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O HOMEM DO REVÓLVER DE OURO / Ian Fleming
O HOMEM DO REVÓLVER DE OURO / Ian Fleming

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HOMEM DO REVÓLVER DE OURO

 

               

 

"Em que posso ajudá-lo?"

Há, no serviço secreto, muita coisa que constitui segre­do para os próprios funcionários superiores do departamen­to. Apenas M. e o seu Chefe de Pessoal sabem absolutamente tudo que há para saber. À guarda do segundo desses homens está confiado o arquivo ultra-secreto conhecido pelo nome de Livro de Guerra, de forma que, na eventualidade de morrerem ambos, todas as informações ali encerradas, com exceção do que está na posse dos diferentes postos e seções, passaria às mãos de seus sucessores.

Uma coisa que James Bond, por exemplo, ignorava, era a maquinaria do Quartel-General para lidar com o pú­blico, quer amigo, quer não — bêbedos, malucos, bem in­tencionadas solicitações para ingressar no Serviço e agentes inimigos com planos de penetração e mesmo de assasinato.

Nessa fria e clara manhã de novembro iria êle ver a eficiente engrenagem em ação.

A telefonista do Ministério da Defesa acionou a chave que segurava a ligação e falou para a moça que trabalhava ao seu lado:

— Mais um gira que afirma ser James Bond. Até co­nhece o número de código dele. Diz que quer falar pessoal­mente com M.

Sua superiora deu de ombros. O PABX do Ministério ti­nha recebido bom número de telefonemas desse gênero desde que, um ano atrás, a Imprensa anunciara a morte de James Bond numa missão ao Japão. Havia até uma infernal mulher que, em todos os dias de lua cheia, transmitia mensagens de Bond, vindas de Urano, onde parecia ter ficado retido en­quanto aguardava entrada no Paraíso.

Ponha-o em contato com a Ligação, Pat — disse a

moça.

A Seção de Ligação era a primeira roda da engrenagem, o primeiro crivo. A telefonista voltou ao fone:

— Um momento, cavalheiro. Vou pô-lo em contato com um funcionário que talvez possa ajudá-lo.

— Obrigado— respondeu James Bond, sentado na bei­ra de sua cama.

Já contava com alguma demora até que pudesse esta­belecer sua identidade. Fora prevenido disso pelo encantador Coronel Boris, a cujos cuidados ficara confiado durante os últimos meses, após terminar o tratamento no luxuoso Insti­tuto situado no Nevsky Prospekt, em Leningrado. Uma voz de homem fêz-se ouvir no telefone:

— Aqui fala o Capitão Walker. Em que posso ajudá-lo? James Bond respondeu em voz lenta e clara:

— Aqui é o Comandante James Bond. Número 007. Quer fazer o favor de me pôr em contato com M., ou com sua secretária, Miss Moneypenny ? Desejo marcar uma entrevis­ta.

O Capitão Walker premiu dois botões ao lado de seu telefone. Um desses botões fazia funcionar um gravador de fita para uso do seu departamento; o outro alertava um dos oficiais de serviço na Sala de Ação da Seção Especial de Sco­tland Yard, convidando-o a escutar a conversa, localizar o chamado e pôr imediatamente um espião nos calcanhares do dito-cujo. Competia agora ao Capitão Walker, aliás um brilhante ex-inquiridor de prisioneiros de guerra, vindo do Serviço de Informações do Exército, manter o desconhecido em palestra pelo espaço de cinco minutos ou tão perto disso quanto possível.

— Sinto muito, mas creio que não conheço nenhuma dessas duas pessoas. O senhor tem certeza de que não se enganou de número?

James Bond repetiu pacientemente o número da linha Regent que era o do aparelho externo principal do Serviço Secreto. Havia-o esquecido, como tantas outras coisas, mas o Coronel Bòris o conhecia e fizera Bond escrevê-lo entre as letras impressas em corpo pequeno, na primeira página do falso passaporte britânico que atestava chamar-se êle Frank Westmacott, diretor de companhia.

— Sim — respondeu com simpatia o Capitão Walker. — Esse detalhe está certo. Mas infelizmente não consigo iden­tificar as pessoas com quem o senhor quer falar., Quem são eles precisamente? Esse Sr. Eme, por exemplo. Não creio que tenhamos um funcionário com esse nome no Ministério.

—Quer que eu diga o nome por extenso? O senhor se dá conta de que estamos falando numa linha pública?

O Capitão Walker ficou bastante bem impressionado pela firmeza com que falava o desconhecido. Apertou outro botão, fazendo soar uma campainha telefônica de modo que Bond a ouvisse.

— Espere um momento, por favor — disse êle. — Al­guém está chamando na outra linha. — E, comunicando-se com o chefe de sua seção: — Desculpe importuná-lo, senhor. Tenho aqui no telefone um camarada que afirma ser James Bond e quer falar com M. Sei que isso parece maluco e já tomei as medidas necessárias no tocante à Seção Especial, etc; mas o senhor quer fazer o favor de escutar um instante? Muito obrigado, senhor.

Duas salas além, um homem apoquentadíssimo, que era o Chefe de Segurança do Serviço Secreto, rosnou: "Que praga!" e apertou um comutador. O Chefe de Segurança aguardou imóvel na sua cadeira. Necessitava urgentemente de um cigarro, mas o seu gabinete estava agora sendo devas­sado pelo Capitão Walker e pelo doido que dizia ser James Bond. A voz do Capitão Walker fêz-se ouvir com todo o volu­me:

— Mil perdões. Bem, então vejamos. Esse homem com quem o senhor quer falar, o Sr. Eme. Não precisa preocupar­se com a segurança. Não pode dar maiores detalhes?

James Bond franziu o sobrolho sem se aperceber de que o fazia, e não teria podido explicar por que o fizera.

— Almirante Sir Miles Messervy — respondeu baixan­do, também inexplicavelmente, o tom de sua voz. — É o chefe de um departamento de seu Ministério. No meu tempo o nú­mero do gabinete desse senhor era 12, no oitavo andar. Tinha uma secretária chamada Miss Moneypenny. Bonita garota. Morena. Quer que eu diga o nome do Chefe do Pessoal? Não? Bem, deixe ver, hoje é quarta-feira. Quer que lhe diga qual será o prato principal no menu da cantina ? Deve ser chouri­ço de carne de vaca com rim.

O Chefe de Segurança apanhou o telefone direto para o Capitão Walker.

— Com mil diabos! — disse este a James Bond. — Aí está o outro telefone tocando de novo. É só um instantinho. — E, pegando o telefone verde: — Pronto, senhor.

— Não gostei desse detalhe sobre o chouriço. Envie o sujeito ao Homem Duro. Não. Cancele isso, ao Mole. Há qual­quer coisa que nunca se esclareceu na morte de 007. Não foi encontrado o cadáver. Nenhuma prova sólida. E, além disso, a atitude dos habitantes daquela ilha japonesa sempre me pareceu muito suspeita. Aquelas caras impenetráveis... Resta uma possibilidade, por pequena que seja. Mantenha-me a par de tudo, sim?

O Capitão Walker voltou a James Bond.

— Queira desculpar mais uma vez. Temos tido um dia muito movimentado. Bem, sobre esse seu pedido. Lamento não poder ajudá-lo pessoalmente. É atribuição de outro de­partamento do Ministério. O homem que pode atendê-lo é o Major Townsend. Êle deve estar em condições de localizar esse homem com quem o senhor quer falar. Tem um lápis aí? Número 44, Kensington Cloisters. Tomou nota? Kensington cinqüenta e cinco, cinqüenta e cinco. Vou me comunicar com êle e dentro de dez minutos poderei lhe dizer se êle o pode ajudar. Está bem?

— Muita bondade sua — respondeu James Bond em voz surda. Desligou e esperou exatamente dez minutos, após os quais tornou a apanhar o fone e pediu o número indicado.

James Bond hospedara-se no Ritz Hotel, obedecendo à recomendação do Coronel Boris. A ficha de Bond nos arqui­vos da K. G. B. dava-o como um bon vivant e por isso, ao che­gar a Londres, devia êle conformar-se à imagem que o K. G. B. fazia da boa vida. Bond desceu no elevador para a entrada da Arlington Street. Um homem, na banca de jornais, obteve um excelente perfil dele com uma Minox oculta por trás de uma casa de botão. Quando Bond desceu os degraus rasos da porta e pediu ao porteiro que chamasse um táxi, uma ca-nonflex de lente telescópica tirou várias fotografias suas de dentro de um furgão da Lavanderia Red Roses estacionado a pouca distância, diante das portas de serviço do hotel; a seguir, o mesmo furgão seguiu o táxi de Bond enquanto um homem, no interior, informava brevemente a Sala de Ação da Seção Especial.

O Número 44, em Kensington Cloisters, era uma som­bria vivenda vitoriana de tijolo vermelho encardido. Fora es­colhida para a finalidade a que servia atualmente por ter sido outrora a sede da Liga Imperial de Combate ao Ruído; sua entrada ainda ostentava a placa dessa organização há muito extinta, cuja carcaça vazia fora adquirida pelo Serviço Secre­to por intermédio do Departamento de Relações Internas do Commonwealth. Possuía também um espaçoso porão de tipo antigo, readaptado e redistribuído em células de detenção, com uma porta traseira que dava para uma série de tranqüi­las garagens.

O furgão da Lavanderia Red Roses ficou de observação, viu cerrar-se a porta da vivenda às costas de James Bond e partiu em marcha moderada para a sua garagem, não longe de Sootland Yard, ao mesmo tempo que se processava no seu interior a revelação do filme da canonflex.

— Entrevista com o Major Townsend — disse Bond.

— Sim. Êle está à sua espera, senhor. Permita que eu tome conta de sua capa. — O possante porteiro colocou o impermeável num cabide e pendurou-o num dos ganchos de uma fieira que havia ao lado da porta. Assim que Bond se achasse encerrado com o Major Townsend no gabinete deste, a capa subiria sem tardança para o laboratório do primeiro andar, onde seria verificada a sua procedência mediante o exame do tecido. Uma amostra de cotão dos bolsos seria ob­jeto de pesquisa mais minuciosa.

— Quer ter a bondade de me acompanhar, senhor? Era um corredor estreito de tábuas macho-e-fêmea,

recém-pintadas, com uma alta e única janela que ocultava o Fluoroscópio, acionado automaticamente por um gatilho encoberto sob o tapete de antiestético padrão. Os detalhes verificados pelo seu olho radiográfico seriam transmitidos ao laboratório, exatamente acima do corredor. Este terminava em duas portas colocadas frente a frente e marcadas com as letras A e B. O porteiro bateu na sala B e arredou-se para deixar entrar Bond.

Era uma peça aprazível, muito clara, inteiramente co­berta por um tapete Wilton de côr gris-pomba. As gravuras militares, nas paredes pintadas de creme, tinham molduras luxuosas. Um fogo pequeno e brilhante ardia debaixo de um consolo de lareira em estilo Adam, sobre o qual estavam dis­postos diversos troféus de prata e duas fotografias emoldura­das em couro — a primeira de uma simpática mulher e a ou­tra, de três crianças igualmente simpáticas. Havia uma mesa de centro com um vaso de flores e duas confortáveis poltro­nas de couro a cada lado da lareira. Nada de escrivaninhas e arquivos, nada que desse um aspecto oficial ao aposento. Um homem de alta estatura, tão agradável quanto a própria sala, ergueu-se da cadeira mais distante, largou o Times no tapete ao lado desta e adiantou-se com um sorriso acolhedor. Estendeu uma mão firme e seca.

Era o Homem Mole.

— Entre, entre. Acomode-se. Cigarro? Não daqueles que o senhor preferia, se bem me recordo. Mas são da boa e velha marca usada pelos graduados do Serviço.

O Major Townsend preparara cuidadosamente esse co­mentário capcioso — uma alusão à preferência de Bond pelos Morland Specials com três anéis dourados. Notou a aparente falta de compreensão por parte do outro. Bond aceitou um cigarro e o isqueiro que o Major lhe estendia. Sentaram-se um em frente do outro. O Major Townsend cruzou confortàvel­mente as pernas. Bond conservou-se têso na cadeira.

— Ora, muito bem — disse o Major. — Em que posso ajudá-lo?

Na Sala A, do outro lado do corredor, uma fria peça cúbica, sem móveis a não ser uma sibilante lareira de gás, uma feia escrivaninha com duas cadeiras de pau em frente, sob a lâmpada nua de néon, a recepção de Bond pelo Homem Duro, ex-superintendente de polícia — "ex" devido a um caso de brutalidade em Glasgow, pelo qual cumprira pena — teria sido bem diferente. Ali, o homem conhecido pelo nome de Sr. Robson o teria submetido ao processo completo de intimida­ção — duro e brutal interrogatório, ameaças de prisão pelo delito de falsa personalidade e sabe Deus que mais; e, se êle tivesse dado sinais de hostilidade e rebeldia, uma judiciosa rodada de borracha no porão.

Tal era o crivo com que se separava o trigo do joio en­tre os cidadãos que desejavam ingressar no Serviço Secreto. Havia no prédio outras pessoas que se ocupavam com as car­tas. As escritas a lápis ou com tintas multicores, bem como as que encerravam uma fotografia, ficavam sem resposta. As que continham ameaças ou expressões litigiosas eram envia­das à Seção Especial. As missivas sérias e sólidas passavam, acompanhadas de um comentário do melhor perito grafólogo, à Seção de Ligação do Q. G., para "ação ulterior". Os pacotes eram encaminhados diretamente, e sem perda de tempo, ao Destacamento de Desativação de Bombas, no Quartel de Kni-ghtsbridge. Estreitíssimo era o olho da agulha. De um modo geral, funcionava satisfatoriamente. A organização custava bom dinheiro, mas o primeiro dever de um Serviço Secreto é manter-se não apenas secreto, mas também seguro.

Não havia razão para que James Bond, o qual sem­pre pertencera à parte operacional do Serviço, conhecesse as entranhas deste, assim como não era obrigado a conhecer os mistérios dos encanamentos e das instalações elétricas de seu apartamento em Chelsea, ou do funcionamento de seus rins. O Coronel Boris, no entanto, estava a par de tudo. Os serviços secretos de todas as grandes potências conhecem as relações públicas de seus adversários, e o Coronel Boris descrevera com muita exatidão o tratamento que Bond devia esperar antes de ser aprovado e ter acesso ao gabinete de seu antigo chefe.

James Bond parou, pois, para refletir antes de respon­der à pergunta do Major Townsend: "Em que posso ajudá-lo?". Fitou os olhos no Homem Mole e depois no fogo. Con­feriu a exatidão da descrição que lhe fora feita da pessoa do Major e, antes de dizer as palavras que lhe tinham mandado dizer, deu noventa pontos em cem ao Coronel Boris. A cara grande e amiga, os olhos muito separados, cástanho-pálidos, entre os parênteses das rugas criadas por um milhão de sor­risos, o bigode militar, o monóculo sem aro, pendente de um fino cordão preto, o cabelo côr de areia, ralo e penteado à escova para trás, o impecável traje azul de paletó trespassa­do, rígido colarinho branco e gravata lisa — tudo isso estava ali, diante dele. Mas o que o Coronel Boris não tinha dito era que os olhos amáveis tinham a firmeza fria de dois canos de espingarda e que os lábios eram finos e eruditos.

— No fundo é uma coisa muito simples — disse James Bond com paciência. — Eu sou quem afirmo ser. Estou fazen­do o que faria naturalmente, que é apresentar-me a M.

— De acordo. Mas o senhor deve compreender — (um sorriso de simpatia) — que perdeu contato conosco duran­te quase um ano. Foi dado oficialmente como "desaparecido, provavelmente morto". Até o Times publicou seu necrológio. Tem alguma prova de identidade? Reconheço que se parece muito com as suas fotografias, mas vamos e venhamos: nós precisamos ter toda a certeza antes de deixá-lo passar adian­te.

— Eu tinha como secretária uma certa Miss Mary Goodnight. Ela há de me reconhecer. E o mesmo farão dúzias de outras pessoas no Q. G.

— Miss Goodnight foi transferida para o estrangeiro. Pode me dar uma descrição do Q. G., das linhas gerais da topografia ?

Bond fêz a descrição que lhe era solicitada.

— Muito bem. Agora me diga: quem era uma tal Miss Maria Freudenstadt?

"Era"?

— Sim, ela já morreu.

— Bem me pareceu que não duraria muito. Era uma dupla, trabalhando para o K. G. B. Estava sendo controlada pela Seção 100. Não haveria proveito nenhum em lhe dizer mais do que isto.

Esta pergunta ultra-secreta fora fornecida ao Major Townsend e, juntamente com ela a resposta, mais ou menos igual à que Bond lhe deu. Era o teste decisivo. O homem ti­nha de ser James Bond.

Ótimo, isto vai às maravilhas. Agora só me resta sa­ber de onde o senhor vem, onde passou todos esses meses, e não lhe porei mais entraves.

— Sinto muito. São coisas que só posso revelar a M. pessoalmente.

— Compreendo. — O Major Townsend assumiu uma expressão pensativa. — Bem, deixe-me dar uma ou duas te­lefonadas e verei o que se pode fazer. — Pôs-se em pé. — Já viu o Times de hoje? — Apanhou e estendeu a Bond o jornal, que tinha passado por um tratamento, especial a fim de re­ceber boas impressões digitais. Bond aceitou-o. — Não me demorarei muito.

O Major cerrou a porta às suas costas, atravessou o corredor e entrou na Sala A, onde sabia que encontraria o Sr. Robson sozinho.

— Desculpe a importunação, Fred. Posso usar o seu aparelho ?

O atarracado homem atrás da escrivaninha grunhiu dentro de seu cachimbo e continuou debruçado sobre a pá­gina turfística do Evening Standard. O Major Townsend apa­nhou o fone verde e ligou para o Laboratório.

— Aqui é o Major Townsend. Têm notícias para mim? — Escutou atentamente, agradeceu e fêz outra ligação, para o Chefe de Segurança no Q. G. — Pois bem, senhor, creio que é de fato o 007. Um pouco mais magro do que mostram as fotografias. Eu lhe mandarei as impressões digitais logo que êle fôr embora. Usa a roupa de costume: traje azul-marinho, paletó-saco, camisa branca, gravata fina de malha de seda preta, sapatos pretos de modelo-social — mas tudo isso pare­ce novinho em folha. O impermeável foi comprado ontem na loja Burberry. Respondeu certo à pergunta sobre a tal Freu­denstadt, mas não quer dizer nada a respeito de si mesmo, a não ser pessoalmente a M. Mas, seja êle lá quem fôr esta história não está me agradando muito. Falhou no tocante à sua marca de cigarros predileta. Tem o olhar meio vidrado, o ar assim... um pouco distante, e o escópio mostra que êle carrega uma arma no bolso direito do paletó — uma coisa esquisita, parece não ter coronha. Minha impressão é que êle está doente. Pessoalmente, não recomendaria que M. o recebesse, mas também não sei como conseguiríamos fazê-lo falar de outra forma. — O Major fêz uma pausa. — Muito bem, senhor. Vou esperar junto ao telefone. Estou falando da extensão do Sr. Robson,

Reinou silêncio na sala. Os dois homens não se acer­tavam muito bem. O Major Townsend ficou olhando o fogo de gás, com o pensamento no homem que esperava na outra sala. O telefone zumbiu.

— Pronto. Muito bem, senhor. Sua secretária pode mandar um carro da garagem? Obrigado, senhor.

Bond continuava sentado na mesma postura, têso, com o Times ainda fechado na mão.

— Está tudo arranjado — comunicou-lhe alegremente o Major. — Mensagem de M. dizendo-se satisfeitíssimo em saber que o senhor está bem, e que êle estará livre dentro de meia hora mais ou menos. Daqui a uns dez minutos temos o carro aí. E o Chefe do Pessoal manda dizer que espera que o senhor esteja livre para almoçar com êle depois.

James Bond sorriu pela primeira vez. Foi um sorriso de lábios fechados, que não lhe iluminou os olhos.

— É muita amabilidade dele. Faça o favor de lhe dizer que eu receio não estar livre.

 

Attentat!

Em pé, diante da escrivaninha de M., o Chefe do Pes­soal falava em tom firme:

— Não o aconselho a fazer isso, senhor. Eu ou alguém mais podemos recebê-lo. Esta história não me cheira nada bem. Acho que 007 não está no seu juízo perfeito. Não há dúvida que é êle mesmo. As impressões digitais acabam de ser confirmadas pelo Chefe de Segurança. As fotos também combinam — e a gravação da voz, igualmente. Mas há mui­to detalhe suspeito. O passaporte falso que encontramos no quarto dele, no Ritz, por exemplo. Está bem, queria regressar incógnito, vá lá. Mas o serviço está bem-feito demais. Coisa típica do K. G. B. E a última escala foi na Alemanha Oci­dental, anteontem. Por que não se apresentou no Posto B, ou no W? Ambos os chefes desses postos são seus amigos, especialmente 016, em Berlim. E por que não foi êle ver o seu apartamento? Tem lá uma espécie de caseira, uma escocesa chamada May, que continua jurando de pés juntos que êle está vivo e tem mantido a casa em ordem com as suas econo­mias. O Ritz cheira a James Bond de teatro. E essas roupas novas... Por que se dar a esse trabalho? Que importava o que êle trouxesse no corpo quando desembarcou em Dover? A atitude normal, se estivesse esfarrapado, seria me telefonar para pedir que lhe arranjasse as roupas: êle tinha o número de minha residência. Tomar uns drinques comigo. Contar a história toda e depois vir apresentar-se ao senhor. Em lugar disso, temos esta tática de penetração característica e a Se­gurança está preocupadíssima com o caso.

O Chefe do Pessoal fêz uma pausa. Sabia que estava pregando no deserto. Assim que êle começara M. fizera girar a sua cadeira para o lado e, chupando de vez em quando o cachimbo apagado, ficara a olhar pensativamente para a janela, onde se avistava a paisagem recortada de Londres. Obstinado, o Chefe do Pessoal concluiu:

— Não lhe parece que convém deixar isto a meu cargo, senhor? Num abrir e fechar de olhos posso entrar em contato com Sir James Molony e tomar providências para que 007 seja internado no Parque e submetido a observação e trata­mento. Tudo isso com a máxima delicadeza, com as contem­plações devidas a uma pessoa de posição. Posso dizer a êle que o senhor foi chamado ao Gabinete ou coisa parecida. A Segurança diz que 007 parece bastante mais magro. Precisa fortalecer-se. Convalescença e o mais que segue. Esse seria o pretexto. Se êle se meter a valente, podemos lhe aplicar uma injeção. É um bom amigo meu. Não nos guardará rancor por isso. É evidente que êle precisa de ser recolocado nos trilhos — se conseguirmos fazer isso, é claro.

Lentamente, M. fêz voltar a cadeira à posição primi­tiva. Fixou a fisionomia cansada e atormentada que traía a constante tensão imposta, durante mais de dez anos, por um cargo que era virtualmente o de Número Dois no Serviço Se­creto. M. sorriu.

— Obrigado, Chefe do Pessoal. Mas infelizmente a coi­sa não é tão simples assim. Eu enviei 007 em sua última missão para dissipar os seus aborrecimentos domésticos. Você se lembra de como tudo isso aconteceu, não é verdade? Pois bem, nós não imaginávamos que uma missão, bastante pacífica segundo todas as aparências, fosse terminar numa batalha campal com Blofeld. Ou que 007 fosse desaparecer da superfície da terra durante um ano inteiro. Agora precisa­mos saber o que aconteceu no decurso desse ano. E 007 tem toda a razão. Fui eu que o enviei nessa missão e êle tem todo o direito de recusar-se a prestar contas a outro que não seja eu próprio. Conheço muito bem 007. É um sujeito teimoso. Se diz que não falará a ninguém mais, não falará mesmo. Naturalmente, desejo saber o que se passou com êle. Você ficará escutando. Trate de ter à mão uns dois homens despa­chados. Se êle se tornar perigoso, venham pegá-lo. Quanto à tal arma... — M. esboçou um gesto vago na direção, do teto —- deixem isso por minha conta. Vocês testaram o raio do negócio?

— Sim, senhor. Não há dúvida que funciona. Mas... M. ergueu a mão.

— Sinto muito, Chefe do Pessoal. Trata-se de uma or­dem. — Uma luz piscou no intercom. — Deve ser êle. Mande-o direto para cá, ouviu?

— Muito bem, senhor. — O Chefe do Pessoal saiu e fechou a porta.

James Bond estava em pé, sorrindo vagamente para Miss Moneypenny, instalada à sua mesinha. A moça tinha um ar sarapantado. Quando James Bond desviou os olhos para dizer: "Alô, Bill", o mesmo sorriso distante lhe bailava ainda no rosto. Não estendeu a mão. Bill Tanner respondeu, com uma cordialidade que soou horrivelmente falsa aos seus próprio ouvidos:

— Alô, James. Há quanto tempo! — Simultaneamente, com o rabo do olho, viu Miss Moneypenny dar uma rápida e enfática sacudidela de cabeça. Fitou-a bem nos olhos.

— M. deseja receber 007 sem demora.

Miss Moneypenny recorreu a uma mentira desespera­da.

— O senhor sabe que M. tem uma conferência de Che­fes de Pessoal no Gabinete daqui a cinco minutos?

— Sei. Êle manda lhe dizer que arrume um jeito de livrá-lo disso. — Bill Tanner virou-se para James Bond. — Muito, bem, James. Pode entrar. É pena você não poder aceitar o convite para o almoço. Venha bater um papo depois que M. o tiver dispensado.

Ótima idéia — respondeu Bond, que perfilou os om­bros e entrou pela porta sobre a qual já se havia acendido a luz vermelha.

Miss Moneypenny mergulhou o rosto nas mãos. — Oh! Bill... — disse, tomada dè desespero. — Há qualquer coisa de errado nele. Estou com medo.

— Tenha calma, Penny — respondeu Bill Tanner. — Vou fazer o possível.

Encaminhou-se rapidamente para o seu escritório e fechou a porta. Dirigiu-se para a escrivaninha e apertou um botão. A voz de M. fêz-se ouvir na sala: "Alô, James. Que maravilha tê-lo de volta aqui! Pegue uma cadeira e conte-me tudo."

Bill Tanner apanhou o telefone interno e chamou o Chefe de Segurança.

James Bond instalou-se no seu lugar costumeiro, diante da escrivaninha de M. Uma tempestade de recordações turbilhonou-lhe na consciência, como um filme cheio de cor­tes, num projetar que tivesse ficado maluco. Bond expulsou a tempestade do pensamento. Precisava concentrar-se no que tinha para dizer e fazer, nada mais.

— Infelizmente, há muita coisa de que não consigo me lembrar, senhor. Recebi uma pancada na cabeça — disse tocando com os dedos na têmpora direita — numa ocasião qualquer, durante o desempenho daquele serviço que o se­nhor me incumbiu de fazer no Japão. Segue-se um vazio nas minhas recordações, até o dia em que fui detido pela polícia no cais de Vladivostok. Não tenho idéia de como fui parar lá. Foram bastante duros comigo e devo ter levado outra panca­da na cabeça, pois de repente me lembrei de quem era e me dei conta de que não era um pescador japonês, como pen­sava. Diante disso, como era natural, a polícia me enviou à agência local do K. G. B. (que, por sinal, é um grande edifício cinzento na Morskaia Ulitsa, em frente ao porto, próximo à estação de estrada de ferro) e quando belinografaram as mi­nhas impressões digitais para Moscou, houve um rebuliço e fui embarcado num avião, no aeródromo militar de Vtoraia Retchka, um arrabalde ao norte da cidade. Passaram sema­nas me interrogando, ou tentando me interrogar, pois eu não conseguia me lembrar de nada, salvo quando me desperta­vam a memória com algum fato que já conheciam, e eu podia então acrescentar alguns detalhes vagos. Muito decepcionan­te para eles.

— Muito — comentou M., cujo sobrolho começara a franzir-se um pouco. E você lhes disse tudo que pôde ? Não lhe parece que foi... hã.... muita generosidade de sua parte?

— Eles se mostraram muito gentis comigo em tudo, senhor. Era o mínimo que eu podia fazer em troca. Nesse Instituto de Leningrado, por exemplo. Fui tratado como ho­mem de alta posição. Os melhores especialistas do cérebro e o mais que segue. Não pareciam me guardar rancor pelo fato de eu ter trabalhado tantos anos contra eles. Vieram também outras pessoas que me falaram de maneira muito razoável sobre a situação política e coisas assim. A necessidade de uma cooperação entre Leste e Oeste pela paz mundial. Escla­receram uma porção de coisas que eu nunca tinha pensado. Deixaram-me totalmente convencido. — Bond fitava com um ar obstinado os claros olhos azuis de marinheiro em que se acendera uma chispa vermelha de ira. — O senhor, certa­mente, não entende o que estou dizendo. Durante toda a sua vida esteve fazendo guerra a este ou àquele. É o quê faz neste momento. E durante a maior parte de minha vida adulta me usou como instrumento seu. Por sorte, isso tudo terminou.

A resposta de M. foi feroz:

Ah! sem dúvida. Suponho que uma das coisas de que você se esqueceu foi ler as declarações de nossos prisio­neiros de guerra na Coréia que foram submetidos a lavagem cerebral pelos chineses. Se os russos têm tanto amor à paz, para que precisam do K. G. B.? Segundo a última estimativa, eram cerca de cem mil homens e mulheres "fazendo guerra", como você diz, contra nós e outros países. Essa é a organiza­ção que se mostrou tão amável com você em Leningrado. Por acaso não terão mencionado o assassínio de Horcher e Stutz em Munique, no mês passado?

— Mencionaram, como não ? — A voz de Bond era pa­ciente e serena. — Eles precisam defender-se contra os servi­ços secretos do Oeste. Se os senhores desmobilizassem tudo isto continuou, movendo a mão num gesto'circular, eles se sentiriam felicíssimos em dissolver o K. G. B. São perfeita­mente francos a esse respeito.

— E o mesmo, imagino eu, se aplica às duzentas divi­sões russas, à sua frota submarina e aos seus I. C. B. M.? — chasqueou a voz áspera de M.

— Pois claro, senhor.

— Bem, se você achou aquela gente tão razoável, tão encantadora, por que não ficou lá? Outros têm ficado. Bur­gess já morreu, mas você podia ter feito camaradagem com Maclean.

— Pareceu-nos mais importante que eu voltasse para lutar pela paz aqui, senhor. O senhor e seus agentes me ensi­naram certos processos para uso na guerra subterrânea. Eles me explicaram como esses processos podiam ser utilizados a serviço da causa da paz.

A mão de James Bond moveu-se displicentemente em direção ao bolso direito de seu paletó. Com a mesma displi­cência, M. afastou sua cadeira da escrivaninha e, com a mão esquerda, procurou o botão instalado sob o braço da cadeira.

— Como por exemplo ? — perguntou M. num tom de voz comedido, sabendo perfeitamente que a morte havia en­trado na sala, colocando-se ao seu lado, e que essa pergunta era um convite à morte para que tomasse o seu lugar na ca­deira.

James Bond ficara tenso, com uma orla branca em tor­no dos lábios. Os olhos cinza-azulados ainda fitavam M. com uma mirada inexpressiva, quase sem vê-lo. As palavras lhe saíram duras e dissonantes da garganta, como se lhe tives­sem sido arrancadas por uma irresistível força interior:

— Para começar, seria bom eliminar os fomentadores de guerra, senhor. Isto é para o número um na lista.

A mão, prolongada por um curto cano de metal preto, saltou de dentro do bolso, mas no próprio momento em que o veneno esguichava, silvando da pistola cuja coronha tinha forma de bulbo, a grande placa de vidro à prova de bala bai­xou instantaneamente do teto e, com um derradeiro suspiro hidráulico, veio aplicar-se ao chão. O jato de líquido casta­nho e viscoso esparrinhou inofensivamente no seu centro e começou a escorrer devagar, deformando a imagem do rosto de M. e do braço que êle erguera instintivamente, à guisa de proteção adicional.

O Chefe do Pessoal irrompera na sala, seguido pelo Chefe de Segurança. Os dois se lançaram sobre James Bond. No momento em que o agarravam pelos braços, a cabeça des-caiu-lhe sobre o peito e êle teria escorregado da cadeira para o chão se os outros não o retivessem. Puxaram-no para cima e puseram-lhe o corpo em pé. Havia perdido os sentidos. O Chefe de Segurança farejou o ar.

— Cianureto — disse lacônicamente. — Precisamos sair todos daqui. E o mais depressa possível! — A emergência fizera desaparecer as boas maneiras do Q. G. A pistola ficara caída no chão. O Chefe de Segurança jogou-a longe com um pontapé e disse a M., que saíra de trás do seu escudo de vi­dro: — Quer fazer o favor de deixar esta sala, senhor? Depres­sa. Vou mandar limpá-la durante a hora do almoço.

Era uma ordem. M. dirigiu-se para a porta aberta. Miss Moneypenny assistia a tudo com o punho cerrado sobre a boca. Cheia de horror, viu o corpo inanirnado de James Bond ser arrastado para fora da sala, com os saltos dos sapatos a deixar trilhas no tapete, e conduzido para o gabinete do Chefe do Pessoal.

— Feche essa porta, Miss Moneypenny — disse M. em voz enérgica. — Mande vir imediatamente o médico de ser­viço. Vamos, moça! não fique aí embasbacada! E nem uma palavra sobre isto a ninguém, entendeu?

Miss Moneypenny arrancou-se ao iminente ataque de histeria. Respondeu automaticamente: "Sim senhor", fechou a porta com um empurrão e pegou o telefone interno.

M. atravessou a ante-sala, entrou no gabinete do Chefe do Pessoal e cerrou a porta. O Chefe de Segurança estava de joelhos ao lado de Bond. Afrouxara-lhe a gravata, desabotoa-ra-lhe o colarinho e estava tomando-lhe o pulso. Bond tinha o rosto branco e banhado em suor. Sua respiração era um estertor angustioso, como se acabasse de correr cem metros. M. lançou um breve olhar ao corpo estendido no chão e de­pois, com o rosto oculto aos outros, fitou a parede em frente. Voltou-se para o Chefe do Pessoal e falou:

— Bem, aí está. Meu antecessor morreu naquela ca­deira. No seu caso tratava-se de uma bala, mas vindo de um agente adoidado mais ou menos como este. Não se pode legis­lar contra os lunáticos. Mas a verdade é que a Seção Técnica fêz um belo trabalho com a tal de geringonça. Agora vamos ver, Chefe do Pessoal. É claro que isto não deve ter prossegui­mento. Entre em contato com Sir James Molony o mais cedo que puder e faça com que 007 seja conduzido para o Parque. Ambulância, guarda sub-reptícia. Esta tarde explicarei o caso a Sir James. Em síntese, como você ouviu, o K. G. B. apode­rou-se dele. Fizeram-lhe uma lavagem cerebral. O homem já estava doente. Uma espécie de amnésia. Mais tarde lhe direi tudo que sei. Mande reunir as coisas dele no Ritz e pagar a conta. E envie um comunicado à Associação de Imprensa, mais ou menos nestes termos: "O Ministério da Defesa tem o prazer de... " Não, ponha: "imenso prazer em anunciar que o Comandante James Bond, etc, que fora dado como desapare­cido e provavelmente morto em uma missão ao Japão no mês de novembro último, regressou a este país após uma aven­turosa travessia da União Soviética, travessia essa de que se espera colher valiosas informações. Como era inevitável, a saúde do Comandante Bond ressentiu-se das experiências por que passou e atualmente encontra-se êle em convales­cença, debaixo de supervisão médica." — M. teve um sorriso gélido. — Esse pedacinho sobre as "valiosas informações" não causará nenhuma alegria ao Camarada Semichastny e aos seus homens. Acrescente esta Advertência às direções dos jornais: "Solicita-se especialmente, por motivos de segurança, que ao presente comunicado seja acrescentado um mínimo de conjeturas e comentários e que não se procure averiguar o paradeiro do Comandante Bond." Está bem assim?

Bill Tanner, que escrevia furiosamente para acompa­nhar o ritmo de M., ergueu os olhos de seu bloco de notas, aturdido.

— Mas o senhor não vai fazer acusação alguma? Afinal de contas, traição e tentativa de homicídio... Nem sequer um conselho de guerra?

— Claro que não. — A voz de M. tornara-se rude. — 007 era um homem doente. Não pode ser responsabilizado 'pelos seus atos. Se se pode lavar o cérebro de um homem, é presumível que se possa deslavá-lo. Se há alguém capaz dis­so, é Sir James. Readmita-o na velha Seção, percebendo os vencimentos pela metade, por ora. E faça com que êle receba vencimentos integrais, com todos os adicionais, pelo ano que passou. Se o K. G. B. tem o topete de lançar um de meus melhores homens contra mim, eu terei o topete de lançá-lo novamente contra eles. 007 foi um bom agente outrora. Nada impede que volte a ser um bom agente. Dentro de certos li­mites, está claro. Depois do almoço me dê o dossiê de Scara-manga. Se eu conseguir pôr 007 de novo em forma, esse é o objetivo indicado para êle.

O Chefe do Pessoal protestou:

— Mas isso é suicídio, senhor! Nem o próprio 007 seria capaz de apanhá-lo.

— Que é que 007 ia arranjar pelo trabalhinho desta manhã ? — retrucou M. friamente. — Vinte anos? No mínimo, imagino eu. É melhor para êle tombar no campo de batalha. Se o rapaz se sair bem, ter-se-á reabilitado e todos nós po­deremos esquecer o que se passou. Seja como fôr, essa é a minha decisão.

Bateram na porta e o oficial-médico de serviço entrou na sala. M. desejou-lhe boas tardes, girou rigidamente nos calcanhares e saiu pela porta aberta.

O Chefe do Pessoal ficou olhando as costas de seu su­perior que se afastava.

— Tipo sem coração! — resmungou entre dentes. De­pois com o seu meticuloso senso de dever, tratou de dar cum­primento aos encargos que recebera. Não lhe competia inda­gar das razões!

 

"Pistolas" Scaramanga

Em Blades, M. comeu o seu parco almoço de costume — um linguado de Dover assado na grelha e seguido pela mais saborosa colherada que pôde tirar do queijo Stilton do clube. E, como de hábito, foi sentar-se sozinho numa das pol­tronas de janela e entrincheirou-se atrás do Times, virando uma página de tempos a tempos a fim de mostrar que o es­tava lendo — o que, aliás, não fazia. Mas Porterfield comen­tou para a caixeira-chefe, Lily, um bonito e muito requestado ornamento do clube, que "havia qualquer coisa de anormal com o velho, hoje; ou talvez anormal não fosse bem o termo, mas alguma coisa estava se passando com êle." Porterfield gloriava-se de ser uma espécie de psicólogo amador. Como chefe dos garçons e padre-confessor de muitos dentre os só­cios, sabia uma porção de coisas a respeito deles todos e com-prazia-se em pensar que sabia tudo, de modo que, conforme a tradição dos criados incomparáveis, podia prever-lhes os desejos e estados de ânimo. Nesse momento, a conversar em pé com Lily durante uma trégua no serviço, por trás da mais esplêndida mesa de frios em exibição naquela data em todo o mundo, Porterfield explicou-se:

— Você sabe aquela zurrapa horrível que Sir Miles sempre bebe? O vinho tinto da Argélia que a comissão de vi­nhos não permite sequer que se inclua na lista? Só o aceitam no clube para contentar Sir Miles. Uma vez êle me explicou que, na Armada, o tal vinho era conhecido como o Furioso, porque quem bebia muito dele acabava enraivecendo. Pois bem, durante os dez anos em que tive o prazer de atender Sir Miles, êle nunca pediu mais que meia garrafa. — A fisiono­mia benigna e quase sacerdotal de Porterfield assumiu uma expressão de teatral solenidade, como se êle houvesse lido. algo de realmente terrível nas folhas de chá. — E hoje, então, que é que acontece ? — Lily juntou as mãos e enclavinhou-as com força, avançando um tudo-nada a cabeça, como para receber em cheio o impacto da notícia. — Pois o velho pede: "Porterfield, uma garrafa do 'Furioso'. Entendeu bem? Uma garrafa inteira!" Eu, naturalmente fui buscar a garrafa para êle sem dar um pio. Mas tome nota do que estou lhe dizendo, Lily — Porterfield avistou uma mão erguida além, na compri­da sala do restaurante, e pôs-se a caminho, — não há dúvida que esta manhã alguma coisa acertou em cheio em Sir Miles.

M. pediu a conta. Como de costume, qualquer que fos­se a importância, pagou com uma cédula de cinco libras para ter o prazer de receber, em troco, estalejantes cédulas novas de uma libra, moedas novas de prata e reluzentes pennies de cobre, pois é praxe, no Blades, dar aos seus filiados apenas dinheiro recém-saído da Casa da Moeda. Porterfield puxou-lhe a mesa para trás e M. dirigiu-se rapidamente para a porta, correspondendo aos ocasionais cumprimentos com um ba­lançar preocupado de cabeça e um breve aceno da mão. Eram duas horas. O velho Rolls Fantasma, de côr preta, conduziu-o silenciosa e rapidamente na direção norte, pelo Berkeley Square, atravessando a Oxford Street e via Wigmore Street até o Regent's Park. M. não olhava o caminho. Ia rigidamente sentado no banco traseiro, o chapéu-de-côco perpendicular­mente posto na cabeça, fixando a cabeça do chofer com os olhos semicerrados e meditativos, que nada viam.

Pela centésima vez depois que deixara o seu gabinete nessa manhã, garantiu a si mesmo o acerto de sua decisão. Se James Bond podia ser restituído â normalidade — e M. tinha certeza de que Sir James Molony, o neurologista supre­mo, era capaz desse feito —, seria ridículo fazê-lo voltar âs suas funções costumeiras na Seção Doble-Zero. O passado podia ser esquecido, porém não perdoado — salvo com o tem­po. Seria extremamente constrangedor, para os que sabiam do atentado, ver Bond andar pelo Q. G. como se nada houves­se acontecido. Seria duplamente embaraçoso para M. ter de enfrentar Bond diante de sua escrivaninha. E James Bond, quando apontado diretamente sobre um objetivo conhecido (M. expressava-se na linguagem naval), era uma arma de in­comparável eficácia. Pois bem, o objetivo lá estava, a reclamar destruição. Bond o acusara de usá-lo como instrumento. Na­turalmente. Todos os oficiais do Serviço eram instrumentos para uma finalidade secreta ou outra. O problema em pauta só podia ser resolvido mediante uma morte. James Bond não seria portador do prefixo Doble-Zero se não possuísse gran­des talentos, fartas vezes comprovados, como pistoleiro. Pois seja! Em troca do que acontecera nessa manhã, em expiação de tudo, Bond devia demonstrar mais uma vez as suas velhas habilidades. Se lograsse êxito, teria recuperado sua catego­ria anterior. Se fracassasse... bem, seria uma morte honrosa para êle. Ganhasse ou perdesse, o plano daria solução a uma vasta série de problemas. M. assentou definitivamente a sua decisão. Desceu do carro, subiu pelo elevador ao oitavo an­dar e seguiu pelo corredor, sentindo o cheiro de algum desin-fetante desconhecido, cada vez mais forte à medida que se aproximava de seu gabinete.

Em lugar de usar sua chave da entrada particular na extremidade do corredor, M. dobrou à direita e entrou pela porta da sala de Miss Moneypenny. Estava ela sentada no seu lugar habitual, batendo na máquina a correspondência de rotina. Ao vê-lo pôs-se em pé.

— Que cheiro horrível é este, Miss Moneypenny ?

— Não sei como se chama, senhor. O Chefe de Segu­rança trouxe consigo uma esquadra da Seção de Guerra Quí­mica do Ministério da Guerra. Diz que seu gabinete já está em condições de ser usado novamente, mas que é preciso conservar as janelas abertas durante algum tempo. Por isso liguei o aquecimento. O Chefe do Pessoal não voltou ainda do almoço, mas mandou dizer que tudo que o senhor queria que se fizesse está sendo feito. Sir James vai operar até as quatro, mas esperará o seu telefonema depois dessa hora. Aqui está o dossiê que o senhor pediu.

M. pegou a pasta marrom, que tinha no canto superior direito a estrela vermelha, significativa de "ultra-secreto".

Como vai 007 ? Já voltou a si ?

O rosto de Miss Moneypenny conservou-se inexpres­sivo.

— Assim ouvi dizer, senhor. O médico lhe deu um se­dativo qualquer e êle foi levado numa maca durante a hora do almoço. Estava coberto até a cabeça. Conduziram-no para a garagem pelo elevador de serviço. Ninguém perguntou por êle aqui.

— Bem. Agora me traga a agenda, sim? Perdemos um horror de tempo hoje, com todas essas comoções domésticas.

M. entrou pela porta de seu gabinete, levando consigo a pasta. Miss Moneypenny trouxe o seu bloco de apontamen­tos e manteve-se respeitosamente ao seu lado enquanto êle percorria a agenda, ditando de tempos a tempos um comen­tário ou uma indagação. Baixando o olhar para a cabeça in­clinada, grisalha, com a pequena calva que uma sucessão de casquetes e quepes navais havia polido durante anos, ela perguntou a si mesma, como tantas vezes fizera durante o último decênio, se amava ou detestava esse homem. Mas de uma coisa tinha certeza: respeitava-o mais do que a qualquer homem a quem conhecera ou sobre o qual houvesse lido.

M. devolveu-lhe a agenda.

— Obrigado. Dê-me uns quinze minutos agora. Depois atenderei quem quiser falar comigo. O telefonema a Sir Ja­mes tem prioridade, é claro.

M. abriu a pasta marrom, estendeu a mão para o seu cachimbo e começou a enchê-lo distraidamente, ao mesmo tempo que percorria a lista de dossiês subsidiários para ver se havia algum de que necessitasse imediatamente. Acendeu então o cachimbo, acomodou-se na cadeira e começou a ler:

"FRANCISCO (PACO) 'PISTOLAS' SCARAMANGA" E sob este título, em tipos de caixa-baixa: "Assassino merce­nário, em geral sob o controle do K. G. B. através do D. S. S. de Havana, Cuba, mas amiúde como agente independente de outras organizações dos Estados antilhanos e centro-ame­ricanos. Tem causado consideráveis danos, particularmente ao S. S. (Serviço Secreto), mas também à C. I. A. (Agência Central de Informações dos Estados Unidos) e outros servi­ços amigos, pelo homicídio e pela mutilação científica, desde 1959, ano em que Castro subiu ao poder e que parece ter sido também o trampolim inicial para as operações de Scaraman-ga. É muito temido e admirado no território que menciona­mos, em toda a extensão do qual parece ter completa liberda­de de acesso, a despeito das precauções policiais. Tornou-se, assim, uma espécie de mito regional e é conhecido em seu território como O Homem do Revólver de Ouro — em alusão à sua arma predileta, que é um Colt 45, chapeado de ouro, de cano comprido e de efeito simples. Usa balas especiais, com um núcleo pesado e mole de ouro de 24 quilates, chapeado de prata e com um corte em cruz na ponta, dentro do principio das balas dum-dum, a fim de obter o máximo efeito destru­tivo. Êle próprio carrega e prepara essa munição. É respon­sável pela morte de 267 (Guiana Inglesa), 398 (Trinidad), 943 (Jamaica), e 768 e 742 (Havana), bem como pela invalidez e subseqüente aposentadoria de 098, Inspetor de Área do S. S., por efeito de ferimentos de bala em ambos os joelhos. (Con­sultar referências acima no Arquivo Central sobre as vitimas de Scaramanga em Martinica, Haiti e Panamá.)

"DESCRIÇÃO: Idade aproximada, 35 anos. Estatura, 1,90 m. Magro e de físico vigoroso. Olhos, castanho-claros. Cabelo avermelhado, cortado à cadete. Suíças compridas. Rosto descarnado e sombrio, com bigode fino, de côr acas­tanhada. Orelhas muito coladas à cabeça. Ambidestro. Mãos muito grandes, possantes, impecàvelmente manicuradas. Si­nais distintivos: uma terceira teta, cerca de cinco centímetros abaixo do peito esquerdo. (N. B.: no vudu e cultos locais con­gêneres, isso é considerado um sinal de invulnerabilidade e de grande potência sexual.) É um mulherengo insaciável mas promíscuo, que invariavelmente tem relações sexuais pouco antes de uma luta de morte, na convicção de que isso lhe melhora a vista. (N. B.: trata-se de uma crença partilhada por muitos profissionais do tênis, do golfe, atiradores de revólver ou fuzil e outros.)

"ORIGENS: Aparentado com a família catalã do mesmo nome, empresários de circo com quem passou sua juventu­de. Autodidata. Com a idade de 16 anos, após o incidente que narramos abaixo, emigrou ilegalmente para os Estados Unidos, onde levou uma existência de pequeno delinqüente à margem das gangs, até se qualificar como pistoleiro efetivo da Spangled Mob de Nevada, sob a capa de indicador no cassino do Tiara Hotel, em Las Vegas, mas na realidade como algoz de trapaceiros e outros transgressores dentro e fora da Mob. Em 1958 teve de fugir dos Estados Unidos em conseqüência do famoso duelo contra seu colega Purple Gang de Detroit, um tal Ramón (The Rod) Rodríguez, duelo esse que ocorreu ao luar, no terceiro gramado do campo de golfe do Thunderbird Club, em Las Vegas. (Scaramanga meteu duas balas no co­ração do adversário antes que este tivesse tempo de disparar um só tiro. Distância, 20 passos.) Acredita-se que foi remu­nerado pela Mob com 100.000 dólares. Percorreu toda a área do Caribe invertendo fundos fugitivos para vários interesses de Las Vegas e mais tarde, depois de consolidada sua repu­tação de astuto e bem-afortunado negociante em imóveis e plantações, para Trujillo de São Domingos e Batista de Cuba. Em 1959 fixou-se em Havana, e, vendo de que lado soprava o vento, começou a trabalhar secretamente para o partido de Castro, ao mesmo tempo que permanecia ostensivamen­te um homem de Batista. Depois da revolução foi investido num cargo de grande influência como executor do D. S. S. no estrangeiro. Nessa qualidade — em outras palavras, a servi­ço da Polícia Secreta cubana — empreendeu os assassinatos mencionados acima.

"PASSAPORTES: Vários, inclusive diplomático cubano.

"DISFARCES: Nenhum. Não são necessários. O mito que rodeia este homem — equivalente, digamos, à auréola que cerca o mais famoso astro de cinema — e o fato de não ter ficha na polícia, deram-lhe, até agora, completa liberdade de movimentos e isenção de qualquer interferência no seu território. Na maioria das ilhas e repúblicas continentais que constituem esse território, tem grupos de admiradores (cf. Os Rastafari na Jamaica) e comanda poderosos grupos de pres­são que lhe dispensam proteção e socorro quando solicita­dos. Além disso, como comprador ostensivo e geralmente pro­curador dos proprietários dos bens imóveis adquiridos com dinheiro ilícito e mencionados acima, tem acesso legítimo, freqüentemente apoiado em sua posição diplomática, a qual­quer parte de seu território.

"RECURSOS: Consideráveis, mas de extensão ignora­da. Viaja com diversos cartões de crédito da variedade Diners' Club. Tem conta numerada na Union des Banques de Crédit, de Zurique, e parece não ter dificuldade em obter moedas estrangeiras com os escassos recursos de Cuba, quando isso lhe é necessário.

"MOTIVAÇÃO (Comentário de C. C.):" — M. tornou a encher e a acender o cachimbo, que se apagara. Tudo que precedia eram informações de rotina que nada vinham ajun­tar ao seu conhecimento básico do homem. O que estava para vir seria mais interessante. As iniciais "C. C." ocultavam a identidade de um Regius Professor de História em Oxford, o qual levava — para M. — uma existência de sibarita no Q. G., em seu pequeno e, na opinião de M., ultraconfortável gabi­nete. Nos intervalos de suas mais uma vez na opinião de M, — luculianas e excessivamente longas refeições no Garrick Club, aparecia displicentemente no Q. G., examinava dossiês como o que M. tinha nas mãos, mandava fazer indagações e por fim dava o seu parecer. Mas, apesar de todos os seus preconceitos contra o homem, o seu corte de cabelo, a negli­gência com que trajava, o que sabia de sua existência e a apa­rente desconexão de seus raciocínios, M. apreciava a agudeza mental, e o conhecimento da humanidade que C. C. punha em sua tarefa, bem assim como a freqüente exatidão de seus julgamentos. Numa palavra, M. sempre apreciava o que C. C. tinha para dizer," e foi com uma prelibação de prazer que voltou nesse momento à leitura do dossiê.

"Estou interessado neste homem", escrevia C. C, "e mandei fazer indagações numa frente mais ampla que de cos­tume, pois não é comum deparar-nos com um agente secreto que seja ao mesmo tempo uma figura tão pública e, no en­ tanto, pareça lograr infinito êxito no difícil e perigoso campo de sua escolha — o daquilo que se chama, em linguagem vul­gar, uma pistola a soldo. Creio ter encontrado a origem desse pendor para matar seus semelhantes a sangue-frio, pessoas contra as quais não tem qualquer animosidade pessoal, mas apenas o reflexo da animosidade de seus empregadores, no seguinte e singular episódio que data de sua juventude. No circo ambulante de seu pai, Enrico Scaramanga, o rapaz de­sempenhava várias funções. Era um artista da pontaria, dos mais espetaculares, e um hércules substituto na troupe acro­bática, tomando amiúde o lugar do ginasta que costumava formar a base da pirâmide humana, e era também o cornaca, de esplendoroso turbante, vestes indianas, etc., que guiava o elefante da frente numa troupe de três. Esse elefante, que atendia ao nome de Max, era um macho; e uma das peculia­ridades do elefante macho, que aprendi com grande interesse e da qual pedi confirmação a zoólogos eminentes, é o fato de entrarem na brama em certas épocas do ano. Durante esses períodos forma-se um depósito mucoso atrás das orelhas do animal, e esse depósito precisa ser raspado, pois do contrário provoca intensa irritação no elefante. Max manifestou esse sintoma durante uma visita do circo a Trieste, mas, por um descuido, sua condição não foi notada nem lhe deram o ne­cessário tratamento. A barraca mestra do circo fora armada nos arredores da cidade, junto aos trilhos da estrada de ferro costeira, e, na noite que, em minha opinião, iria determinar o curso da vida futura do jovem Scaramanga, Max teve um acesso de fúria, jogou longe o rapaz e, entre horríveis barritos, abriu caminho entre o auditório esmagando tudo que encon­trava pela frente e ferindo grande número de pessoas, atra­vessou o recinto do circo e daí passou aos trilhos, ao longo dos quais (medonho espetáculo à lua cheia que, segudo regis­tram os recortes de jornais, brilhava naquela noite) lançou-se a pleno galope. A guarnição local de carabinieri foi alertada e saiu em sua perseguição, de automóvel, pela rodovia que ladeia a estrada de ferro. Por fim alcançaram o infortunado monstro, que, dissipado o seu frenesi, estava tranqüilamente parado de frente para a direção de onde viera. Ignorando que o elefante, fosse abordado pelo tratador, poderia agora ser conduzido pacificamente de volta ao seu estábulo, a polícia abriu fogo acelerado e as balas de seus revólveres e carabinas feriram o animal superficialmente em muitos lugares. Nova­mente enfurecido, o desventurado bruto, agora perseguido pelo carro da polícia, de onde continuavam a disparar sem trégua sobre êle, deitou a correr mais uma vez ao longo dos trilhos. Em chegando ao recinto do circo o elefante pareceu reconhecer sua casa, a barraca mestra e, deixando os trilhos, tornou a entrar pesadamente, por entre os espectadores em fuga, até o centro da arena deserta; e ali, debilitado pela per­da de sangue, pateticamente prosseguiu com o número inter­rompido. Barrindo de maneira pavorosa em sua agonia, vezes sem conta, o mortalmente ferido Max procurou levantar-se e manter-se numa só pata. Enquanto isso, o jovem Scafaman-ga, já agora armado com suas pistolas, tentava lançar uma soga sobre o pescoço do animal ao mesmo tempo que usava a conversa de elefante com que costumava controlá-lo. Max parece ter reconhecido o rapaz e — o espetáculo deve ter sido realmente de cortar o coração — baixou a tromba a fim de que êle pudesse guindar-se ao seu lugar usual, atrás das ore­lhas do elefante. Nesse momento, contudo, a polícia invadiu o picadeiro coberto de serragem e o capitão, chegando bem perto, esvaziou o seu revólver no olho direito do animal, a uma distância de poucos pés, e Max caiu agonizante por ter­ra. Diante disso, o jovem Scaramanga, que, segundo comenta a Imprensa, tinha profunda dedicação ao seu pupilo, sacou uma de suas pistolas, trespassou o coração do policial com uma bala e fugiu por entre a multidão de espectadores perse­guido pelos outros policiais, que, sem embargo, não podiam atirar por causa da acumulação de gente. Conseguiu escapar e dirigiu-se para Nápoles, onde, conforme mencionei acima, embarcou como clandestino para os Estados Unidos.

"Pois bem, eu vejo nesse terrível episódio uma possível razão para a transformação de Scaramanga no mais perver­so pistoleiro destes últimos anos. As circunstâncias de ter-se enfurecido o elefante e esmagado muitos inocentes, de ser o tratador o verdadeiro culpado e de não ter feito a polícia outra coisa senão cumprir o seu dever, teriam sido, mediante um mecanismo psicopatológico, ou esquecidas ou delibera­damente suprimidas por um rapaz de temperamento arre­batado, cujo subconsciente fora tão profundamente ferido. Seja como fôr, a carreira subseqüente de Scaramanga requer alguma explicação, e creio não me deixar arrastar pela fan­tasia ao expor meu prognóstico pessoal, deduzido dos fatos conhecidos."

M. pôs-se a esfregar pensativamente o nariz com o for­nilho do cachimbo. Nada mau! Voltou à leitura do dossiê.

"Tenho comentários a fazer", continuava C. C, "sobre a decantada potência sexual deste homem em relação com a sua profissão. Afirma uma tese freudiana, com a qual me inclino a concordar, que a pistola, tanto nas mãos de um pistoleiro amador como nas de um profissional, tem signifi­cado para o seu possuidor como símbolo de virilidade — re­presentando uma extensão do membro masculino—e que o interesse excessivo pelas armas de fogo (como, por exemplo, as coleções de tais armas e os clubes de colecionadores) é uma forma de fetichismo. A predileção de Scaramanga por uma arma tão ostentosa e o emprego de balas de prata e ouro estão a apontar claramente, segundo penso, para o fato de ser êle um escravo desse fetiche e, caso seja acertada esta su­posição, tenho minhas dúvidas a respeito de sua decantada potência sexual, cuja ausência o fetiche das pistolas poderia substituir ou compensar. Também notei, num perfil que a revista Time publicou deste homem, um fato que corrobo­ra a minha tese de que Scaramanga talvez seja sexualmente anormal. Ao enumerar-lhe as proezas, Time registra, sem fa­zer comentários, a circunstância de êle não saber assobiar. Pois bem: talvez se trate de um mito, e certamente não é fato admitido pela ciência médica, mas há uma teoria popular se­gundo a qual o homem incapaz de assobiar possui tendências homossexuais. (Neste ponto o leitor talvez deseje fazer a expe­riência e, pelo conhecimento que tem de si próprio, contribuir para a confirmação ou a refutação desta crença folclórica! C. C.)" (M. não assobiava desde os tempos de menino. Incons­cientemente, seus lábios espicharam-se e emitiram uma nota clara. Proferiu um "ba!" de impaciência e prosseguiu com a leitura.) "Portanto, não me surpreenderia se me dissessem que Scaramanga não é o Casanova pintado pela fantasia po­pular. Passando aos aspectos mais amplos do psiquismo dos pistoleiros, penetramos no reino da ânsia de poder adleriana como compensação do complexo de inferioridade, e aqui de­sejo citar algumas elegantes frases de um certo Sr. Harold L. Peterson, no prefácio de sua esplendidamente ilustrada obra The Book qf lhe Gun, edição de Paul Hamlyn. Escreve o Sr. Petersou: 'Entre a imensa série de artefatos que o homem inventou para melhorar suas condições de vida, poucos têm exercido sobre êle um fascínio que se compare ao da arma de fogo.' Como disse Oliver Winchester, com um desvanecimento muito típico do século XIX, 'Uma arma de fogo é uma máqui­na de arremessar balas.' Mas sua eficiência cada vez maior no desempenho dessa função, sua terrível capacidade de atingir alvos distantes, lhe conferem imenso atrativo psicológico.

"Com efeito, a posse de uma arma de fogo e a habilida­de de usá-la aumenta em alto grau o poder pessoal do atira­dor e estende o raio de sua influência e eficácia de mil vezes o comprimento de seu braço. E, como a força reside na arma, o homem que a usa pode ser um fraco sem sofrer por isso qualquer desvantagem. A espada refulgente, a lança em riste, a balestra retesada cumpriam sua finalidade dentro dos limi­tes impostos pelo homem que as tinha nas mãos. O poder da arma de fogo é inerente e necessita apenas de ser libertado. O olho firme e a pontaria precisa são suficientes. Para onde quer que aponte o cano, lá irá ter a bala, fazendo chegar ra­pidamente ao alvo o desejo ou intenção do atirador... Mais do que qualquer outro instrumento, talvez, a arma de fogo tem plasmado a vida das nações e o destino dos homens."

E comentava C. C.: "Na tese freudiana, o 'comprimento de seu braço' passaria a ser o comprimento do membro mas­culino. Mas não é necessário deter-nos sobre essas interpre­tações esotéricas. O apoio à minha premissa está muito bem expresso pela prosa sinuosa do Sr. Peterson e se bem que eu teria substituído a arma de fogo pela imprensa no parágra­fo final, seus conceitos são muito justos. O indivíduo Scara­manga é, na minha opinião, um paranóico motivado por uma revolta inconsciente contra a figura do pai (isto é, a figura da autoridade) e um fetichista sexual com possíveis tendências homossexuais. Tem outras qualidades, suficientemente evi­denciadas pelos dados iniciais. Em conclusão, e tendo em vista as devastações que êle já tem causado entre o pessoal do S. S., concluo que seria preciso dar fim à sua carreira com a maior brevidade possível — se necessário, mediante o em­prego dos meios inumanos usados por êle próprio, na impro­vável hipótese de haver em disponibilidade um agente dotado de igual coragem e destreza." Assinado, "C. C."

Em baixo, no fim do sumário, o Chefe da Seção do Ca­ribe e da América Central escrevera: "De acordo", assinando "C. A.", e o Chefe do Pessoal acrescentara em tinta vermelha:

"Ciente. C. do P."

M. ficou fitando o espaço vazio durante cinco minutos, talvez. Pegou então a pena e, em tinta verde, rabiscou a pala­vra "Ação?" seguida de um prestigioso "M", sublinhado.

Ficou, então, outros cinco minutos imóvel na sua ca­deira, perguntando consigo se não teria assinado a sentença de morte de James Bond.

 

As estrelas predizem

Poucos lugares serão menos convidativos para neles se passar uma tarde calmosa do que o Aeroporto Interna­cional de Kingston, na Jamaica. Todo o dinheiro foi gasto no alongamento da pista de pouso até o porto a fim de admitir os grandes aviões a jato, quase nada restando para prover ao conforto dos passageiros em trânsito. James Bond chegara uma hora antes, num vôo da B. W. I. A. procedente de Trini­dad, e faltavam ainda duas horas para fazer a conexão com um vôo das Aerovias Cubanas com destino a Havana. Tirara o paletó e a gravata e estava sentado num banco duro, estu­dando taciturnamente as mercadorias expostas numa lojinha da In-Bond — perfumes caros, bebidas e pilhas de superde-corados artefatos nativos. Almoçara no avião; a hora não era própria para um drinque, fazia muito calor e Kingston ficava muito longe para tomar um táxi e ir lá, mesmo que sentisse desejo de fazê-lo. Esponjou o rosto e o pescoço com o lenço já encharcado e praguejou em voz baixa mas eloqüentemente.

Um varredor foi entrando de mansinho e, com o re­quintado langor da gente dessa classe em toda a área do Ca­ribe, pôs-se a varrer de cá para lá pequenos fragmentos de cisco, de tempos a tempos mergulhando num balde a mão desossada para borrifar água no piso de cimento coberto de pó. Uma leve aragem penetrou pelas venezianas, trazendo consigo a fedentina dos mangues, agitou por breves momen­tos o ar morto e sumiu. Na sala de estar havia apenas dois outros passageiros, possivelmente cubanos, com uma baga­gem de jipijapa. Um homem e uma mulher. Estavam senta­dos muito juntos, contra a parede fronteira, e olhavam fixo para James Bond, acrescentando uma irritação miudinha à opressão da atmosfera. Bond levantou-se e foi comprar na lojinha um exemplar do Daily Gleaner, com o qual voltou ao seu lugar. Devido à inconsequência e à escolha por vezes esquisita das notícias que publicava, o Gleaner era um dos jornais favoritos de Bond. Nesse dia, quase toda a primeira página estava tomada pelas novas leis sobre a ganja, proibin­do o consumo, a venda e o cultivo dessa variedade local de maconha. A recente e sensacional declaração de de Gaulle, anunciando o seu reconhecimento da China Vermelha, apa­recia bastante em baixo na página, dentro de uma cercadura. Bond leu o jornal inteiro, inclusive as "pequenas notícias do interior", com esse cuidado meticuloso que é filho da exas­peração. Seu horóscopo dizia: "Boas notícias! O dia de hoje lhé trará agradável surpresa e a realização de um de seus mais fervorosos desejos. Mas você deve fazer jus à sua boa fortuna reconhecendo a esplêndida oportunidade quando ela se apresentar e agarrando-a com ambas as mãos." Bond fêz um sorriso descrente. Não tinha probabilidades de encontrar o rastro de Scaramanga nessa sua primeira noite em Havana. Nem sequer tinha certeza de encontrá-lo em Cuba. Estava queimando os últimos cartuchos. Durante seis semanas ha­via rastreado esse homem através do Caribe e da América Central. Perdera o ensejo de encontrar-se com êle em Trini­dad pela diferença de um dia, e de poucas horas em Caracas. E agora, ainda que no seu íntimo recalcitrasse um pouco, tomara a decisão de procurar desentocá-lo em seu próprio terreno, um terreno singularmente hostil, que Bond mal e mal conhecia. Pelo menos, havia-se munido na Guiana Inglê-sa de um passaporte diplomático, que o convertia no Correio Especial Bond, com ordens magnificamente estampadas de Sua Majestade para receber a mala diplomática da Jamaica em Havana e regressar com ela. Até arranjara emprestado um exemplar do famoso Galgo de Prata, emblema, desde há trezentos anos, dos Correios britânicos. Se pudesse levar a cabo a sua missão e escapar-se com algumas centenas de metros de dianteira, estaria garantido, pelo menos, o asilo na Embaixada Britânica. Competiria então ao Foreing Office ne­gociar a sua liberdade. Isso, se conseguisse encontrar o seu homem. Se conseguisse dar cumprimento às ordens recebi­das. Se conseguisse evadir-se da cena do duelo. Se, se, se... Bond passou aos anúncios da última página. Um deles lhe cativou imediatamente a atenção. Era bem típico da Jamaica dos velhos tempos. Eis aqui o que êle leu:

LEILÃO DE IMÓVEL Em 77 Harbour Street, Kingston As 10,30 horas de QUARTA-FEIRA, 28 de MAIO com Podêres de Venda concedidos por uma hipoteca de Cornelius Brown et ux. N.° 3 1/2 LOVE LANE,

SAVANNAH LA MAR

Abrangendo o prédio de moradia e todo o terreno, com as seguintes medidas: na Divisa Norte, três cadeias e cinco varas1, na Divisa Sul cinco cadeias e uma vara, na Divisa Leste duas cadeias exatas, e na Divisa Oeste quatro cadeias e uma vara, sejam as mesmas exatas em cada caso ou mais ou menos, e confinando ao Norte com o N.° 4 de Love Lane. THE C. D. ALEXANDER CO. LTD. 77 HARBOUR STREET, KINGSTON FONE 4897.

James Bond estava encantado. Desempenhara mui­tas missões na Jamaica e tivera muitas aventuras na ilha. O

1A vara (perch) é uma unidade de comprimento equivalente a 16 1/2 pés, ou seja 5,029 m; a cadeia (chain) contém 4 varas ou 66 pés (20,116 m). A estranha medida de "três cadeias e cinco varas" da Divisa Norte, que seria igual às cinco cadeias e uma vara da Divisa Sul, encontra-se textualmente no original. (N. do Trad.)

magnífico endereço e toda aquela embrulhada de cadeias e varas, a fraseologia cabalística e antiquada do final do anún­cio, traziam consigo o odor autêntico de uma das mais velhas e mais românticas dentre as ex-possessões britânicas. Mal­grado a novel Independência da ilha, teria apostado o seu úl­timo centavo em que a estátua da Rainha Vitória, no centro de Kingston, não fora demolida nem relegada a um museu, como sucedera com outras relíquias semelhantes de uma infância histórica nos Estados ressurgentes da África. Bond consultou seu relógio. O Gleaner o ajudara a passar uma hora inteira. Apanhou o paletó e a pasta. Já não tinha muito que esperar! Em última análise, a vida não era tão desolada como parecia. Bastava esquecer as más coisas e guardar as boas na memó­ria. Que significação tinham duas horas de calor e de tédio nessa ilha quando comparadas com as recordações de Beau Desert, de Honeychilde Wilder e de sua vitória na batalha contra o alienado Dr. No? Bond sorriu de si para si, enquan­to essas imagens desfilavam no seu cérebro como apagados instantâneos de outros tempos. Quantos anos haviam decor­rido já! Que fora feito dela? A moça nunca lhe tinha escrito. De acordo com as últimas notícias que recebera, tivera dois filhos do médico de Filadélfia com quem se casara. Dirigiu-se sem pressa para o recinto que tinha o pomposo nome de Concourse, concentração, e onde os despachos de numerosas empresas aeroviárias permaneciam vazios, os prospectos de propaganda e as bandeirinhas das companhias sobre os bal­cões, a acumular a poeira trazida pela brisa dos mangues.

Não faltava ali o costumeiro despacho central onde se achavam expostas as mensagens para os passageiros que chegavam e saíam. Como sempre, Bond perguntou aos seus botões se não haveria alguma para êle. Em toda a sua vida, nunca recebera tais mensagens nos aeroportos. Automatica­mente, correu os olhos pelos envelopes dispostos sobre o bal­cão, em grupos, por letras, cada grupo dentro de sua cinta de papel. Nada no B, e também nada no H de seu atual nome de guerra, Hasard Mark, do Transzvorld Consortium, sucessor do velho Universal Export, recentemente dissolvido como co­bertura do Serviço Secreto. Nada. Seus olhos entediados iam saltando de um envelope a outro. De repente, gelou. Olhou em volta de si lânguidamente, como quem não queria nada. O casal cubano não estava visível. Ninguém mais olhava na sua direção. Rápido, estendeu a mão envolta no seu lenço e enfiou no bolso o envelope pardo que dizia: "Scaramanga, passageiro da BOAC, procedente de Lima." Ficou ainda al­guns minutos no mesmo lugar e por fim se encaminhou va­garosamente para a porta com o letreiro "Homens".

Chaveou a porta e sentou-se. O envelope estava aberto e continha uma fórmula impressa da B. W. I. A. para men­sagens, com estas palavras em clara e elegante caligrafia: "Mensagem recebida de Kingstone às 12.15: amostras esta­rão à disposição no N,° 3 1/2 S. L. M. a partir de amanhã ao meio-dia." Não tinha assinatura. Bond emitiu um riso breve de triunfo que mais parecia um latido. S. L. M.: Savannah La Mar. Seria possível? Tinha de ser! Finalmente lhe pintava a carta desejada. Que tinha dito o horóscopo do Gleaner? Pois bem: arriscaria tudo nessa pista caída do céu; agarra­ria a oportunidade com ambas as mãos, como aconselhava o Gleaner. Tornou a ler a mensagem e reintroduziu-a cuida­dosamente no envelope. Seu lenço molhado deixara marcas no papel pardo, mas, com o calor que fazia, estaria seco em questão de minutos. Saiu e voltou ao despacho central. Não havia ninguém à vista. Tornou a pôr a mensagem no seu lu­gar, sob a letra S, e foi cancelar sua reserva de passagem no despacho das Aerovias Cubanas. Dirigiu-se então para o balcão da BOAC e consultou os horários. Sim, o vôo de de Lima a Kingston, Nova York e Londres tocaria ali às 13.15 do dia seguinte. Bond ia necessitar de ajuda. Lembrou-se do nome do chefe do Posto J. Foi à cabina telefônica e ligou para o gabinete do High Commissioner, pedindo para falar com o Comandante Ross. Ao cabo de um momento, uma voz femini­na soou-lhe no ouvido:

— Aqui é a secretária do Comandante Ross. Em que posso servi-lo?

Havia qualquer coisa de vagamente familiar na ento­nação da voz.

— Posso falar com êle ? — perguntou James Bond. — Aqui é um amigo, vindo de Londres.

De súbito, a voz da moça fez-se atenta.

— Infelizmente, meu chefe está fora da Jamaica, em viagem. Posso ajudá-lo em alguma coisa? — E, depois de uma pausa: — Qual foi o nome que o senhor deu ?

— Não disse o meu nome, mas é... A voz interrompeu-o, emocionada:

— Não diga. É James! Bond soltou uma risada.

— Diabos me levem se não é Goodnight! Que é que você está fazendo aqui?

— Mais ou menos o mesmo serviço que fazia para você. Ouvi dizer que tinha voltado, mas pensava que estivesse doente ou coisa parecida. Isto é simplesmente maravilhoso! Mas de onde está falando?

— Do Aeroporto de Kingston. Mas escute, meu bem. Estou precisando de ajuda. Vamos deixar a conversa para mais tarde. Você pode se mexer?

— Mas claro! Espere enquanto arranjo um lápis. Pron­to.

— Em primeiro lugar, preciso de um carro. Qualquer coisa que ande. Depois, quero o nome do homem que man­da em Frome... Você sabe, a refinaria da WISCO1 além de Savannah La Mar. Uma carta topográfica em grande escala daquela zona e cem libras em dinheiro da Jamaica. Depois, seja boazinha e chame Alexander, a firma de leiloeiros, para averiguar tudo que puder sobre uma propriedade anunciada no Gleaner de hoje. Diga que é uma pretendente. Três e meio, Love Lane. Veja os detalhes no jornal. Depois, quero que você venha ao Morgan's Harbour, para onde vou me dirigir neste instante e onde vou passar a noite. Jantaremos juntos e tro­caremos segredou até a aurora romper por trás das Monta­nhas Azuis. Combinado?

Pois claro! Mas quanto segredo! Que é que eu devo ves­tir?

— Alguma coisa que lhe fique justa nos lugares apro­priados. E que não tenha muitos botões.

1Companhia Açucareira das Índias Ocidentais.

A moça riu-se.

— Você estabeleceu definitivamente a sua identidade. Agora vou tratar destes assuntos todos. Às sete nos veremos. Até logo.

Meio asfixiado, puxando o ar pela boca como um peixe fora d'agua, Bond empurrou a porta para escapar do pequeno banho turco que era a cabina do telefone. Passou o lenço so­bre o rosto e o pescoço. Quem poderia esperar por esta. Mary Goodnight, sua muito querida secretária dos velhos tempos na Seção Doble-Zero! Tinham-lhe dito no Q. G. que ela estava no estrangeiro. Êle não fizera perguntas. Talvez Mary hou­vesse desejado uma mudança de ambiente quando o deram como desaparecido. Fosse como fosse, que sorte! Agora tinha uma aliada, alguém a quem conhecia. Graças ao velho Glea­ner! Foi buscar sua mala no despacho das Aerovias Cubanas, saiu, chamou um táxi, mandou tocar para o Morgan's Har­bour e recostou-se no assento, deixando que o ar das janelas abertas começasse a secá-lo.

O romântico hotelzinho fica no bairro de Port Royal, na extremidade das Paliçadas. O proprietário, um inglês que já pertencera também ao Serviço de Informações e adivinhava mais ou menos o que Bond viera fazer na Jamaica, mostrou-se muito satisfeito em vê-lo. Conduziu-o a um confortável quarto provido de ar condicionado, com vista para a piscina e o vasto espelho que era o porto de Kingston.

— De que se trata desta vez ? -— perguntou êle. — Cubanos, contrabandistas? São a gente mais procurada hoje em dia.

— Estou aqui de passagem. Você tem lagostas?

— Pois claro!

— Seja camarada e me reserve duas para o jantar. Gre­lhadas, com manteiga derretida. E um potezinho daquele fa­bulosamente caro foie gras que você sabe. Está bem?

Ótimo. Comemoração? Champanha no gelo?

— Boa idéia. Agora vou tomar um banho de chuveiro e dormir um pouco. Esse Aeroporto de Kingston é de amargar.

James Bond acordou às seis. No primeiro momento não se lembrou de onde estava. Ficou deitado, evocando as suas recordações. Sir James Molony dissera que sua memó­ria se mostraria rebelde por algum tempo. O tratamento de choques elétricos no Parque, discreta casa de convalescença instalada numa vasta propriedade do Kent, fora tremendo. Vinte e quatro descargas da caixa preta no seu cérebro, em trinta dias. Depois de tudo terminado, Sir James confessa­ra que, se estivesse clinicando na América, não lhe teriam permitido aplicar mais de dezoito. De começo, James Bond sentira-se aterrado à vista da caixa e dos dois catódios que deviam ser fixados como ventosas a cada uma das têmporas. Ouvira dizer que as pessoas submetidas a esse tratamento tinham de ser amarradas, pois seus corpos, sacudidos e con­torcidos pelas convulsões dos choques elétricos, eram muitas vezes atirados para fora da mesa de operação. Mas tudo isso, segundo parecia, era coisa ultrapassada. Agora havia o al­mejado recurso da injeção de pentatol, e Sir James disse-lhe que não se observava nenhum movimento no corpo quando a corrente o atravessava, a não ser uma pequena contração das pálpebras. E os resultados tinham sido milagrosos. De­pois que o amável e sereno analista lhe explicara o que lhe haviam feito na Rússia, e após passar pela agonia menlal de saber o que estivera a ponto de fazer a M., o velho e feroz ódio ao K. G. B. e todas as suas obras renascera nele e, ao fim de seis semanas no Parque, seu maior desejo era tirar desforra daquela gente que se apossara de seu cérebro para utilizá-lo em suas celeradas manobras. Veio então a reabilitação física e o treinamento inexplicavelmente longo que tivera de fazer na linha de tiro da polícia em Maidstone. Chegou por fim a ocasião em que o Chefe do Pessoal lhe veio explicar o motivo desse treinamento e passou o dia com êle, dando-lhe as or­dens rabiscadas com tinta verde e assinadas por M., que lhe desejava boa sorte; e esse dia foi coroado pela excitação da corrida de automóvel para o Aeroporto de Londres, a caminho do outro lado do Atlântico.

Bond tomou outro banho de chuveiro, enfiou uma ca­misa, calças largas e sandálias e encaminhou-se para o pe­queno bar no cais, onde pediu um Bourbon Walker de Luxe, no gelo, e ficou contemplando os pelicanos que mergulhavam em busca de jantar. Tomou mais um drinque com água e perguntou a si mesmo que espécie de lugar seria o N.° 3 1/2 de Love Lane, em que consistiriam as tais amostras e como conseguiria deitar a mão a Scaramanga. Isso lhe vinha dando que pensar desde que recebera aquelas ordens. Era muito fácil falar em eliminar o homem; mas James Bond sempre detestara matar a sangue-frio, e provocar um duelo a bala com um sujeito que era provavelmente o mais rápido atirador do mundo eqüivalia ao suicídio. Bem, o melhor era esperar para ver como paravam as coisas. A primeira medida a tomar era regularizar a sua cobertura. Deixaria o passaporte diplo­mático com Goodnight. Daqui em diante seria Mark Hazard, do Transworld Consortium, título magníficamente vago e ca­paz de cobrir quase qualquer gênero de atividade humana. Seus negócios teriam de ser com a Companhia Açucareira das Índias Ocidentais, pois era essa, além da Kaiser Bauxite, a única empresa que existia nos relativamente desertos dis­tritos ocidentais da ilha. Havia também o projeto Negril para o desenvolvimento de uma das praias mais espetaculares do mundo, começando com a construção do Thunderbird Hotel. Bond podia ser um ricaço em busca de um local para cons­trução. Se acertara em seu palpite e se as previsões infantis de seu horóscopo não mentiam, encontraria Scaramanga no romântico endereço de Love Lane e seria, então, uma questão de tocar o ouvido.

O pôr-do-sol afogueou por breves instantes o céu oci­dental, como um incêndio na campina, e o mar de metal der­retido esfriou, solidificou-se â luz da lua.

Um braço nu que cheirava a Chanel N.° 5 enroscou-se como uma cobra no pescoço dele e lábios cálidos beijaram-lhe o canto da boca. Enquanto Bond levantava a mão para segu­rar o braço no lugar onde estava, uma voz ar-quejante falou:

— Oh! James... Desculpe-me! Não pude me conter. É tão maravilhoso tornar a me encontrar com você!

Bond pôs-lhe a mão sob o queixo suave, ergueu-lhe o rosto e beijou-a em cheio nos lábios entreabertos.

— Por que nunca pensamos em fazer isto antes, Good­night? Três anos inteiros com apenas aquela porta a nos se­ parar! Onde é que nós tínhamos a cabeça?

Mary afastou-se dele para olhá-lo melhor. Seu cabelo caía para trás, formando uma campana de ouro que lhe cin­gia o pescoço. Não havia mudado. Como nos velhos tempos, não deixava perceber senão levíssimos vestígios de pintura, mas tinha agora um rosto dourado pelo sol, em que os olhos azuis e bem separados um do outro, refulgindo ao luar, o fita­vam com aquela franqueza desafiadora que nunca deixava de desconcertá-lo quando ambos discutiam algum problema de repartição. O mesmo lustre de saúde sobre a ossatura perfei­ta, o mesmo sorriso largo e desinibido dos lábios cheios que, em repouso, eram tão excitantes. Mas o traje era diferente. Em lugar da severa saia e blusa dos tempos do Q. G, uma fia­da de pérolas ao pescoço e um vestido inteiro, curto, da côr de um gim rosado com bastante bitter — esse rosa-alaranjado que se vê no interior das conchas marinhas. Era justo no peito e nas cadeiras. Mary sorriu diante do seu minucioso exame.

— Os botões estão nas costas. Este é o uniforme pa­drão para os postos tropicais.

— Posso imaginar a Seção Q sonhando com o modelo. Suponho que uma das pérolas contenha uma cápsula de ve­neno.

— Naturalmente. Mas não me lembro de qual é. Terei de engolir o colar inteiro. Mas por enquanto não pode me ofe­recer um daiquiri, por favor?

Bond fêz o pedido.

—- Desculpe-me, Goodnight. Esqueci a boa educação. Estava deslumbrado. É tão fantástico encontrar você aqui! Além disso, nunca a tinha visto com a sua roupa de serviço. Bem, conte-me as novidades. Por onde anda Ross? Há quanto tempo você está aqui? Conseguiu dar conta daquele montão de encargos que lhe dei?

Touxeram o drinque de Mary, que se pôs a sorvê-lo com cuidado. Bond recordou-se de que ela raramente bebia e não fumava. Pediu um outro para si, com um vago senti­mento de culpa por ser esse o seu terceiro duplo e porque ela o ignorava, nem saberia tratar-se de um duplo quando o tivesse diante dos olhos. Acendeu um cigarro. Procurava, atualmente, limitar-se a vinte por dia, mas sempre ia a vinte e cinco mais ou menos. Esmagou o cigarro depois de tirar uma tragada. Estava já próximo do objetivo, e as rígidas re­gras de treinamento que lhe tinham sido incutidas no Par­que deviam ser meticulosamente observadas daí em diante. O champanha não contava. Achou graça na consciência que a moça lhe havia despertado. Estava, também, surpreendido e impressionado com isso. Mary Goodnight sabia que a última pergunta era a primeira que lhe cumpria responder. Meteu a mão numa bolsa de palha com corrente de ouro e entregou-lhe um gordo envelope.

— A maior parte em notas de uma, usadas. Algumas de cinco. É para pôr no seu débito pessoal ou nas despesas gerais ?

— Na minha conta pessoal, por favor.

— O carro está aí fora. Lembra-se de Strangways? Pois é o velho Sunbeam Alpine dele. Foi comprado pelo Posto e agora sou eu que o uso. O tanque está cheio e o carro anda como um pássaro. Quem manda em Frome é um homem cha­mado Tony Hugill. Pertenceu à Armada. Homem simpático. Esposa simpática. Filhos simpáticos. Eficiente na direção. Tem-se incomodado muito com os incêndios de canaviais e outros pequenos atos de sabotagem — a maioria com bom­bas de termite trazidas de Cuba. O açúcar de Cuba é o maior rival do da Jamaica, e devido ao furacão Flora e todas essas chuvas que têm caído lá, a safra cubana será de apenas três milhões de toneladas este ano, quando, no tempo de Batista, o nível habitual chegava a sete aproximadamente; além disso será muito tardia, porque as chuvas fizeram baixar muito o teor de sacarose. — O rosto de Mary expandiu-se naquele seu largo sorriso. — Nada disso é segredo. Basta ler o Gleaner. Portanto, é do interesse de Castro procurar manter os preços num nível elevado devastando o mais possível as plantações rivais, a fim de estar em melhores condições de negociar com a Rússia. Precisa com urgência de alimentos e o açúcar é a única coisa que tem para vender. Veja esse trigo que os americanos estão vendendo à Rússia. Uma boa parte dele vai voltar para Cuba, em troca de açúcar, para alimentar os plan­tadores cubanos. — E, tornando a sorrir: — Que coisa idiota, hem ? Não creio que Castro possa se agüentar por muito tem­po ainda. Essa história dos projéteis dirigidos em Cuba deve ter custado mais ou menos um bilhão de libras à Rússia. E agora vão ter de derramar dinheiro em Cuba, dinheiro e mer­cadorias, para que aquilo possa se conservar em pé.

Tenho um palpite de que não tardarão a retirar-se, dei­xando que Castro siga o mesmo caminho que Batista. É um pais fanàticamente católico, onde o furacão Flora foi conside­rado como o julgamento final dos céus. Imobilizou-se sobre a ilha e flagelou-a durante cinco dias sem parar. Nenhum fura­cão em toda a História jamais se comportou assim. O sentido de augúrios como esse não escapa às pessoas devotas. Foi a pura e simples condenação do regime.

— Goodnight — disse Bond cheio de admiração, — você é um tesouro. Não há dúvida que entende do seu ofício.

Os francos olhos azuis fitaram os seus, esquivando-se ao cumprimento.

— Eu vivo aqui no meio dessas coisas. Elas fazem par­te do ar que respiramos no Posto. Mas me pareceu que você desejaria ter alguns conhecimentos de base sobre Frome e o que eu disse explica por que a WISCO anda às voltas com esses incêndios de canaviais. Pelo menos, nós pensamos se­rem essas as causas. Segundo parece, está se travando no mundo inteiro uma formidável partida de xadrez em torno do açúcar — em torno do que eles chamam açúcar a termo, que significa comprar o artigo com antecedência para entre­ga mais tarde durante o ano. Washington procura manter baixo o preço a fim de transtornar a economia de Cuba, mas o consumo mundial vai aumentando e há uma escassez de­vida, em grande parte, ao Flora e às formidáveis chuvas que têm caído por aqui depois do Flora e que atrasaram a safra da Jamaica. Não compreendo isso tudo perfeitamente, mas o interesse de Cuba é causar o maior dano possível à safra da Jamaica e esse lugar em que você está interessado, Fro-me, contribui com cerca de um quarto para a produção total da ilha. — Mary tomou um sorvo de seu drinque. — Bem, sobre o açúcar já falei que chegue. O chefe lá é esse Hugill. Temos tratado muito com êle, de modo que será amável com você. Esteve no Serviço de Informações da Armada durante a guerra, trabalhando, se não me engano, com os comandos de choque; por isso deve entender do assunto. O carro é meio velho, mas ainda puxa bem e não há de negar fogo. Está um pouco amassado, de modo que não dará nas vistas. Pus a carta topográfica no porta-luvas.

Ótimo. Agora vem a última pergunta e depois vamos jantar e contar nossas vidas um ao outro. Mas, a propósito: que foi feito de seu chefe, Ross ?

O rosto de Mary Goodnight tomou uma expressão pre­ocupada.

— Para dizer a verdade, não sei muito bem. Êle par­tiu na semana passada para um certo serviço em Trinidad. Tratava-se de localizar um homem chamado Scaramanga. É uma espécie de pistoleiro aqui da região. Pouco sei a respeito dele. Ao que parece, o Q. G. quer encontrar-lhe o rastro por alguma razão. — Mary fêz um sorriso pesaroso.— As coisas realmente interessantes ninguém jamais me conta. Só faço o trabalho de burrinho. Pois bem, o Comandante Ross devia ter voltado há dois dias atrás, mas não apareceu. Tive de enviar um Aviso Vermelho, mas me disseram para lhe dar mais uma semana de prazo.

— Ainda bem que êle não está na terra. Prefiro tratar com a sua secretária. Última pergunta: e esse número 3 1 /2 de Love Lane ? Conseguiu saber alguma coisa ?

Mary Goodnight fêz-se vermelha.

—- Se consegui! Um belo assunto que você me arran­jou para fazer indagações! Os leiloeiros foram reticentes e por fim tive de recorrer â Seção Especial. Durante semanas não poderei mostrar minha cara lá. Sabe Deus o que eles estarão pensando de você! Esse lugar é uma, é uma, hã... —Mary franziu o nariz. —É uma casa muito mal-afamada em Sav' La Mar.

Bond soltou uma gargalhada ao ver o seu embaraço. E, para fazê-la encavacar ainda mais, com um sadismo ao mesmo tempo malicioso e terno:

— Você quer dizer que é uma casa de putaria?

— James! Pelo amor de Deus! É preciso ser tão gros­seiro assim?

 

N.° 3 1/2, Love Lane

A costa sul da Jamaica não é tão bela como a costa norte, e de Kingston a Savannah La Mar é um estirão de 120 milhas por estradas de superfícies as mais diversas. Mary Goodnight fizera questão de acompanhar Bond, "para nave­gar e ajudar a mudar os pneus furados". Bond não levantara objeção alguma.

Spanish Town, May Pen, Alligator Pond, Black River, Whitehouse Inn, onde almoçaram — as milhas desenrolaram-se sob o sol furioso até que, por volta das quatro da tarde, um trecho de estrada boa veio terminar entre as pequenas e guapas vilas, cada qual com o seu jardinzinho de relva acas­tanhada, as buganvílias e o canteiro único de bananeirinhas e crótons, que formam os subúrbios elegantes da modesta cidadezinha costeira chamada, em vernáculo, Sav' La Mar.

Com exceção do bairro velho, junto à praia, não é uma cidade jamaicana típica, nem tampouco muito atraente. As vilas, construídas para os funcionários graduados das refi­narias de açúcar de Frome, são insipidamente respeitáveis, e as pequenas ruas retilíneas datam de um planejamento ur­banístico da década de 1920. Bond parou diante do primeiro posto de abastecimento, pôs gasolina no tanque e embarcou Mary Goodnight num táxi para a viagem de regresso. Nada lhe dissera sobre a sua missão, nem ela fizera perguntas quando êle informou vagamente que se tratava de "algo que tinha que ver com Cuba".

Bond acrescentou que manteria contato quando pu­desse e que voltaria para ela quando houvesse terminado o serviço. Mary, expedita como sempre, partiu de novo pela po­eirenta estrada e Bond foi no seu carro até a praia. Localizou Love Lane, uma rua estreita de lojas e casas semi-arruinadas que, cheia de meandros, ligava o molhe ao centro da cidade. Fêz o circuito da área a fim de fixar-lhe a topografia na mente e estacionou o carro num lugar deserto próximo â restinga de areia em que algumas canoas de pesca tinham sido postas em seco sobre suportes elevados. Fechou o carro com a chave e voltou lentamente na direção de Love Lane. Andavam por ali algumas pessoas, gente pobre da classe dos pescadores. Bond comprou um maço de Royal Blend num pequeno arma­zém de campo que cheirava a especiarias. Perguntou onde ficava o N.° 3 1/2 e recebeu em troca um olhar de polida curiosidade.

— Aí adiante. Uma cadeia, mais ou menos. Uma casa grande, â direita.

Bond passou para o lado da sombra e continuou a ca­minhar. Abriu o maço de cigarros com a unha do polegar e acendeu um para reforçar a aparência de um turista ocioso a visitar um recanto da velha Jamaica. Só havia uma casa grande â direita. Demorou-se algum tempo acendendo o ci­garro enquanto a examinava.

Devia ter sido outrora uma importante vivenda, talvez a residência particular de um negociante. Tinha dois anda­res, com sacadas em toda a roda, e era construída de madeira com teto de tabuinhas prateadas; mas os ornatos rendilhados de mau gosto, sob os beirais, estavam quebrados em muitos pontos e quase não restava pintura nas venezianas que ta­pavam todas as janelas do sobrado e a maioria do pavimen­to térreo. O estreito pátio contíguo â rua era habitado por uma ninhada de galinhas de pescoço vulturino que bicavam a terra completamente nua e por três esqueléticos vira-latas jamaicanos, de pêlo preto e amarelo, que olharam preguiço­samente para James Bond, na calçada oposta, e voltaram â sua ocupação de coçar e morder invisíveis pulgas. No fundo, porém, havia um magnífico pau-santo todo em flor. Bond cal­culou que êle fôsse tão velho quanto a casa — uns cinqüen­ta anos, talvez. Era, inegavelmente, o senhor da propriedade pelo direito da força e da beleza. Em sua deliciosa sombra negra uma rapariga lia uma revista, sentada numa cadeira de balanço. À distância de cerca de trinta metros, parecia bonita e bem vestida. Bond atravessou a rua e continuou caminhan­do até que um canto da casa ocultou a rapariga das vistas. Parou então e examinou mais detidamente a casa.

Degraus de madeira conduziam à porta da frente, que estava aberta; e, enquanto poucos outros prédios da rua ti­nham número, este ostentava na padieira uma grande placa de metal esmaltado com o "3 1/2" em branco sobre fundo azul-marinho. Das duas largas janelas que ladeavam a porta, a da esquerda tinha as venezianas fechadas, mas a outra era formada de uma folha de vidro inteiriça, um tanto empoeira­da, através da qual se avistavam mesas, cadeiras e um balcão de servir. Por cima da porta, uma insígnia balouçante dizia Dreamland Cafe em letras descoradas pelo sol, e em volta da janela aberta viam-se anúncios de cerveja Red Stripe, cigar­ros Royal Blend e Four Aces, e Coca Cola. Uma tabuleta pin­tada à mão dizia "SNAX" e, por baixo, "Sopa Quente de Galo, Preparada diariamente".

Bond atravessou a rua, subiu os degraus e entreabriu a cortina de contas que pendia sobre a entrada. Dirigiu-se para o balcão e estava inspecionado o conteúdo deste — um prato com pãezinhos de gengibre, que pareciam secos, uma pilha de flocos de banana em pacotes e alguns boiões de ge­léia — quando ouviu passos rápidos lá fora e apareceu a ra­pariga que tinha visto no jardim. As contas entrechocaram-se brandamente às suas costas. Era uma octoruna e tão bonita quanto esta palavra o sugeria na imaginação de Bond. Tinha olhos castanhos e atrevidos, levemente inclinados para cima nos cantos, sob uma franja de sedoso cabelo preto. (Bond suspeitou que ela tivesse um pouco de sangue chinês.) Traja­va um vestido curto, de um vermelho berrante que lhe ficava bem ao café-com-leite da pele. Os pulsos e os tornozelos eram finos. Sorriu cortêsmente, com um olhar faceiro.

— Tarde.

— Boa tarde. Pode me servir uma Red Stripe ?

— Como não? — A rapariga passou para trás do balcão e ofereceu-lhe um vislumbre de seus belos seios enquanto se curvava para abrir a porta do frigorífico, numa posição que não era ditada pela geografia do lugar. Tornou a fechar a porta com o joelho, tirou destramente a tampa da garrafa e colocou-a sobre o balcão ao lado de um copo quase limpo.

— É um xelim e seis pence.

Bond pagou. Ela bateu o dinheiro na caixa registrado­ra. Bond trouxe um tamborete para o balcão e sentou-se. A rapariga descansou os braços no tampo de macieira e enca­rou o freguês.

— De passagem por aqui ?

— Mais ou menos. Li no Gleaner de ontem que esta casa estava à venda e me deu vontade de vê-la. Um belo ca­sarão. É seu?

Ela riu-se. Que pena, uma rapariga bonita com os den­tes estragados de tanto mascar cana-de-açúcar!

— Que esperança! Eu sou uma... bem, uma espécie de gerente. Temos o café — pronunciava keif em vez de kafei — e talvez já saiba que temos outras atrações também.

Bond fêz-se de desentendido.

— De que espécie ?

— Garotas. Seis quartos lá em cima. Tudo muito lim­po. Custa só uma libra. Sarah está lá agora. Quer que lhe apresente ?

— Hoje não, obrigado. Está fazendo muito calor. Mas só têm uma de cada vez?

— Há também Lindy, mas está ocupada. É uma alta. Se o senhor gosta de mulheres grandes, ela ficará livre dentro de meia hora. — E, olhando para o relógio de cozinha pendu­rado na parede às suas costas: — Lá pelas seis. Então estará mais fresco.

— Prefiro garotas como você. Como é o seu nome ? Ela soltou um risinho espremido.

— Eu só faço isso por amor. Como lhe disse, sou aqui apenas a gerente. O pessoal me chama de Tiffy.

— Um nome raro. Como foi que o arranjou?

— Minha mãe teve seis filhas. A todas deu nomes de flores: Violet, Rose, Cherry, Pansy, Lily. Quando eu nasci, os nomes de flores tinham se acabado, de modo que me chamou Artificial. — Tiffy esperou para ouvir-lhe a risada e, como êle não risse, continuou: — Quando fui para a escola, todos di­ziam que era um nome errado, riam de mim e, para encurtar, me chamavam de Tiffy. E Tiffy fiquei até hoje.

— Pois eu acho que é um nome muito bonito. O meu é Mark.

Ela fêz de novo um ar de faceirice.

— É um santo também?

— Ninguém jamais me acusou disso. Estive a serviço em Frome. Gosto desta parte da ilha e me lembrei de pro­curar uma casa para alugar. Mas quero ficar mais perto do mar. Preciso ver outras casas. Vocês aceitam hóspedes para pernoite?

Ela refletiu um pouco.

— Sim, por que não ? Mas vai achar isto aqui meio barulhento. De vez em quando um freguês bebe demais. E os quartos não têm água encanada. — Debruçou-se sobre o bal­cão e baixou a voz. — Eu não lhe aconselharia a alugar isto. O telhado está fuzilado. Ia lhe custar umas quinhentas libras, talvez mil, para retelhar.

— Muito obrigado por ter me prevenido. Mas por que querem vender a casa? Amolações com a polícia?

— Nem tanto assim. A nossa casa é bem conceituada. Mas no Gleaner, depois do nome do Sr. Brown, que é o

meu patrão, o senhor não reparou naquele et ux?

— Reparei.

— Bem, segundo parece isso quer dizer "e esposa". E a Sra. Brown, Sra. Agatha Brown, que era da Igreja Anglica­na, passou agora para os Católicos. E, segundo parece, eles não aprovam casas como o 3 1/2, mesmo quando são decen­temente dirigidas. E pelo modo a igreja deles, mais adiante nesta rua, está precisando de um telhado novo como aqui. E assim a Sra. Brown, pensando matar dois pássaros com uma só pedrada, começa a fazer carga sobre o Sr. Brown para êle fechar a casa e vender; e com a parte que lhe tocar ela preten­de consertar o telhado dos Católicos.

— Que lástima! Parece ser uma casa tão agradável, tão sossegada! Que vai ser de você?

— Acho que terei de me mudar para Kingston. Morar com uma de minhas irmãs e, quem sabe, trabalhar num dos grandes armazéns — talvez no Issa, ou no Nathan. Sav' La Mar é um pouco morta. — Os olhos castanhos tornaram-se introspectivos. — Mas tenho certeza de que vou sentir sauda­des do lugar. A gente se diverte aqui, e Love Lane é uma rua simpática. Todos nós somos amigos nesta rua. Ela tem uma coisa, uma espécie de...

— Atmosfera.

— Isso! É o que ela tem. Lembra, por assim dizer, a velha Jamaica. Como deve ter sido nos velhos tempos. Todos são amigos. Ajudam uns aos outros quando estão em dificul­dades. O senhor ficaria admirado se soubesse quantas vezes as garotas vão de graça quando o homem é um bom sujeito, um freguês habitual por assim dizer, e está sem dinheiro.

Os olhos castanhos fixaram-se interrogativamente em Bond, para ver se êle sentia a força da prova.

— É muita bondade da parte delas. Mas isso não pode ser proveitoso para o negócio.

Tiffy riu-se.

— Isto aqui não é um negócio, Sr. Mark. Não enquan­to eu estiver na direção. É um serviço público, como a água encanada, a eletricidade, a saúde, a educação, o... — Inter­rompeu-se e olhou por cima do ombro o relógio, que marcava 5,45. — Oh, diacho! O senhor me fêz falar tanto que me es­queci de Joe e May. É o jantar deles.

Caminhou para a janela do café e baixou a vidraça. Ato contínuo, vindas das bandas do pau-santo, duas grandes aves pretas, ligeiramente menores do que um corvo, irrompe­ram no interior do café, descreveram um círculo em volta com um clangor de canto metálico que não se parecia com o canto de nenhuma outra ave no mundo, e pousaram desordenada­mente no balcão, ao alcance da mão de Bond. Puseram-se a caminhar de baixo para cima, com um jeito imperioso, enca­rando Bond sem nenhum receio com os atrevidos olhos côr de ouro, e desfiaram um repertório de estridentes silvos e trina­dos, alguns dos quais eram acompanhados de um eriçamento da plumagem que os tornava quase duas vezes maiores do que o seu tamanho normal.

Tiffy voltou para trais do balcão, tirou da sua bolsa duas moedas de um penny, pagou a quantia na máquina re­gistradora e tirou dois pãezinhos de gengibre do armário de vidro conspurcado pelas moscas. Dividiu-os em migalhas e deu-os às duas aves, atendendo sempre em primeiro lugar a menor, que era a fêmea. Os bichos apoderavam-se avida­mente dos pedaços que ela lhes oferecia nas pontas dos de­dos, seguravam-nos com as garras de uma das patas contra o balcão e arrancavam fragmentos menores, que devoravam. Depois que tudo terminou e que Tiffy ralhou com eles por causa das bicadas que recebera nos dedos, largaram em cima do balcão dois cocôs brancos, pequenos e bem modelados, e pareceram muito satisfeitos da vida. Tiffy pegou um pano para limpar a sujeira do balcão.

— Nós damos a estes pássaros o nome de kling-klin-gs, mas as pessoas instruídas chamam chopins-da-jamaica. São muito amigos da gente. O doctor bird, um beija-flor com a cauda em pendão, é o pássaro nacional da Jamaica, mas eu gosto mais destes. Não são tão bonitos, mas são os mais amáveis de todos os pássaros, e muito engraçados ainda por cima. Parecem saber disso. São tal e qual uns ladrões pretos, e muito safados. ,

Os kling-klings miraram o armário de vidro e queixa­ram-se estridentemente por haver terminado o seu jantar. Ja­mes Bond tirou dois pence do bolso e passou-os Tiffy.

— São maravilhosos. Como brinquedos mecânicos. Dê-lhes uma segunda rodada por minha conta.

Tiffy registrou o dinheiro e tirou mais dois pãezinhos.

— Escutem aqui, Joe e May. Este moço foi muito amá­vel com Tiffy e agora está sendo amável com vocês. Portanto, não me dêem bicadas nos dedos e não façam porcarias, senão êle é capaz de não voltar mais aqui. — Estava dando nova­mente de comer às aves quando pôs o ouvido à escuta. Ou­via-se estalar lá em cima as tábuas do assoalho, depois um som de passos a descer mansamente uma escada. O animado semblante de Tiffy fêz-se repentinamente sério e tenso. — É o homem de Lindy — cochichou para Bond. — Um homem im­portante. É um bom freguês da casa. Mas não gosta de mim porque não quero ir com êle. Por isso, às vezes fica um pouco bruto. E também não gosta de Joe e May porque acha que são barulhentos demais. — Enxotou as aves na direção da janela, mas vendo que ainda lhes restava metade de um pãozinho para comer, Joe e May tornaram imediatamente a pousar no balcão depois de levantar vôo. Tiffy apelou para Bond. — Seja bonzinho e fique calado, diga êle o que disser. Êle gosta de en­furecer as pessoas, para então... — Interrompeu o que estava dizendo. — Qner mais uma Red Stripe, Mister?

Ouviu-se o roçar de uma cortina de contas na penum­bra do fundo da sala.

Bond, que estivera sentado com o queixo apoiado na mão direita, deixou cair a mão sobre o balcão e inclinou-se para trás no tamborete. Sentiu na pele o contato da Walther PPK enfiada na cintura das calças, ao lado esquerdo do ven­tre. Os dedos de sua mão direita encresparam-se de leve, prontos para receber a coronha. Retirou o pé esquerdo do travessão do tamborete e plantou-o no chão.

— Boa idéia — respondeu. Desabotoou o paletó com a mão esquerda e, com a mesma mão, sacou o lenço e enxu-' gou o rosto. — O calor sempre aperta por volta das seis horas, antes de começar a soprar o Vento do Armador.

— O armador está aqui mesmo, Mister. Gostaria de sentir o vento dele?

James Bond virou lentamente a cabeça. O crepúsculo invadira a vasta sala e tudo que êle podia ver eram os con­tornos de uma figura alta e escura. O homem carregava uma valisa. Largou-a no chão e adiantou-se. Devia calçar sapatos de sola de borracha, pois seus passos eram completamente silenciosos. Tiffy moveu-se nervosamente atrás do balcão e ouviu-se o estalido de um comutador. Meia dúzia de lâmpa­das de baixa voltagem acenderam-se nos seus enferrujados suportes ao longo das paredes.

— O senhor me fêz pular — disse Bond tranqüilamen­te.

Scaramanga aproximou-se e inclinou-se sobre o bal­cão. A descrição do dossiê era exata, mas omissa no tocante à ameaça felina do homenzarrão, aos ombros extraordinaria­mente largos e à cintura estreita, à fria imobilidade dos olhos que nesse momento o examinavam com uma expressão de indiferença distante. Vestia uma bem talhada fatiota bege, de paletó-saco, com sapatos correspondentes, em marrom e branco. Em lugar de gravata usava uma alta coleira de seda branca, presa por um alfinete de ouro com a forma de uma pistola em miniatura. Um crítico exigente poderia ter notado algo de teatral nessa indumentária, mas a bela figura do ho­mem desfazia a impressão.

— Às vezes faço os camaradas dançar — disse êle, — Depois atoro os pés deles a bala.

Não havia qualquer sinal de sotaque estrangeiro por baixo do inglês americano.

— O processo me parece um tanto drástico — disse Bond. — Por que faz isso?

— A última vez foi por causa de cinco mil dólares. O senhor, pelo modo, não sabe quem eu sou. A gata manhosa não lhe disse?

Bond relanceou os olhos para Tiffy, que se mantinha perfeitamente imóvel, as mãos coladas aos lados do corpo. Os nós dos dedos estavam brancos.

—Por que havia ela de me dizer isso? Por que desejaria eu sabê-lo?

Houve uma rápida cintilação de ouro. O buraquinho negro estava assestado diretamente para o umbigo de Bond.

— Por causa disto. Que está fazendo aqui, forasteiro? É uma esquisita coincidência encontrar um peralta da cidade no 3 1/2. Ou mesmo em Sav' La. Mar. Não será da polícia por acaso? Ou um amigo dela?

— Kamerad! — Bond levantou os braços num arreme­do zombeteiro de rendição. Depois baixou-os e virou-se para Tiffy. — Quem é este homem? O dono da Jamaica? Ou um artista de circo fugitivo? Pergunte a êle o que gostaria de be­ber. Seja lá quem fôr, o número estava ótimo.

James Bond sabia que por pouco êle não apertara o gatilho do revólver. Ofender um pistoleiro na sua vaidade... Por um instante viu a si próprio estorcendo-se no chão, a mão direita sem forças para chegar até a sua arma. O bonito rosto de Tiffy deixara de ser bonito. Era uma pele estirada por cima de uma caveira. Não tirava os olhos de James Bond. Abriu a boca, mas nenhum som saiu dos lábios escancarados. Gos­tava dele e sabia-o um homem morto. Os kling-klings, Joe e May, farejaram a mesma eletricidade. Com um tremendo clangor de grasnidos metálicos, flecharam na direção da jane­la aberta como dois ladrões negros escapando para as trevas da noite.

As explosões do Colt 45 foram ensurdecedoras. As duas aves desintegraram-se contra o pano de fundo violeta do crepúsculo, os fragmentos de penas e de carne rosada vo­ando em todas as direções, do retângulo de luz amarela do café para o negror da rua deserta, como balins de shrapnel.

Houve um momento de silêncio ensurdecedor. James Bond não se mexeu. Ficou sentado onde estava, à espera de que amainasse a tensão criada pelo ato. Não amainou, po­rém. Com um guincho inarticulado que era em parte uma palavra suja, Tiffy pegou de cima do balcão a garrafa de cer­veja de James Bond e atirou-a desajeitadamente. Ouviu-se no fundo da sala um barulho distante de vidro quebrado. E, depois de executar o seu gesto impotente, Tiffy caiu de joelhos atrás do balcão e desatou em soluços histéricos.

James Bond bebeu o resto da cerveja que tinha no copo e levantou-se vagarosamente. Caminhou na direção de Scaramanga, e ia passar por êle quando o homem estendeu num movimento lânguido o braço esquerdo e segurou-o pelo biceps. Levou ao nariz o cano do revólver e farejou-o delicada­mente. Os mortiços olhos castanhos tinham uma expressão distante.

— Mister, há qualquer coisa de muito especial no chei­ro da morte. Quer experimentar.

E estendeu o refulgente revólver como se estivesse ofe­recendo uma rosa a James Bond.

Este não perdeu sua calma.

— Seja mais bem-educado. Tire sua mão do meu braço. Scaramanga ergueu as sobrancelhas. Os olhos pesa­dos e inexpressivos pareceram avaliar Bond pela primeira vez. Soltou-lhe o braço.

James Bond contornou a extremidade do balcão. Quando chegou em frente ao outro homem, notou que,os olhos o encaravam agora com uma leve curiosidade zombe­teira. Bond parou. Os soluços da rapariga eram como os gani­dos lamentosos de um cãozinho. Lá fora, na rua, um Sistema Sonoro — um toca-discos ligado a um alto-falante-— come­çou a berrar um calipso.

Bond olhou o homem bem nos olhos e disse: — Obri­gado, já experimentei. Como bouquet, recomendo-lhe Berlim, safra de 1945. — E, com um sorriso amigável, apenas leve­mente irônico: — Mas suponho que seja moço demais para ter estado lá.

 

Mil dólares na moleza

Bond ajoelhou-se ao lado de Tiffy e sentou-lhe dois bons tabefes na face direita. Depois na esquerda. Os olhos alagados de lágrimas volveram a focalizar-se. Levou a mão ao rosto e olhou para Bond com ar surpreendido. Bond pôs-se em pé, apanhou uma toalha, molhou-a na torneira, de­pois baixou-se e, rodeando-a com o braço, passou-lhe o pano brandamente sobre o rosto. Por fim obrigou-a a levantar-se e deu-lhe sua bolsa, que estava numa prateleira por trás do balcão.

Vamos, Tiffy. Arranje outra vez esse bonito rosti-nho. Dentro em pouco vai começar o movimento. A figura principal precisa estar em forma.

Tiííy recebeu a bolsa e abriu-a. Olhou atrás de Bond e viu Scaramanga pela primeira vez depois dos tiros. Os belos lábios arregaçaram-se num esgar de ódio. E, num murmúrio feroz que só Bond podia ouvir:

Esse homem vai me pagar o que fêz, e bem caro. Eu conheço Tia Edna, que mora para os lados de Orange Hill. É uma famosa mãe-de-santo da obeah1. Amanhã vou lá. Daqui a poucos dias, êle nem saberá de que morreu.

Tirou um espelho da bolsa e pôs-se a arranjar o rosto.

'"Obeah" (pronunciado ôbia): tipo de macumba praticado pe­los negros das Antilhas Britânicas, Guianas, etc. (N. do Trad.)

Bond levou a mão à traseira das calças, sacou um maço de dinheiro e separou cinco notas de uma libra, que enfiou na bolsa de Tiffy.

— Esqueça toda essa história. Com isto poderá com­prar um canário numa gaiola, para lhe fazer companhia. Em todo caso, não deixará de aparecer por aí outro casal de klings se você puser comida para eles lá fora. — Deu-lhe uma palmadinha no ombro e afastou-se dela. Ao chegar junto de Scaramanga, parou. — Pode ter sido um bom número de cir­co, o seu— (tornando a usar de propósito a mesma expres­são), — mas foi cruel para a garota. Dê-lhe algum dinheiro.

— Não amole — retrucou Scaramanga, falando pelo canto da boca. — E que negócio de circo é esse ? — acres­centou, desconfiado. Virou-se para encarar Bond. — Fique aí onde está Mister, e responda a umas perguntas. Como já disse, o senhor é da polícia? Cheira a tira de dez metros de distância. E se não é, que é que anda fazendo por aqui?

— Ninguém me diz o que eu devo fazer, sou eu que digo aos outros — respondeu Bond. Caminhou para o centro da sala e sentou-se a uma mesa. — Venha sentar aqui e desista desses rompantes comigo. Isso não pega.

Scaramanga deu de ombros. Em duas largas passadas foi apanhar uma das cadeiras de metal, fê-la girar sobre si mesma, encaixou-a entre as pernas e sentou-se a cavalo, o braço esquerdo dobrado sobre o encosto. O direito descansa­va sobre a coxa, a poucas polegadas da coronha de marfim do Colt, visível acima da cintura de suas calças. Bond admitiu que a posição era excelente para um atirador, funcionando o encosto de metal da cadeira como escudo para a maior parte do corpo. Não podia deixar de reconhecer que estava lidando com um profissional extremamente cuidadoso.

Com ambas as mãos bem à vista sobre o tampo da mesa, Bond falou jovialmente:

— Não, eu não sou da polícia. Meu nome é Mark Ha­zard. Pertenço a uma companhia chamada World Consor­tium. Estive fazendo um serviço em Frome, a refinaria da

WISCO. Conhece?

— Claro que conheço. Que foi fazer lá?

— Não seja tão apressado, meu amigo. Em primeiro lugar, quem é o senhor e qual é o seu negócio?

— Scaramanga. Francisco Scaramanga. Relações de trabalho. Já ouviu falar em mim?

Bond franziu a testa.

— Não creio que tenha. Era minha obrigação?

— Algumas pessoas que nunca tinham ouvido morre­ram.

— Muita gente que nunca ouviu falar em mim também morreu. — Bond recostou-se na cadeira. Cruzou uma perna sobre a outra, em cima do joelho, e segurou o tornozelo, como quem se sente muito à vontade. — Preferiria que deixasse de falar nesse estilo heróico. Por exemplo, setecentos milhões de chineses certamente nunca ouviram mencionar nenhum de nós. O senhor deve ser uma rã num charco muito pequeno.

Scaramanga não se ofendeu com o remoque.

— É — disse com uma expressão meditativa. — Acho que se pode chamar o Caribe de um charco bem pequeno. Mas há muita coisa que pescar nele. O homem da pistola de ouro. É assim que me chamam aqui na zona.

— É um instrumento muito útil para resolver proble­mas de trabalho. Nós podíamos aproveitar o senhor em Fro-me.

— Têm tido aborrecimentos por lá? — Scaramanga fa­lou em tom entediado.

— Demasiados incêndios nos canaviais.

— Seu trabalho lá teve que ver com isso ?

— Mais ou menos. Uma das funções de minha compa­nhia é inspecionar riscos de seguro.

— Trabalho de segurança. Já tenho encontrado sujei­tos como o senhor. Bem que estava sentindo o cheiro de tira. — Scaramanga parecia satisfeito por ver confirmado o seu palpite. — E conseguiu alguma coisa ?

— Peguei alguns Rastafari. Queria ver se ficávamos li­vres de todos eles. Mas foram queixar-se no seu sindicato de que estavam sendo vitimas de discriminação por parte de sua religião, de modo que tivemos de suspender tudo. Segue-se que os incêndios não tardarão a recomeçar. Foi por isso que eu disse que nós podíamos utilizar os serviços de um bom executor em Frome. — E Bond ajuntou em voz macia: — Se­gundo me consta, esse é um outro nome de sua profissão?

Mais uma vez Scaramanga desdenhou a zombaria. — Carrega uma pistola? — perguntou.

— Naturalmente. Não se pode andar atrás dos Rastas sem uma boa arma.

— Que tipo de pistola?

— Walther PPK. 7,65 milímetros.

— Sim, não há dúvida que essa resolve. — Scaramanga virou-se para o lado do balcão. — Ei, gata manhosa! Duas Red Stripes, se você já voltou ao trabalho. — Tornou a virar­se para Bond, cravando nele os olhos inexpressivos. -— Qual será o seu próximo serviço ?

— Não sei. Precisarei entrar em contato com Londres para saber se eles têm algum outro problema na região. Mas não estou com muita pressa. Trabalho para eles mais ou me­nos como livre-atirador. Por quê? Tem alguma sugestão a fa­zer?

O outro homem conservou-se calado enquanto Tiffy saía de trás do balcão, dirigia-se para a mesa e depositava em frente de Bond a bandeja de fólhas-de-flandres com as garrafas e os copos. Tudo isso sem olhar para Scaramanga. Scaramanga soltou uma risada breve e áspera. Enfiou a mão num bolso interno do casaco e puxou uma carteira de couro de crocodilo. Tirou uma cédula de cem dólares e jogou-a em cima da mesa.

—- Não guarde raiva de mim, gata manhosa. Eu não teria nada contra você se consentisse em abrir as pernas de vez em quando. Compre outros pássaros para si com isto. Gosto de ver caras risonhas à minha roda.

Tiffy apanhou a cédula.

— Obrigada, Mister. O senhor ficaria muito surpreen­dido se soubesse em que vou gastar este dinheiro.

Olhou-o fixo por algum tempo e rodopiou nos calca­nhares. Scaramanga deu de ombros. Pegou uma garrafa de cerveja, um copo e os dois homens serviram-se e beberam. Scaramanga fêz surgir uma luxuosa charuteira, escolheu um charuto fino como um lápis e acendeu-o com um fósforo. Dei­xou a fumaça escapar devagar por entre os lábios e inalou-a com o nariz. Repetiu várias vezes essa operação com a mesma baforada de fumaça, até que ela se dissipou de todo. Enquan­to isso não tirava os olhos de cima de Bond, parecendo pon­derar alguma coisa em seus pensamentos.

— Gostaria de se juntar com uma boa bolada... mil dólares? — perguntou afinal.

— Talvez—respondeu Bond; e, após um instante, acrescentou: — Provavelmente.

Com isso queria significar: "Pois claro! Se é para ficar junto de você, meu amigo."

Scaramanga continuou a fumar em silêncio por algum tempo ainda. Um carro parou lá fora e dois homens subiram rapidamente os degraus, entre risadas. Assim que entraram pela cortina de contas — jamaicanos da classe trabalhado­ra — pararam de rir, dirigiram-se muito circunspectos para o balcão e puseram-se a cochichar com Tiffy. Para acabar, cada um deles plantou no balcão uma cédula de uma libra e, fazendo um vasto rodeio para evitar os homens brancos, ambos desapareceram pela cortina dos, fundos da sala. As risadas recomeçaram ao mesmo tempo que Bond lhes ouvia os passos subindo a escada.

Scaramanga, que não tirara os olhos do rosto de Bond, prosseguiu então em voz baixa:

— Ando às voltas com um problema. Tenho uns sócios que estão interessados nesse projeto Negril. No outro lado da propriedade. Um lugar chamado Bloody Bay. Conhece ?

— Vi no mapa. Logo aquém de Green Island Harbour.

— Isso. De modo que tenho algumas ações no negócio. Começamos a construir um hotel e o andar térreo ficou pron­to, assim como as principais salas de estar, o restaurante, etc. Mas aí o afluxo de turistas começa a diminuir ... Os ame­ricanos se assustaram de estar tão perto de Cuba ou alguma outra besteira dessa espécie. E os bancos começam a levan­tar dificuldades, o dinheiro a encurtar... Está me seguindo ?

— De modo que está com as ações encalhadas ?

— Isso. Há alguns dias vim para cá, me hospedei no Thunderbosta e estou esperando meia dúzia de grandes acio­nistas que devem chegar de avião para uma conferência no local. Dar uma olhada no troço e depois discutir o que vamos fazer com êle. Pois bem, eu quero que os caras se divirtam, e por isso mandei vir de Kingston um bom combo com cantores de calipso, limbo, garotas de montão... o farrancho completo. Haverá também natação, e um dos atrativos do lugar é um trenzinho que eles usavam para transportar a cana-de-açú­car. Vai até Green Island Harbour, onde eu tenho uma Chris-craft Roamer de quarenta pés. Pescaria de alto mar. Esse será outro número da festa. Me entendeu? Quero que os sujeitos se divirtam de verdade.

— Para que todos fiquem entusiasmados e comprem as suas ações?

Scaramanga franziu o sobrolho, irado.

— Não estou lhe pagando para formar idéias erradas. Para formar nenhuma idéia, aliás.

— Para quê, então ?

Por alguns instantes Scaramanga entreteve-se na sua prova com a fumaça. Os pequenos pilares de um branco azu­lado desapareciam no interior das narinas escuras, tornavam a sair pelos lábios e mais uma vez desapareciam. Isso pare­ceu acalmá-lo. Sua testa desanuviou-se.

— Alguns desses homens são metidos a valentes. To­dos nós somos acionistas, é claro, mas isso não significa que sejamos amigos. Entendeu? Precisarei de ter umas conversas particulares com uns dois ou três sujeitos de cada vez, para sondar os diferentes interesses. Pode acontecer que alguns dos outros, os que não foram convidados para uma dessas conferências particulares, tentem instalar um micro na sala ou descobrir de outro modo qualquer o que está se falando lá dentro. De modo que me ocorreu que o senhor, sendo um ho­mem entendido em segurança e coisas que tais, podia fazer o papel de uma espécie de guarda dessas conferências, limpar a sala de micros, ficar de sentinela à porta para afastar os abelhudos e, de um modo geral, garantir o segredo das con­versas quando eu quero que elas sejam secretas. Apanhou a foto? Bond não pôde conter o riso.

— Então quer me empregar como uma espécie de guar­da-costas pessoal, é isso?

O sobrolho tornou a franzir-se.

— E que é que há de tão engraçado nisso, Mister? Es­tou lhe oferecendo bom dinheiro, não? Três, talvez quatro dias num hotel de luxo como o Thunderbird e, no fim de tudo, mil bagarotes. Que há de tão estranho na proposta?

Scaramanga esmagou a ponta do charuto na parte de baixo da mesa, fazendo cair um chuveiro de faíscas que êle deixou que se apagassem por si.

Bond coçou a nuca no gesto de quem reflete. E refle­tindo estava, com efeito — refletindo furiosamente. Sabia que aquela história estava mal contada. Sabia, igualmente, que era esquisito, para não dizer mais, um homem como esse em­pregar um completo desconhecido para tal serviço. Quanto ao serviço em si, justificava-se a rigor. Era natural que Sca-ramanga não quisesse contratar um homem da terra, um ex­agente de polícia, por exemplo, ainda que pudesse encontrá-lo. Um indivíduo dessa espécie teria amigos entre o pessoal do hotel, amigos que estariam interessados no aspecto espe­culativo do projeto Negril. E está claro que, no lado positivo, Bond teria alcançado aquilo que nunca julgara possível: pe­netrar no interior das próprias defesas de Scaramanga. Mas seria assim mesmo? Aquilo lhe cheirava fortemente a cilada. Entretanto, a menos que por algum inexplicável caiporismo tivesse sido descoberto, Bond não podia absolutamente ima­ginar em que consistia essa cilada. Fosse como fosse, era evi­dente que tinha de arriscar a jogada. A muitos respeitos, era uma probabilidade em um milhão. Bond acendeu um cigarro e falou:

— O que me fêz rir foi simplesmente a idéia de um homem com as suas habilidades especiais necessitar de pro­teção. Mas tudo isso promete ser muito divertido. Claro que irei consigo. Quando é que começamos? Tenho um carro aí no fim da rua.

Scaramanga atirou o punho esquerdo para a frente e consultou, no lado de dentro do pulso, o fino relógio com o seu bracelete em dois matizes de ouro.

— 6,32. Meu carro deve estar aí fora. — E, levantan-do-se : — Vamos. Mas não esqueça uma coisa, Sr. Seja Lá Quem Fôr. Eu me zango com muita facilidade. Entende?

— Vi muito bem como se irritou com aqueles inofensi­vos pássaros — respondeu Bond calmamente. E levantou-se também. — Não vejo nenhuma razão para que qualquer de nós se zangue.

— Muito bem, então — tornou Scaramanga, com in­diferença. Foi até o fundo da sala e apanhou a sua valisa, com aspecto de nova mas bastante ordinária, caminhou para a saída, rompeu por entre a cortina de contas sem se dar o trabalho de separei-las e desceu os degraus.

Bond dirigiu-se a passos rápidos para o balcão.

— Adeus, Tiffy. Um dia espero tornar a me encontrar com você. Se alguém perguntar por mim, diga que estou no Thunderbird Hotel, em Bloody Bay.

Tiffy estendeu a mão e tocou-lhe timidamente na man­ga.

— Tenha muita cautela por lá, Sr. Mark. Esse lugar é custeado com dinheiro de gangsters. E cuide-se, hem? — Fêz um gesto com a cabeça na direção da porta. — Esse é o pior homem que já vi na minha vida. — Inclinou-se para a frente e cochichou: — Aquela mala está cheia de ganja, no valor de umas mil libras. Os Rastas deixaram aqui para êle esta manhã. Por isso fui cheirar a mala. E, vivamente, tornou a recuar o corpo.

— Obrigado, Tiffy — disse Bond.—Veja se consegue que Tia Edna bote uma boa mandinga nele. Um dia lhe expli­carei isso. Assim espero, pelo menos. Até logo!

Saiu a passos lestos e desceu para a rua, onde um Thunderbird conversível estava à espera, a descarga a roncar como a de uma lancha a motor. O chofer era um jamaicano, muito bem vestido, com um boné de copa hexagonal. Uma flâmula vermelha na antena do rádio dizia, em letras doura­das: The Thunderbird Hotel. Scaramanga sentara-se ao lado do chofer.

— Sente-se no banco de trás — disse êle com impa­ciência. — Vamos lhe dar carona até onde está o seu carro.

Depois nos siga. Mais para diante a estrada fica boa.

Bond sentou-se atrás de Scaramanga e perguntou con­sigo se não convinha meter agora uma bala na nuca do ho­mem — o velho ponto de mira da Gestapo e da K. G. B. Diver­sas razões o impediram de fazê-lo: o prurido de curiosidade, uma aversão fundamental ao assassinato frio, a intuição de que esse não era o momento predestinado, a probabilidade de ter de matar o chofer também — tudo isso, aliando-se à doçura da noite, à canção After You've Gone, uma de suas favoritas, que o Sistema Sonoro tocava agora em excelente gravação, e às cigarras que chirriavam na ramaria do pau-santo, lhe dizia: "Não". Mas nesse mesmo momento, enquan­to o carro descia o Love Lane rumo ao espelho de mercúrio que era o mar, James Bond teve a convicção de que não só estava desobedecendo às ordens, ou pelo menos esquivando-as, mas também se comportando como o maior dos idiotas.

 

Projeto gorado

Quando chega a um lugar de noite escura, especial­mente numa terra estrangeira que não conhece — uma casa estranha, digamos, ou um hotel — até o mais prevenido dos homens se deixa tomar pelas emoções confusas do mais in­significante turista.

James Bond conhecia mais ou menos o mapa da Ja­maica. Sabia que o mar lhe estivera sempre próximo, à es­querda, e, enquanto seguia as duas sinaleiras vermelhas do carro da frente através de um imponente portão de ferro la­vrado e ao longo de uma alameda de jovens palmei-as-re-ais, ouviu as ondas quebrarem-se numa praia bem junto ao seu carro. Os canaviais, conjeturou êle, deviam chegar até o alto muro de construção recente que rodeava os terrenos do Thunderbird, e um leve odor de mangue vinha do sopé dos altos morros cuja silhueta Bond distinguira de quando em quando ao clarão da lua quase cheia que navegava entre as nuvens à sua direita. Não tinha, porém, outro indício sobre a exata localização do ponto em que se encontrava nem sobre a espécie de lugar em que ia penetrar; e, para êle, a sensação era particularmente desagradável.

A primeira lei, para um agente secreto, é tomar conhe­cimento da topografia, verificar os meios de acesso e saída e garantir as comunicações com o mundo exterior. James Bond sentia, inquieto, que durante uma hora estivera rodando para o desconhecido e que seu contato mais próximo era uma ra­pariga num bordel, a trinta milhas de distância. A situação não era nada tranqüilizadoia.

Meia milha â frente, alguém devia ter avistado as luzes do carro de Scaramanga a aproximar-se, pois subitamente acendeu-se um clarão de luzes amarelas e brilhantes que for­mavam uma rede de iluminação por entre as árvores e a últi­ma curva da pista de veículos pôs em evidência o hotel. Com aquela iluminação feérica e as trevas circundantes que ocul­tavam qualquer indício de construção interrompida, o edifício fazia bela figura. Um vasto pórtico de colunas, em branco e rosa pálido, dava ao hotel um frontispício aristocrático. De­pois de parar atrás do outro carro â entrada, Bond avistou, pelas altas janelas Regência, um amplo piso de mármore pre­to e branco sob refulgentes candelabros. O chefe dos boys desceu apressadamente os degraus, seguido pelo seu pessoal jamaicano de jaleco vermelho e calças pretas e, mostrando grande deferência a Scaramanga, pegou a mala deste e a de Bond. O pequeno préstito deu entrada no saguão, onde Bond escreveu no livro de registro Mark Hazard e o endereço do World Consortium em Kensington.

Scaramanga estivera conversando com um homem que parecia ser o gerente, um moço americano de fisionomia e traje muito corretos.

Você está no Número 24 da Ala Oeste disse êle voltando-se para Bond. Eu estou ao lado, no Número 20. Preciso falar consigo amanhã por volta das dez horas. Os ca­ras chegarão de Kingston lá pelo meio-dia. Está bem?

Os olhos frios, no rosto, descarnado, não queriam sa­ber se estava ou não. Bond respondeu que estava e seguiu um dos boys com a sua mala pelo escorregadio piso de már­more, transpôs uma porta em arco â esquerda do saguão e seguiu por um comprido corredor, totalmente coberto por um tapete Wilton azul vivo. Pairava no ar um cheiro de tinta fres­ca e de cedro-da-jamaica. As portas numeradas e as instala­ções elétricas eram de bom-gôsto.

O quarto de Bond ficava quase na extremidade, ao lado esquerdo. O Número 20 fazia-lhe face. O boy inseriu uma cha­ve na fechadura e abriu a porta para o hóspede entrar. Um sopro de ar refrigerado golfou pela abertura. Era um agradá­vel aposento moderno, com duas camas gêmeas e um banhei­ro em cinza e branco. Quando ficou só, Bond caminhou para o controle do ar condicionado e pô-lo em zero. Abriu então as cortinas e baixou as duas largas janelas para deixar entrar o ar natural. Lá fora, o mar sussurrava docemente numa praia invisível e o luar esparrinhava sombras negras de palmeiras sobre a relva bem tratada. À esquerda, onde as luzes amare­las do pórtico deixavam ver um canto da pista de areão, Bond ouviu acionarem o motor de seu carro e levarem-no dali, pro­vavelmente para um pátio de estacionamento que devia ficar nos fundos, a fim de não estragar o efeito da fachada. Voltou para dentro do quarto e inspecionou-o minuciosamente. Os únicos objetos suspeitos eram um grande quadro na parede, por cima das duas camas, e o telefone. O quadro era uma cena de mercado jamaicano, pintada no local. Bond despren­deu-o do prego, mas a parede, por trás, estava inocente. Tirou então o canivete do bolso, deitou cuidadosamente o telefone, de modo que o receptor não saísse do lugar, e com todo o jeito e cautela desaparafusou a chapa de base. Sorriu de sa­tisfação. A chapa escondia um pequeno microfone ligado ao cabo principal, no interior do berço. Tornou a aparafusar a chapa, com o mesmo cuidado, e recolocou silenciosamente o telefone no seu lugar. Já conhecia o dispositivo. Devia ser transistorizado e dotado de potência suficiente para apanhar uma conversa em tom normal, em qualquer ponto do quarto. Passou-lhe pela cabeça a idéia de dizer umas orações em voz alta e com toda a devoção antes de se deitar. Seria um exce­lente preâmbulo para o aparelho central de gravação!

James Bond tirou da mala as poucas coisas que ela continha e chamou o Serviço dos Quartos. Respondeu-lhe voz jamaicana. Bond pediu umá garrafa de Bourbon Walker de Luxe, três copos, gelo e, para as nove horas, Ovos à Benedict. "Perfeitamente, senhor", disse a voz. Bond tirou então a rou­pa, guardou a pistola e o coldre debaixo de um travesseiro, tocou a campainha chamando o criado e entregou-lhe seu traje para ser passado a ferro. Quando acabou de tomar um banho quente de chuveiro, seguido de outro gelado, enfiando após umas cuecas limpas de algodão Sea Island, o Bourbon havia chegado.

O melhor drinque do dia é logo antes do primeiro (a Red Stripe não contava). James Bond pôs gelo no copo, ver­teu-lhe em cima três dedos de Bourbon e fez girar o copo para esfriá-lo e temperá-lo com o gelo. Puxou uma cadeira para a janela, colocou-lhe uma mesinha ao lado, pegou o Profiles in Courage de Jack Kennedy, abriu-o casualmente em Edmund G. Ross (Contemplei minha sepultura aberta) e foi sentar­se, deixando que o ar perfumado, uma mistura de salsugem marinha e de vegetação, lhe banhasse o corpo nu com exce­ção das cuecas. Esvaziou o Bourbon em dois longos goles, sentindo-lhe o beliscão amigo no fundo da garganta e no estô­mago. Tornou a encher o copo, desta vez com mais gelo para diluir a bebida, reclinou-se na cadeira e pôs-se a pensar em Scaramanga.

Que estaria o homem fazendo nesse momento? Falan­do pela longa distância com Havana ou os Estados? Ocupan­do-se com os preparativos para o dia seguinte? Seria inte­ressante ver esses rotundos e atemorizados acionistas! Bond fazia uma idéia bastante precisa deles: seria um bando seleto de gangsters, do tipo que explorava os hotéis e cassinos de Havana nos velhos tempos de Batista, os homens que man­dam nas sociedades anônimas de Las Vegas, que presidem à jogatina grossa em Miami. E de quem era o dinheiro que Scaramanga representava? Havia tanto dinheiro suspeito a circular pelo Caribe que tanto podia ser de um dos sindicatos financeiros como de um dos ditadores da banana, quer das ilhas, quer da terra firme. E quanto a êle próprio? Mostrara ser mestre na pontaria ao abater as duas aves que se escapa­vam pela janela do 3 1/2. De que maneira apanhá-lo? Levado por um impulso instintivo, Bond caminhou para a cama e tirou a Walther debaixo do travesseiros. Puxou fora o depó­sito e sacudiu na colcha o cartucho único. Testou a mola do depósito, a da culatra, e apontou rapidamente para vários ob­jetos no quarto. Constatou que estava visando cerca de uma polegada alto demais. Mas isso seria por ter ficado mais leve a arma sem o depósito carregado. Sim, agora tinha melhorado. Meteu um cartucho na culatra, travou o dispositivo de segu­rança e tornou a guardar a pistola sob o travesseiro. Voltou então ao seu drinque, apanhou novamente o livro e esqueceu suas preocupações lendo os altos feitos de grandes homens.

Vieram os ovos, que estavam ótimos. O molho mus­selina podia ter sido preparado no Maxim's. Bond mandou retirar a bandeja, serviu-se de um derradeiro drinque e pre­parou-se para a cama. Scaramanga teria infalivelmente uma chave mestra. No dia seguinte Bond cortaria um calço de ma­deira com o canivete para trancar a porta. Por esta noite, bastava encostar nela a sua valisa em pé, com os três copos em cima. Era uma armadilha simples, que lhe daria o alarma necessário. Tirou então as cuecas, espichou-se na cama e ferrou no sono.

Um pesadelo o acordou, banhando em suor, por volta das duas da manhã. Estava defendendo um forte. Havia ou­tros defensores com êle, mas andavam displicentemente de um lado para outro, sem fazer nada, e quando Bond gritava para chamá-los, pareciam não ouvir. Além, na planície, Sca-ramanga estava sentado a cavalo na cadeira do café, ao lado de um gigantesco canhão de ouro. De quando em quando chegava o seu charuto ao ouvido da peça, levantando um tre­mendo clarão de labaredas silenciosas. Uma bala preta de ca­nhão, do tamanho de uma bola de futebol, subia bem alto na atmosfera e caía no forte com um barulho ensurdecedor de madeiras quebradas. Bond não tinha outra arma senão uma balestra, mas nem dela podia servir-se, porque todas as vezes que tentava encaixar o entalhe da flecha na corda de tripa, a flecha escorregava-lhe dos dedos para o chão. Amaldiçoava a sua própria inépcia. A qualquer momento, uma enorme bala de canhão viria cair no pequeno terraço onde se encontrava! Lá na planície, Scaramanga aproximou mais uma vez o cha­ruto do ouvido do canhão. A bala preta subiu ao ar. Vinha di­reto para Bond! Caiu bem em frente dele e começou a rolar na sua direção, crescendo cada vez mais, crescendo, o estopim cada vez mais curto a lançar chispas e fumaça. Bond atirou um braço para cima, a fim de se proteger. O braço bateu do­lorosamente na mesa de cabeceira e Bond despertou.

Levantou-se, tomou um chuveiro frio e bebeu um copo d'água. Quando voltou para a cama, havia esquecido o pesa­delo. Adormeceu rapidamente e teve um sono sem sonhos até as sete e meia da manhã. Enfiou o calção de banho, retirou a barricada da porta e saiu para o corredor. À sua esquerda o sol penetrava por uma porta aberta que dava para o jardim. Saiu por ela e ia caminhando sobre a relva orvalhada em di­reção â praia quando ouviu uns curiosos baques entre as palmeiras â sua direita. Aproximou-se. Era Scaramanga, de calção, acompanhado de um jovem negro de bonita aparên­cia, que segurava um chambre côr de fogo. Estava fazendo exercícios num trampolim. Seu corpo, reluzindo de suor ao sol, pulava na lona esticada, subia âs alturas e vinha repin-char na lona, âs vezes sobre os joelhos, outras sobre as ná­degas e outras até sobre a cabeça. Era um impressionante exercício de ginástica. A proeminente terceira teta sobre o co­ração oferecia um alvo magnífico! Bond continuou a descer muito pensativo para o belo crescente de areia branca orlado de palmeiras cujas folhas se chocavam suavemente umas nas outras. Mergulhou e, instigado pelo exemplo do outro, nadou duas vezes mais longe do que pretendia.

Bond fêz um pequeno e rápido desjejum no quarto, e, muito a contragosto por causa do calor, vestiu o traje azul-marinho, armou-se e foi dar uma volta pela propriedade. Logo se inteirou de tudo, O que a noite e a frontaria iluminada haviam encoberto era um projeto pela metade. A Ala Oriental, no outro lado do saguão, não ultrapassara a fase das ripas e da argamassa. O corpo do hotel — o restaurante, a boíte no­turna e as salas de estar que formavam a cauda da estrutura em T, eram simples improvisações palcos para um ensaio a caráter, armados âs pressas com o cenário essencial, tapetes, instalações de luz e meia dúzia de móveis, mas trescalando tinta fresca e aparas de madeira. Havia por ali talvez uns cinqüenta homens e mulheres a trabalhar, pregando corti­nas, fixando tapetes, pondo em ordem as instalações elétri­cas, mas não se via ninguém a lidar nas coisas essenciais, os grandes misturadores de cimento, as brocas de ar comprimi­do, a ferraria toda, que jaziam dispersas nos fundos do hotel, como os brinquedos abandonados de um gigante. Podia-se calcular que o lugar precisaria de mais um ano e mais cinco milhões de dólares para se converter naquilo que os planos descreviam. Bond compreendeu o problema de Scaramanga. Alguém ia protestar contra isso. Outros desejariam retirar-se. Mas também não faltaria quem quisesse adquirir ações — com grande deságio, é claro — para usar o empreendimento como uma perda em suas declarações de renda, a descontar de outros negócios mais lucrativos. Era preferível ter um in­vestimento de capital, com as enormes isenções concedidas pela Jamaica, do que pagar o dinheiro a Tio Sam, Tio Fidel, Tio Trujillo, Tio Leoni da Venezuela. De modo que o trabalho de Scaramanga seria ofuscar seus convidados com prazeres e recambiá-los meio bêbedos para os seus sindicatos. Daria resultado? Bond que conhecia esse tipo de gente, alimentava suas dúvidas. Podiam ir para a cama bêbedos com uma bo­nita rapariga de côr, mas acordariam bem sãos do juízo — do contrário não teriam os empregos que tinham, não estariam dirigindo-se para este lugar com as suas circunspectas pas­tas.

Avançou um pouco mais na direção dos fundos. Que­ria localizar o seu carro. Foi encontra-lo numa esplanada deserta, atrás da Ala Ocidental. Dentro em pouco o sol iria atingi-lo; por isso conduziu-o mais para a frente, à sombra de um gigantesco ficus. Verificou o nível da gasolina e meteu no bolso a chave de ignição. Nunca eram demais essas pequenas precauções.

Na esplanada de estacionamento o cheiro de mangue era muito ativo. Resolveu caminhar um pouco mais longe, aproveitando a relativa fresca. Não tardou a alcançar o fim dos jovens arbustos e da grama plantados pelo jardineiro-paisagista. Mais para além, era a desolação — vasta área de preguiçosos arroios e terra paludosa, da qual tinham sido re­cuperados os terrenos do hotel. Garças brancas, picanços e garças-da-luisiana levantavam vôo e tornavam a pousar mo­lemente. Havia estranhos ruídos de insetos e um grasnir de rãs e lagartixas. Na provável divisa da propriedade, um arroio bastante caudaloso serpeava em direção ao mar, as margens lamacentas crivadas de tocas de caranguejos e de ratos-d'água. À aproximação de Bond houve um sonoro esparri-nhar de água e um jacaré do tamanho de um homem deixou a margem, mostrando o focinho antes de submergir. Bond sorriu de si para si. Não havia dúvida que, se o hotel chegasse a completar-se, toda essa área seria convertida num atrativo. Teriam barqueiros nativos devidamente caracterizados como índios aruaques, um trapiche e confortáveis barcos de toldo franjado, de onde os hóspedes poderiam contemplar a selva tropical mediante um acréscimo de dez dólares na conta.

Bond olhou o seu relógio e começou a voltar sem pres­sa. À esquerda, ainda não ocultos pelos jovens aloendros que tinham sido plantados para esse fim, viam-se as cozinhas, a lavanderia e os aposentos do pessoal, as instalações ha­bituais dos fundos de um hotel de luxo, de onde provinha o ritmo de um calipso jamaicano, como as batidas de um co­ração — presumivelmente, o combo de Kingston a ensaiar. Bond rodeou o edifício e entrou pelo pórtico do saguão prin­cipal. Scaramanga estava na portaria, falando com o gerente. Quando ouviu os passos de Bond no mármore, virou-se para olhar e fêz uma seca inclinação de cabeça na direção dele. Vestia a mesma roupa do dia anterior, e a alta coleira branca bem condizia com a elegância do saguão.

— Pois então muito bem — disse êle ao gerente; e, vol-tando-se para Bond: — Vamos dar uma olhada na sala de conferência.

Bond seguiu-o. Passaram pela porta do restaurante e depois por outra porta à direita, a qual dava para uma sala de estar, uma de cujas paredes estava tomada pelos copos e pratos de um bufete. Mais além havia outra porta que Scara-manga atravessou à frente, conduzindo Bond a um aposento que, sem dúvida, seria futuramente uma sala de escrever ou de jogar. Agora, porém, nada continha além de uma mesa no centro de um tapete cor de vinho e sete poltronas em imitação de couro, com blocos de notas e lápis diante de cada uma. A poltrona que fazia face à porta, presumivelmente a de Scara-manga, tinha também um telefone diante de si.

Bond percorreu a sala, examinando as janelas, as cor­tinas e dando um olhar aos suportes de iluminação nas pa­redes.

— Os suportes podem ter sido micrados — disse êle.

— E há, também o telefone, naturalmente. Quer que eu exa­mine?

Scaramanga olhou-o com uma cara impenetrável.

— Não é preciso. Está micrado, sim. Por mim mesmo. Convém gravar o que se disser aqui.

— Então muito bem — volveu Bond. — Onde é que eu vou ficar?

— No lado de fora da porta. Fique sentado, lendo uma revista ou qualquer outra coisa. Esta tarde, pelas quatro ho­ras, haverá uma conferência geral. Amanhã, uma ou duas reuniões menores, apenas eu e um dos caras talvez. Não que­ro que nenhuma dessas reuniões seja perturbada. Entendeu?

— Parece bastante simples. Mas não acha que é tem­po de me dizer os nomes desses homens e mais ou menos a quem cada um representa e da parte de quais deles espera complicações, se realmente as espera?

— Pegue uma cadeira, papel e lápis — respondeu Sca-ramanga, pondo-se a andar para baixo e para cima na sala.

— Em primeiro lugar, o Sr. Hendriks. Holandês. Representa o dinheiro europeu, na maior parte, suíço. Não precisa se pre­ocupar com êle. Não é um tipo dado a discutir. Depois temos Sam Binion, de Detroit.

— Da Purple Gang ?

Scaramanga estacou em suas caminhadas e lançou um olhar duro ao seu guarda-costas.

— Todos eles são pessoas respeitáveis, Sr. Não Sei Como Se Chama.

— Hazard é o meu nome.

— Pois bem, seja Hazard. Mas respeitáveis, compre­endeu? Não vá meter na cabeça a idéia de que isto é uma espécie de Appalachian. Todos eles são sólidos homens de negócios. Percebeu? Esse Sam Binion, por exemplo. Negó­cio de imóveis. Êle e seus amigos valem talvez vinte milhões. Está vendo? Depois vem Leroy Gengerella. Miami. Dono das Empresas Gengerella. Um figurão da indústria de diversões. Pode ser que dê trabalho. Os sujeitos que exploram esse ramo de negócio gostam de ter lucros rápidos e um rendimento imediato. E Ruby Rotkopf, o hoteleiro de Las Vegas. Esse vai fazer as perguntas difíceis porque já deve saber quase todas as respostas, por experiência. Hal Garfinkel, de Chicago. É das Relações de Trabalho, como eu. Representa um montão de fundos do Sindicato dos Empreiteiros. Não é provável que incomode. Esses sindicatos têm tanto dinheiro que nem sa­bem o que fazer dele. Bem, com este são cinco. E por último vem Louie Paradise, de Phoenix, Arizona. É o dono da Para­dise Slots, a maior de todas as empresas de caça-níqueis. Também tem interesse em cassinos. Não faço idéia de qual será o jogo dele. E aí tem todos.

— E o Sr. Scaramanga, a quem representa?

— Dinheiro do Caribe.

— Cubano?

— Eu disse do Caribe. Cuba fica no Caribe, não fica ?

— Castro ou Batista?

O sobrolho tornou a carregar-se. Scaramanga fechou o punho da mão direita.

— Eu lhe avisei para não me azucrinar, Mister. Portan­to, não meta o bedelho nos meus negócios ou vai se arrepen­der. E isso é pra valer, hem?

E, como se não pudesse mais sofrear-se, o homenzar­rão girou nos calcanhares e retirou-se desabridamente da sala.

James Bond sorriu e voltou ao exame da lista que ti­nha à sua frente. Um forte cheiro de alto gangsterismo se exa­lava do papel. Mas o nome que mais lhe interessava era o do Sr. Hendriks, que representava o dinheiro europeu. Se este é o seu nome verdadeiro e se êle é holandês, refletiu Bond con­sigo, então eu também sou.

Arrancou três folhas de papel a fim de apagar as im­pressões do lápis e deixou a sala. Foi até o saguão. Um ho­mem corpulento caminhava para a portaria, vindo da porta de entrada. Suava em bicas na sua intempestiva fatiota de lã grossa. Podia ser qualquer coisa — mercador de diamantes

82

de Antuérpia, dentista alemão, gerente de banco suíço. A cara pálida, de mandíbula quadrada, era totalmente anônima. De­positou no balcão uma pesada pasta e disse, com um espesso sotaque centro-europeu:

— Eu sou Sr. Hendriks. Penso ser assim que os senho­res têm um quarto para mim, não é?

 

Passe os salgadinhos!

Os carros começaram a chegar. Scaramanga estava em evidência. Armava e desarmava um circunspecto sorriso de acolhida. Não houve apertos de mão. O anfitrião era saudado quer como Pistola, quer como Sr. S., exceto por Hendriks, que não lhe deu nome algum.

Bond mantinha-se nas proximidades, tratando de ligar os nomes às pessoas. No aspecto geral, todos se pareciam muito uns com os outros. Caras sombrias, escanhoados, es­tatura regulando um metro e setenta, olhos duros por cima dos sorrisos artificiais, bruscos com o gerente. Todos se agar­ravam firmemente às suas pastas quando os boys tentavam juntá-las à bagagem que conduziam nos seus carrinhos com pneus nas rodas. Dispersaram-se rumo aos seus respectivos quartos na Ala Oriental. Bond tirou a lista do bolso e acres­centou anotações ao nome de cada um, salvo Hendriks, que êle já havia retratado com exatidão na memória. Gengerella foi assim definido: "origem italiana, maldoso, boca franzida"; Rotkopf : "pescoço grosso, completamente calvo, judeu"; Bi-nion: "orelhas de morcego, cicatriz de alto a baixo na face esquerda, coxo"; Garfinkel: "o mais durão; dentes estragados, pistola sob a axila direita"; e finalmente Paradise: "tipo do empresário de espetáculos, bazofiador, sorriso falso, anel de brilhante".

Scaramanga aproximou-se.

— Que que é que está escrevendo ?

— Umas notas para me lembrar deles.

— Deixe ver.

Scaramanga estendia uma mão imperiosa. Bond entre­gou-lhe a lista. O outro correu os olhos pela folha de papel e devolveu-a.

— Nada mau. Mas não era preciso mencionar a única arma que notou. Todos eles estarão protegidos. Menos Hen­driks, imagino. Os tipos dessa espécie ficam nervosos quando viajam pelo estrangeiro.

— Que é que eles receiam? Scaramanga deu de ombros.

— Os nativos, quem sabe.

— Os últimos que se preocuparam com os nativos fo­ram os soldados britânicos, há uns cento e cinqüenta anos.

— Que importa isso? Nos veremos no bar, lá pelas doze. Apresentarei você como meu Assistente Pessoal.

— Nada mau.

Franzir de sobrancelhas de Scaramanga. Bond saiu tranqüilamente na direção de seu quarto de dormir. Tencio­nava alfinetar esse homem e continuar a alfinetá-lo até pro­vocar uma luta. Por enquanto o outro havia de agüentar, pois parecia precisar de Bond. Mas um momento viria, provavel­mente em presença de testemunhas, quando se sentiria tão picado em sua vaidade que sacaria o revólver. Então Bond disporia de uma pequena margem, pois seria êle quem teria lançado a luva. A tática era rudimentar, mas Bond não podia imaginar outra.

Constatou que seu quarto fora revistado durante a ma­nhã — e por um perito. Sempre usava uma navalha de segu­rança Hoffritz, do tipo dos antigos aparelhos Gillette, com os mesmos dentes grossos. Certa vez, em Nova York, seu amigo americano Felix Leiter lhe fizera presente de uma dessas na­valhas para provar que eram as melhores, e Bond se habi­tuara a elas. O punho de uma navalha de segurança é um esconderijo razoavelmente sofisticado para pequenos petre­chos de espionagem — códigos, reveladores de microfilmes, cianureto e outras pílulas. Nessa manhã Bond havia feito um minúsculo entalhe na base do aparelho, onde atarrachava o punho, e alinhara esse entalhe com a letra Z do nome do fabricante, gravada no punho. O entalhe estava, agora, um milímetro à direita do Z. Nenhuma de suas outras pequenas armadilhas, lenços com pontos de tinta indelével em lugares determinados e arranjados em certa ordem, o ângulo de sua valisa com a parede do guarda-roupa, o bolsinho do peito de seu outro traje com o forro levemente puxado para fora, a simetria especial de certas amolgaduras no tubo de pasta dentifrícia Maclean — nada disso fora desarranjado ou tirado do lugar. Todos esses objetos podiam ter sido esquadrinha­dos por um servente meticuloso, um criado de quarto bem treinado. Mas os criados jamaicanos, com toda a sua simpa­tia e boa vontade, não são desse calibre. Não: entre as nove e as dez, enquanto Bond fazia o seu giro pela propriedade e andava bem longe do corpo do hotel, seu quarto sofrera uma busca completa por parte de alguém que entendia do ofício.

Bond ficou satisfeito com a descoberta. Era bom sa­ber que tinha um adversário decidido pela frente. Em se lhe oferecendo ensejo de proceder a uma devassa no Número 20, esperava obter melhores resultados. Tomou um banho de chuveiro. Depois do banho, enquanto passava a escova no cabelo, olhou com curiosidade sua figura no espelho. Sentia-se em perfeita forma, mas lembrava-se dos olhos apagados e sem lustro que lhe tinham devolvido a mirada na primeira vez que se barbeara depois de dar entrada no Parque — a expressão tensa e preocupada de seu rosto. Agora, os olhos azuis-cinzentos no rosto bronzeado o encaravam com o fulgor da excitação reprimida e com a incisiva direitura dos velhos dias. Sorriu ironicamente ao cabo desse exame introspectivo que tanta gente faz antes de uma corrida, uma competição de inteligências, uma prova qualquer. Não tinha escusas. Estava pronto para a arrancada.

Entrava-se no bar por uma porta de couro com tachões de latão, em frente ao vestibulo da sala de conferências. Era, de acordo com a moda, uma imitação de public house inglesa com acessórios de luxo. As cadeiras e bancos de madeira li­xada tinham almofadas de espuma de borracha com forro de couro. Os canecões alinhados atrás do balcão eram de prata, ou simulacro de prata, em vez de estanho. As gravuras de caça, trompas de caça em cobre e latão, mosquetes e polvori­nhos, podiam ter vindo das Parker Galleries de Londres. Em lugar de canecões de cerveja, o que se via em cima das mesas eram garrafas de champanha em baldes de estilo antigo e, em lugar de campônios, os gangsters andavam por ali em trajes tropicais que pareciam provir de Brooks Brothers, sorvendo comedidamente os seus drinques enquanto o anfitrião, en­costado ao balcão de mogno lustrado, fazia girar o seu revól­ver de ouro no indicador da mão direita, como o batoteiro das mesas de pôquer num velho filme do Oeste.

Quando a porta se cerrou atrás de Bond com um suspi­ro pressurizado, o revólver de ouro estacou em meio a uma de suas revoluções e apontou para a barriga do recém-chegado.

— Pessoal — disse Scaramanga com um arremedo de expansividade, — apresento-lhes o meu Assistente Pessoal, Sr. Mark Hazard, de Londres, Inglaterra. Veio comigo para fazer com que tudo funcione direitinho neste week end. Mark, chegue para cá, faça conhecimento com a turma e passe os salgadinhos.

Baixou o revólver e enfiou-o na cintura.

Bond alinhavou um sorriso de Assistente Pessoal e caminhou para o bar. Talvez por ser êle inglês, houve uma rodada de apertos de mão. O barman de jaleco vermelho per­guntou-lhe o que desejava beber e êle respondeu:

— Gim rosado, com bastante bitter. Beefeater.

Começou-se a conversar aqui e ali sobre os méritos re­lativos dos diversos tipos de gim. Todos os outros pareciam estar bebendo champanha, exceto o Sr. Hendriks, que se conservava à parte do grupo e aquecia nas mãos um limão amargo Schweppes. Bond passava de um homem a outro, entretendo-os com uma palestra miúda sobre o vôo que ti­nham feito, o tempo que fazia nos Estados, as belezas da Ja­maica. Queria ligar as vozes aos nomes. Gravitou para o Sr. Hendriks.

— Segundo parece, somos os dois únicos europeus aqui. Ouvi dizer que o senhor é da Holanda. Passei muitas vezes por lá. Nunca permaneci muito tempo. Belo país.

Os palidíssimos olhos azuis encararam Bond sem mui­to entusiasmo.

— Sank you.

— De que parte é o senhor?

— Den Haag.

— Morou muito tempo lá ?

— Muitos, muitos, anos.

— Bela cidade.

— Sank you.

— Esta é a primeira vez que vem à Jamaica?

— Não.

— Que tal lhe parece?

— É um bonito lugar.

Bond esteve vai-não-vai para dizer: Sank you. Sorriu animadoramente para o Sr. Hendriks, como quem dizia: "Até aqui a conversa esteve por minha conta. Agora fale alguma coisa."

O Sr. Hendriks tangenciou com o olhar a orelha direita de Bond, fitando o vazio. A pressão do silêncio foi crescendo. O Sr. Hendriks transferiu o peso do corpo de um pé para o outro e afinal entregou os pontos. Seus olhos mexeram-se e fixaram-se pensativamente em Bond.

— E o senhor. É de Londres, não?

— Sim. Conhece Londres ?

— Estive lá, sim.

— Onde é que costuma hospedar-se? Houve um momento de hesitação.

— Com amigos.

— Deve ser muito conveniente.

— Por favor ?

— Quero dizer que é agradável ter amigos numa cidade estrangeira. Os hotéis são todos mais ou menos iguais.

— Não me parece assim. Desculpe, por favor.

Com um germânico sacudir de cabeça, o Sr. Hendri­ks afastou-se decididamente de Bond e caminhou para Sca-ramanga, que continuava encostado ao balcão, em solitário esplendor. O Sr. Hendriks disse-lhe alguma coisa. Suas pa­lavras tiveram sobre o outro homem o efeito de um comando. Scaramanga aprumou-se e seguiu-o até um canto distante da sala. Ficou em pé, escutando com expressão deferente en­quanto o Sr. Hendriks falava depressa, em voz baixa.

Bond, que fora ter com os outros homens, ficara inte­ressado. Adivinhou que nenhum dos demais que se encontra­vam na sala poderia ter abordado Scaramanga com tanta au­toridade. Notou que muitos olhares furtivos se dirigiam para a dupla à parte. Na opinião de Bond, ou aquilo era a Máfia ou o K. G. B. Provavelmente, nenhum dos outros cinco saberia dizer qual dos dois, mas por certo teriam reconhecido o forte odor da Máquina, que se exalava do Sr. Hendriks.

Anunciaram o almoço. O maítre jamaicano pairava en­tre duas mesas ricamente preparadas, com cartões a indicar o lugar de cada um. Descobriu Bond que, enquanto Scara-manga era o anfitrião a uma das mesas, êle próprio se senta­ria à cabeceira da outra, entre o Sr. Paradise e o Sr. Rotkopf. Como êle esperava, o Sr. Paradise era o melhor conviva dos dois. Enquanto faziam honra à seqüência convencional dos hotéis americanizados no estrangeiro — coquetel de cama­rões, filé, salada de frutas — Bond envolveu-se alegremente numa discussão sobre as probabilidades de ganhar ou per­der na roleta, quando o número contém um ou dois zeros. A única contribuição do Sr. Rotkopf foi dizer, com a boca cheia de filé e batatinhas fritas, que uma vez tentara trêz zeros no Cassino Gato Preto de Miami, mas que o experimento falhara. O Sr. Paradise comentou que assim devia ser.

— É preciso deixar que os otários ganhem de vez em quando, Ruby, senão eles não voltam. Está claro que se pode espremer o caldo deles, mas convém deixar-lhes as semen­tes. Como os meus caça-níqueis, por exemplo. Sempre digo aos fregueses: não sejam muito ambiciosos. Não regulem os aparelhos em trinta por cento para a casa. Ponham em vinte. Quem já ouviu dizer que o Sr. J. B. Morgan1 tivesse enjeitado um lucro líquido de vinte por cento? Jamais na vida! Então, para que pretender ser mais esperto do que sujeitos desse calibre?

O Sr. Rotkopf replicou com azedume:

— É preciso fazer grandes lucros para compensar um palpite errado como este — fazendo um gesto com a mão em volta. Depois ergueu no ar um pedaço de filé na ponta do gar­fo. — Quer que lhe diga? Você está comendo neste instante o único dinheiro que vai tirar desta joça.

— Sabe de alguma coisa? — perguntou o Sr. Paradise em voz baixa, inclinando-se sobre a mesa.

— Eu sempre disse aos meus representados que as macegas acabariam por tomar conta deste lugar — respon­deu o Sr. Rotkopf. — Os jumentos não quiseram me escutar. E vejam aonde chegamos depois de três anos! A segunda hi­poteca está quase vencida e não conseguimos levantar mais do que o andar térreo. O que eu digo é isto...

A discussão enveredou pelo campo da alta finança. Na outra mesa não reinava nem sequer essa moderada anima­ção. Scaramanga era homem de poucas palavras. Eviden­temente, não lhe sobravam para as necessidades sociais. Diante dele, o Sr. Hendriks exsudava um silêncio tão espesso como queijo de Gouda. Os três gangsters faziam de quando em quando um taciturno comentário para quem os quisesse ouvir. James Bond perguntou consigo como é que Scaraman-ga iria eletrizar essa amarrotada turma e fazer com que ela "se divertisse de verdade".

Terminou o almoço e os convivas retiraram-se para os seus quartos. James Bond foi espairecer para os fundos do hotel, onde encontrou uma tabuinha de telhado jogada a um monte de refugos. O sol da tarde, abrasava, mas o Vento do Doutor soprava do mar. Apesar do ar condicionado, havia qualquer coisa de sinistro no cinza-e-bran-co impessoal do quarto de dormir de Bond. Caminhou ao longo da praia, tirou o paletó e a gravata e sentou-se à sombra de um pé de uva-do-mar, observando os uçás ocupados em seus minúsculos afazeres na areia, enquanto cortava duas atarracadas cunhas na tabuinha de cedro-da-jamaica. Terminado esse trabalho, cerrou os olhos e pensou em Mary Goodnight. A essas ho­ras devia estar fazendo sua sesta em alguma vila dos arra­baldes de Kingston. Com certeza ficava situada bastante alto nas Montanhas Azuis, por causa da fresca. Na imaginação de Bond, Mary jazia em seu leito, debaixo de um mosquitei­ro. Naquele calor, tinha tirado toda a roupa e através do filó não se avistava senão uma forma côr de marfim e ouro. Mas pressentiam-se pequenas contas de suor no lábio superior e entre os seios. A raiz dos cabelos dourados estaria molha­da. Bond despiu-se, e ergueu a orla do mosquiteiro, evitando acordá-la enquanto não tivesse encaixado sua coxa nas dela. Mas a moça virou-se para êle, semidesperta, estendendo os braços: "James..."

Sob o arbusto de uva-do-mar, a cento e cinqüenta mi­lhas da cena do sonho, a cabeça de James Bond ergueu-se do chão com um movimento sacudido. Assaltado por um sen­timento de culpa, olhou precipitadamente o seu relógio. Três e meia. Correu ao seu quarto, tomou um banho de chuveiro, certificou-se de que as cunhas de cedro desempenhariam a função a que se destinavam e desceu calmamente para o sa­guão.

O gerente, de roupa e fisionomia corretas, saiu da por­taria para vir ao seu encontro.

— Há... Sr, Hazard?

— Sim?

— Não creio que o senhor tenha sido apresentado ao meu ajudante, o Sr. Travis.

— Não, acho que não.

— Quer fazer o favor de vir um instante ao escritório para apertar a mão dele?

-—Talvez mais tarde. Nós temos esta conferência den­tro de poucos minutos.

O homem correto avançou mais um passo e disse em voz baixa:

— Êle faz muita questão de lhe falar, Sr. ... hã... Bond.

Bond amaldiçoou a si mesmo. Isso acontecia constan­temente na sua profissão. A gente procurava um besouro de asas vermelhas. Tinha os olhos focalizados para aquele pa­drão especial sobre a casca da árvore e não reparava na ma­riposa de misterioso colorido, tranqüilamente agachada nas proximidades, como se fizesse parte da casca, e que era um exemplar não menos importante para o colecionador. A foca­lização dos olhos deste era demasiado estreita, seu espírito estava por demais concentrado. Usava uma ampliação de 1 x 100 e a de 1 x 10 estava fora de foco. Bond olhou para o ge­rente com essa perspicácia que existe entre vigaristas, entre homossexuais, entre agentes secretos. É o olhar comum aos homens unidos pelo segredo, pela comunidade de problemas.

— Convém andar depressa.

O homem correto passou para trás do balcão da porta­ria e abriu uma porta. Bond entrou e o homem correto fechou a porta atrás deles. Um indivíduo alto e magro estava em pé diante de um arquivo. Virou-se. Tinha um rosto fino e bron­zeado de texano sob a rebelde cabeleira loura e, em lugar da mão direita, um gancho de aço rebrilhante. Bond estacou. Seu rosto abriu-se num vasto sorriso... Há quanto tempo não sorria assim? Três, quatro anos?

— Seu ladrão safado! Que raio de coisa você está fa­zendo aqui?

Caminhou para o homem e aplicou-lhe um bom murro no bíceps do braço esquerdo. O arreganhar de dentes do ou­tro tinha um pouco mais de rugas do que outrora, mas não era menos amigável e irônico.

— Meu nome é Leiter, Sr. Felix Leiter. Contabilista por tarefa, tomado de empréstimo pelo Thunderbird Hotel ao Morgan Guarantee Trust. Estamos verificando as suas cre­denciais, Sr. Hazard. Quer ter a bondade de tirar seu dedo do traseiro, conforme se expressam os seus compatriotas, e me fornecer alguma prova de que é quem afirma ser?

 

Atas da conferência

Todo contente, quase aéreo, James Bond apanhou na portaria um punhado de folhetos de viagem, disse "Alô!" ao Sr. Gengerella, que não respondeu; e entrou empós dele no vestibulo da sala de conferências. Foram os últimos a apare­cer. Scaramanga, postado junto à porta aberta da sala, olhou significativamente para o seu relógio e disse a Bond:

— Muito bem, companheiro. Feche a porta a chave quando estivermos todos instalados e não deixe entrar nin­guém, ainda que o hotel pegue fogo. — Virou-se para o bar­man atrás do bufete carregado de comes e bebes. — Suma-se, Joe. Mais tarde chamarei você. — E, para os outros: — Perfei­to. Estamos todos aqui. Vamos.

Entrou na sala de conferências e os seis homens se­guiram-no. Bond, que ficou ao lado da porta, tomou nota da ordem dos lugares em redor da mesa. Fechou a porta, passou a chave na fechadura e foi depressa chavear também a saí­da do vestibulo. Apanhou então uma taça de champanha no bufete, trouxe uma cadeira e colocou-a bem junta à porta da sala de conferências. Encostou a boca da taça à dobradiça e, segurando a taça pelo pé, aplicou o ouvido à sua base. Graças a êsse tosco amplificador, um zumbido indistinto, lá dentro, converteu-se na voz do Sr. Hendriks a discorrer:

— ... portanto, é assim que agora vou transmitir as palavras de meus superiores na Europa...

A voz fez uma pausa e Bond ouviu outro ruído, uma ca­deira que rangia. Rápido como o relâmpago, puxou a sua al­gumas polegadas para trás, abriu sobre o seu regaço um dos folhetos de viagem e levou a taça aos lábios. A porta abriu-se de chôfre e Scaramanga apareceu, fazendo girar sua chave particular na extremidade de uma corrente. Examinou a figu­ra inocente, sentada na cadeira.

— O. K., companheiro. Estou controlando. — E tornou a cerrar a porta com o pé.

Bond chaveou-a ruidosamente e voltou ao seu lugar.

— Tenho uma mensagem importantíssima para o nos­so Presidente — continuou o Sr. Hendriks. — Uma mensa­gem que recebi de fonte segura. Há um homem que se chama James Bond e que anda à procura dele neste território. Este é um homem que pertence ao Serviço Secreto Britânico. Não tenho informações nem descrições deste homem, mas parece ser altamente cotado pelos meus superiores. Sr. Scaramanga, não ouviu falar deste homem?

Scaramanga bufou com descaso.

— Não ouvi nada. E preciso me preocupar com isso? De vez em quando papo um desses famosos agentes secretos como pequeno almoço. Ainda há dez dias atrás fiz o serviço num deles, que andava metendo o nariz nos meus assuntos. Um tal de Ross. O cadáver desse sujeito está agora afundando devagarinho num lago de asfalto, na parte leste de Trinidad — um lugar chamado La Brea. Qualquer dia a companhia de petróleo, essa gente da Trinidad Lake Asphalt, vai extrair um barril de óleo cru muito interessante. Vejamos a pergunta seguinte, por favor, Sr. Hendriks.

— A pergunta seguinte é que estou desejando saber qual é a política do grupo no assunto da sabotagem da cana. Na nossa conferência há seis meses atrás, em Havana, ficou decidido, contra a minoria de meu voto e em troca de certos favores, ir em auxílio de Fidel Castro ajudando a manter e até a aumentar o preço do açúcar no mercado mundial, para compensar os danos causados pelo furacão Flora. Desde essa ocasião tem havido numerosos incêndios nas plantações de cana da Jamaica e de Trinidad. A propósito disso, chegou aos ouvidos de meus superiores que alguns membros do Grupo, principalmente ... — ouviu-se um farfalhar de papéis — prin­cipalmente os Srs. Gengerella, Rotkopf e Binion, além do nos­so Presidente, fizeram vultosas compras de açúcar a termo, para entrega em julho, tendo em vista o lucro privado...

Ouviu-se um murmúrio irado em volta da mesa. "E por que não havíamos?... Por que não haviam eles?..." A voz de Gengerella dominou as outras, falando aos gritos

— Quem foi que disse que nós não devíamos ganhar dinheiro? Não é esse um dos objetivos do Grupo? Torno a lhe perguntar, Sr. Hendriks, como lhe perguntei há seis meses: que raio de pessoa é essa, entre os seus chamados superio­res, que quer manter baixo o preço do açúcar? No meu modo de ver, quem estaria mais interessado nesse jogo seria a Rús­sia Soviética. Está vendendo mercadorias a Cuba---inclusi­ve, por exemplo, a recente remessa de projéteis dirigidos para serem disparados contra o meu país, em troca de açúcar bru­to. Os Vermelhos são negociantes muito vivos. Como velha­cos que são, mesmo de um amigo e aliado tratariam de obter mais açúcar em troca de menos mercadorias. Sim? Segundo suponho — escarneceu a voz — um dos seus superiores, Sr. Hendriks, não seria por acaso o Sr. Krushchev?

A voz de Scaramanga dominou a balbúrdia que se se­guiu a estas palavras.

— Companheiros! Companheiros! — Fêz-se na sala um silêncio relutante. —- Quando formamos esta Cooperativa, todos concordaram em que o primeiro objetivo era cooperar­mos uns com os outros. Pois muito bem, Sr. Hendriks. Agora vou lhe dar o quadro completo. Considerando as finanças to­tais do Grupo, temos um belo futuro à nossa espera. Como sociedade de investimentos, temos bons e maus riscos. O açúcar é um bom risco, e devemos nos agarrar a êle ainda que alguns membros do Grupo tenham preferido cair fora. Me entendeu? Agora ouça até o fim. Neste momento há seis na­vios controlados pelo Grupo, fundeados diante de Nova York e outros portos dos Estados Unidos. Esses navios estão carre­gados com açúcar bruto. Esses navios, Sr. Hendriks, não vão atracar e descarregar enquanto o preço do açúcar a termo, para julho, não tiver subido mais dez cents. Em Washington, o Departamento de Agricultura e os interesses açucareiros nas antecâmaras do Congresso sabem disso. Sabem que nós os temos seguros pelo saco. Enquanto isso, a indústria de bebidas faz pressão sobre eles — para não falar na Rússia. O preço do melaço sobe com o do açúcar e os reis do rum fa­zem um berreiro dos seiscentos diabos, querendo a todo pano que os navios atraquem antes que se declare uma verdadeira escassez e os preços disparem por aí a fora. Nós temos de pagar as tripulações, as estadias, etc. e tal, e navios parados são navios mortos, perdas totais. Portanto, a corda tem de rebentar nalguma parte. A situação que criamos chama-se, no mundo dos negócios, o Jogo da Safra Flutuante — nossos navios ancorados ao largo, alinhados contra o Governo dos Estados Unidos. Pois muito bem. Agora somos quatro que jogamos para ganhar ou perder dez milhões de dólares-—nós e os que nos apoiam. E temos este pequeno negócio do Thun-derbird na coluna dos prejuízos. Então, que lhe parece, Sr. Hendriks? Naturalmente, queimamos as plantações quando podemos fazer isso sem ser apanhados. Eu estou de dentro com os Rastafaris, uma seita de beatniks daqui que deixam crescer a barba, fumam ganja e vivem quase todos numas terras perto de Kingston, chamadas The Dungle, a Esterquei­ra, e acreditam que devem lealdade ao Rei da Etiópia, esse Rei Zog ou coisa parecida, e que a sua verdadeira pátria é lá. De modo que colocamos um homem entre essa gente, um homem que consegue a ganja para eles, e eu me encarrego de renovar sempre o estoque em troca de incêndios e desordens em penca nas plantações. Pois é isso, Sr. Hendriks. Diga aos seus superiores que o que sobe tem de baixar, e isso vale para o preço do açúcar como para tudo mais. Está bem?

— Transmitirei as suas palavras, Sr. Scaramanga — respondeu Hendriks. — Não vão causar muita satisfação. Agora temos o negócio do hotel. Qual é a situação, por favor? Creio que todos nós estamos desejando saber qual é o verda­deiro estado do negócio, não é?

Ouviu-se um grunhido geral de assentimento.

O Sr. Scaramanga encetou uma longa dissertação que, para Bond, tinha um interesse apenas relativo. De qualquer modo, Felix Leiter estaria gravando tudo na fita, dentro de uma gaveta do arquivo. Havia tranqüilizado Bond quanto a esse ponto. O americano correto, segundo explicara Leiter, fornecendo-lhe os dados essenciais, era na realidade um cer­to Sr. Nick Nicholson, da C. I. A. Tinha interesse especial no Sr. Hendriks, que, conforme suspeitara Bond, ocupava um alto posto na K. G. B. A K. G. B. tem predileção por um sis­tema oblíquo de controle — um homem em Genebra como Diretor-Residente na Itália, por exemplo — e o Sr. Hendriks, em Haia, era na verdade Diretor Residente do Caribe e encar­regado do centro de Havana. Leiter continuava trabalhando para a Agência de Detetives Pinkerton, mas estava também na reserva da C. I. A., que o havia designado para essa missão especial devido ao seu conhecimento da Jamaica — conhe­cimento que adquirira sobretudo em companhia de James Bond. Seu encargo era fazer um estudo do Grupo e descobrir quais os planos deste. Tratava-se de gangsters conhecidos que, normalmente, cumpriria ao F. B. I. investigar, mas Gen­gerella era um Capo Mafiosi e essa era a primeira vez que se tinha conhecimento de uma combinação entre a Máf ia e o K. G. B. — parceria das mais inquietadoras que se fazia preciso desmanchar rapidamente e a todo custo — pela eliminação fí­sica, se necessário. Nick Nicholson, que usava como fachada o nome de Sr. Stanley Jones, era técnico em eletrônica. Tinha acompanhado o fio principal até o aparelho de gravação de Scaramanga, sob o piso da sala geral de ligações, e fizera uma derivação do fio do microfone para o seu próprio grava­dor, dentro do arquivo. Portanto, Bond não tinha com que se preocupar. Estava à escuta para satisfazer sua curiosidade pessoal e preencher alguma falha com dados adicionais que por acaso viessem a transpirar no vestíbulo, ou conversações fora do alcance do micro instalado no telefone da mesa de conferências. Bond explicara a sua presença, provocando, da parte de Leiter, um longo assobio de respeitosa apreensão. Bond concordara em manter-se à distância dos outros dois homens e em remar o seu próprio barco; mas haviam combi­nado um ponto de encontro de emergência e uma caixa pos­tal na instalação sanitária dos Cavalheiros que dava para o saguão, a qual estava ainda inacabada e ostentava na porta o letreiro "Não Funciona". Após receber de Nicholson uma chave particular para esse cubículo e todos os demais apo­sentos, Bond tivera de deixá-los às pressas a fim de se dirigir para a sua reunião. Sentia-se imensamente confortado por esses inesperados reforços. Tinha trabalhado com Leiter em algumas de suas mais arriscadas missões. Não havia homem como aquele quando chegava o momento de pôr as cartas na mesa. Embora Leiter tivesse um gancho de aço em lugar da mão direita — lembrança de uma dessas missões — era um dos melhores atiradores canhotos dos Estados Unidos, e o próprio gancho podia revelar-se uma arma devastadora nas lutas corpo a corpo.

Scaramanga terminava nesse momento a sua exposi­ção.

— De modo que o resultado líquido de tudo isso, se­nhores, é que precisamos arranjar mais dez milhões de dóla­res. Os interesses que eu represento, e que são os da maio­ria, sugerem que a quantia seja conseguida por meio de uma emissão de Notas com juros de dez por cento e pagáveis em dez anos, emissão essa que terá prioridade sobre todos os outros empréstimos.

Interrompeu-o a voz irada do Sr. Rotkopf.

— Terá prioridade coisa nenhuma! Que história é esta, Mister? E a segunda hipoteca a sete por cento, que eu e meus amigos aceitamos há um ano atrás? Que pensa que iria me acontecer se eu voltasse a Vegas com uma notícia dessas? Me punham no olho da rua! E olhe que estou sendo otimista.

— Mendigo não escolhe, Ruby. É isso, ou fechar. Que é que os outros têm para dizer?

— Dez por cento sobre Notas preferenciais é bom ne-cócio — falou Hendriks. — Meus amigos e eu tomaremos um milhão de dólares. Mas depende, é claro, de que as condições da emissão sejam mais... como dizer? Mais substanciais, me­nos sujeitas a mal-entendidos do que a segunda hipoteca do Sr. Rotkopf e seus amigos.

— Naturalmente. Eu e meus amigos também tomare­mos um milhão. Sam?

O Sr. Binion respondeu de má vontade:

— O. K., O. K. Conte conosco para uma quantia igual. Mas, com os diabos, este terá de ser o último saque.

— Sr. Gengerella?

— Está me parecendo uma boa aposta. Vou ficar com

o resto.

Atalharam-no as vozes excitadas dos Srs. Garfinkel e Paradise — Garfinkel à frente:

— Não vai coisa nenhuma! Eu tomo um milhão.

— E eu também — gritou o Sr. Paradise. — Vamos dividir o bolo em partes iguais. Mas que raio! Sejamos justos com Ruby. Ruby, você deve ser o primeiro a falar. Quanto vai querer? A primeira fatia é sua.

— Não quero nem um cent dessas suas Notas frias. Logo que eu voltar, procurarei os melhores, advogados dos Estados Unidos — todos eles. Se vocês pensam que podem protelar uma hipoteca assim sem mais nem menos, estão muito enganados.

Houve um silêncio na sala. A voz de Scaramanga fêz-se ouvir, mansinha e sinistra.

— Você está cometendo um grande erro, Ruby. Nós lhe oferecemos uma polpuda perda para compensar na declara­ção de renda os seus lucros extraordinários em Vegas. E não esqueça que, quando formamos este grupo, todos nós presta­mos um juramento. Nenhum devia agir contra os interesses dos outros. Esta é a sua última palavra?

— Sim, com mil diabos!

— E isto não lhe ajudará a mudar de idéia ? Em Cuba, eles têm uma divisa para estes casos: Rápido! Seguro! Econô­mico! É assim que o sistema funciona.

O grito de terror e a explosão foram simultâneos. Uma cadeira caiu ruidosamente no chão e houve um momento de silêncio. Por fim ouviu-se uma tosse nervosa. O Sr. Genge­rella disse em tom circunspecto:

— Creio que esta foi a solução correta de um emba­raçoso conflito de interesses. Os amigos de Ruby, em Vegas, preferem levar uma vida sossegada. Duvido que eles cheguem mesmo a se queixar. Antes ser o dono vivo de alguns papéis muito bem impressos do que o credor falecido de uma segun­da hipoteca. Inscreva-os pela quantia de um milhão, Pistola. Acho que você agiu com rapidez e correção. Mas vamos ver: você pode dar um jeito nisto?

— Claro, claro — A voz do Sr. Scaramanga soava cal­ma e satisfeita. — "Ruby nos deixou para voltar a Vegas. Não tivemos mais notícias dele. Não sabemos de nada." Eu tenho uns jacarés esfaimados no rio aqui dos fundos. Eles lhe darão transporte grátis para onde quer que êle fôr — e à sua baga­gem, se fôr de bom couro. Vou precisar de ajuda esta noite. Que tal você, Sam? E você, Louie?

A voz do Sr. Paradise implorou:

— Não conte comigo, Pistola. Eu sou um bom católico.

— Eu tomarei o lugar dele — disse o Sr. Hendriks. — Não sou um homem católico.

— Pois seja assim. Bem, companheiros, há algum ou­tro assunto a tratar? Se não, vamos dar a sessão por encerra­da e tomar um drinque.

— Um momento, Pistola — acudiu nervosamente Hal Garfinkel.— E esse sujeito que está aí no lado de fora da por­ta? Esse godeme? Que é que êle vai dizer do foguetório e do resto?

O riso gutural de Scaramanga foi tal qual a risada de um geco.

— Não precisa dar voltas à sua cabecinha por causa do godeme, Hal. Depois de terminar o weekend vai se dar um jeito nele. Apanhei esse cara num bordel de um lugarejo aí perto. Um lugar onde vou buscar a erva e pegar uma fêmea de vez em quando. Só tenho um pessoal temporário aqui, para fazer com que vocês gozem bem o seu weekend. Êle é o mais temporário de todos. Aqueles jacarés têm um apetite mons­tro. Ruby será o prato de substância, mas precisarão também de uma sobremesa. Deixem o cara comigo. Quem sabe até se não é o tal James Bond, de quem o Sr. Hendriks nos falou? Muito estou me preocupando com isso! Não gosto de gode-mes. Como um bom ianque disse certa ocasião: "Meu coração canta cada vez que morre um britânico". Lembram-se des­se sujeito? Lá pelos tempos da guerra dos israelenses contra eles. Compreendo muito bem esse ponto-de-vista. Sacanas convencidos. Cheios de vento. Quando chegar a hora, eu me encarrego de tirar o vento deste. Deixem por minha conta. Ou melhor, deixem por conta disto aqui.

Bond espremeu um sorriso. Era como se estivesse ven­do o outro sacar o revólver de ouro, fazê-lo girar no dedo e en­fiá-lo novamente na cintura. Levantou-se, afastou a cadeira da porta, encheu de champanha a prestimosa taça, encostou-se ao bufete e pôs-se a estudar o mais recente prospecto da Câmara Jamaicana de Turismo.

Ouviu-se o estalido da chave mestra de Scaramanga na fechadura. A figura de Scaramanga apareceu no retângulo da porta, com os olhos fitos em Bond.

— Muito bem, companheiro — disse êle, correndo o dedo sobre o bigode. — Acho que você já abusou que chegue do champanha da casa. Vá procurar o gerente e diga a êle que o Sr. Ruby Rotkopf se retira esta noite. Eu me encarrego dos detalhes. E diga também que um fusível geral queimou durante a reunião e que eu vou selar esta sala para desco­brir o motivo de todos esses defeitos na instalação. Tá bem? Depois os drinques, o jantar, e que venham as dançarinas. Apanhou a foto?

James Bond respondeu que havia apanhado. Cam­baleando um pouco, dirigiu-se para a porta do vestíbulo e abriu-a. "S. E. O. — salvo erro ou omissão", como dizem os prospectos financeiros, pensava, agora, ter realmente "apa­nhado a foto". E era uma foto excepcionalmente clara, em preto e branco, sem flous.

 

"Belly-Lick", etc.

No escritório dos fundos da portaria, James Bond re­capitulou rapidamente os aspectos mais significativos da reunião. Nick Nicholson e Felix Leiter admitiram que tinham suficientes elementos no gravador de fita, corroborados pelo testemunho de Bond, para enviar Scaramanga à cadeira elé­trica. Nessa noite um deles faria um trabalhinho de espio­nagem enquanto se estivesse dando sumiço ao cadáver de Rotkopf e tentaria colher provas suficientes para condenar Garfinkel e sobretudo Hendriks como cúmplices. Mas a pers­pectiva para James Bond não lhes parecia nada risonha.

— Olhe, você não dê um passo sem aquele seu velho desempatador-—ordenou êle. — Não queremos ler de novo no Times o mesmo necrológio seu. Todas aquelas besteiras sobre o maravilhoso sujeito que você era quase me fizeram vomitar quando eu as li reproduzidas nos jornais americanos. Por pouco não escrevi uma carta à Tribune para restabelecer a verdade.

Bond caiu na risada.

— Que belo amigo você é, Felix! Quando me lembro dos esforços que fiz durante tantos anos para lhe dar um bom exemplo.

Foi para o seu quarto, engoliu duas talagadas de Bour­bon, tomou um banho frio de chuveiro, estendeu-se na cama e ficou olhando para o teto até as 8,30, hora de jantar. O am­biente estava menos carregado do que ao almôço. Todos pa­reciam satisfeitos com o rumo tomado pelas negociações do dia e todos, com exceção de Scaramanga e o do Sr. Hendriks, pareciam ter bebido bastante. Bond viu-se excluído da alegre palestra. Os olhares evitavam os seus e as respostas às suas tentativas de entabular conversa eram monossilábicas. Chei­rava a defunto. O chefe havia lavrado sua sentença de morte. Não era, evidentemente, um homem com quem devessem en­volver-se. Enquanto a refeição progredia vagarosamente — o convencional jantar de luxo de um navio em cruzeiro, salmão seco e defumado com uma pitada de caviar preto, de grão miúdo, filés de algum desconhecido peixe indígena, talvez silk fish, com molho de nata, poulet suprême, uma carne de gre­lha muito mal-assada, com molho grosso, e bombe surprise, era tão destituído de imaginação como costumam ser essas coisas — o salão de refeições estava sendo convertido numa selva tropical com o auxílio de plantas em vasos, montes de laranjas e cocos e um cacho de bananas aqui e além, como pano de fundo para a banda de calipso que, envergando ca­misas côr de vinho como folhos côr de ouro, reuniu-se à hora apropriada e começou a tocar Linstead Market alto demais. Terminada a música, uma rapariga passável mas excessiva­mente vestida apareceu e pôs-se a cantar Belly-Lick numa versão depurada. Como toucado usava um abacaxi artifi­cial. Bond viu pela frente uma noitada de navio de cruzeiro e achou que era velho ou moço demais para a pior de todas as torturas, o tédio. Levantou-se e foi até a cabeceira da mesa.

— Estou com dor de cabeça — disse ao Sr. Scaraman-ga. — Vou para a cama.

Scaramanga encarou-o por baixo das pestanas de la­garto.

— Não. Se você acha que a noitada não está corren­do como deve, faça com que melhore. É para isso que eu o pago. Você parece conhecer a Jamaica. Muito bem. Acorde essa gente.

Há quantos anos James Bond não aceitava um desafio! Percebeu que os olhares do Grupo se haviam fixado nele. A bebida o tornara afoito — talvez com o desejo de exibir-se, como o homem que, numa reunião festiva, se obstina em to­car bateria. Estúpidamente, quis afirmar sua personalidade contra esse punhado de facínoras que o consideravam in­significante. Não se deteve para pensar que a tática não era nada aconselhável, que lhe convinha muito mais continuar no papel de godeme inepto.

— Muito bem, Sr. Scaramanga — respondeu. — Dê-me uma nota de cem dólares e o seu revólver.

Scaramanga não se mexeu. Levantou os olhos para Bond com um ar de surpresa e de hesitação controlada. Louie Paradise gritou numa voz pastosa:

— Ande, Pistola! Vamos ver um pouco de ação. Talvez o camarada tenha alguma coisa interessante para mostrar.

Scaramanga sacou a carteira do bolso traseiro das cal­ças e separou uma cédula com o polegar. Depois levou a mão lentamente à cintura e sacou o revólver. O ouro rebrilhou à luz refletida do projetor que fixava a cantora. Depositou os dois objetos lado a lado sobre a mesa. James Bond, de costas para os executantes, apanhou o revólver e sopesou-o na mão. Puxou o gatilho e, com um pequeno tapa, fêz rodopiar o tam­bor para verificar se estava carregado. Subitamente, girou nos calcanhares, dobrou um joelho para que sua pontaria passasse bem acima dos músicos mal-e-mal visíveis na pe­numbra do fundo e, estendendo o braço, atirou. A explosão, naquele espaço fechado, foi ensurdecedora. A música mor­reu. Houve um silêncio cheio de tensão. Os destroços do aba­caxi artificial bateram com um ruído mole em alguma coisa na escuridão do fundo. A cantora, sob a luz do refletor, levou as mãos ao rosto e desabou lentamente na pista de dança, como alguma graciosa figura do Lago dos Cisnes. O maítre d'hôtel surgiu correndo das sombras.

Enquanto o Grupo se punha a pairar, James Bond apanhou a cédula de cem dólares e caminhou para o círculo de luz. Inclinou-se e ergueu a rapariga pelo braço. Introdu­ziu-lhe a cédula no decote.

— Isso foi um belo número que nós dois fizemos, meu bem — disse êle. — Não se assuste. Você não corria nenhum perigo. Eu apontei na parte de cima do abacaxi. Agora vá cor­rendo se preparar para o próximo turno.

Fê-la girar sobre si mesma e sentou-lhe uma boa pal­mada no traseiro. Ela atirou-lhe um olhar horrorizado e dis­parou para as trevas.

Bond encaminhou-se então, tranqüilamente, para o lugar onde se encontrava a banda.

— Quem é o chefe aqui? Quem está dirigindo o show? O guitarrista, um negro alto e escanifrado, pôs-se vagarosa­mente em pé. Com os brancos dos olhos a reluzir, fitava o revólver de ouro na mão de Bond.

— Eu, siô — respondeu em voz hesitante, como quem assinasse a sua própria sentença de morte.

— Como é o seu nome?

— King Tiger, siô.

— Pois muito bem, King. Agora me escute. Isto aqui não é um jantar do Exército de Salvação. O Sr. Scaramanga e os seus amigos querem mais vida. E que seja bem apimenta­do. Vou lhes mandar bastante rum para vocês engraxarem as juntas. Fumem erva, se quiserem. Esta é uma reunião priva­da. Não vamos denunciar vocês. E faça voltar aquela garota, mas só com metade da roupa, hem? Diga a ela para chegar mais perto e cantar Belly-Lick, bem claro e com todas as pa­lavras cabeludas. E no fim do show, ela e as outras terão de acabar peladas. Entendido? Agora tratem de se mexer, senão a noitada dá em água de barrela e não haverá gorjeta para vocês. Tá bem? Então vamos ver.

Houve risos nervosos e exortações cochichadas a King Tiger por parte dos seis figurantes do combo. King Tiger arre­ganhou os dentes de uma orelha a outra.

— Está certo, siô Capitão. — E, virando-se para seus homens. — Agora dêem a eles Iron Bar, mas com bastante pimenta, enquanto eu vou falar com Daisy e as suas compa­nheiras para ver se toco fogo nelas.

E saiu a passos largos pela porta de serviço, enquanto a banda estrugia, atacando o prelúdio da música pedida.

Bond voltou para a mesa e largou o revólver diante de Scaramanga, que lhe deitou um longo olhar de curiosidade e tornou a enfiar a arma na cintura.

— Precisamos ter um desafio de tiro qualquer dia des­tes, Mister — disse êle numa voz incolor. — Que tal ? A vinte passos e sem ferimentos?

— Obrigado — respondeu Bond, — mas Mamãe não aprovaria isso. Quer fazer o favor de mandar umas garrafas de rum para a orquestra? Essa gente não pode tocar com a goela seca.

E retornou à sua cadeira. Mal lhe prestaram atenção. Os cinco homens — ou melhor, quatro, pois Hendriks se con­servou impassível durante toda a noitada — aguçavam os ou­vidos para apanhar as palavras lúbricas da versão livre de Iron Bar, que o solista emitia com perfeita clareza. Quatro raparigas, animaizinhos gorduchos e seiúdos sem nenhuma roupa além das tangas adornadas de cetins, surgiram a cor­rer na pista de dança e, avançando para o público, executa­ram uma entusiástica dança do ventre que fêz brotar suor nas têmporas de Loie Paradise e Hal Garfinkel. O número ter­minou entre aplausos, as raparigas desapareceram correndo e as luzes se apagaram, deixando apenas o ponto circular no centro da pista. O baterista deu início a um batuque veloz no seu tambor de calipso, como as pulsações aceleradas de um coração. A porta de serviço abriu-se, tornando a fechar-se, e um estranho objeto foi trazido sobre rodas para o círculo de luz. Era uma enorme mão, talvez com seis pés de altura no ápice, acolchoada e forrada de couro preto. Mantinha-se em pé, entreaberta na sua larga base, com o polegar e os dedos estendidos, como que prontos para agarrar alguma coisa. O baterista acelerou ainda mais as pulsações do tam­bor. Ouviu-se novamente o suspiro da porta de serviço. Uma figura reluzente introduziu-se pela abertura e, após deter-se um instante na escuridão, veio para o poço de luz e começou a andar em volta da mão, compassadamente, sacudindo o ventre e as ancas. A mulher tinha sangue chinês nas veias e seu corpo, inteiramente nu e brilhante de óleo, parecia quase branco contra o fundo negro da mão. Ao mesmo tempo que se sacudia em redor desta, acariciava-lhe os dedos estendi­dos com as mãos e os braços; depois, com bem simulados movimentos de desmaio, subiu para a palma da mão e pas­sou a executar lânguidos mas explícitos e engenhosos atos de paixão com cada um dos dedos por seu turno. A cena, a mão preta que agora reluzia com o óleo que se lhe pegara da mulher e que parecia procurar agarrar o corpo branco a es-torcer-se, era de uma libidinosidade incrível. Bond, excitado como os outros, notou que o próprio Scaramanga olhava com uma atenção absorta, os olhos feitos duas estreitas fendas. O baterista chegara ao clímax do seu crescendo. A rapariga, representando com perfeição o êxtase dos sentidos, montou no polegar, expirou lentamente sobre êle e depois, com um derradeiro saracoteio das nádegas, deixou-se escorregar para o chão e desapareceu pela porta de serviço. O número termi­nara. As luzes acenderam-se e todos, inclusive a orquestra, aplaudiram ruidosamente. Os homens acordaram cada um do seu êxtase animal próprio. Scaramanga bateu as mãos chamando o chefe da orquestra, tirou uma cédula da carteira e disse-lhe alguma coisa em voz baixa. O maioral, segundo suspeitou Bond, havia escolhido sua noiva para aquela noite!

Depois dessa inspirada pantomima sexual, o resto do show quase redundou numa decepção. Uma das raparigas, espremendo-se e contorcendo-se toda, logrou afinal passar por baixo de uma vara de bambu equilibrada à altura de de­zoito polegadas do chão, sobre os topos de duas garrafas de cerveja — mas isso só depois que o chefe da orquestra a des­piu da tanga, cortando-a com um alfanje. A primeira — aquela que, com o seu abacaxi, fora parceira involuntária de James Bond no número de Guilherme Tell — surgiu novamente em cena e combinou um passável strip-tease com uma interpre­tação de Belly-Lick que fêz o público aguçar mais uma vez os ouvidos; e finalmente todo o elenco de seis mulheres, menos a beldade chinesa, dirigiu-se aos espectadores e convidou-os para dançar. Scaramanga e Hendriks recusaram com a devi­da delicadeza e Bond ofereceu champanha às duas raparigas que sobraram e que lhe disseram chamar-se Pearl e Mabel, enquanto êle observava as quatro outras, com os corpos qua­se dobrados pelos amplexos ursinos dos quatro gangsters a dançar canhestramente o cha-cha-chá em roda da sala, tan­gidos pela música já amotinada da orquestra meio bêbeda.

Aproximava-se o clímax do que certamente se poderia classi­ficar como uma orgia. Bond disse às suas duas companhei­ras que precisava ir ao banheiro e esgueirou-se da sala num momento em que Scaramanga olhava para outro lado; mas ao sair, notou a mirada de Hendriks que o acompanhava, fria como a de quem assiste um filme indiferente.

Quando entrou no seu quarto era meia-noite. Haviam fechado as janelas e ligado o condicionador de ar. Desligou-o, abriu as janelas a meio e, com profundo sentimento de alívio, tomou um banho de chuveiro e meteu-se na cama. Durante algum tempo esteve pensando, cheio de aborrecimento, na exibição que fizera com o revólver; mas, como era um ato de loucura que não podia desfazer, em pouco tempo adormeceu e começou a sonhar com três homens de capa preta arras­tando um fardo informe pelas sombras rendilhadas de luar, rumo a uma água escura onde faiscavam muitos pares de olhos vermelhos. O ranger dos dentes brancos e o estalejar dos ossos resolveram-se num persistente ruído de pés e mãos a trepar, que o fêz despertar subitamente. Olhou o mostra­dor luminoso do seu relógio. Eram três e meia. Os ruídos de escalada converteram-se numa série de suaves pancadas por trás das cortinas. James Bond escorregou silenciosamente para fora da cama, tirou a pistola debaixo do travesseiro e, cosendo-se com a parede, avançou furtivo até a beira da cor­tina, que afastou com um movimento rápido. A cabeça loura parecia quase de prata ao luar. Mary Goodnight sussurrou urgentemente:

— Depressa, James! Me ajude a entrar!

Bond praguejou baixinho de si para si. Que diabo de história seria essa? Largou a pistola no tapete, segurou-lhe as mãos estendidas e em parte a arrastou, em parte a puxou por cima do peitoril. No último momento, o salto do sapato de Mary prendeu-se no caixilho e a janela fechou-se com um estampido de arma de fogo. Bond praguejou de novo, a meia-voz e fluentemente. Mary Goodnight penitenciou-se.

— Que horror! Desculpe, James — cochichou ela. Bond fêz-lhe um sinal pedindo silêncio. Apanhou a pis­tola, tornou a pô-la debaixo do travesseiro e conduziu Mary para o quarto de banho. Acendeu a luz e, à guisa de precau­ção, abriu o chuveiro; ao mesmo tempo que lhe ouvia a excla­mação horrorizada, lembrou-se de que estava nu.

— Desculpe, Goodnight. — Apanhou uma toalha, pô-la em volta da cintura e sentou-se na beira da banheira. Com um gesto, convidou-a a sentar-se na tampa da patente e, ten­do recuperado já todo o seu sangue-frio, perguntou:

— Que diabo você veio fazer aqui, Mary ? Mary respondeu num tom de voz desesperado:

— Tive de vir. Precisava encontrar você de qualquer jei­to. Descobri onde você estava por meio da rapariga naquele, hã... horrível lugar. Deixei o carro entre as árvores, na pista de veículos, e procurei seu quarto pelo faro. Como algumas janelas estavam iluminadas, fui escutar e, hã... — Mary fêz-se vermelha como uma peônia, — percebi que você não podia estar em nenhum deles; então vi esta janela aberta e tive a intuição de que você devia ser o único a dormir de janela aberta. E assim, não tive outro recurso senão arriscar.

— Bem, agora vamos tratar de tirar você daqui o mais depressa possível. Enfim, que foi que houve?

— Esta tarde —quer dizer, ontem à tarde, chegou um Urgentíssimo com três XXX. Para lhe ser transmitido a todo custo. O Q. G. pensa que você está em Havana. O cabograma diz que um dos homens mais autorizados do K. G. B., um homem que dá a si mesmo o nome de Hendriks, se encontra na região e sabe-se que está de visita a este hotel. Você deve evitá-lo. Sabe-se, de "fonte delicada mas segura" — Bond sor­riu ante o velho eufemismo com que se designava a violação de mensagens cifradas — que uma das missões do tal Hen­driks é encontrar você e, hã... matá-lo. Portanto, ligando coi­sa com coisa, sabendo que você estava nesta região da ilha e lembrando-me das perguntas que me fêz, conjeturei que você já devia ter descoberto a pista do homem, mas que po­dia, digamos... cair numa emboscada. Isto é, ignorando que enquanto você andava atrás dele, êle andava atrás de você.

Estendeu para êle a mão incerta, como para assegurar-se de que tinha agido bem. Bond pegou essa mão e afagou-a distraidamente enquanto ponderava em seus pensamentos essa nova complicação.

— O homem está aqui, sim — disse êle. — E também está aqui um pistoleiro chamado Scaramanga. Convém que você saiba, Mary, que Scaramanga matou Ross. Em Trinidad. — Mary levou a mão à boca. — Pode comunicar isso como fato confirmado, de minha parte. Isto é, se eu conseguir tirar você daqui. Quanto a Hendriks, está no hotel, com efeito, mas não parece ter certeza da minha identidade. O Q. G. não diz se êle recebeu uma descrição de minha pessoa?

— Você foi descrito simplesmente como "o notório agente secreto James Bond". Mas isso não parece ter satisfei­to Hendriks, porque pediu pormenores. Isso foi há dois dias atrás. A qualquer momento êle pode receber esses pormeno­res aqui, por cabograma ou telefone. Percebe por que tive de vir, James?

— Sim, claro. E muito obrigado, Mary. Agora tenho de fazer com que você saia por aquela janela, e depois você mesma se encarregará de escapar. Não se preocupe comigo. Creio que posso fazer frente à situação. Além disso, tenho amigos. — E falou-lhe de Felix Leiter e Nicholson. — Diga ao Q. G. que transmitiu a mensagem, que eu estou aqui e que entrei em contato com os dois homens da C. I. A. O Q. G. pode informar-se em Washington sobre o ponto-de-vista da C. I. A.

Está bem?

Bond levantou-se. Mary pôs-se em pé também e er­gueu os olhos para êle.

— Mas vai ter cuidado consigo ?

— Claro, claro. — Deu-lhe uma palmadinha no ombro, fechou o chuveiro e abriu a porta do quarto de banho. — Ago­ra venha. Devemos rezar para que a sorte nos proteja.

Ouviram então uma voz macia falar no escuro, junto ao pé da cama:

— Pois o Santo Homem lá de cima parece que não está lhe favorecendo hoje, Mister. Passem para cá os dois. Com as mãos juntas atrás da nuca.

 

Torneiras desarranjadas e outros contratempos

Scaramanga foi até a porta e acendeu as luzes. Estava nu, com exceção do short e do coldre sob o braço esquerdo. Mantinha o revólver de ouro apontado para Bond enquanto se movia.

Bond contemplava-o com um ar de incredulidade. Vol­tou então os olhos para o tapete, junto à porta. As cunhas continuavam nos seus lugares. Ninguém lhes havia tocado. Era impossível que Scaramanga tivesse entrado pela janela sem ajuda do lado interno. Notou então, o roupeiro aberto, por onde se filtrava uma luz vinda do aposento contíguo. Era esse o tipo mais simples de porta secreta abrangendo todo o fundo do roupeiro, indetectável deste lado e, do outro, com a aparência provável de uma porta de comunicação chaveada.

Scaramanga voltou ao centro do quarto e deteve-se a olhar os dois. Tinha um sorriso de escárnio na boca e nos olhos.

— Não vi essa fêmea com as outras. Onde é que você a estava guardando, bichão? E por que foi preciso escondê-la no quarto de banho? Você gosta de brincar debaixo do chu­veiro?

— Nós estamos noivos — respondeu Bond. — Ela tra­balha no Palácio do Governo, em Kingston. Seção de Códigos Secretos. Descobriu o meu paradeiro informando-se naquela casa onde eu e o senhor nos encontramos. Veio para me avi­sar de que minha minha mãe está no hospital, em Londres. Teve uma queda feia. O nome da moça é Mary Goodnight. Que mal há nisso tudo, e que história é essa de invadir o meu quarto altas horas da noite, de revólver em punho? E faça o favor de guardar para si as suas pornografias. — Bond aplaudiu-se por esta fanfarronada e resolveu dar o passo se­guinte para obter a libertação de Mary. Deixou cair os braços e virou-se para esta. — Baixe as mãos, Mary. O Sr. Scara-manga deve ter pensado que havia ladrões aqui quando ouviu bater essa janela. Vou enfiar alguma roupa e conduzir você até o seu carro. Daqui a Kingston é uma boa estirada. Não acha mesmo preferível passar a noite no hotel? Tenho certeza de que o Sr. Scaramanga nos conseguirá mais um quarto. — E, virando-se de novo para o outro: — Não há problema, Sr. Scaramanga, o pernoite dela fica por minha conta.

Mary Goodnight entrou no conluio. Depois de baixar as mãos, apanhou sua bolsinha de cima da cama, para onde a tinha atirado, abriu-a e começou a ajeitar o cabelo com gestos vivos, bem femininos. Pôs-se a tagarelar, afinando maravilho­samente com o tom de branda admoestação, muito britânico, de Bond:

— Não, francamente, meu querido, acho melhor ir duma vez. Seria um nunca-acabar de incomodações se eu chegasse tarde à repartição, e o Primeiro Ministro, Sr. Ale­xander Bustamante... como você sabe, êle fêz oitenta anos há poucos dias... Pois bem, Sir Alexander vem almoçar no Palácio, e, como você sabe, Sua Excelência sempre me pede para arrumar as flores e marcar os lugares com cartões. Em resumo — continuou, virando-se com um sorriso encantador para Scaramanga, — tenho um dia muito ocupado diante de mim. Vão ser treze pessoas à mesa e Sua Excelência me pe­diu para ser a décima-quarta. Não é maravilhoso ? Mas só Deus sabe com que aparência vou ficar depois desta noite. As estradas são francamente horríveis em certos trechos, não é mesmo, Sr. ... hã... Scramble? Mas é assim. Peço muitas des­culpas por ter causado esses transtornos todos e roubado o seu sono. — Caminhou para êle com a mão estendida, como a Rainha-mãe inaugurando uma quermesse. — Agora volte de­pressa para a sua cama, e o meu noivo — (Graças a Deus por ela não ter dito James! A rapariga estava verdadeiramente inspirada!) — meu noivo me ajudará a sair daqui sem perigo. Adeus Sr. Hã...

James Bond sentiu-se orgulhoso dela. Era quase que puro estilo Joyce Grenfell. Mas Scaramanga não se deixava embair por tais lábias britânicas ou fossem lá de que origem fossem. Mary colocara-se em frente de Bond, por pouco não lhe cobrindo o corpo com o seu. Scaramanga deu vivamente um passo para o lado.

— Pare, moça! E você Mister, fique onde está. — Mary Goodnight deixou cair a mão que havia oferecido. Olhou com estranheza para Scaramanga, como se êle houvesse enjeitado os sanduíches de pepino. Francamente, esses americanos! O Revólver de Ouro não queria saber de amenidades sociais. Continuava firme e impassível, cobrindo os dois.

— Muito bem, eu compro esta — disse êle a Bond. — Ajude a garota a sair pela janela. Depois preciso falar consigo. — E, acenando com o revólver para Mary: — O. K., bambina, vá andando. E não torne a invadir os terrenos alheios, enten­deu? E pode dizer a essa Excelência de borra onde é que êle deve enfiar os seus cartões de marcar lugar à mesa. Êle não manda aqui no Thunderbird. Eu, sim. Apanhou a foto? Muito bem. Cuidado para não rebentar o espartilho quando saltar a janela.

Mary Goodnight respondeu num tom gélido:

— Muito bem, Sr. Hã... Transmitirei sua mensagem. Tenho certeza de que o High Commissioner vai tomar nota de sua presença na ilha com mais cuidado do que fêz até agora. E o Governo da Jamaica também.

Bond estendeu a mão e pegou-lhe o braço. Estava pe­rigando sair fora do papel.

— Venha, Mary. E faça o favor de dizer a Mamãe que dentro de um ou dois dias terei terminado o meu serviço aqui e então falarei com ela pelo telefone, de Kingston.

Conduziu-a à janela e ajudou-a a saltar — ou antes, empurrou-a para fora. Mary abanou a mão brevemente para êle e partiu célere pelo relvado. Bond despregou-se da janela com um considerável sentimento de alívio. Não esperava que a horrível entalada se resolvesse com tanta facilidade.

Foi sentar-se na cama — ou melhor, no travesseiro — e o duro contato da pistola contra as suas coxas tranqüilizou-o. Olhou para Scaramanga. O homem havia recolocado o revól­ver no coldre que trazia a tiracolo e encostara-se ao roupeiro, correndo o dedo pensativamente sobre o fino bigode.

— Palácio do Governo — disse Scaramanga. — É lá que trabalha também o representante desse famoso Serviço Se­creto de vocês. Por acaso, Sr. Hazard, o seu nome verdadeiro não seria James Bond? Fêz uma ótima demonstração esta noite com o revólver. Se não me engano, li nalguma parte que esse tal Bond é metido a bom atirador. Também tenho infor­mações de que êle anda aqui pelo Caribe, à minha procura. Departamento de coincidências estranhas, hem?

Bond riu despreocupadamente.

— Pois eu pensava que o Serviço Secreto tinha fechado as portas no fim da guerra. Seja como fôr, lamento não poder mudar minha identidade para satisfazê-lo. Basta telefonar de manhã para Frome e chamar o Sr. Tony Hugill, que é o chefão lá, para averiguar a exatidão do que eu digo. E o senhor não me explicará como esse tal Bond conseguiu seguir o seu ras­tro até um bordel de Sav' La Mar? Afinal, que é que êle quer com o senhor?

Scaramanga contemplou-o em silêncio durante algum

tempo.

— Talvez queira receber uma lição de tiro — respon­deu finalmente. — Terei o maior prazer em servi-lo. Mas não deixa de ter seu bocado de razão no que toca ao Número 3 1/2. Foi isso que eu imaginei quando contratei você. Mas é coincidência demais. Talvez eu devesse ter refletido melhor no caso. Disse desde o começo que sentia cheiro de tira. Essa garota pode ser ou pode não ser sua noiva, mas essa história de chuveiro... É um velho truque usado pelos gangsters. E provavelmente pela Polícia Secreta também. Isto é, a não ser que você estivesse trepando nela — concluiu, arqueando uma das sobrancelhas.

— Pois estava. Há algo de mal nisso ? Que é que o se­nhor estava fazendo com a chinesa? Jogando mah-jongg? — Bond pôs-se em pé e dosou, na expressão de seu rosto, a im­paciência e a indignação em partes iguais. — Escute aqui, Sr. Scaramanga. Já estou ficando farto disso. Deixe de me pisar nos calos. Anda por aí exibindo esse revólver besta, bancando Deus Todo-Poderoso, insinuando uma porção de bobageíras sobre o Serviço Secreto, e espera que eu me ajoelhe e lamba as suas botas. Pois, meu amigo, fique sabendo que veio ao endereço errado. Se não está satisfeito com o meu trabalho, passe para cá os mil dólares e eu me mando na muda. Quem é que o senhor pensa que é, afinal?

Scaramanga esgaçou os lábios naquele seu sorriso fini­nho e cruel.

— Talvez venha a descobrir isso mais cedo do que pen­sa, patrício. — E, dando de ombros: — O. K., O. K. Mas não se esqueça duma coisa, Mister. Se eu descobrir que você não é quem diz ser, vou reduzir você a picadinho, me entendeu? E começando pelos pedaços menores para depois passar aos maiores, a fim de que demore o mais tempo possível. Está bem assim? Agora vá ver se tira uma pestana. Às dez horas tenho um encontro com o Sr. Hendriks na sala de conferência e não quero ser perturbado. Depois disso, a turma toda vai fazer uma excursão, na estrada de ferro de que lhe falei. Sua tarefa será fazer com que tudo seja bem organizado. Antes de mais nada, fale com o gerente. Entendeu ? Pois muito bem. Até logo.

Scaramanga entrou pelo armário, afastando com o braço o traje de Bond, e desapareceu. Ouviu-se um peremp­tório clic no quarto ao lado. Bond pôs-se em pé. Fêz pfu! o mais alto que pôde e entrou no quarto de banho para lavar aquelas duas últimas horas no chuveiro.

Acordou às seis e meia, por uma combinação com esse curioso relógio-despertador extra-sensorial que certas pesso­as carregam na cabeça e que parece saber sempre a hora exata. Pôs o calção de banho, saiu para a praia e, mais uma vez, nadou até muito além da arrebentação. Às 7,15, vendo Scaramanga surgir da Ala Oriental acompanhado pelo boy que lhe carregava a toalha, voltou à praia. Escutou por algum tempo os sonoros baques no trampolim e depois, conservan-do-se longe das vistas, entrou no hotel pela porta principal e seguiu rápido pelo corredor onde ficava o seu quarto. Após escutar à janela para certificar-se de que o homem continua­va entregue aos seus exercícios, apanhou a chave mestra que Nick Nicholson lhe dera, atravessou de mansinho o corredor e num abrir e fechar de olhos penetrou no interior do Número 20. Deixou a porta encostada com o trinco. Sim, lá estava o que procurava, sobre a mesa-toucador. Atravessou o quarto, pegou o revólver e extraiu do cilindro o cartucho que seria o primeiro a ser disparado. Largou o revólver exatamente como o encontrara, voltou à porta, pôs o ouvido à escuta, abriu-a e atravessou novamente o corredor, retornando ao seu quarto. Foi de novo à janela e escutou. Sim, Scaramanga prosseguia na sua ginástica. Bond recorrera a um truque de amador, mas que lhe podia valer essa fração de segundo que, tinha íntima certeza disso, iria significar a vida ou a morte para êle nas próximas vinte e quatro horas. Sentia, mentalmen­te, um leve cheiro de fumaça a indicar que sua cobertura começava a queimar pelas beiradas. De um momento para outro, Mark Hazard do World Consortuim podia rebentar em chamas como alguma tôsca efígie de Guy Fawkes na noite de 5 de novembro. James Bond ficaria então bem à vista, sem outra defesa ante uma possível força de seis outros pis­toleiros, além da Walther PPK e de sua destreza no gatilho. Por isso, qualquer vantagem mínima com que pudesse con­tar seria valiosa. Sem se deixar descoroçoar pela perspectiva, antes estimulado por ela, encomendou um copioso breakfast, consumiu-o com admirável apetite e, após retirar o pino de junção da torneira esférica da pia no seu quarto de banho, dirigiu-se para o gabinete do gerente.

Era Felix Leiter quem estava de serviço. Recebeu o hós­pede com um pequeno sorriso gerencial e disse:

— Bom dia, Sr. Hazard. Em que posso servi-lo ?

Os olhos de Leiter fixavam algum objeto por cima do ombro direito de Bond. O Sr. Hendriks materializou-se junto à escrivaninha antes que este tivesse tempo de responder.

— Bom dia — disse Bond..

O Sr. Hendriks respondeu com a pequena mesura ger­mânica de costume.

— O telefonista está dizendo que há um chamado de longa distância do meu gabinete em Havana. Qual é o lugar mais privado para recebê-lo, por favor?

— Não pode ser em seu quarto de dormir, senhor?

— Não é suficientemente privado.

Bond adivinhou que êle também havia descoberto o microfone. Leiter fêz-se muito prestativo.

— Por aqui, senhor — disse, saindo de trás da escriva­ninha. — O telefone do saguão. A cabina é à prova de som.

O Sr. Hendriks olhou-o com uma cara de pedra.

— E a máquina? Também é à prova de som? Leiter assumiu um ar de polida perplexidade.

— Perdão. Não o entendo, senhor. O aparelho está liga­do diretamente com o telefonista.

— Não faz mal. Mostre-me o caminho, por favor.

O Sr. Hendriks seguiu Leiter até o canto do fundo do saguão e foi introduzido na cabina. Cerrou cuidadosamen­te a porta acolchoada e forrada de couro, apanhou o fone e falou. Ficou então à espera, acompanhando com os olhos a Leiter, que tornou a atravessar o piso de mármore e dirigiu-se a Bond.

— O cavalheiro estava dizendo?

— É a minha pia. Há um desarranjo qualquer na tor­neira esférica. Posso usar alguma outra?

— Peço-lhe mil desculpas, senhor. Vou mandar o téc­nico do hotel examiná-la imediatamente. Sim, por certo. Há o sanitário do saguão. Os remates ainda não foram termi­nados e a peça não está oficialmente em uso, mas funciona perfeitamente. — E, baixando a voz: — E tem uma porta de comunicação com o meu escritório. Espere uns dez minutos enquanto eu faço correr a fita para ouvir o que esse cão está dizendo. Estão fazendo a ligação. Isso não me cheira nada bem. Talvez seja problema seu. — Fêz uma pequena mesura, indicando a Bond a mesa central coberta de revistas. — Faça o favor de sentar-se durante alguns instantes, senhor, que não tardarei a atendê-lo.

Bond exprimiu seu agradecimento com uma inclinação de cabeça e afastou-se. Dentro da cabina, Hendriks falava. Tinha os olhos fixos em Bond, com uma terrível intensidade. Bond sentiu arrepiar-se-lhe a pele do baixo-ventre. Era o que pensava, não havia a menor dúvida! Sentou-se e apanhou um velho número do Wall Street Journal. Sub-repticiamente, arrancou um pequeno fragmento do centro da primeira pá­gina. Dava a impressão de um leve rasgão no cruzamento das dobras. Ergueu o jornal na página dois e pôs-se a vigiar Hendriks através do pequeno orifício.

Hendriks falava e escutava, sem tirar os olhos das cos­tas do jornal. De repente, largou o fone e saiu da cabina. Seu rosto reluzia de suor. Tirou do bolso um lenço branco limpo, passou-o sobre o rosto e o pescoço e afastou-se rapidamente pelo corredor.

Nick Nicholson, mais correto do que nunca, atravessou o saguão e, com um sorriso cortês e uma mesura para Bond, sentou-se à sua escrivaninha. Eram oito horas e meia. Cinco minutos mais tarde, Felix Leiter surgiu do escritório interno. Falou alguma coisa a Nicholson e veio na direção de Bond. Tinha o rosto pálido e os lábios crispados.

— E agora faça o favor de me acompanhar, cavalheiro — disse êle. Conduziu o outro através do saguão, abriu com a chave a porta do sanitário dos homens, entrou após Bond e tornou a chavear a porta às suas costas. Detiveram-se junto às pias, em meio aos trabalhos de carpintaria. Leiter falou então em voz tensa: — Acho que você está descoberto, James. Eles estavam falando em russo, mas a todo instante repetiam o seu nome e o seu número. Acho melhor você sumir daqui tão depressa quanto possível nesse seu velho calhambeque.

Bond sorriu fininho.

— Homem prevenido vale por dois, Felix. Eu já sabia. Hendriks recebeu ordem de me mandar para o outro mun­do. Nosso velho amigo do quartel-general do K. G. B., Se-michastny, me tem atravessado na garganta. Qualquer dia destes lhe explico por quê. — Relatou a Leiter o episódio com Mary Goodnight pela madrugada. Leiter escutava-o com um ar sombrio. — Portanto, retirar-me agora não faria sentido. Nessa conferência das dez horas, vamos ouvir tudo que há para saber e também, provavelmente, os planos deles quanto à minha pessoa. Depois, teremos a tal excursão. Pessoalmen­te, acredito que a fuzilaria terá lugar no campo, onde não haja testemunhas. Pois bem, se você e Nick inventarem alguma coisa que venha atrapalhar a excursão, eu me responsabilizo pela cena final.

Leiter ficou pensativo. Seu rosto desanuviou-se em

parte.

— Conheço o programa para esta tarde — disse êle. — Partida nesse trem liliputiano por entre os canaviais, piqueni­que, e depois a lancha em Green Island Harbour, pescaria de mar alto e o mais que segue. Já fiz o reconhecimento de todo o itinerário. — Leiter bateu pensativamente com a unha do polegar da mão esquerda na extremidade de seu gancho de aço, fazendo-o vibrar como um diapasão. — Sim, sim, sim... Isto vai requerer ação rárpida, muita sorte, e terei de ir o quanto antes a Frome para arranjar algum material com seu amigo Hugill. Será que êle entrega os petrechos a pedido seu? Ora muito bem. Venha até o meu escritório e escreva um bilhete para êle. Daqui até lá é só meia hora de automóvel, e Nick pode atender na portaria durante esse tempo. Vamos lá.

Abriu uma porta lateral e entrou por ela no seu escri­tório, fazendo sinal a Bond para tornar a fechá-la depois de passar. Sob o ditado de Leiter, Bond escreveu o bilhete ao gerente da companhia açucareira WISCO. Feito isso, retirou-se para o seu quarto. Tomou uma dose reforçada de Bourbon puro, sentou-se na beira da cama e ficou olhando, sem nada ver, para o horizonte do mar além da janela e dos relvados do hotel. Como um cão de caça que dormita, perseguindo em sonhos um coelho, ou como o público numa competição atlética, que ergue uma perna para ajudar o saltador em al­tura a vencer a elevada barra, de quando em quando sua mão crispava-se involuntariamente. Mentalmente, numa va­riedade de circunstâncias imaginadas, essa mão voava para a coronha da pistola.

O tempo ia passando e James Bond continuava senta­do no mesmo lugar, fumando de espaço a espaço um Royal Blend até a metade, para depois esmagá-lo distraidamente no cinzeiro do criado-mudo. Um observador nada teria podido ler em seus pensamentos. As pulsações, na têmpora esquer­da, eram um pouco mais rápidas do que o normal. Uma certa tensão notava-se nos lábios levemente franzidos, mas talvez se tratasse apenas da reflexão concentrada; os olhos, porém, esses olhos meditativos de um cinza-azulado, que nada viam, estavam tranqüilos, quase sonolentos. Teria sido impossível adivinhar que James Bond estava considerando a possibili­dade de sua própria morte na tarde desse mesmo dia, sen­tindo a ponta macia das balas romper os seus ossos e a sua carne, vendo seu próprio corpo a vasquejar no chão, gritos inconscientes a brotar-lhe talvez da boca. Em todas essas coi­sas pensava, sem dúvida alguma, mas as crispações da mão direita lá estavam para provar que, no agitado filme de seus pensamentos, o fogo do inimigo não ficava sem resposta — e até fora, talvez, antecipado.

James Bond deixou escapar um suspiro profundo e re­pousado. Seus olhos volveram a focalizar-se. Consultou o seu relógio. Eram nove horas e cinqüenta. Levantou-se, passou as mãos com força sobre o rosto magro e saiu pelo corredor, rumo à sala de conferência.

 

O que a taça revelou

O cenário era o mesmo. A literatura de viagem conti­nuava sobre a mesa do bufete, onde Bond a havia deixado. Passou à sala de conferência. Procedera-se ali a uma lim­peza sumária. Scaramanga dera ordens, provavelmente para que o pessoal do hotel não entrasse no aposento. As cadei­ras encontravam-se mais ou menos nas suas posições, mas os cinzeiros não tinham sido esvaziados. Não havia manchas no tapete, nem sinais de que o tivessem lavado. A bala, sem nenhuma dúvida, fora uma só, no coração. Com as balas de tipo dundum usadas por Scaramanga, o efeito interno seria devastador, mas seus fragmentos permaneceriam dentro do corpo e não haveria hemorragia externa. Bond fêz o circuito da mesa, ostensivamente a colocar melhor as cadeiras em seus lugares. Identificou aquela em que Ruby Rotkopf devia ter sentado, defronte à de Scaramanga, porque tinha uma perna quebrada. Examinou conscienciosamente as janelas e olhou por trás das cortinas, desempenhando o seu papel. Scaramanga entrou na sala, seguido do Sr. Hendriks, e disse em tom brusco:

— Muito bem, Sr. Hazard. Feche as duas portas à cha­ve, como ontem. Ninguém pode entrar, entendeu?

— Sim. — Ao passar pelo Sr. Hendriks, Bond disse ale­gremente: — Bom dia, Sr. Hendriks. Gostou da festa ontem à noite?

O Sr. Hendriks fêz a habitual mesura seca, mas não respondeu. Seus olhos eram duas bolinhas de granito.

Bond saiu, chaveou as portas e colocou-se em posição com as brochuras e a taça de champanha. Hendriks começou logo a falar, em voz rápida e urgente, buscando desajeitada­mente as palavras inglesas.

— Sr. S. Tenho más complicações para lhe transmitir. Minha Zentrale em Havana falou comigo esta manhã. Eles receberam informações diretamente de Moscou. Este homem — fazendo, com certeza, um gesto em direção à porta, — este homem é o agente secreto britânico, o chamado Bond. Sobre isso não há nenhuma dúvida. Foram-me dadas as descrições exatas. Quando êle vai nadar esta manha, estou examinando o seu corpo por meio do binóculo. Os ferimentos no corpo são claramente visíveis. A cicatriz em direção vertical no lado direito do rosto não deixa a menor dúvida. E a sua demons­tração com o revólver na noite passada! O pobre asno está orgulhoso da sua pontaria. Eu gostaria de ver um membro da minha organização conduzir-se dessa maneira estúpida! Mandaria fuzilá-lo imediatamente. — Houve uma pausa. O tom do homem mudou, tornou-se levemente ameaçador. Seu alvo, agora, passava a ser Scaramanga. — Mas, Sr. S., como pode ter acontecido isso? Como pôde o senhor deixar que a situação chegasse a este ponto? Minha Zentrale está espan­tada com o seu erro. Esse homem podia ter causado danos incalculáveis se não fosse a vigilância de meus superiores. Bor favor, explique, Sr. S. Eu devo fazer o mais completo re­latório. De que maneira foi que o senhor encontrou esse ho­mem? De que maneira foi que o trouxe ao próprio centro do Grupo? Os detalhes, por favor, Sr. S. A narração completa. Meus superiores estarão fazendo severas censuras à falta de vigilância contra o inimigo.

Bond ouviu riscar um fósforo. Com os olhos da imagi­nação, viu Scaramanga reclinar-se na cadeira e fazer a sua pequena proeza com a fumaça do charuto. Quando falou, foi em voz decidida e nem um pouco intimidada.

— Sr. Hendriks, eu compreendo a preocupação de seus superiores com este fato e dou-lhe os parabéns pelas suas ótimas fontes de informação. Mas diga o seguinte à sua Cen­tral: eu encontrei esse homem por pura casualidade, pelo me­nos foi o que pensei na ocasião, e não adianta nada querer esmiuçar como isso aconteceu. Não era fácil preparar esta conferência e eu precisava de ajuda. Tive de arranjar às pres­sas dois gerentes de Nova York para dirigir o pessoal do hotel. Eles estão fazendo um bom trabalho, não é? Quanto ao pes­soal que atende aos quartos, ao restaurante e tudo mais, tive de arranjá-lo em Kingston. Mas o que eu precisava mesmo era uma espécie de assistente pessoal para estar sempre à mão e fazer com que tudo funcionasse direitinho. Eu, pes­soalmente, é que não ia me ocupar com todos os detalhes. Quando esse sujeito apareceu como caído do céu, achei que era justamente o indivíduo que me convinha. Por isso trouxe-o comigo. Mas não sou estúpido. Sabia que quando houves­se terminado este weekend teria de me desfazer dele, para o caso de haver descoberto alguma coisa que não devia. Agora o senhor vem me contar que êle pertence ao Serviço Secreto. Eu lhes disse, na conferência de ontem, que como essa gente ao almoço quando me dá na veneta. A informação que me deu só vem mudar uma coisa: êle morrerá hoje em vez de amanhã. E aqui está como isso vai acontecer. — Scaramanga baixou a voz e Bond só pôde apanhar, então, algumas palavras des­conexas. O suor escorria por trás da orelha que êle mantinha colada à base da taça de champanha. — Nossa excursão... ra­tazanas no canavial... um acidente infeliz... mas antes de eu fazer isso... desagradável surpresa... os detalhes por minha conta... vai achar isso muito engraçado. — Scaramanga devia ter-se reclinado novamente na cadeira. Sua voz voltara ao tom normal. — Portanto, acho que o senhor não tem nenhum motivo para se preocupar. Hoje à noite estaremos livres desse homem. Está satisfeito? Eu podia fazer isso agora mesmo, bastava ir abrir aquela porta. Mas dois fusíveis queimados em dois dias... Esta gente daqui ia começar a tagarelar. E, da maneira como eu planejei, todos terão com que se divertir no piquenique.

O Sr. Hendriks respondeu em voz fria e desinteressa­da. Havia cumprido as instruções que recebera e iam ser to­madas providências decisivas. Ninguém poderia queixar-se de demora no cumprimento das ordens.

— Sim, o que o senhor está propondo será satisfatório. Eu observarei com muito prazer como será executado o pla­no. E agora vamos passar a outro assunto. O Plano Orange. Meus superiores estão desejando saber se tudo está em or­dem.

— Sim, tudo está em ordem na Reynolds Metal, na Kai­ser Bauxite e na Alumina of Jamaica. Mas o material que os senhores forneceram é altamente volátil. Precisará ser substi­tuído de cinco em cinco anos nas câmaras de demolição. Por falar nisso — continuou com um riso gutural e seco, — achei muita graça de ver que as instruções, nos tambores, estavam escritas em várias línguas africanas, além do inglês. Tudo pronto para o grande levante dos pretos, imagino? Os senho­res bem poderiam me avisar o Dia. Tenho certas ações muito vulneráveis em Wall Street.

— Nesse caso, vai perder muito dinheiro — respondeu redondamente o Sr. Hendriks. — Ninguém me avisará a data. Isso não me importa. Não possuo ações. Seria prudente para o senhor ter o seu dinheiro empregado em ouro, em diaman­tes ou em selos raros. E agora vamos ao assunto seguinte. É do interesse dos meus superiores adquirir uma grande quan­tidade de entorpecentes. O senhor tem fonte para o supri­mento de "ganja", ou de "marijuana" como nós dizemos. Está recebendo agora os seus suprimentos por libras de peso. O que eu desejo saber é se pode estimular as suas fontes de suprimento para que forneçam o material aos quintais. A su­gestão é que, depois de conseguir isso, o senhor transporte a mercadoria para os Pedro Cays. Os meus amigos podem ir buscá-la naquele lugar.

Houve um breve silêncio. Scaramanga estaria fumando o seu fino charuto.

— Acho que isso pode se arranjar — disse êle. — Mas as leis sobre a ganja se tornaram muito mais rigorosas recen­temente. As penas de prisão agora são sérias. O resultado é que os preços dispararam. O preço corrente para o dia de hoje é dezesseis esterlinos por onça. Um quintal custaria milha­res de libras. Meu barco de pesca, provavelmente, só poderia transportar um quintal de cada vez. Mas afinal, para onde se destina toda essa erva? Os senhores terão muita sorte se conseguirem tão grande quantidade na praia. Uma libra ou duas já dão bastante trabalho.

— Não estou sendo informado do destino. Presumo que seja para os Estados Unidos. Esses são os maiores consu­midores. Foram tomadas providências para receber inicial­mente essa e outras remessas ao largo da costa de Geórgia. Dizem que essa região é cheia de pequenas ilhas e pântanos e que já está sendo muito freqüentada por contrabandistas. O dinheiro não tem importância. Tenho instruções para fazer uma despesa inicial de um milhão de dólares, mas aos preços justos do mercado. O senhor irá receber sua comissão habi­tual de dez por cento. É assim que está interessado?

— Estou sempre interessado em cem mil dólares. Terei de entrar em contato com os meus plantadores, que têm suas plantações na região do Maroon. Isso fica no centro da ilha. Vai levar algum tempo. Posso lhe dar uma cotação dentro de duas semanas mais ou menos — um quintal de erva, FOB nos Pedro Cays. Está bem?

— E uma data? Os cays são muito rasos. Esta não é uma mercadoria que possa ser deixada na praia, não é?

— Claro, claro. Agora vamos ver. Há algum outro as­sunto? Pois eu tenho uma questão para propor. Esses inves­timentos nos cassinos. A situação, é a seguinte. O governo está tentado. Acha que isso vai estimular a indústria de tu­rismo. Mas a artilharia pesada — os rapazes que foram ex­pulsos de Havana, a máquina de Vegas, o pessoal de Miami — toda a turma, enfim, não tomou a medida dessa gente an­tes de começar o jogo. E se excederam nas bolas— botaram dinheiro demais nos bolsos errados. Pensando bem, deviam ter usado uma organização de relações públicas. A Jamaica parece pequena no mapa, e sem dúvida os sindicatos finan­ceiros pensaram que podiam realizar sem dificuldade uma pequena operação como a de Nassau. Mas o partido da opo­sição foi alertado, e a Igreja, e as velhas, e começou-se a falar na Máfia tomando conta da Jamaica, na velha Cosa Nostra e todas essas besteiras, e o negócio deu com os burros n'água. Lembra-se de que nos ofereceram uma participação há dois anos atrás? Isso foi quando eles viram que a coisa ia fracas­sar e quiseram descarregar nas costas do Grupo as despesas de promoção, cerca de dois milhões de dólares. Se bem se lembra, eu me manifestei contra e dei minhas razões. Muito bem. De modo que recusamos. Mas a situação agora mudou. Um outro partido está no poder, no ano passado houve uma queda na afluência de turistas e um certo ministro tem se mantido em contato comigo. Diz êle que o clima mudou. Veio a independência e eles saíram de trás das saias de Titia In­glaterra. Querem mostrar que a Jamaica está atualizada, que tem "it" e tudo mais. Portanto, esse meu amigo diz que pode levantar a interdição sobre o jogo aqui. Êle me explicou como isso se conseguiria, e a coisa faz sentido. Há dois anos eu dis­se para ficarmos de fora. Agora digo: vamos entrar. Mas vai custar dinheiro. Cada um de nós terá de contribuir com cem mil notas para dar estímulo local. Os homens de Miami serão os operadores e tratarão de arranjar a concessão. O negócio consiste em nós entrarmos com cinco por cento, mas com prioridade. Me entendeu? Com base nessas cifras, que são autênticas, teremos reembolsado o nosso dinheiro em dezoito meses. Depois, é aquela marmelada. Apanhou a foto? Mas os seus... hã... amigos não parecem muito interessados nesses empreendimentos... hã,.. capitalistas. Que lhe parece? Eles irão topar? Eu não gostaria que a gente tivesse de ir arranjar a grana fora do Grupo. E, desde ontem, estamos com falta de um acionista. Por sinal que teremos de pensar nisso também. Quem é que nós vamos incluir como Número Seis? De mo­mento estamos com os quadros desfalcados.

James Bond enxugou a orelha e o fundo da taça com o seu lenço. Aquilo era quase insuportável. Tinha ouvido pro­nunciar a sua sentença de morte, patentearem-se as relações do K. G. B. com Scaramanga e o Caribe, e ainda outras re­velações menores como a sabotagem da indústria de bauxi-ta, maciços contrabandos de entorpecentes para os Estados Unidos e a política de favorecimento à jogatina. Na área do Serviço de Informações, o resultado era magnífico. Êle tinha a bola nas mãos! Viveria o bastante para levá-la à meta adver­sária? Quem lhe dera um drinque agora! Tornou a encostar o ouvido à base da taça.

Lá dentro, a sala estava silenciosa. A voz de Hendri­ks, quando falou, foi circunspecta, evitando comprometer-se. Era evidente que desejava responder: "Passo", com a ressalva "até que tenha falado com a minha Zentrale, não é assim?" Entretanto, disse:

— Mister S., o negócio é difícil, sim? Os meus superio­res não estão recusando os investimentos lucrativos, mas, como o senhor deve estar sabendo, gostam principalmente de negócios que tenham objetivo político. Foi sobre essas condi­ções que me autorizaram a fazer aliança com o seu Grupo. O dinheiro não é o problema. Mas como vou explicar o objetivo político da abertura de cassinos na Jamaica? Aí está o que eu gostaria de saber.

— É quase certo que isso vai provocar agitação. O povo da terra vai querer jogar — são jogadores incorrigíveis, esta gente. Haverá incidentes. As pessoas de côr serão excluídas por uma razão ou por outra. O partido da oposição aprovei­tará esse fato para levantar um berreiro, protestando contra a discriminação e o mais que segue. Com todo esse dinheiro circulando por aí, os sindicatos trabalhistas tratarão de ele­var os salários até as nuvens. No fim, teremos uma bela pol­vorosa. A atmosfera por aqui é pacífica demais. Com pouca despesa se poderá virar isto num pequeno inferno. É o que os seus superiores querem, não é? Acender a fogueira numa ilha depois da outra ?

Houve outro silêncio breve. A idéia, evidentemente, não seduzia o Sr. Hendriks. E foi o que disse, mas por vias oblí­quas:

— O que o senhor está dizendo, Mister S., é muito in­teressante. Mas não será assim que essas agitações que está prevendo vão pôr em perigo os nossos dinheiros? Entretanto, vou transmitir sua pergunta e informá-lo imediatamente da resposta. É possível que os meus superiores olhem a suges­tão com simpatia. Quem pode prever isso? Agora temos o pro­blema do Número 6. O senhor tem, alguém em vista?

— Acho que precisaremos de um homem competente, da América do Sul. Temos nossas operações na Guiana Ingle­sa e elas necessitam de supervisão. Devemos ser mais ativos lá do que na Venezuela. Não levamos avante aquele ótimo plano de bloquear a entrada do Lago de Maracaibo. É uma operação simples, desde que se disponha de um bom navio de bloqueio. Bastava a ameaça de fazer isso para que as compa­nhias marchassem nos cobres — e continuariam marchando, a título de proteção. E, por outro lado, se esse negócio de en­torpecentes vai ser coisa de vulto, não poderemos, dispensar o México. Que me diz do Sr. Arosio, de México City?

— Não estou conhecendo esse cavalheiro.

— Rosy? Oh! é um grande tipo. Explora o Sistema de Transportes Green Light. Conduz drogas e garotas para Los Angeles. Nunca foi apanhado até agora. É de toda a confiança como operador. Não tem sócios. Seus superiores devem ter ouvido falar nele. Por que não indaga na Central? Depois da­remos a notícia aos outros. Eles irão pelo que nós dissermos.

— Está bom. E agora, Sr. S., tem alguma coisa para co­municar sobre o seu empregador? Na visita que êle fêz recen­temente a Moscou, ouvi dizer que expressou satisfação com as suas atividades nesta área. É uma excelente circunstância que haja uma cooperação tão íntima entre os esforços sub­versivos dele e os nossos. Mas os nossos chefes têm grandes esperanças para o futuro em nossa união com a Máfia. Quan­to a mim pessoalmente, estou duvidando. O Sr. Gengerella é um elo valioso na cadeia, sem nenhuma dúvida, mas a minha impressão é que essa gente só está sendo ativada pelo dinhei­ro. E o senhor, que pensa?

— Disse muito bem, Sr. Hendriks. Na opinião de meu chefe, a primeira e única consideração da Máfia é... a Máfia. Sempre foi e sempre será assim. Meu Sr. C. não tem muita esperança nos Estados. Nem mesmo a Máfia pode lutar com o sentimento anticubano que há por lá. Mas o meu chefe pen­sa que podemos conseguir bons resultados no Caribe dando a ela trabalhos avulsos para fazer. A Máfia sabe ser muito eficiente quando quer. Seria, por certo, muito vantajoso para os seus superiores se usassem a Máfia como canal para esse negócio de narcóticos. Ela converterá o seu investimento de um milhão de dólares em dez. Vai deitar a unha aos nove, evi­dentemente. Mas, como isso não é nenhuma bagatela, ficará amarrada aos senhores. Acha que pode arranjar isso? Será uma boa notícia que Leroy terá para contar aos seus amigos quando voltar. Quanto ao Sr. C, parece que vai indo muito bem. Flora foi um golpe sério, mas, graças em grande parte à pressão que os americanos não cessam de fazer sobre Cuba, êle conseguiu manter o país unido. Se os americanos des­sem uma folga na propaganda, nas alfinetadas e o resto, se fizessem mesmo um ou dois gestos amistosos, o homenzinho perderia toda a embalagem. Raramente nos encontramos. Êle me deixa em paz. Zela pela sua reputação, suponho eu. Mas recebo toda a cooperação que preciso do D. S. S. Está vendo como é? Bem, vamos ver se o pessoal está pronto para a pas­seata. São onze e meia e a "Bloody Bay Belle" tem a partida marcada para as doze. Me palpita que o dia vai ser muito di­vertido. É pena que os nossos Chefes não estejam aqui para ver o espião godeme receber a sua paga.

— Ah! — disse circunspectamente o Sr. Hendriks.

James Bond afastou-se da porta. Ouviu a chave mes­tra do Sr. Scaramanga girar na fechadura, ergueu os olhos e bocejou.

O Sr. Scaramanga e o Sr. Hendriks baixaram os olhos para êle. Suas respectivas fisionomias tinham uma expressão vagamente interessada e meditativa, como se Bond fosse uma posta de filé mignon e eles estivessem perguntando consigo se haviam de fazê-lo bem-passado ou regular-passado.

 

Ouçam o apito do trem!

Às doze horas se reuniram todos no saguão do hotel. Scaramanga havia acrescentado um Stetson branco de abas largas à sua impecável indumentária tropical. Dava os ares do mais elegante fazendeiro do Sul. O Sr. Hendriks enverga­va o seu sufocante traje de sempre, agora encimado por um Homburg cinzento. Bond achou que êle ficaria melhor com luvas de suède gris e um guarda-sol. Os quatro gangsters vestiam camisas floreadas por cima das calças. Bond gostou de vê-los assim. Se carregavam armas na cintura, as camisas os impediriam de sacá-las com a necessária presteza. Havia carros à espera diante da frontaria, com o Thunderbird de Scaramanga à testa. Scaramanga marchou para a gerência. Nick Nicholson aguardava em pé, lavando as mãos em sabão invisível e com um ar muito prestativo.

— Tudo em ordem ? Puseram o material no trem ? Gre­en Harbour foi avisado ? Muito bem, então. Onde está aquele seu secretário, o tal Travis? Não botei os olhos nele hoje.

Nick Nicholson fêz uma cara séria.

— Arranjou um abscesso no dente, senhor. Um horror. Tive de mandá-lo a Sav' La Mar para extraí-lo. Hoje de tarde estará de volta.

— Azar dele. Desconte-lhe meia diária. Não há lugar para molóides neste estabelecimento. O pessoal que temos já é insuficiente. Que mandasse compor a mobília antes de aceitar o emprego. O. K. ?

— Muito bem, Sr. Scaramanga. Direi isso a êle.

O Sr. Scaramanga virou-se para o grupo à espera.

— O. K., companheiros. Este é o programa. Vamos de carro até a estação, a uma milha daqui. Embarcamos nesse trenzinho. Coisa importante de se ver. Um sujeito chamado. Lucius Beebe mandou copiar, para a Companhia Thunder-bird, a locomotiva e o material rodante da velha linha Denver — South Park — Costa do Pacífico. Muito bem. Assim, iremos apitando por essa velha linha dos canaviais, num trajeto de vinte milhas mais ou menos, até o Green Island Harbour. Montões de pássaros, ratos-do-banhado, crocodilos nos rios. Talvez possamos caçar um pouco, nos entreter com a ferra­gem, Vocês todos trazem suas armas consigo? Ótimo, ótimo. Almoço com champanha em Green Island, e as pequenas e a música para fazer nossa alegria. Depois de almoçar vamos para bordo da Thunder Girl, uma bigue Chriscraft, e fazemos um cruzeiro até Lucea, uma cidadezinha aí na costa, onde ve­remos se arranjamos jantar. Os que não quiserem pescar po­dem jogar stud. Está bem? Depois voltamos e tomamos uns drinques aqui. O. K.? Todos estão satisfeitos. Alguém tem su­gestões a fazer? Então vamos.

Bond recebeu ordem de embarcar no assento traseiro do carro. Partiram. Mais uma vez aquela nuca que se ofere­cia! Era loucura não aproveitar o ensejo agora! Mas estavam em campo aberto, sem cobertura, e quatro homens armados o seguiam no carro de trás. As probabilidades eram franca­mente contra êle. Qual seria o plano para eliminá-lo? Duran­te a caçada, presumivelmente. James Bond sorriu com fria ironia de si para si. Sentia-se feliz. Não teria podido explicar a emoção. Era o sentimento de estar em perfeita afinação, pronto para a arrancada. Era esse momento em que, após. ter passado vinte vezes, recebemos cartas em que podemos apostar — não necessariamente ganhar, mas apostar. Havia mais de seis semanas que andava em busca desse homem. Hoje, talvez ainda, nesta manhã, chegaria o momento decisi­vo que lhe tinham mandado procurar. Era ganhar ou perder tudo. As probabilidades? A presciência estava a seu favor.

Conhecia os planos do inimigo e este ignorava os seus. Mas o inimigo tinha de seu lado a força dos batalhões. Era mais numeroso. E, considerando-se Scaramanga isoladamente, talvez possuísse mais aptidão. Armas? Deixando novamente de parte os outros, Scaramanga lhe levava vantagem. O Colt 45 de cano comprido seria um tudo-nada mais lento de sa­car, mas o comprimento do cano lhe dava mais exatidão na pontaria do que a Walther automática. Velocidade de tiro? A Walther tomava a dianteira — e a primeira câmara vazia do revólver de Scaramanga, caso não tivesse sido descoberta, seria uma bonificação adicional. A firmeza da mão? O san­gue-frio? A intensidade do propósito homicida? De que lado se inclinava a balança? Quanto aos dois primeiros quesitos, devia por certo equilibrar-se. Talvez fosse Bond um tantinho precipitado no gatilho — por força do ofício. Precisava vigiar­se nesse particular. Abafar o fogo que levava nas entranhas. Fazer-se frio como o gelo. No propósito de matar, era talvez o mais forte. Naturalmente. Lutava por sua vida, enquanto o outro homem estava apenas se divertindo — oferecendo um esporte aos seus amigos, mostrando o seu poder, fazendo os­tentação. Ótimo! Isso poderia ser decisivo! Bond disse a si mesmo que era preciso reforçar a inadvertência do homem, sua displicente certeza, sua falta de cautela. Devia represen­tar o inglês de P. G. Wodehouse, o estólido filho de Albion das caricaturas. Devia fazer-se de presa fácil. A adrenalina derramou-se na corrente sangüínea de James Bond. As bati­das de seu coração aceleraram-se levemente. Sentiu-o no seu pulso. Pôs-se a respirar profunda e compassadamente para fazê-lo voltar ao ritmo normal. Percebeu que estava sentado com o corpo para a frente, retesado. Inclinou-se para trás no assento e procurou relaxar os músculos. Todo o seu corpo se relaxou, exceto a mão direita. Esta parecia estar sob controle de alguma outra pessoa. Pousada na coxa direita, continua­va a crispar-se ligeiramente de quando em quando, como a pata de um cão adormecido que sonha estar caçando coelhos. Meteu-a no bolso do paletó e ficou observando um urubu que voava em círculos a trezentos metros de altura. Colocou-se na pele do John Crow à procura de um sapo esmagado ou de uma ratazana morta. A ave encontrara sua presa. Começou a baixar aos poucos. Bond desejou-lhe bom proveito. O animal predatório que havia nele fêz votos para que o abutre gozas­se um bom almoço. Bond sorriu da comparação. Ambos se­guiam um rastro. A diferença principal estava em ser o urubu uma ave protegida. Ninguém lhe atiraria quando executasse o mergulho final. Bond achou graça nesses pensamentos. Sua mão direita saiu de dentro do bolso e acendeu um cigar­ro para êle, obediente e tranqüila. Havia cessado de andar à caça de coelhos por conta própria.

A estação era um brilhante fac-símile da era da bitola estreita no Colorado — construção baixa de tábuas desbota­das, com vistosos rendilhados ao longo dos beirais. Seu nome, Parada Thunderbird, estava escrito em letras ornamentais de modelo antigo, com exagerados remates. Anúncios proclama­vam: "Masque Roseleaf Tabaco da Virgínia Picado Fino Ga­rantido da Melhor Qualidade", "Paradas Para Todas as Refei­ções", "Não Se Aceitam Cheques". A locomotiva, brilhante de verniz preto e amarelo e latão polido, era uma jóia. Ofegava brandamente ao sol, uma crespa voluta de fumaça negra a subir da alta chaminé por trás do grande farol de latão. Seu nome, "The Belle", podia ser lido numa soberba placa de latão sôbre a lustrosa chaminé preta, enquanto uma placa seme­lhante, por baixo do farol, dizia "N.° 1". Puxava um vagão aberto, com assentos acolchoados de espuma de borracha e uma tolda de lona franjeada, amarelo antimônio, para ofere­cer proteção contra o sol, e na cauda o carro-freio, também em preto e amarelo, com uma resplendente cadeira de bra­são dourado por trás da convencional roda do freio. Era um maravilhoso brinquedo em todos os seus detalhes, inclusive o apito antiquado que, nesse momento, fêz ouvir o seu grito agudo de advertência. Scaramanga estava exuberante.

— Ouçam o apito do trem, pessoal! Todos nos seus lugares! — Houve então um anticlímax. Para consternação de Bond, êle sacou do seu revólver de ouro, apontou para o céu e apertou o gatilho. Hesitou apenas um instante e tornou a atirar. A parede da estação repercutiu o ribombo profundo e o estacionário, resplendente no seu uniforme à moda antiga, pareceu nervoso. Meteu no bolso a grande cebola de prata que tinha na mão e recuou obsequiosamente, deixando cair ao lado do corpo a bandeira verde. Scaramanga examinou sua arma, olhou para Bond com ar pensativo e disse: — Mui­to bem, meu amigo. Você sobe na frente, junto com o maqui­nista.

Bond sorriu, todo lampeiro.

— Obrigado. Sempre tive vontade de fazer isso, desde os meus tempos de criança. Que pândega!

—-Você o disse — volveu Scaramanga. E, virando-se para os outros: — E o senhor, Sr. Hendriks. No primeiro ban­co atrás do tender, por favor. Depois, Sam e Leroy. Depois, Hal e Loie. Eu vou atrás, no carro-freio. Ótimo lugar para trazer a caça de olho. O. K.?

Todos se instalaram nos seus assentos. O chefe de estação, que nesse entrementes havia recobrado toda a sua galhardia, executou a pantomima prescrita com o relógio e a bandeira. A locomotiva emitiu um triunfante apito e, com uma série de bufidos decrescentes, pós-se em marcha sobre a linha de bitola de noventa centímetros que mergulhava, reta como uma flecha, numa tremulante reverberação de prata.

Bond consultou o medidor de velocidade. Marcava vin­te milhas. Pela primeira vez, prestou atenção ao maquinis­ta. Era um mal-encarado rastafari, com um sujo macacão de brim caqui e um trapo em volta da testa. Um cigarro pendia entre o ralo bigode e a barba espinhenta. Desprendia-se dele um bodum pavoroso.

— Meu nome é Mark Hazard — disse Bond. — Qual é

o seu?

— Desguia, homem! Não falo com buckra. "Buckra" é um grosseiro coloquialismo para designar o homem branco.

Bond respondeu pacatamente:

— Pensei que um dos princípios da sua religião fosse o amor ao próximo.

O rasta deu um longo puxão à corda do apito. Quando o grito estridente silenciou, êle disse simplesmente: "sebo", abriu com um pontapé a porta da fornalha e começou a meter carvão.

Bond correu os olhos sub-repticiamente em redor da cabina. Sim! Lá estava o comprido cutelo jamaicano, com a lâmina de uma polegada de largura e uma ponta mortífera. Achava-se num cabide, ao alcance da mão do homem. Se­ria com aquilo que iriam dar cabo dele? Bond duvidou. Sca-ramanga preferiria fazer a coisa de maneira condignamente dramática e que lhe garantisse um álibi. O segundo executor seria Hendriks. Olhou para trás, por cima do tender baixo. O olhar de Hendriks, brando e indiferente, cruzou-se com o seu.

— Grande pândega, hem? — gritou Bond para se fazer ouvir acima do estridor da locomotiva.

Os olhos de Hendriks desviaram-se e tornaram-se a fixar-se nele. Bond curvou-se a fim de enxergar por baixo da tolda. Todos os outros homens estavam imóveis nos seus lu­gares, com os olhos também fitos em Bond. Este abanou jo­vialmente a mão. Ninguém respondeu. Então já sabiam! Bond era um espião no meio do Grupo e essa era a sua última viagem. Na linguagem dos gangsters, "ia levar". Era uma sen­sação inquietadora a de ver esses dez olhos inimigos a visá-lo como dez canos de pistolas. Bond tornou a aprumar-se. Ago­ra a metade superior de seu corpo, como o homem de ferro num stand de tiro ao alvo, ficava acima da tolda e êle olhava diretamente, por cima do tejadilho amarelo, para o lugar onde Scaramanga estava sentado no seu trono solitário, talvez a uns seis metros de distância, visivel de corpo inteiro. Tam­bém êle o olhava lá do fundo-—o último acompanhante do cortejo fúnebre, atrás do cadáver que era James Bond. Este abanou alegremente e virou as costas. Desabotoou o paletó e, por um instante, sentiu-se tranqüilizado pela coronha fria da sua pistola. Apalpou o bolso das calças. Três depósitos de reserva. Bem, bem! Levaria consigo o maior número possível desses homens. Baixou o assento do ajudante de maquinista e sentou-se nele. Para que oferecer um alvo enquanto não fosse forçado a isso? O rasta cuspiu o cigarro para o lado e acendeu outro. A máquina andava sozinha. Encostou-se à parede da cabina e ficou olhando para o vazio.

Bond havia estudado o mapa do Serviço Topográfico de Ultramar, em escala de 1: 50 000, que Mary lhe fornecera, e conhecia exatamente o caminho seguido pela pequena linha dos canaviais. De começo, cinco milhas de plantações, entre cujas muralhas verdes rodavam nesse momento. Vinha de­pois o Middle River, seguido pelo extenso charco que estava sendo pouco a pouco recuperado, mas que ainda aparecia no mapa como O Grande Pantanal. Seguia-se então o Orange River, que conduzia à Orange Bay, e, para além, mais cana e floresta entremeada de pequenos sítios, até atingir o pequeno povoado de Green Island, na ponta do excelente ancoradouro de Green Island Harbour.

Cem metros mais adiante, um urubu levantou vôo ao lado dos trilhos e, após alguns pesados adejos, pegou o terral e subiu no ar, afastando-se. Ouviu-se o estrondo do revólver de Scaramanga. Uma pena desprendeu-se da grande asa di­reita da ave e foi caindo lentamente. O urubu guinou e subiu ainda mais. Segundo tiro soou. A ave teve um estremeção e começou a despencar do céu desajeitadamente, aos trambo­lhões. Teve um novo estremeção ao ser atingida pela terceira bala, antes de ir bater nas canas. Aplausos sob a tolda ama­rela. Bond inclinou-se para fora e gritou a Scaramanga:

— Isto vai lhe custar cinco libras, a não ser que tenha dado bola ao rasta. Essa é a multa para quem mata um John Crow.

Uma bala passou zunindo junto à cabeça de Bond. Scaramanga deu uma risada.

— Desculpe. Pensei ter avistado um rato. — E depois: — Ande, Sr. Hazard. Vamos ver a sua arte na pontaria. Há umas reses pastando lá adiante, junto da linha. Veja se pode acertar numa vaca a dez passos de distância.

Os gangsters casquinavam, Bond pôs novamente a ca­beça de fora. Scaramanga tinha o revólver no colo. Com o rabo do olho êle viu o Sr. Hendriks, talvez dez metros atrás com a mão no bolso do paletó.

— Nunca mato caça que não coma — gritou Bond. — Se me promete comer a vaca inteira, eu a mato para você.

O revólver reluziu, estourou, e Bond baixou rápido a cabeça, sob a cobertura do tender. Scaramanga riu em tom áspero.

— Cuidado com a língua, godeme, senão vai acabar sem ela.

Os gangsters torciam-se.

O rasta, ao lado de Bond, soltou uma praga e puxou com força a corda do apito. Bond olhou a linha à frente. A grande distância, avistava-se um objeto róseo atravessado nos trilhos. Sempre a apitar, o maquinista puxou uma ala­vanca. O vapor golfou do tubo de escape da locomotiva, que começou a diminuir a marcha. Ouviram-se dois tiros, e as balas bateram com ruído na coberta de ferro, acima da sua cabeça. Scaramanga bradou enraivecido:

— Conserve a pressão, mil raios o partam! Rapidamen­te, o rasta empurrou para cima a alavanca e o trem tornou a ganhar velocidade, voltando às vinte milhas horárias. O ho­mem deu de ombros e relanceou os olhos para Bond. Passou a língua babosa pelos beiços.

— Tem branca atravessada nos trilhos. Com certeza é alguma amiga do patrão.

Bond aguçou o olhar. Sim! Sim, era um corpo nu, rosa­do, com cabelos côr de ouro. O corpo de uma moça! A voz de Scaramanga reboou contra o vento:

— Pessoal, tenho uma pequena surpresa para vocês todos. Uma cena dos velhos filmes do Oeste. Há uma garota na linha, à nossa frente. Amarrada aos trilhos. Olhem bem. E sabem de uma coisa? É a amiguinha de um certo homem de quem temos ouvido falar ultimamente, um homem cha­mado James Bond. Quem havia de acreditar? E o nome dela é Goodnight, Mary Goodnight. Não há dúvida que isto será o boa noite para ela. Se o tal Bond estivesse no trem agora, acho que nós o ouviríamos se esgoelar pedindo piedade.

 

O grande pantanal

James Bond pulou para a alavanca do acelerador e pu­xou-a violentamente para baixo. A máquina perdeu pressão, mas agora faltavam apenas cem metros e a única coisa capaz de salvar Mary seriam os freios sob o controle de Scaraman-ga, lá no fundo. O rasta já empunhava o cutelo, com a lâmina a refletir as chamas da fornalha. Recuou como um animal acuado, os olhos vermelhos de ganja e de medo em face da pistola que Bond empunhava. Nada mais poderia salvar a moça! Sabendo que Scaramanga o esperava do lado direito do tender, Bond saltou para a esquerda. Hendriks tirara o seu revólver do bolso. Antes que êle pudesse apontar, Bond meteu uma bala entre os olhos frios do homem. A cabeça pinchou para trás. Por um instante, alguns dentes com coroa de aço apareceram na boca escancarada. Depois o Homburg tombou para um lado e a cabeça morta pendeu sobre o peito. O revólver de ouro estrondou duas vezes. Uma bala zumbiu na cabina. O rasta soltou um grito estridente e foi ao chão, com a mão na garganta. A outra mão continuava agarrada à corda do apito e o trenzinho não cessava o seu uivo de advertência. Cinqüenta metros ainda! O cabelo côr de ouro caía lamentavelmente sobre o rosto, ocultando-o. As cordas que amarravam os pulsos e os tornozelos eram bem visíveis. Os seios ofereciam-se à máquina ululante. Bond rangeu os dentes e cegou o pensamento para o horrível impacto que iria ocorrer dentro de instantes. Tornou a saltar para a esquerda e disparou três vezes. Pareceu-lhe que dois desses tiros ha­viam dado no alvo, mas de repente sentiu um violento golpe no músculo do ombro direito, que o fêz rodopiar na cabina e aluir no piso de ferro, o rosto sobre a beira do estribo. E foi daquela posição, a alguns decímetros de distância, que viu as rodas da frente esmigalhar o corpo na linha, viu a cabe­ça saltar separada do corpo, viu os olhos azuis de porcelana deitar-lhe uma derradeira mirada vazia, viu os fragmentos do boneco de teatro desintegrar-se com um agudo estalejar de matéria plástica e os estilhaços côr-de-rosa choverem sobre o aterro da linha.

James Bond reprimiu o vômito que lhe subia do estô­mago, forcou-o a voltar à garganta. Pôs-se em pé a cambale­ar, com o corpo sempre curvado. Levantou a mão para a ala­vanca do acelerador e empurrou-a para cima. Uma batalha campal com o trem parado multiplicaria as probabilidades contra êle. Mal sentia a dor no ombro. Mostrou a cabeça à beira do tender, no lado direito. Quatro revólveres ribomba­ram. Atirou a cabeça para trás, sob a cobertura do tender. Agora os gangsters atiravam, mas sem pontaria por causa da tolda interposta. Bond tivera tempo, contudo, de avistar uma cena gloriosa. No carro-freio, Scaramanga escorregara do seu trono e caíra de joelhos, balançando a cabeça de um lado para outro como um animal ferido. Onde diabo lhe havia acertado a bala? E agora, que fazer? Como se haveria com os quatro gangsters, que não podia enxergar como eles também não o enxergavam?

Então uma voz no fundo do trem — só podia ser no carro-freio — a voz de Felix Leiter gritou mais alto do que o apito estridente do trem:

— Muito bem, vocês quatro. Joguem fora os seus re­volveres, pelo lado. Já! Depressa! — Ouviu-se o estampido de um tiro. — Eu disse: depressa. Lá se foi o Sr. Gengerella ao encontro do seu Criador. Muito bem, então. Agora ponham as mãos na nuca. Melhorou! Assim... O. K., James. A batalha acabou. Você está bem? Se estiver, mostre-se. Ainda resta o pano final e temos de andar depressa.

Bond levantou-se cautelosamente. Mal podia acredi­tar naquilo! Leiter devia ter vindo nos pára-choques, atrás do carro-freio. Não lhe teria sido possível mostrar-se antes, receando o fogo de Bond. Sim! Era bem êle! O cabelo louro fustigado pelo vento, uma pistola de cano comprido usando como apoio o gancho de aço na ponta do braço direito ergui­do, galgando com as pernas o corpo agora supino de Scara-manga, ao lado da roda do freio. O ombro de Bond começara a doer como o diabo.

— Raios o partam, Leiter! — gritou, com a cólera que vem de um tremendo sentimento de alívio. — Por que diabo não se mostrou antes? Podiam ter dado cabo de mim.

Leiter riu.

— Eu queria ver esse dia! Mas escute, colega. Prepare-se para saltar. Quanto mais tempo esperar, mais comprida será a caminhada de volta. Vou ficar com esses caras para entregá-los à lei em Green Harbour. — Abanou a cabeça para indicar que estava mentindo. — Agora toque. Estamos no meio do Pantanal. A aterragem será macia. Fede um pouco, mas nós lhe daremos uma vaporização de água-de-colônia quando voltar. Está bem?

O trem passou sobre um pequeno bueiro e a canção das rodas converteu-se num ribombo cavernoso. Bond olhou para a frente. À distância avistavam-se, qual teia de aranha, as treliças da ponte sobre o Orange River. O trem, cujo apito não cessava de uivar, ia perdendo pressão. O marcador de velocidade assinalava 19 milhas por hora. Bond baixou os olhos para o corpo do rasta. Seu rosto, na morte, era tão me­donho como fora em vida. Os lábios, congelados num rosni­do de ódio, punham à mostra os dentes cariados, estragados pela cana que mascara desde criança. Bond lançou um rápi­do olhar por baixo da tolda. O cadáver de Hendriks, dobrado sobre si mesmo, balouçava-se com o movimento do trem. O suor do meio-dia ainda brilhava nas faces pastosas. Mesmo como cadáver, não solicitava simpatia. No assento atrás dele, a bala de Leiter entrara pela nuca de Gengerella e lhe ar­rancara quase todo o rosto. Ao seu lado e atrás dele, os três gangsters alçavam para Bond os olhos de cães batidos. Não contavam com aquilo. Era para ser uma festa. As camisas floridas o proclamavam. O Sr. Scaramanga, o invicto, o inven­cível, assim o dissera. Até poucos minutos atrás, seu revólver de ouro secundava-lhe a palavra. Agora, de repente, tudo ha­via mudado. Como dizem os árabes quando desaparece um xeque, quando lhes retira a sua proteção: "Já não há mais sombra!" Estavam sob a mira de duas pistolas, pela frente e pela retaguarda. O trem corria, estirando suas passadas de ferro... para onde? Para um lugar de que nunca tinham ou­vido falar antes. O apito uivava. O sol fustigava ferozmente a terra. A pavorosa fedentina do Grande Pantanal entrava-lhes pelos narizes a dentro. Estavam em terra estrangeira. A pers­pectiva era tétrica para eles. O Chefe da Excursão os deixara entregues aos seus próprios recursos. Dois já haviam mar­chado para o outro mundo. Até de suas armas tinham sido despojados. As caras cruéis voltavam-se súplices, para Bond, como luas brancas. Louie Paradise falou numa voz rachada e seca de terror:

— Um milhão de dólares, Mister, se nos tira desta em­brulhada. Juro por minha mãe. Um milhão.

As faces de Sam Binion e Hal Garfinkel iluminaram-se, refletindo um raio de esperança.

— E mais um milhão.

— E mais outro! Juro sobre a cabeça de meu filhinho! A voz de Felix Leiter berrou furiosa. Sentia-se nela uma nota de medo pânico.

— Salte, James, com mil demônios! Salte!

James Bond ergueu-se na cabina, fechando os ouvi­dos às vozes que imploravam sob a tolda. Esses homens ti­nham querido assistir ao seu assassínio. Estavam dispostos a assassiná-lo eles próprios. Quantas mortes de homem ti­nha cada um deles a seu débito? Bond desceu para o estribo, escolheu o momento e atirou-se, para além do leito de clín-quer da ferrovia, nos braços macios de uma fétida poça de mangue.

Seu impacto na lama desencadeou uma catinga infer­nal. Enormes bolhas de gás dos pântanos montaram à super­fície, bamboleando-se, e rebentaram glutinosamente. Uma ave guinchou e levantou vôo por entre um ruidoso farfalhar da folhagem. Com as pernas atoladas na lama, James Bond buscou a terra seca à margem do aterro. O ombro começara a doer-lhe de verdade. Caiu de joelhos e vomitou como se a alma lhe fosse sair pela boca.

Quando tornou a erguer a cabeça, viu Leiter jogar-se do carro-freio, uns duzentos metros mais adiante. Pareceu cair de mau jeito. Não se pôs em pé. E nesse momento, a poucos metros da ponte sobre o preguiçoso rio, um segundo vulto saltou do trem para uma touceira de mangues. Era uma figura de alta estatura, vestida de côr de chocolate. Não havia a menor dúvida! Era Scaramanga! Bond praguejou em voz débil. Por que raios Leiter não metera uma bala na cabeça do homem para acabar com êle? Agora tinha entre as mãos essa tarefa por concluir. Tudo que havia conseguido fora um novo baralhar de cartas. Ainda estava para ser jogada a partida final!

A ululante marcha do trem sem maquinista mudou-se num bramido tonitruante ao passarem os trilhos da terra firme para as traves da comprida ponte. Bond contemplava-o vagamente, perguntando aos seus botões quando iria êle perder toda a pressão. Que fariam agora os gangsters ? Refu­giar-se nos morros? Assumir o controle do trem para fazerem o resto do trajeto até Green Harbour e tentarem bandear-se para Cuba no ThunderBird? Imediatamente veio a respos­ta! No centro da ponte, a locomotiva empinou-se de súbito como um garanhao rebelde. Ao mesmo tempo ouviu-se um estrondo de trovão, levantou-se uma vasta labareda e a pon­te dobròu-se para baixo no centro, como uma perna que se flexiona. Pedaços de ferro dilacerado saltaram para cima e para os lados, com um estardalhaço de metais que se rom­pem: eram as longarinas principais que cediam, curvando-se lentamente em direção à água. Através do vazio que assim se formou, a esplêndida Belle, brinquedo despedaçado, dobrou-se em duas e, com um novo e gigantesco estilhaçar de ferros e madeiras, levantando um vulcão de água e vapor, mergulhou fragorosamente no rio.

Seguiu-se um silêncio ensurdecedor. Algures, às costas de Bond, uma perereca despertada tintinou, incerta. Quatro garças brancas baixaram, sobrevoaram o lugar do desastre, os pescoços esticados de curiosidade. À distância, uns pontos negros materializaram-se nas alturas do céu e começaram a descer em círculos, preguiçosamente. O sexto sentido dos urubus lhes dissera que a explosão distante representava uma catástrofe — a promessa de uma refeição. O sol malhava os trilhos prateados e, a poucos metros de onde estava Bond, um grupo de borboletas amarelas dançava na reverberação da luz. Bond pôs-se lentatamente em pé e, afastando as bor­boletas, lento mas decidido, saiu a caminhar pela linha em direção à ponte. Primeiro, ver o que havia com Felix Leiter, e depois ir no encalço do homenzarrão que se escapara.

Leiter jazia na lama fétida, com a perna esquerda do­brada num feio ângulo. Bond desceu dos trilhos e caminhou para êle, com o dedo nos lábios. Ajoelhou-se ao seu lado e disse em voz baixa:

— Não posso fazer grande coisa por você agora, com­panheiro. Vou lhe dar uma bala para morder e levá-lo para a sombra. Dentro em pouco haverá gente aí. Preciso ir atrás daquele cão. Está para aqueles lados, perto da ponte. Que foi que levou você a pensar que êle estivesse morto ?

Leiter deixou escapar, um gemido, mais de raiva contra si mesmo que de dor.

— Havia sangue por toda a parte — Sua voz era um sussurro entrecortado, por entre os dentes cerrados. — A ca­misa estava encharcada de sangue. Os olhos, fechados. Pen­sei que, se não estivesse morto, iria pelos ares com os outros, na ponte. — E, sorrindo dèbilmente: — Que tal lhe pareceu a cena do Rio Kwai ? Deu certo?

Bond ergueu o polegar no ar.

— Quatro de julho, rapaz. A estas horas os jacarés de­vem estar se instalando à mesa. Mas aquele maldito boneco! Que susto levei! Foi você que o pôs ali?

— Fui, sim. Desculpe, companheiro. Foi o Sr. S. que mandou fazer aquilo. Mas ofereceu um pretexto para pôr a bomba na ponte esta manhã. Não fazia idéia que sua amigui­nha fosse loura, ou que você fosse cair no logro.

— Estupidez minha, por certo. Julguei que êle lhe ti­vesse deitado a mão na noite passada. Em todo caso, vamos lá. Aqui está a sua bala. Morda o chumbo. Os livros de histó­rias dizem que isso alivia. Vai lhe doer um pouco, mas tenho de levá-lo para um lugar onde esteja a coberto e fora do sol.

Bond encaixou as mãos sob as axilas de Leiter e, com toda a suavidade possível, arrastou-o para um lugar seco, sob um grande pé de mangue e acima do nível do brejo. O suor causado pela dor escorria do rosto de Leiter. Bond apoiou-o contra as raízes. O outro soltou um gemido e sua cabeça caiu para trás. Bond contemplou-o pensativamente. Um desmaio era, talvez, a melhor coisa que lhe podia acontecer. Tirou a pistola de Leiter da cintura deste e colocou-a ao lado de sua mão esquerda e única mão. Bond podia ainda perder a par­tida. Se assim acontecesse, Scaramanga viria em busca de Leiter.

Bond caminhou agachado ao longo da linha de man­gues, rumo à ponte. Por ora teria de continuar mais ou menos exposto. Rezou para que, nas proximidades do rio, o brejo ce­desse o passo a um terreno mais seco, permitindo-lhe dobrar na direção do mar e depois voltar novamente a face para o rio,na esperança de encontrar, o rastro do homem.

Era uma e meia da tarde e o sol batia de rijo. James Bond estava faminto, doido de sede, e o ferimento no ombro latejava-lhe ao ritmo das pulsações de suas artérias. Come­çava a ter uma ponta de febre. Sonhara o dia inteiro assim como durante toda a noite e, enquanto buscava a sua presa, êle constatou, com um sorriso zombeteiro, que uma boa parte de seus pensamentos estava ocupada em visualizar o almoço com champanha que aguardava a todos eles, vivos e mortos, em Green Harbour. Por ora, deixou que aquele devaneio se­guisse o seu curso. O bufete estaria posto sob as árvores, que Bond imaginou ao lado da estação terminal, mais ou menos no mesmo estilo da Parada Thunderbird. Haveria longas me­sas sobre cavaletes, cobertas com imaculadas toalhas, filas de pratos, copos e talheres, e grandes travessas de salada fria de lagosta, assados frios e montões de frutas — abacaxis, etc. — para dar à cena um colorido jamaicano e exótico. Tal­vez houvesse um prato quente, disse êle consigo. Como por exemplo um leitão assado e recheado, com acompanhamen­to de arroz e ervilhas... Quente demais para aquela hora do dia, concluiu Bond, mas seria um banquete para a maioria da população de Green Harbour quando os ricos "turistas" se houvessem retirado. E as bebidas! Champanha em bal­des de prata cobertos de geada por fora, ponches de rum, Tom Collins, whisky sours e, naturalmente, grandes jarras de água gelada, que só seria deitada nos copos quando o apito do trem anunciasse sua aproximação da alegre estaçãozinha. Bond tinha a impressão de estar vendo tudo isso — em to­dos os detalhes, à sombra dos frondosos ficus. Os garçons de côr, uniformizados e de luvas brancas, tentando-o a comer e beber mais e mais; além, as águas tremulantes da baía e, no fundo, a pulsação hipnótica da banda de calipso e os olhos doces e insidiosos das raparigas. E controlando, comandando tudo, a alta e elegante figura do gentil anfitrião, um fino cha­ruto entre os dentes, o Stetson branco de abas largas puxado sobre a testa, oferecendo a Bond mais uma taça de champa­nha gelado.

James Bond tropeçou numa raiz de mangue, atirou a mão para a frente, procurando apoio no arbusto, errou, voltou a tropeçar e caiu pesadamente. Ficou um instante estendido no chão, medindo o barulho que tinha feito. Não seria muito forte. A brisa do mar agitava o brejo. Cem metros adiante, o rio ajuntava à cena a sua nota de preguiçosa tur­bulência. Ouviam-se vozes de grilos e de aves. Bond pôs-se de joelhos e depois em pé. Por onde diabo andavam perdidos os seus pensamentos? Vamos, seu cretino, você tem um tra­balho a fazer! Sacudiu a cabeça para aclarar as idéias. Gen­til anfitrião! Raios o partam! Ia a caminho de matar o gentil anfitrião! Taças de champanha gelado? Pois sim, espere por essa! Abanou furioso a cabeça e, por várias vezes, respirou fundo e devagar. Conhecia os sintomas. Aquilo nada mais era do que um esgotamento nervoso agudo com (fêz a si mesmo essa concessão) o acréscimo de um pouco de febre. Tudo que tinha a fazer era conservar o pensamento e os olhos em foco. Pelo amor de Deus, vamos pôr ponto nos devaneios! Com uma nova e reavivada determinação, expulsou as miragens da mente e atentou para a topografia.

A ponte ficava a uns cem metros dali. Ã esquerda de Bond, os mangues eram mais esparsos e a lama negra apare­cia seca e rachada. Mas ainda havia trechos de terreno mole. Bond levantou a gola do paletó para esconder a camisa bran­ca. Percorreu ainda vinte metros ao longo dos trilhos e do­brou então para a esquerda, mergulhando entre os mangues. Verificou que, se caminhasse sempre rente às raízes destes, a marcha não seria muito difícil. Pelo menos, não havia galhos secos nem folhas que estalassem ou farfalhassem. Procurou avançar, tanto quanto possível, em direção paralela ao rio, mas havia espessas moitas que o forçavam a fazer pequenos rodeios e tinha de calcular a direção pelo estado de resseca-mento da lama e pelo ligeiro aclive do terreno que conduzia à margem do rio. Apontava as orelhas como um animal, atento ao menor som. Seus olhos perfuravam a folhagem à frente. A lama, agora, apresentava-se esburacada pelas tocas de ca­ranguejos, avistando-se aqui e além algumas cascas, rema­nescentes das vítimas de aves e mangustos. Pela primeira vez, mosquitos e biriguis começaram a atacá-lo. Não podia esmagá-los com tapas, mas apenas espremê-los de mansinho com o lenço, que não tardou a ficar encharcado com o sangue que os insetos lhe haviam sugado e com o suor de homem branco que os atraíra.

Bond calculava ter penetrado uns duzentos metros no pantanal quando ouviu uma tossidela breve e controlada.

 

Pasto para os caranguejos

A tosse parecia provir de uns vinte metros de distância, para os lados do rio. Bond dobrou um joelho, os sentidos a explorar os arredores como as antenas dum inseto. Esperou durante cinco minutos. Como a tossidela não se repetisse, avançou de gatinhas, segurando a pistola com os dentes.

Numa pequena clareira de lama seca e rachada, avis­tou o homem. Estacou, procurando acalmar a sua respiração.

Scaramanga estava estirado no solo, com a cabeça apoiada num plexo de raízes de mangue esparramadas. O chapéu e a alta coleira haviam desaparecido. Todo o lado di­reito da roupa estava negro de sangue, sobre o qual junta­vam-se insetos a banquetear-se. Mas os olhos, no semblante impassível, continuavam cheios de vida. Percorriam a clareira com intervalos regulares, explorando. As mãos de Scaraman-ga descansavam sobre as raízes, aos lados do corpo. Não ha­via sinal de revólver.

O rosto de Scaramanga apontou de súbito, como o de um perdigueiro, os olhos detiveram-se num ponto fixo. Bond não podia ver o que lhe prendera a atenção; súbito, porém, uma faixa de sombra sarapintada à orla da clareira mexeu-se e uma grande serpente, com um magnífico desenho de lo­sangos castanho-escuros e castanho-claros, ziguezagueou na lama, apostada em direção ao homem.

Bond observava fascinado. Era, por certo, uma jibóia do gênero Epicrates, atraída pelo cheiro de sangue. Media talvez um metro e meio de comprimento e era absolutamente inofensiva para a espécie humana. Bond perguntou consigo se Scaramanga saberia disso. Sua dúvida não tardou a dis­sipar-se. A expressão do rosto de Scaramanga não mudara, mas sua mão direita desceu sem ruído ao longo da perna, puxou aos poucos a bainha da calça para cima e extraiu uma faca fina como um estilete do cano curto da bota texana. Fi­cou então à espera, a lâmina de través sobre o ventre, não se­gura no punho mas apontada à moda dos atiradores de faca. A serpente parou um instante, a poucos metros do homem, e ergueu bem alto a cabeça para proceder a uma inspeção final. A língua bífida projetou-se várias vezes para fora, inquisitiva­mente; então, com a cabeça sempre erguida, o réptil conti­nuou o seu vagaroso avanço.

Nem um só músculo se contraiu na fisionomia de Sca-ramanga. Apenas os olhos vigiavam pelas fendas estreitas das pálpebras. A serpente alcançou a sombra da perna e su­biu lentamente em direção à camisa que rebrilhava. De re­pente, a língua de aço atravessada sobre o estômago de Sca­ramanga cobrou vida e saltou. Cravou-se na cabeça da cobra, exatamente no centro do cérebro, e trespassou-a, fixando-a ao solo e mantendo-a segura ali, enquanto o possante corpo chicoteava loucamente, procurando segurar-se às raízes de mangue, ao braço de Scaramanga. Mas, assim que encontra­va um ponto de apoio, suas convulsões afrouxavam a presa e o corpo vergastava noutra direção.

As vascas de morte diminuíram e por fim cessaram de todo. A serpente imobilizou-se. Scaramanga procedeu com cautela. Correu a mão sobre o corpo da jibóia, de ponta a ponta. Apenas a extremidade da cauda meneou-se por um breve instante, à direita e à esquerda. Scaramanga extraiu a faca da cabeça da serpente, decepou essa cabeça com um só golpe vigoroso e, após refletir, atirou-a com certeira pontaria na direção de uma toca de caranguejo.

Aguardou, atento, para ver se um caranguejo sairia do buraco para se apoderar dela. Nenhum apareceu. O ruído da cabeça ao cair faria qualquer caranguejo conservar-se no seu esconderijo durante muitos minutos, por mais tentador que fosse o cheiro do objeto causador do ruído.

Ajoelhado entre as moitas, James Bond observava tudo isso, nas menores nuanças, com a mais minuciosa atenção. Cada um dos atos de Scaramanga, cada efêmera expressão de seu semblante, denunciava a consciência que o homem tinha de sua vitalidade. O episódio da serpente, em todos os seus pormenores, era tão revelador quanto um gráfico de temperatura ou de um detector de mentiras. Na opinião de Bond o Sr. Scaramanga, apesar de toda a sua hemorragia e lesões internas, continuava bem vivo. Era ainda um homem temível e perigoso ao extremo.

Concluída a sua tarefa de modo satisfatório, Scara-manga mudou quase imperceptivelmente de posição e, mais uma vez, decímetro por decímetro, esquadrinhou com o olhar penetrante a vegetação em derredor da clareira.

Quando o olhar de Scaramanga passou por êle sem a menor trepidação, Bond felicitou-se pela côr escura de sua roupa — uma mancha negra de sombra entre tantas outras. Em meio aos violentos pretos e brancos do sol meridiano, Bond estava bem camuflado.

Satisfeito, Scaramanga apanhou o corpo flácido da serpente, estendeu-o sobre o seu estômago e fendeu-o cui­dadosamente ao longo da face inferior, até o orifício anal. Decapou-o então, separando com todo o cuidado a pele da carne jaspeada de veias vermelhas, exibindo a precisão de movimentos de um cirurgião. Todos os restos do animal que não desejava para si, atirava-os às tocas de caranguejos, e a cada arremesso um bater de pálpebras no rosto de grani­to expressava o seu agastamento com o fato de ninguém vir apanhar as migalhas da mesa de Creso. Quando ficou pronta a iguaria, perscrutou mais uma vez as moitas e, com a máxi­ma cautela, tossiu e cuspiu na mão. Examinou o resultado e sacudiu a mão para o lado. O respingo da saliva deixou um hierógliío de viva côr rosada no solo negro. A tosse não lhe pa­recia doer nem causar grande esforço. Bond conjeturou que a bala devia tê-lo atingido no lado direito do peito, a poucos milímetros do pulmão. Havia hemorragia e Scaramanga era um caso de hospital, mas a camisa empapada de sangue não revelava toda a verdade.

Satisfeito com a sua inspeção dos arredores, Scara­manga mordeu a carne e imediatamente, como um cão a co­mer, deixou-se absorver pela fome e pela sede do sangue e dos sucos da jibóia.

Bond teve a impressão de que, se saísse agora do seu esconderijo, Scaramanga, como um cão, mostraria os dentes num rosnido furioso. Ergueu-se silenciosamente de sua posi­ção ajoelhada, sacou a pistola e, sem tirar os olhos das mãos do homem, avançou passo a passo até o centro da clareira.

Bond enganava-se. Scaramanga não rosnou. Mal er­gueu os olhos do tassalho de carne de serpente que segurava com ambas as mãos e disse, com a boca cheia:

— Você demorou a vir. Quer partilhar do meu almoço ?

— Não, obrigado. Prefeiro a carne de serpente grelha­da, com molho de manteiga derretida. Continue comendo. Gosto de vê-lo com as duas mãos ocupadas.

Scaramanga sorriu com escárnio e, indicando a sua camisa ensangüentada:

— Com medo de um moribundo? Vocês, godemes, são um bocado frouxos.

— O moribundo mostrou perfeita eficiência ao despa­char essa jibóia. Tem mais armas consigo? — E, como Scara­manga fizesse um gesto para desabotoar o paletó: — Calma! Nada de movimentos bruscos. Basta mostrar a sua cinta, as axilas, e bater nas coxas do lado de dentro e de fora. Eu mes­mo faria isso, se não receasse levar o que a cobra levou. E, já que estamos tratando disso, jogue a sua faca para o meio das árvores. Jogue com a mão por baixo, não atire com a mão por cima, se faz favor. Meu dedo, hoje, está um tanto, nervoso no gatilho. Parece querer agir por conta própria. Eu não gostaria que êle fizesse das suas. Por enquanto, bem entendido.

Com uma sacudidela do punho, Scaramanga jogou a faca no ar. O estilete de aço revoluteou ao sol como uma roda. Bond foi obrigado a arredar-se. A faca cravou-se na lama, no lugar onde êle estivera, e ficou em pé. Scaramanga soltou uma risada áspera. O riso transformou-se em tosse e o ros­to ossudo contorceu-se dolorosamente. Não haveria exagero naquela expressão? Scaramanga cuspia vermelho, mas não tanto assim. A hemorragia devia ser pequena. Talvez uma ou duas costelas quebradas. Poderia ter alta do hospital dentro de duas semanas. O homem largou o seu tassalho de serpen­te e fêz exatamente o que lhe mandara Bond, sem cessar de observar-lhe o rosto com o olhar frio e arrogante de sempre. Depois de terminar, apanhou o pedaço de cobra e começou a roê-lo.

— Satisfeito? — perguntou, erguendo os olhos para o

outro.

— Mais ou menos. — Bond pôs-se de cócoras, manten­do a pistola frouxamente apontada para um ponto entre os dois. — Bem, vamos conversar. Sinto dizer que você não tem muito tempo, Scaramanga. Este é o fim da linha. Você matou demasiados amigos meus. Tenho licença para matá-lo, e é o que vou fazer. Mas comigo será rápido. Não como no caso de Margesson. Lembra-se dele? Você o baleou nos dois joelhos e nos dois cotovelos. Depois fêz com que êle se arrastasse no chão e beijasse suas botas. Cometeu a tolice de se gabar des­sa façanha para os seus amigos em Cuba. A coisa chegou aos nossos ouvidos. Seria interessante saber quantos homens você matou em sua vida.

— Com você, vou arredondar a conta de cinqüenta. — Scaramanga havia roído o último segmento de espinha dor­sal e deixara-o completamente limpo. Atirou-o na direção de Bond. — Coma isso, mendigo, e faça o que veio fazer. Você não me arrancará segredos, se é o que pretende. E não es­queça uma coisa. Eu tenho sido baleado por mestres na pon­taria e ainda estou vivo. Talvez não possa dizer que esteja exatamente cheio de saúde, mas nunca ouvi falar num go-deme que tivesse atirado num homem indefeso e gravemente ferido. Não têm peito para isso. Nós vamos é ficar aqui sen­tados, proseando, até chegar a turma de socorro. Então eu terei muito gosto em responder a processo. De que é que vão me acusar, hem?

— Bem, para começar temos aquele simpático Sr. Rot­kopf com uma de suas famosas balas de prata na cabeça e jogado ao rio dos fundos do hotel.

— Para fazer parelha com o simpático Sr. Hendriks, em cuja cara você meteu uma de suas balas. Quem sabe se não vamos cumprir pena juntos? Isso é que seria formidável, hem? Dizem que a cadeia de Spanish Town é provida de to­dos os confortos. Que lhe parece, godeme? É lá que você vai ser encontrado com uma lambedeira cravada nas costas, na seção de ensacamento. E, por falar nisso, como foi que soube essa história de Rotkopf ?

— Seu micro estava micrado. Parece que você anda meio distraído ultimamente, Scaramanga. Foi infeliz na es­colha de seus auxiliares de segurança. Ambos os gerentes de seu hotel pertenciam à C. I. A. A estas horas a fita deve ir a caminho de Washington. Ela fala também no assassinato de Ross. Percebe o que eu quero dizer? Tudo está desabando nas suas costas.

— Gravações de fita não constituem prova num tribu­nal americano. Mas eu percebo o que você quer dizer. Parece que, de fato, certos erros foram cometidos. Pois muito bem. — Scaramanga fêz um gesto expansivo com a mão direita. — Você leva um milhão de dólares e nos damos por quites?

— No trem me ofereceram três milhões.

— Pois eu dobro isso.

— Não. Sinto muito. — Bond pôs-se em pé. A mão es­querda, às suas costas, fechava-se com força, de horror pelo que ia fazer. Forçou o seu pensamento a considerar a atro­cidade cometida com Margesson, a considerar os outros que esse homen havia morto, e aqueles a quem mataria ainda se Bond fraquejasse. Esse homem era, com toda probabilidade, o mais eficiente eliminador de vidas no mundo inteiro. James Bond o tinha nas mãos. Recebera ordem de matá-lo. Devia dar-lhe fim — tombado por terra, ferido, ou em qualquer ou­tra posição. Bond assumiu um ar de indiferença, procurou fazer-se, friamente, o igual de seu inimigo. — Tem recados que mandar a alguém, Scaramanga? Instruções para dar? Alguma pessoa de quem seja preciso cuidar? Eu me encar­regarei disso, se fôr assunto particular. Guardarei o segredo comigo.

Scaramanga soltou a sua risada áspera, mas cautelo­samente. Desta vez o riso não cedeu lugar à tosse vermelha.

— O perfeito retrato do pequeno gentleman inglês! Tal qual como eu disse. Você não quereria me entregar sua pis­tola e me deixar sozinho por uns cinco minutos, como nos livros? Tem toda a razão, menino! Eu sairia de rastos atrás de você e lhe faria saltar os miolos pelas costas.

Seus olhos ainda perfuravam os de Bond com a ar­rogante superioridade, a fria natureza de super-homem que fizera dele o maior pistoleiro profissional do mundo — o ho­mem que desdenhava a bebida, que não tocava em drogas, o exterminador impessoal que matava por dinheiro e, a julgar pela maneira como o fazia às vezes, pelo simples prazer que isso lhe dava.

Bond observou-o atentamente. Como podia êle conser­var aquela arrogância quando sabia que iria morrer dentro de poucos minutos? Teria um derradeiro ardil preparado? Alguma arma oculta? Mas o homem deixava-se ficar esten­dido no chão, aparentemente tranqüilo, apoiado nas raízes de mangue, o peito a arfar ritmicamente, sem o menor sinal de derrota no rosto de granito. Em sua testa não se via tanto suor como na de Bond. Scaramanga jazia na sombra negra sarapintada de luz. Quanto a James Bond, havia dez minu­tos que permanecia no meio da clareira, sob um sol de fogo. De repente, teve a sensação de que sua vitalidade se estava escoando pelos pés, diluindo-se na lama. E, com ela, também se ia a sua resolução.

— Muito bem, Scaramanga, chegou o momento — dis­se, admirando-se do som áspero de sua própria voz. Levantou a pistola e segurou-a com ambas as mãos, na posição de tiro ao alvo. — Vou fazer com que isto seja o mais rápido possível.

Scaramanga ergueu a mão. Pela primeira vez, seu ros­to deu sinal de emoção.

— O. K., companheiro. — Coisa surpreendente: sua voz suplicava. — Eu sou católico, sabe? Me deixe dizer uma última oração. Está bem? Não levará muito tempo, depois você pode tocar fogo. Todos têm de morrer um dia. Você, no fim das contas, é um ótimo sujeito. É o azar do jogo. Se a minha bala tivesse dado uma polegada, talvez duas polega­das para a direita, quem estaria morto agora seria você. Está certo? Posso dizer minha oração, Mister?

James Bond baixou a pistola. Resolvera conceder uns poucos minutos ao homem. Sabia que não podia conceder mais. A dor, o calor, a fome, a sede... Não tardaria muito que êle próprio se estendesse no chão, ali mesmo, naquela lama dura e rachada, simplesmente para descansar. Se alguém quisesse matá-lo, que matasse. Respondeu numa voz lenta e cansada:

— Está bem, Scaramanga. Um minuto só.

— Obrigado, companheiro.

Scaramanga levou as mãos ao rosto e cobriu os olhos. Ouviu-se um zumbido em latim, que continuava ininterrup­tamente. Bond deixou-se ficar ao sol, a pistola abaixada, vi­giando Scaramanga, mas ao mesmo tempo sem vigiá-lo, com a atenção um pouco embotada pela dor, pelo calor, pela la­dainha hipnótica que provinha do rosto coberto e pelo horror do que êle teria de fazer — dentro de um, talvez dois minutos.

Os dedos da mão direita de Scaramanga caminharam imperceptivelmente para trás, ao longo da face, polegada por polegada, centímetro por centímetro. Chegaram à orelha e ali pararam. O zumbido da oração em latim não mudou nem um instante o seu ritmo lento e embalador.

De repente, a mão saltou para trás da cabeça, a peque­nina Derringer de ouro atroou na clareira. James Bond rodo­piou sobre si mesmo como se houvesse recebido um direto no queixo e caiu pesadamente por terra.

Imediatamente, Scaramnnga pôs-se em pé e avançou com a rapidez de um gato. Apanhou do chão a faca que havia jogado fora e segurou-a com a ponta para a frente, qual cha­mejante língua de prata.

Mas James Bond revirou-se no chão como um animal moribundo e a pistola que tinha na mão detonou furiosa e continuou detonando — cinco vezes, para depois cair-lhe da mão na terra preta, enquanto essa mão buscava o lado direito do corpo e se detinha ali, comprimindo o lugar de onde pro­vinha a terrível dor.

O homenzarrão estacou um momento e alçou os olhos para o azul profundo do céu. Seus dedos abriram-se num es­pasmo e deixaram cair a faca. O coração trespassado vacilou, claudicou e parou de bater. Caiu de todo o comprimento para trás e ficou no mesmo lugar, com os braços estendidos, como se alguém o tivesse jogado fora.

Depois de algum tempo os caranguejos saíram de suas tocas e começaram a farejar os restos da serpente. As carni­ças maiores ficariam reservadas para a noite.

 

A barbada

O garboso policial da turma de socorro desceu da linha férrea para a margem do rio no passo digno e comedido de um guarda jamaicano em serviço de ronda. Nenhum policial jamaicano jamais deita a correr, em hipótese alguma. Seus mestres lhes ensinam que isso não fica bem a uma autorida­de. Felix Leiter, a quem o médico havia aplicado uma injeção de morfina depois de pô-lo na cama, dissera que um homem bom andava à cata de um homem mau no brejo e que talvez houvesse tiroteio. Felix Leiter não fora mais explícito, mas quando acrescentou, que pertencia ao F. B. I. de Washing­ton — um justificável eufemismo — o policial tentou arranjar alguns homens da turma de socorro para acompanhá-lo e, não o conseguindo, foi por sua conta própria, cautelosamen­te, balançando o cassetete com fingido desgarre.

O atroar das pistolas e a explosão de estridentes aves do brejo lhe forneceram um rumo aproximado. Nascera não longe daquele lugar, em Negril, e em menino caçara muita vez nesses pântanos, com funda e arapuca. Nada havia ali que o amedrontasse. Quando chegou ao ponto aproximado, na margem do rio, dobrou à esquerda para o meio das man­gues e, cônscio de que o seu uniforme azul e preto chamava por demais a atenção, esgueirou-se cautelosamente de moita em moita, mergulhando no brejo. A única proteção com que contava éra o seu cassetete e o saber que matar um policial era crime capital, sem atenuantes. Esperava, entretanto, que o homem bom e o homem mau soubessem disso também.

Desaparecidas todas as aves, reinava ali um silêncio de morte. O guarda notou que os caminhos de ratos-do-banhado e outros pequenos animais passavam por êle, convergindo para a zona do seu objetivo. Ouviu então o chocalhar dos ca­ranguejos e um instante depois, de trás de uma espessa moi­ta, vislumbrou o brilho da camisa de Scaramanga. Pôs-se em observação, o ouvido à escuta. Nenhum movimento, silêncio completo. Avançou com dignidade para o centro da clareira, olhou os dois corpos e as duas pistolas, tirou do bolso o apito de níquel da polícia e emitiu três longos sinais. Sentou-se então à sombra de uma moita, sacou o seu caderno de par­tes, molhou o lápis na língua e pôs-se a escrever numa letra laboriosa.

Uma semana mais tarde James Bond voltou a si. Es­tava num quarto de persianas verdes. Imaginava-se, porém, debaixo d'água. O ventilador a girar vagarosamente no teto era a hélice de um navio que não tardaria a apanhá-lo. Na­dava para salvar sua pele, mas de nada adiantava. Estava amarrado, ancorado no fundo do mar. Gritou com toda força dos seus pulmões. Para a enfermeira que o observava aos pés da cama, esse grito foi apenas um gemido sussurrado. Correu logo para êle e pousou-lhe a mão na testa. Enquanto a moça lhe tomava o pulso, James Bond alçou para ela os olhos fora de foco. Então era essa a aparência que tinha uma sereia!

— Você é linda — murmurou êle pondo-se a nadar de volta, cheio de gratidão, para os braços da moça. A enfermei­ra escreveu noventa e cinco na papeleta e telefonou à chefe de seção. Olhou-se no espelho embaciado e arranjou o cabe­lo, preparando-se para receber o O. M. R. encarregado desse doente que parecia ser uma pessoa tão importante.

O Oficial Médico Residente, um jovem jamaicano for­mado em Edimburgo, chegou em companhia da chefe de se­ção, mulher de cara severa e coração excelente, tomada de empréstimo ao Hospital Eduardo VII. O médico escutou as informações da enfermeira, dirigiu-se para a cama e levantou suavemente as pálpebras de Bond. Inseriu-lhe um termôme­tro na axila, segurou-lhe o pulso com uma das mãos e um cronômetro de bolso com a outra, e fêz-se silêncio no pequeno aposento. Lá fora, o tráfego era intenso na estrada de acesso a Kingston.

O doutor largou o pulso de Bond e tornou a enfiar o cronômetro no bolso das calças, em baixo do avental. Escre­veu alguns algarismos na papeleta. A enfermeira abriu a por­ta e os três saíram para o corredor. O doutor falou à chefe de seção e a enfermeira ficou escutando.

— Vai se restabelecer. A temperatura baixou bastante. O pulso um pouco rápido, mas isso pode ser o efeito de ter acordado. Reduza os antibióticos. Mais tarde falarei a esse respeito com a irmã-chefe do andar. Continue a alimenta­ção intravenosa. O Dr. Macdonald virá depois para mudar os curativos. Êle vai acordar de novo. Se pedir de beber, dêem-lhe suco de frutas. Dentro em breve deverá começar a tomar alimentos leves. Um verdadeiro milagre. Não atingiu as vísce­ras abdominais. Nem sequer raspou por um rim. Só músculo. Essa bala estava embebida numa quantidade de veneno sufi­ciente para matar um cavalo. Graças a Deus, aquele homem de Sav' La Mar reconheceu os sintomas da peçonha de cobra e lhe injetou doses maciças de soro antiofídico. Lembre-me para escrever a êle, irmã. Êle salvou a vida deste homem. Bem, então nada de visitas, é claro, durante uma semana ainda, pelo menos. Pode comunicar à Polícia e ao Palácio do Governo que êle está arribando. Não sei de quem se trata, mas me disseram que Londres pede notícias suas todos os dias. É algo que tem que ver com o Ministério da Defesa. Daqui em diante, encaminhe ao Palácio todos os pedidos de informações. Parece que eles lá se consideram responsáveis pelo homem. — O doutor fêz uma pausa.— A propósito, como vai o amigo dele no Número 12? Aquele por quem se têm inte­ressado o Embaixador Americano e o pessoal de Washington. Não está na minha lista, mas vive pedindo para falar com este

Sr. Bond.

— Fratura exposta da tíbia — disse a irmã. — Não há complicações. — E, sorrindo: — Só que é um tanto passado com as enfermeiras. Dentro de uns dez dias poderá andar com uma bengala. Já falou à Polícia. Suponho que isso se relacione com aquela notícia que saiu no Gleaner, sobre os turistas que morreram no desabamento da ponte perto de Green Island Harbour. Mas o "High Commissioner" está tra­tando do assunto pessoalmente. A notícia do Gleaner foi mui­to vaga.

O doutor sorriu.

— Ninguém me conta nada. Ainda bem. Não tenho tempo para ouvir novidades. Bem, muito obrigado, irmã. Pre­ciso ir embora. Acidente grave em Halfway Tree. Não tardam aí as ambulâncias.

Afastou-se apressadamente e a irmã foi tratar de suas ocupações. Toda excitada por essa conversa de alto nível, a enfermeira tornou a entrar de mansinho no quarto de per­sianas verdes, arranjou sobre o ombro direito nu do doente o lençol que o doutor havia puxado para baixo e voltou à sua cadeira aos pés da cama para continuar a leitura de Ebony.

Dez dias depois, o quartinho regurgitava de gente. Ja­mes Bond, apoiado a um montão de travesseiros, contempla­va com um ar divertido a constelação de personagens oficiais que ali se reunira. À sua esquerda achava-se o Comissário de Polícia, resplandecente no seu uniforme preto com insígnias de prata. À sua direita, um juiz do Supremo Tribunal com a indumentária de rigor, acompanhado de um deferente es­crivão. Uma figura maciça, a quem Felix Leiter, de muletas, mostrava especial respeito, fora apresentada como o Coronel Bannister, de Washington. O Chefe do Posto C, um pacato funcionário civil chamado Alec Hill, que viera de Londres por avião, conservava-se junto à porta sem despregar de Bond o olhar apreciativo. Mary Goodnight, que devia tomar notas para lavrar o auto, mas também recebera ordens estritas da chefe de seção para observar qualquer sinal de fadiga em Ja­mes Bond e tinha plena autoridade para suspender a sessão se êle se mostrasse cansado, estava modestamente sentada ao lado da cama, com um bloco de estenógrafo nos joelhos. Mas James Bond não sentia cansaço algum. Estava radiante por ver toda aquela gente e saber que tinha voltado por fim ao mundo dos homens. As únicas coisas que o preocupavam eram não lhe ter sido permitido falar com Felix Leiter antes da reunião para acertarem suas histórias, e terem-lhe respondi­do com bastante laconismo, da parte do Palácio, que não era necessário constituir advogado.

O Comissário de Policia pigarreou e tomou a palavra:

— Comandante Bond, nossa reunião de hoje, aqui, é sobretudo uma formalidade, mas que se realiza em obediên­cia às instruções do Primeiro Ministro e com a aprovação de seu médico. Correm muitos boatos nesta ilha e no estran­geiro, e Sir Alexander Bustamante tem o maior empenho em dissipá-los a bem da justiça e do bom nome da ilha. Portanto, esta reunião tem o caráter de um inquérito judicial instaura­do pela própria Chefia do Gabinete. Esperamos sinceramen­te que, se as conclusões da reunião forem satisfatórias, não haja necessidade de qualquer ação judicial ulterior. O senhor me compreende?

— Sim — respondeu Bond, que em verdade não com­preendia.

—- Ora muito bem — prosseguiu incisivamente o Comissário. — Os fatos averiguados são os seguintes. Re­centemente ocorreu no Thunderbird Hotel, na Paróquia de Westmoreland, uma reunião de pessoas que só podem ser qualificadas como gangsters estrangeiros de assinalada noto­riedade, incluindo representantes do Serviço Secreto Soviéti­co, da Máfia e da Polícia Secreta Cubana. Os objetivos dessa reunião eram, inter alia, a sabotagem das empresas açucarei-ras jamaicanas, o fomento ao cultivo ilícito de ganja na ilha e a compra das safras para exportação, o suborno de uma alta autoridade jamaicana com a mira em introduzir a jogatina na ilha sob a direção de organizações criminosas e várias outras malfeitorias prejudiciais à ordem pública na Jamaica e ao seu bom conceito internacional. O que acabo de dizer é exato, Comandante ?

— Sim — respondeu Bond, desta vez em sã consciên­cia.

— Ora, muito bem. — O Comissário continuou a falar com maior ênfase ainda. — As intenções desse grupo subver­sivo chegaram ao conhecimento do Departamento de Investi­gações Criminais da Polícia Jamaicana e os fatos concernen­tes à projetada conferência foram apresentados pessoalmente por mim ao Primeiro Ministro. Observou-se, como era natu­ral, o mais completo sigilo. Tornou-se preciso, então, chegar a uma decisão sobre a maneira de manter essa conferência debaixo de vigilância e de penetrar nela, a fim de que os pla­nos fossem conhecidos. Como esses planos atingiram nações amigas, inclusive a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, houve entendimentos com os representantes do Ministério da De­fesa da Grã-Bretanha e da Agência Central de Informações dos Estados Unidos. Em conseqüência nos foi generosamen­te fornecido pessoal especializado, constante dos Srs. Bond, Nicholson e Leiter, sem despesas para o Governo Jamaicano, a fim de ajudar a desmascarar essas maquinações secretas contra a Jamaica no próprio solo nacional.

O Comissário fêz uma pausa e correu os olhos pelo quarto para certificar-se de que havia exposto corretamente a situação. Bond notou que Felix Leiter confirmava vigoro­samente com a cabeça, a exemplo dos demais; no seu caso particular, porém, o fazia com o rosto voltado para Bond. Este sorriu. Afinal havia apanhado a mensagem. Também êle as­sentiu com a cabeça.

— Por conseguinte — continuou o Comissário, — e trabalhando sempre na mais íntima ligação com o D. I. C. jamaicano e sob a sua direção, os Srs. Bond, Nicholson e Leiter desempenharam suas missões de forma exemplar. As verdadeiras intenções dos gangsters foram desvendadas, mas infelizmente, durante as diligências veio a descobrir-se a identidade de pelo menos um dos agentes controlados pelo Governo da Jamaica e travou-se uma batalha durante a qual os seguintes agentes inimigos (vem aqui uma lista) foram mortos, graças à superior eficiência do Comandante Bond e do Sr. Leiter no manejo das armas de fogo, e os seguintes (outra lista) na destruição, graças ao engenhoso emprego de explosivos por parte do Sr. Leiter, da ponte sobre o Orange River, na estrada de ferro Lucea-Green Island Harbour, atu­almente convertida para fins de turismo. Infortunadamente, dois dos agentes controlados pelo Governo Jamaicano sofre­ram sérios ferimentos dos quais se estão restabelecendo no Memorial Hospital. Resta mencionar os nomes do Guarda Percival Sampson, da Força Pública de Negril, que foi o pri­meiro a chegar à cena do combate final, e do Dr. Lister Smith, de Savannah La Mar, cujos primeiros socorros prestados ao Comandante Bond e ao Sr. Leiter foram de vital importância. Por ordem do Primeiro Ministro, Sir Alexander Bustamante, realizou-se nesta data um inquérito judicial à cabeceira do Comandante Bond e em presença do Sr. Felix Leiter, a fim de confirmar os fatos acima. Os quais fatos, em presença do Juiz Morris Cargill do Supremo Tribunal, são agora e por este meio confirmados.

O Comissário estava visivelmente encantado com o seu solene engrimanço. Dirigiu um sorriso resplandecente a

Bond.

— Só resta — concluiu, entregando ao enfermo um pacote selado, outro semelhante a Felix Leiter e um terceiro ao Coronel Bannister, — conferir ao Comandante Bond da Grã-Bretanha, ao Sr, Felix Leiter dos Estados Unidos e, in absentia, ao Sr. Nicholas Nicholson dos Estados Unidos, a outorga imediata da Medalha da Polícia Jamaicana, por no­bres e meritórios serviços prestados ao Estado Independente da Jamaica.

Os presentes aplaudiram em surdina. Mary Goodnight continuou a bater palmas depois que os outros haviam ces­sado. Repentinamente deu-se conta disso, corou como uma peônia e parou.

James Bond e Felix Leiter gaguejaram os seus agra­decimentos. O Juiz Cargill pôs-se em pé e, em tom solene, perguntou por turnos a Bond e a Leiter.

— É esta uma relação verídica e exata de tudo que ocorreu entre as datas indicadas?

— Sim, com efeito — respondeu Bond.

— Como não, Excelência! — disse fervorosamente Felix

Leiter.

O Juiz curvou-se. Todos, exceto Bond, ergueram-se e se curvaram. Bond apenas se curvou.

— Neste caso, declaro encerrado o inquérito. — A figu­ra emperucada virou-se para Miss Goodnight. — Quer ter a bondade de colher todas as assinaturas, devidamente auten­ticadas, e enviá-las ao meu escritório? Muito agradecido. — Fêz uma pausa e sorriu. — E a cópia em carbono, se faz favor.

— Sem dúvida, milorde. — Mary Goodnight relanceou os olhos para Bond. — E agora, se me permitem, acho que o doente necessita de repouso. A irmã insistiu muito...

Fizeram-se as despedidas. Bond chamou Leiter, pedin­do-lhe para voltar. Mary Goodnight farejou segredos privados.

— Bem, um minuto só! — advertiu ela. Depois saiu e cerrou a porta.

Leiter debruçou-se sobre a guarda dos pés da cama, com o mais irônico dos sorrisos afivelado no rosto.

— Diabos me levem, James! Esta foi a maior barbada de que já me escapei mentindo. Ficamos limpos como dois anjinhos e até abiscoitamos um bentinho cada um.

A fala começa pelos músculos do abdome. Os ferimen­tos de Bond haviam começado a doer. Sorriu, ocultando a dor. Leiter teria alta nessa tarde. Bond não queria despedir­se dele. Prezava muito os seus amigos masculinos e Felix Lei­ter representava uma grande fatia de seu passado.

— Scaramanga era um grande tipo — disse êle. — De­víamos tê-lo apanhado vivo. Quem sabe se Tiffy não lhe pôs realmente um feitiço com Tia Edna? Não é todos os dias que se encontra um sujeito assim.

Leiter não mostrou nenhuma simpatia por esse ponto-de-vista.

— É assim que vocês, os bifes, falam de Rommel, Dõ-nitz e Guderian. Para não citar Napoleão. Depois de derrotá-los, transformam-nos em heróis. Isso não faz sentido para mim. No meu modo de ver, um inimigo é um inimigo. Você gostaria de ter Scaramanga de volta? Agora neste quarto, com o famoso revólver de ouro apontado para você — o de cano comprido ou o de cano curto? Aqui, nos pés de sua cama? Aposto mil contra um como você não quereria isso. Não seja besta, James. Você fêz um ótimo trabalho. Combate às pra­gas. Alguém tinha de fazê-lo. Vai voltar para o serviço quando tiver deixado o suco de laranja? — Felix Leiter considerou-o com um ar escarninho. — Claro que vai, seu cabeça dura. Foi para isso que você foi posto no mundo. Combate às pragas, como eu já disse. Tudo com que você precisa preocupar-se, é a melhor maneira de combatê-las. Nunca faltarão pragas por aí. Deus fêz os cachorros. Também fêz as pulgas que vivem em cima dos cachorros. Não torture a sua cabecinha com essas coisas, tá bem?

Leiter havia notado o suor na testa de James Bond. Dirigiu-se a coxear para a porta e abriu-a. Ergueu brevemen­te a mão. Os dois homens nunca se haviam apertado as mãos em suas vidas. Leiter olhou para o corredor e disse:

— Muito bem, Miss Goodnight. Diga à irmã que pode considerá-lo fora de perigo. E diga a êle que não chegue perto de mim durante uma semana ou duas. Cada vez que me en­contro com esse camarada, perco um pedaço do meu corpo. Não me agrada fazer o papel do Homem Que Desaparece.

Tornou a saudar Bond com sua única mão e saiu, sem­pre a coxear.

— Espere, seu patife! — gritou Bond. Mas quando Lei­ter tornou a entrar no quarto, Bond, sem forças para despejar a rajada de palavrões que eram a única resposta que tinha para dar ao seu amigo, havia perdido os sentidos.

Mary Goodnight enxotou do quarto o contrito america­no e saiu precipitadamente pelo corredor em busca da irmã-chefe.

 

Ponto final

Uma semana depois estava James Bond sentado numa cadeira de encosto vertical, com uma toalha em volta da cin­tura, lendo The Craft of Intelligence, de Allen Dulles, e amal­diçoando a sua sorte. O hospital operara milagres nele, as enfermeiras eram amabilíssimas, particularmente aquela a quem chamava A Sereia, mas o que queria era ver-se em li­berdade. Olhou para o seu relógio. Quatro em ponto, hora de visitas. Mary Goodnight não tardaria a chegar, e poderia então descarregar sobre ela o seu excesso de pressão. Seria uma injustiça, talvez, mas já havia descomposto todo mundo ao seu alcance no hospital e, se Mary se apresentasse ao al­cance do fogo, tanto pior para ela!

Mary Goodnight surgiu à porta. A despeito do calor jamaicano, parecia fresca como uma rosa. Diabos a levem! Carregava um objeto com o aspecto de uma máquina de es­crever. Bond reconheceu a decifradora Três-X. Que história era aquela?

Bond respondeu de mau modo, com monossílabos ros­nados, às indagações de Mary sobre a sua saúde.

— Para que raios trouxe isso ? — perguntou.

— É um Exclusivo Agentes. Pessoal, da parte de M. — disse ela em voz emocionada. — Cerca de trinta grupos.

— Trinta grupos? Esse velho cão não sabe que eu só te­nho um braço funcionando? Vamos, Mary. Faça o seu ofício.

Se fôr mesmo interessante, eu tomo o seu lugar.

Mary Goodnight pareceu escandalizada. Exclusivo A­gentes era um prefixo sagrado. Mas James Bond espichava perigosamente o queixo. Hoje não era dia para discussões. Mary sentou-se na beira da cama, abriu á máquina e tirou um cabograma da sua bolsa. Colocou o bloco de estenografia ao lado da máquina, coçou a nuca com o lápis para melhor calcular a cifra do dia — um cálculo complicado, envolvendo a data e a hora de remessa do cabograma — armou a cifra no cilindro central e começou a manejar a alavanca. Depois que cada palavra completa aparecia na janelinha oblonga da base da máquina, ela a registrava no bloco.

James Bond observava-lhe a expressão do rosto. Mary parecia contente. Ao cabo de alguns minutos, leu:

"M PESSOAL PARA 007 EXCLUSIVO AGENTES PON­TO RECEBIDOS SEU RELATÓRIO E DITO DE MAIORES AMIGOS (um eufemismo para designar a C. I. A.) PONTO O SENHOR AGIU BEM EXECUTANDO DIFÍCIL E ARRISCADA OPERAÇÃO PARA MINHA INTEIRA REPITO INTEIRA SATIS­FAÇÃO PONTO ESPERO SUA SAÚDE NAO TENHA SOFRIDO (Bond bufou com raiva) PONTO QUANDO TORNARÁ A SE APRESENTAR AO SERVIÇO INTERROGAÇÃO."

Mary Goodnight sorriu, deleitada.

— Nunca o vi tão amável assim! E você, já viu, James? Essa repetição de INTEIRA! É fantástico!

Fitou-o esperançosa, para ver se as nuvens escuras se haviam dissipado do seu rosto. Secretamente, Bond estava encantado, mas por nada deste mundo o teria mostrado a Mary Goodnight. Hoje, ela não passava de uma das carce­reiras que lhe cerceavam os movimentos, que o amarravam àquele quarto.

— Não está mau para o velho — disse, de má vonta­de. — Mas o que êle quer é me ver de volta naquela maldita escrivaninha. Em todo caso, por enquanto é puro palavrório. Que é que vem depois?

Pôs-se a folhear as páginas do livro de Allan Dulles, procurando aparentar desinteresse pelos zumbidos e cliques da maquinazinha.

— Oh! James! — explodiu Mary Goodnight, toda emo­cionada. — espere! Está quase terminado. Isto é fantástico !

— Já sei — comentou êle com azedume. — Cupom grá­tis para o almoço às sextas-feiras, de quinze em quinze dias. A chave do banheiro particular de M. Fatiota nova para subs­tituir a outra que, não se sabe por que, ficou toda esburaca­da. — Mas não tirava os olhos dos dedos a dançar velozes, contaminado pela emoção de Mary Goodnight. Que diabo de coisa seria essa que a punha daquele jeito? E tudo por sua causa! Examinou-a com um olhar de aprovação. Instalada na beira da cama, impecável na sua blusa de tussor branco e saia bege ajustada ao corpo, um bonito pé enrascado no outro em sua concentração, o rosto incandescente de prazer sob o cabelo côr de ouro e um tanto curto. Era, pensou Bond, uma garota para se ter sempre junto de si. Como secretária, ou como quê? Mary Goodnight voltou para êle os olhos cin­tilantes e a pergunta, como há semanas vinha acontecendo, ficou sem resposta.

— Agora escute bem isto, James. — Mary sacudiu o bloco de notas diante dele. — E, pelo amor de Deus, não faça essa cara atrabiliária!

Bond sorriu da palavra.

— Está bem, Mary. Toque para a frente. Pode esvaziar no chão a meia de Natal. Espero que não me rebente nenhum ponto.

Largou o livro no colo. O rosto de Mary Goodnight as­sumiu um ar portentoso.

— Escute bem isto! — repetiu em voz grave. E leu com todo o cuidado:

"VISTO O CARÁTER EXCEPCIONAL DOS SERVIÇOS ACIMA MENCIONADOS E SEU VALOR PARA A CAUSA ALIA­DA VÍRGULA O QUAL É TALVEZ MAIOR DO QUE O SENHOR IMAGINA VÍRGULA O PRIMEIRO MINISTRO TENCIONA RE­COMENDAR A SUA MAJESTADE A RAINHA ELISABET A OU­TORGA IMEDIATA DO GRAU DE CAVALEIRO PONTO ESTE TOMARÁ A FORMA DE UM KATIE ACRESCENTADO COMO PREFIXO AO SEU CHARLIE MICHAEL GEORGE PONTO."

(James Bond fêz um riso defensivo, embaraçado. — Essas codificadoras! Nem lhes passaria pela cabeça a idéia de pôr KCMG... Seria simples demais! Continue, Mary. Isto está ótimo!)

"É PRAXE INDAGAR DA PESSOA A SER AGRACIADA SE ACEITA ESTA ELEVADA HONRARIA ANTES QUE SUA MAJESTADE LHE APONHA O SEU SELO PONTO CABOGRA-MA EXPRIMINDO SUA ACEITAÇÃO DEVE SER SEGUIDO DE CARTA DE SEU PRÓPRIO PUNHO PARÁGRAFO ESTA OU­TORGA CONTA NATURALMENTE COM MEU APOIO E INTEI­RA APROVAÇÃO PONTO ENVIO-LHE MINHAS CONGRATU­LAÇÕES PESSOAIS PONTO FINAL MAILEDFIST"

James Bond tornou a esconder-se atrás da sua barri­cada.

— Por que demônio êle tem de assinar sempre Mailed-fist em vez de M.? Existe uma palavra perfeitamente adequa­da para esse fim, que é eme, ou quadratim, uma medida usa­da pelos tipógrafos. Mas está claro que não é suficientemente pomposa para o Chefe. No fundo êle é um romântico como todos os patetas que entram para o Serviço.

Mary Goodnight baixou as pálpebras. Sabia que o re­flexo de Bond ocultava o seu prazer — um prazer que êle não teria deixado transparecer por preço algum. Quem não se sentiria lisonjeado, orgulhoso com aquilo? Mary assumiu um ar despachado.

— Bem, você não gostaria que eu redigisse alguma coi­sa para você mandar? Posso estar de volta com a resposta às seis horas, e sei que me deixarão entrar. Posso perguntar aos auxiliares do High Commissioner a fórmula correta a usar. Sei que começa assim: "Apresento meus humildes respeitos a Sua Majestade". Estive ajudando os agraciados da Jamaica no Ano Novo e no aniversário da Rainha. Todo mundo queria saber a fórmula.

James Bond enxugou a testa com o lenço. Evidente­mente, estava satisfeito! Mas, acima de tudo, satisfeito com os elogios de M. Quanto ao resto, êle bem o sabia, não es­tava nas suas constelações. Jamais fora um homem públi­co e não ambicionava tornar-se tal. Não tinha preconceitos contra as letras honoríficas, depois de um nome ou antes dele. Mas havia uma coisa que prezava acima de tudo. Sua intimidade. Seu anonimato. Tornara-se uma figura pública, um homem que, no mundo esnobe da Inglaterra, de qualquer nação, seria chamado a inaugurar coisas, lançar pedras fun­damentais, fazer discursos de sobremesa, era uma idéia que lhe fazia brotar o suor nas axilas. "James Bond"! Nenhum nome no meio. Nenhum hífen. Um nome pacato, desenxabi-do, anônimo. Por certo, era Comandante na Seção Especial da Reserva de Voluntários da Real Armada, mas raramente usava esse título. O mesmo quanto ao C. M. G. Enfeitava-se com êle talvez uma vez por ano, juntamente com suas duas fileiras de bentinhos, porque havia um banquete em home­nagem aos Meninos Velhos — a confraria de aposentados do Serviço Secreto, conhecida como o "Clube das Duas Serpen­tes". Era uma lúgubre solenidade que tinha por palco o salão de banquetes de Blades e que causava enorme prazer a uma porção de pessoas que tinham sido valentes e atiladas em seus bons tempos, mas agora padeciam de doenças de velhos e velhas e falavam de prístinos triunfos e tragédias que, como jamais seriam registrados pelos livros de História, tinham de ser recontados mais uma vez naquela noite, diante do Cock-burn 1912, depois do brinde à Rainha, para algum vizinho de mesa como James Bond, que só se interessava pelo que iria acontecer amanhã. Era então que usava os seus bentinhos e o C. M. G. por baixo da gravata preta — para dar prazer e conforto às Crianças Velhas em sua festa anual. Durante o resto do ano, até que May as viesse polir para a ocasião, as medalhas ficavam acumulando pó em algum repositório se­creto onde ela as guardava.

Portanto, James Bond disse a Mary Goodnight, evi-tando-lhe o olhar:

— Mary, isto é uma ordem. Tome nota do que segue e envie esta noite. Está bem? Comece com "MAILEDFIST EX­CLUSIVO AGENTES (Bond comentou: Eu poderia acres­centar INTERMÉDIO MONEYPENNY. Há quanto tempo M. não toca numa máquina decifradora?) ACUSO MUITO GRA­TO RECEBIMENTO SEU (ponha o número aí, Mary) PONTO AUTORIDADES HOSPITAL INFORMAM QUE SEREI DEVOL­VIDO A LONDRES EM CONDIÇÕES DE SERVIÇO DENTRO DE UM MÊS PONTO COM REFERÊNCIA SUA RECOMEN­DAÇÃO PARA ALTA HONRARIA ROGO-LHE APRESENTAR MEUS HUMILDES RESPEITOS SUA MAJESTADE SOLICI­TANDO ME SEJA PERMITIDO VÍRGULA COM TODA A HU­MILDADE VÍRGULA DECLINAR ASSINALADO FAVOR QUE

SUA MAJESTADE BONDOSAMENTE SE PROPÕE CONFE­RIR A SEU HUMILDE E OBEDIENTE SERVO PARÊNTESE A MAILEDFIST POR OBSÉQUIO QUEIRA TRANSMITIR ISTO EM TERMOS APROPRIADOS AO PRIMEIRO MINISTRO PON­TO MINHA PRINCIPAL RAZÃO É NÃO QUERER PAGAR MAIS CARO EM HOTÉIS E RESTAURANTES PARÊNTESE." Mary Goodnight atalhou-o, horrorizada.

James! O resto é problema seu, mas você, positiva­mente, não pode dizer esta última frase.

Bond anuiu com a cabeça.

Era só para ver a sua reação, Mary. Muito bem, va­mos começar de novo no último PONTO. Escreva: "SOU UM CAMPONÊS DA ESCÓCIA E SEMPRE ME CONTENTAREI EM

SÊ-LO PONTO SEI VÍRGULA SENHOR VÍRGULA QUE HA DE COMPREENDER MINHA ATITUDE E QUE POSSO CONTAR COM SUA INDULGÊNCIA PARÊNTESE SEGUE IMEDIATA­MENTE CARTA CONFIRMANDO PARÊNTESE PONTO FINAL

ZERO.ZERO SETE."

— Francamente, James! Você tem certeza de que não seria melhor dormir sobre o caso? Eu sabia que você estava de mau humor hoje. Amanhã poderá ter mudado de pensar. Não lhe agradaria ir ao Palácio Buckingham para ver a Rai­nha e o Duque de Edimburgo, ajoelhar-se, ter o ombro tocado com uma espada e ouvir a Rainha dizer:

"Erguei-vos, Sir James", ou seja lá o que fôr que ela diz nessas ocasiões?

Bond sorriu.

— Tudo isso me agradaria, sim. É a veia romântica do S. I. S. ... e o do escocês, para dizer a verdade. Mas nego-me terminantemente a usar o nome de Sir James Bond. Iria rir de mim mesmo todas as vezes que me barbeasse diante do espelho. Isso simplesmente não está no meu feitio, Mary. Só a idéia de tal coisa me causa arrepios. Sei que M. me compre­enderá. Êle pensa, mais ou menos como eu a respeito dessas coisas. O diabo é que teve de herdar o "K" juntamente com o seu cargo, por assim dizer. Seja como fôr, minha resolução é essa e não vou mudar de idéia. Portanto, você pode passar o cabograma e esta noite escreverei a M. uma carta de confir­mação. Algum outro assunto?

-—Bem, há uma coisa, James. — Mary Goodnight bai­xou os olhos para o seu bonito nariz. — A irmã-chefe disse que você pode deixar o hospital no fim da semana, mas que serão necessárias outras três semanas de convalescença. Tem em vista algum lugar para onde ir? Será preciso ficar em contato com o hospital.

— Não tenho nenhuma idéia. Que é que você sugere?

— Bem, hã... Eu tenho aquela pequena vila para os la­dos da represa de Mona, James. — E, apressando a voz: — Há um quarto de hóspedes bem bonzinho, com vista para o porto de Kingston, e lá em cima é mais fresco. E, se você não se importa de compartilhar comigo o quarto de banho. — Mary fêz-se vermelha. — Infelizmente não tenho companhia, mas, como você sabe, na Jamaica ninguém liga a essa espécie de coisas.

— Que espécie de coisas? — perguntou Bond para bu­lir com ela.

— Não seja pateta, James. Você sabe, casais solteiros morando na mesma casa, etc. e tal.

— Oh! essa espécie de coisas! Me parece bastante arro­jado. A propósito, a decoração de seu quarto de dormir é em côr-de-rosa, com persianas brancas, e você dorme debaixo de um mosquiteiro?

Ela pareceu surpreendida.

— Sim. Como foi que soube ? — Como êle não respon­desse, apressou-se a continuar: — Além disso, James, não fica longe do Liguanea Club, onde você pode ir jogar bridge, ou golfe quando estiver bastante melhor. Não faltará gente com quem conversar. E depois, naturalmente, eu posso cozi­nhar e prender botões para você, etc. e tal.

De todos os grafitos fatais que uma mulher sabe es­crever na parede, são esses os mais insidiosos, os mais mor­tíferos.

James Bond, na plena posse de seus sentidos, com os olhos bem abertos, os pés bem plantados no piso de linóleo, meteu todo feliz a cabeça na armadilha forrada de "vison".

—- Goodnight — disse, com toda a sinceridade,—você é um anjo.

Ao mesmo tempo sabia, lá no fundo de suas entranhas, que o amor de Mary Goodnight, ou de qualquer outra mulher, não lhe bastava. Seria o mesmo que tomar "um quarto com vista". Para James Bond, a mesma vista acabaria sempre por enfastiar.

 

Scaramanga, impiedoso assassino a soldo de for­ças internacionais de subversão e beligerância, é o homem mais temido e visado pelo Serviço Secreto de Sua Majestade na Zona do Caribe.

Compete ao Agente 007 exterminá-lo. Dado como morto há mais de um ano, depois da sua tumultuada atuação no Japão, James Bond rea­parece em Londres, inesperadamente, com uma nova missão: matar M. Prisioneiro do K. G. B., fora submetido á uma lavagem cerebral para ser empregado como arma contra o seu próprio chefe. Mas o sistema de segurança do Serviço Secreto lhe frustra os desígnios. Capturado e curado, sua única oportunidade para se manter em sua. função de Agente Secreto 'é pôr fim à vida dó Homem do Revólver de Ouro.

É esta a última novela escrita por Ian Fleming.

Alguns dias após ter entregue os originais da última missão de James Bond, foi vitimado por um enfarte fulminante.

 

                                                                                            Ian Fleming

 

 

                      

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