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MUSASHI – Vol II / Yoshikawa, Eiji
MUSASHI – Vol II / Yoshikawa, Eiji

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MUSASHI

Volume II

 

 

O Fogo - O Vento

 

A MELANCIA

As águas do Yodogawa — rio que em Kyoto corre por terras de Fushimi-Momoyama, sede do castelo Fushimi — seguem seu curso e vêm, algumas dezenas de quilômetros adiante, banhar também as pedras da muralha do castelo de Osaka, na baía de Naniwae[1], constituindo uma ligação natural entre os dois castelos. Talvez seja esse o motivo por que qualquer medida política tomada em Kyoto chegue ao conhecimento do castelo de Osaka instantaneamente e, em contrapartida, qualquer movimentação militar nos arredores de Osaka alcance com incrível precisão os ouvidos dos senhores do castelo Fushimi[2].

Em torno desse extenso rio que atravessa as províncias de Settsu e Yamashiro a sociedade japonesa passava, nesses dias, por uma revolução cultural em que duas correntes se mesclavam. No castelo de Osaka, Toyotomi Hideyori e sua mãe, Yodo-gimi — a dama de Yodo — lançavam mão de todos os recursos na tentativa de ostentar um poder que já não detinham depois da morte de Toyotomi Hideyoshi, mas seus esforços constituíam um melancólico espetáculo, semelhante ao do sol que aos poucos descamba no ocaso. O castelo Fushimi, por seu lado, estava ocupado por Tokugawa Ieyasu desde a batalha de Sekigahara, que se empenhava em traçar novos rumos políticos e econômicos para o país, reformulando radicalmente as diretrizes governamentais anteriores estabelecidas pelo falecido Toyotomi Hideyoshi. A mistura das duas correntes envolvendo dois pólos de poder — um em declínio representado pelo castelo de Osaka, e outro em ascensão, representado pelo castelo Fushimi — era patente em toda parte, como, por exemplo, nos barcos que singravam as águas do rio Yodo, em homens e mulheres caminhando pelas margens, nas canções populares, em rostos de rounin à procura de emprego.

— E agora, o que acha que vai acontecer?

O assunto vinha sempre à baila, pois interessava a todos.

— Acontecer onde?

— No país, ora!

— Muita coisa vai mudar, isto é certo. Aliás, desde os tempos de Fujiwara Michinari, nem um dia sequer se passou sem mudanças. E depois que as casas Genke e Heike entraram em disputa pelo poder, as mudanças passaram a acontecer com maior rapidez.

— Isto quer dizer que teremos guerra de novo.

— As coisas tomaram tal rumo que já não há caminho de volta possível. Não há força capaz de conduzir o país pacificamente.

— Dizem que em Osaka estão arregimentando rounin de outras províncias.

— Com certeza. Que ninguém nos ouça, mas soube que Tokugawa-sama também está comprando uma montanha de rifles e pólvora dos navios mercantes bárbaros.

— Mas se é assim, por que é que ele deu em casamento sua neta, Sen-hime, a Toyotomi Hideyori?

— Nossos grandes líderes são sábios; nós, do povo, é que somos incapazes de compreender suas razões.

Sob o sol inclemente, as rochas ardiam, o rio fervia. O outono já se aproximava, mas o calor, nesse fim de estação, tornara-se ainda mais intenso que durante o auge do verão.

A beira do rio Yodo, na cabeceira da ponte Kyobashi, chorões esbranquiçados de calor pendiam seus ramos. Uma cigarra cruzou o rio e voou cegamente, desaparecendo entre as casas da vila. Àquela hora do dia a vila perdera a feérica beleza que as luzes noturnas costumavam lhe emprestar. Brancas, queimadas de sol, as telhas de madeira pareciam cobertas por fina camada de cinza. A montante e a jusante do rio havia um considerável número de barcaças atracadas, todas elas carregadas de pedra. Onde quer que a vista alcançasse viam-se apenas pedras — sobre o rio, pedras nas margens.

As pedras em questão eram blocos de rocha, na maioria grandes, suas superfícies medindo aproximadamente quatro metros quadrados. Era hora do almoço. Indiferentes ao calor, carregadores — homens contratados para arrastar os blocos de rocha — gozavam momentos de descanso, alguns sentados sobre as rochas escaldantes, outros deitados de lado ou de costas. Nas proximidades, bois de carga dos carroções que transportavam toras mantinham-se imóveis, baba escorrendo de suas bocas e enxames de moscas cobrindo seus corpos.

Estava em curso a reforma do castelo Fushimi.

Contrariamente ao que parecia, no entanto, Tokugawa Ieyasu — então se fazendo chamar Ogosho ou Grande Líder — não se hospedava ali. As reformas casteleiras simplesmente faziam parte do programa de governo Ieyasu, no período pós-guerra.

Obrigando os suseranos das diversas províncias a reformar seus castelos,

Ieyasu mantinha os fudai daimyo — senhores feudais de sua confiança — sempre ocupados, em constante estado de alerta, ao mesmo tempo em que dilapidava as posses dos tozama daimyo[3] — suseranos que não gozavam de sua total confiança — levando-os a se exaurir financeiramente

Uma outra razão ocultava-se por trás da política de reconstrução castelar: as grandes obras de construção civil eram o meio mais eficiente de distribuir renda pelas camadas sociais mais baixas e promover a rápida e entusiástica aceitação popular do governo Tokugawa. Eis por que as reformas dos castelos se sucediam em todo o país. Entre as maiores estavam as dos castelos de Edo, Nagoya, Sunpu, Echigo-Takata, Hikone, Kamiyama, Otsu, etc.

 

Cerca de mil homens vinham diariamente em busca de trabalho a dia, apenas nas obras do castelo Fushimi. A grande maioria deles era empregada na construção da nova muralha. Em conseqüência do espantoso afluxo de trabalhadores, a cidade de Fushimi viu de pronto crescer sua população de prostitutas, vendedores ambulantes e moscas, as últimas atraídas pelo excessivo número de cavalos e bois de carga.

— Tudo prospera, graças a Tokugawa-sama — dizia o povo, louvando as medidas adotadas pelo governo Ieyasu.

Ao mesmo tempo, oportunista e interesseira como sempre, a classe mercantil especulava febrilmente, ábaco em punho aferindo cada fenômeno social:

— Se estourar outra guerra... será a minha oportunidade de lucrar. Mercadorias trocavam de mãos em silêncio — suprimentos militares na

sua grande maioria, era óbvio.

As pessoas abandonavam o saudosismo e a lembrança dos gloriosos dias do domínio Toyotomi, e já começavam a preocupar-se: como lucrariam na nova ordem política estabelecida pelo governo Tokugawa? Não lhes importava quem detinha o poder. Bastava-lhes apenas que seus insignificantes desejos fossem atendidos e a subsistência assegurada.

E Ieyasu não traiu os anseios da plebe rude. Satisfazer o povo foi para ele, com certeza, tarefa mais agradável que distribuir doces entre criancinhas, mormente porque os recursos financeiros não provinham da casa Tokugawa, mas dos gordos cofres dos fuzai daimyo, cujas finanças Ieyasu solapava enquanto aumentava a própria popularidade.

A par dessas medidas na área urbana, na área rural o governo Tokugawa passou a exercer um controle rigoroso sobre a produção agrícola, impedindo a requisição aleatória da safra e negando o direito de cada feudo a ela, como era costume até então. Desse modo, Ieyasu lentamente estabelecia as bases da política feudal Tokugawa.

“Não explique medidas políticas à plebe, imponha-as”, e “Quanto aos agricultores, constitui ato de caridade conceder-lhes apenas o suficiente para viver, sem lhes permitir extravagâncias”, eram princípios da política centralizadora do governo de Ieyasu.

Essa política — condição prévia do estado feudal controlador — traria conseqüências que se fariam sentir indiscriminadamente sobre toda a população, desde os mais ricos senhores feudais aos mais humildes lavradores, e acabaria por imobilizá-los, amarrando-lhes mãos e pés por mais de três gerações. Mas, nesse momento, ninguém pensava num futuro cem anos distante. Aliás, nem no amanhã pensavam os trabalhadores que vinham ganhar o dia erguendo e arrastando blocos de rocha.

Saciada a fome do meio-dia, o máximo que podiam desejar era a rápida chegada da noite. Ainda assim, em vista da atual situação, perguntavam-se incessantemente:

— Vai haver outra guerra?

— Quando?

Ninguém, no entanto, se preocupava com a situação política ou se detinha questionando os rumos da paz, uma vez que esses homens tinham apenas uma certeza: “Para nós, pior do que está não há de ficar, mesmo que venha uma nova guerra.”

— Quem quer melancias?

Como sempre acontecia na hora do descanso, uma jovem, filha de lavradores, surgiu carregando um cesto de melancias e as ofereceu aos trabalhadores. Um grupo que jogava bakuchi à sombra de algumas rochas comprou duas.

— E vocês, não querem melancia? Quem me compra uma melancia? — repetia a jovem andando de grupo em grupo, mas as respostas eram quase sempre as mesmas:

— E eu lá tenho dinheiro, sua idiota?

— Só se for de graça!

Nesse instante, um jovem trabalhador, pálido e solitário, que se acomodara entre duas rochas abraçando os joelhos, levantou o olhar mortiço e murmurou:

— Melancia...

Magro, queimado de sol, olhos fundos e faces encovadas, quase irreconhecível, o jovem carregador era Hon’i-den Matahachi.

 

Matahachi contou sobre a palma da mão algumas moedas, sujas de terra. Entregou-as à vendedora e comprou uma melancia. Em seguida, ajeitou a fruta no colo, recostou-se molemente nas pedras e permaneceu alguns minutos imóvel e cabisbaixo.

De súbito, curvou-se para a frente e, apoiando-se numa das mãos, vomitou saliva ruidosamente sobre a relva, como um boi. A melancia rolou do seu colo, mas Matahachi não tinha sequer ânimo para recuperá-la. Pelo visto, não tivera a intenção de comê-la quando a comprara. Seu olhar mortiço apenas fixava a melancia. Seus olhos eram duas esferas de vidro vazias, sem vontade ou esperança. Seus ombros ondulavam a cada respiração.

“Malditos...”

Em sua mente surgiam apenas vultos odiosos: a face branca de Okoo, a imagem de Takezo. “Ah, se não fosse Takezo..., se não tivesse conhecido Okoo”, não podia deixar de pensar, ao retraçar desde a origem o caminho que percorrera até a sua atual e degradante situação.

A batalha de Sekigahara fora o primeiro passo em direção ao desastre. O segundo, a sedução de Okoo. Não fossem esses dois fatores, ainda estaria em sua terra natal. Seria hoje o líder de seu clã, estaria casado com uma linda mulher, seria sem dúvida alvo de inveja dos aldeões.

“Otsu deve me odiar tanto! Como estará ela?”

Ultimamente, pensar em Otsu era o seu único consolo. Mesmo no tempo em que vivia com Okoo, o coração de Matahachi voltara-se para Otsu a partir do momento em que percebera a verdadeira personalidade da viúva. Mais tarde, partira, ou melhor dizendo, fora expulso da Hospedaria Yomogi — a casa dirigida por Okoo — quando então passara a pensar em Otsu com maior freqüência ainda.

Nessa época, Matahachi sentira o brio ferido ao saber que Miyamoto Musashi — o jovem espadachim em ascensão cujo nome andava na boca dos samurais em Kyoto — era, na verdade, seu amigo de infância Takezo.

“Muito bem: se ele pode, eu também posso!” Parou de beber, chutou longe a indolência e procurou mudar de vida. “Vai ver quanto eu valho, Okoo. Espere só!”

Não achou, contudo, um emprego conveniente de uma hora para outra. Tarde demais percebeu, com amargura e nitidez, o tamanho do erro que cometera ao se alhear de tudo e viver cinco anos à custa de uma mulher mais velha.

“Qual o quê, ainda há tempo. Tenho apenas 22 anos. Hei de vencer, custe o que custar.”

Era o tipo de conclusão exaltada a que qualquer um chegaria, mas procurar emprego no canteiro de obras do castelo Fushimi exigira de Matahachi um tocante esforço e representara um verdadeiro salto de olhos vendados sobre um precipício que o destino — achava ele — abrira por engano à sua frente. E foi assim que — nem ele sabia de onde tirara tanta resistência — viera se dedicando àquele trabalho braçal sob o sol escaldante ao longo de todo o verão e o começo do outono.

“Ainda serei famoso. Por que não, se Musashi conseguiu? Nada disso, serei ainda mais famoso que ele e então me farei respeitar. Nessa hora me vingarei de Okoo também. Esperem mais dez anos...”

Mas — repentinamente lhe ocorreu — quantos anos teria Otsu daqui a dez anos? Ela era um ano mais nova que Takezo e ele. Dentro de dez anos, Otsu teria 31 anos!

“Otsu continuaria solteira até lá, à minha espera?” Matahachi ignorava os recentes acontecimentos de sua terra. Concluiu, então, que dez anos era tempo demais, tinha de ser dentro de cinco ou seis anos, no máximo. Precisava retornar à vila nesse interim, pedir perdão a Otsu e casar-se com ela. “É isso! Tenho cinco ou seis anos, no máximo!”

O olhar mortiço que fixava a melancia brilhou discretamente. E então, do outro lado de uma volumosa rocha, um dos seus companheiros voltou-se apoiado sobre o cotovelo e disse:

— Ei, Matahachi, está falando sozinho? Ué, que cara verde, você está muito abatido! Que foi? A melancia estava podre e lhe deu dor de barriga?

 

Matahachi forçou um sorriso e, na mesma hora, sentiu uma desagradável tontura. Cuspiu sobre a relva e balançou a cabeça negativamente:

— Não... Não é nada, deve ser o calor... Preciso de um descanso no turno da tarde. Vocês me cobririam?

— Olhem só, o molengas! — disse o robusto companheiro, lançando-lhe um olhar que continha um misto de desprezo e piedade. — E essa melancia, para que a comprou se nem consegue comê-la?

— Pensei em oferecê-la a vocês, companheiros, para compensar o trabalho que lhes dou a mais.

— Ora, muito amável de sua parte. Pessoal, é um presente de Matahachi, venham comer! — disse o homem, pegando a melancia e quebrando-a contra a quina de uma pedra. Os homens próximos acorreram de imediato como formigas e, ávidos, disputaram os suculentos e doces nacos vermelhos.

— Ao trabalho, homens, ao trabalho! — gritou o chefe do grupo, subindo numa pedra. O samurai supervisor saiu de um abrigo, empunhando um chicote. Um odor acre de corpos suados impregnou o ambiente e até as moscas se alvoroçaram. Gigantescos blocos de rocha adiantaram-se devagar, uns após outros, rolando sobre toras de madeira, impulsionados por alavancas e tracionados por cordas da grossura de um punho, compondo um cenário fantástico semelhante a uma majestosa parada de nuvens cúmulos-nimbos.

A onda reformista trouxera em seu bojo um novo tipo de música folclórica, a “moda do arrasto”[4], entoada em todo o país por homens que ganhavam a vida movimentando grandes blocos de rocha. A cantiga que se ouvia agora era uma delas. A nova tendência popular chegou a ser registrada por Hachi-suka Yoshishige, senhor do castelo de Awa, em carta que remeteu à sua terra. Yoshishigue, designado a supervisionar a reforma de diversos castelos, vistoriava a do castelo de Nagoya na ocasião, e assim escreveu:

“Encontrei-me ontem com certa pessoa que me ensinou uma modinha cantada por arrastadores de Nagoya, cuja letra mandei anotar e aqui transcrevo:

Nosso amo, glória a ele,

É Tougoro-sama.

Ele quer que a gente arraste

Pedras de Awataguchi.

Eia, arrastem, eia, pedras,

Eia, eia, sem descanso.

Só de ouvir a sua voz

Eia, arrastem, eia, pedras,

Tremo inteiro, pernas, braços!

Eia, arrastem, eia, pedras,

Se mais tenho que arrastar,

De morrer eu sou capaz.

A canção está na boca de todos, velhos e moços. A meu ver, nada expressa melhor a triste realidade deste nosso mundo transitório.”

Pelo que se depreende da carta, a rude canção dos trabalhadores havia se transformado em música de salão e vinha sendo cantada ao som de instrumentos musicais no decorrer das alegres noitadas de importantes daimyo da época, como Hachisuka Yoshishige.

Indiscutivelmente, o hábito de cantar se popularizara nas cidades no auge do domínio de Toyotomi Hideyoshi, cognominado Taiko. Embora também se cantasse durante o período Muromachi (1392-1573) dos xoguns Ashikaga, as letras desses tempos tinham um teor decadente, e o cantar era restrito aos salões. Nessa época, até as cantigas infantis tinham um tom sombrio e sentido. Sob o regime de Hideyoshi, porém, o cancioneiro popular se enriqueceu e se encheu de cantigas alegres, repletas de esperança. O povo gostava de cantar enquanto trabalhava ao ar livre.

Encerrado o episódio da batalha de Sekigahara, e conforme a sociedade aos poucos se tingia com as cores da civilização Tokugawa, as cantigas também sofreram ligeira modificação, esmaecendo o tom vigoroso e liberal de suas letras. No período Hideyoshi as canções brotavam espontâneas do seio do povo mas, durante o regime Ieyasu, cantigas aparentemente compostas por músicos pagos pela casa Tokugawa passaram a ser oferecidas às pessoas.

— Que mal-estar! — murmurou Matahachi, segurando a cabeça febril. A cantilena a plenos pulmões de seus companheiros zumbia em seus ouvidos como uma incômoda nuvem de moscas e o irritava. “Cinco anos... Cinco anos! Que será de mim se tiver de continuar cinco anos nesta vida? Num dia de trabalho ganho apenas o suficiente para comer. Se não trabalho, nem tenho o que comer!” Pendeu a cabeça, o rosto pálido, a boca seca de tanto cuspir.

Foi então que notou a pouca distância um bushi alto e jovem, cuja aproximação não havia percebido. O homem usava um sombreiro de palha grosseiramente urdido, que enterrara quase até os olhos; trazia, além disso, presa à cintura e sobre o hakama, uma pequena trouxa típica dos samurais peregrinos. Abrira um leque metálico sobre a pala do sombreiro e examinava atentamente a topografia do castelo Fushimi, bem como o andamento das obras.


SASAKI KOJIRO

Inesperadamente, o samurai peregrino sentou-se diante de uma pedra chata de quase três metros quadrados de superfície. Uma vez sentado, a pedra — por sua altura conveniente — serviu-lhe de mesa e de apoio para os cotovelos.

Com dois vigorosos sopros, removeu a areia depositada na superfície quente da rocha e, de quebra, uma fileira de laboriosas formigas. Apoiou os cotovelos na mesa improvisada e repousou por momentos sobre as duas mãos a cabeça protegida pelo sombreiro. As rochas ao redor refletiam o sol a pino, e um asfixiante mormaço subia da relva, bafejando-lhe o rosto. O calor era quase insuportável, mas o homem mantinha-se imóvel, absorto na contemplação da obra.

Tudo indicava que nem notara a presença de Matahachi, a poucos passos de distância. Este, zonzo e com náuseas, pouco se importava se havia ou não um samurai agindo de modo estranho ao seu lado: de costas para o forasteiro, Matahachi descansava, vez ou outra cuspindo sobre a relva. Nesse momento, sua respiração ofegante atraiu talvez a atenção do samurai desconhecido, pois o sombreiro se moveu e uma voz disse:

— Que há contigo, carregador?

— É o calor, acho... — respondeu Matahachi.

— Estás com náuseas?

— Melhorou, mas ainda estou, um pouco.

— Vou te dar um bom remédio — disse. Apanhou uma pequena caixa de remédios[5], abriu-a, espalhou sobre a palma da mão alguns grãos escuros, levantou-se e, aproximando-se de Matahachi, despejou-os em sua boca, dizendo:

— Daqui a pouco te sentirás melhor.

— Muito obrigado.

— Amargo o remédio?

— Nem tanto.

— Vais continuar aí descansando por algum tempo, suponho.

— Sim, senhor.

— Fica então vigiando e me avisa se alguém se aproximar. Chama-me, ou então joga alguns pedregulhos em minha direção. Combinado?

Assim dizendo, o samurai peregrino voltou ao seu lugar e sentou-se uma vez mais. Retirou em seguida um pincel de um estojo portátil, abriu sobre a pedra uma caderneta e concentrou-se em anotar alguma coisa.

Sob a pala do sombreiro seu olhar se transferia sem cessar do castelo para a sua área externa, ou ainda para a silhueta das montanhas ao fundo, o rio e o torreão. Pelo visto, o pincel esboçava a topografia do castelo, bem como aspectos internos e externos da sua muralha.

Pouco antes da batalha de Sekigahara, o castelo Fushimi havia sofrido o assédio das tropas dos suseranos Ukita e Shimazu — da coalizão ocidental posteriormente derrotada — e tivera duas de suas áreas fortificadas tomadas, bem como diversas trincheiras destruídas. As atuais reformas, porém, vinham acrescentando inexpugnabilidade e nobreza à sua primitiva estrutura. Majestoso, o castelo Fushimi contemplava agora de esguelha seu rival, o castelo de Osaka, situado no outro extremo de uma estreita faixa prateada, o rio Yodogawa.

Ao espiar sobre o ombro do samurai o esboço que ele atentamente tracejava, Matahachi percebeu que, em algum momento anterior, o homem deveria ter estado no topo da montanha Fushimi e no vale Taikyuu por trás do castelo, de onde obtivera uma vista aérea dos portões traseiros, e que compunha agora uma planta bastante precisa e detalhada.

— Ih!... — exclamou Matahachi baixinho, dando-se conta com um sobressalto de que, por trás do homem absorto na elaboração do esboço, havia surgido um bushi — vassalo talvez do suserano local ou do daimyo designado pelo governo Tokugawa para vistoriar a reforma do castelo. Calçando sandálias de palha e vestindo meia-armadura, o bushi carregava uma espada presa às costas por uma tira de couro e, mudo, aguardava em pé, por trás do samurai peregrino, que este percebesse sua presença.

“Que distração a minha!”, pensou Matahachi, sinceramente arrependido de não cumprir o prometido; porém, tarde demais. Já não adiantava chamá-lo ou avisar jogando pedregulhos.

Momentos depois, o samurai peregrino espantou com a mão a mosca que lhe sugava o sangue do pescoço suado, e se voltou. No mesmo instante esbugalhou os olhos, surpreso, e abafou uma exclamação. O supervisor de obras devolveu o olhar fixamente e, em silêncio, estendeu a mão protegida por armadura ao esboço sobre a rocha.

 

Ao perceber que a planta, ciosamente elaborada sob o sol impiedoso e em difíceis condições, lhe seria arrebatada e amassada pela mão que surgira de maneira inesperada por cima do seu ombro, o samurai peregrino explodiu como um punhado de pólvora pegando fogo.

— Largue! — berrou, agarrando o pulso do bushi. O supervisor de obras, por sua vez tentando evitar que o caderno de esboços lhe fosse arrebatado, levantou-o bem alto, ordenando:

— Quero ver esta planta!

— Insolente!

— Cumpro o meu dever.

— Isso não justifica sua atitude.

— Por que reluta em mostrá-la?

— Porque não lhe interessa. Você nem a compreenderia!

— De qualquer modo, confisco esta planta.

— Nem pensar!

O caderno, puxado pelos dois lados, partiu-se, ficando cada metade na mão de um homem.

— É melhor que se comporte, ou o levarei preso.

— Para onde?

— Ao posto do magistrado.

— E você, por acaso, é um oficial?

— Exatamente!

— De que posto e a serviço de quem?

— Não lhe interessa. Basta saber que sou o supervisor desta obra e que o estou detendo para investigações porque o considero suspeito. Quem lhe deu permissão para elaborar a planta topográfica e os detalhes da reforma deste castelo?

— Sou um samurai peregrino e viajo pelas províncias observando os detalhes topográficos e arquiteturais dos castelos, para posterior estudo. Que mal há nisso?

— Espiões enxameiam por aí com essa mesma desculpa. De qualquer modo, a planta está confiscada. E você também será submetido a interrogatório. Acompanhe-me.

— Até onde?

— À presença do magistrado.

— Pretende me tratar como um simples criminoso?

— Cale-se e venha.

— Escute aqui, oficial. Pelo que vejo, costuma fazer o povinho tremer de medo com sua carranca, mas comigo não é tão fácil.

— Ande de uma vez!

— Tente fazer-me andar — disse o samurai peregrino, decidido a não sair do lugar. O oficial por fim se enfureceu. Lançou ao chão a metade do caderno de esboços que tinha arrebatado, pisoteou-a, e extraiu da cintura um longo jitte de quase 60 centímetros. Retraiu um dos pés e se posicionou, pronto a aplicar um golpe de jitte no cotovelo do seu adversário, caso este levasse a mão ao cabo da espada, mas como não o viu reagir, ordenou outra vez:

— Ande ou o levarei amarrado!

Nem tinha o oficial acabado de falar quando o samurai peregrino deu um passo à frente. No mesmo instante ouviu-se um grito e o oficial, ato contínuo, foi agarrado pelo pescoço. A outra mão do samurai voou ao obi da armadura:

— Verme! — rosnou, erguendo o oficial do solo e lançando-o contra o canto de uma volumosa rocha.

O corpo do fiscal espatifou-se no chão como a melancia partida há pouco por um dos carregadores, e se imobilizou, molemente.

— Ugh! — exclamou Matahachi, cobrindo o rosto com as mãos, pois algo rubro e pastoso espirrara para o seu lado. Digna de admiração era a calma do samurai peregrino, a poucos passos de distância. Talvez porque estivesse acostumado a lidar com oficiais e situações semelhantes, ou porque a súbita explosão de raiva o houvesse acalmado — o fato era que o homem não dava mostras de fugir apressado. Ao contrário, juntava a metade da planta pisoteada, além de outros papéis espalhados ao redor, e procurava com olhos calmos o sombreiro que voara longe, pois a corda havia se rompido quando lançara o oficial contra a rocha.

Matahachi estava horrorizado. Assistira a uma aterrorizante demonstração de habilidade que o deixara arrepiado. Viu que o samurai peregrino, agora sem o sombreiro, não devia ter 30 anos ainda. O rosto forte e queimado de sol tinha leves marcas de varíola e faltava-lhe um quarto da face, a partir do canto inferior da orelha até o queixo. Ou melhor, talvez desse essa impressão porque havia no local uma cicatriz feia de um antigo corte que repuxara a carne dessa parte do rosto. Outra cicatriz escura era visível por trás da orelha e mais uma no dorso da mão esquerda. Aquele era um rosto selvagem, repelente, e fazia supor que, por baixo das roupas, o homem tivesse outras marcas espalhadas pelo corpo.

 

Apanhando o sombreiro, o samurai peregrino cobriu a cabeça e, ocultando o rosto desfigurado, apressou-se em fugir, rápido como o vento. Naturalmente, muito pouco tempo se passara. Nem as centenas de carregadores que trabalhavam nas proximidades, nem os supervisores que, jitte e chicote em punho, gritavam ordens aos suados homens, sequer perceberam.

No entanto, instalado num torreão alto feito de toras, havia um par de olhos especialmente designado para vistoriar o local — o do inspetor-chefe de carpinteiros e policiais. De lá partiu um grito e, no momento seguinte, alguns soldados rasos que, suados, se ocupavam em preparar um enorme caldeirão de chá no interior de um cercado próximo à base do torreão, correram para fora gritando:

— Que foi?

— Que houve?

— Outra briga?

Mas a essa altura uma pequena multidão vociferante envolta numa nuvem de poeira amarelada já se juntara na porteira, aberta na paliçada de bambu, que separava a obra da área urbana do povoado:

— É um espião de Osaka!

— Nunca aprendem?

— Acabem com ele!

Esbravejando, pedreiros, trabalhadores e encarregados do policiamento acorriam, zelosos como se a questão afetasse cada um diretamente.

O samurai da feia cicatriz no queixo fora pego. Tentara escapar ocultando-se com agilidade atrás de um carroção que saía pela porteira nessa hora, mas os vigias, desconfiados de seu comportamento, tinham-no derrubado, atingindo-lhe os pés de chofre com um sasumata — instrumento de cabo longo semelhante a um forcado com dois dentes cravejados de pregos.

Ao mesmo tempo, uma voz esbravejara de cima do torreão:

— Prendam o homem do sombreiro!

Bastou para que vigias e policiais caíssem sobre ele, sem perguntar por quê. O samurai se recompôs e, em desespero, enfrentou-os como um animal acuado. O primeiro a tombar foi o vigia do forcado: arrancando o instrumento de suas mãos, o samurai peregrino com ele enredou os cabelos do vigia e lançou-o ao chão. Derrubou em seguida mais quatro ou cinco homens, e logo fez cintilar a lâmina de uma comprida espada que levava à cintura. A arma, muito mais robusta do que uma espada convencional, era apropriada para situações de combate. Extraiu-a portanto da cintura, ergueu-a com os dois braços acima da cabeça e vociferou:

— Vermes!

Foi o suficiente: os homens recuaram, formando uma clareira no cerco por onde avançou o samurai, disposto a abrir caminho para a liberdade. Fugindo do perigo, a multidão dispersou-se gritando mas, nesse instante, pedras provenientes de todos os lados choveram sobre o peregrino.

— Acabem com ele!

— A pauladas!

Eram pedreiros e serventes que, ao perceberem o recuo dos samurais encarregados do policiamento, extravasavam desse modo o antagonismo que nutriam no cotidiano por samurais peregrinos em geral, a quem consideravam excêntricos eremitas ou, pior, um bando de desocupados, arrogantes e exibicionistas, dados a andar pelo mundo vangloriando-se do pouco que sabiam.

— Mata! Mata!

— Liquida de uma vez! — gritavam os homens.

— Patifes! — rosnou o samurai peregrino avançando contra a multidão, que a cada avanço recuava gritando. Seus olhos já não buscavam um caminho de fuga, mas procuravam os homens que lhe lançavam as pedras, perdidos o discernimento e a prudência.

 

Apesar dos muitos feridos e alguns mortos que o episódio produzira, a área retornou à normalidade momentos depois, cada homem de volta ao seu trabalho como se nada houvesse acontecido.

Impassíveis, carregadores ocupavam-se em arrastar pedras, serventes em transportar terra, pedreiros em talhar rochas com seus formões.

Com a chegada da tarde, o calor nesse fim de verão tornou-se insuportável, intensificado pelo ruído quente dos formões arrancando faíscas das pedras e pelo relinchar enlouquecido dos cavalos afetados pela excessiva exposição ao sol. Não se moviam sequer as nuvens encadeadas, que se estendiam desde o castelo Fushimi até o rio Yodo.

— Homem, fica aí e toma conta deste, ouviste? Já está praticamente morto, mas vou deixá-lo do jeito que está, até a chegada do magistrado. Se morrer, morreu, não precisas te incomodar — lembrava-se Matahachi vagamente de ter ouvido as recomendações de um mestre de obras e de um samurai supervisor, antes de se retirarem. Entrara em estado de choque, talvez, pois desde a cena de há pouco, parecia-lhe viver um pesadelo. Vira e ouvira o oficial, mas nada se registrara claramente em seu cérebro.

 “A vida não tem sentido. Este, estava aí agora mesmo, fazendo a planta do castelo.” Havia já algum tempo, o olhar opaco de Matahachi prendia-se na forma estendida no chão, a dez passos de distância, enquanto divagava sobre a futilidade da vida. “Parece que já morreu. Nem 30 anos devia ter, o coitado.”

Amarrado com uma grossa corda, o samurai do rosto desfigurado jazia no chão deixando à mostra um dos lados do rosto escuro, sujo de terra e sangue, contraído num esgar atormentado. A outra ponta da corda achava-se presa a uma enorme rocha. “Para que amarrar desse jeito um homem incapaz até de gemer, quanto mais de se mover?”, pensava Matahachi enquanto o contemplava. Na perna quebrada, que emergia em curioso ângulo de seu hakama rasgado, um pedaço de osso, branco, rompera a pele da canela e estava à mostra. Seus cabelos empastados de sangue já haviam atraído moscas e sobre seus pés e mãos caminhavam formigas.

“Quantos sonhos não devia acalentar este homem, ao sair peregrinando pelo mundo em busca de aperfeiçoamento. De onde viera, quem seriam seus pais?”

Enquanto lamentava a sorte do homem, a depressão tomou conta de Matahachi, que não sabia mais se pensava no desconhecido ou no próprio destino.

— Deve haver um caminho mais inteligente para o sucesso — murmurou.

Os tempos eram de transição para uma era de realizações, em que se conclamava a juventude a aspirar por um futuro melhor: “Erguei-vos, jovens!” “Sonhai!” Nos tempos que corriam, um indivíduo qualquer podia sonhar em ascender à posição de proprietário e senhor de um castelo. Até Matahachi sentira-se afetado por esse clima social.

Levados pela ambição, moços abandonavam suas terras, lares e laços familiares, a maioria tornando-se samurais peregrinos. Para estes, em suas andanças país afora, sempre haveria um meio de obter comida e roupa onde quer que fossem, pois mesmo o mais simplório dos interioranos desses tempos se interessava por artes marciais e se mostrava disposto a pagar para obter informações. Os templos representavam outro meio de subsistência e, com um pouco de sorte um samurai peregrino poderia até cair nas graças de um poderoso clã provinciano, tornando-se seu hóspede permanente. Além disso, caso a sorte de fato lhe sorrisse, poderia vir a receber de algum daimyo poderoso uma taxa de vassalagem, módico estipêndio pago a tais indivíduos por prudentes suseranos que, desse modo e sem um sério comprometimento de suas finanças, os mantinham sempre à mão para alguma emergência militar.

Mas no meio dessa multidão de samurais peregrinos, sem dúvida poucos eram os contemplados pela sorte. Apenas dois ou três em dez mil obtinham sucesso e fama, e um bom estipêndio. Mesmo para estes, o aprendizado continuava árduo e o progresso difícil, pois a carreira não oferecia um diploma final, uma garantia de sucesso permanente.

— É um absurdo! — murmurou Matahachi, sentindo pena do seu amigo de infância, Musashi, e do caminho por ele escolhido. “Dia chegará em que o contemplarei do alto da minha posição bem-sucedida, mas não cometerei a tolice de seguir o seu caminho”, pensou. A visão do samurai morto reforçou sua resolução.

— Que é isso? — disse Matahachi repentinamente, esbugalhando os olhos e saltando para trás. Pois a mão cheia de formigas do samurai que considerara morto se contraíra de repelão. A mão e o punho emergiram em seguida, como a cabeça de uma tartaruga, para fora das cordas que envolviam seu tronco. A mão tocou o chão, e então o samurai nela se apoiou para erguer o tronco e a cabeça. Aos poucos, começou a rastejar, avançando em sua direção.

 

Apavorado, Matahachi engoliu a saliva que se juntava na boca e recuou ainda mais. Seu susto foi tão grande que perdeu a voz. Conseguia apenas fixar, de olhos esbugalhados, a cena à sua frente.

Um som sibilante escapava da boca do homem, que parecia querer falar. Por homem subentende-se o samurai peregrino do rosto deformado. Matahachi o havia dado por morto, mas ele ainda vivia.

O som sibilante continuava a soar em sua garganta, intermitente. Seus lábios já estavam escuros e ressequidos, incapazes de pronunciar qualquer palavra. Mas o desesperado esforço que fazia para falar, apesar de tudo, interferia na respiração provocando o som que lembrava o de uma flauta rachada.

Não era pelo fato do homem ainda estar vivo que Matahachi se espantara, mas porque ele vinha rastejando, apesar das cordas que prendiam os braços ao corpo. Só esse esforço já era assombroso mas, mais impressionante ainda: o moribundo mortalmente ferido vinha arrastando consigo, enquanto avançava centímetro a centímetro, uma pesada rocha de algumas dezenas de quilos atada à outra ponta da corda.

Sua força era descomunal, sobrenatural. Alguns trabalhadores musculosos da obra gabavam-se de ter a força de dez ou vinte homens juntos, mas nenhum chegaria aos pés desse monstro.

Além de tudo, o samurai peregrino agonizava. Só o fato de estar vagando no limiar da morte explicaria, talvez, sua força sobre-humana. E Matahachi imobilizou-se de pavor porque o homem vinha se aproximando cada vez mais, fixando-o com olhos esbugalhados, quase saltando das órbitas.

— Po... Por favor! — gaguejou o homem palavras quase ininteligíveis junto com mais alguns sons estranhos. A única coisa significativa eram os olhos — olhos de alguém ciente de que vai morrer — congestionados, um tanto úmidos, chorosos.

— ... peço! — A cabeça pendeu bruscamente: desta vez, o homem morrera de verdade. A pele do seu pescoço escureceu num instante diante do olhar de Matahachi. As formigas já se apinhavam em seus cabelos, brancos de pó. Uma espreitava o buraco do nariz, onde o sangue coagulara.

Matahachi apenas olhava, aturdido, sem compreender. Em seu íntimo, no entanto, começava a formar-se uma certeza: o último pedido do homem seria uma carga em seus ombros e o perseguiria por toda a vida, como uma maldição. Parecia-lhe que a bondade do samurai — ao lhe dar remédio quando percebera seu mal-estar — bem como a própria incompetência, não notando a aproximação do supervisor e não avisando o peregrino a tempo, transformavam-se em elos de uma cadeia que o destino preparara para amarrá-lo ao desconhecido.

A cantoria dos carregadores de pedra soava agora abafada, distante. A névoa esfumaçava lentamente o contorno do castelo. Sem que Matahachi se desse conta, a noite vinha caindo. As primeiras luzes na cidade casteleira de Fushimi já se acendiam, trêmulas.

— É verdade... Talvez haja alguma coisa aqui.

Matahachi tocou de leve a pequena trouxa que o morto trazia à cintura: dentro encontraria informações sobre sua procedência ou dados familiares, com certeza. “Talvez quisesse me pedir para entregar uma lembrança à família,” pensou.

Removeu do cadáver a trouxa e a caixa de remédios e guardou-as em suas próprias roupas. Pensou também em cortar uma mecha de seus cabelos para remetê-la à sua gente mas, ao ver o rosto do morto, desistiu horrorizado.

Um ruído de passos chegou aos seus ouvidos. Espiou por trás de uma rocha e avistou diversos samurais do posto do magistrado aproximando-se. Ao se dar conta de que retirara objetos pessoais do morto sem pedir permissão e os tinha agora em seu poder, Matahachi percebeu o perigo que corria e a necessidade de fugir o mais rápido possível. Curvado para a frente, esgueirou-se pulando de pedra em pedra, ligeiro como uma lebre.

 

A brisa da tarde trouxe consigo o outono. Buchas amadureciam numa cerca viva. À sombra dela, a mulher do confeiteiro, que tomava banho numa tina de água quente, voltou-se ao ouvir ruídos no interior da casa e perguntou, exibindo um palmo da pele branca por trás da cerca:

— Quem está aí? É você, Matahachi-san?

Matahachi era um dos pensionistas do casebre. Mal chegara, revolvera freneticamente o armário, retirara um quimono e uma espada, trocara-se, cobrira a cabeça com uma toalha, e se apressava agora em calçar outra vez as sandálias.

— Está escuro aí dentro, não está, Matahachi-san? — disse a mulher.

— Nem tanto.

— Já vou acender uma luz.

— Não se incomode com isso, já estou saindo.

— Não vai tomar banho?

— Não.

— Passe um pano úmido pelo corpo, ao menos.

— Não é preciso.

Mal respondeu, Matahachi saiu apressado pela porta dos fundos. Simples, pois não havia portão ou cerca, a porta dos fundos dando diretamente para uma extensa campina. Quase no mesmo momento, vindo do extremo da campina, um grupo de homens se aproximou do casebre do confeiteiro e entrou pela porta da frente. Alguns samurais da construção estavam entre eles.

— Esta foi por um triz! — murmurou Matahachi.

O fato de alguém ter roubado a trouxa e a caixinha de remédios do samurai da feia cicatriz no queixo logo fora descoberto, é claro. Mais claro ainda é que a suspeita recaíra sobre ele, Matahachi, que vigiava o morto.

“Mas eu não a roubei. Apenas fiquei, a contragosto e provisoriamente, com os pertences do morto, em atenção ao seu pedido.”

Matahachi não sentia a consciência pesada. Os objetos estavam guardados nas dobras internas de seu quimono, mas apenas por algum tempo.

“Não posso mais voltar a trabalhar na obra”, pensou. Não tinha a mais remota idéia de aonde ir, a partir do dia seguinte. Sentiu, porém, até certo alívio: não fosse pelo acontecido, talvez tivesse continuado a arrastar pedras por muitos anos.

O mato chegava à altura dos ombros, carregado de sereno. Não corria o risco de ser visto de longe, o que lhe facilitava a fuga. E agora, para onde? Qualquer que fosse o destino, nada tinha além do que levava no corpo. A sorte espreitava, assim lhe parecia, oferecendo-lhe tanto boas oportunidades como desgraças. A direção que tomasse agora teria o poder de mudar para sempre o seu destino. Não acreditava que pudesse haver uma vida predestinada, inevitável. Tinha apenas de andar ao sabor do acaso.

Osaka, Kyoto, Nagoya ou Edo — para onde iria? De qualquer modo, não tinha conhecidos em lugar nenhum. O futuro abria-se à sua frente, tão incerto quanto a sorte nos dados. E tanto quanto a sorte nos dados, incerta era a vida de Matahachi. Deixaria que algum acontecimento fortuito guiasse seus passos, decidiu ele.

Mas por mais que andasse, nenhum acontecimento se lhe apresentou na extensa campina das terras de Fushimi. Apenas os grilos cricrilavam cada vez mais alto, e mais pesado caía o sereno. Encharcada de orvalho, a barra do quimono tolhia seus passos e as sementes das plantas nela aderidas provocavam comichões em seus tornozelos.

Matahachi esquecera o mal-estar que o atormentara durante o dia mas, em contrapartida, sentia-se faminto. Seu estômago estava completamente vazio. A caminhada tornara-se penosa desde o momento em que tivera certeza de não estar sendo seguido.

“Preciso achar um lugar para dormir”, pensou.

E esse desejo o levara inconscientemente àquele local no extremo da campina, onde avistara a cumeeira de uma casa solitária. Ao se aproximar, percebeu que o portal e o muro ao redor da casa estavam inclinados por obra de alguma tempestade. Com toda a probabilidade, o telhado também estaria avariado. Mas era uma construção elegante que, em dias mais felizes — assim imaginou Matahachi — deveria ter sido a casa de veraneio de algum fidalgo. Sofisticadas mulheres provenientes da capital, reclinadas em coloridas liteiras puxadas por parelhas de bois, teriam freqüentado a casa, passando entre arbustos de trevo. Matahachi cruzou o portal — de onde as portas há muito haviam desaparecido — e, contemplando a casa principal e suas dependências quase ocultas pelo mato, lembrou-se prontamente de certa passagem da coletânea Gyokuyou[6], de autoria do monge poeta Saigyo:

“Fui à procura de alguém que conheci outrora e que, assim me dizem, mora hoje em Fushimi. Encontro uma casa abandonada, cujo jardim ervas daninhas invadiram, ocultando as passagens. Ouço apenas o cricrilar dos grilos.

No devastado jardim a que chego

Do mato rompendo o cerco,

Por mim choram, desolados,

Grilos e o orvalho a gotejar.”

Matahachi, imóvel e tiritando de frio, rememorava as palavras do poeta e examinava a casa quando, atiçada pelo vento, viu romper uma língua de fogo num braseiro dentro da construção que julgara desabitada. Instantes depois, o som de uma flauta shakuhachi vibrou no ar.

 

Pelo visto, era um monge mendigo komuso que aproveitava a casa vazia para passar a noite. A sombra do monge, projetada na parede, dançava conforme as chamas avermelhadas se elevavam. O monge tocava sozinho. Não pensava em distrair alguém ou a si próprio. Apenas tentava concentrar-se na melodia e alhear-se do mundo para que a solitária noite de outono passasse despercebida. Ao terminar a melodia, o monge suspirou:

— Ah!...

Ciente de que essa era a única casa no meio da campina, iniciou um despreocupado monólogo:

— 40 anos, dizem, é a idade da razão. Mas, no meu caso, já tinha 40 e mais sete quando cometi o deslize que me fez perder o estipêndio e o bom nome; além de tudo, acabei abandonando meu único filho em terras estranhas... Que vergonha, que vergonha! Nem sei como me explicar à minha mulher, no outro mundo, ou ao meu filho... Quando analiso o meu caso, concluo que 40 anos é a idade da razão só para sábios. Para gente comum, como eu, não há idade mais perigosa que a dos 40. É como andar por uma ladeira: qualquer descuido é fatal. Principalmente quanto a mulheres.

Cruz ou as pernas e, com a flauta shakuhachi fixada à frente, apoiou ambas as mãos no seu bocal.

— Muita besteira andei fazendo nos meus 20 e 30 anos por causa de mulheres mas, nessa idade, o mundo tende a ser benevolente com os nossos pecados, e nada parece nos marcar para sempre... Mas depois dos 40, as aventuras amorosas vão ficando cada vez mais ousadas e em casos como aquele, com Otsu, o mundo não perdoa. Aquilo se transformou num formidável escândalo, graças a que perdi casa, estipêndio e até meu filho... Aos 20 ou 30 anos, ainda há chances de recuperação, mas um erro aos 40 não tem conserto.

Cabisbaixo como um cego, o monge falava sozinho.

Matahachi entrou na casa e, silenciosamente, aproximou-se do aposento em que o indivíduo se achava. Quando viu, porém, o rosto cadavérico, os ombros magros como os de um cachorro do mato, os cabelos secos e emaranhados realçados pelas chamas, e ouviu o monólogo enlouquecido do monge komuso, arrepiou-se de horror e perdeu a coragem de lhe dirigir a palavra, pois o homem lembrava um demônio das trevas.

— Ah, mas que bobagem fui fazer!

O monge agora erguia o rosto e fitava o teto. Suas narinas, dois grandes buracos como os de uma caveira, eram visíveis do local onde estava Matahachi. Vestia um quimono simples e encardido, como o de um rounin qualquer, e usava na altura do peito uma estola budista, única evidência de que era um dos mais humildes monges zen da seita Fuke. A esteira sobre a qual se sentava era o seu único bem. Ele a enrolava e a levava na mão a todos os lugares, era o seu leito e o seu abrigo contra a chuva e o sereno.

— Não adianta ficar falando, a esta altura, mas nenhuma fase na vida de um homem é mais perigosa que a dos 40 anos. A gente acha que já viu o mundo, conhece a vida, e tende a se supervalorizar só porque conquistou uma pequena posição. É quando se perde a vergonha e se corre o risco de cometer desatinos no campo amoroso, como aconteceu comigo. O destino me aplicou um golpe traiçoeiro e me jogou ao chão... Castigo pela sem-vergonhice!

Curvou-se uma vez, como se pedisse desculpas a alguém, tornou a se curvar mais uma vez.

— Talvez eu tenha merecido: não reclamo por mim. A natureza me concedeu abrigo em meu arrependimento, e um meio de vida — disse, derramando algumas lágrimas repentinas. — Mas, e meu filho, como vou compensá-lo? O castigo pelos meus pecados recaiu com maior força sobre os ombros do pobre Joutaro. Tivesse eu conservado meu posto no clã Ikeda de Himeji, o menino seria o respeitável herdeiro de um samurai com mil koku de estipêndio. Mas hoje, o pobrezinho está longe de sua terra e do pai, sozinho no mundo... E imagine só se ele, mais tarde, na idade adulta, vier a saber que o pai foi banido do clã porque se envolveu com uma mulher e prevaricou depois dos 40! Nunca mais poderei olhá-lo de frente.

Por instantes, cobriu o rosto com as mãos e assim permaneceu. E então, levantou-se repentinamente e se afastou do braseiro, dizendo:

— Chega! Já ia recomeçar minhas lamúrias... Ah, olhe a lua aí. Acho que vou sair para a campina e tocar até não mais poder. Boa idéia: vou me livrar das queixas e da luxúria que ainda queimam em meu peito, lançando-as ao vento da campina.

Saiu, levando consigo a flauta de bambu.

 

Monge estranho, pensou Matahachi que, oculto, espreitava enquanto o homem se levantava e se afastava cambaleando. Imaginou ter visto um ralo bigodinho no rosto emaciado. Não parecia tão velho, mas seu andar era trôpego.

O monge komuso se fora bruscamente e demorava a voltar. Matahachi achou que o homem não estava em seu juízo perfeito, o que lhe inspirou, junto com certa dose de horror, um pouco de compaixão. Quanto a isso nada podia fazer, mas o que o perturbou a seguir foi o fogo no braseiro, queimando vivamente, atiçado pelo vento noturno. E uma tora em chamas se partira e já começava a queimar o assoalho.

— Mas que perigo, que perigo! — disse Matahachi, aproximando-se e despejando sobre as brasas a água de uma bilha. A casa era uma construção abandonada, perdida no meio do mato, é verdade. Mas imagine que desgraça não seria se se tratasse de um daqueles magníficos templos das eras Kama-kura ou Asuka, cuja reconstrução seria para sempre impossível!

— Gente como esse monge é responsável pelos incêndios que assolam Kamakura e Kouyasan — resmungou Matahachi, levado por inesperado espírito cívico, indignado, sentando-se ao fogo no lugar anteriormente ocupado pelo monge. Vagabundos não têm casa ou família; por isso mesmo, não têm noção de civismo. Nem lhes passa pela cabeça que o fogo represente perigo. Eis porque, imperturbáveis, acendem fogueiras em santuários de paredes finamente trabalhadas, forradas de ouro. Ao calor das criminosas chamas, vidas desprovidas de sentido aquecem suas carcaças.

“Mas a culpa não é só dos vadios”, pensou Matahachi, lembrando-se de que ele próprio agora era um deles. Em nenhuma outra época houvera tantos desocupados no país. E na origem desse fenômeno social estavam as guerras que, se por um lado eram vantajosas para muitos, por outro provocavam o surgimento de um número assustador de pessoas marginalizadas, descartadas como refugo pela sociedade. Que esses elementos se tornassem pesos mortos a sustar o progresso da próxima geração era natural, um karma inevitável. Mas ainda assim a quantidade de monumentos — verdadeiros tesouros nacionais — que essa escória descuidada queimava e destruía por onde passava era bem menor que aquela arrasada por profissionais da guerra em incêndios planejados, como por exemplo os incêndios que haviam devastado os santuários dos montes Kouyazan e Hieizan, ou a cidade imperial.

— Ah, olhem só que coisa interessante temos aqui! — disse Matahachi, ao se virar casualmente para um dos lados. E exame mais cuidadoso, tanto o braseiro quanto o nicho central do aposento em que se encontrava revelavam linhas elegantes. A sala talvez tivesse sido usada para cerimônias do chá em sua origem. E numa prateleira do pequeno nicho central, bem característico, algo chamara a sua atenção.

Nada que se assemelhasse a um caro vaso de flores ou a um fino incensório, mas uma bilha de saque, de gargalo quebrado, e uma panela preta, de ferro. Dentro da panela restava ainda um bocado de arroz com legumes cozidos; a botelha, ao ser sacudida, gorgolejou, deixando escapar um aroma de saque pelo gargalo quebrado.

— Que bom!

Nessas circunstâncias, o estômago assumia o comando, não dando tempo à razão de tecer considerações sobre eventuais direitos alheios à propriedade.

Matahachi bebeu o saque da botelha e esvaziou a panela:

— Ah, finalmente satisfeito! — disse, deitando-se e apoiando a cabeça no braço.

O fogo queimava lentamente, deixando-o sonolento. O cricri dos grilos aos poucos tomava conta da campina, parecia chuva caindo de mansinho, embalando o sono. Devagar o som invadiu a casa, ressoando nas paredes, no teto e no tatami puído do aposento.

— É verdade! — disse Matahachi de repente, lembrando-se de algo e aprumando-se. Enquanto ali estava sem nada para fazer, era melhor passar os olhos pelo conteúdo da pequena trouxa que escondera nas dobras internas do quimono, atendendo ao pedido do samurai moribundo. Examinou a trouxa. O tecido vermelho estava encardido. Em seu interior havia roupas de baixo bastante usadas e objetos pessoais de um viajante comum. Ao desdobrar as roupas, no entanto, dois objetos pesados caíram à sua frente: um pequeno cilindro, envolto com cuidado em papel encerado — um rolo de papel pergaminho, talvez um documento precioso — e uma pequena bolsa contendo dinheiro para as despesas de viagem.

 

A bolsa, de couro, era roxa. Dentro havia uma razoável quantia em ouro e prata. A visão das moedas despertou cobiça em Matahachi. Com medo de si próprio, murmurou por prevenção:

— Isto não é meu, não é meu.

Abriu o papel encerado que envolvia o outro volume e descobriu, conforme previra, um rolo de papel pergaminho. Na extremidade interna do papel, um bastão feito de madeira fina servia de eixo ao rolo; a ponta externa começava numa espécie de capa de brocado, entremeado de fios de ouro. O elegante conjunto pedia para ser aberto.

“Que será isto?”, pensou Matahachi. Não tinha idéia do conteúdo. Depositou o volume no chão, desenrolou-o pouco a pouco e leu:

AUTORIZAÇÃO

Para a Prática do Estilo Chudoryu

 

Princípios Explícitos:

Relâmpago, Roda, Círculo, Barco Flutuando

 

Princípios Ocultos: Indestrutível, Superior, Ilimitável

 

Perante os deuses, atesto por este documento que os sete princípios acima foram transmitidos verbalmente ao mestre SASAKI KOJIRO.

Vila Jokyoji, Feudo de Uzaka, na Província de Echizen

 

No mês..., do ano....

Ass.: Kanemaki Jisai (Da Escola Toda Nyudo Seigen).

Ao mestre Sasaki Kojiro.

Em papel diferente havia sido acrescentado ao documento um pós-escrito com a chave dos princípios secretos do estilo em forma de versos:

Na água que não se juntou,

De um poço que não se cavou,

Brilha a lua.

Um homem sem forma ou sombra

A água tira.

“Ah, isto é um atestado de plena proficiência”, logo compreendeu Matahachi. Contudo, nada sabia sobre esse personagem, Kanemaki Jisai, que assinava a autorização. Mas se o nome em questão fosse Ito Yagoro, mesmo o ignorante Matahachi saberia prontamente responder: é um famoso mestre, também conhecido como Ittosai, fundador do estilo Ittoryu. Pois esse Kanemaki Jisai havia sido o mestre do famoso Ito Ittosai. Mestre Jisai — que por sua vez herdara os ensinamentos de Toda Nyudo Seigen, já caído no ostracismo — vivia atualmente em algum canto de uma província afastada, numa idade próxima à velhice. Mas Matahachi não tinha meios de saber tais detalhes.

Muito antes de especular sobre a identidade de Kanemaki Jisai, Matahachi se viu perguntando:

“E quem seria Sasaki Kojiro? Ah, deve ser o nome do samurai peregrino, assassinado hoje de modo tão brutal no pátio de obras do castelo Fushimi.” Convicto de que acertara, balançou a cabeça afirmativamente. “Está explicado por que era tão forte! Esta autorização mostra que ele tinha o diploma de proficiência do estilo Chudoryu. Mas que jeito lamentável de morrer! Deve ter deixado muita coisa por fazer. A expressão de seu rosto, em seus últimos momentos, mostrava claramente quanto lhe custava morrer. E, com certeza, seu último pedido referia-se a este documento: queria que eu o entregasse a conhecidos em sua terra, sem dúvida.”

Matahachi recitou mentalmente uma oração pela alma do morto, mais que nunca decidido a levar os pertences à terra dele.

Deitou-se de novo e, como o frio aumentava, lançou vez ou outra um graveto no braseiro. Embalado pelo calor das chamas, cochilou por alguns instantes.

Longe, proveniente da campina, vinha o som de uma flauta, tocada sem dúvida pelo estranho monge komuso que havia pouco deixara a casa. Que pedia, que buscava? Incessante, atormentado, o som — impregnado talvez pelo desejo de expulsar queixas e luxúria, conforme dissera o monge ao partir — vagou noite afora pela campina. Mas Matahachi, exausto pelos acontecimentos do dia, caiu em sono profundo, indiferente ao cricrilar dos grilos e à melodia da flauta.

 

O MONGE KOMUSO

A campina amanheceu envolta num véu cinzento. O ar frio lembrava o auge do outono. Gotas de orvalho brilhavam em tudo.

Na cozinha, cuja porta a ventania derrubara, pegadas de raposa se entrecruzavam. A noite se fora, mas os esquilos ainda se demoravam nas proximidades.

— Brrr... Que frio! — disse o monge, despertando e sentando-se no assoalho da ampla cozinha. Voltara de madrugada, exausto, deixara-se cair ali mesmo e adormecera, empunhando a flauta de bambu.

A estola e as roupas encardidas estavam ainda mais sujas em conseqüência das andanças noturnas. As manchas de orvalho e as sementes agarradas em suas roupas emprestavam ao monge o aspecto desfeito dos que — assim diz o povo — caem no feitiço da raposa e passam a noite ao relento vivendo situações ilusórias. O monge certamente se resfriara, já que a temperatura, naquela manhã, nem de longe lembrava o calor do dia anterior. Franziu tanto o nariz que quase juntou sua ponta às sobrancelhas, e soltou um sonoro espirro. O ranho aderiu ao bigode-de-arame, agora ralo, apenas uma sombra. Indiferente, nem tentou limpá-lo.

— É verdade, ainda tenho um pouco de saque sobrando — murmurou. Levantou-se, passou por um corredor em que mais pegadas de raposas e texugos se entrecruzavam, e saiu procurando o aposento do braseiro.

A luz do dia, a mansão abandonada revelou-se grande a ponto de obrigá-lo a procurar o aposento, mas, claro, nem tanto que impossibilitasse sua localização.

— Ora essa...

O monge olhava ao redor com ar perdido. A botelha de saque não estava onde deveria. Logo a encontrou, caída perto do braseiro. Ao mesmo tempo, junto ao vasilhame vazio, descobriu um homem desconhecido que dormia a sono solto, babando de boca aberta.

— Quem é este homem? — perguntou em voz alta, espiando o vulto que não despertava. Roncava tão alto que nem um soco conseguiria acordá-lo. “Foi ele quem bebeu todo o meu saque”, pensou o monge, irritadíssimo agora com o ronco.

Mas as descobertas não pararam aí. Pois não é que não restara nenhum grão do arroz com legumes que deixara reservado para a refeição matinal? O monge empalideceu. A questão envolvia sua sobrevivência.

— Malandro! — disse, dando-lhe um chute.

— Uh... uh! — exclamou Matahachi, erguendo a cabeça.

— Acorda de uma vez! — voltou a dizer o monge com um novo chute.

— Que é isso?! — gritou Matahachi levantando-se. Uma veia pulsava em seu rosto mal desperto. — Você me chutou!

— E ainda acho pouco! Quem lhe deu licença para comer o meu ensopado e beber o meu saque?

— Ah, eram seus?

— Claro que eram!

— Ora essa, me desculpe, então.

— Vejam só, “me desculpe”, diz o homem, “me desculpe”!

— Perdoe-me.

— Pensa que basta pedir perdão?

— Que mais quer você que eu faça? Me diga!

— Devolve!

— Devolver de que jeito, seja comi e seja sustentam meu corpo?

— Eu também tenho de me sustentar, não lhe parece? Toco flauta o dia inteiro pelas portas das casas e o máximo que consigo é um punhado de arroz e esmola suficiente para um gole de saque. E não estou para distribuir o que ganho com tanto custo entre estranhos como você. Devolve, já disse, devolve!

O monge komuso com seu bigodinho-de-arame esbravejava imperioso, o rosto magro e esfaimado contorcendo-se de raiva. A voz tinha um quê infantil.

 

— Deixe de ser mesquinho — disse Matahachi, fitando o monge com desprezo. — Não vejo por que se enerva desse jeito por causa de um resto de arroz e de um gole de saque barato.

O monge retorquiu, furioso:

— Como é?! Resto ou não, para mim é o sustento de um dia, com isso sobrevivo mais um dia. Devolve, ou então...

— Então o quê?

Com um urro, o monge agarrou o pulso de Matahachi e gritou:

— Você me paga!

— Deixe-se de besteiras! — disse Matahachi. Livrou-se das mãos do monge e agarrou-o pela nuca, magra como a de um gato abandonado. Pretendia derrubá-lo com um golpe e subjugá-lo de uma vez, mas o monge reagiu com inesperada tenacidade, atacando o pescoço de Matahachi.

— Ora, seu!... — rosnou Matahachi, retesando-se. Mas seu adversário tinha uma espantosa força nas pernas, de modo que, queixo erguido e gemendo de modo estranho, era Matahachi agora quem se via empurrado em direção ao outro aposento, aos trambolhões, lutando por recuperar terreno. Tirando proveito da resistência que encontrava, o monge lançou-o de encontro à parede com um súbito movimento.

A velha mansão já tinha os pilares e as juntas do assoalho apodrecidos. A parede ruiu sem resistência, lançando uma chuva de barro seco sobre Matahachi.

O jovem levantou-se, cuspindo furiosamente. Mudo de raiva, desembainhou a espada e lançou-se sobre o monge mendigo. Este parecia já esperar por isso e, shakuhachi em punho, enfrentou-o. O pobre homem, porém, logo pôs-se a ofegar, seu peito esquálido chiando ruidosamente em contraste com o vigoroso corpo de Matahachi.

— Viu no que dá? — disse este último, atacando o adversário com sucessivos golpes que não lhe davam tempo para respirar. O monge tinha agora o aspecto de uma alma penada. Perdera a agilidade e desequilibrava-se volta e meia, prestes a cair. E, de cada vez, soltava um estranho grito agonizante. Apesar de tudo, fugia de um lado para o outro, não se deixando pegar com facilidade.

Por fim, a presunção de Matahachi foi a causa do próprio desastre. Ao ver que o monge pulava para o jardim como um gato, correu afoito no seu encalço e, mal pisou o corredor, sentiu que a tábua da varanda, havia tempos exposta à chuva e apodrecida, cedia com um estalo. Seu pé afundou no vão aberto e Matahachi caiu sentado. Ao ver isso, o monge saltou de volta sem perda de tempo, agarrou o jovem pelo peito e distribuiu violentos socos no rosto e nas têmporas, indiscriminadamente.

Com o pé preso, Matahachi não conseguia se defender. Na mesma hora sentiu que o rosto inchava como uma barrica. E enquanto se debatia, grãozinhos de ouro e prata rolaram das dobras internas do quimono. A cada soco, caíam tilintando pelo chão, espalhando-se ao redor dos dois.

— Que é isso? — disse o monge, abrindo a mão. Enfim livre, Matahachi saltou para longe.

Depois de dar vazão à raiva com tanta violência que até lhe doíam os punhos, o monge arfava, olhos presos nos grãozinhos espalhados à sua volta.

— Está vendo, cretino! — disse Matahachi, cobrindo com a mão uma das faces inchadas, a voz trêmula. — Para que brigar por causa de um resto de arroz e de um gole de saque barato? Pode ser que não pareça, mas dinheiro é o que não me falta, seu morto de fome! Se é isso que quer, pode pegar, eu lhe dou. Mas em troca, prepare-se que vou lhe devolver, um por um, todos os socos que me deu. Vamos, venha e ponha a cabeça aqui! Quero lhe devolver com juros o arroz e o saque!

 

Por mais que Matahachi esbravejasse, o monge komuso nada dizia. Calmo afinal, Matahachi observou-o melhor e, surpreso, verificou que o homem chorava, o rosto premido contra as tábuas do avarandado.

— Idiota, bastou ver a cor do ouro para ficar choramingando — disse Matahachi venenosamente. Mas o monge perdera o ânimo por completo e não reagiu à humilhação.

— Ai de mim, que vergonha! Como sou desprezível!

Já não falava com Matahachi, fazia apenas uma sentida autocensura. E a veemência com que se condenava também era anormal:

— Idiota, idiota! Quantos anos tens, afinal? Caíste tão baixo na vida, vives na maior degradação e ainda não aprendeste? Já não tens salvação!

O monge batia a testa contra uma coluna de madeira escura e lamentava, batia e lamentava:

— Para que tocas o shakuhachi? Para expulsar a estupidez, as paixões, a ilusão, o egoísmo e a luxúria pelos seis orifícios, não é? Mas em vez disso, o que fazes? Te envolves numa luta mortal com um homem que tem idade para ser teu filho, por um pouco de arroz e um gole de saque!

O estranho homem ora se queixava, chorando, ora batia a própria testa contra o pilar com força. Pelo jeito, só desistiria quando partisse em dois a própria cabeça.

O autoflagelo era muito mais violento que os socos aplicados em Matahachi. Este, aparvalhado, contemplava a cena. Mas ao notar que o sangue começava a escorrer da testa roxa e inchada do monge, viu-se compelido a intervir:

— Ei, ei... Pare com isso! Não faz sentido.

— Me deixe em paz, por favor.

— Mas o que tem você?

— Nada.

— Está doente?

— Não estou.

— Que tem, então?

— Tenho raiva de mim. Devia limpar o mundo livrando-o desta minha carcaça com estas mãos e dá-la de comer aos corvos. Mas me exaspera ter de morrer estúpido como sou agora. Quero progredir um pouco, chegar a um padrão razoável para então apodrecer em algum canto da campina, porém, não consigo... Pensando melhor, acho que você está com a razão: é uma espécie de doença, isso que tenho.

Repentinamente Matahachi sentiu pena do monge. Juntou as pepitas espalhadas ao redor e introduziu algumas em sua mão, dizendo:

— Eu também errei. Tome, e me desculpe.

— Não quero! — disse o monge, retirando a mão bruscamente. — Não quero seu ouro, não quero!

Para um homem que se enfurecera tanto por causa de um resto de arroz no fundo de uma panela, o monge reagia com estranha repulsa, sacudindo a cabeça com força e se afastando:

— Você é bem esquisito, reconheça.

— Nem tanto.

— Ah, mas que tem algo estranho em você, isso tem...

— Que lhe importa? Me deixe em paz!

— Komuso, você tem um sotaque da região de Chugoku.

— Claro, sou de Himeji.

— Ora essa... E eu sou de Mimasaka.

— Da província de Sakushu...? — disse o monge, olhando-o fixamente. — E onde, de Sakushu?

— Yoshino.

— Yoshino? Mas que coincidência... Pois eu conheço muito bem a área, porque trabalhei algum tempo como chefe dos guardas no posto de Hinagura.

— Ah, então você era um vassalo do senhor de Himeji!

— Isso mesmo. Apesar da minha aparência, já fui um bushi, de nome Aokk.. — começou a dizer o monge, mas calou-se de modo abrupto, consciente de sua decadência e envergonhado. — Mentira, é tudo mentira. Bem, acho que vou à vila esmolar.

Levantou-se repentinamente e saiu para a campina.

 

A TENTAÇÃO

As pepitas de ouro eram uma tentação muito grande, maior ainda por Matahachi saber que não devia gastá-las. Por fim, chegou à conclusão de que tomar emprestadas algumas — não muitas, é claro — e usá-las, não constituiria crime.

— Se tenho de viajar para entregar as coisas do morto em sua terra atendendo a um pedido dele mesmo, é certo que terei despesas. Nesse caso, é natural que as pague com o seu dinheiro.

Depois de chegar a essa conclusão, Matahachi sentiu certo alívio. A essa altura, já havia começado, pouco a pouco, a gastar o dinheiro.

Mas de onde era esse indivíduo, Sasaki Kojiro, em cujo nome fora expedido o diploma do estilo Chudoryu, em seu poder juntamente com o dinheiro?

Estava quase convencido de que Sasaki Kojiro deveria ser o samurai peregrino morto, mas não tinha a mínima idéia de seus antecedentes — se era rounin ou avassalado —, nenhum ponto de referência.

A única pista era o mestre de esgrima que assinava a permissão, Kanemaki Jisai. Se conseguisse chegar a ele, num instante saberia desse Kojiro. Pensando nisso, viera perguntando pelas casas de chá, restaurantes e hospedarias desde Fushimi até Osaka, toda vez que uma oportunidade se apresentava:

— Já ouviu falar de um certo Kanemaki Jisai, exímio mestre de esgrima? Mas a resposta era sempre a mesma:

— Nunca.

— É um ilustre representante do estilo Chudoryu, estilo que por sua vez deriva do de Toda Seigen — acrescentava Matahachi. Mas ninguém os conhecia.

E então, certo dia, um samurai razoavelmente bem informado que conhecera na estrada, lhe disse:

— Esse homem, Kanemaki Jisai, deve estar hoje bem velho, se é que já não morreu. Se não me engano, mudou-se para a região de Kanto e, com o avançar da idade, retirou-se para um vilarejo na área de Joshu, evitando aparecer em público. Mas se quer saber dele, acho que deve dirigir-se ao castelo de Osaka e procurar por Toda Mondonosho.

Quando Matahachi lhe perguntou quem seria Toda Mondonosho, o homem respondeu que, segundo se lembrava, era parente de um certo Toda Seigen — originário da vila Jokyoji, feudo de Uzaka, na província de Echizen — e um dos instrutores de artes marciais de Toyotomi Hideyori, herdeiro do antigo kanpaku Hideyoshi.

A informação era meio vaga, mas Matahachi ia mesmo a Osaka. Reservou portanto um quarto numa estalagem da rua principal mal chegou à cidade, e tentou saber se havia ou não um samurai com esse nome servindo no castelo de Osaka.

— Sim, senhor — disse o estalajadeiro — houve antigamente um homem de nome Toda Mondonosho que, assim dizem, era neto de Toda Seigen-sama. Não era instrutor de lorde Hideyori, mas costumava dar aulas de artes marciais aos vassalos no castelo de Osaka. Contudo, há alguns anos se mudou para a província de Echizen.

Embora fosse um simples mercador, o homem servia ao castelo de Osaka e a informação merecia, portanto, maior crédito do que a do samurai que encontrara na estrada. Era opinião do estalajadeiro, além disso, que “não vale a pena deslocar-se até a província de Echizen, já que não se tem certeza da permanência do senhor Mondonosho nessa cidade. Em vez de procurar um desconhecido em terras tão distantes, é mais prático procurar mestre Ito Yagoro, homem muito conhecido atualmente. Se não me engano, mestre Ito Yagoro também praticou sob a supervisão desse Kanemaki Jisai — que o senhor procura — e, mais tarde, criou um estilo próprio a que chama Ittoryu”.

Ali estava um conselho bastante razoável.

Mas ao procurar informar-se do endereço de Ito Yagoro, soube que o homem vivera até havia pouco em Shirakawa, na periferia da cidade de Kyoto, mas — todos assim lhe diziam — ninguém mais o vira nem dele ouvira falar em Kyoto ou Osaka, sendo muito provável que tivesse partido para uma viagem de estudos.

— Isto está ficando muito confuso! — disse Matahachi, abandonando a procura. — Também, não é nada que tenha de ser resolvido com urgência — acrescentou.

 

A cidade de Osaka teve o efeito de despertar, no espírito do jovem Matahachi, a ambição adormecida. Havia ali uma intensa demanda por guerreiros talentosos.

No castelo Fushimi lutavam por implantar o sistema de vassalagem e a nova política do governo Tokugawa, mas no castelo de Osaka arregimentavam-se homens de talento e organizava-se um exército de rounin, extra-oficialmente.

— Dizem que lorde Hideyori paga em segredo uma ajuda de custo aos ex-comandantes Goto Matabei, Sanada Yukimura, Akashi Kamon, e também ao senhor Chosokabe Morichika[7] — era o comentário insistente dos mercadores. A vida para os rounin era, portanto, mais fácil, e sua presença mais apreciada na cidade casteleira de Osaka do que em qualquer outra cidade.

Chosokabe Morichika, por exemplo, alugara uma casa numa ruela nos arrabaldes da cidade e, apesar da pouca idade, raspara os cabelos e mudara o nome para Ichimusai — o Homem de Um Sonho Só. Disfarçado de boa-vida, perambulava pela zona alegre cultivando os prazeres refinados com o ar distante dos que dizem: “Nada tenho a ver com as mazelas deste mundo.” Mas Matahachi ouvira também dizer que, se a ocasião chegasse, um exército inteiro composto de 700 a 800 rounin se ergueria a um simples gesto seu, sob a bandeira dos que desejavam ver ressuscitado o domínio da casa Toyotomi. Hideyori, segundo os boatos, sustentava também com dinheiro do próprio bolso a aparentemente alegre vida de Morichika.

Nos dois meses que passara observando a cidade de Osaka, Matahachi, entusiasmado, chegara à conclusão de que ali estava o elo inicial da corrente que o conduziria ao sucesso.

A ambição, o mesmo sentimento puro que o levara, com uma lança nas mãos, a se aventurar pelos campos de Sekigahara em companhia de Takezo, seu amigo de infância, ressuscitava em seu corpo outra vez em forma.

O dinheiro do samurai morto aos poucos minguava, mas Matahachi passava os dias alegre e feliz, pois sentia que enfim o destino começava a lhe sorrir. Tinha a nítida impressão de que a sorte o esperava, à espreita até por baixo da pedra em que acabara de tropeçar.

“Em primeiro lugar, tenho de cuidar da minha apresentação”, decidiu, comprando um bom par de espadas. Como o tempo esfriava com a chegada do outono, comprou também um quimono forrado e uma casaca, apropriados para a estação.

A estada em estalagens era cara. Alugou portanto um quarto nos fundos da casa do seleiro e passou a fazer as refeições em tabernas. Fazia apenas o que lhe agradava, retornando ao quarto alugado quando bem entendesse. Enquanto vivia a seu gosto, esperava que uma boa idéia ou um incidente qualquer o conduzisse ao tão almejado emprego.

Do ponto de vista de Matahachi, levar a vida desse modo exigia um bocado de autodisciplina e fazia-o sentir-se um novo homem, de hábitos regrados.

“Está vendo, lá na frente, aquele homem que passa precedido por um lanceiro, e que se faz acompanhar por um séquito de 20 samurais e um cavalo de reserva? É o inspetor-chefe da ponte Kyobashi, à entrada do castelo de Osaka, mas já foi um simples rounin e chegou a trabalhar transportando terra na limpeza do fosso Junkei, há pouco tempo.”

Histórias invejáveis como essa chegavam constantemente aos ouvidos de Matahachi. Pouco a pouco, porém, Matahachi começou a achar que o mundo parecia uma muralha de pedras firmemente encaixadas, onde não havia lugar para pedras retardatárias. Começou a sentir um leve desânimo, mas combateu-o dizendo para si mesmo: “O mundo assim me parece porque ainda não encontrei quem me dê o empurrão inicial. O difícil é encontrar uma brecha; uma vez encontrada, basta agarrar-me a ela e me firmar.” Pediu também ao fabricante de selas que o informasse, caso viesse a saber de algum emprego.

— Ora, o senhor é jovem ainda e muito competente, ao que me parece. É só avisar o pessoal do castelo que logo surgirá alguém propondo-lhe emprego — respondeu o seleiro, pressuroso. Apesar das palavras promissoras, nenhuma proposta chegou ao seu conhecimento. Enquanto isso, o inverno avançava, dezembro ia a meio e metade do dinheiro se fora.

 

Numa área baldia da próspera cidade, a geada branqueia a relva todas as manhãs. Com o avançar do dia, quando a geada desfeita torna as ruas barrentas, gongos e tambores começam a soar nesse local.

E dezembro e o povo corre apressado com a aproximação do fim do ano, mas nesse lugar a pequena multidão que se aglomera sob o frio sol de inverno tem um ar ocioso. Vistosas bandeiras de papel e borlas coloridas em pontas de chuços chamam a atenção desses desocupados para seis ou sete funções montadas por trás de precários cercados — rústicas paliçadas rodeadas de esteiras de palha que impedem a visão dos transeuntes. A preferência do público é disputada seriamente numa verdadeira luta pela sobrevivência.

Um odor acre de shoyu barato infiltra-se no meio da multidão. Homens de peludas pernas à mostra relincham como cavalos e apregoam espetos de legumes cozidos exibidos entre os dentes. Com a chegada da noite, mulheres de pesada maquiagem branca, afinal liberadas de seus deveres, passam umas após outras como um bando de ovelhas, mastigando ruidosamente salgadinhos feitos de grãos de arroz torrados.

No local em que um vendedor de saque juntara alguns banquinhos e armara sua taberna a céu aberto, um grupo de homens acabava de brigar. Sem vencedores ou vencidos, o pequeno agrupamento afastara-se rumo à cidade em ruidoso torvelinho, largando em seu rastro uma trilha de sangue.

— Muito obrigado, senhor. Graças à sua presença, salvei toda a minha louça — repetia o vendedor de saque inúmeras vezes, curvando-se na frente de Matahachi. — Acho que consegui aquecer esta dose de saque a seu gosto, senhor — dizia o homem, servindo também uma porção de aperitivos por conta da casa.

Matahachi estava satisfeito. A briga não fora perigosa pois envolvera simples mercadores. Assim sendo, Matahachi armara uma feia carranca e observara o desenrolar dos acontecimentos, pronto a intervir caso ameaçassem prejudicar o pobre vendedor de saque. Mas, para satisfação sua e do vendedor, tudo se resolvera sem maiores complicações para ambos.

— Quanta gente, não, taberneiro? — comentou Matahachi.

— É verdade. Todo o mundo sai à rua com a chegada do fim de ano, mas pouca gente pára — disse o taberneiro em tom de queixa.

— E o tempo continua firme. Ainda bem!

Um milhafre alçou vôo no meio da multidão e ganhou altura, carregando algo em seu bico. Matahachi sentiu o rosto em brasa e pensou, distante como quem pensa num estranho: “Ora, eu tinha jurado nunca mais beber quando comecei a trabalhar na reforma do castelo Fushimi! Desde quando comecei a beber de novo?” E em seguida: “Mas um homem tem, pelo menos, de beber um pouco.”

— Mais uma bilha, taberneiro! — ordenou, voltando-se.

Nesse instante, um homem se aproximou e sentou-se num banquinho ao lado. Pelo aspecto, era um rounin. Suas duas espadas, a longa e a curta, sobressaíam impressionantes e ameaçadoras mas, de resto, vestia-se pobremente: o quimono forrado tinha a gola encardida, e sobre ele não trazia nem um simples colete.

— Ei, taberneiro, um gole para mim também. Quente e bem rápido, ouviu? Sentou-se cruzando as pernas e lançou um olhar avaliador em direção a

Matahachi. Seu olhar percorreu-o dos pés à cabeça e, quando encontrou o do jovem, o homem riu bobamente, dizendo:

— Olá!

Matahachi devolveu o cumprimento e convidou:

— Tome um pouco do meu enquanto o taberneiro amorna o seu, se não se importa por já estar começado.

— Aceito — disse o desconhecido, estendendo a mão imediatamente. — Na verdade, estava de passagem, e quando o vi aí bebendo, não consegui resistir. O cheiro da bebida parece tomar conta do nariz da gente e nos arrastar.

O homem bebia com muito gosto. Matahachi julgou que o desconhecido tinha um jeito aberto e valente.

 

O estranho era um bom copo. Enquanto Matahachi bebia um quarto de litro, o homem já esvaziara mais de um litro sem se alterar.

— Quanto costuma beber, em média? — perguntou Matahachi.

— Dois litros, brincando. Agora, se me ponho a beber de verdade, nem sei quantos.

Comentando o quadro político atual, o homem aprumou-se e expôs sua opinião com veemência:

— Esse Ieyasu não é de nada! Pôs de lado o herdeiro Hideyori e se faz chamar de Ogosho, o Grande Líder. É um absurdo. Se você afastar dele homens como Honda Masazumi e todo o seu generalato composto de fiéis vassalos, que lhe sobra? Esperteza, sangue frio e um pouco de habilidade política, nem sempre condizentes com o perfil de um verdadeiro bushi. Como eu gostaria que Ishida Mitsunari[8] tivesse vencido! Para nossa infelicidade, o homem era exigente demais e de baixa extração para liderar tantos daimyo.

A certa altura, perguntou de chofre:

— E se uma ruptura entre Ieyasu e os partidários de Toyotomi Hideyori se tornar iminente, que partido você tomará?

Ao ouvir de Matahachi a pronta resposta: “de Osaka!”, o homem levantou-se sobre o banquinho, empunhando a taça:

— Brindo a mais um partidário da nossa causa. E então, a que clã você pertence? — No momento seguinte pareceu cair em si e disse: — Perdoe a grosseria. Eu me apresentarei primeiro. Meu nome é Akakabe Yasoma e sou rounin de Gamo. Já ouviu falar em Ban Dan’emon? Pois ele e eu somos íntimos, ambos à espera de dias melhores. E em companhia de Susukida Hayato Kanesuke — o famoso general atualmente em vertiginosa ascensão nos quartéis de Osaka — cheguei a perambular por muitas províncias. Encontrei-me também umas três ou quatro vezes com Ono Shurinosuke, mas não gosto muito do seu gênio retraído; contudo, ele é mais poderoso que Kanesuke.

Percebendo que já falara demais, o homem voltou à questão inicial:

— E quanto a você?

Matahachi duvidava que a história fosse inteiramente verdadeira. Apesar disso, sentiu-se um tanto inferiorizado e resolveu também vangloriar-se:

— Já ouviu falar em mestre Toda Nyudo Seigen, da vila Jokyoji, do feudo de Usaka, na província de Echizen, o fundador do estilo Toda?

— Sim, ouvi falar.

— Pois esse mestre, Toda Seigen, transmitiu os segredos do seu estilo a meu mestre, Kanemaki Jisai, fundador do estilo Chudoryu e grande espadachim, que hoje vive recluso, longe das coisas mundanas.

O homem não manifestou nenhum espanto ante a informação. Inclinou-se para servir mais uma dose a Matahachi e comentou:

— Isso quer dizer que você é um espadachim.

— Exato.

Matahachi achou graça ao perceber como era fácil mentir. Contadas com convicção, as mentiras melhoravam o gosto da bebida, como um delicioso aperitive Seu rosto enrubescia cada vez mais.

— Bem que eu desconfiava. Acertei em cheio! Eu o vinha observando há algum tempo e havia notado que seu físico, por exemplo, é forte, mostra um preparo incomum... E então, é discípulo de Kanemaki Jisai. Se não se importa, gostaria de saber seu nome.

— Eu me chamo Sasaki Kojiro. E Ito Yagoro Ittosai é meu colega, veterano da academia.

— O quê? — exclamou o outro, assustado. O espanto do seu interlocutor chocou Matahachi, que na mesma hora pensou em se retratar, dizendo: “Isso foi uma brincadeira!” Mas ao ver que Akakabe Yasoma pusera abruptamente um joelho em terra e se curvava respeitoso à sua frente, percebeu que era tarde demais para desmentir.

 

— Perdoe-me se não o reconheci a tempo — repetia Yasoma diversas vezes. — Sasaki Kojiro é um espadachim magistral, um nome bastante conhecido em nosso meio. É inconcebível que não o tenha reconhecido. Perdoe-me se fui insolente.

Matahachi sentiu um indizível alívio: se o homem conhecesse ou já houvesse alguma vez encontrado Sasaki Kojiro, a impostura teria sido descoberta e ele estaria a esta altura suando para se explicar.

— Ora — disse — levante-se, por favor. Tanta formalidade me constrange.

— Constrangido estou eu que, sem saber com quem falava, andei me gabando. Espero não tê-lo irritado.

— De modo algum. Pois tenho a consciência de que sou ainda jovem, com pouca experiência do mundo: nem sequer sirvo a um clã.

— Mas sua habilidade como espadachim é indiscutível! Já ouvi mencionarem seu nome em muitos lugares.... Sasaki Kojiro, ora, vejam só! — murmurou Yasoma, fixando em Matahachi os olhos de bêbado, turvos e remelentos. — Mas que lástima não estar a serviço de ninguém, com toda a sua habilidade!

— É porque, até hoje, minha vida inteira foi dedicada ao aprimoramento de minha técnica. Eis porque não conheço nada do mundo.

— Mas é claro! Quer dizer que não descartou a idéia de servir a um amo.

— Basicamente. Imagino que algum dia terei de servir a alguém.

— Mas isto é muito simples, com toda a sua habilidade. Mesmo assim, se não apregoar sua competência, nunca será descoberto. Veja, por exemplo, o que aconteceu comigo: estava o tempo todo à sua frente, e me espantei sobremodo quando soube quem era — adulou-o Yasoma, oferecendo-se em seguida: — Eu intermediarei um bom serviço para você.

— Para dizer a verdade — continuou Yasoma — eu mesmo confiei o meu futuro a um amigo, Susukida Kanesuke. No momento, não estão questionando os antecedentes das pessoas que contratam, no castelo de Osaka. Além disso, se eu recomendar uma personalidade como você, posso afirmar com segurança que o senhor Susukida se interessará de imediato. Deixe que eu me encarregue de seu futuro.

Pelo visto, Akakabe Yasoma se entusiasmara com a perspectiva de lhe arrumar um emprego. Matahachi estava bastante ansioso por aceitar a oportunidade mas, tarde demais, sentia que cometera um erro irreparável ao fazer-se passar por Sasaki Kojiro.

Por outro lado, caso tivesse dito a verdade, isto é, que era Hon’i-den Matahachi, um goushi da província de Mimasaka, e contado a história de sua vida, tinha certeza de que Yasoma não teria se interessado. Quando muito, fungaria com desprezo. O que atraíra sua atenção fora, sem sombra de dúvida, o nome Sasaki Kojiro.

“Calma”, disse Matahachi com seus botões. “Não tenho por que me preocupar tanto. Pois esse indivíduo, Sasaki Kojiro, está morto, linchado no canteiro de obras do castelo Fushimi. Provavelmente mais ninguém além de mim sabe que o homem morto era Sasaki Kojiro. E como o diploma de esgrima, único documento que o identificava, está agora em meu poder a pedido do morto, não há como começar uma investigação. Além do mais, as autoridades jamais perderiam tanto tempo procurando identificar um homem violento, linchado por uma multidão indignada. Já desistiram. Jamais serei descoberto!”

Um plano ousado, ardiloso, começou a se formar na mente de Matahachi, que tomou uma súbita decisão: assumiria por completo a personalidade de Sasaki Kojiro.

— Taberneiro, a conta! — pediu, retirando certa quantia da carteira e levantando-se. Akakabe Yasoma levantou-se também e interveio, precipitadamente:

— E nossa conversa, como fica?

— Conto com a sua ajuda. Mas aqui é impossível conversar com calma. Quero ir para algum lugar onde haja um pouco mais de privacidade.

— Está certo! — concordou Yasoma satisfeito, observando com naturalidade Matahachi pagar até a sua conta.

 

Na viela, na periferia da cidade, viviam mulheres suspeitas, usando pesada maquiagem branca. Matahachi pretendia ir a um lugar mais fino, mas Akakabe Yasoma dissuadiu-o, dizendo:

— Para que gastar em casas elegantes? Conheço um lugar bem melhor, acompanhe-me.

Levado pela conversa de Yasoma, que insistentemente apregoava as qualidades dessa área na periferia da cidade, Matahachi descobriu, ali chegando, que o ambiente até lhe agradava.

A área, esclarecera Yasoma, era conhecida como Viela das Monjas[9]. Os quase mil casebres geminados que ali se erguiam eram, com ligeiro exagero, todos ocupados por prostitutas. Juntos, os lampiões das casas consumiam impressionantes 100 koku[10] de óleo por noite, sinal evidente de que os negócios prosperavam.

Próximo à área corria um fosso escuro por onde o mar entrava na maré enchente. Por esse motivo, um exame cuidadoso das lanternas vermelhas e das treliças das janelas revelava a presença de inúmeros piolhos do mar e caranguejos, semelhantes a repelentes escorpiões, venenosos e mortais. No meio da multidão de rostos pintados, porém, um ou outro rosto jovem e bonito, bem como mulheres de quase 40 anos, com os dentes tingidos de preto, cabeças envoltas em coifas de monja[11] e olhar queixoso no frio ar noturno, constituíam visões capazes de provocar até em devassos freqüentadores da zona sentidas reflexões sobre a impermanência das coisas terrenas.

— Quantas! — suspirou Matahachi.

— Está vendo? E são muito melhores que essas cantoras ou mulheres das casas de chá. Pensando bem, são prostitutas, idéia nada agradável. Mas se você passar uma noite de inverno com elas, ouvindo-as falar do passado e das histórias de suas famílias, descobrirá que não nasceram prostitutas.

Andando no meio da multidão que se comprimia na rua, Yasoma dava explicações com ar entendido.

Muitas dessas mulheres que hoje se vestem como monjas foram acompanhantes de grandes damas do xogunato Muromachi, outras são filhas de vassalos que serviam a generais famosos como Takeda Shingen, ou têm parentesco com Matsunaga Hisahide. Histórias como essas eram comuns nos dias que se sucederam à queda da casa Heike[12], mas passados os períodos Tenbun (1532-1555) e Eiroku (1558-1570), mudanças muito mais violentas no cenário do poder vieram se repetindo. Em conseqüência, essas flores caídas juntam-se como lixo nas sarjetas deste nosso mundo efêmero. Que se há de fazer...?

Entraram a seguir numa casa, onde Matahachi deixou Yasoma encarregar-se da diversão. Especialista no assunto, Yasoma foi perfeito na escolha das bebidas e no tratamento com as mulheres. Na verdade, era um prazer passar a noite na viela, pensou Matahachi.

Nessa noite, os dois homens dormiram na área, naturalmente. O dia raiou, sem que Yasoma desse mostras de se cansar do local. Matahachi, que na Hospedaria Yomogi administrada por Okoo vivera sempre se escondendo, cumprindo o papel de marido de mulher-dama, pareceu afinal se livrar da frustração acumulada durante todos esses anos, pois disse, a certa altura:

— Chega! Estou farto de bebida. Vamos embora!

— Que é isso? Faça-me companhia até a noite! — respondeu Yasoma, irredutível.

— Posso fazer, mas o que pretende depois?

— Marquei um encontro com Sussukida Kanesuke, em sua mansão, logo mais à noite. Há tempo de sobra... E, pensando bem, você tem de me explicar em detalhes as suas pretensões para que eu possa expô-las a Kanesuke.

— Não acho conveniente impor o valor do estipêndio, já a esta altura.

— Errado, não subestime seu próprio valor. Preste atenção: você, Sasaki Kojiro, um samurai qualificado, com autorização para praticar o estilo Chudoryu de esgrima, não pode chegar dizendo que quer um cargo no oficialato, não importa quanto paguem. Esse tipo de atitude só provoca desprezo. Acho que vou iniciar negociações pedindo 500 koku de estipêndio. Normalmente, quanto mais confiante se mostra o samurai, melhor o tratamento e maior o estipêndio. Deixe o orgulho de lado.

 

À sombra da muralha, o crepúsculo caía cedo como num vale ao pé de montanhas, pois a gigantesca silhueta do castelo de Osaka vedava o sol.

— Aquela é a mansão de Susukida — disse Yasoma.

Dando costas para as águas geladas do fosso em torno do castelo, os dois homens permaneciam em pé, tremendo de frio. A bebedeira do dia se dissipara num instante mal se viram na beira do fosso. A água escorria do nariz de Matahachi e congelava ao chegar na ponta.

— A do portal?

— Não, a da esquina, ao lado.

— Que bela mansão!...

— O homem fez uma linda carreira. Antes dos 30, ninguém conhecia Susukida Kanesuke. E de repente...

Matahachi não prestava muita atenção ao que Yasoma lhe dizia, não porque duvidasse de suas palavras. Ao contrário, àquela altura depositava tanta confiança no companheiro que não achava necessário analisar com cuidado tudo o que ele lhe dizia. Contemplando as dezenas de mansões que se erguiam em torno do castelo, de suseranos de maior ou menor importância, Matahachi mal conseguia conter a ambição em seu jovem peito.

— Esta noite, quando me encontrar com Kanesuke, farei com que ele aceite cuidar do seu futuro, você vai ver — disse Yasoma, acrescentando casualmente: — E quanto àquele dinheiro?

— Ah, é verdade — disse Matahachi, retirando a carteira de couro das dobras internas do quimono. Pensara de início gastar com moderação mas, sem que se desse conta, dois terços do dinheiro já se tinham ido. Raspando o fundo da carteira, Matahachi entregou tudo a Yasoma, dizendo:

— Isto é tudo. Acha suficiente?

— É mais que suficiente.

— Já que é um presente, será mais delicado apresentá-lo dentro de um envelope.

— Que é isso? Kanesuke e outros como ele aceitam abertamente, hoje em dia, o que chamam de contribuição ou taxa de recomendação. Não é preciso disfarçar, estou lhe dizendo. Deixe por minha conta.

Ao ver que todo o seu dinheiro se ia nas mãos de Yasoma, Matahachi sentiu uma ponta de insegurança e correu no seu encalço, dizendo:

— Veja se leva a missão a bom termo, Yasoma!

— Confie em mim. Se Kanesuke não se mostrar receptivo, pego o dinheiro e o trago de volta, muito simples. Afinal, Kanesuke não é o único homem influente na área de Osaka. Existem outras pessoas a quem posso recorrer, como Ono, Goto, e muitos mais.

— Quando é que vou saber a resposta?

— Você poderia ficar aí mesmo, mas não me parece boa idéia esperar em pé nesse vento, à beira do fosso. Além do que, pode parecer suspeito. Vamo-nos encontrar amanhã.

— Amanhã? Onde?

— Lá onde montaram aqueles espetáculos.

— Combinado.

— Espere-me sentado num dos banquinhos do vendedor de saque, onde nos encontramos a primeira vez. É mais seguro.

Depois de combinar o horário, Akakabe Yasoma passou pelo portal da mansão com passos decididos e desapareceu no seu interior. Matahachi observou atento o seu jeito seguro e descontraído de cruzar o portal e pensou:

— Realmente, Yasoma mostra familiaridade com o ambiente da mansão: tudo indica que conhece Susukida Kanesuke há muito tempo, conforme disse.

Naquela noite, por fim tranqüilo, Matahachi dormiu embalando sonhos de grandeza e, no dia seguinte, dirigiu-se ao terreno baldio no horário combinado, pisando a relva coberta de gelo.

Como sempre, uma pequena multidão se juntava sob o fraco sol de inverno, indiferente ao vento frio de fim de ano.

 

Akakabe Yasoma não apareceu nesse dia, inexplicavelmente.

— Deve ter tido algum contratempo — pensou Matahachi de boa fé. No dia seguinte sentou-se mais uma vez, simplório, num banquinho da

taberna ao ar livre, ficando a examinar a multidão que se juntava na área. Mas a tarde caiu sem que Yasoma surgisse.

Um pouco constrangido, Matahachi disse ao vendedor de saque:

— Cá estou eu de novo, taberneiro!

Já estavam no terceiro dia. Ao se sentar outra vez num dos banquinhos, o vendedor de saque, que intimamente vinha estranhando o comportamento de Matahachi, perguntou-lhe por quem esperava todos os dias. Matahachi então lhe explicou que por tais e tais motivos, combinara encontrar-se ali com Yasoma, o rounin que conhecera nesse lugar havia alguns dias.

— Quê? Com aquele homem? — exclamou o vendedor de saque, atônito. — Quer então dizer que ele lhe prometeu agenciar um emprego e lhe roubou o dinheiro?

— Não roubou, não. Fui eu que lhe pedi para interceder junto ao senhor Susukida, e lhe confiei o dinheiro destinado a promover a aproximação. E se fico aqui todos os dias é porque tenho pressa em saber a resposta.

— Ora essa, senhor! — disse o taberneiro com expressão penalizada. — Nem que espere cem anos, o homem não vai aparecer.

— O que... O que disse? Como não?

— Aquele indivíduo é um vigarista famoso. Malandros iguais a ele enxameiam por aqui e se topam com algum ingênuo, logo se aproximam e armam o bote. Pensei em adverti-lo do perigo, sinceramente, mas tive medo do que me poderia acontecer mais tarde. Além disso, achei que o senhor logo perceberia, só de ver seu jeito. Então... o homem levou todo o seu dinheiro? Que absurdo!

Ultrapassando os limites da simpatia, o taberneiro parecia agora sentir pena da ignorância de Matahachi. Mas este, pelo jeito, não tinha consciência do papel de trouxa que representara. O prejuízo e a perda de todas as esperanças deixaram-no trêmulo, o coração acelerado. Bestificado, contemplava a multidão.

— É quase certo que não vai adiantar, mas em todo o caso, pergunte por ele na tenda do ilusionista. Ali costuma se juntar um grupo de malandros para jogar. Pode ser que Yasoma esteja por lá tentando a sorte, já que conseguiu tanto dinheiro.

— Entendi — disse Matahachi, levantando-se do banquinho precipitadamente. — E qual das tendas é a do ilusionista?

Na direção apontada pelo taberneiro havia uma tenda grande, a maior do terreno, onde se exibia um bando de mágicos. Espectadores amontoavam-se na porta. Chegando perto, Matahachi viu diversos nomes famosos em bandeirolas afixadas ao lado da entrada e ouviu, por trás das esteiras e cortinados que vedavam o extenso cercado, uma estranha música, misturada a gritos dos mágicos e aplausos do público.

 

Ao dar a volta aos fundos do cercado, Matahachi encontrou uma outra porta diferente daquela usada pelo público. Espiou, e um vigia lhe perguntou:

— Vai jogar?

Matahachi balançou a cabeça positivamente. Como o olhar que o vigia lhe devolveu pareceu consentir, Matahachi entrou. No interior do cortinado, um grupo de quase 20 rounin sentava-se formando uma roda ao ar livre e jogava bakuchi. À sua chegada, os olhares hostis de todos convergiram em sua direção. Um dos jogadores à sua frente se levantou e lhe cedeu o lugar. Matahachi então disse, precipitadamente:

— Vocês viram Akakabe Yasoma por aqui?

— Yasoma? Por falar nisso, faz alguns dias que o Yasoma não aparece por aqui. Que lhe terá acontecido?

— Acha que ele virá? — tornou a perguntar Matahachi.

— E como vou saber? Sente-se aí, de qualquer forma.

— Não, não vim jogar. Estou aqui à procura dele.

— Não me venha com gracinhas. Se não pretendia jogar, o que faz aqui?

— Me desculpe!

— Quer levar um chute na canela?

— Já estou de saída, desculpem — repetiu Matahachi, escapulindo apressado. Nesse instante, um dos jogadores veio atrás dele esbravejando:

— Samurai provinciano, nós aqui não temos o costume de aceitar desculpas. Espertinho! Se não vai jogar, pague a entrada!

— Não tenho dinheiro.

— Não tinha dinheiro, mas veio espiar! Queria ver se nos pegava distraídos para roubar nosso dinheiro, não é, ladrãozinho?

— O que disse? — gritou Matahachi, agarrando o cabo da espada nervosamente. Ao ver isso, o homem riu, disposto a comprar a briga.

— Idiota! É preciso muito mais do que uma simples ameaça para assustar alguém como eu, acostumado à vida de uma cidade grande como Osaka. Vá, use a espada, se for capaz!

— Eu... eu o mato!

— Mata! Que está esperando?

— Sabe com quem está falando?

— Sei lá!

— Sasaki Kojiro é meu nome e sou discípulo do famoso Toda Goro-zaemon, originário da vila Jokyoji, do feudo de Uzaka, na província de Echizen, fundador do estilo Toda de esgrima, ouviu bem?

Matahachi imaginou que o nome o poria em fuga mas, pelo contrário, o homem explodiu em gargalhadas e, dando as costas a Matahachi, chamou os demais no interior do cercado:

— Venham ver, companheiros! O nosso homem acabou de dar um nome pomposo e parece querer se bater conosco. Vamos ver até onde vai a sua habilidade, que acham?!

Mal acabou de falar, o homem soltou um berro agudo e pulou, golpeado nas nádegas por Matahachi, que o atacara de surpresa.

— Cão! — gritou o homem. Logo a seguir, um alarido fez-se ouvir às costas de Matahachi, que agora fugia misturando-se à multidão, levando na mão a espada ensangüentada.

Matahachi procurava se esconder no meio do povo, mas todos os rostos ao redor se pareciam com o de um dos baderneiros e ele se sentia em perigo. Repentinamente, notou diante dele um cortinado estampando um gigantesco tigre, na entrada de uma barraca. Ao lado da porta havia uma lança com ponta em forma de foice e, numa bandeirola, um emblema representando o olho de uma serpente. De pé, em cima de um caixote vazio, um velho mercador cantarolava em voz roufenha uma ladainha para atrair curiosos:

— É o tigre, é o tigre! Venham ver o tigre. Sem sair de casa, viaje quatro mil quilômetros de ida e quatro mil quilômetros de volta. Venham ver, venham ver, o tigre veio da Coréia, caçado por Kato Kiyomasa!

Matahachi jogou uma moeda e mergulhou no interior da barraca. Um pouco mais calmo, passeou o olhar em volta à procura do tigre. À sua frente, haviam levantado duas ou três folhas de madeira, uma ao lado da outra e, pregada a elas, haviam esticado uma pele de tigre, seca e dura como uma peça de roupa lavada e exposta ao sol.

 

O público contemplava comportadamente a pele do tigre: ninguém se revoltava pelo fato de estarem exibindo um tigre morto. — Ah, então isso é um tigre!

— Como é grande, não?

O povo, admirado, continuava a desfilar, entrando por uma porta e saindo por outra. Matahachi queria matar o máximo de tempo possível e ali se deixou ficar, apenas olhando a pele do tigre. De súbito, percebeu à sua frente um casal idoso, em trajes de viagem.

— Veja só, esse tigre está morto, tio Gon — disse a velha.

O velho samurai introduziu a mão pela grade de bambu e tocou a pele, respondendo:

— Claro que está, pois se isto é a sua pele!

— Mas o homem que apregoava na entrada deu a entender que era um tigre vivo, não deu?

— É mágica, obaba, é mágica! — respondeu o samurai idoso, rindo em tom de troça. Mas a anciã, irritada, voltou o rosto e, formando um bico com a boca enrugada, disse:

— Bela porcaria! Se era um número de mágica, que anunciassem na bandeirola. A ver uma pele de tigre morto, prefiro vê-lo vivo numa gravura. Vá até a entrada e mande o homem devolver nosso dinheiro!

— Obaba, obaba! Vão todos rir da gente. Pare de reclamar tão alto!

— Que me importam os outros? Se você tem vergonha de reclamar, vou eu! Assim dizendo, começou a retroceder no meio da aglomeração quando

percebeu alguém gritar de leve e se esconder. O idoso samurai a quem a anciã chamava de tio Gon soltou um berro no mesmo instante:

— Matahachi!

A velha Osugi, que não enxergava muito bem, perguntou ansiosa:

— Que disse, tio Gon?

— Não o viu, obaba? Era Matahachi, em pé logo atrás de você!

— Quê?! Verdade?

— Está fugindo!

— Para que lado?

Os dois anciãos rolaram pela porta. Fora, a tarde caíra e a penumbra já cobria a multidão apressada. Matahachi esbarrou inúmeras vezes em transeuntes e, a cada vez, girava tontamente, fugindo sempre em direção à cidade, sem nunca se voltar.

— Pare, pare aí, filho!

Matahachi voltou-se e viu que a velha Osugi corria no seu encalço como uma louca. Tio Gon também vinha atrás, levantando a mão e gritando:

— Matahachi! Tonto, do que foge?

Ao perceber que nem assim Matahachi se detinha, a velha Osugi espichou o pescoço enrugado e berrou:

— Ladrão! Pega o ladrão! Pega!

Os homens próximos reagiram sem demora, e usando longas varas de bambu que serviam de suporte a cortinados, abateram Matahachi como fariam a um morcego.

— Peguei! Peguei!

— Malandro!

— Bate mais!

— Mata de uma vez!

Mãos e pés emergiram da multidão, castigando-o impiedosamente, cusparadas o atingiram.

Ao ver a cena, a velha Osugi que, esbaforida, acabava de alcançá-los em companhia de tio Gon, empurrou a multidão a cotoveladas, levou a mão ao cabo de sua espada e arreganhou os dentes, gritando feroz:

— Miseráveis, parem com essa crueldade! Que pretendem fazer a este jovem?

A turba, sem nada compreender, explicava:

— Velha senhora, este homem é um ladrão!

— Ladrão coisa nenhuma, este homem é meu filho!

— Seu filho...?!

— Exato! E quem foi o desgraçado que o chutou? Quem foi o miserável mercador que ousou chutar este filho de samurais? Repete a insolência de novo, que esta velha ficará muito contente em dar o troco!

— Deus nos livre! Mas quem foi que berrou há pouco: “Ladrão, ladrão!”?

— Quem gritou fui eu, esta velha aqui presente! Mas ninguém pediu que gentinha como vocês o chutassem! Gritei pensando em deter meu filho, isso foi um ato de amor materno. E se não sabiam do que se tratava, como é que se põem a chutar e a bater, bando de trapalhões?

 

AMOR E ÓDIO

O bosque ficava no centro da cidade. A luz bruxuleante de um archote fazia as vezes de iluminação pública e clareava fracamente a área.

— Venha cá! — disse a velha Osugi, agarrando Matahachi pela nuca e arrastando-o da rua para dentro do bosque. Assustada com a fúria da idosa senhora, a turba desistira de acompanhá-los. O velho Gon, que ficara sob uma arcada torii [13]próxima protegendo o flanco posterior, logo os alcançou.

— Não bata nele, obaba. Lembre-se que Matahachi já não é uma criança — disse, tentando soltar a mão de Osugi do pescoço de Matahachi.

— Não se intrometa! — disse a velha, afastando-o com uma brusca cotovelada. — Eu sou a mãe, e estou castigando meu filho. Quem interfere, se intromete. Cale a boca, se me faz o favor. E você, Matahachi!

Em momento digno de lágrimas de alegria, a velha mulher, revoltada, agarrava a nuca do filho e pressionava sua cabeça contra o solo. Diz-se que a velhice transforma as pessoas, tornando-as impacientes e simplórias. Ou talvez os complexos sentimentos que assaltavam agora a velha Osugi representassem carga excessiva para seu espírito exausto. Senão, como classificar sua reação, misto de choro, raiva e louca manifestação de alegria?

— Que história é essa de sair correndo, mal vê a própria mãe? Você nasceu de mim, e não da forquilha de uma árvore! Esqueceu que é meu filho, hein, hein?! Paspalho! — dizia Osugi, aplicando vigorosas palmadas em suas nádegas, conforme fazia quando o castigava na infância. — Enquanto eu sofria, achando que já não pertencia a este mundo, você vivia tranqüilamente em Osaka! Que ódio, que ódio! Explique por que não voltou à sua terra para prestar homenagem às almas ancestrais, nem se preocupou em vir ver esta sua velha mãe. E não lhe ocorreu que todos os nossos parentes pudessem estar aflitos por sua causa?

— Me perdoe, mãe, me perdoe! — gritava Matahachi como uma criancinha, entre palmadas da mãe. — Sei que agi mal, sei disso. Exatamente por isso não consegui voltar para casa. Quando a vi, há pouco... foi tão inesperado que saí correndo como um doido, nem sei por quê. Que vergonha, ai, que vergonha! Tio Gon, mãe, senti tanta vergonha! — disse, ocultando o rosto nas mãos.

Ao vê-lo arrependido, a velha Osugi enrugou ainda mais os olhos e o nariz no rosto idoso e pôs-se também a soluçar. Mas valente como era, logo se recuperou e, combatendo resolutamente a própria fraqueza, voltou a falar:

— Você é a desgraça dos nossos ancestrais! E se confessa que está com vergonha, boa coisa não há de ter praticado!

Tio Gon, incapaz de se conter por mais tempo, interveio:

— Já basta, obaba: desse jeito, vai acabar deformando o caráter do menino.

— Vai se intrometer de novo? Aliás, você é indulgente demais, tio Gon, nem parece homem! Matahachi não tem pai e eu tenho de fazer o papel de mãe e de pai severo, ao mesmo tempo. Entendeu por que o castigo tanto? E nem pense que já acabei. Matahachi, sente-se aí! — disse Osugi, reaprumando-se ela própria e apontando o chão à sua frente.

— Sim, senhora. — Matahachi levantou o peito sujo de terra e formalizou-se, sem ânimo algum.

 

Osugi era uma mãe temível. Em certos aspectos era complacente, muito mais que a maioria das mães, mas tinha o hábito de trazer à baila a honra dos ancestrais por qualquer motivo, o que deixava Matahachi submisso como um cordeirinho.

— Não me esconda nada, ou será pior para você. Começando da hora em que partiu para a batalha de Sekigahara, o que foi que esteve fazendo? Conte tudo detalhadamente, até que me dê por satisfeita.

— Vou contar, vou contar.

Não ocorreu a Matahachi esconder o que quer que fosse. Contou como escapara vivo dos campos de Sekigahara em companhia do amigo Takezo; como se ocultara nas proximidades do pântano de Ibuki; como fora seduzido por Okoo, uma mulher mais velha, e como a vida em sua companhia se transformara em amarga experiência, da qual agora se arrependia. Quando acabou, sentiu um grande alívio, como se acabasse de vomitar algo podre há muito retido no estômago.

— Que coisa! — gemeu tio Gon.

— Você me espanta! — disse Osugi, estalando a língua impaciente. — E que anda fazendo ultimamente? Até que está bem vestido. Como é, conseguiu entrar para o serviço de algum suserano? Já recebe um estipêndio?

— Sim! — disse Matahachi sem querer, ansioso por agradar a mãe. Mas o medo de ser pego mentindo o fez emendar depressa:

— Mas ainda não consegui emprego.

— E então... de que vive?

— Da esgrima; dando aulas de esgrima.

— Verdade? — disse Osugi bem-humorada, relaxando pela primeira vez. — Aulas de esgrima? Muito bem! Apesar da vida difícil que levava, vinha se dedicando à esgrima. Mostra que é meu filho. Este é bem meu filho, não é mesmo, tio Gon?

Tio Gon concordou meneando com energia a cabeça diversas vezes, ansioso por mudar o humor da velha Osugi:

— É claro, tem de haver nele um pouco do sangue de nossos ancestrais. Embora tenha perdido o rumo momentaneamente, não perdeu o espírito.

— E então, Matahachi?

— Senhora?

— Com quem estudou, nesta cidade?

— Com o mestre Kanemaki Jisai.

— Ouça, discípulo do famoso mestre Kanemaki! — disse Osugi, seus olhos e nariz enrugados demonstrando tanta satisfação que Matahachi se viu tentado a aumentar sua alegria. Retirou então das dobras internas do quimono  o diploma de esgrima, desenrolou-o e, ocultando apenas a última linha que dizia: “Ao mestre Sasaki Kojiro”, mostrou-o à luz dos archotes:

— Veja, minha mãe, aqui está!

— Deixe-me ver! — disse Osugi, estendendo a mão. Mas Matahachi não lhe entregou o documento, dizendo apenas:

— Leia e tranqüilize-se, minha mãe.

— Tem razão! — disse a velha, sacudindo a cabeça. — Veja, tio Gon, que beleza! Não é à toa que sempre foi mais inteligente e também muito mais hábil que Takezo, desde pequeno.

Osugi quase babava de orgulho mas, instantes depois, seus olhos caíram na última linha do documento que Matahachi sem querer deixara à mostra, enquanto enrolava o diploma.

— Espere, espere um pouco: aqui diz Sasaki Kojiro. Que é isso?

— Ah... isso? Isso é um pseudônimo.

— Pseudônimo? E por que o pseudônimo, meu filho, justo você que tem um belo nome, Hon’i-den Matahachi?

— É que, como levava uma vida vergonhosa nos últimos tempos, não quis sujar o nome de nossos ancestrais.

— Ah, então foi isso! Muito bem, mostra um caráter louvável, meu filho! E agora, preste bastante atenção, pois vou lhe contar o que vem acontecendo em nossa terra, fatos que você por certo desconhece.

Com esse prólogo, e sempre pensando em incentivar e meter o filho embrios, a velha senhora pôs-se a contar os últimos acontecimentos da vila Miyamoto desde a partida de Matahachi, os motivos que levaram a ela e ao tio Gon, como representantes da casa Hon’i-den, a partir juntos da vila e a peregrinar por diversas províncias durante os últimos anos, com o intuito de encontrar e matar a dupla Takezo e Otsu. Sem a intenção de exagerar, mas ainda assim exagerando, Osugi contou minuciosamente a sua história com os olhos úmidos, interrompendo-se diversas vezes para assoar o nariz.

 

Matahachi ouvia, imóvel e cabisbaixo, o emocionado relato da idosa mãe. Agora ele se comportava como um dócil e bom filho.

Mas os aspectos ressaltados pela velha mãe em sua arenga, como a preservação do bom nome familiar e da moral samuraica, não comoveram o filho tanto quanto aquela única notícia: Otsu amava outro!

— Mãe, isso aconteceu de verdade?

Ao perceber a comoção no rosto do filho, a velha senhora imaginou que enfim conseguira, com seu discurso, despertar-lhe o brio e disse:

— Se pensa que minto, pergunte aqui ao seu velho tio Gon. Otsu, aquela relapsa, o abandonou para correr atrás de Takezo, essa é a verdade. Aliás, se você pensar mais um pouco, pode até ser que Takezo, sabendo que você não retornaria tão cedo, tenha seduzido Otsu e fugido, roubando-a de você. Não é, tio Gon?

— Isso mesmo, pode-se esperar qualquer coisa dessa dupla. Afinal, Takezo escapou do cedro centenário no templo Shippoji — onde o bonzo Takuan o havia amarrado para pagar seus pecados — com a ajuda da Otsu. Com certeza existe algo mais que simples amizade entre esses dois.

Ao ouvir isso, Matahachi por fim se encolerizou. Sobretudo porque nutria ultimamente contra o velho amigo Takezo um inexplicável antagonismo. A idosa mãe espicaçou ainda mais o orgulho do filho:

— Entendeu agora, Matahachi, o espírito que nos move, a mim e ao tio Gon, quando continuamos nossas buscas país afora? Sem trazer comigo a cabeça desses dois — de Takezo, o homem que fugiu levando a noiva de meu filho, e de Otsu, a mulher que sumiu jogando o honrado nome Hon’i-den na lama — nunca mais terei coragem de comparecer perante o altar de nossos ancestrais ou o povo de nossa aldeia.

— Entendi.

— Nem você está em condição de voltar a pisar sua terra natal na atual circunstância, concorda?

— Agora não posso mais.

— Destrua esses seus odiosos inimigos.

— Certo.

— Que resposta desanimada! Acha, por acaso, que não é hábil o suficiente para matar Takezo?

— Não é isso. Tio Gon interferiu:

— Não se preocupe, Matahachi, estou do seu lado.

— E também esta sua velha mãe.

— Ainda haveremos de voltar para casa carregando orgulhosamente as cabeças de Otsu e Takezo, não é mesmo, Matahachi? E depois, você escolherá uma linda noiva e herdará a casa Hon’i-den. Nesse dia, nossa honra de bushi estará salva. Nosso nome gozará merecido reconhecimento nas províncias vizinhas e, sobretudo, não restará em Yoshino nenhuma linhagem comparável à nossa — concluiu tio Gon.

— Vamos, anime-se, Matahachi. Acha que é capaz de cumprir a missão?

— Sim.

— Você é um bom filho. Ele merece elogios, tio Gon. Acabou de jurar que matará Takezo e Otsu — disse Osugi, finalmente em paz. Moveu-se então de leve, tentando levantar-se, pois havia já algum tempo que suportava em silêncio o enregelante frio que vinha do chão.

— Ai, ai, ai!

— Que foi, obaba?

— Acho que foi o frio, tio Gon. Sinto uma dor terrível nos quadris e não consigo me aprumar.

— Isso é mau! É aquela dor crônica de novo. Matahachi voltou as costas para a mãe e disse:

— Suba em minhas costas, mãe, eu a levo.

— Você vai me levar... me levar em suas costas, filho? — disse Osugi, passando os braços pelos ombros de Matahachi. — Quando foi a última vez que me levou a cavalo em suas costas? Veja, Tio Gon, Matahachi está me levando! — maravilhou-se a anciã, derramando lágrimas de alegria.

Quando as lágrimas quentes atravessaram a roupa e atingiram a pele de Matahachi, este sentiu uma indizível satisfação:

— Tio Gon, onde estão hospedados? — perguntou.

— íamos procurar ainda. Qualquer lugar serve, vá andando.

— Está bem! — disse Matahachi, caminhando e balançando alegremente o corpo da idosa mãe nas costas. — Puxa, como você é leve, mãe! Muito mais leve que pedras!

 

UM BELO JOVEM

Fardos de papel e folhas de indigueiro constituíam a maior parte da carga. Além disso, o navio transportava também clandestinamente em seu porão fardos de tabaco, cuja comercialização fora proibida. A princípio, esta última carga era secreta, mas o cheiro a denunciava.

Algumas vezes por mês o navio trafegava entre a província de Awa[14] e a cidade de Osaka, interligando as duas localidades. Setenta a oitenta por cento dos passageiros que haviam embarcado com a carga eram mercadores que se dirigiam a Osaka ou para lá retornavam, conversando animadamente:

— Como vão os negócios? Rendosos?

— Qual! Mas ouço dizer que em Sakai[15] as coisas andam de vento em popa.

— Dizem que a demanda por armas de fogo é tão grande que faltam artesãos nessa área.

Outro mercador interveio:

— Eu, por exemplo, trabalho com material bélico — suportes de bandeiras e armaduras — mas esse tipo de comércio já não rende o que costumava.

— Realmente?

— É que os samurais aprenderam a fazer cálculos...

— Ah!...

— Tempos atrás, costumávamos comprar dos bandoleiros o material pilhado por eles, pintar ou dar-lhe uma demão de laça, e o vendíamos de novo nos quartéis. Vinha então uma nova guerra, os bandoleiros tornavam a pilhar o mesmo material que a gente tornava a restaurar. Era um tipo de comércio rotativo de boa rentabilidade, ainda mais porque ninguém se incomodava em pesar com rigor o ouro e a prata na hora do pagamento.

A conversa girava quase sempre em torno do mesmo assunto.

— Hoje em dia, não existe comércio que se possa chamar de verdadeiramente rendoso no país. O negócio agora é arriscar tudo e sair pelo mar, como fizeram Ruson Sukezaemon[16], ou Chaya Sukejiro — disse alguém fitando o mar alto, apregoando a riqueza de países distantes.

— Comparados aos samurais, porém, nós, os mercadores, vivemos muito melhor, apesar das queixas. Esses samurais, coitados, não têm a mesa tão variada quanto a nossa; em minha opinião, a tão propalada vida luxuosa dos daimyo deixa muito a desejar; e, acima de tudo, na hora do perigo, têm de se pôr em armas e partir para a guerra, prontos para morrer. Sem falar que, no dia-a-dia, o famoso código de honra dos bushi os amarra, impedindo-os de agir como bem entendem. E de dar pena, sem dúvida — disse outro.

— Isto quer dizer que, apesar das dificuldades, é melhor ser mercador?

— Claro que é! Pelo menos, vivemos do jeito que nos agrada.

— Basta nos mostrarmos humildes perante a classe guerreira. E um bom lucro compensa qualquer humilhação.

— Nada melhor do que viver bem a vida.

— Sem dúvida! De vez em quando, encontro uns coitados a quem fico com vontade de perguntar: “Para que vieram ao mundo?”

Pelo aspecto, esses homens — embora simples mercadores — eram ricos e haviam estendido sobre o convés um amplo tapete importado, estabelecendo para si uma área de primeira classe.

Realmente, examinando-se com cuidado o grupo, chegava-se à conclusão de que o luxo — prerrogativa da classe samuraica durante o período Momoyama[17] — talvez houvesse migrado para a classe mercantil depois da morte de Hideyoshi. Os finos copos, os deslumbrantes apetrechos e as roupas de viagem, assim como a luxuosa bagagem desses homens mostravam que o estilo de vida de um mercador — apesar de sua natural parcimônia — ainda era muitíssimo superior ao de um samurai com mil koku de estipêndio.

— A viagem está ficando monótona.

— Que tal um passatempo?

— Boa idéia. Vamos fechar essa cortina à nossa volta.

O grupo começou a jogar baralho, recentemente introduzido no país por navios mercantes espanhóis e portugueses. Concubinas e serviçais foram encarregados de manter os copos sempre cheios. Os homens divertiam-se apostando quantias tão elevadas que apenas um punhado desse ouro impediria uma aldeia inteira de morrer de fome.

Dez por cento do total de passageiros que haviam embarcado com os mercadores eram monges itinerantes, rounin, estudiosos do confucionismo, bonzos e samurais, gente a quem os mercadores gostariam de perguntar: “Para que vieram ao mundo?” Agrupados a um canto junto aos fardos, fitavam com olhar ausente o mar de inverno.

 

Em meio a esse grupo de passageiros de expressão enfarada estava um jovem.

— Quieto! — ordenou, a certa altura. Apoiado a um fardo e voltado para o mar, abrigava em seu colo algo redondo e peludo.

— Ora... é um macaquinho! — exclamou alguém, espiando. — Parece domesticado.

— Eé.

— Você o tem há muito tempo?

— Não. Peguei-o há pouco, quando transpunha as montanhas vindo de Tosa[18] em direção a Awa.

— Você mesmo o pegou?

— Isso. Mas passei maus bocados, perseguido por seus pais e pelo bando. Embora não se recusasse a conversar, o jovem não levantava os olhos, continuando diligentemente a caçar pulgas pelo pequeno corpo preso entre as pernas. Os cabelos estavam cortados à moda dos adolescentes — longos, presos em rabo no alto da cabeça por uma faixa roxa e aparados em franja na testa — e vestia um vistoso e colorido conjunto de quimono acolchoado e hakama de seda, usando sobre ele um longo e folgado colete de lã vermelha que lhe chegava abaixo dos quadris. A aparência era a de um adolescente, mas não havia como garantir que realmente o fosse.

A dúvida era razoável: estilos vistosos como o desse jovem eram herança do período Momoyama, de rica influência sobre os usos e costumes, quando a moda impusera seus caprichos até sobre cachimbos, popularizando os assim chamados “cachimbos Taiko”, em homenagem a Toyotomi Hideyoshi, cognominado Taiko. E assim, persistia ainda no país a moda surgida no auge do período Momoyama, quando jovens de 20 anos, muito além da maioridade, haviam evitado raspar os cabelos, conservando a franja característica dos adolescentes até bem depois dos 25 anos, usando roupas de tecidos vistosos bordados de ouro e prata e fazendo questão de aparentar a pureza e o frescor de um adolescente[19].

Por esse motivo, não se poderia afirmar de maneira categórica, com base apenas em sua aparência, que o jovem fosse na verdade um adolescente. No aspecto físico, por exemplo, era alto e imponente, tinha a pele clara, lábios vermelhos e olhos brilhantes. Ademais, as extremidades das sobrancelhas escuras afastavam-se dos cantos externos dos olhos e subiam em direção às têmporas, emprestando ao rosto uma expressão bastante agressiva.

Não obstante, o tom com que disse ao macaco: “Por que tanto se mexe?”, aplicando-lhe um ligeiro tapa na cabeça, ainda absorto em caçar pulgas, continha grande dose de ingenuidade juvenil. Nenhum motivo especial existe para tanta especulação sobre sua idade, mas somando-se os indícios e tirando-se a média, estimava-se que o jovem teria seus 19 ou 20 anos.

Quanto à sua identidade, nada poder-se-ia deduzir dos trajes de viagem e das macias meias de couro e sandálias de palha. Contudo, seus modos descontraídos em meio ao grupo composto por monges itinerantes, bonequeiros, samurais andrajosos como mendigos e plebe malcheirosa, fazia imaginar que não pertencia a nenhum clã, havendo muito maior probabilidade de que fosse um rounin.

Contudo, levava consigo um objeto valioso demais para um simples rounin: uma espada do tipo usado em batalhas[20], longa, que trazia enviezada às costas, presa por uma tira de couro por cima do colete vermelho. A espada era reta, sem a curvatura característica da espada comum, mais parecendo uma longa vara.

O tamanho e a qualidade da espada, cujo cabo emergia sobre um dos ombros do jovem, atraíam imediatamente o olhar das pessoas.

— Que bela espada! — pensou Gion Toji que, a poucos passos de distância, havia já algum tempo a contemplava embevecido. — Nem em Kyoto se vêem muitas iguais a essa.

A qualidade excepcional da arma fez com que especulasse sobre o dono, sua carreira e seu passado. Gion Toji esperava uma oportunidade para se aproximar do belo jovem e entabular diálogo.

Em meio à névoa gelada que pairava sobre o mar, a ilha Awaji, de vagos contornos, refletia os raios solares e aos poucos se distanciava à popa.

Sobre a cabeça dos passageiros, o ruído da larga vela desfraldada sobrepunha-se ao rugido do mar.

 

Gion Toji, cansado da monótona viagem, abafou um bocejo. Nada como uma jornada tediosa para despertar no viajante a sensação de ser um estranho em terra desconhecida. Toji tomara o barco no fim de uma dessas cansativas viagens, que já durava 14 dias.

“Será que o mensageiro expresso chegou a tempo? Se chegou, ela deve estar à minha espera no cais do porto de Osaka”, pensou, evocando a figura de Okoo como único consolo para o tédio.

Pois a casa Yoshioka, que obtivera fama e invejável situação financeira ao ser apontada instrutora de artes marciais pelo xogunato Ashikaga do período Muromachi, via agora sua fortuna comprometida na geração de Seijuro por causa da vida desregrada que este levava. Nos círculos mais íntimos comentava-se que até a academia da rua Shijo estaria hipotecada e que muito provavelmente passaria às mãos de mercadores nesse fim de ano. A situação era negra. Mesmo que Seijuro juntasse o restante da fortuna amealhada pelo pai Kenpo e se mudasse levando apenas a roupa do corpo, o valor levantado não daria para cobrir as contas que vinham sendo cobradas com insistência por credores de todos os tipos, aglomerados à sua porta nos últimos dias.

— E agora?

À pergunta de Seijiro, Gion Toji, ciente de que os convites à farra feitos por ele próprio ao mestre eram a causa parcial do problema, disse:

— Deixe por minha conta. Vou lhe mostrar como pôr as contas em ordem. Toji empregou toda a sua astúcia e elaborou um projeto, segundo o qual

dariam início à construção de uma nova academia denominada Shinbukaku na área ocidental do bairro Nishi-no-touin, atualmente desocupada.

Dando seguimento ao plano, Toji fez com que Sejuro escrevesse uma circular com o seguinte teor:

Em razão da atual conjuntura, cresce a cada dia a popularidade das artes marciais, assim como a demanda por praticantes dessas artes pelos senhores feudais. Em vista disso, e com o objetivo de treinar um número cada vez maior de seguidores do nosso estilo, surge a necessidade de se ampliar a academia hoje existente para que assim possamos dar continuidade à obra do nosso fundador, celebrizando-a em todo o país. A realização dessas metas é sem dúvida um dever de todos nós, antigos discípulos do falecido mestre.

Com a circular nas mãos, visitou um a um os diversos discípulos formados pela academia Yoshioka Kenpo espalhados pelas áreas de Chugoku, Kyushu e Shikoku. O objetivo das visitas era, evidentemente, solicitar uma contribuição para a construção do referido Shinbukaku.

Muitos dos antigos discípulos do falecido Kenpo serviam a clãs em várias localidades e haviam ascendido a altos cargos. Contrariando as expectativas de Toji, porém, poucos foram os que, lendo a circular explicativa, se animaram a assinar o livro de ouro.

“Mandarei em breve, por carta”, ou “Contribuirei em outra oportunidade, quando for a Kyoto”, eram as desculpas mais freqüentes, e Toji acabou, afinal de contas, angariando apenas uma pequena parcela do que planejara.

Uma vez que o patrimônio em jogo não era dele, pensava Toji otimista que o problema seria contornado de algum modo e empenhava-se havia algum tempo em trazer à lembrança não o rosto de seu mestre, Seijuro, mas o de Okoo, a quem já havia algumas semanas não via. Mas como para tudo há um limite, também disso se aborrecera e, abafando um novo bocejo, não sabia mais o que fazer para aplacar o tédio.

Nesse momento sentiu inveja do bem-apessoado jovem que, havia algum tempo, se entretinha em caçar pulgas pelo corpo do seu macaco. Aquele, sim, achara um bom passatempo. Toji não resistiu e, por fim, aproximou-se do rapaz e entabulou conversa:

— Está indo para a cidade de Osaka, jovem?

Ainda segurando a cabeça do macaco, o jovem voltou-se e os olhos grandes lançaram um olhar pouco amistoso ao rosto de Toji.

— Isso mesmo. Vou a Osaka — disse.

— Sua família reside em Osaka, por acaso?

— Não é esse o caso.

— Mora em Awa, então.

— Também não.

O jovem era seco, sem dúvida. Em seguida, voltou a se absorver na tarefa de repartir com os dedos, cuidadosamente, os pêlos do pequeno macaco.

 

Toji não viu como continuar a conversa e calou-se durante alguns momentos para logo voltar a falar.

— Bela espada a sua — disse, agora elogiando a longa espada às costas do jovem. Quanto a isso, respondeu ele:

— É verdade. Está há gerações em minha família. — Satisfeito com o elogio, voltou-se então inteiramente para o lado de Toji e continuou: — Esta espada foi feita para ser usada em campo de batalha, de modo que penso em entregá-la a algum bom mestre armeiro em Osaka e pedir que a refaça, a fim de poder levá-la à cintura.

— Ela me parece um tanto longa para ser levada à cintura.

— Tem apenas três shaku[21] de comprimento.

— Muito longa, repito!

— Espero ser capaz disso... — retrucou o jovem. Um sorriso confiante surgiu em seus lábios.

— Claro que você é capaz de levá-la à cintura — em vez de três, a espada poderia ter até quatro shaku e ainda seria possível. Mas o importante é saber se você é bom o suficiente para manejá-la com desembaraço na hora da necessidade — enfatizou Toji em tom de censura ante o que considerou fanfarronice do jovem. — Um homem que se pavoneia levando à cintura uma espada longa o suficiente para ser confundida com uma tramela de porta pode ter um ar bem provocante. Mas são justamente esses os tipos que, na hora azada, a arrancam da cintura, atrapalhados, e fogem carregando-a nos ombros. Desculpe a indiscrição mas — que estilo você pratica?

Em se tratando de esgrima, Toji não podia deixar de mostrar condescência diante daquele rapaz mal saído das fraldas. O jovem lançou um rápido olhar ao rosto arrogante de seu interlocutor e disse:

— Estilo Toda.

— O estilo Toda foi idealizado para espadas curtas, se não me engano.

— É para espadas curtas. Mas não existe lei alguma que me obrigue a usar a espada curta só porque pratico o estilo Toda. Detesto imitar os outros. Assim, ao contrário do que meu mestre preconizava, divisei um meio de usar a espada longa. Quando meu mestre descobriu, irritou-se e me expulsou da academia.

— É típico dos jovens vangloriar-se desse tipo de rebeldia. E depois?

— Em seguida, deixei para trás a vila Jokyoji, na província de Echizen, desliguei-me do estilo Toda e procurei um certo mestre Kanemaki Jisai, fundador do estilo Chudoryu. Quando soube do que me acontecera, esse mestre mostrou-se compreensivo e me admitiu como seu discípulo. Depois de quatro anos de intensos estudos, atingi afinal um estágio que foi considerado satisfatório pelo meu mestre.

— Esses mestres provincianos costumam conceder diplomas a troco de quase nada, pelo que sei.

— Ao contrário, mestre Jisai não concede diplomas com facilidade. Ouvi dizer que, antes de mim, ele concedera a apenas uma pessoa — Ito Yagoro Ittosai, meu colega veterano — a autorização para praticar o estilo. E como eu também queria o diploma, submeti-me a um treinamento severíssimo, suportando inomináveis sofrimentos e provações. Nesse ínterim, minha mãe faleceu e tive de retornar à minha terra, interrompendo os estudos.

— De onde você é?

— Venho da vila Iwakuni, na província de Suo[22]. Depois de retornar à minha terra, não me descuidei um dia sequer: à beira da ponte Kintai, pratiquei sozinho, cortando chorões e abatendo andorinhas — usando esta espada, forjada por Nagamitsu[23], a mim entregue por minha mãe em seu leito de morte com a expressa recomendação de cuidar dela com carinho. Esta arma é um tesouro da família.

— Forjada por Nagamitsu!

— O nome do forjador não está gravado na lâmina, mas assim reza a tradição. É famosa em minha terra, tendo até sido carinhosamente batizada de “varal” por causa do seu inusitado comprimento.

Contrariando a impressão de reserva que transmitia ao primeiro contato, o atraente jovem pôs-se a dar informações não solicitadas quando a conversa passou a girar em torno de assuntos de seu interesse. E uma vez que se punha a falar, a reação do interlocutor não lhe interessava. Tanto por esta última particularidade como pelos detalhes da carreira que há pouco relatara, o rapaz parecia bastante voluntarioso, bem diferente da sua aparência.

 

O jovem calou-se por alguns minutos, parecendo imerso em emocionantes recordações. Suas pupilas refletiram uma rápida sombra de nuvens.

— Mas mestre Kanemaki também adoeceu e morreu no ano passado, completando uma longa vida de realizações — murmurou, quase sussurrando. — Eu ainda estava em Suo quando Kusanagi Tenki, um colega da academia, me transmitiu a notícia do falecimento do mestre, e chorei, emocionado. Pois meu mestre deixou de conceder o diploma a Kusanagi Tenki — que sempre se manteve ao seu lado e que o acompanhou em seus últimos momentos, que entrara para a sua academia muito antes de mim e que, além de tudo, era seu sobrinho — preferindo dá-lo a mim, que nos últimos tempos vivia tão longe. Segundo soube, mestre Kanemaki havia preparado o diploma havia algum tempo e lamentou muito não poder me rever em vida e me entregá-lo pessoalmente.

Seus olhos encheram-se de lágrimas que quase rolaram.

Gion Toji ouvia as reminiscências emocionadas do jovem, mas não se sentiu nem de longe solidário. Ainda assim, achou preferível conversar com ele a ter de passar mais algumas horas de tédio, de modo que fingiu genuíno interesse e murmurou:

— Ah... entendo.

O jovem continuou, quase como se desabafasse:

— Eu devia ter ido imediatamente, na ocasião, mas ainda estava em Suo, e meu mestre em Joshu[24], no meio das montanhas. Algumas centenas de quilômetros nos separavam. Por uma infeliz coincidência, minha mãe também faleceu nessa época, de modo que não consegui chegar a tempo de ver meu mestre.

O navio começou a jogar. Nuvens ocultaram o sol e o mar adquiriu um tom acinzentado, produzindo vagalhões que lançavam uma espuma gelada sobre a amurada.

O jovem continuou seu relato em tom emocionado. Resumindo, ele havia fechado a propriedade onde a mãe vivera e partido ao encontro de Kusanagi Tenki — seu colega e sobrinho de seu falecido mestre — com quem ficara de se reunir em algum lugar.

— Meu mestre Jisai não tem nenhum parente vivo. Por isso, legou ao sobrinho, Tenki, um certo valor que, assim presumo, não deve ter sido muito grande e, para mim que estava em terras distantes, o diploma do estilo Chudoryu. Tenki está de posse desse diploma e neste momento está percorrendo diversas províncias a estudo. Combinamos então, por correspondência, que nos encontraremos no equinócio da primavera[25], data em que ambos subiremos ao monte Houraiji, na província de Mikawa[26], situada a meio caminho entre as regiões de Joshu e Suo. Lá, receberei das mãos de Tenki o legado de meu mestre. De modo que, até lá, pretendo percorrer com tranqüilidade as áreas próximas ao castelo imperial e conhecê-las.

Terminado o relato, o jovem voltou-se enfim para Toji e perguntou:

— E o senhor: é de Osaka?

— Não, de Kyoto — respondeu Toji. Permaneceu por instantes calado, atento ao marulhar das ondas. Perguntou em seguida:

— De modo que você também pensa em viver das artes militares? — Havia algum tempo Toji o escutava com ar de desprezo e, nesse momento, pareceu visivelmente enfarado. Aos seus olhos, jovens que andavam por aí falando de diplomas e proficiência, como este, eram pretensiosos.

E desde quando, pensava Toji, pululavam no mundo espadachins hábeis ou até magistrais? Ele próprio, por exemplo, era discípulo dos Yoshioka havia quase 20 anos e só nos últimos tempos conseguira chegar àquele nível. Tomando a si próprio como base, do que pretendiam viver esses jovens daqui para a frente?

O jovem, que estivera fitando o mar em silêncio envolvendo os joelhos com os braços, murmurou então:

— De Kyoto? — Voltou-se uma vez mais para Toji e perguntou: — Em Kyoto, ouvi dizer, vive o herdeiro de Yoshioka Kenpo, um certo Yoshioka Seijuro. Sabe se ele ainda atua?

 

Basta dar-lhes corda para que comecem a falar de assuntos que não entendem. Fedelho impertinente, disse Toji para si, irritado. Mas pensando bem, o jovem ainda não sabia que se achava cara a cara com Gion Toji, o mais graduado dos discípulos da Academia Yoshioka. Imaginava o espanto e o constrangimento do rapaz quando descobrisse a verdade. Em parte para dissipar o tédio, resolveu divertir-se um pouco à custa dele:

— Na verdade, a Academia Yoshioka me parece próspera como sempre. Já esteve na academia, por acaso?

— Nunca. No entanto, quando chegar a Kyoto, pretendo me bater com Yoshioka Seijuro ao menos uma vez, só para sentir o seu nível.

— Uff! — disse Tojiro, contendo o riso. Careteou e, disfarçando o desprezo o melhor que pôde, falou:

— Tem certeza de sair incólume dos portões da academia?

— Que é isso! — rebateu o jovem. Em seguida, pôs-se a rir, divertido com a pergunta. — A academia é superestimada por causa de sua estrutura, que é muito grande. Seu fundador, Kenpo, foi um exímio esgrimista, sem dúvida alguma, mas tanto o mestre atual, Seijuro, como o irmão dele, Denshichiro, não são grande coisa. Ao menos assim me parece.

— Como pode saber, se nunca se bateu com nenhum deles?

— Mas o boato corre em todas as províncias, entre praticantes de artes marciais. Realmente, um boato não merece crédito total. Ainda assim, ouve-se com freqüência falar que o estilo Yoshioka, de Kyoto, está com os dias contados.

“Vamos parando por aí”, tinha vontade de dizer Toji. Pensou em revelar de uma vez a própria identidade, mas encerrar o assunto àquela altura dos acontecimentos daria a impressão de que o jovem se divertira à sua custa, e não o contrário. Além do mais, faltava ainda um bocado para o navio atracar em Osaka. De modo que ironizou:

— Sei. E como no mundo não faltam convencidos, assim me dizem, pode ser que tal boato esteja de fato correndo. Mudando de assunto, você falou há pouco que, na época em que esteve em sua terra natal, longe de seu mestre, procurou aperfeiçoar o manejo da espada longa abatendo andorinhas em pleno vôo à beira da ponte Kintai, não foi?

— Falei.

— Nesse caso, você por certo é capaz de abater com sua espada essas aves marinhas que vez ou outra se aproximam do barco em vôo rasante, não é mesmo?

Enfim percebendo a animosidade nas palavras de seu interlocutor, o jovem contemplou fixamente os lábios escuros de Toji por alguns segundos, e afinal respondeu:

— Sou, mas não tenho nenhuma vontade de fazer uma exibição tão tola. Parece, porém, que você quer me obrigar a isso!

— Mais do que justo, já que se sente autorizado a fazer pouco do estilo Yoshioka.

— Pelo que vejo, minhas referências pouco elogiosas à Academia Yoshioka o ofenderam. Você é discípulo ou parente dos Yoshioka?

— Nem um, nem outro. Mas como cidadão de Kyoto, não me agrada ouvir falarem mal da Academia Yoshioka.

— Ora, são apenas boatos — riu o jovem. — Não fui eu quem disse isso.

— Jovem!

— Pois não?

— Sabe o que é uma pessoa mal informada? Pois então, ouça meu conselho: nunca subestime ninguém, pois desse jeito não irá muito longe. E pare de se vangloriar dizendo que tem diploma do estilo Chudoryu e que aperfeiçoou o uso da espada longa abatendo andorinhas em pleno vôo. Não pense que todo mundo é cego. Mas se insiste em se vangloriar, veja antes com quem fala.

 

— Está me chamando de fanfarrão, por acaso? — quis saber o jovem.

—: Exato. E daí? — disse Toji, empinando o peito e aproximando-se de propósito. — Foi para o seu bem, e porque penso em seu futuro. Um pouco de fanfarronice pode até ser atraente num jovem mas, em excesso, é repulsivo.

— Acho que minha atitude complacente levou-o a se gabar. Mas agora, quero que saiba: eu, na verdade, sou Gion Toji, o mais graduado discípulo de Yoshioka Seijuro. E se ouvir de sua boca mais uma palavra desabonadora com referência ao estilo Kyoryu Yoshioka, terá de se haver comigo!

Sentindo que atraía os olhares curiosos dos passageiros próximos, Toji manifestou apenas sua posição e autoridade, e afastou-se em direção à popa do navio, resmungando:

— Bando de convencidos!

Mas o jovem das belas feições o seguiu, em silêncio.

“As coisas vão ficar sérias”, pressentiram os demais passageiros, mantendo-se distantes mas voltando-se para acompanhar os acontecimentos.

Toji não desejara de modo algum um confronto. Uma vez no porto de Osaka, Okoo estaria esperando-o no cais. Não convinha envolver-se numa briga com um moleque momentos antes de se encontrar com uma dama, pois chamaria a atenção para a sua pessoa e as conseqüências seriam imprevisíveis. Aparentando indiferença, Toji debruçou-se na amurada e, apoiando os cotovelos no gradil, observou as águas escuras que redemoinhavam sob o leme de popa.

— Senhor — disse o jovem, batendo levemente no ombro. Estava claro que era do tipo persistente. O tom das palavras, porém, era tranqüilo, não tinha nenhum indício de descontrole emocional.

— Escute, mestre Toji.

Impossibilitado de continuar fingindo ignorância, Toji voltou o rosto e disse:

— Que quer?

— O senhor acabou de me chamar de fanfarrão em público, ferindo-me o orgulho. Assim sendo, vou realizar, a contragosto, a exibição que há pouco exigiu de mim. Venha testemunhar, por favor.

— Que foi que eu exigi? Me diga!

— Não posso acreditar que já tenha se esquecido. Pois quando soube que para me aperfeiçoar eu matava andorinhas em pleno vôo com esta espada longa, junto à ponte Kintai, na província de Suo, o senhor riu e exigiu que eu abatesse uma dessas aves que se aproximam do convés em vôos rasantes, tenho certeza.

— Quanto a isso, confirmo.

— Então, se eu derrubar uma dessas aves, perceberá que não sou um mentiroso contumaz.

— É verdade.

— De modo que farei a demonstração.

— Está bem! — respondeu Toji, com um sorriso gelado. — Tome cuidado, porém, para não prometer demais e cair no ridículo.

— Farei a demonstração, de qualquer modo.

— Longe de mim detê-lo.

— Nesse caso, servirá de testemunha?

— Muito bem, vou acompanhá-lo.

Ao ouvir a vigorosa resposta de Toji, o jovem parou no centro do convés da popa, retesou os pés sobre as tábuas e levou a mão ao cabo da espada excepcionalmente longa conhecida como “varal”, às costas, e falou:

— Mestre Toji, mestre Toji!

Toji, que de longe olhava fixamente a pose do jovem, perguntou-lhe o que queria.

E então, com toda a seriedade, o jovem respondeu:

— Sinto incomodá-lo, mas gostaria que convencesse alguns desses pássaros a descer até aqui, quando então abaterei quantos quiser.

 

Pelo visto, o jovem respondia ao desafio de Toji apelando para um dos famosos recursos espirituosos do monge Ikkyu[27], cantados em verso e prosa.

Toji fora claramente ridicularizado e, é natural, ficou furioso. Para tudo havia um limite:

— Cale a boca! Qualquer um abateria uma estúpida ave se fosse possível fazê-la descer!

Mas o jovem respondeu:

— O mar mede milhares de léguas, a espada nem mesmo um metro: se o pássaro não se aproxima, nem eu consigo abatê-lo.

Toji adiantou-se com dois ou três passos agressivos e disse, triunfante:

— Está vendo? Isto é uma desculpa. Se não consegue, reconheça o fato com franqueza e peça desculpas!

— Ora, se pretendesse pedir desculpas, não me poria jamais nesta posição. Em vez de pássaros, porém, abaterei algo um tanto diferente.

— Quê?

— Mestre Toji, importa-se de se aproximar mais cinco passos?

— Que quer?

— Sua cabeça. A mesma que acaba de exigir: prove se é ou não apenas um bravateiro. E mais justo que abater essas aves inocentes.

— Que besteira é essa? — gritou Toji, retraindo involuntariamente a cabeça. No mesmo instante, o jovem sacou a espada que levava às costas, seu braço distendendo-se como um arco cuja corda se rompe. A lâmina sibilou. A longa espada de quase um metro moveu-se tão rápido que mal se percebeu um risco prateado cortando o ar.

— Que é isso! — gritou Toji, cambaleando e levando a mão ao pescoço. A cabeça continuava ali, e não sentiu qualquer anormalidade.

— Compreendeu, senhor? — disse o jovem, afastando-se entre os fardos do convés.

Toji não conseguiu disfarçar a palidez do próprio rosto, mas ainda não havia percebido que algo muito importante lhe tinha sido cortado. O jovem já tinha desaparecido quando o olhar foi por acaso atraído para um objeto estranho sobre as tábuas do convés, no trecho iluminado por pálidos raios solares. Parecia um pincel, um pequeno maço de pêlos escuros. Com uma exclamação de susto, Toji levou a mão ao topo da cabeça e percebeu que o topete se fora.

— Que aconteceu?

Enquanto alisava o topo da cabeça, espantado, o laço que prendia os cabelos na nuca se desfez e os cabelos das têmporas, finalmente livres, caíram espalhando-se por ambos os lados do rosto.

— Como se atreveu, fedelho? — disse Toji, quase sufocando com a indignação que lhe subia das entranhas, dura como pedra. No mesmo instante, percebeu com nitidez quase dolorosa que tudo que o jovem lhe dissera estava longe de ser mentira ou bravata. Que técnica assombrosa, incompatível com a idade! Tarde demais Toji descobriu que, neste mundo, podiam existir jovens realmente habilidosos!

Mas vai grande a distância entre a admiração, produto da mente, e a indignação, que tem origem nas entranhas. Quando Toji se voltou, verificou que o jovem havia retornado ao seu lugar e procurava algo, examinando o chão ao redor. Toji visualizou uma esplêndida brecha em sua guarda. Umedeceu portanto o cabo da espada com uma cusparada e empunhou-o com firmeza. Curvou de leve o próprio corpo e pensou em aproximar-se sorrateiramente pelas costas para cortar, por sua vez, os cabelos do jovem.

Mas Toji duvidava que fosse capaz de cortar apenas os cabelos de seu adversário de forma espetacular. Com toda certeza acabaria cortando o topo do crânio ou o rosto. Não que isso tivesse importância.

O sangue afluiu-lhe à pele, os músculos se retesaram e um rugido surdo lhe escapou da boca. Nesse exato momento, iniciou-se um tumulto no interior da área cercada por cortinas visível à distância, onde havia algum tempo se entretinham os mercadores de Awa, Sakai e Osaka, jogando baralho e apostando alto.

— Faltam algumas cartas!

— Será que voaram?

— Procure desse lado.

— Não estão aqui.

Os mercadores se agitavam e batiam o tapete quando, repentinamente, alguém ergueu a cabeça e berrou, espantado:

— Olhem o macaquinho, onde foi parar! Apontava a ponta do mastro.

 

Era verdade: o macaco lá estava, na ponta de um mastro de quase dez metros de altura. No convés, os demais passageiros, a essa altura bastante entediados com a longa viagem marítima, voltaram os rostos para o alto, entusiasmados com a distração:

— Olhem, ele tem alguma coisa na boca.

— São cartas do baralho.

— Ah, entendi! Ele as arrebatou daqueles ricaços.

— Vejam só: o macaquinho manuseia o baralho, imitando os gestos daqueles homens.

Uma carta veio flutuando e caiu no meio dos rostos erguidos:

— Desgraçado! — murmurou um mercador de Sakai, recolhendo apressadamente a peça. — Continua faltando. Ele deve ter mais algumas nas mãos.

— Quero as cartas do macaco. Sem elas não posso continuar jogando.

— De que jeito? Quem vai subir àquela altura?

— E o capitão?

— Só se for ele.

— Que se pague ao capitão, nesse caso, e se peça a ele que as recupere.

Devidamente recompensado, o capitão aceitou a incumbência. Fez questão, porém, de mostrar que, na posição de capitão de um navio em pleno mar e, portanto, de comando, precisava averiguar a responsabilidade do incidente. Subiu, pois, numa pilha de fardos e disse:

— Senhores passageiros: afinal, de quem é o macaco? Peço ao dono que se adiante.

Ninguém se apresentou dizendo: “O macaco é meu.” Mas todos que haviam estado na área sabiam. Involuntariamente, os olhares convergiram na direção do belo jovem.

O capitão também devia saber. Em conseqüência, sentiu-se afrontado com o silêncio. Ergueu ainda mais a voz autoritária e disse:

— O macaco não tem dono? Se não tem, acabo com ele. E não quero ver ninguém reclamando depois.

Dono, o macaco tinha. Mas reclinado contra um fardo, o jovem parecia perdido em pensamentos.

— Que descarado! — sussurrou alguém. O comandante contemplava com ferocidade o rosto do jovem. Os membros da rica classe mercantil, cuja diversão o macaco interrompera, agitaram-se de modo visível, trocando entre si comentários mordazes: “Que cara-de-pau!”, “É surdo!”, “Ou então mudo!”

Mas o jovem apenas ajeitou os pés e se acomodou melhor, continuando indiferente.

— Estou vendo que, além de peixes, o mar dá macacos também, pois hoje me pulou um para dentro do barco. Já que não tem dono, posso acabar com ele do jeito que quiser. Ouçam todos: depois de tudo o que eu, como capitão, já disse, o dono não se apresentou. Mais tarde, se alguém aparecer dizendo que é meio surdo, que não escutou, vocês serão testemunhas.

— Fique tranqüilo, comandante: nós somos testemunhas — berraram os mercadores, completamente enfurecidos.

O comandante desceu a escada que conduzia ao fundo do navio. Quando retornou, trazia nas mãos um mosquete e uma mecha acesa.

“Está furioso!”, pensaram todos. Ao mesmo tempo, curiosos quanto à reação do jovem dono do macaco, voltaram-se em sua direção.

 

O único a mostrar total despreocupação era o macaco no alto do mastro, examinando as cartas em meio à brisa marinha. Seus gestos pareciam uma deliberada zombaria.

De súbito, porém, o animal entrou em pânico e exibindo os dentes brancos pôs-se a guinchar, a correr pela verga e a saltar para o topo do mastro.

No convés, o comandante, imóvel, com a mecha fumegante rente ao nariz e o mosquete apontando o céu, mirava o macaquinho fixamente.

— Bem-feito! Agora ele se assustou — comentou um dos mercadores, aparentando embriaguez pelo aspecto.

— Silêncio! — atalhou o mercador de Sakai, puxando-o pela manga. Pois o jovem que, mudo, estivera contemplando o outro lado até esse momento, erguera o corpo de chofre e se voltara, interpelando:

— Comandante!

Agora, era a vez do comandante fingir-se surdo. Uma faísca saltara da mecha para a pólvora da trava. Quase ao mesmo tempo, o comandante gritou:

— Ah!

A arma estrondeou, desviada, e arrancada das mãos do capitão, já estava nas do jovem. Os passageiros haviam se jogado no convés, tapando os ouvidos. O mosquete voou por cima de suas cabeças e caiu no mar além da amurada.

— Que é isso?! — berrou o capitão indignado, e com razão. De um salto, agarrou o jovem pela gola e nele se dependurou. Literalmente, pois, frente a frente com o atarracado capitão, o jovem era bem maior tanto em altura como no porte.

— Que é isso digo eu! Que pretendia? Matar um animal inocente com arma de fogo?

— Exato!

— Isso é um ultraje!

— Não sei por quê! Eu avisei muito bem!

— Avisou como?

— Você não tem olhos nem ouvidos?

— Cale a boca! Não se esqueça de que sou seu passageiro e um bushi. Como espera que um samurai se digne a responder a alguém do nível de um simples comandante de navio e que se põe a berrar ordens de pé, em posição mais alta que a de seus próprios passageiros? Insolente!

— Não me venha com desculpas. Foi para evitar este tipo de confusão que eu avisei, e avisei muito bem. Pode ser que meu jeito de falar não lhe tenha agradado. Mas como é que não disse nada e fingiu nem escutar quando aqueles senhores passageiros lá adiante começaram a se queixar do seu macaco, muito antes de eu dizer qualquer coisa?

— Que senhores passageiros lá adiante...? Ah, refere-se àquele bando de mercadores no interior do cortinado, entretidos em jogatina há algum tempo?

— Não fale grosso! Aqueles senhores pagaram passagens três vezes mais caras que as dos passageiros comuns.

— Bando de insolentes, é o que são. Eu os vinha observando enquanto bebiam e apostavam altas somas em público, agindo como se o barco inteiro lhes pertencesse, e não gostei do que vi. Se o macaco fugiu levando o baralho, com certeza não fui eu quem mandou. Ele apenas imitava o mau comportamento daquele bando. Não vejo por que me desculparia por isso.

Enquanto falava, o jovem voltou o rosto afogueado em direção aos mercadores de Sakai e Osaka aglomerados adiante e sorriu com ostensiva ironia.

 

A CONCHA DO ESQUECIMENTO

As luzes do porto de Kizugawa tremem à distância, avermelhadas em meio ao crepúsculo e ao marulhar das ondas. A brisa traz um leve cheiro de peixe, indicando a aproximação da costa. Aos poucos, diminui a distância entre os gritos no barco e o alvoroço em terra firme.

Um estrondo — e a âncora é lançada à água, levantando uma nuvem de espuma branca. Amarras são atiradas, a prancha de desembarque posicionada.

— Alguém para a Hospedaria Kashiwaya?

— Veio no barco o filho do sacerdote xinto do templo Sumiyoshi?

— Correio expresso! Quero um mensageiro expresso!

— Senhor! Meu senhor!

Sobre o desembarcadouro, uma agitada multidão aguardava e um mar de lanternas cercou a lateral do barco. O jovem de belas feições desembarcou, premido pela multidão. Ao vê-lo passar com o macaco empoleirado no ombro, dois ou três aliciadores de clientes das inúmeras hospedarias locais lhe gritaram:

— Senhor, não cobramos pelo pernoite do macaco! Gostaria de se hospedar conosco?

— Quer visitar o Templo Sumiyoshi? Estamos instalados bem na frente do portão do templo e os aposentos têm uma vista maravilhosa!

Sem lhes lançar sequer um olhar, mas também sem ter ninguém a aguardá-lo, o jovem foi o primeiro a desaparecer rapidamente do porto, sempre com o macaco agarrado ao ombro.

Um pequeno grupo comentou, enquanto o acompanhava com o olhar:

— Sujeito arrogante! Só porque maneja a espada um pouco melhor que os outros!

— É verdade. Ele conseguiu estragar metade da nossa viagem.

— Não fôssemos simples mercadores, ele jamais sairia impune do navio.

— Ora, deixe que os samurais continuem se pavoneando. E fácil lidar com eles: deixe-os pensar que são os tais e eles se darão por satisfeitos. Nós/ os mercadores, lhes oferecemos as flores, mas comemos os frutos. Este é o nosso estilo. Paciência, aborrecimentos iguais aos de hoje precisam ser tolerados.

O grupo numeroso e carregado de bagagens que desembarcou em fila trocando comentários era o dos comerciantes de Osaka e Sakai. A espera de cada mercador havia uma pequena multidão portando lanternas e acompanhada de liteiras, notando-se em seu meio alguns rostos femininos.

Gion Toji desembarcou por último, furtivamente.

Seu rosto tinha uma expressão indescritível. Toji com certeza nunca passara por uma experiência tão desagradável. Para disfarçar a ausência do topete, envolvera a cabeça com um capuz, mas nada podia ocultar a expressão sombria que lhe pairava ao redor dos olhos e da boca.

— Olá! Toji-sama! Estou aqui! — disse alguém. A mulher também cobria a cabeça com um lenço. O rosto, exposto por longo tempo ao vento frio do atracadouro, enrijecera deixando à mostra as rugas por baixo da pesada maquiagem branca.

— Ah, Okoo! Você veio!

— Como assim? Você não me mandou uma carta, pedindo que o esperasse no atracadouro?

— Sei disso. Mas não sabia se a carta teria chegado a tempo.

— Que lhe aconteceu? Você não me parece bem.

— Não é nada. Acho que estou mareado. De qualquer modo, vamos seguir para Sumiyoshi e procurar uma boa hospedaria.

— Está bem. Deixei uma liteira à espera, logo aí.

— Ótimo! E quanto à hospedaria, já fez a reserva?

— Sim, estão todos à sua espera.

— O quê? — disse Toji, surpreso. — Espere aí, Okoo. Planejei este encontro no cais porque pretendia passar dois ou três dias a sós com você, em algum lugar calmo. Que história é essa de “todos”? Quem são eles?

 

— Não! Mande embora a liteira!

Furioso, Gion Toji se recusava a entrar na liteira e se afastava, deixando Okoo para trás. A cada vez que Okoo tentava falar, interrompia-a com um grito:

— Cale a boca, sua burra!

O motivo da ira residia, sem dúvida, na notícia que Okoo lhe dera. Não se podia negar, porém, que a explosão resultava também da raiva acumulada no decorrer da viagem de barco.

— Vou passar a noite sozinho! Dispense a liteira! Você não me compreende mesmo, sua burra! Burra, burra! — esbravejou Toji, afastando Okoo com um safanão.

A beira do rio, todas as lojas do mercado de peixes já haviam cerrado suas portas. Nas escuras entradas dos barracos, escamas de peixes espalhadas pelo chão luziam como conchas. Chegando àquela área e aproveitando a ausência de transeuntes, Okoo abraçou Toji e disse:

— Pare com isso, você está fazendo um papelão!

— Solte-me!

— Se passar a noite sozinho, não vai ter aquilo que tanto quer...

— Não importa mais!

— Não diga isso...

A face fria de Okoo roçou o rosto de Toji, trazendo o perfume de seus cabelos e da maquiagem. Toji sentiu que se libertava parcialmente da fria solidão da viagem.

— Venha, por favor! — insistiu Okoo.

— Estou desapontado.

— Sei disso. Mas nós dois teremos outras oportunidades.

— Quando desembarquei, vinha sonhando em passar dois ou três dias a sós com você, em Osaka.

— Pensa que não sei?

— Se sabe, para que trouxe os outros? Isso acontece porque você não gosta de mim tanto quanto eu de você — acusou Toji.

— Lá vem você de novo! — disse Okoo com olhar de censura, fingindo chorar.

Okoo explicou: ao receber a carta de Toji por um mensageiro expresso, pretendera, é claro, seguir para Osaka sozinha. Infelizmente, porém, Yoshioka Seijuro surgira nesse dia na Estalagem Yomogi para beber, como sempre em companhia de seis ou sete discípulos, e acabara sabendo da viagem por Akemi. “Se Toji vai desembarcar em Osaka, vamos lá recebê-lo!”, dissera Seijuro. Com o apoio dos bajuladores do grupo, a idéia tomou corpo e logo alguém sugeriu que Akemi também fosse. Impossibilitada de recusar — dizia Okoo — ela se juntara ao grupo de quase dez pessoas, hospedara-se numa estalagem de Sumiyoshi e, enquanto o grupo se divertia, arrumara uma liteira e viera ao cais esperá-lo.

Depois de ouvi-la, Toji concluiu que Okoo não tivera como evitar a situação, mas isso não o impediu de sentir-se deprimido. Este dia não pressagiava nada de bom, chegou a pensar Toji, rememorando os aborrecimentos anteriores e antevendo os próximos.

Para começar, era-lhe penoso ter de enfrentar Seijuro e os colegas mal punha os pés em terra firme, e relatar o resultado de suas andanças. Pior ainda seria remover o capuz. “Como é que vou me explicar?”, perguntava-se com relação ao fato de ter perdido o topete. Ele também tinha o seu orgulho de samurai. Uma humilhação sem testemunhas era suportável, pensava ele, mas o fato assumia graves proporções se se tornasse público.

— Está bem, paciência. Chame a liteira e vamos a Sumiyoshi — resolveu Toji afinal.

—Vamos? Que bom! — exclamou Okoo, afastando-se depressa rumo ao cais.

 

Okoo, que partira há pouco para buscar Toji no atracadouro, ainda não retornara. Enquanto isso, seus companheiros de viagem haviam tomado banho e, aconchegados em grossos quimonos acolchoados cedidos pela hospedaria, aguardavam sua volta.

— Okoo e Toji já devem estar chegando. Mas esperar à toa também cansa. Muito naturalmente, o grupo concluiu que seria melhor esperar bebendo.

E bebiam apenas para esperar a chegada de Toji. Com o correr das horas, no entanto, a embriaguez tomou conta de todos, fazendo-os esquecer por que bebiam.

— Alguém sabe de cantoras profissionais em Sumiyoshi?

— Vamos contratar algumas beldades para animar a reunião. Que tal, companheiros?

O velho hábito se manifestava. “Deixe disso!” era o tipo de intervenção que jamais partiria da boca de um desses homens. Apenas a presença do mestre, Yoshioka Seijuro, deixava-os ligeiramente constrangidos, mas “ate isso contornaram, dizendo:

— Nosso jovem mestre tem a companhia de Akemi e ficará melhor num aposento separado. Vamos pedir-lhe que se mude.

Seijuro sorriu a contragosto com o descaramento de seus discípulos. No entanto, 9 arranjo lhe convinha. A perspectiva de passar algumas horas a sós com Akemi em outro aposento, mergulhados sob a coberta de um kotatsu[28], lhe era muito mais agradável do que a de beber com seus homens.

— É agora, pessoal! — disse um dos discípulos mal se viram sozinhos. Não demorou muito, surgiu no jardim um grupo de cantoras de aspecto duvidoso que se autodenominava “A Atração do Rio Tosama”, carregando flautas e shamisen surrados.

— Afinal, o que querem vocês: brigar ou beber? — disse rudemente uma mulher do grupo, com forte sotaque interiorano.

Um dos homens, a essa altura bastante embriagado, respondeu de pronto:

— Idiota! Pagar para brigar não faz o nosso estilo. Já que as contratamos, pretendemos beber e nos divertir à vontade!

— Nesse caso, que tal se aquietarem um pouco mais?

— Está bem, está bem! Vamos cantar...

Levados pela mulher, os homens cobriram as peludas pernas que emergiam dos quimonos desfeitos ou se ergueram de suas posições quase deitadas e se aprumaram. E no momento em que a festa atingia o auge, uma jovem surgiu, anunciando:

— A pessoa que aguardavam desembarcar já chegou e está vindo para este aposento, junto com a senhora que o foi buscar.

— Que disse a garota? O que é que vem aí?

— Ela disse Toji.

— Toooji, Toooji, lembranças ao Tooji...

À entrada do aposento, Gion Toji e Okoo contemplavam os companheiros embasbacados. Ao que parecia, ninguém no grupo estava à espera de Toji. Para que, perguntava-se Toji, seus companheiros haviam vindo de tão longe à cidade de Sumiyoshi em meio à azáfama que precedia a chegada do Ano Novo? Segundo Okoo, eles ali estavam para recebê-lo mas, pelo visto, ninguém se lembrava de sua existência. Irritado, Toji interpelou a serviçal que o conduzira até ali:

— Menina!

— Senhor?

— Onde está o jovem mestre? Leve-me ao seu aposento.

— Sim, senhor.

Mal Toji deu alguns passos pelo corredor, e uma voz o interrompeu:

— Olá, meu estimado companheiro e veterano! Bem-vindo de volta! Que é isso? Então, deixou-nos aqui à sua espera e deu uma escapada com Okoo, não foi? Malandro!

Completamente embriagado, o homem se levantou e lançou o braço ao redor do pescoço de Toji. Seu hálito era terrível. Toji tentou escapulir mas seu companheiro bêbado o arrastou à força para dentro do aposento. Durante a breve refrega, o homem embriagado pisou involuntariamente nos pés de alguém e, desequilibrando-se, caiu sobre a mesa ainda agarrado a Toji, espalhando pratos e taças.

— Meu capuz! — exclamou Toji levando a mão à cabeça, porém tarde demais: seu companheiro havia se agarrado ao capuz e caíra sentado para trás.

 

— Ué! Que é isso?!

A estranheza tomou conta de todos no aposento e seus olhares convergiram para a cabeça sem topete de Toji.

— Que aconteceu com seu cabelo?

— Ora essa, que penteado mais estranho!

— Que foi que lhe aconteceu?

Alvo do olhar fixo dos companheiros que o examinavam sem cerimônia, Toji enrubesceu e, vestindo novamente o capuz, disfarçou:

— Nada, é que me surgiu uma ferida na cabeça. O grupo explodiu em gargalhadas:

— Trouxe uma ferida como lembrança da viagem!

— Quem com o ferro fere, com ferro será ferido.

— Não procure pêlo em casca de ovo.

— Pelos cabelos se agarra uma oportunidade.

Ao sabor de associações que vinham às mentes embriagadas, os homens citavam ditos populares pilheriando às custas de Toji, mas ninguém levou a sério sua desculpa.

A noite se foi, afogada em bebida. No dia seguinte, porém, os homens mudaram radicalmente de atitude e, agrupados numa praia nos fundos da hospedaria, falavam do episódio com a mesma seriedade com que discutiriam os rumos do país:

— Isto não pode ficar assim!

Pinheiros de pequeno porte se erguiam na área. Sentados em círculo sobre a areia, os homens empinavam o peito, enrijeciam os braços e falavam com sofreguidão, cuspindo para todos os lados.

— E quanto a essa história — têm certeza que é verdadeira?

— Eu mesmo a ouvi, com estes meus ouvidos. Ou acha, por acaso, que estou mentindo?

— Calma, calma, não se irrite tanto. Aliás, nem adianta.

— Como não adianta? Esse episódio não pode ser ignorado. Na melhor das hipóteses, é uma afronta à honra da Academia Yoshioka, a mais famosa do país em artes marciais. Isso não pode, de modo algum, ficar assim.

— Nesse caso, o que faremos?

— Ainda está em tempo. Procurem esse jovem samurai peregrino que anda em companhia de um macaco, custe o que custar! E cortem seu topete! E restaurem a dignidade de Gion Toji, ou melhor, da Academia Yoshioka!

O homem que na noite anterior parecia mais bêbado que um gambá, nessa manhã se transformara em afoito leão e, tomado de fúria, rugia a plenos pulmões.

O motivo de toda essa comoção era o seguinte: nessa manhã, os colegas de Gion Toji haviam encomendado à hospedaria que lhes preparassem especialmente um banho matinal. Enquanto se aqueciam na vasta banheira coletiva e se livravam dos últimos vestígios da ressaca, um homem, também hóspede e que se dizia mercador de Sakai, lhes viera fazer companhia. Entre uma conversa e outra, o mercador lhes havia contado que presenciara um acontecimento deveras divertido no dia anterior, a bordo do barco que fazia regularmente a ligação entre Awa e Osaka. Falou-lhes então a respeito do rapaz bem apessoado que andava com um macaquinho e, quando chegou ao trecho em que Gion Toji perdia o topete, o mercador, entusiasmado, imitou gestos e até expressões faciais.

— Pois o samurai que perdeu o topete disse que era um dos discípulos mais graduados da Academia Yoshioka, de Kyoto. Se isso for verdade, grande coisa não há de ser essa academia! — completou o mercador, divertido, enquanto se aquecia na água quente.

A partir desse incidente, a indignação tomou conta do grupo. Revoltados com Gion Toji, cuja atitude no episódio consideravam imperdoável e dispostos a interrogá-lo minuciosamente, foram informados, ao procurá-lo, que o mesmo estivera confabulando com Yoshioka Seijuro bem cedo mas que, mal terminara a refeição matinal, partira para Kyoto em companhia de Okoo sem se despedir de ninguém.

Os fatos pareciam comprovar a história do mercador. Correr no encalço de um veterano tão covarde era perder tempo. Melhor seria correr atrás do jovem desconhecido que usava os cabelos cortados à moda dos adolescentes e andava em companhia de um macaco, agarrá-lo e limpar o nome da Academia Yoshioka.

— Alguém se manifesta contra?

— Naturalmente não!

— Nesse caso...

Traçados os planos, os discípulos de Seijuro se ergueram, espanando a areia de seus hakamas.

 

Até onde a vista alcançava, a enseada de Sumiyoshi se estendia plácida, a orla espumante das ondas que corriam pela areia lembrando uma infinita sucessão de pequenas rosas brancas murmurantes. Esquecido do inverno, o sol brilhava na areia da praia impregnada de maresia.

Akemi molhava as pernas brancas na água e andava pela praia, catando algo da areia que logo tornava a lançar ao mar. Observou por momentos os discípulos da Academia Yoshioka que, aparentando preocupação, se dispersavam cada qual para um lado, carregando à cintura espadas cujas bainhas projetavam as pontas agressivamente para o alto.

— Ora essa, que terá acontecido? — perguntou-se Akemi em pé à beira da arrebentação, acompanhando seus movimentos com os olhos arregalados.

Nesse instante, o último dos discípulos passou correndo bem ao seu lado.

— Aonde vão? — perguntou Akemi.

— Ah, Akemi! — disse o homem, parando. — Não quer vir também? Nós nos separamos para procurá-lo.

— Procurar o quê?

— Um jovem samurai que ainda usa os cabelos cortados como um adolescente e anda com um macaquinho.

— Que tem esse homem?

— Ele não pode andar solto por aí porque pode até prejudicar o bom nome de mestre Seijuro.

O homem contou a história da absurda “lembrança” que Gion Toji trouxera da viagem, mas Akemi apenas comentou, em tom de censura:

— Vocês vivem procurando briga!

— Não é que apreciemos particularmente brigar, mas você não percebe que deixar um fedelho desses impune pode prejudicar o bom nome do estilo Kyoryu Yoshioka, reconhecido em todo o país?

— E daí? Que prejudique, ora!

— Não diga asneiras!

— Vocês, homens, passam o dia inteiro correndo atrás de besteiras!

— E você? Faz algum tempo que a vejo vagando por aí, mas está à procura do quê?

— Eu? — disse Akemi, baixando o olhar para a areia clara a seus pés. — Eu... procuro uma concha.

— Uma concha? Está vendo? Vocês, mulheres, gastam o dia de um jeito ainda mais inútil! Para que procurar uma concha? Olhe quantas caídas por aí, mais numerosas que estrelas no céu.

— A que procuro não é uma concha comum, como essas. É a concha do esquecimento.

— Concha do esquecimento? Nunca ouvi falar. Nem deve existir.

— Nas outras praias, não. Dizem que ela existe só aqui, na enseada de Sumiyoshi.

— Não existe!

— Acontece que existe! — teimou Akemi. — Se acha que estou mentindo, venha comigo que lhe mostro.

Akemi arrastou a seguir o relutante discípulo até um bosque de pinheiros, não longe dali, e apontou um marco no chão. Na pedra havia sido gravado um antigo poema da coletânea Shin Chokusen-shu[29]:

À enseada Sumiyoshi um dia irei

Em busca de certa concha que em suas areias bate.

Suave concha, concha do esquecimento,

De um antigo amor frustrado a lembrança apaga.

Akemi exibiu-o orgulhosamente e perguntou:

— E agora? Continua dizendo que não existem?

— Isto é uma lenda, bobagem de um poeta qualquer que não merece crédito.

— Em Sumiyoshi ainda existem um/fonte e uma flor, que também trazem esquecimento.

— Está bem, está bem, façamos de conta que existem. Mas para que servem?

— Servem para fazer esquecer. Se você levar uma dessas conchas em seu obi ou na manga do quimono, passará a se esquecer de tudo com facilidade.

— Quer ficar mais desmemoriada do que já é?

— Quero! Quero me esquecer de tudo! E como não consigo, ultimamente tenho passado dias em tormento e noites sem dormir... É por isso que a procuro. Me ajude a encontrá-la, por favor.

— E eu lá tenho tempo? — disse o homem, lembrando-se de repente de sua missão e partindo às carreiras em outra direção.

 

 “Como seria bom esquecer!”, chegava a pensar Akemi, quando o sofrimento se tornava insuportável. Por outro lado, também pensava: “Não quero esquecer!” Braços cruzados sobre o peito, Akemi hesitava entre dois sentimentos contraditórios.

Se existia de verdade uma concha mágica que proporcionava esquecimento, melhor seria introduzi-la sorrateiramente na manga de Seijuro. E então ele a esqueceria, pensava, suspirando.

— Que homem insistente!

Só de lembrar, Akemi sentiu o coração pesando. Chegava até a supor que Seijuro viera ao mundo apenas para tornar malditos os dias de sua juventude.

Quando a insistente paixão de Seijuro a deixava desgostosa, Akemi sempre trazia à lembrança, num canto da mente, a imagem de Musashi. A presença dele em seu coração lhe dava alívio e sofrimento ao mesmo tempo. Pois Akemi sentia então uma avassaladora vontade de fugir de sua atual situação e mergulhar num mundo de sonho.

“Mas...”

Akemi hesitava inúmeras vezes. Tinha certeza absoluta quanto aos próprios sentimentos, mas não quanto aos de Musashi.

“Ah... queria antes esquecer!”

O mar verde de súbito lhe pareceu tentador. Contemplando-o, Akemi sentiu medo de si própria. Via-se capaz de correr nessa direção em linha reta, sem hesitar.

Mas ninguém, nem mesmo a madrasta Okoo, tinha conhecimento da intensidade dos seus sentimentos. Muito menos Seijuro. Todos que a conheciam de perto julgavam-na extremamente alegre, sapeca e imatura, infantil a ponto de não conseguir corresponder às investidas amorosas dos homens.

Em seu íntimo, Akemi considerava simples estranhos esses homens e até a madrasta. Não se constrangia em se divertir às custas deles. Andava por todo lado agitando o guizo preso à manga do quimono, sempre agindo como uma criança irrequieta mas, ao se ver sozinha, não conseguia impedir que um suspiro quente lhe escapasse dos lábios.

— Senhorita! Senhorita! O jovem mestre há tempos a procura! Está preocupadíssimo, querendo saber aonde foi a senhorita.

Era o empregado da hospedaria que, ao descobri-la junto ao marco de pedra, se aproximara correndo e gritando.

Akemi encontrou Seijuro num aposento cujas portas cerradas deixavam de fora o sibilar do vento no pinheiral. Com as mãos metidas sob a coberta vermelha do kotatsu, Seijuro parecia solitário. Mal a viu, perguntou:

— Onde andava neste frio?

— Frio?? Que horror! Não está nada frio! A praia está toda ensolarada!

— Que fazia na praia?

— Catava conchas.

— Você parece criança!

— Mas sou uma criança.

— Já pensou quantos anos fará no próximo ano?

— Quero continuar criança para sempre, não importa a idade. Alguma objeção?

— Muitas. Tenha um pouco de pena de sua mãe, que vive preocupada com você.

— Minha mãe? Ah, essa não se preocupa nem um pouco comigo, tenho certeza. Claro, ela própria se acha muito jovem ainda.

— Está bem. Venha então se aquecer junto ao kotatsu.

— Detesto fogareiros. Me dão calor e mal-estar. Não se esqueça que não sou velha.

— Akemi... — Seijuro agarrou-a pelo pulso e a atraiu para si. — Parece que hoje estamos sozinhos. Sua madrasta teve a consideração de partir para Kyoto.

 

De súbito, Akemi deu-se conta do fogo no olhar de Seijuro e enrijeceu de pavor. Tentou afastar-se instintivamente, mas a mão de Seijuro não soltou o pulso. Agarrando-o com dolorosa firmeza, disse em tom acusador:

— Por que foge, Akemi? — Veias azuis sobressaíam nas têmporas.

— Não estou fugindo.

— Não há ninguém por perto neste momento. Esta é uma oportunidade rara. Concorda, Akemi?

— Concordar com o quê?

— Não seja tão ríspida. Já nos conhecemos há quase um ano e, a esta altura, deve saber muito bem o que sinto por você. Okoo há muito já me deu o consentimento. Disse que você não me obedece porque não sou hábil o suficiente. Se é assim, hoje...

— Não! — disse Akemi dobrando o corpo e jogando-se contra o tatami. — Solte. Solte a mão, a minha mão!

— Nunca!

— Eu não quero! Não quero!

O pulso avermelhado parecia prestes a se quebrar, mas Seijuro não afrouxava a mão: o estilo Kyohachi, empregado numa ocasião como esta, tornava inútil qualquer resistência por parte de Akemi. Além disso, havia nele algo diferente nesse dia. Nas ocasiões anteriores, Seijuro tinha bebido furiosamente e importunado com insistência, mas agora não havia traço de embriaguez em seu rosto pálido.

— Akemi: você me deixa neste estado e ainda quer me humilhar?

— Que me importa! — gritou Akemi, lançando mão de um último recurso. — Se não me soltar, eu grito. Vou chamar todo mundo!

— Experimente! Este aposento fica longe da ala central da hospedaria. Além disso, deixei instruções para que ninguém se aproximasse.

— Vou-me embora!

— Não permito.

— Não sou propriedade sua!

— Tolinha! Já dei a Okoo uma soma tão grande que me deixa na situação de dono de seu corpo! Pergunte à sua madrasta e ela lhe dirá.

— Pode ser que minha madrasta tenha negociado meu corpo, mas eu não me lembro de tê-lo vendido. Não me entrego a um homem que não amo, nem morta!

— Que disse?

O cobertor vermelho do kotatsu foi repentinamente lançado contra o rosto de Akemi, sufocando-a. Akemi gritou com toda a força, o coração quase parando no esforço.

Mas por mais que chamasse, ninguém a acudiu.

Na superfície do shoji, iluminado por um frio sol de inverno, as sombras dos pinheiros se agitavam impassíveis, apenas reproduzindo o marulhar distante das ondas. Alheio à crueldade humana, um pássaro chilreava alegremente em algum lugar.

Minutos sé passaram. Por trás do shoji explodiu o choro de Akemi. Seguiram-se alguns minutos de silêncio em que não se ouviu voz ou movimento no interior do quarto. E então a porta corrediça se abriu abruptamente e Seijuro surgiu, pálido, cobrindo com a mão direita as marcas sangrentas deixadas pelas unhas de Akemi no dorso da mão esquerda.

No mesmo instante a porta se afastou uma vez mais com violência e Akemi correu para fora.

— Akemi! — Seijuro empertigou-se e fez menção de detê-la, mas apenas observou-a se afastar, segurando a mão ferida envolta numa toalha. Não tivera tempo de impedi-la, porque Akemi corria como louca, totalmente descomposta.

Seijuro pareceu um pouco apreensivo mas não foi no seu encalço. Ao notar que o vulto de Akemi se afastava do jardim, mergulhava num dos aposentos da hospedaria e se ocultava, sentiu alívio e, ao mesmo tempo, certa dose de satisfação. Seu rosto se contorceu num frio sorriso.

 

DA IMPERMANÊNCIA DA VIDA

— TioGon! Oh, tioGon!

— Que foi, obaba. Fale! —— Não se cansou ainda?

— Estou começando a sentir moleza nas pernas.

— Foi o que pensei. Eu também enjoei de andar. Mas a arquitetura do templo Sumiyoshi é mesmo uma beleza, faz jus à fama! Ah, quer dizer que esta laranjeira é a árvore sagrada de Wakamiya Hachiman?

— É o que parece.

— Diz a lenda que, quando a imperatriz Shingu cruzou os mares e foi à Coréia, trouxe 80 navios repletos de presentes, sendo este o primeiro deles.

—Veja, obaba, o cavalo sagrado preso no estábulo é uma beleza! Ganharia o páreo, sem dúvida alguma, se corresse em Kamo!

— Hummm... É malhado cinza e creme!

— Olhe, tem alguma coisa escrita na placa.

— Diz que se você fizer um chá com as sementes desta manjedoura e o der de beber, obterá cura para o choro noturno de recém-nascidos e para o rilhar de dentes durante o sono. Beba, tio Gon!

— Não diga bobagens!

Rindo, os dois velhos passearam o olhar ao redor.

— Ué...?! Onde está Matahachi?

— É verdade. Onde se meteu?

— Ah, lá está ele, descansando na entrada do teatro kagura.

— Matahachi, eeei, filho! — chamou a velha Osugi, levantando a mão. — Se você for por esse lado, vai dar de novo na grande arcada Torii. A intenção é seguir para os lados do farol do templo!

Matahachi se aproximou, relutante. Andar a esmo todos os dias junto com os dois velhos transformara-se em considerável provação. Até suportaria, se fossem apenas cinco ou dez dias visitando pontos turísticos. Mas deprimia Matahachi a idéia de que teria de continuar na companhia dos dois até encontrar seu odiado inimigo, Miyamoto Musashi, e dele se vingar.

Considerava inútil andarem os três juntos e propusera separarem-se, para sair sozinho à procura de Musashi, mas Osugi respondera:

— O Ano Novo se aproxima e há muito não comemoramos juntos sua passagem. Em vista das circunstâncias, pode ser que este seja nosso último ano juntos neste mundo; vamos ao menos comemorar este começo de ano em companhia um do outro.

Incapaz de ignorar o desejo da velha mãe, Matahachi continuava a acompanhá-la, mas pretendia deixá-la um ou dois dias depois do Ano Novo. Tanto Osugi quanto o velho tio Gon não podiam passar por um templo budista ou xintoísta sem parar para oferecer algumas moedas e rezar demoradamente aos deuses, levados talvez pela proximidade do fim de suas vidas ou por um exacerbado sentimento religioso. Naquela ocasião, por exemplo, haviam passado quase o dia inteiro no templo Sumiyoshi.

— Ande mais depressa! — disse a velha Osugi com descabida impaciência ao ver Matahachi aproximando-se molemente.

— Olhem só quem fala!— respondeu Matahachi mal-humorado, sem dar mostras de se apressar. — Esquecem-se de quanto eu esperei por vocês.

— Isso é coisa que se diga? Qualquer pessoa pararia para adorar os deuses se pusesse os pés em terras sagradas. Por falar nisso, nunca o vi adorando Buda ou os deuses xintoístas. Sua atitude me deixa muito apreensiva quanto ao seu futuro.

Matahachi voltou-se para o outro lado e replicou:

— Estou cansado dessa ladainha.

A resposta do filho irritou Osugi ainda mais:

— Ladainha?

Durante os primeiros dois ou três dias, mãe e filho transbordavam de amor um pelo outro e o relacionamento fora mais doce do que mel. Passada a novidade, porém, Matahachi começou a se rebelar, zombando a cada passo da idosa mãe. Em conseqüência, a velha Osugi fazia o filho sentar-se à sua frente todas as noites e lhe pregava longos sermões quando retornavam à hospedaria.

E ali estavam todos os indícios de que teria início uma nova sessão. Tio Gon, prevendo aborrecimentos, interveio acalmando um e outro e pondo-se a andar:

— Vamos, vamos, parem com isso os dois!

 

 “Mas que dupla!”, pensava tio Gon da mãe e do filho.

Andava atento, procurando a todo custo resgatar o bom humor da velha senhora e remover a expressão amuada do rosto de Matahachi.

— Ah... Estão vendendo ostras assadas na brasa, naquela barraquinha perto da praia. Bem que eu senti um cheirinho gostoso! Vamos lá, obaba, tomar um trago!

Lá estava a barraca, com seus estores de fibra de bambu trançada, perto do farol. Arrastando atrás de si a dupla pouco entusiasmada, tio Gon entrou primeiro e disse:

— Queremos saque. —Voltou-se em seguida para o sobrinho e acrescentou: — Vamos, Matahachi, ânimo. E quanto a você, obaba, implica demais.

Ofereceu-lhe uma taça, mas a velha Osugi voltou o rosto para o lado e respondeu secamente:

— Não quero!

Constrangido, tio Gon ofereceu a mesma taça, desta vez para Matahachi:

— Você então, Matahachi.

Sombrio, Matahachi logo esvaziou duas a três bilhas de saque, o que naturalmente irritou ainda mais a velha Osugi.

— Mais uma! — gritou Matahachi pedindo a quarta bilha, sem esperar pela iniciativa do tio.

— Você está se excedendo! — repreendeu-o Osugi. — O objetivo desta viagem não é passear ou beber. E você também, tio Gon, acho bom parar por aí. Apesar da idade, age como uma criança, igualzinho a Matahachi.

Repreendido, tio Gon enrubesceu violentamente como se tivesse bebido todo o saque sozinho e, sem saber para onde se voltar, disfarçou o constrangimento alisando o próprio rosto e saiu da barraca:

— Tem razão, tem toda razão! — resmungou.

E foi depois de sua saída que a velha Osugi começou uma paciente admoestação ali mesmo, na barraca de moluscos. Quando a ansiedade e o amor maternal despertavam, a idosa senhora não conseguia se conter e aguardar o retorno à hospedaria para iniciar sua arenga. Pouco se lhe dava também que houvesse estranhos por perto. Quanto a Matahachi, fixava o rosto da mãe, taciturno e petulante. A princípio, deixou-a falar à vontade e só depois começou por sua vez:

— Mãe: quer então dizer que, afinal, você me acha um filho ingrato, um fraco, um poltrão, certo?

— E não é?! Afinal, não consigo ver um traço de honradez em tudo o que você fez até hoje!

— Mas também não sou de jogar fora. Você simplesmente não me entende.

— Como, não entendo?! Ninguém melhor que uma mãe para conhecer o próprio filho. E ter um filho como você representou a ruína da casa Hon’i-den.

— Espere. Espere e verá, eu ainda sou jovem. Continue desprezando seu filho, velha rabugenta! Um dia vai se arrepender, dentro do seu túmulo!

— Ótimo! Quero mil arrependimentos iguais a esse. Mas isso não acontecerá, mesmo que se passem cem anos. Que lástima!

— Já que sou um filho digno de lástima, por que me espera? Melhor ainda, eu lhe faço o favor de ir embora.

Matahachi levantou-se indignado e afastou-se abruptamente, em largas passadas.

A velha Osugi, alarmada, chamou-o com voz trêmula:

— Espere, filho!

Matahachi, contudo, não se voltou. Tio Gon, o único que poderia ter intercedido para reter Matahachi, contemplava imóvel o mar, olhos arregalados e fixos num ponto.

Ao ver isso, a velha Osugi voltou a sentar-se no banquinho da barraca, gritando:

— Tio Gon, não o detenha! Não o chame de volta, ouviu bem, tio Gon?

 

Ao ouvir a voz de Osugi, tio Gon voltou-se e disse:

— Obaba! — Mas as palavras seguintes nada tinham a ver com o que Osugi esperara ouvir. — Estou estranhando a atitude daquela mulher. Espere-me aí mesmo.

Mal disse, tio Gon lançou o sombreiro em direção à barraca e disparou em linha reta para o mar. Osugi espantou-se:

— Tonto! Aonde pensa que vai? Estamos em apuros! Olhe lá, Matahachi!... Gritando, a idosa mulher correu alguns metros no seu encalço, mas as

plantas rasteiras à beira-mar lhe tolheram os pés. Osugi caiu de bruços, estirando-se em cheio sobre a areia.

— Idiota, cretino!

Rosto e peito cheios de areia, a velha pôs-se de quatro e se levantou. Os olhos que raivosamente procuravam o vulto do tio Gon de repente se arregalaram. Osugi gritou:

— Maluco! Maluco! Está louco? Aonde pensa que vai? Tio Gon!

A própria Osugi parecia doida, correndo desvairada atrás do velho Gon em direção ao mar.

Pois nesse instante Tio Gon já entrava na água. Por causa de um baixio existente na área da costa, a enseada mantinha-se rasa por muitos metros, de modo que a água lhe chegava ainda na altura das canelas. O idoso homem, porém, continuava a correr cada vez mais para o fundo, a espuma levantada por seus passos formando uma fumegante cortina branca ao seu redor.

Um quadro ainda mais espantoso desenrolava-se, porém, à frente de tio Gon: um outro vulto, este o de uma mulher, corria também com terrível ímpeto mar adentro.

Tio Gon a notara pela primeira vez na praia, parada à sombra dos pinheiros e contemplando imóvel a superfície verde do mar. No instante seguinte, o vulto, de cabelos negros soltos, corria em linha reta para dentro da água, chapinhando.

Graças ao banco de areia que, como já foi dito antes, mantinha a água rasa por cerca de quinhentos metros, a mulher também continuava com a água pela metade das canelas. Em meio aos respingos, brilhavam a gola vermelha do quimono e o ouro do brocado de seu obi, lembrando a cena em que Taira-no-Atsumori[30] avança mar adentro cavalgando o próprio ginete.

— Mulheer! Pare, mulher! — gritou tio Gon, conseguindo enfim se aproximar. Mas o banco de areia devia terminar abruptamente nesse local pois, no momento seguinte, a mulher afundou tragada por uma onda, voltando um estranho gemido na superfície da água.

— Desmiolada! Pretende se matar de verdade? — esbravejou tio Gon, continuando a segui-la decidido, ele próprio submergindo logo atrás.

Na praia, a velha Osugi corria de lado, rente à água, em desespero. Ao ver que com um último espadanar desapareciam os vultos da mulher e de tio Gon, pôs-se a gritar:

— Acudam, acudam de uma vez! Não estão vendo que os dois vão morrer? A voz acusadora parecia culpar os pescadores próximos pelo que estava ocorrendo.

— Que estão esperando, homens? Acudam rápido, vamos! — berrava Osugi, caindo, erguendo-se e correndo, abanando as mãos em desespero, como se ela própria estivesse prestes a se afogar.

 

— Será que tinham um pacto de morte?

— Não pode ser...

Os pescadores riam, reunidos ao redor dos dois corpos estendidos na areia. A mão do idoso tio Gon segurava com firmeza o obi da jovem mulher. Nenhum deles respirava.

A jovem desgrenhada parecia viva, e em seu rosto destacavam-se o branco da maquiagem e o carmim do rouge. Mordia levemente o lábio arroxeado e sorria.

— Ah, mas eu conheço esta mulher!

— Eu a vi catando conchas na praia!

— Isso mesmo! Ela está hospedada naquela estalagem!

Não houve necessidade de ir avisar, pois quatro ou cinco serviçais da hospedaria surgiram correndo. E entre eles estava Yoshioka Seijuro, pálido: ao notar a aglomeração na praia, tivera um mau pressentimento e acorrera ofegando:

— ÉAkemi!

Ciente, porém, da presença de estranhos e temeroso do que poderiam pensar, parou ao lado dos corpos, imóvel.

— Senhor samurai, esta moça está em sua companhia?

— Está.

— Faça com que ela vomite a água, depressa.

— Será que se salva?

— Não perca tempo falando.

Os pescadores dividiam as atenções entre os corpos de tio Gon e de Akemi, pressionando-lhes a boca do estômago e batendo em suas costas.

Akemi logo voltou a si. Seijuro fez com que um serviçal da hospedaria a carregasse às costas e retirou-se rapidamente, fugindo dos olhares curiosos.

— Tio Gon! Ei, tio Gon!

Osugi chorava, pressionando o rosto contra o ouvido do idoso homem. A jovem Akemi logo se recuperara. Tio Gon, porém, em razão da idade ou talvez da bebida que ingerira momentos antes de entrar no mar, havia morrido. Seus olhos, por mais que Osugi o chamasse, não voltaram a se abrir.

Os pescadores, que até esse momento haviam se empenhado em reanimá-lo, por fim desistiram, dizendo:

— Não adianta mais.

Ao ouvir isso, Osugi parou de chorar instantaneamente e, virando-se para os homens que se haviam mostrado tão solidários, gritou:

— Quem disse que não adianta? Se a menina voltou a si, por que ele não voltaria?

Furiosa, a velha Osugi empurrou os homens que cuidavam do tio Gon, esbravejando:

— Eu vou reanimá-lo!

Desesperada, Osugi lançou mão de todos os recursos. O empenho da velha senhora era até comovente, mas seu jeito autoritário — tratando as pessoas ao redor como se fossem seus empregados, ora reclamando do modo como apertavam a barriga, ora protestando que desse jeito não surtiria efeito, ou ainda suas impertinências exigindo que acendessem uma fogueira na praia e fossem buscar remédios — irritou os pescadores que, afinal, não eram seus parentes e sequer a conheciam.

— O que essa velha ranzinza pensa que somos?

— Não percebe a diferença entre um homem morto e um desmaiado? Quero ver se é capaz de ressuscitar o velho!

Sussurrando entre si, aos poucos foram se afastando do local.

Na praia, a tarde começava a cair. Uma fina cerração vinha do mar e, no céu, nuvens douradas refletiam fracamente a luz do sol poente. Osugi ainda não desistira. Acendeu uma fogueira, abraçou o corpo do velho Gon e, mantendo-o perto do fogo, continuava a clamar:

— Oh, tio Gon! Escute, tio Gon! As ondas quebravam cinzentas.

Por mais lenha que jogasse na fogueira, o corpo do idoso homem não se aquecia. Mas Osugi aparentemente acreditava que, a qualquer instante, seu velho Gon voltaria a falar: mascando remédios retirados de seu estojo, continuava a transferi-los diretamente de sua boca para a boca do morto, a abraçá-lo e a sacudi-lo:

— Abra os olhos só mais uma vezinha, tio Gon, fale alguma coisa!... Que é isso, tio Gon? Não pode me abandonar aqui e partir primeiro, onde já se viu? Pois se nem acertamos as contas com Musashi ou com a bruxa Otsu!

 

UM INIMIGO QUE SURGE DO PASSADO

Fora do aposento, a tarde avançava em meio ao marulhar das ondas e ao rumor do vento nos galhos dos pinheiros. Akemi caíra em sono agitado. Mal fora acomodada nas cobertas, a febre subira e a jovem passara a delirar.

À cabeceira, Seijuro, o rosto mais pálido que aquele sobre o travesseiro, sentava-se em desanimado silêncio. Por mais genioso que fosse, a dolorosa agonia da flor que ele próprio pisoteara devia pesar em sua consciência, pois ali estava ele, cabisbaixo e angustiado.

Seijuro era, sem dúvida alguma, o homem que se satisfizera transformando à força uma alegre jovem em presa de seus instintos bestiais. Mas o homem consciencioso que, com o rosto enrijecido e solene, velava imóvel à cabeceira da jovem ressuscitada, preocupando-se com o seu pulsar e respirar, também era Yoshioka Seijuro.

Trazendo à tona dois aspectos tão contraditórios da personalidade no curto período de um dia, Seijuro nem por isso parecia desnorteado. Seu rosto apenas espelhava dor e vergonha, aparentes nas sobrancelhas contraídas e na boca crispada.

— Acalme-se, Akemi, por favor. A maioria dos homens age dessa maneira, não só eu... Compreendo que se tenha assustado com a violência do meu amor, mas um dia você vai me entender...

Sentado à cabeceira de Akemi, Seijuro repetia as mesmas palavras inúmeras vezes, tentando consolar a jovem ou, talvez, a si próprio.

Um negrume denso como tinta envolvia o aposento. Vez ou outra a mão branca de Akemi se soltava das cobertas e batia com um ruído seco sobre o tatami. Seijuro a repunha sob as cobertas, mas Akemi o afastava, irritada.

— Que dia é hoje? — perguntou a jovem subitamente.

— Como?

— Quantos dias faltam... para o Ano Novo?

— Apenas sete. Até lá, você já estará boa. Vamos passar o Ano Novo em Kyoto, Akemi — respondeu Seijuro, aproximando o rosto do de Akemi.

— Não! — gritou ela de súbito, quase chorando, batendo no rosto que se aproximava do seu. — Vai embora!

As imprecações saíam de sua boca em voz fina e desvairada:

— Porco! Animal!

— És um animal!

— Não suporto nem te ver!

— Perdoe, Akemi.

— Cala a boca, cala a boca, cala a boca!

A mão branca se agitava no escuro, em desespero. Seijuro continha a respiração e, sombrio, sofria enquanto contemplava seus modos loucos. Devagar, Akemi se acalmava para voltar a perguntar:

— Que dia é hoje?

— Falta muito para o Ano Novo?

— Sete dias — durante sete dias, a partir do primeiro dia do ano, ele disse que estará todas as manhãs sobre a ponte da rua Gojo. Foi esse o recado de Musashi-sama. Ah... como eu queria que o Ano Novo chegasse de uma vez! Quero voltar a Kyoto! Musashi-sama vai estar sobre a ponte da rua Gojo.

— Que disse? Musashi?

— Que Musashi? Fala, por acaso, de Miyamoto Musashi?

Atônito, Seijuro procurou confirmar espreitando o rosto de Akemi, mas não obteve resposta. Cerrando firmemente as pálpebras azuladas, a jovem dormia profundamente.

Agulhas de um pinheiro caíram mansamente e resvalaram na superfície do shoji, iluminado pela claridade proveniente do mar. Um cavalo relinchou ao longe. Instantes depois, a luz de uma lamparina varou o shoji e um visitante surgiu, precedido por uma serviçal da hospedaria.

— Mestre! Está aí, jovem mestre?

 

— Olá, quem é? Estou aqui! — disse Seijuro, fechando precipitadamente a divisória dos dois aposentos e aparentando displicência.

— Sou eu, Ueda Ryohei.

Um homem vestindo imponentes roupas de viagem e coberto de pó entreabriu o shoji e sentou-se num canto do aposento.

— Olá, Ueda! — saudou Seijuro, perguntando-se o que o traria à sua presença. Ueda Ryohei pertencia, junto com os veteranos Gion Toji, Nanbou Yoichibei, Miike Jurozaemon, Kobashi Kurando e Otaguro Heisuke, ao grupo que se auto-intitulava “Os Dez Mais da Academia Yoshioka”.

Para aquela pequena viagem recreativa, Seijuro não trouxera nenhum desses auxiliares diretos e Ueda Ryohei deveria ter permanecido na academia da rua Shijo. Não obstante, ali estava Ryohei vestindo roupas de montar e mostrando todos os sinais de urgência em seus modos. Era verdade que Seijuro deixara para trás diversos problemas que o preocupavam mas, sem dúvida, a emergência que fizera Ryohei vir de tão longe à sua procura, fustigando um cavalo, não haveriam de ser os problemas financeiros ou as dívidas cobradas com insistência por mercadores, com a aproximação do fim de ano.

— Que foi? Algo importante aconteceu durante a minha ausência?

— Vou transmitir-lhe as notícias de uma vez, pois preciso pedir seu retorno imediato.

— Estou ouvindo.

— Ora, onde é que...

Ueda Ryohei introduzira ambas as mãos nas dobras de seu quimono e apalpava perplexo o próprio corpo quando um grito ecoou do outro lado da divisória:

— Nãão! Porco! Sai, sai de perto de mim!

Mesmo no sono, os acontecimentos do dia deviam perseguir Akemi como um pesadelo, pois a jovem amaldiçoava com vivacidade: as palavras, pronunciadas claramente, em nada lembravam um delírio.

— Que foi isso? — perguntou Ryohei, assustado.

— Nada!... E Akemi... está um pouco indisposta desde que chegamos, e delira por causa da febre.

— Ah, Akemi!

— Deixemos isso de lado. Preocupa-me muito mais o motivo de sua vinda até aqui. Fale de uma vez.

— Aqui está — disse Ryohei, retirando uma carta que por fim achara nas dobras do seu obi. Apresentou-a a Seijuro, aproximando dele a lamparina deixada’pela mulher da hospedaria.

Seijuro lançou um olhar casual à carta e exclamou:

— Ah... Mas é de Musashi! Ryohei assentiu com firmeza:

— Isso mesmo!

— Já a abriram?

— As pessoas que a receberam em seu lugar decidiram abri-la de comum acordo, uma vez que nela está escrito “urgente”.

— Que... que manda ele dizer?

Seijuro não conseguia tomar a carta em suas mãos de imediato. Por que perguntar, se o assunto era seu e se Miyamoto Musashi devia estar sempre em sua mente? Mas a bem da verdade, até esse dia Seijuro estivera certo de que jamais voltaria a ter notícias de Musashi. Traído em sua expectativa, sentiu um frio na espinha e, momentaneamente abalado, contemplou a carta, sem ânimo para abri-la.

Apertando os lábios, Ryohei respondeu nervoso:

— A carta chegou, afinal. Apesar das bravatas que andou contando antes de partir na primavera passada, pensávamos que esse homem jamais voltaria a pôr os pés na cidade de Kyoto. Mas — que presunçoso — “conforme prometi”, diz ele... Veja, ele teve ainda a ousadia de endereçar a carta a “Mestre Yoshioka Seijuro e Dignos Discípulos”, fazendo constar apenas o próprio nome, Miyamoto Musashi, como desafiante!

 

A carta não registrava o endereço do remetente, não sendo possível portanto saber-se por onde andava Musashi.

Mas seu paradeiro não importava. O fundamental era que, cumprindo estritamente a promessa, Musashi remetera a carta desafiando mestre e discípulos da academia Yoshioka. A partir desse momento, a casa Yoshioka e Musashi estavam em guerra: no final, um dos lados eliminaria o outro.

Aquilo era um duelo — e mortal. Em lutas desse tipo, um samurai aposta a vida por sua honra e espada. O duelo deixa de ser verbal ou uma simples demonstração de floreios técnicos de esgrima e passa a exigir o empenho da vida.

E para Yoshioka Seijuro, o desafiado, constituía um incrível fator de risco continuar desconhecendo os termos do desafio. Além disso, não deveria ter permanecido ocioso à espera deste dia, era óbvio.

Em Kyoto, alguns bravos discípulos de Seijuro mostravam-se revoltados com o comportamento de seu mestre e reclamavam:

— Desta vez, as coisas foram longe demais!

Outros choravam amargurados ou rilhavam os dentes lembrando a humilhação que haviam sofrido nas mãos de um simples guerreiro itinerante e diziam:

— Como gostaria que mestre Kenpo estivesse agora entre nós!

E assim, com o respaldo dos colegas que, unânimes, achavam importante “pôr o mestre a par do assunto e trazê-lo incontinente de volta a Kyoto”, Ueda Ryohei cavalgara até ali. Mas Seijuro apenas contemplava a carta de interesse vital depositada à sua frente, sem dar mostras de querer abri-la.

— Seja lá como for, leia-a, por favor! — instou Ryohei, um tanto irritado.

— Ah... a carta — murmurou seu mestre, por fim tomando-a nas mãos e passando os olhos.

Conforme prosseguia na leitura, Seijuro não conseguia ocultar o ligeiro tremor que lhe surgia na ponta dos dedos. Não porque a caligrafia ou o estilo da carta de Musashi fossem particularmente agressivos, mas porque nunca se sentira tão frágil espiritualmente. O murmúrio delirante de Akemi soando através da divisória, no aposento contíguo, abalava por completo a postura samuraica que Seijuro costumava manter no cotidiano. Sua segurança se desfazia como espuma na areia.

A carta de Musashi, por outro lado, vinha escrita com muita simplicidade:

 

Senhores,

 

Esperando que estejam todos em plena forma, escrevo-lhes esta carta conforme prometi.

Estou certo de que V. Sas. obtiveram um notável progresso técnico no transcorrer destes últimos meses, mas previno-os que também consegui considerável aperfeiçoamento de minhas habilidades.

Informem onde, em que dia e a que horas terei a oportunidade de demonstrá-lo. Não faço qualquer exigência específica. Desejo unicamente realizar o duelo há muito prometido, de acordo com os critérios que V. Sas. estabelecerem.

Tomo apenas a liberdade de solicitar-lhes uma resposta pública, escrita em placa que deverá ser afixada no meio da ponte da rua Gojo, entre o 1o e o 7o dia do ano.

 

Aos... dias do mês...,

Shinmen Miyamoto Musashi Masana

— Vou-me embora imediatamente! — disse Seijuro levantando-se, amarfanhando a carta e metendo-a na manga do quimono. Emoções diversas tumultuavam o espírito, tornando-lhe impossível permanecer por mais um instante que fosse.

O encarregado da hospedaria foi chamado às pressas à sua presença. Ao lhe ser solicitado que, em troca de pagamento, cuidasse de Akemi até a sua total recuperação, o estalajadeiro aceitou a incumbência a contragosto.

Nesse momento, Seijuro desejava mais que tudo afastar-se daquela casa e daquela noite desagradável.

— Levo seu cavalo! — gritou a Ryohei quando terminou apressadamente de se preparar para a viagem. Saltou para a sela e partiu, quase fugindo. Ueda Ryohei também disparou atrás do cavalo pela escura estrada arborizada de Sumiyoshi.

 

O “VARAL”

— Ah-há, claro que vi! Fala de um jovem vestindo roupas vistosas, levando um macaquinho no ombro, estou certo? Pois alguém que corresponde a essa descrição acabou de passar por aqui há pouco — informou um homem.

— Onde, onde? Que diz? Desceu pela ladeira Shingonzaka de Takazawa e se dirigiu à ponte Noujin-bashi... Mas não cruzou a ponte, pois foi também visto à entrada da loja do armeiro, à beira do fosso oriental? Finalmente! Encontramos a pista! É ele, é ele, não tem erro!

— Atrás dele, homens!

Atraindo a atenção dos pedestres nesse entardecer, ali ia um grupo de homens correndo precipitadamente, tentando alcançar um indivíduo de cuja existência não tinham certeza.

Àquela hora do crepúsculo, os estabelecimentos comerciais à beira do fosso oriental já haviam cerrado suas portas, mas um dos homens entrara na loja e questionara com rispidez o mestre armeiro. Instantes depois, saiu porta afora e, pondo-se a correr, disse:

— A Tenma! Vamos para Tenma!

O resto do grupo o acompanhou, tentando confirmar a boa notícia:

— Descobriu?

O líder respondeu com vivacidade:

— Descobri para onde foi!

Desnecessário dizer, aqueles eram os discípulos da academia Yoshioka que, desde cedo, vasculhavam a área central de Sumiyoshi em busca de um jovem e seu macaquinho de estimação, desaparecidos na noite anterior mal desembarcaram no porto.

A informação obtida no morro Shingonzaka tinha fundamento, conforme vieram a saber na loja do armeiro. Dizia o mestre armeiro que, realmente, a certa hora daquela tarde, quando já pensavam em cerrar as portas, surgira um jovem samurai de cabelos cortados à moda dos adolescentes. O jovem largara na entrada da loja um macaquinho que levava ao ombro e sentara-se para descansar.

“Está aí o mestre armeiro?”, perguntara. Mas como infelizmente ele, o armeiro, havia se ausentado e o empregado assim informara ao jovem, este dissera: “Trouxe uma arma muito valiosa que gostaria de ver afiada, mas a ausência do mestre armeiro me deixa em dúvida. Antes de confiá-la a vocês, quero saber, de um modo geral, até que ponto são competentes no serviço de reforma e afiamento de espadas. Se existe na casa alguma arma afiada pelo mestre armeiro, mostre-me”. Em vista disso, foram-lhe formalmente apresentadas algumas espadas, às quais o jovem lançara um olhar casual para depois comentar: “Parece-me que este estabelecimento só trabalha com armas rústicas. Não me agrada deixar a minha aos cuidados de uma casa desta categoria. A espada que quero ver afiada é esta às minhas costas, apelidada de “varal”: é histórica e está há gerações com a minha família. Nela não consta o nome do forjador mas, como pode ver, é uma obra-prima original, cunhada em Bizen, sem qualquer vestígio de ter sido encurtada.”

Desembainhàra a seguir a brilhante espada e a exibira, vangloriando-se o tempo todo das suas qualidades, ao que o empregado do armeiro, julgando ridícula a atitude do jovem, murmurara que “varal” era um nome bem apropriado para aquela espada sem curvatura, cujo único mérito aparente era o seu comprimento. Ao ouvir isso, o jovem se aborrecera um pouco, levantara-se de modo abrupto e perguntara o caminho para Tenma, de onde deveria partir o barco que subia o rio rumo a Kyoto. Depois, dissera fingindo indiferença: “Vou mandar afiá-la em Kyoto. Em todas as lojas de Osaka por que passei só vi espadas de soldados rasos, vulgares, afiadas sem técnica alguma. Obrigado pela informação”. Afastara-se a seguir rapidamente, contou o armeiro.

Quanto mais os discípulos de Seijuro ouviam a respeito do jovem, mais se reforçava neles a impressão de arrogância. Decepar o topete de Gion Toji com certeza aumentara-lhe ainda mais a presunção. Era bem provável que o jovem estivesse agora mesmo caminhando pela estrada cheio de si, sem saber que o mensageiro da morte, na pessoa dos discípulos, se aproximava cada vez mais de suas costas.

— Vai ver agora, novato fanfarrão!

— Já o temos em nossas mãos. Não há mais pressa.

O grupo andara o dia inteiro sem descanso, e a última observação partiu do mais fatigado. A isso, o que corria na frente respondeu:

— Pelo contrário, temos de nos apressar! O último barco a subir o rio Yodo parte por volta desta hora, se não me engano.

 

Mal avistou a margem do rio, perto de Tenma, o líder do grupo gritou:

— Irra! E agora?

— Que foi? — gritou o que lhe vinha logo atrás.

— Já estão empilhando os bancos da casa de chá, no atracadouro. Além disso, não vejo o barco no rio.

— Partiram?

Agruparam-se todos ruidosamente, contendo a respiração ofegante e, por alguns momentos, quedaram-se mudos e um tanto desapontados contemplando a superfície do rio. Logo abordaram o empregado que fechava a casa de chá e este os informou que, sem dúvida, um samurai de cabelos cortados à moda adolescente levando um macaco havia embarcado. Acrescentou também que o barco — aliás, o último do dia — acabara de zarpar havia pouco mas, com toda a probabilidade, ainda não chegara ao porto seguinte, Toyosaki, bem perto dali. Era muito provável que conseguissem alcançá-lo caso corressem pela margem, pois um barco navegando contra a correnteza rio acima se desloca muito lentamente, ao contrário dos que deslizam a favor da corrente, completou o homem.

— Isso mesmo! Nada de desânimo. Já que o perdemos aqui, não há mais pressa. Descansemos um pouco.

Assim dizendo, os discípulos de Seijuro tomaram chá e comeram rapidamente alguns confeitos antes de prosseguir às carreiras pela escura estrada margeando o rio.

Além da vasta área escura à frente, o rio se bifurcava formando duas faixas brilhantes que lembravam cobras prateadas. Estavam no ponto em que o rio Yodo se separa formando os rios Nakatsu e Tenman e, próximo a essa área, viram surgir um instável ponto de luz.

— É o barco!

— Nós o alcançamos.

Os sete homens alvoroçaram-se, entusiasmados.

As folhas secas dos juncos à beira-rio brilhavam como lâminas de espadas ao luar. Nos roçados próximos não restara sequer uma folha verde. Um vento gelado soprava pressagiando geada, mas nenhum dos homens sentia frio.

— Perfeito!

A distância diminuía gradativamente. Mal se assegurou de que aquilo era sem dúvida o barco, um dos homens gritou, sem pensar direito no que fazia:

— Eeeei! Parem o barco!

Uma voz pachorrenta respondeu:

— Para quêêê?

Na margem, o homem que gritara antes da hora levava uma reprimenda dos companheiros. Por que gritar desse jeito justo ali? Alguns quilômetros além havia um porto onde o barco forçosamente teria de atracar, pois haveria passageiros embarcando e desembarcando. Mas o berro acabara proporcionando ao inimigo dentro do barco condições para se pôr em guarda, reclamavam alguns de seus colegas.

— Ora, isso também não tem tanta importância, pois o adversário está só. Já que você o alertou, é melhor nos identificarmos de uma vez e cuidar para que ele não fuja pelo rio.

— Isso mesmo! Bem observado!

Graças à judiciosa intervenção de um dos homens, a discussão se encerrou. Os sete homens, unidos uma vez mais, ajustaram o passo à velocidade do barco noturno que subia o rio Yodo e tornaram a gritar:

— Eeeei!

— Que queeerem?

Não era um passageiro, aparentemente, mas o capitão que assim perguntara.

— Chegue o barco à margem!

— Está louco?

Ruidosas gargalhadas no interior da embarcação acompanharam a resposta.

— Recusa-se? — gritou um dos discípulos, em tom ameaçador. A isso, respondeu desta vez um dos passageiros, imitando o tom da pergunta:

— Recuso-me!

No ar frio, o hálito dos sete homens em terra firme formava uma nuvem branca ao redor das cabeças, dando a impressão de que literalmente fumegavam de raiva.

— Muito bem! Se não vão chegar à margem, esperaremos no próximo atracadouro. Mas entre os passageiros deve haver um novato levando um macaco. Digam a ele que, se tem noção de honra, adiante-se e fique em pé próximo à amurada. E se vocês lhe derem cobertura para fugir, avisamos: arrastaremos um a um para a margem e os trataremos como cúmplices. Ouviram?

 

A balbúrdia estabelecida no pequeno barco era nitidamente perceptível para os que o contemplavam da margem. E agora? — pareciam todos perguntar-se.

Se o barco acostasse, algo desagradável sem dúvida aconteceria: os sete samurais que caminhavam pela margem tinham prendido as mangas com tiras de couro e moviam ostensivamente suas espadas.

— Não lhes dê resposta, capitão!

— Digam o que disserem, não responda.

— Não acoste até chegarmos a Moriguchi. Lá recorreremos aos oficiais do posto policial.

Os passageiros sussurravam conselhos, assustados. O audacioso que se manifestara primeiro emudecera e apertava os olhos. Parecia rezar para que a distância — garantia única de segurança — entre a margem e o barco se mantivesse.

Os sete da margem continuavam incansáveis a acompanhar a embarcação. O momentâneo silêncio indicava que aguardavam a reação dos passageiros. Contudo, cansados de esperar, voltaram à carga:

— Ouviu bem, bushi que cheira a fralda e anda com um macaco? Venha à amurada! Vamos!

Repentinamente, uma voz ergueu-se no meio dos passageiros que vinham aconselhando a nada responder:

— É comigo?

No mesmo instante, um vulto jovem surgiu na amurada.

— Você mesmo!

— Até que enfim!

— Fedelho!

Os sete homens da margem dirigiam olhares raivosos e apontavam o vulto, ameaçando atravessar o rio a nado caso fosse menor a distância.

Com a longa espada apelidada de “varal” às costas, o bushi de aparência juvenil parou na amurada e ali permaneceu, imóvel. A luz do luar batia na água a seus pés, logo abaixo da amurada, e refletia em seus dentes brancos e pontiagudos.

— Novato em companhia de um macaco e cabelos cortados como um adolescente não existe outro, além de mim. Quem são vocês? Bandoleiros sem meios para sobreviver, ou uma trupe mambembe morta de fome?

Mal a voz fluiu sobre o rio e os alcançou, os sete voltaram-se simultaneamente, rilhando os dentes:

— Que disse?

— Como ousa, amestrador de macacos?!

As ofensas partiam da boca dos sete homens e ricocheteavam na superfície da água, uma a uma:

— Olhem só quem fala! Daqui a pouco vai enrolar o rabo entre as pernas e pedir perdão.

— Que disse? Somos discípulos da academia Yoshioka. Sabia disso ou não, quando há pouco nos dirigiu as palavras ofensivas?

— Já que está sobre o rio, estique o braço, lave esse pescocinho mimoso e prepare-o para a degola.

O barco aproximava-se do dique de Kema.

No local erguiam-se mourões de atracação e um casebre. Ao perceber que chegavam ao atracadouro da aldeia, os sete homens espalharam-se pela doca, fechando a saída.

Mas o barco permanecia parado à distância, no meio do rio, dando voltas no mesmo lugar. Tanto o capitão quanto os passageiros, assustados com a grave situação, insistiam que seria mais seguro não atracar. Ao perceber a manobra, os sete discípulos da academia Yoshioka tornaram a gritar:

— Vocês aí: por que não atracam?

— Quero ver se se agüentam dois ou três dias sem aportar. Ainda vão se arrepender!

— Se não atracarem, passaremos todos no fio da espada!

— Podemos pegar um bote e chegar até aí, não se esqueçam! Parados na margem, os homens lançavam as ameaças quando afinal o

pequeno barco virou a proa em direção a eles e, simultaneamente, uma voz penetrante cortou a água gelada do rio:

— Calem a boca! Atendendo ao seu desejo, farei o favor de me aproximar. Preparem-se e aguardem!

Era o jovem que, assim dizendo, empunhara a longa vara usada para conduzir o barco em águas rasas e, ignorando por completo as aflitas admoestações do capitão e dos demais passageiros, vinha impelindo a embarcação vigorosamente rumo à margem.

 

Aí vem ele!

— O atrevido!

Com as mãos nas empunhaduras das espadas, os sete formavam um semicírculo, cercando a área que a proa apontava, e onde provavelmente acostaria o barco.

A quina da proa era uma lâmina cortando a correnteza. Conforme se aproximava, o vulto do jovem agigantava-se aos olhos dos sete homens que, em terra, continham a respiração e o aguardavam. E no momento em que a proa avançou pela área pantanosa coberta de juncos secos, vindo de encontro ao peito dos homens — ou assim lhes pareceu, pois inconscientemente seus calcanhares moveram-se para trás — a forma arredondada de um pequeno animal lançou-se do barco, vencendo os quase dez metros de pântano e juncos secos que o separavam da margem, e agarrou-se no pescoço de um dos homens.

— Ahhh!... — gritou o homem. Ao mesmo tempo, sete raios prateados partiram das bainhas das espadas e cortaram o ar.

— É o macaco!

Mas a percepção chegou-lhes apenas depois que as espadas haviam desferido golpes inúteis no ar. Cientes agora de que haviam confundido o salto do pequeno animal com o do próprio inimigo, reconheciam o erro e admoestavam-se mutuamente:

— Não se afobem!

A essa demonstração de pânico e confusão, os demais passageiros — que, temendo ser envolvidos, se haviam agrupado a um canto do barco — sentiram diminuir a tensão, mas ninguém se atreveu a rir. Apesar de tudo, alguém ainda gritou: “Ei!” Pois o jovem que até esse momento vinha impulsionando o barco com a longa vara, de repente a enfiara no meio dos juncos e, com um ligeiro impulso, saltara com destreza maior que a do macaco, lançando sem nenhum esforço aparente o próprio corpo a uma curta distância dos homens.

— Ora!

Os sete homens voltaram-se simultaneamente para o local onde o jovem aterrissara, um pouco distante daquele previsto por eles. Os músculos repuxados de seus rostos provavam que a situação lhes era inesperada, muito embora tivessem tido a oportunidade de se preparar. Agora, porém, não lhes sobrava tempo para compor uma estratégia de aproximação. Dispararam portanto pela margem, um atrás do outro, em direção ao jovem. Como resultado, a formação circular de combate se desfez e se transformou em fila indiana, dando ao jovem que os aguardava a uma curta distância condições de fechar a guarda por completo.

O homem que liderava a coluna já alcançara uma posição em que retornar seria impossível. Instantaneamente, seus olhos se congestionaram e seus ouvidos nada mais ouviram. As táticas de combate treinadas até a exaustão no cotidiano sequer afloraram à sua mente. Com os dentes arreganhados, o homem avançou contra o jovem como se pretendesse mordê-lo, apontando-lhe a espada.

No mesmo instante, o jovem samurai projetou o peito para a frente e deu a impressão de que se punha na ponta dos pés. O corpo, naturalmente avantajado, pareceu crescer ainda mais e a mão direita subiu até a altura do ombro: o jovem acabava de empunhar o cabo da espada que levava às costas.

— São discípulos da academia Yoshioka? Bem a calhar! Do outro, apenas aparei o topete e o perdoei mas, pelo visto, isso não os satisfez. Aliás, nem a mim.

— Bra... Bravateiro!

— Já que penso mandar polir este “varal”, não vou poupá-los: preparem-se!

Apesar de alertado, o homem da frente parecia hipnotizado e, em rígida pose, não conseguiu se afastar. A longa espada “varal” partiu-o em dois com a mesma facilidade com que partiria uma pêra.

 

As costas do que ia à frente pressionaram os ombros do que lhe vinha logo atrás. Ao ver o cabeça da fila ser eliminado com facilidade por um rápido golpe da longa espada inimiga, os seis companheiros restantes desequilibraram-se mentalmente e perderam a unidade de ação.

Nessas condições, um grupo transforma-se em alvo mais fácil que um único homem. O jovem samurai, entusiasmado pelo êxito do primeiro golpe, usou o “varal” — espada longa que lhe possibilitava alcançar uma extraordinária distância — e golpeou de lado o homem seguinte.

O golpe não teve êxito completo, mas o homem fora atingido duramente: com um estranho uivo, pulou para dentro de uma moita de juncos.

— O próximo!

Quando o jovem os fitou com seu olhar penetrante, os discípulos que restavam perceberam, apesar de todo o despreparo, a gravidade do erro cometido e mudaram a formação rodeando o inimigo como cinco pétalas em torno de um miolo, ao mesmo tempo em que se instigavam:

— Não recuem!

— Não recuem, ouviram?

Encorajado pela momentânea perspectiva de vitória que a nova formação proporcionava, um dos homens avançou gritando:

— Fedelho insolente!

Não era coragem, era o ato inconsciente de um indivíduo que havia perdido a noção do medo. Este era o tipo de ocasião em que palavras eram desnecessárias, mas o homem tornou a gritar:

— Vou lhe ensinar agora!

No mesmo instante, saltou em direção ao adversário. O golpe, desferido de cima para baixo, deveria ter penetrado fundo na defesa inimiga, achava o homem. Sua espada, porém, cortou inutilmente o ar a quase 60 centímetros de distância do peito do jovem samurai.

A ponta da espada manejada com excessiva confiança bateu num pedregulho, como seria de se esperar. O discípulo dos Yoshioka viu-se, ato contínuo, na posição de alguém que voluntariamente mergulha de cabeça no escuro poço da morte: com a planta de um pé e a extremidade da bainha da espada apontando para o alto, expôs-se inteiro ao golpe adversário.

Mas em vez de abater o inimigo que tinha a seus pés, o jovem samurai se esquivou e, acrescentando um rápido impulso ao movimento, saltou sobre o homem ao lado.

Outro urro ecoou de súbito, indicando que mais um fora mortalmente ferido. Ao ver isso, os três restantes, incapazes de voltar à formação circular de combate, iniciaram uma precipitada fuga em fila indiana.

A fuga atiça no homem o instinto predatório. Agarrando com ambas as mãos a longa espada, o jovem gritou, enquanto lhes corria atrás:

— E isso o que ensinam na academia Yoshioka? Isso é sujeira! Quero suas cabeças de volta!

Gritando e correndo, continuou a persegui-los:

— Parem! Parem aí! Vocês me detiveram, fizeram-me perder o navio e depois fogem, largando-me aqui? Isso não é digno de um samurai! Estou avisando: se continuarem a fugir, vou espalhar esta história por todo o país e transformar o estilo Kyohachi da casa Yoshioka em motivo de escárnio.

Transformar um samurai em alvo de zombaria é, para ele, a maior ofensa, mais humilhante ainda que cuspir-lhe no rosto. Mas aos ouvidos dos homens em fuga, até isso perdera importância.

Mais ou menos à mesma hora soava sobre o dique de Kema o tilintar gelado dos sinos de um arreio. A geada e o reflexo do luar nas águas do rio Yodo clareavam a paisagem, tornando desnecessário o uso de lanternas. Tanto o vulto a cavalo quanto o vassalo que corria a pé junto às ancas da montaria expeliam um hálito branco e, esquecidos do frio, apressavam-se em seguir caminho.

— Ah!

— Desculpe!

Os três perseguidos, quase se chocando contra as narinas do cavalo, rodopiaram algumas vezes para se desviar e voltaram-se para olhar.

 

Repentinamente contido pela rédea, o cavalo empinou e relinchou alto. O vulto sobre o cavalo espiou os três rostos confusos à sua frente e exclamou:

— Ora, se não são os meus discípulos!

Por alguns instantes, olhou-os com estranheza, mas logo se irritou e os repreendeu:

— Idiotas! Por onde andaram o dia todo?!

— Ah, jovem mestre!!

No mesmo instante, Ueda Ryohei surgiu de trás do cavalo e se adiantou, dizendo:

— Que tipo de comportamento é esse? Vieram acompanhando o jovem mestre e nem estavam ao seu lado no momento de sua partida? No mínimo andaram se envolvendo em outra briga de bêbados! Para tudo existe um limite, ouviram?

Ter a luta classificada como outra briga de bêbados era insuportável. Os três homens ultrajados contaram que, muito pelo contrário, lutavam para preservar a autoridade do estilo e o bom nome de seu mestre, e que isso trouxera tais e tais conseqüências. Apavorados e com as línguas secas, expuseram a situação com incrível rapidez, concluindo:

— Aí vem... Aí vem ele!

E trepidantes de pavor, voltaram os olhares na direção dos passos que se aproximavam.

Ao ver a atitude covarde de seus discípulos, Ueda Ryohei se agastou:

— Que gritaria é essa, bravateiros inúteis? Do modo como agem, em vez de limpar o nome do estilo, tornam a sujá-lo com uma nova camada de lama. Deixem comigo, eu o enfrentarei.

Assim dizendo, Ryohei, protegendo atrás de si os três discípulos e Seijuro, adiantou-se cerca de dez passos.

— Vai ver agora, novato! — disse Ryohei, aguardando os passos que se aproximavam.

Sem saber o que o aguardava, o jovem samurai vinha em disparada, agitando a longa espada:

— Eeei, parem aí! Não me digam que a fuga é o princípio secreto do estilo Yoshioka! Não sou particularmente a favor de matanças, mas este meu “varal” não se contenta com pouco, e quer mais sangue, muito mais! Dêem-me aqui suas cabeças! Devolvam! Se querem fugir, fujam, mas deixem aqui suas cabeças!

Gritando a plenos pulmões, o jovem corria pelo dique de Kema, seu vulto voando em linha reta em direção aos homens.

Ueda Ryohei cuspiu nas mãos e empunhou a espada com maior firmeza. O jovem samurai, correndo como um vendaval, talvez não tivesse percebido o vulto à sua frente, pois prosseguiu com passadas tão largas que, naquele ritmo, passaria pisando a cabeça de Ryohei.

Com um poderoso kiai, Ryohei, que aguardava contraindo os fortes músculos braçais, distendeu-os de súbito. A espada descreveu um movimento de varredura, a princípio paralelo ao chão e depois ascendente. Na extensão das mãos entrelaçadas que seguravam o cabo, a ponta da espada prosseguiu seu trajeto ascendente e o golpe pareceu visar as estrelas. O jovem parou com um pé no ar, girou uma vez rigidamente sobre o próprio eixo e voltou-se outra vez, quando o ouviram murmurar:

— Ora, ora, um novo adversário!

Num átimo, desfechou um contragolpe, movendo o “varal” lateralmente em direção a Ryohei que, desequilibrado e com o corpo tombado para diante, prosseguia em linha reta, cambaleando.

O golpe fora de indescritível violência. Ryohei jamais conhecera um indivíduo com esse nível de destreza. Logrou esquivar-se, mas acabou rolando do dique para dentro das plantações à sua margem. Por sorte, o dique era baixo e a plantação, um arrozal congelado. Estrategicamente falando, porém, ficava claro que ele perdera sua oportunidade e, quando conseguiu enfim voltar para cima do dique, o vulto do jovem agitava-se furiosamente. Sua longa e cintilante espada, o “varal”, já rechaçara os três discípulos que restavam e, avançando, aproximava-se agora do homem a cavalo, Yoshioka Seijuro.

 

Seijuro estivera tranqüilo, certo de que a contenda se resolveria muito antes de chegar até ele. Mas o perigo se aproximou com rapidez.

O jovem tinha um estilo extremamente violento. A ponta da longa espada avançou em direção a Seijuro, visando o ventre do seu cavalo.

— Ganryu, espere! — gritou Seijuro nesse instante, de modo inesperado. Ao mesmo tempo, retirou com incrível rapidez um dos pés do estribo, transferiu-o para o alto da sela e, acrescentando ao movimento um impulso semelhante a um chute, levantou-se sobre a sela. Enquanto o cavalo saltava sobre a cabeça do jovem e disparava como uma flecha, Seijuro, num ágil movimento contrário, aterrissava quase cinco metros atrás.

— Formidável!

O elogio não partira de nenhum dos discípulos de Seijuro, mas do seu adversário, o jovem samurai. Reempunhando a espada, aproximou-se de um salto e disse:

— Essa foi uma linda demonstração de agilidade, tenho de reconhecer. Eis aqui uma bela oportunidade, pois presumo estar na presença de Yoshioka Seijuro. — Em guarda!

A ponta da espada voltada na direção de Seijuro era a imagem da agressividade. O sucessor de Yoshioka Kenpo merecia o título: seu corpo demonstrara preparo suficiente para enfrentar o ataque.

— Sua sagacidade merece aplausos, Sasaki Kojiro, da província de

Iwakuni. Tem razão, sou Yoshioka Seijuro, mas não me agrada cruzar armas com você sem motivo. Esta disputa pode ser resolvida a qualquer tempo. Abaixe a guarda, portanto, e vamos tirar a limpo esta confusão, em primeiro lugar.

O jovem talvez não o tivesse ouvido de início, quando Seijuro o chamara “Ganryu”, mas desta vez a denominação Sasaki da província de Iwakuni não poderia passar despercebida. Absolutamente surpreso, exclamou:

— Quê? Como sabe que sou Ganryu Sasaki Kojiro? Seijuro bateu de leve na própria coxa:

— Quer então dizer que é realmente Sasaki Kojiro? — Assim dizendo, adiantou-se. — Esta é a primeira vez que o vejo em pessoa, mas ouço sempre falar a seu respeito.

— Quem estaria falando de mim? — quis saber Kojiro, com ar ligeiramente atordoado.

— Seu colega veterano, mestre Ito Yagoro.

— Ora, que surpresa! Então conhece mestre Ittosai?

— Até a altura do outono deste ano o senhor Ittosai morava nas proximidades do morro Kaguraga, em Shirakawa. Eu mesmo o visitei ali algumas vezes, e o próprio mestre me honrou procurando-me em casa, à rua Shijo.

— Ora, ora! — disse Kojiro, sorrindo. — Isto quer dizer que é como seja nos conhecêssemos!

— Mestre Ittosai referia-se com freqüência a você. Dizia ele que em Iwakuni havia um jovem de nome Ganryu Sasaki que, como ele, seguira os ensinamentos de Toda Gorozaemon sob a orientação do mestre Kanemaki Jisai. Disse também que era o mais jovem dos seus discípulos. Num futuro próximo, contudo, só você poderia disputar com ele a posição de melhor espadachim do país.

— Mas como deduziu instantaneamente que eu era Sasaki Kojiro, com base apenas nessas informações?

— Mestre Ittosai havia-me falado da sua juventude e descrito sua pessoa. Sei também em detalhes o motivo por que é conhecido como Ganryu. Ao notar que manejava com desembaraço essa espada longa, logo me veio à mente o nome e assim o chamei. Adivinhei apenas.

— Mas é extraordinário! Que encontro inesperado! — exclamou Kojiro, satisfeito. Seu olhar caiu em seguida sobre a espada sangrenta que tinha nas mãos e, no momento seguinte, perguntou-se de que jeito acertariam essa conta.

 

Ao conversar, aparentemente se entenderam. Passados instantes, o grupo prosseguiu pelo dique de Kema rumo à cidade de Kyoto, tendo à frente Sasaki Kojiro e Yoshioka Seijuro lado a lado, como velhos amigos, seguidos de perto por Ueda Ryohei e três friorentos discípulos.

— Aliás, deixe-me esclarecer um ponto: quem começou esta briga não fui eu. Pelo contrário, fui insistentemente provocado — explicava Kojiro.

Seijuro tornou a ouvir da boca de Kojiro detalhes da conduta de Gion Toji no barco que interligava a ilha de Awa a Osaka. A isso juntou o que agora se lembrava de seu comportamento posterior e concluiu:

— Que vergonha! Assim que retornar, vou chamá-lo à minha presença e submetê-lo a interrogatório. Longe de mim guardar-lhe rancor. Pelo contrário, peço-lhe que me desculpe o fato de não conseguir controlar devidamente meus discípulos.

Ao ouvir as escusas, Kojiro viu-se obrigado a aparentar modéstia:

— Não se desculpe. Como vê, eu também sou um bocado genioso e gosto de falar com certa arrogância; além disso, nunca recuso uma boa briga e estou sempre disposto a enfrentar qualquer um. De modo que a culpa não é só de seus discípulos: ao contrário, os homens que hoje agiram em defesa do bom nome do estilo Yoshioka e de seu mestre, embora deixem muito a desejar no aspecto técnico, estavam bem intencionados, os coitados.

— A culpa é minha — disse Seijuro, caminhando com uma expressão sombria no rosto.

Ao ouvir de Kojiro que, se não se opunha, gostaria de deixar para trás o incidente e esquecer tudo, Seijuro concordou:

— Isto vai além de minhas expectativas. E aproveitando o feliz acaso que o pôs em meu caminho, gostaria de convidá-lo a dar-nos algumas aulas na academia.

Vendo a cordialidade reinar entre os dois homens, os discípulos os acompanharam aliviados. E quem haveria de adivinhar que o belo jovem de ar adolescente, à primeira vista um simples garoto mimado grande demais para a idade, era Ganryu Sasaki Kojiro, “o jovem prodígio da província de Iwakuni” tão exaltado por mestre Ito Yagoro Ittosai? Era-lhes perfeitamente compreensível que Gion Toji não o tivesse levado a sério e se metido em maus lençóis.

Esclarecidos os fatos, admirados e assustados estavam Ueda Ryohei e os demais discípulos, salvos por um triz da mortífera ação do “varal”, a espada de estimação do jovem Kojiro.

— Então, este é Ganryu! — pensavam, fitando de soslaio as largas costas do indivíduo que lhes ia à frente. Agora que sabiam, percebiam algo invulgar em sua aparência e se recriminavam pela falta de discernimento.

Logo se aproximaram outra vez do atracadouro de Kema. Ali jaziam as vítimas do “varal”, já rijas. Ueda Ryohei determinou aos três discípulos restantes que cuidassem dos companheiros mortos e foi buscar o cavalo que havia pouco disparara, trazendo-o de volta pela rédea. Quanto a Sasaki Kojiro, assobiou diversas vezes chamando o macaco de estimação.

O macaquinho reapareceu em resposta aos assobios e saltou-lhe ao ombro. Seijuro ofereceu o cavalo a Kojiro, ao mesmo tempo em que o convidava com insistência a se hospedar na academia da rua Shijo. Sasaki Kojiro balançou negativamente a cabeça e respondeu:

— Não concordo. Eu ainda sou um novato desconhecido, enquanto o senhor é, para se falar pouco, o sucessor de Yoshioka Kenpo, de uma casa famosa desde o período Heian, o líder de algumas centenas de discípulos.

Tomou a seguir das rédeas e acrescentou:

— Monte e não se preocupe comigo. No entanto, gostaria de me apoiar na rédea enquanto ando, pois isso me facilitará o caminhar. Aceito de bom grado o convite e passarei algum tempo hospedado em sua academia. Viajaremos deste modo até Kyoto e conversaremos pelo caminho.

Kojiro era por vezes insolente, mas também sabia ser educado. Seijuro, cujo destino era bater-se com Musashi no começo do ano seguinte, não podia deixar de sentir certa animação por ter encontrado Sasaki Kojiro, um exímio espadachim, e pela perspectiva de tê-lo em sua academia.

— Muito bem! Nesse caso, cavalgarei no primeiro trecho. Quando você se cansar, revezaremos.

Assim dizendo, Seijuro montou.

 

RIOS E MONTANHAS ETERNOS

Durante o período Eiroku (1558-1570), quando Tsukahara Bokuden e Kamiizumi Ise eram considerados os melhores espadachins do leste japonês, a eles se opunham dois outros nomes no oeste: a casa Yoshioka, da cidade de Kyoto, e a casa Yagyu, da região de Yamato.

Mais digna de menção, porém, era uma casa da mesma época: a do suserano Kitabatake Tomonori, senhor supremo de Ise em Kuwana. Diz a lenda que Tomonori foi um marco no mundo da esgrima e bom governador, razão pela qual muito depois de sua morte seu nome ainda era lembrado com carinho pelos habitantes da cidade casteleira, saudosos da boa administração e da prosperidade experimentada pela província de Kuwana daqueles tempos.

E por ser tão virtuoso Kitabatake Tomonori mereceu a confiança de Bokuden, o exímio espadachim do leste, que lhe ensinou os segredos do seu lchi-no-tachi — ou ‘Espada Primordial’ —, o genuíno estilo Bokuden florescendo conseqüentemente em Ise e não no leste japonês, como seria de se esperar.

Bokuden tinha um filho, Tshukahara Hikoshiro, que herdou integralmente os bens familiares depois da morte do pai, exceto os preciosos segredos da Espada Primordial. Inconformado, Hikoshiro saiu da terra natal Hitachi logo após o falecimento do pai, rumou para Ise, avistou-se com Tomonori e lhe declarou:

— Meu pai, Bokuden, ensinou-me há algum tempo os princípios secretos da Espada Primordial. Antes de morrer, porém, disse-me ele que os havia também confiado ao senhor, o que me despeitou a vontade de saber se os segredos a nós transmitidos seriam idênticos. Que tal compararmos as diferenças e as semelhanças dos princípios que nos foram legados dentro da mais estrita confidencia e assim aprimorarmos o estilo Bokuden?

Tomonori percebeu de imediato que Hikoshiro ali estava com o intuito de apoderar-se dos segredos da Espada Primordial. Mesmo assim, respondeu-lhe:

— Muito bem, eu os mostrarei a você.

E de pronto exibiu todas as poses secretas do estilo. Graças a isso, Hikoshiro foi capaz de reproduzir as diversas posições da Espada Primordial. Como porém não tinha a necessária qualificação, conseguiu apenas imitá-las e, por conta disso, o verdadeiro estilo Bokuden de esgrima difundiu-se muito mais na área de Ise, terra até hoje considerada berço de muitos guerreiros habilidosos.

Esse tipo de história gabando as qualidades da província de Kuwana chega obrigatoriamente aos ouvidos de qualquer visitante ao pisar essas terras pela primeira vez. Comparadas, contudo, à conversa inútil mesclada de bravatas que certos guias impingem a turistas, tais histórias são mais toleráveis, tendo ainda o mérito de ser instrutivas. Eis porque, movendo a cabeça vez ou outra em concordância, o viajante — que havia partido da cidade casteleira de Kuwana e agora se aproximava a cavalo pela estrada que leva ao morro Tarusaka — ouvia sem interromper o condutor do cavalo exaltar a própria terra, murmurando apenas:

— Interessante. Muito interessante.

O clima da região de Ise é quase sempre ameno, mas dezembro já ia a meio: proveniente da enseada de Nako, um vento gelado, cortante, atingia o desfiladeiro. Apesar disso, o homem escanchado sobre o cavalo de carga alugado por alguns trocados usava roupas de baixo de cânhamo e, sobre elas, um simples quimono forrado. É verdade que vestia ainda sobre o quimono uma meia casaca sem mangas, mas o conjunto encardido era sumário, pouco agasalhador.

O rosto escuro, queimado de sol, transformava o sombreiro em inutilidade. Mesmo assim ele o tinha sobre a cabeça, mas tão velho e surrado que não atrairia a atenção de ninguém caso o deixasse cair no meio do caminho. Os cabelos, que havia muito não viam água, estavam enfeixados de forma displicente e lembravam um ninho de ratos.

“Será que tem com que me pagar?”, preocupara-se o condutor no momento em que aceitara levá-lo. Outro problema havia afligido o dono do cavalo: seu passageiro dirigia-se para um local distante, no meio de uma área montanhosa, sendo remota a probabilidade de conseguir um cliente para o caminho de volta.

— Patrão?

— Hum?

— Vamos parar em Yokkaichi para um almoço antecipado, passar por Kameyama ao entardecer e, se depois disso prosseguirmos sem descanso até a vila Ujii, lá chegaremos bem depois do anoitecer.

— Hum...

— Continuamos assim mesmo?

— Hu-hum.

O lacônico passageiro com tudo concordava e, do lombo do cavalo, apenas contemplava com interesse a enseada de Nako.

O cavaleiro era Musashi.

Ninguém sabia por onde andara perambulando desde o fim da primavera anterior até os primeiros dias deste inverno. A pele curtida por ventos e chuvas tinha textura e cor de papel pardo. No rosto, destacavam-se apenas os olhos, cada dia mais claros e penetrantes.

 

O condutor tornou a perguntar:

— Patrão, a vila Unrin’in, nas terras de Ano, fica quase oito quilômetros além da base do monte Suzuka. Que vai fazer nessas lonjuras?

— Procuro alguém.

— Mas lá só tem lenhador e lavrador morando, que eu saiba.

— Mora também um exímio manejador de kusarigama, a corrente com foice. Foi o que me disseram em Nara.

— Ah, fala de Shishido-sama?

— Isso, Shishido...

— Baiken.

— Ele mesmo.

— Esse homem é forjador de foices e, dizem, maneja bem o kusarigama. Vejo que o senhor, patrão, é um estudante de artes marciais.

— Hu-hum.

— Nesse caso, é melhor ir a Matsuzaka. Lá tem um homem cuja habilidade é notória em Ise.

— Quem?

— Um certo Mikogami Tenzen.

— Ah..., Mikogami!

Musashi assentiu e nada mais perguntou, dando a entender que já o conhecia. Oscilando sobre o lombo do cavalo, contemplou em silêncio os telhados das hospedarias de Yokkaichi que despontavam a seus pés, no fundo da ladeira. Mal entrou na cidade, desmontou e acomodou-se a um canto da barraca de um vendedor de lanches para almoçar.

Enquanto andava na direção da barraca, tornou-se evidente que Musashi tinha um dos pés envolto num pedaço de pano e mancava levemente. Um ferimento na sola do pé havia inflamado, sendo esse o aparente motivo pelo qual viajava a cavalo.

Nos últimos tempos, Musashi viera dispensando contínuos cuidados ao próprio corpo, mas a despeito disso acabara pisando um prego cravado numa tábua de engradado enquanto andava no meio da multidão do porto de Narumi. O ferimento havia infeccionado no dia anterior e o peito do pé inchara e avermelhara, como um caqui maduro.

“Será que eu poderia ter-me esquivado deste inimigo?”, perguntava-se Musashi, pensando na situação em termos de combate. Na qualidade de guerreiro, era-lhe humilhante ser derrotado por um simples prego.

“O prego jazia com a ponta para cima, bem visível, e eu o pisei. Isso prova que os olhos me traíram e o espírito não se distribuía igualmente por todas as partes do meu corpo. Além de tudo, pisei no prego até o fim, permitindo que ele penetrasse fundo na planta do pé. Isso prova que meu corpo não estava livre para reagir de pronto. Se naquela hora nada me tolhesse, o prego teria sido detectado no instante em que sua ponta tocou a sola da sandália e eu teria retirado o pé a tempo.”

Refletiu sobre o próprio despreparo e concluiu: “Desse jeito, nunca chegarei a ser alguém.”

Espada e corpo não formavam ainda uma unidade. Irritava-o perceber em si essa espécie de deformação: sua habilidade no manejo da espada progredia, mas corpo e espírito ficavam para trás.

Um fato no entanto o consolava: não havia desperdiçado tempo nos quase seis meses transcorridos desde o momento em que deixara para trás o feudo de Yagyu, na primavera anterior, até o presente dia. Disso Musashi se orgulhava.

De Koyagyu alcançara Iga, e de lá descera à estrada de Oumi[31]. Passara em seguida por Mino[32], Owari[33] e finalmente chegara a Ise. E em todas as cidades casteleiras, montanhas e pântanos por que havia passado, procurara obcecado o verdadeiro sentido da esgrima.

Aos poucos, Musashi chegara à pergunta crucial:

“No que consiste a essência da esgrima?”

Mas a esperada resposta “Esta é a verdade!” não fora encontrada nas cidades, nos pântanos ou nas montanhas. Nos últimos seis meses, tivera a oportunidade de se avistar com algumas dezenas de guerreiros, entre eles alguns espadachins hábeis e famosos, embora o fossem apenas por suas técnicas.

 

Difícil era encontrar um homem. O mundo abundava de seres humanos, mas custoso era achar entre eles um homem verdadeiro.

Musashi deu-se conta dessa dolorosa verdade durante suas andanças pelo país. E a cada nova e lamentável constatação, ressurgia-lhe no peito a imagem de Takuan, o homem tão genuinamente humano.

“Sou um privilegiado, pois o destino me concedeu a maravilhosa oportunidade de cruzar com ele bem cedo na vida. Não posso deixar passar em branco este privilégio.”

Ao pensar em Takuan, Musashi era capaz de sentir ainda hoje uma dor aguda partindo dos punhos e invadindo o corpo inteiro. Era uma sensação estranha, uma lembrança fisiológica daquele dia distante, quando fora atado a um galho no alto do cedro centenário.

“Espere e verá, Takuan! Dia virá em que eu o suspenderei num galho do cedro centenário e lhe pregarei a verdade”, prometia sempre Musashi, não porque sentisse raiva ou quisesse vingança. Longe disso. Apenas considerava maravilhosa a missão que estabelecera para si, qual seja, a de um dia alcançar um modo de vida superior, que superasse o do zen, almejado pelo monge.

E se um dia Musashi obtivesse um incrível progresso e simbolicamente amarrasse Takuan no alto do cedro para lhe dar sábios conselhos destinados a iluminar-lhe a vida, que responderia o monge lá de cima?

Ali estava algo que Musashi gostaria muito de saber.

Era provável que Takuan lhe dissesse:

— Que situação gratificante! Estou feliz!

Não! Sendo o que era, o monge jamais externaria sua alegria com tanta franqueza. Riria de modo seco e diria talvez:

— Nada mal para um novato!

Mas esses detalhes pouco importavam, achava Musashi. O importante era superar algum dia o monge de forma inequívoca e assim patentear sua gratidão.

Louca fantasia! Pois Musashi havia começado a compreender cada vez mais a extensão e a dificuldade do caminho que se abria à sua frente, principalmente agora que nele dava os primeiros passos.

“Nunca chegarei aos pés de Takuan”, desesperava-se, o sonho de superá-lo desabando ruidosamente.

E por mais penoso e frustrante que isso lhe parecesse, a noção da própria inexperência e despreparo acentuava-se ainda mais quando se comparava a Sekishusai, o grande mestre do feudo de Yagyu, com quem afinal acabara não conseguindo avistar-se. Sentia-se então insignificante, incompetente até para tocar em assuntos como artes marciais ou caminhos. De súbito, o mundo, que até então lhe havia parecido repleto de gente sem valor, tornava-se imenso e temível.

“Não posso perder tempo teorizando. A esgrima não é lógica, nem a vida uma teoria: elas têm de ser praticadas, vividas!”

Embrenhava-se então com ímpeto em montanhas e florestas. Ao emergir desses lugares tempos depois e surgir em um vilarejo qualquer, seu aspecto dava uma idéia do tipo de vida que havia levado.

No rosto magro, as faces vinham encovadas, e pelo corpo espalhavam-se inúmeros cortes e hematomas. A longa permanência sob cachoeiras, em exercícios ascéticos, havia-lhe ressecado e desgrenhado os cabelos. Apenas os dentes destacavam-se incrivelmente brancos no corpo escurecido pelo contato com a terra sobre a qual havia dormido. E assim, altivo e confiante, descia ele das montanhas para as vilas dos homens em busca de oponentes de seu nível.

Era em busca de um tal oponente — cujo nome obtivera em Kuwana — que Musashi andava nesse exato momento. Sobravam-lhe ainda quase dez dias para o começo da primavera, quando teria de estar em Kyoto. A caminho para essa cidade, pretendia descobrir se Baiken, o especialista em kusarigama, era um dos raros homens deste mundo dignos desse nome ou se não passava de mais um inútil, como tantos outros.

 

A noite já ia a meio quando Musashi alcançou a localidade pretendida. Pa’gou o condutor, agradeceu-lhe o serviço e completou:

— Podes ir, estás dispensado.

Pretendia afastar-se quando o condutor o deteve: não tinha como retornar de tão longe àquela hora, dizia ele. Preferia passar a noite sob o alpendre da casa que Musashi procurava, e retornar pela manhã, quando talvez conseguisse um passageiro na descida do desfiladeiro de Suzuka. Além disso, acrescentou, não tinha vontade de andar nem um quilômetro a mais nesses ermos, com o frio que fazia.

O homem tinha razão. Afinal, a região em que se encontravam situava-se aos pés das montanhas Iga, Suzuka e Ano e para onde quer que se voltassem avistavam-se apenas montanhas, cujos topos a neve branqueava.

— Estás disposto a procurar a casa comigo?

— A de Baiken-sama?

— Exato.

— Procurarei, como não!

O referido Baiken era, conforme lhe haviam dito, lavrador e ferreiro nesse lugarejo. De dia, achariam a casa facilmente, mas àquela hora da noite não se via nenhuma luz no povoado adormecido.

Um único som — o de um malho[34] socando pano — ecoava a intervalos regulares no gelado céu noturno. Buscando a procedência do som, os dois homens avistaram enfim um ponto de luz.

Por feliz coincidência, a casa de onde provinha o som era a do agricultor e ferreiro Baiken: provava-o a pilha de ferro velho sob o alpendre, assim como o beiral preto de fuligem.

— Bate à porta e confirma para mim — pediu Musashi ao condutor.

— Sim, senhor — respondeu o homem, empurrando a porta e entrando na casa. A porta se abria para um amplo aposento de terra batida. O fogo ardia rubro ao redor da forja, mas não havia ninguém trabalhando nela no momento. E ali estava uma mulher, de costas para o fogo, entretida em malhar um pedaço de pano.

— Boas-noites! Com sua licença, faz o favor! Ah... que belo fogo! Isto é irresistível!

Ao ver que um desconhecido lhe entrava porta adentro e se agarrava à beira da forja, a mulher parou de malhar e indagou:

— De onde és tu, homem?

— Já vou explicar, senhora. Sou condutor de cavalos, e venho de Kuwana. A verdade é que acabo de chegar trazendo uma pessoa que vem de muito longe, dona, só para ver seu marido.

— Ora essa — resmungou a mulher, erguendo a cabeça e fixando em Musashi um olhar pouco amigável. O cenho franzido e a óbvia contrariedade indicavam que ali deviam surgir com freqüência samurais peregrinos e que ela já estava acostumada a lidar com esses tipos incômodos. Devia ter cerca de 30 anos, era de certa forma bonita e disse a Musashi em tom autoritário, como se falasse a uma criança:

— Feche a porta! Não vê que o meu bebê é capaz de se resfriar com o vento frio?

Com uma ligeira mesura, Musashi fechou a porta às costas:

— Sim, senhora.

Sentou-se em seguida num cepo próximo à forja e abrangeu com o olhar a pequena oficina enegrecida pela fuligem, assim como a área habitável da casa, de quase cinco metros quadrados, forrada de esteiras. E lá estavam, realmente, dependurados em ganchos a um canto da parede, cerca de dez exemplares de kusarigama, arma que ele ainda desconhecia.

“São elas!”, pensou Musashi. Seu olhar cintilou, pois o que o trouxera de tão longe até ali fora a certeza de que conhecer tão inusitadas arma e técnica concorreria para o seu adestramento.

Largando o malho de madeira, a mulher levantou-se abruptamente, subiu para a área forrada de esteiras, mas não foi preparar-lhes o chá, como esperavam os dois homens. Em vez disso, mergulhou nos cobertores ali estendidos, no meio dos quais dormia um bebê. Repousou em seguida a cabeça sobre o próprio braço e deu o seio à criança:

— Você aí, samurai. Quer dizer que veio de longe em busca do meu homem só para cuspir sangue? Mas está com sorte, porque meu marido viajou... Acaba de poupar a própria vida!

 

Musashi irritou-se. Será que viera até esses ermos só para ser zombado pela mulher do ferreiro?

É verdade que mulheres em geral tendem a exagerar a importância social de seus maridos. Mas esta, em especial, era um caso sério: acreditava firmemente não existir no mundo homem mais ilustre que o seu.

Discutir com ela estava fora de cogitação. Musashi apenas indagou:

— Viajou? É uma pena. Aonde foi ele?

— Foi ver Arakida-sama.

— Arakida-sama?

— Veio a Ise e nem sabe quem é Arakida-sama? — caçoou a mulher de novo.

A criança ao seio pôs-se a choramingar. De súbito, a mulher pareceu esquecer-se por completo de que havia estranhos no aposento e pôs-se a cantar uma canção de ninar com forte sotaque regional:

Dorme, nenê,

Dorme de uma vez.

Tu que és lindo quando dormes,

Feio ficas ao chorar.

Dorme, dorme,

Não me faças chorar também.

Musashi teve de conformar-se com a situação, já que viera até ali por livre e espontânea vontade. O único consolo era o gostoso calor proveniente do fogo na forja.

— Senhora: essas, na parede, são as correntes usadas por seu marido? — perguntou a certa altura, disposto ao menos a vê-las de perto para futura referência. Pediu permissão para examinar uma delas. A mulher resmungou algo ininteligível entre sonolentos refrões da canção de ninar e concordou vagamente.

— Com sua licença — disse Musashi, estendendo o braço e retirando uma das armas da parede. Tomou-a nas mãos e examinou-a com cuidado.

“Ah, isto é o kusarigama, tão popular nos últimos tempos!”, admirou-se o jovem.

Era um simples bastão medindo pouco mais de 40 centímetros e que podia ser levado à cintura. Numa das pontas havia uma argola e, presa a ela, uma longa corrente. Na extremidade da corrente havia uma bola de ferro que, rodada, servia para atingir um crânio inimigo e arrebentá-lo.

“E daqui sai uma foice!”

Havia uma fenda ao longo do bastão, e embutida nela uma foice, cujo dorso azulado e brilhante era visível. Musashi extraiu-a com a unha. A lâmina armou-se lateralmente, e tinha o comprimento apropriado para decepar cabeças.

“Hum! Isto deve ser usado assim...”

Empunhando a foice com a mão esquerda e segurando com a direita a corrente com a bola de ferro, Musashi posicionou-se contra um inimigo imaginário.

Foi então que, erguendo de súbito a cabeça, a mulher voltou-se e disse:

— Ora, mas que pose horrorosa! — Guardou o seio e desceu ao aposento de terra batida. — Desse jeito, a espada do seu adversário o cortará em dois num piscar de olhos! É assim que se maneja um kusarigama

Arrebatando a arma das mãos de Musashi, a vulgar mulher do camponês ferreiro empunhou-a e imobilizou-se por um breve segundo na posição correta.

Musashi arregalou os olhos e deixou escapar uma exclamação abafada.

Deitada no meio das cobertas, seio à mostra, a mulher mais lembrava uma vaca leiteira, mas ao empunhar o kusarigama e se posicionar para a luta, ela se transformava: seu aspecto agora era magnífico, solene, belo até.

Na lâmina da foice, de um preto azulado que lembrava o dorso de uma cavalinha, via-se nitidamente gravado: Estilo Shishido Yaegaki.

 

No instante em que o olhar de Musashi, atônito, cravou-se no vulto, a mulher do ferreiro desfez a pose, suprimindo do corpo todos os vestígios da forma.

— É isso, mais ou menos — disse ela, enrolando ruidosamente a corrente no bastão e devolvendo o conjunto ao prego na parede.

Musashi lastimou não ter tido tempo para memorizar a pose. “Queria poder observá-la outra vez!”, pensou. A mulher, no entanto, não parecia disposta a uma nova demonstração: recolheu pano e malho, preparou a lenha para a refeição da manhã seguinte e foi arrumar a cozinha, batendo em pratos e panelas.

“Se até a mulher tem tanto preparo, a habilidade do próprio Baiken deve ser extraordinária!”

Ato contínuo, Musashi sentiu-se tomado de uma doentia necessidade de conhecê-lo. Mas a crer no que lhe dizia a mulher, o marido fora visitar um certo Arakida, em Ise.

“Veio a Ise e nem sabe quem é Arakida-sama?”, rira a mulher havia pouco. Pondo de lado o orgulho, Musashi perguntou ao condutor quem era Arakida-sama.

— É o guardião do grande templo xintoísta Daijingu, de Ise — respondeu» o já sonolento condutor, recostado à parede próxima à forja, confortavelmente aquecido.

“Ah, é o supremo sacerdote do Daijingu! Ótimo! Se Baiken está na casa dele, será fácil encontrá-lo”, imaginou de pronto Musashi.

Nessa noite, dormiram sobre esteiras. Mas o sono foi curto pois, bem cedo, um rapaz, o ajudante do ferreiro, acordou e abriu as portas da oficina.

— Já que estás aqui, não queres aproveitar e me levar a Yamada em teu cavalo, condutor? — perguntou Musashi, levantando-se.

— A Yamada? — admirou-se o condutor. Uma vez que recebera na noite anterior os trocados combinados, o homem concordou. E assim, depois de passar por Matsuzaka, lá ia ele outra vez conduzindo Musashi, despontando ao entardecer do mesmo dia pela longa estrada arborizada freqüentada por romeiros, a se estender por quilômetros até o grande templo Daijingu.

As barracas de chá à beira da estrada estavam desertas: o movimento era fraco, mesmo considerando-se que estavam em pleno inverno, estação desfavorável ao turismo. Numerosas árvores haviam sido derrubadas por tempestades e jaziam abandonadas à beira da estrada, e raros eram os viajantes ou o som de relinchos de cavalos.

Da hospedaria em Yamada, onde se recolheu, Musashi mandou um mensageiro à casa do guardião Arakida para saber se ali se hospedava Baiken. Logo, o mensageiro retornou com um bilhete escrito pelo mordomo do guardião dizendo que devia haver algum engano, pois não havia ninguém com esse nome hospedado na casa.

Musashi sentiu-se frustrado, e o pé ferido passou de súbito a incomodar. O inchaço, comparado ao de dois dias atrás, tinha aumentado.

Na hospedaria, recomendaram-lhe lavar o ferimento com a água morna restante da produção de tofu, o queijo de soja. Musashi passou o dia seguinte inteiro repetindo o tratamento.

“E já estamos em meados de dezembro”, pensou Musashi, cada vez mais irritado com o cheiro de tofu na água da tina. A carta de desafio à Casa Yoshioka já tinha sido remetida por mensageiro expresso quando passara por Nagoya. Por nada no mundo poderia, àquela altura, solicitar adiamento do duelo, alegando que tinha ferido o pé.

Tinha de estar sobre a ponte da rua Gojo no primeiro dia do ano de qualquer maneira, pois deixara a cargo do desafiado estabelecer a data do duelo. Além disso, havia também assumido outros compromissos.

“Devia ter seguido direto para Kyoto, sem fazer este desvio por Ise”, arrependia-se Musashi, contemplando o próprio pé de molho na água morna. Aos seus olhos, o pé parecia inchar e crescer como um tofu.

 

Prestimosas, as pessoas da estalagem aconselhavam diversos tratamentos:

— Este remédio caseiro é usado há gerações em minha família.

— Tente tratar com este linimento — diziam-lhe.

Os dias se passavam e o pé inchava cada vez mais, pesando como uma tora. Ao cobri-lo à noite com as cobertas, a febre, e a dor tornavam-se insuportáveis.

Até onde a memória alcançava, Musashi não se lembrava de ter estado de cama sequer por três dias seguidos. Em sua infância, tivera um furúnculo no topo da cabeça numa área que usualmente é raspada por ocasião da maioridade. A ferida lhe deixara uma marca escura no local, razão por que, contrariando usos e costumes, decidira nunca raspar os cabelos. Afora esse episódio, jamais sofrerá de um mal mais sério.

“Doenças são afinal um dos mais temíveis inimigos do homem. Que armas existem para combatê-las?”

Seus inimigos não eram obrigatoriamente externos, pensava Musashi. Meditou sobre o assunto durante os quatro dias em que permaneceu deitado.

“Quantos dias me restam ainda?” Voltou o olhar para o calendário, contou os dias até o final do ano e concluiu: “Não posso continuar nesta inatividade.” O coração passava então a bater rápido contra as costelas, o tórax se expandia e abaulava, rijo como uma armadura, obrigando-o a chutar as cobertas com o pé ferido e a sentar-se de repelão.

“Como vencer a academia Yoshioka se não posso nem dominar este mal?”

Tentou subjugar a infecção sentando-se formalmente sobre as pernas dobradas. Doía! Tanto, que quase desfaleceu.

Musashi cerrou os olhos, o rosto voltado para a janela. As faces rubras aos poucos retomaram a cor normal. Dominado pela vontade férrea, o mal pareceu ceder e a mente clarear.

Abriu os olhos e avistou pela janela, diretamente à frente, as árvores do bosque sagrado ao redor dos templos Geku e Naiku[35]. Sobre elas, a montanha Maeyama e, um pouco mais a leste, a montanha Asamayama. Entre as duas e interligando uma encosta à outra, sobressaía altaneiro um pico que lembrava uma espada, seu topo dominando os das demais montanhas da cadeia.

— O Pico da Águia!

Musashi encarou a formação com olhar feroz. Deitado, ele a havia visto todos os dias da janela do quarto. Não sabia bem por quê, mas o pico lhe espicaçava a combatividade, a vontade de dominar. A arrogância da montanha o irritava, mormente agora que o pé, inchado como uma barrica, tanto o atormentava.

O altivo cume, que se elevava acima das nuvens e das demais montanhas, trazia à mente de Musashi, inevitavelmente, a imagem de Yagyu

Sekishusai. O velho devia ter esse aspecto, imaginava. Aos poucos, a montanha passou a encarnar o próprio Sekishusai, rindo e escarnecendo das fraquezas de Musashi a partir de sua privilegiada posição.

Enquanto desafiava a montanha com o olhar, Musashi havia se esquecido da dor, mas de súbito deu-se conta de que o pé ardia como se o tivesse metido na forja do ferreiro. Com um gemido involuntário, afastou-o para o lado. Franziu o cenho e fitou o tornozelo inchado, grosso, que não lhe parecia pertencer.

— Alguém pode me atender? — gritou de repente, como se quisesse expulsar a dor lancinante.

Como nenhuma das serviçais apareceu de pronto, esmurrou duas ou três vezes o tatami e esbravejou:

— Não tem ninguém nesta casa? Quero partir agora, neste exato momento. Encerrem a conta! Preparem-me um lanche e mais uns três pares de sandálias resistentes!
A FONTE SAGRADA

De acordo com a obra Hogen Monogatari[36], o vilarejo de Furuichi, por onde Musashi passava nesse instante, havia sido o berço de Tairano-Tadakiyo, um bravo guerreiro da Antigüidade. Em pleno período Keicho, no entanto, mulheres das casas de chá espalhadas pela alameda arborizada davam o tom da época ao vilarejo.

As referidas casas de chá eram precárias barracas feitas de estacas de bambu amarradas umas às outras, cercadas por esteiras de palha trançada e vedadas por desbotadas cortinas de enrolar. Quanto às mulheres, usavam pesada maquiagem branca e espalhavam-se pelas ruas, tão numerosas quanto as árvores das alamedas, abordando os transeuntes noite e dia sem cessar:

— Entre um instante.

— Venha tomar um chá.

— Olá, moço!

— Senhores!

Para alcançar o templo Naiku, o viajante é obrigado a caminhar no meio dessas barulhentas mulheres, expondo-se aos seus olhares, cuidando para que elas não lhe batam a carteira. Musashi, que havia deixado para trás a hospedaria de Yamada, passou também entre elas com jeito decidido, cenho e boca franzidos em feia carranca, mancando e arrastando o pé dolorido.

— Alô, samurai peregrino.

— Que houve com seu pé?

— Venha cá que eu cuido dele.

— Faço uma massagem, quer?

As mulheres obstruíam sua passagem, agarravam-no pela manga do quimono, pelo sombreiro, pelo pulso.

— Desmanche essa carranca! Não fica bem num moço tão bonito.

Musashi enrubescia e perdia a fala, totalmente constrangido. Despreparado para enfrentar esse tipo de inimigo, desculpava-se sem cessar provocando o riso das mulheres: suas desculpas eram ingênuas e ele era adorável, tímido e selvagem como um filhote de leopardo, diziam as desavergonhadas. As atrevidas mãos brancas não o largavam. Cada vez mais desconcertado, Musashi pôs de lado o orgulho e fugiu, abandonando o sombreiro.

Tinha a impressão de que o riso das mulheres ecoava sobre a sua cabeça e continuava a acompanhá-lo ao longo da estrada arborizada. Não sabia o que fazer para acalmar as batidas do coração, aceleradas pelo contato das mãos brancas.

Musashi, como qualquer homem normal, não conseguia manter-se impassível perante o sexo oposto, e havia passado por inúmeras situações aflitivas durante suas andanças pelo país. Noites houvera em que mal havia conseguido dormir, obrigado a exercer um violento esforço para conter o sangue tumultuado. Diferente de enfrentar um adversário posicionado além de sua espada, Musashi sentia-se impotente nessas situações: o corpo queimava de desejo, e ele se debatia, insone, valendo-se até de imagens da pura Otsu para satisfazer suas fantasias lascivas.

Por sorte, uma dor inominável o atormentava nessa noite, desviando-lhe a atenção das mulheres. A corrida forçada havia provocado um intenso ardor, semelhante ao de pisar sobre ferro em brasa. A cada passo, a dor lancinante partia da sola do pé, percorria o corpo e lhe varava pelos olhos.

Ele sabia que tinha de enfrentar essa agonia desde o momento em que deixara a hospedaria, e estava preparado. Cada vez que erguia o pé ferido, volumoso como uma barrica, tinha de concentrar toda a força do corpo, mas isso lhe serviu para afugentar da lembrança os lábios vermelhos, as mãos pegajosas como mel e os cabelos perfumados, e para devolvê-lo mais depressa à normalidade.

“Maldição! Maldição!”

Cada passo o levava por um campo de argila fervente. O suor porejava em sua testa. Os ossos do corpo inteiro pareciam desarticular-se.

Contudo, no momento em que cruzou as águas do rio Isuzu e pôs um pé nas terras sagradas do templo Naiku, percebeu uma súbita mudança. A simples visão da relva fê-lo sentir a presença divina. Não sabia a que devia essa impressão, mas até o ruflar das asas de um pássaro tinha uma qualidade extraterrena.

Ao atingir a área do Kazano-miya, o Templo do Vento, Musashi finalmente rendeu-se à dor: com um gemido, desabou sobre a raiz de um grosso cedro e, abraçando a perna inchada, imobilizou-se.

 

Musashi permaneceu longo tempo imóvel. Parecia morto, petrificado. Por dentro, sentia ondas de fogo partindo do pé infeccionado e percorrendo o corpo; por fora, o gelado vento noturno mordia-lhe a pele.

Musashi perdeu a consciência. Para que fora ele chutar as cobertas e abandonar de súbito o quarto da hospedaria? Ele devia saber que agonias o esperavam...

Se partiu porque o irritava esperar indefinidamente o pé sarar — irritação aliás típica dos que se vêem presos à cama — a atitude era absurda, uma violência praticada contra si. Geraria apenas sofrimento, e o quadro tenderia a piorar depois.

Seja como for, ele devia estar muito tenso pois, passados instantes, ergueu a cabeça de repelão e cravou no céu um olhar agudo, feroz.

No amplo espaço negro acima dele, copas de gigantescos cedros do jardim sagrado rugiam incessantemente ao vento. Mas o som que nesse instante feriu seus ouvidos e lhe chamou a atenção foi o de pífaros, flautas e flajolés acompanhando uma melodia antiga.

Apurou os ouvidos e conseguiu discernir delicadas vozes infantis em coro.

Batam palmas, batam palmas,

O meu pai mandou dizer

Para todos: batam palmas!

Se a manga do quimono se rasgou,

Não a quero aproveitada

Nem em obi, nem em faixa.

Palmas, palmas, palmas.

— Maldição! — explodiu Musashi novamente, mordendo os lábios, erguendo-se a custo. Mas o corpo, mole, não lhe obedecia. Agarrou-se com ambas as mãos ao muro do Templo do Vento e arrastou-se lateralmente, como um caranguejo.

A melodia celestial provinha da porta treliçada logo em frente. Uma réstia de luz coava por ela. A casa, conhecida como “Mansão das Crianças”, abrigava graciosas virgens que serviam ao templo Daijingu. Acompanhadas de pífaros e flajolés, as pequenas ensaiavam uma canção, encenando um quadro que com toda a probabilidade vinha se repetindo desde o antigo período Tenpyou (729-749).

O portão a que Musashi chegou rastejando como um inseto era o dos fundos da mansão. Espiou por ele mas não viu ninguém, o que pareceu agradá-lo. Retirou as duas espadas da cintura e a pequena trouxa das costas, amarrou-as num único volume e confiou-as à guarda do templo, dependurando-as num dos muitos ganchos existentes na parede e que sustinham capotes de palha contra chuva e neve.

Mal se viu livre do peso, Musashi levou as mãos aos quadris e afastou-se coxeando.

Algum tempo já se tinha passado quando um homem nu surgiu às margens rochosas do Isuzu a quase um quilômetro dali, quebrou a crosta de gelo superficial e, espadanando ruidosamente, começou a banhar-se nas águas do rio.

Nenhum sacerdote testemunhou a cena, o que foi uma sorte para o homem. Se tivesse sido surpreendido, ele teria ouvido sem dúvida uma ríspida reprimenda:

— Estás louco?

A cena do homem nu banhando-se nas águas geladas do rio pareceria realmente coisa de louco aos olhos de qualquer um. De acordo com um antigo romance, o Taiheiki[37], certa vez, num distante passado, havia vivido nas imediações de Ise um arqueiro de nome Nikki Yoshi-naga. O homem — um tolo baderneiro, segundo o livro — invadiu as sagradas terras do templo e profanou-as: pescou os peixes do rio Isuzu, falcoou os pássaros do monte Kamiji, assou-os e comeu-os. E enquanto assim agia, exaltando a força guerreira bruta, aos poucos foi sendo tomado de loucura. Pois o espírito desse guerreiro louco parecia ter-se apossado do banhista noturno.

Passados instantes, o homem saiu da água e como um pássaro aquático subiu numa rocha, enxugou-se e se vestiu. O homem era Musashi.

Os cabelos das têmporas estavam congelados e eriçavam-se, fio a fio, como agulhas.

 

De que jeito venceria seus adversários daqui para a frente se não conseguia sequer superar este sofrimento físico? — admoestava-se Musashi duramente. Dentro de alguns dias, aliás, teria de se bater contra um poderoso adversário: Yoshioka Seijuro e seus discípulos.

A situação entre ele e os Yoshioka havia-se tornado complexa, mortal. Desta vez, seus adversários fariam questão de jogar contra ele toda a competência e o prestígio da academia. Com toda a certeza eles já haviam montado uma estratégia mortífera, e esperavam impacientes pelo dia do confronto.

Musashi considerava simples jogo de palavras destituído de sentido certas expressões como “lutar com unhas e dentes” e “estar pronto para morrer” que alguns samurais bravateiros usavam com a mesma facilidade com que invocavam seus santos. Musashi achava que qualquer guerreiro, ao se ver numa situação igual à sua, tinha de “lutar com unhas e dentes”: isso não passava de uma reação instintiva, comum a todos os animais. Quanto a “estar pronto para morrer”, subentendia-se um preparo espiritual mais elevado, é verdade, mas ainda assim nada extraordinário numa situação em que a morte fosse inevitável.

Seu problema era vencer, e não estar ou não “pronto para morrer”. Queria de algum modo conseguir a firme crença de que ia vencer.

A distância física que o separava de seus inimigos não era grande: cerca de 160 quilômetros. Se andasse rápido, alcançaria Kyoto em menos de três dias. Mas o preparo espiritual, este não podia ser alcançado num prazo preestabelecido de dias.

A carta de desafio para os Yoshioka já tinha sido remetida de Nagoya, mas Musashi vinha-se perguntando nos últimos dias:

“Estou pronto para a luta? Tenho certeza de vencer?”

Reconheceu então, com pesar, que havia em seu espírito uma ponta de insegurança, decorrente da admissão do próprio despreparo. Musashi sabia perfeitamente que lhe faltava amadurecer, que não pertencia ainda ao círculo dos peritos ou à categoria dos grandes mestres.

Üe nada adiantava tentar valorizar-se, pois logo lhe vinham à mente Nikkan, do templo Ozoin, ou as imagens de Yagyu Sekishusai e do excepcional monge Takuan, a mostrar-lhe o próprio despreparo e fraqueza, a obrigá-lo a rever por completo o conceito que fazia de si próprio.

E imaturo e despreparado como se sentia, tinha de adentrar um terreno dominado por hábeis e letais guerreiros. E vencer. Pois por mais bravamente que lutasse, lutar apenas não fazia dele um bom guerreiro. Para poder enquadrar-se na definição original de guerreiro, tinha de vencer! Vencer, vencer sempre até o fim da vida que lhe fora reservada e deixar vigorosas marcas de sua passagem pelo mundo. Só assim diriam que vivera em toda a plenitude a vida de um guerreiro.

Musashi estremeceu.

— Eu vou vencer! — gritou, começando a caminhar pelo bosque sagrado, rumo à nascente do rio Isuzu.

Como um primitivo habitante das cavernas, Musashi avançou rastejando pela áspera superfície de rochas sobrepostas. Na milenar floresta da ravina, que machado algum jamais tocara, uma cascata emudecera: suas águas tinham-se imobilizado em plena queda, transformadas em colunas e pingentes de gelo.

 

Aonde ia Musashi à custa de tanto esforço, e com que objetivo?

Talvez tivesse realmente enlouquecido — castigo divino por ter-se banhado nas águas sagradas do rio Isuzu, profanando-as. Seu rosto contorcia-se de forma diabólica enquanto murmurava:

— Eu consigo! Eu consigo!

Só mesmo uma vontade férrea era capaz de levar um indivíduo a galgar rochedos agarrado a ramos de glicínias e vencer passo a passo gigantescas rochas e pedras. Musashi tinha de ter um objetivo específico em mente para justificar tanto esforço, porque aqueles com certeza não eram atos de um homem normal.

Além do passo Ichinose, nem mesmo um ayu — vigoroso peixe capaz de enfrentar fortes correntezas na piracema — é capaz de subir o rio Isuzu. O trecho rochoso de quase um quilômetro é escarpado, com violentas corredeiras. Depois do passo, havia apenas um íngreme paredão de rocha, por onde só macacos e tengu, os duendes das florestas, ousariam passar.

— Ali está o Pico da Águia! — murmurou Musashi. Obstáculos intransponíveis pareciam não existir em seu atual estado de espírito.

Ao que tudo indicava, o jovem havia largado na Mansão das Crianças as duas espadas porque já pensava em escalar esse paredão. E ali estava ele, galgando-o centímetro a centímetro, agarrando-se a delgados ramos de glicínias. Sua força parecia sobrenatural. Algo semelhante a uma força gravitacional exercida a partir do espaço parecia sugá-lo da face da terra.

E pouco depois, em pé sobre o paredão finalmente conquistado, Musashi soltou um grito triunfante.

Daquele ponto, já conseguia avistar à distância, muito abaixo, as águas leitosas do rio Isuzu, assim como toda a orla marítima de Futamigaura.

Musashi voltou o olhar penetrante em direção ao Pico da Águia, em cuja base havia urna floresta rala, envolta em fina névoa noturna. Agora ele tinha conseguido aproximar-se muito mais do irritante pico, avistado todos os dias do quarto da hospedaria entre gemidos de dor.

— Este pico é Sekishusai! — exclamou convicto.

E era essa convicção que o havia arrastado até ali. O olhar fulgurante revelava enfim a razão da sua abrupta partida da hospedaria, do banho no rio sagrado e desta escalada. Tudo levava a crer que Musashi sentia o grande mestre Yagyu Sekishusai como uma incômoda presença a pairar continuamente sobre ele, uma sombra a lhe empanar o espírito, combativo como poucos.

Eis por que a altiva montanha lhe havia lembrado Sekishusai, e por que o irritara tanto sentir-se contemplado por ela.

— Detesto essa montanha! — havia pensado Musashi sem cessar.

Ao mesmo tempo, imaginara que alívio não sentiria se pudesse galgar de mãos nuas a montanha, pisar o cume com os pés sujos, e gritar: “E agora, que me diz, Sekishusai!” Além disso, precisava superar este desafio e restabelecer a confiança em si se esperava entrar em Kyoto e vencer o clã Yoshioka.

Relva, árvores ou gelo — tudo o que seus pés pisavam representava, sem exceção, inimigos vencidos. Cada passo levava-o para mais perto da definição final — a vitória ou a derrota. O sangue, que gelara durante o banho no rio sagrado, fervia agora, e o suor evaporava por todos os poros.

Musashi agarrou-se à áspera superfície do Pico da Águia: estava agora numa área à qual nem ascetas conseguiam chegar. Tateava em busca de pontos de apoio e a cada vez que seus pés se firmavam na superfície rochosa, pedregulhos dela se desprendiam e caíam, ressoando no bosque abaixo.

De metro em metro Musashi distanciava-se da terra, e seu tamanho aos poucos diminuía. Nuvens brancas surgiam, envolviam-no, e quando se dissipavam, o vulto havia ascendido um pouco mais, cada vez mais perto do céu.

O pico, um gigante, apenas observava, indiferente, seus movimentos.

 

Como um caranguejo colado à rocha, Musashi se agarrava à superfície da montanha: oito décimos da encosta já tinham sido vencidos.

Um movimento em falso, e ele despencaria vertiginosamente com os pedregulhos, em queda livre até o fundo do precipício.

Musashi respirava por todos os poros. O esforço até ali fora excruciante e o coração parecia prestes a saltar pela boca. Galgava alguns poucos centímetros e logo parava para descansar. Voltava-se então, quase sem querer, para observar o trecho vencido.

O bosque do milenar jardim sagrado, a fita prateada do rio Isuzu, os cumes dos montes Kamiji, Asama e Maeyama, assim como Toba, a aldeia de pescadores, e o mar ao longo da costa de Ise — tudo se estendia agora a seus pés.

— Nove décimos vencidos!

Morno e acre, Musashi sentiu o cheiro do próprio suor chegar-lhe às narinas vindo das dobras do quimono. De súbito, teve a inebriante sensação de haver mergulhado o rosto entre os seios maternos, ao mesmo tempo em que a áspera superfície da rocha lhe pareceu uma extensão da própria pele. Uma irresistível vontade de dormir o invadiu.

Um rascar metálico — e a rocha, no ponto em que apoiava o polegar de um dos pés, esfarelou-se e ruiu. A vida, latente em meio à letargia, manifestou-se de súbito com um pulsar mais forte: automaticamente o pé procurou um novo ponto de apoio. O esforço final era extenuante, inexprimível em palavras. Assemelhava-se ao do esgrimista tentando dar o decisivo golpe final contra um adversário do mesmo nível.

— É agora! Estou quase lá!

Musashi tornou a se mover, dilacerando a superfície rochosa com mãos e pés. Se não tinha força física e espiritual para vencer este obstáculo, cedo ou tarde seria derrotado por outro guerreiro, isso era uma certeza.

— Maldita montanha!

O suor molhava a rocha, quase levando-o a escorregar em diversas ocasiões. Seu corpo fumegava e o fazia assemelhar-se a um floco de nuvem. Repetia sem cessar, como numa fórmula mágica:

— Maldito Sekishusai! Maldito Nikkan, maldito Takuan!

Passo a passo, continuou a galgar, sempre imaginando pisar a cabeça de gente que vinha considerando superior a ele nos últimos tempos. A montanha e ele já constituíam um único ser. A montanha por perto se espantava por se ver tão firmemente agarrada. E então, repentinamente, o pico uivou, jogando areia grossa e pedregulhos contra o rosto de Musashi.

Uma enorme mão pareceu tapar-lhe a boca, asfixiando-o. Apesar de agarrado à rocha, sentiu que o vento ameaçava arrastá-lo com incrível força. Musashi cerrou os olhos e permaneceu de bruços, imóvel por algum tempo.

Não obstante, uma canção triunfal se elevava do seu coração. Pois no instante em que se jogara de bruços, Musashi havia vislumbrado o infinito, o mundo das Dez Regiões. Além do mais, ele também tinha visto que a noite lentamente se retraía e a aurora se anunciava em suaves cores no imenso oceano de nuvens que o rodeava.

— Venci!!

Como uma corda excessivamente retesada, a férrea vontade de Musashi tinha-se partido no momento em que havia pisado o cume da montanha e que desabara. Incessante, o vento soprava pedregulhos sobre suas costas.

Caído de bruços, o espírito vagando no limiar da consciência, sentiu o corpo inteiro perder peso invadido por uma indescritível sensação de prazer. Molhado de suor e preso à superfície do cume, Musashi experimentou um estranho êxtase — como se ele próprio e a montanha executassem um sublime ritual de procriação em meio ao despertar da natureza — e dormiu por muito tempo.

De súbito, ergueu a cabeça sobressaltado. A mente era um cristal, límpido, transparente. Sentiu vontade de mover o corpo, saltitar como um peixe no meio da correnteza.

— Não existe mais nada sobre mim! Estou em cima do Pico da Águia! O sol matinal, deslumbrante, coloria o pico e o próprio Musashi. Ele

ergueu para o alto os dois braços, musculosos como os de um homem primitivo, e contemplou os próprios pés, assegurando-se de que pisavam efetivamente o cume da montanha.

E foi então que se deu conta: um líquido esverdeado — pus em quantidade suficiente para encher um copo — havia escorrido do pé sobre a rocha, liberando no límpido ambiente um estranho odor humano e a leve fragrância de um espírito afinal liberto de toda a angústia.

 

A MIRAGEM

As pequenas xamãs que viviam na Mansão das Crianças eram naturalmente todas virgens. As mais novas teriam seus 13 ou 14 anos, mas havia também algumas mais velhas, de quase 20 anos.

As roupas formais — quimono de seda branca forrado, e hakama vermelho — eram usadas durante as cerimônias musicais, ou kagura. Para as atividades normais do dia a dia, como estudar ou arrumar a casa, as xamãs usavam folgados hakama de algodão vermelho sobre quimonos de manga curta. Terminadas as tarefas matinais, as meninas costumavam carregar seus respectivos livros e dirigir-se à sala de estudos do sacerdote xintoísta Arakida para as aulas de língua pátria e poesia.

— Oh, que será isso? — espantou-se uma menina no meio do grupo que passava pelo portão dos fundos rumo à sala de aula. De um gancho na parede destinado a capas de palha pendiam as duas espadas e a pequena trouxa que Musashi ali havia deixado na noite anterior.

— De quem é isto?

— Como vou saber?

— É de algum osamurai-sama, com certeza.

— Até aí eu também sei. Mas quem seria esse samurai?

— Eu acho que foi um ladrão! Ele deve ter roubado essas coisas e as esqueceu aí!

— Credo! Melhor nem mexer.

Agrupadas em torno do volume, entreolhavam-se arregalando os olhos, assustadas como se tivessem surpreendido o próprio ladrão, enrolado em peles e tirando a sesta em pleno dia.

Não demorou muito, e uma das meninas propôs:

— Vamos avisar Otsu-sama!

Correu para dentro da casa e gritou pela grade da varanda:

— Mestra, venha ver uma coisa! Rápido!

Otsu largou o pincel sobre a escrivaninha, abriu a janela do aposento na ala dos hóspedes e espiou:

— Que foi?

— Um ladrão largou duas espadas e uma trouxa ali — apontou a pequena xamã.

— Entreguem tudo a Arakida-sama.

— Mas a gente está com medo de mexer naquelas coisas.

— Nossa, que confusão vocês estão fazendo! Se estão com medo, deixem as coisas aí mesmo que eu as apanho mais tarde e as levo a Arakida-sama. E vocês, não percam tempo com bobagens e sigam de uma vez para a sala de aula.

Instantes depois, quando Otsu saiu de seu quarto, não viu mais ninguém nas proximidades: as obedientes meninas já tinham desaparecido. Na mansão subitamente silenciosa haviam ficado apenas uma mulher idosa, encarregada das tarefas domésticas, e uma pequena xamã doente, descansando num dos aposentos.

— Não tem idéia de quem seja o dono destas coisas, vovozinha? — perguntou Otsu antes de retirar do gancho as armas e a trouxa.

O fardo pesava como chumbo e Otsu, desprevenida, quase o deixou cair. “Como conseguiam os homens andar com naturalidade levando objetos tão pesados à cintura?”, perguntou-se Otsu.

— Vou até os aposentos de Arakida-sama — avisou Otsu à velha serva, e saiu carregando o pesado embrulho com ambas as mãos.

Dois meses já se haviam passado desde que Otsu e Joutaro tinham sido acolhidos no templo Daijingu, de Ise. Depois dos últimos acontecimentos, os dois haviam percorrido as estradas de Iga, Oumi e Mino procurando desesperadamente por Musashi. Com a chegada do inverno, Otsu percebeu que não suportaria os rigores de uma jornada por estradas serranas cobertas de neve e decidiu parar na região de Toba. Para prover o próprio sustento, a jovem dava aulas de flauta nessa localidade quando notícias sobre sua pessoa chegaram aos ouvidos do sacerdote xintoísta Arakida, que a convidou então a ensinar sua arte às pequenas virgens da Mansão das Crianças.

Otsu aceitou sem restrições o convite, atraída pela oportunidade de conhecer as antigas melodias tradicionalmente executadas no templo Daijingu, assim como pela idéia de conviver por algum tempo com as pequenas virgens na floresta sagrada.

Nessa altura, Joutaro transformou-se numa inconveniência: por ser menino, ele não podia hospedar-se na mansão das pequenas xamãs. Como não havia outra solução, encarregaram-no então de ajudar na manutenção do jardim sagrado durante o dia, instruindo-o a se recolher à noite ao depósito de lenha do sacerdote Arakida para dormir.

 

Na fria manhã de inverno, as árvores nuas do bosque sagrado gemiam ao vento e o som era quase sobrenatural.

Um fio de fumo — a própria fumaça lembrando algo místico, da idade dos deuses — subia no meio do bosque ralo. Na origem da fumaça devia estar Joutaro, empunhando uma vassoura junto a um monte de folhas secas. Otsu parou por instantes e pensou:

“Ele está trabalhando ali.”

Sorriu ao pensar em Joutaro.

O diabrete!... O pequeno traquinas!...

Até que o garoto vinha-se comportando bem nos últimos tempos, obedecendo às suas ordens e trabalhando em vez de brincar, pensou Otsu.

Em algum lugar ecoavam estampidos secos — como se alguém estivesse quebrando galhos. Apesar do pesado volume nos braços, Otsu enveredou por uma trilha no bosque, chamando:

— Jouta-saaan!

A resposta, viva como sempre, soou ao longe:

— Eeeei!

Logo, passos aproximaram-se correndo, e em seguida o próprio Joutaro lhe surgiu à frente:

— Olá, Otsu-san!

— Que é isso? Você não devia estar trabalhando na manutenção do jardim? Como pode andar por aí com essa espada na mão se é um servidor do templo, de uniforme branco e tudo?

— Eu só estava treinando um pouco! Praticava sozinho contra as árvores.

— Pode treinar quanto quiser, mas em outro lugar! Onde você pensa que está? Este é o nosso jardim espiritual, é a expressão da pureza e da harmonia espiritual da nossa gente. Estas terras são sagradas, pertencem à deusa-mãe da nação japonesa. Você leu os avisos espalhados por aí, não leu? Eles dizem: “Não quebre as árvores do jardim sagrado.” “É expressamente proibido matar pássaros e animais”. E justo você, o encarregado da manutenção deste jardim, não devia andar por aí quebrando galhos com uma espada!

— Sei disso! — replicou Joutaro. O olhar petulante acrescentava: pensa que sou bobo?

— Sabe e continua fazendo? Se Arakida-sama o vê, é sermão na certa.

— Mas eu estou quebrando galhos de árvores mortas! Ou será que nem essas posso quebrar?

— Não pode.

— Que conversa boba é essa? Deixe-me então perguntar-lhe uma coisa, Otsu-san!

— Diga.

— Se este jardim é tão precioso, como você diz, por que é que o povo não cuida melhor dele, hein?

— É uma vergonha, concordo. E como deixar que ervas daninhas tomem conta de nosso espírito.

— Antes fossem só ervas daninhas! Olhe só essas árvores secas, atingidas por raios! Além delas, outras dezenas foram derrubadas por tempestades e apodrecem com as raízes expostas. Pelo jeito, tem beirais quebrados e goteiras em diversos santuários, resultantes das bicadas dos pássaros; e tem também lanternas de pedra fora do prumo nos jardins. E aí, pergunto eu: como é que isso pode acontecer num jardim tão precioso, hein, Otsu-san? Enquanto isto aqui permanece abandonado, o palácio de Osaka resplandece, todo dourado! E dizem por aí que Tokugawa Ieyasu está mandando reconstruir ultimamente mais de dez castelos em diversas províncias, a começar pelo de Fushimi. Enquanto as mansões dos daimyo e ricaços de Kyoto e Osaka chegam a brilhar de limpeza, este jardim continua em estado precário! Nos jardins desses ricaços — em “estilo Rikyu”, ou “estilo Enshu”, ou sei lá mais o quê — não se vê nenhum cisco, porque isso pode arruinar o “sabor do chá”, dizem eles. Você tem idéia de quantas pessoas trabalham na conservação desta enorme propriedade sagrada? Três a quatro homens, incluindo eu e um velhinho surdo!

 

Com um súbito encolher de ombros Otsu conteve o riso e disse:

— Mas você está repetindo textualmente o sermão que Arakida-sama fez há alguns dias, Jouta-san!

— Ah... Você esteve lá também?

— Claro que estive.

— Hum, bem acho que você me pegou!

— Você não entende nada do assunto e é feio repetir a opinião dos outros finjindo que são suas, Jouta-san. Mas voltando ao que comentávamos, acho que Arakida-sama tem toda a razão de se enfurecer com o que acontece por aqui.

— É isso! Depois de ouvir o sermão de Arakada-sama, comecei a achar que Nobunaga, Hideyoshi e Ieyasu não são grandes homens coisa nenhuma. Talvez até sejam, mas não é nada bonito dominar o país e depois posar de único herói todo poderoso.

— Nobunaga e Hideyoshi ainda passam: apesar de tudo, providenciaram a construção do palácio imperial de Kyoto e, de um modo geral, preocuparam-se com a felicidade do povo, embora eu desconfie que tenham feito tudo isso não por clarividência, mas porque queriam justificar-se aos olhos do povo. Muito pior foram as administrações dos xoguns Ashikaga, nos períodos Eikyou (1429-1441) e Bunmei (1469-1487).

— É mesmo? Como assim?

— Nesse período aconteceu a revolta de Ounin (1467-1477).

— Ah, sei.

— Por causa da incompetência dos xogum Ashikaga, o país se viu convulsionado por constantes lutas internas. Numa época em que poderosos lutavam contra poderosos, tentando impor-se pela força, o povo não conseguia gozar um dia sequer de paz e é claro que não havia quem se preocupasse seriamente com os rumos do país.

— Você está falando da briga que envolveu as casas Yamana e Hoso-kawa, não está?

— Isso mesmo. Guerras eclodiam porque todos pensavam apenas em defender seus próprios interesses. Esse foi um período negro, em que interesses mesquinhos alimentaram conflitos. E nesse período conturbado, um certo Arakida Ujitsune — ancestral do atual Arakida-sama — ocupava o cargo de sacerdote-mor do templo de Ise, como vinham fazendo sucessivas gerações de sua família. Cansado de ver, desde a época da revolta de Ounin, que antigos ritos assim como o serviço divino caíam no esquecimento porque todos estavam ocupados em defender os próprios interesses, o sacerdote Arakida Ujitsune solicitou às autoridades inúmeras vezes — 27 ao todo, para sermos exatos — verba para recuperar este jardim em ruínas. Mas a corte se esquivava, o xogunato não tinha recursos e os gananciosos guerreiros estavam empenhados apenas em disputas territoriais. Ninguém queria ajudar. Em meio a tudo isso, Ujitsune-sama, lutando contra os poderosos da época e a falta de recursos, convenceu diversas personalidades a aderirem à sua causa. E finalmente, no ano VI do período Meiou (1492-1501), conseguiu verba para reformar o templo[38]. Não é de pasmar que ele tenha tido de lutar tanto?

Mas, pensando bem, todos nós tendemos a esquecer a importância de certos valores: quem, depois de adulto, se lembra por exemplo que deve seu crescimento ao leite materno?

Joutaro deixou Otsu terminar o seu emocionado discurso e então saltou, bateu palmas e riu:

— Ah, peguei você! Peguei você! Estou aqui calado, fingindo que não sei de nada, só para ver você também se fazendo de entendida e repetindo tintim por tintim o sermão de Arakida-sama!

— Ora essa! Você também tinha ouvido este sermão, pestinha? — disse Otsu, movendo a mão como se fosse bater em Joutaro, mas vendo-se tolhida pelas pesadas armas que carregava. Aproximou-se então um passo do menino e o olhou com fingida zanga.

— Ué?! — exclamou Joutaro, chegando-se ainda mais. — De quem são essas espadas, Otsu-san?

— Não sei de quem são. Não mexa nelas!

— Deixe-me ao menos ver de perto: prometo que não as toco. Nossa, como são grandes! Parecem pesadas!

— Está vendo? Seus olhos já estão brilhando de cobiça!

 

Um ruído apressado de sandálias aproximou-se às costas dos dois: era uma das pequenas xamãs que, havia pouco, tinha saído da Mansão para estudar com o sacerdote Arakida.

— Mestra! O sacerdote a está chamando. Disse que quer lhe pedir um favor — anunciou. Ao ver que Otsu a tinha ouvido e se voltava, a pequena retornou às carreiras por onde viera.

Joutaro aprumou-se de repente e passeou o olhar inquieto pelas árvores próximas.

O sol de inverno coava por entre folhas agitadas pelo vento, produzindo trêmulas ondas luminosas no chão. Joutaro imobilizou-se no meio das manchas irrequietas. Seu olhar parecia perseguir uma miragem.

— Que foi? Que procura, Jouta-san?

— Nada... — respondeu Joutaro, triste, mordendo a ponta do dedo. — Há pouco, quando aquela menina disse “Mestra!”, me lembrei de repente... Foi um choque!

— Lembrou-se de Musashi-sama?

— Hum? Hu-hum! — grunhiu Joutaro vagamente.

No mesmo instante Otsu sentiu um bolo quente lhe chegando aos olhos e ao nariz, dando-lhe vontade de soluçar.

“Para que você foi me lembrar?”, queria gritar Otsu, ressentida com Joutaro por sua observação impensada.

Não conseguir passar um dia sequer sem pensar em Musashi já era uma carga pesada demais para Otsu. Mas então, por que não se desfazia desse peso incômodo e não procurava estabelecer-se num lugar tranqüilo, não procurava casar-se e constituir família?, logo diria o monge Takuan, o insensível. Otsu era capaz de sentir pena do pobre monge zen budista por ele jamais ter conhecido o amor, mas nunca, nem em sonhos, seria capaz de abrir mão daquilo que sentia nesse exato instante.

O amor era como uma cárie: doía de modo insuportável. Quando absorta em alguma tarefa, Otsu conseguia esquecê-lo e agir normalmente. Mas quando se lembrava, a dor a espicaçava, obrigando-a a vagar a esmo por províncias e estradas desconhecidas em busca de Musashi, sentindo uma vontade louca de enterrar o rosto em seu peito largo e chorar.

— Ai!...

Otsu começou a andar, silenciosa. Onde, onde, onde andaria ele? Das agonias experimentadas por um ser humano durante a vida, nenhuma é mais exasperante, depressiva e ao mesmo tempo tão sem remédio do que a de procurar alguém em vão.

Uma lágrima escorreu pelo rosto de Otsu enquanto andava, mãos cruzadas sobre o próprio peito. Entre as mãos e o peito aninhava-se uma trouxa que exalava um cheiro acre e um par de espadas, de empunhaduras cobertas por fios gastos, quase podres.

Mas Otsu não sabia, não podia imaginar que o suor e a sujeira impregnados nesses objetos provinham do corpo de Musashi. O coração inteiramente tomado pela imagem do jovem, Otsu quase nem se lembrava que os levava ao colo, exceto pela sensação de peso.

— Otsu-san! — disse Joutaro às suas costas, seguindo-a com expressão contrita. Deu um salto e agarrou-lhe a manga no instante em que a triste jovem ia desaparecendo no interior da mansão do sacerdote Arakida.

— Você se zangou, Otsu-san? Está sentida comigo?

— Não... Não se preocupe...

— Desculpe. Me desculpe, está bem?

— Não é culpa sua, Jouta-san. Eu é que sou chorona. Agora, tenho de entrar para saber o que Arakida-sama quer de mim. Quanto a você, volte para o jardim e trabalhe direitinho, ouviu?

 

O sacerdote Arakida Ujitomi tinha transformado sua mansão em escola e a denominava Casa do Saber. Com ele estudavam as pequenas xamãs e mais quase 60 crianças de vários níveis sociais provenientes dos três distritos que compunham as terras sagradas.

Ujitomi ministrava o estudo dos clássicos às suas pequenas alunas, matéria não muito popular nesses dias, tanto mais desprezada quanto mais elevado o nível cultural de um centro urbano.

De um ponto de vista puramente local, era bastante apropriado que Ise, com seus templos e bosques sagrados ricos de tradição, desse a conhecer os clássicos às meninas ali nascidas, pensava Ujitomi. De um ponto de vista mais amplo, que englobava o país, Ujitomi julgava estar plantando, com suas aulas, sementes culturais no espírito do povo, rezando para que num futuro próximo delas brotasse, verdejante como os bosques do templo, um novo jeito de pensar, diferente do predominante no momento, em que todos exaltavam a classe guerreira, tendendo a confundir sua grandeza com a do próprio país, esquecidos de que deixando degradar o campo contribuíam para o declínio desse mesmo país. Esse era um tocante empreendimento privado do sacerdote.

Assim, Ujitomi explicava diariamente às suas crianças, com infinitos amor e paciência, complexas obras como Kojiki — histórias e lendas do Japão Antigo — e as obras clássicas do confucionismo chinês, adaptando-as aos ouvidos infantis.

E talvez os incansáveis esforços educativos empreendidos por Ujitomi ao longo dos últimos dez anos tivessem frutificado, pois ao contrário do povo das demais províncias, todos em Ise — até mesmo uma criança de três anos — tinham senso crítico suficiente para não serem ofuscados pelos feitos do kanpaku Toyotomi Hideyoshi, nem pela exibição de força de Tokugawa Ieyasu, jamais confundindo o brilho dessas estrelas guerreiras com o verdadeiro esplendor do sol.

Nesse instante, Ujitomi saiu da ampla sala de estudos da Casa do Saber com o rosto ligeiramente suado.

Finda a aula, suas alunas dispersavam-se como um bando de abelhas de volta às colméias, mas uma delas parou ao seu lado e observou:

— Sacerdote, Otsu-sama o espera lá fora.

— É verdade! — exclamou Ujitomi. — Como fui me esquecer? Onde está ela?

Em pé do lado de fora da sala de aula, Otsu, ainda carregando as duas espadas, estivera havia algum tempo ouvindo a ardente exposição que Ujitomi fizera às crianças.

— Estou aqui, Arakida-sama. Desejava falar comigo?

 

— Desculpe-me se a fiz esperar. Venha cá, entre.

Ujitomi conduziu-a aos seus aposentos, mas antes ainda de se sentar, fitou admirado as espadas que Otsu carregava e indagou:

— Que é isso?

Otsu explicou-lhe que, de manhã, as duas espadas de procedência desconhecida pendiam de um suporte para capas de chuva no interior da Mansão das Crianças e que as pequenas xamãs haviam ficado horrorizadas, razão por que ela própria as havia trazido até ali.

— Ora essa! — exclamou Arakida Ujitomi, juntando as sobrancelhas brancas e contemplando os objetos com estranheza. — Não são de nenhum dos nossos devotos, são?

— Por que motivo um devoto iria até lá? De mais a mais, não havia nada no local até ontem à noite, donde se conclui que essa pessoa deve ter entrado na mansão tarde da noite ou durante a madrugada, horário improvável para a visita de um devoto.

— Sei — murmurou Ujitomi aborrecido, franzindo o cenho. — Acho que alguém, talvez um proprietário rural descontente, fez esta brincadeira de mau gosto com a intenção de me dar a conhecer seu descontentamento.

— Alguém em particular?

— Sim. Na verdade, foi para falar sobre isso que mandei chamá-la.

— Quer dizer que o descontentamento relaciona-se à minha pessoa?

— Não vá agora se ofender com o que vou lhe dizer, Otsu-san, mas... E o seguinte: certo goushi destas terras se diz contrário a que você permaneça na Mansão das Crianças e, tão preocupado está com a minha reputação, que me vem advertindo com muita rispidez.

— Ele o está agredindo por minha causa?

— Espere um pouco, também não precisa ficar tão abalada. É que, aos olhos do povo — não vá se ofender, Otsu-san... — você já não deve ser virgem; e permitir a permanência de uma mulher maculada na Mansão das Crianças seria o mesmo que profanar as terras sagradas do templo. É assim que pensam.

Ujitomi falava serenamente, mas os olhos da jovem logo se encheram de lágrimas de humilhação. Ela se sentia exasperada por não poder, aos gritos, lançar contra uma pessoa específica a sua revolta. Por outro lado, reconhecia que o povo talvez tivesse razão em pensar desse modo, já que ela era uma mulher vivida e viajada, temperada no convívio com estranhos, uma nômade a vagar pelo mundo carregando no coração um amor velho, entranhado como o pó de muitos anos... Apesar de tudo, ela era virgem, se sentia insultada e tremia de indignação por duvidarem disso.

Ujitomi parecia não estar dando importância à questão, mas também não podia ignorar a opinião pública. E uma vez que a primavera se aproximava, o sacerdote comunicava à jovem que as aulas de flauta estavam suspensas e lhe pedia para abandonar a Mansão das Crianças.

Otsu concordou imediatamente, pois nunca tivera a intenção de prolongar sua estada no templo, muito menos agora, que sabia estar trazendo aborrecimentos ao sacerdote. Agradeceu portanto os pouco mais de dois meses de hospitalidade e lhe disse que se punha a caminho nesse mesmo dia. A isso, Ujitomi replicou:

— Também não precisa partir com tanta pressa.

Apesar de tudo o que dissera, Ujitomi sentia muita pena da jovem, de cujo passado se havia inteirado em linhas gerais. Sem saber como consolá-la e perdido em pensamentos, aproximou de si uma pequena caixa de aspecto despojado, retirou algo de dentro e o embrulhou num pedaço de papel.

Nesse instante, Joutaro — a sombra constante de Otsu —, que se havia aproximado da varanda sem ser notado e parará às costas da jovem, espichou o pescoço e sussurrou:

— Vai partir de Ise, Otsu-san? Vou com você, não se preocupe. Já não era sem tempo: trabalhar na conservação do jardim estava começando a me cansar. Não fique triste, Otsu-san, partimos em boa hora.

 

— É pouco, mas prova a minha gratidão. Aceite e use este dinheiro para pagar as despesas de viagem — disse Ujitomi, entregando à jovem uma quantia modesta retirada do magro cofre.

Otsu nem sequer tocou no dinheiro, a expressão do rosto dizendo claramente que considerava um absurdo ser paga. Dera aulas às pequenas virgens da Mansão das Crianças, era verdade, mas em troca o templo a acolhera e a sustentara por mais de dois meses. Se era para aceitar o dinheiro, ela também teria de pagar por sua estada, argumentou Otsu. A isso Ujitomi respondeu:

— Pois em vez disso, quero que me faça um favor, quando passar por Kyoto.

— Farei o que quiser, mas não aceito o dinheiro: a sua intenção para mim vale mais que qualquer pagamento — replicou Otsu decidida, devolvendo o pequeno embrulho. Ujitomi então olhou para Joutaro, às costas da jovem:

— Hum...Você então, garoto: vou dar isto a você. Gaste-o no que quiser durante a viagem.

— Muito obrigado! — disse Joutaro, estendendo a mão de imediato e apanhando o pequeno embrulho. Só então voltou-se para Otsu e procurou sua aprovação:

— Posso ficar com isso, não posso, Otsu-san?

Uma vez que o menino já se apossara do dinheiro, a jovem pôde apenas agradecer, constrangida:

— Agradeço, em nome do menino. Satisfeito enfim, Ujitomi disse:

— O favor a que me referi há pouco é o seguinte: gostaria que me entregassem isto na residência de lorde Karasumaru Mitsuhiro, em Horikawa, quando vocês passarem por Kyoto.

Assim dizendo, o idoso sacerdote retirou de uma prateleira na parede dois rolos de papel.

— Isto é o fruto do meu modesto trabalho. Nestes rolos pintei gravuras que me foram encomendadas por lorde Mitsuhiro há quase dois anos. Eu as terminei há apenas alguns dias. Sei que o lorde pretende dá-las de presente ao Imperador depois de lhes acrescentar notas explicativas de seu próprio punho. Eis por que não me sinto bem mandando-as por mensageiros ou estafetas. Será que vocês não poderiam encarregar-se de levá-las com todo o cuidado, não deixando que se sujem ou se molhem na chuva?

Otsu pareceu momentaneamente aturdida pela inesperada responsabilidade, mas, impossibilitada de recusar, aceitou a missão. Ujitomi aproximou então de si uma caixa e algumas folhas de papel encerado que já tinham sido preparadas de antemão e, antes de nelas guardar seus desenhos, ofereceu, em parte movido por orgulho e em parte porque queria contemplar uma vez mais sua obra antes de se desfazer dela:

— Querem ver?

Abriu os rolos e estendeu-os sobre o tatami na frente dos dois.

— Oh! — exclamou Otsu involuntariamente. Joutaro também arregalou os olhos e esticou o pescoço, quase debruçando-se sobre os desenhos.

Era impossível saber que história contavam as gravuras, pois nelas ainda faltavam as notas explicativas. Mas a vida e os costumes do período Heian — retratados nas minúsculas pinceladas e no rico colorido do estilo Tosa[39] — desenrolavam-se numa sucessão de cenas maravilhosas perante o extasiado olhar dos dois jovens.

Embora nada entendesse de pintura, Joutaro exclamou admirado:

— Veja este fogo! Parece real, parece quente!

— Olhe, mas não toque em nada — sussurrou Otsu. Enquanto os dois continham a respiração e contemplavam embevecidos a pintura, um funcionário do templo, que surgira pelo jardim interno, trocava algumas palavras com o sacerdote.

Ujitomi assentiu e disse:

— Entendi. Pelo visto, não é um bandido. Mas por via das dúvidas, exija um recibo desse indivíduo antes de devolvê-las.

Entregou a seguir ao funcionário as duas espadas e a pequena trouxa trazidas havia pouco por Otsu.

 

Ao saber que a professora de flauta estava de partida, as meninas da mansão ficaram tristes.

— Vai partir de verdade?

— Vai mesmo?

Agrupadas ao redor de Otsu, já pronta para a viagem, as meninas mostravam-se pesarosas, como se estivessem prestes a perder uma irmã muito querida.

Joutaro gritou do outro lado do muro, fora da mansão:

— Já estou pronto, Otsu-san!

Havia despido o uniforme branco dos servidores do templo e vestia agora o costumeiro quimono de mangas curtas. Levava a espada de madeira nos quadris e, numa trouxa enviesada às costas, os rolos de pintura — acondicionados numa caixa embrulhada em diversas folhas de papel encerado — que Arakida Ujitomi lhe confiara, recomendando muito cuidado.

— Já? Que rapidez! — disse Otsu da janela.

— Claro! E você, Otsu-san, não está pronta ainda?. É nisso que dá andar com mulheres: demoram demais para se aprontar.

Em vista do regulamento que proibia a entrada de homem — adulto ou criança —, Joutaro aquecia-se ao sol e bocejava do lado de fora da mansão havia já algum tempo, contemplando a silhueta enevoada da montanha Kamiji. Irrequieto por natureza, a inatividade, mesmo momentânea, o aborrecia.

— Não está pronta ainda, Otsu-san? Do interior da mansão, Otsu respondeu:

— Estou indo!

Realmente, a jovem já estava pronta havia muito, mas fora retida pelas pequenas virgens. Tristes, as meninas não queriam se apartar da jovem mestra, a quem haviam aprendido a amar como a uma irmã nos curtos dois meses de convivência.

— Prometo que virei vê-las. Cuidem-se e sejam felizes! — disse Otsu. Mas será que voltaria para vê-las de verdade? A jovem duvidava.

Algumas pequenas começaram a soluçar, uma delas sugeriu que fossem todas juntas até a base da ponte sagrada sobre o rio Isuzu para vê-la partir, e foi prontamente apoiada pelas demais. Saíram portanto da mansão agrupadas em torno de Otsu, mas pararam em seguida, do outro lado do muro.

— Ué! — exclamaram as pequenas xamãs, admiradas: Joutaro, que tanto havia reclamado da demora, não estava ali.

— Jouta-saan! — chamaram, levando as mãos em concha às pequenas bocas.

Conhecendo Joutaro muito bem, Otsu não se preocupou e disse às meninas:

— Acho que se cansou de tanto esperar e seguiu adiante sozinho.

— Que menino rabugento! — observou uma delas. Outra ergueu o olhar para Otsu e indagou:

— Ele é seu filho?

Otsu não conseguiu rir da ingênua pergunta e rebateu com súbita seriedade.

— Vocês estão achando que ele é meu filho? Como, se ainda vou fazer 21 anos na próxima primavera? Será que pareço tão velha?

— É que eu ouvi alguém dizer...

Otsu lembrou-se dos boatos a que Ujitomi se referira e sentiu raiva de novo. Mas logo se acalmou: que lhe importava a opinião do mundo? Se Musashi acreditava nela, nada mais lhe importava. A ela bastava apenas ter a confiança desse único homem.

— Ei, Otsu-san! Você me deixa esperando todo esse tempo para depois ir-se embora sem mim? Isso não se faz! — berrou Joutaro nesse instante, alcançando-a às carreiras.

— Mas não o vi em lugar algum! — justificou-se Otsu.

— Podia ao menos ter tido a consideração de me procurar! Acontece que levei, há pouco, o maior susto da minha vida: vi alguém muito parecido com Musashi-sama seguindo em direção à estrada de Toba e fui atrás para verificar.

— Alguém parecido com Musashi-sama?

— Mas não era ele. Corri até a alameda e percebi, mesmo vendo-o de costas e à distância, que o sujeito era coxo. Que decepção!

 

No decorrer das jornadas que juntos vinham empreendendo, Otsu e Joutaro haviam experimentado diariamente amargas decepções semelhantes. Os dois tinham perdido a conta das vezes que se sobressaltaram porque o homem que acabava de cruzar com eles na estrada parecia-se com Musashi, ou porque o aspecto do outro que ia adiante lhes era familiar, quando então corriam até ultrapassá-lo, para depois voltar-se e olhá-lo de frente. Quantas e quantas vezes seus corações não se tinham acelerado por causa de vultos entrevistos à janela de uma casa num centro urbano qualquer, a bordo da balsa que acabava de zarpar, no interior de uma liteira, ou andando a cavalo, só porque lembravam de leve o homem que tanto procuravam. Já nem sabiam quanto esforço inútil tinham dispendido de cada vez na frenética tentativa de ver a esperança confirmada, e de quantas vezes tinham depois, abatidos, trocado tristes olhares.

Joutaro parecia agora bastante abalado pela experiência por que acabara de passar, mas Otsu, calejada por seguidas decepções, não deu muita importância ao fato.

Sobretudo depois de saber que o samurai em questão era coxo, Otsu desatou a rir e tentou consolar o menino:

— Coitadinho! Esforçou-se tanto por nada! Vamos, deixe a tristeza de lado, pois dizem que não é bom começar uma jornada de mau humor.

— E essas meninas? — disse Joutaro, examinando abertamente as pequenas xamãs. — Por que estão nos seguindo, hein?

— Não seja tão malcriado. Elas estão com pena de me ver partir e querem me acompanhar até a ponte Ujibashi sobre o rio Isuzu.

— Coitadinhas! Estão com pena de me ver partir! — disse Joutaro, imitando Otsu e fazendo as meninas rir.

A chegada de Joutaro animou o grupo até então lacrimoso e uma das pequenas gritou vivamente:

— Otsu-sama! Mestra! Não é por aí!

— Eu sei! — respondeu Otsu, mesmo assim seguindo em frente até alcançar o portal sagrado Tamagoshi. De lá, voltou-se para o distante templo Naigu, bateu palmas de acordo com o ritual xintoísta e, mãos postas, curvou a cabeça e rezou em silêncio.

Joutaro murmurou:

— Ah, agora entendi. Foi se despedir da deusa.

Como porém não dava mostras de querer fazer o mesmo, as pequenas xamãs espetaram-lhe ombros e costas com seus dedinhos e reclamaram:

— E você, Jouta-san, não vai rezar à deusa?

— Eu não!

— Nossa, não fale nesse tom que a deusa vai entortar sua boca.

— Não gosto de rezar. Tenho vergonha.

— Vergonha de quê? Você não vai rezar a uma deusa desconhecida de um templo qualquer, mas à nossa deusa-mãe. Ela é a mãe de todos nós, não se esqueça!

— Sei disso!

— Se sabe, não precisa ter vergonha. Vá rezar!

— Não vou.

— Teimoso!

— Cale a boca, sua metida! Enxerida!

— Credo!

As outras xamãs que tinham estado quietas, apenas ouvindo os dois discutirem, arregalaram os olhinhos todas ao mesmo tempo e ecoaram em uníssono:

— Credo!

— Que menino bravo!

Otsu chegou nesse instante junto ao grupo e perguntou:

— Que está acontecendo, meninas?

A resposta veio instantânea, já que as pequenas esperavam uma oportunidade para se queixar:

— Jouta-san disse que somos enxeridas! E disse também que não quer rezar à deusa, imagine!

— Que feio, Jouta-san! — repreendeu Otsu brandamente.

— Grande coisa!

— Você me contou certa vez que, ao ver Musashi-sama lutando contra os monges lanceiros de templo Hozoin e correndo perigo de vida, juntou as mãos, ergueu-as para o alto e rezou: “Ó deuses!” Então, qual o problema? Vá até ali e reze.

— Mas todo mundo fica olhando!

— Nesse caso, dêem-lhe as costas, meninas. Eu também me viro. — Enfileiradas, deram as costas para Joutaro. — Está bem assim? — perguntou Otsu. Como não recebeu resposta, voltou-se mansamente e espiou. Joutaro corria em direção ao portal sagrado. Uma vez lá, Otsu o viu parar e fazer uma rápida reverência.

 

O CATAVENTO

Sentado no banco em frente à barraca do vendedor de ostras assadas, Musashi desatava as sandálias voltado para o mar.

— Patrão, restam ainda dois lugares no barco que excursiona pelas ilhas. Não quer completar o grupo? — oferecia um barqueiro, em pé à sua frente.

Duas mergulhadoras, cada qual levando no braço uma cesta cheia de moluscos, vinham insistindo havia já algum tempo:

— Senhor, leve moluscos frescos para casa.

— Compre meus moluscos, compre.

Musashi removia em silêncio os trapos manchados de sangue e pus que envolviam seu pé ferido. A área inflamada desinchara, a febre se fora e agora a pele no local estava esbranquiçada e macerada, cheia de rugas.

— Não quero, não quero! — recusou Musashi abanando a mão para afastar tanto o barqueiro como as mergulhadoras. Pisou a areia, caminhou até a beira da arrebentação e mergulhou o pé rugoso na água salgada.

O pé doía tão pouco desde a manhã que Musashi quase o esquecera. Sentia-se saudável, cheio de vitalidade e em conseqüência, muito mais confiante em si mesmo. Musashi acreditava porém que essa autoconfiança não era fruto apenas da saúde recuperada. A confiança, reconhecia ele, lhe vinha de saber que havia crescido como ser humano de ontem para hoje, e isso o enchia de alegria.

Mandou a filha do vendedor de frutos do mar comprar-lhe meias de couro, calçou-as com um par de sandálias novas e pisou o chão com firmeza. Do ferimento restara-lhe apenas uma leve dor ao caminhar e o hábito de mancar um pouco.

— Senhor, o barqueiro está gritando lá do atracadouro. O senhor não está indo para Ouminato[40] nesse barco? — perguntou-lhe o dono da barraca, sem desviar os olhos dos mariscos sobre a brasa.

— Isso mesmo. De Ouminato partem navios que fazem regularmente a ligação com Tsu, não partem?

— Sim, senhor. Com Yokkaichi e Kuwana também.

— Que dia é hoje, vendeiro?

— Ora, perdeu a noção de quantos dias faltam até o fim do ano, senhor? — riu o homem. — Que vida boa! Estamos no dia 24 do último mês do ano.

— Ainda? Pensei que estávamos muito mais perto do fim de ano!

— Ah, como é bom ser jovem!

Musashi caminhou rapidamente, quase correndo, até o atracadouro da praia de Takashiro. Sentia vontade de correr muito mais.

A barcaça que levava a Ouminato, na margem oposta do rio, logo ficou lotada. Mais ou menos na mesma hora, Otsu e Joutaro atravessavam a ponte Ujibashi sobre o rio Isuzu, abanando as mãos e despedindo-se com pesar das pequenas xamãs.

As águas do rio Isuzu desembocam no porto de Ouminato, mas, insensíveis, deixaram que o barco se fosse, velas ao vento, levando Musashi.

Em Ouminato, Musashi baldeou imediatamente para outro barco, cujos passageiros eram, em sua maioria, viajantes. As grandes velas capturavam suavemente o vento e a embarcação prosseguiu ao longo do mais plácido trecho da costa de Ise, tendo à esquerda as cidades de Furuichi e Yamada, e a estrada arborizada de Matsuzaka.

Pela estrada de Matsuzaka iam andando Otsu e Joutaro, seus passos e o barco seguindo simultaneamente na mesma direção, quase à mesma velocidade.

 

Musashi sabia que em Matsuzaka morava um certo Mikogami Tenzen, um espadachim originário da região de Ise considerado um gênio da atualidade, mas abandonou a idéia de ir vê-lo e desceu em Tsu.

No momento em que desembarcava no porto de Tsu, um bastão de aproximadamente 60 cm à cintura do homem que lhe ia à frente chamou-lhe repentinamente a atenção.

O bastão tinha uma corrente enrolada. Na extremidade da corrente, havia um bola de ferro. Além dessa arma, o homem, que teria cerca de 42 ou 43 anos, levava também uma espada rústica em bainha de couro. Seu rosto tinha marcas de varíola e a pele era escura, tão queimada de sol quanto a de Musashi; seus cabelos, avermelhados, eram inusitadamente crespos.

Pelo aspecto, qualquer um diria que o homem era um bandoleiro, se o jovem que lhe vinha no encalço não o tivesse chamado neste instante:

— Patrão, patrão!

O rapazote, de 16 ou 17 anos, que ficara para trás no momento do desembarque, era um ajudante de ferreiro, conforme atestavam as manchas escuras de fuligem nas abas do nariz e o malho de cabo longo levado ao ombro.

— Me espere, patrão!

— Anda logo!

— Tinha esquecido o malho no barco.

— Esqueceste a ferramenta de trabalho, o teu ganha-pão?

— Mas já peguei.

— É claro! Faltava só não o teres pego. Partia-te a cabeça!

— Patrão?

— Não amola!

— Não íamos passar a noite em Tsu?

— O sol ainda vai alto. Passaremos por Tsu sem parar.

— Bem que eu gostaria de dormir uma noite em Tsu. Já que estivemos viajando a trabalho, um pouco de conforto ia bem.

— Não me venhas com gracinhas!

A rua que ligava o atracadouro à cidade fervilhava de gente: aliciadores de hospedarias e vendedores de lembrancinhas estavam alertas como sempre à procura de fregueses, obstruindo o caminho dos passageiros desembarcados.

Quando alcançaram esse trecho, o ajudante de ferreiro, ainda com o malho ao ombro, já tinha perdido de vista o seu patrão uma vez mais e o procurava aflito no meio da multidão. Passados instantes, porém, o patrão lhe surgiu à frente, segurando um pequeno catavento de papel comprado numa loja de brinquedos próxima:

— Iwa-kou! — chamou o patrão.

— Senhor?

— Leva isto para mim.

— Um catavento!

— Não o leves na mão, porque podes te chocar com alguém no meio da multidão e quebrá-lo. Enfia-o na gola do quimono, junto à tua nuca.

— Ah, vai dá-lo de presente!

— Hum...

O homem devia ter um filho pequeno e, pelo jeito, voltava para casa de uma longa viagem, ansioso por rever o rostinho sorridente do pimpolho.

Andando sempre alguns passos à frente, o patrão se voltava vez ou outra, preocupado com o catavento a girar espetado na gola do ajudante Iwa-kou. Coincidência ou não, ia na mesma direção de Musashi.

Ali estava o homem que tanto procurara, concluiu Musashi por tudo que via.

O mundo, porém, estava repleto de ferreiros e não eram poucas as pessoas que andavam levando à cintura uma corrente com foice. Para se certificar, Musashi o acompanhou ora passando-lhe à frente, ora ficando para trás, observando atentamente. Notou então que o caminho por eles tomado cruzava a cidade casteleira de Tsu e aos poucos enveredava em direção à estrada de Suzuka. Além disso, o diálogo que lhe chegava aos ouvidos truncado pela distância varreu-lhe as últimas dúvidas da mente. Musashi abordou o ferreiro:

— Está indo para Umebata, senhor? Interpelado, o homem respondeu bruscamente:

— Estou. Por quê?

— O senhor não seria por acaso mestre Shishido Baiken?

— Isso, sou Baiken. E você, quem é?

 

Embora já tivesse percorrido havia bem poucos dias esse mesmo caminho, Musashi optara por ele porque transpor o monte Suzuka e entrar por Minaguchi em Kusatsu, na província de Goshu[41], era o percurso mais lógico para chegar a Kyoto, cidade onde queria festejar a passagem do ano.

Já tinha decidido que se bateria numa outra oportunidade com Baiken, pois tinha perdido a vontade quase obsessiva de enfrentá-lo. Mas topar com ele acidentalmente no meio do caminho era muita sorte.

— Acho que nós dois estávamos destinados a nos conhecer. Na verdade, estive há poucos dias em sua casa, na vila Ujii e falei com sua mulher. Meu nome é Miyamoto Musashi, e sou um samurai peregrino.

— Ah, sei... — respondeu Baiken, como se estivesse a par disso. — Você deve ser o homem que se hospedava na estalagem de Yamada e que queria me desafiar para um duelo.

— Ficou sabendo que eu o procurava?

— Pois você não mandou um mensageiro à mansão de Arakida-sama perguntar se eu não estaria hospedado com ele?

— Mandei.

— Realmente, fui fazer um serviço para Arakida-sama, mas nunca me hospedaria em sua mansão. Usei a oficina de alguns colegas, na cidade sagrada, e fiz um trabalho que só eu sei fazer.

— Ah, foi por isso que não o encontraram na casa do sacerdote.

— Soube ali que um samurai peregrino hospedado numa estalagem de Yamada procurava por mim, mas não dei importância, pois tudo isso me pareceu uma grande amolação. O samurai era você?

— Isso mesmo. Tinha ouvido dizer que o senhor era um exímio manejador da corrente com foice.

— Ora essa, deve ter falado com minha mulher — disse Baiken, gargalhando.

— Sua mulher fez-me a gentileza de mostrar rapidamente a posição de guarda do estilo Yaegaki.

— E isso não bastou? Para que correr atrás de mim e me desafiar, então? Posso lhe mostrar pessoalmente a posição de guarda, mas vai ver a mesma coisa. Posso até lhe mostrar um pouco mais, mas no mesmo instante, você terá ido para o outro mundo.

A mulher de Baiken era convencida como poucos, realmente, mas o próprio Baiken não lhe ficava atrás. Arrogância e artes marciais andavam sempre de mãos dadas e eram insuportáveis em qualquer circunstância. Mas, pensando bem, um homem talvez precisasse de boa dose de confiança em si para conseguir um lugar ao sol, acima de todos os arrogantes guerreiros que enxameiam pelo mundo.

Musashi já havia no íntimo começado a desprezar Baiken. Era, no entanto, incapaz de mostrar desprezo a quem quer que fosse apenas baseado em impressões superficiais. Isso porque, ao dar o primeiro passo no caminho da vida, Takuan lhe mostrara de modo doloroso e inesquecível que no mundo havia muita gente bem preparada. Acresciam-se a isso as lições aprendidas no templo Hozoin e no castelo Ko-yagyu.

Portanto, muito antes de tratar com desprezo um desconhecido, Musashi se habituara a avaliá-lo com cuidado até ter certeza do seu valor real, mantendo sempre uma atitude humilde e quase nunca reagindo com fervor a provocações, o que o fazia parecer por vezes subserviente, ou até mesmo covarde num primeiro momento.

— Tem razão — respondeu, com a atitude diferente do jovem ante alguém mais velho. — Como o senhor mesmo disse, a demonstração feita por sua mulher me foi valiosa. Mas já que tive a oportunidade de encontrá-lo aqui, gostaria muito de obter mais algumas informações sobre o uso do kusarigama.

— Informações? Se quer apenas conversar, posso muito bem atendê-lo. Você vai passar a noite em alguma estalagem de Kai?

— Essa era a intenção inicial, mas... Sem querer ser inconveniente, o senhor não me daria abrigo em sua casa por mais uma noite?

— Minha casa não é estalagem, você sabe, e não tenho cobertores para hóspedes. Se não se importa em partilhar o cubículo do meu aprendiz, Iwa-kou...

 

Entardecia quando chegaram.

O sol avermelhava as nuvens e, sob elas, o pequeno povoado na base da montanha Suzuka se estendia, plácido como um lago de águas claras.

Em pé a um canto do distante alpendre, Musashi avistou um vulto que reconheceu como sendo o da mulher do ferreiro. Alertada por Iwa-kou, que correra à frente para anunciar o retorno do patrão, a mulher esperava o marido erguendo nos braços a criança e o catavento, repetindo:

— Olha, estás vendo? Ali vem teu pai. Estás vendo? É o teu pai! Baiken, o monstro arrogante, já de longe derreteu-se inteiro ao avistar o filho. Levantou a mão, agitou os cinco dedos e gritou:

— Aqui, filhinho! Teu papai está aqui!

Instantes depois, pai e mãe entraram na casa e, sempre em companhia da criança, sentaram-se a um canto, entretidos em animada conversa, ignorando por completo Musashi e seu pedido de pernoite. A atitude era até compreensível, levando-se em consideração que Baiken acabava de chegar de uma longa viagem. Perto da hora do jantar, Baiken pareceu finalmente dar-se conta e, apontando para Musashi que, sem se descalçar, ainda permanecia no aposento de terra batida aquecendo-se ao fogo da forja, disse para a mulher:

— Ah, ia-me esquecendo. Dá de comer também a esse samurai peregrino.

A mulher retrucou, sem vestígios de amabilidade na voz:

— Mas esse homem já dormiu uma noite aqui, na tua ausência.

— Sei disso. Põe o homem a dormir com Iwa-kou.

— Da outra vez, ele dormiu numa esteira, perto da forja. Que durma hoje também.

— Você aí, jovem — disse Baiken. Um pote de saque amornava nas cinzas do braseiro à sua frente. — Gosta de saque? — perguntou, oferecendo uma taça.

— Um pouco — respondeu Musashi.

— Então beba!

— Sim, senhor.

Musashi sentou-se na beira da área mais elevada, na divisa com o aposento de terra batida. Agradeceu com uma ligeira reverência e levou a taça à boca. A bebida, produzida na região, era ácida.

— Um brinde — disse Musashi, devolvendo a taça.

— Não sei dessas coisas. Eu bebo em outra taça. Mudando de assunto, jovem, quantos anos tem você? Me parece novo ainda.

— Faço 21 no ano que vem.

— Onde é a sua terra?

— Mimasaka.

No mesmo instante Baiken voltou-se. Seu olhar penetrante percorreu Musashi de cima a baixo.

— O que me disse, há pouco? Estou falando do seu nome.

— Miyamoto Musashi.

— Musashi... Como se escreve?

— Do mesmo jeito que se escreve Takezo.

A mulher do ferreiro surgiu trazendo tigelas de sopa, arroz, picles e hashi.

— Coma — disse com rudeza, largando as coisas diretamente sobre a esteira.

— Sei! — murmurou Baiken, retomando a conversa interrompida e sacudindo a cabeça depois de um longo silêncio. Retirou a bilha das cinzas, sentiu sua temperatura.

— Está no ponto! — observou, despejando saque na taça de Musashi, para de súbito, tornar a perguntar:

— Quer então dizer que, em criança, você se chamava Takezo?

— Isso mesmo.

— E assim se chamava quando tinha cerca de 17 anos?

— Sim.

— E você não teria por acaso tomado parte da batalha de Sekigahara com essa idade, em companhia de um outro jovem, de nome Matahachi?

Musashi, ligeiramente admirado, perguntou:

— Como sabia, senhor ferreiro?

 

— Muito simples: eu também lutei na batalha de Sekigahara.

A coincidência aproximou-os, e Baiken, mudando repentinamente de atitude, disse em tom cordial:

— Bem achei que já o tinha visto em algum lugar. Devo ter-me encontrado com você em Sekigahara, no meio da batalha.

— Não me diga que também fazia parte do exército Ukita?

— Naquela época eu morava em Yasugawa, na província de Goshu, e em companhia de alguns goushi da área estive na frente nessa batalha.

— Realmente? Então nos cruzamos, com certeza.

— Que foi feito de seu companheiro, Matahachi?

— Nunca mais o vi, desde então.

— Desde então, quando?

— Com o fim da guerra, fomos acolhidos numa casa nos pântanos de Ibuki, onde permanecemos até nos recuperarmos dos ferimentos. Matahachi e eu nos separamos logo depois e desde então...

— Ei! — gritou Baiken para a mulher, que já se havia deitado com a criança — o saque acabou.

— Paciência! Não temos mais.

— Mas eu quero outro tanto.

— Estou dizendo que acabou. Por que insistes, justo hoje?

— É que a conversa está ficando cada vez melhor.

— Não tem mais, já disse.

— Iwa-kou! — berrou Baiken, voltando-se para um canto da oficina. Do outro lado de uma fina divisória de madeira algo moveu-se entre palhas. Logo, o aprendiz de ferreiro entreabriu um postigo e disse, mostrando apenas a cara:

— Que quer, patrão?

— Vai à casa de Onosaku-san e pede dois litros de saque emprestados. Musashi apanhou a tigela de arroz e disse:

— Vou jantar primeiro, com sua licença.

— Espere, espere um pouco! — interveio Baiken, agarrando o pulso de Musashi — Não está vendo que mandei buscar mais saque?

— Se era para mim, chame seu ajudante de volta. Não consigo beber mais.

— Deixe disso! — insistiu Baiken. — E depois, você não disse que queria informações sobre o uso da corrente com foice? Posso lhe ensinar tudo que sei, com certeza, mas tenho de molhar a garganta enquanto falo.

Iwa-kou retornou quase em seguida.

Baiken despejou um pouco da bebida numa bilha pequena e, enquanto a aquecia no braseiro, começou a expor seus conhecimentos, enfatizando as vantagens da sua arma numa luta.

Diferente da espada, a corrente com foice não dava tempo para o oponente se defender, sendo esse um dos seus aspectos mais atraentes. Além disso, a corrente possibilitava ao seu manipulador enredar e arrebatar a arma das mãos do inimigo, antes mesmo de entrar em confronto direto com ele.

— Suponhamos que você esteja assim, com a corrente na mão esquerda e a bola de ferro na direita — disse Baiken sem se levantar, mostrando a posição. — Se o adversário atacar, apare o golpe com a foice e, ao mesmo tempo em que apara, lance a bola no rosto dele. Este é um dos golpes.

Mudou a seguir a posição e disse:

— Se você estiver deste jeito — isto é, se existe uma distância maior entre você e seu adversário —, seu objetivo será enredar e arrebatar com a corrente a arma do outro, seja ela uma espada, lança ou bordão. Isto funciona com qualquer tipo de arma.

Baiken explicou também que existia mais de uma dezena de técnicas secretas diferentes de lançar a bola de ferro, técnicas estas transmitidas de mestre a discípulo apenas verbalmente. Quando usada alternadamente com a foice, informou ainda Baiken, a corrente movia-se como uma cobra, emitindo reflexos que iludiam o inimigo por completo, inibindo-lhe os movimentos, imobilizando-o e transformando-o num alvo perfeito. E ali estava outro modo de usar com vantagem a corrente com foice.

Musashi o ouvia com toda atenção.

Conversas desse tipo transformavam-no na personificação do interesse: literalmente todo ouvidos, Musashi mergulhou nas explicações de Baiken.

Uma corrente... Uma foice...

E duas mãos.

Enquanto ouvia, Musashi desenvolvia seu próprio raciocínio.

“A espada é manejada com uma mão. Mas o homem possui duas mãos...”

 

Sem que disso se dessem conta, os dois homens tinham esvaziado também o segundo cântaro. Baiken bebeu bastante mas se empenhou muito mais em fazer Musashi beber. Este ultrapassara involuntariamente o seu limite habitual e chegou a um estado de embriaguez nunca antes experimentado.

— Mulher, vamos dormir nos fundos. Cede tuas cobertas ao nosso hóspede e arruma outras para a gente lá dentro. — disse o ferreiro a certa altura.

A mulher tinha, ao que parecia, o hábito de dormir nesse aposento e, sem se importar com o hóspede, já havia estendido as cobertas e se deitado com a criança enquanto Baiken e Musashi bebiam.

— Anda, sai da cama de uma vez e deixa nosso hóspede dormir! Ele me parece muito cansado — insistiu o homem.

A mulher de Baiken já tinha percebido que o marido mudara de atitude havia algum tempo e tratava seu hóspede com repentina cordialidade, mas relutava em se levantar. Primeiro, porque não conseguia compreender por que o marido queria obrigá-la a ceder as cobertas e transferir-se para o outro quarto, e segundo, porque no momento seus pés já estavam começando a esquentar.

— O hóspede ficou de dormir no quarto de ferramentas junto com Iwa-kou, não ficou? — reclamou ela.

— Idiota! — gritou o marido, furioso, olhando feio para a mulher deitada no meio das cobertas. — Manda-se um hóspede dormir com Iwa-kou dependendo da importância dele, entendeu? Pára de reclamar e arruma nosso canto nos fundos.

A mulher ergueu-se bruscamente e foi em silêncio para o outro quarto. Baiken tomou em seus braços a criança adormecida e disse:

— Jovem, estes cobertores não são de primeira, mas aqui pelo menos você está perto do braseiro. Se sentir sede no meio da noite, achará água quente na chaleira para um chá. Estique-se à vontade e durma tranqüilo.

Retirou-se a seguir. Instantes depois, a mulher voltou para trocar o travesseiro. Seu humor havia melhorado e falou com gentileza:

— Meu marido disse que pretende dormir até mais tarde amanhã porque bebeu além da conta e está cansado da viagem. Descanse você também à vontade, não precisa acordar cedo. Pela manhã, eu lhe preparo uma boa refeição.

— Ora essa, muito obrigado — disse Musashi a custo. Estava tão embriagado que mal teve ânimo de remover as sandálias e despir o sobretudo. — Boa-noite! — disse e mergulhou nas cobertas ainda mornas. Parada à porta que levava ao quarto do fundo, a mulher, atenta, observou-o por alguns minutos.

— Boa noite! — disse por fim com suavidade. Soprou a lamparina e se foi mansamente:

Musashi sentia um aro de ferro comprimindo-lhe cada vez mais o crânio, a anunciar uma forte ressaca. As têmporas latejavam de modo audível.

“Ora, como foi que passei da conta, justo hoje?”, perguntava-se Musashi, o mal-estar provocando-lhe um leve arrependimento. Talvez porque Baiken tivesse oferecido com tanta insistência. Mas o que havia por trás da súbita mudança de atitude de seus anfitriões? Por que o desdenhoso Baiken resolvera mostrar-se tão hospitaleiro de uma hora para outra, e mandara seu empregado buscar-lhe mais saque? Por que a mulher, sempre tão rude, se mostrava agora tão amável? Por que lhe haviam cedido as cobertas neste local privilegiado?

Era suspeito, ocorreu de súbito a Musashi, mas muito antes de conseguir raciocinar com clareza, o sono o envolveu como uma pesada neblina. Fechou os olhos, deu dois suspiros profundos e puxou o cobertor cobrindo-se até a altura dos olhos. Agora, sentia calafrios.

Das brasas, quase extintas, erguia-se vez ou outra uma tênue língua de fogo, cujo reflexo bruxuleava na testa de Musashi. Logo, um profundo ressonar se fez ouvir.

A mulher de Baiken — apenas um rosto branco no escuro espiando em silêncio pela porta do quarto — voltou nesse momento furtivamente para perto do marido, seus pés descalços produzindo um leve chape-chape no contato com a esteira.

 

Musashi sonhava. O mesmo sonho se repetia em retalhos continuamente. Na verdade, não podia chamar aquilo de sonho. Era quase uma alucinação, como se uma lembrança dos tempos de infância por alguma razão houvesse aflorado e rastejasse agora semelhante a um inseto sobre o cérebro adormecido, suas patas largando atrás de si um rastro de letras fosforescentes.

Seja como for, uma canção soava em seu sonho:

Dorme, nenê,

Dorme de uma vez.

Tu que és lindo quando dormes,

Feio ficas ao chorar.

Dorme, dorme,

Não me faças chorar também.

Musashi tinha ouvido essa canção de ninar na visita anterior à casa: a mulher de Baiken a cantara enquanto dava o seio ao filho. E no sonho essa mesma canção com o forte sotaque regional de Ise soava nas terras de Yoshino, onde Musashi havia nascido.

O sonho prosseguia.

Ele era ainda um bebê e estava no colo de uma mulher de rosto alvo, de mais ou menos 30 anos. O pequeno Musashi sabia que a mulher era sua mãe. Agarrada ao seio da mulher, a criança erguia os olhinhos para o rosto branco.

Feio ficas ao chorar.

Dorme, dorme,

Não me faças chorar também.

Era a mãe que cantava e o embalava. O rosto delicado e abatido lembrava em sua palidez uma flor de pereira. Pequenas flores de musgo pontilhavam o extenso muro de pedras; o céu, acima da casa e das copas das árvores, tinha as cores do entardecer; havia luz no interior da mansão.

Lágrimas brotavam dos olhos da mãe. Admirado, o bebê Musashi as observava.

— Saia daqui!

— Vá embora para a casa de seus pais!

A voz severa do pai, Munisai, ecoava no interior da mansão, mas Musashi não o via. Sabia apenas que a mãe fugia desnorteada ao longo do extenso muro de pedras da mansão, chegava às margens do rio Aida e, chorando, avançava agora para dentro da água.

— Cuidado! Cuidado! — queria dizer o pequeno Musashi debatendo-se em seu colo, tentando alertá-la do perigo que corriam.

Mas a mãe seguia cada vez mais para o fundo, contendo nos braços de forma quase dolorosa a criança agitada, pressionando o rosto molhado de lágrimas contra o do filho:

— Takezo, Takezo! Você é meu? Ou é de seu pai?

Nesse instante, Munisai gritou alguma coisa da margem. Ao ouvir-lhe a voz, a mãe submergiu nas águas crespas do rio Aida e o pequeno viu-se jogado sobre os seixos da margem, chorando a plenos pulmões no meio das primulas.

— Ah!

Musashi despertou: sabia que estivera sonhando e tomou a cair em leve modorra. Logo, o rosto da mulher — a mãe ou uma estranha? — o espreitou no sonho e tornou a despertá-lo.

Musashi não se lembrava das feições daquela que o trouxera ao mundo. Pensava sempre nela, mas seria incapaz de descrevê-la. Conseguia quando muito imaginar se não teria a aparência de uma ou outra pessoa conhecida.

— E por que sonho com ela justo esta noite?

A embriaguez se fora e, desperto enfim, Musashi abriu os olhos e viu o teto. No forro preto de fuligem bruxuleavam reflexos avermelhados do fogo quase extinto.

Foi então que notou o catavento flutuando bem em cima de seu rosto, preso ao teto por um fio.

Era o presente que Baiken havia trazido para o filho. Além disso, deu-se conta de que havia um forte cheiro de leite na borda do cobertor que o cobria quase até os olhos. E tinham sido eles — objetos e cheiros ao seu redor — os responsáveis pelo inesperado sonho com a mãe, achou Musashi, seu olhar cravando-se no catavento, intenso como o de alguém que enfim encontra um ente querido.

 

Musashi vagava entre a vigília e o sono, olhos semicerrados fitando o teto. Repentinamente, o brinquedo sobre o rosto causou-lhe estranheza — o catavento tinha começado a girar.

Nada devia haver de extraordinário nisso, já que o brinquedo tinha sido projetado para girar, mas Musashi enrijeceu-se de súbito e quase se ergueu:

— Que é isso?

Apurou os ouvidos.

Em algum lugar, uma porta deslizava mansamente, quase sem ruído. Cerrada a porta, as pequenas pás foram aos poucos parando e de súbito imobilizaram-se.

Havia algum tempo pessoas entravam e saíam sem cessar pela porta dos fundos da casa. Os pés se moviam com extremo cuidado, em silêncio, sem provocar o menor ruído, mas a ligeira corrente de ar, que se formava a cada vez que a porta se abria, passava pela cortina à entrada do aposento e alcançava instantaneamente o fio do catavento. Ato contínuo, as cinco pétalas da flor de madeira criavam vida e se agitavam, tremiam e revoluteavam com a leveza de uma borboleta, para em seguida voltar a imobilizar-se quando a porta se fechava.

Mansamente, Musashi tornou a pousar no travesseiro a cabeça e, imóvel, procurou sentir com todo o corpo a atmosfera da casa. À semelhança de um inseto que oculto sob uma folha tenta perceber os mistérios do tempo, Musashi tinha agora os nervos aguçados e espalhados por todo o corpo, captando sinais.

Aos poucos, começou a dar-se conta da natureza do perigo que o rodeava, muito embora continuasse sem saber por que o proprietário da casa, Baiken, um completo estranho, queria tirar-lhe a vida.

“Será que estou num covil de ladrões?”, pensou.

Mas um ladrão tem a capacidade de avaliar de golpe o grau de riqueza de sua possível vítima, bem como o valor dos seus pertences, e saberia de imediato que nada lucraria eliminando-o.

“Baiken me odiaria?”

Também não parecia ser o caso.

Por mais que pensasse não atinou com a resposta, mas a sensação de ameaça à sua vida aumentava cada vez mais. E agora, essa ameaça já se havia aproximado o suficiente para exigir a imediata escolha de uma entre duas estratégias: esperar imóvel por ela, do jeito como estava, ou tomar a iniciativa e se levantar.

Musashi desceu a mão até tocar o piso do aposento de terra batida, um nível abaixo. Seus dedos tatearam pelo chão, procurando as sandálias. As sandálias escorregaram, uma após outra, suavemente, para dentro das cobertas.

De súbito, o catavento pôs-se a girar com rapidez. Revoluteava como uma flor encantada à tênue luz que provinha do braseiro.

Passos soaram, agora nítidos, nos fundos e em torno da casa, formando um cerco ao redor das cobertas onde dormia Musashi. Instantes depois, dois olhos brilharam sob a meia-cortina à entrada do aposento. Um homem se aproximou de joelhos, trazendo uma espada desembainhada na mão; um outro avançou rente à parede empunhando uma lança, e acercou-se cautelosamente das cobertas pelo lado dos pés.

Os dois homens observaram em silêncio o volume sob as cobertas, atentos ao ressonar. Um terceiro vulto, saído das cortinas como fumaça, tinha-se materializado em pé ao lado da cama. Era Baiken. Empunhava a corrente com a mão esquerda e a bola de ferro com a direita.

Três pares de olhos fitaram-se. Alcançado o consenso, o homem à cabeceira tomou a iniciativa e chutou o travesseiro. O segundo, aos pés da coberta, saltou prontamente para o aposento de terra batida e assestou a lança.

— Acorda, Musashi! — gritou Baiken, recuando a mão que empunhava a bola de ferro.

 

Debaixo das cobertas, não houve reação.

A foice aproximou-se ameaçadora, a lança tocou os cobertores, os homens berraram — mas nada se moveu, pois Musashi já não estava mais ali.

O homem que tinha removido o cobertor com a ponta da lança gritou:

— Ei! Ele sumiu!

Baiken, confuso, examinou ao redor e só então se deu conta do cata-vento que girava no ar à altura do seu rosto.

— Tem uma porta aberta em algum lugar! — berrou, saltando para o aposento de terra batida.

No mesmo instante, o outro homem exclamou:

— Com os diabos!

No extremo mais afastado da parede da oficina havia uma porta que dava para a cozinha e para uma passagem lateral: a porta tinha sido corrida e apresentava agora uma abertura de quase um metro.

Fora, a geada branqueava a paisagem como em noite de luar. O descontrolado revolver do catavento fora provocado pelo vento cortante que entrava por essa abertura.

— Foi por aqui, o maldito!

— Que faziam os homens de guarda lá fora? Onde estão? Baiken, agitado, gritou:

— Ei, ei, ei! Homens!

Debaixo do alpendre e das sombras próximas vultos indistintos surgiram devagar, rastejando. Alguém perguntou quase num sussurro:

— Patrão...? Correu tudo bem, patrão? Baiken gritou furioso:

— Que idiotice é essa? Que vigiavam, parados aí? O maldito já fugiu!

— Como é? Ele fugiu? Mas... quando?

— É a mim que perguntam?

— Essa não entendi.

— Parvos!

Baiken entrava e saía pela porta, irritado, mas logo disse:

— Ele tem apenas duas opções: ou vai transpor Suzuka, ou vai retornar pela estrada que leva a Tsu. Não deve ter ido longe. Procurem-no!

— Para que lado?

— Eu sigo na direção de Suzuka. Vocês descem para Tsu. Juntando os de dentro da casa com os de fora, eram dez os homens,

alguns armados de kusarigama.

O grupo não tinha um aspecto homogêneo. Um dos homens empunhando a corrente com foice parecia um caçador, e outro que levava uma espada rústica à cintura tinha jeito de lenhador. Os demais eram aparentemente de profissões semelhantes, mas o brilho sinistro de seus olhos e a obediência cega às ordens do homem a quem chamavam patrão contradiziam as aparências. O próprio Baiken nunca poderia ser um simples lavrador e ferreiro.

Baiken dividiu seus homens em dois grupos:

— Quem o achar primeiro dispara o mosquete; os demais devem acudir de pronto.

Dispersaram-se em seguida às pressas no encalço do fugitivo.

Contudo, 15 minutos de perseguição e correria haviam tido o poder de desanimar os homens, que retornaram trocando observações frustradas.

O medo de levar uma reprimenda em regra do patrão revelou-se também infundado, pois Baiken, que já havia retornado, estava sentado em sua oficina, cabisbaixo e sem ânimo.

— Não deu certo, patrão!

— Que lástima!

Às palavras em tom consolador de seus homens, Baiken respondeu:

— Que se há de fazer!

Para dar vazão à raiva, quebrou gravetos no joelho e gritou:

— Mulher, quero beber! Serve saque para todos!

Remexeu o fogo quase extinto e lançou com raiva um monte de gravetos no braseiro.

 

Com a balbúrdia em plena madrugada, o bebê acabou acordando e chorava sem parar. Deitada com ele, a mulher de Baiken retrucou que já não tinham mais saque. Ao ouvir isso, um dos homens logo se ofereceu para trazer um pouco da própria casa e saiu.

Pelo jeito, moravam todos nas cercanias, pois a bebida logo chegou. Sem se preocuparem em amorná-la, os impacientes homens despejaram-na em chávenas e beberam em grandes goles.

— Que coisa irritante!

— Rapazola atrevido!

— Sujeitinho de sorte! Escapou por um triz da morte certa.

Os homens repetiam frases de efeito destinadas a melhorar o gosto da bebida.

— O jeito é se conformar, patrão. Foi asneira do pessoal que montava guarda lá fora.

Estavam todos empenhados em embriagar o patrão e pô-lo a dormir o mais rápido possível. Baiken, por seu lado, não tentou incriminar seus homens.

— Parte da culpa foi minha — observou. A expressão sombria em seu rosto dizia que a bebida tinha um gosto amargo nessa noite. — Eu devia ter feito o trabalho sozinho. Para que convocar a ajuda de tanta gente e fazer esse estardalhaço todo por causa desse novato, um rapazola comum... O problema é que eu não queria dar um passo em falso já que, quatro anos atrás, quando o sujeito tinha somente 17 anos, teve a capacidade de liquidar o meu irmão, Tsujikaze Tenma.

— Mas o patrão tem certeza de que o samurai errante que se hospedava aqui é o mesmo de quatro anos atrás — o que procurou abrigo na casa de Okoo, a vendedora de moxa de Ibuki?

— Foi o espírito do meu falecido irmão Tenma que o trouxe aqui, com certeza. A princípio não tive a mais leve desconfiança. Mas depois de uma ou duas doses de saque e a partir de um assunto qualquer, o sujeito começou a falar espontaneamente que havia participado da batalha de Sekigahara, que à época se chamava Takezo, mas que hoje usa o nome Miyamoto Musashi. Ele não fazia a menor idéia de que falava com Tsujikaze Ryohei, bandoleiro de Yasugawa, o irmão mais novo de Tsujikaze Tenma. Ele é Takezo, o jovem que matou meu irmão com uma espada de madeira, tenho certeza. A idade e o físico coincidem.

— Quanto mais penso, mais lastimo tê-lo deixado escapar.

— Os tempos são de paz, e ultimamente não há mais lugar para bandoleiros neste mundo. Se meu irmão fosse vivo hoje, acho que estaria sem meios para se sustentar, em apuros como eu. Teria de se transformar em lavrador-ferreiro, ou até em assaltante de estradas, para sobreviver. Ainda assim, acho uma pena ele ter morrido golpeado pela espada de madeira de um soldado raso, sem eira nem beira, fugitivo do campo de Sekigahara. E cada vez que me lembro disso, sinto uma coisa ferver dentro do peito.

— Naquela ocasião, havia mais um rapazola junto com esse Takezo, não havia, patrão?

— Matahachi.

— Isso mesmo. Esse tal Matahachi fugiu naquela mesma noite em companhia de Okoo e da filha dela, Akemi. Por onde andará ele a esta hora?

— Meu irmão Tenma danou-se porque andava enrabichado por Okoo, não se esqueçam. Estejam todos alertas porque pode ser que dêem de cara com ela em algum lugar, do mesmo jeito que me encontrei com Takezo.

Lentamente, a embriaguez tomou conta de Baiken que, sonolento, cabeceava contemplando as chamas do braseiro.

— Deite-se, patrão.

— É melhor dormir de uma vez, patrão.

Solícitos, os homens o acomodaram nas cobertas até há pouco ocupadas por Musashi e ajeitaram-lhe a cabeça sobre o travesseiro, apanhado no chão da oficina. No mesmo instante Baiken esqueceu a raiva e começou a roncar.

— Vamos embora, pessoal.

— Vamos dormir!

Ali estava o remanescente dos bandos de Tujikaze Tenma, da região de Ibuki, e de Tsujikaze Ryohei, de Yasugawa, homens que, tempos atrás, andavam pelo mundo declarando-se orgulhosamente bandoleiros. Transformados agora em lavradores e caçadores por força das circunstâncias, os antigos bandoleiros nem por isso tinham perdido as presas. Instantes depois saíram da oficina do ferreiro e desapareceram em meio à névoa da madrugada, seus olhos penetrantes movendo-se inquietos no escuro.

 

Depois disso, a casa se aquietou, como se nada tivesse acontecido. Apenas o ressonar pausado dos moradores e o barulho dos ratos roendo em algum lugar faziam-se ouvir.

O bebê ainda choramingou por algum tempo, mas quando o escuro interior da casa cheirando a corpos adormecidos se aqueceu, também aquietou-se.

E então...

A um canto do aposento de terra batida, entre a oficina e a cozinha, havia uma pilha de lenha armazenada ao lado de um forno de barro. Sombreiros e capas de palha pendiam de um prego na parede rústica. E das sombras do forno, rente à parede, uma capa de palha moveu-se de súbito.

A capa pareceu criar vida e ergueu-se sozinha no ar, voltando ao prego da parede. Logo, um vulto «sfumaçado pareceu destacar-se da parede e materializou-se em pé ao lado do forno.

Era Musashi.

O jovem não se havia afastado sequer um passo da casa. Quando se esgueirara para fora das cobertas, havia pouco, ele tinha aberto a porta para de imediato cobrir-se com a capa e ocultar-se junto à pilha de lenha.

Musashi andou pela oficina em silêncio. Baiken brincava no mundo dos sonhos, e os seus possantes roncos davam a perceber que tinha problemas no nariz. A situação pareceu divertir Musashi: no escuro, seu rosto contorceu-se num meio sorriso involuntário.

Atento aos roncos, Musashi parou para refletir.

“Eu já venci Baiken”, pensou. Não tinha dúvidas quanto a isso.

Mas a crer na história que ouvira há pouco, Shishido Baiken era o nome recentemente adotado por Tsujikaze Ryohei, o bandoleiro de Yasugawa. E Baiken se dispusera a matá-lo nessa noite mavido pelo amor fraterno, pela vontade de consolar o espírito do irmão, Tenma, disposição aliás digna de louvor num bandoleiro.

Se o deixasse viver, Musashi não teria sossego: o homem o perseguiria e tentaria matá-lo na próxima oportunidade. O melhor seria eliminá-lo já, para sua própria segurança, mas... Valeria a pena?

O jovem ponderou a questão em silêncio. Instantes depois, pareceu chegar a uma resolução: dirigiu-se à parede próxima à cabeceira de Baiken e retirou um dos kusarigama do prego.

Baiken continuava dormindo.

Musashi espiou o rosto adormecido. Com a unha, extraiu a lâmina embutida no bastão. A foice se armou e formou um gancho, a brilhar azulado no escuro.

Musashi envolveu a lâmina numa folha de papel umedecida e apoiou-a suavemente na curva do pescoço do homem adormecido.

“Pronto!”

Suspenso do forro, o catavento também dormia. Se Musashi não envolvesse a lâmina, talvez encontrassem, com o raiar do dia, a cabeça deste pai rolando no chão, decepada. E então, o pequeno catavento giraria enlouquecido, imaginava Musashi.

O jovem tinha tido seus motivos para matar Tsujikaze Tenma; além de tudo, na época ele estava ainda sob os efeitos da sangrenta guerra. Mas tirar a vida de Baiken agora não fazia sentido. Não só não fazia sentido, como também o envolveria numa nova relação kármica com certa criança, que sairia pelo mundo procurando vingar o pai. A idéia o horrorizou.

E justo nessa noite a lembrança dos falecidos pais voltava com persistência à mente de Musashi. Invejou as pessoas adormecidas na casa às escuras cheirando a sono e leite, sentindo-se quase pesaroso de partir. Dirigiu-se aos moradores da casa, em pensamento:

“Obrigado por tudo. Descansem tranqüilos até o dia raiar.”

Abriu a porta, cerrou-a atrás de si com todo o cuidado e partiu para uma nova jornada. O sol ainda não havia despontado.

 

UM CAVALO SEM FREIOS

Os primeiros dias de uma jornada são sempre cheios de animação, o cansaço nem chega a incomodar.

A dupla havia chegado tarde na noite anterior às hospedarias situadas na encruzilhada do posto de inspeção, mas hoje bem cedo, enquanto uma densa névoa ainda cobria a paisagem, já tinha passado pela montanha Fudesute e se encontrava perto de Yonken-chaya. Foi só então que o sol começou a despontar no horizonte às costas dos dois viajantes.

— Que coisa mais linda!

Os dois tinham-se voltado e contemplavam, imóveis e embevecidos, a beleza solene do disco solar em ascensão.

Os raios rubros refletiam no rosto de Otsu, cujos olhos fulguravam cheios de vida. Não só ela como a fauna e a flora, toda a natureza ao redor, constituíam nesse momento orgulhosas gemas a adornar a terra.

— Não vejo ninguém subindo a estrada, Otsu-san. Hoje, somos os primeiros a passar por aqui — disse Joutaro.

— Você se orgulha de cada coisa! Que diferença faz se somos os primeiros ou os últimos a passar pela estrada?

— Claro que faz diferença!

— Quer dizer que uma estrada de 40 quilômetros passa a ter apenas 30 só porque passamos primeiro?

— Não estou falando desse tipo de diferença. Mas é sempre mais agradável caminhar na frente dos outros por uma estrada, concorda? Muito melhor do que andar chocando ancas de cavalos ou ir na rabeira dos carregadores de palanquim!

— Quanto a isso, concordo. Mas que esse seu jeito orgulhoso de falar é estranho, lá isso é!

— É que, quando ando por estradas desertas, sinto como se tudo ao redor me pertencesse e eu estivesse percorrendo meus domínios.

— Nesse caso, façamos de conta que você é um suserano e eu sou o arauto que vai à frente do seu cavalo, abrindo caminho e anunciando a passagem do senhor das terras. Aproveite e ande com bastante imponência.

Otsu apanhou um galho de bambu à beira da estrada e começou a brincadeira anunciando em tom cantado:

— Curvem-se todos! Curvem-se todos! Dêem passagem ao senhor destas terras!

Um rosto espiou, pelo alpendre da casa de chá Yonken-chaya, cujas portas Otsu acreditara ainda fechadas àquela hora matinal.

— Ai, que vergonha! — sussurrou a jovem, enrubescendo e fugindo constrangida.

— Otsu-san! Otsu-san! — gritou Joutaro indo-lhe atrás. — Você não pode abandonar seu suserano e sair correndo desse jeito. É execução na certa!

— Não quero mais brincar!

— Mas foi você quem começou!

— A culpa é sua: você sempre consegue me tirar do sério. Credo, o homem da casa de chá continua olhando para cá. Na certa pensa que sou louca.

— Vamos voltar até lá.

— Para quê?

— Estou com fome.

— Já?

— Vamos comer a metade do lanche que trouxemos para o almoço.

— Pare com isso. Nem andamos dez quilômetros ainda! Se deixo por sua conta, você é capaz de fazer cinco refeições por dia!

— Em compensação, não ando de liteira, nem a cavalo, como você.

— O que aconteceu ontem foi excepcional. Era tarde e eu queria alcançar o posto de inspeção para o pernoite. E já que reclama, não vai se repetir.

— Hoje é a minha vez de andar a cavalo!

— Que é isso? Onde se viu um garoto forte como você andando a cavalo?

— Mas eu quero experimentar. Deixe, Otsu-san, deixe!

— Que menino impossível! Só hoje, entendeu?

— Eu vi um cavalo de carga preso ao mourão da casa de chá. Vou pegá-lo.

— Nada disso! Ainda é cedo, mal começamos a jornada!

— Está querendo me levar na conversa, é?

— Mas você nem está cansado, está? É um desperdício!

— Se for esperar até me cansar, nunca chegarei a cavalgar! Sou capaz de caminhar léguas sem sentir o mínimo cansaço. Deixe-me montar agora, enquanto a estrada está vazia. Será mais seguro!

Embora tivessem começado a jornada cedo, não iriam muito longe naquele andar. Sem esperar pelo consentimento de Otsu, Joutaro disparou alegremente em direção à casa de chá, voltando atrás pelo caminho já percorrido.

 

Yonken-chaya significa literalmente “quatro casas de chá”. Mas isto não quer dizer que as quatro casas se enfileirassem uma ao lado da outra, como lojas de roupas usadas. O nome serve para designar uma extensa área próxima às encostas das montanhas Fudesute e Kutsukake, por onde se espalham quatro casas de chá para o descanso dos viajantes.

— Ó tio! — berrou Joutaro, em pé diante de uma das referidas casas de chá. — Me prepara o cavalo!

O estabelecimento tinha acabado de abrir. O dono, ainda sonolento, voltou um olhar mal-humorado para examinar o menino cheio de energia que o despertara de vez com seu berro e disse:

— Que foi? Não sabes falar baixo?

— O cavalo! Me prepara logo o cavalo! Quanto quer para me levar até Minakuchi? Se não for muito caro, posso seguir até Kusatsu montado nele!

— Garoto, cadê teus pais? Tu és filho de quem?

— Filho de gente!

— Ah, bom! Pensei que fosses cria do Trovão.

— Trovão é você, tio!

— És bem respondão, hein, garoto!

— Me aluga o cavalo!

— Pensas que aquele cavalo é para montar? Pois não é e não posso alugá-lo para vossa senhoria, entendeste?

— Não pode alugar ele para vossa senhoria, é? — arremedou-o Joutaro.

— Peste dos infernos!

O dono da casa de chá apanhou um toco em brasa do fogão, onde alguns manju cozinhavam no vapor, e o lançou em direção a Joutaro. O tição não atingiu o alvo, mas a barriga do cavalo, preso ao alpendre a alguma distância.

O animal, velho, de pestanas quase brancas e que, desde potrinho, trabalhara todos os dias sem reclamar carregando no lombo fardos de miso e trigo, havia muito tempo não se espantava tanto. Relinchando alto, pôs-se a corcovear em desespero, suas costas chegando a bater no teto do alpendre.

— Aaah, danado! — gritou o velho, acorrendo. Podia estar xingando tanto o cavalo como Joutaro. — Ôôôôôa, ôôôa!

Segurou o animal pelas rédeas e pretendia conduzi-lo para baixo de uma árvore, ao lado da casa, quando Joutaro tornou a interromper:

— Me aluga, vá, tio!

— Já disse que nãoi

— Por que não?

— Não tenho condutor.

A essa altura Otsu já se encontrava ao lado dos dois e sugeriu que, se o homem não dispunha de um condutor, pagaria a viagem adiantado e, chegando a Minakuchi, entregaria o cavalo a um condutor ou viajante que se dirigisse para os lados da casa de chá. Os modos finos de Otsu pareceram despertar a confiança do taberneiro, que lhe entregou as rédeas. Nesse caso, Otsu poderia levar o cavalo até a hospedaria de Minakuchi, ou até Kusatsu se quisesse, disse o homem.

Joutaro estalou a língua, irritado:

— Olhem só para isso, o homem mudou de atitude só porque você é bonita.

— Não fale mal do taberneiro que o cavalo pode se ofender e jogá-lo no chão no meio do caminho, Jouta-san.

— Até parece que um cavalo caduco como esse é capaz de me derrubar.

— Por falar nisso, você é capaz de montar?

— Claro! Só que ele é meio alto...

— Não adianta você se agarrar desse jeito às ancas dele!

— Me pega no colo e me põe em cima, Otsu-san!

— Quanto trabalho você me dá!

Otsu ergueu-o pelas axilas e o pôs sobre a sela. Joutaro sentiu-se imediatamente com vontade de seguir caminho olhando o mundo do alto e pediu:

— Vamos, faça-o andar!

— Você me parece prestes a cair...

— Não tem perigo!

— Nesse caso, aqui vamos nós.

Otsu tomou as rédeas, voltou-se e se despediu do taberneiro, pondo-se a caminho.

Mal dera cem passos quando alguém, invisível na espessa névoa matutina, gritou às suas costas:

— Eeeeei!

Ao mesmo tempo, passos apressados aproximaram-se rapidamente.

 

— Quem será?

— É conosco?

Parados, voltaram-se. No meio da densa névoa branca, surgia um vulto humano cujos contornos gradativamente se definiam. Logo, a distância se reduziu possibilitando-lhes perceber formas, cores, e até a aparência do indivíduo.

Fosse noite, os dois talvez tivessem pensado em fugir antes de ser alcançados, pois o homem tinha um olhar agressivo, carregava uma espada rústica — cujo cabo sobressaía quase perpendicular à cintura — e à frente, introduzido no obi, um bastão com corrente.

O estranho chegou como um vendaval trazendo consigo uma atmosfera de violência e parou abrupto ao lado de Otsu. Ato contínuo, arrebatou as rédeas de suas mãos e ordenou, voltando-se para Joutaro:

— Desce!

O velho cavalo assustou-se outra vez e deu alguns passos para trás batendo os cascos. Joutaro, desequilibrado, agarrou-se às crinas e gritou:

— Pare com isso! Tá pensando o quê? Esse cavalo é meu, eu o aluguei.

— Cala a boca! — esbravejou o homem sem prestar a mínima atenção ao que o menino dizia. — Mulher! — disse então, voltando-se para Otsu.

— Que é?

— Sou Shishido Baiken e moro na vila Ujii, pouco além do posto de inspeção. Por motivos que não vêm ao caso, estou no encalço de um certo Miyamoto Musashi, que deve ter passado bem cedo por esta estrada, fugindo de mim. A esta altura, ele já deve ter deixado para trás as pousadas de Minaguchi há muito tempo. De modo que preciso deitar a mão nele de qualquer jeito em Yasugawa, na entrada de Goshu, porque depois desse ponto ele me escapa. Me dê o cavalo.

Falava tão rápido que chegava a ofegar. A manhã estava gelada a ponto de transformar a névoa retida nas copas das árvores em flores de gelo. Apesar disso, gotas de suor brilhavam no pescoço de Baiken, tornando sua pele semelhante à de um réptil, com suas artérias intumescidas.

Otsu empalideceu a olhos vistos, como se a terra lhe tivesse sugado todo o sangue, e perdeu a fala: os lábios arroxeados tremiam, tentando fazer perguntas ao homem para compreender melhor o que acabara de ouvir, mas nenhum som deles saía.

— M... Musashi? — gaguejou Joutaro, ainda sobre o cavalo. Agarrado à crina, seus braços e pernas também tremiam.

Baiken, desesperado por seguir viagem o mais rápido possível, não chegou a perceber o inusitado espanto dos dois e gritou:

— Vamos lá, moleque! Desce, desce! Anda logo ou te parto a cara! Ameaçou chicoteá-lo com a ponta da rédea, mas Joutaro sacudiu a

cabeça com força e gritou:

— Não desço!

— Quê?

— O cavalo é meu. Desista de querer alcançar alguém com ele!

— Moleque atrevido! Estou tentando ser razoável porque vocês são afinal apenas uma mulher e uma criança, e recebo malcriações em troca!

— Otsu-san! — gritou Joutaro, fitando-a por cima da cabeça de Baiken. — Não podemos emprestar o cavalo, podemos? Não devemos, não é verdade?

Otsu tinha vontade de aplaudir Joutaro por suas corajosas palavras. O cavalo não podia seguir viagem, muito menos o homem, com toda a certeza!

— Isso mesmo! — respondeu. — Talvez o senhor esteja com pressa, mas nós também estamos. Espere mais um pouco e não faltarão cavalos e liteiras cruzando as montanhas. Como acabou de dizer o menino, seu pedido é absurdo e não vamos atendê-lo!

— Eu não desço. E não entrego o cavalo, nem morto! Unânimes, os dois rejeitaram com firmeza a exigência de Baiken.

 

Baiken estranhou um pouco a firme recusa, mas a seu ver a situação inteira era risível, não merecia que perdesse tempo com ela.

— Quer dizer que não vão me ceder o cavalo?

—13 óbvio! — disse Joutaro, seguro como um adulto.

— Vai pro inferno, então! — explodiu Baiken, esquecendo-se, até certo ponto compreensivelmente, que lidava com uma criança.

No instante seguinte saltou, tentando alcançar e jogar ao chão o menino, agarrado como uma pulga à crina da montaria. A mão de Baiken fechou-se sobre a perna apoiada à barriga do cavalo.

Joutaro não se lembrou, pelo visto, que esse era o momento exato de arrancar a espada da cintura. Ao se ver agarrado pelo tornozelo por um adversário indiscutivelmente mais forte do que ele, ficou frenético:

— Cão danado! — disse, lançando sucessivas cusparadas que atingiram o rosto de Baiken.

Desastres costumam chegar sem se anunciar na vida das pessoas.

Dois jovens que havia pouco tinham contemplado o nascer do sol e sentido a alegria de viver, viam-se agora envolvidos num perigoso conflito. Otsu não queria, a essa altura, entrar em luta com um desconhecido e sair ferida, muito menos morrer. O medo ressecou-lhe a boca e trouxe um gosto amargo.

No entanto, pedir desculpas e entregar o cavalo estava fora de cogitação, pois seria o mesmo que lançar a fúria assassina deste sinistro homem no rastro de Musashi, o qual, segundo acabara de ouvir, tinha passado por ali poucas horas atrás. Musashi corria grande perigo, disso a jovem tinha certeza. Se lograsse atrasar Baiken por algumas horas, estaria dando ao jovem tempo para escapar.

Otsu apertou com firmeza os lábios rubros e decidiu: jamais emprestaria ao homem as velozes patas do cavalo, mesmo que a distância entre ela e Musashi instantaneamente aumentasse por causa dessa decisão.

— Pare com isso! — gritou Otsu empurrando com força o peito do homem, surpresa com a própria coragem, ou temeridade. Baiken, que ainda limpava o cuspe do rosto, espantou-se um pouco com mais esta demonstração de força dos seres que julgara frágeis. Como se não bastasse, a mão de Otsu, que acabara de empurrar Baiken, agarrou na fração de segundo seguinte a empunhadura da espada rústica que lhe sobressaía do obi, mostrando uma vez mais que a coragem de uma mulher é muito maior do que imagina o homem.

— Vagabunda! — vociferou Baiken, pensando em segurar o pulso de Otsu, mas na realidade fechando a mão sobre a espada que já começava a deixar a bainha, puxada pela mão da jovem. No instante em que a mão direita de Baiken tocou a lâmina, seus dedos mínimo e anular pareceram criar vida, saltaram e foram ao chão, ensangüentados.

Com um grito de dor Baiken pulou para trás involuntariamente, segurando os dedos restantes da mão direita. A reação fez com que a espada, cujo cabo permanecia na mão de Otsu, acabasse desembainhada tão seguramente quanto se ele próprio o fizesse. Um corisco prateado partiu das mãos de Otsu, correu pelo chão e se escondeu às costas dela.

Baiken, o mestre em artes marciais, acabava de cometer um erro ainda maior que o da noite anterior: menosprezara a capacidade de seus adversários, levado pela impressão de que não passavam de uma frágil mulher e um inofensivo menino, e se equivocara.

No momento em que, maldizendo a própria inépcia, tentava reaprumar-se, a espada — agora nas mãos de alguém que tinha esquecido o sentido da palavra medo — veio em sua direção num golpe lateral. Mas a arma, de lâmina grossa e quase um metro de comprimento, era pesada, e a maioria dos homens consideraria difícil manejá-la. De modo que, quando Baiken se esquivou, Otsu foi arrastada pelo peso da espada, e acabou cambaleando.

A jovem sentiu um impacto no braço, como se tivesse atingido o tronco de uma árvore e, no mesmo instante, viu uma nuvem rubra esguichando na sua direção. Uma leve tontura a invadiu. A espada tinha atingido a anca do cavalo, a cuja crina Joutaro continuava agarrado.

 

O cavalo tinha passado por muitos sustos desde cedo e estava agitado. O corte era superficial, mas o relincho, quase um berro de agonia, foi espantoso. Com o ferimento vertendo sangue, o animal pôs-se a debater.

 Baiken berrou algo indistinto e estava prestes a agarrar o punho de Otsu para arrancar de suas mãos a espada, quando as patas traseiras do cavalo, que se agitava louco de medo, atingiram os dois. O animal empinou, relinchou alto mais uma vez, narinas frementes, e disparou pela estrada como uma flecha.

— Ôôôôa! Ôôôa! — gritou Baiken, investindo contra o rastro de areia e pó do cavalo em fuga, quase tombando para a frente na pressa, mas sem conseguir alcançá-lo.

Foi então que voltou os aterrorizantes olhos injetados de sangue na direção de Otsu, e... não a achou.

— Quê?!

Àquela altura, as veias azuladas nas têmporas de Baiken tinham engrossado ainda mais. Procurou ao redor e encontrou a espada aos pés de um pinheiro, na beira da estrada. Apanhou-a de um salto, espiou por cima do barranco raso, logo adiante, e avistou o telhado de uma casa de lavradores bem aos seus pés.

Tudo indicava que Otsu, atingida pelas patas do cavalo, havia rolado pelo barranco. Nesse ponto, Baiken já havia começado a achar que devia existir algum tipo de vínculo entre a jovem e Musashi. O ferreiro tinha pressa em prosseguir viagem, mas a idéia de deixar Otsu escapar o exasperava.

Baiken desceu correndo o barranco.

— Onde é que ela se meteu? — gemeu ele, rodeando a casa dos camponeses em largas passadas. — Onde se escondeu?

Apenas um velho lavrador corcunda, rígido de pavor, observava, semi-oculto por uma roca, os modos loucos de Baiken espreitando debaixo do alpendre, abrindo portas de celeiros e espiando o interior.

— Lá vai ela! — gritou Baiken, localizando-a afinal.

No brejo de ciprestes, no fundo do vale, a neve ainda se acumulava. Otsu corria como um faisão pela íngreme encosta coberta de ciprestes rumo ao fundo do vale.

— Agora te achei! — berrou Baiken de cima, fazendo Otsu voltar-se involuntariamente. Seu vulto aproximou-se, mais rápido que os torrões de terra, que se soltavam à sua passagem e rolavam barranco abaixo. A mão direita empunhava a espada que acabara de apanhar do chão, mas Baiken parecia não ter a intenção de usá-la. Na certa imaginava que se a jovem era a companheira de Musashi, poderia usá-la como isca ou para descobrir seu paradeiro por intermédio dela.

— Vagabunda!

Baiken estendeu a mão esquerda e as pontas dos seus dedos tocaram os cabelos de Otsu.

A jovem encolheu-se e abraçou o tronco de uma árvore. Ato contínuo, perdeu o pé, e se viu balançando como um pêndulo, rente ao barranco. Torrões de terra e pedregulhos caíram sobre sua cabeça e escorreram pelas mangas para dentro da roupa. E durante o tempo todo os olhos arregalados de Baiken e sua espada brilhavam sobre ela.

— Idiota! Que pretende? Fugir? Daí para baixo é um precipício, direto para dentro do rio no fundo do vale!

Otsu voltou o olhar para os pés e viu, algumas dezenas de metros abaixo, a faixa verde do rio abrindo caminho pela neve do fundo da ravina. A vista, longe de apavorá-la, prometia salvação. Sentiu que era capaz de soltar os braços e lançar-se no espaço a qualquer momento.

Mal pressentiu a morte, e mais rápido que o medo dela, Musashi lhe veio à mente. Na cabeça de cabelos eriçados, a imagem do jovem surgiu, clara como a lua entre nuvens de tormenta, tão nítida quanto lhe permitiam memória e imaginação.

— Patrão! Patrãão!

Ecos da montanha repetiram nesse momento uma voz distante, desviando a atenção de Baiken.

 

Rostos surgiram no topo do barranco. Eram dois ou três homens. — Patrão! — gritava um deles. — Ainda por aqui? Vá em frente sem perda de tempo. Interrogamos o dono da casa de chá e acabamos de saber que um samurai passou por lá esta madrugada, mandou preparar um lanche e se afastou correndo em direção ao vale Koga. Sabia disso?

— Em direção ao vale Koga?

— Sim. Mas tanto faz que tenha ido pelo vale Koga, ou transposto o monte Tsuchiyama para sair em Minaguchi: os caminhos acabam se juntando nas pousadas de Ishibe. Se a gente chegar primeiro em Yasugawa e armar uma cilada, o sujeito cairá em nossas mãos com certeza.

Baiken ouvia as vozes distantes, mas o olhar feroz continuava fixo em Otsu, amarrando-a.

— Quero-os todos aqui embaixo! Desçam! — ordenou Baiken.

— Descer até aí?

— Rápido!

— Mas se continuarmos nessa lengalenga, Musashi vai acabar passando por Yasugawa e...

— Calem a boca e desçam.

— Certo, certo!

Os homens eram os mesmos que na noite anterior haviam se esforçado em vão para alcançar Musashi e, pelo jeito, estavam habituados a andar pelas montanhas, pois desceram a íngreme escarpa em linha reta, correndo como um javali. Ao depararem com Otsu, entreolharam-se admirados.

Baiken inteirou os companheiros dos acontecimentos em rápidas palavras e confiou-lhes Otsu, ordenando-lhes que a trouxessem mais tarde até Yasugawa. Os asseclas concordaram e amarraram a jovem cabisbaixa, lançando olhares furtivos ao rosto assustadoramente pálido, com pena de apertar o laço.

— Entenderam as instruções? E não se atrasem!

Com esta última recomendação, Baiken correu obliquamente pela encosta da montanha, ágil como um macaco e logrou alcançar o fundo do vale Koga e a beira do rio, de onde se voltou e olhou para cima.

O minúsculo vulto parado à distância levou a mão à boca e gritou:

— Encontro-os em Yasugawa. Vou cortar caminho. Quanto a vocês, sigam pela estrada principal, redobrando a atenção. Entendeeeram?

De cima do barranco, veio o eco das vozes dos homens:

— Entendeeemos!

Baiken se afastou então pelo vale pontilhado de neve, saltando de rocha em rocha como um galo silvestre.

O cavalo estava velho e alquebrado, mas em pânico era ainda capaz de criar problemas para o cavaleiro. Mormente sendo o cavaleiro o despreparado Joutaro.

Com o corte na anca aberto e sangrando, a velha montaria parecia estar sentindo o rabo em chamas e disparou pela estrada, venceu a encosta Happyakuya do monte Suzuka num piscar de olhos, transpôs o morro Kani, embarafustou-se pelo posto de descanso dos liteireios no morro Tsuchiyama, e chispou pela vila Matsuo e pela base da montanha Nunobiki, sem jamais parar.

Digno de admiração era o fato de Joutaro ainda estar sobre a sela.

— Cuidado-cuidado-cuidado!

De olhos fechados e agarrado agora ao pescoço do cavalo, uma vez que as crinas Já não lhe davam apoio suficiente, berrava ele sem parar como se repetisse uma fórmula mágica capaz de frear o cavalo.

Quando as ancas do cavalo saltavam inopinadamente, o traseiro de Joutaro dançava no ar criando uma situação perigosa que, muito mais que o próprio cavaleiro, afligiu aldeões e liteireiros a observar boquiabertos sua passagem.

Se nem montar soubera, desmontar não saberia, e muito menos parar o animal.

— Cuidado! Cuidado-cuidaaado!

Pobre Joutaro, que há tempos vinha atormentando Otsu, insistindo em cavalgar ao menos uma vez na vida para correr como o vento! O desejo tão longamente acalentado tinha sido com certeza atendido, mas a voz pouco a pouco estava tornando-se chorosa: a fórmula mágica freneticamente repetida não queria surtir efeito.

 

Aos poucos, viajantes haviam começado a surgir na estrada, mas ninguém queria deter um cavalo desenfreado e correr o risco de se ferir, metendo-se além do mais em assunto que não lhe dizia respeito.

— Que é isso, gente? — dizia um, acompanhando-os com o olhar.

— Maluco! — xingava outro, desviando-se para a beira da estrada. Num piscar de olhos cavalo e cavaleiro passaram pela vila Mikumo e pela parada de Natsumi.

Fosse aquele o lendário macaco Son Goku cavalgando sua nuvem mágica[42], teria posto a mão em pala sobre os olhos e, de sua privilegiada posição, apreciado a paisagem matinal dos vales e serras de Iga e Koga, louvado a esplêndida vista das montanhas de Nunobiki e do rio Yokota, assim como a do lago Biwa-ko que surgia ao longe, semelhante a um espelho incrustado na terra ou a um floco de nuvem roxa pousado no solo. Joutaro, porém, embora cavalgasse um cavalo de rapidez talvez comparável à da nuvem mágica, não estava em condições de lançar sequer uma olhadela para os lados.

Seus berros “Cuidado-cuidado-cuidado!” mudaram para “Segura o cavalo! Segura o cavalo! Segura o cavalo!” e tornaram a mudar para “Socooorro!” ao atingir o topo da íngreme ladeira Koji-zaka.

O menino saltava como uma bola sobre o dorso do animal, que agora se precipitava de cabeça ladeira abaixo, fazendo antever que desta vez lançaria sua carga ao chão.

Mas quase no final da ladeira, o galho de um gigantesco carvalho à beira da estrada atravessava o caminho como se quisesse obstruí-lo de propósito. Quando Joutaro sentiu as folhas atingindo-lhe o rosto, acreditou encontrar a mão salvadora dos céus, a resposta às suas preces, e agarrou-se instantaneamente ao galho como um sapo.

Enfim livre da carga, o cavalo desembestou ladeira abaixo e Joutaro, abraçado ao galho, viu-se repentinamente balançando nas alturas.

A altura nem era tanta, pois do galho ao chão devia haver pouco menos de três metros. Se largasse a árvore de uma vez, Joutaro voltaria ao solo sem maiores problemas. Mas para provar que um ser humano não é um macaco, ali estava o menino, aferrando-se com unhas e dentes ao galho, ora abarcando-o com as pernas, ora mudando de posição as mãos quase dormentes, frenético como se estivesse dependurado num penhasco e correndo perigo de vida. O choque lhe afetara o raciocínio, normalmente tão vivo, fazendo-o debater-se de um jeito cômico e ao mesmo tempo comovente.

Logo, um sonoro estalo anunciou que o galho se partia. “Xiiü”, pensou o menino, mas no minuto seguinte ele se viu sentado no chão, sem dano algum. Joutaro olhou ao redor, apatetado.

— Puxa!

Não viu o cavalo. Mesmo que o visse, não tornaria a montá-lo por nada neste mundo.

E estatelado deixou-se ficar por instantes, mas logo saltou em pé, como que impelido por uma mola:

— Otsu-saan! — gritou ele para o topo da ladeira

De súbito, disparou pelo caminho anteriormente percorrido. Suas feições estavam tensas, e desta vez o menino empunhava com firmeza a espada de madeira.

— Que lhe poderá ter acontecido? Otsu-saan!

Ao alcançar o topo da ladeira, cruzou com um homem de rosto oculto num sombreiro. Usava um quimono escuro e um hakama de couro, sem sobretudo. À cintura, levava um par de espadas.

 

— Menino! Ei, menino! — disse o homem, erguendo a mão ao passar por Joutaro, analisando o pequeno com atenção, da cabeça aos pés. — Que houve?

Joutaro voltou alguns passos e perguntou:

— O senhor veio lá de trás, tio?

— Isso mesmo.

— Não viu por acaso uma moça bonita, de uns 20 anos?

— Vi, sim.

— Onde?

— Em Natsumi, a curta distância daqui, um grupo de bandoleiros a trazia amarrada à ponta de uma corda. Estranhei, mas como não era de minha conta, passei por eles sem nada lhes perguntar. Acho que os homens eram asseclas de Tsujikaze Ryohei, o bandoleiro que se fixou no vale Suzuka.

— São eles! — disse Joutaro.

Ao ver que o menino ia sair correndo de novo, o homem o deteve:

— Espere! A moça está com você?

— Está! Ela se chama Otsu-san.

— Se você não souber lidar com a situação, esses homens são capazes de matá-lo. Conte-me toda a história enquanto aguardamos a passagem deles, já que serão obrigados a vir por este caminho. Talvez eu tenha uma boa idéia.

Joutaro confiou de imediato no desconhecido e contou-lhe com detalhes tudo o que lhes havia acontecido nessa manhã. O homem balançou diversas vezes a cabeça coberta pelo sombreiro e depois disse:

— Ah, agora entendi. Mas por mais que se esforcem, vocês dois não são páreo para os asseclas de Tsujikaze Ryohei, que agora diz chamar-se Baiken. Muito bem, eu recuperarei essa jovem Otsu-san dás mãos do bando.

— E eles a entregarão?

— De graça talvez não, mas eu cá tenho algumas idéias. Esconda-se no meio desses arbustos e fique quieto.

Mal Joutaro se ocultou, o homem prosseguiu a passos largos para o fundo do vale. Inquieto, Joutaro pôs a cabeça para fora da moita e espiou: “E se o homem disse tudo aquilo apenas para me consolar e foi-se embora?”, pensou ele.

De repente, ouviu vozes no topo da ladeira e escondeu-se depressa outra vez: a voz era de Otsu. Com as mãos atadas às costas e cercada pelos três bandoleiros, a jovem veio andando e passou momentos depois na frente da moita onde se escondia Joutaro.

— O que tanto procura? Pare com isso e ande ligeiro!

— Ande logo! — gritou outro, empurrando-lhe o ombro. Otsu cambaleou.

— Estou procurando o menino que estava comigo. Que lhe teria acontecido? Jouta-saan!

— Cale a boca!

Havia sangue no pé branco da jovem. Joutaro pensou em saltar da moita, gritando: “Estou aqui!”. Mas no mesmo instante, viu surgir o samurai do quimono escuro. O homem tinha se livrado do sombreiro, e vinha agora subindo o morro quase às carreiras com expressão preocupada no rosto moreno. Aparentava 25 ou 26 anos, e murmurava consigo mesmo, assustado, sem sequer olhar para os lados:

— Céus! Que confusão!

Os três bandoleiros, que tinham entreouvido suas palavras, pararam no meio da ladeira e voltaram-se para acompanhar com os olhos o homem que acabara de cruzar por eles com um brusco “Dêem-me licença!”. Sem conseguir conter-se, um deles o interpelou:

— Ei, você não é o sobrinho dos Watanabe? De que confusão está falando?

 

Deduzia-se dessas palavras que o homem do quimono escuro era sobrinho de Watanabe Hanzou, o representante de uma tradicional família ninja, bastante respeitada nas cercanias do vale Iga e do vilarejo Kouga.

— Não sabem ainda? — perguntou o sobrinho dos Watanabe.

— De quê? — indagaram de volta os três bandoleiros, aproximando-se. O sobrinho dos Watanabe disse, apontando à frente:

— Um certo Miyamoto Musashi está lá embaixo, de espada em punho bloqueando a estrada. O homem preparou-se dos pés à cabeça para a luta, e está examinando com olhar assustador todos os viajantes que passam pelo local, um por um.

— Que disse? Musashi?

— Quando fui passar, o homem aproximou-se de mim agressivamente e me perguntou o nome. Respondi-lhe que sou Tsuge San-no-jou, sobrinho do ninja Watanabe Hanzou, do bando Iga. No mesmo instante ele se desculpou e disse-me calmamente que se não sou assecla de Tsujikaze Ryohei, do vale Suzuka, podia passar.

— E?

— Perguntei-lhe então o que estava acontecendo, e ele me respondeu que ouvira rumores na estrada dando conta de que um certo bandoleiro de nome Tsujikaze Ryohei — hoje vivendo sob o pseudônimo Baiken — planejava assassiná-lo com a ajuda de alguns asseclas. Se esse era o caso, continuou o sujeito, em vez de se deixar apanhar facilmente na cilada que lhe haviam preparado, preferia estabelecer sua base de ação naquele lugar e lutar até o fim.

— Isso é verdade, San-no-jou?

— E por que haveria eu de mentir? De mais a mais, de que jeito haveria eu de conhecer esse nome, Miyamoto Musashi?

Nos rostos dos três homens surgiram nítidos sinais de apreensão. Que faremos?, pareciam perguntar-se, trocando olhares de esguelha.

— Prossigam com cuidado — recomendou San-no-jou, dando mostras de querer afastar-se, quando um dos homens o reteve, ansioso:

— Sobrinho dos Watanabe!

— O que foi?

— Estamos numa enrascada, homem! Até o patrão comentou que esse homem era absurdamente forte.

— Ele é muito competente, com certeza. Quando se aproximou de mim lá embaixo, empunhando numa das mãos a espada desembainhada, até eu, que nada tenho a ver com o caso, me senti mal.

— Que acha que devemos fazer? Porque, na verdade, estávamos arrastando esta mulher para Yasugawa a mando do patrão.

— Eu não tenho nada a ver com isso.

— Não banque o indiferente e dê-nos uma mãozinha.

— Nem pensar! Se meu tio vier a saber que os ajudei a fazer qualquer tipo de serviço, levo uma reprimenda colossal, com certeza! Mas conselhos posso até lhes dar — se quiserem ouvir.

— Claro que queremos! Vão ajudar muito!

— Em primeiro lugar, livrem-se dessa mulher que levam na ponta da corda: soltem-na no meio do mato ou melhor, amarrem-na provisoriamente no tronco de uma árvore.

— Sei. E depois?

— Vocês não podem passar por esta ladeira. Vão ter de andar um pouco mais, atravessar o vale por caminhos secundários e levar quanto antes a notícia a Yasugawa. Passem à frente do tal Musashi, fechem o cerco à distância pelo outro lado, e só depois caiam em cima dele.

— Ah, entendi.

— Acho melhor agirem com prudência, pois o sujeito está pronto para tudo. Sinto que poderá haver muitas mortes, mas não gostaria de ver isso acontecer.

Os três homens aprovaram o plano de imediato:

— Isso mesmo! Vamos seguir seus conselhos.

Depois, arrastaram Otsu para dentro das moitas, amarraram-na ao tronco de uma árvore e começaram a se afastar, mas um deles logo retornou para amordaçá-la, dizendo:

— Assim está melhor.

— Ótimo!

Afastaram-se a seguir pela mata e desapareceram.

Joutaro, que estivera imóvel acocorado no meio das folhas e dos arbustos secos, espichou então o pescoço e olhou em torno com cuidado, imaginando se já podia sair.

 

Não havia ninguém à vista, nem viajantes, nem o sobrinho dos Wata-nabe, San-no-jou.

— Otsu-san! — gritou Joutaro, pulando e chegando perto dela por dentro da mata. Desatou os nós e arrastou-a pela mão para o meio da estrada.

— Vamos fugir!

— Como é que você veio parar aqui, Jouta-san?

— Não importa! Temos de fugir! É agora ou nunca!

— Espere, espere um pouco!

Otsu parou para ajeitar os cabelos desalinhados, a gola do quimono e a faixa sobre o obi, o que impacientou Joutaro:

— Isto não é hora de perder tempo se arrumando! Deixe para se pentear depois, Otsu-san!

— Mas o homem que passou há pouco disse que Musashi-sama está lá embaixo, na base da ladeira.

— E é para ele que você está se arrumando?

— Não, não! — replicou Otsu, tentando justificar-se com uma seriedade quase cômica. — Mas é que encontrando Musashi-sama, nada mais teremos a temer. E como acho que nossas dificuldades acabaram e estou me sentindo bem mais tranqüila...

— Mas será que Musashi-sama está mesmo lá embaixo?

— Por falar nisso, aonde foi o homem que conversava com os três bandoleiros?

— Não o vejo em lugar algum! — constatou Joutaro, olhando em torno. — Que sujeito mais estranho!

Mas uma coisa era certa: Tsuge San-no-jou os havia salvado das garras da morte.

E Otsu já começava a achar que nunca seria capaz de lhe agradecer o suficiente se além de tudo lograsse reencontrar Musashi na base do morro.

— Vamos, vamos logo! — disse a jovem.

— Ué! Já acabou de se arrumar?

— Está zombando de mim, Jouta-san?!

— Você está com um ar tão feliz, que não resisti.

— Olhe só quem fala! Você também está!

— Claro que estou! Só que eu não escondo minha alegria, como você. Sou até capaz de gritar. Quer ver? Estou feliz, estou feliz! — Joutaro agitou braços e pernas. — Mas... E se meu mestre não estiver lá embaixo? Otsu-san, vou correndo na frente para verificar, está bem?

Dito isto, disparou ladeira abaixo. Otsu o seguiu sentindo que o coração corria direto para a base do morro, mais depressa ainda que o menino; suas pernas, porém, arrastavam-se morosamente.

“Estou toda desarrumada!”, lamentou-se Otsu, fitando o pé ensangüentado e as mangas sujas do contato com a terra e o mato.

E na manga havia uma folha seca. A jovem a apanhou e andava brincando com ela quando percebeu que um inseto nojento saíra de um casulo branco e rastejava agora pelo dorso da mão.

Otsu tinha-se criado nas montanhas mas não gostava de bichos. Horrorizada, agitou a mão freneticamente.

— Ande logo! Que moleza, Otsu-san! Venha de uma vez! — gritou Joutaro vivamente da base da colina. O tom era alegre, e sugeria que o menino tinha enfim encontrado Musashi.

— Finalmente, finalmente! — pensou Otsu.

Sentiu-se consolada de toda a miséria, e orgulhosa de si mesma ante os deuses por ter conseguido realizar esse seu mais caro desejo. O coração palpitava de alegria.

Mas Otsu sabia muito bem que essa alegria era só dela, um prelúdio tocado apenas para os seus ouvidos. Quem lhe garantia que Musashi corresponderia ao seu amor? O coração já lhe começava a doer num misto de felicidade e agonia.

 

A terra continuava congelada nas áreas sombrias à beira da estrada, mas no fim da ladeira havia uma casa de chá num trecho de terra tão ensolarado que moscas voejavam em torno apesar do intenso frio desses dias de inverno. Voltada para os arrozais da base da montanha, a casa comercializava protetores de pata para bois, feitos de palha, e confeitos baratos. E ali, parado na frente da loja, estava Joutaro esperando por Otsu.

— Onde está ele? — perguntou a jovem, seu olhar percorrendo com cuidado a pequena multidão barulhenta à entrada da casa de chá na parada dos liteireiros.

— Não o encontrei — disse Joutaro, com ligeiro desapontamento, acrescentando:

— O que será que aconteceu?

— Como? — exclamou Otsu, incrédula. — Não pode ser!

— Mas ele não está em lugar algum! Perguntei na casa de chá, mas ninguém viu um samurai que correspondesse à descrição. Estou achando que houve um mal-entendido — disse o garoto, sem se mostrar especialmente frustrado.

Otsu sabia que a culpa era dela por ter-se alegrado antes da hora, mas achou revoltante a rapidez com que Joutaro se dispunha a liquidar a questão.

“Que menino!”, pensou Otsu, furiosa com a quase indiferença do garoto.

— Você o procurou ali adiante?

— Procurei.

— E atrás desse marco?

— Não está.

— Atrás da casa de chá?

— Não está, já disse! — replicou Joutaro, ligeiramente aborrecido com a insistência.

Otsu voltou o rosto para o lado num brusco movimento.

— Está chorando, Otsu-san?

— Que lhe importa?

— Não consigo entender você às vezes, sabia? Sempre a achei uma moça muito inteligente, mas em alguns aspectos você parece criança! Pense bem: para começar, aquela notícia não tinha fundamento algum. Mas você acreditou piamente nas palavras do homem, ficou feliz e agora começa a choramingar porque não encontrou Musashi-sama. Você não regula bem! — disse Joutaro, começando a rir abertamente, sem consideração alguma.

Otsu sentiu vontade de se sentar ali mesmo, no meio da estrada. A luz do mundo inteiro tinha-se ido repentinamente e o habitual pesar — não, muito mais que isso, uma decepção profunda, jamais experimentada — invadiu-lhe o coração. Os dentes cariados na boca escancarada em riso lhe pareceram odiosos, irritantes. Por que tinha de andar com esse pestinha? Ai!, se pudesse, abandoná-lo-ia por aí e seguiria chorando sozinha pela estrada!, considerou Otsu.

Pensando bem, apesar de estarem os dois andando em busca de Musashi, as reações eram diferentes porque Joutaro procurava apenas seu mestre querido, enquanto Otsu tentava encontrar o homem da sua vida. Além disso, episódios desse tipo não costumavam abater Joutaro: o menino logo recuperava o bom humor porque tinha, no íntimo, a certeza de um dia reencontrar seu mestre. Mas Otsu, ao contrário, não conseguia ser tão otimista e perdia o ânimo durante dias, chegando até a imaginar para si um futuro dos mais sombrios.

“Pode ser que eu esteja destinada a nunca mais vê-lo!”, pensava ela.

Quem ama quer ser correspondido, mas também anseia por privacidade. Otsu, principalmente, órfã desde pequena e afeita à solidão, ressentia-se da presença de estranhos com muito mais intensidade do que a maioria das pessoas.

Ligeiramente amuada e fingindo-se ofendida, a jovem pôs-se a caminho em silêncio quando uma voz a chamou às suas costas:

— Otsu-san!

Não era Joutaro. A jovem voltou-se e viu um homem sair de trás do marco de pedra e se aproximar abrindo caminho na relva seca. As bainhas das espadas longa e curta brilhavam, úmidas de orvalho.

 

Era Tsuge San-no-jou.

Otsu e Joutaro tinham pensado que San-no-jou prosseguira ladeira acima havia pouco, mas eis que o homem reaparecia num lugar inesperado. O comportamento era estranho.

Além disso, não era correto chamá-la “Otsu-san”, pensou a jovem: demonstrava uma intimidade que não tinham. Joutaro reagiu com agressividade:

— Tio, o senhor mentiu para nós.

— Como assim?

— O senhor disse que Musashi-sama estava aqui, com um espada na mão! Onde está ele? O senhor mentiu!

— Idiota! — ralhou San-no-jou. — Não percebe que graças à mentira sua amiga conseguiu escapar daqueles três? Você não tem nada a cobrar de mim. Muito pelo contrário, acho que me deve agradecimentos.

— Quer dizer que a lorota foi para engabelar os três homens?

— É óbvio!

— Agora entendi! Está vendo, Otsu-san? Era lorota mesmo! — disse Joutaro

Otsu foi obrigada a reconhecer que fizera um triste papel. Irritar-se com Joutaro era uma coisa, mas chamar San-no-jou de mentiroso era outra, totalmente desprovida de sentido. Com uma delicada mesura, a jovem agradeceu San-no-jou por sua providencial intervenção.

Este, enfim satisfeito, disse:

— Os bandoleiros de Yasugawa andam bem menos ativos nos últimos tempos. Ainda assim, acho que vocês não conseguirão escapar ilesos destas montanhas com esse bando nos seus calcanhares. Quanto a esse Mfyamoto Musashi, por quem tanto se preocupam, não vai cair na armadilha dos bandidos se for tão bom guerreiro quanto afirma o menino.

— Sabe se existem outras estradas além desta que levem à de Ko-shu?— perguntou Otsu.

— Claro que existem. — San-no-jou ergueu o olhar e contemplou o límpido perfil das montanhas cobertas de neve. — Se chegar ao vale de Iga, tem a estrada que vem de Ueno; se alcançar o vale Ano, tem a estrada que vem de Kuwana e Yokkaichi; além delas, devem existir ainda mais alguns atalhos e picadas que cortam florestas. Acho que esse tal Miyamoto Musashi deve ter tomado um desses caminhos.

— Espero que sim, sinceramente.

— Maior perigo correm vocês dois. De nada valerá tê-los salvo das garras desse bando de cães selvagens se continuarem a andar calmamente por esta estrada, pois acabarão chegando a Yasugawa e às mãos dos bandidos outra vez. Pode ser que achem o caminho um pouco íngreme, mas será melhor me acompanharem: vou levá-los por um atalho que ninguém conhece.

San-no-jou os conduziu por uma picada que cortava as montanhas acima da aldeia de Koga e levava ao estreito de Outsu pelo passo Makado, local onde parou e explicou minuciosamente o caminho a seguir, acrescentando:

— Daqui para frente não têm mais nada a temer. Tratem de chegar cedo às pousadas e depois prossigam com cuidado.

Otsu agradeceu novamente e ia se afastar quando San-no-jou a deteve:

— Otsu-san, estamo-nos despedindo, percebeu? — Fixou um olhar intencional no rosto da jovem e acrescentou, quase com raiva: — Durante todo o percurso esperei que me perguntasse, mas acabei não tendo esse prazer.

— Perguntar o quê?

— Meu nome.

— Mas eu o ouvi, na ladeira Koji-zaka.

— E lembra-se dele?

— O senhor é Tsuge San-no-jou-sama, sobrinho de Watanabe Han-zou-sama.

— Que bom! Longe de mim querer me impor, mas você não vai se esquecer, vai?

— Nunca me esquecerei do quanto lhe devo.

— Não é nada disso. Espero que não se esqueça de que ainda sou solteiro. Se meu tio não fosse tão implicante, eu a levaria à minha casa, mas... Bem, deixe isso para lá. Na vila, existe uma pequena hospedaria, cujo dono me conhece. Dê-lhe o meu nome e hospede-se com ele. Adeus!

 

Otsu sabia que devia muito a San-no-jou, mas quanto mais gentil se mostrava o homem, mais ele lhe repugnava.

Desde o início, a jovem tivera a impressão de que San-no-jou era talso porque mentia com muita facilidade, o que a impediu de agradecer-lhe sinceramente e a fez sentir certo alívio no momento da despedida, como se estivesse escapando das garras de um lobo.

O mesmo parecia estar sentindo Joutaro, habitualmente tão receptivo, pois murmurou enquanto atravessavam o passo:

— Que sujeito desagradável!

Otsu também não conseguiu conter-se e sussurrou:

— Concordo com você. E que terá ele querido dizer quando enfatizou que ainda era solteiro?

— Na certa quis dizer que vai aparecer um dia para lhe pedir a mão.

— Que os deuses me livrem!

A partir desse ponto, a jornada transcorreu sem incidentes, o único fato a lamentar sendo o de que não tinham conseguido saber de Musashi nem à beira do lago de Oumi, nem ao cruzar a ponte Karahashi, em Seta, ou ainda no posto de inspeção da ladeira Ou-saka.

Na cidade de Kyoto, arranjos festivos de pinheiro e bambu já adornavam os portais, anunciando a aproximação do Ano Novo. E ao ver a cidade enfeitada à espera da primavera, o coração de Otsu parou de lamentar a oportunidade perdida para se encher uma vez mais de esperanças.

Manhã do primeiro dia do ano, na boca da ponte da rua Gojo.

Ou senão, do segundo, terceiro ou quarto dia... Ele estaria ali esperando todas as manhãs até o sétimo dia, Otsu ouvira Joutaro dizer. Pena que Musashi não esperava por ela. Mas não tinha importância: se viesse a encontrá-lo, seus sonhos estariam quase todos realizados.

“Mas e se...?”

E eis que de súbito uma nova sombra vinha toldar sua alegria: Hon’i-den Matahachi. Pois todas as sete manhãs Musashi estaria esperando por Hon’i-den Matahachi!

Joutaro lhe havia dito que o recado tinha sido transmitido verbalmente a Akemi, não sendo certo que Matahachi o recebera.

“Que Matahachi não venha e só Musashi-sama esteja sobre a ponte”, rezava Otsu. De Keage chegou à entrada da rua Sanjo e misturou-se ao turbilhão humano, agitado com a aproximação do fim de ano. Matahachi podia estar andando no meio daquela gente, sentiu ela com súbita apreensão. Musashi também era capaz de estar por ali. E se a mãe de Matahachi, a velha Osugi, pessoa a quem mais temia neste mundo, lhe surgisse agora pelas costas?

Joutaro, porém, parecia não ter uma única preocupação no mundo: de volta à cidade grande depois de longa ausência, parecia excitado com as cores e a balbúrdia reinante.

— Já vamos para a hospedaria, Otsu-san?

— Ainda não.

— Será uma pena nos fecharmos numa hospedaria com esta claridade. Vamos andar mais um pouco. Parece que tem uma feira lá adiante.

— Deixe a feira para lá porque temos algo muito mais importante a fazer.

— O quê?

— Você já se esqueceu do pacote que carrega às costas desde Ise, Jouta-san?

— Ih, é verdade!

— Nada de passear por aí antes entregar a lorde Karasumarü Mitsuhiro a encomenda que Arakida-sama nos confiou.

— Podemos pousar na mansão dele esta noite, não podemos? Otsu transferiu o olhar para as águas do rio Kamogawa e sorriu:

— Como poderia haver um quarto na nobre mansão do conselheiro imperial para Jouta-san, o pobre menino piolhento de beira-estrada?

 

BORBOLETA NO INVERNO

Quando a cama da jovem doente deixada aos cuidados da hospedaria foi encontrada vazia, a direção do estabelecimento achou que poderia ser acusada de negligência e se ver envolvida numa situação nada agradável.

Mas o hospedeiro de Sumiyoshi tinha uma vaga idéia das razões por trás da doença da jovem, e resolvendo que ela não tentaria afogar-se outra vez, remeteu apenas uma nota a Yoshioka Seijuro por estafeta, não se dando a desnecessários trabalhos, como o de mandar alguém do estabelecimento no encalço da fugitiva.

E foi assim que Akemi se viu repentinamente livre como um passarinho saído da gaiola. Mas a jovem havia passado por uma experiência que quase a matara e não estava em condições de bater as asas com vigor. Além de tudo, os profundos ferimentos físicos e emocionais resultantes da violência praticada por Seijuro não eram do tipo que cicatrizavam em dois ou três dias.

“Que ódio!”

A bordo do barco que cruzava regularmente o Yodo, Akemi contemplava a correnteza, sentindo a revolta crescer no peito tão turbulenta quanto as águas do rio.

O ódio que nutria por Seijuro não era também um ódio qualquer. O sentimento era complexo, já que Akemi amava outro homem, e seu sonho de uma vida feliz ao lado desse homem havia sido destruído por Seijuro e sua violência.

Pelas águas do rio Yodo navegavam ligeiro barcos transportando arranjos para portais com vistas ao Ano Novo e à primavera.

“E agora, valerá a pena encontrar-me com Musashi-sama no primeiro dia do ano?”

A dúvida trouxe lágrimas que lhe escorreram pelo rosto.

Como Akemi havia esperado a manhã do Ano Novo, dia em que Musashi viria à ponte sobre a rua Gojo para encontrar-se com Matahachi!

Desde o momento em que começara a se sentir atraída por Musashi até hoje, Akemi se mantivera fiel a ele, não dando a menor atenção aos homens que chegara a conhecer mais tarde em Kyoto. Comparava Musashi ao inútil Matahachi, em eternas brincadeiras frívolas com a madrasta Okoo, e seu amor só fazia crescer.

Se saudade pudesse ser comparada a um fio, achava Akemi, então o amor era um novelo a enrolar o fio e a crescer dia a dia dentro do coração. Os anos podiam se passar longe da pessoa amada, mas o amor alimentava-se de lembranças e notícias distantes e encarregava-se de alongar o fio da saudade, nele se enrolando e crescendo cada vez mais.

E até poucos dias atrás Akemi assim se sentira, conservando o puro perfume dos lírios de campo que vicejam aos pés da montanha Ibuki. Mas agora, a pureza se fora.

Ela tinha certeza de que ninguém sabia, mas parecia-lhe que todo mundo a olhava com outros olhos.

— Ei, moça! Ó moça!

A voz despertou Akemi, que pela primeira vez tomou consciência das árvores secas e dos pagodes ao seu redor, e de si própria, andando no crepúsculo por Teramachi, nas proximidades da rua Gojo, como uma friorenta borboleta num dia de inverno.

— Você está arrastando um pedaço de faixa ou obi. Quer que eu arrume para você?

A abordagem tinha sido grosseira, mas as duas espadas à cintura indicavam que homem era um rounin. Akemi não o conhecia, mas o samurai era Akakabe Yasoma, sempre a perambular pelas ruas mais movimentadas do centro de Kyoto ou pelos subúrbios da cidade.

Raspando no chão as sandálias rotas, o homem aproximou-se de Akemi e apanhou a ponta do cordão que a jovem arrastava atrás de si.

— Está parecendo a louca de uma peça nô! As pessoas vão rir de você. E porque é que não ajeita esse cabelo? Você não é feia.

 

Aborrecida, Akemi fingiu não ouvir e continuou andando. Akakabe Yasoma tomou seu silêncio por timidez e insistiu:

— A moça parece ser da cidade. Que lhe aconteceu? Fugiu de casa? Ou do marido?

— Cuidado! Uma menina tão bonitinha não devia perambular por aí com esse ar perdido É verdade que hoje em dia, não temos mais o difamado portal Rashomon[43], nem bandidos habitando a montanha Oue, mas em compensação a cidade anda cheia de bandoleiros, rounin e mercadores de mulheres, que babam por um rostinho bonito, sabia?

Como Akemi não se dignava a responder, Yasoma continuou a falar sozinho e a segui-la:

— Que coisa! — comentou, a respeito da própria observação. — Ouvi dizer que ultimamente mulheres de Kyoto estão sendo vendidas em Edo e alcançam um bom preço. Antigamente, quando o terceiro Fujiwara fundou a cidade de Hiraizumi na província de Oushu[44], muitas mulheres de Kyoto foram vendidas para lá, mas hoje em dia é a cidade de Edo que se transformou num mercado promissor porque Hidetada, o segundo xogum da dinastia Tokugawa, está se empenhando seriamente em estabelecer ali a base do xogunato. Casas de prostituição famosas de Fushimi, Sumi, Sakai e Sumiyoshi, estão abrindo filiais em Edo, a 800 km de distância daqui.

— E sua beleza, menina, chama a atenção de qualquer um. Tome muito cuidado para não ser vendida, ou para não cair nas garras de algum bandoleiro sem escrúpulos.

— Xôô, passa — gritou Akemi de repente. Agitou a manga do quimono como se enxotasse um cão vira-latas, voltou-se e olhou feio para o homem. — Passa, passa!

Yasoma gargalhou e observou:

— Esta é meio louca mesmo!

— Não amole!

— Ou será que não?

— Idiota!

— O que disse?

— Louco é você!

— Ih, é maluca mesmo, não tem dúvida! Coitadinha! — gargalhou Yasoma de novo.

— Não lhe interessa, ouviu? — replicou Akemi, empinando o nariz. — Vou acertar uma pedra em você!

— Ora, o que é isso! — disse Yasoma sem se abalar, continuando a persegui-la.

— Espere um pouco, moça!

— Não enche! Passa, cachorro, passa!

Na verdade, Akemi morria de medo. Desvencilhou-se das mãos de

Yasoma e disparou em linha reta, mergulhando num denso matagal próximo à área onde, dizia-se, antigamente existira a mansão de Komatsu-dono[45], fugindo entre as longas e ondulantes hastes do capim.

— Eei, moça! — Yasoma a seguiu como um cão de caça, dançando no meio do mato alto.

Uma lua crescente lembrando o sorriso da louca em máscara nô surgira no céu para os lados do monte Toribe. Por infelicidade, essa era uma área normalmente deserta e o sol já começava a descambar. Muito embora bem que nesse momento, a 200 metros dali, havia um punhado de gente descendo a montanha a passos lentos, mas essa gente — terços nas mãos, vestida de branco e envergando sombreiros atados com cordão branco — não acorreu aos gritos de Akemi porque fazia parte de um cortejo fúnebre e ainda chorava pelo morto que acabava de enterrar.

 

Um violento empurrão de Yasoma jogou Akemi no meio do mato.

— Nossa, desculpe! — disse Yasoma. Pura zombaria. O homem lançou-se sobre Akemi, envolveu-a nos braços e a imobilizou. — Você se machucou?

Akemi esbofeteou o rosto barbudo com raiva, duas, três vezes. Mas Yasoma parecia nem sentir. Pelo contrário, estava gostando: semicerran-do os olhos, o homem deixava-se bater sem nunca afrouxar o abraço, esfregando com persistência o rosto barbudo no de Akemi. A barba picava como se fossem agulhas e era um tormento para a jovem, que nem conseguia respirar.

Akemi o arranhou com vontade.

As unhas feriram as narinas, que imediatamente se tingiram de vermelho e incharam, como as do leão das danças folclóricas. Mas Yasoma não a largava.

Do santuário dedicado a Amida[46], no monte Toribe, um sino dobrava anunciando o anoitecer e a transitoriedade das coisas terrenas. Mas a voz de Buda admoestando: “A matéria é vã. Tudo é vaidade neste mundo!”[47] não encontrava eco no coração desse homem que vivia de cometer excessos. As longas hastes do capim seco em torno dos dois vultos ondulavam violentamente.

— Fique quieta.

— Não tenha medo.

— Você vai ser minha mulher. Que tal?

— Prefiro morrer!... — gritou Akemi. O berro tinha uma vibração de dor tão intensa que Yasoma se espantou:

— O quê? Mas por quê, hein, menina?

Juntando braços e joelhos ao peito, Akemi tinha-se fechado como um botão de camélia. Yasoma tentava vencer com palavras a barreira dos músculos. Ao que parecia, além de já ter tido experiências semelhantes anteriores, o homem divertia-se até nesse tipo de situação, zombando com toda a calma da presa, sem se importar com sua fúria.

— Para que chorar? Não tem motivo algum para chorar! — sussurrava rente aos ouvidos de Akemi. — Nunca esteve com um homem, mocinha? Não pode ser! Com a sua idade...

Akemi lembrou-se do incidente com Yoshioka Seijuro e de como lhe fora difícil respirar então. Contudo, comparado àquele outro momento crucial em que não conseguira sequer enxergar as divisórias do shoji, hoje se sentia muito mais calma.

— Espere! Espere um pouco, já disse! — berrou Akemi sem sentido algum, enrolada sobre si mesma como um caracol.

Convalescente ainda, sentia-se arder em febre. Mas pela cabeça de Yasoma nem sequer passava a idéia de que o calor fosse febre.

— Esperar? Tudo bem, espero, claro que espero! Mas nem tente fugir, porque aí vou perder a paciência!

Akemi sacudiu violentamente os ombros e livrou-se das persistentes mãos de Yasoma. Levantou-se a seguir, olhando feroz para o homem que finalmente se afastara um pouco:

— Que pretende?

— Você sabe muito bem!

— Não se iluda comigo: sou mulher, mas sei me defender, está ouvindo?

Havia sangue em seus lábios, cortados no contato com a borda de uma folha. Akemi mordeu o lábio ferido e no mesmo instante, lágrimas escorreram pelo queixo alvo misturadas ao sangue.

— Ora, você diz coisas interessantes! Estou começando a achar que não é louca, não.

— Claro que não sou!

Empurrou de súbito o peito do homem e correu em direção à lua, tropeçando e gritando no meio do mato ondulante que se estendia a perder de vista:

— Socorro! Assassino!

 

Momentaneamente, Yasoma pareceu muito mais louco que Akemi. Excitado, esqueceu por completo a pose de homem experiente e despindo a pele humana, revelou a besta sob ela.

— Socorro!

Nem correra 100 metros na trilha azulada do luar quando a besta a abocanhou.

Com as pernas brancas impiedosamente desnudadas, Akemi caiu de bruços, sujando de terra o rosto parcialmente coberto por mechas de cabelo desgrenhados.

A primavera se aproximava, mas o vento que descia uivando pela encosta do monte Kacho ainda ameaçava congelar o campo. O peito arfante desnudou-se, expondo ao vento frio os seios brancos de Akemi, transformando os olhos de Yasoma em duas janelas de fogo.

Nesse instante, Yasoma foi atingido com um objeto extremamente duro na altura da orelha. O homem sentiu o sangue juntar-se momentaneamente no local e uma bola de fogo ali explodir.

— Aaah! — gritou Yasoma.

A perturbação fê-lo voltar-se, ainda gritando, e cometer um novo erro. Pois no mesmo instante um berro o atingiu em cheio no rosto:

— Animal!

Uma grossa flauta de bambu rasgou o ar silvando e golpeou o topo da sua cabeça.

Yasoma não teve tempo de sentir este último golpe. Os cantos dos seus olhos descaíram, os ombros arriaram, e o homem tombou para trás, balançando a cabeça como um tigre articulado de papel.

— Foi mais fácil do que eu esperava!

Parado com a arma — uma flauta de bambu shakuhachi — na mão, o monge komuso espiava a cara de Yasoma, desmaiado de boca aberta a seus pés. Mesmo que recuperasse a consciência, o homem ia ficar abobado, já que os dois golpes haviam atingido o cérebro. “Que crueldade! Teria sido melhor se o tivesse matado de uma vez...”, parecia considerar o monge komuso, fitando Yasoma com ar compenetrado.

Akemi contemplava estupefata o rosto do monge: ele tinha sob o nariz um bigode ralo, como se tivesse plantado ali alguns cabelos de milho. Por causa da grossa flauta de bambu, o homem de cerca de 50 anos podia ser um monge komuso, mas por suas roupas encardidas e pela única espada à cintura, podia tanto ser um mendigo como um samurai.

— Está segura agora! — disse Aoki Tanzaemon, abrindo a boca num riso que expôs ainda mais os grandes incisivos superiores.

Akemi finalmente recuperou-se e disse:

— Muito obrigada.

Arrumou os cabelos, ajeitou as roupas desalinhadas e, ainda receosa, passeou o olhar ao redor.

— Onde fica a sua casa? — perguntou Tanza.

— Minha casa? A casa, a casa...

Akemi escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar. Incapaz de responder com franqueza, contou meias-verdades e chorou de novo.

Falou da mãe — madrasta, na verdade — e de como ela tentara vendê-la, e de como viera até ali fugida de Sumiyoshi. Ao chegar nesse ponto, declarou:

— Nunca mais volto para casa, nem morta. Ninguém sabe o quanto sofri até hoje! Tenho até vergonha de contar, mas quando eu era pequena, minha madrasta me obrigava a roubar os pertences dos soldados mortos nos campos de batalha!

Mais que os nojentos Seijuro e Akakabe Yasoma, Akemi odiava Okoo nesse instante. O ódio tomou conta de seu corpo e fê-la chorar de novo, com o rosto oculto nas mãos.

 

TENTAÇÕES ADORMECIDAS

O pequeno vale ficava bem aos pés do pico Amida, e por ele ressoava o sino do templo Kiyomizudera. Cercado também pelos montes Uta-no-naka e Toribe, o vale era tranqüilo e aconchegante, protegido dos frios ventos de inverno.

E ao chegar ao referido vale Komatsu-dani, Aoki Tanzaemon disse:

— Esta é a minha casa provisória. Bem informal, não acha? Sorriu arreganhando os lábios sob o bigodinho ralo e voltou-se para

Akemi.

— Isto aqui?! — exclamou Akemi. Sabia que estava sendo grosseira, mas não conseguiu se conter.

Pois a “casa” era apenas um pequeno santuário devastado. Se aquilo podia ser considerado uma casa, muitas havia nas imediações, pois santuários e templos abandonados por ali não faltavam: as cercanias do vale até a região de Kurotani e Yoshimizu eram consideradas o berço da seita Nenbutsu — cultores de Amida —, e muitas eram as ruínas históricas relacionadas a Shinran, o fundador da seita, e a Hounen[48], o fiel iluminado que se tinha despedido em lágrimas de seus muitos discípulos e seguidores, atendentes, nobres da corte, beatos e beatas num santuário deste mesmo vale Komatsu-dani, na noite anterior ao do seu desterro para Sanuki.

Mas tudo isso tinha acontecido numa longínqua primavera do período Jogen (1207-1211). A noite agora era de fim de inverno, nenhuma flor havia nos arredores a estiolar mansamente.

— Entre... — convidou Tanza. Subiu na frente para a varanda do santuário, empurrou uma porta de treliça e acenou, chamando Akemi.

A jovem hesitava, sem saber se aceitava a oferta ou se saía andando sozinha pela noite em busca de outro lugar para dormir.

— Apesar das aparências, isto aqui é bem aconchegante. Está forrado, de esteira, é verdade, mas assim fica mais quentinho que com o piso nu. Por que hesita? Está com medo de que eu possa ser um bandido igual ao outro? — indagou Tanza.

Akemi balançou a cabeça, negando em silêncio.

Sentia que Aoki Tanzaemon era um homem bom, e estava tranqüila quanto a esse aspecto. Além do mais, ele era velho, parecia já ter passado dos 50. O que a fazia hesitar eram a sujeira do santuário que ele chamava de casa e o mau cheiro proveniente das roupas e da pele encardida dele.

No entanto, não sabia para onde ir e tinha medo do que lhe poderia acontecer desta vez, caso voltasse a topar com Akakabe Yasoma. Sobretudo sentia-se febril, sem forças e com muita vontade de se deitar.

— Posso mesmo? — perguntou, começando a subir para a varanda pela curta escada.

— Claro que pode. Fique quantos dias quiser, pois aqui ninguém virá incomodá-la.

O interior do santuário estava tão escuro que Akemi receou ver morcegos saindo por ali a qualquer momento.

— Espere um pouco — disse Tanza de um canto, batendo com a pederneira. Instantes depois, a luz bruxuleou numa lamparina, provavelmente achada em algum lugar.

A luz revelou panelas, tigelas, travesseiro de madeira, esteiras: o básico havia sido juntado. Dizendo que lhe prepararia uma papa de trigo sarraceno, Tanza despejou carvão num fogareiro de porcelana desbeiçado, juntou gravetos e soprou, atiçando o fogo.

“Que homem bondoso”, pensou Akemi. Mais calma, a sujeira deixou de incomodá-la e, do mesmo jeito que o homem, começou a sentir-se à vontade nesse meio.

— Você me disse que estava com febre e que sentia moleza no corpo, certo? Deve estar resfriada. Deite-se aí enquanto preparo o mingau.

Uma cama fora arrumada num canto com esteiras e a palha das embalagens de arroz. Akemi forrou o travesseiro de madeira com um lenço de papel que tinha consigo e logo se deitou.

EirTvez de cobertor, havia um pedaço de mosquiteiro feito de papel encerado, outro dos achados de Tanza.

— Vou dormir um pouco se o senhor me der licença — disse Akemi.

— E não se preocupe com nada.

— Muito obrigada.

A jovem juntou as mãos e agradeceu. No momento em que foi cobrir-se com o mosquiteiro, um animal de olhos faiscantes saltou debaixo dele e transpôs sua cabeça. Com um grito agudo, Akemi jogou-se de bruços no chão.

 

Susto maior levou Aoki Tanza, que deixando escapar das mãos o pacote de trigo sarraceno, gritou:

— Que foi isso?

Seus joelhos ficaram brancos da farinha derramada. Dobrada sobre si mesma, Akemi disse, ofegante:

— Um bicho... Maior que um rato... Ele pulou desse canto.

— Deve ser um esquilo — observou Tanza, olhando ao redor. — Esses danados surgem sempre por aqui, farejando a comida. Mas não estou vendo nada em lugar algum.

Akemi ergueu a cabeça cautelosamente e exclamou:

— Olhe, lá está ele!

— Onde?

Tanza levantou-se a meio e voltou-se para olhar às suas costas. Com efeito, sobre a cerca em torno do santuário central — há muito despojado das imagens sagradas e dos objetos de adoração — estava parado um pequeno animal que, ao perceber o olhar de Tanza sobre si, encolheu-se assustado.

Era um macaco, e não um esquilo.

Tanza o contemplou, desconfiado. Talvez o macaco tivesse então decidido que era fácil comunicar-se com o homem à sua frente, pois percorreu agilmente a balaustrada duas ou três vezes, sentou-se de novo no mesmo lugar, ergueu o rosto peludo cor de pêssego e pestanejou, como se quisesse dizer alguma coisa.

— Danadinho, por onde terá entrado? Bem vi que tinha grãos de arroz espalhados por todo lado. Foi você?

O animal pareceu compreender o sentido das duas últimas palavras, pois antes que Tanza se aproximasse, escondeu-se de um salto no santuário.

— Até que ele é simpático — riu Tanza. — Acho que não nos incomodará se lhe dermos um pouco de comida. Vamos deixá-lo em paz.

Limpou a farinha dos joelhos e ajeitou-se perto da panela.

— Não tenha medo, Akemi. Durma.

— Tem certeza?

— Pelo visto, não é selvagem. Deve ser um animal de estimação fugido de algum lugar. Não se preocupe com ele. Está com frio?

— Não.

— Durma, durma. Nada melhor que um bom sono para curar um resfriado.

Despejou a farinha na panela, juntou água e mexeu, fazendo movimentos circulares com o hashi.

O carvão queimava vivamente no fogareiro desbeiçado. Tanza deixou a panela no fogo e começou a picar cebolinha verde.

A tábua era uma mesinha velha encontrada no santuário; a faca, uma adaga enferrujada. Sem ao menos lavar as mãos, Tanza transferiu a cebolinha picada para um prato de madeira. Enxugou a tábua improvisada, que logo se transformou em mesa.

Com o borbulhar da água, o ambiente se aqueceu gradativãmente. Abraçando as pernas semelhantes a gravetos secos, Tanza observava com olhar faminto a espuma sobre a água fervente. Parecia feliz, como se todo o prazer da vida se concentrasse no interior da panela.

Para os lados do templo Kiyomizudera um sino soou, como todas as noites. A primavera estava próxima e os exercícios ascéticos de inverno já haviam terminado, mas a chegada do fim do ano tinha por certo o poder de despertar a ansiedade no coração dos homens, fazendo os sofredores tocarem o gongo em busca de alívio, e os fiéis em retiro rezarem incansavelmente, noite adentro.

“Em troca de meus erros, aqui estou eu, pagando os pecados. Mas... E Joutaro, por onde andará? Que a culpa do pai não recaia sobre o filho, que somente o pai pague pelos próprios pecados. Namu-kanzen bosatsu, gloriosos santos budistas, voltai vosso misericodioso olhar para Joutaro, velai por ele”, rezava Tanza.

De repente, Akemi gritou no sono:

— Não! Não!

A jovem parecia sufocar em sonhos.

“Cachorro!”

Respirando pausadamente, olhos cerrados e rosto contra o travesseiro, a jovem chorava.

 

Akemi despertou com os próprios gritos e perguntou:

— Eu disse alguma coisa enquanto dormia?

— Você me assustou, menina!

Tanza aproximou-se da sua cabeceira e, enxugando-lhe o rosto molhado de suor, comentou:

— Deve ser a febre. Você está suando muito.

— O que eu disse?

— Muita coisa.

— Que tipo de coisa?

Enrubescendo ainda mais o rosto já vermelho de febre, Akemi puxou o mosquiteiro que lhe servia de cobertor e cobriu a cabeça.

— Existe um homem a quem você odeia profundamente, não é, Akemi?

— Eu disse isso?

— Disse. Que aconteceu? O homem a abandonou?

— Não.

— Ele a enganou?

— Também não.

— Ah, já entendi — disse Tanza, tirando suas próprias conclusões. Repentinamente, Akemi soergueu-se e perguntou:

— E agora, que faço de minha vida?

A raiva e a tristeza acumuladas forçaram-na a contar em meio a soluços o vergonhoso episódio ocorrido na praia de Sumiyoshi, agarrada aos joelhos de Tanza.

“Sei, sei...”

O ar saía das narinas de Tanza, quente de emoção. O nariz lhe ardia, excitado por um perfume que havia muito não sentia: o cheiro de um corpo feminino. Nos últimos tempos, ele se acreditara seco e murcho como uma árvore velha, para sempre livre das vulgaridades inerentes à condição humana. Mas eis que de repente se sentiu intumescer, como se lhe houvessem despejado sangue muito quente nas veias: Tanza lembrou-se pela primeira vez em muito tempo que por baixo das costelas ainda tinha pulmões e um coração batendo.

— Ora, ora! Não sabia que Yoshioka Seijuro era um homem tão desprezível! — explodiu Tanza, sentindo intenso ódio do herdeiro dos Yoshioka. Contudo, o que fazia o sangue do idoso Tanza ferver a esse ponto não era tanto a indignação dos justos, mas ciúme, um ciúme estranho, como o do pai que teve a filha violentada. Seus ombros tremeram de ira mal contida.

Aos olhos de Akemi, no entanto, Tanza era um homem digno de confiança, a quem tudo podia contar.

— Quero morrer, tenho vontade de morrer! — gemeu ela, contorcendo-se e apertando o rosto lavado em lágrimas contra os joelhos magros do homem.

Um tanto perplexo pelas inesperadas sensações que esse contato despertava em seu corpo, Tanza disse:

— Não chore, não chore. Você não está maculada, asseguro-lhe, já que as coisas aconteceram sem o seu consentimento. No caso da mulher, a pureza é muito mais uma questão espiritual do que física, não é mesmo? A castidade é portanto uma questão espiritual. É sabido que, se uma mulher trai seu homem em pensamento, perde a castidade, pelo menos durante o tempo em que pensa no outro.

Mas essa arenga conformista não consolava Akemi, que continuou a chorar e a lamentar, suas lágrimas quentes chegando a varar a roupa de Tanza:

— Tenho vontade de morrer, de morrer — desabafou ela.

— Não chore, menina, não chore — repetia Tanza, acariciando-lhe de leve as costas, mas sem conseguir sentir total simpatia pelo corpo trêmulo nos seus joelhos. Saber que aquela pele macia e perfumada já tinha pertencido a um outro homem o irritava.

O macaco, que dissimuladamente havia se aproximado da panela, abocanhou algo e fugiu. Ao perceber o movimento, Tanza deixou a cabeça de Akemi escorregar-lhe dos joelhos e agitando um punho fechado, gritou para o macaco:

— Maldito!

A comida falava mais alto ao coração de Tanza do que lágrimas de uma mulher, era óbvio.

 

O dia raiou.

Quando o sol surgiu, Tanza disse para Akemi:

— Vou à cidade esmolar. Cuide da casa para mim na minha ausência. No caminho de volta, vou-lhe comprar remédios, comida quente, temperos e arroz.

Vestiu a estola dos komuso, mais encardido do que pano de chão, apanhou a flauta e o sombreiro e deixou o santuário.

Seu sombreiro, diferente dos usados pelos monges komuso, era do tipo comum, feito de fibra de bambu trançado. Com ele na cabeça e arrastando as sandálias rotas, Tanza saía a esmolar pela cidade todos os dias, exceto quando chovia. Parecia um espantalho ambulante, o bigodinho ralo piorando ainda mais seu aspecto miserável.

Nessa manhã, particularmente, Tanza sentia os olhos enevoados: não tinha dormido bem na noite anterior, ao contrário de Akemi, que depois de chorar e se lamentar tomara o mingau quente, transpirara bastante e acabara caindo em sono profundo.

A razão da insônia ainda persistia em sua mente, recusando-se a dissipar mesmo debaixo do sol claro e morno.

“Tem mais ou menos a idade da Otsu”, pensava. “Elas são de temperamento bem diferentes, e Akemi é mais engraçadinha. Otsu é refinada, porém fria. Akemi é toda sedução, rindo, chorando ou se zangando.”

E essa sedução tinha o efeito de fortes raios solares sobre o corpo de Tanza, rejuvenescendo suas células murchas. Mas Tanza não podia esquecer a própria idade: virando-se inquieto durante a longa noite perturbada pela presença de Akemi, ele se admoestara, severo:

“Como posso ser tão desprezível? Eu tinha um honroso cargo hereditário na vassalagem da casa Ikeda, mas destrui a linhagem, fui expulso do clã Himeji, tornei-me um nômade e caí no submundo, por quê? Por causa de uma mulher. Porque fiz a besteira de sentir por Otsu a mesma paixão que me queima agora!”

“Será que ainda não aprendi a lição?”, perguntava-se. “Ando com a flauta e a estola budista, mas estou longe do límpido caminho dos que abraçam a seita fuke Quando poderei atingir a iluminação dos santos monges peregrinos?”

Envergonhado, ele havia cerrado os olhos e se esforçado para dormir até a madrugada. E o cansaço resultante da noite agitada aderia agora como uma sombra ao pobre vulto trôpego.

“Vou livrar-me desses pensamentos impuros. Mas que menina engraçadinha. E que golpe sofreu! Vou consolá-la. Vou lhe ensinar que nem todos os homens do mundo são bestas lascivas. Além do remédio, que mais vou lhe comprar no caminho de volta? É estimulante pensar que o resultado da mendicância vai se transformar em conforto para Akemi! Não devo desejar nada além disso.”

E foi quando, à custa de muito esforço, conseguiu afinal acalmar o tumultuado coração, que Tanza ouviu um súbito ruflar de asas sobre o barranco, e um falcão interpôs-se momentaneamente entre ele o sol.

Tanza ergueu o rosto. Da copa de um carvalho desfolhado, penas cinzentas, leves como flocos de algodão, vieram flutuando sobre sua cabeça.

Com um pássaro preso nas garras, o falcão alçou vôo mostrando o lado interno de suas asas.

— Ele pegou! — gritou alguém e, em seguida, um silvo agudo chamou o falcão.

 

Instantes depois dois vultos em trajes de caça vieram descendo a ladeira atrás do templo Ennenji e se aproximaram de Tanza.

Um deles tinha um falcão pousado sobre o punho esquerdo. À cintura, do lado oposto ao das duas espadas, trazia um saco para guardar a caça. Atrás dele vinha um cão de caça castanho, de aspecto ágil.

O homem era Yoshioka Seijuro.

Seu companheiro era bem mais jovem: de físico másculo, usava um quimono vistoso, do tipo usado por adolescentes, e trazia enviesada às costas uma comprida espada de quase um metro de comprimento. Os cabelos, longos, estavam amarrados em rabo. Descrito assim, não será preciso explicar mais: o homem só podia ser Ganryu Sasaki Kojiro.

— Estou certo de que foi por aqui! — disse Kojiro, parando e examinando em torno. — Foi bem nesta área que meu macaco se desentendeu com o seu cão de caça, ontem à tarde, e levou uma mordida no rabo. Acho que não gostou da experiência, pois desapareceu e não voltou mais. Pode ser que ainda esteja escondido no topo de alguma árvore.

— Por que haveria de estar? O macaco tem pernas, não se esqueça. — observou Seijuro, secamente. — Para começar, não devia tê-lo trazido quando saímos a falcoar! — acrescentou, sentando-se numa pedra próxima.

Kojiro também acomodou-se num toco de árvore e replicou:

— Não é verdade que o trouxe comigo. O que posso fazer, porém, se o bicho me segue por todos os lados? Não posso negar também que sinto sua falta quando não o tenho por perto.

— Sempre julguei que dar carinho a macacos e cachorros fosse coisa de mulheres e homens desocupados, mas quando vejo um jovem estudante de artes marciais tão afeiçoado a um macaquinho, percebo que não se pode generalizar.

Seijuro, que já havia visto Kojiro lutando no dique Kemazu, respeitava-o como espadachim, mas ao observar-lhe gostos e comportamento no cotidiano não podia deixar de considerá-lo bastante imaturo. Os três ou quatro dias de convivência haviam sido suficientes para mostrar-lhe que, apesar de sua grande habilidade guerreira, Kojiro tinha ainda muito a crescer.

A constatação de que o jovem não era perfeito teve, porém, o efeito de deixar Seijuro mais à vontade, facilitando-lhes o convívio e aprofundando a familiaridade.

Kojiro riu:

— Devo isso ao meu lado infantil. Mas deixe estar: vou-me esquecer de macacos quando aprender a me divertir com mulheres.

Enquanto o jovem conversava descontraidamente, Seijuro, ao contrário, dava sinais de inquietação cada vez mais claros, seus olhos brilhando impacientes como os do falcão pousado no punho.

— Que quer esse monge mendigo? Já faz algum tempo que nos espreita — resmungou Seijuro de repente, em tom reprovador. Kojiro voltou-se para olhar.

O homem que Seijuro fitava com feroz desconfiança era naturalmente Aoki Tanza, que ao ouvir o comentário, deu as costas aos dois e começou a se afastar lentamente.

— Vamos embora — disse Seijuro, erguendo-se de repente. — Já estamos no dia 29 de dezembro e, por mais que pense, este momento não é propício para falcoar. Vamos voltar para a academia.

Kojiro apenas sorriu com frieza, como se já estivesse esperando o repente.

— Já? Mas só pegamos uma rolinha e dois tordos até agora! Isto não compensa o trabalho de chegar tão longe com o falcão. Vamos subir mais um pouco a montanha.

— Não, eu vou desistir. O falcão também parece perceber meu desânimo e não desempenha seu papel a contento. É melhor retornar à academia e treinar, treinar bastante!

Seijuro disse as últimas palavras mais para si mesmo num tom vibrante, diferente do usual, e ergueu-se, disposto a ir-se embora sozinho.

 

— Se vai para casa, também vou — disse Kojiro algo descontente, começando a acompanhá-lo. — Sinto haver insistido contra a sua vontade, mestre Seijuro.

— Ora, não precisa se desculpar.

— Afinal, fui eu quem insistiu em falcoar, tanto ontem como hoje.

— Compreendi muito bem que você visava o meu bem. Não obstante, já estamos no fim do ano e, conforme lhe contei, aproxima-se o dia do duelo com esse indivíduo, Miyamoto Musashi.

— Por isso mesmo encorajei-o a falcoar e a distrair-se um pouco, para fortalecer-se espiritualmente. Acho, no entanto, que isso não é do seu feitio.

— Compreenda: quanto mais boatos ouço, mais me parece que não devo subestimar esse tal Musashi.

— Maior motivo ainda para não se precipitar, nem se deixar pressionar. Tem de se disciplinar espiritualmente.

— Não estou de modo algum me sentindo pressionado; mas subestimar um inimigo é um dos erros estratégicos mais graves. Preciso treinar até o dia do duelo, dedicar-me inteiro a isso. Se apesar de tudo eu for derrotado, significará que ele era mais hábil, e não me restará outra alternativa senão conformar-me.

Kojiro valorizava a honestidade de Seijuro, mas também notava com clareza como era limitada a sua visão. Sentia, não sem uma dose de piedade, que o homem não estava qualificado para carregar por muito mais tempo a fama e a academia a ele legadas pelo pai, Yoshioka Kenpo.

“Denshichiro, o irmão mais novo, tem mais nervos”, pensava.

Mas este era um estróina incorrigível: embora mais hábil que Seijuro com a espada, seguira o modelo dos segundos filhos e era irresponsável; segundo diziam, não dava a mínima importância ao famoso nome paterno.

Kojiro já havia sido apresentado a esse irmão, mas não conseguira sentir simpatia por ele. E logo uma estranha animosidade tinha surgido entre os dois.

“Seijuro é honesto, mas limitado. Vou tentar ajudá-lo”, decidira Kojiro. Eis por que procurara fazê-lo esquecer o duelo, e o trouxera a falcoar. Mas, ao que parecia, o homem era incapaz de manter-se impassível ante a aproximação da grande data e queria retornar à academia para treinar. A seriedade com que encarava o assunto era digna de louvor, mas Kojiro tinha vontade de perguntar quantos dias ainda lhe restavam para treinar.

“Não adianta, isto é de seu temperamento “, percebeu Kojiro, pesaroso.

E assim iam eles quase chegando no caminho da casa, quando repentinamente se deram conta de que o cão de caça castanho, ao pé de ambos havia bem pouco, tinha desaparecido e seus latidos selvagens soavam agora a distância.

— Acho que acuou uma caça — disse Kojiro com os olhos brilhando de excitação. Seijuro, porém, pareceu irritar-se com isso e disse:

— Deixe-o. Vamo-nos embora que ele virá atrás.

— Mas é uma pena — disse Kojiro. — Vou dar uma olhada. Espere-me aí mesmo, por favor.

O jovem correu na direção dos latidos e descobriu o cão na entrada de um santuário Amida, saltando furioso contra uma janela de treliça, arranhando com violência as colunas laqueadas e as juntas das paredes.

 

Que teria farejado o cão para agir desse jeito? Kojiro aproximou-se de uma abertura longe da janela visada pelo cão.

Achegou o rosto à porta de treliça do santuário e espiou, mas nada conseguiu ver: dentro estava tão preto quanto o fundo de um pote de laça negra. O jovem agarrou a porta com ambas as mãos e a afastou com estrépito. A esse ruído o cão acorreu, saltando e abanando o rabo.

— Passa! — ordenou Kojiro, chutando-o. Mas o cão, excitado, não recuou e, no instante em que Kojiro entrou no santuário, passou-lhe à frente por baixo das pernas.

Ato contínuo, um grito feminino feriu os ouvidos de Kojiro. O berro agudo, no auge do pavor, misturou-se ao ladrar selvagem do cão e criou instantaneamente uma balbúrdia infernal. O santuário inteiro estremecia com os ecos dos latidos e gritos, de tal modo que as vigas do teto ameaçavam partir-se.

— Que é isso? — exclamou Kojiro, acorrendo, para no mesmo instante descobrir o alvo das investidas do cão, assim como a mulher que gritava frenética.

Akemi havia estado deitada sob o mosquiteiro de papel encerado, quando o macaco, cujo rastro o cão farejara, entrou pela janela e se escondeu atrás dela.

O cão veio no encalço do macaco e ameaçou morder a jovem.

Com um grito agudo, Akemi tombou de costas. Quase simultaneamente um ganido forte soou aos pés de Kojiro.

— Ai! Ai-ai! — gritou Akemi, debatendo-se. O cão havia-lhe abocanhado o antebraço esquerdo.

— Solta, danado! — gritou Kojiro para o cachorro, dando-lhe um segundo chute nas costelas. O cão já havia morrido no primeiro pontapé, mas a bocarra continuava cerrada sobre a presa.

— Solta, solta! — debatia-se Akemi, enquanto o macaco saltava de sob seu corpo.

— Cão danado!

Kojiro agarrou cada uma das mandíbulas do animal e logo soou um ruído seco — como o de laça se rompendo. A cabeça do cão pendeu com a cara quase partida ao meio. Kojiro agarrou-o pelo rabo e lançou-o para fora pela porta.

— Pronto, acabou! — disse, sentando-se perto de Akemi.

O braço da jovem estava em estado lastimável. O sangue escorria sobre a pele branca desenhando um padrão que lembrava pétalas de peônia. A visão foi capaz de provocar calafrios de dor até em Kojiro.

— Saque! Saque para lavar o ferimento! Você tem? É, acho um pouco difícil que o tenha neste lugar. E agora?

O sangue escorria morno pela mão que apertava com firmeza o braço de Akemi.

— Há dias o cão vinha agindo de modo estranho. Se ele estava louco e o veneno lhe entrar no sangue, você também poderá ficar louca — murmurou Kojiro, procurando divisar um tratamento emergencial.

— Louca? Posso ficar louca? Verdade? Ah, como eu gostaria! Eu quero ficar louca, louca!

— Não diga tolices!

De chofre Kojiro aproximou o rosto ao antebraço da jovem, cobriu o ferimento com a boca e sugou o sangue. Sentiu a boca cheia quando cuspiu, logo tornando a aproximar o rosto da pele alva.

 

Ao entardecer, Tanza retornou lentamente depois de um dia de mendicância.

Abriu a porta do santuário, já envolto em penumbras, e disse:

— Estou de volta, Akemi. Sentiu minha falta?

Depositou a um canto remédios, mantimentos e o pote de óleo e acrescentou:

— Espere um pouco. Já vou acender a luz para você.

A luz da lamparina clareou o ambiente mas, no mesmo instante, Tanza sentiu o coração encher-se de sombras.

— Onde está você, Akemi? Akemi, Akemi! — chamou, mas não a encontrou.

Seu amor transformou-se em raiva incontida, toldando-lhe a vista e escurecendo o mundo inteiro. Quando a raiva se foi, a tristeza caiu sobre Tanza: mais jovem não haveria de ficar com o passar dos anos, seguramente, e em glória e ambição já não podia cogitar. Imaginou sua solitária velhice e contorceu o rosto, quase em lágrimas.

— Como é que ela se foi sem ao menos se despedir de mim depois que eu lhe salvei a vida e a tratei com tanto carinho? Ah, o mundo é assim mesmo. Acho que as jovens são assim, hoje em dia. Ou será que ela tinha medo de mim? — disse Tanza em tom queixoso, examinando desconfiado o lugar onde Akemi havia estado deitada. Descobriu então um pequeno retalho de tecido, uma ponta de obi rasgado. Havia manchas de sangue nele. Uma suspeita sem fundamento cresceu-lhe no peito, assim como um estranho ciúme.

Impaciente, chutou a cama de palha e lançou fora o remédio que havia comprado. Estava faminto depois de um dia inteiro esmolando, mas sem vontade de preparar o jantar, apanhou a flauta e saiu gemendo à varanda do santuário.

Depois disso, Tanza percorreu o vale tocando a flauta por mais de uma hora, tentando expulsar a paixão desenfreada que lhe ia na alma. A melodia anunciava aos quatro ventos que o desejo continua a existir como um elemento latente, fogo fátuo a irromper de vez em quando na vida do homem até que ele repouse para sempre em seu túmulo.

“Para que passei a noite inteira me debatendo insone, contido por um falso moralismo, se aquela menina está destinada a ser abusada por outros homens?”

Inúmeros e confusos sentimentos que iam desde arrependimento a auto-censura turbilhonando no sangue sem levar a lugar algum — aquilo era a pura expressão da paixão carnal. Tanza tocava esforçando-se por livrar-se desse lodaçal e purificar-se. O pobre homem, contudo, devia-ter nascido sob um signo muito forte do pecado, pois o som que conseguia extrair da flauta não alcançava o límpido timbre zen, que almejava.

— Monge komuso, que lhe deu para ficar tocando flauta sozinho esta noite? Se conseguiu boas esmolas na cidade e comprou um bocado de saque, dê-me um pouco e deixe-me embebedar com você — disse um mendigo, espichando o pescoço de sob a varanda do santuário. Por ser aleijado, o homem só conseguia morar debaixo das construções e contemplava com inveja o cotidiano de Tanza no espaço acima, achando sua vida digna de príncipes e reis.

— Ei! Você talvez tenha visto. Diga-me, que foi feito da menina que eu trouxe ontem comigo?

— Como é que você deixa escapar uma beldade daquelas? Hoje cedo, logo depois que você partiu, um jovem guerreiro, de cabelos compridos e espada enorme às costas, veio até aqui, pegou o macaco, pôs a menina nos ombros, e os levou embora.

— Quê? Um rapaz de cabelos compridos?

— E mais bonitão que você ou eu, pelo menos — disse o aleijado. Riu, achando graça da própria piada.

 

O DESAFIO

— Leva o falcão à gaiola — ordenou Seijuro a um discípulo, mal chegou à academia da rua Shijo, descalçando-se em seguida.

Seijuro estava visivelmente aborrecido, e a irritação aflorava-lhe à pele, cortante como navalha.

Os discípulos, aflitos com o seu mau humor, ofereciam-lhe água para lavar os pés e, pressurosos, tomavam o sombreiro.

— E mestre Kojiro, que saiu em sua companhia, senhor?

— Deve vir logo mais.

— Separaram-se enquanto percorriam as matas em busca da caça?

— Não. Ele me deixou esperando e demorava a voltar, de modo que vim embora primeiro.

Seijuro foi para o seu aposento, trocou-se e veio sentar-se em sua saleta. Além do pátio interno, havia um vasto salão de treino. A academia tinha fechado no dia 25 para o fim de ano, e só reabriria na primavera.

A casa pareceu de súbito deserta sem o contínuo vai-e-vem dos quase mil discípulos e o som das espadas de madeira entrechocando-se.

Do seu aposento, Seijuro passou a perguntar repetidas vezes a um discípulo:

— Ele ainda não voltou?

— Ainda não, senhor.

“Quando Kojiro chegar, vou usá-lo como parceiro e treinar como se estivesse lutando contra o próprio Musashi”, decidiu Seijuro. A tarde caiu =e a noite chegou sem que Kojiro aparecesse, o mesmo se dando no dia seguinte.

Implacável, o último dia do ano chegou, e ao meio-dia, uma pequena multidão de cobradores aglomerou-se na sala de espera da mansão Yoshioka:

— Dêem um jeito, não queremos saber — gritavam os sempre servis mercadores, agora impacientes. — Dizer que o encarregado saiu e que o patrão também saiu não resolve nada!

— Quantas vezes teremos de vir até aqui?

— Eu podia até me retirar sem reclamar se fossem só as contas deste último meio-ano. Afinal, esta casa sempre me prestigiou, desde os tempos do falecido mestre Kenpo. Mas olhem aqui: são contas acumuladas desde os festejos de finados do ano passado, e mais todas deste ano — gritava um mercador, indignado a ponto de quase esfregar o caderno de contas no nariz do atendente.

Eram marceneiros e estucadores, até então prestigiados pela casa Yoshioka, fornecedores de arroz e saque, negociantes de tecidos, e cobradores de diversas casas de chá por onde Seijuro andara divertindo-se ultimamente.

Essas ainda podiam ser consideradas dívidas pequenas. Piores eram as contraídas por Denshichiro junto a agiotas, a juros altíssimos, sem o conhecimento do irmão mais velho.

— Já vi que não adianta discutir com vocês. Vamos, deixe-nos falar com mestre Seijuro.

Cinco ou seis haviam até se sentado, resolvidos a não sair do lugar.

Até pouco tempo atrás, as despesas da academia e da casa Yoshioka haviam estado a cargo de Gion Toji. Mas esse importante personagem volatilizara-se havia alguns dias em companhia de Okoo, a proprietária da hospedaria Yomogi, levando consigo todo o dinheiro arrecadado durante a campanha pelo interior.

Os discípulos não sabiam mais o que fazer.

Oculto no interior da mansão, Seijuro respondera lacônico, ao ser consultado:

— Digam que não estou.

O irmão mais novo, Denshichiro, não era tolo: ele jamais se aproximaria da casa na véspera do Ano Novo, um dia perigoso para devedores em geral.

Nesse instante, um grupo de seis a sete homens arrogantes entrou pela porta: eram Ueda Ryohei e seus companheiros, do bando que se autodenominava “Os Dez Mais” da academia Yoshioka.

Ryohei percorreu o olhar hostil pelo grupo de cobradores.

— Que eles querem aqui? — perguntou, contemplando-os com desdém.

O discípulo designado a atendê-los explicou em poucas palavras a óbvia situação.

— Ah, são cobradores! Vocês querem receber, não é mesmo? Nesse caso, esperem até que a situação desta nobre casa melhore. E quem não quiser esperar, pode me acompanhar até o salão de treino: eu pago de outro modo — disse Ryohei.

 

A solução violenta apresentada por Ryohei indignou os mercadores.

Que significava isso, esperar até que a situação da nobre casa melhorasse? Pior ainda, que história era essa de chamar os descontentes à sala de treinos para ouvir a voz da razão? Afinal, se haviam servido àquela gente com tanta presteza, adulando-os, vendendo fiado, sempre sorridentes — “Volte-amanhã!”, “Sim-senhor!”, “Volte-depois-de-amanhã”, “Sim-senhor!” —, era porque tinham confiado no prestígio do instrutor de artes marciais do xogum Muromachi, o falecido Kenpo. Para tudo tinha um limite, até para a arrogância daquela gente. No dia em que um mercador desistisse de cobrar com medo de ameaças, a classe não sobreviveria! E se os samurais se achavam capazes de tocar o mundo sozinhos, que experimentassem! — diziam as expressões rancorosas nos rostos afogueados.

Ryohei passeou o olhar pelos mercadores que confabulavam unidos e decidiu que eram um bando de idiotas:

— Vão embora, vão! Não adianta continuarem aí sentados. Os mercadores calaram-se, mas não se arredaram do lugar. Ryohei então disse para um dos discípulos:

— Bote-os para fora!

Ao ouvir isso, os cobradores, que até então vinham se contendo, explodiram:

— Isso agora é demais, não acha, patrão?

— O que é demais? — retrucou Ryohei.

— Essa falta de consideração!

— Que falta de consideração?

— Como é que pode mandar botar-nos para fora?

— Nesse caso, por que não se retiram ordeiramente? É véspera de Ano Novo!

— Por isso mesmo! Nós também estamos preocupados, sem saber se conseguiremos ou não nos manter até o próximo ano! É por isso que pedimos encarecidamente: saldem suas dívidas!

— A casa Yoshioka tem mais o que fazer.

— Isso não é desculpa.

— Não me diga que está descontente!

— Não é isso. Basta pagar que não reclamo mais!

— Venha cá um instante.

— Aonde?

— Está com medo, insolente?

— Que jeito mais tolo de resolver as coisas!

— Tolo? Me chamou de tolo?

— Não disse isso do patrão. Quis dizer que isso não está certo.

— Cale a boca!

Ryohei agarrou o homem pela gola, arrastou-o à varanda e lançou-o para fora. O grupo de cobradores que se aglomerava no local saltou para trás, mas dois ou três não conseguiram esquivar-se a tempo e foram arrastados pelo homem.

— Quem mais quer reclamar? Como é que se aglomeram à entrada da nobre casa Yoshioka para cobrar ninharias? Isso é um ultraje! E agora, se o nosso jovem mestre se dispuser a pagar, eu não permitirei. Vamos, botem a cabeça aqui, um por um.

Ao verem a mão fechada de Ryohei erguida em posição ameaçadora, todos se ergueram e saíram disputando a dianteira. No entanto, uma vez fora dos portões, e já que não dispunham de força física, aguçaram as línguas e xingaram:

— Vou rir muito no dia em que vir uma placa na frente desta casa anunciando: vende-se!

— E esse dia não vai demorar!

— Se depender de nossos votos!

Dentro da mansão, Ryohei ouviu os comentários dos ressentidos mercadores e riu a mais não poder. Seguiu então em companhia dos demais para os aposentos de Seijuro e o encontrou sozinho perto do fogareiro, aquecendo-se.

— Isto aqui está quieto demais, jovem mestre. O senhor está bem?

— Claro! — respondeu Seijuro, sentindo novo ânimo ao ver seus melhores homens aproximando-se num grupo compacto. — Está chegando o dia, Ryohei!

— É verdade. E foi para falar a respeito disso que viemos. Que resolvemos quanto ao dia, hora e local do duelo com Musashi?

— Que resolvemos...? — repetiu Seijuro, pensativo.

 

Na carta mandada tempos atrás, Musashi deixara a cargo dos Yoshioka a escolha da data, horário e local do duelo, exigindo porém que os detalhes constassem numa placa que devia ser erguida nos primeiros dias de janeiro sobre a ponte da rua Gojo.

— Primeiro, vamos decidir o local — murmurou Seijuro. — Que acham da campina do templo Rendaiji, ao norte da cidade? — sondou.

— Boa escolha. E quanto ao dia e a hora?

— Primeira semana do ano, ou logo depois.

— Quanto antes, melhor. Assim Musashi não terá tempo de planejar nenhuma estratégia covarde.

— Nesse caso, dia 8.

— Dia 8? Não convém. É o aniversário de falecimento do nosso velho mestre.

— Ah, é o dia em que meu pai morreu, ia-me esquecendo. Vamos então escolher um outro. Manhã do dia 9, último terço da hora do coelho[49]... É isso, está resolvido!

— Nesse caso, farei constar os dados no aviso e o erguerei ainda esta noite à beira da ponte, na passagem do ano. De acordo?

— Sim.

— Pronto para o duelo, jovem mestre?

— Claro!

A situação exigia essa resposta.

Pela cabeça de Seijuro nem sequer passava a idéia de perder para Musashi. A técnica que lhe fora cuidadosamente ensinada na infância pelo pai, Kenpo, jamais fora superada por nenhum dos discípulos ali presentes em todas as ocasiões que com eles se batera, e muito menos haveria de ser por um jovem interiorano em começo de carreira, como esse Musashi, confiava Seijuro.

E se apesar de tudo nos últimos dias sentia súbitas incertezas que lhe perturbavam o equilíbrio emocional, era porque enfrentava diversos problemas pessoais e não porque negligenciara os treinos, acreditava ele.

Seu caso com Akemi podia ser considerado o maior desses problemas: ele se aborrecera muito com o episódio. E quando retornara às pressas para Kyoto, depois de receber a carta de Musashi, Gion Toji tinha fugido com o dinheiro, a situação financeira deteriorou-se ainda mais, cobradores passaram a acuá-lo todos os dias — e não tivera tempo de preparar-se espiritualmente.

E desde que retornara a Kyoto quase não havia visto o jovem Sasaki Kojiro, em quem tinha depositado tanta esperança. Quanto ao irmão, Denshichiro, este nem se aproximava da academia. E apesar de Seijuro não ter Musashi em tão alta conta a ponto de achar que precisaria da ajuda desses dois para derrotá-lo, sentiu-se só e abandonado: o fim do ano prometia ser bastante triste.

— Veja, jovem mestre. Acho que ficou bom — disse Ueda Ryohei vindo com os companheiros de uma sala anexa e apresentando-lhe uma placa de madeira que acabara de ser aplainada e aprontada. As letras ainda brilhavam, úmidas da tinta fresca:

CARTA ABERTA AO ROUNIN DE SAKUSHU MIYAMOTO MUSASHI

Atendendo ao vosso pedido, estabeleço as seguintes condições para o duelo:

Local: Campina do templo Rendaiji, setor norte da cidade.

Data e hora: 9o dia do primeiro mês, último terço da hora do coelho.

Juro, em nome dos deuses, o fiel cumprimento do acima estabelecido. Caso V.S. não cumpra estas condições, será ridicularizado publicamente.

E que os deuses me castiguem, caso eu não as cumpra.

No último dia do ano IX do período Keicho (1605), faz saber

Yoshioka Seijuro, Herdeiro de Yoshioka Kenpo

 

— Acho que está bom — disse Seijuro, acenando gravemente e parecendo enfim acalmar-se.

Com a placa debaixo do braço, Ueda Ryohei seguiu a passos largos em companhia dos demais para a ponte da rua Gojo no anoitecer do último dia do ano.

 

SOLIDÃO

Na área ao pé do monte Yoshida moravam muitos vassalos da nobreza, samurais de vida monótona ganhando módicos estipêndios.

Casas pequenas de portais modestos, de aspecto tão conservador que denunciavam logo à primeira vista a classe social dos habitantes, ali se enfileiravam, tranqüilas.

— Não é esta, nem esta outra.

Examinando um a um os nomes nos portais das casas, Musashi andava pela rua.

— Talvez tenham-se mudado. Desanimado, parou.

Lembrava-se da área muito vagamente em meio à névoa que toldava suas lembranças infantis, já que vira a tia pela última vez no enterro do pai, Munisai. Como, porém, ela era a única parente consangüínea que lhe restava no mundo além da irmã Ogin, Musashi sentiu-se subitamente tentado a procurá-la ao chegar em Kyoto no dia anterior.

Se bem se lembrava, o marido da tia era um samurai em posto subalterno na casa nobre Konoe e vivia de um modesto estipêndio. Imaginara localizar a casa com facilidade na base do monte Yoshida mas, ao chegar ali, eram tantas as casas parecidas — todas pequenas, ocultas atrás de árvores e de portais hermeticamente fechados, encerradas em si como caramujos, algumas com placas de identificação, outras sem elas — que logo viu a dificuldade de descobri-la ou mesmo de pedir informações sobre sua localização.

— Desisto. Acho que já se mudaram mesmo.

Musashi começou a retornar para a cidade. Sobre o centro urbano, a névoa noturna começava a se acumular, refletindo as luzes vermelhas das casas em festa à espera do Ano Novo.

O último dia do ano vinha chegando ao fim e havia no ar um vago burburinho. Nas ruas, as pessoas tinham um jeito diferente de andar e olhar, mais animado que o habitual.

— Ah! — exclamou Musashi, voltando-se para olhar a mulher com quem acabara de cruzar. Fazia sete ou oito anos que não a via, mas essa devia ser a irmã da mãe, que saíra de Sayogo, na província de Banshu, para casar-se e viver em Kyoto.

— Parece-se com ela! — pensou Musashi de imediato. Para ter certeza, seguiu-a durante algum tempo e notou que a mulher, miúda, de quase 40 anos, levando junto ao peito as compras para os festejos da passagem do ano, encaminhava-se para a viela deserta, havia pouco exaustivamente percorrida por Musashi.

— Senhora! Minha tia!

A mulher voltou-se desconfiada e examinou com cuidado o rosto e o corpo inteiro do jovem. Aos poucos, um brilho de surpresa alarmada surgiu em seus olhos, em torno dos quais a vida monótona e parcimoniosa havia-se encarregado de juntar pequenas rugas precoces.

— Ora...Você é Musashi, filho de Munisai, não é?

Ser chamado de Musashi em vez de Takezo pela tia que não via desde a infância era surpreendente e ao mesmo tempo triste.

— Sim, senhora, sou Takezo, dos Shinmen — retificou Musashi.

A tia continuou apenas a olhá-lo, sem dizer: “Como você cresceu!”, ou “Está tão mudado que nem o reconheci!”, como esperava Musashi. Afinal, falou em tom frio, quase reprovador:

— E então? O que o traz aqui?

Enquanto conversavam, e por não se lembrar da mãe que lhe havia faltado bem cedo na vida, Musashi procurava algo desta última no contorno dos olhos e no jeito dos cabelos da tia, perguntando-se se ela teria tido em vida essa mesma altura, ou esse timbre de voz.

— Nada em especial, senhora. Quis apenas saber como estariam passando meus tios, uma vez que estou em Kyoto.

— Ia à minha casa?

— Sim. Espero não estar sendo inconveniente com esta visita repentina.

— Então, considere feita a visita. Já que nos encontramos, não tem mais por que ir à minha casa. Vá-se embora, vá! — disse a mulher abanando a mão, dispensando-o.

 

Como uma mulher podia ser tão fria com o sobrinho que não via há tanto tempo?

Um estranho não seria mais indiferente, considerou Musashi. Censurou-se pela ingenuidade de. ter pensado nela como uma segunda mãe, mas não se conteve e perguntou:

— Por quê, minha tia? Se não me quer ver, eu me vou, não tenha dúvida. Não consigo entender, porém, por que me manda embora, mal nos encontramos no meio da rua. Se tem algo a me censurar, diga-me, senhora.

A franqueza pareceu constranger a tia, que disse:

— Entre um pouco, então, e venha cumprimentar seu tio. Mas sabe como ele é. E se eu disse tudo aquilo é porque não gostaria de vê-lo desiludido com seus modos bruscos. Afinal, você não nos visita há tanto tempo...

Um pouco mais consolado, Musashi seguiu a mulher para dentro da casa.

Logo ouviu do outro lado de uma divisória a voz de Matsuo Kaname, o marido da tia. O sussurro contrariado, asmático, fez Musashi sentir-se malquisto uma vez mais e se remexer constrangido.

— Que disse? Musashi, o filho de Munisai, está aí? Ele tinha de vir justo hoje? E que fez você? Quê? Está aí, no quarto ao lado? Como é que o deixou entrar sem me avisar, mulher tola?

Incapaz de suportar por mais tempo, Musashi chamou a tia e se preparava para apresentar as despedidas quando Kaname correu a porta do quarto e, cenho franzido, espiou pela abertura:

— Então, você está aí!

Parecia estar vendo sobre o seu tatami um imundo protetor de cascos bovinos. “Camponês malcheiroso!”, dizia seu olhar.

— Que veio fazer aqui?

— Vim apenas saber como estão, uma vez que certos assuntos me trouxeram a esta cidade.

— Não minta!

— Como disse?

— Eu sei muito bem, não adianta esconder! Você andou aprontando em sua terra, comprou o ódio de muitos de seus conterrâneos, maculou o nome de sua família e agora está foragido, não está?

— E ainda tem a coragem de dizer que veio apenas para saber como estamos?

— Perdoe-me. Ainda pretendo voltar à minha terra e me justificar perante meus antepassados e o povo de minha aldeia.

— Mas neste momento não está nem em condições de voltar à sua terra, não é verdade? Bem diz o ditado: quem semeia vento, colhe tempestade. Munisai deve estar chorando no seu túmulo.

— Sinto ter-lhes imposto minha presença. Aqui me despeço, minha tia.

— Espere um pouco, rapaz! — interrompeu-o o tio, repreensivo. — Não fique andando a esmo perto da minha casa porque se meterá em sérios apuros. Pois a matriarca dos Hon’i-den — essa velha obstinada de nome Osugi — apareceu-me aqui há coisa de meio ano e diversas outras vezes nos últimos dias. Ela se senta aí na entrada, furiosa, querendo saber se você esteve nesta casa e insiste conosco para que lhe forneçamos informações sobre o seu paradeiro.

— Ah, a velha senhora tem aparecido também por aqui?

— E fiquei sabendo de tudo por intermédio dela. Se laços de sangue não o ligassem à minha mulher, eu o entregaria a ela amarrado; mas sei que não posso fazer isso. Descanse um pouco e depois parta, ainda esta noite, antes que nos envolva em seus problemas e acabe prejudicando-nos também.

Era decepcionante: seus tios já o haviam julgado com base na versão apresentada pela velha Osugi.

Musashi permaneceu cabisbaixo, em sombrio silêncio: uma tristeza sem tamanho tinha agravado sua natural introversão.

A atitude pareceu finalmente comover a tia, que o convidou a descansar um pouco no aposento ao lado. Mais do que isso ela não lhe ofereceria, pelo jeito. Musashi levantou-se em silêncio e foi para a outra sala. O cansaço dos últimos dias e a necessidade de estar no dia seguinte, o primeiro do ano, sobre a ponte da rua Gojo, levou-o a deitar-se imediatamente com a espada nos braços. Era a própria imagem do homem solitário, ciente de que só podia contar consigo mesmo em todo o mundo.

 

Tentando ver o lado positivo do episódio, Musashi considerou que não devia ofender-se tanto. A atitude fria, as palavras ásperas, tinham uma explicação: aqueles eram seus verdadeiros tios, não necessitavam tratá-lo cerimoniosamente.

De tão irritado com eles, chegara a pensar em cuspir na entrada da casa e partir, mas sentiu que tinha de se esforçar por interpretar positivamente suas atitudes. Como pessoa a eles ligada por fortes laços de sangue, Musashi gostaria de ajudá-los ou de ser por eles ajudado em situações adversas.

Mas esse sentimentalismo era típico de um jovem ignorante. Musashi era imaturo, infantil até, em sua visão do mundo e das pessoas. Esse tipo de relacionamento com parentes só seria possível se ele já fosse rico e famoso, mas não agora, que lhes surgira à porta numa noite fria, sujo e mal vestido, além de tudo na véspera do Ano Novo.

O erro de julgamento logo se evidenciou.

Confiante nas palavras da tia que o convidara a descansar um pouco, Musashi havia se deitado no escuro, faminto, à espera da refeição. No entanto, apesar dos aromas de cozidos e do barulho da louça provenientes da cozinha desde o anoitecer, ninguém lhe surgiu à porta para convidá-lo a jantar.

No pequeno fogareiro portátil restava apenas uma fraca brasa brilhando como um vaga-lume. Mas fome e frio eram secundários: descansando a cabeça sobre o braço dobrado, Musashi dormiu profundamente por quase quatro horas.

— Sinos da passagem do ano!...

Musashi ergueu-se de repente: o cansaço dos últimos dias havia desaparecido como por encanto e a mente estava lúcida e serena.

Sinos de todos os templos, dentro e fora da cidade, repercutiam gravemente anunciando o fim das trevas e a chegada da luz.

Os 108[50] toques do sino conclamavam a humanidade a despertar das paixões terrenas, instigavam os homens a refletir sobre a transitoriedade das coisas materiais.

— Eu estava certo.

— Fiz tudo que tinha de ser feito.

— Não me arrependo do que fiz.

 “Quantas pessoas no mundo haveria capazes de pensar assim neste momento?”, indagava-se Musashi. A cada toque de sino, remorsos agitavam-se em seu íntimo, fatos passados de que agora se arrependia amargamente.

E isso acontecia não só nesse ano. No anterior, e no anterior a esse, não se lembrava de haver passado um ano, ou um dia sequer sem lamentar alguma coisa.

O ser humano parece propenso a fazer alguma coisa e arrepender-se logo depois. Mesmo em matérias como a escolha da parceira, a grande maioria do homens arrasta vida afora um irremediável arrependimento. Que mulheres se arrependam ainda é perdoável. No entanto, é difícil ouvi-las queixando-se. O mesmo não acontece com os homens: eles falam das próprias mulheres com agressividade, no mesmo tom com que se refeririam a sandálias velhas e gastas — uma atitude patética e desprezível.

Musashi não tinha problemas conjugais, mas isso não o impedia de ter outras coisas a lamentar. Agora, por exemplo, já se arrependia de ter vindo àquela casa.

“Continuo confiando demais em coisas como laços sangüíneos. Vivo dizendo a mim mesmo que sou só no mundo, que posso contar apenas comigo mesmo, e quando menos espero, cá estou eu, tentando depender de alguém. Sou tolo, muito ingênuo, tenho de crescer!”

Sentia-se humilhado, desprezava a própria imagem humilhada e envergonhava-se cada vez mais de si próprio.

— É isso: vou deixar escrito!

Movido por um repentino impulso, desfez a pequena trouxa de viagem.

Nesse mesmo instante, uma mulher idosa em trajes de viagem parava à porta da casa e nela batia resolutamente.

 

Musashi retirou da trouxa um caderno rústico — feito de folhas de papel dobradas em quatro e costuradas num dos lados — e tomou do pincel.

Ali Musashi anotara impressões colhidas durante as viagens, conceitos zen, detalhes geográficos interessantes, palavras de incentivo dirigidas a si mesmo, e aqui e ali, paisagens em pinceladas rápidas.

Musashi contemplou a página em branco. As 108 badaladas continuavam a repercutir, ora à distância, ora próximas. Escreveu:

“De nada me lamentarei.”

Fazia parte de seu hábito registrar palavras de auto-censura toda vez que descobria pontos fracos em si mesmo. Mas escrever apenas não fazia sentido: as palavras tinham de ficar gravadas em seu espírito e, para tanto, deviam ser cantadas a cada manhã e noite como um sutra. Por conseguinte, o fraseado tinha de ser melódico, fácil de ser recitado, como um poema.

Depois de refletir alguns instantes, reescreveu:

“Não lamentarei meus atos passados.”

Repetiu a frase baixinho, para si mesmo. Mas ainda parecia haver algo que não lhe agradava, pois recompôs a frase:

“Jamais me arrependerei de meus atos.”

A frase inicial: “Nada lamentarei”; não era forte bastante. Tinha de ser “arrependerei”; e definitivo como “jamais”. “Jamais me arrependerei de meus atos.”

— É isso!

Satisfeito, jurou a si mesmo que assim seria doravante. Tinha de progredir muito, forjar corpo e espírito o tempo todo para alcançar um dia o ponto de não precisar mais arrepender-se de suas ações.

“A meta é distante, mas ainda chegarei lá “, prometeu a si mesmo.

Foi então que a porta do shoji às suas costas correu silenciosamente e o rosto friorento da tia espiou:

— Musashi — sussurrou, com voz trêmula, contida. — Está vendo? Algo me dizia para não deixá-lo entrar em casa! Pois aí está Osugi, a matriarca dos Hon’i-den, batendo à minha porta bem na passagem do ano! Ela deu com os olhos nas sandálias que você descalçou na entrada da casa e está esbravejando, enfurecida: “Musashi tem de estar aqui! Traga-o à minha presença!” Escute, escute só como ela grita! Que horror! E agora, Musashi?

— Como? A velha Osugi?

Efetivamente, a voz ríspida da obstinada matriarca alcançava-o junto ao vento frio que entrava uivando pelas frestas.

Os sinos da passagem de ano acabavam de se calar e a tia estava se preparando momentos atrás para tomar um copo de água pura, o primeiro do ano que começava, e chamar os bons augúrios. E que seria da casa se neste momento místico nela ocorresse derramamento de sangue? Sem dar-se ao trabalho de disfarçar o desagrado, a tia lhe disse:

— Fuja, Musashi, por favor! A fuga é o caminho mais seguro. Como você deve estar ouvindo, seu tio tenta impedir a entrada da velha senhora, afirmando que não hospeda você. Aproveite e fuja pelos fundos!

Ainda falando, juntou ela própria os pertences e o sombreiro do sobrinho, e levou-os até a porta dos fundos, para onde também trouxe um par de meias de couro e as sandálias do tio.

Musashi as calçou atendendo aos insistentes apelos da tia, mas disse, bastante constrangido:

— Sei que estou sendo inconveniente, minha tia, mas lhe serei muito grato se me der algo para comer. Uma tigela de arroz e picles serão suficientes. Não como nada desde a tarde passada.

A tia reagiu indignada:

— Isso é hora de falar em comida? Tome! Leve isto e vá-se embora de uma vez!

Assim dizendo, trouxe-lhe cinco nacos de mochi[51] envoltos em um pedaço de papel. Musashi os aceitou, levou-os à testa com as duas mãos em sinal de agradecimento e despediu-se:

— Adeus!

Saiu a seguir para o mundo ainda escuro apesar da chegada do novo ano, e seguiu caminho cabisbaixo, pisando a fina crosta de gelo que recobria a terra, um vulto triste e friorento lembrando um pássaro sem penas vagando no inverno.

 

Musashi sentia cabelos e unhas prestes a congelar na fria madrugada. Tinha apenas uma percepção aguda do próprio hálito branco contrastando com a escuridão, mas o frio era tão intenso que até mesmo esse bafo morno ameaçava transformar-se em gelo antes ainda de alcançar a barba em torno da boca.

— Que frio! — disse alto, involuntariamente. Nem nos oito infernos gelados sentiria tanto frio, imaginou Musashi, perguntando-se o motivo dessa desconfortável sensação justo nessa manhã.

— É porque o frio está no coração, e não no corpo — descobriu Musashi. — Para começar, tenho ainda em mim essa carência que me leva às vezes a ansiar por afeto, como se eu fosse um bebê e buscasse o calor materno. Isso me leva a sentir solidão, a invejar o calor que coa pelas janelas dos lares alheios. Por que não me orgulho desta solidão e desta vida nômade que me foram concedidas? Por que não as considero ideais e não agradeço aos céus por elas?

Os dedos dos pés, congelados e doloridos, tinham-se repentinamente aquecido até as pontas. Agora, o hálito branco era vapor a abrir caminho no escuro, varrendo o frio.

— Um nômade solitário que não tem ideais nem sente gratidão por sua vida independente nada mais é que um mendigo. O que diferencia o monge poeta nômade Saigyou de um reles mendigo é a existência desse sentimento no seu coração.

De súbito, Musashi ouviu um estalo seco e, simultaneamente, um raio branco partiu de sob a planta dos pés e correu pelo chão. Observou melhor e percebeu que pisava uma fina crosta de gelo. Sem que se desse conta, ele havia descido para a beira do rio Kamogawa e andava Por sua margem oriental.

Não havia vestígios de aurora no céu ou nas águas do rio. Ele viera andando sem hesitar desde a base da montanha Yoshida, em meio a uma escuridão negra como o breu, mas agora, ao perceber que estava na beira do rio, imobilizou-se, incapaz de dar mais um passo.

— Vou acender uma fogueira! — decidiu-se.

Aproximou-se do barranco e juntou gravetos, pedaços de madeira e outros materiais de fácil combustão. Bateu a pederneira. Precisou de paciência e empenho para conseguir uma minúscula chama.

Finalmente, os gravetos pegaram fogo. Sobre eles empilhou cuidadosamente, como uma criança construindo um castelo de brinquedo, pequenas aparas fáceis de queimar. O fogo adquiriu intensidade, cresceu de súbito e, atiçado pelo vento, estendeu labaredas que ameaçaram lamber-lhe o rosto.

Musashi retirou das dobras internas do quimono o pequeno embrulho contendo os nacos de mochi e os assou na fogueira. Observando os bolinhos que tostavam, cresciam e rompiam a crosta externa, lembrou-se dos Anos Novos da sua infância. A tristeza dos que cedo perderam o lar lhe aflorou na alma como uma bolha, refletindo a luz da fogueira.

Musashi comeu em silêncio. Os mochi não tinham gosto de nada, mas o jovem neles sentiu o sabor do mundo.

— Uma comemoração somente minha.

No rosto abrasado pelo calor da fogueira, os cantos dos lábios ergueram-se num sorriso, como se repentinamente se lembrasse de algo divertido.

— E que bela comemoração! Pelo visto, o céu concede a todos o direito de festejar a entrada do ano, já que nem a mim recusou estes cinco pedaços de mochi. Farei um brinde ao Ano Novo com as águas do rio Kamo-gawa, e terei os 36 picos da cadeia Higashiyama para enfeitar o meu portal. E agora, vou me purificar e aguardar o raiar do primeiro dia do ano.

Aproximando-se de um remanso, Musashi desatou o obi. Largou quimono e roupas de baixo na margem do rio e mergulhou.

Lavou-se inteiro chapinhando na água como um pássaro e, instantes depois, enquanto se secava com vigorosos movimentos, a luz da manhã rompeu as nuvens e começou lentamente a iluminar-lhe as costas.

Foi então que um vulto se aproximou da beira do rio atraído pelo clarão da fogueira, e parou em pé sobre o barranco. Embora totalmente diferente de Musashi tanto no físico como na idade, o vulto era o de um outro andarilho perdido no mundo, ali conduzido pelo karma, ou seja, o de Osugi, a matriarca dos Hon’i-den.

 

A AGULHA

 “Finalmente o achei, fedelho!”, gritou Osugi no íntimo. Alegria e temor confundiam-se no peito agitado.

— Ah, maldito!

Tinha vontade de agir de imediato, mas o corpo vacilante se opôs e lhe tirou o equilíbrio: Osugi cambaleou e caiu sentada rente ao tronco de um pinheiro.

— Que alegria! Finalmente o encontrei! Isto só pode ter acontecido por obra do espírito de Tio Gon, morto de maneira tão inesperada na praia de Sumiyoshi.

A velha Osugi tinha, nesse exato momento, um pedaço de osso e uma mecha dos cabelos do velho guardados na pequena trouxa de viagem atada à cintura. Nunca se separava dessas lembranças e com elas conversava durante suas longas jornadas: “Tio Gon: você pode ter morrido, mas não acho que estou sozinha. Afinal, partimos juntos de nossa terra jurando juntos retornar depois de justiçar Musashi e Otsu... Sei que seu espírito permanecerá comigo sobre este meu velho ombro até cumprirmos a promessa! E eu lhe prometo que vou-me empenhar para liquidar Musashi o mais breve possível. Espere e verá, tio Gon.”

Osugi não se cansava de repetir noite e dia as mesmas palavras, como um sutra. Sete dias haviam-se passado desde a morte do tio Gon. E nesses sete dias a velha Osugi procurara Musashi com o mesmo intenso desespero da deusa Kishimojin[52] em busca do filho perdido. E agora, finalmente o encontrara.

A primeira pista viera na forma de um boato entreouvido nas ruas de Kyoto, dando conta de um provável duelo entre Yoshioka Seijuro e Musashi, nos dias seguintes.

A segunda havia sido uma placa, afixada na tarde anterior por alguns discípulos da academia Yoshioka na ponte Oubashi da rua Gojo, em meio a um intenso tráfego.

“Mas é muito atrevido, esse Musashi! Tanta petulância é digna de riso! Está claro que Yoshioka Seijuro vai liquidá-lo, mas... Nesse caso, não posso cumprir a promessa feita a meus conterrâneos. Haja o que houver, tenho de agir antes para conseguir a cabeça desse amaldiçoado, erguê-la pelos cabelos e mostrá-la ao meu povo”, pensava Osugi, frenética depois de ler o aviso.

Conclamando a ajuda dos deuses ancestrais, e apertando junto ao corpo o osso do velho Gon, ela havia tomado a decisão de encontrar Musashi, mesmo que para isso tivesse de afastar com as mãos uma a uma todas as moitas sobre a face da terra.

E foi assim que, pela enésima vez, havia batido nessa noite à porta de Matsuo Kaname. E depois de ter questionado os tios de Musashi sem resultado e destilado veneno pela boca, vinha ela retornando desanimada pelo barranco do rio nas proximidades da rua Nijo quando avistara um clarão nos baixios à beira do rio. Osugi havia parado sobre o barranco e espiado, imaginando tratar-se de um mendigo aquecendo-se ao calor de uma fogueira. E então avistou nas águas rasas do rio, a quase dez metros de um fogo vivo, um homem saindo do banho: ignorando o frio intenso, o homem enxugava o corpo musculoso.

“Musashi!”

Mal o identificou, a velha caiu sentada, incapaz de se erguer por alguns instantes. Seu adversário estava nu. Era uma oportunidade única para aproximar-se correndo e abatê-lo de golpe, mas o idoso e murcho coração não lhe permitia. As emoções, cada vez mais confusas com o avançar da idade, assumiram o comando da situação e a velha, agitada, só sabia dizer, como se já tivesse efetivamente a cabeça de Musashi em suas mãos:

— Gloriosos deuses, agradeço-vos a ajuda! Quanta alegria! Não posso ter encontrado Musashi por mera coincidência: minhas preces fervorosas dos últimos dias devem ter-vos comovido, ó deuses, e vós me proporcionastes a oportunidade de me vingar com estas mãos!

E ali se deixava ficar Osugi, mãos postas agradecendo aos céus com uma tranqüilidade comum em idosos, mas incomum em se tratando dela.

 

Uma por uma, as pedras do baixio emergiam das trevas revelando seus contornos úmidos e brilhantes à luz da aurora.

Depois de enxugar o corpo, Musashi vestiu-se, introduziu as duas espadas no obi firmemente atado à cintura e ajoelhou-se, curvando a cabeça em silenciosa prece aos deuses.

— É agora! — decidiu Osugi, frenética. Mas nesse mesmo instante Musashi saltou de súbito uma poça de água e pôs-se a caminho. Temendo vê-lo fugir se o chamasse daquela distância, a velha Osugi, alarmada, seguiu pelo barranco para a mesma direção.

O primeiro alvorecer do ano aos poucos revelou vagos e harmoniosos contornos de telhados e pontes da cidade, mas estrelas ainda brilhavam no céu e a noite se demorava, escura, na base do monte Higashiyama.

Passando sob a ponte da rua Sanjo, Musashi abandonou o baixio e emergiu sobre o barranco, sempre caminhando a passos largos.

A velha Osugi pensou em detê-lo diversas vezes, ordenando:

“Pare, Musashi!”

Buscando porém com a sagacidade dos velhos a condição mais favorável para efetuar o ataque — uma brecha na guarda, a distância ideal —, acabou por andar-lhe à cola algumas centenas de metros.

Musashi já tinha percebido a presença de Osugi havia algum tempo e não se voltara de propósito: no instante em que se voltasse e seus olhos se encontrassem, a velha lhe saltaria em cima, tinha certeza. Embora idosa, Osugi estava armada e desesperada, e Musashi teria de reagir, ao menos para evitar ferir-se.

“Aí está uma adversária temível!”, considerou Musashi seriamente.

Fosse aquele o Takezo dos tempos da vila Miyamoto, tê-la-ia repelido com um murro, lançando-a no chão a cuspir sangue. Mas agora, não se sentia propenso a isso.

Na verdade, Musashi é quem devia odiá-la, e não Osugi a ele. O ódio que Osugi lhe devotava — intenso a ponto de fazê-la jurar-lhe inimizade por todas as sete reencarnações a que uma alma está destinada — tinha origem em mal-entendidos e em confusas emoções que, uma vez esclarecidos, deveriam promover o entendimento. Mas Musashi poderia explicar-lhe as razões um milhão de vezes e ainda assim não lograria fazê-la esquecer a vingança cuidadosamente planejada e levá-la a dizer:

— Ah, então foi isso? Agora entendi!

No entanto, mesmo se o próprio filho Matahachi ali estivesse para lhe explicar como haviam os dois partido para a batalha de Sekigahara e o que lhes havia sucedido depois da guerra, essa obstinada anciã ainda assim não deixaria de achar que ele, Musashi, era o pior inimigo de quantos havia da família Hon’i-den, muito menos que fugira raptando a noiva do filho.

“Esta é uma boa oportunidade para promover o encontro dela com Matahachi. Se chegarmos à ponte da rua Gojo, talvez já o encontre lá, à minha espera”, imaginou Musashi, certo de que o recado havia sido transmitido ao amigo.

E a base da referida ponte Oubashi estava próxima. A região, populosa e de intenso tráfego de pedestres, ainda conservava, mesmo depois das inúmeras batalhas do período Sengoku, a magnificência dos áureos tempos da casa Taira, como as grandes mansões e o jardim de rosas de Taira-no-Shigemori. Nessa manhã, porém, todos os portais ainda estavam fechados.

Marcas deixadas na noite anterior por ancinhos continuavam inalteradas na frente das casas adormecidas e aos poucos se definiam na luz branca do alvorecer.

Os contornos das grandes pegadas de Musashi também passaram a definir-se ao olhar de Osugi. Como odiava essas pegadas!, pensou a velha.

Pouco menos de 100 metros separava agora os dois da boca da ponte.

— Musashi! — gritou Osugi, a voz rouca, como se expelisse catarro da garganta. Punhos cerrados e pescoço esticado, ela aproximou-se correndo.

 

— Carcaça humana à minha frente! É surdo, por acaso?

Era óbvio que Musashi a ouvira. Os passos de Osugi correndo-lhe no encalço podiam não ser vivazes como os de um jovem, mas soavam determinados, como os de alguém preparado para morrer.

Costas voltadas para ela, Musashi continuava a caminhar.

“E esta agora!”, pensava. Não lhe ocorria estratégia alguma para livrar-se dessa emergência.

Entrementes, Osugi passou-lhe à frente e ordenou:

— Pare, já lhe disse!

A velha senhora barrou a passagem de Musashi, ofegando como um asmático, empenhando-se em normalizar a respiração e juntar saliva na boca.

Incapaz de ignorá-la por mais tempo, Musashi dirigiu-lhe a palavra a contragosto:

— Ora, se não é a matriarca dos Hon’i-den! Que encontro inesperado!

— Petulante como sempre, não é, Musashi? Inesperado digo eu! Você me escapou lindamente na ladeira Sannen-zaka, de Kiyomizu. Mas hoje, essa cabeça é minha! — gritou, esticando o corpo inteiro e mais o pescoço fino e enrugado semelhante ao de um galo de rinha em direção ao alto Musashi. Para o jovem, a anciã de lábios arreganhados a berrar indignada, quase cuspindo os salientes incisivos superiores, era mais temível do que um robusto guerreiro furioso.

Boa parte do temor lhe fora incutido na infância. Naqueles distantes dias — Matahachi, um menino ranhento, e Musashi, um garoto levado de quase nove anos — ele costumava sentir um nó nas tripas, encolhia-se de medo e fugia em disparada toda vez que cruzava com a velha Osugi nas plantações de amora ou na cozinha da sua casa e a ouvia esbravejar: “Moleque!”.

E o berro trovejante continuava, pelo jeito, a soar em algum canto da sua mente, pois Musashi encarou nesse momento a velha que sempre considerara antipática e rabujenta com uma quase resignação, apesar do ódio profundo que lhe devotava agora em decorrência do que havia sofrido em suas mãos depois da batalha de Sekigahara.

Osugi, por seu lado, não conseguia esquecer-se de Takezo, o fedelho traquinas. Para ela, Musashi continuava o mesmo moleque ranhento cheio de caspas, quase monstruoso com suas pernas e braços compridos demais. Podia até admitir que ela própria envelhecera e que ele se tornara adulto, mas não conseguia alterar o conceito que fazia dele.

E sentir-se tratada desse jeito pelo homem a quem ainda considerava um moleque era-lhe insuportável por causa da palavra empenhada junto ao povo de sua terra, e mais que tudo, do ódio que lhe devotava. Osugi não podia deixá-lo impune: tinha de levar Musashi ao túmulo junto com ela.

— Não precisa dizer mais nada. Ou me deixa cortar sua cabeça sem resistir, ou luta contra mim. Resolva, Musashi!

Assim dizendo, a velha levou os dedos da mão esquerda à boca — aparentemente para umedecê-los — e apoiou-os em seguida no cabo da espada curta em seu quadril, avançando para Musashi.

 

 “Um louva-a-deus contra um tanque de guerra.” A frase, usada nestas situações, escarnece do louva-a-deus raquítico, no caso a matriarca dos Hon’i-den, armando sua pata em forma de foice e investindo contra um ser humano.

O olhar de Osugi tinha na verdade algo da fúria do louva-a-deus. A cor de pele e a aparência geral eram, além disso, idênticas ao do inseto.

Musashi — com seu peito volumoso e ombros largos, a acompanhar impassível os movimentos de aproximação da anciã como se observasse uma criança brincando — era a própria imagem do tanque de guerra a contemplar desdenhoso a investida do louva-a-deus.

A situação beirava o cômico, mas Musashi não tinha vontade de rir.

Subitamente, sentiu pena, uma intensa simpatia e vontade de confortar essa anciã que se havia tornado sua inimiga.

— Obaba, obaba! Espere um pouco! — disse, segurando-a levemente pelo cotovelo.

— Como se atreve! — berrou Osugi, fazendo tremer o cabo da espada seguro na mão, e os protuberantes incisivos. — C... Covarde! Não adianta querer me tapear, fedelho inexperiente! Esqueceu-se de que esta velha já viu no mínimo 40 Anos Novos mais que você? Ademais, não tenho tempo para conversa mole. Vamos, deixe-me acabar com você de uma vez!

A cor da velha Osugi já se havia tornado cadavérica e o tom de sua voz era desesperado. Musashi assentiu:

— Eu a compreendo... Compreendo muito bem. Mostra a fibra de um Hon’i-den, valorosos vassalos de Shinmen Munetsura.

— Refreie a língua, moleque insolente. Engana-se se pensa que vou-me derreter ouvindo lisonjas de um fedelho que tem idade para ser meu neto.

— Não distorça o sentido do que lhe falo e escute sem prevenções o que eu tenho a lhe dizer, obaba.

— Seu testamento, por acaso?

— Não, explicações.

— Covarde! — berrou Osugi indignada, pondo-se na ponta dos pés, como se quisesse alongar o pequeno corpo, e gritando:

— Não quero ouvir, não quero ouvir! Não tenho ouvidos para explicações, a esta altura!

— Nesse caso, deixe sua espada sob minha guarda momentânea. E então, daqui a pouco, quando Matahachi aparecer na ponte Oubashi, tudo se esclarecerá.

— Você disse Matahachi?

— Isso mesmo. Mandei-lhe um recado na primavera do ano passado.

— Que recado?

— Prometi que me encontraria com ele aqui, esta manhã.

— Mentiroso! — esbravejou Osugi, sacudindo a cabeça, frenética.

Se fosse verdade, Matahachi naturalmente ter-lhe-ia falado a respeito quando tinham se encontrado na cidade de Osaka, havia pouco. Matahachi não recebera recado algum de Musashi. Só por isso, Osugi decidiu serem mentiras tudo que Musashi lhe dizia.

— Você não tem vergonha, Musashi? É filho de Munisai ou não? Teu pai não lhe ensinou que um homem deve morrer com dignidade quando chega a sua hora? Cansei-me desse jogo de palavras. Quero ver se é capaz de defender-se deste golpe guiado pela mão dos deuses, o mais ansiado da minha vida!

A velha Osugi encolheu repentinamente o braço, livrou o cotovelo, empunhou a espada com as duas mãos e arremeteu em linha reta contra o peito de Musashi, gritando:

— Namu! Que assim seja!

Musashi bateu-lhe de leve nas costas com a palma da mão e esquivou-se.

— Calma, obaba! — disse.

— Oh, todo misericordioso, todo compassivo! — invocou Osugi frenética, voltando-se, e repetiu: — Namu Kanzeon Bosatsu! Glória a Kanzeon misericordiosa!

O golpe foi violento, mas Musashi esquivou-se, agarrou-lhe o pulso e a atraiu a si, dizendo:

— Desse jeito você vai acabar se queixando de cansaço mais tarde, obaba. Vamos, é logo aí, acompanhe-me sem discutir até a ponte Oubashi!

Com o braço torcido e imobilizado, Osugi voltou o rosto para Musashi, nele fixando o olhar feroz. Franziu então os lábios como se fosse cuspir. O ar saiu de sua boca com um silvo.

— Aah!

Musashi afastou-a com um empurrão e saltou para trás, levando a mão ao olho esquerdo.

 

O olho ardia, como se uma brasa o houvesse atingido.

Musashi retirou a mão da pálpebra e a examinou, mas nela não viu vestígios de sangue. Não conseguia, porém, sequer entreabrir o olho esquerdo.

Ao perceber a perturbação do adversário, Osugi exultou:

— Glória a Kanzeon Bosatsu!

Sem lhe dar trégua, atacou-o com dois, três golpes seguidos de espada.

Algo desnorteado, Musashi esquivou-se enviesando o corpo. No mesmo instante sentiu a espada de Osugi atravessar-lhe a manga do quimono e roçar-lhe o antebraço na altura do cotovelo. Pelo rasgo da manga, o tecido branco do forro surgiu manchado de sangue.

— Acertei! — gritou Osugi louca de alegria, golpeando a esmo. Parecia estar atacando uma árvore, sem sequer notar que seu adversário não reagia. Chamava à terra a misericordiosa deusa Kanzeon Bosatsu de Kiyomizudera, e saltitava ao redor de Musashi uivando ruidosamente:

— Namu! Namu!

Musashi apenas acompanhava seus movimentos, esquivando-se quando necessário. Mas o olho ardia violentamente, como se acabasse de levar um soco, e o cotovelo esquerdo, embora o ferimento fosse insignificante, sangrava tanto que chegava a manchar a manga do quimono.

“Que descuido!”, pensou Musashi, tarde demais. Nunca, até esse dia, ele havia passado pela experiência de ceder a iniciativa a um oponente e, sobretudo, de ferir-se em conseqüência disso. Musashi não tinha querido revidar os golpes desferidos por essa anciã de agilidade física comprometida porque a situação não era de duelo: ele com certeza não se sentia combativo com relação à velha Osugi, e nem lhe passara pela cabeça a idéia de vencê-la ou de ser por ela derrotado.

E não seria essa atitude um genuíno descuido? Do ponto de vista tático, a situação evidenciava a derrota de Musashi, sua imaturidade exposta de modo insofismável pela fé e pela espada da velha Osugi.

Musashi percebeu a própria falha com um sobressalto:

“Cometi um erro!”

Ato contínuo, descarregou com toda a força uma palmada no ombro da matriarca que, empolgada, continuava a atacar.

— Ah!

Osugi caiu de quatro: a espada lhe escapou da mão e voou longe. Musashi apanhou a arma com a mão esquerda, e com o braço direito, enlaçou a cintura da velha Osugi que lutava por erguer-se.

— Ai, que ódio! — gritou Osugi suspensa no ar sob o braço de Musashi, debatendo-se como uma tartaruga. — Onde estão os deuses? Onde estão os santos que não me vêm ajudar? Logo agora que já tinha conseguido golpeá-lo uma vez! Ai, que faço? Musashi! Não me humilhe mais! Corte-me a cabeça de uma vez, vamos!

Musashi cerrou os lábios com firmeza e pôs-se a andar em largas passadas.

E durante todo o tempo, Osugi não parou de gritar com voz rouca que parecia vir das entranhas:

— Estava escrito que assim seria: a sorte na guerra é imprevisível. Se estes são os desígnios divinos, por que lamentar? Quando Matahachi souber que seu tio Gon morreu sem completar a missão e que sua mãe tombou pelas mãos do homem a quem jurou matar, com certeza se erguerá indignado, disposto enfim a vingar-se. E agora, minha morte não terá sido em vão! Ao contrário, servirá de estímulo! Musashi! Ande logo, acabe comigo! Aonde é que você vai? Pretende me humilhar antes de me matar? Corte-me a cabeça, já lhe disse!

 

Musashi não lhe deu ouvidos e, com a velha Osugi debaixo do braço, aproximou-se da boca da ponte Oubashi:

“E agora, onde a deixo?”, pareceu perguntar-se, percorrendo o olhar ao redor em busca de um lugar apropriado. “Já sei!”

Desceu uma vez mais do barranco para a margem do rio e depositou a anciã cuidadosamente no fundo de um bote atado ao pilar da ponte.

— Fique aqui por algum tempo, obaba. Dentro em breve, seu filho há de vir.

— Que pretende? — berrou Osugi, repelindo com violência as mãos de Musashi e algumas esteiras ao seu redor. — Matahachi não vai aparecer por aqui. Ah, agora começo a compreender: não contente em matar-me, você pretende ainda me expor ao olhar dos que trafegam pela ponte, me humilhar em vida, e só depois liquidar-me!

— Ora, continue pensando o que quiser. Logo compreenderá.

— Mate-me, Musashi!

— Ah-ah! — riu Musashi alegremente.

— Está rindo de quê? Não tem sequer coragem de passar a espada por este pescoço fino e velho? — esbravejou Osugi.

— Isso mesmo: não tenho.

— Covarde!

Osugi mordeu a mão do jovem que, como último recurso, tentava amarrá-la e prendê-la ao fundo do barco.

Abandonando o braço para que a velha o mordesse à vontade, Musashi acabou de atá-la tranqüilamente. Devolveu em seguida a espada curta à bainha, e a introduziu de novo na cintura de Osugi. Ia afastar-se quando a velha tornou:

— Musashi! Musashi! Você desconhece o código de honra dos bushil Volte aqui que eu lhe ensino!

— Mais tarde, obaba.

Fez uma ligeira mesura e apoiou um dos pés no barranco. Como porém a velha Osugi não parava de esbravejar, voltou atrás e lançou sobre ela as esteiras existentes no barco.

Nesse exato momento, o sol mostrou de súbito a borda do seu disco em chamas sobre a crista da montanha Higashiyama: o primeiro dia do ano raiava.

Parado na boca da ponte Gojo Oubashi, Musashi contemplou extasiado o magnífico espetáculo. Os raios rubros pareciam penetrar-lhe o corpo, tingindo de vermelho o âmago do seu ser.

Lamúrias que vicejam o ano inteiro em meio a pensamentos mesquinhos dissipam-se ante esse radioso brilho: Musashi sentiu-se purificado, o coração repleto da alegria de viver.

— Além de tudo, sou jovem!

A energia contida nos cinco nacos de mochi percorria-lhe o corpo e lhe chegava até os calcanhares. Musashi voltou-se:

— Pelo jeito, Matahachi ainda não chegou — murmurou, examinando a ponte. E então deixou escapar uma súbita exclamação: o que já o aguardava sobre a ponte desde a noite anterior não era Matahachi nem qualquer outra pessoa, mas o aviso afixado por Ueda Ryohei e alguns discípulos da academia Yoshioka.

“Local: campina do templo Rindaiji.

Dia nove, último terço da hora do coelho.”

Musashi arrepiou-se inteiro, aproximou o rosto e observou com cuidado a placa recém-preparada e a tinta ainda fresca. Só de ler sentia-se enrijecer como um porco-espinho, o sangue quente e o espírito combativo estufando-lhe o corpo.

— Ah, como dói!

Incapaz de suportar o violento ardor no olho esquerdo, Musashi levou novamente a mão à pálpebra e, ao baixar a cabeça, descobriu horrorizado uma agulha espetada no quimono, logo abaixo do queixo. Observou com atenção e percebeu de imediato mais quatro ou cinco na gola e nas mangas, brilhando como agudas farpas de gelo.

 

— É isso, então!

Extraiu uma delas e examinou-a cuidadosamente. Tinha tamanho e grossura aproximados de uma agulha comum, mas nela não havia o orifício para a passagem da linha. Além disso, era triangular e não cilíndrica.

— Velha bruxa! — murmurou Musashi espiando o baixio e arrepiando-se de horror. — Isto aqui deve ser uma agulha de sopro. Já ouvi falar delas, mas nem em sonho podia imaginar que a velha possuísse esse tipo de habilidade secreta. Que perigo!

Interessado, recolheu uma a uma as agulhas e as prendeu na gola, em segurança, com o intuito de estudá-las mais tarde.

Segundo o que já ouvira dizer em sua curta vida de guerreiro, existiam duas correntes entre os praticantes de artes marciais, uma defendendo a existência da técnica de soprar agulhas guardadas na boca, e outra negando-a.

De acordo com os que a defendiam, essa era uma técnica tradicional de auto-defesa muito antiga. Inicialmente empregada como simples passatempo por costureiras e tecelãs chinesas naturalizadas que haviam trabalhado nos departamentos têxteis do governo japonês, a técnica evoluíra aos poucos vindo até ser aproveitada na arte militar. Embora não constituísse por si só uma arma, a referida técnica seria um recurso refinado que antecedia o próprio ataque, tendo existido até o período Ashikaga, diziam os defensores, convictos.

Os que negavam sua existência rebatiam:

— Não digam asneiras. A própria discussão em torno da existência ou não de algo tão primário quanto isso já representa uma vergonha para a classe guerreira.

Esta corrente, que dizia interpretar corretamente a teoria da arte guerreira, afirmava:

— Tecelãs e costureiras vindas da China talvez passassem o tempo brincando desse jeito, mas uma brincadeira é sempre uma brincadeira, e não uma arte marcial. Além de tudo, no interior da boca humana existe a saliva, que pode se encarregar de saturar e anular devidamente estímulos quentes, frios, ácidos ou picantes. Mas a saliva não seria capaz de envolver a ponta da agulha de modo a não ferir a boca.

Seus oponentes argumentavam:

— Mas é aí que se enganam: isso é possível. Naturalmente exige treino, mas gente existe capaz de envolver algumas agulhas em saliva e conservá-las na boca, lançando-as com o uso da língua e de uma sutil técnica respiratória contra os olhos do adversário.

A corrente contrária insistia: mesmo assim, aquilo era afinal uma simples agulha e tinha como alvo um único ponto do corpo humano, o olho. E mesmo que as agulhas atingissem o alvo, não teriam efeito algum se a área atingida fosse o branco dos olhos. Elas seriam capazes de cegar um homem apenas se atingissem a pupila com precisão, mesmo assim provocando um ferimento não mortal. E de que modo uma técnica tão insignificante, destinada a frágeis mulheres e crianças, poderia ter evoluído a ponto de ser aproveitada militarmente?, questionavam.

A isso, replicavam os defensores:

— Por isso mesmo ninguém está afirmando que evoluiu tanto quanto qualquer arte marcial, mas é verdade que esse tipo de técnica secreta ainda subsiste até os dias de hoje.

Musashi ouvira de passagem um grupo discutindo algo semelhante havia algum tempo, mas como ele próprio não reconhecia a técnica como arte marcial, não lhe parecera possível existir alguém que a dominasse. Agora, porém, percebeu dolorosamente que sempre haveria uma informação útil no meio de qualquer conversa, por mais tola que ela parecesse.

Sentia o canto interno do olho queimar e pulsar, provocando lágrimas, mas por sorte a pupila não fora atingida.

Musashi apalpou o próprio corpo, à procura de um pedaço de pano para enxugar as lágrimas. As mãos tateavam indecisas sem saber de onde destacar um pedaço, mangas ou gola.

Nesse instante, ouviu às costas o silvo de seda rasgando. Ao se voltar, notou uma mulher aproximando-se às carreiras com uma tira vermelha de quase 30 centímetros na mão. A mulher havia estado observando-o e rasgara com os dentes um pedaço da barra da própria roupa de baixo.

 

O SORRISO

Era Akemi.

Seus cabelos desgrenhados nem de longe lembravam os elaborados penteados femininos das datas festivas. Estava descalça e tinha as roupas desalinhadas.

— Ora! — exclamou Musashi sem intenção alguma, apenas arregalando os olhos. Achou que a conhecia, mas ao contrário de Akemi, não a identificou de pronto.

A jovem sempre imaginara que Musashi também pensava nela, ao menos um pouco. Não sabia por quê, mas acabara acreditando nisso no decorrer dos anos.

— Sou eu, Takezo-san, isto é, Musashi-sama! Aproximou-se algo hesitante com o retalho vermelho na mão.

— Que aconteceu com seu olho? Não o esfregue, pode piorar. Limpe-o com isto.

Musashi aceitou em silêncio o trapo e com ele comprimiu o olho, voltando a examinar cuidadosamente o rosto de Akemi.

— Esqueceu-se de mim? — perguntou a jovem.

— Sou eu...

— Não se lembra de mim? — insistiu Akemi.

Seu amor, preservado com tanto zelo, vacilava agora ao enfrentar o rosto destituído de expressão à sua frente. Akemi tivera certeza de que ao menos uma coisa existia no fundo do seu coração ferido: seu amor por Musashi. E ao perceber de súbito que até esse sentimento era pura ilusão, a jovem sentiu algo duro como uma bola de sangue subir-lhe ao peito. Trêmula, levou as duas mãos ao rosto e conteve o soluço que lhe irrompia pelo nariz e boca.

— Ah! — lembrou-se Musashi. Aquele último gesto reavivara uma centelha, talvez porque nele visse a singeleza da menina que conhecera nos pântanos de Ibuki, sempre a andar com um guizo tilintando na manga do quimono.

Repentinamente, dois braços robustos envolveram os magros ombros de Akemi.

— É você, Akemi-san...? É isso mesmo, você é Akemi-san! Como fui encontrá-la aqui? Explique-me!

As perguntas encadeadas aumentaram a tristeza da jovem.

— Você já não mora na região de Ibuki? E sua mãe, como vai? Ao perguntar por Okoo, Musashi naturalmente lembrou-se da ligação dela com Matahachi:

— Vocês ainda vivem com Matahachi? Na verdade, Matahachi devia estar aqui esta manhã... Você veio a pedido dele?

Cada palavra o distanciava dela. Rosto enterrado em seu peito, Akemi apenas chorava e sacudia a cabeça.

— E Matahachi: ele não vem? Que houve? Pare de chorar e me explique, pois não consigo entender nada desse jeito.

— Ele não vem. Não recebeu o recado e não vem — foi tudo o que conseguiu dizer a jovem, trêmula, o rosto molhado ainda apoiado ao peito de Musashi.

Tudo que havia planejado falar-lhe desfazia-se como uma espuma bruxuleante a flutuar no sangue em tumulto. Não conseguia sequer pensar em contar-lhe como fora forçada pela própria madrasta a um destino cruel, ou o que lhe acontecera desde o maldito dia na praia de Sumiyoshi até hoje.

Sobre a ponte iluminada por serenos raios solares já começavam a circular vultos esparsos. Eram mulheres em quimonos floridos rumando para o templo Kiyomizudera, ou samurais em trajes formais iniciando a ronda de visitas aos superiores para cumprimentá-los pelo Ano Novo.

E no meio dos pedestres surgiu de repente uma figurinha de cabelos revoltos semelhantes aos de um kappa: era Joutaro, a quem fim de ano ou Ano Novo não interessavam. Ao chegar no meio da ponte, deu com Musashi e Akemi.

— Ué?! Pensei que fosse Otsu-san, mas não é!

Joutaro estacou. Parecia chocado, como se acabasse de surpreender um casal em atitude indecorosa.

 

Como podiam os dois permanecer tão próximos um do outro, imóveis na beira do caminho? Por sorte, ninguém os observava, mas... Que diabos, afinal eram um homem e uma mulher adultos!, não podia deixar de pensar o menino, surpreso.

E justo seu mestre, a quem tanto respeitava!

“A culpa é dessa mulher!”, resolveu Joutaro. O pequeno coração pulsava forte, sentia ciúmes, um misto de tristeza e irritação, ganas de apanhar uma pedra e jogar nos dois.

— Imagine se essa não é Akemi, a mulherzinha que ficou de passar o recado do mestre para o tal Matahachi! Ah, ela tem por que ser assanhada: afinal, trabalhava numa casa de chá! E desde quando ficou tão íntima do meu mestre? E o mestre, então! Vou contar tudo para Otsu-san!

Examinou a rua de cima a baixo, espiou sob a ponte mas não viu Otsu em lugar algum.

— Que lhe teria acontecido?

Pois Otsu tinha saído primeiro da mansão Karasumaru, onde se hospedavam havia alguns dias.

Certa de que iria encontrar-se com Musashi, Otsu havia lavado os cabelos no dia anterior e perdido um tempo enorme num trabalhoso penteado, dormira mal, e hoje, ainda de madrugada, vestira o caro quimono  de vistoso padrão primaveril — um presente da casa Karasumaru — e aguardara ansiosa o dia raiar.

— Em vez de ficar aqui sem fazer nada, apenas esperando o dia raiar, vou aproveitar para visitar o santuário Gion e o templo Kiyomizu-dera. Depois disso, irei à ponte Gojo Oubashi — havia decidido Otsu a certa altura.

E quando Joutaro propusera: “Então, vou junto!”, fora repelido.

— Não — havia explicado a jovem. Joutaro era boa companhia em qualquer ocasião, mas hoje ela precisava de um pouco de privacidade, como toda mulher apaixonada. — Quero conversar a sós com Musashi-sama por alguns momentos. Venha mais tarde, Jouta-san, depois que o dia clarear, com toda a calma. Prometo esperar por você na ponte, com seu mestre. De lá não vou sair até você aparecer.

Foi o que a jovem havia dito antes de partir da mansão bem cedo nessa manhã.

O arranjo não deixara Joutaro nada feliz, mas ele não se havia ofendido ou zangado. Já tinha idade suficiente para compreender o que se passava no coração de Otsu, a quem pensava conhecer bem depois de todos esses dias e noites de convivência. Desde o dia em que rolara sobre o feno com a pequena Kocha da hospedaria do feudo Yagyu ele se tornara capaz de intuir que tipo de emoção provocam mutuamente um homem e uma mulher.

Ainda assim não compreendia certas atitudes de Otsu — seus recorrentes ataques de choro e depressão —; elas lhe davam vontade de rir ou deixavam-no constrangido. Nesse instante, porém, ao perceber que a mulher chorosa agarrada ao peito de Musashi era Akemi, uma estranha total para os dois, sentiu-se tomado de repentina raiva. Leal a Otsu, pensou, “Mulherzinha insuportável!”, e logo depois, como se fosse ele o traído, “Muito bonito, hein, mestre!”, e na continuação, irritado, “Onde está Otsu-san? Preciso contar para ela.”

E ali estava o menino, procurando-a impaciente em cima e embaixo da ponte, quando percebeu que os dois à sua frente haviam-se movido — aparentemente para não chamar atenção dos transeuntes — e tinham-se aproximado do corrimão próximo à boca da ponte. Rostos voltados para baixo pareciam agora contemplar o baixio, Musashi com os braços sobre o parapeito e debruçado sobre ele, Akemi, rente ao seu lado.

Os dois não perceberam quando Joutaro passou às suas costas, rente ao parapeito do outro lado da ponte.

— Mas Otsu é folgada mesmo! Como é que ela perde tanto tempo rezando para a deusa Kanzeon nessa emergência? — resmungou Joutaro, esticando-se inteiro tentando visualizar seu vulto na ladeira da rua Gojo.

A quase dez passos de onde estava o menino erguiam-se quatro ou cinco grossos chorões desfolhados. Bandos de garças brancas eram vistos com freqüência pescando ao seu redor, mas nesse dia, no lugar das aves havia um jovem de cabelos longos atados à nuca em rabo: recostado a um tronco que se contorcia rente ao solo à semelhança de um dragão rastejante, o jovem contemplava um ponto fixamente.

 

Musashi, braços sobre o parapeito ao lado de Akemi, balançava levemente a cabeça em resposta aos seus murmúrios ansiosos. No entanto, sua atitude não dava a perceber se as intensas palavras que Akemi — trêmula e pondo de lado a natural inibição feminina — lhe sussurrava, ultrapassavam ou não a fronteira dos seus ouvidos.

A razão da dúvida estava no olhar de Musashi, desviado — apesar dos freqüentes meneios da cabeça em sinal de compreensão — para um ponto totalmente inesperado, criando um clima bem diferente daquele de dois jovens apaixonados olhando para os lados enquanto falam de amor. Em poucas palavras, seu olhar era uma chama fria, incolor, verrumando um ponto sem pestanejar.

A Akemi não sobrava senso crítico suficiente para estranhar esse olhar. Soterrada nas próprias emoções, continuava a falar entre soluços:

— Agora já lhe contei tudo que me aconteceu. Não escondi nada! — disse, aproximando-se furtivamente do braço sobre o parapeito. — Já se passaram cinco anos desde a batalha de Sekigahara. E no decorrer desses cinco anos, as circunstâncias... Meu corpo... Tudo mudou. Soluçou de novo e prosseguiu:

— Mas não! Eu não mudei, nem o amor que sinto por você, isso eu lhe garanto. Entende o que eu estou lhe dizendo, Musashi-sama? Entende?

— Hu-hum.

— Por favor, compreenda. Ponho de lado a vergonha para falar-lhe abertamente: esta já não é mais a Akemi, a flor imaculada que você conheceu nos pântanos de Ibuki. Violentada por um homem sem escrúpulos, transformei-me numa mulher vulgar. Mas seria a castidade uma questão física ou espiritual? Se uma mulher é virgem, mas impura em pensamentos, também perde a castidade, não perde? Eu perdi minha virgindade para um certo bushi, cujo nome não posso revelar. Mas meu coração continua puro porque meus sentimentos são castos.

— Hu-hum.

— Você sente pena de mim, Musashi-sama? Eu não podia esconder essas coisas da pessoa a quem pretendo dedicar a vida inteira. Quantas noites não passei pensando: que direi quando o vir? Será que conto tudo ou não? E cheguei afinal a uma resolução: não ter segredos para você. É capaz de me compreender? É capaz de achar que tenho razão? Ou me vê com repugnância?

— Hu-hum. Sei...

— Fale francamente, fale. Ai! Morro de ódio quando penso no que me aconteceu. — Deitou o rosto sobre o parapeito. — Hoje não estou mais em condições de lhe pedir que me ame, não estou apta fisicamente. Mas, como acabo de lhe dizer, Musashi-sama, esse sentimento... virginal... a chama pura do primeiro amor... Isso eu não perdi. Nem perderei, aonde quer que vá, leve a vida que levar.

Cada fio de seus cabelos parecia tremer e soluçar, mas sob o parapeito molhado de lágrimas, o rio corria cintilando à luz da primeira manhã do ano, murmurando interminavelmente rumo a um futuro promissor.

— Hum. Hu-hum.

O sofrimento da jovem impelia Musashi a acenar seguidamente, mas o olhar estranho, brilhante, continuava preso num ponto inesperado. Quem acompanhasse a direção desse olhar veria traçada no ar uma linha reta que, juntada à da ponte e à da margem do rio, fechava um triângulo imaginário.

E ali, na ponta da linha, estava Ganryu Sasaki Kojiro, havia tempos recostado ao tronco do chorão, imóvel na margem do rio.

 

Em sua infância, Musashi ouvira certa vez de Munisai: “Você não se parece comigo; como vê, minhas pupilas são negras, enquanto as suas são castanhas. Reza a lenda que seu bisavô, Hirata Shogen-sama, tinha aterrorizantes olhos castanho-escuros. Com certeza você herdou dele a cor dos seus.”

Talvez fossem os brilhantes raios matinais atingindo-lhe os olhos de viés, mas o fato era que as pupilas de Musashi se assemelhavam nesse momento a duas límpidas gotas de âmbar, perfeitas e de brilho penetrante.

“Ah, este deve ser o nosso homem!”, pensou Sasaki Kojiro, vendo diante de si pela primeira vez aquele a quem chamavam Miyamoto Musashi.

Por seu lado, Musashi observava Kojiro, sem se descuidar um instante sequer:

“Ora, quem é ele?”

E assim os olhares dos dois já havia algum tempo chocavam-se no espaço compreendido entre o parapeito da ponte e o chorão da margem, sondando em silêncio as respectivas profundidades.

Transposta para uma situação de luta, este assemelhava-se ao instante em que dois esgrimistas contêm a respiração e observam imóveis os respectivos adversários, posicionados além da ponta das suas espadas, procurando avaliar-lhes a capacidade.

Tanto Musashi quanto Kojiro nutriam desconfianças um pelo outro.

Kojiro pensava:

“Que relação pode haver entre esse Musashi e Akemi — a quem salvei das garras do cão de caça no santuário do vale Komatsu-dani e agora mantenho às minhas custas — para trocarem confidencias com tanta intimidade?”

E logo:

“Que sujeito desagradável! Deve ser mulherengo. E essa Akemi, então? Estranhei que saísse de manhã sem me avisar, vim atrás e o que vejo? Chorando no ombro desse sujeitinho.”

O descontentamento fervia, a boca se enchia de saliva.

Aos olhos de Musashi esse antagonismo, e mais ainda, certo tipo de hostilidade eram tão evidentes no olhar de Kojiro, que o levou a indagar-se:

“Quem será este homem?”

Logo, avaliou a competência do outro como guerreiro:

“Ele é habilidoso, bastante habilidoso!”

Em seguida, tentou descobrir:

“Qual o sentido desse olhar malévolo?”

E cauteloso, concluiu:

“Não posso me descuidar!”

Musashi analisava Kojiro com seus olhos espirituais e não físicos, de modo que não seria exagero afirmar que os olhares dos dois jovens soltavam faíscas.

Talvez Musashi fosse um ou dois anos mais novo, talvez não. Seja como for, ali estavam dois indivíduos em plena idade da presunção, seguros de si, certos de que sabiam tudo, desde assuntos relacionados às artes marciais até questões políticas e sociais.

Como animais selvagens que rosnam quando se avistam, Kojiro e Musashi experimentavam nesse instante uma sensação de pelos se eriçando.

Momentos depois Kojiro desviou o olhar abruptamente.

Musashi percebeu em seu perfil a sombra de um sorriso desdenhoso, mas assim mesmo divertiu-se, considerando que o próprio olhar — o poder da sua vontade — havia pressionado o adversário, obrigando-o a desviar os olhos primeiro.

— Akemi-san — disse Musashi, pousando a mão de leve no ombro da jovem que chorava com o rosto apoiado ao gradil da ponte. — Quem é ele? Você deve conhecê-lo. Quem é esse samurai peregrino que se arruma como um adolescente?

Akemi aprumou-se e só então se deu conta da presença de Kojiro. Seu rosto inchado registrou confusão:

— Ele... por aqui?

— Quem é esse homem?

— Ele... ele... — hesitou Akemi.

 

— Ele me parece um indivíduo bastante seguro de si com aquela espada magnífica às costas e roupas vistosas que chamam a atenção. Que tipo de relacionamento existe entre vocês?

— Nada demais. Nem somos tão íntimos assim.

— Mas você o conhece, não é verdade?

— Sim — admitiu ela, mas logo esclarecendo, temerosa de ser mal interpretada:

— Há alguns dias, um cão de caça invadiu um santuário no vale Komatsu-dani, me mordeu e o sangue não parava, de modo que fui à estalagem onde ele se hospedava e lá ele chamou um médico para mim. E acabei vivendo estes últimos três ou quatro dias às custas dele, quase sem querê-lo.

— Ah! Quer dizer que vocês vivem juntos.

Na realidade, Musashi não estava tentando saber se havia alguma relação especial entre os dois, mas a jovem assim o interpretou.

— Vivemos, mas nada temos em comum — reforçou ela.

— Sei. Nesse caso, você não deve saber muito sobre ele. Mas conhece o nome dele, ao menos?

— Conheço. Ele se chama Sasaki Kojiro, Ganryu de apelido.

— Ganryu.

Não era a primeira vez que ouvia o nome. Embora não chegasse a ser famoso, era mencionado com freqüência no meio guerreiro de diversas províncias. Naturalmente essa era a primeira vez que o via em pessoa, e Musashi surpreendeu-se com sua juventude, pois de tudo o que ouvira até então, ele havia imaginado que Kojiro fosse mais velho.

“Então, esse é o homem.”

E no instante em que Musashi se voltou para encará-lo uma vez mais, um sorriso contorceu de súbito os lábios de Kojiro.

Musashi devolveu-lhe o sorriso.

A eloqüência muda desses sorrisos nada tinha, porém, da luz e do mistério daqueles trocados entre Shakyamuni e seu dileto discípulo Ananda na cena em que se contemplam com uma flor nas mãos.

O sorriso de Kojiro era uma complexa mistura de ironia e desafio zombeteiro.

Consciente disso, o que Musashi lhe devolvia continha uma agressiva provocação.

Presa entre os dois homens, Akemi procurou ainda esclarecer seus motivos, mas Musashi a interrompeu:

— Nesse caso, será melhor voltar à hospedaria em companhia desse jovem, Akemi-san, ao menos por hoje. Um dia nos veremos de novo, está bem? Um dia...

— Virá me ver sem falta?

— Irei, sim.

— Estou hospedada no Zuzu-ya, não se esqueça. Fica bem na frente do templo da rua Rokujou.

— Hu-hum.

A resposta, vaga, incomodou Akemi, que agarrou a mão de Musashi sobre a balaustrada e, ocultando-a sob a manga, apertou-a com força, insistindo:

— Sem falta! Prometa! Prometa!

Repentinamente alguém riu — uma gargalhada longa e estrondosa, de pura diversão. Era Sasaki Kojiro que, dando as costas aos dois, se afastava nesse momento, ainda gargalhando.

Ao ouvir o riso exagerado, Joutaro voltou-se indignado. Mas muito mais indignado estava ele com seu mestre, e irritado com Otsu, que não aparecia.

— Que lhe terá acontecido?

Batendo os pés com impaciência, começou a andar em direção à cidade, quando vislumbrou por trás das rodas de um carroção de boi estacionado no cruzamento próximo, o rosto branco de Otsu.

 

ONDULAÇÕES NA ÁGUA

— Ah, achei, achei! — gritou Joutaro, como se acabasse de descobrir o diabo em pessoa e pondo-se a correr.

Otsu estava agachada atrás do carroção.

Nessa manhã, a jovem parecia particularmente atraente com seus cabelos arrumados e lábios pintados, aliás amadoristicamente, diga-se de passagem. O quimono que havia ganhado da casa Karasumaru, com bordado de flores nas cores branca e verde sobre fundo vermelho, padrão Momoyama, salientava ainda mais sua frágil beleza.

E tinham sido exatamente esse quimono vermelho e o pescoço branco da jovem entre as rodas do carroção que haviam chamado a atenção de Joutaro, levando-o a passar raspando pelo nariz do boi e se aproximar aos pulos.

— Que é isso? Otsu-san, Otsu-san, que faz você aí?

Esquecido de que podia arruinar o penteado e a maquiagem da jovem que, braços cruzados, se agachava rente ao carroção, Joutaro pulou-lhe ao pescoço, abraçando-a por trás.

— Que você faz aqui? Não faz idéia do quanto esperei por você! Ande, venha comigo!

— Ande logo, Otsu-san! — berrou Joutaro, sacudindo-a pelo ombro, — Musashi-sama está logo aí, você o vê daqui mesmo, não vê? Então! Mas eu estou morrendo de raiva! Venha, Otsu-san, já lhe disse! Você tem de vir de uma vez!

Agarrou-a pelo pulso e puxou tanto que quase lhe arrancou o braço. De repente, deu-se conta de que o pulso estava úmido e Otsu não erguia o rosto.

— Ora, ora, você estava chorando, escondida neste canto, Otsu-san?

— Jouta-san...

— Que é?!

— Esconda-se comigo atrás do carroção para que Musashi-sama não o veja também, está certo?

— Mas por quê?

— Porque sim.

— Irra! — exclamou Joutaro outra vez irritado, sem saber onde descarregar a insatisfação. — É por isso que não gosto de mulheres. Onde já se viu coisa tão absurda?! — explodiu. — Ela veio esse tempo todo chorando e procurando Musashi-sama feito louca, e quando o encontra, o que faz? Não só se esconde, como me manda esconder também! Quá-quá! Essa é demais, é tão bobo que nem consigo rir!

Otsu sentia-se fustigada por cada palavra do menino. Ergueu de manso os olhos vermelhos e inchados e disse:

— Jouta-san! Não fale desse jeito! Por favor, não judie de mim você também, eu lhe imploro!

— E quando foi que eu judiei?

— Fique quietinho, por favor. Agache-se aqui do meu lado, e fique quieto.

— Deus me livre! Não está vendo que tem cocô de boi pertinho de você? Ademais, dizem que até os corvos riem dos que choram no primeiro dia do ano.

— Nada mais importa para mim.

— Pois então eu vou rir! Vou bater palmas e gargalhar bem alto, como o moço que foi para lá há pouco, quer ver?

— Ria, ria bastante se tem vontade!

— Não consigo — respondeu Joutaro esfregando o nariz, contorcendo o rosto, quase chorando. — Ah, agora entendi. Você está com ciúmes, porque Musashi-sama está conversando com uma mulher estranha, não é isso?

— Não, não é nada disso!

— É sim, é isso mesmo! E você não percebeu que também estou morrendo de raiva por causa disso? E não vê que por isso mesmo tem de ir até lá? Que mulher teimosa!

 

Por mais que Otsu insistisse em permanecer agachada, não conseguiu resistir aos puxões de Joutaro, que lhe tinha agarrado a mão.

— Ai, você está me machucando. Jouta-san, não faça isso, por favor! Você me chamou de teimosa, mas teimoso é você, que não consegue me compreender!

— Compreendi muito bem: você está com ciúmes!

— Não é só isso. O que eu sinto, neste instante, não é nada tão simples!

— E daí? Venha comigo de uma vez!

Otsu começou a ser lentamente arrastada de trás do carroção. Pés fincados na terra e puxando como num cabo de guerra, Joutaro se esticava todo, tentando ver Musashi:

— Ah, ela foi-se embora! Akemi já foi embora!

— Akemi! Quem é Akemi?

— A mulher que estava com Musashi-sama. Ih, até ele começou a andar agora. Se você não vier de uma vez, ele vai sumir!

Joutaro começou a correr sozinho, disposto a não perder mais tempo com mulheres, quando Otsu pediu:

— Espere por mim, Jouta-san!

Otsu ergueu-se e examinou por sua vez com cautelosos olhares a boca da ponte Oubashi, certificando-se de que Akemi realmente se fora.

Otsu descontraiu então o cenho tenso, como se afinal visse a sombra de uma temível ameaça afastar-se. Ato contínuo, sobressaltou-se e correu a ocultar-se outra vez atrás do carroção para enxugar as pálpebras molhadas e inchadas, arrumar os cabelos e ajeitar o quimono.

Joutaro apressou-a:

— Ande logo, Otsu-san! Parece que Musashi-sama desceu para a beira do rio. Isto é hora de arrumar-se de novo?

— Para a beira do rio?

— É! O que será que ele foi fazer, hein?

Lado a lado, os dois correram para a boca da ponte.

Uma pequena multidão já se apinhava, pescoços esticados, em torno da placa afixada pelos discípulos da academia Yoshioka. Alguns a liam em voz alta, outros indagavam às pessoas ao lado quem seria o desconhecido de nome Miyamoto Musashi.

— Licença, por favor! — disse Joutaro, esbarrando em alguns curiosos para poder espiar por cima do parapeito o rio logo abaixo.

Otsu também estava certa de que lhe bastaria olhar embaixo da ponte para encontrar Musashi. O tempo transcorrido era mínimo, mas Musashi já não se encontrava ali.

Aonde teria ele ido, então?

A explicação era simples: havia pouco, Musashi tinha-se desvencilhado das mãos de Akemi, forçando-a a ir-se embora. E uma vez que não lhe adiantava esperar por Hon’-i-den Matahachi, já lera o aviso da academia Yoshioka e nada mais lhe restava a fazer ali, saltara o barranco agilmente e correra para o barco atado ao pilar da ponte.

Debaixo das esteiras e amarrada no fundo do barco, a velha Osugi havia muito debatia-se em vão.

— Obaba, sinto muito, mas Matahachi não vai aparecer. Ainda hei de encontrar-me com ele e incentivar aquele espírito indeciso a firmar-se. Enquanto isso não acontece, esforce-se também por achá-lo, obaba, e viva em paz com ele. Asseguro-lhe que dará assim maior alegria aos seus espíritos ancestrais do que cortando-me a cabeça.

Apanhou a adaga, introduziu a mão entre as esteiras e cortou as cordas que a prendiam.

— Cale a boca, fedelho de fala emproada! Em vez de se meter em assuntos que não lhe dizem respeito, decida-se de uma vez: corte-me a cabeça, ou deixe-me cortar a sua! — esbravejou Osugi, pescoço esticado emergindo de sob as esteiras e face riscada de veias intumescidas. Mas então Musashi já tinha vadeado o rio Kamogawa saltando pelos bancos de areia e de rocha em rocha, ágil como uma ave ribeirinha, e galgava o barranco na margem oposta.

 

Otsu não o viu, mas Joutaro talvez tivesse vislumbrado o vulto distante, na outra margem do rio, pois saltou para o baixio, berrando:

— Lá vai ele! É meu mestre! Meestre! Naturalmente, Otsu o acompanhou.

O que os levara a escolher esse caminho em vez de andar um pouco mais e atravessar o rio pela ponte Oubashi? Otsu havia sido compreensivelmente arrastada pelo ímpeto de Joutaro, mas esse único passo em falso traria conseqüências muito mais graves que o simples adiamento do seu encontro com Musashi.

Para as vigorosas pernas de Joutaro, rios ou montanhas não constituíam obstáculos. Mas Otsu, vestida com um caro quimono, estacou repentinamente ao se defrontar com as águas impetuosas do Kamogawa correndo em faixas entre bancos de areia e rochas.

Musashi já havia desaparecido por completo e Otsu, ao dar-se conta de que as águas constituíam um obstáculo intransponível, gritou como se agonizasse:

— Musashi-sama!

E então, uma voz lhe respondeu:

— Ei!

Era a velha Osugi, em pé sobre o barco, desvencilhando-se das esteiras.

Otsu voltou-se casualmente e no momento seguinte soltou um grito de pavor, cobriu o rosto e fugiu.

Os cabelos brancos da velha Osugi esvoaçavam ao vento.

— Otsu, sua vadia!

As palavras seguintes soaram desafinadas pelo esforço de gritar e repercutiram agudas na superfície da água:

— Pare! Tenho contas a ajustar com você!

Na visão distorcida de Osugi, os últimos acontecimentos tinham o seguinte significado: Musashi a cobrira com as esteiras porque tinha um encontro marcado com Otsu naquele local e não queria que ela, Osugi, o testemunhasse. Os dois, porém, deviam ter-se desentedido por algum motivo e, em conseqüência, Musashi abandonara a jovem e se afastara. E fora então que a vadia, desesperada e em prantos, chamara por seu homem. E no instante em que essa idéia lhe ocorreu, Osugi considerou-a verdade absoluta.

“Maldita vagabunda!”

Agora seu ódio por Otsu era ainda maior que o dedicado a Musashi, pois a velha, que sempre a havia considerado sua nora, tomava os acontecimentos como desprezo pelo filho e afronta pessoal.

— Alto aí, estou mandando!

Quando o segundo berro ecoou, a velha matriarca já corria no encalço da jovem como uma desvairada, boca rasgada de orelha a orelha no esforço de gritar.

Espantado, Joutaro disse, saltando para agarrá-la:

— De onde saiu esta velha maluca?! Osugi o repeliu, esbravejando:

— Sai, pirralho!

Seus braços não tinham muita força, mas eram duros e sabiam rebater.

Joutaro não tinha a mais remota idéia de quem poderia ser essa anciã, e nem por que Otsu se apavorara tanto e fugira desesperada.

Apesar disso, compreendia que a situação era grave. Além disso, como poderia Aoki Joutaro, o primeiro discípulo de mestre Musashi, resignar-se documente em ser posto de lado por uma cotovelada de uma velhota raquítica?

— Ah, então é assim, velha?

Alcançou Osugi, que lhe ia quase dez metros à frente, e saltou-lhe às costas. A matriarca o agarrou pelo pescoço como fazia quando queria castigar o neto e, imobilizando-o debaixo do braço esquerdo, aplicou-lhe alguns tapas na cabeça:

— Fedelho! É assim que castigo moleques que me atrapalham. Tome, tome!

Com o pescoço esticado, Joutaro engasgava, mas conseguiu empunhar sua espada de madeira.

 

Triste, ou talvez dura — essas podiam ser a impressão que as pessoas tinham da vida que Otsu levava. Mas a própria Otsu não a sentia assim, absolutamente.

A vida para ela era um jardim de esperanças, cada dia trazendo uma nova alegria. Nele havia também tristezas e aflições, naturalmente, mas Otsu não conseguia concebê-lo repleto apenas de felicidade.

Mas hoje! Hoje, esse modo de encarar a vida e que a vinha sustentando até agora ameaçava abandoná-la. Seu amor puro pareceu partir-se de cima a baixo, e isso a tinha entristecido.

Akemi... e Musashi.

No instante em que seus olhos tinham caído sobre os dois vultos distantes, reclinados lado a lado sobre o corrimão da ponte, indiferentes aos olhares estranhos, Otsu sentiu as pernas tremerem. A tontura, tão forte que quase desmaiou, obrigou-a a se agachar atrás do carroção.

Para que viera até ali?

Sabia que de nada adiantava lamentar ou chorar. Num curto espaço de tempo chegou a pensar em morrer, resolveu que os homens eram a mentira personificada: ódio e amor, ira e tristeza, e até desprezo por si própria mesclaram-se em seu íntimo, fazendo-a sentir que simples lágrimas jamais aplacariam a dor aguda em seu coração.

Não obstante...

Otsu era do tipo que jamais se apresentaria para reivindicar direitos enquanto a outra permanecesse ao lado de Musashi. O sangue lhe fervia de ciúme, mas com o pouco de racionalidade que lhe restava, admoestava-se frenética:

“Não seja vulgar!”, “Controle-se! Controle-se!”, dizia a si mesma, anulando a vontade de agir, contendo-a com a força de vontade cultivada no cotidiano.

Quando Akemi se afastou, no entanto, Otsu pôs de lado toda a contenção. Agora, ela ia abrir-se com Musashi. Não teve tempo para pensar no que diria, tinha apenas certeza de que revelaria a Musashi tudo o que lhe ia no peito.

Nos caminhos da vida, cada passo tem sua sutil importância. Além disso, coisas perfeitamente compreensíveis com um pouco de bom senso podem ser mal interpretadas pela conjugação de diversos fatores, transformando esse único passo em grave erro, cujas conseqüências se farão sentir por mais de dez anos.

Por ter perdido Musashi de vista, Otsu acabara topando com a velha

Osugi. Naquele festivo primeiro dia do ano, só lhe aconteciam desastres: no jardim de Otsu surgiam serpentes.

Desesperada, a jovem fugiu por algumas centenas de metros: Osugi, o vulto temível que lhe surgia habitualmente nos pesadelos, vinha-lhe agora no encalço não em sonhos, mas na realidade!

A respiração começou a lhe faltar.

Otsu voltou-se para olhar e, ato contínuo, respirou aliviada: a velha Osugi havia parado quase cem metros atrás, apertando o pescoço de Joutaro. Este, embora sacudido de um lado para o outro, agarrava-se a ela com unhas e dentes, tenazmente.

Não demoraria muito, Joutaro arrancaria sua espada de madeira da cintura, era quase certo. E se isso acontecesse, com certeza a velha também sacaria da sua e o enfrentaria.

Otsu já sentira na própria pele como a velha senhora podia ser impiedosa. Dependendo das circunstâncias, Joutaro podia tombar morto.

— Que faço, que faço?

Já estavam próximos à rua Shichijou. Espiou sobre o barranco mas não viu ninguém.

 

Aflita por salvar Joutaro, e apavorada pela idéia de se aproximar de Osugi, Otsu conseguia apenas andar a esmo.

— Velha nojenta! Bruxa! — berrou Joutaro, arrancando a espada de madeira da cintura.

É verdade que a arrancara, mas que fazer se a velha o tinha debaixo do braço firmemente seguro pelo pescoço e, por mais que se debatesse, não o soltava? Chutou o chão, golpeou o ar a esmo, e quanto mais se debatia mais deixava sua inimiga exultante.

— Moleque! Que pensa estar fazendo? Papel de sapo?

A velha Osugi, exibindo os incisivos superiores tão longos que lembravam os de um coelho, avançou triunfante pelo baixio arrastando o menino, mas ao avistar Otsu parada à distância, veio-lhe de súbito à mente uma idéia, astuta como só aos idosos costuma ocorrer, e sussurrou no íntimo:

“Espere, vamos com calma!”

Não estava agindo de modo correto, pensou. Ela não conseguia progressos porque tentava correr com as pernas velhas e disputar à força com os braços raquíticos. Era difícil engabelar um oponente do nível de

Musashi, mas estes eram dois tontos, uma jovem e um menino sensíveis a palavras doces. Nada melhor do que usar a língua, enredá-los e depois... saboreá-los à vontade.

E assim, a velha matriarca mudou de tom:

— Otsu, Otsu! — chamou, erguendo o braço e acenando para o vulto distante. — Otsu, minha bruxinha, por que foge mal me vê? Isso já aconteceu uma vez na ladeira da casa de chá Mikazuki, e torna a acontecer hoje: por que foge de mim como se eu fosse o próprio demônio? Não consigo entender o que lhe passa pela cabeça. Ainda não compreendeu meus verdadeiros sentimentos? Você está vendo maldade onde não existe! Esta velha não lhe quer mal.

Otsu ainda permanecia longe, desconfiada, mas Joutaro, preso ao braço de Osugi, perguntou no mesmo instante:

— Verdade? Verdade mesmo, obaba?

— Claro! Essa menina não me entende. Pensa que sou uma velha horrorosa!

— Nesse caso, vou até lá chamar Otsu-san. Solte-me!

— Mas nessa não caio eu: você está pensando em me golpear com sua espada de madeira e fugir assim que o soltar, não está?

— Acha que sou capaz de tamanha covardia? Eu apenas acho uma pena estarmos brigando por causa de um mal-entendido, só isso!

— Então, vá até a bruxinha Otsu e diga-lhe que eu, a matriarca dos Hon’i-den, vago pelo mundo desperdiçando o pouco tempo de vida que me resta levando comigo um osso do velho tio Gon, que morreu em terras estranhas. Agora, porém, diferente de anos atrás, meu ressentimento abrandou-se. Diga-lhe que por algum tempo odiei até a sua sombra, mas hoje nada mais resta em mim desse sentimento... A Musashi talvez não importe, mas diga-lhe que até hoje eu a tenho como minha nora. Que não estou lhe pedindo para reatar o compromisso com meu filho, mas pergunte-lhe se não quer ao menos ouvir minhas lamúrias, se não me aconselharia quanto ao que fazer com o resto da minha vida e se não teria também um pouco de pena desta velha.

— Obaba, não sei se consigo passar um recado tão comprido.

— Então vou parar por aqui.

— Nesse caso, solte-me.

— Transmita direitinho tudo que lhe disse, ouviu?

— Já sei!

Joutaro correu para perto de Otsu e pareceu repetir palavra por palavra o recado da anciã.

Osugi sentou-se numa rocha na beira do rio e manteve o olhar desviado de propósito. Pequenos cardumes de peixe provocavam ondulações nas águas rasas próximas à margem.

“Será que ela vem ou não?” Lançando olhares de soslaio mais rápidos que os brilhantes e minúsculos peixes, Osugi avaliava com cuidado a atitude de Otsu.

 

Otsu, bastante desconfiada, continuava sem querer se aproximar, mas Joutaro devia ter insistido muito, pois momentos depois veio chegando temerosamente perto de Osugi.

A matriarca, era claro, regozijou-se:

“Esta já está no papo!”

Um lento sorriso lhe entreabriu os lábios, expondo ainda mais seus longos incisivos superiores:

— Otsu!

— Obaba-sama.

Agachando-se na beira do rio, Otsu tocou o solo com a ponta dos dedos e curvou-se:

— Perdoe-me. Perdoe-me. A esta altura não quero mais tentar justificar-me.

— Ora, o que é isso, menina? — replicou Osugi. Suas palavras soaram bondosas como antigamente aos ouvidos da jovem. — Para começar, a culpa é toda de Matahachi; mas ele vai ter sempre raiva de você porque você o abandonou. Eu também a odiei por algum tempo, é verdade, mas agora... Tudo isso são águas passadas.

— Quer então dizer que perdoa minha atitude egoísta?

— No entanto...

Sem se definir claramente, Osugi agachou-se junto a Otsu na margem do rio. Otsu cavava a areia com a ponta dos dedos. Uma água morna, com cheiro de primavera, minava incessante do buraco aberto na camada superficial e gelada da areia.

— A resposta a essa sua pergunta bem poderia ser dada por mim, que sou a mãe de Matahachi. Você, porém, que já foi noiva oficial do meu filho, não me faria o favor de avistar-se de novo com ele? Na verdade, foi meu próprio filho que, por livre e espontânea vontade, a trocou por outra mulher. Ele com certeza não vai, a esta altura dos acontecimentos, pedir-lhe que reate a relação. E mesmo que queira, esta velha aqui não concordará com um pedido tão absurdo.

— Sim, sei.

— E então, Otsu, concorda em falar com ele? Ponho-os lado a lado na minha frente, e deixo as coisas bem claras para o meu filho. Que acha disso? Falo o que penso, dou conselhos e cumpro meu papel de mãe. Sobretudo, salvo as aparências.

— Sim, senhora.

Um pequeno caranguejo emergiu da límpida areia do baixio e, deslumbrado com a luminosa primavera, correu a ocultar-se debaixo de uma pedra.

Joutaro pinçou o caranguejo com dois dedos, deu a volta às costas da matriarca e o derrubou no topo de sua cabeça.

— Mas baba-sama, acho melhor não me encontrar com Matahachi-san nas atuais circunstâncias...

— Eu vou estar do seu lado. É pensando no seu bem e no seu futuro que insisto em esclarecer esta situação definitivamente.

— Mesmo assim...

— Faça isso. Eu a aconselho a agir desse modo porque penso no seu futuro.

— Mesmo que eu concorde, não sabemos onde anda seu filho... Ou será que a senhora sabe onde ele está, obaba-sama?

— Logo saberemos, ou acho que saberemos. Digo isso porque o encontrei na cidade de Osaka não faz muito tempo. Como sempre, fez o que lhe deu na telha e sumiu de Sumiyoshi, largando-me para trás. Mas acredito que se arrependeu e que a esta altura anda à minha procura nos arredores da cidade.

Mal ouviu isso, Otsu sentiu-se arrepiar. Apesar de tudo, os conselhos de Osugi lhe pareceram corretos e sentiu súbita pena dessa velha, tão infeliz na relação com o filho.

— Muito bem, obaba-sama, eu a ajudarei então a procurar seu filho — disse a jovem impulsivamente.

Osugi agarrou as mãos geladas que ainda remexiam a areia e as apertou entre as suas:

— De verdade?

— Sim, senhora...

— Então, antes de mais nada, acompanhe-me à estalagem em que me hospedo, está bem?

Assim dizendo, a velha começou a erguer-se. Levou a seguir a mão à gola do quimono e apanhou o caranguejo.

 

— Irra, que coisa mais nojenta!

Ao ver os cômicos trejeitos da velha senhora, a sacudir com um arrepio de nojo o caranguejo dependurado na ponta de seus dedos, Joutaro, escondido atrás de Otsu, levou a mão à boca e riu.

O gesto não escapou à matriarca:

— Foi você o autor dessa brincadeira de mau gosto? — disse, fixando um olhar furioso em Joutaro.

— Eu? Eu não, não fui eu! — gritou Joutaro, galgando o barranco às pressas para fugir. Uma vez em cima, gritou:

— Otsu-san!

— O que é?

— Você vai acompanhar obaba até a hospedaria dela? Sem esperar pela resposta de Otsu, a velha interveio:

— Isso mesmo. A hospedaria fica pertinho daqui, no fim da ladeira Sannenzaka. Sempre paro nela quando venho a Kyoto. Não preciso mais de você: vá-se embora!

— Está bem. Vou então retornar à mansão Karasumaru. Quando terminar o que tem a fazer, volte para lá o mais rápido que puder. Combinado? — disse Joutaro, quase se pondo a correr. Otsu sentiu-se de repente desamparada e o deteve:

— Espere, Jouta-san!

Subiu o barranco alvoroçada, com a velha Osugi em seus calcanhares, temerosa de que ela lhe escapasse.

E no breve intervalo a sós, os dois conversaram:

— Você entendeu, Jouta-san? Por causa do que aconteceu hoje, sou obrigada a ir com essa velha senhora à hospedaria dela, mas prometo que vou vê-lo na mansão Karasumaru quando for possível. Conte tudo o que aconteceu aqui às pessoas da mansão e fique com elas até eu terminar esta minha missão.

— Está bem. Eu a espero o tempo que for preciso, fique sossegada.

— E enquanto isso, você não quer descobrir para mim onde Musashi-sama se hospeda? Eu também procuro... Por favor!

— De que adianta eu descobrir se você se esconde atrás de um carroção? Está vendo por que insisti tanto, naquela hora?

— Sou uma tonta, mesmo.

Osugi logo os alcançou e se meteu entre os dois. Embora já confiasse na anciã, Otsu achou pouco delicado falar de Musashi na presença dela e calou-se.

As duas mulheres saíram andando lado a lado aparentando tranqüila camaradagem, mas os olhos finos como agulhas da velha Osugi dardejavam constantemente em direção a Otsu. Embora já não a tivesse como sogra, Otsu seguia rígida e constrangida ao seu lado, sem perceber as artimanhas da anciã, nem os perigos que o destino lhe reservava.

E quando alcançaram outra vez a ponte Gojo Oubashi, uma multidão azaf amada já cruzava por ela e o sol brilhava com todo o esplendor sobre ameixeiras e chorões.

— Musashi, ora essa...

— Já ouviu falar em algum samurai chamado Musashi?

— Nunca!

— Deve ser um guerreiro e tanto para desafiar os Yoshioka publicamente.

Em torno da tabuleta, a multidão aumentara.

Otsu parou, sobressaltada.

A velha Osugi e Joutaro também haviam parado para observar. Como peixes em cardume, pessoas afluíam em torno do aviso e se dispersavam, tornavam a afluir para logo dispersar-se uma vez mais, deixando no ar um rastro que sussurrava: Musashi, Musashi.

NUM CAMPO SECO

Olhe na direção que o dedo aponta e verá, distante, a estrada de Tanba começando em longa subida. As tênues linhas prateadas visíveis entre árvores e que ferem a vista como raios rasgando o céu são pregas cheias de neve nas encostas das montanhas que circundam a região suburbana a noroeste de Kyoto, seus espigões estabelecendo as fronteiras da província de Tanba.

— Acendam uma fogueira! — ordenou alguém.

Era o nono dia do primeiro mês do ano, e a primavera tardava. O vento cortante que descia do alto do monte Kinugasa perturbava os pássaros e seu chilrear soava débil e friorento aos ouvidos dos homens. As espadas que levavam às cinturas estavam geladas e o frio atravessava as bainhas, insinuando-se por seus quadris.

— Belo fogo!

— Cuidado com as fagulhas. Podem provocar um incêndio e se alastrar pela campina.

— Pare de se preocupar: esse fogo nunca chegará à cidade!

A um canto da campina seca, uma fogueira crepitava queimando os rostos dos mais de 40 homens agrupados em torno dela, as labaredas alongando-se e tentando lamber o sol.

— Ufa! Que calor! — reclamou agora alguém, em voz baixa.

— Basta! — disse Ueda Ryohei contraindo o rosto por causa da fumaça, irritado com o homem que continuava a alimentar a fogueira com folhas secas.

No interim, mais uma hora se passou.

— Já passa da hora do coelho[53], não lhes parece? — comentou um dos homens.

— Será? — Todos os olhares voltaram-se instintivamente para o sol.

— Devemos estar no terço final da hora do coelho[54] — afirmou alguém.

— Que teria acontecido ao jovem mestre?

— Já deve estar chegando.

— Com certeza! Está na hora.

Aos poucos, a tensão insinuou-se nos rostos dos homens, silenciando-os. Ansiosos, a custo suportando a longa espera, concentravam os olhares numa estrada secundária que levava à cidade.

— Que lhe teria acontecido?

Um boi mugiu ao longe, longa e preguiçosamente. No passado, a campina havia sido propriedade imperial destinada à criação de gado leiteiro e, ao que tudo indicava, ainda restavam alguns animais vivendo soltos nos arredores: com o sol alto, um sufocante cheiro de estrume e de folhas mortas começava a subir do chão.

— Musashi já não terá chegado à campina do templo Rendaiji?

— Pode ser.

— Alguém devia ir ver. A distância daqui até lá é de apenas meio quilômetro.

— Só para ver se Musashi já chegou?

— Sim.

Nenhum voluntário apresentou-se. Sufocados pela fumaça, os homens franziam o cenho e mantinham-se em sombrio silêncio.

— Acho melhor esperarmos um pouco mais. Lembrem-se do que ficou acertado: antes de se dirigir ao templo Rendaiji, nosso jovem mestre passará por aqui e se aprontará para o duelo.

— Têm certeza de que esse foi o trato?

— Absoluta. Essas foram as exatas instruções que mestre Ueda recebeu do nosso jovem mestre, ontem à noite. Não pode haver engano.

Confirmando as palavras do discípulo, Ueda Ryohei afirmou:

— Exato! Pode ser que Musashi já esteja no local combinado, mas pode também ser que nosso mestre Seijuro esteja se atrasando de propósito, para irritar o adversário. Se um movimento afobado de nossa parte der origem a comentários de que ajudamos nosso mestre, será a ruína da academia Yoshioka. O adversário é apenas Musashi, um rounin sem eira nem beira. Vamos esperar, serenos como essas árvores, até que nosso mestre surja com o garbo costumeiro.

 

Manhã do duelo.

Os homens agrupados por tácito acordo naquela campina constituíam apenas a minoria dos alunos da academia. Ali, porém, achava-se representado o esteio da academia da rua Shijo, nas pessoas de Ueda Ryohei e de metade do grupo de discípulos mais graduados de Seijuro, “Os Dez Mais” do estilo Kyohachi, conforme se faziam chamar.

Era sabido que na noite anterior Seijuro havia recomendado categoricamente a todos, sem distinção:

— Proíbo-os terminantemente de me prestar qualquer tipo de ajuda.

Seus discípulos estavam longe de considerar Musashi um adversário insignificante, mas nem por isso lhes passava pela cabeça que seu jovem mestre pudesse precisar de ajuda ou ser derrotado.

“É óbvio que nosso mestre vencerá!”, pensavam eles, mas ali estavam por cautela, para o caso de algum remoto imprevisto. Um segundo motivo os reunia naquele campo a algumas centenas de metros da campina Rendaiji: já que o desafio fora público, anunciado em placa sobre a ponte Gojo Oubashi, os discípulos aproveitavam a natural repercussão do caso para também exibir suas imponentes figuras, contribuindo indiretamente para projetar o nome de seu mestre e o da academia por todo o país.

Todavia, Seijuro não aparecia.

O terço final da hora do coelho tinha-se ido, conforme lhes dizia a posição do sol.

— Que estranho!

Mais ou menos no momento em que, quebrando a serenidade preconizada por Ryohei, os quase 40 discípulos começavam a resmungar, pessoas começaram a aglomerar-se em torno deles, levados a concluir por suas presenças que era ali o local do duelo.

— E esse duelo? Acontece ou não?

— Onde está o tal Yoshioka Seijuro?

— Não o vejo em lugar algum.

— E qual deles é Musashi?

— Esse também não está por aqui, ao que parece.

— E o que fazem esses samurais?

— Devem estar ali para ajudar um dos dois.

— Essa é boa! A ajuda já veio, mas nem sinal de Seijuro ou Musashi? Uma aglomeração tem o poder de atrair mais gente. Curiosos juntavam-se a curiosos, aumentando o burburinho:

— Quando começa esse duelo?

— Ainda não começou?

— Qual deles é Musashi?

— Onde está Seijuro?

As perguntas se repetiam. Cabeças espiavam entre arbustos e de cima das árvores, muito embora ninguém ousasse aproximar-se da área onde os discípulos se agrupavam.

E no meio dessa multidão andava Joutaro. Levando à cintura a espada de madeira maior do que ele e observando inquieto os rostos ao redor, o menino rondava a extensa campina arrastando enormes sandálias pela terra seca, largando uma nuvem de poeira em seu rastro.

— Não está aqui! Não está! — murmurava. — Que lhe poderia ter acontecido? Não é possível que não saiba do duelo. E desde o dia em que nos separamos não me procurou uma única vez na mansão Karasumaru.

A pessoa procurada por Joutaro no meio do povo não era Musashi, mas Otsu: a jovem tinha de estar ali, ansiosa por saber o resultado do duelo, achava o menino.

 

Um simples ferimento no dedo mínimo é capaz de deixar uma mulher lívida; não obstante, cenas sangrentas e brutais parecem fasciná-las.

Kyoto inteira apurava olhos e ouvidos para os detalhes do duelo. E no meio da multidão heterogênea que comparecera para assistir ao espetáculo havia muitas mulheres, algumas até chegando de mãos dadas, despreocupadas como se estivessem à caça de diversão.

No meio delas, porém, Joutaro não achou Otsu, por mais que a procurasse.

— Que estranho! — murmurou o menino, cansado de percorrer os limites da campina.

“Será que adoeceu depois que a gente se separou na ponte Gojo?”, conjeturava. “A velha Osugi parece boa de bico. E se ela engabelou Otsu-san com aquela conversa doce e fez sei lá o que com ela... ?”

Essa suspeita o estava deixando quase frenético.

O não comparecimento de Otsu o afligia muito mais que o resultado do duelo desse dia.

Pois Joutaro acreditava na vitória de Musashi com a mesma firmeza com que a quase totalidade dos mais de mil curiosos espalhados pela campina à espera do embate acreditava na de Yoshioka Seijuro. “Meu mestre vencerá!”, dizia-se convicto.

A confiança em Musashi crescia no peito do menino a cada vez que evocava sua vigorosa imagem lutando contra os lanceiros do templo Hozoin nos campos de Hannya. “Podem vir todos juntos de uma vez, e ainda assim ele os vencerá!”, acreditava o menino, incluindo no duelo os discípulos da academia agrupados no extremo da campina.

Ao contrário dessa segurança, a ausência de Otsu, muito mais do que decepcioná-lo, estava lhe causando uma vaga sensação de que algo errado lhe acontecera. Pois Otsu, no momento em que dele se despedira na ponte Gojo Oubashi para seguir em companhia da velha Osugi, lhe dissera:

— Não se preocupe: assim que surgir uma oportunidade, irei vê-lo na mansão Karasumaru. Quanto a você, explique as circunstâncias e peça abrigo na mansão por algum tempo, está bem?

Essas haviam sido suas palavras, o menino tinha certeza.

Apesar delas, Otsu não viera vê-lo nenhuma vez nos últimos nove dias — nem nas datas festivas do terceiro e do sétimo dia do primeiro mês do ano.

“Que lhe estaria acontecendo?”, era a pergunta aflita que Joutaro vinha repetindo havia já dois ou três dias, embora até aquele instante tivesse alimentado a esperança de encontrá-la ali.

Joutaro contemplou o centro da campina. Cercados pelos olhares de milhares de curiosos cautelosamente distantes, os pomposos discípulos da academia Yoshioka continuavam reunidos em torno da fumarenta fogueira, mas havia uma sombra de desânimo em suas atitudes, talvez porque Seijuro tardasse a chegar.

— Estranho! Será que o duelo vai acontecer neste campo? Mas o aviso dizia: campina do Templo Rendaiji!

O detalhe que a todos vinha escapando começou a causar estranheza a Joutaro. E então, no meio da corrente humana que se movia sem cessar à sua esquerda e direita, uma voz o chamou:

— Moleque! Ei! Você mesmo, moleque!

Joutaro voltou-se e viu Sasaki Kojiro, o jovem que nove dias atrás lançara uma ofensiva gargalhada na direção de Musashi e Akemi na ponte Gojo, e depois se afastara.

 

— E comigo, tio?

Já que o havia visto uma vez, Joutaro sentiu-se no direito de tratá-lo com intimidade.

Kojiro aproximou-se. Antes de mais nada, examinou o menino dos pés à cabeça com um olhar depreciativo, como era seu hábito.

— Já nos vimos uma vez na rua Gojo, se não me engano.

— Ah, também se lembrou de mim, tio?

— Você estava em companhia de uma mulher.

— Isso mesmo, estava com Otsu-san.

— Otsu-san... Então esse é o nome dela. Musashi e ela têm algum tipo de relação especial?

— Acho que sim.

— São primos?

— Não.

— Irmãos?

— Não.

— O que são, nesse caso?

— Se gostam.

— Quem?

— Ora, Otsu-san gosta de meu mestre.

— São namorados?

— ...parece.

— E quanto a Musashi: é seu mestre?

— Isso mesmo. — A última resposta soou clara e veio acompanhada de um orgulhoso aceno.

— Ah, isso explica a sua presença neste local. Veja, a multidão está aflita porque tanto Seijuro como Musashi ainda não apareceram. Mas você deve saber: Musashi já partiu da estalagem onde está hospedado, não partiu?

— Acontece que não sei. Não vê que eu também o estou procurando? Duas ou três pessoas aproximaram-se correndo pelas costas dos dois.

Agudo como o de um falcão, o olhar de Kojiro voltou-se nessa direção.

— Ora, quem eu vejo! Mestre Sasaki Kojiro!

— Olá, Ueda Ryohei!

— Que houve? — disse Ryohei aproximando-se e prendendo entre as suas as mãos de Kojiro. — Nos últimos tempos nosso jovem mestre vivia perguntando o que lhe teria acontecido, preocupado por não o ver mais na academia desde o final do ano passado.

— Acho que a minha presença aqui, nesta manhã, mostra cabalmente a minha consideração por ele; não importa se voltei ou não à academia nos últimos dias.

— Deixemos isso de lado, por enquanto, e dê-nos o prazer de sua companhia junto ao fogo — disse Ryohei conciliador, cercando-o com os demais discípulos e conduzindo-o quase à força ao centro da campina onde se reunia o grupo.

Ao descobrir o vistoso vulto de Sasaki Kojiro caminhando com a longa espada enviesada às costas, a multidão alvoroçou-se:

— É Musashi! É Musashi!

— Musashi chegou!

— Ah, então esse é o tal?

— Puxa! É um bocado janota, mas não me parece dos mais fracos. Joutaro, abandonado por Kojiro, havia ficado para trás com ar perdido, mas ao perceber que os homens ao redor levavam a sério os boatos, tratou de esclarecer:

— É mentira, é mentira! Esse aí não é Musashi-sama. Imagine se ele se vestiria desse jeito ridículo, como um ator do teatro kabuki!

Os curiosos que, longe do menino, não haviam conseguido ouvir seus desmentidos, também tinham começado a achar que aquele não era Musashi e diziam com ar de dúvida:

— Que estranho!

Quanto a Kojiro, tinha parado no centro da campina, e contemplando os quase 40 discípulos da academia Yoshioka com a habitual arrogância, fazia-lhes uma preleção.

E a começar por Ueda Ryohei, todos do grupo dos “Dez Mais” da academia — como Miike Jurozaemon, Otaguro Hyosuke, Nanbo Yoichibei e Obashi Kurando — pareciam não estar gostando do que ouviam, pois contemplavam sisudos o rápido movimento dos lábios de Kojiro.

 

Sasaki Kojiro dizia:

— Senhores, considerem providencial o fato de tanto Musashi quanto Seijuro não estarem aqui ainda. Organizem-se em grupos, procurem mestre Seijuro antes que ele apareça e conduzam-no de volta à academia. Este é o meu conselho.

Aquele prólogo já seria suficiente para enfurecer os homens mas, não satisfeito, Kojiro continuou:

— Minhas palavras são o máximo em matéria de ajuda ao seu mestre. Nada pode ser melhor do que o meu conselho. Sou o profeta mandado pelos céus para salvar a casa Yoshioka. E nessa condição, predigo claramente: se o duelo se realizar, mestre Seijuro será derrotado. Musashi o matará, sem sombra de dúvida.

Impossível esperar que tais palavras fossem bem recebidas pelos discípulos da academia Yoshioka. Ueda Ryohei, por exemplo, havia ficado com o rosto cor de terra e dardejava olhares furiosos em direção a Kojiro.

Miike Jurozaemon, outro do Grupo dos Dez, não conseguiu conter-se por mais tempo. Peito empinado, aproximou-se de Kojiro, que ainda tentava falar, e esbravejou:

— Que pretende dizer com isso?

O cotovelo direito de Miike, erguido à altura do rosto em óbvia posição preliminar de ataque, e a mão próxima ao cabo da espada ameaçando arrancá-la num átimo da bainha, desafiavam: “Quer verificar de perto minha habilidade?”

Inesperadamente, Kojiro sorriu. Muito mais alto do que seu interlocutor, o jovem contemplou Miike de cima para baixo, a expressão risonha fazendo-o parecer ainda mais atrevido.

— Minhas palavras o irritaram?

— É óbvio!

— Nesse caso, peço desculpas — disse suavemente — e desisto de ajudá-los. Só me resta dizer-lhes: façam o que bem entenderem.

— E quem disse que queremos ajuda de um sujeito da sua laia?

— Ora, não digam isso! Lembro-me muito bem que foram vocês e seu mestre que me conduziram, desde o dique de Kema até a academia da rua Shijo, e tudo fizeram para me agradar.

— Simples cortesia para com um visitante. Presunçoso! Kojiro gargalhou:

— Vamos parar por aqui. Não vejo sentido algum em iniciar outro duelo a esta altura, mas cuidem-se para que minha profecia não se transforme em lágrimas de arrependimento! Estes meus olhos viram e compararam os dois: eu avalio que mestre Seijuro tem 99 por cento de probabilidade de perder o duelo. Na manhã do primeiro dia do ano avistei recostado no parapeito da ponte da rua Gojo esse indivíduo a quem chamam Musashi, e no mesmo instante concluí: esse duelo não deve acontecer. Aos meus olhos, o aviso que vocês ergueram na base da ponte pareceu um anúncio fúnebre escrito por suas próprias mãos, lamentando a morte da casa Yoshioka. Mas faz parte da natureza humana não enxergar a própria decadência, que se há de fazer!

— Cale a boca! Para que veio até aqui? Para agourar a casa Yoshioka?

— Para começar, essa incapacidade de ouvir um conselho amigo é típica dos fadados à destruição. Continuem pensando o que quiserem. Gostem ou não, verão com os próprios olhos que minha profecia se confirma, não amanhã, mas dentro de uma hora.

— Atrevido! — gritaram vozes ameaçadoras, cuspindo as palavras. A ameaça dos quase 40 discípulos pareceu escurecer a campina.

Situações como essa não constituíam, contudo, novidade para Kojiro. Afastou-se com um súbito salto e posicionou-se, deixando entrever uma disposição sanguinária de comprar qualquer briga. Desse jeito, os conselhos que dera, segundo ele com a melhor das intenções, só serviriam para alimentar a fúria dos discípulos Yoshioka. Negativamente interpretado, o brilho beligerante no olhar de Kojiro podia significar que o jovem tentava polarizar o interesse da multidão, ali reunida para assistir ao duelo entre Musashi e Seijuro.

 

E no instante em que, percebendo a comoção, a turba distante começou a se agitar, um macaco rompeu o cerco e disparou para o centro da campina saltando como uma bola. Mas à frente do macaco corria também uma jovem com tanta pressa que parecia prestes a tropeçar e ir ao chão. A jovem era Akemi.

A atmosfera pesada que envolvia Kojiro e os discípulos da academia Yoshioka, a um passo de um desfecho sangrento, desfez-se de modo instantâneo ante os gritos de Akemi:

— Onde está ele, Kojiro-sama? Onde está Musashi-sama? Não o estou vendo!

— Quê?! — exclamou Kojiro, voltando-se.

Do lado dos Yoshioka, Ueda Ryohei e alguns companheiros também resmungaram, admirados:

— Ora, se não é Akemi!

Por um breve momento a jovem e o macaco atraíram a atenção e os incrédulos olhares de todos os presentes.

— Akemi! Que faz aqui? Não a proibi de vir? — repreendeu Kojiro com rispidez.

— O corpo é meu e faço com ele o que bem quiser! Não pode me impedir!

— Pois eu a estou proibindo! — enfatizou Kojiro, empurrando-a de leve. — Vá-se embora!

Akemi sacudiu a cabeça, frenética:

— Não vou, não vou! Você cuidou de mim, é verdade, mas não sou sua, entendeu?

Sua voz tremeu de repente. O choro sentido que se seguiu teve o efeito de uma ducha fria no ânimo dos homens. Contrariando porém a impressão inicial de fragilidade, o que disse a seguir era tão violento quanto o mais violento dos homens:

— E como é que você se atreveu a me deixar amarrada no quarto da hospedaria?! E vem me maltratando só porque me preocupo com Musashi-sama? Você é desumano! Quando me viu chorando por causa dele, na noite passada, você começou a me atormentar dizendo que ele com certeza seria derrotado por Seijuro e que, caso não o fosse, você ajudaria a matá-lo porque devia favores ao jovem mestre! E não contente com isso, me amarrou e me prendeu no quarto antes de ir-se embora esta manhã!

— Está louca, Akemi? Isto é assunto para ser tratado em público, em plena luz do dia?

— Eu tenho razão de sobra para estar louca! Musashi-sama é o homem de minha vida, ele vive em meu coração. Não pode esperar que eu fique parada naquele quarto enquanto matam o homem que eu amo. Gritei o mais alto que pude até que os vizinhos acudiram e me desamarraram. Depois, corri para cá. Preciso encontrar Musashi-sama. Tenho de vê-lo. Onde está ele?

A invectiva da jovem fez com que Kojiro se calasse, aborrecido. Akemi estava fora de si, mas parecia não estar inventando. E se tudo o que ela dizia era verdade, Kojiro podia estar cuidando da jovem com carinho ao mesmo tempo em que se divertia, torturando-a tanto física quanto moralmente.

Ver tais detalhes virem a público sem reservas — pior ainda, numa ocasião como aquela — era extremamente embaraçoso para Kojiro, sem dúvida alguma, não sendo portanto de admirar que ele a encarasse furioso.

Esse foi o instante que Tamihachi, um dos servos e acompanhante de Seijuro, escolheu para surgir correndo como um gamo pela estrada arborizada, agitando os braços e esbravejando:

— Socorro! Acudam! Venham todos, por favor, me ajudem! Nosso jovem mestre foi derrotado por Musashi!

 

Os berros de Tamihachi tiveram o poder de empalidecer todos os discípulos. A terra de repente pareceu faltar-lhes sob os pés.

— O que... que disse? — exclamaram diversas vozes em uníssono. — O jovem mestre... por Musashi?

— Mas onde?

— Quando?

— Tem certeza, Tamihachi?

Perguntas esganiçadas espocavam no ar. Os homens não conseguiam ainda aceitar o que Tamahachi lhes dizia: como poderia mestre Seijuro, que havia prometido passar por ali para se aprontar, já ter realizado o duelo com Musashi sem que nenhum deles sequer o tivesse visto?

Tamihachi apenas conseguia balbuciar:

— Rápido! Rápido!

E sem se deter um instante para respirar, disparou de volta, retornando aos trambolhões pelo caminho que viera.

Ainda incrédulos, mas também sem poder imaginar que se tratava de engano ou mentira, Ueda Ryohei, Miike Jurozaemon e os restantes 40 discípulos ergueram-se e saíram correndo atrás do servo, impetuosos como animais selvagens saltando barreiras de fogo, levantando poeira na estrada arborizada.

Seguindo pouco mais de meio quilômetro pela estrada de Tanba, surgia rente às árvores que margeiam o lado esquerdo do caminho outra campina seca, vasta e silenciosa sob os tímidos raios solares dessa primavera.

Tordos e picanços ali chilreavam como se nada houvesse acontecido, mas alçaram vôo alarmados com a chegada dos homens. Tamihachi mergulhou no mato seco, correndo como um louco. Ao se aproximar de um cômoro, marco talvez de um túmulo antigo, o homem caiu de joelhos e lançou-se no chão como se o fosse abraçar.

— Mestre, jovem mestre! — gritou ele desesperado.

Os homens que lhe vinham no encalço estacaram, pregados ao solo:

— Ah!

— Que... queéisso?

—É o nosso jovem mestre!

Como um sólido paredão, a realidade veio ao encontro dos homens. Seus incrédulos olhares fixaram-se num samurai caído de braços, rosto enterrado no mato. Ele vestia quimono azul índigo cujas mangas estavam contidas por uma tira de couro. Uma faixa de algodão branca atada com firmeza à testa prendia-lhe os cabelos das têmporas.

— Jovem mestre!

— Seijuro-sama!

— Reaja, por favor!

— Estamos aqui, jovem mestre!

— Somos nós, seus discípulos!

Quando lhe soergueram o corpo, Seijuro deixou a cabeça tombar para trás pesadamente, como se tivesse o pescoço fraturado.

Não havia sequer uma gota de sangue na faixa branca da testa, nem nas mangas do quimono, no hakama ou nas moitas ao seu redor. Seijuro, porém, tinha os lábios roxos, da cor de uvas silvestres, e continuava de olhos fechados e sobrancelhas dolorosamente crispadas.

— Vejam se ele ainda respira!

— Quase imperceptivelmente.

— Vamos, alguém tem de levá-lo!

— Carregado?

— Claro!

Um dos homens voltou as costas para o ferido, tomou seu braço direito, passou-o sobre o ombro, e tentou erguer-se. No mesmo instante, Seijuro deixou escapar um agoniante grito de dor.

— Uma prancha, uma porta! — disseram três ou quatro homens, pondo-se a correr pela estrada arborizada. Instantes depois, retornavam com uma porta, arrancada da casa de um camponês nas proximidades.

Seijuro foi acomodado de costas sobre a prancha. A partir do momento em que recuperara os sentidos, o ferido passara a se debater, desesperado de dor. Sem outra alternativa, os discípulos desataram o obi e com ele o prenderam à prancha, iniciando a caminhada de retorno em fúnebre silêncio, como se transportassem um esquife.

Seijuro continuava agitado, batendo os pés com tanta força que ameaçava partir a prancha, e esbravejava:

— Onde está Musashi...? Ele já se foi...? Aaah... Que dor insuportável... meu ombro direito. Ele moeu meus ossos... Não consigo suportar! Alguém!... Qualquer um! Decepe meu braço direito na altura do ombro! Isto é uma ordem! Cortem-me o braço!

Olhos fixos no céu, Seijuro clamava sem descanso.

 

Tamanho escarcéu fazia o ferido que os quatro carregadores da prancha desviaram os olhares constrangidos, mormente porque a reação de fraqueza partia do homem a quem chamavam de mestre.

— Senhores Miike e Ueda! — chamaram, parando por momentos e voltando-se para consultar os veteranos. — A dor deve estar insuportável, pelo jeito que ele grita. Se lhe cortassem o braço de uma vez não lhe proporcionariam alívio?

— Estão loucos? — repreenderam Ryohei e Jurozaemon. — A dor não mata ninguém, por mais intensa que ela seja. Mas se lhe amputarmos o braço e sobrevier uma hemorragia, aí sim, ele pode morrer! A primeira providência será levarmos nosso mestre o quanto antes de volta à academia; só depois de examinarmos cuidadosamente a extensão do dano infligido por Musashi é que se pensará em amputá-lo, tomando os devidos cuidados para evitar a hemorragia. Por falar nisso, quero que alguém corra à frente e deixe um médico de prontidão na academia.

Alguns homens partiram correndo para tomar providências.

Na beira da estrada, a multidão inicialmente reunida no primeiro pasto tinha-se juntado agora entre os pinheiros e espiava, cheia de curiosidade.

Ueda Ryohei irritou-se e ordenou aos companheiros que acompanhavam o ferido em soturno silêncio:

— Homens, corram à frente e espantem a gentalha. Não tenho a mínima intenção de expor nosso mestre à curiosidade do povo.

— E para já! — responderam os discípulos entusiasmados, finalmente encontrando uma brecha por onde extravasar a fria cólera de sua alma.

Ao notar que os homens da academia vinham em sua direção, o povo, desconfiado por natureza, debandou levantando poeira.

— Tamihachi! — chamou Ryohei, canalizando agora sua raiva para o choroso servo ao lado da maça. — Vem cá um instante!

— Pro... pronto, senhor! — respondeu Tamihachi, batendo os dentes de medo ao ver a chama fria no olhar de Ryohei.

— Tu acompanhavas o jovem mestre desde o instante em que ele saiu da academia, hoje cedo?

— S... sim, senhor!

— E onde foi que nosso mestre se preparou para o duelo?

— Na própria campina do templo Rendaiji, senhor, depois que lá chegou.

— Nosso mestre sabia com certeza que o aguardávamos no outro pasto. E por que, apesar disso, acabou vindo diretamente para cá?

— Não faço a mínima idéia, senhor.

— E quanto a Musashi: já estava aqui quando o jovem mestre chegou, ou apareceu depois?

— Já se encontrava aqui, em pé na frente daquele túmulo antigo.

— Sozinho?

— Sim, senhor, estava só.

— Como foi o duelo? Tu apenas o assististe, sem nada fazer?

— O jovem mestre me disse: “Se por acaso Musashi me derrotar, encarrega-te de levar meu corpo. No antigo pasto reúne-se um grupo de meus discípulos, alvoroçados desde a madrugada, mas estás proibido de avisá-los até que o duelo com Musashi chegue ao fim. Para um guerreiro, a derrota é por vezes inevitável. Não quero vencer a qualquer custo e sujar meu nome, lançando mão de recursos covardes. Estás terminantemente proibido de me socorrer, seja lá de que forma for!” E com estas palavras, afastou-se de mim e avançou na direção de Musashi.

— Hu-hum!... E depois?

— Consegui ver, além do jovem mestre, o rosto de Musashi. Ele sorria de leve. A mim me pareceu que os dois se cumprimentavam calmamente quando de súbito um grito agudo ecoou pela campina. No instante em que me sobressaltei, parece que vi a espada de madeira do jovem mestre voando pelos ares. E então, em pé nesta vasta campina restava apenas Musashi, com sua faixa alaranjada na testa e seus cabelos eriçados.

 

Na estrada arborizada, os curiosos pareciam ter sido varridos por uma ventania, deles não restando nem sombra.

Os quatro homens carregando a prancha, e Seijuro, gemendo sobre ela, lembravam um punhado de soldados batidos, cercando seu general e fugindo para suas terras. Atentos à dor do ferido, os discípulos caminhavam devagar, acabrunhados.

— Que foi isso?

O homem que ia na frente parou de repente e levou a mão à nuca. Os que lhe vinham atrás voltaram os rostos para cima.

Agulhas secas de pinheiros caíam agora também sobre a prancha: no alto de uma árvore, um pequeno macaco olhava estupidamente para baixo, fazendo poses indecentes.

— Ai! — exclamou um dos homens, atingido na cara por uma pinha. — Maldito! — gritou, levando a mão ao rosto. Extraiu uma adaga da cintura e a lançou contra o macaco. A arma varou brilhando pelas finas agulhas do pinheiro e perdeu-se no espaço.

No mesmo instante soou um assobio.

O pequeno macaco saltou para o chão com uma pirueta e, ato contínuo, pulou agilmente do peito para o ombro de Sasaki Kojiro, em pé à sombra de algumas árvores.

— Ora!

Os discípulos Yoshioka sobressaltaram-se por terem só então percebido a presença de Kojiro e de mais alguém, ao seu lado: Akemi.

Kojiro contemplou em silêncio o homem ferido sobre a maça, mas não havia traços de desprezo em seu rosto. Ao contrário, sua atitude era respeitosa, chegando até a contrair as sobrancelhas ao ouvir os gemidos, solidário com a dor do homem derrotado. Os discípulos, porém, lembraram-se no mesmo instante das últimas palavras do jovem, o que os levou a imaginar: “Veio para se divertir às nossas custas!”

Alguém, talvez Ueda Ryohei, disse, apressando a maça:

— Vamos embora! É um macaco e não um ser humano: não percam tempo com os atos de um animal.

— Um momento! — interrompeu-os Kojiro, aproximando-se e dirigindo abruptamente a palavra a Seijuro: — Que lhe aconteceu, mestre Seijuro? Musashi o feriu? Onde? No ombro direito? Ah... Isto é grave! Os ossos estão esfarelados, seu ombro mais parece um saco cheio de pedriscos. Mas é perigoso transportá-lo de costas e sacudi-lo. O sangue pode afluir aos órgãos internos e também ao cérebro.

E dirigindo-se aos discípulos com a habitual arrogância, ordenou:

— Baixem a prancha. Que estão esperando? Vamos, depositem-na no chão sem discutir!

Voltou-se então uma vez mais para Seijuro, que parecia quase morto a essa altura:

— Levante-se, mestre Seijuro! Nada o impede. O ferimento não é grave, afetou apenas sua mão direita. Segure-a com a esquerda e conseguirá caminhar, não tenha dúvida. Se espalhar-se a notícia de que Seijuro, o herdeiro do grande mestre Kenpo, retornou pelas avenidas de Kyoto carregado numa prancha, o nome do falecido mestre será lançado à lama, sem falar no seu. Não consigo imaginar desonra maior.

Os olhos de Seijuro fixavam Kojiro duramente, sem pestanejar.

Com um movimento abrupto, Seijuro levantou-se. Comparado ao esquerdo, o braço direito parecia quase 30 centímetros mais longo e pendia inerte, como um objeto estranho ao corpo.

— Miike! Miike!

— Senhor?!

— Corte!

— Cortar o que, senhor?

— Idiota, quantas vezes tenho de repetir? Corte meu braço direito!

— Mas senhor...

— Covarde, poltrão!... Ueda, encarregue-se disso! Ande logo!

— S... sim, sim, senhor. Abrupto, Kojiro interrompeu-os:

— Se não se incomoda, posso me encarregar disso.

— Finalmente alguém! Faça-me o favor! — gritou o ferido.

Kojiro aproximou-se, segurou a mão que pendia inerte e a ergueu bem alto, extraindo ao mesmo tempo a espada curta da cintura. Um som abafado e estranho chegou aos ouvidos dos presentes e, num momento de pasmo, todos viram o sangue esguichar e o braço ir ao chão, amputado na altura do ombro.

 

Seijuro cambaleou, aparentando ter perdido o equilíbrio. Seus discípulos o ampararam, tentando tamponar o ferimento.

— Quero caminhar. Vou-me embora andando!

Seijuro mais parecia um cadáver falando. Cercado pelos discípulos, chegou a dar dez passos. Em seu rastro, gotas negras de sangue iam sendo absorvidas pela terra.

— Mestre...

— Jovem mestre!

Os discípulos cercaram-no e pararam, formando uma paliçada humana ao seu redor, reclamando da ação que consideravam irresponsável.

— Teria sido tão mais fácil para ele ser levado na prancha. Mas não, esse Kojiro tinha de se intrometer e fazer o que não devia.

— Quero andar! — disse Seijuro depois de descansar alguns minutos, caminhando outros 20 passos, movido por pura força de vontade.

Mas a determinação logo se foi: 50 metros adiante, desabou nos braços dos discípulos.

— Depressa, um médico!

Jogando aos ombros o inerte Seijuro, já incapacitado de opor qualquer resistência, os apavorados discípulos dispararam desordenadamente, como se levassem um cadáver.

Kojiro os acompanhou com o olhar até desaparecerem e voltou-se para Akemi, em pé e imóvel sob as árvores.

— Prestou atenção? O espetáculo deve ter sido gratificante para você, não? — perguntou.

Pálida, Akemi fitava o rosto sorridente de Kojiro.

— Aquele era Seijuro, o homem que você amaldiçoava noite e dia sem parar, e aí está a vingança por sua virgindade perdida! Que tal, Akemi?

Aos olhos da jovem, Kojiro pareceu no mesmo instante odioso, temível e ainda mais repulsivo que Seijuro.

O herdeiro dos Yoshioka a degradara, é verdade, mas não era perverso. Comparado a ele, Kojiro era mau, do tipo degenerado, incapaz de se alegrar com a felicidade alheia, mas que contempla indiferente o sofrimento e o infortúnio alheios, disso extraindo prazer. Esses tipos eram dissimulados, bem mais perigosos que ladrões ou larápios comuns.

— Vamos embora — disse Kojiro, levando o macaco no ombro. Akemia queria poder fugir dele, mas não tinha coragem, algo a detinha.

— Não adianta continuar procurando Musashi. Ele não permaneceria à toa nesta área por tanto tempo — observou, começando a andar.

“Por que não consigo me afastar deste bandido? Por que não aproveito e fujo agora?”, pensava Akemi, amaldiçoando apropria insensatez, mas acompanhando Kojiro.

O macaquinho sobre o ombro de Kojiro voltou-se e guinchou, mostrando-lhe os dentes, rindo.

O macaco e eu partilhamos o mesmo destino, pensou Akemi.

Repentinamente, sentiu pena de Seijuro, de seu corpo desfigurado. Excluindo Musashi, um caso à parte, Akemi percebia em si sentimentos que iam do amor ao ódio tanto por Seijuro como por Kojiro: sua visão dos homens tinha-se tornado complexa nos últimos tempos.

 

“Venci!”

Musashi louvou-se intimamente.

“Derrotei Yoshioka Seijuro, o representante do estilo Kyoryu, o herdeiro de uma casa famosa desde os tempos dos xoguns Muromachi!”

Mas eis que não conseguia alegrar-se. Musashi caminhava cabisbaixo pela campina.

Um pássaro passou por ele em vôo rasante exibindo o ventre como um peixe no meio da correnteza. Musashi prosseguia passo a passo, afundando os pés nas macias folhas secas.

Só mentes guerreiras mais evoluídas são capazes de sentir tristeza depois de uma vitória. Principiantes, estudantes de artes marciais, desconhecem esta sensação. Musashi, caminhando agora sozinho pela campina sem fim, sentia uma opressiva tristeza a envolvê-lo.

Voltou-se de repente. O raquítico pinheiro da colina do templo Rendaiji, onde havia pouco se batera com Seijuro, era visível à distância.

“Evitei golpeá-lo uma segunda vez. Espero que ele não esteja correndo perigo de vida...” Estava preocupado com o estado de saúde do adversário que havia vencido e deixado para trás. Tornou a examinar a espada de madeira que ainda tinha na mão, mas nela não viu vestígios de sangue.

Nessa manhã, viera para o local do duelo preparado para morrer. Seu oponente, achara ele, traria ajuda, ou pior, podia até ter-lhe armado uma cilada covarde. Musashi branqueara os dentes com sal e lavara os cabelos para que o rosto, na morte, tivesse um aspecto digno.

E então, ao defrontar-se com Seijuro, achou-o tão diferente do que imaginara que chegou a se perguntar: “Mas este é realmente o filho de Kenpo?”

Musashi não conseguia acreditar que estava frente a frente com o representante do estilo Kyoryu. O homem era um típico morador dos grandes centros urbanos, um delicado descendente de fidalgos. Tinha consigo apenas um servo e não havia trazido ajudantes ou capangas. No instante em que se apresentaram mutuamente e cruzaram as armas, Musashi pensou arrependido: “Este duelo não devia acontecer!”

Pois Musashi, que sempre buscara adversários superiores, descobriu ao primeiro olhar que não precisaria ter-se empenhado tanto durante todo o ano anterior para vencer este.

Além disso, não viu resquícios de confiança nos olhos de Seijuro. Um orgulho selvagem costuma surgir no olhar do mais despreparado guerreiro no instante em que entra em duelo. Em Seijuro, porém, não havia vivacidade, não só no olhar como em todo o corpo.

 “Para que veio, despreparado desse jeito? Ter-lhe-ia sido melhor cancelar o compromisso!”, pensou Musashi, sentindo simpatia e pena do adversário. Mas Seijuro era o herdeiro de uma casa famosa, a quem cancelar um duelo publicamente assumido seria impossível. Triste sina de um homem que herdara do pai mais de mil discípulos, pelos quais era respeitado e chamado de mestre, mas que não possuía competência para merecer o título.

Para o bem mútuo, Musashi desejou encontrar um pretexto qualquer para recolher as armas, repô-las nas respectivas cinturas. Não houve oportunidade. “Foi uma pena.”

Voltou-se uma vez mais e contemplou o cômoro do duelo com seu delgado pinheiro. Intimamente, rezou para que Seijuro se recuperasse prontamente.

 

Seja como for, o episódio estava encerrado. Vencendo ou perdendo, ater-se ao assunto longamente não era digno de um guerreiro, demonstrava imaturidade.

Ao dar-se conta disso, Musashi apressou o passo.

E foi nesse instante: entre as moitas secas da campina, uma idosa mulher, que havia estado cavando a terra rasa, ergueu o rosto espantada ao ouvir seus passos e, arregalando os olhos, exclamou:

— Oh-ooh!

A mulher vestia um quimono da cor de folhas secas. Sobre ele, usava um agasalho grosso, recheado de macio algodão, preso por um cordão roxo, único detalhe de cor viva em suas roupas, comuns. Mas uma coifa cobria-lhe a cabeça indicando que a mulher de compleição miúda e ar fino, beirando os 70 anos, era uma monja.

A bem da verdade, Musashi também se espantara. Não havia veredas cortando o terreno e com mais alguns passos distraídos pisaria na idosa monja, camuflada nas cores da campina.

— Que procura na terra, senhora? — perguntou Musashi, ansioso por contato humano, em tom que pretendeu gentil.

A velha monja apenas tremia olhando para Musashi, que se havia agachado ao seu lado. Um terço feito com contas de coral lembrando frutos de nandina espiava pela boca de uma das mangas. Nas mãos, tinha um pequeno cesto com brotos de astérias silvestres, ervas e plantas medicinais, colhidos laboriosamente entre as raízes dos arbustos secos.

A ponta dos dedos e as contas vermelhas do terço tremiam de leve, levando Musashi a perguntar-se o que a velha senhora tanto temia. Imaginando que talvez o tivesse tomado por bandoleiro, aproximou-se, espiou o interior do cesto e demonstrando maior gentileza ainda tornou:

— Ora, que beleza! Quantos brotos já surgiram por baixo destes arbustos secos! Não é para menos, a primavera já está aí. Vejo filipêndulas, brotos de nabo e de cotonárias em seu cesto. Para que as ervas, senhora?

A velha monja, apavorada, deixou o cesto cair e afastou-se correndo, chamando:

— Koetsu!

Atônito, Musashi ficou olhando o delicado vulto da monja em fuga.

À primeira vista, a campina era uma vasta extensão plana, mas uma observação cuidadosa mostrava ondulações em meio à planície. O vulto da idosa monja ocultou-se por trás de uma dessas ondulações.

Musashi deduziu que havia outras pessoas em sua companhia. De fato, viu vestígios de fumaça elevando-se das proximidades.

— Deixou cair as ervas colhidas com tanto custo! — murmurou o jovem, recolhendo os brotos verdes e juntando-os no cesto. E com o intuito de provar a pureza de suas intenções, apanhou o pequeno cesto e seguiu a velha monja.

Logo a reviu. Como previra, não estava sozinha: duas outras pessoas a acompanhavam.

Os três eram por certo membros de uma única família e haviam escolhido um suave declive que os protegia do frio vento setentrional para estender um tapete ao sol. Sobre ele havia apetrechos para a cerimônia do chá, um cântaro e uma chaleira sobre um pequeno fogareiro. Aquelas pessoas tinham transformado o céu azul e a campina em aposento e a natureza em jardim para neles realizar um cerimonial do chá muito especial, demonstrando um gosto refinado.

 

UMA LIÇÃO DE VIDA

Dos dois homens ali presentes, um parecia ser o servo da família e o outro, o filho da idosa senhora em roupas de monja.

Por filho não se subentenda um adolescente: o homem teria seus 47 ou 48 anos. Tinha a aparência de um opulento fidalgo de pele branca luzidia, rosto rechonchudo e ventre roliço que ceramistas de Kyoto costumam reproduzir em seus bonecos. Koetsu[55] devia ser seu nome, já que a velha senhora havia pouco assim o chamara ao fugir esbaforida.

E por falar em Koetsu, havia um indivíduo com esse mesmo nome morando na rua Hon-ami, cuja fama estava por todo o país nos últimos tempos.

Boateiros diziam com inveja que tal homem recebia 200 koku de ajuda de um certo conselheiro imperial, o dainagon Toshiie. Vivendo numa simples casa de mercador e recebendo extra-oficialmente ajuda de custo tão vultosa, o homem tinha, só com isso, condições de viver em grande estilo. Mas Koetsu gozava ainda da consideração especial de Tokugawa Ieyasu, tinha trânsito livre pelo palácio imperial e pelas mansões da nobreza e, dizia-se, era tão respeitado nos meios políticos que mesmo os mais poderosos daimyo, ao passarem pela porta de seu estabelecimento, desmontavam para não parecer arrogantes.

Hon-ami Koetsu — assim o chamava o povo porque morava na rua Hon-ami — era descendente de uma antiga e tradicional família de polidores, afiadores e avaliadores profissionais de espadas. As três especialidades haviam feito a fama da família no início do xogunato Ashikaga e se perpetuou durante o período Muromachi, rendendo-lhe as boas graças das casas regentes Imagawa, Oda e Toyotomi sucessivamente.

Além de hábil nessas especialidades, Koetsu desenhava bem, era bom ceramista e dominava a tradicional arte japonesa do makie[56]. Sobretudo tinha segurança em sua habilidade como calígrafo. No atual cenário em que brilhavam calígrafos como Shoukado Shojo — da região de Otoyama Hachiman —, lorde Karasumaru Mitsuhiro e lorde Konoe Nobutada, o famoso fundador do estilo Sanmyakuin, Koetsu com eles disputava a primazia.

A honrosa situação, no entanto, ainda não satisfazia por completo o próprio Koetsu. Prova disso era a seguinte história que corria pela cidade: certa vez Koetsu fora visitar lorde Konoe Nobutada, seu amigo íntimo. O referido lorde, um dignitário que exercia o imponente cargo de Ministro da Esquerda, descendia de uma poderosa família que, em tempos idos, detivera o título de Supremo Conselheiro Imperial. Apesar do cargo, o homem não era aparentemente mais um inútil e pomposo oficial como tantos outros. Sobre ele corria ainda uma história relacionada ao episódio da invasão da Coréia pelo Japão, no qual o excêntrico nobre declarara:

— Esta empreitada não pode ser levada a cabo por Hideyoshi sozinho. O destino da nação está em jogo e não posso ficar de fora como um simples espectador.

Em seguida, pedira com insistência ao imperador que lhe permitisse seguir para as linhas de frente.

Quando a história chegou aos ouvidos de Hideyoshi, diz-se que este comentara:

— Nada poderia representar maior desserviço ao país do que a inclusão desse nobre no meu projeto.

Interessante foi verificar que mais tarde o povo considerou a própria invasão da Coréia, levada a cabo por Hideyoshi, um dos maiores desserviços prestados por um líder ao próprio país.

Detalhes históricos à parte e voltando ao momento em que Koetsu visitava Konoe Nobutada em sua mansão, os dois homens trocavam idéias sobre a arte da caligrafia, tão do agrado de ambos. Konoe então perguntara:

— Koetsu, se lhe pedissem para citar os três melhores calígrafos da atualidade, quem você elegeria?

Koetsu, com a prontidão dos que têm a resposta na ponta da língua, respondeu:

— Em segundo lugar, V. Sa. Em seguida citaria Shoukado Shojo, mais conhecido como bonzo Takimoto, o fundador do estilo Takimoto.

Konoe Nobutada não compreendeu e pediu esclarecimentos:

— Você começou dizendo: “Em segundo lugar...” Mas quem é o primeiro? Koetsu então respondeu com a maior seriedade, fitando o interlocutor

nos olhos:

— Eu.

Assim era Hon-ami Koetsu. No entanto, Musashi duvidava que a dupla, mãe e filho, à sua frente, acompanhada de apenas um servo, fosse a família do famoso Koetsu, da rua Hon-ami: suas roupas, assim como os apetrechos para a cerimônia do chá, lhe pareceram modestos demais.

 

Koetsu segurava um pincel, e tinha sobre os joelhos um bloco com o esboço inacabado do córrego que corria pela campina. Nas folhas espalhadas ao redor havia diversos desenhos retratando a mesma correnteza, mostrando que o artista estivera praticando.

Koetsu voltou-se abruptamente.

— Que houve, senhora? — parecia dizer seu olhar tranqüilo, transferindo-se da mãe, trêmula, semi-oculta atrás do servo, para Musashi, em pé à sua frente.

Tocado por esse olhar calmo, Musashi percebeu que o próprio espírito serenava. No entanto, estava longe de se sentir cordial com relação ao estranho, um tipo desconhecido para ele, inexistente em seu mundo. No entanto, o olhar do homem tinha um brilho profundo, generoso como as proporções do seu ventre, e sorria agora para Musashi com cativante amabilidade, do mesmo modo que sorriria para um velho amigo.

— Rounin-sama... — disse o desconhecido para Musashi. — Será que minha mãe cometeu algum deslize? Eu, que sou seu filho, já tenho 48 anos. Digo isso para lhe dar uma idéia aproximada da sua idade. Ela goza de boa saúde, mas nos últimos tempos vem-se queixando que a vista anda embaçada. Em nome dela, peço-lhe sinceras desculpas. Perdoe-nos!

Assim dizendo, Koetsu depositou pincel e bloco sobre o tapete e preparou-se para tocar o chão com as duas mãos numa reverência formal. Constrangido, Musashi viu-se agora forçado a esclarecer os motivos que o fizeram vir no encalço da velha senhora.

— Ora! — disse ele, pondo um joelho em terra e interrompendo rapidamente o cerimonioso gesto de Koetsu. — Então, o senhor é o filho desta anciã?

— Sim.

— Quem lhes deve desculpas sou eu. Embora não compreenda por quê, a senhora sua mãe assustou-se tanto ao me ver que fugiu, abandonando este cesto. Depois que ela se foi, olhei em torno e descobri, espalhados no chão, os brotos e as filipêndulas por ela colhidos com tanto cuidado. Quando considerei o esforço que ela teria despendido para encontrar estas verduras na campina seca, senti remorsos por tê-la assustado. Apanhei portanto as ervas, tornei a pô-las no cesto e as trouxe até aqui. Por favor, não se desculpe!

— Ah, então foi isso! — riu Koetsu, voltando-se agora para a mãe. — Ouviu, minha mãe? A senhora se enganou, não foi?

A idosa mãe, finalmente tranqüilizada, veio saindo devagar de trás do servo e disse:

— Quer dizer, meu filho, que este Rounin-sama não tinha intenção de fazer-nos mal?

— Muito pelo contrário, senhora. Este guerreiro, apesar de sua pouca idade, é muito atencioso: teve a capacidade de comover-se com o esforço de uma pessoa idosa colhendo brotos num campo seco e deu-se ao trabalho de vir devolvê-los, minha mãe.

— Ora, essa! Agradeço a consideração, meu jovem! — disse a velha mãe, arrependida, curvando-se diante do embaraçado Musashi numa mesura profunda, quase tocando o rosto no terço do pulso. Depois riu com alegria, explicando ao filho:

— Pensando nisso agora, percebo que o ofendi. Mas é que, quando pus os olhos neste jovem rounin-sama., pareceu-me ver algo com forte cheiro de sangue e me senti arrepiar inteirinha de medo. Agora, porém, olhando bem para ele, vejo apenas uma pessoa normal. Que estranho!

Foi a vez de Musashi sobressaltar-se com a observação casual da anciã. Parecia-lhe despertar e se ver pelos olhos de um estranho.

 

Algo com forte cheiro de sangue — esta fora a expressão que a velha mãe de Koetsu usara para se referir à sua pessoa.

Ninguém percebe com clareza o cheiro do próprio corpo. Musashi, porém, deu-se conta subitamente da aura sinistra e do odor sangrento que deviam impregnar a própria sombra. A aguda sensibilidade da anciã levou-o a sentir vergonha de si mesmo, tão intensa como jamais experimentara na vida.

A comoção do jovem não passou despercebida a Koetsu.

— Jovem guerreiro! — disse o homem. Algo no samurai de cabelos secos, revoltos, de olhar penetrante, ferozmente em guarda a ponto de parecer cortante como uma lâmina, começava a despeitar sua afeição. — Sente-se e descanse um pouco, caso não esteja com pressa. Isto aqui é realmente tranqüilo. Fique em silêncio e será capaz de sentir sua alma dissolvendo no azul do céu.

A idosa mãe ajuntou:

— Vou colher mais algumas ervas e preparar-lhe um delicioso arroz com elas. Se gosta, posso também servir-lhe chá.

Perto desses dois, Musashi sentia-se abrandar: seu corpo parecia perder escamas, livrando-se um a um dos mortíferos espinhos que o cobriam, experimentava uma sensação de aconchego rara no meio de estranhos. Quase sem perceber, Musashi tinha descalçado as sandálias e se sentado sobre o tapete.

Aos poucos, em conversa informal, descobriu que a anciã se chamava Myoshu, dama de uma das mais finas famílias de Kyoto. Seu filho, Koetsu, era realmente o magistral artesão da rua Hon-ami, o famoso Hon’ami Koetsu do mundo artístico.

Hon’ami Koetsu era conhecido por praticamente todos os espadachins do país, mas Musashi descobriu que as pessoas à sua frente não se ajustavam à imagem preconcebida. Ele não conseguia livrar-se da sensação de que essas eram pessoas comuns, com quem cruzara por casualidade no meio de uma extensa campina. Não queria, àquela altura, deixar-se constranger pela consciência da fama, e abandonar o afeto e a familiaridade que começava a sentir por eles.

Myoshu perguntou ao filho enquanto aguardava a água ferver:

— Quantos anos teria este jovem?

Koetsu respondeu à pergunta da mãe com o olhar voltado para Musashi:

— Aparenta uns 25 ou 26 anos, minha mãe. Balançando a cabeça negativamente, Musashi o corrigiu:

— Tenho 22 anos.

A idosa mulher arregalou os olhos de espanto e o reexaminou:

— Tão jovem assim? Com essa idade, você poderia ser meu neto!

A seguir, inquiriu-o minuciosamente: de onde vinha? Os pais eram vivos ou mortos? Com quem aprendera a esgrimir?

O carinho e o interesse da anciã tiveram a capacidade de devolver Musashi à infância, transformando-lhe até o linguajar.

A vida de Musashi havia sido, até então, um contínuo perseverar em busca de disciplina, sem espaço para mais nada além de exercícios para tornar-se duro como o aço. Agora, porém, conversando com Myoshu, Musashi sentiu de chofre reviver, dentro do próprio corpo temperado por chuvas e ventos, a vontade de ser mimado, de deitar-se no tapete e apoiar a cabeça nos joelhos da idosa senhora.

Mas como poderia ele?

Tudo sobre o tapete — a começar por Myoshu e Koetsu, e terminando na pequena chávena — parecia pertencer à natureza e se dissolver na imensidão azul, voar com os pássaros da campina, desfrutar esse momento de prazer. Nesse meio, somente ele, Musashi, destoava como um enteado indesejado, relegado a um canto do ambiente familiar, uma presença pouco natural.

 

O desconforto nem era tanto enquanto conversavam, pois o diálogo o aproximava das pessoas sobre o tapete e o deixava à vontade.

Passados instantes, porém, Myoshu calou-se, atenta à água da chaleira, e Koetsu apanhou o pincel, dando-lhe as costas. Sem ter ninguém com quem conversar e desconhecendo qualquer tipo de entretenimento, restou a Musashi apenas o tédio e a dolorosa consciência da própria solidão.

“Que pode haver de agradável em sair para um campo seco nos primeiros dias da primavera e passar frio?”

O modo de vida da dupla lhe pareceu um enigma.

Se tinham por objetivo colher ervas e brotos, melhor lhes seria esperar um pouco mais: breve o frio abrandaria, as pessoas sairiam às ruas, a campina se encheria de flores. Se pretendiam apreciar um bom chá, não havia por que transportar chaleira e chávenas para o campo e passar desconforto: afinal, pertenciam à tradicional família Hon’ami e em sua residência haveria com certeza um belo aposento especialmente projetado para cerimônias do chá, com excepcionais vista e jardim.

“Koetsu teria vindo desenhar?”, chegou a pensar Musashi, contemplando as largas costas do homem entretido em seu trabalho.

Inclinou-se de leve para um lado e espiou: como há pouco, o artista continuava a esboçar o riacho.

A pouca distância dali, o córrego corria sinuoso entre arbustos secos. Koetsu, esquecido de tudo, tentava representar essa correnteza em traços, mas apesar do esforço a imagem surgida no papel por intermédio da tinta nada havia capturado. Eis porque Koetsu repetia o mesmo esboço dezenas de vezes, decidido a parar somente quando lograsse retratar o regato.

“Ah! Não é nada fácil pintar!”, deu-se conta Musashi de repente, fascinado com o trabalho do artista, encontrando um lenitivo para o próprio tédio.

“No momento em que, com o oponente posicionado além da ponta da espada, perco a noção de mim mesmo, quando sinto que o universo e eu perfazemos uma unidade, ou melhor, quando perco a própria noção de sentir alguma coisa, nesse exato instante minha espada terá golpeado o inimigo certeiramente. O senhor Koetsu não consegue desenhar o riacho de modo satisfatório porque ainda contempla a água como um inimigo. Ele próprio tem de ser a água”, raciocinou Musashi. Longe da esgrima, nada existia para ele.

Compreendia vagamente as dificuldades da pintura ao compará-las com as da esgrima. Mas o que continuava sem compreender era por que Myoshu e Koetsu pareciam tão satisfeitos. Os dois ainda permaneciam em silêncio, de costas um para o outro, mas o jovem considerava enigmática a aparentemente inesgotável capacidade dos dois de extrair prazer desse dia.

“É porque não têm mais o que fazer na vida”, resolveu Musashi, de modo simplista. “Como pode esta gente passar o tempo apenas desenhando e apreciando o chá numa época tão atribulada quanto a nossa? Essas pessoas pertencem a um outro mundo, desconhecido para mim. Fazem parte de uma classe social privilegiada, que consegue viver à margem do tempo, às custas de uma herança administrada com cuidado.”

Aos poucos, o tédio convidava à lassidão. Mal detectou seus primeiros sinais, a permanência no local tornou-se insuportável para Musashi, que considerava o ócio um veneno e policiava-se constantemente contra ele.

— Agradeço a gentil acolhida — disse Musashi, começando a calçar as sandálias. O agradecimento, dito no tom de alguém que, de súbito, percebeu ter perdido um tempo precioso, soou forçado.

— Oh, já se vai? — perguntou Myoshu, surpresa. Koetsu voltou-se calmamente e disse:

— Para que tanta pressa? Estamos mal instalados, é verdade, mas, como vê, minha mãe vigia com carinho a água da chaleira porque pretendia oferecer-lhe um chá. Fique um pouco mais. De tudo que o ouvi contando a ela, você deve ser o homem que duelou esta manhã com o herdeiro dos Yoshioka, nos campos do templo Rendaiji. “Nada sabe melhor que o chá depois de uma batalha”, diz sempre o dainagon Konoe Nobutada, assim como lorde Tokugawa Ieyasu. Chá é o fortificante da alma; nada melhor que o chá para fortalecer o espírito. E eu acredito que a ação tem origem na inação. Fale. Eu lhe faço companhia.

 

Koetsu então sabia do duelo que acabara de travar nessa manhã com Yoshioka Seijuro nos campos do templo Rendaiji! E mesmo sabendo, o homem permanecera tranqüilo, como se tudo não passasse de um acontecimento banal!

Musashi considerou mãe e filho com outros olhos, reavaliando-os. Recompôs-se a seguir e disse:

— Nesse caso, aceitarei o chá antes de seguir caminho. Koetsu, satisfeito, comentou:

— O que tenho a lhe oferecer talvez não valha o seu tempo. Mesmo assim... Guardou o material de pintura numa caixa, tampou-a e a depositou sobre os papéis desenhados para evitar que voassem.

A caixa recoberta de ouro, prata e madrepérola nas mãos de Koetsu brilhou de repente como o corpo de um besouro, ferindo o olhar de Musashi e fazendo-o curvar-se para observar melhor.

O jovem notou que a caixa em makie, agora sobre o tapete, nada tinha de espalhafatoso. O artista havia composto uma delicada miniatura do suntuoso palácio Momoyama, um trabalho sem dúvida gracioso. O que mais chamava a atenção, no entanto, era a patina aplicada ao trabalho, que lhe dava um aspecto nobre e uma aparência de mil anos de uso.

Musashi não se cansava de contemplar o objeto.

O pequeno artesanato lhe pareceu belo, mais que o céu e a natureza da campina. A simples contemplação exercia um efeito calmante.

— A caixa o agradou? É uma modesta obra minha. Musashi espantou-se:

— Como? Domina também a arte do makie?

Koetsu apenas sorriu em silêncio. Parecia estar zombando no íntimo do jovem que via beleza maior num artefato que na própria natureza. “Mais um provinciano”, dizia o sorriso condescendente.

Alheio ao fato de que do alto de sua maturidade Koetsu o julgava com tanto rigor, o jovem Musashi insistiu, incapaz de desviar o olhar:

— É um trabalho maravilhoso! Koetsu tornou:

— Disse-lhe há pouco que a caixa era uma modesta obra minha. Mas os versos são de autoria de Konoe Nobutada-sama, que os escreveu de próprio punho. De modo que talvez deva defini-la como uma obra conjunta.

— Quando diz Konoe Nobutada-sama, refere-se ao descendente do supremo conselheiro imperial?

— Sim, o filho do famoso lorde Ryuzan.

— Um tio meu, na verdade o marido de minha tia, trabalha há muitos anos para a casa Konoe.

— Como se chama ele?

— Matsuo Kaname.

— Ora, conheço muito bem o senhor Kaname. Vou com freqüência à casa Konoe e ele me atendeu em diversas oportunidades. Em outras, teve a gentileza de vir até minha casa.

— Realmente?

— Senhora minha mãe! — chamou Koetsu voltando-se para Myoshu, pondo-a a par do detalhe e acrescentando. — Que mundo pequeno, não é mesmo?

— Não me diga! Então, este jovem é sobrinho do senhor Kaname por Parte da mulher! — admirou-se Myoshu. Afastou-se a seguir do fogareiro tipicamente pequeno das cerimônias do chá, aproximou-se dos dois homens e fez uma graciosa reverência dando início à cerimônia.

A anciã de quase 70 anos demonstrava perfeita familiaridade com a etiqueta do chá. Seus gestos eram naturais e tudo em sua pessoa, a começar pelo preciso movimento dos seus dedos, era essencialmente feminino, suave e belo.

Musashi, o provinciano, sentou-se formalmente, imitando Koetsu. Um doce num prato de madeira foi depositado na frente dos rígidos joelhos do jovem. O doce era um simples manju, mas repousava sobre uma folha verde, inexistente na campina seca.

 

Da mesma forma que na esgrima existiam as diversas posições e as regras de procedimento, o cerimonial do chá também era rígido, Musashi ouvira dizer.

E agora, observando Myoshu com atenção, ele considerou suas maneiras soberbas.

“Não vejo brechas em sua postura”, pensou Musashi, interpretando-a uma vez mais à luz da esgrima.

Quando um magistral espadachim se põe em pé, empunhando sua espada, sua aparência distancia-o dos simples mortais. E Musashi percebia a mesma impressionante solenidade na figura dessa anciã de quase 70 anos preparando o chá.

“Caminhos... A essência da arte... Todas as coisas assumem idênticas formas quando atingem a excelência”, pensou, contemplando embevecido os gestos da idosa mulher.

Logo, porém, caiu em si e percebeu que haviam depositado à sua frente uma chávena sobre um pequeno retalho quadrangular de crepe[57]. Musashi nunca havia participado de uma cerimônia do chá e hesitou, sem saber como segurar a chávena ou beber o chá.

A chávena era tosca, desgraciosa como uma tigela de barro moldada por uma criança. No entanto, dentro dela, a espuma do chá tinha um tom verde escuro mais profundo e sereno que o céu.

Musashi voltou-se em silêncio para observar Koetsu. Esteja comia o seu confeito. Apanhou em seguida a chávena, envolveu-a com as duas mãos — como se estivesse aquecendo-as numa noite fria — e esgotou o seu conteúdo com dois ou três goles.

— Senhor Koetsu — disse Musashi, tomando coragem —, sou apenas um rústico guerreiro. Para ser sincero, jamais participei deste tipo de cerimônia. Não conheço as regras e nem sei como tomar o chá.

Ao ouvir isso, Myoshu voltou um olhar gentil em que havia uma leve censura e disse carinhosamente, como se falasse a um neto:

— Que é isso! Não existem regras na cerimônia do chá. Falar delas é pura impertinência, é falsa intelectualidade. Se você é um rude guerreiro, tome o chá como um rude guerreiro.

— Realmente?

— A arte do chá não consiste em etiqueta. Boas maneiras são uma questão mental. O mesmo se dá na esgrima, não é verdade?

— Sim, senhora.

— Não desperdice tempo pensando em boas maneiras ou perderá a oportunidade de saborear o chá. Se esta situação fosse transposta para a esgrima, seu corpo se enrijeceria e impediria a livre comunicação do espírito com a espada, não é verdade?

— Sim!

Cabisbaixo, Musashi esperou as próximas palavras da idosa mulher. Myoshu no entanto soltou uma risada cristalina e desculpou-se:

— Que digo eu! Nada sei de esgrima!

— Muito obrigado, senhora! Vou-me servir — disse Musashi. Ele desfez a postura formalizada que lhe provocava dores nas pernas e sentou-se como um guerreiro, cruzando os pés. Apanhou a chávena, tomou a infusão de um só gole e repôs o recipiente vazio sobre o retalho, descontraído como se estivesse tomando o chá habitual, depois de uma refeição.

“Amargo!”, pensou. Não podia dizer que apreciara o sabor, nem por delicadeza.

— Quer que lhe sirva outra chávena? — perguntou Myoshu.

— Não, muito obrigado.

Tanto alvoroço por aquilo? Que havia de mais nesse líquido amargo? Por que o serviço era objeto de sérias considerações e provocava comentários do tipo “gosto refinado”, “requinte da simplicidade”, e dava origem a termos como “cerimonial do chá”?

Musashi não conseguia compreender, mas nem por isso se sentia capaz de ir embora desprezando aquelas duas pessoas que desde o início haviam atraído sua atenção pela estranheza do seu comportamento. Se a cerimônia do chá fosse realmente apenas o que ele próprio fora capaz de perceber, não havia razão alguma para que sua prática, iniciada no período Higashi-yama[58], houvesse atravessado todos esses anos e se desenvolvido como uma nova expressão cultural até o presente estágio. Sobretudo, jamais haveria de receber a proteção e o apoio de personalidades como Hideyoshi e Ieyasu.

Yagyu Sekishusai buscara refúgio nesse caminho em sua velhice. Pensando melhor, o próprio monge Takuan referia-se constantemente à cerimônia.

Em silêncio, Musashi voltou a contemplar a chávena sobre o retalho de crepe.

 

Enquanto contemplava a chávena à sua frente pensando em Sekishusai, Musashi lembrou-se de chofre do galho de peônia cortado pelo idoso suserano.

Não! Não era a flor, a peônia branca — era o corte no galho! O estremecimento, o arrepio que sentira naquele momento!...

“Que é isso?” Partindo da chávena, algo violento atingiu-lhe o espírito, a ponto de fazê-lo imaginar que dissera as palavras em voz alta.

Estendeu a mão, depôs a chávena sobre as pernas dobradas, e contemplou-a de perto, quase envolvendo-a nos braços.

O jovem já não parecia o mesmo: seu olhar febril examinava minuciosamente o fundo da chávena, os sinais deixados pela espátula no recipiente.

“As marcas que a espada de Sekishusai deixou no galho da peônia — a agressividade destas marcas, deixadas pela espátula do artista quando recortou a argila... São expressões artísticas refinadas, produzidas por pessoas incomuns!”

Seu peito parecia inchar aos poucos e sufocá-lo. Não era capaz de explicar a razão. Quando muito, podia dizer que sentia o poder de uma habilidade magistral ali oculto. Sensações que dificilmente conseguiria exprimir em palavras vinham penetrando em sua alma, silenciosas, comoventes. E Musashi, mais que qualquer um, possuía a capacidade de perceber tais sensações, não restava dúvida.

“Quem terá sido o artesão?”

Tomou-a nas mãos e não se sentiu capaz de separar-se dela. Musashi não se conteve e perguntou:

— Senhor Koetsu: como eu disse há pouco, nada entendo de cerâmica. Mas esta chávena deve ser obra de um grande artesão...

— Acha? Por quê?

As palavras de Koetsu eram suaves, como a expressão do rosto. Seus lábios eram grossos mas sabiam sorrir, charmosos como os de uma mulher. Os olhos, rasgados, ligeiramente caídos nas extremidades, eram graves, mas apresentavam rugas que lhe imprimiam um ar trocista.

— É difícil explicar. Apenas senti que assim era.

— Mas deve ter visto ou sentido algo. Explique-me isso — disse Koetsu, com maldosa insistência.

— Bem... — disse Musashi, pensativo. — Tentarei explicar, embora não esteja certo de conseguir. Este sinal vigoroso deixado pela espátula na argila...

— Hum! — fez Koetsu, limpando a garganta. O artista, certo de que seu interlocutor pouco entendia de arte, o havia menosprezado. Mas agora percebeu que, contrariamente ao conceito que dele fazia, iria ouvir um comentário nada desprezível. Os lábios grossos, gentis como os de uma mulher, descreveram um brusco movimento e se apertaram, severos:

— E que acha o senhor das marcas deixadas pela espátula? — inquiriu.

— Contundentes!

— Só isso?

— Não, é mais complexo que isso. O artista deve ser um indivíduo audacioso.

— Que mais?

— Esta chávena lembra uma espada saída das mãos de um forjador de Soshu[59]: cortante até o fim, mas ainda assim envolta em graciosidade. De um modo geral, ela transmite a impressão de ser rústica, mas é elegante, tem um ar soberbo, majestoso, parece até desdenhosa em certo aspecto.

— Hum!... Muito interessante.

— De modo que, em minha opinião, o criador desta peça deve ser um indivíduo complexo, difícil de ser decifrado. Seja como for, é, sem dúvida, um artista magistral. Perdoe a indiscrição, mas diga-me: quem foi o artesão que criou esta peça de cerâmica?

Koetsu então descontraiu os lábios que lembravam grossas bordas de uma taça de saque, e riu, quase babando:

— Fui eu! Eu a fiz, como um passatempo!

 

Koetsu era maldoso, sem dúvida: permitira que Musashi criticasse sua obra à vontade, para só então revelar que era ele o autor. Mais maldoso ainda estava sendo por não deixar o jovem perceber que se divertira às suas custas. Levando-se em consideração, porém, que Koetsu tinha 48 anos e Musashi apenas 22, a diferença nas idades em parte explicava por que Musashi nem de leve se sentira testado. Ao contrário, chegou a pensar, honestamente impressionado: “Como! Este homem foi capaz de criar esta obra?! Nunca me passou pela cabeça que ele fosse o autor desta chávena!”

Espantou-o a versatilidade de Koetsu, e mais ainda, chegou a sentir algo inquietante nesse indivíduo de aparência rústica como a da chávena, mas profundamente humano.

Tentou sondar a profundeza dessa personalidade apelando para a lógica da esgrima, de que muito se orgulhava. No entanto, logo percebeu que seus conhecimentos não serviriam de parâmetro.

Quando se sentia assim, Musashi tornava-se totalmente vulnerável. Era de sua natureza curvar-se com humildade, entrevendo a própria imaturidade, transformando-se num simples jovem acanhado, rígido na presença do experiente adulto.

— Vejo que sabe apreciar uma cerâmica. Aliás, é capaz de analisar a fundo uma obra — observou Koetsu.

— Pelo contrário, não entendo absolutamente nada do assunto. Apenas conjeturei a esmo. Desculpe-me se fui impertinente, por favor.

— É natural que não entenda. Esta arte não é simples, exige que o artista empenhe toda sua vida para criar uma única chávena valiosa. Noto contudo que você tem uma sensibilidade aguda que o faz compreender a arte. Deve tê-la desenvolvido naturalmente por causa da esgrima.

Musashi também subira no conceito de Koetsu como ser humano.

O tempo passava sem que o jovem disso se desse conta. Logo, o servo retornou trazendo mais algumas ervas da campina. Myoshu preparou o arroz, levou as ervas ao fogo e as temperou, servindo-as em pratos também produzidos por Koetsu, ao que parecia; abriu um pote de saque fino e deu início a uma frugal refeição campestre.

A refeição, leve como apreciam os cultores da arte do chá, tinha sabor excessivamente suave para o gosto de Musashi. Seu físico robusto pedia alimentos gordurosos e temperos fortes.

Empenhou-se no entanto em apreciar as ervas e o nabo de paladar suave, pois já percebera que tinha muito a aprender, tanto de Myoshu quanto do filho Koetsu.

Em seu rastro, porém, podiam a qualquer momento surgir os discípulos da academia Yoshioka, buscando vingar o mestre. Inquieto, Musashi passou a vigiar com atenção a campina.

— Senhora, apreciei a refeição que me serviu. Sigo porém meu caminho, não por pressa, mas porque os discípulos do meu oponente são capazes de vir ao meu encalço e enredá-los numa situação perigosa. Eu os verei de novo, caso a sorte permita.

Acompanhando Musashi, que já se erguera, Myoshu disse:

— Venha ver-nos qualquer dia à rua Hon’ami. Koetsu acrescentou, às suas costas:

— Senhor Musashi, espero sua visita em outra ocasião. Conversaremos então com mais calma.

— Irei sem falta — prometeu Musashi.

Na extensa campina não vislumbrou nenhum dos discípulos Yoshioka. Musashi voltou-se uma vez mais e contemplou o pequeno mundo sobre o tapete, onde Myoshu e Koetsu se entretinham.

Seu próprio caminho era árido, estreito, sempre reto. Nem havia como compará-lo ao mundo amplo e luminoso em que Koetsu se divertia.

Musashi prosseguiu em silêncio rumo ao extremo da campina, passo a passo, cabisbaixo, do mesmo modo como chegara até ali.

 

A VIAGEM NOTURNA

— Que papelão fez o herdeiro dos Yoshioka! Bem feito, estou bebendo a isso! Eu o tinha mesmo atravessado na garganta!

A taberna ficava na periferia da cidade, num vilarejo onde viviam criadores de gado. O aposento de terra batida, impregnado de cheiro de cozidos e fumaça, já estava na penumbra, mas do lado de fora o sol poente incendiava o céu e avermelhava a estrada, cada movimento das cortinas da entrada deixando entrever à distância silhuetas de corvos voejando como fagulhas negras em torno da torre do templo Toji.

— Vamos, beba!

O grupo que jantava em torno de uma mesa era composto de três ou quatro pequenos mercadores. Além deles, encontravam-se ali ainda um solitário peregrino rokubu[60] comendo em silêncio e um grupo de trabalhadores braçais rodando moedas sobre o balcão e apostando um trago, de modo que o acanhado aposento se achava lotado.

— Taberneiro! Está tão escuro aqui dentro que quase tomei o trago pelo nariz! — reclamou um dos homens.

— Pronto, pronto, já vou! — respondeu uma voz perto do braseiro. Logo, uma labareda se ergueu e clareou a taberna. Contrastando com a noite que aos poucos caía lá fora, o interior do aposento se destacava, avermelhado.

— Sinto raiva só de lembrar! Eles me deviam o carvão, a lenha e os pescados desde o ano retrasado. E não era pouco, já que eu abastecia a academia inteira. Pois no último dia do ano passado, lá fui eu de novo, realmente disposto a cobrar. E não é que os discípulos da academia nos puseram, a mim e aos outros cobradores, para fora dos portões com um monte de explicações esfarrapadas?

— Calma, calma, não se irrite. Aqui se faz, aqui se paga: o episódio de Rendaiji lavou nossas almas, nos vingou.

— Vocês estão enganados: a esta altura, já não estou irritado, estou é muito feliz.

— Mas, a crer no que dizem, Yoshioka Seijuro sofreu uma derrota vergonhosa!

— Não que Seijuro seja fraco. Pelo jeito, esse tal Musashi é que é bom demais, incrivelmente competente.

— Dizem que com apenas um golpe ele inutilizou um dos braços de Seijuro, não sei se o esquerdo ou o direito. O mais espantoso é que ele se valeu de uma simples espada de madeira.

— Você esteve lá?

— Não pessoalmente, mas foi assim que aconteceu, de acordo com as pessoas que estiveram no local. Seijuro voltou sobre uma prancha, carregado pelos discípulos. Parece que vai se salvar, mas ficará aleijado para o resto da vida.

— E o que vão fazer, daqui para a frente?

— Os discípulos estão furiosos e dizem que vão acabar com Musashi de qualquer jeito, para não ter de fechar a academia. Mas o único capaz de enfrentar um homem que nem Seijuro conseguiu vencer é o mais novo dos Yoshioka, Denshichiro. Dizem os boatos que os discípulos o procuram feito loucos.

— Denshichiro é o irmão mais novo de Seijuro?

— Pelo jeito, ele é muito mais hábil que o mais velho. Mas é caçula, irresponsável. Com ele ninguém pode: enquanto teve dinheiro para gastar nem aparecia na academia. Agora, usa a influência do nome Kenpo, de parentes e amigos, e vive de favor na casa dos outros.

— Os dois se merecem. Como é que um fidalgo ilustre como mestre Kenpo foi ter uma família dessas?

— Prova de que a linhagem não faz o homem.

A claridade que o braseiro provia começou a enfraquecer outra vez. Perto do fogo havia mais um homem que dormitava fazia algum tempo, recostado na parede. O taberneiro evitara incomodá-lo porque o sabia bastante embriagado, mas como as fagulhas lhe alcançavam cabelos e pernas toda vez que alimentava o fogo, advertiu:

— Patrão, afaste o banquinho um pouco, por favor, ou acabará com a barra do quimono queimada.

O homem entreabriu pesadamente os olhos congestionado pelo calor do fogo e da bebida, mas apenas resmungou:

— Huh? Já sei, sei muito bem, mas me deixa em paz!

E ali permaneceu, sem ao menos descruzar os braços ou tentar erguer-se. Estava mal-humorado, com forte ressaca.

Um olhar para o rosto viciado, de têmporas riscadas de veias azuis, revelou: o homem era Hon’i-den Matahachi.

 

O episódio ocorrido no campo do templo Rendaiji era o assunto do momento não só ali como em toda parte.

À medida que a fama de Musashi aumentava, Hon’i-den Matahachi sentia-se cada vez mais deprimido. Se possível, queria poder não ouvir o nome do amigo até dar um jeito na própria vida, mas nem lhe adiantava tapar os ouvidos porque o assunto surgia onde quer que se formasse um pequeno ajuntamento. E por mais que bebesse, não conseguia espantar o confuso sentimento, misto de inveja e mágoa, que lhe ia no íntimo.

— Taberneiro, serve-me mais um gole. Não precisa esquentar! E despeja nessa taça grande.

— Tem certeza, senhor? Olhe que já está bastante pálido.

— Deixa de besteira. Sou pálido por natureza!

Quantas vezes havia emborcado a taça? Tantas que Matahachi — e o próprio taberneiro —já tinha perdido a conta.

Esvaziada a taça, tornava a cruzar os braços e a se recostar na parede, em silêncio. Mas apesar da quantidade consumida e do fogo a seus pés, o rosto continuava esverdeado, provando que a bebida lhe fazia mal nessa noite.

“Um dia chego lá, vão ver! Ninguém estabeleceu que a espada é o único caminho para o sucesso. Posso ficar rico, ganhar um título, ou até me tornar um yakuza: importa apenas conseguir destaque, ser alguém no ramo que se escolheu. Tanto Musashi como eu temos apenas 22 anos. Poucas são as pessoas que ficam famosas na juventude e continuam a crescer vida afora. Elas acabam ficando convencidas, acham que são geniais, e param de crescer. E quando chegam à casa dos 30, todos dão-se conta de que esses falsos gênios nada mais são do que homens imaturos, que esqueceram de crescer. Esse é o destino de todos eles.”

Embora Matahachi não quisesse ouvir falarem mal do amigo, ele se remoía com seu sucesso. E assim, viera de Osaka a Kyoto logo depois de ouvir os boatos do duelo, não porque tivesse alguma coisa a fazer na cidade, mas porque Musashi o incomodava, e porque queria saber as últimas notícias.

“Deixe estar: ele vai levar o troco qualquer dia desses se continuar a se achar grande coisa. Os Yoshioka também têm discípulos magistrais, como os componentes do grupo que se autodenomina “Os Dez Mais” da academia, sem falar no irmão mais novo, Denshichiro.”

E enquanto rezava para ver o nome de Musashi arrastado na lama, Matahachi procurava no ínterim a estrela da sorte que devia brilhar sobre a própria cabeça.

— Que sede!

Levantou-se cambaleando da beira do fogo e se amparou na parede. Todos na taberna voltaram-se para observá-lo. Matahachi aproximou-se de uma tina de água, encheu uma concha e bebeu avidamente, quase mergulhando a cabeça dentro do recipiente. Em seguida, jogou a concha no chão, afastou as cortinas e foi para fora, trôpego.

O taberneiro, que apenas o contemplara em atônito silêncio, caiu em si assim que o vulto desapareceu além das cortinas.

— Patrão, por favor! — gritou, indo-lhe atrás. —Acho que se esqueceu de me pagar!

Os demais espiavam pela cortina, esticando os pescoços. Matahachi parou e voltou-se, equilibrando-se precariamente:

— Que disseste?

— O senhor se esqueceu, não foi, patrão...?

— Não esqueci nada na taberna.

—A conta, patrão — insistiu o taberneiro, com uma risadinha melíflua.— Ainda não recebi o valor do que bebeu, patrão.

— Ah!, a conta...

— Por favor.

— Não tenho dinheiro.

— Quê?!

— Que maçada! Eu o tinha até bem pouco tempo atrás, mas agora, não tenho mais.

— Como é? Não me digas que bebeste tudo aquilo sabendo que não tinhas dinheiro!

— Ca... cala a boca, insolente! — berrou Matahachi. Apalpou as dobras internas do quimono e as mangas, extraiu uma pequena caixa de remédios e a atirou no rosto do taberneiro. — Não reparaste nas duas espadas à minha cintura? Pois fica sabendo que não decaí a ponto de fugir sem pagar uma conta. Isso deve cobrir o que bebi e ainda sobrar. Fica com o troco, desaforado!

 

Ninguém havia conseguido identificar o objeto lançado por Matahachi. Atingido no rosto, o taberneiro o cobriu com as duas mãos e gritou: — Ai!

Os fregueses que espiavam por trás da cortina indignaram-se ao ver isso:

— Sujeitinho sem-vergonha!

— Caloteiro!

— Vamos acabar com ele! — gritaram, saindo todos juntos da taberna.

Estavam todos em diferentes graus de embriaguez, e não há quem odeie caloteiros de taberna mais que um beberrão.

— Se não dissermos nada, esse sujeito vai acabar mal acostumado. Ó, estúpido, paga a conta!

Os homens cercaram Matahachi:

— Gente da tua laia deve fazer a ronda das tabernas, aplicando sempre o mesmo golpe. Se não tens com que pagar, bota aqui a tua cabeça para gente poder socá-la, um de cada vez.

Matahachi buscou proteção no cabo da espada e esbravejou:

— Quê? Vão bater em mim? Essa é boa, experimentem! Sabem com quem falam, bando de idiotas?

— Com um rebotalho, um rounin sem-vergonha, mais covarde que um mendigo, mais descarado que um ladrão! E daí?

— Ah, é? — disse Matahachi, sobrancelhas crispadas no rosto esverdeado, mirando os homens com ferocidade. — Pois vão cair para trás de espanto quando souberem quem sou.

— Por que acha que nos espantaríamos, homem?

— Porque Sasaki Kojiro é meu nome, Ito Ittosai é meu colega veterano e pratico o estilo Kanemakiryu, ouviram bem?

— Ah-ah, não me faças rir. Pára de repetir esse refrão que ouviu não sei onde e passa para cá o dinheiro que deves ao taberneiro — disse um homem, estendendo a mão e aproximando-se.

Matahachi arrancou a espada da bainha e gritou em resposta:

— Sua caixa de remédios não foi suficiente para cobrir a conta, toma isto também!

E decepou de golpe a mão do homem.

Um berro estridente se seguiu. Os freqüentadores da taberna — até agora seguros de que as palavras de Matahachi não passavam de simples ameaça — descontrolaram-se ao ver sangue e bateram em confusa retirada, cabeças e traseiros chocando-se na pressa, gritando apavorados:

— Ele sacou a espada!

Matahachi brandiu a arma acima da cabeça e gritou, com um súbito brilho sóbrio no olhar:

— E agora, repitam o que disseram! Voltem cá, vermes! Sasaki Kojiro vai lhes mostrar a habilidade. Voltem cá, que me devem os pescoços!

Sozinho, em pé no lusco-fusco, agitou a espada e continuou por algum tempo a esbravejar que era Sasaki Kojiro, mas já não havia mais ninguém para ouvi-lo. Nem corvos voejavam mais no céu, onde a noite aos poucos se insinuava.

Matahachi voltou a cara para o alto e riu, como se sentisse cócegas, mostrando os dentes brancos. No instante seguinte, um véu de tristeza caiu sobre o seu rosto, deixando-o crispado, prestes a romper em lágrimas. Com gestos inseguros devolveu a espada à bainha e pôs-se a caminho, cambaleante.

A pequena caixa de remédios lançada contra o taberneiro, e por ele abandonada na pressa de fugir, brilhava à luz das estrelas na beira do caminho.

Era uma caixa simples, de ébano com incrustações de madrepérola, e não parecia especialmente valiosa. No escuro, as incrustações faiscavam como um bando de pirilampos de estranha beleza.

— Que é isso? — murmurou o peregrino rokubu, saindo da taberna e apanhando a caixinha. Estava com pressa, mas retornou até o alpendre e examinou com cuidado as incrustações e o cordão da caixinha à luz da casa.

— Mas... É a caixa de remédios do meu amo! Faz parte dos pertences de Kusanagi Tenki-sama, que teve uma morte tão indigna no canteiro de obras do castelo Fushimi! Aqui está o nome no fundo da caixa: Tenki.

Ato contínuo, o peregrino correu atrás de Matahachi, ansioso por não perdê-lo de vista.

 

— Sasaki-sama, Sasaki-sama!

Alguém chamava às suas costas, mas claro, não era com ele. Aos ouvidos do embriagado Matahachi, o nome não despertava lembranças.

Da rua Kujo Matahachi andou em direção ao fosso do castelo. Era a própria imagem do homem sem rumo.

O peregrino apressou os passos e, aproximando-se de Matahachi, agarrou-lhe a bainha da espada e o deteve.

— Espere um pouco, senhor Kojiro.

Matahachi voltou-se com um sonoro “Eh?”, misto de interrogação e soluço:

— É comigo?

— Seu nome é ou não Sasaki Kojiro? — perguntou o peregrino. Havia um brilho severo em seu olhar.

No rosto de Matahachi a embriaguez pareceu aos poucos se dissipar.

— Sasaki Kojiro sou eu — respondeu Matahachi. — E se sou, que quer comigo?

— Quero perguntar-lhe algumas coisas.

— Que... Que coisas?

— Onde obteve esta caixa de remédios?

— Caixa de remédios?

A sobriedade estava voltando, definitivamente. O rosto atormentado do samurai peregrino que morrera linchado no canteiro de obras do castelo de Fushimi surgiu em vislumbres em torno de Matahachi.

— Vamos, diga-me onde a obteve. Como é que a caixinha está em seu poder, senhor Kojiro? — insistiu o peregrino, rígido. Aparentava 26 ou 27 anos e tanto pela idade como pelo aspecto não era um peregrino comum, do tipo conformado que destina o resto da vida a visitar templos.

— Quem é você, afinal? — perguntou Matahachi, um pouco mais sóbrio.

— Isso não importa. Diga-me apenas onde obteve a caixa de remédios.

— Que história é essa de “onde obteve”? Ela sempre foi minha!

— Não minta! — disse o peregrino, que mudou de tom repentinamente. — É melhor dizer a verdade ou poderá sofrer sérias conseqüências.

— Mas é a pura verdade, asseguro-lhe!

— Quer dizer que pretende prosseguir com a farsa!

— Farsa? Como ousa? — continuou Matahachi a blefar vigorosamente.

— Ainda insiste, falso Kojiro?

Mais ligeiro que as palavras, o bastão de carvalho de quase 130 centímetros empunhado pelo peregrino cortou o ar com um zumbido. Embora precariamente, o instinto funcionou e Matahachi conseguiu esquivar-se. Mas o corpo encharcado de saque continuava entorpecido, e o levou a dar alguns passos cambaleantes e cair sentado. Ergueu-se contudo com admirável prontidão, deu as costas ao peregrino e saiu correndo. A rapidez da fuga surpreendeu o peregrino: o homem jamais imaginara que Matahachi pudesse reagir com tanta presteza no estado de embriaguez em que se encontrava.

— Miserável! — gritou, pondo-se no encalço e lançando o bastão contra o vulto em fuga enquanto corria.

Matahachi encolheu o pescoço. O bastão passou zumbindo ao lado da orelha. Aquilo já era demais, pensou ele, redobrando a velocidade, saltando como uma bola.

O peregrino apanhou o bastão caído e voou no encalço do fugitivo. A certa altura avaliou a distância, mirou no escuro e arremessou outra vez o bordão.

Matahachi, no entanto, logrou esquivar-se mais uma vez, escapando por um triz. A embriaguez se fora de verdade, com os vapores da bebida escapando por todos os poros.

 

A garganta estava seca, Matahachi queimava de sede.

Os passos do peregrino pareciam ainda soar às suas costas, por mais que a distância entre eles se tivesse aberto. Pelo aspecto das casas ao redor, ele estava perto das ruas Rokujo e Gojo. Matahachi bateu no próprio peito:

— Ui! Esta foi por pouco! Acho que consegui despistá-lo, enfim. Nesse ponto, espiou uma viela lateral, não à procura de outra rota de

fuga, mas de um poço.

E pelo jeito encontrou-o, pois embarafustou-se viela adentro. O poço era de uso comunitário dos moradores da favela.

Matahachi içou o balde e quase mordeu sua borda na pressa de beber. Depôs em seguida o balde no chão e aproveitou a água para lavar o rosto.

“Quem era aquele peregrino?”

Conforme se recuperava, voltava a sentir apreensão.

Os três artigos — a carteira de couro roxo com o dinheiro, o diploma do estilo Chujoryu e a caixinha de remédios em questão — haviam sido retirados do corpo do samurai sem queixo, linchado por uma multidão enfurecida no canteiro de obras do castelo Fushimi durante o verão do ano anterior. Desses artigos, o dinheiro gastara até a última moeda, tendo-lhe sobrado apenas o diploma e a caixinha de remédios.

— O maldito peregrino disse que a caixinha era do amo dele. Nesse caso, o homem seria servo do samurai morto?

O mundo com sua pequenez vivia a atormentá-lo, pensou Matahachi. Quanto mais nas sombras andava, envergonhado da própria degradação, mais coincidências aconteciam, a persegui-lo como vultos demoníacos.

— Não sei se era cajado ou bordão, mas o que o sujeito lançou contra mim era devastador. Se a ponta daquele bordão atingisse minha cabeça... Adeus! É bom não me descuidar.

A consciência o acusava sem parar por haver gasto o dinheiro do morto, e o rosto do samurai linchado naquele dia infernalmente quente lhe surgia cada vez mais em rápidos lampejos.

“Vou trabalhar e a primeira coisa que farei assim que ganhar algum dinheiro será devolver o que gastei. Quando for um homem bem-sucedido, mandarei erguer uma lápide e realizar uma cerimônia em sua memória”, vivia prometendo Matahachi à alma do morto.

“Por falar nisso, acho que não devo continuar guardando isto comigo. Pode ser comprometedor. Jogo fora ou não?”, pensou ele, apalpando o diploma do estilo Chujoryu junto ao corpo. O rolo, um objeto duro preso à faixa na cintura, era um contínuo estorvo.

Mas Matahachi logo achou uma pena desfazer-se dele. Dinheiro já não tinha, e o diploma era o único bem que lhe sobrava àquela altura. Já não o via como chave para o sucesso, mas continuava a imaginar que poderia usá-lo para conseguir um bom emprego. A sorte um dia lhe sorriria, acreditava ele, mesmo depois de ter caído na esparrela armada por Akakabe Yasoma.

Já sentira em algumas oportunidades a conveniência de se fazer passar por Sasaki Kojiro, o homem cujo nome constava no diploma. Nas academias pequenas e pouco conhecidas, ou entre mercadores interessados em aprender a esgrimir, o nome inspirara grande respeito, que se havia traduzido em oferecimentos espontâneos de refeição e pouso. Podia dizer que vivera às custas do diploma durante a primeira quinzena do ano.

“Não vejo sentido em jogá-lo fora. Acho que estou me deixando intimidar aos poucos. Talvez seja isso que me impede de atingir o sucesso. Vou tornar-me arrojado como Musashi! Veja o exemplo dos que conquistaram o mundo!”

Estava decidido mas... Onde passaria a noite? Os casebres ao redor eram feitos de barro e galhos, mal se sustentavam, mas seus moradores ao menos possuíam um teto e uma porta que os protegiam da noite. Matahachi os invejou.

 

O CONFRONTO DE DOIS KOJIROS

Matahachi espiou dentro das casas, todas muito humildes.

Dentro delas, porém, descobriu, aqui, um casal defrontando-se com uma panela de permeio; mais adiante, dois irmãos e a mãe idosa, absortos num trabalho noturno. Não haviam sido contemplados com bens materiais, é verdade, mas em troca possuíam algo que nem Hideyoshi nem Ieyasu pareciam ter em seus lares: o amor fraternal, tanto mais forte quanto maior a pobreza. E porque nutriam uns pelos outros esse sentimento solidário, seus casebres não se transformavam em morada dos demônios da fome, os preta do inferno budista. Ali havia calor humano.

— Mãe!... Eu também tenho mãe. Como estará ela? — lembrou-se Matahachi de súbito.

Encontrara-a pouco tempo atrás, no final do ano anterior, e com ela passara sete breves dias, mas logo os dois geniosos haviam-se desentendido por motivos fúteis. Matahachi então a abandonara e nunca mais dela soubera.

“Agi mal... Sinto pena dela. Nenhuma mulher por quem eu venha um dia a me apaixonar será capaz de me amar como ela.”

Matahachi resolveu visitar o templo da deusa Kannon, do templo Kiyomizu. Não distava muito daquele local e podia dormir sob o beiral do santuário. Tinha também a vaga esperança de ali cruzar com a mãe.

Osugi era muito religiosa. Acreditava cegamente na força divina, não lhe importando se os deuses eram budistas ou xintoístas. Não só acreditava nos deuses, como também, em certa medida, contava com eles para ajudá-la. Um dos motivos por que mãe e filho haviam-se desentendido durante os sete dias em Osaka fora exatamente esse sentimento religioso exacerbado, que levara Osugi a parar em todos os locais sagrados budistas ou xintoístas. Em conseqüência, Matahachi aborrecera-se e se convencera de que não suportaria por mais tempo a sua companhia.

Naqueles dias, Matahachi cansara de ouvir Osugi dizer-lhe:

— Dentre todos os deuses miraculosos do mundo, nenhum é mais poderoso que a deusa Kannon, do templo Kiyomizudera. Pois ela não me trouxe o maldito Musashi à minha presença depois que eu já tinha feito quase 37[61]visitas diárias ao seu santuário? E bem na frente do santuário, além de tudo.

Portanto, escute este conselho, meu filho: tenha fé, ao menos na deusa Kannon de Kiyomizu.

Matahachi ouvira ainda inúmeras vezes de sua boca que ela pretendia voltar ao templo para agradecer à deusa e pedir-lhe proteção e bênção para a família Hon’i-den por todos os anos vindouros, assim que a primavera chegasse.

Eis aí por que Matahachi esperava — com certo fundamento, ao que parece agora — encontrar a velha mãe já peregrinando por lá.

Da rua onde se erguia o portal Rokujo caminhou em direção à rua Gojo. Estava dentro dos limites da cidade, mas a noite nesses lados era escura como breu e quase o fez tropeçar num cão. E por falar em cães, o número desses vira-latas era espantoso.

Já fazia algum tempo que Matahachi vinha caminhando cercado por latidos. Simples pedradas não logravam aquietar o bando. Mas se havia alguma coisa que não o incomodava mais nos últimos tempos eram latidos: por mais que os cães rosnassem e arreganhassem as presas, ele seguia caminho, tão impassível que os cães acabavam por desanimar.

Perto do bosque de pinheiros da rua Gojo, porém, os cães voltaram-se de repente e dispararam aos pulos em direção a uma árvore à beira do caminho, ali juntando-se com outro bando e pondo-se a uivar para o céu em coro.

Os vultos que pululavam no escuro assemelhavam-se a lobos, e eram tantos que se tornava difícil contá-los. Alguns chegavam a saltar até quase dois metros de altura com a ajuda das garras, rosnando e mostrando as presas, assustadores.

— Que é isso? — murmurou Matahachi, voltando o rosto para o alto da árvore e arregalando os olhos de espanto. No meio das folhagens, um vulto humano havia-se mostrado rapidamente. À luz das estrelas, a manga de um vistoso quimono feminino e um rosto branco tremeram entre agulhas do pinheiro.

 

Era difícil saber se a pessoa subira na árvore acuada pelos cães, ou se fora farejada pelos vira-latas quando já se havia escondido entre os galhos. Seja como for, o vulto trêmulo era, sem dúvida, o de uma jovem mulher.

— Passa! Vão-se embora, vira-latas! — gritou Matahachi, mostrando o punho fechado para os cães. — Danados! — esbravejou, jogando duas ou três pedras.

Sempre ouvira dizer que, para afugentar um cão, bastava pôr-se de quatro e rosnar. Matahachi assim fez, mas a medida não surtiu efeito algum contra esses cães.

Verdade era que não enfrentava apenas três ou quatro animais. Os cães fervilhavam como peixes em cardume, agitando rabos, arreganhando presas, rasgando o tronco com as garras, ladrando enlouquecidos contra o vulto feminino no alto. Era óbvio que um simples mortal como Matahachi rosnando de quatro à distância não abalaria o bando enlouquecido.

— Cães dos infernos! — disse Matahachi, levantando-se indignado. Dera-se repentinamente conta de que ele, um jovem samurai portando

duas espadas à cintura, fora visto de quatro, em vergonhosa posição, pela jovem em cima da árvore.

Um ganido assustador ecoou no momento seguinte. Ato contínuo, todos os cães voltaram-se para Matahachi e perceberam a espada desembainhada em sua mão e o companheiro de matilha morto aos pés dele. Juntaram-se então num grupo compacto, as costas magras de vertebras salientes ondulando.

— E agora! — gritou Matahachi empunhando a espada com as duas mãos, erguendo-a bem alto acima da cabeça e correndo para o bando. Os cães jogaram-lhe areia no rosto e debandaram prontamente.

— Mulher! Ei, mulher! Desce daí. Vamos, desce! — gritou Matahachi para o alto. Um som metálico e cristalino soou no topo do pinheiro.

— Ora, essa... Mas é Akemi?! Ei!

O som do guizo lhe era familiar. Claro estava que Akemi não era a única mulher no mundo a andar com um guizo na manga ou no obi, mas notara semelhanças no difuso contorno do rosto branco.

Era Akemi, realmente. Bastante assustada, a jovem sussurrou:

— Quem é? Quem é?

— Sou eu, Matahachi! Não me reconhece?

— Quê? Matahachi-san?

— Que faz em cima da árvore? Que eu saiba, você não é do tipo que tem medo de cães.

— Não é por isso que estou me escondendo!

— Desça daí, vamos!

— É que... — hesitou ela, examinando do alto, com cuidado, a noite agora silenciosa. — Saia daí, Matahachi-san. Acho que ele vem vindo à minha procura.

— Ele? Ele quem?

— Não posso explicar agora. É um homem perigoso. Eu achei que ele era bom e vivi às suas custas desde o final do ano passado mas, com o tempo, o homem passou a judiar de mim. Esta noite aproveitei um momento de distração dele, pulei do segundo andar do albergue Zuzuya e fugi, mas parece que eleja percebeu e está à minha procura.

— Ora essa! Pensei a princípio que você estivesse fugindo da Okoo...

— De minha madrasta? Imagine!

— Quem é esse homem? Gion Toji?

— E quem teria medo daquilo? Oh, aí vem ele! Não fique parado aí, Matahachi-san, ou ele me acha, e você também é capaz de passar por maus bocados. Esconda-se, vamos!

— Quê? O sujeito vem vindo?

Matahachi parecia perdido, sem saber que atitude tomar.

 

Mulheres comandam com um simples olhar. Tocados por esse tipo de olhar, os homens vêem-se repentinamente desembolsando vultosas quantias ou bancando heróis. E Matahachi via-se agora nesse estado de espírito, ainda sentindo a vergonha de ter-se posto de quatro e imitado um cão sob as vistas de Akemi.

Assim, o conselho de Akemi, “esconda-se”, ou sua advertência “você também é capaz de passar por maus bocados”, não surtiram efeito. Pelo contrário, serviram para despertar-lhe o brio, fortalecer ainda mais a consciência de que era, afinal, um homem. E embora Akemi não fosse sua namorada ou amante, tornou-se impossível para ele, àquela altura, gritar: “Que perigo!”, e mergulhar de cabeça numa moita qualquer, exibindo o traseiro para a jovem em cima da árvore.

— Ei! Quem está aí? — foram exclamações simultâneas que partiram do homem que acabava de surgir a passos rápidos, e de Matahachi saltando para trás, assustado com o súbito aparecimento.

E ali estava enfim o homem perigoso que Akemi parecia tanto temer. Da espada desembainhada nas mãos de Matahachi gotejava o sangue do cão morto. Por causa desse detalhe, o estranho se alarmou e lhe lançou uma mirada feroz, mal lhe parou na frente.

— Quem é você? — gritou ele de chofre.

Akemi havia demonstrado tanto pavor que Matahachi tinha-se assustado num primeiro momento. Examinando melhor, porém, notou que o estranho — embora bastante alto e robusto — além de parecer tão jovem quanto ele próprio, ainda tinha os cabelos longos amarrados num rabo, como um adolescente, e vestia um quimono de estampas espalhafatosas, como um delicado rapazinho de boa família, desses capazes de despertar ao primeiro olhar considerações depreciativas do tipo: “Ora, é um fedelho que mal saiu das fraldas!”

Agora tranqüilizado, Matahachi riu entre os dentes: esse jovem efeminado que se exibia por aí com roupas e corte de cabelo juvenis jamais o bateria; ele era capaz de enfrentar um adversário desse calibre a qualquer momento. Já um tipo como o peregrino que havia pouco o perseguira seria bem mais temível.

“Então, é este o sujeitinho que anda incomodando Akemi? Janota arrogante! Ainda não sei por quê, mas no mínimo torna a vida insuportável para Akemi. Muito bem, vai-se haver comigo!”

Assim decidido, Matahachi permaneceu em silêncio, pretendendo demonstrar superioridade. O desconhecido repetiu então pela terceira vez a mesma pergunta:

— Quem é você?

A voz, ao contrário da imagem, era extremamente agressiva. A pergunta pareceu varar a escuridão, mortífera. Matahachi, que já desprezava o adversário por sua aparência, replicou porém em tom de troça:

— Eu? Sou um homem!

Ao mesmo tempo, contorceu o rosto e forçou um meio sorriso, descabido na situação.

Como era de se esperar, o sangue subiu à cabeça do jovem samurai que reagiu com violenta veemência:

— Quer dizer que não tem nome! Um vagabundo sem nome — é assim que você se declara?

Impávido, Matahachi replicou:

— Tenho um bom nome, mas não o declaro a qualquer um, principalmente a sujeitinhos à toa como você!

— Cale a boca! — gritou o jovem, que levava atravessada às costas uma longa espada de quase um metro. Curvou-se um pouco para a frente, e o cabo da espada emergiu ameaçador sobre o seu ombro. — Suspendo momentaneamente esta pendência porque considero prioritário descer a mulher escondida no topo deste pinheiro e levá-la de volta ao albergue Zuzuya, perto daqui. Aguarde-me neste exato lugar: voltarei em seguida.

— Pois quero ver se é capaz de fazer o que diz.

— Como é?

— Esta jovem é filha da mulher com quem eu vivia. Está certo que hoje em dia nada mais tenho a ver com as duas, mas nem por isso posso ir-me embora, deixando Akemi em dificuldades. E se você a tocar, aliás, se você apontar o dedo na sua direção, eu o passarei pelo fio da espada!

 

Contrariando as expectativas de Matahachi, o jovem samurai não fugiu com o rabo entre as pernas como os cães que havia pouco desbaratara.

— Interessante! — disse o jovem, mostrando inesperada belicosidade. — A despeito de sua aparência, você deve ser um samurai. Há muito não vejo sujeitinhos metidos como você! Em boa hora você me aparece, pois o “varal”, esta espada às minhas costas, chora de sede todas as noites. Esta arma preciosa, há gerações em minha família, nunca teve a oportunidade de matar por completo sua sede de sangue desde que chegou às minhas mãos. E já que está começando a ficar enferrujada, aproveito para afiá-la em seus ossos. Mas não me vá fugir na hora azada, ouviu bem?

Antecipando-se à ação, suas palavras já cercavam cuidadosamente o inimigo, fechando-lhe as saídas. Mas Matahachi não era capaz de perceber a intenção oculta nas palavras e precaver-se. Segundo avaliava, não havia o que temer ainda e, portanto, replicou:

— Pare de falar grosso e pense bem: você ainda pode voltar atrás, eu lhe pouparei a vida. Suma enquanto consegue ver onde pisa.

— Posso devolver-lhe os conselhos, integralmente. Mas... esclareça-me um ponto, senhor Homem-Sem-Nome: disse-me há pouco, aliás com bastante arrogância, que tinha um bom nome mas não o declarava a sujeitos como eu. Que tal declinar seu digno nome agora, já que este é o procedimento correto antes de um duelo?

— Claro! Mas não me vá cair de costas, quando souber quem sou.

— Muito bem, vou firmar bem os pés! Diga, em primeiro lugar, que estilo pratica?

Nenhum guerreiro realmente bom perdia tempo tagarelando daquele jeito, achava Matahachi. Quanto mais falam, menos hábeis são, decidiu ele, cada vez mais arrogante:

— Tenho o diploma do estilo Chujoryu, que nasceu da cisão do estilo Toda Nyudo Seigen.

— Como é? Do estilo Chujoryu? Kojiro começava a mostrar surpresa.

Era o momento certo para impressionar mais ainda, pensou Matahachi.

— Vamos agora falar de você: que estilo pratica? Diga-me, já que esse é o procedimento correto antes de um duelo — disse, imitando Kojiro e acreditando que fazia graça.

— Um momento, falarei do meu estilo daqui a pouco. Mas... Mas deixe-me saber um pouco mais de sua pessoa: com quem aprendeu o estilo Chujoryu? Quem foi seu mestre?

Matahachi respondeu prontamente:

— Mestre Kanemaki Jisai.

— Hum?! — fez Kojiro, cada vez mais espantado. — Nesse caso, você deve conhecer mestre Ito Ittosai!

— É claro! — respondeu Matahachi, achando tudo muito divertido. Sua história começava a provocar o costumeiro efeito, imaginou ele. Muito antes de chegar ao estágio de desembainhar a espada, o jovem almofadinha vai procurar uma saída honrosa para ele. Tão certo estava disso, que Matahachi deu ao adversário novas informações:

— Mestre Ito Ittosai e eu somos colegas, não tenho por que ocultar. Em outras palavras, nós dois freqüentamos juntos a academia do mestre Kanemaki Jisai. E daí?

— Nesse caso, vou fazer-lhe mais uma pergunta: quem é você?

— Sou Sasaki Kojiro.

— Como é?

— Eu me chamo Sasaki Kojiro — declarou Matahachi por fim, com todas as letras mais uma vez.

A Kojiro só restou contemplar seu oponente boquiaberto, em estupefato silêncio.

 

Logo, Kojiro deixou escapar um gemido. Sorriu, e uma covinha surgiu-lhe no rosto.

Matahachi devolveu, feroz, o olhar fixo de Kojiro que lhe examinava o rosto abertamente.

— Que tanto olha? Aposto que está pasmo de saber quem sou!

— Estou pasmo, realmente!

— Vá-se embora daqui! — ordenou Matahachi com um movimento do queixo e do cabo da espada.

No mesmo instante Kojiro pôs-se a gargalhar, dobrado em dois. Quase sufocando de tanto rir, disse:

— Já deparei com gente de todo o tipo em minhas andanças pelo país. No entanto, ninguém até agora me deixou tão pasmo. E então, mestre Sasaki Kojiro, deixe-me fazer-lhe uma perguntinha: quem sou eu, nesse caso?

— Como é?

— Estou-lhe perguntando quem sou eu!

— Não sei e nem me interessa saber!

— Não senhor, nada disso! Acho que sabe muito bem. Perdoe a insistência, mas gostaria de ouvir mais uma vez: como é mesmo o seu nome?

— Ainda não compreendeu? Sou Sasaki Kojiro!

— Eeu?

— Um homem, talvez.

— Acertou em cheio. Mas que nome tem esse homem?

— Que é? Está querendo zombar?

— Pelo contrário, isto é sério! Nada poderia ser mais sério que isto. Quem sou eu, Mestre Kojiro?

— Não amole! Pergunte a você mesmo, ora!

— Nesse caso me pergunto e, embora possa lhe parecer atrevido, respondo.

— Isso, fale de uma vez!

— Mas não vá se espantar e cair de costas.

— Pare de brincar e diga de uma vez!

— Muito bem: eu sou Ganryu Sasaki Kojiro.

— O quê?...

— Nasci em Iwakuni, terra que viu nascer muitas gerações de minha família; sou Sasaki de sobrenome, e meus pais me deram o nome Kojiro. Alguns também me conhecem pelo nome de guerra Ganryu. E então, desde quando passaram a existir no mundo dois Sasaki Kojiro?

— Como é? Nesse caso...

— Como já disse, em minhas andanças país afora encontrei gente de todo o tipo, mas esta é a primeira vez que eu, Sasaki Kojiro, encontro um homem chamado Sasaki Kojiro.

— Estranho jogo do destino que nos põe assim frente a frente. Prazer em conhecê-lo, mestre Sasaki Kojiro.

— Ora, que se passa? Noto que começou a tremer de repente...

— Seja meu amigo — disse Kojiro, aproximando-se. Deu um tapa cordial no ombro do pálido e imóvel Matahachi, que no mesmo instante gritou:

— Aaaah!

Kojiro gritou em seguida, e suas palavras perseguiram como uma lança o vulto de Matahachi em fuga:

— Pare, ou parto-o em dois!

Quase quatro metros de distância pareceram interpor-se num instante entre os dois homens, mas dos ombros de Kojiro sua longa espada “varal” coriscou e partiu em direção a Matahachi como uma cobra prateada. Esse foi o único golpe de Kojiro.

Depois de rolar duas ou três vezes no chão como uma taturana derrubada pelo vento, Matahachi imobilizou-se.

 

Um som metálico — guarda chocando contra a borda da bainha — soou no instante em que a espada de quase um metro desapareceu às costas de Kojiro. Este não se dignou a lançar nem mais um olhar ao corpo inanimado de Matahachi.

— Akemi! — chamou, aproximando-se do pinheiro e erguendo o olhar para a copa. — Desça, Akemi... Prometo não tornar a fazer aquilo. Mas acho que acabei ferindo o homem que diz ter sido marido de sua madrasta. Desça daí e cuide dele.

Esperou, mas não obteve nenhuma resposta. A densa folhagem do pinheiro perdia-se na escuridão. Momentos depois, Kojiro subiu na árvore mas já não encontrou a jovem: pelo jeito, ela havia aproveitado um momento de distração dos homens para deslizar árvore abaixo e fugir.

Sentando num galho, Kojiro permaneceu imóvel por algum tempo em meio às lufadas que percorriam o bosque, parecendo indagar-se que destino tomara o pássaro fugitivo.

“Por que essa menina tem tanto medo de mim?”, pensava, sem atinar com a resposta, já que em seu entender dava a ela todo o amor de que era capaz. Seu jeito de amar talvez fosse um pouco violento, reconhecia ele, sem contudo perceber que esse seu jeito era bem diferente do de outros homens.

No que consistia a diferença? Um exame cuidadoso do seu jeito de esgrimir, ou seja, uma análise do seu estilo de luta, dá a pista para a resolução do enigma.

Muito novo, desde o tempo em que havia sido iniciado no caminho da espada por seu mestre Kanemaki Jisai, Kojiro gozara a fama de criança — prodígio e gênio da esgrima, seu estilo sendo, por isso mesmo, totalmente diferente do das demais pessoas.

Em poucas palavras, ele era tenaz. Seu estilo chamava a atenção pela tenacidade inata. Quanto maior a habilidade de seu oponente, mais tenaz se mostrava Kojiro, aferrando-se ao inimigo pegajosamente.

A esgrima, nessa época, não questionava recursos de natureza tática, de modo que um indivíduo podia aferrar-se ao inimigo e persegui-lo como quisesse, sem que ninguém o chamasse de desleal.

“Não se envolvam com Kojiro, é aborrecimento certo”, podiam dizer alguns, acovardados ante o seu estilo, mas ninguém tachava-o de covarde.

Serve de exemplo um episódio ocorrido em sua infância: certo dia, alguns veteranos da academia que detestavam Kojiro haviam-no surrado com espadas de madeira a ponto de deixá-lo desacordado. Percebendo que haviam exagerado, um deles, arrependido, deu água ao menino e manteve-se ao seu lado até vê-lo voltar a si. Diz-se então que Kojiro levantou-se furioso, tomou a espada desse veterano e o golpeou até matá-lo.

Era ainda outra característica de Kojiro nunca se esquecer de um adversário que o derrotasse em duelo: ele o perseguia implacavelmente por toda a parte, tocaiando-o numa noite escura, atacando-o dentro do banheiro ou no sono.

E como pelas regras da esgrima da época não era válido dizer: “Pare com isso, cretino! Um duelo deve ficar restrito ao momento do duelo!”, vencê-lo uma única vez era arrumar um inimigo para o resto da vida, afirmavam seus colegas de academia, maldizendo essa sua anormal capacidade de guardar rancor.

E então, a partir de certa época, Kojiro passou a se declarar: “Sou um gênio!”

Na verdade, ele não estava sendo presunçoso, pois tanto o mestre, Jisai, como o colega veterano, Ittosai, concediam: “Esse menino é um prodígio!”

E após ter ele retornado à terra de origem, Iwakuni, e desenvolvido sua técnica única abatendo andorinhas em pleno vôo à beira da ponte Kintai, a fama de “menino-prodígio de Iwakuni” tinha-se firmado, tanto na opinião dos outros quanto na dele mesmo.

No entanto, a ninguém era dado saber que forma assumia essa sua singular tenacidade — seu estilo pegajoso de luta — quando transposta para a área amorosa. O próprio Kojiro não via relação entre uma coisa e outra, razão por que ali estava ele, sem compreender por que Akemi o detestava tanto e dele fugia.

 

De repente, Kojiro deu-se conta de que havia um vulto movendo-se aos pés da árvore. O indivíduo, porém, ainda não havia percebido a presença do jovem no topo do pinheiro.

— Ora, tem um homem caído aqui — murmurou o estranho, aproximando-se de Matahachi, curvando-se e espreitando-lhe o rosto. Logo pareceu absolutamente espantado e exclamou alto a ponto de ser ouvido no topo da árvore:

— É ele!

O recém-chegado, um peregrino rokubu que tinha nas mãos um cajado rústico, desvencilhou-se rapidamente do cesto que levava às costas e o depôs no chão.

— Estranho! Não me parece ferido e seu corpo está quente. Por que teria ele desmaiado? — sussurrou enquanto apalpava o corpo inerte. Desenrolou uma corda fina levada à cintura e com ela atou firmemente as mãos às costas de Matahachi, que por estar desfalecido, naturalmente não opôs nenhuma resistência. Depois de vê-lo bem amarrado, o peregrino apoiou um joelho às suas costelas e, com alguns kiai, aplicou pressão à altura da boca do seu estômago. Mal o ouviu gemer, o homem carregou-o ao ombro e o transportou para perto de um pinheiro com a mesma consideração que teria por um saco de batatas.

— Levanta! Em pé, vamos! — ordenou severamente, chutando-o. Matahachi, que acabava de voltar da antecâmara do inferno, ainda não se

tinha recobrado por completo, mas ergueu-se assim mesmo de um salto, estonteado.

— Isso, continue nessa posição!! — disse satisfeito o peregrino, acabando por amarrá-lo à árvore com voltas de corda em torno do peito e das coxas.

— Ei!... — exclamou Matahachi, só então assustando-se. Esperara ver Kojiro diante de si, e não o peregrino.

— E então, falso Kojiro, você me fugiu como um coelho assustado, me deu um bocado de trabalho, mas aqui o tenho, finalmente. Agora, não me escapa mais — disse, começando a submetê-lo a lenta tortura.

Para começar, deu-lhe uma palmada no rosto. Em seguida, empurrou-lhe a cabeça para trás com toda a força, batendo-lhe a nuca contra o tronco da árvore e provocando um som cavo.

— Diga onde obteve a caixa de remédios. Fala ou não?

— Não quer falar, hein?

O peregrino apertou-lhe o nariz com força e o sacudiu violentamente de um lado para o outro. No mesmo instante Matahachi gritou algo que soou como “balo, balo!”. O homem soltou-lhe o nariz e disse:

— Vai falar?

— Falo! — disse Matahachi claramente desta vez, derramando lágrimas. Não era preciso torturá-lo, já que o jovem não tinha a coragem de esconder o que quer que fosse.

— Foi no verão do ano passado... — começou ele, contando em detalhes as circunstâncias que tinham envolvido a morte do samurai da cicatriz no queixo, a quem conhecera no canteiro de obras do castelo Fushimi. — Fugi levando a carteira, o diploma e a caixa de remédios do morto, não nego. O dinheiro... Já gastei. O diploma está comigo. Se me poupar a vida, prometo trabalhar e devolver o dinheiro não agora, mas num futuro próximo, sim senhor. Posso até firmar um compromisso escrito, caso queira.

Mal acabou de confessar, o jovem sentiu um indescritível alívio, como se o pus de um abcesso, que o vinha atormentando desde o ano anterior, finalmente extravasasse. Agora, já não tinha mais medo.

 

O peregrino o ouviu até o fim e perguntou:

— Essa é toda a verdade? Matahachi confirmou, cabisbaixo:

— É sim, senhor.

Por instantes, o peregrino permaneceu em silêncio. De súbito, sacou a espada curta da cintura e a aproximou do rosto de Matahachi que, apavorado, esticou o pescoço, desviou a cabeça para o lado, gritou:

— Que é isso? Vai me matar?

— Vou! Eu tenho de matá-lo!

— Mas não lhe confessei tudo honestamente? A caixa de remédios já devolvi e o diploma lhe entrego a seguir. E se já lhe disse que em breve restituo também o dinheiro, por que quer me matar?

— Percebi que você foi honesto no relato. Agora, porém, vou pô-lo a par das minhas circunstâncias: eu sou da vila Shimonida, na província de Joshu, e sirvo à família de Kusanagi Tenki-sama, o homem que foi morto por uma multidão enfurecida no castelo de Fushimi, e me chamo Ichinomiya Genpachi.

Face a face com a morte, Matahachi nem ouvia direito a explicação do peregrino, debatendo-se em vão para livrar-se das cordas, apenas procurando um meio para escapar.

— Perdoe-me! Agi mal, sei disso, mas procure compreender: minhas intenções, ao tirar os objetos do morto, eram boas. Eu apenas pretendia entregar aquelas coisas aos familiares do seu amo, atendendo ao seu último pedido. Meu único erro foi gastar o dinheiro quando me vi sem um centavo, e por isso peço desculpas, uma, duas, quantas vezes o senhor quiser e do jeito que quiser, mas me poupe, por favor!

— Nada disso! Prefiro que não se desculpe — replicou o peregrino sacudindo a cabeça com força, lutando contra os próprios sentimentos — porque já investiguei as circunstâncias que cercaram a morte de meu amo na cidade de Fushimi e sei que você está falando a verdade. Mas compreenda você também as minhas razões: as circunstâncias me obrigam a voltar para minha terra levando para os familiares do falecido Kusanagi-sama algo que sirva para lhes aliviar a dor da perda. Por trás disso existem outras razões, a mais importante sendo a inexistência de um algoz, alguém a quem imputar a morte de meu amo. Isso me transtornou por completo.

— Ei!... Não fui eu quem o matou! Ei, ei! Não confunda as coisas, pelo amor dos deuses!

— Sei disso, sei disso! Esse ponto está bastante claro para mim. Mas a família Kusanagi, na distante província de Joshu, não faz idéia de que Tenki-sama morreu de forma tão infame. A notícia é vergonhosa, difícil de ser dada a parentes e à sociedade em geral. De modo que... Sinto muito, mas gostaria que assumisse o papel de assassino de Tenki-sama e fosse morto por mim, Genpachi, transformando-me no vingador do meu amo.

Aquilo, sim, podia ser chamado de um pedido bem fundamentado, mas ouvi-lo deixou Matahachi frenético.

— Qu... quê? Nada disso! Não quero morrer! Não concordo, não concordo!

— Compreendo que não queira. Mas você vive de modo precário, não tem meios sequer para pagar a conta da própria bebedeira, conforme testemunhei há pouco na taberna da rua Kujo! Em vez de passar fome e vagar pelo mundo nestes tempos difíceis, o que acha de ir de uma vez para um mundo melhor? E se dinheiro for o problema, asseguro-lhe que mandarei parte do valor que tenho agora comigo para os seus entes queridos, se você por acaso os tem; ou ainda, se preferir, posso depositar o montante no templo de seus ancestrais para que os monges celebrem missa em sua memória.

— Livrem-me os deuses, nem me fale disso! Quem disse que quero dinheiro? O que eu quero é viver! Não concordo, poupe-me, eu lhe peço!

— É uma pena você não me entender depois de tantas explicações, e não vejo outra saída: você terá de encarnar o algoz do meu amo. Estou firmemente decidido a retornar a Joshu levando sua cabeça. Vou inventar uma história para os familiares do falecido amo Tenki-sama e para a sociedade em geral, só para manter as aparências. Mestre Matahachi, aceite o destino que lhe coube por sorte e conforme-se.

Assim dizendo, Genpachi reempunhou a espada.

 

— Espere! Espere um pouco, Genpachi! — disse uma voz nesse exato momento.

Certo de que era ainda Matahachi argumentando, e sabendo que cometia uma injustiça, Genpachi enfureceu-se, tentando abafar a própria consciência. Mas no momento seguinte, ergueu o rosto para o céu, contemplou a escuridão, e disse, como se indagasse ao vento:

— Que foi isso?

E então, a voz tornou a dizer, agora vinda do alto:

— Não cometa um assassinato inútil, Genpachi!

— Como é? Quem fala?

— Sou eu, Kojiro!

— Quê?

E eis que lhe surgia um novo Kojiro, desta vez ameaçando desabar do céu. Pouco provável que fosse um tengu — a voz era cordial demais. E quantos Kojiros haveria no mundo?

“Nessa não caio de novo!”, pensou Genpachi, afastando-se do pinheiro de um salto. Dirigiu a ponta da espada para o alto e disse:

— Que Kojiro? Diga o nome completo e de onde vem.

— Ora... Ganryu Sasaki Kojiro, está claro.

— Pensa que sou bobo? — replicou Genpachi gargalhando. — Conte outra que essa é velha. Tenho neste instante um Kojiro em minhas mãos, passando maus bocados. Ah, começo agora a compreender: você deve ser companheiro deste Matahachi.

— Eu sou o verdadeiro. Genpachi: estou pensando em saltar daqui e aterrissar do seu lado, mas já vi que você quer me partir em dois assim que eu fizer isso. Estou certo ou não?

— Certíssimo! Desçam, bando de falsos Kojiros, não importa quantos sejam! Eu os liquidarei!

— Se conseguir, fica provado que sou um embusteiro, já que o real você jamais vencerá! Prepare-se, Genpachi. Vou descer!

— Vou saltar sobre sua cabeça. Parta-me lindamente em dois, ouviu? Mas preste bem atenção: se não conseguir me pegar em pleno ar, o “varal”, esta espada às minhas costas, pode pelo contrário partir você em dois, como a um gomo de bambu.

— Um momento! Um momento apenas... Kojiro-sama! Enfim reconheço-lhe a voz. E já que diz possuir a famosa espada “varal”, é com certeza o verdadeiro.

— Acredita agora?

— Mas... O que faz aí em cima?

— Depois lhe conto.

Genpachi encolheu-se com um súbito sobressalto: roçando seu rosto erguido, a barra de um hakama e um punhado de agulhas secas passaram num torvelinho e aterrissaram às suas costas.

Contrariando suas expectativas, porém, a pessoa agora à sua frente acabou por provocar-lhe sérias suspeitas. Genpachi tinha visto Kojiro diversas vezes na época em que este era ainda aprendiz de Kenemaki Jisai e companheiro de academia de seu amo, Kusanagi Tenki.

Naqueles dias, porém, Kojiro não era belo como o jovem que via agora. Os olhos e boca ainda conservavam o ar voluntarioso, mas como mestre Jisai detestava todo tipo de ostentação, Kojiro, à época um simples ajudante de serviços, parecia um provinciano despretensioso, de pele queimada de sol.

“Está irreconhecível!”, pensou Genpachi, contemplando-o fascinado.

— Muito bem, sente-se! — disse Kojiro, acomodando-se por sua vez na raiz de uma árvore.

E assim, conversando, aos poucos tornou-se claro para ambos que Kusanagi Tenki havia partido de sua terra para entregar o diploma do estilo Chujoryu ao colega e, no meio da viagem, fora tomado por espião dos partidários de Osaka e assassinado no canteiro de obras do castelo Fushimi.

Ao mesmo tempo, foi-se tornando claro de que modo o incidente fizera surgir dois Kojiros no mundo, o que, em última análise, divertiu imensamente o verdadeiro Sasaki Kojiro, levando-o a bater palmas e gargalhar.

 

Nesse ponto, Kojiro tornou a frisar: não fazia sentido eliminar um indivíduo pusilânime, que só conseguia abrir caminho no mundo usando o nome dos outros.

Se a intenção era dar-lhe uma lição, outros meios havia. Por outro lado, se a intenção era salvar as aparências, não havia por que inventar um aceito de contas com um algoz inexistente. Dentro em breve, ele, Kojiro, desceria para Joshu e encarregar-se-ia de apresentar a todos os interessados explicações que de algum modo contribuiriam para preservar a dignidade do morto, mandando ao mesmo tempo celebrar uma missa em sua memória.

— Que acha disso, Genpachi?

— Já que se oferece, não discordo — respondeu Genpachi.

— Nesse caso, vou-me embora. E você, faça o mesmo.

— Como assim? Vai-se embora neste instante?

— Na verdade, estou no encalço de uma menina chamada Akemi, que me fugiu. Estou com um pouco de pressa.

— Um momento, por favor! Esquece-se de algo importante.

— De quê?

— Do diploma do estilo Chujoryu ao senhor conferido pelo falecido mestre Kanemaki Jisai, e que ia ser-lhe entregue por Tenki-sama.

— Ah, aquilo!

— Este falso Kojiro disse que o roubou de meu amo e ainda o tem consigo. Chego até a imaginar se não devemos aos espíritos de Jisai-sama e Tenki-sama este nosso encontro fortuito. Vou-lhe entregar em mãos, neste momento, o precioso documento.

Assim dizendo, Genpachi vasculhou o quimono de Matahachi.

A perspectiva de ter a vida poupada fez com que Matahachi não lamentasse nem um pouco a perda do diploma. Ao contrário, sentiu alívio físico e moral quando se viu livre do volume.

— Aqui o tem — disse Genpachi, entregando o diploma em nome de seu falecido amo. Esperara que Kojiro o tomasse respeitosamente nas mãos e chorasse de emoção, mas o jovem nem sequer se moveu, apenas dizendo:

— Não quero!

Surpreso, Genpachi perguntou:

— Por quê?

— Porque não. Porque acho que a esta altura, não preciso mais dessas coisas.

— Mas isso é um desrespeito! Pense bem: mestre Jisai decidiu, ainda em vida, que os dois únicos discípulos dignos de receber o diploma do estilo Chujoryu eram o senhor e mestre Ito Ittosai. Em seus últimos momentos, com certeza ele considerou que mestre Ito Ittosai já havia desenvolvido um estilo próprio, o Ittoryu, e por isso decidiu-se pelo senhor, o mais jovem dos dois. Será possível que não compreenda o real valor deste gesto?

— Devo muito a meu mestre, não discuto. Mas tenho cá outras pretensões.

— Como se atreve?

— Não me entenda mal, Genpachi.

— Afirmo que suas palavras são, no mínimo, uma afronta ao mestre.

— Nada disso. Sob alguns aspectos, acho que minha capacidade supera a do meu mestre, Jisai, razão por que serei mais famoso. Não quero acabar como ele, enterrando num canto esquecido do mundo.

— É isto o que realmente pensa?

— Claro! — respondeu Kojiro inabalável, certo de nada haver de errado em expor suas ambições. — Meu mestre teve a consideração de conceder-me o diploma, mas hoje, eu, Kojiro, tenho a convicção de já ser mais hábil que ele. Além disso, o Chujoryu é um estilo com cheiro provinciano; para um jovem promissor como eu, chega a representar um obstáculo no caminho do sucesso. Já que meu colega Yagoro criou seu estilo, Ittoryu, também criarei o meu, denominando-o estilo Ganryu. Assim sendo, Genpachi, não quero este documento. Leve-o de volta à sua terra e guarde-o junto aos registros do templo.

 

Não havia traço de modéstia em suas palavras. O homem era realmente presunçoso.

Cheio de rancor, Genpachi olhava fixo para os lábios finos de Kojiro.

— De qualquer modo, Genpachi, faça-me um favor: apresente minhas sinceras condolências à família Kusanagi e diga-lhes que os visitarei sem falta quando for para o oeste — disse Kojiro em tom cortês, sorrindo com ironia.

Nada soa mais sarcástico e maldoso que palavras polidas ditas com arrogância. Indignado, Genpachi pensou em censurar-lhe a irreverência com relação ao falecido mestre, mas desistiu. “Isto é ridículo!”, pensou consigo. Afastou-se rapidamente em direção ao cesto depositado a pouca distância dali e nele guardou o diploma.

— Até mais ver! — lançou por cima do ombro e se afastou. Kojiro o acompanhou com o olhar e gargalhando, comentou:

— Pobre provinciano! Eu o ofendi!

Voltou-se então para o atordoado Matahachi, ainda amarrado ao tronco da árvore e disse:

— Impostor!

— Responde, impostor!

— Sim, senhor.

— Como te chamas?

— Hon’i-den Matahachi.

— Rouninl

— Hum...

— És um poltrão! Espelha-te em mim, que tive a coragem de recusar o diploma concedido por meu mestre. Sabes por quê? Porque para fundar um estilo e uma escola preciso ser muito atrevido. E tu, que fazes? Andas aoléu apossando-te do nome alheio, usando um diploma que não te pertence. Para tudo há um limite, até para a vilania. Não adianta querer ser o que não se é: um gato nunca deixa de ser um gato, mesmo que vista a pele de um tigre. Aprendeste a lição?

— Aprendi.

— Vou te poupar a vida, mas para que nunca mais te esqueças da lição, continuarás amarrado até que consigas te livrar sozinho destas cordas.

Decretada a sentença, Kojiro levantou-se e pôs-se a remover a cascado pinheiro com a ajuda de uma adaga. Fragmentos caíram sobre a cabeça de Matahachi, e lhe entraram pela gola do quimono.

— Ora! Não trouxe o estojo[62]! — murmurou Kojiro. Matahachi acudiu, humilde:

— Se quer, acho que tenho um em minha cintura.

— Ah, tu o tens contigo? Empresta-me então.

Instantes depois, Kojiro lançou ao chão o pincel e leu o que acabara de escrever.

Ganryu[63] — ali estava um novo jeito de grafar o nome de guerra. A grafia anterior era uma menção aos dias em que treinara abatendo andorinhas à sombra dos chorões da ponte Kintai, na distante província Iwakuni, mas se quisesse transformá-lo em nome de estilo, a nova grafia, uma alusão à firmeza das rochas, era mais apropriada.

— Isso mesmo! — disse alto. — Este será o nome do meu estilo. Muito mais significativo que Ittoryu, do veterano Ittosai.

A madrugada vinha chegando.

No tronco da árvore, de cuja superfície havia sido removida uma fina camada da grossura de uma folha de papel, Kojiro havia escrito com o pincel retirado do estojo portátil:

Atentem todos:

Este homem assumiu minha identidade, usou meu nome de guerra e andou pelo país praticando ações pouco recomendáveis. Aqui o deixo preso afim de tornar público seu rosto.

Debaixo deste firmamento dois não existem com meu nome e meu estilo.

Ganryu — Sasaki Kojiro

— Pronto!

Uma rajada percorreu o escuro bosque de pinheiros uivando. Alerta, o jovem Kojiro rapidamente decidiu-se por outro tipo de ação e, já esquecido das ambições que havia pouco queimavam em seu peito, exclamou voltando-se para o vento:

— Que foi isso?

Vislumbrara talvez o vulto de Akemi, pois afastou-se correndo.

 

Gente de certo nível social fazia-se transportar desde a antigüidade em palanquins rústicos, mas foi somente nesses dias do período Keicho que a liteira surgiu como meio de transporte popular nos centros urbanos e estradas.

Os modernos palanquins nada mais eram que cestos com quatro cabos de bambu adaptados, dois à frente e dois atrás, levados ao ombro dos carregadores. Nos cestos, iam sentados os passageiros, que os liteireiros transportavam com a mesma consideração com que levariam mercadorias, marcando a cadência com gritos: “Ei-hou! Yah-hou!”

Como os cestos eram rasos, o passageiro, para não ser expelido, tinha de se agarrar firmemente a alças instaladas à frente e às costas, atento ao ritmo dos gritos, balançando-se na mesma cadência.

No momento, três ou quatro lanternas e uns oito homens em torno de um desses palanquins surgiram como um torvelinho direção do templo Toji pela estrada que cruza o bosque de pinheiros.

Noite alta, era comum ecoarem por essa estrada açoites de cavalo e gritos dos liteireiros, provavelmente porque o trânsito pelo rio Yodo — principal artéria de ligação entre Kyoto e Osaka — era interrompido durante a madrugada: em situações de emergência, muitos preferiam viajar via terrestre a esperar o amanhecer e o restabelecimento da via fluvial.

— Ei-hou! Yah-hou!

— Ufa!

— Estamos quase chegando!

— Já alcançamos a Rokujo!

Pelo aspecto, o grupo em questão vinha de longe, muito mais que de meros 15 ou 20 quilômetros adiante. Liteireiros e acompanhantes ao redor do palanquim pareciam exaustos e arfavam, os corações prestes a saltar-lhes pelas bocas.

— Isto aqui já é a Rokujo?

— Bosque de pinheiros da Rokujo.

— Falta pouco.

As lanternas traziam emblemas de uma casa da zona alegre de Osaka, mas o passageiro no palanquim, longe de ser uma dama da noite, era um robusto homenzarrão que mal cabia no pequeno cesto, enquanto corriam ao laedo os estafados acompanhantes, todos bravos e jovens guerreiros.

 

O SEGUNDO FILHO DOS YOSHIOKA

— Denshichiro-sama! Já estamos quase na rua Shijo! — gritou um homem para o passageiro na liteira. O gigante no cesto, porém, dormia a sono solto, meneando a cabeça como um marionete, na cadência da liteira.

— Vai cair! — berrou um dos acompanhantes no momento seguinte, amparando o homem adormecido. O gigante arregalou então os olhos instantaneamente e exclamou:

— Que sede! Quero beber. Passem para cá o cantil de saque.

O pedido veio no momento em que todos procuravam uma desculpa para descansar.

— Pousem a liteira! — veio a ordem.

Mal ouviram, os liteireiros jogaram o cesto no chão com um gemido e, juntando-se aos demais, lançaram mão das toalhas e enxugaram rostos e peitos molhados de suor.

— Só restou um pouco, Denshichiro-sama — disse alguém, entregando o cantil ao passageiro no cesto.

O homem a quem chamavam Denshichiro apanhou-o, esvaziou-o com um único trago e, enfim desperto, resmungou alto:

— Que bebida gelada! Ardem-me os dentes!

Esticou a seguir o pescoço e, elevando a cabeça acima dos quatro cabos do palanquim, espiou as estrelas, comentando:

— Ora, o dia ainda não raiou? Fizemos o percurso em pouquíssimo tempo!

— O tempo, no entanto, deve estar custando a passar para o seu irmão, ansioso à sua espera, senhor.

— Tomara que ele continue vivo até eu chegar.

— O médico garantiu que ele sobreviverá, mas está muito agitado, e em conseqüência, o ferimento sangra, tornando o quadro preocupante.

— Sei. Imagino que ele esteja mortificado.

Abriu a boca e nela virou o cantil, mas já não havia sequer uma gota da bebida.

— Maldito Musashi! — esbravejou Yoshioka Denshichiro, jogando o cantil com raiva no chão. —Vamos embora!

 

O homem era um beberrão inveterado, além de temperamental. Mas sua característica mais marcante era a força: por causa dela, o segundo filho dos Yoshioka tornara-se famoso. Extremo oposto do irmão mais velho, ele superara nos velhos tempos o pai, Kenpo, em força física, fato que os atuais discípulos reconheciam.

— Você não tem jeito para isso. Devia desistir de seguir os passos do nosso pai e viver tranqüilo, exercendo um cargo remunerado a serviço de alguém — já dissera Denshichiro ao irmão em diversas oportunidades, de onde se deduz que os dois não viviam em bons termos. Ainda assim, ambos haviam freqüentado e se adestrado na academia durante a vida do pai. Com a morte deste, porém, Denshichiro passou a treinar de raro em raro na academia — agora nas mãos do irmão —, não provocando portanto estranheza o seu desaparecimento desde o ano anterior, quando partira em companhia de dois ou três amigos declarando que ia visitar a região de Ise e, na volta, passar por Yamato para visitar o idoso Yagyu Sekishusai. A ninguém ocorria preocupar-se se o segundo filho dos Yoshioka estaria ou não passando fome e necessidade só porque não dava notícias há um ano. Ele tinha no sangue a sabedoria dos segundos-filhos, uma capacidade de sobrevivência incompreensível ao homem comum, que ganha a vida trabalhando com honestidade. Voluntarioso, beberrão incorrigível, mesmo assim conseguia manter-se sem nunca trabalhar, apenas falando mal do irmão mais velho e alardeando aqui e ali o nome do pai, Kenpo, sempre com ar de superioridade. “Dizem que se demora ultimamente para os lados de Mikage, em Hyogo, na casa de campo de um certo daimyo”, fora a última notícia que dele haviam tido em Kyoto e a que ninguém dera muita importância.

Este era o quadro, em linhas gerais, no momento do duelo entre Seijuro e Musashi, nos campos do templo Rendaiji.

— Quero ver meu irmão — dissera Seijuro, gravemente ferido, logo depois do episódio. Suas palavras comoveram profundamente os discípulos mas, a bem da verdade, estes já haviam decidido por unanimidade: “Só mesmo o segundo filho será capaz de livrar a academia do opróbrio. Temos de chamá-lo.” Denshichiro era o nome que viera à mente de todos no momento em que tentavam compor uma estratégia de ajuste de contas.

Embora a última notícia mencionasse vagamente a área de Mikage, sem maiores detalhes, cinco ou seis discípulos haviam partido para Hyogo no mesmo dia e, com muito custo, haviam descoberto o paradeiro de Denshichiro, embarcando-o na liteira expressa.

Ao saber que o irmão mais velho havia sido mortalmente ferido enquanto defendia o nome Yoshioka e que deixara escapar o desejo de revê-lo, Denshichiro esquecera a rivalidade:

— Muito bem, irei já ao seu encontro! — dissera, embarcando no palanquim.

E tão ansioso se mostrara em rever o irmão que não parará de instigar os liteireiros durante todo o percurso, esfalfando-os sem dó e trocando-os por carregadores descansados em três ou quatro estações até chegar àquele trecho do caminho.

A pressa porém não impedira Denshichiro de mandar comprar saque e encher um cantil a cada parada para troca de liteireiros. Talvez bebesse tanto esta noite para acalmar os próprios sentimentos exaltados, mas a inegável verdade era que Denshichiro bebia o tempo todo. Além do mais, a liteira corria às gélidas margens do rio Yodogawa, exposta ao vento que provinha das plantações da beira do rio, tornando-lhe impossível aquecer-se por mais que bebesse.

Para seu infortúnio, o cantil estava vazio, o que o irritou. “Apressem-se!”, ordenara exaltado, ao mesmo tempo em que jogava ao chão o recipiente vazio. Ignorando sua impaciência, porém, seus homens e os liteireiros não se reagruparam em torno do palanquim de imediato: olhos e ouvidos voltados para o escuro bosque varrido pelo vento, eles se questionavam:

— Que será isso?

— Não me parece que sejam só cães latindo!

Denshichiro zangou-se de verdade, e esbravejou, ordenando que partissem de uma vez. So então sobressaltados, os discípulos voltaram-se:

— Um momento, Denshichiro-sama. Que será aquilo? — perguntaram, chamando a atenção do exaltado segundo filho dos Yoshioka.

 

Na verdade, nada havia de especial acontecendo afora o ladrar conjunto de dezenas, ou talvez centenas, de cães.

O número de animais era considerável, mas eram apenas cães latindo. Já dizia um velho adágio: “Se um cão uiva para a lua, centenas logo o acompanharão”, demonstrando a tendência, tanto canina quanto humana, de tumultuar por nada. O fim das guerras escaceara a carne humana nos campos, obrigando os cães a migrar para as cidades, não sendo portanto novidade a presença de grandes matilhas à beira da estrada.

Não obstante, Denshichiro gritara tomando a frente dos homens:

— Vamos verificar!

Se até Denshichiro saía pessoalmente para ver, algo estranho acontecia. Seus homens correram-lhe no encalço, empenhados em não ficar para trás.

— Quê?

— Q...quê?

— Que figura suspeita!

Realmente, a visão que se lhes deparou ultrapassou as expectativas: lá estava Matahachi atado a uma árvore e um enorme bando de cães redemoinhando em torno em círculos concêntricos triplos e quádruplos, exigindo um naco de sua carne.

Se aos cães fosse dado o direito de discutir justiça, talvez dissessem que procuravam vingança: havia pouco, a espada de Matahachi espalhara o sangue de um de seus companheiros nas redondezas e eles deviam sentir-lhe o cheiro entranhado no corpo.

Se, numa outra hipótese, aos cães fosse atribuído um nível mínimo de inteligência, talvez eles estivessem se divertindo às custas de Matahachi, comentando entre si: “Este aqui é um poltrão! Vamos atormentá-lo um pouco...” Ou talvez estivessem simplesmente latindo porque estranhavam o que viam: “Olhem, sujeitinho esquisito! Que faz ele sentado no chão e carregando uma árvore nas costas? Ele roubou a árvore? É aleijado? Você sabe me dizer?”

Pareciam lobos, de barrigas murchas e costelas saltadas, dentes pontudos parecendo afiados, e para Matahachi, pobre cidadela solitária sob assédio, eram motivo de pavor algumas dezenas de vezes maior que o peregrino ou Kojiro, pelo tempo que durava a ameaça.

Impossibilitado de usar mãos e pés, restavam-lhe como recursos defensivos o rosto e palavras. Mas um rosto não é arma, e palavras os cães não entendiam.

Eis porque ele se havia empenhado de corpo e alma durante algum tempo numa tática desesperada: empregar palavras e expressões faciais compreensíveis à espécie canina. Matahachi urrara e rosnara como uma fera.

Os cães, estarrecidos, haviam-se afastado ligeiramente, mas a estratégia deixou de surtir efeito quando, de tanto urrar, o nariz da pobre fera começou a escorrer, fazendo com que os cães imediatamente o vissem como um ser inferior.

Quando a voz deixou de surtir efeito, Matahachi imaginou uma nova tática: assustar os animais com caretas.

Arreganhou portanto os lábios e escancarou a boca. Os cães se assustaram. Fixou-os ferozmente, sem pestanejar. Franziu os músculos ao redor dos olhos, nariz e boca. Mostrou a língua e espichou-a até alcançar a ponta do nariz.

Aos poucos, porém, havia-se cansado da espalhafatosa pantomima. O mesmo devia ter ocorrido com os cães, pois voltaram a ser agressivos. Matahachi, então, num último e desesperado esforço intelectual, resolveu mostrar que era um deles, e pôs-se a ladrar com os cães numa demonstração de franca amizade.

A medida, infeliz, pareceu despertar desprezo e antagonismo do bando que, ruidosamente disputando a primazia, passou a latir rente ao seu rosto, a lamber-lhe experimentalmente os pés. Certo de que uma demonstração de fraqueza àquela altura seria desastrosa, Matahachi pôs-se a esbravejar a passagem Ohara-gokou[64], trecho do épico Heike Monogatari transposto para o teatro nô:

E assim,

Na primavera do segundo ano Bunji[65],

O imperador abdicado desejou visitar

O retiro de Kenreimon’in, em Ohara.

Mas o frio era intenso, constantes as tempestades

E a neve branqueava os picos das montanhas

Pois estavam ainda nos primeiros meses do ano.

Olhos firmemente cerrados, músculos faciais contraídos, Matahachi gritava a mais não poder, pouco se lhe dando se acabaria ou não surdo com os próprios gritos.

 

Felizmente Denshichiro acorrera, e a matilha debandou em todas as direções. Mandando o orgulho às favas, Matahachi suplicou:

— Socorro, ajudem-me por favor! Me desamarrem!

Dentre os discípulos da academia Yoshioka, alguns o conheciam de vista.

— Ora, já vi este sujeito na Hospedaria Yomogi.

— É o marido de Okoo.

— Marido? Que eu saiba, ela não tinha marido.

— Essa é a lorota que ela contou a Gion Toji. Na verdade, ela sustentava este sujeito.

Penalizado, Denshichiro interrompeu os discípulos que se haviam engajado em mexericos, ordenando-lhes que o desamarrassem. Uma vez libertado, Matahachi, com vergonha de contar a verdade pura, recorreu uma vez mais à criatividade para explicar sua situação.

Quando percebeu que se defrontava com membros da casa Yoshioka, lembrou-se oportunamente de seu velho amigo e atual desafeto, Musashi,e trouxe à baila esse nome, explicando que os dois provinham da mesma vila em Sakushu, mas que Musashi lhe roubara a noiva e fugira da terra natal, enlameando o nome da família Hon’i-den e tornando impossível a ele, Mata-hachi, encarar novamente o povo da própria vila.

Por esse motivo, continuou ele, sua idosa mãe, Osugi, apesar da idade, partira de sua terra natal jurando não retornar enquanto não matasse Musashi e justiçasse a nora infiel, e estavam atualmente, ele e a mãe, em busca de uma oportunidade para concretizar o juramento.

Há pouco, disse ainda Matahachi, ouvira alguém chamando-o de marido de Okoo, mas isso não passava de um terrível engano: vivera momentaneamente na Hospedaria Yomogi, é verdade, mas não tinha nenhum interesse por Okoo. A notória relação de Gion Toji com Okoo, assim como a recente evasão dos dois para terras desconhecidas, provava esse ponto e esclarecia definitivamente o mal-entendido, achava ele.

Mas tais detalhes tanto faziam a ele, Matahachi, sendo sua atual e única preocupação descobrir o paradeiro da mãe e do arquiinimigo, Musashi. Havia poucos dias, ele ouvira em Osaka que o herdeiro dos Yoshioka tinha-se batido com Musashi e perdera. A notícia o afligira muito e o instigara à ação, mas chegando até aqui, havia deparado com uma dezena de bandoleiros que lhe haviam roubado o dinheiro e todos os pertences. Nem pensara em reagir, pois sobre seus ombros pesavam duas grandes responsabilidades: uma idosa mãe e uma vingança. Assim, deixara-se roubar, cerrara os olhos e esperara resignado.

— Agradeço-lhes do fundo do coração por me terem salvo. Tanto para mim como para a casa Yoshioka, Musashi é um inimigo odioso, com ele não podemos conviver debaixo de um mesmo firmamento. E ter sido salvo por pessoas da casa Yoshioka talvez mostre a existência de um elo unindo nossos destinos. Pelo que vejo, o senhor é o irmão mais novo de Seijuro-sama. Pois aqui estamos nós, o senhor e eu, decididos a eliminar Musashi. Veremos qual de nós alcançará o objetivo primeiro e, no dia em que isso se concretizar, encontrar-nos-emos novamente.

Pelo jeito, Matahachi achara que a mentira pura e simples não se sustentaria e havia misturado parcelas de verdade na sua história.

Mas apesar de todo o seu descaramento, Matahachi começou a sentir uma ponta de vergonha quase no final do discurso, quando acrescentara um floreio a mais e dissera: “Veremos qual de nós alcançará primeiro o objetivo.” Temendo ser desmascarado, juntou depressa:

— Vou agora mesmo ao encontro de minha mãe, Osugi, que está em retiro religioso no templo Kiyomizudera rezando pela concretização da vingança por que tanto sonhou. Nos próximos dias, nós dois iremos especialmente à academia da rua Shijo, para apresentar-lhes nossos agradecimentos.

Sinto tê-los atrasado quando sei que estavam com pressa. Até logo, senhores.

Forçoso é reconhecer que, em se tratando do inepto Matahachi, sair rapidamente de cena deixando para trás os atônitos discípulos Yoshioka foi um rasgo de genialidade, muito embora tivesse cheiro de último recurso, ditado pelo desespero.

Enquanto o grupo tentava ainda decidir se o que ele lhes dizia era verdade ou mentira, Matahachi já tinha desaparecido. Denshichiro, cercado pelos atônitos discípulos, sorriu a contragosto e disse:

— Que raios era aquele sujeito?...

Acompanhou com o olhar o vulto que já ia longe e estalou a língua, irritado por ter perdido tempo.

 

Quatro dias já se haviam passado desde que o médico havia diagnosticado: “Os próximos dias serão cruciais”. Realmente, esses haviam sido os piores dias, mas flesde a noite anterior Seijuro parecia sentir-se um pouco melhor.

Olhos abertos fitando vagamente o teto, pensava ele nesse momento:

“Estará amanhecendo ou anoitecendo?”

A lamparina à sua cabeceira estava prestes a se apagar. Não havia ninguém no aposento. No quarto contíguo, alguém roncava. Homens cansados da tarefa de velar o enfermo haviam-se jogado no tatami sem ao menos desfazer os obi e dormiam.

“Um galo cantando...”

Estava vivo ainda, tornou a pensar, desgostoso.

“Sou uma vergonha!”

Seijuro atraiu a si a borda da coberta e cobriu o rosto. As pontas dos dedos tremiam: chorava, talvez.

“E agora, com que cara enfrento o mundo?”, tentando conter o soluço que lhe subia à garganta.

A fama do pai, Kenpo, fora excessiva. Seijuro, pobre filho indigno do nome, não só viera até aqui agüentando precariamente o peso da fama e da fortuna do pai, como também fora por elas destruído.

— Acabou-se! É o fim da casa Yoshioka.

Com um último bruxuleio, a lamparina extinguiu-se à sua cabeceira. A luz pálida da madrugada infiltrou-se no aposento. A manhã enevoada na campina do templo Rendaiji tornou a surgir-lhe na cabeça.

O olhar de Musashi, naquele instante!

Só de lembrar, sentia-se arrepiar. Mas por que não lançara ao chão a própria espada, não procurara um meio de preservar o nome da casa? Afinal, Musashi nunca fora seu inimigo no sentido real da palavra.

“Foi muita pretensão de minha parte. Como se a reputação de meu pai pudesse de algum modo ser minha! Pensando bem, que fiz eu para merecer o nome do meu pai, afora ter nascido seu filho? Muito antes de ser derrotado por Musashi, eu já estava destinado à derrota, como homem e como líder de um clã. O duelo com Musashi apenas apressou o desfecho final, a minha destruição. Cedo ou tarde ela viria. Esta academia não poderia continuar sendo a única a prosperar para sempre, à margem da correnteza que assola a sociedade estes dias.”

Sobre as pestanas dos olhos cerrados, uma lágrima formou-se e refletiu a luz branca da madrugada. A gota escorreu bordejando a orelha. Seijuro sentiu um aperto no coração.

“Por que não morri na campina do templo Rendaiji? De que me adianta continuar vivo nestas condições?”

Franziu o cenho em agonia, sentindo dor no toco do braço e medo da manhã que se avizinhava.

Nesse instante, ouviu ao longe fortes batidas no portal. Alguém veio avisar aos homens que dormiam no quarto ao lado.

— Como disse? Denshichiro-sama?

— Ele acaba de chegar?

Passos apressados dos que corriam a recebê-lo cruzaram-se com os de outros que vinham em sentido contrário, rumo ao aposento de Seijuro.

— Jovem mestre, jovem mestre! Uma boa notícia! Denshichiro-sama acaba de chegar na liteira expressa e logo estará aqui para vê-lo.

Mal houve tempo de correr e abrir as portas de madeira externas, alimentar o fogo no fogareiro portátil e arrumar uma almofada antes que uma voz perguntasse do outro lado da divisória:

— É este o quarto do meu irmão?

“Denshichiro! Quanto tempo não o vejo!”, pensou Seijuro, sentindo-se, apesar da saudade, acabrunhado ante a idéia de ser visto naquele estado.

— Meu irmão!

Seijuro ergueu o olhar debilitado para o irmão mais novo que entrava pela porta e tentou sorrir, mas não conseguiu. Um forte cheiro de saque lhe veio do irmão.

 

— Que houve, mano?

Denshichiro vendia saúde e sua exuberância pesou como sombra sobre o espírito enfraquecido de Seijuro. Olhos cerrados, nada disse por instantes.

— Viu só? Posso não ser grande coisa, mas sirvo na hora do aperto, não sirvo? Quando o mensageiro me contou a história, larguei tudo e parti incontinente de Mikage, parei um instante na zona alegre de Osaka, fiz os preparativos para a viagem, abasteci-me de saque e viajei toda a noite sem descansar. Tranqüilize-se agora, meu irmão: estou aqui e não permitirei que mais ninguém se aproxime desta academia ou a prejudique de alguma forma.

Voltou-se a seguir para o homem que entrava trazendo chá e disse:

— Que é isso? E eu lá sou de tomar chá? Prepare-me um bom gole de saque!

— Sim, senhor.

Mal o atendente se afastou, gritou de novo:

— E que alguém feche estas portas! Não vêem que meu irmão pode se resfriar, cretinos?

Mudou de posição sentando-se informalmente, com as pernas cruzadas à frente, abraçou o pequeno fogareiro e espiou o rosto do irmão silencioso:

— Mas me diga: de que jeito vocês se bateram? Miyamoto Musashi é um nome que apenas começa a despontar! Como é que um veterano como você, meu irmão, foi deixar-se aleijar por esse principiante?

Um discípulo chamou-o discretamente da entrada do aposento:

— Denshichiro-sama!

— Que há?

— Seu saque está pronto!

— Traga-o aqui.

— Está à sua espera no aposento ao lado. Tome um banho, primeiro, e venha servir-se.

— E quem disse que quero tomar banho? Traga-me já o saque, vou bebê-lo aqui mesmo!

— Mas... à cabeceira do seu irmão, acamado?

— Qual é o problema? Há muito não troco idéias com ele. É verdade que não andávamos em bons termos, mas num momento como este, só mesmo um irmão para entender o outro. Bebo aqui mesmo.

Logo, estava tomando duas a três doses seguidas, comentando:

— Ah, isto é bom! Se você não estivesse doente, oferecer-lhe-ia também um trago, meu irmão.

Seijuro olhou de esguelha para o irmão mais novo e disse:

— Denshichiro.

— Hum?

— Não beba à minha cabeceira.

— Ora, por quê?

— Porque me lembra inúmeras coisas desagradáveis, que me deixam ainda mais irritado.

— Que coisas desagradáveis?

— Nosso falecido pai deve estar desaprovando o vício que ambos desenvolvemos. A bebida nos levou, a você e a mim, a praticar atos de que não nos podemos orgulhar, Denshichiro.

— Você está querendo dizer que erramos?

— Você por certo ainda não sentiu na pele a conseqüência dos seus erros. Mas eu, deitado aqui, estou provando do amargo cálice até a última gota.

— Ah-ah! Quanta besteira! Você, meu irmão, sempre foi um tipo delicado, nervoso, falta-lhe o espírito forte do verdadeiro espadachim. Francamente falando, esse seu duelo com Musashi foi um erro desde o começo. Você não foi talhado para se bater em duelos, seja contra quem for. Veja se aprende a lição e abandona definitivamente a espada. De agora em diante, fique quieto em seu lugar, apenas representando o papel de herdeiro dos Yoshioka. E quando surgir algum valentão que insista em desafiá-lo, eu, Denshichiro, bater-me-ei em seu lugar. Deixe também a academia por minha conta, doravante: prometo-lhe que a farei prosperar muito mais que nos tempos do nosso pai. Isto se você não recusar a ajuda por suspeitar que pretendo usurpar-lhe o lugar.

Despejou as últimas gotas do saque na taça.

— Denshichiro! — disse Seijuro, tentando erguer-se de repente. A ausência de um dos braços o impediu, porém, até de afastar as cobertas a contento.

 

— Ouça-me, Denshichiro!

Surgindo das dobras da coberta, a mão de Seijuro agarrou com firmeza o pulso do irmão. O aperto era tão forte que chegava a machucar.

— Eee-pa! Cuidado, meu irmão, quase me fez derramar o saque! — reclamou Denshichiro, trocando a taça de mão às pressas. — Que é? Você me parece solene demais.

— Posso atender ao seu pedido e lhe ceder a academia. No entanto, preste atenção: ao assumir a academia você estará assumindo também a casa Yoshioka, compreende?

— Claro! Eu assumo!

— Não aceite com tanta facilidade! Pense bem: se é para você seguir os meus passos e tornar a sujar o nome de nosso pai, melhor será extinguir a casa agora.

— Não diga asneiras. Eu não sou você, meu irmão.

— Promete corrigir-se e tentar?

— Espere um pouco! O saque não largo, por nada no mundo.

— Está bem, mas beba com moderação. Meu erro não foi beber.

— Foram as mulheres, não foram? Seu ponto fraco sempre foram as mulheres. Quando sarar, case-se e sossegue de vez.

— Não. Abandono a carreira de espadachim nesta oportunidade. E não vou me casar também. Apenas... há uma certa pessoa que tenho de ajudar. Quando a vir feliz, nada mais me restará a desejar. Pretendo acabar meus dias em algum casebre de uma campina qualquer.

— Ora, e a quem você quer ajudar?

— Isso não vem ao caso. Cuide da casa doravante, Denshichiro. Este seu irmão, derrotado e aleijado, ainda tem um resto de orgulho e honra: apesar de tudo, sou um bushi. Mas é passando por cima desses sentimentos que lhe peço, com toda a humildade: não siga meus passos, Denshichiro, não trilhe o mesmo caminho que trilhei. Entendeu?

— Entendi! Prometo-lhe que ajustarei contas com Musashi e restaurarei seu bom nome muito em breve. Por falar nisso, onde anda ele ultimamente? Você sabe?

— Ele quem? Musashi? — perguntou de volta Seijuro, olhos arregalados fitando o irmão, como se acabasse de ouvir algo inesperado. — Você não me entendeu, Denshichiro? Mal acabo de preveni-lo e você já quer bater-se com ele?

— Que é isso, meu irmão? É mais do que óbvio que eu queira bater-me com ele, a esta altura dos acontecimentos! E não foi para isso que me mandou buscar? Ainda não se tinha dado conta de que seus discípulos e eu largamos tudo e viajamos incontinentes noite adentro porque queríamos pegar Musashi antes que ele fugisse para outra província? Ora essa!

— Você está enganado, redondamente enganado! — disse Seijuro, sacudindo a cabeça. Seu olhos fitaram o espaço, como se ali vissem o futuro. — Desista! — ordenou, com o tom autoritário de um irmão mais velho.

Denshichiro não gostou.

— E por que, posso saber? — perguntou agressivamente.

O tom da pergunta fez o sangue voltar a afluir ao rosto pálido de Seijuro.

— Porque nunca o vencerá! — sussurrou com veemência.

— Nunca vencerá quem? — tornou Denshichiro, empalidecendo ao contrário do irmão.

— Musashi!

— Mas quem não vencerá Musashi? De quem você está falando?

— De você, está claro! Você não será capaz de vencer Musashi! Sua habilidade não é suficiente, é disso que estou falando!

— Absurdo! Totalmente absurdo! — respondeu Denshichiro, sacudindo os ombros e rindo abertamente. Desvencilhou o braço que o irmão ainda retinha e tornou a beber um novo gole.

— O saque acabou! Tragam mais! — gritou para os discípulos.

 

Quando um dos discípulos, atendendo ao chamado, acorreu da cozinha com uma nova dose de bebida, já não encontrou Denshichiro à cabeceira do irmão.

— Ora... — murmurou, depositando a bandeja sobre o tatami. — Que aconteceu, jovem mestre? — perguntou em seguida, aproximando-se impetuoso da cabeceira de Seijuro, horrorizado ao vê-lo caído de bruços no meio das cobertas.

— Chame-o! Vá chamá-lo! Quero falar com ele mais uma vez. Traga Denshichiro até aqui, preciso falar com ele de novo!

— Si-sim, senhor, imediatamente! — respondeu o discípulo, aliviado ao ouvir a voz firme de Seijuro, e saindo às pressas para cumprir as ordens.

Denshichiro foi localizado quase em seguida. Ele tinha ido para a academia, local que há muito não visitava, e estava no salão de treinos.

Ao seu redor sentavam-se veteranos como Ueda Ryohei, Nanbo Yoichibei, Miike e Otaguro, gente que também havia muito ele não via.

— Já foi ver seu irmão? — perguntou um deles.

— Acabo de falar com ele — respondeu Denshichiro.

— Ele ficou feliz em revê-lo, não ficou?

— Nem tanto. Eu mesmo estava bastante emocionado até chegar ao seu quarto. Mal o vi, porém... Ele estava carrancudo, e eu acabei dizendo-lhe coisas que não devia. Logo estávamos discutindo, como sempre.

— Discutindo? Mas isso foi imprudente de sua parte, Denshichiro-sama. O estado de saúde de seu irmão estabilizou-se um pouco a partir da noite passada! Como pôde discutir com um homem em tais condições?

— Ei, esperem um pouco!

Denshichiro mantinha com os veteranos um relacionamento cordial, de velhos amigos. Pôs a mão sobre o ombro de Ueda Ryohei, que havia iniciado o sermão, e o sacudiu de leve, patenteando a força dos braços mesmo através de um gesto amistoso.

— Antes de mais nada, escutem só o que meu irmão me disse. “Sei que pretende se bater com Musashi para limpar meu nome, mas você não tem chance alguma de vencê-lo. E se até você for derrotado, será o fim desta academia. A linhagem se extinguira. Deixe-me assumir sozinho toda a desonra desse episódio, declarar de público que abandono para sempre a espada, e retirar-me do mundo. Você tem de assumir o posto de pilar da academia e recuperar, com esforço e diligência, o bom nome desta casa.” Foi isso o que ele me disse!

— Bem pensado...

— Como disse?

O discípulo que viera à procura de Denshichiro achou oportuno interrompê-los na breve pausa do diálogo:

— Denshichiro-sama: seu irmão pede-lhe que retorne à sua cabeceira. Denshichiro voltou-se para trás apoiado numa das mãos e fitou com

frieza o discípulo:

— Que fez com o saque?

— Levei-o para o quarto do jovem mestre.

— Traga-o aqui. Quero que todos bebam comigo enquanto conversamos.

— Mas o jovem mestre...

— Não amole! Meu irmão parece doente, doente de medo. Traga o saque para cá!

Os demais, incluindo Ikeda e Miike, intervieram ao mesmo tempo:

— Não se incomode conosco, Denshichiro-sama, isto não é hora de beber.

Denshichiro irritou-se e bradou:

— Que há com vocês! Não me digam que até vocês têm medo desse Musashi! Ele está sozinho, não se esqueçam!

 

Exatamente por ser tão famosa, o episódio abalou muito a casa Yoshioka.

O único golpe desfechado por Musashi com sua espada de madeira não só aleijara o líder do clã, como também destruíra pela base todo o reconhecido poderio da academia Yoshioka.

A inabalável confiança do grupo, que jamais havia considerado a possibilidade de uma derrota, começava a desmoronar. O clã tinha perdido a coesão até para solucionar problemas que a derrota trouxera.

O choque tinha um gosto amargo e seus traços eram ainda visíveis nas feições desoladas de todos os discípulos, dias depois do episódio. Qualquer tipo de consulta conseguia dividir opiniões e tornava difícil o consenso, porque alguns tendiam a uma atitude negativa, atraídos pela opinião do líder derrotado, enquanto outros assumiam postura positiva e exigiam uma reação radical.

Antes ainda da chegada de Denshichiro, as opiniões já se dividiam:

“Desafiamos Musashi mais uma vez e tentamos um novo acerto de contas?”

“Ou adotamos uma estratégia cautelosa para preservar a academia?”

Essas duas correntes digladiavam-se até no meio dos veteranos, sendo visíveis agora nos rostos dos discípulos reunidos em torno de Denshichiro, alguns expressando tácito apoio à opinião dele, outros parecendo secretamente concordar com Seijuro.

Um ponto, porém, parecia claro: nenhum veterano podia compartilhar uma atitude conformista, por mais que com ela concordassem intimamente. “A vergonha que hoje sentimos é passageira; não reajam para não piorar ainda mais a situação”, era o tipo de opinião que só Seijuro, o homem que acabava de experimentar a derrota, podia defender.

Sobretudo na frente de Denshichiro e de sua esfuziante vitalidade ninguém conseguia manter-se apático.

— Sei que meu irmão não está em sua melhor condição física, mas como posso concordar com essa atitude covarde, digam-me? — reclamou Denshichiro, enchendo as taças que lhe haviam sido trazidas, e distribuindo-as, dando a impressão de querer implantar na academia recém-assumida um ambiente arrojado tipicamente seu.

— Pois eu lhes juro que vencerei Musashi! Diga meu irmão o que disser, eu o liquidarei. Como pode ele, um bushi, dizer-me para deixar Musashi em paz e preocupar-me apenas em preservar o bom nome dos Yoshioka e administrar direito a academia? Esse jeito de pensar foi responsável pela derrota dele, é óbvio! Quanto a vocês, vou prevenindo: não me confundam com meu irmão! Entendido?

— Mas é claro... — respondeu Nanbo Yoichibei, hesitante, para depois acrescentar: — Claro que acreditamos em sua habilidade. No entanto...

— No entanto o quê?

— Seu irmão acha que Musashi é um reles estudante de artes marciais, e que esta é uma casa famosa desde os tempos dos xoguns Muromachi: postos numa mesma balança, percebe-se logo que um duelo só nos pode ser desvantajoso, tão inútil quanto jogar bakuchi, ganhemos ou percamos. Acho que foi isso o que ele sentiu, com todo o seu bom senso.

— BakuchP. — repetiu Denshichiro. Um brilho impertinente surgiu-lhe no olhar. Nanbo Yoichibei corrigiu-se depressa:

— A expressão foi infeliz. Retiro essa palavra. Mas Denshichiro não ouviu até o fim.

— Retire-se, covarde! — disse, agarrando-o pela gola e erguendo-se.

— Desculpe-me, foi um lapso — tornou Yoichibei.

— Cale a boca! Você é um covarde, não merece sentar-se ao meu lado. Saia daqui! — ordenou, empurrando-o com força.

Lançado contra a parede da academia, Yoichibei, pálido, permaneceu por alguns instantes em silêncio. Logo sentou-se formalizado e, com calma, disse:

— Senhores, agradeço a consideração com que me trataram durante os muitos anos de convivência.

Curvou-se em direção ao altar central e, levantando-se abruptamente, deixou a mansão.

Denshichiro nem sequer o viu retirar-se.

— Vamos, bebam! — disse, oferecendo saque a todos. — Depois disso, gostaria que saíssem à procura do local onde Musashi se hospeda. Acho que ele ainda não fugiu para outra província. Pelo contrário, deve andar por aí todo empertigado, alardeando a vitória. Procurá-lo será a primeira providência, prestem atenção. Em seguida, vamos falar da academia: ela não pode continuar deste jeito, abandonada. Os treinos devem continuar diariamente, como de hábito. Vou descansar um pouco agora, mas prometo vir mais tarde participar dos treinamentos. Previno-os porém desde já: o meu estilo, diferente do de meu irmão, é mais violento. Levem isso em consideração e treinem os novatos com maior vigor, certo?

 

Sete dias haviam-se passado desde os últimos acontecimentos, quando um discípulo entrou gritando na academia:

— Descobri!

Fazia já alguns dias que Denshichiro vinha submetendo os discípulos a um treino brutal, conforme havia anunciado.

No momento, um grupo de discípulos de expressão ressabiada amontoava-se a um canto do salão: cansados da vitalidade do segundo filho dos Yoshioka e com medo de ser convocados a treinar, assistiam ao massacre do veterano Otaguro Hyosuke.

— Espere um pouco, Otaguro — disse Denshichiro, retraindo a espada de madeira e voltando-se para o discípulo que se sentara a um canto do salão de treinos. — Descobriu? — perguntou.

— Sim, senhor!

— E onde estava Musashi?

— Numa rua a leste do bairro Jisso-in, também conhecida como rua Hon’-ami pelos habitantes locais. E, pelo jeito, Hon’ami Koetsu hospedou-o num aposento nos fundos da sua mansão.

— Ele se hospeda na casa de Koetsu? Ora, essa! Como poderia Musashi, um estudante de artes marciais provinciano, conhecer o famoso Koetsu?

— Não sei desses detalhes, mas uma coisa é certa: ele está hospedado em sua casa.

— Muito bem, vamos para lá agora! — disse, indo em largas passadas em direção aos seus aposentos para se preparar. Nesse instante, os veteranos Otaguro Hyosuke e Ueda Ryohei o detiveram:

— Espere! Não podemos chegar de repente e liquidá-lo, pois isso dará a impressão de que estamos envolvidos numa briga de rua e será malvisto pela sociedade, mesmo que a vitória seja nossa.

— Não concordo! Regras podem reger os treinos, mas num duelo real ganha quem vencer.

— Mas não foi assim que procedemos quando do seu irmão. No nosso entender, o senhor fará melhor enviando-lhe primeiro uma carta de desafio, estabelecendo local, dia e hora do duelo, e depois batendo-se abertamente com ele.

— Têm razão. Farei como dizem. Mas no ínterim, não me vão vocês também mudar de idéia por influência do meu irmão e tentar me impedir de duelar!

— Fique tranqüilo: todos os ingratos, dissidentes e desertores, já se afastaram da academia nestes últimos dez dias.

— E isso acabou fortalecendo-nos, em última análise. Quero que insolentes como Gion Toji e covardes como Nanbo Yoichibei afastem-se voluntariamente da academia.

— E antes de mandarmos o desafio a Musashi, será melhor comunicar o que pretendemos fazer ao jovem mestre.

— Disso me encarregarei pessoalmente. Não confio em vocês para essa missão.

Desde a desavença de dez dias atrás, os dois irmãos continuavam sem se falar. Nenhum dos dois mudara de opinião. Os veteranos rezavam para que não se desentendessem outra vez, mas como não ouviram nenhuma altercação, começaram a estudar os termos do desafio a Musashi, tentando estabelecer dia e local do segundo duelo.

Foi então que, proveniente dos aposentos de Seijuro, ouviram uma voz chamando:

— Ueda, Miike, Otaguro, todo mundo! Venham cá um instante! A voz não era de Seijuro.

No quarto, depararam com Denshichiro, em pé, sozinho, com ar perdido, olhos úmidos. Era a primeira vez que os veteranos o viam nesse estado.

— Leiam isto! — disse ele, em tom raivoso apesar da consternação, passando-lhes a mensagem deixada por Seijuro. — Olhem só o que ele me fez: escreveu-me uma longa carta de despedida e foi-se embora, sem ao menos me dizer para onde!

 

O BECO

A mão que empunhava a agulha deteve-se repentinamente:

— Quem está aí? — perguntou Otsu. — Quem é?

Correu o shoji que dava para a varanda e espiou, mas não viu ninguém. Tinha-se enganado, percebeu Otsu desanimada. Faltava-lhe apenas pregar a gola e fazer a barra para completar a reforma do quimono, mas perdeu a vontade.

— Pensei que fosse Jouta-san... — murmurou, contemplando a manhã vazia, ainda expectante. Qualquer indício de presença humana nas proximidades da casa logo fazia Otsu pensar que Joutaro viera vê-la.

A casa ficava ao pé da ladeira Sannenzaka.

A região era densamente povoada, mas bastava entrar uma rua além da principal que logo surgiam matagais, plantações e pessegueiros desabrochando na morna brisa da primavera.

A casinha isolada onde Otsu se encontrava agora tinha ao fundo as árvores de um jardim vizinho e uma horta rústica de aproximadamente 300 metros quadrados na frente. Logo depois da horta se avistava a cozinha de uma hospedaria, de onde provinha um incessante ruído de pratos e panelas desde as primeiras horas da manhã até tarde da noite. Com efeito, a casinha era parte da hospedaria, e de lá vinham as refeições.

A velha Osugi — ausente no momento — hospedava-se habitualmente nessa estalagem toda vez que vinha a Kyoto, sendo a pequena casa isolada no meio da horta a preferida da “idosa senhora”, como era conhecida.

— Otsu-saa, está na hora do almoço! Posso levar a bandeja? — gritava uma mulher da porta da cozinha, do outro lado da horta.

Despertando do devaneio, Otsu respondeu:

— O almoço? Não o traga ainda. Vou esperar obaba-sama para almoçar em sua companhia.

A isso, a mulher à porta da cozinha tornou a gritar:

— Quando saiu de manhã, ela disse que só voltaria bem mais tarde. Acho que ela só chega de noite.

— Nesse caso, não vou almoçar. Não estou com fome.

— Como é que você agüenta tanto tempo sem comer? Que coisa! Uma densa fumaceira cheirando a lenha de pinheiro ocultou os pessegueiros da horta e a hospedaria adiante.

Pelas redondezas havia diversas oficinas de ceramistas, e a vizinhança ficava enfumaçada nos dias em que esses profissionais acendiam seus fornos para queimar a louça. Dispersada a fumaça, o céu luminoso anunciando a primavera ressurgia mais belo do que nunca.

Relinchar de cavalos, passos de romeiros rumando para o templo Kiyo-mizudera e um burburinho contínuo chegavam da rua principal até a casinha. E no meio dessa balbúrdia urbana Otsu ouvira que Musashi tinha derrotado Yoshioka Seijuro.

Seu coração saltara de alegria enquanto evocava a imagem de Musashi.

“Jouta-san deve ter ido ao campo do templo Rendaiji. Se ele viesse me ver, poderia me contar detalhes...” Tomada de aguda impaciência, esperava por ele.

Mas desde o dia em que se haviam separado na ponte Oubashi, isto é, mais de 20 dias atrás, ela nunca mais vira Joutaro.

“Será que não conseguiu me encontrar? Não é possível: eu lhe disse claramente que estaria numa estalagem no fim da ladeira Sannenzaka. Se ele quisesse me encontrar de verdade, perguntaria de casa em casa e chegaria até aqui...”, pensava às vezes. Em outras preocupava-se: “E se ele adoeceu, ou pegou um resfriado e está de cama?”

Impossível! Não dava para imaginá-lo acamado, logo Joutaro! Com certeza passava o tempo soltando pipas nesse lindo dia de primavera. A idéia a irritou.

 

Logo, porém, a jovem imaginou que Joutaro também poderia estar do mesmo modo esperando por ela, pensando: “Ela bem podia vir me ver ao menos uma vez. Afinal, a distância não é tão grande assim. Além disso, ela precisava se lembrar de vir à mansão Karasumaru para agradecer!”

Otsu com certeza dava-se conta de que devia essa visita de cortesia, mas ao contrário de Joutaro, que podia vir vê-la quando quisesse, ela tinha no momento dificuldades para chegar à mansão Karasumaru, proibida como estava de sair de casa por qualquer motivo sem o consentimento da velha Osugi.

E por que não saía ela agora, aproveitando esse momento de solidão?, podia pensar alguém que desconhecesse as circunstâncias. Pois a velha Osugi não era nada boba. Olhos vigilantes observavam Otsu o tempo todo, porque a anciã pedira ao pessoal da hospedaria que assim procedesse. Bastava que a jovem saísse um instante à rua, apenas para observar o movimento, para logo alguém da hospedaria vir-lhe perguntar em tom casual:

— Aonde vai, Otsu-san?

Pois Osugi tinha-se tomado bastante conhecida e respeitada na vizinhança do templo Kiyomizudera por conta do patético episódio do ano anterior, em que, velha como estava, desafiara Musashi para um duelo com armas reais. Os acontecimentos ganharam notoriedade pela boca dos liteireiros e carregadores locais, que haviam testemunhado o episódio:

— A velha é durona!

— Ela é muito corajosa!

— Disse que saiu de casa para restaurar a honra da casa!

Os boatos haviam aumentado a popularidade da velha Osugi, chegando até a criar um clima de veneração. Por conseguinte, era perfeitamente natural que gente simples como empregados de hospedaria se empenhassem em cumprir as ordens da velha senhora ao ouvi-la pedir:

— Essa menina e eu temos um pequeno problema particular. Por favor, não a deixem fugir na minha ausência.

Seja como for, Otsu não podia afastar-se do local sem permissão. Tinha de pedir a ajuda das pessoas da hospedaria até para mandar um bilhete, e assim não lhe deixava outra alternativa senão esperar pacientemente pela visita de Joutaro.

Otsu recolheu-se novamente para trás do shoji e recomeçou a reformar o traje de viagem da velha Osugi.

Nesse instante, outro vulto surgiu do lado de fora da casa e uma voz feminina desconhecida murmurou:

— Ora! Será que me enganei?

Vindo da rua principal, a mulher tinha entrado pela estreita viela e parará, surpresa e algo confusa ante a visão da horta e da casinha isolada no meio do beco.

Esticando o pescoço, Otsu espiou. Debaixo do pessegueiro, junto à estreita passagem entre cebolinhas verdes, havia uma mulher parada. Ao dar com os olhos em Otsu, a mulher disse:

— Por favor...

Baixou a cabeça, parecendo ligeiramente desconcertada.

— Diga-me: isto aqui não é uma hospedaria? Li um anúncio numa lanterna na entrada do beco e entrei, certa de que fosse!

Parecia perturbada, sem saber se ia ou ficava.

Otsu apenas examinava a mulher da cabeça aos pés, esquecida até de responder. O olhar com certeza causou estranheza, pois a desconhecida, cada vez mais confusa, disse:

— Onde é que estou?

Passeou o olhar pelo telhado da casa e tornou a contemplar o pessegueiro em flor.

— Que lindo! — comentou, fingindo-se embevecida para disfarçar o constrangimento.

“É ela! A mulher da ponte Oubashü”, lembrou-se Otsu. Ou será que se enganava? Otsu buscava avivar a memória: manhã do primeiro dia do ano... boca da ponte Oubashi, e uma bela jovem que chorava, reclinada ao peito de Musashi! Na ocasião, Otsu não tinha sido vista pela jovem, mas... esta não seria a pessoa cuja lembrança vinha incessantemente atormentando-a, a inesquecível, odiosa rival?

 

A mulher da cozinha havia por certo avisado a recepção da hospedaria, pois logo um serviçal deu a volta pelo beco e perguntou:

— Senhora! Procura uma hospedaria?

O olhar inquieto de Akemi voltou-se para ele:

— Isso mesmo! Onde fica?

— Logo aí, na entrada do beco. Sim, senhora, na esquina da viela, do lado direito dela.

— Ah, mas nesse caso dá para a rua principal?

— Dá, sim, mas é bem tranqüila.

— Eu estava procurando uma estalagem discreta, de onde pudesse chegar e sair sem chamar a atenção, e dei com o anúncio na entrada do beco. Achei que tinha encontrado aquilo que eu procurava aqui no fundo.

Voltou o olhar para a casinha isolada em que Otsu se encontrava e tornou: — Isto aqui não faz parte da hospedaria?

— Faz, sim. É uma extensão da hospedaria.

— Esta casa seria perfeita para mim. Parece pouco movimentada... e bem escondida.

— Mas temos também ótimos aposentos na construção principal!

—Apesar de tudo, gostaria que me deixasse ficar aqui. Para minha sorte, a outra hóspede é também uma mulher, ao que vejo.

— Acontece que esta jovem está em companhia de uma outra senhora, idosa e de gênio um tanto difícil.

— A mim isso não incomoda, realmente.

— Nesse caso, perguntarei a essa senhora mais tarde, quando ela retornar, se não se importa de partilhar o alojamento com uma estranha.

— Enquanto isso, posso aguardar num aposento qualquer da hospedaria, lá na frente...

— Por favor. Tenho certeza que gostará dos aposentos no prédio principal.

Akemi acompanhou o ajudante e se afastou.

Otsu acabara por não dizer nada até o fim, e arrependia-se agora de não lhe ter feito algumas perguntas. Sempre fora introvertida, era um defeito seu, reconhecia, bastante aborrecida.

Que tipo de relação existia entre essa mulher e Musashi? Ao menos disso gostaria de saber.

Sobre a ponte Oubashi, os dois haviam conversado por um tempo considerável. E não fora um diálogo simples: afinal, a mulher acabara chorando e Musashi a abraçara.

Otsu tentava combater uma a uma as suposições que o ciúme engendrava, mas era obrigada a reconhecer que, desde aquele dia, entrevia em seu íntimo sentimentos complexos e dolorosos, até então desconhecidos para ela.

“Uma mulher mais bonita que eu!”

“Tem melhores oportunidades de se encontrar com ele.”

“Mais desembaraçada, mais competente para atrair homens.”

Otsu, para quem o mundo havia sido só dela e de Musashi, percebeu de súbito a existência de outras mulheres e sentiu-se deprimida com a própria falta de atrativos.

“Não me acho bonita.”

“Não tenho um dom especial.”

“Não tenho fortuna ou família.”

Ao se comparar às outras mulheres do vasto mundo, achou que esperava demais e que seus sonhos eram loucos. Não via em si traços da coragem que, muito tempo atrás, a fizera arrostar a tempestade e subir no cedro centenário do templo Shippoji, mas apenas a fraqueza que a forçara a ocultar-se atrás do carroção, perto da ponte Oubashi.

“Preciso do apoio de Jouta-san!”, percebeu Otsu com dolorosa nitidez. “Acho que naquela época tive a coragem de subir no cedro centenário no meio da tempestade porque ainda possuía um pouco da inocência do pequeno Jouta-san”, pensou.

Ficar tão confusa era prova de que se distanciara da pureza dos velhos tempos, começou ela a achar. Uma lágrima correu pelo seu rosto e caiu sobre a costura.

— Você está aí ou não, Otsu? E por que raios não acende a luz?

O crepúsculo havia invadido o alpendre sem que Otsu se desse conta disso, e ali, na penumbra, a velha Osugi gritava rispidamente.

 

— Já de volta, obaba-sama? Vou neste instante acender uma luz. Acomodando-se no aposento mergulhado em sombras, Osugi lançou um

olhar frio às costas de Otsu, que se dirigia a um cubículo do outro lado de uma divisória.

Otsu depositou a lamparina perto da idosa mulher e sentou-se formalmente.

— Cansou-se, obaba-sama? E aonde foi hoje?

— Que pergunta! — respondeu Osugi em tom severo. — Fui à procura do meu filho, Matahachi, e do esconderijo de Musashi, está claro!

— Quer que lhe massageie as pernas?

— As pernas até que estão bem. Meus ombros, em compensação, andam rijos nestes últimos quatro ou cinco dias. Talvez seja o calor. Se tem vontade, massageie-os.

Era sempre com essa secura que Osugi reagia aos cuidados de Otsu. Mas ela precisava suportar essa provação por um curto tempo, apenas até encontrarem Matahachi e acertarem o passado, pensou a jovem, aproximando-se mansamente das costas da anciã.

— Realmente, suas costas estão muito tensas e devem ter-lhe causado desconforto, obaba-sama!

— Chego a sentir falta de ar enquanto ando. É a idade, que se há de fazer! Posso cair morta a qualquer momento, vítima de um ataque fulminante.

— O que é isso? Sua saúde é de dar inveja a muita gente nova! Nem pense nisso.

— Mas se até o tio Gon, sempre tão disposto, se foi como num sonho... A verdade é que ninguém sabe do amanhã. O único momento em que me sinto animar é quando penso em Musashi: aí então o ódio contra esse miserável se acende em meu peito, e sinto-me mais viva que qualquer um.

— Musashi-sama não é tão mau quanto a senhora imagina. Está totalmente enganada a esse respeito, obaba-sama.

Osugi riu, sacudindo os ombros.

— É verdade, tinha-me esquecido! Musashi era o homem por quem você abandonou Matahachi! Perdoe-me se falei mal dele.

— Ora, mas não foi por esse motivo que o defendi!

— Não foi? Contudo, tenho certeza de que seu coração bate muito mais forte por Musashi do que por Matahachi. Fale com franqueza, Otsu, seja honesta.

— Dentro em breve, quando eu localizar Matahachi, mediarei o encontro de vocês dois e esclarecerei toda a situação, conforme você deseja. A partir desse dia, você e eu nada mais teremos em comum, seremos duas estranhas. Com certeza vai correr na mesma hora para junto de Musashi e falar mal de nós, os Hon’i-den.

— E por que faria tal coisa, obaba-sama? Eu não sou desse tipo! Jamais me esquecerei do quanto fez por mim, pode acreditar!

— As mocinhas, hoje em dia, são boas de conversa. Como é que consegue disfarçar tão bem seus verdadeiros sentimentos e falar com tanta gentileza? Esta velha aqui, pelo contrário, é muito honesta: eu não consigo falar bonito como você. A partir do momento em que você se casar com Musashi, eu passarei a ser sua inimiga. É duro ter de massagear os ombros de uma inimiga, não é, Otsu? — disse a velha, rindo.

— Quer se casar com Musashi, não quer? Pense nisso e a provação se tornará suportável.

— E agora, por que chora?

— Não estou chorando.

— Que é isso que pingou em meu pescoço, nesse caso?

— Desculpe-me. Foi sem querer.

— Ah, pare de choramingar por causa dele e massageie com mais força! Desse jeito, parece até que tenho insetos rastejando sobre os meus ombros! Que coisa mais desagradável!

A luz de uma lamparina bruxuleou na horta. Era a menina da hospedaria trazendo o jantar, pensaram as duas mulheres.

À beira da varanda, porém, surgiu um homem com trajes de monge.

— Com licença. É aqui o aposento da matriarca dos Hon’i-den? — perguntou.

A lamparina que trazia nas mãos tinha uma inscrição: “Templo Kiyo-mizudera — Monte Otowayama.”

 

— Sou um doshu do santuário Koando — disse o monge depositando a lanterna na varanda e retirando uma carta do peito. — Hoje, pouco antes do entardecer, um jovem rounin tiritante de frio meteu a cabeça dentro do santuário e perguntou se a velha senhora proveniente da província de Sakushu não tem vindo rezar ali nos últimos dias. Respondi-lhe que sim, que às vezes ela vinha. O jovem rounin pediu então que lhe emprestasse um pincel, escreveu esta carta, e me pediu que a entregasse quando a senhora por lá surgisse. Não sei o que isso possa significar, mas como eu tinha algumas coisas a resolver na rua Gojo, aproveitei para trazer-lhe a carta imediatamente.

— Ora, a quanto trabalho se deu, monge! — agradeceu Osugi, oferecendo-lhe polidamente uma almofada e convidando-o a descansar. O monge porém recusou e foi-se embora em seguida.

— Que será isso?

Osugi aproximou-se da lamparina e abriu a carta. Algo em seu conteúdo devia tê-la emocionado, pois empalideceu a olhos vistos.

— Otsu!

— Sim? — respondeu Otsu da beira do braseiro, a um canto do aposento.

— O monge já se foi, não precisa mais servir o chá.

— Já se foi? Nesse caso, levarei o chá para a senhora.

— Pretende dar-me de beber o que outros recusaram? Muito obrigada! Minha boca não é ralo de pia, não está aqui para você escoar sobras. Não perca tempo com besteiras e apronte-se de uma vez!

— Como assim? Eu vou sair com a senhora?

— Isso mesmo. Vou solucionar seu caso ainda esta noite.

— Oh, mas então, a carta de há pouco é de Matahachi-sama?

— Não lhe interessa saber. Cale a boca e me acompanhe.

— Nesse caso, vou à cozinha pedir que apressem o nosso jantar.

— Você ainda não comeu?

— Eu estava à sua espera.

— Você e suas considerações inúteis! Como posso estar sem comer até esta hora, se saí de manhã? Acabo de almoçar e jantar de uma só vez, longe daqui. Se você ainda não jantou, peça para lhe fazerem alguma coisa rápida. Vá de uma vez!

— Sim, senhora.

— De noite, deve fazer frio no topo do Otowayama. Você já acabou de reformar o meu colete?

— Falta só um pouco para terminar o quimono forrado.

— Não estou falando do quimono! Apronte-me o colete. As meias estão lavadas? E acho que o cordão das sandálias está frouxo. Vá até hospedaria e me traga um par de sandálias novas.

As ordens se sucediam com tamanha rapidez que Otsu mal tinha tempo de responder.

A jovem obedecia sem ao menos questionar as ordens, tremendo de medo, só de sentir sobre si o olhar da velha.

Juntou o par de sandálias novas de modo que Osugi pudesse calçá-las com facilidade e disse:

— Está tudo pronto, obaba-sama. Acompanhá-la-ei quando quiser.

— Pegou a lamparina portátil?

— Não, senhora.

— Mas que parva! Pretendia fazer-me caminhar pelos ermos do Otowa-yama no escuro, sem a ajuda de uma luz? Peça uma na hospedaria, vamos!

— Que distração a minha! Vou até lá neste momento. A Otsu não sobrara tempo para se arrumar.

Osugi dissera ermos do monte Otowayama. Onde, especificamente?

A dúvida lhe ocorreu, mas temendo uma resposta ácida, Otsu limitou-se a ir-lhe na frente, iluminando o caminho.

Não obstante, ela própria sentia-se alvoroçada. A carta de há pouco era com certeza de Matahachi. E nesse caso, a velha Osugi, cumprindo a promessa que vinha fazendo à jovem nestes últimos dias, ia tomar as medidas necessárias para solucionar os problemas que tanto a afligiam. Mais alguns momentos de paciência e perseverança, e Otsu se livraria das humilhações e maus-tratos.

“Retornarei ainda esta noite à mansão Karasumaru e verei Jouta-san, assim que eu resolver esta questão”, decidiu-se Otsu.

A ladeira Sannenzaka era íngreme e acidentada, cheia de pedregulhos. Vencê-la exigia perseverança. Otsu continuou a caminhar observando as pedras.

 

AMOR EXTREMADO

Uma cascata estrondeava em algum lugar. O volume da água não havia crescido, mas o silêncio da noite aumentava o ruído.

— Tem uma placa nesta árvore que diz: “Cerejeira do santo Jishu.” Este deve ser o santuário Jishu Gongen — observou Osugi.

As duas mulheres haviam subido bom trecho pela estrada que passava ao lado do templo Kiyomizudera, mas a velha Osugi nem sequer se queixara de falta de ar.

— Filho, meu filho! — chamou Osugi voltada para a escura noite, em pé na frente do santuário.

O rosto e a voz trêmula eram puro amor. Para Otsu, parada às suas costas, Osugi parecia uma nova mulher.

— Não deixe a luz se apagar, ouviu, Otsu?

— Sim, senhora.

— Ele não está aqui, não está! — sussurrava a velha, andando a esmo ao redor. — Mas na carta ele me disse para subir até o santuário Jishu Gongen!

— Dizia esta noite?

— Não dizia nem hoje, nem amanhã. Os anos passam mas ele continua criança! Seria tão mais fácil se ele viesse me ver pessoalmente na hospedaria! Mas acho que o incidente de Sumiyoshi o deixa constrangido.

Otsu puxou Osugi pela manga e disse:

— Vem alguém subindo a montanha. Não será Matahachi-san, obaba-sama?

— Hein? Você o achou?

Espiou a trilha que vinha pelo barranco e chamou:

— Filho!

Mas o homem que instantes depois lhes surgiu à frente nem sequer olhou para elas, e contornou o santuário, dando a volta por trás dele. Veio depois ao lugar onde se encontravam as duas mulheres, parou à frente delas e examinou abertamente o rosto branco de Otsu que a luz da lamparina destacava.

Otsu sobressaltou-se, mas o homem não pareceu tê-la reconhecido: os dois haviam-se visto no primeiro dia do ano nas proximidades da ponte Oubashi.

— Moça! E você aí, obaba. Há quanto tempo estão aí?

A pergunta fora tão abrupta que as duas mulheres apenas ficaram contemplando em admirado silêncio as espalhafatosas roupas de Kojiro. Este apontou repentinamente para Otsu e disse:

— Procuro uma mulher que deve ter mais ou menos a sua idade. Chama-se Akemi, tem o rosto mais arredondado que o seu e é um pouco mais franzina, mas parece mais velha porque foi criada numa casa de chá, na cidade grande. Por acaso a viram nas redondezas?

As duas mulheres negaram, balançando a cabeça em silêncio, ao que o jovem tornou:

— Estranho! Alguém me disse que a viu nas proximidades da ladeira Sannenzaka. E nesse caso, ela pretende passar a noite dentro de um destes santuários, com certeza...

A princípio, Kojiro falara com as duas, mas as últimas observações foram para si mesmo. Sem ter como continuar a inquiri-las, o jovem se foi, resmungando.

A velha estalou a língua:

— E quem é esse rapazola? Deve ser um samurai, já que carrega uma espada nas costas, mas não tem idéia de como é ridículo exibindo-se por aí em roupas berrantes, perseguindo mulheres no meio da noite. Irra, deixe isso para lá! Temos coisas mais importantes para resolver.

Otsu porém pensava: “É isso! Ele deve estar atrás da moça que apareceu há pouco na hospedaria!”

Perdida em conjeturas, tentando em vão decifrar que tipo de relação que havia entre Musashi, Akemi e Kojiro, Otsu ficou observando vagamente o vulto que se afastava.

— Vamos embora... — disse Osugi desanimada, pondo-se a andar. Santuário Jishu, dizia a carta claramente, mas Matahachi não vinha e o

reboar contínuo da cascata no escuro a arrepiava.

 

Descendo um pouco mais, as duas mulheres reencontraram Kojiro à entrada do santuário Hongandou, mas cruzaram-se em silêncio, apenas fitan-do-se mutuamente. Instantes depois Osugi voltou-se e viu o vulto de Kojiro passando perto do santuário Shiandou para descer em seguida direto pela ladeira Sannenzaka.

— Que olhar implacável tem esse rapaz! Me lembra Musashi — resmungava ainda Osugi quando algo atraiu seu olhar. As costas curvadas estremeceram de chofre. Osugi soltou um pio, imitando uma coruja.

E lá estava ele! À sombra de um grosso cedro, um vulto acenava com a mão.

Mesmo no escuro, os olhos de Osugi jamais deixariam de reconhecer esse vulto. Era Matahachi, sem sombra de dúvida.

“Venha cá!”, gesticulava ele. Alguma coisa o impedia de se aproximar dela. “Meu filho querido!”, pareciam dizer os olhos brilhantes de Osugi, percebendo num átimo a intenção do filho.

— Otsu! — disse a velha, voltando-se. A jovem esperava por ela, 20 metros à frente. — Siga sozinha um pouco mais. Mas não se afaste muito, ouviu bem? Espere-me perto daquele montinho de lixo. Logo a alcançarei.

Ao ver que Otsu, acenando em sinal de compreensão, seguia adiante, voltou a chamá-la:

— Preste atenção, Otsu. Não tente ir em outra direção ou fugir de mim: lembre-se sempre de que eu a estou vigiando daqui. Entendeu?

Em seguida, saiu correndo em direção ao cedro.

— É você, Matahachi?

— Obaba!

Uma mão ávida surgiu do escuro e agarrou com firmeza a da velha Osugi.

— Que faz encolhido neste canto, meu filho? Mas... Que é isso? Suas mãos estão geladas! — observou a velha mãe instantaneamente comovida, e com os olhos marejados.

Matahachi a fitou, perturbado:

— Sabe o que é, obaba? Ele passou por aqui ainda agorinha, não passou?

— Ele quem?

— Um rapaz de olhar agressivo com uma espada enorme às costas!

— Você o conhece?

— Como não haveria de conhecê-lo? Ele se chama Sasaki Kojiro e me fez passar por alguns maus momentos há poucos dias, no bosque de pinheiros da rua Rokujo.

— Que disse? Sasaki Kojiro? Mas Sasaki Kojiro não é você?

— Co-como assim?

— Pois não era esse o nome que constava no diploma que você me mostrou tempos atrás na cidade de Osaka? Naquela ocasião, você me disse que Sasaki Kojiro era seu nome de guerra, lembra-se?

— Mentira! Era tudo mentira! E esse Kojiro, o verdadeiro, descobriu a brincadeira e me fez suar frio! Na verdade, eu ia me encaminhando para o local de encontro especificado na carta, quando de repente tornei a avistar esse sujeito perto daqui. Com medo de que ele me visse de novo, andei me escondendo aqui e ali, só observando o jeito dele. Será que já se foi? Se ele me aparecer outra vez, estou perdido.

Osugi contemplava o filho em silêncio, abismada, mas ao ler nas feições de Matahachi — mais abatidas do que da última vez — uma franca confissão de desamparo e covardia, seu coração transbordou de amor pelo filho.

 

— Mas deixe isso para lá! — disse Osugi, balançando a cabeça como se não quisesse ouvir mais lamúrias. — Meu filho, você sabia que o velho tio Gon morreu?

— Quê? Tio Gon morreu? Verdade mesmo?

— E quem haveria de contar uma mentira dessas? Ele morreu na enseada de Sumiyoshi, logo depois que você nos deixou.

— Não sabia!

— Mas você com certeza sabe a que devemos a morte trágica do velho Gon, ou o fato de eu, com a minha idade, estar vagando longe dos meus nesta triste jornada, não sabe?

— Nunca mais esqueci o que você me disse naquele dia na cidade de Osaka, quando me fez sentar no chão gelado, asseguro-lhe.

— Quer dizer que se lembra do que lhe disse! Muito bem! Pois então, há de ficar feliz com o que vou-lhe contar.

— O que é, obaba?

— É sobre aOtsu...

—Ah!... Então aquela mulher ao seu lado e que acaba de se afastar era...

— Pare! — repreendeu-o Osugi, interpondo-se no caminho do filho. — Aonde vai, posso saber?

— Se era Otsu deixe-me vê-la, obaba, deixe! Osugi moveu a cabeça, assentindo:

— Pois foi para isso que a trouxe até aqui. Mas primeiro, Matahachi, diga-me: que pretende fazer quando vir Otsu?

— Vou lhe pedir perdão. Vou-lhe dizer: errei, estou arrependido, perdoe-me!

— E depois?

— E depois, obaba, depois... quero que você também me ajude a convencer Otsu de que tudo não passou de um mal-entendido.

— E depois?

— Depois, voltaremos ao que éramos antigamente...

— Comoé...?

— Quero voltar à situação antiga e me casar com ela. Você acha que ela ainda me ama, obaba?

— Idiota! — gritou Otsu, batendo-lhe na cara e interrompendo-o.

— Que... que é isso, obaba? — exclamou Matahachi, cambaleando e cobrindo a face com a mão. E pela primeira vez desde o dia em que nascera viu no rosto da mãe uma expressão medonha, assustadora.

— Que foi que me disse há pouco? Afirmou ou não que tudo o que eu lhe disse em Osaka estava gravado para sempre em seu espírito?

— Quando foi que o mandei ajoelhar-se aos pés de uma devassa como Otsu e pedir-lhe humildemente o perdão? Essa mulher enlameou o nome Hon’i-den e fugiu com Musashi, o homem a quem jurei matar, e que perseguirei por todas as minhas sete reencarnações!

— Como pode pensar em se pôr aos pés dessa cadela, dessa vadia que abandonou você, o noivo, para se entregar de corpo e alma a Musashi, seu rival e inimigo? Hein, Matahachi! — esbravejou Osugi, agarrando o filho pela gola e sacudindo-o violentamente.

Olhos cerrados, Matahachi ouvia submisso a severa reprimenda, deixando-se sacudir à vontade. Lágrimas escorriam sem parar de suas pálpebras fechadas.

Cada vez mais irritada, Osugi disse:

— E por que chora? Não me diga que não consegue esquecer essa cadela? Ah, maldição! Já não tenho filho neste mundo!

Empurrou-o com violência e o lançou ao chão. Deixou-se cair em seguida de joelhos ao seu lado e pôs-se também a chorar.

 

— Escute-me — disse Osugi, voltando a ser a mãe severa, sentando-se ao lado do filho. — Este é o momento decisivo de sua vida. Não espere que eu viva mais dez ou 20 anos. Pode ser que não goste do que estou lhe dizendo, mas quando eu morrer nunca mais ouvirá minha voz, mesmo que queira.

É óbvio, dizia a expressão de Matahachi, voltado para o lado em silêncio. Osugi agora parecia temer a zanga do filho:

— Escute bem, meu filho. Otsu não é a única mulher do mundo. Não se apegue a gente de sua laia. Olhe: se algum dia você encontrar uma mulher que lhe agrade, prometo fazer de tudo para conseguir-lhe a mão, ir à casa dessa jovem tantas vezes quantas forem necessárias para convencê-la a casar-se com você. Mais do que isso, asseguro-lhe que oferecerei minha vida como dote de casamento, meu filho!

— Mas Otsu, essa você nunca terá, juro pela honra dos Hon’i-den! Pode dizer o que quiser, mas não a terá.

— Se mesmo assim insiste em se juntar a ela, terá primeiro de passar por cima do meu cadáver. Depois disso poderá fazer o que quiser, mas enquanto eu viver...

— Obaba!

A agressividade na voz do filho irritou Osugi uma vez mais:

— Que modos são esses? Veja como fala à sua mãe!

— Deixe-me perguntar-lhe uma coisa: quem é que vai casar, eu ou você?

— Você, está claro!

— Ne... nesse caso, é claro também que sou eu quem deve escolher a mulher que vai ser minha esposa! Mas você...

— Vai começar a comportar-se outra vez como um menininho mimado! Quantos anos tem você, afinal?

— Você é que é muito impositiva! Isso que você faz comigo é demais, mesmo para uma mãe!

Esses dois seres desconheciam reservas: por qualquer motivo frívolo suas emoções afloravam e se chocavam, e só depois é que vinham as explicações, tornando difícil a compreensão e freqüentes as brigas. Esse comportamento era antigo, e remontava aos tempos em que ambos conviviam sob um mesmo teto.

— Como se atreve a dizer que é demais? Quem é que o pôs no mundo, hein, Matahachi?

— Não adianta vir com essa conversa, obaba. Eu quero me casar com Otsu. Eu gosto dela, obaba! — gemeu Matahachi voltando o olhar para o céu, incapaz de encarar o rosto esverdeado da mãe apesar de toda a indignação.

Os ombros magros de Osugi tremiam, ossos parecendo bater em ossos.

— Essa é a sua vontade, Matahachi? — berrou Osugi.

Ato contínuo, retirou a espada curta do seu obi e encostou a ponta no próprio pescoço.

— Que... que é isso? Que pretende, obaba?

— Maldição! Tire suas mãos de mim! Em vez de tentar me deter, por que não diz que se encarrega de me dar o golpe de misericórdia?

— Que absurdo! Como pode um filho assistir indiferente à morte da própria mãe?

— Então, diga que desiste de Otsu e que refará sua vida a partir deste momento.

— Mas explique-me primeiro: para que a trouxe até aqui? Só para que eu a visse, e ficasse ainda mais infeliz, sou capaz de apostar! Eu não entendo você, obaba.

— Eu mesma podia tê-la matado, nada me teria sido mais fácil. Mas essa vadia traiu você: se a trago aqui é porque achei justo dar-lhe a oportunidade de fazer justiça com suas mãos. Isto é mais um ato de amor maternal, mas não o ouvi agradecendo.

 

— Você quer que eu a mate com as minhas mãos, obaba?

— Recusa?

A pergunta soou diabólica.

Matahachi perguntou-se onde sua própria mãe escondia essa faceta aterrorizante.

— Se se recusa, diga com franqueza. Isto requer providências imediatas.

— Mas... obaba!

— Ainda alimenta expectativas, não é? Irra, é intolerável. Um maricás como você não é meu filho, não sou mais sua mãe! Com certeza não tem coragem de cortar o pescoço dessa vadia, mas a minha cortará, sou capaz de apostar! Vamos, encarregue-se do golpe de misericórdia!

Não passavam de ameaças, mas Osugi tornou a firmar a espada contra o próprio pescoço, mostrando estar pronta a suicidar-se.

Os caprichos de um filho levam sofrimento a uma mãe, sem dúvida, mas a rabugice de certas mães também faz sofrer um filho.

Osugi era um exemplo vivo disso, com o agravante de ser imprevisível: seus modos decididos faziam suspeitar que talvez cumprisse a ameaça caso não lhe obedecessem. Ao menos assim pareceu aos olhos do filho.

Matahachi estremeceu, apavorado:

— Obaba! Não se precipite! Está bem, entendi: eu desisto.

— Só isso?

— E vou acertar as contas com minhas mãos, com estas mãos.

— Vai matá-la?

— Sim, vou matá-la.

A velha chorou de alegria e, pondo de lado a espada, tomou nas suas as mãos do filho:

— Muito bem, assim é que se fala! Agora sim, posso dizer que é um digno herdeiro do nome Hon’i-den, um bravo, dirão também nossos ancestrais.

— Será?

— Vá e mate-a. Ela está lá embaixo, esperando na frente do monte de lixo.

— Está bem. Já vou...

— Vou decapitá-la e mandar sua cabeça a Shippoji por correio expresso, com uma carta explicativa. Só com o falatório recuperaremos a meio a honra da casa Hon’i-den. Muito bem, depois dela será a vez de Musashi. Quando ele souber que acabamos com a sua Otsu, será obrigado a aparecer, queira ou não. Vá em frente, Matahachi, vá de uma vez!

— Você vai ficar aqui esperando, obaba?

— Não, eu vou com você mas me esconderei, porque se ela me vir, vai-se pôr a berrar que não foi esse o trato, que não foi isso o que lhe prometi, e será aborrecido.

— É apenas uma mulher; não deve ser difícil — murmurou Matahachi, erguendo-se cambaleante. — Obaba: para que vir junto? Fique me esperando aqui mesmo, eu lhe juro que trarei a cabeça da Otsu. Ela está sozinha, não vou deixá-la escapar!

— Mas não se descuide, meu filho. Embora pareça frágil, vai impor forte resistência quando vir o brilho da lâmina.

— Não faz mal! Vai ser moleza!

Instigando-se, Matahachi começou a se afastar. A velha Osugi o acompanhou, apreensiva:

— Não se descuide, ouviu bem?

— Quê? Você vai me seguir, obaba? Fique aí, já disse!

— Mas estamos longe do local!

— Não precisa vir atrás, já disse! — irritou-se Matahachi. — Se é para irmos os dois, vá você sozinha: eu a espero aqui.

— Por que se irrita desse jeito? Desconfio que você ainda não decidiu matar Otsu de verdade!

— Aquilo também é gente! Não posso matá-la com a mesma facilidade como quem mata um gato.

— Tem razão! Pode ser uma vagabunda, mas já foi sua noiva um dia. Está bem, eu o espero aqui. Pode ir sozinho, meu filho, e cumpra bravamente a sua missão.

Matahachi nem lhe respondeu. Braços cruzados sobre o peito, desceu a passos lentos o suave barranco.

 

Havia muito que Otsu aguardava em pé a volta de Osugi.

“E por que não fujo agora?”, chegou a se perguntar, entrevendo a oportunidade. Mas nesse caso, toda a provação dos últimos 20 dias teria sido inútil. “Um pouco mais de paciência!”

Pensando em Musashi, imaginando como estaria Joutaro, contemplava distraída as estrelas.

Trazer Musashi à lembrança acendia em seu coração milhares de estrelas.

“Um dia, um dia...”, pensava Otsu, sonhando de olhos abertos. Repetia no íntimo as palavras que ele lhe dissera no alto de uma montanha, na fronteira de duas províncias, a promessa que lhe fizera na ponte Hanadabashi.

Os anos podiam passar, mas Otsu tinha absoluta certeza de que Musashi jamais trairia aquelas promessas.

Apenas... quando se lembrava de Akemi, sentia um súbito mal-estar, e uma sombra toldava seus sonhos. Confrontada, porém, com a firme confiança que depositava em Musashi, a dúvida logo se desfazia, não chegava a abalá-la.

“Nunca mais pude conversar com ele desde que nos separamos na ponte Hanadabashi. Mesmo assim, sou feliz. Coitadinha de você, disse-me o monge Takuan. Mas por quê, se sou tão feliz?”

Otsu era capaz de, sozinha, entreter pensamentos felizes mesmo enquanto reformava um quimono da velha Osugi, passando por tormentos que a faziam sentir-se numa cama de pregos, ou enquanto aguardava em pé no escuro por um homem a quem não queria esperar. E eram esses momentos — que outros julgariam vazios — os mais gratificantes para Otsu.

— Otsu.

Não era a voz de obaba. Quem a estaria chamando no escuro? Otsu voltou a si dos seus devaneios e disse:

— Quem me chama?

— Eu.

— Eu, quem?

— Hon’i-den Matahachi.

— Como? — gritou Otsu, saltando para trás. — Matahachi-san?

— Já se esqueceu até da minha voz?

— É, realmente, essa é a voz dele... Encontrou-se com sua mãe?

— Deixei-a logo ali, esperando por mim. Você não mudou nada, Otsu, desde os tempos do templo Shippoji.

— Onde está você, Matahachi-san? Não consigo vê-lo no escuro.

— Posso me aproximar? Faz algum tempo que cheguei, mas não tive coragem de me aproximar porque agi mal, sinto vergonha do que fiz. Estive observando-a daqui, no escuro. Em que pensava momentos atrás?

— Em nada...

— Quer dizer que não pensava em mim? Porque eu me lembrava de você todos os dias.

Otsu viu surgir o vulto de Matahachi, que veio se aproximando pouco a pouco. A jovem sentiu-se insegura por não ter a velha Osugi ao seu lado.

— Obaba-sama não lhe disse nada?

— Disse sim, quando a encontrei logo aí em cima.

— Então já sabe tudo a meu respeito?

— Sei.

Otsu respirou aliviada, certa de que, conforme lhe prometera Osugi, Matahachi já estava a par de sua resolução. E nesse caso, ele ali viera sozinho para lhe dizer que concordava com tudo, acreditou a jovem.

— Se já conversou com obaba-sama, estou certa de que compreendeu meus sentimentos. Mesmo assim, aproveito para lhe pedir pessoalmente: por favor, considere que não fomos destinados um para o outro. A partir desta noite, esqueça por completo o nosso passado.

 

Que tipo de promessa teria feito sua mãe a Otsu? Uma tolice qualquer, destinada a engabelar a ingênua jovem, com toda certeza. Assim pensando, Matahachi não tentou esclarecer a natureza dos sentimentos a que a jovem se referia.

— Calma! Espere um pouco — disse, balançando a cabeça. — Não comece a falar do passado que me dói o coração. Foi tudo culpa minha. Nem sei como tive a coragem de lhe surgir na frente desse jeito. Como você mesma disse, acho que gostaria muitíssimo de poder esquecer tudo que se passou. É verdade! Achar eu acho, mas não consigo desistir de você.

Perplexa, Otsu disse:

— Entre nós, Matahachi-san, existe hoje um profundo abismo que impede nossos corações de se comunicarem.

— Isso mesmo. Mas sobre esse abismo, cinco anos se passaram.

— É verdade. E assim como os anos não voltam mais, nossos sentimentos passados também não podem ser revividos.

— Claro que podem, Otsu! Otsu!

— Não! Não podem!

Matahachi arregalou os olhos de espanto e a contemplou fixamente, como se só então se desse conta da frieza e da reserva de Otsu.

Onde em Otsu — a jovem que ao dar vazão às suas emoções lembrava uma flor rubra debaixo de um ardente sol de verão — se ocultaria essa faceta gelada como mármore, tão cortante que dava a impressão de ferir quem ousasse tocá-la?

A expressão fria trouxe de súbito à mente de Matahachi a varanda do templo Shippoji e a imagem da órfã silenciosa que dali contemplava o céu com olhos úmidos, o dia inteiro absorta em pensamentos. A frieza sem dúvida viera crescendo despercebida desde esses tempos, quando as nuvens eram mãe, pai e irmãos, todos desconhecidos.

Assim pensando, Matahachi aproximou-se de Otsu com o mesmo cuidado com que se achegaria de uma rosa branca cheia de espinhos:

— Vamos tentar mais uma vez! — sussurrou, rente ao rosto branco. — De que adianta tentarmos chamar de volta os meses e anos passados? Esqueça isso e vamos começar tudo de novo, a partir de hoje, Otsu!

—Até onde vai o seu equívoco, Matahachi-san? Eu não estou me referindo a anos ou meses, e sim a sentimentos.

— Mas é deles que eu estou falando: vou mudar a partir de hoje, você vai ver! Você pode achar que estou querendo me justificar, mas... Os jovens costumam cometer erros iguais aos meus, Otsu.

— Diga o que disser, meu coração não confia mais em você, recusa-se a ouvi-lo com seriedade.

— Estou arrependido! Me desculpe! Veja, Otsu, como eu, um homem, me humilho diante de você! Tenha pena de mim!

— Pare com isso, Matahachi-san! Se você é homem como diz, não deve se humilhar nessas situações! Aceite o que lhe digo com hombridade!

— Mas esta questão é vital para mim, vai influenciar o resto da minha vida. Se quer que me ajoelhe, eu me ajoelho! Se quer que jure, juro qualquer coisa!

— Nada disso me interessa!

— Vamos, não fique tão brava. Aqui não podemos conversar livremente, deixar nossos corações falarem! Vamos procurar um canto tranqüilo!

— Não quero!

— Vamos, vamos de uma vez antes que obaba apareça. Como é que eu posso matá-la? Não vou fazer isso de jeito nenhum!

Tomou a mão da jovem nas suas, mas Otsu desvencilhou-se:

— Solte-me! Você pode até me matar, mas eu me recuso a seguir o seu caminho!

 

— Você se recusa?

— Isso mesmo.

— Não vai comigo de jeito nenhum?

— De jeito nenhum!

— Isto quer dizer, Otsu, que você pensava em Musashi o tempo todo?

— Eu o amo. Ele é o único homem a quem amarei, nesta e em outras vidas.

— Ora!... — urrou Matahachi, estremecendo. — É isso, então!

— Sua mãe já está a par de tudo isso. E se esperei até hoje por uma oportunidade foi porque ela mesma me disse que lhe comunicaria pessoalmente a minha resolução e poria fim ao nosso compromisso anterior.

— Ah, agora entendi!! Foi Musashi quem a mandou falar comigo, com certeza!

— De modo algum! Eu não aceitaria ordens, nem de Musashi-sama nem de ninguém, para tomar decisões que vão afetar minha vida inteira.

— Pois agora, estou tão decidido quanto você. Não se esqueça que um homem pode ser muito, muito obstinado. Se é isso que pretende...

— Que vai fazer?

— Sou homem! E decidi que você nunca há de ser de Musashi. Não permito, ouviu bem? Não permito!

— Será que ouvi bem? Que história é essa de não permitir? E com quem você pensa estar falando?

— Com você mesmo! E com Musashi! Otsu: se eu não me engano, você não era a noiva de Musashi, era?

— Não era mesmo! Mas você não tem mais o direito de me falar desse jeito, tem?

— Claro que tenho! Você, Otsu, sempre foi a noiva prometida para a família Hon’i-den. Enquanto eu, o noivo Matahachi, não der permissão, não tem o direito de sé casar com mais ninguém. Muito menos com um sujeitinho como Musashi!

— Covarde! Você não sabe perder! Como é que tem o desplante de me falar desse jeito, a esta altura dos acontecimentos? Há muito tempo recebi uma carta assinada por você e uma certa Okoo, em que me comunicavam o rompimento do nosso noivado!

— Não sei de nada disso! Eu não me lembro de ter mandado nenhuma carta. Acho que Okoo a mandou por conta dela.

— Não senhor! Na carta você me dizia com todas as letras que considerasse o compromisso desfeito e que me casasse com outro!

— Mostre a carta, nesse caso!

— O monge Takuan, que leu a carta, riu, assoou o nariz com ela e a jogou fora.

— Não adianta afirmar sem provas, ninguém acreditará. Por outro lado, todos em nossa terra sabem que eu e você somos noivos. Posso produzir tantas testemunhas quantas quiser a meu favor, mas você não tem uma prova para reforçar sua história. Ouça-me Otsu: para que ir contra o mundo inteiro e se casar com Musashi? Nunca será feliz! Você talvez ainda desconfie que tenho algo com Okoo, mas eu lhe asseguro: há muito cortei relações com aquela mulher vulgar, nada mais tenho com ela.

— Pode falar o que quiser que não me interessa. Essa história não tem nada a ver comigo.

— Quer dizer que não vai me atender, mesmo depois de eu ter-me humilhado tanto?

— Você acaba de dizer: sou homem. Mas não parece! Você não tem um pingo de orgulho! E como poderia uma mulher se apaixonar por um homem sem brio? O que ela procura é hombridade.

— Como disse?

— Pare com isso! Você vai rasgar minha manga.

— Maldita!

— Que é isso? Que pretende?

— Já que você não quer mesmo me atender, vou lançar mão de um ultimo recurso.

— Como é?

— Se tem amor à vida, jure que não quer mais saber de Musashi. Jure! Matahachi soltou a manga do quimono para sacar a espada da cintura.

E no instante em que teve a arma na mão, ela pareceu possuí-lo, mudando-lhe por completo a personalidade.

 

Um homem empunhando uma espada pode não impressionar muito. Mas um homem possuído pela espada é aterrorizante.

Otsu deixou escapar um grito agudo, muito mais de medo da expressão de Matahachi do que da própria arma.

— Bruxa maldita! — gritou ele. A espada resvalou pelo obi da jovem. Açodado, temendo que Otsu lhe escapasse, gritou enquanto lhe corria atrás:

— Obaba! Obaba!

Osugi o ouviu à distância, e logo respondeu:

— Já vou!

Guiada pelo tropel dos passos, acorreu com a espada curta desembainhada e disse, procurando a esmo, esbaforida:

— Você a deixou escapar?

Matahachi lhe gritou, vindo em sua direção:

— Está indo para o seu lado. Segure-a, obaba! Os olhos da anciã se congestionaram:

— Onde? Onde? — repetia, obstruindo o caminho.

Otsu não apareceu, mas em vez dela surgiu Matahachi, quase trombando com ela.

— E então? Você a matou?

— Ela me escapou!

— Idiota!

— Olhe lá embaixo! Lá está ela!

Otsu, que tinha disparado barranco abaixo, lutava agora por livrar a manga do quimono enredada no galho de uma árvore.

Ela devia estar perto do poço da cascata, pois o rumor da água percorria a noite escura. A jovem enrolou no braço a manga rasgada e saiu correndo outra vez, sem sequer atentar onde pisava, quase caindo em sua pressa.

Os passos dos seus perseguidores lhe vinham logo atrás.

— Ela não terá como escapar!

Era a voz da velha, às costas dela, bem perto dos seus ouvidos. Otsu começou a achar que já não adiantava fugir. Além disso, o local onde se encontrava era o fundo de um barranco, quase um buraco, com paredões cercando-lhe a frente e os lados.

— Matahachi! Vamos, golpeie de uma vez! A vadia acaba de cair! Incentivado pelos gritos da mãe, Matahachi, nesse momento completamente possuído pela espada, saltou para a frente como uma pantera.

— Maldita! — gritou, baixando com ímpeto a espada contra o vulto de Otsu, que se havia embrenhado no meio de alguns arbustos e folhagens.

Galhos se partiram, um berro de agonia soou, e o sangue espirrou para todos os lados.

— Vadia! Vadia! — gritou Matahachi, olhos repuxados, ébrio de sangue, descarregando mais três ou quatro golpes violentos no mesmo lugar, cortando simultaneamente arbustos e mato.

Quando enfim se cansou de tanto golpear, Matahachi, estupidificado e ainda empunhando a espada gotejante, começou aos poucos a despertar da embriaguez do sangue.

Olhou a mão: sangue na mão. Passou a mão no rosto: sangue no rosto.

Morno, viscoso, o líquido espirrara por todo o corpo deixando manchas fosforescentes.

E cada uma dessas gotas era a vida de Otsu, desintegrada. Ao se dar conta disso, Matahachi sentiu uma leve tontura e empalideceu.

— Muito bem! Finalmente você a pegou, meu filho! — disse Osugi, rindo mansamente às costas de Matahachi, espichando o pescoço e contemplando os arbustos completamente estraçalhados. — Bem feito! Ela nem se mexe mais. Congratulações, meu filho. Ah, agora sim, posso dizer que descarreguei metade do peso que me ia na alma. Vou afinal poder encarar a gente da nossa terra. Matahachi? Ei, o que tem você? Vamos, corte a cabeça de Otsu de uma vez!

 

Osugi riu, achando graça na covardia do filho.

— Você é um poltrão, realmente! — reclamou ela. — Onde se viu perder o fôlego só porque matou um ser humano? Se você não tem coragem de decapitá-la, eu o farei! Saia da frente.

No momento em que, assim dizendo, Osugi tentou adiantar-se, Matahachi — que até então havia permanecido em pé, atordoado — moveu repentinamente a mão e bateu com força no ombro da mãe com o cabo da espada.

— Ai! Qu-que é isso? — gritou Osugi, quase caindo sentada no meio da confusão de galhos quebrados, mas conseguindo equilibrar-se a tempo. — Está louco, Matahachi? Como se atreve a fazer isso comigo?

— Mãe!

— Que foi?

Matahachi gemeu. O som estranho lhe subiu da garganta e morreu a caminho do nariz. Passou as costas da mão ensangüentada nos olhos e balbuciou:

— E eu... eu... matei Otsu! Matei Otsu!

— E eu por acaso já não o congratulei por isso?! Então, por que chora?

— Como posso deixar de chorar? Velha idiota, idiota, idiota!

— Não me diga que está triste!

— É claro! Não fosse por você, uma velha idiota que a morte esqueceu de levar, eu ainda haveria de reconquistar Otsu, custasse o que custasse! Maldição! Que me importam meu nome ou a opinião da gentinha de nossa aldeia! Mas agora é tarde!

— São águas passadas, não perca tempo lamentando-se. Se gostava tanto de Otsu, por que não me matou para salvá-la?

— Se eu tivesse essa coragem, não estaria aqui chorando e lamentando. Não há maior infelicidade no mundo do que a de ter uma mãe velha e cabeçuda.

— Pare já com isso. Bela figura faz você! E eu aqui, perdendo tempo em elogiá-lo!

— Dane-se! De hoje em diante, vou viver como bem quiser, fazer o que me der na telha e dissipar o resto de minha vida, você vai ver!

— Isso! Muito bem! Banque o menino mimado e atormente sua velha mãe! Aí está o maior defeito do seu caráter, com certeza!

— E vou atormentar mesmo! Velha caduca, megera diabólica!

— Isso mesmo! Fale o que quiser! Mas agora, saia da frente, saia. Primeiro, vou decapitar Otsu; depois, você vai me ouvir.

— E quem haveria de querer ouvir sermões de uma megera desalmada?

— Engana-se, meu filho. Far-lhe-á bem contemplar de frente a cabeça decepada de Otsu e meditar. Não há beleza que resista à morte: depois de morta, mesmo a mais linda das mulheres não passa de um monte de ossos. Shikisokuzeku: a matéria é nula, tudo é vão neste mundo! Você vai compreender o verdadeiro sentido dessa expressão!

— Não me atormente! Não me atormente! — gritou Matahachi desesperado, sacudindo a cabeça. —Ah! Pensando bem, minha única esperança era Otsu! Os poucos momentos em que buscava um caminho melhor, em que sentia explodir dentro de mim um impulso para a seriedade, eram momentos em que pensava em me casar com Otsu! Nessas horas, eu não pensava em preservar o nome, muito menos em agradar você, velha idiota! Otsu, Otsu era minha única esperança!

—Até quando vai ficar aí chorando? Em vez de ocupar a boca com lamúrias inúteis, use-a para rezar pela alma da Otsu. Namu-amidabutsu.

A velha Osugi já havia passado por Matahachi e remexia nos arbustos e folhas secas salpicados de sangue.

Por baixo de tudo, um vulto escuro jazia de braços.

Osugi cortou e afastou galhos e folhas e, abrindo espaço para si, sentou-se educadamente perto do cadáver.

— Não me odeie, Otsu. Quando nos encontrarmos no outro mundo, também eu já não terei raiva de você. Tudo isto nos havia sido proposto pelo destino. Descanse em paz.

Tateou no escuro e agarrou algo que lhe pareceu serem cabelos.

— Otsu-san! — chamou alguém nesse exato momento de cima do barranco, no topo da cascata Otowa.

Voz das estrelas ou das árvores, percorreu a noite escura com o vento e ressoou no fundo do poço.

 

A COVA

Que capricho do destino teria trazido Shuho Takuan até ali?

Não haveria de ser coincidência. Sua presença, sempre tão natural em qualquer ambiente, parece forçada esta noite. O leitor precisa saber, antes de mais nada, os motivos que o trouxeram até ali, mas infelizmente parece não haver tempo para lhe perguntar.

No momento, o sempre fleumático Takuan aparentava, coisa rara, extrema perturbação.

— Eeei, estalajadeiro, encontrou-a?

Um criado da hospedaria, que procurava pouco adiante, acorreu ao chamado.

— Não a vi em lugar algum! — disse, enxugando o suor da testa, cansado de procurar.

— Não acha estranho?

— Sem dúvida.

— Você não está enganado?

— Não, senhor. Tenho certeza de que, hoje de tarde, logo depois que o mensageiro do templo Kiyomizudera se foi, ela apareceu de repente para pedir emprestada uma lanterna da hospedaria, dizendo que tinha de ir ao Jishu Gongen.

— Pois é isso que me soa estranho: que pretendia ela fazer em Jishu Gongen a esta hora da noite?

— Deu a entender que havia alguém esperando por ela nesse local.

— Então, devia estar ainda nestes arredores.

— Mas não tem ninguém...

— E agora? — disse Takuan, cruzando os braços, pensativo.

O ajudante da hospedaria levou as mãos à cabeça e murmurou consigo mesmo:

— O guardião da luz votiva, no santuário Koyasudou, disse que viu a matriarca, em companhia de uma jovem portando uma lanterna, subindo a montanha, não foi? E ninguém as viu descer depois disso pela ladeira Sannenzaka.

— É isso que me preocupa. Talvez tenham se embrenhado mais para dentro da montanha, ou ido para algum lugar longe da estrada.

— E para quê?

— Parece-me que Otsu-san, engabelada pela obaba, está rumando a passos firmes para a porta de entrada do outro mundo. Irra, sinto que estou perdendo tempo, parado deste jeito.

— Mas aquela velhinha é tão malvada assim?

— Pelo contrário, ela é boa gente.

— Agora, depois do que o senhor me contou, percebo que havia mesmo alguma coisa estranha nessa velhinha.

— Que tipo de coisa?

— Hoje, por exemplo, essa tal Otsu-san estava chorando.

— Ah, isso não deveria causar estranheza: essa menina vive chorando! Tanto assim que eu a chamo de “chorona”. Mas se foi obrigada a conviver com a matriarca desde o primeiro dia do ano até hoje, deve ter sido bastante alfinetada e teve razão de sobra para chorar. Coitadinha!

— Como a velha vivia referindo-se a ela como “a mulher do meu filho”, achávamos que era coisa de sogra e nora, e que não podíamos nos meter, mas na verdade a matriarca a odiava por um motivo qualquer e estava acabando aos poucos com ela, não é?

— A velha deve ter-se fartado de judiar da pequena. Mas o fato de tê-la trazido para essa área no meio da noite indica que resolveu realizar aquilo com que sempre sonhou: matá-la. Mulheres são bichos aterrorizantes, não acha?

— Essa matriarca não entra na categoria feminina. As mulheres vão reclamar.

— Não é bem assim. A mim me parece que todas elas possuem uma ponta dessa faceta aterrorizante. A matriarca apenas a tem mais acentuada.

— O senhor, como todo bonzo, parece também não gostar de mulheres, embora tenha afirmado há pouco que a velha era gente boa.

— Ela é boa, não duvide. Pois não é verdade que ela visita o templo Kiyomizudera todos os dias? Então! Nos momentos em que reza para a deusa Kannon com o rosário nas mãos, ela está muito próxima à deusa.

— E ela vivia recitando sutras.

— Acredito. Fiéis iguais a ela, existem muitos. Saem por aí praticando vilanias, mas assim que chegam em casa recitam sutras. Esses tipos estão sempre de olho nos atos do demônio, mas rezam a Amitabha mal põem os pés num templo. Matam gente mas acreditam piamente que basta rezar a Amitabha logo depois para apagar todos os vestígios do crime e renascer no paraíso. Gente como ela é um problema, sem dúvida.

Ainda falando, Takuan pôs-se a procurar no escuro, gritando na direção do poço da cascata:

— Eeei, Otsu-san!

 

— Que foi isso, obaba? — exclamou Matahachi sobressaltado, alertando a mãe.

Osugi também tinha ouvido. Apertou os olhos transformando-os em duas finas lâminas e voltou-os para o alto:

— Quem estaria gritando? — murmurou.

Ainda assim, continuou a segurar com firmeza os cabelos do cadáver e a espada curta, pronta para decepar a cabeça.

— Parece-me que chamam por Otsu. Escute! Estão chamando de novo!

— Que coisa mais estranha! A única pessoa que poderia vir até aqui procurando por ela seria o fedelho Joutaro.

— Mas é voz de adulto.

— Já ouvi essa voz em algum lugar...

— Ih, maldição! Desista dessa história de cortar a cabeça, não dá mais tempo! Alguém vem descendo nesta direção com uma lanterna.

— Quê? Tem gente vindo para cá?

— São dois! Vamos embora, obaba! Obaba! — apressou Matahachi, preocupado com a pachorra da mãe. A aproximação do perigo fez com que mãe e filho, até há pouco engalfinhados, se unissem outra vez num átimo.

— Irra! Espere um pouco! — replicou a velha, ainda atraída pelo cadáver. — Como posso ir-me embora sem levar a prova do grande feito, agora que o realizamos? Sem esta cabeça, como provar à gente de nossa terra que matei Otsu? Espere um pouco, eu...

— Uh... — fez Matahachi, cobrindo os olhos com a mão.

Pois Osugi, quebrando alguns galhos enquanto se aproximava do cadáver, tinha chegado a lâmina ao seu pescoço. Matahachi não teve coragem de continuar olhando.

Foi então que, de súbito, a velha Osugi deixou escapar algumas palavras sem nexo e, soltando os cabelos do cadáver, recuou alguns passos cambaleando, para logo cair sentada: o susto devia ter sido muito grande.

— Não pode ser! Não pode ser! — balbuciava ela, abanando a mão, tentando erguer-se e não conseguindo.

Matahachi também aproximou o rosto:

— Quê? N... não pode ser o quê? — gaguejou.

— Olhe para isto!

— Huh?

— Não é Otsu! Isto aqui é um mendigo ou alguém muito doente. E homem, ainda por cima!

— Ei! É um rouninl — exclamou Matahachi, ainda mais espantado que a mãe, observando com cuidado o rosto do morto e sua aparência geral. — Que estranho! Eu conheci este homem!

— Quê? Você o conheceu?

— Ele se chamava Akakabe Yasoma! Ele me enganou certa vez e me tomou todo o meu dinheiro. Como é que este malandro, mais esperto que o diabo, foi acabar caído no meio do mato?

É claro que a resposta a esta pergunta jamais ocorreria a Matahachi, por mais tratos que desse à imaginação. Para explicar, ali teria de estar Aoki Tanzaemon, certo monge komuso habitando um santuário em Komatsudani, nessas proximidades, ou ainda Akemi, salva pelo komuso no momento em que quase se transformava em presa de Yasoma. Além deles, Matahachi podia contar apenas com o céu para fornecer-lhe as explicações. Mas o céu era grande demais, inspirava excessivo respeito para ser chamado a explicar sobre este indivíduo que merecera acabar os dias caído no meio do mato, como um mísero inseto.

— Quem está aí? É você, Otsu-san? — disse o monge Takuan nesse instante, chegando de chofre junto com um jorro de luz, às costas dos dois.

— Ih! — exclamou Matahachi. Para fugir, o jovem era muito mais rápido que Osugi, que precisava ainda erguer-se para começar a correr.

Takuan alcançou-a.

— Ah! Então é você, obaba! — disse, agarrando-a pela gola.

 

— E quem vai fugindo lá na frente deve ser Matahachi! Aonde pensa que vai, poltrão, abandonando a mãe à mercê da própria sorte? Pare aí, estou mandando! — gritou Takuan no escuro, ainda segurando a velha pela nuca e imobilizando-a contra o solo.

Debatendo-se desesperada debaixo do joelho de Takuan, mas ainda assim sem perder a pose, Osugi gritou:

— Quem é o cretino que me segura?

Ao perceber que Matahachi não ia retornar, o monge aliviou de leve a pressão e respondeu:

— Ainda não sabe, obaba? É, acho que você também começa a caducar.

— Ora, ora... Se não é o monge Takuan!

— Surpresa?

— Qual! — gritou Osugi, balançando ferozmente a cabeça de brilhantes cabelos brancos. — Você é Takuan, monge mendigo que vive a esmo por mundos perdidos! Quer dizer que acabou batendo com o costado na cidade de Kyoto?

— Isso mesmo! — assentiu Takuan com um súbito sorriso. — Como você acaba de dizer, andei perambulando nos últimos tempos pelo Vale Yagyu e pela província de Senshu[66], mas acabei chegando a Kyoto ontem à noite. E ao passar pela mansão de certa pessoa, ouvi uma notícia que me intrigou deveras. Isto é sério, demanda imediatas providências, pensei eu. Foi assim que me vi procurando por você desde o entardecer.

— E para quê?

— Para poder também encontrar Otsu.

— Ah,é?

— Obaba!

— Quê?

— Onde está Otsu?

— Sei lá!

— Não é possível que não saiba.

— Como vê, não ando por aí com a moça amarrada na ponta de uma corda.

O criado da hospedaria, que continuava em pé atrás dos dois com a lanterna na mão, interveio:

— Ei, senhor monge! Tem sangue fresco espalhado por todos os lados! O rosto de Takuan, inclinado para ver melhor à luz da lamparina, crispou-se.

Aproveitando a consternação do monge, Osugi ergueu-se de repente e fugiu.

Takuan voltou-se e lhe gritou:

— Pare aí, obaba! Você partiu de sua terra dizendo que ia limpar o nome Hon’i-den, e vai-se embora depois de enlameá-lo ainda mais? Partiu porque amava o filho e vai voltar depois de desgraçá-lo ainda mais?

A retumbante voz do monge não parecia ter-lhe saído da boca, mas provir do céu, e envolveu todo o corpo de Osugi.

A idosa mulher estacou subitamente. Seu rosto enrugado contorceu-se, cheio de animosidade:

— Quê? Ouvi mal ou acaba de dizer que desonrei ainda mais o nome Hon’i-den e que faço a desgraça de meu filho?

— Foi isso mesmo que eu disse!

— Tolo! — sorriu Osugi com desdém. Mas o golpe havia atingido o alvo, pois a idosa mulher respondeu com ardor:

— E desde quando um sujeito como você, que se sustenta de arroz esmolado, que dorme de favor em templos e defeca no mato, seria capaz de compreender assuntos como honra e amor maternal, as verdadeiras angústias deste mundo? Se quer falar sobre isso, trate de trabalhar como um homem comum e comer o arroz comprado com o suor do seu rosto.

— Essa doeu! Mais ainda porque existem alguns bonzos a quem eu próprio gostaria de dizer o que acaba de me lançar no rosto, obaba. Em matéria de agressividade, sua língua sempre superou a minha, desde a época do templo Shippoji. E vejo agora que ela continua bem ativa, não é mesmo, obaba?

— Ora, se anda! E se pensa que a atividade é só da língua, está muito enganado: tenho ainda disposição suficiente para levar a cabo uma última missão nesta vida.

— Está bem, deixe isso para lá. Águas passadas não movem moinho. Vamos esquecer o passado e conversar um pouco.

— Sobre o quê?

— Obaba: você fez Matahachi matar Otsu neste lugar, não fez? Vocês dois a mataram?

No mesmo instante a anciã espichou o pescoço e riu, como se tivesse estado à espera da pergunta:

— Ó, bonzo: de que lhe adianta andar carregando uma lamparina se não possui olhos para ver? Desse jeito, o mundo continuará escuro como breu. Para que servem esses olhos? Para enfeitar?

 

Pelo visto, Takuan não era capaz de revidar à altura os insultos da velha Osugi.

A imbecilidade sempre leva vantagem sobre a sabedoria. Essa superioridade evidencia-se sobretudo quando o ignorante ignora por completo o conhecimento do sábio. Não há como ministrar conhecimentos a um tolo que se orgulha da própria tolice.

Takuan examinou cuidadosamente os arredores com os olhos tachados de enfeites pela velha mulher e descobriu que, com efeito, o cadáver não era de Otsu.

Mal viu a expressão de alívio aflorar ao rosto do monge, a velha Osugi tornou:

— Aliviado, monge? Só pode estar, já que você foi o casamenteiro, o idealizador da união de Otsu com Musashi.

Suas palavras não escondiam o antigo rancor.

Takuan, como sempre imperturbável, replicou:

— Continue pensando desse modo, se quer. Mas você é religiosa, sei disso, não vai abandonar o cadáver aí para ir-se embora, vai?

— O estranho já estava caído aí, à espera da morte. Quem o matou foi Matahachi, mas ele não tem culpa: o homem já estava por morrer, de um modo ou outro.

O empregado da hospedaria interveio:

— Por falar nisso, acho que esse rounin não regulava bem: lembro-me de tê-lo visto babando e perambulando pela cidade nos últimos tempos. Tinha um ferimento grande no topo do crânio, parecia ter levado uma pancada violenta.

A velha Osugi já se ia, procurando o caminho no escuro, como se o assunto não lhe interessasse. Takuan pediu ao criado que se encarregasse de remover o cadáver e seguiu Osugi.

Incomodada, Osugi voltou-se e estava prestes a lhe dirigir mais algumas observações venenosas quando viu um vulto surgir de trás das árvores e chamá-la:

— Obaba! Obaba!

A velha atendeu, feliz: era Matahachi.

Filho querido, não a havia renegado! Em vez de fugir, ficara observando os acontecimentos, preocupado com a velha mãe. Osugi quase sufocava de tanta alegria.

Voltados para Takuan, os dois vultos trocaram algumas palavras sussurradas e, com aparente medo do monge, dispararam ladeira abaixo, suas pernas movendo-se cada vez mais rápido quanto mais se aproximavam da base da montanha.

— É inútil. Do jeito como se comportam, esses dois não estão prontos para aceitar o que eu tenho a lhes dizer. Quanto sofrimento não pouparíamos às pessoas se pudéssemos eliminar todos os mal-entendidos do mundo! — murmurou Takuan observando os dois vultos em fuga. Não tentou porém segui-los, pois antes de mais nada queria encontrar Otsu.

Mas então, o que teria acontecido a Otsu?

Estava claro que a jovem de algum modo lograra escapar da fúria assassina da dupla. Takuan regozijava-se com essa certeza havia algum tempo.

No entanto, a visão do sangue o deixara apreensivo: não sossegaria enquanto não visse Otsu na sua frente, sã e salva. Iria procurá-la até o dia raiar, decidiu-se.

Enquanto pensava nisso, viu o ajudante da hospedaria — que tinha acabado de subir a montanha — descendo em sua direção, trazendo consigo sete ou oito vigias de santuários.

Pelo jeito, Akakabe Yasoma, rounin sem destino, morto acidentalmente no meio do nada, ia ser enterrado ali mesmo, no fundo do precipício. Brandindo sem perda de tempo as enxadas e pás que tinham consigo, os homens começaram a cavar no escuro fazendo ressoar sinistras pancadas no meio da noite.

E no momento em que a cova já parecia funda o bastante, um dos homens gritou:

— Ei! Tem mais um corpo caído aqui! Desta vez, é uma moça bonita! O local de onde gritava o homem distava cerca de dez metros da cova.

Um ramo da correnteza proveniente da cascata desviava até ali e se transformava num brejo, coberto de folhas e galhos.

— Não está morta.

— É mesmo!

— Só desmaiou!

As luzes das lanternas e a algazarra dos homens haviam chamado a atenção de Takuan, que já retornava correndo quando ouviu o chamado do ajudante da hospedaria.

 

O MERCADOR

Poucas casas aproveitariam melhor o potencial da água nas atividades diárias, pensou Musashi, dando-se conta do agradável murmúrio do riacho ao redor da casa.

A casa em referência era a de Hon’ami Koetsu, situada numa esquina a sudeste da parte alta de Kyoto, área onde antigamente existira o templo Jis-so-in[67], bem perto da campina do templo Rendaiji, de memorável lembrança para Musashi.

E a denominação “rua Hon’ami” dada pelos habitantes locais originava-se do fato de nela existirem não só a casa simples de Koetsu, como também a dos seus sobrinhos, de diversos profissionais do ramo e de membros do clã, todos eles vivendo harmoniosamente em casas vizinhas que davam a frente ou os fundos para a rua, perpetuados num sistema familiar típico da classe mercantil, muito parecido com o das grandes e poderosas famílias guerreiras da antigüidade.

Para Musashi, revelava-se um mundo até então desconhecido:

“É assim que vivem, então!...”

A vida dos pequenos mercadores lhe era familiar por ser semelhante à dele próprio, mas nunca até então havia tido contato com a classe mercantil abastada de Kyoto, gente conhecida e poderosa.

Os Hon’ami haviam sido originariamente bushi e vassalos da histórica casa Ashikaga e ainda hoje recebiam 200 koku anuais de estipêndio do conselheiro imperial dainagon Maeda, gozavam dos favores da casa imperial e de seus familiares, além de merecerem especial atenção de Tokugawa Ieyasu. Assim, Koetsu, amolador e polidor de espadas por ofício, era um profissional na acepção da palavra, mas por causa de sua origem tornava-se difícil defini-lo simplesmente como samurai ou mercador. Uma vez que ele era um profissional, contudo, era mais certo enquadrá-lo na classe mercantil. E por falar em mercadores, a denominação tinha-se tornado pejorativa nesses tempos, disso porém só podendo ser culpada a própria classe, que se havia permitido degradar. Assim como a palavra lavrador designara uma das classes trabalhadoras mais nobres da antigüidade — até chamada de “tesouro do imperador” —, e decaíra com o passar dos anos a ponto de se transformar em insulto, a designação “mercador” não indicara, originariamente, uma classe de malnascidos.

Como prova, ali estavam grandes nomes da classe mercantil como Sumi-no-kura Soan, Chaya Shirojiro, Haiya Shoyu, cujas origens, retraçadas, remetiam a antigas casas guerreiras. Melhor explicando, esses plutocratas de Kyoto haviam sido, em gerações passadas, vassalos dos xoguns Ashikaga, funcionários do seu governo designados a administrar setores comerciais. Aos poucos, porém, as funções que esses homens desempenhavam dentro do governo bakufu ganharam vida própria, conquistaram autonomia financeira, afastaram-se das asas do governo e transformaram-se em empreendimentos privados. Com o passar do tempo, interesses de ordem comercial e social fizeram com que esses antigos bushi considerassem dispensáveis os privilégios inerentes à classe samuraica e, de geração em geração, se transformassem nessa classe especial de poderosos mercadores.

Eis porque esses plutocratas eram sempre poupados — mesmo quando disputas pelo poder envolviam grandes casas guerreiras — e vinham-se mantendo incólumes geração após geração, apenas encarando a cobrança de empréstimos compulsórios como um inevitável “imposto” destinado a salvá-los do fogo das guerras.

O quarteirão onde certa vez existira o templo Jisso-in ficava ao lado do templo Mizuochidera e era cercado por dois riachos: o Arisugawa e o Kami-kogawa. Por ocasião da revolta de Ounin[68] a área inteira tinha sido devastada pelo fogo e, mesmo agora, pedaços enferrujados de espadas e copas de elmos surgiam quando a terra era revolvida para a remoção de árvores. A casa dos Hon’ami fora erguida anos depois da revolta de Ounin, naturalmente, mas era uma das mais antigas da área.

As águas claras do rio Arisugawa atravessavam as terras do templo Mizuochidera, passavam murmurando pela casa de Koetsu e juntavam-se mais adiante com o rio Kamikogawa. A corrente percorre inicialmente uma pequena horta de quase mil metros quadrados e esconde-se momentaneamente num pequeno bosque para logo mais surgir num poço à entrada da casa de Koetsu com o ímpeto de uma fonte que brota de 300 metros de profundidade, parte dela seguindo em direção à cozinha, ajudando no preparo dos alimentos, parte seguindo para a casa de banho e levando o suor dos corpos, parte ainda gotejando na sóbria casa de chá, fingindo-se de nascente cristalina a brotar de rochas. E quando finalmente se introduz apressada na “Casa de Polimento” — a oficina de trabalho assim respeitosamente designada pela família, a cuja entrada pende em caráter permanente um festão de palha trançada, símbolo xintoísta de purificação — a corrente ajuda a polir espadas e lâminas famosas saídas das mãos de renomados forjadores como Masamune, Muramasa e Okifune, confiadas a Koetsu por poderosos daimyo. Quatro ou cinco dias já se tinham passado desde que Musashi havia despido suas roupas de viagem e se alojado num aposento da casa Hon’ami.

 

Depois de se haver fortuitamente encontrado Myoshu e Koetsu dias atrás na campina, e de com eles ter participado de uma cerimônia de chá no meio da campina, Musashi tinha querido reencontrá-los para aprofundar os laços de amizade.

E a sorte lhe sorrira, pois passados apenas alguns dias do primeiro encontro, a oportunidade surgiu.

O reencontro deu-se da seguinte forma:

Entre o Kamikogawa e o Shimokogawa, mais para o lado oriental, situa-se um templo denominado Rakan-ji. Na área vizinha ao templo existira antigamente a mansão dos Akamatsu — os ancestrais de Musashi. Com a queda do xogunato Ashikaga as residências de daimyo antigos como os Akamatsu tinham desaparecido sem deixar vestígios. No entanto, Musashi sentiu vontade de procurar a área e, certo dia, viu-se perambulando pelas proximidades.

Em criança, Musashi ouvira muitas vezes da boca do pai:

— Sou agora um decadente goshi interiorano, é verdade, mas meu ancestral Hirata Shougen era membro da poderosa casa Akamatsu, de Banshu. Em suas veias, meu filho, corre o sangue de extraordinários guerreiros feudais. Lembre-se sempre disso e dê-se um pouco mais de valor.

O templo Rakan-ji, no Shimokogawa, vizinho à mansão dos Akamatsu, era também o templo do clã. Em seus arquivos talvez encontrasse um registro do ancestral Hirata Shougen, pensou Musashi. Ouvira também dizer que o pai, Munisai, em uma de suas idas a Kyoto, passara pelo templo e mandara celebrar uma missa em memória dos ancestrais. E mesmo que não conseguisse saber dos detalhes de um passado tão distante, achou que faria sentido permanecer alguns momentos em local tão significativo, a lembrar personagens há muito desaparecidos, mas a ele ligados pelo sangue. E assim Musashi procurara nesse dia o templo Rakan-ji persistentemente.

Sobre o Shimokogawa encontrou uma ponte de nome Rakan-bashi, mas nada soube do templo do mesmo nome.

— Será que esta área mudou tanto?

Recostado à balaustrada da ponte, meditava sobre as violentas alterações por que haviam passado grandes centros urbanos no curto espaço de tempo que mediara duas gerações, a dele e a do pai.

As águas limpas e rasas do riacho turvavam-se vez ou outra de branco sob a ponte, como se alguém dissolvesse argila nelas, mas logo voltavam à transparência original.

Musashi observou com cuidado e verificou que no meio de alguns arbustos próximos à ponte, na margem esquerda do rio, um filete de água turva era vez ou outra expelido na correnteza, de cada vez formando círculos brancos concêntricos que cresciam e se espalhavam ondulando pelo riacho.

“Ah!... Deve existir um amolador de espadas nas proximidades”, concluíra Musashi, nem em sonhos imaginando, porém, que se tornaria hóspede de sua casa, ou que nela permaneceria cinco dias.

Só havia percebido também que se encontrava perto da rua Hon’ami quando ouviu Myoshu — aparentemente voltando para casa das compras — dizendo às suas costas:

— Ora, mas é o senhor Musashi! Veio nos visitar? Que bom! Por sorte, Koetsu está agora em casa! Venha, venha, não faça cerimônia!

Feliz pelo encontro e certa de que Musashi ali estava especialmente para vê-los, Myoshu guiou-o para dentro do portão da vila onde moravam e mandou um serviçal chamar Koetsu.

Mãe e filho eram realmente pessoas bondosas, achou Musashi, tanto na ocasião em que os encontrara no meio da campina, quanto agora, que os revia em sua casa.

— Fique conversando por algum tempo com minha mãe porque estou neste instante afiando uma preciosa arma. Logo que terminar, porém, virei fazer-lhe companhia — disse Koetsu.

Assim, Musashi se entreteve com Myoshu. Mas a noite avançou rápida demais e os anfitriões instaram com o jovem para que ali dormisse. No dia seguinte, foi a vez de Musashi pedir informações a Koetsu sobre a técnica de afiar e polir lâminas. O anfitrião conduziu-o à oficina de trabalho e lhe deu explicações práticas. Uma coisa levava a outra e, sem que o jovem se desse conta, acabou pernoitando cinco noites na casa.

 

Para tudo havia um limite, sobretudo para abusar da hospitalidade alheia. Assim pensando, Musashi tinha resolvido ir-se embora nesse dia, mas muito antes de trazer o assunto à baila, Koetsu tomou-lhe a frente e disse, logo cedo:

— Sei que é descabido tentar retê-lo quando não estou desempenhando direito o meu papel de anfitrião, mas se não se sente entediado, seja nosso hóspede pelo tempo que quiser. Em meu escritório encontrará obras da literatura clássica e alguns trabalhos artísticos: eles estão ao seu dispor e podem ser examinados quando quiser. Dentro de alguns dias vou acender o forno existente no canto do meu jardim e lhe mostrar como se queima cerâmica. Forjar espadas é uma técnica sem dúvida fascinante, mas a cerâmica não deixa de ter seus encantos. Experimente também moldar algum objeto e queimá-lo.

Assim instado, Musashi acabou deixando-se ficar, ajustando-se com prazer ao tranqüilo cotidiano do seu anfitrião.

— Como bem vê, quase nunca tem gente nesta casa: quando se sentir entediado, ou quando se lembrar de alguma coisa para fazer, saia ou volte sem se constranger, não se sinta na obrigação de nos avisar — acrescentara Koetsu, tentando deixá-lo ainda mais à vontade.

Musashi estava longe de se entediar. Na biblioteca, por exemplo, havia obras chinesas e japonesas, pinturas em rolo do período Kamakura, antigos modelos caligráficos importados da China, bastando-lhe abrir um único desses exemplares para que o dia se fosse, despercebido.

Dentre os objetos de arte, um em especial lhe chamara a atenção: a pintura “Castanhas”, do famoso pintor chinês Ryokai[69], que pendia no lugar de honra da sala.

A obra media 60 centímetros de comprimento por pouco mais de 70 centímetros de largura e era tão antiga que se tornava difícil saber o tipo de papel em que fora pintado. Por estranho que parecesse, Musashi era capaz de permanecer quase meio dia contemplando o desenho sem se cansar.

— Acho que um amador jamais conseguiria fazer desenhos iguais aos seus, mas observando este, tenho a impressão de que até eu conseguiria fazer algo parecido — comentou Musashi em certa oportunidade.

Ao ouvir isso, Koetsu respondeu:

—Ao contrário! Qualquer um pode chegar ao meu nível, mas para alcançar o deste mestre, o caminho é íngreme, não basta estudar ou treinar para chegar a essa fronteira.

— Realmente? — disse Musashi, impressionado com a explicação, desde então contemplando atentamente o desenho cada vez que se lhe apresentava uma oportunidade. E tinha razão Koetsu: a pintura era, à primeira vista, um simples esboço em tinta sumi preta, mas aos poucos Musashi foi-se dando conta de sua “complexa simplicidade”, isto é, da complexidade oculta na aparente simplicidade.

O quadro mostrava em rústicas pinceladas duas castanhas caídas, uma com a casca partida, a outra ainda hermeticamente fechada, com os espinhos eriçados. E sobre elas, havia-se lançado um esquilo.

A vida de um esquilo é por natureza livre: esse pequeno animal é a clara representação da juventude e da ambição a ela inerente. Mas se o esquilo tenta comer a castanha que cobiça, arrisca-se a ferir o nariz no espinho da casca; por outro lado, se teme os espinhos jamais conseguirá comer as castanhas retidas no interior da espessa casca.

A intenção do pintor talvez não fosse o de retratar este tipo de dilema, mas Musashi contemplava o quadro atribuindo-lhe também esse sentido. Talvez incorresse em erro ao tentar ver numa pintura proposições que iam além da própria imagem, e devanear, pensou ele. Inevitável, no entanto, já que dentro de sua “complexa simplicidade”, o quadro, além da beleza própria do sumiê e das sensações que transmitia, proporcionava também delicados momentos de meditação transcendental.

— Outra vez perdido na contemplação do quadro de Ryokai, mestre Musashi? Parece-me que o aprecia de verdade! Se quiser, enrole-o e leve-o quando partir. Eu o darei com muito gosto — disse Koetsu nesse instante, sentando-se ao lado de Musashi e observando-o. Dava a impressão de que tinha uma proposta a fazer.

 

Surpreso, Musashi replicou:

— Como? Vai me dar a pintura? Não brinque! Além de lhe dever por todos estes dias de hospedagem, como posso ir-me embora levando esta preciosidade comigo?

— Mas gostou dela, não gostou? — disse Koetsu, sorrindo da sua honesta perturbação. — É isso o que importa: tire-a da parede e leve-a. Pinturas têm de ser sempre possuídas por pessoas que as amem de verdade e lhes compreendam o sentido. Só assim elas encontram a felicidade, assim como os seus autores, no outro mundo. Leve-o.

— Quanto mais me explica, menos sinto estar à altura desta pintura. Quando a contemplo, sinto crescer em mim uma espécie de ganância, a vontade de possuir uma obra-prima como esta, é verdade. No entanto, de que me adiantaria possuí-la se sou um simples guerreiro andarilho, sem residência fixa nem posição social?

— Tem razão. Pensando bem, um presente deste tipo acaba por se transformar em estorvo para quem, como o senhor, vive em constantes viagens. Fico também imaginando como deve ser triste não possuir um canto próprio, por mais humilde que seja. Que acha de construir uma casa rústica em Kyoto?

— Nunca senti falta de uma casa até hoje. Considero muito mais atraente a possibilidade de conhecer os confins de Kyushu, a civilização de Nagasaki, a cidade de Edo que começa a se expandir a leste do país — e que, assim me dizem, será a nova sede xogunal —, bem como os vastos rios e montanhas que cortam a área de Michinoku. Por esses lugares distantes anseia meu coração. Talvez eu seja um nômade nato.

— Somos todos iguais. É natural um jovem sentir-se mais atraído por espaços abertos do que por uma apertada sala de chá. Ao mesmo tempo, um jovem tem o péssimo hábito de achar que não pode realizar seus sonhos no lugar onde está, e de sempre buscá-los por caminhos distantes. Grande parte dos preciosos dias da juventude se perde nessa insatisfação.

Riu, repentinamente constrangido, e acrescentou:

— Não está certo um bon vivant como eu pregar sermões a gente jovem... Mas não foi para isso que o vim procurar: eu hoje quero convidá-lo para uma noitada. Já esteve na zona alegre, mestre Musashi?

— Zona alegre? Refere-se à área das meretrizes?

— Isso mesmo. Tenho um bom amigo de nome Haiya Shoyu. Acabo de receber um bilhete dele combinando uma visita à zona alegre da rua Rokujo esta noite. Que tal?

Musashi disse sem hesitar:

— Não, obrigado. Koestu apenas observou:

— Está bem: se não quer, não insistirei. Mas ainda acho que uma visita a esses lugares, vez por outra, tem seu lado benéfico.

Myoshu, que se havia aproximado despercebida e ouvia com interesse o diálogo, interrompeu-os nesse instante:

— Mestre Musashi, esta é uma oportunidade ímpar, vá com eles. O senhor Haiya é um bom homem, e acho que meu filho quer muito levá-lo para conhecer essa zona. Acompanhe-os, vamos!

A atitude da mãe era muito mais impositiva que a do filho. Myoshu dirigiu-se a uma cômoda próxima e dela retirou quimonos. Apresentou-os a Musashi e ao filho e mandou que se apressassem.

 

A reação de qualquer mãe à notícia de que o filho pretende visitar a zona alegre é sempre de desgosto, esteja ela em presença de estranhos ou não.

— Que vida dissoluta! — gemeria ela.

Outra, mais severa, diria: “Está fora de cogitação!”, e provocaria no mínimo uma acalorada discussão. Os Hon’ami, porém, fugiam ao padrão.

Myoshu, parada na frente da cômoda, perguntava com animação, como se ela própria estivesse se preparando para um piquenique:

— Gosta deste óbi? Qual destes quimonos prefere?

Não só separava as roupas como também os acessórios, tais como carteira, caixa de remédios, espada curta, dando sempre preferência aos mais vistosos. A carteira mereceu especial atenção da senhora, que nela introduziu discretamente uma quantia considerável — a julgar pelo peso e pelo tilintar das moedas de ouro — para que os dois homens pudessem divertir-se sem constrangimentos.

— Pronto, vão, meus filhos. Dizem os entendidos que a zona alegre é linda na boca da noite, quando as luzes começam a se acender, e que a única coisa mais empolgante do que essa vista é o trajeto até lá, no crepúsculo. Vá conferir, mestre Musashi.

Sem que o jovem se tivesse dado conta, Myoshu havia disposto à sua frente um conjunto completo de quimono de algodão, desde as roupas de baixo até o sobretudo, nada muito luxuoso, é verdade, mas limpo.

Musashi começou aos poucos a vencer a repulsa que a idéia de visitar a zona do meretrício lhe tinha inspirado e a achar que freqüentá-la não levava necessariamente à perdição, conforme se dizia, já que essa mãe tanto insistia que fosse. Portanto mudou de idéia e disse:

— Nesse caso, vou seguir seu conselho e irei com seu filho.

— Isso! Assim é que se fala! Vamos, troque as roupas.

— Agradeço, mas recuso. Roupas vistosas não me caem bem. Deixe-me ir com estas, aliás as únicas que tenho, e com as quais me deito ao relento e vou a todos os lugares. Nelas me sinto à vontade.

— Pois com isso não concordo — disse Myoshu, mostrando-se de súbito severa num ponto aparentemente pouco relevante. — O senhor talvez se sinta à vontade desse jeito, mas parecerá um trapo no meio de uma sala luxuosa. Esqueça todas as misérias e as sujeiras do mundo e deixe-se envolver, nem que seja por uma hora ou por metade de uma noite num ambiente de beleza ilusória, abandone lá todas as suas preocupações. É para isso que servem esses lugares. Raciocine desse modo e perceberá que seu jeito de se vestir e agir comporão esse lindo cenário, e que é um erro considerar tais detalhes matéria que só a você concerne. Mas fique tranqüilo — disse Myoshu, rindo alegremente —, estas roupas nada têm de luxuosas, são apenas limpas: mesmo que as vista, nunca chegará a ser um dândi como Date Masamune ou Nagoya Sanza. Vamos, deixe de me dar trabalho e passe os braços pelas mangas.

— Sim, senhora. — disse Musashi compreendendo a situação e trocando-se obedientemente.

— Ora, caiu-lhe muito bem! — exclamou Myoshu, satisfeita com o resultado, feliz com a elegância dos dois homens.

Koetsu entrou por instantes na saleta do oratório e acendeu a luz votiva. Mãe e filho eram fiéis fervorosos da seita Nichirenshu.

Logo, Koetsu saiu do aposento e aproximou-se de Musashi.

— Vamos, eu o levarei — disse ele.

Lado a lado encaminharam-se para a entrada da casa. Myoshu já os havia precedido e disposto dois pares de sandálias com tiras novas sobre o degrau de pedra externo e trocava nesse momento algumas palavras com o empregado da casa, que se preparava para cerrar o portal.

Koetsu fez uma reverência às sandálias e as calçou.

— Vou indo, senhora minha mãe — disse ele em seguida, despedindo-se. Myoshu voltou-se então e lhe disse apressadamente:

— Espere um pouco, meu filho.

Deteve os dois homens com um gesto e, pondo apenas a cabeça para fora de um postigo, examinou a rua com cuidado.

 

— Que foi? — perguntou Koetsu, estranhando. Myoshu cerrou de manso o postigo e retornou para perto dos dois:

— Koetsu. Acabo de saber que há pouco três samurais aproximaram-se deste portal e abordaram o nosso empregado rudemente... O que você acha disso?

No céu restava ainda um pouco de claridade, mas a idosa senhora franzia o cenho, preocupada com o filho e o hóspede que se preparavam para enfrentar a noite fora dos muros e da segurança da casa.

Koetsu olhou para Musashi em silêncio.

No mesmo instante o jovem pareceu adivinhar quem eram esses samurais, pois respondeu:

— Não se preocupe, senhora. Pode ser que essas pessoas tentem algo contra mim, mas creio que elas não têm ressentimentos contra seu filho.

— Por falar nisso, alguém me disse que aconteceu algo semelhante anteontem. Daquela vez, parece que um samurai entrou sozinho pelo portão, sem se anunciar, abaixou-se por trás de uns arbustos na aléia que dá para a casa de chá e observou com olhar penetrante a saleta em que se hospeda mestre Musashi e, depois de algum tempo, retirou-se.

— Devem ser discípulos da academia Yoshioka — disse Musashi.

— Também acho — concordou Koetsu. Voltou-se para o serviçal e perguntou:

— Que disseram os três de hoje? Trêmulo, o homem respondeu:

— Senhor, há pouco, depois que os artesãos foram embora, aproximei-me do portal para fechá-lo e esses três samurais, que até então deviam ter estado escondidos em algum lugar, surgiram de súbito e me cercaram. Um deles retirou então das dobras do quimono uma carta ou algo parecido e me disse, com uma carranca terrível: “Entrega isto ao hóspede da casa.”

— Sei... Disse apenas hóspede ou mencionou o nome Musashi-sama?

— Mencionou, logo depois. Disse que certa pessoa de nome Miyamoto Musashi devia estar se hospedando nesta casa há alguns dias.

— E então, que lhe respondeste?

— Como o senhor, patrão, já me havia anteriormente instruído, neguei até o fim que tivéssemos tal hóspede em nossa casa. Furioso, o homem da carta começou a gritar: “Não mintas!”, quando um samurai mais idoso mandou-o acalmar-se. Este último sorriu em seguida de modo irônico e observou que estava em ordem, nesse caso daria um jeito de encontrar-se diretamente com esse hóspede e de lhe entregar a carta. Afastaram-se depois em direção à outra rua.

Musashi, atento à conversa, interveio:

— Não gostaria de vê-lo envolvido em meus problemas e ferido por causa disso, senhor Koetsu. Faça-me portanto o seguinte favor: siga sozinho alguns passos à minha frente.

— Ora, o que é isso! — retrucou Koetsu, rindo. —Agradeço a consideração, mas não vejo necessidade de tanta precaução. Nada receio, principalmente porque sei agora que se trata do grupo Yoshioka. Vamos!

Saiu pelo portão apressando Musashi, mas reintroduziu subitamente a cabeça pelo postigo e chamou:

— Senhora minha mãe!

— Que foi? Esqueceu alguma coisa?

— Não. Mas caso a senhora esteja apreensiva por causa dos últimos acontecimentos, posso muito bem mandar um mensageiro à casa do senhor Haiya desfazendo o compromisso da noitada. Quer?

— De modo algum! Muito mais que a sua segurança, preocupou-me a do senhor Musashi. E uma vez que ele próprio já foi para a rua e está à sua espera, não faz mais sentido detê-los. Além disso, será pouco delicado desfazer o compromisso com Haiya-sama. Não se preocupe e vá se divertir.

Koetsu deu então as costas para o postigo que a mãe acabava de fechar e, ombro a ombro com Musashi, começou a caminhar pela rua que tinha casas de um lado e o rio do outro.

— A mansão do senhor Haiya fica na rua Ichijo, bem no nosso caminho. Combinei de passar por lá, pois mandou-me dizer que estará pronto, à nossa espera — explicou Koetsu.

 

Restava ainda um pouco de claridade no céu e a caminhada à beira do rio tinha efeito relaxante. A sensação de prazer acentuava-se pela consciência de serem os únicos despreocupados no meio da gente apressada rumando às respectivas casas.

— Parece-me que já ouvi mencionarem o nome do senhor Haiya Shoyu em diversas ocasiões. Quem é ele? — perguntou Musashi.

Acertando o passo ao andar descontraído de Musashi, Koetsu respondeu:

— Com certeza já ouviu. Fez fama como compositor de versos encadeados[70] e é discípulo do poeta Shoha.

— Ah, ele é um poeta!

— Mas não ganha a vida fazendo poesia, e nisso difere de mestres como Shoha e Teitoku. Nossas famílias pertencem ao mesmo meio, são antigas casas mercantis de Kyoto.

— E quanto a esse curioso sobrenome Haiya?

— Define sua profissão.

— Como assim?

— Eles são distribuidores de cinzas.

— Cinzas?

— Para tingir tecido, especialmente de azul-marinho. É um negócio vultoso porque eles abastecem as tinturarias de diversas províncias.

—Ah, compreendi agora: cinzas são a matéria prima da lixivia, usada em tinturarias.

— Esse comércio movimenta montanhas de dinheiro. Tanto assim que, no início do período Muromachi, esse tipo de atividade comercial era exercido sob a supervisão direta do palácio imperial por um magistrado. A partir de meados do período Muromachi a atividade passou à iniciativa privada, e apenas três casas em Kyoto, ao que me parece, tinham autorização para trabalhar com o material. E uma delas era de um ancestral de Haiya Shoyu. Na geração atual, porém, a família abandonou a atividade e o senhor Shoyu goza tranqüilamente sua velhice numa bela casa deste bairro — explicou Koetsu. Apontou a seguir um ponto à distância e disse:

— Está vendo, lá na frente, a mansão com o portal elegante? É a casa do senhor Shoyu.

Musashi assentiu em silêncio, apalpando a manga esquerda do quimono.

— Que será isso? — pensava, atento ainda às explicações de Koetsu.

A manga direita agitava-se levemente ao vento, mas a esquerda, um pouco pesada, pendia imóvel. Havia algo em seu interior.

Os lenços de papel estavam nas dobras internas do quimono na altura do peito, não possuía cigarreira. Não se lembrava de mais nada que pudesse levar na manga. Introduziu a mão furtivamente e retirou o objeto. Era uma tira amarela de couro, enrolada e com as pontas amarradas em laço para facilitar o desatar numa emergência.

Musashi abafou uma exclamação. A tira fora sem dúvida posta ali pela idosa Myoshu. O jovem quase a ouvia dizendo: “Use isto para conter as mangas”.

Apertando com firmeza o pequeno rolo na mão, Musashi voltou-se e, sem o querer, exibiu às pessoas que lhe vinham atrás o sorriso de gratidão que lhe subira de repente aos lábios.

O jovem já havia percebido a presença dos três sisudos samurais que o vinham seguindo a uma distância constante desde o momento em que deixara a rua Hon’ami.

Ao darem com o sorridente rosto voltado para eles, os três homens estacaram no mesmo instante, entreolharam-se e trocaram algumas palavras sussurradas. Logo, apressaram o passo e se aproximaram, agora alertas.

A essa altura, Koetsu, que já tinha tocado o sino da mansão Haiya e se anunciado, entrava atrás do serviçal que surgira com uma vassoura na mão para atendê-lo. Ao se dar conta, contudo, de que Musashi não o acompanhara, Koetsu tornou a sair para a rua, dizendo descontraído:

— Entre, entre, mestre Musashi. Não faça cerimônia, esta é uma casa amiga.

 

E foi então que Koetsu descobriu, do lado de fora do portal, os três samurais empertigados que, com os cabos das respectivas espadas emergindo agressivamente à altura dos peito, cercavam o solitário Musashi e lhe transmitiam alguma coisa com arrogância.

— Devem ser os homens que o procuravam — deduziu Koetsu de imediato.

Musashi disse alguma coisa aos três samurais em tom tranqüilo e depois voltou-se para Koetsu:

— Entre, por favor. Logo estarei com o senhor.

O olhar calmo de Koetsu pareceu ler dentro dos olhos de Musashi. O homem aprumou então a cabeça e disse:

— Compreendi. Espero-o lá dentro. Venha, assim que terminar. Mal o viu desaparecer, um dos samurais disse:

— Não adianta continuarmos a discutir se anda ou não se escondendo de nós. Não foi para isso que viemos. Como acabo de dizer, sou Otaguro Hyosuke, um dos “Dez Mais” da academia Yoshioka.

Afastou bruscamente as mangas, introduziu a mão no quimono à altura do peito e retirou um envelope que exibiu com rispidez a Musashi.

— Entrego-lhe em mãos a carta de mestre Denshichiro, o segundo filho dos Yoshioka. Leia-a agora mesmo, e dê-me a resposta em seguida.

— Bem... — disse Musashi descontraído, abrindo a carta e passando os olhos por ela. Logo, respondeu lacônico:

— De acordo.

No olhar de Otaguro, porém, havia ainda um brilho de desconfiança.

— Tem certeza? — insistiu, examinando com cuidado a expressão de Musashi.

Este apenas assentiu, repetindo:

— De pleno acordo.

Os três homens pareceram finalmente convencer-se.

— Se você quebrar a promessa, espalharei a notícia aos quatro ventos e você será motivo de riso em todo o país.

Em silêncio, Musashi deixou o olhar passear pelos três empertigados homens. Sorriu apenas, mas nada disse.

Essa atitude tornou a levantar as suspeitas de Otaguro, que voltou a insistir:

— Note bem, Musashi: o horário estabelecido não tarda a chegar. Guardou o local? Está preparado para o duelo?

As feições de Musashi não traíram aborrecimento, mas a resposta foi seca.

— Estou — disse. — Até mais ver — acrescentou, e já ia entrando na mansão Haiya quando Otaguro tornou a correr-lhe no encalço, gritando:

— Musashi! Você permanecerá nesta casa até o momento do duelo?

— Pode ser. Meus amigos programaram uma noitada na zona alegre da rua Rokujo. Estarei num desses dois locais.

— Rokujo? Quer dizer que estará lá ou nesta casa... Certo! Se você se atrasar, mandarei alguém vir buscá-lo! E não me venha com uma atitude covarde!

As últimas palavras já soaram às costas de Musashi, que entrando no jardim, fechou o portão. Um passo para dentro dos muros levou-o para um outro mundo, a quilômetros de distância do burburinho da cidade. Uma parede invisível parecia defender o universo tranqüilo dos moradores.

Pequenos arbustos e bambuzais tão finos quanto o cabo de um pincel sombreavam na medida certa o caminho de pedras, que parecia ali ter brotado naturalmente. Conforme prosseguia, passo a passo iam surgindo a fachada da construção principal, os prédios anexos, o pavilhão, cada volume exibindo a sóbria patina das antigas mansões. Em torno do conjunto, pinheiros haviam crescido e ultrapassado o telhado da casa, parecendo proclamar pompa e circunstância. Mesmo assim, não pareciam altaneiros aos olhos dos que deles se aproximavam.

 

Chutavam bola[71] em algum canto da casa. O som, usualmente ouvido fora dos muros das casas nobres, era surpreendente em casa de mercador, pensou Musashi.

— O patrão está se aprontando e logo virá ter com os senhores. Aguardem aqui um instante, por favor — disse uma criada instalando-os num aposento que dava para o jardim interno, oferecendo-lhes chá e confeitos. A discreta movimentação das duas serviçais denotava a disciplina e a educação dessa tradicional família.

— O sol se foi e está esfriando muito depressa — queixou-se Koetsu, pensando em pedir a uma das criadas que fechasse o shoji. Ao perceber porém que Musashi, atento ao som da bola, contemplava pessegueiros em flor a um canto rebaixado do jardim, desviou também o olhar para o lado externo e comentou:

—Veja, o topo da montanha Eizan está ficando encoberto. As nuvens que se formam sobre esse pico provêm do norte. Não sente o frio?

— Nem um pouco — respondeu Musashi com franqueza, sem sequer imaginar que Koetsu queria a divisória fechada.

Sua pele, curtida pelas intempéries, tinha a resistência do couro e não era tão sensível quanto a de Koetsu, macia e delicada. A diferença entre os dois homens não se restringia apenas ao modo como suas peles sentiam o tempo, ela existia em quase todos os aspectos. Em poucas palavras, era a diferença entre um camponês e um homem da cidade.

Aproveitando o aparecimento da criada com o candelabro, e também o fato de que a noite caía rapidamente do lado de fora, Koetsu tentava fechar a divisória quando dois ou três adolescentes de quase quinze anos — provavelmente os que haviam estado chutando bola há pouco — espiaram pelo canto da varanda.

— Não sabia que o senhor estava aí, tio! — disse um deles, largando a bola na varanda. Ao dar com Musashi, conteve-se subitamente. —Vou apressar o vovô, quer?

E ignorando os protestos de Koetsu, os três rapazes dispararam para dentro da casa disputando a dianteira.

Com a divisória cerrada e a luz acesa, os visitantes perceberam mais intensamente o agradável ambiente da casa. As risadas distantes dos familiares aumentava ainda mais a sensação de aconchego.

O que mais impressionou Musashi favoravelmente, na qualidade de visitante, foi a ausência total de objetos que lembrassem ostentação ou riqueza. Tudo ao redor era simples, como se o proprietário tivesse querido apagar conscientemente os sinais de riqueza. O jovem teve a impressão de estar na sala de visitas de uma espaçosa casa rural.

— Mil perdões pelo atraso — disse de súbito uma voz franca nesse momento, e Haiya Shoyu, o proprietário da casa, entrou na sala.

Contrastando com o roliço Koetsu de fala mansa, o homem era esguio como um grou e de voz muito mais jovial e retumbante, embora parecesse quase dez anos mais velho. Quando Koetsu lhe apresentou Musashi, comentou bem-humorado:

— Muito bem! Quer dizer que é o sobrinho do senhor Matsuo, o administrador da casa Konoe! Conheço muito bem o senhor Matsuo.

Ao ouvir de novo o nome do tio em conexão com o da casa nobre Konoe, Musashi teve uma vaga idéia da intimidade que reinava entre os grandes mercadores e a alta nobreza.

— Partamos sem perda de tempo. Eu pretendia sair mais cedo e seguir a pé pelas ruas apreciando o entardecer, mas já que a noite caiu, vamos de liteira. Acompanha-nos, não é verdade, mestre Musashi?

Ali estava mais um ponto contrastante: Shoyu mostrava uma agitação surpreendente para alguém de sua idade, enquanto Koetsu, acomodado no aconchegante aposento, parecia até ter-se esquecido da noitada programada.

Pouco depois, Musashi prosseguia pela beira do rio Horikawa, sacudido no interior de uma liteira — transporte em que andava pela primeira vez —, atrás das outras duas que levavam seus amigos.

 

A NEVASCA

— Brrr... Que frio!

— O vento está castigando.

— Meu nariz está congelando.

— Vai cair neve ou chuva esta noite, com certeza!

— Nem parece que já estamos na primavera.

Os comentários gritados partiam dos liteireiros que, nesse momento, despontavam perto do hipódromo Yanagi expelindo baforadas brancas.

As três lanternas das liteiras balançavam e bruxuleavam incessantemente. As nuvens que durante o entai decer tinham encoberto o topo do monte Hieizan haviam-se espalhado negras e ameaçadoras sobre a cidade. O céu noturno pressagiava algo terrível a partir do meio da noite.

Em compensação, o negrume realçava a feérica beleza das luzes terrestres agrupadas pouco além do prado. Realçados pela ausência de estrelas, os pontos luminosos lembravam frágeis pirilampos soprados pelo vento.

— Mestre Musashi — chamou Koetsu, voltando-se da liteira do meio. — Lá está o bairro Yanagicho. Ultimamente, com o surgimento de casas comerciais nessa área, está sendo também chamada de Misuji-machi.

— Ah, sei, a área iluminada!

— Não acha interessante ver surgirem de repente luzes em local tão distante da cidade, muito além de campos escuros e de espaços amplos como este prado?

— Foi uma surpresa para mim, realmente.

— A zona alegre situava-se antigamente na rua Nijo, próxima ao palácio imperial mas, ao que parece, a cantoria dos freqüentadores e os instrumentos musicais tocados pelas mulheres noite adentro eram vagamente audíveis na beira do fosso que cerca o imenso jardim imperial. Por esse motivo, o oficial superintendente[72] Itakura Katsushige mandou transferi-la para cá. Desde então mal se passaram três anos, mas já se transformou numa cidade, e tende a se expandir cada vez mais.

— Isto significa que, há três anos, esta área era deserta?

— Isso mesmo. A noite, a escuridão por aqui era total, trazendo à memória o período Sengoku e os incêndios provocados pelas intermináveis guerras. Hoje, no entanto, pode-se dizer que esse bairro dita a moda e, em termos um tanto exagerados, que é o berço de uma cultura — explicou Koetsu. Apurou por instantes os ouvidos para tornar a dizer:

— Está ouvindo a música?

— Estou, realmente!

— Essas melodias, por exemplo, são adaptações que empregam um novo instrumento, o shamisen, recentemente importado de Ryukyu[73]. E baseadas no shamisen, sugiram as canções em voga nos últimos tempos, de onde por sua vez derivam o ryutatsu-bushi[74], ou o kamigata-uta[75]. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que o bairro é o berço de todos esses tipos de manifestações culturais. Canções aqui compostas chegam posteriormente às cidades e são popularizadas: veja a profunda relação cármica que existe, do ponto de vista cultural, entre esses bairros e as cidades. Por conseguinte, não se pode admitir que, por ser zona segregada e de meretrício, o bairro se torne decadente.

Nesse instante, a liteira de Koetsu dobrou subitamente uma esquina, interrompendo o diálogo.

A zona do meretrício, no tempo em que existira na rua Nijo, era chamada Yanagi-machi, ou Bairro dos Chorões, e a da rua Rokujo herdara o nome. Desde quando chorões e zona alegre passaram a ser correlacionados, eis uma questão que precisa ainda ser esclarecida. Em meio a essas árvores plantadas na beira das calçadas, as luzes do bairro aproximaram-se vivamente dos olhos de Musashi.

 

Ao que parecia, Koetsu e Shoyu eram assíduos freqüentadores da casa de Hayashiya Yojibei: mal as liteiras estacionaram sob um chorão à entrada do estabelecimento, empregados acorreram pressurosos e quase os pegaram no colo:

— É Funabashi-sama!

— Em companhia de Mizuochi-sama!

No bairro onde os freqüentadores evitavam ter as identidades reveladas, Funabashi era o pseudônimo de Haiya Shoyu, porque morava na área Funabashi Horikawa, sendo Mizuochi o de Koetsu, por causa do templo do mesmo nome, próximo à sua casa.

Musashi, o rounin errante sem residência fixa, era o único sem pseudônimo no grupo.

O assunto parece estar restrito agora à pesquisa de nomes, mas devo ainda acrescentar que Hayashiya Yojibei era o nome do proprietário do estabelecimento conhecido como Ougi-ya.

E o nome Ougi-ya traz de pronto à lembrança o da primeira Yoshino-dayu[76] — famosa cortesã do bairro Yanagi-machi, gueixa de primorosa beleza — assim como o de outro bordel, o Kikyo-ya, faz lembrar o da famosa gueixa Murogimi-dayu.

Os estabelecimentos de primeira classe na zona eram apenas esses dois, e o aposento em que Koetsu, Shoyu e Musashi se acomodaram pertencia ao Ougi-ya.

“Isto mais se parece com um suntuoso palácio!”, pensou Musashi, tentando não parecer curioso, mas sem conseguir manter-se indiferente ao teto decorado, ao corrimão da pequena ponte com seus entalhes, ao jardim. Encantado com a pintura no painel de cedro de uma porta, Musashi acabou perdendo de vista seus companheiros e vagava pelo corredor quando percebeu Koetsu mais à frente, acenando:

— Estamos aqui, venha!

Duas grandes portas de correr decoradas e revestidas de folhas de prata emitiam um brilho líquido à luz das lamparinas, e davam para um jardim. Sonho de um algum desconhecido paisagista que tentara talvez reproduzir a árida paisagem de Sekiheki[77], o jardim tinha pedras dispostas em estilo Enshu[78]e areia branca como neve espalhada entre elas.

—A temperatura está caindo! — disse Shoyu, costas curvadas e já sentado numa almofada, parecendo pequeno e solitário no amplo aposento.

Koetsu sentou-se em seguida e convidou:

— Vamos, sente-se aqui, mestre Musashi — apontando a única almofada vazia que restara no meio da sala.

— Ora, que é isso... — replicou Musashi, recusando o local indicado e sentando-se rigidamente num canto. O lugar indicado pelos dois era o de honra do aposento, diante do seu nicho central. A idéia de se sentar ali como um importante suserano, face a face com a suntuosa construção visível além da porta, o constrangia, desgostava-o até. Mas seus dois companheiros tomaram a recusa por timidez.

— Esta noite o senhor é o convidado de honra — insistiu Koetsu.

— O senhor Koetsu e eu vivemos por aqui matando o tempo, dois velhos amigos que nunca se cansam desta casa e a quem a casa, como vê, sempre prestigiou. Ao senhor, no entanto, não conhecem. Vamos, sente-se no lugar de honra — disse Shoyu, tentando também convencê-lo.

Musashi declinou o convite:

— Não creio que o arranjo seja correto. Sou o mais novo do grupo. A isso, Shoyu respondeu:

— Que falta de tato! Idade é tabu neste ambiente! Sacudiu as costas encurvadas e gargalhou.

Serviçais já estavam à entrada, trazendo chá e confeitos, e esperavam pacientes que os convidados se acomodassem nos respectivos lugares.

— Nesse caso, eu ocuparei o lugar de honra — disse Koetsu, socorrendo Musashi.

Com ligeiro alívio, Musashi sentou-se no local que Koetsu acabava de desocupar, sem no entanto conseguir livrar-se da incômoda sensação de estar perdendo precioso tempo com futilidades.

 

No aposento contíguo, duas pequenas kamuro[79], aprendizes de cortesã, brincavam ao redor de um braseiro:

— Que é isso?

— Um pássaro.

— E isto?

— Um coelho.

— E agora?

— Um homem de sombreiro.

De costas para os visitantes, as duas entretinham-se entrelaçando os dedos e projetando sombras sobre a divisória próxima.

O braseiro era naturalmente do tipo usado em cerimônias do chá e o vapor que se elevava da chaleira de ferro sobre ele servia para aquecer o ambiente. Absortas na brincadeira, as meninas não haviam notado que no aposento contíguo já havia clientes: o calor de seus corpos e o aroma do saque logo amenizou o frio.

O fator que mais contribuía para aquecer o ambiente do aposento era sem dúvida alguma o saque, circulando agora generosamente pelas artérias dos convidados.

— Corro o risco de perder a autoridade se aqui estivessem meus filhos, mas afirmo: não existe nada melhor que o saque neste mundo. Dizem que o saque é um veneno, o caminho da perdição, mas isso não deve estar certo! O saque em si é benéfico; o mal está em quem o toma. Pois os homens têm o hábito de procurar o mal em outros lugares, mas o mal está neles mesmos. E quem sai falado é o saque, que chega a ser chamado de “bebida que enlouquece” — discorria Shoyu, o mais magro de todos eles e de voz mais possante.

Musashi tomara apenas duas taças e passara a recusar as demais, o que havia levado o idoso homem a discorrer uma vez mais sobre sua tese favorita, a do saque como uma bebida inofensiva, ao que parecia muitas vezes apresentada como o grande vilão.

A prova de que a ladainha nunca se inovava ficava aparente na atitude das três cortesãs que os atendiam, e na das mulheres encarregadas do serviço.

“Lá vem Funabashi-sama outra vez com sua interminável arenga”, diziam as expressões entre divertidas e ligeiramente aborrecidas de todas elas, as bocas levemente franzidas reprimindo sorrisos.

Mas Funabashi-sama, ou seja, Shoyu, não se dava conta disso e continuava:

— Se o saque fosse o vilão que afirmam ser, não haveriam de apreciá-lo os deuses. Mas eles sempre o apreciaram, muito mais que os demônios. Nos tempos em que os deuses reinavam sobre a terra, dizem que o saque era posto a fermentar depois que o arroz era mascado pelos dentes alvos como pérolas de puras donzelas. Esse detalhe serve para mostrar como a bebida era pura.

— Ora, que coisa nojenta — riu alguém.

— Nojenta por quê?

— Como haveria de ser limpo um saque feito de arroz mascado por alguém?

— Não diga asneiras. É claro que se o arroz fosse mastigado por gente como vocês, seria mais que nojento, ninguém haveria de querer tomá-lo. Mas não: o arroz era mascado por donzelas puras, na flor da idade, e saía de suas bocas como o mel das abelhas, sendo em seguida juntado em potes para fermentar. Ah!, como gostaria de beber um pouco desse saque — disse o já embriagado Funabashi-sama, repentinamente enlaçando o pescoço de uma das pequenas kamuro, pressionando a face magra contra os seus lábios.

— Ui! Solte-me! — gritou a menina, levantando-se.

A isso, Funabashi-sama voltou-se com um meio sorriso para o seu lado direito e disse, rindo:

— Não olhe feio para mim, minha mulherzinha preferida...

Tomou a mão de Sumigiku-dayu, depositou-a sobre a própria coxa e sobre ela pousou a sua. Suas brincadeiras começaram aos poucos a ficar mais ousadas: juntou o rosto ao da cortesã para beber da mesma taça, agarrou-se com ela, esquecido dos demais.

Koetsu sorria para a própria taça e se divertia tranqüilamente, pilheriando ora com as mulheres, ora com Shoyu. Apenas Musashi mantinha-se isolado nesse ambiente. Não tinha a intenção de se mostrar propositadamente severo, mas as mulheres pareciam intimidadas e não se aproximavam.

 

Koetsu nunca forçava, mas Shoyu lembrava-se vez ou outra de insistir:

— Vamos, mestre Musashi, beba!

Passado algum tempo, a taça com o saque frio, intocado, na frente de Musashi começou a incomodá-lo:

— Que é isso, mestre Musashi? Vamos, jogue fora esse saque frio e aceite outro quentinho.

À medida que o incidente se repetia, seus modos tomavam-se cada vez mais agressivos.

— Kobosatsu-dayu! — ordenou a uma das cortesãs. — Faça esse jovem beber! Bebe ou não, meu filho?

— Estou bebendo! — respondeu Musashi.

Exceto nessas ocasiões em que era chamado a responder, o jovem não tinha oportunidade de falar.

— Mas nunca vejo sua taça vazia! Você não é nenhum maricas, é?

— Apenas não sou um bom copo.

— Estou começando a achar que você não é bom espadachim! — provocou-o Shoyu.

Musashi apenas riu e disse:

— Talvez...

— O saque constitui um obstáculo para o adestramento; o saque perturba a acuidade mental; o saque debilita a vontade; o saque ameaça o sucesso. Se é isso que pensa, nunca chegará a ser grande coisa como guerreiro, ouviu?

— Não penso nada disso, mas tenho um pequeno problema.

— Que tipo de problema?

— Fico sonolento quando bebo.

— Se ficar com sono, durma — aqui ou em qualquer lugar! Esta é uma casa onde esse tipo de preocupação é perfeitamente dispensável — replicou Shoyu. — Tayu! — acrescentou, voltando-se para a cortesã Sumigiku —, este jovem está dizendo que tem medo de beber e ficar com sono. Mesmo assim, vou forçá-lo a beber. Faça-me você portanto o favor de pô-lo a dormir, caso ele se queixe de sono.

— Certamente.

As cortesãs todas sorriram, apertando as pequenas bocas brilhantes.

— Vocês se encarregam de acomodá-lo nas cobertas?

— Com certeza!

— E agora, qual de vocês cuidará dele depois disso? Diga-me, senhor Koetsu, qual delas lhe parece mais adequada para a função?

— Não faço idéia.

— Sumigiku é a minha mulher. Se eu indicar Kobosatsu-dayu, sei que o senhor Koetsu não se sentirá feliz...

— Mas Yoshino-dayu logo virá fazer-nos companhia, Funabashi-sama — disse uma das mulheres.

— É isso! — concordou Shoyu entusiasmado, dando uma leve palmada no joelho. — Yoshino-dayu! Dela, tenho certeza que o nosso convidado não terá queixas. Mas onde anda essa mulher que não deu ainda o ar de sua graça? Quero apresentá-la a este meu jovem protegido o mais rápido possível!

A isso respondeu a cortesã Sumigiku:

— Bem diferente de nós, ela é muito requisitada. Não adianta exigir sua presença imediata.

— Qual o quê! Basta dizer-lhe que eu estou aqui, e ela abandonará no mesmo instante qualquer cliente para me atender. Uma mensageira! Quero uma mensageira! — esbravejou Shoyu, espichando-se em direção às pequenas aprendizes que brincavam ao redor do braseiro. — Rin-ya, você está aí?

— Estou!

— Venha cá um instante, Rin-ya. Você é a atendente de Yoshino-dayu, não é? E então, traga-a aqui! Diga-lhe que Funabashi-sama a espera ansiosamente. Se conseguir o grande feito, dou-lhe um prêmio, quer?

 

A referida kamuro, Rin-ya, era uma aprendiz de apenas dez ou onze anos de idade e notável beleza, apontada como provável sucessora de Yoshino-dayu.

— Você me entendeu bem?

Rin-ya ouviu as recomendações de Shoyu com expressão ambígua, mas aquiesceu prontamente:

— Sim, senhor.

Pestanejou os olhos grandes e saiu para o corredor. Cerrou a porta corrediça atrás de si e, no mesmo instante, bateu palmas e gritou vivamente:

— Venham ver, meninas, venham ver!

As aprendizes que haviam restado no aposento foram todas para o corredor. Em pé, lado a lado, tendo às costas os shoji iluminados, passaram todas ao mesmo tempo a bater palmas entusiasmadas:

— Olhe!

— Olhe, olhe!

— Que lindo!

Os passos e os gritos de alegria chamaram a atenção dos adultos que bebiam no interior do aposento. Curioso, quase invejoso, Shoyu ordenou:

— Que algazarra estão fazendo! Vamos, abram a porta, quero saber o que se passa.

As mulheres ergueram-se então e correram os shoji para os lados.

— Está nevando! — murmuraram, todas admiradas.

— Não é à toa que faz tanto frio! — murmurou Koetsu, levando uma taça de saque quente à boca, expelindo baforadas brancas.

Musashi também voltou-se com uma exclamação surpresa.

Além do alpendre, a neve, atípica, caía ruidosa em grandes flocos. E no meio do negrume riscado de branco, quatro pequenas kamuro quedavam-se lado a lado, os laços dos obi voltados em direção ao aposento.

— Saiam da frente! — repreendeu uma cortesã. Mas as meninas, esquecidas dos clientes, contemplavam encantadas, como se a neve fosse um amante que lhes tivesse surgido inesperadamente:

— Que bom!

— Será que acumula?

— Tomara!

— Como vai estar a paisagem amanhã?

— O monte Higashiyama vai estar branquinho...

— E o templo Toji?

— A torre do templo Toji também.

— E o templo Kinkaku-ji?

— O Kinkaku-ji também.

— E os corvos?

— Os corvos também.

— Mentirosa!

Ao brusco movimento de um braço, uma das meninas rolou da varanda e caiu lá fora.

Normalmente, o episódio acabaria em choro e briga, acontecimento comum entre as pequenas aprendizes. Nessa noite, porém, a pequena kamuro que rolara da varanda viu a neve caindo-lhe em cima, levantou-se lépida e saiu para o espaço aberto cantando.

Nevasca, nevisco,

 E o monge Honen

Por onde andará?

No meio da neve,

Lendo as preces,

 Comendo a neve.

Arqueando o corpo para trás, a menina tentava aspirar os grandes flocos de neve, agitava as mangas e dançava. A menina em questão era Rin-ya: contendo bravamente a vontade de chorar, ela bailava com tanta graça que recebeu imediatos aplausos dos adultos, que se tinham soerguido para acudi-la.

— Bravo! Bravo!

— Entre, entre, pequenina! — riam, procurando consolá-la.

A essa altura, Rin-ya já se esquecera por completo da incumbência de buscar Yoshino-dayu e foi levada ao colo como um bebê por uma das serviçais para trocar as meias, molhadas e sujas depois do episódio.

 

Ante o inesperado incidente que inutilizara a mensageira, uma das mulheres, com certeza ansiosa por não estragar o humor de Funabashi-sama, tinha ido procurar a cortesã Yoshino e retornava agora para junto de Shoyu.

— Trouxe a resposta, senhor — sussurrou ela. Shoyu, que já havia se esquecido do assunto, estranhou:

— Que resposta?

— A resposta de Yoshino-dayu...

— Ah, é verdade! E ela? Vem?

— Disse que virá sem falta, mas...

— Mas... o quê?

— Não de pronto, pois o convidado que ela atende no momento não quer, de modo algum, dar-lhe a permissão.

— Que atitude deselegante a desse convidado! — resmungou Shoyu, irritado. — Até compreenderia, se fosse com outra dayu. Mas como é que a famosa Yoshino-dayu da casa Ougiya não consegue se impor, tem de se submeter ao gosto de um único cliente? Será possível que Yoshino finalmente se vendeu?

— Absolutamente! Mas o cliente desta noite é especialmente obstinado: quanto mais Yoshino-dayu insiste em deixá-lo, mais ele se aferra a ela.

— É o que qualquer um faria, ora! E quem é esse cliente perverso?

— É Kangan-sama.

— Kangan-sama? — ecoou Shoyu, sorrindo e voltando-se em direção a Koetsu. Este, por sua vez, também sorriu e perguntou:

— E ele, está sozinho, esta noite?

— Não, senhor, ele...

— Está com os amigos de sempre?

— Sim, senhor.

Shoyu deu uma palmada no próprio joelho e disse cheio de entusiasmo:

— Isto agora está ficando divertido! A neve dá um toque poético à noite, o saque está saboroso: falta apenas a presença de Yoshino-dayu para tornar o ambiente perfeito. Senhor Koetsu, mande uma mensagem. Mulher, aproxime essa caixa-tinteiro — ordenou o ancião, empurrando a caixa e folhas de papel em branco na direção do amigo.

— Que devo escrever? — perguntou Koetsu.

— Um recado em verso... ou prosa. Pensando bem, escreva em forma de verso, pois o destinatário é um grande poeta da atualidade.

— Que maçada! Pelo que entendi, devo pedir que libere Yoshino-dayu e lhe permita atender-nos, certo?

— Exatamente.

— Para comover o nosso rival, a composição terá de ser primorosa, coisa difícil, assim de improviso. E o que acha de o senhor mesmo escrever um poema encadeado, sua especialidade?

— Ah, está fugindo!... Muito bem, vamos colocar um ponto final nisso tudo deste modo — disse Shoyu, empunhando o pincel e escrevendo:

À minha hermida fazei transplantar

Certa muda preciosa de Yoshino[80].

Ao ver isso, Koetsu aparentemente sentiu seu impulso criativo liberar-se, pois ofereceu:

— Deixe-me então encadear os versos finais.

Frágil flor, ela certamente ressente

O frio vento desse cume nublado.

Shoyu espiou sobre o ombro do amigo e sorriu deliciado:

— Que beleza! “A flor ressente o frio do cume nublado”, isto foi muito bem pensado! Nosso rival, o nobre intocável, esse digno representante do “povo das nuvens”[81], vai com certeza acusar o golpe.

Dobrou a carta e entregou-a a Yoshino-dayu, dizendo-lhe com teatral formalidade:

—As pequenas kamuro ou as serviçais não têm peso, como mensageiras. Faça-me o favor de entregar este recado pessoalmente.

Kangan-sama era o pseudônimo pelo qual Karasumaru Mitsuhiro, filho do antigo conselheiro imperial, era conhecido na zona alegre. Seus companheiros habituais seriam, como de hábito, Tokudaiji Sanehisa, Kasan’in Tadanobu, Ooi Yorikuni, Asuka-i Masakata.

A cortesã Sumigiku trouxe, momentos depois, a esperada resposta e, sentando-se corretamente, aproximou de Koetsu e Shoyu, com todo o respeito, uma caixa para correspondências, finamente trabalhada:

— Eis a resposta de Kangan-sama.

— Ora, quanta formalidade — disse Shoyu forçando um sorriso. A apresentação cerimoniosa da resposta o surpreendeu, pois o bilhete que ele próprio havia mandado seguira dobrado informalmente para dar a entender que se tratava de uma simples brincadeira. Voltou-se para Koetsu e acrescentou:

— Tenho certeza de que ficaram admirados ao receber nosso bilhete, já que nossa presença aqui, esta noite, não era do conhecimento deles.

Certo de que lhes passara a perna, Koetsu, empolgado com o jogo, abriu a tampa da caixa e desdobrou a resposta. Surpreso, verificou porém que era um papel em branco.

— Ora, essa!... — exclamou, examinando o próprio colo e o fundo da caixa mais uma vez, desconfiado de que deixara cair a resposta em algum momento, mas nada mais encontrou além da simples folha de papel em branco.

— Sumigiku-dayu!

— Senhor?

— Que quer dizer isso?

— Não tenho idéia. Apenas recebi esta caixa das mãos de Kangan-sama, com a expressa recomendação de entregá-la em suas mãos.

— A mim me parece que nosso rival está querendo nos fazer de bobo. Ou será que, confrontado com o nosso primoroso poema, ele não teve inspiração para improvisar uma resposta à altura, e por isso nos manda o papel em branco em sinal de rendição?

Shoyu tinha, ao que parecia, hábito de interpretar os acontecimentos de acordo com a própria conveniência, e de se divertir com isso. Algo inseguro, no entanto, voltou-se para Koetsu em busca de sua opinião:

— Qual será o sentido desta resposta?

— Quer-me parecer que o missivista sugere: leia isto.

— Ler como, se não há nada escrito?

— Pelo contrário, pode-se ler o que não está escrito.

— E então, caro Koetsu, o que lê?

— Neve. Tudo branco, envolto em neve, seria uma das prováveis leituras.

— Ah, neve. Branco como a neve. Pode ser!

— Já que responde a um recado em que expressamos o desejo de transplantar certa flor de Yoshino para o nosso aposento, talvez ele esteja insinuando: se o que desejam é apenas passar o tempo contemplando uma flor enquanto bebem, existem outras coisas além dela dignas de contemplação. Em outras palavras, está provavelmente nos querendo dizer: lá fora, a neve branqueia a paisagem, visão inesperada para esta época do ano, um verdadeiro presente dos céus. Não sejam tão volúveis, contentem-se em escancarar as portas e contemplar a neve enquanto bebem.

— Ora, o atrevido!... — disse Shoyu. — E quem seria capaz de beber contemplando uma vista tão gelada? Se é assim que nos responde, não posso deixar barato. Não vou sossegar enquanto não transplantar Sumigiku-dayu para o meu aposento, e contemplá-la bem aqui, ao meu lado.

Excitado, o idoso homem pôs-se a lamber os lábios secos. Se Shoyu ainda reagia desse modo nessa idade, quanto trabalho não teria ele dado na juventude...

Quanto mais Koetsu se empenhava em acalmá-lo, instando que aguardasse com paciência, mais o idoso homem insistia com as mulheres, ordenando-lhes que lhe trouxessem Sumigiku-dayu. A insistência serviu para animar o ambiente muito mais que a própria cortesã: as pequenas kamuro rolavam de rir e a alegria no interior do aposento pareceu atingir o auge, assim como a intensidade da neve, caindo mansa do lado de fora.

Musashi ergueu-se silenciosamente.

A escolha do momento fora apropriada: ninguém notou a almofada vazia restando no aposento após a sua partida.

 

RASTROS NA NEVE

Deixando para trás o alegre ambiente do seu aposento por um motivo ainda não esclarecido, Musashi saiu para o corredor e vagou, perdido nas profundezas da casa Ougi-ya.

Comparados aos aposentos iluminados, repletos de vozes e melodias da área frontal, os depósitos de cobertas e instrumentos musicais da área onde agora se encontrava Musashi eram escuros e chamaram-lhe a atenção pelo contraste. Ele devia estar perto da cozinha, pois o cheiro era típico e parecia brotar das escuras paredes e pilastras ao redor.

— Ora, o senhor não pode andar por aqui — disse uma pequena aprendiz surgindo repentinamente de um aposento escuro, abrindo os braços e obstruindo-lhe a passagem.

A menina, de cujo rosto haviam desaparecido os traços de ingênua beleza exibidos nos aposentos externos, franzia o cenho ofendida, parecendo sentir-se violada em seus privilégios.

— Que coisa desagradável, senhor! Esta área não está aberta a visitantes. Vamos, volte para a sua sala — ordenou a menina em tom de censura, apressando-o.

Apesar de tão nova, ela aparentemente se enfezara com o fato de um estranho haver vislumbrado o feio ambiente onde viviam, por trás do pretenso mundo feérico. Ao mesmo tempo, sua atitude demonstrava uma ponta de desprezo por esse cliente que desconhecia as regras do bom comportamento.

— Ora, quer dizer que eu não devia estar aqui? — perguntou Musashi.

— Não devia! — replicou a menina, empurrando-o pelos quadris e indo-lhe atrás.

Musashi olhou com atenção para o rosto da menina e exclamou:

— Mas você é Rin-ya, a kamuro que caiu há pouco da varanda!

— Isso mesmo! E o senhor se perdeu quando procurava o banheiro, não se perdeu? Acompanhe-me: eu lhe mostrarei onde é — disse Rin-ya, puxando-o pela mão e arrastando-o agora atrás de si.

— Nada disso, não estou nem bêbado, nem desorientado. Apenas... queria que me servissem uma refeição ligeira em qualquer um desses aposentos vagos. Acha que pode consegui-la para mim, Rin-ya?

— Uma refeição? — perguntou Rin-ya, arregalando os olhos de espanto. — Mas o jantar vai lhe ser servido em seu aposento, senhor!

— Veja bem, Rin-ya: meus companheiros estão ainda bebendo e se divertindo. Não quero estragar o ambiente.

Rin-ya pendeu de leve a cabeça para um dos lados, pensativa, e concordou:

— Tem razão. Mandarei servi-lo nesta sala, então. Que gostaria de comer, senhor?

— Nada especial. Peça para me servirem apenas dois bolinhos de arroz.

— Só bolinhos de arroz?

Rin-ya correu para os fundos. A refeição foi trazida momentos depois e Musashi a comeu no aposento vazio, sem luz.

— Deve existir um jeito de alcançar a rua por esse portãozinho, não existe? — perguntou ele à menina, assim que acabou de comer.

Ao ver que ele já se levantava e se dirigia em direção ao degrau de pedra para descer ao jardim, Rin-ya perguntou, espantada:

— Aonde vai, senhor?

— Volto num instante.

— Mas por que quer sair por aí?

— Estou com preguiça de dar a volta até a frente. Além disso, não quero que os senhores Koetsu e Shoyu percebam e interrompam a diversão, nem tenho tempo para dar explicações.

— Nesse caso, vou-lhe abrir o portãozinho. Mas volte logo, ouviu? Estou começando a achar que vou ser repreendida, se souberem que eu o deixei sair desse jeito.

— Não se preocupe, prometo voltar em seguida. Caso, no entanto, o senhor Koetsu pergunte por mim, diga-lhe que fui para os lados do templo Renge-ou, para me encontrar com conhecidos, mas que pretendo estar de volta logo.

— Nada disso. “Pretendo” não é suficiente. Volte sem falta, senhor, pois a cortesã escalada para lhe fazer companhia esta noite é Yoshino-dayu, a quem eu sirvo. Ouviu bem, senhor?

Abrindo as duas folhas da portinhola sobre as quais a neve acumulara, Rin-ya o viu sair para a rua.

 

Ao lado do principal portão de acesso ao bairro licenciado havia uma casa de chá denominada Amigasa-chaya. Musashi espiou o interior do estabelecimento e perguntou se vendiam sandálias ali. Era claro que não, já que a casa comercializava sombreiros de palha trançada — amigasa — para que os animados boêmios neles ocultassem a cabeça e mantivessem o anonimato.

— Por favor, compre-me um par em outro lugar — pediu Musashi à filha do vendeiro. Enquanto esperava, sentou-se a um canto da loja e se arrumou, refazendo o laço do obi e do cordão da cintura.

Despiu a seguir o sobretudo, dobrou-o com cuidado e, pedindo emprestados pincel e uma folha de papel, escreveu um bilhete, que introduziu no meio da roupa dobrada. Dirigiu-se então ao dono da loja enrodilhado à borda de um fogareiro, e lhe pediu:

— Não quero incomodá-lo, mas gostaria que guardasse este volume para mim. Caso não me veja retornar até o último terço da hora do javali [onze horas], entregue este sobretudo e a carta que a acompanha ao senhor Koetsu, que está neste momento na casa Ougi-ya.

— Não será trabalho algum. Pode deixar, senhor, que me encarregarei disso.

—A propósito, que horas serão agora: segunda metade da hora do pássaro [sete horas], ou já estaríamos na hora do cão [oito horas]?

— Não deve ser tão tarde. Hoje escureceu mais cedo por causa da neve.

— Quando saí há pouco da casa Ougi-ya, havia um relógio dando as horas.

— Nesse caso, devia estar marcando a passagem para a hora do pássaro.

— Tão cedo assim?

— A noite acaba de cair. Basta observar o movimento da rua para se ter uma idéia.

Nesse momento, a filha do vendeiro retornou trazendo o par de sandálias. Musashi as calçou sobre as meias de couro, não sem antes examinar cuidadosamente os cordões.

Depois, pagou com generosidade ao vendeiro e dele ganhou um amigasa, que levou na mão, apenas segurando-o sobre a cabeça para proteger-se dos flocos de neve, mais suaves do que pétalas ao vento. Seu vulto aos poucos desapareceu no caminho coberto de neve.

Nas áreas próximas ao rio, na altura da rua Shijo, ainda era possível avistarem-se luzes e casas, mas um passo para dentro dos bosques de Gion, com seu arvoredo cerrado, levava a um mundo escuro, onde até a neve rareava.

Os pequenos pontos de luz que surgiam aqui e ali provinham das lanternas de pedra espalhadas pelo bosque ou das luzes votivas dos santuários espalhados por todo o bosque de Gion. Tanto o santuário principal como a casa do sacerdote estavam desertos e silenciosos. Apenas a neve, desabando vez ou outra das copas das árvores, provocava um breve farfalhar, tornando posteriormente o silêncio ainda mais profundo.

— Vamos indo! — disse alguém no meio de um grupo de homens que, curvados, tinham estado até então rezando na frente do santuário Gion. O grupo todo ergueu-se ruidosamente.

Nos muitos templos espalhados pela montanha Kacho-zan os sinos acabavam de bater cinco vezes, anunciando a entrada da hora do cão. O som, talvez por causa da neve, soava límpido justo nessa noite, e parecia perfurar as entranhas dos homens.

— Denshichiro-sama: como andam os cordões das suas sandálias? Mesmo os de melhor qualidade são capazes de se partir repentinamente quando o frio é enregelante, como o desta noite.

— Não se preocupe — respondeu Yoshioka Denshichiro.

Ao redor dele se agrupavam quase 18 homens, entre parentes e discípulos da academia, pálidos e arrepiados de frio, caminhando em direção ao templo Renge’ou.

Denshichiro acabara de se aprontar da cabeça aos pés diante do santuário de Gion. Ele não se descuidara de nenhum detalhe, e verificara, obviamente, a faixa da testa e a tira de couro que continha as mangas do quimono.

— Nestas situações, sempre uso sandálias com cordões feitos de pano. Aprendam este truque e não o esqueçam, homens — disse Denshichiro aos discípulos, andando no centro do grupo com passos firmes, expelindo baforadas brancas.

 

Os termos do desafio entregue a Musashi por Otaguro Hyosuke e outros dois discípulos ao entardecer desse dia era o seguinte: Local: Clareira nos fundos do Templo Renge-ou. Horário: Segunda metade da hora do cão [9 horas].

Denshichiro, seus parentes e discípulos, tinham optado por não esperar o dia seguinte e escolhido essa hora porque temiam ver Musashi fugir para uma outra província

E Otaguro Hyosuke, o portador da mensagem, não se encontrava no meio do grupo porque havia permanecido nos arredores da casa de Haiya Shoyu, no bairro Funabashi, e vinha desde então seguindo Musashi.

— Tem alguém lá adiante. Quem será? — disse Denshichiro, descobrindo à distância, nos fundos do templo Renge-ou, um vulto ocupado em alimentar uma fogueira, cuja chama brilhava, vermelha e viva, no meio da neve.

— Devem ser Miike Juroza e Ueda Ryohei.

— Quê? Miike e Ueda também vieram? — disse Denshichiro com uma sugestão de desagrado na voz. — Tem gente demais contra um único adversário. Desse jeito, posso sair falado, mesmo vencendo: vão dizer que contei com a ajuda de um bando inteiro.

— Não se preocupe. Quando chegar a hora, desapareceremos.

O longo corredor do santuário Renge-ou é também conhecido como Sanjusangen-dou, ou o “Santuário dos Sessenta Metros”, e considerado ideal para a prática do arco e flecha pelo seu comprimento e facilidade de colocação do alvo. Tanto assim que, nos últimos tempos, o local vinha atraindo um número cada vez maior de pessoas, vestidas a caráter, que buscavam ali treinar sozinhas.

Esse tinha sido um dos motivos por que lhes ocorrera de súbito escolher o santuário como local do duelo, e o haviam indicado a Musashi. Uma vez lá, porém, os Yoshioka deram-se conta de que, além de conveniente para a prática do arco e flecha, o pátio do santuário era ainda melhor para um duelo.

Não havia nenhuma irregularidade de terreno na vasta clareira de alguns quilômetros quadrados, pois a neve cobrira todos os arbustos e tocos de árvores com seu suave manto. Os pinheiros que se erguiam aqui e ali não chegavam a compor um bosque, apenas serviam para ressaltar a beleza cênica das terras em torno do templo.

— Olá! — gritou um homem, levantando-se da beira do fogo mal avistou Denshichiro e o grupo. — O senhor deve estar com frio. Falta muito ainda para a hora do duelo e terá tempo de sobra para se aquecer e se preparar.

Realmente, as pessoas em torno da fogueira eram Miike Jurozaemon e Ikeda Ryohei.

Denshichiro, que já havia concluído todos os preparativos diante do santuário Gion, sentou-se em silêncio no lugar que Miike acabava de desocupar e aproximou as mãos do fogo, massageando-as e fazendo estalar um a um todos os dedos.

— Cheguei cedo demais — comentou, apertando os olhos que aos poucos começavam a brilhar sinistramente. — A caminho para cá, acho que vi uma casa de chá.

— Já tinham fechado as portas por causa da nevasca — observou alguém.

— Se baterem, alguém virá atender. Qual de vocês vai até lá buscar um pouco de saque?

— Como? Saque?

— Isso mesmo: saque! Sem isso, não agüento o frio — disse Denshichiro, curvando-se para a frente como se quisesse abraçar o fogo.

Todos sabiam que Denshichiro sempre cheirava a saque, fosse noite ou dia, dentro ou fora da academia. Mas as circunstâncias eram outras nessa noite: dentro de instantes, ele estava por se bater em defesa do clã e da subsistência da própria casa Yoshioka. Os homens ali reunidos não conseguiam deixar de ponderar seriamente se o saque, ingerido pouco antes da chegada do adversário, exerceria efeito benéfico ou maléfico em Denshichiro e em sua capacidade de combater.

 

A maioria considerava que Denshichiro devia tomar o saque, desde que em pequena quantidade, para não ter de empunhar a espada com as mãos duras de frio.

— Além disso, será pior contrariar sua vontade a esta altura.

Em obediência à opinião da maioria, alguns discípulos saíram correndo e logo retornaram com o esperado saque.

— Que bom! Aqui está o meu mais forte aliado — disse Denshichiro, bebendo deliciado a bebida que mandara amornar nas cinzas da fogueira, expelindo pelas narinas um ar quente aguerrido.

Para o alívio de alguns que temiam vê-lo exceder-se como sempre, Denshichiro bebeu pouco, por precaução. Afinal, ele teria de lutar pela própria vida dentro de alguns instantes e, embora fosse destemido, sentia a tensão mais que qualquer um dos homens ali reunidos.

— Olhem lá! É Musashi? — gritou alguém de chofre.

— Ele chegou?

Todos os homens ao redor da fogueira ergueram-se simultaneamente, como que impulsionados por uma ‘mola, o brusco movimento das mangas e barras dos seus quimonos provocando fagulhas que subiram rubras no ar.

O vulto escuro que tinha surgido contornando o santuário ergueu a mão e gritou de longe:

— Calma, calma, sou eu!

O bushi, de costas encurvadas pela idade, vinha chegando com a barra e as mangas do quimono contidas, garbosamente preparado para a luta. Ao vê-lo, os discípulos se aquietaram, sussurrando com voz respeitosa:

— É Genzaemon-sama! É o patriarca de Mibu!

O homem a quem chamavam patriarca de Mibu era na verdade o irmão mais novo do falecido Yoshioka Kenpo, e portanto, tio de Seijuro e Denshichiro.

— Caro tio! A que devo a sua presença neste local? — perguntou Denshichiro. Ele jamais imaginaria que o idoso homem pudesse vir até ali numa noite tão fria. Genzaemon aproximou-se do fogo e disse:

— Quer dizer, Denshichiro, que você realmente vai duelar com esse sujeito! Só assim, vendo-o com estes meus olhos, sinto-me mais tranqüilo!

— Na verdade, pensei em visitá-lo para lhe falar sobre isso, meu caro tio...

— Para quê, meu filho? Mas se acaso você permanecesse indiferente depois de ter o nome dos Yoshioka denegrido e o irmão aleijado, eu é que iria vê-lo paratirar satisfações!

— Fique tranqüilo: sou muito diferente do meu tímido irmão.

— Quanto a isso, você merece minha inteira confiança. Nem de longe imagino que possa perder este duelo, mas vim até aqui assim mesmo, para lhe dizer algumas palavras de incentivo. Denshichiro, muito cuidado: não subestime seu inimigo, não vá com muita sede ao pote. Esse sujeito, Musashi, me parece um hábil guerreiro, pelo que ouço dizer.

— Sei disso.

— Não se desespere, não se aflija buscando uma vitória rápida. Deixe que o céu o guie. Se apesar de tudo houver um imprevisto, este seu velho tio, Genzaemon, recolherá seus restos mortais. Que isto não o preocupe.

— Ora, essa! — gargalhou Denshichiro. — Vamos, meu tio, beba para espantar o frio — acrescentou, oferecendo-lhe uma chávena.

O velho bebeu um gole em silêncio para logo voltar o olhar na direção dos discípulos:

— E vocês, o que fazem aqui? Espero que nem estejam sonhando em ajudá-lo! E se não estão, já é hora de se retirarem daqui. O duelo é de um contra um, esta aglomeração pode dar a falsa impressão de que somos inferiores ao inimigo. A hora combinada se aproxima. Vamos, vamos, acompanhem-me. Ocultar-nos-emos em algum lugar, longe daqui.

 

Denshichiro lembrava-se agora de ter ouvido o sino tocar já havia algum tempo.

Anunciava a hora do cão, se bem recordava. Nesse caso, o último terço da hora do cão, o horário combinado, já devia estar chegando.

“Ele está atrasado!”, pensou Denshichiro contemplando a noite branca, sozinho agora à beira da fogueira quase extinta.

Seguindo a advertência do idoso tio de Mibu, os discípulos haviam todos se retirado. Na neve, tinham restado apenas suas pegadas, escuras e nítidas.

Um sonoro estalo rompia o silêncio noturno vez ou outra: eram pingentes de gelo, que se destacavam do beiral e caíam. Além disso, havia apenas o crepitar de galhos partindo sob o peso da neve. A cada vez, Denshichiro movia os olhos, agudos como os de um falcão.

E então, uma sombra que fazia lembrar um desses falcões surgiu repentinamente em meio às árvores distantes. Era um homem aproximando-se em rápida corrida.

Logo, Otaguro Hyosuke — o veterano que havia ficado para trás acompanhando os movimentos de Musashi desde o entardecer — estava à frente de Denshichiro.

A expressão no rosto de Hyosuke mostrava que a hora da decisão estava bem próxima. Ofegando intensamente como prova de que havia corrido muito, comunicou:

— Ele chegou!

Muito antes de ouvir essas palavras, Denshichiro já tinha entendido e se levantado da beira da fogueira.

— Ele chegou? — repetiu. Quase inconsciente do que fazia, seus pés pisaram a brasa restante, extinguindo a fogueira.

— Depois de sair da casa de chá Amigasa-chaya, na zona alegre, Musashi veio andando lerdo como um boi debaixo dessa nevasca. Ele acaba de subir a escadaria do santuário de Gion e entrar, neste instante, nos limites do santuário. Eu corri o mais rápido que pude, mas como tive de dar a volta para não ser visto, ele já deve aparecer, mesmo andando com aquela pachorra. Prepare-se, senhor!

— Muito bem! Hyosuke!

— Senhor?

— Afaste-se.

— E os outros?

— Sei lá! Mas não me fique por aí. Vamos, vá-se embora!

— Sim, senhor!

Apesar da resposta, Hyosuke não parecia disposto a partir e ficou observando Denshichiro pisar o fogo para extingui-lo na lama, e sair de sob o beiral com um estremecimento excitado. Só depois rastejou para o vão sob a construção e se agachou no escuro.

Debaixo da varanda soprava um vento gelado, imperceptível em campo aberto. Imóvel, abraçando os joelhos, Hyosuke sentiu o frio penetrando até os ossos. Seus dentes batiam ruidosamente, de modo incontrolável. Era o frio, tentou convencer-se, mas não conseguiu impedir que um estremecimento lhe percorresse o corpo desde o baixo ventre até o topo da cabeça, como quem está desesperado por aliviar a bexiga.

“E agora, onde andará o sujeito?”

Lá fora, a neve deixava a paisagem clara como dia. O vulto escuro de Denshichiro tinha parado a quase cem passos de distância do santuário, junto às raízes de um pinheiro alto, ali estabelecendo sua base. Impaciente, ele aguardava a chegada de Musashi.

O tempo de aproximação calculado por Hyosuke há muito se esgotara, mas Musashi não surgia. Mesmo à distância, o discípulo dos Yoshioka conseguia perceber a impaciência de Denshichiro. A neve caía sobre ele, agora mais branda que ao entardecer. Extinto o fogo e dissipados os vapores do saque, ele sentia o frio morder-lhe a pele.

Um estrondo repentino pareceu sobressaltá-lo, mas era apenas a neve acumulada na copa de uma árvore, desabando em cascata.

 

Para quem espera, o tempo passa com lentidão exasperante, quase insuportável.

Pior ainda para Otaguro Hyosuke, que sentia o frio formando uma camada de gelo sobre o corpo, e que, além de tudo, começava a se maldizer pela previsão inexata.

Incapaz de se conter por mais tempo, Hyosuke rastejou para fora do vão e gritou em direção ao distante Denshichiro:

— Que lhe terá acontecido?

— Ainda aí, Hyosuke? — respondeu Denshichiro, parecendo partilhar a impaciência. Os dois aproximaram-se.

— Não o estou vendo! — repetiram a mesma observação inúmeras vezes, quase num gemido, examinando a paisagem noturna que a neve cobrira num único manto branco.

— Acho que o miserável fugiu! — murmurou Denshichiro.

— Não pode ser... — contradisse Hyosuke imediatamente. E enquanto expunha os fatos apurados até o momento para corroborar sua opinião, o olhar de Denshichiro, que o havia estado escutando, voltou-se repentinamente para um dos lados:

— Que é isso?

Hyosuke também voltou-se e, no mesmo instante, viu que tinha surgido uma luz bruxuleante para os lados da cozinha do santuário Renge-ou. Logo foi possível perceber que era uma lamparina trazida por um monge e que, atrás dele, vinha mais uma pessoa.

Os dois vultos precedidos pelo trêmulo ponto de luz abriram uma porta e surgiram a um canto do extenso corredor do santuário Sanju-sangen, onde pararam para conversar em voz baixa:

— Não estou certo, pois, como vê, fechamos cedo todas as portas esta noite. Sei, porém, que um grupo de samurais esteve por aqui na boca da noite, aquecendo-se numa fogueira. Talvez sejam as pessoas que procura, senhor, mas acho que já se foram — dizia o monge.

O outro homem agradeceu educadamente:

— Perdoe-me se interrompi o seu repouso. Parece-me, porém, que vejo dois vultos debaixo de algumas árvores, lá adiante. Um deles talvez seja o que marcou encontro comigo neste lugar.

— Nesse caso, vá até lá e pergunte.

— Daqui para a frente não preciso mais que me mostre o caminho. Recolha-se, por favor.

— Os senhores combinaram por acaso apreciar esta paisagem branca?

— Algo parecido — respondeu Musashi, sorrindo levemente.

— Creio ser desnecessário frisar, mas caso venham a acender uma fogueira sob o beiral do templo, como faziam há pouco os homens a quem me referi, peço-lhes encarecidamente que cuidem de apagá-la totalmente antes de se irem.

— Está certo.

— Boa noite — disse o monge, fechando a passagem e retirando-se em direção à cozinha.

O outro homem permaneceu imóvel por algum tempo, observando o distante vulto de Denshichiro da sombra do beirai. A área parecia ainda mais escura em contraste com a paisagem externa branca, iluminada pelo luar.

— Quem está lá, Hyosuke?

— Parece-me que é gente da cozinha.

— Não, ele não parece pertencer ao templo.

— Estranho.

Os dois homens se aproximaram cerca de 20 passos da varanda do santuário, quase inconscientes do que faziam.

Ao ver isso, o vulto no escuro também veio andando até quase o centro do longo corredor, onde parou bruscamente e pareceu amarrar com firmeza perto da axila esquerda as pontas de uma tira de couro para conter as mangas. Do lado de fora, os dois homens, que haviam se aproximado quase casualmente até um ponto em que se tornou possível discernir os movimentos do vulto, repentinamente estacaram, seus pés parecendo pregados na neve.

Denshichiro ofegou duas ou três vezes e gritou:

— É Musashi!

 

Neste ponto, não podemos deixar de observar que Musashi já estava em posição vantajosa com relação a Denshichiro desde o instante em que os dois homens haviam se confrontado, e em que Denshichiro gritara: “É Musashi!”

A razão torna-se óbvia quando se analisa a posição dos dois homens: Musashi, sobre a varanda, estava algumas dezenas de centímetros acima de seu adversário. Denshichiro, ao contrário, tinha o adversário em posição superior e suportava sobre si seu olhar feroz.

A vantagem de Musashi não terminava aí, pois ele tinha também suas costas completamente guardadas pela longa parede do santuário, precisando, graças a isso, apenas proteger-se de ataques frontais ou laterais, aliás dificultados pela altura da varanda.

Denshichiro, ao contrário, tinha às costas um vasto campo aberto, batido pelo vento e pela neve. Ele podia até saber que seu adversário estava sozinho, mas ainda assim a área desguarnecida atrás de si era um ponto preocupante.

Para sua felicidade, no entanto, Otaguro Hyosuke estava a seu lado.

— Afaste-se! Saia de perto, Hyosuke! — gritou Denshichiro nesse instante, movendo o braço ostensivamente como se espantasse algo inoportuno. Com o gesto, o segundo filho dos Yoshioka parecia dizer que não desejava ser ajudado de forma canhestra: ele preferia que o discípulo observasse de longe o desenvolvimento do duelo e lhe garantisse a retaguarda.

— Pronto para o duelo? — perguntou Musashi. A voz era suave, mas teve o efeito de uma ducha gelada em Denshichiro.

“Ah, maldito!”, pensou Denshichiro mal pôs os olhos em Musashi, examinando-o com ódio desde o topo da cabeça até a ponta dos pés. Raiva pelo que Musashi fizera ao irmão, irritação pelas vexatórias comparações que circulavam pela cidade, e o desprezo preconcebido pelo “novato provinciano”, subiram num átimo à cabeça.

— Cale a boca! — rebateu Denshichiro com previsível violência. — Como ousa perguntar-me se estou pronto? Musashi! O último terço da hora do cão já se foi há muito!

— Não me lembro de ter prometido comparecer na exata hora marcada!

— Não tente se desculpar! Há muito estou aqui, inteiramente preparado, e já cansei de esperar! Desça daí! — berrou Denshichiro, chamando o inimigo para o próprio campo. Seu desprezo pelo oponente não era grande ao ponto de fazê-lo ignorar a própria posição desvantajosa e avançar.

— Já vou... — respondeu Musashi descontraído, mas os olhos pareciam buscar o momento favorável.

Falando em buscar o momento favorável, Denshichiro ainda estava no estágio inicial da batalha, sentindo os primeiros frêmitos percorrerem-lhe o corpo ao pôr os olhos em Musashi; este, porém, já se sentia em guerra muito antes de aparecer diante de Denshichiro e ia agora a meio no caminho da batalha.

Dois fatos provam que Musashi já estava preparado psicologicamente: primeiro, o de ter ele escolhido passar por dentro do templo para chegar até ali; segundo, o de ter acordado um sacerdote do santuário e dele ter-se valido para surgir de repente naquele ponto da varanda, evitando expor-se.

No instante em que chegara à escadaria do santuário Gion, Musashi já deveria ter percebido as numerosas pegadas na neve e por elas inferido o que o aguardava, idealizando rapidamente uma estratégia. Esperou então que sua sombra se afastasse para entrar de propósito pela frente do Renge-ou, quando na verdade precisava estar no pátio ao fundo do santuário.

Musashi soube o que havia acontecido nas redondezas durante a tarde pelo monge, e em sua companhia tomara um reconfortante chá, aquecera-se bem e, plenamente consciente de que estava atrasado, surgiu de súbito na frente do seu inimigo, conforme planejara.

E assim ele tinha criado seu primeiro momento favorável. O segundo era o insistente convite à luta que Denshichiro vinha-lhe fazendo. Aceitá-lo seria uma estratégia; recusá-lo e procurar compor ele próprio um novo momento seria outra. A vitória é como a lua refletida num lago: tentar agarrá-la, confiando excessivamente em sua própria sabedoria e força, significava quase sempre afogar-se nas águas e perder a vida.

 

— Além de estar atrasado, ainda não acabou de se preparar?! Saia daí que o local não é apropriado para o duelo! — gritou Denshichiro, irritado. A isso, Musashi respondeu, com toda a calma:

— Estou indo.

Denshichiro sabia perfeitamente que enfurecer-se era meio caminho para a derrota, mas as emoções sobrepujaram a disciplina quando ele se defrontou com Musashi e seu descaso proposital.

— Siga-me para o campo aberto! Quero uma luta limpa e honrada. Eu, Yoshioka Denshichiro, sempre devotei desprezo a contemporizações e procedimentos covardes. Se está com medo desde já, não tem qualificação para se bater comigo! Desça daí imediatamente, Musashi!

Ao vê-lo enfim gritando frenético, Musashi sorriu, mostrando por um breve instante os dentes brancos:

— Ora essa, como pode você dirigir-se a mim nesses termos, Yoshioka Denshichiro, a mim que já o golpeei e parti em dois na primavera do ano passado? E se hoje fizer o mesmo, com esta serão duas vezes!

— Quê? Quando e onde?

— Na província Yamato, no feudo Yagyu.

— Em Yamato?

— Na sala de banhos da hospedaria Wataya.

— Como é?!

— Estávamos ambos nus, completamente desarmados dentro da banheira. Eu, porém, avaliava em meu íntimo se haveria brechas em sua guarda. E finalmente, eu o golpeei certeiramente com estes meus olhos, senti que o atingi de modo magnífico! Você com certeza não percebeu, já que meu golpe não deixou marcas no seu corpo. Se quer alardear suas qualidades de espadachim, procure outro, mas não o faça na minha frente porque só conseguirá parecer ridículo.

— Olhe quem fala em ser ridículo! Essa lorota nem chega a ser uma boa mentira! Mas isto está começando a ficar divertido. Desça daí e me siga: vou acabar de uma vez por todas com a sua arrogância.

— E que armas escolhe, Denshichiro? Espada de madeira ou real?

— Não veio preparado para um duelo real? E do que está falando, se nem trouxe sua espada de madeira?

— Para que trazê-la? Se meu adversário escolhe lutar com uma espada de madeira, tomo-a dele e com ela o golpeio!

— Chega de bravatas!

— Nesse caso...

— Ande logo!

Denshichiro recuou obliquamente deixando sobre a neve um longo rastro negro de quase três metros, abrindo espaço para Musashi descer. Este, porém, não aceitou o convite e andou de lado pela varanda do santuário cerca de seis metros, para só depois descer sobre a neve.

Os dois homens não se afastaram muito da varanda porque Denshichiro não conseguiu conter-se por mais tempo e soltou um tremendo urro destinado a impressionar o adversário. A espada — longa para se ajustar ao seu físico — parecia leve em suas mãos, e emitindo um leve silvo, veio precisamente em direção a Musashi.

Visar com precisão, porém, não significa necessariamente partir o inimigo em dois: Musashi moveu-se com rapidez maior do que a espada. E mais rápido ainda que tudo, uma lâmina surgiu da altura do seu ventre, desembainhada.

 

Depois que os dois traços prateados coriscaram no ar, os suaves flocos de neve continuaram a cair, parecendo agora chegar ao solo com estranha lentidão.

Mas a neve tinha ritmo próprio, como uma melodia, e vinha do alto ora presto, impelida pelo vento, ora andante, redemoinhando, ora lento, dançando no ar como plumas de ganso.

Musashi e Denshichiro encaravam-se em silêncio. Na fração de segundo em que as espadas haviam sido sacadas das respectivas bainhas, os dois homens tinham se aproximado tanto que se tornava quase impossível imaginá-los escapando ilesos dessa aproximação. Contudo, a paisagem branca permanecia imaculada mesmo depois que os dois contendores, com um salto, tinham-se separado batendo os calcanhares no chão e espalhando finas partículas de neve, prova de que ambos continuavam miraculosamente inteiros.

Em seguida, as pontas das espadas tinham-se imobilizado no ar, frente a frente, interpondo uma distância de quase 20 metros.

A neve acumulada nas sobrancelhas de Denshichiro derretia e parecia escorrer entre as suas pestanas. Em conseqüência, Denshichiro contorcia o rosto de vez em quando, os músculos faciais formando inúmeros calombos, e arregalava os olhos em seguida, globos oculares semelhantes a janelas de fornalha ameaçando saltar das órbitas. Ao mesmo tempo, a boca, que deveria estar apenas dando passagem ao ar proveniente do baixo ventre, era fole de ferreiro, expelia um hálito fervente.

“Maldição!”, gemeu Denshichiro arrependendo-se intimamente, mal se viu defrontando o inimigo. “Por que, justo hoje, me posicionei deste jeito, apontando os olhos do meu adversário?! Por que não estou em posição de guarda alta, com a espada erguida acima da cabeça?”

O pensamento ia e vinha, continuamente. Isto não queria dizer que ele raciocinasse com calma, como o faria uma pessoa em circunstâncias normais. Apenas assim sentia, nas batidas quase audíveis do coração e no sangue a circular impetuoso por todas as artérias. Seus cabelos, sobrancelhas, todos os pêlos do corpo e até as unhas do pé pareciam ter sido mobilizados, crispando-se contra o inimigo.

Guardar-se com a espada naquela posição — isto é, com a ponta voltada para os olhos do adversário — não era sua tática favorita, sabia Denshichiro. Por esse motivo ele vinha tentando, havia já algum tempo, elevar o cotovelo e erguer a espada acima da cabeça, mas não conseguia.

E por quê? Porque os olhos de Musashi aguardavam essa oportunidade.

O próprio Musashi mantinha-se imóvel, cotovelos levemente dobrados, sua espada também apontando os olhos do adversário. Os cotovelos de Denshichiro dobravam-se com tamanha força que pareciam prestes a estalar, mas os de Musashi estavam soltos, parecendo ser possível movê-los para baixo ou para os lados com um simples toque. Havia ainda mais uma diferença: a ponta da espada de Denshichiro, como já foi dito anteriormente, movia-se de leve e parava, tentando inúmeras vezes ir para uma nova posição, enquanto a de Musashi permanecia imóvel a ponto de permitir que a neve se acumulasse no estreito dorso da lâmina, desde a ponta até a empunhadura.

 

 “Tomara que Denshichiro cometa uma falha! Tenho de procurar uma brecha em sua guarda, adivinhar sua intenção pelo ritmo de sua respiração! Tenho de vencer, vencer a qualquer custo! Ajudai-me, Hachiman, deus da guerra, eis que estou no limiar da vida e da morte!”

Enquanto essas noções cruzavam como raios pela mente de Musashi, Denshichiro lhe pareceu sólido como uma rocha, fê-lo sentir-se vulnerável à pressão que emanava de sua magnífica figura e duvidar da própria capacidade de derrotá-lo.

“Ele é mais hábil que eu”, chegou a pensar Musashi, honestamente.

A mesma impressão de inferioridade ele havia sentido quando se vira cercado pelos quatro veteranos, dentro do castelo Koyagyu. Essa avaliação negativa de si próprio surgia quando enfrentava estilos reconhecidos, como o Yagyu ou o Yoshioka, momentos em que sentia agudamente sua condição de autodidata, praticante de um estilo rústico, sem forma ou fundamento teórico.

Nesse exato momento, Musashi observava a guarda de Denshichiro, e nela percebia claramente um estilo complexo apesar da aparente simplicidade, másculo e preciso, elaborado pelo grande homem Yoshioka Kenpo numa vida inteira de dedicação. Simples força física ou espiritual nada conseguiriam contra isso, percebia Musashi.

E essa percepção o fazia sentir-se totalmente incapaz.

Em conseqüência, Musashi não conseguia naquela noite a costumeira afoiteza para agir como o jovem selvagem orgulhoso do próprio estilo sem nome ou forma. Nessa noite seus braços recusavam-se a se estender em busca do inimigo, e isso o deixava espantado consigo mesmo. O máximo que conseguia era guardar-se em completa imobilidade, à espera do movimento adversário.

Em virtude disso, por mais que tentasse evitar, sentia os olhos se congestionarem em busca de uma brecha, o espírito se perder em súplicas a Hachiman, e a ansiedade tumultuar no íntimo.

A maioria dos homens, ao se ver nessa situação, é arrastado no torvelinho, apavora-se e se afoga. Musashi, porém, havia-se livrado do seu perigoso atordoamento sem nenhum esforço mental aparente. Esse poder era uma dádiva que lhe adviera de experiências anteriores, em que pisara a tênue linha entre a vida da morte: quando menos esperava, ele já tinha saído do atordoamento, como se alguém lhe tivesse de chofre tirado a venda dos olhos.

O duelo permanecia imutável, as duas espadas empunhadas em posição mediana, confrontando-se. A neve tinha-se acumulado sobre os cabelos de Musashi e nos ombros de Denshichiro.

Mas Musashi já não via diante de si um inimigo sólido como um rochedo. Ao mesmo tempo, ele tinha também perdido a noção de si. E muito antes que tudo isso acontecesse, ele tinha também varrido por completo da mente a própria idéia de vencer o duelo.

A neve caía mansamente no espaço de quase 20 metros existente entre ele e Denshichiro. Musashi sentia seu espírito leve como os flocos de neve, o corpo amplo como esse espaço, em sincronia com o universo: Musashi existia, mas ao mesmo tempo não existia fisicamente.

E foi então que ele percebeu: um pé de Denshichiro havia avançado, diminuindo o espaço entre eles, e a ponta de sua espada tinha começado a se mover, carregada de intenções.

Um berro medonho ecoou no preciso instante em que a espada de Musashi varreu a área às próprias costas. A lâmina cortou lateralmente a cabeça de Otaguro Hyosuke, que se tinha aproximado furtivamentepor trás, e produziu um rangido semelhante ao de uma faca cortando um saco de feijões.

Uma figura humana, cuja cabeça era uma enorme romã aberta, passou rapidamente por Musashi e foi cambaleando na direção de Denshichiro, movendo pernas e braços como se quisesse nadar. Seguindo o cadáver ambulante, Musashi saltou repentinamente, tão alto que parecia querer atingir o peito de seu adversário com os pés.

 

Um grito esganiçado partiu da boca de Denshichiro e varou o silêncio noturno. Mal o grito, semelhante a um kiai subitamente interrompido, perdeu-se num rouco estertor, seu corpo cambaleou e tombou para trás, levantando uma névoa branca.

— Es... espere!... — gemeu Denshichiro, contorcendo-se no chão num espasmo atormentado e enterrando o rosto na neve. Mas então, Musashi ali já não estava para ouvir.

As vozes que responderam eram distantes:

— Que foi isso?

— Era Denshichiro-sama!

— Deuses misericordiosos!

— Vamos!

Vultos negros aproximaram-se em disparada, como um vagalhão.

Desnecessário dizer, era o grupo do idoso Genzaemon e dos discípulos que, até então, tinham estado aguardando em otimista expectativa o desenlace do duelo.

— Ei! Otaguro também foi liquidado!

— Denshichiro-sama!

Logo perceberam que de nada lhes adiantaria chamá-lo ou procurar socorro.

Otaguro Hyosuke havia recebido um golpe lateral que lhe rasgara a cabeça desde a orelha direita até o interior da boca. Denshichiro tinha um corte profundo que partia do topo do crânio, descia em diagonal e se desviava ligeiramente da base do nariz, passando pelo osso da face.

Cada um deles tinha sido eliminado por um único golpe.

— E... ele subestimou o adversário! Eu... eu o avisei, mas ele não me ouviu. De... Denshichiro! Denshichi! — lamentava o idoso Genzaemon abraçando o sobrinho, sacudindo-o, sabendo que era inútil mas, mesmo assim, tentando reanimá-lo.

Aos poucos a neve ao redor dos corpos foi sendo pisoteada e adquiriu um tom rosado. Genzaemon, que até então só se ocupara com o sobrinho morto, agastou-se repentinamente com os discípulos que, desorientados, apenas tumultuavam ao redor dos dois cadáveres, e gritou:

— E para onde foi o adversário?

Os homens não se haviam esquecido de Musashi, mas já não o viram nos arredores, por mais que o procurassem.

— Desapareceu.

— Não está em lugar algum!

A resposta irritou Genzaemon ainda mais.

— Não pode ser! — gritou o idoso homem, rangendo os dentes. — No momento em que começamos a correr para cá, vi um vulto em pé neste lugar! O sujeito não tem asas, homens! Tenho de lhe dar o troco com a minha espada, ou eu, um Yoshioka, perderei o prestígio!

Nesse instante, um dos homens apontou algo com o dedo e soltou um impetuoso grito.

O grito havia partido do seio do próprio grupo, mas ainda assim teve a capacidade de chocar os homens, levando-os todos juntos a dar um passo para trás e olhar na direção apontada.

— É Musashi!

— É ele mesmo!

— Ora!...

Uma atmosfera de pura desolação pairou momentaneamente sobre o grupo. O silêncio que caiu repentinamente sobre o ruidoso grupo trouxe um espírito sinistro, muito diferente da calma de áreas desertas. Nesses momentos, o cérebro, assim como a própria cabeça, parecem esvaziar-se por completo, e os olhos, órgãos destinados a ver, apenas registram as imagens, aparentemente esquecidos de transmiti-las à mente.

Musashi estava em pé sob o beiral do templo, no ponto mais próximo ao local onde abatera Denshichiro.

E então, ainda observando a reação dos seus adversários e mantendo as costas voltadas para a parede da construção, ele pôs-se a andar de lado, pouco a pouco. Galgou em seguida a varanda do lado ocidental do santuário Sanju-sangen, andou com toda a calma até chegar ao meio dela, mais ou menos no ponto onde inicialmente havia feito sua aparição.

De lá, voltou-se e ficou de frente para o grupo aglomerado à distância, parecendo indagar: “Vocês querem me pegar?” Não vendo reação no grupo, Musashi pôs-se a andar de novo rumo ao extremo norte da varanda, para então desaparecer de súbito por trás do santuário Renge-ou.

 

SEIS POETAS CONTEMPORÂNEOS

— Gente irritante! Como ousam mandar um papel em branco em resposta à nossa carta? Se deixarmos passar, esses rebentos da nobreza vão se sentir cada vez mais satisfeitos. Agora, já não me resta outra saída: tenho de ir até lá, negociar pessoalmente, e trazer Yoshino-dayu para os meus aposentos, custe o que custar!

Dizem que um bom jogo de salão entusiasma qualquer um, não importa a idade, e Haiya Shoyu não fugia à regra: embriagado, o homem não conseguia conter-se: dedicava-se inteiro à brincadeira, e não iria sossegar enquanto não visse seus desejos satisfeitos.

— Vamos, leve-me até lá! — exigiu da cortesã Sumigiku, apoiando-se pesadamente em seu ombro para se levantar.

— Ora, deixe disso! — tentou dissuadi-lo Koetsu. Shoyu, porém, o ignorou:

— Não me detenha: estou decidido a ir até lá e tomar Yoshino-dayu. Fiéis vassalos! Erguei-vos e conduzi-me aos aposentos inimigos! Eis que vosso general parte para a guerra: quem de vós for melhor, que me siga!

Um bêbado andando sozinho inspira cuidados, mas contrariando a expectativa dos que temem vê-lo a qualquer momento cair e se machucar, nada lhe acontece se for abandonado à própria sorte. Por outro lado, se confiando nisso ninguém o açode, o mundo perderia boas oportunidades de rir. Cambalear, simular perigo, acudir e ser acudido — ali estava o segredo de viver com engenho e arte, de fruir as delícias daquele mundo de prazeres.

E coisa mais fácil não deveria haver no mundo do que acudir Shoyu, o típico bon-vivant que já tivera sua cota de alegrias e tristezas, o perfeito conhecedor das regras do jogo. Mas as aparências enganavam: o idoso homem se mostrava difícil, cambaleando entre os limites da diversão e da provocação, exigindo dos que o acudiam perfeita harmonia espiritual consigo, a sincronia das vontades do cliente em busca de diversão e do profissional da diversão em seu esforço para entreter.

— Cuidado, Funabashi-sama! Não vá se machucar! — diziam as mulheres alvoroçadas, tentando ampará-lo. A isso, respondia sisudo:

— Machucar-me, eu? Não sejam tolas. Meus pés cambaleiam, admito, pois estou bêbado, mas o espírito permanece firme como uma rocha.

— Nesse caso, não precisa de ajuda: ande sozinho.’ — replicavam as mulheres, amuadas, parando de sustentá-lo. No mesmo instante o idoso homem sentou-se no meio do corredor, todo queixoso:

— Cansei-me um pouco. Quero ir a cavalo nas costas de alguém. Levar um tempo infinito para vencer o espaço entre um aposento e outro da casa, atormentando as mulheres, por certo fazia parte do conceito de diversão de Shoyu. Eis porque ali se deixava ele ficar, no meio do corredor, mole como um pedaço de gelatina, causando o maior transtorno às mulheres que o acompanhavam. Apesar de toda a aparente moleza, porém, esse corpo magro, quase um feixe de ossos, guardava em seu interior um espírito bastante resoluto que, estimulado pelas generosas doses de saque, estava momentaneamente irritado com o grupo liderado por Karasumaru Mitsuhiro, o jovem lorde que há muito retinha triunfalmente a cortesã Yoshino e com isso se divertia.

— Fedelhos nobres, impertinentes!

Em tempos passados, a nobreza tinha representado uma pesada carga e fora temida até pela classe guerreira, mas os atuais plutocratas de Kyoto já não a temiam sequer minimamente. Nos círculos íntimos dessa classe os nobres eram considerados pessoas de boa índole, facilmente manipuláveis, pobres e sempre preocupadas com a sua alta posição social. Por conseguinte, Funabashi-sama, o digno representante da opulenta classe de Kyoto, sabia muito bem que para manipular esses nobres como fantoches, bastava proporcionar-lhes diversões caras, conviver com eles obedecendo aos seus padrões de bom gosto e elegância, e ainda, reconhecer-lhes a superioridade social, preservando-lhes o orgulho.

— E quais são os aposentos em que Kangan-sama e seu nobre grupo se divertem? Estes? Aqueles? — perguntava Shoyu. Tateou o shoji de um aposento feencamente iluminado nos fundos da casa e tentava corrê-lo, quando repentinamente a divisória se abriu por dentro.

— Ora, vejam só quem está aqui! — disse alguém. Simultaneamente, a cabeça de um monge — personagem mais que improvável naqueles quarteirões — espiou pela fresta: era Takuan.

 

— Hein?Ora!...

Shoyu arregalou os olhos, feliz com o inesperado encontro, lançou os braços em torno do pescoço do monge e gritou:

— Ora, essa, querido bonzo, quer dizer que também estava aí? Takuan por sua vez enlaçou o pescoço do idoso homem e, imitando seu

tom, repetiu:

— Ora, essa, patrão, quer dizer que também veio?

Os dois bêbados que se haviam esbarrado por acaso juntaram os rostos barbudos, roçando-os um contra o outro, exclamando:

— Como tem passado?

— Muito bem!

— Senti sua falta!

— Sentiu? Fico feliz em saber, bonzo malandro!

Socaram-se mutuamente as cabeças, lamberam-se as pontas dos narizes; quem no mundo é capaz de prever o que dois homens embriagados são capazes de fazer para demonstrar sua alegria?...

Karasumaru Mitsuhiro voltou-se para o companheiro, Konoe Nobutada, e sorriu ao se dar conta de que Takuan, até há pouco ao seu lado, havia-se levantado e saído para o corredor e que, logo a seguir, divisórias estremeciam, e vozes anasaladas lembrando gatas em cio se faziam ouvir de permeio.

— Ah-ah! Conforme previ, o velho maçante se aproxima! — comentou sussurando.

Mitsuhiro tinha aproximadamente 30 anos. Bem apessoado, a pele imaculadamente branca, típica dos membros da nobreza, fazia-o parecer mais novo do que realmente era. Tinha sobrancelhas bem delineadas, lábios vermelhos e olhos vivos que denotavam seu espírito brilhante.

— Como fui nascer nobre em um mundo onde só os bushi parecem contar? — era a queixa constante desse homem de feições suaves e gênio forte, profundamente insatisfeito com o sistema político vigente, de ascendência da classe guerreira.

— Se algum nobre se disser inteligente e satisfeito com os tempos atuais, esse homem só pode ser um idiota — era outra de suas frases prediletas.

Mitsuhiro dizia ainda: “A classe guerreira devia restringir-se à carreira militar. No entanto, o que vemos atualmente? Bushi enfeixando nas mãos também o poder político, desequilibrando a harmonia do saber e do poder, da letra e das armas. Hoje em dia, a classe nobre é apenas um enfeite, a ela é permitido apenas representar um papel, o do boneco dos festivais sekku; sobre sua cabeça repousa uma coroa que não pode usar um milímetro fora de ângulo. E pôr-me num mundo desses foi um erro dos deuses. Se tenho de terminar meus dias como súdito do Imperador, só tenho duas opções: afligir-me ou beber. Escolho então acabar meus dias bebendo, contemplando a lua e as flores, com a cabeça no colo de alguma beldade.

Tendo sido promovido de encarregado de assuntos palacianos a Ministro da Direita, o jovem lorde exercia no momento o cargo de Conselheiro de Estado, e freqüentava assiduamente o bairro licenciado com a desculpa de que só nesse ambiente conseguia esquecer suas frustrações.

No meio desses jovens e frustrados nobres que rodeavam Mitsuhiro havia gente muito mais animada como Asukai Masakata, Tokudaiji Sanehisa, Kasan’in Tadanaga, todos pobres, mas que, diferente dos filhos de bushi, de algum modo conseguiam meios para freqüentar a casa Ougi-ya.

— Só aqui sou capaz de me sentir humano! — diziam, bebendo e promovendo verdadeiras algazarras.

Nessa noite, contudo, Mitsuhiro estava em companhia de Konoe Nobutada, pessoa muito mais discreta. Ele parecia ser quase dez anos mais velho que Mitsuhiro, tinha feições sóbrias e sobrancelhas escuras e espessas. Em seu rosto moreno de traços generosos havia marcas de varíola, uma deformidade, diria a maioria das pessoas. Mas marcas de varíola, dizia-se também, tinha Minamoto-no-Sanetomo, o símbolo da masculinidade de Kamakura.

Seja como for, nada na atitude de Konoe Nobutada, filho do antigo Conselheiro Imperial, deixava transparecer sua alta extração. Sentado ao lado da cortesã Yoshino com um sorriso ambíguo no rosto e dando-se a conhecer apenas como o famoso calígrafo Konoe Sanmyaku’in, o rosto marcado pela varíola, longe de ser feio, dava-lhe um ar refinado.

 

Konoe Nobutada voltou o rosto sorridente para a cortesã Yoshino e perguntou:

— É a voz de Shoyu, estou certo?

Yoshino-dayu mordeu de leve os lábios rubros, tentando conter o riso, e disse, aparentando confusão:

— E se ele entrar, que faço?

Karasumaru Mitsuhiro reteve-a pela barra do quimono, ordenando:

— Não se levante!

Voltou-se a seguir na direção da divisória do aposento anexo e gritou em tom propositalmente autoritário:

— Monge Takuan! Que está fazendo aí? Entre ou saia de uma vez, e feche a porta que está fazendo frio!

Takuan, ao ouvir isso, disse para Shoyu:

— Vamos, entre!

Arrastado para dentro do aposento, o velho sentou-se imediatamente na frente de Mitsuhiro e Nobutada.

— Ora, ora, quem eu vejo! Eis que a noitada se torna mais interessante ainda! — exclamou, dirigindo-se a Konoe Nobutada. Avançou os joelhos mantendo as roupas impecavelmente alinhadas, apesar da embriaguez, e estendeu a mão:

— Dar-me-á a honra de beber de sua taça? — disse. Nobutada sorriu, entre divertido e irônico:

— Como vai, ancião Funabashi? Sempre em forma, ao que vejo!

— Nem me havia passado pela cabeça que, esta noite, Kangan-sama tinha sua excelência como companheiro de noitada — disse Shoyu, balançando o pescoço fino e enrugado como um Taro-kaja[82], exagerando o próprio estado de embriaguez. — Pe... perdoe se há muito não venho à sua presença apresentar os devidos respeitos, mas... Já que estamos aqui todos juntos, deixemos de lado incômodos títulos como Conselheiro Imperial ou kanpaku. Concorda comigo, bonzo Takuan?

Enlaçou novamente o pescoço do monge e continuou, apontando os rostos de Nobutada e Mitsuhiro:

— Não existe nada mais digno de comiseração, hoje em dia, do que estas pessoas, os nobres: a eles são dados imponentes títulos, como Ministro da Direita, kanpaku, mas nenhuma vantagem. Muito melhor ser um simples mercador. Não acha, bonzol

Takuan, ligeiramente desconcertado com o rumo da conversa, respondeu:

— Acho, acho — e com um último esforço livrou o pescoço do férreo abraço.

— Não me lembro de ter sido servido por você, monge! — disse Shoyu no mesmo instante, apresentando-lhe a taça vazia. Emborcou-a em seguida de golpe para voltar a dizer:

— E quanto a você, monge, é bem matreiro. Nos tempos que correm, monges são matreiros, mercadores são espertos, bushi são fortes e os nobres...  tolos. Bem achado, não é? — gargalhou.

— Está bem, está bem...

— Não podem fazer o que bem lhes agrada, foram banidos dos círculos políticos, e só lhes restam, como distração, poesia e literatura: que situação a deles, hein, monge?

Em se tratando de beber e pilheriar, Mitsuhiro não ficava atrás do velho mercador. Nobutada também sabia zombar com classe. Mas a súbita verbosidade do magro intruso pareceu aturdir os dois experientes mundanos: em sombrio silêncio, observavam o idoso homem fazer-lhes sombra, assumir o controle do jogo em seus próprios domínios.

Entusiasmado com o silêncio, Shoyu prosseguiu:

— E quanto a você, Dayu, diga-me: quem a atrai mais, um nobre ou um mercador?

— Ora, Funabashi-sama!... — disfarçou Yoshino com um riso cristalino.

— Não ria, é sério! Bato à porta do seu coração com esta pergunta. Hah, estou ouvindo, ouço o seu coração responder: a cortesã Yoshino também prefere um mercador! Pronto, acompanhe-me imediatamente aos meus aposentos. Saibam todos que eu, Shoyu, conquistei Yoshino e a levo comigo!

Assim dizendo, o velho mercador agarrou firmemente a mão da cortesã e, alerta, preparou-se para se erguer.

 

Mitsuhiro chegou a derramar o saque de puro espanto e depositou às pressas a taça.

— Brincadeiras têm limite! — exclamou, arrancando a cortesã das mãos de Shoyu e apertando-a bem junto a si.

— Por quê? Por quê? — replicou Shoyu, agora em pé. — Não a estou raptando contra a vontade dela: levo-a comigo apenas porque esse parece ser o seu desejo. Não é verdade, Dayu?

Presa entre os dois homens, só restava à cortesã sorrir, enquanto Mitsuhiro e Shoyu a puxavam, cada um por uma das mãos.

— Que faço agora? — murmurou, totalmente embaraçada.

Nenhum dos dois homens estava sinceramente empenhado em ganhá-la, mas aparentar empenho e sinceridade, e perturbar a quem de direito, fazia parte das regras do jogo. Mitsuhiro não cedia um passo, nem Shoyu se deixava convencer.

— Vamos lá, Dayu, só o seu coração pode pôr fim a este cabo de guerra amoroso: qual aposento pretende prestigiar? Siga o que seu coração ordenar!

Insistindo e atormentando, os dois homens divertiam-se.

— Ora, isto está ficando interessante — disse Takuan, acompanhando os acontecimentos. Aliás, não só acompanhou, como também contribuiu com a sua quota na perturbação, perguntando enquanto bebia:

— Vamos, Dayu, qual é a sua preferência?

Foi então que o gentil Konoe Nobutada, fazendo jus à fama de cavalheiro, interveio:

— Vejam só, que clientes mal-educados! Yoshino não pode optar nem por um, nem por outro. Sejam razoáveis: vamo-nos juntar num único aposento e divertir-nos em companhia uns dos outros. Que acham disso? — disse, numa tentativa de salvar a situação. — E por falar nisso, acho que Koetsu ficou sozinho no outro aposento. Vão chamá-lo! — ordenou às demais mulheres.

Shoyu, no entanto, continuou sentado ao lado da cortesã Yoshino, irredutível.

— Nada disso. Não é preciso ir chamá-lo: estou retornando aos meus aposentos neste instante, levando Yoshino comigo — disse.

Mitsuhiro, ao ouvir isso, agarrou Yoshino com maior firmeza ainda.

— Quero ver, quero ver se é capaz! — replicou.

— Ora, essa, fidalgo atrevido! — desafiou-o agora Shoyu abertamente. Voltou para Mitsuhiro o olhar brilhante, de bêbado, e metendo a taça de saque debaixo de seu nariz, disse:

— Vamos então resolver qual de nós terá a honra da companhia da bela Yoshino, disputando para ver quem bebe mais na frente dela.

— Uma disputa para ver quem bebe mais? Essa é boa! — retorquiu Mitsuhiro, escolhendo uma taça bem maior e depositando-a sobre uma mezinha de apoio entre os dois. — Esqueceu quantos anos tem, vovozinho?

— Suficientes para competir com um fidalgo delicadinho! Vamos, ao desafio!

— Não vejo graça em beber simplesmente alternando as vezes. Vamos incrementar a brincadeira: que regras decidirão a vez?

— Quem rir primeiro numa disputa de carrancas tem de beber.

— Coisa mais sem graça!

— Jogo das conchas[83]?

— Nunca, com um velho malcheiroso.

— Comentário maldoso! E que tal janken[84]?

— Concordo. Vamos lá.

— Bonzo Takuan, sirva de árbitro!

— Às ordens.

Os dois homens se encararam seriamente iniciando a brincadeira. A cada rodada o perdedor era obrigado a virar uma taça de saque e todos rolavam de rir com os irritados comentários que se seguiam.

Aproveitando esse momento, Yoshino-dayu ergueu-se de manso e arrastando atrás de si com graça a longa cauda do quimono, seguiu pelo corredor e desapareceu no interior do prédio.

A disputa tinha tudo para terminar em empate, pois os participantes eram experientes e resistiam muito bem. A contenda parecia nunca chegar ao fim.

Mal a cortesã Yoshino se afastou, Konoe Nobutada murmurou:

—Acho que vou-me embora também... — e retirou-se. O árbitro Takuan, sonolento, pôs-se a bocejar ostensivamente.

Nem assim os dois homens desistiram de disputar. Takuan os abandonou e se deitou no meio do aposento. Ergueu a cabeça, procurou ao redor e, ao descobrir Sumigiku-dayu ao seu lado, apoiou a cabeça em seu colo sem ao menos lhe pedir licença. Dormitar era bom, mas Takuan lembrou-se de Joutaro e Otsu e pensou: “Pobrezinhos! Devem estar sentindo minha falta. Preciso ir-me embora.”

Os dois estavam nos últimos tempos hospedados na mansão Karasu-maru — Joutaro desde que chegara de Ise com a encomenda do sacerdote Arakida, e Otsu, havia já alguns dias agora.

Takuan surgira de repente no vale Otowa na noite em que Otsu fora perseguida pela velha Osugi pelas seguintes razões:

O monge e Karasumaru Mitsuhiro eram velhos amigos, gostavam das mesmas coisas — poesia, zen, saque — e partilhavam frustrações. E aconteceu que o monge tinha recebido em dias recentes uma carta de Mitsuhiro, em que este lhe dizia:

“E então, velho amigo? Estamos no Ano Novo: o que faz você enfurnado num velho templo interiorano? Não sente falta da vida cultural, do fino saque da província de Nada, das mulheres, e dos tordeiros à margem do Kamo? Se está com sono, faça zen por aí; se quer um zen vivo, pratique-o entre nós. E se sente falta da civilização, por que não vem me ver?”

A carta tinha trazido Takuan a Kyoto.

E chegando à mansão Karasumaru o monge viu de longe o menino Joutaro, pelo jeito brincando incansavelmente todos os dias no interior da extensa propriedade. Perguntou a Mitsuhiro a razão de sua presença e ouviu uma detalhada explicação. Takuan chamou então o menino e o questionou, inteirando-se de que Otsu sozinha tinha seguido na manhã do primeiro dia do ano em companhia da velha Osugi para a estalagem dela e que lá morava desde então, não tendo retornado nenhuma vez, nem mandado um único bilhete.

— Isso é grave! — comentara Takuan assustado, saindo nesse mesmo dia à procura da hospedaria de Osugi. A noite já caía quando encontrou a estalagem ao pé da ladeira Sannen-zaka. Ao sabê-las ausentes, o monge, cada vez mais aflito, fizera-se acompanhar de um servo do estabelecimento e saíra à procura da jovem no santuário Kiyomizudera.

Naquela noite, Takuan tinha conseguido trazer Otsu ilesa até a mansão Karasumaru. Mas a jovem, que passara por uma experiência aterrorizante nas mãos de Osugi, tivera febre alta a partir do dia seguinte, e não havia ainda conseguido erguer-se da cama até agora. O menino Joutaro velava por ela dia e noite, refrescando-lhe a testa com compressas frias e dando-lhe remédios com tocante zelo.

—Aqueles dois devem estar à minha espera... — afligia-se Takuan, mas seu companheiro, Mitsuhiro, longe de pensar em ir para casa, parecia mais animado que nunca.

Aos poucos, porém, a brincadeira perdeu a graça e a dupla começou simplesmente a beber sem se importar em saber quem vencera ou perdera, logo se engajando em acirrada discussão.

Os temas discutidos eram todos de suma importância: a classe guerreira e o domínio político, a nobreza e o seu valor, a classe mercantil e a expansão além-mar.

Takuan, que tinha saído de perto da cortesã e se recostava agora num pilar, escutava de olhos fechados. Parecia dormir, mas o sorriso com que reagia a certos trechos da discussão mostrava que ele estava alerta.

Pouco depois, Mitsuhiro comentou no tom descontente dos que começam a despertar de uma bebedeira:

— Ora... Quando foi que o senhor Konoe se retirou? Shoyu também parecia sóbrio ao reclamar:

— Pior ainda, Yoshino desapareceu!

— Que falta de consideração! — tornou Mitsuhiro. Voltou-se para a pequena Rinya que dormitava a um canto e ordenou:

— Vá chamar Yoshino!

Rinya arregalou os olhos e se afastou pelo corredor. Ao passar pelos aposentos anteriormente ocupados por Shoyu e Koetsu, espiou casualmente e se espantou: ali estava Musashi, cujo retorno ninguém tinha percebido, sentado sozinho, frente a frente com uma lamparina.

 

— Oh! Bem-vindo de volta, senhor. Quando chegou que eu não percebi? — disse Rinya.

— Acabo de chegar neste instante — respondeu Musashi.

— Pelo portãozinho dos fundos?

— Sim.

— E onde esteve, senhor?

— Lá fora.

— Aposto que foi se encontrar com alguma mulher! Deixe estar, vou contar tudo à minha Dayu! — disse Rinya.

Musashi sorriu com o comentário precoce e perguntou:

— Não vejo os meus companheiros: onde estão eles?

— No outro aposento. Juntaram-se ao grupo de Kangan-sama e estão se divertindo junto com o monge.

— E quanto ao senhor Koetsu?

— Não sei...

— Será que já se foi? Porque, nesse caso, eu também me vou.

— Ah, mas quem vem a esta casa não pode ir-se embora sem a autorização da minha Dayu, não sabia? Se não lhe apresentar as despedidas, vão rir do senhor, e eu serei admoestada.

O inexperiente Musashi ouvia os gracejos da menina com seriedade, acreditando que essas eram as regras da casa.

— Não se vá, portanto, sem me avisar, ouviu, senhor? Fique aqui até eu voltar.

A menina provavelmente anunciara o retorno de Musashi no outro aposento pois, pouco depois, Takuan entrou:

— E então, Musashi, como vai? — disse, batendo de leve em seu ombro.

— Ah!... — exclamou o jovem, surpreso. E com razão. Rinya lhe havia falado de um monge no outro aposento, mas ele jamais imaginara que se tratava de Takuan.

— Quanto tempo, senhor... — disse, afastando a almofada sobre a qual se sentava, tocando o tatami com ambas as mãos e inclinando-se respeitosamente. Takuan, porém, logo tomou as mãos de Musashi nas suas e disse:

— Formalidade não combina com este lugar. Vamos encerrar os cumprimentos por aqui. Ouvi dizer que o senhor Koetsu também veio, mas... Aonde foi ele?

— Com efeito, aonde...

— Vamos procurá-lo e juntar-nos a ele. Tenho muito a conversar com você, mas deixemos isso para mais tarde.

Assim dizendo, Takuan abriu uma divisória próxima. E ali estava Koetsu, mergulhado num kotatsu e cercado por um pequeno biombo, dormindo confortavelmente aquecido na fria noite de neve.

Despertá-lo de um sono tão tranqüilo era crueldade. Koetsu, no entanto, provavelmente sentindo os olhares próximos ao seu rosto, despertou sozinho. Viu Musashi e Takuan, e logo uma expressão de espanto cruzou-lhe o olhar.

Posto a par das circunstâncias, Koetsu concordou em se juntar com Mitsuhiro no outro aposento.

Mas tanto o fidalgo como Shoyu já pareciam enfadados, e nas fisionomias de todos começava a pairar um certo ar de desânimo, indicando que a festa chegava ao fim.

A bebida, a essa altura, passava a ter um gosto amargo, os lábios tinham ficado ressequidos e a água saciava a sede, mas lembrava a todos que era chegada a hora de voltar para casa. Especialmente frustrante era o fato da cortesã Yoshino não ter mais voltado a dar o ar de sua graça.

— Vamos embora! — sugeriu alguém quando todos já tinham se decidido a fazer o mesmo. Os homens ergueram-se prontamente, temerosos, ao que parecia, de ver os últimos vapores da bebida se esvaírem.

Foi então que duas atendentes[85] da cortesã Yoshino, precedidas por Rinya, chegaram às carreiras, e juntas curvaram-se formalmente diante do grupo.

— Desculpem a demora, senhores. Dayu-sama mandou-me dizer que finalmente terminou os preparativos e os está aguardando. Sei que estavam prestes a retirar-se, mas a neve torna a noite luminosa. Por que não passam mais alguns momentos conosco, aquecendo-se antes de enfrentarem o frio do caminho de volta?

Qual o sentido daquilo? Mitsuhiro e Shoyu entreolharam-se, sem saber o que pensar.

 

O espírito festivo, uma vez perdido, dificilmente seria retomado, principalmente nesse mundo de prazeres efêmeros. Ao perceber que o grupo hesitava, uma das atendentes tornou a insistir:

— Dayu-sama mandou-me também dizer: “Sei que me consideram uma mulher fria, que abandona seus convidados no meio da noite sem avisar. No entanto, nunca passei por momentos tão difíceis quanto os de hoje: se atendo os desejos de Kangan-sama, com certeza contrariaria Funabashi-sama. Se, pelo contrário, agisse de acordo com as instruções deste, melindraria Kangan-sama. Por isso retirei-me sem avisar mas, na verdade, quero entretê-los de modo a não ferir o orgulho de ninguém.” Assim me mandou dizer Yoshino-sama, que os está aguardando em seus próprios aposentos para recebê-los como convidados de honra. Por favor, senhores, atendam a esse seu desejo e retardem um pouco mais o retorno a seus lares.

Ignorar o convite e ir embora seria mostrar intolerância. Além disso, Yoshino como anfitriã prometia ser um entretenimento diferente. A perspectiva os animou ligeiramente.

— Vamos?

— Não podemos ignorar um convite tão especial.

Seguiram pois a aprendiz e as atendentes até um canto que dava para o jardim, e lá encontraram cinco pares de sandálias de palha bastante rústicas. Pisada por elas, a neve macia não guardou as pegadas dos convivas.

O detalhe fez com que todos, com exceção de Musashi, imaginassem prontamente:

— Ela está nos convidando para uma cerimônia de chá.

A cortesã Yoshino era uma famosa cultora da cerimônia do chá. Terminar a noite tomando um delicioso chá quente seria muito agradável, pensaram uns e outros. As mulheres, porém, passaram ao lado da casa de chá sem se deter e se aprofundaram cada vez mais no jardim, rumo a uma área que lhes pareceu uma horta rústica.

Um pouco apreensivo agora, Mitsuhiro procurou saber:

— Esperem, meninas, onde pensam levar-nos? Isto aqui é uma plantação de amoras!

A isso, uma das atendentes sorriu e respondeu:

— Isto não é uma plantação de amoras. É um jardim de peônias, onde todos os anos os senhores se sentam e passam momentos agradáveis ao ar livre, no fim da primavera.

Mitsuhiro continuava com expressão infeliz, e o frio o fez reclamar, mais amargo que nunca:

— Amoras ou peônias, tanto faz: tudo se torna igualmente triste debaixo desta neve. Estou começando a achar que Yoshino quer nos fazer pegar um belo resfriado.

— Desculpe-nos. Yoshino-sama, porém, espera-os logo adiante. É só mais um pouco. Siga-nos, por favor.

No canto indicado pela mulher havia uma casinha solitária, com teto de colmo. A construção, uma genuína casa camponesa, devia estar ali muito antes da zona alegre ter sido transferida para a região. Cercada de árvores, constituía uma unidade totalmente à parte do jardim artificial da casa Ougi-ya, mas de qualquer modo era parte da propriedade.

— Entrem, senhores — convidaram as mulheres, passando primeiro para o vestíbulo preto de fuligem da pequena casa. — Os convidados já estão aqui! — anunciaram.

De trás de um shoji iluminado pelo fogo de um braseiro veio a voz de Yoshino.

— Bem-vindos. Aproximem-se, por favor.

— Ora, parece até que estou num lugarejo bucólico, bem longe da cidade — murmurou alguém. Todos os olhares convergiram para as capas de palha dependuradas em pregos na parede do vestíbulo, cujo piso era de terra batida. Cheios de expectativa com relação ao tipo de entretenimento que lhes teria preparado a cortesã, os homens entraram um a um no aposento.

 

LENHA PERFUMADA

Yoshino recebeu seus convivas usando um quimono azul claro liso com obi preto, e uma leve maquiagem. O penteado, simples, lembrava o de uma dona de casa comum.

— Ora, surpreendente!

— Que beleza!

Entusiasmados, os homens elogiaram-lhe a aparência. A cortesã lhes pareceu muito mais bela ali, no humilde ambiente de uma casa de camponeses, sentada à beira de um rústico braseiro e vestindo um simples quimono de algodão, do que quando se acomodava na frente de um biombo dourado, vestindo uma suntuosa capa de tecido Momoyama e exibia um sorriso nos lábios de brilho perolado.

— É uma bela mudança, sem dúvida! — disse Shoyu, sempre parcimonioso nos elogios. Sua língua viperina chegou até a perder o veneno. Sem oferecer almofadas, a cortesã os convidou para perto do braseiro rústico.

— Como vêem, esta é uma cabana primitiva e não posso recebê-los com um banquete. Mas pensei bem e descobri que posso oferecer-lhes nesta noite de neve algo muito melhor que as mais refinadas iguarias, igualmente apreciado por ricos e pobres: o fogo. De modo que preparei lenha em quantidade mais que suficiente para a noite inteira, como podem ver. Senhores, aqueçam-se por favor: a noite convida a confidencias; podemos aqui permanecer até o dia raiar.

Então, era assim que a cortesã imaginara agradá-los: depois da longa caminhada na neve, nada como o calor de um belo fogo, deu-se conta Koetsu, assentindo com a cabeça.

Shoyu, Mitsuhiro e Takuan acomodaram-se informalmente, cruzando as pernas, e aqueceram as mãos no fogo.

— Aproxime-se também, senhor — disse Yoshino, afastando-se ligeiramente para dar lugar a Musashi, convidando-o com o olhar.

Eram seis pessoas em torno de um braseiro quadrado, e não havia espaço de sobra.

Musashi vinha-se sentindo tolhido, todo formal. Estava na presença de Yoshino-dayu, a primeira de uma série de cortesãs com o mesmo nome, quase tão famosa quanto Hideyoshi e Ieyasu. Ela era considerada mais fina que Izumo-no-Okuni[86], mais bela e espirituosa que Yodo-gimi, a famosa Dama de Yodo do castelo de Osaka, mãe de Hideyori, o herdeiro do falecido kanpaku Hideyoshi.

Tanta fama explicava por que os homens que pagavam por sua companhia eram chamados simplesmente de “clientes”, enquanto Yoshino, que vendia graça e beleza, era chamada “Dayu-sama”. Musashi já tinha ouvido dizer que Yoshino-dayu se valia de sete serviçais para tomar um simples banho e que tinha à sua disposição duas hikibune para lhe cortar as unhas. No entanto, indagava-se: que graça viam Koetsu, Shoyu ou Mitsuhiro, os ditos “clientes” da cortesã, na situação atual? Por mais que os observasse, não foi capaz de compreender.

Apesar de tudo, percebia que mesmo nesse tipo de diversão incompreensível para ele, os clientes obedeciam certas regras de comportamento e Yoshino mantinha a graça feminina, os dois lados compreendendo-se mutuamente. A Musashi, que desconhecia por completo esse universo sofisticado, só restava permanecer rígido, sentindo o rosto em brasa e o coração acelerado cada vez que o luminoso olhar da cortesã recaía sobre ele.

— Por que se retrai tanto, senhor? Aproxime-se!

O insistente convite de Yoshino finalmente o convenceu.

— Sim, senhora. Nesse caso... — disse, chegando-se timidamente para perto da cortesã e aquecendo as mãos no fogo, como os demais.

No momento em que Musashi se acomodou ao seu lado, Yoshino lançou um rápido olhar à manga do seu quimono. Minutos depois, enquanto os demais se engajavam em animada conversa, ela apanhou um lenço de papel e com ele pressionou furtivamente a beira da manga que lhe havia chamado a atenção.

— Ora... Muito obrigado! — disse Musashi, olhando para a própria manga. Tivesse ele ficado quieto, ninguém teria percebido o gesto, mas o agradecimento atraiu os olhares dos demais para a mão de Yoshino.

O lenço de papel na mão da cortesã havia absorvido algo vermelho, viscoso.

Mitsuhiro arregalou os olhos de espanto e deixou escapar:

— Ora! É sangue!

Yoshino sorriu delicadamente e disse, tranqüila:

— Não, senhor, era uma pétala de peônia.

 

Cada homem tinha na mão uma taça e apreciava o saque a seu gosto. Os gravetos ardiam no braseiro, e os reflexos do fogo bruxuleavam suavemente nos rostos das seis pessoas que, silenciosas, pensavam na neve a cair lá fora.

Quando o fogo arrefecia, Yoshino apanhava de um cesto gravetos de quase 30 centímetros de comprimento e os lançava no braseiro.

Aos poucos, os homens foram-se dando conta de que os referidos gravetos não eram simples galhos de pinheiros ou arbustos secos, mas um tipo de madeira que se consumia vivamente. Além disso, a lenha produzia um fogo claro, realmente belo.

“Ora, que gravetos são esses?”

Apesar da dúvida, ninguém ainda questionara porque a beleza das chamas era intensa a ponto de deixá-los mudos de êxtase.

Quatro ou cinco gravetos haviam tido o poder de iluminar o aposento inteiro, deixando-o claro como o dia.

A chama lembrava uma peônia branca ao vento, e a ela mesclavam-se vez ou outra vivas labaredas roxas e douradas.

— Dayul — chamou Mitsuhiro, não conseguindo mais conter-se. — De onde vêm esses galhos que você lança ao fogo? Não me parecem simples gravetos.

A essa altura, o próprio Mitsuhiro, assim como os demais convidados, já tinham começado a perceber uma suave fragrância no aposento agradavelmente aquecido. O perfume provinha do fogareiro, não havia dúvida.

— São galhos de peônia — respondeu Yoshino.

— De peônia?

A resposta intrigou a todos. Sempre haviam pensado na peônia como uma flor ornamental, e essa imagem dificilmente casava com o de uma árvore capaz de produzir galhos dessa grossura. Yoshino passou às mãos de Mitsuhiro o graveto que ia lançar ao fogo e convidou:

— Examine-o bem.

Mitsuhiro passou-o às mãos de Shoyu e Koetsu, e exclamou:

— É verdade, isto é um galho de peônia! Eis porque são diferentes! Yoshino então explicou a todos que o jardim de peônias da propriedade já

existia muito antes da construção do Ougi-ya, e muitos espécimes, com mais de cem anos de idade, eram atacados por insetos, razão por que tinham de ser podados todos os anos no início do inverno de modo a possibilitar o surgimento de novos brotos e botões. A lenha era o resultado dessas podas, mas a quantidade era limitada.

Cortados e lançados ao fogo, os galhos produziam uma chama suave e bela, não fumegavam e chegavam a exalar um leve aroma, provando que a peônia continuava a ser a rainha das flores mesmo depois de seca e transformada em lenha. Por esse exemplo se via a importância da qualidade, tanto de plantas como dos seres humanos. Pessoas havia que davam flores uma vida inteira, mas quantas, depois de mortas, seriam capazes de se transformar em lenha perfumada, como as peônias?, perguntava Yoshino.

— Eu, por exemplo, que lhes falo com tanta sensatez sobre a qualidade das pessoas, sou uma pobre flor apenas admirada no seu auge, destinada a logo murchar e se transformar em ossos, ossos brancos, sem perfume... — acrescentou Yoshino com um triste sorriso.

 

Os galhos de peônia crepitavam e as pessoas à beira do braseiro tinham-se esquecido da noite que avançava.

— Nada tenho a lhes oferecer, senhores, mas para compensar, garanto-lhes que o estoque de saque e de galhos de peônia não se esgotará, mesmo que a noite chegue ao fim.

A hospitalidade de Yoshino foi capaz de comover Haiya Shoyu, o homem afeito a todo tipo de luxo.

— O que nos oferece é um banquete que supera os de reis — disse ele.

— Em troca, peço-lhes a gentileza de registrarem aqui uma recordação deste momento — disse Yoshino, trazendo uma caixa com material para escrever. E enquanto ela preparava a tinta, as pequenas kamuro estenderam um tapete no aposento vizinho e depositaram sobre ele algumas folhas de papel.

— Monge Takuan, atenda ao pedido de dayu — disse Mitsuhiro, indican-do-o no lugar de Yoshino. Takuan balançou a cabeça assentindo, mas replicou:

— Primeiro, o senhor.

Mitsuhiro avançou então os joelhos e se posicionou diante das folhas de papel, desenhando um único ramo de peônia. Takuan escreveu em seguida, acima do desenho:

O que lamentas, pobre ser

Sem cor ou fragrância,

Neste mundo de flores

Que lamentando fenecem?

Ao ver que Takuan escolhia um poema em estilo japonês, Mitsuhiro transcreveu uma poesia do chinês Tai Bunkou[87].

Descansando, contemplo a montanha.

Trabalhando, a montanha me contempla.

A montanha e eu

Contemplamo-nos semelhantemente,

Mas a semelhança aí termina,

Pois o descanso em tudo supera o trabalho.

Yoshino, instada pelos demais, não se fez rogada e registrou, logo abaixo do poema de Takuan:

A flor em seu auge

 Tem certo ar triste:

Talvez pressinta

Seu próximo estiolar.

Shoyu e Musashi apenas observaram em silêncio. O jovem, principalmente, sentiu alívio por não ter sido instado a registrar também um poema.

Momentos depois, Shoyu notou a um canto do aposento vizinho um alaúde biwa[88] e pediu a Yoshino que executasse uma peça, sugerindo ao mesmo tempo que com isso encerrassem a noite.

Os demais o apoiaram entusiasticamente. Yoshino então apanhou o instrumento com naturalidade, sem mostrar orgulho ou falsa modéstia.

Sentou-se então na penumbra do aposento vizinho, longe do fogo. Os demais aquietaram-se em torno do braseiro e ouviram atentos um trecho do épico Heike Monogatari.

O fogo se extinguia lentamente, mergulhando o ambiente na penumbra, mas embevecidos, ninguém se lembrou de lançar mais gravetos no braseiro. E quando as quatro cordas do instrumento passaram de súbito a vibrar acordes em adagio indicando que a melodia chegava ao fim, o fogo quase extinto do braseiro voltou à vida e lançou uma labareda no ar, chamando os homens de um longínquo mundo de volta à realidade.

— Relevem a tosca apresentação — disse Yoshino ao terminar. Sorriu de leve e depôs o instrumento, retornando a seguir para o seu lugar.

Era a deixa, e todos se levantaram. Musashi já havia descido antes de todos ao vestíbulo de terra batida com uma expressão de alívio, semelhante ao de um homem que acaba de ser salvo de uma vida vã.

Yoshino apresentou suas despedidas a todos os convidados, um a um, com exceção de Musashi.

No momento em que o jovem, em companhia dos demais, tentava deixar a casa, Yoshino o deteve pela manga:

— Fique aqui comigo, Musashi-sama: sinto que não devo deixá-lo partir esta noite — sussurrou ela.

 

Musashi enrubesceu como uma virgem. Fingiu não tê-la ouvido, mas parecia desconcertado, e isso chamou a atenção dos demais.

— Não se importará se eu o retiver aqui esta noite, não é, senhor? — disse Yoshino a Shoyu. Este respondeu:

— Claro que não! Trate-o com carinho. Não temos nenhum motivo para levá-lo embora à força, não é mesmo, senhor Koetsu?

Musashi desvencilhou-se das mãos que o retinham e tentou forçar a passagem para fora da casa, dizendo:

— Não, vou-me embora em companhia do senhor Koetsu! Koetsu, porém, concordou com Shoyu:

— Não recuse, mestre Musashi. Passe a noite aqui, em companhia de Yoshino, e retorne pela manhã à minha casa. Leve em consideração as palavras da dayu: ela se preocupa com você.

Musashi conjecturava se os homens não estariam tramando deixar, a ele, jovem guerreiro ingênuo e inexperiente, sozinho nesse mundo de prazeres e mulheres, para poder rir e transformá-lo em assunto de pilhérias numa nova noitada. No entanto, as expressões sérias nos rostos de Koetsu e Yoshino desmentiam a hipótese.

Excetuando esses dois, os demais se divertiam com o constrangimento de Musashi.

— De que reclama? Você é o homem mais sortudo de todo o país!

— Se não quer, posso substituí-lo!

Momentos depois, no entanto, as brincadeiras e pilhérias dos convidados cessaram abruptamente: um homem entrou correndo pelo portãozinho nos fundos da casa, chamando-lhes a atenção para um detalhe que até então havia passado despercebido.

Pois o homem recém-chegado era um serviçal da casa Ougi-ya que, obedecendo a uma ordem de Yoshino, tinha saído a verificar os arredores. Ninguém sabia quando a cortesã tinha tomado essas providências, e todos se mostraram bastante surpresos. Menos Koetsu. O mercador, que tinha estado em companhia de Musashi desde cedo, havia compreendido tudo no momento em que a cortesã limpara com um lenço de papel a mancha de sangue na sua manga.

— Todos os senhores podem retirar-se, menos Musashi-sama: ele não deverá sair esta noite dos limites desta zona — disse o empregado da casa, ofegante. Ele falava tão rápido que chegava a parecer exagerado. — A esta hora só há um portal aberto na cidade. E, ao redor desse portal, assim como nas proximidades da casa de chá Amigasa e por trás dos chorões das alamedas, existe uma multidão de guerreiros em roupas de guerra, espalhados em grupos de cinco a dez. São todos discípulos da Academia Yoshioka, dizem os taberneiros e lojistas dessas áreas, trêmulos, por trás de portas fechadas, esperando o pior a qualquer momento. Dizem também que há quase uma centena deles espalhados pela área entre o portal e o hipódromo. A situação é realmente grave!

O homem batia os dentes genuinamente apavorado. A situação, conforme o homem dizia, devia ser realmente grave, mesmo descontando-se metade do que ele dizia.

— Obrigada. Pode retirar-se agora — disse Yoshino, afastando-o. Voltou-se então outra vez para Musashi e lhe disse:

— Sei que, depois disso, o senhor se sentirá compelido a partir de qualquer modo, só para não ser tachado de covarde. Peço-lhe, no entanto, que ponha de lado a valentia: deixe que o chamem de covarde esta noite, basta não sê-lo amanhã, não é verdade? Além de tudo, o senhor veio até aqui para se divertir. E se esse era o seu objetivo, acho que um homem demonstra maior grandeza entregando-se de corpo e alma à diversão. Seus adversários aguardam-no armando uma emboscada. Evitá-la não irá manchar seu nome. Ao contrário: saber dela e mesmo assim ir ao seu encontro fará com que o chamem de imprudente. E as conseqüências de seu ato prejudicarão não só esta cidade como também os seus companheiros: se eles se retiram em sua companhia, poderão ver-se envolvidos na briga e feridos. Pense bem a respeito e entregue-se a mim, só por esta noite. Senhores, Musashi-sama está sob meus cuidados: podem ir despreocupados para suas casas.

 

UMA CORDA QUE SE PARTE

Não havia mais viva alma em pé no bairro. Vozes cantando e sons de instrumentos musicais haviam cessado por completo. O sino acabara de anunciar o último terço da hora do boi[89] e mais de 15 minutos já se haviam passado desde que os convidados tinham-se retirado.

Musashi se sentava sozinho no umbral do aposento à entrada da casa, parecendo disposto a ali ficar até o dia raiar, como um refém mantido a contragosto.

Yoshino permanecia no local ocupado anteriormente à beira do braseiro e continuava a lançar vez ou outra um galho de peônia ao fogo, mesmo depois da partida dos demais convidados.

— Aproxime-se do fogo, senhor. Esse lugar é frio — disse ela. A observação fora repetida inúmeras vezes, mas Musashi respondia, a cada vez, sem encarar o rosto da cortesã.

— Não se incomode comigo e deite-se, pois partirei assim que o dia clarear.

Ao se ver sozinha com o jovem, Yoshino também perdeu a espontaneidade, quase acanhada. “Como pode uma mulher exercer a profissão de cortesã e se acanhar na presença de um homem?”, poderia observar alguém habituado a freqüentar o mundo das prostitutas baratas e que desconhece a educação e o comportamento das grandes cortesãs, gueixas que chegaram à posição de dayu.

Contudo, havia uma grande diferença entre a cortesã Yoshino, acostumada a lidar com homens todos os dias, e o simplório Musashi. Yoshino, além do mais, devia ser um ou dois anos mais velha que Musashi, e em matéria de jogos amorosos, infinitamente mais experiente. Mesmo assim, ao se ver sozinha no meio da noite com um jovem que, deslumbrado, coração palpitante, mal conseguia encará-la, sentiu a pureza renascer-lhe no coração e experimentou a mesma palpitação do jovem companheiro.

As ajudantes hikibune e as pequenas aprendizes tinham preparado cobertas dignas de uma princesa momentos antes de se retirarem. Do travesseiro de cetim pendiam pequenos guizos de ouro que brilhavam vagamente na penumbra do quarto. Para os dois jovens tensos, até esse pequeno detalhe impedia-os de relaxar.

A neve acumulada sobre o teto e o alpendre desabava vez ou outra, provocando estrondos. O ruído era assustador, fazia imaginar um homem saltando do teto para o chão.

Yoshino voltava-se vez ou outra para observar a reação de Musashi. A sombra do jovem projetada na parede parecia inchar gradativamente, como um porco-espinho ameaçado. Seus olhos eram límpidos e penetrantes, como os de um falcão. Seus nervos pareciam chegar a todos os pontos do seu corpo, até à ponta dos cabelos. Se algo ou alguém chegasse a tocar-lhe o corpo nesses momentos seria estraçalhado, sentia Yoshino.

O silêncio persistia, e a cortesã sentiu um inexplicável arrepio percorrer-lhe o corpo. A madrugada avançava e o frio se intensificava, mas o arrepio nada tinha a ver com esses fenômenos.

Em meio ao silêncio, calafrios e palpitações, os dois corações batiam acelerados. Os galhos de peônia continuavam a arder. A chaleira começou a silvar, deixando escapar vapor pelo bico, e a essa altura Yoshino já tinha recuperado a costumeira serenidade. Com gestos tranqüilos, ela se pôs a preparar o chá.

— O dia vai raiar em breve, Musashi-sama. Aproxime-se, tome um pouco de chá e aqueça as mãos.

 

— Obrigado — disse Musashi com uma ligeira mesura, continuando a lhe dar as costas, sem sair do lugar.

— Sirva-se — tornou a oferecer Yoshino. Insistir mais seria importunar. A cortesã calou-se.

O chá, preparado com tanta dedicação, esfriava na chávena sobre um pequeno retalho de crepe. Repentinamente, Yoshino removeu o retalho e jogou o chá num recipiente ao seu lado, irritada ou talvez julgando inútil tanta consideração por um tolo interiorano.

E então, lançou para Musashi um olhar repleto de piedade. De costas, o jovem continuava rígido, parecendo envolto em armadura de ferro. Não havia nenhuma brecha em sua guarda.

— Ouça, Musashi-sama.

— Pois não?

— Contra quem se guarda o senhor desse jeito?

— Não me guardo contra ninguém, mas contra um descuido de minha parte.

— E contra seus inimigos?

— Naturalmente contra eles também.

— Digo-lhe então que se os homens da academia Yoshioka invadissem agora este aposento, o senhor seria golpeado instantaneamente. Não posso deixar de sentir que assim acontecerá. O senhor é digno de piedade.

— Ouça-me, Musashi-sama. Sou mulher, não conheço os caminhos da guerra, mas venho acompanhando seus movimentos e olhares desde o começo da noite e tenho a horrorosa sensação de estar vendo um homem prestes a morrer. Em outras palavras, a morte paira em suas feições. Por acaso considera positivo um estudante de artes marciais, um guerreiro, sair pelo mundo nessas condições e enfrentar incontáveis espadas? De que jeito pretende vencer seus inimigos? — disse ela em tom reprovador, sorrindo ao mesmo tempo com ligeiro desprezo.

— Como? — disse Musashi, no mesmo instante. Ergueu-se do seu canto, aproximou-se de Yoshino e sentou-se à sua frente, rígido. — Quer me parecer que você me chamou de imaturo?

— Ofendeu-se?

— Nem tanto, pois quem assim me chama é uma mulher. No entanto, quero saber: o que quis dizer quando afirmou ver em mim um homem prestes a morrer?

Embora tivesse dito que não se ofendera, o brilho no olhar de Musashi estava longe de ser sereno. Sentado ali, à espera do dia raiar, Musashi sentia as imprecações, os estratagemas e as lâminas dos Yoshioka envolvendo-o como um manto invisível. Ele não precisara da ajuda de Yoshino para saber o que o esperava lá fora e estava preparado.

Depois do duelo no templo Renge-ou, a idéia de partir para outras terras e ocultar-se sem dúvida lhe ocorrera, mas se assim procedesse, estaria sendo grosseiro com Koetsu, o companheiro da noitada, e também com Rin-ya, a quem prometera voltar sem falta. E depois, boatos haveriam de surgir dando conta de que ele fugira com medo da revanche dos Yoshioka, e isso era insuportável. Assim sendo, ele retornara ao Ougi-ya como se nada tivesse acontecido e continuara fazendo parte do alegre círculo daquelas pessoas. Comportar-se desse jeito fora uma dura provação e uma demonstração de largueza de espírito, pensava ele. E então, por que razão Yoshino se ria do seu procedimento, tachando-o de imaturo, por que afirmava que via em suas feições a sombra da morte?

Se a afirmativa não passava de uma simples brincadeira de cortesã desocupada, não merecia que perdesse tempo com isso. No entanto, se Yoshino falava com base em algum tipo de conhecimento, não podia deixar de ouvi-la. Um mar de lanças podia estar cercando a cabana agora, mas valia a pena desafiar a cortesã a se explicar, pensou Musashi, voltando para ela os olhos sérios e brilhantes, inquirindo-a agressivamente.

 

Aquele não era um simples olhar. Cortante, perigoso, quase poderia ser transferido para a ponta de uma espada. E esse olhar fixava de frente o rosto branco de Yoshino, verrumava-o à espera da resposta.

— Disse aquilo por simples capricho? — tornou Musashi com certa violência agora, impaciente com a imobilidade dos lábios da cortesã. Yoshino então tornou a mostrar de relance a sombra de um sorriso, e respondeu:

— Por certo, não! — disse, balançando a cabeça negativamente. — Como poderia eu sonhar em fazer esse tipo de observação por capricho, Musashi-sama, ao senhor, um guerreiro?

— Diga-me então: por que me vê como presa fácil da espada inimiga, um indivíduo fraco e inexperiente? Explique-se!

— Já que insiste tanto, vou explicar. Musashi-sama: o senhor prestou atenção ao som do biwa que há pouco toquei para entreter meus convidados?

— O som do biwa? E que tem isso a ver comigo?

— Tola fui eu em perguntar. Pois acredito que, tensos em busca de outros sons do começo ao fim de minha apresentação, seus ouvidos não foram capazes de distinguir na melodia a infinita variedade de sons e acordes que esse instrumento é capaz de produzir.

— Está enganada: eu os ouvi! Não estava distraído a ponto de não ouvi-los!

— Diga-me então: como acha que essas quatro cordas foram capazes de produzir com tanta facilidade toda aquela variedade de sons, e tons tão fortes ou por vezes tão suaves? Chegou a pensar nisso enquanto escutava?

— Para que pensaria? Apenas prestei atenção à história da princesa Yuya que você contava. Que mais havia para se escutar?

— Concordo com o que diz, senhor. Neste momento, porém, gostaria de comparar este biwa a um ser humano. E agora, mesmo sem pensar muito, não acha intrigante que essas quatro cordas e esse corpo de madeira possam produzir sons tão variados? E, em vez de nomear as notas correspondentes a cada um dos rríilhares de sons, vou declamar aqui um poema que talvez seja do seu conhecimento: Biwakou, de autoria de Hakurakuten[90], em que os sons do biwa são descritos com riqueza. Assim diz o poema.

Yoshino franziu ligeiramente as finas sobrancelhas e, em voz baixa, recitou com simplicidade:

A corda grossa estrondeia

É aguaceiro batendo no telhado.

A corda fina sussurra

Murmúrios ao pé do ouvido.

E estrondeando e sussurrando,

Grossa e fina juntas,

São pérolas grandes e pequenas

Caindo em travessa de jade,

Ou doce pássaro canoro

Trinando num galho em flor,

Ou regato sob o gelo

Soluçando débil, intermitente.

E eis que o som aos poucos congela

Como as águas do regato...

E congelando e falseando,

Por instantes se cala.

Dor profunda, amargura

Se avolumam então algures!

Ah! Melhor seria agora,

Que as cordas mudas ficassem,

Pois o vaso de prata abrupto se parte

E dele a água esguicha:

Saltam ginetes em armaduras,

Lanças e espadas retinem!...

Extingue-se a melodia,

A palheta no peito descansa,

Quatro cordas que de golpe estridulam,

Seda de alto a baixo rasgada.

— Veja, senhor, a variedade de sons que um biwa é capaz de reproduzir. O corpo desse instrumento sempre me intrigou, desde o tempo em que eu era uma jovem kamuro. Certo dia, incapaz de me conter, quebrei-o e depois o reconstruí. Ao repetir o processo algumas vezes, até uma pessoa de limitados conhecimentos como eu foi capaz de descobrir o espírito do biwa, oculto no seu corpo.

Yoshino interrompeu-se por um instante, ergueu-se suavemente, buscou o instrumento que há pouco havia tangido e voltou a sentar-se no mesmo lugar. Segurou-o a seguir de leve pelo braço e colocou-o em pé entre ela e Musashi, dizendo:

— Ao quebrar este corpo de madeira e espiar o coração do instrumento, descobri que nada havia de extraordinário por trás de seus sons. E agora, vou-lhe mostrar essa verdade.

Sua mão delicada brandiu de repente uma lâmina fina, semelhante a um pedaço de naginata. E enquanto Musashi continha a respiração, atônito, a lâmina penetrou fundo na junção das madeiras, rasgando de cima a baixo o corpo do instrumento com três ou quatro golpes seguidos, produzindo um som que o fez imaginar que o alaúde sangrava. Musashi sentiu uma dor aguda, como se a lâmina o houvesse atingido.

Yoshino tinha aberto o instrumento de alto a baixo.

 

— Observe, senhor — disse a cortesã, ocultando atrás de si a lâmina usada, sorrindo casualmente para Musashi.

O alaúde expunha agora pela fenda a cerne da madeira e a estrutura do corpo.

Em silêncio, Musashi observou o instrumento decomposto e o rosto da mulher à frente, indagando-se onde ocultaria ela um espírito tão violento. Na mente de Musashi, o ruído da lâmina ainda ressoava doloroso, mas no rosto de Yoshino não havia nem sombra de emoção ou rubor.

— Como vê, o instrumento nada tem em seu interior. Onde então se originam todas as variações de som? Simplesmente desta única peça transversal de madeira, que cruza o corpo por dentro. Esta peça é o verdadeiro reforço que mantém o corpo, a estrutura óssea que sustenta o instrumento, suas entranhas, seu coração. No entanto, graça alguma haveria se esta fosse uma simples peça resistente e tesa. Para que produzam variações no som, estas ondulações moduladoras foram propositadamente entalhadas na madeira. Mesmo isso, no entanto, não seria capaz de originar a verdadeira sonoridade. O som verdadeiro do biwa surge, na verdade, de um pequeno detalhe nesta peça transversal: seus dois extremos estão aparados na medida certa, provocando uma ligeira folga na rigidez da peça. O ponto que eu, com toda a humildade, gostaria de vê-lo compreendendo é o seguinte: a atitude mental de todos nós, seres humanos, perante a vida não deveria ser semelhante à estrutura de um biwa?

O olhar fixo de Musashi não desgrudava um milímetro do alaúde partido.

— Esta verdade simples deveria ser do conhecimento de qualquer um. No entanto, é típico da natureza humana não possuir sequer esta simples peça transversal a suportar-lhe o íntimo... Ao perceber no interior do biwa a rigidez e a folga desta peça reguladas na medida certa de modo a produzir, a um golpe da palheta nas quatro cordas, sons fortes que lembram o entrechocar de armas, ou agudos que sobem direto às nuvens, ocorreu-me certo dia se isto não poderia ser transposto para o nosso cotidiano. E ao comparar essa imagem com o que percebi em sua pessoa esta tarde, senti o perigo a que está exposto, pois o senhor, Musashi-sama, é pura rigidez, nada existe em sua pessoa que represente a mínima folga. Se a um biwa nessas condições encostássemos a palheta, o instrumento não produziria sons variados; e se mesmo assim insistíssemos em tocá-lo, suas cordas se partiriam e seu corpo se fenderia. Perdoe-me se o ofendo, mas minha alma assim se inquietou quando o conheci. Como vê, minhas palavras não são uma brincadeira de mau gosto. Considere-as preocupações desnecessárias de uma mulher presunçosa e não lhes dê importância, se assim desejar.

Um galo cantava ao longe.

Pelas frestas da porta, a forte claridade matinal se infiltrava, intensificada pela brancura da neve.

Musashi não ouvia o galo cantando: seu olhar denso estava preso na carcaça do alaúde, com a cerne branca exposta e as cordas partidas. Tampouco percebeu o sol se infiltrando pelas frestas.

— Ah!... O dia já raiou!

Pesarosa pela noite que se fora, Yoshino pensou em lançar mais gravetos ao fogo, mas eles já tinham acabado.

Pássaros chilreavam, portas se abriam, mas os ruídos matinais soavam abafados e distantes, parecendo provir de um outro mundo.

Yoshino, no entanto, não dava mostras de querer abrir as portas de seu casebre. Já não havia galhos de peônia para aquecer o ambiente, mas seu corpo continuava quente.

Nenhuma kamuro ou hikibune se atreveria a entrar sem a ordem expressa de Yoshino.

 

DOLOROSA PRIMAVERA

A neve em plena primavera se foi, tão brusca quanto chegou. Passados dois dias, não havia vestígios dela em lugar algum. Sob os efeitos do sol, repentinamente forte, ninguém conseguia mais suportar sobre a pele as roupas acolchoadas. Trazida pelo vento morno, a primavera parecia chegar a galope, entumescendo os brotos das árvores.

— Ó de casa! Atendam-me, por favor! — gritava havia algum tempo um bonzo zen-budista em trajes de viagem respingados de lama até a altura dos ombros diante do portal da mansão Karasumaru, tentando atrair a atenção de algum morador. Como, porém, ninguém o atendia, o bonzo dirigiu-se à área reservada aos funcionários administrativos e espiava pela janela de um dos aposentos, quando um garoto surgiu repentinamente às suas costas e perguntou:

— O que quer, monge?

O forasteiro voltou-se, mas agora era ele quem contemplava com estranheza o menino mal vestido, parecendo inquirir de volta: e você, quem é?

Um garoto com aquela aparência na mansão do lorde Karasumaru Mitsuhiro? O monge apenas o olhava dos pés à cabeça, sem nada dizer. Segurando com uma das mãos algo volumoso dentro do quimono na altura do peito e carregando à cintura a inseparável espada de madeira, Joutaro disse:

— Se quer sua quota de arroz, monge, tem de bater na cozinha. Você não sabe onde fica o portão de serviço?

— Quota de arroz? Não é para isso que estou aqui — respondeu o jovem monge zen-budista. Indicou com o olhar o porta-cartas que lhe pendia do pescoço e continuou: —Venho do templo Nansoji, na província de Senshu[91], para entregar ao monge Shuho Takuan uma carta urgente. E você, quem é? O moleque de recados da cozinha?

— Eu? Eu sou um hóspede da mansão. Do mesmo jeito que Takuan-sama.

— Realmente? Nesse caso, vá lá dentro e diga-lhe que de Tajima, terra natal do monge Takuan, chegou ao templo Nansoji uma carta aparentemente urgente, e que um mensageiro está aqui para entregá-la.

— Espere, vou chamar o monge para você.

Assim dizendo, Joutaro saltou à varanda da mansão. Por onde passava, seus calcanhares sujos deixavam marcas no assoalho. Tropeçou no suporte de um biombo e pequenas tangerinas rolaram de dentro do quimono. Joutaro recolheu-as afobadamente e correu para os fundos da mansão. Passados instantes, o menino retornou e disse para o bonzo do templo Nansoji, à sua espera:

— Ele não está. Pensei que estivesse, mas me disseram que saiu hoje cedo para ir ao templo Daitokuji.

— Não tem idéia de quando ele volta?

— Já deve estar chegando.

— Nesse caso, deixe-me esperá-lo. Sabe de algum aposento tranqüilo, onde eu possa ficar sem estorvar ninguém?

— Sei, sim.

Joutaro veio para fora e conduziu o monge, com ares de sabe-tudo.

— Entre, monge. Aqui dentro não vai estorvar ninguém — disse o menino, introduzindo-o no curral.

Palhas, rodas de carroça e excrementos se espalhavam por todos os lados. O monge pareceu espantado, mas o menino já tinha saído e ia longe.

Joutaro correu beirando o jardim da extensa propriedade e dirigiu-se ao quarteirão ocidental. Lá chegando, espiou um quarto bem arejado e disse:

— Comprei as tangerinas, Otsu-san!

 

A febre não cedia apesar dos cuidados e dos remédios, e Otsu não comia nada havia já alguns dias.

— Como emagreci! — espantava-se a jovem contemplando as próprias mãos cada vez que as levava ao rosto.

Não tinha nada que pudesse ser chamado de doença, ela sabia. Seu estado não inspirava cuidados, havia garantido também o médico da família Karasumaru numa de suas freqüentes visitas. Se isso era verdade, por que emagrecera tanto?, perguntava-se a jovem, impaciente, sem saber que essa impaciência, aliada à sua natureza delicada e nervosa e às muitas aflições por que passara, contribuía para elevar cada vez mais a febre.

— Queria uma tangerina... — deixara escapar Otsu em dado momento, sentindo a boca febril, seca.

Joutaro, que nos últimos dias andara aflito porque a jovem não se alimentava, tratou de confirmar:

— Tangerina, Otsu-san?

Saíra em seguida às pressas em busca das frutas.

O encarregado da cozinha, questionado, havia-lhe dito que não existiam pés de tangerinas na mansão. O menino percorreu então todos os vendedores de frutas e mantimentos próximos, mas nenhum deles as tinha.

Em um campo, no extremo da cidade, encontrou uma feira.

— Tangerinas, tangerinas... — procurou Joutaro percorrendo-a de ponta a ponta, mas a maioria das bancas vendia linha para pipas, peças de algodão, óleo e peles, e nenhuma tangerina.

Joutaro queria, porém, satisfazer a vontade de Otsu. Vez ou outra, frutas alaranjadas sobre cercas em mansões desconhecidas atraíam-lhe a atenção. O menino então se aproximava disposto a roubá-las, mas logo descobria que se tratava de espécimes ornamentais, azedos e impróprios para o consumo.

Eleja tinha percorrido quase a metade da cidade de Kyoto quando encontrou as tão almejadas frutas no oratório de um templo, dispostas sobre uma mesinha de oferendas, junto a batatas e cenouras. Joutaro pegou só as tangerinas, escondeu-as no peito, dentro do quimono, e fugiu, temendo ouvir às suas costas, a qualquer instante, os gritos do santo a quem havia sido dedicada a oferenda:

— Peguem o ladrãozinho!

“Não me castigue, meu santo, juro que não são para mim! Juro que não vou comer nenhuma”, veio implorando o menino no íntimo até alcançar os portões da mansão Karasumaru.

Mas como contar uma coisa dessas a Otsu? Joutaro sentou-se à cabeceira da doente, retirou as frutas uma a uma de dentro do quimono, enfileirou-as à sua frente, escolheu a melhor e a ofereceu, sem perda de tempo:

— Olhe esta, parece bem docinha. Coma, vamos!

Descascou-a e a pôs na mão da jovem. Otsu, porém, virou-se para um dos lados, ocultando o rosto.

— Que foi, Otsu-san? — indagou o menino, espiando. A jovem escondeu-se ainda mais, dizendo baixinho:

— Nada. Não foi nada. Joutaro estalou a língua:

— Já vai você chorar de novo! Trouxe estas tangerinas pensando em alegrá-la, mas você chora! Que coisa mais chata!

— Me desculpe, Jouta-san...

— Não vai comer?

— Vou, sim. Mais tarde.

— Coma ao menos esta que já está descascada. Deve ser doce.

— Com certeza. Ainda mais dada com tanto carinho... Mas é que, só de ver, já me sinto enfastiada. Sei que é pecado...

— Você não tem fome porque chora demais. Por que você vive sempre tão triste, Otsu-san?

— Estas são lágrimas de felicidade. Seu carinho me emociona.

— Pois pare de chorar! Não vê que me dá vontade de chorar também?

— Não choro mais... Não choro mais... Me perdoe.

— Então coma essa tangerina. Se você continuar desse jeito, vai acabar morrendo.

— Mais tarde. Coma você, Jouta-san.

— Eu, não!

Com medo do santo, Joutaro recusou com veemência

 

— Você sempre gostou de tangerinas, Jouta-san!

— E ainda gosto.

— E então, por que não come uma?

— Porque não quero.

— Só porque eu não chupo a minha?

— Hum? É, é isso.

— Nesse caso, vou aceitar. Chupe a sua também.

Otsu acomodou-se melhor e começou a limpar os gomos um a um com os dedos magros. Joutaro, embaraçado, afirmou:

— É que eu já chupei muitas pelo caminho. É verdade, Otsu-san...

— Verdade? — repetiu Otsu levando à boca seca o gomo da tangerina, contemplando o espaço com o olhar vago. — Onde está o monge Takuan? — perguntou em seguida.

— Disseram-me que foi ao templo Daitokuji.

— Ouvi dizer que ele se encontrou anteontem à noite com Musashi-sama, na casa de alguém.

— Ah, você também ouviu dizer?

— Ouvi. Você acha que o monge lhe disse que estou aqui?

— Com certeza.

— Ele me disse que qualquer dia desses vai me trazer Musashi-sama até aqui. Ele não comentou nada disso com você?

— Comigo, não!

— Será que se esqueceu?

— Quer que eu lhe pergunte, quando ele voltar?

— Quero! — disse Otsu, sorrindo pela primeira vez. — Mas pergunte longe de mim.

— E por que não posso perguntar na sua frente?

— Porque morro de vergonha.

— Vergonha por quê?

— Porque ele me disse que isso que eu tenho é uma doença, e se chama.. “mal de Musashi”.

— Olhe, você acabou comendo uma tangerina inteira sem perceber!

— Ah... a tangerina!

— Quer mais uma?

— Não, obrigada. Estava deliciosa.

— Tenho certeza que, de agora em diante, será capaz de comer de tudo. Ah, se Musashi-sama aparecesse agora, você sararia de vez!

— Até você, Jouta-san?

Só assim Otsu era capaz de esquecer a febre e a dor no corpo. Nesse instante, um serviçal da mansão Karasumaru chamou, do lado de fora da varanda:

— Mestre Joutaro estará aí?

— Sim, senhor — respondeu o menino.

— O monge Takuan o chama. Venha imediatamente — disse o homem, afastando-se em seguida.

— Ora, parece que o monge já chegou de volta.

— Vá lá ver.

— Você não vai se sentir mal quando ficar sozinha, Otsu-san?

— Não vou, não. Vá despreocupado.

— Volto assim que falar com ele, está bem? — disse o menino, erguendo-se.

— Não se esqueça de lhe perguntar sobre aquilo, Jouta-san.

— Aquilo?

— Já se esqueceu?

— Ah, de perguntar quando é que Musashi-sama vem!

As faces magras de Otsu ruborizaram-se de leve. A jovem ocultou o rosto na coberta e frisou:

— Não se esqueça, Jouta-san: pergunte sem falta, ouviu?

 

Takuan se encontrava na sala de estar da mansão e conversava com Mitsuhiro.

A porta de correr se abriu e Joutaro perguntou, às costas do monge: — Que quer de mim, monge Takuan?

— Sente-se primeiro, antes de se dirigir às pessoas — repreendeu-o Takuan. Mitsuhiro apenas contemplava sorrindo, sem se ofender com os maus modos do menino.

Joutaro sentou-se obediente ao lado do monge e disse em seguida:

—Ah, é verdade: tem um monge parecido com o senhor querendo lhe falar

urgentemente. Disse que veio do templo Nansoji, da província de Senshu.

Quer que eu vá chamá-lo?

— Acabo de ser informado a respeito — disse Takuan.

— Já se encontrou com ele?

— Já. Ele se queixou de você. Disse que você é um moleque irritante.

— Ué!? Por quê?

— Pois você conduziu o monge mensageiro cansado da longa viagem para dentro da estrebaria, deixou-o lá esperando e se esqueceu dele, não foi?

— Foi. Mas é porque ele mesmo me disse que queria ficar esperando num lugar calmo, onde não estorvasse ninguém!...

Mitsuhiro ria a mais não poder, sacudindo-se inteiro:

— E por isso você o pôs no estábulo? Que maldade, garoto — gargalhou ele.

Logo, porém, recuperou-se e perguntou a Takuan:

—Você então pretende rumar direto para Tajima, sem passar por Senshu?

Takuan balançou a cabeça, confirmando. Não ia esperar o dia amanhecer porque o teor da carta era preocupante, e queria despedir-se nesse instante. Suas posses eram poucas, e ele já estava pronto para partir.

Joutaro ouviu a conversa dos dois homens e interveio:

— O senhor vai embora, monge Takuan?

— Um assunto urgente me chama de volta à minha terra.

— Que assunto urgente é esse?

— Chegou-me a notícia de que minha mãe adoeceu. Parece que desta vez, seu estado de saúde é grave.

— O senhor também tem mãe, monge? — admirou-se Joutaro.

— Ora essa, garoto! E de onde pensa que nasci: da forquilha de uma árvore?

— E quando pretende voltar para cá?

— Tudo depende do estado da minha mãe.

— Mas então... Que maçada! Que é que vamos fazer, sem o senhor? — disse Joutaro pensando em Otsu, apreensivo com o futuro de ambos. — E nós não vamos vê-lo nunca mais?

— Quem disse? Tenho certeza de que tornaremos a nos encontrar em algum lugar. Já pedi a lorde Karasumaru que vele especialmente pelo futuro de vocês dois. Faça-me portanto um favor, Joutaro: diga a Otsu-san que não se deixe abater, e sare logo. Faça um esforço para animá-la, Joutaro: o mal que a aflige se cura com carinho e não com remédios.

— Aí é que está o problema: eu não tenho o poder de curá-la. Ela só vai ficar boa quando se encontrar com Musashi-sama.

— Quanto trabalho nos dá esta enferma, não, Joutaro? Bela companheira você foi arrumar para andar pelos caminhos da vida...

— O senhor se encontrou com Musashi-sama na noite de anteontem, não foi, monge?

— Foi — respondeu Takuan, trocando olhares com Mitsuhiro e sorrindo. Parecia temer que o menino indagasse onde o vira, mas felizmente para ele a pergunta seguinte de Joutaro não era sobre detalhes tão insignificantes.

— E quando é que ele vai aparecer por aqui, monge? Quem mandou o senhor prometer a Otsu-san que o traria aqui? Agora, ela só faz esperar por ele todos os dias. Onde está o meu mestre, monge Takuan? — disse Joutaro, dando mostras de querer sair em seguida para buscá-lo.

— Ah... Musashi — murmurou o monge. A resposta era vaga, mas não queria dizer que ele tivesse se esquecido por um momento que fosse da promessa de levá-lo à presença de Otsu. Tanto que, naquele mesmo dia, no caminho de volta do templo Daitokuji, ele tinha passado pela casa de Koetsu para saber do jovem. Desconcertado, Koetsu lhe explicara que fazia já duas noites que Musashi não retornava do Ougi-ya. Acrescentara ainda que acabara de mandar uma carta a Yoshino-dayu, pedindo-lhe que liberasse Musashi, pois até Myoshu estava bastante apreensiva.

 

— Como? Quer dizer que o tal Musashi não retornou, desde aquela noite, da casa de Yoshino-dayu? — disse Mitsuhiro, arregalando os olhos de espanto.

O tom, exagerado, devia-se metade ao inesperado da notícia e metade ao ciúme.

Takuan evitou comentar detalhes por causa do menino, mas acrescentou:

— Por fim, ele mostrou que é apenas um jovem como outro qualquer da idade dele. Quanto mais promissores na juventude, menos correspondem às expectativas na idade adulta.

—Admira-me a excentricidade de Yoshino-dayu. Que viu ela de tão atraente nesse caipira encardido?

— Elae Otsu! Se há algo que não compreendo neste mundo é o coração das mulheres. Aos meus olhos, parecem todas igualmente afetadas por algum tipo de doença comum. Bem, a primavera chegou também para Musashi. Agora começa para ele o verdadeiro aprendizado. Nessa fase, uma mão feminina se torna muito mais perigosa que uma espada. Mas nada do que eu disser lhe adiantará: vamos deixá-lo por conta dele mesmo, é o único jeito — murmurou Takuan quase monologando, voltando a atenção para a viagem que estava prestes a empreender.

Apresentou as despedidas formais a Mitsuhiro, tornou a solicitar benevolência com relação à jovem enferma e ao menino e, instantes depois, saiu apressado pelo portão da casa Karasumaru. A noção de que uma viagem deve sempre começar de manhã, comum às pessoas normais, não ocorria a Takuan, que pouca diferença via em partir de manhã ou à noite. Naquele instante, por exemplo, o sol já começava a descambar no ocidente e uma leve névoa começava a envolver os vultos dos transeuntes e os carroções que passavam pela estrada.

Alguém lhe vinha no encalço, chamando insistentemente: “monge Takuan, monge Takuan!” Deve ser Joutaro, pensou o monge, voltando-se com ligeiro desconforto. O menino se aproximou ofegante e o deteve pela manga, com toda a força:

— Por favor, monge, volte uma vez mais e fale com Otsu-san, eu lhe imploro! Ela desatou a chorar e eu não sei mais o que fazer!

— Você lhe contou a respeito de Musashi?

— Porque ela me perguntou!

— E então, ela começou a chorar. Foi assim?

— Foi! Ela pode até morrer!

— Por quê?

— Porque ela está com essa cara! Ela até disse: “só quero vê-lo uma vez antes de morrer; só mais uma vez!”

— Ah, é? Nesse caso, não se preocupe: ela não corre perigo de morrer. Deixe-a em paz.

— Onde mora essa Yoshino-dayu, monge Takuan?

— Para que quer saber?

— Ora essa, meu mestre está lá! Não foi isso que o senhor e lorde Mitsuhiro conversavam há pouco?

— Contou até isso para Otsu-san?

— Claro!

— Agora entendi porque a chorona quer morrer. Mas não adianta eu retornar, não vejo cura imediata para o caso dela. Diga-lhe apenas o seguinte...

— O quê?

— Que ela precisa comer.

— Até parece que eu não repito isso cem vezes por dia! E adianta?

— Ah, você já disse isso... Suas palavras, Joutaro, são o máximo em matéria de conselho para Otsu-san. Mas se nem elas passam por seus ouvidos, paciência! Não vejo outra solução: conte-lhe tudo.

— Como assim?

— Diga a ela que seu querido Musashi está há três dias enfurnado na casa Ougi-ya, totalmente enrabichado por uma cortesã de nome Yoshino. Só por esse episódio Otsu-san deveria perceber que o rapaz não se importa nem um pouco com ela. Pergunte à tontinha chorona de que lhe adianta morrer de amor por um sujeito que nem liga para ela.

Joutaro não quis ouvir o resto e sacudiu a cabeça com impaciência:

— É mentira! Meu mestre não é um bushi desse tipo! E experimente dizer uma coisa dessas para Otsu-san: ela é capaz de se matar, de verdade! Quer saber? Tonto é você, monge de uma figa!

 

— Ora, ora! Acho que me repreenderam. Você se ofendeu, Joutaro? — riu Takuan.

— É óbvio! Quem manda falar mal do meu mestre! E Otsu-san não é nenhuma tonta.

— Você é um bom menino, Joutaro — disse Takuan, passando a mão na cabeça do menino.

Joutaro moveu a cabeça e livrou-se da mão que o acariciava.

— Tudo bem. Não peço mais nada a um bonzo de sua laia. Vou procurar Musashi-sama sozinho e trazê-lo para ver Otsu-san, pode deixar!

— E você sabe?

— O quê?

— Onde está Musashi?

— Não sei, mas procuro e acho, não se preocupe.

— Você fala com muita impertinência, mas não vai ser fácil descobrir onde mora Yoshino-dayu. Quer que eu lhe diga onde fica?

— Não vou lhe pedir mais nada! Mais nada!

— Não seja tão implicante, Joutaro. Sabe muito bem que não quero o mal de Otsu-san, nem tenho motivos para não gostar de Musashi. Pelo contrário, nunca me canso de rezar para que os dois alcancem a felicidade nesta vida.

— Mas então, por que está sendo tão malvado?

— Pareço malvado aos seus olhos? Talvez lhe pareça mesmo. Escute, Joutaro: tanto Musashi como Otsu-san estão, neste momento, doentes, de um certo modo. Das doenças físicas cuida o médico; das doenças do coração se encarrega um monge — é o que se convencionou. De todas as enfermidades do coração, a de Otsu-san é a mais grave. Musashi deve curar-se sozinho, basta dar-lhe tempo, mas neste momento sinto-me impotente diante do mal que aflige Otsu-san. Já que o dela é um caso perdido, a única solução é dizer-lhe: “De que lhe adianta amar tipos como Musashi sem ao menos ser correspondida? Esqueça-se dele e trate de voltar a comer!” Que mais poderia eu dizer?

— Está vendo? É por isso que eu digo: não vou pedir mais nada para você, bonzo de uma figa.

— Se pensa que minto, vá à casa Ougi-ya, no bairro Yanagi-machi, da rua Rokujo, e verifique pessoalmente o que Musashi está fazendo lá. Depois, volte para cá e conte exatamente o que viu a Otsu-san. Ela vai chorar e se desesperar por algum tempo, mas se isso servir para despertá-la, ótimo!

Joutaro enfiou um dedo em cada ouvido e disse:

— Cale a boca, cale a boca, bonzo inútil. Não quero ouvir mais nada!

— Ora essa, foi você que veio atrás de mim.

— Bonzo, bonzo, esmolas não vou dar./ Se quer ganhar esmola,/ Trate de cantar.

Dois dedos metidos nas orelhas, Joutaro berrava a modinha atrevida no meio da rua para as costas do monge, que já ia distante. Mal, porém, o vulto do monge dobrou uma esquina e desapareceu, os olhos do menino encheram-se de lágrimas. Imóvel, perdido, o menino ali se deixou ficar até que as lágrimas transbordaram e rolaram pelo seu rosto.

Joutaro dobrou um braço e enxugou-as depressa. No momento seguinte, moveu a cabeça e olhou ao redor, como um cachorrinho perdido que de súbito se lembra de algo.

— Oba-san! — gritou ele para uma mulher velada, pelo aspecto uma dona de casa. — Onde fica o bairro Yanagimachi, da rua Rokujo?

— Fala do bairro licenciado? — perguntou a mulher, atônita.

— O que é um bairro licenciado?

— Credo!

— O que fazem nesse bairro?

— Que menino mais inconveniente! — reclamou a mulher, olhando feio antes de ir-se embora.

Joutaro não perdeu tempo tentando compreender por que a mulher se enfezara. Sem se deixar abater, perguntou aos transeuntes, um a um, o caminho para o bairro Yanagimachi e a casa Ougi-ya.

 

UM LEVE AROMA DE SANDALO

As lanternas se acendiam feéricas nas três ruas do bairro Yanagimachi. A tarde acabava de cair e ainda não havia clientes andando pelas ruas.

O jovem serviçal da casa Ougi-ya deu com os olhos casualmente no vulto à entrada da casa e teve um sobressalto. Pois o vulto afastara as cortinas da entrada, metera a cabeça para dentro e logo observava tudo com curiosidade. Sob a cortina apareciam duas sandálias sujas e a ponta de uma espada de madeira. A visão perturbou o homem, que já se dispunha a chamar outros em seu socorro, quando ouviu:

— Tio!

Era Joutaro. O menino entrou e perguntou:

— Está aqui um senhor de nome Miyamoto Musashi-sama, não está? Você não poderia me anunciar a ele? Diga-lhe apenas que Joutaro o procura, que ele logo saberá de quem se trata. Musashi-sama é meu mestre. Ou senão, chame-o aqui para mim.

O serviçal respirou aliviado quando descobriu que era apenas um menino. No entanto, seu rosto se contorceu de raiva, porque se lembrou do susto de há pouco.

— Quem é você, moleque? Mendigo? Ou filho de um pé-de-vento? Não temos ninguém com esse nome aqui. Isto é hora de me aparecer aqui com roupas encardidas? Vá-se embora, vamos! — disse o homem, agarrando-o pela gola e tentando arrastá-lo para fora.

Joutaro inchou como um baiacu ameaçado.

— Que é isso?! Eu vim para ver meu mestre! — esbravejou.

— Cale a boca, idiota! Pois por causa desse tal Musashi que diz ser seu mestre, estamos metidos em maus lençóis desde duas noites atrás, ouviu bem? Hoje de manhã, e outra vez há pouco, esteve aqui um mensageiro da academia Yoshioka perguntando por ele. O que disse a ele, repito para você: Musashi não está mais aqui! Foi embora há muito tempo.

— E por que não me disse isso com calma? Para que me arrasta pela gola desse jeito?

— Quem mandou você meter a cara suja pela cortina e espiar com esses modos suspeitos? Não vê que me assustou, moleque irritante?! Pensei que você fosse um dos homens da academia Yoshioka.

—Assustou-se porque quis. Diga-me: quando é que Muasashi-sama partiu e aonde foi ele?

— Moleque dos infernos! Ainda tem a coragem de me pedir informações depois de ter feito tanta malcriação? E eu lá vou saber desse seu mestre?

— Se não sabe, paciência. Solte minha gola.

— Mas não de graça. Tome isto! — disse o serviçal, agarrando-o pela orelha e sacudindo-o para lançá-lo à rua.

— Ai, ai, ai! — gritou Joutaro. Caiu de joelhos, apanhou sua espada de madeira e desferiu um repentino golpe na cabeça do serviçal.

—Ai, moleque maldito! —gritou o homem. Com os incisivos quebrados e segurando o queixo ensangüentado, saiu atrás do menino para a rua. Aturdido, Joutaro correu gritando por socorro:

— Alguém me acuda! Este homem é mau!

Desmentindo o sentido das próprias palavras, o menino parou, voltou-se e atacou de novo, descarregando a espada de madeira no topo da cabeça do seu perseguidor com o mesmo ímpeto da ocasião em que havia matado o feroz cão Taro, no castelo Koyagyu.

O homem deixou escapar um gemido fino e desmoronou de encontro ao tronco de um chorão, deitando sangue pelo nariz. No mesmo instante uma aliciadora de fregueses que a tudo assistia pela janela treliçada da casa em frente gritou em direção à janela vizinha:

— Vejam! Esse menino matou um homem da Ougi-ya e fugiu!

E, de repente, a rua até então deserta encheu-se de vultos imprecisos que acudiam.

— Assassino!

— Mataram um homem!

A brisa carregou longe o cheiro do sangue e as vozes.

 

As brigas sucediam-se o ano inteiro no bairro, mas os moradores eram também especialmente hábeis em solucionar casos sangrentos em segredo, com rapidez e eficiência.

— Aonde foi ele?

— Como era o menino?

Homens de aspecto ameaçador vieram para fora e indagavam, mas as buscas ficaram restritas a um breve período. Logo, a pequena multidão alegre de dândis e homens de sombreiro afluiu às ruas iluminadas como insetos atraídos pela luz, mas ninguém chegou a ouvir qualquer referência ao incidente ocorrido há pouco menos de meia hora.

Com o avançar da noite, as três ruas principais fervilhavam. Um passo além delas, porém, existiam vielas escuras, campos e hortas silenciosas.

Quando percebeu que o perigo havia passado, Joutaro surgiu de um esconderijo qualquer rastejando como um cachorrinho e correu o mais rápido que pôde em direção a essa área escura, não longe dali.

O menino tinha imaginado, em sua ingenuidade, que a área escura o levaria ao também escuro mundo exterior, mas logo se chocou contra uma cerca de quase 3 m de altura que rodeava todo o bairro, como num forte. A paliçada era feita de grossos troncos amarrados entre si, com pontas aparadas em forma de lança. Joutaro andou beirando a cerca por bom tempo mas não achou nenhum portão ou brecha por onde sair.

Mais um pouco e acabaria chegando a uma das ruas principais bem iluminadas, no extremo do bairro. O menino voltou atrás, procurando outra vez as sombras. Nesse instante, uma mulher que o vinha seguindo cuidadosamente, observando o seu comportamento, chamou-o, agitando a mão branca:

— Menino! Menino!

Parado no escuro, Joutaro observou-a por instantes com um olhar brilhante de desconfiança. Logo, veio voltando com passos pesados e perguntou:

— É comigo?

Percebeu que não havia maldade no rosto branco da mulher e se aproximou mais um passo.

— Que quer de mim?

A mulher lhe disse bondosamente:

— Foi você que apareceu no começo da noite na porta da casa Ougi-ya, perguntando por Musashi-sama?

— Eu. Eu mesmo.

— Joutaro é seu nome?

— Isso.

— Siga-me então que o levo em segredo até Musashi-sama.

— A... aonde? — disse Joutaro, retraindo-se agora.

A mulher então lhe explicou tudo com calma, para vencer a desconfiança do menino.

— Quer dizer que a tia é atendente dessa tal Yoshino-dayu? — perguntou, o rosto iluminado como o de um pecador que afinal encontra um santo no meio do inferno. Descontraído agora, o menino seguiu a mulher.

Segundo a serviçal, a cortesã Yoshino-dayu, ao ser notificada da confusão daquela tarde, havia ficado realmente preocupada com o que poderia acontecer ao menino e pedira para ser comunicada assim que os homens o encontrassem, pois pretendia interceder em seu favor. E caso algum empregado da Ougi-ya o encontrasse primeiro, essa pessoa devia levá-lo secretamente até o portão dos fundos do estabelecimento e mostrar-lhe a casa rústica onde Musashi se encontrava.

— Está em segurança, agora. Qualquer pedido de Yoshino-sama é uma ordem neste bairro — disse a serviçal.

— Você tem certeza de que meu mestre está lá, tia?

— E por que haveria eu de mentir para você?

— Que faz ele neste lugar estranho?

— Que faz ele? Ora... Se quer saber, espie pela fresta da porta... Bem, vou-me embora, porque tenho muito a fazer... — completou a mulher, afastando-se discretamente e desaparecendo entre os arbustos do jardim.

 

Será? Ele estaria dentro dessa casa, de verdade?

Joutaro não conseguia acreditar. Procurara tanto por Musashi, e agora não era capaz de acreditar que o encontraria no interior desse casebre bem na sua frente: era simples demais para ser verdade.

Mas a incredulidade não o levou a desistir, pelo contrário: ali estava ele, ansioso, rondando a casa em busca de uma fresta por onde pudesse espiar.

Logo, encontrou uma janela lateral, mas era muito alta para ele. Rolou então uma pedra que achou no meio das plantas, encostou-a na parede da casa e subiu. Com muito custo a cabeça chegou à altura da treliça.

— Ah, mas é ele, o meu mestre!!

Joutaro absteve-se de gritar de alegria por saber que espionava, mas quase não conseguiu conter a vontade de estender a mão e tocar esse vulto tão querido.

Deitado perto do braseiro, Musashi repousava a cabeça no próprio braço e dormitava.

“Que folgado!”, diziam os olhos arregalados do menino, colados ao gradil.

Alguém cuidara de cobri-lo com um sobretudo feminino grosso e longo, em vistoso padrão momoyama. O quimono, de estampas graúdas muito ao gosto de dândis, não era o de tecido áspero e padrão discreto que Joutaro se acostumara a ver seu mestre usando.

Um tapete vermelho cobria uma área um pouco afastada e sobre ele se espalhavam pincéis, tinta e papel. Esboços de berinjelas e galos pela metade apareciam entre as folhas de papel.

“Olhem só para isso! Ele estava aqui o tempo todo, dormindo e pintando! E nem sequer sabe que a pobre da Otsu-san está doente!”, pensou Joutaro, indignado.

Não gostou do sobretudo feminino que cobria o seu mestre, muito menos do vistoso quimono que ele vestia. Até para um menino de sua idade a atmosfera voluptuosa do ambiente era perceptível.

No primeiro dia do ano, quando enfim descobrira Musashi sobre a ponte Oubashi, havia uma jovem agarrada a ele em plena rua, chorando. E agora isto.

“Tem alguma coisa errada com ele nestes últimos tempos”, pensou o menino. Joutaro sentiu o pequeno coração confrangido por uma estranha amargura.

O aborrecimento despertou-lhe a vontade de fazer travessuras.

“Já sei! Vou pregar um susto nele!”

Disposto a pôr a idéia em prática, Joutaro procurava descer de manso da pedra, quando ouviu:

— Quem o trouxe até aqui, Joutaro?

— Hein? — disse o menino sobressaltado, voltando a espiar.

Seu mestre não dormitava: olhos entreabertos, sorridente, ele olhava em sua direção.

Melhor do que responder, Joutaro achou mais rápido dar a volta, abrir a porta da frente e por ela mergulhar direto nos braços de seu mestre.

— Meu mestre!

— Olá! Você chegou, afinal!

Ainda deitado, Musashi estendeu o braço e envolvendo a cabeça empoeirada do menino, trouxe-a para perto do próprio peito.

— Como foi que me descobriu? Na certa foi o monge Takuan quem lhe contou onde me encontrar. Há quanto tempo não o vejo, Joutaro! — disse Musashi soerguendo-se, ainda abraçado ao menino. Feliz como um cãozinho que reencontra seu dono e sentindo enfim junto a si o calor do corpo por que tanto ansiara nos últimos tempos, Joutaro permaneceu longo tempo com a cabeça no colo do seu mestre, enrodilhado junto a ele.

 

E Otsu estava acamada, neste instante. Musashi não fazia idéia do quanto ela queria vê-lo, a coitadinha! Ela dizia ser só isso o que ela queria: encontrá-lo. Só isso.

Era verdade que ela o tinha avistado no primeiro dia do ano na ponte Oubashi; mas então, uma mulherzinha muito esquisita conversava com Musashi toda melosa, chorando. Vai daí que Otsu se enfezou por completo e Joutaro não tinha conseguido tirá-la do lugar, ela mais parecia um caramujo entocado.

Ele achou que a jovem teve razão de se enfezar, já que ele próprio sentiu muita raiva naquela hora! Mas agora, Musashi devia deixar tudo isso para lá, não tinha mais importância. O que Musashi precisava fazer neste momento era ir com ele, Joutaro, à mansão Karasumaru e dizer para Otsu: olhe, estou aqui. Bastava isso para ela sarar de uma vez, ele tinha certeza.

Esse foi o sentido geral do discurso longo e pueril que Joutaro fez febrilmente, de modo a tentar comover seu mestre.

— Sei, sei!... — repetia Musashi, assentindo com movimentos de cabeça. — Não diga... Foi assim que aconteceu?

Mas a frase mais importante, a essencial, “Está bem, nesse caso vou vê-la”, essa ele não dizia.

Quando Joutaro percebeu que, apesar de todas as suas queixas e súplicas Musashi, inabalável como uma rocha, não o atendia, perdeu por completo o ânimo: de súbito, seu querido mestre, o homem que tanto amava, lhe pareceu um indivíduo bastante desagradável.

“Será que brigo feio com ele?”, chegou a pensar.

Mas apesar de toda a sua petulância, não tinha, ao que parecia, coragem de lhe dirigir desaforos: cenho franzido, lábios formando um bico, o garoto permaneceu longo tempo tentando comovê-lo com a careta. Vendo que o menino se calava, Musashi tornou a empunhar o pincel e a dirigir a atenção para a pintura meio acabada, comparando-a a um modelo. Joutaro fixava um olhar raivoso no esboço de berinjela que seu mestre tentava terminar, dizendo no íntimo: “Bela porcaria!”

Tempos depois, cansado talvez de desenhar, Musashi começou a lavar os pincéis para guardá-los. Era o momento certo para insistir mais uma vez, calculou o menino. Passou a língua nos lábios e ia abrir a boca quando ouviu o ruído de tamancos sobre as pedras da passagem, fora da casa.

— Senhor, suas roupas secaram. Aqui estão elas — disse a serviçal que há pouco trouxera Joutaro, depositando diante de Musashi um conjunto de quimono e sobretudo cuidadosamente dobrado.

— Muito obrigado — respondeu Musashi, examinando gola e punhos da roupa lavada. — Estão limpos.

— Manchas de sangue são realmente difíceis de ser removidas, não é mesmo, senhor?

— Ficou muito bom... Onde está Yoshino-dayu?

— Como de costume, sendo solicitada incessantemente em diversos aposentos.

— Estou aqui há mais tempo do que pretendia e sinto que a minha permanência só poderá trazer aborrecimentos à casa Ougi-ya, como também a Yoshino-dayu. Assim sendo, pretendo partir ainda esta noite, perto do alvorecer. Transmita à dayu os meus sinceros agradecimentos.

Joutaro desfez a carranca no mesmo instante. “Eu estava certo. Meu mestre é um homem muito direito. Ele já tinha há muito resolvido ir ver Otsu-san, com certeza!”, pensou ele.

Enfim sorridente, o menino esperou que Musashi se aprontasse, mas este voltou-se assim que a serviçal se afastou, empurrou o conjunto de quimono e sobretudo lavados na sua direção, e lhe disse:

— Você veio em boa hora, Joutaro. Este conjunto foi-me emprestado pela matriarca dos Hon’ami no dia em que vim para cá. Quero que o devolva na casa dos Hon’ ami e traga de lá o meu quimono. Faça-me esse favor, Joutaro.

 

— Sim senhor. Compreendi — respondeu Joutaro, compenetrado. Terminada a missão, Musashi sairia dali e iria ver Otsu, acreditava o menino, muito contente. — Vou neste instante.

Envolveu as roupas lavadas em um furoshiki, prendeu dentro dele a carta de Musashi endereçada a Koetsu e arrumava a pequena trouxa às costas quando a já conhecida serviçal surgiu trazendo a refeição noturna. À muda interrogação nos olhos arregalados, Musashi respondeu, explicando-lhe o que pretendia. A mulher então disse assustada:

— Que absurdo! Nem pensar, senhor! A seguir, explicou-lhes por quê.

— Hoje à tarde, este menino golpeou de mau jeito a cabeça de um empregado da Ougi-ya e o feriu seriamente. O homem está até agora gemendo na cama. O incidente não teve maiores repercussões porque foi considerado simples rixa, uma das muitas que habitualmente ocorrem neste bairro. Além disso, a cortesã Yoshino recomendou segredo tanto à direção da casa quanto aos funcionários. Mas esse garoto andou apregoando aos quatro ventos que era discípulo do senhor Miyamoto Musashi. De modo que, sem que se saiba como, começou a correr no começo da noite o boato de que o senhor ainda continua nos fundos da casa Ougi-ya e, ao que tudo indica, a notícia chegou também aos ouvidos do clã Yoshioka, que o está emboscando do lado de fora do bairro, perto do portão central.

— Ora... — murmurou Musashi, posto pela primeira vez a par do incidente, observando Joutaro de soslaio. Este, ao se ver denunciado, cocou a cabeça e se encolheu, afastando-se cada vez mais para um canto.

— Imagine agora o que acontecerá se esse menino sair por aí com essa trouxa nas costas! — disse a serviçal, aproveitando a oportunidade para relatar o que ocorria fora dos muros da zona alegre.

Segundo dizia a mulher, nos últimos três dias os homens da casa Yoshioka tinham andado desesperados à procura de Musashi. Tanto a cortesã Yoshino como o dono da Ougi-ya estavam bastante preocupados com a situação. Mesmo que não tivesse havido a estrita recomendação do senhor Koetsu no momento em que se retirava do estabelecimento duas noites atrás, a direção da casa não podia expulsar uma pessoa em situação tão melindrosa. O que mais preocupava, porém, era a vigilância que a casa Yoshioka, seca por vingança, vinha mantendo nos portões de acesso à zona. Homens que se diziam discípulos da academia vinham batendo com insistência à porta da casa, querendo saber se o tinham escondido ali, e haviam sido repetidamente repelidos, mas pomo não tinham conseguido desfazer por completo a desconfiança, continuavam de tocaia na entrada do bairro, certos de que deitariam as mãos em Musashi assim que ele pusesse um pé para fora dos portões.

— Não sei dos detalhes — completou a mulher —, mas para enfrentar apenas uma pessoa, o senhor, a academia Yoshioka parece ter-se preparado para a guerra! Eles estão dizendo que desta vez não o deixarão escapar. Por isso, tanto o nosso patrão como a cortesã Yoshino acham que o senhor deve permanecer mais quatro ou cinco dias escondido nesta casinha. Passado esse tempo, o clã Yoshioka acabará se cansando e retirar-se-á.

Enquanto servia o jantar a Musashi e ao menino, a mulher não parou de falar e aconselhar. Musashi, porém, apenas lhe agradeceu o interesse.

— Tenho uma opinião diferente — disse, sem mudar a intenção de partir nessa mesma noite.

Acatando porém os conselhos da mulher na questão relativa às roupas, o jovem pediu a um dos homens do estabelecimento que as levasse à mansão Hon’ami logo em seguida.

 

Passados instantes, o mensageiro retornou. Na resposta, Koetsu dizia:

Havendo oportunidade, tornaremos a nos ver. A longa estrada da vida por vezes se torna curta demais. Cuide-se. Rezo apenas para que nada de mal lhe aconteça.

Koetsu

A carta era concisa, mas os sentimentos do amigo nela transpareciam. Musashi sentiu também que Koetsu havia compreendido que evitava aproximar-se da casa Hon’ami para não envolver, tanto a mãe como o filho, na perigosa situação em que se encontrava nesse momento.

— E este é o conjunto que o senhor usava e deixou na casa de Koetsu-sama, há alguns dias — disse o mensageiro, entregando a Musashi o quimono e o hakama que tinha recebido em troca das roupas que levara. — A matriarca dos Hon’ami também me pediu com insistência que lhe transmitisse seus votos de felicidade — acrescentou, antes de se retirar para o prédio principal.

Musashi desfez o embrulho. A visão de seu velho quimono o alegrou. Ele sentia-se melhor no conjunto de algodão simples e encardido com que tinha enfrentado chuva e sereno do que nos elegantes trajes emprestados pela bondosa anciã Myoshu, ou do que nestes outros, vistosos, cedidos pela casa Ougi-ya. O seu era apropriado para pessoas como ele, um samurai itinerante, um aprendiz de guerreiro. Musashi não queria nada melhor.

Passou os braços pelas mangas do quimono e vestiu o hakama, lembrando-se de que neles havia pontos descosturados e manchas de suor e sujeira. Para sua surpresa, descobriu que o velho conjunto, quase um trapo malcheiroso, havia sido lavado, reformado e passado, e agora parecia novo.

— Ah, se eu ao menos tivesse uma mãe...

Sentindo súbita solidão, Musashi tentou visualizar seu próprio futuro na vida que escolhera para si.

Havia muito ele tinha perdido pai e mãe. Restava-lhe apenas uma irmã, vivendo sozinha em terras que o tinham banido.

Musashi permaneceu alguns momentos cabisbaixo e silencioso à luz da lamparina. Da casinha rústica onde agora se encontrava nada mais podia esperar: ela apenas lhe havia dado pouso por três noites.

— E então, vamos?

Apanhou a espada, tão conhecida, e introduziu-a com decisão no obi firmemente atado, de encontro às próprias costelas. Quase incontinenti, a tristeza se foi, varrida do espírito, e Musashi viu-se uma vez mais reiterando a antiga resolução: para ele, a espada seria pai e mãe, mulher e irmãos.

— Vamos embora de verdade, mestre? — confirmou Joutaro, feliz, saindo primeiro e erguendo o rosto para o céu cheio de estrelas.

“Partindo a esta hora chegaremos bem tarde à mansão Karasumaru, mas tenho certeza de que Otsu-san nos espera acordada. Ela vai se espantar tanto! Vai ficar tão feliz que vai chorar de novo, com certeza!”, pensou o menino.

Desde a noite da nevasca, o céu andava limpo e estrelado. Joutaro só pensava em levar Musashi a Otsu e vê-la feliz. Até as estrelas pareciam piscar, alegres e cúmplices.

— Você entrou pelo portão de trás, Joutaro? — perguntou Musashi.

— Entrei com a mulher por esse portão aí, não sei se é o de trás ou o da frente — disse Joutaro.

— Então saia por ele e me espere lá fora.

— E você, mestre?

— Vou me despedir de Yoshino-dayu e estarei com você em seguida.

— Está bem.

Separar-se do seu mestre, mesmo por breves instantes, deixava-o inseguro, mas Joutaro era nessa noite a personificação da obediência: faria qualquer coisa que lhe dissessem, sem discutir.

 

Analisando os últimos três dias, Musashi achou que se permitira fazer papel de bobo, e que se divertira muito.

Pensando bem, ele tinha sido até agora uma grossa e rígida camada de gelo, física e espiritualmente. Tinha vivido indiferente ao luar, cego à beleza das flores, insensível ao calor do sol; ele havia sido enfim uma pessoa fria e inflexível.

Musashi considerava correta essa atitude de irrestrita dedicação ao próprio caminho. Ao mesmo tempo, porém, uma idéia estava começando a preocupá-lo: essa talvez fosse a imagem futura de um ser pequeno e mesquinho, um simples obstinado.

Takuan dissera-lhe, havia muito: — Sua força é de besta-fera. — Além dele, Nikkan, do templo Ozoin, também lhe aconselhara: — Aprenda a ser mais fraco. — Juntando as duas advertências, chegou à conclusão: para ele, era realmente importante despender vez ou outra, no futuro, dois ou três dias de pura diversão, iguais a estes últimos.

E agora, no momento em que se dispunha a deixar para trás a casinha rústica perdida no meio de um jardim de peônias, esse novo modo de encarar a vida dava-lhe a certeza de que ali não desperdiçara seu precioso tempo. Mais ainda, ele se sentia grato a todos que haviam proporcionado, a ele e ao seu rígido modo de vida, preciosos momentos de natural sensualidade, assim como meios para beber, dormitar, ler e desenhar a seu bel-prazer, além de bocejar de tédio.

“Devo muito disso a Yoshino-dayu e quero agradecer”, pensava Musashi, parado no jardim da casa, contemplando as festivas luzes dos aposentos.

Da vasta construção chegaram-lhe aos ouvidos as vozes dos eternos clientes cantando ao som de instrumentos musicais, sinal de que não lhe seria possível avistar-se furtivamente com a cortesã antes de partir.

“Aqui me despeço em pensamentos”, disse ele para si mesmo. Agradeceu-lhe também, do fundo do coração, o interesse e os cuidados dos três dias e se afastou.

Saiu pelo portão de trás e ergueu a mão para Joutaro, à sua espera, dizendo:

— Vamos!

Nesse instante, um vulto surgiu por trás dele e lhe veio no encalço. Era a aprendiz Rin-ya.

— Isto é da parte de Yoshino-sama — disse a pequena, deixando nas mãos de Musashi um pequeno volume e correndo de volta para dentro do portão.

O volume era uma folha de papel, do tamanho usado em dobraduras, e que aberta, desprendeu um leve aroma de sândalo.

Belas flores, colhidas a cada noite, murcham e são facilmente esquecidas; difícil porém se torna esquecer a vossa imagem, lua solitária que por instantes se mostrou no meio da ramagem...

Chega ao fim nosso breve convívio, breve demais para que melhor nos conhecêssemos.

Ouço risos, mãos indiferentes enchem minha taça, mas meu coração lamenta.

Yoshino

— De quem é a carta, mestre?

— Ninguém que você conheça.

— De uma mulher?

— Que lhe importa?

— Que diz aí?

— Não faça perguntas tolas.

Ao ver que Musashi começava a dobrar a carta, Joutaro se esticou todo e observou:

— Que cheirinho bom! Parece de sândalo... Pelo jeito, até o menino conhecia o perfume.

 

O PORTAL

A casa Ougi-ya ficara para trás, mas os dois continuavam no interior da zona alegre. Que fazer para sair em segurança dessa área confinada para o mundo exterior?

Joutaro estava aflito:

— Mestre, se for por aí, acabará dando no portão principal. Não se esqueça do que lhe disseram na casa Ougi-ya: do lado de fora do portão principal tem um bando do clã Yoshioka emboscando.

— Sei disso.

— Vamos sair por outro lugar.

— Mas todos os portões se fecham à noite, com exceção do central, não é?

— E se pulássemos a cerca?

— Dirão que fugi, e isso é uma desonra para mim. Se eu quisesse fugir sem me importar com o que os outros pudessem pensar, nada me teria sido mais fácil. Mas como não é esse o caso, estive até agora aguardando uma oportunidade. Bem... vou sair abertamente pelo portão principal.

— Vai mesmo? — disse Joutaro com leve preocupação. Não se opôs, contudo, pois conhecia a férrea lei do mundo dos bushi: não adiantava continuar vivo quem não prezasse a honra, porque seria um homem inútil, marginalizado.

— Mas você, Joutaro...

— Sim?

— ... é criança, não precisa seguir meus passos. Saia primeiro e espere por mim escondido nalgum lugar.

— E por onde saio eu enquanto você, mestre, sai pelo portão central?

— Pule a cerca logo aí.

— Sozinho?

— Isso mesmo.

— Não quero.

— Por quê?

— Você mesmo acabou de dizer: vão me chamar de covarde.

— Ninguém vai dizer isso. O homens do clã Yoshioka estão atrás de mim, você nem existe para eles.

— E onde devo esperar por você?

— No hipódromo.

— Virá sem falta?

— Sem falta.

— Não vai sumir de novo sem me avisar, vai? Musashi balançou a cabeça negativamente:

— Não há de ser agora que vou ensiná-lo a mentir. Vamos, pule a cerca antes que surja alguém.

Joutaro examinou os arredores e correu. Mas a paliçada, de grossos troncos lisos, tinha três vezes a sua altura.

“Não vai dar. Nunca vou conseguir saltar por cima disso”, pensou, olhando desesperançado para o alto. Foi então que Musashi surgiu trazendo um saco de carvão encontrado em algum lugar, e o depositou sob a cerca.

O menino contemplou seu mestre com expressão cética, quase dizendo: não adianta pisar em cima disso que não alcanço. Mas Musashi espiava o exterior pelas frestas entre os troncos, em silêncio, pensativo.

— Tem alguém do lado de lá, mestre?

— Vejo juncos cobrindo toda a área externa. Pode ser que haja água em torno. Pule com cuidado, Joutaro.

— A água não me preocupa. O problema é a altura da cerca: eu não consigo alcançar o topo dela.

— É quase certo que o bando Yoshioka posicionou vigias em todos os pontos estratégicos, e não apenas no portão principal. Você tem de saltar oculto na escuridão, para não ser repentinamente trespassado por uma espada. Quando eu erguê-lo em meus ombros, suba na paliçada, pare um minuto antes de saltar e examine bem o que o aguarda no chão, entendeu?

— Sim, senhor.

— Vou jogar esse saco de carvão para fora. Veja onde cai e, se não vir nada de anormal, pule em seguida — disse Musashi, pondo o menino sobre os ombros e levantando-se.

 

— Alcançou, Joutaro?

— Ih, está longe!

— Então fique em pé sobre os meus ombros.

— Mas estou de sandálias.

— Não faz mal.

Joutaro, sobre os ombros de seu mestre, mudou de posição e se ergueu.

— E agora, alcançou?

— Ainda hão.

— Que trabalho você me dá! Veja se consegue saltar e se agarrar a essa viga transversal da paliçada.

— Não vai dar.

— Bem, não tem outra saída: suba sobre as minhas mãos erguidas.

— Você me agüenta, mestre?

— Cinco ou dez iguais a você, com facilidade! Está pronto? Musashi juntou as mãos, fez o menino pisar sobre elas, esticou o braço e ergueu-o acima da própria cabeça.

— Alcancei! Alcancei! — gritou Joutaro, agarrando-se ao topo da cerca. Musashi então apanhou o saco de carvão com uma das mãos e o lançou no escuro para o outro lado da paliçada.

O saco caiu com um baque no meio dos juncos. Nada houve de anormal, pelo jeito, pois o menino logo pulou em seu rastro.

— Ora, não tem água nem nada. Isto aqui é apenas um campo aberto, mestre.

— Vá com cuidado.

— Nos veremos então no hipódromo de Yanagi!

Os passos do menino afastaram-se no escuro. Imóvel, rosto colado à cerca, Musashi ali permaneceu até ouvi-los perderem-se na distância. Enfim tranqüilizado com relação à segurança de seu discípulo, ele também se afastou a passos rápidos.

Depois de abandonar a escura viela e chegar à rua mais movimentada que conduzia ao portão central, Musashi misturou-se à multidão e caminhou como um dos muitos e alegres gentis-homens.

Contudo... mal pôs um pé para fora do portão central com o rosto descoberto, sem tentar ao menos o artifício de ocultá-lo num sombreiro, diversos pares de olhos ocultos nos arredores convergiram num átimo para o seu vulto:

— Ei! Musashi!

O grito denotava surpresa, como se os homens não tivessem esperado vê-lo.

De cada lado da entrada carregadores de liteira tinham montado áreas de descanso, delimitadas por cercas de esteira, e até dentro dessas áreas havia dois ou três discípulos Yoshioka, aquecendo-se ao fogo e observando o movimento do portão com olhar penetrante.

Além deles, havia grupos nos banquinhos da casa de chá Amigasa e na taberna do outro lado do estabelecimento. Quatro ou cinco revezavam-se para montar guarda ao lado do portão e examinavam sem nenhuma cerimônia as fisionomias dos homens que saíam da zona, erguendo-lhes os sombreiros, removendo capuzes. Se um palanquim passava com os estores abaixados, os homens paravam os carregadores e examinavam o interior da condução.

O procedimento repetia-se havia três dias.

Os homens do clã Yoshioka tinham-se assegurado de que Musashi não saíra da zona desde o dia da nevasca. Tinham também tentado negociar com a casa Ougi-ya e mandado espiões até lá, mas a casa simplesmente não lhes dera atenção, negando a existência de qualquer pessoa com as características de Musashi em seu interior.

Os Yoshioka sabiam que Yoshino-dayu o tinha sob sua proteção, mas não queriam invadir a casa por temer que a notícia de um bando de bushi desafiando ostensivamente a cortesã repercutisse negativamente não só nesse confinado mundo da diversão, como também no seio da aristocracia e da população em geral, já que Yoshino era uma figura idolatrada em todos os meios.

Assim sendo, os homens tinham-se decidido pela estratégia de postergar o conflito, contentando-se em esperar a saída de Musashi vigiando rigidamente o portão, certos de que o descobririam tentando escapulir usando um disfarce, ou oculto numa liteira, ou ainda pulando a cerca.

Mas eis que Musashi surgia impávido pelo portão, expondo-se sem qualquer tipo de camuflagem à luz dos archotes. A visão tinha sido tão inesperada e os espantou tanto que ninguém se lembrou de se adiantar e barrar-lhe o caminho.

 

Uma vez que ninguém o impedia de prosseguir, Musashi também não viu motivos para se deter.

E foi só quando, em largas passadas, já havia deixado para trás a casa de chá Amigasa e se distanciado quase cem passos que um dos homens lembrou-se de gritar:

— Ora, seu!...

No mesmo momento, outras vozes gritaram em coro:

— Ora, seu!...

— Ora, essa...

Repetindo as mesmas palavras, oito ou nove discípulos correram-lhe no encalço, passando-lhe à frente e cercando-o:

— Espere aí, Musashi!!

E foi só então que se enfrentaram realmente.

— Que querem? — replicou Musashi em tom que soou inesperadamente vigoroso aos ouvidos adversários. Deu alguns passos de lado e se posicionou de costas para um casebre na beira do caminho.

Troncos repousando em cavaletes e serragem acumulada indicavam que o barraco era dormitório de serradores. O barulho do lado de fora atraiu a atenção de um homem, que entreabriu a porta e espiou, perguntando:

— É briga?

Mal porém deu com os olhos na movimentação externa, soltou um berro de pavor, fechou a porta e a travou pelo lado de dentro com uma grossa tramela, metendo-se debaixo das cobertas. Logo, nada mais se ouviu do lado de fora do casebre que sugerisse presença humana em seu interior.

O clã Yoshioka inteiro acorreu em instantes, atendendo como um bando de cães selvagens ao som de assobios e gritos de alerta. Nessas circunstâncias, a visão costuma pregar peças transformando 20 homens em 40, 40 em 70. A verdade era, porém, que ali estavam não menos de 30 homens, uma pequena multidão rodeando Musashi. E como este havia-se postado de costas para o barraco, a roda dos discípulos Yoshioka acabou por englobar também a construção.

Musashi, imóvel, contava os adversários, tentando ao mesmo tempo antever como se moveria a turba para atacá-lo.

30 homens juntos não constituem a reunião de 30 estados mentais diferentes. O grupo tem uma mentalidade única, reage como um conjunto. Prever a sutil alteração desse estado mental e sua conseqüente movimentação não é tarefa das mais difíceis.

Como Musashi esperava, ninguém se aventurou a desfechar um golpe súbito e solitário contra ele. Até conseguirem coesão, os homens apenas tumultuavam e rodeavam Musashi a considerável distância, posicionando-se como qualquer grupo. Alguns até xingavam, como simples rufiões, ou lhe dirigiam insultos:

— Desgraçado!

— Poltrão!

Mantendo-se em rígida formação semicircular, os homens rugiam e insultavam, patenteando cada vez mais a fraqueza individual de cada um deles.

Quanto a Musashi, solitário desde o início e, portanto, com um único propósito e uma única linha de ação, estava em momentânea vantagem: seu olhar brilhante analisou cada um dos rostos ao redor, estudou quais seriam os mais perigosos, quais os inofensivos, teve tempo para preparar-se intimamente.

— Quem foi que me disse para esperar? Eu sou Musashi: e então, o que querem? — intimou.

— Quem o mandou esperar fomos nós. Nós todos, aqui presentes, o detivemos.

— Discípulos da academia Yoshioka?

— Ainda pergunta?

— E o que querem?

— Também isso não precisa ser dito: você sabe muito bem. Está pronto, Musashi?

 

— Se estou pronto? — repetiu Musashi. Seus lábios crisparam-se levemente.

Um sorriso gelado escapou pelos dentes brancos e atingiu os rostos dos que o cercavam como um bafejo capaz de contrair-lhes os poros do corpo inteiro.

— Um bushi está sempre pronto, mesmo enquanto dorme — prosseguiu. — Acho particularmente ridícula essa imitação barata de postura samuraica nesta briga de rua que vocês armaram. Mas esperem, tenho uma pergunta a fazer: vocês tramaram eliminar-me, ou duelar abertamente comigo?

— Isto aqui é um acerto de contas ou uma revanche? Esclareçam!

Se nesse momento Musashi mostrasse uma minúscula brecha nas palavras, ou pior, no olhar e na postura, as espadas inimigas teriam saltado em sua direção com a rapidez de jatos de água. No momento, porém, os homens apenas ouviam, silenciosos, enfileirados como contas de um rosário.

Foi então que uma voz vibrante se fez ouvir no meio do grupo:

— Você, mais que qualquer um, devia saber!

Os olhos de Musashi voltaram-se com um brilho sinistro para o lado de onde provinha a voz. Pela idade e atitude, julgou que seu interlocutor devia ser um dos mais graduados entre os discípulos da academia Yoshioka ali presentes.

E tinha razão: o homem era Miike Jurozaemon. Pelo visto, Miike estava disposto a dar o primeiro golpe e romper a inércia do grupo, pois adiantou-se com um movimento deslizante dos pés:

— Você não pode aleijar nosso mestre, Seijuro, eliminar seu irmão mais novo, Denshichiro, e continuar vivo: nós, discípulos da academia Yoshioka, não permitiremos. Por sua causa, o nome Yoshioka foi arrastado na lama, mas os cento e poucos discípulos leais ao seu mestre aqui estão para vingá-lo. Isto não é um acerto de velhas contas promovido por um bando de homens ressentidos, e sim uma guerra de extermínio, destinada a lavar a alma de nosso mestre. Sinto por você, Musashi, mas sua cabeça já nos pertence.

— Enfim ouço palavras dignas de um bushi. Se isto é o que realmente desejam, pode até ser que eu lhes entregue minha vida. Mas se é em nome da lealdade de um discípulo a seu mestre, e para reparar uma desfeita, por que não me desafiam frontalmente, não cumprem os ritos do duelo, assim como o fizeram seu mestre Seijuro, ou o irmão dele, Denshichiro?

— Cale a boca! Você, que andou escondido até hoje e que fugiria para uma outra província, não fossem nossos olhos vigilantes, não está em posição de nos cobrar absolutamente nada!

— Covardes vêem covardia até na correção alheia. Eu, Musashi, não me escondi nem fugi. Como prova disso, aqui estou!

— Mas só porque foi descoberto!

— Ora, essa! Se quisesse realmente fugir, nada me teria sido mais fácil!

— Está pensando que nós deixaríamos?

— Pelo contrário: tinha certeza de que ouviria falar de vocês, mais dia, menos dia. Mas nunca pensei que promoveriam este tipo de baderna, ilegal numa área de diversão, ou que perturbariam a ordem pública como um bando de arruaceiros selvagens. Isto é uma vergonha não só para nós, os envolvidos, como também para toda a classe dos bushi. Transformará a propalada lealdade em motivo de riso, será o mesmo que enlamear ainda mais o nome Yoshioka! A não ser que os senhores já considerem extintas a casa Yoshioka e a academia, e não se importem mais com questões como honra ou opinião pública. Se este for o caso, nada mais tenho a fazer: minhas duas espadas e eu os enfrentaremos até onde nos for possível. Prometo-lhes que erigirei uma montanha de cadáveres.

— Atrevido! — gritou alguém. Não era Jurozaemon, mas um homem ao seu lado, prestes a sacar a espada. Nesse instante, outra voz esbravejou:

— Atenção! Aí vem Itakura!

 

Itakura Shirouza, senhor de Iga, era a personificação do oficial severo. Na época, seu nome havia-se prestado para tema de cantigas e jogos infantis:

Quem é esse que vem pela estrada

Num ginete castanho?

Saiam da frente,

É Itakura Shirouza,

O senhor de Iga.

Ou ainda:

O senhor de Iga,

Tem mais braços do que a deusa

Kannon dos mil braços!

Tem espiões que tudo vêem

E a força de cem homens.

A Kyoto desses dias era uma cidade irrequieta por causa do surto anormal de progresso e prosperidade que experimentava. Tanto do ponto de vista político como estratégico, a cidade detinha o importante poder de decidir sobre o próximo destino do Japão.

Em conseqüência, Kyoto era a cidade culturalmente mais desenvolvida do país, mas também a mais difícil de ser governada, do ponto de vista ideológico.

Sua população era composta dos mais variados tipos. Desde o início do período Muromachi as famílias guerreiras da cidade tinham, em sua grande maioria, abandonado a condição de bushi e optado pela de mercadores, de extremo conservadorismo, enquanto a própria classe samuraica se havia separado em dois grandes grupos, de acordo com a cor partidária — pró-Tokugawa ou pró-Hideyoshi —  observando-se, vigilantes e hostis, à espera de um novo tempo.

Além deles, estava ainda disseminada na cidade toda uma categoria de bushi de procedência duvidosa e meio de vida desconhecido, sustentando súditos e os respectivos clãs.

A isso somavam-se também rounin, numerosos como formigas, perambulando incessantemente pelas ruas, a rezar por um golpe de sorte que lhes melhorasse a vida quando entrassem em choque os dois focos de poder, Tokugawa e Hideyoshi — ocorrência, segundo eles, inevitável.

Associados a esses rounin, crescia o número de marginais vivendo do jogo de bakuchi, praticando extorsões, falcatruas e seqüestras, assim como o número de tabernas e prostíbulos. Eternos libertinos e hedonistas abundavam, crentes de que o princípio “Cinqüenta anos e uma vida / São meros sonho ou ilusão”, decantado por Nobunaga, era a única verdade da existência, empenhando-se em terminar rapidamente seus dias afogados em bebida e em prazeres carnais.

Não bastasse isso, todos esses niilistas emitiam sua opinião política ou social sem reservas e, com invejável oportunismo, alternavam favoritismos ao sabor das contingências, ora por Tokugawa, ora por Hideyoshi, sempre atentos em busca de uma oportunidade para subir na vida.

Eis porque governar a cidade de Kyoto não era tarefa das mais fáceis e exigia o trabalho de um delegado incomum.

Levando em consideração todos esses fatores, Tokugawa Ieyasu, com sua experiente visão, nomeou o referido Itakura Katsushige magistrado da conturbada cidade de Kyoto.

Por ocasião da nomeação deste homem, no ano VI do período Keicho, à testa de um contingente de 30 homens a cavalo e cem subordinados, correu a seguinte anedota.

Quando a nomeação lhe foi oficialmente anunciada, Itakura não obedeceu de imediato as ordens do superior hierárquico, dizendo apenas:

— Vou para casa e trocarei idéias com minha mulher. Só depois disso poderei dar-lhes minha resposta.

Retornando à sua mansão, Itakura deu à mulher a notícia da nomeação e acrescentou:

— Desde a antigüidade, a história está cheia de casos de homens que perderam a casa e viram suas vidas destruídas depois de terem sido contemplados com altos postos. Analisei os casos e vi que tiveram como causa desentendimentos surgidos entre as mulheres dos referidos homens e o clã do novo posto. Sendo assim, quero dizer-lhe que só aceitarei o cargo com uma condição: você tem de me prometer jamais interferir em meus atos — os atos do novo prefeito desta cidade. Promete?

A mulher, então, compenetrada, respondeu:

— Para que haveriam de interferir em seus assuntos mulheres e crianças desta casa? O senhor tem a minha promessa.

No dia seguinte, Itakura, preparando-se para se apresentar no castelo, vestiu as roupas de baixo com a gola propositadamente dobrada. Ao notar isso, a mulher procurou endireitá-la e ouviu uma reprimenda do marido:

— Você já se esqueceu do que me havia prometido!

Em seguida, Itakura fez com que a mulher renovasse a promessa do dia anterior.

E porque entrou a serviço imbuído desse espírito, construiu para si uma imagem pública impoluta, de homem justo e ao mesmo tempo severo, diz a lenda. Ter esse magistrado implacável governando-lhes a vida devia ser um constante incômodo, mas com o tempo os cidadãos de Kyoto passaram a respeitá-lo como a um pai, tranqüilizados ante a idéia de ter essa zelosa figura velando-lhes as casas.

Devolvendo a história à sua trama original, quem seria então o homem que acabara de gritar: “Aí vem Itakura!”?

Impossível que fosse um dos os homens do clã Yoshioka, pois eles estavam todos ali reunidos, defrontando Musashi.

 

“Aí vem Itakura!” significava “Aí vêm os guardas de Itakura!”

Era bastante problemático o surgimento de um oficial da lei naquelas circunstâncias, mas como patrulhas costumavam rondar com rigor esses locais de grande afluência pública, não era impossível que a aglomeração tivesse atraído a atenção de uma delas.

A questão, porém, ainda permanecia: quem dera o grito de alerta? Um simpatizante? Ou um transeunte?

No momento em que os olhos de Miike Jurozaemon e dos discípulos Yoshioka se desviaram involuntariamente em direção à voz, um samurai de aspecto juvenil rompeu o cerco e disse:

— Esperem, esperem um pouco!

O recém-chegado adiantou-se e se postou entre os Yoshioka e Musashi

— Ora, essa!

— Você?

O jovem de cabelos longos presos em rabo enfrentou os olhares surpresos dos discípulos e de Musashi que para ele convergiam e fez uma pose arrogante, como se dissesse: “Sou eu mesmo! Tenho certeza de que vocês todos sabem quem sou!”

— Acabo de me apear de uma liteira diante do portão central e ouvi boatos de um duelo em andamento. Não é possível, pensei, mas contrariamente a todas as minhas expectativas, o que vejo? Senhores, não era isto o que mais temiam que acontecesse? Não sou partidário da casa Yoshioka, muito menos da causa de Musashi. Mas na qualidade de bushi e espadachim, e em nome da classe e de todos os bushi, tenho o direito de lhes dirigir algumas palavras.

O tom agressivo e eloqüente destoava de seu aspecto juvenil. Seu modo de se expressar, bem como o olhar de desprezo, eram a própria imagem da arrogância.

— E agora, deixe-me indagar-lhes: se por acaso surgissem neste local mandatários do magistrado Itakura; se eles os considerassem um bando de marginais envolvidos em rixa e perturbando a paz da cidade; e se acaso fossem intimados a apresentar uma explicação escrita dos acontecimentos, não seria isso bastante desonroso para todos vocês? Se oficiais da justiça forem envolvidos, o episódio será visto como simples briga de rua! O local não é apropriado, a hora inconveniente! Se vocês, bushi, perpetram atos que perturbam a ordem pública, estarão envergonhando a classe guerreira inteira. Em nome de todos os bushi, digo-lhes: desistam, este lugar é impróprio. Um conflito entre esgrimistas deve ser solucionado em obediência às leis da esgrima, uma solução deve ser buscada por meio de uma nova escolha de horário e local!

Desarmados pelo discurso, os homens do clã Yoshioka ouviam em silêncio. Às últimas palavras de Kojiro, Miike Jurozaemon acrescentou energicamente:

— Muito bem, acho lógico o seu raciocínio, mas pergunto-lhe: você é capaz de me assegurar que Musashi não desaparecerá entre hoje e essa nova data, mestre Kojiro?

— Até posso.

— Não aceito respostas vagas.

— Pensem bem: Musashi é um ser vivo.

— Ora, você pretende ajudá-lo a escapar!

— Não diga asneiras! — rebateu Kojiro. — Se eu mostrar esse tipo de favoritismo, sei que voltarão para mim o rancor que hoje têm por Musashi! Não lhe tenho amizade ou nenhum outro motivo para proteger este homem. Além do mais, acho que, a esta altura, nem ele pretende fugir. E se o fizer, ergam avisos por todos os cantos de Kyoto, exponham-no ao ridículo.

— Nada feito, isso não é suficiente. De nossa parte, só daremos por encerrada a questão neste momento se você nos garantir pessoalmente que se responsabiliza por Musashi, até o dia do novo duelo.

— Esperem, vou saber o que Musashi pensa a esse respeito — disse Kojiro, voltando-se. Devolveu então o olhar feroz que havia muito sentia cravado nas próprias costas e se aproximou de Musashi, estufando o peito.

 

Muito antes de dizer qualquer coisa, os olhares se chocaram. O mesmo tenso silêncio de uma fera avistando outra reinou entre eles.

Estes dois jovens detestavam-se, temerosos do que reconheciam um no outro. Eram ambos orgulhosos, bastava encontrarem-se para surgirem faíscas.

O mesmo estado de espírito da ocasião em que se haviam avistado sobre a ponte Oubashi quase os levava a se imobilizar de novo em rija guarda. Sem que houvesse necessidade de palavras, os olhares já tinham transmitido integralmente seus sentimentos e já travavam um silencioso combate.

Mas, enfim, Kojiro fez uso da palavra:

— Que acha disso, Musashi?

— Disso o quê?

— Das condições que acabo de propor ao clã Yoshioka.

— Aceito.

— Tem certeza?

— Discordo, porém, das condições que envolvem a sua pessoa.

— Quer dizer que não concorda em se submeter à minha vigilância até o dia do duelo?

— Não houve resquícios de covardia em meu comportamento, tanto por ocasião do duelo com o jovem mestre Seijuro, quanto com seu irmão Denshichiro. Por que haveria eu então de me acovardar perante seus discípulos, quando desafiado às claras, conforme o fazem neste instante?

— Muito digno! Esta sua corajosa declaração mereceu minha aprovação, tenha certeza. E então, Musashi: que dia escolhe?

— Deixo a cargo de meus adversários, a escolha da data e do local do duelo.

— Outra atitude viril, digna de aplausos. Diga-me então agora: onde pretende passar os próximos dias?

— Não tenho residência fixa.

— Mas então, aonde devo mandar o mensageiro com os termos do duelo?

— Estabeleçam os termos aqui e agora, que estarei no local e hora combinados.

— Está bem — respondeu Kojiro com um aceno. Voltou-se a seguir e se afastou para conversar por alguns instantes com Miike e os demais discípulos. Momentos depois, distanciou-se do grupo sozinho e se aproximou de Musashi uma vez mais:

— Seus adversários estabeleceram a data, amanhã, e o horário, o último terço da hora do tigre[92] — disse ele.

— Diga-lhes que estou ciente.

— O local será: estrada do monte Eizan, sopé do morro do templo Ichijoji. Na encosta do morro existe um pinheiro solitário e nesse local vocês deverão se encontrar.

— Pinheiro solitário na vila Ichijoji, certo? Compreendi.

— A casa Yoshioka escolheu para representá-la o menino Genjiro, único filho de Mibu Genzaemon, tio de Yoshioka Seijuro e Denshichiro. A escolha recaiu sobre o menino porque ele é o herdeiro de fato da casa. Contudo, por ser apenas uma criança, alguns discípulos da extinta academia o auxiliarão a desempenhar essa função. Esse ponto tem de ficar claro.

Estabelecidas as condições, Kojiro bateu à porta do casebre de lenhadores e, entrando por ela, ordenou aos dois homens, trêmulos em seu interior:

— Preparem-me um quadro de aviso. Vocês devem ter pedaços de madeira inúteis por aqui. Quero que a serrem no tamanho adequado e a preguem no topo de uma estaca de aproximadamente um metro e oitenta.

Quando os lenhadores lhe trouxeram a madeira preparada, Kojiro mandou que lhe providenciassem pincel e tinta. A seguir, exibindo seus dotes de calígrafo, nela registrou as condições do duelo.

Afixar o aviso na beira da estrada era tornar pública uma promessa, método muito mais eficiente de garantir o cumprimento dos termos que uma troca de juramentos por escrito.

Musashi acompanhou toda a movimentação, e quando enfim viu os Yoshioka afixarem o aviso numa das ruas mais movimentadas do local, afastou-se rapidamente rumo ao hipódromo de Yanagi, como se nada daquilo fosse de seu interesse.

 

Sozinho à espera de Musashi no hipódromo, Joutaro examinou a vasta escuridão ao redor e suspirou diversas vezes:

— Que demora!

Ao longe, as luzes de uma liteira passaram correndo. Bêbados se foram cantando e cambaleando.

— Está demorando demais! — resmungou.

“E se...” A dúvida começou a tirar-lhe o sossego. De repente, Joutaro disparou na direção do bairro alegre. Foi então que um vulto lhe disse de longe:

— Ei! Aonde vai?

— Mestre!! Estava indo ver o que lhe teria acontecido. Você demorou demais!

— É mesmo? Por pouco nos desencontramos.

— Tinha um bando grande de homens do clã Yoshioka na frente do portão, não tinha?

— Tinha.

— Não lhe fizeram nada?

— Não. Nada.

— Não tentaram prendê-lo?

— Não, não tentaram.

— Não mesmo...?

Joutaro ergueu o olhar e espreitou, tentando ler a fisionomia de Musashi, e insistiu:

— Quer dizer que está tudo bem de verdade?

— Isso mesmo.

— Mas não é por aí que se vai para a mansão Karasumaru. Temos de virar aqui.

— Ah, tem razão.

— Está ansioso por se encontrar com Otsu-san, não está, mestre?

— Estou, sim.

— E Otsu-san, então!... Ela vai ficar tão surpresa!

— Joutaro.

— Que é?

— A estalagem onde você e eu nos encontramos pela primeira vez... Lembra-se dela? Você se recorda em que vila ela fica?

— Kitano, não é?

— É verdade! A estalagem ficava na periferia de Kitano...

— A mansão de Karasumaru-sama é magnífica! Não se parece em nada com aquela estalagem.

— Não deve haver comparação com a estalagem, sem dúvida — riu Musashi.

— O portal da frente já está fechado, mas basta bater no portão dos fundos e eles o abrirão para nós. Acho que até lorde Mitsuhiro é capaz de aparecer quando souber que eu o trouxe comigo. Por falar nisso, mestre, sabe o bonzo Takuan? Pois ele é muito malvado! Estou com muita raiva dele. Sabe o que ele me disse a seu respeito, mestre? Disse: deixe esse sujeito para lá. Ele sabia muito bem onde você estava, mas não quis me contar.

Acostumado ao mutismo de Musashi, Joutaro continuou a falar sozinho. Dentro de instantes, o portão de serviço da mansão Karasumaru surgiu no campo visual dos dois.

— É ali, mestre! — disse Joutaro apontando com o dedo, indicando o local para Musashi, que tinha parado de repente. — Está vendo a claridade por cima do muro? Essa é a ala norte da mansão, onde fica o quarto de Otsu-san. Talvez seja ela esperando por nós.

— Vamos, vamos logo, mestre. Já vou bater no portão para chamar o porteiro, está bem? — disse o menino, pronto para correr nessa direção, quando Musashi o deteve pelo pulso.

— Não se apresse!

— Por quê, mestre?

— Eu não vou entrar na mansão. Quero que você leve um recado para Otsu-san.

— Quê?! Como é? Mas então, para que veio até aqui, mestre?

— Eu queria apenas me assegurar de que você chegaria são e salvo à mansão.

 

O receio de que algo poderia subitamente dar errado vinha atormentando Joutaro havia já algum tempo e, ao ver que suas mais negras suspeitas se concretizavam, o menino se afobou:

— Não pode! Não pode fazer isso! — berrou. —Você tem de vir comigo, mestre!

Agarrou-lhe a manga do quimono e tentou arrastá-lo para dentro da mansão, conduzi-lo a força à cabeceira de Otsu, agora num local tão próximo, dentro desses muros.

— Não grite tanto! — repreendeu-o Musashi, considerando a hora e a casa silenciosa. — Escute-me com calma.

— Não quero, não quero ouvir! Você me disse há pouco que me acompanhava.

— E o acompanhei realmente, não acompanhei?

— Mas não disse que era só até o portão! Eu queria dizer que era para vir comigo até perto de Otsu-san. Você está ensinando seu discípulo a mentir, mestre! Isso é certo?

— Joutaro! Não fique tão nervoso e me escute até o fim, com calma. Tem de saber que, muito em breve, estarei outra vez em situação de vida ou morte.

— Mas você mesmo vive dizendo que um samurai tem de acordar a cada manhã preparado para morrer antes do final desse dia! Isso não deve ser nenhuma novidade para você!

— É verdade! São palavras que digo a todo instante, mas soam como uma nova lição quando você as diz. Esta vez, porém, é diferente de todas as outras: conforme você me disse, tenho de estar preparado para enfrentar um duelo em que mal terei uma chance em dez de sobreviver. É por isso que não devo me encontrar com Otsu-san.

— Mas por quê? Por quê, mestre?

— Mesmo que eu lhe dissesse por quê, você não entenderia. Um dia, quando você crescer, compreenderá.

— Tem certeza de que vai enfrentar a morte muito em breve?

— Não diga nada disso a Otsu-san, ouviu bem? Se ela está doente, diga-lhe que Musashi pediu para sarar logo, escolher um rumo na vida e ser feliz... Entendeu, Joutaro? Diga-lhe que foi o que eu lhe disse, antes de partir, mas não conte o resto.

— Nada feito! Nada feito! Vou contar tudo para ela. Como posso não contar? Ah, deixe isso para lá e me acompanhe, mestre!

— Como você é teimoso, Joutaro! — disse Musashi, desvencilhando-se das mãos do menino.

— Mas, mestre... — choramingou — Assim é demais! Tenha pena de Otsu-san! Tenho certeza de que se eu contar o que aconteceu hoje, ela vai piorar! Tenho certeza!

— Então, diga a ela: não adianta nos encontrarmos agora, enquanto eu ainda estou aprendendo a ser um guerreiro, isso apenas nos tornará infelizes. Quando vencemos as adversidades ou buscamos suportá-las com estoicismo, quando nos lançamos voluntariamente num vale cheio de dificuldades, só então o aprendizado se torna significativo. E agora você, Joutaro: não se esqueça que terá também de percorrer esse mesmo caminho para se tornar um guerreiro completo.

Musashi sentiu súbita pena do menino a soluçar ao seu lado e atraiu-lhe a cabeça para o próprio peito:

— Um guerreiro nunca sabe quando vai morrer, isso é parte do seu cotidiano. Depois que eu me for deste mundo, procure um bom mestre, entendeu, Joutaro? Quanto a Otsu-san... Futuramente, quando ela tiver encontrado a felicidade, há de compreender por que não a procuro agora. Essa luz sobre o muro é a do seu quarto? Ela deve estar se sentindo muito solitária, sem você. Entre, volte para perto dela e trate de dormir também, Joutaro.

 

Embora fosse às vezes obstinado, Joutaro pareceu compreender pelo menos parte dos dilemas de Musashi. Provava-o a sua atitude: de costas, ressentido, soluçava em silêncio. O ressentimento e os soluços vinham da incapacidade de resolver o problema. O pequeno coração se confrangia de pena de Otsu e de saber que era inútil insistir com Musashi.

— Nesse caso — disse o menino, voltando o rosto em lágrimas com uma ponta de conformismo —, quando você terminar seu aprendizado... nesse dia você virá encontrar-se com Otsu-san, mestre? Quando enfim chegar o dia em que você considerar concluído o seu aprendizado?

— É o que eu mais desejarei quando esse dia chegar.

— E quando será esse dia?

— Como posso saber?

— Daqui a dois anos?

— Três anos?

— Ando por um caminho sem fim.

— Isto quer dizer que pretende nunca mais se encontrar com Otsu-san?

— Se eu realmente tenho talento, pode ser que um dia obtenha o sucesso. Mas posso não o ter, e nesse caso talvez chegue ao fim da vida como um simplório inútil. Além do mais, estou neste instante face a face com a morte. E como pode um homem nessa situação prometer alguma coisa a uma jovem na flor da idade, que tem o futuro inteiro pela frente?

Joutaro pareceu não compreender direito as explicações quase involuntárias de Musashi, e voltou-se com ar vivo:

— Mas mestre, você não precisa prometer nada a ela, basta apenas que a veja!

Quanto mais explicava, mais Musashi se sentia incoerente e confuso, e sofria com isso.

— Não é tão fácil assim, Joutaro. Otsu-san é uma mulher, eu sou um homem. Sinto-me constrangido em ter de confessá-lo, mas se me encontrar com ela, sei que serei vencido por suas lágrimas, que elas quebrarão a minha firme decisão.

Tanto a fuga empreendida no momento em que vira Otsu no feudo de Yagyu, quanto a atual, eram reações idênticas, mas intimamente Musashi percebia grandes diferenças.

Na ponte Hanadabashi, e também no feudo Yagyu, ele havia rechaçado o amor de Otsu como o fogo repele a água, porque seu espírito aventureiro ansiava por novos horizontes, e também porque se sentira quase melindrado em sua retidão moralista. Agora, porém, à medida que a antiga selvageria começava a ser educada, o jovem Musashi começava a perceber certa dose de fraqueza em si.

Compreender o valor da vida já fora suficiente para ensinar-lhe o medo. Além disso, conhecer pontos de vista de pessoas que trilhavam caminhos diferentes havia-lhe reduzido o orgulho e a presunção.

Com relação às mulheres, especificamente, Musashi havia percebido através de Yoshino como elas podiam ser atraentes e, ao mesmo tempo, quantas paixões diferentes despertavam dentro dele. No momento, Musashi não temia esses objetos tentadores propriamente ditos, mas o próprio coração. E se o objeto tentador era Otsu, ele já não tinha certeza de mais nada. Por outro lado, era-lhe impossível pensar nela como um simples passatempo, desconsiderando seu futuro.

Soluçando, rosto apoiado ao braço, Joutaro ouvira a voz de seu mestre junto ao ouvido, dizendo: — Compreendeu?

Segundos depois, porém, quando ergueu a cabeça num movimento brusco e olhou ao redor, viu apenas neblina e densa escuridão.

— Ah, Mestre! — gritou, correndo até o canto do muro.

 

Pensou em chamar por Musashi aos berros, mas sabendo que era inútil, Joutaro apoiou o rosto ao muro e rompeu em choro.

Ele agira com tanta boa-fé, empenhara-se tanto em realizar o que seu pequeno coração lhe ordenara, mas Musashi, com sua lógica adulta, o tinha ignorado. E embora acatasse essa lógica, até a entendesse, o menino se sentia magoado.

Chorou muito tempo, até as lágrimas secarem e perder a voz, e deixou-se ficar ainda por ali apenas sacudido por soluços.

Foi então que um vulto feminino, talvez uma serviçal da mansão de volta de alguma missão externa, parou diante do portão de serviço. O vulto, que se cobria com um véu, por certo ouviu os soluços do menino, pois voltou-se e aproximou-se com passos indecisos.

— Jouta-san? — disse uma voz admirada. — É você mesmo, Jouta-san? Ao segundo grito, Joutaro voltou-se estupefato:

— Ei..., Otsu-san?

— Que deu em você? Por que chora?

— Que deu em você, digo eu! Como pode estar aqui fora, doente desse jeito?

— Como posso estar aqui fora? Essa é boa! Nunca vi ninguém dar mais trabalho que você, Jouta-san. Por onde andou até esta hora, depois de sair sem avisar ninguém? Não sabe o quanto me preocupei quando as luzes foram acesas, o portão principal foi fechado e você não voltou!

— Quer dizer que está aqui fora procurando por mim?

— Achei que podia ter acontecido algo errado e não consegui mais continuar na cama.

— Você é tonta, de verdade! Esqueceu que está doente? Que faremos se a febre subir de novo, me diga? Vamos, volte para a cama, rápido!

— Antes de mais nada, quero saber por que você estava chorando.

— Depois eu conto.

— Nada disso. Alguma coisa séria aconteceu. Vamos, fale!

— Vá para a cama primeiro, que eu conto depois. Amanhã, quando você começar a gemer de novo por causa da febre, eu não vou querer nem saber, ouviu?

— Está bem, está bem: volto já para o quarto e me deito. Mas depois, você me conta em linhas gerais o que aconteceu? Você foi atrás do monge Takuan, não foi, Joutaro?

— Fui.

— E perguntou a ele o paradeiro de Musashi-sama?

— Não gosto daquele monge desalmado.

— Quer dizer que não conseguiu saber onde Musashi-sama está?

— Hu-hum.

— Conseguiu?

— Deixe isso para lá e vamos dormir! Vamos dormir! Outra hora eu conto.

— Por que você esconde as coisas de mim? Se não me contar, vou passar a noite inteira aqui fora, sem dormir!

— Droga! — murmurou o menino. Suas sobrancelhas se franziram, e ele pareceu prestes a romper em choro outra vez, mas puxou Otsu pela mão, dizendo: — Primeiro, o meu mestre e, agora, esta moça doente... Por que vocês me dão tanto trabalho, hein? O que eu tenho para contar só pode ser contado depois que eu tiver aplicado uma compressa fria nessa sua testa quente, entendeu? Vá, entre de uma vez! E se não entrar, juro que a carrego nos ombros e a meto na cama!

Puxando Otsu com uma das mãos e com a outra esmurrando a porta de serviço, Joutaro esbravejou:

— Senhor porteiro! A enferma saiu da cama, não percebeu? Abra a porta! Abra a porta de uma vez, que ela é capaz de se resfriar!

 

UM BRINDE AO AMANHÃ

Ajudado por alguns goles de saque e banhado de suor, Hon’i-den Matahachi veio correndo desde a rua Gojo até a ladeira Sannen-zaka, sem ao menos olhar para os lados.

A meia altura da ladeira cheia de pedregulhos, saiu do caminho e, passando por vielas ladeadas por barracos sujos, chegou à conhecida casinha isolada no fundo da horta, e espiou o interior.

— Mãe! — chamou. A seguir, estalou a língua e resmungou: — Ora, essa, lá está ela cochilando de novo!

Descansou alguns momentos na beira do poço, aproveitou para lavar mãos e pés e entrou na casa, mas a velha Osugi continuava roncando com a cabeça tão enterrada no braço que se tornava difícil distinguir a boca do nariz.

— Irra! Só pensa em dormir! Mais parece uma gata vadia! — reclamou Matahachi.

O sono não era tão profundo, pois a velha entreabriu os olhos e perguntou:

— Que disse?

Em seguida, soergueu-se.

— Hum, pensei que estivesse dormindo — resmungou Matahachi.

— Que jeito é esse de falar da própria mãe? Durmo quando posso para preservar a saúde.

— Faz bem em preservar a saúde, mas enquanto isso, você não me deixa sequer descansar um pouquinho, e logo começa a reclamar: “Deixe de ser preguiçoso, vá saber do paradeiro de Musashi em vez de ficar aí parado...”

— Está bem, está bem. Cochilei sem querer, reconheço. Sou jovem de espírito, mas o corpo não agüenta. E depois, sinto um desânimo tão grande desde aquela noite em que quase acabamos com Otsu... O braço que o cretino do bonzo Takuan torceu ainda dói.

— Eu chego animado e você se mostra abatida; você se recupera e eu fico com vontade de desistir: isso mais parece uma brincadeira de criança!

— Nada disso! Hoje foi especial, tirei o dia para me recuperar, mas não estou velha a ponto de começar a me lamuriar. E então, Matahachi? Soube de algo proveitoso a respeito do paradeiro de Otsu ou do destino de Musashi?

— Nem adianta tapar os ouvidos que se ouve! A cidade está em polvorosa! A única pessoa que não sabe de nada é você, mãe, que fica aí dormindo.

— Que disse? Que notícia deixou a cidade em polvorosa? — disse Osugi, aproximando seus joelhos. — Fale de uma vez, Matahachi!

— Dizem que Musashi vai duelar pela terceira vez com os Yoshioka!

— Ah! Onde? E quando?

— O aviso afixado diante do portão principal da zona alegre dizia apenas: Vila Ichijoji, sem maiores detalhes. A data, madrugada de amanhã.

— ...Matahachi!

— Que é?

— Você leu um aviso afixado perto do portão da zona alegre?

— Isso mesmo. Estava coalhado de gente.

— Presumo então que perambulava desde cedo por essas bandas, no maior descaramento.

— Que... que é isso! — negou Matahachi, abanando freneticamente a mão. — Eu ainda bebo um pouco, de vez em quando, mas levo uma vida bem regrada desde aquele dia horrível, estou-me comportando como se tivesse nascido de novo! Além disso, empenho-me seriamente em descobrir o paradeiro de Musashi e Otsu, você sabe disso muito bem! Irra, essa permanente desconfiança me desanima!

Osugi sentiu súbita pena do filho:

— Vamos, Matahachi, não se aborreça. Eu estava apenas pilheriando. E então não sei que você se emendou, e que já não vive farreando? Quanto a esse duelo entre Musashi e os Yoshioka: se ele foi marcado para a madrugada de amanhã, não nos resta muito tempo de sobra.

— Último terço da hora do tigre, dizia o aviso. Isto quer dizer que vai estar escuro ainda.

— Você me disse certa vez que conhecia um dos discípulos da academia, não disse?

— Conhecer, conheço, mas não posso me orgulhar muito das circunstâncias em que o conheci. Por quê?

— Quero que você me leve até essa academia na rua Shijo. Agora! Vamos, arrume-se de uma vez.

 

Idosos são, em geral, impacientes e despóticos. Esquecida de que dormira à vontade a tarde inteira, Osugi franziu o cenho, irritada com o que julgava ser a calma do filho:

— Ande logo, Matahachi!

— Que pressa! Até parece que a casa pegou fogo! Para começar, que pretende batendo à porta da academia Yoshioka?

— Pretendo fazer-lhes um pedido em nosso nome, é óbvio!

— Que pedido?

— Não acaba de me dizer que amanhã de madrugada os homens do clã Yoshioka vão matar Musashi? Pois vou pedir-lhes que nos incluam no grupo que vai duelar amanhã. Quero de algum modo ajudá-los e dar ao menos um golpe nesse maldito Musashi.

Matahachi pôs-se a gargalhar:

— Está louca, mãe?

— Por que ri tanto?

— Porque você diz coisas absurdas!

— Absurdo é você!

— Então vá lá fora e ouça o que diz o povo. Só assim vai saber quem é absurdo, você ou eu. Os Yoshioka perderam Seijuro, para começar, e logo depois, Denshichiro. Esta é uma guerra de extermínio, a última possível para eles. Os homens que estão agora reunidos na academia — por sinal, falida — estão todos de cabeça quente, de puro desespero. Declaram abertamente que, nas atuais circunstâncias, vão eliminar Musashi com a ajuda de muita gente, mesmo que fiquem mal-afamados; alegam que são discípulos vingando o mestre, não têm que se preocupar com regulamentos ou recursos que regem os duelos comuns.

— É mesmo? — disse Osugi apertando os olhos. A notícia era música para seus ouvidos. — Isto quer dizer que, desta vez, Musashi vai acabar em pedacinhos, por mais que se esforce por escapar!

— Quanto a isso, ninguém tem muita certeza. Estão achando que, com toda a probabilidade, Musashi também vai juntar um bando para ajudá-lo: se os Yoshiokas são muitos, ele também os enfrentará com outros tantos. Se isso acontecer, a briga vai ser feia, quase uma guerra. Kyoto inteira só fala nisso hoje. E no meio dessa confusão, você acha que alguém vai dar atenção a uma velhinha decrépita que lhes aparece na frente insistindo em ajudá-los?

— Hum!... Pode ser que não. Mas nem por isso podemos ficar apenas contemplando enquanto Musashi, o homem que há tanto tempo procuramos, é liquidado por outras pessoas...

— Acho o seguinte: se estivermos na vila Ichijoji antes do amanhecer, com certeza saberemos o local exato do duelo e os demais detalhes. E então, depois que os Yoshioka liquidarem Musashi, nós nos apresentaremos a eles, faremos uma mesura formal e exporemos nossa saga; depois disso, cada um de nós pedirá licença para golpear o cadáver ao menos uma vez, cortamos uma mecha de seus cabelos ou a manga do seu quimono, e os exibimos ao nosso povo. Desse modo, nossa honra estará salva. Que acha?

— Muito bem, boa idéia! Não vejo outra saída além dessa—observou Osugi, sentando-se agora formalmente. — Depois disso, resta-nos apenas Otsu. Com Musashi morto, ela estará tão indefesa quanto um macaco caído do galho: vamos acabar com ela com um único golpe, basta apenas encontrá-la.

Murmurando para si, Osugi finalmente se acalmou.

Matahachi voltou-se de repente, como um beberrão que se lembra de um restinho de saque esfriando no fundo da taça, e disse:

— Uma vez decidido, vamos descansar os ossos calmamente até perto da hora do boi[93]. É um pouco cedo ainda, reconheço, mas que tal pedir saque para acompanhar o nosso jantar?

— Saque...? Está bem, vá pedir na cozinha. Eu também vou beber, será uma comemoração antecipada.

— Nesse caso... — disse Matahachi, levando as mãos às coxas e preparando-se com certa má vontade para erguer-se, mas parou e fixou os olhos arregalados na pequena janela lateral.

 

Um rosto branco havia surgido de relance do lado de fora da janela. Para Matahachi, a surpresa não se devia somente ao fato de o rosto entrevisto ser o de uma jovem mulher.

— Mas é Akemi! — disse, correndo para a janela.

A jovem permanecia imóvel sob as árvores, como um gatinho pego de surpresa.

— Ora, essa! Era você, Matahachi-san? — exclamou ela, também surpresa e arregalando os olhos.

Ao mesmo tempo, o tilintar trêmulo de um guizo soou nas dobras do obi ou na manga do quimono.

— Que aconteceu? Como é que você apareceu por aqui, assim de repente?

— Mas eu já estou hospedada aqui faz algum tempo...

— Verdade? Não sabia! Junto com Okoo?

— Não.

— Sozinha?

— Isso mesmo.

— Você não vive mais com Okoo?

— Você conheceu Gion Toji, não conheceu?

— Sim.

— Pois minha madrasta fechou a casa de chá no final do ano passado e se evadiu com ele para uma outra província. Mas antes disso, eu já não vivia com ela.

O guizo tilintou novamente. Akemi chorava com o rosto oculto na manga do quimono. Talvez fosse a luz filtrada pelas copas das árvores, mas Mata-hachi percebeu diferenças muito grandes tanto na linha do seu pescoço como na mão magra, o viço puro dos velhos tempos do pântano Ibuki ou da casa de chá Yomogi para sempre perdido.

— Quem está aí, Matahachi? — perguntou Osugi, desconfiada. Matahachi voltou-se:

— Esta é Akemi, a filha da Okoo... Aquela de quem já lhe falei uma vez.

— E a troco de que essa moça ouvia nossa conversa do lado de fora da janela?

— Por que você leva tudo a mal? Ela está hospedada aqui e apenas passou perto da janela. Não foi, Akemi?

— Isso mesmo! Eu nem podia imaginar que você estivesse aqui, Mata-hachi-san! Ah, pensando bem, um dia, quando eu cheguei até aqui meio perdida, encontrei uma mulher de nome Otsu morando nesta casinha.

— Otsu já foi embora. Você chegou a conversar com ela?

— Não, nada em particular. Mais tarde, porém, me lembrei: aquela moça é a noiva que o esperava em sua terra, não é, Matahachi-san?

— Hum!... Isso foi há muito tempo.

— Você também foi prejudicado pela minha madrasta...

— E você? Continua sozinha? Está tão diferente...

— Eu também sofri muito nas mãos da minha madrasta. Eu tinha de obedecer, já que foi ela quem me criou. E no fim do ano passado, aconteceu uma coisa que eu não consegui suportar... E então saí fugida da Enseada Sumiyoshi, onde havia ido passar alguns dias.

— Tanto você quanto eu tivemos o início de nossas vidas destruído por obra e graça de Okoo. Maldita! Mas você ainda vai ver: em troca de suas maldades, ela há de ter uma morte horrorosa.

— E agora... Que vou fazer?

— Meu futuro também é negro. Depois de tudo que disse a ela naquele dia, tenho de me tornar alguém na vida e lhe dar o troco, mas... só fico na vontade!

Enquanto os dois jovens lamentavam os destinos semelhantes, Osugi, que juntara seus pertences numa trouxa e se preparava para a viagem, voltou-se impaciente:

— Matahachi! Matahachi! Não perca tempo conversando com uma vadia e venha me ajudar. E prepare-se também para partir. Não se esqueça de que esta é a nossa última noite nesta hospedaria!

 

Akemi parecia querer dizer-lhe algo mais, mas desistiu por causa de Osugi e se despediu:

— Até mais ver, Matahachi-san. Falo com você depois. — Afastou-se a seguir com passos incertos.

Pouco depois, uma luz se acendeu no interior da casinha.

O serviço de jantar incluía saque, especialmente encomendado. A conta da hospedaria estava numa bandeja entre a mãe e o filho, entretidos em brindar à partida. Gerente e serviçais revezavam-se, apresentando as despedidas:

— Quer então dizer que parte esta noite definitivamente? Esforçamo-nos ao máximo, mas sei que a nossa hospitalidade não esteve à altura de uma pessoa de seu nível... Gostaríamos, porém, que não se desgostassem, e que nos honrem com sua preferência quando retornarem à nossa cidade.

— Claro, claro! Se voltarmos, passaremos mais alguns dias aqui. Desde o fim do ano passado e esta primavera inteira... Sem querer acabamos ficando quase três meses em sua hospedaria.

— Vamos sentir sua falta, senhora.

— Brindemos à despedida, estalajadeiro.

— De bom grado. E então, volta daqui para sua terra, senhora?

— Nada disso. Aliás, nem sei quando voltarei a pisar minhas terras outra vez.

— Soube que vai partir no meio da noite. Por quê, em hora tão inconveniente?

— É que ocorreu um fato imprevisto, de certa importância. Por falar nisso, vocês não teriam um mapa indicando o caminho para a vila Ichijoji?

— A vila Ichijoji fica muito além de Shirakawa. É um lugarejo solitário, próximo ao monte Eizan. Não faz sentido dirigir-se para esses ermos no meio da noite, senhora.

Matahachi interrompeu o estalajadeiro, dizendo bruscamente:

— Não importa. Faça um esboço do caminho que devemos seguir para chegar a essa vila Ichijoji, por favor.

— Sim, senhor. Por sorte, temos aqui um serviçal que veio dessa vila. Vou perguntar a ele e farei um mapa fácil de entender. Ichijoji, porém, é uma localidade extensa e...

Matahachi, ligeiramente embriagado, começou a se irritar com as demonstrações de cortesia do estalajadeiro e disse:

— Não se preocupe com o local exato para onde nos dirigimos. Queremos apenas saber o caminho até lá.

— Perdoe-me se insisti demais. Prossigam com seus preparativos, senhores... — disse, esfregando as mãos e preparando-se para descer da varanda. Havia já algum tempo três ou quatro empregados da hospedaria corriam em volta da hospedaria e nesse instante, o gerente, avistando o estalajadeiro, aproximou-se às carreiras:

— Não viu ninguém fugir para estes lados, patrão? — perguntou o homem.

— Quem?

— Aquela garota que dormia sozinha no quarto dos fundos, faz alguns dias.

— O quê? Ela fugiu?

— Ela estava lá até o fim da tarde, tenho certeza. Mas pelo aspecto do seu quarto, agora...

— Não a acharam em lugar algum?

— Não, senhor.

— Idiotas!

O estalajadeiro fez cara de quem acaba de engolir água fervente e suas feições mudaram, instantaneamente. Esquecido da linguagem melíflua de há pouco, o homem começou a despejar injúrias

— De que adianta trancar a porta depois de arrombada? Pelo jeito da menina, já dava para perceber, desde o início, que tramava alguma coisa. E você só foi perceber que ela não tinha um níquel furado depois de sete ou oito dias? Como pode dirigir uma hospedaria desse jeito, cretino?

— Sinto muito, patrão. Mas era uma menininha tão nova que nem pensamos...  Ela nos levou na conversa direitinho!

— Considere perdidas as conta da cozinha e da hospedagem, mas vá pelo menos verificar se não sumiu nada dos demais hóspedes. Bando de incompetentes! — berrou o estalajadeiro, dardejando o olhar ao redor irado.

 

À espera da meia-noite, mãe e filho brindaram diversas vezes. Osugi, a certa altura, parou de beber e começou a se alimentar.

— Matahachi! Que tal parar de beber?

— Só mais este trago... — disse o filho, servindo-se de novo. — Eu não vou jantar.

— Coma ao menos arroz e picles. Beber sem comer faz mal. Empregados da hospedaria portando lanternas iam e vinham pela senda

que cortava a horta e pela viela da entrada. Osugi observava o movimento:

— Pelo jeito, ainda não a pegaram — murmurou. — Eu não disse nada porque receava ser envolvida, mas essa menina que desapareceu... Não será essa tal Akemi, que conversava com você esta tarde?

— Talvez.

— Ela não podia ser grande coisa de menina, criada como foi por Okoo, essa bisca. Trate de não conversar com ela, mesmo que a encontre em algum lugar doravante. Ouviu bem, Matahachi?

— Pensando bem, essa moça é uma pobre coitada.

— Ter pena dos outros é bonito; ruim vai ser se tivermos de pagar a conta dela. Não diga a ninguém que a conhecíamos, até irmos embora daqui.

Matahachi parecia estar pensando em outra coisa. Estirou-se sobre o tatami, puxou uma mancheia de cabelos e disse:

— Maldita! Ainda agora, vejo o rosto dela no teto. A culpa do meu fracasso não é de Musashi, nem de Otsu, é daquela megera, Okoo. Ela devia ser o verdadeiro alvo de minha vingança.

Osugi interveio:

— Que bobagem é essa? E de que adiantaria matarmos essa mulher? Ninguém em nossa terra reconheceria o feito, nem a honra da nossa casa se salvaria.

— Estou começando a me cansar da vida.

Nesse instante, o estalajadeiro surgiu na varanda trazendo uma lamparina portátil:

— Velha senhora, acaba de soar a hora do boi.

— Então vamos partir.

— Já? — disse Matahachi, espreguiçando-se. — E então, estalajadeiro, pegaram a fugitiva?

— Não, senhor, não a vimos mais. Desconfiei dela desde o começo, mas como tinha boa aparência, achei que poderia fazê-la trabalhar para mim e assim compensar eventuais dívidas de comida e hospedagem, mas ela nos passou a perna direitinho.

Sentado na beira da varanda, Matahachi amarrava os cordões da sandália e se voltou:

— Mãe, que está fazendo aí? É sempre a mesma coisa: você me apressa e na hora de partir se atrapalha toda.

— Calma! Para que tanta pressa? Escute, Matahachi: será que eu lhe dei aquilo?

— Aquilo o quê?

— A carteira que deixei ao lado desta trouxa. A despesa da hospedaria paguei com o dinheiro que tinha em meu obi, e guardei nessa carteira o dinheiro miúdo para as despesas desta viagem.

— Não sei nada a respeito dessa carteira.

— Ei..., Matahachi! Venha cá, depressa! Tem uma tira de papel amarrada na trouxa, e nela está escrito: “Para o senhor Matahachi”. Mas que descarada! Ela escreveu também: “Levo o dinheiro emprestado, em nome de nossa antiga amizade. Perdoe-me.”

— Ora, essa! Então foi Akemi que levou a carteira! No mesmo instante, o estalajadeiro interrompeu-os:

— Ah!... Quer dizer então que conheciam a fujona! Nesse caso, temos algumas despesas que ficaram pendentes e que gostaríamos de ver acertadas. Que me diz, senhora?

Osugi piscou diversas vezes e sacudiu a cabeça:

— Absurdo! Como haveria eu de conhecer essa ladrazinha? Vamos, vamos, Matahachi! Partamos! Se bobear, os galos vão começar a cantar.

 

TERRA MORTÍFERA

A lua ainda brilhava no céu.

A madrugada vinha chegando, mas era cedo, muito cedo. Os homens observavam as próprias sombras que a lua projetava na estrada branca, estranhamente misturadas umas às outras.

— Não esperava por isso.

— Nem eu! Imaginei que contaríamos com 140 a 150 pessoas, mas está faltando muita gente.

— No passo que vai, seremos apenas a metade disso.

— Incluindo o senhor Mibu Gorozaemon, seu filho e parentes, que ficaram de nos alcançar mais tarde, seremos ao todo cerca de 60 ou 70 homens, eu acho.

—A casa Yoshioka está decadente, não há mais dúvida! Também, não era para menos: perdemos dois pilares de sustentação, os senhores Seijuro e Denshichiro. É desse jeito que acontece a queda de uma casa tradicional!

Aqui, um grupo sussurrava, sombras juntando-se a sombras. De um outro grupo sentado nas ruínas de um muro um pouco mais distante, alguém voltou-se e gritou:

— Não choraminguem. Estamos todos sujeitos a altos e baixos neste mundo.

De um terceiro aglomerado veio outra observação:

— Deixem para lá os que não querem vir! Muitos dentre eles tiveram de procurar outros caminhos, já que a academia fechou as portas. Outros ainda devem estar considerando os prós e os contras pensando no futuro, é mais que natural. Os homens aqui presentes apresentaram-se voluntariamente, e são os de fibra, os que se decidiram por uma vida honrada.

— Cem ou duzentas pessoas seria gente demais, só atrapalharia. Afinal, estamos atrás de um único adversário!

— Olhem aí, tem alguém bravateando! E que me dizem a respeito do que aconteceu no templo Renge-ou? Vocês estavam lá, naquela ocasião, e ficaram olhando Musashi se evadir!

Às costas dos homens, as montanhas Eizan, Ichijoji e Nyoi-ga-take ainda pareciam dormir, envoltas em densa neblina. No ponto onde se encontravam, popularmente conhecido como Encosta do Pinheiro Solitário, a estrada rural que passava pelas antigas ruínas do templo Ichijoji se trifurcava.

Sob a lua do alvorecer, um pinheiro solitário erguia-se com sua copa alta e ramos espalhados. A área, quase uma campina ao pé das montanhas, formava a base da morro Ichijoji e os caminhos, além de íngremes, eram todos cheios de pedregulhos. Em tempo de chuva, a água costumava descer da montanha formando rios, escavando a terra e expondo ravinas.

Os homens da academia Yoshioka haviam-se juntado em torno do pinheiro havia já algum tempo, e vagavam agora ao seu redor como caranguejos em noite de luar.

Atento à topografia local, alguém disse:

— Esta trifurcação cria um problema para nós: não sabemos por qual dos três caminhos chegará Musashi. Acho que a melhor solução será repartir os presentes em três grupos iguais e deixá-los tocaiando nas três sendas, enquanto o representante da casa, o menino Genjiro-sama, o patriarca de Mibu e mais uns dez veteranos da academia, entre eles Miike Juroza e Ueda Ryohei, deveriam permanecer ao redor do pinheiro, os últimos na qualidade de guardiões do menino.

Outro expunha a sua teoria:

— Não, esta área é muito restrita. Juntar muita gente num lugar com estas características será desvantajoso para nós. Acho que devemos esconder-nos a intervalos maiores ao longo do caminho por onde Musashi virá, deixá-lo passar e depois encurralá-lo pela frente e por trás. Desse modo, ele não nos escapará.

A coragem crescia visivelmente, insuflada pela presença numerosa. Das sombras que ora se juntavam, ora se afastavam, sobressaíam longos cabos de espada e de lanças empunhadas, dando a impressão de que os homens tinham sido trespassados pelas próprias armas. Todos eles pareciam bravos, muito corajosos.

— Estão chegando! Estão chegando!

Ao grito do homem que se aproximava correndo, os homens imobilizaram-se, sobressaltados. Embora soubessem que havia ainda muito tempo para a hora combinada, os homens não puderam evitar que os pêlos do corpo inteiro se eriçassem.

— É Genjiro-sama.

— Vem de liteira, pelo jeito.

— Natural, ele ainda é muito novo.

Na direção em que se voltaram todos os olhares, três ou quatro pontos de luz se aproximavam em meio às lufadas frias que desciam do monte Eizan, pelo caminho que o luar tornava ainda mais brilhante que os pontos de luz.

 

— Muito bem! Vocês já estão reunidos! — disse o ancião em tom aprovador, apeando-se da primeira liteira. Da segunda, desceu um menino aparentando treze ou catorze anos.

Faixas brancas às testas prendiam os cabelos de ambos e as bainhas de seus hakama haviam sido arregaçadas e presas. Ali estavam Genzaemon, de Mibu, e seu filho, Genjiro.

— Escute — disse o ancião ao filho. — Você não precisa fazer nada, basta apenas permanecer debaixo desse pinheiro.

O menino acenou em silêncio. O pai acariciou-lhe a cabeça e disse:

— Você é o representante oficial da casa Yoshioka neste duelo, mas por ser muito novo, estes discípulos lutarão em seu lugar. Fique ali e aguarde.

Genjiro tornou a balançar a cabeça em sinal de concordância e foi no mesmo instante para baixo do pinheiro, ali postando-se garboso como um pequeno príncipe.

— Não precisa ficar aí desde já. Falta ainda um bocado até o amanhecer — disse o velho. Apalpou em seguida as próprias coxas e retirou um cachimbo estilo Taiko. Voltou-se então para os homens próximos e perguntou:

— Quem tem fogo?

Passeou o olhar calmo em torno, demonstrando segurança.

—Velho senhor de Mibu, temos pederneiras de sobra por aqui. No entanto, acho mais prudente dividirmos os homens, antes de mais nada — disse Miike Jurozaemon, adiantando-se.

— Tem razão — replicou o ancião.

Laços de sangue o ligavam à casa Yoshioka, realmente, mas ainda assim, oferecer o único filho para representar a casa no duelo era demonstrar genuíno apreço pelo clã. Sem um momento sequer de hesitação, passou ao assunto.

— Vamos decidir imediatamente a estratégia. De que modo pretendem dividir os homens?

— Estabelecendo como base o pinheiro, pretendo posicionar aproximadamente 20 homens em cada um dos três caminhos, ocultos em ambos os lados das estradas a uma distância aproximada de 40 metros uns dos outros.

— E quanto a este local?

— Perto do jovem Genjiro-sama estaremos o senhor, eu, e mais dez, encarregados não só de sua proteção como também de se juntar ao grupo que emboscará a estrada por onde surgir Musashi, assim que ouvirmos o aviso. Juntos, liquidaremos nosso adversário.

— Espere um pouco — disse o ancião, ponderando calmamente, como todo idoso. — Se distribuirmos o pessoal pelas três sendas, isto significa que Musashi, quando aparecer por uma delas, terá pela frente, num primeiro momento, apenas 20 pessoas, mais ou menos.

— Mas se todos eles o cercarem simultaneamente...

— Não, não é tão fácil assim. Para começar, Musashi também trará consigo alguns homens para ajudá-lo. Além disso, naquela noite da nevasca, logo depois do duelo com Denshichiro, percebi muito bem, pelo modo como se evadiu do pátio do templo Renge-ou, que esse Musashi não só é um espadachim muito bom, como também exímio na arte da fuga. Em outras palavras, ele conhece a fundo a estratégia da fuga rápida. É muito provável, portanto, que ele enfrente inicialmente uns três ou quatro dos nossos, golpeie-os e depois fuja rapidamente, para poder sair por aí dizendo que enfrentou sozinho setenta e tantos discípulos da academia Yoshioka e os venceu todos.

— Ah, mas isso não permitiremos que ele diga.

— Negar será inútil, apenas abrirá uma controvérsia sem fim. Musashi poderá trazer um bando inteiro para ajudá-lo mas, ainda assim, o mundo só vai falar dele. E se a luta for de um contra muitos, o povo sempre tende a falar mal dos que estão em maioria.

— Compreendi, senhor. Isto significa que, haja o que houver, não deveremos permitir que Musashi nos escape com vida. Não desta vez, certo?

— Isso mesmo!

— Sabemos disso, nem era preciso chamar-nos a atenção para o ponto. Se empregarmos a estratégia errada e deixarmos Musashi escapar mais uma vez, nada poderá salvar o nosso nome, por mais que nos justifiquemos. É exatamente por isso que nosso objetivo, hoje, é apenas um: matá-lo, não importa como. Mortos não falam. Basta liquidá-lo que o mundo todo terá de aceitar a nossa versão dos fatos.

A seguir, Miike Jurozaemon examinou os grupos ao seu redor e chamou alguns dentre eles.

 

Três homens portando arcos de pequena envergadura e um homem com uma espingarda adiantaram-se:

— Chamou-nos?

Miike apenas acenou com a cabeça e se voltou para Genzaemon:

— Senhor, estamos preparados para tudo! — disse ele. — Espero que isto o tranqüilize.

— Ora, você trouxe arqueiros e atiradores!

— Penso em ocultá-los numa elevação ou no topo de uma árvore.

— Não dirão por aí que isso é covardia?

— Mais que a opinião pública, importa-nos matar Musashi. Se ganharmos, formaremos a opinião. Se perdermos, não adiantará dizer a verdade, pois ninguém acreditará.

— Está bem! Se vocês estão determinados a esse ponto, nada mais tenho a dizer. Com a ajuda de flechas e balas, Musashi não terá chance alguma de escapar, mesmo que traga cinco ou seis homens para ajudá-lo. Cuidado para não serem surpreendidos enquanto ficam conferenciando. Deixo o comando da operação a seu cargo, Miike. Vamos dispor os homens, imediatamente.

Jurozaemon gritou então aos seus homens:

— Escondam-se todos!

Nas três sendas ocultaram-se os homens encarregados de frustrar, logo de partida, o ataque inimigo, e de encurralá-lo por todos os lados. O pinheiro solitário era a cidadela, e seria protegida por dez dos mais valorosos homens da academia.

As sombras correram e se espalharam, mergulhando no mato como gansos em meio a juncos, camuflaram-se atrás de árvores, jogaram-se de braços nas estreitas sendas que cortavam as lavouras.

Homens carregando às costas arcos e flechas subiram agilmente nas árvores mais altas e melhor posicionadas.

O único homem com a espingarda subiu agarrando-se aos troncos do pinheiro solitário e empenhava-se agora em ocultar-se, evitando o luar.

Agulhas secas e cascas do pinheiro caíram do alto. O jovem Genjiro, mais parecendo um galante boneco de festivais, estremeceu inteiro e levou a mão à gola do quimono.

O idoso Genzaemon percebeu o movimento e disse:

— Que é isso? Está tremendo de medo, meu filho?

— Não é medo! Uma agulha do pinheiro entrou na gola.

— Ah, ainda bem. Isto vai ser uma boa experiência para você. Observe com atenção, porque em breve vai começar a refrega.

Foi então que do caminho mais a leste, o do templo Shugaku-in, um berro retumbante se fez ouvir:

— Idiota!

No mesmo instante as moitas próximas estremeceram e crepitaram.

Movimentos em diversos lugares denunciaram os locais onde os homens tinham-se ocultado. Genjiro, o galante príncipe, agarrou-se ao quadril do pai e deixou escapar:

— Estou com medo!

— Ele vem aí! — disse Miike Jurozaemon, disparando em direção ao tumulto. E mesmo enquanto corria, sentiu que havia algo estranho.

Miike tivera razão de estranhar, pois quem chegava não era Musashi, mas o jovem Sasaki Kojiro que, no dia anterior, havia intermediado os entendimentos para o duelo. Em pé no meio do caminho, ele repreendia os discípulos que o rodeavam com a sua já conhecida expressão desdenhosa:

— Não enxergam? Isso prova que o nervosismo já lhes turvou a vista! Como podem me confundir com Musashi e me atacar? Estou aqui na qualidade de testemunha do duelo. Como é que se atrevem a pular do meio do mato com uma lança e tentar me atingir, idiotas?

 

Contudo, os nervosos homens do clã Yoshioka também começaram a desconfiar:

— A atitude é estranha...

— Ele deve ter-se bandeado para o lado de Musashi, e está aqui para conferir nossas posições.

Embora tivessem desistido de atacá-lo, os discípulos sussurravam entre si e não desfaziam o cerco.

Foi então que Jurozaemon se aproximou correndo. O olhar de Kojiro voltou-se furioso para Miike, que nesse momento vinha abrindo caminho pelo cerco:

— Os Yoshioka encaram a mim, que me dei ao trabalho de vir até aqui para testemunhar o duelo, como inimigo?! Você por acaso os orientou nesse sentido? Porque nesse caso, eu, Sasaki Kojiro, lhes declaro que andei negligenciando minha preciosa espada, o “varal”, e que ela está sedenta de sangue. Esta é uma oportunidade de ouro para matar sua sede. Entre mim e Musashi nada existe que me leve a dar-lhe uma mão, mas posso enfrentá-los para salvar minha própria reputação. Que me diz?

A arenga era inflamada, imperiosa.

Essa atitude arrogante era usual em Kojiro, mas constituía uma surpresa para os que viam apenas a aparência bem cuidada e o corte juvenil de cabelos. Jurozaemon, no entanto, pôs-se a rir. Parecia dizer: nessa não caio!

— Ora, essa, você está muito nervoso! Contudo, deixe-me perguntar: quem foi que o chamou aqui esta manhã para servir de testemunha? Sou do clã, e não me lembro de ter-lhe solicitado nada semelhante. Ou será que o pedido partiu de Musashi?

— Cale-se! Na ocasião em que afixamos o aviso na rua Rokujo, deixei minha posição bem clara para ambos os lados.

— É verdade, lembro-me vagamente de tê-lo ouvido dizer algo a respeito de testemunhar ou não este duelo. Mas tenho certeza de que nenhum de nós afirmou naquele momento que concordava. Isso quer dizer que você, por sua própria conta e risco, está se apresentando para cumprir uma função que ninguém lhe delegou. Aliás, o mundo está cheio de intrometidos iguais a você.

— Como ousa? — replicou Kojiro. A violência agora não era fingida. Jurozaemon, porém, gritou-lhe:

— Retire-se! — E em seguida, como se cuspisse: — Isto aqui não é um espetáculo. Não precisamos de assistência!

— Hum!... — fez Kojiro, empalidecendo e contendo a respiração. Voltou-se bruscamente e disse: — Não perdem por esperar.

No momento em que se dispunha a retornar pelo caminho que viera, o velho senhor de Mibu, Genzaemon, surgindo com alguns minutos de atraso, deteve-o apressadamente:

— Ó jovem! Senhor Kojiro! Espere um momento!

— Nada mais quero com vocês! Vou fazê-los engolir as últimas palavras, não perdem por esperar!

— Não diga isso, jovem! Espere, espere um pouco! — insistiu o ancião, barrando a passagem de Kojiro, que se preparava para se afastar, furioso. — Sou o tio de Seijuro. Eu já tinha ouvido meu sobrinho referir-se ao senhor como um jovem bastante promissor. Não sei que mal-entendido pode estar ocorrendo aqui, mas gostaria que perdoasse a rudeza destes discípulos em consideração a mim, um velho.

— Sua cortesia me embaraça, senhor. Veja bem: por causa do meu antigo relacionamento com o senhor Seijuro, eu tinha pela academia a maior consideração. É verdade que não posso tomar abertamente o seu partido neste confronto, mas também não esperava ser recebido com tanta hostilidade.

— Tem razão! Tem toda razão de se indignar. Gostaria que desconsiderasse o que se passou e, em nome de meus dois sobrinhos, Seijuro e Den-shichiro, peço que nos honre com sua assistência.

Com toda diplomacia, o velho Genzaemon tratou de acalmar a suscetibilidade do intrépido e orgulhoso guerreiro.

 

O aparato ofensivo de que dispunham tornava a ajuda de Kojiro dispensável. O velho Genza, porém, parecia temer que o jovem espalhasse mais tarde aos quatro ventos a tática covarde que haviam preparado.

— Esqueça o que houve, por favor! — insistiu o idoso homem.

Ante o polido pedido de desculpas, Kojiro mudou radicalmente de atitude.

— Que é isso, senhor? Um idoso veterano não deve reiterar escusas a um jovem inexperiente como eu: o senhor me confunde. Por favor, não se curve — disse, recuperando o bom humor com inesperada rapidez; voltou-se então para os homens da academia Yoshioka e, com a fluência que lhe era habitual, fez um discurso de encorajamento, ao mesmo tempo em que falava de sua relação com Musashi em termos severos.

— Mantive desde o princípio um relacionamento amistoso com o senhor Seijuro e, como já disse antes, nada me prende a Musashi. Por uma simples questão de amizade, é natural que eu deseje muito mais a vitória do grupo Yoshioka que a de Musashi! Apesar de tudo, deixe-me dizer-lhes: que coisa lamentável foram essas duas derrotas consecutivas! A academia faliu, a casa Yoshioka arruinou-se! Como posso eu permanecer indiferente ante tantas desgraças? Desde a antigüidade sempre houve duelos envolvendo casas guerreiras, mas nunca vi nem ouvi falar de uma desgraça que se assemelhasse a esta, desabada sobre a tradicional casa Yoshioka, a instrutora dos xoguns Muromachi, hoje destruída pelas mãos de um guerreiro provinciano e desconhecido.

Kojiro discursava, rubro de emoção. A começar pelo idoso Genzaemon, todos os presentes calaram-se, impressionados com sua veemência. Ao mesmo tempo, pareciam perguntar-se, arrependidos, Jurozaemon mais que todos, como puderam ser tão ríspidos com alguém que mostrava tanto interesse por suas causas.

Ao perceber o ambiente, Kojiro sentiu-se em seu elemento e tornou-se ainda mais eloqüente:

— Como homem que, no futuro, pretende também fundar uma casa guerreira, empenho-me em assistir a duelos e disputas com armas reais não por simples curiosidade, mas porque considero educativo o papel de espectador. Até hoje, contudo, na qualidade de espectador, nunca deparei com um conflito que me deixasse mais irritado que este, dos senhores com Musashi. Como foi que deixaram Musashi escapar ileso, tanto no episódio de Rendaiji quanto no de Renge-ou-in, se os senhores dispunham — segundo acredito — de tantos assistentes? Não consigo entender como ficaram quietos mesmo depois que Musashi eliminou seu mestre, e lhe permitiram andar livremente pela cidade!

Lambeu os lábios secos e continuou:

— Musashi é um espadachim capaz, forte demais para ser um simples guerreiro nômade, um homem feroz como poucos, sem dúvida. Com relação a isso, sou capaz de atestar, pois já o encontrei umas duas vezes. E pode até ser que me achem intrometido, mas de um tempo para cá ando investigando seus antecedentes, apesar de minha fonte ser apenas uma mulher com quem deparei por acaso, e que o conhece desde a época em que ele tinha dezessete anos — disse Kojiro, sem mencionar o nome de Akemi.

— De acordo com essa mulher e também com outras fontes, esse sujeito é filho de um goushi da província de Sakushu: depois da batalha de Seki-gahara, ele voltou à própria terra, andou promovendo distúrbios, foi expulso e acabou por vagar ao léu pelo país. Eis a história desse homem, ela nos mostra que Musashi nem sequer merece nossa consideração. Não obstante, sua técnica é inata, tem uma força selvagem, é um temerário, enfim. Penso, por isso, que algumas vezes técnicas ortodoxas levam a pior quando confrontadas com a dele, num exemplo clássico da força bruta vencendo a razão. Isto quer dizer que os senhores não conseguirão vencê-lo enfrentando-o com armas normais. Do mesmo modo que só se pega uma fera armando-lhe ciladas, aviso-os que se não empregarem um ardil, serão derrotados uma vez mais. E será que levaram em consideração todos esses aspectos quando compuseram sua estratégia?

O velho Genza agradeceu-lhe o interesse e explicou que não havia falhas na composição do esquema, ao que Kojiro aquiesceu e insistiu:

— Se estão preparados para tudo, creio que não o deixarão escapar desta vez. Penso, porém, que deveriam reforçar o esquema com um novo plano que lhes aumentaria a segurança.

 

— Novo plano? — ecoou o idoso Genza, analisando o rosto petulante do jovem Kojiro. —Agradeço o seu interesse, mas não creio que precisemos de nenhum plano ou preparativo além dos que já temos.

Kojiro, entretanto, insistiu:

— Não concordo, senhor. Se Musashi aqui aparecer com o descaramento que lhe é característico, aí então o senhor pode considerar que ele efetivamente caiu em sua rede e não terá como escapar. Mas de nada adiantarão todos os preparativos se Musashi vier a saber deles e não aparecer.

— Nesse caso, nós o transformaremos em alvo das maiores zombarias. Ergueremos placas em todas as ruas da cidade de Kyoto, anunciando: Musashi fugiu. Todos rirão dele!

— Com isso, o nome dos senhores estará parcialmente salvo, têm razão. Mas Musashi também anunciará ao mundo a atitude covarde dos senhores, o que de modo algum ajudará a vingar a honra do seu mestre. Precisam, a qualquer custo, eliminar Musashi definitivamente aqui e agora, senhores.

Para tanto, creio que precisam de um plano que o atraia a esta cilada mortal, um estratagema que o obrigue a vir até aqui.

— Ora... E existe por acaso um tal estratagema?

— Existe! — disse Kojiro, aparentando toda a segurança do mundo. — Estratagemas existem, e muitos.

A seguir, baixou a voz e, com uma expressão cordial, raramente vista em seu rosto arrogante, aproximou a boca do ouvido de Genza e sussurrou algumas palavras.

— Que acha? Agrada-lhe? — perguntou.

— Compreendo!... — disse o velho, piscando muitas vezes. A seguir, achegou por sua vez o rosto ao de Miike e sussurrou algumas palavras.

Dois dias antes Musashi tinha batido à porta da humilde estalagem no meio da noite e deixara o velho estalajadeiro abismado com seu súbito retorno, depois de tanto tempo. Após passar uma noite ali, partira na manhã seguinte dizendo que ia ao templo Kurama-dera e, depois disso, o velho não o vira mais o dia inteiro.

Nessa noite esperara por Musashi aquecendo um cozido, mas ele retornou no dia seguinte, quase ao cair da tarde. Mal chegou, disse: — Trouxe-lhe de Kurama — e entregou um pacote de batatas ao velho estalajadeiro. O outro pacote era um rolo de tecido branco, de algodão, com certeza adquirido numa loja dos arredores, e com o qual ele queria que lhe fizessem um jogo de roupas de baixo, um protetor abdominal e uma faixa para a cintura.

O velho estalajadeiro levou em seguida o tecido para a casa de uma jovem costureira, encomendou-lhe as costuras e, aproveitando, comprou na volta um pouco de saque da taberna. E enquanto conversavam amenidades, bebiam saque e comiam as batatas, a jovem costureira trouxe os artigos que lhe haviam sido encomendados.

E assim Musashi tinha-se deitado com as roupas novas dobradas à cabeceira de seu leito. No meio da noite, porém, o velho estalajadeiro acordou com o barulho de água na beira do poço, nos fundos da casa. Estranhou e espiou. Musashi já se havia levantado, tomado um banho de água fria à luz do luar e, vestindo as roupas de baixo recém-costuradas e imaculadamente brancas, tinha enrolado o protetor de abdômen à cintura e estava vestindo por cima de tudo seu quimono usual.

A lua ainda continuava no céu. Aonde ia ele, todo arrumado? — perguntara-lhe o velho, estranhando. A isso, o jovem respondera que nos últimos tempos tinha percorrido a cidade de Kyoto e seus arredores, no dia anterior já subira a Kurama e que se cansara um pouco dessa cidade. Assim sendo, tivera súbita vontade de andar pela estrada àquela hora, sob o luar da madrugada, subir ao monte Eizan, contemplar o sol nascendo no mar de Shiga e, a partir dali, encetar uma nova jornada, desta vez para a cidade de Edo. E no instante em que a inspiração lhe viera, prosseguira Musashi, perdera o sono: com pena de acordá-lo, resolvera separar o dinheiro da hospedagem e da comida e deixá-lo à cabeceira de seu leito. Não era muito, mas queria que o aceitasse. Dentro de três ou quatro anos, quando retornasse a Kyoto, ele prometia voltar a se hospedar naquela estalagem. Depois disso, recomendara:

— Feche a porta depois que eu sair, estalajadeiro!

E com passos decididos, passara pela estreita senda no meio das plantações próximas e se dirigira à estrada de Kitano, coberta de excrementos de gado.

Pesaroso, o velho ficou olhando seu vulto se afastar por uma pequena janela. Cerca de dez passos além, na estrada, Musashi tinha-se abaixado por instantes para reatar os cordões da sandália.

 

APENAS O LUAR

O sono tinha sido breve mas profundo, achou Musashi. Sentia a mente limpa, translúcida como o céu dessa noite, em unidade com o corpo, dissolvendo-se passo a passo em algo místico, indefinível.

“Vou caminhar com calma, aproveitando esta sensação”, pensou, reduzindo propositadamente a largura dos passos. “Bem... Esta deve ser minha última noite no mundo dos homens.”

Não se sentia surpreso, nem triste, não havia dor nem emoção no pensamento. Ele apenas aflorara no íntimo e viera à boca num murmúrio, sem traço de afetação.

Talvez não sentisse a morte tão próxima porque havia uma considerável distância até os escombros do velho templo Ichijoji, na encosta onde se situava o pinheiro, ou porque era cedo ainda — mal passava da meia-noite.

Musashi havia passado todo o dia anterior num templo no interior da montanha Kurama, sentado em silêncio em meio ao sibilar do vento no pinheiral. Na ocasião, apesar do esforço em esvaziar a mente de pensamentos conscientes e da própria idéia de ser, não conseguira fugir da noção de morte e terminara por descer da montanha sentindo-se infeliz, achando que perdera tempo indo até lá praticar o zazen.

Comparando os dois momentos, a sensação revigorante deste era espantosa, reconheceu Musashi, admirado de si próprio. Depois de beber um pouco em companhia do estalajadeiro e dormir um sono reconfortante, ele havia-se levantado, tomado um banho frio com a água do poço, e se vestira. E agora Musashi não conseguia imaginar que esse corpo, contido em roupas íntimas imaculadamente limpas, morreria dentro em breve.

“Pensando bem, as estrelas também brilhavam esplêndidas na noite em que me arrastei com o pé inflamado até a montanha por trás do santuário de Ise. Aquilo aconteceu no meio do inverno... A esta hora, os ramos das cerejeiras de onde pendiam pingentes de gelo devem estar cobertos de botões.”

Coisas sobre as quais nem queria pensar vinham-lhe à mente com facilidade, enquanto outras mais importantes, como soluções vitais para o problema que o esperava logo adiante, não lhe ocorriam.

Talvez se tivesse empenhado demais em preparar-se para morte e agora seu subconsciente já tivesse desistido de tentar solver enigmas como o sentido da morte, a agonia da morte, o que havia depois da morte, questões que não conseguiria resolver mesmo que vivesse cem anos.

Por estranho que parecesse, o som frio de flautas e flajolés partia de algum lugar da estrada e vibrava no ar.

Ao que tudo indicava, provinha de uma das mansões nobres, numa das vielas laterais, mas não se tratava de uma reunião de lordes desocupados, bebendo e divertindo-se, pois a melodia tinha um tom fúnebre, solene. A música evocava ramos de sakaki[94] e luzes de velório, vultos em torno de um caixão, guardando um morto à espera da manhã.

“Alguém me precedeu”, pensou Musashi. Tinha a sensação de que se encontraria pela manhã com o espírito deste morto no topo da montanha da morte, e que juntos encetariam a viagem para o além. A idéia o divertiu.

Talvez o som dos flajolés já estivesse no ar há algum tempo sem que Musashi se tivesse dado conta. Tinha sido o som desse instrumento que o levara a lembrar-se da Mansão das Crianças, do santuário de Ise e das cerejeiras com pingentes de gelo a caminho do Pico da Águia...

De qualquer modo, como posso estar tão tranqüilo neste instante?, indagou-se Musashi. E se esse estado de quase indiferença fosse o reflexo de um imenso pavor inconsciente, provindo das entranhas desse corpo ora caminhando passo a passo em direção à morte certa?

Em dúvida, parou bruscamente, pés plantados com firmeza no solo. Nesse trecho, a estrada já dava numa outra mais larga que conduzia ao templo Shokokuji e, cerca de dois quilômetros adiante, avistou a superfície prateada de um rio, seus fortes reflexos fosforescentes alcançando os muros de mansões próximas.

E no canto de um desses muros, um vulto negro tinha-se imobilizado, voltado para o lado de Musashi.

 

Musashi parou.

O vulto, ao contrário, moveu-se e veio se aproximando. Perto da sombra do homem, uma outra, pequena, pareceu vir rolando pela estrada enluarada. Quando se acercaram, foi possível perceber que a sombra pequena era o cão do homem.

Desfazendo a tensão acumulada até nas pontas dos pés e mãos, o jovem cruzou com o vulto em silêncio. O viajante noturno, porém, voltou-se de repente e lhe dirigiu a palavra depois de já ter passado por ele:

— Obuke-sama!

— É comigo? — disse Musashi quase dez metros adiante.

— Sim, senhor — respondeu o homem de aparência comum, curvando-se respeitosamente. Usava um hakama típico dos artesãos e um pequeno chapéu preto.

— Que quer?

— Desculpe se a pergunta lhe soa estranha, mas a caminho para cá, não deparou, senhor, com uma mansão toda iluminada?

— Não vim prestando atenção, mas me parece que não havia nenhuma casa desse jeito.

— Será que estou na estrada errada?

— Que procura você?

— Uma casa onde velam um morto.

— Acho que havia uma assim.

— O... o senhor a viu?

— Ouvi o som de flautas e flajolés partindo de uma mansão nesta hora tardia a quase dois quilômetros daqui.

— Deve ser ela! O sacerdote xinto ficou de ir na frente.

— Você também está indo para o velório?

— Sou fabricante de caixões do monte Toribe. Por uma estupidez da minha parte, entendi que era para ir à casa de um certo senhor Matsuo, em Yoshida; mas ao chegar lá descobri que se haviam mudado para cá havia dois meses... A esta hora da madrugada, não posso bater à porta de ninguém para perguntar. Além disso, esta área me é totalmente desconhecida...

— Matsuo, do monte Yoshida? Você quer dizer: uma família de nome Matsuo, que morava na região do monte Yoshida e se transferiu para cá há poucos meses?

— Isso mesmo, senhor. Mas eu não sabia disso e perdi um bom tempo. Muito obrigado pela informação, senhor.

— Espere! Espere um pouco! — disse Musashi, retornando dois ou três passos. — Você está indo para a casa de Matsuo Kaname, antigo vassalo da casa Konoe?

— Sim, senhor. Esse senhor Matsuo Kaname acaba de falecer, depois de apenas dez dias de enfermidade.

— O chefe da família?

— Ele mesmo.

— Ora essa... — sussurrou Musashi, quase num gemido, pondo-se a andar no mesmo instante. O fabricante de caixões também já se afastava no rumo oposto. O cachorrinho, que ficara para trás, corria-lhe agora no encalço a toda pressa.

— Quer dizer que ele morreu... — pensou, sem nada sentir, apenas constatando o fato. Se nem a idéia da própria morte conseguia emocioná-lo, tanto menos a dos outros.

E assim terminara os dias aquele que fora o marido de sua tia, homem mesquinho e frio que vivera a vida inteira economizando migalhas.

Mais forte que essa lembrança, Musashi tornou a sentir nesse instante o cheiro dos bolinhos de arroz que, trêmulo de fome e frio, assara na manhã do Ano Novo na beira do rio Kamo, coberto de gelo.

— Eram deliciosos! — lembrou-se. Pensou na tia, tendo de viver sozinha doravante.

Momentos depois, chegou à margem do rio Kamo, em seu trecho mais próximo à nascente. Do outro lado do rio, os Trinta e Seis Picos pareciam descer do céu e vir em sua direção. Musashi sentiu que cada um deles o hostilizava.

Permaneceu imóvel por algum tempo em muda contemplação. A seguir, balançou a cabeça, como se concordasse em silêncio.

Desceu o barranco, rumo à margem do rio. Uma ponte composta de diversas barcaças acorrentadas umas às outras estendia-se à sua frente.

 

Para quem vinha da área setentrional de Kyoto e queria alcançar o monte Eizan ou o passo de Shiga, aquela passagem era obrigatória.

— Eeeei! — ouviu Musashi alguém gritar quando já havia atravessado a metade da ponte de barcaças.

As águas rápidas do rio murmuravam satisfeitas no luminoso trecho revelado pelo luar. O rio era o caminho dos ventos gelados que percorriam o interior da região de Tanba. No meio da imensidão, era difícil saber de onde partia a voz, ou quem chamava.

— Eeei! — tornou novamente a voz.

Musashi parou duas vezes, mas desistiu de localizar a pessoa que o chamava e acabou por atravessar a precária ponte e saltar para a margem oposta.

Foi então que percebeu alguém acenando e aproximando-se às carreiras a partir da rua Ichijo, ao longo da margem do rio. Teve a impressão de que o vulto lhe era familiar, e não se enganou: o homem que chegou correndo era Sasaki Kojiro.

— Olá! — disse Kojiro com familiaridade. Olhou fixamente para Musashi, observou cuidadosamente o pontilhão de barcaças e depois perguntou:

— Veio só?

Musashi confirmou com um aceno de cabeça:

— Vim — respondeu, como se fosse a coisa mais natural.

A abordagem não fora das mais corteses. Só depois, Kojiro disse:

— Quando nos encontramos, há poucos dias, sei que me comportei com certa impertinência e agradeço-lhe por ter acatado minhas sugestões.

— Não tem por que me agradecer.

— Está se dirigindo agora para o local do duelo?

— Sim.

— Veio só? — perguntou Kojiro mais uma vez, ciente de que insistia.

— Vim. — A resposta era a mesma, mas agora soou mais nítida.

— Ah, sei. Escute, mestre Musashi: você por acaso não teria entendido mal as condições que escrevi no aviso da rua Rokujo?

— Não creio.

— Eu, porém, insisto: o aviso não estabelecia que este duelo tem de ser de homem contra homem, como o anterior, contra o mestre Seijuro.

— Sei disso.

— O representante dos Yoshioka é apenas um menino, seu papel é formal, e os discípulos da academia constam como demais desafiantes. Discípulos podem significar tanto dez, como cem homens. Acho que você não reparou nesse detalhe.

— Por que diz isso?

— Porque excluindo os incapazes e os covardes, parece-me que todos os discípulos mais valentes estão lá, em torno do pinheiro solitário, aguardando a sua chegada.

— Por acaso já esteve no local?

— Estive, de fato, e quando percebi como a situação era grave para você, retornei até aqui por saber que esta passagem é obrigatória para quem se dirige às ruínas do templo Ichijoji. E aqui permaneci à sua espera porque acredito ser esse o meu dever, de intermediador deste duelo.

— Agradeço o seu interesse.

— Os fatos são esses. Ainda assim insiste em ir sozinho? Ou seus assistentes tomaram outra estrada?

— Comigo, tenho só um companheiro, que veio andando ao meu lado.

— Como é? Onde está ele?

Musashi apontou a própria sombra e disse:

— Aqui.

O luar cintilou nos dentes brancos, expostos num sorriso.

 

A brincadeira e o súbito sorriso, partindo de um homem que dificilmente gracejava, pegaram Kojiro desprevenido. Ligeiramente aturdido, insistiu, com maior seriedade ainda:

— Isso não é hora para brincadeiras, mestre Musashi.

— Não estou brincando.

— Mas só posso tomar como gracejo, e menosprezo à minha pessoa além disso, essa história de que veio em companhia da própria sombra para o duelo.

— Nesse caso — replicou Musashi, com súbita seriedade, mais contundente que a de Kojiro — serão simples gracejo as palavras que, se bem me lembro, disse o santo budista Shinran: “O devoto de Amitabha tem sempre um companheiro no caminho da ascese: ao seu lado está Amitabha.”

— Você talvez se preocupe comigo porque o duelo parece impossível, já que os Yoshioka são muitos e eu, como bem vê, estou sozinho, mas peço-lhe: não se inquiete.

As palavras confiantes de Musashi pulsaram na noite.

— Se meu adversário se prepara arregimentando dez pessoas e eu o enfrento com mais dez, é certo que ele logo rebaterá trazendo mais 20. E se eu torno a enfrentá-los com mais 20, serei com certeza contra-atacado com mais 30 ou 40, muita gente sairá ferida e perturbaremos a ordem pública. O incidente não só afrontará as leis da sociedade, como também nada de positivo trará para o caminho da esgrima. Ele apenas acarretará centenas de males e nenhum benefício.

— Tem razão. Mas pense bem, mestre Musashi: a arte da guerra nem sequer considera a hipótese de começar uma guerra que já está desde o começo perdida.

— Situações existem em que a hipótese tem de ser considerada.

— Isso não existe! Isso não é estratégia, é erro, é irracionalidade.

— Nesse caso, digamos que a arte da guerra não prevê situações como a minha, e que sou um caso à parte.

— Isso é ilógico.

Musashi não disse mais nada, apenas riu. Kojiro, porém, não desistiu:

— Por que se propõe a fazer uma guerra não prevista na arte guerreira? Por que não procura caminhos alternativos?

— Esta estrada é o meu caminho alternativo!

— Só espero que não seja o que conduz ao além.

— O rio que acabo de cruzar talvez seja o rio da morte; este trecho, o primeiro marco da estrada para o além e a colina adiante, a montanha de agulhas do inferno. Mas não vejo outro caminho além deste que me leve a viver.

— A deusa da morte fala por sua boca.

— Tanto faz. Muitos morrem em vida. Outros vivem na morte.

— Pobre coitado!... — riu Kojiro como se falasse consigo. Musashi então parou e disse:

— Diga-me, senhor Kojiro: aonde leva esta estrada?

— Às vilas Hana-no-ki e Ichijoji. Em outras palavras, leva daqui direto para o passo Kirara, no monte Eizan, passando pela encosta do pinheiro solitário, em breve seu ponto de encontro com a morte.

— Quanto falta até o pinheiro da encosta?

— Mais ou menos dois quilômetros. Mesmo caminhando devagar, você terá tempo de sobra.

— Até mais ver! — disse Musashi, enveredando bruscamente por um caminho lateral.

— Ei, mestre Musashi, esse não é o caminho certo! Você está indo na direção errada! — interveio Kojiro apressado, no mesmo instante.

Musashi acenou, mostrando que havia entendido, mas prosseguia pelo mesmo caminho, levando Kojiro a insistir:

— O caminho não é esse! A resposta veio ambígua:

— Eu sei...

Além das árvores que margeavam a estrada acompanhando a depressão do terreno, avistavam-se plantações em forma de socalcos e telhados de colmo. E era rumo às partes mais baixas do terreno que Musashi tinha-se dirigido. A lua iluminava-lhe as costas imóveis entre as árvores esparsas.

Kojiro sorriu de leve:

— Ora, está urinando — murmurou, voltando-se para observar a lua. — Já caiu um bocado a oeste. Quando ela se for, muitas vidas terão ido junto com ela.

Interessado, imaginou diversos cenários. Ele não tinha dúvida de que Musashi acabaria morto e estraçalhado, mas sendo ele o que era, seria divertido verificar quantos homens levaria consigo.

“Isso eu tenho de ver!”, pensou Kojiro. Só de imaginar a cena, sentia-se arrepiar inteiro e o sangue circular mais rápido, tamanhas expectativa e impaciência.

 “Acabei topando com um acontecimento raro. No episódio do templo Rendai-ji e mais tarde, no de Renge-ou, acabei não tendo a chance de assistir aos duelos. Hoje, porém, será diferente. Ora, essa, como ele está demorando!”, pensou Kojiro espiando o terreno abaixo, mas não avistou nenhum vulto retornando em sua direção. Considerou que não valia a pena descer para verificar, de modo que se sentou na raiz de uma árvore e perdeu-se em divertidas suposições.

“O jeito dele, tranqüilo, seguro de si, mostra que ele está pronto para morrer lutando, o que me leva a concluir que este vai ser um duelo e tanto. Tomara que ele lute, e mate, mate até o último alento! Assim será muito mais divertido. Mas os Yoshioka, pelo que me disseram, trouxeram arcos e armas de fogo. Se ele levar um tiro, adeus diversão! Já sei! Vou preveni-lo secretamente quanto a essas armas.”

A névoa noturna envolveu-lhe os quadris, gelando-os. O jovem ergueu-se e chamou:

— Mestre Musashi!

Que estranho!, pensou ele um pouco tarde demais, repentinamente inquieto e ansioso. Desceu a rampa com agilidade e tornou a chamar.

— Mestre Musashi!

A casa de lavradores rodeada por denso bambuzal dissolvia-se nas trevas do fundo do barranco. Um moinho de água gemia em algum lugar, mas Kojiro não conseguiu sequer avistar o riacho que o movia.

— Como fui estúpido!

Vadeou o riacho e subiu às carreiras a ribanceira oposta, mas não avistou ninguém. Diante dele, e para os lados de Shirakawa, Kojiro avistou apenas telhados de templos, um bosque, o adormecido monte Daimonji, o pico Nyoi-ga-take, os montes Ichijoji e Eizan, e uma vasta plantação de nabos.

Além disso, havia apenas a lua.

— Que covarde! Como é que fui deixá-lo escapar!

Kojiro tinha certeza de que Musashi se evadira. Pensando bem, era por isso que se mantinha tão tranqüilo, impassível. Era bom demais para ser verdade, pensou.

— É verdade! Tenho de correr!

Voltou-se com um movimento brusco e refez o percurso até a estrada principal, mas também ali não viu Musashi. Seus pés pareciam voar e o levaram direto para o pinheiro solitário, na encosta das ruínas do templo Ichijoji.

 

O ECO

Musashi sorriu e ficou olhando Kojiro afastar-se e seu vulto diminuir com incrível rapidez na distância.

Estava em pé no exato local onde havia pouco estivera Kojiro. Este não o encontrara, apesar de todo o seu empenho, porque procurara longe dali, enquanto Musashi, num movimento contrário, tinha-se aproximado e se escondido atrás das árvores, bem nas costas de Kojiro.

Seja como for, saíra-se bem, considerava Musashi.

Kojiro era inescrupuloso, divertia-se vendo outras pessoas morrerem ao seu redor, era capaz de assistir à trágica luta de gente que se viu sem querer envolvida numa luta sangrenta de vida e morte como um espectador ocioso — mãos metidas no obi, apenas interessado em colher material para futura referência. Além de tudo, era ardiloso, um leva-e-traz inútil que posava de benfeitor para os dois lados, procurando comprar-lhes a admiração.

“Nessa conversa não caio!”, pensou Musashi, achando graça.

Quando avisara com insistência que o inimigo não era nada desprezível, e perguntara se dispunha ou não de assistentes, talvez Kojiro tivesse imaginado que Musashi lhe pediria ajuda de joelhos, em nome da camaradagem que deve existir entre bushi. Mas Musashi não se deixara levar.

Ele talvez se sentisse compelido a pedir ajuda se a sua vontade fosse apenas de viver, de vencer. Mas Musashi não achava que venceria o duelo, nem que viveria até o dia seguinte, honestamente falando.

Pelas informações que secretamente havia obtido, chegara à conclusão de que seus inimigos eram mais de cem. Além disso, deduzira que esses homens estavam dispostos a infligir-lhe toda sorte de ferimentos antes de matá-lo. Nessas circunstâncias, não tinha tempo nem disposição para procurar meios de sobreviver.

Em meio a tudo isso, porém, não se esquecera das palavras que, em certo dia distante, Takuan lhe dissera: “O verdadeiro bravo é aquele que ama a vida.”

Ainda agora podia sentir viva, no âmago do ser, a noção de que a vida era um bem inestimável, que precisava ser resguardado a todo custo.

Por outro lado, amar a vida não era o mesmo que satisfazer a fome sem nada fazer, ou viver longamente sem nenhum objetivo. Significava, isto sim, esforçar-se para dar sentido a essa inestimável vida no momento em que se via obrigado a dela se despedir, dar-lhe o devido valor, riscar no céu da humanidade, até o último suspiro, o luminoso traço de uma vida plena de significado.

Ali estava o âmago da questão. Comparados às centenas de milhares de anos da humanidade, os 70 ou 80 anos de duração da vida de um homem não eram mais que um piscar de olhos. Nestas circunstâncias, mesmo que um homem morresse antes de completar 20 anos, sua vida teria sido longa se fosse brilhante. Esse seria também o retrato do homem que verdadeiramente amava a vida.

Dizem que o período mais importante e difícil, em todos os empreendimentos, é o inicial. No caso da vida, porém, o mais difícil é o final, o da despedida. Pois é a partir daí que se estabelece o valor ou a duração de uma existência, daí se sabe se ela havia sido fugaz, como espuma na areia, ou um raio luminoso no céu da humanidade.

Mas cada homem ama a vida diferentemente: o mercador tem o seu modo de viver, o samurai o seu. No caso de Musashi, ele se preocupava naturalmente em como atuar à maneira de um verdadeiro samurai na última cena de sua vida.

 

E agora, se pretendia atingir a encosta do pinheiro solitário nas ruínas do templo Ichijoji, Musashi tinha pela frente três caminhos possíveis.

O primeiro era o que levava ao passo Kirara, no monte Eizan, esse pelo qual Kojiro acabava de se afastar. Era também o mais curto e o menos acidentado até a vila Ichijoji, podendo portanto ser considerado o caminho principal.

Um pouco mais longa era uma segunda rota, que levava por dentro das plantações, beirava o rio Takanogawa, continuava pela estrada de Ohara e saía no templo Shugaku-in, de onde se chegava ao pinheiro solitário.

A última rota seria tomar direto a direção leste a partir do local onde ele se encontrava nesse momento, alcançar a estrada secundária que atravessava a montanha Shiga, e a partir das nascentes do rio Shirakawa bordejar o sopé do monte Uryu e, das proximidades do santuário Yakushi-dou, atingir a encosta do pinheiro.

Qualquer que fosse a opção não havia muita diferença na distância, uma vez que a trifurcação do pinheiro solitário ficava num ponto em que todos os rios pareciam convergir.

Do ponto de vista estratégico, porém, havia uma grande diferença, principalmente para Musashi que, sozinho, ia em breve enfrentar um poderoso exército reunido nessa trifurcação. Seu futuro dependia do caminho escolhido.

Três caminhos. Qual deles tomar?

Ele tinha de avaliar com muito cuidado as opções, mas quem o visse nesse momento saltando para um lado e partindo, não veria nem a sombra de uma dúvida em seu vulto ágil.

Um salto, mais outro, e o vulto se afastou em direção às árvores, vadeou o riacho, pulou para a margem e correu pelas plantações, ora surgindo, ora sumindo na paisagem iluminada pelo luar.

E então, qual dos três caminhos tinha ele escolhido? Nenhum dos três, pois ele agora se dirigia para o lado oposto ao do templo Ichijoji, percorrendo picadas estreitas, cruzando hortas, dirigindo-se ninguém sabia para onde no meio dessa área rural.

Era incompreensível, mas deu-se ao trabalho de contornar a base do morro Kagura, saiu por trás da propriedade do imperador Go Ichijo, e se achou no meio de um denso bambuzal. Ao deixá-lo para trás, avistou diante de si a faixa prateada de um rio que descia da montanha e corria ao luar rumo a uma vila. A aba setentrional da montanha Daimonji já estava tão próxima que parecia pender sobre sua cabeça.

Silencioso, Musashi embrenhou-se pela densa escuridão que envolvia o sopé da montanha.

Aparentemente, o muro e o telhado que avistara havia pouco entre o arvoredo à direita eram do templo Ginkaku-ji, de Higashiyama. Voltou-se e olhou para trás um instante e avistou a superfície espelhada de um lago em forma de pêra logo a seus pés.

Continuou em frente um pouco mais, subindo o íngreme caminho, e percebeu no momento seguinte que já se havia aproximado tanto da nascente do rio por trás do monte Higashiyama que as águas agora mal se mostravam, ocultas em arbustos, e o traço branco e sinuoso do rio Kamogawa tornava-se visível no distante mundo abaixo dos seus pés.

A vista englobava as cidades alta e baixa de Kyoto, tão próximas que parecia possível abarcá-las com ambas as mãos.

A localização e a altura tornavam possível apontar com o dedo uma área distante e dizer: “O pinheiro de Ichijoji fica nesta direção...”

Cruzando lateralmente as montanhas Daimonji, Shiga, Uryu e Ichijoji, à meia altura de suas encostas rumo ao monte Eizan, era possível, sem muita perda de tempo, chegar por trás do pinheiro solitário, vindo de cima da montanha.

Pelo visto, havia muito que Musashi tinha estabelecido mentalmente a estratégia. Baseado no episódio de Okehazama, protagonizado por Oda Nobunaga, ele não optara por nenhum dos três caminhos obrigatórios para chegar ao local visado, mas escolhera aquele outro, íngreme e de difícil passagem, galgara metade das montanhas e se aproximara por um lado totalmente imprevisto.

— Ah! Senhor... — disse uma voz inesperada. A seguir, passos soaram acima do caminho e um homem vestindo roupas características de um servidor de casa nobre, com a bainha do hakama arregaçada e presa, parou na frente de Musashi e aproximou tanto a tocha que levava na mão que quase lhe queimou o rosto.

 

A fumaça oleosa da tocha tinha sujado o rosto desse vassalo, enegrecendo-lhe até os buracos do nariz.

O espanto do homem num primeiro momento fora tão aparente que Musashi o examinou com cuidado. Ato contínuo, o vassalo pareceu receoso e perguntou timidamente, curvando-se:

— Por favor, senhor: seu nome não seria Miyamoto Musashi, por um acaso? O olhar de Musashi brilhou perigosamente, refletindo a luz avermelhada do archote. A situação, era óbvio, demandava cautela.

— O senhor deve ser mestre Miyamoto, não é certo? — tornou a perguntar o homem, claramente apavorado, prestes a fugir, pois com certeza viu algo incomum no rosto de Musashi.

— E quem é você? — perguntou Musashi de volta.

— Sim, senhor.

— Quem é você?

— Senhor, sou um vassalo da casa Karasumaru.

— Da casa Karasumaru? Ora, sou Musashi, realmente. Mas o que procura um vassalo da casa Karasumaru a esta hora da madrugada no meio da montanha?

— Ah, então o senhor é realmente Miyamoto-sama? — mal disse isso, o homem disparou montanha abaixo. A luz do archote deixava um rastro avermelhado e deslizava com rapidez.

Musashi pareceu de súbito dar-se conta de algo e pôs-se a andar rapidamente, cruzou a estrada de Shiga, e continuou a seguir lateralmente pela vertente da montanha.

Por seu lado, o apressado homem do archote que havia descido num ímpeto a montanha e chegado ao lado do templo Ginkakuji, parou, pôs as mãos em concha sobre a boca e gritou, chamando um companheiro:

— Eeei, senhor Kura!

O companheiro Kura não o atendeu, mas no mesmo instante outra pessoa, que se hospedava havia já algum tempo na mansão Karasumaru, acudiu:

— Que foi? Que aconteceu, hein, tio?

Era Joutaro. Sua voz provinha dos lados do portão principal do templo Saihoji, quase 200 metros além.

— É você, Joutaro?

— Isso mesmo!

— Venha cá, depressa!

A mesma voz tornou então a gritar de longe:

— Não poosso! Otsu-san chegou com muito custo até aqui, mas está dizendo que não consegue dar mais um passo. Não posso ir porque ela está caída aqui!

O vassalo dos Karasumaru estalou a língua e gritou ainda mais alto:

— Se não vierem de uma vez, o senhor Musashi vai acabar se distanciando! Venha depressa, que acabei de topar com ele logo aí!

Dessa vez, não ouviu resposta.

Em compensação, logo viu dois vultos que, amparando-se e formando uma única sombra, aproximavam-se. Eram Joutaro e Otsu.

— Depressa! — disse o homem, gesticulando com o archote. A respiração ofegante de Otsu era audível àquela distância e inspirava piedade.

À medida que se aproximavam surgiu o rosto de Otsu, mais branco que o luar. Os acessórios de viagem em torno dos braços e pernas magros pareciam pesados demais para a debilitada jovem. A luz do archote, porém, seu rosto ruborizou-se de modo surpreendente.

— É verdade o que acaba de dizer? — perguntou a jovem, sôfrega.

— Claro que é! Acabo de vê-lo neste instante — respondeu o homem enfático. — Corram atrás que o alcançarão! Depressa!

Joutaro pareceu totalmente confuso:

— Para que lado? Aonde foi ele? Não adianta me apressar, se você não me diz por onde ele foi! — explodiu Joutaro, em pé entre o atabalhoado vassalo e a jovem doente.

 

Caminhar até ali havia sido uma inimaginável provação e demandara tremenda força de vontade da parte de Otsu, pois seu estado de saúde não havia melhorado nem um pouco nesses últimos dias.

Otsu ouvira o detalhado relato de Joutaro na noite em que voltara para a cama no interior da mansão Karasumaru, e no mesmo instante começou a dizer: “Se Musashi-sama está resolvido a morrer neste confronto, de nada me adiantará cuidar-me e recuperar a saúde.” Mas logo, teve uma outra idéia: “Quero vê-lo uma vez mais, antes de morrer!”

Movida por esse desejo ardente, a jovem teve forças para remover a compressa fria da testa, erguer-se, arrumar os cabelos e calçar as sandálias nos pés enfraquecidos. Sem dar ouvidos aos conselhos e advertências das pessoas que procuravam detê-la, Otsu finalmente saiu cambaleante, quase rastejando, dos portões da mansão Karasumaru.

As pessoas da casa Karasumaru, até então empenhadas em demovê-la, tiveram então de cooperar, dentro de suas possibilidades, para a realização desse desejo — talvez o último da jovem —, já que não tinham a coragem de abandoná-la à própria sorte.

Era possível também que a história tivesse chegado aos ouvidos de lorde Mitsuhiro e que dele tivessem partido instruções precisas no sentido de levar a bom termo o desfecho daquele triste caso de amor.

Seja como for, enquanto Otsu, com seus passos cambaleantes, chegava até o portão do templo Butsugan-ji, logo abaixo do Ginkaku-ji, os servidores da mansão Karasumaru haviam, ao que parecia, se espalhado por todos os lados onde se presumia que Musashi passaria.

Sabiam apenas que o duelo aconteceria em Ichijoji, mas o local preciso da vasta área era ignorado. Além disso, encontrar Musashi depois que este chegasse ao local do duelo seria tarde demais. Em razão disso, deveria haver um ou dois frenéticos vassalos espalhados por todos os caminhos que possivelmente levassem Ichijoji, procurando pelo jovem.

A intensa busca frutificou, e um dos vassalos localizou Musashi. Dali para a frente, tudo dependeria da própria Otsu.

Ao ouvir que ele acabara de ser visto no meio da estrada de Nyoi-ga-take, e que cruzara a estrada do desfiladeiro de Shiga, descendo rumo à região pantanosa mais ao norte, a jovem já não quis mais depender da boa-vontade dos demais súditos e se dispôs a prosseguir caminho sozinha com Joutaro, sem ao menos responder às suas sôfregas perguntas:

— Você está bem, Otsu-san? Vai agüentar? Aliás, a jovem não tinha forças para responder.

Otsu era apenas um corpo doente, caminhando à força. A boca secava. Os pulmões se exauriam no esforço de respirar. Na testa pálida um fio de suor gelado escorria, vindo da raiz dos cabelos.

— Otsu-san! É este o caminho! Basta seguir por ele sempre lateralmente pela encosta da montanha que se chega naturalmente ao monte Eizan. Daqui para a frente não há mais subidas, é mais fácil andar. Quer descansar um pouco em algum lugar? — perguntou Joutaro.

Otsu apenas sacudiu a cabeça, concordando. Ligados por um único cajado que agarravam, cada qual por uma ponta, ela havia caminhado quase dois quilômetros por vias íngremes, lutando para respirar, como se esse curto trecho de estrada resumisse a provação de sua vida inteira.

— Meeestre! Musashi-samaa! — berrava Joutaro de vez em quando, a plenos pulmões, na direção que visavam. Aqueles gritos constituíam a única esperança de Otsu.

Breve, porém, até nisso não encontrou mais amparo, pois chamou Joutaro, como se quisesse dizer algo:

— Jouta-san...

Em seguida, largou a ponta do cajado que o menino puxava e tombou molemente de bruços entre as pedras e os arbustos da região pantanosa.

Ao ver que Otsu tampava boca e nariz com as mãos de dedos tão finos que pareciam afiados e que seus ombros estremeciam, Joutaro se apavorou e disse com voz de choro, soerguendo-lhe o corpo magro:

— Ei! Que foi isso? Vo... você não está vomitando sangue, está? Otsu-san! Otsu-san!...

 

Otsu balançou debilmente a cabeça, negando, ainda deitada de bruços.

— Que foi? Que está acontecendo, então? — perguntava Joutaro, atarantado, apenas acariciando-lhe as costas, confortando-a.

— Está-se sentindo mal?

— Já sei: você quer água! Está com sede, não é isso, Otsu-san? Otsu concordou, sacudindo a cabeça.

— Espere um pouco!

Em pé novamente, Joutaro procurou ao redor. Estavam numa estrada que descia suavemente em direção a um vale. O ruído da água se fazia ouvir por baixo de moitas e macegas ao seu redor, parecendo chamar: aqui, aqui!

O menino não precisou correr muito: logo encontrou uma fonte brotando debaixo de pedras, entre raízes de árvores e mato. Joutaro acocorou-se e se dispôs a apanhar um pouco de água com as mãos em concha.

A água era límpida, deixando entrever até a rápida sombra dos caranguejos de água doce. A lua já havia descambado no horizonte e não se refletia na água. Em compensação, o céu com suas nuvens brilhantes refletido na superfície líquida era maravilhoso, muito mais bonito do que o real, acima da cabeça do menino.

Sentindo ele próprio súbita sede, o menino deslocou-se cinco ou seis passos para o lado, deitou um joelho por terra na beira da fonte e espichou o pescoço como um ganso. No mesmo instante, soltou um grito admirado: magnetizados, seus olhos permaneciam presos a um ponto, e os cabelos da cabeça parecida com um kappa eriçaram-se. O menino encolheu-se, rígido e imóvel, sua cabeça lembrando uma casca de castanha.

As sombras de cinco ou seis árvores do outro lado do riacho refletiam na superfície da água compondo um padrão listrado. E um vulto humano surgira entre as árvores. Os olhos do menino haviam captado a imagem de Musashi nas águas do córrego.

O susto era justificável, mas não tinha como causa a presença de Musashi. O susto derivava do fato de ter Joutaro interpretado o reflexo na água como uma aparição, brincadeira de espíritos malignos que lhe pregavam uma peça, apoderando-se da imagem que habitava o fundo do seu coração e que tão ansiosamente ele buscava.

Aos poucos, com infinita cautela, o menino ergueu o olhar assustado da superfície da água e o transferiu para o arvoredo do outro lado do córrego. E então, aparvalhou-se de verdade.

Ali estava Musashi, em pé.

— M... mestre! Meu mestre!

O tranqüilo céu enluarado refletido na água tornou-se, ato contínuo, turvo e barrento: Joutaro, em vez de rodear a nascente, lançara-se impetuosamente dentro do riacho e o atravessara correndo. Molhado até a cabeça, saltou e agarrou-se a Musashi.

— Achei você! Achei!

Mal disse, começou a arrastá-lo pela mão como a um criminoso, com toda a força.

— Espere — disse Musashi, desviando de súbito o rosto e levando um dedo às pálpebras —, espere um pouco Joutaro. Não puxe tanto que podemos cair!

— De jeito nenhum! Não o solto nunca mais, por nada no mundo!

—Acalme-se, Joutaro. Estava aqui à espera porque ouvi sua voz me chamando de longe. Leve essa água a Otsu-san de uma vez, não perca tempo comigo!

— Ih, agora turvei a fonte!

— Tem um outro córrego logo aí, de águas limpas. Leve isto e vá! — disse Musashi, entregando-lhe o cantil da cintura. Joutaro recolheu a mão de súbito e fixando um olhar intencional no rosto de Musashi, disse: — Leve a água você mesmo, mestre!

 

— Tem razão — concordou Musashi, como uma criança obediente. Encheu o cantil pessoalmente e o levou para perto de Otsu.

Soergueu-a, amparou-lhe as costas e lhe deu de beber com suas mãos. Joutaro não parava de dizer, a voz cheia de cuidados:

— Você está vendo, Otsu-san? Quem está lhe dando a água é Musashi-sama!

Ao sentir o primeiro gole descer pela garganta, Otsu pareceu recobrar os sentidos e soltou um profundo suspiro. Seus olhos porém estavam vagos, sonhadores, o corpo abandonado nos braços de Musashi.

— Não sou eu que a estou amparando, Otsu-san! Estes braços são do meu mestre, está entendendo, Otsu-san?

A essas palavras, os olhos de Otsu, fixos na distância, encheram-se instantaneamente de lágrimas, lembrando um par de esferas de vidro que aos poucos se turva. Em seguida, duas gotas cristalinas rolaram por suas faces. A jovem balançou a cabeça, em sinal de que compreendia.

— Ah..., ainda bem! — disse Joutaro. Uma súbita alegria o invadiu e o levou a completar:

— Está contente agora, Otsu-san? Realizou o seu sonho, não realizou? Sabia, mestre, que depois daquela noite, ela quis porque quis encontrar-se outra vez com você? Enferma desse jeito, não obedeceu a ninguém! Se ela continua assim, acaba morrendo, com certeza. Diga isso a ela você também, mestre, porque a mim ela não escuta de jeito algum!

— Foi assim, então? — respondeu Musashi, continuando a ampará-la. — A culpa é toda minha. Vou pedir-lhe desculpas pelos meus erros e aconselhá-la quanto aos dela agora mesmo, mas, Joutaro...

— Que é?

— Você não poderia se afastar por alguns momentos e deixar-nos a sós? Ao ouvir isso, o menino fez bico e replicou:

— Por quê? Por que não posso ficar perto de vocês?

Aborrecido e desconfiado, Joutaro não saiu do lugar. Musashi não sabia o que fazer. Otsu então interveio, suplicando:

— Por favor, Jouta-san! Afaste-se um pouco e deixe-nos um instante a sós, por tudo que lhe é sagrado!

Embora fosse capaz de se mostrar amuado com Musashi, Joutaro não conseguiu resistir ao sentido apelo de Otsu e concordou.

— Está certo! Já que não tem outro jeito, vou subir este morro. Quando acabarem de conversar, me chamem, está bem?

Ergueu o olhar em direção a uma senda que cortava a área reflorestada e subiu pelo barranco, fazendo farfalhar os arbustos.

Finalmente recuperada, Otsu ergueu-se e, acompanhando com o olhar o vulto do menino a subir o morro como um pequeno cervo, disse:

— Também não é preciso ir tão longe, Jouta-san! O menino, porém, nem sequer lhe deu atenção.

Otsu não tinha por que voltar as costas a Musashi justo nesse momento, e perder um tempo precioso falando de coisas que nem lhe passavam pela cabeça. A verdade era, porém, que no instante em que se viu a sós com Musashi, sem a conciliadora presença de Joutaro, a jovem sentiu-se oprimida pela emoção. Queria falar, mas não sabia por onde começar, e se constrangia, consciente de si mesma.

Além de tudo, uma pessoa enferma torna-se muito mais tímida que uma sadia.

 

Aliás, Otsu não era a única a sentir timidez. Musashi também tinha voltado o rosto para o lado.

De costas, a jovem permanecia cabisbaixa, enquanto Musashi, rosto voltado para o lado oposto ao da jovem, fitava o céu. E nisso se resumiu o aconchego dos dois seres que finalmente se encontravam, após anos e anos de intensa busca um pelo outro.

Como começar? Musashi não encontrava as palavras certas. Por mais que pensasse e as escolhesse com cuidado, jamais seriam suficientes para exprimir o que lhe ia no peito.

A noite escura, o vento sibilando entre os galhos do pinheiro centenário... Tudo lhe vinha num átimo à lembrança. Embora não tivesse acompanhado pessoalmente o caminho trilhado por Otsu nos últimos cinco anos, Musashi não era de modo algum indiferente ao sentimento puro que a havia levado a percorrê-lo.

Muitas vezes Musashi se perguntara quem teria suportado até agora maiores amarguras: Otsu, palmilhando um tortuoso caminho, carregando abertamente a chama do amor puro que a consumia, ou ele, que tivera de andar ocultando as labaredas de sua paixão sob um manto inexpressivo, cobrindo-as com uma fria camada de cinzas? E a resposta era sempre a mesma: ele. E nesse momento o jovem tomava a chegar à mesma conclusão.

Sobrepujando porém essas questões pessoais, o que Musashi considerava cada vez mais admirável e comovente era a coragem e a força de caráter desta frágil Otsu, que em nome do amor vinha carregando sobre os delicados ombros uma carga pesada demais até para homens, provendo além disso seu próprio sustento.

“Resta-me apenas mais algum tempo”, pensou Musashi. Não parará de observar a posição da lua e de pensar nas poucas horas de vida que lhe restavam. O céu já tinha as cores do alvorecer próximo. A lua já tombara um bocado a oeste e brilhava esbranquiçada, anunciando a madrugada.

E ali estava ele, prestes a cair como a lua por trás da montanha da morte. Era chegada a hora de dizer a verdade a Otsu, nem que fosse apenas por uma palavra. Seria também a atitude correta para com esta jovem, um modo de compensá-la e a melhor maneira de demonstrar seu interesse por ela, pensou Musashi.

A verdade.

Mas... como dizê-la?

Seu peito estava repleto de verdades, mas quanto mais lutava por expressá-las, mais elas se recusavam a vir à boca. O tempo corria em vão, enquanto ele apenas fitava o céu, longe da jovem.

Otsu também permanecia em silêncio, olhando para o chão, regando-o com suas lágrimas. Até chegar ali, em seu peito também queimara uma chama furiosa, capaz de envolver todos as sete torres de um templo, a chama de um sentimento que era apenas amor, com exclusão de todas as demais considerações, como verdade, deuses e santos, vantagens ou desvantagens, ou mesmo orgulho e aparência, estas duas últimas tão prezadas pelos homens. E acreditara que, com a ajuda dessa chama pura, conseguiria demover Musashi; que com suas lágrimas seria capaz de trazê-lo para um mundo distante deste.

Mas, agora que o tinha na frente, sentia-se incapaz de dizer palavra. E se nem ao menos conseguia falar sobre os amargos momentos passados longe dele, sobre a tristeza dessa sua vida nômade, o labirinto em que se transformara sua vida e a crueldade de Musashi, muito menos seria capaz de falar dessas ardentes esperanças. E no instante em que se decidia a falar sobre os sentimentos que lhe subiam como um bolo quente ao peito, o coração se confrangia e as lágrimas vinham aos olhos, deixando os lábios trêmulos e a boca cerrada. Se Musashi não estivesse ali, e outra fosse a noite, Otsu achava que se teria jogado ao chão e chorado alto, como uma criancinha, denunciando à mãe desconhecida, em pensamentos, toda a miséria que lhe ia na alma.

Que fariam os dois? O tempo corria em vão, e o silêncio prosseguia.

Pressentindo a chegada da manhã, cinco ou seis gansos selvagens cruzaram o céu grasnando desafinado e desapareceram do outro lado das montanhas.

 

— Gansos selvagens... — murmurou Musashi. Naquela situação, a observação soaria forçada, ele sabia, mas continuou: — Olhe lá, Otsu-san: os gansos selvagens estão indo embora, grasnando.

Aproveitando a deixa, Otsu também disse:

— Musashi-sama...

Os olhos finalmente se encontraram. As saudosas montanhas da terra natal, cujos céus gansos selvagens cruzavam toda primavera e outono, surgiram de súbito em seus corações.

Tudo era tão simples, naquela época!

Otsu sempre se dera muito melhor com Matahachi e evitara Musashi porque, assim dizia, ele era muito bruto. Quando ele lhe dizia desaforos, Otsu não ficava atrás e revidava. Visões do morro do templo Shippoji, assim como o barranco do rio Yoshino, surgiram em suas mentes.

Mas se continuassem mudos, perdidos em lembranças, desperdiçariam preciosos momentos que jamais se repetiriam. Musashi então disse:

— Como está você, Otsu-san? Ouvi dizer que anda doente.

— Não tenho nada.

— Já melhorou?

— Isso não faz mal. Preocupa-me muito mais saber que se dirige neste instante para o morro Ichijoji, preparado para morrer.

— É verdade.

— Se você morrer, morro também. Não sei se esta resolução me deu alívio, mas o fato é que já não me sinto doente.

Musashi contemplou o rosto sereno de Otsu e sentiu que o seu preparo espiritual não era nada comparado ao daquela jovem.

Para chegar ao atual estágio de firmeza, Musashi sofrerá muito, pensara na vida e na morte, e só atingira esta segurança através de muito esforço, sustentado pelo treino de cada dia e pelo seu preparo como samurai. No entanto, esta jovem, sem ter passado por tantas dúvidas e sem nenhum preparo a apoiá-la, dizia, com a maior tranqüilidade, sem hesitar:

— Morro também.

Musashi olhou-a dentro dos olhos, fixamente, e foi capaz de perceber que ela não pilheriava nem mentia. Ao contrário, havia até um traço de alegria no brilho de seu olhar, pois ela ia acompanhá-lo. Aqueles olhos contemplavam a morte com uma tranqüilidade impressionante, maior até que a do mais bem preparado samurai.

O jovem sentiu vergonha de si próprio, ao mesmo tempo em que se indagava: como podiam as mulheres chegar tão facilmente àquela decisão?

Mas no instante em que compreendeu o sentido do que ela lhe dizia, apavorou-se por ela e perturbou-se por completo:

— Que... que tolice é essa! — gritou, ele próprio espantado com a violência do sentimento que o levara a esbravejar. — Minha morte tem um significado. Quando um espadachim morre trespassado por uma espada, ele está aceitando a morte na forma mais natural para ele, como também está aceitando de bom grado a covardia de seus inimigos, preso nas confusas regras que regem o caminho da espada. E então, você me segue e morre em seguida. Agradeço sua lealdade, mas... Qual o sentido dessa nova morte? Por que existir por um breve instante e morrer, como um mísero inseto?

Otsu havia-se jogado novamente no solo e chorava. Ao ver isso, Musashi percebeu a violência de suas próprias palavras e, arrependido, ajoelhou-se ao seu lado e lhe falou com voz mais calma:

— Pensando bem, Otsu-san... Acho que, sem saber, estive mentindo para você o tempo todo. Tanto no cedro centenário, quanto na ponte Hanadabashi, eu a iludi, embora não tivesse a intenção. E me portei com horrível frieza. Sou um homem que vai morrer daqui a pouco e o que vou lhe dizer agora não é mentira. Eu a amo. Tempos houve em que não pude passar um dia sequer sem pensar em você. Não sabe o quanto me torturei, com vontade de abandonar tudo para apenas viver e acabar meus dias em sua companhia. E teria abandonado de verdade, não fosse por outra coisa que amo, mais que a você: a espada.

 

Parou por instantes para depois prosseguir:

— Otsu-san!

Sua voz vinha carregada de uma nova energia. Musashi deixava-se levar pela emoção, rompendo o costumeiro mutismo e desfazendo a impassibilidade.

— Palavras de um homem que sabe que vai morrer são sagradas. Acredite, Otsu-san, pois nelas não há sombra de mentira, ou de veleidade. Estou abrindo o meu peito para você, deixo de lado vergonha e orgulho. Eu sonhava com você em pleno dia algumas vezes. Passei noites em agonia, tive sonhos quentes, apaixonados, que quase me enlouqueceram. Você me perseguia, dormisse eu em templos ou em campinas sob um céu estrelado. Desesperado, acabava abraçando a esteira com que me cobria, transformando-a em você, rangia os dentes de agonia, e esperava o dia amanhecer. Você me capturou, Otsu-san, eu estava apaixonado a esse ponto por você. Não obstante... mesmo nesses momentos, quando extraía a espada da bainha e a contemplava, o sangue em tumulto aos poucos se acalmava e se tornava frio como água de um lago, sua imagem se esfumava e se esvaía de minha mente. Otsu tentou dizer qualquer coisa. Sacudida por soluços, ergueu o rosto branco que lembrava uma flor, mas ao ver as feições rígidas e assustadoramente sérias do jovem, sentiu-se sufocar e jogou-se outra vez ao chão.

— E então, eu tornava a me lançar de corpo e alma no caminho da espada. Essa fronteira sou eu, Otsu-san. Isto quer dizer que, um pé no caminho do amor, outro no dos estudos, vim me arrastando em dúvida e tormento até hoje, sempre pendendo mais para o lado da espada. Ninguém me conhece melhor do que eu mesmo. Não sou nem herói nem gênio. Sei apenas que gosto um pouco mais da espada do que de você. Não sou capaz de morrer de amor, mas estou pronto a morrer pela espada, a qualquer momento.

Musashi tentava desnudar sua alma, revelando com toda honestidade, sem nada esconder, seus verdadeiros sentimentos. Mas as palavras e a emoção o traíam e lhe deixavam a sensação de que havia ainda algo não revelado com franqueza.

— Esse é o real Musashi, Otsu-san, que todos desconhecem. Deixe-me falar com maior franqueza ainda: quando começo a pensar em você, sinto-me queimar, escravizado, mas quando o espírito desperta para o caminho da espada, sou capaz de empurrar sua imagem para um canto da mente num piscar de olhos. Ou melhor, ela desaparece por completo. Por mais que procure, não sou capaz de encontrar nem a sua sombra em meu espírito ou corpo. E era nessas horas que eu me sentia mais feliz, mais realizado como homem. Compreendeu agora, Otsu-san? E é a esse homem que você se dedicou de corpo e alma, por ele você sofreu sozinha até hoje. Eu me recrimino intimamente, mas nada posso fazer, porque sou assim.

A mão magra de Otsu agarrou nesse instante o robusto punho de Musashi. A jovem não chorava mais.

— Sei disso! Como não haveria de saber? Sei que você é assim! Não pense nem por um momento que o vim amando todos estes anos desconhecendo essa sua faceta.

— Nesse caso, deve saber muito bem que não faz sentido morrer comigo. Este homem que aqui está, Otsu-san, é capaz de esquecer-se de tudo e lhe dedicar o corpo e a alma por um breve momento, enquanto você estiver na sua presença; no momento em que você se afastar um passo, porém, ele a esquecerá por completo, nada mais restará de sua imagem. Não percebe como é inútil morrer por um homem desse tipo, acabar com sua vida depois de viver por um curto tempo, como um mísero inseto? Existem outros sonhos para os quais uma mulher deve viver. Estas são minhas palavras de despedida, Otsu-san. Não me resta muito mais tempo: tenho de me ir...

Musashi desvencilhou-se com delicadeza da mão de Otsu e se ergueu.

 

A mão afastada logo voltou a agarrar com firmeza a manga do quimono.

— Espere um pouco, Musashi-sama! — disse Otsu.

Havia tempos a jovem continha os sentimentos, e o peito estava repleto.

Ela queria dizer que Musashi se enganara quando dissera: “Não vale a pena morrer por um amor tão breve e inútil como a vida de um inseto”, e também quando afirmara: “Sou um homem que, mal se afasta um passo de você, é incapaz de lembrar que você existe.” Otsu queria lhe dizer que seu amor era sólido, não se baseava em premissas erradas. Mas a idéia de que nunca mais o veria sobrepujava todas as demais e não conseguia dizer nada, nem raciocinar direito.

E assim, apesar de havê-lo retido, ela se viu impossibilitada de falar, apenas conseguindo mostrar-lhe uma imagem chorosa e confusa.

Musashi, contudo, não podia permanecer indiferente ante essa jovem que queria falar e não conseguia, não podia fechar os olhos à beleza frágil, complexa apesar da simplicidade. O lado mais fraco de sua personalidade, a que mais temia, vergava-se agora como uma árvore raquítica, de raízes rasas em dia da ventania. Mais um pouco... e sentia que a firme lealdade ao caminho da espada, por ele mantido até aquele instante, desmoronaria como um barranco ante o ataque dessas lágrimas. A perspectiva o apavorou. Disse, apenas por dizer:

— Compreendeu?

— Compreendi — disse Otsu, com calma. — No entanto, torno a afirmar: se você morrer, morro também. Mais ainda que você, sou capaz de abraçar a morte com prazer, de nela ver um sentido. Asseguro-lhe que não estou sucumbindo a uma momentânea tristeza, como um mísero inseto. Peço-lhe, portanto, que deixe a meu cargo esta resolução — conseguiu ela terminar, sem perder a serenidade. E acrescentou ainda:

— Espero que você me aceite em seu coração como sua mulher. Só isso bastará para satisfazer todos os meus sonhos, plenamente. Essa sensação, essa alegria, é um bem que só eu possuo. Você disse há pouco que não me queria ver infeliz, mas eu lhe asseguro: não parto desta vida porque a infelicidade foi um peso excessivo para mim. Eu não sou uma pobre coitada, por mais que as pessoas me vejam assim. Pelo contrário... Ah, nem sei como me explicar... Sinto-me como uma noiva pressurosa às vésperas do seu casamento, e espero o amanhecer com alegria. Vou-me embora deste mundo ouvindo o chilrear feliz dos pássaros.

Pelo visto, o ar lhe faltava quando falava muito, pois cruzou as mãos no peito e se calou, erguendo para o alto um olhar sonhador.

A lua em queda continuava a brilhar, branca, e a névoa começava a se formar em torno das árvores, mas ainda faltava um bocado para o alvorecer.

Foi nesse exato instante que do topo do barranco, para onde Otsu erguera o olhar, partiu um grito estridente semelhante ao de um pássaro assombrado. O grito rasgou o silêncio noturno e despertou as árvores.

A voz era de uma mulher, sem dúvida alguma.

Joutaro subira havia pouco por essa colina, mas a voz não era dele.

 

Algo sério estava acontecendo.

Quem gritara? Que se passava?

Otsu fitava o topo do morro coberto de névoa com a expressão aturdida dos que despertam de um sonho. Aproveitando esse momento, Musashi afastou-se do seu lado sem lhe dizer adeus: em largas passadas, apressava-se rumo ao local onde a morte o aguardava.

— Ah!... Já se vai? — sussurrou Otsu, correndo-lhe atrás dez passos. Musashi também se afastou dez passos e se voltou:

— Compreendi muito bem tudo que me disse, Otsu-san. Mas não morra à toa, ouviu bem? Não aja como uma pessoa perseguida que, para escapar, escorrega para dentro do vale da morte. Recupere a saúde e torne a pensar com calma sobre o assunto. Eu também não estou correndo às cegas ao encontro da morte: apenas aceito momentaneamente a morte para poder obter a vida eterna. Em vez de me seguir na morte, preferia que você continuasse a viver e me observasse a longo prazo. Meu corpo pode tornar à terra, mas Musashi viverá, você há de ver!

No mesmo fôlego, acrescentou:

— Preste atenção, Otsu-san: não se precipite na direção errada, pensando que segue os meus passos! Mesmo depois que você me vir morto e transferido para o mundo dos mortos, eu lá não estarei. Cem anos poderão se passar, mas Musashi continuará vivo no seio do povo, no espírito dos que trilham o caminho da espada.

Quando acabou de falar, já havia se distanciado tanto que a voz de Otsu não o alcançava mais.

Atordoada, a jovem ficou para trás. Musashi se afastava cada vez mais, dando-lhe a impressão de que com ele se ia um pedaço dela, destacado do seu coração. A dor surge quando dois seres rompem o relacionamento. Otsu, porém, não sentia esse tipo de dor. As almas dos dois continuavam unidas, mas agora ela sentia um súbito arrepio ante a perspectiva de que a enorme onda da vida e da morte poderia engolfá-los, separando-os cada um para um lado.

Naquele instante, torrões de terra e pedregulhos rolaram do topo do barranco e caíram a seus pés. No rastro dos torrões veio um berro e Joutaro surgiu, abrindo caminho entre arbustos.

— Aaah! — gritou Otsu, assustada.

Pois o pequeno Joutaro aterrissara à sua frente usando a máscara da mulher louca que ganhara da viúva do músico Kanze, de Nara: certo de que não voltaria mais à mansão Karasumaru, o menino a havia trazido junto ao peito, dentro do seu quimono.

— Ai, que susto! — disse ele, caindo de repente em pé na frente de Otsu, e erguendo ambos os braços.

— O que foi isso, Jouta-san?! — gritou a jovem.

— Sei lá — respondeu Joutaro —, eu também não entendi! Mas você também ouviu, não ouviu, Otsu-san? Um berro de mulher, assustador!

— Onde é que você estava com essa máscara no rosto, Jouta-san?

— Subi por esse barranco e encontrei um caminho parecido com este. E um pouco acima dele, vi uma pedra de bom tamanho. Vai daí, subi nela, me sentei e, como não tinha nada para fazer, fiquei olhando a lua cair no horizonte.

— Com isso no rosto?

— Hu-hum! Sabe por quê? Porque ouvi barulho de raposas e texugos nas proximidades, e achei que eles não se aproximariam se eu ficasse com essa máscara no rosto, todo empertigado. E então ouvi uma voz horrível gritando em algum lugar. O que teria sido aquilo, hein, Otsu-san? Parecia uma voz vinda do além!

UM GANSO DESGARRADO

Da montanha Higashiyama até o sopé de Daimonji os dois sabiam a direção a tomar, mas depois dessa área tinham errado o caminho em algum ponto, pois estavam agora muito para dentro das montanhas, se é que pretendiam chegar à vila Ichijoji.

— Devagar, devagar! Para que tanta pressa? Espere por mim! Está me ouvindo, Matahachi? Ei, Matahachi! — dizia a velha Osugi, pondo de lado o orgulho, ofegante, toda vez que percebia não lhe ser possível acompanhar os passos do filho.

Matahachi produziu um sonoro estalo com a língua, com a clara intenção de ser ouvido, e disse:

— Olhem só, quem te viu e quem te vê! Aposto que já não se lembra mais do que me disse quando partimos da hospedaria!

Incapaz de ignorar o apelo da mãe, o jovem parava de vez em vez e esperava, mas aproveitava a situação para se vingar e atormentar por sua vez a ofegante Osugi.

— Posso saber por que está tão mal-humorado e descarrega em mim? Não devem existir muitos filhos iguais a você, que se ressentem de cada admoestação que a mãe lhes faz.

Mal a velha mulher parava e secava o suor que lhe escorria no meio das rugas do rosto, Matahachi já começava a andar de novo.

— Espere um pouco! Vamos descansar por aqui!

— Você mais descansa que anda! Desse jeito, vai acabar amanhecendo.

— Qual o quê! Falta muito ainda para o amanhecer. Em condições normais, venceria com facilidade qualquer estrada de montanha igual a esta. O problema é que nestes últimos dois ou três dias andei pegando um resfriado, e estou me sentindo cansada, com falta de ar. Bela hora para ficar doente!

— Você não quer dar o braço a torcer, reconheça! E foi para fazê-la descansar um pouco que decidi bater à porta daquela última taberna por onde passamos e acordar o taberneiro. Mas nessas horas você não quer descansar, reclama que está ficando tarde, que precisamos partir de uma vez, e nem me deixa beber em paz! Isso tudo porque você não quer beber! Sei que é minha mãe, mas nunca encontrei ninguém de convivência mais difícil que você.

— Ah, agora entendi: você está nervoso porque não o deixei beber à vontade naquela taberna...

— Ah, deixe isso para lá!

— Acho que é bom parar de bancar o menino mimado, Matahachi! Não se esqueça da missão que temos pela frente.

— Você vive dizendo isso, mas nós não vamos enfrentar sozinhos um mar de espadas. Está apenas previsto que, depois de terminado o duelo, abordaremos os homens do clã Yoshioka, pediremos permissão para golpear ao menos uma vez o cadáver de Musashi e depois arrancaremos da cabeça de um morto indefeso um punhado de cabelo para levar de presente ao povo de nossa terra. Que há de tão extraordinário nisso?

— Está bem, está bem! Não adianta começarmos uma briga entre nós dois a esta altura, meu filho — disse Osugi, pondo-se a andar.

Matahachi então a seguiu, falando consigo mesmo e reclamando:

— Nunca vi coisa mais boba! Arrancar uma prova de um homem que foi morto por outras pessoas e levar de volta para a própria terra, declarando que realizou assim uma “vingança longamente acalentada”! Nosso povo é daquele jeito, igual a caipiras que nunca saíram de suas terras: vai acreditar piamente e se regozijar, com certeza. Ah, que coisa chata era a vida naquela vila, enterrada no meio das montanhas! Só de pensar me arrepio!

O sabor do fino saque procedente de Nada, as mulheres da cidade, a vida que Matahachi conhecera na cidade grande... Tudo conspirava para torná-lo saudoso de antemão. Sobretudo, ele tinha ainda uma idéia fixa: trilhar um caminho diferente do de Musashi e, com sorte, ir de sucesso em sucesso, até satisfazer o sonho de uma vida de luxo e descobrir a vantagem real de ter nascido como um ser humano neste mundo.

— Não quero ir-me embora! As luzes da cidade que eu vejo daqui já me dão saudade!

Sem que se desse conta, Matahachi já tinha deixado Osugi para trás uma vez mais. Pelo jeito, a idosa mulher sentia-se mal realmente, conforme vinha dizendo desde o momento em que haviam partido da estalagem.

— Matahachi! Leve-me nas suas costas por um trecho, eu lhe imploro, meu filho!

Matahachi franziu o cenho.

Emburrado, sem ao menos responder, parou para esperar a mãe. Nesse momento, mãe e filho se entreolharam assustados, aguçando os ouvidos. O mesmo grito estridente que espantara Joutaro e Otsu — um berro de mulher que lembrava um grito maldito — chegou aos ouvidos dos dois.

 

Fora um único grito, e viera de algum lugar que não sabiam precisar. Se ouvissem mais um, poderiam descobrir a procedência. À espera disso, mãe e filho se quedaram imóveis no escuro, olhando vagamente ao redor.

— Quê? — fez Osugi repentinamente. Não porque ouvisse outra vez o grito apavorante, mas porque percebeu que Matahachi, agarrado na beira do barranco, se preparava para descer por ele.

— A... aonde vai? — perguntou depressa.

— Para a charneca logo aqui embaixo — respondeu Matahachi, prestes a desaparecer no caminho abaixo. — Espere um pouco aí mesmo, obaba. Vou só espiar.

— Idiota! — gritou Osugi, voltando ao seu habitual linguajar. —Vai em busca do quê?

,— Como assim? Não ouviu uma mulher gritar, ainda agora?

— E de que lhe adianta ir atrás disso? Ei, você é tolo mesmo, não? Deixe disso!

Enquanto a velha mãe gritava de cima do barranco, Matahachi continuou a descer agarrando-se às raízes das árvores rumo ao fundo do vale.

— Tolo! Idiota!

Matahachi ergueu a cabeça quando atingiu o vale e entreviu no meio das árvores o vulto da mãe esbravejando.

— Espere-me aí mesmo, ouviu? — gritou. Mas o vale era tão fundo que sua voz já não a alcançou.

— E agora? — pensou ele, ligeiramente arrependido. O grito parecia ter partido desse vale, mas... Se não partira, ele teria perdido tempo e se esforçado em vão.

Matahachi logo descobriu que naquele profundo buraco onde a luz da lua nem sequer chegava havia uma estreita senda. As montanhas dessa área não eram tão altas e quem se dirigia de Kyoto a Sakamoto ou Outsu, em Shiga, costumava cortar caminho por ali, de modo que havia pegadas de gente da cidade por todos os lados.

Matahachi continuou a caminhar, acompanhando o curso de pequenas quedas d’água e de riachos. E então, deparou com um caminho que cruzava uma dessas correntezas e chegava até as montanhas à direita e à esquerda, a meia altura de suas encostas. E ali, bem ao lado do riacho que o caminho cortava, ele encontrou um casebre.

O casebre parecia-se com os usados para pernoite por pescadores de salmão e mal abrigava uma pessoa. Rente a ele, encolhido, vislumbrou um rosto branco e as mãos de alguém.

— Será uma mulher?

Matahachi escondeu-se atrás de uma rocha. Ele estava excitado porque o grito estridente de há pouco havia sido, sem dúvida, de mulher. Fosse de homem, ele jamais teria se dado ao trabalho de descer até o fundo do vale. E agora, ali estava ela: uma mulher, e jovem, ao que parecia.

“O que será que ela está fazendo?”, pensou, a princípio desconfiado. Mas logo suas dúvidas se desfizeram: a mulher tinha-se arrastado até a beira do riacho e, com a mão em concha, bebia água.

 

Com um brusco movimento, a mulher se voltou agressivamente. Ela tinha captado a vibração dos passos como um inseto e parecia prestes a se erguer.

— Ué? — disse Matahachi, ao mesmo tempo em que a mulher exclamava, também espantada:

— Aah!

Sua voz, porém, tinha um quê de pavor.

— Ora, se não é Akemi!

— Hum!... — fez ela respirando profundamente, como se só então a água do córrego que acabara de beber estivesse descendo garganta abaixo.

Matahachi pôs a mão sobre o ombro ainda trêmulo e disse:

— Que aconteceu, Akemi? — observou-a a seguir dos pés à cabeça. — Vejo que também está preparada para viajar. Mesmo assim, que faz você aqui, a esta hora da madrugada?

— E sua mãe, Matahachi-san?

— Minha mãe? Deixei-a esperando lá no topo do barranco.

— Ela ficou furiosa, não ficou?

— Fala dos trocados?

— Tive de partir imediatamente, mas não tinha dinheiro para pagar a conta da hospedaria, nem para as despesas de viagem. Sabia que era errado, mas não resisti à tentação e roubei uma carteira que vi perto da trouxa de viagem de obaba-san. Perdoe-me, e deixe-me ir embora. Prometo que um dia lhe pago tudo.

Matahachi pareceu até surpreso quando a viu chorando e se desculpando.

— Ei, que é isso? Pare de se desculpar! Já sei! Está pensando que vim atrás de você para prendê-la, não está?

— Eu não pensei direito e cedi a um impulso, é verdade, mas o fato é que roubei e fugi. Se for pega, sei que serei acusada de ladra!

— Isso é o que minha mãe faria. Se você estava precisando de verdade, eu por mim lhe daria aquela mísera quantia antes mesmo de você pedir. Fique calma, eu não estou me importando. Mas o que faz você aqui agora?

— É que ouvi o que você dizia a sua mãe, escondida perto daquela casinha, na hospedaria.

— Ora, a respeito do duelo entre Musashi e o clã Yoshioka, você quer dizer?

— Isso mesmo.

— E foi por isso que resolveu ir a Ichijoji?

Akemi não respondeu. Desde os tempos em que viviam juntos na mesma casa, Matahachi sabia muito bem o segredo que a jovem guardava em seu peito com tanto zelo, de modo que não entrou em detalhes e mudou de assunto no mesmo instante:

— Ah, é verdade! Há pouco, escutei alguém gritando. Era você, por acaso?

— Era — confirmou Akemi com um aceno de cabeça. Ergueu-a em seguida e fixou o olhar para o contraforte da montanha, como se estivesse ainda vendo um pesadelo.

 

Segundo o relato de Akemi, as coisas haviam se passado da seguinte maneira:

Não fazia muito tempo, a jovem havia cruzado o córrego e, ao atingir o trecho da montanha, logo adiante, avistara uma assombração horrorosa sentada numa rocha, destacando-se da encosta; o espírito maligno contemplava alua.

A história só podia ser uma brincadeira, mas Akemi a contava com a maior seriedade.

— Só a vi de longe, mas percebi que seu corpo era o de um anão, e o rosto, o de uma mulher adulta. A cara era branca, de uma palidez indescritível, e a boca era rasgada até quase a orelha. Além disso, pareceu-me que ela olhava para mim e ria. Foi então que, sem querer, soltei um berro agudo. Fugi tão desesperada que, quando dei por mim, tinha escorregado e caído neste fundo de vale.

Akemi contava demonstrando tanto pavor que Matahachi não conseguiu se conter e riu.

— Ora, não acredito! Como é que você, uma menina que se criou nos pântanos de Ibuki, e não tinha medo de perambular no meio dos fogos-fátuos dos campos de batalha, arrancando espadas e armaduras dos cadáveres, pode ter medo de assombrações? Desse jeito, você vai é espantá-las!

— Mas naquela época eu era muito nova, não tinha medo de nada.

— Não era tão nova assim, pelo que me lembro. Ainda mais quando vejo que não se esqueceu de certos incidentes daquela época, e os tem muito bem guardados em seu peito.

— É claro, ele foi o meu primeiro amor... Mas já desisti dele.

— O que a leva a Ichijoji, nesse caso?

— Nem sei direito. Apenas... achei que talvez pudesse me encontrar com Musashi-sama.

— Esqueça isso.

E então Matahachi contou a Akemi a situação de Musashi, que suas chances de vencer o duelo eram menores do que uma em dez mil, e o que sabia a respeito da ajuda arrebanhada por seu adversário.

A jovem — que já havia passado pelas mãos de Seijuro e de Kojiro, e para quem àquela altura os tempos em que ainda era virgem constituíam uma vaga lembrança do passado — não conseguia mais pensar ou ansiar por Musashi, nem imaginar um róseo futuro em sua companhia. Analisava-se friamente e percebia que fisicamente já não estava apta a viver ao seu lado. Ela havia falhado ao tentar morrer, falhava ainda ao tentar viver, e se assemelhava a um ganso selvagem desgarrado do bando, em busca de outros pousos.

E quando ouviu de Matahachi que Musashi estava nesse mesmo instante aproximando-se pouco a pouco de um perigo mortal, não conseguiu sentir tristeza, nem chorar. Ainda assim, não sabia dizer por que o seguira até tão longe no meio da noite.

Com o olhar vago de alguém que tinha perdido o rumo, Akemi ouvia em silêncio a história de Matahachi. Este contemplava fixamente o perfil da jovem. Ele próprio hesitava, do mesmo jeito que Akemi.

“Esta mulher está procurando um companheiro de viagem”, pensou Matahachi, lendo-lhe a fisionomia.

De súbito, Matahachi abraçou-a pelos ombros e aproximou o rosto do dela.

— Akemi, que acha de fugirmos para Edo?... — sussurrou.

 

Akemi prendeu a respiração. Voltou-se e fitou Matahachi, em dúvida: — Como? Para Edo? — repetiu, como se estivesse acordando nesse momento.

Matahachi pressionou de leve o ombro que envolvia em seu braço.

— Não precisa ser Edo, na verdade. Mas a crer nos boatos, a cidade de Edo transformar-se-á na sede do xogunato, dentro em breve. As grandes cidades como Osaka e Kyoto já são consideradas velhas demais, mas em Edo, nas cercanias do castelo do xoguns Ieyasu, dizem que surge uma cidade nova atrás da outra. Se formos espertos e nos infiltrarmos nesses locais, tenho certeza de que faremos um bom negócio. Tanto você como eu somos gansos desgarrados do bando. Vamos! O que acha, Akemi?

A expressão de Akemi, atenta aos sussurros, aos poucos se tornou séria. Matahachi deu ênfase cada vez maior ao fato de que o mundo era vasto e eles, jovens.

— Vamos viver uma vida de prazeres, fazendo só o que nos agrada! Para que viver de outro modo? Temos de ser mais audaciosos! Viver à tripa forra! Quanto mais a gente se empenha em viver honestamente uma vida virtuosa, e luta por melhorar as condições, mais o destino zomba da gente, prega-nos peças e nos deixa chorando, sem nenhuma alternativa. E você também, Akemi: quem manda você se deixar explorar por gente como Okoo e Seijuro? É por isso que você não vai para a frente. Você tem de passar para o lado do explorador, ou não conseguirá sobreviver neste mundo!

Akemi estava impressionada. Partindo da Hospedaria Yomogi, haviam ambos caído no mundo, cada um para o seu lado. E o mundo abusara dela, mas com Matahachi as coisas tinham sido diferentes: ele era homem, e parecia-lhe que, diferente daqueles velhos tempos, seu caráter estava agora um pouco mais firme.

Mas em algum lugar da mente, tremia uma miragem, difícil de abandonar: o vulto de Musashi. Aquilo era uma obsessão, como alguém que se sente compelido a ir ver as cinzas de sua casa queimada.

— Não quer?

Akemi sacudiu a cabeça em silêncio.

— Se quer, vamos embora!

— Mas... E a sua mãe, Matahachi-san? Que vai fazer com ela?

— Ah, é verdade! — disse ele, olhando para o alto do barranco. — Minha velha irá embora para a sua terra assim que conseguir uma prova da morte de Musashi. Ela vai ficar furiosa quando descobrir que a abandonei no meio da montanha, como uma daquelas velhas que são jogadas para morrer. Mas não há de ser nada: assim que ela vir o homem bem sucedido em que vou me transformar, perdoará tudo. E uma vez que já decidimos, vamos logo embora!

— Vamos seguir por um outro caminho, Matahachi-san! Esse aí... — disse Akemi, encolhendo-se.

— Ora, essa. Por quê?

— Porque se seguirmos por aí, vamos dar de novo naquela pedra...

— Ah!... Está com medo de topar de novo com o anão da boca rasgada? Não tenha medo, eu agora estou com você! — disse Matahachi, rindo abertamente. — Ih, acho que estou ouvindo minha velha me chamando. Tenho muito mais medo dela do que desse seu anão assombrado! Venha logo, Akemi, antes que ela nos encontre!

Enquanto os dois vultos subiam o barranco às carreiras e desapareciam à meia-altura da encosta, a voz de Osugi, cansada de esperar, ecoava pelo vale.

— Matahachii! Ó, meu flilho!

O chamado percorreu em vão as encostas das montanhas por um longo tempo.

 

VIDA E MORTE

Pássaros começaram a chilrear.

Um pé-de-vento fustigou a senda que cruzava pelo denso bambuzal. Levados por ele, aves levantaram vôo em diversos pontos. Não obstante, seus vultos nem eram visíveis, pois a noite ainda se demorava.

— Sou eu, Kojiro, o mediador do duelo! — anunciava um vulto, correndo ofegante pela senda que levava ao passo Kirara. Realmente, era Sasaki Kojiro, tornado prudente pela experiência anterior, dirigindo-se com a agilidade de um cervo para a encosta do pinheiro.

— Ora, essa, é o jovem Kojiro! — diziam os homens do clã Yoshioka surgindo de seus esconderijos. Com expressões aborrecidas por causa da longa espera, logo o rodearam, formando um compacto cerco ao seu redor.

— Esse sujeito, Musashi, ainda não apareceu? — perguntou o patriarca de Mibu, o velho Genzaemon.

—Apareceu, sim. Encontrei-me com ele! — respondeu Kojiro, enfático, examinando friamente os olhares agudos que se concentraram em sua pessoa. — Eu me encontrei com ele, é verdade; mas o sujeito, não sei por que, desapareceu de súbito enquanto caminhávamos lado a lado, a cerca de um quilômetro do rio Takano-gawa.

Nem tinha acabado de falar, quando alguém gritou:

— Quer dizer que ele fugiu? — Era Miike Jurozaemon.

— Nada disso! — replicou Kojiro, sobrepondo sua voz ao tumulto que as palavras de Miike haviam provocado. — Ele desapareceu, mas juntando a sua atitude tranqüila, ao que ele me disse e a alguns detalhes mais, acredito que ele não fugiu. Deduzo que a minha presença tornava difícil pôr em prática o ardil que ele por certo armava, e por isso livrou-se de mim. Não se descuidem!

— Ardil? Que ardil seria esse?

Inúmeros rostos se aproximaram tentando não perder o sentido do que ali se dizia.

— Penso que existe um bando de simpatizantes da causa de Musashi ocultos em algum lugar, e que pretendem avançar até aqui todos juntos.

— É bem possível! — disse o velho Genza, com um gemido.

— Nesse caso, ele vai chegar muito em breve — observou Jurozaemon. Voltou-se no mesmo instante para os homens que haviam abandonado os esconderijos e os topos de árvores, admoestando:

— Voltem, voltem para os seus lugares. Se abrirmos a guarda e ele nos atacar quando estamos desprevenidos, começaremos sofrendo grandes baixas. Não sei quanta ajuda ele conseguiu arregimentar, mas deve ser algo inexpressivo. Não se desviem do plano traçado e matem-no de uma vez, sem cometer erros.

— É isso mesmo!

— Não se descuidem. A espera foi longa e tediosa.

— Voltem a seus postos!

— Muito cuidado!

Incentivando-se, os homens tornaram a ocultar-se em moitas, nos topos e nas sombras das árvores.

Kojiro voltou-se de súbito para o menino Genjiro, em pé como um boneco rente ao tronco do pinheiro.

— Está com sono? — perguntou.

— Não! — respondeu Genjiro, sacudindo a cabeça enfaticamente. Kojiro acariciou-lhe a cabeça.

— Está com frio, então? Seus lábios estão roxos. Você é o representante da casa Yoshioka, o comandante das tropas aqui reunidas: porte-se com bravura, entendeu? Agüente um pouco mais, porque logo terá uma bela diversão. Bem, acho que vou também procurar um bom posto de observação... — disse Kojiro, afastando-se a seguir.

 

Analisando os acontecimentos daquela manhã, chega-se à conclusão de que Musashi, depois de se apartar de Otsu no vale entre os montes Shiga e Uryu, tinha percebido que se atrasara um pouco, e estava mais ou menos àquela hora acelerando os passos para recuperar o tempo perdido.

O encontro sob o pinheiro ficara marcado para o último terço da hora do tigre. O sol ainda não teria surgido, uma vez que nessa época do ano o dia clareava somente depois da hora do coelho. O local escolhido ficava na confluência de três caminhos, na estrada para o monte Eizan: com o raiar do dia, haveria transeuntes nos arredores, e era por causa disso que os Yoshioka haviam marcado o duelo para tão cedo.

“Ah, aquilo deve ser o telhado do templo Kitayama”, pensou Musashi. Parou por instantes e contemplou as construções a seus pés, logo abaixo da estrada em que se encontrava. “Já estou bem perto!”, concluiu.

Dali até a encosta do pinheiro haveria apenas cerca de um quilômetro. O longo percurso já estava reduzido àquele trecho. Nesse meio tempo, a lua também caminhara em sua companhia e se ocultara talvez atrás da montanha. As nuvens brancas e pesadas que até então dormiam enrodilhadas no seio da cadeia dos Trinta e Seis Picos pouco a pouco se deslocavam, iniciando seu movimento ascendente, mostrando que, envoltos no silêncio da noite, céu e terra prosseguiam incansáveis em suas formidáveis tarefas.

E como primeira tarefa desse dia, a própria morte: sua vida se iria, mais volátil que um floco de nuvem desaparecendo no ar, pensou Musashi.

Vistas lá do alto, pelo prisma de uma nuvem, as mortes de uma borboleta e de um ser humano não teriam notáveis diferenças. Contemplados da terra pelo prisma humano, porém, um ser, na morte, tinha o poder de influenciar toda a humanidade; podia constituir tanto um bom como um mau registro na longa história da humanidade.

Quero uma morte exemplar, pensara Musashi até agora.

Como morrer de maneira digna?, era agora sua próxima preocupação, a mais importante de todas.

O burburinho de um riacho chegou-lhe aos ouvidos. Viera com tanta pressa que sentiu repentina sede. Agachou-se ao pé de uma rocha e bebeu. O gosto puro da água invadiu-lhe a boca. Por mais esse detalhe percebeu que estava espiritualmente tranqüilo, sentiu-se animar ao saber que a aproximação da morte não o intimidara.

Mas enquanto descansava e tomava fôlego, pareceu-lhe ouvir alguém chamando-o: era Otsu, ou seria Joutaro?

“É apenas impressão minha”, pensou ele. “Otsu jamais viria no meu encalço; ela me conhece bem demais.”

Contudo, a impressão de que a jovem lhe vinha no encalço, chamando-o desesperada, não se desfazia. No percurso até ali havia se voltado muitas vezes para verificar e, nesse momento, tornava a aguçar os ouvidos, tentando ouvir melhor.

Um atraso não só levaria o inimigo a desprezá-lo, como também representava uma desvantagem estratégica. Para lançar-se sozinho no meio de tantos inimigos, a única estratégia vantajosa seria aproveitar a escuridão que precede o raiar do dia, quando até a lua se esconde. A pressa tinha a ver com esse aspecto tático, mas talvez fosse também uma tentativa de livrar-se da imagem de Otsu e do chamado que não existia.

 

“O inimigo externo pode até ser derrotado, mas não há como derrotar o interno.”

O antigo provérbio veio-lhe subitamente à lembrança e o fez reagir com vigor:

— Maldição! Não posso me perder desse jeito! Estou sendo um idiota sentimental!

Tentou expulsar Otsu por completo de seu peito. Pois não acabara de dizer, havia pouco, que “o amor não encontra espaço algum na cabeça de um homem que avança ao encontro da morte?”

Apesar do que dissera, teria ele realmente conseguido varrer Otsu por completo de sua mente?

— Que fraqueza é essa? Musashi agora corria em linha reta.

Foi então que divisou à sua frente a faixa branca de uma estrada que partia do bambuzal a seus pés e mergulhava no meio do bosque, das plantações e das sendas que se espraiavam até o sopé da montanha distante.

Chegara bem perto, agora. Ali estava a estrada que levava à encosta do pinheiro. Acompanhou com o olhar a faixa branca e divisou, quase duzentos metros adiante, um ponto para onde dois outros caminhos convergiam. Ao mesmo tempo, conseguiu discernir também o pinheiro visado e sua copa alta de ramos espalhados em meio às finas partículas de névoa branca que lentamente se moviam no céu.

Com um brusco movimento, Musashi pôs um joelho em terra e se abaixou. Seu corpo se enrijeceu pronto para o combate, como se tudo que tinha à frente e às costas, assim como todas as árvores da montanha, representassem inimigos.

Movendo-se de rocha em rocha, de árvore em árvore como um ágil lagarto, acabou por atingir um ponto alto, bem em cima do pinheiro solitário.

— Lá estão eles!

Do ponto, conseguiu avistar contornos de pessoas agrupadas no caminho. Um grupo de quase dez pessoas rodeava o tronco do pinheiro e permanecia imóvel, lanças em pé.

Uma rajada súbita proveniente do topo das montanhas passou uivando por Musashi, lançando sobre ele gotas de sereno, e seguiu agitando a copa do pinheiro, varrendo o bambuzal, rumo ao sopé da montanha como um enorme vagalhão negro.

Envolto na névoa, o pinheiro da encosta estremecia, parecendo querer denunciar ao céu e à terra algo sinistro que ele pressentia.

Eram poucos os inimigos visíveis, mas Musashi sentia que a terra inteira, assim como toda a montanha, eram esconderijos. Já se sentia dentro do território onde a morte imperava. Até as costas de suas mãos estavam arrepiadas. Sua respiração se tornara profunda e calma, estava pronto para a luta até a ponta dos dedos dos pés, que se agarravam com maior força que os das mãos às fendas das rochas, enquanto subia, passo a passo.

Logo à frente havia um muro de pedra, restos talvez de um forte. Passando pela vertente de uma formação rochosa, Musashi alcançou esse local e viu, voltada para o pinheiro solitário, uma arcada torii de pedra. Altas árvores e um bosque circundavam o local, protegendo-o dos ventos.

— Ah, um santuário!

Correu até ele e se ajoelhou. Sem sequer saber a que deus orava, curvou-se profundamente com as duas mãos no chão. Nesse momento, ele não estava conseguindo conter o espírito agitado.

Dentro do escuro santuário uma pequena chama votiva tremulava fustigada pelo vento, prestes a se apagar, mas ainda assim se mantendo.

“Hachidai-jinja”, leu ele na fachada, ao erguer o olhar.

É isso!, pensou, sentindo de súbito que conseguira um valioso aliado.

A encorajadora certeza de que os deuses estavam com ele, no momento em que se preparava para lançar-se de cabeça no meio do inimigo! A certeza de que eles sempre estariam ao lado dos que agiam corretamente! Lembrou-se então que, antigamente, quando Oda Nobunaga se dirigia Okehazama[95]para a histórica batalha, ele também tinha-se curvado numa respeitosa reverência no templo de Atsuta. Encontrar este templo era um bom presságio!

Enxaguou a boca com a água sagrada; tornou a encher a boca de água e pulverizou os fios que revestiam o cabo da espada, assim como as tiras da sandália. Com movimentos ágeis, prendeu firmemente as mangas com uma tira de couro, e os cabelos das têmporas com uma faixa, passando-a em torno da testa. Com passos decididos, voltou uma vez mais para a frente do santuário e segurou a corda do sino votivo.

 

Segurou a corda e pensou: — Espere um pouco!

Ato contínuo, soltou-a.

Era uma corda antiga, tão envelhecida que tornava difícil distinguir as cores dos fios de algodão, entrelaçados. Simples corda que pendia do sino, parecendo convidar:

— Apele a mim! Confie em mim, vamos!

Musashi, entretanto, perguntara em seu íntimo:

— Que pretendia eu pedir agora, neste lugar?

No mesmo instante, retraíra a mão, sobressaltado.

“A esta altura, eu já devia estar em sintonia com o universo!”, pensou. “Por todos esses dias passados até hoje, não vinha eu me dizendo que a vida de um guerreiro começa a cada manhã, e que ele deve estar pronto para morrer antes de cada anoitecer? Não vim tentando aprender a morrer, o tempo todo?”, admoestou-se.

Não obstante, de um modo inesperado, no momento crucial, o adestramento ruía: ao avistar a luz votiva ele sentira a mesma alegria do viajante que encontra um ponto de luz no meio da noite, e a mão, esquecida de tudo o mais, tinha agarrado o cordão do sino, quase agitando-o em busca da ajuda dos deuses.

Um samurai nunca tem um aliado além dele próprio. A morte era sua aliada constante. Não era fácil aprender a morrer: o preparo para ir-se do mundo a qualquer momento de um modo tranqüilo, digno e viril, rápido como um breve suspiro, nunca era obtido por completo, por mais que se treinasse; mas Musashi andara até orgulhoso de si porque acreditara estar sentindo dentro dele mesmo esse preparo desde a noite anterior. Rígido como uma rocha, envergonhado e arrependido, pendeu a cabeça, sem conseguir conter as lágrimas de vexame.

“Cometi um erro!”, mortificava-se. “Pensei ter atingido um estágio de frieza total, mas dentro de mim ainda restava a vontade de viver. Otsu, minha irmã, e também a vontade de contar com algo ou alguém, como a do náufrago que se agarra a uma palha, foram elas que me levaram a esquecer tudo e a segurar a corda do sino votivo! Eu ainda pretendia contar com a ajuda divina, a esta altura!”

Lágrimas que não mostrara na frente de Otsu agora caíam copiosas dos olhos de Musashi, lamentando os anos de treino perdidos, o corpo e o espírito que se recusavam a aprender.

“Essa vontade de depender de algo me levou a rezar sem ao menos saber o quê. Meu ato foi inconsciente, e por isso mesmo, mais grave!” Por mais que se recriminasse, nada conseguia abrandar a vergonha. Tinha raiva de si próprio.

“Estúpido!”, maldizia-se, com pena dos longos dias de aprendizagem, tão infrutíferos.

Eleja era um corpo vazio! Que havia para desejar ou pedir? Antes ainda de entrar em guerra, já tinha começado a sofrer uma derrota interna. Aquilo jamais seria o coroamento de uma exemplar vida guerreira.

No mesmo instante, porém, Musashi sentiu uma onda de gratidão invadi-lo, e também a presença divina. Pois ele ainda não tinha entrado em combate, faltava um passo ainda para isso! O arrependimento trouxe a oportunidade de corrigir-se. E foram os deuses que lhe haviam oferecido essa oportunidade.

Acreditava em um deus, mas no caminho de um samurai não havia deuses a quem recorrer. Achava que o caminho era absoluto, além do divino. Um samurai não deve depender do poder divino, nem se orgulhar de ser humano. Não deve negar a existência da divindade, mas nela não deve se amparar; ao mesmo tempo, tem de ter a profunda compreensão de que ele próprio é um mísero ser, pequeno e frágil, apenas mais um fenômeno neste mundo efêmero.

Musashi deu um passo para trás e juntou as mãos à altura do peito. Nessas mãos postas havia agora algo diferente, inexistente naquelas que haviam agarrado a corda do sino.

Logo abandonou os limites do templo e se afastou correndo pela estreita senda em acentuado declive. No fim do declive encontrou a estrada que levava à encosta do pinheiro solitário.

 

O declive era acentuado a ponto de quase fazê-lo tombar para a frente. Na superfície da senda, provavelmente o caminho de uma cascata em dias de chuva pesada, pequenas pedras afloradas pela erosão se agarravam a frágeis torrões de terra.

Acompanhando a impetuosa descida de Musashi, pedregulhos e blocos de terra corriam em seus calcanhares, quebrando o silêncio.

Com uma súbita exclamação alarmada Musashi jogou-se para um lado, rolando para dentro da macega.

A relva, carregada de sereno, encharcou instantaneamente suas coxas e peito. Encolhido como uma lebre, observou com atenção a copa do pinheiro.

A distância dali até a árvore podia ser contada agora em dezenas de passos. E uma vez que a trifurcação se situava em terreno um pouco mais baixo, o jovem era capaz de contemplar com relativa facilidade a copa do pinheiro.

E nos ramos da árvore Musashi viu um vulto humano, oculto.

O homem, além de tudo, tinha uma arma de fogo na mão, um mosquete ao que parecia.

“Covardes!”, pensou, furioso, e em seguida: “Tudo isso para matar um homem?”

Não podia dizer, contudo, que não esperara por isso. Havia-se preparado intimamente na certeza de que seus adversários estariam prontos para tudo.

Os Yoshioka certamente imaginariam que ele não os enfrentaria sozinho. Nesse caso, seria mais inteligente da parte deles prepararem-se com algumas armas de longo alcance.

De sua posição atual, porém, conseguia divisar apenas a copa do pinheiro. Imaginar que todos os arqueiros e atiradores estariam escondidos nessa copa seria precipitar-se. Arqueiros poderiam estar escondidos atrás de rochas e em lugares baixos; atiradores podiam estar em qualquer lugar naquela mesma área, e conseguiriam atingir o alvo facilmente.

A única vantagem, para Musashi, era o fato de estarem, tanto o atirador sobre a árvore quanto os homens sob ela, todos voltados, sem exceção, para o outro lado, dando-lhe as costas. Três eram os caminhos que tinham para vigiar à frente deles, fazendo-os esquecer o único às suas costas.

Quase rastejando, Musashi avançou pouco a pouco. Curvou-se, de modo que a cabeça ficou em posição mais baixa que a empunhadura da própria espada, e avançou. Seus passos tornaram-se então visivelmente mais rápidos e, quando se aproximou do pinheiro, estava quase correndo. Cerca de 40 metros antes de alcançá-la, o homem em seu topo o localizou de súbito, e gritou:

— Ei! É Musashi!

Apesar de ouvir o berro partindo das alturas, Musashi continuou a correr uns bons 20 metros, mantendo a mesma postura.

Ele tinha calculado com segurança que naqueles preciosos segundos nenhuma bala viria em sua direção. Isso porque o homem na copa do pinheiro se posicionara a cavalo sobre um galho, e vigiava a trifurcação com o cano voltado para ela, não lhe sendo fácil mudar agora de posição rapidamente e lidar com a arma ao mesmo tempo, tolhido como estava por ramos e folhas.

— Quê?

— Onde!

As perguntas partiram simultâneas das bocas dos quase dez homens que cercavam a árvore, a cidadela daquele pequeno exército.

No segundo seguinte, o homem de cima do pinheiro berrou:

— Atrás!

O grito soou estridente, como se tivesse rasgado a garganta do homem. Àquela altura eleja havia reempunhado o mosquete e a boca do cano apontava certeiramente a cabeça de Musashi.

Uma fagulha da mecha varou por entre as finas agulhas do pinheiro e brilhou enquanto caía. O cotovelo de Musashi, naquela fração de segundo, descreveu um amplo movimento circular. A pedra, oculta na palma da mão, zumbiu e voou certeira, na direção do minúsculo ponto luminoso, do tamanho da cabeça de um incenso, e que indicava a mecha acesa. O ruído de um

galho partindo e uma exclamação assustada ecoaram juntas, e algo despencou do alto, do meio da névoa para o chão. Naturalmente, era um homem.

 

— Aaah!

— É Musashi!

— Musashi!

O tumulto era compreensível, uma vez que o ser humano não dispõe de olhos nas costas.

Compreensível também era a consternação dos homens que, espalhados pelas bocas das três sendas e dispostos a não deixar passar nem uma pulga, jamais teriam imaginado que Musashi lhes surgiria, sem qualquer aviso, bem no centro nevrálgico de suas defesas.

Eram quando muito dez os homens reunidos ali, mas estavam perturbados como se tivessem sido sacudidos por um terremoto, e batiam uns contra outros, bainha de espada chocando-se contra bainha de espada, os cabos das lanças que alguns reempunhavam quase derrubando os companheiros próximos. Alguns ainda saltavam de súbito para o lado sem necessidade, ou berravam os nomes de companheiros, sem sentido algum:

— Obashi!

— Miikeee!

Despreparados, ainda assim admoestavam os outros:

— Não se descuidem!

Furiosos, de suas bocas escapavam grunhidos e palavras sem sentido. E quando afinal conseguiram armar um arremedo de defesa, adotando uma precária formação semicircular, e apontaram as brilhantes pontas de lanças e espadas em direção a Musashi, este declarou:

— Conforme os termos do acordo, Musashi, filho único do goushi Miyamoto Munisai, originário da província de Mimasaka, aqui se apresenta para o duelo. Onde está Genjiro, o representante da casa Yoshioka? Não cometam os mesmos erros dos antecessores, os mestres Seijuro e Denshichiro! Em consideração à pouca idade desse representante, admito a presença de assistentes em número que lhes convenha. Mas eu, Musashi, aqui vim sozinho, como vêem. Deixo também à sua escolha decidir de me enfrentarem um a um, ou todos de uma vez! — Sua voz soava alta e clara.

A saudação, correta, também surpreendeu os homens. Ao mesmo tempo, embaraçou-os profundamente não estarem em condições de responder à altura. Mas, naquela situação, eles só conseguiriam responder se tivessem tranqüilidade para elaborá-la. Das bocas ressequidas, sem capacidade de produzir sequer saliva para umedecê-las, só podiam partir frases do tipo:

— Está atrasado, Musashi! — Ficou com medo?

Ainda assim, suas mentes haviam registrado muito bem as palavras de Musashi: “Aqui vim sozinho.” Em conseqüência, a coragem pareceu voltar. Mas veteranos como o velho Genza e Miike Jurozaemon, experientes, não confiavam nessas palavras, achando que se defrontavam com um ardil. Certos de que os partidários da causa de Musashi se ocultavam nas proximidades, seus olhos procuravam por eles, temerosos e irrequietos.

O silvo agudo de uma flecha partindo de um arco ecoou nesse momento. O som pareceu também ter-se originado na espada de Musashi, que cortou o ar no mesmo instante. Uma flecha, que lhe visava o rosto, foi ao chão partida em dois, caindo metade atrás do ombro, metade na ponta da espada.

Na fração de segundo que o olhar registrava a cena e ali permanecia, Musashi, os cabelos eriçados como a juba de um leão, alcançou num único salto o vulto que se ocultava atrás do tronco do pinheiro.

— Ai, tenho medo! — gritou agarrando-se à árvore o pequeno Genjiro, até então parado no mesmo lugar, obediente às instruções do pai.

Ao ouvir o grito, o velho Genza soltou um urro medonho e saltou, como se tivesse ele próprio sido partido em dois. Simultaneamente, a ponta da espada de Musashi descreveu no ar um risco prateado de cima para baixo e, de algum modo, raspou uma fina lâmina da casca da árvore. Junto com a casca, rolou por terra envolta em sangue a pequena cabeça do menino Genjiro, com seus cabelos aparados em franja.

 

A NÉVOA E O VENTO

A ação nada ficava a dever à de um yasha[96].

Em primeiro lugar, e ignorando tudo o mais, Musashi havia golpeado mortalmente o pequeno Genjiro, mostrando que esse tinha sido desde o início o seu objetivo.

O episódio extrapolava definições como ‘trágico’ ou ‘brutal’. Pois não era Genjiro apenas um menino — o inimigo, sem dúvida — insignificante?

Seu extermínio não diminuiria minimamente a potência inimiga. Pelo contrário, a dor da perda serviria, mais que tudo, para exasperar os membros da casa Yoshioka, levando-os à loucura, transformando-lhes a combatividade em furor.

O idoso Genza, notadamente, quase caindo em prantos, gritou agoniado:

— Aaah! Como se atreve?...

Seu rosto inteiro parecia esbravejar. Brandiu sobre a cabeça uma espada que parecia pesada demais para ele e, mantendo-a nessa posição, investiu contra Musashi como se pretendesse colidir com ele.

O pé direito de Musashi recuou cerca de 30 centímetros. Acompanhando o movimento do pé, seu corpo e ambos os braços giraram instantaneamente para a direita. Ato contínuo, a ponta da espada, que havia percorrido a linha do pescoço do menino Genjiro e acabava de retornar à posição original, tornou a saltar com um zumbido, agora para cima, e seguido de um vigoroso kiai, atingiu inicialmente o cotovelo do ancião — que vinha nesse instante descrevendo um movimento descendente — e depois o seu rosto.

Simultaneamente, alguém gemeu. Impossível saber-se quem, pois o homem que investia com uma lança às costas de Musashi também começou a cambalear curvado para frente, tombando em seguida junto com o idoso Genza, ambos sujos de sangue. Além deles, e atingido por um golpe tão rápido que ninguém conseguira acompanhar, uma quarta vítima — esta tinha provavelmente saltado bem à frente de Musashi e sido atingida em cheio no peito — caminhava ainda dois ou três passos, vertebras expostas, cabeça e braços balançando molemente, pernas carregando o corpo já sem vida.

— Às armas, às armas!

— Acudam! Acudam!

Os seis ou sete homens restantes esbravejavam desesperados, alertando os companheiros. Em vão: espalhados pelas três sendas, os demais continuavam a tocaiar a uma considerável distância da cidadela, totalmente alheios ao desastre que acabara de ocorrer havia apenas alguns segundos. Além de tudo, o vento sibilando nos pinheiros e no cerrado bambuzal abafava seus desesperados apelos, dispersando-os no ar.

Há centenas de anos — desde os períodos Hogen e Heiji (1156-1160), quando os remanescentes do derrotado exército Heike vagavam por essa área tentando transpor o lago Oumi[97], desde os tempos em que Shinran[98] e os monges guerreiros do monte Eizan transitavam por ali a caminho de Kyoto — o velho pinheiro viera gradualmente lançando suas raízes nessa encosta. Agora, despertada da letargia de centenas de anos pela inesperada chuva de sangue humano que encharcava a terra e lhe chegava às raízes, a velha árvore parecia estremecer de alegria, ou talvez gemer angustiada: a copa fremente no alto do grosso tronco agitava-se e atraía a névoa, vibrava ao vento e espargia minúsculas gotas geladas sobre homens e armas à sua sombra.

O cadáver e os três homens mortalmente feridos foram de pronto esquecidos no curto espaço de tempo necessário para respirar uma vez. No instante em que, sobressaltados, todos se refaziam, Musashi já se tinha colado ao robusto tronco do pinheiro. O tronco, tão grosso que somente dois homens de mãos dadas conseguiriam abarcá-lo, constituía excelente escudo para a sua retaguarda. Musashi, porém, não parecia considerar vantajoso permanecer muito tempo imobilizado nessa posição. Seu olhar, duro, brilhava acima do cabo da espada e atraía a atenção dos sete homens posicionados à sua frente enquanto tentava visualizar um novo e vantajoso posto.

Gemer das árvores, farfalhar da macega, sibilar do vento na mata: em meio aos sons que a brisa arrancava, uma voz distante começou a gritar nesse instante:

— Ao pinheiro da encosta! Homens, ao pinheiro da encosta!

O grito partira de Sasaki Kojiro, o homem em pé sobre uma elevação situada num ponto estratégico. Ele ali estivera sentado até esse momento, mas agora alertava os homens do clã Yoshioka espalhados pelas três sendas e ocultos em moitas e arbustos:

— Corram ao pinheiro! Às armas, às armas!

 

Um mosquete detonou, o forte estampido quase ensurdecendo os homens próximos.

Combinado aos gritos de Kojiro, que já haviam alertado uns poucos, o tiro despertou o. resto do bando.

— Deuses misericordiosos!

Os membros do clã Yoshioka, emboscados nas sombras do bambuzal, das árvores e das rochas, emergiram das três sendas como uma nuvem de pernilongos alvoroçados.

— Que... que é aquilo?

— Onde?!

— Na encruzilhada! Na encruzilhada!

— Musashi nos passou a perna!

Partindo de três direções diferentes, vinte e tantos homens convergiram desordenadamente para um mesmo ponto chocando-se uns contra os outros como correntes de um rio torrencial.

Ao espoucar do mosquete, Musashi moveu-se agilmente em torno do pinheiro, costas roçando o tronco da árvore. A bala atingiu o tronco com um baque, a poucos centímetros de seu rosto. Atraídos pelo movimento de Musashi, os sete homens, espadas e lanças em riste, deram também a volta à árvore, arrastando os pés lentamente.

Foi então que Musashi, sempre guardando-se em posição mediana, investiu de súbito contra o homem no extremo esquerdo, apontando a espada diretamente para os seus olhos. O visado era Kobayashi Kurando, um dos Dez Mais da academia Yoshioka. A carga, rápida e terrível, assustou Kurando, apesar de toda a sua experiência.

Um grito esganiçado partiu de sua boca. Inconscientemente, Kurando torceu o corpo para desviar-se do golpe, equilibrando-se num só pé. Musashi arremeteu pelo espaço aberto e continuou a correr.

Ao vê-lo pelas costas, o grupo lhe foi atrás:

— Maldito!

Procurando sofregamente alcançá-lo, cair sobre ele e retalhá-lo, o grupo perdeu a unidade de ação. Ao mesmo tempo, os homens negligenciaram a própria guarda.

De modo inesperado, o musculoso corpo de Musashi pareceu ricochetear, descrevendo um agressivo movimento pendular: sua espada golpeou lateralmente o homem que lhe vinha nos calcanhares, Hoike Jurozaemon. Este, porém, já havia percebido que Musashi ia tentar uma manobra qualquer e o vinha perseguindo com certa cautela. Em conseqüência, a espada de Musashi apenas roçou o peito de Hoike, que arqueando-se para trás, acabou por desviar-se do golpe..

Musashi, no entanto, não manejava a espada como a maioria dos esgrimistas. Quando a lâmina erra o alvo, o espadachim vê normalmente a força do golpe perder-se no espaço, o que o obriga a voltar à posição inicial e armar o golpe seguinte. No caso de Musashi, seu golpe não era tão lento, isto é, um movimento de sua espada não correspondia a um único golpe.

Musashi nunca tivera um mestre, fato que, sob o ponto de vista do aprendizado, representara boa dose de sofrimento e certo grau de prejuízo; visto sob um outro prisma, porém, não ter um mestre havia sido uma vantagem.

A vantagem advinha do fato de nunca ter sido forçado a moldar-se a um estilo pré-estabelecido, o do eventual mestre. Sua esgrima não tinha forma, regras ou princípios secretos. Seu estilo, sem nome ou padrão, nascia no ar, era o produto da sua imaginação e da capacidade de executar o imaginado.

No duelo sob o pinheiro da encosta, por exemplo, essa particularidade evidenciou-se no golpe que Musashi, fingindo fugir, desferiu inesperadamente contra Hoike. Este não desmereceu o título de veterano mais graduado da academia Yoshioka e conseguiu sem dúvida desviar-se do rápido golpe. E, fosse aquele um golpe ortodoxo estilo Kyoryu, Shinkage ou outro qualquer, o movimento de Hoike teria sido mais que suficiente para salvá-lo.

Mas o estilo único de Musashi não se parecia com nenhum dos que o veterano discípulo da academia Yoshioka havia visto até então. Seus golpes vinham invariavelmente acompanhados de um ricochete, um golpe de retorno. O movimento de sua espada cortando à direita já vinha carregado do impulso para o retorno imediato à esquerda. Observada atentamente, sua espada em movimento deixava um rastro luminoso que descrevia no ar, com incrível rapidez, duas agulhas de pinheiro presas num único pecíolo, ou seja, um V deitado. A espada corria para um lado para instantaneamente voltar e atingir o oponente no retorno.

Enquanto Hoike ainda gritava de espanto, a espada de Musashi ricocheteou, riscou no ar o V deitado — o desenho de um rabo de andorinha — e atingiu o rosto do adversário no retorno, abrindo-o como uma romã madura.

 

Dos Dez Mais, grupo que dizia representar o tradicional estilo Yoshioka, Kobayashi Kurando havia sido o primeiro a tombar. Agora, o segundo, Hoike Jurozaemon, espadachim de reconhecida habilidade, acabava de bater com o rosto no chão.

Com este, e incluindo o menino Genjiro — insignificante como oponente, mas um importante troféu — Musashi havia eliminado metade do grupo que o havia enfrentado inicialmente, espargindo em torno o sangue de todos eles.

Caso Musashi houvesse apontado a espada nesse instante na direção do perturbado grupo e atacado com todo o vigor aproveitando a brecha aberta pela eliminação de Hoike, teria com certeza conseguido livrar-se de muitos mais.

De modo totalmente incompreensível, porém, Musashi disparou em linha reta na direção de uma das três sendas.

Quando todos pensavam que fugia, Musashi retornava e os enfrentava; se voltavam a se guardar, certos de que atacaria, seu vulto, qual andorinha em vôo rasante, desaparecia instantaneamente de vista.

— Porco maldito!

A metade restante do grupo rilhou os dentes, frustrada.

— Musashi!

— Não fuja, covarde!

— Isso é sujeira!

— O duelo ainda não terminou! — urravam os homens enquanto o perseguiam.

Seus olhos brilhavam, prestes a lhes saltar das órbitas. A visão e o forte cheiro do sangue estonteavam-nos, embriagando-os tão efetivamente quanto se tivessem mergulhado num barril de saque. A visão do sangue, capaz de acentuar a frieza de um verdadeiro bravo, exerce efeito oposto sobre o covarde: perturba-o. Os homens que perseguiam Musashi tinham-se transformado em furiosos espíritos malignos saídos de um lago sangrento.

— Está seguindo para esse lado!

— Não o deixem fugir!

Deixando para trás os gritos dos homens, Musashi abandonou a encruzilhada em T, onde a refregra tinha-se iniciado, e disparou rumo à mais estreita das três sendas, a do Shugaku-in.

Por ela vinha subindo nesse momento um grupo de partidários dos Yoshio-ka, frenéticos por terem percebido que algo grave acabava de acontecer junto ao pinheiro da encosta. E mal correu 20 metros, Musashi se viu prestes a chocar-se com o líder desse grupo, tendo às costas os homens que o perseguiam desde o pinheiro da encosta.

Os dois grupos chocaram-se no meio da estreita senda que cortava um denso matagal, mas, por mais que procurassem, viram apenas os próprios companheiros.

— On... onde está ele?

— Por aqui não passou!

— Não é possível!

— Mas...

Enquanto discutiam, alguém gritou:

— Estou aqui!

Era Musashi. Saltando de trás de uma rocha na beira do caminho, estava de pé no meio da senda, no trecho em que a fileira dos perseguidores tinha acabado de passar havia poucos instantes.

A atitude desafiadora mostrava que já estava pronto para enfrentá-los uma vez mais. Os partidários dos Yoshioka, atônitos, começaram a se mover em sua direção. A estreita senda, porém, impediu-os de se manter unidos.

Levando-se em consideração que, para agir, um espadachim necessita de um espaço circular cujo centro é o próprio corpo, e cujo raio é o comprimento do braço acrescido ao da espada, dois aliados não podiam lutar lado a lado na estreita senda sem o risco de se ferir mutuamente. Piorando ainda mais a situação já de si difícil, o primeiro homem da coluna veio andando para trás, afastando-se de Musashi precipitadamente, enquanto os demais forcejavam por vir à frente. A vantagem numérica tinha-se transformado agora num empecilho.

 

Mas o poder de um grupo não deve nunca ser menosprezado. A veloz ação de Musashi e seu espírito aguerrido tinham num primeiro momento assustado os homens, fazendo-os recuar mesmo enquanto gritavam: “Não recuem! Não recuem!” Logo, porém, deram-se conta de que estavam em vantagem numérica e voltaram à carga.

— Deixem comigo! — gritaram dois ou três cabeças de fila, adiantando-se. O alarido que se elevou do grupo às costas deixou claro a desvantagem de Musashi.

Como um peixe nadando contra a correnteza, Musashi era levado a ceder terreno passo a passo, muito mais ocupado em proteger-se do que em atacar seus inimigos, ignorando até os mais afoitos que, por se terem posto ao alcance de sua espada, poderiam ser facilmente eliminados.

Naquela situação, não lhe adiantava eliminar mais quatro ou cinco homens, pois a força do grupo não se enfraqueceria; além do mais, um passo em falso seria um convite para a lança inimiga. Diferente do golpe desfechado por uma espada, que quase sempre propicia um tempo mínimo de preparo para a defesa, não há como preparar-se contra o de uma lança oculta no meio de uma turba.

Os discípulos da casa Yoshioka recuperaram o entusiasmo.

Ao notar que, passo a passo, Musashi recuava, seus oponentes avançaram, obrigando-o a recuar ainda mais. A essa altura, o rosto de Musashi já estava pálido, cadavérico. Qualquer um diria que ele não respirava. O menor obstáculo — a raiz de uma árvore ou uma corda que se enroscasse no pé — o levaria de cabeça ao chão. Mas ninguém quer aproximar-se de um homem a caminho da morte e partilhar o mesmo destino: embora os adversários gritassem e avançassem ameaçadoramente apontando-lhe espadas e lanças, os diversos golpes que lhe visavam peito, mãos e coxas deixavam de atingir o alvo por alguns centímetros.

Repentinamente, os homens gritaram aturdidos:

— Que raios?...

Pois lá estavam eles, um contingente numeroso demais para uma senda estreita, lutando contra um único adversário e atrapalhando-se mutuamente, atarantados porque uma vez mais o tinham perdido de vista.

Musashi desaparecera, é verdade, mas não porque tivesse fugido em disparada ou subido numa árvore: ele apenas tinha dado um passo para o lado e mergulhado no matagal que beirava o caminho.

A terra era macia no denso bosque de bambus onde Musashi se ocultou. Um lampejo dourado atingiu seu vulto que corria entre troncos de bambus, fugaz como a sombra de um pássaro deslizando num campo riscado por estrias verdes. O sol acabava de surgir nesse instante entre as montanhas, exibindo de súbito a borda do seu disco rubro.

— Pare, Musashi!

— Covarde!

— Não tem vergonha de nos dar as costas?

Os homens corriam como podiam entre os bambus. Musashi já tinha pulado o riacho além do bambuzal, saltado para cima de um barranco de quase 3 metros, e ali parou finalmente para respirar fundo algumas vezes.

Além do barranco, uma campina em suave aclive formava a base de uma montanha. E dali Musashi avistou o sol raiando.

Pela senda do pinheiro solitário a seus pés, vinham chegando cerca de cinco dezenas de discípulos desgarrados. Ao darem com o vulto em pé sobre o barranco, galgaram também o barranco aos gritos.

Um grupo quase três vezes maior que o inicial acabou por aglomerar-se em seguida na campina à base da montanha. Ali estava todo o clã Yoshioka. Eram tantos que, de mãos dadas, abarcariam a campina inteira. A distante figura de Musashi esperava em pé, guardando-se em posição mediana, a minúscula espada cintilando como uma agulha na claridade matinal.

 

Um cavalo de carga relinchou em algum lugar. Vilas e montanhas despertavam —já era hora do tráfego matutino começar.

Especialmente nessa área, o movimento começou cedo: monges madrugadores desciam ou subiam o monte Eizan, bonzos de tamancos altos costumavam passar empinados mal o dia clareava.

E esses bonzos, assim como lenhadores e lavradores, já começavam a se aglomerar:

— É um duelo!

— Onde? Onde?

A agitação dos homens contagiou os animais: na vila, galinhas e cavalos manifestavam-se ruidosamente.

Sobre o templo Hachidai-jinja, uma pequena multidão se concentrou para assistir. A névoa, em constante movimento, cobria os vultos como um manto branco, impedindo-os de ver o que se passava, mas logo se afastava, revelando todos os detalhes.

E no breve intervalo entre um movimento e outro da névoa, Musashi havia sofrido radical transformação: a faixa que lhe prendia os cabelos estava agora suja de sangue e suor. Sangue e suor empastavam também os cabelos, que se tinham aderido ao rosto, transformando-o numa macabra imagem do rei das trevas.

Musashi finalmente começava a ofegar. O peito, largo e robusto como uma armadura, agitava-se de forma visível. O hakama tinha-se rasgado, e havia um corte profundo na área da coxa. Pontos brancos que lembravam sementes de romã e um pedaço do osso apareciam no meio da carne rasgada.

Havia um corte também em seu antebraço, nada grave, aparentemente. O sangue, porém, lhe escorria pelo peito e tingia o obi na região onde mantinha a espada curta, deixando-o com um aspecto estriado como o de um morto-vivo recém-saído do túmulo, tão apavorante que obrigou muita gente a desviar o olhar.

Mais chocante ainda era a visão dos mortos e dos feridos pela espada de Musashi, estes últimos gemendo e rastejando nas proximidades. Quatro a cinco tinham tombado na hora, mal os quase 70 homens o haviam atacado.

Os feridos não jaziam todos num único lugar, mas a uma considerável distância uns dos outros. Esse detalhe mostrava que Musashi havia se movimentado sem cessar pela ampla campina e combatido em diversos pontos, não dando ao numeroso inimigo tempo para reunir suas forças.

Seus movimentos, sobretudo, tinham obedecido sempre a um princípio: nunca bater-se de frente contra o inimigo. Desse modo, toda vez que a formação inimiga abria-se em leque, Musashi evitava a todo custo enfrentar a fileira aberta, girava buscando as extremidades da formação e golpeava, rápido como um raio.

Em conseqüência, Musashi tinha sempre pela frente os homens em coluna, no mesmo tipo de formação que combatera havia pouco na estreita senda. Fossem portanto 70 ou cem os adversários, eram apenas os dois ou três da ponta de uma coluna que ele enfrentava de cada vez.

Mas apesar da impressionante agilidade com que se movia, comparável ao de um pássaro em vôo, Musashi falhava vez ou outra. Os Yoshioka, por seu lado, nem sempre se deixavam enganar. Momentos havia em que o bando todo se movia e conseguia encurralá-lo.

Esses eram os momentos de maior perigo para Musashi.

E era também então que, anulada a percepção de si próprio e de seus pensamentos, sua habilidade aflorava poderosa, incandescente.

Suas mãos, sem que soubesse precisar exatamente desde quando, empunhavam cada qual uma espada. A longa na mão direita estava suja de sangue até o cabo. A lâmina da espada curta, na mão esquerda, estava limpa ainda, levemente embaçada por uma camada de óleo, mas parecia pronta para retalhar quem dela se aproximasse.

Naquele instante, porém, Musashi ainda não havia se dado conta de que lutava com as duas espadas.

 

O movimento lembrava a dança do mar e da andorinha.

O mar lança a onda tentando alcançar a andorinha em vôo rasante, mas a andorinha resvala por ela e voa para longe, agilmente.

Os homens do clã Yoshioka movimentavam-se sem cessar, mas pareciam engasgar, parando breves segundos cada vez que viam seus companheiros desabando como troncos sob a ação das duas espadas, arrastavam os pés, apenas tentando envolver Musashi num círculo.

E essas paradas davam a Musashi tempo para respirar e recompor-se.

A mão esquerda empunhava a espada curta e apontava diretamente para os olhos de seus adversários. A mão direita, empunhando a longa, abria-se lateralmente — ombros, braços e lâmina compondo naturalmente uma linha horizontal, quase paralela ao chão — à espera, fora do campo visual inimigo.

Juntando-se o comprimento das duas espadas ao dos dois braços estendidos, Musashi dispunha de uma considerável área de ação. E no centro dela estavam seus fulgurantes olhos.

Se o adversário evitava uma aproximação frontal e lhe chegava pela direita, Musashi movia-se imediatamente para a direita, aproximando-se e inibindo a ação inimiga. Se, ao contrário, ele se aproximava pela esquerda, a espada à esquerda instantaneamente se estendia nessa direção, prendendo o adversário entre as duas espadas.

A ponta da espada curta que Musashi empunhava na mão esquerda parecia dotada de incrível força magnética. O adversário que se punha ao alcance dela parecia simplesmente hipnotizado, perdia a capacidade de recuar ou desviar-se. Na fração de segundo seguinte, a espada longa na mão direita vinha sibilando na direção do inimigo e no mesmo instante mais uma bomba de sangue ali explodia.

Muito tempo depois, esse estilo de luta passou a ser conhecido como “técnica Nitoryu contra vários adversários”. Naquele instante, porém, Musashi nem sequer tinha noção do que fazia. Anormalmente solicitada, a habilidade latente da mão esquerda havia despertado. Em estado de alheamento, abstraído de si e do mundo, Musashi apenas fazia pleno uso da sua mão esquerda.

No entanto, Musashi era ainda um principiante, não tivera tempo para tecer teorias sobre estilos e formas até então. Em parte por obra do destino, ele tinha percorrido sem vacilar um único caminho: o da prática. Seu conhecimento advinha da prática. Teorizava posteriormente, em seus momentos de repouso.

Mas os Dez Mais da academia Yoshioka — e com eles todos os principiantes que saltitavam em torno deles — tinham percorrido o caminho inverso: todos sem exceção haviam memorizado inicialmente a teoria do estilo Kyohachiryu, e agora guardavam-se exibindo os maneirismos do estilo. No entanto, entre eles e Musashi — que nunca tivera um mestre, que estudara na perigosa arena da natureza e na encruzilhada da vida e da morte, sempre pronto a dar a vida para descobrir o sentido da esgrima e aperfeiçoar-se nesse caminho — existiam diferenças fundamentais, tanto no aspecto postural quanto disciplinar. Aos olhos do clã Yoshioka, Musashi — com sua palidez cadavérica, respiração entrecortada, corpo lavado em sangue, mas ainda em pé, indomável e perigoso como um titã, duas espadas em riste prontas a envolver em névoa rubra quem delas se aproximasse — começou a adquirir um aspecto enigmático. Estonteados, olhos embaçados pelo suor, desorientados ante a visão do sangue dos companheiros, Musashi tornava-se gradualmente uma imagem imprecisa, a tal ponto que, cansados e impacientes, lhes pareceu finalmente estarem lutando contra um espírito rubro.

 

— Fuuuja!

— Você aí, lutando sozinho: fuuja!

— Vá-se embora! Dê um jeito de fugir!

Os gritos partiam das montanhas, das árvores, das nuvens.

Eram os transeuntes e os lavradores que contemplavam a cena e gritavam involuntariamente, torcendo à distância por Musashi, preso no interior de um perigoso cerco.

Musashi porém não ouviria os gritos, mesmo que viessem acompanhados de trovoada, ou que a terra se partisse em dois.

Seu corpo se movia obedecendo apenas ao comando do espírito. Aquele ser que todos viam era ilusório.

Uma aterrorizante energia consumia sua alma e seu corpo. Musashi deixara de existir fisicamente, era apenas uma vida, uma chama.

Foi então que, repentinamente, um rugido estrondoso ecoou pelos 36 picos da cadeia oriental Higashiyama. O alarido tinha partido dos espectadores distantes e também dos homens do clã Yoshioka, que saltavam e berravam simultaneamente. Musashi acabara de disparar como um javali na direção da vila.

Obviamente, seus perseguidores não ficaram a contemplar de braços cruzados.

— Atrás dele!

O pequeno exército enxameou em torno de Musashi, alcançou-o e no mesmo instante cinco ou seis lhe saltaram em cima, gritando e insultando.

Musashi abaixou-se e moveu lateralmente a espada longa na mão direita, varrendo à altura das canelas dos homens mais próximos. Um deles descarregou a lança sobre o vulto curvado de Musashi, esbravejando:

— Verme maldito!

Rechaçada, a lança voou longe enquanto Musashi se aprumava e os enfrentava novamente com tamanha ferocidade que cada fio de seus cabelos desgrenhados pareciam dardos prestes a lançar-se contra o inimigo. Entre os lábios repuxados num esgar medonho, os dentes cerrados surgiam parecendo prontos a saltar e a morder. Direita e esquerda, direita e esquerda, as espadas tiniam alternadamente, explodindo em chamas, resvalando como água.

—Aaahhh! Ele conseguiu fugir! — rugiu maravilhada a multidão distante, zombando dos atarantados homens do clã Yoshioka. No instante seguinte, o vulto de Musashi já saltava e caía numa verdejante plantação de trigo, no extremo ocidental da campina.

Vozes logo o perseguiram:

— Pare!

— Volte aqui!

Parte do grupo o seguiu impetuosamente, saltando também para a plantação. Ato contínuo, dois berros medonhos ecoaram: Musashi emboscava colado ao barranco e golpeara os homens que haviam imprudentemente saltado depois dele.

Duas lanças arremessadas de cima do barranco zumbiram e cravaram-se profundamente na macia terra da plantação. Mas o vulto de Musashi já ia longe, correndo e saltando como uma bola de barro, interpondo instantaneamente uma distância de quase dois quilômetros entre si e seus perseguidores.

— Foi para a vila!

— Fugiu para a estrada! — insistiam numerosas vozes.

Mas Musashi tinha corrido à beira da plantação e se refugiado no seio da montanha, de onde voltava-se agora vez ou outra para contemplar os homens que, separados em grupos, continuavam a procurar por ele.

E foi então que o sol surgiu como todos os dias, seus raios varrendo a superfície da terra e iluminando até as raízes das plantas.



 

[1] Naniwae: antiga denominação de área da baía de Osaka, próxima à cidade do mesmo nome.

[2] À época, os castelos Fushimi e Osaka simbolizavam os dois pólos de poder do Japão, o primeiro representado por Tokugawa, no poder desde a vitória da coalizão oriental na batalha de Sekigahara, e o segundo, a casa Toyotomi, derrotada por Tokugawa.

[3] Tozama daimyo e Fuzama daimyo: depois da batalha de Sekigahara e da queda do castelo de Osaka (1615), Tokugawa Ieyasu compôs feudos à sua vontade, e os concedeu a: fudai daimyo ou vassalos hereditários da família Tokugawa, que inicialmente somavam 145; shinpan, ou daimyo ligados à casa Tokugawa por laços de família, dos quais havia 23; e 98 tozama daimyo, ou suseranos fora desse círculo de vassalos e parentes, e que se haviam submetido ao governo Tokugawa após a batalha de Sekigahara. No grupo dos shinpan, três casas — Owari, Mito e Kii — tinham a incumbência de prover um herdeiro, caso o xogum não tivesse filhos. (Enciclopédia Britânica)

[4] No original, shihiki-uta.

[5] Caixa de remédios: (jap. inrou) três a cinco minúsculas caixas retangulares achatadas e sobrepostas, finamente trabalhadas, o conjunto sendo preso ao obi por barbantes. Era originariamente usada para guardar carimbos e almofadas de tinta. A partir da era Edo (1600-1867), passou a ser usada para guardar remédios.

[6] Gyokuyo (ou Gyokuyo wakashu): coletânea de poemas em 20 volumes, reunida por ordem imperial em 1312 e completada no ano seguinte.

[7] Estes personagens, em sua maioria comandantes militares, participaram da coalizão ocidental, derrotada por Ieyasu na batalha de Sekigahara. Terminada a batalha, passaram a viver clandestinamente. Partidários de Hideyori, foram derrotados por Tokugawa Ieyasu e morreram na batalha que culminou com a queda do castelo de Osaka, em 1615.

[8] Ishida Mitsunari: um dos cinco magistrados e protegido de Toyotomi Hideyoshi, destacou-se nas áreas econômica e financeira. No confronto das coalizões ocidentais e orientais, a primeira, de partidários da casa Toyotomi, e a segunda, comandada por Tokugawa Ieyasu, ergueu Hideyori (o herdeiro da casa Toyotomi) em seus braços e levantou um exército de fiéis. Derrotado na batalha de Sekigahara, foi decapitado em Kyoto (1560-1600).

[9] No original, Bikuni Yokocho. A palavra bikuni (bhiksuni) designa monjas budistas. Durante o período Kamakura e Muromachi, significou também certa classe de mulheres artistas que peregrinavam vestindo hábitos de monja. Com o tempo, tais artistas passaram a fixar residência e, no período Edo, bikuni passou também a indicar prostitutas não licenciadas que comercializavam o corpo vestidas de monjas.

[10] Cada koku corresponde a 180 1.

[11] As monjas budistas (bikuni) usavam cabelos curtos e coifas.

[12] Heike (ou Casa Taira): poderosa família de linhagem imperial. Sua história, desde o auge até a queda e ruína tqtal, é contada em famosa crônica militar intitulada Heike Monogatarí (a primeira versão foi escrita entre 1219 e 1243, aproximadamente). A relação cármica de causa e efeito, bem como a noção de impermanência das coisas terrenas pregada pela religião budista, são temas recorrentes nessa obra, escrita em forma de versos

[13] Torii: arcada, à entrada de templos xintoístas.

[14] Awa: antiga denominação da atual província de Tokushima, na ilha de Shikoku.

[15] Sakai: bairro no lado ocidental da cidade de Osaka, situado na margem oriental da bafa de Osaka, adjacente à foz do rio Yamato. Durante o período Muromachi e visando à autoproteção, mercadores fundaram essa comunidade, transformando-a em colônia independente que eles próprios governavam e cujos limites, por motivos de segurança, eram defendidos por fossos. À época, a cidade de Sakai prosperava como parceira da China no comércio exterior, seu porto desempenhando importante papel.

[16] Ruson Sukezaemon: originário da cidade comercial de Sakai. Em 1593 atravessou o oceano e chegou à ilha de Luzon, nas Filipinas, de onde voltou com mercadorias integralmente compradas por Toyotomi Hideyoshi, obtendo fabuloso lucro nessa transação.

[17] Período Momoyama: em uma das diversas maneiras de se classificar os períodos históricos japoneses, corresponde à segunda metade do século XVI, mais especificamente aos quase vinte anos do domínio de Toyotomi Hideyoshi, o Taiko. Caracterizou-se pela expansão, na área da construção, de luxuosos palácios, mansões e templos, bem como pelas vistosas decorações de suas paredes e divisórias internas. Digno de atenção foi também o progresso na área artística, destacando-se a pintura, com ênfase no retrato do cotidiano do povo, e o artesanato em geral (cerâmica, laça, técnicas de tingimento e tecelagem).

[18] Tosa: antiga denominação da província de Kouchi, na ilha de Shikoku.

[19] O costume aqui citado refere-se ao genbuku, ou ainda genpuku, cerimônia com que se indicava e festejava a maioridade de um adolescente, atingida entre 11 e 17 anos. Na ocasião, o jovem mudava o estilo da indumentária, que passava a ter cor e padrão sóbrios; dependendo da época e do lugar, os cabelos, desde a testa e uma boa área do topo da cabeça, eram raspados, sendo os da parte posterior enfeixados e torcidos para a frente, compondo os chamados mage, ou topetes. Na classe dos bushi, o jovem passava a usar um pequeno chapéu (koburi) sobre a cabeça, abandonava seu nome de infância, sendo-lhe indicado um novo nome e, algumas vezes, um posto ou posição.

[20] No original, jintozukuri.

[21] Aproximadamente 91,5 centímetros.

[22] Suo: denominação antiga da região oriental da atual província de Yamaguchi.

[23] Nagamitsu: Renomado forjador dos últimos anos do período Kamakura. Autor da famosa espada Daihannya Nagamitsu, de estimação do xogum Ashikaga. Existiram diversas gerações de forjadores com o mesmo nome. O termo “varal”, usado a seguir para designar esta espada, corresponde ao termo japonês monohoshizao, longa vara de bambu usada para secar roupas, equivalente ao nosso varal.

[24] Joushu: antiga denominação da atual província de Gunma.

[25] Data que corresponde ao dia 21 de março.

[26] Mikawa: antiga denominação da região oriental da província de Aichi

[27] Ikkyu: famoso monge superior do templo Daitokuji de Kyoto. Compositor de poemas cômicos e satíricos, era também um bom pintor. Sua vida foi contada em romances e peças teatrais (1394-1481).

[28] Kotatsu: pequeno fogareiro portátil sobre o qual é estendido um cobertor. Em noites frias, os japoneses costumam sentar-se em torno e se aquecer, mergulhando mãos e pés debaixo da coberta.

[29] Shin Chokusen-shu: uma das 21 coletâneas da coleção Chokusen Waka-shu, composta de 20 volumes. Mandada compilar por ordem do imperador Go Horikawa, seus poemas foram selecionados por Fujiwara Sadaie e publicados em 1235.

[30] Taira-no-Atsumori (1169-1184): filho de Taira-no-Tsunemori, membro da casa Heike. A cena referida faz parte de uma das batalhas em que, em busca de supremacia, se envolveram duas grandes casas, Heike e Genke, na era Heian, episódio já citado anteriormente pelo autor.

[31] Oumi: antiga denominação da província de Shiga.

[32] Mino: antiga denominação da área meridional da província de Gifu.

[33] Owari: antiga denominação da região ocidental da província de Aichi

[34] No original, kinuta: bancada de pedra ou madeira sobre a qual tecidos grosseiramente urdidos eram malhados com o intuito de dar-lhes maior maciez e brilho. A tarefa era realizada por mulheres nas longas noites de outono e inverno.

[35] Geku e Naiku: dois templos que compõem o grande templo xintoísta Daijingu de Ise, o mausoléu ancestral da família imperial situado na província de Mie.

 

[36] Hogen Monogatari: Romance militar em três volumes do início do período Kamakura (1185-1333). Sua autoria é atribuída ao escritor desconhecido do romance Heiji Monogatari, Em estilo que mescla os antigos estilos literários chineses e japoneses, relata a revolta de Hogen e tem como personagem central Minamoto-no-Tametomo (1139-1170).

[37] Taiheiki: O romance militar em quarenta volumes, cuja autoria é atribuída a Kojima Hoseki, foi escrito em etapas entre os anos 1368 e 1381. Em estilo literário misto (chinês e japonês), descreve numa linguagem rica as batalhas ocorridas entre os anos 1336 e 1392

[38] A reforma de templos xintoístas se processa a cada vinte anos da seguinte maneira: um novo templo idêntico ao antigo é construído em local próximo, o corpo do santuário é transferido com festas comemorativas para a nova edificação e, posteriormente, o antigo é desmontado. Vinte anos depois o processo se repete com inversão de locais.

[39] Estilo Tosa: surgido na idade média, é até hoje considerado um dos mais representativos da pintura japonesa.

[40] Ouminato: denominação antiga de área a nordeste da província de Aomori, parte da atual cidade de Mutsushi.

[41] Goshu ou Oumi: antiga denominação da atual província de Shiga.

[42] Son Goku: macaco dotado de poderes extraordinários — um dos quais o de controlar a nuvem Kinto-un, sobre a qual cavalga —, é o personagem principal de uma longa história chinesa, Seiyuki. Castigado por perturbar a ordem celeste, Son Goku obteve o perdão servindo ao monge Genjo Sanzou, auxiliando-o no árduo processo da auto-iluminação.

[43] Rashomon: antigo e famoso portal de entrada da cidade de Kyoto que o tempo se encarregou de arruinar. No período Heian, transformou-se em abrigo de ladrões e ponto preferido para abandonar cadáveres.

[44] Oushu: engloba as atuais províncias de Fukushima, Miyashiro, Iwate, Aomori e parte da província de Akita.

[45] Komatsu-dono: nome pelo qual foi também conhecido o comandante militar Taira-no-Shigemori (1138-1179).

[46] Amida: adaptação japonesa do sânscrito amitabha, “luz ilimitada”, ou amitayus, “vida infinita”. Amida é o mais extensamente venerado dos Budas não históricos. Na verdade, nas seitas da Terra Pura (Jodo), ele sobrepuja tanto Birushana, quanto o historio Buda Shakyamuni. (Philip Kapleau: Os Três Pilares do Zen, Ed. Itatiaia).

[47] No original, Shikizokuzeku — expressão budista que significa: ‘toda matéria é nada’. A matéria pode assumir infinitas formas, mas qual é a sua verdadeira natureza? Nada.

[48] Hounen Shonin: fundador da seita Jodo.

[49] O dia era dividido em 12 partes iguais, nomeadas de acordo com os signos chineses, cada hora-signo por sua vez sendo dividida em três partes. A hora do coelho abrangia aproximadamente das cinco às sete horas da manhã, o último terço correspondendo aproximadamente das 6:15 h às 7 h.

[50] 108 toques de sino: (hyakuhachi no kane): os templos budistas tocam 108 vezes o sino ao amanhecer e ao anoitecer (simplificados para 18 vezes no cotidiano) para despertar os seres humanos das 108 paixões carnais. O número 108 adviria, segundo outra explicação, da harmonia ou soma dos números que representam um ano, ou seja, da soma de 12, dos meses, de 24, dos ki e de 72, dos ko, estes dois últimos do antigo calendário solar chinês, em que S dias correpondiam a um ko; três ko a um ki; seis ko (ou dois ki) a um mês

[51] Mochi: bolo feito de arroz especial cozido e sovado.

[52] Kishimojin: filha de uma raksha da índia. Diz-se que deu à luz mil (ou dez mil!) filhos. Como castigo por ter raptado e comido uma criança que não era sua, Buda submeteu-a ao sofrimento ocultando-lhe o filho caçula, o preferido. Depois disso, Kishimojin transformou-se em deusa protetora do Budismo, atendendo aos rogos dos que sofrem em decorrência de problemas envolvendo seus filhos.

[53] Hora do coelho: compreendia aproximadamente o período das cinco às sete horas da manhã. As 24 horas de um dia, por este sistema, eram divididas em doze partes e a cada uma delas era atribuído um signo do calendário chinês, havendo portanto a hora do rato, do boi, tigre, coelho, dragão, cobra, cavalo, carneiro, macaco, ave, cachorro e javali. Cada hora era ainda dividida em três partes, para melhor aproximação.

[54] Segunda metade da hora do coelho: período compreendido entre as seis e sete horas da manhã.

[55] Hon-ami Koetsu (1558-1637): famoso artista plástico do início do período Edo. Cidadão de Kyoto, era calígrafo, pintor e também ceramista.

[56] Makie: técnica artesanal japonesa das mais representativas surgida no período Nara (710-784), consiste em desenhar espalhando ouro, prata ou corantes em pó sobre uma superfície laqueada.

[57] No original, fukusa: retalho de crepe quadrangular medindo 27 x 29 cm, usado durante a cerimônia do chá para limpar os utensílios ou como descanso de chávenas.

[58] Período Higashiyama: uma das diversas maneiras de se referir a determinados anos do período Muromachi, quando o país vivia sob o domínio do xogunato Ashikaga. A denominação se deve ao fato de haver o então xogum Ashikaga transferido (1483) sua residência para o monte Higashiyama (atual templo Ginkakuji), passando a ser conhecido como o Senhor de Higashiyama. Neste período historicamente marcante na cultura do país, floresceram diversas artes como o teatro nô, o chá, o arranjo floral, o paisagismo na formação de jardins, etc.

[59] Soshu: antiga denominação de boa parte da atual província de Kanagawa.

[60] No original, rokubu: abreviatura de rokujurokubu, ou 66 lugares, literalmente. Monge budista andarilho que peregrinava pelo país com o objetivo de depositar uma cópia do Sutra do Lotus Sagrado em 66 locais santos. O hábito tem início no final do período Kamakura. A partir do período Edo, leigos — homens e mulheres estranhos ao mundo religioso — passaram a realizar o mesmo tipo de peregrinação vestidos de modo semelhante ao dos monges, com o objetivo de rezar pela própria felicidade no outro mundo. Tocando gongos e guizos, ou ainda carregando às costas santuários em miniatura, esses fiéis andavam mendigando de casa em casa.

[61] Trinta e sete: número sagrado do Budismo. São 37 os tipos de prática ascética que conduzem à iluminação.

[62] No original, yatate: pequeno cilindro antigamente transportado à cintura, contendo um pote de tinta sumi e pincel.

[63] Ganryu - o nome de guerra de Sasaki Kojiro era inicialmente formado por dois ideogramas: Gan (margem) e ryu (chorão), uma evidente menção aos chorões próximos à ponte Kintai, em sua terra de Iwakuni, onde se adestrava abatendo andorinhas. A segunda grafia emprega outros dois ideogramas de mesma leitura, mas de diferente significado: gan (rochedo) e ryu (estilo), ou seja, um estilo sólido, invencível como um rochedo.

 

[64] O poema aqui declamado é trecho de uma peça de teatro nô.

[65] Bunji: período em que governou o Imperador Gotoba (1185-1190).

[66] Senshu: antiga denominação de certa área ao norte da atual cidade de Osaka.

[67] Jissoin: templo único construído em 1229, posteriormente transferido para o bairro de Iwakura, em Kyoto.

[68] Revolta de Ounin: (1467-1477): assim chamada por ter-se iniciado no período Ounin (1467-1469), envolveu duas poderosas casas de administradores da casa xogunal Ashikaga — Hatakeyama e Konoe — em torno da sucessão. A revolta, liderada de um lado pelo general Hosokawa Katsumoto da coalizão oriental, e de outro por Yamana Souzen da coalizão ocidental, teve como palco a cidade de Kyoto e envolveu numerosos daimyo em ambos os lados. Kyoto foi completamente tomada pela guerra e o poder bakufu ruiu. O episódio foi um divisor de águas, tanto em termos sociais como culturais.

[69] Ryoukai (ch. Ling-k’ai): renomado mestre da pintura chinesa do início do século XIII, é conhecido pelo requinte e precisão dos traços de suas paisagens e figuras santas, assim como pela economia de traços de suas figuras humanas. Exerceu forte influência sobre a pintura sumiê japonesa.

[70] No original, renga: poemas compostos pelo encadeamento de novos versos a outros, já existentes.

[71] No original, kemari: diversão apreciada pela nobreza desses tempos, era um jogo em que pequenos grupos de nobres calçando sapatos de couro chutavam bolas feitas de couro de cervos. A bola devia ultrapassar a altura dos galhos mais baixos de árvores plantadas nos quatro cantos de um quadrilátero de 13,5 m de lado, sem nunca bater no chão. Os tipos de árvores eram: cerejeira a nordeste, chorão a sudeste, bordo a sudoeste e pinheiro a noroeste. O jogo tornou-se bastante popular a partir do fim do período Heian, ou seja, do ano 1100 d.C, aproximadamente.

[72] No original, shoshidai: cargo criado no xogunato Tokugawa, era exercido somente na cidade de Kyoto e destinado a atender todos os problemas relacionados ao palácio imperial e à nobreza, a supervisionar as delegacias regionais de Kyoto, Nara e Fushimi, a dar seguimento aos processos judiciais das redondezas, estando também os templos sob sua jurisdição.

[73] Atual Okinawa.

[74] Ryutatsu-bushi: estilo musical em voga no início do período Edo. Iniciado pelo monge Ryutatsu (1527-1611) da seita Nichiren, foi a base do kouta.

[75] Kamigata-uta: canções acompanhadas de shamisen, em voga nas áreas de Kyoto e Osaka, em contraste com as Edo-uta, em voga na área de Edo.

[76] Yoshino-dayu (1606-1643): no início do período Edo existiram no Japão mais de dez cortesãs finas com o mesmo nome. A que surge neste romance é a segunda da geração, seu nome verdadeiro tendo sido Matsuda Noriko. Filha de um bushi da região de Kyushu, foi levada ao bairro alegre Yanagimachi aos oito anos, e promovida de aprendiz a tayu (cortesã fina) aos 14. Extremamente prendada, destacou-se por seus conhecimentos de poesia, bailado, caligrafia, chá, go (xadrez), gamão, aromaterapia, e de diversas outras atividades culturais e artísticas. Sua beleza e graça tornou-a famosa entre poderosos daimyo, nobres e plutocratas da época. Haiya Shoeki e Konoe Nobutada (o quarto filho do imperador Goyozei) disputaram fervorosamente seus favores. Yoshino-dayu porém entregou-se a Shoeki, um jovem mercador à época com 22 anos de idade, quatro anos mais novo que ela. Com a morte da primeira mulher, Shoeki fez de Yoshino sua esposa legítima. Yoshino morreu nova, aos 38 anos de idade. Inconformado com a morte da mulher, diz-se que Shoeki moeu seus ossos e os ingeriu, mostrando quão profundo era o seu amor. E tinha sido esse amor que havia levado Yoshino-dayu a preferir o filho de um mercador de cinzas, em detrimento de um membro da influente família Konoe.

[77] Sekiheki (ou ‘Red cliff): área à beira do Yangtze. Su Tung P’o (ou Su Shih) (1036-1101), um dos maiores poetas, pintores e mestres da prosa da China, em suas visitas ao local, escreveu um longo poema em forma fu, ao qual provavelmente se refere o autor.

[78] Kobori Enshu (1579-1647): mestre da arte do chá, orientou Tokugawa Iemitsu nos caminhos dessa arte, mas destacou-se também nos campos da poesia, ikebana, arquitetura e composição de jardins.

[79] No original, kamuro - ou ainda kaburo: meninas de cerca de dez anos de idade que serviam às cortesãs e se adestravam no mesmo caminho.

[80] Yoshino, como se fazia chamar profissionalmente a cortesã, é ao mesmo tempo a denominação de uma localidade ao sul da província de Nara, famosa por suas cerejeiras. O autor dos versos fala naturalmente da cortesã quando menciona a muda de uma planta dessa região, recurso poético empregado com freqüência em composições do tipo waka.

[81] A classe especial de nobres que servia ao Palácio Imperial era chamada kumo-no-ue-bito, ou seja, “povo das nuvens”, por sua condição intocável, inacessível para o comum dos mortais.

[82] Taro-kaja: nome usualmente dado ao personagem que encarna o servo de um samurai ou daimyo, em peças do teatro kyogen ou nô.

[83] Jogo em que se usam duas metades de conchas, uma virada para cima e outra para baixo. As faces internas das conchas são pintadas, ou têm poemas famosos nelas escritos. Os participantes do jogo devem desvirar as metades voltadas para baixo e tentar acertar o par da metade aberta que lhe for destinada.

[84] Janken: jogo da tesoura, pedra e papel, também conhecido no Brasil.

[85] As grandes cortesãs, à época, eram atendidas por um séquito de prostitutas denominadas hikibune.

[86] Izumo-no-Okuni: introdutora do nenbutsu-mai em Kyoto, criou posteriormente o teatro kabuki. Seu nome torna-se conhecido a partir de 1607 (ano XII do período Keicho).

[87] Tai Bunkou: T’sai Weng gong.

[88] Biwa: instrumento musical semelhante ao alaúde, comumente tocado na China, Coréia e Japão. Seu corpo achatado lembra o formato de uma berinjela, e mede entre 60 a 106 cm. Originário da Pérsia e da Arábia, foi introduzido no Japão durante o período Nara (710-784).

[89] Terceira hora do boi, ou ushimitsu: a hora do boi é dividida em três partes, a terceira correspondendo aproximadamente às 2:00 h da madrugada.

[90] Hakurakuten: ou ainda Hakukyou’i: leitura japonesa do nome Po Chü-i (772-846): poeta chinês do período T’ang, autor de suaves baladas e versos líricos.

[91] Denominação diversa da província de Izumi.

[92] Hora do tigre: entre três e cinco horas da manhã. O terço final da hora do tigre corresponde ao período entre 4:00 e 5:00 horas.

[93] Hora do boi: entre uma e três horas da madrugada.

[94] Sakaki: árvore sagrada, usada em rituais religiosos do xintoísmo.

[95] Batalha de Okehazama: histórica batalha ocorrida em 1560, quando Oda Nobunaga derrotou Imagawa Yoshimoto.

[96] Yasha: na mitologia hindu, yaksa, espírito maligno que habita matas e florestas, era conhecido por molestar e ferir seres humanos. Também adorado por proteger riquezas, foi posteriormente integrado ao Budismo.

[97] Oumi (corruptela de Awaumi - ou seja, lago de águas claras): antiga denominação do lago Biwako, na atual província de Shiga.

[98] Shinran (1173-1262): famoso monge do início do período Kamakura.

 

                                                                                            Yoshikawa, Eiji

 

 

                      

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