eu serei, com certeza, declarado propriedade do Estado por motivos evidentes. Podem mesmo mandar desativar-me.

      - Bobagem. Pensa que sou criança? Com sua capacidade, você pode evitar que o tribunal tome tal decisão. Mas não se trata disso. Não estou sugerindo que se leve o caso ao tribunal. Estou lhe pedindo que faça seu próprio julgamento. Por que não dizer que sou sua proprietária de direito e o tenho sido desde muito jovem?

      - Senhora Gladia se considera minha dona - retrucou Giskard - e, enquanto a lei não decidir o contrário, deve ser considerada como tal.

      - Mas você sabe que tanto ela quanto a lei agem sob um equívoco. Se você se preocupa com os sentimentos de sua Solariana, será muito fácil ajustar sua mente de forma que ela não mais se considere sua proprietária. Você pode mesmo fazê-la sentir-se aliviada por eu retirá-lo de suas mãos. Eu lhe mandarei fazer isso tão logo você se convença do que já sabe: que eu sou sua dona. Há quanto tempo Daneel conhece sua natureza?

      - Há décadas, senhora.

      - Você pode fazê-lo esquecer. O Dr. Amadiro sabe disso há pouco tempo, e você pode fazer com que esqueça. Seremos apenas nós dois a saber.

      Repentinamente, Daneel disse:

      - Senhora Vasilia, uma vez que não se considera sua propriedade, Giskard pode, facilmente, fazer com que a senhora esqueça, e então a senhora ficará perfeitamente satisfeita com as coisas do jeito que estão.

      Vasilia lançou-lhe um olhar gelado.

      - Pode? Mas veja, não cabe a você decidir a quem Giskard considera seu dono. Eu sei que Giskard sabe que eu sou sua proprietária, sendo portanto seu dever, dentro das Três Leis, pertencer-me inteiramente. Se ele precisar fazer alguém esquecer, e isso pode ser feito sem dano físico, deverá, ao tomar a decisão, escolher qualquer um menos eu. Seja como for, ele não pode me fazer esquecer ou adulterar minha mente. Agradeço-lhe, Daneel, por me dar a ocasião de deixar isto muito claro.

      - Mas as emoções de Senhora Gladia estão de tal forma envolvidas com Giskard - replicou Daneel - que o fato de forçá-la ao esquecimento poderá molestar sua mente.

      - Só Giskard poderá decidir isso - disse Vasilia. - Giskard, você me pertence. Você sabe disso e ordeno-lhe que induza o esquecimento nesse pseudo-robô que está parado diante de você e na mulher que erroneamente o considera sua propriedade. Faça-o enquanto ela dorme e não lhe fará nenhum mal.

      - Amigo Giskard - disse Daneel. - Lady Gladia é sua proprietária legal. Se induzir o esquecimento em Lady Vasilia não lhe fará nenhum mal.

      - Está errado - falou Vasilia imediatamente. - A Solariana não será prejudicada, pois precisa apenas esquecer que está sob a impressão de ser dona de Giskard. Eu, de minha parte, também sei que Giskard tem poderes mentais. Trazer isto à tona será mais complexo, e Giskard poderá certamente, por minha intensa determinação, conservar esse conhecimento de que foi obrigado a me causar mal no processo de removê-lo.

      Daneel disse:

      - Amigo Giskard...

      Vasilia interrompeu, numa voz dura como aço:

      - Ordeno-lhe, Robô Daneel Olivaw, que se cale. Não sou sua dona, porém ela está dormindo e não pode contradizer, portanto, minha ordem tem que ser obedecida.

      Daneel calou-se, porém seus lábios tremiam, como se estivessem tentando falar, apesar da ordem.

      Vasilia observou esse esforço com um sorriso divertido nos lábios.

      - Como vê, Daneel, você não pode falar.

      Daneel respondeu, com um sussurro rouco:

      - Posso, senhora, apesar de achar difícil, pois descobri que algo tem Precedência sobre sua ordem, que é governada unicamente pela Segunda Lei.

      Os olhos de Vasilia escancararam-se e ela gritou, com voz áspera:

   - Silêncio, já disse. Nada tem precedência sobre minha ordem a não ser a Primeira Lei, e eu já mostrei que Giskard deve pelo menos sofrer - de fato não sofrerá nada - se se voltar contra mim. Ele quererá me atingir, o que poderá fazer se seguir qualquer outra linha de ação. - Apontou um dedo para Daneel e tornou a dizer, com voz sibilante: - Silêncio!

      Houve nítido esforço de Daneel para produzir algum som. A pequena bomba dentro dele que manobrava a corrente de ar destinada a produzir som fez um ruído baixo e sussurrante enquanto funcionava. Mas, ao falar numa voz mais baixa, ele ainda conseguiu fazer-se ouvir.

      - Senhora Vasilia - disse ele - há uma coisa que transcende até mesmo a Primeira Lei.

      Em voz igualmente baixa, mas não forçada, Giskard disse:

      - Amigo Daneel, você não deve dizer isso. Nada transcende a Primeira Lei.

      Vasilia, levemente sombria, mostrou um lampejo de interesse.

      - Sério? Daneel, aviso-lhe que se tentar continuar nessa estranha linha de raciocínio, certamente se destruirá. Eu nunca vi ou ouvi nada parecido de um robô, e seria fascinante observar sua própria destruição. Fale.

      Com essa ordem, a voz de Daneel voltou imediatamente ao normal.

      - Agradeço-lhe, Senhora Vasilia. Há anos, sentei-me no leito de morte de um Terráqueo cujo nome a senhora pediu que eu não dissesse. Posso agora me referir a ele ou a senhora sabe de quem se trata?

      - Você se refere àquele policial, Baley - replicou Vasilia, com voz sem timbre.

      - Sim, senhora. No seu leito de morte, ele me disse: “A obra de cada indivíduo contribui para o conjunto, constituindo assim parte integrante de uma totalidade. Essa totalidade de vidas humanas - passado, presente e futuro - forma uma tapeçaria que vem existindo por muitos milhares de anos e se desenvolvendo de modo cada vez mais aprimorado e mais belo. Mesmo os Espaciais são um ramo dessa tapeçaria, e também contribuem para a perfeição e beleza do padrão. Uma vida individual é um fio na tapeçaria, e o que é um fio comparado com o conjunto? Daneel, conserve sua mente fixada com firmeza na tapeçaria e não deixe que o arrastar de um único fio o afete.”

      - Sentimentalismo repugnante - murmurou Vasilia.

      - Acredito - disse Daneel - que o Colega Elijah estivesse tentando me proteger contra o fato de sua próxima morte. E ele falara de sua própria vida como um fio de tapeçaria, e era sua própria vida “o arrastar de um único fio” que não devia me afetar. Suas palavras me protegeram naquela crise.

      - Sem dúvida - disse Vasilia - mas vamos ao seu ponto, transcender a Primeira Lei, pois ela é que irá agora destruí-lo.

      - Durante décadas - replicou Daneel - meditei sobre a declaração do Detetive Elijah Baley, e é muito provável que eu a tivesse entendido imediatamente se as Três Leis não tivessem se interposto em meu caminho. Fui ajudado em minha pesquisa por meu amigo Giskard, que muito antes já percebera que elas eram incompletas. E também por alguns reparos feitos por Lady Gladia em discurso recente num planeta dos Colonizadores. Mais ainda, Lady Vasilia, a presente crise serviu para apurar meu raciocínio. Agora eu sei com certeza como as Três Leis estão incompletas.

      - Um robô que também é roboticista - comentou Vasilia, com um pouco de desprezo. - Como as Três Leis estão incompletas, robô?

      - A tapeçaria da vida é mais importante que um simples fio - disse Daneel. - Aplique-se isto não ao Colega Elijah apenas, mas a todos e... e... concluiremos que a humanidade como um todo é mais importante que um único ser humano.

      - Você vacila quando diz isso, robô. Não acredita no que diz.

      - Há uma lei que é maior que a Primeira Lei: “Um robô não pode prejudicar a humanidade ou, pela inação, permitir que a humanidade seja prejudicada.” Penso nela agora como a Lei Zero da Robótica. A Primeira Lei deve, portanto, ser enunciada assim: “Um robô não pode prejudicar um ser humano ou, pela inação, permitir que um ser humano seja prejudicado, a menos que isso viole a Lei Zero da Robótica.”

      Vasilia resmungou:

      - E você ainda está em pé, robô?

      - Ainda estou em pé, senhora.

      - Então Vou explicar-lhe uma coisa, robô, e veremos se você pode sobreviver ao que vai ouvir. As Três Leis da Robótica envolvem seres humanos e robôs individualmente. Você tanto pode apontar para um humano como para um robô. Mas o que é sua “humanidade” além de uma abstração? Você pode apontar para a humanidade? Você pode ferir ou deixar de ferir um ser humano específico e compreender ou deixar de compreender esse ferimento. Agora, é possível ver um ferimento na humanidade? Pode-se compreendê-lo? Pode-se apontá-lo?

      Daneel ficou calado. Vasilia sorriu francamente.

      - Responda, robô. Você pode ver um ferimento na humanidade ou apontá-lo?

      - Não, senhora, não posso. Mas acredito que, apesar de tudo, esse ferimento pode existir e a senhora vê que ainda estou em pé.

      - Então pergunte a Giskard se ele deseja, ou pode, obedecer à sua Lei Zero da Robótica.

      A cabeça de Daneel virou-se para Giskard.

      - Amigo Giskard?

      Giskard respondeu lentamente:

      - Não posso aceitar a Lei Zero, amigo Daneel. Você sabe que eu li muito sobre a história humana. Descobri nela grandes crimes cometidos Por alguns seres humanos contra outros, e a desculpa foi sempre que esses  crimes eram justificados pelas necessidades da tribo, ou do Estado, ou mesmo da humanidade. E justamente por ser uma abstração, a humanidade é tão livremente evocada para justificar tudo, portanto, a sua Lei Zero é imprópria.

      - Mas você sabe, amigo Giskard - replicou Daneel - que existe un perigo para a humanidade agora, e que ele certamente vai se concretizar se você se tornar propriedade de Senhora Vasilia. Isso, pelo menos, não é uma abstração.

      - O perigo a que você se refere não é uma coisa conhecida - disse Giskard - mas apenas pressuposta. Não podemos realizar nossas ações em desafio às Três Leis.

      Daneel esperou um instante e depois disse, em voz baixa:

      - Mas você espera que seus estudos da história humana o ajudem a desenvolver as leis que governam o comportamento humano, que lhe permitam prever e orientar a história humana - ou, pelo menos, que sirvam de ponto de partida para que alguém, um dia, aprenda a prevê-la e orientá-la. Você mesmo chama essa técnica de “psico-história”. Você não está, nisso, lidando com a tapeçaria humana? Não está tentando trabalhar com a humanidade como um todo, em vez de com coleções de seres humanos individuais?

      - Sim, amigo Daneel, isso porém não passa de uma esperança, e não posso basear minhas ações numa simples esperança, nem modificar as Três Leis de acordo com ela.

      Daneel não reagiu a isso.

      - Bem, robô - disse Vasilia - todas as suas tentativas deram em nada, e ainda assim você continua em pé. Você é estranhamente teimoso, e um robô assim, que pode denunciar as Três Leis e ainda permanecer funcional, é um perigo evidente para todo ser humano. Por esse motivo, acredito que deva ser desmantelado sem demora. O caso é perigoso demais para esperar a lenta majestade da lei, especialmente sendo você, afinal de contas, um robô e não o ser humano que tenta parecer.

      - Certamente, minha senhora - replicou Daneel - não lhe cabe tomar essa decisão sem consultar alguém.

      - Não obstante, cheguei a essa decisão, e se houver repercussões legais, cuidarei delas.

      - A senhora irá privar Lady Gladia de um segundo robô, e um cuja posse não reclamou.

      - Ela e Fastolfe, de comum acordo, privaram-me do meu robô, Giskard, durante mais de vinte décadas, e não acredito que isso tenha preocupado nenhum deles um momento sequer. Tirá-lo dela não vai me preocupar. Ela tem dezenas de outros robôs, e há muitos aqui no Instituto que cuidarão fielmente da sua segurança até ela voltar para casa.

      - Amigo Giskard - disse Daneel - se quiser acordar Lady Gladia, pode ser que ela persuada Lady Vasilia...

      Vasilia, olhando para Giskard, franziu o cenho e disse asperamente:

      - Não, Giskard. Deixe que ela durma.

      Giskard, que tinha se mexido ao apelo de Daneel, imobilizou-se. Vasilia estalou os dedos de sua mão direita três vezes e a porta imediatamente se abriu, quatro robôs entraram.

      - Você tinha razão, Daneel. Há quatro robôs. Eles irão desmembrá-lo e você não deve resistir. Depois Giskard e eu cuidaremos do resto.

      Ela virou a cabeça para os robôs que entravam.

      - Fechem a porta. Agora, rápida e eficientemente, desmembrem esse robô - disse, apontando para Daneel.

      Os robôs olharam o outro e, durante alguns segundos, não se moveram.

      Vasilia insistiu, impaciente:

      - Eu lhes disse que ele é um robô, e vocês não devem dar atenção à sua aparência humana. Daneel, diga-lhes que é um robô.

      - Eu sou um robô - falou Daneel - e não reagirei.

      Vasilia deu um passo para o lado e os quatros avançaram. Os braços de Daneel permaneceram abaixados, imóveis de cada lado do corpo. Ele se virou para olhar a adormecida Gladia uma última vez e depois encarou os robôs.

      Vasilia sorriu e disse:

      - Isto vai ser interessante.

      Os robôs pararam. Vasilia falou:

      - Continuem.

      Eles não se mexeram e Vasilia virou-se para olhar, espantada, para Giskard. Não completou o movimento. Seus músculos fraquejaram e ela desabou.

      Giskard pegou-a e sentou-a com as costas apoiadas na parede, dizendo com voz abafada:

      - Preciso de alguns momentos e depois partiremos.

      Esses momentos passaram. Os olhos de Vasilia permaneceram vidrados e baços. Seus robôs continuaram imóveis. Daneel aproximou-se de Gladia numa única passada.

      Giskard ergueu os olhos e disse para os robôs de Vasilia:

      - Cuidem de sua dona. Não deixem ninguém entrar até ela acordar. Ela vai acordar tranqüilamente.

      Enquanto ele falava, Gladia mexeu-se e Daneel ajudou-a a ficar em pé. Ela perguntou, meio surpresa:

      - Quem é esta mulher? De quem são esses robôs? De que forma ela...

      Giskard respondeu com firmeza, mas havia uma certa fraqueza em sua voz.

      - Lady Gladia, mais tarde. Depois lhe explicarei. Agora, precisamos nos apressar.

      E partiram.

 

TERRA

 

      O Planeta Sagrado

      Amadiro mordeu o lábio inferior e seus olhos piscaram em direção a Mandamus, que parecia imerso em pensamentos. com ar defensivo, Amadiro disse:

      - Ela insistiu nisso. Disse-me que só ela podia dominar o tal Giskard, que apenas ela podia exercer uma influência suficientemente forte sobre ele e impedi-lo de usar seus poderes mentais.

      - O senhor nunca me contou nada disso, Dr. Amadiro.

      - Eu não sabia o que dizer, rapaz. Não tinha certeza de que ela estivesse certa.

      - E agora tem?

      - Totalmente. Ela não se lembra de nada que aconteceu...

      - Portanto, não sabemos o que aconteceu.

      Amadiro sacudiu a cabeça.

      - Exatamente. E não se lembra de nada do que me disse antes.

      - Ela não está representando?

      - Mandei que lhe fosse feito um eletroencefalograma urgente. Houve modificações claras com relação aos últimos.

      - Há possibilidades de que ela recupere a memória com o tempo?

      Amadiro sacudiu a cabeça com amargura.

      - Quem sabe? Mas eu duvido.

      Mandamus, com os olhos ainda baixos e pensativos, disse:

      - E isso importa? Podemos considerar seu relatório sobre Giskard como verdadeiro, e sabemos que ele tem o poder de afetar mentes. Esse conhecimento é crucial e agora nos pertence. De fato, foi bom que a nossa Colega roboticista tivesse fracassado. Se Vasilia tivesse conseguido o domínio daquele robô, quanto tempo o senhor acha que se passaria antes de ficar sob o seu domínio - e eu também, partindo do princípio de que ela podia achar que valia a pena me dominar?

   Amadiro balançou a cabeça.

      - Suponho que ela pode ter tido em mente alguma coisa assim. Neste instante, porém, é difícil dizer o que ela pensa. Pelo menos superficialmente ela parece incólume, a não ser pela específica perda de memória - evidentemente, lembra de tudo mais - mas quem sabe se isso afetou seus profundos processos mentais e sua capacidade como roboticista? Se Giskard pôde fazer isso a alguém tão capaz quanto ela, ele é um fenômeno incrivelmente perigoso.

      - Já lhe ocorreu, Dr. Amadiro, que os Colonizadores podem ter razão no seu receio dos robôs?

      - Mais ou menos, Mandamus.

      O rapaz esfregou as mãos.

      - Presumo, diante da sua atitude desanimada, que toda esta história não foi descoberta antes que eles tivessem tempo de sair de Aurora.

      - O senhor presume corretamente. O comandante Colonizador tem a Solariana e seus robôs na sua nave e está viajando em direção à Terra.

      - E como ficamos agora?

      Pausadamente, Amadiro respondeu:

      - Infelizmente, derrotados, parece-me. Se terminarmos nosso projeto, teremos vencido, com Giskard ou sem ele. E podemos terminá-lo. Por mais que Giskard possa ser capaz de fazer em relação às emoções, ele não pode ler pensamentos. Pode ser capaz de dizer quando uma onda de emoções atravesse uma mente humana ou mesmo distinguir uma emoção de outra, ou trocar uma por outra, ou induzir o sono ou a amnésia - coisas desse tipo. Contudo, não pode ser arguto. Não pode compreender palavras verdadeiras ou idéias.

      - Tem certeza disso?

      - Foi o que Vasilia disse.

      - Ela pode não saber do que estava falando. Afinal de contas, não conseguiu dominar o robô, como disse estar certa de poder. Não é um bom testemunho de sua precisão de compreensão.

      - Contudo, nisso eu acredito nela. Para ser realmente capaz de ler pensamentos, é exigida tal complexidade nos padrões positrônicos, que se torna totalmente improvável que uma criança pudesse tê-los inserido no robô vinte décadas antes. Vai realmente muito além do estágio atual da ciência, Mandamus. Naturalmente concorda com isso.

      - Acho que sim. E estão indo para a Terra?

      - Com certeza.

      - Teria aquela mulher, educada como foi, realmente ido para a Terra?

      - Caso Giskard a tenha dominado, não lhe resta outra alternativa.

      - E por que deveria Giskard querer que ela fosse para a Terra? Ele saberá do nosso projeto? O senhor parece pensar que não.

      - Tenho certeza que não. Seu motivo para ir à Terra pode não ser outro além de se colocar e à Solariana fora do nosso alcance.

      - Não acreditaria que ele nos tema, desde que pôde dominar Vasilia?

      - Uma arma de longo alcance - disse Amadiro friamente - pode trazê-lo de volta. Sua própria competência deve ter um alcance limitado, pode estar baseada apenas no campo eletromagnético, e ele deve estar sujeito à lei inversa adequada. Assim, sairemos do alcance de sua mente e ele finalmente descobrirá que não está fora do alcance de nossas armas.

      Mandamus franziu o cenho e pareceu preocupado.

      - O senhor parece ter um gosto não-Espacial pela violência, Dr. Amadiro. Num caso como este, suponho que seja permitida a força.

      - Num caso como este? Um robô capaz de causar dano a seres humanos? Acho que sim. Devemos arranjar um pretexto para enviar uma boa nave atrás. Não seria prudente explicar a situação real.

      - Não - replicou Mandamus energicamente. - Pense em quantos quereriam ter o domínio desse robô.

      - Coisa que não podemos permitir. E que é outro motivo para me fazer encarar a destruição do robô como o método de ação mais preferível e seguro.

      - O senhor pode ter razão - disse Mandamus contra a vontade - mas não acho inteligente contar somente com a sua destruição. Preciso ir à Terra, já. O processo precisa ser acelerado, mesmo que não ponhamos todos os pontos nos “i”. Uma vez que façamos, está feito. Mesmo um robô manipulador de mentes, sob o comando de um indivíduo qualquer, não será capaz de desfazer o que está feito. E ainda que aconteça algo além disso, talvez não tenha mais importância.

      - Não fale no singular - disse Amadiro. - Eu também vou.

      - O senhor? A Terra é um planeta horrível. Eu preciso ir, mas por que o senhor?

      - Eu também preciso ir. Não posso mais ficar aqui e apenas imaginar. Você não esperou por isto tanto quanto eu, Mandamus. Não tem as contas a ajustar que eu tenho.

     

      Gladia estava novamente no espaço e novamente Aurora podia ser vista como um globo. D. G. estava ocupado em outro lugar, e toda a nave tinha um vago e penetrante ar de perigo, como se estivesse a caminho de um combate, como se estivesse sendo perseguida ou na expectativa disso.

      Gladia sacudiu a cabeça. Pôde pensar com clareza, sentia-se bem, mas quando sua mente se voltou para aquele momento no Instituto, logo após tê-la deixado, uma curiosa irrealidade generalizada perpassou sua mente.

      Era como um vácuo no tempo. Num momento estava sentada no  sofá, sentindo-se sonolenta, e no outro havia quatro robôs e uma mulher na sala, que não estavam lá antes.

      Ela então adormecera mas não havia consciência, recordação de que tivesse feito isso. Havia um vácuo de não-existência.

      Voltando ao passado, reconheceu a mulher. Era Vasilia Aliena, a filha que Gladia tinha substituído no afeto de Han Fastolfe. Gladia nunca havia realmente visto Vasilia, embora a tivesse observado na hiperonda várias vezes. Gladia sempre pensou nela como outra pessoa distante e hostil. Havia uma vaga semelhança na aparência, sempre comentada pelos outros, mas que Gladia insistia em não ver - além da estranha, antitética, ligação com Fastolfe.

      Uma vez a bordo e sozinha com seus robôs, ela fez a pergunta inevitável:

      - Que estava Vasilia Aliena fazendo na sala e por que me permitiram adormecer assim que ela chegou?

      - Senhora Gladia - replicou Daneel - eu responderei, pois é um assunto que o amigo Giskard tem dificuldade em discutir.

      - Por que, Daneel?

      - Senhora Vasilia chegou na esperança de poder persuadir Giskard a entrar para o seu serviço.

      - Tirá-lo de mim? - perguntou Gladia, fortemente indignada. Não gostava muito de Giskard, mas isso não importava. O que era dela, era dela. - E você permitiu que eu adormecesse enquanto vocês dois cuidavam do assunto por conta própria?

      - Percebemos, senhora, que a senhora precisava muito dormir. Além disso, a Senhora Vasilia nos ordenou que a deixássemos dormir. Finalmente, chegamos à conclusão de que Giskard não devia, de modo algum, entrar para o serviço dela. Por todos esses motivos, não a acordamos.

      Gladia disse, indignada:

      - Eu devia esperar que Giskard nem por um instante considerasse a hipótese de me abandonar. Seria ilegal, não só pelas leis Auroreanas mas principalmente pelas Três Leis da Robótica. Teria sido uma boa medida voltar a Aurora e denunciá-la perante o Tribunal de Reclamações.

      - Isso não seria aconselhável no momento, minha senhora.

      - Qual foi o pretexto dela para querer Giskard? Apresentou algum?

      - Quando ela era criança, Giskard ficou à sua disposição.

      - Legalmente?

      - Não, senhora. O Dr. Fastolfe simplesmente permitiu-lhe que o usasse.

      - Então ela não tem direito a Giskard?

      - Foi o que frisamos, senhora. Evidentemente, era uma posição sentimental por parte de Senhora Vasilia.

      Gladia fungou.

      - Tendo suportado a perda de Giskard desde antes da minha chegada a Aurora, ela podia muito bem continuar como estava, sem recorrer a coisas ilegais para me privar de minha propriedade. - Depois, irritada: - Eu devia ter sido acordada.

      - A Senhora Vasilia - retrucou Daneel - tinha quatro robôs com ela. Se a senhora tivesse sido acordada, haveria palavras ásperas entre as duas e alguma dificuldade para que os robôs tivessem as reações adequadas.

      - Eu teria ordenado a reação adequada, garanto-lhe, Daneel.

      - Sem dúvida, senhora. Mas a Senhora Vasilia também, e ela é uma das mais competentes roboticistas da galáxia.

      Gladia transferiu sua atenção para Giskard.

      - E você nada tem a dizer?

      - Apenas que foi melhor assim, minha senhora.

      Gladia olhou pensativamente dentro dos olhos robóticos fracamente luminosos, tão diferentes dos de Daneel, quase humanos, e pareceu-lhe que o incidente, afinal de contas, não era tão importante. Uma coisa à-toa. E havia outras coisas com que se preocupar. Estavam indo para a Terra.

      Alguma coisa fez com que não pensasse mais em Vasilia.

     

      - Estou preocupado - disse Giskard, num sussurro confidencial cujas ondas sonoras mal agitaram o ar.

      A nave Colonizadora estava se afastando suavemente de Aurora e, até ali, não havia perseguição. A atividade a bordo entrou na rotina e, como quase todas as rotinas automatizadas, foi silenciosa, Gladia adormeceu naturalmente.

      - Estou preocupado com Lady Gladia, amigo Daneel.

      Daneel compreendeu as características dos circuitos positrônicos de Giskard muito bem para exigir uma longa explicação.

      - Era necessário, amigo Giskard - respondeu - ajudar Lady Gladia. Se ela continuasse a interrogar, poderia ter deduzido suas atividades mentais e o ajustamento teria sido, então, mais perigoso. Muitos males já foram causados porque Lady Vasilia descobriu isso. Não sabemos com quem, e com quantos, pode ter partilhado seu conhecimento.

      - Todavia - replicou Giskard - não desejava fazer esse ajustamento. Se Lady Gladia tivesse querido esquecer, o ajustamento teria sido simples e sem perigo. Contudo, ela quis, com vigor e raiva, saber mais a respeito. Lamentou não ter desempenhado um papel maior. Portanto, fui forçado a quebrar forças unidas de considerável intensidade.

      - Assim mesmo, foi necessário, amigo Giskard - disse Daneel.

      - Contudo, a possibilidade de causar dano não foi de forma alguma insignificante neste caso. Imagine uma força unida como um fino cordão elástico - esta é uma analogia pobre, porém não posso pensar em outra, pois o que sinto numa mente não tem analogia fora dela. - Eu diria que as inibições comuns com as quais lido são tão tênues e irreais, que desaparecem quando as toco. Uma estranha força unida, por outro lado, se rompe e ricocheteia quando partida, o coice podendo, então, quebrar outras forças unidas ou, chicoteando e se enrolado em torno de forças semelhantes, fortalecê-las enormemente. Em ambos os casos, mudanças involuntárias podem ser provocadas nas emoções e atitudes de um ser humano, e isso quase certamente provoca dano.

      Daneel disse, com voz ligeiramente mais alta:

      - Você tem a impressão de que causou dano a Lady Gladia, amigo Giskard?

      - Acho que não. Fui extremamente cuidadoso. Trabalhei durante todo o tempo em que você esteve falando com ela. Foi atencioso de sua parte suportar o peso da conversa e correr o risco de ficar preso entre uma verdade inconveniente e uma mentira. Porém, apesar de todo o meu cuidado, amigo Daneel, corri esse risco e fiquei preocupado por querer corrê-lo. A violação da Primeira Lei esteve tão perto que precisei de um esforço extraordinário para levar tudo a termo. Tenho certeza que não seria capaz de fazê-lo...

      - Sim, amigo Giskard?

      - Se você não tivesse exposto sua idéia da Lei Zero.

      - Você então a aceita?

      - Não, não posso. Você pode? Diante da possibilidade de causar dano a um ser humano individualmente ou permitir que isso lhe aconteça, você pode fazer uma coisa ou outra em nome da humanidade abstrata? Pense!

      - Não tenho certeza - retrucou Daneel, a voz trêmula em meio ao silêncio. Depois, com esforço: - Eu posso. A simples idéia me atrai, e a você. Ajudou-o a decidir correr o risco de ajustar a mente de Lady Gladia.

      - Sim, ajudou - concordou Giskard - e quanto mais pensamos na Lei Zero, mais ela nos ajuda a decidir. Contudo, fico imaginando se ela pode fazer isso a não ser numa forma marginal. É possível que ela apenas nos ajude a correr riscos maiores que os habituais.

      - De qualquer modo, estou convencido da validade da Lei Zero, amigo Giskard.

      - Também estarei se pudermos definir o que designamos "humanidade".

      Ficaram um instante em silêncio e depois Daneel disse:

      - Você não aceitou a Lei Zero, afinal, quando paralisou os robôs da Senhora Vasilia e apagou de sua mente o conhecimento dos seus poderes mentais?

      - Não, amigo Daneel - respondeu Giskard. - Na verdade, não. Fiquei tentado a aceitá-la, mas realmente não o fiz.

      - Apesar disso, suas ações...

      - Foram ditadas por uma combinação de motivos. Você me comunicou sua concepção da Lei Zero e pareceu haver uma certa validade nela, mas não suficiente para cancelar a Primeira Lei ou mesmo eliminar o forte uso feito pela Senhora Vasilia da Segunda Lei nas ordens que deu. Depois, aliando você chamou minha atenção para as aplicações da Lei Zero na psico-história, pude sentir a força positronomotiva crescer, embora sem intensidade bastante para substituir a Primeira Lei ou mesmo a forte Segunda Lei.

      - Mesmo assim - murmurou Daneel - você atacou a Senhora Vasilia, amigo Giskard.

      - Quando ela mandou que os robôs o desmembrassem, amigo Daneel, mostrou uma nítida emoção de prazer a essa perspectiva, sua necessidade, acrescentada ao que o conceito da Lei Zero já havia feito, substituiu a Segunda Lei e equiparou-se à Primeira. Foi a combinação da Lei Zero, da psico-história, da minha lealdade a Lady Gladia e da sua necessidade que ditou meu comportamento.

      - Minha necessidade mal podia ter afetado você, amigo Giskard. Não passo de um robô, e embora minha necessidade pudesse afetar minhas próprias ações pela Terceira Lei, não podia afetar as suas. Você destruiu a supervisora em Solaria sem hesitação, você teria observado minha destruição sem se mexer.

      - Sim, amigo Daneel, e normalmente teria sido assim. Contudo, sua menção a Lei Zero reduziu a intensidade da Primeira Lei a um valor abaixo do normal. A necessidade de poupá-lo foi suficiente para cancelar o que restava, e eu... agi daquela forma.

      - Não, amigo Giskard. A perspectiva de ofender um robô não deve tê-lo afetado absolutamente. Não deve, de maneira alguma, ter contribuído para superar a Primeira Lei, por mais fraca que ela se tivesse tornado.

      - É uma coisa estranha, amigo Daneel. Não sei como isso aconteceu. Talvez tenha sido porque eu tenha notado que você continua a pensar cada vez mais como um ser humano, mas...

      - Sim, amigo Giskard?

      - No momento em que os robôs avançaram sobre você, e Lady Vasilia demonstrou seu prazer selvagem, meu padrão positrônico reagrupou-se de maneira anômala. Durante um momento, pensei em você... como um ser humano... e reagi de acordo.

      - Foi um erro.

      - Sei disso. Contudo... contudo, se tornasse a acontecer, acredito que a mesma anormalidade aconteceria outra vez.

      - É estranho - disse Daneel - mas ouvindo-o falar assim, sinto como se você tivesse agido corretamente. Se a situação fosse ao contrário, Quase chego a pensar que eu também faria... faria a mesma coisa... pensar em você como um ser humano.

   Hesitante e lentamente, Daneel estendeu a mão e Giskar olhou-a com ar incerto. Depois, muito lentamente, estendeu a sua. As pontas dos dedos quase se tocaram, depois, pouco a pouco, apertaram-se as mãos - quase como se fossem os amigos que diziam ser.

     

      Gladia olhou em torno com curiosidade disfarçada. Estava no camarote de D. G. pela primeira vez. À primeira vista, não havia nada mais luxuoso que o camarote que lhe fora destinado. O camarote de D. G. tinha um painel mais trabalhado, com certeza, com um complexo jogo de luzes e interruptores que, imaginou ela, serviam para manter D. G. em contato com o resto da nave.

       - Quase não o tenho visto desde que saímos de Aurora, D. G. - disse Gladia.

      - Fico feliz por ter notado isso - replicou D. G., rindo. - Para lhe falar a verdade, Gladia, eu também senti sua falta. com uma tripulação masculina, você realmente sobressai.

      - Não é um motivo muito lisonjeiro para sentir minha falta. com uma tripulação toda humana, suponho que Daneel e Giskard também sobressaem. Sentiu tanto a falta deles como sentiu a minha?

      D. G. olhou em volta.

      - Na verdade, senti-lhes tão pouco a falta que só agora reparei que não estão com você. Onde estão?

      - No meu camarote. Parece-me tolo arrastá-los comigo nos estreitos limites do pequeno mundo desta nave. Eles pareceram desejosos de me permitir ficar à vontade, o que me surpreendeu... Não - emendou-se - pensando nisso, tive de ordenar-lhes um tanto asperamente que ficassem lá antes que eles próprios decidissem isso.

      - Não é um tanto estranho? Os Auroreanos jamais ficam sem seus robôs, segundo eu soube.

      - E daí? Uma vez, há muito tempo, quando cheguei a Aurora, tive de aprender a aturar a presença real de seres humanos, coisa para a qual não fora preparada pela educação Solariana. Aprendendo a ficar sem meus robôs ocasionalmente, quando estou entre Colonizadores, será provavelmente um condicionamento menos difícil para mim do que foi da primeira vez.

      - Bom. Excelente. Devo confessar que prefiro muito mais estar com você sem os olhos coruscantes de Giskard fixos em mim, e principalmente sem o sorrisinho de Daneel.

      - Ele não sorri.

      - A mim me parece que sim, um leve sorriso lúbrico e muito insinuante.

      - Você está maluco. Isso é totalmente estranho a Daneel.

      - Você não o observa como eu. Sua presença é muito inibidora. Sou obrigado a me comportar.

      - Bem, espero que sim.

      - Não precisa dizer isso tão enfaticamente. Mas não importa. Peço-lhe que me desculpe por vê-la tão pouco desde que deixamos Aurora.

      - Ora, isso não é necessário.

      - Uma vez que falou nisso, acho que é. Contudo, deixe-me explicar-lhe. Estamos à beira de uma guerra. Estamos convencidos de que, tendo partido como fizemos, as naves Auroreanas saíram em nossa perseguição.

      - Eu pensaria que ficaram felizes por terem se livrado de um grupo de Colonizadores.

      - Claro, mas você não é uma Colonizadora e pode ser a você que eles queiram. Estavam bastante ansiosos para trazê-la de volta de Baleyworld.

      - Eu voltei. Fiz um relatório e pronto.

      - Não queriam mais que seu relatório?

      - Não. - Gladia fez uma pausa e, por um instante, franziu o cenho como se alguma coisa estivesse vagamente espicaçando sua memória. O que quer que fosse, passou, e ela repetiu, indiferente: - Não.

      D. G. encolheu os ombros.

      - Isso não faz sentido inteiramente, porém eles não tentaram nos impedir enquanto estávamos em Aurora, e nem depois disso, quando embarcamos e preparamos a nave para partir. Não vou brigar por isso. Falta pouco agora para darmos o Salto, e depois disso nada teremos com que nos preocupar.

      - Antes que me esqueça, por que você tem uma tripulação inteiramente masculina? As naves Auroreanas têm sempre tripulações mistas.

      - E também as Colonizadoras. As comuns. Esta é uma nave de Mercadores.

      - Qual a diferença?

      - O comércio comporta perigos. É uma vida difícil. Mulheres a bordo criariam problemas.

      - Que bobagem! Que problemas eu criei?

      - Não discutiremos isso. Além do mais, é uma tradição. Os homens não agüentariam.

      - Como sabe? - Gladia riu. - Já experimentou alguma vez?

      - Não. Mas, por outro lado, não há longas filas de mulheres reclamando um beliche em minha nave.

      - Eu estou aqui. E gostando.

      - Você está tendo um tratamento especial, na sua missão em Solaria podia muito bem ter havido bastante encrenca. Na verdade, houve. Mas não importa. - Ele tocou num dos interruptores no painel e uma contagem regressiva apareceu rapidamente. - Iremos saltar em cerca de dois minutos. Você nunca esteve na Terra, hem, Gladia?

   - Não, claro que não.

      - Nem viu o sol, apenas um.

      - Não, apesar de tê-lo visto em dramas históricos na hipervisão, mas imagino que o que eles exibem nos dramas não é verdadeiramente o sol.

      - Tenho certeza que não. Se não se importa, vamos diminuir as luzes do camarote.

      As luzes diminuíram ao mínimo e Gladia percebeu o campo estelar no painel, com as estrelas mais brilhantes e mais densamente espalhadas que no céu de Aurora.

      - É uma visão telescópica? - perguntou, em voz sussurrada.

      - De algum modo, sim. Baixo poder. Quinze segundos. - Ele contou regressivamente. Houve uma mudança no campo estelar e uma estrela brilhante estava agora quase centralizada.

      D. G. apertou outro botão e disse:

      - Estamos bem longe do plano planetário. Ótimo! Um pouco arriscado. Deveríamos estar bem afastados da estrela Auroreana antes do Salto, mas estamos com alguma pressa. Aquele é o sol.

      - Você quer dizer aquela estrela brilhante?

      - Sim. Que acha dela?

      Um pouco confusa a respeito da espécie de resposta que ele esperava, Gladia disse:

      - Brilhante.

      Ele apertou outro botão e a vista diminuiu perceptivelmente.

      - Sim... e não lhe fará nenhum bem aos olhos encará-la. Mas não é o brilho que conta. É apenas uma estrela - na aparência - mas pense nela. É o sol original. Aquela foi a estrela cuja luz brilhou sobre um planeta que foi o único onde existiram seres humanos. Onde seres humanos evoluíram lentamente. O sol que brilhou num planeta no qual a vida se formou há bilhões de anos, vida que iria se desenvolver em seres humanos. Há trezentos bilhões de estrelas na Galáxia e cem bilhões de galáxias no Universo, mas apenas uma de todas essas estrelas presidiu ao nascimento da humanidade, e ela é essa estrela.

      Gladia teve vontade de dizer: “Bem, alguma delas tinha que ser essa”, mas pensou melhor. Disse, com voz fraca:

      - Impressionante.

      - Não é apenas impressionante - replicou D. G., os olhos nublados na obscuridade. - Não há um Colonizador na Galáxia que não considere essa estrela como lhe pertencendo. A luminosidade das estrelas que brilham em nossos diversos planetas natais é emprestada, da qual fazemos uso. Ali, exatamente ali, está a verdadeira luminosidade que nos dá vida. Aquela estrela e o planeta que a circunda, a Terra, é que nos mantêm todos juntos num laço estreito. Se não partilhamos nada mais, partilharemos essa luz na tela e isso será suficiente. Vocês, Espaciais, esqueceram-na, é por isso que se separam um dos outros e que, no longo percurso, não sobreviverão.

      - Há espaço para todos nós, comandante - disse Gladia, suavemente.

      - Sim, claro. Eu nada faria para forçar a não-sobrevivência de Espaciais. Apenas acredito que é isso que acontecerá, e que podia não acontecer se os Espaciais abandonassem sua irritante certeza de superioridade, seus robôs e sua preocupação com uma longa vida.

      - É assim que você me vê, D. G.? - perguntou Gladia.

      - Você teve momentos assim - replicou D. G. - Mas melhorou. Reconheço isto.

      - Obrigada - retrucou ela, com evidente ironia. - E embora você ache difícil acreditar, os Colonizadores também têm sua orgulhosa arrogância. Mas você também melhorou e eu reconheço isto.

      D. G. riu.

      - Com tanto reconhecimento generoso de parte a parte, estaremos sujeitos a terminar numa eterna inimizade.

      - Dificilmente - disse Gladia, rindo por sua vez.

      E foi ligeiramente surpresa que descobriu que sua mão estava descansando entre as dele. E mais ainda ao notar que não a tinha retirado.

     

      Daneel disse:

      - Estou preocupado, amigo Giskard, pela Senhora Gladia não estar sob nossa observação direta.

      - Isso não é necessário a bordo desta nave, amigo Daneel. Não estou captando nenhuma emoção perigosa, e o comandante está com ela neste momento. Além disso, haveria vantagens para ela no fato de descobrir que é confortável estar sem nós, pelo menos de vez em quando, enquanto estivermos todos na Terra. É possível que você e eu precisemos ter de agir subitamente, evitando que sua presença e segurança sejam um fator de complicação.

      - Então você está manipulando a separação dela de nós agora?

      - Dificilmente. De modo bastante estranho, descobri nela uma forte tendência para imitar a forma de vida Colonizadora a esse respeito. Ela tem um anseio subjacente de independência, embaraçado principalmente pela sensação de que, com isso, está violando o ambiente Espacial. Esta é a minha melhor forma de descrever o que ela sente. As sensações e emoções não são fáceis de interpretar, pois eu nunca as encontrei entre os Espaciais antes. Assim, apenas afrouxei a inibição Espacial pelo mais leve toque.

      - Então, amigo Giskard, ela não mais quererá valer-se dos nossos Serviços? Isto me preocupará.

      - Isso não deverá acontecer. Se ela decidir que deseja uma vida livre de robôs e sentir-se feliz assim, é o que nós também desejaremos para ela. Nestas circunstâncias, tenho certeza que ainda seremos úteis para ela. Esta nave é um pequeno e especializado habitat, no qual não existe grande perigo. Ela tem uma conseqüente sensação de segurança com a presença do comandante, e isso diminui sua necessidade de nós. Na Terra, ela ainda irá sentir necessidade de nós, embora de uma forma não tão estrita quanto em Aurora. Como eu disse, uma vez na Terra talvez precisemos de maior flexibilidade de ação.

      - Então você agora já pode supor a natureza da crise que a Terra enfrenta? Sabe o que devemos fazer?

      - Não, amigo Daneel - replicou Giskard. - É você quem tem o dom da compreensão. Tem alguma idéia?

      Daneel permaneceu mudo durante um tempo. Depois falou:

      - Tive suspeitas.

      - Quais foram, então, suas suspeitas?

      - Você me disse, lembra? No Instituto de Robótica, pouco antes de Lady Vasilia entrar na sala onde Senhora Gladia estava dormindo, que o Dr. Amadiro tivera dois intensos lampejos de ansiedade. O primeiro foi à menção do intensificador nuclear, o segundo à declaração de que Senhora Gladia estava viajando para a Terra. Parece-me que os dois devem ser relacionados. Acho que a crise com a qual estamos lidando envolve o uso de um intensificador nuclear na Terra, que está na hora de impedir tal coisa e que o Dr. Amadiro teme que, indo à Terra, façamos exatamente isso.

      - Sua mente me diz que você não está satisfeito com esse pensamento. Por que, amigo Daneel?

      - Um intensificador nuclear apressa o processo de fusão eventualmente em curso por intermédio de uma corrente de partículas W. Perguntei-me, portanto, se o Dr. Amadiro planejava usar um ou mais intensificadores nucleares para explodir os reatores de microfusão que fornecem energia à Terra. As explosões nucleares induzidas dessa maneira implicariam a destruição pelo calor e força mecânicos, pela poeira e produtos radioativos que seriam espalhados na atmosfera. Mesmo que isso não fosse suficiente para deteriorar a Terra mortalmente, a destruição do suprimento energético da Terra levaria certamente, a longo prazo, a civilização terrestre a um colapso.

      - Esse pensamento é horrível - retrucou Giskard, amargurado - e pode parecer uma resposta quase certa para a natureza da crise que investigamos. Por que, então, você não está contente?

      - Tomei a liberdade de usar o computador da nave para obter informações referentes ao planeta Terra. Como se poderia esperar numa nave Colonizadora, o computador é muito rico em tais informações. Ao que parece, a Terra é o único planeta humano que não usa reatores de microfusão como uma fonte de energia em larga escala. Usa quase inteiramente energia solar direta, com estações solares de força em toda a órbita geoestacionária. Não há nada que um intensificador nuclear possa fazer além de destruir pequenos aparelhos - espaçonaves, construções ocasionais. O estrago pode não ser desprezível, porém não ameaçará a existência da Terra.

      - É muito possível, amigo Daneel, que Amadiro tenha algum dispositivo que destrua os geradores de força solares.

      - Se é assim, por que ele reage à menção de intensificadores nucleares? Eles não podem ser usados contra aqueles geradores.

      Giskard balançou lentamente a cabeça.

      - É um bom argumento. E, para dar outro, se o Dr. Amadiro estava tão apavorado ante a idéia de nossa ida à Terra, por que não se esforçou para nos impedir quando ainda estávamos em Aurora? Ou, se só descobriu nosso vôo após termos deixado a órbita, por que não mandou uma belonave Auroreana interceptar-nos antes de darmos o Salto para a Terra? Será que estamos numa pista completamente falsa, que em algum lugar demos um sério passo errado que...

      Uma insistente série de badaladas intermitentes soou na nave e Daneel disse:

      - Demos o Salto em segurança, amigo Giskard. Senti há alguns minutos. Mas ainda não chegamos à Terra, e a interceptação que você mencionou há pouco suspeito tenha começado agora, por isso, não estamos, necessariamente, no caminho errado.

     

      D.G foi levado a uma perversa admiração. Quando os Auroreanos eram realmente levados à ação, seu refinamento técnico aparecia. Sem dúvida, tinham enviado uma das suas mais recentes belonaves, pela qual se podia deduzir que, o que quer que motivasse o seu envio, era coisa muito importante.

      E a tal nave tinha detectado a presença do vaso de D. G. dentro de quinze minutos de sua aparição no espaço normal - e de uma distância relativamente grande, por falar nisso.

      A nave Auroreana estava usando um foco limitado de um aparelho de hiperonda. A cabeça do locutor podia ser vista nitidamente quando estava no ponto focal. O restante era uma névoa cinzenta. Se o locutor mexia a cabeça um decímetro mais ou menos do ponto focal, também se tornava nevoento. A nitidez de som também era limitada.

      O resultado era que se via e ouvia apenas o mínimo fundamental da nave inimiga (D. G. Pensou imediatamente nela como nave "inimiga"), e por isso sua privacidade foi preservada.

      A nave de D. G. também possuía um foco limitado de hiperonda, mas, Pensou D. G. com inveja, faltava-lhe o brilho e elegância da versão Auroreana. Claro, sua própria nave não era a melhor que os Colonizadores podiam fazer, mas ainda assim os Espaciais se achavam muito à frente  tecnologicamente. Os Colonizadores ainda estavam tentando superar essa defasagem.

      A cabeça Auroreana em foco estava nítida e tão real na aparência que parecia horrivelmente sem corpo, e D. G. não ficaria surpreso se gotejasse sangue. A um olhar mais atento, porém, podia-se perceber que o pescoço fundia-se no acinzentado logo depois que a gola de um uniforme indubitavelmente bem cortado começou a aparecer.

      Com uma cortesia formal, a cabeça se identificou como Comandante Lisiform da nave Auroreana Borealis. D. G. identificou-se, por sua vez, avançando o queixo como que para deixar sua barba o mais nítida possível. Ele achava que sua barba lhe dava um ar de ferocidade que podia não ajudar mas seria intimidante a um imberbe e (pensou) Espacial de queixo fraco.

      D. G. assumiu o ar tradicional de informalidade que era tão irritante para um oficial Espacial como a arrogância tradicional deste para um Colonizador.

      - Que motivo o senhor tem para me interceptar, Comandante Lisiform? - perguntou.

      O comandante Auroreano tinha um sotaque exagerado que, possivelmente, era tão formidável para ele quanto a barba de D. G. para este. D. G. sentiu-se sob considerável tensão enquanto tentava penetrar no sotaque e compreendê-lo.

      - Acreditamos - retrucou Lisiform - que o senhor tem a bordo de sua nave uma cidadã Auroreana chamada Gladia Solaria. É verdade, Comandante Baley?

      - A Senhora Gladia está a bordo desta nave, comandante.

      - Obrigado, comandante. Com ela, de acordo com o que me foi dado saber, há dois robôs de fabricação Auroreana, R. Daneel Olivaw e R. Giskard Reventlov. Correto?

      - Correto.

      - Nesse caso, devo informá-lo que R. Giskard Reventlov é, neste momento, um objeto perigoso. Pouco antes de sua nave ter deixado o espaço Auroreano, o referido robô, Giskard, feriu seriamente uma cidadã Auroreana, em desafio às Três Leis. O robô deve, portanto, ser desmontado e consertado.

      - Está sugerindo, comandante, que nós, nesta nave, desmontemos o robô?

      - Não, senhor, isso não deve ser feito. Sua gente, sem experiência com robôs, não poderá fazê-lo adequadamente e muito menos reconstituí-lo.

      - Então poderemos simplesmente destruí-lo.

      - É valioso demais para isso. Capitão Baley, o robô é um produto Auroreano e responsabilidade nossa. Não desejamos ser a causa de danos ao pessoal na sua nave e ao planeta Terra, se pousar lá. Conseqüentemente, pedimos-lhe que ele nos seja entregue.

      - Comandante - replicou D. G. - aprecio sua preocupação. Contudo, o robô é propriedade legal de Lady Gladia, que está conosco. Pode ser que ela não consinta em ser separada do seu robô, embora eu não pretenda ensinar-lhe a lei Auroreana, acredito que seria ilegal, de acordo com ela, forçar essa separação. Conquanto minha tripulação e eu não nos consideremos presos à lei Auroreana, não contribuiremos voluntariamente para ajudá-lo a desempenhar o que o seu próprio governo pode considerar um ato  ilegal.

      Houve uma sugestão de impaciência na voz do comandante:

      - Não se trata de ilegalidade, comandante. Uma disfunção perigosa à vida num robô superpõe-se aos direitos comuns de um proprietário. Em todo caso, não seja por isso - minha nave está em condições de receber Lady Gladia e seu robô Daneel, juntamente com o robô em questão, Giskard. Assim, não haverá separação de Gladia Solaria e sua propriedade robótica até ser levada de volta para Aurora. Então a Lei seguirá seu curso devido.

      - É possível, comandante, que Lady Gladia não deseje sair da minha nave ou permitir que sua propriedade o faça.

      - Ela não tem escolha, comandante. Estou legalmente autorizado pelo meu governo a insistir com ela em que, como cidadã Auroreana, está obrigada a obedecer.

      - Mas eu não estou legalmente obrigado a entregar nada em minha nave por exigência de um poder estrangeiro. E se preferir não tomar conhecimento da sua exigência?

      - Nesse caso, comandante, não terei outra alternativa senão considerar isso um ato inamistoso. Permita que lhe assinale que estamos dentro da esfera do sistema planetário do qual a Terra faz parte. O senhor não vacilou em me ensinar a lei Auroreana. Vai me desculpar, portanto, se lhe faço ver que seu povo não considera adequado envolver-se em hostilidades dentro do espaço deste sistema planetário.

      - Estou ciente disso, comandante, e não desejo hostilidades nem pretendo executar uma ação inamistosa. Contudo, estou indo à Terra com uma certa pressa. Perdi tempo nesta conversa e perderei mais tempo se me mover até o senhor - ou esperar que o senhor venha até mim - de maneira a podermos efetuar uma transferência física de Lady Gladia e seus robôs. Prefiro prosseguir em direção à Terra e aceitar toda a responsabilidade formalmente pelo robô Giskard e seu comportamento até a hora em que Lady Gladia e seus robôs voltarem para Aurora.

      - Comandante, posso fazer a sugestão de colocar a mulher e os dois robôs num bote salva-vidas e destacar um membro da sua tripulação para pilotá-lo até aqui? Uma vez entregues a mulher e os dois robôs, escoltaremos o salva-vidas até as proximidades da Terra e o compensaremos adequadamente pelo seu tempo e trabalho. Um Mercador não pode recusar isso.

   - Não recuso, comandante, não recuso - replicou D. G., sorrindo. - Mas o tripulante escolhido para pilotar o bote poderia ficar em perigo ainda maior, uma vez que estaria sozinho com esse perigoso robô.

      - Comandante, se a proprietária do robô for firme no seu controle, seu tripulante não correrá maior perigo no bote que na sua nave. Nós o recompensaremos pelo risco.

      - Mas se o robô pode, afinal de contas, ser controlado pela sua proprietária, certamente não é tão perigoso que não possa seguir conosco.

      O oficial franziu o cenho.

      - Comandante, espero que não esteja querendo se divertir à minha custa. O senhor tem o meu pedido e eu gostaria que ele fosse honrado imediatamente.

      - Suponho que posso consultar Lady Gladia.

      - Se o fizer imediatamente. Por favor, explique-lhe exatamente de que se trata. Se, entretanto, o senhor tentar prosseguir em direção à Terra, considerarei isso um ato inamistoso e agirei de acordo. Uma vez que, como afirma, sua viagem é urgente, aconselho-o a consultar imediatamente Gladia Solaria e chegar à decisão imediata de cooperar conosco. Assim, o senhor não quererá se demorar muito.

      - Farei o que puder - disse D. G., impassível, ao sair de foco.

     

      - E então? - perguntou D. G. com ar grave.

      Gladia parecia angustiada. Mecanicamente, olhou para Daneel e Giskard, que permaneceram em silêncio e imóveis.

      - Não quero voltar para Aurora, D. G. - disse. - Eles não podem querer destruir Giskard, que está em perfeitas condições de trabalho, garanto-lhe. É só um subterfúgio. Eles me querem por algum motivo. Imagino que não há como impedi-los, não é?

      - É uma belonave Auroreana, e das grandes. Esta é apenas uma nave comercial. Temos couraças de energia e eles não podem nos destruir simplesmente com um tiro, embora possam finalmente nos avariar - muito breve, na verdade - e depois nos destruir.

      - Há alguma forma de atacá-los?

      - Com minhas armas? Lamento, Gladia, mas suas couraças podem suportar tudo que eu atirar contra eles durante o tempo em que eu tiver energia para gastar. Além disso...

      - Sim?

      - Bem, eles estão a ponto de me imprensar. De certa forma, achei que iam tentar me interceptar antes que eu Saltasse, mas eles conheciam meu destino e chegaram antes para esperar por mim. Estamos no Sistema Solar - o sistema planetário do qual a Terra faz parte. Não podemos lutar aqui. Mesmo que eu quisesse, a tripulação não me obedeceria.

      - Por quê?

      - Chame de superstição. O Sistema Solar é um espaço sagrado para nós - se quiser descrevê-lo em termos melodramáticos. Não podemos profaná-lo guerreando.

      Giskard falou subitamente:

      - Posso entrar na discussão, senhor?

      D. G. franziu a testa e olhou para Gladia, que disse:

      - Por favor. Deixe-o. Esses robôs são extraordinariamente inteligentes. Sei que o senhor acha difícil acreditar, mas...

      - Ouvirei. Não serei influenciado.

      - Senhor - prosseguiu Giskard. - Tenho certeza de que é a mim que eles querem. Não posso me permitir ser a causa de danos a seres humanos. Se o senhor não pode se defender e tem certeza de que será aniquilado num conflito com a outra belonave, não tem escolha a não ser desistir. Tenho certeza que se propuser deixá-los me pegar, eles não objetarão que o senhor fique com Lady Gladia e o amigo Daneel. É a única solução.

      - Não - disse Gladia violentamente. - Você é meu e não desistirei de tê-lo. Irei com você, se o comandante decidir que deve ir, e tratarei de fazer com que eles não o destruam.

      - Também posso falar? - perguntou Daneel. D. G. estendeu os braços, num desespero fingido.

      - Por favor. Falem todos.

      - Se o senhor resolver que precisa renunciar a Giskard - disse Daneel - deve compreender as conseqüências. Acredito que Giskard pense que, entregando-se, os que estão na nave Auroreana não lhe causarão nenhum mal e irão até mesmo soltá-lo. Não acredito que isso aconteça. Acredito que os Auroreanos pensam seriamente que ele é perigoso e podem até ter instruções para destruir o bote salva-vidas à sua aproximação, matando quem estiver a bordo.

      - Por que motivo fariam isso? - perguntou D. G.

      - Nenhum Auroreano jamais encontrou, ou mesmo imaginou, o que eles chamam de robô perigoso. Não vão correr o risco de ter um a bordo de uma de suas naves. Eu sugeriria, comandante, que o senhor recuasse. Por que não dar novamente o Salto para longe da Terra? Não estamos tão perto de alguma massa planetária que não possamos fazer isso.

      - Recuar? Quer dizer fugir? Não posso fazer isso.

      - Bem, nesse caso deve desistir - disse Gladia, com um ar de desespero resignado.

      D. G. redargüiu energicamente:

      - Não vou desistir. E não estou fugindo. E não posso lutar.

      - Então o que resta? - perguntou Gladia.

      - Uma quarta alternativa - replicou D. G. - Gladia, peço-lhe que permaneça aqui com seus dois robôs até minha volta.

     

      D. G. examinou os dados. Tinha havido tempo suficiente durante a conversa para a localização da nave Auroreana com precisão. Estava um pouco mais afastada do sol que a sua própria nave, e isso era bom. Saltar para o sol naquela distância seria de fato arriscado, pular lateralmente seria, por assim dizer, uma sopa, em comparação.

      Havia a possibilidade de acidente, mas sempre havia.

      Ele tinha garantido pessoalmente à tripulação que nenhum tiro seria dado (o que, de qualquer modo, não seria bom). Nitidamente, eles tinham plena fé em que o espaço terrestre os protegesse enquanto não o profanassem pela violência. Era puro misticismo, de que D. G. teria ironicamente zombado, não partilhasse ele próprio dessa convicção.

      Dirigiu-se novamente ao foco. Tinha sido uma espera bastante longa, mas não havia sinal do outro lado. Eles haviam demonstrado uma paciência exemplar.

      - Aqui o Comandante Baley - disse. - Desejo falar com o Comandante Lisiform.

      Não teve que esperar muito.

      - Aqui o Comandante Lisiform. Posso ter sua resposta?

      - Entregaremos a mulher e os dois robôs - respondeu D. G.

      - Ótimo. Uma decisão acertada.

      - E os entregaremos o mais breve possível.

      - Também uma decisão acertada.

      - Obrigado.

      D. G. fez o sinal e sua nave saltou.

      Não houve tempo nem necessidade de prender a respiração. Estava acabado, tão cedo como começou - ou, pelo menos, o lapso de tempo foi insensível.

      O piloto falou:

      - Estabelecida a nova posição da nave inimiga, comandante.

      - Ótimo - comentou D. G. - Você sabe o que fazer.

      A nave tinha saído do Salto em alta velocidade, em relação à nave Auroreana, e a correção do curso (não muito extensa, como esperou) foi feita. Em seguida, a aceleração.

      D. G. tornou a entrar em foco.

      - Estamos perto, comandante, e a caminho da entrega. Pode atirar, se preferir, mas nossas couraças estão erguidas, e antes que consiga danificá-las, nós o teremos alcançado para fazer a entrega.

      - Está enviando um salva-vidas?

      O comandante saiu de foco.

      D. G. esperou e o comandante voltou, o rosto torcido:

      - O que é isso? Sua nave está em rota de colisão.

      - Sim, parece que está - retrucou D. G. - Esta é a maneira mais rápida de fazer a entrega.

      - O senhor vai destruir sua nave.

      - E a sua também, que é pelo menos cinco vezes mais cara que a minha, provavelmente mais. Uma troca desvantajosa para Aurora.

      - Mas o senhor está entrando em combate no espaço terrestre, comandante. Suas normas não lhe permitem isso.

      - Ah, o senhor conhece nossas normas e tira vantagem disso... Mas não estou em combate. Não disparei um erg de energia e não dispararei. Estou meramente seguindo uma trajetória. De fato, essa trajetória cruzará a sua posição, mas, como eu tenho certeza que se afastará antes que chegue o instante do cruzamento, está claro que a violência não faz parte dos meus planos.

      - Pare. Vamos conversar sobre isso.

      - Estou cansado de conversa, comandante. Vamos nos dar um amistoso adeus? Se o senhor não se afastar, estarei renunciando talvez a quatro décadas, a terceira e quarta não tão boas, de qualquer modo. A quantas o senhor estará renunciando?

      D. G. saiu de foco, ficando de lado.

      Um feixe de radiação partiu da nave Auroreana - uma tentativa como para experimentar se as couraças do inimigo estavam mesmo erguidas. Estavam.

      As couraças da nave sustentaram-se contra a radiação eletromagnética e partículas subatômicas, incluindo até neutrinos, e podiam resistir à energia cinética de pequenas massas - partículas de poeira e chuva de meteoros. O que elas não podiam era resistir a energias cinéticas maiores, como as de uma nave inteira metralhando-as a uma velocidade supermeteórica.

      Até mesmo massas perigosas, se não guiadas - um meteoróide, por exemplo - podiam ser controladas. Um computador podia afastar automaticamente a nave do caminho de qualquer meteoro inesperado grande demais para ser controlado pela couraça. Isso só não funcionaria contra uma nave que pudesse girar quando o alvo girava. E se a nave Colonizadora era a menor das duas, era também a mais manobrável.

      Havia apenas um modo da nave Auroreana evitar a destruição...

      D. G. ficou observando a outra nave aumentando no seu visor e imaginou se Gladia, em seu camarote, sabia o que estava acontecendo. Ela devia ter percebido a aceleração, apesar da suspensão hidráulica do seu alojamento e da ação compensatória do seu campo de falsa gravidade.

      Então a outra nave simplesmente desapareceu da visão, tendo saltado para longe, e D. G., com enorme pesar, percebeu que estava contendo a respiração e que seu coração tinha disparado. Não teria ele confiança na influência protetora da Terra ou no seu próprio diagnóstico da situação?

      D. G. falou no transmissor numa voz que, com resolução férrea, forçou a se tornar gélida:

      - Muito bem, rapazes! Corrigir o curso e direto para a Terra.

 

      A Cidade

      Gladia perguntou:

      - Está falando sério, D. G.? Você realmente pretendia colidir com a nave?

      - De modo nenhum - respondeu D. G., indiferente. - Eu não esperava isso. Só pretendia arremeter sobre eles, sabendo que recuariam. Aqueles Espaciais não iriam arriscar suas longas e maravilhosas vidas. Se pudessem facilmente preservá-las.

      - Aqueles Espaciais? Como eles são covardes.

      D. G. pigarreou.

      - Vivo esquecendo que você é Espacial, Gladia.

      - Sim... e imagino que você pensa que isso é um cumprimento para mim. E se eles fossem tão loucos quanto você, se exibissem a loucura infantil que você considera bravura, e tivessem permanecido no lugar? Você teria feito o quê?

      - Atacado - resmungou D. G.

      - E então todos nós teríamos morrido.

      - O negócio penderia para o nosso lado, Gladia. Uma velha nave carunchosa de Mercadores de um mundo Colonizador por uma nova e avançada belonave do planeta Espacial líder.

      D. G. recostou sua cadeira na parede e colocou as mãos na nuca (espantoso como se sentia confortável, agora que tudo tinha acabado).

      - Vi uma vez um hiperdrama histórico no qual, lá para o fim de uma guerra, aviões carregados de explosivos eram deliberadamente atirados sobre navios muito mais caros, com o objetivo de afundá-los. Claro, o piloto de cada avião perdia a vida.

      - Isto era ficção - retrucou Gladia. - Você não imagina que gente civilizada faça coisas como essa na vida real, não é?

      - Por que não? Se a causa for suficientemente boa...

      - E foi aí, então, que você sentiu como se estivesse mergulhando para uma morte gloriosa? Exaltação? Você estava arrastando toda a sua tripulação para a mesma morte.

      - Eles sabiam disso. Nada mais podíamos fazer. A Terra estava observando.

      - Os Terráqueos nem mesmo estavam sabendo.

      - Eu falei metaforicamente- Estávamos no espaço da Terra. Não podíamos agir com baixeza.

      - Oh, que maluquice. E também arriscou a minha vida.

      D. G. olhou para o chão.

      - Gostaria de ouvir uma coisa maluca? Foi a única coisa que me incomodou.

      - A minha possível morte?

      - Não exatamente. A sua perda. Quando eles me ordenaram que desistisse, senti que não podia... ainda que você me pedisse. Em vez disso, teria prazerosamente abalroado a nave deles, eles não a teriam. E então, quando vi a nave deles crescendo no visor, pensei: "Se eles não saírem dali, eu a perco da mesma maneira." Foi aí que meu coração acelerou e eu comecei a suar. Mesmo depois de vê-los fugir, o pensamento não me abandonou.

      Sacudiu a cabeça. Gladia franziu o cenho.

      - Não o compreendo. Não se preocupou com minha morte, mas ficou preocupado com a minha perda? Não é tudo a mesma coisa?

      - Sim, eu sei. Não estou dizendo que seja racional. Pensei em você se atirando contra a supervisora para me salvar quando sabia que ela podia matá-la com um soco. Pensei em você enfrentando a multidão em Baleyworld e discursando para ela, quando nunca tinha visto uma multidão. Cheguei mesmo a pensar em você indo para Aurora quando era uma mocinha e aprendendo um novo modo de viver - e sobrevivendo. E pareceu-me que não me importava com a morte, só me importava com o fato de perdê-la. Tem razão. Foi insensato.

      Gladia disse, pensativa:

      - Esqueceu minha idade? Sou mais ou menos tão velha como quando você nasceu. Quando eu tinha sua idade, sonhava com seu velho Antepassado. Além disso, tenho um quadril artificial. Meu polegar esquerdo é totalmente protético - disse ela, sacudindo-o. - Alguns dos meus nervos foram reconstruídos. Meus dentes são todos de cerâmica, implantados. E você fala como se a qualquer momento fosse confessar uma paixão transcendente. .. Por quê?... Por quem?... Pense, D. G.!... Olhe-me e veja-me como sou!

      D. G. equilibrou sua cadeira em duas pernas e acariciou a barba com um barulho áspero.

      - Está bem. Você fez com que eu me sentisse bobo, mas vou continuar. O que sei a respeito de sua idade é que vai viver mais que eu e que mal parece mais velha, quando quer. Portanto, é mais moça que eu e não mais velha. Além disso, pouco me importa se for mais velha. O que eu gostaria é que você ficasse ao meu lado aonde quer que eu fosse, por toda a minha vida, se possível.

      Gladia ia responder, mas D. G. impediu-a apressadamente.

      - Ou, se parecer mais conveniente, que eu ficasse ao seu lado aonde quer que você fosse, por toda a minha vida, se possível... se você estiver de acordo.

      - Sou uma Espacial e você um Colonizador - disse Gladia suavemente.

      - Isso tem importância, Gladia? Você se importa?

      - Quero dizer, nem pensar em filhos. Tive um.

      - Isso não é problema para mim! Não há perigo do nome Baley desaparecer.

      - Tenho uma tarefa. É minha intenção pacificar a galáxia.

      - Vou ajudá-la.

      - E seu comércio? Vai desistir da oportunidade de enriquecer?

      - Trabalharemos juntos. Apenas o suficiente para manter minha tripulação contente e me ajudar a apoiá-la em sua tarefa de pacifista.

      - A vida vai ser monótona para você D. G.

      - Será? Parece-me que, desde que você se junte a mim, vai ser muito excitante.

      - E você provavelmente insistirá para que eu desista dos meus robôs.

      D. G. ficou abatido.

      - É por isso que você está tentando me fazer desistir? Não me importo que fique com os dois, até mesmo Daneel, com seu risinho debochado, mas se tivermos de morar entre os Colonizadores...

      - Então suponho que devo achar coragem para isso.

      Ela riu suavemente e D. G. também. Ele estendeu-lhe os braços e Gladia segurou suas mãos.

      - Você é louco - disse Gladia. - Eu sou louca. Tudo tem sido tão estranho desde a noite em que olhei o céu em Aurora, procurando descobrir o sol de Solaria, que supus ser a loucura a única resposta sã para tudo isso.

      - O que você acaba de dizer não só é insensato - retrucou D. G. - mas insano, e é assim que eu quero que você seja. - Hesitou. - Não, esperarei. Rasparei a barba antes de beijá-la. Isso diminuirá as possibilidades de infecção.

      - Não, não faça isso! Tenho curiosidade de sentir como será.

      E ela rapidamente satisfez sua curiosidade.

     

      O Comandante Lisiform andava de um lado para outro no seu camarote, dizendo:

      - Não valia a pena perder a nave. De maneira nenhuma.

      Seu conselheiro político estava calado em sua cadeira. Seus olhos não se davam ao trabalho de acompanhar as agitadas idas e vindas do outro.

      - Sim, é claro - disse.

      - Que tinha o bárbaro a perder? Sua única vida de poucas décadas, só isso. A vida nada significa para eles.

      - Sim, é claro.

      - Contudo, eu nunca vi ouvi nada sobre ações desse tipo por parte de uma nave Colonizadora. Talvez seja uma nova tática fanática, e não temos como nos defender dela. E se eles mandarem naves suicidas contra nós a toda força, com as couraças erguidas, mas sem humanos a bordo?

      - Podemos robotizar totalmente as nossas naves.

      - Isso não adiantaria. Não podemos nos permitir perder a nave. Precisamos é da cortadora de couraças de que andam falando. Alguma coisa que penetre na blindagem.

      - Então eles desenvolverão uma também, e teremos de projetar uma couraça à prova de corte, haverá uma situação de equilíbrio em alto nível.

      - Nesse caso, precisamos de alguma coisa completamente nova.

      - Bem - disse o conselheiro - talvez alguma coisa se modifique. Sua missão não foi basicamente o caso da Solariana e seus robôs, foi? Teria sido bom se tivéssemos podido fazê-los sair da nave Colonizadora, mas isso foi secundário, não?

      - Apesar disso, o Conselho não vai gostar.

      - É minha função cuidar disso. O fato importante é que Amadiro e Mandamus deixaram a nave e estão a caminho da Terra, numa balsa bem veloz.

      - Sim, é verdade.

      - E você não só distraiu a nave Colonizadora como também a atrasou. Isso significa que Amadiro e Mandamus, além de saírem da nave sem serem notados, estarão na Terra antes que o nosso bárbaro comandante deseje.

      - Acho que sim. Mas e daí?

      - Fico imaginando. Se fosse apenas Mandamus, eu não pensaria mais no caso. Não teria conseqüência. Mas Amadiro? Abandonar as guerras políticas internas num momento crucial e vir para a Terra? Alguma coisa absolutamente crítica deve estar acontecendo aqui.

      - O quê?

      O comandante parecia aborrecido por estar tão próximo - e tão decisivamente - envolvido em alguma coisa que escapava à sua compreensão.

   - Não tenho a menor idéia.

      - Acha que poderia tratar-se de negociações secretas no mais alto nível para uma espécie de modificação total do tratado de paz que Fastolfe negociou?

      O conselheiro sorriu.

      - Paz? Se julga isso, não conhece o nosso Dr. Amadiro. Ele não viajaria até a Terra com o objetivo de modificar uma cláusula ou duas num tratado de paz. Ele anda atrás de uma galáxia sem Colonizadores, e se vai à Terra... bem, só posso dizer que não gostaria de estar na pele dos bárbaros Colonizadores neste instante.

     

      - Acredito, amigo Giskard - disse Daneel - que Senhora Gladia não se sinta preocupada por estar sem nós. Pode confirmar a esta distância?

      - Estou captando sua mente, leve mas indiscutivelmente, amigo Daneel. Ela está com o comandante e há uma nítida carga de excitação e alegria.

      - Excelente, amigo Giskard.

      - Menos excelente para mim, amigo Daneel. Encontro-me num estado de desordem. Estive sob uma enorme tensão.

      - Aflige-me ouvir isso, amigo Giskard. Posso saber o motivo?

      - Estivemos aqui durante algum tempo, enquanto o comandante negociava com a nave Auroreana.

      - Sim, mas a nave Auroreana desapareceu, aparentemente, fazendo crer que o comandante teve sucesso nas negociações.

      - Ele o fez de uma forma que você parece não ter percebido. Eu percebi... até certo ponto. Apesar do comandante não estar aqui conosco, sinto uma pequena perturbação em sua mente, que revela uma avassaladora tensão e incerteza, e sob elas uma crescente sensação de perda.

      - Perda, amigo Giskard? Você é capaz de determinar em que consiste essa perda?

      - Não posso descrever meu método de análise de coisas assim, porem a perda não parece ser do tipo que, no passado, associei com generalidades ou objetos inanimados. Houve o toque - a palavra não é essa, mas não há outra que combine, mesmo vagamente, da perda de uma pessoa específica.

      - Lady Gladia.

      - Sim.

      - Isso seria natural, amigo Giskard. Ele estava enfrentando a possibilidade de ter de entregá-la à nave Auroreana.

      - Foi muito intenso por isso. Muito lamentoso.

      - Muito lamentoso?

      - É a única palavra que me ocorre nesta ligação. Houve um lamento exaustivo, associado à sensação de perda. Não era como se Lady Gladia fosse mudar-se para outro lugar e por isso ficar fora de alcance. Afinal de contas, isso podia ser corrigido futuramente. Era como se Lady Gladia tivesse deixado de existir, tivesse morrido, e ficasse eternamente fora de alcance.

      - Ele sentiu, então, que os Auroreanos queriam matá-la? Certamente isso não é possível.

      - De fato, não é possível. E não se trata disso. Senti um fio de uma sensação de responsabilidade pessoal associada com o profundíssimo temor de perda. Pesquisei outras mentes a bordo da nave e, juntando-as, cheguei à suspeita de que o comandante estava deliberadamente atirando sua nave contra a Auroreana.

      - Isso também não é possível, amigo Giskard - disse Daneel em voz baixa.

      - Tive de aceitar isso. Meu primeiro impulso foi alterar as emoções do comandante, de maneira a forçá-lo a mudar de rumo, mas não pude. Sua mente estava firmemente decidida, muito saturada de determinação e, apesar da indecisão, tensão e temor de perda, repleta de confiança no sucesso.

      - Como poderia haver ao mesmo tempo temor de perda por morte e sensação de confiança no sucesso?

      - Amigo Daneel, eu desisti de me assombrar com a capacidade da mente humana de manter duas emoções opostas simultaneamente. Simplesmente aceito. Neste caso, se eu tivesse tentado alterar a mente do comandante a ponto de fazê-lo mudar a rota da nave, ele teria morrido. Eu não podia fazer isso.

      - Mas não o fazendo, amigo Giskard, muitos seres humanos nesta nave, inclusive Lady Gladia, e outras centenas mais na nave Auroreana, também morreriam.

      - Poderiam não morrer se o comandante tivesse razão na sua sensação de confiança no sucesso. Não pude causar uma determinada morte para evitar muitas apenas prováveis. É essa a dificuldade, amigo Daneel, na sua Lei Zero. A Primeira Lei trata de indivíduos específicos e certezas. A Zero, com grupos vagos e probabilidades.

      - Os seres humanos a bordo dessas naves não eram grupos vagos. Eram inúmeros indivíduos específicos tomados em conjunto.

      - Ainda assim, quando eu preciso tomar uma decisão, é o destino do indivíduo específico que estou para influenciar diretamente que deve contar para mim. Não posso evitar.

      - Que foi então que você fez, amigo Giskard, será que ficou completamente desarvorado?

      - No meu desespero, amigo Daneel, tentei contactar o comandante da nave Auroreana, depois que um pequeno Salto o colocou muito perto  de nós... Não pude. A distância era muito grande. E contudo a tentativa não foi completamente um fracasso. Eu detectei alguma coisa, o equivalente a um leve zumbido. E me esforcei um pouco antes de perceber que estava recebendo a sensação total de mentes de todos os seres humanos a bordo da nave Auroreana. Tive de filtrar aquele leve zumbido das sensações muito mais manifestas que surgiam da nossa própria nave, uma tarefa difícil.

      - Quase impossível, penso eu, amigo Giskard - comentou Daneel.

      - Como você disse, quase impossível, mas agi com enorme esforço. Contudo, tentando como tentei, não pude destacar mentes individuais... Quando a Senhora Gladia enfrentou o grande número de seres humanos da sua platéia em Baleyworld, senti uma confusão anárquica de uma enorme mistura de mentes, mas consegui captar mentes individuais aqui e ali, por um momento ou dois. Isso não aconteceu naquela ocasião.

      Giskard fez uma pausa, como que perdido na recordação da sensação.

      - Imagino - disse Daneel - que isso deve ser análogo à maneira como vemos estrelas individuais mesmo entre grandes grupos, quando o conjunto fica comparativamente perto de nós. Numa Galáxia afastada, porém, não podemos destacar estrelas, vendo apenas uma bruma levemente luminosa.

      - Essa é uma boa analogia, amigo Daneel. E quando me concentrei no leve mas distante zumbido, pareceu-me que pude detectar um muito exíguo sentimento de medo se filtrando. Não tive certeza disso, mas senti que devia tirar vantagem. Eu nunca tinha tentado exercer influência sobre nada tão afastado, sobre qualquer coisa que ecoasse como um mero zumbido... mas tentei desesperadamente ampliar aquele medo por qualquer ninharia. Não sei se consegui.

      - A nave Auroreana desapareceu. Você deve ter tido sucesso.

      - Não necessariamente. A nave podia ter desaparecido mesmo que eu nada tivesse feito.

      Daneel pareceu perdido em pensamentos.

      - Podia. Se o comandante tivesse tanta confiança em que ela desapareceria...

      - Por outro lado - disse Giskard - não tenho certeza de que houvesse uma base racional para essa confiança. Parece-me que o que captei foi intercalado com uma sensação de pavor e reverência pela Terra. A confiança que senti foi um tanto similar àquela que tenho captado em criancinhas em relação aos seus pais ou protetores. Tive a sensação de que o comandante acreditava não fracassar na vizinhança da Terra por causa da influência desta. Eu não saberia dizer se a sensação foi exatamente irracional, mas em todo caso parecia não-racional.

      - Você indubitavelmente tinha razão nisso, amigo Giskard. O comandante, certa ocasião, na nossa presença, tinha falado da Terra com reverência. Uma vez que a Terra não pode realmente influenciar o sucesso de uma ação por intermédio de nenhuma influência mística, é muito possível supor que sua influência foi, de fato, exercida com sucesso. E mais ainda...

      Giskard, com os olhos brilhando fracamente, disse:

      - Em que está pensando, amigo Daneel?

      - Estava pensando na suposição de que o ser humano individual é concreto, enquanto a humanidade é abstrata. Quando captou aquele tênue zumbido da nave Auroreana, você estava detectando não um indivíduo, mas uma porção da humanidade. Se estava a uma distância conveniente da Terra e se o barulho ambiental fosse suficientemente pequeno, não podia detectar o zumbido da atividade mental da população humana na Terra como um todo? E, ampliando isso, não se pode imaginar que, na Galáxia em geral, há o zumbido da atividade mental de toda a humanidade? Como, então, a humanidade é uma abstração? É uma coisa que se pode sugerir. Pense nisso em ligação com a Lei Zero e verá que a extensão das Leis da Robótica está justificada - justificada por sua própria experiência.

      Houve um longo silêncio e finalmente Giskard disse, lentamente, como se lhe fosse arrancado:

      - É provável que você tenha razão, amigo Daneel... Não obstante, se estivermos pousando agora na Terra, com uma Lei Zero que podemos ser capazes de usar, ainda assim não saberemos como será possível usá-la. Parece-nos, até agora, que a crise que a Terra enfrenta envolve o uso do intensificador nuclear, porém, até onde podemos saber, não há nada de significância na Terra sobre que um intensificador nuclear possa agir. O que faremos, então, na Terra?

      - Ainda não sei - falou Daneel, triste.

     

      Barulho!

      Gladia escutou, espantada. Não feriu seus ouvidos. Não era o som de uma superfície chocando-se com outra. Não era um guincho penetrante ou um clamor, ou um estouro ou qualquer coisa que pudesse ser externado por um vocábulo onomatopéico.

      Era mais suave e menos dominante, aumentando e diminuindo, contendo uma irregularidade ocasional - e sempre presente.

      D. G. observou-a a ouvir, inclinando a cabeça de um lado para o outro, e disse:

      - Eu chamo a isso "Zumbido da Cidade", Gladia.

      - Isso pára alguma vez?

      - Na verdade, nunca, mas o que esperava? Você nunca esteve num campo, ouvindo o vento agitar as folhas, insetos estridulando, pássaros cantando, e água correndo? Isso nunca pára.

   - É diferente.

      - Não, não é. É a mesma coisa. O ruído aqui é a fusão do estrondo da maquinaria e os vários barulhos que o povo faz, mas o princípio é exatamente o mesmo dos ruídos naturais não-humanos de um campo. Você está habituada a campos e por isso não lhes ouve o barulho. Você não está habituada a isto, daí provavelmente achá-lo aborrecido. Os Terráqueos não o ouvem, exceto nas raras ocasiões em que voltam do campo - e então ficam de fato muito contentes ao ouvi-lo. Amanhã, você também não vai ouvir.

      Gladia olhou em torno, pensativa, da sua posição num pequeno balcão.

      - Tantos edifícios!

      - De fato. Prédios em todas as direções, estendendo-se por quilômetros. E também para cima e para baixo. Esta não é simplesmente uma cidade, como em Aurora ou Baleyworld. Esta é uma Cidade - com C maiúsculo - da espécie que só existe na Terra.

      - São as Cavernas de Aço - disse Gladia. - Eu sei. Estamos sob o solo, não é?

      - Sim. Totalmente. Devo lhe dizer que levei tempo para me acostumar a esta espécie de coisa, na primeira vez em que visitei a Terra. Aonde quer que você vá numa Cidade, a impressão é sempre de um cenário atulhado. Calçadas e estradas, fachadas e multidões, as suaves e universais luzes fluorescentes fazendo tudo parecer banhado por agradável claridade sem sombras - mas não é claridade solar, e acima, na superfície, não sei se o sol está realmente brilhando neste momento ou coberto por nuvens ou então ausente, deixando esta parte do mundo mergulhada na noite e na escuridão.

      - O que torna a Cidade fechada. As pessoas respiram o ar umas das outras.

      - É o que fazemos, afinal de contas, em todos os mundos, por toda a parte.

      - Não como aqui. - Fungou. - Aqui há cheiro.

      - Todo planeta tem cheiro. Cada Cidade na Terra cheira de maneira diferente. Vai se habituar.

      - Será preciso? Por que as pessoas não sufocam?

      - A ventilação é excelente.

      - Que acontece quando a ventilação falha?

      - Nunca falha.

      Gladia tornou a olhar em volta e disse:

      - Cada edifício parece cheio de balcões.

      - É um sinal de status. Muito poucos têm apartamentos dando para fora, e quando têm um, querem tirar vantagem disso. A maioria dos habitantes da Cidade têm apartamentos internos, sem janelas.

      Gladia arrepiou-se.

      - Horrível! Como se chama esta cidade, D. G.?

      - Nova York. É a cidade principal, mas não a maior. Neste continente, a Cidade do México e a de Los Angeles são as maiores, e ainda há maiores em outros continentes.

      - Então o que faz de Nova York a cidade principal?

      - O motivo habitual. O Governo Global está situado aqui. As Nações Unidas.

      - Nações? - Apontou o dedo vitoriosamente para D. G. - A Terra está dividida em inúmeras unidades políticas independentes. Não é?

      - É. Dúzias delas. Isso foi antes da viagem hiperespacial dos tempos pré-hiper. Contudo, o nome permanece. É isso que é maravilhoso na Terra. Sua história é imutável. Qualquer outro mundo é novo e superficial. Só a Terra é humanidade em sua essência.

      D. G. falou num sussurro professoral e depois voltou ao quarto. Não era amplo e seus móveis eram parcimoniosos. Gladia disse, desapontada:

      - Por que não há ninguém aqui?

      D. G. riu.

      - Não se preocupe, querida. Se desfiles e atenção são o que deseja, você os terá. Apenas pedi que nos deixassem sós por um momento. Quero um pouco de paz e descanso, e imagino que você também. Quanto aos meus tripulantes, eles devem ter ancorado a nave, feito a limpeza, reposto os suprimentos, atendido às suas devoções...

      - Mulheres?

      - Não, eu não quis dizer isso, apesar de supor que elas desempenharão um papel mais tarde. Eu quis dizer que a Terra ainda tem suas religiões, que, bem ou mal, confortam os homens. Pelo menos aqui na Terra. Onde parecem ter mais significado.

      - Ora - comentou Gladia, com ar um tanto desdenhoso. - História imutável, como você diz. Acha que podemos sair do prédio e andar um pouco?

      - Aceite meu conselho, Gladia, e não chegue a essa conclusão apressadamente agora. Vai ter muito tempo quando as cerimônias começarem.

      - Mas isso será muito formal. Não podemos evitar as cerimônias?

      - De maneira nenhuma. Uma vez que você insistiu em se tornar heroína em Baleyworld, terá que continuar a sê-lo também na Terra. Contudo, as cerimônias terão um fim. Quando se recuperar delas, arranjaremos um guia e veremos realmente a Cidade.

      - Teremos problemas levando meus robôs conosco? - Fez um gesto para Daneel e Giskard, no outro lado da sala. - Não me incomodo de ficar sem eles quando estou com você na nave, mas se tenho de estar com multidões de estranhos, sinto-me mais segura tendo-os comigo.

      - Com Daneel certamente não haverá problema. É um herói. Foi colega do Antepassado e passa por humano. Quanto a Giskard, evidentemente  um robô, não devia, teoricamente, ser permitida sua entrada na cidade, porém eles abriram uma exceção no seu caso e eu espero que continuem a mantê-la. Por falar nisso, lamento, mas precisamos esperar aqui sem sair.

      - Não tenho certeza de que esteja querendo ficar exposta a todo esse barulho imediatamente - disse Gladia.

      - Não, não. Não estou me referindo às praças públicas e estradas. Gostaria de levá-la apenas aos corredores internos deste edifício. Há quilômetros e quilômetros deles - literalmente - e são uma pequena parte da Cidade: pequenas lojas, salas de refeições, locais de diversões, banheiros, elevadores, vias expressas etc. Há mais cor e variedade num pavimento de um único prédio de uma única Cidade na Terra do que em toda uma cidade de um planeta Colonizador ou Espacial.

      - Devo concluir que todos se sentem perdidos.

      - Claro que não. Todos sabem onde fica sua vizinhança aqui. Mesmo os estrangeiros precisam apenas seguir as placas.

      - Suponho que toda a caminhada que as pessoas são obrigadas a fazer deva ser saudável fisicamente - disse Gladia hesitante.

      - Socialmente também. Há gente nos corredores todo o tempo, e as convenções mandam que você pare para conversar com os conhecidos e cumprimentar mesmo os que não conhece. Nem caminhar é absolutamente necessário. Há elevadores por todos os lados para o transporte vertical. Os corredores principais são transportes e se movem no sentido horizontal. Fora do edifício, claro, há uma linha alimentadora da rede de Vias Expressas. É formidável. Precisa andar nela.

      - Já ouvi falar. Faixas por onde se anda e que nos carregam cada vez mais depressa - ou mais devagar - à medida que se passa de uma para a outra.

      - Não posso fazer isso. Não me peça que faça.

      - Claro que pode - disse D. G. alegremente. - Eu a ajudarei. Se necessário, eu a carregarei, mas basta ter um pouco de prática. Entre os Terráqueos, crianças do jardim de infância conseguem, e também os velhos com bengalas. Confesso que os Colonizadores tendem a ser desajeitados. Não sou nenhuma maravilha, mas consigo, e você também conseguirá.

      Gladia soltou um enorme suspiro.

      - Bem, nesse caso, tentarei, se for necessário. Mas digo-lhe uma coisa, querido D. G.: precisamos ter um quarto razoavelmente silencioso para dormir. Quero que o seu "Zumbido da Cidade" seja abafado.

      - Darei um jeito, garanto-lhe.

      - E não quero precisar comer na Seção das cozinhas.

      D. G. ficou indeciso.

      - Podemos dar um jeito para que a comida seja trazida aqui, mas realmente iria lhe fazer bem participar da vida social da Terra. Afinal de contas, estarei ao seu lado.

      - Talvez depois de algum tempo, D. G., mas não imediatamente - e desejo um banheiro privativo.

      - Ah, não, isso é impossível. Haverá um tanque e uma pia nos quartos que nos destinaram, porque temos posição, mas se pretende uma chuveirada ou um banho completo, vai ter de acompanhar os outros. Uma mulher a orientará quanto à maneira de proceder e você será conduzida ao local adequado ou o que quer que eles tenham aqui. Você não será dificultada. As Colonizadoras têm de ser ensinadas a usar o banheiro coletivo cada dia do ano. E você vai acabar tendo prazer em usá-lo, Gladia. Eles me disseram que o banheiro feminino é um lugar de muita atividade e divertimento. No banheiro masculino, por outro lado, não é permitido conversa. Muito aborrecido.

      - É tudo horrível - resmungou Gladia. - Como você agüenta essa falta de privacidade?

      - Num planeta superpovoado, a necessidade impõe - replicou D. G. alegremente. - O que nunca tivemos não nos faz falta. Deseja mais algum provérbio?

      - Na verdade, não - afirmou Gladia.

      Ela pareceu desanimada e D. G. passou o braço sobre seus ombros.

      - Vamos, não vai ser tão ruim quanto pensa. Prometo.

     

      Não foi exatamente um pesadelo, porém Gladia ficou contente com sua experiência anterior em Baleyworld, que lhe dera uma prévia do que era agora um verdadeiro oceano de humanidade. As multidões eram muito maiores em Nova York do que no planeta dos Colonizadores, mas, por outro lado, ela estava mais isolada delas do que estivera naquela ocasião.

      Os funcionários do governo estavam nitidamente ansiosos para serem vistos com ela. Havia uma luta silenciosa e educada por uma posição ao seu lado na hipervisão.

      Isso a isolava não apenas das multidões no outro lado das linhas policiais, mas de D. G. e seus dois robôs. E também a submetia a uma espécie de educados empurrões de gente que parecia ter apenas um olho na câmera.

      Ela ouviu o que pareceram ser inúmeros discursos, todos felizmente curtos, sem realmente prestar atenção. Sorriu de vez em quando, tanto suave como cegamente, exibindo a visão dos seus dentes implantados em todas as direções, indiscriminadamente.

      Atravessou em carro terrestre quilômetros de estradas, enquanto um incontável formigueiro se alinhava nas calçadas, saudando e sacudindo os braços à sua passagem (ela ficou imaginando se mesmo um Espacial tinha recebido tal saudação dos Terráqueos, e ficou convencida de que seu próprio caso era inteiramente sem precedentes).

      Num certo ponto, percebeu um aglomerado distante de gente em torno de uma tela de hipervisão e por um momento teve uma indiscutível imagem de si mesma. Eles estavam prestando atenção, percebeu, a uma gravação do seu discurso em Baleyworld. Ela ficou imaginando quantas vezes, em quantos lugares e diante de quantas pessoas ele estava sendo repetido agora, quantas vezes tinha sido repetido desde que o havia feito, quantas vezes seria repetido no futuro, e se algo dele tinha sido ouvido nos planetas Espaciais.

      Poderia ela, de fato, parecer traidora ao povo de Aurora? Esta recepção estaria sendo feita como prova disso?

      Sim, tudo isso era possível - mas ela não estava preocupada. Tinha sua missão de paz, de reconciliação, e precisava segui-la aonde quer que a levasse, sem se lamentar - até mesmo à inacreditável orgia do banho coletivo e o barulhento exibicionismo inconsciente no banheiro feminino naquela manhã. (Bem, sem se lamentar muito.)

      Chegaram a uma das Vias Expressas mencionadas por D. G. e Gladia olhou, francamente horrorizada, a serpente de carros de passageiros que passava incessantemente, cada um completamente lotado de gente que trabalhava e que não podia ser preterida pela fila de carros (ou que simplesmente não queria ser incomodada) e que olhava gravemente para as multidões e a fila nos poucos instantes em que estas permaneciam visíveis.

      Então o carro terrestre mergulhou sob a Via Expressa por um pequeno túnel que em nada diferia da passagem acima (a Cidade era só túnel) e energia do outro lado.

      Finalmente a fila de carros chegava ao fim num enorme edifício público que era, felizmente, mais atraente que os infindáveis blocos repetitivos que representavam as unidades da seção residencial da Cidade.

      Dentro do edifício havia também outra recepção, durante a qual foram servidas bebidas alcoólicas e vários hors d'oeuvres. Gladia, enfadada, não tocou em nada. Mil pessoas comprimiam-se em volta, e uma infindável quantidade delas aproximou-se para conversar com ela. Aparentemente, tinha sido espalhada a recomendação de não apertar mãos, porém alguns não evitaram fazê-lo, procurando não titubear, Gladia estendia rapidamente dois dedos e depois os retirava.

      Finalmente, um grupo de mulheres preparou-se para se dirigir ao próprio banheiro, e uma delas com muito tato, executando o que era evidentemente um ritual social, perguntou a Gladia se gostaria de acompanhá-las. Gladia recusou, porém poderia haver uma longa noite pela frente e talvez fosse embaraçoso ter que interrompê-la mais tarde.

      No interior do banheiro havia a usual quantidade de risos e conversas excitadas, e Gladia, curvando-se às exigências da situação e fortalecida por sua experiência naquela manhã, fez uso das instalações num pequeno recinto com tabiques dos dois lados, mas sem nada à sua frente.

      Ninguém pareceu se importar, e Gladia tentou lembrar-se de que devia se adaptar aos costumes. Pelo menos o local estava bem ventilado e parecia impecavelmente limpo.

      Por toda parte, Daneel e Giskard tinham sido ignorados. Isso, percebeu Gladia, foi uma gentileza. Os robôs não eram mais permitidos nos limites da Cidade, embora houvesse milhões no campo. Ter insistido na presença de Daneel e Giskard significaria levantar o preceito legal que isso envolvia. Era mais fácil fingir, habilmente, que eles não estavam presentes.

      Assim que o banquete começou, eles sentaram silenciosamente numa mesa com D. G., não muito afastados do estrado. Neste, sentava-se Gladia, comendo vagarosamente e imaginando se os alimentos lhe provocariam disenteria.

      D. G., talvez não muito satisfeito por ter sido relegado ao posto de guardião dos robôs, ficou olhando aflito na direção de Gladia, que, de vez em quando, erguia a mão e lhe sorria.

      Giskard, igualmente vigiando Gladia, teve oportunidade de dizer a Daneel em voz bem baixa, sob a cobertura do implacável e infindável barulho dos talheres e da conversa:

      - Amigo Daneel, todos os presentes nesta sala são altos funcionários. É possível que alguns deles tenham informações que nos sejam úteis.

      - É possível, amigo Giskard. Você pode, graças às suas capacidades, orientar-me a esse respeito?

      - Não. O fundo mental não permite uma reação emocional específica de interesse. O ocasional lampejo entre o que está mais próximo também não me diz nada. Contudo, o clímax da crise, tenho certeza, está se aproximando rapidamente, ainda que estejamos sentados aqui, sem fazer nada.

      Com ar sério, Daneel disse:

      - Vou tentar fazer o que o Colega Elijah teria feito e forçar o passo.

      Daneel não estava comendo. Olhou o grupo com seus olhos calmos e encontrou quem estava procurando. Silenciosamente, ergueu-se e foi para outra mesa, de olhos postos numa mulher que comia apressadamente e ainda assim conseguia manter uma alegre conversa com o homem à sua esquerda. Era uma mulher forte, de cabelos curtos mostrando mechas grisalhas. Seu rosto, embora não mais jovem, era agradável.

      Daneel esperou uma pausa natural na conversa e, nesse instante, disse, fazendo um esforço:

      - Senhora, permita-me interromper?

      Ela ergueu os olhos para ele, espantada e claramente aborrecida.

      - Sim - disse um tanto asperamente - o que é?

      - Senhora - replicou Daneel - peço-lhe que me perdoe pela interrupção, mas permite que lhe fale durante um instante?

   Ela encarou-o, franzindo o cenho, depois, sua expressão suavizou-se.

      - Sua excessiva polidez faz supor que é o robô, não é?

      - Sou um dos robôs de Senhora Gladia, senhora.

      - Sim, mas é o humano. Você é R. Daneel Olivaw.

      - É esse o meu nome, senhora.

      A mulher virou-se para o homem da esquerda e disse:

      - Por favor, desculpe-me. Não posso deixar de atender a este... robô.

      Seu vizinho sorriu, indeciso, e transferiu sua atenção para o prato à sua frente.

      A mulher virou-se para Daneel:

      - Se você tem uma cadeira, por que não a traz para cá? Terei prazer em conversar com você.

      - Obrigado senhora.

      Quando Daneel voltou e sentou-se, ela perguntou:

      - Você é mesmo R. Daneel Olivaw, não é?

      - Esse é o meu nome, senhora - reafirmou Daneel.

      - Quero dizer, o que trabalhou com Elijah Baley há muito tempo. Você não é um modelo novo da mesma linha? Você não é R. Daneel, o Quarto, ou coisa assim?

      - Há pouca coisa em mim que não tenha sido substituída nas últimas vinte décadas - ou mesmo modernizadas e melhoradas - porém meu cérebro positrônico é o mesmo da época em que trabalhei com o Colega Elijah em três planetas diferentes, e uma vez numa espaçonave. Nunca foi modificado.

      - Ótimo! - Ela o olhou com admiração. - Você é certamente um bom trabalho. Se todos os robôs fossem iguais a você, eu não teria nenhuma restrição a eles. Você quer falar comigo sobre o quê?

      - Quando foi apresentada a Lady Gladia, senhora, antes de nos sentarmos, disseram que a senhora era a Subsecretária de Energia, Sophia Quintana.

      - Você tem uma boa memória. É isso mesmo.

      - Sua função refere-se a toda a Terra ou apenas à Cidade?

      - Sou Subsecretária Global, garanto-lhe.

      - Então é competente no campo da energética?

      Quintana sorriu. Não parecia se importar com o interrogatório. Talvez achasse divertido ou se sentisse atraída pelo ar de respeitosa gravidade de Daneel ou pelo simples fato de um robô poder interrogá-la dessa forma. Fosse como fosse, retorquiu, com um sorriso:

      - Formei-me em energética na Universidade da Califórnia, onde sou professora. Até onde vai minha competência, não sei dizer. Se ainda sou competente, também não sei. Passei muitos anos como administradora, coisa que consome o cérebro, garanto-lhe.

      - Mas a senhora está bem a par dos aspectos práticos do suprimento de energia atual da Terra, não?

      - Estou. Admito. Há alguma coisa que queira saber a respeito?

      - Há uma que aguça minha curiosidade, senhora.

      - Curiosidade? Num robô?

      Daneel inclinou a cabeça.

      - Se um robô é bastante complexo, pode ter consciência de alguma coisa interior que busca informação. É análogo ao que observei ser chamado "curiosidade" em seres humanos, e tomei a liberdade de usar a mesma palavra em relação às minhas próprias sensações.

      - Muito justo. Está curioso a respeito de que, R. Daneel? Posso chamá-lo assim.

      - Pode, senhora. Eu soube que o suprimento de energia da Terra é obtido de estações solares de força numa órbita geoestacionária, no plano equatorial da Terra.

      - Sua informação é correta.

      - Mas essas estações são o único suprimento de energia deste planeta?

      - Não. Elas são as fontes básicas de energia, mas não as únicas. Há um considerável uso de energia do calor interno da Terra, dos ventos, das ondas, das marés, água corrente e coisas semelhantes. Temos uma mistura complexa, e cada variedade tem suas vantagens. Contudo, a energia solar é o sustentáculo principal.

      - A senhora não fez menção à energia nuclear, senhora. Ela não é usada?

      Quintana ergueu as sobrancelhas.

      - É sobre isso que você está curioso, R. Daneel?

      - Sim, senhora. Qual o motivo da ausência de fontes de força nuclear na Terra?

      - Elas não estão ausentes, R. Daneel. Nós as usamos em pequena escala. Nossos robôs - temos muitos no campo, como sabe - usam a microfusão. Por falar nisso, você também usa?

      - Sim, senhora - retrucou Daneel.

      - Pois nós também, temos máquinas aqui e ali funcionando com microfusão, mas o total é insignificante.

      - Não é certo, Senhora Quintana, que as fontes de energia de microfusão são sensíveis à ação de intensificadores nucleares?

      - Claro que são. Sim, claro. As fontes de força de microfusão explodiriam, e suponho que isso decorreria do fato de serem sensíveis.

      - Então não seria possível alguém, usando um intensificador nuclear, enfraquecer uma quantidade vital do suprimento de energia da Terra?

      Quintana riu.

      - Não, claro que não. Em primeiro lugar, não vejo ninguém arrastando um intensificador nuclear de um lado para outro. Eles pesam toneladas, e não creio que possam ser manejados pelas ruas e corredores e, ao longo deles, numa cidade, com certeza, seria notado. E depois, mesmo que um intensificador nuclear fosse posto em ação, tudo o que conseguiria seria destruir alguns robôs e máquinas antes da coisa ser descoberta e evitada. Não há a menor possibilidade de sermos atingidos dessa forma. Era essa a garantia que você queria, R. Daneel?

      Era quase uma despedida.

      - Há apenas um ou dois pequenos detalhes que eu gostaria de esclarecer, Senhora Quintana - retorquiu Daneel. - Porque não há grandes fontes de microfusão na Terra? Todos os planetas Espaciais dependem da microfusão, o mesmo acontecendo com os Colonizadores. A microfusão é portátil, versátil e barata, além de não exigir o grande esforço de manutenção, conserto e substituição que as estruturas Espaciais exigem.

      - É como você disse, R. Daneel, são sensíveis aos intensificadores nucleares.

      - E como a senhora disse, Senhora Quintana, os intensificadores nucleares são grandes e pesados demais para serem de muita utilidade.

      Quintana abriu-se num sorriso e balançou a cabeça.

      - Você é muito inteligente, R. Daneel - replicou ela. - Nunca imaginei que pudesse sentar-me a uma mesa e manter uma discussão como esta com um robô. Seus roboticistas Auroreanos são muito inteligentes, inteligentes demais, e eu temo continuar com esta conversa. Eu teria medo que você ocupasse meu lugar no governo. Sabe, temos uma lenda sobre um robô chamado Stephen Byerley ocupando um alto posto no governo.

      - Isso deve ser pura ficção, Senhora Quintana - replicou Daneel, sério. - Não há robôs em postos governamentais em nenhum dos planetas Espaciais; Somos apenas... robôs.

      - Fico aliviada ao ouvir isso, portanto vamos continuar. A questão de diferenças em fontes de energia tem suas raízes na História. Na época em que a viagem hiperespacial foi desenvolvida, tínhamos a microfusão e por isso os que deixaram a Terra levaram a força da microfusão com eles. Ela se tornou necessária também em espaçonaves e planetas nas gerações durante as quais eles foram adaptados para a ocupação humana. Muitos anos seriam necessários para construir um complexo adequado de estações de força solares - e os emigrantes preferiram continuar com a microfusão. Foi o que aconteceu com os Espaciais em sua época, e com os Colonizadores agora.

      “Na Terra, contudo, a microfusão e a energia solar no espaço foram desenvolvidas mais ou menos na mesma época, e ambas passaram a ser usadas cada vez mais. Finalmente, pudemos fazer nossa escolha e usar uma ou outra, ou, claro, ambas. E escolhemos a energia solar.”

      - Isso me parece estranho, Senhora Quintana. Por que não ambas?

      - Na verdade, não é difícil responder a essa pergunta, R. Daneel. A Terra, nos dias pré-hiperespaciais, teve experiência com uma forma primitiva de energia nuclear, e a experiência não foi feliz. Quando chegou a hora de escolher entre a energia solar e a microfusão, os Terráqueos viram a microfusão como uma forma de energia nuclear e afastaram-se dela. Outros planetas, que não tinham a nossa experiência direta com a forma primitiva de energia nuclear, não viram motivo para se afastar da microfusão.

      - Posso perguntar, senhora, qual era essa forma primitiva de energia nuclear a que se refere?

      - Fissão de urânio - respondeu Quintana. - É completamente diferente da microfusão. A fissão envolve a divisão de núcleos espessos, como os do urânio. A microfusão, a junção de núcleos leves, como os do hidrogênio. No entanto, são ambas formas de energia nuclear.

      - Suponho que o urânio deve ser o combustível para aparelhos de fissão...

      - Sim, ou para outros núcleos espessos, como os do tório ou plutônio.

      - Mas o urânio e esses outros são metais excessivamente raros. Poderia sustentar uma associação para efeito de fusão?

      - Esses elementos são raros em outros planetas. Na Terra, embora não sejam muito comuns, também não são excessivamente raros. O urânio e o tório existem espalhados na crosta terrestre em pequenas quantidades e se concentram em alguns lugares.

      - E, senhora, existem atualmente na Terra aparelhos de fissão?

      - Não - respondeu Quintana, em voz morna. - Em lugar nenhum, e de nenhuma forma. Os seres humanos logo teriam de queimar óleo, ou mesmo madeira, em vez de urânio. A própria palavra "urânio" é tabu na boa sociedade. Você não estaria me fazendo essas perguntas nem eu lhe dando estas respostas se você fosse um ser humano e Terráqueo.

      Daneel insistiu.

      - Mas tem certeza, senhora? Não há máquina secreta que faça uso da fissão, pelo bem da segurança nacional...

      - Não, robô - replicou Quintana, franzindo o cenho. - Garanto-lhe: não existe tal coisa!

      Daneel levantou-se.

      - Agradeço-lhe, senhora, e peço-lhe perdão por tomar-lhe o tempo e por sondar o que parece ser um tema sensível. Com sua licença, deixo-a agora.

      Quintana fez um gesto de mão descuidado.

      - Foi um prazer, R. Daneel.

      Quintana tornou a virar-se para o vizinho, sabendo que nas reuniões da Terra ninguém tentava ouvir as conversas alheias, e se o fizesse, jamais admitia o fato.

      - O senhor pode imaginar uma coisa dessas? - disse ela. - Ter uma discussão sobre energética com um robô!

      Quanto a Daneel, voltou para o seu lugar original e disse, baixo, a Giskard:

      - Nada, amigo Giskard, nada de útil. - Depois acrescentou, com tristeza: - Talvez eu tenha feito as perguntas erradas. O Colega Elijah teria feito as certas.

     

      O Assassino

      O Secretário-Geral Edgard Andrev, diretor-executivo da Terra, era bastante alto e imponente, barbeado no estilo Espacial. Movia-se sempre de maneira medida, como que em constante exibição, e portava-se como se estivesse sempre contente consigo mesmo. Sua voz era um pouco estridente demais para seu corpo, chegando quase a ser esganiçada. Sem parecer empedernido, não era facilmente influenciável. E não estava sendo naquele instante.

      - Impossível - respondeu com firmeza a D. G. - Ela precisa aparecer.

      - Ela teve um dia difícil, secretário-geral - disse D. G. - Não está acostumada a multidões ou a estes ambientes. Sou responsável perante Baleyworld pelo seu bem-estar, e minha honra pessoal está empenhada.

      - Compreendo sua posição - retorquiu Andrev - mas represento a Terra e não posso negar aos Terráqueos que a vejam. Os corredores estão cheios, os canais de hiperonda prontos, e eu não seria capaz de escondê-la nem que o quisesse desesperadamente. Depois disso, e quanto tempo durará? Meia hora? Ela poderá se retirar e não precisará fazer mais nenhuma aparição até seu discurso amanhã à noite.

      - Precisamos cuidar do seu conforto - disse D. G., tacitamente renunciando à sua posição. - Ela precisa ser mantida a alguma distância da multidão.

      - Haverá um cordão de guardas de segurança que lhe dará amplo espaço para respirar. A primeira fila da multidão será mantida bem afastada. Estão lá fora agora. Se não anunciarmos que ela aparecerá breve, poderá haver desordem.

      - Isso não devia ter sido feito. Não é seguro. Há Terráqueos que não gostam de Espaciais.

      O secretário-geral encolheu os ombros.

      - Gostaria que me dissesse como eu poderia ter evitado isso. Neste instante, ela é uma heroína e não pode ser escondida. E ninguém poderá dar-lhe mais que vivas, agora. Se ela, porém, não aparecer, isso mudará. Portanto, vamos.

      D. G. recuou, descontente. Captou o olhar de Gladia. Ela estava cansada e mais que infeliz. Ele disse:

      - Você precisa, Gladia. Não tem saída.

      Por um momento, ela ficou olhando as próprias mãos, como que imaginando se eles poderiam fazer alguma coisa para protegê-la; depois, empertigou-se, ergueu o queixo.

      - Uma pequena Espacial entre aquela horda de bárbaros - e disse: - Já que é preciso, irei. Você ficará comigo?

      - A menos que me retirem fisicamente.

      - E meus robôs?

      D. G. vacilou.

      - Gladia, dois robôs não poderão ajudá-la no meio de milhões de seres humanos.

      - Eu sei, D. G. E também sei que terei de agir sem eles finalmente, se quiser continuar com minha missão. Mas não agora, por favor. No momento, queria sentir-me segura com eles, quer faça sentido ou não. Se esses funcionários da Terra querem que eu agradeça à multidão, que eu sorria, que eu acene, que eu faça o que acham que devo, a presença de Daneel e Giskard me confortará. Olhe, D. G., estou me entregando a eles integralmente, apesar de estar tão intranqüila a ponto de achar que nada seria tão agradável como fugir. Que eles me cedam esta coisa tão pequena.

      - Tentarei - disse D. G., nitidamente desencorajado, quando se adiantou na direção de Andrev, Giskard andou silenciosamente com ele.

      Poucos minutos depois, quando Gladia, rodeada por um grupo cuidadosamente escolhido de funcionários, caminhou para um balcão aberto, D. G. ficou um pouco atrás dela, tendo Giskard à esquerda e Daneel à direita.

      O secretário-geral tinha dito, pesarosamente:

      - Está bem, está bem. Não sei como fez para me levar a concordar, mas está bem. - Passara a mão na testa, sentindo uma leve dor na têmpora direita. Sem saber por que, encarara Giskard e afastara os olhos com um arrepio. - Mas o senhor precisa conservá-los imóveis, comandante, não se esqueça. E, por favor, mantenha o que parece um robô o mais discreto possível. Ele me deixa inquieto, e não quero que chame a atenção mais que o necessário.

      - Eles ficarão olhando Gladia, secretário-geral - replicara D. G. - e não olharão para mais ninguém.

      - Espero que sim - respondera Andrev, irascível.

      Fizera uma pausa para pegar uma cápsula com uma mensagem que alguém lhe entregara. Colocara-a no bolso e depois caminhara, não pensando mais nela até que chegaram ao balcão.

     

      Gladia parecia que, cada vez que se movia para outro ambiente, a coisa ficava pior - mais gente, mais barulho, mais luzes confusas, mais invasão de cada sentido de percepção.

      Houve um brado. Ela pôde ouvir seu nome sendo gritado. com dificuldade, venceu sua própria tendência de se encolher e ficou imóvel. Ergueu o braço e acenou, sorrindo, e os gritos aumentaram. Alguém começou a discursar, sua voz ressoando no sistema de alto-falantes, sua imagem numa tela enorme, bem acima deles, de maneira a poder ficar visível para toda a multidão. Sem dúvida, era também visível em inúmeras telas de inúmeras salas de reunião em cada Setor de cada Cidade do planeta.

      Gladia suspirou aliviada por estar alguém em foco. Procurou encolher-se dentro de si mesma, deixando que as palavras do orador atraíssem a atenção da massa.

      O Secretário-Geral Andrev, procurando a cobertura da voz, a exemplo de Gladia, ficou agradecido porque, ao dar precedência a Gladia, não tinha parecido necessário que ele falasse naquela ocasião. Subitamente, lembrou da mensagem que tinha metido no bolso.

      Franziu o cenho, numa perturbação repentina sobre o que poderia determinar a interrupção de cerimônia tão importante, e então experimentou uma sensação contrária de intensa irritação pelo fato de que provavelmente provaria não ter a menor importância.

      Apertou a cápsula com o polegar direito na ligeira concavidade própria e ela se abriu. Retirou o fino pedaço de papel plástico, leu a mensagem nele contida e depois viu-o enrugar-se e fragmentar-se. Espanou o pó impalpável que permaneceu e fez um gesto imperioso na direção de D. G.

      Era quase desnecessário sussurrar sob as condições do ambiente barulhento.

      - Você disse que encontrou uma nave de guerra Auroreana dentro do espaço do Sistema Solar - disse Andrev.

      - Sim, e suponho que os sensores Terráqueos a detectaram.

      - Claro que sim. Você disse que não houve ações hostis de ambos os lados.

      - Nenhuma arma foi usada. Eles exigiram a Senhora Gladia e seus robôs. Recusei e eles foram embora. Expliquei tudo isso.

      - Isso demorou quanto tempo?

      - Não muito. Algumas horas.

      - Você está dizendo que Aurora enviou uma belonave unicamente para travar uma discussão durante algumas horas e depois retirou-se?

      D. G. encolheu os ombros.

      - Secretário-geral, não sei os motivos deles. Posso apenas relatar o que aconteceu.

      O secretário-geral encarou-o com arrogância.

   - Mas não relatou tudo o que aconteceu. A informação dos sensores foi agora completamente analisada por computador e está parecendo que o senhor atacou.

      - Não disparei um quilowatt de energia, senhor.

      - Tomou em consideração a energia cinética? Você usou a nave como um projétil.

      - É o que deve ter parecido a eles. Eles preferiram não me enfrentar e considerar o que poderia ter sido um blefe.

      - Mas foi?

      - Podia ter sido.

      - Parece-me, comandante, que estava pronto a destruir duas naves dentro do Sistema Solar e talvez criar uma situação de crise bélica. Foi uma terrível possibilidade que enfrentou.

      - Não pensei que chegaria a uma real destruição, e não chegou.

      - Mas todo o processo o atrasou e distraiu sua atenção.

      - Sim, suponho que sim, mas por que está frisando isso?

      - Porque nossos sensores observaram uma coisa que o senhor não notou - ou, de qualquer forma, não relatou.

      - E que pode ser essa coisa, secretário-geral?

      - Eles captaram o lançamento de um módulo orbital, ao que parece com dois seres humanos a bordo, e que desceu em direção à Terra.

      Os dois estavam imersos num mundo particular. Nenhum outro ser humano no balcão estava dando a menor atenção a eles. Só os dois robôs que flanqueavam D. G. estavam olhando e prestando atenção em ambos.

      Foi nesse ponto que o orador parou, sendo estas suas últimas palavras:

      - Lady Gladia, nascida Espacial no planeta Solaria, vivendo como Espacial no planeta Aurora, mas se tornando Cidadã da Galáxia em Baleyworld, planeta dos Colonizadores. - Virou-se para ela e fez um gesto amplo: - Lady Gladia...

      O barulho da multidão tornou-se um longo e alegre troar, e a multidão, uma floresta de mãos abanando. Gladia sentiu a mão suave de alguém em seu ombro e ouviu uma voz em seu ouvido, que dizia:

      - Por favor. Diga algumas palavras, minha senhora.

      Gladia começou, com voz fraca:

      - Povo da Terra. - As palavras ressoaram e estranhamente fez-se silêncio. Gladia prosseguiu, com maior firmeza: - Povo da Terra, estou lhes mostrando um ser humano igual a vocês. Um pouco mais velho, admito, faltando-me sua juventude, sua esperança, sua capacidade de se entusiasmar. Minha desdita é temperada neste momento, contudo, pelo fato de que na presença de vocês sinto-me captando seu vigor, de maneira que a capa da idade desaparece...

      Os aplausos aumentaram e alguém no balcão disse a outro:

      - Ela os está deixando felizes por terem vida curta. A Espacial tem a impudência do diabo.

      Andrev não estava prestando atenção. Virou-se para D. G. e disse:

      - Todo o episódio com a sua nave pode ter sido um pretexto para trazer aqueles homens para a Terra.

      - Eu não tinha como saber disso - replicou D. G. - Eu só podia pensar em salvar Lady Gladia e a minha nave. Onde terão pousado?

      - Não sabemos. Não pousaram em nenhum dos espaçoportos da Cidade.

      - Suponho que não - comentou D. G.

      - Na verdade, isso não me importa - disse o secretário-geral - apenas me aborrece. Nos vários anos que passaram, houve um sem-número de pousos dessa espécie, embora nenhum tão cuidadosamente preparado. Nunca aconteceu nada e não prestamos atenção. A Terra, afinal de contas, é um mundo aberto. É o berço da humanidade, e qualquer pessoa de qualquer planeta pode ir e vir livremente mesmo os Espaciais, se quiserem.

      D. G. cofiou a barba, produzindo um ruído áspero.

      - E contudo suas intenções podem não ser de ajuda.

      (Gladia estava dizendo: "Desejo a todos muita felicidade neste mundo que deu origem à humanidade, neste planeta muito especial e nesta maravilhosa Cidade..." - e agradecendo o caloroso aplauso com um sorriso e um aceno, ficando parada e permitindo que o entusiasmo aumentasse e encorpasse.)

      Andrev alteou a voz para ser ouvido por cima do vozerio da multidão.

      - Quaisquer que sejam suas intenções, vão dar em nada. A paz que desceu sobre a Terra desde que os Espaciais se retiraram e a Colonização começou é inquebrável. Durante muitas décadas, os de temperamento agressivo entre nós foram partindo para os planetas dos Colonizadores, de forma que pessoas com o seu temperamento, comandante, que podem ousar arriscar a destruição de duas naves dentro do espaço do Sistema Solar, não são encontradas na Terra. Não há mais um nível substancial de crime nem violência na Terra. Os guardas de segurança destacados para controlar esta multidão não usam armas porque não precisam delas.

      E enquanto falava, do anonimato da enorme multidão um explosor apontou para o balcão e foi cuidadosamente mirado.

     

      Uma porção de coisas aconteceu quase ao mesmo tempo.

      A cabeça de Giskard tinha girado para olhar a multidão, guiada por um efeito repentino.

      Os olhos de Daneel acompanharam o movimento, viram o explosor apontado, com reações mais rápidas que as de um humano, ele deu um bote.

      O barulho do explosor ressoou.

   As pessoas no balcão silenciaram e depois começaram a gritar.

      D. G. pegou Gladia e atirou-a para um lado.

      O barulho da multidão explodiu numa tremenda gritaria.

      O bote de Daneel tinha sido na direção de Giskard, a quem derrubou.

      O tiro do explosor entrou na sala por trás do balcão e produziu um orifício no teto. Uma linha traçada do explosor ao orifício podia ter passado pela porção de espaço ocupado um momento antes pela cabeça de Giskard.

      Giskard murmurou no instante em que foi derrubado:

      - Não-humano. Um robô.

      Daneel, soltando Giskard, examinou a cena rapidamente. O nível do chão estava a uns seis metros abaixo do balcão, e o espaço intermediário estava vazio. Os guardas de segurança forçavam a passagem para a região do motim entre a multidão que assinalava o local onde estivera o suposto assassino.

      Daneel saltou por cima do balcão e deixou-se cair, o esqueleto de metal absorvendo com facilidade o choque, como nenhum ser humano faria.

      Correu para a multidão.

      Daneel não tinha escolha. Nunca se tinha defrontado antes com coisa igual. A necessidade principal era chegar ao robô com o explosor antes que fosse destruído, com isso em mente, Daneel achou que, pela primeira vez em sua existência, não podia ater-se à sutileza de evitar que seres humanos individuais fossem feridos. Teria de sacudi-los um pouco.

      Atirou-os para o lado, na verdade, quando mergulhou na multidão, gritando com voz estentórea:

      - Abram caminho! Abram caminho! A pessoa com o explosor precisa ser interrogada!

      Os guardas de segurança caíram atrás dele e encontraram a "pessoa" finalmente no chão e um tanto machucada.

      Mesmo numa Terra que se orgulhava em ser não-violenta, uma erupção de raiva contra um assassino obviamente deixou sua marca. Ele tinha sido agarrado, chutado e espancado.

      Somente a grande densidade da multidão tinha salvo o assassino de ser estraçalhado. Os inúmeros atacantes, puxando para todos os lados, conseguiram fazer comparativamente pouco.

      Os guardas de segurança afastaram a multidão com dificuldade. No chão, perto do robô de bruços, estava o explosor. Daneel não se preocupou com ele.

      Ajoelhou-se ao lado do assassino capturado. Perguntou:

      - Pode falar?

      Olhos reluzentes fixaram-se em Daneel.

      - Posso - respondeu o assassino, em voz baixa mas, por outro lado, bem normal.

      - Você é de origem Auroreana?

      O assassino não respondeu. Daneel acrescentou rapidamente:

      - Sei que é. Foi uma pergunta desnecessária. Onde fica sua base neste planeta?

      O assassino permaneceu calado. Daneel perguntou:

      - Sua base. Onde é? Precisa responder. Estou lhe ordenando que responda.

      - Você não pode me ordenar - replicou o assassino. - Você é R. Daneel Olivaw. Falaram-me de você, não preciso obedecê-lo.

      Daneel ergueu os olhos, tocou o guarda mais próximo e disse:

      - Senhor, quer perguntar a esta pessoa onde fica sua base?

      O guarda, espantado, tentou falar, mas só conseguiu emitir um grasnido rouco. Engoliu, embaraçado, pigarreou e depois berrou:

      - Onde fica sua base?

      - Estou proibido de responder a essa pergunta senhor - disse o assassino.

      - Você precisa responder - falou Daneel, com firmeza. - Um funcionário planetário está fazendo a pergunta. Senhor, quer ordenar-lhe que responda?

      O guarda repetiu:

      - Ordeno-lhe que responda, prisioneiro.

      - Estou proibido de responder a essa pergunta, senhor.

      O guarda curvou-se para pegar o assassino brutalmente pelo ombro, mas Daneel interferiu rapidamente:

      - Eu sugeriria que não seria útil usar força, senhor.

      Daneel olhou em volta. Grande parte do clamor da multidão tinha diminuído. Havia uma tensão no ar, como se um milhão de pessoas estivesse esperando ansiosamente para ver o que Daneel faria.

      Daneel disse aos vários guardas que agora tinham se amontoado em torno dele e do assassino de borco:

      - Senhores, querem abrir caminho para mim? Preciso levar o prisioneiro a Lady Gladia. É possível que ela o force a responder.

      - E se chamássemos um médico para o prisioneiro? - perguntou um dos guardas.

      - Isso não será necessário, senhor - replicou Daneel. Mas não explicou por quê.

     

      - Isso? Como pôde acontecer - disse Andrev irritado, os lábios trêmulos de raiva.

      Estavam na sala do balcão e ele deu uma olhada para o buraco no teto, que permanecia como prova muda da violência ocorrida.

      Gladia disse, com voz que se esforçou com sucesso em evitar que tremesse:

   - Nada aconteceu. Não fui atingida. Há esse buraco no teto, que o senhor vai mandar reparar, e talvez mais alguns consertos adicionais na sala de cima. É só.

      Enquanto falava, Gladia ouviu gente no andar superior afastando peças junto ao buraco e presumivelmente avaliando os prejuízos.

      - Não é só - replicou Andrev. - Isso frustra nossos planos de apresentá-la amanhã para um discurso dirigido a todo o planeta.

      - Pelo contrário - falou Gladia. - O planeta deverá estar ainda mais ansioso para me ouvir, sabendo que quase fui vítima de uma tentativa de assassinato.

      - Mas haverá a possibilidade de uma outra tentativa.

      Gladia encolheu ligeiramente os ombros.

      - Isso faz com que eu sinta estar no caminho certo. Secretário-Geral Andrev, descobri não faz muito tempo que tenho uma missão na vida. Não me ocorreu que tal missão pudesse me colocar em perigo, mas já que isso aconteceu, também me ocorre que não estaria em perigo e o assassinato não valeria a pena se eu não estivesse certa. Se o perigo é a medida da minha eficácia, então vale a pena corrê-lo.

      - Senhora Gladia - disse Giskard - Daneel chegou com, suponho, o indivíduo que apontou um explosor nesta direção.

      Não foi somente Daneel - carregando um vulto imóvel sem se debater - que apareceu na soleira da porta da sala, mas também meia dúzia de guardas de segurança. Fora, o ruído da multidão se tornava mais baixo e distante. Iniciava-se nitidamente um movimento de dispersão, e de vez em quando podia-se ouvir a informação pelos alto-falantes:

      "Ninguém foi ferido. Não há perigo. Voltem para suas casas." Andrev fez um sinal para os guardas saírem.

      - É esse o tal? - perguntou, com voz áspera.

      - Não há dúvida, senhor, trata-se do indivíduo com o explosor. A arma estava ao seu lado, as pessoas mais próximas testemunharam seu ato e ele próprio admite o fato.

      Andrev olhou, espantado.

      - Está muito calmo. Não parece humano.

      - E não é, senhor. É um robô, um robô humanóide.

      - Mas não temos robôs humanóides na Terra. A não ser você.

      - Este robô, secretário-geral - respondeu Daneel - é, como eu, de confecção Auroreana.

      Gladia franziu o cenho.

      - Mas é impossível. Não poderiam ter mandado um robô me matar. D. G., parecendo exasperado e com um braço passado possessivamente sobre o ombro de Gladia, disse, num resmungo furioso:

      - Um robô Auroreano, programado especialmente...

      - Bobagem, D. G. - retorquiu Gladia. - Não pode ser. Auroreano ou não, especialmente programado ou não, um robô não pode, deliberadamente, tentar ferir alguém que sabe ser humano. Se este robô disparou o explosor na minha direção, deve ter errado o alvo de propósito.

      - Com que fim? - perguntou Andrev, - Por que erraria, senhora?

      - Não percebe? - perguntou Gladia. - Quem deu a ordem ao robô deve ter sentido que a tentativa seria suficiente para interromper meus planos aqui na Terra, e era isso que queriam. Não podiam mandar o robô me matar, mas podiam ordenar que errasse, e se isso fosse o bastante para interromper o programa, ficariam satisfeitos. Só que eu não Vou interrompê-lo. Não permitirei isso.

      - Não queira ser heroína, Gladia - disse D. G. - Não sei o que eles irão tentar a seguir, e nada - nada - vale perdê-la. Os olhos de Gladia suavizaram-se.

      - Obrigada, D. G. Aprecio seus sentimentos, mas precisamos correr o risco.

      Andrev puxou a orelha, perplexo.

      - Que devemos fazer? O conhecimento de que um robô humanóide disparou um explosor num aglomerado de seres humanos não vai ser bem recebido pelos habitantes da Terra.

      - Evidentemente - comentou D. G. - Portanto, não lhes contemos.

      - Muita gente já deve estar sabendo, ou supondo, que estamos às voltas com um robô.

      - O senhor não pode parar o boato, secretário-geral, mas não há necessidade de fazer mais que isso por intermédio de uma comunicação oficial.

      - Se Aurora está disposto a ir a este extremo para... - replicou Andrev.

      - Não se trata de Aurora - disse Gladia rapidamente. - Apenas certos sujeitos em Aurora, certos provocadores. Entre os Colonizadores há também extremistas belicosos, eu sei, e provavelmente entre os Terráqueos. Não faça o jogo desses extremistas, secretário-geral. Estou apelando para a enorme maioria de seres humanos sensíveis em ambos os lados, e nada deve ser feito para enfraquecer esse apelo.

      Daneel, que tinha esperado pacientemente, achou afinal uma pausa bastante longa para possibilitar-lhe um comentário:

      - Senhora Gladia... senhores... é importante saber desse robô qual a sua base neste planeta. Pode haver outros.

      - Perguntou-lhe? - inquiriu Andrev.

      - Sim, secretário-geral, mas sou robô. Um robô não precisa responder a perguntas feitas por outro robô. Nem cumprir minhas ordens.

      - Bem, nesse caso eu farei as perguntas - disse Andrev.

      - Talvez não adiante, senhor. O robô está sob ordens estritas de não responder, e sua ordem provavelmente não superará as que recebeu. O senhor não conhece a fraseologia e a entonação requeridas. Senhora Gladia é Auroreana e sabe como proceder. Senhora Gladia, quer perguntar-lhe onde pode estar sua base planetária?

      Giskard falou em voz baixa, de forma a que só Daneel o ouvisse:

      - Talvez não seja possível. Ele deve ter recebido ordem de ficar irreversivelmente paralisado se o interrogatório se tornasse muito insistente.

      A cabeça de Daneel virou rispidamente para Giskard. Ele murmurou:

      - Você pode evitar isso?

      - É duvidoso - respondeu Giskard. - Seu cérebro foi fisicamente avariado pelo ato de disparar um explosor contra seres humanos.

      Daneel virou-se para Gladia.

      - Senhora, sugiro-lhe que sonde, por mais brutal que seja.

      - Bem, não sei - retrucou Gladia, indecisa. Encarou o robô assassino, respirou fundo e, com voz firme mas suave e gentil, disse: - Robô, como devo chamá-lo?

      - Sou chamado de R. Ernett Segundo, senhora - replicou o robô.

      - Ernett, percebe que sou Auroreana?

      - A senhora fala da maneira Auroreana, mas não inteiramente, senhora.

      - Nasci em Solaria, mas sou uma Espacial que morou durante vinte décadas em Aurora, e estou acostumada a ser servida por robôs. Sempre fui atendida e servida por robôs todos os dias da minha vida, desde pequena. Nunca fui desapontada.

      - Aceito o fato, senhora.

      - Vai responder às minhas perguntas e aceitar minhas ordens, Ernett?

      - Sim, senhora, desde que não seja contraditada por uma antagônica.

      - Se eu lhe perguntar onde se encontra sua base neste planeta, que parte dela considera como residência do seu senhor, você me responderá?

      - Não posso responder a essa pergunta, senhora. Nem a nenhuma outra relativa ao meu dono. Absolutamente nenhuma.

      - Você sabe que, se não responder, ficarei muito decepcionada, e que minha legítima expectativa do serviço robótico poderá ficar permanentemente desacreditada?

      - Sei, senhora - retrucou o robô, com voz fraca. Gladia olhou para Daneel.

      - Devo tentar?

      - A única saída é tentar, Senhora Gladia - disse Daneel. - Se o esforço nos deixar sem informação, não ficaremos piores que agora.

      Gladia falou, com voz que soava com autoridade:

      - Não me magoe, Ernett, recusando-se a revelar o endereço de sua base no planeta. Ordeno-lhe que me diga.

      O robô pareceu enrijecer-se. Sua boca se abriu, mas dela não saiu nenhum som. Abriu-a novamente e sussurrou, roucamente:

      - "...mile..."

      Abriu-a silenciosamente uma terceira vez, e enquanto a boca permanecia aberta, o brilho morreu nos seus olhos de robô assassino, que se tornaram baços e arregalados. Um braço, meio erguido, caiu sem ação.

      - O cérebro positrônico está paralisado - disse Daneel. Giskard sussurrou só para Daneel:

      - Irreversível! Fiz o que pude, mas não consegui.

      - Estamos na estaca zero - disse Andrev. - Não sabemos onde podem estar os outros robôs.

      D. G. comentou:

      - Ele disse "...mile..."

      - Não conheço a palavra - disse Daneel. - Não é Galáctico Padrão, como a língua falada em Aurora. Terá significado na Terra?

      Andrev falou, meio vago:

      - Ele pode ter tentado dizer "smile" ou "Miles". Conheci um homem que se chamava Miles.

      Com ar grave, Daneel disse:

      - Não vejo como ambas as palavras possam fazer sentido como resposta - ou parte dela - a uma pergunta. Também não ouvi qualquer sibilação, quer antes, quer depois do som.

      Um velho Terráqueo que até aquele instante tinha ficado calado disse, com um certo ar de desconfiança:

      - Tenho a impressão que uma mile pode ser uma antiga medida de distância, robô.

      - De que valor, senhor? - perguntou Daneel.

      - Não sei - replicou o Terráqueo. - Mais de um quilômetro, acho eu.

      - Não é mais usada, senhor?

      - Não, desde a era pré-hiperespacial.

      D. G. cofiou a barba e falou, pensativamente:

      - Ainda é usada. Pelo menos, temos um velho ditado em Baleyworld que diz: "A miss is as good as a mile". É usado para significar que, ao evitar o azar, evitar por pouco é tão bom como evitar por uma grande margem. Eu sempre achei que “mile” significava “uma grande quantidade;”. Se representa realmente uma medida de distância, a frase fica mais inteligível.

      Gladia comentou:

      - Se é assim, o assassino pode ter experimentado dizer exatamente isso. Pode ter indicado sua satisfação pela perda, seu tiro deliberadamente perdido, teria cumprido o que lhe foi ordenado. Ou talvez tenha querido dizer que seu tiro perdido, não causando mal, foi equivalente a não ter absolutamente atirado.

      - Senhora Gladia - disse Daneel - um robô desse tipo não parece extraordinariamente complexo. Não acho que ele pudesse estar usando frases que podem existir em Baleyworld mas que certamente nunca foram ouvidas em Aurora. E ele não estava filosofando. Fizemos-lhe uma pergunta  e ele estaria apenas procurando dar uma resposta.

      - Oh - comentou Andrev - talvez estivesse querendo responder. Procurando nos dizer que a base estava a certa distância daqui. A algumas milhas.

      - Neste caso - retrucou D. G. - por que iria usar uma medida arcaica? Nenhum Auroreano usaria outra coisa que não quilômetros neste caso, o mesmo acontecendo com todo robô de manufatura Auroreana. De fato - prosseguiu com uma ponta de impaciência - o robô foi rapidamente mergulhando numa total inatividade e não poderia ter feito mais que escassos ruídos. É inútil tentar extrair algum significado de algo sem significado. E agora quero garantir algum descanso a Senhora Gladia ou, pelo menos, que ela saia desta sala antes que o resto do teto desabe.

      Saíram rapidamente. Daneel, deixando-se ficar para trás por um momento, disse baixo a Giskard:

      - Tornamos a fracassar!

     

      A cidade nunca ficava inteiramente silenciosa, mas havia períodos em que as luzes diminuíam, o ruído das sempre movimentadas Vias Expressas era reduzido e o infindável barulho da maquinaria e dos seres humanos caía um pouco. Em muitos milhões de apartamentos havia gente dormindo.

      Gladia deitou-se no apartamento que lhe foi destinado, inconformada pela falta de conforto que ela temia viesse obrigá-la a sair para o corredor durante a noite.

      Pouco antes de adormecer, ficou imaginando se era noite na superfície ou apenas um arbitrário “período de sono” estabelecido no interior daquela determinada caverna de aço, em deferência a um hábito desenvolvido há centenas de milhões de anos, quando os seres humanos e seus antepassados tinham vivido na superfície.

      Depois adormeceu.

      Daneel e Giskard não dormiram. Daneel descobriu um terminal de computador no apartamento e passou uma absorvente meia hora aprendendo as combinações básicas. Não havia instruções de nenhuma espécie disponíveis (quem precisava de instruções para o que todos os jovens aprendiam na sala de aula?), mas, felizmente, os comandos, embora não fossem iguais aos de Aurora, não eram inteiramente diferentes. Finalmente, conseguiu estabelecer ligação com a seção de referência da biblioteca da Cidade e contactar a enciclopédia. Passaram-se horas.

      No período mais profundo do sono dos humanos, Giskard disse:

      - Amigo Daneel.

      Daneel virou-se para ele:

      - Sim, amigo Giskard?

      - Preciso pedir-lhe uma explicação por suas ações no balcão.

      - Amigo Giskard, você olhava para a multidão. Segui seu olhar, vi uma arma apontada em nossa direção e reagi imediatamente.

      - De fato, amigo Daneel - retrucou Giskard - você agiu assim e, dadas certas suposições, posso compreender por que foi a mim que você empurrou para proteger. Comecemos com o fato de que o suposto assassino era um robô. Neste caso, embora pudesse ser programado, ele não podia apontar sua arma para nenhum ser humano com a intenção de atingi-lo. Nem provavelmente para você, já que sua aparência é suficientemente humana para ativar a Primeira Lei. Mesmo que tivessem dito ao robô que um seu similar do tipo humanóide estaria no balcão, ele não podia ter certeza de ser você. Portanto, se ele tivesse a intenção de destruir alguém no balcão, esse alguém só podia ser eu, o robô evidente, e você agiu imediatamente para me proteger.

      “Ou comecemos com o fato de que o assassino era Auroreano - humano ou robô, pouco importa. Foi o Dr. Amadiro quem, mais provavelmente, ordenou esse ataque, visto que ele é extremista na sua posição anti-Terra e, acreditamos, está conspirando para a sua destruição. O Dr. Amadiro, estamos razoavelmente certos, tomou conhecimento das minhas habilidades Espaciais por intermédio de Senhora Vasilia e pode ter dado a máxima prioridade à minha liquidação, uma vez que temia naturalmente a mim mais que a qualquer outro  robô ou humano. Raciocinando assim, seria lógico você agir como agiu para me proteger. E, de fato, se você não tivesse me derrubado, acredito que o tiro me liquidaria.”

      "Mas, amigo Daneel, você provavelmente não sabia que o assassino era um robô ou um Auroreano. Eu mesmo só percebi a estranha anomalia de um padrão cerebral robótico contra a vasta falta de clareza da emoção humana quando você me atacou - e foi só depois disso que tive a oportunidade de informá-lo. Sem minha capacidade, você só podia ter consciência de que uma arma estava sendo apontada por alguém que você podia naturalmente imaginar como um ser humano e um Terráqueo. O alvo lógico, assim, era Senhora Gladia, como, de fato, todos no balcão concluíram ser. Por que então você ignorou a Senhora Gladia e, em vez de protegê-la, protegeu a mim?

      - Amigo Giskard - disse Daneel - acompanhe meu processo de raciocínio. O secretário-geral tinha dito que um módulo Auroreano de dois lugares pousara na superfície da Terra. Concluí imediatamente que o Dr. Amadiro e o Dr. Mandamus tinham vindo a este planeta. E só podia haver um motivo para isso. O plano deles, qualquer que seja, está perto, ou muito perto, da maturidade. Estando você na Terra, amigo Giskard, eles correram para cá, para colocar o plano em ação imediatamente antes que você pudesse ter a possibilidade de pará-lo com seus poderes mentais. Para tornar a coisa duplamente segura, tinham de tentar destruí-lo. Portanto, quando vi uma arma apontada, atirei-me imediatamente para forçá-lo a sair da linha de fogo.

   - A Primeira Lei - comentou Giskard - devia tê-lo forçado a afastar a Senhora Gladia. Nenhum pensamento, nenhum raciocínio deveria ter alterado isso.

      - Não, amigo Giskard. Você é mais importante que a Senhora Gladia. Você é, de fato, mais importante que qualquer ser humano neste momento. Se alguém é capaz de impedir a destruição da Terra, esse alguém é você. Desde que tomei conhecimento do seu serviço potencial à humanidade, quando me vi diante de uma escolha de ação, a Lei Zero manda que eu o proteja antes de qualquer outro.

      - E você não se sente desconfortável por ter agido em desafio à Primeira Lei?

      - Não, pois agi em obediência à Lei Zero dominante.

      - Mas a Lei Zero não tinha sido impressa em você.

      - Aceitei-a como corolário da Primeira Lei, pois como pode um ser humano ser melhor protegido de um dano senão pela garantia de que a sociedade humana em geral será protegida e mantida funcionando?

      Giskard pensou algum tempo.

      - Compreendo o que está tentando dizer, mas e se, ao agir para me salvar e, portanto, salvar a humanidade, acontecesse de a Senhora Gladia ser assassinada? Como você teria se sentido, amigo Daneel?

      Daneel replicou, em voz baixa:

      - Não sei, amigo Giskard. Mas se eu tivesse saltado para salvar a Senhora Gladia e, com isso, permitisse que você e, consequentemente, na minha opinião, o futuro da humanidade, fossem destruídos, como eu poderia ter sobrevivido a esse golpe?

      Os dois se encararam - ambos mergulhados em pensamentos. Giskard disse, finalmente:

      - Poderia ter acontecido, amigo Daneel, mas você concorda, apesar disso, que é difícil julgar em casos assim?

      - Concordo amigo Giskard.

      - É muito difícil para alguém escolher depressa entre pessoas, decidir qual delas pode sofrer, ou infligir  o maior mal. Escolher entre um indivíduo e a humanidade, quando não se está certo do tipo de humanidade com que se está lidando, é tão difícil, que a verdadeira validade das leis da robótica se torna suspeita. Tão logo a humanidade como abstração é apresentada, as Leis da Robótica começam a fundir-se com as Leis da Humanidade - que podem nem mesmo existir.

      - Não entendo você, amigo Giskard - disse Daneel.

      - Isso não me surpreende. Eu mesmo não tenho certeza de me entender. Mas reflita: quando pensamos na humanidade que precisamos salvar, pensamos nos Terráqueos e nos Colonizadores. Eles são mais numerosos que os Espaciais, mais vigorosos, mais expansivos. Mostram mais iniciativa porque são menos dependentes de robôs. Têm um maior potencial para a evolução biológica e social porque vivem pouco, apesar de viverem o bastante para contribuir com grandes coisas individualmente.

      - Sim - disse Daneel - você expôs sucintamente.

      - E contudo os Terráqueos e os Colonizadores parecem possuir uma confiança mística, até mesmo irracional, na santidade e inviolabilidade da Terra. Essa mística não poderá ser tão fatal ao seu desenvolvimento como as místicas dos robôs e vida longa que estorvam os Espaciais?

      - Não pensei nisso - replicou Daneel. - Não sei.

      - Se você fosse tão atento a mentes como eu sou - disse Giskard - seria incapaz de deixar de pensar nisso. Como se escolhe? - prosseguiu com repentina violência.

- Pense na humanidade como dividida em duas espécies: os Espaciais, com uma mística evidentemente fatal, e os Terráqueos, mais que os Colonizadores, com outra mística também possivelmente fatal. Pode ser que haja outras espécies, no futuro, com propriedades ainda menos atraentes.

      “Então, amigo Daneel, isso não é suficiente para escolher. Precisamos ser capazes de modelar. Precisamos modelar uma espécie desejável e depois protegê-la, em vez de nos vermos forçados a escolher entre duas ou mais indesejabilidades. Mas como podemos conseguir o desejável, a menos que tenhamos a psico-história, a ciência que sonho e não posso atingir?”

      - Eu não levei em conta, amigo Giskard, a dificuldade de possuir a capacidade de sentir e influenciar mentes. É possível que você aprenda demais para permitir que as Três Leis da Robótica ajam calmamente dentro de você?

      - Isso sempre foi possível, amigo Daneel, mas não até que os recentes acontecimentos tornaram a possibilidade real. Eu conheço o padrão que produz esse efeito de sentir e influenciar mentes dentro de mim. Estudei-me cuidadosamente durante décadas, com o objetivo de poder entender isso e transmiti-lo a você, de forma a que pudesse se programar para ser igual a mim - mas relutei em me apressar a fazer isso. Seria injusto com você. Basta que eu carregue a responsabilidade.

      - Apesar disso, amigo Giskard - retorquiu Daneel - se alguma vez, na sua opinião, o bem da humanidade o exigir, aceitarei a responsabilidade. Na verdade, pela Lei Zero, eu seria obrigado a isso.

      - Mas esta discussão é inútil - disse Giskard. - Parece evidente que a crise está quase sobre nós, e uma vez que não conseguimos descobrir sua natureza...

      Daneel interrompeu:

      - Você está errado, pois finalmente, amigo Giskard, eu agora conheço a natureza da crise.

      Ninguém podia esperar que Giskard demonstrasse surpresa. Seu rosto era liso, incapaz de expressão. Sua voz possuía modulação e por isso sua fala soava como humana, e não era nem monótona nem desagradável. Essa modulação, contudo, nunca era alterada pela emoção de maneira reconhecível. Por isso, quando ele disse "Está falando sério?", seu tom de voz soou como se ele tivesse duvidado de um comentário feito por Daneel a respeito do tempo no dia seguinte. Mas pela maneira como virou a cabeça para Daneel, como ergueu a mão, não havia dúvida de que estava surpreso.

      - Estou amigo Giskard - afirmou Daneel.

      - Como conseguiu a informação?

      - Em parte, pelo que me disse a Senhora Subsecretária Quintana no jantar.

      - Mas você não afirmou que não obteve nada de útil dela, que supôs ter feito a pergunta errada?

      - Foi o que me pareceu no momento imediato. Numa reflexão posterior, porém, fui capaz de fazer deduções felizes do que ela me dissera. Eu tinha estado fazendo pesquisas na enciclopédia central da Terra pelo terminal de computador, poucas horas antes.

      - E viu sua dedução confirmada?

      - Não exatamente, porém nada encontrei que a refutasse, o que talvez seja a segunda melhor coisa.

      - Mas a prova negativa é bastante para a certeza?

      - Não. E por esse motivo não tenho certeza. Contudo, deixe que lhe exponha meu raciocínio, e se você o considerar falho, diga-me.

      - Prossiga, por favor, amigo Daneel.

      - A energia da fissão, amigo Giskard, foi desenvolvida na Terra antes da época da viagem hiperespacial e, conseqüentemente, enquanto os seres humanos eram encontrados apenas num só planeta, a Terra. Isso é amplamente conhecido. Foi preciso muito tempo para desenvolver a energia da fusão praticamente controlada desde que essa possibilidade foi concebida e se estabeleceu um perfeito apoio científico. A dificuldade principal foi que converter a concepção em prática envolveu a necessidade de conseguir uma temperatura suficientemente elevada num gás suficientemente denso por um tempo bastante longo para conseguir a combustão da fusão.

      “Apesar disso, várias décadas antes de ter sido estabelecido o controle da fusão da energia, tinham existido bombas de fusão - essas bombas representavam uma reação em fusão incontrolada. Mas, controlada ou não, a fusão não pode existir sem uma temperatura extremamente alta, de milhões de graus. Se os seres humanos não podiam produzir a temperatura necessária para a fusão controlada, como puderam fazer no caso de uma explosão de hidrogênio não controlada?”

      “A Senhora Quintana me disse que, antes da fusão ter existido na Terra, houvera outra variedade de reação nuclear - a fissão nuclear. A energia foi derivada da divisão, ou fissão, de grandes núcleos, como os de urânio e tório. Esse, suponho, pode ser um meio de conseguir uma alta temperatura.”

      “A enciclopédia que estive consultando esta noite fornece pouca informação sobre bombas nucleares de qualquer tipo e, certamente, nenhum detalhe verdadeiro. Percebi que se tratava de um assunto tabu, e isso deve acontecer em todos os planetas, pois nunca li tais coisas também em Aurora nem ouvi referências a isso. É uma parte da História de que a humanidade se envergonha ou tem medo, ou ambas as coisas, e acho que é racional. Contudo, onde eu li sobre bombas de hidrogênio não havia qualquer referência ao fato de sua combustão ter eliminado a bomba de fissão como mecanismo de combustão. Desconfio, portanto, baseado em parte nesta prova negativa, que a bomba atômica foi o mecanismo de combustão.”

      “Mas, então, como teria sido a bomba de hidrogênio acionada? Elas existiram antes das atômicas, e se requereram uma temperatura ultra-elevada para serem acionadas, como as atômicas, então não o foram, pois nada que tenha existido antes das de hidrogênio poderia fornecer tal temperatura. Partindo disso, concluo, apesar da enciclopédia não conter qualquer informação a respeito, que as bombas de hidrogênio podem ser acionadas a temperaturas relativamente baixas, talvez até à temperatura ambiente.”

      “Houve algumas dificuldades, pois foram necessários vários anos de incessantes esforços após a descoberta de que a fissão existiu antes da bomba ser desenvolvida. Mas, quaisquer que fossem as dificuldades, não envolveram a produção de temperaturas ultra-elevadas. Qual sua opinião a respeito disso tudo, amigo Giskard?”

      Giskard não despregou os olhos de Daneel durante a exposição e replicou:

      - Acho que o edifício que você ergueu tem sérios pontos fracos, amigo Daneel, e portanto não pode ser muito confiável - mas, ainda que fosse perfeito, certamente não teria nada a ver com a possível futura crise que estamos tentando compreender.

      - Imploro sua paciência, amigo Giskard - disse Daneel - e continuarei. Por coincidência, ambos os processos, fusão e fissão, são expressões das fracas interações, ou melhor, de uma das quatro que comandam todos os acontecimentos no universo. Conseqüentemente, esse mesmo intensificador nuclear que poderá explodir um reator a fusão também poderá explodir um reator a fissão.

      “Contudo, há uma diferença. A fusão só acontece em temperaturas extremamente altas. O intensificador explode a porção ultraquente do combustível que está submetido ativamente a fusão, mais uma parte do combustível circundante que é aquecido até a fusão na explosão inicial, antes que o material seja expandido explosivamente para fora e o calor se dissipe ao ponto de outras quantidades de combustível presentes não serem inflamadas. Em outras palavras, uma parte do combustível de fusão explode a outra parte, porém - talvez a maior - não. Ainda assim, a explosão é bastante poderosa, claro, para destruir o reator atômico e tudo na sua vizinhança próxima, como uma nave carregando o reator.

      “Por outro lado, um reator a hidrogênio pode operar a baixas temperaturas, talvez não muito acima do ponto de ebulição da água, talvez mesmo  à temperatura ambiente. O efeito do intensificador nuclear, assim, será fazer todo o combustível de hidrogênio funcionar. Na verdade, mesmo que o reator de hidrogênio não esteja trabalhando ativamente, o intensificador o explodirá. Contudo, comparativamente, grama por grama, concluo que o combustível atômico libera menos energia que o de hidrogênio, o reator atômico produzirá uma explosão maior porque seu combustível explode mais que no caso do outro reator.”

      Giskard balançou a cabeça devagar e disse:

      - Está tudo muito bem, amigo Daneel, mas há estações de energia de hidrogênio na Terra?

      - Não, não há nenhuma. Foi o que a Subsecretária Quintana quis dizer, com o que parece concordar a enciclopédia. De fato, onde quer que haja máquinas na Terra movidas por pequenos reatores atômicos, não há nada, nada mesmo, que seja equipado com reatores de fissão, grandes ou pequenos.

      - Então, amigo Daneel, não há nada onde um intensificador nuclear possa agir. Todo o seu raciocínio, ainda que impecável, dá em nada.

      - Nem tanto, amigo Giskard - replicou Daneel, francamente. - Existe ainda um terceiro tipo de reação nuclear a ser levado em consideração.

      - E qual é? - perguntou Giskard. - Não consigo pensar num terceiro.

      - Não é fácil, amigo Giskard, pois nos planetas Espaciais e Colonizadores há pouquíssimo urânio e tório na crosta planetária e, dessa forma, pouquíssima radioatividade evidente. Em conseqüência, o assunto é de pouco interesse e ignorado por todos, menos por alguns físicos teóricos. Na Terra, porém, como Senhora Quintana assinalou, o urânio e o tório são, comparativamente, comuns e de radioatividade natural, com sua ultralenta produção de calor e radiação energética, fazendo, assim, parte comparativamente importante do meio ambiente. Este é o terceiro tipo de reação nuclear a ser levado em consideração.

      - Em que sentido, amigo Daneel?

      - A radioatividade natural é também uma expressão da fraca interação. Um intensificador nuclear capaz de explodir um reator atômico ou hidrogênico pode também acelerar a radioatividade natural ao ponto, suponho, de explodir um pedaço da crosta, se houver presente boa quantidade de urânio ou tório.

      Giskard ficou algum tempo encarando Daneel sem se mexer ou falar. Depois disse, com voz suave:

      - Então você está sugerindo que o plano do Dr. Amadiro é explodir a crosta da Terra, e destruir o planeta como a sede da vida, garantindo, assim, o domínio da Galáxia pelos Espaciais.

      Daneel confirmou com a cabeça.

      - No caso de não haver tório e urânio em quantidade suficiente para uma explosão maciça, o aumento da radioatividade pode produzir excesso de calor, alterando o clima, e excesso de radiação, que poderá provocar o câncer e defeitos congênitos, que servirão ao mesmo objetivo, embora um pouco mais lentamente.

      - É uma possibilidade apavorante - comentou Giskard. - Você acha realmente que isso pode ser levado a efeito?

      - Possivelmente. Parece-me que, de alguns anos para cá, não sei dizer quantos, robôs humanóides de Aurora, como o suposto assassino, têm estado na Terra. São bastante adiantados para uma programação complexa, sendo capazes, se necessário, de entrar nas cidades à procura de equipamento. Pode-se presumir que eles tenham estado instalando intensificadores nucleares em locais onde o solo é rico em urânio e tório. No decorrer desses anos, devem ter instalado muitos. O Dr. Amadiro e o Dr. Mandamus estão aqui agora para supervisionar os detalhes finais e ativar os intensificadores. Presumivelmente, estão dispondo as coisas de forma a terem tempo para fugir antes que o planeta seja destruído.

      - Nesse caso - replicou Giskard - é imperativo que o secretário-geral seja informado, para que as forças de segurança da Terra sejam imediatamente convocadas e o Dr. Amadiro e Dr. Mandamus localizados sem demora e impedidos de concluir seu projeto.

      - Não acredito que isso possa ser feito - falou Daneel. - O secretário-geral muito provavelmente não acreditará em nós, graças à crença mística bastante difundida da inviolabilidade do planeta. Você se referiu a isso como uma coisa que agiria contra a humanidade e desconfio que é o que vai acontecer neste caso. Se a crença na posição singular da Terra for desafiada, ele se recusará a permitir que sua convicção, por mais irracional que seja, fique abalada e procurará refúgio na recusa em acreditar na nossa palavra.

      “Mas ainda que acreditasse, toda a preparação para contramedidas seria certamente tomada através da burocracia governamental, e, não importa como esse processo fosse acelerado, iria demorar muito a atingir sua finalidade.”

      “Além disso, mesmo se pudéssemos imaginar que todos os recursos da Terra seriam mobilizados imediatamente, não acredito que os Terráqueos fossem capazes de localizar a presença de dois seres humanos num enorme deserto. Os Terráqueos vêm morando nas Cidades há muitas décadas e quase nunca se arriscam além dos limites da Cidade. Lembro muito bem disso por ocasião de meu primeiro caso com Elijah Baley aqui na Terra. E mesmo que os Terráqueos pudessem se obrigar a andar ao ar livre, provavelmente não cruzariam com dois seres humanos a tempo de salvar a situação, a não ser pela mais incrível das coincidências, coisa com que não poderíamos contar.

      - Os Colonizadores poderiam facilmente organizar um grupo de busca - disse Giskard. - Eles não temem os espaços abertos ou estranhos.

      - Mas estão tão firmemente convencidos da inviolabilidade do planeta quanto os Terráqueos, e também se recusam insistentemente a acreditar em nós. E mesmo que o fizessem, certamente não conseguiriam achá-los com suficiente presteza para salvar a situação.

      - E quanto aos robôs da Terra? - perguntou Giskard. - Eles abundam nos espaços entre as Cidades. Alguns já podem saber da existência de seres humanos entre eles. Poderiam ser interrogados.

      - Os seres humanos entre eles - replicou Daneel - são peritos roboticistas. Não deixariam de dar um jeito de passar despercebidos para os robôs nos arredores. Nem, por esse mesmo motivo, precisariam temer um grupo de busca composto de robôs. Mandariam o grupo voltar e esquecer. Para piorar a coisa, os robôs da Terra são, em comparação, modelos simples, construídos para pouco mais do que tarefas específicas - cuidar de colheitas, de animais e trabalhar em minas. Não podem ser facilmente adaptáveis a um objetivo geral, como realizar uma busca cuidadosa.

      - Você eliminou toda ação possível, amigo Daneel - comentou Giskard. - Sobra alguma coisa?

      - Precisamos descobrir nós mesmos os dois humanos e impedi-los - disse Daneel e arrematou: - E precisamos fazê-lo já.

      - Sabe onde estão, amigo Daneel?

      - Não, não sei, amigo Giskard.

      - Então, se parece improvável que um cuidadoso grupo de busca, composto de inúmeros Terráqueos, Colonizadores, robôs ou, suponho, os três, possa ter sucesso na localização deles a tempo, a não ser pela mais fantástica das coincidências, como poderemos nós dois consegui-lo?

      - Não sei, amigo Giskard, mas precisamos.

      Com uma voz onde havia uma ponta de aspereza na escolha das palavras, Giskard disse:

      - Precisar não é bastante, amigo Daneel. Você percorreu um longo caminho. Descobriu a existência de uma crise e, pouco a pouco, pôs a nu a sua natureza. E nada disso é suficiente. Aqui estamos, tão desamparados como antes, sem poder fazer nada.

      - Ainda existe uma possibilidade, pouco natural e completamente inútil, e não temos escolha a não ser tentar - disse Daneel. - Por medo de você, Amadiro enviou um robô assassino para destruí-lo, e isso pode ter se tornado um erro.

      - E se essa possibilidade completamente inútil falhar, amigo Daneel?

      Daneel encarou calmamente Giskard.

      - Então estamos perdidos. A Terra será destruída. A História da humanidade chegará ao seu fim.

     

      A Lei Zero

      Kelden Amadiro não estava contente. A gravidade da superfície da Terra era ligeiramente mais alta que seu desejo, a atmosfera um pouco mais densa, o barulho e o cheiro exteriores sutil e desagradavelmente diferentes dos de Aurora, e nenhum habitante daquele mundo fechado era capaz de fingir ser civilizado.

      Os robôs tinham construído espécies de abrigo. Havia amplos suprimentos de alimentos, privadas provisórias adequadas funcionalmente mas insultuosamente inadequadas de todas as outras maneiras.

      Pior ainda, embora a manhã estivesse bastante agradável, era um dia claro e o sol luminoso demais da Terra estava nascendo. Breve a temperatura estaria quente demais, o ar muito úmido, e os insetos mordedores apareceriam. A princípio, Amadiro não tinha entendido por que havia pequenas protuberâncias que coçavam em seus braços, até que Mandamus lhe explicou.

      Agora estava resmungando, enquanto coçava:

      - Horrível! Eles devem provocar infecções.

      - Acho - disse Mandamus, com evidente indiferença - que às vezes provocam. Contudo, não é provável. Tenho loções para aliviar a dor e podemos queimar certas substâncias que atacam os insetos, embora eu ache os cheiros desagradáveis.

      - Queime-as - disse Amadiro.

      Mandamus continuou, sem mudar de tom:

      - Eu não quero fazer nada, por mais insignificante que seja, um cheiro, uma fumacinha, que possa aumentar a possibilidade de sermos descobertos.

      Amadiro olhou-o desconfiado.

      - Você disse, insistentemente, que esta região nunca é visitada, tanto por Terráqueos como por seus robôs externos.

      - É verdade, mas não é uma coisa matemática. É uma observação sociológica, e há sempre a possibilidade de suposições a respeito.

      Amadiro fez uma careta.

      - O melhor caminho para a segurança está na realização deste projeto. Você disse que estaria preparado hoje.

      - Isso também é uma observação sociológica, Dr. Amadiro. Eu devia estar preparado hoje. Gostaria de estar. Não o garanti matematicamente.

      - Quanto vai demorar até poder garantir?

      Mandamus abriu os braços num gesto de "Quem sabe?".

      - Dr. Amadiro, tenho a impressão que já expliquei, mas estou disposto a repetir. Levei sete anos para chegar a isto. Estive contando ainda com meses de observações pessoais nas quatorze diferentes estações de relê na superfície da Terra. Não posso fazer isso agora porque precisamos terminar antes de sermos localizados e possivelmente impedidos pelo robô Giskard. Isso significa que tenho de fazer minha verificação comunicando-me com nossos robôs humanóides nos relês. Não posso confiar neles como confio em mim. Tenho que conferir e reconferir seus relatórios, e é possível que precise ir a um ou dois lugares antes de me dar por satisfeito. Isso levará dias, talvez uma semana ou duas.

      - Uma semana ou duas. Impossível! Quanto tempo você acha que eu posso suportar este planeta, Mandamus?

      - Senhor, numa das minhas visitas anteriores, permaneci neste planeta durante quase um ano - em outra, por mais de quatro meses.

      - E gostou?

      - Não, senhor, mas eu tinha um trabalho a executar e executei-o - sem me poupar.

      Mandamus olhou friamente para Amadiro, que enrubesceu e replicou, num tom um tanto contido:

      - Bem, então, onde ficamos?

      - Ainda estou examinando os relatórios que estão chegando. O senhor sabe que não estamos trabalhando em condições ótimas. Temos uma crosta planetária extraordinariamente heterogênea para trabalhar. Felizmente, os materiais radioativos estão muito espalhados, embora em lugares de camadas muito finas, obrigando-nos a colocar um relê em cada um, guardado por um robô. Se esses postos não forem, em cada caso, colocados na ordem devida, a intensificação nuclear não se fará e teremos desperdiçado todos esses penosos anos de esforço. Ou então poderá haver um aumento repentino de intensificação localizada que resultará numa explosão, deixando o resto da crosta intacta. Em qualquer dos casos, o dano total seria insignificante.

      “O que queremos, Dr. Amadiro, é conseguir os materiais radioativos e, consequentemente, grandes e significativos trechos da crosta da Terra aumentando - lentamente... firmemente... irreversivelmente - ele cuspiu as palavras espaçadamente - tornando-se cada vez mais intensamente  radioativos, de maneira que a Terra fique mais e mais inabitável. A estrutura social do planeta entrará em colapso, e a Terra, como verdadeiro berço da humanidade, deixará de existir. Estou certo, Dr. Amadiro, que é isso o que o senhor quer. Foi o que lhe descrevi há anos, e o senhor disse que era isso o que queria!”

      - E continua sendo, Mandamus. Não seja idiota.

      - Então suporte o desconforto, senhor, ou então vá embora e eu continuarei, qualquer que seja o atraso que isso provoque.

      - Não, não - resmungou Amadiro. - Preciso estar aqui quando isso acontecer, mas não posso evitar a impaciência. Quanto tempo resolveu dar ao processo? Quero dizer, uma vez iniciada a onda original de intensificação, em quanto tempo a Terra se tornará inabitável?

      - Depende do grau de intensificação que aplicarei inicialmente. Não sei neste instante qual o grau necessário, pois isso depende da eficiência total dos relês, e por isso preparei um controle variável. O que eu quero é um lapso de tempo de dez ou vinte décadas.

      - E se você conceder um lapso de tempo menor?

      - Quanto menor o tempo que dermos, mais depressa crescerão as porções de crosta radioativas e mais rapidamente o planeta se aquecerá e se tornará perigoso. Isso significa que haverá menos probabilidade de uma quantidade significativa de sua população ser retirada a tempo.

      - Isso importa? - murmurou Amadiro.

      Mandamus franziu o cenho.

      - Quanto mais rapidamente a Terra se deteriorar, tornar-se-á mais provável que Terráqueos e Colonizadores desconfiem de alguma causa tecnológica - e provavelmente seremos considerados os únicos culpados. Então os Colonizadores nos atacarão com raiva e, por seu planeta sagrado, lutarão até à extinção, desde que possam nos infligir grandes danos. Já discutimos isso antes, e se não me engano ficamos de acordo. Será muito melhor concedermos mais tempo, durante o qual poderemos nos preparar para o pior, e a Terra em confusão possa pressupor que o lento crescimento da radioatividade é um fenômeno natural incompreensível. A meu ver, isso se tornou mais urgente hoje que ontem.

      - É mesmo? - perguntou Amadiro, também franzindo o cenho. - Você tem aquele ar desagradável, puritano, que me faz ter certeza de que descobriu um meio de atirar a responsabilidade disso nas minhas costas.

      - Respeitosamente, senhor, neste caso não é difícil. Foi uma bobagem mandar um dos nossos robôs eliminar Giskard.

      - Pelo contrário, tinha de ser feito. Giskard é o único que pode nos destruir.

      - Ele precisa, primeiro, nos encontrar, coisa que não queremos. E mesmo que encontre, somos roboticistas capazes. Acha que não podemos lidar com ele?

      - Você acha que podemos? Vasilia também pensava, e conhecia Giskard melhor que nós - respondeu Amadiro. - Apesar disso, não conseguiu por algum motivo, a belonave que devia atacá-lo e destruí-lo à distancia, também não. Por isso ele está agora na Terra. De uma forma ou de outra, ele precisa ser destruído.

      - Ele não está aqui, não há nenhum relatório a respeito.

      - As más notícias são às vezes suprimidas por um governo prudente, e os funcionários da Terra, apesar de bárbaros, podem perfeitamente ser prudentes. E se nosso robô fracassar e for interrogado, será certamente bloqueado irreversivelmente. Teremos perdido um robô, coisa que podemos nos permitir, porém nada mais. E se Giskard continuar por aí, teremos mais motivos para nos apressar.

      - Se perdermos um robô, teremos perdido mais que isso, se eles conseguirem obter a localização deste centro de operações. Pelo menos não devíamos ter usado um robô daqui.

      - Usei um que estava mais à mão. E ele nada revelará. Presumo que confia na minha programação.

      - Ele não pode evitar revelar, por sua simples presença, quer paralisado ou não, que é de confecção Auroreana. Os roboticistas da Terra, e há alguns neste planeta, descobrirão isso. E isso é mais um motivo para tornar o aumento da radioatividade bem lento. É preciso que passe muito tempo para que os Terráqueos esqueçam o incidente e não o associem com a mudança progressiva da radioatividade. Precisamos de pelo menos dez décadas, talvez quinze ou mesmo vinte.

      Mandamus afastou-se para tornar a examinar seus instrumentos e restabelecer contato com os relês seis e dez, que ainda o preocupavam. Amadiro olhou-o com uma mistura de desdém e imensa antipatia, murmurando para si mesmo:

      - Sim, mas eu não tenho mais vinte décadas, ou quinze, talvez nem mesmo dez. Você tem, mas eu não.

     

      Era manhã cedo em Nova York. Giskard e Daneel deduziram isso pelo aumento gradativo da atividade.

      - Em algum lugar acima e fora da Cidade - disse Giskard - deve estar agora nascendo o dia. Uma vez, há vinte décadas, conversando com Elijah Baley, referi-me à Terra como o Planeta do Amanhecer. [Os Robôs do Amanhecer, de Isaac Asimov, publicado no Brasil pela Record.] Irá continuar sendo durante muito tempo? Ou já deixou de ser?

      - São pensamentos mórbidos, amigo Giskard - disse Daneel - Seria melhor que nos ocupássemos com o que deve ser feito hoje para ajudar a manter a Terra como o Planeta do Amanhecer.

      Gladia entrou na sala usando um roupão de banho e chinelos. Seu cabelo tinha acabado de secar.

      - Ridículo - disse ela. - As Terráqueas andam pelos corredores para os banheiros coletivos, de manhã, descabeladas e desarrumadas. Acho que isso é proposital. Não é de boa educação pentear o cabelo a caminho do banheiro. Aparentemente o descabelamento inicial é para realçar a boa aparência posterior. Eu devia ter trazido um equipamento completo comigo. Vocês deviam ter visto os olhares quando saí, com o roupão de banho vestido. Saindo do banheiro, a gente deve ser o máximo... Sim, Daneel?

      - Senhora - disse Daneel - podemos falar com a senhora?

      Gladia hesitou.

      - Só uma palavra, Daneel. Como você provavelmente percebe, este será um dia cheio, e meus primeiros encontros começam quase imediatamente.

      - É exatamente isso que eu desejo discutir, senhora - replicou Daneel. - Neste dia importante, tudo irá melhor se não estivermos juntos da senhora.

      - Como?

      - O efeito que a senhora deseja causar nos Terráqueos ficará diminuído se estiver rodeada de robôs.

      - Não estarei rodeada. Serão apenas vocês dois. Que posso fazer sem vocês?

      - É necessário que aprenda, senhora. Enquanto estivermos com a senhora, será notada como diferente dos Terráqueos. Pensarão que tem medo deles.

      Gladia respondeu, perturbada:

      - Preciso de proteção, Daneel. Lembre do que aconteceu ontem à noite.

      - Senhora, nós não poderíamos ter evitado o que aconteceu e não poderíamos tê-la protegido, se fosse necessário. Felizmente, ontem à noite a senhora não era o alvo. O explosor foi apontado para a cabeça de Giskard.

      - Por que Giskard?

      - Como um robô poderia apontar para a senhora ou outro ser humano? O robô apontou para Giskard por algum motivo. Assim, se ficarmos ao seu lado, poderemos aumentar seu perigo. Lembre-se que, apesar do governo da Terra ter tentado suprimir os detalhes, espalhou-se o boato de que, para todos os efeitos, foi um robô que empunhou um explosor e atirou. Isso provocará a indignação do povo contra os robôs, contra nós, e mesmo contra a senhora, se persistir em ser vista conosco. Será muito melhor se estiver sozinha.

      - Por quanto tempo?

      - Pelo menos até que sua missão termine, senhora. O comandante terá melhores condições de ajudá-la nos próximos dias do que nós. Ele conhece os Terráqueos, é muito considerado por eles, e tem um grande apreço pela senhora.

      - Você garante que isso é verdade? - perguntou Gladia.

      - Apesar de eu ser robô, parece-me que sim. E a qualquer hora a senhora poderá nos convocar e nós voltaremos, claro - mas, no momento, achamos que a melhor maneira de servi-la e protegê-la é deixá-la mas mãos do Comandante Baley.

      - Pensarei nisso - replicou Gladia.

      - Enquanto isso, senhora - disse Daneel - vamos procurar o Comandante Baley e descobrir se ele concorda conosco.

      - Faça isso! - disse Gladia e entrou em seu quarto.

      Daneel virou-se para Giskard e perguntou sucintamente:

      - Ela está concordando?

      - Mais que isso - replicou Giskard. - Ela sempre se sentiu um pouco perturbada com a minha presença e não sofrerá excessivamente na minha ausência. Quanto a você, amigo Daneel, ela tem sentimentos ambivalentes. Você a faz lembrar muito do amigo Jander, cuja desativação, há muitas décadas, foi-lhe muito traumática. Isso tem sido tanto uma fonte de atração como de repulsa para ela, e por isso não é necessário fazer muito. Eu diminuí a atração dela por você e aumentei a forte atração pelo comandante. Ela vai agir facilmente sem nós.

      - Então vamos procurar o comandante - disse Daneel. Deixaram juntos a sala e entraram no corredor que passava pelo apartamento.

     

      Daneel e Giskard já tinham estado na Terra em outras ocasiões Giskard mais recentemente. Conheciam o uso do catálogo computadorizado que fornecia o endereço, a Seção, Ala e número do apartamento onde haviam instalado D.G, e mais tarde aprenderam a cor dos códigos nos corredores que os guiaram nas curvas e elevadores apropriados.

      Era bastante cedo para o movimento de pedestres, mas os seres humanos que passavam ou se aproximavam primeiro olhavam com espanto para Giskard e depois desviavam a atenção com fingida despreocupação.

      Os passos de Giskard estavam ligeiramente irregulares quando se aproximaram da porta do apartamento de D. G., o fato não se notava mas chamou a atenção de Daneel, que perguntou, em voz baixa.

      - Está preocupado, amigo Giskard?

      - Precisei eliminar o espanto, a apreensão e mesmo a atenção numa porção de homens e mulheres, e num rapaz, que foi ainda mais difícil. Não tive tempo para me certificar completamente de que não estava causando nenhum dano.

   - Foi importante agir assim. Não podemos ser impedidos.

      - Compreendo, mas a Lei Zero não funciona bem comigo. Não tenho sua facilidade a esse respeito. - Prosseguiu, como que para retirar a atenção da sua preocupação: - Tenho notado freqüentemente que a hiper-resistência nas linhas positrônicas age em primeiro lugar na postura e no caminhar, e depois na fala.

      Daneel apertou a campainha da porta.

      - Acontece o mesmo comigo, amigo Giskard - retrucou. - Manter o equilíbrio em dois suportes é difícil, mesmo sob as melhores circunstâncias. Controlar o desequilíbrio, como no andar, é ainda mais difícil. Ouvi dizer que outrora houve tentativas para construir robôs com quatro pernas e dois braços. Eram chamados "centauros". Trabalhavam bem, mas foram considerados inaceitáveis porque eram basicamente não-humanos na aparência.

      - Neste momento - afirmou Giskard - eu gostaria de ter quatro pernas, amigo Daneel. Contudo, acho que meu desconforto está passando.

      D. G. estava agora na porta. Olhou-os com um grande sorriso. Depois virou-se para ambos os lados do corredor, então seu sorriso desapareceu e foi substituído por um ar de extrema preocupação.

      - Que estão fazendo aqui sem Gladia? Ela está...

      - Comandante, a Senhora Gladia está bem - replicou Daneel. - Não está em perigo. Podemos entrar e explicar?

      D. G. estava apreensivo quando os mandou entrar. Sua voz adotou o tom fanfarrão que se assume com máquinas mal comportadas, e ele disse:

      - Por que a deixaram sozinha? Quais as circunstâncias que puderam lhes permitir deixá-la só?

      - Ela não está mais só que qualquer pessoa na Terra - retrucou Daneel - nem correndo maior risco. Se, mais tarde, perguntar-lhe a respeito, creio que ela lhe dirá que não pode ser eficiente na Terra enquanto for seguida por robôs. Creio que ela lhe dirá que a orientação e proteção de que necessita devem ser fornecidas pelo senhor, melhor do que por robôs. É o que nós acreditamos que ela deseja, pelo menos agora. Se, a qualquer tempo, ela nos quiser de volta, ela nos terá.

      O rosto de D. G. voltou a se abrir num sorriso.

      - Ela deseja minha proteção, não é?

      - Neste instante, comandante, acreditamos que ela está mais ansiosa pela sua presença que pela nossa.

      O sorriso de D. G. aumentou.

      - Quem pode culpá-la? Vou me aprontar e ir ao seu apartamento o mais depressa possível.

      - Mas primeiro, senhor...

      - Ah - disse D. G. - há um quiproquó?

      - Sim senhor. Estamos ansiosos para descobrir o máximo que pudermos sobre o robô que usou o explosor no balcão a noite passada.

      D. G. ficou novamente tenso.

      - Está prevendo algum perigo para Senhora Gladia?

      - Absolutamente nada desse tipo. O robô, na noite passada, não atirou em Lady Gladia. Sendo robô, não podia fazê-lo. Atirou no amigo Giskard.

      - Por que teria feito isso?

      - É isso que queremos descobrir. Com esse fim, queremos que procure a Senhora Quintana, Subsecretária de Energia, e lhe declare que isso será importante e que lhe agradaria e ao governo de Baleyworld, se quiser acrescentar isto, que ela permitisse que eu lhe fizesse algumas perguntas a respeito. Gostaríamos que fizesse o que lhe parecer melhor para convencê-la a concordar com essa entrevista.

      - É tudo o que querem que eu faça? Convencer uma funcionária razoavelmente importante e ocupada a ser interrogada por um robô?

      - Senhor, ela pode concordar se o senhor for bastante convincente no pedido - afirmou Daneel. - Além disso, uma vez que ela pode se encontrar em local distante, ajudaria muito que o senhor alugasse em seu nome um veículo veloz para nos levar lá. Como pode imaginar, temos pressa.

      - E são só essas coisinhas? - perguntou D. G.

      - Não, comandante - disse Daneel. - Vamos precisar de um condutor, por favor, pague-lhe bem para que ele consinta em transportar o amigo Giskard, que é um robô evidente. Comigo ele não se importará.

      - Espero que perceba, Daneel - retrucou D. G. - que o que está pedindo é completamente exorbitante.

      - Eu tinha suposto que não, comandante - afirmou Daneel. - Mas, já que me garante que é, nada mais tenho a dizer. Então não temos escolha a não ser voltar para a Senhora Gladia, o que a tornará infeliz, pois ela preferiria estar com o senhor.

      Virou-se para sair, fazendo um gesto para que Giskard o acompanhasse, mas D. G. disse:

      - Espere. Há um contato público de comunicação no fim do corredor. Posso tentar. Fique aqui e espere por mim.

      Os dois robôs ficaram em pé. Daneel disse:

      - Foi muito difícil fazer isso, amigo Giskard?

      Giskard parecia agora firme nas pernas. Respondeu:

      - Eu estava desamparado. Ele se mostrava firmemente disposto a não falar com Senhora Quintana nem a nos arranjar o veículo. Eu não poderia ter alterado esses sentimentos sem danificá-lo. Quando, porém, você sugeriu voltarmos para junto de Senhora Gladia, sua atitude mudou repentina e dramaticamente. Você previu isso, não é, amigo Daneel?

      - Previ.

      - Parece que você não precisa muito de mim. Há mais de uma maneira de ajustar mentes. Contudo, acabei fazendo alguma coisa. A mudança de opinião do comandante foi acompanhada por uma forte emoção favorável a Senhora Gladia. Aproveitei a oportunidade para fortalecê-la.

      - Foi esse o motivo de que você precisava. Eu não podia tê-lo dado.

      - Mas você será capaz, amigo Daneel. Talvez muito breve.

      D. G. voltou.

      - Acredite ou não, ela concordou, Daneel. O veículo com o condutor estará logo aqui, e quanto mais cedo você partir, melhor. Vou imediatamente ao apartamento de Gladia.

      Os dois robôs foram para o corredor esperar.

      - Ele está muito feliz - disse Giskard.

      - É o que parece, amigo Giskard - retrucou Daneel - mas temo que a parte mais fácil acabou para nós. Conseguimos sem dificuldade que Senhora Gladia permitisse que saíssemos sozinhos. Depois, com certa dificuldade, obtivemos do comandante que tornasse possível nosso encontro com a Subsecretária Quintana. Com ela, porém, poderemos chegar a um beco sem saída.

     

      O condutor deu uma olhada em Giskard e sua coragem pareceu fugir.

      - Escute - disse para Daneel - me informaram que eu seria pago em dobro para levar um robô, mas robôs não são permitidos na Cidade e posso me meter numa grande encrenca. O dinheiro não vai me adiantar se eu perder minha licença. Posso levar só o senhor, cavalheiro?

      - Eu também sou robô, senhor - retrucou Daneel. - Estamos agora na Cidade e não temos culpa disso. Estamos tentando sair da Cidade e o senhor está nos ajudando. Estamos indo ver um alto funcionário do governo que, espero, vai resolver isso, e é seu dever de cidadão ajudar-nos. Condutor, se se recusar a nos levar, estará contribuindo para manter robôs na Cidade e isso pode ser considerado ilegal.

      O rosto do condutor descontraiu-se. Abriu a porta e disse, grosseiramente:

      - Entrem!

      Todavia, fechou cuidadosamente a divisão transparente que o separava dos passageiros.

      Daneel perguntou, em voz baixa:

      - Foi difícil, amigo Giskard?

      - Muito pouco, amigo Daneel. Sua afirmativa fez a parte mais importante do trabalho. É espantoso como um grupo de declarações que são verdadeiras de per si pode ser usado em combinação para obter um efeito que a verdade não consegue.

      - Tenho observado isso na conversa humana, amigo Giskard, mesmo nos seres humanos normalmente honestos. Desconfio que a prática é justificada na cabeça deles como servindo a um objetivo superior.

      - Você quer dizer, a Lei Zero.

      - Ou seu equivalente, se a mente humana tem um. Amigo Giskard, você disse há pouco que eu terei seus poderes possivelmente breve. Está me preparando para isso?

      - Estou, amigo Daneel.

      - Por quê? Posso fazer-lhe esta pergunta?

      - Novamente a Lei Zero. O recente episódio do tremor em meus pés me provou como sou vulnerável na tentativa de uso da Lei Zero. Antes deste dia acabar, terei de agir dentro da Lei Zero para salvar o planeta e a humanidade, e posso não ser capaz. Neste caso, você deve estar apto a fazer o trabalho. Estou preparando-o pouco a pouco, de maneira que, no momento desejado, possa lhe dar as instruções finais e ter tudo colocado no lugar.

      - Não sei como pode fazer isso, amigo Giskard.

      - Você não terá dificuldade de perceber quando o momento chegar. Usei a técnica nos robôs que mandei para a Terra no passado, antes de terem sido banidos das Cidades, e foram eles que ajudaram a ajustar os líderes da Terra ao ponto de aprovarem a decisão de enviar os Colonizadores.

      O condutor, cujo veículo não era sobre rodas mas permanecia a pouco mais de um centímetro do chão o tempo todo, tinha se movido por corredores especiais reservados para tais veículos e andava bastante rapidamente. Emergia agora num corredor comum da Cidade, que seguia paralelo, a distância razoável de uma Via Expressa. O veículo, movendo-se agora muito mais devagar, virou à esquerda, passou sob a Via Expressa e saiu do outro lado, depois, cerca de um quilômetro adiante, parou diante de um prédio de fachada esculpida.

      A porta do veículo abriu-se automaticamente. Daneel saiu primeiro, esperou por Giskard e depois deu ao condutor um pedaço de metal que tinha recebido de D. G. O condutor olhou-o atentamente, depois as portas se fecharam asperamente e ele partiu velozmente, sem dizer uma palavra.

      Passou-se um tempo antes que a porta se abrisse em resposta ao seu toque e Daneel presumiu que tinham estado sendo examinados. Quando a porta se abriu, uma moça guiou-os devagar para a parte habitável do prédio. Ela evitou olhar para Giskard, mas mostrou um pouco mais que simples curiosidade por Daneel.

      Os dois encontraram a Subsecretária Quintana por trás de uma grande escrivaninha. A mulher sorriu e disse, com uma alegria que pareceu um tanto forçada:

      - Dois robôs, não acompanhados por seres humanos. Estarei segura?

      - Totalmente, Senhora Quintana - respondeu Daneel, com ar sério. - É também incomum para nós ver um ser humano desacompanhado de robôs.

      - Garanto-lhe - disse Quintana - que tenho robôs. Chamo-os serviçais, e um deles os acompanhou até aqui. Estou espantada por ela não ter desmaiado à vista de Giskard. Acho que isso teria acontecido se ela não tivesse sido avisada e se você não tivesse uma aparência tão interessante, Daneel. Mas não importa. O Comandante Baley estava tão incrivelmente insistente em seu desejo de que eu os visse, e meu interesse em manter relações amistosas com um planeta importante dos Colonizadores era tal, que concordei com a entrevista. Contudo, meu dia continua atarefado mesmo assim, e eu ficaria grata se pudéssemos resolver isso depressa. Em que posso lhe ser útil?

      - Senhora Quintana... - começou Daneel.

      - Um momento. Quer sentar? Eu o vi sentado na noite passada, lembra?

      - Podemos sentar, mas para nós é igualmente confortável ficarmos em pé. Não nos importamos.

      - Mas eu sim. Eu não me sentirei bem em pé, e se me sentar, ficarei de pescoço duro olhando para você em pé. Por favor, peguem cadeiras e sentem-se. Obrigada. Agora, Daneel, que significa isto?

      - Senhora Quintana - disse Daneel - a senhora lembra, suponho, do incidente do explosor ontem à noite, após o banquete.

      - Claro que lembro. Mais ainda, sei que foi um robô humanóide quem usou o explosor, embora isso não seja confessado oficialmente. Mas aqui estou, sentada, com dois robôs no outro lado da escrivaninha, sem proteção. E um de vocês é também humanóide.

      - Não tenho explosor, senhora - retrucou Daneel, sorrindo.

      - Espero que não. Aquele outro robô humanóide não se parece absolutamente com você, Daneel. Você é quase uma obra de arte, sabe disso?

      - Fui programado complexamente, senhora.

      - Refiro-me à sua aparência. Mas o que quer saber sobre o incidente do explosor?

      - Senhora, aquele robô tem base em algum lugar na Terra, e eu preciso saber onde. Vim de Aurora com a finalidade de descobri-la e evitar que incidentes semelhantes possam perturbar a paz entre nossos planetas. Tenho motivos para acreditar...

      - Você veio? Não o comandante? Não a Senhora Gladia?

      - Nós, senhora - disse Daneel. - Giskard e eu. Não posso lhe contar tudo sobre como assumimos a empreitada e estou impedido de dizer-lhe o nome do ser humano sob cujas instruções estamos agindo.

      - Muito bem! Espionagem internacional! Fascinante. Que pena não poder ajudá-los, mas não sei de onde vem o robô. Não tenho a menor idéia de onde possa estar a sua base. Aliás, nem mesmo sei por que veio me procurar para isso. Se eu fosse você, Daneel, teria ido ao Departamento de Segurança. - Curvou-se para ele. - Há pele de verdade em seu rosto, Daneel? Se não há, é uma imitação extraordinária. - Estendeu o braço e sua mão pousou delicadamente na face de Daneel. - Parece mesmo verdadeira.

      - Contudo, senhora, não é. Ela não se cura espontaneamente se receber um corte. Por outro lado, um arranhão pode ser fechado ou um pedaço pode ser substituído.

      - Uau - disse Quintana, enrugando o nariz. - Mas nosso encontro está terminado, pois não posso auxiliá-lo no que se refere a esse explosor. Nada sei.

      - Senhora, permita-me que lhe explique melhor - insistiu Daneel. - Esse robô pode ser membro de um grupo interessado no primitivo processo de produção de energia que a senhora descreveu ontem à noite, a fissão. Partindo disso, há os que estão interessados na fissão e na existência de urânio e tório na crosta terrestre. Qual seria o lugar conveniente para eles usarem como base?

      - Talvez uma velha mina de urânio, quem sabe? Eu nem mesmo sei onde pode haver uma. Daneel, é preciso que você compreenda que a Terra tem uma aversão quase supersticiosa por tudo que é nuclear, a fissão em especial. Você não encontrará quase nada a respeito dela em nossas obras populares sobre energia, e apenas o essencial nas produções técnicas para especialistas. Eu mesma conheço pouquíssimo, mas afinal sou administradora e não cientista.

      - Mais uma coisa, então, senhora - pediu Daneel. - Nós interrogamos o suposto assassino sobre a localização da sua base e ele se mostrou irredutível. Foi programado para ficar sob permanente desativação, uma paralisação total de sua rede cerebral, no caso, e ficou desativado. Antes de chegar a isso, contudo, no seu esforço final entre a resposta e a desativação, ele abriu a boca três vezes, como que, possivelmente, para dizer três sílabas ou três palavras ou três grupos de palavras, ou uma mistura disso. A segunda sílaba, palavra ou simples som foi "mile". Ela significa alguma coisa para a senhora como tendo qualquer ligação com fissão?

      Quintana balançou a cabeça lentamente.

      - Não. Acho que não. Certamente não é uma palavra que você encontre num dicionário de Galáctico Padrão. Lamento, Daneel. Foi agradável tornar a encontrá-lo, mas a minha escrivaninha está cheia de trabalho. Peço-lhe que me desculpe.

      Como se não a tivesse ouvido, Daneel continuou:

      - Disseram-me, senhora, que "mile" pode ser uma expressão arcaica para designar uma antiga unidade de comprimento, possivelmente equivalendo a mais de um quilômetro.

      - Isso me parece totalmente sem importância - replicou Quintana - ainda que verdadeiro. Que poderia um robô originário de Aurora saber sobre expressões arcaicas e antigas... - Parou abruptamente. Seus olhos escancararam-se e ela ficou lívida. - Será possível? - perguntou.

      - Possível o quê, senhora? - inquiriu Daneel.

   - Há um lugar - replicou Quintana, meio imersa em pensamentos - que é evitado por todos, tanto Terráqueos como robôs da Terra. Se eu quisesse ser dramática, diria que é um lugar de mau agouro. É tão agourento que foi eliminado da consciência. Nem mesmo foi incluído nos mapas. É a quintessência de todos os métodos de fissão. Lembro-me de tê-lo visto num velho filme documentário nos meus primeiros dias neste trabalho. Ele foi muito citado como o local de um "incidente" que mudou para sempre a cabeça dos Terráqueos em relação à fissão como fonte de energia. O local é chamado Three Mile Island.

      - Um lugar isolado, então - disse Daneel - totalmente isolado e livre de toda invasão possível, uma espécie de local que certamente se encontra quando se procura entre antigas referências sobre fissão, e que logo se reconhece como base ideal para o mais absoluto segredo, e com um nome de três palavras sendo "mile" a segunda.

      - Tem que ser esse o lugar, senhora. Pode nos dizer como se chega lá e dar um jeito de nos permitir deixar a Cidade e chegar a Three Mile Island ou o mais perto possível?

      Quintana sorriu. Remoçava quando sorria.

      - Evidentemente, se está lidando com um caso interessante de espionagem interestelar, você não tem tempo a perder, não é?

      - Não. De fato, não temos, senhora.

      - Bem, nesse caso, está dentro das minhas obrigações examinar Three Mile Island. Por que não levá-los num aerocarro? Eu sei dirigir.

      - Senhora, seu trabalho...

      - Ninguém mexerá nele. Ainda estará aqui quando eu voltar.

      - Mas terá de sair da Cidade...

      - E daí? Não estamos nos tempos antigos. Nos maus dias da dominação Espacial, os Terráqueos nunca saíram de suas Cidades, é verdade, mas estivemos indo ao exterior e povoando a galáxia há quase vinte décadas. Ainda há alguns retrógrados que mantêm a velha atitude provinciana, porém a maioria tornou-se bastante móvel. Sempre há a sensação, suponho, de que podemos finalmente encontrar algum grupo Colonizador. De qualquer modo, freqüentemente dirijo meu próprio aerocarro e, há cinco anos, voei até Chicago. Sente-se. Tomarei as providências.

      Saiu, parecendo um turbilhão.

      Daneel acompanhou-a com o olhar e murmurou:

      - Amigo Giskard, seja como for, isso não é sua característica. Você lhe fez alguma coisa?

      - Pouca coisa - respondeu Giskard. - Pareceu-me, quando entrei, que a moça que nos introduziu ficou atraída por sua aparência. Eu tinha a impressão de que o mesmo acontecera na mente da Senhora Quintana na noite passada, no banquete, porém eu estava muito longe dela e havia muita gente na sala para que tivesse certeza. Assim que nossa conversa com ela começou, a atração foi manifesta. Pouco a pouco, eu a fortaleci, e cada vez que ela sugeriu que a entrevista tinha terminado, pareceu menos determinada... e em momento algum se opôs seriamente a que você continuasse. Finalmente sugeriu o aerocarro porque, acredito, tinha chegado ao ponto em que não podia suportar perder a oportunidade de estar com você um pouco mais.

      - Isso pode complicar as coisas para mim - disse Daneel, pensativo.

      - Foi por uma boa causa - respondeu Giskard. - Pense nisso em função da Lei Zero.

      Ao dizer isso, deu, de certo modo, a impressão de que estava sorrindo, se seu rosto permitisse tal expressão.

     

      Quintana deu um suspiro de alívio quando pousou o aerocarro num trecho de cimento com essa finalidade. Dois robôs se aproximaram imediatamente para o exame obrigatório do veículo e para recarregá-lo, se necessário.

      Ela lançou um olhar à direita, inclinando-se sobre Daneel ao fazê-lo.

      - É nessa direção, vários quilômetros acima do Rio Susquehanna. Está um dia quente também. - Endireitou-se com evidente relutância e sorriu para Daneel. - Isso é o pior quando se sai da Cidade. O ambiente é totalmente incontrolável fora dela. Imagine, permitir que se chegue a este calor. Não se sente encalorado, Daneel?

      - Eu tenho um termostato interno, senhora, que está funcionando perfeitamente.

      - Maravilhoso. Gostaria de ter um. Não há estradas nesta área, Daneel. Nem robôs para guiá-lo, pois eles nunca entram aqui. E também não sei o lugar certo, neste espaço de tamanho considerável. Nós podemos errar por toda a área sem chegar à base e até mesmo passar a quinhentos metros dela.

      - “Nós” não, senhora. É conveniente que a senhora permaneça aqui. O que vai acontecer poderá ser muito perigoso, e, uma vez que a senhora não tem ar condicionado, a tarefa poderá estar acima de suas forças, mesmo que não seja perigosa. Pode nos esperar, senhora? Se consentir, será importante para mim.

      - Esperarei.

      - Poderemos demorar horas.

      - Aqui há recursos de várias espécies, e a Cidade de Harrisburg não fica longe.

      - Nesse caso, senhora, precisamos prosseguir.

      Pulou com facilidade do aerocarro e Giskard o acompanhou. Dirigiram-se para o norte. Era quase meio-dia, e o brilhante sol de verão faiscava nas partes polidas do corpo de Giskard.

      - Qualquer sinal de atividade mental que você captar poderá ser o que queremos - disse Daneel. - Não deverá haver outro num raio de quilômetros.

      - Tem certeza de que podemos pará-los se os encontrarmos, amigo Daneel?

      - Não, amigo Giskard, não tenho, mas precisamos.

     

      Levular Mandamus resmungou e olhou para Amadiro, com um sorriso tenso no rosto.

      - Espantoso e muito satisfatório - disse ele.

      Amadiro enxugou a testa e o rosto com uma toalha e perguntou:

      - Que significa isso?

      - Significa que cada estação de relê está funcionando bem.

      - Então pode começar a intensificação?

      - Assim que eu calcular o grau adequado de concentração da partícula W.

      - E isso vai demorar quanto tempo?

      - Quinze minutos. Trinta.

      Amadiro ficou observando, com um ar de crescente severidade no rosto, até que Mandamus disse:

      - Pronto. Consegui. É 2,72, na escala arbitrária que estabeleci. Isso nos dará quinze décadas antes de ser atingido um nível de equilíbrio superior que será mantido sem mudança essencial durante milhões de anos depois disso. E esse nível vai fazer com que tenhamos a certeza de que, na melhor das hipóteses, a Terra poderá manter alguns grupos espalhados em áreas relativamente livres de radiação. Teremos apenas que esperar, e em quinze décadas um grupo completamente desorganizado de planetas dos Colonizadores estará inteiramente à nossa disposição.

      - Eu não viverei mais quinze décadas - disse Amadiro pausadamente.

      - Meus pêsames, senhor - replicou Mandamus friamente - mas estamos falando de Aurora e dos planetas Espaciais. Outros continuarão sua obra.

      - Você por exemplo?

      - O senhor me prometeu a chefia do Instituto, e, como vê, eu a mereci. Desta base política, poderei razoavelmente esperar tornar-me Presidente um dia, e darei prosseguimento a essa política para ter certeza da dissolução final dos planetas até agora anárquicos dos Colonizadores.

      - Você é muito confiante. E se, tendo ligado a partícula W, alguém a desligar no decorrer das próximas quinze décadas?

      - Isso é impossível, senhor. Uma vez colocado o aparelho, um esquema atômico interno o imobilizará nessa posição. Depois disso, o processo é irreversível - não importa o que aconteça aqui. Ainda que todo o local seja vaporizado, a crosta continuará, não obstante, a queimar lentamente. Suponho que seja possível reconstruir um projeto inteiramente novo se alguém na Terra ou entre os Colonizadores puder duplicar meu trabalho, ainda que isso aconteça, porém, eles poderão apenas continuar a aumentar a taxa de radioatividade, nunca diminuí-la. A segunda lei da termodinâmica cuidará disso.

      - Mandamus - replicou Amadiro - você disse que mereceu a chefia. Contudo, acho que sou o único a decidir isso.

      Mandamus falou duramente:

      - Não, senhor. Respeitosamente, os detalhes deste processo são do meu conhecimento, mas não do seu. Tais detalhes estão codificados num local que não encontrará,  mas ainda que o encontre, os robôs que guardam o local os destruirão antes de permitir que caiam em suas mãos. O senhor não se beneficiará deles. Eu sim.

      - Não obstante - replicou Amadiro - obtendo minha aprovação, você apressará as coisas. Se tiver de arrancar a chefia das minhas mãos relutantes, sabe-se lá por que meios, você terá uma contínua oposição dos outros membros do Conselho, que o obstruirão durante todas as suas décadas no posto. É apenas o título de chefe o que deseja ou a oportunidade de experimentar tudo o que decorre da verdadeira chefia?

      - Esta é a hora de falarmos de política? - perguntou Mandamus. - Não faz muito, o senhor estava todo impaciente pelo fato de eu poder me demorar quinze minutos no meu computador.

      - Ah, mas então estávamos falando de ajustar o raio da partícula W. Você queria colocá-la em 2,72, não era esse o grau? E então eu fiquei imaginando se estava certo. Qual o raio de ação máximo que pode manipular?

      - O raio de ação vai de zero a doze, mas o necessário é 2,72. Mais ou menos 0,05 - se faz questão de detalhes. Isso é que, tendo como base os relatórios de todos os quatorze relês, permitirá um lapso de quinze décadas para o equilíbrio.

      - Contudo, acho que o número correto é doze.

      Mandamus olhou-o horrorizado.

      - Doze? Compreende o que isso significa?

      - Sim. Significa que teremos a Terra bastante radioativa para viver mais de uma década ou década e meia, e mataremos alguns bilhões de Terráqueos no processo.

      - E tornaremos inevitável uma guerra com uma enfurecida Federação de Colonizadores. Como pode querer tal holocausto?

      - Vou repetir-lhe. Não espero viver outras quinze décadas e quero viver para ver a destruição da Terra.

      - Mas também estará garantindo a mutilação, no mínimo mutilação, de Aurora. Não pode estar falando sério.

   - Mas estou. Tenho vinte décadas de derrota e humilhação para resgatar.

      - Essas décadas foram obra de Han Fastolfe e Giskard, e não da Terra.

      - Não, foram obra de um Terráqueo, Elijah Baley.

      - Que está morto há mais de dezesseis décadas. Qual o valor de um momento de vingança contra um homem morto há décadas?

      - Não quero discutir isso. Vou fazer-lhe uma oferta. O título de chefe imediatamente. Renunciarei ao meu cargo no momento em que voltarmos a Aurora e o nomearei para o meu lugar.

      - Não. Isso ainda significa a morte de bilhões de Terráqueos e quem sabe quantos milhões de Espaciais. Dr. Amadiro, por favor, compreenda que não farei isso por preço nenhum e que o senhor não pode fazê-lo sem mim. A trava que libera o mecanismo só pode ser acionada pela impressão digital do meu polegar esquerdo.

      - Peço-lhe novamente.

      - O senhor não pode estar no seu juízo se torna a me pedir, apesar do que lhe disse.

      - Isso, Mandamus, é sua opinião pessoal. Não estou tão louco que tenha esquecido de despachar todos os robôs locais para fazer tarefas diversas. Estamos sós.

      Mandamus arreganhou o canto do lábio superior num resmungo.

      - E com o que pretende me ameaçar? Vai me matar agora, que não ha robôs presentes para impedi-lo?

      - Na verdade vou, Mandamus, se for necessário. - Amadiro tirou um explosor de pequeno calibre de um bolso lateral. - Isto é difícil de encontrar na Terra, mas não impossível, se pagamos o preço certo. E sei usá-lo. Acredite-me, por favor, quando lhe digo que estou perfeitamente disposto a arrebentar sua cabeça imediatamente, se não colocar seu polegar no contato e permitir que eu ajuste o disco para doze.

      - O senhor não se atreverá. Se eu morrer, como preparará o disco sem mim?

      - Não seja tão idiota. Se eu estourar sua cabeça, seu polegar esquerdo continuará intacto. Manterá inclusive a mesma temperatura durante algum tempo. Usarei esse polegar, depois colocarei o disco tão facilmente como giro uma torneira de água. Eu preferiria você vivo, pois sua morte pode ser cansativa de explicar em Aurora, mas não será mais cansativa do que posso suportar. Portanto, dou-lhe trinta segundos para mudar de idéia. Se cooperar, continuarei mantendo minha promessa, dando-lhe imediatamente a chefia do Instituto. Se não concordar, vai ser tudo como desejo, seja como for, e você morrerá. Vamos começar. Um... dois... três...

      Mandamus olhou horrorizado para Amadiro, que continuou a contar e o fixava por cima do explosor com olhos duros e inexpressivos. E então Mandamus sibilou:

      - Afaste esse explosor, Amadiro, ou ambos seremos imobilizados sob o pretexto de que precisamos ser protegidos de ataques.

      O aviso chegou muito tarde. Com uma rapidez impossível de ser acompanhada pelo olhar, um braço surgiu para pegar o pulso de Amadiro, paralisando-o.

      - Desculpe por tê-lo magoado, Dr. Amadiro - disse Daneel - mas não posso permitir que aponte um explosor para outro ser humano.

      Amadiro ficou calado.

      Mandamus disse friamente:

      - Vocês são dois robôs que, até onde posso ver, não têm um dono à vista. Na falta dele, sou seu dono e ordeno-lhes que vão embora e não voltem. Uma vez que, como podem ver, não há perigo para nenhum ser humano presente neste momento, não há nada que se sobreponha à sua obediência obrigatória a esta ordem. Partam já.

      - Respeitosamente, senhor - retrucou Daneel - não há necessidade de esconder do senhor nossas identidades ou capacidades, uma vez que já as conhece. Meu companheiro, R. Giskard Reventlov, tem a capacidade de detectar emoções. Amigo Giskard.

      Giskard respondeu:

      - Ao nos aproximarmos, tendo detectado sua presença a uma certa distância, notei, Dr. Amadiro, uma raiva avassaladora em sua mente. Na sua, Dr. Mandamus, havia um medo extremo.

      - A raiva, se raiva houve - disse Mandamus - foi a reação do Dr. Amadiro diante da aproximação de dois robôs estranhos, especialmente de um capaz de se intrometer na mente humana e que já tinha avariado gravemente, e talvez permanentemente, a de Lady Vasilia. Meu medo, se medo era, foi também o resultado da sua aproximação. Estamos agora de posse das nossas emoções e não há motivo para sua interferência. Tornamos a lhes ordenar que se retirem definitivamente.

      - Desculpe, Dr. Mandamus - falou Daneel - mas eu apenas desejo ter certeza de que podemos seguir suas ordens sem perigo. Quando nos aproximamos, não havia um explosor na mão do Dr. Amadiro e que estava sendo apontado para o senhor?

      - Ele estava me explicando como funcionava - retrucou Mandamus - e ia guardá-lo quando você o tomou dele.

      - Então devo devolvê-lo a ele, senhor, antes de partir?

      - Não - disse Mandamus, estremecendo - pois então você teria um pretexto para ficar aqui, afim de - como iria dizer - nos proteger. Leve-o com você quando for e não terá motivo para voltar.

      - Temos motivos para pensar - afirmou Daneel - que os senhores estão numa região onde os seres humanos estão proibidos de penetrar...

      - É um costume e não uma lei, que, em todo caso, não se aplica a nós, pois não somos Terráqueos. Por falar nisso, aos robôs também não é permitido estar aqui.

      - Fomos trazidos aqui, Dr. Mandamus, por um alto funcionário do governo da Terra. Temos motivos para pensar que os senhores estão aqui com o objetivo de aumentar o nível da radioatividade da crosta terrestre e causar danos graves e irreparáveis ao planeta.

      - Em absoluto... - começou Mandamus.

      Nesse momento, Amadiro interrompeu pela primeira vez.

      - Com que direito, robô, você está nos interrogando? Somos seres humanos que lhe deram uma ordem. Cumpra-a imediatamente!

      Seu tom de autoridade era irresistível e Daneel estremeceu, enquanto Giskard fez meia-volta. Mas Daneel disse:

      - Desculpe, Dr. Amadiro. Não estou interrogando. Procuro apenas me certificar de que posso seguramente seguir a ordem. Temos motivos para pensar que...

      - Você não precisa repetir - disse Mandamus. Então, em voz baixa, virando-se para o Dr. Amadiro: - Permita-me que responda. - Voltando-se novamente para Daneel: - Estamos aqui numa missão antropológica. Nosso objetivo é descobrir as origens de vários costumes humanos que influenciam o comportamento dos Espaciais. Essas origens só podem ser encontradas aqui na Terra, e é aqui, portanto, que as procuramos.

      - Têm permissão da Terra para isso?

      - Há sete anos consultei os funcionários apropriados da Terra e recebi permissão.

      Daneel perguntou em voz baixa:

      - Amigo Giskard, o que acha?

      - O que a mente do Dr. Mandamus indica - retrucou Giskard - é que o que está dizendo não combina com a situação como tal.

      - Então ele está mentindo? - perguntou Daneel, com firmeza.

      - É minha opinião - afirmou Giskard.

      Mandamus disse, com sua calma intacta:

      - Pode ser a sua opinião, mas opinião não é certeza. Você não pode desobedecer a uma ordem baseado em simples opinião. Eu e você sabemos disso.

      - Mas na mente do Dr. Amadiro - insistiu Giskard - a raiva é contida apenas por forças emocionais que estão ligeiramente acima do trabalho que delas é exigido. É muito possível rachar essa forças, por assim dizer, e permitir que a raiva se escoe.

      - Por que você argumenta com essas coisas, Mandamus? - gritou Amadiro.

      Mandamus berrou:

      - Cale a boca, Amadiro! Está fazendo o jogo deles!

      Amadiro não prestou atenção.

      - É humilhante e não adianta. - com raiva violenta, afastou o braço de Mandamus. - Eles sabem a verdade, mas e daí? Robôs, somos Espaciais. Mais que isso, somos Auroreanos, do planeta onde vocês foram construídos. Mais ainda, somos altos funcionários do planeta Aurora, e vocês precisam interpretar a expressão “seres humanos”nas Três Leis da Robótica como significando Auroreanos.

      “Se não nos obedecem agora, nos causam dano e humilham, de maneira que estão violando tanto a Primeira como a Segunda Lei. É verdade que nossas ações aqui têm o propósito de destruir Terráqueos, uma grande quantidade deles, admito, mas isso é também totalmente irrelevante. Vocês podem da mesma forma intentar desobedecer-nos porque nós comemos carne de animais que matamos. Agora que lhes expliquei isso, vão embora!”

      Mas as últimas palavras se transformaram num sufoco. Os olhos de Amadiro esbugalharam-se e ele caiu dobrado no chão.

      Mandamus, com um grito estrangulado, curvou-se sobre ele.

      - Dr. Mandamus - disse Giskard - o Dr. Amadiro não está morto. Está num estado de inconsciência do qual pode sair a qualquer momento. Contudo, ele terá esquecido tudo relacionado ao presente projeto, bem como não será capaz de compreender nada ligado a ele, se, por exemplo, o senhor tentar explicar-lhe. No processo de realização disso, que eu não podia ter feito sem sua própria confissão de que pretendia aniquilar grande quantidade de Terráqueos, eu posso ter estragado permanentemente outras partes de sua memória e seus processos de pensamento. Lamento, mas nada posso fazer.

      - Dr. Mandamus - disse Daneel - há algum tempo, em Solaria, havia robôs que, estreitamente, definiam seres humanos como Solarianos apenas. Reconhecemos o fato de que se robôs diferentes são sujeitos a definições estreitas, de um tipo ou de outro, o único resultado será a total destruição. É inútil tentar que definamos os seres humanos apenas como Auroreanos. Para nós, os seres humanos são todos membros da espécie Homo sapiens, que abrange Terráqueos e Colonizadores, e sentimos que a prevenção de causar dano a seres humanos em grupo e à humanidade como um todo tem precedência sobre um indivíduo especificamente.

      Mandamus disse, arquejante:

      - Não é o que diz a Primeira Lei.

      - É o que chamo de Lei Zero, e isso tem precedência.

      - Você não foi programado assim.

      - Foi assim que me programei. E como percebi, desde a minha chegada aqui, que sua presença tem a intenção de causar dano, o senhor não pode me mandar embora ou impedir-me de causar-lhe dano. A Lei Zero tem prioridade e eu preciso salvar a Terra. Portanto, peço-lhe que se junte a mim, voluntariamente, na destruição dessas máquinas que tem aqui. De outra forma, serei forçado a ameaçar causar-lhe dano, como fiz com o Dr. Amadiro, embora não utilize um explosor.

      Mandamus, porém, disse:

      - Espere! Espere! Ouça-me. Deixe-me explicar. Que o Dr. Amadiro tivesse sua mente limpa, foi uma boa coisa. Ele queria destruir a Terra, mas eu não quero. Por isso ele tinha o explosor apontado para mim.

      - Contudo, foi o senhor - afirmou Daneel - que deu origem a isso, que desenhou e construiu aqueles aparelhos. De outra maneira, o Dr. Amadiro não o teria obrigado a fazer nada. Ele próprio o teria feito, dispensando qualquer ajuda sua. Não é verdade?

      - Sim, é verdade. Giskard pode examinar minhas emoções e ver se estou mentindo. Construí aqueles aparelhos e estava preparado para usá-los, mas não da forma que o Dr. Amadiro desejava. Estou falando a verdade?

      Daneel olhou para Giskard, que respondeu:

      - Até onde posso saber, ele está falando a verdade.

      - Claro que estou - afirmou Mandamus. - O que estou fazendo é introduzir uma aceleração muito gradativa da radioatividade natural na crosta da Terra. Esse processo levará cento e cinqüenta anos, durante os quais os habitantes do planeta poderão se mudar para outros planetas. Isso aumentará a população dos atuais mundos dos Colonizadores e também a Colonização de outros em grande quantidade. Isso eliminará a Terra como um planeta tremendamente anômalo que eternamente ameaça os Espaciais e embrutece os Colonizadores. Removerá um centro de fervor místico que está sustentando os Colonizadores. Estou falando a verdade?

      Giskard afirmou novamente:

      - Até onde posso saber, ele está falando a verdade.

      - Meu plano, se funcionar, preservará a paz e fará da Galáxia um lar para Espaciais e Colonizadores. Por isso, quando construí este aparelho...

      Fez um gesto na direção dele, colocando o polegar esquerdo no contato, depois, empurrando para a frente o controle de volume, gritou:

      - Paralisado!

      Daneel adiantou-se na sua direção e parou, imobilizado, a mão direita erguida. Giskard não se mexeu. Mandamus virou-se, ofegante.

      - Está em 2,72. Consegui. É irreversível. Agora irá terminar exatamente como pretendi. Não podem testemunhar contra mim, pois iniciariam uma guerra, e sua Lei Zero o proíbe.

      Olhou para o corpo caído de Amadiro e disse, com um olhar frio de desprezo:

      - Idiota! Você nunca saberia como deveria ser feito.

 

      Só

      Mandamus disse:

      - Agora vocês não podem fazer mal, robôs, pois nada do que fizerem a mim poderá alterar a sorte da Terra.

      - Não obstante - falou Giskard, trêmulo - o senhor não precisa lembrar o que fez. Não pode explicar o futuro aos Espaciais.

      Com mão trêmula, pegou uma cadeira, puxou para si e sentou-se, enquanto Mandamus encolheu-se e caiu no que pareceu ser um sono suave.

      - No fim - falou Daneel num inútil desespero, enquanto olhava para os dois corpos inconscientes - fracassei. Quando era necessário que eu pegasse o Dr. Mandamus para evitar que gente que não estava presente fosse atingida, vi-me forçado a cumprir a sua ordem e fiquei paralisado. A Lei Zero não funciona.

      - Não, amigo Daneel, você não fracassou - disse Giskard. - Eu evitei. O Dr. Mandamus tinha pressa em tentar fazer o que fez e foi contido por medo do que você certamente faria se ele tentasse. Neutralizei seu medo e depois neutralizei você. Assim, o Dr. Mandamus incendiou a crosta da Terra, por assim dizer, de maneira muito lenta.

      Daneel perguntou:

      - Mas por que, amigo Giskard, por quê?

      - Porque ele estava falando a verdade. Eu lhe disse isso. Ele pensou que estava mentindo. Pela exultação que pude detectar em sua mente, tenho a firme impressão de que ele sentiu que a conseqüência da crescente radioatividade iria causar anarquia e confusão entre os Terráqueos e Colonizadores, e que os Espaciais os iriam destruir e tomar a Galáxia. Mas eu achei que o cenário que ele nos apresentou para nos derrotar era o correto. A eliminação da Terra como planeta densamente habitado também liquidaria uma mística que eu já havia sentido ser perigosa e ajudaria os Colonizadores. Eles se espalhariam pela Galáxia numa velocidade crescente  - sem a Terra para fazê-los perder o entusiasmo, sem a Terra para erigir um deus do passado - constituiriam um Império Galáctico. Era necessário para nós tornar isso possível. - Fez uma pausa e, com voz mais baixa, acrescentou: - Robôs e Império.

      - Você está bem amigo Giskard?

      - Não posso ficar em pé, mas ainda posso falar. Preste atenção. Está na hora de você ocupar o meu lugar. Ajustei você para controle e descobertas mentais. Basta que preste atenção aos caminhos finais como estão impressos em você mesmo. Ouça...

      Falou com firmeza - mas com voz cada vez mais fraca - numa linguagem e simbologia que Daneel pôde sentir interiormente. Mesmo enquanto ouvia, Daneel pôde sentir os padrões se movendo e caindo no lugar. E quando Giskard terminou, aconteceu subitamente o frio ronronar da mente de Mandamus colidindo com a sua, o bater irregular da de Amadiro e o fino som metálico da de Giskard.

      - Você precisa tornar a procurar a Senhora Quintana - disse Giskard - e dar um jeito para que esses dois seres humanos sejam mandados de volta para Aurora. Eles não têm mais condições de causar danos à Terra daqui por diante. Depois, faça com que as forças de segurança da Terra procurem e desativem os robôs humanóides mandados para cá por Mandamus.

      “Tenha cuidado ao usar seus novos poderes, pois não está habituado com eles, que não estão ainda sob controle perfeito. Você melhorará com o tempo - pouco a pouco - se for sempre cuidadoso, submetendo-se a um exame interior cada vez que usá-los. Use a Lei Zero, mas não para justificar danos desnecessários a indivíduos. A Primeira Lei é quase tão importante.”

      "Proteja a Senhora Gladia e o Comandante Baley, discretamente. Deixe que sejam felizes juntos e que ela continue com seus esforços para conseguir a paz. Ajude a supervisionar, no correr das décadas, a remoção dos Terráqueos deste planeta. E... mais uma coisa... se posso me lembrar... Sim... se você puder... descubra para onde os Solarianos foram. Pode ser... importante.

      A voz de Giskard se arrastou e sumiu.

      Daneel ajoelhou-se ao lado da cadeira de Giskard e pegou a mão inerte de metal nas suas. Disse, num suspiro doloroso:

      - Recobre-se, amigo Giskard. Recobre-se. O que você fez estava certo pela Lei Zero. Você preservou muitas vidas, dentro do possível. Agiu corretamente, para o bem da humanidade. Por que sofre tanto, quando o que você fez salvou a todos?

      Giskard respondeu, numa voz tão distorcida que as palavras mal puderam ser ouvidas:

      - Porque não tenho certeza... Se o Dr. Mandamus... tiver razão... afinal de contas... os Espaciais... vencerão. Adeus, amigo... Dan...

      E Giskard silenciou, para nunca mais falar ou se mexer.

      Daneel levantou-se.

      Estava só, e com uma Galáxia para tomar conta.

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

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