Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
Os Peixes Dourados
Perry Mason, sentado à mesa de um restaurante, ergueu os olhos para o rosto tenso e nervoso do homem que acabava de deixar uma vistosa companhia, para abordá-lo.
— Pretende me consultar a respeito de um peixe dourado? Repetiu calmamente Mason, cujo sorriso denunciava certa incredulidade.
— Sim. Mason abanou a cabeça.
— Receio que ache os meus honorários demasiado elevados...
— Pouco me importa o preço que pedir. Posso pagar qualquer quantia desde que seja justa e estou decidido a fazê-lo.
— Lamento, mas acabo de concluir um caso um tanto absorvente. Não tenho tempo nem disposição para ocupar-me de peixes dourados. Eu...
Um sujeito alto, de aspecto digno, aproximou-se gravemente da mesa e perguntou ao homem que abordara Mason:
— Harrington Faulkner?
— Sim, respondeu aquele com a decisão seca de alguém que está acostumado a ser autoritário., Ainda que, como vê, esteja ocupado neste momento.
O recém-chegado levou a mão ao bolso superior do paletó, apanhou um envelope e num gesto rápido, colocou-o dobrado na mão de Faulkner.
— Cópia de intimação e queixa do caso Carson contra Faulkner. Difamação de reputação, valor cem mil dólares. Aqui está a notificação original. Chamo a sua atenção para a assinatura do juiz e para o selo do tribunal. Não há necessidade de se preocupar com isso. São as diligências habituais. Se eu não realizasse este encargo, qualquer outra pessoa o faria. Procure o seu advogado. Tem dez dias para responder. Se o outro sujeito não tiver razão, não irá ganhar. Se tiver, o problema é seu. Eu sou apenas o funcionário encarregado de entregar documentos. Não servirá de nada se irritar. Obrigado. Boa noite.
As palavras brotaram com tal rapidez que lembraram uma súbita saraivada sobre um telhado de zinco. O oficial de diligências virou-se com ligeireza e se embrenhou num grupo de comensais que iam saindo do restaurante. Faulkner, agindo como um homem que se encontrasse entregue a um mau sonho e fosse arrastado irremediavelmente pelos acontecimentos do seu pesadelo, meteu os documentos no bolso do paletó, virou-se sem proferir palavra e voltou para a sua mesa, ao encontro da companheira. Mason observou-o pensativo. O garçom rondava à volta da mesa. Mason sorriu tranquilizadoramente para Della Street, sua secretária, e depois se virou para Paul Drake, o detetive particular, que entrara alguns minutos antes.
— Venha para perto de nós, Paul.
— Um refrigerante e uma fatia de pizza são tudo o que eu quero, declarou Drake. Mason transmitiu o seu desejo ao garçom.
— Que pensa da mulher? Perguntou a Della Street, quando aquele se retirou.
— Refere-se à que está com Faulkner?
— Sim. Della Street riu.
— Se ele continuar andando por aí com ela, arranjará outra notificação. Drake inclinou-se de forma a poder ver a mulher de que os seus companheiros falavam.
— Eu próprio quero dar uma vista de olhos, anunciou e, passado um momento, acrescentou:, Oh, oh! Que figura! Os olhos de Mason estudaram pensativamente o par.
— Bastante contraditória, comentou.
— Reparem no estilo, prosseguiu Drake., O vestido justo, as pestanas muito compridas e as unhas escarlates. Ao olhar para aqueles olhos, ele já se esqueceu da intimação que tem no bolso do paletó. Aposto que não a lerá antes... Olá! Parece que volta para aqui, Perry...
Subitamente, o homem recuou a cadeira, levantou-se sem dar uma palavra à companheira e avançou resolutamente para a mesa de Mason.
— Mr. Mason, começou, articulando as sílabas deliberadamente como um homem resolvido a dominar uma situação., Acaba de me ocorrer a ideia de que possa ter ficado com impressão inteiramente errada acerca da natureza do caso sobre o qual tentei consultá-lo. Penso que ao dizer se tratar de um peixe dourado, o senhor tenha considerado o caso sem importância. Não é. O peixe dourado em questão é um espécime admirável do Veiltail Moor Telescope1. O caso inclui também um sócio desonesto, uma fórmula secreta para debelar uma doença dos peixes e uma “exploradora”. Mason observou o rosto ansioso do homem que estava de pé ao lado da mesa e procurou então sorrir.
— Um peixe dourado e uma exploradora, ele comentou., No final das contas, talvez seja preferível ouvi-lo. Quer puxar uma cadeira e me contar o caso? O rosto do homem expressou súbita satisfação.
— Aceita, portanto, se encarregar...
— Quero dizer apenas que vou ouvi-lo e nada mais, sublinhou Mason., Estes aqui são, a minha secretária Della Street e Paul Drake, diretor da Agência de Detetives Drake, que me ajuda frequentemente a reunir fatos. Não quer convidar a sua companheira a vir para aqui e continuarmos igualmente...
— Oh, ela está bem. Deixemo-la onde está.
— Ela não se ofenderá? Inquiriu Mason. Faulkner sacudiu negativamente a cabeça.
— Quem é ela? Perguntou Mason. Sem a menor alteração de expressão, Faulkner informou:
— É a “exploradora”. Drake preveniu:
— Deixe essa boneca sozinha na mesa e não se admire se, ao voltar para lá, já não a encontrar só. Faulkner afirmou fervorosamente;
— Daria mil dólares a quem me livrasse dela. Drake declarou sorrindo:
— Fecha-se o negócio por quinhentos. Sempre é mais barato. Faulkner olhou-o, circunspecto, e puxou uma cadeira.
— O senhor nem sequer leu os documentos que o oficial de diligências lhe entregou. Faulkner esboçou um gesto de enfado.
— Não é preciso. É apenas parte de uma campanha destinada a me aborrecer.
— Que pretende ele?
— Cem mil dólares, segundo disse o tipo que trouxe os documentos.
— E não está interessado em lê-los?
1 Peixe de olhos proeminentes e cauda em forma de véu.
— Não estou interessado em nada que Elmer Carson faça para me aborrecer.
— Fale-me do peixe dourado, propôs Mason.
— O Veiltail Moor Telescope é um peixe valioso. Os nãos iniciados no assunto dificilmente o consideram um peixe dourado. Não é dourado. É negro.
— Todo ele? Inquiriu Mason.
— Até os olhos são.
— O que é um peixe Telescope? Perguntou Drake.
— Uma espécie de peixe dourado obtido por procriação. Chamam-se Telescope porque têm os olhos proeminentes, algumas vezes fora das órbitas mais de meio centímetro.
— Não é um tanto... Repulsivo? Inquiriu Della Street.
— Para os nãos iniciados, talvez. Algumas pessoas chamaram o Veiltail Moor Telescope de Peixe da Morte. Pura superstição. A cor negra não é de bom augúrio para algumas pessoas.
— Creio que não me agradaria, declarou Della Street.
— Há quem não goste deles, concordou Faulkner, como se o assunto não tivesse qualquer interesse especial., Garçom, traga o que eu pedi para esta mesa.
— Sim, senhor. E a senhora?
— Sirva-a onde está.
— Em todo o caso, Faulkner, disse Mason, não estou certo de gostar da forma como se conduz no presente caso. Pouco importa o que essa mulher seja, você estava a ponto de jantar com ela e...
— Não tem importância. Ela não se ofende e, de resto, não lhe interessa nada do que vou dizer.
— Que é que lhe interessa? Indagou Mason.
— Dinheiro.
— Como se chama?
— Sally Madison.
— E está jogando-lhe a rede? Perguntou Mason.
— Creio que sim.
— E mesmo assim convidou-a para jantar?
— Oh, certamente.
— E vai embora, deixando-a sozinha? Comentou Della.
— Preciso discutir um assunto importante que não lhe interessa. Ela compreende perfeitamente a situação. A presença dela não é de forma alguma necessária.
Drake olhou de soslaio para Perry Mason. O garçom trouxe a sua pizza e o refrigerante, um coquetel de camarão para Della Street e Mason e um consommé para Harrington Faulkner. Sentada à mesa que Faulkner deixara, Sally Madison completou a sua maquiagem e afivelou ao rosto uma expressão de tranquilidade, cuidadosamente estudada. Parecia não ter mais nenhum interesse em Harrington Faulkner ou no grupo ao qual ele se reunira.
— O senhor não mostra ter quaisquer preocupações, observou Mason.
— É claro que não, apressou-se Faulkner a confirmar., É uma mulher muito bonita... Como convém a uma “exploradora”.
— Já que não quer ler essa intimação, suponho que, ao menos, me permita dar-lhe uma vista de olhos, alvitrou Mason. Faulkner estendeu-lhe os documentos por cima da mesa.
Mason desdobrou-os, examinou-os rapidamente e declarou:
— Parece que esse Elmer Carson alega que o senhor o acusou repetidas vezes de se intrometer com o seu peixe dourado, que a acusação é falsa e que foi feita maliciosamente; que Carson exige dez mil dólares por prejuízos morais e noventa mil dólares como indenização punitiva por calúnia. Faulkner parecia ligar apenas um medíocre interesse à queixa apresentada por Elmer Carson.
— Não se pode acreditar numa só palavra do que diz, explicou.
— Afinal de contas, quem é ele?
— Era meu sócio.
— No caso do peixe dourado?
— Não, por amor de Deus. O peixe dourado é apenas um passatempo meu. Temos um negócio. Constituímos uma sociedade e cada um de nós possui um terço da firma. O balanço é realizado por Genevieve Faulkner.
— Sua mulher? Faulkner pigarreou e confessou com certo embaraço:
— Minha primeira mulher. Divorciei-me há cinco anos.
— Portanto, o senhor e Carson não se entendem bem?
— Não. Por uma razão qualquer deu nele uma súbita mudança. Apresentei um ultimatum a Carson. Ele pode fazer uma oferta de compra ou venda. Anda as voltas para conseguir um preço mais vantajoso. Esse assunto é de importância secundária, Mr. Mason. Sei como resolver a coisa. Preciso de si a fim de proteger o meu peixe.
— Não é acerca do processo de difamação?
— Não, não. Isso não tem importância. Tenho dez dias para isso. Em dez dias, podem acontecer montes de coisas!
— Não é por causa da “exploradora”?
— Não. Essa também não me preocupa.
— É apenas por causa do peixe dourado?
— Exatamente. Acontece, porém, que o sócio e a “exploradora” entram na história.
— Como se relacionam com o peixe dourado?
— Mr. Mason, eu próprio criei esta espécie de Veiltail Moor Telescopes e orgulho-me deles. Não faz a mínima ideia da paciência e estudo que foram necessários para desenvolver estes peixes invulgares e agora estão ameaçados de extinção por uma doença, introduzida deliberadamente no meu aquário por Elmer Carson.
— Ele declara na sua queixa, interveio Mason,, Que o senhor o acusa de tentativa deliberada para destruir os peixes, É por esse motivo que pede uma indenização.
— Pois sim, mas foi ele que os fez adoecer.
— Pode provar? Inquiriu Mason.
— Infelizmente, creio que não, admitiu Faulkner, de mau humor.
— Nesse caso, continuou Mason, É possível que o forcem a perder uma grossa quantia como indenização.
— É possível, admitiu Faulkner, prontamente, como se o assunto não tivesse a seus olhos interesse imediato.
— Não me parece particularmente preocupado, observou Mason.
— Nada ganharia nada com isso, justificou-se Faulkner., Neste momento, já tenho bastante com o que me preocupar. Todavia, talvez não tenha mostrado claramente a minha posição: não ligo a menor importância ao que Carson faz para me aborrecer. Neste momento, estou apenas interessado em salvar os meus peixes. Carson sabe que estão morrendo. De fato, é por culpa dele que estão morrendo. Sabe que quero retirá-los dali para poder tratá-los. É por essa razão que moveu um processo, alegando que os peixes são propriedade da sociedade e não propriedade individual. Isto é, alega que os peixes fazem parte dos bens da sociedade e que eu o ameacei de retirar os peixes e o tanque do patrimônio da sociedade. Foi esse fato que levou um juiz a assinar esta intimação... E, diabos o levem, Mason, ele tem razão. O maldito tanque está incluído na propriedade... Quero que o senhor anule essa intimação. Quero que fique estabelecido que os peixes e o tanque são apenas minha propriedade individual. Creio que só o senhor é o homem indicado para fazê-lo.
Mason olhou de soslaio para a mulher sentada à mesa que Faulkner deixara. Não parecia demonstrar qualquer interesse na conversa. Uma expressão de inocência sintética e imóvel espalhava-se no rosto, tal como o vidrado de uma xícara de porcelana.
— É casado? Perguntou Mason a Faulkner., Quero dizer, tornou a se casar depois do seu divórcio?
— Oh, sim.
— Quando começou a andar por aí com Sally Madison? O rosto de Faulkner denunciou um rápido relampejo de surpresa.
— Andando por aí com Sally Madison? Repetiu, quase incredulamente., Meu Deus, eu não ando por aí com ela.
— Penso que disse que era uma “exploradora”!
— E é.
— E que estava a lhe lançar a rede.
— E está realmente.
— Acho que não entendo muito bem a situação, observou Mason. E, depois, tomando uma súbita decisão, acrescentou:, Se me dão licença e Mr. Faulkner não fizer qualquer objeção, vou conversar com essa “exploradora”, e saber as suas ideias sobre o caso.
Esperando apenas pelo sinal de cabeça afirmativo de Della Street e sem chegar a olhar para Faulkner, Mason se levantou da mesa e dirigiu-se para Sally Madison.
— Boa noite, cumprimentou., Chamo-me Mason. Sou advogado.
Umas pestanas longas ergueram-se, desvendando uns olhos escuros que estudaram o advogado com a franqueza descarada de um olhar avaliador de propriedades humanas.
— Sim, bem sei. É o advogado Perry Mason.
— Permita que me sente?
— Faça o favor. Mason puxou uma cadeira.
— Creio, começou,, Que este caso não vai me agradar.
— Tenho esperanças que lhe agrade. Mr. Faulkner precisa de um bom advogado.
— Mas, sublinhou Mason, Se eu concordar em representar Mr. Faulkner, isso poderá prejudicar os seus interesses.
— É provável.
— Poderá reduzir a importância que você deveria receber.
— Não parece! Replicou com a segurança de quem ocupa uma posição inexpugnável. Mason olhou-a zombeteiramente.
— Quanto, perguntou-lhe,, pretende conseguir de Mr. Faulkner?
— Hoje, são cinco mil dólares. Mason sorriu.
— Por quê essa acentuação na palavra hoje? Ontem, quanto era?
— Quatro mil.
— E anteontem?
— Três mil.
— E amanhã, quanto será?
— Não sei. Penso que esta noite me dará os cinco mil.
Mason estudou-lhe o semblante inexpressivo, carregado de maquiagem. Os seus olhos denotavam o enorme interesse que estava tomando naquele caso.
— Faulkner diz que você é uma “exploradora”.
— Sim, ele deve pensar isso.
— Mas é?
— Talvez. Na realidade, não sei. Provavelmente, sou. Mas, se Mr. Faulkner pretende começar a atirar pedras, não se esqueça dos seus telhados de vidro. É um agarrado ao dinheiro, avarento, despótico... Oh, de que serviria lhe contar? Não compreenderia. Mason riu abertamente.
— Procuro, declarou,, Compreender este caso. Até aqui, não pareço ter sido muito bem sucedido. Agora, quer fazer o favor de me explicar o que está acontecendo?
— A minha relação com ele é muito simples, declarou., Quero conseguir dinheiro de Harrington Faulkner.
— E que razão tem para admitir que Faulkner dê o dinheiro?
— Ele quer que os peixes se curem, não é verdade?
— Parece que sim, mas receio não estar vendo a relação...
Pela primeira vez, desde que Mason se sentara, fulgurou no rosto maquilado da mulher uma certa expressão.
— Mr. Mason, já alguma vez amou alguém que viesse a sofrer de tuberculose? Os olhos de Mason perturbaram-se. Sacudiu negativamente a cabeça e incitou:
— Continue.
— Harrington Faulkner tem dinheiro. Tanto dinheiro que nunca daria pela falta de cinco mil dólares. Tem gasto milhares de dólares com esse passatempo dos peixes. Mas é rico; é podre de rico e nem sabe como gozar o seu dinheiro ou como gastá-lo de forma a ser útil a alguém ou a alguma coisa. Continuará a esbanjá-lo até que, um dia, morrerá e essa mulher de coração de pedra o herdará. É um avarento, exceto quanto aos peixes. E, entretanto, Tom Gridley caminha para a morte. O médico afirma que ele precisa de repouso absoluto, isento de aborrecimentos, completo relaxamento de nervos. Que probabilidades tem Tom de consegui-lo enquanto trabalhar, a vinte e sete dólares por semana, nove horas por dia numa loja de animais, que é húmida e malcheirosa... Não tem possibilidade de apanhar sol, senão durante os curtos intervalos que consegue arranjar aos domingos e, evidentemente, isso de pouco lhe serve. Mr. Faulkner perde a cabeça só porque alguns peixes negros estão doentes, mas, se visse morrer Tom tuberculoso, não se impressionaria.
— Continue, incitou Mason.
— É duro.
— Mas, perguntou Mason, Que tem a ver Tom Gridley com Harrington Faulkner?
— Ele não lhe contou?
— Não. Suspirou com desespero.
— Foi para isso que ele foi para a sua mesa.
— Talvez a culpa tenha sido minha, disse Mason., Saí dali antes do tempo. Pensei que você estivesse fazendo chantagem com ele.
— E estou, confessou calmamente.
— Mas, segundo parece, por modo diferente do que pensei, replicou Mason.
— Sabe alguma coisa de peixes dourados, Mr. Mason?
— Nada, admitiu o advogado.
— Nem eu, mas Tom sabe tudo quanto se pode saber a esse respeito. Os peixes dourados que constituem a maior paixão de Mr. Faulkner sofrem de uma enfermidade especial e Tom conhece um tratamento capaz de curá-los. O único outro tratamento conhecido é a aplicação de um ingrediente à base de sulfato de cobre, de resultados duvidosos e frequentemente fatal.
— Fale-me do remédio de Tom.
— É segredo, mas posso lhe dizer isto. Em vez de ser um tratamento drástico, que abala os peixes, é um tratamento suave e inteiramente benéfico. Evidentemente, um dos problemas de tratamento de peixes por lançamento de coisas na água é que o remédio tem de ser inteiramente misturado na água; porém, logo que entra em repouso, começa a se concentrar, em lugares indevidos. Se o remédio for mais denso do que a água, assentará no fundo, e se for menos denso, ficará em cima.
— E como é que Tom resolveu o problema? Perguntou Mason, interessado.
— Posso lhe contar. Pinta um painel plástico com o remédio e mergulha-o no tanque dos peixes; esses painéis são mudados de tempos a tempos.
— E dá resultado?
— Acho que sim. Deu resultado com os peixes de Mr. Faulkner.
— Mas eu pensava que ainda estavam doentes.
— E estão.
— Então, não parece que o remédio tenha funcionado.
— Funcionou, sim. Compreende, Tom queria continuar com ele e curar os peixes completamente, mas eu não consenti. Dei a Mr. Faulkner apenas o remédio suficiente para impedi-los de morrer e depois lhe disse que, se quisesse financiar Tom na sua descoberta, dar-lhe-íamos metade dos interesses e poderia colocar essa descoberta no mercado. Tom é uma dessas almas ingênuas que confiam em toda a gente. É um químico e está sempre fazendo experiências com remédios. Descobriu um para os nervos e deu-o simplesmente a David Rawlins, o homem que dirige a loja de animais. Ele disse apenas “obrigado” e nem sequer lhe deu um aumento. Evidentemente que não o podemos forçar a dar, porque o negócio não é brilhante e não se faz muito dinheiro com animais, a não ser quando se tem uma grande casa; todavia, obriga Tom a trabalhar muito e... Bem, no fim de contas, o homem vem ganhando dinheiro com esse remédio para os nervos que Tom descobriu.
— Foram essas duas coisas as únicas que Tom inventou? Perguntou Mason.
— Não, não, inventou outras, mas há sempre uma pessoa que se aproveita delas... Ora, desta vez, resolvi que as coisas haviam de acontecer de modo diferente. Eu própria vou me encarregar do assunto. Mr. Faulkner podia dar cinco mil dólares imediatamente e depois lhe pagar os direitos de patente. Estou disposta a considerar os cinco mil dólares como um pagamento adiantado contra a metade dos direitos da patente, mas só contra a metade.
— Não creio que haja no país um grande número de aficionados de peixes dourados, disse Mason.
— Pois eu sei que os há. Penso que há montes de pessoas com a mania de colecioná-los.
— Mas julga que essa enfermidade seja tão comum que anime Mr. Faulkner fazendo um investimento dessa importância?
— Não sei nem me interessa. O que me interessa é que Tom possa ir para o campo, para um lugar onde haja sol e ar puro. Tem de ir para um lugar onde possa viver descansadamente, durante algum tempo. Se o fizer, me disseram que poderá se restabelecer completamente. Se não fizer isso, as coisas irão de mal a pior, até que finalmente será demasiado tarde. Dou a Mr. Faulkner uma oportunidade de curar esses seus estimados peixes e de obter um remédio que lhe permita criar essa espécie sem perigo de futura infecção, e isso para ele é de importância capital. Quando penso no que gastou com eles, me convenço de que lhe saio muito barata. Mason sorriu.
— Mas tem aumentado o preço, a mil dólares por dia?
— Tenho.
— Por quê?
— Ele procura fazer chantagem comigo. Diz que Tom descobriu esse invento enquanto estava trabalhando para Rawlins e que, por conseguinte, o invento pertence à Rawlins, e a menos que Tom lhe cure os peixes, Mr. Faulkner associar-se-á a Rawlins e poderá processar Tom. Mr. Faulkner é um homem duro e estou tratando com ele da única maneira que ele é capaz de compreender... “Na força bruta”.
— Que significa, na verdade, Tom Gridley para si? Inquiriu Mason. Ela lhe sustentou firmemente o olhar.
— É aquele a quem amo. Mason riu por entre os dentes.
— Bem, disse, já não me espanto que Faulkner pense que você seja uma “exploradora”. Pelo modo como ele falou, pensei que andasse a “se bater” consigo e que você tivesse resolvido explorá-lo.
Os olhos da mulher brilharam escarnecedoramente para o lugar onde Harrington Faulkner estava sentado, visivelmente pouco à vontade.
— Mr. Faulkner, declarou, Nunca “se bate” seja com quem for. E depois de um momento, acrescentou,, A não ser com um peixe dourado. Mason sorriu.
— É casado?
— Exatamente, com um peixe dourado.
— A mulher?
— Sim. O garçom apareceu com comida na bandeja.
— Devo servi-lo nesta mesa? Perguntou a Mason.
O advogado viu Harrington Faulkner consultar os documentos com aparente ansiedade.
— Se me permite, desculpou-se perante Sally Madison,, Volto para a minha mesa e mando-lhe Mr. Faulkner. Não creio que me encarregue deste caso.
— Não precisa mandá-lo, declarou Sally Madison., Diga-lhe que me mande o cheque de cinco mil dólares e que não saio daqui enquanto não o der ou até que os malditos peixes acabem por morrer.
— Dir-lhe-ei. Prometeu Mason e voltou para a mesa.
Faulkner olhou-o inquiridoramente. Mason baixou a cabeça e disse:
— Não sei ao certo o que pretende, mas... Depois de ter comido qualquer coisa, considerarei o assunto.
— Podíamos falar aqui mesmo, propôs Faulkner. O aceno de cabeça de Mason indicou Sally Madison, sentada, sozinha, na outra mesa.
-— Agora, vou comer, mas depois espero que não queira que eu tente conseguir qualquer acordo com Miss Madison. Se for essa a sua intenção, não estou interessado.
— A proposta de Sally Madison é pura chantagem.
— É possível, concordou Mason, calmamente. Neste mundo, faz-se muita chantagem. Faulkner disse amargamente:
— Suponho que ela lhe conquistou a simpatia. No fim de contas, a cara e o corpo são os seus maiores trunfos e ela sabe muito bem! E acrescentou ainda mais amargamente:, pessoalmente, não vejo o que se pode achar de especial naquele tipo. Mason sorriu e declarou:
— Pessoalmente, nunca colecionei peixes dourados.
Sobre as ruas da cidade espalhara-se um nevoeiro tão denso que dava a impressão de que o automóvel nadava lentamente através de um mar de leite aquoso. Os limpadores de para-brisas batiam afanosamente um ritmo monótono de frio protesto contra a superfície viscosa do vidro. Cerca de quinze metros adiante, as lanternas vermelhas da retaguarda do automóvel de Harrington Faulkner serviam-lhes de guia.
— É um motorista vagaroso, comentou Della Street.
— O que é uma vantagem para um tempo destes, concordou Mason. Drake riu.
— Aposto que o tipo nunca teve uma aventura em toda a sua vida. É um pássaro frio, meticuloso, com uma personalidade de gelo. Fiquei banzado quando o vi na companhia dessa exploradora. Por quanto tempo aguentará ela, Perry?
— Não sei.
— Pela expressão de Faulkner ao tirar do bolso o seu livro de cheques, disse Della, A quantia deve ter sido exatamente a que a mulher pediu. Ela não perdeu tempo, mal colocou as mãos ao cheque. Nem sequer acabou de jantar.
— Sim, concordou Mason., Ela não teve o menor escrúpulo em fazê-lo. O seu interesse por Harrington Faulkner era puramente financeiro.
— Quando chegarmos a casa dele, o que teremos de fazer? Interessou-se Drake. Mason arreganhou os dentes num sorriso.
— Posso estar enganado, Paul, mas parece que ele quer nos mostrar a localização do aquário dos peixes, antes de podermos compreender o seu problema. Parece se tratar de uma faceta importante do caso pelo que lhe diz respeito e, quando tem uma ideia, vai direito ao fim. Segundo o que deduzi, Faulkner e a mulher vivem numa grande casa dupla. Um lado é reservado à moradia e o outro é onde Faulkner e o sócio, Elmer Carson, têm os seus escritórios. Aparentemente Faulkner tem vários aquários de peixes dourados espalhados pela casa e esse par especial de Veiltail Moor, que é a causa de toda a confusão, fica na parte do edifício reservada aos escritórios. Por qualquer razão, Faulkner quer que vejamos o aquário e os peixes. É evidente que pensa mais nesse par de Veiltail Moor do que no seu olho direito. Contudo, saberemos os pormenores quando entrarmos. Creio que no seu espírito não anda mais qualquer coisa além desses peixes dourados e dessa questão com o sócio, mas não me pronunciarei antes do tempo.
As lanternas da retaguarda do carro da frente viraram abruptamente para a direita. Mason obrigou o carro a virar a esquina. Percorreram uma rua lateral e pararam em frente de uma casa que se mostrava em linhas nebulosas através do nevoeiro. Mason, Della Street e Paul Drake saltaram, viram Harrington Faulkner desligar cuidadosamente a ignição e fechar a porta do carro, após o que deu uma volta completa em torno dele, experimentando cada uma das portas para se certificar de que estavam fechadas, assim como a mala do carro. Depois foi ao encontro deles. Em seguida, tirou do bolso um estojo de couro para chaves, escolheu uma e disse com a entoação precisa de um conferencista perante uma audiência que lhe merecesse apenas um interesse impessoal:
— Agora Mr. Mason, o senhor notará que existem duas portas de saída, nesta casa. A da esquerda tem a placa “Faulkner & Carson, Associados”. A porta da direita é a de minha casa.
— Onde mora Elmer Carson? Perguntou Mason.
— Uns quarteirões abaixo, nesta mesma rua.
— Reparei, observou Mason, Que a casa está às escuras.
— Sim, confirmou Faulkner inexpressivamente,, Minha mulher, evidentemente, não se encontra em casa.
— Mas os peixes especiais em que está interessado, prosseguiu Mason, São os Veiltail Moor que estão no tanque ou aquário que se encontra no escritório?
— Exatamente, e Elmer Carson alega que o tanque é parte do escritório e que os peixes são parte dos artigos do escritório. Conseguiu que um tribunal me impossibilitasse de deslocar dali quaisquer artigos ou até de mudá-los de lugar.
— Os peixes foram criados inteiramente por si?
— Exatamente.
— Carson não teve qualquer contribuição financeira?
— Nenhuma. Os peixes são produto resultante de uma espécie que eu desenvolvi. Contudo, o tanque, Mr. Mason, foi incluído na sociedade como artigo de mobiliário do escritório e está tão preso ao edifício que, provavelmente, será considerado um móvel fixo. É um tanque retangular de cerca de noventa centímetros por meio metro, com um metro e quinze de profundidade. Havia um nicho na parede do edifício, um lugar que estava ocupado por um armário chinês e que não tinha a menor utilidade no escritório. Sugeri que poderíamos retirá-lo dali e colocar um aquário em seu lugar. Isto foi feito após a concordância de Carson. Quando nos apresentaram a conta da obra, considerei-a impensadamente como despesa do escritório e infelizmente foi assim lançada nos livros de contabilidade. O tanque está indubitavelmente ligado ao edifício e este pertence à sociedade.
— Todo ele? Inquiriu Mason.
— Sim. Aluguei o outro lado, onde vivo.
— Então, como se explica que tivesse posto uns peixes tão valiosos num tanque que fazia parte do escritório?
— Compreenda Mr. Mason, que isso é uma história bastante comprida. Originalmente, coloquei no fundo do tanque um jardinzinho de aquário, um dispositivo para renovar a água e algumas dúzias sortidas de vários tipos de peixes dourados, o Fringetail, o Chinese Telescope, alguns Cometas Japoneses, algumas Ninfas e alguns Brocades de Outono. Depois, criei esses Veiltail Moor telescopes e subitamente verifiquei que os peixes do outro tanque tinham contraído uma doença que entre eles é contagiosa. Precisava transferir imediatamente esses Moors para um lugar onde pudesse tê-los sob observação e, sem pensar nas possíveis complicações legais, retirei os outros peixes e meti esses Veiltail Moors no tanque do escritório. Quase imediatamente começaram os aborrecimentos. Os peixes contraíram a mesma doença e Elmer Carson subitamente saltou-me em cima exigindo que lhe pagasse um preço exorbitante pelo seu interesse no negócio. Recorreu ao tribunal e conseguiu que me proibissem de retirar esse tanque de peixes do registo da propriedade, baseando-se em que se tratava de um móvel fixo. Simplesmente, não posso compreender o que motivou a sua súbita mudança de atitude e a amarga animosidade com que me olha. Isto aconteceu depois de um atentado contra a minha vida.
— Atentaram contra a sua vida! Exclamou Mason.
— Exatamente.
— Que aconteceu?
— Alguém disparou contra mim. Mas, no fim de contas, meus senhores, não me parece estarmos no local apropriado para discutir estes assuntos. Entremos e... Opa, o que é isto?
Um automóvel descrevera a curva em frente da casa e despejara dois passageiros, um homem e uma mulher. Quando as figuras se materializaram, vindas do nevoeiro, Faulkner informou:
— É essa Madison e o rapaz. Entreguei uma chave da casa à mulher. Já deviam estar aqui há trinta minutos. Ela saiu bastante apressada. Nem sequer acabou de jantar. Suponho que é esse rapaz que a mantém. Mason baixou a voz e falou rapidamente:
— Ouça, Faulkner, esse tanque deve ser um móvel fixo e, portanto, uma parte do edifício que não pode ser deslocada, mas os peixes não são certamente um móvel fixo. Andam de um lado para o outro dentro do tanque. Arranje um balde ou uma rede, retire os peixes dali para fora e deixe o tanque no seu lugar... Depois, poderá tranquilizar-se; quanto a Elmer Carson...
— Meu Deus, aconteceu ali qualquer coisa! Exclamou Faulkner., Os peixes... Interrompeu-se subitamente para virar-se para o casal que subia apressadamente o caminho., Bem, bem, disse, de mau humor., Que diabo vocês estavam fazendo?
O homem novo, magro e um tanto ossudo, que estava com Sally Madison respondeu:
— Desculpe Mr. Faulkner, mas o chefe tinha um caso semelhante para tratar e eu tive de preparar um tanque para poder transferir...
— Um momento, um momento, interrompeu Faulkner., Quer dizer que anda apregoando de um lado para o outro o segredo desse remédio? Não compreende que acabo de adquirir parte dos direitos desse invento? Não pode contar a ninguém...
— Não, não, interveio Sally Madison apressada e melifluamente,, Ele não anda contando a ninguém, Mr. Faulkner. O remédio é um segredo, mas bem sabe que Tom anda fazendo experiências com ele ali na loja de animais e evidentemente Rawlins anda a par do que ele estava fazendo e... Ora, o senhor bem sabe como é. Mas ninguém conhece a fórmula secreta, com exceção de Tom. Irá fornecê-la ao senhor e...
— Não gosto disto, gritou Faulkner., Não gosto nada disto. Não são maneiras de proceder. Como podemos ter a certeza de que Rawlins não está nos roubando o negócio? Apoderar-se-á de todo o material que Tom está utilizando para preparar esses painéis, mandá-lo-á examinar e então de que valerá o meu investimento de capital? Digo-lhes que isto não me agrada.
Faulkner inseriu colericamente uma chave na fechadura da porta, abriu a porta, entrou, acendeu a luz e caminhou rudemente para dentro do aposento. Sally Madison pousou a mão no braço de Mason e apresentou com orgulho:
— Este é Tom, Mr. Mason. Mason arreganhou os dentes num sorriso e cumprimentou:
— Muito prazer, Tom, e estendeu-lhe a mão. Gridley retribuiu:
— Tenho muito gosto em conhecê-lo, Mr. Mason. Tenho ouvido falar tanto de si que... Foi interrompido por uma exclamação de Harrington Faulkner:
— Quem esteve aqui? Que aconteceu? Chamem a Polícia!
Mason precipitou-se através do limiar da porta e seguiu a direção dos olhos coléricos de Harrington Faulkner. O tanque que fora inserido no lugar do armário chinês fora retirado dos seus suportes e colocado no extremo de um aparador. Em frente deste, fora colocada uma cadeira que constituía um cômodo degrau sobre o qual era evidente que alguém se empoleirara. Sob o assoalho encerado havia água espalhada e no chão, ao lado da cadeira, via-se uma concha de sopa, de prata, de cabo comprido. A este fora ligado um pau de cerca de cento e vinte centímetros de modo a formar uma extensão eficaz, conquanto grosseira.
O fundo do tanque dos peixes dourados continha uma polegada ou duas de pequenos calhaus e conchas marinhas com algumas plantas que estendiam a sua rama verde em direção à superfície da água. No tanque, não havia sinal de vida animal.
— Os meus peixes! Exclamou Faulkner, agarrando as bordas do tanque com as mãos e comprimindo o rosto de encontro às paredes de vidro, com uma espessura de alguns centímetros, do tanque., Que aconteceu aos peixes? Onde estão eles?
— Parece terem desaparecido, disse Mason, secamente.
— Fui roubado! Exclamou Faulkner., É uma tentativa miserável de Elmer Carson para...
— Seja prudente, agora! Aconselhou Mason.
— Prudente! Explodiu Faulkner., por que razão hei de ser prudente? Bem pode ver com os seus próprios olhos o que aconteceu. É tão claro como dois e dois serem quatro. Tirou os peixes do aquário e tenciona se servir disso como trunfo para me obrigar a ceder às suas condições. É a mesma coisa que um rapto. Não estou disposto a suportar isto. Desta vez, foi longe de mais. Vou mandá-lo prender! Vou meter a Polícia no caso e vamos resolver esta coisa aqui mesmo e imediatamente. Faulkner arremessou-se como uma flecha para o telefone, pegou no auscultador, ligou para a rede e gritou para o bocal:, Ligue-me depressa para o Comando-Geral da Polícia! Quero participar um roubo. Mason aproximou-se do telefone.
— Ouça Faulkner, aconselhou,, Tenha cuidado com o que vai dizer. Pode chamar a Polícia, contar a sua história e deixá-los tirar as conclusões que quiserem, mas não vá fazer acusações e não mencione nomes. Sob o ponto de vista de colecionador, esses peixes são provavelmente de grande valor, mas para a Polícia, são apenas dois peixes dourados que o senhor... Faulkner fez um gesto a Mason pedindo silêncio e declarou com uma voz que estava trêmula de emoção:
— Quero que a Polícia se ponha em campo imediatamente. Fala Harrington Faulkner. Fui roubado. Mande-me aqui os melhores detetives que tenham, imediatamente. Mason foi se juntar aos outros.
— Vamo-nos embora, propôs, calmamente., Se a Polícia levar esta coisa a sério, tirará impressões digitais.
— E se não levar a sério? Perguntou Drake. Mason encolheu os ombros. Ao telefone, Harrington Faulkner repetiu o nome, deu o endereço e desligou.
— A Polícia disse que saísse toda a gente do quarto, na sua excitação, a voz soava estrídula,, Disseram-me que...
— Bem sei, bem sei, interveio Mason, suavemente.
— Podem entrar na porta ao lado, disse Faulkner., É ali que moro. Esperaremos lá que venham. Faulkner conduziu-os à outra ponta da casa e acendeu as luzes., Minha mulher não está, explicou,, Mas se quiserem esperar aqui... Estejam à vossa vontade, por favor. Sentem-se. A Polícia diz que levará apenas uns minutos para mandar uma radiopatrulha.
— A porta do outro lado da casa? Perguntou Mason., Era melhor ir ver se está fechada à chave para que ninguém lá entre antes da chegada da Polícia.
— Tem um fecho de mola. Ao empurrarmos a porta, se fecha.
— Está certo de que, quando chegou, estava fechada à chave? Perguntou Mason.
— Sim, sim. Bem me viu meter a chave e abrir a Porta, justificou-se Faulkner, impacientemente., A porta estava fechada à chave e a fechadura não tinha sido forçada.
— E as janelas? Inquiriu Drake., reparou se essas estavam bem fechadas?
— Eu reparei, declarou Mason, quando Faulkner fazia um esforço para se concentrar. —Todas as janelas desse quarto, pelo menos, estavam fechadas. Quantas janelas tem a casa, Faulkner?
— Quatro. Esse quarto é o gabinete de trabalho onde temos as nossas mesas. Depois há outro quarto que usamos como arquivo. Adaptamos uma cozinha e por essa razão há aí um pequeno bar e uma geladeira. Se a ocasião parecer apropriada poderemos oferecer uma bebida a um cliente. Vou dar uma vista de olhos nesses quartos e tentar descobrir qualquer coisa fora do seu lugar. Mas estou certo de que encontrarei tudo em ordem. O homem que roubou esses peixes abriu a porta da rua com uma chave e entrou à vontade. Sabia exatamente aonde se dirigir, o que ir buscar e o que estava fazendo.
— É melhor não ir lá antes de a Polícia chegar, aconselhou Mason., podem não gostar.
O som de uma sirene cortou a escuridão nevoenta do exterior e ressoou agourentamente. Faulkner se pôs de pé num salto, correu para a porta da rua e parou na entrada, esperando o carro da Polícia.
— Entramos? Perguntou Drake a Mason. O advogado sacudiu negativamente a cabeça e respondeu:
— Ficamos aqui mesmo. Tom Gridley agitou-se desajeitadamente.
— Deixei os painéis de plástico no meu carro, declarou., Estavam pintados e preparados para colocá-los no tanque. Eu...
— O seu carro está fechado à chave? Inquiriu Mason.
— Não, aí é que está a coisa. Não está.
— Então é melhor sair e ir fechá-lo. Espere que a Polícia entre. Suponho que está tomando todas as precauções para manter secreta a sua fórmula, não é verdade? Tom Gridley respondeu afirmativamente com um aceno de cabeça.
— Eu nem sequer devia ter dito a Rawlins que tinha um remédio.
Provenientes do exterior soaram vozes autoritárias. Entretanto, Harrington Faulkner conseguira dominar as suas emoções e a sua voz soou, uma vez mais, precisa nas suas articulações. Ouviam-se passos em direção à entrada. A porta da outra casa abriu e fechou-se. Mason fez um aceno de cabeça a Gridley.
— É melhor aproveitar esta oportunidade e correr até lá fora a fechar o carro, aconselhou. Paul Drake sorriu a Mason e classificou:
— O grande caso dos peixes dourados. Mason riu baixinho e declarou:
— É bem feito para eu não ser curioso.
— Se a Polícia o encontrar aqui... Disse Drake, jovialmente.
— E a você, retorquiu Mason., Especialmente quando transmitirem a chamada para a Imprensa. O sorriso desapareceu do rosto de Drake.
— Acredite, sinto-me um tanto envergonhado.
— Não há nenhuma razão para isso, interveio Sally Madison., Esses peixes dourados significam tanto para Mr. Faulkner como se fossem membros de sua família. É tal e qual como se lhe tivessem raptado um filho. Vem alguém aí...
Puseram-se à escuta e ouviram o som de um carro, seguido de passos rápidos. Um momento depois, a porta da rua abriu. A mulher que apareceu no limiar da porta era uma loura, na casa dos trinta, que fazia uma desesperada tentativa para dominar um corpo que começara a alargar. As curvas ainda eram atraentes, mas estavam se tornando amplas e se notava uma proeminência redonda à volta do corte da saia, uma elevação consciente dos cantos da boca, um esforço decidido para manter o queixo alto, tudo isso combinado para dar um efeito de imobilidade estática. Reprimira a naturalidade própria a fim de deter a mão do tempo. Todos os seus movimentos pareciam ter sido ensaiados diante de um espelho. Sally Madison proferiu quase sem fôlego:
— Mrs. Faulkner! Mason e Drake puseram-se de pé. Mason adiantou-se.
— Permita que me apresente Mrs. Faulkner. Sou Perry Mason. Vim aqui a pedido de seu marido que parece ter tido um dissabor no escritório. Esta é Miss Street, minha secretária, e Miss Madison. E permita-me que lhe apresente também Mr. Paul Drake, diretor da Agência de Detetives Drake.
Mrs. Faulkner entrou majestosamente no aposento. No limiar da porta, Tom Gridley, um tanto embaraçado, permaneceu hesitante como que se debatendo entre entrar ou girar nos calcanhares e ir procurar refúgio no carro.
— E, observou Mason, virando-se para incluir Gridley na sua apresentação., Mr. Thomas Gridley. A voz de Mrs. Faulkner era bem timbrada. Tinha uma qualidade lenta, profunda e quase sedutora.
— Estejam à vontade, convidou., Ultimamente, meu marido tem andado muito excitado e sinto-me contente por saber que finalmente consultou um advogado célebre. Há algum tempo que o vinha aconselhando a fazê-lo. Sentem-se, por favor. Vou arranjar-lhes uma bebida.
— Talvez, prontificou-se Della Street,, Eu possa ajudar.
Mrs. Faulkner virou para a secretária de Mason uns olhos circunspectos e observadores, considerou-a durante um momento e o rosto suavizou-se num sorriso.
— Claro, disse graciosamente,, Se você quiser. É muito amável.
Della Street seguiu Mrs. Faulkner através da casa para a cozinha. Sally Madison virou-se para Mason.
— Está entendendo o que quis dizer há pouco? Inquiriu disfarçadamente, e acrescentou parenteticamente:, peixe dourado. Tom Gridley aproximou-se de Sally Madison e disse em ar de desculpa:
— Evidentemente que eu podia ter feito Rawlins esperar que eu construísse outro painel em vez de me servir do que estava no tanque de Faulkner.
— Não seja tolo. Isso não faria a menor diferença. Teríamos sido nós a descobrir o tanque vazio. De qualquer forma havia de nos censurar por isso, por que... Mas, acha que o velho sovina vai se fazer de difícil com o cheque, agora que os seus peixes foram roubados? Gridley respondeu:
— Não vejo qualquer razão para isso. Essa fórmula é um tratamento eficaz. Nunca houve nada que se aproximasse em resultados. Ora, eu posso curar qualquer caso, no espaço de quarenta e oito horas... Digamos antes, setenta e duas horas, para maior segurança, mas...
— Não se preocupe querido, disse Sally Madison como que o aconselhando a se calar., Estas pessoas não estão particularmente interessadas em peixes dourados.
Paul Drake trocou um olhar com Mason e lhe deu um lento piscar de olho. Mrs. Faulkner e Della Street voltaram da cozinha, carregadas com copos, cubos de gelo, whisky e soda. Mrs. Faulkner encheu os copos e Della Street distribuiu-os. Depois, Mrs. Faulkner se sentou em frente de Mason. Cruzou umas pernas bem torneadas e certificou-se de que a extremidade da saia ficava mesmo por cima do joelho.
— Tenho ouvido, disse a Perry Mason, com um sorriso artificial, falar muito de si. Esperava vir a conhecê-lo qualquer dia. Tenho lido todos os seus casos... Segui-os com muitíssimo interesse.
— Obrigado, agradeceu Mason e começava a dizer outra coisa quando a porta da rua se escancarou e Harrington Faulkner, lívido de cólera, gritou numa voz que a indignação tornara áspera e estridente:
— Sabem o que me disseram? Disseram que não há lei nenhuma contra o rapto de peixes! Disseram que se eu pudesse provar que ladrões vindos do exterior tinham entrado na casa, se trataria de roubo por arrombamento, mas que em se tratando de Elmer Carson que possui metade dos interesses da casa e o direito de entrar e sair quando desejar, se ele quiser levar os meus peixes, a única coisa que eu poderia fazer seria instaurar um processo civil requerendo indenização. E depois um dos oficiais teve a temeridade de me dizer que a indenização não seria grande; que se podia comprar um rebanho inteiro de peixes por metade do preço que eu teria de pagar a um advogado para tratar dos documentos. A ignorância do homem é tão espantosa como imperdoável. Um rebanho de peixes! O ignorante! Julgaria que estávamos falando de carneiros.
— Disse-lhe, perguntou Mason, Que foi Elmer Carson quem levou os peixes? Os olhos de Faulkner desviaram-se dos de Mason.
— Bem, evidentemente que lhes disse que tenho andado aborrecido com Carson e que este tem uma chave. Compreenda, quem entrou, teve de entrar pela porta.
— Todas as janelas estavam fechadas? Inquiriu Mason.
— Todas elas estavam fechadas. Alguém trouxe uma chave de parafusos e abriu a porta da cozinha, mas foi um trabalho grosseiro. Tal como os oficiais apontaram, isso foi feito pelo lado de dentro, além do que, a porta externa estava fechada. Quem o fez, praticou uma tentativa muito desajeitada de dar a entender que ladrões tinham forçado uma entrada através da porta dos fundos. Ninguém cairia no logro. Nada sei de arrombamentos, mas mal olhei para as marcas na porta, até eu seria capaz de dizer o que acontecera.
— Aconselhei-o a não fazer quaisquer acusações contra Carson, interveio Mason., Em primeiro lugar, está se colocando numa posição perigosa, fazendo acusações que não pode comprovar, e, em segundo lugar, estou certo de que assim que a Polícia tiver a ideia de que foi uma disputa entre dois sócios lavarão as mãos desse caso.
— Bem, já o fizeram, disse Faulkner, com frieza,, E, pessoalmente, confesso que a maneira que me indicou para tratar o assunto não me parece ter sido a melhor. Mr. Mason, o meu interesse neste caso consiste em recuperar os peixes antes que seja demasiado tarde. Esses peixes são muito valiosos. Para mim significam tanto como a minha própria família. Os peixes se encontram num estado muito crítico e quero reavê-los para poder tratá-los e salvar-lhes a vida. O senhor é tão desmoralizante como a Polícia, com os seus malditos não-faça-isto e não-faça-aquilo.
A voz de Faulkner elevara-se com a tensão nervosa. Perdera inteiramente a calma e dir-se-ia estar à beira de histeria.
— Nenhum de vocês é capaz de compreender a importância disto? Não compreendem que esses peixes representam a realização coroada de algo que, durante anos, foi o meu passatempo? Estão todos aí sentados de braços cruzados sem fazerem a menor sugestão construtiva. Esses peixes estão doentes. Neste mesmo instante, devem estar morrendo e ninguém mexe um dedo para fazer qualquer coisa. Um dedo! Estão simplesmente aí sentados a beberem o meu whisky enquanto os pobres animais estão morrendo.
A mulher de Faulkner não mudou de posição nem sequer voltou à cabeça para fitar o marido. Disse, por cima do ombro, como se falasse para uma criança:
— Deixa pra lá, Harrington. Ninguém pode fazer nada. Já chamou a Polícia e, aparentemente, complicou as coisas com eles. Se os tivesse convidado a entrar e tomar uma bebida conosco talvez se sentissem inclinados a considerar a situação de um modo inteiramente diferente.
O telefone tocou. Faulkner pegou no auscultador e levantou-o.
— Alô... Sim, é o próprio. Durante vários segundos, ouviu o que lhe diziam do outro extremo do fio. Depois, um sorriso triunfante espalhou-se pelo rosto., Então, está bem. O negócio está fechado, disse., podemos assinar os papéis logo que os tenha preparado... Sim, espero que você satisfaça... Todos os pormenores do título de transferência. Ouviu durante mais uns momentos e depois desligou. Mason observou curiosamente o homem enquanto este se afastava do telefone para parar diante de Sally Madison., Detesto ser ameaçado, anunciou com voz áspera. Sally Madison limitou-se a agitar as longas pestanas.
— Sim? Inquiriu numa voz lenta.
— Esta noite, você tentou me ameaçar, prosseguiu Faulkner,, E eu avisei de que era perigoso brincar comigo. Ela exalou a fumaça do cigarro sem fazer qualquer comentário., por conseguinte, declarou Faulkner, triunfantemente, vou cancelar o pagamento desse cheque que lhe passei. Acabo de concluir um negócio que tinha pendente com David Rawlins. Acabo de comprar a loja dele, incluindo as instalações, a clientela, todas as fórmulas e todas as invenções que ele ou qualquer dos seus empregados tenham descoberto. Faulkner se virou rapidamente para Tom Gridley., Agora, meu rapaz, você está trabalhando para mim. Sally Madison conservou o desânimo fora do olhar, mas a voz denunciava certo tremor:
— Não pode fazer isso, Mr. Faulkner.
— Já fiz.
— A invenção de Tom nada tem a ver com o negócio de Mr. Rawlins. Tom realizou-a fora das horas de serviço.
— Ora. Isso é o que todos dizem. Veremos qual será a opinião de um juiz a esse respeito. E agora, minha menina, faça o favor de me devolver o cheque que lhe dei esta noite. Comprei todo o negócio por menos de metade da quantia por que me queria complicar a vida. Sally Madison abanou obstinadamente a cabeça.
— Fechou o negócio. Pagou a fórmula.
— Uma fórmula que não tinham o direito de vender. Devia mandá-los prender por obterem dinheiro sob falsos pretextos. Ou me devolve o cheque ou cancelarei o seu pagamento. Tom Gridley interveio:
— No final das contas, Sally, não é grande coisa. São apenas... Faulkner virou-se para ele.
— Não é grande coisa, meu rapaz! Isso são maneiras de se referir a...
A voz de Mrs. Faulkner demonstrou interesse quando seu marido subitamente se calou:
— Continue querido. Ouçamos quanto. Estou desejosa de saber exatamente quanto pagou.
Faulkner olhou-a com ar carrancudo e respondeu rudemente:
— Se tens alguma coisa com isso, foram cinco mil dólares.
— Cinco mil dólares! Exclamou Tom Gridley., Mas eu disse a Sally que a vendesse por... Subitamente o seu olhar cruzou-se com o de Sally Madison e interrompeu-se a meio da frase.
Drake emborcou apressadamente a sua bebida quando viu Perry Mason pousar o copo, se levantar da cadeira e dirigir-se a Faulkner:
— Penso, segredou Drake a Della Street, que observava Mason, com olhos divertidos, — Que chegamos ao ponto em que entramos em cena... E é um whisky estupendo. Custa-me perdê-lo. Mason declarou a Faulkner:
— Não creio que tenhamos de preocupar-nos mais consigo, Mr. Faulkner. O seu caso não se reveste do menor interesse para mim e não há quaisquer encargos resultantes desta investigação preliminar. Mrs. Faulkner interveio, apressadamente:
— Por favor, não o julgue com tanta severidade, Mr. Mason. Ele está um feixe de nervos. Mason inclinou-se num cumprimento.
— E eu também estaria um feixe de nervos... Se o tivesse como cliente. Boa noite.
Mason, envergando pijama e roupão, estendeu-se numa cadeira de repouso, com um candeeiro de pé alto projetando uma luz suave sobre o livro que segurava na mão. O telefone, colocado ao lado do cotovelo, tocou estridentemente. Somente Paul Drake e Della Street tinham o número desse telefone. Por conseguinte, Mason fechou o livro, levou o auscultador ao ouvido e atendeu:
— Alô? Era a voz de Drake.
— Lembra-se da “exploradora”, Perry?
— A do restaurante?
— Isso mesmo.
— O que há?
— Teve vontade de se pôr em contato consigo. Pediu que lhe desse o seu número.
— Onde ela está?
— Neste momento, em outro telefone.
— Que quer?
— Diabos me levem se o sei, mas ela dá a entender que é um assunto terrivelmente urgente.
— Já passa das dez horas, Paul.
— Eu sei, mas está me pedindo com lágrimas na voz que eu a deixe falar consigo.
— Não poderá ser amanhã?
— Diz que não. É terrivelmente importante. Fez-me uma fita, Perry, caso contrário eu não teria telefonado.
— Peça um número para onde eu possa lhe telefonar, disse Mason.
— Já o fiz. Tem um lápis à mão?
— Ok. Qual é o número?
— Colômbia seis-nove-oito-quatro-três.
— Ok. Diga que desligue e que espere pela minha ligação. Onde você está, no escritório?
— Sim. Entrei, a caminho para o apartamento, para ver se havia qualquer coisa importante, e quando estava aqui recebi a ligação. Já tinha ligado para cá duas vezes, num período de dez minutos.
— Ok. É melhor ficar por aí, durante uns momentos, Paul, para o caso da coisa vir a ser realmente importante. Telefonarei se precisar de você. Em todo o caso, mantenha-se aí durante uma hora.
— Ok, concordou Drake, e desligou.
Mason esperou durante um bom minuto e depois discou o número que Drake lhe dera. Quase imediatamente ouviu a voz gutural de Sally Madison dizendo:
— Alô... Alô... Fala Miss Madison. Ah, é Mr. Mason! Muito agradecida por ter telefonado, Mr. Mason! Aconteceu uma coisa... Preciso vê-lo imediatamente. Irei aonde me indicar, mas tenho de vê-lo.
— De que se trata?
— Encontrámos os peixes dourados.
— Que peixes dourados?
— Os Veiltail Moor Telescopes.
— Refere-se aos que foram roubados?
— Bem... Sim.
— Onde estão?
— Um homem os tem.
— Avisou Faulkner?
— Não.
— Porquê?
— Porque... Por causa das circunstâncias. Não creio... Achei preferível falar consigo, Mr. Mason.
— E não poderá ser amanhã?
— Não, não. Oh, por favor, Mr. Mason. Por favor, deixe-me vê-lo.
— Gridley está consigo?
— Não. Estou só.
— Muito bem. Venha, concordou Mason, dando-lhe o endereço de seu apartamento. — Quanto tempo levará para chegar?
— Dez minutos.
— Muito bem. Esperarei.
Mason desligou o telefone, vestiu-se com vagar e acabara de dar o nó na gravata, quando soou a campainha da porta de seu apartamento. Deixou entrar Sally Madison e lhe perguntou:
— Que excitação é essa?
Os olhos da mulher estavam brilhantes de animação, mas o rosto conservava ainda a aparência acetinada de beleza inexpressiva.
— Lembra-se de que Mr. Rawlins queria um tanque preparado...
— Quem é Rawlins? Perguntou Mason.
— O homem para quem Tom Gridley trabalha. É o dono da loja de animais.
— Ah, sim. Lembro-me agora do nome.
— Bem, o homem que mandou Tom arranjar um tanque foi James L. Staunton. Trabalha em seguros e parece que ninguém sabe muitas coisas a seu respeito. Quero dizer com isto que, com conhecimento de alguém, nunca se ocupou de peixes dourados. Na noite de quarta-feira, telefonou para Mr. Rawlins e disse que tinha uns peixes muito valiosos atacados por certa enfermidade e que sabia que a Loja de Animais Rawlins tinha um medicamento capaz de curá-la e que estava disposto a pagar qualquer quantia se Rawlins curasse esses peixes. Por fim, ofereceu cem dólares caso Mr. Rawlins prometesse lhe dar o que quer que fosse necessário para os peixes. Ora, isso era uma oferta demasiadamente tentadora para Rawlins desprezar e, por conseguinte, agarrou Tom e insistiu em que este metesse dois tabuleiros num pequeno tanque antes de nos dirigirmos, nessa mesma noite, para casa de Mr. Faulkner. Foi por isso que nos demoramos. Deve se lembrar de que nem acabei de jantar e que saí correndo para encontrar Tom logo que recebi o cheque, pois não queria que os peixes de Faulkner morressem por nossa causa.
Mason confirmou com um aceno de cabeça enquanto ela interrompia o seu fogoso discurso apenas para inspirar rapidamente.
— Ora, prosseguiu, o próprio Mr. Rawlins entregou o tanque e Staunton lhe contou que a mulher estava doente e que não queria confusões; que ele próprio cuidaria dos peixes se Mr. Rawlins dissesse simplesmente o que deveria fazer. Por conseguinte, Rawlins lhe disse que nada havia de especial a fazer, que bastava encher o tanque com água, transferir os peixes e que a qualquer hora da manhã seguinte Rawlins enviaria outro tabuleiro para ser colocado no tanque. Está seguindo o que lhe conto, Mr. Mason?
— Creio que sim, continue.
— Bem, Tom pintou uns tabuleiros e Mr. Rawlins levou o segundo, na manhã seguinte. Uma vez mais Staunton o recebeu à porta, dizendo que a mulher passara uma noite péssima e que seria melhor Rawlins não entrar. Por conseguinte, Rawlins lhe disse que nada havia de complicado no tratamento, era simplesmente tirar o primeiro tabuleiro do tanque e colocar o segundo lá dentro. Perguntou a Mr. Staunton como estavam os peixes e este respondeu que pareciam estar melhores. Levou o tabuleiro e pagou a Mr. Rawlins cinquenta dólares por conta e Rawlins lhe disse que deveria meter no tanque um novo tabuleiro, passadas trinta e seis ou quarenta e oito horas.
Interrompeu-se uma vez mais, em parte sem fôlego, em parte preparando o clímax dramático da sua história. Mason incitou-a com um aceno de cabeça a continuar.
— Bem, esta noite, eu me encontrava na loja. Tom estava em casa, doente, e eu ajudava Mr. Rawlins. Realmente, Mr. Faulkner comprou a loja e Rawlins estava fazendo o inventário e como hoje Tom estava doente ele precisava que alguém o ajudasse. Mr. Faulkner estivera ali desde as cinco horas até cerca das sete e meia, causando grande barafunda. Tinha até feito qualquer coisa terrível que Mr. Rawlins não quis me contar. Mr. Rawlins ficara tão excitado que tinham discutido. Rawlins disse que me contaria depois. Parece que levara qualquer coisa que pertencia a Tom. Bem, tudo isto é para lhe explicar simplesmente por que motivo eu prometi levar o tratamento. Mr. Rawlins planejava se dirigir a casa de Staunton para colocar esse último tabuleiro no tanque quando a mulher de Rawlins telefonou, para dizer que queria que ele a levasse para ver um filme. Quando Mrs. Rawlins quer qualquer coisa desse gênero não gosta de ser contrariada e, por conseguinte, Mr. Rawlins se viu forçado a ir e eu prometi acabar o trabalho, fechar a loja e utilizar o meu próprio carro para levar o tabuleiro.
— E fez isso? Interrompeu Mason.
— Fiz sim. Mr. Rawlins estava tão nervoso que parecia doido. Acabei o inventário e depois, ainda há pouco, levei dali o tabuleiro. Mr. Staunton não estava em casa, mas a mulher estava. Disse-lhe que era da loja de animais e que tinha um novo tabuleiro para colocar no tanque dos peixes e que levaria apenas um minuto ou dois para colocá-lo lá dentro. Ela se mostrou muito gentil e me disse em seguida que entrasse. Disse que o marido tinha o tanque dos peixes no escritório, que não estava em casa, que devia se demorar um pouco e que provavelmente seria melhor eu colocar o tabuleiro, visto que não queria tomar responsabilidades.
— Por conseguinte, entrou com o tabuleiro? Perguntou Mason.
— Exatamente e, quando entrei no escritório, encontrei o tanque contendo um par de Veiltail Moor Telescopes!
— O que fez?
— Durante um momento, fiquei demasiado estupefata para fazer qualquer coisa.
— Onde estava Mrs. Staunton?
— De pé, a meu lado. Acompanhara-me até dentro do escritório e estava à espera que eu substituísse os tabuleiros.
— O que fez?
— Passado um momento, me dirigi ao tanque, retirei o tabuleiro que lá estava e coloquei o novo que estava coberto com o remédio de Tom. Depois, procurei começar a falar dos peixes. Disse que eram muito bonitos, e perguntei se Mr. Staunton tinha outros peixes, há quanto tempo possuía aqueles.
— O que disse a mulher?
— Achava que os peixes eram feios. Contou-me que o marido os tinha arranjado em qualquer lado, que nunca se interessara por peixes e que nada entendia a esse respeito. Disse que algum amigo lhe dera esses dois e que já, nessa altura, não estavam bons; que o amigo lhe dava instruções específicas, lhe indicando o que tinha a fazer. Disse que, pessoalmente, gostaria muito mais se o marido tivesse começado com um par de peixes dourados vulgares. Que esses pareciam ser uma fantasia... Que lhe causavam arrepios com as suas barbatanas e caudas negras, compridas e ondeantes, com os seus olhos móveis e cor fúnebre. Acrescentou que de certo modo pareciam símbolos de morte. Bem, evidentemente, isso não era nada de novo porque os peixes foram durante muito tempo chamados “Os Peixes da Morte”, devido a alguma superstição antiga e ao seu aspecto particular.
— E então? Inquiriu Mason.
— Bem, me pus a rondar, conversei com ela um momento e menti um pouco. Disse que estivera doente e que na loja aconteceram muitos casos de doença. Continuei a conversar neste gênero durante um tempo e ela me acabou me contando que, no ano passado, estivera doente, mas que, desde então, nem sequer tivera uma dor de cabeça...
— E depois?
— Depois, compreendi que estava demorando muito e subitamente receei que Mr. Staunton retornasse e me apanhasse com a boca na botija. Por isso fui embora o mais depressa que pude. Tenho estado terrivelmente receosa que quando ele chegou a casa, a mulher tenha lhe contado das minhas perguntas e que ele tenha se desembaraçado dos peixes.
— Porque pensa que se trata dos peixes de Faulkner?
— Oh, estou certa de que eram. Eram do mesmo tamanho e sofriam do mesmo mal, embora estejam agora quase curados. Os Veiltail Moors, especialmente Telescopes, são muito raros e é inconcebível que um homem comece a criá-los partindo de dois exemplares doentes. E depois, evidentemente, há todas essas mentiras que pregou a respeito da mulher estar doente. Tudo quanto fez foi para evitar que Mrs. Rawlins visse os peixes.
— Contou isso a Tom?
— Não, não contei a ninguém. Saí de lá e fui ao seu escritório. Tentei conseguir que o porteiro da noite me dissesse como poderia me pôr em contato consigo. Não queria dizer, disse que não sabia e então quase me tornei frenética. Lembrei-me de que o nome da sua secretária era Della Street, mas não consegui localizá-la na lista de telefones. Depois recordei que me dissera que Mr. Drake era o diretor da Agência de Detetives Drake. Por isso procurei-o na lista e encontrei o número do escritório. Liguei para lá e o telefonista noturno me disse que Mr. Drake não estava, mas que geralmente passava pelo escritório à noite antes de voltar para casa e que se eu deixasse o meu número lhe daria. Assim fiz, mas continuei a ligar para lá, porque tinha medo de que ele se esquecesse de lhe dar o recado.
— E não falou disto a ninguém?
— Não. Nem sequer a Mr. Drake. Resolvi não dizer, a menos que precisasse fazê-lo para me pôr em contato consigo.
— Não contou a Tom Gridley?
— Não.
— Porquê?
— Porque Tom tem andado terrivelmente excitado. Tem tido temperaturas altas todas as tardes. Compreenda, Mr. Faulkner o tem oprimido imenso.
— Cancelou o pagamento do cheque?
— Não exatamente. Retirou-o de outra maneira. Disse-me que mal fosse receber esse cheque me mandaria prender por obter dinheiro sob falsos pretextos. Alega que Tom fez essa invenção enquanto trabalhava para Rawlins e que o segredo do medicamento constitui parte do negócio que adquiriu.
— Comprou-o realmente?
— Oh, sim. Pagou a Rawlins dois mil dólares por todo o negócio, e obrigou Rawlins a concordar em continuar ali e a dirigi-lo mediante um pequeno salário. Rawlins detesta-o. Creio que toda a gente detesta-o, Mr. Mason. E, contudo, o homem é o mais legal possível de acordo com o seu próprio código. Acha que a lei é a lei e negócio é negócio. Presumo que pensa realmente que Tom queria elucidá-lo e que era eu quem procurava impedi-lo.
— Ele tentou chegar a algum acordo?
— Oh, sim.
— Qual?
— Tom deve lhe dar a fórmula. Eu devo renunciar ao cheque de cinco mil dólares. Tom deve concordar em continuar a trabalhar na loja de animais durante um ano, e lhe dar todos os tratamentos ou invenções subsequentes que venha a descobrir. Em troca disso tudo, Mr. Faulkner pagará a Tom setecentos e cinquenta dólares e continuará a lhe pagar o mesmo salário.
— É generoso, não é? Comentou Mason. — Não há qualquer possibilidade de Tom ter um descanso para tratamento?
— Não. É isso que me encoleriza. Mais um ano nessa loja de animais e Tom dispensará todos os remédios.
— Faulkner não leva isso em consideração?
— Aparentemente não. Diz que Tom pode sair para apanhar ar nos fins de semana, e que, se estiver demasiado doente para trabalhar, não precisa aceitar a proposta. Diz que tem a liberdade de desistir do trabalho quando quiser e que a sua saúde é um problema pessoal que nada tem a ver com Faulkner. Diz ainda que, se tivesse de passar a vida a se preocupar com a saúde dos seus empregados, não teria tempo para se dedicar aos seus próprios assuntos. Oh, Mr. Mason, são homens assim que tornam o mundo pior para quem gosta de viver e trabalhar!
— Então não contou a Faulkner que encontrou os peixes?
— Não.
— E não quer fazê-lo? Ela fitou Mason nos olhos.
— Receio que nos acuse de os termos roubado ou qualquer coisa nesse gênero. Quero que seja o senhor, a tratar disto, Mr. Mason. E sinto que, de qualquer modo, o senhor podia... Bem, podia virar algumas das armas de Faulkner contra ele próprio, fazer talvez qualquer coisa por Tom. Mason arreganhou os dentes num sorriso e pegou no chapéu.
— Vamos ver!
— Não acha que já é demasiado tarde?...
— Nunca é demasiado tarde para se aprender, sentenciou o advogado. — E, pelo menos, vamos aprender alguma coisa...
A noite estava fria e límpida. Mason guiou o carro velozmente através do trânsito tardio resultante do encerramento dos teatros. Sally Madison arriscou uma sugestão:
— Não seria melhor talvez começar simplesmente por mandar alguns detetives vigiar a casa de Staunton para termos a certeza de que não muda os peixes? E depois esperarmos por amanhã? Mason abanou a cabeça.
— Descubramos em que pé estão as coisas. Isso agora começa a me interessar.
Continuaram a rodar em silêncio, até que Mason diminuiu a marcha quando chegou à vista de uma casa caiada, de aspecto um tanto pretensioso, com um telhado vermelho e janelas rasgadas.
— Deve ser o número, observou.
— É esta a casa, declarou Sally Madison. — Ainda estão aqui. Há luz naquela janela do lado.
Mason colocou o carro numa vaga, desligou a ignição e subiu a pé o caminho cimentado que levava aos três degraus de acesso a uma entrada coberta por um alpendre de telhas.
— Que vai fazer? Inquiriu Sally, a quem a excitação fazia a voz tomar um tom mais estridente do que habitualmente.
— Não sei, confessou-lhe Mason. — Depende do que se passar. Gosto sempre de planear a minha campanha, depois de ter medido o meu homem.
Apertou um botão de campainha ao lado da porta e, um momento depois, esta foi aberta por um cavalheiro alto, de aspecto bastante distinto, e que aparentava estar no meio da casa dos cinquenta.
— É Mr. James L. Staunton? Perguntou Mason.
— O próprio.
— Apresento-lhe Sally Madison da Loja de Animais Rawlins e eu sou Perry Mason, advogado.
— Sim. Ah, sim. Tive muita pena de não estar em casa esta noite quando veio aqui, Miss Madison. Queria lhe dizer que o tratamento que fez aos peixes se revelou de grande êxito e suponho que quer o resto do seu dinheiro. Tenho-o já aqui preparado para si. Staunton contou gravemente cinquenta dólares e, tentando dar à voz um tom muito natural, acrescentou: — Se me quiser passar um recibo. Miss Madison. Mason interveio:
— Creio que o assunto ultrapassou um pouquinho as marcas, Mr. Staunton.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que há uma questão a respeito do direito de propriedade dos peixes que o senhor tem. Importa-se de dizer-nos onde os arranjou?
Staunton empertigou-se com uma dignidade tão rígida que bem podia tratar-se de uma máscara para ocultar o susto.
— Certamente que sim. Acho que não têm nada com isso.
— Suponha que eu lhe diga que esses peixes tinham sido roubados?
— Foram roubados?
— Não sei, admitiu Mason francamente. — Mas existem umas circunstâncias bastante suspeitas.
— Está fazendo uma acusação?
— De modo algum.
— Bem, me pareceu que sim. Ouvi falar de si e sei que é um advogado muito hábil, Mr. Mason, mas acho que faria melhor em ter cuidado com o que diz. Se me perdoar a sugestão, sou capacíssimo de dirigir os meus próprios negócios e seria bom que o senhor dedicasse a sua atenção aos seus.
Mason arreganhou os dentes num sorriso e tirou a cigarreira do bolso.
— Fuma? Ofereceu.
— Não, respondeu Staunton secamente e recuou para fechar a porta com estrondo. Mason estendeu a cigarreira a Sally Madison, e disse naturalmente a Staunton:
— Miss Madison pediu o meu conselho. Eu estava para lhe dizer que a não ser que o senhor tivesse alguma explicação satisfatória eu considerava seu dever comunicar o caso à Polícia. Isso, evidentemente, podia provocar embaraços. Mas se o senhor quer assim, eu por mim não me importo. Mason acendeu um fósforo, levou-o à ponta do cigarro de Sally Madison e depois à ponta do próprio.
— Isso se parece muitíssimo com uma ameaça carregou Staunton, recaindo aparentemente numa repetição da sua anterior acusação. Entretanto, já Mason estava certo do seu homem. Exalou fumo contra o rosto de Staunton e comentou:
— Parece, não parece? Staunton recuou cheio de surpresa sobressaltada perante a segurança insolente do advogado.
— Não gosto da sua atitude, Mr. Mason, e não estou disposto a ficar aqui para ser insultado.
— Muito bem, concordou Mason. — Mas já perdeu a sua oportunidade de fazer qualquer coisa a esse respeito.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que, se o senhor nada tivesse a esconder a respeito desses peixes, ter-me-ia mandado para o diabo há cinco minutos e fechado a porta. Não teve desfaçatez suficiente para fazê-lo. Tem curiosidade em saber o que eu sei e está receoso quanto ao que eu possa fazer em seguida. Está aí espumando de indecisão, se perguntando se deve correr o risco de fechar a porta e se precipitar para dentro para telefonar ao homem que lhe disse que cuidasse dos peixes. Staunton interveio:
— Mr. Mason, como advogado, sabe sem dúvida alguma que está caluniando a minha pessoa.
— E, como advogado, sei que a verdade é uma defesa para caluniar. Por conseguinte, se decida Staunton; e depressa. Vai conversar comigo ou com a Polícia?
Staunton agarrou a maçaneta da porta, durante dois ou três segundos, e depois subitamente perdeu a capa de dignidade que interpusera como uma armadura ineficaz contra o ataque do advogado.
— Entrem, convidou.
Mason desviou-se para o lado para permitir a Sally Madison entrar na casa primeiro do que ele. De uma sala de estar, à direita, uma voz de mulher perguntou:
— O que é, querido?
— Assunto de negócios, respondeu Staunton e acrescentou: — Seguros. Vou levá-los para o escritório.
Staunton abriu uma porta e fez entrar os visitantes num quarto, mobilado como escritório, com uma secretária de tampo rolante, de modelo antigo, um cofre, uma mesa e meia dúzia de fichários de aço. Por cima de um fichário, encontrava-se um aquário retangular, de vidro, cheio de água. Dentro nadavam indolentemente, de um lado para o outro, dois peixes. Mason se adiantou para ver os peixes, quase no mesmo instante em que Staunton acendia a luz.
— Então estes, disse Mason, — São os Veiltail Moor Telescopes, também conhecidos como “Os Peixes da Morte”. Staunton nada disse. Mason observou curiosamente os peixes negros, de longas barbatanas se agitando precipitadamente como véus negros, de olhos proeminentes tão negros como os corpos. — Bem, anunciou, pelo que me diz respeito, quem quer que pretenda o meu interesse neles pode ficar com eles. Têm, sem dúvida alguma, qualquer coisa de sinistro.
— Não querem se sentar? Arriscou Staunton, um tanto hesitantemente.
Mason esperou que Sally Madison se sentasse e depois se estendeu confortavelmente numa cadeira. Arreganhou os dentes num sorriso a Staunton e disse:
— Pode se poupar de confusões e ataque de nervos se começar pelo princípio e nos contar a sua história.
— Suponhamos que me pergunte o que quer saber. Mason espetou o polegar em direção ao telefone.
— Já fiz a minha pergunta. Se ainda existem outras a fazer, a Polícia o fará.
— Não temo a Polícia. Sei que está blefando. Mr. Mason.
— Continue.
— Nada tenho a esconder e não cometi crime algum. Recebi-os há esta hora extraordinariamente tardia, porque sei quem são e nutro algum respeito pela sua profissão, mas não estou disposto a ser insultado.
— Quem lhe deu os peixes? Inquiriu Mason.
— Isso é uma pergunta a que não estou disposto a responder.
Mason retirou o cigarro da boca, moveu casualmente as pernas compridas, dirigiu-se ao telefone, levantou o auscultador, marcou para o telefonista e pediu:
— Ligue-me, por favor, para o Comando-Geral da Polícia. Staunton disse rapidamente:
— Um momento, Mr. Mason! Vai muito depressa! Se fizer à Polícia qualquer acusação contra mim, se arrependerá. Sem olhá-lo e continuando a segurar o auscultador de encontro à orelha, Mason indagou por cima do ombro:
— Quem lhe deu os peixes, Staunton?
— Já que quer saber, Quase gritou Staunton, desesperado, — Foi Harrington Faulkner!
— Já calculava, declarou Mason e pousou o auscultador no descanso.
— Por conseguinte, continuou Staunton, provocadoramente, — Os peixes pertencem a Harrington Faulkner. Deu-me para que os guardasse. Escrevo muita coisa sobre seguros para a Sociedade Faulkner-Carson. Fiquei contente por fazer um favor a Mr. Faulkner. Certamente não há qualquer lei contra isso e creio que apreciará agora o perigo da sua posição insinuando que os peixes foram roubados e que eu estou agindo como cúmplice do ladrão.
Mason voltou para a cadeira, cruzou pelos joelhos as pernas compridas, sorriu para o agora indignado Staunton e perguntou:
— Como trouxeram os peixes... No tanque que se encontra agora em cima do armário?
— Não. Se Miss Madison é da loja de animais, deve saber que é o tanque para tratamento que lá forneceram. É um tanque oblongo feito para acomodar os tabuleiros medicamentosos que são mergulhados na água.
— Em que espécie de tanque se encontrava quando os recebeu? Inquiriu Mason. Staunton hesitou e depois respondeu:
— No fim de contas, Mr. Mason, não vejo que interesse tem isso para o caso.
— Pode ser considerado significativo.
— Não creio.
— Digo-lhe isto. Se Harrington Faulkner lhe entregou estes peixes, fê-lo em obediência a um plano fraudulento que perpetrava e também em obediência a esse plano participou o roubo destes peixes à Polícia. Agora a Polícia não vai gostar disto. Portanto, se tem qualquer ligação com o que aconteceu, é melhor esclarecer as coisas imediatamente.
— Não tenho qualquer ligação com nenhum plano fraudulento. Tudo quanto sei é que Mr. Faulkner me pediu que me encarregasse desses peixes.
— E ele próprio os trouxe?
— Exatamente.
— Quando?
— Na quarta-feira, à noite.
— Por volta de que horas de quarta-feira?
— Não sei exatamente que horas eram. Era bem cedo.
— Antes do jantar?
— Creio que sim.
— E como trouxe os peixes? Em que espécie de recipiente?
— Isso é uma coisa que já lhe disse não lhe dizer respeito.
Mason levantou-se uma vez mais, dirigiu-se ao telefone, pegou no auscultador e começou a discar o número da telefonista. Na sua atitude, notava-se uma terrível resolução.
— Num balde, declarou Staunton, às pressas. Lentamente, quase relutantemente, Mason voltou a colocar o auscultador no descanso.
— Que espécie de balde?
— Um balde vulgar de ferro galvanizado.
— E o que ele lhe disse?
— Disse-me que fosse à loja de animais de David Rawlins, que dissesse que tinha dois peixes muito valiosos atacados por uma doença para a qual, ouvira dizer, havia um novo tratamento fornecido por essa loja. Devia oferecer um pagamento de cem dólares pelo tratamento desses peixes. Fiz exatamente isso. É tudo quanto sei a este respeito, Mr. Mason. Posso lavar daí as minhas mãos.
— Não tanto como apregoa, retorquiu Mason, conservando-se ao lado do telefone. — Esquece-se do que contou ao empregado da loja de animais.
— O que quer dizer?
— Essa história de sua mulher estar doente e não poder ser incomodada.
— Não queria que minha mulher soubesse nada a esse respeito.
— Porquê?
— Porque era um assunto de negócios e não discuto negócios com ela.
— Mas mentiu ao empregado da loja?
— Não gosto dessa palavra.
— Chame-lhe do que quiser, concordou Mason, — Mas lembre-se que prestou uma declaração falsa a esse empregado. Fez assim para impedi-lo de entrar, para que não pudesse ver os peixes.
— Não creio que seja uma declaração honesta, Mr. Mason. Mason arreganhou os dentes noutro sorriso e aconselhou:
— Reconsidere Staunton. Pense como vai se sentir no banco das testemunhas perante um júri, quando eu começar a instá-lo. Você e as suas mãos lavadas!
Mason encaminhou-se para a janela, puxou os pesados cortinados que encobriam o vidro e ficou de pé, as costas voltadas para os outros dois, com as mãos metidas nos bolsos das calças. Staunton pigarreou como se fosse dizer alguma coisa, depois mudou desajeitadamente de posição na cadeira giratória. Esta rangeu levemente. Mason nem se virou e permaneceu assim durante uns trinta segundos em completo silêncio, olhando para a área da calçada visível através da janela, esperando, enquanto o seu próprio silêncio aumentava a tensão. Subitamente, o advogado se virou.
— Creio que é tudo, declarou à surpreendida Sally Madison. — Acho que agora podemos ir embora.
Um Staunton levemente desnorteado os acompanhou à porta da rua. Começou por duas vezes a dizer alguma coisa, mas, de qualquer delas, retinha a frase quase no princípio. Mason nem se virou nem fez qualquer comentário. À porta da rua, se deteve durante alguns momentos, observando os seus visitantes que partiam.
— Boa noite, desejou, um tanto tremulamente.
— Talvez voltemos a nos ver, disse agourentamente Mason e continuou indo direito para o carro estacionado.
Staunton, de repente, fechou a porta com força. Mason agarrou Sally Madison por um braço, empurrou-a para a direita, através de uma faixa de relva e em direção a calçada que vira pela janela do escritório.
— Observemos cuidadosamente, disse Mason. — Propositadamente, afastei os cortinados para o lado e deixei o telefone virado para a janela. Podemos fazer uma ideia do número que ele discar, observando o movimento de sua mão. Pelo menos, poderemos saber se é um número semelhante ao de Harrington Faulkner.
Puseram-se do lado de fora do retângulo de luz, escapado pela janela aberta. De onde se encontravam, podiam ver perfeitamente o telefone e os peixes no aquário por cima do armário. Uma sombra cruzou o retângulo iluminado, se dirigiu ao telefone e parou. Os observadores viram o perfil de James Staunton quando aproximou o rosto do tanque dos peixes, observando o movimento ondulante e especial dos véus negros que pendiam dos “Peixes da Morte”. Durante cerca de cinco minutos, Staunton observou os peixes como que atraído por um fascínio quase hipnótico, depois se afastou lentamente, a sua sombra tornou a cruzar o retângulo de luz e, um momento depois, as luzes se apagaram e o quarto mergulhou na escuridão.
— Acha que ele sabia que estávamos espreitando-o? Inquiriu Sally Madison.
Mason permaneceu ali durante cerca de cinco minutos, depois lhe passou um braço em volta e guiou-a para o automóvel estacionado.
— Acha que sabia? Tornou a perguntar Sally Madison.
— O quê? Perguntou o advogado, denotando preocupação na voz.
— Que estávamos espreitando.
— Não creio.
— Mas pensou que ele ia telefonar?
— Sim.
— Porque não o fez?
— Diabos me levem se o sei, respondeu Mason.
— Então, que faremos agora?
— Agora, disse Mason, vamos procurar Mr. Harrington Faulkner.
Mason escoltou Sally Madison ao subirem o caminho cimentado que conduzia à dupla casa de Harrington Faulkner. Ambos os lados do edifício estavam mergulhados na escuridão calma da meia-noite de uma casa respeitável situada no distrito residencial.
— Estão dormindo, Segredou Sally Madison. — Já foram para a cama.
— Pois bem, vamos obrigá-los a se levantar.
— Oh, Mr. Mason, não acho bem.
— Porquê?
— Faulkner ficará furioso.
— E depois?
— É muito importuno e desagradável quando está zangado.
— O homem que trata dos seguros nos declarou que Faulkner levou estes peixes na noite de quarta-feira. Pouco tempo depois disso, se a versão deste homem for verdadeira, Faulkner se esforçou por descobrir onde se achavam os peixes que tinham desaparecido do aquário. Chamou a Polícia e prestou a esta declarações falsas. Nestas circunstâncias, dificilmente se encontra em posição de explodir com indignação justa.
Segurando-a pelo braço, Mason pôde senti-la estremecer com apreensão.
— O senhor é... Diferente, disse ela. — Não deixa que essas pessoas o assustem quando se zangam. Mas a mim me aterrorizam verdadeiramente.
— De que tem medo?
— Não sei. Simplesmente, não gosto de lutas e de cenas iradas.
— Acostumar-se-á a elas antes de irmos mais longe, disse-lhe Mason, apertando com insistência o botão da campainha.
Do interior da casa lhes chegou o som melodioso dos sinos. Seguiu-se um intervalo de quinze segundos durante o qual Mason e Sally Madison esperaram. Depois Mason premiu o dedo várias vezes de encontro ao botão, obrigando os sinos a repetir as suas notificações.
— Isso devia acordá-los, comentou Sally Madison, mantendo inconscientemente a voz baixa quase como num murmúrio.
— De fato devia, concordou Mason, apertando duas vezes mais o botão.
As últimas notas dos sinos ressoavam ainda quando os faróis de um automóvel varreram a esquina. O carro abrandou subitamente a marcha quando os freios foram vivamente aplicados, descreveu um ângulo reto e tomou o caminho que conduzia à garagem. Quando o carro ia ao meio desta, o motorista, aparentemente pela primeira vez, viu o carro de Mason parado na curva e as duas silhuetas na entrada. Subitamente, o carro parou. A porta se abriu. Um par de pernas esbeltas apareceu, numa exibição generosa, e em seguida Mrs. Faulkner deslizou para fora do assento, do carro para o solo, ajustando as saias depois de ter apeado.
— Sim? Inquiriu ansiosamente. — Ah, é Mr. Mason e Miss Street. Não, não é. É Miss Madison. Meu marido não está em casa?
— Parece que não, respondeu Mason. Se estiver, tem um sono de pedra.
— Naturalmente ainda não voltou. Disse que ficaria fora até muito tarde.
— Talvez possamos esperar por ele, alvitrou Mason.
— Aviso-o, Mr. Mason, de que não ficará bem disposto se, quando vier para casa, os encontrar à espera. Tem a certeza absoluta de que quer vê-lo esta noite?
— Certeza absoluta... Se não vê nisso qualquer inconveniente. Mrs. Faulkner riu melodiosamente, com um riso que parecia ter sido praticado assiduamente.
— Oh, bem, vou deixá-los entrar e se é assim tão importante, tomaremos umas bebidas e esperaremos pelo regresso de Harrington. No entanto, não digam que não os avisei. Inseriu uma chave na fechadura da porta, deu a volta, acendeu as luzes do corredor, entrou na sala de estar e convidou: — Entrem e sentem-se. Estão certos de que nada têm a me dizer que eu possa transmitir a Harrington de manhã?
— Não. Queremos vê-lo esta noite. Não deve se demorar, não é?
— Oh, estou certa que voltará antes de uma hora. Sentem-se, por favor. Perdoem-me um momento, enquanto me vou arranjar.
Saiu do aposento, já retirando o casaco ao transpor a porta. Ouviram-na mover-se de um lado para o outro no quarto. Abriu uma porta. Houve um momento de silêncio imóvel, depois cortado por um grito agudo e estridente. Sally Madison olhou de relance, inquiridoramente para Mason, mas o advogado já estava em ação. Atravessou o quarto em quatro passadas rápidas, escancarou a porta do quarto e atravessou este a tempo de ver Mrs. Faulkner, com o rosto encoberto pelas mãos, voltar cambaleando de um banheiro que evidentemente comunicava com outro quarto.
— Ele... Ele... Está ali! Balbuciou, cambaleou às cegas e depois caiu nos braços de Mason.
— Acalme-se, confortou-a Mason, afastando suavemente com os dedos as mãos cobertas de joias que lhe tapavam os olhos.
Quando os dedos do advogado lhe tocaram na carne, este verificou que as mãos estavam geladas. Amparou-a com um braço e dirigiu-se ao banheiro. Ela puxou-o para trás. Mason abrandou o amplexo, cruzou um olhar com Sally Madison e fez um sinal de cabeça. Sally Madison pegou no braço de Mrs. Faulkner, levou-a delicadamente para a cama e disse:
— Vamos, vamos! Acalme-se!
Mrs. Faulkner gemeu, se deixou cair em cima da cama, colocando a cabeça sobre o travesseiro, com as pernas por cima da borda da cama de modo que os pés pendiam a meia altura entre a cama e o assoalho. Tinha as mãos uma vez mais sobre os olhos. Não parava de dizer:
— Oh... Oh... Oh!...
Mason dirigiu-se à porta do banheiro. Harrington Faulkner jazia imobilizado pela morte. Tinham-lhe tirado o casaco e a camisa, deixando-o de calças e camiseta interior e a parte da frente desta era uma pasta de sangue. Atrás da cabeça estava uma mesa de pernas para o ar e, no chão, fragmentos de vidro curvo captavam os raios da luz do banheiro e refletiam-nos. Um delgado fio de água que correra levara o sangue numa mancha carmesim aos cantos distantes do banheiro. No chão, perto do corpo, havia talvez uma dúzia de peixes dourados imóveis, mas, quando Mason olhou, um desses peixes dourados bateu com a cauda um movimento cansado e desanimado. A banheira estava meio cheia de água e nesta um único peixe dourado nadava energicamente para diante e para trás, como se à procura de companhia.
Mason baixou-se para pegar no peixe que evidenciara sinais de vida. Delicadamente colocou-o dentro da água da banheira. O peixe estrebuchou durante um momento, depois se virou meio para o lado, veio à tona de água e permaneceu imóvel, salvo quanto a um leve movimento das suas guelras. Mason sentiu o toque do corpo de Sally Madison, se virou e encontrou-a de pé mesmo atrás de si.
— Saia, ordenou-lhe Mason.
— Está... Está?...
— Certamente que está, respondeu Mason. — Saia. Não toque em nada. Se deixar por aí uma impressão digital pode haver confusão. O que está fazendo a mulher dele?
— Com um ataque na cama.
— Histerismo?
— Nada disso, um simples ataque de dor.
— Ele significava assim tanto para ela?
— É o choque.
— Estava apaixonada por ele?
— Se estava, era doida. Nunca se sabe. Pensava-a incapaz de qualquer emoção. Enganou-me.
— Você própria nunca deu mostras de ser emotiva, observou Mason. Os seus olhos observaram-no pensativamente.
— Para que isso?
— Para nada, concordou Mason. — Volte para junto de Mrs. Faulkner. Leve-a para fora do quarto. Ligue para a Agência de Detetives Drake. Diga a Paul Drake que venha para cá o mais rápido possível e depois de ter feito isto ligue para o Comando-Geral da Polícia, peça os Homicídios e pergunte pelo tenente Tragg. Diga-lhe que fala da parte de Perry Mason e que tenho um assassínio a relatar.
— Mais nada?
— É tudo. Não toque em nada do quarto. Leve Mrs. Faulkner para a sala de estar e mantenha-a lá.
Mason esperou que Sally Madison saísse do quarto e depois se afastando alguns centímetros da banheira, estudou cuidadosamente todas as partes do banheiro, tendo grande cuidado, contudo, em não tocar com as mãos em nenhum objeto. No chão, levemente desviados do corpo, estavam uns óculos, constituídos por duas lentes, cada uma delas com cerca de quatro centímetros, presas numa armação de borracha dura a fim de que se dobrassem sobre si quando não estivessem em uso. De encontro à parede, quase diretamente sob o lavatório, se viam três revistas populares de cerca de vinte por trinta centímetros. Mason se abaixou para verificar as datas das revistas. A de cima, era uma revista recente, a colocada por baixo desta datava de três meses e a inferior de quatro. Na revista de cima, havia uma mancha de tinta com cerca de dois centímetros e meio de largura por dez de comprimento e de forma levemente curva, quase desenhando um ponto ao se aproximar do extremo da nódoa. Numa prateleira de vidro colocada acima do lavatório, se encontravam duas garrafas de peróxido de hidrogénio, uma das quais quase vazia, um pincel para a barba, uma navalha de segurança em cuja borda ainda havia uma camada de sabão aderente, e um tubo de creme para a barba.
Aparentemente o homem fora alvejado no lado esquerdo por cima do coração e morrera quase instantaneamente. Parecia que, ao cair, tinha virado a mesa em que fora colocado o aquário dos peixes. Um dos fragmentos curvos do aquário continha ainda meia xícara de água. No chão, por baixo do corpo de um dos peixes dourados havia um talão de cheques e, perto deste, uma caneta de tinta permanente. A tampa desta se encontrava a uma distância de cerca de meio metro. O talão de cheques estava fechado e água ensanguentada tinha corrido contra as bordas dos cheques. Mason reparou que cerca de metade dos cheques tinha sido arrancado. Faulkner aparentemente estava de óculos postos quando fora alvejado e a lente esquerda se partira, evidentemente quando caíra, pois alguns fragmentos de vidro dessa lente jaziam a poucos centímetros da cabeça. A lente da direita não fora danificada e refletia a luz do teto do banheiro com um brilho que parecia estranhamente animado na face do morto que manchava o chão do banheiro com a sua mancha carmesim. Mason observou a mesa virada de pernas para o ar, recuou cuidadosamente e se abaixou para examiná-la bem. Sobre esta mesa, havia gotas de água e uma leve gota de tinta, parcialmente diluída em água. Depois Mason reparou numa coisa que até agora lhe passara despercebida. Uma vasilha com a capacidade de cerca de dois quartos de litro estava no fundo da banheira, virada sobre um lado.
Quando Mason terminou a sua inspeção cuidadosa ao conteúdo do quarto, Sally Madison chamou-o.
— Está tudo feito, Mr. Mason. Mrs. Faulkner está à espera na sala de estar. Mr. Drake já está vindo e também já notifiquei a Polícia.
— O tenente Tragg? Perguntou Mason.
— O tenente Tragg não estava, mas o sargento Dorset já está a caminho.
Uma sirene, a princípio tão silenciosa como o som de um mosquito persistente, aumentou de volume até que o carro da Polícia se aproximou da casa e passou de um pedido de passagem agudo e estrídulo para um protesto baixo e pulsante e depois emudeceu. Passos pesados soaram na entrada e Mason abriu a porta da rua. O sargento Dorset perguntou:
— Que diabos você está fazendo aqui?
— Comissão de recepção, declarou Mason, secamente. — Tenham a bondade de entrar.
Entraram vários homens no aposento sem se incomodarem em tirar os chapéus, olhando curiosamente para as duas mulheres: Sally Madison calma e composta, de rosto tão inexpressivo como o de uma boneca; Mrs. Faulkner, com os olhos vermelhos de chorar, meio sentada, meio reclinada no sofá, emitindo gemidos baixos demasiado regulares para serem soluços e demasiado baixos em volume para serem rugidos.
— Ok, declarou o sargento Dorset a Mason, desta vez que história temos? Mason sorriu suavemente.
— Não há necessidade de ter um aumento de tensão arterial, sargento. Não descobri o corpo.
— Quem descobriu? Mason indicou com uma inclinação de cabeça a mulher recostada no sofá. — Quem é ela, a mulher?
— Se deseja ser tecnicamente correto, Emendou Mason, — E estou certo de que sim, é a viúva.
Dorset encarou Mrs. Faulkner e pelo simples modo de atirar com um piparote o chapéu para trás da cabeça, lhe deu a compreender que ia entrevistá-la. Os outros polícias, depois de se terem espalhado pela casa, em busca do corpo, se reuniram quase ao mesmo tempo à entrada do banheiro. O sargento Dorset esperava que Mrs. Faulkner erguesse o olhar.
— Ok. Soltou. Mrs. Faulkner pronunciou em voz baixa:
— Amava-o realmente. Tínhamos as nossas questões e às vezes, era muito difícil de se tratar, mas...
— Deixemos isso para mais tarde, interrompeu-a Dorset. — Há quanto tempo o encontrou?
— Há uns minutos.
— Quantos? Cinco? Dez? Quinze?
— Julgo que há uns dez minutos. Talvez um pouco mais de cinco.
— Levamos seis minutos para chegarmos aqui.
— Telefonamos mal o encontrei.
— Quanto tempo depois de tê-lo encontrado?
— Imediatamente.
— Um minuto? Dois minutos? Três minutos?
— Não chegou à um minuto.
— Como é que o encontrou?
— Entrei no quarto e... E abri a porta do banheiro.
— À procura dele?
— Não. Tinha permitido a entrada a Mr. Mason e...
— O que estava ele fazendo aqui?
— Quando cheguei de carro, estava à espera à porta da rua. Queria falar com o meu marido. Dorset se virou para olhar interrogadoramente para Mason. Mason confirmou com um aceno de cabeça.
— Falaremos disso mais tarde, declarou o sargento. Mason sorriu.
— Miss Madison estava comigo, sargento, e se encontrava em minha companhia há uma hora ou duas.
— Quem é Miss Madison? Sally Madison sorriu e respondeu:
— Eu.
O sargento Dorset observou-a. Quase inconscientemente, levou a mão ao chapéu, tirou da cabeça e o colocou em cima de uma mesa.
— Mason é seu advogado? Perguntou.
— Não, não exatamente.
— O que quer dizer com isso?
— Bem, ainda não tinha chegado a um acordo com ele... Compreenda, contratei-o, mas pensei que talvez pudesse me ajudar, pensei que ele quisesse, compreende.
— Ajudá-la em quê?
— A levar Mr. Faulkner a financiar o invento de Tom Gridley.
— Que invento?
— É para tratar de peixes doentes. Uma voz proveniente do quarto chamou:
— Eh, sargento. Venha cá. Ele tem um par de peixes dourados nadando dentro da banheira.
— Quantos peixes dourados estão nadando? Perguntou Mason.
— Dois, sargento. O sargento Dorset disse histericamente:
— Não fui eu quem fez a última pergunta. Foi Mason.
— Ah, Exclamou a voz e um polícia de ombros largos chegou à porta para olhar ferozmente para o advogado. — Lamento. Mrs. Faulkner interveio:
— Por favor, preciso de alguém que venha me fazer companhia. Não posso suportar a ideia de ficar sozinha depois de tudo isto. Creio... Creio que vou vomitar.
— Aguente senhora, comandou o polícia que estava no quarto. — Não pode entrar no banheiro.
— Porque não? Uma certa delicadeza obrigou o polícia a se calar.
— Quer dizer que não vão... Tirá-lo dali? Inquiriu Mrs. Faulkner.
— Por enquanto, não. Temos de tirar fotografias, colher impressões digitais e fazer muitas outras coisas.
— Mas eu vou vomitar. Que... Que vou fazer?
— Não há outro banheiro nesta casa?
— Não.
— Ouça, lembrou Dorset, porque não vai passar a noite em um hotel? Talvez possa telefonar a uma amiga e...
— Oh, não seria capaz disso. Não me sinto com forças para ir para um hotel. Estou excitadíssima. Estou... Estou agoniada... Além disso, não creio que arranjasse um quarto de hotel a esta hora da noite, só telefonando e dizer que quero um quarto.
— Tem alguma amiga em casa de quem possa ficar?
— Não... Não muito bem. Ela teria de vir para aqui. Mora com outra mulher um apartamento. Não conseguiria ali nenhum quarto para mim.
— Quem é ela?
— Adele Fairbanks. Eu... Oh!... Mrs. Faulkner levou subitamente uma mão à boca.
— Vá lá fora, lembrou o polícia que estava no limiar da porta. Mrs. Faulkner se precipitou para o alpendre dos fundos.
Os homens ouviram o som de arrancos para vomitar e depois água correndo para dentro de um lavatório. O sargento Dorset declarou ao polícia que estava no quarto:
— Ela tem uma amiga que vem para cá. Vão precisar do banheiro. Ocupe-se das impressões digitais.
— Já estão tirando, sargento, mas são muitas. Não podem estar classificadas, fotografadas e tudo o mais quando retirarem o corpo. O sargento Dorset tomou uma decisão rápida.
— Ok. Tirem-nas, disse. Depois, virou-se para Mason e acrescentou: — Pode esperar lá fora. Chamaremos quando precisarmos de si.
— Vou lhe dizer o que precisa saber agora, respondeu Mason, — E se precisar que eu lhe dê mais alguma informação pode me procurar amanhã no meu escritório. Dorset hesitou e insistiu:
— Em todo o caso, espere lá fora uns dez ou quinze minutos. Pode aparecer qualquer coisa sobre a qual precise interrogá-lo. Mason consultou o relógio de pulso.
— Quinze minutos. Não mais.
— Ok.
Sally Madison se levantou da cadeira quando Mason se encaminhou para a porta.
— Eh, espere um momento, disse-lhe o sargento Dorset. Sally Madison virou-se, sorrindo tentadoramente.
— Sim, sargento.
O sargento encarou-a e olhou de relance para o polícia que se encontrava no limiar da porta. Este piscou o olho sub-repticiamente.
— Pois bem, disse Dorset subitamente, — Espere lá fora com Mr. Mason. Mas não vá embora. Dirigiu-se a longos passos para a porta, abriu-a e recomendou a um homem fardado que estava de guarda do lado de fora da casa: — Mr. Mason vai esperar aí fora durante quinze minutos. Se eu precisar dele, chamarei. A mulher fica aí fora até eu chamar. Não pode ir embora. O polícia baixou a cabeça num gesto compreensivo e repetiu:
— Quinze minutos. Olhou para o relógio de pulso e acrescentou. — Está aqui fora um detetive particular. Não o quis deixar entrar. Diz que o advogado lhe telefonou.
O sargento Dorset dirigiu o olhar para o lugar onde Paul Drake estava encostado ao lado do alpendre, fumando um cigarro.
— Viva, sargento, cumprimentou Drake.
— O que você está fazendo aí? Inquiriu Dorset.
— Impedindo que o alpendre caia, pronunciou Drake vagarosamente.
— Como veio... De carro?
— Sim.
— Muito bem. Então, saia daí e vá se sentar lá dentro.
— É tão amável, gracejou Drake.
O sargento Dorset manteve a porta aberta até Sally Madison e Perry Mason saírem para o alpendre e depois a fechou com força. Mason espetou a cabeça para Paul Drake e se dirigiu para o lugar em que deixara o automóvel. Sally Madison hesitou, durante um momento, e depois o seguiu. Drake se juntou a eles na curva do caminho.
— Como aconteceu? Inquiriu Drake.
— Estava no banheiro. Alguém disparou contra ele. Um tiro. Coração trespassado. A morte deve ter sido instantânea, mas o médico legista ainda não se pronunciou.
— Foi você que o encontrou, Perry?
— Não, foi a mulher.
— Como é que foi? Ela não estava em casa quando vocês chegaram?
— Não. Chegou de carro quando eu estava tocando a campainha. Sabe, Paul, ela parecia estar com uma pressa tremenda. Havia um cheiro peculiar a fumaças dissipadas. E se você fosse dar uma vista de olhos ao carro, antes dos polícias começarem a interrogá-la e talvez ter a mesma ideia que eu tive?
— Que ideia?
— Oh, não sei. Não é bastante definida para ser uma ideia, mas ela, sem dúvida alguma, fez o carro contornar a curva e subir pelo caminho cimentado. Não sei por que tive esta ideia, Paul... Mas eu gostaria de saber se ela vinha guiando o carro de longe ou se estava parada em qualquer parte além da esquina. Recordo-me de ter notado o modo como o motor soava e me veio o cheiro de gasolina quase fresca quando ela parou o carro. Que diz de dar uma vista de olhos nos mostradores?
— Bem, concordou Drake duvidosamente, — Posso tentar.
— Não podem processá-lo por isso, sossegou-o Mason.
Drake se afastou, se dirigindo para o alpendre da frente. O polícia arreganhou os dentes num sorriso, abanou a cabeça e espetou o polegar:
— Nada feito, meu botãozinho de flor, disse. E acrescentou: — Lamento.
Drake desviou-se para um lado, fez alguns movimentos desanimados e depois se encaminhou muito naturalmente para o automóvel que Mrs. Faulkner conduzira até defronte de casa. Agindo como se esse fosse o carro em que ele próprio viera, o detetive se instalou no assento da frente e, passado um momento, tirou um cigarro do bolso, acendeu um fósforo, demorando a aplicação do fósforo à extremidade do cigarro o tempo suficiente para examinar minuciosamente o painel do automóvel.
— Que querem eles dizer com tirar impressões digitais? Perguntou Sally Madison a Mason.
— Pulverizam os objetos com um pó especial explicou Mason, com os olhos postos em Paul Drake. — Isso põe em evidência o que se chama impressões digitais latentes. Às vezes, utilizam um pó negro, outras vezes um pó branco, conforme a superfície. Na maioria das vezes em que colhem impressões digitais utilizam um pó negro para pôr em evidência a latente e depois pegam num pedaço de adesivo, colocam-no sobre a latente revelada, esfregam sobre ele suavemente até que todos os bocadinhos de pó tenham tido oportunidade de aderir ao adesivo e depois retiram este. Esta operação colhe definitivamente a impressão digital do objeto em que foi encontrada.
— Quanto tempo se conserva as impressões digitais quando fazem isso?
— Indefinidamente.
— Como sabem de onde tiraram as impressões digitais?
— Está fazendo uma quantidade de perguntas, observou Mason.
— Sou curiosa.
— Isso depende do perito encarregado do trabalho. Alguns marcam nos objetos de onde foram colhidas as impressões digitais o número dado ao adesivo. Outros põem os números num bloco de notas com um esboço ou descrição do lugar de onde foram tirados.
— Pensava que tinham câmeras de impressões digitais e que tirassem fotografias.
— Às vezes, fazem isso; outras, não. Tudo depende da pessoa que está fazendo o trabalho. Pessoalmente, eu fotografaria todas elas.
— Por quê? Inquiriu Sally Madison, olhando cheia de curiosidade para Mason.
— Porque, respondeu este, Se houver muitas impressões digitais, o homem vai ter um trabalhão dos diabos em conservá-las.
— Não vejo a importância disso.
— Veria, se eles encontrassem uma das suas impressões digitais.
— O que quer dizer?
— Podia fazer diferença quer a encontrassem na maçaneta da porta ou no cabo da arma... Diferença para si, em todo o caso.
Paul Drake abriu a porta do carro que Mrs. Faulkner guiara, descreveu com os pés um arco até ao chão, se esticou, bocejou, fechou a porta e o vermelho do seu cigarro brilhou na escuridão quando naturalmente se dirigiu ao lugar em que Mason e Sally Madison se encontravam conversando.
— Teve um bom palpite, Perry.
— O que descobriu?
— O manípulo do ar estava meio puxado, a temperatura do motor está quase fria como pedra. Ainda que déssemos desconto ao fato de ela já se encontrar aqui há vinte minutos ou mesmo meia hora, o motor não teria esfriado tão depressa. Dá a impressão de o carro ter percorrido apenas um quarto de milha. Talvez menos do que isso.
— Ela vinha com bastante velocidade quando descreveu a curva, declarou Sally Madison.
Mason deu a Paul Drake um rápido olhar preventivo. A porta da casa abriu e o sargento Dorset ficou emoldurado pela iluminação da entrada. Disse alguma coisa ao agente que guardava a entrada da casa. Este se dirigiu à extremidade do alpendre e com os modos com que um beleguim chama uma testemunha, entoou:
— Sally Madison. Mason arreganhou os dentes num sorriso.
— É você, Sally.
— Que devo dizer? Inquiriu, tomada de súbito pânico.
— Há alguma coisa que queira esconder? Perguntou Mason.
— Não... Julgo que não.
— Se se lembrar de alguma coisa que queira omitir, disse Mason, — Omita-a, mas não minta a respeito de nada.
— Mas para omitir alguma coisa, terei de mentir.
— Não, não terá, feche simplesmente a boca. Pois bem, mal a Polícia tiver acabado de conversar consigo, quero que telefone para este número. É o apartamento de Della Street. Diga-lhe que vai encontra-la. As duas vão para um hotel e registrem-se com os seus próprios nomes. Não deixem que ninguém saiba onde se encontram. De manhã, que Della me telefone, por volta das oito e meia. Mandem servir o café da manhã no quarto. Não saiam e não conversem com ninguém antes de eu chegar lá.
Mason lhe estendeu um pedaço de papel em que anotara o número de telefone de Della Street.
— Qual é o plano? Perguntou Sally Madison.
— Quero mantê-la afastada dos repórteres. Eles devem querer entrevistá-la. Vou procurar conseguir para si e para Tom Gridley cinco mil dólares da fortuna de Faulkner.
— Oh, Mr. Mason!
— Não diga uma palavra, aconselhou-a Mason. — Que a Polícia nem ninguém saibam para onde vai. Não conte sequer a Tom Gridley. Mantenha-se fora da circulação até eu ter oportunidade de ver em que águas nós navegamos.
— Quer dizer que pensa que há possibilidade...
— É possível. Depende.
— De quê?
— De muitas coisas.
O sargento Dorset falou vivamente ao polícia que estava sob o alpendre e este entoou, uma vez mais, no seu melhor modo de sala de tribunal:
“Sally Madison” e depois, tomando uma atitude menos formal, rugiu para o trio, “Pare com essa tagarelice e venha para cá. O sargento quer falar com você”. Sally Madison dirigiu-se rapidamente ao alpendre, com os saltos do sapato ecoando o seu passo rápido e nervoso. Drake perguntou a Mason:
— Como teve a impressão de que ela estacionara do outro lado da curva, Perry?
— Pode não ter sido do outro lado da curva, Paul. Tive a impressão de que o carro rodava com o motor frio, a julgar pelo cheiro do escapamento. E depois, me ocorreu, evidentemente, a possibilidade de que podia estar parada em qualquer ponto da estrada, no outro lado da curva à espera do momento propício para aparecer.
— Bem, isso é uma possibilidade, sem dúvida, e bem sabe o que representa se for verdade, disse Drake.
— Não estou certo de saber, declarou Mason, pensativamente. — E nem sequer me vou preocupar em pensar nisso antes de descobrir se é a verdade, mas é um fato interessante a anotar para futura referência.
— O sargento Dorset saberá isso? Inquiriu Drake.
— Duvido. Está excessivamente absorvido na sequência do procedimento judicial de rotina para pensar em quaisquer novas linhas de conduta. O tenente Tragg, se estivesse aqui, já teria pensado nisso. Esse tem miolos, Paul... Dorset não é mau, mas subiu pelo caminho árduo, e confia demasiadamente nos velhos métodos de franzir de sobrancelha. Tragg é suave como seda e nunca se sabe se segue a direção em que está apontado. Ele...
A porta da casa abriu uma vez mais. Desta vez, o sargento Dorset não mandou recado pelo guarda à porta. Gritou:
— Eh! Vocês dois, venham cá. Quero conversar com vocês.
Mason disse em voz baixa a Paul Drake:
— Se tentarem te passar rasteiras, Paul, entre no seu carro e saia. Explore as ruas laterais ao acaso e depois dos jornalistas aparecerem, agarre um com quem esteja em boas relações, lhe pague umas bebidas e vê o que consegue apanhar.
— Não posso fazer isso antes dele ter telefonado a história para o seu jornal, notou Drake.
— Ninguém quer que o faça, respondeu Mason. — Simplesmente...
— Não vale a pena correr, disse sarcasticamente o sargento Dorset. — Devagar, meus senhores, nada de pressa. No fim de contas, bem sabem, se trata apenas de um assassinato.
— Não foi um suicídio? Inquiriu Mason, subindo os degraus da entrada.
— O que julga que aconteceu à arma, que ele a engoliu? Inquiriu Dorset.
— Nem sequer sabia que o tinham matado.
— O que Drake está fazendo aqui?
— Dando uma vista de olhos.
— Como é que ele apareceu? Perguntou desconfiadamente Dorset a Drake.
— Disse a Sally Madison que lhe telefonasse ao mesmo tempo em que a si.
— Que está dizendo? Perguntou vivamente Dorset. — Quem me telefonou?
— Sally Madison.
— Julguei que fosse a mulher.
— Não, a mulher estava com um ataque de histeria. Sally Madison foi quem fez a ligação.
— Para que quis Drake?
— Só para dar uma vista de olhos.
— Para quê?
— Para ver o que conseguia descobrir.
— Por quê? Não está representando ninguém, não é?
— Eu não estava fazendo uma visita social a Faulkner, a esta hora da noite.
— Que história é essa de um homem chamado Staunton que tinha esses peixes roubados?
— Alega que Faulkner os deu para guardar.
— Faulkner queixou-se à Polícia de que os roubaram.
— Eu sei.
— Dizem que você se encontrava aqui quando os polícias do carro-patrulha vieram na noite em que os peixes foram roubados.
— É certo. Drake também estava aqui.
— Mas qual é a sua ideia? Foram roubados ou não?
— Nunca lidei com um peixe dourado, sargento.
— Que tem isso a ver com a pergunta que lhe fiz?
— Talvez nada, talvez muito.
— Não entendo.
— Alguma vez já se empoleirou numa cadeira e mergulhou uma concha de sopa num aquário de quatro pés, contendo peixes dourados, tentou agarrar um peixe e depois fazendo escorregar as mãos ao longo de uma extensão de quatro pés, trazer esse peixe até à superfície, tirá-lo para fora do tanque e metê-lo num balde? O sargento Dorset tornou a inquirir desconfiadamente:
— Que tem isso a ver com a minha pergunta?
— Talvez nada, talvez muito. A minha ideia, sargento, é de que o teto do quarto nesse escritório fica a cerca de nove pés e meio do chão e me atrevo a dizer que o fundo do tanque dos peixes ficava a cerca de três pés e seis polegadas do chão. O tanque tem uma profundidade de quatro pés.
— De que diabo está falando? Perguntou Dorset.
— Medições, respondeu Mason.
— Não vejo o que isso tem a ver com a minha pergunta.
— Perguntou se eu supunha que os peixes tivessem sido roubados.
— Bem.
— A evidência de que foram roubados, prosseguiu Mason, — Consiste numa concha de sopa de prata ao fim da qual estava ligado um pau com uma extensão de quatro pés.
— Mas que mal tem isso? Se quisesse chegar ao fundo de um tanque de quatro pés de profundidade precisaria de um pau de quatro pés, não é verdade? Ou será que o seu cérebro privilegiado tem outra maneira de ver a coisa?
— Apenas, continuou Mason, — Que para tirar um peixe dourado para fora de água, à meia polegada do topo de um tanque de quatro pés e estando esse tanque já a três pés e meio do chão, a superfície da sua água ficaria então a sete pés e cinco polegadas acima do chão.
— E que tem isso? Perguntou Dorset, denotando na voz que estava interessado, apesar da sua tentativa desesperada para manter uma máscara de sarcasmo cético.
— Por conseguinte, prosseguiu Mason, — Teria sem dúvida de baixar o seu pau cerca de quatro pés dentro do tanque, porque poderia metê-lo sob um ângulo, mas quando começasse a retirá-lo para fora teria de mantê-lo verticalmente a fim de evitar a saída do peixe. Mas suponhamos que o teto fique a nove pés e meio do chão e a superfície da água a sete pés e meio deste; então quando tiver levantado a concha com o cabo de quatro pés de extensão, a uns dois pés acima do fundo do tanque, o pau de extensão bate contra o teto. Então o que faz? Se desviar o pau para um ângulo que lhe permita retirar a concha para fora do tanque, os peixes se safam para fora da concha.
Dorset assimilou a ideia. Ficou de sobrolho prodigiosamente franzido e, por fim, disse:
— Então não crê que os peixes tenham sido roubados.
— Não creio que tenham sido retirados para fora desse tanque com qualquer concha, declarou Mason e não creio que essa concha com a sua extensão de quatro pés tenha sido utilizada para roubá-los. Dorset confessou um tanto hesitantemente:
— Não compreendo, E depois acrescentou um tanto às pressas, como que procurando encobrir a sua confissão. — Favas, não há nada para compreender. Teria segurado verticalmente a concha com uma mão. A extremidade do pau teria batido contra o teto, sem dúvida, mas teria mergulhado a outra mão na água e retirado o peixe.
— Dois pés de água? Frisou Mason.
— Porque não?
— Suponhamos ainda, que levantou o peixe desde o fundo do tanque até dois pés da superfície. Pensa que poderia chegar lá com a outra mão, segurar com os dedos o peixe e trazê-lo à superfície? Eu não o conseguiria, e lhe digo mais, sargento, se quer experimentar arregaçar a manga e tirar alguma coisa para fora de água, a dois pés da superfície desta, verificará que arregaça a manga até muito alto. Para além do ombro, aposto. Dorset reconsiderou e declarou:
— Bem, está marcando um bom ponto, Mason. Vou entrar lá dentro e tomar algumas medidas. Pode ser que tenha razão.
— Não procuro lhe vender nada. Simplesmente, me perguntou o que eu pensava acerca de um possível roubo dos peixes e lhe dei a minha ideia.
— Quando lhe ocorreu essa ideia?
— Quase no mesmo instante em que vi o quarto com o tanque dos peixes retirado para fora da borda do aparador e a concha com o seu cabo de extensão, caída no chão.
— Não disse nada a esse respeito aos oficiais que vieram aqui investigar.
— Os policiais que vieram aqui investigar não me perguntaram nada a esse respeito. Dorset reconsiderou a resposta e depois, subitamente, mudou de assunto:
— Que história é essa desse tipo Staunton que tem os peixes?
— Ele os tem.
— Os mesmos peixes que foram retirados do tanque?
— Sally Madison pensa que são os mesmos.
— Falou com Staunton?
— Sim.
— E ele disse que Faulkner lhe deu os peixes?
— Isso mesmo.
— Com que fim o teria feito?
— Não sei
— Mas ouviu Staunton declarar que Faulkner lhe deu esses peixes?
— Exatamente.
— Ele disse quando?
— Na noite do dia em que Faulkner participou à Polícia o seu roubo... Na quarta-feira passada, creio eu. Não foi muito categórico quanto à hora.
Dorset estava reconsiderando naquilo quando um táxi contornou a curva e parou. Uma mulher saltou para o chão sem esperar que o motorista lhe abrisse a porta. Estendeu-lhe uma nota e depois subiu correndo o caminho cimentado, levando debaixo do braço uma malinha. O oficial de guarda lhe barrou a escada da entrada.
— Não pode entrar.
— Sou Adele Fairbanks, uma amiga de Jane Faulkner. Telefonou-me e pediu que eu viesse... O sargento Dorset interveio:
— Está bem, pode entrar. Mas não entre no quarto ainda e não se aproxime do banheiro enquanto não permitirmos. Veja se consegue acalmar Mrs. Faulkner. Se começar com algum ataque de histerismo, teremos de chamar um médico.
Adele Fairbanks estava nos últimos anos da casa dos trinta. O seu rosto completara-se muito definitivamente. O cabelo era escuro, mas não o suficiente para ser distintivo. Usava óculos de lentes grossas e tinha um maneirismo nervoso de falar que provocava esguichos de quatro ou cinco palavras de uma vez. Considerou:
— Oh, é simplesmente terrível... Mal posso acreditar. Não há dúvida que era um homem especial... Mas pensar que alguém o matou deliberadamente... Foi um ato deliberado, oficial?... Não foi suicídio, não é? Não, não pode ter sido... Não tinha nenhuma razão para...
— Entre, interrompeu-a apressadamente Dorset. — Veja o que pode fazer por Mrs. Faulkner.
Quando Adele Fairbanks transpôs a porta de acesso à casa, o sargento Dorset disse a Mason:
— Este caso Staunton parece merecer uma investigação. Vou levar lá Sally Madison. Gostaria de tê-lo por testemunha porque quero ter a certeza de que ele não alterará a sua história de Faulkner lhe ter dado esses peixes. Se a alterar, então você lá estará para confrontá-lo com a declaração que fez anteriormente à noite. Mason abanou a cabeça.
— Tenho outras coisas a fazer, sargento. Sally bastará como testemunha.
— E isso, declarou Dorset a Paul Drake, — Deixa-o sem nenhum pretexto para continuar a rondar por aqui.
Drake respondeu “Ok, sargento”, com uma docilidade surpreendente e se dirigiu imediatamente para o seu carro, abriu a porta e pôs o motor a funcionar. O polícia de guarda à porta, disse desconfiadamente:
— Eh, sargento. Aquele não é o carro dele. Esse está além no caminho cimentado.
— Como sabe? Perguntou Mason.
— Como sei? Como é que eu sei qualquer coisa? O tipo não foi se sentar naquele carro e fumar um cigarro? Quer que o detenha, sargento? Drake retirou o carro da curva em direção ao centro da estrada.
— Aquele carro é o dele, declarou calmamente Mason a Dorset.
— Então que carro é aquele além? Inquiriu o polícia.
— Pelo que sei, respondeu Mason, — Esse carro pertence aos Faulkners. Pelo menos, é o carro em que Mrs. Faulkner veio para casa.
— Então que estava esse tipo fazendo dentro dele? Mason encolheu os ombros. Dorset gritou colericamente ao polícia:
— Por que diabos supõe que o deixei aqui fora?
— Cos diabos, sargento, pensei que fosse o carro dele. Dirigiu-se para ele como se lhe pertencesse. Mas agora que penso nisso, julgo que esse carro já estava ali, quando nós chegamos, mas... Dorset ordenou iradamente:
— Dê-me a sua lanterna.
Pegou nesta e dirigiu-se a passos largos para o automóvel estacionado. Mason se pôs a segui-lo. Dorset se virou zangado e lhe disse:
— Pode ficar aí. Já tivemos bastantes interferências, neste caso.
O polícia postado de guarda à entrada, tentando cobrir o seu anterior erro crasso por meio de um súbito acréscimo de eficiência, anunciou beligerantemente:
— E quando o sargento lhe diz que fique aí, isso quer dizer que fica mesmo aí! Não dê nem mais um passo para o automóvel.
Mason arreganhou os dentes num sorriso e esperou que a lanterna do sargento Dorset executasse uma exploração completa ao interior do carro que Mrs. Faulkner conduzira. Depois de uma busca inútil de vários minutos, o sargento Dorset se juntou a Mason e declarou:
— Não vejo nada no carro a não ser um fósforo queimado, caído no chão.
— Provavelmente Drake acendeu um cigarro, alvitrou Mason, em tom natural.
— Sim, me lembro disso. Fê-lo realmente, admitiu prontamente o agente de polícia. — Dirigiu-se ao carro como se fosse se retirar nele, acendeu um cigarro e ficou ali sentado fumando, durante uns momentos.
— Provavelmente queria apenas um lugar onde se sentar, observou Mason, bocejando, — E achou que aquele era um bom lugar para descansar os pés.
— Com que então pensou que ele ia se retirar no carro... Disse sarcasticamente o sargento Dorset ao agente.
— Bem, pensei... Bem, compreende...
— E suponho que, se ele se tivesse retirado nesse carro, você ficava aí com as mãos metidas nos bolsos enquanto o tipo se afastava com o que poderia constituir numa prova importante.
No silêncio embaraçoso que se seguiu, Mason observou conciliadoramente:
— Ora, sargento, todos nós cometemos erros. Dorset grunhiu, se virou para o polícia e disse:
— Jim, quando eles acabarem de colher as impressões digitais no quarto e banheiro diga aos rapazes que quero que procurem impressões digitais nesse automóvel. Que prestem atenção especial ao volante e à alavanca de marcha. Se encontrarem quaisquer impressões digitais, colham-nas e juntem-nas às outras. Mason observou secamente:
— Sim, na verdade, sargento, todos nós cometemos erros. O sargento Dorset se limitou, uma vez mais, a grunhir.
Mason pusera o motor do seu carro para funcionar e ia precisamente a contornar a curva quando viu uns faróis atrás de si. Estes piscaram significativamente, uma vez, duas vezes, três vezes. Depois, o carro diminui a ponto de parecer rastejar. Mason prosseguiu rapidamente durante um quarteirão e meio, observando os faróis através do espelho retrovisor, depois parou e o carro que o seguia se colocou exatamente atrás do automóvel de Mason e também parou. Paul Drake deslizou detrás do volante e se dirigiu a pé até ao carro de Mason onde se instalou com um pé apoiado no degrau lateral.
— Julgo ter descoberto uma coisa, Perry.
— O quê?
— O lugar onde Mrs. Faulkner esteve estacionada, à espera de poder aparecer.
— Vamos ver, propôs Mason.
— Evidentemente, acrescentou Drake, se desculpando, — Não tenho muito para continuar. Quando alguém para um carro numa estrada pavimentada, não deixa muitos traços nítidos, especialmente quando se levar em consideração o fator de que centenas de automóveis ficam estacionados todos os dias.
— O que descobriu? Interveio Mason.
— Bem, começou Drake, quando entrei nesse carro fiz tudo quanto era possível no curto espaço de tempo que eu tinha disponível. Verifiquei que o motor estava frio quase no mesmo instante em que entrei; e depois risquei um fósforo para acender um cigarro, abri a ignição e isso me permitiu olhar para o indicador da gasolina e o da temperatura. O da gasolina nada me disse. O depósito estava meio cheio de combustível e isso evidentemente não significa absolutamente nada. O indicador de temperatura mostrava que o motor mal estava aquecido e isso foi tudo quanto pude verificar através dos indicadores, mas pensei que seria preferível olhar para o cinzeiro. Por conseguinte abri-o e o diabo da coisa estava vazio. Naquela altura isso não significou nada para mim. Vi simplesmente o cinzeiro vazio e não dei importância ao fato.
— Quer dizer que não continha absolutamente nada? Indagou Mason.
— Nem sequer um fósforo queimado.
— Não compreendo.
— A princípio, eu próprio também não compreendi. Só quando vim embora no carro, é que a coisa começou a se esclarecer para mim. Alguma vez esteve num automóvel estacionado à espera que alguma coisa acontecesse e ficado um pouco nervoso... Sem saber como passar o tempo?
— Não creio, respondeu Mason. — Por quê?
— Pois eu sim, declarou Drake. — Montes de vezes. Isso acontece geralmente num trabalho às escondidas quando o homem que seguimos entra numa casa, situada em qualquer lado, e nós temos de ficar ali à espera, sem nada de especial para fazer. Começamos a ficar nervosos e, passado um momento, começamos a nos entreter com o interior. Não nos atrevemos a ligar o rádio porque um carro estacionado com um rádio funcionando dá demasiado nas vistas e então ficamos ali sentados e...
— E esvaziamos o cinzeiro? Inquiriu Mason, denotando vivo interesse na voz.
— Exatamente. Em cada dez casos, fazemo-lo nove vezes, se ali estivermos sentados o tempo suficiente. Começamos a pensar em todos os pequeninos trabalhos que há num carro e o cinzeiro é uma das primeiras coisas de que nos lembramos. Retiramo-lo do seu lugar e despejamo-lo para fora da janela do lado esquerdo do carro, tendo o cuidado de nos certificarmos de que ficou bem limpo.
— Continue. Incitou Mason.
— Por conseguinte, vim-me embora da casa de Faulkner, e comecei à procura de um lugar onde se pudesse estacionar um carro e ver a entrada para a casa de Faulkner.
— Algum lugar, abaixo, na rua? Perguntou Mason.
— Procurei, em primeiro lugar, aí, disse Drake, — Mas não encontrei nada. Portanto, contornei a esquina e descobri um lugar na rua lateral de onde se pode avistar através de um espaço vazio, a fachada da casa de Faulkner e também o caminho que leva à garagem. Estacionei o carro a uma distância igual àquela a que Faulkner estacionara o dele. Olhamos através de um espaço vazio, entre duas casas, mas vemos bem a casa. E foi aí que encontrei um monte de pontas de cigarros e alguns fósforos queimados.
— Que marca de cigarros, Paul?
— Três ou quatro. Alguns com marcas de batom, outros não. Diferentes espécies de fósforos, uns de papel, outros de madeira.
— Algumas marcas identificadoras nos fósforos de papel?
— Para dizer a verdade, Perry, não me demorei ali o tempo suficiente para ver. Mal descobri o lugar, vim correndo para contar. Pensei que talvez gostasse de ir vê-lo, ia mesmo a dar a volta na curva e, por conseguinte, pisquei os faróis e fui atrás de você. Receei seguir ao seu lado, não fosse a polícia pensar que eu descobrira alguma coisa importante nos quatro ou cinco minutos que se seguiram à minha saída da casa. Não quer dizer que eu pense que ele possa ter tido essa ideia, mas nunca se sabe. Quer que eu volte lá e faça um exame mais pormenorizado?
Mason atirou para trás com um piparote a aba do chapéu e passou as pontas dos dedos através do cabelo ondulado da têmpora.
— Pense bem, Paul, se se pode ver a casa do lugar onde o cinzeiro foi esvaziado, então qualquer pessoa que esteja parada em frente da casa ou no caminho cimentado pode olhar para trás e ver o lugar onde nós estaríamos à procura da coisa. A sua lanterna não passaria despercebida.
— Já pensei nisso, admitiu Paul.
— Ouça o que deve fazer. Vai lá voltar e marcar o lugar de qualquer modo por que possa identificá-lo. Depois disso, pegue numa pá e numa escova, varre tudo quanto foi despejado e mete-o num saco.
— Não acha que Dorset poderá pensar que isso é ocultar uma prova testemunhal?
— É impedir que uma prova fosse perdida, corrigiu Mason. — A Polícia faria o mesmo, caso se lembrasse.
— Mas supõe que eles se lembram de, e a coisa já não está lá?
— Consideremos a coisa sob outro aspecto, Paul. Supõe que não se lembram de, e um carro de lavar as ruas passa e lava copiosamente a coisa para dentro do sumidouro.
— Mas, disse Drake, duvidosamente, — Certamente que poderíamos avisar o sargento Dorset.
— Dorset levou Sally Madison para a casa de Staunton. Não seja tão escrupuloso, Paul. Anda, vai tratar disso e mete a coisa toda num saco. Drake hesitou.
— Porque Mrs. Faulkner estaria ali à espera que aparecesse e depois contornar velozmente a curva mal viu o seu carro parar?
— Isso pode querer dizer que ela sabia que o corpo estava ali, estendido no chão, e não querer ser ela a descobri-lo sozinha. Deve também significar que sabia que Sally Madison e eu íamos lá fazer uma visita e isso, por sua vez, significa que Staunton deve ter falado com ela pelo telefone quase imediatamente depois de termos saído de casa dele.
— Para onde ele teria telefonado?
— Provavelmente para casa dela. Ela podia já estar com o cadáver nas mãos e quando soube que íamos a caminho, vislumbrou a oportunidade de arranjar uma espécie de álibi. Compreenda, ela estivera ausente toda a noite e chegou quase ao mesmo tempo em que nós. Isto nos faz voltar ao que deve ter acontecido na casa de Staunton. Eu corri os cortinados da janela do escritório de Staunton para poder ver perfeitamente o telefone do lado de fora da janela. Pensei que ele se precipitaria para o telefone e ligaria para a pessoa que lhe dera os peixes. Limitou-se a apagar as luzes do escritório. Isso pode significar que exista outro telefone nessa casa. Talvez uma extensão, talvez até uma segunda linha, pois parece que ele trata de negócios mesmo em casa. Vou arranjar uma lista telefônica e ver isso. Se Staunton tem dois telefones com o mesmo endereço, compreenderei que fui levado por um espertalhão. Quero também procurar o endereço do sócio de Faulkner, Elmer Carson, e ver se consigo chegar lá antes da Polícia. Vá ao seu escritório, Paul, arranje uma pá e uma escova e apanhe o conteúdo do cinzeiro. Seguirei no carro para o bulevar e andarei por ali até encontrar um restaurante ou um dos armazéns de serviço noturno onde consiga arranjar uma lista de telefones. Carson vive perto daqui. Recordo-me de Faulkner dizer que enquanto ele alugara à corporação um lado da casa dupla, Carson possuía uma residência particular a alguns quarteirões dali.
— Ok, concordou Drake. — Levarei quinze ou vinte minutos para ir ao escritório, apanhar a coisa e voltar.
— Está bem. Seja como for, Dorset não estará de volta antes de hora e meia; e os rapazes que ele postou de serviço certamente não se lembrarão de explorar o quarteirão e de relacionar um cinzeiro vazio do carro de Jane Faulkner com um monte de pontas de cigarro, caídas na esquina de uma rua transversal.
— Vou andando, anunciou Drake, voltando para o carro.
Mason conduziu velozmente o seu automóvel em direção ao bulevar principal que percorreu até encontrar um balcão de alimentação aberto durante toda a noite. Entrou na casa, tomou uma xícara de café, consultou a lista telefônica e, para seu desgosto, verificou que James L. Staunton possuía dois telefones registados, um no seu escritório de seguros, outro na sua residência. Ambos no mesmo endereço. Mason folheou então a lista à procura do endereço da residência de Elmer Carson e anotou-o. Ficava exatamente a quatro quarteirões da residência de Faulkner. Mason hesitou, durante um momento, em ligar para Carson e depois decidiu o contrário. Pagou o café, entrou no automóvel e dirigiu-se à casa de Carson.
Estava escuro quando parou o carro, se dirigiu a entrada da casa e tocou a campainha. Na terceira vez, se acenderam as luzes do corredor. Um homem de pijama, roupão e chinelos se delineou, durante um momento, contra a iluminação de um quarto interior. Depois fechou a porta, apagou as luzes do corredor e percorrendo-o às escuras, chegou a um lugar onde acendeu a luz da entrada. Mason se delineou na iluminação brilhante da luz da entrada, tentando olhar através do vidro, coberto por uma cortina, da porta para o corredor escurecido. Da escuridão interior uma voz gritou através da porta:
— Que quer?
— Quero falar com Mr. Elmer Carson.
— Isto é uma hora dos diabos para estar tocando a campainha.
— Lamento, mas é importante.
— De que se trata?
Mason, apercebendo-se de que a sua voz levantada era audível até certa distância, olhou um tanto apreensivamente para as casas próximas e respondeu:
— Abra a porta que lhe direi. O homem do lado de dentro teimou:
— Diga-me o que é que depois abrirei a porta, e acrescentou, — Talvez.
— É a respeito de Harrington Faulkner.
— Que aconteceu?
— Morreu.
— Quem é o senhor?
— Chamo-me Mason... Perry Mason.
— Advogado?
— Exatamente.
A luz da entrada se apagou e, em seu lugar, se acendeu outra no corredor. Mason ouviu o ruído do correr de um ferrolho, depois a porta abriu e, pela primeira vez, Mason viu perfeitamente o homem que se encontrava no corredor. Tinha, avaliou Mason, quarenta e dois ou quarenta e três anos, era um indivíduo um pouco obeso com tendência para a calvície na nuca. O cabelo que tinha, deixara-o comprido para dessa forma poder ser puxado a tapar as áreas calvas. Agora que o homem fora despertado, as longas madeixas de cabelo pendiam incongruentemente por cima da orelha esquerda, atingindo quase o maxilar inferior. Dava ao rosto um perfil especial que dificilmente estava de acordo com a dignidade que tentava assumir. A boca era firme e direita. Um bigode começava a se torna- grisalho. Era um homem que não desistiria facilmente e de modo algum se assustaria. Carson ergueu uns olhos um tanto salientes para Mason e disse, secamente.
— Entre e se sente.
— É Elmer Carson? Informou-se Mason.
— Exatamente.
Carson se desviou para fechar a porta da rua e depois conduziu Mason a uma sala de estar bem mobilada, escrupulosamente limpa, salvo quanto a uma bandeja com pontas de cigarro, uma rolha de champanhe e dois copos de champanhe vazios.
— Sente-se, convidou Carson, aconchegando o roupão ao corpo. — Quando Faulkner morreu?
— Sinceramente, não sei, foi a resposta de Mason. — Numa hora qualquer desta noite.
— Como ele morreu?
— Isso eu também não sei. Mas um rápido exame no corpo me leva a crer que foi com um tiro.
— Suicídio?
— Não creio que seja essa a opinião da Polícia.
— Quer dizer crime?
— É o que parece.
— Ora, Exclamou Carson, havia sem dúvida muitas pessoas que detestavam as suas manias.
— Incluindo o senhor? Perguntou Mason. Os olhos azuis encontraram os de Mason sem pestanejar.
— Incluindo a minha própria pessoa, declarou Carson calmamente.
— Porque o detestava?
— Por muitas razões. Não vejo necessidade nenhuma de entrarmos neste assunto. Que quer de mim?
— Pensei que talvez pudesse me ajudar a descobrir a hora da morte, respondeu Mason.
— Como?
— Quanto tempo, inquiriu Mason, — Será capaz um peixe dourado de viver fora d’água?
— Cos diabos, não sei. Estou enjoado e farto até a ponta dos cabelos de ouvir falar e de ver peixes dourados.
— Contudo, opôs Mason, — Ao que parece gastou algum dinheiro com um processo judicial tendente a conservar dois desses peixes no seu escritório. Carson arreganhou os dentes num sorriso forçado.
— Quando se começa a bater num homem, se ataca o seu ponto mais vulnerável.
— E o passatempo desses peixes dourados era o ponto mais vulnerável de Faulkner?
-— Era o único que tinha.
— Porque estava em desavença com ele?
— Por várias razões. O que tem a ver o espaço de tempo que um peixe dourado resiste a viver fora d’água com a hora em que Faulkner morreu?
— Quando olhei para o corpo, havia uns peixes dourados no chão e um deles agitou levemente a cauda. Peguei nele e meti-o na banheira. Começou a se virar de barriga para cima, mas, alguns minutos mais tarde, soube que se reanimara e nadava de um lado para o outro.
— Quando você olhou para o corpo? Perguntou Carson.
— Não fui a primeira pessoa a descobri-lo, declarou Mason.
— Quem foi à primeira?
— A mulher.
— Há quanto tempo?
— Talvez meia hora, talvez um pouco mais.
— O senhor estava com a mulher?
— Quando entrámos em casa, sim. Os olhos azuis pestanejaram duas vezes, rapidamente.
Carson começou a dizer alguma coisa e depois aparentemente mudou de ideia ou hesitou enquanto rebuscava os seus pensamentos em busca de uma fraseologia conveniente. Subitamente, acrescentou:
— Onde estivera a mulher?
— Não sei.
— Alguém tentou matá-lo, na semana passada, declarou Carson. — Sabia disso?
— Ouvi dizer.
— Quem lhe disse?
— Harrington Faulkner.
— A mulher não lhe falou nisso?
— Não.
— Há qualquer coisa estranha em todo este assunto, continuou Carson. — De acordo com a história de Faulkner, ia dirigindo o carro, quando alguém disparou contra ele. Declarou que ouviu a detonação da arma e que uma bala passou zumbindo pela sua orelha e que se cravou no acolchoado do automóvel. Esta foi a história que ele contou à Polícia, mas nunca me disse uma palavra ou a Miss Stanley.
— Quem é Miss Stanley? Inquiriu Mason.
— A estenógrafa do nosso escritório.
— Diga-me exatamente o que aconteceu.
— Bem, chegou de carro ao escritório e parou-o em frente da casa. Reparei que pegara no canivete e que começara a escavar o acolchoado das costas do banco da frente, mas, naquela altura, não me ocorreu nada.
— Depois o que aconteceu?
— Vi-o entrar em sua moradia, bem sabe, o outro lado da casa. Demorou-se lá uns cinco minutos. Deve ter telefonado de lá à Polícia. Depois apareceu no escritório e, exceto quanto ao fato de estar extraordinariamente nervoso e irascível, não se saberia do acontecido. Havia alguma correspondência em cima da mesa dele. Pegou nela, leu-a, levou as cartas para a mesa de Miss Stanley e permaneceu a seu lado enquanto ditava algumas respostas diretamente à máquina. Ela notou que a mão lhe tremia, mas, à parte isso, parecia perfeitamente normal.
— Que aconteceu depois? Interessou-se Mason.
— Faulkner colocou a bala em cima da mesa de Miss Stanley quando assinou uma das cartas que ela escrevera e ela colocou o papel químico em cima da bala. Mas, naquela altura, nem ela nem Faulkner repararam nisso.
— Quer dizer que Faulkner não conseguiu encontrar a bala quando a Polícia chegou? Perguntou Mason, denotando na voz um vivo interesse.
— Exatamente.
— Que aconteceu?
— Bem, aquilo é que foi uma cena. A primeira coisa que soubemos a respeito desse tiro foi uns bons vinte minutos depois de Faulkner ter entrado. Depois chegou um carro da Polícia e dois agentes se precipitaram para dentro do escritório. Faulkner lhes contou a história de ir dirigindo pela estrada, de ouvir um tiro e depois ouvir qualquer coisa se esmagar na almofada do assento, a uma polegada ou duas do seu corpo. Declarou que tinha extraído a bala e a Polícia perguntou onde esta estava. Depois é que foi bonito! Faulkner se pôs à procura da bala e não conseguiu encontrá-la. Afirmou que a deixara em cima da sua mesa e finalmente chegou a me acusar de tê-la roubado.
— E que fez o senhor?
— Por acaso, prosseguiu Carson, — Não tinha mexido na minha mesa, desde a entrada de Faulkner até a chegada da Polícia e Miss Stanley pode testemunhá-lo. Todavia, mal vi aonde Faulkner queria chegar, insisti para que a Polícia me revistasse e à minha mesa.
— E fizeram-no?
— Fizeram. Levaram-me para o banheiro, me despiram toda a roupa e fizeram uma revista total. Não pareciam muito entusiasmados ao fazê-lo, mas insisti que fizessem o trabalho como deveria ser. Penso que naquela altura tomavam Faulkner por um velho louco e irascível. E Miss Stanley estava quase maluca. Queria que eles fossem buscar uma mulher para que a revistassem. A Polícia não o levou a sério e Miss Stanley ficou tão encolerizada que quase se despiu ali mesmo, no escritório. Estava branca de cólera.
— Mas a bala estava em cima da secretária dela? Perguntou Mason.
— Estava sim. Ela encontrou-a depois ali, nessa mesma tarde quando estava limpando a mesa, se preparando para ir para casa. Tem o costume de amontoar as cópias da correspondência sobre a mesa, durante o dia, e depois arquivá-las, às quatro e meia. Eram cerca de quinze para as cinco quando encontrou a bala. Faulkner voltou a ligar para a Polícia e quando esta chegou disse a Faulkner uma porção de coisas.
— De que gênero?
— Disseram-lhe que, da próxima vez que alguém disparasse contra ele, deveria parar no primeiro telefone que encontrasse e notificar imediatamente a Polícia e não ficar esperando chegar em casa e ir desencravar as balas. Disseram que se a bala tivesse sido deixada no carro, a Polícia poderia tê-la extraído e usado como prova. Então teria sido possível identificar a arma que a disparara. Declararam-lhe que, no próprio instante em que a desencravara, deixara de constituir uma prova.
— Como Faulkner aceitou isso?
— Ficou deveras chateado ao encontrar a bala exatamente onde a deixara, depois de ter feito toda aquela fita e excitação. Mason estudou Carson durante vários segundos, pensativo.
— Muito bem Carson, agora vou lhe fazer a pergunta que desejaria que eu não fizesse.
— O que é? Inquiriu Carson, evitando olhar para Mason.
— Porque Faulkner se dirigiu para casa antes de notificar a Polícia?
— Suponho que estava assustado e receava parar. Mason arreganhou os dentes num sorriso. — Ora, Exclamou Carson, impacientemente, a sua suposição é tão boa como a minha, mas suponho que queria ver se a mulher estava em casa.
— E estava?
— Creio que sim. Estivera muito nervosa na noite anterior e não conseguira dormir. Por volta das três horas da madrugada, tomara uma dose forte de um soporífero e ainda estava dormindo quando os agentes chegaram.
— Os agentes foram lá?
— Sim.
— Por quê?
— Faulkner não impressionou muito bem os agentes. Julgo que eles pensaram que ele próprio disparara o tiro.
— Por quê?
— Sabe Deus! Faulkner era um homem astuto. Compreenda, Mason, não estou fazendo quaisquer acusações ou insinuações. Tudo quanto sei é que, passado um momento, os agentes quiseram saber se Faulkner tinha uma arma e quando ele lhes disse que tinha de fato uma, os agentes disseram que tinham de ir dar uma vista de olhos.
— Ele mostrou a arma aos agentes?
— Presumo que sim. Não os acompanhei. Demoraram-se dez a quinze minutos.
— Quando foi isso?
— Há uma semana.
— A que horas?
— Por volta das dez da manhã.
— De que calibre é a arma de Faulkner?
— Uma 38, creio eu. Julgo que foi isso que ele disse à Polícia.
— E de que calibre era a bala que Faulkner extraiu do estofo?
— Uma 45.
— Como é que Faulkner e a mulher se davam um com o outro?
— Não sei.
— Não faz uma ideia?
— Nem isso. Ouvi-o falar com ela pelo telefone e utilizava o mesmo tom que empregaria com um cão desobediente, mas Mrs. Faulkner não demonstrava nada.
— Antes disto, houvera alguma questão entre Faulkner e o senhor?
— Não uma questão, exatamente... Uma pequena diferença de opinião de vez em quando, e alguns atritos, mas dávamo-nos com uma certa aparência exterior de harmonia.
— E depois disso?
— Depois disso, explodi. Disse-lhe que ou comprasse ou vendesse.
— Estava disposto a vender a sua parte?
— Talvez, não sei. Nunca teria vendido a esse velho, pelo preço que ele queria comprar... Se quiser saber alguma coisa a seu respeito em matéria de negócios, consulte Wilfred Dixon.
— Quem é ele?
— Trata dos interesses da primeira Mrs. Faulkner... Genevieve Faulkner.
— Que interesses?
— A sua parte na sociedade.
— Quanto?
— Um terço. Era essa a sua parte quando se deu o divórcio. Nessa altura, Faulkner possuía dois terços e eu possuía um terço. Foi arrastado ao tribunal de divórcio e o juiz lhe retirou um terço e deu-o à mulher. Depois dessa experiência, Faulkner ganhou um medo horrível aos divórcios.
— Se o senhor o odiava assim tanto, disse Mason, — Porque não dirigiu a sociedade conjuntamente com a primeira Mrs. Faulkner? Estou perguntando por uma simples questão de curiosidade. Carson disse francamente:
— Porque não pude. O estoque estava todo fundido. Isso foi uma parte do assunto do divórcio. O juiz efetuou um acordo de fusão de bens por meio do qual a direção foi deixada igualmente nas mãos de Faulkner e nas minhas. Mrs. Faulkner, isto é, Genevieve Faulkner, a primeira mulher, não podia ter qualquer voto na direção da companhia, a menos que apelasse primeiramente para o tribunal. E nem Faulkner nem eu podíamos aumentar as despesas da companhia para além de um certo ponto e nós não podíamos aumentar os salários. O juiz fez notar também que, em qualquer altura que os dividendos caíssem abaixo de um certo ponto, ele reabriria o processo.
— O negócio tem sido lucrativo? Perguntou Mason.
— Acho que sim. Compreenda, nós não dirigimos as coisas numa única base de comissão. Tínhamos algumas negociações pelas quais arrematávamos terreno, construíamos casas e as vendíamos. Temos feito algumas coisas grandes.
— Ideias de Faulkner ou suas?
— De ambos. Quando se tratava de fazer dinheiro, o velho Harrington Faulkner tinha o nariz apurado. Era capaz de farejar um lucro potencial, à distância de uma milha. Tinha a coragem de secundar o seu julgamento com dinheiro em caixa, frio e rijo, e tinha uma quantidade de capital operante. Devia ter. Sabe Deus que nunca deu nada à mulher e que ele próprio nunca gastava nada, exceto com esses malditos peixes dourados. Para esses desapertava realmente os cordões da bolsa, mas quando se tratava de entrar com dinheiro para qualquer outra coisa era como o ferro na brasa.
— E Dixon? Inquiriu Mason. — Foi designado pelo tribunal?
— Não. Genevieve Faulkner subornou-o.
— Faulkner era rico?
— Sim, tinha muito dinheiro.
— Ninguém o diria, depois de ter visto a sua casa comentou Mason. Carson concordou com um aceno de cabeça.
— Para os seus peixes estava pronto a gastar dinheiro, mas para mais nada. Quanto à casa, creio que Mrs. Faulkner gostava dela assim. No fim das contas, eram só os dois e ela podia tratá-la chamando uma faxineira duas vezes por semana, mas Faulkner certamente que contava todos os centavos que despendia. Sob certos aspectos era um velho miserável. Sinceramente, Mr. Mason, o homem seria capaz de ficar estendido e acordado, durante várias noites, tentando descobrir um estratagema qualquer, por meio do qual lhe fosse possível convencer a si, fazendo o negócio. Com isto, quero significar que, no caso de o senhor, possuir qualquer coisa que Faulkner quisesse comprar, arranjaria as coisas de modo a consegui-lo. Ele...
A campainha da porta soou estridentemente, seguida quase imediatamente por fortes pancadas com as articulações dos dedos e um sacudir da maçaneta da porta.
— Este som parece ser da Polícia, observou Mason.
— Desculpe-me, disse Carson, se dirigindo para a porta.
— Está bem, declarou Mason. — Vou embora. Nada mais tenho fazendo aqui.
Mason encontrava-se um passo atrás de Carson quando este abriu a porta. O tenente Tragg, escoltado por dois agentes à paisana, lançou a Mason:
— Pareceu-me que era o seu carro que estava lá fora. Anda novamente a rondar. Mason se espreguiçou, bocejou e respondeu:
— Quer creia quer não, tenente, o meu único interesse no caso é por dois peixes dourados que, na realidade, não são de modo nenhum peixes dourados.
O tenente Tragg era tão alto como Mason. Tinha a testa de um pensador, um nariz bem-feito e uma boca que denotava grande firmeza, mas com tendência a se erguer nos cantos, como se o homem pudesse sorrir facilmente.
— Muito bem, advogado, muito bem, comentou e depois acrescentou. — O seu interesse pelos peixes dourados parece ser um tanto urgente.
— Francamente, retorquiu Mason, — Gostaria de obter uma certa quantia em dinheiro da fortuna de Harrington Faulkner. No caso de não o saber, no momento da sua morte, uma mulher chamada Sally Madison tinha um cheque de cinco mil dólares passado por ele. Os olhos de Tragg perscrutaram Mason vivamente.
— Sabemos tudo a esse respeito. Um cheque datado da passada quarta-feira, no montante de cinco mil dólares, pagável a Thomas Gridley. Por acaso, não terá falado ultimamente com Thomas Gridley?
Mason sacudiu a cabeça, num aceno negativo. Nos cantos da boca de Tragg, brincava um certo sorriso sardônico.
— Bem, como o advogado já notou, é tarde e acredito que vai para casa se deitar. Não creio que haja qualquer coisa relacionada com o seu interesse no caso que o faça perder o sono.
— Nada absolutamente, assegurou-lhe Mason, jovialmente. — Boa noite, tenente.
— E adeus, acrescentou Tragg, entrando na casa de Carson, seguido pelos dois agentes, que prontamente fecharam a porta com um pontapé.
Perry Mason mergulhara num langor morno que parecia privá-lo da faculdade de se mover. A fadiga mantinha-o agarrado à inércia feliz da sonolência; o toque estridente do telefone teimava em fazê-lo voltar ao estado consciente. Mais do que semiadormecido, tateou em busca do telefone.
— Alô? Proferiu, com a língua presa. A voz de Della Street, no outro extremo do fio, lhe agulhou o cérebro até fazê-lo recuperar o estado consciente.
— Chefe, pode aqui vir imediatamente? Mason se sentou, na cama, direito como um fuso, com todos os sentidos alerta.
— Aonde?
— Ao Kellinger Hotel, na Sixth Street.
Os olhos de Mason, entumecidos pelo sono, consultaram o mostrador luminoso do seu relógio de pulso e notou então de que através das janelas do seu apartamento se filtrava luz suficiente para despojar os ponteiros da sua luminosidade.
— O mais depressa possível Della, prometeu, e acrescentou: — Até que ponto é urgente?
— Receio que seja terrivelmente urgente.
— Sally Madison está consigo?
— Sim. Estamos no apartamento 613. Não pare no balcão de recepção. Suba logo. Não bata à porta. Não a deixo fechada à chave. Eu...
O auscultador desse lado do fio foi subitamente colocado no seu lugar, ao meio da frase, interceptando as palavras de Della Street tão perfeitamente como se o fio tivesse sido cortado com uma faca. Perry Mason rolou para fora da cama. Desembaraçado do pijama, andou às apalpadelas em busca da roupa, ainda antes de acender as luzes do seu apartamento. Passados dois minutos, se debatia dentro de um sobretudo enquanto percorria o átrio.
O Kellinger Hotel era relativamente um hotel despretensioso cuja principal fonte de receita residia em hóspedes permanentes. Mason parou o carro e entrou no átrio, onde um empregado bastante ensonado ergueu o olhar numa vigilância casual que se transformou num franzir de sobrolho de circunspecta inspeção.
— Já tenho a minha chave, disse Mason, apressadamente, e depois acrescentou, um tanto timidamente. — Cos diabos, quase perdi uma noite de sono.
O elevador era automático. Mason reparou que havia sete andares no hotel. Como precaução, para o caso da investigação duvidosa por parte do empregado, que ficara no átrio, amadurecer em ceticismo, Mason carregou no botão que levou o elevador ao quinto andar e depois percorreu o corredor, perdendo segundos preciosos em localizar a escada. Durante esse tempo, ouviu o mecanismo automático do elevador entrar em atividade. Mason subiu correndo as escadas sem tapete, encontrou o quarto que queria, no sexto andar, e, delicadamente, experimentou a maçaneta da porta. Esta não estava fechada à chave. Abriu-a sem fazer barulho. Della Street, envergando uma bata e calçando chinelos, levou um dedo preventivo aos lábios, se dirigiu ao quarto que ficava atrás e apontou então para a cama situada perto da janela.
Sally Madison estava estendida de costas, com um braço pendente para fora dos cobertores e com os dedos débeis e frouxos. O cabelo escuro e lustroso da mulher se espalhava por cima da almofada. A ausência de alças, nos ombros, e os contornos curvilíneos visíveis indicavam que dormia nua. A sua mala de pele de crocodilo, que evidentemente fora colocada debaixo do travesseiro, caíra para o chão e se abrira, tendo cuspido parcialmente o seu conteúdo. O dedo insistente de Della Street apontava para a mala.
Mason se abaixou para dar uma olhada nos artigos iluminados por um abajur da mesinha de cabeceira que, aparentemente, fora mudado do seu lugar habitual para um ponto do chão, de forma a que a sua luz não incidisse nos olhos de Sally Madison. Viu um maço de notas, presas por um elástico. A nota exterior era visível e se tratava de cinquenta dólares. Por trás do maço de notas sobressaía o brilho sombrio do aço azulado onde o cano de um revólver captava e refletia os raios da luz eléctrica. Della Street olhou inquiridoramente para Mason. Quando viu que o advogado avaliara devidamente o significado do conteúdo da bolsa, ergueu as sobrancelhas numa pergunta muda.
Mason percorreu o quarto com o olhar, à procura de um lugar onde pudesse conversar. Della Street fê-lo recuar para os pés da cama, rodear esta, e abriu a porta do banheiro. Acendeu a luz e, depois de Mason ter entrado, fechou a porta. O advogado se sentou na borda da banheira e Della Street começou a falar num murmúrio:
— Estava agarrada a essa bolsa como um marisco. Quis lhe arranjar alguma roupa para noite, mas ela me disse que dormiria nua. Despiu-se, teve o cuidado de meter a mala debaixo do travesseiro e depois se estendeu ali olhando para mim enquanto me despia. Apaguei a luz e me meti na cama. Parece que não conseguiu adormecer com facilidade. Ouvi-a virar e se revirar repetidas vezes.
— Soluços? Inquiriu Mason. Della Street abanou negativamente a cabeça. — Quando ela adormeceu?
— Não sei. Eu adormeci primeiro, embora tivesse resolvido ficar acordada e só fechar os olhos depois de me certificar de que ela adormecera profundamente.
— Quando viu a mala?
— Uns cinco minutos antes de ter lhe telefonado. Antes de ter adormecido, deve ter se remexido de um lado para o outro, de modo que a mala ficou à borda da cama... Depois, quando adormeceu, a mala caiu. Ouvi o ruído e estava tão nervosa que acordei logo e quase saltei da cama para fora.
— Notou o que a tinha acordado?
— Não imediatamente, mas acendi a luz. Sally estava ali estendida, dormindo, tal como a vê agora, mas se agitava constantemente e mexia os lábios. As palavras que murmurava brotavam abafadas, de modo que não se entendia. Consegui apenas ouvir alguns sons confusos. Mal acendi a luz, compreendi o que acontecera e, sem pensar, me abaixei para apanhar a mala. Primeiramente, vi as notas e comecei a metê-las para dentro da mala. Depois, com as pontas dos dedos, toquei numa coisa fria e metálica. Baixei imediatamente o abajur para o chão de forma a poder ver de que se tratava. Nessa altura, a mala estava tal como agora e deixei o abajur ali mesmo. Chefe, eu me sentia paralisada. Não sabia o que fazer. Não me atrevia a deixá-la sozinha para descer ao átrio. Finalmente, me arrisquei a lhe telefonar porque vi que era a única coisa que eu podia fazer.
— O que fez exatamente? Perguntou Mason. — Quero dizer, como fez a ligação?
— Se passaram uns trinta segundos antes de conseguir que alguém do PBX do hotel respondesse. Depois, baixei o mais possível a voz e pedi que ligassem à rede. Mas o homem lá de baixo me disse que todos os números tinham de ser marcados através do PBX do hotel. Vi então que no telefone não havia nenhum mostrador. Estava tão atordoada que ainda não o notara. Por conseguinte, lhe dei o seu número que não está na lista. Naquelas circunstâncias, era a única coisa que eu podia ter feito. Mason concordou gravemente com um gesto de cabeça. — Pareceu que se passavam séculos antes do senhor responder, prosseguiu. — E depois comecei a falar consigo, sem perder Sally Madison de vista, de forma a poder desligar no caso de ela começar a despertar.
— Foi por isso que cortou a ligação no meio da frase?
— Sim. Vi-a se mover agitadamente e tremularem as pálpebras e, por conseguinte, não me atrevi a continuar falando. Pousei o auscultador no descanso e voltei a pôr a cabeça no travesseiro para, no caso dela abrir os olhos, eu fingir que estava dormindo... Embora, evidentemente, a mala no chão e o abajur ao lado fossem uma denúncia. Se ela acordasse, pediria uma explicação, mas se fosse possível adiá-la até à sua chegada... Bem, ela virou um pouco a cabeça, disse alguma coisa naquela voz entaramelada de uma pessoa que fala dormindo e depois soltou um profundo suspiro e pareceu descansar.
Mason se levantou da borda da banheira, afundou as mãos nos bolsos do casaco e declarou:
— Estamos metidos numa confusão, Della. Della Street concordou com um aceno de cabeça. —É uma moça eficiente, declarou Mason. — Se tem um maço de notas desses deve tê-los conseguido de Mrs. Faulkner. Creio que fiz precisamente o jogo que ela queria, ficando sozinho no banheiro de Faulkner para passar uma boa vista de olhos nos indícios. Não queria que ela estivesse fiscalizando o meu trabalho e por isso disse que levasse Mrs. Faulkner para a sala de visitas e acalmasse o ataque de histerismo dela. Suponho que, enquanto ela estava ali, lançou a isca a Mrs. Faulkner. Isto é, deve ter descoberto qualquer prova que me escapou. Ou então Mrs. Faulkner lhe propôs esconder a arma, a “exploradora” concordou e exigiu em troca disso bastante dinheiro. Em qualquer dos casos, nos deixa atrapalhados. Bem veja o que vai acontecer agora. Pensei que a devíamos afastar da circulação para que os repórteres não a pudessem caçar e nós pudéssemos assim tentar instaurar um processo contra a fortuna de Faulkner sem ela cuspir quaisquer informações antes de nós conhecermos a natureza do terreno. É o que se ganha em ser generoso e procurar ajudar um tipo tuberculoso e uma amiguinha “exploradora”. Registraram-se com o seu nome e o dela. Se, por acaso, essa arma foi aquela com que o crime foi cometido, está vendo a confusão em que estamos metidos. Nós dois. O que ela lhe disse quando telefonou?
— Disse que o senhor lhe tinha recomendado que se pusesse em contato comigo e que lhe dera o meu número de telefone; que eu devia levá-la para um hotel, ficar com ela e arranjar a coisa de modo a que ninguém soubesse nada acerca do lugar em que ela se encontrava até o senhor achar essa precaução desnecessária. Mason fez um gesto de cabeça confirmativo e declarou:
— Foi exatamente o que recomendei que fizesse.
— Eu estava dormindo e o telefone não parava de tocar. Despertei de um sono profundo e creio que estava um pouco estremunhada. Sally Madison deu o seu recado e um dos pensamentos que me passaram pelo espírito foi onde poderia arranjar um hotel. Disse-lhe que voltasse a telefonar dez minutos depois. Agarrei o telefone e liguei para meia dúzia de hotéis. Finalmente, arranjei um quarto com duas camas aqui no Kellinger.
Mason semicerrou os olhos, imerso em profunda concentração.
— Depois ela voltou a lhe telefonar, nos quinze minutos seguintes?
— Creio que sim. Não reparei na hora exata. Tinha começado a me vestir, mal descobrira o quarto. Estava cheia de pressa e não reparei na hora.
— E lhe recomendou que a viesse esperar aqui?
— Exatamente. Recomendei que viesse diretamente para o hotel e que, se chegasse primeiro do que eu me esperasse no átrio; se eu chegasse primeiro, esperaria por ela também no átrio.
— Quem chegou primeiro?
— Eu.
— Quanto tempo esperou?
— Uns dez minutos.
— Ela veio de táxi?
— Sim.
— De que espécie?
— Um táxi amarelo.
— Notou algo de estranho no modo como trazia a mala?
— Nada. Saiu do táxi e... Um momento chefe, eu me lembro de que já trazia na mão uma nota. Não precisou tirá-la da mala. Estendeu-a ao motorista e não recebeu troco. Lembro-me disso.
— Provavelmente, uma nota de dólar, disse Mason. — Isso significaria que no taxímetro figuraria uma corrida de uns oitenta cêntimos e que deu uma gorjeta de vinte cêntimos. Della Street, rebuscando na memória, acrescentou:
— Recordo que o motorista olhou para a nota... Olhou-a de um modo estranho, depois sorriu, disse alguma coisa, meteu-a no bolso, e partiu. Depois, Sally Madison entrou no átrio e viemos diretamente para o quarto.
— Já estavam registradas?
— Sim.
— Então Sally Madison não teve nenhuma ocasião de abrir a mala desde que a viu até que se enfiou na cama e a meteu debaixo do travesseiro?
— Exatamente. Lembro-me de, nessa altura, pensar que ela devia ter mais cuidado com a pele, mas ela se limitou a tirar a roupa e se meter na cama.
— É evidente que não queria que você tivesse qualquer oportunidade de ver o que estava dentro da mala. Pois bem, Della, há apenas uma coisa a fazer. Temos de tirar essa arma da mala.
— Por quê?
— Porque tem as suas impressões digitais, respondeu Mason.
— Oh, oh! Exclamou Della Street, consternada. — Não tinha pensado nisso.
— Depois de tirarmos as suas impressões digitais, prosseguiu Mason, — Vamos acordar Sally Madison e fazer algumas perguntas. O que faremos em seguida vai depender das respostas, mas provavelmente diremos que volte para o seu apartamento, que proceda como se nada tivesse acontecido e que, em circunstância alguma, não diga nada a ninguém a respeito ter passado a noite aqui.
— Pensa que o fará?
— Nunca se sabe. É possível. As probabilidades são de que a caçarão antes do meio-dia. Então, se lhe fizerem muitas perguntas, é possível que nos arraste para a embrulhada. Mas se as suas impressões digitais não estiverem nessa arma, não temos que dizer a ninguém que sabíamos o que tinha nessa mala. Estávamos simplesmente mantendo-a fora do alcance dos repórteres. Ela seria nossa constituinte numa ação cível que devíamos intentar contra a Fortuna Faulkner a fim de conseguirmos cinco mil dólares para o namorado. Della Street fez um aceno de cabeça afirmativo. — Mas, continuou Mason, — Se encontrarem as suas impressões digitais nessa arma, então ficamos metidos num sarilho horrível.
— Mas, ao mesmo tempo em que tirar as minhas impressões digitais dessa arma, não tira automaticamente todas as outras que nela haja?
— Isso é uma das coisas que seremos obrigados a fazer, respondeu Mason, confirmando com um aceno de cabeça.
— Isso não constitui destruição de prova ou qualquer coisa assim?
— Nem sequer sabemos que se trata de uma prova, Della, respondeu Mason. — Pode ser e pode não ser a arma com que Harrington Faulkner foi assassinado. Ok, vamos lá.
Mason abriu a porta do banheiro, parou para segredar a Della Street uma palavra de precaução e dera um passo em direção à cama em que Sally Madison estava dormindo, quando soaram pesadas pancadas com as articulações de dedos de uma mão na porta do quarto. Mason parou, consternado.
— Abram! Gritou uma voz. — Abram! E mais uma vez as articulações dos dedos bateram nos painéis da porta.
O ruído despertou Sally Madison. Com uma exclamação meio articulada, se sentou na cama, deitou uma perna para fora dos cobertores e depois, à luz obscura do quarto, avistou Perry Mason, parado, imóvel, junto à porta.
— Oh! Exclamou. — Não sabia que estava aqui e prontamente levou a roupa da cama ao queixo e meteu a perna para dentro.
— Acabo de chegar, declarou Mason. Ela sorriu.
— Não o ouvi chegar.
— Quis me certificar de que tudo corria bem.
— O que há? Quem está batendo à porta? Mason disse a Della Street:
— Abra Della. Della Street abriu a porta. O empregado de noite gritou:
— Aqui não podem fazer isso.
— Isso, o quê? Perguntou Della Street.
— Não me venha com essas cantigas, retorquiu o homem. — O seu rapaz subiu até ao quinto andar no elevador e depois subiu as escadas a pé, até ao sexto. Julgava que estava sendo esperto. Por acaso, me lembrei de que fizeram uma chamada telefônica deste quarto. Estive à escuta do lado de fora da porta. Ouvi a do banheiro se abrir e ouvi vocês falarem em segredo. Isto aqui não é o gênero de casa que vocês, mulheres, julgam. Juntem as coisas e se ponham a andar.
— Está enganado, camarada, disse Mason.
— Ah, não, não estou. Você é que está. A mão de Mason se meteu tentadoramente para dentro do bolso direito das calças.
— Muito bem, disse, sorrindo, talvez seja eu quem está enganado, mas está amanhecendo e não causará prejuízo algum ao hotel que as mulheres saiam depois do café da manhã.
Mason tirou do bolso um maço de notas, puxou deste uma nota de dez dólares e segurou-a entre o polegar e o indicador de modo a que o empregado da noite pudesse ver bem o valor. O homem nem sequer baixou os olhos.
— Não, não, teimou. — Aqui, não acontece esse tipo de coisas.
Mason lançou o olhar para Sally Madison que mantinha o lençol seguro até ao queixo. Notou que ela se aproveitara daquela conversa, para apanhar a malinha do chão. Encontrava-se agora subtraída à vista. Mason meteu as notas dentro do bolso, retirou o seu cartão e mostrou-o.
— Sou Perry Mason, advogado, declarou. — Esta é Della Street, minha secretária.
O empregado do hotel disse obstinadamente:
— Procuramos dirigir aqui uma casa decente. Já tivemos confusões com a Polícia e não vou me arriscar a ter mais. Mason replicou, colericamente:
— Muito bem. Vamo-nos embora.
— Você pode esperar lá em baixo, no átrio, disse o homem. Mason sacudiu a cabeça.
— Já que seremos postos daqui para fora, fico aqui para ajudar as mulheres a fazerem as malas.
— Ah, isso é que não fica.
— Ah, isso é que fico.
— Então, eu também fico, replicou o empregado. Espetou a cabeça na direção das mulheres. — Vistam-se. Sally Madison replicou:
— Terá de ficar lá fora, enquanto enfio qualquer coisa. Estava dormindo nua. O empregado disse para Mason:
— Vamos, vamos lá para baixo, para o átrio.
Mason abanou negativamente a cabeça. Della Street lançou um rápido olhar inquiridor a Mason. O olho direito do advogado se fechou lentamente numa piscadela. Quase imperceptivelmente, Della Street indicou a porta com um movimento de cabeça. Mason tornou a abanar a cabeça. Della Street disse, subitamente:
— Mas eu não estou disposta a que me ponham daqui para fora, a esta hora da manhã. Não fiz nada de errado. Já é desagradável ser incomodada de noite, quando se está dormindo, para ainda por cima quererem pôr uma pessoa para fora de um hotel de segunda categoria só porque o patrão quer dar ordens. Vou voltar para a cama. Se não gostar, chame a Polícia para saber o que ela tem a dizer a esse respeito. Della Street puxou para trás a roupa da cama e saltou para dentro desta depois de ter se desembaraçado dos chinelos. Sub-repticiamente, olhou para Mason. Este lhe lançou um aceno de cabeça encorajador e quase imperceptível. O homem teimou:
— Tenho muita pena, mas isso não pega. Se até aqui nunca tivéssemos tido nenhuma confusão, é possível que nos levassem, mas pelo modo por que estão agora as coisas, ou saem daqui imediatamente ou chamo a Polícia. Escolham.
— Chame a Polícia, resolveu Mason.
— Muito bem, se assim o querem, assim acontecerá, respondeu o homem, se dirigindo ao telefone, cujo auscultador levou ao ouvido. — Comando-Geral da Polícia, E passado um momento, fala o empregado da noite do Kellinger Hotel, na Sixth Street. Temos uns ocupantes desordeiros no apartamento 613. Tentei pô-los para andar e não quiseram ir. Mande um carro imediatamente para aqui, sim? Estarei em cima, no apartamento... Está bem. Kellinger Hotel, e o número é 613. O empregado do hotel pousou com estrondo o auscultador no descanso e declarou: — Quero ficar com a minha consciência limpa. Deixem-me lhes dar um conselho amigo. Têm exatamente o tempo preciso para saírem antes de a Polícia chegar. Sigam o meu conselho e saiam.
Perry Mason se instalou confortavelmente aos pés da cama de Della Street. Tirou do bolso um bloco de notas e garatujou uma a Della Street: “Lembre-se de que os telefones estão ligados apenas ao PBX lá de baixo. Tenho quase a certeza que é um blefe.” Mason rasgou a página do bloco de notas e estendeu-a a Della. Esta a leu, sorriu e se encostou ao travesseiro. Sally Madison declarou:
— Bem, eu vou embora. Vocês dois façam o que quiserem, E sem acrescentar mais nada, saltou da cama, agarrou nas roupas que estavam em cima da cadeira e correu, se metendo no pequeno toucador.
Mason se inclinou naturalmente para frente e levantou o travesseiro da cama de Sally Madison. Levara a mala consigo. O advogado tirou do bolso uma cigarreira, estendeu um cigarro a Della Street e tirou um para si. Acenderam-nos e Mason, uma vez mais, voltou a se instalar confortavelmente. Do pequeno toucador chegavam sons de Sally Madison, se vestindo apressadamente. Mason aguardou cerca de dois minutos e depois declarou ao empregado:
— Está bem, ganhou. É melhor se vestir, Della. Della Street saltou da cama, ajustando a bata ao corpo. Entrou no toucador e disse a Sally Madison:
— Está bem, Sally, vou consigo.
— Não vai não, retorquiu a outra, acompanhando a frase com o som do salto do sapato batendo com força no chão. — Pessoalmente, não gosto de policiais. Em minha opinião, vocês já se demoraram de mais. Vou embora. Vestira-se com a facilidade de uma artista de revista e saía agora do toucador, pronta para ir à rua. O cabelo era a única nota da sua pessoa que denunciava um tolete apressado.
— Um momento, interveio Mason. — Vamos todos. Sally Madison, apertando a mala debaixo do braço com a tenacidade de um jogador de futebol evitando uma passagem interceptada, retorquiu:
— Lamento Mr. Mason, mas não espero por ninguém. Mason jogou a sua carta de trunfo.
— Não se deixe enganar por ele, lançou-lhe. — Nesse telefone, não há quadro. Teria de fazer a ligação através do PBX lá de baixo, onde não tem ninguém. Fingiu simplesmente que estava telefonando para a Polícia. O empregado, em voz desanimada, replicou:
— Não pensem que já não tinha tratado disso. No mesmo momento em que desconfiei que você estivesse aqui no 613, liguei a linha deste quarto através do PBX à rede. Fiz isto antes de vir cá para cima. Não se iludam pensando que o telefone não estava ligado à rede. Algo na atitude do homem revelava convicção.
— Ok, Della, se arranje como puder. Deixo-a. Vou com Sally. Vamos Sally. Sally olhou-o com desagrado.
— Não seria melhor eu ir sozinha?
— Não, respondeu Mason e conduziu-a para a porta.
O empregado hesitou um momento, pensando no que havia de fazer. Mason aconselhou a Della Street:
— Quando a Polícia chegar, lhe diga que o empregado do hotel anda molestando-a com as suas atenções. O atingido se levantou prontamente da cadeira e saiu atrás de Perry Mason e de Sally Madison para o corredor.
— Vou levá-los lá para baixo no elevador, se prontificou.
— Não é preciso, respondeu Mason. Preferimos utilizar as escadas.
— Fale por si, disse Sally Madison a Mason, com certo pânico. — Eu desço no elevador. É mais rápido. Entraram no elevador. O empregado retirou o trinco que mantivera a porta aberta e apertou o botão marcado com a palavra térreo.
— A conta é de seis dólares, declarou.
Mason tirou gravemente do bolso uma nota de cinco dólares, outra de um dólar, uma moeda de vinte e cinco cêntimos e estendeu tudo isso ao porteiro.
— Para que são os vinte e cinco cêntimos?
— Uma gorjeta para se pôr a andar, retrucou Mason. O homem embolsou calmamente a moeda de vinte e cinco cêntimos e segurou na mão esquerda os seis dólares.
— Não há ressentimentos, declarou, enquanto abria a porta do elevador ao chegarem ao térreo. Temos de manter a casa séria; caso contrário, nos fecharão a casa. Mason agarrou Sally Madison pelo braço e lhe disse:
— Você e eu precisamos ter uma conversinha.
Ela nem sequer o olhou, mas apressou o passo quase a ponto de atravessar o átrio correndo. Encontravam-se a meio do caminho da porta quando esta se escancarou e um agente uniformizado de um carro-patrulha inquiriu:
— Porquê a pressa?
Mason tentou passar, mas o homem bloqueava a porta e olhou por cima do ombro de Mason para o empregado do hotel.
— Duas mulheres no 613, informou o empregado, com enfado. — Infringiram as leis do hotel, recebendo companhia no quarto. Pedi-lhes que saíssem.
— Esta é uma das mulheres?
— É.
— Onde está a outra?
— Está se vestindo.
— Quem era a companhia? O interpelado espetou o polegar na direção de Mason. O agente sorriu para este e disse:
— Não precisamos de si, mas, já que estou aqui... Mason apresentou gravemente um cartão.
— O erro, declarou, — É do hotel. A minha secretária estava passando a noite com Miss Madison, que é minha cliente. Represento-a num litígio bastante importante. Vim aqui para obter uma informação. O agente pareceu profundamente impressionado com o cartão de Mason.
— Então, porque não disse isso ao empregado do hotel e não nos poupou uma viagem?
— Tentei fazê-lo, replicou Mason, com ar digno.
— É uma velha história, respondeu o empregado, com enfado. — Ficaria surpreendido se eu lhe dissesse quantas vezes já ouvi essa história. Todas elas são secretárias.
— Mas este homem é o advogado Perry Mason. Nunca ouviu falar dele?
— Nunca.
— Vou apenas verificar uma coisa, Mr. Mason declarou o agente. — Creio que está tudo bem, mas, visto que fizeram a chamada, tenho de fazer um relatório e seria preferível fazer uma verificação e... Vamos dar uma vista de olhos no registro. Sally Madison tentou se aproximar da porta.
— Não, pequena, não faça isso, interveio o policial, — Ainda não. Não tenha tanta pressa. Espere cinco minutos, tudo se esclarecerá e poderá ir tomar qualquer coisa como café da manhã ou voltar para o quarto, ou fazer qualquer outra coisa que quiser. Deixe-me dar só uma vista de olhos pelo registro. O empregado indicou ao agente a assinatura de Della Street.
— Esta Sally Madison é sua secretária? Inquiriu o agente.
— Não. É Della Street. Ouviu-se o elevador.
— Ela está lá em cima no quarto? Perguntou o agente.
— Exatamente. O empregado do hotel se justificou, um tanto queixosamente:
— Faço simplesmente o que o chefe da delegacia disse que eu fizesse. Disseram que podíamos ou arranjar um polícia particular do agrado do chefe da delegacia ou que teríamos de participar toda a infração às leis por parte dos visitantes. Tive aqui dentro de mim uma coisa que me dizia que não devia ter deixado estas duas mulheres entrarem. Fico desgostoso se sigo as instruções e depois os senhores aparecem e lançam um balde de água por cima delas.
— A que horas entraram?
— Por volta das duas e meia desta madrugada.
— Duas e meia! Exclamou o agente e concedeu a Mason um profundo exame. Mason interveio suavemente:
— Foi por isso que quis que a minha secretária fizesse companhia a Miss Madison, esta noite. Quando acabamos de trabalhar no caso já era tarde e... O elevador parou. Della Street transportando a sua malinha de noite, saiu e estacou, em seguida, ao ver o trio parado junto ao balcão.
— Aquela é a outra, indicou o empregado.
— É a secretária de Mr. Mason? Perguntou o agente a Della Street.
— Exatamente.
— Julgo que terá na mala qualquer coisa... Cartão do seguro social ou outra coisa no gênero.
— E uma carteira de motorista, acrescentou Della Street, vivamente, — Uma chave do escritório de Mr. Mason e algumas outras coisas.
— É melhor eu ver, disse o agente, em tom de desculpa.
Della Street tirou para fora da mala uma pequena carteira, mostrou-lhe a carteira de motorista e o número do seguro social. O policial fez ao porteiro um aceno de cabeça.
— Ok, declarou. Procedeu como devia, nas circunstâncias presentes. Participarei o caso. Mas não precisa pôr estas moças na rua. Deixe-as voltar para o quarto.
— Eu vou embora, anunciou, categoricamente, Sally Madison. — Dormi o que precisava e agora estou com fome. Della Street olhou para Mason à espera de um sinal.
— Lamento que a tenham interrompido enquanto descansava, Sally. Apareça no meu escritório, antes do meio-dia.
— Obrigada, aparecerei lá. Prometeu ela.
O agente, profundamente impressionado pelo rosto e corpo de Sally Madison, disse:
— Lamento que se tenha visto metida nesta trapalhada toda, miss. Aqui perto, não há nenhum restaurante. Talvez lhe pudéssemos dar uma carona até a um lugar onde haja um restaurante aberto.
— Oh, não, obrigada, lhe respondeu Sally, voltando à sua sedução. — Gosto sempre de andar a pé de manhã. É assim que conservo a linha.
— Bem, observou o agente, aprovadoramente, — Não há dúvida nenhuma que dá resultado.
Mason e Della Street ficaram vendo Sally Madison atravessar rapidamente o átrio e transpor a porta. O agente, olhando para as linhas do corpo da “exploradora”, com manifesta aprovação, só se virou para Mason quando a porta se fechou, depois da saída de Sally Madison.
— Bem, Mr. Mason, eu lamento o ocorrido, mas são coisas que acontecem.
— Sim, concordou Mason, assim é. Não posso oferecer-lhe uma xícara de café, não é?
— Não, obrigado, estamos de ronda. Vou embora. O meu companheiro está lá fora no carro. Mason levou significativamente a mão ao bolso. O agente sorriu, abanou a cabeça e disse:
— Mesmo assim, obrigado, E saiu. O empregado do hotel disse a Mason:
— O quarto está pago. Se quiserem, voltem lá para cima. Mason arreganhou os dentes:
— Nós dois?
— Vocês dois, sim, respondeu o porteiro, tristemente. — A minha consciência está tranquila. Demorem-se o tempo que quiserem até... Às três da tarde. Se se demorarem mais tempo, pagarão... O dobro.
— Vamos embora Della, declarou. — Estou com o carro lá fora.
Mason e Della Street se sentaram num restaurante, aberto ao público durante toda a noite, onde o café era bom. O presunto era fino, mas tinha um sabor excelente e os ovos estavam deliciosamente cozidos.
— Acha que já estamos fora de perigo? Perguntou Della Street.
— Creio que sim.
— Julga que ela se desfará da arma? Mason fez um aceno de cabeça afirmativo.
— O que o faz pensar que ela fará isso?
— Estava muito ansiosa para ir embora. Tinha certamente alguma coisa em mente.
— Ela não teve oportunidade de se desfazer da arma, na noite passada?
— Talvez não, respondeu Mason. — Lembre-se que o sargento Dorset levou-a até a casa de James Staunton. Ela lhe contou alguma coisa acerca do resultado dessa entrevista?
— Sim. Staunton insistiu que Faulkner levara os peixes. Ainda mais, mostrou uma declaração escrita comprovando-o.
— Mostrou uma figa!
— Foi o que ela disse.
— Uma declaração assinada por Faulkner?
— Sim.
— O que fizeram com a declaração?
— O sargento Dorset levou-a. Passou um recibo dela a Staunton.
— Staunton não me falou em ter qualquer declaração escrita de Faulkner. Que dizia ela?
— Alguma coisa justificativa do fato de Faulkner ter entregado esses dois peixes particulares a Staunton. Que queria que Staunton cuidasse deles e lhes assegurasse tratamento; que absolvia Staunton de toda a responsabilidade, para o caso de acontecer qualquer coisa aos peixes, quer se tratasse de morte por causas naturais, ou roubo ou sabotagem.
— Era a assinatura de Faulkner?
— Staunton afirmou que era e aparentemente nada havia nela que levantasse suspeitas ao sargento Dorset. Evidentemente que estou lhe dizendo isto pelo que Sally me contou.
— Mas porque supõe que Staunton não me apresentou esse documento quando eu o interroguei? Perguntou Mason.
— Provavelmente, porque achou que o seu interrogatório não era oficial.
— Penso que sim. Mas julguei que o tinha assustado muito.
— Mas se o próprio Faulkner tirou esses peixes do tanque, qual foi a razão para essa concha de sopa com uma extensão de quatro pés no cabo? Inquiriu Della Street.
— Já fiz notar isso ao sargento Dorset. A concha não podia ter sido utilizada para tirar os peixes para fora do tanque.
— Porque não?
— Em primeiro lugar, respondeu Mason, — A superfície da água do tanque ficava a cerca de sete pés e meio do assoalho e não creio que o teto do quarto tivesse mais de nove pés e meio de altura. É um desses aposentos com os tetos rebaixados. Agora, acrescente uma extensão de quatro pés ao cabo de uma concha de sopa, tente tirá-la do tanque e ficará com dois pés de extensão que permanecerão no tanque depois de a extremidade do cabo bater contra o teto.
— Mas pode inclinar o cabo, não é verdade? Isto é, pode colocar-se sob um certo ângulo.
— Exatamente, concordou Mason, e ao fazê-lo fica sem os peixes.
Della Street meneou a cabeça afirmativamente e depois franziu o sobrolho. Concedeu ao problema uma consideração pensativa.
— E ainda mais, prosseguiu Mason. — Não creio que se possa tirar um peixe para fora de um tanque com uma concha. Não acredito que os peixes se mantivessem numa posição o tempo suficiente que permitisse tirá-los para fora do tanque. Acho que para isso seria necessário uma coisa maior do que uma concha. Evidentemente, parto do princípio de que esses peixes não seriam tão ativos como seria de esperar. Mas, mesmo assim, duvido que fosse possível.
— Então para que foi a concha? Seria apenas para despistar?
— Pode ser que sim e pode ser que tenha sido para qualquer outra coisa.
— Como quê? Perguntou Della.
— Poderia ter constituído uma engenhoca para tirar qualquer outra coisa e não os peixes para fora do tanque.
— Que quer dizer?
— Na semana passada, alguém disparou um tiro contra Faulkner. Pelo menos, ele assim o disse. A bala se alojou no estofo do carro. Evidentemente que essa bala representava uma prova valiosa. A Polícia é mestra agora na ciência de detecção balística e, por conseguinte, está habilitada a fornecer muitos pormenores acerca da arma que tenha disparado uma bala particular. E podem examinar a bala ao microscópio e dizer com a certeza absoluta se foi ou não disparada por qualquer arma dada.
— E que tem isso tudo a ver com o tanque dos peixes? Indagou Della. Mason sorriu.
— Relaciona-se com uma coisa que Elmer Carson me contou. Encontrava-se no escritório, quando Faulkner entrou com a bala.
— A que tinha desencravado do carro?
— Isso mesmo. Extraíra a bala do lugar do estofo em que se alojara e participara o caso à Polícia, embora não o tivesse feito a ninguém do escritório.
— E que aconteceu?
— A Polícia foi até lá e então Faulkner não conseguiu encontrar a bala.
— Ah, ah! Exclamou Della.
— Mas Carson afirma que nem por um instante saiu do seu lugar, à sua mesa do escritório, e a estenógrafa que trabalha lá, uma Miss Stanley, aparentemente corroborou a sua declaração. Todavia, a Polícia revistou-o, assim como à secretária.
— E então?
— E então, passado tempo, nessa mesma tarde, quando Miss Stanley estava arrumando a sua mesa, encontrou uma bala debaixo de um papel colocado em cima da mesa.
— Quer dizer que não era a mesma bala?
— Não sei, replicou Mason, E não creio que alguém o saiba. Era simplesmente uma bala. Toda a gente agiu, partindo do princípio de que era a mesma bala que Faulkner trouxera momentos antes, nesse mesmo dia, e que depois perdera. Mas pelo que posso dizer, não havia nessa bala quaisquer marcas identificativas, de modo que não se pudesse afirmar categoricamente que era a mesma.
— Não estou vendo bem aonde quer chegar, confessou Della.
— Faulkner pensava que, ao entrar, colocara a bala em cima da sua mesa, disse Mason. —Depois fora para o lado da secretária de Miss Stanley para ditar alguma correspondência.
— Devia ser uma pessoa bastante calma, observou Della Street. — Se alguém disparasse um tiro contra mim, não creio que fosse capaz de extrair a bala e depois ir ditar correspondência.
— Segundo ouvi, continuou Mason, — Miss Stanley reparou que a mão dele tremia um pouco, mas, à parte isso, não havia quaisquer outros indícios de emoção. Della Street olhou para o patrão como que tentando lhe perscrutar o olhar e lhe penetrar nos pensamentos.
— Pessoalmente, achava que Faulkner era excitável. Se alguém tivesse realmente disparado contra ele, creio que teria ficado muito nervoso.
— Era um carácter bastante complexo, declarou Mason. — Recorda-se daquela noite em que o oficial de diligências lhe apresentou os documentos da petição de Carson por difamação de carácter?
— Sim, recordo-me perfeitamente dessa ocasião.
— Recorda-se que não ficou nervoso. Nem sequer leu os documentos; se limitou a metê-los no bolso e manteve a atenção concentrada no assunto do momento que era me convencer a proteger os seus preciosos peixes, invalidando a temporária ordem restringente que o impedia de deslocar o tanque dos peixes. Della Street fez um aceno de cabeça afirmativo.
— É certo. Esses documentos pareciam constituir apenas uma irritação menor.
— Apesar do fato de a petição montar a cem mil dólares, notou Mason.
— Está pensando em alguma coisa, chefe. O que é?
— Estou simplesmente aqui sentado bebendo café e somando dois e dois, procurando descobrir se acaso alguém não disparou realmente nenhum tiro contra Faulkner, enquanto dirigia o seu automóvel. Della Street opôs:
— Mas Faulkner dificilmente me dava a ideia de ser um homem que tivesse se esquecido do lugar em que colocara essa bala, depois de tê-la desencravado. Isso não me parece se coadunar com o seu caráter.
— Não se coaduna, não, concedeu Mason, com bastante rapidez.
— Chefe, aonde quer chegar?
— Consideremos outra possibilidade, Della. Uma pessoa sentada a uma mesa contígua, como estava Carson, poderia ter alcançado a mesa de Faulkner, apanhado a bala que Faulkner deixara em cima da mesa e tê-la escondido onde nunca fosse descoberta.
— Quer dizer, sem ter saído da mesa?
— Sim.
— Mas julguei que tivesse dito que revistaram Carson e a mesa deste.
— Sim, fizeram-no.
— Não compreendo... Ah! Agora, sim! Quer dizer que podia tê-la atirado para dentro do tanque dos peixes?
— Exatamente, confirmou Mason. — O tanque dos peixes ficava precisamente atrás da mesa de Carson; era bastante largo em cima de modo que ele pôde atirar a bala para trás e ter quase a certeza de tê-la feito cair dentro do tanque em cujo fundo, entre os seixos e cascalho, seria um objeto relativamente imperceptível. Os olhos de Della Street brilhavam agora cheios de interesse.
— Então, quando Faulkner pensou que faziam tentativas para lhe roubar os peixes... Quer dizer que realmente alguém tentava retirar a bala para fora do tanque?
— Exatamente, respondeu Mason, e a concha teria sido um instrumento excelente para dragar o fundo do tanque, ter colhido a bala e tê-la posto para fora outra vez. Se alguém tivesse tentado pegar os peixes não teria sido necessária uma extensão de quatro pés ao cabo da concha. Os peixes dourados teriam nadado de um lado para o outro na água e, esperando uma oportunidade favorável, teria sido possível tirá-los para fora com um recipiente que tivesse um cabo de comprimento inferior a duas polegadas.
— Então Carson deve ter sido quem disparou contra ele, e...
— Não vá tão depressa, acalmou-a Mason. — Carson passara a manhã toda no escritório. Não se esqueça de que Miss Stanley lhe dará um álibi. Ora Carson assim deve saber que as circunstâncias do incidente desse primeiro tiro estão agora merecendo uma atenção muito especial por parte da Polícia.
— Então, por qualquer motivo, Carson tentava confundir as provas.
— Tentava proteger a pessoa que disparara o tiro ou a pessoa que ele julgava tê-lo disparado.
— Quer dizer que podem não ser a mesma?
— É uma hipótese.
— Será isso uma explicação para a súbita animosidade que se desenvolveu entre Carson e Faulkner?
— A animosidade existia desde algum tempo. A coisa que se projetou subitamente na sua existência foi a hostilidade aberta de Carson.
— E que teve isso a ver com a coisa? Mason sorriu e respondeu:
— Ponha-se no lugar de Carson. Tinha atirado uma bala para dentro de um tanque de peixes. Agira evidentemente às pressas, procurando o melhor esconderijo. Atirar a bala lá para dentro fora uma coisa simples, mas era difícil tirá-la. Especialmente se nos recordarmos de que Faulkner vivia no outro lado da casa dupla, que desconfiava de Carson e que teria se precipitado para ver o que este fazia, se aparecesse no escritório fora das horas de trabalho.
Della Street concordou com um aceno de cabeça.
— Não se pode chegar ao fundo de um aquário de quatro pés e tirar para fora uma bala de chumbo, continuou Mason, — Sem fazer uns preparativos bastante complicados. E foi nesta altura que Carson compreendeu subitamente que Faulkner estava preocupado com a saúde dos peixes e planejava deslocar todo o aquário para algum lugar onde os peixes pudessem receber tratamento.
— Mas Carson não teria ficado em posição vantajosa com isso? Não teria ficado com mais possibilidades de retirar a bala se o tanque fosse deslocado?
— Provavelmente, não. E deve também se lembrar de que corria o risco de que descobrissem a bala mal deslocassem o tanque. Evidentemente que uma vez descoberta a bala, não seria muito difícil a um detetive reconstituir o que acontecera e Carson ter-se-ia encontrado numa situação muito embaraçosa.
— Acho que, seja como for, já está, disse Della Street.
— Estava, emendou Mason. — E, por conseguinte, foi preciso dar os passos necessários para evitar que o tanque fosse retirado do escritório. Foi essa a razão para a sua súbita exteriorização de hostilidade e participação inicial contra Faulkner, ação essa que redundou numa ordem restringente temporária proibindo a Faulkner a remoção do tanque dos peixes. Certamente, Carson devia ter ficado sem uma perna em que se apoiar quando finalmente fosse ao tribunal mas isso não o incomodou. Sabia que, intentando essa ação contra Faulkner, podia,
pelo menos, adiar as coisas até ter oportunidade de retirar a bala do tanque para fora.
— Não há dúvida que isso parece lógico, admitiu Della Street. — E explica algumas das atitudes de Carson.
— E, prosseguiu Mason, — A fim de fazer parecer lógico intentar esse processo de injunção, Carson teve de representar o seu papel até ao fim. Por outro lado, a sua súbita preocupação com o tanque dos peixes, teria sido tão notória que poderia levantar suspeitas.
— Então isso explica a sua ação por difamação de carácter?
— Exatamente.
— Mas como explicar as anteriores tentativas para roubar os peixes?
— Não houve nenhumas. Provavelmente, Carson conseguira o acesso ao tanque dos peixes, durante algum período bastante limitado. Nessa altura, tentou provavelmente vários métodos de extração da bala e verificou que estava a braços com um problema mais árduo do que julgara. O tamanho do tanque, o seu peso e posição tornavam difícil a tarefa de tirar a bala para fora.
— E suponho que a bala de calibre 45 que subsequentemente foi encontrada na secretária de Miss Stanley era simplesmente outra bala que ali fora colocada de propósito.
— Assim parece, concordou Mason. — Há de notar que Miss Stanley testemunhou o fato de Carson não ter saído da mesa antes da Polícia chegar e que estivera sentado à mesa, durante todo o tempo decorrido entre a entrada de Faulkner e a chegada da Polícia, mas é lógico supor que entre a chegada desta e a descoberta da bala, Carson deva ter saído talvez por várias vezes.
Saiu certamente para almoçar. Podia então facilmente ter conseguido outra bala. Della Street expandiu a sua excitação:
— Chefe, descobriu tudo. Deve ter acontecido exatamente assim. E, se assim foi, Carson deve ter sido quem matou Faulkner e...
— Acalme-se, Della, recomendou Mason. — Lembre-se de que tudo quanto neste momento tenho, é uma bonita teoria, uma teoria lógica, mas, apesar disso, apenas uma teoria. E lembre-se que estamos metidos numa embrulhada.
— Como?
— Sally Madison tinha uma arma na malinha. Esperemos que seja suficientemente esperta para esconder essa arma onde não seja descoberta ou para limpá-la de todas as impressões digitais que nela haja ou para fazer ambas as coisas. No caso de assim não proceder e se se provar que se trata da arma de crime, a Polícia descobrirá nela impressões digitais e, mais cedo ou mais tarde, ficarão aptos a descobrir que são as suas impressões digitais. Então, seremos vítimas de uma séria acusação. Para a Polícia será uma tarefa simples provar que tirámos Sally Madison para fora da circulação, durante um período crucial de investigação. E, se tentarmos alegar inocência ou pretender que ignorávamos que ela tivesse a arma do crime na mala, seremos confrontados com as suas impressões digitais na arma. Por conseguinte, vistas as coisas por alto, se Sally Madison for apanhada antes de se desfazer dessa arma, seremos acusados.
— Chefe, não podia ter telefonado à Polícia, mal descobrimos que ela tinha uma arma na mala?
— Podíamos tê-lo feito, respondeu Mason, — E à luz dos acontecimentos subsequentes, é indubitável que o devíamos ter feito. Contudo, a Polícia ter-se-ia mostrada cética e, nessa altura, parecia melhor limpar as suas impressões digitais da arma, lavar as nossas mãos de Sally Madison, e sair para fora da caixa. A combinação peculiar de circunstâncias que levou esse empregado noturno do hotel a entrar no quarto e resolver ficar lá não podia ter sido prevista.
— Então que fazemos? Perguntou Della.
— Mantemo-nos de braços cruzados e... Subitamente, Mason pousou a xícara do café no
pires.
— Cos diabos! Exclamou.
— O que foi chefe?
— Não se mostre assustada nem proceda como culpada, aconselhou Mason. —Deixe o falatório comigo. O tenente Tragg acaba de entrar no restaurante e vem nesta direção e você pode acreditar que Tragg é a última pessoa do mundo com quem desejo conversar agora. O rosto de Della Street mudou de cor.
— Chefe, se mantenha fora disto. Deixe-me desenvencilhar sozinha. No fim de contas, sou eu quem tem as impressões digitais na arma. Não podem provar que o senhor sabia qualquer coisa...
Subitamente, Mason ergueu a cabeça para olhar por cima do ombro de Della Street e disse com todas as mostras de surpresa:
— Olha, olha, olha! O nosso velho amigo, o tenente Tragg! O que o traz aqui a uma hora tão matutina? Tragg pousou o chapéu numa cadeira vaga, puxou outra e se sentou tranquilamente:
— O que os traz aqui?
— Fome, respondeu Mason, sorrindo.
— O lugar onde habitualmente tomam o café da manhã é aqui? Inquiriu Tragg.
— Creio que o adotaremos, respondeu Mason. — A variedade não é grande, mas é tentadora. Achará o café excelente e os ovos estão bem cozidos. Quanto a si, não sei, tenente, mas pessoalmente detesto os ovos que se fritam numa frigideira tão quente que se forma crosta na base dos ovos. Mas comemos os ovos estrelados daqui e são absolutamente deliciosos.
— Exatamente, concordou Tragg e gritou ao empregado atrás do balcão. — Presunto e ovos, e uma grande xícara de café para agora e outra quando servir os ovos. Tragg mudou levemente de posição, sorriu para Mason e propôs:
— E agora, advogado, visto que esgotou o assunto de ovos estrelados, vamos conversar acerca de crimes.
-— Oh, mas não esgotei o assunto de ovos, protestou Mason. — Em grande parte, depende de os cozinharem à temperatura devida. Mas a gema do ovo estrelado devia ser inteiramente aquecida durante todo o tempo e não cozinhada até ficar sólida na base. Nem devia...
— Concordo inteiramente consigo, interrompeu-o Tragg. — Isso depende também da temperatura da frigideira. Mas o que pensa a respeito do assassínio de Faulkner?
— Nunca penso em assassínios, tenente, a menos que me paguem para fazê-lo. E no caso de me pagarem para que pense, procuro dar apenas ao meu cliente o benefício dos meus pensamentos. Mas você está numa posição diferente...
— Muito bem, interpôs Tragg, calmamente, servindo-se de açúcar, quando o criado lhe serviu a primeira xícara de café. — Os contribuintes me pagam para pensar durante todo o tempo em crimes e, por falarmos num, verifico que, seja como for, os meus pensamentos vão para uma certa Miss Sally Madison. Que me sabe dizer a seu respeito?
— Uma mulher jovem e bastante atraente, respondeu Mason. — Parece ser dedicada ao seu atual namorado que trabalha numa loja de animais. Sem dúvida já teve outros namorados a quem se dedicou, mas julgo que o seu caso presente com Tom Gridley é, talvez, mais apto a resultar em matrimónio.
— Qualquer coisa como uma “exploradora”, observou Tragg. O rosto de Mason denotou surpresa.
— Quem lhe disse isso?
— Oh, é uma suposição minha. É sua cliente?
— Agora, disse Mason, sorrindo, — É uma pergunta difícil. Isto é, a pergunta em si é fácil; a resposta é que é difícil.
— Pode responder-lhe sim ou não, propôs Tragg.
— Não é tão fácil como isso. Até agora ainda não me contratou para representante dos seus interesses. Mas, por outro lado, creio que deseja contratar e eu ando investigando os fatos.
— Tenciona representá-la?
— Estou certo de que não posso dizê-lo. O caso que ela apresenta está longe de ser fácil.
— Assim o depreendo.
— Compreenda, prosseguiu Mason, — Como agente do namorado, Tom Gridley, pode ou não ter feito um contrato com Harrington Faulkner. Um contrato envolve um acordo de espíritos e, por sua vez, um acordo de espíritos depende de... Tragg ergueu a mão:
— Por favor, pediu. Mason ergueu o sobrolho numa surpresa aparente. — Está extraordinariamente loquaz, esta manhã, advogado. E um homem que pode proferir uma dissertação tão extemporânea acerca da arte de estrelar ovos pode, sem dúvida, conversar quase indefinidamente sobre a lei que rege os contratos. E, por conseguinte, se me perdoar, creio que vou conversar com a sua encantadora secretária. Tragg se virou para Della Street e perguntou:
— Onde passou a última noite, Miss Street? Della sorriu docemente:
— Essa pergunta, evidentemente, tenente, envolve uma suposição de que a noite é ou foi uma unidade indivisível. Mas, na realidade, uma noite se divide em dois períodos. Primeiramente, o período que precede a meia-noite e que julgo ter sido ontem legalmente e o período depois da meia-noite, que é hoje. Tragg sorriu e observou a Perry Mason:
— É uma discípula idônea, advogado. Pergunto se não seria melhor responder você à pergunta.
— Duvido que eu possa fazer tão bem, admitiu Mason, jovialmente.
— Agora, disse Tragg, perdendo subitamente o sorriso e tornando-se terrivelmente oficial na sua atitude. — Suponhamos que vamos deixar de falar de ovos estrelados, de contratos e de subdivisões legais do período das trevas, e suponhamos, Miss Street, que me vai contar exatamente onde esteve desde as dez horas da noite passada até agora, sem omitir nada... E isto é uma pergunta oficial.
— Há alguma razão que a obrigue a responder a essa pergunta? Inquiriu Mason. — Ainda que admitamos que seja uma pergunta legal. O semblante de Tragg estava tão rígido como granito:
— Sim. Será um fator importante determinar se qualquer relação que Miss Street possa ter tido com o que aconteceu foi acidental ou deliberada. Della Street disse, vivamente:
— Bem, certamente...
— Calma, Della, aconselhou Mason. Ela olhou-o de relance e pelo que viu nos olhos a expressão de animação desvaneceu-se do rosto.
— Continuo à espera de uma resposta à minha pergunta, insistiu o tenente Tragg, duramente.
— Não acha que devia ser leal para com Miss Street? Perguntou Mason. Tragg não desviou o olhar do rosto de Della e declarou:
— Todas as suas interrupções vão para a coluna de débito do livro-mestre, pelo que me diz respeito, Mason. Miss Street, onde passou a noite? Mason interveio suavemente:
— Certamente, tenente, que não é um psicólogo. O fato de ter vindo a este restaurante significa que sabia que nós nos encontrávamos na vizinhança. Logicamente, há apenas duas fontes a partir das quais pôde adquirir essa informação. Uma delas é ter recebido pela rádio um
relatório emanado por um carro-patrulha declarando ter sido chamado ao Kellinger Hotel, onde fora efetuada uma queixa contra duas mulheres que tinham recebido um visitante, infringindo assim as leis do hotel e a Polícia fora chamada para expulsar os ocupantes. Em consequência disso, você agiu na suposição de que talvez encontrasse as pessoas que tinham entrado num restaurante, aberto durante toda a noite, e pelo simples processo de rondar de um lado para o outro, nos descobriu-aqui.
Tragg começou a dizer alguma coisa, mas Mason, elevando ligeiramente a voz, manteve a palavra.
— A outra suposição é ter deitado a mão em Sally Madison, na rua, há alguns momentos, e tê-la interrogado, sabendo assim através dela que nos encontrávamos na vizinhança. E, se a interrogou, sem dúvida realizou um trabalho completo. O olhar preventivo de Mason a Della Street deu-lhe a entender que, nesse caso, o tenente Tragg examinara sem dúvida a malinha e, portanto, nessa altura, estava absolutamente inteirado do seu conteúdo. Tragg continuou a olhar para Della Street.
— Agora que já foi devidamente instruída, Miss Street, onde passou a noite?
— Em parte, no meu apartamento. A restante no Kellinger Hotel.
— Por que foi para o Kellinger Hotel?
— Sally Madison me telefonou e disse-me que Mr. Mason desejava que eu a levasse para um hotel.
— Disse-lhe o por quê? Della Street respondeu muito inocentemente:
— Não consigo exatamente me lembrar se ela me disse o porquê ou se eu o soube depois através de Mr. Mason. Este queria que eu a pusesse fora...
— Fora da circulação, precisou prontamente Tragg, quando a voz de Della Street emudeceu subitamente.
— Fora do alcance dos repórteres, terminou Della Street, sorrindo suavemente para o tenente Tragg.
— A que horas foi isso? Inquiriu este.
— Que Sally Madison me telefonou?
— Sim.
— Na realidade, não sei. Não creio ter olhado para o relógio, mas, sem dúvida, o Kellinger Hotel poderá lhe dizer aproximadamente a que horas chegamos.
— O que lhe estou perguntando agora, acentuou Tragg, são as horas a que recebeu a chamada telefônica de Sally Madison.
— Não sei.
— Então, continuou Tragg, — Chegamos à parte importante. Pense cuidadosamente nas suas respostas, porque muita coisa dependerá do que disser. Reparou nalguma coisa de estranho em Sally Madison?
— Ah, sim, lhe respondeu- imediatamente Della Street. A voz de Tragg soou terrível e áspera:
— O quê? Os olhos de Mason avisaram Della Street.
— Ora, respondeu esta, — A mulher dormiu nua! Sorriu para o tenente Tragg e depois prosseguiu rapidamente. — É bastante estranho, tenente... Quero dizer, se limitou a se despir e pular para dentro da cama. Ordinariamente, uma mulher nova e tão bonita como Sally Madison dedica muito mais cuidado à sua aparência pessoal antes de se retirar. Põe cremes e loções no rosto e geralmente...
— Não é a isso que me refiro, atalhou-a Tragg.
— Evidentemente, intrometeu-se Mason, que interrompeu Della, — Tenente. Se a tivesse deixado a continuar falando, é natural que lhe tivesse contado exatamente o que pretende.
— Se eu a tivesse deixado a continuar falando, declarou Tragg, — Ficaria aqui até ao meio-dia descrevendo os hábitos da hora de deitar de Sally Madison. A pergunta é esta, Miss Street, reparou ou não em alguma coisa de estranho em Sally Madison ou fez-lhe ela qualquer confissão ou admissão?
— Lembre-se, tenente, interveio Mason, — Que, na qualidade de cliente potencial, qualquer coisa que Sally Madison possa ter dito, constitui comunicação privilegiada e como Della Street é minha secretária, não pode ser interrogada a esse respeito.
— Creio compreender essa regra, concedeu Tragg. —E se aplica a qualquer coisa que foi necessariamente dita em relação com o assunto sobre o qual Sally Madison o consultou. Mas entendo que esse assunto se relacionava exclusivamente com uma petição que ela tinha contra a fortuna de Harrington Faulkner. Mas quero saber exatamente, de uma vez por todas, se Della
Street reparou em algo de estranho ou significativo em Sally Madison. Reparou ou não, Miss Street?
— Evidentemente, tenente, que tendo conhecido a mulher apenas um ou dois dias antes, ignoro o que é habitual nela. Portanto, quando me pergunta se reparei em qualquer coisa de estranho, é difícil responder...
— Todos estes rodeios, disse Tragg, — Levam-me a uma conclusão definitiva. Miss Street, como se explica o fato de Perry Mason ter ido visitá-la às cinco horas da manhã?
— Eram cinco horas? Inquiriu Della Street com algumas mostras de surpresa. — Estou certa de não ter olhado para o relógio, tenente. Limitei-me a...
— Também nisto, interveio Mason, — Os registros do Kellinger Hotel ser-lhe-ão de alguma utilidade, tenente...
— Apesar dos seus repetidos avisos a Della Street de que não esconda qualquer informação que eu posteriormente possa descobrir, ao entrevistar o empregado do Kellinger Hotel, quero saber se reparou em qualquer coisa de extraordinário no comportamento de Sally Madison. qualquer coisa no seu vestuário, o que trazia vestido, o que levava com ela, o que fez ou o que disse.
— Tenho a absoluta certeza, tenente, interveio Mason, — De que, se Miss Street tivesse reparado em qualquer coisa que mencionou e que fosse suficientemente estranha para ter qualquer importância, teria dito para mim e, por conseguinte, pode fazer as perguntas para mim.
— Não sou obrigado a fazê-lo. Estou interrogando Miss Street. Miss Street, porque telefonou para Perry Mason e lhe pediu que fosse ao hotel? Os olhos de Della Street se mostraram subitamente duros e desconfiados.
— Isso não lhe diz respeito.
— Está falando a sério?
— Sim.
— Sabe que há muita coisa que me diz respeito, observou Tragg, — Especialmente as que se relacionam com crimes. Della Street comprimiu os lábios numa linha cerrada. Subitamente, Tragg declarou: — Muito bem, ambos têm andado aqui apalpando o terreno, procurando descobrir o quanto sei. O próprio fato de terem-no feito, durante algum tempo, me convenceu de que sabem realmente o que pretendo descobrir. Como Perry Mason tão habilmente apontou, podem jogar com uma de duas alternativas. Uma delas era eu ter recebido um relatório dos agentes que atenderam a chamada do Kellinger Hotel e cruzara as vizinhanças, simplesmente na esperança de caçá-los. A outra era eu ter caçado Sally Madison e tê-la interrogado. Andaram com rodeios, na esperança de que a primeira alternativa fosse correta. Enganaram-se. Recebi o relatório dos agentes quando o transmitiram como relatório rotineiro pelo rádio. Estivera alerta toda a noite, esperando uma abertura no caso. Esse relatório do rádio me pareceu a abertura que eu esperara. Fui para a rua e cacei Sally Madison. Na mala, tinha dois mil dólares em dinheiro corrente, cuja posse não foi capaz de explicar. Tinha também um revólver calibre 38, de efeito duplo que recentemente fora disparado e que aparenta ter sido a arma com que Harrington Faulkner foi assassinado. Portanto, Perry Mason e Della Street, se eu conseguir provar que algum de vocês conhecia o conteúdo dessa mala, apontá-los-ei como cúmplices. Dei-lhes todas as oportunidades de me informarem de qualquer detalhe significativo relacionado com o assassínio de Harrington Faulkner. Preferiram não o fazer. E, Deus me ajude Mason, se eu conseguir provar que vocês sabiam que a arma estava na mala de Sally Madison irei prendê-los.
Subitamente, o tenente Tragg afastou a cadeira e disse ao embaraçado garçom:
— Não se preocupe com o presunto e com os ovos. Pagarei agora a conta. E Tragg atirou o dinheiro para o balcão e saiu. Os olhos de Della Street, cheios de desânimo, encontraram os de Perry Mason.
— Oh, chefe, eu devia ter-lhe dito! Sinto-me aflitíssima. As linhas do rosto de Mason dir-se-iam esculpidas em pedra.
— Não há perigo, pequena, tranquilizou-a. — Havia duas alternativas possíveis. Arriscámo-nos e perdemos. Mas continuaremos para diante. Parece que é o nosso dia de azar, mas estamos nele juntos.
Perry Mason, Della Street e Paul Drake estavam sentados no escritório de Mason, em volta da enorme mesa deste. Mason terminou o seu relatório dos acontecimentos das últimas poucas horas, com as seguintes palavras:
— Como vê Paul, estamos numa trapalhada. Drake assobiou baixinho.
— Também acho. Porque não atirou a carga ao mar quando viu o perigo e não chamou a Polícia?
— Porque, em primeiro lugar, receava que não acreditassem em nós e, em segundo, me custaria atirá-la aos lobos sem saber do que se tratava. Primeiro, quis ouvir a sua versão da história. E, se quer saber, julguei que poderíamos nos retirar com ela. Drake concordou com um aceno de cabeça e comentou:
— Sim, não há dúvida que era um bom jogo, mas simplesmente parece que perdeu em todos os lançamentos dos dados.
— Realmente, perdemos, concordou Mason.
— Exatamente, em que situação isso os deixa agora?
— Se puderem atribuir a Sally Madison alguma participação no crime, nos deixa exatamente à beira do abismo. Se não conseguirem, é provável que escapemos. O que descobriu acerca dos fatos do crime, Paul?
— Andaram fazendo silêncio sobre o assunto, Drake elucidou, — Mas descobri o seguinte: o médico legista cometeu um lapso grave. O jovem que apareceu por lá ficou verde e o sargento Dorset ajudou a embaralhar as coisas. A Polícia já fixou o tempo da morte num curto espaço de tempo, mas, segundo entendi, o legista da autópsia negligenciou uma coisa que teria dado a Polícia um caso perfeito.
— Bem, comentou Mason.
— Posso dizer mais uma coisa, Perry, que não será tão boa.
— O que é?
— Esse tipo que trabalha na loja de animais, Tom Gridley, parece ter saído dali e obtido um cheque de mil dólares e esse cheque deve ter sido a última coisa que Faulkner escreveu.
— Porque calculam isso, Paul?
— Encontraram um talão de cheques no chão. O último cheque fora parcialmente preenchido. Era um cheque de mil dólares e Faulkner estivera escrevendo nesse cheque quando de repente a sua caneta deixou simplesmente de escrever, mas escrevera “Tom” e depois as letras “G-r-i”. É perfeitamente evidente que tencionara escrever “Tom Gridley”. Encontraram uma caneta de tinta no chão. Mason ponderou naquilo, durante um momento, e depois perguntou:
— Oque falou Tom Gridley sobre isso?
— Ninguém sabe. A Polícia lhe caiu em cima, mal encontrou esse talão e desde então Tom Gridley desapareceu da circulação.
— Quando a Polícia julga que o crime foi cometido?
— Por volta das oito e meia. Digamos entre oito e quinze e oito e meia. Faulkner deveria ter ido a uma reunião de peritos de peixes dourados. Devia estar lá às oito e trinta. Uns dez minutos depois das oito, telefonou para dizer que um assunto de negócios o retivera e o demorara mais tempo do que esperara; que estava nesse mesmo instante se barbeando, que ia tomar um banho quente, que chegaria atrasado, mas apenas alguns minutos. Disse também que provavelmente teria de se retirar às nove e meia, em virtude de ter um encontro sobre negócios marcado para essa hora. E, depois, no meio da conversa, perguntou a alguém que evidentemente entrara no quarto enquanto estava telefonando: “Como é que você entrou aqui? Não quero lhe pôr os olhos em cima e se quiser mandarei dizer que venha aqui, mas somente quando eu quiser”. A pessoa que estava no outro lado do fio ouviu um murmúrio de vozes e depois Faulkner disse, com mostras de grande irritação: “Bem, esta noite, não discutirei isso. Cos diabos, ou sai imediatamente ou farei com que o faça. Pois bem, se quer assim, assim será”. E depois colocou abruptamente o auscultador no descanso, no meio da conversa. Essas pessoas com quem iria ter a reunião queriam ter a certeza de que Faulkner não faltaria. Queriam que ele lhes desse dinheiro. Tornaram a lhe telefonar as oito e vinte e cinco e ninguém atendeu. Concluíram, por conseguinte, que Faulkner estava a caminho. Esperaram mais uns cinco ou dez minutos e depois, como ele não aparecia, tentaram lhe falar novamente pelo telefone. Depois, prosseguiram com a reunião. Obviamente, Faulkner se preparara para ir a essa reunião. Havia uma navalha na prateleira de vidro do banheiro com espuma de sabão e pelos da barba ainda grudados na lâmina e Faulkner estava barbeado quando descobriram o corpo. Considerando todos estes fatos, a Polícia é absolutamente positiva que, enquanto Faulkner estava telefonando, algum visitante entrou inesperadamente, algum visitante que não tocou a campainha da porta, mas que simplesmente entrou. Faulkner ficou aborrecido com a sua chegada e resolveu pô-lo dali para fora à força. Isso foi quando desligou o telefone e se encaminhou para o intruso. A Polícia julga que foi nessa altura que o tiro foi disparado.
— E o legista da autópsia? Perguntou Mason.
— Aparentemente, o legista da autópsia estava embotado. Quando os polícias chegaram lá, não parecia ser especialmente importante determinar a hora da morte com o rigor de um minuto, e havia mais trabalho para realizar no que respeita a fotografar a posição do corpo, obter impressões digitais e tentar reconstruir a prova física do que entrar em linha de conta com a temperatura do corpo e todo esse gênero de coisas. Os detetives acham que foi um erro crasso por parte do legista e há certa razão nisso. Se tivessem tomado a temperatura do corpo logo que a Polícia chegou, isso ter-lhes-ia dado algumas boas corroborações. Desta forma, têm de se basear em deduções.
— Sim, concordou Mason, vejo bem como isso poderia trazer consideráveis complicações. Dá a impressão que a Polícia deve ter razão. Qual é a teoria deles acerca do aquário de peixes, virado de pernas para o ar?
— Bem, respondeu Drake, os peixes podiam ter estado num aquário em cima dessa mesa virada e Faulkner podia ter virado tudo quando o tiro foi disparado e ele caiu morto. Mason concordou com um aceno de cabeça. — Ou, prosseguiu Drake, — Alguém podia ter entrado no quarto algum tempo depois do crime ter sido cometido e ter virado o aquário por acaso ou propositadamente.
— Há algumas teorias sobre essa pessoa?
— Podia ter sido Mrs. Faulkner, que não gostou dos aspectos das coisas, virou o aquário, quer acidentalmente quer de propósito, depois entrou no seu carro e contornou a esquina à espera que você aparecesse.
— Mas como poderia saber que eu ia aparecer?
— O que posso imaginar, respondeu Drake, — Pela forma como me contou a história, na noite passada, Perry, é que Staunton deve ter lhe telefonado.
— Por outras palavras, ela estava dentro de casa. Já descobrira o corpo. Virara o aquário dos peixes quando Staunton telefonou. Queria falar com Faulkner. Ela respondeu que Faulkner, nesse momento, não podia atender; perguntou se havia algum recado que ela lhe pudesse transmitir e Staunton contou que Sally Madison e eu nos dirigíamos para lá.
Mason se levantou de sua cadeira, atrás da mesa, e começou a andar de um lado para o outro.
— Isso, evidentemente, prosseguiu, — Admite o fato, Paul, de que havia algum motivo para obrigar Staunton a ficar calado. Refiro-me à conversa telefônica. Se Faulkner morreu por volta das oito e quinze ou das oito e meia, Staunton, nesta altura, já deve ter sabido, quer pela Polícia quer pelos jornais, que Mrs. Faulkner se encontrava em casa com o falecido marido... Olha lá, Paul, para que estamos aqui com falatório? Porque não nos pomos em contato com Staunton e não vemos o que ele tem para nos dizer quando começarmos realmente a apertá-lo? Drake não se moveu da cadeira.
— Não seja tolo, Perry.
— Quer dizer que a Polícia já o engaiolou?
— Não voltará a aparecer em circulação antes de ter feito um depoimento completo por escrito, sob juramento. Nessa altura, ele próprio se enfiou no saco. Não se arriscará fazendo qualquer declaração em quaisquer circunstâncias que altere o depoimento anteriormente feito à Polícia. Uma vez mais, Mason continuou o seu passeio pelo aposento, e depois:
— Põe homens de vigia à casa de Staunton. Logo que a Polícia o deixe voltar à circulação, faz-lhe uma pergunta.
— Que pergunta? Drake quis saber.
— Na quarta-feira passada, Faulkner lhe levou esses peixes e recomendou que telefonasse à loja dos animais para pedir o tratamento. Descubra a que horas é que a loja mandou o tanque de tratamento. Drake mostrou-se surpreendido.
— É tudo?
— É tudo. Há outras perguntas que eu gostaria de fazer, mas quando a Polícia o libertar, já não responderá. Por conseguinte, faça essa pergunta a ele. Hoje é sábado e tudo fecha ao meio-dia. Provavelmente manterão Gridley e Staunton fora de circulação até que seja tarde de mais para obter quaisquer ordens de tribunal. E, no pé em que as coisas estão agora, não me atrevo a pedir um habeas corpus para Tom Gridley. O telefone tocou. Della Street atendeu e anunciou:
— É para si, Paul, E estendeu o aparelho a Drake. Este disse:
— Alô... Bem... Está certo disso?... Está bem, me conta tudo o que descobriu.
Drake escutou durante cerca de dois minutos enquanto o auscultador continuava a transmitir um contínuo ruído de sons metálicos. No extremo do fio, Drake respondeu:
— Ok. Então acho que não há muita coisa fazendo a não ser prestar atenção no que está acontecendo e me pôr ao corrente. Desligou e se virou para Perry Mason.
Mason deitou uma olhadela ao rosto do detetive e perguntou:
— É assim tão ruim Paul? Drake fez um gesto de cabeça afirmativo.
— O que é? Interessou-se Della.
— Estão perdidos, disse Drake.
— O quê?
— Isto é confidencial, Perry. A Polícia não quer que transpire, mas soube por uma pessoa que está ao corrente. Levaram Sally Madison para a prisão. Encontraram na mala a arma e o maço de notas. Tiraram as impressões digitais da arma e estão excelentes. Havia duas no extremo do cano, não completas, mas apesar disso suficientes para habilitar a Polícia fazendo uma identificação. Tragg cercou o quarto do Kellinger Hotel, se ocupou dos espelhos do banheiro e das maçanetas e encontrou impressões digitais de Della Street e de Sally Madison. Depois foi confrontar com as da arma. Verificou que tinha meia dúzia de impressões digitais de Sally Madison e duas de Della Street. Em seguida de terem fotografado a arma, entregaram-na ao departamento de balística, dispararam uma bala-teste e compararam-na com a que encontraram no corpo de Faulkner. Não há dúvida que a arma que tiraram da mala de Sally Madison foi a arma com que o crime foi cometido. E também não há dúvida de que a arma pertencia a Tom Gridley. Era um revólver de calibre 38 que ele comprara seis anos antes quando
agia como mensageiro de um banco. A arma está registrada na Polícia. Della Street olhou, desanimada, para Perry Mason. Este recomendou, de um modo horrível:
— Pois bem, Paul, empregue no caso tantos homens quantos sejam necessários. Se for possível, descobre onde Sally Madison está presa para inquérito. Della, pegue nalgumas folhas em branco e preencha um habeas corpus em nome de Sally Madison.
— Isso não servirá de nada, Perry, disse Drake. — Enquanto isso, eles já a terão apertado. Não vale de nada trancar a casa, depois desta arrombada.
— Ao diabo, com a casa, eu vou atrás dos ladrões! Declarou Mason.
Paul Drake estava de volta ao escritório de Perry Mason, cinco minutos depois de ter saído de lá. Encontrou o advogado saindo do gabinete particular.
— Para onde está indo? Perguntou Drake.
— Wilfred Dixon, respondeu Mason. — Vou interrogar Dixon e me informar dos assuntos da primeira Mrs. Faulkner. É o advogado dela. Que novidades há? Alguma coisa importante? Drake pousou uma mão num braço de Mason, empurrou este para dentro do gabinete e fechou a porta.
— Durante a noite fizeram uma tentativa para tirar do escritório o tanque dos peixes dourados.
— Quando fizeram a tentativa?
— A Polícia ignora. Por qualquer razão, nunca examinaram o outro lado da casa dupla; confinaram as suas investigações à residência de Faulkner. Depois, esta manhã, quando Alberta Stanley, a secretária, abriu a porta do escritório, encontrou este bastante desarrumado. Havia uma comprida mangueira de borracha que, evidentemente, fora utilizada como sifão para tirar a água do tanque dos peixes dourados, que estava vazio. Isto é, estava vazio de peixes. Mason fez um aceno de cabeça afirmativo. — Depois de extraída a água, o tanque dos peixes fora virado sobre um dos lados e toda a lama e cascalho que havia no fundo tinham sido vazados para fora, constituindo então um monte abandonado no chão. Os olhos de Mason semicerraram-se.
— Já ocorreu à Polícia que alguém andasse à procura dessa bala que Faulkner levara para o escritório?
— Não se sabe Perry. Ao sargento Dorset não ocorreu, mas não se sabe o que pensa o tenente Tragg. Dorset abre a boca para os rapazes dos jornais e procura ganhar publicidade. Tragg está macio como veludo. Engana os rapazes e prefere resultados à publicidade.
— Mais alguma coisa? Perguntou Mason.
— Detesto fazer isto, Perry, se desculpou Drake.
— Fazer o quê?
— Estar dizendo todas estas coisas, mas é um destes casos em que a menor informação que obtemos é desagradável.
— Dispara lá, animou-o Mason.
— Lembra que Faulkner tinha a reputação de ser um homem capaz de esfolar o parceiro num assunto de negócios. Mantinha-se dentro dos seus próprios princípios de honestidade, mas era verdadeiramente cruel. Mason acenou afirmativamente. — Ora, parece que Faulkner estava realmente ansioso por se apoderar dessa fórmula que Tom Gridley desenvolvera para o tratamento dessa doença especial dos peixes. Lembra que comprou a loja de animais de Rawlins? Esse foi o primeiro passo do seu plano de campanha. Depois, descobriu que Tom Gridley preparara uma porção da sua pasta com que devia pintar os painéis plásticos a introduzir nos tanques dos peixes. O mal de Gridley é que fica tão interessado com o que está fazendo e... Bem, é tal como um médico. Quer realizar curas e pouco se importa com o resultado final das coisas.
— Continua, incitou Mason.
— Bem, parece que ontem, à noitinha, Faulkner, que, naturalmente, soubera por Rawlins o segredo do cofre, se dirigiu à loja de animais, abriu o cofre, tirou para fora a vasilha com a pasta que Gridley preparara e enviou-a a um químico para que a analisasse. Rawlins se encontrava lá e procurou impedi-lo de fazer aquilo, mas não conseguiu.
— Faulkner se portou como um canalha.
— Segundo a Polícia, esse seu procedimento constitui motivo plausível para um crime.
Mason considerou o assunto e acenou afirmativamente com a cabeça.
— Teoricamente, sim. Praticamente, não é tanto.
— Se refere ao modo como um júri o considerará?
— Sim. Enquanto que, tecnicamente, constitui motivo para homicídio, é um flagrante exemplo de opressão por parte de um homem possuidor de dinheiro e poder, que explora um tipo que é seu empregado... Não, Paul, não é tão mau como isso. Presumo que a teoria da Polícia seja que Gridley ao descobrir o que se passava ficou terrivelmente encolerizado, pegou no revólver e foi matar Faulkner.
— Isso pode se ajustar aos fatos. Mason sorriu e continuou:
— Não creio que Tragg mantenha essa teoria, durante muito tempo.
— Porque não?
— Porque a evidência se lhe opõe.
— Que quer dizer? Trata-se da arma de Gridley, não há qualquer dúvida a esse respeito.
— Certamente que é a arma de Gridley, confirmou Mason. — Mas repare nisto: se a evidência circunstancial tem o significado que a Polícia lhe atribui, Tom Gridley efetuou um contrato com Faulkner. Deve ter ido lá com intenção de matá-lo, mas Faulkner lhe passou um cheque de mil dólares. Faulkner não o teria feito sem ter chegado a qualquer espécie de acordo com Gridley. Este certamente não o podia ter morto antes de o cheque estar passado e não teria tido qualquer razão para fazê-lo, em seguida.
— Isso é certo, concordou Drake.
— No mesmo instante em que Faulkner morreu, esse cheque e também o cheque de cinco mil dólares que Sally Madison possui, não valiam o papel em que estavam escritos. Não se pode descontar um cheque depois de um homem morrer. Tenho a ideia, Paul, de que verificará que o tenente Tragg começa a pensar que este motivo não é tão simples como parece à primeira vista. Pense bem, se não fosse a evidência ser contra Sally Madison e o fato das impressões digitais de Della Street se encontrarem nessa arma, poderíamos dormir descansados e mandar a Polícia às favas. Mas no pé em que as coisas estão, preciso descobrir todos os fatos e ser o primeiro a interpretá-los corretamente.
— Supõe que Sally Madison o mandou para o outro mundo.
— Então, disse Mason, — A Polícia tem um caso perfeito contra Della Street e contra mim como cúmplices do caso.
— Acha que divulgarão o fato à Imprensa?
— Sabe perfeitamente que sim. Nada lhes daria maior prazer, respondeu Mason.
— E já se sabe, observou Drake, Que não se podem censurar por causa disso. Está certamente patinando sobre gelo escorregadio, Perry. Tens sido, durante muito tempo, um espinho na carne da Polícia. Mason concordou com um aceno de cabeça.
— Isto já me aconteceu uma ou duas vezes, admitiu, — Mas o que me aborrece é que me joguem as culpas num caso em que estamos absolutamente inocentes e tentando simplesmente ajudar um rapaz tuberculoso a arranjar dinheiro suficiente para se tratar. Acredite Paul, desta vez eu estou realmente numa embrulhada e arrastei Della para dentro dela. É o que se ganha em acreditar numa “exploradora”. Ora, não se ganha nada em atuar post mortens. Quando a Polícia me deixar entrar em contato com Sally Madison ela já estará morta. Vou escrever um mandado de habeas corpus, o que evidentemente lhes forçará a mão. Terão de lhe fazer qualquer acusação. Mas quando o fizerem tê-la-ão posto realmente num espremedor de roupa. Continue a trabalhar, Paul, e se souber de alguma novidade, transmite-a a Della Street. Trabalhe neste caso como nunca trabalhou na sua vida. Estamos contra o tempo e temos, não só de descobrir a evidência como também interpretá-la.
— O tanque partido dos peixes tem algum significado para você?
— Enorme, respondeu Mason.
— Como?
— Suponha que Sally Madison não é tão estúpida como parece. Supõe que atrás do seu rosto inocente se esconde um espírito sutil e calculista que não perde uma aposta.
— Aceito a ideia, admitiu Drake.
— E supõe, prosseguiu Mason, — Que ela calculou o que acontecera a bala que Faulkner levara para o escritório. Supõe que, quando Faulkner lhe deu a chave, lá, no café, na altura em que chegou a um acordo com ela e lhe disse para ir buscar Tom Gridley para que fosse tratar dos peixes, Sally Madison, em vez disso, foi utilizar a concha para retirar a bala de dentro do tanque.
Em seguida, supõe que, muito astutamente, vendeu essa bala ao mais alto licitador.
— Um momento, pediu Drake. — Há aí uma coisa que não cai bem, Perry. De acordo com toda a evidência, esses peixes dourados já não deviam estar no escritório quando Sally foi lá. Faulkner deve tê-la enganado a esse respeito.
— Muito bem, e então?
— Então, quando ela foi apanhar a bala deve ter visto que os peixes dourados já não estavam mais lá.
— Não peixes dourados, Emendou Mason, um par de Veiltail Moor Telescopes.
— Ok. Para mim são peixes dourados.
— Não pensará isso depois de vê-los, afirmou Mason. — Se Sally Madison foi lá para apanhar a bala, o fato de os peixes não se encontrarem lá não a teria impedido de se apoderar do que procurava.
— E depois foi ter com Tom Gridley e voltou lá outra vez?
— Isso mesmo.
— Ora, disse Drake, isso é uma teoria, Perry. Está atribuindo a essa mulher capacidade para uma terrível quantidade de inteligência. Mason fez que sim com um gesto de cabeça.
— Durante um tempo, não atribuí, retorquiu Mason. — Agora vou cometer os meus erros pelo outro lado. Essa garota, Paul, conhece algumas das respostas. Está apaixonada por Tom Gridley. Compreende, uma mulher desse gênero, quando se apaixona por um homem, é geralmente uma combinação de instinto maternal e aspecto sexual. A minha opinião é que nada conseguiria deter essa mulher. Seja como for não tenho tempo para estar agora aqui divagando sobre o assunto. Vou procurar Dixon.
— Seja prudente, recomendou Drake.
— Daqui por diante, serei prudente com toda a gente, Paul, mas isso não quer dizer que me encolha. Continuarei a me mover à minha maneira.
Mason conduziu o carro em direção ao endereço de Wilfred Dixon, verificou que a moradia era um edifício de aspecto bastante imponente, de paredes caiadas, de telhas vermelhas, circundada por terrenos paisagísticos, com uma garagem capaz de abrigar três carros e envolto numa atmosfera de calma opulência. Mason não teve a mínima dificuldade em obter uma audiência com Wilfred Dixon, que o recebeu num aposento da ala sudoeste da casa, um aposento que era um misto de gruta e de escritório, com fundas poltronas de couro, originais pinturas a óleo, uma enorme mesa de tampo plano, um bar portátil e um sofá de couro que parecia convidar a uma sesta depois do almoço. Sobre a mesa, existiam três telefones, mas no aposento não se viam quaisquer arquivos, nem quaisquer papéis sobre a mesa. Wilfred Dixon era um homem baixo e rechonchudo, com cabelo completamente branco, olhos cinzentos de aço e um rosto que se mostrava profundamente curtido, desde o pescoço à raiz dos cabelos. A pele denunciava ou um considerável espaço de tempo passado num campo de golfe, sem chapéu, ou tratamentos regulares sob a ação de uma lâmpada de quartzo.
— Queira ter a bondade de se sentar, Mr. Mason convidou Dixon depois de, com uns dedos musculosos, ter apertado cordialmente a mão do advogado. — Tenho ouvido falar imenso de si e, como é natural, é um prazer conhecê-lo, se bem que, evidentemente, não compreendo porque veio me procurar. Presumo que seja, por uma via um tanto remota, em relação com a trágica morte de Harrington Faulkner.
— É, respondeu Mason, lançando a Dixon um olhar firme. Dixon suportou o olhar com uma segurança calma.
— Tenho, evidentemente, dirigido os assuntos de Genevieve Faulkner, desde há alguns anos. Sabe, foi a sua primeira mulher. Mas certamente que o sabe. E Dixon sorriu, com um sorriso magnético, desarmante.
— Conhecia Harrington Faulkner pessoalmente?
— Oh, sim. Compreende, era um pouco embaraçoso para Genevieve ter conversas sobre assuntos de negócios, com o primeiro marido. Contudo, a primeira Mrs. Faulkner, chamar-lhe-ei Genevieve, se não se importar Mr. Mason. Ela estava muito interessada nas transações da firma.
— Essa firma fazia dinheiro? Perguntou Mason.
— Ordinariamente, Mr. Mason, eu consideraria que essa pergunta envolve os assuntos particulares de Genevieve. Mas atendendo a que uma investigação sobre os Bens Faulkner tornará todo o assunto do conhecimento público, não vejo qualquer razão para obrigá-lo a obter a informação através de mais canais desviados. O negócio era imensamente produtivo.
— Não é bastante extraordinário para uma sociedade fazer esse dinheiro todo nas presentes condições?
— De forma nenhuma. Era mais do que uma sociedade. O negócio era generalizado a vários ramos. Administrava vários outros negócios que previamente tinham sido utilizados como saídas de investimento. Harrington Faulkner era um esplêndido homem de negócios; era, de fato, um esplêndido homem de negócios. Mas, evidentemente, impopular. Pessoalmente, eu não aprovava os métodos de negócio de Mr. Faulkner. Eu não os empregaria. Eu representava Genevieve. Certamente que não me encontrava em posição de... Bem, devemos dizê-lo, criticar a galinha que punha os ovos de ouro, não acha?
— Faulkner era o fazedor de dinheiro?
— Sim!
— E quanto a Carson?
— Carson era um sócio, respondeu suavemente Dixon. — Um homem que tinha igual interesse no negócio. Um terço pertencia a Faulkner, outro terço a Carson e o terceiro a Genevieve.
— Porém, isso ainda nada me diz quanto a Carson, observou Mason. Com toda a simulação de uma surpresa cândida, Dixon ergueu o sobrolho.
— Mas eu julguei que estava a lhe dizer tudo a respeito de Carson.
— Não me disse nada a respeito da sua aptidão em matéria de negócios.
— Francamente, Mr. Mason, com quem eu tratava era com Faulkner.
— Se Faulkner era a mola real do negócio, observou Mason, devia aborrecê-lo fazer a maior parte do negócio, conseguir a maior parte do capital e depois receber apenas um terço dos lucros.
— Bem, evidentemente, ele e Carson recebiam um ordenado... Um ordenado que fora fixado e aprovado por tribunal.
— E não podiam aumentar esses salários?
— Sem o consentimento de Genevieve, não.
— E os salários foram alguma vez aumentados?
— Não, respondeu Dixon, laconicamente.
— Foi efetuado qualquer pedido para o aumento dos salários? Os olhos de Dixon pestanejaram.
— Várias vezes, respondeu.
— Faulkner, segundo depreendo, não se encontrava numa disposição muito amistosa para com a primeira mulher, não é?
— Estou certo de nunca o ter interrogado a esse respeito.
— Presumo que originariamente Harrington Faulkner contribuiu com a maior parte do dinheiro que fundou a firma de Faulkner e Carson.
— Assim o creio.
— Carson era o mais novo e Faulkner descansou nele talvez como elemento de sangue novo no negócio, não?
— Quanto a isso, não sei responder. Só representei Genevieve depois da separação e durante o divórcio.
— Tinha-a conhecido antes disso?
— Não. Eu me dava com o procurador que Genevieve utilizou. Sou um homem de negócios, Mr. Mason, um conselheiro de negócios, um conselheiro de emprego de capital, se assim o quer. Procuro ser um bom conselheiro. Na realidade, ainda não me declarou o motivo da sua visita.
— Em primeiro lugar, estou interessado em descobrir tudo o que puder a respeito de Harrington Faulkner.
— Assim o depreendi. Mas a razão desse seu interesse não é aparente. Muitas pessoas, sem dúvida alguma, gostariam de saber alguma coisa dos assuntos de Mr. Faulkner. Existe uma diferença entre uma curiosidade casual, Mr. Mason, e um interesse legítimo.
— Pode estar descansado que, no meu caso, se trata de um interesse legítimo.
— Mr. Mason, eu desejaria simplesmente saber qual era. Mason sorriu.
— Provavelmente, serei o procurador de um reclamante contra os Bens Faulkner.
— Provavelmente? Repetiu Dixon.
— Ainda não aceitei definitivamente o caso.
— Isso torna o seu interesse um tanto... Permita-me que o diga, nebuloso, não acha?
— Não acho, retorquiu Mason.
— Bem, evidentemente, não terei uma diferença de opiniões com um advogado que adquiriu uma reputação tão famosa, Mr. Mason. Por conseguinte, talvez devamos dizer que o senhor tem a sua opinião e que eu procuro ser absolutamente razoável. Desejo absolutamente ser convencido.
— Com dois terços e um domínio completo da corporação, Faulkner, suponho, dirigia a sociedade com uma mão de ferro?
— Não há qualquer lei contra suposições, Mr. Mason, quaisquer que elas sejam. Há ocasiões em que acho isso uma ocupação bastante interessante, embora, evidentemente, uma pessoa dificilmente se atreva a chegar a uma decisão baseada apenas numa simples suposição. Prefiro dispor de fatos que justifiquem essa opinião.
— Assim é, admitiu Mason. Portanto, se fazem perguntas.
— E se recebem respostas, retorquiu-lhe Dixon suavemente. Os olhos de Mason rebrilharam.
— Nem sempre as respostas mais categóricas que seriam de desejar.
— É absolutamente certo, Mr. Mason. Isso é uma coisa que eu próprio tenho verificado repetidas vezes ao tratar dos meus assuntos. Por exemplo, há de se lembrar de que o interroguei acerca do seu interesse na infeliz morte de Harrington Faulkner. Declarou, creio eu, que era possível que representasse uma pessoa reclamadora contra os bens. Posso perguntar a natureza dessa reclamação? Não creio que a diga.
— Envolve uma reclamação, respondeu Mason, — Baseada numa fórmula que fora elaborada para a cura de uma doença de peixes.
— Ah, a fórmula de Tom Gridley, disse Dixon.
— Parece estar sabendo de muita coisa do assunto, Mr. Dixon.
— Na qualidade de pessoa que representa uma cliente cujos ovos financeiros estão virtualmente todos no mesmo cesto, Mr. Mason, me compete conhecer muita coisa acerca dos pormenores do assunto.
— Mas, para voltarmos atrás, prosseguiu Mason. — Faulkner estava na posição de comando até que subitamente, presumo que depois de uma divergência, Genevieve Faulkner solicitou o divórcio. Muito evidentemente ela devia ter tido as suas razões para fazê-lo.
— A evidência, nesse caso, foi toda apresentada e, durante muito tempo, se procurou uma decisão, Mr. Mason.
— Essa evidência deve ter sido irritante e enervante para Harrington Faulkner. Em vez de dirigir a sociedade, se encontrou subitamente na posição de um acionista minoritário.
— Evidentemente que, observou Dixon um tanto afetadamente, — Dado que sob as leis deste estado marido e mulher se supõem sócios, se o casamento se dissolve torna-se necessário efetuar uma forma qualquer de ajuste.
— E eu presumo, prosseguiu Mason, Que com a ameaça constante que pairava sobre a cabeça de Faulkner de que você recorreria ao tribunal e pediria ao juiz que reabrisse o ajuste da pensão alimentícia para o caso de se dar qualquer falta por parte de Faulkner em aceder aos seus desejos, o senhor deve certamente ter incorrido na inimizade de Faulkner. O sobrolho de Dixon se ergueu uma vez mais.
— Eu represento simplesmente o capital de Genevieve. Como é natural, represento o melhor que posso os seus interesses.
— Falou ocasionalmente com Faulkner?
— Oh, sim!
— Ele pô-lo ao corrente de muitos pormenores do negócio?
— Naturalmente.
— Foi ele que veio ter consigo para lhe contar voluntariamente esses pormenores ou foi o senhor que perguntou?
— Ora, certamente, Mr. Mason, que há de lhe custar a acreditar que um homem na posição de Mr. Faulkner viesse me procurar para contar todos os pequenos pormenores do seu negócio.
— Mas estava interessado neles?
— Como é muito natural.
— Portanto, segundo depreendo, interrogou-o?
— Acerca do que eu queria saber, sim.
— E isso incluía virtualmente tudo?
— Realmente, Mr. Mason, quanto a isso, não posso dizê-lo, porque, como é natural, não sei o que é que eu não sabia. Sei apenas aquilo que sei. E Dixon olhou para o advogado com uma atitude que indicava que tentava fazer o possível para cooperar, fornecendo a Mason qualquer informação que fosse valiosa.
— Posso perguntar quando falou, pela última vez, com Faulkner? Inquiriu Mason. O rosto de Dixon tornou-se uma máscara esculpida em madeira. — Evidentemente, declarou Mason, — Trata-se de uma pergunta que a Polícia fará mais cedo ou mais tarde. Dixon juntou cuidadosamente as pontas dos dedos e considerou as unhas, durante um momento. — Julgo, prosseguiu Mason, — Que conversou com ele, em qualquer altura de ontem à noite. Dixon levantou os olhos.
— Realmente, Mr. Mason, em que se baseia para fazer essa suposição?
— Na sua hesitação.
— Estava pensando. Mason sorriu.
— É possível que a hesitação se tenha devido ao pensamento, mas apesar disso foi uma hesitação.
— Um esplêndido ponto, Mr. Mason. Um esplêndido ponto, com efeito. Sou franco em admitir que estivesse repensando e que, em consequência disso, hesitei. Não sei se responderei à sua pergunta, ou reservarei a minha resposta para quando for interrogado pela Polícia.
— Existe alguma razão particular para que não deva me responder?
— Debatia isso comigo mesmo.
— Há algo a esconder?
— Certamente que não.
— Então porque escondê-lo?
— Acho que isso é desleal, Mr. Mason. Não estou escondendo nada. Respondi às suas perguntas inteira e sinceramente.
— Quando falou pela última vez com Faulkner?
— Bem, Mr. Mason, como tão perspicazmente deduziu, foi ontem.
— A que horas de ontem?
— Mas, quer dizer quando falei com ele pessoalmente, frente a frente?
— Quero saber quando falou pessoalmente com ele e quero saber quando falou com ele pelo telefone, declarou Mason.
— O que o leva a pensar que tenha havido uma conversa telefônica?
— O fato de ter sublinhado uma diferença entre uma conversa frente a frente e outra conversa. Dixon declarou:
— Receio não ser um bom competidor contra si, Mr. Mason. Receio estar nas mãos de um advogado muito perspicaz.
— Continuo à espera de uma resposta, disse Mason.
— Não tem, evidentemente, qualquer direito oficial fazendo essa pergunta.
— Nenhum.
— Talvez prefira não responder. E então?
— Então, respondeu Mason, — Telefonaria ao meu amigo tenente Tragg a diria que o senhor viu Harrington Faulkner na noite que este foi assassinado; que aparentemente conversou com ele pelo telefone. E depois desligaria, dar-lhe-ia um aperto de mão, declararia que tinha apreciado a sua colaboração e iria embora.
Dixon juntou, uma vez mais, as pontas dos dedos. Depois, acenou afirmativamente com a cabeça, como se tivesse tomado alguma decisão definitiva. Mas, todavia, permaneceu calado, com o rosto gordo, afivelando uma expressão de máscara, sentado atrás de uma enorme mesa, acenando afirmativamente com a cabeça numa impressiva aquiescência consigo próprio. Mason esperou em silêncio. Por fim, Dixon disse:
— O senhor apresenta um argumento poderoso, Mr. Mason. Não há dúvida. Daria um bom jogador de pôquer. Seria difícil julgar o que tivesse na mão quando agitasse os dados dentro do copo... Muito difícil, na verdade. Mason não fez qualquer comentário. Dixon acenou com a cabeça mais algumas vezes, e depois prosseguiu: — Serei, evidentemente, visitado pela Polícia. De fato, tenho me debatido na dúvida se hei de telefonar à Polícia e contar exatamente o que sei. O senhor poderá, certamente, conseguir todas estas informações mais cedo ou mais tarde, ainda que eu não as forneça. Ainda não me disse o seu interesse exato em descobrir os fatos.
Dixon olhou para Mason, assumindo a atitude de um homem que esperasse cortesmente pela réplica a uma pergunta de rotina. Mason continuou sentado e silencioso. Dixon uniu as sobrancelhas, pousou o olhar na mesa, depois sacudiu a cabeça num gesto de negação, como se, depois de ter concedido ao assunto uma profunda consideração, a recusa de Mason em ser mais explícito o tivesse levado a anular a sua primeira decisão. Todavia, Mason nada disse. Subitamente, o conselheiro de negócios espalmou ambas as mãos sobre a mesa, no gesto de um homem que tivesse tomado definitivamente uma decisão.
— Mr. Faulkner me consultou ontem várias vezes, Mr. Mason.
— Pessoalmente?
— Sim.
— O que ele pretendia?
— Isso está para além do alcance da sua primeira pergunta Mr. Mason.
— Interesso-me mais pela pergunta do que pelo motivo por que a fiz, declarou Mason. Dixon ergueu e baixou as mãos, fazendo com as palmas destas pequenos ruídos sobre o tampo da mesa.
— Bem, Mr. Mason, isso é perguntar muito, mas, no fim de contas... Mr. Faulkner queria comprar o interesse de Genevieve.
— E o senhor queria vendê-lo?
— Mediante certo preço, sim.
— O preço estava em discussão?
— Oh, muito.
— Havia uma grande diferença?
— Muito grande. Compreende, Mr. Faulkner tinha certas ideias quanto ao valor. Para ser inteiramente franco, Mr. Mason, propôs nos vender a sua parte por uma certa quantia. Depois pensou que, no caso de não querermos aceitar essa oferta, deveríamos querer vender a nossa parte por essa mesma quantia.
— E queriam?
— Oh, definitivamente não.
— Posso saber porquê?
— Isso é bastante elementar, Mr. Mason. Mr. Faulkner dirigia a companhia numa base muito aproveitável. Recebia um salário que, durante os últimos anos, não fora aumentado. Nem tampouco o de Mr. Carson. Se Genevieve comprasse a parte de Mr. Faulkner, este ficaria em liberdade para entrar no mundo comercial e capitalizar, baseado nas suas excepcionais aptidões para negócios. Poderia até ter montado ele próprio outro negócio muito capaz de competir com o nosso. Por outro lado, quando se teve de fixar um preço pelo qual Genevieve Faulkner venderia a sua parte, fui forçado fazendo notar que o valor, pelo que lhe respeitava, se baseava nos rendimentos que dele lhe advinham e, se ela o vendesse, havia de querer dinheiro numa importância que lhe proporcionasse um rendimento igual. E, como é natural, os capitais não são exatamente tão produtivos como o foram, em tempos passados, nem possuem o elemento de segurança. Isso representava uma grande diferença, uma diferença muito grande, Mr. Mason, entre o nosso preço de venda e o nosso preço de compra.
— Depreendo que isso causou algum ressentimento, não?
— Nenhum ressentimento, Mr. Mason. Certamente que não. Foi simplesmente uma diferença de opinião numa transação de negócio.
— E o senhor manteve a vantagem?
— Eu não diria isso, Mr. Mason. Nós estávamos inteiramente dispostos a deixar as coisas prosseguir in status quo.
— Mas Faulkner achava muito aborrecido trabalhar com um salário inadequado...
— Tá, tá, tá, Mr. Mason. O salário não era inadequado, era o mesmo salário que ele recebia quando dirigia dois terços dos interesses da sociedade. Os olhos de Mason brilharam.
— Um salário que ele fixara para que Carson não estivesse em posição de pedir quaisquer aumentos de ordenado.
— Certamente que ignoro o que Mr. Faulkner teria em mente. Sei apenas que o acordo efetuado por todas as partes interessadas quando a sentença do divórcio foi dada pelo tribunal, foi que os salários não poderiam ser aumentados sem o consentimento de Genevieve, a menos que se recorresse ao tribunal para reabrir todo o assunto.
— Calculo bem, disse Mason, — Que tinham Harrington Faulkner numa posição que lhe era muito, muito desagradável.
— Como várias vezes já lhe declarei Mr. Mason, não sou um adivinhador de pensamentos e não vejo qualquer razão para especularmos sobre as ideias de Mr. Faulkner.
— Viu-o ontem, por várias vezes?
— Sim.
— Por outras palavras, a situação se aproximava de um desfecho?
— Bem, Mr. Faulkner estava decidido fazendo qualquer coisa.
— Evidentemente que, continuou Mason, — Se Faulkner tivesse comprado a parte de Genevieve, ter-se-ia tornado uma vez mais um possuidor de dois terços da companhia. Faulkner encontrar-se-ia numa posição que lhe permitiria se desembaraçar de Carson e o fato de despedir Carson teria sido uma resposta perfeita à ação por este intentada.
— Como advogado, rosnou Dixon — Vê, sem dúvida, possibilidades que eu, como leigo, não vejo. O meu interesse pessoal no assunto era simplesmente conseguir o melhor preço para a minha cliente, no caso de se efetuar a venda.
— Não estavam interessados em comprar a parte de Faulkner?
— Sinceramente, não estávamos.
— Qualquer que fosse o preço?
— Bem, não direi tanto.
— Por outras palavras, tanto devido ao desentendimento de Faulkner com Carson, como aos vários e diversos processos que Carson iniciara, e à situação em que a sua cliente se encontrava, vocês estavam em posição de forçar Faulkner a comprar ao seu preço? Dixon não respondeu nada. — Era uma espécie de assalto legalizado, prosseguiu Mason, como se pensando em voz alta. Dixon endireitou-se na cadeira como se Mason o tivesse esbofeteado.
— Meu caro Mr. Mason! Eu representava simplesmente os interesses da minha cliente. Já não existe a mínima afeição entre ela e Mr. Faulkner. Menciono isto apenas para mostrar que não havia razão nenhuma para qualquer sentimento estar misturado ao assunto de negócios.
— Muito bem. Viu Faulkner por várias vezes, durante o dia. Que horas eram quando falou pela última vez com ele?
— Pelo telefone?
— Por volta de que horas?
— Aproximadamente... Bem, entre oito e oito e quinze. Não posso indicar uma hora mais aproximada.
— Entre as oito e às oito e quinze? Inquiriu Mason, lhe transparecendo na voz grande interesse.
— Exatamente.
— E o que lhe disse?
— Bem, lhe disse que, no caso de se efetuar qualquer venda, queríamos dispor da coisa imediatamente; que, se o assunto não estivesse concluído antes da meia-noite, consideraríamos absolutamente inútil passarmos mais tempo em discussões.
— E o que disse Faulkner?
— Faulkner respondeu que viria me procurar entre as dez e as onze; que iria num banquete de criadores de peixes dourados, depois do que tinha um encontro marcado. Disse-me que quando viesse procurar-me já se acharia habilitado a nos fazer uma última oferta. Que se não aceitássemos a proposta que, nessa altura, nos faria, daria o assunto por terminado.
— Referiu a qualquer outra pessoa que estivesse com ele quando o senhor lhe telefonou?
— Não, senhor. Não se referiu
— Essa conversa poderia ter sido às oito e quinze?
— Sim.
— E às oito horas?
— Também.
— Antes das oito horas?
— Estou absolutamente certo de que não, porque me recordo de ter olhado para o meu relógio às oito e ter me perguntado se, nessa noite, ainda ouviria Mr. Faulkner.
— E não crê que tenha sido depois das oito e quinze?
— As oito e quinze, Mr. Mason, eu liguei num programa do rádio em que estava interessado e, por conseguinte, estou absolutamente certo da hora.
— Não há qualquer dúvida de que era com Harrington Faulkner que estava falando?
— Não há a mínima dúvida.
— Julgo que Faulkner não compareceu ao encontro consigo.
— Não, não apareceu.
— Isso não lhe causou alguma desilusão?
— Bem, Mr. Mason, Dixon admitiu, passando os dedos rechonchudos pelo cabelo branco, — Não vejo qualquer razão para não ser franco consigo. Fiquei... Desapontado.
— Mas não tornou a telefonar para Mr. Faulkner?
— Não, efetivamente não. Conservava-me na posição de... Bem, não queria mostrar a mínima impaciência. O negócio que anteriormente eu propusera a Mr. Faulkner teria sido muito lucrativo se tivesse se realizado.
— É capaz de se recordar exatamente do que Faulkner disse pelo telefone?
— Sim, disse que planejara comparecer nessa noite a uma reunião bastante importante e que estava precisamente se vestindo para sair. Que preferiria muito mais comparecer a essa reunião, ir depois ao tal encontro e concluir o negócio conosco a qualquer hora de hoje.
— Que lhe respondeu?
— Respondi que isso não agradaria à minha cliente, visto ser sábado. Prometeu então vir aqui entre dez e as onze.
— Importa-se de me dizer o montante do preço que fixaram?
— Não creio que tenhamos de entrar nesse assunto, Mr. Mason.
— Ou do preço a que Faulkner queria vender?
— Na realidade, Mr. Mason, eu tenho a certeza absoluta de que isso nada tem a ver com o assunto.
— Que diferença existia entre as duas quantias?
— Oh, uma diferença bastante substancial.
— Quando Faulkner esteve aqui pessoalmente?
— Por volta das três horas da tarde, creio eu que foi... A última vez... Durante alguns minutos apenas.
— Já tinha apresentado a sua proposta a Faulkner?
— Sim.
— E ele tinha apresentado a sua?
— Sim.
— Quanto tempo durou a conversa?
— Não mais do que cinco minutos.
— Faulkner se avistou com a mulher... Isto é, com a primeira mulher?
— Nessa conversa, não.
— Tinha-a visto em qualquer outra conversa, durante o dia?
— Creio que sim... O encontro foi por acaso. Julgo que Mr. Faulkner apareceu, por volta das onze horas da manhã, e, segundo me recordo, encontrou a mulher... Isto é, a primeira mulher, à entrada de casa.
— E conversaram durante algum tempo?
— Creio que sim.
— Posso lhe perguntar a que respeito?
— Tenho a absoluta certeza, Mr. Mason, de que isso diz respeito a Genevieve e ao marido.
— E eu poderia ver Genevieve para lhe fazer algumas perguntas?
— Para um homem cujo interesse na fortuna de Faulkner é tão nebuloso como o seu, se permite que assim me expresse Mr. Mason, o senhor quer cobrir um grande pedaço de território.
— Quero ver Genevieve Faulkner, declarou Mason.
— Representará, por acaso, alguém que esteja acusado do assassínio de Mr. Faulkner?
— Pelo que eu sei ninguém foi acusado do assassínio de Mr. Faulkner.
— Todavia, está a par da probabilidade de que alguém possa ser acusado de tal crime?
— Naturalmente.
— E esse alguém podia se tornar ou pode até ser agora um cliente seu? Mason sorriu.
— É possível que me sinta tentado a representar uma pessoa que seja acusada do assassínio de Mr. Faulkner.
— Não creio que isso me agrade, declarou Dixon, muito terminantemente.
O silêncio de Mason era significativo.
— As coisas que uma pessoa discutiria sem hesitação com um advogado que tenciona simplesmente representar uma queixa contra os Bens Faulkner dificilmente são as mesmas coisas que uma pessoa discutiria com um advogado que tenciona representar uma pessoa que vai ser acusada do assassínio de Harrington Faulkner.
— E se essa pessoa foi injustamente acusada? Sugeriu Mason.
— Isso, declarou Dixon, — É uma coisa que competirá a um júri decidir.
— Deixemo-la então a um júri, contemporizou Mason, sorrindo. — Gostaria muito de ver Genevieve Faulkner.
— Tenho muita pena, mas é impossível.
— Concluo que ela não tem qualquer interesse na herança. Os olhos de Dixon se desviaram abruptamente para a mesa.
— Porque diz isso, Mr. Mason?
— Tem?
— Creio que não... A não ser que o testamento disponha o contrário... O que é muito inverossímil. Genevieve Faulkner não tem a mínima parte na herança de Faulkner. Por outro lado, não tem qualquer motivo plausível para assassínio. Mason arreganhou os dentes num sorriso.
— Não foi isso que perguntei.
— Foi, contudo, a resposta que eu lhe dei.
Uns nós de dedos bateram levemente à porta e, meio segundo depois, sem esperar por qualquer resposta, a porta foi aberta por uma mulher que entrou no aposento com toda a segurança de alguém que pertencia ali. Uma expressão de aborrecimento se espelhou no rosto de Dixon.
— Hoje não tenho nada a ditar, Miss Smith, disse ele.
Mason se virou para ver a mulher que entrara. Era esbelta e muito atraente, nesse período vagamente indefinido que fica entre os quarenta e cinco e os cinquenta e cinco. E, durante um breve instante, Mason lhe notou no rosto uma expressão embaraçada. Mason se pôs instantaneamente de pé.
— Não quer se sentar, Mrs. Faulkner?
— Não, obrigada. Eu... Eu... Mason se virou para Dixon.
— Perdoe-me ter chegado à conclusão óbvia.
Dixon admitiu um tanto duramente que o nome “Smith” tinha sido talvez um pouco infeliz.
— Genevieve, minha querida, este senhor é Perry Mason, um advogado, um advogado muito hábil e perspicaz, que veio me visitar para obter informações a respeito de Harrington Faulkner. Pediu-me licença para vê-la e eu respondi-lhe que não via qualquer razão para lhe proporcionar uma entrevista.
— Se ela tem qualquer coisa a esconder, interveio Mason, — Mais tarde ou mais cedo aparecerá Dixon, e...
— Ela nada tem a esconder.
— Está interessada, perguntou Mason a Genevieve Faulkner, — Em peixes dourados?
— Ela não está interessada em peixes dourados, declarou Dixon. Mrs. Faulkner sorriu serenamente para Perry Mason e disse:
— Parece que Mr. Mason é quem está interessado em peixes dourados. Por conseguinte, se me perdoarem, meus senhores, retirar-me-ei e voltarei quando Mr. Dixon não estiver ocupado.
— Vou-me embora, agora mesmo, declarou Mason, erguendo-se e curvando-se, num cumprimento. — Não sabia que Mr. Faulkner tivera uma primeira mulher tão atraente.
— Tampouco Mr. Faulkner sabia, disse Dixon, secamente, e depois ficou de pé, muito direito e calado, enquanto Mason saía do aposento.
Mason telefonou para o seu escritório de um estabelecimento comercial que se encontrava a meia dúzia de quarteirões da casa de Dixon.
— Della, proferiu, quando esta atendeu, vá ter com Paul Drake imediatamente. Diga-lhe que procure todos os testemunhos que há em relação com o divórcio de Harrington Faulkner. Foi há coisa de uns cinco anos. Não quero apenas o sumário do caso, mas também uma transcrição dos testemunhos, se lhe for possível obtê-la. Quero saber o que havia realmente por trás.
— Ok, chefe, mais alguma coisa?
— Mais nada. Há alguma novidade?
— Alegra-me que tenha telefonado, respondeu ela. — Preenchi um mandado de habeas corpus e o juiz Downey despachou uma ordem devolutiva na próxima terça-feira. Registraram Sally Madison sob a acusação de assassínio em primeiro grau.
— Desconfio que a registraram mal souberam do habeas corpus, disse Mason.
— Também acho.
— Está bem, vou à cadeia pedir uma entrevista com ela, declarou Mason.
— Como seu advogado?
— Certamente.
— Vai se declarar seu representante sem primeiro saber o que ela tem para dizer?
— O que ela tem para dizer não faz a mínima diferença, declarou Mason. — Vou representá-la porque tenho de fazê-lo. Não tenho outra alternativa no caso. Que fizeram de Tom Gridley?
— Ninguém sabe. Está ainda enterrado em qualquer lado. Quer que eu prepare um requerimento para um mandado de habeas corpus para ele?
— Não, recusou Mason. —Não tenho que representá-lo... Pelo menos, antes de saber o que Sally Madison tem para dizer.
— Boa sorte, chefe, desejou Della Street. — Desculpe tê-lo metido nisto.
— Não o fez. Fui eu que me meti.
— Bem, seja prudente.
— Esteja descansada.
Mason desligou, saltou para dentro do carro e guiou até a cadeia. A delicadeza excessiva com que os agentes o cumprimentaram e a presteza com que proporcionaram uma entrevista com Sally Madison, mal Mason declarou que a representaria na qualidade de seu advogado, indicavam que a Polícia estava satisfeitíssima com toda a situação. Mason se sentou à mesa comprida cuja parte média era percorrida longitudinalmente por um forte biombo de rede de aço. Alguns momentos depois, uma mulher-policial introduziu Sally Madison pelo outro lado da sala.
— Olá, Sally, cumprimentou Mason.
Parecia muito calma e segura de si, ao avançar para se sentar em frente de Mason, do outro lado do biombo de rede que constituía um tabique entre a prisioneira e o visitante.
— Estou arrependida de ter saído sem si, Mr. Mason. Este replicou:
— Isso é apenas metade daquilo que precisa lamentar.
— Que quer dizer?
— Ter saído com Della Street quando tinha essa arma e dinheiro na mala.
— Não devia ter feito isso, bem sei.
— Onde estava quando o tenente Tragg a caçou?
— Ainda não tinha percorrido quatro quarteirões depois de tê-los deixado. Tragg me caçou e conversou comigo durante um momento. Depois me entregou à guarda de dois agentes, enquanto foi dar uma volta pelos restaurantes à sua procura e de Miss Street.
— Fez algum depoimento à Polícia?
— Oh, sim.
— Para que o fez?
— Porque, replicou ela, — Tinha de contar a verdade.
— Não tinha que lhes dizer nada, reprovou Mason. — Pois bem, qual é a verdade?
— Já lhe disse Mr. Mason.
— Meu Deus, rugiu Mason, — Diga-me alguma coisa de novo... Pelo menos, dê-me os mesmos dados que deu aos agentes.
— Não ficará zangado?
— Certamente que já estou.
— Então... Não me ajudará?
— Não tenho por onde escolher neste assunto, disse Mason. — Vou ajudá-la porque preciso ajudar Della Street. Tenho de tirá-la fora dessa embrulhada e, para conseguir, tenho de tentar tirá-la também.
— Causei-lhe algum problema?
— A ela, a mim e a toda a gente. Vamos. Qual é a história? Ela baixou os olhos.
— Na noite passada, fui procurar Mr. Faulkner.
— A que horas?
— Por volta das oito horas.
— Viu-o?
— Sim.
— O que ele estava fazendo?
— Estava se barbeando. Tinha toda a cara ensaboada e estava sem casaco e sem camisa. Havia água correndo dentro da banheira.
— A porta do banheiro estava aberta?
— Sim.
— A mulher dele estava lá?
— Não.
— Quem atendeu à porta?
— Ninguém. A porta estava entreaberta, uns dois a cinco centímetros.
— A porta da rua?
— Sim.
— Que fez você?
— Entrei. Ouvi-o no banheiro. Chamei-o.
— Que fez ele?
— Saiu.
— Tem a certeza que havia água correndo dentro da banheira?
— Tenho.
— Água quente ou fria?
— Hum... Água quente.
— Tem certeza?
— Sim. Lembro-me de que o espelho estava embaciado.
— Faulkner ficou encolerizado ao vê-la?
— Encolerizado comigo? Por quê?
— Por ter ido procurá-lo dessa maneira.
— Creio que sim, mas tudo terminou bem.
— Continue, indicou Mason, com enfado, quase no tom de um rugido. — Ouçamos o resto.
— Mr. Faulkner disse que não queria ter nenhum aborrecimento comigo; que gostaria muito que as coisas ficassem esclarecidas. Sabia que Tom cumpriria à risca o que eu lhe indicasse e disse que poderíamos chegar a um acordo.
— O que você respondeu?
— Disse que, se me desse dois mil dólares, chegaríamos a um acordo. Que Tom continuaria como seu empregado, durante seis semanas, que depois gozaria umas férias de seis meses e, depois destas, voltaria a trabalhar novamente para a loja de animais; que, se Tom descobrisse quaisquer inventos, durante os seis meses de descanso, Mr. Faulkner poderia ficar com metade dos interesses respectivos, que pertenceriam igualmente a ele e Tom; que Faulkner colocaria os remédios de Tom no mercado e que ele e Tom dividiriam os lucros. Seriam uma espécie de sócios.
— E o que Faulkner disse a isso?
— Deu-me os dois mil dólares e eu lhe entreguei o cheque de cinco mil dólares que tinha. Declarei-lhe que ia procurar Tom e que estava certa de que ele concordaria.
— Sabe que Tom foi procurá-lo às oito e um quarto?
— Não creio que Tom o tenha feito.
— Pois eu creio que há uma prova muito boa de que ele foi lá.
— Bem, não sei nada a esse respeito, mas tenho a certeza de que Tom não foi, porque não tinha nenhuma razão para fazê-lo. Tom me declarara que entregara tudo em minhas mãos.
— E os dois mil dólares que você tinha, foi Mr. Faulkner que os deu em dinheiro?
— Exatamente. Mason pensou, durante um momento, e depois disse:
— Muito bem, e a respeito da arma?
— Estou preocupada a respeito dessa arma, Mr. Mason.
— É natural.
— A arma é de Tom.
— Eu sei.
— Não sei como ali parar foi, mas, quando entrei no quarto com Mrs. Faulkner... Procurando consolá-la, bem sabe... Vi esta arma em cima do toucador. Reconheci-a como sendo a arma de Tom e... Bem, compreende, quis protegê-lo. Isso foi o meu primeiro pensamento, a minha primeira reação instintiva; agarrei-a e meti-a na minha mala. Sabendo que um homem tinha se suicidado...
— Que tinha sido assassinado, corrigiu Mason.
— Sabendo que um homem tinha sido assassinado, prosseguiu ela, aceitando a correção, sem protesto. — Não queria que encontrassem a arma de Tom, nessa casa. Sabia que Tom nada podia ter feito relacionado com o crime, mas não sabia como a arma fora parar ali.
— E isso é tudo? Inquiriu Mason.
— Senti o coração oprimido e desejei morrer, Mr. Mason. É tudo.
— Contou essa história aos agentes? Perguntou Mason.
— Sim.
— Que fizeram eles?
— Ouviram.
— Interrogaram-na?
— Não muito. Um pouco.
— Havia ali algum estenógrafo?
— Sim.
— Anotou tudo quanto você disse?
— Sim.
— E depois?
— Depois me perguntaram se eu fazia qualquer objeção em assinar o depoimento. Respondi-lhes que certamente que não, desde que constasse exatamente o que eu dissera. Redigiram o depoimento e assinei-o.
— Disseram-lhe que não era obrigada a dizer nada?
— Oh, sim. Recitaram uma algaravia numa voz lamurienta dizendo que eu não era obrigada a dizer nada se não quisesse dizer.
— E é desta forma que a sua história está anotada?
— Sim. Mason exclamou numa voz amargurada pelo veneno:
— Sua louca!
— Mas, que quer dizer, Mr. Mason?
— A sua história é tão improvável logo à primeira vista que nem sequer é um bom conto de fadas. É obviamente uma coisa que você inventou de repente para proteger Tom. Mas os agentes foram demasiado espertos para procurarem que você a alterasse logo, no princípio. Limitaram-se a transcrevê-la e você assinou. Agora começarão a apertá-la para que você a altere e então se achará numa bela trapalhada.
— Mas não tenho que alterá-la.
— Acha que não?
— Acho.
— De onde veio essa quantia de dois mil dólares que você pediu a Faulkner?
— Ora, julguei que era um preço justo.
— Ainda não tivesse mencionado?
— Não.
— E Faulkner estava se barbeando quando você chegou lá?
— Sim.
— Preparando-se para tomar um banho?
— Sim.
— Estava no banheiro?
— Sim.
— Saiu do banheiro quando você entrou lá... No quarto?
— Bem, sim.
— Agora, atenção, recomendou Mason. — Ele saiu do banheiro ou recebeu-a no banheiro?
— Bem, à porta do banheiro.
— E lhe deu dois mil dólares em dinheiro?
— Sim.
— Você lhe pediu dois mil dólares? Perguntou Mason.
— Sim.
— E ele tinha dois mil dólares?
— Sim.
— Exatamente dois mil dólares?
— Bem... Não sei... Era possível que tivesse mais, mas me deu os dois mil dólares.
— Em dinheiro?
— Certamente. Foi assim que obtive o dinheiro que estava na minha mala.
— E encontrou a arma de Tom Gridley na casa de Faulkner?
— Sim. E, se quer saber uma coisa, Mr. Faulkner foi quem levou para ali essa arma, em primeiro lugar. Tom tinha-a na loja de animais e ontem, à noite, por volta das sete e meia, Mr. Faulkner se encontrava lá a rondar de um lado para o outro, fazendo um inventário, e... Bem, ele levou a arma. Mr. Rawlins pode testemunhar isto. Viu Mr. Faulkner levá-la.
— Contou isso à Polícia?
— Sim.
— Consta do seu depoimento escrito?
— Sim. Mason suspirou.
— Consideremos o caso sob outro aspecto. Quando a deixei com o sargento Dorset, ele disse que a levaria a casa de James Staunton.
— É.
— E levou?
— Sim.
— Quanto tempo demorou ali?
— Não sei. Pouco.
— E Staunton teimou na sua história de que fora Faulkner que levara os peixes?
— Sim. Apresentou uma autorização escrita de Mr. Faulkner para guardar os peixes.
— E depois que aconteceu?
— Depois, o sargento Dorset voltou para casa de Faulkner e me levou com ele.
— E em seguida?
— Em seguida, uma hora ou duas depois, me disse que me podia ir embora.
— E então o que você fez?
— Bem, um dos homens, creio que era um fotógrafo, disse que ia ao Comando-Geral da Polícia revelar alguns filmes e que, se eu quisesse, podia me levar no carro. Compreende, disse que me daria uma carona.
— Então, foi com ele?
— Sim.
— E depois?
— Depois telefonei para Della Street.
— Onde encontrou um telefone?
— Num restaurante, aberto durante toda a noite.
— Perto do lugar onde esse fotógrafo a deixou?
— Sim, à distância de um quarteirão.
— E depois?
— Depois Miss Street me disse que voltasse a lhe telefonar daí a quinze minutos.
— E então o que fez?
— Tomei uma xícara de café, comi uns ovos mexidos e torradas.
— É capaz de se lembrar de onde ficava esse restaurante?
— Sim, certamente que sou, e estou certa de que o empregado noturno desse restaurante se lembrará de mim. Era um homem de cabelo muito escuro e me lembro de que coxeava ao andar. Pensei que tivesse partido uma perna e que esta tivesse ficado um pouco mais curta que
a outra.
— Muito bem, aplaudiu Mason, — Isso tem o timbre da verdade. Voltou para casa de Faulkner com Dorset. Ele manteve-a aí durante um pedaço e depois decidiu que não precisava mais de si e esse fotógrafo lhe deu uma carona. Conversou com ele no automóvel?
— Sim, certamente.
— Contou-lhe o que sabia a respeito do crime?
— Não. Não falamos do crime.
— Do que falaram?
— De mim.
— Estava cortejando-a?
— Queria o meu número de telefone. Não parecia interessado no crime. Se não estivesse tão apressado, ter-me-ia acompanhado ao restaurante. Perguntou-me se eu não poderia esperar aí uma hora pouco mais ou menos, até que ele revelasse os filmes.
— Isso parece natural. Agora você está contando coisas que têm o timbre da verdade. Quanto tempo se demorou no restaurante?
— Uns quinze minutos. Mal entrei lá, telefonei para Miss Street e ela me disse então que voltasse a telefonar daí a quinze minutos e, passados estes, voltei a lhe telefonar e ela me recomendou então que fosse para o Kellinger Hotel.
— E depois?
— Depois tomei um táxi e fui para o Kellinger Hotel.
— Contou isso à Polícia?
— Sim, tudo isto.
— Consta do seu depoimento escrito?
— Sim.
— Quando estava nesse restaurante havia ali quaisquer outros fregueses?
— Não. É uma casa pequena... Apenas um pequeno balcão para almoços. Uma espécie de vão na parede com um empregado noturno que cozinha e depois serve a comida no balcão.
— E viu bem esse homem de serviço no balcão?
— Oh, sim.
— E ele viu-a bem?
— Sim.
— E você telefonou duas vezes para Della Street, desse restaurante?
— Sim.
— Fez quaisquer outras ligações? Ela hesitou.
— Fez? Insistiu Mason.
— Não.
— Isso não tem o timbre da verdade, acusou Mason. Sally Madison permaneceu calada.
— Apanhou um táxi aí? Perguntou Mason.
— Sim, muito perto dali.
— E foi diretamente para o Kellinger Hotel?
— Sim. Mason meneou negativamente a cabeça.
— Pela sua descrição do lugar em que estava, a corrida do táxi para o Kellinger Hotel, a essa hora da noite, não devia ter levado mais que dois ou três minutos e o taxímetro devia ter acusado consideravelmente menos que um dólar.
— Mas, o que tem isso?
— Della Street chegou lá primeiro, observou Mason, — E teve muito mais que andar do que você.
— Bem, eu... Levei ainda algum tempo para encontrar um táxi.
— Não mandou buscá-la no restaurante?
— Não. Saí à procura de uma estação de táxis. O empregado do restaurante me informou de que havia um ali perto.
— Quando Della Street chegou ao hotel, declarou Perry Mason, — Sentou-se no átrio à sua espera. Viu-a chegar no táxi. Viu-a pagar ao motorista. Você não abriu a mala. Já tinha uma nota na mão.
— É certo.
— Porque fez isso?
— Porque, Mr. Mason, eu trazia essa arma na mala e esse enorme maço de notas, e receava que o motorista pudesse ver... Bem, compreenda, pudesse ver a arma ou o maço de notas, ou ambas as coisas e pensar talvez que eu fosse uma perita em assaltos à mão armada e... Bem, entende como foi?
— Não, não entende. Como foi?
— Bem, não queria que ninguém visse o que estava na mala e, por conseguinte, tirei essa nota para fora da mala quando estávamos a três ou quatro quarteirões do hotel, pois calculava quanto o taxímetro marcaria.
— Uma nota de dólar? Inquiriu Mason. Ela começou a dizer qualquer coisa e depois, em vez de falar, se limitou fazendo um gesto de cabeça afirmativo.
— Della Street me contou que o homem olhou para a nota de um modo bastante estranho, que depois lhe disse qualquer coisa, riu e meteu a nota no bolso.
— Não creio que o tivesse feito se se tivesse tratado de uma nota de dólar.
— O que é que o senhor pensa que era?
— Uma nota de dois dólares, respondeu Mason.
— Era uma nota de dólar, teimou Sally.
— Fez qualquer declaração à Polícia a esse respeito?
— Não.
— Eles perguntaram?
— Não.
— Julgo que foi uma nota de dois dólares, insistiu Mason. — Creio que o taxímetro não marcou os cinquenta ou sessenta cêntimos que marcaria se você partisse de um restaurante próximo do Comando-Geral da Polícia para o Kellinger Hotel. Julgo que o taxímetro marcou em torno de um dólar e oitenta cêntimos. Acho que isso significa que você ainda foi dar uma volta e tenho uma ideia do lugar aonde foi. Ela o olhou desafiadoramente.
— À pensão ou apartamento de Tom Gridley... Ou aonde quer que ele esteja, precisou Mason. Ela baixou os olhos. — Não compreende, continuou Mason pacientemente, — Que os agentes vão determinar todos os passos que você deu? Vão localizar o táxi que a conduziu ao Kellinger Hotel; vão descobrir tudo quanto você fez. Passarão a cidade a pente fino. Descobrirão o homem que a levou ao Kellinger Hotel. Ele se lembrará da corrida... Particularmente se lhe deu uma nota de dois dólares e ele lhe fez qualquer comentário a esse respeito. Ela mordeu o lábio. — Portanto, continuou Mason, — Pelo menos, é melhor ser franca comigo.
— Muito bem, admitiu provocantemente. — Fui a casa de Tom.
— Arranjar a arma, continuou Mason.
— Não, Mr. Mason. Sinceramente não o fiz. Já tinha a arma na mala. Encontrei-a exatamente onde lhe disse tê-la encontrado.
— E o sargento Dorset andou consigo de um lado para o outro, durante todo esse tempo, com a arma na mala?
— Sim.
— E porque foi até a casa de Tom?
— Porque sabia que era a arma dele. Compreenda Mr. Mason, quando, na noite passada, fui à loja dos animais, cheguei lá logo após Mr. Faulkner ter saído de lá. Encontrei Mr. Rawlins terrivelmente excitado. Contou-me que tinha perdido a calma e que dissera a Mr. Faulkner exatamente o que pensava dele. Contou-me que Mr. Faulkner tinha levado umas coisas que pertenciam a Tom, mas disse que só hoje me diria do que se tratava, porque, declarou, não queria que eu fizesse qualquer coisa precipitada e ele supunha que Tom não daria por isso enquanto estivesse, em casa, doente. Bem, nessa altura, não sabia de que coisas se tratavam. Foi mais tarde que soube por intermédio da Polícia que fora a arma de Tom e a lata de remédio que Tom preparara e pusera no cofre. Se eu tivesse sabido que Mr. Faulkner levara a arma, não ficaria tão assustada quando a vi no toucador da casa de Mr. Faulkner. Mas no instante em que a vi, reconheci-a como sendo a arma de Tom. Compreenda, gravara com ácido as suas iniciais no cano da arma. Eu costumo atirar. Sou uma esplêndida atiradora de revólver. Ora, quando vi essa arma ali no toucador e a reconheci, fiquei apavorada. Meti-a na mala enquanto o senhor estava no banheiro vendo o corpo que estava caído no chão. Depois, mal consegui me livrar da Polícia, entrei nesse restaurante e telefonei a Tom. Foi imediatamente após ter ligado para Miss Street. Disse a Tom que tinha de vê-lo imediatamente e que se certificasse de que a porta do seu apartamento não estava fechada à chave para que eu pudesse entrar.
— Depois o que fez?
— Fui de táxi, até lá. Entrei para ver Tom. Contei-lhe o que acontecera. Ficou absolutamente espantado. Depois lhe mostrei a arma e perguntei se tinha tido qualquer aborrecimento com Faulkner e ele... Ele me contou a verdade.
— Qual era a verdade?
— Contou-me que de há seis meses para cá que guardava a arma na loja de animais; que Rawlins lhe dissera que andavam uns assaltantes pelas vizinhanças e que desejava que ele tivesse uma arma, mas que não podia arranjar. Tom lhe respondeu que tinha uma e Rawlins conseguiu que Tom a levasse para a loja. Depois, pelo fim da tarde de ontem, quando Faulkner foi lá fazer um inventário dos artigos que estavam na loja e levou essa vasilha de remédio para os peixes que Tom preparara, Faulkner certamente viu a arma, achou que precisava dela e levou-a para casa. Isto foi, evidentemente, o que aconteceu. Rawlins assim contou e a Polícia foi honesta para comigo. Contaram-me isto tudo antes de lhes fazer o meu depoimento. Mason estudou-a pensativamente e disse:
— Quando Tom descobriu que Faulkner estivera lá e levara esse recipiente com o produto da sua fórmula e o mandara analisar, ficou encolerizado. Foi a casa de Faulkner procurar chegar a um acordo. Faulkner lhe passou um cheque de mil dólares...
— Não, não passou Mr. Mason. Tom não foi a casa de Faulkner e nem sequer sonhava que este tivesse levado o remédio. Eu própria só soube quando a Polícia me disse. Pode comprovar o que digo, interrogando Rawlins.
— Tem certeza?
— Absoluta. Mason abanou negativamente a cabeça e disse:
— Se Faulkner encontrou a arma na loja dos animais e a levou consigo para casa, como se explica que não se encontrem nela as impressões digitais de Faulkner?
— Não posso explicar isso, respondeu ela. — Mr. Faulkner se apossou dela na loja dos animais. Não creio que haja dúvidas a esse respeito. Até a Polícia diz o mesmo. Mason semicerrou os olhos.
— Ouça, continuou Mason, — Quando você encontrou essa arma no toucador, ficou apavorada. Pensou que Tom tinha ido lá para se encontrar com Faulkner, perdeu a calma e o matou, não é verdade?
— Não é isso, Mr. Mason. Simplesmente não julguei que fosse um bom lugar para a arma de Tom. Eu me sentia completamente excitada e quando vi a arma lá... Bem, não pensei.
— Pensou até de mais, contrariou-a Mason. — Apanhou essa arma e limpou todas as impressões digitais, não é verdade?
— Sinceramente, Mr. Mason, não é verdade. Limitei-me a pegar na arma e a metê-la dentro da minha mala. Não pensei em impressões digitais. Queria simplesmente fazer a arma desaparecer dali. Foi tudo quanto me ocorreu.
— Muito bem. Agora, voltemos aos dois mil dólares. Faulkner tinha esses dois mil dólares no bolso da calça, não tinha? Ela hesitou um momento e depois respondeu:
— Sim.
— Exatamente dois mil dólares?
— Sim.
— No bolso da calça?
— Sim.
— E a que horas você chegou lá?
— Por volta das... Entre oito e oito e meia. Não sei exatamente quando.
— E encontrou a porta aberta e entrou?
— Sim.
— Você está procurando encobrir Tom, e isso não serve.
— Não, estou a dizendo a verdade Mr. Mason.
— Ouça Sally, a sua história não é verosímil. Agora precisa encarar os fatos. Estou falando consigo não apenas para o seu bem, mas também para o bem de Tom. Se não fizer exatamente como recomendo, vai colocar Tom numa trapalhada. Ficará na cadeia, durante meses. É capaz de ser acusado do crime e de ser condenado. Mas ainda que simplesmente fique na cadeia, você bem sabe o que isso representará para a saúde de Tom. Ela fez um gesto de cabeça afirmativo. — Agora, disse Mason em voz baixa, — Você precisa fazer uma coisa. Vai me dizer a verdade. Ela sustentou firmemente o olhar dele.
— Contei a verdade, Mr. Mason.
Mason permaneceu sentado, durante trinta segundos, tendo no rosto uma máscara de concentração e com as pontas dos dedos tamborilando sobre a mesa. Por detrás do pesado biombo de ferro, a mulher observava-o pensativamente. Subitamente, Mason afastou a cadeira.
— Você fica aí sentada, ordenou. E cruzando o seu olhar com o da mulher-polícia explicou: — Preciso fazer uma ligação telefônica e depois volto.
Mason dirigiu-se à cabine telefônica, situada a um canto da sala para visitas e ligou para o escritório de Paul Drake. Alguns segundos depois, ouviu a voz do detetive.
— Perry Mason, Paul. Há alguma coisa de novo a respeito de Staunton?
— Onde está neste momento, Perry?
— Estou na sala para visitas da cadeia.
— Ah, sim! Liguei para Della há alguns minutos. Não sabia como se pôr em contato contigo. A Polícia obteve um depoimento feito por Staunton e devolveu-o à circulação. Não quer falar de nada do que consta no depoimento, mas um dos meus homens caçou-o e lhe perguntou o que você queria saber e ele respondeu.
— O quê?
— Que na quarta-feira à noite, depois de Faulkner levar esses peixes para casa de Staunton e este ter telefonado para a loja de animais, era já muito tarde quando a loja dos animais mandou o tratamento.
— Não era cedo?
— Não. Disse que era muito tarde. Não se lembra da hora exata, mas era muito tarde. Mason soltou um suspiro.
— Isso é uma boa descoberta. Fique aí onde está, Paul, e desligou.
Quando voltou a encarar Sally, do outro lado da mesa, os olhos do advogado rebrilhavam.
— Muito bem, Sally, disse em voz baixa, — Agora, vai parar com as mentiras. Os olhos dela olharam-no com inocência estudada.
— Mas, Mr. Mason, eu tenho estado a lhe dizer a verdade exata.
— Lembre-se de quarta-feira, à noite, Sally, quando a vi pela primeira vez, quando fui me sentar à sua mesa, no restaurante. Lembra? Ela respondeu com um gesto de cabeça afirmativo. — Ora, nessa altura você chegou a um acordo com Harrington Faulkner. Você tinha andado fazendo chantagem e exerceu sobre ele a pressão suficiente para obrigá-lo a pagar. Tinha os peixes morrendo e ele sabia, e pagaria uma boa soma para lhes salvar as vidas. Ele sabia também que esse tratamento que Tom descobrira era eficaz e estava disposto a utilizá-lo. Ela tornou a concordar com um aceno de cabeça. Mason prosseguiu: — Faulkner lhe entregou um cheque e uma chave do escritório e lhe disse que fosse tratar dos peixes, não é verdade? Tornou a acenar que sim. — Mas aonde é que você foi?
— Fui diretamente à loja ter com Tom, mas este estava preparando outro remédio para outros peixes que Mr. Rawlins iria tratar. Rawlins estava arranjando um tanque para tratamento e queria que Tom acabasse de preparar os painéis.
— Foi o tanque que ele levou para a casa de Staunton?
— Sim.
— Passou uma coisa por alto, Sally. Não se lembrou de que alguém viesse a confrontar o elemento tempo com Staunton. Você está mentindo. Tom não arranjou esse painel para Rawlins levar a casa de Staunton senão depois de ele ir a casa de Faulkner. Você tencionava voltar a se precipitar diretamente na loja de animais e preparar esse outro tanque. Mas o fato de os peixes de Faulkner terem desaparecido e de ele ter chamado a Polícia desmoronou-a. Você só voltou lá muito mais tarde. E Rawlins, por conseguinte, não entregou o tanque de Staunton senão muito tarde. Staunton é positivo a esse respeito.
— Está enganado.
— Não está, não, retorquiu Mason. — Quando Faulkner lhe deu a chave do escritório, isso representou a oportunidade por que você esperava. Você se dirigiu até lá com uma concha com extensão feita em casa, consistindo numa concha de sopa de prata a que fora ligada uma extensão de cabo de vassoura. Você dragou qualquer coisa para fora do fundo desse tanque de peixes. Depois teve de partir dali apressadamente porque Tom fez-lhe sinal de que vinha alguém. Por conseguinte, se precipitou dali para fora, saltou para dentro do carro de Tom, contornou o quarteirão e depois se dirigiu de novo para o escritório como se acabasse de chegar, naquele próprio instante, da loja de animais. Ela sacudiu a cabeça numa negativa ostensiva e casmurra.
— Pois bem, contemporizou Mason, — Vou lhe dizer o que aconteceu. Você mentiu e está enviando Tom para a morte. Ainda mantém a sua história? Ela baixou a cabeça num sinal afirmativo. Mason afastou a cadeira. — Muito bem, declarou. — Quando Tom morrer, se lembre de que foi a responsável.
Ela deixou-o dar dois passos, antes de chamá-lo. Depois, se inclinou para a frente até comprimir o rosto de encontro à rede metálica.
-— É a verdade, Mr. Mason... Tudo quanto o senhor disse.
— Isso é melhor. Agora admitamos que me conte a verdade. Como soube que essa bala se encontrava no tanque?
— Como sabe que era uma bala?
— Pouco importa, retorquiu Mason. — Sou eu quem pergunta. Como soube que se encontrava no tanque?
— Mrs. Faulkner me disse.
— Ah, ah! Exclamou Mason. — Agora começa a ficar claro. Continue.
— Mrs. Faulkner me disse que ficaria muito satisfeita se eu encontrasse uma bala de calibre 38 no fundo do tanque de peixes; que sabia que procurariam Tom para tratar desses peixes; que queria recuperar essa bala e que queria também ficar absolutamente certa de que podia provar de onde partira a bala. Disse-me que devia arranjar as coisas de forma a que tanto eu como Tom estivéssemos presentes quando se retirasse dali a bala. Bem, foi isto, pouco mais ou menos, Mr. Mason. Quando Mr. Faulkner me deu a chave, fui ter com Tom e resolvemos tirar a bala primeiramente e voltar, em seguida, depois de Mr. Faulkner chegar, e tratar os peixes. Mas, quando lá chegamos e entrámos no escritório, os peixes não se encontravam ali. Durante um minuto ou dois, não soube o que fazer. Mas depois, fiz exatamente o que tínhamos planejado. Peguei na concha, tirámos a bala para fora do tanque e ouvimos, precisamente nessa altura, um carro se aproximar.
— Não deixou Tom no carro, de vigia?
— Não. Os dois tinham de entrar ali. Fora o combinado. Mas estávamos certos de que tínhamos muito tempo. A casa ao lado estava às escuras e eu sabia que Mr. Faulkner se demoraria um pouco no café... Pelo menos assim pensei. Mas ouvimos o seu carro se aproximar
e nos assustamos. Corremos dali para fora com tal pressa que nos esquecemos de levar a concha conosco.
— E depois o que fizeram?
— Demos a volta na esquina e esperamos até que o vimos aparecer com Mr. Faulkner. Então, nós aparecemos e agimos o mais inocentemente possível, pretendendo que tínhamos chegado da loja de animais.
— E depois o que fizeram da bala?
— Entreguei-a a Mrs. Faulkner.
— Quando?
— Só na noite passada.
— Porquê só na noite passada?
— Telefonei para preveni-la de que a tinha e ela disse que estava bem, que eu receberia o dinheiro, mas que eu teria de esperar até desaparecer o mouro da costa.
— E então na noite passada...
— Então, na noite passada, levei a bala.
— Tom ia consigo?
— Não, fui sozinha.
— Havia qualquer marca identificativa nessa bala?
— Sim. Tom me dera uma ferramenta de gravações e ambos gravámos as nossas iniciais na base dessa bala. Mrs. Faulkner insistiu muito para que assim procedêssemos e nos recomendou que tivéssemos cuidado em não estragar os lados da bala porque queria poder provar que arma disparara a bala.
— Quanto deveria receber?
— Ela disse que, se realizasse um negócio, receberíamos quinhentos dólares e que, se realizasse outro, receberíamos dois mil.
— E então na noite passada levou a bala?
— Exatamente.
— Quando?
— Por volta das nove e meia, creio eu.
— Nove e meia! Exclamou Mason, incredulamente.
— Exatamente.
— E onde estava ela?
— Em casa.
— E lhe pagou os dois mil dólares?
— Sim.
— E foi daí que apareceram os dois mil dólares?
— Exatamente.
— E essa história de Faulkner lhe pagar dois mil dólares não passou de invenção sua?
— Sim. Eu tinha de dar uma explicação qualquer para esses dois mil dólares e pensei que essa era a melhor, porque Mrs. Faulkner me preveniu de que, se eu, alguma vez, me descosesse a respeito desses dois mil dólares, deixaria de me encobrir e que o fato de ter ido tirar essa bala seria considerado assalto com entrada por arrombamento e que tanto Tom como eu iríamos parar na cadeia.
— Faulkner já devia estar morto.
— Sim, também acho.
— Estendido no banheiro.
— Sim.
— Então, quando você levou a bala para Mrs. Faulkner, onde ela estava sentada? Na sala de estar? Nessa altura, já ela devia saber que o marido tinha morrido, se se encontrava em casa.
— Não é essa Mrs. Faulkner, explicou Sally Madison. — Não está compreendendo, Mr. Mason? — Trata-se da primeira Mrs. Faulkner, Mrs. Genevieve Faulkner.
Durante mais de dez segundos, Mason permaneceu sentado, embrenhado em profundo silêncio, de pálpebras meio descidas e de sobrolho franzido.
— Sally, não está mentindo de novo?
— Agora, não, Mr. Mason. Estou contando a verdade absoluta.
— Tom confirmará a sua história?
— No que respeita à obtenção da bala e à sua identificação, sim. Mas não conhece a pessoa que devia me pagar o dinheiro. Esses negócios eram todos comigo.
— Sally, se agora estiver mentindo, vai parar na câmara de morte, tão certo como estar agora aqui, e Tom Gridley morrerá na cadeia.
— Estou lhe contando a verdade, Mr. Mason.
— Recebeu os dois mil dólares, às nove e meia da noite passada?
— Exatamente.
— Mas foi visitar Mr. Faulkner?
— Sim. Entre oito e oito e meia. Foi precisamente como lhe contei. A porta estava entreaberta uns quatro centímetros. Entrei. Não tinha ninguém na casa a não ser Mr. Faulkner. Estava falando ao telefone, Suponho que tinha acabado de se barbear porque ainda tinha um pedaço de espuma de sabão no rosto, onde a navalha deixara umas marcas. Havia água quente correndo na banheira e ele usava apenas uma camiseta e as calças. Imagino que o ruído da água correndo não o deixou ouvir a campainha quando apertei o botão desta. Entrei porque senti que precisava vê-lo e como o seu carro se encontrava estacionado diante de casa, sabia que ele estava ali.
— E o que aconteceu? Inquiriu Mason.
— Mandou-me sair. Disse que quando precisasse me ver, mandaria me chamar e foi muito ignorante. Procurei lhe dizer que Mr. Rawlins me contara que ele levara uma coisa pertencente a Tom e que isso era o mesmo que roubar.
— E o que fez ele?
— Mandou-me sair.
— Não lhe entregou um cheque pagável a Tom como oferta de um acordo?
— Não.
— Mandou-a simplesmente sair?
— Isso mesmo. Disse que se eu não saísse, ele próprio me poria na rua.
— E você o que fez?
— Hesitei, e ele então me empurrou para fora, Mr. Mason, isto é, colocou as mãos em cima dos meus ombros e me empurrou para fora de casa.
— O que você fez depois?
— Depois, telefonei para a sua primeira mulher e lhe perguntei quando poderia me ver. Pediu-me que voltasse a lhe telefonar daí a trinta ou quarenta e cinco minutos. Assim fiz e ela disse que lá fosse imediatamente; que já poderia receber o meu dinheiro. Fui lá e ela me entregou os dois mil dólares.
— Havia mais alguém presente?
— Não.
— Viu um homem chamado Dixon?
— Não.
— Nunca o encontrou?
— Não.
— Conhece um homem chamado Dixon?
— Não.
— Mrs. Faulkner lhe deu os dois mil dólares. E depois o que você fez?
— Depois, voltei para a loja de animais, arranjei os painéis destinados ao tratamento dos peixes de Staunton tal como prometera fazer a Mr. Rawlins e... E, bem, já sabe o resto, Mr. Mason. Fui para a casa de Staunton e depois lhe telefonei.
— Sally, eu vou me arriscar consigo porque sou obrigado a fazê-lo. Quero que me diga quatro palavras.
— Quais são?
— Procurem o meu advogado. Ela olhou-o com uma perplexidade embaraçada.
— Diga-as, disse Mason.
— Procurem o meu advogado, repetiu ela.
— É capaz de se lembrar disso?
— Oh, sim, certamente, Mr. Mason.
— Diga-as outra vez, insistiu Mason.
— Procurem o meu advogado, obedeceu ela.
— Sally, daqui por diante, essas são as únicas quatro palavras que você conhece. Se disser qualquer coisa a mais a qualquer pessoa está frita. A Polícia andará atrás de si dentro de uma hora, pouco mais ou menos, brandindo à sua frente esse seu depoimento escrito. Mostrar-lhe-ão inconsistências. Mostrar-lhe-ão o que está errado. Mostrar-lhe-ão onde está mentindo. Provarão isto, provarão aquilo e provarão aqueloutro. Pedir-lhe-ão que explique porque mentiu ao dizer onde apanhou o táxi e dir-lhe-ão que, se conseguir dar uma explicação que os satisfaça, os soltará; que se não o conseguir, que a única coisa que lhes restará fazer será prender Tom. Está a compreender?
Ela fez um gesto de cabeça afirmativo.
— E o que você responderá? Perguntou Mason. Ela encontrou o olhar dele e respondeu:
— Procurem o meu advogado.
— Agora, disse Mason, — Começamos a nos entender. São essas as únicas quatro palavras da língua inglesa que você conhece daqui por diante. Não se esquecerá disto? Ela fez um gesto de cabeça negativo. — Não esquecerá aconteça o que acontecer? Tornou a acenar uma vez mais com a cabeça. — E se eles lhe disserem que Tom confessou a fim de salvá-la e que você não deve deixar o homem que ama acarretar com as culpas e ir para a câmara de morte por procurar simplesmente salvá-la, o que você dirá?
— Procurem o meu advogado, respondeu ela. Mason acenou à mulher-polícia.
— É tudo, declarou. — À minha entrevista está terminada.
Genevieve Faulkner vivia num pequeno bangalô, situado a uma distância de seis quarteirões da suntuosa residência de solteirão onde Wilfred Dixon vivia. Mason estacionou o carro, subiu os degraus e tocou impacientemente à campainha. Alguns momentos depois, a própria Genevieve Faulkner abria a porta.
— Perdoe-me incomodá-la, Mrs. Faulkner, começou por dizer Mason, — Mas necessito de fazer-lhe uma ou duas perguntas. Ela sorriu e abanou negativamente a cabeça. — Agora não ando pescando, Mrs. Faulkner; ando caçando, declarou Mason.
— Caçando? Inquiriu ela.
— Do urso, acrescentou Mason, — E estou impedido por causa do urso.
— Ah! Lamento não poder convidá-lo a entrar, Mr. Mason. Mr. Dixon disse-me que não devia falar consigo.
— A senhora pagou dois mil dólares a Sally Madison por uma bala. Porque fez isso?
— Quem afirma que o fiz?
— Não posso dizer, mas considero-o um fato.
— Quando pensam que lhe paguei essa quantia?
— Na noite passada. Mrs. Faulkner meditou, durante um momento, e depois convidou:
— Entre.
Mason seguiu-a até uma sala de estar, mobilada com extremo bom gosto. Convidou o advogado a se sentar, pegou decididamente no telefone, discou um número e perguntou:
— Pode aqui vir imediatamente? Mr. Mason está aqui. Depois colocou o auscultador no descanso.
— Então? Perguntou Mason.
— Cigarros? Inquiriu ela.
— Obrigado, tenho os meus.
— Uma bebida?
— Gostaria de uma resposta à minha pergunta.
— Daqui a alguns minutos.
Sentou-se na cadeira fronteira a Mason e este reparou na graciosidade flexível dos seus movimentos quando cruzou as pernas pelos joelhos e calmamente escolheu um cigarro de dentro de uma caixa e riscou um fósforo.
— Há quanto tempo conhece Sally Madison? Perguntou Mason.
— Que belo tempo que temos tido, não acha?
— Um pouco fresco para esta época do ano, retorquiu Mason.
— Também acho, mas, no fim de contas, é bonito. Está certo de que não quer um uísque com soda?
— Não, obrigado, quero simplesmente uma resposta a essa pergunta e aviso-a, Mrs. Faulkner, de que não continue fazendo chantagem. Está enterrada num caso de assassínio até ao pescoço e, se não me contar a verdade aqui mesmo e imediatamente, se arrependerá.
— Tem chovido bastante. É de fato bonito se vermos montes tão verdes como estão agora. Creio que vamos ter um Verão bastante quente. Os velhos entendidos do tempo assim o esperam.
— Sou advogado, lembrou-lhe Mason. — A senhora conta, sem dúvida, com o conselho de Wilfred Dixon. Siga o meu conselho e não o faça. Conte-me a verdade ou arranje um advogado, alguém que conheça a lei por dentro e por fora e o perigo que a senhora corre em suprimir fatos num caso de assassínio.
— No princípio do ano, esteve extraordinariamente fresco, continuou ela, tranquilamente. — Algumas pessoas que têm estudado o estado atmosférico me afiançam que isso nada significa, mas que, se pelos meados de Janeiro está extraordinariamente fresco, isso significa invariavelmente um Verão frio. Pessoalmente, não vejo qualquer sentido nisso. Eu...
Ouviu-se o ruído de freios, quando um carro parou em frente da casa. Mrs. Faulkner sorriu benignamente para Mason e disse:
— Com licença, se me faz o favor. E atravessou o aposento para abrir a porta. Wilfred Dixon entrou precipitadamente.
— Na realidade, Mr. Mason, começou, custaria a acreditar que fizesse isto.
— Fizesse o quê? Inquiriu Mason.
— Depois de eu lhe ter dito que não queria que entrevistasse a minha cliente...
— Vá para o inferno! Interrompeu-o Mason. — Você não é advogado. É um conselheiro de negócios a seu modo ou um agente de emprego de capitais ou o que quer que queira se intitular a si próprio. Mas esta mulher está enterrada até ao pescoço num caso de assassínio. Quando se trata de um assassínio ela não é sua cliente e você não tem qualquer direito ao exercício da lei. Quer se fazer saliente, mas eu meto-o na ordem.
Dixon parecia completamente embaraçado com a beligerância de Mason.
— Ora, prosseguiu Mason, — Mrs. Faulkner subornou a minha cliente, Sally Madison, para entrar no escritório de Faulkner e de Carson e a retirar uma bala de dentro de um tanque de peixes. Na noite passada, deu a Sally Madison dois mil dólares em dinheiro corrente em troca
dessa bala. Quero saber porquê. Dixon acusou:
— Na realidade, Mr. Mason, essas suas declarações são muitíssimo temerárias.
— Brinque com o fogo, ameaçou-o Mason, — E queimará os dedos.
— Mas, Mr. Mason, o senhor não está fazendo essas acusações baseado apenas na palavra da sua cliente, não é?
— Não estou fazendo quaisquer acusações, retorquiu-lhe Mason. — Estou relatando fatos e lhes dou apenas dez segundos para porem as coisas em pratos limpos.
— Mas, Mr. Mason, a sua declaração é absolutamente infundada. É completamente ridícula.
— Há ali um telefone. Quer que eu ligue para o tenente Tragg e lhe peça que seja ele faça as perguntas? Inquiriu Mason. Wilfred Dixon sustentou o olhar dele calmamente.
— Faça o favor, Mr. Mason, Dixon convidou.
Seguiu-se um momento de silêncio. Por fim, Mason declarou:
— Vou dar um conselho a esta mulher. Vou lhe dar o mesmo. Estão ambos envolvidos num caso de assassínio. Procurem um advogado. Procurem um que seja bom e procurem-no imediatamente. Por conseguinte, decidam se preferem contar a verdade ou que eu chame o tenente Tragg. Dixon indicou o telefone e disse:
— Como tão aptamente observou Mr. Mason, há ali um telefone. Garanto-lhe que tem toda a liberdade para utilizá-lo. Falou em telefonar ao tenente Tragg. Creio que ficaríamos muito contentes se o chamasse.
— Num caso de assassínio, não podem omitir fatos, disse Mason. — Se a senhora pagou dois mil dólares a Sally Madison por essa bala, esse fato virá à luz. Eu próprio o farei vir à luz ainda que tenha de despender um milhão de dólares com os encargos de um detetive.
— Um milhão de dólares é muito dinheiro, comentou Dixon, calmamente. — Estava falando em telefonar para Mr. Tragg, Mr. Mason, ou creio que tenente Tragg é o título. Se estiver relacionado com a Polícia, creio que será uma boa medida chamá-lo. Compreenda, nós nada temos a esconder. Já sabe que não tenho a mesma certeza a seu respeito.
Mason hesitou. Nos olhos de Wilfred Dixon perpassou um fulgor de triunfo.
— Sabe Mr. Mason, eu jogo pôquer um pouco.
Sem uma palavra, Mason se ergueu, foi até ao telefone, ligou para a telefonista e pediu:
— Ligue-me com o Comando-geral da Polícia. Em seguida, pediu os Homicídios e, perguntou: — O tenente Tragg está? Fala Perry Mason.
— Alô, Mason? Alegra-me que tenha telefonado. Queria conversar consigo a respeito da sua cliente, Sally Madison. Parece ter adotado uma atitude infeliz. Existem certas discrepâncias mínimas num depoimento escrito que ela nos fez e, quando lhe pedimos que nos explicasse, assumiu uma atitude muito truculenta e respondeu: “Procurem o meu advogado.”
— Nada tenho a acrescentar a isso, declarou Mason. A voz de Tragg denotou sincera mágoa:
— Tenho pena, realmente, Mason.
— Calculo Tragg. Encontro-me na residência de Genevieve Faulkner. A primeira mulher de Faulkner.
— Sim, sim. Tencionava entrevistá-la logo que me fosse possível. Mason, descobriu alguma coisa de novo?
— Creio que seria melhor você lhe perguntar se viu ou não Sally Madison, na noite passada.
— Ah, ah!, Exclamou Tragg, denunciando surpresa na voz. — Sally Madison afirma que viu Mrs. Faulkner?
— Quaisquer que sejam as declarações que a minha constituinte me possa ter feito, são, evidentemente, confidenciais, respondeu-lhe Mason. — Isto é apenas uma ideia que estou lhe dando.
— Muito obrigado, advogado. Entrarei em contato com ela.
— Imediatamente, sugiro-lhe, acrescentou Mason.
— Logo que me seja possível, corrigiu Tragg. — Até à vista, Mason.
— Até à vista, retribuiu Mason e desligou. Virou-se para Wilfred Dixon e acrescentou: — É assim que eu jogo o pôquer. Dixon baixou a cabeça num cumprimento.
— Ótima jogada, Mason, muito boa, realmente. Mas, já se sabe, tal como declarou ao tenente Tragg, não poderá lhe repetir quaisquer declarações que a sua constituinte possa lhe ter feito e, segundo depreendo, a sua constituinte já declarou ter recebido da mão de Harrington Faulkner os dois mil dólares que tinha na mala. Seria bastante aborrecido se fosse forçada a modificar o seu depoimento.
— Como soube que ela fez tal declaração? Inquiriu Mason. Os olhos de Dixon rebrilharam.
— Compreenda Mr. Mason, se bem que eu não seja um advogado, tenho de representar os interesses da minha cliente... Os seus interesses de negócios, bem sabe.
— Não avaliem Tragg por um preço inferior. Tragg obterá de vocês dois um depoimento escrito sob juramento. E, mais cedo ou mais tarde, os fatos verdadeiros aparecerão.
— Teremos muita satisfação com isso, declarou Dixon. — Compreenda Mr. Mason, por acaso, Genevieve não dá qualquer passo sem o meu conselho, nem o menor. Digo-lhe o que tem de fazer, mas não a incomodo com pormenores. Ela sabe muito pouca coisa a respeito da firma Faulkner & Carson. Deixa isso a meu encargo. Nem sequer teria procurado essa sua constituinte sem mim. Estou absolutamente certo de que esse tenente Tragg, quem quer que ele seja, ficará radiante por obter o nosso depoimento, particularmente atendendo ao fato de que o senhor nem sequer se encontra em posição de sugerir que os dois mil dólares encontrados na posse da sua constituinte foram recebidos não da mão de Harrington Faulkner, mas sim da de outra pessoa. E, se me permitir que lhe dê um pequeno conselho, Mr. Mason, direi que nunca deve depositar confiança demasiada na palavra de uma jovem do tipo de Miss Madison. Creio que, se investigar a sua passada reputação, verificará que essa jovem possui experiência considerável. Uma jovem que, de tempos a tempos, tem sido uma espécie de oportunista. Não direi uma chantagista, Mr. Mason, mas uma oportunista.
— Parece saber bastante a respeito dela, comentou Mason, secamente.
— Sei, sim, afiançou Dixon. — Receio, Mr. Mason, que, para tentar libertar a si própria e ao namorado de uma posição muito perigosa, tenha prestado falsas declarações.
— Muito bem, disse Mason, pondo-se de pé, já os avisei.
— Certamente que sim, Mr. Mason. Infelizmente para si, como já lhe declarei, o senhor não se encontra em posição de fazer qualquer acusação direta, e, ainda que se encontrasse, a negação de Mrs. Faulkner, apoiada pela minha declaração, tornariam realmente inúteis todas as acusações dessa Sally Madison.
— Pouco me importa o que tenha sido o seu passado, retorquiu Mason. — Acredito que agora esteja regenerada e que está verdadeiramente apaixonada por Tom Gridley.
— Alegra-me que o esteja.
— E, prosseguiu Mason, — Quando me afiançou que recebera os dois mil dólares das mãos de Genevieve Faulkner, a sua afirmação tinha o timbre da verdade. Dixon sacudiu negativamente a cabeça.
— É impossível, Mr. Mason. Isso não poderia ter acontecido sem o meu conhecimento e lhe garanto que não aconteceu.
Mason ficou de pé, contemplando o rosto musculoso do homem rechonchudo, que lhe aguentou o olhar com candura infantil.
— Dixon, avisou-o Mason, — Sou um homem com quem é muito perigoso brincar.
— Estou certo de que sim, Mr. Mason.
— Se você e Genevieve Faulkner estão mentindo a este respeito, descobrirei mais cedo ou mais tarde.
— Mas, Mr. Mason, porque havíamos de mentir a esse respeito? Que motivo plausível teríamos para fazê-lo e por que diabo havíamos de pagar dois mil dólares por... O que disse que era, uma bala?
— Uma bala, confirmou Mason. Dixon sacudiu melancolicamente a cabeça.
— Tenho pena de Miss Madison. Tenho pena, realmente, Mr. Mason. Mason inquiriu abruptamente:
— E como se explica que você saiba tanto a seu respeito?
— Mr. Faulkner adquiriu um interesse, na loja de animais, explicou Dixon. — Utilizou fundos da sociedade. Naturalmente, investiguei a compra e, ao fazê-lo, investiguei o pessoal.
— Depois de ele ter feito a compra? Perguntou Mason.
— Bem, durante o tempo em que as negociações estiveram pendentes. No fim de contas, Mr. Mason, a minha cliente está interessada na sociedade e gosto de saber o que se passa... E tenho a minha maneira própria de saber todos os passos que são dados. Mason meditou naquilo, durante um momento, e, passado este, disse:
— Ah, sim! Alberta Stanley, a estenógrafa... Começo agora a compreender muita coisa.
Dixon pigarreou apressadamente.
— Obrigado por me dizer, agradeceu Mason. Dixon ergueu os olhos e cruzou-os com os do advogado.
— Não tem de quê, Mason, não tem de quê. Foi um prazer lhe servir de ajuda... Mas não pode nos atribuir esses dois mil dólares. Não os demos. Bom dia.
Mason encaminhou-se para a porta. Mrs. Faulkner e Wilfred Dixon ficaram a olhá-lo, em silêncio. Com a mão apoiada na maçaneta da porta, Mason se virou.
— Dixon, disse, — Você é um perigoso jogador de pôquer.
— Obrigado. Mason declarou-lhe de um modo horrível:
— É suficientemente esperto para saber que não posso formular qualquer acusação categórica de que esses dois mil dólares provieram de Mrs. Faulkner. Sou um desportista suficientemente bom para admitir que apliquei um blefe e que você o compreendeu. Nos cantos da boca de Dixon desenhou-se um sorriso glacial. — E acho que é absolutamente justo que saiba aonde vou agora, acrescentou Mason. Dixon ergueu o sobrolho e inquiriu:
— Aonde?
— Vou à procura de outro monte de gols, respondeu Mason e saiu fechando a porta atrás de si.
Quando Mason entrou no escritório de Paul Drake, o seu rosto estava tão terrível como o de um jogador de futebol que tivesse feito um gol contra.
— Viva, Perry, cumprimentou Drake. — Essa informação sobre Staunton serviu de alguma coisa?
— Sim, de alguma coisa, respondeu Mason.
— É a respeito da única pergunta a que Staunton responderá. A Polícia colocou-o entre a espada e a parede com um depoimento escrito e ele não prestará qualquer informação sobre nenhum dos assuntos contidos nesse depoimento. Desde que respeite a qualquer coisa acontecida, na noite do crime, Staunton é uma autêntica ostra. E o mesmo se verifica quanto aos pormenores referentes à entrega dos peixes. Mason acenou afirmativamente com a cabeça.
— Já esperava isso, disse. — Paul, eu quero que me faça uma coisa.
— Dispara.
— Quero que descubra se Sally Madison viu ou não a primeira Mrs. Faulkner, ontem, à noite. Quero que descubra se Mrs. Faulkner fez qualquer retirada substancial do seu banco em dinheiro. Estou especialmente interessado em descobrir se ela ou Wilfred Dixon levantaram de um banco qualquer valor, em dinheiro e em notas de cinquenta dólares.
— Não será uma tarefa fácil.
— Não espero que seja. Darei qualquer valor em dinheiro que necessite para obter essa informação, Paul. Comecei a jogar um pôquer verbal com Wilfred Dixon. Fiz um blefe e ele descobriu-o com tanta calma e frieza que me sinto como uma criança que tenha recebido umas palmadas. Diabos o levem! Vou meter esse pássaro num canto ainda que tenha de despender até ao último cêntimo do que ganhei para fazê-lo.
— Dixon estava lá quando chegou? Inquiriu Drake.
— Não. Porquê?
— Tenho-o vigiado. Não quer dizer que sirva de alguma coisa, mas estou trabalhando todos os ângulos do caso. O meu homem deitou-lhe a vista em cima, por volta das oito horas desta manhã, quando voltava de tomar o café da manhã.
— Onde o tomou, Paul?
— No restaurante da esquina. Deve ser um tipo madrugador. Estava lá desde as sete horas.
— Belo, Paul. Mantém a vigia.
— Foi tomar o café da manhã e depois voltou diretamente para casa, aonde chegou às oito e dez. Tenho homens postados de vigia à casa. Pouco mais se pode fazer. Mason olhou de relance para o detetive.
— O que se aconteceu, Paul? Parece estar com rodeios. O que há? Paul Drake pegou num lápis e rolou-o entre os dedos.
— Perry, disse, calmamente, — A reputação passada de Sally Madison não é muito boa. O rosto de Mason se tornou rubro.
— Com esta é a segunda vez que hoje ouço isso. Muito bem, e então? Perguntou Mason.
— Se Sally Madison lhe disse que recebeu esses dois mil dólares das mãos de Genevieve Faulkner, mentiu, declarou Drake.
— Eu não disse que ela me contou isso, Paul.
— Não, não disse.
— Porque pensa que teria mentido se me tivesse dito? Inquiriu Mason.
— Os meus homens acabaram de descobrir uma nova evidência. Isto é, não a descobriram, souberam-na através de um repórter amigo que, por sua vez, teve conhecimento dela através da Polícia.
— O que é?
— Ontem à tarde, Harrington Faulkner foi ao banco e levantou vinte e cinco mil dólares em dinheiro. Foi pessoalmente ao banco. Insistiu em receber o dinheiro em forma corrente e, pelo modo como agiu, o caixa do banco desconfiou que estivesse sendo vítima de chantagem. Quis o dinheiro em notas de mil, de cem e de cinquenta dólares. O caixa apresentou uma desculpa para levar algum tempo para conseguir o dinheiro sob essa forma e deixou Faulkner à espera, durante alguns minutos, enquanto ele e o ajudante iam ao cofre e anotavam às pressas os números das notas, para o caso de mais tarde vir a acontecer alguma coisa. Os dois mil dólares
que Sally Madison tinha na bolsa, são o dinheiro que Harrington Faulkner lhe deu e mais ninguém. E há vinte e três mil dólares que ela escondeu em qualquer parte.
— Está certo disso, Paul?
— Não absolutamente. Perry, mas tenho uma informação muito digna de crédito e estou passando tal como a recebi. Creio que verificarás que bate certo. A boca de Mason estava fechada numa linha dura.
— Mas, prosseguiu Drake, — Há alguma coisa também no outro lado da balança. Essa arma é, sem dúvida alguma, a arma de Tom Gridley, mas julgo ser certo Gridley tê-la levado para a loja de animais e Faulkner tê-la apanhado aí. A Polícia reconstituiu relativamente bem o dia de Faulkner desde o momento em que saiu do banco até ao momento em que foi assassinado.
— Já estou a par do que se refere a essa arma. A que horas ele saiu do banco, Paul?
— Foi um bom pedaço depois das horas de expediente. Muito perto das cinco horas. Tinha telefonado para lá e o deixaram entrar pela porta lateral. Pôs o dinheiro numa mala. Saiu do banco e tomou um táxi junto ao hotel exatamente em frente do banco. Seguiu para a loja de animais, encontrou-se aí com Rawlins e começou fazendo um inventário. Enquanto o fazia, viu a
arma de Gridley e meteu-a no bolso. Rawlins informou-o de que pertencia a Gridley, mas Faulkner não fez caso. Evidentemente que, à luz do que agora sabemos e sabendo ainda que Faulkner tinha vinte e cinco mil dólares, em dinheiro corrente, nessa mala, nada mais razoável do que imaginar que ele podia ter estado interessado em ter essa arma para sua defesa pessoal.
Mason concordou com um aceno de cabeça.
— Seja como for, meteu a arma no bolso. Depois foi abrir o cofre. Lembre que Rawlins lhe dera o segredo.
— E que aconteceu depois?
— Havia ali uma vasilha com remédio e Faulkner quis saber do que se tratava.
— E o que era? O remédio para os peixes?
— Exatamente. Era uma porção desse composto que Rawlins induzira Gridley a preparar, porque o próprio Rawlins tinha alguns peixes doentes e queria tratá-los. Tivera uma certa dificuldade em convencer Tom a fazê-lo, mas finalmente o persuadira a isso, lhe prometendo não contar a ninguém.
— Onde estava Tom, nessa tarde?
— Estava em casa, de cama. Estava com febre e tosse, e Rawlins lhe dissera que fosse para casa.
— O que Rawlins fez quando Faulkner abriu o cofre?
— Rawlins teve um ataque quando viu o que Faulkner ia fazer. Este pegou na vasilha com o remédio e ali mesmo na loja telefonou para um químico seu conhecido. Já passava das horas de expediente (nessa altura, deviam ser sete e meia) e Faulkner telefonou para casa desse químico e lhe disse que precisava que lhe analisasse um produto que ele iria levar. Mason proferiu entre dentes:
— O filho da...
— Também acho, concordou Drake, — Mas o que agora estou falando, Perry, é da evidência. É a coisa que você terá de combater no tribunal. Eles responderão por todos os minutos do tempo de Faulkner, desde as cinco horas da tarde até ao momento em que o assassinaram.
— Continue, incitou Mason.
— Quando Rawlins viu o que estava acontecendo, teve um ataque. Quase arrancou à força a vasilha das mãos de Faulkner. Disse a Faulkner que dera a sua palavra de honra a Tom Gridley de que o conteúdo dessa vasilha seria utilizado apenas no tratamento de alguns peixes doentes que estavam ali na loja.
— Que fez Faulkner?
— Lembrou a Rawlins que este estava trabalhando para ele e que não queria ouvir quaisquer críticas. Por conseguinte, Rawlins resolveu abandonar o emprego e dizer a Faulkner o que pensava exatamente a seu respeito.
— Que fez Faulkner?
— Nem sequer se exaltou. Pegou no telefone e mandou um táxi ir à loja de animais. Rawlins se enfureceu e disse uma série de impropérios a Faulkner, mas este se limitou a esperar que o táxi chegasse. Pegou então na mala, meteu a vasilha com o medicamento debaixo do braço e saiu com o revólver ainda no bolso.
— Suponho que a Polícia localizou o motorista do táxi não? Drake fez um gesto de cabeça afirmativo e prosseguiu:
— O motorista do táxi levou Faulkner à residência do químico. Faulkner lhe disse que esperasse. Demorou cerca de quinze minutos e depois foi no táxi para casa. Passava então um pouco das oito horas. Ao que parece, Faulkner começou imediatamente a se despir, se barbeou e se preparou para ir a essa reunião marcada para as oito e meia.
— Sem jantar? Inquiriu Mason.
— Essa reunião dos peritos de peixes era um jantar, explicou Drake. — Realizavam um pequeno banquete ao fim do qual seriam realizados alguns discursos sobre a criação de peixes. Tudo se ajusta Perry. Ajusta-se até ao momento em que alguém entrou na casa, aparentemente sem bater à porta, e o tipo com quem Faulkner estava falando pelo telefone ouviu Faulkner dizer a essa pessoa que saísse. A princípio, a Polícia pensou que fosse Tom Gridley, mas Tom foi perfeitamente explícito para com eles. Satisfez a Polícia. Esta sabe agora que foi Sally Madison. Ninguém chegará a descobrir exatamente o que aconteceu ali. Que Sally Madison entrou e Faulkner tentou pô-la na rua, isso é certíssimo. Sally admite. Lembre-se de que Faulkner possuía uma mala contendo vinte e cinco mil dólares, que provavelmente se encontrava no quarto. Tinha também a arma de Tom Gridley. Devia estar em cima da cama ou em cima do toucador. O casaco, a gravata e a camisa de Faulkner estavam em cima de uma cadeira para onde os atirara às pressas. A arma estivera no bolso das calças. Naturalmente, tirou-a dali e colocou-a em qualquer lugar.
Mason meneou a cabeça pensativamente.
— Ponha-se no lugar de Sally Madison, prosseguiu Drake. — Faulkner roubara o homem a quem ela amava. Era culpado de vis práticas de negócio. Sally estava encolerizada e desesperada. Faulkner estava empurrando-a dali para fora, quando ela viu a arma. Agarrou-a. Faulkner teve medo, correu para o banheiro e tentou fechar a porta. Sally apertou o gatilho... Depois, provavelmente, pela primeira vez, compreendeu a importância do que fizera. Olhou em volta. Viu a mala em cima da cama. Abriu-a. Continha vinte e cinco mil dólares. Isso para ela era uma fortuna. Significava para ela uma oportunidade de escapar. Significava uma oportunidade de curar Tom Gridley de tuberculose. Pegou em dois mil dólares em notas de cinquenta dólares, para ficar com dinheiro trocado. As notas grandes, essas, as esconderam em qualquer lugar, porque tinha medo de se servir delas enquanto a fogueira estivesse acesa.
— Isso é uma bonita teoria, comentou Mason, — Mas não passa disso... De uma teoria. É plausível, mas é apenas uma teoria. Drake sacudiu negativamente a cabeça.
— Ainda não disse o pior, Perry. Ainda não.
— Então, diz lá, pediu Mason, irritado.
— A Polícia encontrou a mala vazia debaixo da cama. A mala que o caixa do banco identifica como sendo a que levara os vinte e cinco mil dólares. Evidentemente que, quando, na noite passada, a Polícia a encontrou, não lhe atribuiu qualquer significado especial, mas colheram impressões digitais em toda a parte e fizeram o mesmo na mala. Encontraram três impressões digitais. Duas delas pertenciam à mão direita de Harrington Faulkner. A terceira era do dedo médio da mão de Sally Madison. A história é esta, Perry. É esta a história numa casca de noz. Tenho um palpite que o delegado do distrito te vai dar uma oportunidade de Sally Madison se confessar culpada em assassínio de segundo grau ou talvez de homicídio. Reconhece o fato de Faulkner ter sido um malandro de primeira classe e ter havido forte provocação para o crime. Além de que, agora que ele sabe que Faulkner foi quem levou a arma de Tom Gridley da loja de animais, pensa que Sally viu certamente a arma em cima da mesa e agiu impulsivamente. Portanto, Perry, aqui tem a coisa, em poucas palavras.
— Se encontraram essa impressão digital de Sally Madison, na mala, estamos vencidos... Isto é, se a mala estava debaixo da cama.
— Vai tentar um processo? Inquiriu Drake ansiosamente.
— Não creio, respondeu Mason.
— Porque não, Perry? É a melhor coisa que pode fazer pela sua cliente.
— Coloca-me numa situação melindrosa, Paul. No mesmo instante em que ela for acusada de homicídio ou de crime de segundo grau, Della Street e eu estamos vencidos. Tornamo-nos então automaticamente cúmplices do fato e não faz muita diferença que sejamos cúmplices de homicídio ou de crime de segundo grau.
— Não tinha pensado nisso! Exclamou Drake.
— Por outro lado, disse-lhe Mason, — Não posso permitir que o meu dever para com a minha cliente seja influenciado pelos meus sentimentos pessoais. Se pensar que um júri pode condená-la com um veredicto de assassínio do primeiro grau, terei de transigir visto que parece que posso servir melhor os seus interesses fazendo-o.
— Ela não merece isso, Perry, disse Drake sinceramente. — Ela mentiu por duas vezes. Eu não consideraria os seus interesses nem por um minuto.
— Não podemos censurar uma cliente por mentir, retrucou Mason, — Assim como também não podemos censurar um gato por caçar canários. Quando uma pessoa de um certo temperamento se encontra numa trapalhada, a sua tendência natural é sair dela mentindo. O mal de Sally Madison é ter pensado que poderia levar a melhor e, se o tivesse conseguido, provavelmente eu não a teria recriminado muito.
— Que vai fazer Perry?
— Reuniremos todos os fatos que pudermos e que possivelmente não serão muitos, porque a Polícia tem todas as testemunhas entaladas. Combateremos em tribunal de primeira instância e revolucionaremos tudo. Procuraremos não permitir uma interrupção.
— E se não conseguir? Perguntou Drake.
— Se não conseguir, farei o possível pela nossa cliente, retorquiu Mason.
— Quer dizer que irá se confessar culpada do homicídio? Mason acenou afirmativamente.
— Eu ainda não tinha visto aonde isto o levaria, Perry. Por favor, não faça isso. Pense em Della, já que não pensa em você...
— Estou pensando em Della. Estou pensando nela constantemente, Paul, mas Della e eu estamos metidos neste jogo. Jogamos o mesmo jogo há muitos anos. Temos tido boas horas e aceitaremos as más. Ela não gostaria que eu abandonasse uma cliente e juro que não o farei.
Na sala do tribunal, se encontravam apenas alguns espectadores dispersos, quando o juiz Summerville subiu ao banco, sentou e o beleguim chamou o tribunal à ordem. Sally Madison, um tanto acabrunhada, mas sem deixar que o rosto espelhasse os pensamentos, se sentou diretamente em frente a Perry Mason, aparentemente desinteressada do conflito dramático e tenso do julgamento em si. Ao contrário da maioria dos clientes, não se preocupou em segredar comentários ao seu advogado e bem podia se considerar uma peça de belo mobiliário no que refere a tomar qualquer parte ativa na sua defesa. O juiz Summerville começou:
— Tempo e lugar anteriormente estabelecidos para a audiência preliminar do Ministério Público contra Sally Madison. Estão prontos, meus senhores?
— Pronto pela acusação, declarou Ray Medford.
— Pronto pela defesa, anunciou Mason calmamente.
O propósito do delegado do distrito era, muito evidentemente, procurar apanhar Mason de surpresa. Até ali, Tragg nada dissera acerca dessas impressões digitais incriminadoras de Della Street, encontradas na arma do crime. Ray Medford, um dos homens mais astutos do corpo de promotores de justiça, não queria se expor a qualquer risco com Perry Mason. Conhecia demasiado bem a sutileza do advogado para passar por alto uma simples alínea. Mas, por outro lado, foi muito prudente em tratar o caso meramente como um caso de rotina, em que o juiz obrigasse a ré a responder, mais tarde, perante um júri do Tribunal Superior.
— Mrs. Jane Faulkner será a minha primeira testemunha, anunciou Medford.
Mrs. Faulkner, vestida de negro, ocupou o seu lugar no banco das testemunhas e contou em voz baixa como regressara de uma “visita a amigos” e encontrara Perry Mason e Sally Madison, a ré, à espera, em frente da casa. Deixara-os entrar, lhes explicara que o marido não se encontrava em casa e depois fora ao banheiro onde encontrara o corpo do marido estendido no chão.
— Seu marido estava morto? Perguntou Medford.
— Sim.
— Está certa de que o corpo era o de Harrington Faulkner, seu marido?
— Certíssima.
— Creio que é tudo, declarou Medford. E depois acrescentou com um aparte apaziguante para Perry Mason: — Simplesmente para provar o corpus delicti, advogado. Mason inclinou-se, numa vénia.
— Tinha estado com amigos, Mrs. Faulkner? Ela aguentou firme e calmamente o olhar.
— Sim, tinha estado com a minha amiga Adele Fairbanks toda a tarde.
— No apartamento desta?
— Não. Tínhamos ido a um cinema.
— Adele Fairbanks é a amiga a quem telefonou depois de descobrir seu marido assassinado?
— Sim. Senti que era impossível ficar sozinha em casa. Queria que ela me fizesse companhia.
— Obrigado, agradeceu Mason. — É tudo.
John Nelson foi chamado em seguida a testemunhar. Declarou ser banqueiro e ter conhecido Harrington Faulkner em vida; que, na tarde do dia em que Harrington Faulkner fora assassinado, estava no banco no momento em que Mr. Faulkner telefonara, declarando necessitar de uma quantia elevada em dinheiro corrente; que, pouco depois de ter recebido a chamada telefônica, Faulkner aparecera, entrara no banco pela porta lateral e pedira vinte e cinco mil dólares, em dinheiro corrente, que levantou da sua conta bancária. Fazia parte, explicou, da sua conta pessoal, e não da conta de Faulkner e Carson, associados. Esse levantamento deixara Mr. Faulkner com menos de cinco mil dólares na sua conta pessoal. Nelson achara que seria uma boa ideia anotar os números das notas, tanto mais que Faulkner pedira vinte mil dólares em notas de mil dólares, dois mil em notas de cem e três mil em notas de cinquenta dólares. Nelson asseverou que chamara um dos assistentes da caixa e que ambos tinham conseguido anotar todos os números das notas, enquanto Mr. Faulkner esperava. Depois tinham entregado o dinheiro a Mr. Faulkner e este o levara numa mala.
Muito calma e naturalmente, Medford pediu a lista com as anotações dos números das notas e esta lhe foi entregue como prova. Depois, Medford apresentou uma mala de pele e perguntou a Nelson se já a vira antes.
— Já, respondeu o interpelado.
— Quando?
— Na altura e no lugar que mencionei. É a mala com que Mr. Faulkner foi ao banco.
— A mesma mala em que guardou os vinte e cinco mil dólares em dinheiro corrente?
— Exatamente.
— Está certo de que é a mesma?
— Certíssimo.
— Pode instar a testemunha, disse Medford a Mason.
— Como sabe que se trata da mesma mala? Inquiriu Mason.
— Observei-a com atenção quando coloquei o dinheiro lá.
— Colocou o dinheiro lá?
— Sim. Mr. Faulkner colocou-a à altura da pequena prateleira em frente ao postigo “caixa”. Abri-o e eu próprio coloquei os vinte e cinco mil dólares dentro da mala. Se reparar, Mr. Mason, há de verificar nela a existência de um rasgão. É um rasgão bastante peculiar, denteado, irregular.
— E identificou a mala através disso? Perguntou Mason.
— Sim.
— É tudo, declarou Mason.
O sargento Dorset foi a testemunha seguinte. Relatou as condições em que encontrara a casa de Faulkner, quando chegou lá, a posição do corpo, a descoberta da mala debaixo da cama do quarto de dormir, o lugar para onde o casaco, a camisa e a gravata de Faulkner tinham sido atirados descuidadamente, para cima de uma cadeira, e a navalha ainda por limpar, com espuma de sabão e pelos aderidos à lâmina, em cima da prateleira. O sabão estava parcialmente seco, o que, em sua opinião, indicava que devia estar ali há “umas três ou quatro horas” desde que a navalha fora utilizada. O rosto do cadáver estava barbeado. Medford desejou saber se o sargento Dorset vira a ré ali.
— Vi, sim, senhor.
— Falou com ela?
— Falei.
— Ela foi consigo a qualquer lado?
— Foi sim.
— Aonde?
— À residência de um tal James L. Staunton.
— Isso foi pedido seu?
— Foi sim.
— E ela fez qualquer objeção?
— Não, senhor.
— Na casa de Faulkner, encontrava-se algum perito de impressões digitais?
— Sim, senhor.
— Quem era ele?
— O detetive Louis C. Corning.
— Procedeu ao exame de alguns artigos, em busca de impressões digitais, sob a sua direção e observação e de acordo com as suas instruções?
— Sim, senhor.
— Tem a testemunha ao seu dispor, declarou Medford a Perry Mason.
— Como é que Mr. Corning examinou as impressões digitais?
— Ora, por meio de uma lupa, acho eu.
— Não. Não é isso o que eu quero dizer. Que método utilizou para perpetuar a evidência? As impressões digitais foram reveladas e seguidamente fotografadas?
— Não. Utilizámos o método relevante.
— Que entende exatamente por isso?
— Pulverizámos certos artigos para revelarmos as impressões digitais existentes e depois colocámos adesivo por cima destas, tirando do objeto as impressões digitais por inteiro e cobrindo depois o adesivo com uma substância transparente para que as impressões digitais pudessem ser perpetuadas e examinadas pormenorizadamente.
— Quem guarda essas impressões digitais?
— Mr. Corning.
— E tem-nas à sua guarda desde a noite do crime?
— Creio que sim. Todavia, creio que comparecerá como testemunha e poderá interrogá-lo a esse respeito.
— O método de perpetuar as impressões digitais foi sugerido por si?
— Sim.
— Não o acha um método pouco recomendável para ser utilizado?
— Que outro método teria preferido Mr. Mason?
— Eu não teria preferido nenhum método, respondeu o advogado. — Mas sempre ouvi dizer que era melhor e mais eficiente revelar as impressões digitais existentes e depois fotografá-las na sua posição no objeto e, no caso de as impressões digitais parecerem de importância, apresentar o objeto no tribunal.
— Lamento não podermos ser agradáveis, disse o sargento Dorset sarcasticamente, — Mas acontece que, neste caso especial, as impressões digitais se encontravam todas no banheiro de uma casa habitada. Não podíamos desalojar as pessoas e manter todas as impressões digitais intactas. Utilizámos o método relevante, que acho infinitamente preferível ao outro, quando as circunstâncias o justificam.
— Que circunstâncias o justificam? — Quis Mason saber.
— Circunstâncias como estas: se tratarem de objetos que não podem ser apresentados prontamente em tribunal.
— Mas que meios utilizou para identificar os lugares de onde foram tiradas as impressões digitais?
— Pessoalmente, não utilizei nenhum. Isso é inteiramente da competência de Mr. Corning e poderá lhe fazer essas perguntas. Creio, contudo, que ele preparou envelopes nos quais foi impressa a posição exata de onde cada impressão digital foi colhida e, por esse método, manteve as impressões digitais certas.
— Compreendo. Agora, me diga: nessa noite, teve oportunidade de ir examinar o interior do outro lado da casa dupla... O lado que era, creio eu, utilizado como escritório pela sociedade Faulkner e Carson?
— Não, nessa noite, não.
— E na manhã seguinte?
— Sim.
— O que encontrou?
— Um tanque, de base retangular, de vidro, que aparentemente fora utilizado como aquário ou tanque para peixes, de onde fora tirada toda a água, aparentemente por meio de um cano de borracha flexível com um diâmetro interior de cerca de dois centímetros. O tanque de vidro fora virado de lado e a lama e cascalho do fundo tinha entornado para o chão do escritório.
— Fez quaisquer tentativas para colher impressões digitais nesse tanque?
— Não, senhor. Não tirei nenhumas no tanque de vidro.
— Tentou obter algumas?
— Pessoalmente não o fiz.
— Está sugerindo que outra pessoa o fez?
— Não, senhor.
— Pelo que sabe ninguém da Polícia fez qualquer tentativa para colher impressões digitais desse tanque?
— Não, senhor.
— Posso perguntar porquê?
— Pela simples razão de que não achei que o tanque virado tivesse qualquer relação com o assassínio de Harrington Faulkner.
— Pode ser que tenha.
— Não sei como.
— Acha muito concebível que a mesma pessoa que assassinou Harrington Faulkner tenha despejado e virado o tanque?
— Não acho.
— Por outras palavras, pelo fato de o senhor, pessoalmente, não ter achado que pudesse existir qualquer relação entre os dois delitos, deixou que essa evidência fosse destruída?
— Vejamos as coisas desta maneira, Mr. Mason: na minha qualidade de oficial da força da Polícia, é necessário que eu tome certas decisões. Tenho a responsabilidade dessas decisões. Obviamente, não podemos andar a caça de impressões digitais por toda a parte. Temos de nos deter em qualquer ponto.
— E o seu ponto de paragem foi esse?
— Exatamente.
— Por regra, num caso de assalto por arrombamento, colhe impressões digitais, não é verdade?
— Sim, senhor.
— Contudo, não o fez neste caso.
— Não se tratava de um caso de assalto. Mason ergueu as sobrancelhas. — Nada desapareceu.
— Como sabe?
— Não faltou nada.
— Como sabe?
— Sei, replicou Dorset, colericamente, porque ninguém se queixou da falta de nada.
— O tanque fora lá instalado por Harrington Faulkner?
— Assim o creio.
— Por conseguinte, prosseguiu Mason, — A única pessoa que poderia ter apresentado qualquer queixa estava morta.
— Não acredito que tenham levado nada.
— Fez um exame ao conteúdo do tanque, antes de ser virado?
— Não.
— Então, quando diz não acreditar que tivessem levado nada, faz uso de uma qualidade telepática, intuitiva...
— Uso o meu raciocínio, Quase gritou Dorset. O juiz Summerville interveio placidamente:
— Esse tanque de peixes, virado, é importante, meus senhores? Por outras palavras, a acusação e a defesa tencionam relacioná-lo com o caso?
— A acusação não, respondeu Medford, prontamente.
— A defesa espera fazê-lo, declarou Mason.
— Bem, decidiu o juiz Summerville, permitirei uma margem muito larga no que diz respeito às perguntas.
— Não fazemos qualquer objecção, apressou-se Medford a afirmar ao juiz. — Queremos dar à defesa todas as oportunidades de estabelecer quaisquer fatos que possam contribuir para o esclarecimento do caso.
— Quando entrou no banheiro de Faulkner, perguntou Mason, — Encontrou alguns peixes dourados na banheira, sargento?
— Encontrei, sim.
— Dois peixes dourados?
— Dois peixes dourados.
— O que foi feito deles?
— Tirámo-los da tina para fora.
— E depois?
— Não achámos nenhum lugar em que os pudéssemos colocar e, por conseguinte, deitámo-los simplesmente junto dos outros peixes.
— Dos outros, se refere aos que estavam no chão?
— Exatamente.
— Não fez qualquer tentativa para Identificar os dois peixes dourados que estavam na tina?
— Não perguntei como se chamavam, retorquiu o sargento Dorset, sarcasticamente.
— A testemunha tem de responder às perguntas do advogado, censurou severamente o juiz Summerville.
— Não, senhor. Notei simplesmente que havia dois peixes dourados com vida dentro da tina e nada mais.
— Havia peixes dourados no chão?
— Sim.
— Quantos?
— Não tenho a certeza. Creio que a fotografia mostrará o número.
— Cerca de uma dúzia?
— Sim, qualquer coisa à volta desse número.
— Sobre a prateleira, por cima do lavatório, havia um pincel para a barba e uma navalha?
— Sim. Já o declarei.
— Que mais havia ali?
— Havia, creio eu, duas garrafas de peróxido de hidrogênio. Uma delas estava quase vazia.
— Mais alguma coisa?
— Não, senhor.
— Então, o que é que notou no chão?
— Havia pedaços de vidro partido.
— Dedicou algum exame a esses pedaços de vidro para determinar se tinham qualquer marca ou se originariamente tinham feito parte de algum objeto de vidro?
— Pessoalmente, não o fiz. Julgo que, mais tarde, o tenente Tragg mandou juntar todos esses pedaços e os ajustou uns aos outros de modo a formarem um aquário redondo bastante grande.
— Disse que havia um talão de cheques no chão?
— Havia, sim.
— Perto do corpo do homem assassinado?
— Muito perto.
— É capaz de descrever o seu aspecto? Medford interveio:
— Sr. Dr. Juiz, eu tencionava apresentar esse talão de cheques como prova, com outra testemunha, mas se o advogado deseja examinar esta testemunha a esse respeito, apresentarei imediatamente.
Medford apresentou o talão de cheques, o sargento Dorset o identificou e foi aceito como prova.
— Chamo a atenção de V. Exa., Sr. Juiz, para o fato do último cheque do talão, foi rasgado ao longo da linha ponteada. É um cheque com a indicação da mesma data que a do dia do crime, com a quantia de mil dólares escrita no canto superior direito e parte de um nome no corpo do talão. O primeiro nome está completamente escrito e o último ficou por escrever. Deste, se notam apenas as três primeiras letras. São G-r-e. O juiz Summerville examinou o cheque com vivo interesse.
— Muito bem, isto será considerado como evidência.
— Quando entrou no banheiro, alguns dos peixes que se encontravam no chão estavam ainda com vida? Perguntou Mason ao sargento Dorset.
— Não.
— Para seu governo, sargento, preveniu-o Mason, — Declaro que, quando entrei ali, notei um movimento num dos peixes... E estive nesse quarto uns dez ou quinze minutos antes de a Polícia chegar. Coloquei esse peixe dourado na banheira e aparentemente recuperou a vida.
— Isso foi, certamente, uma coisa que não tinha o direito de fazer, acusou o sargento Dorset.
— Não fez qualquer experiência para se certificar se ainda haveria qualquer manifestação de vida nos outros peixes?
— Não lhes apliquei nenhum estetoscópio, replicou Dorset, sarcasticamente.
— Declarou ter pedido à ré que o acompanhasse a casa de James L. Staunton?
— Sim, senhor.
— Teve ali alguma conversa com Mr. Staunton?
— Sim.
— E Mr. Staunton lhe entregou uma declaração com a assinatura do finado Harrington Faulkner?
— Entregou, sim.
— Sr. Dr. Juiz, tornou a intervir Medford, — Não quero parecer técnico, mas, no fim de contas, se trata aqui de um exame preliminar cujo propósito é determinar se há fundamento razoável para se acreditar que a ré tenha assassinado Harrington Faulkner. Se o há, o tribunal sujeitá-la-á à obrigação legal de responder perante um júri. Se o não há, o tribunal libertá-la-á. Acho que temos uma boa quantidade de provas para estabelecermos o nosso caso sem termos de prolongar o nosso inquérito. Estes assuntos são inteiramente extrínsecos. Nada têm a ver com o assassínio.
— Como sabe que nada têm a ver com o assassínio? Perguntou Mason.
— Bem, vejamos a coisa assim, respondeu Medford: — Nada têm a ver com o nosso caso. Nós podemos estabelecê-lo sem ir buscar todo esse assunto extrínseco.
— Sr. Dr. Juiz, eu compreendo a lei e sei que o tribunal também a compreende, mas faço notar ao tribunal que, nas circunstâncias de que este caso se reveste e em vista do mistério muito notório que o rodeia, eu deveria ser autorizado a apresentar todas as circunstâncias envolventes, que eu afirmo terem representado um papel importante no assassinato de Harrington Faulkner. Sei que o tribunal não pretende levar esta mulher a julgamento, se de fato for inocente, desprezando o fato de ser possível à prossecução estabelecer um caso técnico. Sei também que o tribunal está ansioso para que o verdadeiro assassino seja identificado, no caso desta jovem estar realmente inocente. Por conseguinte, submeto ao critério de V. Exa., Sr. Dr. Juiz, o meu parecer segundo o qual é preferível, nesta altura, atendendo às circunstâncias peculiares deste caso, deixar apresentar todos os fatos.
— Não há necessidade de apresentar todos, contrariou Medford, colericamente. — Precisamos apenas de convencer o tribunal de que existe um motivo razoável para se acreditar que a ré é culpada.
— Aí é que está o mal de toda a situação, Sr. Dr. Juiz, retorquiu Mason. — É a atitude da prossecução que está fazendo um certo jogo, que procura apresentar simplesmente uma certa parte de evidência; que retém o resto da evidência como um mísero avarento o seu ouro, a fim de que a ré seja apanhada de surpresa quando confrontada com essa evidência perante um tribunal superior. Ora, isso pode ser o meio para assegurar um grande número de provas de culpabilidade e para dar uma boa demonstração de eficiência por parte dos serviços do Promotor do Distrito, mas eu declaro Sr. Dr. Juiz, que se trata de um meio dificilmente aceitável de aclarar um mistério bastante embaraçoso.
— Para a polícia não é um mistério, gritou Medford.
— Certamente que o não é, porque, como o Sr. Dr. Juiz já teve ocasião de ver através da atitude do sargento Dorset, este reuniu a evidência que pensou resultar numa prova de culpabilidade da ré. Qualquer outra evidência capaz de inculpar outra pessoa qualquer foi desprezada. A Polícia não achou que este outro delito tivesse qualquer relação com o assassínio de Harrington Faulkner simplesmente pelo fato de não envolver a ré.
— Sei que é um tanto irregular, declarou o juiz Summerville, mas gostaria de ouvir do advogado os fatos gerais relacionados com o caso.
— Protesto por ser irregular, se opôs Medford.
— Peço simplesmente ao advogado que faça uma exposição geral da sua situação, declarou o juiz Summerville placidamente. — Estou certamente no direito de saber o que existe no espírito do advogado, antes de me pronunciar sobre uma objeção feita pela prossecução.
— Sr. Dr. Juiz, disse Mason, Harrington Faulkner possuía um par de peixes de bastante valor, peixes que eram muito mais valiosos para ele próprio do que o seriam no mercado, mas, em todo o caso, peixes de espécie invulgar. Harrington Faulkner alugou um dos lados da casa dupla pertencente à sociedade. O outro lado era ocupado pelos escritórios da sociedade. Faulkner instalara um tanque para peixes no escritório e colocara esses dois valiosíssimos peixes dentro desse tanque. Ele e Elmer Carson, o outro membro ativo da sociedade, se tornaram, muito notoriamente, inimigos mortais. Os peixes existentes nesse tanque contraíram uma doença que quase sempre é fatal. Tom Gridley, cujo nome figura neste caso, tinha um remédio para essa enfermidade. O finado tentou, por diversos meios, obter a fórmula com que o jovem Tom Gridley conseguia curar os peixes. Pouco tempo antes do assassínio, Elmer Carson conseguira uma ordem restringente temporária que impedia Harrington Faulkner de retirar esse tanque do escritório da sociedade, alegando que estava tão apegado ao edifício que se tornara um móvel fixo. Suponho que Harrington Faulkner, antes de ter conhecimento dessa ordem restringente, retirou dali esses peixes, sem, contudo, deslocar o tanque e que levou esses peixes à residência de James Staunton. Ora, Sr. Dr. Juiz, em vista das circunstâncias especiais e em vista do fato de a ré ser, neste caso, segundo se admite, o que familiarmente se chama a mulher de Tom Gridley, e empregada na loja onde Tom Gridley trabalhava, loja essa que Harrington Faulkner posteriormente comprou, a fim de conseguir o direito à fórmula de Gridley, considero todas essas coisas como parte integrante do caso. O juiz Summerville acenou com a cabeça em sinal de concordância e disse:
— Assim me parece.
— Pois bem, eu declaro que temos direito a apelar para os nossos direitos legais, declarou Medford, colericamente. — Nós não fizemos a lei e reparo que o erudito advogado da defesa nunca hesita em servir-se de qualquer sutileza para ganhar um ponto. Temos um código de leis. Respeitemo-lo.
— Muito bem, interveio o juiz Summerville. — Ia dizer isso mesmo quando o advogado interpôs os seus comentários.
— Peço perdão ao tribunal, disse Medford, inflexivelmente.
— Eu ia dizer, prosseguiu o juiz Summerville, — Não há necessidade de apresentar todos, contrariou o Medford, colericamente. — Que, segundo a lei, a prossecução necessita apenas de apresentar a evidência suficiente para demonstrar que foi cometido um crime e a existência de um fundamento razoável para acreditar que a ré foi quem cometeu o crime. Mas, desta vez, quero fazer notar que, em vista das circunstâncias de que se reveste este caso e em vista também dos incidentes bastante misteriosos que o têm rodeado, depois de a prossecução ter cessado o seu caso, o tribunal permite à defesa chamar testemunhas e lhes fazer as perguntas que quiser, a fim de expor fatos que o advogado da defesa acaba de se referir ao tribunal.
— O efeito disso, se o tribunal nos permite, interveio Medford, é chegar ao mesmo resultado. Todos os fatos extrínsecos serão arrastados para dentro deste caso.
— Se têm uma relação com a questão apresentada ao tribunal, quero ouvir todas as coisas que classifica de “fatos extrínsecos”.
— O que pretendo sublinhar é que o efeito é exatamente o mesmo que se obteria, sendo apresentados nesta altura.
— Então porque objeta à sua apresentação agora? Perguntou-lhe delicadamente o juiz Summerville.
— Eu pedi apenas um documento que está na posse da Polícia, interveio Mason. — Posso, se for necessário, apresentar subsequentemente o sargento Dorset como minha testemunha e pedir que esse documento seja apresentado.
— Mas que tem a ver esse documento com o assassínio de Harrington Faulkner? Inquiriu Medford. Mason sorriu e respondeu:
— Talvez mais algumas perguntas ao sargento Dorset esclareçam essa parte do caso.
— Interrogue-o, desafiou Medford. — Pergunte-lhe se o documento tem qualquer relação com o caso. Desafio-o a fazer-lhe essa pergunta, Mr. Mason.
— Prefiro, contestou este, interrogá-lo a meu modo, advogado. Virou-se para a testemunha e perguntou: — Sargento, depois de ter descoberto o corpo de Harrington Faulkner, começou a investigar o crime, não é verdade?
— É.
— Investigou-o sob todos os ângulos?
— Naturalmente.
— E, durante o decorrer da noite, me interrogou e à ré acerca de uma entrevista que nós tivéramos com James Staunton e nos perguntou se os peixes que Mr. Staunton tinha em sua posse eram realmente os dois peixes que lhe tinham sido confiados por Mr. Faulkner e que tinham sido retirados do tanque situado no escritório, não é verdade?
— Sim, fiz essas perguntas.
— E insistiu nas respostas?
— Achei que tinha direito a elas.
— Porque pensou que o assunto poderia lançar qualquer luz sobre a pessoa que assassinara Harrington Faulkner?
— Nessa altura, pensei isso.
— O que o fez mudar de opinião?
— Não me consta que tenha mudado.
— Por conseguinte, ainda pensa que as circunstâncias que investigou relacionadas com James Staunton tinham alguma ligação com o assassínio de Harrington Faulkner?
— Não.
— Então, mudou de opinião.
— Bem, mudei de opinião porque sei agora quem cometeu o crime.
— Você sabe quem pensa que cometeu o crime.
— Sei quem cometeu o crime e, se deixar de malabarismos, provaremos.
— Basta, interveio o juiz Summerville. — O advogado está interrogando a testemunha, segundo depreendo, com o propósito de demonstrar a verdade.
— Assim é Sr. Dr. Juiz.
— Continue com o seu interrogatório.
— Pediu à ré que o acompanhasse à residência de James L. Staunton?
— Pedi.
— Nessa altura, já fora prevenido, quer por Miss Madison quer por mim, de todos os fatos de que tivéramos conhecimento em relação com a posse desses peixes por parte de Staunton?
— Creio que sim. Disseram que era tudo quanto sabiam.
— Exatamente. E, nessa altura, esses fatos lhe pareceram suficientemente significativos para ir comprová-los?
— Nessa altura, sim.
— O que o fez mudar de opinião?
— Não mudei de opinião.
— Recebeu das mãos de James L. Staunton um documento escrito e assinado por Harrington Faulkner?
— Recebi.
— Quero que esse documento seja apresentado, declarou Mason.
— Protesto, opôs-se Medford. — Isto não é um modo correto de instar uma testemunha. Não tem nada a ver com o caso. É incompetente, despropositado e inconsistente.
— Não é um modo correto de instar uma testemunha, decidiu calmamente o juiz Summerville. — A objecção é aceita com esse fundamento.
— Nada mais, declarou Mason. O juiz Summerville sorriu.
— E agora, Mr. Mason, quer que o sargento Dorset figure no tribunal como testemunha da parte da defesa?
— Quero.
— A testemunha permanecerá no tribunal, decidiu o juiz Summerville, — E, se tiver na sua posse, qualquer documento que tenha recebido de James L. Staunton, relacionado com os peixes que pertenceram a Harrington Faulkner, enquanto vivo, a testemunha deverá estar preparada para apresentar esse documento quando for chamada a testemunhar pela defesa.
— Isso é seguir pelo caminho mais longo em vez de tomarmos o atalho, comentou Medford com certo ressentimento.
— Aparentemente a prossecução se recusa a seguir pelo atalho, observou o juiz Summerville. — O tribunal não deseja ser indevidamente severo na sua atitude para com a prossecução, mas foi sempre uma norma seguida por este tribunal ouvir um defensor quando este, numa instância preliminar, tem qualquer prova a apresentar tendente a esclarecer os resultados ou a lançar alguma luz sobre um crime cometido. E esta continuará a ser a norma a seguir por este tribunal. Chame a testemunha seguinte.
Bastante mal-humorado, Medford chamou o fotógrafo que tirara as fotografias indicativas da posição do corpo e do espaço em volta. Essas fotografias foram apresentadas, uma a uma, e, à medida que o iam sendo, o juiz Summerville estudava-as cuidadosamente. Eram onze e meia, quando Medford declarou a Mason:
— Pode instar a testemunha.
— Essas fotografias foram todas elas tiradas por si na casa de Harrington Faulkner e todas elas mostram o estado em que esta se encontrava quando o senhor chegou ao local da cena, não é verdade?
— Exatamente.
— Mas não se cingiu ao seu papel de fotógrafo e observou também as coisas que fotografou, não é verdade?
— Naturalmente.
— E, por consequência, pode testemunhar as coisas que viu?
— Sim, senhor. Acho que sim.
— Essas fotografias poderão pois ser utilizadas para lhe reavivar a memória quanto ao que encontrou no local do crime?
— Sim, senhor.
— Chamo a sua atenção para esta fotografia, disse Mason, estendendo uma das fotografias à testemunha, — E lhe pergunto se reparou num recipiente dentro da banheira. Creio que esta fotografia o mostra.
— Reparei, sim, senhor.
— Havia dois peixes dourados na banheira?
— Sim, senhor.
— No chão estavam três revistas... Creio que esta fotografia também as mostra.
— Sim, senhor.
— Reparou nas datas dessas revistas?
— Não reparei, não, senhor.
— Na realidade, Sr. Dr. Juiz, interveio Medford, essas revistas foram cuidadosamente marcadas para identificação e estão na posse da prossecução, mas espero seguramente que esse advogado não está insinuando seriamente que essas revistas tenham qualquer relação com o crime de Harrington Faulkner.
— Estou convencido, Sr. Dr. Juiz, declarou Mason, — Que essas revistas provarão um elo muito interessante e talvez até vital.
— Bem, não perderemos tempo discutindo a respeito. Apresentá-las-emos, declarou Medford.
— Sabe que revista estava por cima? Perguntou Mason.
— Estou certo de não, replicou Medford, — E não sei também qual dos peixes mortos estava com a cabeça virada para o sul e qual deles a tinha virada para o Sul-Sueste. Na minha opinião, a Polícia já investigou os aspectos importantes do caso e, como resultado dessa investigação, chegou a uma conclusão tão lógica que não deixa dúvidas. Isto é tudo quanto sei e é tudo quanto preciso saber.
— Assim parece, comentou Mason secamente. Medford ficou vermelho de cólera. O juiz Summerville perguntou a Mason:
— Afirma que a posição dessa revista é importante?
— Muito, replicou Mason. — E, se a prossecução apresentar essas revistas, podemos examinar as fotografias com uma lupa e saber assim a sua posição relativa. Poderemos certamente saber qual estava por cima das outras. Esta fotografia que tenho na mão demonstra
isso bastante eficientemente.
— Muito bem, disse Medford, apresentaremos essas revistas.
— Tem-nas aqui no tribunal?
— Não, Sr. Dr. Juiz, mas posso apresentá-las depois do almoço, se o tribunal desejar fazer uma suspensão dos trabalhos a essa hora.
— Muito bem, decidiu o juiz Summerville. — O tribunal fará uma suspensão dos trabalhos até às duas horas desta tarde.
Os assistentes, levantando-se dos bancos, produziram os habituais sons confusos do arrastar de pés e de comentários pronunciados em voz baixa. Sally Madison, sem uma palavra para Perry Mason, levantou-se da cadeira e ficou de pé, esperando calmamente que os agentes a escoltassem para fora da sala do tribunal.
Mason, Della Street e Paul Drake foram almoçar num pequeno restaurante próximo do edifício do tribunal onde comiam frequentemente por ocasião dos julgamentos. O dono da casa já os conhecia e reservou-lhes uma pequena sala particular.
— Está indo bem, Perry, disse Paul Drake. — Tem mantido o juiz Summerville interessado.
— Para nós foi uma sorte termos o juiz Summerville, admitiu Mason. — Alguns juízes gostam de acabar com as audiências preliminares o mais depressa possível. Partem sempre do princípio de que não devem se incomodar muito porque, seja como for, o réu será submetido a um julgamento perante um júri e, por conseguinte, não estão para problemas. O juiz Summerville tem ideias diferentes. Compreende que a função dos tribunais é proteger os direitos dos cidadãos em todas as fases do andamento do processo e acha que a função da Polícia é investigar e perpetuar a evidência enquanto fresca. Por acaso, sei, através de conversas tidas com ele, quer no tribunal quer fora dele, que é do seu perfeito conhecimento o hábito inerente à Polícia de investigar um caso até encontrar alguém que supõe culpado e depois desprezar toda a evidência que não coincida com as suas opiniões.
— Que pode fazer então? Perguntou Della Street. — Vai provocar a apresentação de toda essa evidência, considerando essas testemunhas como suas próprias testemunhas?
— É o que farei, retorquiu Mason.
— Bem, observou Drake, quanto a mim, Sally Madison está mentindo. O seu depoimento escrito está cheio de falsidades. Mentiu à Polícia, mentiu para você e continua a mentir.
— Todos os clientes são humanos... Até os inocentes, desculpou-a Mason.
— Mas não há razão nenhuma para que mintam aos seus advogados, disse Drake com calor. — De minha parte não teria com ela nada dessa sua atitude generosa.
— Procuro não deixar-me influenciar, Paul. Procuro visualizar o que aconteceu.
— Bem, ela mente a respeito de uma coisa. Ela não recebeu esse dinheiro de Genevieve Faulkner.
— Eu não falei que ela me contou isso, observou Mason, com os olhos brilhando.
— Ora, não precisava me dizer, para eu tirar as minhas próprias conclusões, observou Drake, secamente. — Ela tirou esse dinheiro da mala e há outros vinte e três mil dólares, escondidos em qualquer outra parte.
— Enquanto estamos discutindo discrepâncias, atentemos em algumas outras. Não posso imaginar por que razão Mrs. Jane Faulkner esperava no seu automóvel que Sally Madison e eu aparecêssemos, a não ser que tivesse sido avisada da nossa ida lá. E ninguém a poderia ter avisado a não ser Staunton. Na realidade, Paul, eu estou muito satisfeito com o modo como as coisas caminham. Medford fez exatamente o meu jogo, de forma que posso apresentar Staunton ou qualquer dessas outras testemunhas hostis como minhas próprias testemunhas e lhes fazer perguntas insidiosas com o pleno consentimento do juiz Summerville, o que me proporcionará ocasião de interrogar Staunton a respeito dessa ligação telefônica. Drake retrucou:
— Ora, ainda que conseguisse provar que Jane Faulkner já tinha ido para a casa, descoberto o corpo e depois ido se sentar no automóvel à espera que você chegasse, a fim de representar uma cena de surpresa e histerismo, mesmo assim, não consigo compreender que isso te leve a algum resultado.
— Se arranjar oportunidade de crucificá-la, crucificarei. Sabe tão bem como eu que ela mente ao afirmar que passou a tarde com Adele Fairbanks. Nesse ponto, atirou areia aos olhos do sargento Dorset. Fingiu estar doente e muito incomodada com o choque... E precisava apenas de que uma amiga fosse lhe fazer companhia. Subornou essa mulher amiga em quem ela sabia poder confiar para confirmar qualquer coisa que ela dissesse. E, enquanto Dorset se dirigia com Sally Madison para casa de Staunton, Jane Faulkner e Adele Fairbanks arquitetavam o seu engenhoso álibi segundo o qual estiveram juntas e foram a um cinema. O tenente Tragg certamente nunca teria consentido que Mrs. Faulkner lhe impingisse uma dessas.
— Suponho que não, concordou Drake. — Foi certamente uma boa jogada.
— Evidentemente, Paul, que alguém esteve de fato, nesse quarto, com esse cadáver, pelo menos duas ou três horas depois do crime ter sido cometido.
— Atendendo ao peixe dourado com vida? Inquiriu Drake.
— Sim, atendendo ao peixe dourado com vida, confirmou Mason.
— Pode se ter dado o caso de esse peixe ter caído num ponto debaixo do chão do banheiro onde a água podia se ter juntado, formando uma pequena poça e lhe permitindo respirar um bocadinho de oxigênio fora da água... Apenas o suficiente para lhe conservar a vida.
— Pode ter acontecido isso, admitiu Mason. E depois acrescentou: — Considero as possibilidades de assim ter sido de mil contra uma.
— Também eu.
— Partindo do princípio de que alguém esteve nesse quarto, aliado ao fato de sabermos que Jane Faulkner estava à nossa espera, escondida num lugar de onde pudesse nos ver chegar, há apenas uma resposta.
— Não vejo de que servirá provar que ela mentiu quanto a ter estado no quarto com o corpo, disse Drake.
— Em qualquer dos casos, nessa altura, o marido já devia estar morto.
— Atribuem um crime à minha constituinte simplesmente porque ela pregou algumas inverdades. Gostaria de provar que mais alguém também está mentindo. Tudo isto faz voltar Staunton à baila e o fato de ele ter telefonado a Mrs. Faulkner prevenindo-a de que estávamos indo para lá.
— Tenho uma pessoa tratando disso, Perry, disse Drake. — Não incomodarei com pormenores, mas me ocorreu que havia apenas um meio para verificar o telefonema de Staunton.
— Como?
— Através da mulher dele. E, ao fazê-lo, descobri alguns fatos incidentais.
— Fala, impacientou-se Mason. — O que descobriu e como?
— Havia só um meio de consegui-lo. Era colocar, nessa casa, uma boa agente que exercesse as funções de criada e sondasse Mrs. Staunton. Coloquei, pois, ali mesmo, na casa, uma boa agente que está vigiando as coisas. Mrs. Staunton está profundamente satisfeita. Acha que é a melhor criada que teve em toda a sua vida. Drake sorriu e continuou. — O que Mrs. Staunton não sabe é que tem como criada uma detetive com o salário de doze dólares diários e que no mesmo instante em que essa mulher conseguir a informação que procura, raspará de lá, deixando Mrs. Staunton com a lava-louça cheia de pratos sujos.
— Algumas notícias sobre o telefonema? Inquiriu Mason.
— Ainda não, respondeu Drake.
— Siga o plano, lhe recomendou Mason. — É um aspecto importante do caso. Drake consultou o relógio de pulso e declarou:
— Creio que vou telefonar para ela agora mesmo, Perry. Julgam que sou o namorado dela. Naturalmente, Mrs. Staunton está tão contente com o trabalho dela que não faz qualquer objeção a qualquer que seja a hora a que o namorado da criada telefona. Já se sabe que a mulher não deve poder conversar comigo, mas desconfio que hoje deva estar sozinha. Staunton anda por aí, esperando servir de testemunha, neste caso, e é muito possível que Mrs. Staunton tenha saído. Deixa-me telefonar. Drake afastou a cadeira e se dirigiu à cabine telefônica do restaurante.
— Bem vê Della, disse Mason, — Se neste caso não tivéssemos de contar com o fator tempo, estaríamos descansados.
— O que quer dizer?
— O modo por que o promotor do distrito segue todos os passos de Faulkner até à hora da sua morte! Começam a vigiá-lo às cinco horas, altura em que foi ao banco, e, daí por diante, não o largam. Do banco para a loja de animais, desta para o analista e deste para casa, lhe deixando apenas o tempo suficiente para despir o casaco e a camisa, altura em que telefona ao homem do banquete e é ouvido mandando Sally Madison sair. Nessa altura, está cheio de pressa para se barbear, se vestir e ir ao banquete. Evidentemente que não se demorara mais de cinco ou seis minutos em casa. Está parcialmente despido, pôs água quente correndo na banheira, ensaboou o rosto, se barbeou e pôs a navalha na prateleira. Acredite Della, se não fosse essa impressão digital encontrada na mala, como eu gostaria de provar que alguém entrou, nessa casa, logo depois de Sally Madison ter saído de lá e apertou o gatilho da arma! Della Street perguntou subitamente:
— Acredita que Sally conseguiu realmente apanhar essa bala?
— Conseguiu certamente. Eu já descobrira isso antes mesmo de falar com ela na cadeia. Estava certo de que devia ter sido ela quem tirara essa bala para fora do tanque.
— Não pensa que a tenha tirado para dá-la a Carson?
— Não.
— Porquê?
— Porque Carson não sabia que alguém tirara a bala dali.
— Porque julga isso?
— Porque, respondeu Mason, — Carson deve ter sido quem fez essa desesperada tentativa final para recuperar a bala, escoando a água do tanque por meio de um sifão e virando-o em seguida. E deve ter feito isso na mesma noite em que Harrington Faulkner foi assassinado. Ataquemos a coisa de um modo ordenado, Della. Deixemos de nos sentir confusos, simplesmente porque representamos uma constituinte que mentiu e nos meteu numa trapalhada. Deixemo-nos de exasperações e utilizemos os nossos cérebros como máquinas racionais.
— Qualquer que seja o seu raciocínio, disse Della Street, — Voltamos sempre ao mesmo ponto focal do caso em que, por muitas que sejam as pessoas nele envolvidas, foi Sally Madison quem abriu a mala e retirou de lá o dinheiro, quem atirou a mala vazia para debaixo da cama e a quem encontraram na posse de parte desse dinheiro. Mason começou a tamborilar com as pontas dos dedos sobre a toalha de mesa branca. Paul Drake abriu a porta da sala particular.
— Alguma novidade, Paul? Perguntou Mason.
— Essa minha agente está sozinha em casa, tal como eu pensava. Têm estado lá sozinha, desde as nove horas. Naturalmente, tem tido que fazer.
— Rondando?
— Sim. Têm se deparado com algumas coisas, mas nada de particularmente revelador.
— Quais são as coisas?
— Ao que parece, Faulkner financiara Staunton numa espécie de atividade mineradora.
— Sempre pensei que Faulkner tivesse um poder qualquer sobre Staunton, declarou Mason. — De outro modo não teria levado os peixes para lá e dito a Staunton o que deveria fazer... Compreende que o fato de Staunton ter tratado de seguros a com a sociedade não é nada que desse a Faulkner tal domínio sobre Staunton. Evidentemente que este podia ter mencionado isso quando conversou comigo, mas provavelmente achou que isso não me dizia respeito e mencionou apenas o assunto de seguros.
— Uma coisa que a minha agente me contou me deixou excitado.
— O que foi?
— Ao falar, a noite passada, com Mrs. Staunton, ela soube que na noite do crime o telefone da casa estivera avariado. Só o do escritório de Staunton funcionava.
— Ela está certa disso, Paul?
— Foi o que Mrs. Staunton lhe contou. Mrs. Staunton lhe disse que, nessa noite, quando precisou telefonar, teve de ir ao escritório. Referiu a isso porque não gosta dos peixes e lhe desagradou entrar no quarto onde estes estavam. Disse que lhe causavam arrepios, a olharem fixamente para ela, com aqueles olhos estranhos e protuberantes. Mas que o seu telefone estivera avariado, durante toda à tarde, e que a companhia só o consertou no dia seguinte; que a outra linha do escritório era a que funcionava.
— Paul, acha que Staunton foi tão esperto que tenha percebido o que eu estava fazendo quando fui naturalmente afastar as cortinas da janela e olhar para fora? Perguntou Mason.
— Não sei, respondeu Drake. — Quanto tempo esteve vigiando a casa depois de sair, Perry?
— Uns quatro ou cinco minutos. Staunton voltou e ficou parado olhando para os peixes. Parecia estar pensando nalguma coisa... A revolvê-la no espírito. Depois apagou a luz. Ficamos ainda ali uns minutos. É evidente que podia nos ter enganado. Fiquei certo de que se ele tencionasse telefonar a alguém, faria naquela altura.
— Bem, sabemos que Mrs. Faulkner estava lá fora vigiando. E pode estar absolutamente certo de que ela virou esse aquário dos peixes uns dez ou quinze minutos antes de você chegar lá.
— Certamente que os outros peixes dourados estavam mortos, Paul. Só o que eu apanhei conservava ainda uns leves vestígios de vida.
— Pois bem, seja como quiser, disse Drake. — Só um peixe dourado estava vivo. Alguém o deve ter colocado no chão.
— Havia um pedaço do aquário de vidro que conservava ainda um pouco de água. Lembro-me de ter reparado nisso e confirmei-o, esta manhã, numa das fotografias. Mas gostaria de saber se esse peixe não poderia ter estado nesse pedaço de vidro que continha um pedaço de água e depois morrido.
— Isso, fica claro, significaria que o aquário dos peixes poderia ter sido quebrado muito tempo antes, disse Drake. — Talvez quando Faulkner foi assassinado, por volta das oito e quinze ou oito e vinte.
— Gostaria de saber se um peixe dourado aguenta tanto tempo numa porção de água tão pequena.
— Sei lá! Quer que consiga um peixe dourado e experimente?
— Acho melhor, concordou Mason.
— Ok. Vou telefonar para o escritório e lhes pedir que façam a experiência. Perry Mason consultou o relógio de pulso e disse:
— Bem, parece que são horas de voltar. O tenente Tragg provavelmente estará, esta tarde, no banco das testemunhas e Tragg é um obreiro suave. A quanto importava esse negócio de minas que Staunton tinha com Harrington Faulkner, Paul?
— Não sei Perry, respondeu Drake, mantendo aberta a porta. — Esta tarde, poderei conseguir mais alguma informação.
— Não creio que me agradasse ter Faulkner como sócio num negócio de minas, declarou Della Street.
— Ou de qualquer outra coisa, observou Drake, ardentemente.
Encaminharam-se vagarosamente para o edifício do tribunal e quando, às duas horas, o juiz Summerville reabriu o tribunal, Medford declarou, com todas as indicações de uma virtude presumida:
— Desejo que fique registado que, nesta altura, entregamos à defesa três revistas que foram encontradas no chão do banheiro onde o assassínio foi cometido. Por meio de uma observação cuidadosa das fotografias tiradas e utilizando uma lupa para realçar os pormenores, podemos afirmar que as revistas, agora entregues à defesa, estão dispostas na mesma ordem por que foram encontradas no chão. Mason pegou nas revistas e disse:
— Chamo a atenção do tribunal para o fato de que a revista que estava por cima das outras e que tem uma nódoa de tinta semicircular é uma edição corrente enquanto que as duas inferiores são números mais antigos.
— Crê que haja nisso qualquer significado especial? Inquiriu Medford, com curiosidade.
— Sim.
Medford começou fazendo uma pergunta, depois se calou e observou Mason com uma especulação pensativa quando este abriu a revista e folheou as páginas.
— A nossa testemunha seguinte é o tenente Tragg, anunciou Medford, E...
— Um momento apenas, interveio Mason. — Chamo a atenção do tribunal e do advogado para um cheque que acabo de descobrir entre as páginas desta revista colocada por cima das outras, um cheque em branco, um cheque que não foi preenchido de modo nenhum, um cheque com a marca do Seaboard Mechanics National Bank. O juiz Summerville manifestou o seu interesse.
— Esse cheque em branco estava dentro da revista, Mr. Mason?
— Sim, Sr. Dr. Juiz. O juiz Summerville olhou para Medford.
— Já tinha reparado no cheque, Promotor? Este respondeu em tom natural:
— Creio que alguém mencionou realmente uma marca de livro dentro de uma das revistas.
— Uma marca de livro? Inquiriu Mason.
— Se é uma marca de livro, disse o juiz Summerville, seria interessante anotar o lugar da revista em que foi encontrada.
— Na página setenta e oito, Elucidou Mason, que parece ser a continuação de um romance.
— Estou absolutamente certo de que não tem qualquer importância, declarou Medford, desembaraçadamente. — Era simplesmente um cheque em branco que fora utilizado como marca de livro.
— Só um momento, pediu Mason. — Fizeram-se quaisquer diligências para colher impressões digitais desse cheque?
— Certamente que não.
— Sr. Dr. Juiz, desejo que esse cheque seja submetido a um exame de impressões digitais, declarou Mason.
— Então, mande-o fazer, gritou Medford.
Os olhos de Mason denotaram a sua excitação, mas com o domínio dos nervos que obtivera em muitos debates de tribunal, a sua voz não denotava qualquer traço de emoção, mas apenas essa ressonância clara que lhe permitia manter uma sala de tribunal completamente fascinada, sem, contudo, parecer levantar a voz.
— Chamo a atenção de V. Exa., Sr. Dr. Juiz, prosseguiu, — Para o fato de que no canto inferior esquerdo desse cheque existir um pedacinho triangular de papel pertencente ao corpo do cheque. Por outras palavras, o cheque foi arrancado de um talão de cheques pela linha perfurada, mas na extremidade inferior do cheque a linha de divisão saiu das perfurações e ficou aderida ao cheque um bocadinho triangular de papel. Medford comentou com sarcasmo:
— Isso me acontece cinquenta por cento das vezes em que eu arranco cheques de um talão. Significa simplesmente que o cheque foi arrancado às pressas e...
— Creio que o advogado não está atingindo o significado, interrompeu-o Mason. — Se o tribunal reparar no talão de cheques que foi apresentado como evidência, e que tem um cheque indicativo de uma quantia de mil dólares, o nome “Tom” e depois as três letras “G-r-i”, o tribunal verificará que no canto inferior direito desse cheque, falta um pedacinho triangular de papel. Ocorre-me a ideia que talvez fosse bom comparar este cheque com esse talão e ver se não é o cheque que foi arrancado desse talão. O rosto de Medford mostrou-se consternado.
— Vejamos esse cheque, decidiu subitamente o juiz Summerville.
— Se me permite Sr. Dr. Juiz, eu sugiro que pegue nesse cheque com o maior cuidado para que, no caso de nele existirem algumas impressões digitais...
— Muito bem. Muito bem, disse o juiz Summerville.
Mason, segurando no cheque por um canto, levou-o à mesa do juiz Summerville. Este pegou no talão de cheques que fora apresentado em evidência pelo amanuense do tribunal e, enquanto Medford e Mason se debruçavam sobre os seus ombros, o juiz fez ajustar cuidadosamente o cheque contra as perfurações do livro de cheques. O vivo interesse manifestado no seu rosto não deixava dúvidas.
— Ajusta-se, declarou. — É o mesmo cheque.
— É evidente, começou Medford a protestar que isso significa apenas...
— Significa que há menos possibilidade do que uma em dez milhões de que as linhas serrilhadas e irregulares desse pedaço de papel coincidam com o lugar que foi rasgado do talão de cheques, a não ser que esse pedaço de papel seja o cheque que foi dali arrancado, declarou severamente o juiz Summerville.
— Por conseguinte, interpôs-se Mason, deparamos com a situação em que o finado principiou evidentemente a preencher um cheque indicativo de um pagamento de mil dólares a favor de Tom Gridley, mas arrancou o cheque que estava ligado a esse talão e o colocou entre as folhas desta revista. É, por conseguinte, muito notório que o finado nunca tencionou preencher o cheque, mas apenas dando a parecer que passara um cheque a favor de Tom Gridley.
— Qual teria sido o objetivo de tal procedimento? Perguntou o juiz Summerville a Mason.
Este sorriu.
— Neste momento, Sr. Dr. Juiz, a prossecução vai apresentar o seu caso e, por conseguinte, deixarei a resposta a essa pergunta à prossecução. Quando a defesa apresentar o seu, ela se esforçará por explicar qualquer evidência que apresentar. E, entretanto, sugiro que a prossecução explique a evidência que apresentar.
— Ainda não a apresentei, declarou Medford, de modo impertinente.
— Pois devia tê-lo feito, atalhou severamente o juiz, e esta será apresentada ainda que o tribunal tenha de tomar isso a seu cargo. Mas, primeiramente, vamos submetê-lo ao exame de um perito de impressões digitais para ver se ainda existem algumas.
— Atrevo-me a sugerir que o tribunal nomeie o seu próprio perito, disse Mason. — Não quer dizer que a Polícia seja incapaz, mas podem sentir-se um tanto influenciados.
— O tribunal nomeará o seu próprio perito, anunciou o juiz Summerville. — O tribunal fará uma interrupção de dez minutos, durante os quais entrará em comunicação com um perito criminologista para saber que impressões digitais serão possíveis colhermos nesse cheque. Entretanto, o amanuense tomará este cheque à sua guarda. Acho que devemos espetar um alfinete neste canto e que se pregue no cheque de forma a que quaisquer impressões digitais que lá possam estar permaneçam intactas.
As palavras soaram com a entoação necessária para dar a entender que o juiz Summerville expressava uma irritação judicial pelo fato de não ter sido concedida à evidência a atenção devida por parte da Polícia, na altura em que teria havido possibilidade de colher impressões digitais existentes. O juiz em seguida se retirou com dignidade aos seus aposentos e deixou Medford livre para realizar uma conferência sussurrante com o sargento Dorset e o tenente Tragg. Dorset, muito francamente, se mostrava colérico e irritado. Mas Tragg estava embaraçado e cauteloso. Della Street e Paul Drake foram se postar ao lado de Mason.
— Parece uma abertura, Perry, comentou Drake.
— Já era tempo, retorquiu Mason. — Tem sido um caso bicudo.
— Mas o que quer dizer, Perry?
— Sinceramente, respondeu Mason, — Diabos me levem se o sei. Suponho que não há qualquer dúvida a não ser quanto à caligrafia de Faulkner nesse cheque.
— Creio que um perito de grafologia juraria, disse Drake.
— Um bom perito?
— Sim.
— O que não consigo compreender, disse Della Street, — É que o homem tenha preenchido e depois arrancado o cheque. Já se sabe que Faulkner é capaz de ter querido fazer parecer que passara um cheque de mil dólares a favor de Tom Gridley.
— Mas não teria feito qualquer diferença ainda que os seus talões tivessem indicado que ele dera vinte cheques de um milhão de dólares a Gridley. Só quando este levantasse o cheque é que se realizaria o verdadeiro pagamento do dinheiro. Há aqui qualquer coisa além do que parece. E não há dúvida que passei por alto uma alínea.
— Descobri uma coisa, Perry, declarou Drake. — Não sei se terá ou não alguma utilidade, mas, por volta das oito e meia da noite do crime, alguém telefonou para Tom Gridley. Disse desejar ter com ele uma pequena conversa sobre negócios, mas não quis dizer o nome. Disse querer fazer apenas uma ou duas perguntas. Disse depois que ouvira dizer que Gridley estava em disputa com Harrington Faulkner por causa de uns assuntos de dinheiro e que Faulkner oferecera a Gridley setecentos e cinquenta dólares em troca de um acordo. Os olhos de Mason estavam alerta, cheios de concentração.
— Continue Paul. O que Gridley respondeu a isso?
— Respondeu que não via motivo para discutir os seus assuntos com um estranho e a voz do homem disse que desejava fazer um favor a Tom, e que gostaria de saber se Tom consentiria num acordo em troca de mil dólares.
— E depois?
— Depois, Tom, doente e irritado, respondeu que se Faulkner lhe entregasse nas mãos um cheque de mil dólares, antes das doze horas do dia seguinte, chegaria a esse acordo, ainda que isso nada significasse para ninguém, desligou o telefone e voltou para a cama.
— A quem ele contou isso? Perguntou Mason.
— Parece que à Polícia. Não escondeu nada à Polícia e esta o ajuda o mais possível. Tentaram durante um momento relacionar essa conversa com o cheque de mil dólares. O que eles supunham é que alguém agia como intermediário e que já tinha recebido o cheque de mil dólares das mãos de Faulkner e procurava arranjar as coisas.
— Mas por quê? Perguntou Mason.
— Pergunta a mim?
— E esse telefonema teve lugar cerca das oito e meia?
— Aqui é que se nos depara um obstáculo. Tom Gridley estivera de cama com febre. Estava terrivelmente nervoso e excitado com as suas relações com Faulkner, por este comprar a loja de animais e tudo o mais. Adormecera e não reparara nas horas. Passado um momento, depois de ter pensado durante algum tempo naquelas coisas, olhou para o relógio. Eram nove e dez. Julga que a ligação tenha tido lugar um pouco mais de meia hora antes de olhar para o relógio... É um modo incerto de calcular as horas. Podia ter sido por volta das oito e vinte ou muito depois. A questão é que Gridley afiança que não foi antes das oito e quinze porque às oito horas olhara para o relógio e depois ficara acordado, durante alguns minutos, antes de cair num leve dormitar. A história é esta, Perry. A Polícia não deu muita importância depois de ter descoberto que não podiam relacioná-la com o cheque de mil dólares, e especialmente visto que Tom não tinha a certeza das horas.
— Não teria sido Faulkner, Paul?
— Parece que não. Tom disse que era uma voz estranha, a voz de um desconhecido. Parecia ser um homem bastante autoritário como se soubesse o que estava fazendo e Tom pensou que talvez se tratasse de algum advogado que Faulkner tivesse consultado.
— Poderia ter sido isso, admitiu Mason. — Faulkner tinha uns processos que requeriam atenção. Mas por que motivo qualquer advogado não se teria apresentado diretamente? Acredite Paul, a conversa deve ter tido lugar precisamente à hora em que Faulkner era assassinado. Drake concordou com um aceno de cabeça e disse:
— Por outro lado, pode ter sido alguém que pensasse que tinha possibilidade de arranjar as coisas, alguém que a mulher tivesse consultado ou talvez alguém a quem Carson pedisse para ajeitar as coisas.
— Prefiro a mulher, disse Mason, pensativamente. — Ajusta-se. Cos diabos, Paul, foi certamente alguém que a mulher consultou! Gostaria de ter a certeza do lugar em que ela estava realmente, na noite do crime.
— Tenho uns homens de vigia, mas ainda nada conseguimos saber. O sargento Dorset lhe deu a oportunidade de arquitetar esse álibi e a Polícia acredita nele.
— Aposto que Tragg fareja qualquer coisa, disse Mason.
— Se fareja, não parece, replicou Drake. — Não vai fazer barulho no departamento simplesmente porque o sargento Dorset permitiu que uma mulher simulasse indícios de um ataque de histerismo e conseguisse dessa maneira arranjar um álibi. Compreenda Perry, se Mrs.
Faulkner tivesse dito que desejava sair para ir ter com a sua amiga, antes de Dorset a ter interrogado, eles teriam rido dela e teriam aplicado terceiro grau. Mas ela disse que se sentia doente, saiu para a entrada, simulou enjoo e depois começou com um ataque de histerismo e Dorset estava tão ansioso por se desembaraçar dela, até acabarem as suas investigações, que quando ela declarou desejar que uma das suas amigas fosse para lá lhe fazer companhia Dorset quase lhe saltou ao pescoço de satisfeito com a ideia. Mason apoiou com um aceno de cabeça e disse:
— Começo a ter uma ideia, Paul. Acho que... Volta o juiz. Parece realmente ter tomado as coisas a seu encargo... Aposto que daqui por diante ele nos dará todas as facilidades. Não há dúvida que está bastante irritado com a Polícia.
O juiz Summerville voltou para o seu lugar, chamou uma vez mais o tribunal à ordem e começou:
— Meus senhores, o tribunal combinou pelo telefone com um dos melhores criminologistas da cidade para que este examinasse o cheque e visse o que é possível fazer a fim de colher as impressões digitais que nele ainda existam. Agora, meus senhores, desejam continuar com o caso? Sou suficientemente franco para declarar que, em vista do desenrolar peculiar do caso, o tribunal está inclinado a conceder uma prorrogação de tempo à defesa, no caso de esta assim o desejar.
— Creio que não, disse Mason, pelo menos nesta altura. Talvez quando a evidência progredir.
— Não creio que isso me agrade, interrompeu Medford. — Por outras palavras, o advogado da defesa acha que nós somos obrigados a apresentar o nosso caso com todos os seus pormenores e que, em qualquer altura que o queira, poderá pedir uma prorrogação de prazo. Acho que, se há qualquer dúvida a esse respeito, devíamos prorrogar o prazo até depois de serem colhidas impressões digitais nesse cheque. O juiz Summerville declarou secamente:
— A oferta do tribunal foi feita à defesa. Não acho que a prossecução tenha direito a pedir uma prorrogação de prazo quando uma valiosa peça de evidência, eu devo dizer até a mais valiosa peça de evidência, foi deixada escapar entre os seus dedos e teria passado completamente despercebida se não fosse a intervenção do advogado da defesa. Continue com o seu caso, Mr. Medford.
Medford engoliu a repreensão do juiz Summerville com a melhor compostura que pôde adotar.
— Evidentemente, Sr. Dr. Juiz, que estou simplesmente apresentando o caso tal como foi desenvolvido pela Polícia. Não é das atribuições dos meus serviços...
— Bem sei, bem sei, interrompeu-o o juiz Summerville, o erro é, sem dúvida alguma, da Polícia, mas, por outro lado, meus senhores, é evidente que não é das funções do advogado da defesa vir ao tribunal apontar a evidência cuja importância foi completamente negligenciada, tanto pela Polícia como pela prossecução. Contudo, isso aconteceu. Mr. Mason declara que, nesta altura, não precisa de qualquer prorrogação de prazo. O tribunal declara francamente que se sente disposto a conceder a Mr. Mason uma prorrogação razoável de prazo sempre que pareça redundar em prejuízo da causa da defesa continuar um exame antes de ser apresentada a evidência necessária. Chame a sua testemunha seguinte, Mr. Medford.
— Tenente Tragg, chamou Medford.
Tragg nunca estivera com melhor disposição do que quando compareceu no banco das testemunhas. Assumindo a atitude de um oficial da Polícia imparcial e hábil, que cumpre simplesmente o seu dever e não tem qualquer interesse ou animosidade pessoal no caso, começou a tecer uma rede de evidência circunstancial em volta de Sally Madison e depois, quando se referiu à ocasião em que apanhara Sally Madison na rua e encontrara a arma e os dois mil dólares em notas na mala, atirou com a bomba que Ray Medford preparara tão cuidadosamente.
— Ora me diga, tenente Tragg, pediu Medford, examinou essa arma com o propósito de colher quaisquer impressões digitais?
— Certamente, respondeu Tragg.
— E que descobriu?
— Encontrei várias impressões digitais que tinham características suficientemente distintas para poderem ser positivamente identificadas.
— E de quem eram essas impressões digitais?
— Quatro eram da ré.
— E as outras? Inquiriu Medford, ostentando na voz uma nota de triunfo consciente.
— As outras duas impressões digitais, respondeu o tenente Tragg, — Eram de Miss Street, secretária de Mr. Perry Mason e a mesma pessoa que, a pedido dele, levara Miss Sally Madison para o Kellinger Hotel, numa tentativa para impedir que fosse interrogada.
Medford deitou um rápido relance de olhos a Mason, ignorando que os detetives de Paul Drake já tinham prevenido Mason desse ponto da evidência, e imaginando encontrar no rosto deste qualquer expressão de desânimo. Mason se limitou a olhar naturalmente para o relógio e depois inquiridoramente para Medford.
— Já acabou de interrogar a testemunha? Perguntou.
— Pode instá-la, gritou Medford. O juiz Summerville ergueu a mão.
— Só um momento, disse. — Quero fazer uma pergunta à testemunha. Tenente Tragg, está absolutamente certo de que as impressões digitais que encontrou nessa arma eram realmente as de Miss Della Street?
— Sim, Sr. Dr. Juiz.
— Provando que ela tocara nessa arma?
— Exatamente, Sr. Dr. Juiz.
— Muito bem, disse o juiz Summerville numa voz baixa que denotava a sua compreensão da gravidade da situação, pode instar a testemunha, Mr. Mason.
— Perdoe-me, tenente Tragg, começou Mason, — Se passarei em revista algumas das suas declarações, mas, segundo ouvi, o senhor efetuou uma reconstituição completíssima dos movimentos de Harrington Faulkner na tarde do dia em que encontrou a morte?
— Das cinco horas em diante, precisou Tragg. — Com efeito, podemos responder por todos os seus movimentos desde as cinco horas até ao momento da morte.
— E ele foi à loja de animais Rawlins depois das cinco horas?
— Sim. Foi ao banco apanhar o dinheiro e depois se dirigiu à loja de animais Rawlins.
— E se demorou aí durante algum tempo, realizando um inventário?
— Cerca de uma hora e quarenta e cinco minutos.
— E enquanto estava lá notou este revólver?
— Exatamente.
— E meteu-o no bolso?
— Sim.
— E depois, segundo a sua teoria do caso, quando foi para casa tirou a arma do bolso e colocou-a... Talvez em cima da cama?
— A arma estava no bolso das calças. Ele foi para casa, tirou o casaco e a camisa e começou a se barbear. Nada mais natural supor que tenha tirado a arma do bolso.
— Então, atacou Mason, — Como se explica que não tenham encontrado nessa arma quaisquer impressões digitais de Mr. Faulkner? Tragg hesitou um momento e depois respondeu:
— Quem cometeu o crime deve ter limpado todas as impressões digitais dessa arma.
— Porquê?
— Obviamente, respondeu Tragg, sorrindo ligeiramente, — Para fazer desaparecer qualquer evidência incriminadora.
— Portanto, tornou Mason, — Se a ré tivesse cometido o crime e tivesse concedido ao problema das impressões digitais a atenção suficiente para ter limpado todas as impressões digitais dessa arma, não teria depois disso deixado lá as suas impressões digitais, não é? Tragg ficou obviamente chocado com a pergunta.
— O senhor está certamente fazendo uma suposição, Mr. Mason.
— Que suposição?
— Que eu sei qualquer coisa do que estava na mente da ré.
— O senhor já declarou o que estava na mente do assassino, disse Mason. — Declarou que este limpou as impressões digitais dessa arma para fazer desaparecer a evidência incriminadora. Mas, eu lhe pergunto se essa teoria é consistente com a teoria de que Sally Madison cometeu o crime.
O tenente Tragg alcançou obviamente a força da sugestão de Mason. Mudou desconfortavelmente de posição.
— Não é muito mais verosímil que ela esteja contando a verdade e que tenha pegado nessa arma para fazê-la desaparecer da cena do crime, por saber que pertencia a Tom Gridley?
— Deixo isso ao critério do tribunal, declarou Tragg.
— Obrigado, agradeceu Mason, sorrindo. — E agora quero lhe fazer mais duas perguntas, tenente Tragg. É teoria da Polícia, creio eu, que Harrington Faulkner estava preenchendo esse cheque e ia escrever nele o nome Tom Gridley quando foi assassinado com um tiro?
— Exatamente.
— O fato de ter escrito apenas as três primeiras letras do último nome e o fato de o talão de cheques ser encontrado onde caíra no chão são as coisas em que fundamentam a sua conclusão?
— Isso acrescido ao fato de a caneta de tinta permanente estar também no chão.
— Não acha que o defunto possa ter sido interrompido por qualquer outra coisa?
— Por exemplo? Inquiriu Tragg. — Gostaria que me indicasse qualquer coisa capaz de obrigar um homem a parar de escrever a meio de um nome.
— Talvez um toque de telefone? Sugeriu Mason.
— Impossível, disse Tragg — Isto é, em minha opinião.
— Gostaria de conhecê-la, insistiu Mason.
— Se o telefone tivesse tocado, o defunto teria certamente terminado o nome “Gridley” antes de atender ao telefone. E não teria deixado cair no chão nem o talão de cheques nem a caneta de tinta permanente.
— Por conseguinte, continuou Mason, o que impediu que o defunto acabasse de escrever o nome “Gridley” foi o tiro fatal?
— Creio não haver outra conclusão.
— Falou com um sujeito chamado Charles Menlo?
— Sim.
— E, sem antecipar o testemunho de Mr. Menlo, eu creio que o senhor sabe que Mr. Menlo declarará que estava conversando pelo telefone com o defunto, no momento em que alguém, aparentemente a ré, entrou na casa e foi mandada sair por Mr. Faulkner?
— Isto é certamente muito irregular, interpôs Medford.
— Acho que o advogado está simplesmente procurando poupar tempo, declarou o juiz Summerville. — Quer objetar à pergunta?
— Não, acho que não. Não há qualquer dúvida quanto ao testemunho de Mr. Menlo.
— Exatamente, disse o tenente Tragg.
— Portanto, prosseguiu Mason, se fosse a ré quem entrou na casa, nessa altura...
— Ela admite tê-lo feito, interrompeu-o Tragg. — O seu próprio depoimento escrito o afirma.
— Exatamente, continuou Mason. — E, viu a porta aberta, entrou, encontrou Harrington Faulkner no banheiro, falando no telefone e, se Faulkner tentou depois expulsá-la e ela disparou contra ele a arma, dificilmente o poderia ter feito enquanto ele estava preenchendo um cheque, no banheiro, não é verdade?
— Um momento. A que vem isso, outra vez? Perguntou Tragg.
— É muito óbvio, respondeu Mason. — A teoria da Polícia é que Faulkner estava falando ao telefone quando Sally Madison entrou no quarto. Faulkner ainda tinha sabão no rosto. Tinha água correndo na banheira. Ordenou à ré que saísse. Houve uma luta. Ela viu a arma em cima da cama, agarrou-a e alvejou-o. Mas se ela o tivesse alvejado enquanto lutava com ele no quarto, não poderia tê-lo alvejado enquanto ele estava preenchendo esse cheque, no banheiro, não é verdade?
— Não, respondeu Tragg. E, passado um momento, acrescentou: — Sinto-me satisfeito porque tenha tocado nesse ponto, Mr. Mason, porque torna o assassínio um crime premeditado, a sangue-frio, em lugar de um crime cometido sob um ímpeto de cólera.
— Porque pensa assim? Perguntou-lhe Mason.
— Porque Faulkner devia ter voltado ao banheiro, pegado no talão de cheques e começado a escrever o cheque quando ela disparou contra ele.
— É essa a sua teoria? Perguntou-lhe Mason. Tragg respondeu, sorrindo:
— É a sua teoria, Mr. Mason, e começo agora a achar que é uma boa teoria.
— E quando Faulkner caiu como resultado desse tiro, ele próprio virou a mesa em cima da qual estava o aquário onde nadavam os peixes dourados?
— Sim.
— Mas, prosseguiu Mason, Na banheira estava uma vasilha e um peixe dourado. Como explica isso?
— Penso que um dos peixes caiu dentro da banheira. Mason sorriu.
— Lembre-se, tenente, de que, nessa altura, Faulkner tinha água quente lá. Quanto tempo julga que um peixe viveria na água quente e como julga que a vasilha tenha ido parar dentro da banheira?
Tragg franziu o sobrolho, meditou, durante alguns segundos, e depois replicou:
— Não sou psicólogo. Mason sorriu cortesmente.
— Obrigado, tenente, por essa concessão. Receava que tentasse se atribuir essa qualidade, particularmente em atenção aos seus comentários para com as impressões digitais de Della Street nessa arma. Por tudo quanto se sabe, essas impressões digitais devem ter sido colocadas na arma antes do crime.
— Não do modo como explicou, disse Tragg. — Quem cometeu o crime deve ter limpado todas as impressões digitais da arma.
— Então, quem cometeu o crime não pode ter sido Sally Madison. Tragg franziu o sobrolho e declarou:
— Quero considerar esse ponto durante um momento. Mason se inclinou para o juiz Summerville:
— E é este Sr. Dr. Juiz, o ponto em que terminarei o meu interrogatório à testemunha. Gostaria de deixar o tenente Tragg considerar esse ponto durante um momento... Durante muitos bons momentos. O juiz Summerville indicou a Medford:
— Chame a testemunha seguinte.
— Louis C. Corning, Medford anunciou. — Faça o favor de avançar, Mr. Corning.
Corning, o perito de impressões digitais, que colhera as impressões digitais dos vários objetos da casa de Faulkner, fez um depoimento pormenorizado das que encontrara e dedicou especial atenção à de Sally Madison encontrada na alça da mala achada debaixo da cama.
— Uma impressão digital que foi apresentada como evidência e marcada “I. D. N.º 10”.
— Pode instar a testemunha, declarou Medford a Perry Mason, mal a testemunha identificara positivamente essa particular impressão digital.
— Por que, perguntou Mason, — Se serviu do chamado método relevante?
— Porque, respondeu desafiadoramente a testemunha, — Era o único método a utilizar.
— Quer dizer que não podia ter utilizado qualquer outro?
— Quero dizer que não teria sido prático.
— O que quer dizer com isso? A testemunha respondeu:
— Os advogados da defesa procuram sempre complicar a vida a um perito que revelou impressões digitais. Mas quando somos chamados a investigar um crime dessa espécie, temos de relevar as impressões digitais, e é tudo quanto há a fazer. A revelação permite se fazer um exame completo e cuidadoso e para evitar erros que algumas vezes se cometem em consequência de se ser demasiado apressado, tal como quando uma pessoa procura examinar e classificar uma grande porção de impressões digitais em pouco tempo.
— Levou algum tempo o exame dessas impressões digitais depois de as ter relevado?
— Trabalhei nelas umas boas horas, sim.
— Encontrou uma impressão digital da ré... A que foi apresentada como “I. D. N.º 10”... Na alça da mala, que foi também apresentada em evidência?
— Sim.
— Como sabe que encontrou ali essa impressão digital?
— Como sei as outras coisas. Mason sorriu. O juiz Summerville ordenou:
— Responda à pergunta.
— Bem, sei por que levei um envelope, e escrevi por fora deste: “Impressões digitais tiradas na mala” e depois me pus a pulverizar a mala e onde quer que encontrasse uma impressão digital, relevava-a e colocava-a nesse envelope.
— E que fez depois com os envelopes?
— Coloquei-os na minha pasta.
— E que fez com a sua pasta?
— Levei-a, nessa noite, para casa.
— E que fez depois com ela?
— Ocupei-me de algumas impressões digitais.
— Nessa noite, encontrou a “l. D. N.º 10”?
— Não, só a encontrei na manhã seguinte.
— Onde estava quando a encontrou?
— No meu escritório.
— Foi diretamente de sua casa para o escritório?
— Não.
— Aonde foi?
— A pedido do tenente Tragg, fui à residência de James L. Staunton.
— O que foi fazer lá?
— Tirei algumas impressões digitais de um tanque de peixes.
— Pelo método relevante?
— Pelo método relevante.
— E o que fez com essas impressões digitais? Perguntou Mason.
— Coloquei-as num envelope marcado “Impressões digitais colhidas do aquário de peixes, na residência de James L. Staunton”.
— E meteu também esse envelope na sua pasta?
— Sim.
— É possível ter se enganado e uma das impressões digitais da ré que foram tiradas desse tanque ter sido colocada inadvertidamente nesse sobrescrito com a indicação “Impressões digitais tiradas da mala”?
— Não graceje, respondeu desdenhosamente a testemunha.
— Não estou gracejando, replicou Mason. — Estou lhe fazendo uma pergunta.
— A resposta é um não inequívoco, absoluto, final e enfático.
— Quem estava presente enquanto colhia essas impressões digitais?
— Apenas o cavalheiro que me abriu a porta.
— Mr. Staunton?
— Exatamente.
— Quanto tempo levou?
— Entre vinte a trinta minutos.
— Depois voltou para o seu escritório?
— Sim.
— E quanto tempo depois é que acabou de verificar as impressões digitais e encontrou a “I. D. N.º 10”?
— Umas três horas depois, suponho eu.
— É tudo, anunciou Mason. Quando a testemunha saiu do banco, Mason disse:
— Agora, Sr. Dr. Juiz, creio que gostaria de pedir que a suspensão de trabalhos que o tribunal anteriormente sugeriu, seja efetuada. Preferiria conhecer o resultado do exame desse cheque em branco, acerca de impressões digitais, antes de continuar a instar testemunhas.
— O tribunal fará uma suspensão dos trabalhos até às dez horas de amanhã de manhã, declarou prontamente o juiz Summerville. — E, para benefício do advogado, faz-se saber que o tribunal recomendou ao criminologista que está examinando o cheque em branco, à procura de impressões digitais, que notificasse ambos os advogados imediatamente a seguir ao fim do seu exame. Até amanhã de manhã, às dez horas. Sally Madison, sem a mínima mudança de expressão facial, disse em voz baixa a Perry Mason:
— Obrigada.
A sua voz era tão calmamente impessoal como se estivesse expressando a sua gratidão por lhe acender um cigarro. Nem esperou que o advogado fizesse qualquer comentário; em vez disso, se levantou e ficou à espera que a escoltassem para fora da sala do tribunal.
A última claridade da tarde projetava sombras vagas das palmeiras sobre o relvado que marginava a parede lateral da residência caiada de Wilfred Dixon, quando Mason parou o carro, subiu os degraus da entrada e tocou a campainha. Wilfred Dixon abriu a porta e cumprimentou bastante cerimoniosamente:
— Boa tarde, Mr. Mason.
— Voltei, declarou Mason.
— Neste momento, estou ocupado.
— Tenho mais fichas, anunciou Mason. — Quero voltar a jogar.
— Terei muito prazer em recebê-lo esta noite. Acha bem às oito horas, Mr. Mason?
— Isso, respondeu Mason, — Não me convém. Quero ser recebido agora mesmo. Dixon abanou negativamente a cabeça:
— Lamento Mr. Mason. Mason lhe disse:
— Da última vez que o vi, fiz um blefe e o senhor acusou. Desta vez tenho mais fichas e creio que melhores cartas.
— Ah, sim?!
— Tornando a falar na nossa conversa anterior, me sinto impressionado com o modo habilíssimo por que me levou a acreditar que você nem por um só momento considerara a hipótese de comprar o interesse de Faulkner na sociedade, mas apenas lhe vender o de Genevieve.
— Sim? Inquiriu Dixon, agindo como se fosse fechar a porta.
— Foi bastante inteligente, mas a única razão que podia ter para estar interessado na bala que Carson escondera no tanque de peixes, devia ter sido pretender dispor de um poder sobre Carson e a única razão que posso imaginar para querer dispor de tal poder seria você próprio ou Genevieve ter disparado o tiro ou tencionarem comprar a parte de Faulkner e, quando a comprassem, ter Carson nas mãos de forma a poderem dominá-lo sem ele poder se debater.
— Receio, Mr. Mason, que o seu raciocínio seja inteiramente falso. Contudo, terei muito prazer em discutir consigo o assunto, esta noite.
— E, prosseguiu Mason, — Para o negócio ser mais vantajoso decidiu apresentar a Faulkner um cheque de vinte e cinco mil dólares a mais que o preço que fora realmente estabelecido e obrigar Faulkner a levar esses vinte e cinco mil dólares em dinheiro corrente. Wilfred Dixon pestanejou três vezes seguidas como se tivessem sido reguladas por cronômetro.
— Entre, convidou, — Mrs. Genevieve Faulkner se encontra aqui, neste momento. Não vejo qualquer razão para incomodá-la, mas talvez seja preferível acabarmos com este assunto de uma vez para sempre.
— Talvez seja, sim, concordou Mason.
Mason entrou atrás de Dixon no aposento, apertou a mão de Genevieve Faulkner, se sentou tranquilamente, acendeu um cigarro e continuou:
— Por conseguinte, já se sabe, depois de terem recebido de Faulkner os vinte e cinco mil dólares num negócio que era absolutamente fraudulento porque tinha como propósito primário uma tentativa para defraudar os Serviços de Impostos, pagaram inadvertidamente a Sally Madison dois mil dólares em dinheiro dos vinte e cinco mil dólares que Faulkner lhes entregara anteriormente. Ora, isso significa que viu Faulkner ou em casa deste ou em qualquer outro lugar; subsequentemente a Sally Madison ter saído da casa de Faulkner e antes de você pagar aqui a Sally Madison. Dixon sorriu e dirigiu um aceno de cabeça a Genevieve Faulkner.
— Não compreendo aonde é que ele quer chegar, Genevieve, disse calmamente. —Aparentemente, é alguma teoria arranjada à última hora para tentar pôr a cliente em liberdade. Pensava que talvez fosse preferível que o ouvisse querida.
— O homem parece estar maluco, disse Genevieve Faulkner.
— Voltemos a considerar a evidência, Mason propôs. — Faulkner estava muito impaciente para comparecer a um banquete onde alguns peritos de peixes dourados deviam falar e onde devia reunir-se a outros colecionadores desses peixes. Estava tão apressado que nem sequer queria tratar de quaisquer assuntos com Sally Madison. Correu-a para fora de casa. Tinha posto água para o banho. Tinha-se barbeado, mas parte do rosto conservava ainda espuma de sabão. É lógico supor que, depois de ter posto Sally Madison fora de casa, lavasse o rosto. Depois, antes de ter tido oportunidade de limpar a navalha, antes de ter tido oportunidade de despir as roupas e de saltar apressadamente para dentro do banho quente, o telefone tocou. Qualquer que tenha sido a conversa telefônica, se tratava de alguma coisa da maior importância para Harrington Faulkner. Era algo que o levou a adiar o banho, pôr a camisa, a gravata e o casaco e a correr para se encontrar com a pessoa que lhe telefonara. Essa pessoa deve ter sido você, Genevieve ou ambos. Ele entregou vinte e cinco mil dólares e depois voltou para casa. Nessa altura, era já tarde de mais para comparecer ao banquete. A água que estivera quente estava agora fria. Harrington Faulkner tinha outro encontro marcado ao que não queria faltar. Mas dispunha ainda de cerca de uma hora livre. Resolveu tratar de um peixe doente e separá-lo dos outros peixes. O tratamento a efetuar era mergulhar o peixe em partes iguais de peróxido de hidrogénio e de água. Por isso, Faulkner despiu uma vez mais o casaco e a camisa, se dirigiu à cozinha, pegou numa vasilha, introduziu partes iguais de peróxido de hidrogénio e de água, mergulhou o peixe nessa água e depois de ter acabado o tratamento colocou o peixe na banheira. Nessa altura, Faulkner se lembrou de que passara um cheque de mil dólares a Tom Gridley, que não o anotara no talão de cheques e que, por conseguinte, não o deduzira da sua conta bancária. Em consequência do levantamento dos vinte e cinco mil dólares, o balanço da sua conta de cheques diminuíra consideravelmente e ele queria se certificar de que ainda tinha conta positiva. Por conseguinte, pegou no talão de cheques, tirou a caneta de tinta permanente do bolso do casaco e pegou numa revista para utilizá-la como apoio para poder escrever. Achou que essa revista não era suficiente e então, ao acaso, pegou outras duas revistas antigas. Não foi impensadamente que ficou no banheiro preenchendo esse talão de cheque. Provavelmente, foi por qualquer razão relacionada com o tratamento do peixe. Estava preenchendo o talão quando
foi assassinado.
Dixon bocejou e cortesmente dissimulou o bocejo com o indicador.
— Receio, Mr. Mason, que essa sua teoria não seja factível.
— Talvez não, retorquiu Mason, — Mas a minha ideia é que quando a Polícia começar a interrogar Mrs. Genevieve Faulkner, segundo as alíneas da minha teoria, forçá-la-á a entregar esses outros vinte e três mil dólares e fazer um depoimento que esclareça a situação, ou começará a fazer uma revista à casa e acabará por encontrar os vinte e três mil dólares. Com cortesia primorosa, Dixon se dirigiu ao telefone.
— Deseja que telefone à Polícia e lhes sugira essa ideia? Mason fitou-o firmemente e respondeu:
— Sim, e, quando obtiver a ligação, pergunte pelo tenente Tragg. Dixon abanou melancolicamente a cabeça.
— Receio, Mr. Mason, que estejamos fazendo o seu jogo. Pensando bem, decidi nada ter a ver com tudo isso. Mason sorriu:
— Você fez um blefe, tal como eu fiz ontem, e desta vez, sou eu quem o acusa. Quando você me acusou, nem por isso deixei de telefonar a Tragg. Ora agora, ande para diante e tenha o mesmo espírito desportivo que eu tive.
— Está demasiadamente ansioso, comentou Dixon, e voltou para a sua cadeira.
— Muito bem, visto que não quer fazê-lo, farei eu.
— Então faça. Mason se dirigiu ao telefone, se virou e atirou:
— Esse cheque de mil dólares passado a Tom Gridley é para despedi-lo. Você não queria comprar o negócio e que se deparasse com quaisquer reclamações que pudessem redundar num litígio. Por conseguinte, telefonou a Tom Gridley e lhe perguntou se aceitaria mil dólares como acordo definitivo. Gridley respondeu que sim. Então você obrigou Faulkner a assinar aqui mesmo um cheque, nessa importância, que você enviou pelo correio a Gridley. Mas, quando soube que Faulkner fora assassinado, quis recuperar esse cheque. Nessa altura, não compreendeu que estava pondo em jogo a vida de Sally Madison. Você sabia apenas que, se pudesse evitar que se soubesse que Faulkner viera aqui, você estaria em posição de conservar esses vinte e três mil dólares e ter ainda toda a oportunidade de comprar o negócio à fortuna Faulkner ao preço por si fixado.
— Continue, continue Mr. Mason, Dixon incitou. — Está dizendo isso na presença de uma testemunha. Amanhã, processá-lo-ei por difamação. Deve ter alguma coisa em que basear uma história tão fantástica.
— Tenho a palavra da minha cliente, replicou Mason. Dixon sorriu:
— Para um advogado veterano, é muitíssimo susceptível ao encanto feminino.
— E tenho ainda um poder dedutivo sagaz. Esta manhã, você se levantou e foi ao restaurante da esquina, tomar o café da manhã. Demorou-se ali uma hora. É muito tempo para se tomar o café da manhã, num restaurante. Quando passei por ali, de carro, observei esse restaurante. Em frente, há uma caixa de correio. A hora da primeira tiragem da correspondência é às sete da manhã. Creio que o carteiro que tira a correspondência será capaz de declarar que, quando ia abrir a caixa, você já estava ali com uma história plausível e uma boa gorjeta. Inadvertidamente você colocara no correio uma carta para Thomas Gridley. Continha um cheque, mas neste havia um erro. Você queria retificá-lo. Convenceu o homem da sua identidade, do fato de ter posto a carta no correio... Isto é uma suposição, mas, quando jogo pôquer faço suposições. E agora vou telefonar ao tenente Tragg.
Mason levantou o auscultador, ligou para a telefonista e disse:
— Ligue para a Polícia. É urgente.
Durante um momento, o quarto ficou mergulhado no silêncio; depois, subitamente, virou uma cadeira. Mason olhou para trás a tempo de ver a figura corpulenta de Wilfred Dixon se precipitar sobre ele. O advogado largou o auscultador, girou sobre si mesmo, ao mesmo tempo em que desviava a cabeça para o lado. O punho de Dixon falhou o queixo de Mason e passou inofensivamente por cima do ombro do advogado. A mão direita deste assentou na boca do estômago de Dixon. Depois, quando o conselheiro de negócios se dobrou sobre si próprio, Mason recuou o braço, ergueu o ombro e desferiu no homem um terrível soco. Dixon se estatelou no tapete com um baque surdo, tão inanimado como o som de um saco de farinha caindo no chão.
Mrs. Genevieve Faulkner permaneceu sentada, muito calmamente, de pernas cruzadas pelos joelhos, com os olhos levemente semicerrados e uma expressão de concentração no rosto.
— É um jogador duro, Mr. Mason... Mas sempre gostei de homens que soubessem cuidar de si próprios. Talvez pudéssemos conversar um pouco.
Mason nem sequer se incomodou a responder. Pegou no auscultador pendente e perguntou:
— Comando-Geral da Polícia? Ligue-me com o tenente Tragg, de Homicídios, e depressa.
Passava das sete horas quando o tenente Tragg entrou no escritório de Mason.
— Algumas pessoas nascem com sorte, comentou Tragg, sorrindo. — Outras a conseguem e a outras lhes é imposta. Mason concordou com um aceno de cabeça.
— Eu devia colocá-la numa salva de prata e atirá-la no seu regaço, não é verdade? O sorriso de Tragg se desvaneceu.
— Referia-me a você. Na realidade, me custaria muito lhe ser desagradável, Mason, mas você tem nos batido tantas vezes que quando vi o seu lado completamente desprotegido, não tive como escolher.
— Bem sei, disse Mason. — Não o censuro. Sente-se. Tragg acenou a Della Street.
— Não fique com ressentimentos, Della. Foi tudo no exercício do dever. Sentou-se e perguntou. — Que me diz de um dos seus cigarros, Mason? O advogado deu um cigarro a Tragg. — Vamos libertar a sua “exploradora”. Gostaria de saber se você desejaria assistir à cerimônia.
— Certamente que sim.
— Não o censuro. Será impressionante. O demônio é que ainda não tenho um bom caso, realmente.
— Suponhamos que vai contar exatamente o que descobriu.
— Gostaria muito mais, replicou Tragg, — Que você me dissesse como soube o que aconteceu.
— Nós lhe oferecemos uma pequena evidência, tenente.
— Por exemplo?
— Deduzi que Carson devia ter tirado essa bala de cima da secretária de Faulkner e tê-la jogado para trás, para dentro do tanque de peixes. Mas a única razão para tê-la feito seria para proteger a pessoa que disparara o tiro.
— Quer dizer que foi ele quem disparou?
— Não, retorquiu Mason. — Quero dizer que outra pessoa o fez e ele queria proteger essa pessoa.
— Quem?
— Quando fomos a casa de Faulkner, na noite do crime, Mrs. Faulkner chegou a grande velocidade num automóvel. Parecia estar com uma pressa dos diabos, mas a julgar pelo cheiro do escapamento, achei que ela tinha andado com o motor frio o que significava que ela não viera de muito longe. Portanto, Paul Drake foi examinar o carro e verificou que o cinzeiro estava vazio. Tal como ele fez notar, uma pessoa nervosa acaba invariavelmente por esvaziar o cinzeiro do carro, se é obrigada a fazer uma longa espera, sob tensão nervosa. Tragg acenou com a cabeça em sinal de concordância e admitiu:
— Eu mesmo já fiz isso.
— Drake localizou o lugar onde o cinzeiro fora esvaziado. Era um ponto de onde se podia ver a fachada da casa de Faulkner.
— Quer dizer que Mrs. Faulkner estava à sua espera?
— Isso foi o que eu pensei, naquela altura, confessou Mason, — E quase ia permitindo que uma cliente minha fosse condenada, porque a verdadeira solução não me ocorreu.
— Qual era?
— Eu tinha razão em calcular que ela viera apenas de pouca distância, disse Mason. — Estacionara o carro, algum tempo antes, no lugar onde o cinzeiro fora esvaziado. Cometi o erro de optar pelo que me pareceu óbvio e de chegar a uma conclusão errada. Fora, sim, nessa tarde, mas muito tempo antes. Fora entre as cinco e as sete e não por volta da hora que Sally Madison e eu chegamos.
— E porque devia ela ter ido parar ali, nessa hora?
— Porque o marido saíra e Elmer Carson aproveitara a oportunidade dessa ausência para entrar no escritório da sociedade para procurar a bala. E Jane Faulkner, que disparara o tiro contra o marido numa tentativa para se ver livre dele, se sentara ali, dentro do carro, de onde podia vigiar a entrada da casa e tocar a buzina para avisar Carson, no caso de Faulkner regressar inesperadamente. Nesse caso, Carson teria escapulido pela porta dos fundos, atravessaria a alameda e iria se juntar a Mrs. Faulkner no carro desta e ter-se-ia posto ao fresco. Os olhos de Tragg semicerraram-se.
— Julga que Mrs. Faulkner disparou esse tiro contra o marido?
— Estou convencido de que sim. Engoliu esse soporífero como uma espécie de álibi. Conseguira se colocar num lugar por onde sabia que o marido passaria com o automóvel. Planejou disparar o tiro, saltar para dentro do seu próprio carro, tomar uma dose de um sedativo de ação rápida, ir para casa, se despir e se meter na cama. Disparou de fato o tiro contra o marido, mas não alcançara a dificuldade em acertar num homem dentro de um automóvel em andamento. Falhou por uma questão de centímetros. A evidência demonstra que a única explicação possível para o que aconteceu é que Carson protegia a pessoa que tentou cometer o crime. Obviamente, não foi Carson quem o cometeu. Por conseguinte, quem era a pessoa que fizera o atentado e que Carson tentava proteger? Eu devia ter percebido quando Mrs. Faulkner chegou em seu automóvel, cheia de pressa e com o motor quase frio. Tentava chegar na casa antes de o marido voltar do banquete e tinha o carro frio, não por ter estado por ali perto de vigia à casa, mas porque estivera nos braços de Elmer Carson, que mora, há de se lembrar, a uns quatro quarteirões da casa de Faulkner. Tragg fixou firmemente o desenho do tapete enquanto coordenava esses pontos no espírito.
— Isso não faz sentido, Mason.
— O que é que não faz?
— Essa tentativa elaborada para conseguirem encontrar a bala umas horas antes, dessa mesma noite, quando sabiam que Faulkner devia sair às oito e meia. Podiam ter esperado por essa altura.
— Não, não podiam, retorquiu Mason. — Sabiam que ele se demoraria na loja de animais, enquanto houvesse alguns minutos de claridade. Precisavam escoar esse tanque de peixes, e tentar achar a bala, que parecia lhes ter escapado, enquanto pudessem dispor da luz do dia. Se Faulkner voltasse de carro e encontrasse acesas as luzes do escritório, isso os teria traído. E há de lembrar de que, dado que esse lado do edifício era destinado a um escritório, não havia cortinas nas janelas, mas simplesmente gelosias nas janelas do sul e do ocidente.
— Bem, admitiu Tragg. — Voltando a Dixon. Telefonaram a Faulkner, lhe disseram que fechariam negócio prontamente às oito e meia, mas que ele tinha de estar ali com os vinte e cinco mil dólares; que se ele não estivesse ali nessa hora exata, não fechariam o negócio. O que, todavia, não consigo imaginar é que Faulkner tenha pagado vinte e cinco mil dólares em dinheiro corrente e contado com a palavra de Dixon para concluir o negócio.
— Não tinha outra alternativa, explicou Mason. — Além disso, ele sabia que Dixon queria comprar o seu interesse na companhia. Mas, em todo o caso, Faulkner largou tudo para ir lá. Quando lá chegou, levantaram a questão de Tom Gridley. Não queriam ter quaisquer processos. Por conseguinte, Dixon telefonou a Tom Gridley e chegou a um acordo com ele pelo telefone e segundo o qual Faulkner lhe enviaria pelo correio um cheque de mil dólares. Mas como é que Dixon e Genevieve Faulkner estavam a par de todo esse assunto da bala? Negligenciei em esclarecer isso. Como eles sabiam tudo quanto se passava na companhia? Há apenas uma resposta: Alberta Stanley, a secretária da companhia, estava ao serviço de Dixon. Quando ela lhe contou o caso da bala, ele deduziu o que devia ter acontecido... Tal como eu quando o ouvi. Tragg concordou com um movimento de cabeça.
— Evidentemente essa Stanley é a resposta a muitas coisas.
— O que é feito do cheque? Perguntou Mason. Tragg sorriu:
— Tal como você supôs, era o ponto fraco da armadura de Dixon. Mediante meia dúzia de tretas e de uma boa gorjeta, o carteiro se convenceu a devolver a carta a Dixon, quando fazia a retirada do correio. Mas, mesmo assim, estou muito longe de atribuir o crime a Wilfred Dixon.
— Atribuir-lhe o crime! Exclamou Mason.
— Mas, sim!
— Não pode lhe atribuir, disse Mason ao oficial. — Use os miolos. A pessoa que matou Faulkner foi a casa de Faulkner. Encontrou Faulkner tratando de um peixe dourado. Obrigou Faulkner a interromper o tratamento ao peixe e a ir buscar a caneta de tinta permanente para poder escrever um documento ou assinar algum. E, em seguida, depois de o documento ter sido assinado e enquanto Faulkner ainda tinha a caneta na mão, Faulkner se lembrou desse cheque passado a Gridley e resolveu preencher no talão a quantia do cheque. Por conseguinte, começou a preencher o talão e foi assassinado a sangue-frio por um homem que ia a sair de casa, mas que viu a arma de Gridley em cima da cama e não pôde resistir à tentação de utilizá-la. Faulkner caiu morto. Quando caiu, virou o aquário de peixes, colocado sobre a mesa do banheiro. O aquário se partiu. Um dos pedaços de vidro continha um pouco de água. Um peixe viveu aí até consumir todo o oxigénio dissolvido na água e depois, na sua agonia, saltou para o chão. Partindo da evidência desse peixe dourado, creio que o crime foi cometido por volta das nove e trinta e há de se lembrar de que Faulkner disse ter um encontro marcado para essa hora, pouco mais ou menos. Wilfred Dixon e Genevieve Faulkner se propunham a não anotar esses vinte e cinco mil dólares nos livros a fim de poderem ter um lucro dessa importância que não figuraria no seu imposto sobre rendimentos; tencionavam forçar Faulkner a vender a sua parte. Tencionavam se apoderar da bala que Carson atirara para dentro do tanque de peixes, provando que Carson colocara-a lá e fazer chantagem com este, obrigando-o a vender a sua parte por uma fração do seu valor; mas não são o tipo de matar deliberadamente um homem sem qualquer motivo. Uma vez recebidos os vinte e cinco mil dólares de Faulkner, certamente que não tinham qualquer interesse em mandá-lo para o outro mundo. Não compreenderam que, se mantendo calados, sentenciariam Sally Madison à morte... A princípio. Quando o compreenderam, estavam tão enterrados que tinham de continuar. Dixon não podia contar a verdade sem se implicar a si próprio e a Genevieve Faulkner numa transação fraudulenta. Por conseguinte, resolveram se manterem calados. Mas não foram eles certamente que seguiram Faulkner até em casa e o matou.
— Então quem diabo foi? Inquiriu Tragg.
— Use os miolos, disse-lhe Mason. — Lembre-se de que há um borrão na revista, uma nódoa de tinta. O que faz uma nódoa de tinta? Uma caneta de tinta permanente quase vazia. E James L. Staunton tinha um recibo passado por Faulkner que lhe mostrou quando você começou a apertá-lo, mas que não mostrou a mim quando o interroguei. Porque não o apresentou mais cedo? Porque não me mostrou? Porque a tinta ainda não estava bem seca e provavelmente porque parte do borrão caíra da caneta de tinta permanente quase vazia, quando Faulkner a tirara do bolso, e manchara uma borda do documento. Tragg se levantou subitamente e pegou no chapéu:
— Obrigado, Mason.
— Esse documento tinha um borrão? Perguntou Mason.
— Sim, numa borda. E como um insensato não mandei analisar a tinta. Podia tê-lo feito quando primeiramente vi o documento, e teria provado que fora escrito na noite anterior e não na altura em que Faulkner trouxe os peixes dourados. Receio, Mason, ter ficado tão obcecado pelo fato de estar tratando com uma mulher a quem tinham encontrado uma arma na mala, que fechei os olhos a tudo o mais.
— Esse é o grande inconveniente de se ser oficial, concordou Mason. — Têm a responsabilidade de arranjar a evidência que sustentará uma convicção. Quando fazem uma prisão, têm de empregar toda a energia para arranjar a evidência que assegurará a condenação da pessoa presa. Caso contrário, estão em maus lençóis com o promotor do distrito. Tragg concordou com um aceno de cabeça e depois, a meio do caminho para a porta, se virou e perguntou:
— E quanto a essa impressão digital... essa “I. D. N.º 10”?
— Essa impressão digital prova o perigo do método relevante, declarou Mason. — Toda a evidência mostra que Staunton era um homem sagaz, um homem astuto. O sargento Dorset, enquanto estava lá com Sally Madison, deve ter deixado escapar que estavam tirando impressões digitais no local do crime. Depois de eles partirem, Staunton, que, como você provavelmente verificará, conhece alguma coisa acerca de impressões digitais, sabia que as impressões digitais de Sally Madison deviam se encontrar nesse tanque de vidro nos lugares em que o segurara enquanto tratava dos peixes. Ele se limitou a revelar uma das suas impressões digitais desse tanque e já a tinha pronta à espera de uma oportunidade para introduzi-la na coleção das impressões digitais relevadas. Quando Louis Corning foi à casa de Staunton para tirar impressões digitais ao tanque, isso deu a Staunton a oportunidade que ele antecipara. Enquanto Corning colhia impressões digitais do tanque dos peixes e estava completamente absorto no que estava fazendo, Staunton viu a coleção de envelopes que Corning tão obsequiosamente tirara da pasta e introduziu a impressão digital de Sally onde lhe pareceu ser melhor.
— Não acredito que o tenha podido fazer, disse Tragg.
— Interrogue-o, disse-lhe Mason, sorrindo. — E quando o fizer, lhe diga que encontrou a sua impressão digital no envelope “I. D. N.º 10”.
— Porque Staunton o matou? Perguntou Tragg, depois de ter considerado, durante um segundo ou dois, a sugestão de Mason. Este lhe respondeu com enfado:
— Descubra-o. Meu Deus quer que eu descubra tudo para você? Faulkner e Staunton tinham sido sócios num negócio de minas. Aposto consigo dez contra um em como Faulkner tinha Staunton debaixo de mão. Faulkner acabara de ser forçado por Dixon a vender a sua parte na sociedade por menos do seu valor e provavelmente você verificará que Faulkner estava passando a isca em Staunton. Cos diabos, não sei e não me pagam para pensar nisso. A minha tarefa era tirar Sally Madison para fora da cadeia. Della Street e eu vamos até qualquer lado comer qualquer coisa. Talvez beber também!
— Para onde irão? Perguntou Tragg. Mason escreveu os nomes de três clubes noturnos num pedaço de papel e estendeu este ao tenente Tragg.
— Estaremos numa destas três casas, mas não procure pôr-se em contato conosco para nos transmitir nada, a não ser a confissão de Staunton e a hora em que vai tirar Sally Madison da cadeia. Não queremos ser incomodados com assuntos de importância menor.
A orquestra tocava uma valsa antiga. As luzes tinham sido diminuídas e projetores de luz azul iluminavam a cúpula por cima da pista de dança, dando a aparência de um luar de Verão e pondo em destaque os vultos dos pares que valsavam lentamente. Os lábios de Mason roçaram a face de Della Street.
— Feliz? Perguntou-lhe.
— Sim, querido, respondeu ela docemente. — E é maravilhoso não ir para a cadeia!
Um garçom se dirigiu apressadamente, cruzou o seu olhar com o de Mason e lhe fez sinais frenéticos. Mason conduziu Della Street na sua direção e depois, à beira da pista de dança, pararam de mover os pés, mas continuaram a se balançar ao ritmo da música.
— O que é? Perguntou Mason.
— Telefonou um tenente Tragg. Disse que é dos Homicídios e que lhe transmitisse o recado de que o senhor ganhou em todos os pontos e que Sally Madison será posta em liberdade, à meia-noite. Quer saber se deseja falar com ele. Mason sorriu e perguntou:
— Ainda está ao telefone?
— Sim.
— Transmita-lhe delicadamente os meus agradecimentos... Diga-lhe que estarei lá a tempo de assistir às cerimônias e que, neste momento, estou demasiado ocupado, para falar com qualquer pessoa que não seja o meu par. O garçom se afastou.
Mason voltou a conduzir Della Street para o centro da pista de dança.
— Pobre Sally Madison, comentou Mason, estava pronta a se arriscar à câmara de gás para salvar o homem que ama. Della Street olhou-o.
— Não se pode censurar por isso. É... É da natureza feminina.
— Surpreende algumas pessoas, Della, disse Mason, pensar que se encontra tanta lealdade nas Sally Madisons deste mundo como a que existe nas mulheres que sempre se comportaram bem. Della Street baixou os olhos.
— É o modo como uma mulher é feita, chefe. Fará qualquer coisa pelo homem que ama... Qualquer coisa... Depois acrescentou apressadamente. — Que horas são, chefe? Não podemos chegar tarde à cadeia.
— Não chegaremos, tranquilizou-a, lhe passando o braço em volta da cintura quando a música acabou. — Penso até, acrescentou, quando as luzes aumentaram de intensidade e voltavam para a mesa, — Que o tenente Tragg deve estar suficientemente grato para demorar as coisas, durante alguns minutos, em atenção para conosco. E, da próxima vez que vá para algum hotel com uma “exploradora”, Della, passe primeiramente uma vista de olhos na mala dela. Della Street riu e disse:
— Provavelmente, não farei isso. O senhor e eu aprendemos de tudo nas nossas aventuras, exceto prudência.
— É assim que eu gosto, respondeu Mason, sorrindo.
Erle Stanley Gardner
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