Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O Olho de Vidro
Perry Mason virou as costas para a luz do sol da manhã, que se filtrava pelas janelas do seu gabinete particular, e contemplou de cenho carregado a pilha de cartas ainda não respondidas.
- Detesto este trabalho rotineiro do escritório - disse.
Della Street, sua secretária, ergueu para ele uns olhos serenos e profundos, onde se percebia um brilho divertido. Sorria com tolerância.
- Imagino - volveu ela - que, acabando de sair de um caso de homicídio, o senhor gostaria de se ver às voltas com outro.
- Não um caso de homicídio, necessariamente - disse-lhe o advogado - mas uma boa discussão em frente de um júri. Gosto de dramáticos julgamentos por homicídio, em que a acusação faz rebentar inesperadamente uma bomba debaixo de mim, e, enquanto dou cambalhotas pelos ares, trato de imaginar como hei-de pousar novamente no chão, quando descer... Que me diz a esse sujeito do olho de vidro?
- O Sr. Peter Brunold? - respondeu ela. - Está à sua espera na sala de entrada. Disse-lhe que o senhor, provavelmente, confiaria o caso a um assistente. Ele declarou que se não falasse consigo não falaria com mais ninguém.
- Que tal é ele?
- Tem uns quarenta anos e fartos cabelos pretos, crespos. Possui um certo ar de distinção e parece ter sofrido. É o tipo de homem que se tomaria por um poeta.
Há algo de peculiar na sua expressão; algo de sensitivo, de nobre. O senhor vai gostar dele; mas, se quer saber a minha opinião, é da espécie de homens que lhe dariam trabalho - -um sonhador romântico, capaz de cometer um crime passional se entendesse que as circunstâncias lho exigiam.
- Você distingue facilmente qual dos olhos é de vidro? - perguntou Mason.
- Não posso distingui-lo de forma alguma - afirmou a secretária, sacudindo a cabeça - Sempre pensei que seria capaz de reconhecer um olho artificial quando o visse, mas não vejo nada de particular nos olhos do Sr. Brunold.
- Que disse ele a respeito do olho?
- Disse que possui um sortimento completo de olhos de vidro: um para de manhã, um para de noite, um ligeiramente inflamado, um...
Perry Mason bateu com o punho fechado na palma da outra mão.
- Tire daí essa pilha de correspondência, Della - ordenou - e mande entrar o homem do olho de vidro. Tenho lidado com acções testamentárias, processos por injúria, calúnia, privação de afectos e ferimentos, mas diabos me levem se já tratei de um caso em que figurasse um olho de vidro; será este o primeiro. Mande entrar.
Della Street sorriu, e desapareceu silenciosamente pela porta que dava para a sala, onde os clientes que desejavam falar pessoalmente com Perry Mason eram convidados a esperar.
Um momento depois, a porta abriu-se.
- Sr. Peter Brunold - disse a secretária, postando-se muito esguia e direita no umbral.
Brunold passou por ela, atravessou o escritório a passos largos, em direcção a Perry Mason, e estendeu a mão.
- Obrigado por me ter recebido - disse.
O advogado apertou-lhe a mão, fitando, curioso, os olhos de Brunold.
- Descobriu qual é? - perguntou Brunold.
Mason sacudiu a cabeça. Brunold sorriu, tomou assento e inclinou-se para a frente.
- Sei que o senhor tem muito que fazer. Vamos ao que importa. Já dei à sua secretária o meu nome, endereço, profissão, e tudo o mais, de modo que não o incomodarei agora com essas coisas.
“Vou começar pelo princípio, e contar-lhe toda a história. Não quero roubar-lhe muito tempo. Sabe alguma coisa a respeito de olhos de vidro?
Perry Mason abanou a cabeça.
- Perfeitamente. Vou dar-lhe algumas explicações. A fabricação de olhos de vidro é uma arte. Nos Estados Unidos não há mais de treze ou catorze pessoas que saibam fazê-los. Não é possível distinguir um bom olho de vidro de um olho natural, quando a órbita ficou intacta.
Observando-o atentamente, Mason disse:
- O senhor está a mover os dois olhos.
- Naturalmente que movo os dois olhos. A minha órbita está indemne. Conservo cerca de noventa por cento da mobilidade natural.
“Ora, pois - prosseguiu - os olhos de uma pessoa variam. As pupilas são menores de dia que à noite. Às vezes, o olho são fica injectado. Há muitas coisas que podem provocar esse fenómeno; uma longa viagem de automóvel, a perda de sono, a bebida. Em mim, é geralmente a bebida. Sou um tanto melindroso com respeito ao meu olho. Estou a falar dele porque o senhor é o meu advogado. Tenho que dizer a verdade ao meu advogado; Se assim não fosse, preferiria ir para o inferno a contar-Lhe que tenho um olho artificial. Nem os meus amigos mais íntimos o sabem.
“Possuo meia dúzia de olhos. Alguns são duplicados; outros para usar em condições particulares. Tinha um que era injectado de sangue. Óptimo trabalho. Usava-o quando tinha passado a noite anterior na pândega.”
O advogado fez um lento aceno de cabeça.
- Continue - pediu.
- Alguém mo roubou e deixou em seu lugar uma imitação.
- Como sabe?
Brunold soltou uma exclamação de enfado.
- Como havia de saber? - disse. - Do mesmo modo que sei qualquer outra coisa. Como saberia o senhor, se alguém lhe roubasse o cão, ou o cavalo, e deixasse em seu lugar um cão vadio ou uma pileca velha?
Tirou um estojo do bolso, abriu-o e exibiu quatro olhos artificiais em compartimentos de couro.
- Traz isso sempre consigo? - inquiriu Mason, curioso.
- Não. Às vezes ponho um olho de reserva no bolso do colete. Tenho no colete um bolso forrado de camurça, para não arranhar o olho. Ponho sempre esse estojo na minha maleta quando viajo, ou em cima do toucador quando estou na cidade.
Tirou um dos olhos de vidro e estendeu-o ao advogado.
Mason colocou-o na palma da mão, e contemplou-o pensativamente.
- Bom trabalho - disse ele.
- Nada disso - contraveio Brunold.-É um trabalho péssimo. A pupila está mal feita. Isso a que chamam a íris é irregular; as cores não foram bem graduadas, e as veias estão demasiado vermelhas. Uma veia perfeita, num olho injectado, é a do primeiro que lhe dei, mas isso é um olho feito por um perito. Pode ver a diferença. A coloração é melhor. A íris está melhor matizada. A pupila é regular.
Ainda examinando os dois olhos, Mason inclinou meditativamente a cabeça.
- Este olho não é o seu? - perguntou, batendo com o indicador no olho injectado.
- Não.
- Onde o encontrou?
- Naquele meu estojo de couro.
- Quer dizer - perguntou Mason - que a pessoa que lhe roubou o olho injectado, o tirou desse estojo e pôs a imitação no compartimento de onde tinha tirado o original?
- Exactamente.
- -E que intenção poderia ter alguém ao fazer isso?
- É o que eu queria saber. Foi isso que aqui me trouxe.
O advogado ergueu as sobrancelhas. Num gesto de divertido espanto.
- Que aqui o trouxe?! - perguntou.
Brunold estreitou as pálpebras até estas não serem mais que duas fendas. Baixou a voz e disse:
- Suponhamos que alguém tenha roubado aquele olho para me meter numa complicação?
- Que quer dizer, precisamente?
- Um olho é uma coisa individual. Pouquíssimas pessoas têm olhos da mesma cor. Os olhos artificiais, quando bem feitos, trazem o cunho pessoal do seu produtor, de maneira tão inconfundível como os quadros de um artista. O senhor compreende o que quero dizer. Meia dúzia de pintores podem pintar a mesma árvore de modo que todos os quadros se pareçam com a árvore original, mas sempre se encontrará algo de característico em cada um, que revela qual a mão que o pintou.
- Continue - disse o advogado. - Conte-me o resto.
- Vamos supor - disse Brunold - que alguém, que queira meter-me em embaraços, tenha furtado um dos meus olhos deixando em seu lugar uma imitação? Suponhamos que se comete um crime: um roubo, ou, talvez, um assassínio, e o meu olho é encontrado no teatro do crime? Eu teria um trabalho dos diabos para provar à polícia que não fora a tal lugar.
- Acha que a polícia poderia identificar o seu olho? - inquiriu o advogado.
- Certamente que poderia, se fizesse a investigação adequada. Um perito saberia dizer quem era o fabricante do olho. Reconheceria o trabalho do artífice. A polícia pôr-se-ia em contacto com este, e mostraria o olho. O tal sujeito fabrica olhos directamente para mim. Bastar-lhe-ia uma olhadela para dizer: “Peter Brunold, Washington Street 3902”.
O olhar do advogado não se desviava do dele.
- Parece-lhe - perguntou lentamente - que vão abandonar o seu olho na cena de algum crime?
Brunold hesitou um pouco e depois inclinou vagarosamente a cabeça, num gesto afirmativo.
- E quer que eu me ocupe disso? - perguntou o advogado?
Brunold fez novamente um gesto afirmativo.
- Um crime - perguntou Perry Mason - de que o senhor é inocente, ou de que é culpado?
- Inocente.
- Como posso sabê-lo?
- Tem de acreditar na minha palavra.
- E que quer que eu faça?
- Quero que me indique algum meio de remediar a situação. O senhor é um criminalista. Conhece os métodos de trabalho da polícia. Sabe o modo de pensar dos
júris. Sabe como os investigadores instruem um processo.
Mason balançava-se lentamente na sua ampla cadeira giratória.
- Esse crime já foi cometido? - perguntou. - Ou está para ser cometido?
- Não sei.
- Será - inquiriu Mason - que um estratagema capaz de o salvar vale mil e quinhentos dólares?
Brunold respondeu pachorrentamente:
- Isso é conforme; se o estratagema for bastante bom...
- A mim parece-me que é bom.
- Precisa de ser mais do que bom. Tem que ser perfeito.
Brunold sacudiu a cabeça e disse:
- Não há plano perfeito. Já pensei e repensei no caso. Passei acordado metade da noite, tentando encontrar uma solução. Não há nenhuma. Aquele olho pode ser identificado, se a polícia proceder como eu disse. O senhor precisa compreender que não se trata apenas de provar a minha inocência depois de identificado o olho. Trata-se de evitar que a polícia identifique o olho.
Mason franziu os lábios e inclinou lentamente a cabeça.
- Creio que compreende - disse.
Brunold tirou da carteira quinze notas de cem dólares, e espalhou-as sobre a secretária de Perry Mason.
- Aí estão mil e quinhentos dólares - disse. - Agora, qual é o plano?
Mason entregou o olho injectado a Brunold, meteu o outro no bolso, juntou as notas e dobrou-as.
- Se - disse lentamente- a polícia encontrar primeiro o seu olho, há-de investigar e identificá-lo como o senhor disse. Se encontrar primeiro algum outro olho, tratará de identificar esse. Se achar outro olho em segundo lugar, procurará identificá-lo também. Se encontrar o seu olho em terceiro lugar, terá como certo que ele é idêntico aos dois primeiros.
Brunold piscou rapidamente os olhos.
- Repita isso, pediu. Mason respondeu, devagar:
- Pense bem, e compreenderá o que quero dizer.
O mal está em que o seu olho é demasiado perfeito. É uma obra de arte. O senhor sabe disso porque tem alguns conhecimentos acerca de olhos de vidro. A polícia não o saberá, a não ser que aconteça algo que lhe chame a atenção para o assunto.
No semblante de Brunold uma súbita animação se reflectiu.
- Quer dizer - perguntou - que o senhor vai?... A sua voz arrastou-se, emudecendo.
Mason fez com a cabeça um sinal afirmativo.
- Isso - respondeu - é precisamente o que quero dizer. É por essa razão que fixei o preço em mil e quinhentos dólares. Terei que fazer alguns gastos relacionados com o caso.
- Talvez eu pudesse poupar-lhe algum...
- Não - atalhou Perry Mason - o senhor não intervirá em coisa alguma.
Brunold estendeu a mão para a frente, agarrou a do advogado e sacudiu-a.
- Amigo - declarou -você é esperto! Esperto como o próprio diabo. Foi uma ideia que nunca me ocorreu, e matutei nisso durante toda a noite.
- A minha secretária tem o seu endereço? - inquiriu Mason.
- Sim; Washington Street 3902. Mantenho ali uma pequena loja de acessórios para automóveis: rodelas de êmbolo, empanques, etc.
- É o proprietário ou trabalha para outrem?
- Sou o proprietário. Estou farto de trabalhar para os outros. Fui vendedor durante muitos anos. Viajei em comboios barulhentos, estraguei o estômago com comida inferior, e ganhei dinheiro aos montes para os finórios que ficavam em casa e eram proprietários do estabelecimento.
Piscou significativamente o olho de vidro.
- Arranjei isto - disse - num desastre de comboio em 1911. Pode ver a cicatriz aqui, do lado esquerdo da cabeça; fiquei inteiramente amnésico. Estive duas semanas no hospital, e passou-se um mês antes que eu pudesse dizer quem era, tal a perda de memória. Custou-me um olho, e estragou a minha vida.
Mason inclinou a cabeça com simpatia, e disse:
- Perfeitamente, Brunold; se acontecer alguma
coisa, ponha-se em comunicação comigo. Se eu não estiver no escritório chame Della Street, a minha secretária, e fale com ela. É empregada de confiança e está a par de todos os assuntos das pessoas que me procuram.
- Será capaz de guardar um segredo? - perguntou Brunold.
Mason riu-se.
- A tortura - disse - não lhe arrancaria uma única palavra.
- E o dinheiro?
- Impossível.
- E quanto à lisonja? Se alguém lhe faz a corte? Ela é mulher, como sabe, e bem atraente, por sinal.
Mason sacudiu a cabeça, ao mesmo tempo que franzia a testa.
- Preocupe-se você com o que lhe diz respeito - disse. - Eu me preocuparei com o que me diz respeito.
Brunold dirigiu-se para a porta por onde entrara.
- Pode sair por aqui - disse-lhe Mason. - Esta porta comunica directamente com o corredor..-
Interrompeu-se ao ouvir a campainha do seu telefone particular, que retinia com insistência. Colou o auscultador ao ouvido, e escutou a voz de Della Street na outra extremidade do fio.
- Está aqui uma tal Miss Berta McLane, chefe. Veio com um irmão mais novo, Harry McLane. Parecem bastante excitados. Ela não quis dizer ao que vinha. Esteve a chorar, e o irmão mostra-se mal-humorado. O caso parece prometedor. Quer falar com eles?
- Sim. Falarei com eles dentro de um minuto - disse o advogado, e desligou o telefone.
Brunold deteve-se no limiar da porta, dizendo:
- Deixei o chapéu na outra sala. Tenho de sair por ali.
Virou-se para o compartimento da frente, retesou-se de súbito e disse:
- Olá, Harry; que diabo faz você aqui?
Mason atravessou o gabinete em quatro rápidas passadas, agarrou Brunold pela banda do casaco, e puxou-o para trás com um safanão.
- Espera aqui - disse. - Isto é um escritório de advogados e não uma sala de clube. Não quero que os outros clientes o vejam, nem que você os veja.
Meteu a cabeça pela porta e disse:
- Traga o chapéu deste homem, Della.
Quando Della Street trouxe o chapéu de Brunold, Mason fez-lhe sinal para que fechasse a porta.
- Quem eram? - perguntou a Brunold.
- O jovem McLane, simplesmente - retorquiu o outro, procurando aparentar indiferença.
- Conhece-o?
- Muito superficialmente.
-Sabia que ele vinha cá?
- Não.
- Sabe o que vem cá fazer?
- Não.
- Então porque é que empalideceu?
- Eu empalideci?
- Sim.
- Não sei porque foi. Não tenho nada de comum com o jovem McLane.
Mason pôs-lhe a mão no ombro.
- Pois bem - disse -pode sair por aqui e... Santo Deus, você está a tremer como varas verdes!
- Puro nervosismo - disse Brunold, afastando-se e encaminhando-se precipitadamente para o corredor.- Esse rapaz não significa nada para mim, mas o encontro evocou certas lembranças que...
Passou para o corredor, interrompendo-se abruptamente no meio da frase. A porta fechou-se atrás dele. Perry Mason voltou-se para Della Street.
- Chame Paul Drake - disse - da Agência de Detectives Drake. Imediatamente! Faça esperar aqueles dois, até que eu tenha oportunidade de falar com Drake. Diga-lhe que venha pelo corredor e bata à porta. Eu abrirei.
Della passou para a sala da frente, dizendo ao casal que se achava à espera:
- O Sr. Mason está ocupado, mas recebê-los-á dentro de alguns minutos.
Perry Mason acendeu um cigarro, e pôs-se a passear pelo gabinete. Ainda caminhava para cá e para lá, quando ouviu bater a porta da saída, que dava para o corredor. Mason puxou o ferrolho, abriu a porta e acenou com a cabeça a um homem alto, de olhos baços e boca repuxada numa expressão de malícia.
Entre, Paul - disse Mason - e preste atenção ao que lhe vou dizer.
O advogado tirou do bolso o olho de vidro que Brunold lhe dera, e passou-o a Paul Drake.
O investigador examinou o objecto com curiosidade.
- 'Sabe alguma coisa acerca de olhos de vidro, Paul?
- Não muito.
- Pois bem, dentro em breve ficará a saber muitas coisas mais.
- Perfeitamente. Diga!
- 'Vá ao Baltimor Hotel, reserve um quarto, e procure na lista de telefones um vendedor por atacado de olhos artificiais. Telefone-lhe. Diga que é negociante do interior; que tem um freguês que precisa de meia dúzia de olhos injectados, iguais ao que você lhe vai mandar por um portador. Dê um nome suposto. Diga que vem de qualquer cidade afastada, e que acaba de se estabelecer.
“O vendedor deve ter uns quantos olhos em armazém. Não devem ser tão bons como os que os peritos fabricam por encomenda, mas o vendedor pode emparelhar este olho e depois injectar os outros.”
- Que quer dizer com isso: injectar os outros? - interrogou Paul Drake.
- Pôr-lhes veias por fora. Fazem-no com vidro encarnado. Executarão rapidamente o trabalho se acharem que você será um bom freguês, no futuro. Não se esqueça de acentuar esse facto: que você é um negociante novo, recém-chegado de alguma cidade afastada.
- Quanto custarão os olhos?
- Não sei... dez ou doze dólares cada um, provavelmente.
- Não quer que eu lá vá e fale pessoalmente com o vendedor?
- Não. Não quero que ele o veja. Não quero que ele possa depois encontrar-lhe a pista. Inscreva-se no hotel com um nome suposto. Dê esse nome ao negociante. Mostre-se o menos possível. Não dê aos criados nem muitas gorjetas nem muito poucas. Não leve bagagem de mais, nem de menos. Porte-se como um cliente dos que ninguém recordará, se alguém quiser, mais tarde, investigar-lhe os passos.
Paul Drake fitou no advogado os olhos hesitantes.
- Irá alguém investigar os meus passos? - perguntou.
- Provavelmente.
- Não estarei a violar alguma lei, Perry?
- Nada de que eu não possa livrá-lo, Paul.
- Muito bem. Quando devo ir?
- Agora mesmo.
Drake meteu o olho no bolso, fez um sinal com a cabeça e virou-se para a porta.
Perry Mason pegou no telefone e disse a Della Street:
- Muito bem, Della; vou receber Miss McLane e o irmão.
Berta McLane falou em voz baixa e ríspida ao rapaz que a acompanhava. Este sacudiu a cabeça, murmurou alguma coisa por entre dentes, e voltou-se para Perry Mason.
Com um gesto, o advogado convidou-os a sentarem-se.
- A senhora é Miss Berta McLane? - perguntou. Ela fez um sinal afirmativo e virou-se para o rapaz. -. Meu irmão Harry.
Mason esperou que se sentassem, e disse depois, num tom de voz amável:
- Desejava falar comigo a respeito de quê?
Os olhos da rapariga fitaram-no com um brilho de firme decisão.
- Quem é o homem que acaba de sair daqui? - inquiriu.
Perry Mason arqueou as sobrancelhas.
- Pensei que a senhora o conhecia. Ouvi-o cumprimentá-la.
- Ele não falou comigo. Dirigiu a palavra ao Harry.
- Então, Harry poderá dizer-lhe quem é ele.
- Harry não mo quer dizer. Afirma que não é da minha conta. Quero que o senhor me diga...
O advogado sacudiu a cabeça e sorriu. Passado um momento, disse afavelmente:
- Sobre que assunto desejava falar comigo?
- Preciso saber quem era aquele homem.
O sorriso desapareceu da fisionomia do advogado.
- No fim de contas - disse - isto é um escritório de advogados, como sabe, e não uma agência de informações.
Por um instante, os olhos da jovem cintilaram de cólera. Depois, Berta McLane dominou-se.
- Afinal - disse - talvez o senhor tenha razão. Se alguém entrasse no meu escritório e procurasse saber algo acerca do cliente que acabava de sair, eu... eu...
- Que faria? - inquiriu Perry Mason. Ela riu-se, e respondeu:
- Provavelmente mentiria, afirmando não saber. Mason abriu uma cigarreira e ofereceu-lhe cigarros. Ela hesitou um momento, depois tirou um, bateu-o
na unha do polegar com mão experimentada, inclinou-se para a chama do fósforo que Mason lhe apresentava, e aspirou fundo. Mason ofereceu cigarros a McLane, que abanou a cabeça em silenciosa recusa. Mason acendeu por sua vez um cigarro, recostou-se na cadeira e olhou do rapaz para a jovem, conservando depois os olhos fitos em Berta McLane, como esperando que partissem dela as explicações.
A rapariga compôs a saia, e disse:
- Harry está em maus lençóis.
Harry McLane mexeu-se na cadeira, desassossegado.
- Conta-lhe a história, Harry - rogou a irmã.
- Conta-lhe tu - disse o rapaz, naquele resmoneio indistinto que já usara antes.
- O senhor - perguntou ela ao advogado - nunca ouviu falar de Hartley Basset?
- Parece-me que ouvi esse nome na rádio. Ele não faz empréstimos sobre automóveis?
- Sim, faz-respondeu ela em tom de ressentimento.- Faz empréstimos de todos os géneros. Os que ele efectua sobre automóveis, anuncia-os pela rádio. Mas há outros empréstimos de que não faz tanto reclamo, e não desdenharia mesmo comprar uma jóia roubada, ou financiar um contrabandista hábil.
O advogado ergueu jocosamente as sobrancelhas, e ia para dizer alguma coisa, mas conteve-se e tirou uma fumaça do cigarro.
- Não podes provar nada disso - murmurou Harry McLane com aspereza.
- Tu mesmo mo disseste...
- Ora, tudo era simples suposição minha.
- Não, não era, Harry. Bem sabes que falavas verdade. Trabalhaste para ele, e conheces a espécie de negócios a que ele se dedica.
- Em que sarilho é que Harry se meteu? - perguntou Mason.
- Desviou três mil e tantos dólares pertencentes a Hartley Basset.
Os olhos do advogado fixaram-se em Harry McLane. Este suportou o olhar com expressão de desafio, por um momento, depois baixou os olhos e disse em voz tão baixa que mal se ouvia:
- Eu tencionava devolver o dinheiro.
- Sr. Basset sabe disso? - inquiriu Mason.
- Agora sabe.
- Quando descobriu?
- Ontem.
- Como é que praticou o desfalque? - inquiriu Mason, voltando-se para o rapaz. - Foi durante um período longo? Foi de uma só vez, ou retirou pequenas quantias de cada vez? E que fim levou o dinheiro?
Harry McLane volveu os olhos interrogativamente para a irmã, que disse:
- Foi em quatro vezes - quase mil dólares de cada vez.
- Como é que ele fez isso?
- Substituindo as letras originais por outras falsificadas.
O advogado franziu a testa, e disse:
- Não vejo como isso possa constituir um desfalque, a não ser que as letras originais tenham sido negociadas.
Erguendo a voz pela primeira vez, desde que entrara, Harry McLane disse:
- Não precisas de explicar todos esses pormenores, mana; diz-lhe simplesmente o que queres que se faça.
- Que quer a senhora que eu faça? - inquiriu Mason.
- Quero que o senhor reembolse o Sr. Basset. Isto é: quero que o senhor consiga um acordo de modo que eu possa reembolsar o Sr. Basset.
- De todo o dinheiro? - perguntou Mason.
- Sim, ao fim de um certo tempo. Só disponho de
pouco mais de mil e quinhentos dólares, de momento. Pagarei o restante em prestações regulares.
- A senhora trabalha? - interrogou Mason.
- Sim.
- Onde?
Ela corou, e disse:
- Creio que não é necessário entrar nesses pormenores.
- Talvez seja - respondeu o advogado.
- Se for preciso, trataremos disso mais tarde. Sou secretária de um importante homem de negócios.
- Que ordenado recebe?
- É necessário esclarecer isso?
- É.
- Porquê?
- Para eu saber quanto posso cobrar de honorários, por exemplo - disse-lhe Mason.
- Não é tanto como devia ser, considerando o trabalho que faço. Todos os empregados tiveram que se sujeitar a consideráveis reduções.
- Quanto ganha? - perguntou Mason.
- Quarenta dólares por semana.
- Sustenta alguém?
- Minha mãe.
- Vive com a senhora?
- Não, mora em Denver.
- Quanto lhe remete?
- Setenta dólares por mês.
- A senhora é o seu único amparo?
- Sim.
- E Harry?
- Não tem podido enviar nada.
- Ele trabalhava para Hartley Basset?
- Trabalhava.
- Quanto ganhava Harry? - inquiriu Mason. Harry McLane acudiu:
- Eu não podia ajudar minha mãe com o que ganhava.
- Quanto era?
- Cem dólares por mês.
- Um homem, para viver, precisa mais do que uma mulher - interpôs Bertha McLane.
- Quanto tempo trabalhou para Basset?
- Seis meses.
Mason perscrutou o rosto do rapaz. Depois, perguntou com secura:
- E, durante esse tempo, tirou mais de setecentos e cinquenta dólares por mês, não foi?
Os olhos de Harry McLane arregalaram-se de pura surpresa.
- Setecentos e cinquenta dólares por mês! - exclamou.- Não me parece. O velho Basset nunca pagou um ordenado decente a ninguém. Pagava-me cem dólares mensais, e era a muito custo que se separava deles.
- Durante esse período - afirmou Mason - você desviou cerca de quatro mil dólares. Somados ao salário, elevam o seu rendimento mensal a uns setecentos e cinquenta dólares.
As comissuras dos lábios de Harry McLane tremeram. O rapaz disse:
- Não se pode fazer o cálculo assim - e caiu em silêncio.
- Alguma parte dessa quantia foi mandada a sua mãe? - perguntou Mason.
Foi Berta McLane quem respondeu.
- Não - disse ela. - Nós não sabemos que fim levou o dinheiro.
Mason voltou-se novamente para o rapaz.
- Que fim levou o dinheiro, Harry?
- Foi-se.
- Para onde?
- Já lhe disse que se foi.
- Quero saber onde é que ele foi parar.
- Para que quer saber?
- Porque, se os vou ajudar, preciso saber.
- O senhor está a ser um tanto indiscreto. Mason pôs-se a bater cadenciadamente com o punho
na secretária, marcando compasso às suas palavras.
- Se você pensa - disse ele - que eu vou procurar ajudá-lo sem conhecer os factos, está maluco. Agora, quer revelar-me tudo, ou prefere antes ir procurar outro advogado?
- Ele deu o dinheiro a alguém - disse BertaMcLane.
- Uma mulher? - perguntou Mason.
- Não - disse Harry, com certo orgulho. - Eu não
preciso dar dinheiro às mulheres. Elas é que me dariam dinheiro de bom grado.
- A quem o entregou então?
- Dei-o a alguém para que o pusesse a render.
- A quem?
- Isso é coisa que eu não tenciono revelar.
- Você tem de mo dizer.
- Não lho direi. Não vou denunciar ninguém. Essa é uma das coisas que não me podem obrigar a fazer. A mana procurou obrigar-me a falar. Prefiro ir para a cadeia e ficar lá até à morte, a atraiçoar alguém.
Berta McLane virou-se para ele.
- Harry - disse, em voz suplicante - foi aquele homem que estava aqui no escritório há pouco - o homem que te cumprimentou?
- Não - respondeu Harry com ar de desafio. - Só vi aquele sujeito uma vez.
- Onde o viste?
- Isso não é da tua conta.
- Como se chama ele?
- Deixa-o em paz.
Miss McLane voltou-se para Perry Mason, e disse:
- Ele tinha um cúmplice, alguém que lhe extorquia o dinheiro e o ajudava a ocultar o desfalque, de maneira a poder ficar com o dinheiro sem ser descoberto.
- Como é que desviou o dinheiro? - perguntou Mason.
- Estava encarregado do arquivo das letras. Basset cobra juros exorbitantes. As pessoas não lhe pedem dinheiro emprestado a não ser em último recurso. Ele toma todas as garantias que pode, e exige o mais alto juro que a lei permite. Às vezes, os clientes encontram meio de arranjar dinheiro de outras fontes. Nesse caso, apressam-se a resgatar as letras para impedir que continuem a vencer-se os juros excessivos.
“Foi o que aconteceu nessas ocasiões. Vieram resgatar as letras. Entregaram o dinheiro a Harry. Harry recebeu o dinheiro e devolveu as letras. Depois forjou outros títulos de dívida com a assinatura deles, e pôs as letras falsificadas no lugar das autênticas. Sempre que o Sr. Basset ia verificar o arquivo, tudo parecia em ordem, porque as letras falsificadas estavam lá. E Harry continuava a pagar os juros das letras falsas.
- Como é que o descobriram? - perguntou Mason.
- Venceu-se uma das letras. Harry não conseguiu o dinheiro para a pagar imediatamente. Pensou que disporia de alguns dias. Foi retardando, mas por acaso o Sr. Basset encontrou num clube de golfe o signatário da letra. Pediu-lhe o dinheiro, e o outro disse que tinha resgatado a letra quatro meses antes. Trazia consigo a letra original, com a marca de “Cancelada”, e conseguiu provar o que afirmava. Em face disso, Basset fez uma investigação completa.
- Que é que a leva a crer que Harry tinha um cúmplice?
- Ele confessou-me. Era o cúmplice que ficava com o dinheiro. Creio que o arriscava ao jogo.
- Que espécie de jogo?
- Tudo quanto é jogo - poker, roleta, corridas de cavalos e lotaria; principalmente corridas e lotarias.
- Se o velho idiota tivesse ficado quieto, eu conseguiria repor o dinheiro dele - todo o dinheiro - disse Harry McLane.
Perry Mason voltou-se para Berta McLane, e observou-a com um olhar firme, apreciativo.
- Os mil e quinhentos dólares - disse - representam as suas economias?
- É dinheiro que eu tenho depositado numa caixa económica... sim.
- Dinheiro que economizou do seu ordenado?
- Sim.
- Terá de continuar a mandar setenta dólares por mês a sua mãe?
- Sim.
- Quer pagar essa quantia para evitar que Harry vá para a cadeia?
- Sim. Isso mataria a mamã.
- E depois tenciona descontar do seu ordenado as prestações?
- Sim.
- Harry está desempregado - advertiu Mason.- Terá de sustentá-lo também.
- Não se preocupe comigo - disse Harry McLane. - Eu cá me governo. Vou arranjar um emprego e pagar-Lhe até ao último vintém. Ela não terá de contribuir nem
com um tostão do seu ordenado. Vou recuperar tudo dentro de trinta dias.
- De que modo - indagou Mason - tencionava você recuperá-lo?
- Hei-de recuperá-lo. Vou empregar dinheiro nalguns negócios. A sorte não pode estar sempre contra mim.
- Por outras palavras-retorquiu Mason-pretende continuar a jogar.
- Eu não disse isso.
- Em que é que tenciona colocar dinheiro?
- Não preciso de lhe dizer que negócios tenho em vista. Só o que o senhor tem a fazer é regularizar este assunto com Basset. Eu tratarei dos meus negócios com Berta.
Mason falou em tom peremptório.
- Vou dar-lhe o meu conselho agora mesmo - disse.
- Não pague nem um tostão a Basset.
- Mas eu preciso de lhe pagar. O dinheiro foi-lhe tirado a ele.
- Não dê um único vintém.
- Ele deu-me prazo até amanhã à noite para conseguir o dinheiro. Se o não fizer, ele entregará o caso ao procurador do distrito - disse Harry McLane, como se o advogado não tivesse compreendido a situação.
- A cadeia - retorquiu Mason - é o seu lugar! Berta McLane abriu muito os olhos.
- Há muito tempo que lido com questões forenses
- disse-lhes Mason. - Tenho uma larga experiência. Conheço homens deste tipo. O seu primeiro crime é geralmente de pouca monta. Alguém o encobre, à custa de muito sacrifício. Ora, estou pronto a apostar dez contra um em como não é esta a primeira vez em que a senhora tem de salvar Harry...
Harry McLane resmungou:
- Isso não tem nada que ver com a questão. Que diabo pensa o senhor que é, afinal?
Perry Mason não desviou os olhos do rosto de Berta McLane.
- É a primeira vez que o salva? - interrogou.
- Já tive que pagar um ou dois cheques - volveu ela, com hesitação.
- Precisamente! - exclamou o advogado.- O seu irmão vai escorregando. A senhora faz o possível para o amparar. Ele sabe que pode contar com a sua ajuda. Começou por assinar um cheque sem cobertura. A senhora indemnizou. Ele mostrou-se arrependido e prometeu não tornar a fazê-lo. Ia arranjar um emprego. Ia fazer isto e mais aquilo. Falar não custa nada, mas é a única moeda que ele tem para pagar a quem quer que seja. Convence-se por auto-sugestão de que vai realmente fazer o que prometeu, mas não tem bastante energia para o fazer. Não pretende procurar trabalho. Tenciona arrancar-lhe mais dinheiro para um “negócio infalível”. Então pensa que vai dar um “golpe”, e voltar com os bolsos recheados de dinheiro.
“Ele é desses indivíduos que querem ser “alguém”. Não tem bastante fibra para o conseguir por meio do trabalho árduo. Portanto, procura consegui-lo com basófias e tomando pelo caminho mais curto. Quando as coisas vão mal, arrepende-se e procura alguém que dê ouvidos à sua choradeira. Quando tem um pequeno período de sorte, olha os amigos de cima para baixo, anda de cabeça erguida. Logo que recebe um golpe rude, fraqueja, roja-se no pó, procurando pôr a cabeça no seu regaço e soluçar a sua infelicidade, enquanto a senhora lhe passa a mão pelos cabelos e diz que há-de protegê-lo e que tudo se remediará.
“O que este rapaz precisa é de ser obrigado a viver a sua vida. Acostumou-se a depender de mulheres. É um irmão mais novo. A senhora lutou por ele. Suponho que o pai morreu, e foi a senhora quem lhe custeou os estudos, não é assim?”
- Eu matriculei-o num curso comercial. Fiz dele um estenógrafo e guarda-livros. Às vezes censuro-me por isso. Penso que devia ter-me sacrificado um pouco mais, a fim de lhe dar uma educação melhor. Mas, depois da morte de meu pai, eu tinha de manter a Mamã, e...
Harry McLane pôs-se em pé.
- Vamos, mana - disse. - É muito fácil, para um sujeito que cobra honorários enormes, sentar-se numa cadeira giratória e pregar moral a quem sempre teve a sorte contra si. Não precisamos de ficar aqui parados, a ouvir isso.
- Pelo contrário - disse Perry Mason. - Você precisa.
Levantou-se e apontou para a cadeira.
- Volte para ali e sente-se.
Harry McLane disparou-lhe um olhar de birra e desafio. Mason avançou vivamente na sua direcção e McLane deixou-se cair na cadeira.
Mason dirigiu-se novamente a Berta McLane.
- A senhora queria um parecer jurídico - disse.- Vou dar-lho. Se tentar encobrir esse desfalque, com a condição de Basset não denunciar o seu irmão, estará a encobrir um crime. Além disso, com o rendimento de que a senhora dispõe, não pode ter a esperança de pagar prestações mensais a Basset, sustentar sua mãe, manter-se a si mesma, e, ao mesmo tempo, fornecer o dinheiro que seu irmão lhe vai pedinchar todos os meses para continuar a jogar.
“Vou procurar dar uma oportunidade a este jovem. Mas para isso é preciso que ele corte relações com todos os parceiros de jogo. É preciso que revele ao tribunal quem ficou com o dinheiro, e que destino lhe foi dado. É preciso que deixe de fazer o papel de fedelho mimado por uma irmã indulgente, e aprenda a viver à sua custa; pode ser que assim se torne um homem de verdade.”
- Mas o senhor não compreende - disse Berta McLane, numa voz que parecia estar a pique de sufocar. - Eu tenho que devolver o dinheiro de qualquer modo. Foi desviado por meu irmão. Que ele fosse para a cadeia ou não, para mim seria o mesmo. Eu restituiria o dinheiro ao Sr. Basset assim que o conseguisse obter.
- Que idade tem? -inquiriu Mason.
- Vinte e sete.
- Quantos anos tem o rapaz?
- Vinte e dois.
- Por que motivo havia a senhora de ser obrigada a cobrir esse desfalque?
- Porque ele é meu irmão. Além disso, é preciso pensar em minha mãe. O senhor deve compreender que ela não está nada bem. Já não é nova e o Harry é a menina dos seus olhos.
- É o predilecto? - perguntou Mason.
- Bem - disse ela, com hesitação - naturalmente, ele é o homem da família. Desde que o Papá morreu, Harry ficou a ser o único homem... isto é, ele tem sido...
- Bem sei - atalhou Perry Mason - Harry tem sido
a pessoa para quem a senhora moureja, e que teve todas as vantagens. Não pode explicar o caso a sua mãe?
- Oh, meu Deus, não! Isso matá-la-ia. Ela pensa que Harry é um grande homem de negócios: que tem sido o braço direito do Sr. Basset e que o Sr. Basset é um dos maiores financeiros da cidade.
Perry Mason tamborilou na secretária.
- E tenciona devolver o dinheiro, quer Basset apresente queixa quer não?
- Sim.
Mason baixou o olhar para Harry McLane.
- Jovem - disse - você diz que nunca teve sorte. Esta noite, quando se for deitar, ponha-se de joelhos e dê graças a Deus por ter uma mãe doente, pois, apesar das minhas convicções, vou procurar encobrir o seu crime. Mas não o perderei de vista; e, ou consigo dar-lhe um pouco de carácter, ou rebento-o.
Pegou no telefone colocado em cima da secretária e disse a Della Street:
- Ponha-me em comunicação com Hartley Basset. É um prestamista.
Segurando o auscultador na mão, voltou-se para Berta McLane, e disse:
- Vai ter muitos desgostos com Hartley Basset. Ele quer que a senhora dê tudo o que tem, inclusive a alma. É o tipo de homem capaz de explorar impiedosamente qualquer pessoa.
Harry McLane acudiu:
- Não se preocupe com Hartley Basset. Apresente-Lhe a melhor proposta que pudermos fazer e Basset aceita.
- Donde lhe vem tanta farronca? - disse Mason, desdenhosamente. - A melhor proposta que pudermos fazer?
- Sim. A proposta é minha e de Berta - volveu McLane. Eu tenciono pagar-lhe.
Mason inclinou a cabeça, e disse:
- Você talvez não pretenda fazê-lo; mas vai pagar de facto. Eu providenciarei nesse sentido. Mas que é que lhe dá tanta certeza de que Basset há-de aceitar a sua proposta?
- Será obrigado a isso. Farão pressão sobre ele.
- Quem?
- Alguém que vive em casa dele e é meu amigo.
- Você é dos que só fazem amigos nos tempos de prosperidade - respondeu-lhe Mason. - Um homem com tão pouco carácter como você não tem amigos que o amparem nas situações difíceis.
- Isso é o que o senhor pensa - retorquiu McLane com insolência. - Está muito enganado. Vai ver como alguém, que tem muita influência sobre Basset, há-de ajudar-me. Apresente a sua proposta, e não dê atenção ao que Basset disser. Ele decerto vai dizer-lhe que não, mas dentro de uma hora há-de chamá-lo ao telefone para comunicar que mudou de ideias e que está disposto a aceitar.
Perry Mason fitou os olhos no rapaz, e disse, lenta e deliberadamente:
- Você requestou a Sr." Basset?
McLane ruborizou-se e fez menção de responder, mas o telefone retiniu e Mason atendeu.
- Alô - disse. - Basset?... É o Sr. Hartley Basset? Bem, aqui é Perry Mason, o advogado. Tenho um assunto a tratar consigo. Pode vir ao meu escritório?... Perfeitamente, irei eu ao seu. De noite?... Sim, posso ir de noite, sem dúvida. Preferia que fosse de tarde... Sim, de noite está bem. Tem o escritório na sua residência, diz o senhor? Estarei lá às oito e meia... Oh, então sabe do que se trata... Muito bem, às oito e meia.
Desligou o telefone.
- Como é que Basset sabia que você vinha cá? - perguntou.
- Sabia porque eu lho disse - volveu McLane, com petulância.
- Tu disseste? - perguntou Berta McLane.
- Sim - redarguiu Harry. - Ele estava a gabar-se de que ia mandar-me para a cadeia, e entendi que era boa ideia pregar-lhe um susto. Disse que Perry Mason ia ser o meu advogado, e que era melhor ele ter cuidado, visto que Perry Mason era capaz de arranjar as coisas para que fosse ele o encarcerado.
Mason fitou-o silenciosamente, com antipatia. Berta McLane encaminhou-se para o advogado e pôs-lhe a mão no braço.
- Obrigado - disse - muito obrigado. E não se esqueça de que eu farei o possível para satisfazer o
Sr. Basset. Indemnizá-lo-ei o mais prontamente que puder - o capital e os juros. Assinarei uma carta promissória. Ele pode cobrar juros de um por cento ao mês. É o que cobra nos empréstimos, como sabe.
Mason respirou fundo, e disse pausadamente:
- Pelo que diz respeito a Basset, vou falar com ele.
- Tirou da gaveta uma folha de papel branco, rabiscou um número, e entregou-o a Berta McLane, dizendo: -
- Este número é o do telefone do meu apartamento. Pode encontrar-me lá sempre que não me encontrar no escritório, se ocorrer algo de importante. Creio que seu irmão há-de falar. Quando isso se der, quero saber o que disse.
- Refere-se ao cúmplice?
- Sim - respondeu Mason.
Harry McLane, agora com ar de desfaçatez contentou-se com um comentário:
- Palermices - disse.
Berta McLane fingiu que não ouvira.
- E os seus honorários - perguntou - a quanto montarão?
- Não pense nisso-disse Mason, sorrindo.'-O homem que esteve aqui há pouco pagou o suficiente para custear o caso dele e o seu.
Uma porta envidraçada, com o letreiro:
BASSET AUTO FINANCE COMPANY PODE ENTRAR
via-se imediatamente à direita da porta onde uma placa de bronze ostentava a legenda:
HARTLEY BASSET-RESIDÊNCIA
Particular NÃO SE ADMITEM VENDEDORES NEM PEDINTES
Perry Mason abriu a porta que dava para o escritório, e entrou. A sala da frente estava deserta. Na outra extremidade via-se uma porta com a inscrição: Particular. Por cima de um botão de campainha liam-se as palavras: Toque e sente-se.
Perry Mason tocou.
A porta abriu-se quase imediatamente. Um homem de peito saliente, bigodes grisalhos aparados, cabelos bastos e revoltos, encanecidos nas têmporas, cravou nele os olhos cinzento-claros, em cujo centro as pequenas pupilas negras tinham uma fascinação hipnótica.
Movendo-se com desembaraço viril, estendeu o pulso esquerdo a fim de olhar para o relógio.
- Chegou pontualmente - disse.
Perry Mason inclinou-se, sem dizer palavra, e seguiu Hartley Basset a um escritório de mobília um tanto singela.
- Aqui não - disse Basset-; é onde recebo dinheiro. Não quero que pareça demasiado próspero. Venha ao gabinete onde faço os empréstimos de maior vulto. Gosto mais desse outro.
Abriu uma porta e mostrou um escritório sumptuosamente mobilado. De um compartimento mais além, vinha o ruído de uma máquina de escrever.
- Trabalha de noite? - perguntou Perry Mason.
- Habitualmente fico aqui umas duas horas à noite. É para servir as pessoas que trabalham. Um homem desempregado que quer um empréstimo sobre um automóvel, não é emprego de capital tão bom como o que tem trabalho e precisa de dinheiro.
Indicou uma cadeira. Mason sentou-se.
- Quer falar comigo a respeito de Harry McLane? - perguntou Basset.
A um sinal afirmativo do advogado, Basset premiu um botão. Cessou o ruído da máquina de escrever na sala contígua. Ouviu-se o rumor de uma cadeira que era afastada para trás. Abriu-se a porta. Um homem de ombros estreitos, cerca de quarenta e cinco anos, olhos cinzentos, espreitou com um olhar de coruja atrás dos óculos de aro de chifre.
- Artur - disse Basset - qual é o montante exacto do desfalque de McLane?
- Três mil, novecentos e quarenta e dois dólares e sessenta e três cêntimos - respondeu o homem em voz áspera e inexpressiva.
- Incluídos os juros - perguntou Basset - à razão de um por cento ao mês?
- Juros à razão de um por cento ao mês - confirmou o homem - a contar da data em que o dinheiro foi desviado.
- Está bem - disse Basset.
O homem retirou-se e fechou a porta. Alguns momentos depois, ouviu-se o ruído das teclas da máquina que caíam com regularidade mecânica. Hartley Basset sorriu para Perry Mason, e disse:
- Ele tem prazo até amanhã à noite.
Mason tirou um cigarro da cigarreira. Basset extraiu do bolso do colete um charuto. Acenderam-nos quase ao mesmo tempo. Mason apagou o seu fósforo e disse:
- Não há motivo para que você e eu não nos entendamos.
- Nenhum - concordou Basset.
- Não estou ao par dos pormenores do caso - prosseguiu Mason - mas procedo na suposição de que McLane desviou o dinheiro.
- Ele confessou.
- Bem, não vamos discutir esse ponto. Admitamos que ele efectivamente o tenha desencaminhado.
- Está reservando esse ponto para a defesa no tribunal?- perguntou Basset, com um olhar duro.
- Não estou a admitir nada - volveu Mason. - Se os meus clientes querem admitir algum facto, podem fazê-lo. Eu nunca o faço.
- Adiante - fez Basset.
- Você quer o seu dinheiro.
- Naturalmente.
- McLane não o tem consigo.
- Ele tinha um cúmplice.
- Não sabe quem era o cúmplice?
- Não. Oxalá soubesse. - Porquê?
- Porque é o seu cúmplice quem tem o dinheiro.
- Que é que o leva a pensar assim?
- Tenho praticamente a certeza disso.
- Nesse caso, por que é que o cúmplice não restitui o dinheiro?
- Não conheço todos os motivos. Um deles é que o cúmplice joga. Para jogar, precisa ter dinheiro. Se
você penetrar nas operações mentais de Harry McLane, verá que ele conta desquitar-se amplamente. Tem bastante bom-senso para perceber que se ele e o cúmplice devolverem todo o dinheiro desviado, não terão capital para arriscar. Um jogador precisa ter com que jogar.
- Não que eu os censure particularmente - disse Basset - se conseguirem resultado. Mas não conseguirão. Pelo menos com o meu dinheiro. Ou pagam ou vão para a cadeia.
- Você não ignora decerto - disse Mason - que está a tentar encobrir um crime.
- Nada disso. Estou a procurar reaver o meu dinheiro.
- Você propôs a um falsificador não o denunciar se ele devolver a quantia desviada.
- Não nos embrenhemos em malabarismos - advertiu Basset. - Você sabe o que quer. Eu sei o que quero. Quero o meu dinheiro.
- E pensa que McLane o tem consigo?
- Não; penso que é o cúmplice quem o tem.
- Mas não acha que se McLane pudesse consegui-lo do seu cúmplice, já o teria feito?
- Não - disse Basset. - Eles roubaram para jogar. Perderam parte do dinheiro. Querem continuar a jogar. A irmã de McLane está pronta a devolver o dinheiro, para impedir que McLane vá para a cadeia. Isso deixará aos dois uma verba para arriscar ao jogo.
- E então? - perguntou Mason.
- A pequena não tem o dinheiro todo- disse Basset.- Possui pouco mais de mil e quinhentos dólares. O cúmplice de McLane tem ainda uns dois mil. Tenciono receber o dinheiro da pequena, descobrir depois quem é o cúmplice e arrecadar o que ele tiver.
- Suponhamos - insinuou Mason - que isso não dê resultado?
- Espero que dê.
Mason retorquiu pausadamente;
- Posso arranjar-lhe mil e quinhentos dólares de momento e prometer-lhe pagamentos mensais de trinta dólares. Sou representante da irmã.
- Dinheiro dela? - perguntou Basset.
- Sim.
- Todo?
- Sim.
- O rapaz não entregou nada?
- Não.
- Aceito os mil e quinhentos à vista, e cem por mês pagos pela pequena - disse Basset.
Mason corou, encheu bruscamente os pulmões, dominou-se, soprou o cigarro, e disse num tom de voz inexpressivo:
- Ela não pode pagar tanto. Sustenta a mãe inválida. Não pode manter-se com o que sobrar do ordenado.
- Não me interessa receber o dinheiro em pequenas prestações - tornou Basset. - Pagamentos mensais de cem dólares reduzirão prontamente o capital. Harry McLane, entretanto, talvez consiga trabalho. Pode transferir o prejuízo para o novo patrão.
- Que quer dizer-inquiriu Mason - com isso de transferir o prejuízo para o novo patrão?
- Ele pode pôr em execução algum plano para burlar o patrão e indemnizar-me dos meus prejuízos.
- Quer dizer que vai obrigá-lo a roubar?
- Certamente que não. Estou simplesmente a sugerir que ele passe o fardo a outrem. O rapaz roubou-me. Eu suportei a carga por algum tempo. Agora, que outro a suporte um pouco.
Mason riu-se.
- Você poderia ficar na situação de instigador dessa nova fraude, Basset.
Basset fitou-o friamente, e disse:
- Que me importa? Quero o meu dinheiro. Não me interessa a maneira como reavê-lo. Não há prova legal contra mim. O aspecto moral da questão é-me de todo indiferente.
- Assim me pareceu - disse Mason.
- Óptimo. Isso previne mal-entendidos. Não vou dizer-lhe o que penso da ética da sua profissão e você não me fará comentários sobre a ética da minha. Quero o meu dinheiro. Você está aqui para assentar na maneira de mo restituir. A irmã não quere que o rapaz vá para a cadeia. Eu já lhe apresentei as minhas condições. Eis tudo.
- Essas condições - disse-lhe Mason - não serão aceites.
Basset encolheu os ombros e disse:
- Ele tem prazo até amanhã.
Ouviu-se bater de leve nas almofadas da porta, que se abriu quase em seguida. Uma mulher, entre trinta e cinco a quarenta anos, relanceou os olhos para Perry Mason, com um rápido semi-sorriso, e virou-se solicitamente para Hartley Basset.
- Posso tomar parte nesta conversa, Hartley? - perguntou.
Hartley Basset deixou-se ficar sentado. Fitou-a através do fumo que subia em espirais, do seu charuto. Nenhuma expressão assomava ao seu rosto.
- Minha esposa - disse ao advogado.
Mason pôs-se de pé, mediu com um olhar apreciativo a esbelta figura, e disse:
- Muito prazer em conhecê-la, Srª Basset.
Ela continuou com os olhos apreensivos pregados no marido.
- Por favor, Hartley; gostaria de poder dizer alguma coisa a respeito deste caso.
- Porquê?
- Porque estou interessada.
- Interessada em quê?
- No que tu vais fazer.
- Queres dizer - perguntou o marido - que estás interessada em Harry McLane?
- Não. Interessa-me por outro motivo.
- Qual é o outro motivo?
- Não quero que sejas demasiado áspero, se o dinheiro vai ser restituído pela irmã.
- Creio - respondeu Basset - que sou eu o melhor juiz nesse assunto.
- Posso assistir à conferência?
Os olhos de Basset eram frios e duros, e a voz inteiramente destituída de emoção, quando disse:
- Não.
Houve um momento de silêncio. Basset nada fez para suavizar a brusquidão da recusa. A senhora Basset hesitou um momento, depois virou as costas e atravessou o escritório. Não saiu pela mesma porta por onde entrara; ao invés, dirigiu-se para o gabinete contíguo e, um momento depois, o ruído de uma porta ao fechar-se revelou que ela o atravessara, entrando na sala de recepção.
Hartley Basset disse:
- Não precisa sentar-se novamente, Mason. Estamos entendidos. Boa-noite.
Perry Mason encaminhou-se para a porta, abriu-a com um puxão, e disse por cima do ombro:
- Boa-noite, e até à vista.
Atravessou o escritório da frente, bateu com a porta da sala de recepção atrás de si, e atravessou o vestíbulo em três rápidas passadas. Deu volta ao seu carro, abriu a porta esquerda, e ia sentar-se ao volante, quando percebeu que alguém estava agachado no extremo oposto.
Pôs-se logo em guarda, e uma voz de mulher disse:
- Feche a porta, por favor, e dobre a esquina com o carro.
Era a voz da Srª Basset.
Mason vacilou por um momento. O seu rosto mostrou irritação, depois curiosidade. Sentou-se ao volante e conduziu o carro até à esquina, dobrou-a e parou, desligando o motor. A Srª Basset inclinou-se para diante, pôs-lhe a mão na manga do casaco, e disse:
- Por favor, faça o que ele pede.
- O que ele pede-respondeu Mason - é humanamente impossível.
- Não, não é impossível -, insistiu ela. - Eu conheço-o bem. É capaz de tirar sangue de um nabo. Espreme até à última gota, mas nunca exige uma coisa impossível.
- A rapariga sustenta uma mãe inválida.
- Mas, naturalmente - disse a Sr." Basset - essa espécie de pessoas pode ser mantida por instituições de caridade. No fim de contas, a jovem não é obrigada a isso. Ninguém morre de fome nas comunidades civilizadas, o senhor bem sabe. Se a pequena morresse, a mãe havia de ser sustentada de qualquer forma.
Mason respondeu rispidamente:
- E pensa que ela iria procurar viver com sessenta dólares por mês, e cortar as mesadas à mãe, tudo com o fim de restituir a seu marido o dinheiro que um rapazola desviou?
- Não - volveu ela. - Não para restituir o dinheiro. Para o impedir de fazer o que fará se o dinheiro não for restituído.
Mason disse, pausadamente:
- E a senhora veio esconder-se aqui para me dizer isso?
- Não - disse ela - foi para lhe perguntar uma coisa. Só incidentalmente é que me referi ao desfalque.
- Se quer consultar-me -• disse o advogado - venha ao meu escritório.
- Não posso ir ao seu escritório. Não consigo escapar nunca. Sou constantemente espiada.
- Não seja criança - tornou Mason. - Quem havia de querer espiá-la?
- O meu marido, naturalmente.
- Quer dizer que a senhora não poderia ir a um escritório de advogados, se quisesse?
- Certamente que não.
- Quem a impediria?
- Ele.
- Por que razão?
- Não sei. Ele não me deixaria ir. É inexorável. Matar-me-ia se o contrariasse.
Mason franziu pensativamente o sobrolho, e disse:
- A respeito de que é que a senhora queria falar comigo?
- Acerca da bigamia.
- Porquê?
- Eu sou casada com Hartley Basset.
- É o que me consta.
- Quero deixá-lo e ir-me embora.
- Continue.
- Estou apaixonada por outro homem.
- Óptimo.
- Eu teria de casar com ele.
- Nesse caso, podia divorciar-se de Basset.
- Mas eu teria de casar imediatamente.
- Quer dizer que o casamento teria de se realizar antes que a senhora estivesse divorciada de Basset?
Sim.
- Então esse homem não sabe que a senhora é casada com Basset?
- Sim - volveu ela, com hesitação. - Ele sabe.
- E está disposto a envolver-se num caso de bigamia?
- Nós queremos arrumar o caso de modo que não seja bigamia.
- A senhora podia - disse Perry Mason - conseguir um divórcio rápido, se frequentasse certos lugares.
- Ele teria que saber disso?
- Sim.
- Então não o conseguiria.
- Nesse caso, não poderia casar-se.
- Poder, podia; a questão é saber se o casamento seria válido ou não.
- A senhora teria que jurar falso para obter a licença.
- Bem, suponhamos que eu jurasse falso... e daí? Voltando-se para lhe observar o perfil, Mason disse:
- A senhora afirmou que estava a ser seguida. Decerto já reparou no automóvel estacionado junto ao passeio, atrás de nós...
- Santo Deus, não!-disse ela.
Virou-se para olhar pelo vidro de trás, e soltou um grito abafado.
- Meu Deus, é o James!
- Quem é o James?
- O motorista de meu marido.
- Aquele carro é do seu marido?
- Sim, é um deles.
- Acha que o motorista a seguiu?
- Tenho a certeza. Pensei que lhe tinha escapado, mas estava enganada.
- Que quer fazer agora? Descer?
- Não... Contorne o quarteirão e pare em frente da minha casa.
- O homem que está no carro de trás - disse Mason - sabe que a senhora o viu.
- Paciência. Por favor, faça o que lhe pedi. Regresse, por favor!
Mason contornou o quarteirão. O carro que estivera estacionado atrás dele acendeu os faróis e seguiu-o obstinadamente. Mason encostou o seu automóvel ao passeio, em frente da residência de Basset, inclinou-se diante da mulher e abriu a porta.
- Se me quer consultar - disse - entrarei.
- Não, não! - disse ela, quase num grito.
Um vulto destacou-se das sombras, encaminhou-se para junto do carro, e Hartley Basset disse:
- Você tinha, por acaso, entrevista marcada com minha mulher?
Mason abriu a porta do seu lado, desceu, passou por trás do carro, e postou-se em frente de Hartley Basset.
- Não - disse. - Não tinha.
- Então - disse Basset - minha mulher é que deve ter forjado o encontro. Ela não estava a tentar consultá-lo sobre algum assunto?
Mason firmou-se nos pés muito afastados.
- Desci do carro - replicou - e vim até aqui com o fim de lhe dizer que não se meta no que não é da sua conta.
O outro carro que tinha seguido Mason detivera-se junto do passeio. Um homem alto, magro, que tinha um caminhar lesto, felino, abriu a porta do automóvel, encaminhou-se para Mason, e, ouvindo o tom de voz deste, voltou ao carro, tirou alguma coisa do bolso lateral e caminhou rapidamente em direcção ao advogado, aproximando-se por detrás. A luz do farol iluminou uma chave inglesa que ele segurava na mão direita.
O advogado girou nos calcanhares de maneira a defrontar os dois homens. A Srª Basset subiu a correr os degraus da casa e bateu com a porta.
- Vocês - perguntou Mason ameaçadoramente - querem alguma coisa?
Basset olhou para o homem alto que segurava a chave inglesa.
- Pode retirar-se - disse.
Mason fitou-os com olhar firme; depois, disse pausadamente:
- Tem toda a razão em dizer que pode retirar-se.
Voltou ao seu carro, sentou-se ao volante e premiu o acelerador. Os dois homens ficaram a observar-lhe a silhueta recortada contra os faróis do outro automóvel.
O advogado deu uma volta, derrapando, e endireitou a direcção ao alcançar a artéria principal, onde imprimiu velocidade ao carro.
Ao chegar diante de uma leitaria, parou e dirigiu-se à cabina telefónica. Marcou um número e, ouvindo a voz ansiosa de Berta McLane, disse:
- Tudo acabado.
- Não quis aceitar?
- Não.
- Que é que ele queria?
- Uma coisa impossível.
- Que era?
- Era impossível.
- Diga-me ao menos do que se tratava.
- Ele queria que a senhora pagasse cem dólares por mês.
- Mas eu não posso!
- Foi o que lhe respondi. Disse-lhe que a senhora tinha mãe a sustentar. Ele acha que sua mãe pode ser mantida pela caridade pública.
- Oh, mas eu não poderia fazer isso!
- Foi o que lhe disse. Agora, oiça. Obrigue Harry a dizer-lhe o que fez ao dinheiro, e quem é o cúmplice.
- Mas Harry não quer dizer-mo.
- Então que vá para a cadeia.
- Onde é que o senhor está agora?
- Numa leitaria.
- Perto da casa de Basset?
- Sim.
- Volte e diga a Basset que vou tratar de arranjar o dinheiro. Posso pagar as prestações, pelo menos durante um ou dois meses. Entretanto, Harry já estará a trabalhar. Tenho algumas coisas que posso vender.
- Não direi nada disso a Basset.
- Mas eu quero aceitar a proposta antes que Harry vá para a cadeia.
- Tem tempo até amanhã à tarde para procurar outro advogado.
- Quer dizer que não me representará?
- Não - respondeu Mason. - Para aceitar uma proposta como essa, não. Só a representarei com a condição de me deixar tomar conta do seu maninho e ver o que se pode fazer dele. Depois de desembuchar, farei o possível para o regenerar. Caso contrário, procure outro advogado. Não discuta comigo pelo telefone. Pense bem nisto. Dê-me a resposta mais tarde.
Refastelado numa poltrona, lendo um livro sobre as últimas descobertas em psicologia, Perry Mason mal ouviu o relógio dar meia-noite.
Na mesinha a seu lado, retiniu o telefone. Mason levantou o auscultador e disse: “Está? Aqui fala Mason”. Ouviu uma voz de mulher, vibrante de emoção, derramando-lhe palavras ao ouvido antes que ele tivesse tido tempo de identificá-la.
- ... Venha já. Vou abandonar meu marido. Ele cometeu uma agressão brutal. Vai haver uma desgraça. Meu filho vai matá-lo...
- Quem fala? - interrompeu Mason.
- Sílvia Basset, a mulher de Hartley Basset.
- Que quer que eu faça?
- Venha logo que puder.
- Terá de esperar até ao amanhecer - disse o advogado.
- Não; não posso. O senhor não compreende. Está aqui uma mulher gravemente ferida.
- Que lhe aconteceu?
- Levou uma pancada na cabeça.
- Quem a atacou?
- Meu marido.
- Onde está o seu marido?
- Saltou para dentro do carro e fugiu. Assim que voltar, meu filho Dick matá-lo-á. Não posso fazer nada para o impedir. Quero que o senhor venha e tome o assunto a seu cargo. Se meu marido voltar antes que o senhor chegue, Dick matá-lo-á. Quero que faça ver a Dick que o senhor pode zelar pelos meus interesses; que ele não precisa de fazer justiça pelas suas próprias mãos; que...
- Onde é que a senhora está neste momento?
- Em casa.
- Pode trazer o seu filho aqui?
- Não, ele não consente em sair de casa. Está furioso. Não posso fazer nada.
- A senhora não o ameaçou de chamar a Polícia?
- Não.
- Porquê?
- Porque o prenderiam, e eu não quero; além disso, ficaria em situação embaraçosa. Por favor, o senhor não poderia vir? Não posso explicar pelo telefone, mas é questão de vida ou de morte. É...
- Eu vou - interrompeu Mason. - Trate de conter Dick até eu chegar.
Desligou, despiu o casaco de pijama, descalçou os chinelos, enfiou o casaco e os sapatos, e um minuto e meio mais tarde rodava velozmente pelas ruas desertas àquela hora da noite.
A Srª Basset foi recebê-lo à porta da casa - a porta que tinha a placa da companhia financeira.
- Entre para aqui - disse ela - e faça o favor de falar com Dick logo que puder.
Perry Mason entrou na sala da frente. Um jovem esbelto, de vinte e um ou vinte e dois anos, abriu de repente a porta do escritório interior e disse:
- Eu não vou ficar à espera, mãe... Interrompeu-se ao ver Perry Mason. As mãos, que
estavam estendidas para a frente, caíram-lhe ao longo do corpo.
- Dick - disse a mãe - quero que conheças Perry Mason, o advogado. O meu filho, Dick Basset.
O jovem cravou em Perry Mason os olhos castanhos, grandes e profundos. Tinha o rosto mortalmente pálido. A boca sensitiva e bem feita, estava apertada com firmeza.
Mason estendeu cordialmente a mão.
- Prazer em conhecê-lo, Basset - disse.
Basset hesitou um momento, olhou para a mão que Mason lhe apresentava, passou alguma coisa da mão direita para a esquerda, e deu um passo em frente.
Um objecto pequeno caiu no chão. O rapaz agarrou a mão de Mason e sacudiu-a, dizendo:
- O senhor representa a mamã? Mason fez um sinal afirmativo.
- A vida dela tem sido um inferno - disse o rapaz: - Conservei-me de parte por muito tempo. Esta noite, eu...
Deteve-se ao ver Perry Mason pousar os olhos no objecto que tombara sobre o tapete.
- Bala? - perguntou Mason.
O rapaz baixou-se para o recolher, mas o advogado antecipou-se-lhe. Apanhou um cartucho 38 e, observou-o atentamente.
- Para que serve esta munição? - perguntou.
- Isso é comigo - volveu Basset.
Mason estendeu a mão e agarrou a esquerda do rapaz, abrindo-a antes que Basset tivesse tempo de lhe
adivinhar as intenções, e descobrindo outros cartuchos de calibre 38. Um deles estava vazio.
- Que é feito do revólver? - perguntou.
- Não me venha com essas coisas! - replicou, furioso.-Não pode...
Perry Mason agarrou-lhe o ombro, deu-lhe um repelão, fê-lo girar e, ao mesmo tempo, passou a mão direita pelas costas do casaco.
Dick Basset barafustou, firmou-se, e conseguiu voltar-se, mas não antes que Perry Mason tivesse sacado o revólver calibre 38 do bolso traseiro do lado direito.
Mason abriu a arma. O tambor estava vazio. Cheirou o cano.
- Pelo cheiro, parece que foi deflagrado - disse. Dick Basset, pálido e silencioso, olhava-o fixamente.
A Sr." Basset deu um salto em frente e segurou o revólver com ambas as mãos.
- Oh, por favor - disse Perry Mason. - Não consegui encontrar isso. Dê-mo, por favor.
Mason não largou a arma.
- Para que o quer? - perguntou.
- Preciso dele.
- De quem é?
- Não sei.
Mason olhou para o jovem Basset e inquiriu:
- De onde o tirou?
Basset permaneceu em silêncio. Mason acenou negativamente à Srª Basset e desprendeu-lhe delicadamente as mãos.
- Creio - disse - que será mais seguro guardá-lo comigo por algum tempo. E agora, que foi que aconteceu?
A Sr." Basset largou com relutância o revólver, e disse ao rapaz:
- Mostra-lhe, Dick.
Dick Basset afastou um biombo, deixando ver um canto do aposento que até então estivera oculto das vistas do advogado.
Uma mulher de ancas largas e cabelos vermelhos decorados, inclinava-se sobre alguém que se achava estendido num desconjuntado sofá. Não levantou os olhos ao mover-se o biombo, mas disse por cima do ombro:
- Creio que dentro de alguns minutos já estará melhor. É o médico?
Mason desviou-se para o lado, de modo que pudesse ver para além da mulher, a fim de observar a pessoa estendida no sofá.
Era uma morena de uns vinte e tantos anos, e usava vestido escuro. A blusa fora aberta no pescoço, mostrando a curva branca da garganta e do peito. Junto à cabeça da mulher, sobre o sofá, havia toalhas molhadas. Um frasco de sais e uma pequena garrafa de aguardente estavam acomodadas entre as toalhas. A mulher de cabelos vermelhos friccionava os punhos da jovem.
- Quem é ela? - perguntou Perry Mason. A Srª Basset disse, devagar:
- Minha nora - mulher de Dick. Mas ninguém o sabe ainda. Ela usa o nome de solteira.
Dick Basset virou-se como para dizer alguma coisa, mas guardou silêncio.
Perry Mason apontou para uma ferida praticada na têmpora da jovem.
- Que aconteceu?
- Meu marido atacou-a. Porquê?
- Não sei porquê.
- Com que arma?
- Não sei. Ele feriu-a e fugiu de casa.
- Para onde foi?
- O carro dele estava em frente da porta. Hartley entrou e partiu numa velocidade louca.
- O motorista estava com ele?
- Não; ia sozinho no carro.
- A senhora viu-o? Sim.
- Onde estava a senhora?
- Vi-o de uma janela do andar de cima.
- Conheceu o carro? Sim. Era o Packard dele.
- Não levava malas?
- Não; nenhuma mala.
A mulher que estava deitada no sofá mexeu-se e soltou um gemido.
- Está voltando a si -disse a mulher de cabelos vermelhos.
Perry Mason inclinou-se. A Sr." Basset adiantou-se até à cabeceira da ferida, alisou os cabelos húmidos da
jovem, passou-lhe ao de leve os dedos pelas pálpebras cerradas, e disse:
- Hazel, querida, ouves-me?
As pálpebras abriram-se, trémulas, deixando ver os olhos escuros, fixos e enevoados. A rapariga teve um espasmo, gemeu e virou-se de lado.
- Vai ficar indisposta, mas depressa melhorará - disse a velha, com um aceno de cabeça, voltando-se para encarar curiosamente Perry Mason.
Este dirigiu-se à Srª Basset.
- Quer que me encarregue disto? - perguntou.
- De que maneira?
- Quer que eu trate deste caso da maneira que me parece melhor?
- Sim.
Perry Mason dirigiu-se para o telefone que estava sobre a secretária, suja e queimada de cigarros, e disse:
- Ligue-me para o posto de polícia... Está? É do posto de polícia? Aqui é Richard Basset, de Franklin Street. Houve uma desgraça aqui. Acho que meu pai bebeu; deixou uma mulher bastante ferida com uma pancada... Sim, foi meu pai. Queremos que o detenham, naturalmente. Ele está fora de si. Não sabemos o que ainda é capaz de fazer. Façam o favor de mandar alguns agentes imediatamente... Sim, um dos carros da rádio-patrulha serve, mas é preciso que venha já, pois ele pode matar alguém.
Perry Mason desligou o aparelho e olhou para a Srª Basset.
- A senhora - disse - não deve meter-se nisto. Virou-se para o rapaz.
- Tome a iniciativa neste assunto. Suponho que você está ao lado de sua mãe, e contra o seu pai?
A Srª Basset acudiu:
- Naturalmente, durante as investigações, descobrir-se-á que Hartley não é o pai de Dick.
- Quem é então?
- Ele é filho de... de um casamento anterior.
- Há quanto tempo está casada com Hartley Basset?
- Cinco anos.
Dick Basset comentou com azedume:
- Cinco anos de tortura.
A mulher deitada no sofá mexeu-se e soltou novamente um gemido. Disse algo ininteligível, depois tossiu e sentou-se com esforço.
- Onde estou? - inquiriu.
- Vai tudo bem, Hazel - disse a Srª Basset. - Tudo se há-de arranjar. Não te aflijas. Está aqui um advogado, e a polícia vem a caminho.
A jovem tornou a fechar os olhos, suspirou, e disse:
- Oh, deixe-me pensar... deixe-me pensar. A Srª Basset chegou junto de Perry Mason.
- Por favor - disse a meia voz - dê-me o revólver. Não quero que fique com ele.
Porquê?
- Porque entendo que devemos escondê-lo.
- Ninguém sabe que a senhora tem um revólver? - perguntou Mason.
- Não é meu.
- E se a polícia o encontrar?
- Se o senhor mo entregar, não o encontrarão. Por favor!
Perry Mason tirou a arma do bolso e estendeu-lha. A Srª Basset deixou-a cair no regaço do vestido e segurou-a com a mão.
- Isso não pode ficar aí - disse Mason. - Se pretende escondê-lo, faça-o com inteligência.
- Espere - tornou ela. - O senhor não compreende. Eu tenho cuidado com ele...
Dick Basset, inclinando-se ternamente sobre a mulher deitada, exclamou:
- Santo Deus!
A jovem abriu os olhos. Dick beijou-a, e ela passou-Lhe um dos braços em torno do pescoço. Falou-lhe em voz baixa. Um momento depois, Dick Basset despreendeu-lhe docemente o braço e virou-se para eles.
- Não foi Hartley quem lhe bateu - disse.
- Deve ter sido - insistiu a Srª Basset. - Ela decerto delira. Eu vim até ao escritório da frente com ela. Sabia que Hartley estava só.
Dick Basset retorquiu, excitado:
- Não era Hartley. Hazel nem chegou a falar com ele. Bateu à porta do escritório do pai. Não responderam. Abriu a porta e viu que o escritório estava deserto. Atravessou-o e bateu à porta do gabinete de trás. O pai abriu. Estava alguém com ele. Hazel não conseguiu ver
quem era. O homem estava de costas. O pai disse que
estava ocupado, e que se sentasse aqui.
“Ela esperou quase dez minutos. Depois, aquela porta abriu-se. Um homem estendeu o braço e apagou as luzes. Atravessou o gabinete, a correr, viu-a, e virou-se. A luz do segundo escritório, deu-lhe na cara. Hazel viu uma máscara preta, e os olhos pelos buracos da máscara. Uma das órbitas estava vazia. Ela gritou. O homem bateu-lhe. Hazel arrancou-lhe a máscara. Era um sujeito que ela nunca tinha visto. O homem praguejou e vibrou-lhe outro golpe. Ela perdeu os sentidos.
- Tinha um olho só? - exclamou Sílvia Basset. - Dick, deve haver engano! - Falava em voz alta e aguda, como num ataque de histerismo.
- Um olho só - repetiu Dick Basset. - Não é assim, Hazel?
A rapariga confirmou com um lento gesto de cabeça.
- Que fim levou a máscara?-perguntou Mason.
- Ela arrancou-a. Era uma máscara de papel - de papel preto.
Mason, agachado sobre as mãos e os joelhos, apanhou do chão uma folha de papel químico. Tinha buracos abertos para os olhos, e um canto fora rasgado. O papel estava roto no centro.
- É isso - disse a jovem. Sentou-se penosamente, e depois pôs-se de pé.
- Vi-lhe o rosto. - Cambaleou. A mulher de cabelos vermelhos estendeu o braço musculoso, mas fê-lo um segundo mais tarde do que devia. A rapariga caiu para a frente, com as mãos estendidas. As palmas das mãos embateram contra os vidros em losango da porta exterior. A mulher de cabelos cor de fogo agarrou-a e ergueu-a como se fosse uma boneca, deitando-a novamente no sofá.
- Oh, meu Deus - gemeu a jovem. Mason curvou-se com solicitude sobre ela.
- Está bem? - perguntou. Ela sorriu debilmente.
- Creio que sim. Fiquei tonta quando me levantei, mas agora estou bem.
- Esse homem tinha um olho só? - inquiriu Mason.
- Sim - respondeu Hazel, em voz mais firme.
- Não, não! - disse Sílvia Basset, quase num gemido.
-Deixe que ela conte a história - disse Dick Basset rispidamente.
- Ele atacou-a mais de uma vez? - interrogou Mason.
- Creio que sim. Não me lembro.
- Sabe se saiu pela porta da frente?
- Não.
- Ouviu-o fugir de automóvel?
- Estou a dizer-lhe que não sei. Ele bateu-me e depois ficou tudo às escuras.
- Deixe-a em paz, sim? - disse Dick Basset a Perry Mason. - Ela não está a prestar declarações no banco das testemunhas.
Perry Mason caminhou a passos largos para a porta que comunicava com o gabinete interior. Levou a mão à maçaneta, hesitou um instante, retirou a mão, e puxou um lenço do bolso. Envolveu os dedos com o lenço antes de dar volta à maçaneta. A porta abriu-se lentamente, para dentro. A sala estava exactamente como ele a vira da primeira vez. Do tecto, vinha uma luz forte, se bem que indirecta.
Mason dirigiu-se para a porta do gabinete de trás. Também estava fechada. Enrolou novamente a mão num lenço e deu volta à maçaneta. O aposento estava às escuras.
- Alguém sabe onde fica o interruptor daqui? - perguntou Mason.
- Eu sei - disse a Srª Basset. Entrou, e um momento depois as luzes acenderam-se com um estalido.
A Srª Basset soltou um grito abafado de espanto e horror. Perry Mason, à porta, imobilizou-se de súbito. Dick Basset exclamou:
- Santo Deus! Que é aquilo?
Hartley Basset jazia de bruços no chão. Um cobertor e um acolchoado, dobrados juntos, cobriam-lhe parcialmente a cabeça. Tinha os braços estendidos. A mão direita estava firmemente fechada. Uma poça vermelha escorrera-lhe da cabeça, ensopando de um lado o cobertor e o acolchoado, e do outro lado o tapete. Sobre a secretária, à sua frente, via-se uma máquina de escrever
portátil, e nesta uma folha de papel, de que aproximadamente metade estava coberta de linhas dactilografadas.
- Fiquem todos onde estão -disse Perry Mason. - Não toquem em nada.
Adiantou-se cautelosamente, conservando as mãos atrás das costas. Curvou-se por cima do cadáver e leu o
papel colocado na máquina.
- Isto - disse - parece uma carta de suicida. Mas
não pode tratar-se de suicídio, pois não ha aqui nenhuma arma.
- Leia em voz alta - disse Dick Basset com excitação. - Vamos ver o que diz a carta. Que motivo dá ele para se suicidar?
Perry Mason leu em voz baixa e monótona: “Vou acabar com tudo. Sou um fracassado. Juntei dinheiro, mas perdi o respeito de todos os meus íntimos.
Nunca soube fazer amigos ou conservá-los. Agora vejo que não posso conservar nem sequer o respeito e o amor ou mesmo a amizade de minha própria esposa. O jovem que passa por meu filho e usa o meu nome odeia-me intensamente. Compreendi de súbito que, por mais independente que um homem se julgue, não pode viver só. Mais tarde ou mais cedo, percebi que tem necessidade de estar rodeado pelos que o estimam, para poder subsistir. Sou um homem rico em dinheiro e falido em amor. Recdentemente ocorreu algo que é desnecessário por no papel e que me convenceu da inutilidade de procurar conservar o amor da mulher que é o que tenho de mais caro no mundo. Portanto, decidi pôr fim à vida, se tiver bastante coragem para puxar o gatilho. Se tiver bastante coragem... Se tiver bastante coragem...”
- Ele tem qualquer coisa na mão - disse Dick
Basset.
Perry Mason baixou-se, vacilou um instante, e depois entreabriu a mão do cadáver.
Um olho de vidro, injectado mirou-os fixa e malignamente.
A Srª Basset susteve a respiração.
Perry Mason virou-se rapidamente para ela.
- Que significação tem este olho para a senhora?
- perguntou.
- N-n-n-nenhuma.
- Vamos. Seja franca. Que significação tem ele para a senhora?
Dick Basset avançou.
- Senhor Mason - disse. - Não fale desse modo com minha mãe.
Mason afastou-o com um gesto.
- Não se meta nisto - disse. Que significação tem este olho para a senhora?
- Nenhuma - tornou ela, desta vez com mais firmeza.
Mason virou-se para a porta.
- Bem - disse. - Creio que não precisam mais dos meus serviços.
Ela agarrou-o freneticamente, pela manga.
- Por favor - disse. - Por favor! O senhor tem que me ajudar a sair desta situação.
- Vai dizer-me a verdade?
- Vou - retorquiu ela -; mas não aqui... não agora. Dick Basset aproximou-se do morto.
- Quero ver - disse - o que é...
Perry Mason agarrou-o pelo ombro, fê-lo virar-se, e empurrou-o para fora.
- Apague as luzes, Srª Basset - pediu. Ela deu volta ao comutador.
- Oh, deixei cair o meu lenço - disse. - Tem alguma importância?
- Claro que tem importância - gritou Perry Mason.- Pegue no seu lenço e saia.
Sílvia Basset tateou pelo gabinete durante alguns instantes. Perry Mason esperava impaciente no limiar da porta. Ela voltou.
- Já o achei - ofegou, agarrando-se-lhe ao braço. O senhor tem que me proteger e nós dois precisamos de proteger Dick. Liga-me...
O advogado desenvencilhou-se dela, fechou a porta com um empurrão, atrás de ambos, e atravessou o outro escritório em direcção ao gabinete da entrada.
A mulher que estivera deitada no sofá achava-se agora de pé. Tinha o rosto mortalmente pálido. Os lábios tentavam sorrir.
Mason defrontou-a.
- Sabe o que está ali? - perguntou.
- É o Sr. Basset? - murmurou ela.
- Sim - tornou Perry Mason. - Viu bem o homem que saiu do aposento?
- Sim.
- E ele viu-a? Seria capaz de a reconhecer se a visse outra vez?
- Creio que não. Eu estava às escuras, aqui nesta sala. A luz vinha daquele outro gabinete. Dava-lhe de chapa no rosto. Eu estava de costas para a luz. O meu rosto ficava na sombra.
- Ele trazia esta máscara?
- Sim, isso mesmo. É papel químico, não é?
- Viu uma órbita vazia?
- Sim; uma coisa horrível. Imagine: a máscara era preta, e atrás dela havia um olho só, cravado na gente; do outro lado, uma órbita avermelhada. Aquilo...
- Escute - disse Perry Mason - a polícia vem a caminho. Vão fazer-lhe perguntas. Depois, detê-la-ão como testemunha importante. Você quer auxiliar Dick, não é verdade?
- Sim, naturalmente.
- Muito bem. Quero saber isso por miúdo, antes que a polícia fale com a senhora. Sente-se bastante bem para andar de automóvel?
- Sim. Agora sinto-me. Fiquei tonta a princípio.
- Sabe guiar um carro?
- Sei.
Mason tirou uma chave do bolso, atirou-a à rapariga e dirigiu-se ao telefone.
- O meu carro está aí em frente da porta - gritou-Lhe por cima do ombro. - Entre e parta. O meu escritório fica no Central Utilities Building. Vou providenciar para que a minha secretária lá esteja quando chegar.
Sem aguardar resposta, marcou um número. Ouviu a campainha, e, um momento depois, a voz estremunhada de Della Street:
- Pronto. Quem fala?
- Perry Mason. Pode vestir-se enquanto mando um táxi a sua casa?
- Posso pôr em cima do corpo alguma coisa que me deixe passar pela censura - replicou ela. - Não ficarei muito elegante.
- Não se preocupe com a elegância. Vista a primeira coisa que encontrar. Ponha um casaco por cima. Vou
mandar um táxi. Vá para o escritório. Há-de encontrar lá uma mulher. Chama-se...
Gritou por cima do ombro:
- Como é o nome daquela pequena?
- - Hazel Fenwick - disse Dick Basset.
- Hazel Fenwick. Leve-a para o escritório. Procure evitar algum acesso de histerismo. Mostre-se bondosa. Dê-lhe um pouco de whisky, mas não a embriague. Fale com ela e tome notas taquigráficas do que ela disser. Esconda-a até eu chegar.
- Quando é que o senhor chega? - perguntou Della.
- Dentro em pouco. Tenho de esperar que um par de polícias me façam algumas perguntas.
- Que é que houve? - inquiriu a secretária.
- Isso, sabê-lo-á pela jovem - respondeu ele.
- Muito bem, chefe - disse Della. - Vai mandar o carro já?
- Vou.
- Estarei na rua quando ele chegar. Diga ao condutor que procure uma pequena com um casaco de peles, que deve estar parada no passeio. Espero que ninguém olhe por baixo do casaco de peles.
- Não olharão - disse ele, e desligou.
Seguidamente, ligou para o escritório de uma companhia de automóveis de praça, deu ordem para mandarem um táxi à casa de Della Street, com urgência, e depois voltou-se para a Srª Basset.
- Quem mais está a par disto? - perguntou.
- De quê?
Mason fez um gesto amplo com o braço.
- Ninguém. Foi o senhor que descobriu. Foi a primeira pessoa que se aproximou do aposento.
- Não, não - disse ele. - Não me refiro ao seu marido mas sim à pancada que deram na cabeça da pequena. Algum empregado sabe do caso?
- O Sr. Colemar sabe - respondeu ela.
- O sujeito calvo e de óculos que trabalha no escritório de seu marido?
- Sim.
- Como é que ele veio a saber?
- Tinha ido ao cinema. Viu alguém sair precipitadamente da casa e depois viu-me a correr aqui pelo gabinete. Entrou para saber o que havia.
- Que lhe disse a senhora?
- Disse-lhe que fosse para o seu quarto e ficasse lá.
- Viu a pequena deitada no sofá?
- Não, não o deixei ver. Mostrou-se curioso. Procurou aproximar-se do sofá para a ver. Quanto a ele, não há perigo, mas é capaz de tudo para me fazer mal. Meu marido e eu não nos dávamos bem. Colemar estava ao lado de meu marido.
- Para onde foi ele? - perguntou Mason.
- Para o seu quarto, creio eu.
O advogado fez um aceno de cabeça na direcção de Dick Basset.
- Sabe onde é?
- Sim.
- Muito bem. Então, mostre-me o caminho.
Dick Basset olhou interrogativamente para a mãe. Mason agarrou-o pelo ombro e disse:
- Pelo amor de Deus, avie-se. A polícia pode chegar a qualquer momento. Ponha-se a andar! Pode-se ir por aqui?
- Não - replicou Dick Basset; - esta parte da casa é separada. Temos de entrar pela outra porta.
Saíram para o vestíbulo, entraram na parte residencial da casa, subiram uma escada, caminharam ao longo dum corredor, e Dick Basset, que ia adiante, desviou-se para o lado ao mesmo tempo que apontava para uma porta, debaixo da qual se via uma faixa de luz.
O advogado travou-lhe o braço, logo acima do cotovelo.
- Muito bem - disse. - Agora volte para junto de sua mãe, mande embora a criada de cabelos cor de fogo, e tratem de agir.
- Que quer dizer com isso?
- Você sabe o que quero dizer. Arranjem-se de maneira que as vossas declarações coincidam em todos os pormenores, e procurem explicação para o caso daquele revólver.
- Que revólver?
- O que você trazia, naturalmente - disse Mason.
- Vão fazer-me perguntas sobre isso?
- É possível. Tinha sido deflagrado. Sobre quem é que você atirou?
Dick Basset passou a língua pelos lábios e disse:
- Não foi hoje que atirei. Foi ontem.
- Qual foi o alvo?
- Uma lata.
- Quantos tiros deu?
- Um.
- Porquê um só?
- Porque acertei, e parei para não perder o cartaz.
- Por que alvejou uma lata?
- Para me exibir.
- Perante quem?
- Minha mulher. Ela andava a passear comigo.
- Então você anda sempre armado?
- Sim.
- Porque Hartley Basset era muito mau para a minha mãe. Eu sabia que mais tarde ou mais cedo teríamos uma explicação.
- Tem licença para usar aquela arma?
- Não.
- Além de sua mulher, ninguém mais o viu atirar sobre a lata?
- Não. Foi ela a única testemunha.
- Mason apontou para o corredor com o polegar, em direcção à porta, e disse:
- Vá ter com sua mãe. Combinem bem o que vão declarar.
Ergueu a mão para bater na almofada da porta, vacilou, baixou a mão para a maçaneta, e de súbito empurrou a porta. O mesmo homem calvo, de ombros estreitos, que tinha visto às primeiras horas daquela noite no escritório de Basset, fitou-o através de enormes óculos de aros de tartaruga, com uma expressão de desespero, que se transformou em espanto ao reconhecer Perry Mason.
- O senhor viu-me esta noite no escritório de Basset - disse Mason. - Sou Perry Mason, o advogado. O seu nome é Colemar, não é?
O semblante de Colemar retomou a expressão irritada.
- Os advogados não costumam bater às portas? - perguntou.
Mason ia para dizer alguma coisa, mas deteve-se, pois os seus olhos, pousando no toucador, deram com o
pedaço de papel em que escrevera o número de telefone da sua residência, e que entregara a Berta MacLane.
- Que é aquilo? - perguntou.
- É da sua conta?
- Sim.
- É uma coisa que eu encontrei no corredor - disse Colemar.
- Quando? -Há pouco.
- Em que parte do corredor?
- No alto da escada, junto do quarto da Sr." Basset, se lhe interessa saber. Mas não compreendo que direito tem o senhor de...
- Não se preocupe com isso - atalhou Mason, avançando alguns passos, pegando no papel e guardando-o no bolso depois de o dobrar. - O senhor vai servir de testemunha. Eu sou advogado. Poderia ajudá-lo.
- Ajudar-me a mim?
- Sim.
Colemar arqueou as sobrancelhas, surpreendido.
- Céus!-disse. - De que é que eu sou testemunha, e em que me pode o senhor ajudar?
- O senhor viu uma mulher ferida sobre o sofá do gabinete de recepção do Sr. Basset, há poucos minutos.
- Não poderia dizer se era homem ou mulher. Vi alguém estendido no sofá. Pensei que fosse um homem, mas Edith Brite estava parada diante do sofá, e a Srª Basset estava muito ansiosa por impedir que eu me aproximasse. Não cessava de me empurrar para fora. Se o senhor tem algo que ver com o caso, talvez lhe interesse saber que vou contar tudo ao Sr. Basset, amanhã de manhã. A Srª Basset não tem nenhuma autoridade nos escritórios, e eu tenho. Ela não tinha o direito de me empurrar para fora.
- Ela coagiu-o? - perguntou Mason, sarcastica-mente.
- O senhor não conhece a tal Brite - redarguiu Colemar. - Aquela mulher é forte como um touro, e faz tudo que a Srª Basset manda.
- O senhor tinha saído? - interrogou Mason.
- Sim, senhor; tinha ido ao cinema.
- Ao regressar viu alguém sair da casa a correr? Colemar endireitou-se com toda a fria dignidade que
pode mostrar um homem cujos ombros estiveram curvados sobre uma secretária durante longos anos de trabalho de escritório.
- Vi - disse, em tom ameaçador.
Havia algo na sua voz que fez Mason reflectir.
- Escute, Colemar - disse -• você reconheceu aquele homem?
- Isso - volveu Colemar - é coisa de que não tenho que lhe dar contas. É coisa que eu tenho de comunicar ao Sr. Basset. Não quero ser desrespeitoso, mas não conheço as suas relações com a Srª Basset, e não sei que direito tem o senhor de invadir o meu quarto sem bater, e vir fazer-me perguntas. O senhor disse que eu vou servir de testemunha. Testemunha de quê?
Mason ouviu o som de uma sereia, ao mesmo tempo que um carro dobrava uma esquina fazendo ranger os pneumáticos. Não esperou para responder à pergunta de Colemar; abriu de repente a porta, precipitou-se para o corredor, desceu os degraus dois a dois, abriu a porta da frente, e postou-se em frente da outra no momento em que um carro de turismo estacava junto ao passeio.
Empurrou a porta. Dick Basset e sua mãe, empenhados numa conversação em voz baixa, separaram-se bruscamente, com uma expressão de culpa.
- Muito bem - disse Mason-aí estão os polícias. Não digam nada a respeito de qualquer questão que algum dos dois tenha tido com Hartley Basset. Nas circunstâncias presentes, esse processo não dará muito bons resultados. Entendem?
- Entendo - disse a Srª Basset calmamente. Ouviu-se o som de passos no vestíbulo. Bateram imperiosamente.
A Srª Basset abriu e dois homens de largas espáduas entraram no aposento.
- Muito bem - disse um. - Que foi que houve aqui?
- Meu marido - respondeu a Srª Basset - acaba de se suicidar.
- Não foi isso que nós ouvimos pela rádio - disse um dos homens.
- Desculpe - tornou ela. - Meu filho estava fora de si. Foi um mal entendido; ele não sabia o que acontecera.
- Bem - disse o homem-, que aconteceu?
Ela fez um gesto na direcção da porta.
- Como sabe que foi suicídio? - perguntou o outro homem.
- Pode ler o bilhete que ele deixou na máquina.
Os polícias abriram a porta. Um deles empunhou uma lanterna eléctrica e correu o feixe de luz pelo aposento. O outro encontrou o comutador, premiu-o e ficou a olhar fixamente para a cena que se tornava visível com o acender das luzes.
- Há quanto tempo o encontraram? - perguntou.
- Há uns cinco minutos -• disse Perry Mason, respondendo à pergunta.
Os homens viraram-se para ele.
- Quem é o senhor, companheiro? - perguntou um. O outro teve um sobressalto ao reconhecê-lo.
- É Perry Mason - disse - o advogado. Perry Mason inclinou-se.
- Que faz o senhor aqui? - inquiriu o primeiro.
- Espero que cumpram todas as formalidades relacionadas com esse suicídio - disse Perry Mason - para que eu possa discutir certos assuntos com a Srª Basset.
- Como se deu o caso de o senhor se encontrar aqui?
- Vim falar de negócios com o Sr. Basset.
- Que espécie de negócios?
- Não vem muito ao caso - disse Perry Mason, com um sorriso amável - mas era sobre o caso de um rapaz que tinha sido empregado do Sr. Basset. Houve um mal-entendido entre ambos, e queria resolver o caso.
- Hum! - grunhiu o agente, e ficou a contemplar o cadáver.
- Alguém ouviu o tiro? Ninguém respondeu.
- É evidente que ele se serviu do cobertor e do acolchoado para abafar a detonação - disse o oficial.
- Ali está o revólver.
Perry Mason seguiu com o olhar a direcção que o dedo indicava. Sobre o soalho, bem à vista, achava-se um revólver Colt, Police Positive, calibre trinta e oito
- o mesmo revólver que Mason tirara ao jovem Basset.
Um dos agentes aproximou-se do cadáver, pegou numa ponta do cobertor e ergueu-a.
- Olhem para aqui! - exclamou em voz excitada. - Há outro revólver debaixo deste cobertor. Como diabo poderia um homem suicidar-se com dois revólveres?
O outro polícia empurrou os espectadores para a porta.
- Saiam daqui - disse - e deixem-me telefonar. Vou chamar a Brigada de Homicídios.
Mason encarou a Srª Basset.
- Dois revólveres - disse.
Ela não respondeu. Tinha os lábios descorados e as pupilas dilatadas de terror.
As testemunhas estavam sentadas, formando um grupo no escritório da frente. Os membros da Brigada de Homicídios azafamavam-se no local do crime.
Perry Mason inclinou-se para a Srª Basset.
- A troco de quê pôs ali aquele revólver? - ciciou.
- Irá trazer complicações? - perguntou ela.
- Naturalmente. Porque fez isso?
- Porque - respondeu ela pausadamente - não poderia ter havido suicídio sem se encontrar a arma ali. Pensei que não estava lá nenhum revólver. Como sabe, não vimos nenhum quando estivemos no gabinete. Não mexemos no cobertor, e...
- Mas porque é que - inquiriu o advogado - a senhora colocou aquele revólver ali?
- Era preciso - respondeu a Srª Basset. - Tinha de haver um revólver ali. De outro modo, não pareceria suicídio. Pareceria assassinato.
- Não procure convencer-se - disse Mason com ar sombrio - de que não foi assassinato; e foi o revólver de Dick que a senhora lá deixou.
- Bem sei - acudiu ela - mas quanto a isso não há perigo. Dick e eu combinámos tudo. Vamos dizer que Hartley lhe pediu emprestada a arma há mais de uma semana, e que Dick não mais a viu desde então.
- Mas - advertiu Mason - o revólver está descarregado. Não poderia ter havido suicídio sem...
- Oh, não - disse ela. - Eu coloquei as balas antes de o deixar no gabinete.
- As mesmas que eu tirei ao Dick, inclusive os cartuchos vazios?
- Sim.
- A senhora não sabia - perguntou Mason - que a Polícia pode, examinando o projéctil, determinar se foi disparado de um determinado revólver?
- Não. Isso é possível?
- E não sabia que a polícia pode descobrir impressões digitais latentes naquela arma, e, quando o fizer, serão encontradas as suas, as de Dick, e as minhas?
- Santo Deus, não!
- A senhora - disse Mason - ou é uma das mulheres mais astutas que eu tenho conhecido nos últimos tempos, ou uma das mais ineptas.
- Não entendo de assuntos policiais - disse ela. - Nunca tive desejo de perceber disso.
- Escute - disse Perry Mason, olhando-a firmemente- a senhora pensou que Hartley Basset havia fugido, ou sabia que estava ali, morto?
- Ora, pensei que tinha fugido, naturalmente. Já lhe disse que o vi sair a correr... julguei que era ele.
- E essa menina é sua nora?
- Sim. Casou com Dick. Mas o senhor não deve aludir a esse casamento.
- Porque não? Que mal há nisso?
- Por favor, não faça tantas perguntas agora. Mais tarde lhe direi.
- Escute - disse Mason, carrancudo. - Vão fazer-Lhe hoje umas quantas perguntas. Está pronta a responder?
- Não sei... Não, não posso responder a perguntas.
- Porquê?
- Porque não sei o que dizer.
- Quando saberá o que dizer?
- Depois de falar novamente com Dick. Preciso conversar com ele mais uma vez.
Mason bateu-lhe com o indicador no joelho.
- Foi a senhora quem o matou? - inquiriu.
- Não.
- Foi o Dick?
- Não.
- Porque quer, então, falar com Dick?
- Porque tenho medo que descubram quem o matou... Oh, não posso falar nisso. Peço-lhe que me deixe em paz, por favor.
- Só uma pergunta - disse Mason - e diga-me francamente a verdade. Foi a senhora quem o matou?
- Não.
- Pode provar que não, se for preciso?
- Sim. Creio que posso.
- Perfeitamente. Só há um meio de impedir que a polícia e os jornalistas lhe arranquem tudo o que sabe. Diga-lhes que está demasiadamente agitada para responder às perguntas. Eles continuarão a perguntar e então a senhora deve fingir-se histérica. Diga-lhes qualquer coisa; tudo o que lhe vier à cabeça. Contradiga-se a cada instante. Afirme que viu o seu marido uma hora antes do assassínio, e depois diga que foi uma semana antes - que não se lembra de o ter visto há um mês. Faça declarações absurdas. Diga que ele ouvia vozes avisando-o de que a serpente lhe predizia a morte.
“Por outras palavras: proceda desatinadamente. Fale num tom de voz cada vez mais agudo. Continue a dizer disparates. Torne-se violenta. Grite, berre, ria, tenha acessos de histerismo. Compreende?”
- Sim - disse ela-; creio que compreendo, Mas... não será perigoso?
- Claro que é perigoso, mas não tanto como tentar explicar os acontecimentos e ser apanhada num laço armado pela polícia. Lembre-se bem: não proceda dessa forma, a menos que esteja inocente e possa prová-lo quando chegar a ocasião. E não seja moderada nas suas declarações. Faça-as tão absurdas que eles a creiam embriagada ou maluca; e intercale muitos gritos e risadas.
“Assim, chegarão à conclusão de que a senhora é um estorvo, e aplicar-lhe-ão uma injecção hipodérmica. Depois disso, pode simular inconsciência. Ao despertar, finja-se aturdida. Fale em voz pastosa. Embrulhe as palavras, feche os olhos e adormeça no meio das frases.
“Desse modo os iremos entretendo enquanto eu investigo...”
Abriu-se a porta. O sargento Holcomb, da Brigada de Homicídios, apontou com a cabeça para Perry Mason.
- O senhor - disse.
Mason encaminhou-se displicentemente para o gabinete.
- Que sabe o senhor a respeito disto?
- Não muito.
- O senhor nunca sabe muito - disse Holcòmb com enfado. - Que tal se nos dissesse em que consiste esse “não muito”?
- Vim aqui - disse Perry Mason - para tratar de uma questão de negócios.
- Que questão?
- Uma questão de contabilidade entre Basset e um antigo empregado.
- Quem é o antigo empregado?
- O meu cliente.
- Como se chama?
- Terei de obter permissão dele antes de lhe responder.
- Que fez ao chegar aqui?
- Deparei com uma cena de certa excitação.
- Que acontecera?
- O senhor terá de o perguntar aos outros; eu não sei. Parece que tinha havido um atrito entre Hartley Basset e seu filho, Dick Basset; e havia uma jovem ferida.
- Quem a ferira?
- Ela disse que alguém lhe dera uma pancada.
- Oh, oh - exclamou Holcomb. - Quem é que lhe vibrou a pancada?
- Ela não sabia.
- Como era possível que não soubesse?
- Nunca tinha visto o homem.
- Que fim levou ela?
- Tomei a liberdade de a enviar para um lugar onde pudesse estar em sossego até amanhecer.
- Que fez o senhor depois?
Perry Mason acendeu um cigarro e disse placidamente:
- Mandei-a para um lugar onde pudesse estar em sossego.
- Pregou-nos uma boa peça, com isso.
- Porquê?
- Não sabia que tinha sido cometido aqui um homicídio?
- Céus, não! - exclamou Perry Mason.
- Bem, agora sabe.
- Mas - inquiriu Mason - quem é que foi assassinado?
O sargento Holcomb riu com escárnio.
- Quem, como o senhor, tem visto tanta coisa, ainda precisa de apanhar uma cacetada na cabeça para reconhecer um homicídio quando o tem diante dos olhos?
- Hartley Basset matou-se - disse Perry Mason.
- Ah, sim - resmungou o sargento Holcomb. - O senhor vem dizer-me isso a mim?
- Ele não se matou? - inquiriu Mason.
- Não.
- Mas a carta que estava na máquina de escrever dizia que sim.
- Qualquer pessoa pode escrever uma carta à máquina.
- Ele envolveu o revólver num cobertor e num acolchoado, a fim de abafar a detonação.
- Para quê? - perguntou Holcomb.
- Para não alarmar a casa, creio eu.
- E porque é que não queria alarmar a casa?
- Por consideração para com os outros, suponho.
- Bolas! Um homem que se suicida sabe que acabará por ser descoberto. Não se preocupa. Quem comete um homicídio é que procura ensejo de se escapulir antes de ser descoberto. E um homem que se suicida não precisa de três revólveres para tanto.
- Três revólveres! - exclamou Mason.
- Três revólveres - disse o sargento Holcomb.- Um no chão, bem à vista, um escondido debaixo do cobertor e do acolchoado, e outro que Basset trazia no coldre, debaixo do braço esquerdo. E esse não tinha sido retirado do lugar. Se Basset quisesse matar-se, porque não se serviria do seu próprio revólver, em vez de se dar ao trabalho de arranjar outra arma para esse fim?
- Qual das armas foi empregada para cometer o crime? - perguntou Mason.
O sargento Holcomb sorriu benignamente.
- Mau, mau - disse. - Sou eu quem deve fazer perguntas.
Mason encolheu os ombros.
- Para onde mandou a pequena que levou a pancada na cabeça?
- Para um sítio onde pudesse estar sossegada.
- Que sítio?
- Se eu lho revelasse - volveu Mason - deixaria de ser um sítio onde ela pudesse estar sossegada.
- Escute - disse Holcomb, colérico - trata-se de um caso de homicídio. Sabe o que isto significa?
- Sim - replicou Perry Mason-; creio que sei.
- Claro que sabe - tornou Holcomb. - Precisamos ouvir essa rapariga. Pode trazer como resultado a identificação do criminoso. E agora, fale; diga-me onde está ela. E despache-se. Só lhe resta uma oportunidade.
- Está no meu escritório - disse-lhe Mason.
- Porque a mandou para lá?
- Porque achei conveniente dar-lhe tempo para acalmar. Não imaginava então que Basset tivesse sido assassinado. Pensei, naturalmente, que fosse suicídio.
- E a sua eficiente secretária está no escritório? - perguntou Holcomb.
- Ora, decerto - disse Mason; - alguém tinha que lá estar para a receber.
Holcomb tornou-se sombrio.
- Dessa maneira - disse - o senhor consegue uma oportunidade de ouvir as declarações da única testemunha importante, antes que a polícia tenha sequer ocasião de a interrogar.
Mason encolheu os ombros e respondeu placidamente:
- E se os senhores entrassem em contacto com ela antes, tê-la-iam fechado a sete chaves, de modo que ninguém poderia inteirar-se das suas declarações até que ela fosse chamada ao banco das testemunhas. É assim que os senhores gostam de fazer. Mas asseguro-Lhe, meu caro sargento, que só a enviei para onde ela pudesse estar tranquila porque julgava que se tratasse de um caso de suicídio. Assim que me disse ter havido assassinato, deve reconhecer que lhe revelei o paradeiro da rapariga.
Holcomb voltou-se para um dos homens.
- Telefone para o Posto - ordenou - e diga que detenham essa rapariga que está no escritório de Perry
Mason. Que arrombem a porta se for preciso. É uma testemunha importante. Diga-lhes que Mason pretende obter uma versão taquigráfica das declarações dela. Perry Mason fitou-o com dignidade:
- Têm mais alguma coisa a perguntar?
- A que horas chegou aqui? - inquiriu Holcomb.
- Pouco depois da meia-noite; vinte minutos depois, talvez.
- Basset estava morto quando o senhor chegou?
- Parece que sim. Estive sempre no escritório da frente, e não ouvi ruído neste gabinete. A Srª Basset veio aqui buscar qualquer coisa e descobriu o corpo.
- Notificaram a polícia?
- Deparámos com o corpo no mesmo instante em que a polícia ia a entrar. Tinha sido chamada por causa da agressão sofrida por Miss Fenwick.
- Quem é Miss Fenwick?
- A jovem que foi agredida.
O sargento Holcomb fitou Perry Mason taciturnamente.
- É sua cliente?
- Não; pelo menos por enquanto.
- Já a tinha visto?
- Não.
- Como é que o senhor perdeu tanto tempo a conversar com essa gente no gabinete de entrada?
- Eu vim cá - disse Mason - para falar com Basset.
- Como é que perdeu tanto tempo a tagarelar se veio cá para falar com Basset? - inquiriu o sargento Holcomb.
- Porque estavam muito excitados com a agressão contra a jovem; sugeri que chamassem a polícia.
Holcomb observou:
- É esta a segunda vez que o senhor se refere à polícia, e de ambas as vezes disse que a polícia ia ser chamada, ou coisa que o valha.
Mason não disse palavra.
- Conta sempre a história assim - prosseguiu Holcomb- o que é um modo de falar bastante curioso. Pois bem. Agora, quero saber como as coisas se passaram. Nada de me dizer que se chamou a polícia; diga-me: quem é que a chamou?
- Fui eu.
- O senhor disse quem era?
- Não; declarei que era o jovem Basset.
- Porque fez isso?
- Porque queria que se pusessem em acção. Temi que não me acreditassem se eu dissesse quem era, e não tinha tempo para dar muitas explicações.
O sargento Holcomb suspirou, desanimado.
- Venceu - disse. - Tem resposta para tudo.- Fez com a mão um sinal na direcção da porta. - Muito bem, pode ir. E se pensa que ainda pode chegar ao seu escritório antes dos rapazes da polícia, é simplesmente um optimista.
- Não tenho pressa nenhuma - disse Mason.
- Oh, tem, sim - volveu o sargento Holcomb.- Vai pôr-se a caminho. O senhor é um homem atarefado, Sr. Mason, e veio unicamente para falar com o Sr. Basset sobre uma questão de negócios. O Sr. Basset morreu, de modo que o senhor não pode tratar de nenhum negócio com ele. Portanto, não tem nenhum assunto a tratar com quem quer que seja. Ninguém o reteve aqui. O senhor não sabia que o Sr. Basset fora assassinado. Pensava que tinha sido suicídio. Como a jovem que foi agredida já não está aqui, já não há nada que o detenha. Muito bem; não queremos privá-lo do sono. Pode pôr-se a caminho agora mesmo.
- Posso esperar, ao menos enquanto chamo um táxi? - inquiriu Mason.
O sargento Holcomb arreganhou os dentes.
- O seu carro não está lá fora?
- Não.
- Que fim levou?
- Disse à rapariga que fosse nele ao meu escritório.
- Que pensava fazer, com respeito ao seu regresso?
- Tencionava ir num táxi.
- Ora, ora, ora - troçou o sargento Holcomb. -É uma lástima. Não podemos permitir que o melhor advogado criminal da cidade perca tempo à espera de táxis. Não. O seu tempo é demasiado precioso. Rapazes, um de vocês meta-o num carro da polícia e leve-o para o escritório dele. Providenciem para que parta imediatamente, sem mais dilações; mandem entrar a Srª Basset antes que ele saia, e vamos ver o que ela sabe sobre isto.
- Para um homem que obtém tão poucos resultados práticos, sargento, o senhor é extraordinariamente astuto nos seus métodos,
E dito isto, o advogado inclinou-se e saiu, enquanto o sargento Holcomb procurava uma resposta.
Perry Mason abriu a porta do seu gabinete particular, acendeu a luz, e atravessou o apartamento até à sala de entrada, cuja porta ostentava o letreiro:
PERRY MASON
ADVOGADO
Entrada
Della Street, que estava sentada a uma secretária, lendo um tratado jurídico, ergueu os olhos para ele e sorriu.
- Estou a estudar leis, Chefe - disse.
Vestia um casaco de peles todo abotoado em volta do corpo. Pela abertura do casaco via-se uma parte da perna coberta de meia.
- A polícia esteve aqui? - perguntou o advogado.
- Claro. Disseram algumas gracinhas.
Uma sombra passou pelo semblante de Mason.
- Não maltrataram a pequena? - perguntou. A secretária arregalou os olhos.
- Mas eu pensei que o senhor tivesse escondido a jovem em qualquer outro sítio. Ela não veio.
- Não esteve aqui? - perguntou Mason. Della Street sacudiu a cabeça.
- Que disse você aos guardas? - interrogou ele.
- Eles começaram a dizer gracinhas, e eu fiz o mesmo. Calculei que o senhor, sabendo da vinda da polícia, tivesse escondido a pequena. Aproveitei a ocasião para zombar deles. Afirmei que tinha vindo estudar um pouco; que costumava estudar de noite.
- Quando chegou?
- O automóvel parou diante da minha casa uns dois minutos depois de ter desligado o telefone. Eu estava na rua, à espera. Dei uma gorgeta ao motorista para que se apressasse. Chegámos num instante. Entrei, acendi as luzes desta sala, e deixei a porta encostada. Disse também ao guarda-nocturno que esperava uma pequena, e que a encaminhasse para cá se ela fizesse alguma pergunta.
Perry Mason assobiou baixinho.
- Paul Drake andava à sua procura - disse Della Street. - O guarda-nocturno disse-lhe que eu estava cá, quando Paul já se ia embora. De modo que ele voltou e deixou um pacote para o senhor.
Indicou um embrulho de papel grosso que estava sobre a mesa, atado com um cordel e lacrado em diversos pontos.
O advogado agarrou na sua faca, cortou o cordel, e inquiriu:
- Os polícias aborreceram-na?
- Não. Deixei-os esquadrinhar tudo. Perguntei-lhes se pensavam que eu tinha a mulher escondida na manga.
- Difíceis de convencer? - perguntou o advogado, levantando a tampa da caixa.
- Não - retorquiu ela. - Foram deliciosamente fáceis de convencer. Calcularam ter o senhor dito aos detectives que havia mandado a pequena para cá. Portanto, concluíram que seria este o último lugar onde ela poderia realmente achar-se. Encontrá-la não era exactamenti o que esperavam, mas isso deu-lhes oportunidade para soltarem as suas piadas.
Mason removeu a camada de algodão que cobria o conteúdo da caixa e tirou seis olhos de vidro, injectados, que espalhou em cima da secretária, onde ficaram a olhar fixamente.
- Tem o endereço de Brunold? - perguntou.
- Sim. Está no ficheiro.
- Ele tem telefone?
- Creio que sim. Vou ver.
Abriu um arquivo de fichas e tirou um cartão.
- Telefone? - perguntou o advogado.
- Sim. Está aqui.
- Ligue para lá.
Ela olhou para o seu relógio de pulso, mas Mason disse com impaciência:
- Pouco importa a hora. Chame-o ao telefone. Della Street pegou no telefone, marcou um número,
esperou quase um minuto e depois disse:
- Alô, é o senhor Brunold?
Lançou um olhar ao advogado, postado do outro lado da secretária, e inclinou a cabeça.
- Peça-Lhe que venha cá - disse Mason. - Não, espere um momento; é melhor falar eu mesmo com ele.
Tomou-lhe o telefone das mãos, e disse:
- É Perry Mason que fala. Quero que venha imediatamente ao meu escritório.
Brunold respondeu em tom de mau humor.
- Escute - disse. - O senhor não pode ter nenhum assunto de bastante importância para me fazer...
- Você pagou-me mil e quinhentos dólares - retorquiu o advogado - por ter confiança na minha habilidade para o livrar de um sarilho. Isso foi antes de se meter nele. Agora que já está metido, sou de parecer que deve vir aqui. Se não seguir o meu conselho, comete um erro e deitou fora os mil e quinhentos dólares. Ficarei uns dez minutos no meu escritório. Se não perder tempo, poderá ainda encontrar-me aqui.
E dito isto, Perry Mason desligou sem esperar que Brunold fizesse novas observações.
- Ele está metido num sarilho? - inquiriu Della.
- Parece-me que sim. Hartley Basset foi assassinado esta noite. Quando encontraram o cadáver, tinha na mão um olho de vidro injectado.
- Mas Brunold conhece Basset?
- Isso é o que eu desejo saber.
- Ele deve estar inocente - disse a secretária em voz pausada. - Queixou-se da perda do olho hoje de manhã.
Mason contemplou os seis olhos injectados que o fitavam tão sinistramente e inclinou a cabeça devagar.
- É um ponto que se deve tomar em consideração - disse. - Mas não se esqueça duma coisa: Harry MacLane trabalhava para Basset. Brunold conhecia Harry MacLane. Onde é que Brunold e Harry MacLane se conheceram? Teria sido por casualidade que os MacLane vieram cá no mesmo dia, ou seria Brunold quem os mandou?
- Quem representamos? - interrogou ela.
- Brunold, em primeiro lugar - disse Mason - depois, Miss Mac Lane, e talvez a Srª Basset.
- Como foi cometido o crime?
- De maneira que desse a impressão de suicídio, mas muito mal planeado. Depois, a Sr." Basset complicou a situação, colocando um revólver junto do cadáver. Tinham-se utilizado de um cobertor e dum acolchoado para abafar a detonação. Debaixo deles estava um revólver. A Srª Basset colocou outro. Diz ela que o fez porque não tinha visto o primeiro, e queria que parecesse suicídio.
- E então? -interrogou Della Street.
- Bem - Volveu Mason - talvez fosse assim, ou talvez fosse porque ela sabia que o revólver escondido no cobertor não tinha sido o causador da morte, e calculou que a polícia o verificaria ao examinar os projécteis.
- Ela deixou impressões digitais no outro revólver? - perguntou a secretária.
- Sim - disse Mason:-as dela e as minhas. -As suas?!
- Como é que as marcas dos seus dedos ficaram na arma?
- Tirei o revólver a Dick Basset, o filho.
- E depois entregou-o à Srª Basset?
- Sim.
- Diabo, Chefe, acha que isso foi de propósito, para que as suas impressões digitais ficassem na arma?
- Ainda não sei.
Della encrespou os lábios e assobiou baixinho. Volvido um instante, disse:
- Pode contar-me toda a história?
- Por volta da meia-noite, chamaram-me pedindo que fosse a casa de Basset. A Srª Basset disse-me que o filho, Dick, ameaçara de morte o marido. Tentei esquivar-me, mas a mulher disse que era caso urgente, e eu fui.
“Quando cheguei, essa tal Fenwick estava estendida no sofá, aparentemente sem sentidos. A Srª Basset disse que Hartley Basset a agredira. Dick Basset trazia consigo um revólver. Tirei-lhe a arma. Declararam que a rapariga era mulher de Dick, mas que o casamento devia ficar em segredo. Uma mulher de cabelos cor de fogo, de uns cinquenta anos de idade, provavelmente criada,
punha toalhas molhadas na cabeça da jovem. Dick Basset rugia ameaças.
“Ocorreu-me que a Srª Basset queria o divórcio; que o marido negaria ter agredido a rapariga, mas poderia ver-se em dificuldades quando dois detectives apertassem com ele, de modo que chamei a polícia.
“Então a pequena voltou a si, e declarou que não fora agredida por Basset, mas sim por um homem mascarado, com uma órbita vazia, que lhe dera uma pancada. Ela havia arrancado a máscara e visto a cara do homem, mas como o aposento estava um tanto escuro, e a luz entrava pela porta, o sujeito não viu o rosto dela. Garantiu que não o conhecia. O homem vibrou-lhe uma pancada. A máscara era uma folha de papel químico preto com dois buracos abertos para os olhos. Evidentemente, fora mantida no seu lugar pelo chapéu. Hazel Fenwick puxou pela máscara e rasgou-a. A folha de papel devia estar no gabinete de Basset, sobre a secretária.
“A Srª Basset afirma que viu um homem sair a correr, e partir no automóvel de Basset. Assegura que se tratava de seu marido, Hartley Basset.
“Naturalmente, depois de ouvir a narração da rapariga, fui examinar o outro gabinete. Encontrámos Hartley Basset estendido no chão, morto, tal como já lhe contei. Descubro que um sujeito de nome Coleman, um indivíduo pusilânime, com cara de macaco, que trabalha como guarda-livros, dactilógrafo e secretário, tinha estado no aposento e que a Srª Basset o escorraçara. Pensei que talvez estivesse aborrecido, e fui falar com ele.
- Viu-o?
- Sim.
- Estava zangado?
- Muito. Não tanto porque ela o havia posto fora, como porque Basset e a mulher não se davam bem. Ele trabalhava para Basset. Portanto, tomava o partido do patrão. Só tomava em consideração o ponto de vista de Basset, e não queria saber de mais nada.
Mas, quando eu entrei no seu quarto, encontrei este pedaço de papel em cima do toucador. É o papel que eu dei a Berta MacLane, com o número do meu telefone.
Mason tirou o papel do bolso, desdobrou-o lentamente, e colocou-o em cima da secretária.
- Ele disse que o tinha encontrado no corredor, em frente do quarto da Srª Basset.
- Então, Harry McLane deve lá ter estado - observou Della Street, excitada.
- Harry ou Berta - replicou o advogado. - Não esqueça que foi a Berta que eu dei o papel. Talvez ela o tivesse entregado ao irmão, talvez alguém o tivesse dado à Srª Basset, e talvez Colemar mentisse, ou mentissem todos.
- A história do cobertor e do acolchoado dá que pensar - disse Della.
- Com mil diabos - exclamou Mason, impaciente
- tudo dá que pensar. Percebi que essa tal Fenwick era a testemunha principal. Sabia que os polícias a iam engaiolar, de modo que eu não mais conseguiria falar com ela, assim que lhe pusessem as mãos em cima; decidi, portanto, antecipar-me. Pensei que você obteria um depoimento completo antes que os polícias tivessem ocasião de lhe deitar a unha...
- Essa história do olho - notou Della Street - leva a crer que tenha sido Brunold o criminoso.
- Isso, se a rapariga falou verdade - tornou Mason.
- Mas, se assim foi, por que motivo não veio ela para cá? E a história da máscara é suspeita como o diabo.
- Porquê? - perguntou a secretária. - O assassino não podia usar máscara?
- Como iria um assassino - retorquiu Mason - entrar no gabinete de Basset levando uma máscara e segurando um revólver debaixo de um cobertor e de um acolchoado? Como poderia aproximar-se de Basset, encostar o acolchoado e o cobertor à cabeça dele, a fim de abafar o estampido, e premir o gatilho, tudo sem que Basset reagisse?
- Podia aproximar-se na ponta dos pés - sugeriu Della Street.
Mason sacudiu a cabeça, mal-humorado.
- Nesse caso, não precisaria da máscara. Não se esqueça de que a arma deve ter sido escondida no cobertor e no acolchoado. Pela posição do corpo, é quase certo que Basset foi apanhado de surpresa e não percebeu o que se passava, mas estava de frente para o homem que deu o tiro.
- Della Street disse, lentamente:
- Mas havia na casa umas tantas pessoas que podiam entrar no gabinete de Basset e acercar-se dele, trazendo um acolchoado e um cobertor, sem despertar suspeitas em Basset.
- Agora - exclamou Mason- você tocou no ponto sensível. Vejamos quem são essas pessoas.
- A Srª Basset em primeiro lugar - disse ela.
- Muito bem.
- Dick Basset, depois.
- Confere.
- E - acrescentou Della Street - talvez a rapariga que estava deitada no sofá.
Mason inclinou a cabeça.
- Mais alguém?
- Que eu saiba não.
- Sim - disse o advogado: - havia os criados. Lembre-se de que uma criada estava inclinada sobre a rapariga desmaiada. É muito natural uma criada andar com um acolchoado e um cobertor no braço. Podia estar a fazer uma cama, e parar afim de perguntar alguma coisa a Basset, por exemplo... - Mason calou-se por um momento para pensar, e depois, de súbito, observou: - Mas você esqueceu o essencial em tudo o que me disse.
- Que é?
- Essas pessoas apenas - disse - poderiam ter entrado no gabinete de Basset levando o acolchoado e o cobertor sem alarmar Basset, porque as suas caras eram familiares a este. Mas a pessoa que saiu a correr do gabinete trazia o rosto coberto com uma máscara. Isso leva-nos a considerar o problema da máscara. Fora preparada à pressa. O papel químico achava-se provavelmente sobre a secretária de Basset. O homem pegou nele...
- Depois do crime! - exclamou Della Street, exultante.
- Agora, está a compreender. A ideia da máscara deve ter-lhe ocorrido posteriormente, mas não a do cobertor e do acolchoado para abafar o estampido. Isso denota premeditação. A máscara revela pressa.
- Por que motivo havia um assassino de se mascarar depois de ter cometido o crime? - perguntou ela.
- Para escapar, naturalmente, Hazel Fenwick viu um homem sentado no escritório de Basset. Estava de costas. Basset disse à pequena que esperasse. Ela sentou-se na sala de visitas, e esperou. O homem que estava com Basset sabia disso.
- Então o homem pôs a máscara unicamente para poder escapar? - perguntou a secretária.
- Assim parece. Mas por que não saiu ele pelas traseiras? Nesse caso, não precisaria de máscara. Mas se o homem que fez aquela máscara era o mesmo que a usou fora do gabinete, porque abriu um buraco correspondente ao olho cego? Porque não fez um buraco só?
- Della sacudiu a cabeça, e disse:
- Está a tornar-se muito complicado para mim. Como sabe que Basset não lutou?
- Pela maneira como caiu o corpo, em primeiro lugar - retorquiu Mason - e ainda porque ele tinha um revólver dentro dum coldre, debaixo da axila esquerda. Basset não se servira dessa arma.
- Com esse, são três os revólveres que havia no tal gabinete - observou ela.
- Três revólveres - assentiu Mason, taciturno.
- E ainda não se sabe qual deles foi utilizado para cometer o crime?
- Muito provavelmente - volveu o advogado- foi o que tem as minhas impressões digitais... Há quanto tempo saiu Paul Drake?
- Ele entregou-me os olhos uns dez minutos depois da minha chegada ao escritório. Não pode ter sido há mais de quinze minutos.
- Deve estar no Leão Vermelho - disse Mason -bebendo um trago com alguns jornalistas. Veja se consegue chamá-lo ao telefone.
- Vai dar parte do roubo do seu carro? - perguntou Della Street.
Mason sacudiu a cabeça.
- Não. Há-de aparecer em qualquer parte.
A secretária, que estivera a marcar um número no telefone, inquiriu na sua voz mais meiga:
- Um cliente deseja falar com Paul Drake. Ele está aí?
Um momento depois, disse:
- Olá, Paul. Um instantinho, o Chefe quer falar consigo.
Mason pegou no auscultador.
- Paul - disse - pegue num lápis e tome nota disto. Hartley Basset - Basset Auto Loan Company - financeiro, agiota, e talvez receptador. Quero todas as informações que você puder colher sobre ele.
“O homem suicidou-se esta noite, e deixou uma carta na sua máquina de escrever. Os rapazes da Imprensa vão tirar fotografias. Quero saber tudo o que diz respeito à Srª Basset e a seu filho, um camarada de nome Dick Basset. Hartley Basset, diga-se de passagem, não é pai do rapaz. Quero saber por que razão o garoto não conservou o nome do pai. Agora, outra coisa. Peter Brunold, Washington Street 3902. Para o caso de você ainda não saber, informo-o de que é o homem que está ligado aos seis olhos que você comprou. Quero saber tudo o que há sobre ele. Preciso de um trabalho rápido. Não importa quantos homens você puser na pista, mas faça-os entrar já em actividade. Despache-se.
Paul Drake, falando como se estivesse a conter o riso, respondeu:
- Gostei da maneira displicente como você falou em suicídio, Perry. Aposto cinco contra um em como foi assassinato, e ainda não estou inteirado de nada.
- Cale o bico-'tornou Mason, sorrindo - e desvie esse espírito arguto para algum objecto que nos dê lucros.
Largou o auscultador no momento em que a maçaneta da porta se movia. Peter Brunold entrou esbaforido, com a testa banhada em suor. Olhou para o seu relógio de pulso e inclinou a cabeça com satisfação.
- Foi uma corrida “record”, embora o motorista tivesse...
Interrompeu-se, ao dar com a colecção de olhos colocada em cima da secretária.
- Que é aquilo?- perguntou.
- Examine-os de perto - disse Mason. Brunold examinou-os atentamente.
- Bastante bons - disse. - São mais que bons.
- Já encontrou o olho desaparecido? -perguntou
Mason em tom indiferente, como encetasse uma conversa.
Brunold sacudiu a cabeça e fixou os olhos em Della Street. Esta compôs o casaco em torno das pernas.
- Gostaria de reaver o seu olho? - inquiriu Mason.
- Sim.
Della Street repôs na caixa os olhos de vidro, colocou sorrateiramente um caderno de notas em cima do joelho, cruzou as pernas, e começou a tomar apontamentos.
- Acho que poderia conseguir-lhe o seu olho - disse Mason. - Ou antes, poderia dizer-lhe de que modo o senhor conseguiria encontrá-lo.
- De que modo?
- Só o que tem a fazer é tomar um táxi e dirigir-se a casa de Hartley Basset, em Franklin Street 9682. Vai encontrar lá a polícia. Diga que supõe que o seu olho se encontra lá, e que deseja identificá-lo. Conduzi-lo-ão a um gabinete onde deparará com Hartley Basset estendido no chão, com um buraco de bala na cabeça. Dentro da mão fechada há alguma coisa. Os polícias separarão os dedos. Você verá um olho injectado a fitá-lo...
Brunold recuou vivamente mas logo recuperou o autodomínio. Tirou um cigarro da caixa colocada sobre a secretária. A mão que encostou o fósforo à ponta do cigarro estava trémula.
- Por que pensa que é o meu olho?
- Assim parece.
Brunold disse pausadamente:
- É o que eu temia. Alguém roubou aquele olho e deixou em seu lugar uma imitação. Eu queria recuperar o original. Tinha medo que aparecesse nalguma situação como esta. É horrível, simplesmente horrível!
- Está surpreendido? - interrogou Mason.
- Naturalmente que estou surpreendido... Oiça: você decerto não pensa que eu fui lá, matei o homem e depois lhe coloquei o meu olho na mão? Não o poderia ter feito, mesmo que quisesse. Não tinha o olho em meu poder. Disse-lhe hoje de manhã que alguém o roubara, deixando uma imitação em seu lugar.
- Conhecia Hartley Basset? - inquiriu Mason. Brunold hesitou; depois respondeu:
- Não, não conhecia. Nunca o vi.
- Conhece a mulher dele?
- Já me encontrei com ela... istoé... Sim, conheço-a.
- Conhece o filho?
- Dick... num... Basset?
- Sim.
- Bem, conhecia-o de vista.
- Você conhecia Harry McLane, que trabalhou para Basset.
- Sim.
- Onde o conheceu? Em casa de Basset?
- Sim, foi lá. O rapaz trabalhava como estenógrafo e ajudante do secretário. Falei com ele... uma vez.
- Ele nunca o apresentou a Basset?
- Não.
- Nunca viu Hartley Basset?
- Não... nunca o vi. Tinha ouvido falar nele, naturalmente.
- Que quer dizer com isso? Brunold mexeu-se inquieto.
- Escute - disse. - Você não está a querer arrancar-me informações? Não está a iludir-me com essa história da morte de Basset?
Perry Mason bateu um cigarro na unha do polegar.
- Decerto que não.
- Bem - tornou Brunold - é melhor contar-lhe a verdade. Eu conhecia muito bem a mulher... isto é, falei com ela diversas vezes.
- Há quanto tempo a conhece?
- Não muito.
- A amizade era platónica ou de outro género?
- Platónica.
- Quando a viu pela última vez?
- Há umas duas semanas, parece-me.
- Se julgasse que você procurava afastar-se dela - cortou Mason abruptamente - a Srª Basset seria capaz de o envolver num crime?
Brunold quase deixou cair o cigarro.
- Quero dizer precisamente o que disse, Brunold. Suponhamos que você se tivesse zangado com a Srª Basset. Suponhamos que o marido se suicidasse. Suponhamos que ela pensasse que você estava apaixonado por outra mulher e tencionava abandoná-la. Haveria
probabilidade de que a Srª Basset procurasse dar a impressão de que o marido se suicidara, que fora assassinado, e que você estava implicado no crime?
- Para quê?
- Para o impedir de a trocar por outra mulher.
- Mas não há outra mulher.
- Ela sabe disso?
- Sim... Isto é, não... Você compreende, não há nada entre nós...
- Estou a ver - respondeu o advogado secamente. - Quando viu a Srª Basset pela primeira vez?
- Vai fazer um ano, creio.
- E viu-a pela última vez há duas semanas?
- Sim.
- Depois disso não mais se encontrou com ela?
- Não.
- Quando descobriu que o seu olho tinha sido roubado?
- Ontem à noite, já tarde.
- Tem a certeza de que não o deixou em qualquer parte?
- Sim. Substituiram-no por uma imitação. Isso quer dizer que alguém o deve ter roubado de propósito.
- Por que haviam de roubá-lo?
- Não sei.
- Por que motivo acha que lho teriam roubado?
- Não lho sei dizer.
- Encontrou-se com Harry McLane na residência de Basset?
- Foi lá que o vi, sim.
- Sabia que tinham sido descobertas irregularidades nas contas dele.
Brunold hesitou de modo visível; depois disse:
- Sim. Ouvi falar nisso.
- Sabe a quanto montava exactamente o desfalque?
- A uns quatro mil dólares.
- Conhecia uma jovem chamada Hazel Fenwick?
- Fenwick?
- Sim. -Não.
- Conhece um homem chamado Artur Colemar?
- Sim.
- Falou com ele alguma vez?
- Não, mas vi-o.
- Conhece o motorista de Basset?
- Ora se conheço. Chama-se Overton. É alto e moreno. Tem cara de quem nunca sorri. Que há a respeito dele?
- Queria apenas saber se o conhecia.
- Sim, conheço-o.
- Conhece uma mulher de cabelos cor de fogo, gorda de cinquenta a cinquenta e dois anos?
- Sim; é a Edith Brite.
- Que faz ela?
- É uma espécie de governanta. É forte como um touro.
- Mas você nunca viu Basset?
- De maneira que trocássemos palavras, não.
- E esses outros conhecem-no?
- Que outros?
- Esses que você descreveu.
- Não... Isto é, talvez o motorista me visse alguma vez.
- Como é possível que você tenha visto essas pessoas e as conheça, ao passo que elas nunca o viram e não o conhecem?
- Sílvia chamou-me a atenção para elas. Mason voltou-se repentinamente para Brunold, e
apontou-lhe a ponta acesa do cigarro.
- Dick Basset - disse - viu-o ontem.
- Onde?
- Em casa deles.
- Deve ter-se enganado - replicou Brunold.
- Então foi Colemar que o viu.
- Não me podia ter visto.
- Porquê?
- Porque eu não estava naquele lado da casa.
- Que quer dizer com isso?
- É uma espécie de casa dupla. Basset mobilou um dos lados para servir de escritório, e o outro para residência. Quando as suas relações com a mulher se tornaram tensas, Basset passou a viver inteiramente do outro lado da casa.
- Então você esteve ontem do lado da residência da Srª Basset?
- Ontem, não; anteontem.
- Pensei que você não visse a Sr." Basset há duas semanas - disse Mason.
- Brunold ficou em silêncio.
- E esta noite, Dick Basset teve uma discussão com Hartley Basset a respeito de você - prosseguiu o advogado.
- Esta noite, quando?
- Depois que você saiu.
- O senhor está enganado nesse ponto - asseverou Brunold; - isso é absolutamente impossível.
- Porquê?
- Porque antes de eu sair... Mason mostrou os dentes.
Brunold avançou belicosamente para o advogado.
- Vá para o inferno!-disse. - Que quer você obrigar-me a dizer?
- Procuro descobrir a verdade - tornou Mason.
- Pois bem, você não me pode intimidar nem apanhar numa cilada como se eu fosse um larápio qualquer. Não pode...
- Não estou a tentar intimidá-lo - disse Mason
- e, quanto à cilada, você já caiu. Ia a dizer que, antes de você sair de lá esta noite, Basset já estava morto, não é?
- Eu não disse que estive lá esta noite.
- Não - tornou Mason, sorrindo - você não o disse, mas é uma suposição razoável conclui-lo do que disse.
- Você não compreendeu bem o que eu estava a dizer-retorquiu Brunold.
Perry Mason virou-se para Della Street.
- Registou tudo, as perguntas e as respostas, Della?
- perguntou.
Ela ergueu a vista e fez um sinal afirmativo. Brunold precipitou-se para a secretária.
- Pelo amor de Deus! Tudo o que eu disse foi anotado? Não pode fazer uma coisa dessas. Eu...
As mãos de Perry Mason agarraram os ombros do homem.
- Você o quê? - perguntou em voz ameaçadora. Brunold voltou-se para o encarar.
- Experimente cometer algum acto violento contra
esta jovem - disse Mason, ferozmente - e sairá daqui pelos ares. Agora sente-se e deixe-se de rodeios. Conte-me tudo.
- Por que havia eu de contar-lhe o quer que seja?
- Porque, dentro em breve, precisará de alguém que o ajude. Tem agora uma oportunidade de me contar tudo. Talvez não a tenha mais tarde. Poderá achar-se atrás das grades, olhando para o céu.
- Não têm nenhuma prova contra mim.
- Assim lhe parece.
- Ninguém a não ser você, sabe que eu estive lá esta noite.
- A Sr,a Basset sabe.
- Naturalmente, mas ela não é tola.
- Colemar - disse Mason - viu alguém sair da casa a correr. Ele sabe quem é. Não mo quis revelar. Era você.
O queixo de Brunold descaiu.
- Colemar reconheceu a pessoa? - perguntou.
- É o que ele afirma.
- Mas não é possível. Ele estava muito afastado, e eu...
- Então foi você que Colemar viu.
- Sim, mas pensei que Colemar não me pudesse ver. Estava do outro lado da rua. Eu seria capaz de jurar que o vi primeiro. Virei a cabeça para o lado oposto a fim de que ele não me reconhecesse.
- Por que razão ia você a correr?
- Estava com pressa.
- Porquê?
- Porque sabia que Sílvia - a Srª Basset - lhe telefonara e não queria lá estar quando você chegasse.
- Ouça - disse Mason - seria capaz de suportar um interrogatório cerrado por parte da polícia?
- Sim, naturalmente.
- Você não suportou muito bem o meu.
- A polícia não me fará perguntas.
- Porquê?
- Porque não faz nenhuma ideia de que eu tenha qualquer ligação com os Basset.
- Vem aí alguém -advertiu Della Street. Desenharam-se sombras no vidro fosco da entrada. A maçaneta girou, e a porta abriu-se. No limiar
estavam o sargento Holcomb e dois dos seus homens. Observaram os ocupantes do escritório com olhos atentos e vigilantes. O sargento Holcomb adiantou-se.
- Peter Brunold? - perguntou.
Brunold fez que sim, e disse em tom agressivo:
- Em que lhe interessa isso?
O sargento agarrou-o pelo ombro, virando ao mesmo tempo, a lapela do casaco para exibir o seu distintivo dourado.
- Em nada - retorquiu - mas detenho-o pelo assassínio de Hartley Basset, e aviso-o de que qualquer palavra que pronunciar poderá ser utilizada contra o senhor.
Voltou-se para Perry Mason com um sorriso desdenhoso.
- Lamento interromper a conferência, Mason - disse - mas as pessoas têm o desagradável costume de desaparecer depois de terem falado consigo, e eu precisava deitar a mão ao Sr. Brunold antes que ele se convencesse de que uma mudança de clima lhe faria bem à saúde.
Perry Mason esmagou a ponta do cigarro no cinzeiro.
- Pois não - disse. - Apareça outra vez, sargento. O sargento Holcomb disse em tom ameaçador:
- Se o procurador do distrito for da mesma opinião que eu, a respeito do ocorrido àquela testemunha, hei-de aparecer outra vez. E quando me for embora, não irei só.
As maneiras de Perry Mason eram corteses.
- Estimarei vê-lo em qualquer ocasião, sargento. Brunold voltou-se para Perry Mason dizendo:
- Ouça, doutor, você tem que...
Holcomb fez um aceno aos dois homens que puxaram Brunold para a porta.
- Oh, não, nada disso - acudiu Holcomb. - Os senhores já trocaram os seus dois dedos de palestra.
- Não me pode impedir de falar com o meu advogado- berrou Brunold.
- Oh, não - tornou o sargento Holcomb - Depois de ter sido registado e posto atrás das grades, terá o direito de chamar o seu advogado - mas até lá muita coisa há-de acontecer.
Os homens saíram levando Brunold. Este resistia e
tentava soltar-se. Reluziram algemas. Ouviu-se um estalido metálico. Brunold foi conduzido aos empurrões.
- Era isso que você queria - disse um dos homens. A porta fechou-se com estrondo.
O sargento Holcomb, que ficara para trás, encarou Perry Mason com ar furioso.
Mason bocejou, tapando polidamente a boca com os dedos.
- Desculpe-me, sargento -• disse - se pareço bocejar. Tive um dia bastante fatigante.
Holcomb virou as costas, abriu a porta com um puxão, e disse:
- Para quem se serve de métodos tão astutos, o senhor obtém péssimos resultados.
E bateu com a porta.
Mason sorriu jovialmente a Della Street.
- Que tal se você desse uma saltada a um clube nocturno antes de ir para casa?
Ela baixou os olhos para o fato, e disse:
- Se eu tirasse este casaco seria presa. Lembre-se de que me deu ordem de me vestir à pressa. Este casaco de peles cobre uma camisa de dormir.
- Então vá para casa - disse Mason com firmeza. - Pelo menos um de nós deve ficar livre da cadeia.
Della Street olhou-o, inquieta. - Chefe, o senhor acha que ele vai prendê-lo?
Mason encolheu os ombros, inclinou-se, e abriu a porta para ela passar.
- A gente nunca sabe - disse - o que é que o sargento Holcomb vai fazer. Ele é tão desastrado!
Perry Mason, acabado de barbear, deteve-se diante da secretária de Della Street para lhe sorrir.
- Sente-se bem depois da sua noitada? - perguntou.
- Às mil maravilhas - afirmou Della. - Notei que os jornais fazem sensação com o assassínio de Hartley Basset, mas não falam em Brunold.
- Os jornalistas ainda não sabem nada a respeito de Brunold - explicou o advogado.
- Porquê?
- Porque Holcomb não o levou para a delegacia. Brunold foi conduzido a algum posto dos arrabaldes, onde pudessem “apertar” com ele.
- O senhor não podia fazer nada?
- Podia requerer “habeas-corpus”, mas ainda não queria mostrar o meu jogo. Não estou a par dos factos. Talvez seja melhor para Brunold estar preso do que solto. A polícia ter-lhe-ia arrancado tudo o que queria saber antes que eu conseguisse o “habeas-corpus”.
- E quanto à Srª Basset?
- Chamei-a ao telefone logo que cheguei ao meu apartamento.
- Falou com ela?
- Não. Ela simulou um ataque de histerismo depois de eu ter saído. O filho chamou um médico e depois pregou uma partida à polícia. Disse que a ia levar a um hospital, mas a Srª Basset não foi admitida em nenhum dos hospitais da cidade. O rapaz não quer dizer onde está a mãe. Afirma que a fará aparecer quando for preciso e o julgar conveniente.
- Nem ao senhor quis dizer onde ela estava?
- Não.
- Como é que Holcomb o deixou fazer isso?
- Holcomb apressou-se a vir prender Brunold e deu assim uma oportunidade ao jovem Basset, que a aproveitou. Mas é provável que os agentes vigiassem o local. Eles sabem onde está a mulher. Pode ser que não o queiram demonstrar diante do jovem Dick Basset, mas sabem.
- Então - disse a secretária - só o que Dick Basset fez foi dispor as coisas de forma que o senhor não pudesse encontrar a mãe, mas os investigadores pudessem fazê-lo. É isso?
- Mais ou menos.
- De maneira que a Srª Basset não sabe da prisão de Brunold?
- Provavelmente não.
- Quando virá a saber?
- Quando tiver juízo e se portar de maneira mais razoável. Recomendei ao filho que a avisasse para se pôr em contacto comigo o mais cedo possível; que se trata de um assunto da máxima importância.
- Ela não telefonou?
- Não.
- Mas o senhor não poderia tê-la encontrado?
- Para quê? A polícia vigia-a, com certeza. Se eu tentasse intrometer-me nas investigações, apanhar-me-iam numa situação comprometedora, e talvez a minha situação já não seja muito segura.
- Porquê?
- As minhas impressões digitais podem estar no revólver com que se cometeu o crime.
A secretária pôs-se a desenhar figurinhas no canto do seu caderno de notas taquigráficas, com um lápis aparado.
- Este caso é o mais esquisito em que o senhor já se viu envolvido - disse ela. - Ainda não temos nenhum cliente neste caso - isto é, ainda ninguém recorreu aos nossos serviços, excepto, Brunold.
O advogado fez um lento aceno de cabeça, e disse:
- Bem quisera saber onde poderia ter encontrado Berta McLane a noite passada. Ela não nos deixou o endereço nem o número do telefone, pois não?
- Não; só o rapaz - Harry McLane; e esse, creio eu, deixou o número de uma sala de bilhar.
- É provável. Veja se consegue comunicar com ele pelo telefone. Ligue para o número que o rapaz deu, e veja se lhe podem indicar algum outro número onde o encontremos imediatamente.
Della Street inclinou a cabeça, tomou nota no seu bloco e perguntou:
- Mais alguma coisa?
- Sim - disse Mason. - Ligue para a casa de Basset. Diga a Dick Basset que ainda estou a tentar pôr-me em comunicação com sua mãe, e que o assunto é importante. E, a propósito, veja se consegue...
A campainha do telefone retiniu. A secretária ergueu o auscultador e disse: “Pronto. Quem é, faz favor?” escutou um instante, depois cobriu o bocal com a mão e fixou em Perry Mason uns olhos onde se via um brilho divertido.
- Sabe onde encontraram o seu carro? - perguntou.
- Não. Onde?
- Estacionado em frente de um posto da polícia. É do departamento do tráfego que estão a falar. Dizem
que o carro tem estado diante de uma boca de incêndio desde as duas da madrugada. Perguntam se foi roubado. Perry Mason pestanejou.
- Desta vez caçaram-me. Responda que não, que o carro não foi roubado; que fui eu, decerto, que o deixei inadvertidamente estacionado lá.
A secretária tirou a mão do bocal, deu a informação e depois tapou mais uma vez o bocal.
- E - disse-, é um ponto de estacionamento para vinte minutos. Estiveram a pôr avisos de vinte em vinte minutos, desde as nove da manhã.
- Dê um cheque em branco a um dos contínuos - disse Mason. - Mande-o pagar as multas e trazer o carro. Dê-lhe ordem de não dizer nada. Está a ver a lata da rapariga? Deixar o carro em frente do posto da polícia!
- Acha que foi ela que o fez, ou os polícias que a detiveram e obrigaram a levar o carro até ao posto?
- Não sei.
- Se foram eles - prosseguiu Della Street - é uma boa peça que lhe pregam, porque deixaram o automóvel em frente de uma boca de incêndio, e num ponto onde não se pode deixar um carro por mais de vinte minutos, sabendo que o senhor não se atreveria a dizer que o carro fora roubado - depois de ter dito que tinha dado licença à pequena para o utilizar.
Mason fez um aceno de cabeça e encaminhou-se a passos largos para o seu gabinete particular.
- Está bem - disse. - Deixe-os rir. Quem ri por último ri melhor... Tem aí os olhos?
- Refere se aos olhos que Paul Drake nos trouxe?
- Sim.
A rapariga abriu uma gaveta da sua secretária e tirou a caixa de olhos.
- Quase que desmaei - disse - só de olhar para eles.
Mason abriu a caixa, tirou um par de olhos, meteu-os num dos bolsos do colete, e disse:
- Ponha os outros quatro no cofre. Meta-os onde ninguém mais os possa encontrar. Esses olhos são um pequeno segredo entre nós dois.
- Que vai fazer com eles?
- Não sei. Depende do próximo passo que Brunold der.
- Qual será o próximo passo dele?
- Telefonar-me pedindo que seja seu advogado neste caso de homicídio.
- Que me diz da maneira como o senhor se envolveu nesta história, chefe? - inquiriu ela, solícita. - O sargento Holcomb não voltará com um mandado de prisão?
- Não, a não ser que identifiquem as minhas impressões digitais no revólver, e não poderão fazê-lo antes de me tomarem as impressões digitais que não têm arquivadas na delegacia. Provavelmente ficarão furiosos com o desaparecimento de Hazel Fenwick, mas não terão fundamento para uma denúncia. Temos agora um novo procurador do distrito, e creio que ele se sente inclinado a fazer jogo leal. Quer conseguir condenações quando tem a certeza de acusar culpados, mas não deseja fazer condenar inocentes.
- O senhor quer que passe a limpo o que Brunold disse a noite passada?
Mason sacudiu a cabeça ao entrar no escritório das traseiras.
- Não - gritou por cima do ombro - deixe isso. Vamos ver a quem representaremos, antes de tomar qualquer medida definitiva.
Sentou-se na sua enorme cadeira giratória, pegou no jornal e mal começara a ler a reportagem do assassínio de Basset quando o telefone tocou e Della Street disse:
- Falei com Harry McLane ao telefone. Ele mostrou-se renitente, mas consegui que me indicasse um número onde eu pudesse falar com a irmã. Telefonei à irmã, e ela diz que precisa de falar imediatamente com o senhor. Trará consigo o irmão, se o puder convencer a vir. Disse que estava disposta a esperar na sua sala de recepção durante todo o dia, se fosse preciso, mas que tinha de falar consigo.
- Não disse sobre que assunto?
- Não, não disse... Mandei um dos rapazes buscar o seu carro. Paul Drake telefonou e quer falar com o senhor, quando lhe for mais conveniente.
- Diga a Paul que venha - respondeu Mason.- Informe-me assim que Berta McLane chegar. Se a polícia ainda não deitou a mão a Hazel Fenwick, ela provavelmente há de falar hoje para cá de um momento para o outro. Talvez dê um nome suposto. Se alguma mulher
misteriosa procurar pôr-se em comunicação comigo, tome o cuidado de receber a mensagem e informar-se do caso. Faça-o com tacto, sem deixar de se mostrar insistente.
“Diga a Paul Drake que venha directamente ao meu gabinete particular. Eu lhe abrirei a porta. Quando eu chamar por si, entre e tome notas.
Desligou o telefone, leu meia coluna do jornal, e depois ouviu bater ao de leve na porta que dava para o corredor. Abriu, e Paul Drake, com a fisionomia imobilizada na eterna expressão de malícia, entrou no aposento.
Mason olhou-o com ar matreiro, e disse:
- Você tem o aspecto de quem não dormiu muito bem a noite passada.
- Bom - tornou Paul Drake - passei pelo sono durante uns vinte minutos.
- Como os conseguiu? - perguntou Mason, premindo a campainha para chamar Della Street.
- Na cadeira do barbeiro, esta manhã. Preferia que você arranjasse as suas encrencas durante as horas de trabalho. Tem sempre necessidade de serviços urgentes à noite.
- Não tenho outro remédio - disse Mason - uma vez que os assassinos teimam em procurar as suas vítimas depois das horas de trabalho. Descobriu alguma coisa?
- Muita coisa - retorquiu Drake. - Pus vinte empregados a trabalhar no caso, ao mesmo tempo, cada um encarregado de investigar um ângulo diferente. Espero que você tenha um cliente de carteira recheada.
- Não tenho, mas vou ter. Que tem você para contar?
- Um verdadeiro romance - começou Drake. - Uma dessas narrações de interesse humano.
Mason apontou para a vasta cadeira de couro.
- Sente-se e comece.
Paul dobrou a comprida figura sobre a cadeira, viran-do-se e sentando-se de lado, de modo que as costas se apoiavam contra uns dos braços, enquanto os joelhos descansavam em cima do outro braço. Della Street entrou, sorriu ao detective e sentou-se.
- A história começa num desses românticos rincões dos meados da era vitoriana.
- Em que sentido?
Drake acendeu um cigarro, soprou uma nuvem de fumo, fez um gesto amplo com a mão, e disse:
- Imagine uma formosa comunidade agrícola, próspera, feliz e tacanha - sublinhe o adjectivo tacanha.
- Porquê - interrogou Mason.
- Porque se trata de uma comunidade desse género. Cada pessoa estava a par do que todas as outras faziam. Se uma pequena aparecia de vestido novo, havia uma dúzia de línguas prontas a taramelar sobre a procedência do vestido.
- E um casaco de peles? - perguntou o advogado. Paul Drake ergueu as mãos num gesto de cómico
horror, e disse:
- Oh, meu Deus! Para quê denegrir assim a reputação de uma jovem?
Mason riu-se, e pediu:
- Continue.
- Vivia lá uma pequena de nome Sílvia Berkley - uma rapariga bem bonita - confiada, simples, franca, ingénua.
- Para quê uma descrição tão pormenorizada? - inquiriu o advogado.
- Porque - volveu Drake, muito sério -eu simpatizo muito com ela. Obtive uma boa descrição. Tenho até fotografias.
Procurou no bolso, retirou um sobrescrito, e tirou de dentro uma fotografia que entregou a Perry Mason.
- Se você pensa que não foi preciso técnica para descobrir essa fotografia às quatro da madrugada, trate de mudar de ideias.
- Onde a conseguiu?
- No jornal local.
- Então ela aparecia na primeira página dos jornais?
- Sim, quando desapareceu.
- Raptada, ou coisa parecida?
- Ninguém jamais o soube. Ela desapareceu, simplesmente.
O advogado fixou os olhos prescrutadores no detective e inquiriu:
- Você conhece a história dessa desaparição, não é assim?
- Sim.
- Muito bem; conte-ma.
- Se eu me mostrar romântico, ou poético, ou coisa semelhante, é porque passei a noite em claro - disse Drake.
- Não se preocupe com isso. Vamos ao assunto.
- Havia um viajante que vendia fazendas. Chamava-se Peter Brunold.
- Tinha só um olho? - perguntou Mason.
- Não; tinha dois olhos, naquele tempo. O olho artificial veio depois. É uma das razões do meu sentimentalismo.
- Quando começa a história? - interrogou Mason.
- Creio que começa com os preconceitos da família de Sílvia Basset. Eles tinham as suas ideias. Eram do tipo de gente que anda tão empertigada que quase cai para trás como os caixeiros-viajantes eram os espertalhões da cidade, quando Brunold começou a sair com a pequena, os parentes foram aos arames.
“Havia um cinemazinho na terra. Nessa época, os filmes mal principiavam a transpor a etapa das galopadas dos cow-boys. A povoação não era bastante grande para receber muitos dos velhos dramas, e...
- Deixe lá a comunidade - interrompeu Mason, impaciente. - Brunold desposou-a?
Drake, na sua voz arrastada, retorquiu:
- Não posso esquecer a comunidade sem esquecer a história. Não, Brunold não casou com ela; e, meu caro, a minha narração é assim, e eu não a modificarei.
O advogado suspirou, lançou um olhar divertido a Della Street, e disse:
- Muito bem. Continue a conferência.
- Bem, sabe como procede uma pequena independente. O povo pensou que ela ia a caminho da perdição. Os parentes queriam que Sílvia cortasse com Brunold. Ela defendeu-o e talvez tivesse algumas ideias a brincarem-lhe dentro da cabeça - ideias de viver a sua vida. Como sabe, Perry, foi por essa época que as raparigas começaram a pôr de lado as minhocas que lhes haviam metido na cabeça durante muitas gerações.
Perry Mason bocejou ostensivamente.
- Oh, com mil raios -'disse o detective - você está a roubar-me toda a poesia da minha mocidade - justamente quando eu começava a acreditar que a juventude ainda não me abandonara de todo.
- Isso não é romantismo juvenil, é a pieguice da senilidade-, tornou Mason. - Pelo amor de Deus, lembre-se que eu tenho entre mãos um caso de homicídio e preciso de conhecer os factos. Conte-me os factos, e eu os temperarei com toda a necessária poesia, quando os servir ao júri.
- O pior - disse Drake, virando-se para Della Street
- é que, quando o chefe conhecer a história, sentirá o mesmo que eu. Ele é como um bolo de noiva - uma casca grossa por fora, mas, abrindo-o, descobre-se que por dentro é doce e fofo.
- Mal cozido, é a expressão que você procura - disse Mason. - Vamos, Paul; venha a história.
- Um dia - prosseguiu Drake - Brunold recebeu uma carta de Sílvia. A carta advertia-o de que não podiam retardar mais o casamento.
O sorriso meio zombeteiro desapareceu do semblante de Perry Mason. O olhar perdeu a expressão de impaciência. Na sua voz transpareceu viva simpatia.
- Isso passou-se assim? - perguntou.
- Assim mesmo - tornou o detective.
- Que fez Brunold?
- Recebeu a carta, sem dúvida alguma.
- E pôs-se ao fresco? - inquiriu Mason, em tom frio, duro.
- Não. Era uma povoação pequena, e ele não se atreveu a telegrafar porque não queria que o telegrafista soubesse, mas meteu-se no comboio e partiu ao encontro de Sílvia. Foi aí que interveio o destino. Por essa época, os caminhos-de-ferro ainda eram muito maus. Meu Deus, bem me lembro de uma vez em que viajei num desses comboios da província; eu saltava de um lado para o outro como um punhado de castanhas sobre as brasas...
- O comboio descarrilou - interrompeu o advogado.
- Suponho que Brunold se tenha ferido.
- Rachou o crânio, vazou um olho e sofreu perda de memória. Os médicos extrairam-lhe o olho, puseram-no num hospital e deram-lhe uma enfermeira. Examinei os arquivos do hospital e tive a sorte de dar com o paradeiro da enfermeira. Recordava-se do caso porque, quando Brunold recuperou a memória, ela suspeitou alguma coisa do que se passava no espírito do homem.
“Brunold procurou pôr-se em comunicação com
Sílvia, e informaram-no de que Sílvia desaparecera. Ficou como louco. Sofreu uma recaída, e esteve delirante. No delírio falou, mas a enfermeira entende que isso é segredo profissional, e não me quis contar muita coisa, mas eu presumo que ela saiba.
- E Sílvia? - perguntou Mason, já sem sombra de troça na voz.
- Sílvia - disse o detective - tinha ouvido durante meses histórias acerca dos espertalhões da cidade e de mulheres que pagavam cara a sua audácia. Estava-se no tempo em que a literatura se cevava em histórias de filhas transviadas expulsas da casa paterna durante tempestades de neve. Os pais de Sílvia não deixavam de lhe ministrar lengalengas dessa espécie. Como Brunold não apareceu, Sílvia só encontrou uma explicação, de modo que agarrou nas suas economias e safou-se. Ninguém sabe como é que ela saiu da cidade. A três milhas de distância há um pequeno entroncamento. Deve ter ido a pé até lá e tomado um comboio de transporte de leite. Foi para a cidade.
- Como sabe? - interrogou Mason.
- O acaso favoreceu-me - disse Drake. - Eu gostaria de lhe fazer crer que se tratava de um excelente trabalho de detective, mas, quando a jovem se casou e fez adoptar o rapaz, deu algumas informações que me habilitaram a prosseguir nas pesquisas.
- Ela casou com Basset? - perguntou Mason.
- Isso mesmo. Veio para a cidade e apresentou-se com o nome de Sílvia Loring. Trabalhou como estenógrafa enquanto pôde. Depois de a criança nascer, voltou ao escritório. Tinham-lhe reservado o lugar. Trabalhou lá durante muitos anos. O rapaz cada vez se tornava mais dispendioso. Precisava de ser educado. Sílvia conheceu Hartley Basset; era cliente do escritório, tinha intenções honestas. Ela não o amava - pelo menos é o que me parece. Nunca tinha amado ninguém, excepto Brunold. Pensou que este a abandonara, e portanto estava desiludida dos homens.
- E convenceu Basset a adoptar o rapaz?
- Tal e qual; não casou com Basset antes que ele tivesse adoptado legalmente o filho. O rapaz tomou o nome de Basset, e, ao que parece, começou a odiar ferozmente o padrasto, provavelmente por causa do modo como Basset tratava Sílvia.
- O que há a esse respeito? - perguntou Mason.
- Tudo o que sei são mexericos de criados - respondeu Drake - mas os mexericos de criados algumas vezes merecem crédito. Basset era um solteirão. Não tinha sido homem fácil de servir. A sua concepção do casamento era que a mulher devia ser uma espécie de adorno em público e uma criada na vida privada.
- E - observou Mason pausadamente - em consequência da adopção, Dick Basset teria herdado uma parte dos bens de Hartley Basset.
Drake inclinou lentamente a cabeça, e disse:
- É como Edith Brite pensa: Edith Brite é uma governanta, mas ela não acha que houvesse ambição neste caso. Entende que o rapaz queria apenas prestar um serviço à mãe.
- Ela pensa que Dick o matou? - inquiriu o advogado.
- Exactamente. Tive que a embriagar, mas quando se encontrou in vino veritas soltou a língua. Sílvia tinha passado pelo inferno. O rapaz sabia. Hartley Basset era homem para isso. Ela acredita que o rapaz o despachou.
Della Strett interveio:
- Espere um instante. Paul; você ainda não terminou o romance. E Brunold? Foi ele que a descobriu, ou ela que o encontrou?
- Brunold descobriu-a. Andava à sua procura desde que saíra do hospital. Não sabia como realizar uma busca dessa ordem, e por algum tempo, Sílvia conservara-se oculta.
Perry Mason enfiou os polegares nas cavas do colete e começou a caminhar de um lado para o outro.
- Dick sabia que Brunold tinha encontrado a mãe, e quem ele era? - perguntou.
Drake encolheu os ombros.
- Sou um detective - disse-, e não um adivinho. A sua opinião vale tanto como a minha. Ao que parece, Sílvia entendeu que tinha feito a cama para si mesma, e devia-se deitar nela. Brunold queria que ela deixasse o marido, isso é certo. O facto de Sílvia não o ter deixado imediatamente mostra que alguma coisa a retinha. Pelo que eu pude apurar do carácter de Hartley Basset, talvez
tenha sido a ameaça de suspender o processo de adopção de Dick sob a alegação de fraude, e marcar o rapaz como ilegítimo. Enfim, fazer escândalo. Ou talvez ele recusasse conceder-lhe o divórcio, e Sílvia não quisesse ir viver com Brunold sem o ter desposado, por causa do rapaz.
Perry Mason, ainda a caminhar pelo gabinete, perguntou:
- Onde está a Srª Basset?
- Escapuliu-se. Foi para algum hotel.
- Veja se a consegue encontrar - disse Mason.- Não terá muita dificuldade. Ela é do tipo das que se dirigiriam a um dos hotéis de primeira classe. Não deve ter sido grande o número de mulheres sós que se inscreveram nos hotéis de primeira classe depois da meia noite. Você possui retratos dela, suponho.
- Oh, decerto.
- Pois bem, inicie a busca.
- Essa história trar-me-á proveitos? - perguntou Drake.
- Muitos, creio eu - respondeu Mason.
Um zumbido anunciou que se requeria a presença de Della Street no gabinete exterior. Ela volveu os olhos para Mason, que inclinou a cabeça.
- Os olhos serviram? - inquiriu Drake.
- Creio que vão servir, embora tema que tenham chegado um pouco tarde.
- Pensei isso mesmo quando soube do olho injectado que encontraram na mão direita de Hartley Basset.
Drake desenroscou-se da cadeira e caminhou em direcção à porta da saída.
- Não quer mais nada, excepto dar com o paradeiro de Sílvia Basset, não é assim?
- Por enquanto é só isso. E foi um trabalho muito bem feito. Paul, descobrir essas coisas dentro do restrito espaço de tempo de que você dispunha.
- Não foi tanto assim - retorquiu o detective.- O pior foi averiguação de detalhes. Os jornalistas tinham virado a criadagem do avesso. Brunold deixou um rasto fácil de seguir. Não houve dificuldade nisso, e Sílvia Basset, no processo de adopção, deu a verdadeira data e lugar do nascimento do rapaz. Então, suponho que ela pensava que isso não tinha importância. Por acaso consegui encontrar o médico, e este pôs-me em comunicação com a enfermeira. A enfermeira lembrava-se de um maço de cartas de amor, atadas com a fita convencional, e guardadas na mala da jovem. Estavam endereçadas a Sílvia Berkley, e ela tinha lido nos jornais a notícia do desaparecimento de Sílvia Berkley.
- Ela guardou segredo? - inquiriu Mason. O detective fez um aceno afirmativo.
- As enfermeiras - disse - conhecem muitos casos como este. Hoje em dia já não são tantos como há vinte anos, mas aparecem de vez em quando.
- Ela nunca se pôs em contacto com os parentes? - perguntou Mason.
- Não sei. Não consegui averiguar.
- Os pais ainda vivem?
- Hei-de apurar isso hoje à tarde. Pensei que você talvez não desejasse chamar muito a atenção ,de modo que fiz as minhas pesquisas um tanto discretamente.
- Óptimo trabalho, Paul - saudou o advogado.
A porta do gabinete exterior abriu-se, e Della Street entrou, fechando-a cuidadosamente atrás de si. Foi até junto da secretária de Perry Mason, e esperou. O detective disse:
- Muito bem, Perry; tratarei do seu caso hoje à tarde, o mais prontamente possível. Se localizar a pessoa nalgum dos hotéis, telefono-lhe. Espero que conseguirei visitar os principais hotéis dentro da meia hora próxima.
Abriu a porta e tomou a precaução de deitar a cabeça de fora e olhar em ambas as direcções. Depois saiu para o corredor, fechando a porta com um estalido.
Perry Mason virou-se para Della Street.
- E então? - perguntou.
- Temos de os ajudar - disse ela.
- Refere-se a Brunold e à Srª Basset?
- Sim.
- Ainda não estamos a par de tudo.
- A respeito do assassínio?
- Sim.
- Segundo parece - disse Della Street, em voz pausada- Sílvia Basset nunca teve sorte. O Destino esteve sempre contra ela. Por que não lhe dar uma oportunidade agora?
- Talvez que o faça - volveu Mason, lentamente; depois acrescentou: - Se ela me deixar.
Della Street moveu-se na direcção do gabinete de entrada.
- Os McLane estão ali - disse.
- Harry e a irmã?
- Sim.
Mason inclinou a cabeça.
- Mande-os entrar, Della.
Berta McLane começou a falar antes que Perry Mason tivesse tempo de dizer mais que um cortês “bom-dia”.
- Lemos a notícia nos jornais. Terá alguma influência no caso?
- Sim - disse Mason pausadamente. - A propriedade será entregue aos cuidados de um testamenteiro. Se Sílvia Basset for incumbida de administrar a propriedade, podemos contar com a sua benevolência. Se outra pessoa o for, é provável que surjam complicações. É natural que acabe por descobrir o desfalque e...
- Céus! O senhor ainda não sabe o que sucedeu? - inquiriu a jovem.
- Que houve? - perguntou Mason.
- Conta-lhe, Harry - convidou a jovem, voltando-se para o irmão.
- Eu paguei-lhe - disse Harry McLane.
- Pagou a quem?
- A Hartley Basset.
- Quanto?
- Tudo até ao último vintém - três mil novecentos e quarenta e dois dólares e sessenta e três cêntimos.
- Deram-lhe um recibo? - Perguntou Perry Mason.
- Eu não precisava de recibo. Recebi as letras falsificadas.
- Quando pagou?
- A noite passada.
- A que horas, precisamente?
- Não sei. Aí pelas onze horas, ou talvez um pouco mais tarde.
Mason procurou conservar fitos nele os olhos de
McLane, mas o rapaz volveu-os para a irmã, e depois para a janela.
- Está tudo bem, agora - disse. - Julgámos dever dar-lhe parte. Vem, mana, acho que não temos mais nada a fazer aqui.
- Espere um instante - disse Mason. - Olhe para mim.
O jovem McLane volveu os olhos para o advogado.
- Agora continue a olhar-me - disse Mason. - Não desvie os olhos de mim. Diga-me: leu os jornais desta manhã?
- Sim; foi por isso que cá viemos - para saber se modificaria a nossa situação.
- Quanto tempo - perguntou lentamente o advogado- antes de Hartley Basset ser assassinado, lhe entregou você o dinheiro?
- Não sei. Ignoro quando é que ele foi assassinado.
- Suponhamos que tenha sido por volta da meia-noite.
- Então, devo ter-lhe pago pouco antes do crime.. Talvez alguém lhe tenha roubado o dinheiro.
- Você pagou em dinheiro?
- Sim, em metal sonante.
- Onde o arranjou?
- Isso é comigo.
- Ganhou-o ao jogo?
- Que lhe interessa saber onde o consegui? Isso não tem importância.
- Pode ter muita importância - disse Mason.- Você não compreende que... Mas não faz mal. Deixe-me fazer primeiro algumas perguntas. Hartley Basset devolveu-lhe as letras falsificadas?
Sim.
- Essas letras eram as únicas provas que ele tinha contra si, não é verdade?
- É.
- Bem, de onde é que ele tirou as letras? Por outras palavras, onde estavam elas?... Não, não desvie o olhar. Continue com os olhos fixos nos meus... De onde é que Hartley Basset tirou as letras falsificadas?
- De um arquivo que ele tinha em cima da secretária fechado à chave.
- Onde estava a chave?
- No porta-chaves de Basset, naturalmente.
- Você não sabe - perguntou Mason - que, quando encontraram e revistaram o corpo de Basset, não havia mais de vinte e cinco dólares em dinheiro dentro dos bolsos, e que a polícia não descobriu nenhuma quantia importante, quer no cofre, quer no aposento onde se cometeu o crime?
- Talvez - sugeriu Harry McLane - que o roubo tenha sido o móbil do crime.
Mason começou a bater lentamente com o punho fechado na secretária acentuando cada uma das suas palavras.
- Oiça - disse em voz pausada - você não percebe que não havia nada neste mundo de Deus que o impedisse de entrar no gabinete onde Hartley Basset trabalhava, dizendo-lhe que vinha restituir o dinheiro, e que, uma vez lá dentro, poderia ter assassinado Hartley Basset, tirado a chave de Basset, aberto o arquivo de letras colocado em cima da secretária - um arquivo que você conhece perfeitamente por ter sido empregado de Basset- tirado aquelas letras falsas que representavam a única prova contra si, deixando uma carta de suicida na máquina de escrever, e saído da casa... Não, não me interrompa - e continue a olhar para mim. Que a única coisa deste mundo que o impedirá de ter de sofrer um interrogatório da polícia, estribada nessa teoria do que pode ter acontecido, é a sua capacidade de esclarecer sem sombra de dúvida onde é que conseguiu o dinheiro para pagar a Hartley Basset, e onde se achava no momento exacto em que se cometeu o crime?
- Oh! - exclamou Berta McLane. - O senhor está a acusar Harry de assassínio! Harry nem sequer poderia ter...
- Cale-se - intimou Mason, sem a olhar. - Vamos primeiro ouvir o que diz Harry.
Harry saltou da cadeira, virou as costas e foi para a janela.
- Ora, tolices - disse por cima do ombro. - Você sabe perfeitamente quem o matou. Não me vai transformar em bode expiatório.
- Venha cá - disse Mason.
- Pois sim! - tornou McLane, ainda de costas para eles, olhando para a janela. - Não sei porque me hei-de deixar comprometer, para favorecer qualquer outro cliente seu.
- Você pode - interrogou Mason, de rosto vermelho- provar onde conseguiu obter o dinheiro que entregou a Hartley Basset?
- Não... Talvez pudesse, mas não quero.
- Você precisa de o provar.
- Não tenho necessidade disso.
- É necessário que esteja habilitado a apresentar essa prova à polícia, Harry. Se o não fizer, será preso.
- Que me prendam, então.
- O caso é mais sério do que você pensa. Se não puder provar que entregou o dinheiro e entrou legalmente na posse das letras, a polícia pensará que você se apoderou delas ilegalmente.
- A polícia que vá para o inferno.
- A questão não é o que a polícia pensa; é o que o júri vai pensar. Lembre-se de que as provas demonstrariam que você fez um desfalque. A acusação afirmaria que Basset tencionava mandá-lo para a cadeia - e que você o matou a fim de o evitar.
- Ora, tolices - repetiu Harry McLane, continuando, porém, a olhar através da janela.
Mason voltou-se para Berta McLane.
- Estou a avisá-lo, simplesmente - disse.
- A polícia já tem conhecimento do desfalque?
- Não, mas terá. Harry McLane tornou:
- Não deixes esse tipo enganar-te, mana. Ele sabe quem matou Basset, ou, se não sabe, é um idiota, mas gostaria de ganhar uma boa propina pondo-me na cadeia. Não temos mais nada que tratar com ele. Quanto mais o deixas falar, mais enredada ficas nas artimanhas dele.
Mason disse calmamente:
- Escute, Harry, você já veio com essa história umas duas ou três vezes. Bem sabe que é mentira. Mas se possui um pouco de senso, deve saber que tem de dar resposta a estas perguntas antes que a polícia descubra as suas falcatruas.
- Não se preocupe por causa da polícia - disse o rapaz em tom escarninho. - Cuide dos seus assuntos, que eu cuido dos meus.
- Pagou a Basset em moeda corrente? - perguntou Mason.
- Sim.
- Que fez ele ao dinheiro?
- Meteu-o na carteira de pele de porco que trazia no bolso do casaco.
- Não estava lá quando a polícia encontrou o corpo, Harry!
- A culpa não é minha. Quando eu paguei a Basset, estava.
- E ele não lhe passou recibo?
- Não.
- Havia alguém presente?
- Não. É claro que não.
- E não pode dizer-nos onde conseguiu o dinheiro?
- Poder, posso; mas não quero.
- Alguém sabe que você tinha esse dinheiro?
- Isso não é da sua conta.
A campainha do telefone retiniu. Perry Mason ergueu o auscultador. Della Street dísse:
- Paul Drake está ao telefone. Conseguiu algumas informações.
Mason disse:
- Alô, Paul. Que há?
A voz do detective respondeu:
- Vou falar baixo, Perry, porque não quero que mais ninguém oiça o que lhe estou a contar, e os telefones às vezes pregam-nos partidas, quando a gente fala muito alto... Agora escute... A polícia prepara-se para dar alguns golpes. Descobriram muitas coisas. O seu amigo Brunold fez declarações. Mandaram peritos examinar a carta dactilografada que estava na máquina de escrever de Basset.
“Ora, você bem sabe que os tipos de máquinas são tão inconfundíveis como a escrita à mão. Os crimínologistas da polícia asseguram que aquele pedaço de papel dactilografado que estava na máquina do escritório de Basset não foi escrito nela. Revistaram a casa à procura da máquina em que a carta fora escrita. Descobriram-na no quarto da Sr." Basset. É uma Remington Portátil, que ela usava para a sua correspondência particular.
“E, o que é mais, os peritos podem afirmar, pela impressão dos tipos, que o papel foi escrito por alguém
que emprega o sistema táctil - por um dactilógrafo profissional. Você deve lembrar-se de eu lhe ter dito que a Sr." Basset trabalhou como dactilógrafa”.
Perry Mason franziu pensativamente a testa.
- Já descobriu o paradeiro dela, Paul? - perguntou.
- Ainda não, mas obtive esta informação através de um dos rapazes que esteve em contacto com a polícia. Pensei que devia transmitir-lha.
- Sim - disse Mason - estimo que você me tenha avisado. Procure encontrá-la o mais depressa que puder.
Desligou o aparelho e voltou-se para fitar, mal-humorado, o jovem McLane.
- Harry: você disse-me que alguém muito chegado a Hartley Basset ia interceder para que você não fosse encarcerado, não é verdade?
- Oh, não pense mais nisso! - retorquiu McLane. Mason virou-se para Bertha McLane.
- Ontem, dei-lhe um papel onde tinha escrito o número do meu telefone - do telefone do meu apartamento, onde poderia falar comigo fora das horas de expediente. Que foi feito desse papel?
Harry McLane avançou um passo.
- Não...
- Dei-o ao Harry - respondeu a rapariga. Harry McLane suspirou.
- Não lho devias ter dito - murmurou. Mason virou-se para o rapaz.
- Que fez ao papel, Harry?
- Guardei-o no bolso por algum tempo.
- E depois?
- Não sei. Por que diabo havia de me lembrar de todas essas coisinhas? Deitei-o fora, suponho. Já não precisava de falar consigo depois que paguei ao velho. Já não havia razão para que eu trouxesse comigo o número do seu telefone. Que queria que eu fizesse? Que o conservasse numa redoma para não se estragar?
- Aquele pedaço de papel - disse Mason - foi encontrado no corredor, em frente do quarto da Srª Basset.
A fisionomia da jovem McLane contorceu-se numa expressão de pura surpresa.
- Não pode ser - disse, e, passado um momento, acrescentou: - Bem, e se assim fosse?
- Quando eu lá estive - prosseguiu Mason, sem fazer caso dos comentários do jovem - a Srª Basset procurou interceder por si.
- Ah, sim? - fez Harry em tom inexpressivo.
- Sabia que ela ia fazer isso?
- Naturalmente que não. Eu não sou adivinho.
- A Srª Basset gosta de si, Harry?
- Como quer que eu o saiba?
- Você viu-a a noite passada, antes de falar com Hartley Basset?
Harry McLane hesitou; depois disse:
- Porquê?
- É conveniente que responda a isto - volveu Mason. - A polícia com certeza procurará averiguar esse ponto. Os criados estavam em casa, e...
- Não lhe revelarei mais nada a respeito dela. Não a meta neste assunto.
- Você nunca esteve no quarto dela?
- Certamente, em serviço.
- Havia alguma máquina de escrever no quarto?
- Creio que sim.
- Uma Remington portátil?
- Suponho que sim.
- Nunca se serviu dela?
- Às vezes, quando eu estava lá a trabalhar e a Sr." Basset precisava de escrever cartas particulares, ela ditava-mas.
- Era Hartley Basset quem lho ordenava?
- Não sei.
- Sabe, sim, Harry. Diga-nos a verdade.
- Hartley Basset não sabia de nada.
- Por que é que você o fazia, se não era sua obrigação?
- Porque a Srª Basset era boa e eu gostava dela, e porque o velho Basset a atormentava.
- De modo que você compadecia-se dela?
- Sim.
- E escrevia cartas a pedido da Srª Basset?
- Sim, às vezes, quando ela estava com nevríte no braço direito.
- Havia uma máquina portátil sobre a secretária, em frente de Hartley Basset, quando você o viu?
- Certamente. Ele tinha lá a sua máquina própria,
para preencher letras. Às vezes ditava, outras escrevia-as
pessoalmente.
- Ele usava um sistema táctil, ou um sistema visual, a dois dedos, simplesmente?
- O último.
- Mas você usa o sistema táctil?
- Naturalmente.
- Sabia - perguntou Perry Mason, fitando firmemente Harry McLane - que a carta encontrada na máquina de escrever colocada sobre a secretária de Basset, explicando que ele ia suicidar-se, não fora realmente escrita naquela máquina, mas sim na que existe no quarto da Srª Basset, e que foi escrita por um dactilógrafo profissional, que empregou o sistema táctil?
Harry McLane precipitou-se para a porta de saída.
- Vamos, Berta - disse ele,. - Saiamos daqui imediatamente.
A irmã levantou-se e cravou os olhos em Perry Mason, e depois no rapaz.
- Harry - disse - tu sabes que o Sr. Mason está a tentar ajudar-te, e...
- Não sejas parva. Eu vim cá só porque tu quiseste. Ele anda à procura de um bode expiatório, já te disse.
Berta McLane voltou-se para Perry Mason.
- Lamento muito, Sr. Mason, que Harry pense assim. Espero que o senhor aceite as minhas desculpas...
- Desculpas, o diabo! - interrompeu Harry McLane. - Não sejas tola!
Acercou-se da secretária de Mason e disse: - Você fez-me umas quantas perguntas. Agora deixe-me fazer-lhe algumas. É advogado de Brunold?
- Sim - respondeu Mason - represento Brunold. Suponho que sim, pelo menos.
- E a Srª Basset?
- Limitou-se a consultar-me.
- E Dick Basset?
- Directamente, não.
- Nem por intermédio da mãe?
- Sim, talvez - respondeu Mason, observando com os olhos quase cerrados a cara de McLane.
- Aí está - disse o rapaz, virando-se triunfante para a irmã. - Vais ficar aí sentada e deixar que ele me enrede? Eu bem disse que foi loucura nossa vir aqui.
- Sr. Mason - disse a jovem -, o senhor não pode...
Harry McLane pegou-lhe no braço e empurrou-a na direcção da porta.
- Dizes que te preocupas comigo - disse ele - mas se continuas a falar com este melro vais pôr-me uma gravata de corda em volta do pescoço.
No rosto da jovem transpareciam emoções em conflito.
Mason disse calmamente:
- Harry, você ainda não esclareceu onde arranjou o dinheiro que pretende ter dado em pagamento a Hartley Basset. Ainda não me disse se alguém sabe que você estava de posse daquela quantia. Ainda não me contou onde se achava quando Basset foi morto, nem me explicou por que não podia ter assassinado Basset, aberto a caixa onde estavam guardadas as letras e tirado os documentos falsificados.
Harry McLane abriu a porta que dava para o corredor e deteve-se no umbral para dizer:
- Entendo o bastante de ética jurídica para saber que você não pode contar a ninguém o que eu lhe disse. Se revelar aos polícias que eu estive em casa de Basset, fá-lo-ei expulsar do foro, e se calar o bico, não terei que revelar nada a ninguém.
- Mas - acudiu Berta McLane -a Srª Basset sabe que tu, Harry...
Ele travou-lhe do braço e empurrou-a para fora.
- E Colemar sabe do desfalque - disse Mason - sem falar na Srª Basset. Não se esqueça de que a polícia...
- Ora, vá para o diabo - retorquiu McLane, e fechou a porta com um pontapé.
Mason ficou perfeitamente imóvel, de olhar meditativo. O telefone retiniu três vezes antes que o advogado mudasse de posição. Depois, rodou abruptamente na sua cadeira giratória, ergueu o auscultador e ouviu a voz de Paul Drake dizer:
- Os meus homens descobríram-na, Perry. Está no Ambassador Hotel, registada sob o nome de Sílvia Lorton, e há três agentes da polícia a vigiar-lhe o apartamento. Seguiram-na a noite passada. Também puseram um dos seus empregados de serviço no P. B. X., de modo
que poderão ouvir qualquer telefonema dos hóspedes do hotel.
Perry Mason semicerrou pensativamente os olhos.
- Presumo - disse-, que se eu fosse falar com ela os detectives a apanhariam nas malhas e efectuariam a prisão imediatamente.
- Com certeza - afirmou Paul, jovialmente. - O que estão a fazer é dar-lhe bastante corda na esperança de que ela se enforque. Vão procurar assustá-la para que cometa alguma imprudência, se continuar inactiva. Mas, com o filho a dar à língua pelo telefone, os tipos conseguirão o que querem dela antes da meia-noite.
Perry Mason respondeu em voz lenta:
- Paul, eu tenho de falar com aquela mulher sem que a polícia o saiba.
- Não há nem uma probabilidade num milhão - tornou Drake.-Você conhece o jogo da polícia tão bem como eu.
Perry Mason inquiriu em voz pausada:
- Não estudou a situação das escadas de incêndio. Paul?
- Não, eu não fui lá pessoalmente. Recebo as informações por intermédio dum homem que se encontra no local. Quer que ele veja isso?
- Não-respondeu Mason-, Ponha o chapéu na cabeça, e espere-me junto ao elevador. Paul. Vamos sair juntos.
- Eu bem sabia que você havia de me meter na cadeia, mais tarde ou mais cedo - gemeu o detective.
- Sempre que eu o mandar para lá - volveu Perry Mason em tom feroz - hei-de ir lá buscá-lo. Ponha o chapéu na cabeça, Paul.
E desligou bruscamente.
Perry Mason, envergando o uniforme branco de um lavador de janelas, uniforme que alugara num guarda-roupa, levava na mão direita algumas lâminas de borracha para lavar vidraças. Um pouco atrás, Paul Drake, vestido de modo similar, transportava um balde de água em cada mão.
- Desconfio - observou lugubremente o detective - que você já tinha tudo calculado quando alugou os fatos.
- Tinha calculado o quê? - perguntou Mason.
- Que eu havia de ser o ajudante, e transportaria com os baldes de água.
Mason sorriu, mas não deu resposta.
Subiram no elevador de carga ao sexto andar do Ambassador Hotel. Um homem que caminhava pelo corredor fitou-os em silêncio, com um olhar recriminatório; tinha ombros largos, sapatos de bico quadrado, e queixo belicoso.
Os dois homens fingiram não perceber o olhar e foram deliberadamente até ao fim do corredor, abrindo a janela da escada de incêndio que havia na extremidade.
- Ele está a olhar? - perguntou Mason, passando uma perna por cima do peitoril da janela.
- Está - informou Paul Drake, postado no corredor. Despache-se.
- Você - perguntou Mason - diz-me isso a mim? Tirou uma esponja do balde, molhou a janela do lado
de fora, e começou a esfregar suavemente as lâminas de borracha, para limpar a janela.
- Muito bem - disse. - Agora, vamos a isto.
- Tem a certeza de que o quarto está vago? - perguntou Drake.
- Não - replicou Mason - não tenho a certeza. Será preciso arriscarmo-nos. Chegue bem perto da porta, com as costas voltadas para ela. Bata nas almofadas mais baixas. Não deixe que o homem veja que você está a bater.
O advogado acabou de polir os vidros com um pano seco. Drake disse:
- Tudo bem. Bati duas vezes e não tive resposta.
- Acha que pode abri-la sem muita dificuldade?
- Creio que sim. Deixe-me estudar a fechadura por um instante. Muito bem, creio que acertei. Vamos.
Drake tirou algumas chaves do bolso, escolheu uma, introduziu-a na fechadura, fê-la rodar, até à posição exacta, empurrou, e ouviu o estalido da lingueta. Soltou uma exclamação abafada, de satisfação, e os dois homens entraram no quarto.
- É o contíguo a este, à direita? - perguntou Mason.
- Isso mesmo.
- Está certo de que é ela?
- Absolutamente certo.
- Se não for... vamos meter-nos num sarilho. Drake retorquiu irritado:
- Vamos meter-nos num sarilho de qualquer forma, se nos apanham. Vai ser uma coisa que não poderemos explicar.
- Não pense nisso - disse Mason. - Onde está o cinto?
Drake entregou-lhe um cinto de segurança. Mason passou para o lado de fora da janela e enganchou o cinto num olhai colocado, para esse fim, na parede, junto à janela do quarto contíguo. Endireitou-se sobre o peitoril da janela, agarrou a mão de Drake, firmou-se e passou para a janela vizinha, ficando por um longo momento com as pernas abertas, a uma altura de seis pavimentos.
- Calma - recomendou Drake.
Mason enfiou o outro gancho do cinto no olhai próximo da janela.
- Agora está bem - disse. - Passe-me a água. Drake debruçou-se e estendeu-lhe um balde de água.
Mason começou a passar a esponja na vidraça. Um instante depois, bateu no vidro. Uma mulher, em roupas interiores, pôs apressadamente um quimono em torno dos ombros e veio à janela, fitando-o indignada.
Mason fez-lhe sinal para que erguesse o vidro.
Sílvia Basset abriu violentamente a janela.
- Escute - disse. - Que história é essa de vir lavar as janelas quando eu estou a vestir-me? Vou queixar-me à gerência. Você não pode...
- Fale mais baixo - disse Perry Mason - e tenha calma.
Ao ouvir-lhe a voz, ela teve um sobressalto, e os seus olhos arregalaram-se de surpresa.
- O senhor! - exclamou.
Perry Mason empurrou o balde de água ao longo do peitoril.
- Agora oiça - disse. - A senhora não tem muito tempo a perder. Quero conhecer toda a verdade. Sabia que Brunold foi preso?
- Brunold? - disse ela franzindo o sobrolho.
- Sim, Brunold.
- Quem é ele?
- Não sabe quem é? -Não.
- Porque se hospedou no hotel sob um nome falso?
- Queria descansar.
Mason indicou com um movimento da cabeça algumas malas que estavam no chão, ao pé do leito.
- São suas?
- Sim.
- Trouxe-as consigo a noite passada?
- Não.
- Quando as recebeu?
- Trouxe-mas Dick de manhã cedo.
- Que contêm elas?
- Muitas coisas.
- Quer dizer que pretende fugir?
- Ando com os nervos abalados. Vou-me embora por alguns dias, até que isto se resolva.
Mason cerrou os lábios e disse:
- Que loucura! Queria então ir-se embora?
- Bem, e se assim fosse? - perguntou ela arrebatadamente.
- Isso - disse-lhe o advogado - é exactamente o que eles esperam que a senhora faça. A fuga é uma confissão de culpa, é uma coisa que se pode provar num processo, como qualquer outro facto.
- Nunca me apanhariam, se fosse para onde tenciono ir.
- Antes de lá chegar - contraveio o advogado - apanhá-la-iam, com a passagem no bolso.
- Não seja tolo - respondeu Sílvia Basset. - Eu saberia tomar as minhas precauções... mas acontece que eu não vou fugir. Não quero, simplesmente...
- Escute - disse Mason. - Há um agente da polícia no corredor, vigiando a porta do seu quarto. Há outro na portaria, e um terceiro de guarda aos elevadores. A polícia postou um operador especial no quadro telefónico. A senhora tem sido seguida, seu filho também, e todas as conversações telefónicas são ouvidas. Agora...
A Srª Basset levou a mão à garganta.
- Céus! - exclamou. - O senhor acha...?
- Conte-me a verdade -• interrompeu Mason. - Que ocorreu depois que eu me retirei?
- Pouca coisa. Fizeram-me algumas perguntas. Eu tornei-me histérica.
- Que lhes disse?
- A princípio, disse-lhes a verdade: que queria falar com meu marido sobre negócios; que entrei no gabinete exterior e encontrei Hazel Fenwick estendida no chão; que depois dela recuperar os sentidos, me contou que tinha visto um homem, com uma órbita vazia, sair a correr da sala onde meu marido tinha o escritório.
- Perguntaram-lhe por que não chamou seu marido?
- Disse-lhes que estava tão ocupada com Hazel Fenwick, tratando de a fazer voltar a si, que não me lembrara de meu marido.
Mason fez uma careta de desagrado.
- Que mal há nisso?
- Muito - respondeu ele. - Que ocorreu depois?
- Então - prosseguiu a Srª Basset - eles começaram a insistir, eu fingi-me histérica e menti.
- A respeito de quê?
- De tudo. Disse que sabia que o meu marido tinha saído, e afirmei logo que sabia que ele não tinha saído. Perguntaram-me se eu conhecia alguém que tivesse um olho artificial, e eu respondi que meu marido tinha um olho artificial. Ri, gritei; chamaram um médico, e eu não consenti que ele me tocasse. Insisti para que Dick chamasse o meu médico; quando ele chegou, compreendeu a situação; aplicou-me uma injecção hipodérmica e mandou-me para o quarto.
- E depois?
- Dick rondou por ali até que encontrou uma saída não vigiada; então veio ter comigo e ajudou-me a sair daqui. Eu estava bastante tonta da injecção, mas consegui caminhar, apoiando o braço no ombro dele. Dick trouxe-me para cá e meteu-me na cama. Acordei de manhã cedo e telefonei-lhe, dando um nome suposto, de modo que a polícia não soubesse quem era... mas, se estavam a escutar no quadro dos telefones... Deus do céu!
- Fez alguma revelação? - inquiriu Mason.
- Não, eu não tinha nada que revelar, a não ser a respeito do ataque histérico.
- Que disse ao seu filho?
- Dick perguntou-me se tinha contado alguma coisa à polícia e eu respondi que não, que o meu ataque os iludira completamente.
- Algo mais?
- Falei com ele hoje, por duas ou três vezes.
- Revelou alguma coisa?
- Bem, eu falei com ele sem muitas reservas, mas não disse nada que me possa prejudicar.
- E ele? - interrogou Mason.
- Disse-me que se sentia contente por meu marido estar morto. Dick odiava-o mortalmente, de há um tempo a esta parte.
- Agora, escute - disse Mason. - Da próxima vez que a polícia a interrogar, a senhora não poderá contemporizar, de modo que precisa pôr em ordem a sua narração. Que dirá do revólver?
- Vou dizer-lhes a verdade: que o dei ao Dick para que ele me protegesse.
- Foi essa a arma que serviu para o crime?
- Não sei.
- E quanto a Brunold?
- Não conheço nenhum Brunold.
- Deve conhecer - disse Mason. - É o pai do seu filho.
Ela agarrou-se à mesa.
- Quê?! - exclamou.
Mason fez um aceno de cabeça e prosseguiu:
- Cheguei a descobrir isso, por meio dos meus próprios detectives. A polícia pode averiguá-lo com a mesma facilidade, se é que Brunold não lho revelou já, visto que foi detido.
- Nem mesmo Dick o sabe - volveu ela.
- E ele não suspeita?
- Creio que não.
- Brunold esteve em sua casa a noite passada?
- Não.
- Diga a verdade.
- Esteve,
- A que horas se retirou?
- Terei de o dizer à polícia?
- Ainda não sei.
- Saiu pouco antes de eu encontrar Hazel Fenwick desmaiada.
- Que fazia a senhora no gabinete exterior de seu marido?
- Fui lá para ver se Hazel já se entendera com Hartley. Ela demorou-se muito, e eu estava preocupada,
- Brunold estava na sua companhia antes da senhora descer?
- Sim.
- Tinha estado sempre com a senhora?
- Não, nem sempre. Eu tinha ido ao quarto, deixando-o na minha sala de estar. Creio que ele saiu para o corredor. Não estava na sala quando eu voltei, mas entrou alguns minutos depois.
- >A senhora sabia que Hazel Fenwick ia descer ao escritório para falar com seu marido?
- Oh, sim. Eu disse-lhe que fosse.
- Era o olho de Brunold que seu marido tinha na mão?
- Creio que era.
- Há quanto tempo conhece Hazel Fenwick?
- Não muito.
- Há algo de suspeito nessa tal Fenwick?
- Não lho sei dizer.
- Ou por outra, a senhora não mo quer dizer. Há algo de suspeito nesse casamento com Dick?
- Não sei. A primeira vez que ela veio a minha casa, foi na noite do crime. Dick é o herdeiro de Hartley. Har-tley queria controlar o casamento de Dick. Eu tinha a certeza de que haveria uma cena quando ele soubesse do caso. Pedi a Hazel que fosse comunicar-lho. Pensei que ela produziria boa impressão.
- Quantas pessoas da casa sabiam que ela era casada com Dick?
- Nenhuma. Overton, o motorista, trouxe-a da estação. Edith Brite, a governante, pode ter desconfiado, mas não creio. Eram as únicas pessoas da casa que a tinham visto.
- A senhora viu Harry McLane a noite passada?
- Não.
- Oiça - Disse Mason. - De quando em quando, a senhora diz-me uma mentira. É má táctica mentir ao
nosso advogado. Isso pode metê-la em dificuldades. Agora diga-me: viu Harry McLane a noite passada?
- Não - replicou ela em tom de desafio.
- Sabe se ele estava na casa?
- Pode ter falado com Hartley, mas não creio.
- Estava alguém no escritório de Hartley quando Miss Fenwick bateu à porta. Quem era?
- Isso - tornou ela - é o que eu não posso entender. Eu queria que Hazel o encontrasse a sós, de modo que vigiei a porta de entrada e esperei até que o último cliente se tivesse ido embora. Então disse a Hazel que não havia mais ninguém, e fui com ela até à sala da frente. Se estava alguém com Hartley no escritório, deve ter entrado pela porta das traseiras.
- Bem - assentiu Mason. - Harry McLane conhecia a porta das traseiras?
- Oh, sim.
- E quanto a Peter Brunold?
- Peter também a conhece - respondeu ela lentamente.- Isto é, às vezes entrava para minha casa pela porta correspondente. As duas portas das traseiras são contíguas... Agora, o senhor não pode dizer que eu estou a faltar à verdade.
Mason fitou-a sombriamente, e respondeu:
- Não estou a dizer nada, mas estou a pensar muita coisa. Peter Brunold ficou na sua companhia durante todo o tempo em que esteve na casa, na noite do crime?
- Nem sempre.
- Onde esteve ele?
- Peter pensou que Overton, o motorista, nos espreitava e saiu para o procurar.
- E encontrou-o?
- Não, não conseguiu encontrar Overton em parte alguma. Disse que tinha esquadrinhado toda a casa.
- Quando foi isso?
- Antes de eu levar Hazel ao escritório de Hartley.
- A senhora quer proteger Peter Brunold, ou quer salvar a sua pele? - inquiriu Mason, pausadamente.
- Quero proteger Peter com a minha vida.
- Não se esqueça nunca - avisou Mason - de que a senhora também está metida nisto. Não poderá proteger ninguém, a não ser que esteja inocente, e a não ser que saibamos exactamente, tanto a senhora como eu, o
que se passou. Não protegerei Brunold se ele for culpado, e não a protegerei se a senhora for culpada. Agora, Brunold andava pela casa mais ou menos à hora em que se cometeu o crime. A senhora diz que ele fora procurar Overton. Brunold podia ter-se encontrado com seu marido e...
O sargento Holcomb está a espreitar pela janela de baixo - advertiu Paul Drake.
- Temos de pôr ponto final na conversa - disse Mason. - Declare à polícia que veio cá a fim de descansar, e que está pronta a voltar com eles. Se a senhora não matou seu marido, e quer proteger Brunold, recuse-se a responder a qualquer pergunta. Se quer proteger-se a si mesma, conte-lhes toda a história. Se Brunold é culpado, é melhor que o confesse. Se a senhora matou seu marido, e não tinha justificação, procure outro advogado. Se é culpada de homicídio e me mentiu, abandono-a; caso contrário, ficarei a seu lado até ao fim do mundo.
- Estamos inocentes - disse ela, frenética. - Peter tinha uma justificação...
- Oh lá de cima! - bradou o sargento Holcomb.
- Quem lhe mandou lavar essas janelas?
Mason mastigou uma resposta inaudível.
- Olhe para cá - berrou Holcomb. - Quero ver-lhe a cara.
Mason virou-se de maneira que emborcou o balde de água com o pé. O sargento Holcomb viu a água cair, mas esquivou-se tarde demais. Parte do líquido deu-lhe de chapa nos olhos e no rosto, enquanto o balde passava a seu lado. A cabeça desapareceu da janela. Mason agarrou a mão que Paul Drake lhe estendia, saltou para a janela vizinha, ficou um instante em equilíbrio instável, e depois escorregou para dentro do quarto.
- Podemos - disse Paul Drake - descer pela escada de incêndio até ao segundo andar.
- Óptimo, se não nos esperarem no segundo andar
- volveu o advogado.
Os dois homens abriram a porta do quarto que dava para o corredor. Saíram, tomaram à esquerda e galgaram a janela que abria para a escada de incêndio. O detective de largas espáduas, ainda postado no corredor, em ponto de onde pudesse vigiar a porta do quarto da Srª Basset,
olhou-os carrancudo e pensativo, deu alguns passos decididos na direcção deles e depois hesitou. Perry Mason gritou a Paul Drake:
- Esvazia os baldes, Paul. Podemos enchê-los numa torneira do andar de baixo. Precisamos de lavar a grade da escada de incêndio.
Drake fez um sinal com a cabeça. Os dois homens desceram a escada a correr. Tinham já alcançado o segundo pavimento, quando se ouviu um brado no andar de cima. O sargento Holcomb apareceu na escada de incêndio.
- Aqui - disse Mason-, é onde faremos a baldeação.
Enfiou pela janela aberta do segundo andar e arremessou-se pelo corredor fora. No patamar da escada tirou o uniforme branco que vestira sobre o seu fato. Paul Drake, atrapalhando-se com um botão do macaco branco, atrasou-se um pouco. Mason estendeu a mão, arrancou o botão, e ajudou-o a despir o uniforme.
- Temos uma oportunidade - disse. - Precisamos de subir.
Dirigia-se ao elevador, com o fardo branco debaixo do braço, e premiu o botão para fazer subir o ascensor.
- Se tivermos sorte - observou - poderemos fugir. Mason e Drake entraram no elevador, no momento
preciso em que um ascensor vizinho, descendo do sexto andar, parava e a sua porta se abria. O sargento Holcomb correu pelo corredor fora.
- Andar? - perguntou o “groom” ao fechar a porta.
- Último - respondeu Mason.
Enquanto o elevador subia, Mason inquiriu em tom de palestra:
- Há um terreno ajardinado lá em cima, não?
- Sim, senhor.
- Excelente - tornou Mason. - Vamo-nos lá sentar um pouco.
Saiu do elevador no último pavimento, dirigiu-se para o terraço, escondeu os uniformes brancos atrás de um vaso de plantas e perguntou:
- Tem a gazua, Paul?
- Certamente.
- Prepare-se para a utilizar - volveu Mason, encaminhando-se para o corredor dos quartos.
Escolheu um quarto interior e bateu à porta. Não recebeu resposta. Acenou a Drake. O detective fez girar a chave na fechadura. Abriu-se a porta e os dois homens entraram. Mason deu volta à amolgada maçaneta de latão que fechava o ferrolho.
Tirou uma cigarreira do bolso, bateu um cigarro na unha do polegar, e sorriu para o detective.
- Pois bem - disse - ainda estamos fora da cadeia.
- Como diabo vamos sair disto? - perguntou Drake, com ar lúgubre.
Mason estendeu-se numa cama, amontoou os travesseiros por baixo da cabeça, e soprou uma fumaça. Mostrava o rosto iluminado por um sorriso de sereno contentamento.
- Eles pensavam que nós estamos a brincar às escondidas pelos corredores - disse. - Depois de meia hora, julgarão que descemos pelo elevador de carga, ou pela escada, e fugimos. E entretanto...
A sua voz arrastou-se, caindo em silêncio.
- Entretanto, o quê? - interrogou Drake.
- Não dormi muito a noite passada - retorquiu o advogado. Tirou uma última e longa baforada do cigarro e esmagou-o no cinzeiro. - Chame-me às seis horas - disse-se eu ainda não tiver despertado. - E fechou os olhos.
O detective ficou boquiaberto de espanto; passado um momento, aproximou-se da cama.
- Ouça, Perry- disse. - Dê-me um desses travesseiros. Eu não dormi nem um minuto durante a noite.
Perry Mason rabiscou a sua assinatura no papel que Della Street estendia, premiu um botão, e, quando um dos seus adjuntos entrou no gabinete disse-lhe:
- Aqui estão todos os papéis para o “habeas-corpus” em favor de Peter Brunold. Mexa-se depressa.
- Quer que soltem Brunold? - perguntou o adjunto.
- Não o deixarão sair-respondeu Mason-, mas quero obrigá-los a apresentar queixa contra ele.
Quando o adjunto se retirou, Mason voltou-se para Della Street.
- Pediu a Drake que viesse cá? - perguntou.
- Sim. Disse-lhe que viesse directamente ao seu gabinete particular. Já devia ter chegado... Aí está ele!
Desenhou-se um vulto no vidro fosco da porta. Della Street atravessou o gabinete, abriu-a, e Paul Drake arreganhou os dentes para Perry Mason.
- Alguma ideia? - perguntou, acomodando-se na ampla cadeira de couro, com os joelhos sobre um dos braços, e as costas apoiadas no outro.
- Sim - retorquiu Mason. - Essa Fenwick, ou foi sequestrada pelo assassino, ou sofreu algum acidente, ou raspou-se. O assassino não a conhecia - isto é, não a tinha visto até então. Se ela tivesse sofrido um acidente, a polícia tê-la-ia descoberto. Portanto, creio que a mulher se raspou.
- Isso - respondeu o detective - admitindo que ela disse a verdade acerca do que tinha visto na noite do crime. Pode ter-se escapado por saber de alguma coisa que comprometesse Dick Basset.
Mason inclinou a cabeça, mal-humorado, e disse:
- Há um vidro em forma de losango na porta da sala de entrada do escritório de Basset. A mulher tinha sido agredida e estava tonta. Quando se levantou do sofá, cambaleou e bateu com as palmas das mãos no vidro, procurando segurar-se. Deve ter deixado dez impressões digitais perfeitamente nítidas naquele vidro. Ora, estive a pensar nessa rapariga, e conclui que ela deve ter algum motivo poderoso para se safar. Ou quere favorecer alguém, ou está a ocultar algo que ela fez na noite do crime, ou tem cadastro e não se atreve a enfrentar um interrogatório policial. Ela podia ter entrado no escritório, deparando com o morto, tirado um maço de dinheiro do bolso do defunto, e depois dar uma pancada na própria cabeça e fingir-se desmaiada.
- ”Ela podia ter visto Dick Basset cometer o crime, e ter-se escapado para não ter que prestar declarações à polícia.
“Ela podia ser uma embusteira, e ter antecedentes criminais. Vamos investigar todas as probabilidades. Vá a casa de Basset, recolha as impressões digitais latentes no vidro da porta, tire uma fotografia delas, e veja se pode identificá-las.”
- Alguma coisa mais? - perguntou Drake.
- Por enquanto não. Apure o que há a respeito dessa
Fenwick.
Ao abrir a porta que dava para o corredor, Paul Drake disse com um sorriso malicioso:
- Não há nenhuma possibilidade de que a polícia tenha razão, e você haja escondido essa mulher nalguma parte, Perry?
Mason sorriu e replicou:
- Por que não olha para debaixo da minha secretária. Paul?
O detective pareceu embaraçado, e disse:
- Se você está a zombar de mim, nunca mais confiarei em si.
Fechou a porta, e Mason virou-se para Della Street.
- Tome nota - disse - para procurar obter informações sobre a maneira como os olhos de vidro são mantidos no lugar, e podem tirar-se com facilidade.
- E as suas impressões digitais naquele revólver? - inquiriu Della.
Mason deu uma risadinha.
- Creio que os homens da polícia tiraram todas as impressões digitais de todas as pessoas da casa, mas se esqueceram de mim.
- Hamilton Burger será um promotor hábil? - perguntou Della.
- Ainda não sei •- disse Mason. - É este o primeiro homicídio que se cometeu desde que ele tomou posse do cargo.
- Conhece-o pessoalmente?
- Se ele o julgar responsável por fazer sair essa tal Fenwick para fora da jurisdição do tribunal, não tomará qualquer medida contra o senhor?
- Talvez.
- Que poderá fazer, nesse caso?
- Dizer a verdade, o que não bastará.
- Que quer dizer com isso?
- Se eu dissesse a qualquer júri deste mundo de Deus que tinha agarrado na principal testemunha num caso de homicídio, e, pondo-a fora do alcance da polícia, a tinha enviado para o meu escritório a fim de averiguar com precisão tudo o que ela sabia e tomar-lhe as declarações por escrito antes que a polícia lhe deitasse a mão; e depois tentasse explicar que ela desaparecera e eu não
sabia para onde fora, isso indicaria duas coisas para o comum dos leitores de jornais: primeiro, que eu era um mentiroso; segundo, que as declarações da testemunha provavam de modo decisivo a culpabilidade do meu cliente, e que eu a escondera por esta razão.
Della Street inclinou a cabeça com simpatia.
Soou a campainha com o sinal convencional para anunciar que chamavam a secretária ao telefone para assunto importante. Della Street olhou para o patrão que respondeu com um sinal afirmativo. Levantou o auscultador e disse; “Alô”. Os seus olhos estreitaram-se. Colocou a mão sobre o bocal.
- Hamilton Burger - disse-, o procurador do distrito, está cá no escritório e quer falar consigo.
- Veio só? - perguntou Mason.
Della Street repetiu a pergunta ao telefone, e depois inclinou a cabeça.
- Mande-o entrar - ordenou Mason. - Fique aqui, e anote todas as palavras que forem ditas. Talvez ele não deturpe deliberadamente o que eu disser, mas é preciso reservar os trunfos.
Ela respondeu com um aceno de cabeça e dirigiu-se para a porta que dava para o gabinete de entrada. Mason pôs-se de pé, com os punhos apoiados na borda da secretária.
Della Street abriu a porta e desviou-se para o lado. Hamilton Burger, de largas espáduas, pescoço grosso e bigode aparado, entrou no gabinete e disse afavelmente:
- Boa tarde, Mason.
Mason acenou cautelosamente com a cabeça, apontou para uma cadeira, e disse:
- Sente-se. Isto é uma visita oficial ou de cortesia?
- Creio que será de cortesia - respondeu Burger.
Mason passou-lhe cigarros. Burger tomou um, acendeu-o e sorriu para Della Street, que tomara posição na extremidade oposta da secretária.
- Não será preciso tomar nota do que eu vou dizer - afirmou Burger.
- Será preciso tomar nota do que eu não disse - replicou Mason-, e para isso é necessário registar o que eu disse.
O procurador do distrito mediu Perry Mason com um olhar perscrutador.
- Ouça, Mason, tenho estudado a sua actuação.
- Não é surpresa para mim - tornou Mason.
- Descobri - prosseguiu Burger-, que você tem reputação de manhoso.
- Veio aqui para discutir a minha reputação? - inquiriu Mason.
- De certo modo, sim.
- Perfeitamente. Então discuta-a, mas tenha cuidado com o que diz.
- Você - continuou Burger - tem fama de manhoso, e creio que o é, mas penso que as suas artimanhas são legítimas.
Mason curvou-se e retorquiu:
- Agradecerei quando tiver terminado. A experiência ensinou-me que essas expressões de louvor precedem geralmente uma injúria.
- Nenhuma injúria, desta vez-tornou Burger.- Quero apenas que compreenda a minha atitude.
- Se é essa a sua atitude - disse Mason - compreendo-a muito bem.
- Então saberá apreciar o que vou dizer.
- Diga.
- Os procuradores distritais têm o hábito de desejar obter condenações. É natural. A polícia reúne as provas e depõe-as no regaço do procurador do distrito. A ele compete obter a condenação. Na realidade, a fama dum procurador do distrito baseia-se na percentagem de condenações que obtém sobre o número de processos julgados.
- Continue - disse Mason.
- Quando assumi este cargo - disse Burger -, quis ser consciencioso. Tenho horror a acusar uma pessoa inocente. A sua actuação impressionou-me. Você, provavelmente, não concordará com a conclusão a que cheguei a esse respeito.
- Qual é a conclusão? - interrogou Mason.
- Que você é melhor detective do que advogado, e isso não importa desdouro à sua capacidade jurídica. A sua técnica forense é hábil, mas inteiramente baseada numa solução correcta do caso, previamente alcançada. Quando você recorre a estratagemas pouco ortodoxos,
como parte da sua táctica forense, reprovo-os; mas quando os emprega para obter uma solução correcta para o mistério, aplaudo-os. Eu tenho as mãos atadas. Não posso recorrer a tácticas arbitrárias, espectaculares. Às vezes desejaria fazê-lo, especialmente quando acho que uma testemunha está a mentir acerca da identidade de um criminoso.
Mason disse lentamente:
- Uma vez que você está a ser franco para comigo, coisa que nenhum outro procurador do distrito jamais fez, vou ser franco para consigo, coisa que, diga-se de passagem, eu nunca me dei ao trabalho de fazer com qualquer outro procurador do distrito. Não pergunto a um homem se ele é culpado ou inocente. Quando consinto em representá-lo, recebo-lhe o dinheiro e trato do seu caso. Culpado ou inocente, ele tem o direito de ser defendido; mas se eu chegasse à conclusão de que um dos meus clientes era realmente culpado de homicídio e não estava moral ou legalmente justificado, faria esse cliente confessar o crime e confiar-se à clemência do tribunal.
Burger acenou várias vezes com a cabeça, calorosamente.
- Eu calculava que você o faria, Mason.
- Note bem o que eu disse - advertiu Mason -; se não houvesse justificação legal ou moral para o homicídio. Se uma pessoa está moralmente justificada para matar, salvá-la-ei da sanção penal, se possível.
- Bem - retorquiu Burger - nesse ponto, não posso concordar consigo. Penso que a lei é o único meio da justificação, mas quero que compreenda que não alimento prevenção contra você, e gostaria de ficar em boas relações consigo. Portanto, desejo que faça aparecer Hazel.
- Não sei onde ela está.
- Pode ser verdade, e no entanto pode estar na sua mão fazê-la aparecer.
- Afirmo-lhe que não sei onde ela está.
- Você fê-la desaparecer.
- Mandei-a para o meu escritório, apenas.
- Esse acto abre margem a graves suspeitas.
- Não sei porquê - disse Mason tranquilamente.- Se você tivesse chegado primeiro ao teatro do crime,
não teria dúvidas em mandá-la para o seu escritório, a fim de a ouvir.
- Eu sou funcionário público, e tenho o dever de investigar os homicídios - retorquiu Burger.
- Isso não me impede de realizar investigações no interesse dos meus clientes, não é assim?
- Depende da maneira como o faz.
- Fi-lo na presença de testemunhas - afirmou Mason.
- E que aconteceu depois?
- Hazel Fenwick tomou o meu carro e desapareceu.
- Tenho razões para crer - disse Burger-, que a vida da mulher está em perigo.
- Que é que o leva a pensar assim?
- Ela é a única pessoa que pode identificar positivamente o assassino.
- O assassino não - tornou Mason. - O homem que foi visto a sair do aposento.
- São uma e a mesma pessoa.
- Acha?
- É evidente.
- Nada é evidente enquanto não pode ser provado.
- É uma questão de opinião. Pelo menos o homem pode ser o assassino. Esse homem está desesperado. Para mim, Hazel Fenwick foi vítima de algum atentado, ou vai sê-lo.
- E daí?
- Quero pô-la a bom recato.
- E acha que eu posso dizer-lhe onde ela se encontra?
- Tenho a certeza.
- Pois não posso.
- Não pode ou não quer?
- Não posso.
Burger pôs-se em pé e disse pausadamente:
- Eu queria que você compreendesse a minha atitude. Se os seus clientes estão inocentes, quero sabê-lo; mas, por Deus, se pensa que pode ocultar uma testemunha num caso de homicídio, sem se envolver em complicações, está maluco.
- Já lhe disse que não sei onde ela está - assegurou Mason.
Burger abriu violentamente a porta e deteve-se no limiar, a fim de apresentar um ultimato.
- Tem quarenta e oito horas - disse-, para mudar de ideias. É a minha última palavra.
A porta fechou-se.
Della Street olhou apreensiva para o advogado.
- Chefe - disse-, é preciso tomar alguma providência a respeito daquela mulher.
Mason inclinou a cabeça, mal-humorado; depois, mostrou os dentes e respondeu:
- Posso fazer muita coisa em quarenta e oito horas. Della.
Os olhos de Paul Drake denotavam perda de sono.
- Sempre que um detective se mete a cavar na vida dos outros - disse-, encontra esqueletos.
- De que se trata desta vez, Paul? - inquiriu Mason.
- De Hazel Fenwick - retorquiu o detective.
O advogado fez sinal a Della Street para tomar nota.
- Que há a esse respeito? - interrogou. - Conseguiu alguma coisa com aquelas impressões digitais?
- Parece-me que sim - disse o investigador. - Obtive dez impressões perfeitas, e dei alguns passos para conseguir as informações que procurava e descobrir toda a história dela.
- As impressões digitais estão registadas, então?
- Ora se estão. Suspeitam que ela seja um Barba-Azul de saias.
- Um quê?
- Um Barba-Azul de saias.
- Muito bem, conte.
- A polícia nem tem nenhuma prova certa - disse o detective-, mas esta mulher casa-se, os maridos morrem e ela herda os bens.
- Quantos maridos morreram? - perguntou Mason.
- Não consegui descobrir. A polícia não tem a certeza, mas nutre fortes suspeitas. Um dos maridos tinha arsénico no estômago. Iniciaram uma investigação. Exumaram outro marido e encontraram mais arsénico. Prenderam-na tomaram-lhe as impressões digitais, interrogaram-na, e nada descobriram. Enquanto reuniam mais elementos, algum amigo caridoso fez-lhe chegar às mãos um par de serras. A mulher serrou as grades da cadeia municipal, onde estava detida, e desapareceu. Mason assobiou baixinho, e inquiriu:
- Algum marido vivo?
- Sim. Há o Stephen Chalmers. Casaram-se, e ele abandonou-a dois dias depois do casamento. Ela não teve oportunidade de lhe ministrar arsénico.
- Esse homem está ao par dos antecedentes dela? - perguntou Mason.
- Não. Creio que mentiu à mulher acerca da sua fortuna. Ela descobriu, e houve uma terrível cena. Chalmers chamou-lhe cavadora de ouro, e foi-se embora. Não mais a viu.
- Você tem a certeza de que é ela mesmo? - indagou o advogado.
- Sim - retorquiu Drake. - Consegui reproduzir a fotografia existente na caixa do relógio de Dick Basset.
- Eu não sabia que existia um retrato - disse Mason.
- Nem a polícia. Basset possui a única fotografia dela, e não disse nem uma palavra a esse respeito.
- Como é que você a conseguiu?
- Calculei que ele tivesse alguma, revistei-lhe os bolsos, abri a tampa do relógio, fotografei o retrato e comparei-o com as fotografias dos arquivos policiais.
- E Chalmers identificou o retrato?
- Sim, o que eu roubei do relógio de Basset. Não lhe mostrei as fotografias policiais porque não queria que ele soubesse que ela tinha ficha na polícia.
Oiça Paul - disse Mason lentamente- acha que poderá convencer Chalmers a deixar-me obter-lhe o divórcio, sem despesa alguma para ele?
- Certamente - volveu Drake. - Mas isso poderia despertar-lhe suspeitas. De qualquer forma, o homem quer casar outra vez. Deixe-o passar-lhe uma promissória de cem dólares. Ele é espertalhão, e pode querer lográ-lo no negócio.
Mason inclinou vagarosamente a cabeça.
- Muito bem, mande-o cá. Diga-lhe que eu posso arrumar a coisa.
- Mas, - fez o detective -, que ideia é essa de conseguir o divórcio?
- Vou pôr em execução um plano audacioso.
- Que plano?
- A coisa mais difícil do mundo é descrever uma mulher - respondeu Mason. - Atente na descrição de Hazel Fenwick, dada pela polícia aos jornais: altura, cinco pés e duas polegadas; peso, cento e treze libras; idade, vinte e sete anos; tez e olhos, escuros; vista pela última vez trajando vestido castanho, meias e sapatos da mesma cor.
- E então? - perguntou Drake.
- Muito poucas pessoas viram essa mulher. Dick Basset namorou-a muito pela calada. A descrição é a única coisa em que se podem basear; e essa descrição quadraria a quase todas as morenas de vinte e tantos anos.
- E daí? - inquiriu Drake.
Mason travou o braço de Della Street, levou-a para um canto, longe do detective, e sussurou:
- Vá a uma agência de colocações e procure uma mulher de vinte e tantos anos, cinco pés e duas polegadas de estatura, olhos e cabelos escuros, pesando umas cento e treze libras, e com fome. Se tiver um vestido castanho, e meias e sapatos castanhos, tanto melhor. Se não, arranje-lhe esse traje, e certifique-se bem de que ela esteja esfomeada.
- Esfomeada até que ponto? - perguntou Della Street.
- Até ao ponto de não discutir por questões de dinheiro.
- Terá de ir para a cadeia? - inquiriu Della Street.
- Talvez, mas não ficará lá, e, se for, será indemnizada. Espere alguns minutos antes de ir. Della. Tenho mais uns assuntos a tratar.
Mason voltou para junto do detective e disse:
- Paul, você está em boas relações com os jornalistas, não é assim?
- Penso que sim. Porquê?
- Dê cinquenta dólares a um dos seus amigos da imprensa - pediu o advogado. - Faça-o tirar fotografias de todas as pessoas que moram na casa de Basset. Que
esse rapaz diga que pretende tirar os retratos para o seu jornal. Acha que pode conseguir isso?
- Decerto; é fácil.
- Muito bem. Agora, vamos ao principal. Quero que tirem essas fotografias num determinado local.
- Que local?
- Quero que os originais se sentem na cadeira em que Basset estava sentado quando foi morto. Desejo instantâneos que mostrem a expressão fisionómica deles.
- Porquê naquele local? - inquiriu o detective.
- Isso é segredo - respondeu Mason, sorrindo.
- O local é bastante escuro.
- De manhã cedo, não - tornou Mason. - Mande tirar as fotografias entre as nove e as dez horas da manhã. Que essa gente fique com o rosto voltado para a janela do lado oriental. A luz do sol, a essa hora, entra a jorros por essa janela.
O detective tomou nota.
- Muito bem - disse. - Há o motorista, Overton, Colemar, a governanta Brite, Dick Basset, e quem mais?
- Qualquer outra pessoa que tenha tido acesso à casa na noite do crime.
- Sentados à secretária?
- Sim, de frente para a janela.
- Quer instantâneos?
- Sim.
- Perfeitamente- disse Drake.
O telefone retiniu. Della Street ergueu o auscultador disse “Alô”, e passou-o vivamente a Perry Mason, informando a meia voz:
- É Harry McLane. Quer falar pessoalmente consigo. Mason acenou com a mão a Paul para que este se
fosse embora e disse ao telefone:
- Pronto, fala Perry Mason.
A voz de Harry McLane estava rouca de excitação.
- Escute - disse. - Fui um toleirão. Tirei as castanhas do fogo para outro, e só agora percebi. Começo a compreender como fui tolo. Vou contar-lhe tudo e fazer uma confissão completa.
- Muito bem - disse Mason-, pode vir. Fico à sua espera.
- Não posso ir - volveu McLane. - Não me arrisco.
- Porquê?
- Estou a ser vigiado.
- Por quem?
- Isso faz parte da história que lhe contarei quando nos encontrarmos.
- Bom, e quando nos veremos? - perguntou Mason.
- Terá de vir aqui. Não tenho coragem de ir ao seu escritório. Já lhe disse que estou a ser vigiado, e correria perigo de vida se fosse ao seu encontro: Agora, escute. Registei-me no Maryland Hotel sob o nome de George Purdey. Estou no quarto 904. Não pergunte por mim na portaria. Entre, suba pelo elevador, e siga pelo corredor da direita. Se não houver ninguém no corredor, dê volta à maçaneta da porta e entre. Não bata.
- Escute - disse Mason. - Diga-me apenas uma coisa. Quem era o seu cúmplice? Quem...?
- Não - retorquiu McLane - não lhe direi coisa alguma pelo telefone. Já falei de mais. Se quiser vir, venha. Se não, vá para o inferno.
E desligou.
Mason desligou também, por sua vez, e volveu os olhos para Della Street, e depois para Paul Drake.
- Tenho que sair - disse.
- Posso ir procurá-lo - perguntou a secretária - se ocorrer algo de importante?
Mason vacilou um momento, e depois rabiscou numa folha de papel as seguintes palavras: “Maryland Hotel, Quarto 904, ao cuidado de George Purdey”. Dobrou o papel, colocou-o dentro dum sobrescrito, fechou o sobrescrito, e entregou-o à secretária.
- Se eu não lhe telefonar dentro de quinze minutos - disse-, abra esse sobrescrito. Você, Paul, irá então procurar-me nesse endereço. E tenha o cuidado de levar consigo um revólver.
E dito isto, pegou no chapéu e encaminhou-se para a porta do escritório.
Perry Mason parou o carro junto ao passeio, perto do Maryland Hotel, e aguardou quinze ou vinte segundos, antes de abrir a porta e descer.
Não se encaminhou directamente para a porta principal do hotel, mas contornou o quarteirão e entrou por uma porta lateral.
Um empregado estava de serviço na portaria. Mason passou por ele displicentemente, foi até à tabacaria, escolheu um maço de cigarros, examinou a capa de uma revista, tomou o rumo dos elevadores, e entrou num, precisamente quando o empregado ia a fechar a porta.
- Décimo primeiro andar - disse.
Saiu no décimo primeiro andar, desceu dois lanços de escada até ao nono, e esperou para se certificar de que o corredor estava deserto. Depois encaminhou-se com decisão para a porta do 904, deu volta à maçaneta, sem bater, abriu a porta, entrou no quarto, e fechou a porta atrás de si.
Dentro do quarto, os estores estavam corridos. Gavetas haviam sido tiradas do “toilette”. Uma mala fora aberta, e o seu conteúdo espalhado pelo soalho. O corpo de um homem jazia deitado de bruços na cama, o braço esquerdo caído para o chão, a cabeça pendente, o braço direito dobrado sob o peito.
Mason, tomando a precaução de não tocar em nada, rodeou o leito na ponta dos pés, caiu de joelhos e inclinou-se a fim de olhar por baixo para a parte do corpo que sobressaía da beira da cama.
Viu que a mão direita do homem segurava o cabo de uma faca e que a faca fora cravada no coração. As feições contorcidas eram de Harry McLane.
Mason observava com o espírito alerta. Recuou dois passos e inclinou a cabeça para o lado, escutando. Com o indicador e o polegar, procurou qualquer coisa no bolso esquerdo do colete, e tirou um dos olhos de vidro que Drake tinha mandado fazer. Esfregou o olho com o lenço, para que este conservasse impressões digitais, aproximou-se de um dos lados da cama, curvou-se e meteu o olho de vidro entre os dedos frouxamente contraídos da mão esquerda de McLane. Pé ante pé, dirigiu-se para a porta, limpou com o lenço a maçaneta interior, abriu a porta e passou ao corredor; esfregou apressadamente com o lenço a maçaneta do lado de fora, e deixou a porta fechar-se atrás de si.
Encaminhou-se rapidamente para a escada, galgou dois lanços, até ao décimo primeiro andar, chamou o elevador e desceu ao vestíbulo. Entrou numa cabina telefónica, ligou para o seu escritório, e disse:
- Muito bem, Della, queime o tal sobrescrito.
Saiu do hotel, seguiu por uma viela até à rua onde deixara o carro, e ocultou-se à entrada da viela, inspeccionando a rua em ambas as direcções.
Avistou um carro da polícia, estacionado junto ao passeio, a uns cinquenta pés do seu automóvel. Dois homens instalados no carro da polícia pareciam preparados para uma longa espera.
Vigiavam o automóvel de Mason.
O advogado franziu a testa e recuou para a viela. Enquanto ali se achava, outro veículo dobrou a esquina e estacou em frente do carro da polícia. O sargento Holcomb, da Brigada de Homicídios, saltou do carro e conversou em voz baixa com os dois homens do carro.
Perry Mason virou-se abruptamente e retrocedeu até à outra rua. Caminhou a passos rápidos para o hotel, entrou, dirigiu-se à portaria, e disse:
- Não tenho grande interesse em que a notícia se propale, mas ando à procura de um sujeito chamado Harry McLane. Informaram-me de que ele está aqui no hotel. Há algum hóspede registado com o nome de McLane?
O empregado percorreu o registo com os olhos e abanou a cabeça.
- Interessante - fez Mason, pachorrento. - Disseram-me que ele estava aqui. Chamo-me Perry Mason. Vou entrar no salão e comer alguma coisa. Se ele chegar, faça o favor de mandar avisar-me, mas não diga ao homem que o procuro.
Entrou no salão e encomendou uma sanduíche e uma garrafa de cerveja. Quando lhe trouxeram a sanduíche, assinou o vale e insistiu em dar meio dólar de gorgeta à criada. Comeu tranquilamente a sanduíche, bebeu a garrafa de cerveja, foi indolentemente até à porta do salão e ali se quedou a olhar para o vestíbulo.
Num canto do vestíbulo, de pé atrás de um vaso de palmas, estava o sargento Holcomb.
Mason tornou ao salão e encaminhou-se directamente para o telefone público, próximo à mesa do caixa. Meteu uma moeda e pediu ligação para o comando da polícia.
- Quero falar com o sargento Holcomb - disse.
- O sargento Holcomb não está.
- Há aí alguém que possa transmitir-lhe uma mensagem?
- A respeito de quê?
- A respeito de alguns sucessos relacionados com um caso em que eu estou trabalhando.
- Quem fala?
- Perry Mason, o advogado.
- Qual é a mensagem?
- Peça-lhe que venha ao Maryland Hotel assim que chegar. Diga que o espero lá.
Desligou, meteu outra moeda e chamou o procurador do distrito.
- É Perry Mason, o advogado - disse. - Quero falar com o Sr. Hamilton Burger sobre um assunto da maior importância. Diga-lhe que o Dr. Mason está ao telefone.
Passados alguns segundos, ouviu a voz de Burger, calma, suave, mas cautelosa. -Que é, Mason?
- Estou aqui no Maryland Hotel, Burger. Alguém, que me passou a informação pelo telefone mas não quis dar o nome, disse-me que viesse cá. Afirmou-me que Harry McLane se encontrava no hotel, e estava disposto a falar. Perguntei na portaria; McLane não se acha registado. Palpita-me que poderá chegar de um momento para o outro. A voz do meu informador dava a impressão de que ele sabia o que dizia. Ora, McLane trabalhou para Basset. Acontece que ele é meu cliente noutro assunto e...
- Sim-disse Burger;-estou ao par desse caso, Mason. Não precisa explicar-mo.
- Isso simplifica as coisas - tornou Mason. - Como compreende, McLane poderia proporcionar informações importantes, se quisesse.
- “Se quisesse” é uma expressão adequada - disse o procurador do distrito. - Que quer você que eu faça?
- Encontro-me numa posição um tanto especial neste caso - explicou Mason. - De certo modo, McLane é meu cliente. Portanto, se ele falar, gostaria de ter aqui algum representante vosso, quando chegar esse momento. Chamei o sargento Holcomb, da Brigada de Homicídios, mas não consegui comunicar com ele.
Houve um instante de silêncio. Depois, Burger perguntou:
- Você está agora no Maryland Hotel?
- Sim.
- Há quanto tempo aí está?
- Oh, há já um bom pedaço. Fiquei por aqui à espera de Mc Lane, mas ainda não apareceu. Comi alguma coisa no salão e telefonei para o sargento Holcomb.
- Bom - volveu Burger pausadamente - vou mandar um homem, mas fica entendido que desde o momento em que o meu enviado chegar, a minha repartição tomará a coisa a seu cargo.
- De acordo - disse Mason.
- Obrigado por ter-me chamado - disse Burger, desligando.
Mason repôs o auscultador no descanso, acendeu um cigarro, abriu a porta do salão e passou para o vestíbulo, tomando o cuidado de não olhar na direcção onde estava postado o sargento Holcomb, com um pé em cima da borda do vaso de folhagem, firmando o cotovelo no joelho dobrado, e um cigarro entre os dedos.
Mason dirigiu-se para a portaria e inquiriu:
- Mc Lane ainda não se registou?
- Não.
Mason pegou numa cadeira, estendeu as pernas, acomodou-se, e pôs-se a fumar placidamente o seu cigarro.
Quando três quartos do cigarro já estavam consumidos, foi novamente à portaria, e disse:
- Olhe, eu não quero incomodar, mas esse McLeane talvez se tenha registado com outro nome. É um rapaz de uns vinte e quatro ou vinte cinco anos, e usa óculos com aros de celulóide. Tem algumas espinhas na cara, veste-se bem, tem cabelos avermelhados, e sardas nas costas da mão. Quem sabe se...
O empregado atalhou:
- Um momento. Vou chamar o detective do estabelecimento.
Premiu um botão e momentos depois saiu de dentro de um gabinete um homem barrigudo, de olhos duros, intolerantes, que mediu Mason dos pés à cabeça, com cara de poucos amigos.
- Este é o Sr. Mulde-on, o detective do hotel - disse o empregado da portaria.
- Procuro um homem que se chama Harry McLane - disse Mason - mas que talvez se tenha registado com outro nome. Tem vinte e quatro ou vinte e cinco anos, cabelos avermelhados e sardas nas costas das mãos. É delgado e bem vestido. A última vez que o vi, vestia um fato azul escuro, de riscas brancas, e um chapéu cinzento claro.
- Para que o procura?
- Quero falar com ele.
- Mas não sabe com que nome se registou?
- Não.
- Como sabe que ele está aqui?
- Avisaram-me de que estava aqui.
- Quem é que o avisou?
- Realmente - fez Mason - não sei em que é que isso pode interessá-lo.
- É preciso coragem - disse Muldoon - para chegar aqui e insinuar que um dos nossos hóspedes é um patife.
- Eu não insinuei nada disso..
- Você insinuou que ele estava registado com outro nome.
- Uma pessoa pode fazê-lo por várias razões. O outro teve um gesto de impaciência.
- Você estava a querer lograr-me. Quem é você? Para que é que...?
Ouviram-se passos atrás deles. Muldoon ergueu os olhos, esbugalhou-os, surpreendido, e logo arregaçou os lábios num sorriso.
- Sargento Holcomb! - exclamou. - Há meses que o não via.
Perry Mason virou-se com um sobressalto de simulada surpresa.
- Procurei telefonar-lhe-'disse.
- De onde? - perguntou o sargento Holcomb.
- Daqui - do hotel.
- Que me queria?
- Queria falar-lhe acerca de uma Informação que me deram, e que acho importante.
- Que era?
- Disseram-me que Harry McLane está neste hotel, e queria fazer declarações.
- Bem, e falou com ele?
- Dizem que não está registado aqui.
- Que trapalhada é essa com o polícia do hotel?
- Ele descreveu um sujeito - disse Muldoon - e queria saber se estava aqui no hotel, registado com outro nome.
Os olhos do sargento Holcomb fixaram-se em Muldoon.
- E está?
- Sim, creio que está.
- Qual é o nome
- George Purdey. Está no 904. Chegou há hora e meia, pouco mais ou menos. Tinha um ar suspeito, e foi por isso que eu reparei nele.
O sargento Holcomb virou-se para Perry Mason.
- Há quanto tempo está aqui, Mason?
- Há um bom pedaço - volveu Mason.
- Que esteve fazendo?
- Esperei que McLane aparecesse. Pensava que tinha chegado antes dele. Disseram-me que McLane vinha hospedar-se neste hotel, e que estava disposto a falar.
- Você disse que me telefonou?
- Sim. Queria que estivesse presente alguém da polícia quando o rapaz falasse... isto é, se ele falasse.
- A respeito de que é que ele ia falar?
- De alguma coisa relacionada com o caso Basset. Nem sei o que era.
- Escute - disse o sargento Holcomb. - Você não me engana. Você não me chamou pelo telefone, nem tencionava chamar. Há mais de meia hora que está aqui, disse. Que é que esteve fazendo?
- Estive na sala de jantar.
- Comendo alguma coisa, decerto.
Mason apelou com um olhar para o empregado da portaria.
- Isso é verdade, senhor - disse o empregado.- Ele disse que ia para a sala de jantar.
- Onde este senhor diz que vai, e onde ele vai de facto, nem sempre é a mesma coisa - observou o sargento Holcomb.
Travou do braço de Mason e empurrou-o na direcção da sala de jantar.
- Vamos, meu caro - disse. - Se puder indicar-me qual foi a pequena que o serviu, pedir-lhe-ei desculpa por escrito.
Mason parou à porta, mostrando-se perplexo.
- Sinto muito - disse - mas não posso dizer qual foi, sargento. Você bem sabe que eu quase nunca presto atenção às criadas. Lembro-me de que era uma pequena de uniforme azul.
O sargento Holcomb soltou uma risada de escárnio.
- Todas usam uniforme azul - disse. - É o que eu pensava, Mason. Você não conseguirá fazer-me engolir essa patranha.
- Espere um momento - fez o advogado. - A cara daquela pequena parece-me conhecida.
O sargento Holcomb chamou-a com o dedo.
- Serviu este senhor há alguns minutos? - perguntou.
A rapariga abanou a cabeça.
O sargento Holcomb exibiu um sorriso de mofa.
A criada que tinha servido Mason adiantou-se.
- Fui eu que o servi - disse.
O rosto de Perry Mason animou-se, como se a reconhecesse.
- Isso mesmo - disse. - Foi a senhora. Desculpe, não me lembrava muito bem. Estava um pouco preocupado.
- Pois eu lembro-me bem do senhor - respondeu ela. - O senhor deu-me uma gorgeta de cinquenta cen-timos por uma sanduíche e uma cerveja, e isso não é assim tão vulgar que possa esquecer-me das pessoas de quem a recebi.
O semblante do sargento Holcomb era uma máscara de surpresa e consternação.
O caixa, que tinha ouvido a conversa, interveio:
- Oh, eu lembro-me deste senhor. Ele pagou a conta e depois falou ao telefone.
- Quem é que ele chamou? - perguntou Holcomb.
- Um tal sargento Holcomb, e depois o procurador do distrito. Pensei que ele fosse detective, e escutei a conversa.
- O procurador do distrito! - exclamou Holcomb.
- Sim - disse o caixa. - Ele telefonou para o procurador do distrito e pediu-lhe que mandasse cá um homem para estar presente quando ele se avistasse com um sujeito chamado McLane, que era testemunha não sei de quê.
O sargento Holcomb disse lentamente:
- Macacos - que - me mordam!
- E que faremos agora? - inquiriu Mason. - Falamos com Harry McLane?
- Eu falo com Harry McLane - retorquiu o sargento Holcomb. - Você fica no corredor, à espera.
Holcomb empurrou Mason para o elevador.
- Nono andar - disse.
Alcançaram o nono pavimento, e Mason, saindo apressadamente, ia tomar pela esquerda, mas depois, relanceando os olhos para os números dos quartos, parou, deu meia volta e seguiu pelo corredor da direita, em direcção ao 904. O sargento Holcomb agarrou a manga do casaco de Mason e puxou-o para trás.
- Eu é que me encarregarei de estabelecer contacto
- disse. - Fique atrás de mim.
Parou diante da porta do 904 e bateu ao de leve. Não obtendo resposta, bateu novamente. Depois, deu volta à maçaneta e abriu a porta. Entrou, dizendo a Perry Mason, por cima do ombro.
- Espere aí.
Mason permaneceu imóvel por alguns segundos.
De repente, a porta abriu-se. O sargento Holcomb pálido e excitado, fitou os olhos arregalados em Perry Mason.
- Ele vai falar? - inquiriu o advogado.
- Não - respondeu o sargento Holcomb, sombrio
- ele não vai falar. Escute, Mason, você é um homem atarefado. É melhor voltar de vez para o seu escritório. Eu me encarregarei destas coisas aqui.
- Mas - fez Mason-eu quero falar com McLane. O rosto do sargento Holcomb contraiu-se num
espasmo de impaciência.
- Saia daqui antes que eu perca a paciência. Vou fazer esta investigação antes que você, com o seu toque magistral, embrulhe o caso e dê sumiço às testemunhas.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou Mason, firme na sua posição.
- Vai acontecer, se você não se aviar-tornou o sargento Holcomb.
Mason voltou-lhe as costas com dignidade e disse:
- A próxima vez que eu pensar em lhe dar uma ajuda, ponho um cadeado nos lábios.
O sargento Holcomb não respondeu: voltou ao quarto e fechou-se à chave.
Mason foi direito ao seu carro, guiou para o escritório, entrou azafamado no gabinete de Della Street, e disse:
- Escute, Della, temos que andar depressa.
Parou ao ver um vulto mover-se nas sombras. Peter Brunold, arreganhando os dentes, ergueu-se da cadeira e estendeu a mão a Perry Mason.
- Felicitações - disse.
A surpresa imobilizou Mason.
- Você! - exclamou. - Que está fazendo fora da cadeia?
- Soltaram-me.
- Quem?
- O sargento Holcomb.
- Quando?
- Há uma hora e meia, mais ou menos. Pensei que soubesse. Como requereu o habeas-corpus e eles não queriam ainda apresentar queixa contra mim, soltaram-me.
- Onde está Sílvia Basset?
- Não sei. Creio que está no gabinete do procurador do distrito. Estão a interrogá-la.
- Você, provavelmente, nunca teve tão pouca sorte como quando o soltaram. Saia daqui. Vá para um hotel, registe-se sob o seu nome, telefone ao procurador do distrito, e diga-lhe que se encontra lá.
- Mas porquê? - perguntou Brunold. - Telefonar ao procurador do distrito?! E!e não...
- Faça o que lhe digo-interrompeu Mason, furiosamente.- Os segundos são preciosos; uns minutos poderiam ser fatais. Mexa-se! Pensei que você estivesse a salvo na cadeia, e agora, qualquer minuto...
Empurraram a porta. Dois homens entraram sem bater. Um deles olhou para Brunold e sacudiu significativamente a cabeça na direcção da porta.
- Acompanhe-nos, companheiro - disse.
- Para onde? - perguntou Brunold.
- O Chefe quer falar com você, e desta vez será preciso mais que um pedido de habeas-corpus para o tirar da sombra. A sua amiga, Srª Basset, deu algumas informações ao procurador. Temos um mandado de prisão contra você. Ela já foi presa.
- Qual é a acusação? - perguntou Mason.
- Homicídio - respondeu o homem, torvamente.
- Não responda a nenhuma pergunta, Brunold - disse Mason. - Não lhes diga que...
- Vamos! - disse um dos polícias, agarrando num braço de Brunold e empurrando-o para a porta. - Terá de dizer onde passou o tempo durante a última hora e meia, ou terá de se haver com duas acusações de homicídio.
- Duas?!-perguntou Brunold.
- Hum-hum-tornou o homem. - Cada vez que você sai da cadeia, há uma epidemia de defuntos segurando olhos de vidro. Vamos embora.
A porta fechou-se com estrondo atrás deles.
Della Street lançou um olhar interrogativo a Perry Mason.
Mason atravessou o gabinete em rápidas passadas, abriu de repelão a porta do cofre, e tirou a caixa de papelão que continha os olhos de vidro injectados. Dirigiu-se ao armário e tirou um almofariz e um pilão de ferro. Um a um, deixou cair os olhos de vidro no almofariz e reduziu-os a fino pó.
- Della - disse - não deixe que ninguém me interrompa durante a entrevista com a jovem esfomeada.
Perry Mason considerou a jovem de olhos e cabelos escuros que o fitava do outro lado da secretária com certo ar de desafio.
A um lado e um pouco atrás, Della Street olhava Perry Mason ansiosamente. Havia uma semelhança superficial entre as duas mulheres.
- Ela serve? - perguntou a secretária.
Os olhos de Perry Mason contemplaram apreciativamente a jovem.
- Nome? - perguntou por fim.
- Thelma Bevins.
- Idade?
- Vinte e sete anos.
- Habilitações?
- Curso Comercial.
- Sem emprego há muito tempo?
- Sim.
- Pronta a fazer qualquer trabalho que se apresentar?
- Conforme o trabalho.
Perry Mason calou-se.
Ela empertigou-se, ergueu o queixo, e disse:
- Sim, não me importo que espécie de trabalho seja.
- Assim está melhor -volveu o advogado.
- É meu o serviço?
- Creio que sim, se a senhora fizer exactamente o que lhe vou dizer. É capaz de seguir instruções?
- Conforme as instruções, mas posso experimentar.
- É capaz de guardar um segredo?
- Creio que sou.
- Eu quero - disse Perry Mason-, que a senhora tome um aeroplano para o Reno, e lá arrende um apartamento sob o nome de Thelma Bevins.
__Quer dizer que devo alugar um apartamento sob
o meu nome? - perguntou ela.
- Sim.
- E que devo fazer depois?
- Fique lá até que chegue um homem para lhe apresentar alguns papéis.
- Que espécie de papéis?
- Serão papéis de uma acção de divórcio.
- E então?
- O homem perguntará se se chama Hazel Basset, também conhecida como Hazel Fenwick, antes Hazel Chalmers.
- E eu, que faço?
- Diga que se chama Telma Bevins, mas que está à espera dos papéis e que estes podem ser-lhe entregues.
- Há algo de ilegal nisso?
- Não. A senhora sabe que esses papeis lhe serão apresentados porque eu lho estou dizendo agora.
Ela inclinou a cabeça e inquiriu:
- É só isso?
- Não - respondeu o advogado. - Isso é apenas o começo.
- Qual é o fim?
- A senhora será posta sob custódia.
- Quer dizer que serei presa?
- Presa, propriamente, não, mas será detida para prestar declarações.
- Que devo fazer, então?
- Então é que vem a parte mais difícil. Terá de fechar a boca.
- Não devo dizer nada?
- Não deve dizer uma única palavra.
- Devo reclamar alguma coisa?
- Não. Deve apenas guardar absoluto silêncio. Será interrogada com instância. Será fotografada pelos repórteres. Procurarão enleá-la. Ameaçá-la-ão. Mas a senhora não deve dizer nada. Há só uma coisa que deve dizer, e repetir constantemente.
- O que é?
- Que se recusa a deixar o Estado de Nevada até que algum tribunal competente emita ordem para a senhora cruzar a fronteira do Estado. Compreende?
- Não quero sair de Nevada; é isso?
- Sim.
- E que devo fazer para ficar lá?
- Negue-se a sair, simplesmente.
- E se me levarem para fora do Estado?
- Não creio que a levem. Vai haver muita publicidade em torno do caso. Se insistir em que lhe permitam permanecer no Estado de Nevada até que algum tribunal dê ordem para a sua remoção, eles terão de esperar por tal ordem, antes de a levar.
- É tudo? É, sim.
- Quanto ganharei por esse trabalho?
- Quinhentos dólares.
- Quando é que os receberei?
- Duzentos agora; trezentos quando tiver terminado.
- E quanto às despesas?
- Eu lhe fornecerei uma passagem de aeroplano
para Reno. A senhora terá de pagar o seu apartamento com os duzentos dólares que receberá adiantadamente.
- Quando devo partir?
- Agora mesmo.
Ela sacudiu a cabeça e disse:
- Agora mesmo, não. Logo que eu receber esses duzentos dólares, vou primeiro comer, e depois é que tomo o avião.
Mason fez um aceno de cabeça a Della Street.
- Entregue-lhe os duzentos dólares. Della - disse
- e faça-a assinar uma declaração em como vai à cidade de Reno em obediência às minhas instruções; que deve registar-se com o seu nome; que, quando alguém procurar entregar-lhe papéis, deve dizer que não se chama Hazel Fenwick, nem Hazel Basset, nem Hazel Chalmers, mas que está disposta a receber os papéis.
- Para que fim é isso? - perguntou Thelma Bevins.
- Serve de salvaguarda para a senhora e para mim
- disse Perry Mason. - Isso mostra exactamente quais as instruções a que obedece. Não diga que se chama Hazel Basset. Diga sempre que se chama Thelma Bevins, que está à espera dos papéis, e que estes podem ser-lhe entregues. Entendido?
- Creio que sim - respondeu ela. E receberei trezentos dólares quando tudo estiver terminado?
- Isso mesmo.
A jovem estendeu a mão a Perry Mason.
- Obrigada - disse. - Hei-de dar boa conta do recado.
O telefone retiniu. Della Strett atendeu e relanceou os olhos para Perry Mason.
- Paul Drake, chefe - anunciou.
- Faça sair Miss Bevins por aquela porta lateral. Della - disse Mason. - Não quero que Paul Drake a veja. Acompanhe-a depois ao avião, e espere que embarque. Assim que a senhora chegar a Reno, Miss Bevins, arranje o apartamento. Não ficará lá mais de uma semana; deve alugá-lo à semana, portanto. Telegrafe-me o endereço do apartamento. Não assine o telegrama. Compreende?
Ela fez que sim, e Della Street fê-la sair pela porta lateral. Reapareceu poucos momentos depois e introduziu Paul Drake.
- Achei conveniente vir ver como iam as coisas - disse Drake.
Mason inclinou a cabeça, e disse:
- Tudo bem, Paul.
- Pôs-se em comunicação com Stephen Chalmers?
- Sim. Vou propor hoje a acção de divórcio.
- Tirei aqueles retratos de que você precisava - disse Drake. - Amanhã já terei as cópias.
- Deparou com alguma dificuldade? - inquiriu Mason.
- Nenhuma. Fotografámos todas as pessoas da casa, excepto uma.
- Quem?
- Colemar - disse o detective. - Era o último da lista, e desconfiou. Quis poupar-lhe os cinquenta dólares. Não havia razão para meter um fotógrafo da imprensa no assunto. Fiz um dos meus rapazes inculcar-se repórter do journal. Tudo foi bem até chegar a Colemar. Parece-me que Colemar vai ser testemunha. Chegara havia pouco do gabinete do procurador do distrito. Telefonou para lá e perguntou se queriam que tirasse o retrato. Decerto o avisaram de que não o fizesse nem dissesse nada sem os consultar...
- Que responderam do gabinete do procurador? perguntou Mason. - Desconfiaram de alguma coisa?
- Evidentemente, pois Colemar desligou e depois telefonou para o Journal e pediu para falar com o redactor de notícias locais. Foi um xeque-mate para o meu empregado. Agarrou na máquina e safou-se. Você pode passar sem Colemar, Perry?
- Creio que sim - disse Mason-, se você tem a certeza que ele vai ser testemunha de acusação.
- Creio que vai - asseverou o detective. Mason inclinou lentamente a cabeça e perguntou:
- E quanto às outras fotografias, Paul? Mostram algo de particular na expressão dos rostos?
- Não notei nada de especial - respondeu o detective.- Examine-as você mesmo. Overton fez esforços visíveis para aparecer com uma cara completamente inexpressiva. Edith Brite estava de lábios apertados, carrancuda. Dick Basset parece estar posando, mas o fotógrafo disse-me que teve um trabalhão para fazer com que Dick olhasse para a máquina. Dick estava sempre a baixar os olhos para o soalho. Isto quer dizer alguma coisa?
- Talvez - disse Mason - mas é provável que não queira dizer nada. Terei de estudar a fotografia. E quanto a essa tal Brite...?
Drake interrompeu-o em voz baixa, dizendo:
- Escute, Perry, este caso pode tornar-se sério. Você já soube do que aconteceu ao jovem McLane?
Mason fez um gesto afirmativo e respondeu:
- Sim, ouvi alguns rumores. Que é que a polícia acha. Paul? Foi assassínio ou suicídio?
- Não sei. Estão a trabalhar muito em segredo. Mas eu estive a pensar naquele olho de vidro que ele tinha na mão, Perry. Você lembra-se de que eu arranjei um punhado de olhos. Ficaria muito mais tranquilo se os visse de novo.
- Porquê?
- Só para ter a certeza de que estão todos aí. Mason encolheu os ombros.
- Aqueles olhos foram-se. Paul.
- Para onde?
- Não se preocupe com isso.
- Suponhamos que me seguem a pista por intermédio do vendedor...
- Eu recomendei-lhe - interrompeu Mason - que não deixasse pistas.
- Às vezes é impossível impedi-lo.
- Nesse caso - volveu o advogado - tanto pior.
- Oiça Perry, você prometeu que não me deixaria ir para a cadeia.
- Você ainda para lá não foi, não é verdade? O detective teve um arrepio, e disse:
- Palpita-me que ainda para lá vou. Mason disse lentamente:
- Paul, acho melhor precipitarmos o julgamento deste caso. O procurador do distrito pretende fazer a inquirição preliminar depois de amanhã. Vou consentir.
O detective contraiu a testa num gesto de inquietação.
- Escute, Perry, nós estamos ambos metidos nisto. Se...
- Arrume a sua mala, Paul - interrompeu o advogado. - Você vai tomar o primeiro avião que partir para Reno.
- A fim de escapar desse caso do olho? - perguntou Drake.
- Não, a fim de apresentar uns papéis a Hazel Fen-wick, às vezes conhecida como Hazel Chalmers, e também como Hazel Basset.
Drake assobiou baixinho.
- Com que então, você sabia o paradeiro dela.
- Você faz muitos comentários, Paul - disse Perry Mason, severo.
Drake encaminhou-se para a porta.
- Vou arrumar a minha mala, Perry, mas não se esqueça de que prometeu que não me deixaria ir para a cadeia.
Perry despediu-o com um aceno da mão e tocou a campainha a fim de chamar Della Street. A secretária entrou no momento em que o detective se retirava. Mason esperou que a porta se fechasse, e disse:
- Faça um pedido de divórcio, Della, com o fundamento em abandono do lar. A ré deve ser designada por Hazel Chalmers, também conhecida por Hazel Fenwick, e também por Richard Basset.
A secretária arregalou os olhos.
- Mas - disse -, se o senhor intenta a acção dessa maneira, todos os jornais da cidade lhe cairão em cima. Eles acompanham sempre as acções de divórcio.
Mason inclinou a cabeça.
- Vou mandar Paul Drake a Reno pelo avião da tarde - disse. - Faça seguir a pequena, e quando ela nos telegrafar o endereço, telegrafaremos a Drake para que este lhe apresente os papéis.
- Há muitos jornalistas que sabem que é Paul Drake quem apresenta a maior parte das nossas petições - observou Della Street.
Mason respondeu, com um lento sinal de cabeça:
- Se eu organizar bem o meu plano, poderei fazê-lo vingar, mas tudo depende da perfeição do plano. Vá redigir a petição de divórcio, e depois trate de o mandar entregar.
- É chegado o momento fixado para a inquirição preliminar de Peter Brunold e Sílvia Basset, conjunta-mente acusados do assassinato de Hartley Basset - anunciou o juiz Winters, com ênfase. - Senhores: estão prontos para proceder à inquirição preliminar?
- Pronto - disse Perry Mason.
Burger, procurador do distrito, inclinou a cabeça.
Os repórteres aprestaram-se. O caso era excepcional, pois o procurador do distrito ia dirigir pessoalmente uma inquirição preliminar, e todos os jornalistas presentes sabiam que se preparavam revelações sensacionais.
- James Overton - disse o procurador Burger-, faça o favor de se apresentar e prestar juramento.
Overton levantou a mão direita, e quedou-se a olhar a sala do tribunal, sombrio, taciturno, sardónico.
- Chama-se James Overton e esteve empregado como motorista em casa de Hartley Basset? - perguntou Burger, quando Overton acabou de prestar juramento.
- Sim, senhor.
- Há quanto tempo trabalhava para o Sr. Basset?
- Dezoito meses.
- Trabalhou sempre como motorista?
- Sim, senhor.
- Em que se ocupava anteriormente? Perry Mason ergueu-se.
- Bem sei - disse - que, em geral, é falta de tacto um advogado de defesa fazer impugnações numa inquirição preliminar. É muito mais prático deixar o procurador mostrar o seu jogo, deixando-o perguntar tudo o que quiser. Também sei que habitualmente um procurador do distrito apresenta apenas as provas suficientes para pronunciar os acusados, sem dar à defesa qualquer indicação sobre os dados que reuniu. Creio, no entanto, que há algo de insólito no caso presente. Por isso, quero perguntar ao Tribunal e à Acusação, se há alguma utilidade em inquirir das ocupações deste homem, anteriormente à data da sua entrada ao serviço de Hartley Basset.
- Creio que sim - disse Burger.
- Nesse caso não impugnarei - anunciou Mason, sorridente.
- Responda à pergunta - disse o juiz Winters, voltando-se para a testemunha.
- Eu era detective.
- Detective particular? - interrogou Burger.
- Não, senhor, trabalhava para o Governo dos Estados Unidos, num dos seus serviços de informações. Deixei o governo e coloquei-me no departamento da polícia municipal, secção de investigadores. Trabalhava lá havia poucos dias quando o Sr. Basset me procurou para perguntar se aceitava um lugar de motorista em sua casa.
Perry Mason acomodou-se no seu assento, e pousou os olhos em Brunold, e depois em Sílvia Basset.
Brunold, ladeado por um agente, conservava uma fisionomia impassível. Os olhos de Sílvia Basset estavam arregalados de surpresa.
- Enquanto esteve empregado como motorista de Hartley Basset, tinha alguma outra atribuição além de guiar automóveis? - perguntou Burger.
- Estipularemos - disse Perry Mason com certo desdém na voz - que este homem estava incumbido de vigiar a mulher de Hartley Basset, e que se esforçava por captar as boas graças do seu patrão, comunicando vários factos que faziam parecer necessária semelhante espionagem.
Burger pôs-se de pé.
- Senhor Presidente - rugiu-, oponho-me ao emprego de tal táctica por parte do advogado da defesa, que procura desacreditar o depoimento desta testemunha com uma afirmação depreciativa. Este homem é um investigador honrado, e...
- São todos iguais - interrompeu Mason. O juiz Winters bateu com o martelinho.
- Senhores - disse-, não permitirei semelhantes discussões.
Perry Mason inclinou a cabeça, estirou-se na sua cadeira e esboçou um sorriso.
- Senhor Presidente - disse-, peço perdão ao Tribunal.
- Prossiga, Sr. Burger - disse o juiz Winters. Burger respirou fundo, pareceu dominar-se com dificuldade e disse:
- Responda à pergunta, Sr. Overton. Que outras atribuições tinha o senhor?
- Fui contratado pelo Sr. Basset para o aconselhar a respeito de certas coisas que se passavam no seu domicílio.
- Que coisas?
- Ele disse que queria que eu fosse o seu posto de escuta.
- ”Posto de escuta” foi a expressão usada por ele?
- Sim.
- Quando viu Hartley Basset pela última vez?
- No dia catorze.
- Ele estava vivo?
- A primeira vez que o vi naquela data, estava.
- Da última vez que o viu, estava vivo?
- Não, senhor, estava morto.
- Onde se encontrava ele?
- No seu escritório, estendido no soalho, com um acolchoado e um cobertor, dobrados juntos, perto da sua cabeça, os braços estiraçados, um revólver Colt Police Positive, calibre 38, caído no chão, junto à sua mão esquerda, e um revólver Smith and Wesson, calibre 38, perto da mão direita. Esta última arma estava oculta sob o acolchoado e o cobertor.
- O Sr. Basset estava morto?
- Sim, senhor.
- Certificou-se disso pessoalmente?
- Sim, senhor.
- Quem se achava presente na sala quando viu o cadáver do Sr. Basset?
- O sargento Holcomb, dois investigadores cujos nomes ignoro, e um criminologista que trabalha na Brigada de Homicídios. Creio chamar-se Shearer.
- Notou alguma coisa na mão esquerda do cadáver?
- Sim, senhor, um olho de vidro.
- Esse olho não foi marcado na sua presença por alguns desses cavalheiros, de maneira a poder ser identificado posteriormente?
- Sim, senhor.
- Quem o marcou?
- O Sr. Shearer.
- Reconheceria esse olho se o visse novamente?
- Sim, senhor.
Burger mostrou um sobrescrito lacrado, cumpriu uma
série de formalidades para o abrir, retirou do sobrescrito um olho de vidro, e passou-o a Overton.
- É este o olho?
- Sim, senhor, é esse.
- Já tinha visto esse olho antes? - perguntou Burger.
Overton fez um veemente sinal afirmativo.
- Sim, senhor - disse-, já tinha visto esse olho antes.
- Onde?
- Em poder do Sr. Basset.
Perry Mason inclinou-se para a frente, com os olhos semicerrados, numa expressão de atenção concentrada. Burger relanceou-lhe um olhar de triunfo.
- O senhor quer dizer - perguntou-, que viu este olho em poder do Sr. Basset, antes do crime?
- Sim, senhor.
- Quanto tempo antes?
- Vinte e quatro horas.
- Foi essa - interrogou Burger, martelando as palavras a fim de tirar da pergunta o máximo de efeito dramático-, foi essa a primeira vez que o senhor viu este olho de vidro, injectado?
- Não, senhor - disse Overton.
- Quando viu esse olho pela primeira vez? - inquiriu Burger.
- Pouco mais ou menos uma hora antes de o encontrar em poder do Sr. Basset.
- Quando foi isso, então?
- Um momento - disse Perry Mason. - Impugno a pergunta por ser despropositada, impertinente, e inútil.
- A que se refere especificamente a sua impugnação, senhor advogado? - perguntou o juiz.
- Vossa Senhoria deve recordar que não havia marca distintiva no olho quando ele foi tirado da mão do morto. A testemunha pode prestar depoimento, e identificar agora o olho injectado, graças àquela marca. Mas, senhor presidente, antes de se gravar esse sinal no olho, tudo o que a testemunha pode afirmar é que viu um olho de vidro injectado, e não o olho de vidro injectado a que se referia a pergunta.
Burger deu uma risadinha.
- Muito bem - disse -, admitiremos que a
impugnação é justa, retiraremos a última pergunta e passaremos a estabelecer o necessário fundamento.
- O senhor viu um olho de vidro semelhante - isto é, um que tinha aparência igual à do que foi encontrado na mão do cadáver?
- Sim, senhor.
- Quando?
- Descobri-o umas vinte e cinco horas antes do crime. Entreguei-o ao Sr. Basset e vi-o em seu poder umas vinte e quatro horas antes do crime.
- O senhor dispõe de algum meio de verificar se esse olho era o mesmo que acaba de identificar, e que tem na sua mão?
- Sim, senhor.
- Qual é?
- No momento em que encontrei o olho, eu trazia um anel de brilhantes. Conhecia, por experiência própria, a necessidade de identificar...
- Pouco importa o que o senhor conhecia por sua própria experiência - interrompeu Burger. - Conte-nos simplesmente o que fez.
- Peguei no meu anel de brilhantes e talhei uma cruz na superfície interior do olho.
- Essa cruz é claramente visível?
- Não, senhor, a não ser que se olhe por um certo ângulo. A marca que fiz foi discreta.
- Pode dizer-me se vê essa cruz no olho que o senhor tem agora na palma da mão?
- Vejo, sim senhor.
- Pedimos - disse Burger -, que o olho seja aceite como instrumento da Prova A.
- Não ponho objecção - disse Mason.
- Deferido - anunciou o juiz Winters.
- Então, é esse o mesmo olho que o senhor viu umas vinte e cinco horas antes do crime? - prosseguiu Burger.
- Sim, senhor.
- Onde o encontrou? Overton respirou fundo.
- No quarto de dormir da Srª Basset - respondeu, por fim.
- Como é que o senhor o encontrou lá? Em que circunstâncias?
- Ouvi um ruído no quarto da Srª Basset e...
- Que espécie de ruído?
- Um ruído de vozes.
- E que fez o senhor?
- Bati à porta.
- Que sucedeu então?
- Ouvi um ruído de movimentos precipitados.
- Essa conversação que o senhor ouviu - perguntou Burger - era perceptível?
- Refere-se às palavras? - interrogou a testemunha.
- Sim.
- Não, senhor, não era. Eu podia ouvir o som grave de uma voz de homem, e uma voz feminina, mas não as palavras.
- Que aconteceu depois que bateu à porta?
- Primeiro, houve aquele período de excitação. Depois, ouvi abrir e fechar uma janela e ouvi a Srª Basset dizer: “Quem é?”
- E que disse o senhor?
- Disse: “Faça o favor de abrir a porta. É James, o motorista”.
- E que ocorreu então?
- Esperei um minuto, talvez.
- E depois?
- Depois ela deu a volta à chave e abriu.
- Que fez ou disse o senhor, então?
- Disse: “Desculpe, minha senhora, mas o Sr. Basset pensou que havia um ladrão em casa. Ele queria que eu me certificasse de que as janelas estavam todas trancadas”.
- Que disse ela?
- Nada.
- O senhor disse mais alguma coisa?
- Sim, senhor, disse que lamentava tê-la Incomodado, que não sabia que ela já se recolhera.
- Que respondeu ela?
- Disse que não estava deitada; que estava apenas a tomar banho.
- Que fez o senhor, então?
- Atravessei o quarto e fui até à janela.
- A janela estava aberta ou fechada?
- Aberta.
- É no segundo andar?
- Sim, senhor, mas há um telhado, cerca de seis pés abaixo da janela, e uma latada que chega ao telhado.
- Viu algum sinal no peitoril da janela?
- Vi que num ponto a madeira estava arranhada, aparentemente pelo salto de um sapato. A marca era recente. Uma lasca de madeira ainda estava segura por um fio.
- Encontrou alguma coisa mais?
- Vi este olho de vidro.
- Onde estava?
- No soalho.
- A Srª Basset tinha-o visto?
- Não, senhor - respondeu Overton - não o tinha visto.
- Que fez o senhor?
- Baixei-me e apanhei-o.
- Ela viu que o senhor tinha apanhado o olho?
- Não, senhor. Estava de costas para mim, nesse momento.
- E que fez o senhor, então?
- Meti o olho no bolso.
- E depois?
- Deixei o quarto e, assim que saí, ela fechou a porta à chave, atrás de mim. Então, talhei a cruz na parte posterior do olho com o diamante do meu anel, e fui falar com o Sr. Basset.
- Que sucedeu então?
- O Sr. Basset procurou identificar o olho. Pediu-me que me pusesse em contacto com algum fabricante de olhos artificiais, idóneo, e visse se havia algum processo de identificar o olho.
- Fez como lhe pediam?
- Fiz.
- Deixaremos - disse Burger - que a identificação do olho fale por si mesma. Por outras palavras: não pediremos a esta testemunha que apresente peritos. Chamaremos a depor o perito que ele consultou, e convida-lo-emos a identificar o olho.
Depois voltou-se para Perry Mason e disse:
- Pode inquirir.
- Tem a certeza de que era uma voz de homem a que o senhor ouviu? - perguntou Mason. - Isto é: na
ocasião em que o senhor ouviu a conversa pelo buraco da fechadura do quarto da Srª Basset, era um homem quem falava?
- Eu não disse que ouvi qualquer conversa pelo buraco da fechadura - repontou a testemunha.
- Mason sorriu com urbanidade.
- Mas foi pelo buraco da fechadura, não foi, Senhor Agente do Serviço Secreto?
Uma gargalhada ecoou pela sala. O Juiz Winters bateu com o martelinho, impondo silêncio.
- Vamos - continuou Mason - responda à pergunta. Foi ou não pelo buraco da fechadura que ouviu as vozes?
- Ouvi pelo buraco da fechadura, sim - respondeu Overton.
- Exactamente - retorquiu Mason. - Que viu pelo buraco da fechadura?
- Não pude ver nada. Isto é, nada que tivesse importância.
- Pôde ver a Sr." Basset movendo-se pelo quarto? -Vi alguém a deslocar-se.
- Acha que era a Srª Basset? -Não tenho a certeza.
- Mas o senhor não viu nenhum homem?
- Não, senhor.
Perry Mason ergueu o braço e estendeu para a testemunha o longo polegar.
- Quando o Sr. Basset foi morto, o assassino fugiu no automóvel de Basset, não é assim?
- Não, senhor.
- Tem a certeza disso?
- Tenho, sim, senhor.
- Porquê?
- Porque, pouco depois da descoberta do cadáver, ouvi que uma testemunha tinha dito que o assassino fugira no automóvel do Sr. Basset. Imediatamente me dirigi à garagem para verificar se o carro fora retirado.
- E fora?
- Não.
- O senhor não pôs a mão sobre o radiador, para ver se estava quente?
- Não, não fiz isso, mas o carro estava como eu o deixara, no lugar que devia ocupar.
Mason sorriu, abaixou a mão e declarou:
- Estou satisfeito.
- Um momento - disse Burger. - Uma pergunta em reinquirição directa. O senhor declarou que não podia ver o homem que estava no quarto?
- É certo.
- Podia ouvi-lo?
- Podia ouvir-lhe a voz, sim.
- Tem a certeza de que não era um rádio o que o senhor ouvia?
- Tenho.
- Foi a voz de Richard Basset que o senhor ouviu?
- Não, senhor.
- Como sabe?
- Porque conheço a voz de Richard Basset. E, conquanto não pudesse distinguir as palavras, podia distinguir o tom de voz.
- O senhor-inquiriu Burger - notou algo de peculiar na fala desse homem?
- Sim, senhor.
- Que era?
- Falava com vivacidade e excitação, muito rapidamente. Isto é, as palavras saíam tão depressa que pareciam ligadas umas às outras.
- Mais uma pergunta - interpôs Mason. - O senhor não podia ouvir as palavras?
- Não, senhor.
- Então como sabe que elas saíam ligadas umas às outras?
- Pela maneira como ele falava, simplesmente.
- Mas o senhor não podia perceber quando terminava uma palavra e começava outra? Isto é, não podia distinguir as palavras?
- Creio que sim.
- Crê que sim?
- Bom. Não tenho a certeza.
- Muito bem - disse Mason, sorrindo.
Burger despediu Overton com um aceno da mão.
- Chamem Dalton C. Bates - disse.
Um homem alto, adiantou-se nervosamente, levantou a mão direita, e prestou juramento.
- O seu nome? - perguntou Burger.
- Dalton C. Bates.
- Profissão?
- Fabricante de olhos artificiais.
- Há quanto tempo fabrica olhos artificiais?
- Desde os quinze anos. Comecei o aprendizado na Alemanha.
- Há alguma vantagem especial em estudar na Alemanha?
- Sim, senhor.
- Qual é?
- Todo o vidro empregado na confecção de olhos artificiais é manufacturado em duas localidades da Alemanha. A fórmula para a fabricação do vidro é mantida em segredo. Nunca foi possível reproduzi-la neste país. Requer certo tipo especial de vidro.
- Onde estudou na Alemanha?
- Em Wiesbaden.
- Durante quanto tempo?
- Cinco anos.
- Que fez depois?
- Trabalhei durante dez anos com um dos melhores peritos em S. Francisco e estudei algum tempo em Sidney O. Noles. Depois, estabeleci-me com negócio próprio, e desde então dedico-me à manufactura de olhos artificiais.
Perry Mason aprumou-se na borda da cadeira e fitou a testemunha.
- O senhor está a apresentar esse homem como perito? - perguntou ao procurador do distrito.
- Sim - replicou Burger iaconicamente.
- Pode prosseguir - disse Mason.
- A manufactura de olhos artificiais é uma profissão altamente especializada? - perguntou Burger.
- Sim, senhor. Extremamente especializada.
- Pode descrever como se faz um olho artificial?
- Sim, senhor. Primeiro, sopra-se o vidro até formar uma bola. Isto é, o vidro vem em forma de tubo. Sopra-se e corta-se na chama de tal maneira que tome o feitio de uma bola. A cor paricular do vidro escolhido é igual à do branco do olho que se quer irmanar. Depois, fixa-se na superfície da bola a íris do olho, empregando fragmentos sólidos de vidro colorido, que se ligam cuidadosamente enquanto a bola de vidro é posta a girar. Se observar o olho humano, verá que é composto de numerosas cores. Embora predomine uma cor, há na íris diversos matizes
diferentes. Não só se devem reproduzir esses cambiantes, como também deve fundir-se o vidro de modo que se obtenha, além de uma cor natural, uma combinação perfeita das pequenas variações de cores Emprega-se na feitura da pupila um vidro bem preto, que, diga-se de passagem, leva posteriormente uma camada de púrpura, devendo-se considerar cuidadosamente o tamanho e a forma da pupila.
“É também necessário estudar a circulação sanguínea do olho que se pretende irmanar. Devem-se desenhar as veias sobre o olho artificial. Essas veias são mais abundantes de ambos os lados da íris, e as suas cores variam consideravelmente de um para outro indivíduo, pois algumas têm um matiz amarelo, outras são mais vermelhas, umas menos, outras mais salientes,
“Terminado o olho, recobre-se de um cristal claro, fundido sobre o vidro. Feito isto, a bola de vidro é cortada com uma lâmina, e recebe a sua forma definitiva.
Burger inclinou a cabeça e inquiriu:
- É, pois, uma profissão muito especializada?
- Extremamente.
- Pode dar-nos uma ideia melhor de quão especializada é a profissão? - perguntou Burger.
- Posso dizer-lhe isto: - respondeu Bates.- Nos Estados Unidos, só há treze homens reconhecidos como fabricantes de primeira classe de olhos artificiais. Para conseguir pleno êxito na fabricação de olhos artificiais, deve-se aliar a habilidade de um artista, à perícia de um experimentado soprador de vidro.
- É, possível, pois, reconhecer o trabalho de certas pessoas - perguntou Burger - do mesmo modo que um artista poderia reconhecer o trabalho de outro artista, pela maneira de empregar as tintas?
- Em muitos casos, é - respondeu Bates.
- Eis aqui-disse Burger - um olho artificial, que foi apresentado como instrumento de prova A. Foi encontrado na mão de um homem assassinado. Peço-lhe que examine esse olho e declare se pode ou não dizer alguma coisa a respeito dele.
Bates examinou o olho que Burger lhe entregara, e fez com a cabeça um sinal afirmativo.
- Este olho - declarou Bates - foi feito por um artífice que reside em São Francisco. O olho é injectado.
Por outras palavras: é um olho feito para ser usado apenas em certas ocasiões, e, no entanto, tem sido muito usado. O homem que o usava possui alto grau de acidez orgânica. Este círculo que aqui se vê, é produzido por ácidos do corpo, que penetram no vidro e ocasionam uma ligeira descoloração. Após certo tempo de uso, essa descoloração torna-se bem pronunciada. Pode-se removê-la parcialmente por meio de um tratamento químico, mas a duração do olho é abreviada por esses ácidos orgânicos que penetram no vidro e o tornam excessivamente quebradiço.
Burger fez um aceno de cabeça a Perry Mason.
- Com sua permissão, senhor advogado - disse - vou inquirir esta testemunha a respeito de outro olho, que identificarei mais tarde. Para que não se julgue que estou a abusar do senhor defensor, quero esclarecer que o olho a respeito do qual vou inquirir o Doutor Bates, é o que foi achado na mão de outro morto, um tal Harry McLane.
- O senhor acusador sustenta-'perguntou o Juiz Winters - que tem o direito de apresentar provas de mais de um crime?
- Não - replicou Burger - estou apenas a apresentar provas contra os acusados do assassínio de Hartley Basset. A prova que vou agora apresentar, tem o único objectivo de me esclarecer a minha.
- Perfeitamente - volveu o Juiz Winters - será limitada a esse propósito.
Burger abriu outro sobrescrito, tirou de dentro um olho de vidro, e deixou-o cair na palma da mão da testemunha.
- Que pod” dizer-nos sobre esse olho, Doutor?
- Este olho não foi feito com tanto cuidado como o outro.
- Deve ser um olho de armazém, isto é, um olho fabricado não por encomenda e para uma determinada pessoa, mas para fazer parte de um grande lote de olhos artificiais como os que se encontram em qualquer bem provido estabelecimento de artigos de óptica, de qualquer grande cidade.
- Que motivos tem para afirmar isso, Doutor?
- O olho foi acabado e coberto de cristal. Era então um olho claro - isto é, fabricado para emparelhar com
um olho normalmente claro. Depois de coberto de cristal, fez-se uma tentativa apressada para imitar um olho injectado. Essas pequenas veias de vidro, que dão ao branco do olho a aparência de injectado, foram colocadas depois da aplicação da camada de cristal. Não há nenhum sinal de descoloração, e eu diria, portanto, que o olho não foi usado, pelo menos durante um período apreciável, particularmente pela pessoa que usava o outro olho que o senhor me apresentou primeiro.
- Poderemos - perguntou Burger - designar este olho, para fins de identificação, como instrumento de prova B?
- Não faço objecção - disse Mason.
- Marque-se o instrumento de prova para fins de identificação - ordenou o Juiz Winters.
- Pode inquirir, Mason - disse Burger.
- Por que razão se usam olhos injectados, Doutor?
- Há pessoas que têm certos melindres com relação aos seus olhos artificiais. Não querem que os outros saibam que elas os usam. Por esse motivo, tomam grandes precauções para que não se descubra o facto. Mandam fazer olhos para usar a noite; para usar quando não se sentem bem de saúde; para usar quando o olho natural está inflamado, etc.
- É então difícil perceber quando é que uma pessoa usa um olho de vidro?
- Muito difícil.
- Por que motivo é necessário possuir um olho especial para usar à noite?
- Porque o tamanho da pupila de um olho natural varia durante o dia. Com a luz do sol, a pupila contrai-se. A noite, sob a luz artificial, a pupila dilata.
- É, pois, virtualmente impossível descobrir que uma pessoa tem um olho artificial, quando este é bem feito?
- Se a órbita conserva a forma normal e o olho foi bem adaptado, sim.
- O portador de um olho desses tem a possibilidade de o mover?
- Oh, sim.
- Como se mantém o olho artificial dentro da órbita?
- Pelo vácuo. O olho é encaixado de tal forma que praticamente se remove todo o ar existente na órbita.
- Seria difícil tirar um olho desses?
- Não é difícil, mas deve-se puxar para baixo a pálpebra, a fim de deixar entrar o ar na órbita.
- Isso deve ser feito pelo dono do olho?
- Sim. A pálpebra deve ser puxada para baixo.
- Muito para baixo. Doutor?
- Bem para baixo.
- Então - inquiriu Perry Mason - se um homem com um olho artificial bem adaptado estivesse a cometer um homicídio e se achasse curvado sobre a pessoa a quem estava assassinando, seria impossível que o olho de vidro caísse acidentalmente, não é verdade?
Pela sala apinhada ecoou um murmúrio.
- Sim - disse o Doutor Bates - seria virtualmente impossível.
- Portanto se um assassino que acabava de cometer o crime mostrasse uma órbita vazia, seria porque ele mesmo tinha propositadamente removido o olho artificial, não é assim, Doutor?
- Julgo que... sim. Isto é, desde que o assassino usasse um olho bem adaptado.
- Um olho como o primeiro que o procurador do distrito lhe entregou, e que se afirma ter sido encontrado na mão de Hartley Basset?
- Sim.
- Aquele olho, na sua opinião, foi cuidadosamente adaptado?
- Sim, senhor. Aquele olho foi feito por um perito. Mason agitou a mão.
- Estou satisfeito. Muito obrigado, Doutor.
Burger estava inclinado para a frente, as sobrancelhas franzidas numa atitude concentrada.
- ''A testemunha seguinte - disse o juiz Winters.
- Jackson Selbey - chamou o procurador.
Um homem bem vestido adiantou-se pomposamente, arrastando os pés, ergueu a mão bem tratada, prestou juramento, dirigiu-se para o banco das testemunhas, sentou-se, cruzou as pernas, e sorriu para Burger.
- O seu nome? - perguntou Burger.
- Jackson Selbey.
- Em que se ocupa Sr. Selbey?
- Sou gerente da Downtown Óptical Company.
- Há quanto tempo é gerente dessa companhia?
- Há quatro anos.
- Onde trabalhou antes disso?
- Na mesma companhia, mas como primeiro-caixeiro. Fui promovido a gerente na época mencionada.
- A Downtown Optical Company tem um sortido de olhos artificiais, Sr. Selby?
- Sim, senhor, um sortido muito completo.
- Esses olhos são feitos tão cuidadosamente como os fabricados pelos artifícies mais hábeis, a que aludiu o Dr. Bates no seu depoimento?
- São bastante bem feitos. São fabricados em várias combinações de cores, de maneira a emparelhar prontamente com qualquer olho normal.
- Do vosso sortido fazem parte olhos injectados?
- Não, senhor.
- Por que não?
- Porque tais olhos são procurados apenas por pessoas que não se poupam a despesas. Essas pessoas recorrem habitualmente a um dos especialistas de nome, ao passo que quem nos compra olhos artificiais, o faz para poupar dinheiro.
- Entretanto - perguntou Burger - nunca lhe pediram para fazer olhos injectados?
- Sim, senhor, pediram-me uma vez.
- Isso deu-se recentemente?
- Sim, senhor.
- Peço-lhe - disse Burger-, que olhe para as pessoas presentes nesta sala, e nos diga se já viu alguma delas no seu estabelecimento.
- Sim, senhor, já vi.
- Foi essa pessoa que encomendou o olho injectado a que o senhor se referiu?
- Sim, senhor.
- Quem é essa pessoa? Selbey apontou para Brunold.
- Foi o acusado, Brunold, que está ali sentado - disse.
Os olhos dos espectadores fixaram-se em Brunold. Brunold estava de braços cruzados sobre o peito, queixo ligeiramente caído para a frente, olhos imóveis.
- Quando é que ele encomendou os olhos injectados?- inquiriu Burger.
- No dia catorze deste mês, às nove horas da manhã.
- A que horas abre a Downtown Optical Company as suas portas?
- Às nove da manhã.
- Ele estava lá quando as portas se abriram?
- Sim, senhor.
- Que disse ele?
- Disse que necessitava de conseguir imediatamente um olho injectado. Declarou que queria um olho para substituir o que perdera na noite anterior.
- Mencionou a hora?
- Não, senhor.
- O Sr. Brunold não lhe disse em que circunstâncias tinha perdido o olho?
- Disse, sim. Quando lhe disse ser impossível fabricar o olho que ele desejava, com a urgência requerida, contou-me a história à guisa de explicação, creio que para conquistar a nossa simpatia.
- Quem se achava presente durante essa conversação?
- O Sr. Brunold e eu, apenas.
- Onde teve lugar a conversa?
- No consultório da Downtown Optical Company
- Que disse o Sr. Brunold?
- Declarou que tinha ido visitar uma antiga namorada que depois se casara com um homem muito ciumento; que, na noite anterior, quando falava com essa mulher, um dos empregados do marido dela bateu à porta. O Sr. Brunold disse que queria arrostar com o marido e pôr tudo em pratos limpos, mas a mulher recusara abandonar a casa porque seu filho tinha sido adoptado legalmente pelo marido. Disse que a mulher fingiu que estava a tomar banho, a fim de retardar a entrada do empregado e dar tempo a Brunold para escapar por uma janela. Acrescentou que o olho injectado, que costumava trazer consigo num bolso do colete, forrado de camurça, lhe caíra então do bolso, quando saltou pela janela; que temia que o olho fosse parar às mãos do marido e este lhe investigasse a procedência; que, se tal se desse, o marido descobriria umas quantas coisas que iriam prejudicar a mulher e a fariam vítima de uma grande injustiça.
“Disse mais que precisava imediatamente de um olho para tomar o lugar do outro que perdera, a fim de poder afirmar, ou, que não tinha perdido olho algum ou, se lhe parecesse mais vantajoso, que alguém lhe roubara o olho e o substituíra por uma imitação, visto recear que o ladrão tencionasse colocar o seu olho em sítio onde pudesse trazer complicações ao seu dono.
- E tem a certeza - interrogou Burger-, que o homem que lhe disse essas coisas foi o acusado, Peter Brunold, aqui presente?
- Sim, senhor.
Burger sorriu triunfante para Perry Mason.
- Agora, senhor advogado - disse-, pode inquirir. Perry Mason inclinou a cabeça, pôs-se em pé, e,
batendo belicosamente com os saltos dos sapatos no soalho, atravessou a sala do tribunal em direcção à mesa a que se achava sentado o procurador do distrito.
- Faça-me o favor de me passar aquele segundo olho, que foi marcado, para identificação, como instrumento de prova B - pediu.
Burger entregou-lhe o olho no sobrescrito fechado.
- Faça o favor de não se esquecer de repor o olho nesse sobrescrito, senhor Mason - recomendou Burger.
- Certamente - respondeu Mason. - Não estou interessado em que se confundam esses olhos, embora pudéssemos identificá-los, no caso de haver confusão.
Avançou para a testemunha, agitou o sobrescrito que continha o olho e inquiriu:
- Foi o olho contido neste sobrescrito, que o senhor conhece como instrumento de Prova B, que vendeu a Peter Brunold?
Selbey sacudiu a cabeça, e arrepanhou os lábios e num sorriso de triunfo.
- Não, senhor - disse, brandamente -, não foi.
- Não foi? - interrogou Mason, triunfante.
- Não, senhor. Nós não vendemos nenhum olho ao Sr. Brunold. Ele disse-nos, de facto, que queria um olho assim, e explicou o motivo, mas nós recusámo-nos a aceitar a encomenda.
A sala do tribunal borborinhava com o bulício de uma suspensão de trabalhos. Mason abandonou o seu lugar e dirigiu-se para um recanto relativamente sossegado do tribunal. Segundos depois, Paul Drake juntava-se a ele, discretamente. Abrindo uma pasta, tirou um jornal ainda húmido de tinta e passou-o ao advogado.
- Aí tem a história em letra de imprensa. Mason não olhou imediatamente para o jornal.
Dobrou-o e meteu-o debaixo do braço, com os olhos pregados no detective.
- Como é que você voltou? - inquiriu.
- Fretei o avião mais rápido que pude encontrar em Reno, e voei para cá enquanto o diabo esfrega um olho. Creio que fizemos uma média de duzentas milhas por hora, ou coisa parecida.
- Mesmo assim - volveu Mason - os fios telegráficos são mais ligeiros. Como é que só agora estão a sair estas notícias?
- Aqueles rapazinhos espertos de Reno procuraram abafar a história - disse-lhe Drake. - Pelo menos, era esse o plano que tinham quando me vim embora. Queriam obter uma confissão completa e não tencionavam publicar a notícia antes de a conseguirem.
- E conseguiram?
- Não sei.
Um dos adjuntos entrou na sala do tribunal com meia dúzia de jornais debaixo do braço. Precipitou-se para o procurador do distrito, entregou-lhe um jornal, e Burger, carregando o sobrolho, abriu-o bruscamente e pôs-se a ler.
- Quer dizer que você estragou o negócio. Paul? -'perguntou Mason.
- Bastante - disse o detective.
- Bom, então conte.
- Preferia que você lesse.
-Raios! - exclamou Mason, impaciente. - Posso ler a história que eles publicaram, mas o que me interessa é saber como as coisas se passaram, de facto.
- Segui as suas instruções - disse Drake, lentamente, conservando os olhos baixos - e tomei um avião para Reno. Quando lá cheguei, dirigi-me ao telégrafo, perguntei se havia telegramas, e recebi a mensagem de Della Street dizendo-me onde devia ir, a fim de apresentar os documentos. Meti o telegrama no bolso do casaco, fui para um hotel, reservei um quarto, tirei o casaco e lavei-me. Quando estava a lavar-me, veio um criado perguntar-me se eu precisava de toalhas - isto é, Perry, eu pensei, no momento, que ele fosse um criado.
- Continue - disse Mason, carrancudo. - Que se passou, depois?
- Nesse momento não dei por nada - respondeu Drake - mas depois, quando procurei o telegrama nos bolsos do casaco, não o encontrei. Mas isso só se deu um pouco mais tarde.
- Continue - disse o advogado, impaciente. - Conte-me tudo.
- Sinceramente, Perry, eu tinha feito o possível para não deixar rasto, e pensava que não tinha sido descoberto no avião.
- O aeroplano estava cheio? - perguntou Mason.
- Sim, com a lotação completa.
- Alguém procurou conversar consigo?
- Sim; dois sujeitos que tinham uma garrafa tentaram fazer camaradagem comigo. Não conseguiram nada, e então veio uma bonequinha. Agora que penso no caso, vejo como a coisa era suspeita, mas no momento pensei que fosse apenas uma pequena que, fazendo a sua primeira viagem de avião, estivesse um pouco assustada.
- Que fez ela?
- A pequena atirou-me um sorriso e, quando ia a passar pela minha cadeira, o aeroplano deu uma guinada, e ela caiu no meu colo... Oh demónios, você sabe como as coisas acontecem.
- Você disse-lhe alguma coisa? - inquiriu Mason.
- Não muito, no avião. Não se ouve bem, lá dentro. Mas, em Sacramento, paguei-lhe uma bebida.
- Conversaram, então?
- Um pouco.
- Você disse quem era?
- Dei-lhe o meu nome.
- Disse-lhe o que ia fazer?
- Não.
- Revelou-lhe a sua ocupação?
- Não.
- Não lhe prestou nenhuma informação?
- Não o bastante para causar dano ao serviço.
- De que falou ela?
- Não sei, Perry. Eu suponho que ela estava, apenas a querer conquistar-me e como a coisa me agradava, fingi acreditar que ela era uma estrela de cinema que ia para Reno a fim de conseguir divórcio; teimava em saber quem era, jurava que a tinha visto na tela num filme qualquer, mas dizia que não era muito frequentador dos cinemas, e por isso não me lembrava bem.
- Ela pareceu morder a isca? - perguntou Mason.
- Engoliu tudo.
- 'Era uma chamariz - disse o advogado.
- Naturalmente era - concordou Drake-, mas no momento não percebi.
- Que aconteceu depois? - inquiriu Mason.
- Depois de me lavar e beber alguma coisa no hotel - disse Drake-, desci e tomei um automóvel. Dei ao motorista o endereço do apartamento.
- Não olhou para o telegrama?
- Não, eu já o tinha lido, e lembrava-me do endereço.
- Adiante.
- Era uma casa de apartamentos. Toquei a campainha do apartamento, tomei um elevador e subi.
- Adiante - fez Mason, impaciente.
- Segui pelo corredor até ao apartamento da mulher. O corredor não estava muito iluminado. Tive de me servir duma lanterna eléctrica para encontrar o número. Bati ao de leve na porta. Ela abriu. Não tirei logo os papéis do bolso. Falei em voz baixa e fiz o melhor sorriso que pude, como se fosse alguém a quem a irmã dela tivesse pedido para ir visitá-la.
- Que disse você? - inquiriu Mason.
- Perguntei se ela se chamava Hanzel Fenwick. A pequena fez uma cara inexpressiva e disse: “Não”. Mostrei-me um pouco surpreendido e perguntei se ela não se chamaria Hazel Basset. Ao ouvir isto, a rapariga disse que não, que não era Hazel Basset, mas não fez nenhum movimento para fechar a porta. Eu estava a olhá-la bem de perto, vi que concordava com a descrição que eu tinha lido sobre a tal Fenwick, e portanto conclui que era tempo de a pôr na defensiva. Sem despregar os
olhos dela, tirei os papéis do bolso e disse que tinha ido lá para apresentar alguns papéis a Hazel Fenwick ou Hazel Basset. Ela respondeu devagar, como se tivesse aprendido a resposta de cor:
“Chamo-me Thelma Bevins, mas se o senhor tem papéis para apresentar a Hazel Basset, pode entregar-mos.” Bom, você sabe como se procede nesses casos. A gente não faz muitas perguntas. Achei que era só o que eu precisava, entreguei os papéis e ela pegou-Lhes. Nesse momento, ouvi alguém mover-se ao meu lado. Do outro lado, a porta dum apartamento vizinho abriu-se precipitadamente. Olhei e vi que o lugar estava cheio de homens. Não percebi a situação, mas sabia muito bem que ninguém poderia impedir-me de fazer entrega dos papéis; assim, meti os documentos na mão dela, e nesse instante começaram a brilhar explosões de magnésio. Só então compreendi o que se passava, mas já era muito tarde. Para me certificar, levei a mão ao bolso, procurando o telegrama. Não estava lá; os melros tinham feito um serviço rápido. Mandaram aquele falso criado revistar o meu casaco enquanto eu me lavava. Evidentemente sabiam que eu ia lá, e com que fim. Estavam à minha espera.
- Jornalistas? - perguntou Mason.
- Jornalistas e polícias.
- Que fizeram os polícias?
- Um deles - volveu Drake -, atirou-me um directo aos queixos. Esquivei-me, mas o punho era grande e esfolou-me um pouco a pele. Os outros deitaram a unha à pequena.
- E os papéis? - interrogou Mason.
- Estão entregues. Os homens empurraram-na pelo corredor, mas a rapariga continuava a segurar os papéis na mão direita.
- Sabe o que aconteceu depois?
- Certamente que sei o que aconteceu. Ouvi os homens tentando intimidá-la com as suas perguntas, enquanto a levavam pelo corredor. Queriam saber quem lhe pagara as despesas de viagem, porque tinha ido para Reno, quem lhe dissera que fosse, e tudo o mais.
- Que disse ela?
- Nada. Respondeu que não falaria enquanto não comunicasse com o seu advogado.
- E depois?
- Eu sabia que, quanto à minha missão em Reno, o caldo tinha sido entornado. Calculei que procurariam escondê-la até lhe arrancarem uma confissão. Sabia que você estava às voltas com este julgamento, e portanto fui para o aeroporto, pesquei o aviador que possuía o aeroplano mais rápido e... aqui me tem.
Perry Mason franziu meditativamente as sobrancelhas, abriu devagar o jornal, e leu os títulos:
TESTEMUNHA DUM CRIME DESCOBERTA EM RENO
DECLARAÇÕES QUE COMPROMETEM ADVOGADO LOCAL
O PROCURADOR DO DISTRITO INFORMA QUE O ASSUNTO
SERÁ LEVADO AO GRANDE JÚRI
Mason dobrou lentamente o jornal.
- Lamento muito, Perry - disse Paul Drake.
- Porquê? - inquiriu Mason.
- Porque isso o mete numa boa alhada. A rapariga não deve saber calar-se.
- Diga-me - atalhou Mason. - Ela insiste em permanecer em Nevada?
- Não sei - disse Drake pausadamente.
- Cuidado - recomendou Mason em voz baixa.- O procurador do distrito encaminha-se para aqui.
Burger observou Perry Mason com um sorriso gélido e disse em tom de quem brinca com a sua vítima como um gato com o rato:
- Se o senhor não põe nenhuma objecção, Sr. Mason, gostaria de pedir o adiamento desta inquirição, a fim de comparecer perante o Grande Júri para tratar de um assunto muito importante.
- Não poderia - perguntou Perry Mason-, mandar um dos seus adjuntos tratar do caso perante o Grande Júri, de modo que nós pudéssemos continuar esta inquirição?
- Provavelmente não - tornou Burger. - De resto, isso em nada o beneficiaria.
- Por que não? - interrogou Mason.
- Porque - disse Burger-, o senhor também terá de comparecer perante o Grande Júri. É um caso relacionado com a súbita viagem a Reno de uma certa Hazel Fenwick.
- Oh! - fez Mason-, Hazel Fenwick está cá?
- Chegará dentro em breve. Burger deu mostras de exasperação:
- Bem sabe que ela se achava em Reno. Ela disse aos polícias que o senhor lhe pagou as despesas de viagem. Até agora, foi só o que disse. Pretende que se chama Thelma Bevins, mas quando ela chegar e for identificada, há-de cantar uma cantiga muito diferente.
A sala do tribunal agitou-se. O juiz Winters ocupou a presidência. O bater do martelinho obrigou os espectadores a um silêncio atento. Quando defensor e acusador ocuparam os seus lugares na teia, o juiz Winters baixou os olhos para Perry Mason. Tinha um aspecto severo. Não disse claramente que havia lido os jornais, mas o tom da sua voz era significativo quando, cravando os olhos em Perry Mason, perguntou:
- Deseja continuar, senhor advogado?
Perry Mason devolveu-lhe o olhar com firmeza.
- Sim, senhor presidente - disse.
O juiz Winters fez um aceno de cabeça ao procurador do distrito.
- Prossiga - disse.
O procurador do distrito virou-se para um dos oficiais de justiça e inclinou a cabeça.
O homem aproximou-se de Perry Mason, estendendo um papel dobrado.
- Senhor juiz - disse o procurador do distrito-, deram-se vários sucessos surpreendentes, embora não inteiramente inesperados, relacionados com este caso e com outro assunto que, embora não directamente, tem, não obstante, ligação com ele. Por causa desse outro assunto, ser-me-á necessário pedir uma breve suspensão desta inquirição, dentro de uma hora aproximadamente.
O juiz Winters carregou o sobrolho. Burger continuou:
- Julgo não estar violando nenhum segredo, senhor Presidente, ao esclarecer que esse assunto está a ser investigado pelo Grande Júri, e que me será necessário comparecer perante ele.
- A defesa - perguntou o juiz Winters, - tem alguma objecção a fazer?
Antes que Mason pudesse dizer alguma coisa, Bur-ger.erguendo a voz, atalhou:
- A defesa não pode ter nenhuma objecção a fazer, pois uma das primeiras testemunhas a serem chamadas pelo Grande Júri é nem mais nem menos que Perry Mason, o advogado dos réus.
- Senhor Presidente - retorquiu Mason -, essa observação era desnecessária. Tenho na mão uma intimação para comparecer ante o Grande Júri, intimação que, evidentemente, esteve retida em poder de um oficial de justiça e podia ter sido apresentada a qualquer momento antes do início dos trabalhos. Sem embargo, esse documento foi apresentado a um sinal do procurador do distrito, para e simplesmente com o fim de fazer saber publicamente ao Tribunal e aos espectadores que eu estava intimado a comparecer, como testemunha, perante o Grande Júri. Isto não passa de um golpe espectacular.
O juiz Winters hesitou um momento, e Burger, voltando-se belicosamente para Perry Mason, disse:
- Pelo que vejo, o senhor não suporta que lhe façam o que costuma fazer aos outros.
O juiz Winters, bateu com o martelinho.
- Basta, senhor procurador do distrito - disse.- Que não se verifiquem novas observações pessoais dessa natureza, e asseguro ao advogado de defesa que o Tribunal não se deixará influenciar na sua decisão pelos comentários do procurador. A audiência vai prosseguir.
Perry Mason, segurando a intimação na mão, virou-se para observar as fisionomias dos presentes, e viu Della Street com um jornal na mão, fazendo gestos significativos.
Perry Mason inclinou quase imperceptivelmente a cabeça e lançou-lhe um rápido piscar de olhos.
- A testemunha seguinte - disse o juiz Winters.
- George Purley - anunciou Burger.
Quando Purley acabou de prestar juramento, Burger inquiriu:
- Chama-se George Purley, e está empregado desde algum tempo como perito em grafologia e impressões digitais no departamento da polícia?
- Sim, senhor.
- A catorze deste mês teve ocasião de ir a casa de Hartley Basset?
- Sim.
- Atentou no corpo do homem que jazia sobre o soalho do escritório de Basset?
- Sim.
- Viu uma máquina de escrever portátil sobre a mesa, próximo do corpo?
- Vi, sim, senhor.
- Viu uma folha de papel dactilografada, que estava na máquina de escrever?
- Sim, senhor.
- Seria esta folha de papel?
- É a mesma.
- Procedeu a algum exame para averiguar se as palavras escritas nesta folha de papel tinham sido dactilografadas na máquina em que o papel foi encontrado?
- Sim.
- Que revelou esse exame?
- Mostrou de modo concludente que as palavras não foram escritas naquela máquina, mas sim numa outra que posteriormente se encontrou na casa.
- Onde?
- No quarto de dormir da Sr." Basset.
- Ela fez na sua presença alguma declaração relativa à máquina?
- Sim, senhor.
- Que disse ela?
- Disse que a máquina era sua, e que a usava para a sua correspondência particular; que umas vezes dactilografava pessoalmente a sua correspondência, e outras pedia a um dos empregados de seu marido que a escrevesse.
- Ela fez alguma referência às suas habilitações como dactilógrafa?
- Sim, senhor; disse que fora dactilógrafa profissional durante alguns anos, e que usava o sistema táctil.
- Que quer dizer sistema táctil?
- É um sistema de escrever à máquina em que o operador não olha para as teclas, batendo-as unicamente guiado pelo tacto.
- Há casos em que se pode dizer se a pessoa que usou a máquina se serviu do sistema táctil?
- Sim, senhor; uma certa uniformidade de impressão, mostrando que todas as teclas foram batidas aproximadamente com a mesma força, conduzem a essa conclusão. No chamado sistema a dois dedos, ou sistema visual, como a pressão é menos mecânica, as teclas são batidas com força desigual, e há uma ligeira diferença nas impressões produzidas pelos tipos sobre o papel.
- Na sua opinião, Sr. Purley, este papel foi escrito noutra máquina que não aquela em que foi encontrado, e por uma pessoa que usa o sistema táctil, não é assim?
- Sim, senhor; este documento foi, sem sombra de dúvida, dactilografado na Remington Portátil que se encontrou no quarto de dormir da Srª Basset. A meu ver, foi escrito por uma pessoa que se serviu do sistema táctil, e que era, ou pelo menos tinha sido em tempos, dactilógrafa profissional.
- Pode inquirir - disse Burger, voltando-se para Mason.
- Se entendi bem o seu depoimento - disse Mason - este papel foi dactilografado na máquina que posteriormente se encontrou no quarto da Srª Basset. Depois de dactilografado, levaram-no para o aposento onde se achou o cadáver, e introduziram o papel no cilindro da máquina. É assim?
- Sim, senhor.
- Muito obrigado - disse Mason. - É tudo.
O juiz Winters tomou um apontamento no seu canhenho, inclinou a cabeça para Burger, e disse:
- A sua testemunha seguinte, senhor Promotor.
- Arthur Colemar - chamou Burger.
Colemar apresentou-se, prestou juramento, e sentou-se no banco das testemunhas, piscando os olhos cinzentos, como se estivesse ligeiramente aturdido com o ambiente.
- Chama-se Arthur Colemar?
- Sim.
- Qual é a sua ocupação, e com quem tem trabalhado ultimamente?
- Era secretário do Sr. Hartley Basset.
- Há quanto tempo era empregado dele? -Há três anos.
- Quando o viu pela última vez? - A catorze do corrente.
- Estava vivo ou morto?
- Morto.
- Onde se achava?
- No seu escritório da retaguarda.
- Como lhe aconteceu vê-lo lá nesse dia?
- Eu tinha ido a um espectáculo. Ao voltar, encontrei a casa em confusão. Corria gente de um lado para o outro, aparentemente muito excitada. Perguntei a causa do reboliço, e disseram-me que o Sr. Basset estava morto.
Alguém me conduziu ao escritório para que o identificasse.
- Creio - disse Burger - que provei o corpo de delito, de modo que não entrarei em maiores detalhes sobre a morte. Desejo evidenciar certos outros factos, por intermédio desta testemunha.
O juiz Winters inclinou a cabeça. Mason nada disse.
- Conhece bem a acusada, a Srª Sílvia Basset?
- Sim, senhor.
- O Sr. Basset tinha o escritório na própria casa?
- No mesmo edifício, sim. A casa fora primitivamente construída como habitação dupla.
- O Sr. Basset reservara a parte oriental da casa para seu escritório, não é verdade?
- O pavimento inferior da parte oriental, sim, senhor.
- Onde dormia o senhor?
- No andar de cima, nas traseiras da casa.
- Onde trabalhava?
- Na parte da casa que o Sr. Basset destinara ao seu escritório.
- O senhor tinha, de quando em quando, ocasião de falar com a Srª Basset?
- Sim, frequentemente.
- Nunca teve ocasião de conversar com ela a respeito do total dos seguros de vida que o Sr. Basset pagava?
- Sim, senhor.
- Quando teve lugar essa conversa?
- Uns três dias antes da morte do Sr. Basset.
- Quem se achava presente?
- Apenas a Srª Basset, Richard Basset e eu.
- Onde se travou a conversação?
- No corredor, ao alto da escada, junto à porta do quarto da Srª Basset.
- Que palavras foram trocadas?
- Ela perguntou se eu estava ao par dos negócios do Sr. Basset, e eu respondi que sim. Perguntou a quanto montavam exactamente as apólices de seguros de vida que o Sr. Basset pagava. Repliquei que achava melhor tratar ela desse assunto com o Sr. Basset. Ela disse-me que não fosse tolo, que o seguro fora feito no seu interesse, e acrescentou, tanto quanto posso recordar agora: “Colemar, você bem sabe que sou eu a beneficiária do seguro.” Não respondi, e passado um momento ela perguntou: “Sou eu não é”? Então, eu disse: “Naturalmente, Sr.H Basset, se a senhora põe a questão nesses termos, não há motivo para que eu a contradiga, mas preferia que a senhora fosse falar sobre esses seguros com o Sr. Basset”. Ela disse que lhe parecia que o Sr. Basset pagava muitos seguros, e ia pedir-lhe que cancelasse algumas apólices.
- Não especificou quais apólices?
- Não, senhor.
- Então, o propósito dessa conversa era certificar-se de que Basset mantinha...
- Impugno a pergunta por argumentativa e por pedir a opinião pessoal da testemunha - atalhou Perry Mason. - Este homem não está a prestar depoimento sobre o objectivo das perguntas da acusada. As palavras falam por si.
- Defiro - disse o juiz Winters.
- Bem - prosseguiu Burger, com uma expressão de ferrenha decisão - conhece o Sr. Peter Brunold, um dos acusados neste processo?
- Conheço, sim, senhor.
- Quando travou conhecimento com ele?
- Há dez dias, ou uma semana, não sei ao certo.
- Como foi isso?
- Ele ia a sair da casa do Sr. Basset no momento em que eu cheguei de automóvel. O Sr. Brunold disse que tinha ido procurar o Sr. Basset, mas que o Sr. Basset havia saído, e perguntou-me se sabia quando é que ele voltaria.
- Que respondeu o senhor?
- Respondi que o Sr. Basset voltaria tarde.
- Brunold ia a sair da casa nesse momento?
- Sim, senhor.
- Onde tinha estado o senhor?
- Tinha ido executar algumas incumbências do Sr. Basset.
- E conduzia o carro do Sr. Basset?
- Sim, senhor, o Sedan grande.
- Foi essa a primeira vez que viu o Sr. Brunold?
- Sim, senhor.
- Tornou a vê-lo posteriormente?
- Sim, senhor.
- Quando?
- Na noite do crime.
- Onde?
- Ia a fugir da casa.
- Da casa do Sr. Basset?
- Sim, senhor.
- Vamos tratar de evitar qualquer equívoco sobre esse ponto. Quando o senhor fala da casa, refere-se à casa onde o Sr. Basset tinha o seu escritório, e onde morava?
- Sim, senhor.
- E o senhor diz que viu o Sr. Brunold a fugir dessa casa?
- Exactamente.
- A que horas foi isso?
- Acabava de regressar do espectáculo a que aludi.
- Regressava a pé?
- Sim, senhor.
- Falou com o Sr. Brunold?
- Não, senhor, não falei. O Sr. Brunold não me viu. Passou a correr do outro lado da rua.
- Podia vê-lo distintamente?
- Não, mas quando ele passou debaixo dum candeeiro, pude ver-lhe bem as feições. Foi então que o reconheci.
- Que aconteceu depois?
- Aproximei-me da casa e vi que ocorria algo fora do comum. Vi vultos a correr para cá e para lá, diante das janelas. Moviam-se rapidamente.
- Viu alguma coisa?
- Vi a Srª Basset e seu filho, Richard Basset.
- Que estavam a fazer?
- Estavam inclinados sobre alguém, na sala de visitas. Então, a Srª Basset correu a chamar Edith Brite, que saiu à pressa da outra parte da casa e entrou na dita sala.
- Que fez o senhor?
- Fui à sala e perguntei o que havia. Vi que alguém estava deitado no sofá. Pensei que talvez fosse o Sr. Basset. Perguntei se ele estava ferido. A Srª Basset colocou-se na minha frente e empurrou-me para fora. Disse-me que fosse para o meu quarto e ficasse lá.
- Que fez o senhor?
- Obedeci e fui para o quarto.
- Pode inquirir - disse Burger, voltando-se para Mason.
- Mais tarde, o senhor foi ao gabinete e identificou o cadáver de Hartley Basset, não é assim? - inquiriu Mason.
- Sim, senhor.
- O senhor não ouviu dizer, então, que a rapariga que estava deitada no sofá quando o senhor regressou do espectáculo cinematográfico, poderia reconhecer o homem que vira sair do gabinete?
- Sim, senhor; ouvi falar da existência de tal testemunha.
- Ela estava num aposento escuro, mas a luz vinha-Lhe por trás do ombro, de modo que, embora as suas próprias feições estivessem na sombra, a luz iluminou as feições do homem depois que ela lhe arrancou a máscara do rosto, não é assim?
- Ouvi dizer que era esse o caso, sim.
- Qual é o fim disso? - perguntou Burger. - O senhor está a procurar introduzir testemunhos indirectos nos autos. Impugno toda e qualquer afirmação baseada no que Hazel Fenwick possa ter dito.
- Isto - observou Mason - é a parte das res gestae. Tenho o direito de pôr à prova a recordação que esta testemunha conserva dos factos ocorridos imediatamente após a sua chegada à casa.
- Mas - advertiu Burger - unicamente com o fim de comprovar a nitidez das suas recordações, e não para estabelecer o que ocorreu.
- Até agora, é só o que estou fazendo.
- Muito bem - disse Burger. - Desde que fique
entendido que as suas perguntas têm apenas esse propósito, não porei objecção.
Mason voltou-se para Colemar.
- Agora - disse-, se um homem usa máscara, é porque deseja ocultar a parte característica da sua fisionomia, não?
- Essa pergunta, senhor advogado - disse o juiz Winter - é argumentativa.
- Não impugnarei - disse Burger. - Tenciono dar inteira liberdade ao defensor.
- Obrigado - disse Perry Mason. - Estas perguntas são preliminares. Eu queria apenas chamar a atenção da testemunha para um ou dois pontos, a fim de preparar uma base para algumas perguntas que pretendo fazer mais tarde.
- Continue, senhor advogado - disse o juiz Winters.
- Não lhe pareceu inverosímil - perguntou Mason - que um homem, servindo-se de uma máscara para cobrir a parte mais característica da sua fisionomia, fosse deixar ver uma órbita vazia através da máscara, pondo assim à mostra a parte mais característica das suas feições?
- Não sei ao certo, senhor - respondeu Colemar.
- Estou a perguntar-lhe simplesmente - disse Mason- se essa parte da narração de Miss Fenwick não lhe pareceu absurda, no momento?
- Não, senhor, acho que não.
- O tiro fatal foi disparado de um revólver que estava oculto debaixo de um cobertor e de um acolchoado, com os quais se abafou o estampido, não é assim? - inquiriu Mason.
- Foi o que eu deduzi da minha inspecção ao local, senhor.
- É perfeitamente óbvio - disse Mason - que um homem mascarado não poderia entrar no gabinete do Sr. Basset com um acolchoado e um cobertor dobrados em cima do braço, e aproximar-se da vítima o suficiente para dar um tiro sem alarmar o Sr. Basset, não é verdade?
- Suponho que sim.
- No entanto, a julgar pela posição em que se encontrou o corpo do Sr. Basset, dir-se-ia que ele estava sentado à sua secretária, e tombou para a frente quando foi desfechado o tiro. O Sr. Basset não lutou, nem puxou
do revólver que trazia num coldre, debaixo do braço, não é assim?
- Senhor Presidente - interrompeu Burger -, essas perguntas são francamente argumentativas. A testemunha não é um perito, e...
Houve um alvoroço ao fundo da sala do tribunal. Pessoas revolviam-se, agastadas, de um lado para o outro, em pequenos redemoinhos humanos. Uma voz de homem, gritou; “Polícia! Abram caminho.”
O juiz Winters bateu com o martelo e olhou para o fundo da sala, com uma expressão fisionómica em que lutavam a irritação do juiz e a curiosidade do homem.
Burger levantou-se de um salto.
Perry Mason ergueu a voz e bradou:
- Senhor Presidente: peço que me seja concedida a inteira atenção do tribunal e desta testemunha. Se, por qualquer razão, isso for impossível, exijo que a testemunha seja retirada até que eu tenha ensejo de inquiri-la sem que a atenção, tanto da testemunha como do tribunal, seja distraída.
- Ia sugerir isso mesmo - murmurou Burger. O juiz bateu com o martelinho repetidas vezes.
- Ordem! - gritou. - Se não mando evacuar a sala.
- Se o tribunal o permite - insistiu Burger cortesmente mas com voz firme e decidida-, concordo de bom grado em que se retire a testemunha. Neste momento, uma testemunha importantíssima está a entrar na sala do tribunal. Creio que esta testemunha trará provas decisivas da culpabilidade de Brunold.
- Impugno essa declaração como imprópria e argu-mentativa - bradou Mason.
Burger, rubro de cólera, exclamou:
- O senhor está a lançar uma cortina de fumo para desviar as atenções. Terá muito com que se preocupar daqui a pouco...
- Ordem! - interrompeu o juiz Winters. - Hei-de manter a ordem neste tribunal, e não admitirei novas disputas pessoais entre as partes. Calem-se ou mando evacuar a sala.
Fez-se, enfim, um pouco de silêncio. Burger, de rosto vermelho, disse em voz engasgada:
- Perdi a presença de espírito, senhor Presidente. Peço perdão ao tribunal.
- As suas desculpas não são aceites - disse severamente o juiz Winters. - Este tribunal já o advertiu de que se devia abster de disputas pessoais com o advogado de defesa. Que quer o senhor, finalmente?
Burger dominou-se com visível esforço. Tinha a voz tensa e rouca.
- Quero retirar o Sr. Colemar do banco das testemunhas, a fim de dar lugar a esta outra testemunha. Gostaria, no entanto, de obter cinco minutos de suspensão dos trabalhos.
- Se - disse Mason-, o senhor Promotor deseja chamar esta testemunha a prestar depoimento, deveria fazê-lo sem primeiro a interrogar em particular.
- Senhor Presidente - protestou Burger-, esta testemunha ausentou-se da jurisdição do tribunal. Terei de tratá-la como testemunha hostil, mas as suas declarações são da máxima importância.
- Está a referir-se a Hazel Fenwick?- perguntou o juiz Winters.
- Sim, senhor Presidente.
O juiz Winters inclinou a cabeça.
- Sr. Colemar; pode abandonar o banco das testemunhas. Que Miss Fenwick se apresente.
- Os agentes que a acompanham terão de abrir caminho, senhor Presidente; os corredores estão apinhados- observou Burger.
- Mande evacuar os corredores!
- Se nós pudéssemos suspender os trabalhos por alguns instantes... suplicou Burger.
O juiz Winters vacilou por um momento; depois disse:
- O tribunal suspenderá os trabalhos por cinco minutos.
Dois agentes irromperam pelo corredor, conduzindo entre eles uma mulher muito pálida.
Erguendo-se do seu assento, o juiz Winsters, mirou-a um instante com curiosidade, e retirou-se para o seu gabinete.
Todos os olhares se fixaram na jovem de cabelos escuros.
Ela atirou a Perry Mason um olhar suplicante, angustiado, e logo desviou rapidamente os olhos. Os agentes empurraram-na para a frente. Alguém abriu a porta de
mogno, e a jovem penetrou no espaço reservado aos advogados.
Burger circunvagou um olhar inquiridor em torno de si, depois tomou Thelma Bevins pelo braço, conduziu-a a um canto da sala, junto à secretária do estenógrafo do tribunal, e começou a falar-lhe em voz baixa.
Ela sacudiu teimosamente a cabeça. Burger fez uma careta, lançou uma barragem de comentários sussurrados, e depois pareceu fazer uma pergunta. Ela ia a volver os olhos para Perry Mason, mas caiu em si antes de ter virado completamente a cabeça na direcção do advogado, tornou a fixar os olhos em Burger e apertou os lábios.
A rouca ameaça de Burger tornou-se audível para os que estavam sentados na primeira fila de cadeiras da sala do tribunal.
- Por Deus - dizia-, se você recorre a essas manhas, vou colocá-la no banco das testemunhas sob juramento, e obrigá-la a falar. Isto é uma inquirição preliminar. O que quer que tenha a dizer em relação ao caso, será de capital importância. Se mentir, processá-la-ei por perjúrio, e se não falar o juiz mandá-la-á encarcerar por desrespeito ao tribunal.
Ela conservou os lábios cerrados.
Burger lançou um olhar furibundo a Perry Mason que, com gentil indolência, acendia um cigarro.
Burger tirou do bolso um relógio e disse na mesma voz rouca:
- Vou dar-lhe mais uma oportunidade. Você tem justamente sessenta segundos para falar, e falar depressa.
E calou-se, de olhos cravados no relógio. Thelma Bevins, muito hirta, fixava os olhos desdenhosos ao longe, o rosto muito branco, os lábios cerrados.
Um repórter empreendedor, valendo-se do facto do tribunal se não achar em sessão, ergueu uma lâmpada de magnésio e bateu a chapa - um retrato que mostrava Thelma Bevins sombria e desafiadora, e Burger, belicoso e impaciente, segurando o relógio, enquanto, em último plano, Perry Mason os observava com uma expressão sarcástica, tirando baforadas do cigarro.
Burger virou-se rapidamente para o repórter e bradou:
- Não pode fazer isso!
- O tribunal não está em sessão - retorquiu o repórter, dando meia volta e abrindo caminho através da multidão, com a sua preciosa chapa.
Burger meteu o relógio no bolso.
- Muito bem - disse a Thelma Bevins-, você fez a sua cama. Agora pode deitar-se nela.
A rapariga não deu mostras de ter ouvido, mas permaneceu de olhos fixos, tão rígida como se tivesse sido esculpida em mármore.
- O juiz reentrou na sala, ocupou a sua cadeira e anunciou:
- O tribunal recomeça os trabalhos. Os senhores estão prontos para continuar o julgamento?
- Inteiramente prontos, senhor presidente - volveu Perry Mason.
Burger mostrava-se furioso.
- Hazel Fenwick - chamou. A mulher não se moveu.
- Você não ouviu?! - gritou Burger. - Suba ao estrado das testemunhas. Levante a mão, preste juramento e depois sente-se naquele banco.
- Não me chamo Hazel Fenwick.
- Como se chama?
- Thelma Bevins.
- Muito bem, então, Thelma Bevins. Levante a mão para prestar juramento, e depois suba ao estrado das testemunhas.
Ela titubeou um momento, e ergueu a mão direita. O escrivão ditou o juramento. Thelma Bevins dirigiu-se para o banco das testemunhas e sentou-se.
- Como se chama? - perguntou Burger em voz alta.
- Thelma Bevins.
- Nunca usou o nome de Hazel Fenwick?
- Ela hesitou.
Perry Mason falou em voz suave e um tanto protectora.
- Bem, Miss Bevins •- disse - se não quere responder a essa pergunta, não precisa fazê-lo.
Burger voltou-se bruscamente para ele e inquiriu:
- O senhor apresenta-se como advogado desta testemunha?
- Sim, uma vez que o pergunta.
- Isso - disse Burger - coloca-o numa posição
bastante duvidosa, especialmente em vista da questão suscitada pelo facto de o senhor a ter ajudado a ausentar-
- se deste estado.
Mason fez uma mesura e disse:
- Obrigado, senhor promotor. Sou perfeitamente capaz de avaliar as consequências dos meus actos. Repito, Miss Bevins, a senhora não é obrigada a responder a essa pergunta.
- Mas ela tem de responder - fez Burger, voltando-se novamente para a testemunha e apontando-lhe um dedo. - A senhora tem de responder a essa pergunta. É uma pergunta pertinente, e eu exijo resposta.
O Juiz Winters inclinou a cabeça e disse:
- Acontece, senhor Mason, que ao tribunal compete determinar quais as perguntas que devem ser respondidas e quais as que podem não ser respondidas. Esta pergunta é pertinente, e portanto ordeno-lhe que responda. No caso de não o fazer, serei obrigado a puni-la por desrespeito ao tribunal.
Perry Mason dirigiu um sorriso tranquilizador a Thelma Bevins.
- Não é obrigada a responder - disse.
O Juiz Winters soltou uma exclamação. Burger girou nos calcanhares para encarar Mason.
Perry Mason continuou no mesmo tom de voz, como se tivesse apenas feito uma pausa no meio da frase:
- ...se acha que a resposta poderia incriminá-la, tudo o que tem a fazer, Miss Bevins, é dizer: “Nego-me a responder, baseada no meu privilégio constitucional, porque a resposta poderia incriminar-me.” Depois de ter dito isso, não há poder na terra que a obrigue a responder à pergunta.
Thelma Bevins atirou-lhe um sorriso, e disse:
- Recuso-me a responder à pergunta, baseada no meu previlégio constitucional, porque a resposta poderia incriminar-me.
Um silêncio mortal caiu sobre a sala. Por fim, Burger suspirou. O suspiro era uma eloquente confissão de derrota.
Virou-se uma vez mais para Thelma Bevins.
- A senhora - perguntou - estava na residência de Basset quando Hartley Basset foi assassinado, não é verdade?
Ela relanceou os olhos para Perry Mason.
- Recuse-se a responder à pergunta -disse Perry Mason.
- Como pode a resposta a uma pergunta dessas incriminá-la? - perguntou Burger ao Juiz Winters.
Mason encolheu os ombros e disse:
- Se é que eu interpreto correctamente a lei, acho que à testemunha compete decidir isso por si mesma.
Thelma Bevins, tomando a deixa das observações de Perry Mason, sorriu.
- De qualquer modo, recuso-me a responder à pergunta, o que deve liquidar o caso.
O Juiz Winters pigarreou mas não disse nada. Burger carregou o cenho, e tentou outra linha de ataque.
- Conhece Perry Mason? - inquiriu.
O Juiz Winters, inclinando-se para diante, disse com solenidade judicial:
- Certamente, qualquer que seja a resposta, não conterá nada que possa tentar incriminá-la. O Tribunal, portanto, ordena-lhe que responda à pergunta.
- Conheço - respondeu a testemunha.
- A senhora foi ao estado de Nevada por sugestão de Perry Mason?
Ela volveu um olhar aturdido a Perry Mason.
- Mason disse:
- Também aconselho a testemunha a não responder a essa pergunta, de acordo com o seu direito constitucional, mas, para benefício do Tribunal e do senhor promotor, declararei que fui eu quem sugeriu a essa jovem que fosse a Reno, e que fui eu quem lhe pagou a passagem.
Tivessem batido no rosto do procurador do distrito com uma toalha molhada, e ele não poderia mostrar maior surpresa.
- O senhor o quê?
- Paguei a passagem desta jovem para Reno, e sugeri-lhe que fosse àquela cidade - disse Perry Mason. - Paguei, também, as despesas da sua estada lá.
- E o senhor está a actuar como advogado desta jovem? - perguntou Burger.
- Sim.
- E recusa-se a permitir-lhe que responda a qualquer pergunta?
- Nego-lhe permissão para responder às perguntas
que o senhor fez até agora, e creio que não lhe permitirei responder a qualquer outra pergunta que o senhor faça. Burger encarou novamente a testemunha.
- Há quanto tempo conhece Richard Basset?
- perguntou.
- Recuse-se a responder a essa pergunta - disse Perry Mason - sob a alegação de que a resposta poderia incriminá-la.
O Juiz Winters inclinou-se sobre a mesa a fim de fixar os olhos em Perry Mason.
- Senhor advogado -disse - o Tribunal começa a suspeitar que o senhor aconselha esta testemunha a não responder às perguntas, sob a alegação de que as respostas poderiam incriminá-la, não porque lhe pareça que as respostas a poderiam incriminar, a ela. mas porque acha que as respostas poderiam incriminá-lo ao senhor. O Tribunal vai dar-lhe uma oportunidade de ser ouvido a tal respeito, e se se tornar manifesto que é esse o seu objectivo, o Tribunal tomará medidas drásticas.
- Dar-me-ão uma oportunidade para me explicar?
- perguntou Perry Mason.
- Sim, certamente - replicou o Juiz Winters com dignidade.
- Muito bem - volveu Perry Mason. - Nestas circunstâncias, torna-se necessário fazer uma exposição que eu esperava não ser obrigado a fazer.
“Na noite em que Hartley Basset foi assassinado, uma jovem esperava, num dos gabinetes do seu escritório, ser recebida por ele. Enquanto esperava, e num momento que parece ter sido imediatamente após o crime, apareceu um homem no aposento. Estava com o rosto coberto com uma máscara feita de papel químico. Nessa máscara, dois buracos haviam sido cortados para os olhos. Por um desses buracos, via-se uma órbita vazia.
O Juiz Winters atalhou com rispidez:
- Senhor advogado: isso tem algo que ver com esta jovem ou com o motivo pela qual ela se recusa a responder às perguntas?
- A questão não é essa, senhor Juiz - retorquiu Perry Mason. - A questão é de eu aconselhar a testemunha a não responder. Vou explicar esse ponto; e, asseguro-lhe, quando tiver terminado, tenho a certeza de
que o senhor verá como tudo o que digo é pertinente, embora parte da minha exposição possa parecer argumentativa.
- Muito bem - fez o Juiz Winters; - Prossiga.
- A rapariga gritou. O homem vibrou-lhe uma pancada. Ela deitou a mão à máscara e arrancou-a, conseguindo ver as feições do homem. Devido a uma disposição especial da luz, o homem não podia distinguir-lhe as feições. Ele golpeou novamente a jovem, deixou-a em estado de inconsciência, e provavelmente julgou tê-la assassinado. Então fugiu. Ora, senhor Presidente, essa mulher é, segundo parece, a única pessoa viva que viu a fisionomia do homem que saiu daquele escritório imediatamente depois de se cometer o crime.
- Bem - disse o juiz Winters - os seus próprios argumentos me convencem, senhor advogado, de que é uma falta gravíssima procurar impedir a apresentação dessa prova, e uma falta duplamente grave fazer sair tal testemunha da jurisdição do tribunal.
- Não estou a discutir esse ponto, presentemente - volveu Mason. - Estou apenas a explicar por que aconselhei esta jovem a não responder às perguntas sob o fundamento de que as respostas poderiam incriminá-la.
- A situação, senhor advogado - observou o juiz Winters - é das mais pasmosas.
- Não digo que não - concordou Mason. - Estou simplesmente a procurar apresentar a explicação que prometi.
- Muito bem. Continue.
- É óbvio - disse Perry Mason - que a máscara foi improvisada. O homem que entrou no escritório de Basset veio preparado para cometer um homicídio. Entrou preparado para matar com arma de fogo, e, não obstante, tomou precauções para que se não ouvisse a detonação. Por outras palavras: trouxe o revólver escondido debaixo de um acolchoado e de um cobertor, que tinha o duplo fim de ocultar o revólver à vítima e abafar o estampido do tiro. Isso revela premeditação. Deve também ter preparado, com antecedência, uma carta dactilografada, confessando o suicídio, a fim de a deixar na máquina de escrever de Basset.
- O senhor - observou o juiz Winters, franzindo o
sobrolho - está agora a apresentar argumentos contra o seu cliente.
A voz de Perry Mason continuou cortês:
- Eu estou agora, senhor Juiz, a procurar dar pacientemente, a explicação que o senhor me pediu, a explicação da minha atitude ao sugerir a essa jovem que não respondesse às perguntas.
- Mas está violando a ética profissional ao voltar-se contra o cliente a quem representa - observou o Juiz.
- Não tenho necessidade - volveu Perry Mason - de que este Tribunal me ensine a ética da minha profissão ou os meus deveres para com os meus clientes.
- Muito bem - disse o juiz Winters, carrancudo - continue com a sua explicação e seja breve. A menos que a explicação seja satisfatória, o senhor será punido por desacato.
- Infelizmente - disse Mason - a explicação tem de ser completa para ser explicação. Estou a chamar a atenção do Tribunal para diversos pormenores significativos. Um deles é que, se o homem não tivesse planeado retirar-se pelo gabinete anterior, depois de cometer o crime, teria preparado a máscara com antecedência. O crime revela premeditação. A retirada, não. A máscara foi feita à pressa. Foi arranjada com o material que tinha à mão, depois de cometido o crime.
Ora, senhor Presidente, o que eu quero demonstrar é que o plano de fuga, esse plano de mostrar um rosto coberto de máscara com uma órbita vazia, nasceu no cérebro do assassino depois de cometer o crime, pela simples razão de só depois de cometido o crime, o assassínio ter compreendido a significação potencial do olho de vidro que a vítima segurava na mão.
“É impossível que o olho de vidro tenha caído acidentalmente da órbita do assassino, ou que tenha sido arrancado por Basset durante a luta. Um olho de vidro deve ser retirado cautelosamente, se é, como esse, um olho artificial bem adaptado. Logo, por que havia o assassino de tirar propositadamente o seu olho de vidro e mostrar propositadamente a órbita vazia a uma testemunha? Só há uma razão, senhor Presidente, e é que o assassino estava seguro de que ninguém o sabia portador de um olho artificial, mas que um dos suspeitos que seria ouvido pela polícia tinha um olho de vidro; e provavelmente supôs que o olho fechado na mão do cadáver
pertencia àquele suspeito.
- 'Tudo isso - observou o juiz Winters com impaciência- é puramente argumentativo. É a espécie de argumentação que o senhor desenvolveria diante do tribunal para evitar a pronúncia dos seus clientes. Embora, possa dizê-lo, senhor advogado, os seus comentários sobre deliberação e premeditação por parte do assassino muito concorram para inclinar este tribunal em favor da acusação, o senhor não se está restringindo à explicação que lhe foi pedida. O senhor está apenas argumentando.
Perry Mason curvou-se ligeiramente, e retorquiu:
- Eu ia relatar que quando a jovem - que era a única pessoa que podia identificar aquele homem-, se levantou do sofá em que estava deitada, cambaleou e levantou as mãos para se apoiar a uma porta. As suas mãos apoiaram-se contra um vidro da porta. Ocorreu-me que a jovem, ao proceder assim, deixaria as suas impressões digitais. Seguindo as minhas instruções, detectives desenvolveram aquelas impressões digitais latentes, e classificaram-nas.
“A classificação dessas impressões digitais revelou que a jovem em questão é muito procurada pela polícia como um Barba-Azul feminino. Tinha o hábito de casar-se, e os maridos tinham o hábito de morrer algumas semanas ou meses depois do casamento. De todas essas ocasiões, a mulher herdou bens do marido e passou a contrair novo matrimónio.
Os juiz Winter olhava fixamente para Perry Mason, num silêncio incrédulo. Burger, o procurador do distrito, sentou-se lentamente, tomou algumas respirações profundas, e depois ergueu-se com igual lentidão. Tinha os olhos arregalados de assombro.
- Averiguámos - continuou Perry Mason, cortesmente-, que a polícia levou a investigação de alguns casos ao ponto de poder, virtualmente, provar o homicídio. A rapariga desposou Richard Basset. Esse casamento era bígamo. Ela ainda tinha um marido vivo - isto é, tinha pelo menos um marido vivo, e provavelmente outros. Esse marido continuou vivo porque lhe mentiu a respeito da sua fortuna, quando a desposou, e
se recusou a fazer um seguro de vida a favor da mulher. Portanto, não valia a pena matá-lo.
“Possuo a prova de todos esses factos. Tenho neste sobrescrito a documentação completa acerca dos antecedentes criminais da jovem em questão. É para mim grande prazer entregar estes documentos, juntamente com cópias fotográficas das impressões digitais por ela deixadas no vidro da porta, ao Acusador neste processo.
“Agora, senhor Presidente, desafio o representante do Ministério Público neste processo, a insinuar que eu não exerci o meu direito de advogado ao aconselhar esta mulher a não responder às perguntas, sob a alegação de que as respostas poderiam incriminá-la.
Burger tomou o sobrescrito que Perry Mason lhe apresentava. Movia os dedos desajeitadamente, tão grande era a sua surpresa.
O juiz Winters acariciou o queixo por um momento, e depois disse em voz pausada:
- Senhor defensor: este tribunal nunca ouviu declaração tão pasmosa dos lábios de um advogado, em detrimento dos interesses de uma cliente a quem ele diz representar. O Tribunal não pode compreender semelhante declaração. O Tribunal leva em conta, naturalmente, que algumas das suas observações se referem a factos que o senhor descobriu e provavelmente tinha a obrigação de comunicar às autoridades, mas a maneira como foi feita a exposição, a fraseologia empregada, e o momento em que se fez, tudo tende a prejudicar os interesses desta jovem. E, no entanto, o senhor apresenta-se como seu advogado.
Perry Mason inclinou a cabeça e respondeu, quase com indiferença:
- Naturalmente, senhor juiz, eu não queria fazer essa exposição, e não a teria feito, a menos que o Tribunal me obrigasse a tal, mas o senhor insistiu em que eu estava a aconselhar esta jovem a não responder às perguntas, simplesmente porque desejava salvaguardar-me a mim mesmo e não a ela. Segundo creio, o senhor Presidente reconhece agora que eu sabia o que estava fazendo.
O juiz Winters ia a dizer qualquer coisa, mas foi interrompido por Burger, que se pôs em pé, abruptamente, segurando na mão direita as fotografias de uma mulher,
tiradas de frente e de perfil, sobre as quais se via uma descrição impressa e uma série de impressões digitais. Na outra mão segurava a cópia fotográfica de uma série de impressões digitais. Sacudiu as duas folhas de papel diante de Perry Mason.
- São estas - perguntou ao advogado - as impressões digitais deixadas na tal porta?
- Isso é uma fotografia das impressões digitais, sim.
- E correspondem exactamente às impressões que se vêem neste documento que eu tenho na mão direita?
- Correspondem - disse Mason.
- Então - gritou Burger, agitando o papel diante de Perry Mason - houve aqui batota, porque a fotografia da tal Barba-Azul de saias não tem nenhuma parecença com esta senhora.
Perry Mason sorriu placidamente.
- Isso - retorquiu - é uma coisa que o senhor pode ir contar ao Grande Júri.
A sala do tribunal converteu-se num pandemónio.
O juiz Winters levou três minutos a tentar restabelecer a ordem na sala e não o conseguiu. Finalmente, suspendeu os trabalhos por dez minutos e ordenou aos oficiais de justiça que evacuassem a sala.
Um oficial de justiça apareceu ao lado de Mason.
- O juiz Winters deseja falar com o senhor e com o procurador do distrito, no seu gabinete - disse.
Mason inclinou a cabeça, e acompanhou o oficial de justiça ao gabinete do juiz. Um momento depois, o procurador do distrito fazia a sua entrada no gabinete.
Burger lançou a Mason um olhar torvo e tomou uma atitude de fria dignidade.
- Quer falar comigo, senhor juiz? - perguntou.
- Desejo discutir com os senhores a singular situação a que chegámos neste caso - disse o juiz.
- Eu não tenho absolutamente nada que discutir com Perry Mason - anunciou Burger. - Que esta mulher seja ou não seja Hazel Fenwick, isso não tem nada que ver com a comparência de Mason ante o Grande Júri.
Ouviu-se uma pancada na porta.
- Entre - gritou Burger.
O juiz Winters ergueu os olhos e franziu as sobrancelhas, irritado. Empurraram a porta, e o sargento Hol-comb entrou.
- Desculpe-me a ousadia, senhor juiz - disse Burger - mas, dadas as circunstâncias, pedi ao sargento Holcomb que colocasse Perry Mason sob custódia.
- Sob custódia porquê? - perguntou Mason.
- Por industriar uma testemunha - retorquiu Burger.
- Mas essa rapariga não era testemunha. Não sabia coisa alguma sobre o caso.
- Você mandou-a para Reno a fim de se fazer passar por Hazel Fenwick, ajudando assim a verdadeira Hazel Fenwick a escapar-se.
- Não fiz nada disso. Hazel Fenwick já havia escapado antes que eu tivesse conhecimento da existência de Thelma Bevins. Em vista da informação que eu dei ao tribunal, é bastante claro o motivo por que Hazel Fenwick se escondeu. Sem dúvida, a polícia há-de apanhá-la. Agora que sabem mais coisas a seu respeito, hão-de procurá-la com redobrado zelo.
Quanto a aconselhar essa jovem a fazer-se passar por Hazel Fenwick, foi coisa que eu não fiz. Mandei um homem entregar alguns papéis em Reno e ordenei a essa mulher que recebesse os papéis. No momento da entrega, ela declarou categoricamente que não se chamava Hazel Fenwick, mas sim Thelma Bevíns, mas que estava disposta a receber os papéis.
Por certas razões particulares, eu queria que se soubesse que tinha sido feita a apresentação dos papéis em Reno, Nevada. Contudo, essas razões nada têm que ver com este caso.
- Mas por que é que o senhor fez isso? - disse o juiz Winters, severamente. - É o que eu quero saber. Não faço questão de discutir o assunto em público, depois de ter conversado com o senhor em particular, mas parece que o senhor se serviu deliberadamente dos debates deste tribunal para meter a ridículo todas as pessoas envolvidas no caso, sem dúvida com o fim de obter alguma vantagem. Se for assim, o senhor tornou-se culpado de flagrante desrespeito ao Tribunal.
- Eu não fiz nada de ilegal - disse Mason. - Eu não trouxe a mulher para cá. Na verdade, foi de acordo com
as minhas instruções que ela se recusou a deixar voluntariamente o estado de Nevada. O senhor poderá sem dúvida averiguar que houve conivência entre o procurador do distrito e as autoridades de Nevada para a forçar, virtualmente, a sair do estado.
- Era uma testemunha importante. Eu tinha uma intimação judicial para ela, e a intimação foi-lhe apresentada- disse Burger.
- Exactamente - volveu Mason. - Foi o senhor quem a trouxe para cá. Não fui eu quem a colocou no banco das testemunhas.
- Mas que é que o senhor esperava lucrar com isso? - perguntou o juiz Winters. - Por que a aconselhou a não responder às perguntas?
- Responder-lhe-ei - tornou Mason -, somente com a condição de poder responder plena e cabalmente, e sem ser interrompido.
- Não prometo nada - disse Burger-, excepto que o senhor deve apresentar-se ante o Grande Júri, e que até lá deve considerar-se detido.
- Terei prazer em ouvir a sua explicação - disse o juiz Winters. - Sinto que tenho direito a ela. O senhor tem a reputação de advogado hábil e competente. Geralmente, há uma razão para tudo o que faz. Gostaria de saber qual era ela, neste caso.
- Muito bem - volveu Mason. - Todos os presentes perderam de vista o facto de que existe um homem com razões para temer Hazel Fenwick mais do que a qualquer outro mortal na terra. Esse homem é o assassino de Hartley Basset.
“Ele não conhecia as feições de Hazel Fenwick. Portanto, se o procurador do distrito apresentasse alguma mulher que aparentemente era Hazel Fenwick, e a pusesse no banco das testemunhas, o homem pensaria que o jogo estava perdido. Naturalmente recorreria à fuga.
“Creio que nenhum dos senhores percebeu o sentido dos meus comentários, quando insisti em que Bru-nold não podia ser o autor deste crime, visto que não iria colocar propositadamente o seu próprio olho na mão de Hartley Basset, depois de cometido o crime. Por outro lado, o olho não poderia ter sido arrancado da órbita por Hartley Basset, nem, mesmo admitindo tal possibilidade, teria Brunold propositadamente coberto o seu rosto com uma máscara, deixando visível a órbita vazia, o que devia constituir um dos mais seguros meios de identificação.
“Por outro lado, se alguma pessoa daquela casa tivesse um olho artificial sem que o facto fosse conhecido de qualquer dos outros habitantes, essa pessoa esforçar-se-ia por fazer com que se soubesse ter sido o crime cometido por alguém que possuía apenas um olho, calculando que faria assim recair as suspeitas sobre Brunold.
“Tratei de conseguir fotografias de todas as pessoas da casa. Como os senhores decerto sabem, é muito difícil descobrir um olho artificial quando o olho é bem feito, aparelhado e ajustado, e quando a órbita não foi destruída. No entanto, a pupila de um olho natural acomoda-se à luz, contraindo-se ou dilatando-se, ao passo que o olho artificial não pode efectuar tais acomodações. Portanto, uma pessoa fotografada de frente para uma luz viva mostraria pupilas de diâmetro desigual, se tivesse um olho de vidro.
“Acontece que Colemar se negou a posar para o retrato. Isso fez-me suspeitar dele. Desejava agora saber se Colemar acreditou que a jovem colocada no banco das testemunhas pelo procurador do distrito, era a testemunha procurada, a que poderia identificá-lo positivamente, e se não pensou que, logo depois de terminarem os debates legais entre as partes, ela o faria sem vacilações. Acho, portanto, que seria conveniente investigar o actual paradeiro do Sr. Colemar.”
Nesse momento, o telefone retiniu. O juiz Winters pegou no auscultador, levou-o ao ouvido e disse: “Um momento.”
Fez um aceno a Perry Mason.
- Uma senhora - disse -quer falar consigo. Mason levou o auscultador ao ouvido e escutou a voz
de Della Street.
- Viva, chefe! - disse ela. - Ainda não está na cadeia?
Mason sorriu e respondeu:
- Mais ou menos - metade dentro e metade fora.
- Bom - disse ela-, eu fui um pouco pateta. Não compreendi a sua intenção com aquela história de Thelma Bevins, até ouvir o senhor aconselhá-la a não responder. Então, as minhas ideias aclararam-se e resolvi ficar por
ali, observando se alguma das testemunhas procurava retirar-se um tanto abrupta ou surrateiramente.
- E então? - inquiriu Mason, vivamente. - Caçou alguém?
- Parece-me que sim.
- Quem? -Colemar.
- Seguiu-o?
- Segui.
- Onde está ele agora, Della?
- No Aeroporto União. Dentro de vinte e dois minutos parte um avião. Ele comprou uma passagem.
- Tome cuidado - disse-lhe Mason. - O homem está desesperado.
- Como vai o caso? - perguntou a secretária.
- Terminado - disse ele. - Vá para o escritório. Encontrar-nos-emos lá.
- Quero ver a coisa até ao fim - volveu ela.- Fique aí no gabinete do juiz. Chamá-lo-ei se o homem se escapulir outra vez.
- Não quero que você ande por aí perto. Ele pode reconhecê-la a qualquer momento e...
Della Street riu alegremente, e desligou. Perry Mason consultou o seu relógio de pulso e olhou para o sargento Holcomb.
- Talvez lhe interesse saber que Colemar está no Aeroporto União e lá permanecerá ainda uns vinte e um minutos. Afigura-se-me, sargento, que se o senhor se certificasse de que o seu revólver está carregado, poderia efectuar uma prisão bastante sensacional.
Holcomb olhou para Burger. Burger franzia o sobrolho, pensativamente; depois inclinou a cabeça. O sargento Holcomb alcançou a porta em três rápidas passadas. Perry Mason, reclinado no braço da sua cadeira, arreganhou os dentes para Burger.
- Mason - perguntou o procurador do distrito, um tanto arreliado - por que diabo encenou você toda essa brincadeira?
- Não foi brincadeira - insistiu Mason. - Eu tive má sorte, nada mais. A testemunha que poderia ter inocentado o meu cliente estava a ser procurada pela polícia. Teve que pôr-se ao fresco. Naturalmente, fiquei com as culpas da sua desaparição, e os meus clientes ficaram
mal colocados. Eu provavelmente acharia meio de apertar com Colemar durante a inquirição, mas queria reunir todos os trunfos que pudesse, de modo que experimentei essa manobra. Sabia que se pudesse fazê-lo crer que a tal Fenwick tinha voltado e ia prestar depoimento contra ele, Colemar seria obrigado a matá-la ou a fugir. Não poderia matá-la enquanto ela estivesse num tribunal, rodeada de polícias. De modo que preparei esta cena para o fazer crer que o jogo estava perdido, mas que disporia ainda de algumas horas, enquanto um punhado de homens de leis discutiam. Segundo o meu cálculo, ele pensou que eu tinha realmente dado sumiço à pequena, e que seria preciso uma audiência do Grande Júri para o fazer falar. Isso dar-lhe-ia uma oportunidade de fugir.
- Explique-me o que sucedeu - pediu o juiz. Mason inclinou a cabeça.
- Colemar - disse-, era cúmplice de Harry Mc-Lane num desfalque. Desviaram dinheiro de Basset. Brunold era o pai do filho da Srª Basset, passado anos à sua procura, depois que ela desaparecera. Quando a encontrou, estava casada. Visitou-a. O motorista que trabalhava como espião de Basset, quase que o apanhou. Brunold queria que a Srª Basset deixasse o marido. Ela não sabia que fazer, mas sabia que se Hartley Basset surpreendesse Brunold no seu quarto faria um escândalo terrível, que iria prejudicar o filho. Isso era uma das coisas que ela não queria. De modo que fez Brunold sumir-se do quarto. Brunold deixou cair o seu olho de vidro - não o que usava na ocasião, mas um sobresselente que trazia no bolso.
“O olho foi ter às mãos de Basset. Ele não sabia quem era o visitante de sua mulher, mas sabia que Colemar tinha um olho de vidro. Ao que parece, era ele a única pessoa da casa que estava ao par desse facto. Os olhos são mais ou menos da mesma cor, não sei se notaram. Basset suspeitou que Colemar tinha relações íntimas com sua mulher - coisa de que Colemar estava inteiramente inocente. Mas, quando Basset começou a investigar o procedimento de Colemar, encontrou provas da sua participação no desfalque.
“Harry McLane foi a casa de Basset, não para falar com o proprietário ou saldar a conta, mas com o propósito de obrigar Colemar a entregar uma parte do dinheiro
desviado, e evitar assim que Basset apresentasse a denúncia. A essa hora, Brunold estava a fazer um último apelo à Srª Basset para que abandonasse a casa, e Dick Basset mandava a sua jovem esposa descer ao escritório para conhecer o sogro.
“Colemar achou que podia interceder por McLane, e que alguns dedos de conversa talvez lhe poupassem muito dinheiro. Basset interpelou-o a respeito do olho de vidro, provavelmente mandou-o buscar alguns livros de contabilidade, e, de um modo geral, demonstrou a sua desconfiança. Colemar não levou os livros. Agarrou num acolchoado, num cobertor e num revólver. Também dactilografou a carta de suicida. Mais tarde, ocorreu-lhe de súbito que seria ele a pessoa sobre quem recairiam as suspeitas da polícia, se esta não se deixasse lograr pela carta dactilografada; isto, depois de cometido o crime. E assim, Colemar tirou as letras falsificadas do arquivo, improvisou com papel químico uma máscara e saiu para mostrar à mulher que estava à espera no gabinete de entrada, que o assassino tinha só um olho. Pensava que isso quadraria perfeitamente com o olho de vidro que Basset ainda tinha na mão. Quando a mulher lhe arrancou inesperadamente a máscara, ele foi tomado de pânico. Agrediu-a e fugiu a correr. Entrou no carro de Basset, pô-lo em marcha, depois deu uma volta e entrou novamente na garagem, guardou o carro, e voltou, fingindo ter ido a um cinema. Soube então que não tinha morto Hazel Fenwick. Como queria reduzi-la para sempre ao silêncio, entrou no aposento onde estava a rapariga e ficou por ali. Se o tivessem deixado a sós com ela, tê-la-ia morto, mas a Srª Basset mandou-o embora. Então subiu ao seu quarto e explicou a McLane o que se dera, e que tudo o que McLane tinha a fazer era afirmar que havia pago as letras, e ninguém poderia pensar o contrário. Isso faria crer que Basset trazia consigo elevada quantia no momento do crime, o que daria a impressão de ter sido o roubo o móbil do crime.”
- Como é que você sabe tudo isso? -inquiriu Burger.
- Por raciocínio dedutivo - disse Mason. - O crime deve ter sido cometido por um dactilógrafo profissional. A falsa carta sobre o suicídio foi escrita por um dactilógrafo profissional, alguém que usava o sistema táctil.
Além disso, o assassino deve ter sido alguém que poderia entrar no gabinete de Basset com alguma coisa no braço sem atrair excessiva atenção, porque Basset não opôs resistência, e parece não ter pressentido o perigo. O assassino devia ser alguém que tinha um olho artificial e queria que as autoridades ficassem sabendo disso. O único motivo por que uma pessoa desejaria saber que tinha um olho artificial seria a certeza de que assim desviaria as suspeitas sobre outras pessoas.
“Além disso, a Srª Basset queria que a nora conversasse com Hartley Basset sem serem perturbados. Assim, vigiou a porta da frente até que o último cliente se tivesse ido embora, e só depois levou Hazel Fenwtck ao escritório de Hartley Basset. No entanto, quando a mulher bateu à porta do gabinete interior de Basset, estava um homem lá dentro falando com Basset. Esse homem devia ser Colemar, a não ser que fosse alguém que tivesse entrado pela porta das traseiras, coisa pouco provável.
“Além disso, se um homem com um olho só fizesse à pressa uma máscara com o único fim de ocultar as feições, teria aberto apenas um buraco para o olho. O facto de ter aberto dois buracos mostra que ele procurava chamar a atenção para a órbita vazia. Ora, se se tratasse de Brunold, ele de modo algum iria pensar em revelar que lhe faltava um olho.”
- Então - disse Burger-, o tal McLane deve ter sido assassinado porque estava disposto a falar.
- Provavelmente - volveu Mason.
- Mas por que diabo o assassino de McLane lhe pôs um olho de vidro na mão? Isso deve ter sido feito por Colemar. Por que o fez?
Perry Mason, com um ar muito cândido retorquiu:
- No fim de contas, Burger, um homem não pode descobrir tudo por meio de dedução. Confesso francamente que esgotei os meus recursos. Não posso dar-lhe resposta a tal pergunta.
Burger encarou-o. Mason, muito calmo, fumava placidamente o seu cigarro.
- Mason, você devia ser detective em vez de advogado- observou Burger.
- Muito obrigado - volveu Mason. - Estou muito bem assim.
- Como sabia você que eu ia deitar a mão a essa Bevins e trazê-la para o tribunal? - perguntou Burger.
- Porque - retorquiu Mason-, sou soldado muito velho para menosprezar um adversário. Sabia que você faria o possível para a apresentar em tribunal.
- Mas não lhe revelou os seus planos?
- Não, pensei que quanto menos ela soubesse, menos poderia dizer. Sabia que se ela lhe dissesse a verdade, julgariam que estava a mentir.
Perry Mason apagou com os dedos a ponta do cigarro. Burger virou-se para ele e inquiriu:
- Como diabo vou eu agora ajustar contas com os jornais?
Mason agitou a mão num gesto de generosidade.
- Fique com tudo para si - disse.
- Com quê?
- Com as honras. Faz de conta que foi um plano que você combinou comigo, a fim de apanhar o verdadeiro assassino.
Um lampejo de súbito interesse luziu nos olhos de Burger.
A porta abriu-se. Três jornalistas assaltaram o gabinete e caíram sobre Burger com uma saraivada de perguntas.
- Um momento - disse Burger. - Que há?
- Houve tiroteio no aeroporto. O sargento Holcomb está ferido, e Colemar foi morto. Como é que Colemar foi lá parar? Que fazia ele lá? Por que é que o sargento Holcomb foi atrás dele?
Um dos repórteres separou-se do grupo e agarrou no braço de Mason.
- Que é que houve, Mason - bradou. - Conte-nos. É a coisa mais formidável que você já fez...
Perry Mason suspirou.
- O Sr. Burger - disse-, fará as declarações à imprensa, em nome de nós dois. Entretanto, se me dão licença, sigo para o meu escritório.
Perry Mason inclinou-se para trás na sua cadeira. A sua secretária estava juncada de papéis.
- Bravo sargento Holcomb - disse. - Eu sabia que ele tinha fibra.
- Pensei que o senhor o detestasse - observou Della Street.
- A estupidez dele às vezes é irritante - concordou Mason - mas é unicamente por causa do seu zelo que o sargento se mete em situações como essa. Então Cole-mar puxou do revólver e procurou abrir caminho a tiros, quando se viu perdido?
A secretária inclinou vagarosamente a cabeça.
- Sob diversos aspectos - disse Mason -, essa última situação é típica de ambos. O sargento Holcomb chegou ao aeroporto com estardalhaço, tocando a sereia.
- Mas ele tinha de se valer da sereia para atravessar o tráfego a toda a velocidade - obtemperou Della Street.
- Certamente, onde havia tráfego. Mas não depois de ter atravessado o tráfego. Colemar sabia o que aquilo significava. Escondera-se no lavatório dos homens, colou o olho ao buraco da fechadura, e esperou para ver o que acontecia. Uns minutos depois, o sargento Holcomb dirigiu-se à sala de espera. Colemar meteu o revólver pela fechadura da porta e fez fogo. Se não estivesse nervoso, teria morto Holcomb com o primeiro tiro.
- Até aí, o sargento Holcomb procedeu como sempre. Asneou em tudo o que fez. Alarmou a sua presa com a sereia. Devia saber, depois de revistar a sala de espera, que Colemar estava no lavatório dos homens. De resto, suspeitava do facto, porque se dirigia para a porta a passos largos. Um homem mais inteligente aproximar-se-ia cosido com a parede, empurraria a porta, apontaria o revólver e mandaria sair o prisioneiro. Mas Holcomb, não. Encaminhou-se para a porta a passos firmes, de frente. É então que o sargento Holcomb revela as qualidades que me merecem respeito e admiração. Nem sequer tinha o revólver na mão, não é verdade?
A secretária inclinou a cabeça.
- Diga-me - perguntou Mason -, ele deteve-se para puxar da arma ou não?
- Continuou a avançar - retorquiu Della Street.- O impacto da bala fê-lo virar-se de lado. Holcomb endireitou-se, cerrou os dentes, e continuou a caminhar em direcção à porta, puxando ao mesmo tempo o revólver.
Colemar deu mais um tiro, e Holcomb começou a atirar à porta. Podia-se ver o sítio onde as balas atravessavam a madeira. Fez um grupo tão perfeito como se tivesse a atirar ao alvo no campo de tiro da polícia.
Mason inclinou lentamente a cabeça e disse:
- É preciso ter fibra para fazer isso.
Pegou num dos jornais. A fotografia do procurador do distrito, Burger, ocupava três colunas da primeira página. Por baixo, em tipos graúdos, lia-se:
O INTELIGENTE PROCURADOR DO DISTRITO QUE
HABILMENTE LEVOU O ASSASSINO DE HARTLEY
BASSET A DENUNCIAR-SE
À direita, e um pouco abaixo, via-se o retrato do sargento Holcomb. O espaço intermédio fora preenchido com desenhos a traço, que mostravam o sargento Holcomb aproximando-se do lavatório e fazendo fogo com a arma apoiada no flanco, ao mesmo tempo que Colemar, agachado atrás da porta, desfechava sobre o sargento toda a carga de um revólver 45.
- Não há dúvida que eles ganharam bastante fama - disse Della Street, com o ressentimento a transparecer-lhe na voz. - Foi o senhor quem planeou tudo, e lhes pôs as cartas nas mãos. Só o que eles fizeram foi deitar as cartas na mesa e marcar os pontos.
Mason deu uma risadinha
- Você providenciou para que Thelma Bevins recebesse o dinheiro? - perguntou.
- Sim, e ela ganhou uma bela gratificação de Peter Brunold.
- Bravo Brunold. É um bom assunto para os jornalistas sentimentais, não é?... Thelma Bevins portou-se à altura.
- Que faria o senhor se ela fraquejasse, chefe? Podia ficar assustada, e contar toda a história antes de chegar ao banco das testemunhas.
- O melhor da coisa - disse Mason-, é que ela não podia. Se revelasse a Burger o que realmente acontecera, Burger convencer-se-ia de que ela era uma grande mentirosa e estava simplesmente a procurar proteger-me. Com o estratagema que empreguei, Burger não alimentava a menor dúvida sobre a identidade da pequena.
Quanto mais ela negasse, mais certo ficaria Burger de que ela estava a mentir.
- E se acontecesse alguma coisa?
- Eu poderia arrancar a revelação a Colemar - retorquiu o advogado pausadamente-, durante a inquirição, mas não desejava ser forçado a isso.
- Porquê?
- Porque nesse caso pareceria que eu tinha marcado um tento contra Burger. Burger procedeu lealmente para comigo e eu queria fazer o mesmo com ele. Burger tem horror a acusar um homem inocente. Pelo que me diz respeito, é uma grande vantagem. As recordações que ele conservará deste caso serão agradáveis. Burger da próxima vez será mais complacente.
- Chefe - disse de súbito a secretária-, como é que aquele olho de vidro foi parar à mão de Harry Mc-Lane? Certamente Colemar não o colocaria ali.
Mason olhou-a e sorriu significativamente.
Quando Della Street começou a compreender o significado daquele sorriso, exclamou:
- Mas... o senhor... o senhor poderia...
- Seria de grande proveito para Brunold-disse Mason -, se Brunold estivesse na cadeia quando o crime foi cometido. Desgraçadamente não estava e eu tinha que andar depressa para impedir que a polícia suspeitasse dele.
- Mas não devia ter feito aquilo. Em primeiro lugar, o senhor não tinha o direito de se arriscar assim. Depois, não era... não era... não sei como dizer.
- Será “lícito” a palavra que você procura?
- Não, precisamente, mas está tão em desacordo com a sua posição. O senhor faz coisas terríveis. É metade santo e metade demónio. Não há meio termo. Toca ambos os extremos.
- Detesto a mediocridade - retorquiu Mason, sorrindo.
- E Hazel Fenwick? - perguntou ela.
- Hão-de apanhá-la qualquer dia - disse Mason.- Dick Basset escapou por um triz. Se não fosse aquele crime, o Barba-Azul de saias teria dado cabo de mais duas vítimas.
- Mais duas?!
- Naturalmente - fez Mason. - Teria liquidado primeiramente Hartley Basset, e depois Dick. Talvez também despachasse Sílvia Basset.
- Como é que uma mulher pode fazer uma coisa dessas?
- Uma espécie de doença'-redarguiu ele.- Uma aberração mental... Hum... Creio que terei de me atirar a esta pilha de cartas.
Começou a remexer nos papéis e, repentinamente, deteve-se com os olhos brilhantes.
- Agora sim - disse-, aqui temos coisa.
- Que é? - perguntou a secretária.
- Quando um homem herda um porteiro - disse o advogado-, herda também o gato do porteiro?
- Que história é essa?
- Uma carta de Jackson - disse ele. - Um porteiro excêntrico, com uma perna entrevada, uma muleta e um gato. Trabalhou para um velho avarento, que, ao que parece, não era menos excêntrico do que o porteiro. O avarento deixou a fortuna a uma pessoa, sob a condição de garantir um lugar permanente ao porteiro, durante a sua vida. O beneficiário está pronto a cumprir as disposições do testamento, mas notificou o porteiro de que terá de se descartar do gato. Della... Por Deus! Vou-me encarregar pessoalmente do caso. Isto diverte-me. “O Caso do Gato do Porteiro”...
Erle Stanley Gardner
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