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A CLÍNICA DO TERROR / Mary Higgins Clark
A CLÍNICA DO TERROR / Mary Higgins Clark

 

 

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A CLÍNICA DO TERROR

 

Se o seu espírito não estivesse concentrado no caso que ganhara, Katie talvez não tivesse dado a curva com tanta velocidade, mas a satisfação intensa do veredito de culpado ainda a absorvia. Fora difícil. Roy O’Connor era um dos eminentes advogados de defesa em Nova Jérsia. A confissão do réu fora suprimida pelo tribunal, um golpe importante para a acusação. Mas, mesmo assim, ela conseguira convencer o júri de que Teddy Copeland era o homem que assassinara traiçoeiramente Abgail Rawlings, de 80 anos de idade, durante um assalto.

A irmã de Miss Rawlings, Margaret, estava no tribunal para ouvir a sentença e mais tarde viera ter com Katie.

«Foi maravilhosa, Mrs. De Maio», dissera. «Parece uma jovem universitária. Nunca pensei que conseguisse, mas quando falou, a senhora provou todos os pontos; levou-os a sentir o que ele fez à Abby. Que irá acontecer agora?»

«Com o relato dele, esperemos que o juiz decida mandá-lo para a prisão para o resto da vida», respondeu Katie.

«Graças a Deus», dissera Margaret Rawlings. Os olhos, já úmidos e mortiços da idade, encheram-se de lágrimas. Limpou-as calmamente quando disse: «Sinto tanto a falta da Abby. Éramos só as duas. E não consigo deixar de pensar no medo que ela deve ter sentido. Teria sido terrível se ele tivesse escapado sem castigo.»

«Ele não escapou sem castigo!» A recordação dessa certeza distraía Katie naquele momento, fê-la carregar com o pé no acelerador com mais força. O aumento súbito de velocidade quando curvou fez o carro derrapar na estrada coberta de saraiva.

- Oh... não! - Ela agarrou o volante freneticamente. A estrada secundária estava escura. O carro atravessou a toda a velocidade a divisória e rodopiou. Viu faróis a aproximarem-se ao longe.

Ela rodou o volante mas não conseguiu dominar o carro que patinava. Este continuou a resvalar para a berma da estrada sobre um dos lados, mas a berma também era um lençol de gelo. Como um esquiador prestes a saltar, o carro desequilibrou-se por instantes na berma, as rodas levantaram quando o carro desceu ruidosamente o talude íngreme e caiu nos campos arborizados.

Uma forma escura surgiu à sua frente: uma árvore. Katie sentiu o impacte nauseante quando o metal se cravou na casca. O carro tremeu. O seu corpo foi atirado contra o volante, depois projectado de novo para trás com violência. Levantou os braços à frente do rosto, procurando protegê-lo das lascas de vidro que saltavam do pára-brisas. Uma dor aguda, dilacerante, atacou-lhe os pulsos e os joelhos. Os faróis dianteiros e as luzes do painel apagaram-se. Uma escuridão cerrada, aveludada, concentrava-se sobre ela quando ouviu algum lugar ao longe uma sirena.

O ruído da porta do carro a abrir-se; uma rajada de vento frio.

- Meu Deus, é Katie DeMaio!

Uma voz que ela conhecia. tom Coughlin, o jovem e simpático policial. Prestara declarações num julgamento na semana anterior.

- Está inconsciente.

Tentou protestar, mas os seus lábios não formaram palavras. Não podia abrir os olhos.

- O braço está a sangrar. Parece que cortou uma artéria. Seguravam-lhe o braço; apertava-o qualquer coisa.

Uma voz diferente:

- Ela pode ter lesões internas, tom. Westlake é mesmo o fim da estrada. vou pedir uma ambulância. Tu ficas com ela.

«Flutuando. Flutuando. Estou bem. Só que não consigo chegar-lhe.»

Mãos ergueram-na e colocaram-na sobre uma maca; sentiu um cobertor a tapá-la, a saraiva batia-lhe no rosto.

Estava a ser transportada. Um carro punha-se em movimento. Não, era uma ambulância. Portas que se abriam e fechavam. «Se ao menos pudesse fazê-los compreender. Eu ouço-os. Não estou inconsciente.»

Tom estava a dar o seu nome.

- Kathleen DeMaio, vive em Abbington. É promotora de justiça. Não, não é casada. É viúva. Viúva do juiz DeMaio.

A viúva de John. Uma terrível sensação de solidão. A escuridão começava a desaparecer. Brilhava uma luz nos seus olhos.

- Ela está a recuperar os sentidos. Que idade tem, Mrs. DeMaio?

A pergunta, tão prática, tão fácil de responder. Ela pôde falar, finalmente.

- Vinte e oito.

O torniquete que Tom lhe colocara no braço estava a ser tirado. O braço estava a ser suturado. Ela esforçou-se por não se assustar com as agulhas da dor.

Raios X. O médico da sala de urgência.

- Teve muita sorte, Mrs. DeMaio. Algumas feridas bastante graves. Nenhuma fractura. Mandei que lhe fizessem uma transfusão. Perdeu muito sangue. Não tenha medo. Vai ficar boa.

- É que... - Mordeu o lábio. Recuperava a razão e conseguiu dominar-se antes de apagar do espírito aquele medo de hospitais, terrível, cego e infantil.

Tom perguntava:

- Quer que telefonemos à sua irmã? Vai ficar aqui esta noite.

- Não. Molly está com gripe. Todos a tiveram. - A voz parecia tão fraca. Tom teve de se curvar sobre ela para a ouvir.

- Está bem, Katie. Não se preocupe com nada. Vou mandar rebocar o carro.

Foi levada na maca para uma seção da sala de urgência, separada por uma cortina. Começou a gotejar sangue num tubo introduzido no braço direito. O espírito já estava a desanuviar.

Doía-lhe muito o braço esquerdo e os joelhos. Doía-lhe tudo. Estava num hospital. Estava sozinha.

Uma enfermeira afastava-lhe suavemente o cabelo da testa.

- Vai ficar boa, Mrs. DeMaio. Está a chorar?

- Não estou a chorar. - Mas estava.

Levaram-na para um quarto. A enfermeira deu-lhe um copo de papel e um comprimido.

- Isto vai ajudá-la a descansar, Mrs. DeMaio.

Katie tinha a certeza de que era um soporífero. Não o queria. Iria dar-lhe pesadelos. Mas era muito mais fácil não discutir.

A enfermeira apagou a luz. Os seus passos produziram sons abafados e suaves quando saiu do quarto. O quarto estava frio. Os lençóis eram frios e ásperos. Os lençóis dos hospitais seriam sempre assim? Katie adormeceu, consciente de que o pesadelo era inevitável.

Mas desta vez assumiu uma forma diferente. Ela estava numa montanha-russa. Esta subia cada vez mais alto, descia cada vez mais a pique, e não conseguia dominá-la. Tentava controlá-la. Foi então que deu uma curva, saiu dos trilhos e despenhou-se. Acordou a tremer antes de embater no solo.

A saraiva batia na janela. Sentou-se na cama com esforço. A janela tinha uma fresta e fazia abanar a persiana. Era por isso que o quarto tinha tanta corrente de ar. Fecharia a janela, subiria a persiana e, então, talvez pudesse dormir. De manhã podia ir para casa. Detestava hospitais.

Caminhou vacilantemente até à janela. A bata do hospital que lhe tinham dado mal chegava aos joelhos. As pernas estavam frias. E aquela saraiva. Agora estava misturada com mais chuva.             Encostou-se ao peitoril, olhou pela janela.

O parque de estacionamento transformava-se em correntes de água que jorrava.

Katie agarrou a persiana e olhou fixamente para o parque, dois andares abaixo de onde ela se encontrava.

A tampa da mala de um carro subia lentamente. Estava tão tonta. Vacilou, largou a persiana, e esta subiu com um estalido. Agarrou-se ao peitoril. Olhou fixamente para a mala. Estava a deslizar qualquer coisa para dentro dela? Um cobertor? Uma trouxa grande?

Devia estar a sonhar, pensou Katie; em seguida levou a mão à boca para abafar o grito que lhe puxava a garganta. Olhava fixamente para a mala do carro. A luz da mala estava acesa. Através das ondas de chuva misturada com saraiva, que batiam na janela, viu a substância branca a dividir-se. Quando a mala se fechou, viu um rosto - o rosto de uma mulher, grotesca na naturalidade da morte.

 

O despertador tocou às duas em ponto. Longos anos de aprendizagem para acordar para as urgências faziam-no despertar num instante. Levantando-se, caminhou para o lavatório da sala de observações, borrifou o rosto com água fria, compôs a gravata e fez um nó pequeno, penteou-se. As peúgas ainda estavam molhadas. Estavam frias e húmidas quando as tirou do irradiador quase morno. Fazendo trejeitos, calçou-as e enfiou os pés nos sapatos.

Estendeu o braço para pegar no sobretudo, tocou-lhe e estremeceu. Ainda estava todo encharcado. Pendurá-lo perto do irradiador não valera de nada. Se o vestisse acabaria por apanhar uma pneumonia. Além disso, as fibras brancas do cobertor podiam agarrar-se ao azul-escuro. Isso teria de ter uma explicação.

O velho Burberry que guardava no armário. Vestiria esse, deixaria ali o casaco molhado, deixá-lo-ia ficar na lavandaria no dia seguinte. A gabardina não tinha forro. Iria morrer de frio, mas era a única coisa a fazer. Além do mais, ela era tão vulgar - verde-seca, folgada agora que emagrecera. Se alguém viu o carro, viu-o dentro do carro, havia menos hipóteses de ser reconhecido.

Dirigiu-se apressadamente ao armário da roupa, tirou a gabardina do cabide de fio metálico onde estava torta e cheia de pregas, e pendurou o Chesterfield ensopado em água na parte de trás do armário. A gabardina cheirava a bafio - um cheiro a pó irritante, que lhe atacou as narinas. Franzindo as sobrancelhas, enojado, vestiu-a e abotoou-a.

Acercou-se da janela e puxou um pouco a persiana para trás. Ainda havia bastantes carros no parque de estacionamento, por isso a presença ou a ausência do seu dificilmente seria notada. Mordeu o lábio quando se apercebeu de que a lâmpada partida que fazia sempre com que a zona mais afastada do parque estivesse satisfatoriamente escura tinha sido substituída. A parte traseira do carro era delineada por ela. Teria de caminhar na sombra dos outros carros e meter o corpo na mala o mais depressa possível.

Estava na hora.

Abrindo o armário dos medicamentos, curvou-se. Com mãos hábeis tacteou os contornos do corpo sob o cobertor. Gemendo um pouco, meteu uma mão por baixo do pescoço, a outra por baixo dos joelhos, e pegou no corpo. Em vida ela devia pesar cerca de cinquenta quilos, mas engordara durante a gravidez. Os músculos sentiam cada grama daquele peso enquanto a levava para a mesa de observações. Aí, trabalhando apenas à luz da pequena lanterna apoiada sobre a mesa, embrulhou-a com o cobertor.

Examinou atentamente a parte de baixo do armário dos medicamentos e fechou-o de novo à chave. Abrindo a porta que dava para o parque de estacionamento sem fazer barulho, segurou a chave da mala do carro entre dois dedos. Dirigiu-se calmamente para a mesa de observações e pegou na mulher morta. Aqueles vinte segundos podiam destruí-lo.

Passados dezoito segundos estava junto do carro. A saraiva batia-lhe na face; o fardo coberto por um cobertor pesava nos seus braços. Mudando o peso para que ficasse quase todo sobre um só braço, tentou meter a chave na fechadura da mala. A neve gelou sobre a fechadura. Raspou-a impacientemente. Um instante depois a chave estava na fechadura e a porta da mala ergueu-se lentamente. Relanceou o olhar pelas janelas do hospital. Do quarto do centro no segundo andar surgiu uma sombra de repente. Estaria alguém a olhar pela janela? A sua impaciência para colocar o corpo coberto com um cobertor dentro da mala, para o tirar dos seus braços, levou-o a mover-se depressa demais. No momento em que a mão esquerda largou o cobertor, o vento separou-o deixando à mostra o rosto. Estremecendo, deixou cair o corpo e fechou violentamente a mala.

A luz incidira sobre o rosto. Alguém teria visto? Olhou de novo para a janela onde a sombra se formara. Estaria lá alguém? Ele não tinha a certeza. Que se poderia ver da janela? Mais tarde descobriria quem estava naquele quarto.

Estava perto da porta do condutor, rodando a chave no carro. Afastou-se rapidamente do parque sem ligar os faróis até se encontrar na estrada do condado. ;

Era incrível, mas esta era a segunda viagem a Chapin River nessa noite. Suponhamos que ele não ia a sair do hospital quando ela saiu de repente do escritório de Fukhito e o chamou.

Vangie estava quase histérica, amparando a perna direita quando desceu o pórtico coberto a coxear em direção a ele.

- Doutor, não posso marcar um encontro com o senhor esta semana. Amanhã vou para Mineápolis. vou falar com o médico que me costumava tratar, o doutor Salem. Talvez até fique lá e deixe que ele assista ao parto.

Se ele não a tivesse visto, tudo teria sido arrumado. »

Em vez disso persuadira-a a ir com ele ao escritório, conversara com ela, acalmara-a, oferecera-lhe um copo de água.

No último minuto, ela suspeitara, tentara passar por ele com um repelão. Aquele rosto petulante, enchera-se de medo.

E depois o pavor de saber que apesar de ter conseguido silenciá-la, a possibilidade de ser descoberto ainda era muito grande. Fechou à chave o corpo no armário dos medicamentos e tentou pensar..,

O carro dela, vermelho brilhante, fora o perigo imediato. Era vital tirá-lo do parque de estacionamento. Certamente seria estranho estar ali depois de terminarem as horas das visitas. - Um Lincoln Continental último modelo com a frente de cromo agressiva, cada linha arrogante a atrair as atenções.

Ele sabia exatamente onde ela vivia em Chapin River. Ela dissera-lhe que o marido piloto da United Airlines, só devia regressar no dia seguinte. Decidiu levar o carro para a sua propriedade, deixar a carteira dentro de casa, para dar a impressão de que ela viera para casa.

Fora surpreendentemente fácil. Havia muito pouco trânsito por causa do mau tempo- O regulamento da região exigia terrenos para construção com um mínimo de dois acres. As casas estavam muito afastadas da estrada e só tinham acesso através de caminhos tortuosos- Abriu a porta da garagem com o dispositivo automático no painel de instrumentos do Lincoln e estacionou o carro na garagem.

Descobriu a chave da porta na argola com as chaves do carro, mas não precisou dela; a porta interior da garagem que dava para o gabinete nõ estava fechada à chave. Havia luzes acesas por toda a casa, provavelmente ligadas a um dispositivo regulador do tempo. Atravessou rapidamente o gabinete e o vestíbulo e entrou na ala dos quartos, procurando o quarto principal. Era o último à direita e não havia possibilidade de se enganar. Havia mais dois quartos, um adaptado para quarto de criança, com gnomos coloridos e cordeiros alegres no papel de parede recentemente aplicado e, obviamente, um berço de madeira novo e uma arca.

Foi então que se apercebeu de que podia fazer com que a sua morte parecesse um suicídio. Se ela tivesse começado a mobilar o quarto três meses antes de o bebé nascer, a iminência da perda desse bebé era um forte motivo para suicídio.

Entrara no quarto principal. A cama enorme estava mal feita, com a colcha com cordões de veludo estendida irregularmente sobre os cobertores. A camisa de noite e o roupão estavam num canapé perto dela. Se ao menos pudesse pôr de novo o corpo ali, colocá-lo na sua própria cama! Era perigoso, mas não tão perigoso como largar o corpo algum lugar nos bosques. Isso implicaria uma investigação policial intensiva.

Deixou a carteira no canapé. Com o carro no hospital e a mala ali, pelo menos iria parecer que ela voltara do hospital.

Depois palmilhou as quatro milhas de volta ao hospital. Fora arriscado - e se um carro da Polícia tivesse descido a estrada daquela área cara e o tivesse detido? Não tinha absolutamente nenhuma desculpa para estar ali. Mas fez o percurso em menos de uma hora, contornou a estrada principal do hospital e esgueirou-se para o escritório pela porta das traseiras que dava para o parque de estacionamento. Eram dez horas em ponto quando chegou.

O casaco e os sapatos estavam encharcados. Ele tiritava. Compreendeu que seria demasiado perigoso tentar levar o corpo antes de haver a mínima hipótese de encontrar alguém. Resolveu esperar até depois da meia-noite antes de voltar a sair. Pelo menos não tinha de se preocupar se seria observado por doentes da urgência ou por um carro da Polícia que entrasse de roldão com um doente.

Pusera o despertador para as duas horas e ficara deitado na mesa de observações. Conseguiu dormir até o despertador tocar.

Agora metia pela ponte de madeira sobre Winding Brook Lake. A casa dela ficava à direita.

«Apaga os faróis; mete pelo caminho; contorna as traseiras da casa, pára o carro perto da porta da garagem; tira as luvas de conduzir; calça as luvas das operações; abre a porta da garagem; abre a mala do carro; leva o corpo envolto, passa perto das prateleiras até à porta interior.» Entrou no gabinete. A casa estava silenciosa. Dentro de alguns minutos estaria a salvo.

Atravessou apressadamente o vestíbulo em direção ao quarto principal, retesando-se sob o peso do corpo. Colocou o corpo na cama, soltando o cobertor.

No quarto de banho afastado do quarto, com uma sacudidela, deitou cristais de cianido no copo azul florido, juntou água e despejou quase todo o conteúdo no lavatório. Lavou cuidadosamente o lavatório e voltou ao quarto. Colocando o copo ao lado da mulher morta, deixou cair as últimas gotas da mistura sobre a colcha. As impressões digitais dela de certeza que estavam no copo. Os músculos começavam a ficar rígidos. As mãos estavam frias. Dobrou cuidadosamente o cobertor branco.

O corpo estava deitado de costas sobre a cama, olhos esbugalhados, lábios tortos, a expressão de uma agonia de protesto. Estava tudo bem. Muitos suicidas arrependiam-se quando era tarde demais.

Ter-se-ia esquecido de alguma coisa? Não. A carteira com as chaves estava no canapé; havia um resíduo do cianido dentro do copo. Casaco vestido ou despido? Deixá-lo-ia vestido. Quanto menos mexesse nela melhor.

Sem sapatos ou com sapatos? Ela teria atirado fora os sapatos com um pontapé?

Pegou no cafetã comprido que ela envergava e sentiu o rosto a ficar sem sangue. O pé direito, inchado, estava enfiado num mocassin usado. O pé esquerdo só estava tapado com a meia.

O outro mocassin devia ter caído. Onde? No parque de estacionamento, no escritório, naquela casa? Saiu do quarto a correr, procurando, voltando atrás até à garagem O sapato não estava em casa nem na garagem. Inquieto com a perda de tempo, correu para o carro e espreitou para a mala. O sapato não estava lá.

Por causa daquele pé inchado ela usava sempre aqueles mocassins. Ele ouvira a recepcionista gracejar com ela por causa deles.

Teria de regressar, esquadrinhar o parque de estacionamento, encontrar aquele sapato. E se alguém que a tinha visto com ele e o tinha apanhado? Falar-se-ia da sua morte quando o corpo fosse descoberto. E se alguém dissesse: «Eu vi o mocassin que ela trazia no parque de estacionamento. Deve-o ter perdido quando ia para casa na segunda-feira à noite?» Mas mesmo que ela tivesse dado alguns passos no parque de estacionamento sem um sapato, o pé da meia teria ficado muito sujo. A Polícia iria dar-se conta. Tinha de voltar ao parque de estacionamento e encontrar aquele sapato.

Mas naquele momento, correndo de novo para o quarto, abriu a porta do armário. Um monte de sapatos de mulher estavam espalhados no chão. A maior parte deles tinha saltos tremendamente altos. Era ridículo que alguém acreditasse que ela os usasse no seu estado e com aquele tempo. Havia três ou quatro pares de botas, mas ele nunca seria capaz de fechar o fecho de uma bota com aquela perna inchada.

Foi então que os viu. Um par de sapatos de salto baixo, sapatos práticos do tipo que a maior parte das grávidas usava. Pareciam novos, mas tinham sido calçados pelo menos uma vez. Aliviado, pegou neles. Correndo de novo para o quarto, tirou o único sapato do pé da mulher morta e calçou-lhe rapidamente os sapatos que acabara de encontrar no armário. O direito estava apertado, mas conseguiu atar os atacadores. , Metendo o mocassin que ela trouxera no bolso largo da gabardina, pegou no cobertor branco. Com ele debaixo do braço saiu do quarto com grandes passadas, atravessou o vestíbulo, o gabinete e saiu para a escuridão.

Quando entrou no parque de estacionamento do hospital a saraiva e a chuva tinham parado, mas estava vento e frio. Dirigindo-se para o canto mais afastado da área, estacionou o carro. Se por acaso o guarda da segurança passasse por ele e lhe falasse, limitar-se-ia a dizer que recebera um telefonema para se encontrar com um dos seus doentes; que ela estava com as dores de parto. Se por qualquer razão esta história fosse examinada, ele mostrar-se-ia ofendido, diria que fora obviamente a chamada de um excêntrico.

Mas seria muito mais seguro não ser visto. Mantendo-se na sombra dos arbustos que contornavam a linha divisória para peões do parque, apressou-se a afastar-se da zona onde guardara o carro, dirigindo-se para a porta do escritório. Era lógico que o sapato tinha caído quando ele mudara o corpo para abrir a mala. Acocorando-se, esquadrinhou o terreno. Discretamente, aproximou-se mais do hospital. Todos os quartos dos doentes nesta ala já estavam escuros. Relanceou o olhar pela janela do centro no segundo andar. A persiana estava descida. Alguém a ajustara. Inclinando-se para a frente, atravessou lentamente o macadame. E se alguém o vira! A raiva e a frustração fizeram-no esquecer o frio glacial. Onde estava aquele sapato? Tinha de o encontrar.

Surgiram uns faróis na curva, iluminando o parque de estacionamento. Um carro chiou ao parar. O condutor, dirigindo-se provavelmente à sala de urgência, deve-se ter apercebido de que se tinha enganado. Deu uma curva em U e saiu do parque a grande velocidade.

Tinha de sair dali. Era inútil. Caiu quando tentava endireitar-se. A mão deslizou no macadame. Ê depois sentiu-o: o cabedal sob os dedos. Agarrou-o, levantou-o. Mesmo na penumbra não podia ter dúvidas. Era o mocassins. Encontrara-o.

Quinze minutos depois, rodava a chave na fechadura da sua casa. Despindo a gabardina, pendurou-a no armário do vestíbulo. O espelho enorme na porta reflectiu a sua imagem. Chocado, reparou que os joelhos das calças estavam molhados e sujos. O cabelo estava desgrenhado. As mãos estavam sujas. As faces estavam congestionadas, e os olhos, sempre papudos, estavam salientes e dilatados. Parecia um homem com um choque emocional, uma caricatura de si mesmo.

Correndo pelas escadas acima, despiu-se, separou a roupa e atirou-a para dentro do cesto e do saco da lavandaria, tomou banho e vestiu o pijama e um roupão. Estava demasiado excitado para dormir e, além disso, estava a morrer de fome.

A governanta deixara fatias de cordeiro num prato. Havia uma fatia fresca de Brie na tábua do queijo sobre a mesa da cozinha. Havia maçãs duras e azedas na caixa da fruta do frigorífico. Preparou cuidadosamente um tabuleiro e levou-o para a biblioteca. Do bar encheu um copo com uísque e sentou-se à secretária. Enquanto comia, rememorou os acontecimentos da noite. Se ele não tivesse parado para examinar o calendário não teria dado conta dela. Ela ter-se-ia ido embora e teria sido tarde demais para a deter.

Abrindo a secretária com a chave, puxou a gaveta grande do centro e fez deslizar o botão falso onde guardava sempre o ficheiro particular, corrente. Estava lá um único ficheiro de papel grosso. Pegou noutra folha de papel e fez um último registo:

 

Fevereiro, 15

Às 8.49 p. m. este médico estava a fechar à chave aporta das traseiras do seu escritório. A doente em causa acabara de sair do Fukhito. A doente em causa veio ter com este médico e disse que ia para Mineápolis e que o seu primeiro médico, Emmet Salem, assistiria ao parto. A doente estava histérica e foi persuadida a entrar. Obviamente que a doente não podia sair. Lamentando esta necessidade, este médico preparou-se para eliminar a doente. Com a desculpa de lhe ir buscar um copo de água, este médico dissolveu cristais de cianido no copo e obrigou a doente a beber o veneno. A doente expirou precisamente às 8.51p. m. O feto tinha 26 semanas. A opinião deste médico é que, se o bebé tivesse nascido, podia ter sobrevivido. Os relatórios médicos completos estão neste ficheiro e devem substituir e anular os relatórios no escritório de Westlake Hospital.

 

Suspirando, pousou a caneta, meteu o último registo no envelope de papel grosso e selou o ficheiro. Levantando-se, encaminhou-se para o último painel da estante. Metendo a mão por detrás de um livro, tocou num botão, e o painel rodou nos gonzos, deixando à mostra um cofre na parede. Abriu rapidamente o cofre e introduziu o ficheiro, notando no seu subconsciente que o número de envelopes aumentava. Podia dizer de cor os nomes delas: Elizabeth Berkeley, Anna Horan, Maureen Crowley, Linda Evans - mais de seis dúzias: êxitos e fracassos do seu génio médico.

Fechou o cofre e colocou de novo a estante no lugar com brusquidão, depois subiu as escadas lentamente. Despiu o roupão de banho, meteu-se na cama grande e antiga com quatro colunas e fechou os olhos.

Agora que terminara, estava exausto ao ponto de se sentir doente. Deixara passar alguma coisa, esquecera-se de alguma coisa? Colocaria o frasco de cianido no cofre. Os mocassins. Livrar-se-ia deles em qualquer parte na noite do dia seguinte. Os acontecimentos das últimas horas rodopiavam no seu espírito. Quando levara a cabo o que devia ser feito, estava calmo. Agora que tudo terminara, como das outras vezes, o seu sistema nervoso gritava em sinal de protesto.

Deitaria fora o saco da roupa a caminho do hospital na manhã do dia seguinte. Hilda era uma governanta sem imaginação, mas daria conta da lama e da sujidade nos joelhos das calças. Ele descobriria que doente estava no quarto do centro no segundo andar da ala oriental, o que o doente podia ter visto. «Não penses nisso agora. Agora tens de dormir.»

Apoiando-se num cotovelo, abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira e tirou uma pequena caixa de comprimidos. O sedativo fraco era o que precisava. Com ele poderia dormir duas horas. Os seus dedos tactearam e fecharam-se sobre uma cápsula pequena. Engolindo-a sem água, reclinou-se e fechou os olhos. Enquanto esperava que esta fizesse efeito, tentou tranquilizar-se com a ideia de que estava livre de perigo. Mas por mais que se esforçasse, não conseguia deixar de pensar que a prova mais condenatória da sua culpa lhe era inacessível.

 

- Se não se importa, gostaríamos que saísse pela entrada das traseiras - disse a enfermeira. - O acesso da frente está todo gelado e os operários estão a tentar limpá-lo. O táxi está ali à espera.

- Não me importo de sair pela janela, desde que possa chegar a casa - disse Katie com vivacidade. - E a desgraça é que tenho de voltar aqui na sexta-feira. vou ser submetida a uma pequena intervenção cirúrgica no sábado.

- Oh. - A enfermeira olhou para o relatório. - Qual é o problema?

- Parece que herdei um problema que a minha mãe costumava ter. Tenho hemorragias quase todos os meses durante o período.

- Deve ter sido por isso que a contagem dos glóbulos estava tão baixa quando aqui chegou. Não se preocupe. Um D-e-C é fácil. Quem é o seu médico?

- O doutor Highley.

- Oh, é o melhor. Mas irá para a ala ocidental. Todos os seus doentes vão para lá. Parece um hotel de luxo. Sabe, ele é o máximo neste hospital. - Ela ainda olhava para o relatório de Katie. - Não dormiu muito, pois não?

- Nem por isso. - Katie enrugou o nariz repugnada quando abotoou a blusa. Estava salpicada com sangue, e deixou a manga esquerda solta sobre o braço com ligaduras. A enfermeira ajudou-a a vestir o casaco.

A manhã estava nublada e terrivelmente fria. Katie concluiu que Fevereiro ia ser o mês de que gostaria menos. Tiritou quando saiu para o parque de estacionamento, recordando o pesadelo. Aquela era a zona que olhara do seu quarto. O táxi parou. Encaminhou-se prontamente para ele, encolhendo-se com a dor nos joelhos. A enfermeira ajudou-a a entrar, despediu-se e fechou a porta. O motorista do táxi carregou com o pé no acelerador.

- Para onde, senhora?

Da janela do quarto do segundo andar donde Katie acabara de sair, um homem observava a sua partida. O relatório que a enfermeira deixara na secretária estava na sua mão. Kathleen N. DeMaio, 10 Woodfield Way, Abhington. Local de trabalho: escritório do promotor da justiça, Valley County.

Um estremecimento de medo perpassou por ele. Katie DeMaio.

O relatório indicava que lhe tinham dado um soporífero forte.

De acordo com a história médica, ela não tomava remédios com regularidade, incluindo soporíferos ou tranquilizantes. Portanto não teria resistência para eles e deveria ter ficado muito tonta com o que lhe tinham dado na noite anterior.

Havia uma observação no relatório dizendo que a enfermeira da noite a encontrara sentada na beira da cama às 2.08 a.m. num estado de agitação e a queixar-se de pesadelos.

A sombra no quarto levantara-se de repente. Ela devia ter estado à janela. Que teria visto? Se ela tivesse observado qualquer coisa, mesmo que pensasse que estava a ter um pesadelo, a sua experiência profissional atormentá-la-ia. Ela era um risco, um risco inaceitável.

 

Com os ombros a tocarem-se, sentaram-se na última loja do centro comercial da 87th Street. Muffins ingleses tinham sido postos de parte, sem lhes terem tocado, e, melancólicos, beberam lentamente o café. O braço do casaco do uniforme azul-escuro estava pousado sobre o galão dourado da manga dele. Os dedos da mão direita estavam entrelaçados com os da mão esquerda dela.

            - Senti a tua falta - disse ele, cuidadosamente.

- Eu também senti a tua falta, Chris. É por isso que lamento teres-me encontrado esta manhã. Só piora as coisas.

- Joan, dá-me algum tempo. Juro por Deus que resolveremos isto. Temos de resolver.

Ela abanou a cabeça. Ele voltou-se para ela e com um estremecimento notou como ela estava com um ar infeliz. Os seus olhos cor de avelã estavam turvos. O cabelo castanho-claro, nessa manhã puxado para trás num chignon, revelava a palidez da pele geralmente macia e clara.

Ela interrogou-se pela milésima vez por que não rompera com Vangie quando fora transferido para Nova Iorque no ano anterior. Por que razão respondera ao apelo para tentar salvar durante mais algum tempo o seu casamento quando dez anos de tentativas não o tinham conseguido? E agora ia nascer um filho. Pensou na terrível discussão que tivera com Vangie antes de partir. Devia contar a Joan. Não, não adiantaria nada.

- Gostaste da China? - perguntou-lhe. Ela ficou mais animada.

- Fascinante, completamente fascinante. - Ela era hospedeira de bordo da Pan América. Tinham-se conhecido há seis meses no Havai quando um dos comandantes da United, Jack Lane, dera uma festa.

Joan estava a viver em Nova Iorque e partilhava um apartamento em Manhattan com duas hospedeiras da Pan Am.

É uma loucura, é incrível como algumas pessoas se ajustam desde o primeiro minuto. Ele dissera-lhe que era casado, mas também pôde dizer honestamente que, quando se mudara de Mineápolis para Nova Iorque, quisera romper com Vangie. A última tentativa para salvar o casamento não estava a resultar. A culpa não era de ninguém. O casamento era algo que nunca devia ter acontecido.

E depois Vangie falara-lhe do bebé.

Joan estava a dizer:

- Regressaste ontem à noite?

- Sim. Tivemos um problema nos motores e o outro voo foi cancelado. Regressámos à borla. Cheguei por volta das seis e fui para a Holiday Inn, na 57th Street.

- Porque não foste para casa?

- Porque não te via há duas semanas e queria ver-te, precisava de te ver. A Vangie só está a contar comigo por volta das onze. Por isso não te preocupes.

- Chris, disse-te que tinha feito um requerimento para ser transferida para a Divisão Latino-Americana. Foi deferido. Irei para Miami na próxima semana.

- Joan, não!

- É a única maneira. Olha, Chris, lamento, é contra o meu feitio estar disponível para um homem casado. Não gosto de desfazer lares.

- A nossa relação tem sido absolutamente inocente.

- No mundo de hoje quem acreditaria nisso? O simples fato de que dentro de uma hora estarás a mentir à tua mulher sobre quando chegaste diz muito, não diz? E eu não me esqueço, sou a filha de um pastor presbiteriano. Só vejo a sua reação quando lhe disser que estou apaixonada por um homem que não só é casado mas também que a sua mulher vai finalmente ter o filho que desejou durante dez anos. Deixa que te diga que ele sentiria orgulho de mim.

Ela terminou o café.

- E digas tu o que disseres, Chris, sei que se não estiver perto ainda há possibilidade de tu e a tua mulher se reconciliarem. Estou a ocupar os teus pensamentos quando devias estar preocupado com ela. E verás com espanto como uma criança consegue criar um elo de ligação entre duas pessoas.

Suavemente, desprendeu os dedos dos dele.

- É melhor ir para casa, Chris. Foi um voo longo e estou cansada. É melhor ires para casa também.

Olharam um para o outro. Ele tocou-lhe no rosto, desejando fazer desaparecer as rugas fundas de infelicidade na testa.

- De fato podíamos ter sido muito felizes. - Depois acrescentou: - Pareces muito cansado, Chris.

- Não dormi muito a noite passada. - Ele tentou sorrir. - Não vou desistir, Joan. Juro-te que irei ter contigo a Miami, e quando lá chegar serei livre.

 

O táxi parou para Katie sair. Subiu penosamente os degraus do átrio, meteu a chave na fechadura, abriu a porta e sussurrou:

- Graças a Deus estou em.casa. - Teve a impressão de que em vez de uma noite estivera semanas longe de casa e apreciou com outros olhos os tons de terra, suaves e agradáveis, do vestíbulo e da sala de estar, as plantas suspensas que lhe tinham chamado a atenção quando visitara esta casa pela primeira vez.

Pegou na taça de violetas africanas e aspirou o perfume forte das suas folhas. Os cheiros de anti-sépticos e medicamentos estavam presos nas narinas. O corpo estava dorido e entorpecido, agora ainda mais do que quando saíra da cama nessa manhã.

Mas pelo menos estava em casa.

John. Se ele estivesse vivo, se ele estivesse ali para telefonar na noite anterior...

Katie pendurou o casaco e deixou-se cair no sofá de veludo cor de damasco na sala de estar. Olhou para o retrato de John por cima da prateleira do fogão. John Anthony DeMaio, o juiz mais jovem em Essex County. Lembrava-se também da primeira vez que o vira. Ele fora fazer um curso sobre delitos de natureza civil na Faculdade de Direito em Seton Hall.

Quando a aula terminou, os alunos agruparam-se à volta dele.

- Juiz DeMaio, espero que o Supremo Tribunal rejeite o recurso no caso Collins.

- Juiz DeMaio, concordo com a sua opinião sobre Reicber versus Reicber.

E depois fora a vez de Katie.

- Senhor juiz, tenho de lhe dizer que não concordo com a sua decisão no caso Kipling.

John sorrira.

- Isso obviamente é seu privilégio, Miss...

- Katie... Kathleen Callahan.

Ela nunca percebeu por que razão acrescentara o Kathleen naquele momento. Mas ele sempre lhe chamara Kathleen Noel.

Nesse dia foram tomar café. Na noite seguinte levou-a a jantar ao restaurante Monsignor II em Nova Iorque. Quando os violinistas se aproximaram da mesa, ele pediu-lhes que tocassem Viena, Cidade dos Meus Sonhos. Cantou-a com eles em voz baixa: «Wien, Wien nur Du allein...» Quando terminaram, ele perguntou:

- Já foi a Viena, Kathleen?

- Nunca saí do país a não ser numa viagem da escola a Bermuda. Choveu durante quatro dias.

- Um dia gostaria de a levar ao estrangeiro. Mas primeiro hei-de mostrar-lhe a Itália. É um pais maravilhoso.

Quando a deixou à porta de casa naquela noite, disse:

- Você tem os olhos azuis mais belos que tive o prazer de contemplar. Acho que uma diferença de doze anos não é muito, não acha, Kathleen?

Três meses mais tarde, quando se licenciou em Direito, casaram.

Aquela casa. John fora criado ali, herdara-a dos pais.

- Estou muito ligado a ela, mas vê lá. Talvez queiras algo mais pequeno.

- John, fui criada num apartamento com três quartos em Queens. Dormia num divã na sala de estar. «Privacidade» era uma palavra que tinha de procurar no dicionário. Adoro esta casa. ;

- Fico contente, Kathleen.

Amavam-se tanto - mas, para além disso, eram tão bons amigos. Ela falou-lhe dos pesadelos.

- Aviso-te que de vez em quando acordo a gritar como uma banshee. Tudo começou quando tinha oito anos, depois de o meu pai morrer. Ele estivera no hospital para se restabelecer de um ataque cardíaco e depois teve um segundo ataque. Parece que o homem de idade que estava com ele no quarto não parava de tocar a campainha para chamar a enfermeira, mas não vinha ninguém. Quando vieram era tarde de mais.

- E então começaste a ter pesadelos.

- Creio que ouvi tantas vezes o relato que causou uma horrível impressão em mim. No pesadelo estou num hospital andando de cama em cama à procura do meu pai. Nas camas vejo sempre rostos de pessoas que conheço. Estão todas a dormir. Às vezes são raparigas da faculdade, ou primos... ou qualquer pessoa. Mas eu procurava o meu pai. Sabia que precisava de mim. Por fim vejo uma enfermeira, corro para ela e pergunto-lhe onde está, e ela sorri e diz: «Oh, ele morreu. Todas essas pessoas estão mortas. Tu também vais morrer aqui.»

- Pobrezita.

- Oh, John, intelectualmente sei que é um disparate não superar isto. Mas juro-te que tenho pavor de ficar doente num hospital.

- Ajudar-te-ei a superar isso.

Ela fora capaz de lhe dizer o que passou depois da morte do pai.

- Senti tanto a falta dele, John. Fui sempre a menina do papá. A Molly tinha dezasseis anos e já andava com o Bill, por isso acho que não a afetou tanto. Mas durante todo o curso, estava sempre a pensar como seria divertido se ele estivesse presente nas representações e nas graduações. Em cada Primavera costumava recear o Jantar de Pais e Filhas.

      - Não tinhas um tio ou alguém que pudesse ir contigo?

      - Só um. Teria levado tempo de mais para o pôr sóbrio.

- Oh, Kathleen! - Riram-se os dois. John disse: - Então, querida, vou extrair o âmago de tristeza que existe em ti.

- Já extraíste, juiz.

Passaram a lua-de-mel a viajar pela Itália. O sofrimento começara nessa viagem. Regressaram a tempo da abertura do tribunal. John presidiu no lugar de juiz em Essex County. Ela fora contratada para trabalhar para um juiz criminal em Valley County.

John foi fazer um exame médico um mês depois do regresso. A estada de uma noite em Mt. Sinai prolongou-se a três dias de testes suplementares. Então uma noite ele estava à sua espera perto do elevador, impecavelmente elegante com o roupão de veludo vermelho-escuro, um sorriso triste no rosto. Correu para ele, consciente como sempre dos olhares que os outros passageiros do elevador lhe lançavam, pensando como, mesmo de pijama e roupão, John parecia tão impressivo. Preparava-se para lho dizer quando ele disse: «Temos problemas, querida.»

Mesmo naquele momento, a maneira como ele disse «Temos problemas.» Naqueles escassos meses, em todos os aspectos, eles tinham-se tornado numa só pessoa. De novo no quarto ele disse-lhe: «É um tumor maligno. Parece que é nos dois pulmões. E por amor de Deus, Kathleen, nem sequer fumo.»

Incrédulos, riram-se num paroxismo de dor e ironia. John Anthony DeMaio, juiz do Supremo Tribunal de Essex County, ex-presidente da Ordem dos Advogados de Nova Jérsia, com menos de trinta e oito anos, fora condenado a uma sentença indeterminada de seis meses de vida. Para ele não haveria nenhuma comissão para lhe dar liberdade condicional, nenhum recurso.

Ele voltaria a ocupar o lugar do juiz.

- Morre envergando a tua toga; porque não? - Ele encolhera os ombros. - Promete-me que voltarás a casar, Kathleen.

- Um dia, mas essa será uma lei difícil de seguir.

- Fico contente que penses assim. Aproveitaremos todos os minutos que temos.

Mesmo no meio disto, sabendo que o tempo passava, divertiram-se.

Um dia chegou a casa vindo do tribunal e disse:

- A minha carreira como juiz está a chegar ao fim, suponho. O cancro alastrara. O sofrimento ia sendo cada vez pior. A princípio iria para o hospital durante alguns dias para quimioterapia. O pesadelo recomeçou; acontecia regularmente. Mas John regressaria a casa e eles teriam mais tempo. Ela demitiu-se das suas funções de escrivã. Queria passar todos os minutos com ele.

Próximo do fim, ele perguntou:

- Gostarias que a tua mãe viesse da Florida para viver contigo?

- Meu Deus, não. A minha mãe é fantástica, mas vivemos juntas até ir para a faculdade. Foi o suficiente. E, seja como for, ela gosta imenso da Florida.

- Então fico contente por Molly e Bill viverem aqui perto. Eles olharão por ti. E tu distrais-te com as crianças.

Depois ficaram calados. Bill Kennedy era cirurgião ortopédico. Ele e Molly tinham seis filhos e viviam em Ghapin River, a duas cidades de distância. No dia em que Katie e John casaram, tinham-se vangloriado na presença de Bill e Molly que iriam bater o recorde. «Teremos sete filhos», dissera John.

A última vez que foi fazer a quimioterapia não voltou. Estava tão fraco que o obrigaram a ficar no hospital durante a noite. Conversava com ela quando entrou em coma. Ambos esperavam que o desenlace se desse em casa, mas ele morreu no hospital naquela noite.

Na semana seguinte, Katie solicitou um emprego para o escritório do promotor de justiça e foi aceite. Foi uma boa decisão. O escritório estava sistematicamente com falta de pessoal, e ela tinha sempre mais casos do que podia tratar satisfatoriamente. Não havia tempo para introspecção. Durante todo o dia, todos os dias, mesmo em muitos fins-de-semana, tinha de se concentrar no amontoado de casos.

E, por outro lado, era uma boa terapia. Aquela raiva que acompanhara o sofrimento, a sensação de ter sido enganada, a fúria de John ter sido privado de anos de vida, descarregava-se nos casos que julgava. Quando processava um crime grave, sentia-se como se estivesse a combater tangivelmente pelo menos uma espécie de mal que destruía vidas.

Não vendera a casa. John legara-lhe todos os seus bens; mas mesmo assim sabia que era um disparate que uma mulher de 28 anos, com um salário de vinte e dois mil dólares, vivesse numa casa no valor de duzentos e cinquenta mil dólares com cinco acres em redor.

Molly e Bill estavam sempre a pedir-lhe insistentemente que a vendesse.

- Nunca esquecerás a tua vida com John enquanto não o fizeres - dissera-lhe Bill.

Talvez tivesse razão. Naquele momento Katie sacudiu-se e levantou-se do sofá. Estava a ficar sentimental. Seria melhor telefonar a Molly. Se Molly tentara entrar em contato com ela na noite anterior e não obtivera resposta devia ter ficado satisfeita. Estava sempre a dizer que Katie iria «encontrar alguém». Mas ela não quisera que Molly tentasse apanhá-la no escritório e descobrisse assim que sofrera um acidente.

Molly talvez aparecesse e almoçariam juntas. Tinha salada e ingredientes Bloody Mary. Molly estava sempre de dieta, mas não perderia um almoço de Bloody Mary. «Por amor de Deus. Kate, como é que alguém com seis filhos podia ter vontade de almoçar?» A presença animada de Molly dissiparia rapidamente a sensação de isolamento e tristeza.

Kate reparou na blusa manchada de sangue que trazia vestida. Depois de falar com Molly, enquanto esperava pela sua vinda, tomaria um banho e mudaria de roupa.

Olhando de relance para o espelho por cima do sofá, viu que a ferida por baixo do olho direito estava a ficar brilhante e vermelha. A cor de azeitona da pele, a que a mãe chamava o «Tom negro, irlandês do lado do pai», estava amarelo pálido. O cabelo castanho-escuro, que lhe chegava à gola, e que geralmente caía numa onda larga e natural, estava eriçado contra o rosto e o pescoço. - Devias ter visto a outra pessoa - murmurou ela pesarosamente, O médico dissera-lhe para não molhar o braço. Envolveria a ligadura numa Baggie e mantê-la-ia seca. Antes de poder pegar no telefone, este começou a tocar. «A Molly», pensou. «Aposto que é bruxa.»

Mas era Richard Carroll, o examinador médico.

- Katie, como estás? Acabo de saber que sofreste um acidente.

- Nada de grave. Desviei-me um pouco da estrada. O problema é que havia uma árvore no caminho.

- Quando é que isso aconteceu?

- Ontem à noite, por volta das dez. Vinha do escritório para casa. Trabalhei até tarde para pôr em dia uns ficheiros. Passei a noite no hospital e cheguei agora mesmo a casa. Estou com um aspecto desgraçado, mas não me sinto mal.

- Quem é que te foi buscar? A Molly?

- Não. Ela ainda não sabe. Chamei um táxi.

- Sempre o soldado solitário, não é? - perguntou Richard. - Porque diabo não me telefonaste?

Katie riu-se. A preocupação na voz de Richard era simultaneamente lisonjeadora e ameaçadora. Richard e o marido de Molly eram amigos. Várias vezes nos últimos seis meses Molly convidara insistentemente Katie e Richard para jantares em família. Mas Richard era tão despretensioso e cínico. Ao pé dele sentia-se sempre um pouco perturbada. Duma maneira ou de outra, não tencionava envolver-se com ninguém, e principalmente com alguém com quem trabalhava com tanta frequência.

- Para a próxima vez que me esbarre com uma árvore não me esquecerei - disse.

- Vais tirar uns dias de licença, não vais?

- Oh, não - disse ela. - vou ver se a Molly está livre para um almoço rápido; depois vou para o escritório. Tenho de examinar dez processos pelo menos, e tenho um caso importante na sexta-feira.

- Não adianta dizer que és louca. Está bem. Tenho de desligar. O outro telefone está a tocar. Meto a cabeça no teu escritório por volta das cinco e meia e levo-te a tomar uma bebida. - Desligou antes de ela poder responder.

Katie marcou o número da Molly. Quando a irmã respondeu, a voz tremia-lhe.

- Katie, suponho que já sabes.

- Sei o quê?

- Pessoas do teu escritório estão a chegar aqui.

- Onde?

- À casa do lado. Os Lewis. Aquele casal que se mudou para aqui no Verão passado. Katie, aquele pobre homem; regressara de um voo e encontrou-a - a mulher Vangie. Suicidou-se. Katie, estava grávida de seis meses!

Os Lewis. Os Lewis! Katie conhecera-os no dia de Ano Novo em casa de Molly e Bill. Vangie, uma loira muito bonita. Chris, piloto de uma companhia de aviação.

Como que paralisada, ouviu a voz abalada de Molly:

- Katie, por que razão se suicidaria uma rapariga que desejava tanto um filho?

A pergunta ficou no ar. Arrepios de frio percorreram o corpo de Katie. Aquele cabelo louro e comprido, caído pelos ombros abaixo. O seu pesadelo. Loucas as partidas que o espírito prega. Assim que Molly disse o nome, o pesadelo da véspera voltara. O rosto que ela vislumbrava através da janela do hospital era o de Vangie Lewis.

 

Richard Carroll estacionou o carro dentro das linhas da Polícia em Winding Brook Lake. Ficou surpreendido ao notar que os Lewis viviam perto de Bill e Molly Kennedy. Bill era médico residente quando Richard entrou no hospital de St. Vicent como interno. Mais tarde ele especializou-se em medicina legal e Bill em ortopedia. Ficaram surpreendidos e contentes quando se encontraram inesperadamente no tribunal de Valley County no momento em que Bill aparecia como perito num julgamento de negligência médica. A amizade que fora casual no tempo do St. Vincent’s tornara-se mais íntima. Agora ele e Bill jogavam golfe com frequência, e Richard parava muitas vezes em casa deles para tomar uma bebida depois do jogo.

Conhecera a irmã de Molly, Katie DeMaio, no escritório do promotor de justiça, e sentira-se imediatamente atraído pela jovem e dedicada advogada. Ela era um exemplo do tipo ancestral dos tempos em que os espanhóis invadiram a Irlanda e deixaram descendentes com pele cor de azeitona e cabelo escuro que contrastava com o azul vivo dos olhos dos Celtas. Mas Katie desencorajou-o subtilmente quando ele sugerira juntarem-se, e afastara-a filosoficamente dos seus pensamentos. Havia muitas mulheres extremamente atraentes que apreciavam bastante a sua companhia.

Mas ouvindo Molly e Bill e os filhos falarem de Katie, como conseguia ser engraçada, como ficou dilacerada com a morte do marido, reacendera o seu interesse. Então nos últimos meses estivera nalgumas festas em casa de Bill e Molly e constatou irritado que estava muito mais intrigado com Katie DeMaio do que desejava.

Richard encolheu os ombros. Estava ali a cargo da Polícia. Uma mulher de trinta anos suicidara-se. A sua função era descobrir provas médicas que pudessem indicar que Vangie Lewis não se tinha suicidado. Mais tarde faria uma autópsia. A boca contraiu-se quando pensou no feto que ela trazia. Nunca tivera uma oportunidade. O que significava para o amor maternal? Cordialmente, objetivamente, já antipatizava com a falecida Vangie Lewis.

Um polícia jovem de Chapin River deixou-o entrar. A sala de estar ficava à esquerda do vestíbulo. Um homem com um uniforme de capitão de uma companhia de aviação estava sentado num sofá, com as costas arqueadas, entrelaçando e desentrelaçando os dedos. Estava muito mais pálido do que muitos dos mortos com que Richard lidava e tremia violentamente. Richard sentiu um laivo de compaixão. O marido. Um golpe brutal chegar a casa e descobrir que a mulher era uma suicida. Decidiu conversar com ele mais tarde.

- Por onde? - perguntou ao polícia.

- Por aqui. - E acenou com a cabeça na direção das traseiras da casa - A cozinha mesmo em frente, quartos à direita. Ela está no quarto principal.

Richard caminhou depressa, absorvendo, enquanto o fazia, o ambiente da casa. Com mobílias caras mas dispostas sem gosto nem mesmo interesse. A visão fugidia da sala de estar revelara-lhe o aspecto típico de um desenhador de interiores sem imaginação que se vê em tantas lojas de decoração, nas ruas principais de pequenas cidades. Richard tinha um sentido apurado da cor. No fundo, pensava que isso o ajudava consideravelmente no seu trabalho. Mas sombras confusas ficaram gravadas na sua consciência como o som de notas dissonantes. Charley Nugent, o detetive encarregado da Brigada de Homicídios, estava na cozinha. Os dois homens trocaram breves cumprimentos com a cabeça.

            - Que lhe parece? - Perguntou Richard.

            - Falemos depois de você a ver.

Morta, Vangie Lewis não era uma visão agradável. O longo cabelo loiro agora parecia castanho como a lama; o rosto estava contorcido, as pernas e os braços, rígidos com o ataque do rigor mortis, pareciam estar esticados sobre arames. O casaco estava abotoado, e, por causa da não tapava os joelhos. As solas dos sapatos mal se viam debaixo de um longo cafetã florido.

Richard puxou o cafetã acima dos tornozelos. As pernas, obviamente inchadas, tinham esticado as meias-calças. As partes laterais do sapato direito feriram a carne.

Levantou um braço como perito que era, segurou-o por instantes, deixou-o cair. Examinou a descoloração em furta-cores à volta da boca onde o veneno a queimara.

Charley estava ao lado dele.

- Há quanto tempo pensa que foi?

            - Entre doze a quinze horas, suponho. Ela está muito rígida. - A voz de Richard era reservada, mas o seu sentido de harmonia, estava perturbado. O casaco vestido. Os sapatos calçados. Acabava de chegar a casa ou planeava sair? Que a fizera de repente suicidar-se? O copo de vidro estava ao lado da cama. Curvando-se, cheirou-o. O cheiro inconfundível a amêndoa azeda de cianido entrou-lhe nas narinas. Era incrível o número de suicidas que ingeriam cianido desde aquela confusão do culto de Jones na Guiana. Endireitou-se.

- Deixou alguma mensagem?

Charley abanou a cabeça. Richard pensou que Charley estava no trabalho certo. Tinha sempre um ar triste, as pálpebras caíam tristemente sobre os olhos. Parecia ter um problema de caspa perpétuo.

- Nenhuma carta, nada. Estava casada há dez anos com o piloto; é o indivíduo que está na sala de estar. Parece muito abalado. São de Mineápolis; mudaram-se para aqui há menos de um ano. Ela sempre quis ter um filho. Finalmente ficou grávida e felicíssima. Estrelas a decorarem o quarto do bebé; fala do filho de manhã, à tarde e à noite.

- Depois mata-se e ao filho?

- Segundo o marido, andava nervosa nos últimos tempos. Uns dias tinha uma espécie de ideia fixa de que ia perder o filho. Outras vezes tinha um medo enorme de dar à luz. Parece que sabia que evidenciava sinais de uma gravidez tóxica.

- E em vez de dar à luz ou enfrentar a perda do filho, suicida-se? - O Tom de Richard era cético. Podia dizer a Charley que também não acreditava nisso. - Phil está consigo? perguntou ele. Phil era o outro membro sénior da equipa de homicídios do promotor de justiça.

- Anda na vizinhança a falar com as pessoas. |

- Quem a encontrou?

- O marido. Acabara de chegar de um voo. Chamou uma ambulância. Telefonou à Polícia local.

Richard olhou fixamente para as queimaduras à volta da, boca de Vangie Lewis.

- Ela deve ter bebido aquilo atabalhoadamente - disse ele, pensativamente -, ou talvez tenha tentado cuspi-lo, mas era tarde demais. Podemos falar com o marido, trazê-lo aqui?

- Certamente. - Charley acenou ao jovem polícia, que se, virou e atravessou a correr o longo pátio da entrada.

Quando Christopher Lewis entrou no quarto, parecia que estava prestes a vomitar. A tez estava já verde-terrosa. Suor, frio e úmido, cobria a testa de gotas. Abrira a camisa e desapertara a gravata. As mãos estavam metidas nos bolsos.

Richard observou-o atentamente. Lewis parecia louco, doente, nervoso. Mas faltava qualquer coisa. Não tinha o aspecto de um homem cuja vida tinha sido destruída.

Richard vira a morte vezes sem conta. Vira alguns dos parentes mais próximos a sofrerem em silêncio. Outros soltavam gritos histéricos, berravam, choravam, arrojavam-se sobre o defunto. Alguns tocavam na mão morta, tentando compreender. Pensou no jovem marido cuja mulher tinha sido apanhada num tiroteio enquanto saíam do carro para fazerem compras na mercearia. Quando Richard lá chegou, ele segurava o corpo desnorteado, falando com ela, tentando fazer com que o ouvisse.

Aquilo era sofrimento.

Qualquer que fosse a emoção que Christopher Lewis estivesse a sentir naquele momento, Richard apostava a sua vida no fato de que ele não era um marido com o coração destroçado.

Charley estava a interrogá-lo:

- Comandante Lewis, isto é duro para o senhor, mas tudo se tornará mais fácil se pudermos fazer-lhe algumas perguntas.

- Aqui? - Era um protesto.

- Compreenderá porquê. Não demoraremos muito tempo. Quando viu a sua mulher pela última vez?

            - Há duas noites. Estava de partida para a Costa.. - E a que horas chegou a casa?

            - Há cerca de uma hora.

- Falou com a sua mulher nesses dois dias?

- Não.

- Qual era o estado mental da sua mulher quando partiu?

- Eu disse-lhe.

- E se dissesse ao doutor Carroll.

- Vangie estava preocupada. Andava com medo de abortar. - Ficou alarmado com essa possibilidade?

- Ficara com muito peso, parecia que estava a reter líquido, mas tinha comprimidos para isso, e sei que isso é uma situação comum.

- Telefonou ao obstetra para discutir isso com ele, para se tranquilizar?

- Não.

- Muito bem. Comandante Lewis, importa-se de observar este quarto e veja se falta alguma coisa. Não é fácil, mas examine atentamente o corpo da sua mulher e veja se há alguma coisa que esteja diferente. Por exemplo, aquele copo. Tem a certeza de que é o da sua casa de banho?

Chris obedeceu. O rosto ia ficando cada vez mais pálido, olhou cuidadosamente para cada detalhe da mulher morta.

Charley e Richard observavam-no com os olhos semicerrados.

- Não - murmurou ele por fim. - Nada.

O comportamento de Charley tornou-se vivo,

- Muito bem, sir. Assim que tirarmos algumas fotografias, levaremos o corpo da sua esposa para a autópsia. Podemos ajudá-lo a entrar em contato com alguém?

- Tenho de fazer alguns telefonemas. Para os pais de Vangie. Vão ficar com o coração destroçado, vou para o gabinete e telefono-lhes já.

Depois de ele sair, Richard e Charley trocaram olhares.

- Ele viu qualquer coisa que nós passamos em claro - disse Charley prontamente.

Richard acenou com a cabeça.

- Eu sei. - Os dois homens olharam de modo severo para o corpo encolhido.

 

Antes de desligar, Katie falara a Molly do acidente e alvitrara o almoço. Mas Jennifer, a filha de Molly com doze anos e os gémeos com seis estavam em casa a restabelecerem-se de um ataque de gripe.

- A Jennifer está bem, mas não gosto de deixar aqueles dois rapazes sozinhos o tempo suficiente para esvaziarem o lixo - dissera Molly, e combinaram que ela iria buscar Katie e a levaria para sua casa.

Enquanto esperava, Katie tomou banho rapidamente, conseguindo lavar e secar o cabelo apenas com o auxílio da mão direita. Vestiu uma camisola grossa de lã vermelha e umas calças de tweed com bom corte. A camisola vermelha dava um pouco de cor ao rosto, e o cabelo enrolado e solto mesmo abaixo da gola. Enquanto tomava banho e se vestia, tentou racionalizar a alucinação da noite anterior.

- Estivera mesmo à janela? Ou fora parte do sonho? Talvez a persiana tivesse subido de repente sem que ninguém lhe mexesse, arrancando-a de um pesadelo. Fechou os olhos quando a cena flutuou uma vez mais para a sua consciência. Parecia tão real; a luz da mala incidia diretamente no interior da mala, nos olhos esbugalhados, no cabelo comprido, nas sobrancelhas arqueadas. Por um instante parecera tão claro. Era isso que a apavorava: a nitidez da imagem. O rosto era familiar mesmo no sonho.

Deveria falar nisso a Molly? Claro que não. Ultimamente Molly andava preocupada com ela. «Katie, estás demasiado pálida. Trabalhas de mais. Estás a ficar demasiado taciturna,» Molly persuadira-a a submeter-se à operação marcada. «Não podes continuar assim indefinidamente. Essas hemorragias podem ser perigosas se não te tratares.» E depois acrescentara: «Tens de te mentalizar de que és uma mulher jovem. Devias ter umas férias a sério, descontraíres-te, saíres daqui.»

Do exterior, ouviu-se o som estridente de uma buzina quando Molly parou a velha carrinha. Katie vestiu com esforço um casaco quente de pele de castor, levantando a gola até às orelhas, e saiu com a rapidez que os joelhos inchados lhe permitiram. Molly abriu-lhe a porta e debruçou-se para a beijar, observando-a atentamente.

- Não estás propriamente resplandecente. Ficaste muito ferida.

- Podia ter sido muito pior. - O carro cheirava um pouco a manteiga de amendoim e a pastilha elástica. Era um cheiro reconfortante, familiar, e Katie sentiu-se mais animada. Mas a boa disposição desapareceu imediatamente quando Molly disse: - O nosso quarteirão está em desordem. A tua gente isolou a casa dos Lewis, e um detetive do teu serviço anda a fazer perguntas. Apanhou-me precisamente no momento em que ia a sair. Disse-lhe que era tua irmã e ambos afirmámos que eras maravilhosa.

Katie disse:

- Talvez fosse Phil Cunningham ou Charley Nugent. - Um homem alto. Rosto cheio. Simpático. - Phil Cunningham. É bom homem. Que tipo de perguntas estavam a fazer?

- Simples rotina. Se tínhamos reparado a que horas saíra ou regressara. Esse género de coisas.

- E tu reparaste?

- Quando os gémeos estão enjoados ou adoentados, não daria conta da entrada de Robert Redford na casa ao lado. Seja como for, num dia de sol mal conseguimos ver a casa dos Lewis, quanto mais à noite durante uma tempestade.

Atravessavam a ponte de madeira pouco antes da curva para Winding Brook Lane. Katie mordeu o lábio.

- Molly, deixas-me na casa dos Lewis, não deixas?

Molly virou-se para ela, surpreendida.

- Porquê?

Katie tentou sorrir.

- Bem, sou assistente do promotor de justiça, e sem qualquer garantia, também sou conselheira do departamento da Polícia de Chapin River. Normalmente não teria de ir, mas, uma vez que estou aqui, acho que devia.

O carro funerário do departamento do examinador médico entrava de marcha atrás na alameda da casa dos Lewis. Richard estava na soleira da porta a ver. Aproximou-se do carro quando Molly parou. Molly apressou-se a explicar:

- Katie vai almoçar comigo e pensou que devia parar aqui. Porque não vem com ela, se puder?

Ele concordou e ajudou Katie a sair do carro.

- Fico contente por estares aqui - disse ele. - Há uma coisa neste caso que não me agrada.

Agora que ela estava prestes a ver a mulher morta, Katie sentiu a boca a ficar seca. Recordou-se da imagem do rosto no seu sonho.

- O marido está no gabinete - disse Richard.

- Eu conheço-o. Tu também deves conhecê-lo. Na festa da Molly no dia de Ano Novo. Chegaste tarde. Foram-se embora antes de chegares.

Richard disse:

- Está bem. Será melhor falarmos disso mais tarde. O quarto é aqui.

Ela fez um esforço para olhar para o rosto familiar, e reconheceu-o imediatamente. Estremeceu e fechou os olhos. Estava a ficar louca?

- Sentes-te bem, Katie? - perguntou ele bruscamente. Que espécie de louca era ela?

- Sinto-me muitíssimo bem - disse ela, e para os seus próprios ouvidos a voz soou-lhe suficientemente normal. - Gostaria de falar com o comandante Lewis.

Quando chegaram ao gabinete, a porta estava fechada. Sem bater, Richard abriu-a silenciosamente. Chris Lewis estava ao telefone de costas viradas para eles. A voz era baixa, mas clara.

- Sei que é incrível, mas eu juro-te, Joan, que ela não sabia de nós.

Richard fechou a porta sem fazer barulho. Ele e Katie olharam espantados um para o outro. Katie disse:

- Vou dizer a Charley que fique aqui. vou informar Scott que iniciamos uma investigação completa. - Scott Myerson era o promotor de justiça.

- Eu mesmo farei a autópsia assim que a trouxerem - disse Richard. - Até agora temos a certeza que foi o cianido que a matou, é melhor começarmos por descobrir onde o arranjou. Vem daí! Não nos demoraremos muito na casa da Molly.

A casa de Molly, como o carro, era um lugar de normalidade. Katie muitas vezes parava lá para beber um copo de vinho ou jantar quando vinha do trabalho a caminho de casa. O cheiro a boa comida; o ruído dos pés dos miúdos nas escadas; o som estridente da televisão; as vozes ruidosas das crianças, que gritavam e bulhavam. Para ela era reentrar no mundo real depois de passar o dia a lidar com assassinos, raptores, assaltantes, vândalos, tarados, acusados de fogo posto e trapaceiros. E como ela adorava os Kennedy, a visita fazia-a apreciar a paz da sua própria casa. Exceto, claro, quando sentia o vazio da sua casa e tentava imaginar como seria se John ainda estivesse vivo e os filhos tivessem começado a chegar.

- Katie! Doutor Carroll! - Os gémeos apareceram a gritar para os cumprimentar. - Viu os carros da Polícia, Katie? Aconteceu qualquer coisa na casa ao lado! - Peter, mais velho dez minutos do que o irmão, era o que falava sempre.

- Mesmo aqui ao lado! - John intrometeu-se na conversa. Molly chamava-os «Peteand Repeat». - Os dois, desapareçam - ordenou ela. - E deixem-nos em paz enquanto comemos.

- Onde estão os outros miúdos? - perguntou Katie.

- Billy, Diná e Moira já foram para a escola esta manhã, graças a Deus - disse Molly. - Jennifer está na cama. Espreitei agora mesmo e voltou a adormecer. Pobrezinha, ainda se sente mal.

Sentaram-se à mesa da cozinha. A cozinha era grande e bastante quente. Molly tirou a comida do forno, ofereceu bebidas, que eles recusaram, e coou café. «Molly sabe cozinhar», pensou Katie. Tudo o que ela arranjava sabia bem. Mas quando Katie tentou comer, verificou que a garganta estava tapada. Olhou de relance para Richard. Ele cobrira a carne de conserva com mostarda quente e comia com manifesto prazer. Invejava-lhe a indiferença. Por um lado, ele era capaz de apreciar um bom sanduíche. Por outro lado, ela tinha a certeza de que se concentrava no caso Lewis. A testa estava enrugada; a espessa cabeleira castanha parecia eriçada; os olhos cinzento-azulados estavam pensativos; os ombros largos e magros arqueados enquanto tamborilava com dois dedos na mesa. Apostava que ambos estavam a pensar na mesma pergunta: quem estava a falar com Chris Lewis ao telefone?

Recordou a única conversa que tivera com Chris. Fora na festa de Ano Novo, e falaram de assaltos. Ele era interessante, inteligente, amável. Com a sua beleza rude, era um homem muito atraente. E lembrou-se que ele e Vangie estavam em extremos opostos da sala apinhada de gente e que ele ficara acabrunhado quando ela, Katie, o felicitara pelo nascimento iminente do bebé.

- Molly, que impressão tinhas dos Lewis? Refiro-me ao seu relacionamento - perguntou ela.

Molly parecia perturbada.

- Para ser franca, penso que estava desfeito. Ela estava tão preocupada com a gravidez que sempre que estavam aqui falava de bebés, e ele, obviamente, estava perturbado. E eu contribuí para a gravidez, foi uma inquietação para mim.

Richard deixou de tamborilar com os dedos e endireitou-se.

- Você fez o quê?

- Bem, quero dizer, tu conheces-me, Katie. No dia em que se mudaram para aqui, no Verão passado, fui logo lá e convidei-os para o jantar. Eles vieram, e Vangie disse-me imediatamente que tinha esperança de ter um filho e que estava muito preocupada por os seus melhores anos para engravidar estarem a chegar ao fim porque fizera trinta anos. Molly bebeu um gole de Bloody Mary e olhou com pesar para o copo vazio.

- Falei-lhe de Liz Berkeley. Nunca conseguiu engravidar até ir a um ginecologista, que é um especialista em fecundidade. Liz dera à luz uma menina e, claro, ficou extática. Seja como for, falei no doutor Highley a Vangie. Ela foi ter com ele e alguns meses depois engravidou. Mas desde então lamento ter-me envolvido.

- Doutor Highley? - Katie parecia surpreendida.

É Molly acenou com a cabeça, - sim, aquele que vai... Katie abanou a cabeça, e a voz de Molly perdeu-se.

 

Edna Burlas gostava do seu trabalho. Era guarda-livros e recepcionista de dois médicos que recrutavam pessoal e dirigiam a equipa da Maternidade Westlake. «O doutor Highley é uma pessoa muito importante», confiava ela aos amigos. «Sabes, era casado com Winifrèd Westlake e ela deixou-lhe tudo. É ele quem manda em tudo.»

O doutor Highley era ginecologista/obstetra, e como Edna explicava: «É uma algazarra ver como as suas doentes reagem quando conseguem engravidar; tão felizes que pensaríamos que inventavam crianças. Leva-lhes couro e cabelo, mas é por assim dizer um taumaturgo.»

«Por outro lado», explicava ela, «Highley também é a pessoa certa para ver se uma pessoa tem um problema interno que não se quer que progrida. Se percebe o que quero dizer», acrescentava com um piscar de olhos.

O doutor Fukhito era psiquiatra. A Maternidade Westlake era uma daquelas em que se praticava medicina holística; a mente e o corpo devem estar em harmonia para se conseguir uma gravidez com êxito, e muitas mulheres não eram capazes de engravidar porque estavam carregadas emocionalmente de medo e ansiedade. Todas as doentes de ginecologia consultavam o doutor Fukhito pelo menos uma vez, mas as grávidas precisavam de fazer visitas regulares.

Edna gostava de dizer aos amigos que o Centro de Concepção Westlake tinha sido idealizado pelo velho doutor Westlake, que morrera antes de pôr em prática a ideia e depois, há oito anos, a sua filha Winifred casara com o doutor Highley, comprara a Clínica River Falis quando esta abria falência, deu-lhe o nome do pai e colocou o marido na direção da mesma. «Ela e o doutor eram loucos um pelo outro», Edna dizia soltando um suspiro. «Quero dizer que ela era dez anos mais velha do que ele e nada bonita, mas eram autênticos namorados. Ele fazia-me mandar-lhe flores duas vezes por semana, e, atarefado como estava, ia com ela comprar a sua roupa. Deixa-me que te diga que foi um choque quando ela morreu. Ninguém sabia que estava tão mal do coração.»

«Mas», acrescentava filosoficamente, «ele está sempre ocupado. Vi mulheres que nunca conseguiam engravidar ficarem grávidas duas e três vezes. Claro, muitas delas não chegam ao fim da gravidez, mas pelo menos sabem que existe uma possibilidade. E devias ver o cuidado que elas têm. - vi o doutor Highley trazer mulheres para aqui e interná-las no hospital durante dois meses antes do nascimento. Custa uma fortuna, evidentemente, mas acredita em mim, quando se quer um filho e se tem recursos, paga-se qualquer coisa para o conseguir. Mas tu mesma podes ler isto, muito em breve», acrescentava. «A revista Newsmaker acaba de elaborar um artigo sobre ele e sobre a Maternidade Westlake. Sai na quinta-feira. Vieram na semana passada e fotografaram-no no escritório ao pé das fotografias de todos aqueles bebés a cujos partos assistiu. Foi mesmo bonito. E se pensas que temos muito que fazer agora, espera até sair o artigo. O telefone nunca estará no gancho.»

Edna era uma guarda-livros inata. Os seus registos eram maravilhas de precisão. Adorava receitas e sentia um orgulho sensual em fazer depósitos frequentes e substanciais na conta bancária do patrão. Uma tabuleta elegante, mas espalhafatosa, sobre a sua secretária informava que todos os pagamentos tinham de ser feitos em dinheiro; não seriam enviadas contas mensais; os honorários e tabelas de pagamento seriam explicadas por Miss Burns.

Edna fora informada pelo doutor Highley que a não ser que lhe fossem dadas instruções em contrário deveria marcar logo as próximas consultas com as pessoas quando saíssem; que, se por qualquer razão a doente faltasse à consulta, Edna deveria telefonar para casa dessa doente e marcar nova consulta. Era uma disposição correta e, como Edna salientava alegremente, uma bonança financeira.

O doutor Highley dava sempre os.parabéns a Edna pelos excelentes registos que mantinha e pela sua habilidade em ter sempre cheio o livro de consultas. A única vez que o doutor Highley lhe falou com mais rispidez foi quando a ouviu por acaso a conversar com uma doente acerca dos problemas das outras doentes. Ela teve de admitir que fora uma insensatez, mas dera-se ao luxo de beber alguns manhattans ao almoço nesse dia, e isso enfraquecera a sua atenção.

O médico terminara o sermão dizendo: «Nada de conversa, senão fica em maus lençóis.»

Ela sabia que ele falava a sério.

Edna suspirou. Estava cansada. Na noite anterior ambos os médicos tinham estado de serviço e houvera muita agitação. Depois trabalhara nos livros durante algum tempo. Estava ansiosa por ir para casa nessa noite, e nem cavalos selvagens a fariam sair outra vez. Vestiria um roupão e prepararia uma série de manhattans. Tinha presunto enlatado no frigorífico, portanto isso seria a sua ceia, e veria televisão.

Eram quase duas horas. Mais três horas e ela podia ir-se embora. Enquanto não havia barulho teria de verificar a lista do dia anterior para se certificar de que marcara todas as consultas necessárias. Franzindo as sobrancelhas como um míope, apoiou o rosto largo, sardento numa mão grossa. O cabelo nesse dia estava em desalinho. Não tivera tempo de o arranjar na noite anterior. Sentira-se um tanto cansada depois de tomar algumas bebidas.

Era uma mulher excessivamente forte de quarenta e quatro anos de idade que parecia dez anos mais velha. A sua mocidade ázima fora passada a cuidar de parentes que envelheciam. Quando Edna via as fotografias da Escola de Secretariado Drake ficava vagamente surpreendida com a rapariga bonita que era há vinte e cinco anos. Sempre um pouco pesada de mais mas bonita apesar de tudo.

O seu pensamento estava concentrado em parte na página que estava a ler, mas depois algo despertou toda a sua atenção.

Parou. A consulta das oito horas da noite anterior para Vangie Lewis.

Na véspera, Vangie chegara cedo e sentou-se a conversar com Edna. Estava deveras preocupada. Bem, Vangie era um pouco queixosa, mas tão bonita que Edna gostava só de olhar para ela. Vangie engordara bastante durante a gravidez e, para o olho clínico de Edna, estava a reter muito líquido. Edna rezava para que Vangie tivesse aquele bebé sem problemas. Ela desejava-o com tanto ardor.

Por isso não censurava Vangie por ter caprichos de temperamento. Realmente não estava bem. No mês anterior começara a usar aqueles mocassins porque os outros sapatos já não lhe serviam. Mostrara-os a Edna. «Olhe para isto. O meu pé direito está tão mal, só consigo trazer estas chancas que a minha mulher da limpeza deixou ficar. O outro está sempre a cair.»

Edna brincara com ela. «Então, com esses chinelos de vidro terei de começar a chamar-lhe Cinderela. E chamaremos ao seu marido Príncipe Encantado.» Ela sabia que Vangie gostava muito do marido.

Mas Vangie limitara-se a fazer beicinho e a dizer com impaciência: «Oh, Edna, o Príncipe Encantado era o namorado da Bela Adormecida, não da Cinderela. Toda a gente sabe isso.»

Edna rira. «A mãezinha devia estar confundida. Quando me falou da Cinderela disse que o Príncipe Encantado apareceu com o chinelo de vidro. Mas isso não tem importância antes de saber isso, já terá o seu bebé e estará aqui outra vez com uns sapatos lindos.»

Na noite anterior Vangie levantara o cafetã comprido que passara a vestir para esconder a perna inchada. «Edna», dissera ela, «quase não consigo calçar este sapato. E para quê? Deus Onipotente, para quê?» Estava quase a chorar.

«Oh, está apenas a ficar deprimida, querida», dissera Edna. «É bom ter vindo para falar com o doutor Fukhito. Ele fará com que se descontraia.»

Precisamente nesse momento o doutor Fukhito tocara e dissera para mandar entrar Mrs. Lewis. Vangie atravessou o corredor rumo ao seu escritório. Assim que se afastou da área da recepção, tropeçou. Caminharia sem aquele sapato esquerdo, que não se segurava.

- Oh, que vá para o diabo! - gritou ela, e continuou a caminhar. Edna apanhou o mocassin, calculando que Vangie viria buscá-lo quando terminasse a consulta com o doutor Fukhito.

Edna ficava sempre até tarde nas noites de segunda-feira para trabalhar nos livros. Mas, quando estava pronta para ir para casa por volta das nove horas, Vangie ainda não voltara. Edna resolveu correr o risco e telefonar ao doutor Fukhito dizendo apenas que deixaria o sapato no lado de fora da porta do escritório no corredor.

Mas ninguém respondeu do escritório do doutor Fukhito. Isso significava que Vangie saíra pela porta que dava para o parque de estacionamento. Era uma loucura. Ela iria morrer de frio se molhasse o pé.

Indecisa, Edna ficara com o sapato na mão e fechara a porta à chave. Saiu para o parque de estacionamento encaminhando-se para o carro mesmo a tempo de ver o enorme Lincoln Continental vermelho de Vangie com o doutor Highley ao volante a arrancar. Tentara correr para lhe acenar, mas não adiantou. Por isso iria para casa.

Talvez o doutor Highley já tivesse marcado uma nova consulta com Vangie, mas Edna telefonar-lhe-ia para se certificar. Marcou rapidamente o número dos Lewis. O telefone tocou uma, duas vezes.

Uma voz de homem respondeu:

- Residência dos Lewis.

- Mrs. Lewis, por favor - Edna deu à voz o Tom seco mas amistoso da Escola de Secretariado Drake. Não sabia se estava a falar com o comandante Lewis.

- Quem fala?

- Do escritório do doutor Highley. Desejamos marcar a próxima consulta de Mrs. Lewis.

- Um momento.

Ela podia afirmar que estavam a tapar o auscultador. Ouviam-se vozes abafadas. Que se poderia estar a passar? Talvez Vangie tivesse adoecido. Se assim fosse, o doutor Highley devia ser informado imediatamente.

A voz do outro lado ouviu-se de novo.

- Aqui fala o detetive Cunningham do departamento do promotor de justiça de Valley County. Lamento, mas Mrs. Lewis morreu de repente. Pode dizer ao médico que será contactado amanhã de manhã por alguém do nosso departamento.

- Mrs. Lewis morreu! - A voz de Edna foi um gemido de consternação. - Oh, que aconteceu?

Houve uma pausa.

- Parece que se suicidou. - Cortaram a ligação.

Edna baixou lentamente o auscultador. Não era possível. Não era possível.

As suas doentes da consulta das duas horas chegaram ao mesmo tempo: Mrs. Volmer para o doutor Highley, Mrs. Lashley para o doutor Fukhito. Edna cumprimentou-as maquinalmente.

- Sente-se bem, Edna? - perguntou Mrs. Volmer cheia de curiosidade. - Parece incomodada.

Ela sabia que Mrs. Volmer falara algumas vezes com Vangie na sala de espera. Estava-lhe debaixo da língua dizer-lhe que Vangie morrera. Mas um instinto avisou-a para dizer primeiro ao doutor Highley.

A doente da consulta da uma e meia saiu. Ele ouviu-se no intercomunicador:

- Edna, mande entrar Mrs. Volmér. - Edna lançou um olhar às mulheres. Ela não podia falar no intercomunicador sem que elas a ouvissem.

- Doutor, posso entrar por um instante, por favor? Queria falar com o senhor. - Aquilo soou a eficiência. Ela estava satisfeita com o seu próprio controle

- Certamente. - Ele não parecia muito contente. Highley era um pouco assustador; no entanto conseguia ser simpático. Ela vira isso na noite anterior.

Atravessou o vestíbulo com a rapidez que o corpo excessivamente pesado lhe permitia. Arfava quando bateu à porta do escritório. Ele disse:

- Entre, Edna. - A sua voz deixava transparecer a irritação. Timidamente abriu a porta e entrou no escritório.

- Doutor - começou precipitadamente -, o senhor precisa de saber. Telefonei agora mesmo a Mrs. Lewis, Vangie Lewis, para marcar uma consulta. O senhor disse-me que a queria ver todas as semanas.

- Sim, sim. E, por amor de Deus, Edna, feche essa porta. A sua voz pode ouvir-se em todo o hospital.

- Ela obedeceu prontamente. Tentando não levantar o Tom de voz, disse:

- Doutor, quando telefonei para a casa dela, respondeu um detetive. Ele disse que ela se matou e que vêm falar com o senhor amanhã.

- Mrs. Lewis o quê? - Ele parecia chocado.

Agora que podia falar, as palavras de Edna amontoavam-se-lhe na boca, saindo em catadupa.

- Estava tão perturbada ontem à noite, não estava, doutor? Quero dizer, ambos o vimos. A maneira como falou comigo e como se comportou dava a impressão de que não se importava com nada. Mas o senhor deve saber isso; pensei que era a coisa mais simpática quando vi o senhor levá-la a casa ontem à noite. Tentei fazer-lhe sinal, mas não me viu. Por isso penso que melhor do que ninguém o senhor sabe como ela estava mal.

- Edna, com quantas pessoas falou acerca disto? Havia qualquer coisa no seu tom que a pôs muito nervosa.

Desorientada, evitou o seu olhar.

- Com ninguém, sir. Soube agora mesmo.

- Não falou da morte de Mrs. Lewis a Mrs. Volmer ou a qualquer outra pessoa na área da recepção?

- Não... não, sir.

- Nem ao detetive ao telefone?

-Não,sir.

- Edna, amanhã quando vier a Polícia, a senhora e eu contar-lhes-emos tudo o que sabemos do estado de espírito de Mrs. Lewis. Mas agora preste atenção. - Ele apontou para ela e curvou-se. Inconscientemente, ela recuou. - Não quero que mencione o nome de Mrs. Lewis a ninguém - ninguém, está a ouvir? Mrs. Lewis era uma mulher extremamente neurótica e instável. Mas na realidade o seu suicídio reflete-se negativamente no nosso hospital. Qual pensa que será a impressão que causará se sair nos jornais que ela era minha paciente? E não quero de forma alguma que tagarele na sala da recepção com as outras doentes, algumas das quais têm uma gravidez difícil. Percebe-me?

- Percebo, sir - disse Edna com voz trémula. Ela devia saber que ele iria pensar que daria com a língua nos dentes.

- Edna, gosta do seu trabalho?

- Gosto sim, sir.

- Edna, não comente com ninguém -ninguém, preste atenção - uma palavra sobre o caso Lewis. Se souber que disse uma palavra acerca disto, deixará de trabalhar aqui. Amanhã falaremos com a Polícia, mas mais ninguém. O estado de espírito de Mrs. Lewis é confidencial. Entendido?

- Sim, sir.

- Hoje à noite vai sair com amigos? Você sabe como fica quando bebe.

Edna estava quase a chorar.

- Vou para casa. Não me estou a sentir bem, doutor. Quero ter a cabeça no lugar amanhã quando a Polícia falar comigo. Pobre Cinderela. - Ela reprimiu as lágrimas quando afloraram os olhos. Mas nessa altura viu a expressão do seu rosto. Encolerizado. Descontente.

Edna endireitou-se, passou a mão pelos olhos.

- Vou mandar entrar Mrs. Volmer, doutor. E o senhor não precisa de se preocupar - acrescentou ela com dignidade. - Eu tenho em grande conta o seu hospital. E sei a importância que o seu trabalho tem para o senhor e para as suas doentes. Não vou dizer uma só palavra.

O resto da tarde foi agitado. Conseguiu esquecer Vangie enquanto conversava com as doentes, marcava futuras consultas, recebia dinheiro, chamava a atenção das doentes se estas estavam atrasadas nos pagamentos.

Finalmente, pôde ir-se embora às cinco horas. Bem agasalhada com um casaco de imitação de pele de leopardo e com um chapéu a condizer, conduziu o carro em direção ao seu apartamento com jardim em Edgeriver, a seis milhas.

 

Na sala de autópsias, clinicamente impessoal, da Morgue de Valley County, Richard Carroll retirou com todo o cuidado o feto do cadáver de Vangie. Os seus dedos, compridos e sensíveis, ergueram o pequeno corpo, notando que o líquido amniótico começara a sair. Vangie Lewis não podia ter trazido no ventre este bebé por muito mais tempo. Calculou que pesasse cerca de duas libras e meia. Era um rapaz. O primeiro filho. Ele abanou a cabeça, lamentando a destruição de uma vida quando o colocou numa prancha adjacente. Vangie estava num adiantado estado de toxemia. Era incrível que um médico a tivesse deixado chegar àquele ponto nestas condições. Ele gostaria de saber qual era a percentagem de glóbulos brancos. Provavelmente muitíssimo alta.

Já mandara amostras de fluido para o laboratório. Ele tinha a certeza que o cianido matou a mulher. A garganta e a boca estavam muito queimadas. Ela engolira muito, que Deus a guarde.

As queimaduras na parte exterior da boca? Richard examinou-as cuidadosamente. Tentou visualizar o momento em que ela bebera o veneno. Começara a engolir, sentiu o ardor, mudou de ideias, tentou cuspi-lo. Ele escorrera para os lábios e para o queixo.

Tinha as suas dúvidas.

Havia filamentos brancos presos no casaco. Pareciam de um cobertor. Mandou-os analisar. Tinha a impressão que ela estivera deitada em cima de uma colcha com cordões de veludo. Queria comparar as fibras da colcha com as extraídas do casaco. Claro que o casaco estava muito usado, e elas podiam ter-se agarrado em qualquer outra altura.

O corpo ficara tão inchado que parecia que Vangie vestira a roupa que conseguira encontrar que a pudesse tapar.

À exceção dos sapatos. Era outro aspecto incongruente. Os sapatos eram elegantes e caros. Mais do que isso, pareciam novos. Era pouco provável que Vangie pudesse ter saído na segunda-feira com eles e ficar com eles em estado de novo. Não tinham pintas de água nem manchas de neve, apesar dos tornozelos das meias-calças terem salpicos de neve com lama. Isso não dava a entender que ela devia ter saído, entrado, resolvido sair outra vez, trocado de sapatos e suicidado em seguida?

Isto também não era plausível.

Outra coisa. Aqueles sapatos estavam muito apertados. Principalmente o do pé direito. Ela mal podia apertar o sapato, e a gáspea era estreita. Seria como meter os pés num torno. Tendo em conta a forma como ela estava vestida, porquê dar-se ao trabalho de calçar uns sapatos que nos matarão?

Sapatos que nos matarão...

Richard não deixava de pensar na frase. Endireitou-se. O seu trabalho ali estava quase a terminar. Assim que tivessem um relatório do laboratório podia dizer a Scott Myerson o que descobrira. Virou-se para examinar uma vez mais o feto. O cianido entrara no sangue. Como a mãe, devia ter sentido as agonias da morte. Richard examinou-o cuidadosamente. O milagre da vida nunca deixara de lhe inspirar temor. Quanto mais não fosse, aumentava com cada experiência que tinha com a morte. Maravilhava-se com o equilíbrio delicado do corpo: a harmonia dos seus órgãos, músculos e fibras, ossos e tendões, veias e artérias; a complexidade extrema do sistema nervoso, a capacidade do corpo para curar as suas próprias lesões, a tentativa complexa para proteger o que não nasceu ainda.

De repente debruçou-se sobre o feto. Libertou-o rapidamente da placenta e examinou-o debaixo da lâmpada forte. Seria possível?

Era um pressentimento, um pressentimento que tinha de clarificar. Dave Broad era o homem que lhe interessava. Dave estava encarregado da investigação pré-natal em Mt. Sinai. Mandar-lhe-ia o feto e pediria uma opinião.

Se aquilo que ele pensava estava certo, havia um bom motivo para que o comandante Chris Lewis estivesse preocupado com a gravidez da mulher.

Talvez até suficientemente aborrecido para a matar!

 

Scott Myerson, o promotor de justiça de Valley County, marcou uma reunião para as cinco horas no seu escritório com a presença de Katie, Richard e os dois detetives da Brigada de Homicídios destacados para o suicídio de Lewis. O escritório de Scott não condizia com as imagens televisivas de todo o mundo dos aposentos privados de um promotor de justiça. Era pequeno. As paredes estavam pintadas com um amarelo-pálido. A mobília estava danificada; os ficheiros antigos eram cinzentos-escuros. As janelas davam para a prisão do distrito.

Katie foi a primeira a chegar. Sentou-se cuidadosamente na única cadeira razoavelmente confortável. Scott olhou para ela com um sorriso velado. Era um homem baixo com uma voz surpreendentemente forte. Uns óculos com armações largas, um bigode negro e bem aparado e um fato clássico meticulosamente talhado faziam-no parecer mais com um banqueiro do que com um agente da lei. Estivera todo o dia no tribunal num caso que ele mesmo julgava e falara com Katie apenas pelo telefone. Agora observava o braço ligado e a ferida debaixo do olho e o estremecimento de dor que lhe crispou o rosto quando mexeu o corpo.

- Obrigado por ter vindo - disse ele. - Sei que está sobrecarregada com trabalho, e eu avalio o que isso é. Mas seria melhor não trabalhar amanhã.

Katie abanou a cabeça.

- Não. Estou bem, e provavelmente de manhã já não sentirei tantas dores.

- Está bem, mas não se esqueça, se se começar a sentir mal, vá para casa. - Ele tornou-se sério. - O caso Lewis. Fizemos algum progresso?

Richard e os detetives entraram enquanto ela falava. Acomodaram-se discretamente nas três cadeiras portáteis que restavam.

Scott batia com o lápis na secretária enquanto escutava. Voltou-se para os detetives.

- Que descobriram?

Phil Cunningham tirou a agenda.

- Aquela casa não era um ninho de amor. Os Lewis foram a algumas reuniões de vizinhos. - Ele olhou para Katie.

            - Imagine que a sua irmã tentou incluí-los. Toda a gente gostava de Chris Lewis. Pensavam que Vangie era intratável obviamente com inveja dele; sem interesse em se envolverem com nenhuma atividade na comunidade; sem interesse em nada. Nas festas ela seguia-o sempre de perto; ficava mesmo aborrecida quando ele falava mais de cinco minutos com outra mulher. Ele tinha muita paciência com ela. Uma das vizinhas disse que o marido lhe disse depois de uma dessas festas que se ele fosse casado com a Vangie, matá-la-ia com as suas próprias mãos. Depois, quando ela ficou grávida, tornou-se verdadeiramente insuportável. Estava sempre a falar de bebés.

Charley abrira a agenda.

- Telefonaram do escritório do obstetra para marcarem uma consulta. Disse que amanha iríamos falar com o médico.

Richard disse calmamente:

- Há algumas perguntas sobre o estado de Lewis que gostaria de fazer a esse médico. Scott olhou para Richard.

- Terminou a autópsia?

- Terminei. Foi cianido, sem sombra de dúvida. Morreu instantaneamente. A boca e a garganta estavam muito queimadas. O que leva ao ponto crucial.

Havia um jarro de água e copos da papel em cima do ficheiro. Aproximando-se do ficheiro, Richard deitou bastante água num copo de papel.

      - Muito bem - disse ele - isto está cheio de cianido dissolvido. Vou-me matar. Bebo um trago.

- Engoliu rápidamente. O copo de papel ainda estava quase meio. Os outros observavam-no atentamente.

Ele mostrou o copo.

- Na minha opinião, Vangie Lewis deve ter bebido pelo menos os aproximadamente 85,2 cm3 que engoli agora mesmo para termos a quantidade de cianido que encontrámos no seu organismo. Até aqui tudo certo. Mas aqui reside o problema. A parte exterior dos lábios, queixo e mesmo o pescoço estavam queimados. Isso só poderia ter acontecido se ela tivesse cuspido parte do veneno... Mas se ela engolisse tanto quanto engoliu de um trago, isso significa que a boca ficou sem nada. Teria bebido outra vez e cuspido? De jeito nenhum. A reação é instantânea.

- Ela não podia ter engolido um pouco e cuspido o resto? - perguntou Scott.

Richard encolheu os ombros.

- Havia uma quantidade demasiado grande no organismo e no rosto que sugerisse meia dose. No entanto a quantidade derramada na colcha era insignificante, e havia apenas algumas gotas no fundo do copo. Portanto, se ela tivesse derramado de algum modo nos lábio e no queixo, depois de bebe justificaria a quantidade consumia. Pode ter acontecido, mas não creio. Outro problema são os sapatos que tinha calçado.

Explicou rapidamente que não acreditava que Vangie Lewis pudesse caminhar confortavelmente com aqueles sapatos que tinha apertados com os atacadores aos seus pés. Enquanto escutava, Katie visualizou o rosto de Vangie. O rosto sem vida que vira no sonho e o rosto sem vida que vira na cama deslizava para trás e para a frente no seu espírito. Tentou concentrar-se de novo na sala e apercebeu-se que Charley estava a falar com Scott.

-... Richard e eu pensamos que o marido notou qualquer coisa no corpo que não nos disse.

- Suponho que foram os sapatos - disse Richard. Katie virou-se para ele.

- O telefonema que Chris Lewis fez. Já lhe falei nisso, Scott.

- Falou. - Scott reclinou-se na cadeira. - Muito bem. Vocês dois - ele apontou para Charley e Phil - descubram tudo o que puderem sobre o comandante Lewis. Vejam quem é essa Joan. Descubram a que horas chegou o avião dele esta manhã. Investiguem todos os telefonemas que Vangie Lewis fez nos últimos dias. Mandem Reta ao médico de Mrs. Lewis e que consiga a sua opinião sobre o estado mental e físico.

- Eu posso dizer-lhe qual o seu estado físico - disse Richard. - Se ela não tivesse o filho num curto espaço de tempo, não teria precisado do cianido.

- Há outra coisa - disse Scott. - Onde arranjou ela o cianido?

- Não há nenhum vestígio dele na casa - informou Charley. Nem uma gota. Mas parece que ela fazia jardinagem. Talvez tivesse guardado algum do ano passado.

- Para o caso de resolver suicidar-se? - A voz de Scott não era irónica. - Há mais alguma coisa? Richard hesitou.

- Talvez haja - disse ele lentamente. - Mas é tão remoto... e em função do que acabo de ouvir, penso que estou no caminho errado. Por isso dê-me mais vinte e quatro horas. Então talvez tenha mais alguma coisa a comunicar.

Scott acenou com a cabeça.

- Venham ter outra vez comigo. - Ele levantou-se. Creio que estamos todos de acordo. Não vamos encerrar o caso, considerando-o um suicídio. - Olhou para Richard. -Mais uma pergunta. Há alguma possibilidade de ela ter morrido noutro lugar qualquer e ter sido colocada de novo na cama?

Richard franziu as sobrancelhas.

- É possível... mas a forma como o sangue coagulou no corpo diz-me que estava na posição em que a encontrámos desde o momento em que ingeriu aquele cianido.

- Muito bem - disse Scott. - Apenas uma ideia. Ponhamos uma pedra no assunto por hoje.

Katie começou a levantar-se.

- Sei que é um disparate, mas... - Sentiu o braço de Richard a ampará-la.

- Estás mesmo perra - interrompeu ele.

Por um instante estivera quase a contar-lhes o sonho disparatado que tivera no hospital. A voz dele fê-la voltar à realidade. Teriam pensado que estava louca. Agradecida, sorriu a Richard.

- Perra sobretudo na cabeça, suponho - comentou ela.

 

Ele não podia deixar que Edna destruísse todo o seu trabalho. As mãos agarraram o volante com firmeza. Sentiu-as tremer. Tinha de se acalmar.

A ironia requintada de ela ser a única pessoa que o vira tirar o Lincoln do parque de estacionamento. Obviamente que presumira que Vangie estava com ele dentro do carro. Mas assim que ela contasse a sua história à Polícia, tudo estaria acabado. Ele conseguia ouvir as perguntas: «Doutor, o senhor levou Mrs. Lewis a casa? Que fez depois de a deixar em casa? Chamou um táxi? A que horas foi isso, doutor? Miss Burlas diz-nos que o senhor saiu do parque de estacionamento pouco depois das nove da noite.»

A autópsia provaria certamente que Vangie morrera por volta dessa hora. Que pensariam se lhes dissesse que voltara a pé para o hospital com aquela tempestade?

Edna tinha de ser silenciada. A maleta estava no assento ao lado dele. Dentro dela estava apenas o pisa-papéis da secretária do escritório. Geralmente não se dava ao trabalho de trazer uma maleta, mas levara-a essa manhã com a intenção de meter lá o mocassin. Tencionava ir jantar a Nova Iorque e deixar os sapatos em duas latas do lixo que seriam recolhidas de manhã.

Mas nessa manhã Hilda chegara cedo. Ficou no vestíbulo a conversar com ele enquanto vestia o sobretudo verde de fweed. Ela dera-lhe o chapéu e a maleta. Era impossível mudar os mocassins da Burberry para a maleta à frente dela. Que teria pensado? Mas tinha importância. A Burberry estava no fundo do armário. Ela não tinha nenhuma precisão de chegar perto dela, e, nessa noite, quando acabasse com Edna, iria para casa. Livrar-se-ia dos sapatos na noite do dia seguinte. Era uma sorte Edna viver tão perto do hospital. Era por isso que ele conhecia o seu apartamento. Deixara-lhe várias vezes trabalho para fazer quando ficava retida na cama com ciática. Ele teria apenas de verificar o número do apartamento para se certificar. Teria de fazer com que parecesse um assassínio perpetrado durante um assalto à mão armada. O departamento de Katie DeMaio interferiria, mas certamente não relacionaria o homicídio de uma guarda-livros desconhecida nem com o patrão nem com Vangie Lewis.

Tirar-lhe-ia a carteira, apanharia alguma jóia que ela tivesse. Dando tratos ao juízo, lembrou-se que ela possuía um broche em forma de borboleta com um rubi minúsculo e um anel de noivado com um pequeno diamante incrustado. Mostrara-lhos quando deixara trabalho em sua casa há alguns meses.

«Este era o anel da minha mãe, doutor», dissera com orgulho. «O papá e ela apaixonaram-se no primeiro encontro e ele ofereceu-lho no segundo encontro. O senhor acreditaria que na altura os dois já estavam na casa dos quarenta? O papá deu-mo quando a mamãee morreu. Isso aconteceu há três anos, e o senhor sabe que ele viveu apenas dois meses depois da sua morte. Claro, a mamãee tinha uns dedos mais finos, e é por isso que o uso no dedo mínimo. E ele deu-lhe o broche quando fizeram dez anos de casados.»

Ouvira com irritação a narrativa fastidiosa, mas agora percebia que, como tudo, era potencialmente útil. Sentara-se junto à cama. Ela guardava a caixa das jóias, barata e de plástico, na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Aquele anel, o broche e a carteira da bolsa de mão seriam fáceis de levar e estabeleceriam claramente a ligação do assassínio com o roubo.

Depois livrar-se-ia deles e dos sapatos, e isso seria o fim.

Excetuando Katie DeMaio.

Umedeceu o lábio superior com a parte de dentro do lábio inferior. A boca estava seca.

Ele tinha de pensar no apartamento de.Edna. Como iria entrar? Atrever-se-ia a tocar à campainha, a fazer com que ela o deixasse entrar? E se não estava sozinha?

Mas estaria sozinha. Ele tinha a certeza. Ela ia para casa para beber. Ele podia afirmá-lo pelos movimentos nervosos e ansiosos que ela fez enquanto a via do corredor. Estava excitada, perturbada, obviamente ocupada com as histórias que queria contar à Polícia no dia seguinte.

Uma transpiração gelada ensopou-o quando pensou que ela podia ter resolvido falar com as doentes na sala de recepção antes de lhe falar de Vangie. As Ednas deste mundo precisam de uma audiência. Escutem-me. Reparem em mim. Eu existo!

«Não por muito tempo, Edna, não por muito tempo.»

Ele entrava com o carro na área do seu apartamento. A última vez deixara o carro atrás do apartamento numa das coberturas para as visitas. Arriscar-se-ia agora a conduzir o carro até lá? Estava frio, ventoso, escuro. Poucas pessoas andariam por ali. Alguém que viesse a chegar não o faria devagar nem repararia num carro perfeitamente vulgar, escuro e de preço médio. Da última vez contornara a esquina do bloco de apartamentos. Ela vivia no rés-do-chão do último apartamento. Arbustos espessos tentavam esconder um cadeado enferrujado que separava o complexo de uma ravina escarpada que tinha uma dúzia de pés de altura e terminava nas linhas férreas, de um ramal da linha principal.

A janela do quarto de Edna dava para o parque de estacionamento. Havia arbustos altos e por podar debaixo da janela. A janela ficava ao nível do solo - bastante baixa, se bem se lembrava. E se a janela não estivesse trancada? Àquela hora, se ele não estivesse enganado, Edna estaria embriagada. Ele podia entrar e sair pela janela. Isso daria credibilidade ao assalto. Caso contrário, tocaria à campainha, entraria, matá-la-ia e sairia depois. Mesmo que fosse descoberto, fosse visto, diria simplesmente que passara por lá para deixar uma papelada, depois resolvera não a deixar porque ela estava a beber. Um intruso qualquer podia ter entrado mais tarde. Ninguém no seu perfeito juízo acusaria um médico abastado de roubar uma guarda-livros sem dinheiro.

Satisfeito, abrandou quando se aproximou do complexo de apartamentos. Os dois blocos, precisamente iguais, pareciam hirtos e abandonados na noite fria de Fevereiro.

No parque de estacionamento havia meia dúzia de carros. Parou o carro no meio de um camper e uma carrinha. O seu carro perdia-se no espaço semelhante a uma caverna que os veículos de maior envergadura forneciam. Calçou as luvas das operações e meteu o pisa-papéis no bolso do casaco. Saindo discreta e cautelosamente, fechou a porta sem fazer barulho e desapareceu nas sombras escuras projetadas pelo prédio. Deu graças aos deuses por Edna viver no último apartamento. Era absolutamente impossível enganar-se no caminho.

A persiana do quarto estava quase toda descida, mas tinha uma planta na janela. A persiana estava pousada no cimo da planta, e ele podia ver perfeitamente. O quarto estava iluminado por um candeeiro de vestíbulo. A janela só tinha uma fresta. Ela devia estar na sala de estar ou na zona de refeições. Ouvia o som fraco de um programa da televisão. Entraria pela janela.

Olhando rapidamente em redor, certificou-se uma vez mais de que a zona estava deserta. Com uns dedos enluvados e fortes como o aço levantou a janela, puxou a persiana para cima sem fazer barulho, pegou silenciosamente na planta e pousou-a no chão. Mais tarde seria uma prova evidente do método de entrada. Içou-se para cima do peitoril. Para um homem alto era surpreendentemente ágil.

Estava no quarto. Na luz fraca absorveu a limpeza imaculada, a colcha com fios entrançados, o crucifixo por cima da cama, as fotografias emolduradas de um casal de certa idade, o pano de renda sobre o tampo manchado do toucador folheado de mogno.

Agora para a parte necessária, a parte que ele detestava. Apalpou o pisa-papéis no seu bolso. Decidira dar-lhe uma mocada. Lera uma vez que um médico fora declarado culpado de um assassínio por causa da punhalada certeira e perfeita. Ele não podia arriscar-se a que o seu conhecimento médico o denunciasse. Foi o seu conhecimento médico que o levara a esta casa.

Começou a atravessar o pequeno vestíbulo em bicos de pés. O quarto de banho à direita. A sala de estar em frente a seis pés para a esquerda. Espreitou cautelosamente. O aparelho de televisão estava ligado, mas a sala estava vazia. Ele ouvia o ruído de uma cadeira, que rangia. Ela devia estar sentada à mesa da pequena sala de jantar. Com um cuidado infinito entrou na sala de estar. Este era o momento. Se ela o visse e gritasse...

Mas ela estava de costas para ele. Envolta numa túnica azul de lã, estava refastelada numa cadeira à cabeceira da mesa. Uma mão estava perto de um copo de cocktail excessivamente grande, a outra fechada no regaço. Um jarro alto diante dela estava quase vazio. A cabeça estava caída sobre o peito. Uma respiração fraca, uniforme, disse-lhe que estava a dormir. Tresandava a álcool.

Ele estudou rapidamente a situação. O seu olhar fixou-se no irradiador à direita da mesa, que produzia um som sibilante. Era um modelo antigo com canos cortantes, expostos. Seria possível que não precisasse de um pisa-papéis? Talvez...

- Edna - sussurrou.

- O que... oh... - Ela levantou os olhos turvos para ele. Confusa, começou a levantar-se, torcendo-se desastradamente na cadeira. - Doutor...

Um forte empurrão fê-la cair de costas no chão. A cabeça bateu no irradiador. Luzes ofuscantes explodiram no seu cérebro. «Oh, a dor! Oh, meu Deus, a dor!», Edna soltou um suspiro. O calor calmante do sangue que saía em golfadas lançou-a nas trevas. A dor espalhou-se, aumentou, atingiu o ponto máximo, diminuiu, acabou.

Deu um salto para trás, com cuidado para não se aproximar do sangue salpicado, depois curvou-se cautelosamente sobre ela. Enquanto observava, a pulsação na garganta tornou-se irregular e parou. Manteve o rosto perto do dela. Ela deixara de respirar. Deixou cair no bolso o pisa-papéis. Já não precisaria dele. Não teria de se dar ao trabalho de a roubar. Daria a impressão que tinha caído. Foi bem sucedido. Era o tipo de homem que não corria riscos.

Voltando rapidamente pelo mesmo caminho, entrou de novo no quarto. Perscrutando para se certificar que a zona de estacionamento ainda estava deserta, saiu pela janela, lembrou-se de colocar a planta no mesmo lugar, baixou a persiana e fechou a janela até ao ponto onde Edna a tinha.

Enquanto o fazia, ouviu o som persistente de uma campainha de porta - a campainha da porta dela. Olhou freneticamente em redor. O solo, duro e seco, não mostrava sinais das suas pegadas. O peitoril estava meticulosamente limpo. Não havia poeira removida. Saltara por cima dele, por isso nenhum sinal dos seus sapatos estragava a superfície branca.

Correu para o carro. O motor pegou sem fazer barulho. Sem acender os faróis afastou-se do complexo de apartamentos. Quando se aproximou da Route 4, acendeu os faróis.

Quem estaria na soleira da porta de Edna? Essa pessoa tentaria entrar? Edna estava morta. Agora não podia falar dele. Mas fora por pouco, por tão pouco.

A adrenalina passava-lhe pesadamente nas veias. Agora havia apenas uma ameaça possível: Katie DeMaio.

Agora começaria por fazer desaparecer essa ameaça. O seu acidente dera-lhe a desculpa que precisava para dar início à medicação.

Constava no relatório hospitalar que a percentagem de glóbulos estava baixa. Ela recebera uma transfusão na sala de urgência.

Ele prescreveria outra transfusão com o pretexto de a preparar para a operação.

Podia-lhe dar comprimidos de cumadin. Estes impediriam a coagulação e anulariam os efeitos da transfusão. Sexta-feira quando desse entrada no hospital ela estaria quase a ter uma hemorragia.

Podia fazer-se uma operação de emergência sem se administrarem mais anticoagulantes. Mas se fosse necessário injectá-la-ia com heparin. Verificar-se-ia uma depleção total dos precursores da coagulação. Ela não sobreviveria à operação.

A baixa percentagem de glóbulos inicial, o cumadin e o beparin seriam tão eficazes em Katie como fora o cianido em Vangie.

 

Richard e Katie saíram juntos do escritório de Scott. Ela sabia que ele ficaria aborrecido se sugerisse chamar um táxi para a levar a casa. Mas, quando entraram no carro dele, este disse:

- Em primeiro lugar, jantar. Um bife e uma garrafa de vinho fará correr os teus sucos.

- Que sucos? - perguntou ela cautelosamente.

- Saliva. Estômago. Seja o que for.

Ela escolheu um restaurante tipo barraca que se erguia precariamente sobre os penhascos. A pequena sala de jantar era aquecida por uma lareira e iluminada por velas.

- Oh, isto é agradável - disse ela. Obviamente o proprietário conhecia bem Richard.

- Doutor Carroll, um prazer - disse ele enquanto os conduzia para a mesa à frente da lareira e puxava uma cadeira para Katie.

Ela sorriu ironicamente quando se sentou, pensando que ou Richard estava a conjecturar ou ela devia parecer tão enregelada e abatida como se sentia.

Richard mandou vir uma garrafa de St. Emilion; um criado trouxe pão quente de alho. Ficaram sentados em silêncio amistoso, a beberricar e a mordiscar. Katie apercebeu-se de que era a primeira vez que estava assim com ele, frente a frente numa mesa pequena, separados das outras pessoas na sala, a olharem um para o outro.

Richard era um homem alto com um aspecto robusto e saudável que estava patente na cabeleira farta, castanha-escura, nas feições marcadas e regulares, e nos ombros largos e salientes. «Quando for velho, terá uma elegância leonina», pensou ela.

- Estavas a sorrir - disse Richard. - Em que estás a pensar? Ela contou-lhe.

- Leonino. - Ele pensou na palavra. - Um leão no Inverno. Eu escolheria esta. Estás interessada no que estou a pensar?

- Claro.

- Quando ó teu rosto reage, os olhos ficam muito tristes, Katie.

- Desculpa. Não é porque eu queira. Não me considero uma pessoa triste.

- Sabes nestes seis últimos meses tenho esperado pela oportunidade de te convidar a saíres comigo, mas foi preciso um acidente que podia ter sido mortal para ti para que isto sucedesse?

- Nunca me convidaste - disse ela evasivamente.

- Nunca quiseste ser convidada. Transmites um aviso claro «Não incomode». Porquê?

            - Não acho bem sair com alguém com quem trabalho - disse ela. Apenas com base em princípios gerais.

- Eu compreendo. Mas não é disso que estamos a falar. Gostamos de estar um com o outro. Ambos sabemos. Mas tu não queres saber disso para nada. Aqui está a ementa.

Os seus modos alteraram-se, tornaram-se ríspidos.

- O entrecote e o bife au poivre são as especialidades daqui - disse-lhe ele. Quando ela hesitou, ele sugeriu: - Experimenta o poivre. É fantástico. Excelente - acrescentou esperançado.

- Bem feito - disse Katie. Ao ver a sua expressão de pavor, soltou uma gargalhada. - Excelente, claro.

O rosto desanuviou. Ele encomendou saladas com o molho da casa e batatas cozidas, depois reclinou-se na cadeira e observou-a atentamente.

- Não queres saber disso para nada, Katie?.

- Da salada? Do bife?

- Não. Não continues a desviar a conversa. Está bem, não estou a ser sincero. Estou a tentar conhecer o teu íntimo e tu és uma audiência cativa. Mas diz-me o que fazes quando não estás no escritório nem em casa dos Kennedy. Sei que praticas esqui.

- Pratico. Tenho uma amiga da faculdade que é divorciada. No Inverno, após a morte do John, levou-me à força para Vermont. Agora, ela, eu e dois casais alugamos um condomínio em Stowe durante a época do esqui. Sempre que posso, vou nos fins-de-semana. Não sou uma esquiadora exímia, mas divirto-me.

- Eu costumava praticar esqui - disse Richard. - Fui obrigado a desistir por causa de uma luxação no joelho. Devia tentar outra Vez. Talvez um dia me convides a ir contigo. - Ele não esperou por uma resposta. - Velejar é o meu desporto. Levei o meu barco para as Caraíbas na Primavera passada e andei de ilha em ilha... «Esplendor de dias sem nuvens com velas largas, enfunadas, deslizam suavemente ao vento encrespando a água verde.» Eis o teu bife - finalizou de modo frívolo.

- E também citaste William, Carlos William - murmurou ela.

Intimamente esperava que ele ficasse impressionado por ela conhecer o texto citado.

- Citei - disse ele. - O molho da casa é bom, não é? Beberam lentamente o café. Então Richard falou-lhe de si mesmo:

- Fiquei noivo durante o curso de medicina da rapariga que vivia ao lado. Creio que sabes que cresci em São Francisco?

- Que aconteceu? - perguntou Katie.

- Estávamos sempre a adiar o casamento. Acabou por casar com o meu melhor amigo, seja ele quem for. - Richard sorriu; - Estou a brincar, claro. Joan era uma rapariga muito atraente. Mas faltava qualquer coisa. Uma noite, quando discutíamos pela quarta ou quinta vez o nosso casamento, ela disse: «Richard, nós amamo-nos, mas ambos sabemos que há mais qualquer coisa.» Ela tinha razão.

- Sem qualquer arrependimento; sem segundas intenções? - perguntou Katie.

- Nem por isso. Isso foi há sete anos. Fico um pouco surpreendido de que a «qualquer coisa» ainda não tenha acontecido.

Ele parecia não contar que ela fizesse comentários. Em vez disso começou a falar do caso Lewis.

- Irrita-me tanto; qualquer desperdício de vida afeta-me. Vangie Lewis era uma mulher nova. Devia ter muitos anos à sua frente.

- Estás convencido de que não foi suicídio?

- Não estou convencido de nada. Precisarei de ter muito mais informações antes de emitir uma opinião.

- Não vejo Chris Lewis como um assassino. Hoje em dia é demasiado fácil conseguir o divórcio se se quer ser livre.

- Há outro aspecto a considerar. - Richard apertou os lábios. Vamos ficar por aqui com a conversa.

Eram quase dez e meia quando entraram na alameda da casa de Katie. Richard olhou com ar trocista para a bela casa de pedra.

- A casa é muito grande? - perguntou ele. - Quero dizer quantos quartos tens?

- Doze - disse Katie com relutância. - Era a casa de John.

- Não pensei que a tivesses comprado com o salário de assistente de promotor de justiça - comentou Richard.

Ela começou a abrir a porta do carro.

- Espera - disse ele. - Eu vou à volta. Ainda pode estar escorregadio.

Ela não tencionara convidá-lo a entrar, mas ele não lhe deu azo para dar as boas-noites à porta. Tirando-lhe a chave da mão, meteu-a na fechadura, abriu a porta e entrou depois dela.

- Não me vou demorar - disse -, mas tenho de admitir que sinto uma curiosidade enorme em saber como vives.

Ela acendeu a luz e viu-o um pouco irritada quando ele examinou o vestíbulo e depois a sala de estar. Assobiou.

- Muito, muito bonito. - Aproximou-se do retrato de John e examinou-o. - Por aquilo que ouvi, ele era um homem especial.

- Sim, era. - Os lábios estavam firmes.

- Quanto tempo estiveram casados, Katie?

- Um ano.

Ele estava a olhar quando uma expressão de dor lhe aflorou o rosto; era mais do que isso: uma expressão de surpresa também, como se ainda estivesse confusa com o que acontecera.

- Quando descobriste que ele estava doente? Era cancro* eu compreendo.

- Pouco depois de regressarmos da nossa lua-de-mel.

- Por isso nunca fizeste outra viagem, pois não? Depois disso foi esperar pela morte. Desculpa, Katie; suponho que o meu trabalho me torna rude - demasiado rude para o meu próprio bem. Agora vou-me embora. - Hesitou. - Não achas que devias correr essas cortinas quando estás aqui sozinha?

Ela encolheu os ombros.

- Porquê? Ninguém vai entrar de roldão para me atacar.

- Tu mais do que ninguém, devia estar a par do número de assaltos a casas. E neste local serias um alvo perfeito, principalmente se alguém soubesse que vives aqui sozinha. Dás-me licença?

Sem esperar por uma resposta encaminhou-se para a janela e fechou as cortinas.

- Vou-me embora. Até amanhã. Como vais para o trabalho? O carro estará pronto?

- Não mas os da oficina vão-me emprestar um. Deixam-no aqui de manhã.

- Está bem - Ficou um momento com a mão no puxador da porta depois com um sotaque dialectal muito credível, disse: - Vou-vos deixar, Katie Scarlett. Agora fecha a porta à chave. Não gostaria que alguém assaltasse Tara. - Curvou-se, beijou-lhe a face e saiu.

A sorrir, Katie fechou a porta. Uma recordação perpassou no seu espírito. Tinha cinco anos de idade, brincava alegremente no pátio enlameado com o vestido de Páscoa. O grito de fúria da mãe. A voz divertida do pai a imitar Gerald O` Hara- «É a terra, Katie Scarlett» - depois, numa voz meiga, para mãe. «Não te zangues com ela. Todos os irlandeses autênticos gostam da terra.»

O relógio replicou melodiosamente. Depois da presença quente de Richard, a sala parecia vazia. Apressou-se a apagar a luz e subiu as escadas.

O telefone tocou precisamente no momento em que se meteu na cama. «Molly talvez tenha estado a tentar entrar em contato comigo», pensou ela quando levantou o auscultador. Mas foi uma voz de homem que respondeu quando perguntou quem era.

- Mrs. DeMaio?

- Sim.

- Aqui é o doutor Highley. Espero não estar a telefonar tarde de mais, mas à tardinha tentei várias vezes entrar em contato consigo. O fato de ter tido um acidente e ter passado uma noite no nosso hospital chamou-me a atenção. Como se sente?

- Bastante bem, doutor. Mas que gentileza a sua telefonar-me.

- Como está o problema da hemorragia? De acordo como relatório fizeram-lhe uma transfusão ontem à noite.

- Receio que esteja quase na mesma. Pensava que o período tinha acabado, mais veio outra vez, ontem. Para ser franca, talvez tenha sido um pouco cabeça no ar quando perdi o controlo do carro.

- Bem, como a senhora sabe, devia ter tratado desse problema há um ano pelo menos. Deixe lá. A esta hora da próxima semana tudo terá passado. Mas quero que faça outra transfusão para se preparar para a operação, e quero também que comece a tomar uns comprimidos. Pode vir ao hospital amanhã à tarde?

- Posso. Na realidade, havia uma probabilidade de ir aí. Soube o que aconteceu a Mrs. Lewis?

- Soube. Uma situação terrível e triste. Então até amanhã. Telefone de manhã e marcaremos uma hora.

- Sim, doutor. Obrigada, doutor.

Katie desligou. Quando apagou a luz lembrou-se que o doutor Highley não se dirigira a ela na sua primeira visita. Seria por causa da sua atitude reservada, mesmo fria?«Isto mostra como podes julgar mal uma pessoa», concluiu ela. «É muita gentileza da parte dele tentar entrar em contato comigo esta noite.»

 

Bill Kennedy tocou à campainha da casa dos Lewis. Como cirurgião de ortopedia no Lenox Hill Hospital, estivera a operar durante todo o dia e só soube da morte de Vangie Lewis quando chegou a casa. Alto, prematuramente encanecido, douto e um pouco tímido na vida profissional, Bill tornava-se uma pessoa diferente quando entrava no abrigo acolhedor do lar que Molly criara para ele.

A sua presença irrequieta fazia com que lhe fosse possível esquecer os problemas dos seus pacientes e descontrair-se. Mas nessa noite a atmosfera estava diferente. Molly já dera de comer às crianças e ordenara-lhes que se mantivessem afastadas. Ela contou-lhe resumidamente o que acontecera a Vangie. «Telefonei a convidar Chris para vir jantar e dormir no gabinete esta noite em vez de ficar lá sozinho. Ele não quer, mas tu vais buscá-lo e trazê-lo para aqui. Estou certa que virá jantar pelo menos.»

Enquanto caminhava por entre as casas, Bill pensou no choque que seria chegar a casa e ver que perdera Molly. Mas não seria o mesmo para Chris Lewis. Ninguém no seu perfeito juízo seria capaz de pensar que aquele casamento se podia comparar com o dele e de Molly. Bill nunca dissera a Molly que uma manhã quando estava a beber café num centro comercial próximo do hospital vira Chris numa loja com uma rapariga muito atraente na casa dos vinte. Via-se claramente que tinham um relacionamento.

Vangie soubera da rapariga? Teria sido por isso que se suicidara? Mas com tanta violência! O seu espírito recuou até ao Verão. Vangie e Bill tinham sido convidados para um churrasco. Vangie começara a assar um malveísco e aproximou de mais a mão do calor. O dedo empolou e ela comportou-se como se tivesse queimaduras do terceiro grau. Correra para Chris aos gritos, que tentara acalmá-la. Embaraçado por causa dela, Chris explicara: «Vangie tem uma fraca tolerância à dor.» Quando Bill trouxe a pomada e a aplicou, a bolha tinha quase desaparecido.

Onde é que uma pessoa com uma constituição emocional como Vangie iria arranjar coragem para tomar cianido? Alguém que tivesse lido alguma coisa sobre aquele veneno saberia que apesar da morte ser quase instantânea, morria-se com um sofrimento atroz.

Não. Bill seria capaz de jurar que se Vangie Lewis se suicidasse teria engolido soporíferos e adormecido. Aquilo era uma prova da quase total ignorância do espírito humano por parte das pessoas... mesmo de alguém como ele que devia ser um bom conhecedor da natureza humana.

Chris Lewis abriu a porta. Desde que o vislumbrara com a rapariga, Bill passara a ser um pouco reservado com Chris. É que ele não se dava com homens que tinham aventuras quando as mulheres estavam grávidas. Mas naquele momento a visão do rosto desfigurado de Chris e a tristeza genuína nos seus olhos despertou a compaixão de Bill. Ele agarrou os braços do homem mais jovem.

- Lamento profundamente.

Chris acenou com a cabeça desajeitadamente. Parecia-lhe que, como uma cebola a soltar camada por camada, o significado do dia caía sobre ele. Vangie estava morta. A discussão tê-la-ia levado a matar-se? Ele não podia acreditar nisso, e, no entanto, sentia-se só, assustado e culpado. Deixou que Bill o convencesse a ir jantar. Ele tinha de sair daquela casa - ali não era capaz de pensar. Molly e Bill eram pessoas generosas. Poderia confiar-lhes o que sabia? Poderia confiar em alguém? Como que entorpecido pegou num casaco, acompanhou Bill pela rua abaixo.

Bill deu-lhe um uísque duplo. Chris bebeu-o de um só gole. Quando o copo estava meio vazio tentou controlar-se. O uísque queimava-lhe a garganta e o peito, deixando passar a tensão. «Acalma-te», pensou, «acalma-te. Tem cuidado.»

Os filhos dos Kennedy entraram no gabinete para darem as boas-noites. Miúdos bem comportados. Bonitos também. O rapaz mais velho, Billy, era parecido com o pai. Jennifer era uma criança bela de cabelo escuro. As raparigas mais novas, Diná e Moira, eram loiras como Molly. Os gémeos. Chris quase sorriu. Os gémeos eram iguais. Chris quisera sempre filhos. Agora o seu filho por nascer morrera com Vangie. Outra culpa. Ele tomara a mal a sua gravidez. O filho e ele não desejaram aquilo, nem por um segundo. E Vangie sabia. O quê, quem a levara a matar-se? Quem? Essa era a questão. Porque Vangie não estivera sozinha na noite anterior.

Ele não contara à Polícia. Seria como abrir uma lata de vermes, suplicar-lhes que dessem início a uma investigação. E a que conduziria isso? A Joan. À outra mulher. A ele.

O empregado da recepção vira-o sair do motel na noite anterior. Resolvera ir para casa, ter uma explicação com Vangie. Chegara a fazer cálculos para discutir com ela. Ela podia ficar com a casa. Dar-lhe-ia vinte mil libras por ano, pelo menos até o filho fazer dezoito anos. Dar-lhe-ia uma apólice de seguro elevada sobre a vida do filho. Ele educaria o filho. Ela podia continuar a ir àquele psiquiatra japonês por quem estava louca. «Deixa-me ir, Vangie. Por favor deixa-me ir. Não POSSO passar mais nenhum dia da minha vida contigo. Está a destruir-nos...»

Chegara a casa. Chegara por volta da meia-noite. Entrara com o carro, e assim que a porta da garagem se abriu, apercebeu-se que algo acontecera. Porque bateu quase no Lincoln. Ela estacionara-o no seu lugar. Não, outra pessoa tinha estacionado o carro dela no lugar dele. Porque Vangie jamais tentaria meter um carro tão largo entre os postes e a parede da direita. A garagem tinha um tamanho fora do vulgar. Numa parte podiam caber dois carros. Essa era a parte que Vangie usava sempre. E ela precisava de todas as polegadas. Guiava mal, e a visão periférica talvez não fosse muito boa. Não era capaz de calcular bem os espaços. Chris estacionava sempre o Corveje na parte mais estreita. Mas nessa noite o Lincoln tinha sido habilmente estacionado.

Entrara e encontrara a casa vazia. A mala de Vangie estava sobre o canapé no quarto. Ficara confuso, mas não se alarmou. Obviamente fora passar á noite fora. Chegara a ficar satisfeito com a possibilidade de ela ter uma amiga em quem confiar. Tentara sempre que ela fizesse amizades. E Vangie podia ser dissimulada. Perguntou a si mesmo se ela se esquecera da mala. Vangie era esquecida, ou talvez tivesse acondicionado umas roupas para uma noite num saco e não quis saber da carteira pesada.

A casa deprimia Chris. Resolveu voltar para o motel. Não dissera a Joan que ia a casa. Tinha o cuidado de dizer o menos possível a Joan a respeito de Vangie. Para Joan, qualquer referência a Vangie era uma lembrança constante daquilo que ela considerava ser a sua posição como intrusa. Se nessa manhã tivesse contado a Joan que ele e Vangie tinham discutido e que Vangie ficara tão perturbada que preferira ir ter com outra pessoa a ficar sozinha, Joan teria ficado desolada.

Mas nessa manhã encontrara Vangie morta. Alguém lhe estacionara o carro antes da meia-noite. Alguém a tinha levado a casa depois da meia-noite. E aqueles sapatos. O único dia em que os calçara não deixara de se queixar. Isso foi pelo Natal quando ele a levou a Nova Iorque, na esperança de ela se divertir um pouco. Divertir! «Meu Deus, que dia miserável!» Ela não gostou da peça teatral. O restaurante não servia piccanha de vitela e ela estava com imensa vontade de a comer. E não parara de dizer que o sapato lhe magoava o tornozelo direito.

A partir desse dia, durante semanas usara apenas aqueles mocassins sujos. Pedira-lhe que fosse comprar uns sapatos decentes, mas ela dissera que aqueles eram os únicos confortáveis. Onde estariam? Chris passou uma busca à casa. A pessoa que a levou a casa devia saber.

Ele não contara nada disto à Polícia. Não quisera envolver Joan. «Instalei-me num motel porque a minha mulher e eu discutimos. Eu queria o divórcio. Resolvi vir a casa e tentar convencê-la. Ela não estava aqui e eu fui-me embora.» Não parecera necessário divulgar tudo isto. Mesmo que os sapatos não fossem assim tão importantes, Vangie podia ter querido estar bem arranjada quando fosse encontrada. Aquela perna inchada embaraçava-a. Ela era vaidosa.

Mas ele devia ter contado aos polícias que estivera ali, da forma como o carro foi estacionado.

- Chris, venha para a sala de jantar. Sentir-se-á melhor se comer alguma coisa. - A voz de Molly era dócil. Com lassidão, Chris levantou os olhos. A luz suave do vestíbulo desenhava em silhueta o rosto de Molly, e pela primeira vez conseguiu ver a semelhança entre ela e Katie DeMaio.

Katie DeMaio. A irmã dela. Ele não podia discutir isto com Bill e Molly. Isso poria Molly no meio. Como poderia ela aconselhá-lo honestamente a revelar ou não a sua vinda a casa na noite passada quando a sua própria irmã estava no gabinete do promotor da justiça? Não. Teria de resolver isto sozinho.

Coçou com uma mão os olhos inflamados.- Molly, gostaria de comer alguma coisa - disse ele. - Seja o que for, cheira mesmo bem. Mas não me posso demorar muito. O dono da agência funerária vai lá a casa para levar as roupas de Vangie. A mãe e o pai querem que os deixe vê-la antes do enterro.

- Onde vai ser? - perguntou Bill.

- Ela irá de avião para Mineápolis amanhã à tarde. Eu irei também nesse avião. O serviço religioso será no dia a seguir. O examinador médico entregou o corpo ao fim da tarde. As palavras martelavam-lhe nos ouvidos... Um... Corpo... Funeral... «Oh, meu Deus», pensou ele, «isto tem de ser um pesadelo. Queria ficar livre de ti, Vangie, mas não queria que morresses. Levei-te ao suicídio. Joan tem razão. Devia ter ficado perto de ti. »Às oito regressou a casa. Às oito e meia, quando chegou o dono da agência funerária, ele tinha uma mala com roupa interior e o cafetã largo que os pais de Vangie lhe tinham mandado para o Natal.

O dono da agência, Paul Halsey, era simpático e discreto. Pediu rapidamente as informações necessárias. Nascida em 15 de Abril. Tomou nota do ano. Falecida em 15 de Fevereiro.

- Apenas dois meses antes de completar trinta e um anos comentou ele.

Chris friccionou entre os olhos, onde lhe doía. Algo estava errado. Mesmo nesta situação fantástica onde tudo estava errado, havia qualquer coisa específica.

- Não - disse ele -, hoje é dezasseis, e não quinze.

- A certidão de óbito declara que Mrs. Lewis morreu entre as oito e as dez de ontem à noite, dia quinze de Fevereiro disse Halsey. - O senhor pensa que foi no dia dezasseis por que a encontrou esta manhã. Mas o examinador que fez a autópsia pode dizer a hora com precisão.

Chris olhou fixamente para ele. Ondas de choque dissolveram a sensação de exaustão e irrealidade. Estivera em casa à meia-noite e o carro e a bolsa de Vangie estavam lá. Esperara cerca de meia hora antes de voltar de carro para o motel em Nova Iorque. Quando chegara a casa, nessa manhã, supusera que ela voltara algum tempo depois de ele se ir embora e se suicidara.

Mas à meia-noite ela já estava morta há três ou quatro horas. Isso significava que algum tempo depois da meia-noite, depois de ele sair, alguém trouxera para ali o corpo, colocara-o na cama e pusera o copo vazio ao lado dela.

Alguém quisera simular que Vangie se suicidara.

Ter-se-ia suicidado noutro lugar? A pessoa que a trouxera simplesmente não queria ser envolvida? Claro que não. Vangie nunca ingerira nem sofrera com o cianido. O assassino encenara o suicídio.

- Oh, Cristo - balbuciou Chris. - Oh, Cristo. - Viu o rosto de Vangie. Os olhos grandes, pestanudos, petulantes, o nariz curto, direito; o cabelo cor de mel que lhe caía sobre a testa; os lábios pequenos com uma forma perfeita. No último instante ela deve ter-se apercebido. Alguém a segurara, metera à força o veneno na sua boca, matara-a traiçoeiramente e ao bebé que trazia no ventre. Uma compaixão brusca, dilacerante, fez-lhe vir as lágrimas aos olhos. Ninguém, nenhum marido podia ficar calado e deixar aquelas mortes sem punição.

E se contasse à Polícia, se ele encetasse uma investigação, havia uma pessoa que acusariam inevitavelmente. Enquanto o dono da agência olhava fixamente para ele, Chris disse em voz alta:

- Tenho de lhes dizer, e eles vão-me culpar.

 

Ele pousou lentamente o auscultador, Katie DeMaio não suspeitou de nada. Mesmo quando ela mencionou o nome de Vangie Lewis dera a entender que o seu departamento queria apenas discutir com ele o estado emocional de Vangie.

Mas o acidente de Katie ocorrera há pouco mais de vinte e quatro horas. Ela ainda devia estar a sentir uma certa reação do choque.

A percentagem de glóbulos já estava baixa. No dia seguinte, quando o cumadin fosse introduzido no seu organismo, o mecanismo de coagulação começaria a falhar, e com a consequente hemorragia ela começaria a sentir-se desorientada, delirante. Certamente que ela não seria suficientemente analítica para separar um presumível pesadelo de um acontecimento real.

A não ser, claro, que houvesse demasiadas perguntas sobre o suicídio. A não ser que a possibilidade de o corpo de Vangie ter sido deslocado fosse apresentada e discutida no seu departamento.

O perigo ainda era tão grande.

Ele estava na biblioteca do lar Westlake - o seu lar agora. A casa era do tipo senhorial em estilo Tudor. Tinha arcadas e estantes embutidas e lareiras de mármore e papel de parede antigo colocado à mão e vitrais Tiffany: o tipo de casa impossível de reproduzir atualmente por nenhum preço. Não existia mão-de-obra especializada.

A Casa Westlake. O Hospital Westlake. A Maternidade e O Centro de Concepção Westlake. O nome tinha-lhe sido útil, dera-lhe a entrada imediata, social e profissionalmente. Ele era o distinto obstetra que conhecera Winifred Westlake num iate transatlântico, casara com ela e estabelecera-se de novo na América para prosseguir o trabalho do pai dela.

O pretexto perfeito para deixar a Inglaterra. Ninguém, incluindo Winifred, sabia dos anos que passara em Liverpool AO Christ Hospital em Devon.

Próximo do fim ela começara a fazer perguntas.

Eram quase onze horas e ele ainda não tinha jantado. Saber o que ia fazer com Edna tirara-lhe a vontade de comer.

Mas agora isso tinha passado, o alívio voltara. Agora a necessidade de comida tornara-se um desejo ardente. Foi à Cozinha. Hilda deixara-lhe o jantar no forno de microndas: uma galinha pequena à Cornualha com arroz com casca. Só precisava de o aquecer durante alguns minutos. Quando tinha tempo preferia cozinhar as suas refeições. A comida de Hilda não variava muito, mesmo assim era bastante bem preparada.

Também era uma boa governanta. Ele gostava de vir para casa, para o asseio e elegância deste lugar, saborear uma bebida, comer quando lhe apetecia, passar horas a trabalhar nos seus apontamentos na biblioteca, sem se sentir ameaçado pela possibilidade de alguém lhe fazer uma visita inesperada, como acontecia ocasionalmente no laboratório do hospital.

Ele necessitava da liberdade da casa. Livrara-se da governanta residente que Winifred e o pai tinham tido. Aquela cadela hostil, a olhar para ele com os olhos irritados, sombrios, inchados de chorar. «Miss Winifred quase nunca adoecia até... Ele olhara fixamente para ela e esta não terminara a frase.

Ela ia dizer «até casar com o senhor».

O primo de Winifred ficara muito ofendido com ele, temia levantar problemas depois da morte de Winifred. Mas não pôde provar nada. Não havia uma única prova clara.

Consideraram o primo um ex-herdeiro descontente.

Evidentemente que não havia assim tanto dinheiro. Winifre gastara muito na aquisição do hospital. Agora a sua pesquisa exigia somas espantosas, e a maior parte do dinheiro tinha de vir diretamente da clínica. Ele não podia solicitar uma doação, claro. Mas, mesmo assim, conseguia. As mulheres estavam dispostas a pagar o que quer que fosse para engravidarem.

Hilda deixara-lhe a mesa posta na pequena sala de jantar longe da copa - a sala da manhã como lhe costumavam chamar. Não comeria nenhuma refeição na cozinha, mas a sala de jantar de vinte por trinta pés era faustosa e ridícula para um homem jantar sozinho. Esta sala com a mesa de pé-de-galo, redonda, o móvel Queen Anne e a vista do relvado coberto de árvores era muito mais atraente.

Tirando uma garrafa gelada de Poifilly-Fuissé do frigorífico, sentou-se para comer.

Acabou de jantar, pensativo, com o espírito a rememorar a dosagem exata que daria a Katie DeMaio. O cumadin não seria descoberto no sangue depois da morte. A falta de coagulação seria atribuída às transfusões. Se ele tivesse de administrar o heparin, apareceriam vestígios deste e do cumadin se houvesse uma autópsia minuciosa. Mas ele sabia o que podia fazer para o evitar.

Antes de se deitar, foi ao armário do vestíbulo. Agora meteria aqueles mocassins no saco sem correr nenhum perigo, sem se arriscar a uma repetição da contrariedade dessa manhã. Metendo de novo o braço dentro do armário, colocou a mão dentro de um bolso da Burberry e tirou um sapato deformado. Expectantemente introduziu a mão livre no outro bolso primeiro prosaicamente, depois insistentemente. Por fim agarrou o casaco e revistou-o freneticamente. Em seguida caiu de joelhos e remexeu nas galochas empilhadas ordenadamente na porta do armário.

Pôs-se de pé, por fim, a olhar fixamente para o sapato usado que segurava na mão. Viu-se uma vez mais a arrancar o sapato do pé direito de Vangie.

O sapato direito. O sapato que ele segurava.

Começou a rir histericamente - sons estridentes, ásperos, arrancados da fúria frustrada do seu ser. Depois de todo o perigo, depois da reptação vergonhosa à volta do parque de estacionamento, como um cão a farejar para encontrar o rasto, ele estragara tudo.

De qualquer maneira na escuridão, talvez quando se encostou aos arbustos no momento em que o carro entrou no parque de estacionamento com ruído, o sapato lhe tivesse caído do bolso. O sapato que tinha encontrado era o que ele já tivera.

E algum lugar, o mocassin esquerdo, usado, velho e disforme, que Vangie Lewis trazia, esperava ser encontrado; esperava para seguir as pegadas dela até ele.

 

Katie pusera o relógio a despertar para as seis da manhã, mas estava acordada muito antes da voz alegre e firme do coordenador da CBS lhe desejar uma manhã radiosa. Tivera um sono agitado, chegara quase a saltar várias vezes, assustada por um sonho confuso, inquietante.

À noite baixava sempre o termostato. A tiritar, correu a ajustá-lo, depois fez rapidamente café e levou uma chávena para o quarto.

Recostada nas almofadas, embrulhada no abafo de lã grossa, deu pequenos goles com avidez quando o calor da chávena começou a aquecer os dedos.

- Assim é melhor - murmurou. - E agora, que se passa contigo?

O toucador Williamsburg, antigo com o espelho oval no centro, ficava mesmo em frente da cama. Olhou para ele. O cabelo estava desgrenhado, uma mancha castanho-escura nas fronhas cor de marfim com ilhós nas bordas. A ferida por baixo do olho estava agora vermelha com uma coloração amarela. Os olhos estavam inchados do sono. Crescentes profundos acentuavam a magreza do rosto. Como diria a mãe, «pareço qualquer coisa que o gato arrastou cá para dentro», pensou.

Mas não era apenas a aparência. Era ainda mais do que as dores no corpo todo resultantes do acidente. Era uma forte sensação de apreensão. Começara a ter de novo aquele pesadelo estranho e assustador na noite passada? Ela não podia ter a certeza.

Vangie Lewis. Uma sucessão de palavras do funeral de John veio-lhe à memória: «Nós que nos afligimos com a certeza da morte...» A morte era certa, evidentemente. Mas não assim. Já era bastante confrangedor pensar em Vangie a suicidar-se, mas parecia impossível que alguém decidisse matá-la metendo-lhe cianido pela garganta abaixo. Ela não acreditava que Chris Lewis fosse capaz desse tipo de violência.

Pensou na chamada do doutor Highley. Aquela maldita operação. Oh, havia milhares de D-e-Cs realizados todos os anos em mulheres de todas as idades. Não era a operação em si. Era a causa. E se a D-e-C não debelava a hemorragia? O doutor Highley dera a entender que eventualmente podia ser necessário pensar numa histerectomia.

Se ao menos tivesse engravidado durante o ano em que viveu com John. Mas não engravidara.

E se ela um dia voltasse a casar? Não seria uma partida amarga, terrível, se então não pudesse ter filhos? «Pára com isso», admoestou-se, «Lembras-te daquela frase do Fausto? Choramos por aquilo que talvez nunca perderemos.»

Bem, pelo menos estava a preparar-se para a operação. Daria entrada no hospital sexta-feira à noite. Sábado a operação. Domingo em casa. A trabalhar na segunda-feira. Era simples.

Molly telefonara-lhe na véspera depois de chegar ao escritório. Ela dissera: «Katie, era capaz de afirmar que não querias falar, na frente do Richard, mas não achas que seria melhor adiar a tua ida para o hospital para o próximo mês? Ficaste muito abalada.»

Ela fora peremptória. «De maneira nenhuma. Quero acabar com isto; e além do mais, Molly, não me admirava se este maldito problema tivesse contribuído para o acidente. Senti tonturas na segunda-feira.»

Molly ficara desolada. «Por que razão não me disseste?»

«Oh, deixa-te disso, Molly», dissera Katie. «Ambas detestamos queixosos. Quando for realmente mau, juro que grito por ti.»

«Assim o espero», disse Molly. «Acho que também vais recuperar.» Depois perguntou: «Vais dizer ao Richard?»

Katie tentara não dar a entender que estava exasperada. «Não, e não vou dizer ao rapaz do elevador nem ao guarda da passagem para peões nem aos do SOS. Só tu e o Bill. E não se fala mais nisso. Está bem?

«Está bem. E não te armes em esperta.» Molly desligara decididamente, o tom de voz era uma combinação de afeto e autoritarismo, a voz admoestadora que usava quando um dos miúdos saía da linha.

«Não sou tua filha, Molly, querida», pensou Katie naquele momento. «Gosto de ti, mas não sou tua filha.» Mas enquanto bebia lentamente o café perguntou a si mesma se não estava a ficar demasiado dependente de Molly e Bill, a tentar obter apoio emocional a partir deles. Estaria de fato a servir-se deles para se afastar do rumo da vida?

«Oh, John.» Ela olhou instintivamente para a fotografia. Naquela manhã era apenas isso, uma fotografia. Um homem belo com um ar sério, olhos meigos, penetrantes. Uma vez durante aquele primeiro ano depois da sua morte pegara naquela fotografia, olhara fixamente para ela - depois pousou-a ao contrário com violência em cima do toucador a chorar. «Como pudeste deixar-me?»

Na manhã a seguir recuperara a calma, com vergonha dela mesma, e decidira nunca mais beber três copos de vinho quando se sentisse deprimida. Quando endireitara a fotografia, descobrira uma estria no tampo do belo e antigo toucador que fora feita pela moldura de prata trabalhada em relevo. Tentara explicar à fotografia. «Não é só pena de mim mesma, juiz. Estou zangada por tua causa. Queria que vivesses mais quarenta anos. Sabias como tirar prazer da vida; sabias o que fazer para que a vida valesse a pena.»

«Quem conheceu o pensamento do Senhor? ou quem foi o Seu conselheiro?» Aquela frase da Bíblia prepassara no seu espírito naquele dia.

«Recordando», pensou Katie, «agora seria melhor refletir nestas frases.»

Despindo a camisa de noite verde-clara, entrou na casa de banho e abriu o chuveiro. A camisa de noite estava estendida no banco do toucador. Na faculdade preferia pijamas soltos, às riscas. Mas John comprara-lhe vestidos e penteadores delicados em Itália. Ainda parecia apropriado usá-los ali naquela casa, no quarto dele.

Talvez John tivesse razão. Talvez ela continuasse a velar um morto. John seria o primeiro a censurá-la por causa disso.

O chuveiro quente ajudou-a a recobrar o ânimo. Tinha uma reunião de demanda judicial marcada para as nove, um veredito às dez e dois casos novos para começar a preparar para julgamento para a semana seguinte. E tinha muito que fazer no julgamento dessa sexta-feira. «Já é quarta-feira», pensou ela com consternação. «É melhor apressar-me”.

Vestiu-se rapidamente, escolhendo uma saia de lã castanha-pálida e uma blusa nova de seda turquesa com mangas compridas que tapavam a ligadura do braço. O carro emprestado pela estação de serviço chegou quando ela terminava um segundo café. Deixou o motorista de novo na estação, assobiou quando viu os danos enormes na parte da frente do carro, deu graças a Deus por não se ter ferido com gravidade e seguiu para o escritório. Fora uma noite agitada no distrito. Uma rapariga de catorze anos tinha sido violada. As pessoas falavam de um acidente de viação por embriaguez de que resultaram quatro mortes. Um chefe da Polícia local telefonara a pedir que o promotor de justiça ajudasse a alinhar os suspeitos que tinham sido detidos após um assalto à mão armada para que a vítima os examinasse.

Scott ia a sair do escritório naquele instante. - Bonita noite - comentou Katie. Ele acenou com a cabeça.

- Filho da mãe - aquele bruto que se enfaixou no carro com aqueles miúdos todos estava tão bêbado que não se conseguia pôr de pé. Morreram os quatro miúdos. Eram senhores de Pascal Hills que iam para uma reunião da comissão de baile. Por acaso tencionava mandar a Reta para conversar com os médicos do Westlake Hospital, mas ela está a tratar do caso da violação. Estou particularmente interessado no psiquiatra a que ia Vangie Lewis. Gostaria de saber a sua opinião sobre o seu estado mental. Posso mandar o Charley ou o Phil, mas penso que uma mulher daria menos nas vistas, talvez possa dar uma volta por lá para ver se Mrs. Lewis falava com as enfermeiras ou se fez amizade com outras doentes. Mas isso terá de esperar até amanhã. Reta esteve a pé toda a noite e agora anda com aquela miúda que foi violada para ver se consegue descobrir o atacante. Temos quase a certeza de que ele vive perto dela.

Katie hesitou. Não tencionava contar a Scott que era paciente do doutor Highley nem que daria entrada em Westlake sexta-feira à noite. Mas seria impensável permitir que alguém do departamento o informasse sobre isso. Ela contemporizou.

- Talvez possa ajudar. O doutor Highley é o meu ginecologista. Efetivamente hoje tenho uma consulta com ele. - Ela comprimiu os lábios, concluindo que não havia necessidade de fazer um relato enfadonho da operação programada.

As sobrancelhas de Scott levantaram-se de repente. Como sempre quando ficava surpreendido, a voz tornou-se mais grave.

- Qual é a sua opinião sobre ele? Ontem o Richard fez uma alusão mordaz ao estado de Vangie, parecia achar que Highley estava a correr riscos com ela.

Katie abanou a cabeça.

- Não concordo com Richard. A especialidade do doutor Highley são gravidezes difíceis. Por assim dizer é considerado um taumaturgo. Essa é a particularidade. Ele tenta levar a um termo viável os bebés que outros médicos perdem. - Ela pensou no telefonema que ele lhe fez. Posso garantir que é um médico muito zeloso.

Scott, ao franzir as sobrancelhas, fez rugas profundas na testa e à volta dos olhos.

- Essa é a sua verdadeira reação em relação a ele? Há quanto tempo o conhece?

Procurando ser objetiva, Katie pensou no médico.

- Não o conheço há muito tempo nem muito bem. O ginecologista a que eu costumava ir aposentou-se e mudou-se já há alguns anos, e não me dei ao trabalho de procurar outro. Então, quando comecei a ter problemas - bem, seja como for, a minha irmã Molly conhecia o doutor Highley porque a amiga dela fala dele com grande entusiasmo. Molly vai a alguém em Nova Iorque, e eu não me quis incomodar com isso. Assim marquei uma consulta no mês passado. Ele é muito inteligente. - Ela recordou o exame. Fora amável, mas meticuloso. «Tem toda a razão em ter vindo», dissera ele. «Na realidade tenho de afirmar que não devia ter ignorado esta situação mais de um ano. Considero o útero como um berço que deve estar sempre em bom estado de conservação».

A única coisa que a surpreendera era ele não ter uma enfermeira de serviço. O outro ginecologista chamava sempre a enfermeira antes de começar uma consulta, mas ele também pertencia a outra geração. Calculava que o doutor Highley estivesse na casa dos quarenta.

- Qual é o seu programa para hoje? - perguntou Scott.

- Uma manhã agitada, mas esta tarde pode ser ajustada.

- Muito bem. Vai visitar o doutor Highley e evite falar muito, também. Veja se consegue se eles pensam ou não se ela seria capaz de se suicidar. Descubra quando foi a última vez que esteve lá. Veja se ela falava do marido. O Charley e o Phil já estão a tirar informações sobre Chris Lewis. Estive acordado quase toda a noite e estive sempre a pensar que Richard tem razão. Há qualquer coisa naquele suicídio que não cheira bem. Fale também com as enfermeiras.

- Enfermeiras, não - Katie sorriu. - A recepcionista, Edna. Ela sabe da vida de toda a gente. Não estava na sala de espera há dois minutos no mês passado quando dei por mim a contar-lhe a história da minha vida. Na realidade, talvez devesse contratá-la para interrogar testemunhas.

- Devia contratar muita gente - comentou Scott com secura. - Fale com a comissão dos proprietários. Muito bem, até logo.

Katie entrou no seu escritório, pegou nos processos e correu para a reunião com um advogado de defesa por causa de um réu. Concordou em alterar a acusação de «Posse de heroína com intenção de a distribuir» para simples «posse». De lá correu para uma sala de tribunal num segundo andar onde ouviu atentamente enquanto um jovem de vinte anos contra o qual movera uma ação judicial era condenado a sete anos de cadeia. Ele podia ter apanhado vinte anos pelo assalto à mão armada e pelo ataque cruel. Dos sete anos, cumpriria provavelmente um terço da pena e voltaria para as ruas. Ela sabia o seu cadastro de cor. «Não penses na reabilitação para este pássaro», pensou ela.

No monte de recados que a esperava, havia dois telefonemas do doutor Carroll. Um chegara às nove e um quarto, o outro às nove e quarenta. Ela telefonou-lhe, mas Richard saíra para tratar de um caso. A sensação de uma pressão ligeira dos dois telefonemas foi substituída por uma sensação de desapontamento quando não conseguiu encontrá-lo.

Telefonou para o consultório do doutor Highley na esperança de ouvir o calor nasal da voz de Edna. Mas quem respondeu foi uma desconhecida, uma mulher seca e de poucas falas.

- Consultórios médicos.

«Oh», pensou Katie rapidamente, e decidiu perguntar por Edna.

- Miss Burns está?

Houve uma fração de uma pequena pausa antes de se ouvir uma resposta.

- Miss Burns não virá hoje. Ela está doente. Eu sou Mrs. Fitzgerald.

Katie compreendeu o quanto contava falar com Edna.

- Lamento que Miss Burns não esteja bem. - Em poucas palavras, explicou que o doutor Highley esperava o telefonema dela e que ela gostaria também de falar com o doutor Fukhito. Mrs. Fitzgerald pediu-lhe para esperar, e alguns minutos depois dava a resposta.

- Ambos a receberão, claro, O doutor Fukhito está livre quinze minutos antes da hora, entre as duas e as cinco, e o doutor Highley preferia às três horas se também lhe convier.

- Às três horas com o doutor Highley está bem - disse Katie -, e depois confirme por favor às três e quarenta e cinco com o doutor Fukhito. - Pousando o auscultador, voltou para o trabalho que tinha em cima da secretária.

À hora do almoço, Maureen Çrowley, uma das secretárias do escritório espreitou e ofereceu-se para trazer uma sanduíche a Katie. Embrenhada na preparação do julgamento de sexta-feira, Katie acenou afirmativamente com a cabeça.

- Presunto com pão de centeio, mostarda, alface e café puro - disse Maureen.

Katie levantou os olhos, surpreendida.

- É assim tão fácil adivinhar os meus pensamentos?

A rapariga tinha cerca de dezenove anos com uma farta cabeleira de um dourado-avermelhado, olhos verde-esmeralda e a bela tez clara do ruivo autêntico.

- Katie, tenho de lhe dizer, a senhora come sempre a mesma coisa. - A porta fechou-se atrás dela.

«Estás com um ar macilento.» «Estás a velar um morto». «Estás numa rotina.»

Katie sentiu um caroço na garganta e ficou admirada ao perceber que estava prestes a chorar. «Devo estar doente se estou a ficar com a pele fina», pensou.

Quando a sanduíche e o café chegaram, comeu e bebeu lentamente sem saber ao certo o que estava a tomar. O caso m que tentava concentrar-se era uma mancha. O rosto de Vangie Lewis estava constantemente à sua frente. Mas porque razão o vira num pesadelo?

 

Richard Carroll tivera uma noite difícil. O telefone tocou às onze horas, alguns minutos depois chegou a casa vindo da casa de Katie, para lhe comunicarem que estavam quatro miúdos na morgue.

Ele pousou lentamente o auscultador. Ele vivia no décimo sétimo andar de um arranha-céus a norte da George Washington Bridge. Por momentos olhou fixamente pela janela a todo o comprimento da parede para a linha do horizonte de Nova Iorque, para os carros que desciam como flechas a Henry Parkway, para as luzes verde-azuladas da George WashingtonBridge.

Naquele momento tocavam telefones para informarem os pais daqueles rapazes que os seus filhos não regressariam a casa.

Richard relanceou o olhar pela sala de estar. Estava confortavelmente mobilada com um sofá com um tamanho fora do normal, poltronas grandes, um tapete oriental em tons de azul e castanho, uma estante de parede e mesas fortes de carvalho que em tempos tinham adornado a casa de campo de um antepassado de New England. Aguarelas originais com temas náuticos estavam espalhadas com gosto nas paredes. Richard suspirou. A cadeira de cabedal, funda e de encosto, estava perto da estante. Ele planeara arranjar uma bebida antes de se deitar, ler uma hora. Em vez disso resolveu ir à morgue para estar lá quando chegassem os pais para identificarem aqueles rapazes. Só Deus sabia que havia muito pouco que alguém pudesse fazer por aquelas pessoas, mas estava ciente de que se sentiria melhor se tentasse.

Eram quatro da manhã antes de regressar ao apartamento. Enquanto se despia perguntou a si mesmo se estava a ficar demasiado triste com este trabalho. Aqueles miúdos estavam numa lástima; o impato do embate fora terrível. No entanto pôde ver como eram atraentes em vida. Uma rapariga em particular bulira-lhes com os nervos. Tinha cabelo negro, um nariz fino e direito, e mesmo morta era donairosa.

Fazia-lhe lembrar Katie.

Só de pensar que Katie tivera um acidente de automóvel na noite de segunda-feira ficou novamente abalado. Parecia-lhe que tinham progredido anos-luz na sua relação nas duas horas que passaram juntos ao jantar.

- Pobre criança, que receava ela? Por que razão não se conseguia libertar de John DeMaio? Por que razão não conseguia dizer «Obrigada pela recordação» e seguir em frente?

Quando se meteu na cama sentiu-se triste e grato por ter podido ajudar um pouco os pais. Pudera garantir-lhes que os jovens tinham tido morte imediata, que talvez não se tenham apercebido nem sentido nada.

Dormiu um sono agitado durante duas horas e estava no escritório às sete. Alguns minutos depois chegou a notícia de que uma mulher de idade se enforcara numa zona degradada de Chester, uma pequena cidade no extremo norte do distrito. Foi para o local da morte. A mulher morta tinha 81 anos, frágil como um pássaro. Tinha um cartão preso no vestido com alfinetes: Não resta ninguém. Estou tão doente e cansada. Quero estar com o Sam. Perdoem-me por causar problemas.

O cartão tornava claro algo que importunava Richard. De tudo o que ouvira dizer a respeito de Vangie Lewis parecia dar a entender que se ela se tivesse suicidado, teria deixado um bilhete para explicar ou atribuir a responsabilidade do seu ato ao marido.

A maior parte das mulheres deixava bilhetes.

Quando chegou ao escritório, Richard tentou telefonar a Katie duas vezes, na esperança de a apanhar no intervalo das sessões do tribunal. Queria ouvir o som da sua voz. Por qualquer razão sentia-se nervoso por a deixar sozinha naquela casa enorme na noite anterior. Mas não conseguia entrar em contato com ela.

Por que razão tinha um pressentimento de que ela tinha qualquer coisa no espírito que a afligia?

Voltou para o laboratório e trabalhou sem parar até às quatro e meia. Regressando ao escritório, pegou nos recados e ficou tremendamente satisfeito por ver que Katie respondera aos seus telefonemas.

«E porque não o faria?», perguntou a si mesmo cinicamente. Uma assistente do promotor de justiça não ignoraria os telefonemas de um examinador médico. Apressou-se a telefonar-lhe. A telefonista da seção do promotor de justiça disse que Katie saíra e não voltaria nesse dia. A telefonista não sabia para onde ela ia.

«Maldição!»

Isso significaria que não poderia falar com ela naquele dia. Ia jantar em Nova Iorque com Clovis Simmons, uma atriz que fazia um dos anúncios de sabonetes. Clovis era divertida, com ela divertia-se sempre, mas tudo indicava que estava a ficar sisuda.

Richard tomou uma decisão. Aquela era a última vez que sairia com Clovis. Era uma injustiça com ela. Recusando pensar no motivo daquela decisão inesperada, reclinou-se na cadeira e franziu as sobrancelhas. Um alarme mental dava um sinal contínuo. Fez-lhe lembrar as viagens no Midwest quando a estação de rádio anunciava repentinamente a existência de um torneio. Um aviso era o mais seguro. Um alerta sugeria calamidade potencial.

Ele não exagerara quando dissera a Scott que se Vangie Lewis não desse à luz dentro de pouco tempo não teria precisado do cianido. Quantas mulheres ficariam naquele estado na Maternidade e Centro de Concepção Westlake? Molly gostava loucamente do obstetra porque uma das amigas tinha tido uma gravidez bem sucedida. E os fracassos que lá havia? Quantas delas tinham lá estado? Houvera algo de invulgar na taxa de mortalidade entre as pacientes de Westlake? Richard ligou o intercomunicador e chamou a secretária.

Marge tinha quarenta e tal anos. O cabelo, que ficava grisalho, estava cuidadosamente enrolado no estilo popularizado por Jacqueline Kennedy nos princípios dos anos sessenta. A saia estava uma polegada acima dos joelhos. Parecia uma dona de casa suburbana de um concurso televisivo. Ela era de fato uma excelente secretária que se deliciava com o drama constante do departamento.

- Marge - disse ele, - estou com um pressentimento. Quero fazer uma investigação oficiosa ao Westlake Hospital apenas à seção da maternidade. Aquela maternidade está em atividade há cerca de oito anos. Gostaria de saber quantas pacientes morreram tanto de parto como de complicações da gravidez e qual é a taxa de mortes e o número de pacientes tratadas lá. Não quero que se saiba que estou interessado. É por isso que não quero pedir a Scott que mande citar os relatórios. Conhece lá alguém que pudesse dar uma vista de olhos em segredo aos arquivos?

Marge franziu as sobrancelhas. O nariz, semelhante ao bico pequeno e fino do canário, ficou cheio de rugas.

- Deixe que eu trato - disse.

- Ótimo. E outra coisa. Veja se descobre algum processo por negligência médica intentado contra qualquer um dos médicos na Maternidade Westlake. Não interessa se os processos foram arquivados ou não. Se existir algum, quero saber qual foi o motivo.

Satisfeito por ter a investigação em marcha, Richard foi a correr para casa para tomar um banho de chuveiro e trocar de roupa. Segundos depois saía do escritório, viera uma chamada para ele do doutor David Broad do laboratório pré-natal do Mt. Sinai Hospital. O recado que Marge recebeu pedia que Richard entrasse em contato com o doutor Broad de manhã. O assunto era urgente.

 

Katie foi para o hospital às três menos um quarto. O tempo tornara-se estável, sombrio, nublado e frio. Mas pelo menos o calor dos carros derretera a maior parte do gelo das estradas. Deliberadamente, reduziu a velocidade ao fazer a curva que fora o ponto de partida do seu acidente.

Chegara alguns minutos antes da hora da consulta, mas podia ter poupado tempo. A recepcionista, Mrs. Fitzgerald, foi relativamente amável, mas quando Katie perguntou se ela substituía Edna muitas vezes, Mrs. Fitzgerald replicou rapidamente:

- Miss Burns raramente falta, por isso há muito pouca necessidade de a substituir.

Katie teve a impressão de que a resposta era excessivamente defensiva. Intrigada, resolveu continuar a falar do mesmo assunto.

- Fiquei tão desolada ao saber que Miss Burns hoje está doente - acrescentou. - Nada de grave, espero?

- Não. - A mulher estava nitidamente nervosa. Uma espécie de vírus apenas. Virá amanhã, tenho a certeza. Havia várias mulheres grávidas sentadas na área da recepção, mas estavam concentradas em revistas. Katie não podia de modo nenhum encetar uma conversa com elas. Uma grávida, com o rosto inchado, movimentos lentos e cautelosos, surgiu no corredor que conduzia aos escritórios dos médicos. Soou uma campainha na secretária. A recepcionista pegou no auscultador.

- Mrs. DeMaio, o doutor Highley atende a senhora agora - disse ela. - Parecia aliviada.

Katie desceu rapidamente o corredor. O escritório do doutor Highley era o primeiro, não se esquecera. Seguindo as instruções escritas em tipo de imprensa para bater e entrar, ela abriu a porta e entrou no escritório de tamanho médio. Tinha o aspecto de um gabinete confortável. Prateleiras para livros cobriam uma parede. Gravuras de mães com bebés tapavam quase por completo uma segunda parede. Uma cadeira de clube estava colocada perto da secretária exuberantemente cinzelada do médico. Katie lembrava-se que a sala de observação, um lavatório e a zona da cozinha e esterilização de instrumentos cirúrgicos completavam os aposentos. O médico estava atrás da secretária. Levantou-se para a cumprimentar.

- Mrs. DeMaio. - O seu Tom foi cortês, o ténue sotaque britânico quase imperceptível. Era um homem de estatura mediana, cerca de cinco pés e onze polegadas. O rosto bem barbeado, com faces rechonchudas, terminava num queixo oval. O corpo dava a impressão de força sólida, cuidadosamente controlada. Parecia poder engordar com facilidade. Um cabelo ruivo e raro raiado de cinzento estava cuidadosamente penteado para o lado. Sobrancelhas e pestanas da mesma tonalidade ruiva acentuavam os olhos cinzentos de aço, salientes. Traço por traço ele não era um homem atraente, mas o seu aspecto geral era imponente e autoritário.

Katie corou, percebendo que ele estava consciente do seu exame minucioso e aborrecido com ele. Sentou-se prontamente, e para estabelecer comunicação agradeceu-lhe o telefonema.

Ele dispensou a sua gratidão.

- Desejava que tivesse alguma coisa para me agradecer. Se tivesse dito ao médico da sala de urgência que era minha paciente, ele ter-lhe-ia dado um quarto na ala ocidental. Muito mais confortável, garanto-lhe. Mas a vista é quase a mesma acrescentou ele.

Katie começou a remexer no saco à procura de um bloco de apontamentos e papel. Ela levantou rapidamente os olhos.

- Vista. Qualquer coisa seria melhor do que aquela que pensei que tive naquela noite. Porque... - Ela calou-se. O bloco na sua mão recordou-lhe que estava ali no exercício das suas funções. Que pensaria dela a falar de pesadelos? Inconscientemente procurou endireitar-se na cadeira demasiado baixa e fofa.

- Doutor, se não se importa, falemos de Vangie Lewis em primeiro lugar. - Ela sorriu. - Suponho que os nossos papéis estão invertidos, pelo menos durante alguns minutos. Tenho de fazer perguntas.

A sua expressão tornou-se sombria.

- Desejava que houvesse uma razão mais feliz para os nossos papéis se inverterem Aquela pobre rapariga. Desde que ouvi as notícias quase não penso noutra coisa.

Katie acenou com a cabeça.

- Eu conhecia Vangie superficialmente, e devo dizer que tive a mesma reação. Agora, é pura rotina, claro, mas devido à inexistência de um bilhete, o meu departamento pretende saber algo sobre o estado mental de uma vítima de suicídio. Ela fez uma pausa, depois perguntou: - Quando foi a última vez que o senhor viu Vangie Lewis?

Ele reclinou-se na cadeira. Os dedos entrelaçaram-se sob o queixo, revelando umas unhas irrepreensivelmente limpas. Falou pausadamente:

- Foi na última quinta-feira, à tardinha. Pedira a Mrs. Lewis para vir pelo menos uma vez por semana, uma vez que completou metade do tempo de gravidez. Tenho aqui a ficha dela.

Ele apontou para a pasta de papel grosso sobre a secretária. Tinha uma etiqueta, LEWIS, VANGIE. Era um registo impessoal, concluiu Katie, um sinal de que exatamente há uma semana Vangie Lewis estivera deitada na sala de observação contígua àquele escritório onde foi verificada a pressão arterial, confirmada a pulsação do feto.

- Como estava Mrs. Lewis - perguntou ela -, física e emocionalmente?

- Em primeiro lugar, deixe-me responder acerca do seu estado físico. Era uma preocupação, claro. Existia o perigo de uma gravidez tóxica, que eu vigiava constantemente. Mas a senhora compreende, cada dia que passava aumentava a possibilidade de sobrevivência do bebé.

- Poderia ter levado a gravidez até ao fim?

- Impossível. De fato, na última quinta-feira, avisei Mrs. Lewis que era muito provável que a tivéssemos de internar nas duas próximas semanas e de provocar o parto.

- Como é que ela reagiu a essas notícias? Ele franziu as sobrancelhas.

- Esperava que Mrs. Lewis tivesse uma preocupação muito válida com a vida do bebé. Mas o fato é que quanto mais ela se aproximava do nascimento potencial, mais me dava a impressão que ela receava o parto. Cheguei mesmo a pensar que ela era uma garota que queria brincar às casinhas, mas que ficaria aterrorizada se a boneca se transformasse num bebé de carne e osso.

- Compreendo. - Katie escrevinhou rapidamente no bloco que tinha na mão. - Mas Vangie evidenciava alguma depressão específica?

O doutor Highley abanou a cabeça.

- Não a detectei. Todavia, penso que essa resposta deveria ser dada pelo doutor Fukhito. Ele examinou-a na segunda-feira à noite, e ele está mais habilitado do que eu para reconhecer um sintoma que está camuflado. A minha impressão geral era que ela estava a ficar com um medo mórbido de dar à luz.

- Uma última pergunta - Katie perguntou. - O seu escritório é mesmo ao lado do escritório do doutor Fukhito. O senhor viu Mrs. Lewis na segunda-feira à noite, a qualquer hora?

- Não vi.

- Obrigada, doutor. O senhor deu-me uma grande ajuda. - Enfiou de novo o bloco no saco à tiracolo. - Agora é a sua vez de fazer perguntas.

 - Não tenho muitas. Respondeu a elas ontem à noite. Quando acabar de falar com o doutor Fukhito, vá por favor para o quarto cento e um no outro lado do hospital. Vão-lhe fazer uma transfusão. Espere cerca de meia hora antes de guiar depois de a receber.

- Pensava que isso era para pessoas que davam sangue disse Katie.

- Só para se ter a certeza de que não há reação. Também... - Ele meteu a mão na gaveta funda na parte lateral da secretária. - Tome o primeiro hoje à noite - disse. - Depois um de quatro em quatro horas, amanhã; o mesmo na sexta-feira. Tome quatro comprimidos ao todo, amanhã e sexta-feira. Aqui tem que chegue. Devo acentuar que é muito importante que não se esqueça. Como sabe, se esta operação não remediar o seu mal, temos de pensar numa cirurgia mais radical.

- Eu vou tomar os comprimidos - disse Katie.

- Ótimo. Dará entrada no hospital cerca das seis horas da tarde de sexta-feira.

Katie acenou com a cabeça.

- Ótimo. Estarei a fazer as últimas inspeções e far-lhe-ei uma breve visita. Não está preocupada, espero?

Ela dera-lhe a conhecer o seu medo por hospitais no primeiro encontro?

- Não - disse -, deveras. Ele abriu-lhe a porta.

- Então até sexta-feira, Mrs. DeMaio - disse ele com brandura.

 

A equipa de investigação de Phil Cunningham e Charley Nugent regressou ao escritório do promotor de justiça às quatro da tarde a ressumar à excitação exagerada de cães de caça que obrigaram a presa a refugiar-se numa árvore. Entrando de roldão no gabinete de Scott Myerson, trataram de lhe apresentar as suas descobertas.

- O marido é um mentiroso - disse Phil com rispidez. Devia ter regressado ontem de manhã, mas o avião apresentava uma deficiência no motor. Os passageiros foram desembarcados em Chicago, e ele e a tripulação voltaram para Nova Iorque. Chegou segunda-feira ao fim do dia.

- Segunda-feira ao fim do dia! - exclamou Scott.

- Sim. E hospedou-se na Holiday Inn na West Fifty-Seí.yenth Street.

- Como conseguiram essa informação? - Arranjámos uma lista da tripulação do voo da segunda-feira e falámos com eles todos. O comissário de bordo vive em Nova Iorque. Lewis levou-o de carro para Manhattan e depois acabou por jantar com ele. Lewis contou-lhe uma história da carochinha dizendo que a mulher não estava em casa e que ele ia ficar essa noite na cidade e assistir a um espectáculo.

- Ele disse isso ao comissário de bordo?

- Disse. Estacionou o carro na Holiday Inn, reservou um quarto, em seguida foram jantar. O comissário de bordo deixou-o às sete e vinte. Depois disso Lewis foi buscar o carro, e os registos da garagem mostram que andou com ele mais de duas horas. Trouxe-o de volta às dez. E atenção ao que vou dizer. Voltou a sair à meia-noite e regressou às duas.

Scott assobiou.

- Ele mentiu-nos sobre o voo. Mentiu ao comissário de bordo sobre a mulher. Ele esteve algum lugar no carro entre as oito e as dez e entre a meia-noite e as duas da manhã. A que horas é que o Richard disse que Vangie Lewis morreu?

- Entre as oito e as dez da noite - disse Ed. Charley Nugent estivera calado.

- Há mais - disse ele. - Lewis tem uma namorada, uma hospedeira da Pan Am. Chama-se Joan Moore. Vive no duzentos e um na East Eighty-Seventh em Nova Iorque. O porteiro de lá disse-nos que o comandante Lewis a levou do aeroporto para casa ontem de manhã. Ela deixou o saco com ele e foram tomar café no centro comercial do outro lado da rua.

Scott bateu com o lápis na secretária, um sinal certo de que Se preparava para transmitir ordens. Os seus colaboradores esperavam com os blocos de apontamentos na mão.

- São quatro horas - disse Scott com secura. - Os juizes devem estar a sair. Entrem em contato com um deles e peçam-lhe para esperar cerca de quinze minutos. Digam-lhe que estamos a elaborar uma autorização judicial para uma busca domiciliária.

Phil saltou da cadeira e pegou no telefone.

- Você - Scott apontou para Charley - descubra qual foi o dono da agência funerária que recolheu o corpo de Vangie Lewis em Mineápolis. Entre em contato com ele. O corpo não deve ser enterrado, e certifique-se de que Chris Lewis não decide cremá-lo. Podemos querer fazer mais investigações. Lewis disse quando voltava?

Charley acenou com a cabeça.

- Ele disse-nos que regressaria amanhã imediatamente a seguir aos serviços e ao enterro.

Scott resmungou.

- Descubram em que avião vem e estejam à espera dele. Peçam-lhe que venha aqui para o interrogatório.

- O senhor não pensa que ele vai tentar fugir? - perguntou Charley.

- Não, não penso. Ele vai tentar comportar-se como se não tivesse nada de que ter vergonha. Se for esperto saberá que não temos nada de específico contra ele. E eu quero falar com a namorada. Que sabe acerca dela?

- Ela compartilha um apartamento com outras duas hospedeiras. Tenciona mudar-se para a divisão latino-americana da Pan Am e fazer os voos a partir de Miami. Neste preciso momento está em Fort Lauderdale a assinar um contrato de arrendamento de um apartamento. Estará de volta sexta-feira ao fim da tarde.

- Espere também pelo avião - disse Scott. - Peça-lhe para vir aqui para algumas perguntas. Onde estava na noite de segunda-feira?

- A bordo de um avião em direção a Nova Iorque. Temos a certeza absoluta.

- Muito bem. - Ele fez uma pausa. - Outra coisa. Quero a lista de telefonemas da casa Lewis, em particular da semana passada, e, quando fizerem a busca, vejam se existe algum tipo de máquina que responda num deles. Ele é comandante de uma companhia de aviação. Fazia sentido ter um.

Phil Cunningham pousava o auscultador.

- O juiz Haywood espera.

Scott pegou no telefone, marcou rapidamente o numero do escritório de Richard, perguntou por ele e balbuciou:

- Maldição. Tem de ser hoje o único dia em que sai cedo!

- Precisa dele neste momento? - O tom de Charley era de curiosidade.

- Quero saber o que ele queria dizer ao afirmar que havia algo que não se ajustava. Lembram-se desse comentário? Talvez fosse importante saber o que é. Muito bem, toca a trabalhar. E quando passarem a busca àquela casa, passem-na a pente fino. E procurem o cianido. Temos de descobrir sem delongas onde Vangie Lewis arranjou o cianido que a matou.

- Ou onde o comandante Lewis o arranjou - acrescentou ele calmamente.

 

Em comparação com o gabinete do doutor Highley, o do doutor Fukhito parecia mais espaçoso e claro. A escrivaninha com linhas longas e delicadas ocupava menos espaço do que a secretária maciça em estilo inglês do doutor Highley. Cadeiras elegantes com costas de palhinha e assentos e braços acolchoados e um canapé a condizer substituídos por cadeiras de clube de cabedal no outro escritório. Em vez da parede com quadros com mães e bebés, o doutor Fukhito tinha uma série de reproduções delicadas de xilogravuras Ukiyo-e.

O doutor Fukhito era alto para japonês. «A não ser que», pensou Katie, «a sua postura seja tão direita que ele parecesse mais alto do que provavelmente era.» Não, ela calculava que ele tivesse cerca de cinco pés e dez polegadas.

Como o seu sócio, o doutor Fukhito estava dispendiosa e conservadoramente vestido. O fato listrado era realçado por uma camisa azul-clara e gravata de seda em suaves tons de azul. O cabelo e o bigode pequeno e bem arranjado completavam uma pele levemente dourada e uns olhos castanhos mais ovais do que em forma de amêndoa. Tanto pelos padrões orientais como ocidentais ele era um homem impressionantemente belo.

«E provavelmente um psiquiatra muito bom», pensou Katie enquanto pegava no bloco de apontamentos, ganhando deliberadamente tempo para absorver impressões.

No mês anterior a sua visita com o doutor Fukhito fora breve e informal. A sorrir, ele explicara: «O útero é uma parte fascinante da anatomia. Às vezes, um fluxo irregular e excessivo pode indicar um problema emocional.»

«Duvido», dissera-lhe Katie. «A minha mãe teve o mesmo problema durante anos, e eu sei que é hereditário, ou pode ser.»

Ele fizera-lhe perguntas sobre a sua vida particular. «E suponha que um dia se torna necessária uma histerectomia? Como reagiria a isso?»

«Sentir-me-ia muito mal», replicara Katie. «Sempre desejei uma família.»

«Então tenciona casar-se? Tem uma relação com alguém?»

«Não.»

«Porque não?»

«Porque presentemente estou mais interessada no meu trabalho.»

Ela terminara abruptamente a entrevista. «Doutor, o senhor é muito gentil, mas não tenho grandes problemas emocionais, posso garantir-lhe. Estou ansiosa por me ver livre deste problema, mas asseguro-lhe que é um problema meramente físico.»

Ele concordara dolorosamente, levantando-se imediatamente e estendendo a mão. «Bem, se vai passar a ser paciente do doutor Highley, por favor lembre-se de que estou aqui. E se alguma vez quiser desabafar com alguém, talvez queira recorrer a mim.»

Várias vezes no mês anterior passara pelo espírito de Katie que talvez não fosse má ideia conversar com ele para obter um parecer profissional e objetivo sobre o seu estado emocional. «Ou», perguntou a si mesma, «esse pensamento tomara forma muito mais recentemente - por exemplo, desde o jantar com Richard ontem à noite?»

Pondo de parte esse pensamento, endireitou-se na cadeira e levantou a caneta. A manga caiu para trás, deixando à mostra o braço ligado. Para seu alívio, ele não fez perguntas.

- Doutor, como sabe, uma paciente sua e do doutor Highley, Vangie Lewis, morreu na segunda-feira à tardinha.

Ela reparou que as sobrancelhas se ergueram ligeiramente. Seria porque ele estava à espera que ela afirmasse peremptoriamente que Vangie se suicidara?

Ela prosseguiu:

- Doutor, o senhor viu Vangie por volta das oito horas dessa noite. Não é verdade?

Ele acenou com a cabeça.

- Vi-a às oito horas em ponto.

- Quanto tempo esteve aqui?

- Cerca de quarenta minutos. Ela telefonou na segunda--feira à tarde e solicitou uma consulta. Geralmente trabalho até às oito às segundas-feiras, e já tinha todas as horas tomadas. Disse-lhe isso e sugeri-lhe que viesse terça-feira de manhã.

- Como é que ela reagiu?

- Começou a chorar ao telefone. Parecia bastante aflita, e, claro, disse-lhe para vir, que a podia atender às oito.

- Por que razão estava tão aflita, doutor?

Ele falou pausadamente, escolhendo as palavras com cuidado.

- Ela discutira com o marido. Estava convencida de que ele não a amava nem queria o bebé. Fisicamente, a tensão da gravidez estava a começar a afetá-la. Era bastante imatura, realmente - filha única que tinha sido excessivamente mimada e enervada. O mal-estar físico aterrorizava-a, e a perspectiva do nascimento tornara-se subitamente assustadora.

Inconscientemente, os olhos dele fixaram-se na cadeira à direita da sua secretária. Ela sentara-se nela na noite de segunda-feira, com aquele cafetã comprido a envolver-lhe o corpo. Por mais que ela tivesse afirmado que desejava um filho, Vangie detestava as roupas da maternidade, detestava ficar desfigurada. No último mês tentara esconder o corpo descomunal e a perna inchada usando vestidos compridos. Foi um milagre não ter tropeçado e caído da forma como eles se enredavam nos pés.

Katie olhou fixamente para ele, cheia de curiosidade. Aquele homem estava nervoso. Que conselho dera a Vangie que a fizera correr para casa para se matar. Ou a levara a um assassino, se a suspeita de Richard estivesse certa? A discussão. Chris Lewis não admitira que ele e Vangie tinham discutido.

Inclinando-se para diante rapidamente, Katie perguntou:

- Doutor, compreendo que queira salvaguardar o carácter confidencial das conversas de Mrs. Lewis com o senhor, mas este é um assunto oficial. Precisamos de saber o que nos puder contar sobre a discussão que Vangie Lewis teve com o marido.

Ele tinha a impressão que a voz de Katie vinha de muito longe. Via os olhos aterrorizados de Vangie fixos nele. Com um esforço enorme controlou-se e olhou de frente para Katie.

- Mrs. Lewis disse-me que tinha a certeza que o marido estava apaixonado por outra mulher, que o acusara disso. Ela disse-me que o avisou que quando descobrisse quem era a mulher que lhe faria a vida negra. Estava irritada, excitada, amargurada e assustada.

- Que lhe disse?

- Prometi-lhe que antes e durante o parto lhe dariam tudo o que fosse necessário para se sentir bem. Disse-lhe que esperávamos que ela iria ter o bebé que sempre desejou e que ele podia ser o instrumento que daria mais tempo ao seu casamento.

- Como é que ela reagiu a isso?

- Começou a acalmar. Mas achei conveniente avisá-la que depois do nascimento do bebé, se a relação conjugal não melhorasse, devia pensar na possibilidade de uma ruptura.

- E então?

- Ficou furiosa. Jurou que nunca permitiria que o marido a deixasse, que eu estava do lado dele, como toda a gente. Levantou-se e pegou no casaco.

- Que fez o doutor?

- Não era altura para fazer o que quer que fosse. Disse-lhe para ir para casa, que dormisse bem e me telefonasse de manhã. Compreendi que era cedo de mais para ela enfrentar o fato aparentemente irrevogável de que o comandante Lewis queria o divórcio.

- E ela foi-se embora?

- Foi. O carro estava estacionado na zona de estacionamento das traseiras. Às vezes perguntava se podia servir-se da minha entrada privada para sair pelas traseiras. Na segunda-feira à noite não perguntou. Limitou-se a sair por aquela porta.

- E não voltou a ter notícias dela?

- Não.

- Compreendo. - Katie levantou-se e aproximou-se da parte coberta com as gravuras. Ela queria que o doutor Fukhito continuasse a falar. Estava a esconder alguma coisa. Estava , nervoso.

- Eu mesma fui uma doente deste hospital na segunda-feira à noite - disse ela. - Tive um pequeno acidente de automóvel e trouxeram-me para aqui.

- Fico contente por não ter sido grave.

- Sim. - Katie parou em frente de uma das gravuras, Uma Pequena Rua em Yabu Koji Atagoshitã. - É bela - disse ela. É da série Cem Vistas de Yedo, não é?

- É. A senhora está muito bem informada sobre a arte japonesa.

- Nem por isso. O meu marido era o perito e ensinou-me um pouco, e eu possuo outras reproduções da série, mas esta é maravilhosa. Interessante, não é, o conceito de cem vistas do mesmo lugar?

Ele tornou-se cauteloso. Katie estava de costas para ele e não viu que este comprimiu os lábios de forma a ficarem uma linha rígida.

Katie virou-se.

- Doutor, fui trazida para aqui por volta das dez horas da noite na segunda-feira. Pode dizer-me, é possível que Vangie não tenha saído às oito horas; que ainda estivesse no hospital; que às dez horas, quando me trouxeram, a pudesse ter visto?

O doutor Fukhito olhou fixamente para ela, sentindo um medo frio e úmido a perpassar na pele. Esforçou-se por sorrir.

- Não vejo como - disse ele. Mas Katie notou que as mãos estavam crispadas e brancas, como se estivesse a fazer um esforço para se sentar na cadeira, em vez de fugir, e qualquer coisa - seria raiva ou medo? - cintilou nos seus olhos.

 

Às cinco horas Gertrude Fitzgerald ligou o telefone ao ’’serviço de atendimento e fechou à chave a secretária da recepção. Cheia de nervosismo marcou o número de Edna. Ninguém respondeu, uma vez mais. Não havia dúvida. Edna ,nos últimos tempos andava a beber cada vez mais. Mas era uma pessoa tão alegre e amável. Na verdade gostava de toda  gente. Gertrude e Edna almoçavam muitas vezes juntas, geralmente na cantina do hospital. Às vezes Edna dizia: «Vamos sair para comer alguma coisa de jeito.» Isso significava que ela queria ir ao pub próximo do hospital onde podia beber um Manhattan. Nesses dias Gertrude tentava sempre que não excedesse um copo. Edna gracejava com ela. «Esta noite podes beber dois, querida», dizia.

Gertrude cmpreendia a necessidade de beber de Edna. Não bebia, mas sabia o que era aquela sensação de vazio quando tudo o que uma pessoa faz é ir para o trabalho todos os dias, depois ir para casa e ficar a olhar para quatro paredes. Ela e Edna riam-se às vezes dos artigos que aconselhavam as pessoas a fazerem ioga ou a praticarem ténis ou inscreverem-se num clube onde se estudam os hábitos das aves ou a tirarem um curso. E Edna dizia: «com estas pernas gordas não conseguia cruzá-las; nunca tocarei no chão sem dobrar os joelhos; sou alérgica a pássaros e ao fim do dia estou demasiado cansada para me preocupar com a história da Grécia antiga. Só queria encontrar no caminho de casa um tipo simpático que quisesse vir ter comigo à noite, e, podes crer, não me importava que ele ressonasse.»

Gertrude era viúva há sete anos, mas pelo menos tinha os filhos e os netos; pessoas que se interessavam por ela, que lhe telefonavam, que às vezes lhe pediam emprestado algumas centenas de dólares; pessoas que precisavam dela, Também tinha momentos de solidão, só Deus sabia, mas não era o mesmo como era para Edna. Ela tinha vivido. Tinha sessenta e dois anos, saúde e recordações.

Ela era capaz de jurar que o doutor Highley dera conta que estava a mentir quando disse que Edna telefonara a informar que se encontrava doente. Mas Edna admitira que o doutor Highley a advertira por causa da bebida. E Edna precisava do emprego. Os pais já idosos fizeram-na gastar um dinheirão antes de morrerem. Não que Edna se tivesse queixado alguma vez. Mas o que era triste, queria que eles ainda estivessem com ela; sentia muito a sua falta.

E se Edna não tivesse bebido? E se estava mesmo doente? O pensamento fez com que Gertrude suspendesse a respiração bruscamente. Não podia haver dúvidas. Precisava de ver Edna. Iria já de carro para casa dela. Se ela estivesse a beber, obrigá-la-ia a parar e faria com que ficasse sóbria. Se estivesse doente, trataria dela.

Com o espírito apaziguado, Gertrude levantou-se rapidamente da secretária. «Outra coisa. Aquela Mrs. DeMaio do departamento do promotor de justiça. Ela foi muito simpática, mas podias asseverar que ela estava ansiosa por falar com Edna. Talvez telefone a Edna amanhã. Que poderá querer dela? Que poderá contar-lhe Edna a respeito de Mrs. Lewis?»

Era um problema intrigante, um problema que manteve Gertrude ocupada enquanto percorria de carro as seis milhas até ao apartamento de Edna. Mas ainda não conseguira encontrar uma resposta no momento em que entrou na zona de estacionamento para os não inquilinos atrás do apartamento de Edna e se dirigiu para a porta da frente.

As luzes estavam acesas. Apesar da cortina brilhante, forrada por ela, estar corrida Gertrude podia dizer que vinha claridade da sala de estar e da pequena zona das refeições. Quando se aproximou da porta, ouviu o som fraco de vozes.

O aparelho de televisão, claro.

Uma irritação momentânea percorreu-lhe o corpo. Ela podia ficar deveras irritada se Edna estivesse confortavelmente sentada na cadeira de balouço e nem sequer se dera ao trabalho de atender o telefone. Ela, Gertrude, fizera o trabalho por Edna, encobrira a sua falta, e agora fizera um desvio de milhas do seu trajeto para se certificar de que não passava necessidades.

Gertrude tocou à campainha. Esta produziu dois sons metálicos. Esperou. Apesar de ouvir mal, não houve nenhum som de pés apressados a aproximarem-se da porta, nem uma voz familiar a gritar: «Já vai.» Talvez Edna estivesse a enxaguar a boca com Scope. Ela estava sempre com medo que algum dos médicos entrasse de repente para fazer algum trabalho de emergência. Isso acontecera algumas vezes em dias em que Edna não estava. Foi assim que o doutor Highley se apercebeu pela primeira vez do problema de Edna.

Mas não se ouvia o som reconfortante de vozes ou passos, Gertrude sentiu calafrios quando carregou de novo com força à campainha. Edna talvez estivesse a dormir para curar a betedeira. Estava tanto frio. Queria apanhar-se na sua casa.

Depois de ter tocado quatro vezes à campainha, o aborrecimento desapareceu e Gertrude ficou alarmada. Não adiantava nada andar de um lado para o outro; algo de errado se passava e ela tinha de entrar no apartamento. O superintendente, Mr. Krupshak, vivia mesmo do outro lado do pátio. Correndo para lá, Gertrude contou o que se passava. O superintendente estava a jantar e parecia aborrecido, mas a esposa, Gana, pegou no anel enorme com as chaves que estava por cima da banca da cozinha pendurado num prego.

- Eu vou consigo - disse ela.

As duas mulheres atravessaram o pátio a correr.

- Edna é uma amiga a valer - apressou-se a dizer Gana Krupshak. - Às vezes, à tardinha, passo por lá, conversamos e tomamos uma bebida juntas. O meu marido não gosta de bebidas alcoólicas, nem mesmo vinho. Ainda ontem estive lá às oito. Bebi um Manhattan com ela, e disse-me que uma das doentes de quem mais gostava se tinha suicidado. Bem, já chegámos.

As mulheres estavam no pequeno átrio que ia dar ao apartamento de Edna. A mulher do superintendente mexeu desajeitadamente nas chaves.

- É esta - murmurou ela. Meteu a chave na fechadura, rodou-a. - Esta fechadura tem uma mania, tem de se abanar um pouco.

O fecho girou e ela abriu a porta enquanto falava.

As duas mulheres viram Edna ao mesmo tempo: deitada no chão, com as pernas dobradas debaixo do corpo, o roupão azul aberto, revelando uma camisa de noite de flanela, o cabelo, que estava a ficar grisalho, colado à volta do rosto, os olhos esbugalhados, uma crosta de sangue que formava uma coroa carmesim no alto da cabeça.

- Não. Não. - Gertrude sentiu a voz a subir de tom, um grito penetrante, uma entidade que ela não podia controlar. Comprimiu a boca com a mão.

Gana Krupshak disse numa voz desorientada:

- Ainda ontem à noite estive aqui sentada com ela. E - a voz da mulher embargou-se - ela estava bastante atrapalhada - a senhora sabe o que quero dizer, a forma como Edna podia ficar - e estava a falar de uma doente que se matou. E depois telefonou ao marido da doente. - Gana começou a soluçar sons estridentes, ruidosos. - E agora a pobre Edna também está morta!

 

Chris Lewis ficou perto dos pais de Vangie à direita do caixão, quase sem se aperceber das expressões de pêsames de amigos. Quando lhes telefonara a participar a morte dela, concordaram que veriam o corpo em casa, um serviço em memória da defunta na manhã do dia seguinte seguido de um funeral privado.

Em vez disso, quando chegou a Mineápolis nessa tarde, constatou que tinham planeado um velório público para essa noite e que depois do serviço na capela na manhã do dia seguinte um cortejo seguiria o corpo de Vangie até ao cemitério.

- Todos os amigos quererão despedir-se da nossa querida filha. Pensar que há dois dias estava viva, e agora está morta - disse a mãe dela a soluçar.

Era só quarta-feira? Chris tinha a impressão de que tinham decorrido semanas desde que entrara na cena do pesadelo no quarto na manhã do dia anterior. Ontem de manhã.

- O nosso bebé não está lindo? - perguntava a mãe a uma visita que se aproximara naquele momento do caixão.

A nossa filhinha. O nosso bebé. «Se ao menos a tivesse deixado crescer», pensou Chris, «tudo podia ter sido tão diferente». A hostilidade para com ela era controlada, mas escondia-se por baixo da superfície pronta a saltar. «Uma rapariga feliz não se suicida», dissera-lhe a mãe dela acusadoramente. Pareciam velhos, cansados e abalados do sofrimento - pessoas francas, trabalhadoras, que se tinham privado de tudo para rodearem de luxo a filha imprevistamente bela, que a criaram na convicção de que o seu desejo era lei.

Seria mais fácil para eles se a verdade revelasse que alguém tinha tirado a vida a Vangie? Ou não lhes devia dizer nada, para os poupar a esse horror final? A mãe já estava a tentar encontrar conforto, a forjar uma versão com que pudesse viver: «Chris anda em viagem e nós estamos tão longe, e a minha bebé sentia-se tão doente, bebeu um gole de qualquer coisa e adormeceu.»

«Oh, meu Deus», pensou Chris, «como as pessoas desvirtuam a verdade, desvirtuam a vida.» Queria falar com Joan. Ela ficara tão perturbada quando soube o que aconteceu a Vangie que quase não conseguira falar. «Ela sabia de nós dois?» Acabara por ter de admitir que Vangie suspeitava que ele estava interessado noutra pessoa.

Joan regressaria da Florida na sexta-feira à noite. Ele voltaria para Nova Jérsia no dia seguinte à tarde depois do funeral. Não diria nada à Polícia até ter tido uma oportunidade de falar com Joan, para a avisar que podia ver-se envolvida nisto. A Polícia procuraria um motivo para ele matar Vangie. Aos seus olhos, Joan seria o motivo.

Deveria deixar tudo como estava? Tinha o direito de envolver Joan naquilo, de desenterrar algo que feriria ainda mais os pais de Vangie?

Tinha havido outra pessoa na vida de Vangie? Chris relanceou o olhar pelo caixão, pelo rosto de Vangie agora sereno, pelas mãos tranquilamente entrelaçadas. Ele e Vangie mal tinham vivido como marido e mulher nos últimos anos. Deitavam-se lado a lado como dois estranhos, ele exaurido emocionalmente das discussões contínuas, ela desejosa de ser adulada, amimada. Chegara a sugerir quartos separados, mas ela ficara histérica.

Ela engravidou dois meses depois de se mudarem para Nova Jérsia. Quando ele concordou com uma última tentativa para salvar o casamento, fizera um esforço sincero para que resultasse. Mas o verão tinha sido péssimo. Em Agosto ele e Vangie mal se falavam. Apenas uma vez, a meio do mês, dormiram juntos. Ele pensara que era uma ironia do destino que ao fim de dez anos ela engravidasse precisamente no momento em que ele conhecera outra pessoa.

Uma suspeita, que Chris supunha estar algum lugar no seu subconsciente, brotou de repente. Seria possível que Vangie tivesse uma ligação com outro homem, um homem que não quis responsabilizar-se por ela nem por um bebé? Vangie tinha avisado que se soubesse com quem andava Chris, faria votos para que ela morresse. E se ela tinha alguma relação com um homem casado? E se ela lhe tivesse feito ameaças histéricas?

Chris apercebeu-se que estivera a apertar as mãos, a murmurar agradecimentos, a olhar para rostos familiares sem os ver na realidade: vizinhos do condomínio onde ele e Vangie tinham vivido antes se de mudarem para Nova Jérsia; amigos da companhia de aviação; amigos dos pais de Vangie. Os seus pais estavam isolados na Carolina do Norte. Nenhum deles estava bem. Ele dissera-lhes para não fazerem a viagem até Mineápolis com o tempo tão frio.

- Lamento. - O homem que lhe apertava a mão tinha sessenta e tal anos. Era um homem franzino, mas extremamente atraente, com o cabelo cinzento-escuro e sobrancelhas espessãs sobre uns olhos vivos, penetrantes. - Sou o doutor Salem - disse -, Emmet Salem. Assisti ao nascimento de Vangie e fui o seu primeiro ginecologista. Foi uma das crianças mais bonitas que trouxe a este mundo, e ela nunca mudou. Só queria não ter estado ausente quando ela telefonou para o meu escrittório na segunda-feira.

Chris olhou fixamente para ele.

- Vangie telefonou-lhe na segunda-feira?

- Telefonou. A minha enfermeira disse que ela estava bastante perturbada. Queria ver-me imediatamente. Estava a orientar um seminário em Detroit, mas a enfermeira marcou-lhe um encontro comigo para hoje. Talvez a pudesse ter ajudado.

Por que razão Vangie telefonara a este homem? Porquê?

Chris achava aquilo inconcebível. Que a levaria a ir ter de novo com um médico que ela não via há anos? Ela não estava bem, mas se queria uma consulta, porquê um médico a mil e trezentas milhas de distância?

- Vangie esteve doente? - O doutor Salem estava a olhar fixamente para ele cheio de curiosidade, à espera de uma resposta.

- Não, doente não - disse Chris. - Como talvez saiba, ela estava grávida. Foi uma gravidez difícil desde o princípio.

- Vangie estava o quê? ~ O médico levantou o Tom de voz.

Ele olhou para Chris com um ar de admirado.

- Eu compreendo. Ela estava prestes a perder as esperanças. Mas em Nova Jérsia começou a frequentar a Maternidade e Centro de Concepção Westlake. Talvez tenha ouvido falar dela, ou do doutor Highley - doutor Edgar Highley.

- Comandante Lewis, posso falar com o senhor? – O dono da agência funerária tinha uma mão debaixo do braço dele, arrastando-o para o gabinete do outro lado do vestíbulo próximo da sala do velório.

- Com licença - disse Chris ao médico. Desorientado coma agitação do dono da funerária, deixou-se conduzir para o gabinete.

O dono da funerária fechou a porta e olhou para Chris.

- Acabo de receber um telefonema do escritório do promotor de justiça de Valley County, Nova Jérsia - disse ele. Vem a caminho uma confirmação escrita. Estamos proibidos de enterrar o corpo da sua mulher. O corpo da sua mulher deve ser enviado de avião novamente para o escritório do examinador médico em Valley County logo a seguir ao serviço de manhã.

«Eles sabem que não foi suicídio», pensou Chris. «Já sabem isso.» Não havia nada que pudesse fazer para o ocultar. Assim que tivesse uma oportunidade para falar com Joan na sexta-feira à noite, contaria tudo o que sabia ou suspeitava ao departamento do promotor de justiça.

Sem responder ao dono da funerária, virou-se e saiu do gabinete. Queria falar com o doutor Salem, descobrir o que Vangie tinha dito à enfermeira pelo telefone.

Mas quando entrou de novo na outra sala, o doutor Salem já se tinha ido embora. Partira sem falar com os pais de Vangie. A mãe de Vangie limpava os olhos inchados com um lenço úmido e enrodilhado.

- Que disse ao doutor Salem para ele sair daquela maneira? - perguntou ela. - Por que razão o indispôs daquela maneira?

 

Na quarta-feira chegou a casa às seis da tarde. Hilda ia a sair. O rosto sem qualquer beleza especial, estólido, estava circunspecto. Ele era sempre frio com ela. Sabia que ela gostava e precisava daquele emprego. Porque não? Uma casa que não se sujava; sem uma patroa a dar ordens constantemente; sem crianças para a porem em desordem.

Nenhuma criança. Entrou na biblioteca, encheu um copo. Com uísque escocês e a matutar ficou a ver pela janela o corpo enorme de Hilda a desaparecer ao fundo da rua na direção da paragem de autocarros a dois quarteirões de distância.

Fora para medicina porque a sua própria mãe tinha morrido de parto. O seu nascimento. As histórias acumuladas dos anos, escutadas a partir do momento em que as podia perceber, contadas pelo homem tímido, discreto, que tinha sido o seu pai. «A tua mãe desejava-te tanto. Sabia que estava a pôr em risco a sua própria vida, mas não se importou.» Sentado na farmácia em Brighton, observando o pai a aviar receitas, fazendo perguntas: «O que é aquilo?» «Para que é aquele comprimido?» «Porque é que põe rótulos com avisos naqueles frascos?» Ficava fascinado, absorvendo a informação que o pai partilhava com ele de bom grado - o único tema de que o pai podia falar; o único mundo que ele conhecia. Fora para a faculdade de medicina, terminara com a melhor nota do seu curso ofereceram-lhe lugares como interno em hospitais centrais em Londres e Glasgow. Escolhera antes o Christ Hospital em Devon, com um laboratório de investigação magnificamente equipado - possibilitava-lhe tanto a investigação como a prática. Passara a fazer parte do quadro a sua reputação como obstetra crescera rapidamente. E o seu projeto empatado, retardado, amaldiçoado pela sua incapacidade para o ensaiar.

Aos vinte e sete anos casara-se com Claire, uma prima afastada do conde de Sussex - com uma posição social infinitamente superior à dele, mas a sua reputação, a perspectiva de proeminência futura tinham sido o fator nivelador, e a ignomínia inconcebível. Ele, que negociava em nascimentos e fertilidade, tinha casado com uma mulher estéril. Ele, cujas paredes estavam cobertas de gravuras de bebés que nunca deviam ter nascido, não tinha nenhuma esperança de vir a ser pai.

Quando começara a odiar Claire? Levou muito tempo sete anos.

Foi quando compreendeu finalmente que ela não se importava; nunca se importara; que o seu desapontamento era falso; que ela soubera que não podia engravidar antes de casar com ele.

Impaciente, afastou-se da janela. Seria outra noite fria e ventosa. Por que razão é que Fevereiro, o mês mais pequeno do ano, parecia sempre o mais longo? Quando tudo terminasse faria umas férias. Estava a ficar irritável, a perder o controlo sobre os nervos.

Quase se traíra essa manhã quando Gertrude lhe disse que Edna telefonara a dizer que estava doente. Agarrara-se à secretária, com as mãos a ficarem brancas. Depois lembrara-se. A pulsação irregular que deixara de sentir, os olhos tortos, os músculos a afrouxarem in extremis. Gertrude estava a encobrir a amiga. Gertrude estava a mentir.

Ele olhara Gertrude de sobrancelhas carregadas. Quando falou deu um Tom glacial à voz. «É um transtorno enorme que Edna não venha hoje. Espero que ela esteja aqui amanhã.»

Dera resultado. Podia afirmá-lo devido ao lamber nervoso dos beiços, aos olhos desviados de Gertrude. Ela pensava que estava furioso por causa da ausência de Edna. Sabia provavelmente que ele a repreendera por causa da bebida.

Gertrude podia revelar-se uma aliada.

POLÍCIA: E como reagiu o doutor quando lhe disse que Miss Burns tinha faltado ao serviço?

GERTRUDE: Ficou bastante zangado. É muito metódico. Não gosta nada que altere a rotina.

O sapato que não apareceu. Nessa manhã tinha ido ao hospital pouco depois do amanhecer e esquadrinhara o parque de estacionamento e o escritório uma vez mais. Vangie trazia-o quando entrou no seu escritório na segunda-feira à noite? Apercebeu-se de que não podia ter a certeza. Ela envergava aquele cafetã comprido, o casaco de Inverno mal abotoado por cima dele. O cafetã era demasiado amplo; o casaco fazia pressão no abdómen. Ela levantou o cafetã para lhe mostrar a perna direita, inchada. Ele vira o mocassin naquele pé, mas nunca reparara no outro sapato. Ela trazia-o na altura? Ele simplesmente não sabia.

Se ele tivesse caído no parque de estacionamento quando ele levava o corpo para o carro, alguém o apanhara. Talvez algum homem da manutenção o tivesse visto; o tivesse posto de parte. Muitas vezes doentes que deixavam o hospital possuíam sacos de compras a deitar por fora, atulhados de cartões ou plantas e artigos pessoais que à última hora não couberam na mala, e perdiam objetos entre o quarto do hospital e o parque de estacionamento. Perguntara na secretária dos perdidos e achados, mas não tinham nenhum calçado. Talvez tivesse sido atirado para o saco do lixo.

Lembrava-se de ter tirado Vangie da mala do carro, de passar com ela perto das prateleiras na garagem. Estavam atulhadas com ferramentas de jardinagem. Seria possível que o sapato mais folgado tivesse roçado nalguma coisa saliente? Se ele fosse encontrado numa prateleira da garagem, seriam feitas perguntas.

Se Vangie não tinha o sapato calçado quando saiu do escritório do doutor Fukhito, o pé da meia teria ficado sujo. Mas o pórtico entre os escritórios era abrigado. Se o pé esquerdo estivesse muito sujo, ele teria dado conta quando a deitou na cama.

O pavor de descobrir que levava o sapato direito, o sapato que tentara arrancar do pé de Vangie, desencorajara-o. Tanto mais tolo era por ter feito aquilo. Depois do risco terrível, terrível.

O sapato direito estava no saco na mala do carro. Não sabia ao certo se deveria livrar-se dele - não até ter a certeza que o outro não aparecera ainda.

Mesmo que a Polícia encetasse uma investigação intensiva ao suicídio, não havia nada que constituísse uma prova contra ele. A ficha dela no consultório podia suportar um exame profissional minucioso. As fichas autênticas de Vangie, todas as fichas autênticas dos casos especiais, estavam ali no cofre de parede. Ele desafiava qualquer pessoa a localizar aquele cofre.

Nem sequer constava das plantas originais da casa. O doutor Westlake instalara-o pessoalmente. Apenas Winifred sabia da sua existência.

Ninguém tinha motivo para desconfiar dele - ninguém, excerto Katie DeMaio. Estivera quase para lhe contar alguma coisa quando ele fez referência à vista do quarto do hospital, mas ela mudara de ideias de um momento para o outro.

Fukhito viera ter com ele quando estava a fechar a porta à chave nessa mesma noite. Fukhito estava nervoso. Ele dissera: «Mrs. DeMaio fez muitas perguntas. Será possível que eles não acreditem que Mrs. Lewis se suicidou?»

«Realmente não sei.» Ele sentira prazer com o nervosismo de Fukhito; compreendia o motivo para ele.

«Aquela entrevista que deu à revista Newsmaker vai sair amanhã, não vai?»

Ele olhara para Fukhito com desdém. «Vai. Mas garanto-lhe que dei a entender que me sirvo de um grande número de consultores psiquiátricos. O seu nome não aparecerá no artigo.»

Fukhito não se sentiu aliviado. «Mesmo assim vai concentrar as atenções neste hospital; em nós», queixou-se ele.

«Em si - não é isso que o senhor está a dizer, doutor?»

Ele rira-se quase em voz alta do ar aflito e de culpa no rosto de Fukhito.

Agora, terminando o uísque, apercebeu-se de que tinha estado a deixar passar outra possibilidade de fuga. Se a Polícia chegasse à conclusão de que Vangie fora assassinada; se investigassem Westlake; seria fácil sugerir com relutância que interrogassem o doutor Fukhito. Principalmente tendo em conta o seu passado.

Afinal, o doutor Fukhito era a última pessoa que se sabia ter visto Vangie Lewis viva.

 

Depois de deixar o doutor Fukhito, Katie dirigiu-se à ala oriental do hospital para a transfusão. Foi-lhe dada uma área separada por uma cortina perto da sala de emergência. Enquanto estava deitada numa cama, com a manga arregaçada, a agulha introduzida no braço, tentou reconstruir a sua chegada ao hospital na noite de segunda-feira.

Pensava lembrar-se de ter estado nesta sala, mas não tinha a certeza. O médico, que suturara o golpe no braço, espreitou.

- Viva. Pensei tê-la visto na recepção. Vejo que o doutor Highley mandou que lhe fizessem outra transfusão. Espero que esteja a controlar essa baixa percentagem de glóbulos.

- Estou. Estou sob os cuidados do doutor Highley.

- Ótimo. Vamos ver esse braço. - Ele ligou-o de novo enquanto ela estava ali deitada. - bom trabalho. Tenho de o admitir. Não terá uma cicatriz para mostrar aos seus netos.

- Se tiver algum - disse Katie. - Diga-me, doutor, estive nesta cama na noite de segunda-feira?

- Esteve, tivemo-la aqui depois do raio X. Não se lembra?

- É tudo tão confuso.

- Perdeu muito sangue. Está em estado de choque.

- Compreendo.

Quando terminou a transfusão, lembrou-se que o doutor Highley lhe dissera para não conduzir durante cerca de meia hora. Resolveu ir ao departamento de admissão de doentes para preencher os impressos necessários. Assim não teria de se preocupar com eles na sexta-feira à noite.

Quando saiu do hospital eram quase seis horas. Deu por ela a virar o carro na direção de Chapin River. «Que disparate», pensou. «Amanhã à noite vais jantar com a Molly e o Bill. Não penses em ir lá esta noite.»

Tomada a decisão, fez uma curva em U e dirigiu-se para Palisades Parkway. Estava a ficar com fome, e a ideia de ir para casa não a fascinava. Quem era o poeta que escrevera sobre as alegrias da solidão e depois concluíra o poema com estas palavras: «Não vás para casa sozinho depois das cinco. Deixa que alguém esteja lá à tua espera»?

Bem, ela aprendera a enfrentar a solidão, ensinara-a a desfrutar uma noite calma de leitura ao som da música stereo.

A sensação de vazio que ultimamente se apoderava dela era algo diferente.

Passou pelo restaurante onde ela e Richard tinham comido na noite anterior, e por impulso curvou para a zona de estacionamento. Nessa noite iria experimentar a outra especialidade, o entrecôte. Talvez conseguisse pensar no restaurante quente, aconchegado e sossegado.

O proprietário reconheceu-a e sorriu de prazer.

- Boa noite, minha senhora. O doutor Carroll não fez nenhuma reserva mas tenho uma mesa perto da lareira. Ele está a estacionar o carro?

Ela abanou a cabeça.

- Receio que seja só eu esta noite.

Por um instante o homem ficou com um ar embaraçado, mas recompôs-se rapidamente.

- Então suponho que fizemos uma nova e bela amiga.

Conduziu-a à mesa perto daquela que partilhara com Richard.

Acenando com a cabeça à sugestão de um copo de Burgundy, Katie reclinou-se e sentiu a mesma descontração que tivera na noite anterior. Agora se ao menos fosse capaz de

controlar os pensamentos, de seleccionar as impressões que recebera ao conversar com o doutor Highley e o doutor Fukhito acerca de Vangie Lewis.

Tirando o bloco de apontamentos, começou a estudar o que anotara durante as entrevistas. Doutor Highley. Ela esperava que ele explicasse ou argumentasse que Vangie Lewis tinha obviamente problemas graves com a gravidez. Ele fizera isso precisamente, o que lhe disse era perfeitamente razoável. Dia a dia ia comprar o tempo do bebé. Os comentários que fizera sobre a reação de Vangie ao parto iminente soavam a verdadeiros. Ela ouvira da boca de Molly a história da reação histérica de Vangie a uma bolha no dedo.

E depois? Que mais pretendia ela do doutor Highley? Pensou no doutor Wainwright, especialista do cancro em Nova Iorque, que tratara de John. Depois de John morrer, ele falara com ela, com uma expressão e uma voz de pesar. «Quero que saiba, Mrs. DeMaio, que tentámos tudo o que era possível para o salvarmos. Fez-se tudo. Mas às vezes Deus não nos ajuda.»

O doutor Highley expressara desapontamento pela morte de Vangie, mas pesar certamente que não. Mas, evidentemente, ele não podia deixar de ser objetivo. Ela ouvira Bill e Richard a discutirem a necessidade de permanecer objetivo quando se exerce a profissão de médico. Caso contrário uma pessoa está sempre a sofrer e acaba por se tornar inábil.

Richard. Instintivamente os seus olhos desviaram-se em direção à mesa onde estivera com ele. Ele dissera: «Ambos sabemos que podíamos gostar um do outro.» Ele tinha razão. Ela tinha consciência disso. Talvez fosse por isso que geralmente se sentia perturbada com ele, como se as coisas lhe pudessem ser tiradas das mãos. Seria possível que aquilo pudesse acontecer duas vezes na vida? «Desde o princípio sabes que alguma coisa está certa, que alguém tem razão.»

Quando ela e Richard saíam da casa de Molly depois daquele almoço rápido na véspera, Molly convidara-os para jantar na quinta-feira - no dia seguinte. Molly disse: «A Liz e o Jim Berkeley vêm cá. Ela é a tal que pensa que o doutor Highley é Deus. Talvez estejam interessados em conversar com ela.»

Katie compreendeu que esperava aquele jantar com um prazer antecipado.

Olhou de novo para as anotações. Doutor Fukhito. Havia ali algo de errado. Tinha a impressão de que ele pesara deliberadamente cada palavra que dizia quando falou da visita de Vangie na segunda-feira à noite. Fora como se estivesse a observar uma pessoa a atravessar passo a passo um campo minado. Que receava? Mesmo tendo em conta a preocupação razoável de proteger a relação médico-paciente, ele estava com medo de dizer alguma coisa que ela aproveitasse.

Depois fora notoriamente hostil quando ela perguntou se por acaso havia a possibilidade de Vangie estar ainda no hospital às dez horas, quando ela, Katie, foi trazida para lá.

E se ela tivesse visto Vangie de relance? E se Vangie fosse a sair do gabinete do doutor Fukhito: se dirigisse para algum lugar no parque de estacionamento? Isso explicaria o fato de ter visto o seu rosto naquele pesadelo disparatado.

Ninguém a vira ir embora.

E se ela não tivesse saído? E se ela ficara com o médico? E se ele tivesse saído com ela ou a tivesse seguido até casa? E se ele se tivesse apercebido que ela era suicida, que era responsável de certa maneira?...

O bastante para o pôr nervoso.

O criado chegou para registar o que ela escolhera. Antes de arrumar o bloco de apontamentos, Katie fez uma última anotação: Investigar os antecedentes do doutor Fukhito.

 

Mesmo antes de atravessar a George Washington Bridge e descer o Harlem River e FDR Drive quarta-feira à tardinha, Richard sabia que devia ter cancelado o encontro com Clovis. Estava preocupado com a morte de Vangie Lewis; o subconsciente insinuava que ele tinha deixado passar qualquer coisa em claro na autópsia. Havia qualquer coisa que tencionava examinar com mais atenção. O que era?

E estava preocupado com Katie. Parecia tão pálida na noite anterior. Estava extremamente pálida. Só ficara com alguma cor no rosto depois de beber dois copos de vinho.

Katie não estava bem. Era isso. Era médico e devia ter descoberto isso mais cedo.

Aquele acidente. Fora examinada atentamente? Seria possível que se tivesse ferido mais do que se imaginava? O pensamento não saía do espírito de Richard enquanto virava para a saída da Fifty- Third Street e do FDR Drive e dirigiu-se ao apartamento de Clóvis a um quarteirão de distância. Clóvis tinha uma garrafa de martini muito seco à espera de ser servida e um prato de pastéis de massa folhada com recheio de caranguejo acabados de tirar do forno. Com uma pele impecável, um corpo alto e esguio, e aparência viking, fazia lembrar Richard uma jovem Ingrid Bergman. Até há pouco tempo, divertia-se com a ideia de que podiam acabar por se juntar. Clóvis era inteligente, interessante, e bem-disposta. Mas quando lhe retribuía o beijo com ternura sincera, estava perfeitamente consciente de que nunca se preocupara com Clóvis da forma como se preocupava com Katie De-Maio.

Apercebeu-se de que Clóvis estava a falar com ele. -... e não estou em casa há dez minutos. O ensaio foi repetido. Houve muitas alterações. Por isso preparei as bebidas, e os aperitivos e pensei que pudesses descansar enquanto eu me vestia. Ei, estás-me a ouvir?

Richard aceitou a bebida e sorriu como quem pede desculpa.

- Desculpa. Estou a tratar de um caso que não se resolve. Importas-te que faça umas chamadas enquanto tu te aprontas?

- Claro que não - disse Clóvis - Vai lá telefonar. - Pegou no copo e encaminhou-se para o vestíbulo que dava para o quarto e para a casa de banho.

Richard tirou o cartão de crédito da carteira e marcou o número da telefonista. Ele não podia pôr uma chamada para uma mulher na conta de outra mulher. Rapidamente deu o número da sua conta à telefonista. Quando fizeram a ligação, deixou que o telefone tocasse uma dúzia de vezes antes de desistir. Katie não estava em casa.

Em seguida, tentou a casa de Molly. Katie talvez tivesse parado lá. Mas Molly não falara com ela todo o dia.

- Realmente, não estou a contar com ela - disse Molly. - Vocês vêm amanhã à noite. Não se esqueça. Talvez me telefone mais tarde. Mas espero que já esteja em casa. Ela podia levar as coisas com calma.

Foi o começo de que ele precisava.

- Molly, que é que Katie tem? - perguntou. - Há um problema físico, não há? Quero dizer para além do acidente?

Molly hesitou.

- Acho que seria melhor conversar com Katie sobre isso. Certeza.

O medo apoderou-se dele. - Molly, eu quero saber. Que é que ela tem?

- Oh, uma coisa insignificante - disse Molly precipitadamente. - Garanto-lhe. Mas é uma coisa que ela não quis discutir. E agora talvez tenha dito mais do que devia. Até amanhã.

Cortaram a ligação. Richard franziu as sobrancelhas com o auscultador mudo na mão. Primeiro colocou-o de novo no descanso, depois por impulso pediu uma chamada para o escritório. Falou com o assistente do turno da noite.

- Há alguma anormalidade? - perguntou ele.

- Recebemos agora mesmo um pedido para a carrinha. Foi encontrado um corpo num apartamento em Edgeriver. Provavelmente um acidente, mas a Polícia local pensou que seria melhor darmos uma vista de olhos. O pessoal do Scott dirige-se para lá.

- Liga-me ao escritório do Scott - disse Richard.

Scott não perdeu tempo com preâmbulos.

- Onde está? - perguntou ele.

- Em Nova Iorque. Precisa de mim?

- Preciso. Esta mulher foi encontrada em Edgeriver e é a recepcionista com quem Katie queria falar hoje em Westlake. Chama-se Edna Burns. Supõe-se que tenha telefonado hoje a dizer que estava doente, mas não há dúvida que está morta há vinte e quatro horas. O corpo foi encontrado por uma co-trabalhadora de Westlake. Estou a tentar entrar em contato

com Katie. Gostaria que ela fosse lá.

- Dê-me a morada - disse Richard.

Ele escreveu-a rapidamente e pousou o telefone. Katie quisera interrogar Edna sobre Vangie Lewis, e agora Edna Burns estava morta. Bateu à porta do quarto de Clovis. Ela abriu-a, envolta num roupão de veludo frisado.

- Ei, que pressa é essa? - perguntou ela a sorrir. - Saí agora mesmo do chuveiro.

- Desculpa. - Ele explicou rapidamente. Agora estava num frenesim para se ir embora.

Ela estava nitidamente desapontada.

- Oh, claro que compreendo, mas estava a contar com a tua visita. Já passaram algumas semanas - tu sabes disso. Está bem. Vai, mas jantamos amanhã. Prometes?

Richard contemporizou.

- Bem, dentro de muito pouco tempo. - Preparou-se para sair, mas ela agarrou-o pelo braço e baixou-lhe o rosto para um beijo.

- Amanhã à noite - disse-lhe ela com firmeza.

 

Ao ir para casa depois de sair do restaurante, Katie revolveu no pensamento a conversa que tivera com Edna Burns na primeira visita ao doutor Highley. Edna era uma ouvinte nata. Katie não tinha tendência para discutir assuntos pessoais, mas quando Edna anotou a informação preliminar, ela tagarelara por simpatia. Sem acreditar nos seus próprios ouvidos, Katie ouviu-se a contar a Edna tudo a respeito de John.

Que teria Vangie contado a Edna? Ela ia a Westlake desde o Verão passado. O que sabia Edna acerca do doutor Fukhito? Havia qualquer coisa de estranho e intimidativo no seu nervosismo. Que razão haveria para estar nervoso?

Katie parou em frente da sua casa e decidiu não arrumar o carro naquele momento. Era quarta-feira e Mrs. Hodges estivera lá. A casa cheirava um pouco a cera de limão. O espelho por cima da antiga mesa de mármore do vestíbulo estava a brilhar. Katie sabia que a cama tinha sido feita de lavado; os ladrilhos da cozinha deviam estar a cintilar; os móveis e tapetes tinham sido limpos com o aspirador; a roupa já devia estar de novo nas gavetas ou no armário.

Mrs. Hodges trabalhara a tempo inteiro quando John era vivo. Já reformada, pedira que a deixasse ir um dia por semana para tomar conta da «minha casa».

Não duraria muito mais tempo. Não era possível. Mrs. Hodges já passara dos setenta.

Quem iria arranjar quando Mrs. Hodges já não pudesse ir? Quem teria o mesmo cuidado com o bric-à-brac valioso, as antiguidades, o mobiliário inglês, as belas e antigas peças orientais?

«É a altura de a vender», pensou Katie. «Eu sei.» Despindo o casaco, atirou-o para cima de uma cadeira. Eram apenas oito horas menos um quarto. Tinha a noite toda à sua frente. Edna dissera-lhe que vivia em Edgeriver. Era um trajeto que se fazia em menos de vinte minutos. E se telefonasse a Edna? E se ela sugerisse que a fosse visitar? Mrs. Fitzgerald dissera que Edna devia ir trabalhar no dia seguinte, por isso não podia estar muito doente. Se Katie não se enganava, Edna adoraria ter uma oportunidade para conversar sobre Vangie Lewis.

Mrs. Hodges deixava sempre um bolo fresco, uma torta ou muffins na caixa do pão para Katie. Levaria o que lá estivesse para casa de Edna e tomaria uma chávena de chá com ela. Podiam-se trocar muitos mexericos durante um chá.

Edna figurava na lista telefónica. Katie marcou rapidamente o número. Tocou uma vez e levantaram o auscultador. Formou as palavras «Está lá, Miss Burns?», mas nem sequer conseguiu dizê-las.

- Sim? - disse uma voz de homem. A palavra curta foi articulada numa voz seca, conhecida.

- Miss Burns está? - perguntou Katie. - Fala Mrs. DeMaio do gabinete do promotor de justiça.

- Katie!

Naquele momento reconheceu a voz. Era Charley Nugent, e estava a dizer:

- Ainda bem que o Scott entrou em contato consigo. Pode vir já para aqui?

- Ir para aí? - com medo do que ouvira, Katie fez a pergunta: Que está a fazer no apartamento de Edna Burns?

- Não sabe? Ela está morta, Katie. Caiu - ou foi empurrada - de encontro ao irradiador. Rachou-lhe a cabeça. - Baixou o Tom de voz. - Preste atenção a isto, Katie. Ela foi vista pela última vez com vida cerca das oito horas da noite passada. Uma vizinha estava com ela. - A voz transformou-se num sussurro. - A vizinha ouviu-a a falar com o marido de Vangie Lewis ao telefone. Edna Burns disse a Chris Lewis que ia falar da morte de Vangie à Polícia.

 

Depois de terminar o segundo uísque foi à cozinha e abriu o frigorífico. Dissera a Hilda que não lhe preparasse nada para essa noite, mas dera-lhe uma longa lista de compras. Acenou aprovativamente ao ver os artigos novos na gaveta da carne: os peitos de galinha sem osso, o lombinho de vaca; as grossas costeletas de cordeiro. Espargos frescos, tomates e agrião estavam dentro da caixa dos legumes. Brie e Jarlsherg estavam dentro da caixa do queijo. Nessa noite comeria costeletas de cordeiro, espargos e uma salada de agrião.

O cansaço emocional obrigava-o sempre a comer. Na noite em que Claire morreu, saíra do hospital, com o ar de um marido entorpecido pela dor, e dirigira-se a um restaurante sossegado situado a uma dúzia de quarteirões e comera a fartar. Em seguida arrastara-se até casa disfarçando uma profunda sensação de bem-estar com a postura de fadiga de alguém dominado pela dor. Os amigos que estavam reunidos para lhe darem as condolências, para lhe exprimirem o seu pesar, tinham sido enganados.

«Onde estiveste Edgar? Estávamos preocupados contigo.»

«Não sei. Não me lembro. Andei por aí.»

Tinha sido o mesmo depois da morte de Winifred. Deixara os parentes e amigos perto da sepultura, recusara convites para jantar com eles. «Não. Não. Preciso ficar só.» Voltara a casa, esperou bastante tempo para responder a alguns telefonemas, depois entrou em contato com o serviço de atendimento. «Se alguém telefonar, por favor explique que estou a descansar e que retribuirei todos os telefonemas mais tarde.»

Depois meteu-se no carro e foi até Carlyle em Nova Iorque. Lá pedira uma mesa sossegada e encomendou o jantar. Quando estava quase a acabar a carne, levantou os olhos e viu o primo de Winifred, Glenn Nickerson, no outro lado da sala

- Glenn, o treinador de atletismo do liceu, que era o herdeiro de Winifred até ele aparecer. Glenn envergava o fato azul-escuro e a gravata preta que vestira para o funeral, um fato a preço de saldo, que assentava mal, obviamente comprado para a cerimónia. O trajo habitual era um casaco desportivo, calças largas e loafers.

Nickerson estava obviamente a observá-lo. Erguera o corpo num brinde, com um sorriso trocista no rosto. Também podia ter expressado os seus pensamentos em voz alta: «Ao viúvo pesaroso.»

Ele fizera o que era necessário: caminhou para ele sem o mínimo sinal de aflição e falou prazenteiramente: «Glenn, por que não foste ter comigo quando viste que eu estava ali? Não sabia que vinhas ao Carlyle. Este era o restaurante onde gostávamos de jantar. Ficámos noivos aqui - ou Winifred nunca te contou? Eu não sou judeu, mas penso que um dos mais belos costumes neste mundo desconcertante é o da fé judia, em que depois de uma morte a família come ovos para simbolizar a continuidade da vida. Estou aqui para celebrar calmamente a continuidade do amor.»

Glenn olhara fixamente para ele, com uma expressão dura. Depois levantou-se e fez sinal para que lhe trouxessem a conta. «Admiro a tua capacidade para filosofar, Edgar», disse ele. «Não. Eu não considero o Carlyle como um dos restaurantes usuais. Limitei-me a seguir-te até aqui porque decidira fazer-te uma visita e estava a chegar ao teu quarteirão quando o teu carro arrancou. Tinha a impressão que seria interessante vigiar-te. E não me enganei.»

Ele virara as costas a Glenn, voltara com dignidade para a mesa e não olhou mais na sua direção. Alguns minutos mais tarde vira Glenn à porta da sala de jantar a preparar-se para sair.

Na semana seguinte, Alan Levine, o médico que tratara Winifred, disse-lhe com indignação que Glenn lhe pedira que o deixasse ver os relatórios médicos de Winifred.

«Pu-lo fora do meu escritório», disse Alan acaloradamente. «Disse-lhe que revelara sintomas clássicos de angina e que faria um favor a ele mesmo se examinasse as estatísticas atuais sobre mulheres na casa dos cinquenta com ataques cardíacos. Mesmo assim, teve o descaramento de falar com a Polícia. Recebi um telefonema do escritório do promotor de justiça a perguntar em tantas palavras se podia ser provocada uma doença de coração. Desistiram logo, disseram que era obviamente um parente deserdado a tentar arranjar complicações.»

Mas pode provocar problemas cardíacos, doutor Levine. Pode preparar jantares íntimos para a sua querida mulher. Pode servir-se da sua tendência para a gastrenterite para próvocar ataques tão fortes que revelem ataques cardíacos no cardiograma. Ao fim de alguns destes a senhora aparentemente tem um ataque fatal. Ela morre na presença do seu próprio médico, que chega, e depara com o marido, também médico, a fazer respiração boca a boca. Ninguém sugere uma autópsia. E mesmo que alguém o tivesse feito, não haveria grande perigo.

Só poderia haver perigo se tivessem pensado em investigar a morte de Claire.

As costeletas estavam quase cozinhadas. Temperou habilmente o agrião, tirou o espargo do recipiente onde cozera com vapor e retirou uma garrafa de Beaujolais meio-cheia da prateleira do vinho na despensa.

Começara a comer quando tocou o telefone. Pensou ignorá-lo, depois chegou à conclusão que era perigoso não atender as chamadas. Atirando com o guardanapo para cima da mesa, correu para a extensão na cozinha.

- Doutor Highley - disse elo com rispidez. Ouviu-se um soluço no telefone.

- Doutor - oh, doutor Highley. É a Gertrude. Gertrude Fitzgerald. Doutor resolvi ir ver Edna quando me dirigia para casa.

Ele crispou os dedos no auscultador.

- Doutor, Edna está morta. A Polícia está aqui. Caiu. Doutor, podia vir já para aqui? Falam em fazer uma autópsia. Ela sempre detestou autópsias. Costumava dizer que era horrível golpearem defuntos. Doutor, o senhor sabe como Edna ficava quando bebia. Disse-lhes que o senhor esteve aqui no apartamento dela; que a apanhou a beber. Doutor, venha cá e diga-lhes como às vezes a encontrava. Oh, por favor, venha cá e convença-os de que ela caiu e que não precisam de a golpear.

 

Antes de sair de casa, Katie arranjou uma chávena de chá e levou-a para o carro. Conduzindo com uma mão, segurando o líquido borbulhante junto ao lábio com a outra. Planejara levar bolo para casa de Edna e beber chá com ela. E agora Edna estava morta.

Como era possível que uma pessoa com quem estivera apenas uma vez a tivesse impressionado tanto? Seria apenas porque Edna era boa pessoa, porque se interessava profundamente pelas doentes? A maioria das pessoas era tão indiferente, tão despreocupada. Nessa única conversa com Edna, no mês anterior, tinha sido tão fácil falar de John.

E Edna compreendera. Ela dissera, «eu sei o que é ver alguém morrer. Por um lado queremos que deixem de sofrer. Por outro lado não queremos deixá-los partir». Ela partilhara o resultado da perda. «Quando o meu pai e a minha mãe morreram, todos os meus amigos disseram, ”Edna, agora és livre.” E eu disse, ”Livre para quê?” E eu aposto que também sentiu o mesmo.»

Edna tranquilizara-a em relação ao doutor Highíey. «Não podia encontrar um médico melhor para problemas ginecológicos. É por isso que fico tão irritada quando ouço críticas a seu respeito. E todas essas pessoas que arquivam processos por incompetência médica! Deixe-me que lhe diga, eu mesma era capaz de as matar. Esse é o problema quando as pessoas pensam que se é Deus. Pensam que se pode fazer o impossível. Digo-lhe que nos nossos dias quando um médico perde um doente tem de se preocupar. E não me refiro apenas aos obstetras. Refiro-me também aos médicos de geriatria. Creio que já ninguém devia morrer.»

Que é que Charley tinha em mente ao dizer-lhe que Edna telefonara a Chris Lewis na noite anterior? Praticamente no mesmo tom de voz abafado, Charley insinuara a possibilidade de crime.

- Não acredito - disse Katie em voz alta quando saiu da Route 4 e entrou em Edgeriver. Não seria de estranhar que Edna telefonasse a Chris Lewis para lhe dar os pêsames. Estaria Charley a sugerir que Edna podia ter ameaçado Chris Lewis de alguma maneira?

Ela tinha uma vaga ideia onde se situava o bloco de apartamentos e conseguiu encontrá-lo facilmente. Pensava nisto, enquanto os apartamentos com jardim passavam, que aquele estava a ficar um pouco degradado. Quando vendesse a casa mudar-se-ia provavelmente para um arranha-céus por algum tempo. Havia alguns prédios com vista para o Hudson que tinham belos apartamentos com terraços. E seria interessante estar perto de Nova Iorque. Era mais provável que fosse ao teatro e aos museus. «Quando vender a casa», pensou. «Em que momento o se se transformou em quando?»

Charley dissera-lhe que o apartamento de Edna era o último nas unidades 41 a 60. Ele dissera para seguir por trás dessa carreira e estacionar o carro. Ela abrandou, apercebendo-se que um carro tinha entrado no complexo por outra rua e estava a entrar na mesma zona à frente dela. Era um carro preto do tamanho médio. Por um momento o condutor hesitou, depois optou pelo primeiro lugar livre à direita na área de estacionamento. Katie passou por ele. Se o apartamento de Edna era o último da esquerda, tentaria ficar o mais próximo dele. Descobriu um lugar mesmo atrás daquele prédio e estacionou. Saiu do carro, pensando que devia estar a olhar para a janela das traseiras do apartamento de Edna. A janela tinha uma fresta. A persiana estava descida até ao cimo de uma planta. Podia ver-se uma luz fraca no interior do apartamento.

Katie pensou na vista das janelas do seu quarto. Davam para o pequeno lago nos bosques atrás da casa. Edna olhara para uma zona de estacionamento e uma vedação com elos de corrente enferrujados. No entanto dissera a Katie que gostava imenso do apartamento, que era muito acolhedor.

Katie ouviu passos atrás dela e virou-se rapidamente. Na zona de estacionamento isolada, qualquer som parecia ameaçador. Uma figura humana surgiu esbatida perto dela, uma silhueta realçada pela luz fraca de um candeeiro solitário. Uma sensação de familiaridade apossou-se dela.

- Desculpe-me. Espero não a ter assustado. - A voz purificada tinha um ligeiro sotaque inglês.

- Doutor Highley!

- Mrs. DeMaio. Não contávamos ver-nos tão cedo e em circunstâncias tão trágicas.

- Então já sabe. O meu departamento telefonou-lhe, doutor?

- Está frio. Aqui. Metamos por este carreiro à volta do prédio. - Mal lhe tocando no cotovelo com a mão, seguiu-a no caminho. - Mrs. Fitzgerald telefonou-me. Ela substituiu Miss Burns hoje e evidentemente foi a pessoa que a encontrou. Parecia extremamente perturbada e pediu-me que viesse. Até este momento não tenho nenhum pormenor do que aconteceu.

      - Nem eu - replicou Katie. Contornavam a esquina para a frente do prédio quando ela ouviu passos apressados atrás deles.

      - Katie.

Ela sentiu aumentar a pressão dos dedos do médico no seu cotovelo que desapareceu quando olhou para trás. Richard estava ali. Voltou-se, disparatadamente contente por o ver. Ele agarrou-a pelos ombros. Num gesto que terminou precisamente como começou, puxou-a para ele. Depois as mãos baixaram.

- Scott entrou em contato contigo?

- Não. Telefonei a Edna por acaso. Oh, Richard, este é o doutor Edgar Highley. - Rapidamente apresentou os dois homens, e estes deram um aperto de mão.

Katie pensou, «como isto» é absurdo. Estou a fazer apresentações e já ali do outro lado daquela porta está uma mulher morta».

Charley mandou-os entrar. Parecia aliviado por os ver. - Os seus colaboradores devem estar aqui dentro de alguns minutos - disse a Richard. - Tirámos fotografias, mas gostava que também desse uma vista de olhos. Katie estava habituada à morte. No decorrer do seu trabalho, via constantemente fotografias vivas e cheias de sangue de vítimas de crimes. Geralmente conseguia separar-se do aspecto emocional e concentrar-se nas ramificações legais da morte injusta.

Mas era diferente ver Edna enroscada contra o irradiador com a camisa de noite de flanela que a sua própria mãe considerava indispensável ver o roupão azul de veludo frisado tão parecido com aqueles que a sua mãe costumava adquirir em saldos no Macy’s; ver a prova sólida da solidão - as fatias de presunto enlatado, o copo de cocktail vazio. Edna fora uma pessoa tão alegre, que encontrava um pouco de felicidade naquele apartamento miseravelmente mobilado, e até o apartamento a traíra. Tornara-se o cenário da sua morte violenta.

Gertrude Fitzgerald estava sentada no sofá de veludo, antiquado, no outro extremo da sala em forma de L, longe do corpo. Soluçava mansamente. Richard foi diretamente à pequena sala de jantar para examinar a mulher morta. Katie aproximou-se de Mrs. Fitzgerald e sentou-se a seu lado no sofá. O doutor Highley seguiu-a e puxou a cadeira de costas direitas.

Gertrude tentou falar com eles.

- Oh, doutor Highley, Mrs. DeMaio, não é terrível, simplesmente terrível? - As palavras provocaram outro ataque de soluços. Katie pôs devagar uma mão nos ombros trémulos.

- Lamento profundamente, Mrs. Fitzgerald. Sei que a senhora gostava de Miss Burns.

- Ela era sempre tão gentil. Tão divertida. Fazia-me sempre rir. E talvez tivesse aquela pequena fraqueza. Toda a gente tem uma pequena fraqueza, e ela nunca incomodou ninguém. Oh, doutor Highley, o senhor também sentirá a falta dela.

Katie observava quando o médico se curvou sobre Gertrude, com o rosto sério.

- Sentirei, certamente, Mrs. Fitzgerald. Edna era uma pessoa extraordinariamente eficiente. Sentia tanto orgulho no seu trabalho. O doutor Fukhito e eu costumávamos dizer por brincadeira que ela tinha as doentes tão descontraídas quando as examinávamos que podia ter posto o doutor Fukhito no desemprego.

- Doutor - disse Gertrude abruptamente -, disse-lhes que o senhor esteve aqui. Disse-lhes isso. O senhor sabia do pequeno problema de Edna. É um disparate dizer que ela não caiu. Por que razão desejaria alguém fazer-lhe mal?

O doutor Highley olhou para Katie.

- Edna sofria de ciática, e quando era obrigada a ficar de cama às vezes deixava o trabalho para fazer em casa. Certamente umas três ou quatro vezes. Uma vez quando se pensava que ela estava doente, vim aqui por acaso e foi então que me apercebi que ela tinha um problema de alcoolismo.

Katie desviou os olhos dele e percebeu que Richard tinha acabado de examinar o corpo. Levantou-se, caminhou para ele e olhou para Edna. Rezou em silêncio: Ó Deus, concedei-lhe o descanso eterno. Que legiões de anjos a saúdem. Que ela seja conduzida a um lugar de descanso, luz e paz.

Ignorando o nó na garganta, perguntou a Richard o que descobrira, em voz baixa. Ele encolheu os ombros.

- Depois de ter tido oportunidade de ver a gravidade da fratura, diria que podia ter acontecido quer duma maneira quer doutra. Certamente foi uma pancada forte, mas se ela estava embriagada - e é óbvio que estava - podia ter tropeçado quando tentou levantar-se. Era uma mulher bastante pesada. Por outro lado, existe uma grande diferença entre ser atropelada por um carro ou por um comboio. E é esse o tipo de diferença que temos de avaliar.

- Algum sinal de arrombamento? - perguntou Katie a Charley.

- Nenhum. Mas estas fechaduras são daquelas que uma pessoa podia soltar com um cartão de crédito. E se ela estava embriagada, como pensamos que estava, qualquer pessoa podia entrar e atacá-la.

- Por que razão alguém a atacaria? Que me estava a dizer acerca do comandante Lewis?

- A mulher do superintendente, cujo nome é Gana Krupshak, era uma amiga de Edna. De fato ela estava com Mrs. Fitzgerald quando encontraram o corpo. Deixámo-la ir para o apartamento dela pouco antes de vocês chegarem. Ela está muito abalada. Em todo o caso, ontem à noite veio aqui por volta das oito horas. Disse que Edna já estava com um grão na asa. Ficou até às oito e meia, depois resolveu apresentar presunto, esperando que Edna comesse alguma coisa e começasse a ficar sóbria. Edna falou-lhe do suicídio de Vangie.

- O que é que ela lhe disse ao certo? - perguntou Katie.

- Pouca coisa. Apenas mencionou o nome de Vangie e como ela era bonita. Depois Mrs. Krupshak foi à cozinha e ouviu Edna a marcar um número no telefone. Mrs. Krupshak conseguiu ouvir quase toda a conversa. Jura que Edna chamou a quem quer que fosse que estivesse ao telefone «comandante Lewis» e disse-lhe que tinha de falar com a Polícia amanhã. E ouça isto. Krupshak jura que ouviu Edna a dar a Lewis instruções para vir aqui de carro e depois Edna disse qualquer coisa sobre o Príncipe Encantado.

- Príncipe Encantado! Charley encolheu os ombros.

- A sua suposição é tão boa como a minha. Mas a testemunha é categórica.

Richard disse:

- Evidentemente que iremos tratar disto como um homicídio potencial. Começo a concordar com a desconfiança de Scott em relação a Chris Lewis. - Olhou de relance para a sala de estar. - Mrs. Fitzgerald parece muito abatida. Já falaste com ela, Katie?

- Já. Ela não está em condições de ser interrogada agora.

- Vou arranjar um dos carros de rádio-patrulha para a levar a casa - ofereceu-se Charley. - Um dos outros indivíduos pode ir atrás no carro dela.

Katie pensou, «não acredito que Chris Lewis tivesse feito isto a Edna; não acredito que matou a mulher.» Olhou em redor.

- Tem a certeza de que não falta nada de valor? Charley encolheu os ombros.

- Toda a casa renderia cerca de quarenta dólares no leilão de uma garagem. A carteira está na bolsa de mão; dezoito dólares. Cartões de crédito. O habitual. Nenhum vestígio de alguma coisa ter sido remexida, revistada.

- Muito bem - Katie voltou para o pé do doutor Highley e Gertrude. - Vamos mandar que a levem a casa, Mrs. Fitzgerald - disse ela brandamente.

- Que vão fazer a Edna?

- Têm de examinar a amplitude dos ferimentos na cabeça. Para além disso creio que não examinarão mais nada. Mas se existir a mínima hipótese de alguém ter feito isto a Edna, temos de saber. Considere isto como uma forma de mostrarmos que tínhamos em grande conta a sua vida.

A mulher fungou.

- Creio que tem razão. - Ela olhou para o médico. - Doutor Highley, fui muito descarada ao pedir-lhe que viesse aqui. Desculpe.

- De modo nenhum. - Ele estava a meter a mão no bolso.

- Trouxe estes sedativos no caso de precisar deles. Como a vão levar a casa, tome já um.

- Vou buscar um copo de água - disse Katie. Dirigiu-se à pia da casa de banho. A casa de banho e o quarto ficavam distantes num vestíbulo na parte de trás do apartamento.

Quando deixou correr a água fria, compreendeu que odiava a ideia de Chris Lewis surgir como o principal suspeito nas duas mortes.

Levando o copo de água a Gertrude, sentou-se de novo ao lado dela.

- Mrs. Fitzgerald, apenas para nos convencermos, queremos ter a certeza de que não há nenhuma possibilidade de Edna ter sido roubada. Sabe se ela tinha objetos de valor, alguma jóia, talvez?

- Oh, ela tinha um anel e um broche de que gostava muito. Só os usava em ocasiões especiais. Não posso saber onde os guardava. Compreende, esta é a primeira vez que vim aqui. Oh, espere um pouco. Doutor. Lembro-me de Edna ter dito que lhe mostrou o anel e o broche. De fato, ela disse-me que lhe mostrou o lugar onde os escondia quando o senhor esteve aqui. Talvez possa ajudar Mrs. DeMaio.

Katie examinou os olhos verdes e frios. «Ele detesta isto»,pensou. «Está mesmo furioso por estar aqui. Não se quer ver envolvido nisto.»

«Teria Edna uma paixoneta pelo médico?», perguntou a si mesma, inesperadamente. «Teria exagerado o número de vezes que ele podia ter ido lá para deixar trabalho, talvez até tivesse dado a entender a Gertrude que tinha uma simpatia por ela? Talvez mesmo sem querer ocultar a verdade, tivesse inventado um pequeno romance, fantasiado uma possível relação com ele. Se assim fosse, não era de admirar que estivesse com um ar embaraçado e constrangido naquele momento.»

- Realmente não tenho conhecimento de esconderijos - disse ele, com a voz cheia de uma corrente de sarcasmo. Uma vez Edna mostrou-me um broche e um anel que estavam numa caixa na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Dificilmente considero isso um esconderijo.

- Podia-me mostrar, doutor? - perguntou Katie.

Juntos atravessaram o pequeno vestíbulo e entraram no quarto. Katie acendeu o candeeiro, uma base barata de vidro amarelo-avermelhado com um quebra-luz de papel pregueado.

- Estava ali dentro - disse-lhe o doutor Highley, apontando para a gaveta da mesinha-de-cabeceira no lado direito da cama.

Servindo-se apenas das pontas dos dedos, Katie abriu a gaveta. Ela sabia que provavelmente haveria uma investigação completa em busca de provas e seriam chamados peritos de impressões digitais.

A gaveta era invulgarmente funda. Metendo a mão dentro dela, Katie tirou uma caixa de jóias de plástico azul. Quando levantou a tampa, o tinido semelhante ao dos sinos de uma caixa de música introduziu-se à força no silêncio opressivo. Um pequeno broche e um anel de diamante, fino e antigo, estavam escondidos no veludo de algodão.

- Aqueles são os tesouros, suponho - disse Katie -, e isto, penso eu, elimina a hipótese de roubo. Guardaremos isto no escritório até sabermos quem é o parente mais próximo. Começou a fechar a gaveta, depois deteve-se e olhou para dentro dela.

- Oh, doutor, olhe. - Colocou imediatamente a caixa das jóias em cima da cama e meteu a mão na gaveta.

- A minha mãe costumava guardar o velho chapéu preto da mãe por razões sentimentais - disse ela. - Edna deve ter feito a mesma coisa.

Ela puxava por um objeto, retirando-o, levantando-o para ele ver.

Era um mocassin castanho, muito gasto, muito estragado, deformado e velho. Fora talhado para o pé esquerdo.

Enquanto o doutor Edgar Highley olhava fixamente para o sapato, Katie disse:

- Devia ser da mãe e considerava-o uma preciosidade que o guardou com aquelas jóias patéticas. Oh, doutor, se os acontecimentos memoráveis pudessem falar, teríamos muitas histórias para ouvir, não teríamos?

 

Às oito horas em ponto da manhã de quinta-feira, a Brigada de Investigação da Seção de Homicídios de Valley County partiu em direção à casa de Lewis. Á equipa de seis homens era encabeçada por Phil Cunningham e Charley Nugent. Disseram aos detetives encarregados das impressões digitais que se concentrassem no quarto, casa de banho principal e cozinha.

Era reconhecidamente pouco provável que descobrissem impressões digitais significativas que não pertencessem a Chris ou a Vangie Lewis. Mas o relatório do laboratório levantara outra questão. As impressões digitais de Vangie estavam no copo de vidro que estava colocado perto dela, mas havia algumas dúvidas em relação à posição dessas impressões. Vangie servia-se da mão direita. Quando deitou os cristais de cianido no copo, teria sido natural que segurasse o copo com a mão esquerda e deitasse com a direita. Mas apenas as impressões da direita estavam no copo sem pé. Era um fato inconcludente, perturbador, que mais tarde desacreditava o suicídio aparente.

As gavetas dos medicamentos nas duas casas de banho e no quarto de hóspedes, coberto de pó, já tinham sido inspeccionados depois do corpo ter sido encontrado. Foram examinados minuciosamente uma vez mais. Cada garrafa foi aberta, cheirada. Mas o odor acre da amêndoa que procuravam não foi detectado. Charley disse:

- Ela deve ter guardado o cianido dentro de alguma coisa.

- A não ser que ela trouxesse apenas a quantidade que deitou no copo e depois atirasse os invólucros para a sanita? sugeriu Phil.

A casa de banho foi cuidadosamente aspirada na esperança de encontrarem cabelos humanos que não fossem da cabeça nem de Vangie nem de Chris. Como dizia Phil: «Qualquer casa pode ter cabelos de pessoas que fazem a entrega de mercadorias, vizinhos, qualquer pessoa. Estamos sempre a deixar cair cabelos. Mas a maioria das pessoas não trazem mesmo os amigos íntimos para o quarto. Portanto, se encontrarem cabelo humano que não seja das pessoas que dormem no quarto, então talvez tenhas descoberto alguma coisa.»

Deu-se particular atenção às prateleiras da garagem. As habituais latas meio-vazias de tinta, terebintina, algumas ferramentas de jardinagem, mangueiras, inseticidas, pó para roseiras e herbicidas havia em abundância. Phil resmungou de aborrecimento quando o dente de uma pá de mão se lhe prendeu no casaco. Aquele dente estava saído sobre a beira da prateleira, o cabo estava preso entre o extremo da prateleira e uma pesada lata de tinta. Curvando-se para soltar a manga, reparou num bocado de algodão estampado enganchado no dente.

Aquela marca. Ele vira-a recentemente. Era aquele tecido indiano, desbotado; madras. O vestido que Vangie Lewis envergava quando morreu.

Ele chamou o fotógrafo da Polícia à garagem.

- Tire uma fotografia daquilo - disse ele, apontando para a ferramenta. - Quero uma fotografia ampliada daquele material. - Quando a fotografia foi tirada, tirou cuidadosamente o bocado de tecido do dente e fechou-o num envelope.

Dentro de casa, Charley estava a examinar a escrivaninha da sala de estar. «Engraçado», pensou ele, «pode-se ter uma opinião verdadeira sobre as pessoas pela maneira como guardam os registos. Chris Lewis obviamente que se encarregara de toda a contabilidade da família. Os talões do livro de cheques estavam escritos com exatidão, os saldos discriminados até ao pormenor. Aparentemente as contas eram pagas à medida que chegavam. A grande gaveta do fundo continha ficheiros em posição vertical. Estavam ordenados por ordem alfabética: AMERICAN EXPRESS, BANK AMERICARD; FEDERATED ANSWERING SERVICE; INSURANCE, PERSONAL LETTERS.

Charley pegou no ficheiro das cartas particulares. Folheou-o rapidamente. Chris Lewis mantinha uma correspondência regular com a mulher. Muito obrigado pelo cheque, Chris. Não precisavas de ser tão generoso. Esta carta tinha sido escrita há apenas duas semanas. Uma carta de Janeiro começava: Comprei a TV ao pai para o quarto e ele distrai-se imenso com ela. Uma de Julho: O novo aparelho de ar condicionado é uma maravilha.

Se Charley estava desapontado por não encontrar informações pessoais mais significativas, viu-se obrigado a admitir que Christopher Lewis era um filho interessado e generoso para com os pais que envelheciam. Releu as cartas da mãe, na esperança de encontrar indicações sobre a relação de Vangie e Chris. As últimas cartas terminavam todas da mesma maneira: Lamento que a Vangie não se esteja a sentir bem, ou As mulheres às vezes têm gravidezas difíceis; ou Diz a Vangie que estamos a torcer por ela.

Ao meio-dia, Charley e Phil resolveram deixar o resto da equipa para completar a busca e regressar ao escritório. Estava previsto irem esperar o avião de Chris Lewis às seis horas. Puseram de parte o arrombamento. Não havia vestígios de cianido na casa nem na garagem. O conteúdo do estômago de Vangie revelava que ela comera pouco na segunda-feira; que ela tinha comido provavelmente torradas e chá cerca de cinco horas antes de morrer. Faltavam duas fatias na carcaça no interior da caixa do pão. Os pratos sujos na máquina da louça contavam a sua própria história: um único prato do jantar, uma chávena e uma colher, prato da salada, provavelmente da noite de domingo; um copo de sumo e uma chávena, do pequeno-almoço de segunda-feira; uma chávena, uma colher e prato com migalhas de torrada da ceia de segunda-feira.

Aparentemente Vangie jantara sozinha no domingo; ninguém comera com ela segunda-feira à noite. A caneca do café não estava, na banca na manhã de terça-feira. Sem dúvida, Chris Lewis tinha feito um café instantâneo algum tempo depois do corpo ter sido encontrado.

A alameda e os terrenos ajardinados em volta da casa estavam a ser examinados cuidadosamente e até ao momento não tinham revelado nada de invulgar.

- Vão estar nisto todo o dia, mas não descubrimos nada disse Charley, monotonamente. - E para além do fato de ela ter rasgado o vestido naquele dente na prateleira da garagem, ficámos reduzidos a um zero. Espera um pouco. Ainda não verificámos o serviço de atendimento para recados.

Obteve o número do Serviço de Atendimento Federado a partir do ficheiro na escrivaninha, marcou-o e identificou-se.

- Dê-me qualquer mensagem deixada quer ao comandante quer a Mrs. Lewis a partir de segunda-feira - pediu ele.

Tirando a caneta, começou a escrever. Phil olhou por cima do seu ombro: Segunda-feira, 15 de Fevereiro, 16 h. telefonou a Northwest Orient Reservations. Mrs. Lewis tem o bilhete confirmado para o voo 235 das 16.10 do Aeroporto LaGuardia para o Twin Cities de Mineápolis St. Paul na terça-feira, 16 de Fevereiro.

Phil assobiou em voz baixa. Charley perguntou:

- Mrs. Lewis recebeu a mensagem?

Ele afastou ligeiramente o auscultador da orelha para que Phil pudesse ouvir.

- Oh, sim - disse a telefonista. - Eu mesma estava de serviço segunda-feira à tardinha e dei-lha por volta das sete e trinta. - A voz da telefonista foi categórica. - Ela parecia muito aliviada. De fato disse, «oh, graças a Deus».

- Muito bem - disse Charley. - Que recebeu para além disto?

- Segunda-feira, 15 de Fevereiro, 21.30, o doutor Fukhito deixou, um recado para Mrs. Lewis lhe telefonar para casa assim que chegasse. Ele disse que ela tinha o número da sua casa.

Charley levantou uma sobrancelha.

- É tudo?

- Só mais uma - replicou a telefonista. - Uma Miss Edna Burns telefonou a Mrs. Lewis às 22 h. de segunda-feira. Ela queria que Mrs. Lewis lhe telefonasse sem falta mesmo que fosse a altas horas da noite.

Charley rabiscou triângulos no bloco de apontamentos enquanto a telefonista lhe dizia que não havia mensagens no serviço» nem na terça nem na quarta, mas sabia que tinham feito uma chamada terça-feira à tardinha e que fora recebida pelo comandante Lewis. - Preparava-me para atender quando ele apareceu - explicou ela. - Eu afastei-me logo. - Em resposta à pergunta de Charley, ela asseverou que Mrs. Lewis não tivera conhecimento nem da chamada do doutor Fukhito nem da de Miss Bruns. Mrs. Lewis não contactara com o serviço depois das dezenove e trinta de segunda-feira.

- Obrigado - disse Charley. - A senhora foi muito prestável. Talvez queiramos uma lista completa das mensagens que recebeu para os Lewis há algum tempo, mas contactaremos mais tarde por causa disso.

Ele pousou o auscultador e olhou para Phil.

- Vamos embora. O Scott vai querer saber de tudo isto.

- Como interpretas isto? - perguntou Phil. Charley bufou.

- De que outra maneira posso interpretar isto? Que Vangie Lewis tencionava ir para Mineápolis às dezenove e trinta de segunda-feira. Algumas horas depois está morta. Que às vinte e duas horas de segunda-feira, Edna Burns tinha um recado importante para Vangie. Na noite a seguir Edna está morta e a última pessoa que a viu viva ouviu-a falar com Chris Lewis, dizendo-lhe que tinha uma informação para a Polícia.

- E aquele japonesinho que telefonou a Vangie segunda--feira à noite? - perguntou Phil.

Charley encolheu os ombros.

- Katie falou ontem com ele. Talvez tenha algumas respostas para nós.

 

Para Katie, a noite de quarta-feira parecia interminável. Fora para a cama assim que voltou do apartamento de Edna, lembrando-se primeiro de tomar um dos comprimidos que o doutor Highley lhe dera.

Não dormira de um sono só, o subconsciente desassossegado com imagens do rosto de Vangie a flutuarem num sonho. Antes de acordar, aquele sonho dissolveu-se noutro: o rosto de Edna quando morta; o doutor Highley e Richard a inclinarem-se sobre ela.

Ela despertou com perguntas vagas, inquietantes que lhe escapavam, recusando-se a concentrarem-se. O velho e usado chapéu preto da avó. Por que razão estava a pensar naquele chapéu? Claro. Por causa daquele sapato velho que Edna obviamente estimava, o sapato que guardara com as jóias. Era isso. Mas porquê apenas um sapato?

Fazendo um trejeito quando saiu da cama, concluiu que as dores no corpo todo tinham aumentado durante a noite. Os joelhos, pisados da pancada no painel dos instrumentos, pareciam mais hirtos do que estavam logo depois do acidente. «Ainda bem que a Maratona de Boston não se disputa hoje», pensou ela constrangidamente. «Jamais venceria.»

Esperando que um banho quente pudesse fazer desaparecer um pouco as dores, entrou na casa de banho, curvou-se e abriu as torneiras da banheira. Uma onda de tontura fê-la cambalear, e agarrou-se ao bordo da banheira para não cair. Pouco depois a sensação desapareceu, e ela virou-se devagar, com medo que pudesse ainda desmaiar. O espelho da casa de banho revelou a palidez de morte da pele, as pequenas gotas de suor na testa. «É esta maldita hemorragia», pensou. «Se não desse entrada no hospital amanhã à noite, provavelmente acabaria por ser levada para lá.»

O banho reduziu de fato parte da rigidez. A maquilhagem com base bege atenuou a palidez. Roupas diferentes uma saia pregueada e um casaco a condizer de tweed cor de urze e uma camisola de gola alta - completavam a pretensa camuflagem. «Pelo menos agora não estou com ar de quem está prestes a cair de cara no chão», concluiu ela, «embora esteja.»

Engoliu outro dos comprimidos do doutor Highley com o sumo de laranja e pensou no fato ainda inconcebível da morte de Edna. Depois de deixarem o apartamento de Edna, ela e Richard foram a um restaurante com a forma de uma carruagem para tomarem café. Richard pediu um hambúrguer, explicando que planeara jantar em Nova Iorque. Ia sair com uma pessoa. Ela tinha a certeza disso. E porque não? Richard era um homem atraente. Certamente não passava todas as noites sentado no seu apartamento ou em reuniões-familiares em casa de Molly e Bill. Richard ficara surpreendido e contente quando ela lhe disse que voltara ao restaurante Palisades. Várias vezes dera a impressão de estar prestes a fazer-lhe uma pergunta, depois aparentemente mudava de ideia. Embora protestasse, ele insistiu em acompanhá-la até casa, entrar, verificar se as portas e as janelas estavam fechadas.

- Não sei por que razão me sinto constrangido por ficares sozinha nesta casa - dissera-lhe ele.

Ela encolhera os ombros.

- Edna estava num apartamento com jardim com paredes finas. Ninguém se apercebeu que estava ferida e precisava de ajuda.

- Não precisava - disse Richard rispidamente. - Ela morreu quase instantaneamente. Katie, aquele doutor Highley. Conhece-lo?

- Interroguei-o sobre Vangie esta tarde - disse ela, fugindo à pergunta.

O semblante carregado de Richard desanuviou.

- Claro. Está bem. Até amanhã. Suponho que Scott irá marcar uma reunião por causa de Edna Burnes.

- Tenho a certeza que irá.

Richard olhara para ela, com uma expressão de preocupação.

- Fecha a porta com o ferrolho - dissera ele. Não houvera um beijo alegre de despedida na face.

Katie pôs o copo do sumo de laranja na máquina da louça. A toda a pressa pegou no casaco e na bolsa e dirigiu-se para o carro.

Charley e Phil iniciavam nessa manhã a busca à casa de Lewis. Scott estava a lançar conscientemente uma rede à volta de Chris Lewis - uma rede circunstancial, mas forte. Se ao menos ela pudesse provar que existia outra avenida a explorar antes de Chris ser acusado. O problema de se ser preso sob a acusação de homicídio é que mesmo se uma pessoa provar a sua inocência, nunca perderá a notoriedade. Nos anos que se seguiriam as pessoas ainda diriam: «Oh, aquele é o comandante Lewis. Esteve implicado na morte da mulher. Um advogado astuto conseguiu livrá-lo, mas ele é tão culpado como o pecado.»

Ela chegou ao escritório antes das sete e trinta e não ficou surpreendida de Maureen Crowley já lá se encontrar. Maureen era a secretária mais conscienciosa que tinham. Para além disso, tinha uma inteligência naturalmente viva e conseguia tratar assuntos sem estar sempre a pedir instruções. Katie parou junto da sua secretária.

- Maureen, tenho uma tarefa difícil. Podia ir ter comigo quando tiver um minuto?

A rapariga levantou-se rapidamente. Tinha um corpo gracioso com uma cintura estreita. A camisola verde que trazia realçava o verde-vivo dos olhos.

- E se for agora, Katie? Quer café?

- Ótimo - replicou Katie, depois acrescentou -, mas sem pão de centeio com presunto - pelo menos, por agora.

Maureen parecia embaraçada.

- Lamento ter dito aquilo ontem. A senhora, mais do que ninguém, não caiu na rotina.

- Não tenho a certeza disso. - Katie entrou no seu gabinete, pendurou o casaco e sentou-se com o bloco de apontamentos que utilizara no Westlake Hospital.

Maureen trouxe o café, puxou uma cadeira e esperou em silêncio, com o bloco de estenografia no regaço.

- Eis o problema - disse Katie pausadamente. - Não estamos persuadidos de que a morte de Vangie Lewis seja suicídio. Ontem falei com os médicos dela, o doutor Highley e o doutor Fukhito, no Westlake Hospital.

Ela ouviu uma inspiração forte e levantou os olhos. O rosto da rapariga ficara lívido. Enquanto Katie observava, duas manchas brilhantes escureceram os malares.

- Maureen, sente-se mal?

- Não. Não. Desculpe.

- Disse alguma coisa que a sobressaltasse?

- Não. A sério.

- Está bem. - Cética, Katie olhou de novo para o bloco de apontamentos. - Tanto quanto sabemos, o doutor Fukhito, o psiquiatra de Westlake, foi a última pessoa a ver Vangie com vida. Quero saber tanto quanto puder acerca dele o mais rapidamente possível. Obtenha informações sobre a Sociedade Médica de County Valley e a AMA. Ouvi dizer que ele fez trabalho voluntário no Valley Pines Hospital. Talvez consiga saber alguma coisa lá. Dê ênfase ao aspecto confidencial, mas descubra de onde veio, onde estudou, outros hospitais a que ele tenha estado ligado, antecedentes pessoais, tudo o que conseguir.

- Não quer que fale com ninguém no Westlake Hospital?

- Meu Deus, não. Não quero que ninguém de lá saiba que investigamos o doutor Fukhito.

Por alguma razão a mulher mais jovem parecia aliviada.

- Vou já tratar disso, Katie.

- Realmente não é justo mandá-la vir mais cedo para fazer outro trabalho e dar-lhe depois uma tarefa. O velho Valley County não trabalha horas extraordinárias. Ambas sabemos disso.

Maureen encolheu os ombros.

- Isso não tem importância. Quanto mais trabalho neste escritório, mais gosto dele. Quem sabe? Talvez vá tirar o curso de direito, mas isso significa quatro anos de instituto superior e três na faculdade de direito.

- Seria uma boa advogada - disse Katie, com sinceridade. Estou admirada por não ter ido para a faculdade.

- Fui suficientemente louca para ficar noiva no verão em que concluí o liceu. Os meus pais convenceram-me a tirar o curso de secretariado antes de casar para que tivesse ao menos uma formação específica. Como tinham razão! O noivado não suportou a espera.

- Porque não se matriculou na faculdade em Setembro em vez de vir trabalhar? - perguntou Katie.

O rosto da rapariga ficou sombrio. Katie achou que ela tinha um ar muito infeliz e concluiu que Maureen devia ter sofrido muito com o rompimento.

Sem olhar de frente para Katie, Maureen disse: - Sentia-me inquieta e não queria passar a ser uma colegial. Foi uma boa decisão.

Ela saiu da sala. Tocou o telefone. Era Richard. A sua voz era reservada.

- Katie acabei de falar com o Dave Broad, o diretor da investigação pré-natal de Mt. Sinai. Por causa de uma suspeita, mandei-lhe o feto que Vangie trazia no ventre. Katie, a minha suspeita tinha fundamento. Vangie não estava grávida de Chris Lewis. A criança que lhe tirei do útero tinha características nitidamente orientais!

 

Edgar Highley olhou fixamente para Katie DeMaio quando esta ficou com aquele sapato na mão, mantendo-o no ar para ele ver. Estaria a zombar dele? Não. Ela acreditava no que estava a dizer, que o sapato era uma recordação sentimental para Edna.

Ele tinha de possuir aquele sapato. Se ao menos ela não falasse dele ao examinador médico ou aos detetives. E se ela resolvesse mostrá-lo? Gertrude Fitzgerald podia reconhecê-lo. Ela estivera muitas vezes na secretária quando Vangie entrava. Ouvira Edna brincar com ela por causa dos chinelos de vidro de Vangie. Katie voltou a pôr o sapato no seu lugar, fechou a gaveta e saiu do quarto, com a caixa das jóias metida debaixo do braço. Ele seguiu-a, ansioso por ouvir o que ela ia dizer. Mas ela limitou-se a entregar a caixa das jóias ao detetive.

- O anel e o broche estão aqui, Charley - disse ela. - Creio que isso anula qualquer possibilidade de roubo. Não examinei a secretária nem o armário.

- Não faz mal. Se Richard acredita na possibilidade de morte antinatural, passaremos esta casa a pente fino de manhã. Ouviu-se uma pancada staccato na porta, e Katie abriu-a para deixar entrar dois homens que traziam uma maca.

Edgar Highley voltou para junto de Gertrude. Ela bebera a água no copo que Katie lhe dera.

- Vou-lhe buscar mais água, Mrs. Fitzgerald - disse ele calmamente. Olhou por cima do ombro. Os outros estavam todos de costas para ele, enquanto viam os empregados a prepararem-se para levantar o corpo. Era a sua oportunidade. Tinha de se arriscar a tirar o sapato. Uma vez que Katie não se referira logo a ele, era pouco provável que fosse chamar a atenção para ele naquele momento.

Caminhou rapidamente para a casa de banho, abriu a torneira e atravessou o vestíbulo sorrateiramente, entrou no quarto. Servindo-se do lenço para não deixar impressões digitais, abriu a gaveta da mesinha-de-cabeceira. Estava precisamente a pegar no sapato quando ouviu passos no vestíbulo. Fechou rapidamente a gaveta, enfiou o lenço no bolso e estava parado à porta do quarto quando os passos deixaram de se ouvir.

Controlando-se para parecer calmo, voltou-se. Richard Carroll, o examinador médico, estava parado no vestíbulo entre o quarto e a casa de banho. O seu olhar era inquiridor.

- Doutor - disse ele -, gostaria de lhe fazer algumas perguntas sobre Edna Burns. - A voz era fria.

- Certamente. - Depois, num tom que ele esperava que fosse casual, acrescentou: - Ainda agora estava aqui a pensar em Miss Burns. Que pena ter aproveitado tão mal a vida.

- Aproveitado mal? - A voz de Richard era vincadamente inquiridora.

- Sim. Efetivamente tinha uma inclinação para a matemática. Nesta era de computadores Edna podia ter usado esse dom para seu benefício. Em vez disso, tornou-se uma alcoólica gorda e bisbilhoteira. Se isto parece cruel, digo-o com pesar. Eu gostava de Edna, e, para ser franco, vou sentir a sua falta. Com licença. Tenho a água a correr. Quero dar um copo de água fria a Mrs. Fitzgerald. Pobre mulher, está muito angustiada.

O doutor Carroll desviou-se para o deixar passar. Teria a sua crítica sobre Edna impedido o examinador médico de se interrogar sobre o que ele estava a fazer no quarto de Edna?

Passou o copo por água, encheu-o e levou-o a Gertrude. Os empregados tinham-se ido embora com o corpo, e Katie DeMaio não estava na sala.

- Mrs. DeMaio foi-se embora? - perguntou ele ao detetive.

- Não. Está a conversar com a mulher do superintendente. Ela volta já.

Ele não se queria ir embora antes de ter a certeza de que Katie não falava do sapato na frente de Gertrude. Mas quando ela voltou alguns minutos depois, não fez referência a ele. Saíram juntos do apartamento. A Polícia local mantê-lo-ia sob vigilância até estar completa a busca oficial. Deliberadamente acompanhou Katie até ao carro, mas nessa altura o examinador médico juntou-se a eles.

- Vamos tomar um café, Katie - disse ele. - Sabes onde fica o restaurante Golden Valley, não sabes?

O examinador médico esperou até ela estar dentro do carro e começara a andar antes de ele dizer: - Boa noite, doutor Highley - e arrancou. Enquanto se dirigia para casa, Edgar Highley chegou à conclusão de «que havia uma relação pessoal qualquer entre Katie DeMaio e Richard Carroll. Quando Katie se esvaísse em sangue até morrer, Richard Carroll estaria profissional emocionalmente interessado na causa da morte. Teria de ser muito, muito prudente.

Havia hostilidade na atitude de Carroll para com ele. Mas Carroll não tinha nenhuma razão para ser hostil com ele. Deveria ter examinado o corpo de Edna? Mas que adiantaria isso? Não a devia ter empurrado com tanta força. Deveria tê-la roubado? Essa fora a sua intenção. Se o tivesse feito, teria encontrado o sapato na noite anterior. Mas Edna calara-se. Edna dissera a Gertrude que ele tinha estado no apartamento. Edna até podia ter dado a entender que era mais frequente, mais importante. Gertrude dissera a Katie que ele sabia onde estavam guardadas as jóias miseráveis. Se eles concluíssem que Edna tinha sido assassinada, iriam associar o assassínio ao trabalho de Edna no hospital? Que mais teria Edna contado às pessoas?

A ideia não lhe saiu da cabeça enquanto se dirigia para casa. Katie era a «chave. Katie DeMaio. Depois de eliminada sem nenhum risco não haveria nenhuma prova que o associasse à morte de Vangie - ou à de Edna. Os ficheiros do escritório estavam em ordem. As pacientes atuais podiam suportar o exame mais minucioso.

Virou para a alameda, entrou com o carro na garagem, entrou em casa. As costeletas de cordeiro estavam no prato, frias e cobertas de gordura; o espargo perdera o viço; a salada estava mole e quente.

Voltaria a aquecer a comida no forno de microndas, arranjaria outra salada. Dentro de alguns minutos a mesa teria o mesmo aspecto de antes de tocar o telefone.

Enquanto preparava uma vez mais a comida, apercebeu-se que estava a ficar calmo. Já faltava tão pouco para estar a salvo. E em breve seria possível partilhar o seu génio com o mundo. Já obtivera êxito. Podia prová-lo indubitavelmente. Um dia poderia proclamá-lo. Ainda não, um dia. E ele não seria como aquele fanfarrão que asseverou ter feito uma reprodução vegetativa com êxito mas que se recusou a apresentar uma prova que fosse. Ele tinha registos precisos, documentação científica, fotografias, radiografias, os relatórios minuciosos, diários de todos os problemas que tinham surgido e como tratara deles. Tudo no arquivo no cofre secreto.

Quando chegasse o momento oportuno queimaria os ficheiros sobre os fracassos e exigiria o reconhecimento que lhe era devido. Nessa altura haveria mais triunfos certamente.

Nada se podia atravessar no seu caminho. Vangie quase estragara tudo. E se ele não a tivesse encontrado no momento em que ela saía do gabinete do doutor Fukhito? E se ela não lhe tivesse falado na sua decisão de consultar Emmet Salem?

Acaso. Sorte. Chamem-lhe o que quiserem.

Mas também fora o acaso que mandara Katie DeMaio para a janela precisamente no momento em que ele saía com o corpo de Vangie. E uma ironia requintada que Katie tivesse ido ter com ele em primeiro lugar.

Sentou-se uma vez mais à mesa. Com insana satisfação viu que o jantar tinha o mesmo aspecto apetitoso e delicioso que quando o preparara a primeira vez. O agrião estava duro e viçoso; as costeletas a estalar; o espargo a fumegar sob uma delicada hollandaise. Deitou vinho num copo fino, admirando a macieza delicada e o brilho do cristal quando pegou nele. O vinho tinha o gosto forte do Burgundy por que esperara.

Comeu devagar. Como sempre, a comida restaurava uma sensação de bem-estar. Faria o que devia e depois estaria a salvo.

No dia, seguinte era quinta-feira. O artigo da Newsmaker estaria nas bancas. Ele aumentaria o seu prestígio tanto social como médico.

O fato de ele ser viúvo conferia-lhe um atrativo específico. Sabia como as suas pacientes falavam. «O doutor Highley é tão brilhante. É tão distinto. Tem uma casa maravilhosa em Parkwood.»

Depois da morte de Winifred, permitira que cessassem as suas ligações com os amigos dela, havia demasiada hostilidade. Aquele primo dela estava sempre a fazer insinuações. Ele sabia. Foi por isso que naqueles três anos não se preocupara com outra mulher. Não que achasse a solidão um sacrifício. O trabalho absorvia-o, satisfazia-o. O tempo que lhe dedicara fora recompensado. Os piores críticos da classe admitiam que ele era um bom médico, que o hospital estava magnificamente equipado, que a Maternidade e o Centro de Concepção Westlake estavam a ser copiados por outros médicos.

«As minhas pacientes não podem beber nem fumar durante a gravidez», dissera ao entrevistador da Newsmaker. «Têm de seguir uma dieta específica. Muitas mulheres supostamente estéreis teriam os filhos que desejam se mostrassem a mesma dedicação dos atletas em treino. Muitos dos problemas de saúde de longa duração de que se padece nos nossos dias teriam sido inteiramente evitados se as mães não tivessem comido a alimentação errada, tomado a medicação errada. Tivemos o exemplo do que a Thalidomide fez a centenas de vítimas desgraçadas. Admitimos que uma mãe sob o efeito de drogas pode gerar uma criança viciada; uma mãe alcoólica dará muitas vezes à luz uma criança retardada, demasiado pequena, emocionalmente perturbada. E os inúmeros problemas que consideramos apenas do homem... Bronquite, dislexia, hiperatividade, asma, enfraquecimento auditivo e visual? Creio que o local para se eliminar isto não é o laboratório, mas sim o útero. Não aceitarei uma paciente que não coopere com os meus métodos. Posso enumerar-lhes dúzias de mulheres que tratei com uma série de abortos que agora têm filhos. Muitas mais poderiam sentir a mesma alegria, se estivessem dispostas a mudar os seus hábitos, principalmente os hábitos relacionados com a comida e a bebida. Muitas engravidariam e dariam à luz um filho se às suas emoções não estivessem tão abaladas porque na realidade usam contraceptivos mentais muito mais eficazes do que qualquer dispositivo à venda no mercado. Esta é a razão, a base da Maternidade e Centro de Concepção Westlake.

A repórter da Newsmaker ficara impressionada. Mas a pergunta seguinte era embaraçosa. «Doutor, não é um fato que o senhor tem sido criticado pelos honorários exorbitantes que cobra?»

«Exorbitante é a sua palavra. Os meus honorários, alem de despensas de uma vida bastante espartana, são para desenvolver o hospital e realizar estudo pré-natal.»

«Doutor, não é um fato que uma grande percentagem dos seus casos têm sido mulheres que abortaram várias vezes tratadas pelo senhor, mesmo depois de seguirem a risca o seu plano - e de lhe pagarem dez mil dólares, mais os custos do hospital e do laboratório?»

«Seria uma loucura da minha parte asseverar que conseguia levar a bom termo todas as gravidezes difíceis. Sim. Houve casos em que a gravidez desejada se iniciou, mas abortou naturalmente. Depois de várias destas ocorrências, sugiro que a minha paciente adote uma criança e ajudo a planejar uma adoção adequada.»

«Por dinheiro.»

«Jovem senhora, suponho que lhe pagaram para me entrevistar. Porque é que você não aproveita o seu tempo para fazer trabalho voluntário?»

Fora insensato atacar a repórter daquela maneira. Insensato arriscar-se à animosidade, insensato dar-lhe um motivo para ela o desacreditar, aprofundar demasiado o seu passado. Dissera-lhe que tinha sido o diretor de obstetrícia em Liverpool, antes do casamento com Winifred, mas não falara evidentemente do Chris Hospital em Devon.

A pergunta que a entrevistadora lhe fizera depois destinava-se a apanhá-lo numa armadilha.

«Doutor, o senhor faz abortos, não faz?»

«Sim, faço.»

«Isso não é incongruente para um obstetra? Tentar salvar um feto e «liminar outros?»

«Eu refiro-me ao útero como sendo um berço. Desprezo o aborto. E deploro a dor que vejo quando as mulheres vêm ter comigo e que não têm esperança de engravidar porque fizeram abortos e os úteros foram furados por médicos estúpidos, disparatados, descuidados. Penso que todos - e incluo os meus colegas - ficariam admirados se soubessem quantas mulheres renegam qualquer esperança de maternidade por que decidiram diferir essa maternidade através do aborto. É meu desejo que todas as mulheres levem a gravidez com saúde até ao fim. Para aquelas que não querem, pelo menos posso garantir que, quando finalmente desejarem um filho, ainda poderão tê-lo.»

Este ponto fora bem recebido. A atitude da repórter mudará.

Acabou de comer. Reclinou-se na cadeira e deitou mais vinho no copo. Sentia-se efusivo, confortável. As leis estavam a modificar-se. Dentro de alguns anos poderia proclamar o seu génio sem medo de uma ação judicial. Vangie Lewis, Edna K, Burns, Winifred, Claire... seriam estatísticas sem relação. A pista não seria encontrada.

Examinou o vinho enquanto bebia, encheu de novo o copo e bebeu. Estava cansado. Tinha marcada uma cesariana para a manhã do dia seguinte - outro caso difícil que aumentaria a sua reputação. Tinha sido uma gravidez difícil, mas o feto tinha uma pulsação forte; tinha de ser um parto bem sucedido. A mãe era um membro da socialmente proeminente família Payne. O pai, Delano Aldrich, era um dos diretores da Fundação Rockefeller. Este era o tipo de família cujo êxito seria importante se o escândalo de Devon viesse alguma vez à superfície.

Só restava um obstáculo. Trouxera do escritório a ficha de Katie DeMaio. Começaria agora a preparar a ficha que a substituiria e que mostraria à Polícia depois da sua morte.

Em vez da história que ela lhe dera de períodos de hemorragia prolongados durante o ano anterior, ele escreveria: «A paciente queixa-se de hemorragias frequentes e espontâneas, independentemente dos períodos mensais.» Em vez da natureza esponjosa das paredes uterinas, provavelmente de família, uma situação que seria remediada indefinidamente por uma simples D-e-C, ele anotaria vestígios de perturbação vascular. Em vez de um teor um pouco baixo de hemoglobina indicaria que a hemoglobina estava cronicamente na zona de perigo.

Entrou na biblioteca. O ficheiro assinado com o nome KATHELEEN Demaio, que ele trouxera do escritório, estava em cima da secretária. Tirou outra ficha da gaveta e escreveu o nome de Katie. Durante meia hora trabalhou com regularidade, consultando o ficheiro do escritório em busca de informações sobre a sua prévia história médica. Estava exausto. Levaria para o hospital a ficha corrigida. Acrescentou vários parágrafos à ficha que trouxera do escritório, aquela que colocaria no cofre da parede quando estivesse completa.

A paciente viu-se envolvida num acidente de automóvel sem consequências graves segunda-feira à noite, 15 de Fevereiro. Às duas da manhã, a paciente, sob a ação de sedativos, viu da janela do seu quarto a transferência dos restos mortais de Vangie Lewis pelo seu médico. A paciente não compreende ainda que aquilo que observou foi um fato real e não uma alucinação. A paciente está um pouco traumatizada por causa do acidente, e tem hemorragias persistentes. Inevitavelmente ela conseguirá lembrar-se com exatidão do que observou, e por esta razão não se pode permitir que continue a ser uma ameaça, para este médico.

A paciente recebeu uma transfusão de sangue na segunda-feira à noite na sala de urgência do hospital. Este médico ordenou outra transfusão com o pretexto de preparação para a operação de sábado. Este médico também deu medicação anticoagulante, comprimidos cumadin para serem tomados regularmente até sexta-feira à noite.

Enrugando os lábios, pousou a caneta. Era fácil imaginar como ele completaria este relatório.

A paciente entrou no hospital às 18 h. de sexta-feira, 19 de Fevereiro, a queixar-se de tonturas e fraqueza geral.

21 h. este médico, acompanhado pela enfermeira Renge, detectou a hemorragia. A tensão arterial descia rapidamente. Com todo aquele derrame de sangue foi realizada uma operação de urgência às 21.45.

A paciente, Kathleen Noel DeMaio, expirou às 22 h.

Sorriu em antecipação ao desfecho deste caso particular.

Cada detalhe foi muito bem planeado, mesmo a transferência da enfermeira Renge para outro piso na sexta-feira à noite. Ela era jovem, inexperiente e tinha medo dele. Depois de colocar o ficheiro no esconderijo temporário na primeira gaveta da secretária, foi-se deitar e dormiu profundamente até às seis da manhã.

Três horas depois trazia ao mundo um rapaz saudável de uma cesariana a que fora submetida Mrs. Delano Aldrich e aceitava, porque lhe era devida, a gratidão lacrimosa da paciente e do marido.

 

O serviço fúnebre para Vangie teve lugar na manhã de quinta-feira às dez horas na capela duma casa funerária de Mineápolis. Com o coração destroçado de compaixão pelos pais de Vangie, Chris ficou ao lado deles, os seus soluços abafados atacavam-no como pancadas de martelo. Podia ter feito tudo de maneira diferente? Se a princípio ele não tivesse tentado aplacar Vangie, jazeria agora ali? Se tivesse insistido com ela para que fosse com ele a um conselheiro matrimonial há anos teria ajudado o casamento? Ele sugerira-lhe isso. Mas ela recusara. «Não preciso de nenhum conselho», dissera. «E nunca insinues que fico impressionada com qualquer coisa no meu estado de saúde. É precisamente o contrário. Tu nunca te impressionas com nada; não queres saber de nada nem de ninguém. Tu é que és o problema, e não eu.»

«Oh, Vangie. Vangie. Haveria alguma verdade naquilo?» Ele deixara de se preocupar logo nos primeiros tempos do casamento.

Os pais dela tinham ficado chocados quando souberam que Vangie não podia ser sepultada, que o seu corpo devia ser transportado de avião de novo para o leste. «Porquê?»

«Não sei.» Não valia a pena responder mais do que aquilo, não naquele momento.

            Graça assombrosa, como é suave o som. - A voz de soprano do solista enchia a capela. - Estive perdido em tempos, mas agora reencontrei-me.

Há meses, no Verão passado, sentira que a vida era triste e inútil. Então fora àquela festa no Hawai. E Joan estava lá. Lembrava-se do momento exato em que a vira. Ela estava no terraço com um grupo de pessoas. O que quer que tosse que lhes tivesse dito fê-los rir, e ela rira também, com os olhos enrugados, os lábios apartados, a cabeça inclinada para trás. Lie fora buscar uma bebida e juntara-se ao grupo. E nessa noite não saíra mais do lado de Joan.

-... estava cego e agora vejo. - O examinador medico não teria deixado sair o corpo de Vangie na terça-feira a noite se suspeitasse de crime. Que teria acontecido para mudar de ideias?

Ele pensou na chamada telefónica de Edna. O que dissera ela às outras pessoas? Podia lançar alguma luz sobre a morte de Vangie? Antes de partir de Mineápolis, tinha de telefonar ao doutor Salem. Precisava de descobrir o que ele sabia a respeito de Vangie que o levara a reagir tão violentamente na noite anterior. Por que razão Vangie marcara um encontro para o ver?

Tinha existido outra pessoa na vida de Vangie? Agora tinha a certeza. E se Vangie se matara na presença de alguém e essa pessoa a levara para casa? Deus sabia que ela teria tido muitas oportunidades para se envolver com outro homem. Ele esteve longe de casa pelo menos metade do mês. Talvez tivesse conhecido alguém depois de se mudarem para Nova Jérsia.

Mas Vangie teria causado dor a si mesma?

Nunca!

O padre estava a dizer a última oração: -... quando todas as lágrimas estiverem enxutas... - Linris conduziu os pais de Vangie para a ante-sala e recebeu as condolências dos amigos que tinham assistido ao serviço. Os pais de Vangie iam ficar hospedados em casa de uns parentes. Concordaram que o corpo devia ser cremado na Nova Jersia e a uma restituída para ser enterrada no terreno da família.

Chris podia ir-se embora finalmente. Pouco passava das onze horas quando ele chegou ao Clube Atlético na parte baixa de Mineápolis e apanhou o elevador para o décimo quarto andar. Lá no solário pediu um Bloody Mary e levou-o para o pé de um telefone.

Quando entrou em contato com o escritório do doutor Salem, disse:

- Aqui fala o marido de Vangie Lewis. É urgente que eu fale com o doutor imediatamente. - Lamento - disse ele à enfermeira. - O doutor Salem partiu há instantes para a convenção da Associação Médica Americana em Nova Iorque. Só estará de volta na próxima semana.

- Nova Iorque. - Chris sintetizou a informação. - Pode-me dizer onde vai ficar hospedado, por favor? Talvez venha a ser preciso contactá-lo lá. A enfermeira hesitou.

- Creio que não há problema dizer-lhe isso. Tenho a certeza que o doutor Salem tenciona pôr-se em contato com o senhor. Pediu-me que procurasse o seu número de telefone em Nova Jérsia, e sei que levou os relatórios médicos da sua mulher. Mas, para o caso de ele não o encontrar, pode entrarem contato com ele no Essex House em Central Park South em Nova Iorque. A extensão é 3219.

Chris tirara o pequeno bloco de apontamentos que guardava num compartimento da carteira. Repetindo a informação, escreveu-a rapidamente.

O cimo da página já estava cheio. Nele estavam a morada de Edna Burnes e as indicações para se chegar ao seu apartamento em Edgeriver.

 

Scott convocou uma reunião para o meio-dia no seu escritório com as mesmas quatro pessoas que tinham estado presentes na reunião há um dia e meio para discutirem sobre a morte de Vangie Lewis.

Esta reunião era diferente. Katie sentiu a atmosfera pesada quando entrou no gabinete. Scott tinha Maureen à espera com uma caneta e papel.

- Vamos trazer sanduíches para aqui - disse ele. - Tenho de estar de novo no tribunal à uma e meia e precisamos de apanhar logo o comandante Lewis.

«Era como ela esperava», pensou Katie. «Scott está a concentrar-se em Chris.» Olhou para Maureen. A rapariga tinha uma aura de nervosismo à volta dela que era quase visível. «Começou esta manhã quando a encarreguei daquele trabalho», pensou Katie.

Maureen apanhou-a a olhar e esboçou um sorriso. Katie acenou com a cabeça.

- Uh-huh. O costume. - Depois acrescentou: - Teve alguma sorte com os telefonemas?

Maureen olhou para Scott, mas ele estava a examinar um ficheiro e não fazia caso delas.

- Até agora pouca coisa. O doutor Fukhito não é membro da AMA nem da Sociedade Médica de Valley County. Dispensa grande parte do seu tempo a crianças deficientes na Clínica Psiquiátrica de Valley Pines. Tenho uma chamada para fazer para a Universidade de Massachusetts. Frequentou lá a faculdade de medicina.

- Quem lhe disse isso? - perguntou Katie. Maureen hesitou.

- Lembro-me de ter ouvido isso em qualquer parte. Katie teve uma sensação de evasiva na resposta, mas antes de poder aprofundar mais o assunto, Richard, Charley e Phil entraram no gabinete. Rapidamente, disseram a Maureen o que queriam para o almoço, e Richard puxou uma cadeira para ao pé da de Katie. Colocou o braço sobre a cadeira dela e tocou-lhe na nuca. Os dedos eram quentes e fortes quando lhe massajou por instantes os músculos do pescoço.

- Rapaz, estás tenso - disse ele.

Scott levantou os olhos, resmungou, e começou por, dizer:

- Muito bem, já todos sabem que o bebé que Vangie Lewis trazia no ventre tinha características orientais. Por isso isto abre duas possibilidades. A primeira: com o nascimento iminente é possível que ela ficasse apavorada e se suicidasse. Deve ter ficado inquieta por saber que nunca poderia fazer passar o bebé como sendo do marido. A segunda possibilidade é que Chris Lewis descobriu que a mulher tinha um caso e matou-a. Tentemos isto. Suponhamos que foi inesperadamente para casa na noite de segunda-feira. Discutiram. Por que razão ia ela fugir para Mineápolis? Seria porque estava com medo dele? Não se esqueçam, ele nunca pensou que ela ia para casa e ela esperava partir antes de ele regressar da viagem. Do que Katie nos diz, o psiquiatra assevera que ela saiu a correr do seu gabinete quase histérica.

- O psiquiatra japonês - disse Katie. - Agora mesmo mandei Maureen tirar informações sobre ele.

Scott olhou para ela.

- Está a insinuar que na sua opinião havia qualquer coisa entre ele e Vangie?

- Por enquanto não insinuo nada - replicou Katie. - O fato de ser oriental certamente não quer dizer que Vangie não conhecesse outro homem oriental. Mas posso dizer-lhes. Estava nervoso quando falei com ele ontem, e escolhia cuidadosamente cada palavra que me dizia. Certamente não lhe arranquei toda a verdade.

- O que nos leva até Edna Burns - disse Scott. - Quais são as novidades, Richard? Caiu ou foi empurrada?

Richard encolheu os ombros.

- Não é impossível que ela tenha caído. O nível de álcool no sangue era de 0,25. Ela estava intoxicada pelo álcool. Era pesada.

- E os bêbados e os bebés que podem cair sem se magoarem? - perguntou Katie.

Richard abanou a cabeça.

- Isso pode ser verdadeiro a fraturas de ossos, mas não quando o crânio bate num objeto metálico, cortante. Diria isso a menos que alguém admita ter morto Edna, nunca poderemos prová-lo.

- Mas é possível que ela tenha sido assassinada? - insistiu Scott.

Ele encolheu os ombros.

- Absolutamente.

- E ouviram Edna a falar com Chris Lewis acerca do Príncipe Encantado. - Katie falou pausadamente. Pensou no belo psiquiatra. Alguém como Edna iria referir-se a ele como sendo o Príncipe Encantado? Teria telefonado a Chris depois da morte de Vangie para lhe dizer que desconfiava de um caso? Não acredito nisso - disse ela.

Os homens olharam para ela atentamente. - Não acredita em quê? - perguntou Scott.

- Não acredito em que Edna fosse vingativa. Sei que não era. Penso que ela jamais telefonaria a Chris Lewis depois de Vangie morrer para o fazer sofrer falando-lhe de um caso que Vangie tivesse.

- Talvez tivesse tido tanta pena dela que não queria que ele se considerasse um marido a quem morrera a esposa - disse Richard.

- Ou talvez andasse a ver se conseguia arranjar alguns dólares - sugeriu Charley. - Talvez Vangie lhe tivesse dito alguma coisa segunda-feira à noite. Talvez soubesse que Chris e Vangie tinham discutido e porque discutiram. Ela não tinha nada. Parece que ainda estava a pagar contas do médico para os pais, e eles já morreram há alguns anos. Talvez pensasse que não havia nenhum mal em pôr o braço em Chris Lewis. Ela ameaçou ir à Polícia.

- Ela disse que tinha algo a contar à Polícia - protestou Katie. - Foi assim que se exprimiu a mulher do superintendente.

- Está bem - disse Scott. - E em relação à casa Lewis? Que descobriram?

Charley encolheu os ombros.

- Até agora, pouca coisa. Há um número de telefone com um código de uma área, 612, rabiscado no bloco de apontamentos ao lado do telefone da cozinha. Sabemos que não é o número dos pais de Vangie. Pensámos que podíamos telefonar daqui. Talvez Vangie conversasse com uma amiga, lhe dissesse alguma coisa do que tencionava fazer. Ela também rasgou o vestido que trazia num dente que estava fora da prateleira na garagem.

- Que quer dizer com o vestido que ela trazia? - perguntou Scott.

- O vestido que envergava quando a encontraram. Era impossível que não o tivessem visto. Era uma coisa comprida com um daqueles desenhos madras.

- Onde estão as roupas que ela trazia? - perguntou Scott a Richard.

- Provavelmente ainda estão no laboratório - disse Richard. - Estávamos a fazer-lhe um exame de rotina.

Scott pegou no bloco de mensagens que Charley lhe entregara e atirou-o a Katie.

- Porque é que não marca este número agora? Se for uma mulher, talvez consiga arrancar-lhe mais alguma coisa.

Katie marcou o número. Houve uma pausa e depois começou a tocar um telefone.

- Consultório do doutor Salem.

- É um consultório - sussurrou ela, com a mão sobre o auscultador. Disse para a outra pessoa no outro lado. – Talvez me possa ajudar. Sou Kathleen DeMaio, de Valley County, Nova Jérsia, do gabinete do promotor de justiça. Estamos a proceder a um inquérito de rotina à morte de Mrs. Vangie Lewis na segunda-feira passada, e ela tinha o número de telefone do médico no bloco de apontamentos.

Ela foi interrompida.

- Oh, é uma coincidência. Acabei de falar com o comandante Lewis. Ele também está a tentar contactar o senhor doutor. Como eu lhe expliquei, o doutor Salem vai neste momento a caminho de Nova Iorque para a convenção da AMA. Pode entrar em contato com ele ao fim do dia no Essex Hou|se em Central Park South.

- Ótimo. Assim faremos. - Na esperança de conseguir mais alguma coisa, Katie acrescentou: - Sabe alguma coisa do telefonema de Mrs. Vangie? Ela falou com o médico?

- Não. Não falou. Falou comigo. Telefonou na segunda-feira e ficou muito desapontada por ele voltar ao consultório apenas na quarta-feira. Marquei-lhe uma consulta de urgência para quarta-feira, porque ele ia ausentar-se outra vez. Ela disse que precisava de estar com ele.

- Uma última pergunta - disse Katie: - Que tipo de médico é o doutor Salem?

O tom da mulher era arrogante.

- Oh, ele é um obstetra e ginecologista proeminente.

- Compreendo. Obrigada. Foi muito prestável. – Katie pousou o auscultador e relatou a conversa aos outros.

- E Chris Lewis sabia da consulta - disse Scott -, e agora quer falar com o médico. Estou ansioso por falar com ele esta noite. Teremos muitas perguntas para lhe fazer.

Ouviu-se uma pancada na porta e Maureen entrou sem esperar por uma resposta. Trazia um tabuleiro de cartão com espaços para chávenas de café e um saco de sanduíches.

- Katie - disse ela -, aquele telefonema de Boston sobre doutor Fukhito está na linha. Quer recebê-lo?

Katie acenou com a cabeça. Richard esticou-se e pegou no auscultador, estendendo-lho; Enquanto esperava que fizessem a ligação, Katie apercebeu-se de uma dor de cabeça, lenta, persistente. Aquela pancada contra o volante não fora suficientemente forte para provocar uma conclusão, mas sentia que a cabeça ultimamente a andava a incomodar. «Só que não estou a trabalhar com os cilindros todos», pensou. Havia tantas coisas que a perturbavam. Que tentava recordar. Alguma coisa. Uma impressão.

Quando deu as suas credenciais, puseram-na rapidamente em contato com o chefe do pessoal da Faculdade de Medicina da Universidade de Massachustes. A voz do homem era reservada.

- Sim, o doutor Fukhito licenciou-se na Universidade de Massachusetts sendo um dos três melhores do seu curso. Foi interno em Massachusetts General e mais tarde entrou para o hospital e possuía também uma clínica particular. Abandonou o hospital há sete anos.

- Por que razão se foi embora? - perguntou Katie. - Tem de compreender que se trata de uma investigação policial. Todas as informações serão mantidas em sigilo, mas precisamos saber se existe algum fator no passado do doutor Fukhito de que devemos ter conhecimento.

Houve uma pausa; depois o informador disse:

- O doutor Fukhito foi forçado a pedirá demissão há sete anos, e a licença de Massachusetts foi suspensa por um ano. Foi condenado por comportamento contra a ética depois de defender sem êxito um processo por negligência médica.

- Qual foi a causa do processo? - perguntou Katie.

- Uma paciente antiga processou o doutor Fukhito por a ter induzido a ter uma relação pessoal com ele enquanto estava sob tratamento psiquiátrico. Divorciara-se há pouco tempo e estava com um grave problema emocional. Como consequência desta relação ela deu à luz o filho do doutor Fukhito.

 

Molly andava numa azáfama na cozinha deleitando-se com o fato de todas as crianças estarem de novo na escola.

Até Jennifer de doze anos de idade ficara suficientemente boa para ir nessa manhã; de fato pedira para ir. «És tal qual a Katie», resmungara Molly, «quando metes a cabeça para qualquer coisa. Está bem, mas não podes ir a pé. Está demasiado frio. Eu levo-te.»

Bill só ia para Nova Iorque à tarde. Tencionava assistir a um dos seminários da convenção da AMA. Desfrutavam uma oportunidade rara de poderem conversar em paz enquanto Bill estava sentado à mesa a saborear o café e Molly cortava os legumes.

- Tenho a certeza que Richard, Katie e os Berkeley se vão divertir - dizia Molly. - Jim Berkeley é alegre e tem muita graça. Porque será que a maioria das pessoas que trabalham em publicidade são tão interessantes?

- Porque tudo o que precisam no seu trabalho são as palavras - alvitrou Bill. - Embora deva dizer que conheci algumas que eu não perderia tempo a visitar. - Oh, claro - concordou Molly distraída. - Bem, se Liz não passar a noite toda a falar do bebé... Embora deva dizer que nesse aspecto está a ficar melhor. Quando telefonei a convidá-la no outro dia passou os vinte primeiros ”minutos a falar da última habilidade da Maryanne... que, por acaso, é espalhar a aveia pela casa fora, quando lhe estão a dar de comer. Não é engraçado?

- É como se fosse o teu primeiro filho e tivesses esperado quinze anos para teres um - comentou Bill. - Parece que te estou a ver a anotar no livro do bebé sempre que a Jennifer pestanejava.

Molly começou a cortar aipo.

- Lembras-te da tua tia me mandar um livro do bebé para guardar para os gémeos. Creio que nunca o desembrulhei... Seja como for, devia ser engraçado. E mesmo que Liz fale com entusiasmo do bebé, talvez recaia alguma coisa sobre Katie e Richard.

As sobrancelhas de Bill levantaram-se. - Molly, és quase tão sutil como um martelo de forja. É melhor teres cuidado ou acabarão por se evitar. - Disparate, não vês como olham um para o outro? Há qualquer coisa latente - mais do que latente. Meu Deus, Richard telefonou-me ontem à noite para saber se Katie estava aqui e depois quis saber se havia algum problema com ela. Devias ter ouvido a sua voz de preocupação. - Digo-te que ele está louco por ela, mas é suficientemente esperto para não o mostrar e a espantar.

- Falaste-lhe da operação?

- Não. Katie fez um barulho dos diabos na manhã em que lhe perguntei se lhe tinha dito. Francamente, é espantoso como a maioria das pessoas deixa ficar tudo em suspenso nos nossos dias... Olha, por que razão não pode dizer a Richard, «Tenho um problema, é uma coisa incómoda, a minha mãe tinha-o e eu tenho de fazer um D-e-C de dois em dois anos, e parece que tenho a mesma constituição que ela. Em vez disso, o desgraçado está preocupado que seja alguma coisa grave. Acho que é uma injustiça para com ele - Bill levantou-se, encaminhou-se para a banca, passou a chávena e a colher por água e meteu-as na máquina da louça.

- Penso que nunca te apercebeste que Katie tem sofrido muito com a perda dos dois homens que amava e com quem contava... o vosso pai quando ela tinha oito anos, e depois John quando tinha vinte e quatro. Ela, faz-me lembrar a última cena de Cone With the Wind (E Tudo o Vento Levou) quando Rhett diz a Scarlett, «Dei-te o meu coração e tu despedaçaste-o. Depois dei-o a Bonnie e ela despedaçou-o. Não arriscarei uma terceira vez.» Isto é em parte o problema de Katie. Mas, francamente, penso que tem de ser ela a resolvê-lo. Andares sempre de volta dela como uma mãe-águia não estás a ajudá-la. Não há nada que eu gostasse mais de ver do que ela se juntar a Richard Carroll. Ele seria bom para ela.

            - E joga golfe contigo - exclamou Molly.

Bill acenou com a cabeça.

- Isso também. - Ele pegou num talo de aipo e mordiscou-o.

- Um conselho. Se Katie não quer falar da operação a Richard, não o enchas. Não é justo para com ela. Se ele persiste em se preocupar com ela, tem de lhe fazer qualquer tipo de declaração. Juntaste-os. Agora...

- Agora não chateies - disse Molly, suspirando.

- Mais ou menos isso. E amanhã à noite quando Katie for para o hospital, tu e eu vamos ao Metropulitan. Há meses que comprei bilhetes para o Otello e não tenciono trocá-los. Estarás lá quando ela sair da sala de recuperação sábado de manhã, mas não lhe faz mal nenhum desejar que tivesse alguém com ela. Talvez sexta-feira à noite pense um pouco.

- Ir sozinha para o hospital? - protestou Molly.

- Sozinha - disse Bill com firmeza. - Ela é uma rapariga crescida. Tocou o telefone.

- Oxalá não seja a enfermeira da escola a dizer que um dos miúdos está outra vez com o vírus - murmurou Molly. O seu «Está lá» foi reticente. Depois o tom de voz tornou-se ansioso. - Liz, olá. Agora não me digas que não vens logo à noite. Ela escutou.

- Oh, por amor de Deus, trá-la também. Tens o carro que se dobra. Claro, pômo-la no nosso quarto e ficará bem... Claro que não me importo. Assim se ela acordar trazemo-la cá para baixo e deixamos que ela se associe à festa. Será como nos velhos tempos... Ótimo. Até às sete. Adeus. Ela pousou o auscultador.

- A ama de Liz Berkeley não pode ir e ela tem medo de a deixar com uma pessoa que não conheça, por isso vai trazer o bebé.

- Ótimo. - Bill olhou para o relógio da cozinha. - É melhor ir-me embora. Está a fazer-se tarde. - Beijou a face de Molly. - Vais deixar de te preocupar com a tua irmãzinha?

Molly mordeu o lábio.

- Não posso. Tenho esta sensação arrepiante em relação a Katie, como se lhe pudesse acontecer alguma coisa.

 

Quando Richard voltou ao escritório, ficou algum tempo a olhar pela janela. A vista era um pouco mais atraente do que a do escritório de Scott. Além da esquina nordeste da cadeia do distrito, via uma zona distinta do pequeno parque do tribunal. Apenas semiconsciente do que estava a ver, observava quando uma saraivada cobriu a relva gelada e já escorregadia.

«Lindo tempo», pensou ele. Olhou para o céu. Formavam-se nuvens carregadas de neve. O corpo de Vangie Lewis ia de Mineápolis para Newark no voo das duas e meia. Seria recolhido às sete e transportado para a morgue. Na manhã seguinte tornaria a examiná-lo. Não que esperasse descobrir mais alguma coisa do que já sabia. Nele não havia absolutamente nenhuma equimose. Ele tinha a certeza. Mas havia qualquer coisa no pé esquerdo ou perna que ele tinha notado e considerara irrelevante.

Afastou aquele pensamento. Era inútil especular antes de poder reexaminar o corpo. Vangie era extremamente emotiva. Poderia ter sido induzida ao suicídio por Fukhito? Se Vangie estava grávida de Fukhito, ele devia ter entrado em pânico. Estaria liquidado como médico se se descobrisse estar de novo envolvido com outra paciente.

Mas Chris Lewis tinha uma namorada - uma boa razão para querer ver-se livre da mulher. E se ele tivesse sabido do caso? Aparentemente nem os pais de Vangie sabiam que ela planeava ir a Mineápolis. Seria possível que Vangie desejasse que o obstetra de Minesota assistisse ao parto e o mantivesse em segredo? Talvez dissesse que o perdera. Se queria preservar o casamento, talvez tivesse sido forçada a isso. Ou se ela compreendesse que o divórcio era inevitável, a prova absoluta da sua infidelidade podia ter pesado na decisão.

Tudo soava a falso.

Suspirando, Richard esticou-se, premiu o botão do intercomunicador e chamou Marge. Ela estava a almoçar quando regressou ao escritório de Scott e não fora buscar os recados.

Ela entrou a correr com um maço de tiras de papel na mão.

- Nenhum destes é demasiado importante - informou-o. Oh, é verdade, houve um logo depois de o senhor sair para o escritório de Mr. Myerson. Um doutor Salem. Ele não perguntou pelo senhor pelo nome; queria o examinador médico. Disse que o senhor era o homem e que o faria pessoalmente. Ele ia apanhar um avião de Mineápolis, mas perguntou se lhe telefonaria para a Essex House em Nova Iorque por volta das cinco horas. Parecia ansioso por falar com o senhor.

Richard comprimiu os lábios num assobio silencioso.

- Estou ansioso por falar com ele - disse.

- Oh, e eu consegui as estatísticas sobre as pacientes de obstetrícia de Westlake - disse Marge. - Nos oito anos da Maternidade e Centro de Concepção Westlake, morreram dezasseis pacientes quer de parto quer de gravidezes tóxicas.

- Dezasseis - repetiu Marge com ênfase. - Todavia a clientela é enorme. O doutor Highley é considerado um excelente médico. Alguns dos bebés que conseguiu que sobrevivessem são quase milagres, e as mulheres que morreram tinham sido todas avisadas por outros médicos que corriam graves riscos com a gravidez.

- Quero examinar todos os acidentes mortais - disse Richard. - Mas se pedirmos a Scott que cite os ficheiros do hospital, iremos alertá-los, e por enquanto não quero fazer isso. Conseguiu mais alguma coisa?

- Talvez. Nestes oito anos duas pessoas apresentaram ações judiciais por negligência médica contra o doutor Highley. Ambas as ações foram rejeitadas. E um primo da mulher dele apareceu asseverando que não acreditava que ela tivesse morrido de ataque cardíaco. O gabinete do promotor de justiça contatou com o seu médico particular e este disse que o primo era louco. O primo era o único herdeiro antes de Winifred casar com o doutor Highley, por isso talvez tenha sido essa a razão por que quis levantar problemas.

- Quem era o médico particular de Winifred Westlake?

- O doutor Alan Levine.

- Ele é um médico eminente - disse Richard. - vou ter uma conversa com ele.

- E as pessoas que apresentaram ações judiciais por negligência médica? Quer saber quem são?

- Sim, quero.

- Calculei. Aqui tem. Richard olhou para os dois nomes na folha de papel que Marge lhe entregara. Arithony Caldwell, Old Coúntry Lane, Peapack, N. J., e Anna Hôran 415 Walnut Street, Ridgefield Park.N.J.

- Fez um trabalho excelente, Marge - disse ele. Ela acenou com a cabeça.

- Eu sei. - O tom era de satisfação.

            - A esta hora Scott está no tribunal. É capaz de lhe deixar recado para me telefonar quando regressar ao escritório? Oh, e diga ao laboratório que quero as roupas de Vangie Lewis preparadas para lhe vestir logo amanhã de manhã. Todos os testes da roupa têm de estar concluídos esta tarde.

Marge saiu, e Richard voltou-se para o trabalho sobre a secretária.

Scott só telefonou depois das quatro. Ele ouviu a decisão de Richard de entrevistar os queixosos contra o doutor Highley e não ficou impressionado.

- Olhe, hoje em dia não há nenhum médico, seja lá quem for, que não seja atingido por um processo por negligência médica. Se o doutor Schweitzer ainda fosse vivo, se não estou errado, estaria a defender-se deles na selva. Mas vá em frente sozinho se quiser. Citaremos os registos do hospital quando estiver preparado para eles. Estou preocupado com a alta percentagem de mortes obstétricas de mães, mas mesmo isso pode ser explicável. Ele lida com gravidezes de alto risco.

A voz de Scott tornou-se mais forte.

- Estou mais interessado naquilo que o doutor Salem tem para dizer. Você fala com ele e vem ter comigo e então eu entro em ação. Entre nós, Richard, penso que iremos enredar Chris Lewis num caso circunstancial suficientemente difícil que talvez o forcemos a revelar tudo. Sabemos que os seus movimentos na noite de segunda-feira não têm explicação, quando a mulher morreu. Sabemos que Edna Burns lhe telefonou na terça-feira à noite. Já, sabemos que o diretor do funeral o deixou antes das nove da noite na terça-feira. Depois disso ficou sozinho e podia ter saído facilmente. Suponha que ele a foi ver? Ele é habilidoso. Charley diz-me que ele tem ferramentas sofisticadas na garagem. Edna estava embriagada quando lhe telefonou. O vizinho disse-nos isso. Suponha que foi de carro até lá, soltou a fechadura, entrou no apartamento e empurrou aquela pobre senhora antes de ela saber o que a atingiu? Com franqueza, este é o meu ponto de vista, e tê-lo-emos aqui esta noite para nos contar tudo.

- Talvez tenha razão - disse Richard. - Mas mesmo assim vou investigar estas pessoas.

Ele apanhou o doutor Alan Levine no momento em que este saía do escritório.

- Pago-lhe uma bebida - sugeriu Richard. - Só demorarei quinze minutos.

Combinaram encontrar-se no Parkwood Country Club. A meio caminho para ambos, tinha a virtude de ser sossegado nos dias de semana. Poderiam conversar no bar sem a preocupação de serem ouvidos ou terem pessoas que paravam para os cumprimentarem.

Alan Levine era muito parecido com Jimfny Stewart - um fato que o tornava estimado pelas suas pacientes mais velhas. Gostavam da cordialidade simples de profissionais, que se respeitavam uns aos outros, sentiam prazer em beber um copo juntos se os seus caminhos se cruzavam, cumprimentavam-se com um aceno de mão nos campos de golfe.

Richard foi diretamente ao assunto.

- Por várias razões estamos interessados no Westlake Hospital. Winifred Westlake era sua paciente. O primo dela tentou insinuar que ela não morreu de um ataque cardíaco. Que me pode dizer a este respeito?

Alan Levine olhou de frente para Richard, bebeu lentamente o seu martini, olhou para o canal coberto de neve através da janela panorâmica e comprimiu os lábios.

- Tenho de responder a essa pergunta por etapas - disse ele, pausadamente. - Primeiro: Sim, Winifred foi minha paciente. Teve uma úlcera durante anos. Especificamente, ela tinha todos os sintomas clássicos de uma úlcera duodenal, mas nunca se descobriu ao raio X. Quando sentia dores, mandava-lhe tirar as radiografias usuais, obtinha resultados negativos, prescrevia uma dieta para a úlcera, e ela sentia alívio quase imediatamente. Um problema de pequena gravidade.

- Então um ano antes de conhecer e casar com Highley teve um violento ataque de gastrenterite que efetivamente alterou o cardiograma. Internei-a por um ataque cardíaco suspeito. Mas passados dois dias no hospital o cardiograma estava dentro dos limites normais.

- Então podia ter havido ou não um problema com o coração? - perguntou Richard.

- Eu achei que não havia. Nunca se descobriu nos testes clássicos. Mas a mãe dela morreu de um ataque cardíaco aos cinquenta e oito anos. E Winifred tinha quase cinquenta e dois quando morreu. Sabe, ela era uns dez anos mais velha que Highley. Vários anos depois do casamento começou a visitar-me com mais frequência, queixando-se constantemente de dores no peito. Os testes não revelaram nada de significativo. Disse-lhe para ter cuidado com a dieta.

- E então teve um ataque fatal? - perguntou Richard.

O outro médico acenou com a cabeça.

- Uma noite, durante o jantar, teve um ataque de apoplexia. Edgar Highley telefonou imediatamente para o seu serviço. Deu-lhes o meu número, o número do hospital, disse-lhes para chamarem a Polícia. Daquilo que me disseram, Winifred caiu à mesa da sala de jantar.

- O senhor estava lá quando ela morreu? - perguntou Richard.

- Estava. Highley estava ainda a tentar fazê-la voltar a si. Mas foi inútil. Ela morreu alguns minutos depois de eu chegar.

- E está convencido de que foi um colapso cardíaco? perguntou Richard.

Houve de novo uma pequena hesitação.

- Há alguns anos que ela sentia dores no peito. Nem todos os problemas de coração aparecem nos cardiogramas. Nos últimos dois anos antes de morrer sofria periodicamente de tensão arterial alta. Não há dúvida que os problemas cardíacos geralmente são de família. Sim. Na altura estava convencido.

- Na altura. - Richard sublinhou as palavras.

- Creio que a convicção absoluta do primo de que havia algo de estranho na sua morte me tem perturbado nestes três anos. Praticamente que o atirei para fora do meu consultório quando ele entrou e me acusou de falsificar relatórios. Calculei que ele era o parente descontente que odiava o homem que tomou o seu lugar no testamento. Mas Glenn Nickerson é um homem bom. É treinador em Park-wood High, e os meus filhos vão lá agora. Gostam imenso dele. Ele é um homem de família, ativo na igreja, no conselho municipal; certamente não é o tipo de homem que ficasse com um grão na asa por ser deserdado. E devia saber certamente que Winifred deixaria os seus bens ao marido. Ela era louca por Highley. Nunca consegui compreender. Ele é um peixe frio, se alguma vez vi algum.

- Deduzo que o senhor não simpatiza com ele. Alan Levine terminou a bebida.

- Não simpatizo mesmo nada com ele. E você já viu o artigo sobre ele na Newsmaker? Saiu hoje; Faz dele um pequeno deus de lata. Suponho que ficará ainda mais insuportável. Mas tenho de lhe dar o crédito que lhe é devido. É um excelente médico.

- Suficientemente bom para ter provocado quimicamente um ataque cardíaco na mulher?

O doutor Levine olhou de frente para Richard.

- Para ser franco, já me arrependi muitas vezes de não ter insistido numa autópsia.

Richard fez sinal para que lhe trouxessem a conta.

- Ajudou-nos muito, Alan.

O outro homem encolheu os ombros. - Não vejo como. Que utilidade terá isto para si? - Por agora, dá-me discernimento quando falo com certas pessoas. Depois disso, quem sabe?

Separaram-se à entrada do bar. Richard procurou dinheiro miúdo no bolso, encaminhou-se para o telefone público e telefonou para o Essex House Hotel em Nova Iorque. - O doutor Emmet Salem, por favor. Ouviu-se o som estridente de um telefone de hotel a tocar.

Três, quatro, cinco, seis vezes. A telefonista interrompeu. - Lamento, mas ninguém responde. - Tem a certeza de que o doutor Salem entrou no hotel? - perguntou Richard.

- Sim, sir, tenho a certeza. Ele telefonou expressamente para dizer que estava à espera de um telefonema importante e queria ter a certeza que o recebia. Isso foi há vinte minutos. Mas se calhar mudou de ideias. Porque temos estado a ligar para o quarto e ninguém atende.

 

Quando ela saiu do gabinete de Scott, Katie mandou entrar Rita Castile e juntas examinaram o material de que iria precisar para os próximos julgamentos.

- Aquele assalto à mão armada no dia vinte e oito - disse Katie - em que o réu cortou o cabelo na manhã a seguir ao crime. Vamos precisar do barbeiro para prestar declarações. Não admira que a testemunha não conseguisse fazer uma identificação segura. Apesar de o termos feito usar uma peruca no alinhamento, não parecia o mesmo.

- Percebi. - Rita tomou nota da morada do barbeiro. - É pena que não possa informar o júri do longo cadastro juvenil de Benton.

- É a lei - disse Katie, suspirando. - Espero sinceramente que um dia deixe de ser maleável para proteger criminosos. Agora é quase tudo o que tenho para si, mas este fim-de-semana não virei ao escritório, portanto a próxima semana vai ser uma trapalhada. Esteja preparada.

- Não vem ao escritório? - Rita levantou as sobrancelhas. - Bem, já não era sem tempo. Há meses que não tem um fim-de-semana sem trabalho. Espero que esteja a planejar ir a algum lado para se distrair.

Katie sorriu ironicamente.

- Não sei se será muito divertido. Oh, Rita, tenho um pressentimento que a Maureen hoje tem qualquer coisa que a preocupa. Sem ser espalhafatosa, sabe de algum problema? Ela ainda anda deprimida por causa do rompimento com o noivo?

Rita abanou a cabeça.

- Não, de modo nenhum. Era uma coisa de garotos, e ela sabia. Os encontros regulares do tempo em que tinham quinze anos, um anel de noivado na noite do baile de estudantes. No Verão passado ambos perceberam que não estavam preparados para casarem. Ele está agora na faculdade, por isso não há nenhum problema.

- Então por que razão é tão infeliz? - perguntou Katie.

- Desgosto - disse Rita simplesmente. - Quase na altura em que romperam ela apercebeu-se que estava grávida e fez um aborto. Ela está cheia de remorsos. Contou-me que está sempre a sonhar com o bebé, que ouve a chorar e tenta encontrá-lo. Disse que teria feito tudo para ter tido o filho, mesmo que o tivesse dado para ser adotado.

Katie lembrou-se do desejo enorme que tivera em conceber um filho de John, da raiva com que ficara quando depois da sua morte alguém comentou que ela tinha sorte por não ter ficado presa com uma criança.

- A vida é tão disparatada - disse ela. - As pessoas erradas engravidam, e depois é tão fácil cometer um erro com que teremos de viver para o resto da vida. Mas isso explica tudo. Obrigada por me contar. Estava com medo que lhe tivesse dito alguma coisa que a ofendesse.

- Não disse nada - comentou Rita. Pegou nos ficheiros que Katie lhe entregara. - Muito bem. Tratarei destas citações e procurarei o barbeiro.

Depois de Rita sair, Katie reclinou-se na cadeira. Queria falar outra vez com Gertrude Fitzgerald e Gana Krupshak. Eram amigas de Edna, tinham almoçado muitas vezes juntas. Mrs. Krupshak ia com frequência ao apartamento de Edna à noite. Edna talvez tivesse dito alguma coisa sobre o doutor Fukhito ou Vangie a uma delas. Valia a pena tentar.

Telefonou para o Westlake Hospital e disseram que Mrs. Fitzgerald estava em casa, doente; pediu e conseguiu obter o número do telefone. Quando a mulher atendeu era evidente que ainda estava perturbada. A voz era fraca e trémula.

- Estou com uma das minhas enxaquecas, Mrs. DeMaio disse ela -, e não é para admirar. Sempre que me lembro do aspecto de Edna, pobrezinha...

- Eu ia sugerir que nos reuníssemos aqui ou em sua casa disse Katie. - Mas amanhã vou estar todo o dia no tribunal, por isso penso que terá de esperar até segunda-feira. Há só uma coisa que gostaria de lhe perguntar, Mrs. Fitzgerald. Edna alguma vez chamou a qualquer um dos médicos para quem trabalhava «Príncipe Encantado»?

- Príncipe Encantado? - A voz de Gertrude Fitzgerald era de surpresa. - Príncipe Encantado? Meu Deus. O doutor Highley ou o doutor Fukhito? Por que razão alguém chamaria a qualquer um deles Príncipe Encantado? Meu Deus, não.

- Está bem. Foi só uma ideia. - Katie despediu-se e marcou o número de Mrs. Krupshak. Atendeu o superintendente. A mulher saíra, explicou. Regressaria por volta das cinco.

Katie olhou rapidamente para o relógio. Eram quatro e meia.

- Acha que se importaria se eu parasse aí a caminho de casa para conversar com ela durante alguns minutos? Prometo que não demorarei muito tempo.

- Faça como quiser.- respondeu o homem laconicamente, depois acrescentou: - Que se passa no apartamento de Edna? Ainda falta muito para saírem de lá?

- Não se pode entrar nem tocar nesse apartamento até que este departamento ordene - disse Katie com rispidez. Pousou o auscultador, meteu algumas pastas na mala e foi buscar o casaco. Teria tempo suficiente para falar com Mrs. Krupshak, ir para casa em seguida e trocar de roupa. Nessa noite não ficaria até tarde em casa de Molly. Queria ter uma boa noite de sono antes da operação. Sabia que não dormiria bem no hospital.

Chegara antes da hora de ponta, e Mrs. Krupshak estava em casa quando tocou à campainha.

- Isso é que é pontualidade! - exclamou ela para Katie. O choque de descobrir o corpo de Edna começara a desaparecer para esta mulher, e via-se que começava a divertir-se com a agitação da investigação policial.

- Hoje é a minha tarde de bingo - explicou ela. - Quando contei às minhas amigas o que aconteceu mal conseguiam manter as cartas direitas.

«Pobre Edna», pensou Katie, depois compreendeu que Edna teria adorado ser o centro de uma conversa animada.

Mrs. Krupshak conduziu-a a uma sala de estar em forma de L, uma cópia do apartamento onde Edna vivera. A sala de estar de Edna fora mobilada com um sofá de veludo antiquado, cadeiras de costas direitas a condizer, um tapete oriental desbotado. Como Edna, o apartamento tivera a sua própria dignidade.

A mulher do superintendente tinha um sofá de couro artificial e uma cadeira de clube, uma mesa para cocktails com tamanho fora do normal encimada por um arranjo de flores plásticas mesmo no centro e uma gravura outonal em tons de laranja por cima do sofá, que captava a tonalidade berrante da alcatifa. Katie sentou-se. «Esta casa é vulgar», pensou. É banal, se bem que seja limpa e confortável, e fica-se com a impressão de que apesar do marido ser brusco e insociável, Gana Krupshak é uma mulher feliz.» Depois Katie perguntou a si mesma por que razão ficou de um momento para o outro preocupada em definir felicidade.

Encolhendo os ombros mentalmente, concentrou-se nas perguntas que queria formular.

- Mrs. Krupshak - disse ela -, conversámos ontem à noite, mas evidentemente estava tão perturbada. Seria capaz de recapitular comigo com muito cuidado o que aconteceu na terça-feira à noite: quanto tempo esteve com Edna; de que falaram; ficou com a impressão de que ela marcou um encontro com o comandante Lewis quando falou com ele.

Gana Krupshak reclinou-se na cadeira, desviou os olhos meio fechados de Katie e mordeu o lábio.

- Ora vejamos. Fui ao apartamento de Edna às oito horas em ponto, porque Gus começou a ver o jogo de basquetebol na televisão e eu pensei «Que se dane o jogo de basquetebol, vou fazer uma visitinha à Edna e bebo uma cerveja com ela.»

- E foi até lá - encorajou Katie.

- Fui. Só que Edna tinha um jarro de manhattans e estavam quase todos bebidos e ela estava a sentir-se muito cambaleante. A senhora sabe, como é, às vezes ficava maldisposta, bastante em baixo, se percebe o que quero dizer, e eu pensei que ela estava a atravessar uma dessas crises. Como na quarta-feira passada era o dia de aniversário da mãe e eu fiz-lhe uma visita e ela chorava porque sentia muito a falta da mãe. Não quero dizer que ela desabafasse com a senhora, de forma alguma, mas quando passei por lá na quarta-feira estava sentada com o retrato dos pais nas mãos e a caixa das jóias no regaço e as lágrimas deslizavam-lhe pelo rosto abaixo. Dei-lhe um grande abraço e disse, «Edna, vou-te dar um copo bem cheio de manhattan e vamos beber à saúde do teu estômago, e se ela estivesse aqui associar-se-ia a nós.» Se percebe o que quero dizer, a gracejar consegui levantar-lhe o ânimo e ela ficou bem, mas quando lá fui na terça-feira à noite e a vi indisposta calculei que não superara a fase da tristeza.

- Disse-lhe que ainda estava deprimida na terça-feira à noite? - perguntou Katie.

- Não. Não. Aí é que está. Ela estava um pouco excitada. Dizia coisas desconexas sobre uma doente que morrera, como era linda, como uma boneca, e como estava doente e como ela - Edna, quero dizer - podia contar muita coisa à Polícia a respeito dela.

- Depois o que aconteceu? - perguntou Katie.

- Bem, bebi um manhattan, ou dois, com ela e depois pensei que seria melhor ir para casa, porque Gus fica maldisposto se eu não estou em casa quando ele vai para a cama. Mas não gostava de ver Edna a beber muito mais, porque sabia que de manhã se sentiria mesmo mal. Por isso tirei aquele maravilhoso presunto enlatado, abri-o e cortei-lhe algumas fatias.

- E foi nessa altura que ela fez o telefonema?

- Tal como lhe contei ontem à noite.

- E ela falou no Príncipe Encantado ao comandante Lewis?

- Deus é minha testemunha.

- Está bem, mas uma última coisa, Mrs. Krupshak: sabe se Edna guardava algum artigo de vestuário da mãe como uma recordação sentimental?

- Vestuário? Não. Ela tinha era um lindo broche com diamantes e um anel.

- Sim, sim, encontrámo-los ontem à noite. Mas, bem, por exemplo, a minha mãe costumava guardar o velho chapéu preto da mãe no armário por razões sentimentais. Reparei num mocassin velho na gaveta das jóias de Edna. Era bastante velho. Alguma vez lho mostrou ou fez referência a ele?

Gana Krupshak olhou de frente para Katie.

- De modo nenhum - disse ela prontamente.

 

O artigo da Newsmaker estava nas bancas quinta-feira de manhã. Os telefonemas começaram assim que foi para o escritório depois de pôr no mundo o bebé Aldrich. Ligou os botões de maneira a que o telefone tocasse diretamente para ele. Queria ouvir os comentários. Eram mais do que esperava.

- Doutor, quando posso ter uma consulta? O meu marido e eu desejamos ardentemente um filho. Posso ir de avião para Nova Jérsia quando lhe convier. Deus o abençoe pelo seu trabalho. Telefonaram da Faculdade de Medicina Dartmouth. Se aceitava um convite para uma conferência. Um articulista do Ladies’ Home Journal queria entrevistá-lo. Se o doutor Highley e o doutor Fukhito não se importavam de aparecer juntos em Eyewitness News.

Aquele pedido inquietou-o. Tivera o cuidado de dar à repórter da Newsmaker a impressão de que trabalhava com uma série de psiquiatras, da mesma maneira que um advogado de família podia mandar os seus clientes consultarem qualquer um de uma dúzia de conselheiros. Chegara a sugerir que o programa estava inteiramente sob seu controlo, não era um esforço conjunto. Mas a repórter conseguira o nome de Fukhito por intermédio de uma série de pacientes de confiança que ele lhe dera para entrevistar. Agora a repórter creditava Fukhito como o psiquiatra que parecia ter sido o primeiro a colaborar com o doutor Edgar Highley na Maternidade e Centro de Concepção Westlake.

Fukhito ficaria terrivelmente perturbado com a publicidade. Foi por isso que fora escolhido Fukhito não poderia abrir a boca mesmo que começasse a tornar-se suspeito. Ele não podia permitir que um escândalo atingisse Westlake. Se isso acontecesse estaria perdido para sempre.

Fukhito estava a tornar-se um autêntico impecilho. Agora seria bastante fácil livrar-se dele. Ele dava muito tempo em regime voluntário à clínica Valley Pines. Agora podia entrar sem dúvida para o corpo clínico. Provavelmente, Fukhito ficaria contente por conseguir uma cobertura. Depois, podia começar a revezar psiquiatras; ele já sabia o suficiente acerca deles que não eram competentes para aconselharem quem quer que fosse. Seriam bastante fáceis de enganar.

Fukhito teria de se ir embora.  

Tomada a decisão fez sinal para que entrasse a primeira paciente. Ela era nova, como eram as duas marcadas para depois dela. A terceira paciente era um caso interessante um útero tão inclinado que ela nunca poderia engravidar sem uma intervenção.

Ela seria a sua próxima Vangie

A chamada telefónica chegou ao meio-dia, precisamente no momento em que ele ia sair para almoçar.

A enfermeira, que estava de serviço, na recepção, pediu desculpa.

- Doutor, é uma chamada interurbana de um doutor Emmet Salem de Mineápolis. Ele está neste momento numa cabine telefónica, no aeroporto e insiste em falar com o senhor imediatamente. Emmet Salem! Pegou no auscultador.

- Edgar Highley.

- Doutor Highley. - A voz era muito ríspida. - O doutor Highley do Chris Hospital em Devon?

- Sim - Um medo arrepiante e nauseante fez com que a língua ficasse pesada, os lábios como borracha.

- Doutor Highley, soube ontem à noite que tratou uma antiga paciente minha, Mrs. Vangie Lewis. Vou partir já para Nova Iorque. Ficarei hospedado no Essex House Hotel em Nova Iorque. Devo dizer-lhe que tenciono ouvir a opinião do examinador médico em Nova Jérsia sobre a morte de Mrs. Lewis. Tenho os relatórios médicos dela comigo. Para ser justo com o senhor sugiro que discutamos o caso antes de levantar acusações.

- Doutor, estou perturbado com o seu tom e insinuações. - Já conseguia falar. Agora a sua voz tornara-se tão dura como pedaços de granito.

- O meu avião está a abastecer-se. vou ficar no quarto 3219 do Essex House Hotel e estarei lá pouco antes das cinco horas. Pode ir visitar-me lá. - A ligação foi cortada.

Ele estava à espera no Essex House quando Emmet Salem saiu do táxi. Desapareceu rapidamente num elevador para o trigésimo segundo andar, passou pelo quarto 3219 até ao local onde o corredor fazia um ângulo reto. Parou outro elevador no andar. Estava à escuta, quando uma chave deu um estalido, um paquete disse:

- Chegámos, doutor. - Um minuto depois o paquete apareceu de novo. - Obrigado, sir.

Esperou até ouvir o elevador a parar para o paquete entrar. Os corredores estavam silenciosos. Mas aquilo não duraria muito tempo. Muitos dos delegados à convenção da AMA provavelmente estavam ali hospedados. Havia sempre o perigo de encontrar por acaso alguém que ele conhecesse. Mas tinha de arriscar. Tinha de silenciar Salem.

Abriu rapidamente a maleta de cabedal e tirou o pisa-papéis que há quarenta e oito horas apenas tencionara usar para silenciar Edna. Era absurdo, impossível, que ele, o médico, fosse obrigado a matar repetidas vezes.

Meteu o pisa-papéis no bolso do casaco, calçou as luvas, prendeu firmemente a maleta com a mão esquerda e bateu à porta.

Emmet Salem abriu a porta. Acabara de tirar o casaco do fato.

- Esqueceu-se de alguma coisa? - A sua voz era arrastada. Era óbvio que ele pensara que o paquete tinha voltado.

- Doutor Salem! - Estendeu a mão para apertar a de Salem, avançando, fazendo recuar o homem mais velho para dentro do quarto, fechando a porta de mansinho atrás dele. Sou Edgar Highley. É bom voltar a vê-lo. Pousou o auscultador tão bruscamente que não pude dizer-lhe que ia jantar com vários colegas que estão a assistir à convenção. Só tenho alguns minutos, mas estou certo que podemos esclarecer quaisquer dúvidas.

Continuava a avançar, obrigando o outro homem a recuar. A janela atrás de Salem estava aberta de par em par. Provavelmente tinha pedido ao paquete que a abrisse. O quarto estava muito quente. A janela era baixa. Os olhos ficaram entreabertos.

- Tentei telefonar-lhe, mas a sua extensão está avariada.

- Impossível. Acabei de falar com a telefonista. - O doutor Salem assumiu uma atitude rígida, o rosto repentinamente circunspecto.

- Então peço desculpa. Mas não há problema. Estou ansioso por examinar o relatório Lewis com o senhor. Tenho-o aqui na minha maleta. - Meteu a mão no bolso para pegar no pisa-papéis, depois gritou: - Doutor, atrás de si, cuidado!

O outro homem rodopiou. Segurando o pisa-papéis na mão, bateu com ele no crânio de Salem. A pancada fez com que Emmet cambaleasse. Foi de encontro ao peitoril.

Metendo de novo o pisa-papéis no bolso, Edgar Highley pôs as mãos em concha à volta do pé de Emmet Salem e puxou-o.

- Não. Não. Cristo, por favor! - O homem semiconsciente caiu abaixo da janela.

Ele estava a ver calmamente quando Salem caiu no telhado do prolongamento uns quinze pisos abaixo daquele em que se encontrava.

O corpo fez um ruído surdo.

Tinha sido visto? Tinha de se apressar. Tirou a argola com chaves do fato de Salem que estava sobre a cama. A chave mais pequena servia na pequena mala de documentos em cima da prateleira da bagagem.

A ficha de Vangie Lewis estava por cima. Pegando nela, meteu-a na maleta, tornou a fechar à chave a mala de Salenv introduziu de novo as chaves no bolso do casaco do fato. Tirou o pisa-papéis do bolso e colocou-o na maleta com a fichá. A ferida não deitara sangue, mas o pisa-papéis estava pegajoso.

Fechou a sua maleta e olhou em redor. O quarto estava em perfeita ordem Não havia nenhum vestígio de sangue no peitoril. Demorara menos de dois minutos.

Abriu cautelosamente a porta e espreitou. O corredor estava deserto. Saiu. Quando fechava a porta, o telefone no quarto de Salem começou a tocar.

Não se atrevia a ser visto a entrar no elevador naquele andar. A sua fotografia estava no artigo da Newsmaker. Mais tarde as pessoas talvez fossem interrogadas. Ele podia ser reconhecido.

A escadaria de salvamento em caso se incêndio ficava ao fundo do corredor. Desceu quatro pisos até ao vigésimo oitavo andar. Lá voltou a entrar no corredor atapetado. Estava a parar um elevador naquele preciso momento. Entrou. Os olhos examinavam os rostos dos passageiros. Várias mulheres, dois jovens, um casal de certa idade. Nenhum médico. Ele tinha a certeza.

No vestíbulo encaminhou-se rapidamente para a saída do hotel para a Fifty-Eighth Street, virou para oeste e depois para sul. Dez minutos mais tarde foi buscar o carro à garagem de estacionamento na West Fifty-Fourth Street, atirou a maleta para dentro da mala do carro e partiu.

 

Chris chegou ao aeroporto Twin Cities à uma menos dez. Tinha de esperar uma hora antes do seu avião partir para Newark. O corpo de Vangie iria a bordo desse avião. Na véspera, ao vir para ali, não pensara noutra coisa a não ser naquele caixão dentro do avião. Agarrara-se a uma imagem de normalidade, garantindo a si mesmo que em breve tudo teria acabado.

Precisava de ver o doutor Salem. Porque razão ficara o doutor Salem tão perturbado? Nessa noite quando ele saísse do avião, em Newark, o departamento do examinador médico estaria à espera do corpo de Vangie.

E o departamento do promotor de justiça estaria à espera dele. A certeza obcecava Chris. Evidentemente. Se tinham alguma suspeita sobre a morte de Vangie, iam contar com ele para obterem respostas. Esperariam para o trazerem para o interrogatório. Até o podiam prender. Se tivessem indagado tudo, já sabiam que ele regressara à área de Nova Jérsia na noite de segunda-feira. Precisava de falar com o doutor Salem. Se fosse detido para interrogatórios talvez não pudesse falar com ele. Ele não queria falar do doutor Salem ao pessoal do promotor de justiça.

Pensou uma vez mais em Molly e Bill Kennedy. Que importância tinha que Molly fosse irmã de Katie DeMaio? Eram boas pessoas, pessoas honestas. Devia ter confiado neles, falado com eles. Tinha de falar com Joan.

Tinha de falar com Joan.

A necessidade que tinha dela era um desejo ardente. Assim que começasse a dizer a verdade, Joan seria implicada.

Joan, que neste mundo frágil ainda conservava princípios inviolados, estava prestes a ser arrastada pela lama.

Ele tinha o número do telefone da hospedeira com quem ela ia ficar na Florida. Sem saber o que ia dizer, dirigiu-se ao telefone automaticamente, deu o número do seu cartão de crédito, ouviu o toque da campainha.

Kay Corrigan atendeu. - Kay, a Joan está aí? Daqui é o Chris.

Kay sabia dele e de Joan. A voz de Kay era de preocupação.

- Chris, a Joan tem tentado telefonar-lhe. Tina telefonou do apartamento de Nova Iorque. O pessoal do departamento do promotor de justiça de Valley County tem andado por aqui a fazer todo o tipo de perguntas sobre vocês os dois. Joan está inquieta.

- Quando volta?

- Ela já está no apartamento novo. Não tem telefone. De lá tem de ir para o escritório de pessoal da companhia em Miami. Ela só estará lá por volta das oito da noite.

- Diga-lhe para não sair e que espere até eu lhe telefonar - disse Chris. - Diga-lhe que preciso de falar com ela. Diga-lhe... - Ele cortou a ligação, encostou-se ao telefone e abafou um soluço seco. «Oh, meu Deus, era de mais, era de mais. Não era capaz de pensar. Não sabia o que fazer. E dentro de algumas horas seria preso, suspeito de ter morto Vangie... talvez acusado de ter morto Vangie.

Não. Havia outra hipótese. Apanharia o avião para LaGuardia. Ainda o podia fazer. Depois estaria em Manhattan e poderia falar com o doutor Salem quase à mesma hora a que ele chegava ao hotel. O departamento do promotor de justiça só daria conta de que ele não ia no avião para Newark às seis horas. Talvez o doutor Salem o pudesse ajudar de qualquer maneira.

Por pouco não fazia o voo para LaGuardia. A segunda classe estava completa, mas ele comprou um bilhete para a primeira classe e pôde entrar no avião. Não se preocupou com a bagagem, que foi despachada para Newark.

No avião aceitou uma bebida que a hospedeira lhe ofereceu, recusou a comida com um aceno de mão e passou os olhos com indiferença pela revista Newsmaker. A página abriu-se na Ciência e Medicina. O seu olhar fixou-se no título: «Maternidade e Centro de Concepção Westlake Oferece Nova Esperança a Casais sem Filhos.» Westlake. Leu o primeiro parágrafo. «Durante os últimos oito anos, uma pequena clínica privada na Nova Jérsia tem levado a cabo um programa designado por Maternidade e Centro de Concepção Westlake que tem tornado possível que mães sem filhos engravidassem. Com o nome de um proeminente obstetra de Nova Jérsia, o programa realizado pelo doutor Edgar Highley, obstetra-ginecologista, que era o genro do doutor Franklin Westlake...»

O doutor Edgar Highley. O médico de Vangie. Estranho, ela nunca falava muito dele. Era sempre o psiquiatra. «O doutor Fukhito e eu falámos hoje da mamãe e do papá... disse que era evidente que eu era filha única... O doutor Fukhito pediu-me para fazer o retrato da mamãe e do papá como eu os visualizava; foi fascinante. Quero dizer que foi realmente interessante ver como eu os visualizava. O doutor Fukhito fez perguntas sobre ti, Chris.»

«E o que disseste, Vangie?»

«Que tu me adoravas. É verdade, não é, Chris? Por baixo desse teu jeito autoritário para comigo, não sou a tua menina?»

«Preferia que te considerasses a minha mulher, Vangie.»

«Estás a ver, não posso conversar contigo sobre coisa nenhuma. Ficas sempre mal humorado.,.»

Ele gostava de saber se a Polícia tinha falado com algum dos médicos de Vangie.

Naquele último mês parecia tão doente. Ele sugerira que fosse a uma consulta. O médico da companhia teria recomendado alguém. Ou Bill teria podido certamente indicar alguém do Lenox Hill. Mas, claro, Vangie recusara-se a ter uma consulta.

Então, sem dizer a ninguém, marcara uma entrevista com ò doutor Salem.

O avião aterrou às quatro e meia. Chris atravessou o terminal a correr e chamou um táxi. Uma das poucas pausas daquele dia desgraçado era que ele não apanharia o grande movimento das cinco horas.

- A Essex House, por favor - disse ele ao motorista.

Eram apenas cinco menos dois minutos quando chegou ao hotel. Dirigiu-se a um telefone no vestíbulo.

- O doutor Emmet Salem, por favor.

- Obrigado, sir.

Houve uma pausa.

- Essa linha está ocupada, sir.

Ele pousou o auscultador. Pelo menos o doutor Salem estava ali. Pelo menos teria uma oportunidade para falar com ele. Lembrou-se que escrevera a extensão do doutor Salem na agenda, abriu-a e marcou 3219. O telefone tocou... uma... duas vezes. Depois de seis toques ele cortou a ligação e telefonou para a telefonista. Explicando que a linha tinha estado ocupada há apenas alguns minutos, pediu à telefonista que tentasse por ele.

A telefonista hesitou, falou com alguém, depois voltou.

- Sir, acabo de dar este recado a outra pessoa. O doutor Salem entrou no hotel, contatou-me para dizer que esperava um telefonema importante e que fizesse os possíveis para que ele o recebesse e depois parece que saiu. Porque não tenta outra vez daqui a alguns minutos?

- Assim farei. Obrigado. - Irresolutamente, pousou o auscultador, encaminhou-se para uma cadeira no vestíbulo virada para a rampa do elevador sul e sentou-se. Os elevadores abriram-se e deixaram sair passageiros, encheram-se outra vez, desapareceram numa faixa de luzes ascendentes num painel. Um elevador chamou-lhe a atenção. Havia algo de vagamente familiar uma pessoa. O doutor Salem? Passou uma vista de olhos pelos passageiros. Três mulheres, algumas jovens, um casal de certa idade, um homem de meia idade com a gola do casaco levantada. Não. Não era o doutor Salem.

Às cinco e meia Chris tentou de novo. E às seis menos um quarto. Às seis e cinco ouviu sussurros que atravessavam o vestíbulo como um relâmpago.

- Alguém se atirou de uma janela. O corpo foi descoberto no telhado do prolongamento. - De qualquer lugar ao longo de Central Park South o silvo de uma ambulância e o yip-yap dos carros da Polícia eram explosões frenéticas de som crescente.

Com a certeza do desespero, Chris aproximou-se da secretária do chefe dos paquetes.

- Quem foi? - perguntou ele. O tom foi seco, autoritário, sugeria que tinha o direito de saber.

- O doutor Emmet Salem Era uma pessoa muito importante na AMA. Quarto 3219.

Caminhando com o passo cadenciado de um autómato, Chris transpôs a porta giratória que dava para a Fifty-Eighth Street. Um táxi procurava fregueses, circulando de oeste para este. Chamou-o, entrou e reclinou-se no assento fechando os olhos.

- LaGuardia, por favor - disse ele -, o terminal do National Airlines.

Havia um voo para Miami às sete horas. Ele ainda podia chegar a tempo.

Dali a três horas estaria com Joan.

Tinha de apanhar Joan, tentar fazê-la compreender antes de ser preso.

 

Jennifer, com doze anos de idade, abriu a porta quando Katie apareceu no passeio.

- Olá, Katie. - A voz era alegre, o abraço forte. Sorriram uma para a outra. Com os olhos de um azul forte, cabelo escuro e pele cor de azeitona, Jennifer era uma versão mais nova de Katie.

- Olá, Jennifer. Como te sentes?

- Bem. E tu? Fiquei tão preocupada quando a mãe me falou do teu acidente. Tens a certeza de que já estás boa?

- Vamos expor o assunto desta maneira: na próxima semana estarei em boa forma. - Mudou de assunto. - Ainda não chegou ninguém?

- Todos. O doutor Richard também cá está... Sabes qual foi a primeira pergunta que ele fez?

- Não.

- «Katie já cá está?» Aposto que tem um fraco por ti, Katie. A mãe e o pai também pensam o mesmo. Ouvi-os falar sobre isso. E tu? Tens um fraco por ele?

- Jennifer! - Quase a rir, meio irritada, Katie começou a subir a pequena escadaria em direção ao gabinete nas traseiras da casa, depois olhou para trás por cima do ombro. - Onde estão os outros miúdos?

- A mãe mandou-os com a ama para comerem no McDonald’s e depois irem ao cinema. Disse que o bebé dos Berkeley não adormeceria nunca se os gémeos andassem de um lado para o outro.

- Boa ideia - murmurou Katie. Atravessou o vestíbulo que dava para o gabinete. Depois de deixar Gana Krupshak, fora para casa, tomara um banho de chuveiro e trocara de roupa. Saíra de casa às sete menos um quarto a pensar, «Muito em breve Chris Lewis estará no escritório de Scott a ser interrogado... Que explicação poderia dar para não admitir que estava na zona de Nova Jérsia na noite de segunda-feira? Porque não dissera logo isso de moto-próprio?»

Gostava de saber se Richard já tinha falado com o médico do Minnesota. Podia ter esclarecido muitas dúvidas. Tentaria apanhar Richard sozinho e perguntar-lhe-ia.

Ao dirigir-se para lá, resolvera não pensar mais no caso nessa noite. Talvez se não pensasse nele durante algum tempo conseguisse seguir os passos elusivos que continuavam a escapar-lhe.

Chegou ao gabinete. Liz e Jim Berkeley estavam sentados no sofá de costas para ela. Molly estava a passar hors d’oeuvre, Bill e Richard estavam de pé a conversar perto da janela. Katie examinou Richard cuidadosamente. Trazia um fato azul-marinho com riscas muito finas, que ela nunca vira. O cabelo castanho-escuro tinha algumas madeixas grisalhas que ela nunca notara. Os dedos no pé do copo, que segurava, eram compridos e finos. Era engraçado como naquele ano reparara no conjunto sem prestar atenção aos pormenores. Tinha a impressão de que ela era uma máquina fotográfica que fora fixada numa posição e começava de novo a focar. Richard estava com um ar sério. A testa estava enrugada. Perguntou a si mesmo se ele estava a contar a Bill o caso do feto Lewis. Não, ele não discutiria isso nem mesmo com Bill.

Naquele momento Richard virou a cabeça e viu-a.

- Katie. - O sorriso harmonizava-se com o tom de satisfação da sua voz. Foi a correr ter com ela. - Tenho estado à escuta a ver se ouvia a campainha da porta.

Tantas vezes naqueles três anos entrara em salas onde ela era a intrusa, a solitária, no meio de casais. Nessa noite, ali, Richard estivera à sua espera, a ver se a ouvia.

Antes de ter tempo para pensar nos seus sentimentos, Molly e Bill estavam a saudá-la, Jim Berkeley levantara-se e teve lugar a usual confusão dos cumprimentos.

A caminho da sala de jantar conseguiu perguntar a Richard se tinha entrado em contato com o doutor Salem.

- Não. Parece que foi por pouco que não o apanhei às cinco - explicou Richard. - Depois tentei outra vez de minha casa às seis, mas ninguém atendeu. Dei este número à telefonista do hotel e ao meu serviço de atendimento. Estou ansioso por ouvir o que aquele homem tem para dizer.

Por acordo tácito, nenhum deles fez alusão ao suicídio Lewis antes do jantar estar quase no fim. E nessa altura isso aconteceu porque Liz Berkeley disse:

- Que sorte. Tenho de admitir que estive a reter o fôlego para que Maryanne não acordasse e ficasse irrequieta. Pobrezinha, as gengivas estão tão inchadas que ela está mum tormento.

Jim Berkeley riu-se. Era um moreno bonito com malares salientes, olhos castanhos e sobrancelhas pretas, espessas.

- Quando Maryanne nasceu, Liz costumava acordá-la de quinze em quinze minutos para se certificar de que ela ainda respirava. Mas desde que ela começou a ter dentes, Liz passou a ser como todas as mães. - Imitou a voz dela. - Calado papalvo, não acordes o bebé.

Liz, um tipo como o de Carol Burnett, com um corpo esbelto e vigoroso, de rosto franco, prazenteiro e olhos castanhos brilhantes, fez uma careta ao marido.

- Tens de admitir que me estou a tornar calma para ser normal. Mas ela é um milagre para nós. Estava quase a perder a esperança e então tentámos adotar uma criança, mas só que agora não há bebés. Principalmente agora que estamos quase com quarenta anos, disseram-nos que não pensássemos nisso. E aquele doutor Highley. Aquele homem é um taumaturgo.

Katie viu os olhos de Richard ficarem mais estreitos.

- Pensa mesmo isso? - perguntou Richard.

- Absolutamente. Quero dizer, o doutor Highley não é a pessoa mais simpática da terra - começou Liz.

- O que tu queres dizer é que ele é um filho da mãe egocêntrico e tão frio como um peixe que jamais vi - interrompeu o marido. - Mas quem se importa com isso? O que interessa é que ele sabe do seu ofício, e tenho de dizer que cuidou muito bem de Liz. Fê-la estar de cama no hospital quase dois meses antes do parto e examinava-a três ou quatro vezes por dia.

- Faz isso com todas as gravidezes difíceis - disse Liz. - Não era só eu. Ouçam, rezo por aquele homem todas as noites. A diferença que aquele bebé fez nas nossas vidas, nem sou capaz de lhes dizer! E não deixem que este vos intruje - ela acenou com a cabeça na direção do marido. Levanta-se dez vezes por noite para ver se Maryanne está tapada e se não apanha nenhuma corrente de ar. Diz a verdade. - Olhou para ele. - Quando foste ao quarto de banho há bocado, não a espreitaste? Ele riu-se.

- Claro que espreitei. Molly disse aquilo que Katie estava a pensar.

- Seria isso que Vangie Lewis teria sentido pelo filho.

Richard lançou a Katie um olhar interrogador e ela abanou a cabeça. Ela sabia que ele estava ansioso por saber se ela dissera a Molly e a Bill que o bebé Lewis era oriental. Deliberadamente Richard desviou a conversa sobre Vangie.

- Deduzo que viveu em São Francisco - disse ele a Jim. Cresci lá. Na realidade, o meu pai ainda exerce clínica no San Francisco General....

- Uma das minhas cidades favoritas - replicou Jim. - Voltaríamos logo para lá, não era, Liz?

Enquanto os outros cavaqueavam, Katie escutava meio absorta, participando o suficiente na conversa, que o seu silêncio não foi notado. Tinha tanta coisa em que pensar. Os poucos dias que passaria no hospital também lhe dariam tempo para isso. Sentia-se tonta e fatigada, mas não queria pôr-se a andar cedo de mais com medo de estragar a reunião.

Surgiu a oportunidade quando se levantaram da mesa para irem para a sala de estar para tomarem uma última bebida.

- Vou-me despedir - disse Katie. - Tenho de admitir que não dormi bem esta semana e estou deveras desorientada.

Molly olhou para ela com ar conhecedor e não protestou. Richard disse:

- Acompanho-te até ao carro.

- Ótimo.

A noite estava fria, e ela tiritou quando começaram a descer o passeio. Richard notou imediatamente e disse:

- Katie, estou preocupado contigo. Sei que não te sentes bem. Parece que não queres falar nisso, mas pelo menos jantemos amanhã. Da forma como o caso Lewis se está a desenrolar, amanhã o escritório será um jardim zoológico.

- Richard, lamento muito. Não posso. Vou sair este fim-de-semana. - Katie percebeu que o seu tom era apologético.

- Vais o quê? Com tudo o que está a acontecer no escritório? O Scott sabe disso?

- Eu... eu estou comprometida. - «Que coisa tão pouco convincente, tão estúpida», pensou Katie. «Isto é ridículo. vou dizer a Richard que estarei no hospital.» As luzes da alameda incidiam no seu rosto, e a sua expressão, um misto de desapontamento e desaprovação, era evidente.

- Richard, não é uma coisa que tenha discutido, mas... Aporta da frente abriu-se de repente.

- Richard, Richard! - O grito de Jennifer era impetuoso e excitado. - Clovis Simmons está ao telefone.

- Clovis Simmons! - disse Katie. - Não é a atriz daquela novela radiofónica?

- É. Oh, diabo, era para lhe telefonar e esqueci-me. Espera aí, Katie. Volto já.

- Não. Vejo-te de manhã. Vai lá..- Katie entrou no carro e fechou a porta. Procurou a chave da ignição na carteira, encontrou-a e introduziu-a na ranhura. Richard hesitou por instantes, depois foi rapidamente para casa, pondo-se à escuta enquanto o carro de Katie se afastava. «Diabo», pensou, «é sempre assim.» O seu «Olá, Clovis» foi brusco.

- Então, doutor, é uma vergonha ter de te localizar, mas combinámos um jantar, não combinámos?

- Clovis, desculpa. - «Não, Clovis», pensou ele, «tu combinaste um jantar. Eu não.»

- Bem, obviamente que agora é demasiado tarde. - O tom de voz foi frio. - Efetivamente acabo de vir de uma gravação e queria pedir desculpa para o caso de teres reservado esta noite. Já devia ter juízo.

Richard lançou um olhar a Jennifer, que estava perto dele.

- Olha, Clovis, amanhã telefono-te. Agora não posso dizer muita coisa.

Ouviu um estalido forte. Richard pousou o auscultador.

Clovis estava furiosa, mas, mais do que isso, estava ofendida.

«Como consideramos as pessoas como certas», pensou ele.

«Só porque não estavas interessado nela, não me dei ao trabalho de pensar nos seus sentimentos.» No dia seguinte apenas podia telefonar, pedir desculpa e ser suficientemente honesto para lhe dizer que existia outra pessoa.

Katie. Onde iria nesse fim-de-semana? Haveria outra pessoa? Ela parecia tão inquieta, tão preocupada. Seria que ele sempre a compreendera mal? Ele atribuíra a sua reserva, a sua falta de interesse nele à probabilidade de ela estar a viver no passado. Talvez houvesse outra pessoa na sua vida. Estava a ser tão tolo em relação aos seus sentimentos como fora com Clovis sob outro aspecto?

A possibilidade dissipou o prazer do serão. Desculpar-se-ia e iria para casa. Ainda não seria demasiado tarde para tentar entrar em contato com o doutor Salem uma vez mais.

Entrou na sala de estar. Molly, Bill e os Berkeley estavam lá. E envolta em cobertores, sentada, direita, no colo de Liz, estava uma bebé.

- Maryanne resolveu associar-se à reunião - disse Liz. - Que pensa dela?- O seu sorriso era de orgulho quando virou o bebé para ele.

Richard fixou o olhar nuns olhos verdes, solenes num rosto em forma de coração. Jim Berkeley estava sentado ao lado da mulher, e Maryanne esticou-se e pegou-lhe no dedo polegar.

Richard olhou fixamente para a família. Podiam ter posado para a capa de uma revista: os pais sorridentes, a filha formosa. Os pais belos, com pele cor de azeitona, olhos castanhos, rosto quadrado; o bebé de pele clara, cabelo loiro avermelhado, com brilhantes olhos verdes.

«Quem pensam eles que intrujam?», pensou Richard. «Aquela criança foi adotada de certeza.»

 

Phil Cunningham e Charley Nugent aguardavam com descontentamento enquanto os últimos retardatários desfilavam através da sala de espera junto da Entrada II do aeroporto de Newark. A expressão de Charley, eternamente lúgubre, acentuou-se.

- É isso. - Encolheu os ombros. - Lewis deve ter imaginado que estaríamos à espera dele. Vamos embora.

Dirigiu-se à cabina telefónica mais próxima e marcou o número de Scott.

- Chefe, pode ir para casa - disse ele. - O comandante não se sentiu disposto a voar esta noite.

- Ele não estava a bordo? E o caixão?

- Esse chegou. Os homens de Richard estão a recolhê-lo. Quer que fiquemos por aqui? Há alguns voos indirectos em que ele pode vir.

- Esqueça. Se amanhã não nos contactar vou passar um mandato de captura para ele como testemunha material. E logo de manhã quero que passem o apartamento de Edna Burns a pente fino.

Charley pousou o auscultador. Virou-se para Phil.

- Se conheço bem o chefe, diria que amanhã à noite a esta hora já haverá um mandato para a prisão de Lewis.

Phil acenou com a cabeça.

- E depois de apanharmos Lewis, espero que possamos fazer alguma coisa àquele anão se foi ele que engravidou aquela pobre rapariga.

Os dois homens começaram a descer a escadaria em direção à saída, com lassidão. Passaram a zona da bagagem, ignorando as pessoas agrupadas em volta dos carroceis à espera da bagagem. Alguns minutos depois a zona estava deserta. Apenas um saco não reclamado girava abandonado na rampa um enorme saco preto, devidamente etiquetado, segundo os regulamentos da navegação aérea, COMANDANTE CHRISTOPHER LEWIS, N.° 4, WINDING BROOK LANE; CHAPIN RIVER. Dentro do saco, colocada lá à última hora, estava a fotografia que os pais de Vangie tinham insistido que Chris levasse. Era a fotografia de um jovem casal num clube nocturno. A inscrição dizia o seguinte: Recordação do meu primeiro encontro com Vangie, a rapariga que mudará a minha vida. Com amor, Chris.

 

Richard telefonou para o Essex House Hotel assim que chegou ao seu apartamento depois de sair da casa dos Kennedy. Mas uma vez mais ninguém respondeu do número do doutor, Salem. Quando a telefonista restabeleceu a ligação, ele disse:

- Telefonista, o doutor Salem recebeu o recado para me telefonar? Sou o doutor Carroll.

A voz da mulher era extremamente hesitante.

- Vou verificar, sir.

Enquanto esperava, Richard esticou-se e ligou o aparelho de televisão com um movimento súbito. Eyewitness News começara naquele instante. A câmara estava a focar Central Park South. Richard prestou atenção quando o toldo do Essex House Hotel surgiu no ecrã. Mesmo quando a telefonista disse:

- Vou ligar ao nosso diretor. - Richard ouviu a repórter Gloria Rojas dizer:

- Esta noite no prestigioso Essex House Hotel, quartel-general da AMA, um proeminente obstetra-ginecologista, doutor Emmet Salem de Mineápolis, Minesota, caiu ou saltou para a morte.

 

Joan Moore, desorientada, estava sentada perto do telefone.

- Kay, a que horas disse que telefonava? - perguntou ela. A voz tremulou, e ela mordeu o lábio.

A outra jovem olhou para ela com pesar.

- Já te disse, Joan. Ele telefonou esta manhã por volta das onze e meia. Disse que entraria em contato contigo hoje à noite e que deverias esperar pelo telefonema. Ele parecia transtornado.

A campainha da porta tocou insistentemente, fazendo-as saltar das cadeiras. Kay disse:

- Não estou à espera de ninguém. - Um instinto qualquer fez com que Joan corresse para a porta e abriu-a bruscamente.

- Chris, oh meu Deus, Chris! - Abraçou-o. Ele estava com uma palidez de morte, os olhos injetados de sangue, cambaleou enquanto ela o segurava. - Chris, o que é?

- Joan, Joan. - A sua voz era quase um soluço. Estreitou-a nos braços com avidez. - Não sei o que está a acontecer. Há algo de errado na morte de Vangie, e agora o único homem que nos podia elucidar também está morto.

 

Ele planejara ir do Essex House diretamente para casa, mas depois de sair do parque de estacionamento e começar a subir a West Side Highway, no trânsito intenso, mudou de ideias. Estava com uma fome terrível. O estômago estivera vazio todo o dia. Ele nunca comia antes das operações, e nessa manhã o telefonema de Salem chegara pouco antes de sair para almoçar.

Nessa noite não queria perder tempo a preparar a refeição. Iria ao Carlyle. Depois se alguma vez se levantasse a questão sobre o seu paradeiro nessa noite, podia admitir sem mentir que estivera em Nova Iorque. O chefe de mesa garantiria à Polícia que o doutor Edgar Highley era um cliente estimado e assíduo.

Comeria salmão defumado, vichyssoise, uma perna de cordeiro... A boca encheu-se de saliva em antegosto. O súbito e terrível desgaste de energia agora que tudo terminara precisava de ser corrigido. Ainda tinha outro dia à sua frente. Iria haver inevitavelmente uma investigação minuciosa quando Katie DeMaio morresse. Mas o seu antigo ginecologista aposentara-se e saíra da cidade. Ninguém surgiria do passado com relatórios médicos para o intimar.

E depois estaria salvo. Naquele momento, na convenção da AMA, os médicos estariam provavelmente a discutir sobre o artigo da Newsmaker e a Maternidade e Centro de Concepção Westlake. Os seus comentários estariam impregnados de inveja, claro. Mas, mesmo assim, haveria propostas para ele discursar em futuros seminários da AMA. Ele já estava na senda da fama pública. E Salem, que o podia ter impedido, estava liquidado. Estava ansioso por examinar a história médica de Vangie na ficha que tirara a Salem. Incorporá-la-ia nos seus próprios registos. Aquela história seria preciosa na sua investigação futura.

A última paciente nova dessa manhã. Seria a próxima. Estacionou na rua em frente do Carlyle. Eram quase seis e meia. O estacionamento seria legal às sete horas. Esperaria no carro até a essa hora. Dar-lhe-ia a possibilidade de se acalmar.

A maleta estava na mala do carro, fechada à chave. A ficha de Vangie, o pisa-papéis e o sapato estavam dentro dela. Como se deveria livrar do sapato e do pisa-papéis? Onde deveria deitá-los? Qualquer um dos cestos do lixo a deitar por fora da cidade serviria. Ninguém os iria lá procurar. Seriam recolhidos de manhã juntamente com as toneladas de lixo que se acumulavam todas as vinte e quatro horas naquela cidade de oito milhões, perdidos no cheiro de comida em decomposição e jornais postos de parte...

Faria isso a caminho de casa, protegido pela escuridão, passando despercebido.

Uma sensação de vivacidade com a antecipação de como tudo estava a correr bem fê-lo endireitar-se de repente no assento. Curvou-se e olhou para o retrovisor. A pele estava a reluzir, como se o suor estivesse prestes a saltar pelos poros. As pálpebras e a pele por baixo dos olhos estavam a acumular tecido gorduroso. O cabelo na testa não revelava ainda nenhum sinal de queda, mas o ruivo escuro já estava raiado de prateado... Começava a envelhecer. A mudança subtil que começava aos quarenta e tal anos estava a produzir-se nele. Já tinha quarenta e cinco. Bastante jovem, mas era também altura de ele tomar consciência da rápida passagem dos anos. Queria casar de novo? Queria ter os seus próprios filhos? Ele quisera, mas não de Claire. Quando eles não vieram, examinara o seu esperma, achou-o com um nível surpreendentemente baixo, no seu íntimo culpara-se pela incapacidade de Claire para engravidar. Até saber que ela o enganara.

Ele não se teria importado de ter um filho de Winifred. Mas tinha ultrapassado praticamente a idade de dar à luz um filho quando casou. Depois de começar a desconfiar dele, não se deu ao trabalho de lhe tocar. Quando se planeja eliminar alguém, ela já está morta para essa pessoa, e o sexo é para os que vivem.

Mas agora. Uma mulher mais jovem. Uma mulher diferente de Claire e Winifred. Claire rebaixava-o arrogantemente com os seus comentários sarcásticos sobre a farmácia do pai; Winifred a benemérita, com as suas causas e obras de caridade. Agora precisava de uma mulher que não só tivesse à vontade no convívio social, mas que também gostasse de receber convidados, viajar, associar-se.

Ele detestava essas coisas. Sabia que o seu desprezo era evidente. Precisava de alguém que se encarregasse de tudo isso no seu lugar, que suavizasse a sua imagem.

Um dia poderia levar a cabo o seu trabalho publicamente. Um dia teria a fama que merecia. Um dia os tolos que diziam que o seu trabalho era impraticável seriam obrigados a reconhecer o seu génio.

Eram sete horas. Saiu do carro e teve o cuidado de o fechar à chave. Caminhou para a entrada do Carlyle, o fato azul-escuro tapado por um casaco de caxemira azul, os sapatos engraxados, o cabelo com as pontas prateadas que a aragem cortante da noite não emaranhou.

O porteiro segurou a porta para ele entrar.

- Boa noite, doutor Highley. Está um tempo péssimo, não está, sir? Ele acenou sem responder e entrou na sala de jantar. A mesa do canto, que ele preferia, estava reservada, mas o chefe de mesa mudou rapidamente para outra mesa os clientes que esperavam, e conduziu-o para lá.

O vinho aqueceu-o e acalmou-o. O jantar deu-lhe a energia que ele esperava. A meia taça e o brandy restituíram-lhe o equilíbrio por completo. O espírito estava desanuviado e frágil. Recapitulou cada passo do processo que levaria Katie DeMaio à morte por hemorragia.

Não haveria erros.

Ele estava precisamente a assinar o cheque quando o chefe de mesa se aproximou da mesa, com passos desusadamente apressados, comportamento agitado.

- Doutor Highley, receio que haja um problema.

Os dedos agarraram a caneta com firmeza. Levantou os olhos.

- Sir, é que foi visto um rapaz a espiolhar a mala do seu carro. O porteiro viu-o no momento em que ele a abriu. Antes de poder ser detido, tinha roubado um saco da mala. A Polícia está lá fora. Pensam que era um drogado que escolheu o seu carro por causa das chapas de licença MD.

Os lábios pareciam borracha. Era difícil articular palavras. Como um aparelho de raio X examinou mentalmente o conteúdo do saco: o pisa-papéis com manchas de sangue, a ficha médica não só com o nome de Vangie mas também com o de Salem; o mocassin de Vangie.

Quando falou, a voz estava surpreendentemente firme.

- A Polícia pensa que o meu saco será recuperado?

- Eu fiz essa pergunta, sir. Receio que não saibam. Pode ser abandonado a alguns quarteirões daqui depois de tirar o que pretende, ou talvez nunca mais apareça. Só o tempo o dirá.

 

Antes de se deitar, Katie acondicionou roupa no saco para a sua estada de uma noite no hospital. O hospital ficava a meio caminho da casa e do escritório, e teria sido uma perda de tempo desnecessária voltar a casa no dia seguinte por causa do saco.

Apercebeu-se de que estava a arrumar a roupa com um sentido de urgência. Ficaria tão contente quando tudo terminasse. A forte sensação de não estar em boa condição física estava a arrasá-la mentalmente e emocionalmente. Nessa noite quase se sentira alegre por ir para casa de Molly. Agora sentia-se esgotada, exausta, deprimida. Era tudo somático, não era?

Ou era o pensamento incómodo que Richard pudesse estar envolvido com alguém que contribuíra para a sensação de depressão.

Talvez quando aquilo não pairasse sobre ela fosse capaz de pensar com mais clareza. Era como se o espírito estivesse a ser atormentado por pensamentos incompletos, como uma praga de mosquitos, que pousavam, picavam, mas que desapareciam antes que ela os pudesse apanhar. Por que razão tinha a impressão de passar em claro sequências, de não fazer as perguntas certas, de interpretar mal os sinais?

Segunda-feira sentir-se-ia melhor, pensaria com lucidez.

Com lassidão, tomou um banho de chuveiro, lavou os dentes, escovou o cabelo e meteu-se na cama.. Passado um minuto, levantou-se apoiando-se num cotovelo, pegou na carteira e tirou o pequeno frasco que o doutor Highley lhe dera.

«Quase me esqueci de tomar este», pensou ela enquanto engolia o comprimido com um golo de água do copo sobre a mesinha-de-cabeceira. Apagando a luz, fechou os olhos.

 

Gertrude Fitzgerald, fatigada, esperou que a água saísse fria na torneira da casa de banho e abriu o frasco de remédio. A enxaqueca começava a abrandar. Se ela não começasse no outro lado da cabeça, de manhã já estaria boa. O último comprimido devia atuar.

Algo a perturbava... algo sobre a morte de Edna, e não só. Estava relacionado com o telefonema de Mrs. DeMaio. Foi tão absurdo perguntar se Edna chamara alguma vez Príncipe Encantado ao doutor Fukhito ou ao doutor Highley. Um perfeito disparate.

Mas Príncipe Encantado.

Edna tinha falado nele. Mas não em relação aos médicos, mas de qualquer maneira fora nas duas últimas semanas. Se ao menos se conseguisse lembrar. Se Mrs. DeMaio tivesse perguntado se Edna fizera alguma vez referência a ele, talvez a tivesse ajudado a lembrar-se imediatamente. Agora escapava-lhe, o pormenor exato.

Ou estava a imaginar? Poder de associação.

Quando aquela dor de cabeça passasse, poderia pensar. Pensar deveras. E lembrar-se, talvez.

Engoliu o comprimido e meteu-se na cama. Fechou os olhos. A voz de Edna ressoou nos seus ouvidos. «E eu disse que o Príncipe Encantado não iria...»

Ela não se conseguia lembrar do resto.

 

Às quatro horas da manhã Richard desistiu de tentar dormir, levantou-se e fez café. Telefonara para casa de Scott por causa da morte de Emmet Salem, e Scott alertara imediatamente a Polícia de Nova Iorque para o fato de o seu departamento querer cooperar na investigação. Fora impossível fazer outra coisa. Mrs. Salem não estava em casa, em Mineápolis. O serviço de atendimento do médico só podia fornecer o número de emergência do médico que abrangia a clínica e não sabia como entrar em contato com a enfermeira. Richard começou a fazer anotações. 1. Por que razão telefonou o doutor Salem para o nosso departamento? 2. Por que razão Vangie marcou uma entrevista com ele? 3. O bebé Berkeley.

O bebé Berkeley era a chave. A Maternidade e Centro de Concepção era tão famosa como fora apregoado? Ou era uma fachada para adoções para mulheres que ou não podiam engravidar ou não podiam levar a gravidez a bom termo? Era o fato de elas serem hospitalizadas dois meses antes do suposto parto apenas uma fachada para o que se tornaria um estado óbvio de não-gravidez?

Era difícil adotar bebés. Liz Berkeley admitira publicamente que ela e o marido tinham tentado essa via. E se Edgar Highley tivesse dito: «Nunca poderão ter um filho. Posso arranjar-lhes uma criança. Custar-lhes-á dinheiro e terá de ser absolutamente confidencial.»

Eles tinham concordado. Ele tinha quase a certeza. Mas Vangie Lewis engravidara. Por isso ela não se encaixava no modelo de adoção. Admitindo que estava desejosa de ter um filho. Mas como esperava ela fazer passar um bebé oriental como sendo do marido? Haveria alguma hipótese de existir sangue oriental numa das famílias? Nunca pensara nisso.

Os processos por negligência médica. Ele precisava de descobrir a razão que levou aquelas pessoas a processar Highley. E Emmet Salem fora médico de Vangie. O seu escritório teria os seus relatórios médicos. Seria um ponto de partida.

O corpo de Vangie regressara no avião que Chris Lewis não tomara. Já estava no laboratório. Logo de manhã examinaria de novo os resultados da autópsia. Examinaria de novo o corpo. Havia qualquer coisa... Na altura não parecera importante. Passara uma esponja sobre isso. Estava demasiado ocupado com as queimaduras de cianido.

Seria possível que Vangie tivesse simplesmente derramado cianido por cima dela? Talvez estivesse terrivelmente nervosa. Mas o copo teria mais impressões digitais. Tê-lo-ia apanhado e enchido de novo; devia haver alguma coisa - um invólucro, um frasco pequeno - de que ela se tivesse servido que levasse mais cianido.

Não sucedera assim.

Às cinco e meia Richard apagou a luz. Pôs o despertador para as sete. O sono chegou finalmente. E sonhou com Katie. Estava parada atrás do apartamento de Edna Burns a espreitar pela janela, e o doutor Edgar Highley estava a observá-la.

 

Como é próprio de um guarda-livros, Edna possuía registos meticulosos. Quando a equipa de investigação encabeçada por Phil Cunningham e Charley Nugent iniciaram o trabalho no seu apartamento, sexta-feira de manhã, descobriram uma declaração simples com um frontispício antiquado:

Uma vez que o meu único parente nunca se deu ao trabalho de perguntar pelos meus queridos pais quando estiveram doentes nem de mandar um cartão, decidi deixar os meus bens materiais às minhas amigas, Mrs. Gertrud Fitzgerald e Mrs. Gana Krupshak. Mrs. Fitzgerald deve receber o meu anel de diamante e os objetos da casa que quiser. Mrs. Krupshak deve receber o meu broche de diamante, o meu casaco de pele artificial e os objetos da casa que Mrs. Fitzgerald não quiser. Tratei do meu funeral com a agência que tratou tão bem das disposições dos meus pais. A minha apólice de seguro de 10 000 dólares, exceto as despesas do funeral, será dada à casa de saúde que tratou tão bem dos meus pais e para quem ainda estou em dívida.

Metodicamente a equipa deitou pó em busca de impressões digitais, aspirou em busca de cabelos e fibras, procuraram sinais de arrombamento. Uma mancha de lama na base da planta do peitoril no quarto originou as rugas à volta dos olhos de Phil e a testa ficou franzida. Foi pelas traseiras do prédio de apartamentos, raspou prudentemente uma amostra de lama gelada para dentro de um envelope e com as pontas dos dedos levantou a janela do quarto. Para uma pessoa de estatura mediana, era bastante baixa para se passar por cima.

- Possível - disse ele a Charley. - Alguém podia ter entrado por aqui e espiado a mulher. Mas com a terra tão gelada, provavelmente nunca poderás prová-lo.

Como última diligência, tocaram às campainhas de todos os vizinhos do pátio. A questão era simples: alguém tinha visto alguma pessoa estranha nas proximidades na noite de terça-feira?

Realmente não esperavam ser bem sucedidos. A noite de terça-feira estava escura e fria. Os arbustos por podar teriam possibilitado a qualquer pessoa, que não quisesse ser vista, ficar nas sombras do prédio.

Mas no último apartamento tiveram um êxito inesperado.

Um rapaz de onze anos de idade acabara de chegar da escola para o almoço. Ouviu a pergunta que foi feita à mãe.

- Oh, eu disse a um homem em que apartamento vivia Miss Burns - informou ele. - A mãe lembra-se, quando me obrigou a levar o Porgy a passear antes de eu ir para a cama, logo a seguir a Happy Days...

- Deve ter sido às nove e meia - disse a mãe do rapaz. Não me disseste que falaste com uma pessoa - disse ela para o filho, num tom de acusação.

O rapaz encolheu os ombros.

- Era uma coisa sem importância. Um homem estacionou o carro na borda do passeio no momento em que eu descia o quarteirão. Perguntou-me se eu sabia onde era o apartamento de Miss Burns. Indiquei-lho. É tudo.

- Que aspecto tinha? - perguntou Charley. O rapaz franziu as sobrancelhas.

- Oh, tinha bom aspecto. Parece que tinha cabelo escuro, era alto e o carro era bonito. Era um «Vette».

Charley e Phil olharam um para o outro.

- Chris Lewis - disse Charley sem hesitar.

 

Na manhã de sexta-feira, Katie entrou no escritório às sete horas e iniciou uma última análise do caso em que atuava como juiz. Os réus eram irmãos com dezoito e dezassete anos respectivamente, acusados de atos de vandalismo por incendiarem doze salas de aula em duas escolas.

Maureen entrou às oito e meia trazendo uma cafeteira de café a fumegar. Katie levantou os olhos.

- Vou prender aqueles dois - dizia ela. - Fizeram aquilo por prazer - por prazer. Quando uma pessoa sabe o esforço que se faz para se pagarem os impostos para se manterem as escolas que os filhos frequentam, é revoltante, é mais do que um crime.

Maureen pegou na chávena de Katie e encheu-a.

- Uma dessas escolas fica situada na cidade onde vivo, e as crianças da casa ao lado da minha frequentam-na. O que tem dez anos concluíra um projeto para a exposição de ciências. Era fantástico, uma unidade de aquecimento solar. Pobre miúdo trabalhou nele durante meses. Foi destruída durante o incêndio. Não ficou nada.

Katie fez uma anotação na margem da exposição de abertura.

- Isso dá-me mais algumas munições. Obrigada.

- Katie... - A voz de Maureen era hesitante. Katie olhou para os olhos verdes perturbados.

- Sim?

            - Rita contou-me que lhe falou do... do bebé.

            - Sim, falou. Lamento profundamente, Maureen.

- É que eu não consigo superar isto. E agora este caso da Vangie Lewis... todo esse falatório sobre isso... só me traz isso à memória. Tenho tentado esquecer...

Katie acenou com a cabeça.

- Maureen, teria dado tudo para ter tido um filho quando John morreu. Naquele ano rezei para engravidar, assim teria alguma coisa dele. Quando penso em todas as amigas que tenho e que decidiram nunca ter filhos ou que fizeram abortos com a mesma indiferença com que arranjam o cabelo, interrogo-me sobre a finalidade da vida. Só peço a Deus que um dia tenha.filhos. Você também, claro, e ambas iremos estimá-los porque não temos os que já tínhamos desejado.

Os olhos de Maureen estavam marejados de lágrimas. - Assim espero. Mas é que no caso de Vangie Lewis... - O telefone tocou. Katie pegou no auscultador. Era Scott.

- Ainda bem que está aí, Katie. Pode vir aqui por um minuto?

- Claro. - Katie levantou-se. - Scott precisa de mim agora. Conversaremos mais tarde, Maureen. - Impulsivamente, abraçou a rapariga.

Scott estava em pé junto à janela a olhar fixamente para o exterior. Katie tinha a certeza de que ele não estava a ver as janelas com grades da prisão do distrito. Virou-se quando ela entrou.

- Hoje tem um julgamento... os irmãos Odendall?

- Tenho. Temos um bom caso.

- Quanto tempo vai demorar?

- Quase todo o dia, tenho a certeza. Vão apresentar provas de integridade do professor do jardim infantil, mas havemos de os apanhar.

- Geralmente consegue, Katie. Ainda não ouviu falar do doutor Salem?

- Refere-se ao médico de Mineápolis que telefonou a Richard? Não, esta manhã não falei com ninguém. Fui diretamente para o escritório.

- Ele caiu, ou foi empurrado, de uma janela abaixo no Essex House ontem à noite alguns minutos depois de entrar no hotel. Estamos a trabalhar no caso com a Polícia de Nova Iorque. E a propósito, o corpo de Vangie Lewis chegou ontem à noite de Mineápolis, mas Lewis não vinha no avião.

Katie olhou fixamente para Scott.

- Que está a dizer?

- Estou a dizer que ele provavelmente apanhou o avião que foi para LaGuardia. Deve-o ter deixado em Nova Iorque mais ou menos à hora em que Salem entrou no hotel. Estou a dizer que se descobrirmos que ele esteve nas proximidades do hotel, talvez possamos encerrar este caso. Não gosto do suicídio Lewis, não gosto da morte acidental de Edna Burns e não me agrada a ideia de Salem ter caído de uma janela abaixo.

- Não acredito que Chris Lewis seja um assassino - disse Katie sem hesitar. - Onde pensa que ele está agora?

Scott encolheu os ombros.

- Escondido algum lugar em Nova Iorque, provavelmente. Julgo que quando falarmos com a namorada ela nos conduzirá a ele, deve vir hoje à noite da Florida. Pode estar por aqui à tardinha?

Katie hesitou.

- Este é o fim-de-semana em que tenho de me ausentar. É algo que não posso alterar. Mas vou ser sincera, Scott. Sinto-me terrivelmente mal por nem sequer pensar com lucidez. Vou terminar este julgamento... estou bem preparada; mas depois vou-me embora.

Scott observou-a.

- Disse-lhe toda a semana que não devia ter vindo - disse ele -, e neste momento está mais pálida do que estava na terça-feira de manhã. Está bem, termine esse julgamento e afaste-se daqui. Na próxima semana haverá muito trabalho sobre este caso. Segunda-feira examinaremos tudo. Acha que já cá estará?

- De certeza.

- Devia fazer um exame médico completo.

- Vou a um médico esta semana.

- Ótimo.

Scott olhou para a secretária, um sinal de que terminara a reunião. Katie voltou para o seu escritório. Eram quase nove horas, e era esperada no tribunal. Reviu mentalmente o horário dos comprimidos que o doutor Highley lhe dera. Tomara um na noite anterior, outro às seis horas da manhã. Nesse dia devia tomar um de três em três horas. Era melhor engolir um antes de ir para o tribunal. Tomou-o com o último golo de café da chávena sobre a secretária, depois pegou na pasta. A borda fina da primeira página da pasta cortou-lhe um dedo. Arfou com a guinada e tirou rapidamente um pedaço de tecido da gaveta de cima enrolou-o no dedo e saiu apressadamente da sala.

Quando, meia hora depois, com o resto das pessoas na sala do tribunal, se levantou ao entrar o juiz, o tecido ainda estava cheio de sangue.

 

Edna Burns foi sepultada na manhã de sexta-feira depois de uma Missa da. Ressurreição às onze horas na Igreja de S. Francisco Xavier. Gana Krupshak e Gertrude Fitzgerald seguiram o caixão até ao cemitério não muito distante e, segurando na mão uma da outra com firmeza, viram Edna a ser depositada na sepultura com os seus pais. O padre, reverendo Durkin, fez a última cerimónia, espargiu água benta sobre o caixão e acompanhou-as de novo até ao carro de Gertrude.

- As senhoras não querem tomar uma chávena de café comigo? - perguntou ele.

Gertrude passou a mão pelos olhos e abanou a cabeça.

- Tenho de ir trabalhar - disse ela. - Estou a substituir a Edna até arranjarem outra recepcionista, e ambos os médicos têm horas de expediente esta tarde. Mrs. Krupshak também recusou.

- Reverendo, se o senhor vai de novo para a reitoria, não me poderia levar? Assim Gertrude não teria de fazer um desvio por minha causa.

- Claro.

Gana virou-se para Gertrude. Disse impulsivamente:

- Porque é que não vai jantar conosco hoje? Estou a fazer um assado excelente.

A ideia de regressar sozinha para o apartamento afligiu Gertrude, e aceitou prontamente o convite. Seria bom conversar sobre Edna nessa noite com uma pessoa que tinha sido amiga dela. Queria expressar a Gana a vergonha gritante que foi o fato de nenhum dos médicos ter ido à missa, pelo menos o doutor Fukhito mandara flores. Talvez desabafar com Gana a ajudasse a raciocinar, e assim seria capaz de dominar aquele pensamento que não deixava de andar à volta dentro da sua cabeça - sobre qualquer coisa que Edna lhe dissera.

Despediu-se de Gana e do reverendo Durkin, meteu-se no carro, ligou a ignição e destravou o carro. O rosto do doutor Highley apareceu com uma forma vaga no seu espírito; aqueles olhos grandes, frios, semelhantes aos de um peixe. Oh, ele for a bastante simpático para com ela terça-feira à noite, dando-lhe o comprimido para a acalmar e tudo o mais. Mas havia qualquer coisa de estranho nele naquela noite. Como quando lhe foi buscar o copo de água, ela começara a segui-lo. Não queria que ele fosse seu criado. Ele abrira a torneira e entrara no quarto. Do vestíbulo vira-o a tirar o lenço e a começar a abrir a mesinha-de-cabeceira de Edna.

Então aquele simpático doutor Carroll atravessara o vestíbulo e o doutor Highley tinha fechado a gaveta, metido o lenço no bolso e recuou para que parecesse que apenas estava parado na soleira da porta do quarto.

Gertrude deixou que o doutor Carroll passasse por ela, depois esgueirou-se de novo para a sala de estar. Não queria que pensassem que estava a tentar escutar o que estavam a dizer. Mas se o doutor Highley queria alguma coisa da gaveta, por que razão não o disse e depois ia buscá-la? E por que razão abrira a gaveta com os dedos envoltos num lenço? Certamente não achava que o apartamento de Edna estava sujo de mais para ele lhe tocar. Ora, estava imaculado!

O doutor Highley sempre foi um homem estranho. Para falar verdade, como Edna, sempre tivera um pouco de medo dele. Ela nunca ocuparia o lugar de Edna se lho oferecessem. Tomada esta resolução, Gertrude saiu da calçada do cemitério e seguiu para Forest Avenue.

 

O corpo sem vida de Vangie Lewis foi colocado sobre a laje da sala de autópsia do examinador médico de Valley County. Com o rosto impassível, Richard prestou atenção quando o seu assistente tirou o cafetã de seda que devia ter sido a veste de enterro de Vangie. O que parecera suave e natural à luz fraca da pequena sala funerária, agora assemelhava-se a um manequim de um centro comercial, feições com uma total ausência de vida.

O cabelo loiro de Vangie fora cuidadosamente penteado para pender sobre os ombros. A laca já começara a endurecer, separando os cabelos em madeixas finas como a palha. Fugazmente, Richard lembrou-se que St. Francis Borgia abandonara a vida na corte e entrara para um convento depois de ver o corpo putrefato de uma rainha que outrora fora bela.

Bruscamente, concentrou o pensamento no problema médico que enfrentava. Ele deixara escapar qualquer coisa no corpo de Vangie na tarde de terça-feira. Tinha a certeza disso. Era algo relacionado com as pernas ou os pés. Concentraria aí a sua atenção.

Quinze minutos depois encontrou o que procurava: um arranhão de duas polegadas no pé esquerdo de Vangie. Não ligara porque estava muito ocupado com as queimaduras de cianido e o feto.

Aquele arranhão era recente. Não havia nenhum vestígio de cicatrização. Era isso que o tinha perturbado. O pé de Vangie fora arranhado pouco antes da morte, e Charley descobrira um bocado de tecido do vestido que ela envergava quando morreu preso numa ferramenta afiada no interior da garagem.

Richard virou-se para o assistente.

- O laboratório já deve ter terminado os exames das roupas que Mrs. Lewis usava quando a trouxemos para aqui. Se não se importa vá buscá-las e vista-lhas outra vez. Chame-me quando ela estiver pronta.

De novo no escritório, escrevinhou num bloco: Sapatos que Vangie trazia quando encontrada. Sapatos práticos, bastante gastos dos lados. Não os podia trazer calçados quando arranhou o pé.

Começou a examinar os apontamentos que fizera durante a noite. O bebé Berkeley. Ia falar com Jim Berkeley, obrigá-lo-ia a admitir que o bebé foi adotado.

Mas que provaria isso?

Nada em si, mas iniciaria a investigação. Assim que aquela confissão fosse feita, toda a Maternidade e Centro de Concepção Westlake revelar-se-ia como uma fraude gigantesca.

Alguém seria capaz de matar para impedir que essa fraude fosse descoberta?

Precisava de ver os relatórios médicos do doutor Salem sobre Vangie Lewis. Scott já devia ter entrado em contato com o consultório do doutor Salem. Rapidamente, marcou o número de telefone de Scott.

- Falou com a enfermeira de Salem?

- Falei, e com a mulher também. Ambas estão muito abaladas. Ambas julgam que ele não tinha nenhuma indicação de pressão arterial alta ou tonturas. Nenhum problema pessoal, nenhum problema financeiro, uma agenda cheia de conferências para os próximos seis meses. Por isso, digo-lhe, esqueça a hipótese de suicídio e queda acidental.

- E em relação a Vangie Lewis? Que sabia a enfermeira?

- O doutor Salem mandou-a ir buscar a ficha de Vangie ontem de manhã ao escritório. Então, antes de ir apanhar o avião, fez uma chamada interurbana.

- Podia ter sido a que ele me fez.

- Possivelmente. Mas a enfermeira afirmou que ele lhe disse que tinha de fazer outras chamadas interurbanas, mas usara o cartão de crédito no aeroporto depois de o ter visto para o voo. Aparentemente estava obcecado por chegar ao aeroporto com muita antecedência.

- Ela vai-nos mandar a ficha de Vangie? Quero vê-la.

- Não, não vai. - A voz de Scott tornou-se mais dura. O doutor Salem levou-a com ele. Ela viu-o a metê-la na mala de documentos. Essa mala foi encontrada no quarto. Mas a ficha Lewis não estava lá. E ouça isto: depois do doutor Salem partir, Chris Lewis telefonou para o consultório. Disse que precisava de falar com Salem. A enfermeira disse-lhe onde o doutor Salem ia ficar hospedado em Nova Iorque, até lhe deu o número do quarto. Vou-lhe dizer uma coisa, Richard: ao fim do dia espero estar a emitir um mandato para a captura de Lewis.

- Quer dizer que havia qualquer coisa naquela ficha que levaria Chris Lewis a matar para a conseguir? Isso custa a crer.

- Alguém queria aquela ficha - disse Scott. - É mais que evidente, não é?

Richard pousou o auscultador. Alguém queria a ficha. A ficha médica. Quem saberia o que havia nela que pudesse constituir uma ameaça?

Um médico.

As suspeitas de Katie em relação ao psiquiatra seriam justificadas? E Edgar Highley? Ele viria a Valley County com a aprovação do nome Westlake, um nome respeitado nos círculos médicos de Nova Jérsia.

Impacientemente, Richard procurou na secretária a tira de papel que Marge lhe dera com os nomes das duas pacientes que tinham apresentado uma ação judicial contra Edgar Highley por negligência médica.

Anthony Caldwell, Old Country Lane, Peapack.

Anna Horan, 41Walnut Street, Ridgefield Park.

Ligando o intercomunicador, pediu a Marge que tentasse telefonar às duas pessoas.

Marge entrou alguns minutos depois.

- Anthony Caldwell já não vive neste endereço. Mudou-se para Michigan no ano passado. Atendeu-me uma vizinha. Ela disse-me que a mulher dele morreu de uma gravidez tubar e que apresentou uma ação judicial contra o médico, mas foi rejeitada. Ela estava ansiosa por falar nisso. Afirmou que Mrs. Caldwell tinha sido informada por outros dois médicos de que nunca engravidaria, mas que logo que começou o plano da Maternidade e Centro de Concepção Westlake engravidou. Mas sentiu-se sempre muito mal e acabou por morrer no quarto mês de gravidez.

- Isso por agora já me chega - disse Richard. - Vamos citar todos os registos do hospital. E em relação a Mrs. Horan?

- Apanhei o marido em casa. É estudante de direito em Rutgers. Diz que trabalha como programadora de computadores. Deu-me o número do telefone do emprego. Quer que eu a ponha em contato com o senhor?

- Sim, por favor.

Marge pegou no telefone de Richard, marcou o número e perguntou por Mrs. Anna Horan. Pouco depois, ela disse:

- Mrs. Horan, um momento por favor. É o doutor Carroll.

Richard pegou no auscultador.

            - Mrs. Horan.

- Sim. - Havia uma inflexão cadenciada na voz, um sotaque que ele não conseguia identificar.

- Mrs. Horan, a senhora apresentou uma ação judicial por negligência médica no ano passado contra o doutor Edgar Highley. Seria possível fazer-lhe umas perguntas sobre esse caso. Está disposta a falar?

A voz no outro telefone tornou-se agitada.

- Não... aqui não.

- Compreendo. Mas é urgente. Seria possível vir hoje ao meu escritório depois do trabalho para conversar comigo?

- Sim... está bem - Era evidente que a mulher queria desligar o telefone.

Richard deu o endereço do escritório e deu-lhe indicações, mas foi interrompido.

- Eu sei o caminho... estarei aí por volta das cinco e meia. A ligação foi cortada. Richard olhou para Marge e encolheu os ombros.

- Ela não ficou nada satisfeita, mas vem.

Era quase meio-dia. Richard resolveu ir à sala de tribunal onde Katie estava a julgar o caso Odendall para ver se iria almoçar com ele. Queria ventilar as suas ideias sobre Edgar Highley. Katie entrevistara-o. Qual fora a reação dela? Concordaria que talvez houvesse algo de errado na Maternidade e Centro de Concepção Westlake - um recinto de bebés ou um médico que arriscava a vida das suas pacientes?

Quando chegou à sala do tribunal, só lá estava Katie, que continuava sentada na mesa do promotor de justiça.

Preocupada com as suas anotações, mal levantou os olhos quando ele se aproximou. Quando sugeriu o almoço ela abanou a cabeça.

- Richard, estou ocupada com isto. Aqueles canalhas retrataram-se da confissão. Agora estão a tentar asseverar que foi outra pessoa que deitou fogo, e eles são uns mentirosos tão convincentes que aposto que o júri se vai deixar levar. Tenho de trabalhar no interrogatório. - Os seus olhos fixaram-se de novo nas anotações.

Richard observou-a. A pele geralmente cor de azeitona estava lívida. Os olhos, quando olhara para ele, estavam mortiços e turvos. Reparou no tecido enrolado no dedo. Suavemente, estendeu a mão e desenrolou-o.

Katie levantou os olhos.

- O que... oh, aquela maldita coisa. Deve ser fundo. Tem estado a sangrar toda a manhã. Precisava daquilo.

Richard examinou o golpe. Liberto do tecido, começou a sangrar. Comprimindo o tecido sobre o golpe, pegou num elástico e enrolou-o acima do golpe.

- Deixa ficar isto cerca de vinte minutos. Isto deve estancá-lo. Tens tido algum problema de coagulação, Katie?

- Tenho, alguns. Mas, Richard, agora não posso falar disso. Este caso está-me a fugir e eu sinto-me tão mal. - Embargou-se-lhe a voz.

Na sala do tribunal só estavam os dois. Richard baixou-se e estreitou-a nos braços. Encostou a cabeça ao seu peito e pousou os lábios no seu cabelo.

- Katie, vou-me já embora. Mas onde quer que vás este fim-de-semana, pensa um pouco. Porque estou a tentar a minha sorte. Preciso de ti. Quero cuidar de ti. Se há alguém com quem te encontres agora, diz-lhe que tem um rival difícil, porque quem quer que seja, não está a olhar por ti. Se é o passado que te prende, vou tentar quebrar essa força.

Ele endireitou-se.

- Agora vai em frente e ganha o teu caso. Tu consegues. E por amor de Deus, não trabalhes de mais este fim-de-semana, Segunda-feira, vou precisar da tua colaboração num ângulo que vejo a desenvolver-se no caso Lewis.

Sentira tanto frio durante a manhã, um frio exasperador, um frio glacial. Nem mesmo o vestido de lã com mangas compridas ajudara. Agora, tão perto de Richard, o calor do seu corpo transmitia-se a ela. Quando ele se virou para se ir embora, ela agarrou-lhe impulsivamente a mão e encostou-a ao rosto.

- Segunda-feira - disse ela.

- Segunda-feira - concordou ele, e saiu da sala do tribunal.

 

Antes de abandonarem o complexo de apartamentos com jardins, onde Edna vivera, Charley e Phil tocaram à campainha dos Krupshak. Gana acabara de chegar do funeral.

- Terminámos a investigação no apartamento - disse-lhe Charley. - Já pode entrar nele. - Mostrou-lhe o bilhete que Edna deixara. - Tenho de verificar se isso constitui um testamento, mas todas aquelas bugigangas não valem mil dólares, por isso creio que lhe devolveremos as jóias, e a senhora e Mrs. Fitzgerald podem dividi-las assim como o mobiliário. Pelo menos, podem dar-lhes uma vista de olhos e decidirem entre as duas; mas por enquanto não tirem nada.

Os dois investigadores regressaram ao escritório e foram diretamente para o laboratório, onde entregaram o conteúdo do saco do aspirador, a planta que estava no peitoril da janela e as partículas de terra que tinham recolhido do chão.

- Examinem isto imediatamente - ordenou Phil. - Este material tem prioridade.

Scott estava à espera deles no gabinete. Ao saber que Chris estivera nas proximidades do apartamento de Edna na noite de terça-feira, bufou de satisfação.

- Parece que o Lewis esteve em toda a parte esta semana disse ele -, e onde quer que ele esteve morreu uma pessoa. Esta manhã mandei Rita a Nova Iorque com uma fotografia de Chris Lewis. Dois porteiros identificaram-no como sendo o homem que esteve no vestíbulo do Essex House por volta das cinco horas. Estou a emitir um APB para ele e a elaborar um mandato para a sua captura.

Tocou o telefone. Impacientemente, pegou nele e identificou-se. Depois, com a mão sobre o auscultador, disse:

- A namorada de Chris Lewis está a telefonar da Florida... Está lá, sim, daqui fala o promotor de justiça. - Calou-se. Sim, procuramos o comandante Lewis. Sabe onde ele está?

Charley e Phil trocaram olhares. A testa de Scott enrugou-se enquanto escutava.

- Muito bem. Virá no avião com a senhora, que chegará a Newark às sete horas. Fico muito satisfeito por saber que ele se entrega voluntariamente. Se ele quiser aconselhar-se com um advogado, talvez queira ter um aqui. Obrigado.

Ele pousou o auscultador.

- Lewis vem aí - disse ele. - Esta noite esclareceremos este caso.

 

Durante a longa noite de vigília, Edgar Highley racionalizou o problema do saco roubado. Talvez nunca aparecesse. Se tivesse sido abandonado depois do ladrão o ter examinado, provavelmente nunca mais o veria. Poucas pessoas se dariam ao trabalho de tentar restituí-lo. O mais certo era ficarem com o saco e deitarem fora o conteúdo.

E se o saco fosse recuperado intato pela Polícia de Nova Iorque? O seu nome e endereço do hospital estavam dentro dele. Se a Polícia lhe telefonasse, provavelmente pediria uma lista dos objetos. Ele mencionaria simplesmente alguns medicamentos vulgares, alguns instrumentos cirúrgicos e várias fichas de pacientes. Uma ficha médica com o nome de VANGIE LEWIS na etiqueta não lhes diria nada. Provavelmente não se dariam ao trabalho de a examinar. Limitar-se-iam a presumir que era dele. Se quisessem fazer perguntas sobre o sapato e o pisa-papéis com manchas de sangue, negaria ter conhecimento da sua existência; obviamente chamaria a atenção para o fato de que o ladrão os devia ter posto lá.

Não haveria problemas. E nessa noite o último problema seria eliminado. às cinco da manhã deixou de se esforçar por adormecer, tomou um banho de chuveiro, ficando sob o jato quente e frio perto de dez minutos até a casa de banho ficar cheia de vapor, vestiu um roupão pesado que lhe chegava aos tornozelos e foi para a cozinha. Só ia para o consultório ao meio-dia, mas antes disso faria as visitas no hospital. Até lá examinaria os apontamentos da sua investigação científica. A paciente da véspera seria a sua nova experiência. Mas ainda não escolhera o dador.

 

Às quatro horas, Richard, Scott, Charley e Phil examinaram o corpo de Vangie Lewis, já com as roupas com que morrera. O bocado de tecido florido, que fora encontrado na forquilha na garagem, ajustava-se perfeitamente no rasgão próximo da bainha do vestido. A meias-calças no pé esquerdo evidenciava um corte com duas polegadas mesmo por cima do golpe recente.

- Não há vestígio de sangue na roupa interior - disse Richard. - Ela já estava morta quando o pé ficou preso na forquilha.

- Que altura tinha a prateleira onde estava a forquilha? perguntou Scott.

Phil encolheu os ombros.

- Cerca de dois pés do chão.

- Isso significa que alguém transportou Vangie Lewis através da garagem, colocou-a em cima da cama e tentou dar o aspecto de suicídio - disse Scott.

- Sem dúvida - concordou Richard. Mas estava de sobrancelhas carregadas. - Qual é a altura de Chris Lewis? - perguntou ele.

Scott encolheu os ombros.

- Ele é alto. Talvez cerca de um metro e setenta. Porquê?

- Vamos experimentar uma coisa. Esperam um minuto. Richard saiu da sala, voltando com uma régua. Cuidadosamente, marcou na parede alturas de dois, três e quatro pés do chão. - Se partirmos do princípio que Chris Lewis foi a pessoa que levou Vangie para dentro de casa, creio que ela não se arranhou naquela forquilha. - Virou-se para Phil. - Tem a certeza de que a prateleira estava a dois pés do chão?

Phil encolheu os ombros.

- Cerca de uma polegada. - Charley concordou com um aceno de cabeça.

- Muito bem. Tenho quase um metro e oitenta. - Suavemente, Richard pôs um braço por baixo do pescoço da mulher morta, o outro por baixo dos joelhos. Pegando nela, aproximou-se da parede. - Vejam onde chegam os pés dela. Era baixa. Ela não teria sido ferida por nenhum objeto a altura inferior a três pés na prateleira se foi transportada por um homem alto. Por outro lado... - Aproximou-se de Phil. - Qual é a sua altura... Cerca de um metro e sessenta?

- Mais ou menos.

- Muito bem. Chris Lewis tem cerca de quinze centímetros a mais. Pegue nela e veja onde chega o pé quando a tiver nos braços.

Cautelosamente, Phil segurou o corpo e aproximou-se da parede. O pé de Vangie roçou na primeira marca que Richard fizera. Rapidamente Phil colocou-a de novo sobre a laje.

Scott abanou a cabeça.

- Inconcludente. Impossível de calcular. Talvez ele se tivesse curvado, procurando mantê-la afastada dele. - Virou-se para o assistente. - Vamos querer aquelas roupas como prova. Trate bem delas. Tire algumas fotografias ao golpe, às meias e ao vestido.

Voltou ao escritório acompanhado por Richard.

- Você ainda está a pensar no psiquiatra, não está? - perguntou ele. - Tem cerca de um metro e sessenta.

Richard hesitou e resolveu não dizer nada antes de falar com Jim Berkeley e com a paciente que apresentará a ação judicial por negligência médica. Mudou de assunto.

- Como é que a Katie se está a sair?

Scott abanou a cabeça.

- É difícil de dizer. Aqueles vadios atribuem a responsabilidade do ato de vandalismo a um dos amigos que morreu num desastre de motorizada em Novembro último. A nova versão é que eles pagam as favas porque têm pena dos pais dele, mas agora o padre persuadiu-os a dizer a verdade por causa da sua própria família.

Richard bufou.

- O júri não se está a deixar levar por isso, pois não?

- É ;, Scott afirmou:

- Já terminou. Preste atenção, por mais que se esforce na escolha do júri, há sempre um coração generoso que se deixa levar por uma história comovente. Katie fez um excelente trabalho, mas podia ter tido outro desfecho. Muito bem. Até logo.

Às quatro e meia, Jim Berkeley retribuiu, o telefonema de Richard.

- Fui informado que tem tentado entrar em contato comigo. - A sua voz era cautelosa.

- Sim. - Richard respondeu no mesmo tom impessoal do outro homem. - É importante que fale com o senhor. Pode passar pelo meu escritório quando for para casa?

- Sim, posso. - Naquele momento a voz de Jim tornou-se resignada. - E creio que sei sobre o que quer falar.

 

Edgar Highley afastou-se da rapariga sobre a mesa de observações.

- Já se pode vestir.

Ela afirmara ter vinte anos, mas ele tinha a certeza de que ela não tinha mais de dezasseis ou dezassete anos.

- Eu estou...

- Sim, minha cara. Efetivamente está grávida. Cerca de seis semanas, suponho. Quero que volte amanhã de manhã e nós poremos termo à gravidez.

- Eu estava a pensar: acha que devia ter o bebé e fazer com que o adotassem?

- Falou nisto aos seus pais?

- Não. Ficariam muito aborrecidos.

- Então sugiro que adie a maternidade por vários anos, pelo menos. Amanhã às dez horas.

Ele saiu da sala, entrou no gabinete e procurou o número do telefone da nova paciente que escolhera na véspera.

- Mrs. Englehart, daqui fala o doutor Highley. Quero iniciar o seu tratamento. Quer ter a bondade de vir ao hospital amanhã de manhã às oito e meia e prepare-se para pernoitar.

 

Enquanto o júri deliberava, Katie entrou no bar do tribunal. Escolheu cuidadosamente uma mesa pequena ao fundo da sala e sentou-se de costas para as outras mesas. Não queria que ninguém fosse ter com ela ou a visse. A sensação de tontura já era persistente; sentia-se fatigada e fraca, mas não tinha fome. «Só uma chávena de chá», pensou. «A mamãe sempre fora de opinião que uma chávena de chá curava todos os males do mundo.» Lembrava-se de voltar para casa depois do funeral de John, da voz preocupada, suave da mãe: «Vou-te arranjar uma boa chávena de chá quente, Katie.»

Richard. A mamãe iria adorar Richard. Sempre gostou de homens altos. «O teu pai era magro e baixo, Katie, mas não parecia um grande homem?»

«Sim, parecia.»

A mãe vinha na Páscoa. Só faltavam seis semanas. A mãe ficaria muito satisfeita se ela e Richard namorassem.

«Eu quero que isso aconteça, não quero?», pensou Katie enquanto bebia lentamente o chá. «Não é apenas por me sentir tão só esta semana.»

Era mais do que isso. Muito mais. Mas nesse fim-de-semana, no hospital, poderia pôr as ideias em ordem, pensar calmamente.

Ficou sentada quase uma hora, distraída a beber lentamente o chá, recapitulando cada passo do seu resumo. Convencera o júri de que os Odendall estavam a mentir? O padre. Por esse lado ganhara. Ele concordara que nenhum dos rapazes era frequentador da igreja; que nenhum dos rapazes nunca o tinham consultado. Seria possível que ele estivesse a ser usado por eles para reforçar a sua história? «Sim», concordou ele. «É possível.» Ela provara que tinha a razão. Tinha a certeza.

Às cinco horas regressou à sala do tribunal. Quando ela entrou, o júri informou o juiz que tinha chegado a um veredito.

Passado cinco minutos, o presidente dos jurados anunciou o veredito:

- Robert Odendall, declarado inocente em todos os pontos de acusação. Jonathan Odendall, declarado inocente em todos os pontos de acusação.

- Não posso acreditar. - Katie não tinha a certeza se falara em voz alta. O rosto do juiz ficou com rugas profundas de irritação. Mandou sair os jurados com rispidez e disse aos réus que se levantassem.

- Vocês são muito afortunados - disse ele com brusquidão -, mais afortunados do que eu espero que jamais sejam nas vossas vidas. Agora saiam da minha sala, e se vocês são espertos, nunca mais aparecerão à minha frente.

Katie levantou-se. Independentemente do que o juiz sentia na realidade, o veredito era incorrecto, ela perdera o caso. Ela devia ter-se esforçado mais. Em vez de ver, sentiu o sorriso triunfante do advogado de defesa a atingi-la. Um caroço espesso e duro queimava-lhe a garganta, impedindo-a de engolir. Estava prestes a chorar. Aqueles criminosos iam ser largados nas ruas injustamente. Um rapaz morto fora rotulado de criminoso.

Meteu os apontamentos na pasta. Talvez se ela não se tivesse sentido tão mal durante toda a semana teria orientado melhor o caso. Talvez se tivesse tratado do problema da hemorragia há um ano em vez de adiar por causa daquele medo disparatado e infantil de hospitais, não teria tido o acidente na noite de segunda-feira.

- O Estado quer ter a bondade de se aproximar?

Ela levantou os olhos. O juiz estava-lhe a fazer sinal. Dirigiu-se a ele. Os espectadores saíam em fila. Podia ouvir os gritos de alegria enquanto os Odendall abraçavam as namoradas, com pastilhas elásticas na boca e sem soutien.

- Excelência. - Katie conseguiu manter a voz firme.

O juiz curvou-se e sussurrou-lhe:

- Não deixe que isto a deprima, Katie. Você provou este caso. Aqueles canalhas dentro de dois meses estarão aqui outra vez sob outras acusações. Ambos sabemos disso, mas da próxima vez apanhamo-los.

Katie tentou sorrir.

- É precisamente disso que eu tenho medo, que eles voltem. Só Deus sabe os danos que farão antes de os podermos apanhar. Mas obrigada, senhor juiz.

Ela abandonou a sala do tribunal e voltou para o escritório. Maureen levantou os olhos com esperança. Katie abanou a cabeça e viu a expressão transformar-se em pena. Encolheu os ombros.

- Que podemos fazer, hem? Maureen seguiu-a até ao escritório.

- Mr. Meyerson e o doutor Carroll estão numa reunião. Não querem ser incomodados. Mas, claro, a senhora pode entrar.

- Não. Tenho a certeza de que é sobre o caso Lewis, e neste momento não lhes poderia ser útil a eles nem a ninguém. Na segunda-feira ponho tudo em dia.

- Está bem. Katie, estou desolada por causa do veredito do caso Odendall, mas tente não levar isso tanto a peito. Está mesmo com aspecto de doente. Está em condições de conduzir? Não está tonta nem nada?

- Não, a sério, e não vou para muito longe. Só vou guiar durante quinze minutos e depois vou estar inativa até domingo.

Enquanto se dirigia para o carro, Katie tiritava. De tarde, a febre subira quase a quarenta graus, mas estava a descer rapidamente outra vez. A humidade entrava pelas mangas largas do casaco de agasalho de lã vermelha e passava através das meias de nylon. Pensou ansiosamente no seu quarto, na sua cama. Como seria maravilhoso poder ir para lá naquele momento, para se meter na cama com um tody quente e dormir durante todo o fim-de-semana.

No hospital, o departamento de admissão de doentes já tinha os formulários completos à espera. A empregada estava muito animada.

- Meu Deus, Mrs. DeMaio, a senhora é tida em grande conta, certamente. O doutor Highley deu-lhe o quarto da suite um no terceiro andar. É como ir de férias. Nem vai imaginar que está num hospital.

- Ele disse qualquer coisa a esse respeito - murmurou Katie. Ela não ia revelar àquela mulher o seu medo de hospitais.

- É capaz de se sentir um pouco só lá em cima. Só há três suites naquele andar, e as outras duas estão vazias. E o doutor Highley mandou redecorar a sala de estar da sua suite. Porquê, não sei. Foi feita há menos de um ano. Mas seja como for, não vai precisar dela. Ficará aqui apenas até domingo. Se precisar de alguma coisa, só tem de carregar na campainha. O pessoal de enfermagem do segundo andar cuida das pacientes do segundo e terceiro andares. De qualquer maneira, são todas pacientes do doutor Highley. Aqui tem a sua cadeira de rodas. Se se sentar, levamo-la rapidamente lá para cima. Katie arregalou os olhos consternada. - Não quer dizer que agora tenho de usar uma cadeira de rodas?

- Normas do hospital - disse com firmeza a empregada da admissão.

John numa cadeira de rodas a ir para quimioterapia. O corpo de John a contrair-se enquanto ela o via morrer. A voz de John a enfraquecer, o seu humor forçado, esgotado quando a cadeira de rodas foi trazida para junto da cama: «Balança pouco, coche delicado, vens-me buscar para me levares para casa.» O cheiro anti-séptico do hospital. Katie sentou-se na cadeira e fechou os olhos. Não podia voltar atrás. A empregada, uma voluntária de meia-idade, rechonchuda, empurrando a cadeira através do corredor até ao elevador.

- Tem sorte por ter o doutor Highley - disse ela a Katie. As suas pacientes são as que têm melhor assistência do hospital. Puxe aquela sineta para chamar alguém e terá uma enfermeira à sua disposição em três segundos. O doutor Highley é severo. Quando anda por aqui o pessoal todo treme, mas é boa pessoa.

Estavam no elevador. A empregada carregou no botão.

- Esta casa é tão diferente da maioria dos hospitais. Na maior parte deles só a querem ver depois de estar pronta para o parto, e depois mandam-na embora quando o bebé tem alguns dias de vida. O doutor Highley não. Vi-o internar mulheres grávidas durante dois meses só como medida de precaução. É por isso que tem suites, para que as pessoas tenham um ambiente como o de casa. Mrs. Eldrich está no um no segundo andar. Teve ontem uma cesariana e ainda não parou de chorar. Está muito feliz e o marido está na mesma. Ontem à noite dormiu no sofá na sala de estar. O doutor Highley apoia isso. Eis o elevador.

Outras pessoas entraram com elas no elevador. Olharam para Katie cheias de curiosidade. Observando as revistas e as flores que traziam, concluiu que eram obviamente visitas. Sentia-se estranhamente distante delas. «Assim que passas a ser uma doente perdes a tua identidade», pensou ela. «Passas a ser um caso.»

Saíram no terceiro andar. O corredor estava alcatifado num verde suave. Excelentes reproduções de Monet e Matisse realçadas por molduras com entalhes estavam espalhadas pelas paredes.

Contra a sua vontade, Katie estava tranquila. A voluntária levou-a através do corredor e virou à direita.

- A senhora fica na última suite - exclamou ela. - É um pouco longe. Creio que hoje não há outras pacientes neste piso.

- Por mim não há problema - murmurou Katie. Pensou no quarto de John. Os dois querendo absorver-se um ao outro, para lutarem contra a separação. Pacientes ambulatórios vinham à porta, espreitavam.

- Como vai isso hoje, juiz? Parece melhor, não parece, Mrs. DeMaio?

E ela mentindo:

- Na verdade, parece. «Vão-se embora, vão-se embora. Temos tão pouco tempo.»

- Não me importo de estar sozinha no piso - repetiu ela. Foi levada para um quarto. As paredes eram da cor do marfim; a alcatifa, o mesmo verde suave do corredor. A mobília era branca e antiga. Cortinas estampadas em tons de marfim e verde condiziam com a colcha.

- Oh, isto é bonito - exclamou Katie.

A empregada parecia satisfeita.

- Pensei que iria gostar. A enfermeira estará aqui dentro de alguns minutos. Porque não arruma as suas coisas e não se põe à vontade?

Ela foi-se embora. Um pouco indecisa, Katie despiu-se, vestiu uma camisa de noite e um roupão quente. Colocou os artigos de toilette no toucador da casa de banho e pendurou as roupas no armário. Que iria fazer durante a longa e triste noite que tinha pela frente? Na véspera àquela hora estava a vestir-se para ir ao jantar de festa da Molly E, quando chegara, Richard estivera à sua espera.

Apercebeu-se de que estava a cambalear. Instintivamente, deitou a mão ao toucador e agarrou-se a ele. A sensação de tontura passou. Provavelmente era apenas a correria, e o resultado de um julgamento e «Admite», pensou ela: «apreensão.»

Ela estava num hospital. Por mais que tentasse tirar esse pensamento da cabeça, estava num hospital. Era incrível, infantil não ser capaz de vencer o medo. O pai. John. As duas pessoas que ela mais amara no mundo tinham ido para o hospital e morrido. Por mais que tentasse raciocinar, racionalizar, não era capaz de perder aquela terrível sensação de pânico. Talvez aquela estada a ajudasse a vencê-lo. A noite de segunda-feira não fora assim tão má.

Havia quatro portas no quarto. A porta do armário, a porta da casa de banho, a que dava para o corredor. A outra devia dar para a sala de estar. Abriu-a e espreitou. Como a empregada da admissão lhe dissera, estava em obras. A mobília estava no meio da sala e tapada com panos de pintor. Acendeu a luz. O doutor Highley era com toda a certeza um perfeccionista. Ela não conseguia ver nada de anormal nas paredes. Não era de admirar que as contas do hospital fossem tão exorbitantes.

Encolhendo os ombros, apagou a luz, fechou a porta e encaminhou-se para a janela. O hospital era em forma de U, as duas alas paralelas uma à outra em ângulos retos atrás da zona principal.

Ela estivera no outro lado na noite de segunda-feira, mesmo de fronte onde se encontrava agora. Os carros das visitas começavam a encher o parque. Onde ficava situado o estacionamento com que sonhara? Oh, claro, aquele, para o lado, mesmo por baixo do último candeeiro. Estava lá um carro estacionado, um carro preto. No sonho era um carro preto. Aqueles raios das rodas; como brilhavam à luz.

- Como se sente, Mrs. DeMaio?

Ela virou-se rapidamente. O doutor Highley estava no quarto. Uma enfermeira jovem esperava perto dele.

- Oh, o senhor assustou-me. Estou ótima, doutor.

- Bati à porta, mas não me ouviu. - A sua voz era ligeiramente reprovadora. Aproximou-se da janela e puxou as cortinas, - Façamos nós o que fizermos, estas janelas deixam passar o ar - comentou ele. Não queremos que apanhe frio. E se se sentasse na cama e me deixasse ver a sua pressão arterial. Também queremos tirar umas amostras de sangue.

A enfermeira seguiu-o. Katie notou que as mãos da rapariga tremiam. Ela estava obviamente com medo do doutor Highley.

O médico enrolou a tira da pressão no seu braço. Uma onda de tonturas fez com que Katie sentisse como se as paredes do quarto estivessem a afastar-se. Agarrou-se ao colchão.

- Algum problema, Mrs. DeMaio? - A voz do médico era branda.

- Não, não é nada. Só estou um pouco cansada. Ele começou a premir a bola em forma de bolbo.

- Enfermeira Renge, quer ter a bondade de ir buscar um pano frio para a testa de Mrs. DeMaio - ordenou ele.

A enfermeira, obedientemente, precipitou-se para a casa de banho. O médico estava a examinar o manómetro.

- Está um pouco baixa. Algum problema?

- Sim. A sua voz parecia que pertencia a outra pessoa, ou talvez como se ela estivesse numa câmara de ressonância. Estou outra vez com o período. Tem sido muito abundante desde quarta-feira.

- Não me surpreende. Para ser franco, se não tivesse marcado esta operação, tenho a certeza de que seria obrigada a fazê-la de urgência.

A enfermeira saiu da casa de banho com um pano muito bem dobrado. Mordia o lábio inferior para evitar que tremesse. Katie de repente sentiu pena dela. Ela não queria nem precisava de uma compressa fria na testa, mas encostou-se à almofada. A enfermeira colocou-lha na cabeça. O pano estava encharcado, e sentiu a água gelada a correr pelo couro cabeludo abaixo. Resistiu ao impulso de a tirar. Mas o médico daria conta, e ela não queria que a enfermeira fosse repreendida.

Um humor súbito levantou-lhe o ânimo. Só se via a dizer a Richard, «E este pobre miúdo assustado praticamente me afogou. A partir de agora talvez tenha bursitis nas sobrancelhas.»

Richard. Devia ter-lhe dito que vinha para ali. Queria que ele estivesse com ela naquele momento.

O doutor Highley tinha uma agulha na mão. Ela fechou os olhos enquanto ele tirava sangue de uma veia no braço direito. Viu-o colocar os tubos de vácuo cheios de sangue num tabuleiro que a enfermeira lhe estendeu.

- Quero isto analisado imediatamente - disse ele com brusquidão.

- Sim, doutor. - A enfermeira saiu a correr, obviamente satisfeita por se ir embora.

O doutor Highley suspirou.

- Receio que aquela jovem tímida esteja de serviço esta noite. Mas não precisará de nada de especial, tenho a certeza. Acabou de tomar os comprimidos que lhe dei?

Katie lembrou-se que não tinha tomado o comprimido das três horas e já passava das seis.

- Lamento, mas esqueci-me de tomar o das três horas disse ela, pesarosa. - Estava no tribunal e só me lembrei do julgamento, e suponho que já é tarde para tomar o último.

- Tem os comprimidos consigo?

- Tenho, na minha carteira. - Olhou de relance para o toucador.

- Não se levante. Eu dou-lho.

Quando lhe tirou o saco da mão, abriu o fecho de correr, procurou e tirou o pequeno frasco. Só tinha dois comprimidos. Havia um tabuleiro com uma garrafa de água gelada e um copo em cima da mesinha-de-cabeceira. O doutor Highley deitou água no copo e deu-lho.

- Acabe com eles - disse ele.

- Os dois?

- Sim. Sim. São muito fracos, e queria que os tomasse por volta das seis horas. - Deu-lhe o copo e meteu o frasco vazio no bolso.

Obedientemente, engoliu os dois comprimidos, sentindo os seus olhos fixos nela. Os óculos com armação de aço brilhavam sob a luz do teto. O brilho. Os raios do carro a brilharem.

Havia uma mancha vermelha no copo quando ela o pousou. Ele viu-a, pegou-lhe na mão e examinou o dedo. O tecido estava outra vez úmido.

- Que é isto? - perguntou ele.

- Oh, nada. Apenas um golpe feito por uma folha de papel, mas deve ser fundo. Não deixa de sangrar.

- Estou a ver. - Ele levantou-se. - Pedi um soporífero para si. Por favor, tome-o assim que a enfermeira o trouxer.

- Prefiro não tomar soporíferos, doutor. Parece que me provocam uma reação muito forte. - Ela queria parecer veemente. Em vez disso, a voz tinha um timbre arrastado, fraco.

- Receio bem ter de insistir no comprimido, Mrs. DeMaio, principalmente para uma pessoa como a senhora que provavelmente passará a noite de insónia e ansiedade sem ele. Quero que esteja tranquila de manhã. Oh, eis que chega o seu jantar.

Katie prestou atenção quando uma mulher esguia na casa dos sessenta entrou no quarto com um tabuleiro e olhou nervosamente para o médico. «Ficam todos petrificados com medo dele», pensou ela. Ao contrário dos tabuleiros de plástico ou metal geralmente usados nos hospitais, aquele era de verga branca e tinha um cesto lateral com o jornal da tarde. A porcelana era delicada, a baixela de prata graciosamente entalhada. Uma única rosa vermelha estava colocada numa jarra esguia. Duas costeletas de lombo de cordeiro eram mantidas quentes por uma tampa em forma de cúpula e de prata por cima do prato do jantar. Uma salada de arugula, feijão-verde zjulienne, pequenos biscoitos quentes, chá e sumo de frutas completavam a refeição. A empregada virou-se para se ir embora.

- Espere - ordenou o doutor Highley. Disse a Katie: - Como verá, todas as minhas doentes têm uma alimentação que se pode comparar com a comida de um restaurante de primeira. Creio que os permanentes desperdícios nos hospitais são as toneladas de comida das instituições que são rejeitadas diariamente enquanto as famílias das doentes trazem de casa embrulhos CARE. - Franziu as sobrancelhas. - Todavia, penso que preferia que não jantasse hoje. Cheguei à conclusão que quanto mais tempo a paciente estiver sem comer antes da operação, menos probabilidades há de sentir mal-estar depois dela.

- Não tenho fome nenhuma - disse Katie.

- Ótimo. - Ele acenou com a cabeça à empregada. Ela pegou no tabuleiro e saiu a toda a pressa.

- Agora vou deixá-la - disse o doutor Highley a Katie. - Vai tomar o soporífero.

O aceno de Katie foi reservado.

Parou perto da porta.

- Oh, lamento, parece que o telefone está avariado. Os homens das reparações virão arranjá-lo de manhã. Está a contar que alguém lhe telefone para aqui hoje à noite? Ou talvez venha a ter visitas?

- Não. Nem telefonemas nem visitas. A minha irmã é a única pessoa que sabe que estou aqui, e está na ópera esta noite.

Ele sorriu.

- Compreendo. Então boa noite, Mrs. DeMaio, e descontraia-se, por favor. Pode descansar que eu trato da senhora.

- Claro que posso.

Ele foi-se embora. Ela recostou-se na almofada, fechando os olhos. Flutuava em qualquer parte; o corpo flutuava, flutuava como...

- Mrs. DeMaio. - Uma voz jovem era apologética. Katie abriu os olhos.

- O quê... oh, devo ter passado pelo sono. - Era a enfermeira Renge. Trazia uma bandeja com um comprimido dentro de uma pequena taça de papel. - Agora tem de tomar isto. E o soporífero que o doutor Highley prescreveu. Disse que devia ficar aqui para ter a certeza de que o tomava. Mesmo sem a presença do doutor Highley, a rapariga parecia nervosa. - As doentes ficam sempre furiosas quando temos de as acordar para lhes darmos um soporífero, mas no hospital é assim.

- Oh. - Katie pegou no comprimido, meteu-o na boca, bebeu água da garrafa.

- Quer-se acomodar na cama agora? Eu puxo-lhe a colcha para trás.

Katie apercebeu-se que estivera a dormir em cima da colcha. Acenou com a cabeça, levantou-se com esforço e entrou na casa de banho. Lá tirou o comprimido debaixo da língua. Parte já se derretera, mas conseguiu cuspi-lo quase todo. «Nem pensar», refletiu. «Prefiro ficar acordada do que ter pesadelos.» Salpicou o rosto com água, lavou os dentes e voltou para o quarto. Sentiu-se tão fraca, tão pouco segura.

A enfermeira ajudou-a a deitar-se.

- Está mesmo cansada, não está? Bem, eu aconchego-lhe a roupa da cama, e estou certa de que vai dormir toda a noite. Puxe só a sineta se precisar de mim para alguma coisa.

- Obrigada. - A cabeça estava tão pesada. Os olhos pareciam colados.

A enfermeira Renge foi baixar a persiana. - Já começou a nevar outra vez, mas vai transformar-se em chuva. Está uma noite má, uma noite boa para estar na cama.

- Não se importa de abrir as cortinas e levantar um pouco a janela? - murmurou Katie. - Gosto sempre de ar puro no meu quarto.

- Com certeza. Posso apagar agora a luz, Mrs. DeMaio?

- Por favor. - Ela só queria dormir.

- Boa noite, Mrs. DeMaio.

- Boa noite. Oh, que horas são, por favor?

- Oito horas em ponto.

- Obrigada.

A enfermeira saiu. Katie fechou os olhos. Os minutos passaram. A respiração normalizou. Às oito e meia, não se apercebeu do ruído fraco que foi provocado quando o puxador da porta da sala de estar da suite começou a rodar.

 

Gertrude e os Krupshaks demoraram-se com o jantar de assado. Reconhecida, Gertrude acedeu à insistência de Gana para repetir, para comer uma boa fatia de bolo de chocolate de fabrico caseiro.

- Geralmente não como tanto - desculpou-se ela -, mas não comi nada desde que encontrámos a pobre Edna.

Gana acenou sobriamente com a cabeça. O marido pegou na chávena de café e no prato de sobremesa.

- Os Knicks estão a jogar - informou ele. - vou ver. - O tom brusco não era displicente. Acomodou-se na sala de estar e ligou o televisor.

Gana suspirou.

- Os Knicks... os Mets... os Giants... Época após época. Mas, por outro lado, ele está aqui. Olho e lá está ele. Ou se venho do bingo, sei que não vou entrar numa casa vazia, como a pobre Edna sempre teve de fazer.

- Eu compreendo. - Gertrude pensou na sua casa solitária, depois pensou na neta mais velha. «Avó, porque não vem jantar?» ou «Avó, vai estar em casa no domingo? Pensávamos ir fazer-lhe uma visita.» Podia ser muito pior.

- Talvez devêssemos ir dar uma vista de olhos ao apartamento de Edna - disse Gana. - Não quero que se apresse por minha causa... tome mais café, ou outro pedaço de bolo...

- Não. Oh, não, devíamos ir lá. É uma coisa que não lhe agrada fazer, mas não pode furtar-se.

- Vou buscar a chave.

Atravessaram o pátio a toda a pressa. Enquanto estavam à mesa, a combinação húmida e fria de neve e chuva começara a cair outra vez. Gana protegeu o queixo com a gola do casaco.

Pensou no belo casaco de imitação de leopardo de Edna. Talvez o pudesse levar para casa nessa noite. Era dela.

No interior do apartamento, ficaram caladas. O pó para as impressões digitais que os detetives tinham utilizado ainda se via nos tampos das mesas e nos puxadores das portas. Inadvertidamente, olharam fixamente para o lugar onde estivera o corpo encolhido de Edna.

- Ainda há sangue no irradiador - murmurou Gana. Provavelmente o Gus vai pintá-lo de novo.

- Sim. - Gertrude sacudiu-se. «Acabemos com isto.» Ela conhecia os gostos da neta. Para além do sofá de veludo, Nan adoraria aquelas cadeiras a condizer, as costas altas com braços e pernas de mogno. Uma era uma cadeira de balouço, a outra uma cadeira direita. Lembrou-se que Edna lhe contara que, quando era criança, estavam estofadas com veludo azul com folhas delicadas. Ela mandara-as restaurar sem gastar muito dinheiro e dizia sempre a suspirar, «Nunca ficaram com o mesmo aspecto.»

Se Nan as mandasse estofar de novo com veludo, ficariam lindas. E aquela mesa com tampo trabalhado. Altman’s tinha cópias daquela na galeria de reproduções. Custava uma fortuna, também. Claro que aquela estava bastante rachada, mas o marido de Nan era capaz de retocar qualquer coisa. «Oh, Edna», pensou Gertrude. «Eras mais esperta do que qualquer uma de nós. Sabias o valor das coisas.»

Gana estava perto do armário a tirar o casaco de leopardo.

- Edna emprestou-me este no ano passado - disse ela. - Ia a uma reunião com o Gus. Gosto imenso dele.

Não levaram muito tempo a dividir o recheio do apartamento. Gana estava pouco interessada no mobiliário; o que Gertrude não quisesse doava ao Salvation Army; mas ficou encantada quando Gertrude sugeriu que ficasse com o prato de prata e a porcelana fina. Concordaram que as roupas de Edna iriam também para o Salvation Army. Era mais baixa e mais forte do que qualquer uma delas.

- Acho que é tudo - disse Gana suspirando. - Exceto as jóias, mas a Polícia devolvê-las-á dentro de muito pouco tempo. A senhora fica com o anel, e ela deixou-me o broche.

As jóias. Edna guardara-as na gaveta da mesinha-de-cabeceira. Gertrude pensou na noite de terça-feira. Essa era a gaveta que o doutor Highley começara a abrir.

- Isso faz-me lembrar - disse ela. - Nunca lá fomos ver. Certifiquemo-nos de que não nos esquecemos de nada. - Ela abriu-a. Sabia que a Polícia tinha tirado a caixa das jóias. Mas a gaveta funda não estava vazia. No fundo estava um mocassin velho.

- Macacos me mordam! - disse Gana, suspirando. - Pode dizer-me porque razão Edna guardara aquilo? - Pegou nele e viu-o contra a luz. Estava deformado; o tacão estava gasto; manchas brancas nos lados sugeriam que estivera exposto à neve.

- É isso! - gritou Gertrude. - Foi isso que me baralhou. Vendo a expressão de confusão de Gana, tentou explicar.

- Mrs. DeMaio perguntou-me se Edna chamou um dos médicos Príncipe Encantado. E foi isso que me desorientou. Claro que não chamou. Mas Edna contou-me que Mrs. Lewis levava uns sapatos muito velhos às consultas. Ela chamou-me a atenção para eles há apenas algumas semanas quando Mrs. Lewis ia a sair. Edna disse que gracejava sempre com Mrs. Lewis. O sapato esquerdo estava largo de mais, e Mrs. Lewis estava sempre a deixá-lo cair. Edna costumava entrar com Mrs. Lewis dizendo-lhe que devia estar à espera que o Príncipe Encantado apanhasse a chinela de vidro.

- Mas o Príncipe Encantado não era o namorado da Cinderela - protestou Gana. - Ele entrava no conto de fadas a «Bela Adormecida».

- É isso que eu quero dizer. Disse a Edna que tinha feito confusão.

Ela riu-se e disse que Mrs. Lewis lhe dissera o mesmo, mas que a mãe dela lhe contara assim a história e que para ela era quanto bastava.

Gertrude reflectiu.

- Mrs. DeMaio estava tão ansiosa quando pediu informações sobre aquela história do Príncipe Encantado. E quarta-feira à noite - pergunto a mim mesma: seria possível que o sapato de Mrs. Lewis fosse aquilo que o doutor Highley procurava na gaveta? Será possível? Sabe, estou quase tentada a ir ao escritório de Mrs. DeMaio para falar com ela, ou deixar-lhe pelo menos uma mensagem. Sinto que não devo esperar até segunda-feira.

Gana pensou em Gus, que não desviaria o olhar do aparelho até perto da meia-noite. O seu gosto exagerado por excitação aumentou. Nunca tinha estado no gabinete do promotor de justiça.

             - Mrs. DeMaio perguntou-me se Edna guardava o sapato velho da mãe por razões sentimentais - disse ela. - Aposto que ela se estava a referir a este mocassin. Dir-lhe-ei o que deve fazer: vamos lá no meu carro. Gus nunca saberá que saí.

 

Jim Berkeley estacionou o carro no parque de estacionamento do tribunal e entrou no principal salão de entrada. O anuário indicava que o escritório do examinador médico ficava situado no segundo andar na ala antiga do edifício. Vira a expressão no rosto de Richard Carroll na noite anterior quando este olhou para o bebé. A cólera e a indignação fizeram-no sentir vontade de dizer, «Então o bebé não se parece conosco. E daí?», mas teria sido uma estupidez fazer isso. Pior, teria sido inútil.

Depois de várias voltas em falso no labirinto do prédio, descobriu o gabinete de Richard. A escrivaninha da secretária estava vazia, mas a porta de Richard estava aberta, e ele saiu logo quando ouviu a porta da área de recepção fechar-se com um ruído súbito.

            - Jim, foi muito amável em ter vindo. - «Obviamente ele estava a procurar ser gentil», pensou Jim. «Ele estava a tentar fazer com que isto pareça um encontro casual.» O cumprimento foi reservado e prudente. Entraram. Richard observou-o, Jim fitou-o impassivelmente. Não restava nada do humor do jantar da noite anterior.

Obviamente, Richard compreendeu. O seu comportamento passou a ser o de um homem de negócios. Jim assumiu uma atitude formalista.

- Jim, estamos a investigar a morte de Vangie Lewis. Ela andava em tratamento na Maternidade Westlake. Onde a sua esposa teve o bebé.

Jim acenou com a cabeça.

Era evidente que Richard escolhia cuidadosamente as palavras.

- Estamos preocupados com alguns problemas que vemos surgir na nossa investigação. Agora, quero fazer-lhe algumas perguntas, e juro-lhe que as suas respostas não sairão desta sala. Mas pode ser-nos muito útil se...

- Se eu lhe disser que Maryanne é adotada. Não é?

- É.

A raiva saía de Jim. Pensou em Maryanne. Qualquer que fosse o custo, ela era preciosa.

- Não, não é adotada. Eu assisti ao parto. Filmei-o. Ela tem um pequeno sinal congénito no polegar esquerdo. Vê-se naquelas fotografias.

- É muito pouco provável que pais, ambos com olhos castanhos, tenham um filho com olhos verdes - disse Richard categoricamente. Depois fez uma pausa. - É o pai da criança? perguntou calmamente.

Jim olhou fixamente para as mãos.

- Quer dizer se Liz teria tido uma relação com outro homem? Não. Tenho a certeza absoluta.

- E inseminação artificial? - perguntou Richard. - O doutor Highley é um perito em fertilidade.

- Liz e eu falámos nessa possibilidade - disse Jim. - Rejeitámo-la há anos.

- Liz podia ter mudado de ideias sem lhe dizer nada? Isso já não é assim tão invulgar. Todos os anos nascem cerca de quinze mil bebés por esse método nos Estados Unidos.

Jim meteu a mão no bolso e tirou a carteira. Abrindo-a com um movimento brusco, mostrou a Richard duas fotografias de Liz, dele e do bebé. Na primeira, Maryanne era ainda bebé; os olhos estavam quase fechados. A segunda era uma Kodachrome recente. O contraste entre o Tom de pele e a cor dos olhos dos pais e do bebé era evidente.

Jim disse:

- Um ano antes de Liz engravidar, fomos informados de que era praticamente impossível adotarmos uma criança. Liz e eu falámos na inseminação artificial. Ambos a rejeitámos, mas eu fui mais categórico do que ela. Maryanne tinha cabelo castanho-claro quando nasceu, e olhos azuis. Muitos bebés começam por ter olhos azuis e depois ficam da cor dos pais. Então foi só nos últimos meses que se tornou claro que havia algo de errado. Não que eu me importasse. Aquela criança é tudo para nós. Ele olhou para Richard. - A minha mulher é incapaz de dizer uma mentira mesmo entre amigos. Ela é a pessoa mais honesta que conheço. No mês passado resolvi facilitar-lhe as coisas. Disse que estava errado em relação à inseminação artificial, que compreendia a razão que levava as pessoas a sujeitarem-se a ela.

- Que é que ela disse? - perguntou Richard.

- Ela sabia o que eu queria dizer, claro. Disse que se eu pensava que ela era capaz de tomar uma decisão como aquela sem me dizer, eu não compreendia a nossa relação.

- Pedi-lhe desculpa, jurei que não era aquilo que tinha em mente, passei um tormento para a tranquilizar. Finalmente, acreditou em mim. - Ele olhou fixamente para a fotografia. Mas, evidentemente, eu sei que ela estava a mentir - disse ele abruptamente.

- Ou então não teve conhecimento do que o doutor Highley lhe fez - disse Richard categoricamente.

 

Dannyboy Duke atravessou a Third Avenue aos ziguezagues, correndo para a Fifty-Fifth e a Second, onde tinha o carro estacionado. A mulher dera pela falta da carteira assim que ele subiu para a escada rolante. Ele ouvira-a gritar, «Aquele homem, o de cabelo escuro, roubou-me.»

Conseguira esgueirar-se através da parede de mulheres no piso principal do Alexander’s, mas aquela cabra precipitou-se pela escada rolante abaixo atrás dele, aos gritos e a apontar quando ele transpôs a porta. O guarda provavelmente iria persegui-lo.

Se ao menos conseguisse chegar ao carro. Não podia abandonar a carteira. Estava cheia de notas de cem dólares. Ele vira-as e precisava de uma injeção hipodérmica com droga.

Tinha sido uma boa ideia entrar na seção de peles do Alexander’s. As mulheres traziam dinheiro para o Alexander’s. Levava muito tempo para se conseguir um cheque ou cartão de crédito visado. Descobrira isso quando trabalhou lá como empregado no armazém enquanto frequentava o liceu.

Nessa noite vestira um casaco que o fazia parecer empregado do armazém. Ninguém lhe prestara atenção. A mulher tinha uma daquelas carteiras enormes; segurava-a por uma tira enquanto esquadrinhava os cabides dos casacos. Fora fácil arrebatar-lhe a carteira.

Estava a ser seguido? Não se atrevia a olhar para trás. Faria recair as atenções sobre si mesmo. Era melhor manter-se rente às partes laterais dos prédios. Toda a gente se apressava. Estava um frio terrível. Já podia ter uma injeção, muitas injecções.

E dentro de muito pouco tempo estaria no carro. Ele não seria um homem que corria nas ruas. Afastar-se-ia de carro até à Fifty-Ninth Street Bridge, e estaria em casa em Jackson Heights. Teria a sua injeção.

Olhou para trás. Ninguém corria. Nenhum polícia. A noite anterior tinha sido péssima. O porteiro quase o apanhara quando arrombou aquele carro de um médico. E o que conseguiu com o risco que correu? Não havia drogas no saco. Uma ficha médica, um pisa-papéis sujo e um sapato velho, era inacreditável.

A carteira que ele arrebatara mais tarde à senhora de idade. Uns miseráveis dez dólares. Mal conseguira arranjar droga suficiente para se recompor nesse dia. A carteira e o saco estavam no banco traseiro do carro. Teria de se livrar deles.

Estava perto do carro. Abriu-o, entrou rapidamente. Mesmo antes de ver a luz intermitente, ouviu a sirena do carro da Polícia quando subia em sentido contrário o quarteirão a toda a velocidade. Tentou arrancar, mas o carro de rádio-patrulha interceptou-o. Um polícia, com a mão na coronha da pistola, saiu dum salto. Os faróis cegavam Danny.

O polícia abriu a porta com um sacão, espreitou e tirou a chave da ignição.

            - Então, Dannyboy - disse ele. - Ainda andas nisto, não é? Nunca aprendes truques novos? Agora sai daí, põe-me essas mãos onde as possa ver e mantém-te firme para eu poder ler-te o Miranda. Tu és o que és, um indivíduo que foi batido três vezes? Acho que devias apanhar dez a quinze, se tivermos sorte com um juiz.

 

O avião sobrevoou Newark. A descida foi aos solavancos. Chris lançou um olhar a Joan. Ela apertava a sua mão, mas ele sabia que isso não tinha nada a ver com o voo. Joan não tinha absolutamente medo nenhum dentro de um avião. Ele ouvira-a discutir o assunto com pessoas que detestavam andar de avião. «Segundo as estatísticas, estão muito mais seguros num avião do que num automóvel, num comboio, numa motorizada, ou na vossa banheira», dizia ela.

O seu rosto estava calmo. Ela insistira em tomarem uma bebida quando os cocktails foram servidos. Nenhum deles quisera jantar, mas ambos beberam café. A expressão do seu rosto era séria, mas calma. «Chris,», dissera ela, «não consigo deixar de pensar que Vangie se suicidou por minha causa. Não te preocupes por me envolveres nisto. Dizes a verdade quando te interrogarem e não escondas nada.»

Joan. Se conseguissem livrar-se daquilo, juntos teriam uma vida boa.. Ela era uma mulher. Ele ainda tinha muito que aprender a seu respeito. Nem sequer se apercebera que lhe podia dizer a verdade. Talvez tivesse caído no hábito de proteger Vangie para tentar evitar discussões. Tinha tanto que aprender sobre ele mesmo, abandonara Joan.

A aterragem foi violenta. Vários passageiros gritaram quando o avião desceu aos solavancos. Chris sabia que o piloto tinha feito um bom trabalho. Havia um vento dos diabos. Se se mantivesse, provavelmente encerrariam o aeroporto.

Joan sorriu-lhe.

- A hospedeira deve ter-nos obrigado a entrar. - Era uma piada antiga da companhia aérea.

- Ou estava a passar pelas brasas, pelo menos.

Ficaram calados quando o avião deslizou ao longo da linha até à cancela. As pessoas, que esperavam pelos passageiros, tinham de aguardar no lado de fora da cancela de segurança. Mas Chris não se surpreendeu ao ver os dois detetives, que tinham estado em sua casa depois de ele encontrar Vangie, à sua espera.

- Comandante Lewis. Miss Moore.

- Sim.

- Venham conosco, por favor. - A voz de Ed era formal.

- É meu dever informá-lo que é um suspeito na morte da sua mulher, Vangie Lewis, assim como em outros possíveis homicídios. Aquilo que disser pode ser usado contra si. Não é obrigado a responder a perguntas. Tem direito a chamar um advogado.

Joan respondeu por ele.

- Ele não precisa de advogado. E ele contará tudo o que sabe.

 

Molly recostou-se quando a orquestra começou a tocar a abertura de Otelo. Bill adorava ópera. Ela gostava. Em parte talvez fosse essa a razão por que não conseguia descontrair-se, Bill já estava completamente absorto, a expressão serena e pensativa. Ela olhou em redor. O Metropolitan estava cheio, como de costume. Os lugares eram excelentes. Tinham de ser. Bill pagara setenta dólares pelos dois. Por cima deles as luzes tremeluziam, cintilavam e depois começaram a apagar-se pouco a pouco até ficar uma escuridão prateada.

Ela devia ter insistido para que fossem ver Katie ao hospital nessa noite. Bill não compreendia, não podia compreender o medo que Katie tinha dos hospitais. Não era para admirar. Katie tinha vergonha de falar nisso. O pior é que havia um fundamento para o medo. O pai não tinha sido socorrido na devida altura. O homem de idade que estava no quarto com ele dissera-lhes isso. Até Bill admitiu que se cometiam muitos erros nos hospitais. Com um sobressalto, ouviu aplausos quando Plácido Domingo desceu do barco. Até àquele momento não ouvira nada da ópera. Bill lançou-lhe um olhar, e ela procurou parecer que se estava a divertir. Depois do primeiro ato, telefonaria a Katie. Isso ajudaria a tranquilizá-la. E de manhã estaria sem falta no hospital antes da operação e certificar-se-ia se Katie não estava demasiado nervosa.

O primeiro ato parecia não ter fim. Nunca pensara que fosse tão longo. Chegou o intervalo, finalmente. Recusando com impaciência a sugestão de Bill para tomarem uma taça de champanhe no bar, precipitou-se para um telefone. Marcou rapidamente o número e introduziu as moedas necessárias.

Uns minutos depois, com os lábios brancos, corria para Bill. Quase a soluçar, agarrou-lhe o braço.

- Há qualquer coisa que não está bem, há qualquer coisa que não está bem... telefonei para o hospital. Não quiseram passar a chamada ao quarto de Katie. Disseram que o médico proibiu as chamadas telefónicas. Liguei para a recepção e insisti com a enfermeira para que fosse ver Katie. Ela voltou agora mesmo. É uma garota, está histérica, Katie não está no quarto. Katie desapareceu.

 

Ele saiu do quarto de Katie e um sorriso de satisfação perpassou no seu rosto. Os comprimidos estavam a atuar. Ela já estava a começar a ter hemorragias. O dedo provava que o sangue não coagulava.

Desceu ao segundo piso e entrou para ver Mrs. Aldrich. O bebé estava num berço de madeira ao lado da cama. O marido estava com ela. Sorriu friamente aos pais, depois curvou-se sobre a criança.

- Um belo espécime na verdade - exclamou ele. - Penso que não o iremos entregar como pagamento parcial.

Ele sabia que as suas tentativas para ser jocoso eram desastrosas, mas às vezes era necessário. Aquelas pessoas eram importantes, muito importantes. Aldrich podia mandar milhares de dólares dos fundos destinados à investigação científica para Westlake. Mais investigação. Podia trabalhar no laboratório com animais, dar conhecimento dos seus triunfos. Então, quando começasse a trabalhar publicamente com mulheres, todas as experiências daqueles anos fariam com que o sucesso imediato se tornasse inevitável. Fama adiada não é necessariamente fama recusada.

Delano Aldrich olhava fixamente para o filho, num misto de temor e admiração.

- Doutor, ainda não acreditamos. É óbvio que todos estavam equivocados. - A ansiedade dela é que fora o principal problema. Fukhito descobrira isso. Distrofia muscular na família do pai. Ela sabia que podia ser portadora. Isso e alguns quistos fibróides no útero. Ele tratara dos quistos e ela engravidara. Depois fizera um teste antecipado ao líquido amniótico e pôde tranquilizá-la em relação ao problema da distrofia.

Todavia, era uma pessoa extremamente emotiva, quase hiperativa. Já abortara duas vezes há cerca de dez anos. Internara-a dois meses antes do parto. E resultara.

- Passo por cá de manhã. - Estas pessoas seriam testemunhas fervorosas para ele se houvesse alguma suspeita sobre a morte de Katie DeMaio.

Mas não haveria nenhuma dúvida. A queda da pressão arterial constaria do relatório hospitalar. A operação de emergência realizar-se-ia na presença das melhores enfermeiras do corpo de enfermagem. Enviaria para a sala de urgência um cirurgião para assistir. Molly estava de serviço nessa noite. Ele era um homem bom, o melhor. Molly poderia dizer à família e ao departamento de Katie que tinha sido impossível estancar a hemorragia, que o doutor Highley chefiara uma equipa que trabalhara freneticamente.

Deixando os Aldrich, dirigiu-se à secretária da enfermeira Renge. Ele elaborara cuidadosamente o plano de serviço para que ela estivesse a trabalhar. Uma enfermeira com mais experiência veria Katie de dez em dez minutos. Renge não era assim tão esperta.

- Enfermeira Renge.

- Doutor. - Ela levantou-se rapidamente, as mãos agitavam-se nervosamente.

- Estou muito preocupado com Mrs. DeMaio. A pressão arterial está baixa, mas dentro do limite normal, mas desconfio que a hemorragia vaginal é mais abundante do que ela supõe. vou sair para jantar, depois volto. Quero pronto o relatório sobre a análise ao sangue. Não queria afligi-la - ela toda a vida teve medo de hospitais -, mas não me surpreenderia se tivéssemos de operar hoje à noite. Decidirei isso quando voltar daqui a uma hora. Convenci-a a não jantar, e se ela pedir algum alimento sólido, não lho dê.

- Sim, doutor.

- Dê o soporífero a Mrs. DeMaio e não lhe dê a entender de nenhuma forma que pode ser necessária uma operação de urgência. Percebeu?

- Sim, doutor.

- Muito bem.

Ele fez questão de falar com várias pessoas na entrada principal. Resolvera jantar no restaurante adjacente aos terrenos do hospital. Não era mau. Podia-se comer um bife bastante bom, e ele pretendia apresentar mais tarde a imagem do médico consciencioso.

«Estava preocupado com Mrs. DeMaio. Em vez de ir para casa, jantei aqui perto e voltei logo para o hospital para a examinar. Ainda bem que o fiz. Pelo menos tentámos.»

E outro ponto importante. Mesmo numa noite lúgubre como aquela, não seria invulgar ir a pé para o restaurante. Assim ninguém saberia ao certo quanto tempo estivera fora.

Porque, enquanto esperava que o café fosse servido, tomaria a última e necessária providência. Deixara Katie às sete e cinco. Às oito menos um quarto estava no restaurante. Às oito dariam o soporífero a Katie. Era um comprimido forte. Graças ao seu estado de fraqueza, prostá-la-ia imediatamente.

Cerca das oito e meia não haveria perigo em subir ao terceiro andar pelas escadas das traseiras, entrar na sala de estar da suite, certificar-se se Katie estava a dormir e dar-lhe a injeção de heparin, o anticoagulante poderoso que, combinado com os comprimidos, fazia descer a pressão arterial e a percentagem de glóbulos no sangue.

Voltaria ali e acabaria de tomar o café, pagaria a conta e em seguida regressaria ao hospital. Levaria a enfermeira Renge quando fosse ver Katie. Dez minutos depois Katie estaria na sala de operações.

Ela tornara tudo mais fácil por não ter visitas. Evidentemente que ele estava preparado para essa eventualidade. Introduziria subrepticiamente o heparin na transfusão que ela receberia durante a operação. Isso seria igualmente eficaz, mas mais arriscado.

O bife era satisfatório. Era estranho como ficava esfomeado em ocasiões como aquela. Teria preferido esperar até tudo estar terminado para comer, mas isso seria praticamente impossível. Quando conseguissem entrar em contato com a irmã de Katie há muito que teria dado a meia-noite, uma vez que ela estava na ópera. Esperaria por ela no hospital para a consolar. Ela lembrar-se-ia da sua amabilidade. Só chegaria a casa perto das duas ou três horas. Não podia estar tanto tempo sem comer.

Deu-se ao luxo de beber um copo de vinho. Teria preferido a meia garrafa do costume, mas nessa noite era impossível. Todavia, o único copo que bebeu, aqueceu-o, tornou-o mais vivo, ajudou o seu espírito a recapitular as possibilidades, a prever o inesperado.

Aquilo seria o termo do perigo. O saco não aparecera. Provavelmente nunca iria aparecer. Salem, que constituía uma ameaça, fora eliminado. Os jornais noticiavam a sua morte como «caiu ou saltou». Edna foi enterrada nessa manhã. Vangie Lewis fora enterrada na véspera. O mocassin no interior da gaveta de Edna não teria nenhum significado para as pessoas que ficassem com os seus miseráveis haveres.

Uma semana terrível. E tão inútil. Ele devia ter permissão para prosseguir o seu trabalho publicamente. Há uma geração a inseminação artificial era considerada imoral. Agora milhares de bebés nasciam por esse processo todos os anos.

Recuemos centenas de anos. Os árabes costumavam destruir os inimigos, infiltrando-se nos seus acampamentos e fecundando as éguas com algodão impregnado de sémen de garanhões de qualidade inferior. Um génio extraordinário para ter planeado aquilo.

Os homens que tinham realizado com êxito fecundação in vitro pela primeira vez eram homens de génio.

Mas o génio dele superava-os todos. E nada o impediria de receber as recompensas que lhe eram devidas.

O Prémio Nobel. Recebê-lo-ia um dia. Por contributos à medicina que se pensavam impossíveis.

Sozinho, solucionara o problema do aborto, o problema da esterilidade.

E a tragédia era que se isso fosse conhecido, seria considerado um criminoso como Copérnico.

- Gostou do jantar, doutor? - A criada era conhecida. Oh, sim, ele assistira-a ao nascimento de um bebé há alguns anos. Um rapaz.

- Mesmo muito. E como está o seu filho?

- Ótimo, sir. Ótimo.

- Esplêndido. - Foi incrível como aquela mulher e o marido pagaram os seus honorários, dando-lhe o dinheiro que tinham economizado para uma casa. Bem, ela conseguira o que desejava.

- Gostaria de um cappuccino, por favor.

- Certamente, doutor, mas isso demorará pelo menos dez minutos.

- Enquanto o arranja, vou fazer uns telefonemas. - Ausentar-se-ia por menos de dez minutos. Assim a criada não daria pela falta dele.

Viu através da janela que já não nevava. Evidentemente que não podia ir buscar o casaco ao depósito de bagagens. Esgueirando-se pela porta lateral próxima do pátio de entrada com os telefones e vestiários, percorreu rapidamente o caminho. O frio fustigava-lhe o rosto, mas ele mal se apercebeu. Planeava todos os passos.

Era fácil manter-se ao abrigo das sombras. Tinha a chave da saída de emergência nas traseiras da ala da maternidade. Ninguém se servia daquelas escadas. Entrou no edifício.

A escadaria estava muito iluminada. Desligou o interruptor. Ele era capaz de percorrer este hospital de olhos vendados. No terceiro andar, abriu cautelosamente a porta, pôs-se à escuta. Não havia nenhum ruído. Entrou no vestíbulo sem fazer barulho. Pouco depois estava na sala de estar da suite de Katie.

Esse fora outro problema que ele tivera em consideração. E se alguém a acompanhasse até ao hospital; a irmã, uma amiga? E se essa pessoa pedisse para passar a noite no sofá-cama na sala de estar? A Clínica Westlake encorajava a pernoita se a paciente o desejasse. Tendo mandado pintar de novo a sala de estar, tornara inviável essa possibilidade.

Planejar. Planejar. Era tudo, tão útil e necessário tanto na vida como no laboratório.

Nessa tarde deixara a seringa na gaveta de uma pequena mesa debaixo de um pano para as pinturas. A luz do parque de estacionamento passava através da janela, dando-lhe visibilidade suficiente para encontrar logo a mesa. Pegou na seringa.

Agora era o momento crucial. Se Katie acordasse e o visse, ficaria exposto ao perigo. O mais provável era voltar a adormecer imediatamente. Certamente ela nunca desconfiaria da injeção. Mas quando ele voltasse mais tarde com a enfermeira Renge, se ela por acaso ainda estivesse consciente, se ela dissesse alguma coisa sobre a injeção, seria um perigo. Oh, seria bastante fácil de explicar: ela estava confusa; ela referia-se ao momento em que lhe tirei as amostras de sangue. Mesmo assim. O melhor seria que ela não acordasse naquele instante.

Ele estava no quarto, curvando-se sobre ela. Pegou-lhe no braço. O cortinado estava parcialmente aberto. Uma luz fraca entrava no quarto. Ele conseguia ver o seu perfil. O rosto estava virado na direção contrária. A respiração era irregular. Ela estava a falar a dormir. Não conseguia perceber as palavras. Devia estar a sonhar.

Introduziu a agulha no braço, fez pressão. Ela estremeceu e suspirou. Os olhos, turvos de sono, abriram-se quando ela virou a cabeça. Na luz fraca, ele pôde ver as pupilas dilatadas. Ela levantou os olhos para ele, desorientada.

- Doutor Highley - murmurou ela -, por que razão matou Vangie Lewis?

 

Scott Myerson estava mais cansado do que furioso. Desde que o corpo de Vangie Lewis fora encontrado na manhã de terça-feira, tinham morrido mais duas pessoas. Duas pessoas muito corretas - uma recepcionista trabalhadora que merecia uns anos de liberdade depois de sustentar e tratar uns pais idosos e um médico que estava a dar um contributo autêntico para a medicina.

Eles morreram porque ele não agira com a celeridade necessaria. Chris Lewis era um assassino. Scott tinha a certeza disso. A teia que se enredava à volta de Lewis era indestrutível. Se ao menos se tivessem apercebido logo de que a morte de Vangie Lewis era um homicídio. Ele teria prendido Lewis imediatamente para ser interrogado. Podiam ter dado cabo dele. E se o tivessem feito, Edna Burns e Emmet Salem ainda estariam vivos.

Scott não podia esperar pela oportunidade de chegar até Lewis. Um homem, que era capaz de matar a mulher grávida, êra capaz de cometer um assassínio a sangue-frio. Lewis provava isso. Era a pior espécie de criminoso. Aquele que não parecia aquilo que era. Aquele em quem se confiava e nos traía. Lewis e a namorada chegavam às sete horas. Deveriam estar ali por volta das oito. Lewis era calmo, não havia dúvida. Era suficientemente atilado para não fugir. Pensava que podia comportar-se descaradamente. Sabe que é tudo circunstancial. Mas uma prova circunstancial pode ser muito melhor do que o depoimento de uma testemunha ocular se for devidamente apresentada em tribunal. Scott iria julgar o caso. Teria todo o prazer nisso.

Às sete e cinquenta, Richard entrava no escritório de Scott. Não perdeu tempo com preâmbulos.

- Acho que destapámos uma latrina - disse ele -, e ela chama-se Maternidade e Centro de Concepção Westlake.

- Se está a dizer que o baixote talvez andasse com Vangie Lewis, eu sou da mesma opinião - afirmou Scott. - Mas pensava que tínhamos chegado a essa conclusão esta tarde. Seja como for, vai ser bastante fácil descobrir. Tire amostras de sangue ao feto e nós prendemos Fukhito. Ele não se pode recusar a que lhe façam uma análise ao sangue. Se o fizer, é uma admissão clara de culpa, e ele ficará liquidado como médico se se provar outro caso de paternidade.

- Não é disso que estou a falar - interrompeu Richard com impaciência. - Eu ando atrás de Highley. Creio que ele anda a fazer experiências com as pacientes. Acabei de falar com o marido de uma delas. É impossível que ele seja o pai da criança, mas ele assistiu ao parto. Ele pensa que a mulher concordou com a inseminação artificial sem o seu consentimento. Penso que não é só isto. Creio que Highley está a fazer inseminação artificial sem o conhecimento das suas pacientes. É por isso que elas conseguem gerar bebés milagrosamente sob os seus cuidados.

Scott bufou.

- Quer dizer que pensa que Highley injetaria Vangie Lewis com o sémen de um pai oriental e esperava escapar impune? Deixe-se disso, Richard.

- Talvez ele não soubesse que o dador era oriental. Talvez cometesse um erro.

- Os médicos não cometem erros como esse. Mesmo admitindo que a sua teoria está certa... e francamente, não acredito nisso... isso não prova que ele seja o assassino de Vangie.

- Há algo de errado em Highley - insistiu Richard. - Senti isso assim que o vi.

- Olhe, vamos investigar a Maternidade Westlake. Não constitui nenhum problema. Se lá houver algum tipo de violação, nós iremos descobri-la e movemos-lhe um processo. Se você estiver certo e se ele estiver a inseminar mulheres sem o seu consentimento, apanhá-lo-emos. É uma violação clara de ofensa à vontade individual. Mas preocupemo-nos com isso mais tarde. Neste momento Chris Lewis está em primeiro lugar na minha agenda de trabalho.

- Faça isso - insistiu Richard. - Obtenha mais informações sobre o passado de Highley. Eu já estou a examinar as ações judiciais por negligência médica contra ele. Uma mulher, uma Mrs. Horan, estará aqui dentro em pouco para contar os motivos que a levaram a levantar-lhe um processo. Mas o artigo da Newsmaker diz que ele esteve em Liverpool, em Inglaterra, antes de vir para aqui. Vamos telefonar para lá para vermos se descobrimos algum sinal de incorreção. Eles dar-lhe-ão essa informação. Scott encolheu os ombros.

- Claro, vá em frente.

A campainha sobre a secretária tocou. Ele ligou o intercomunicador.

- Façam-no entrar - disse ele. Reclinando-se na cadeira, olhou para Richard.

- O viúvo pesaroso, o comandante Lewis, está aqui com a amante - disse ele.

 

Dannyboy Duke estava sentado no distrito policial curvado numa cadeira. Estava a transpirar; com os nervos em franja. Os braços tremiam. Era uma cena difícil de suportar. Mais trinta segundos e ele teria escapado. Estaria no seu apartamento, o alívio abençoado da injeção a percorrer-lhe o corpo. Em vez disso, aquele buraco cheio de vapor e abrasador,

- Dêem-me uma oportunidade - sussurrou ele. Os polícias não se comoveram.

- Tu é que nos deste uma oportunidade, Danny. Há sangue neste pisa-papéis, Danny. Quem agrediste com ele? Vá lá, Danny. Sabemos que não foi a senhora de idade cuja carteira roubaste ontem à noite. Atiraste-a ao chão. Ela fracturou o osso ilíaco. Isso é muito mau quando se tem setenta e cinco anos de idade. O mais provável é ela acabar por apanhar uma pneumonia. Talvez morra. Assim seriam dois assassínios, Dannyboy. Tu cooperas, nós veremos o que podemos fazer por ti, compreendes?

- Não sei do que está a falar - sussurrou Danny.

- Claro que sabes. O saco do médico estava no teu carro; A carteira também estava. A carteira que roubaste no Alexander’s estava no teu bolso. Sabemos que roubaste o saco ontem à noite. Recebemos a chamada. O porteiro viu-te em frente do Carlyle Hotel. Ele pode identificar-te. Mas quem agrediste com aquele pisa-papéis, Danny? Diz-nos. E aquele sapato, Danny? Desde quando guardas sapatos velhos? Diz-nos.

- Estava dentro do saco - sussurrou Danny.

Os dois detetives olharam um para o outro. Um deles encolheu os ombros e virou-se para o jornal sobre a secretária atrás dele. O outro deixou cair de novo no saco a ficha que estivera a examinar.

- Muito bem, Danny. Estamos a telefonar ao doutor Salem para sabermos o que ele tinha neste saco. Resolve-se isto. Podia ser mais fácil se cooperasses. Estás aqui há tempo suficiente para pensares nisso.

O outro detetive levantou os olhos do jornal.

- O doutor Salem? - A voz era de estupefação.

- Sim. É o nome que está na ficha. Oh, compreendo. A chapa tem o nome de um Edgar Highley. Se calhar tinha a ficha de uma doente de outro médico.

O detetive mais novo aproximou-se da mesa com o Daily News da manhã. Ele abriu a ficha e examinou o molho de papéis com o nome EMMET SALEM, MD escrito em tipo de imprensa no topo. Apontou para a página três do News. «Salem é o médico que foi encontrado no telhado da extensão do Essex House na noite passada. O promotor de justiça de Valley County está a trabalhar com as nossas autoridades neste caso.»

Os agentes da Polícia olharam para Dannyboy com interesse renovado e olhos semicerrados, desconfiados.

 

Ele prestou atenção quando os olhos de Katie se fecharam e a respiração regularizou. Ela adormecera outra vez. A pergunta sobre Vangie viera de qualquer parte no seu subconsciente, estimulada talvez por uma duplicação do seu estado mental da noite de segunda-feira. Ela talvez nem se lembrasse de ter feito a pergunta, mas ele não podia arriscar-se. E se ela voltasse a falar nisso na presença da enfermeira Renge ou dos outros médicos na sala de operações antes de a anestesiarem? O seu espírito procurou uma solução. A sua presença na janela na noite da segunda-feira anterior ainda podia destruí-lo.

Ele precisava de a matar antes de a enfermeira Renge fazer a verificação, em menos de uma hora. A injeção de heparin atuaria imediatamente para impedir que o sangue coagulasse; mas levaria várias horas a completar o processo. Foi aquilo que ele planejara. Agora não podia esperar. Tinha de lhe dar outra injeção, imediatamente.

Tinha heparin no gabinete. Não se atrevia a aproximar-se do dispensário do hospital. Teria de ir pelas escadas de emergência até ao parque de estacionamento, servir-se da porta privada do gabinete, encher de novo a seringa para injeções hipodérmicas e voltar ali. Demoraria pelo menos cinco minutos. A criada começaria a interrogar-se por ele não estar na mesa, mas não havia nada a fazer. Satisfeito por Katie estar a dormir, saiu apressadamente do quarto.

 

O técnico do Laboratório de Medicina Legal de Valley County trabalhou horas extraordinárias sexta-feira à noite. O doutor Carroll pedira-lhe para comparar todas as amostras microscópicas da casa da presumível homicida, Vangie Lewis, com todas as amostras microscópicas da casa de Edna Burns, vítima de suposto acidente. Cuidadosamente esquadrinhara o conteúdo do saco do aspirador da casa Lewis e do apartamento Burns e procurou diligentemente substâncias que pudessem ser invulgares.

O técnico sabia que possuía um instinto apurado para provas microscópicas, um pressentimento que raramente o deixava ficar mal. Ele tinha sempre um interesse especial por cabelos, e gostava de dizer, «Somos como animais cobertos de pêlo. É espantoso como deixamos cair constantemente tanto cabelo, incluindo as pessoas que são praticamente calvas.»

Nas substâncias da casa, Lewis descobriu uma quantidade razoável de fios de cabelo loiro-escuro da vítima. Descobriu também cabelo castanho, em número apreciável, do quarto de dormir. Sem dúvida do marido, uma vez que os mesmos cabelos estavam no gabinete e na sala de estar.

Mas também havia alguns cabelos ruivos prateados no quarto da vítima. Era estranho. Na cozinha ou na sala de estar, os fios de cabelo podiam muito bem ser de uma visita ou de uma pessoa que fazia a entrega de mercadorias, mas no quarto? Mesmo hoje em dia, havia poucas pessoas não pertencentes à família que eram convidadas a entrar no quarto. Tudo apontava para um significado especial. O cabelo era da cabeça de um homem. O comprimento sugeria isso automaticamente. Alguns dos fios de cabelo estavam no casaco que a vítima trazia vestido.

E o técnico descobriu então a ligação que Richard Carroll procurara. Vários cabelos ruivos com raízes prateadas estavam presos no roupão azul desbotado de Edna Burns.

Ele colocou as amostras de cabelo em microscópios com grande poder de aumento e examinou cuidadosamente os dezasseis pontos do teste de comparação.

Não havia sombra para dúvidas. Uma pessoa estivera muito perto das duas mulheres mortas; suficientemente perto para chegar com a cabeça ao peito de Edna Burns e para roçar com a cabeça no ombro de Vangie Lewis.

O técnico pegou no telefone para entrar em contato com o doutor Carroll.

 

Ela tentou acordar. Ouviu-se um estalido fechara-se uma porta. Alguém estivera ali. Doía-lhe o braço. O doutor Highley. Adormecera... Que dissera ao doutor Highley? Katie despertou uns minutos depois e lembrou-se. Lembrou-se do carro preto e dos raios reluzentes das rodas e da luz nos seus óculos. Ela vira aquilo na noite de segunda-feira. O doutor Highley levara Vangie Lewis para o quarto na noite de segunda-feira. O doutor Highley matara Vangie.

Richard desconfiara de alguma coisa. Richard. tentara dizer-lhe. Mas ela não lhe deu ouvidos.

O doutor Highley sabia que ela estava a par de tudo o que se relacionava com ele. Por que razão lhe fizera aquela pergunta? Precisava de sair dali. Ele ia matá-la também. Ela tivera sempre pesadelos relacionados com hospitais. Porque pressentira que iria morrer num hospital.

Onde teria ido o doutor Highley. Ele voltaria. Ela sabia. Voltaria para a matar. Ajuda. Ela precisava de ajuda. Por que razão estava tão fraca? O dedo sangrava. Os comprimidos que ele lhe dera. Desde que os tomava sentira-se muito doente. Os comprimidos. Estavam a fazê-la sangrar.

«Oh, meu Deus, ajuda-me, por favor. O telefone. O telefone!» Katie procurou-o às apalpadelas. A mão, fraca e trémula, derrubou-o. Abanando a cabeça, esforçando-se por manter os olhos abertos, levantou-o puxando-o pelo fio. Finalmente tinha o auscultador perto do ouvido. Não dava sinal. Freneticamente, agitou o telefone, tentou ligar para a telefonista.

O doutor Highley dissera que o telefone estava a ser reparado. Puxou a sineta para chamar a enfermeira. A enfermeira iria ajudá-la. Mas o estalido que deveria ter acendido a luz na parte de fora da porta não funcionou. Ela tinha a certeza que o sinal também não apareceu no painel da enfermeira.

Ela tinha de sair dali antes que o doutor Highley voltasse. Ondas de vertigem provocaram-lhe náuseas quando se levantou.

Ela tinha de fugir. Vangie Lewis. O longo cabelo loiro, a impaciência petulante de uma criança. O doutor Highley matara Vangie. Matara o seu filho. Houvera outras mortes?

Ela afastou-se da cama, segurando-se à barra desta. O elevador. Desceria no elevador até ao segundo andar. Lá havia pessoas - outras doentes, enfermeiras.

A pouca distância fechou-se uma porta. Ele vinha lá. Ele vinha lá. Freneticamente, Katie olhou para a porta aberta no corredor. Ele vê-la-ia se ela saísse naquela altura. A porta da casa de banho não tinha fechadura. O armário. Ele iria descobri-la. Por simples força de vontade, conseguiu aproximar-se da porta aos tropeções que dava para a sala de estar, abriu-a, entrou, fechou-a antes de ele entrar no quarto.

Para onde podia ir? Ele iria logo à sua procura. Não podia ficar ali. Se tentasse sair para o corredor, passaria pela porta aberta do quarto. Vê-la-ia. Tinha de ir até ao vestíbulo e virar à esquerda, em seguida atravessar o corredor comprido até ao elevador. Ela não era capaz de lhe fazer frente. Para onde podia ir? Ouviu uma porta a abrir-se lá dentro. Ele andava à procura dela no quarto. Devia tentar esconder-se debaixo dos panos? Não. Ficaria encurralada. Iria descobri-la, arrancá-la de lá. Mordeu o lábio quando uma tontura se fincou no espaço atrás dos olhos. As pernas pareciam de borracha, a boca e a pele estavam esponjosas.

Arrastou-se até à porta da sala de estar, aquela que dava para o corredor. Lá havia outra porta, a saída de emergência. Ela vira-a quando a traziam na cadeira de rodas. Desceria por lá até ao segundo andar. Conseguiria ajuda. Estava no corredor. Dentro de um minuto ele estaria atrás dela.

A porta das escadas de emergência era pesada. Puxou-a com força... puxou outra vez. Ela cedeu com relutância. Ela abriu-a, entrou. Esta fechou-se lentamente. Ele vê-la-ia a fechar-se? As escadas. Estava tão escuro, muito escuro. Mas não podia acender a luz. Ele iria vê-la. Talvez viesse a correr pelo corredor abaixo em direção ao elevador. Se ele fizesse isso, teria mais um minuto. Ela precisava desse minuto. «Ajudem-me. Ajudem-me.» Agarrou-se ao corrimão. As escadas eram íngremes. Os pés descalços não faziam barulho. Quantos degraus num lanço? Treze. Não, isso era uma casa. Havia um patamar depois de oito degraus. Depois outro lanço. Mais oito degraus, depois estaria a salvo. Sete... Cinco... um. Estava perto da porta, tentou rodar o puxador. Só abria do outro lado.

Ouviu abrir-se a porta do terceiro andar e passos pesados pela escada abaixo.

 

Chris recusou-se a chamar um advogado. Sentou-se em frente do promotor de justiça. Estivera tão preocupado com este encontro, cheio de medo que não acreditassem nele. Mas Joan acreditava nele; Joan dissera: «É natural que eles desconfiem de ti, Chris. Diz tudo o que sabes. Lembra-te daquela frase da Bíblia, ”A verdade libertar-te-á.”» Chris desviou o olhar do promotor e fixou-o nos dois detetives que o esperavam no aeroporto.

- Não tenho nada a esconder - disse ele.

Scott não ficou impressionado. Um rapaz, com ar de intelectual com um bloco de estenografia, entrou na sala, sentou-se, abriu o bloco e tirou uma caneta. Scott olhou de frente para Chris.

- Comandante Lewis, é meu dever informá-lo que o senhor é um suspeito nas mortes de Vangie Lewis, Edna Burns e o doutor Emmet Salem. Pode manter-se calado. Não é obrigado a responder a nenhuma pergunta. Em qualquer altura pode recusar-se a continuar a responder às perguntas. Tem direito aos serviços de um advogado. Qualquer afirmação que faça pode ser usada contra o senhor. Compreendeu bem?

- Sim.

- Sabe ler?

Chris olhou fixamente para Scott. Estava a ser sarcástico? Não, o homem estava a falar a sério. - Sei. Scott empurrou um papel para o outro lado da secretária.

- Isto é uma cópia da notificação Miranda, que acabou de ouvir. Por favor, leia-a com atenção. Veja se não tem dúvidas e depois, se estiver disposto, assine-a.

Chris leu rapidamente a declaração, assinou-a e devolveu-a...

- Muito bem. - Scott puxou o papel para um lado. Os seus modos mudaram, tornaram-se um pouco mais vivos. Chris percebeu que o interrogatório ia começar.

«Engraçado», pensou ele, «todas as noites das nossas vidas, se quisermos, podemos ver imagens de polícias e ladrões ou dramas de tribunal, mas nunca pensamos que nos podemos ver envolvidos num. Era evidente que o promotor de justiça pensava que tinha sido ele que tinha morto Vangie. Seria loucura não se aconselhar com um advogado? Não.»

O promotor dizia:

- Comandante Lewis, foi maltratado ou ofendido de alguma maneira?

            - Não.

            - Quer café ou comida?

Chris passou a mão pela testa.

- Gostaria de tomar um café, por favor. Mas estou disposto a responder a todas as suas perguntas.

Mesmo assim, não estava preparado para a pergunta de Scott.

- Matou a sua mulher, Vangie Lewis? Chris fitou-o.

- Não matei a minha mulher. Não sei se ela foi assassinada. Mas sei isto. Se ela morreu antes da meia-noite na segunda-feira, ela não se suicidou em nossa casa.

Scott, Charley, Phil e o estenógrafo ficaram estupefatos, o que era impróprio da sua profissão, quando Chris disse calmamente:

- Eu estava lá pouco antes da meia-noite na segunda-feira. Vangie não estava em casa. Regressei a Nova Iorque. Às onze horas da manhã seguinte encontrei-a na cama. Só depois do dono da agência funerária ir lá a casa buscar as roupas para vestir a minha mulher e me disse a hora da morte é que eu compreendi que o seu cadáver devia ter sido levado para a nossa casa. Mas mesmo antes disso sabia que havia qualquer coisa de estranho. A minha mulher nunca teria usado nem mesmo tentado calçar os sapatos que tinha nos pés quando foi encontrada. Porque seis semanas antes da sua morte os únicos sapatos que podia trazer eram um par de mocassins velhos que a mulher da limpeza deixara lá em casa. A perna direita e o pé estavam muito inchados. Ela até usava aqueles mocassins como chinelos de quarto...

Foi mais fácil do que ele esperava. Ouviu as perguntas que lhe faziam.

- Saiu do hotel às oito da noite na segunda-feira e regressou às dez. Onde foi?

- Ao cinema em Greenwich Village. Depois de regressar ao motel, não consegui dormir. Resolvi ir a casa de carro e falar com Vangie. Isso foi pouco depois da meia-noite.

- Por que razão não ficou em casa e não esperou pela sua mulher? - E depois aquela que foi como uma pancada de martelo no estômago: - Sabia que a sua mulher trazia no ventre um feto japonês?

- Oh, meu Deus! - O pavor misturado com uma sensação de alívio percorreu o corpo de Chris. O filho não era dele. Um feto japonês. Aquele psiquiatra. Ele seria assim tão malvado para lhe fazer aquilo? Ela tinha tanta confiança nele. Oh, Deus, pobrezinha. Não era para admirar que tivesse tanto medo do parto. Deve ter sido por isso que telefonou ao doutor Salem. Ela queria esconder. Oh, Deus, ela era tão criança. As perguntas surgiram:

- Não sabia que a sua mulher tinha uma relação com outro homem?

- Não. Não.

- Por que razão foi ao apartamento de Edna Burns terça-feira à noite?

Veio o café. Ele tentou responder.

- Espere, por favor - não podemos registar isto tal como aconteceu? - Começou a beber lentamente o café. Ajudou. Foi na terça-feira à noite, pouco depois de tomar consciência de que Vangie tinha morrido antes de a trazerem para casa, que aquela mulher, Edna Burns, telefonou. Quase não se percebia o que dizia. Falou de Cinderela e do Príncipe Encantado, disse que tinha uma coisa para mim, uma coisa que eu gostaria de ter, e que tinha uma história para a Polícia. Pensei que ela talvez soubesse com quem Vangie andava. Pensei que se ela me contasse, talvez não tivesse de admitir que tinha estado em casa na noite de segunda-feira. Não queria que Joan se visse envolvida nisto.

Pousou a chávena do café, recordando a noite de terça-feira. Parecia há tanto tempo. Estava tudo tão desajustado.

- Fui de carro até à urbanização onde vivia Miss Burns. Um miúdo andava a passear o cão e indicou-me o apartamento. Toquei à campainha e bati à porta. A televisão estava ligada, a luz acesa, mas ela não respondeu. Calculei que tivesse desmaiado e não adiantava falar com ela, que talvez não passasse de uma pessoa excêntrica. Fui para casa.

- Não chegou a entrar? - Não. - Aque horas foi isso?

- Cerca das nove e meia. - Está bem. Que fez a seguir?

As perguntas, uma após outra; bebeu mais café. A verdade. Só a verdade. Era muito mais fácil do que as evasivas. Não esquecer o futuro. Se acreditassem nele, ele e Joan teriam uma vida em conjunto. Pensou na forma como ela olhara para ele, como o abraçara na noite anterior no seu apartamento. Pela primeira vez na sua vida, teve consciência que havia uma péssoa a quem poderia recorrer quando tivesse problemas; alguém que os queria partilhar com ele. Todos - Vangie, mesmo os pais dele - tinham dependido sempre dele.

Tanto na felicidade como na adversidade.

«Seriam felizes. Joan, minha querida», pensou ele. Respirou fundo. Estavam a fazer perguntas sobre o doutor Salem.

 

Richard sentou-se à secretária de Katie enquanto esperava que o chefe de pessoal do Christ Hospital, Devon, atendesse o seu telefonema. Apenas dando ênfase à necessidade premente de falar com alguém nos postos de chefia, que estava no hospital há mais de dez anos é que lhe deram o número particular do homem.

Enquanto aguardava, olhou em redor. A mesa atrás da secretária de Katie estava cheia de processos em que ela estava a trabalhar. Não admirava que não tivesse tirado uma folga depois do acidente. Mas por mais ocupada que estivesse, devia ter ficado em casa. Nessa tarde estava com muito mau aspecto. E o fato de ter perdido aquele caso nesse dia devia tê-la perturbado muito. Gostava de ter estado com ela antes de se ir embora.

O telefone continuava a dar sinal. O homem devia estar ausente ou a dormir. Talvez pudesse protelar até de manhã. Não. Precisava de descobrir naquele momento.

Havia instantâneos numa moldura sobre a secretária de Katie. Katie com uma senhora de idade, provavelmente a mãe. Sabia que a mãe vivia algum lugar na Florida. Katie com Jennifer, a filha mais velha de Molly. Katie parecia a irmã mais velha de Jen. Katie com um grupo de pessoas com equipamento de esqui. Deviam ser os amigos com que ficava em Vermont.

Nenhum retrato de John DeMaio. Mas Katie não era o tipo de pessoa que no trabalho fazia lembrar sutilmente aos outros que era a viúva de um juiz proeminente. E havia certamente muitas fotografias dele por toda a casa.

O telefone continuava a tocar. Esperaria mais um minuto.

Richard compreendeu que estava satisfeito por não ver fotografias de outro homem. Estivera a analisar a sua reação quando Katie lhe disse que iria passar o fim-de-semana fora. Tentara fazer parecer que ficara surpreendido por ela não poder estar livre no momento em que estava iminente um caso importante.

- Sim. - Uma voz zangada e ensonada atendeu o telefone. Richard endireitou-se, apertou com mais força o auscultador.

- Mr. Reeves? Mr. Alexander Reeves?

- Sim.

Richard foi direito ao assunto.

- Peço imensa desculpa de lhe telefonar a esta hora, mas o assunto é vital. É uma chamada transatlântica. Sou o doutor Richard Carroll, o examinador médico de Valley County, Nova Jérsia. Preciso de obter informações sobre o doutor Edgar Highley.

A sonolência desapareceu da voz do outro homem. Tornou-a viva e prudente.

- Que deseja saber?

- Acabo de falar com a Clínica Queen Mary em Liverpool e fiquei admirado ao saber que o doutor Highley fez parte da direção há relativamente pouco tempo. Tínhamos sido levados a pensar o contrário. Todavia, disseram-me que o doutor Highley fez parte do corpo diretivo do Christ Hospital pelo menos durante nove anos. Não é assim?

- Edgar Highley fez o internato conosco depois da licenciatura em Cambridge. Ele é um médico brilhante e foi convidado para o corpo diretivo, especializando-se em obstetrícia e ginecologia.

- Quando saiu?

- Depois da morte da mulher estabeleceu-se de novo em Liverpool. Depois soubemos que tinha emigrado para os Estados Unidos. Isso não é invulgar, claro. Muitos dos nossos clínicos e cirurgiões não aceitarão os honorários relativamente baixos do nosso sistema médico socializado.

- Não houve outro motivo para o pedido de demissão do doutor Highley?

- Não compreendo a sua pergunta. - Richard aproveitou a ocasião.

- Eu penso que o senhor compreende, Mr. Reeves. Isto é, evidentemente, absolutamente confidencial, mas não posso perder tempo a ser discreto. Creio que o doutor Highley pode estar a fazer experiências com as pacientes grávidas, talvez mesmo com as suas próprias vidas. Existe alguma justificação que possa apresentar para confirmar esta possibilidade?

Houve um longo silêncio. As palavras que vieram a seguir foram lenta e cautelosamente articuladas.

- Enquanto esteve conosco, o doutor Highley não era apenas um médico que exercia a sua profissão, estava também profundamente empenhado na investigação pré-natal. Fez experiências bastante brilhantes com embriões de rãs e mamíferos. Então um colega começou a desconfiar que ele fazia experiências com fetos humanos abortados - o que é, evidentemente, ilegal.

- Que medidas foram tomadas?

- Foi mantido em segredo, claro, mas estava a ser vigiado. Depois aconteceu uma tragédia. A mulher do doutor Highley morreu inesperadamente. Não podíamos provar nada, mas suspeitava-se que ele tinha implantado na mulher um feto abortado. Pediram ao doutor Highley que se demitisse. Isto é, claro, absolutamente confidencial. Não existe a mínima prova, e devo contar que o senhor encare esta conversa como inviolável.

Richard absorveu o que ouvira. A sua suspeita tinha fundamento. Quantas mulheres matara Highley com as suas experiências? Uma questão surgiu no seu espírito - uma possibilidade louca, quase inimaginável.

- Mr. Reeves - perguntou -, conhece por acaso um doutor Emmet Salem?

A voz animou-se imediatamente.

- Claro que conheço. Um bom amigo. O doutor Salem estava cá na altura do escândalo Highley.

 

Katie desceu as escadas até ao piso principal sem fazer barulho. Agarrou desesperadamente no puxador, tentou abrir a porta. Mas ela não cedeu. Estava fechada à chave. Lá em cima, os passos tinham parado. Ele estava a experimentar o puxador da porta do segundo andar, certificando-se de que ela não lhe escapara. Os passos começaram de novo. Ele ia descer. Ninguém a ouviria se gritasse. Aquelas portas pesadas eram à prova de fogo. Ali não se ouvia nenhum som do hospital. Do outro lado da porta, havia pessoas; visitas, pacientes, enfermeiras. A menos de seis polegadas. Mas eles não a podiam ouvir.

Ele vinha lá. Podia apanhá-la, matá-la. Sentiu uma dor forte, constante na zona pélvica. Estava a deitar muito sangue. O que quer que fosse que ele lhe dera provocara a hemorragia. Sentia tonturas. Mas tinha de fugir. Ele fizera com que a morte de Vangie parecesse suicídio. Ainda podia escapar sem ser punido. Precipitou-se pela escada abaixo. Havia mais um lanço. Provavelmente ia dar à cave do hospital. Ele teria de explicar como e porquê ela fora lá parar. Quanto mais se afastasse mais perguntas seriam feitas. Tropeçou no último degrau, «Não caias. Não faças com que pareça um acidente. Edna caíra. Ou não?» Ele também matara Edna Burns?

Mas ali ficaria encurralada. Outra porta. Aquela também devia estar fechada à chave. Rodou o puxador desesperadamente. Ele estava no patamar do meio. Escuro como estava, ela conseguia ver movimento, um vulto a precipitar-se na sua direção.

A porta abriu-se. O corredor estava pouco iluminado. Estava na cave. Viu compartimentos à sua frente. Havia tanto silêncio. A porta fechou-se atrás dela com um estalido. Podia-se esconder em algum lugar? «Ajudem-me. Ajudem-me.» Havia um interruptor na parede. Fez pressão com a mão em cima dele. O dedo sujou-o de sangue. O corredor ficou envolto em escuridão quando a alguns passos atrás dela a porta da caixa da escadaria se abriu de repente.

 

Highley era suspeito da morte da sua primeira mulher. O primo de Winifred Westlake acreditava que ele tinha provocado a morte de Winifred. Highley era um investigador brilhante. Highley podia ter andado a fazer investigações com algumas das mulheres que eram suas pacientes. Highley podia ter injetado Vangie Lewis com o sémen de um homem oriental. Mas porquê? Esperava escapar impune? Sem dúvida que conhecia o passado de Fukhito. Tentaria acusá-lo? Porquê? Fora um acidente? Utilizara o sémen errado? Ou teria Vangie um caso com Fukhito? A experiência possível do doutor Highley seria apenas inerente à gravidez de Vangie?

Richard não conseguia encontrar a resposta. Ficou sentado à secretária de Katie a girar a caneta Mark Cross. Ela trazia-a sempre. Devia ter saído a correr nessa noite e esqueceu-se de a levar. Mas estava perturbada. O fato de ter perdido o caso devia tê-la irritado muito. Katie dificilmente iria aceitar isso. Havia muitas coisas que Katie tinha dificuldade em aceitar. Gostava de saber onde ela estava. Queria falar com ela. Como sangrava o dedo. Teria de perguntar a Molly se ela sabia se Katie tinha ou não uma percentagem baixa de plaquetas. Isso podia constituir um problema grave.

Um arrepio fez entorpecer os dedos de Richard. Isso podia ser um sintoma de leucemia. Oh, que desgraça. Na segunda-feira iria levar Katie a um médico nem que a tivesse de amarrar para o fazer.

Ouviu-se uma pancada fraca na porta e Maureen espreitou. Os seus olhos eram verde-esmeralda, grandes e ovais. Belos olhos. Bela miúda.

- Doutor Carroll.

- Maureen, desculpe por lhe ter pedido que ficasse. Pensei que Mrs. Horan já aqui estivesse há muito tempo.

- Não há problema. Ela telefonou. Vem a caminho. Surgiu qualquer coisa no emprego e precisaram dela. Mas estão aqui duas mulheres. São amigas de Miss Burns, que morreu. Queriam falar com Katie. Disse-lhes que ela se tinha ido embora, e uma delas mencionou o seu nome. Conheceu-o na noite em que esteve no apartamento de Edna Burns; uma Mrs. Fitzgerald.

- Fitzgerald?... Claro. Mrs. Fitzgerald é recepcionista em part-time no Westlake Hospital. - Quando Richard disse «Westlake», levantou-se. - Mande-as entrar. Talvez fosse melhor telefonar a Scott.

- Mr. Myerson não quer que o incomodem. Ele e Charley e Phil ainda estão a interrogar o comandante Lewis.

- Está bem. Eu falo com elas. Depois, se houver mais alguma coisa, pedimos-lhes que esperem.

Entraram juntas, os olhos de Gana pestanejavam com a excitação. Decidira com pesar que não vestiria o casaco de leopardo de Edna. Parecia cedo de mais. Mas tinha a história para contar.

Gertrude trazia o mocassin dentro de um saco de papel. O cabelo quase grisalho estava impecavelmente penteado. O cachecol estava atado ao pescoço com um nó. O excelente jantar não passava de uma recordação, e naquele momento só queria ir para casa e deitar-se. Mas estava contente por falar com o doutor Carroll. Ia contar-lhe que naquela noite no apartamento da infeliz Edna, o doutor Highley estava a abrir a gaveta de mesinha-de-cabeceira. Não havia nada naquela gaveta a não ser o sapato. O doutor Carroll pensaria que o doutor Highley queria apoderar-se daquele sapato por alguma razão?

Mrs. DeMaio estava tão interessada naquela história do Príncipe Encantado. O doutor Carroll podia querer saber disso, também. Podia contar a Mrs. DeMaio quando ela chegasse na segunda-feira. O doutor Carroll olhava para elas expectante.

Gertrude inclinou-se para a frente, abanou o saco, e o mocassin velho caiu em cima da secretária de Katie. Ela começou por explicar com um ar afetado: - É por causa desse sapato que estamos aqui.

 

Ela atravessou o corredor aos ziguezagues. Ele saberia onde estava situado o interruptor? Atrever-se-ia a acender a luz? E se lá estivesse alguém? Ela devia tentar gritar?

Ele conhecia aquele hospital. Para onde iria ela? Havia outra porta ao fundo do corredor. A porta mais distante. Talvez tentasse as outras em primeiro lugar. Talvez ela se pudesse trancar em qualquer lugar. Podia não dar conta das portas laterais. Mas, se ela corresse em linha reta, teria de chegar àquela parede distante. A porta ficava no meio. O dedo sangrava. Tentaria espalhar sangue na porta. Quando a enfermeira fizesse a inspeção, começariam à sua procura. Talvez vissem as manchas de sangue.

Ele não se mexia. Estava a ver se a ouvia. Veria uma sombra quando a porta se abrisse? A mão estendida tocou numa parede fria. «Oh, meu Deus, fazei com que eu encontre a porta.» A mão deslizou pela parede. Tocou no caixilho de uma porta. Atrás dela ouviu um sussurro. Ele abrira aquela primeira porta. Mas naquele momento não se daria ao trabalho de espreitar para dentro daquele compartimento. Ele perceberia que não ouvira aquele rangido, que ela não forçara aquela porta. A mão encontrou um puxador. Rodou-o deliberadamente, roçando nele o dedo cortado. Um cheiro forte a formaldeído encheu-lhe as narinas. Ouviu atrás dela passos apressados. Tarde de mais. Tarde de mais. Tentou fechar a porta, mas esta foi aberta com um empurrão. Tropeçou e caiu. Estava tão tonta, tão tonta. Estendeu a mão. A mão tocou na perna de umas calças.

- Está tudo acabado, Katie - disse o doutor Highley.

 

- Tem a certeza de que este sapato é o da sua mulher? - perguntou Scott. Chris acenou com lassidão.

- Tenho a certeza absoluta. Este é o sapato que lhe ficava largo... o esquerdo.

- Quando Edna lhe telefonou, disse-lhe que tinha este sapato em seu poder?

- Não. Ela disse que tinha algo para contar à Polícia e que queria falar comigo.

- Ficou com a impressão de que se tratava de chantagem... de ameaça?

- Não, verbosidade de pessoa embriagada. Sabia que ela trabalhava no Westlake Hospital. Na altura não me apercebi que ela era a recepcionista de que Vangie costumava falar. Disse que Edna estava sempre a meter-se com ela a propósito das chinelas de vidro.

- Está bem. O seu depoimento será datilografado imediatamente. Leia-o atentamente, assine-o se o achar correto e depois pode ir para casa. Vamos querer conversar consigo de novo amanhã de manhã.

Pela primeira vez Chris teve a impressão que o promotor de justiça começara a acreditar nele. Levantou-se para se ir embora.

- Onde está Joan?

- Ela acabou de fazer um depoimento. Pode ir consigo. Oh, uma coisa: que impressão tem do doutor Highley?

- Nunca o vi.

- Leu este artigo sobre ele? - Scott mostrou a revista Newsmaker, Chris olhou para o artigo, para a fotografia do doutor Highley.

- Vi isto ontem na viagem para Nova Iorque.

Espicaçou a memória.

- É isso - disse ele. - Era isso que eu não conseguia ordenar.

- De que está a falar? - perguntou Scott.

- Aquele foi o homem que desceu no elevador no Essex Hospital ontem à noite, quando estava a tentar entrar em contato com o doutor Salem.

 

Ele acendeu a luz. Por entre a névoa ela conseguia ver o seu rosto, os olhos salientes quando olhou fixamente para ela, a pele a cintilar de transpiração, o cabelo ruivo desgrenhado sobre a testa.

Ela conseguiu pôr-se de pé. Estava num pátio pequeno semelhante a uma sala de espera. Estava tanto frio. Uma porta grossa de aço estava atrás dela. Recuou, encostando-se à porta.

- Simplificou-me as coisas, Mrs. DeMaio. - Agora sorria-lhe. - Toda a gente que lhe é chegada sabe do seu medo de hospitais. Quando a enfermeira Renge e eu fizermos a inspeção daqui a alguns minutos, fingiremos que saiu do hospital. Telefonaremos à sua irmã, mas ela ausentar-se-á durante várias horas, não é? Só começaremos a procurá-la no hospital muito mais tarde. Certamente que ninguém se vai lembrar de vir procurá-la aqui.

- Um homem de idade morreu esta noite na sala de urgência. Ele está num daqueles subterrâneos. Amanhã de manhã, quando o cangalheiro vier buscar o corpo, será descoberta. Será óbvio o que lhe aconteceu. Estava com uma hemorragia; ficou desorientada, quase comatosa. Tragicamente, veio parar aqui e esvaiu-se em sangue até morrer.

- Não. - O rosto dele parecia uma mancha. Ela estava tão tonta. Cambaleava.

Ele estendeu a mão perto dela e abriu a porta de aço. Empurrou-a através dela, segurou-a quando ela escorregou. Desmaiara. Ajoelhando-se perto dela, deu-lhe a última injeção de heparin. Provavelmente não voltaria a recuperar os sentidos. Mesmo que voltasse a si, não conseguiria sair dali. Daquele lado a porta estava fechada à chave. Olhou para ela, pensativamente, depois pôs-se de pé e limpou a mancha de pó das calças. Livrara-se finalmente de Katie DeMaio.

Fechou a porta de aço que separava os jazigos da área de atendimento da morgue e apagou a luz. Abriu com todo o cuidado a porta que dava para o corredor e desceu-o a toda a pressa, saindo para o parque de estacionamento pela mesma porta por onde entrara há quinze minutos.

Alguns minutos depois, estava a beber o cappuchino morno, recusando com um aceno de mão o café quente que a criada se prontificara a trazer-lhe.

- As chamadas telefónicas demoraram um pouco mais do que contava - explicou ele. - Agora tenho de voltar a correr para o hospital. Há uma paciente lá com quem estou bastante preocupado.

 

- Boa noite, doutor Fukhito. Sinto-me muito melhor. Obrigado. - O rosto do rapaz esboçou um sorriso.

- Fico contente. Dorme bem, Tom. - Jiro Fukhito levantou-se devagar. Aquele rapaz ia conseguir. Estivera com uma depressão grave durante semanas, quase suicida. Vinha a oitenta milhas por hora num carro que se esbarrou. O irmão mais novo morreu no acidente. Desgosto. Culpa. Era de mais para a capacidade do rapaz.

Jiro Fukhito sabia que o ajudara a ultrapassar a pior fase. O seu trabalho podia ser tão satisfatório, pensava enquanto percorria lentamente o corredor de Valley Pines Hospital. O trabalho que fazia ali, o trabalho voluntário - era ali que gostava de exercer clínica.

Oh, ele fizera bastante por muitos dos pacientes de Westlake. Mas havia outros que não ajudara, não fora autorizado a ajudar.

- Boa noite, doutor. - Alguns dos doentes da enfermaria de psiquiatria saudaram-no quando se dirigia para o elevador. Tinham-lhe pedido para trabalhar ali a tempo inteiro. Ele queria aceitar essa oferta.

Deveria dar início à investigação que inevitavelmente o destruiria?

Edgar Highley não hesitaria em revelar o caso de Massachusetts se ele desconfiasse que o seu sócio falara da sua paciente com a Polícia.

Mas Mrs. DeMaio já desconfiava de qualquer coisa. Ela vira o seu nervosismo quando o interrogou naquele dia.

Entrou no carro, ficou sentado dentro dele sem saber o que fazer. Vangie Lewis não se suicidou. Ela seria incapaz de se suicidar bebendo cianido. Começara a falar do culto de Jones numa das sessões quando discutiam sobre religião.

Via-a sentada no seu gabinete, a sua explicação sincera, superficial das suas crenças religiosas. «Não sou uma pessoa de ir à igreja, doutor. Acredito em Deus. Mas à minha maneira. Às vezes penso em Deus. É melhor do que ir a correr assistir a um serviço religioso a que não se presta atenção, não acha? E quanto a esses cultos. São todos loucos. Não compreendo por que razão as pessoas se envolvem neles. Lembra-se de todas aquelas pessoas que se mataram porque lhes mandaram? Ouviu a gravação deles a gritarem depois de beberem aquela droga? Tive pesadelos com isso. E eles tinham um aspecto tão horrendo.»

Sofrimento. Fealdade. Vangie Lewis? Nunca!

Jiro Fukhito suspirou. Ele sabia o que tinha de fazer. Uma vez mais a sua vida profissional iria pagar pelo erro terrível de há dez anos.

Mas precisava de contar à Polícia o que sabia. Vangie saíra do seu gabinete a correr até ao parque de estacionamento. Quando saiu, quinze minutos depois, o Lincoln Continental ainda estava no parque.

Jiro Fukhito tinha a certeza de que Vangie Lewis entrara no gabinete de Edgar Highley.

Saiu do parque de estacionamento do hospital e virou na direção do escritório do promotor de Justiça de Valley County.

 

Scott segurou na mão o mocassin. Richard, Charley e Phil estavam sentados à volta da secretária

- Vamos tentar encaixar isto - disse Scott. - Vangie Lewis não morreu em casa. Foi levada para lá entre a meia-noite e as onze da manhã. O último lugar que se sabe que visitou foi o gabinete do doutor Fukhito no hospital. Vangie trazia os mocassins na noite de segunda-feira. Algum lugar no hospital perdeu um deles, e Edna encontrou-o. Quem a levou para casa, calçou-lhe outros sapatos para tentar encobrir o que se perdera. Edna Burns descobriu o sapato e falava dele. E Edna Burns morreu.

- Emmet Salem queria contatá-lo, Richard. Queria falar-lhe da morte de Vangie. Veio para Nova Iorque e caíu ou foi empurrado para a morte alguns minutos mais tarde, e a ficha de Vangie, que ele trazia, desapareceu.

- E Chris Lewis jura que viu Edgar Highley no Essex House -, interrompeu Richard.

- O que pode não ser verdade - lembrou-lhe Scott.

- Mas o doutor Salem sabia do escândalo no Chris Hospital - disse Richard. - Highley não iria querer que viesse a lume precisamente no momento em que estava a ter publicidade a nível nacional.

- Isso não é motivo para matar - disse Scott.

- E se Highley tentasse tirar aquele sapato da gaveta de Edna? - perguntou Charley.

- Não sabemos ao certo. Aquela mulher do hospital afirma peremptoriamente que ele estava a abrir a gaveta Não tocou em nada. - Scott franziu as sobrancelhas. É tudo inconsistente. Estamos a lidar com um médico eminente. Não podemos perder o juízo porque ele esteve envolvido num escândalo abafado há dez anos. O problema maior é o móbil. Highley não tinha nenhum motivo para matar Vangie Lewis.

O intercomunicador tocou. Scott ligou-o.

- Mrs. Horan está aqui - disse Maureen.

- Muito bem, mande-a entrar, e quero que anote o seu depoimento - ordenou Scott.

Richard curvou-se. Aquela era a mulher que movera um processo a Edgar Highley por negligência médica.

A porta abriu-se, e uma mulher jovem entrou na sala, à frente de Maureen. Era japonesa com vinte e poucos anos. O cabelo caía solto sobre os ombros. Um baton vermelho-vivo destoava na pele morena. O seu porte delicado, gracioso, conferia um efeito flutuante mesmo ao fato barato que envergava.

Scott levantou-se.

- Mrs. Horan, agradecemos muito ter vindo. Vamos procurar não a reter muito tempo. Não se quer sentar?

Ela acenou com a cabeça. Claramente nervosa , umedeceu os lábios e entrelaçou deliberadamente as mãos no regaço. Maureen sentou-se discretamente atrás dela, e abriu o bloco de estenografia.

- Importa-se de dizer o seu nome e morada? - perguntou Scott.

- Sou Anna Horan. Vivo no 415 na Walnut Street em Ridgefield Park.

- É ou era paciente do doutor Edgar Highley?

Richard virou-se rapidamente quando ouviu Maureen a arfar. Mas a rapariga recompôs-se depressa, curvando a cabeça, recomeçou a tirar notas.

O rosto de Anna Horan tornou-se duro.

- Sim, era paciente daquele assassino.

- Aquele assassino? - disse Scott

Agora as palavras saíam em catadupa.

- Visitei-o há cinco meses. Estava grávida. O meu marido está no segundo ano de direito. Vivemos do meu salário. Decidi que devia fazer um aborto. Eu não queria, mas pensava que devia.

Scott suspirou.

- E o doutor Highley fez o que a senhora lhe pediu, e agora está a culpá-lo?

- Não. Isso não é verdade. Disse-me para voltar lá no dia seguinte. E eu voltei. Levou-me para uma sala de operações no hospital. Deixou-me, e eu sabia - sabia - que fosse qual fosse a nossa vida, eu queria o meu filho. O doutor Highley voltou; eu estava a sentar-me. Disse-lhe que mudara de ideias.

- E ele provavelmente disse-lhe que uma em duas mulheres diz a mesma coisa nessa altura.

- Ele disse: «Deite-se.» Fez-me deitar sobre a maca.

- Estava mais alguém na sala? A enfermeira?

- Não. Só o médico e eu. E eu disse: «Eu sei o que estou a dizer.» E...

- E a senhora deixou que ele a convencesse?

- Não. Não. Não sei o que aconteceu. Ele injetou-me enquanto eu tentava levantar-me. Quando acordei, estava deitada numa maca. A enfermeira disse que já tinha passado tudo. Disse que devia descansar um pouco.

- Não se lembra do que aconteceu?

- De nada. Nada. Só me lembro de tentar fugir. - A boca mexia convulsivamente. - Tentar salvar o meu filho. Eu queria o meu filho. O doutor Highley tirou-me o meu filho.

Um grito seco de dor fez ecoar os soluços dilacerantes de Anna Horan. O rosto de Maureen estava contorcido, a voz era gemido.

- Foi exatamente o que ele me fez.

Richard olhou fixamente para as jovens que choravam: a japonesa; Maureen com o cabelo loiro-avermelhado e olhos verde-esmeralda. E com absoluta certeza lembrou-se onde tinha visto aqueles olhos.

 

Saiu no segundo andar do hospital e sentiu imediatamente a tensão no ar. Enfermeiras assustadas corriam no corredor. Um homem e uma mulher com fatos de cerimónia estavam junto da secretária da enfermeira Renge.

Ele aproximou-se rapidamente da secretária. A voz era desaprovadora e áspera quando perguntou:

- Enfermeira Renge, há algum problema?

- Doutor, é Mrs. DeMaio. Ela desapareceu.

A mulher tinha trinta e tal anos e não lhe era estranha. Claro! Ela era a irmã de Katie DeMaio. O que a levara a vir ao hospital?

- Sou o doutor Highley - disse-lhe ele. - Que significa isto?

Molly teve dificuldade em falar. Acontecera alguma coisa a Katie. Ela tinha consciência disso. Nunca perdoaria a si mesma.

- Katie... - A voz embargou-se-lhe.

O homem que estava com ela meteu-se de permeio:

- Sou o doutor Kennedy - disse. - A minha mulher é irmã de Mrs. DeMaio. Quando a viu, doutor, e qual era o seu estado?

Aquele não era um homem fácil de enganar.

- Vi Mrs. DeMaio há pouco mais de uma hora. O seu estado não era bom. Como deve saber, ela recebeu duas unidades completas de sangue esta semana. O laboratório está já a analisar o sangue. Conto que esteja baixo. Como a enfermeira Renge lhe dirá, espero realizar um D-e-C hoje à noite em vez de esperar até de manhã. Creio que Mrs. DeMaio tem vindo a esconder de toda a gente a gravidade da hemorragia.

- Oh, meu Deus, então onde está ela? - exclamou Molly. Ele olhou para ela. Ela seria mais fácil de convencer.

- A sua irmã tem um medo de hospitais, quase patológico. É possível que ela se tivesse ido embora?

- As roupas estão no armário, doutor - disse a enfermeira Renge.

-Algumas roupas podem estar no armário - corrigiu ele. Desfez o saco de Mrs. DeMaio?

-Não.

- Então não sabe quais eram as outras peças de vestuário que tinha com ela?

- É possível - disse Bill pausadamente. Voltou-se para Molly. Querida, sabes que é possível.

- Devíamos estar aqui - disse-lhe Molly. - Ela está muito mal, doutor?

- Temos de a encontrar e trazer para aqui. Seria possível que tivesse ido para casa dela ou para a vossa?

            - Doutor - a voz tímida da enfermeira Renge tinha um temor -, aquele soporífero devia ter feito com que Mrs. DeMaio dormisse. Foi o mais forte que o senhor prescreveu.

Ele fitou-a com um ar zangado.

- Prescrevi-o pela simples razão de me ter apercebido da ansiedade de Mrs. DeMaio. Mandei-a ver se ela o tomava. Ela não queria o comprimido. Você viu-a tomá-lo?

- Vi-a metê-lo na boca.

- Viu-a a engoli-lo?

- Não... realmente não.

Ele virou as costas à enfermeira num gesto de desprezo.

Falou com Molly e Bill, com um tom de voz ponderado, pesaroso.

- Custa-me a crer que Mrs. DeMaio ande a vaguear pelo hospital. São de opinião que ela pode ter-se ido embora de sua própria vontade? Podia ter-se metido no elevador, ido para a entrada e saído com as visitas que entram e saem durante toda a noite. Acham que é possível?

- Sim. Sim. Eu acho. - Molly rezou. - Oxalá que seja assim.

- Então esperemos que Mrs. DeMaio esteja em casa muito em breve.

- Quero ver se o carro dela está no parque de estacionamento - disse Bill.

O carro. Ele não pensara no carro. Se começassem já a procurá-la no hospital... Bill franziu as sobrancelhas.

- Oh, diabo, ela ainda anda com aquele carro emprestado. Molly, de que marca é? Acho que não o vi.

- Eu... eu não sei - disse Molly.

Edgar Highley suspirou.

- Penso que mesmo que conseguissem identificar o carro, estariam a perder o vosso tempo examinando o parque de estacionamento. Eu sugeria que telefonassem para casa dela. Se não estiver lá, vão e esperem para verem se ela chega. Ela desapareceu há quase uma hora. Quando entrarem em contato com ela, insistam por favor para que ela volte para o hospital. Pode ficar com ela, Mrs. Kennedy. Doutor, se acha que isso reconforta Mrs. DeMaio, teria todo o prazer em que estivessem comigo na sala de operações. Mas não podemos permitir que continue com aquela hemorragia. Mrs. DeMaio é uma rapariga muito doente.

Molly mordeu o lábio.

- Compreendo. Obrigado, doutor. É muito amável. Bill, vamos para a casa de Katie. Talvez já lá esteja e não atenda o telefone.

Afastaram-se dele. Acreditaram nele. Não sugeririam uma busca pelo menos durante várias horas. Era tudo quanto precisava.

Virou-se para a enfermeira. Com o seu comportamento estúpido, disparatado, tinha sido muito útil. Era evidente que Katie não chegara a engolir aquele soporífero. Evidentemente que ele tinha razões para o prescrever.

- Tenho a certeza de que em breve teremos notícias de Mrs. DeMaio - disse ele. - Telefone-me imediatamente quando tiver notícias. Estarei em casa. - Sorriu. - Tenho de concluir uns relatórios.

 

- Precisamos de deitar as mãos aos relatórios do doutor Highley antes que ele os destrua. Tanto quanto sabe, guarda todos os relatórios no gabinete?

Jiro Fukhito fitou Richard. Dirigira-se ao gabinete do promotor de justiça pronto para prestar declarações. Ouviram-no quase com impaciência, e o doutor Carroll explanou a sua teoria em linhas gerais em seguida. Seria possível? Jiro Fukhito rememorou as vezes em que as suspeitas se tinham formado no seu espírito, depois eram dissipadas pelo génio de Highley em obstetrícia. Era possível.

Relatórios. Fizeram-lhe perguntas sobre relatórios.

- Edgar Highley nunca guardaria no gabinete do hospital os relatórios que sugiram ilegalidade - disse ele pausadamente. Há sempre o perigo de uma intimação por negligência médica. Todavia, leva fichas para casa muitas vezes. Nunca percebi porque fazia isso.

- Mande passar mandatos de busca domiciliária imediatamente - disse Scott a Charley. - Passamos busca ao escritório e à casa simultaneamente. Levo a brigada para a casa. Richard, você vem comigo. Charley, você e Phil encarregam-se do escritório. Prenderemos Highley como testemunha material. Se não estiver lá, quero que cerquem a casa e apanhamo-lo assim que chegar a casa.

- O que me preocupa é que possa haver alguém que esteja a servir de cobaia neste momento - disse Richard. - Apostava que os cabelos que o laboratório encontrou nos corpos de Edna e Vangie são de Highley. - Olhou para o relógio. Eram nove e meia. - Resolvemos isto esta noite - vaticinou ele.

Gostaria que Katie estivesse ali. Ficaria aliviada ao saber que Chris Lewis estava prestes a ser eliminado como suspeito. O seu pressentimento em relação a Chris tinha fundamento. Mas o seu pressentimento em relação a Highley também tinha fundamento.

O doutor Fukhito levantou-se.

- Ainda precisa de mim?

- Por agora, não, doutor - disse Scott. - Manter-nos-emos em contato com o senhor. Se por acaso tiver notícias do doutor Highley antes de nós o prendermos, por favor não lhe fale desta investigação. Percebe?

Jiro Fukhito sorriu com lassidão.

- Edgar Highley e eu não somos amigos. Não teria nenhum motivo para me visitar. Ele contratou-me porque sabia que me podia dominar. Como estava certo! Esta noite analisarei a minha conduta e calcularei quantas vezes reprimi as suspeitas que deviam ter sido exploradas. Tenho medo da conclusão a que vou chegar.

Saiu da sala. Enquanto atravessava o corredor, viu uma placa numa porta: MRS. DeMaio. Katie DeMaio. Ela não devia ter sido internada nessa noite? Mas, claro, ela nunca seria operada enquanto Edgar Highley estivesse a ser investigado.

Jiro Fukhito foi para casa.

 

Ela atravessava um corredor escuro sem destino. Mesmo ao fundo havia uma luz. Estaria quente quando lá chegasse. Quente e seguro. Mas algo a impedia. Havia uma coisa que precisava de fazer antes de morrer. Precisava de lhes dizer o que o doutor Highley era. O dedo estava a sangrar. Ela sentia-o. Estava estendida no chão. Estava tão frio. Todos esses anos tivera pesadelos em que iria morrer no hospital. Mas afinal não era assim tão mau. Tinha tanto medo de ficar sozinha. Sem o pai, depois sem John. Com tanto medo de sofrer. Somos todos iguais. Nascemos sozinhos e morremos sozinhos. Realmente não há nada de que ter medo. Seria capaz de escrever no chão o nome do doutor Highley com o dedo? Ele era louco. Tinha de ser detido. Lentamente, penosamente, Katie moveu o dedo. Para baixo, para o lado, para baixo de novo.

 

Chegou a casa às nove e um quarto. A sensação gratificante de ter eliminado finalmente a última ameaça fê-lo sentir-se leve. Comera há menos de uma hora, mas nem sequer se conseguia lembrar da refeição. Talvez Hilda tivesse deixado qualquer coisa de comer.

Era melhor do que esperava. Fondue. Hilda fazia um fondue muitíssimo bom. Era talvez dos melhores dos seus dotes culinários. Acendeu a chapa Sterno por baixo da taça, pô-la com uma chama baixa. Uma tosta de pão francês estava dentro de um cesto, tapada com um guardanapo de damasco. Faria uma salada; havia arugula de certeza. Dera ordem a Hilda para que comprasse alguma nesse dia.

Enquanto o fondue aquecia, completaria a ficha de Katie DeMaio. Estava ansioso por se ver livre dela. Queria pensar nas duas pacientes do dia seguinte: no doador e no receptor. Estava certo de que podia duplicar o seu sucesso.

Mas seria isso o suficiente? Não seria mais interessante se desse gêmeos ao receptor? Dois fetos de dadores distintos.

A teoria de imunidade reativa que ele aperfeiçoara podia falhar. Quase de certeza. Mas quanto tempo levaria? Que problemas específicos provocaria?

Entrou na biblioteca, abriu a gaveta da secretária e tirou a ficha de Katie DeMaio do seu esconderijo. Fez um derradeiro registo na última página:

A paciente entrou no hospital cerca das 6 horas da tarde com 100/60 de pressão arterial apenas 10 g de hemoglobina. Este médico deu os dois últimos comprimidos ecumadin às 7 horas da tarde. Às 8.30 este médico voltou ao quarto de Mrs. DeMaio e injetou 5 ml de heparin. Mrs. DeMaio acordou por instantes. Em estado quase de coma perguntou a este médico: «Porque matou Vangie Lewis?»

Este médico deixou Mrs. DeMaio para ir buscar mais heparin. Obviamente não podia permitir que Miss DeMaio repetisse aquela pergunta na presença de outras pessoas. Quando este médico voltou, a paciente saíra do quarto. Provavelmente dando-se conta do que dissera, tentou fugir. A paciente foi apanhada, e foram injetados mais 5 ml de heparin. A paciente irá esvair-se em sangue até morrer hoje à noite no Westlake Hospital.

Esta ficha está já completa.

Pousou a caneta, espreguiçou-se, dirigiu-se ao cofre na parede e abriu-o. Banhadas de luz dos candeeiros de cristal, as fichas amareladas ficaram com reflexos dourados.

Eram douradas: os relatórios do seu génio que sabia de cor e salteado. Expansivamente, tirou-os todos, colocou-os sobre a secretária. Como um Midas a deleitar-se com o seu tesouro, passou os dedos pelas etiquetas com os nomes. Os seus maiores êxitos. Berkeley e Lewis. Os dedos pararam e a sua expressão tornou-se sinistra. Appleton, Carey, Drake, Elliott... fracassos. Mais de oitenta. Mas não fracassos a valer. Ele aprendera muito. Todos tinham contribuído. As que tinham morrido, as que tinham abortado. Faziam parte da história.

Lewis. Era necessária uma adenda. Na ficha de Vangie acrescentava um relato do seu encontro com Emmet Salem.

O fondue devia estar pronto. Irresolutamente olhou para as fichas. Devia guardá-las ou entregar-se ao prazer de ler algumas delas? Talvez devesse examiná-las. Aquela semana fora tão difícil. Precisava de relembrar algumas das combinações de droga que iria necessitar no caso novo.

Algum lugar, ao longe um ruído começava a infiltrar-se na biblioteca: o grito dolente das sirenas da Polícia trazidas pelo vento glacial. O som aumentou na sala, depois parou abruptamente. Correu para a janela, afastou a cortina e espreitou. Um carro da Polícia entrara na alameda. A Polícia estava ali!

Teriam encontrado Katie? Ela conseguira falar? Correu para a secretária como um relâmpago, empilhou as fichas, voltou a colocá-las no cofre ainda aberto, fechou-o e baixou o painel.

Calmo. Tinha de estar calmo. A pele estava fria e úmida. Os lábios e os joelhos pareciam de borracha. Precisava de se controlar. Ainda havia uma carta no baralho que podia sempre jogar.

Se Katie tivesse falado, estava tudo acabado.

Mas se a Polícia estivesse ali por outra razão, ainda podia despistá-los. Talvez Katie já estivesse morta e tivesse sido encontrado o seu corpo. Não esquecer as perguntas e acusações quando Claire morreu. Não deram em nada. Não havia prova absolutamente nenhuma.

Todas as possibilidades e consequências explodiam no seu espírito ao mesmo tempo. Era exatamente o mesmo como no decorrer de uma operação ou de um parto quando surgia algum problema e ele tinha de tomar uma decisão irrevogável, e então acontecia. A calma glacial, deliberada, a sensação de poder, a omisciência divina que nunca o abandonava durante uma operação difícil. Sentia-a a fluir no corpo e no cérebro.

Ouviu-se uma pancada seca, autoritária na porta. Lentamente, deliberadamente, alisou o cabelo. Os dedos, agora miraculosamente secos e quentes, apertaram o nó da gravata. Encaminhou-se para a porta da frente e abriu-a.

 

Enquanto o carro da brigada se dirigia a grande velocidade para a casa de Edgar Highley, Scott rememorou metodicamente os depoimentos que ouvira nas últimas horas, de Chris Lewis, Gertrude Fitzgerald, Gana Krupshak, Jiro Fukhito, Anna Horan e Maureen Crowley.

Aparentemente apontavam numa direção: ao doutor Edgar Highley, expondo-o a graves suspeitas de negligência médica, comportamento ilegal e assassínio.

Há menos de três horas, grande parte desta mesma prova circunstancial apontara na direção de Chris Lewis.

Scott pensou no Pick Up Sticks, o jogo em que tomava parte quando era miúdo. Uma pessoa tinha de tirar paus de um molho, um a um, sem tocar nos outros. Mesmo que se tocasse só num pau, perdia-se. Era um jogo em que Scott era exímio. Mas o problema era que quase sempre, por mais cuidadoso que fosse, o molhe caía.

Uma prova circunstancial era como aquilo. No todo parece impressionante. Mas se se decompuser peça por peça, dá de si.

Richard ia sentado ao lado dele no banco de trás do carro da brigada. Era por causa da insistência de Richard em recolher todas as provas contra Edgar Highley que agora estavam ali a atravessarem Parkwood a toda a velocidade com sirenas estridentes. Richard levara esta investigação até ao ponto extremo argumentando que Highley podia destruir as provas se soubesse que era suspeito.

Edgar Highley é um médico proeminente, um excelente obstetra. Muitas pessoas importantes estavam-lhe muito gratas por causa dos bebés das suas famílias a cujos partos assistira. Se aquilo se transformasse numa caça às bruxas, o departamento do promotor de justiça seria atacado pela Imprensa e pelo público.

- Isto cheira mal. - Scott não se apercebeu que tinha falado em voz alta.

Richard, absorto em pensamentos, virou-se para ele de sobrancelhas franzidas.

- Que é que cheira mal?

- Isto tudo: esta busca, esta suposição de que Highley é um misto de gênio e assassino. Richard, que provas tem? Gertrude Fitzgerald pensa que Highley estava à procura do sapato na mesinha-de-cabeceira. Chris Lewis pensa que viu Highley de relance no Essex House. Você pensa que Highley operou milagres no campo da medicina.

- Preste atenção, mesmo que o júri de acusação apresente um requisitório, o que eu duvido, um bom advogado podia deslindar toda esta confusão talvez sem um julgamento. Estou quase decidido a mudar de rumo agora mesmo.

- Não faça isso! - Richard agarrou o braço de Scott. - Por amor de Deus, temos de apanhar aqueles relatórios.

Scott recostou-se no assento, soltando o braço com um puxão.

- Scott - insistiu Richard -, esqueça tudo excerto o número de mortes em grávidas no Westlake. Só isso é razão suficiente para uma investigação.

O carro da brigada fez uma viragem. Estavam na elegante zona ocidental de Parkwood.

- Está bem - disse Scott com rispidez. - Não se esqueça, Richard, amanhã de manhã, nós os dois podemos estar arrependidos desta incursão.

- Duvido - disse Richard laconicamente. Gostava de poder vencer a preocupação crescente que lhe esmagava a boca do estômago. Não tinha nada a ver com aquele momento, com aquele caso.

Era Katie. Estava desesperadamente, irracionalmente preocupado com Katie. Porquê? O carro entrou numa alameda.

- Bem, chegámos - disse Scott com irritação. Os dois detetives que estavam no banco da frente saíram dum salto do carro. Quando Richard ia a sair, notou o movimento da cortina numa janela no extremo direito da casa.

Tinham estacionado atrás de um carro preto com o distintivo MD. Scott tocou na cobertura do motor.

- Ainda está quente. Não pode estar aqui há muito tempo. O detetive mais novo que guiara o carro bateu com força na porta da frente. Esperaram. Scott bateu com os pés cheio de impaciência, procurando aquecê-los.

- Porque não toca à campainha? - perguntou ele, irritado.

- É para isso que serve.

- Fomos vistos - disse Richard. - Ele sabe que estamos aqui.

O investigador jovem acabara de levantar o dedo para tocar na campainha quando se abriu a porta. Edgar Highley estava parado no vestíbulo. Scott foi o primeiro a falar.

- Doutor Highley?

- Sim? - O tom era frio e interrogador.

- Doutor Highley, eu sou Scott Myerson, o promotor de justiça de Valley County. Temos um mandato de busca a este prédio, e é meu dever informá-lo que passou a ser um suspeito nas mortes de Vangie Lewis, Edna Burns e do doutor Emmet Salem. Tem o direito de consultar um advogado. Pode recusar-se a responder a perguntas. O que disser pode ser usado contra si.

Suspeito. Não tinham a certeza. Não tinham encontrado Katie. Cada prova tinha de ser circunstancial. Ele desviou-se para o lado, abrindo mais a porta para os deixar entrar. A sua voz foi ríspida com uma raiva controlada quando disse:

- Não percebo o motivo desta intrusão, mas entrem, senhores. Responderei a qualquer pergunta que queiram fazer; podem passar a busca à casa. Todavia, devo avisá-los, quando consultar um advogado será para processar Valley County e processar cada um dos senhores pessoalmente.

Quando saíra do Christ Hospital em Devon, ameaçara intentar uma ação se transpirasse alguma coisa da investigação. E fora mantido em segredo quase tudo. Conseguira ver a sua ficha na Clínica Queen Mary em Liverpool e não havia nenhuma referência.

Propositadamente levou-os para a biblioteca. Sabia que ficava com um aspecto imponente sentado atrás da secretária maciça da época de Jaime da Inglaterra. Era vital desencorajá-los, fazê-los ter medo de formularem perguntas demasiado íntimas.

Com um gesto que mal deixava de ser desdenhoso, mandou-os sentar no sofá e nas cadeiras de cabedal com um aceno de mão. O promotor de justiça e o doutor Carroll sentaram-se; os outros homens não. Scott entregou-lhe a notificação Miranda, impressa. Ele assinou-a com desdém.

- Vamos tratar da busca - disse o detetive mais velho polidamente. - Onde guarda os relatórios médicos, doutor Highley?

- No meu escritório, claro - disse ele com brusquidão. Todavia, façam favor de ver. Tenho a certeza de que assim farão. Há uma gaveta de ficheiro com documentos pessoais nesta secretária. - Levantou-se, dirigiu-se ao bar e deitou Chivas Regai num copo de cristal sem pé. Deliberadamente adicionou-lhe gelo e água gasosa. Não realizou o ritual de oferecer uma bebida aos outros. Mesmo que tivessem chegado uns minutos mais cedo ele ainda teria a ficha de Katie na gaveta da secretária. Eram investigadores experimentados. Podiam ver o botão falso naquela gaveta. Mas nunca descobririam o cofre, a não ser que virassem a casa do avesso.

Sentou-se na cadeira de veludo, listrada e de costas altas perto da lareira, bebeu lentamente o uísque e olhou-os friamente. Quando entrara na biblioteca estava tão apreensivo que nem reparara na fogueira que Hilda acendera para ele. Estava a arder muitíssimo bem. Mais tarde comeria o fondue e beberia o vinho ali.

O interrogatório começou. Quando vira Vangie Lewis pela última vez?

- Como disse a Mrs. DeMaio...

- Doutor, tem a certeza que Mrs. Lewis não entrou no seu gabinete segunda-feira à noite depois de deixar o doutor Fukhito?

- Como disse a Mrs. DeMaio... - Não possuíam nenhuma prova. Absolutamente nenhuma.

- Onde estava na segunda-feira à noite, doutor.

- Em casa. Aqui mesmo onde me está a ver agora. Vim diretamente para casa depois das horas de serviço.

- Recebeu alguma chamada telefónica?

- Que me lembre, não. - O serviço de atendimento não recebera nenhum recado na noite de segunda-feira. Ele verificara.

- Esteve no apartamento de Edna Burns na terça-feira à noite?

O seu sorriso era insolente..... - Impossível.

- Vamos querer umas amostras do seu cabelo.

Amostras de cabelo. Teriam encontrado algum em Edna ou naquele apartamento? E em Vangie? Mas ele estivera no apartamento de Edna com a Polícia na quarta-feira à noite. Vangie trazia sempre vestido aquele casaco preto quando ia ao consultório. Mesmo que tivessem encontrado cabelos dele perto da defunta, podiam ser explicados.

- Esteve no Essex House Hotel ontem depois das cinco? - Não.

- Temos uma testemunha que está preparada para jurar que o viu sair do elevador por volta das cinco e meia.

Quem o tinha visto? Relanceara o olhar pelo vestíbulo quando saiu do elevador. Tinha a certeza que não estava lá ninguém que ele conhecesse bem. Talvez estivessem a tentar enganá-lo. De qualquer maneira, a identificação feita por uma testemunha ocular era notoriamente falível.

- Não estava no Essex House ontem à noite. Estava em Nova Iorque no Carlyle! Janto lá muitas vezes; na realidade fiquei consternado, porque me roubaram a minha maleta enquanto estava a jantar.

Daria informações gratuitas; faria com que parecesse que começava a cooperar. Fora um erro mencionar o nome de Katie DeMaio. Seria natural contar àquelas pessoas que ela não se encontrava no hospital? Obviamente não sabiam que ela recebia lá tratamento médico. A irmã ainda não os contactara. Não. Não digas nada. Sigilo médico-doente. Mais tarde explicaria: «Podia ter-lhes dito, mas parti do princípio que Mrs. DeMaio fugira do hospital num estado de nervosismo e ansiedade. Pensei que ela ficaria perturbada se isso constasse da sua ficha profissional.»

Mas foi insensato ter mencionado o roubo.

- Que estava dentro da maleta? - O interesse do promotor de justiça parecia perfuntório.

- Um estojo de emergência básica, alguns medicamentos. Quase não valia o esforço do ladrão. - Devia referir que continha fichas? Não.

O promotor de justiça quase não prestava atenção. Acenou ao investigador mais novo.

- Vá buscar aquele embrulho ao carro.

Que embrulho? Os dedos de Edgar Highley apertaram o copo. Seria um truque?

Ficaram sentados em silêncio à espera. O detetive voltou e entregou a Scott um pequeno embrulho atado com um elástico. Scott arrancou o elástico e tirou o papel de embrulho, mostrando um sapato velho.

- Reconhece este mocassin, doutor?

Ele lambeu os lábios. Tem cuidado. Tem cuidado. Em que pé serviria? Tudo dependia daquilo. Curvou-se, examinou-o. O sapato esquerdo, aquele que estava no apartamento de Edna. Não tinham encontrado a mala.

- Claro que não. Devia reconhecer este sapato?

- Vangie Lewis, a sua paciente, usou-o sempre durante vários meses. Ela consultava-o várias vezes por semana. E nunca reparou?

- Mrs. Lewis usava um par de sapatos bastante gastos. Não concentro a minha atenção especificamente para reconhecer um sapato em particular quando o põem à minha frente.

- Alguma vez ouviu falar de um doutor Emmet Salem? Ele enrugou os lábios.

- Talvez. O nome parece familiar. Teria de examinar os meus registos.

- Não trabalhava consigo no Christ Hospital em Devon?

- Claro. Sim. Ele era um médico que viera de fora. De fato, lembro-me dele. - O que saberiam sobre o Christ Hospital?

- Visitou o doutor Salem ontem à noite no Essex House?

- Creio que essa pergunta já foi respondida.

- Sabia que Vangie Lewis trazia no ventre um bebé oriental?

Então era isso. Ele explicou melífluamente:

- Mrs. Lewis estava a ficar aterrorizada com o parto iminente. Isso explica tudo, não explica? Sabia que nunca poderia fazer crer a ninguém que o marido era o pai.

Agora faziam perguntas sobre Anna Horan e Maureen Crowley. Estavam a aproximar-se; aproximar-se demasiado; como cães a latir à medida que se aproximavam da presa.

- Essas duas jovens são como muitas que querem abortar e depois culpam os médicos quando sofrem reações emocionais. Não é invulgar. Confirme com qualquer um dos meus colegas.

Richard prestava atenção enquanto Scott persistia no seu interrogatório. «Scott tinha razão», pensou com pesar. Em conjunto, tudo fazia sentido. Separadamente tudo era refutável, explicável. A não ser que pudessem provar morte injustificada nos casos de maternidade, seria impossível acusar Edgar Highley do que quer que fosse e manter essa acusação.

Highley estava tão calmo; tão seguro. Richard tentou pensar na reação que o pai, um neurologista, teria se fosse interrogado sobre a morte injustificada de um dos seus pacientes. Como reagiria Bill? Cimo reagiria ele, Richard, como pessoa e como médico? Não como aquele homem - com aquele sarcasmo, com aquele desdém.

Era uma representação. Richard tinha a certeza disso. Edgar Highley estava a representar. Mas como podiam prová-lo? Com uma certeza nauseante sabia que nunca encontrariam nada nos relatórios que incriminasse Highley. Era esperto de mais para isso.

Scott estava a fazer perguntas sobre o bebé Berkeley. - Doutor, sabe que Mrs. Elizabeth Berkeley deu à luz um bebé que tem olhos verdes. No ponto de vista médico isso não é impossível quando os pais e os quatro avós têm olhos castanhos?

- Eu diria que sim, mas é evidente que Mr. Berkeley não é o pai dessa criança.

Nem Scott nem Richard contavam com a confissão.

- Isso não quer dizer que saiba quem é o pai - disse Edgar Highley com afabilidade -, mas duvido que seja da competência do obstetra imiscuir-se em assuntos como esse. Se uma paciente me quiser dizer que o marido é o pai do seu filho, então tudo bem.

«Uma lástima», pensou ele. Teria de adiar a fama por mais algum tempo. Agora nunca mais seria capaz de admitir o sucesso do bebé Berkeley. Mas haveria outros.

Scott olhou para Richard, suspirou e levantou-se.

- Doutor Highley, amanhã quando for para o consultório ficará a saber que apreendemos todos os registos do hospital e do seu consultório. Estamos muito preocupados com o número de mortes de parturientes no Westlake Hospital, e esse assunto está a ser investigado.

Ele conhecia o terreno que pisava.

- Peço um exame minucioso de todos os relatórios das minhas pacientes. Posso garantir-lhe que a taxa de mortalidade em parturientes de Westlake é bastante baixa tendo em conta os casos com que lidamos.

O cheiro dofondue enchia a casa. Queria comê-lo. Estava cheio de fome. Se não fosse mexido, iria queimar-se de certeza. Só mais uns minutos.

O telefone tocou.

- Deixarei que o meu serviço atenda - disse ele, depois compreendeu que não podia. Devia ser do hospital a informarem que Mrs. DeMaio ainda não tinha regressado a casa e a irmã estava inquieta. Talvez fosse o momento ideal para informar o promotor de justiça e o doutor Carroll sobre o desaparecimento de Katie. Pegou no auscultador.

- Fala o doutor Highley.

- Doutor, fala o tenente Weingarden do 17.° distrito policial de Nova Iorque. Acabámos de prender o homem que corresponde à descrição da pessoa que roubou um saco da mala do seu carro na noite passada.

A maleta.

- Foi recuperado? - Algo na sua voz estava a traí-lo. O promotor de justiça e o doutor Carroll observavam-no atentamente. O promotor aproximou-se silenciosamente da secretária e pegou na outra extensão.

- Sim, recuperámos a sua maleta, doutor. Aí é que está o problema. Vários dos artigos no seu interior podem conduzir a acusações muito mais graves do que roubo. Doutor, não se importa de descrever o conteúdo da sua maleta?

- Alguns remédios, uns medicamentos básicos; um estojo de emergência.

- E a ficha de uma doente do consultório do doutor Ernmet Salem, um pisa-papéis com manchas de sangue e um sapato velho?

Ele sentia o olhar severo e desconfiado do promotor de justiça. Fechou os olhos. Quando falou a sua voz estava extremamente controlada.

- Está a brincar?

- Pensei que o senhor iria dizer isso. Estamos a cooperar com o departamento do promotor de justiça de Valley County no que respeita à morte equívoca do doutor Emmet Salem na noite passada. Vou telefonar já ao promotor de justiça. Dá a impressão que o suspeito podia ter morto o doutor Salem no decorrer de um roubo. Obrigado, sir.

Ouviu a ordem de Scott Myerson para o agente da Polícia de Nova Iorque:

- Não desligue!

Ele pousou lentamente o auscultador que tinha na mão. Estava tudo acabado. Agora que eles tinham o saco em seu poder, estava tudo acabado. Toda e qualquer hipótese que tivera de sair ileso da investigação desaparecera.

O pisa-papéis coberto com o sangue de Emmet Salem. A ficha médica de Vangie Lewis que contradizia a informação nos relatórios do consultório. O sapato, aquele maldito objeto imundo.

Se o sapato serve...

Ele olhou fixamente para os sapatos, contemplando objetivamente a patina dos seus belos cordovans ingleses.

Agora não deixariam de procurar até descobrirem as fichas genuínas. Se o sapato serve, usa-o.

Os mocassins nunca tinham servido a Vangie Lewis. A ironia suprema era que lhe serviam a ele. Tão bem como se tivesse andado com eles, prendiam-no às mortes de Vangie Lewis, Edna Burlas, Emmet Salem.

Um riso histérico ressoava dentro dele, fazendo tremer a sua impassibilidade. O promotor de justiça completara a chamada telefónica.

- Doutor Highley - a voz de Scott Myerson era formal -, está preso pela morte do doutor Emmet Salem.

Edgar Highley observava no momento em que os detetives sentados à secretária se levantavam rapidamente. Não se apercebera que o homem tinha estado a fazer anotações. Viu o detetive a tirar algemas do bolso.

Algemas. Prisão. Um julgamento. Manchas humanas insignificantes a julgarem-no. Ele, que conquistara o ato primário da vida, o processo de nascimento, um prisioneiro comum.

Recompôs-se. A força indómita voltava. Ele realizara uma operação. Apesar da sua inteligência, a operação não fora bem sucedida. A paciente estava clinicamente morta. Não havia mais nada a fazer a não ser desligar o aparelho de manutenção das funções vitais.

O doutor Carroll olhava para ele atentamente. Desde que se conheceram na quarta-feira à noite, Carroll tinha sido hostil. De qualquer maneira, Edgar Highley tinha a certeza que Richard Carroll era o homem que desconfiava dele. Mas ele teve a sua vingança. A morte de Katie DeMaio era a sua vingança em Richard Carroll.

O detetive aproximou-se dele. As algemas captaram o brilho débil do lume.

Ele sorriu-lhe polidamente.

- Agora me lembro que tenho na realidade uns relatórios médicos que lhe podem interessar - disse ele. Caminhou em direção à parede, soltou a mola que mantinha o painel no lugar. O painel recuou lentamente. Maquinalmente abriu o cofre de parede.

Podia juntar os relatórios, precipitar-se para a lareira. A fogueira que Hilda acendera já estava bastante viva. Antes que eles o pudessem deter, podia livrar-se das fichas mais importantes.

Não. Deixá-los conhecer o seu génio. Deixá-los lamentá-lo.

Retirou as fichas do cofre, empilhou-as em cima da secretária. Estavam todos a olhar fixamente para ele. Carroll aproximou-se da secretária. O promotor de justiça ainda tinha a mão no telefone. Um detetive aguardava com as algemas. O outro detetive entrara de novo na sala. Devia ter estado a revistar a casa, a meter o nariz nos seus haveres. Cães a perseguirem a presa.

- Oh, existe outro caso que gostarão de ter. Aproximou-se da mesa perto da cadeira em frente à lareira e pegou no uísque. Levando-o para o cofre, bebeu-o com indiferença. O frasco estava lá, mesmo no fundo do cofre. Arrumara-o na segunda-feira à noite para uma utilização eventual, futura. O futuro era aquele momento. Nunca pensara que tivesse aquele fim. Mas ainda controlava a vida e a morte. Só ele podia tomar a decisão suprema. Um cheiro a queimado espalhava-se na sala. Com pesar, apercebeu-se que era o fondue.

Perto do cofre moveu-se com rapidez. Abriu o frasco com um movimento brusco e deitou cristais de cianido no copo. Enquanto a compreensão perpassava pelo rosto de Richard, ergueu o copo num brinde escarnecedor.

- Não faça isso! - gritou Richard, atravessando a sala como um relâmpago quando Edgar Highley levou o copo aos lábios e engoliu apressadamente o conteúdo. Richard atirou com o copo quando Highley caiu, mas sabia que era tarde de mais. Os quatro homens ficaram a olhar impotentes enquanto os gritos e gemidos de Highley se extinguiam no corpo contorcido pela dor.

- Oh, meu Deus! - exclamou o detetive mais novo. Ele fugiu da sala com o rosto verde.

- Por que razão fez aquilo? - perguntou o outro detetive.

- Que morte mais horrível.

Richard curvou-se sobre o corpo. O rosto de Edgar Highley estava contorcido; bolhas de espuma empolavam os lábios. Os olhos verdes e salientes estavam abertos e fixos. «Podia ter feito tanto bem», pensou Richard. Em vez disso, era um génio egocêntrico que utilizava o dom que Deus lhe dera para fazer experiências com vidas.

- Uma vez que me meti de permeio na conversa telefónica com a Polícia de Nova Iorque, ele sabia que já não podia mentir nem escapar - disse Scott. - Richard, você estava certo em relação a ele.

Endireitando-se, Richard dirigiu-se para a secretária e passou uma vista de olhos pelos nomes nas fichas. BERKELEY. Lewis.

- Estes são os relatórios que procuramos. - Ele abriu a ficha Berkeley. A primeira página começava:

Elizabeth Berkeley, idade 39, tornou-se minha paciente. Ela nunca gerará o seu próprio filho. Decidi que ela seria a próxima doente extraordinária.

- Há aqui uma história médica - disse ele calmamente; Scott estava perto do corpo.

- E quando uma pessoa pensa que este sujeito era o médico de Katie - murmurou ele.

Richard levantou os olhos da ficha de Liz Berkeley que estava a ler.

            - Que foi que disse? - perguntou ele. - Está a insinuar que Highley estava a tratar Katie?

            - Ela tinha uma consulta com ele na quarta-feira - replicou Scott.

- Ela tinha o quê?

- Fez referência a isso por acaso quando... O telefone interrompeu-o. Scott atendeu.

- Sim - disse depois - lamento, não é o doutor Highley. Quem fala, por favor? - A sua expressão mudou. Molly Kennedy. - Molly!

Richard arregalou os olhos. A apreensão apertava-lhe os músculos do pescoço.

- Não - disse Scott. - Não posso passar a chamada ao doutor Highley. Qual é o problema?

Ele ouviu, depois tapou o bocal com a mão. - Jesus! - exclamou ele - Highley internou Katie em Westlake hoje à noite e ela não aparece.

Richard arrancou-lhe o telefone da mão.

- Molly, que aconteceu? Por que razão Katie estava aí? Quer dizer que ela desapareceu?

Ele ouviu.

- Deixe-se disso Molly. Katie nunca sairia do hospital. Devia saber isso. Espere.

Deixando cair o telefone, espalhou freneticamente as fichas na secretária. Quase no fundo da pilha encontrou aquela que receava ver. DeMaio, KATHLEEN. Abrindo-a, examinou-a rapidamente, o seu rosto empalidecia enquanto lia. Chegou ao último parágrafo.

Com a calma do desespero, pegou no telefone.

- Molly, passe o telefone a Bill - ordenou ele. Enquanto Scott e os detetives prestavam atenção, disse: - Bill, Katie está com uma hemorragia algum lugar no Westlake Hospital. Telefone para o laboratório de Westlake. Vamos precisar de um frasco de O negativo assim que a encontrarmos. Eles que se preparem para tirarem uma amostra de sangue e verificarem a hemoglobina, haematocrit e grupo sanguíneo e mistura para quatro unidades de sangue. Diga-lhes que preparem uma sala de operações. Encontro-me aí consigo. - Ele cortou a ligação.

«Incrível», pensou. «Ainda consegues atuar sabendo que já pode ser tarde de mais.» Virou-se para o detetive junto à secretária.

- Telefone para o hospital. Leve a equipa que está a fazer a busca ao escritório de Highley e eles que comecem a procurar Katie. Diga-lhes para procurarem em toda a parte, todos os quartos, todos os armários. Peça ajuda a todo o pessoal do hospital. Todos os segundos contam.

Sem esperar por instruções, o investigador mais novo correu para pôr o carro a trabalhar.

- Venha, Richard - disse Scott com brusquidão. Richard pegou na ficha de Katie.

- Temos de saber o que ele lhe fez. - Por um instante olhou para o corpo de Edgar Highley. Alguns segundos teriam evitado a sua morte. Chegariam tarde de mais para salvarem Katie?

Com Scott, ele arqueou as costas na parte de trás do carro da brigada enquanto este se precipitava na noite. Highley dera o heparin a Katie há mais de uma hora. Tinha um efeito rápido.

«Katie», pensou ele, «porque não me disseste? Katie, porque pensaste que devias passar por isso sozinha? Ninguém pode. Katie, juntos podíamos estar tão bem. Oh, Katie, podíamos ter o que Molly è Bill têm. Está lá à espera que a apanhemos. Katie, tu também sentiste. Tens vindo a lutar contra ela. Porquê? Se ao menos tivesses confiado em mim, se me tivesses dito que consultavas Highley. Nunca teria deixado que te aproximasses dele. Por que razão não vi que estavas doente? Por que razão não fiz com que me contasses? Katie, desejo-te. Não morras, Katie. Espera. Deixa-me encontrar-te. Katie, espera...»

Estavam no hospital. Carros da Polícia entravam no parque de estacionamento a fazerem um barulho ensurdecedor. Subiram as escadas a correr até ao vestíbulo. Phil, com o rosto com rugas vincadas, dirigia a busca.

Bill e Molly entraram de roldão no vestíbulo. Molly soluçava. Bill estava muito calmo.

- John Pierce vem a caminho. É o melhor hematologísta de Nova Jérsia. Têm aqui uma quantidade razoável de sangue. Encontraram-na?

- Ainda não.

A porta, que dava para as escadas de incêndio, entreaberta, abriu-se de repente. Um polícia jovem saiu.

- Ela está estendida no chão. Creio que está morta. Segundos depois, Richard tinha-a nos braços. A pele e os lábios estavam cor de cinza. Não conseguia tomar-lhe o pulso. - Katie, Katie. A mão de Bill apertou-lhe o ombro.

- Vamos levá-la lá para cima. Temos de trabalhar com celeridade se ainda existir alguma hipótese.

 

Ela estava num túnel. Ao fundo havia uma luz. Estava calor no fundo do túnel. Lá seria tão fácil flutuar.

Mas alguém a impedia. Alguém a agarrava. Uma voz. A voz de Richard.

- Aguenta, Katie, aguenta.

Ela sentia tanta vontade de voltar atrás. Era tão difícil estava tão escuro» Seria muito mais fácil esgueirasse.

- Aguenta, Katie.

A suspirar, ela virou-se e iniciou a sua viagem de regresso.

 

Segunda-feira à tardinha, Richard entrava no quarto de Katie em bicos de pés, com uma dúzia de rosas na mão. Estava livre de perigo desde domingo de manhã, mas apenas ficara acordada o tempo suficiente para articular uma ou duas palavras.

Olhou para ela. Os olhos estavam fechados. Resolveu sair e pedir uma jarra à enfermeira.

- Coloca-as sobre o meu peito. Ele deu uma volta.

- Katie. - Ele puxou uma cadeira. - Como te sentes?

Ela abriu os olhos e fez uma careta ao olhar para o aparato da transfusão.

- Ouvi dizer que os vampiros estão a colocar piquetes de greve. Estou a pô-los no desemprego.

- Estás melhor. - Esperava que as lágrimas que lhe vieram aos olhos não se notassem.

Ela notara. Com a mão livre, ergueu-a lentamente e passou-lhe um dedo nas pálpebras.

- Antes que eu adormeça outra vez, conta-me o que aconteceu, por favor. Caso contrário vou acordar por volta das três horas da manhã e tentarei reconstituir tudo. Por que razão Edgar Highley matou Vangie Lewis?

- Ele fazia experiências com as pacientes, Katie. Claro que sabes do bebé-proveta em Inglaterra.

- Highley era muito ambicioso para se limitar a criar bebés in vitro para os pais naturais. O que ele começou por fazer foi tirar fetos de mulheres que abortaram e implantava esses fetos nos úteros de mulheres estéreis. E conseguiu! Nestes últimos oito anos descobriu a forma de impedir que a mãe receptora rejeitasse um feto de outra mulher.

- Teve um sucesso total. Mostrei os seus relatórios ao laboratório de investigação no campo da fertilidade em Mt. Sinai Hospital, e eles dizem que deu um salto enorme na investigação embrionária.

- Mas depois desse triunfo, quis fazer novas descobertas. Anna Horan, uma mulher a quem ele fez o aborto, afirma que quis desistir, mas que ele a anestesiou e lhe tirou o feto quando ela estava inconsciente. Ela tinha razão. Ele tinha Vangie Lewis num quarto ao lado à espera da implantação. Vangie pensava que estava apenas a ser submetida a um tratamento para a ajudar a conceber o seu próprio filho. Highley nunca pensou que Vangie conservasse o feto oriental durante tanto tempo, embora o seu sistema tivesse atingido um alto grau de perfeição, que o problema da raça não era de fato importante.

- Uma vez que Vangie não abortou espontaneamente, não teve coragem de destruir o feto. Resolveu deixar ir a gravidez até ao fim, e depois quem o iria acusar se Vangie Lewis tivesse um filho com características de oriental? A mãe natural, Anna Horan, é casada com um caucasiano.

- Ele conseguiu conter o sistema de imunidade? - Katie lembrou-se dos mapas complicados dos cursos de ciências da faculdade.

- Conseguiu, e sem perigo para a criança. O perigo que a mãe corria era muito maior. Matou dezasseis mulheres nos últimos oito anos. Vangie estava a ficar muito doente. Infelizmente para ela, encontrou Highley por acaso na noite de segunda-feira passada assim que deixou Fukhito. Disse-lhe que ia consultar o seu antigo médico de Mineápolis. Isso teria sido um perigo, porque uma gravidez natural para Vangie era praticamente impossível, e qualquer ginecologista que a tivesse tratado saberia isso.

- Mas foi quando ela mencionou o nome de Emmet Salem, que assinou a sua sentença de morte. Highley sabia que Salem iria adivinhar o que acontecera quando Vangie apresentasse um filho meio-oriental, então jurava que ela não tivera nenhuma ligação com um oriental. Salem estava em Inglaterra quando a primeira mulher de Highley morreu. Ele sabia do escândalo.

- E agora - disse Richard - chega. O resto pode esperar. Os teus olhos estão a fechar-se outra vez.

- Não... Disseste que ele teve um triunfo. Ele transferiu efetivamente um feto e conseguiu levar a gravidez até ao fim?

- Sim. E se tivesses ficado mais cinco minutos na casa de Molly na segunda-feira à noite e tivesses visto o bebé Berkeley, agora podias adivinhar quem é a mãe natural. Liz Berkeley trouxe no útero o filho de Maureen Crowley.

- O filho de Maureen Crowley. - Os olhos de Katie ficaram esbugalhados. A sonolência desapareceu.

- Calma. Ainda vais arrancar essa agulha. - Ele tocou-lhe ao de leve no ombro, segurando-a quando se reclinou. - Highley guardava relatórios completos daquilo que fazia desde o momento em que fez o aborto a Maureen e fez a implantação a Liz. Anotou todos os medicamentos, todos os sintomas, todos os problemas até ao parto.

- Maureen sabe?

- Era mais do que justo contar-lhe e contar aos Berkeley e deixar que os Berkeley examinassem os relatórios. Jim Berkeley pensou sempre que a mulher lhe mentiu a respeito da inseminação artificial. Sabes o que Maureen sofreu com aquele aborto. Está a destruí-la. Ela foi ver a filha. É uma rapariga feliz, Katie. Ela tê-la-ia dado para ser adotada se a tivesse tido naturalmente. Agora que viu Maryanne, percebe que os Berkeley a adoram, está felicíssima. Mas creio que vais perder uma excelente secretária. Maureen vai voltar para a faculdade no próximo Outono.

- Anna Horan ficou destroçada por causa do aborto. Pensamos que não adianta fazê-la compreender que o filho teria nascido se Highley não tivesse assassinado Vangie na semana passada. Ela terá mais filhos.

Katie mordeu o lábio. A pergunta que ela tivera medo de fazer. Precisava de saber.

- Richard, por favor, diz-me a verdade. Quando me encontraram, estava com uma hemorragia. Até que ponto tiveram de ir para estancar o sangue?

- Estás bem. Fizeram um D-e-C. Tenho a certeza de que te disseram isso.

- Mas é tudo?

- É tudo, Katie. Ainda podes ter uma dúzia de filhos, se os desejares.

A mão estendeu-se para tapar as dela. Aquela mão estivera ali, puxara-a para trás quando estava às portas da morte. Aquela voz fizera-a desejar regressar.

Durante um longo momento de silêncio olhou para Richard. «Oh, como eu te amo», pensou ela. «Como eu te amo tanto.»

A expressão perturbada, inquiridora transformou-se subitamente num sorriso largo. Obviamente ficou contente com o que viu no rosto dela.

Katie sorriu-lhe também.

- Está muito seguro de si, não está, doutor? - perguntou-lhe ela com vivacidade.

 

                                                                                            Mary Higgins Clark

 

 

                      

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