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Os Vidros Quebrados / Erle Stanley Gardner
Os Vidros Quebrados / Erle Stanley Gardner

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os Vidros Quebrados

 

        Belle Adrian teve o pressentimento de que algo desagradável estava se  passando.

       

         A luz do claro luar penetrava através dos cortinados diáfanos da janela estendendo-se até aos pés da cama e, pela posição das sombras, Mrs. Adrian podia concluir que, naquela altura do ano, já passava muito dá, meia-noite.

       

        Virou-se no leito e tentou adormecer novamente, mas o seu espírito não deixava de pensar em, Carlotta. Sentiu-se invadir por uma estranha angústia ao pensar no que teria acontecido à filha. Carlotta, já tinha vinte e um anos, idade suficiente para ter a noção das responsabilidades e ressentir-se com a constante supervisão da mãe. Naquele momento, onde, se encontraria? Já teria voltado para casa e se recolhido ao quarto, ou ainda permaneceria na vivenda de Arthur Cushing, a trezentos metros dali?

        

        Mrs. Adrian reteve o impulso de levantar-se e ir espreitar ao quarto da filha. Se esta acordasse, revoltar-se-ia, como do costume contra a atitude protetora da mãe. Até aos dezessete anos, sempre se mostrara uma jovem disciplinada e respeitadora; aos dezenove, começara a protestar, embora ainda tolerantemente, contra a vigilância materna; mas, a partir dos vinte, fora invadida por uma onda de ímpacíência, ansiosa por liberdade.

       

        Contudo, na opinião de Mrs. Adrian, Carlotta continuava a necessitar de ser protegida, visto não serem apenas os vinte e um, anos que demarcam, definitiva mente, a experiência da vida... e a que ela levara, até então, não poderia considerar-se, experiência.

       

        Não resistindo ao anterior impulso, Mrs. Adrian levantou-se e dirigiu-se ao quarto da filha. A porta estava entreaberta e a cama por desfazer. Carlotta ainda não regressara a casa, nessa noite em que se deslocara, sozinha, à vivenda de um homem solteiro, de reputação, segundo os vizinhos, pouco recomendável.

       

        Calçando os sapatos, sem dar-se ao trabalho de enfiar as meias, vestiu um, roupão e desceu, ao piso inferior; saiu de casa e foi inspecionar a garagem.

       

        A porta desta estava aberta, sem, o carro lá dentro. Artur Cushing estivera, cerca de quinze dias antes, a fazer esqui com Carlotta e, numa queda desastrosa, fraturara o ilíaco, por altura da anca. Isso compelira-o a ficar em casa, numa cadeira de rodas. Contudo, já se encontrava bastante melhor e pensava poder, em breve, voltar à cidade e recomeçar a trabalhar nos seus projetos de urbanização turística. De resto, fora com esse objetivo que sinalizara a compra de uma vivenda de campo, nessa zona da Montanha do Urso: o Vale do Urso.

       

        Naquela noite, convidara Carlotta a visitá-lo, para jantarem, e assistirem à projeção do filme que, ele fizera, durante os dias de férias na região. Era um filme colorido de dezesseis milímetros que acabara de chegar pelo correio, depois de ter sido revelado na cidade.

        

        Fora com certa apreensão que Mrs. Adrian vira a filha partir no carro, para esse encontro que ela considerava pouco conveniente. Não que duvidasse dá honestidade da filha, tanto mais que esta tinha, um namoro sério com um rapaz, advogado, de futuro promissor... Mas nunca se sabe o que pode acontecer a uma jovem, nas mãos de um aventureiro amoroso como Cushing, depois de um jantar em que este não deixaria de servir-lhe vinhos...

        

        A casa de Mrs. Adrian estava separada da vivenda de Cushing pelas águas do lago que, naquele momento, luziam paradas, como a superfície de um espelho. De onde se achava, a uns trezentos metros em linha reta, podia ver que as janelas da vivenda estavam iluminadas, mas nenhuma, sombra se movimentava nelas.

       

        Aquela hora, a criada de Cushing já deveria ter ido para casa. Portanto, ele e a filha tinham de estar sós.

       

        Por mais que se repetisse que nada aconteceria a Carlotta, Mrs. Adrian não conseguia voltar para casa. Apesar do frio, estava disposta a sondar o que se passava. Voltou atrás para enfiar uma saia e um casaco de abafo e tornou a sair em direção à vivenda de Cushing, não pela estrada que, embora tivesse melhor piso, era mais longa, enveredou pelo atalho que bordejava o lago. Teria de percorrer não mais do que meio quilômetro, por um, terreno que, outrora, fora totalmente coberto de culturas e agora se apresentava salpicado de outras pequenas vivendas, algumas ainda por concluir. Foi então que ouviu um grito de mulher.

       

        Mrs. Adrian estugou o passo, decidida a investigar o que se passara, mesmo que tivesse de arrostar com o desagrado da filha. Ao chegar à vivenda de Cushing, respirava com dificuldade. Olhou para o lado e viu o barco a motor do vizinho, ancorado, balançando serenamente com a ligeira brisa.

        

        As luzes da vivenda, que era de um só piso, estavam todas iluminadas, mas o silêncio era absoluto. Procurou com a vista o carro da filha e não o viu. Provavelmente fora recolhido na garagem do seu hospedeiro cuja porta se achava fechada.

       

        Que diria, quando batesse a uma das portas-janelas? Que ouvira um grito? E se ninguém tivesse gritado naquela casa? Se esse grito tivesse provindo de uma das outras vivendas marginais mais afastadas? Já imaginava a explosão da filha, indignada por uma tal intrusão.

       

        Mas já nada poderia detê-la. Bateu à porta e ninguém lhe respondeu. Insistiu, sem melhor resultado, e deu a volta ao edifício, até à porta das traseiras. Pela vidraça, notou que também ninguém se encontrava na cozinha. A fechadura cedeu logo à primeira rotação e Mrs. Adrian penetrou na vivenda já tomada por um sentimento de terror. O silêncio era total. Os seus chamamentos por alguém da casa não tinham resposta. Onde estariam Carlotta e Arthur Cushing? Mesmo que a filha tivesse perdido a cabeça e ido com ele para a cama... e ambos tivessem adormecido... decerto não deixariam de ouvir os gritos da mãe, ansiosa... E para

        que teriam ido para a cama, se ele estava com uma fratura ilíaca?

       

        - Carlotta... Mr. Cushing... Carlotta!

        

        A grande sala de estar também, servia de quarto de cama, com um, enorme divã a um dos lados. A parede estava decorada com esquis cruzados, como se fossem armas de escudo; também com taças de provas desportivas, armas de caça, revólveres de vários formatos e uma coleção de- fotografias de celebridades do cinema e do desporto, autografadas. A um canto, uma estatueta de bronze, que fez arrepiar os cabelos da intrusa, representava um: sátiro musculoso, em ereção sexual, prestes a penetrar uma sílfide que, de joelhos bem afastados, não parecia debater-se muito, embora lhe empurrasse o queixo com uma das mãos. Na parede, por cima do fogão de sala, estava suspensa uma cópia a óleo de Um quadro que Mrs. Adrian já vira num livro de arte, e que representava Leda a ser violada por um cisne, na mítica metamorfose de Júpiter que se servira de tal expediente para conseguir possuí-la. No chão via-se uma gravura emoldurada cujo vidro se partira. No meio da sala encontrava-se uma cadeira de rodas, com alguém, sentado e virado de costas para a janela.

        

        Belle Adrian contornou a cadeira e sentiu um nó na garganta. Arthur Cushing tinha um braço pendente e a cabeça reclinada para trás, ligeiramente tombada sobre um dos ombros. Uma mancha castanho-avermelhada destacava-se do branco da sua camisa de seda. A meio dessa mancha ressaltava o ponto negro de um buraco de bala. Pingos de sangue tinham escorrido para o chão. Não muito distante dos pés do cadáver, via-se uma caixa de compacto, aberta com o espelho partido. O pó de tom geral mais ou menos prensado, espalhara-se pelo chão, havendo resíduos dele sobre um dos sapatos do morto.

       

        Belle Adrian não precisou de olhar para as iniciais CA, gravadas no estojo de ouro circular, com um brilhante ao centro,  pois logo reconheceu o presente de aniversário que, ainda recentemente, Cushing oferecera a Carlotta. Por segundos que lhe pareceram uma eternidade, Mrs. Adrian ficou estática a olhar para o corpo inerte, numa postura ridícula, de boca aberta. Então, notou que uma das janelas tinha a vidraça quebrada e que também havia vidros espalhados por todo o lado. A vidraça da janela devia ter sido quebrada por um espelho pesado, identicamente estilhaçado, que se achava junto dela. Outros vidros estavam em redor de uma das rodas da cadeira e, entre eles, viu um pedaço de copo de balão; sobre a mesa estava um outro copo, idêntico, mas com a beira manchada de batom vermelho.

       

        Não se via arma alguma aos pés do morto, como sucede em casos de suicídio.

       

        Subitamente, com enérgica resolução, meteu mãos à obra. Com uma calma fria, como se arrumasse a cozinha após a refeição, começou a remover os vestígios, que pudessem relacionar Carlotta com o assassínio de Arthur Cushing; guardou o estojo de compacto e lavou o copo de balão...

 

        Sam Burris persistia metodicamente na difícil tarefa de acordar a mulher.

       

        - Não ouviste?- repetia insistentemente.

       

        - O quê? - resmungou ela sonolenta, logo voltando a adormecer.

        

        - O que eu ouvi...

       

        E Sam Burris agarrou-lhe os ombros, sacudindo-a. Por fim, a mulher abriu os olhos.

       

        - Que se passa?

       

        - Não ouviste o ruído de vidros quebrados e o estampido de um tiro?

       

        Teve de repetir-lhe.

       

        Mrs. Burris, agora já totalmente acordada, começou a interessar-se:

       

        - De que lado vinham os ruídos?

       

        - Pareceram-me provir da vivenda de Cushing. Sam, resolutamente, estendeu o roupão à mulher. Ajudou-a a vesti-lo e quase a arrastou para a janela. Mas a curiosidade de Mrs. Burris já estava bem desperta.

       

        - Dá-me o binóculo - sugeriu Betsy ao marido.

        Nesse instante, ouviram, um grito feminino ecoar pelas margens do lago.

       

        - Sim - considerou Mrs. Burris, animadamente.-

        O grito veio dos lados da casa de Cushing.

       

        - Teria preferido nunca tê-lo conhecido - resmungou Burris. - Começou por alugar-nos a vivenda e, depois, convenceu o pai a emprestar-lhe dinheiro para comprar-nos duzentos acres de terreno. Pensei que tencionasse plantar pomares... como me afirmara.

       

        - A culpa foi tua, Sam. Pagaram-te o que pediste, sem regatear. O velho milionário ainda hesitou em emprestar o dinheiro ao filho, mas tu elogiaste a situação do terreno na margem do lago. Foste um asno, e, agora, não tens de que queixar-te.

        

        - Mas eu não podia adivinhar que a intenção de Arthur Cushing era construir um hotel e encher este sítio de vivendas turísticas. Vão estragar-nos a paisagem... e, o pior, o sossego.

       

        - Toda a gente tem rido de ti. Era de ver que os Cushing só se interessam por investimentos em terrenos para construção, Nunca foram lavradores. Vendeste e pronto. O assunto ficou arrumado.

       

        - Não completamente, como pensas. A compra ainda não foi ultimada. Apenas deram um sinal de opção, por dois anos...

       

        - Pois... e é por isso que és o alvo de troça dos agricultores nossos vizinhos. Durante esses dois anos, terás de continuar a pagar os impostos, como proprietário desses duzentos acres.

       

        Sam, que passara o binóculo à mulher, perguntou: - Estás a ver alguma coisa?

       

        - Está uma luz acesa na casa de Mrs. Adrian, do outro lado do lago. É estranho, porque ela costuma deitar-se cedo! Por que estará acordada a uma hora destas?

       

        - Bem, volta para a cama - sugeriu o marido.-

        O tempo esfriou demais.

       

        - Já que me despertaste, :estou interessada em descobrir o que terá acontecido. Mrs. Adrian, terá ouvido o grito?

       

        - Isso é lá com ela, Betsy. Voltemos para a cama. Contudo, a voz de Sam Burris não era muito convincente. Parecia também interessado no que se teria passado na vivenda de Arthur Cushing.

       

        - Olha, Sam. Vi o vulto de alguém a passar diante de uma das portas-janelas da vivenda. Todas estas estão iluminadas. Que foi que ouviste, antes de acordar-me?

       

        - Já não sei... Pareceu-me uma janela a ser quebrada e o estampido de um tiro, mais pode tratar-se do escape de um automóvel com problemas na combustão do motor.

       

        - Anda logo, Sam... Vê isto!

       

        -  Sim... Anda alguém diante da casa de Cushing... Isso que tem?

       

        - Mas...  ia jurar... é Belle Adrian, a mãe de Carlotta. Que raio uma mulher da idade dela anda a fazer em torno da vivenda de Cushing. O tipo tem andado metido com Carlotta... Não me digas que a mãe agora também deu nisso

       

        - Não digas disparates, Betsy! Cushing está numa cadeira de rodas!

       

        - Não sejas ingênuo, Sam. Há muitas maneiras de fazer amor... bem o sabes!... Olha. A vidraça de uma das janelas está quebrada.

       

        Sam Burris tirou bruscamente o binóculo das mãos da mulher e espreitou pelas lentes.

       

        - Que maneiras são essas? - protestou Betsy.- Nunca serás um cavalheiro!

       

        - Cala-te mulher - respondeu Burris rispidamente.- O caso pode ser sério... Não há dúvida: é a mãe de Carlotta. Deve ter dado a volta à vivenda e entrado pela porta de serviço, pois já se encontra na sala. O chão está cheio de vidros partidos e ela anda curvada a apanhar coisas... como se fizesse a limpeza... Que horas são, neste momento, Betsy?

       

        - Como queres que o adivinhe? O relógio está na cozinha. Vai lá e vê com os teus próprios olhos... Eu fico a espreitar o que se passa na casa desse lobo de fêmeas.

       

        Sam Burris passou-lhe o binóculo, sugerindo: - Devíamos fazer alguma coisa a este respeito... Pode ter-se tratado de um acidente...

        - Sim. Talvez uma das garotas lhe tenha dado o que ele merece há muito tempo.

       

        - Acho que me compete ir até lá, dar uma vista de olhos.

       

        -  Cushing não gostaria que fosses meter o nariz na vida dele.

       

        - Que goste ou não goste!... Aquela janela partida e o  grito de mulher, são justificação bastante... -Quem gritou foi Belle Adrian, Sam.

       

        - Por que dizes isso?

       

        - Porque a vejo a andar por lá muito atarefada.

        - Não! Penso que foi a filha Quem gritou por qualquer motivo grave, e a mãe foi lá para ver se tapa os vestígios da « bronca ».

       

        - Vai ver que horas são, Sam. Agora, também estou interessada em sabê-lo.

       

        Depois de voltar dá cozinha, Burris elucidou:

       

        - Já passa das duas e meia da manhã. Vou até lá.

        - Sim, realmente é o melhor que tens a fazer. Enquanto punha o sobretudo, depois de ter enfiado umas calças e calçado as botas de campo, Burris recomendou:

       

        - Olha, Betsy... Não contes nada acerca de teres visto Belle Adrian a andar por ali...

       

        - Por que não? Quero saber o que foi lá fazer e vou perguntar-lhe. Por que diabo sugeres que me Cale?

       

        - Porque são boa gente... ela e a filha... A moça pode ter dado uma « escorregadela »... e tu falas sempre de mais...

       

        -  Gosto disso, Sam! Com que então falo de mais, bem? Se a garota se lembrou de meter-se debaixo de um garanhão mais velho do que ela dez anos, tenho de aplaudi-la, não? Olha, sabes que mais? Eu própria vou enfiar um casaco e ver em que param as modas.

       

        - Não Betsy... Fica aqui, quieta, a vigiar com o binóculo. E nada de falatórios, sem termos uma certeza. Mesmo tendo-a, não nos fica bem difamar seja quem for. Essas Adrian são boa gente...

       

        - Já o ouvi!... A propósito... Quando me acordaste, tu disseste ter ouvido um tiro, depois do ruído de vidros quebrados?

       

        - Não tenho a certeza de que se tratasse de um tiro. Ouvi um estampido e é tudo.

       

        - Fosse o que fosse, vai lá dar uma  olhada. Estou a arder em curiosidade... Olha... Ela já se foi embora.

       

        - Melhor. Prefiro que Mrs. Adrian não tenha de falar comigo... Seria embaraçoso para ambos... Que maçada!

       

        E com ostensiva relutância, Sam Burris saiu para a noite fria.

       

        Mrs. Adrian, ainda com o coração acelerado pelas emoções sofridas, regressou a casa, pelo atalho que bordejava o lago.

       

        A garagem ainda estava vazia.

       

        Por momentos, estacou confusa, visto que Carlotta já devia estar ali há muito tempo, desde que soltara o grito de terror. Pela estrada, bastavam-lhe menos de cinco minutos e teria arrumado o carro na garagem, fechado a porta e ido para a cama.

        

        Mrs. Belle Adrian, ficou terrivelmente preocupada ao pensar que a filha optara pela fuga. Isso seria uma prova de culpabilidade. A Polícia não deixaria de saber que Cushing tinha convidado Carlotta para jantar... Viria interrogar a moça e, não a encontrando, considerá-la-ia imediatamente, a primeira suspeita. Depois, qualquer júri aceitaria uma acusação de culpada de homicídio. Se ao menos Carlotta ainda fosse virgem... e a mãe tinha sérias dúvidas a esse respeito... ainda poderia alegar autodefesa de honra e da castidade... Bem, era melhor não pensar nessa hipótese improvável.

       

        Para já, tornava-se necessário fazer duas coisas: descobrir Carlotta antes que a Polícia a encontrasse, e fazer uma mala com as coisas da filha. Talvez fosse possível convencer a Polícia de que, depois do jantar com Cushing, Carlotta decidira ir para qualquer lado... sem ser em fuga.

       

        Mrs. Adrian irrompeu pelo quarto da filha e estacou, rígida, ao ver o luar bater de chapa sobre a cama. Carlotta começou a soltar um grito, mas reconheceu a mãe e sufocou-o com a mão.

        -Mamãe!... Por que motivo ... ?

       

        -Tu aqui! - espantou-se          Mrs. Adrian.

       

        Já completamente acordada, Carlotta replicou calmamente:

       

        - Naturalmente! Onde queria que eu estivesse?

        - Eu... Há quanto tempo estás em casa?

       

        - Sei lá? Há um bom tempo.

       

        - Mas o carro não está na garagem!

       

        - Pois não. Tive um pneu furado na estrada, deixei-o no meio do caminho e vim a pé para casa... E é favor, mãe, deixar de andar a bisbilhotar a minha vida.

       

        - Não ando a bisbilhotar, Carlotta. Tenho razões para estar alarmada contigo.

       

        Mrs. Adrian acendeu a luz do quarto e dirigiu-se a uma cadeira, sobre a qual se via a blusa que a filha usara nessa noite. Pegou-a e notou que o tecido estava rasgado no peito e descosido num dos ombros.

        - E isto, Carlotta? Como aconteceu?

       

        - E diz a mãe que não está a bisbilhotar? Fique sabendo que já sou uma menina crescida. Tenho, peito e ancas bem formados e os homens gostam de passar-me as mãos pela carne. Que quer? Está no sangue deles. Mas sei defender-me, quando começam a tentar ultrapassar as barreiras...

       

        - Que te aconteceu com esse Arthur Cushing?

        - Armou-se em polvo e tive de cortar-lhe os tentáculos.

       

         - Que lhe fizeste?

       

        -  Esbofeteei-o com toda a força que encontrei. Ficou-me, a doer a palma da mão, mas valeu a pena. Gosto que os homens me afaguem, mas com delicadeza, até ao ponto em que decido travar-lhes as carícias. Fico danada quando procuram ultrapassar os meus próprios apetites.

       

        Mrs. Adrian  tirou do bolso do casaco a caixa de compacto e mostrou-a a Carlotta.

       

        - Onde encontrou isso, mãe?

        - Na casa, de Arthur Cushing.

       

        O rosto da jovem mudou, de expressão.

       

        - Santo Deus, mãe! Não me diga que esteve lá!

        - Estive e encontrei-o sentado na cadeira de rodas, com um buraco de bala no peito.

       

        - Santo Deus, mãe! Tem a certeza?

       

        - Absoluta... e, além disso, encontrei esta tua caixa de pó compacto aberta, no chão, com o pó compacto espalhado em redor, e ainda notei que uma vidraça da janela estava partida, assim, como um copo de balão, manchado com o teu batom.

       

        - E a mãe que fez?

       

        - Removi todos os indícios que julguei comprometedores para ti, Carlotta... ou espero tê-los removido.

        -Oh, meu Deus! Apague essa luz, mãe. Não quero que toda a gente saiba de que ainda estamos acordadas, a estas horas. Venha para a minha cama e tornemos a falar no assunto, com todos os pormenores.

       

        Um manto cinzento de neblina cobria o lago, nessa manhã deveras fria. A primeira luminosidade do céu recortou a longa silhueta da montanha de um verde azulado, raiada, de neve nas vertentes e prateada na crista eriçada.

       

        A campainha da porta de Belle Adrian soou repentinamente, duas vezes seguidas.

       

        Mãe e filha entreolharam-se e a primeira sussurrou:

         - Deve ser o xerife. Pensei que ainda tivesses tempo para pegares na mala e partires... em excursão.

       

        Carlotta, inclinando-se sobre a mesinha de cabeceira, acendeu a luz do pequeno candeeiro.

       

        - Maldito furo!           ou. - Se não fosse esse azar...

       

        - Deixa as lamentações para outra altura. Agora não te esqueças de que te zangaste com Arthur, logo a seguir à criada ter saído. Ele nem sequer te acompanhou à porta na sua cadeira de rodas. Estava furioso contigo. Ao vires para casa, pela estrada, tiveste um furo no pneu e fizeste o resto do trajeto de regresso a pé. Tencionavas ir visitar...

       

        - Agora, que o xerife já está aqui, é melhor não lhe falarmos em qualquer intenção de eu sair daqui.

       

        - Tens razão... Mas, se ele encontra a mala já feita        

        -Esconda-a no quarto de arrumações, mãe.

         - Podiam passar em revista à casa...

       

        A campainha, voltou a tinir e Carlotta suspirou:

        -Se, ao menos, Harvey pudesse ficar fora disto.

       

        - Como é advogado, talvez pudesse ser-te útil.

       

        - Pobre Harvey! Como irá reagir, quando souber? Arthur era um tipo sem escrúpulos que só desejava divertir-se comigo. Creio que andei brincando com o fogo... e receio ter-me chamuscado!

       

        - Mantém-te na cama. Vou vestir-me para receber o xerife.

       

        Momentos depois, perguntava, através do batente:

        - Quem é?

       

        - A única resposta foi uma nova campainhada. - Um momento. Estou acabando de vestir-me. Acendeu a luz do alpendre e, através da vidraça, viu Sam Burris, com o nariz e as orelhas vermelhas de frio.

       

        Mrs. Adrian abriu a porta, bocejou e fingiu-se admirada:

       

        -Quem é?... Oh! É Mr. Burris! O que se passa?

         - Preciso lhe falar, Mrs. Adrian.

       

        - A esta hora da noite... da manhã! Porque já é manhã, segundo vejo!

       

        - É muito importante.

       

        - Bem.... Está tudo desarrumado, mas entre da mesma maneira. De que se trata?

       

        - Nem sei como começar - hesitou Burris, olhando para o chão.

       

        - Francamente, Mr. Burris... Já são... deixe-me ver... quatro horas da manhã. Se veio acordar-me a uma hora destas... O assunto deve ser terrivelmente importante!

       

        - E é. Mr. Arthur Cushing foi assassinado. Como sabe, a nossa vivenda, fica em frente à sua do outro lado do lago.

       

        Sei perfeitamente onde mora.

       

        Pois...  e a nossa casa fica ao lado dá vivenda de Arthur Cushing. As janelas do nosso quarto dão diretamente para lá... Minha mulher... e eu também, às vezes... já temos visto muita coisa. O nosso vizinho pelava-se por conquistar franguinhas frescas e, ainda por cima, sempre manifestou um mau temperamento, quando elas não cediam aos seus desejos.

       

        Desta vez, a minha mulher e eu ouvimos um grito feminino, como o de uma moça apavorada e, naturalmente, fomos espreitar o que se passava. As luzes estavam acesas e Cushing nunca se incomodou em correr as cortinas, pois pensava que ninguém podia presenciar o que lá se passava. Mas nós temos um binóculo... compramo-lo para ver o lago e acompanhar o vôo das aves de arribação... mas, evidentemente, também assistimos a muita coisa imoral que ele fazia com as garotas que levava lá para casa ...

       

        - E estiveram a vigiar a casa depois de terem ouvido o grito?- perguntou Belle Adrian, sentindo-se gelar interiormente.

       

        -Naturalmente, demos uma olhadela. Ainda não faz uma semana que Cushing, já na sua cadeira de rodas, tentou forçar uma rapariga a fazer-lhe uma indecência; a jovem opôs-se e ele, que a segurava pelos cabelos, ferrou-lhe um soco; depois, foi a vez de ela lhe bater com uma jarra, mas só lhe atingiu um ombro; em seguida fugiu... Depois disso, esteve lá uma outra... e essa já lhe fez a vontade.

       

        -Sabe quem são essas moças, Mr. Burris?

         - Não lhes conheço os nomes. A mais nova só mas que vi  apenas duas vezes e parecia uma moça decente. A outra, que apareceu entre as duas visitas da primeira, já era uma mulher na casa dos trinta, de cabelo platinado e com todo o aspecto de uma profissional; estava, muito pintada, mas tirou o batom antes de fazer-lhe aquela depravação. Estava praticamente nua e quando acabou, Cushing pagou-lhe ostensivamente, mesmo antes de ela se vestir.

        -E a outra moça,... a de cabelos pretos que foi lá duas vezes? Que se passou, dessa segunda vez?

        - Confesso que fiquei admirado ao vê-la voltar àquela casa. A cena começou a ser idêntica: Arthur Cushing exasperou-se com as negativas da moça, mas, desta vez, já não a agarrou pelos cabelos para forçá-la a baixar a cabeça: e a... Bem, pouco depois, beijavam-se como namorados, apaixonadamente, como se nada tivesse acontecido antes.

       

        - Que idade tem essa moça?

       

        - A morena? Deve andar pelos vinte e poucos anos. Ou pretende levá-lo a casar, para caçar-lhe a fortuna... ou está mesmo apaixonada por ele. Se assim é, a desgraçada ainda acaba como a loira platinada, porque Cushing sempre foi um tipo sem escrúpulos, um viciado sexual...

       

        - Mas foi o senhor, Mr. Burris, quem o trouxe para cá - censurou Belle Adrian.

       

        - Sim,... mas não sabia com que espécie de sujeito estava tratando. Fui levado pelo nome do pai. Dexter Cushing é um homem sério, com montes de dinheiro, empilhado à sua própria custa, pois partiu do nada; fartou-se de trabalhar... e teve sorte. Agora, o filho portou-se comigo como um patife. Quando me deu o sinal de opção para a compra daqueles duzentos acres de terreno, convenceu-me de que queria fazer-se lavrador...e encher tudo de pomares, imagine! Depois, enganou-me, e projetou uma urbanização turística, com um hotel e uma vila de casas de campo. Levou-me à breca! Ficou-me com a terra, por uma « truta e meia » e, aproveitando-se da minha ingenuidade, vai agora fazer uma fortuna... E o pior é que nos estraga a paisagem e o ambiente tranqüilo das margens do lago. Em breve estaremos cercados por uma multidão... poluente.

       

        Caí na asneira de aceitar-lhe o sinal e, agora, de acordo com a Lei, para reaver o terreno, teria de pagar-lhe o dobro desse valor que me entregou. Porém, não tenho posses nem meio de arranjar crédito para tanto dinheiro. De resto, já gastei parte daquele sinal. Ora, enquanto o negócio não estiver ultimado, pois foi estabelecido um prazo de dois anos para Cushing confirmar a compra, após a conclusão do projeto de urbanização, vejo-me constrangido a pagar todos os impostos de propriedade, como se  o terreno ainda fosse meu.

       

        Fui uma besta e a minha mulher não se cansa de repetir isso, constantemente.

       

        - Mas, agora que Cushing morreu, o seu problema ainda subsiste?

       

        - Não sei, Mrs. Adrian. Só Arthur estava interessado naquele empreendimento turístico. O pai Dexter emprestou-lhe o dinheiro para o sinal da opção de compra do terreno e para a elaboração do projeto, embora se declarasse desinteressado da urbanização. Agora, não faço idéia do que sucederá. Só me resta esperar que Deus me ajude... e que o negócio não seja ultimado até à data de escoamento do, prazo.

       

        - Compreendo a sua situação, Mr. Burris. Só não entendo por que motivo veio falar-me de tudo isso, a esta hora da madrugada.

       

        - Não vim falar-lhe, Mrs. Adrian, dos meus problemas pessoais, mas sim de um assunto do seu interesse.

        - Que assunto?

       

        - Esta noite, a minha mulher e  eu a vimos, Mrs. Adrian.

       

        - A mim? - exclamou Belle, num tom de fria incredulidade.

       

        - Não me leve a mal, Mrs. Adrian. Todos sabemos que são pessoas honestíssimas... as melhores vizinhas que já tivemos por estas paragens...

       

        - Obrigada- cortou Belle, gelidamente.

       

        - Eu sabia que Miss Carlotta tinha sido convidada por Cushing para jantar. Também a vimos lá. Para ser-lhe franco, Mrs. Adrian, minha mulher e eu já prevíamos que aquele tarado sexual iria tentar qualquer coisa do gênero, com a sua filha, visto que se empenha em conspurcar todas as jovens que lhe caem nas mãos.

       

        Antes de nos deitarmos, vimos a governanta, Nora Fleming, sair e Miss Carlotta ainda ficara com ele, na sala. Subitamente, esta ficou completamente às escuras. Então um facho de luz, raiada de cores e saltitante, cortou a treva interior e compreendemos que Arthur estava a projetar um filme. Por isso, fomos para a cama.

       

        - Bem... para abreviar, fui eu o primeiro a acordar, quando se ouviu o ruído da vidraça a quebrar-se, logo seguido do tiro e do grito de mulher.

       

        -Compreendi, imediatamente, que fora Miss Carlotta quem gritara e levantei-me para ver se poderia auxiliá-la ...

        

        - Não foi a minha filha quem gritou, Mr. Burris! A essa hora já estava em casa e deitada. Nada sabe do que se passou com Cushing, depois de tê-lo deixado. Realmente, ele tentou ser demasiado atrevido com Carlotta, agarrou-a e chegou a rasgar-lhe o vestido, mas levou uma bofetada e largou-a. A minha filha não partiu qualquer janela, não desfechou tiro algum e não gritou. Saiu dali, furiosa, mas calada.

       

        -O senhor, Mr. Burris, devia ter ido participar o caso ao xerife, em vez de vir acordar-me. Essa história do crime não nos diz respeito, a Carlotta e a mim.

       

        - Já fui falar com o xerife Elmore - elucidou Sam Burris na excitação, foi a primeira coisa que me ocorreu... mas, depois, lembrei-me de que não seria correto, de minha parte, não vir aqui avisá-la, Mrs. Adrian... para que a senhora possa proteger a sua filha, convenientemente...

       

        - Não preciso de protegê-la de coisa alguma. Carlotta estava deitada, e dormia profundamente, quando eu própria ouvi esse grito de mulher. Levantei-me da cama, receosa que se tratasse de minha filha, mas fiquei logo sossegada...

       

        - Não tem de explicar-me nada, Mrs. Adrian. Quis unicamente lhe ser prestativo... tanto mais que a minha mulher e eu vimos a senhora a rondar a vivenda e, em seguida, já na sala... menos de um quarto de hora depois de ter-se ouvido o grito,

       

        -A minha mulher prometeu-me não falar da ocorrência fosse a quem fosse, para evitar a tagarelice da vizinhança, pois há sempre gente malévola, disposta a aproveitar todas as ocasiões para denegrir as pessoas que lhe causam inveja.

       

        -E relatou tudo isso à Polícia, Mr. Burris? 

         - Não me referi a si, mas contei ao xerife todos os outros fatos que presenciei... Era esse o meu dever. Conheço o Bert Elmore, há muitos anos e cumpri a minha obrigação como cidadão... mas reconheci, logo a seguir, Mrs. Adrian, que também deveria vir avisá-la, para não ser apanhada desprevenida.

       

        Recuando em direção à porta, Sam Burris acrescentou:

       

        - O xerife Elmore é arguto como uma raposa. Não tardaria a descobrir tudo, mesmo que eu não cumprisse o meu dever. Acabaria por malquistar-se comigo. De resto, só pensei que me competia vir aqui, quando compreendi a gravidade do caso. Um assassinato é um crime muito grave... que nunca antes sucedera por estas bandas.

       

        -Corri a alertá-la, Mrs. Adrian, num impulso ditado pelo sentimento de boa vizinhança. Assim, já terá uma resposta pronta, quando Elmore vier interrogá-la.

       

        Silenciosamente, Belle estendeu-lhe a mão, por despedida.

       

        - Penso que agiu muito corretamente - concluiu.

        -Constou-me que o famoso advogado Perry Mason alugou um bangalô, mais adiante...

       

        -Sim. Foi-lhe cedido por um cliente... Mas Mr. Mason é um advogado que se faz pagar caro pelos seus serviços...

       

        -Tenho dinheiro - replicou Belle Adrian, secamente.

         - Nesse caso, acho que seria boa idéia ir aconselhar-se com ele. Estou pessoalmente convencido... e minha mulher também... de que Miss Carlotta matou aquele bandalho... por ter muito boas razões para isso. Desejo-lhe a melhor das sortes, Mrs. Adrian.

       

        Sam Burris retirou-se com uma expressão de sentida simpatia no olhar.

        

        Mal o viu sair, Belle fechou a porta e, instantes depois, subiu ao quarto da filha.

       

        Esta, ao vê-la irromper no aposento, soergueu-se do leito.

       

        - Que se passa, mamãe?

       

        - Sam Burris veio informar-me de que Arthur Cushing foi assassinado,

       

        -Como o soube?

       

        -Ouviu o ruído de vidros quebrados e, depois, um tiro seguido de um grito de mulher.

       

        -Quando foi isso?

       

        -Creio que às duas da manhã.

       

        -E ele estava à janela? Viu alguém na casa?

         Belle sorriu forçadamente, e, confirmou:

       

        - Está visto que viu qualquer coisa. Aquela gente passa a vida, a bisbilhotar tudo quanto se passa em redor do lago e, sobretudo, a vivenda de Cushing, que lhe fica a menos de cem metros.

        - Contudo, àquela distância, ser-lhe-ia impossível, identificar qualquer pessoa...

       

        - Ele disse que tinha um binóculo...

       

        - Oh, mamãe! Vai haver um escândalo terrível...

       

        - E temos de evitá-lo... Decididamente, vou falar com o advogado Perry Mason.

       

        Perry Mason estava deitado na cama do bangalô de montanha, sob espessos cobertores. Abriu os olhos verificou que a luz da alvorada já lhe permitia ver o vapor da sua própria respiração evolar-se no ar frio do ambiente.

       

        O bangalô pertencia a um cliente que lho cedera para que pudesse gozar uns dias de merecido descanso. Contudo, após quatro ou cinco horas de sono, acordava, invariavelmente, com o cérebro trabalhando em problemas de outros clientes que deixara ficar para trás, por não serem urgentes.

       

        Durante alguns dias, Perry Mason dedicara-se a exercícios físicos, fazendo esqui e montando a cavalo, quando não se entregava a longas marchas pelas faldas da montanha ou pelo Vale do, Urso.

       

        A noite, depois de jantar frugalmente, metia-se na cama, mas não conseguia adormecer antes da meia noite e, por volta das quatro e meia da manhã, despertava, sem saber em que ocupar o tempo, a não ser a pensar.

       

        Então, enfiava o roupão e os chinelos, deixava o quarto frio e ia para a sala de estar, deveras confortável, onde uma estufa a óleo, regulada por um termostato, mantinha uma temperatura constante de 240 C.

       

        Sentava-se num divã, pegava num livro que continha as últimas « Decisões do Supremo Tribunal  e começava a estudá-las, anotando e comentando, à margem, a opinião dos vários juizes citados.

       

        Recolhera-se naquele retiro campestre, porque pensara precisar de uns dias de repouso mental e de. exercício físico e recomendara à sua secretária particular, Della Street, que só lhe telefonasse em, caso de extrema necessidade, Mas, na verdade, conquanto os seus músculos beneficiassem com aquela estada no sopé da Montanha do Urso, o seu espírito não conseguia alcançar o remanso almejado.

       

        Era a madrugada de domingo e Della devia chegar, pelo meio da manhã, com uma pasta com documentação que, forçosamente, ele teria de assinar, para observância de prazos legais.

       

        Subitamente, tomou uma decisão: regressaria com Della a Los Angeles, nessa mesma tarde.

       

        Dirigiu-se ao banheiro, despiu o roupão, descalçou os chinelos e meteu-se sob a torneira do chuveiro ruído da água, caindo-lhe na cabeça e infiltrando pelos ouvidos, não lhe permitiu ouvir as pancadas na porta exterior. Como se achava só no bangalô, não se dera ao cuidado escusado de fechar a porta do banheiro. Assim, inesperadamente, viu uma sombra projetar-se no chão.

       

        Virou-se e deu de cara com uma mulher dos seus quarenta, quarenta e dois anos, de aspecto atraente que o fitava, admirada, talvez por vê-lo a tomar uma ducha a uma hora tão invulgarmente matutina.

       

        Pudicamente, a mulher virou-se de costas, balbuciando um « Oh! Desculpe! » Mason também lhe virou as costas e condicionou:

       

        - Que prefere? Fechar os olhos, ou passar-me o roupão que, deixei aí na sala?

       

        - Fecho os olhos - escolheu a intrusa.

       

        Momentos depois encaravam-se mutuamente. Enquanto o advogado calçava os chinelos, a mulher titubeou ainda:

       

        - Lamento muito. Bati à porta, vi as luzes acesas... ninguém respondeu... Perdoe esta minha intrusão, a uma hora destas.

       

        - Que se passa?

       

        - Sou  Mrs. Belle Adrian. Somos vizinhos. Provavelmente, o senhor nada ouviu a nosso respeito, mas eu sei tudo acerca da sua famosa carreira.

       

        - Nosso, de quem?

       

        -De mim e de minha filha Carlotta. Vivemos numa casa, à beira do lago. Estamos metidas numa terrível confusão.

       

        Penteando-se com os dedos e franzindo o sobrolho, Mason sondou:

       

        -Que espécie de confusão?

       

        - Tenho de expor-lhe um caso horrível, Mr. Mason. Sei que o senhor se retirou para cá, com, a intenção de repousar da sua atividade forense... mas a felicidade da minha filha, neste momento, depende do senhor. Sei que é um atrevimento da minha parte, mas estou em ânsias! Não sou rica, mas tenho algum dinheiro no banco e,usufruo de certos rendimentos...

       

        - Em ânsias, porquê?

       

        - Trata-se de um caso de assassinato. Tenho pouco tempo para falar-lhe...

       

        Dir-se-ia que a expressão de Mason, até então carrancuda, se desanuviara.

       

        - Lamento muito incomodá-lo...

       

        - Queira sentar-se, Mrs. Adrian. Quer fumar um cigarro?

       

        Belle abanou a cabeça.

       

        O advogado sentou-se no braço do divã e assegurou-se de que o roupão lhe cobria a nudez. Depois de acender um cigarro, incitou:

        -Conte o que se passou.

       

        -Sou viúva, e vivo com a minha filha Carlotta. Viemos passar um mês de férias na nossa casa de campo. Minha filha tem vinte e um anos. O pai morreu, quando ela tinha quinze. Tenho tentado ser uma boa mãe para ela...

        

        -Se veio falar-me num assassinato, é melhor entrar já no assunto, tanto mais que já me disse ter pouco tempo para falar.

       

        -Sim, bem sei, mas queria que soubesse que Carlotta é uma boa moça.

       

        -Que mais?

       

        -Tem um namorado que não deseja outra coisa senão casar com ela. Está a fazer uma boa carreira...

       

        -E quanto ao homicídio Quem foi assassinado?

       

         - Artur Cushing.

       

        Mason cerrou as sobrancelhas.

       

        - Refere-se ao filho do banqueiro... o que anda metido em urbanizações turísticas e tenciona construir um hotel, no outro lado do lago?

       

        - Exatamente.

       

        - Que aconteceu com ele?

       

        - A minha filha andou a fazer esqui com Arthur Cushing, mas as suas relações nada tinham de íntimas. Tratava-se apenas de um companheiro masculino para amenizar as férias... Contudo, penso que ele se sentiu muito atraído por Carlotta... mas não como o namorado que ela tem, na cidade.

       

        - Que quer dizer com isso?

       

        - Que Arthur Cushing é um homem muito dado a satisfazer as suas urgências sexuais... digamos assim. Tem fama, de conquistador e não hesita em tentar a sorte, quando uma garota lhe cai às mãos.

       

        -A sua filha, Mrs. Adrian caiu nas mãos desse sujeito?

       

        - Não chegou a esse ponto, mas o homem não tinha quaisquer escrúpulos e pensava que o dinheiro lhe permitia satisfazer todos os seus instintos animais. Como mãe, não posso ver com bons olhos...          Bem, Mr. Mason, não pense que sou demasiado pudica. Também fui jovem e sei o que são ardores de mocidade. Porém, nos nossos dias, as moças atiram-se mais para diante e, permitem-se certas liberdades... não sei se estou a fazer-me compreender...

       

        -Perfeitamente, mas acabou de dizer  que sua filha não chegou a cair nas mãos de Cushing.

       

        - Pois não... e daí a tragédia!

       

        -Por não ter cedido aos desejos urgentes do conquistador?

       

        -Não se tratou bem disso, Mr. Mason. Quando, há coisa de quinze dias, ambos andavam a esquiar na montanha, Cushing caiu e fraturou o ilíaco. Servia-se de uma cadeira de rodas... Fizera um filme com a sua câmara de 16 milímetros, e convidou Carlotta para jantar com ele, na vivenda, com o pretexto de projetar o filme que, nessa manhã, fora revelado, na cidade.

       

        -Que sucedeu, durante esse encontro?

       

        -O homem portou-se como um cavalheiro, até ao momento em que a governanta, uma tal Nora, se foi embora... mas, quando ficou a sós com Carlotta, começou a dar razão de crédito à sua reputação...

       

        - Numa cadeira de rodas?

       

        - Bem, Carlotta tinha-se sentado junto dele, para ficarem ambos diante do aparelho onde o filme estava a ser projetado. É natural que ele se tenha mostrado adulador, encetando algumas carícias... mas chegou a um ponto em que a minha filha, para ver-se livre dele, ficou com a blusa descosida no ombro e rasgada no peito. Está  compreendendo a situação?

       

        Mason ergueu as sobrancelhas e acenou, com a cabeça, numa afirmativa.

       

        - Perfeitamente, Mrs. Adrian. É uma nova versão da  Menina do Chapéuzinho Vermelho . Que aconteceu, depois, ao  Lobo Mau ?

       

        - Carlotta esbofeteou-o e fugiu. Ao chegar em casa, estava tão indignada e nervosa que me pediu que eu dormisse com, ela.

       

        Mason semicerrou os olhos, duvidosamente, mas Mrs. Adrian continuou:

        -Por volta das duas da manhã, ouvi um grito de mulher, proveniente do lago. Levantei-me da cama e fui espreitar à janela. Notei, então, que as janelas da vivenda de Cushing estavam iluminadas.

       

        -E Carlotta?

       

        -Dormia profundamente. Não ouviu o grito.

       

        -E depois?

       

        -Voltei para a cama e tornei a adormecer.

       

        -Mas, evidentemente, não dormiu muito tempo. Porquê?

       

        -Sabe quem é Sam Burris?

       

         Mason abanou a cabeça.

       

        -Era o proprietário de toda a margem noroeste do lago. Durante muitos anos dedicou-se à lavoura, até que vendeu duzentos acres do seu terreno a Arthur Cushing.

        

        - Que tem esse Burris a ver com o caso?

       

        - Foi acordado pelo mesmo grito que eu ouvi... e como vive mais perto do que nós da vivenda de Cushing, também se apercebeu do ruído de vidros quebrados e de um estampido que lhe pareceu um tiro. Levantou-se da cama e foi investigar. Bem, Mr. Mason, para terminar, Burris descobriu que Cushing fora assassinado na sua cadeira de rodas.

       

        - Com um tiro?

        -Sim. Tinha um buraco de bala no peito. Burris avisou o xerife e, depois, achou que devia falar comigo.

        - A esta hora da manhã? -estranhou Mason, tornando-se sério.

       

        - Sim. A alvorada já começava a romper.

       

        - Mas por que diabo se lembrou ele  de ir falar consigo, Mrs. Adrian?

        

        - Não está percebendo?? Burris sabia que Carlotta fora convidada por Cushing, para jantarem e verem o filme. A governanta mencionara esse convite à mulher de Burris. O xerife iria começar a investigar o caso e Burris achou que devia avisar-nos, tanto mais que conhece, de sobra, a reputação de Cushing.

       

        - Por que motivo, Mrs. Adrian, não se limita a esperar que o xerife interrogue a sua filha acerca do que se passou? Ela conta-lhe a verdade e...

       

        - Estamos aterrorizadas com a publicidade... Se o namorado de Carlotta lê nos jornais... se vem a saber que ela se envolveu no caso...

       

        - Não poderei evitar que um homicídio seja noticiado nos jornais. Tem a certeza, Mrs. Adrian, de que sua filha não estará, de qualquer modo, implicada no crime?

       

        - Absoluta, Mr. Mason.

       

        - Pois bem, a única coisa que a sua filha terá a fazer será contar toda a verdade ao xerife.

       

        Como os olhos de Belle Adrian fugissem aos do advogado, este inquiriu:

       

        - Está a falar-me verdade?

        - Sim, certamente.

       

        Mason considerou, pensativo-

       

        - Aparentemente, Arthur Cushing, desapontado por ter falhado a investida contra sua filha, terá telefonado a uma outra mulher que ele julgava mais tolerante e capaz de ações amorosas... mesmo de cadeira de rodas.

        O que sucedeu entre eles, caberá ao xerife deslindar.

       

        A senhora e a sua filha testemunharão que se encontravam em casa e na cama. A senhora poderá mencionar ter ouvido o grito. O testemunho de Sam Burris fixará a hora do crime. Nesse ponto, a senhora poderá corroborar as declarações desse seu vizinho. E pronto, nada mais há a fazer.

        -Sim... Mas não sei se o xerife ficará por aí. É muito desconfiado. Não se esqueça, Mr. Mason, de que estamos numa zona rural, de montanha, onde, até há bem poucos anos, só havia lavradores... muito isolados. Aqui a comunidade é, socialmente, primária...

       

        -Desabafe, Mrs. Adrian. Explique o que ainda não me disse e que está a apoquentá-la.

       

        -Penso que não conseguiremos escapar a um escândalo. Bem sabe o que é o falatório de gente, rústica... Acho que deveríamos fazer qualquer coisa para desencantar essa outra mulher. Se não a descobrirmos, todas as suspeitas recairão sobre Carlotta.

       

        -Mesmo que uma outra mulher tenha gritado, isso não significa que tenha sido ela quem desfechou o tiro.

         - Sim, Mr. Mason, compreendo isso. Pode não ter sido outra mulher quem o assassinou... mas sempre se afastava Carlotta do assunto. Seria horrível se os jornais começassem a denegrir a sua honestidade e a atribuir-lhe a suspeita do crime... Por isso, pensei que o senhor pudesse efetuar uma espécie de investigação...

       

        Com um ar de dúvida, Mason objetou:

       

        - Receio, que o xerife não aprecie muito a minha colaboração num caso de assassínio. Sou advogado e não detetive. De resto, já tenho tido alguns atritos com a Polícia...

       

        - O senhor, Mr. Mason, não só é advogado, mas também um notável criminologista. Todos lhe reconhecem as suas faculdades como detetive.

       

        - Costumo contratar uma agência de detetives para fazer esse trabalho específico. A « Agência Drake » tem colaborado comigo há já bastantes anos. Paul Drake é deveras eficiente. Posso telefonar-lhe e pedir-lhe que venha até cá. Mas está em Los Angeles, terá de tomar um avião e não aparecerá antes de algumas horas, se é que pode vir imediatamente.

       

        - Mas é domingo, Mr. Mason - observou Belle Adrian, desesperadamente. Os  jornalistas não devem aparecer antes de segunda-feira. E, sendo domingo, talvez Mr. Drake possa deixar a cidade, por vinte e quatro horas. Se fosse possível descobrir a outra mulher, até ao cair da noite...

       

        - Entretanto, que história tenciona Carlotta contar ao xerife? - cortou Mason, recompondo o roupão que se entreabrira.

       

        - A verdade.

       

        - Bem, isso ajuda. Ponha-se à vontade, Mrs. Adrian, descontraía-se. Tem aí algumas revistas bastante recentes. Vou telefonar para Los Angeles.

       

        - Obrigada, mas não creio que consiga ler. Estou terrivelmente nervosa!

       

        Mason fez a chamada de longa distância para o número telefônico, de Paul Drake, que não vinha na lista. Com o auscultador no ouvido, enquanto aguardava a ligação, perguntou à visitante:

       

        - A sua filha sabe que a senhora veio aqui?

       

        Mrs. Adrian. confirmou com um aceno de cabeça. - Bem, isso já não ajuda tanto - considerou o advogado.

       

        - Por que, não?

       

        - Suponha que, entretanto, o xerife vai ter com ela e lhe pergunta o que fazia à hora a que Cushing foi assassinado; a sua filha responde-lhe que estava a dormir consigo; o xerife, deseja a sua comprovação mas a sua filha, diz-lhe que a senhora veio consultar-me... a esta hora da manhã.

       

        - Tem razão, Mr. Mason,. Por isso lhe mostrei tanta pressa, mal entrei.

       

        - Então, vá para casa, Mrs. Adrian... Um minuto... Virou-se para o bocal do aparelho e saudou:

       

        - Olá, Paul...    Não. Ainda estou nas montanhas, supostamente a repousar o espírito... Escuta... Tenho um trabalho para ti... Sim, bem sei que Della Street já aí vem a caminho, e chega ainda esta manhã... Estou a falar-te numa circunstância de emergência... Sim, Paul, é um caso de homicídio.

       

        « Compreendo que tenhas em mão outras investigações, mas precisava, pelo menos, que me enviasses dois dos teus homens. Seria ideal se tu também pudesses vir... Que sejam tipos experientes...       Não posso explicar-te mais, por telefone... É um caso de assassinato e queria que fosses tu a investigá-lo, pessoalmente.

        O xerife local vai farejar as premissas e eu necessito que me descubras certos fatos... e uma mulher.

       

        «Tenciono dar uma certa assistência às autoridades... que, provavelmente, preferem dispensá-la... Já sabes Como é. Temos de agir com muito tato. Podes vir pessoalmente, Paul?»

       

        Perry Mason, com uma expressão de satisfação, exclamou:

       

        - Magnífico. Telefona para o aeroporto e contrata o serviço de um avião. O tempo está claro, com total visibilidade, embora um pouco frio. Abafa-te, aluga o aparelho e poderás estar aqui dentro de uma hora, se não demorares mais de quarenta minutos até ao aeroporto... O trânsito não deve estar ainda muito denso a esta hora... O quê? O pequeno almoço?... Deixa-te disso e arranca mesmo em jejum.

       

        Mason desligou o telefone e disse para Mrs. Adrian:

         - Creio que é tudo quanto podemos fazer, por agora. O melhor é ir para casa...

       

        Ouviram-se passos no alpendre do bangalô e o advogado foi espreitar através das tabuinhas da persiana, acrescentando, calmamente:

       

        - Receio não ter apreciado devidamente a urgência da situação. Levei demasiado tempo a interrogá-la e a comunicar com Los Angeles...

       

        -  O que quer dizer com, isso?

       

        - Que o xerife e três ajudantes acabam de chegar. Nesse mesmo momento ouviu-se bater à porta. Belle, Adrian ficou pálida, mordendo os lábios.

       

        O homem que surgiu à porta parecia pouco à vontade, embora se lhe reconhecesse uma certa determinação; deveria querer avançar cautelosamente, mas sem recuar um centímetro.

       

        Por detrás dele, os outros três indivíduos, lado a lado, mostravam-se prontos a acompanhar o chefe, em qualquer atitude que este decidisse tomar.

       

        -É Mr. Mason?- perguntou o xerife.

       

         - Sim.

       

        - Perry Mason, o famoso advogado criminal?

        - Sim.

       

        - Sou Bert Elmore, xerife deste Condado. Não creio que o senhor saiba alguma coisa a meu respeito, mas eu já ouvi falar muito de si...

       

        Mason apertou-lhe a mão, pensando que Mrs. Adrian tinha iniciado a sua entrevista quase com as mesmas palavras.

       

        - Tenho muito gosto em conhecê-lo, Xerife. Posso ser-lhe útil em qualquer coisa?

       

        - Gostaríamos de entrar.

       

        - Certamente... mas, neste momento, estou ocupado...

       

        - Compreendo. Contudo, penso que seria bom ocuparmo-nos ambos do assunto que o prende.

       

        Mason franziu o sobrolho e o xerife sondou:

         - Mrs. Adrian está aí, não é verdade?

        

        - Sim.

       

        - Pois bem, gostaria de fazer-lhe algumas perguntas.

       

        - Não vejo nisso qualquer inconveniente, embora eu ainda não tivesse acabado de ouvir o que levou Mrs. Adrian a procurar-me... Queira entrar, Xerife... Quem são esses senhores?

       

        - Os meus adjuntos.

       

        - Muito bem. Queiram instalar-se...      Há cadeiras para todos.

       

        Os quatro homens irromperam pela sala de estar, mas só o xerife se sentou, permanecendo os outros encostados à parede.

       

         -  Bom dia, Mrs. Adrian - saudou Elmore, tirando o chapéu.

       

        Era um indivíduo pesado, por volta dos cinqüenta anos, com olhos vivos e mãos calosas que, naquele momento, rolavam o chapéu negro.

       

        - Queiram sentar-se, meus senhores - convidou Mason, dirigindo-se aos adjuntos.

        

        Um destes respondeu:

       

        - Não vale a pena. Acabamos de levantar-nos da cama.

       

        O xerife sentou-se, observando Mrs. Adrian, atentamente.

        -Aborrece-me imenso, minha senhora, ter de fazer-lhe algumas perguntas. Acredita-me, não é verdade?

         Belle Adrian confirmou, com um aceno de cabeça,com os lábios cerrados numa estreita linha.

       

        -Acabamos de passar por sua casa e falamos com a sua filha Carlotta. Ela disse-nos que Sam Burris já estivera lá em casa a contar o que aconteceu esta noite

       

        -Sim, foi lá a casa.

       

        -E fez mal.

       

        - Porquê?

       

         -Porque, eu teria preferido falar consigo, Mrs. Adrian, em, primeira mão.

       

         - Não vejo que mal tem um vizinho vir contar-me o que sucedeu, esta madrugada. Que perguntas deseja fazer-me, Xerife?

       

        - Acerca de Miss Carlotta.

       

        -  Certamente.

       

        - Ela disse-nos; que a senhora se encontrava aqui, mas mostrou-se relutante em fazê-lo. Há alguma razão para que a sua filha desejasse ocultar que a senhora viera falar com Mr. Mason?

       

        - Não. Não vejo motivo algum para isso.

        

        -Pois agiu de uma maneira estranha.

         Mrs. Adrian sorriu e elucidou:

       

        - Carlotta deve ter pensado que se achava numa situação embaraçosa. Como já deve saber, Xerife, ela esteve ontem a jantar com Arthur Cushing.

       

        - Bem sei, bem sei. Miss Carlotta jantou com ele e ainda lá ficou,, depois de a governanta ter levantado a mesa, lavado os pratos e ido para casa dela... por volta, das dez horas da noite. Arthur Cushing e a sua filha ficaram a ver uma projeção de filmes.

       

        - Exatamente.

       

        - Sabe a que horas Miss Carlotta voltou para casa?

       

        - Bem, não tenho a certeza da hora exata, mas penso que regressou por volta das onze.

       

        O xerife acenou com a cabeça, lentamente, sem deixar de fitar Belle Adrian, com os seus olhos cinzentos. Mason interveio, para sondar:

       

        - A que horas ocorreu o assassinato, Xerife?

       

        Este ignorou a pergunta e, sem deixar de fitar Mrs. Adrian, inquiriu:

       

        - A sua filha tornou a sair, depois de ter voltado para casa, a pé, visto o carro ter o pneu furado na estrada?

       

        -Não. Não tornou a sair.

       

         - E a senhora, Mrs. Adrian?

        

        - Vim para cá.

       

        - Foi a sua única saída de casa?

       

        - Certamente.

       

        -Não foi à vivenda de Cushing?

       

         - De maneira alguma.

       

        - E a sua filha não foi lá?

       

        - Bem sabe que passou lá uma parte da noite. Já falamos no jantar...

       

        - Refiro-me a um regresso à vivenda de Cushing, depois de ter voltado para casa. Miss Carlotta não tornou a sair?

       

        - Não. Foi para a cama.

       

        -Tem a certeza disso, Mrs. Adrian?

       

        -Absoluta. Carlotta deitou-se comigo

       

         - Compreendo. Devia estar terrivelmente nervosa, depois da violenta discussão que travou com Cushing.

       

         - Por que diz ter havido uma discussão violenta, Xerife?

       

        - Pelo fato de sua filha lhe ter atirado com um espelho.

       

        - Com um espelho? - espantou-se Belle Adrian.

        -Está enganado, Xerife. Carlotta indignou-se com as maneiras de Cushing, levantou-se e esbofeteou-o. Foi tudo.

       

        - Ah! Nesse caso, foi ele quem atirou com o espelho à sua filha?

       

        - Também não. limitou-se a ser atrevido... demasiado ofensivo, mas não lhe atirou com coisa alguma.

        O xerife passou a mão pela cara e relatou:

       

        - Quando inspecionamos o local, encontramos um espelho quebrado. Aparentemente, fora atirado contra a janela cuja vidraça também se partiu. Havia vidros no interior da sala e também no exterior da vivenda, por debaixo da janela. Nada sabe a esse respeito?

       

        - Não.

       

        - Miss Carlotta não se referiu a esse fato?

       

        - Certamente que não. Carlotta não costuma atirar com objetos nas pessoas. Mesmo nas piores circunstâncias, porta-se como uma menina que é, bem educada... embora tenha dado uma bofetada a esse desavergonhado.

       

        -E, depois disso, foi diretamente para casa?

       

         - Sim.

       

        - E teve um pneu furado na estrada?

       

        -Sim,... e posso contar-lhe o resto, a partir daí.

       

        - Um momento- interveio Mason, brandamente. - Parece-me que o Xerife, tem qualquer coisa a dizer acerca do furo do pneu.

       

        - Não, por agora. Prefiro ouvir primeiro toda a história da boca de Mrs. Adrian.

       

        - Mas o senhor, Xerife Elmore, tem conhecimento de certos fatos que Mrs. Adrian ignora.

       

        - Pois tenho e é por isso que desejo averiguar até que ponto Mrs. Adrian sabe o que se passou.

       

        - Sei que as nossas relações com os Cushing eram amigáveis. Mr. Cushing pai sempre se mostrou atencioso para conosco. O filho, como toda a gente sabe, tinha uma reputação de conquistador, mas nunca pensamos que se atrevesse a abusar da sua posição de anfitrião, após o jantar. Tentou forçar Carlotta a...

       

        - A quê?

       

        - Bem, não sei ao certo... mas ela ficou com a blusa rasgada e descosida.

       

        - Que mais?

       

        - Ao regressar a casa, estava nervosa e transtornada e quis ir logo para a cama. Naturalmente, também fiquei preocupada. Teria de cortar relações com ele, mal o visse...

       

        - E não foi vê-lo nessa noite?

       

        -Não. Não falei com ninguém.

       

        - Com ninguém?

       

        - Isto é, falei com Mr. Burris, quando ele veio a nossa casa, contar-nos o que se passara com Cushing.

       

        - E o que Burris lhe contou foi inteiramente novo para a senhora, Mrs. Adrian?

       

        Mason interrompeu:

         - Aconselho-a, Mrs. Adrian ...

       

        - Não, por favor, Mr. Mason... Sei bem o que o Xerife tem em mente e quero esclarecer o assunto, de uma vez por todas. Por volta das duas e um quarto da manhã, ouvi um grito de mulher. Pareceu-me provir do outro lado do lago.

       

        - Então, que fez?

       

        - Levantei-me brandamente, para não acordar Carlotta e vi as luzes da vivenda Cushing iluminadas. Nada mais. Ninguém se movia, nas redondezas, o barco; a motor estava ancorado... Senti frio e voltei para a cama.

        - E a sua filha estava consigo, Mrs. Adrian?

       

        - Sim. Dormia tranqüilamente.

       

        - Bem, Mrs. Adrian. Naturalmente, estou preocupado com o caso e algumas das minhas responsabilidades não são agradáveis. Tenho de fazer perguntas que preferiria, noutras circunstâncias, omitir... Por que pensou ser necessário vir consultar um advogado especializado na defesa de acusados de homicídio?

       

        - Inocentes, acusados de homicídio- retificou Mason.

       

        - Vou pôr as minhas cartas na mesa, com toda a franqueza, Xerife - decidiu Belle.

       

        - Tenho a certeza de que, depois de a minha filha ter regressado a casa, uma outra mulher esteve na vivenda de Cushing. Ouvi-a gritar, nitidamente. Por outro lado, quero evitar uma publicidade desagradável para Carlotta... que está quase noiva. Portanto, pensei pedir a Mr. Mason que tentasse localizar essa outra mulher. È tudo.

       

        Mason interveio, suavemente.

       

        - Para sua informação, Xerife, telefonei a Paul Drake, da « Agência de Detectives Drake », para que viesse até cá, de avião. Ficará, desde já, à sua disposição.

       

        - Isso foi muito amável, de sua parte, Mr. Mason, mas não preciso da colaboração de Mr. Drake.

       

        - Não?

       

        - Não. Tenho de desempenhar a minha missão. É para isso que os contribuintes me pagam. Não posso deixar as minhas obrigações por mãos alheias.

       

        - Mas certamente, Xerife - objetou Mrs. Adrian,

        - o senhor não se julga infalível, pois não?

       

        - Bem, espero que não me compreendam mal. Posso aceitar alguma colaboração, mas desejo efetuar este inquérito à minha maneira.

       

        - Na realidade - esclareceu Mason -, a minha intenção ao chamar Paul Drake era investigar a identidade de uma jovem que visitou Cushing, mais de uma vez, chegando, de uma delas, a agredi-lo.

       

        - Bem sei... E certamente, ao mesmo tempo, notificaria os jornais dessa sua descoberta. Não, obrigado. Quero conduzir este caso como entendo.

       

        « A propósito, Mrs. Adrian, ontem a umidade jacente no solo começou a gelar por volta da meia-noite. Formou uma ligeira película de gelo à superfície do terreno, o que tornou as pegadas, produzidas depois dessa hora, bastante visíveis.»

       

        - Sim? E depois? - perguntou Belle Adrian, secamente.

       

        - A luz desta madrugada viam-se, nitidamente, os vestígios de uma mulher ter andado em redor da vivenda de Cushing. Além disso, Mrs. Adrian, encontramos o automóvel... que fora utilizado por sua filha na visita àquela vivenda...  parado na estrada, com um pneu furado.

       

        - E isso o que tem?

       

        - Tem que o furo do pneu fora provocado por um vidro. Encontramos esse pedaço de vidro cravado no pneu.

       

        - Mas há milhares de pedaços de vidro; não é Invulgar que perfurem. pneus.

       

        - Concordo com isso, Mrs. Adrian... mas, quer ver? E o xerife extraiu da algibeira um fragmento de vidro; depois continuou:

       

        - Este estilhaço de vidro que causou o furo do pneu do automóvel proveio do espelho que foi quebrado em casa de Cushing. Isso significa que Miss Carlotta voltou à vivenda depois de a janela ter sido atingida pelo espelho que lhe partiu uma das vidraças. Estes são os fatos e, quero ouvir de si, Mrs. Adrian, uma explicação a este respeito... se é que sabe alguma coisa do que então se passou. Sabe ou...

       

        - Penso - interrompeu Mason, - que Mrs. Adrian, neste momento, está demasiado confusa e nervosa para responder a um interrogatório tão cerrado. Sugiro que lhe conceda uns momentos de, descanso, tanto mais que pouco dormiu esta madrugada.

       

        O xerife Elmore coçou o queixo e declarou:

       

        - Pretendo ser o mais justo possível, tanto mais que considero Mrs. Adrian e a filha pessoas excelentes. Não quero enredá-las em qualquer armadilha. Mas não está o senhor, Mr. Mason, a tentar induzi-la a que não responda às minhas perguntas?

        

        - De modo algum! - negou o advogado, peremptoriamente.

       

        - Pois foi o que quis parecer-me.

       

        -  Não estou a aconselhar Mrs. Adrian a não responder às suas perguntas; estou a pedir-lhe ao senhor, xerife, que não lhas faça, visto ela não estar em condições de raciocinar com clareza.

       

        - Está a fazer jus Mr. Mason, à sua, reputação... Foi interrompido pelo ruído de passos e por pancadas na porta. Quando o advogado a abriu, surgiu um homem que exibia um revólver com a, coronha para diante e mantido na horizontal por meio de um lápis, enfiado no cano.

       

        - Descobri isto, xerife - exclamou o homem, triunfalmente. - Trouxe-o, de acordo com as instruções que o senhor me deu acerca do manuseamento de armas, de maneira a não deteriorar quaisquer impressões digitais.

       

        «É um revólver de calibre- 38 que encontrei no meio da erva, a uns quatro metros da beira da estrada. Foi atirado para ali, por alguém que saiu do automóvel e se, apressou a desfazer-se .»

       

        - Um momento - cortou o xerife Elmore, com impaciência.- Leve esse revólver lá para fora, George.

        Já vou ter consigo, dentro de um minuto. Mantenha-o tal como o trouxe.

       

        - Pode ir já ter com ele, xerife - indicou Mason. - Mrs. Adrian está imensamente, transtornada e não pode responder a mais pergunta alguma.

       

        - Penso que seria melhor, para ela e para a filha, esclarecer mais alguns fatos...

       

        - Eu não, - replicou Mason, firmemente.

       

        - Num caso de homicídio, a Lei tem preferência a qualquer estado de nervosismo. Como advogado, o senhor sabe isso perfeitamente.

       

        - Certamente que o sei, mas só quando se trata de um suspeito de crime. Se o senhor quer dar a Mrs. Adrian voz de prisão, pode insistir no seu interrogatório. Contudo, nesse caso,, aconselharei Mrs. Adrian a não responder à nenhuma pergunta e, imediatamente, exigirei que ela seja apresentada ao magistrado mais próximo desta localidade.

       

        - Não pode interpor uma caução em caso de homicídio, retorquiu Elmore.

       

        - Está a acusar Mrs. Adrian de ter assassinado alguém?

       

        - Bem... Ainda não, a não ser que o senhor me force a mão.

       

        Mason fitou-o duramente nos olhos e desafiou:

        - Muito bem. Estou a forçá-lo a isso.

       

        Os três adjuntos do xerife deram um passo em frente, convergindo em direção ao advogado, mas aquele deteve-os.

       

        - Calma, rapazes! Esta recente prova indica que a mulher que conduzia o automóvel foi quem disparou o tiro que matou Cushing. Penso que vou voltar atrás e interrogar novamente Miss Carlotta.

       

        Belle Adrian levantou-se de salto, e dirigiu-se, para a porta.

       

        - Espere, Mrs. Adrian - interveio Mason - Volte para a sua cadeira.

       

        - E não saia desta casa - ordenou o xerife.

       

        - Não pode fazer-me isso - protestou Belle.- Tenho o direito de ir aonde queira...

       

        - Já lhe disse, Mrs. Adrian - replicou Elmore - que estou a tentar evitar-lhe maiores complicações. Se a senhora correr agora ao encontro da sua filha, será o maior erro que possa cometer. Em vez de protegê-la, unicamente- nos convencerá de que a sabe culpada do assassínio. Dê-me uma oportunidade de ajudá-la. Explique todos os fatos que são do seu conhecimento... e faça-o já, neste momento.

       

        Brandamente, Mason observou:

       

        - Acho que tem carradas de razão, Xerife,... assim como estou certo de que Mrs. Adrian na altura própria, poderá explicar-lhe tudo quanto sabe.

       

        - A altura própria é esta.

       

        - Nem pensar! Mrs. Adrian está tão perturbada que todas as suas declarações seriam incoerentes.

       

        -  Não vejo que Mrs. Adrian esteja assim tão transtornada. De qualquer modo, vou falar imediatamente com Miss Carlotta.

       

        Saiu do bangalô, seguido pelos três adjuntos. Num gesto de ansiedade, Belle levou o punho à boca, comprimindo os lábios. Depois de os agentes da autoridade se terem afastado, Mason, calmamente, dirigiu-se ao telefone e perguntou:

       

        - Qual é o número da sua casa, Mrs. Adrian?

        -  Dois quatro oito... Meu Deus! Tenho a certeza de que Carlotta, não o matou!

        

         Mason Indicou o número à central telefônica e, instantes depois, falou:

       

        -  Carlotta?...  Daqui Perry Mason, advogado.

        O xerife vai já para aí, a fim de interrogá-la acerca de um revólver que encontrou a quatro metros da beira da estrada, onde você arrumou o carro... Agora escute: limite-se a dizer ao xerife que se recusa a prestar quaisquer declarações, antes de falar com um advogado. Elmore está a tentar acusá-la de homicídio. Portanto, você vai manter-se calada, sem proferir uma única palavra, até eu, ver o que posso fazer por você. Sejam quais forem, as perguntas que lhe façam, ameaças ou promessas, não abra a boca nem, para falar do estado do tempo. A sua mãe está aqui comigo e estou a tentar resolver os vossos problemas.

       

        Mason desligou e disse para Belle:

       

        - Agora, Mrs. Adrian, quero saber por que motivo foi à vivenda de Cushing e quando esteve lá.

       

        Com uma estranha calma, Belle respondeu:

       

        - Não fui lá e não sei quem o tenha feito. Carlotta não voltou à vivenda depois de ter sofrido o furo na estrada. Há muitas pegadas na superfície gelada, mas, inevitavelmente, uma nova camada de gelo cobriu-as, depois de terem, sido impressas na anterior. Ninguém será capaz de, identificar essas pegadas, nem num ,milhar de anos.

       

        - E afirma que não são suas?

       

        - Nego que sejam minhas ou de Carlotta... e, Se acusarem a minha filha, então, assumirei todas, as culpas.

       

        - Nesse caso - observou Mason, friamente -, em vez de a sua filha ser absolvida por ter disparado uma arma em defesa da própria honra, a senhora será condenada por homicídio em primeiro grau.

       

        - E isso marcá-la-á, por toda a vida?

       

        - Sem dúvida alguma. Toda a gente a apontará como sendo « é a filha daquela mulher que lhe matou o amante ».

       

        - Cale-se - gritou Belle, desesperada.

       

        - Estou apenas a tentar demonstrar-lhe como não será simples procurar uma saída, baseada na mentira.

       

        Paul Drake, com os olhos exprimindo cansaço, pagou o táxi e subiu os degraus do alpendre do bangalô onde Perry Mason se encontrava instalado.

       

        Este abriu a porta e saudou:

       

        - Olá, Paul! Não há dúvida de que não perdeste tempo.

       

        - Nem sequer tive oportunidade de barbear-me... e estou morrendo de fome. Tens por aí uma gilete ou alguma coisa que semelhante?

       

        - Onde estão os teus homens?

       

        - Na vila, tomando o pequeno almoço num restaurantezinho. Disse-lhes que depois os chamaria para dar-lhes as devidas instruções. Corri logo para aqui, para ver o que querias que fizéssemos.

       

        - Ótimo. Tens o que é preciso para barbear-te no banheiro. Depois, falamos. Que queres para matar essa fome?

       

        - Muito de tudo o que tiveres.

       

        - Ovos?

        - Três.

         - Bacon?

       

         -Meia dúzia de talhadas.

         - Torrada?

       

        - Bastam-me quatro ou cinco fatias.

         -Café?

       

        -Uma chávena bem cheia e bem quente.

          - Suco de fruta?

       

        - Não sou homem, para recusá-lo.

       

        - Bem, preparo-te esse banquete enquanto te barbeias.

        

        - Della  Street já chegou?

        - Ainda não.

       

        - Deve estar aqui de um momento para o outro. Disse-me que partiria ontem à noite e que dormiria em algum lugar pelo caminho, para estar aqui pela manhã bem cedo.

       

        - Muito bom. Vou precisar dela, mal chegue.

       

        Drake encontrou uma máquina de barbear elétrica e começou a passá-la pela cara, enquanto Mason preparava o pequeno almoço. O cheiro do bacon a fritar na frigideira, o das torradas e o aroma do café chegaram-lhe às narinas, pelo que exclamou:

       

        Belo ar, este... das montanhas.

         - Quantos operadores trouxeste contigo?

        - Dois.

       

        - Quando estarão prontos para entrarem, ação?

       

        - Dá-lhes mais dez minutos, Perry. Os homens têm de comer qualquer coisa.

       

        - Telefona-lhes para o restaurante e diz-lhes para registrarem as matrículas de todos os automóveis que encontrarem.

       

        - Com os diabos, Perry! Vai ser um trabalho sobre-humano! Hoje é domingo, e vão passar milhares deles pela vila. Estamos na época do esqui. Nem num mês poderiam dar conta de todas essas matrículas.

       

        - Que reduzam o mês a um domingo.

        - Muito bem. De, que caso se trata?

       

        - De uma mãe e uma filha. Pressinto que a mãe está convencida de que a filha matou um tipo.

       

        - Matou mesmo?

       

        - Não sei e, se o fez, é uma esplêndida atriz.

       

        - Está a fazer-se inocente?

        

        - Talvez não. Deve estar convencida de que a mãe assassinou o tal tipo.

       

        - Vestígios comprometedores?... Provas?

       

        - As coisas parecem muito feias. Foi descoberto um revólver e o xerife vai requerer o comparecimento de peritos de balística. O tambor da arma só tinha um cartucho deflagrado e os outros cinco alvéolos vazios. Há novecentas e noventa e nove hipóteses em mil de, que se trata da arma utilizada pelo assassino.

       

        - Onde a encontraram?

       

        - Perto do automóvel da filha, em que esta se afastou da cena do crime.

       

        -Podem provar que ela esteve na cena do crime?

        

         - Tal como um ovo tem clara e gema.

       

        - E a mãe está implicada no caso?

       

        - Estou convencido de que deixou pegadas no mesmo local, depois do homicídio... ou no próprio momento em que foi cometido,

       

        - Que diz a filha?

       

        -Que já estava na cama

         -E a mãe?

       

        -Está  tentando arranjar-lhe um álibi.

       

        -Esse álibi agüenta-se; de pé?

       

         - Não sei.

       

        - Têm boa apresentação? Conseguem impressionar  favoravelmente um júri?

       

        - Ambas reúnem todas as qualidades para esse efeito.

       

        -Nesse caso, por que te preocupas?

       

        -Por causa do frio que gelou a superfície úmida do solo, formando uma película vítrea em que, se gravaram as pegadas. Uma mulher andou por lá, na altura do crime... ou pouco depois disso. Tudo indica que o automóvel deixou o local depois do homicídio, pois sofreu um furo num pneu, causado por um vidro de um espelho que foi quebrado instantes antes do tiro. Alguém voltou ao local após o assassinato; deslocou-se, pela estrada até ao automóvel e dirigiu-se à casa das Adrian mãe e filha... segundo o que o xerife me deu a entender.

       

        - O caso está feio, Perry! Se essas pegadas são femininas, não há muita gente suspeita, além da mãe e da filha.

       

        Tragando o suco de fruta, Drake pôs-se de pé e anunciou:

       

        - Sinto-me um outro homem, Perry. Vou telefonar aos meus rapazes... Achas, realmente, que as matrículas dos automóveis vão servir de alguma coisa?

       

        - Não sei...  É uma tentativa para aumentar o número de suspeitos.

       

        - Oh! Aí vem Della Street - avisou Drake, ouvindo o motor de um automóvel.

       

        O grande sedan de Perry Mason parou diante do bangalô. Della Street saiu dele com duas pequenas malas, subiu os degraus do alpendre e Mason abriu-lhe a porta.

       

        - Entre minha querida amiga. Nem calcula como é bem-vinda a esta casa.

       

        -Não sou sempre bem-vinda?

       

        -Sim, e, ainda mais, nesta altura.

       

        -Ainda bem, porque cheira a café.

       

        - Vendo Drake, admirou-se:

       

        - Paul! Por que surgiu aqui?

       

        - Não foi para empatar-vos uma estada de romance. Perry teve a triste idéia de chamar-me.

       

        - Um caso?

        - Sim.

       

        - De assassinato?

       

        - Adivinhou.

        

        - Quem, foi morto?

       

        - Um lobo  mau. O seu patrão, Della, está empenhado em defender o Chapéuzinho Vermelho e a mãe.

        - Que se passa, « Chefe »  - indagou a jovem secretária, virando-se para o advogado.

       

        Este resumiu-lhe a situação.

       

        - As provas materiais são indiscutíveis?- sondou Della, apreensiva.

       

        - Sim, mas as circunstâncias merecem diferentes interpretações.

       

        - Pode dar-se um volta-face ao caso?

       

        - Sim, minha amiga. « Chercher la femme »...mas uma outra que ainda não apareceu em cena. Por isso, Paul terá de verificar uns tantos números de matrículas automóveis.

       

        - Uns tantos, quantos, Perry? - resmungou Drake.

       

        -Todos, Paul.

       

        Harvey Delano, o jovem advogado considerado quase noivo de Carlotta Adrian, arrumou o carro diante da casa desta e saiu para o frio da manhã.

       

        Era um rapaz magro, de ossos fracos e meia altura, que não se interessava por esqui, mas era louco por cavalos. Só tinha estofo para atividades leves mas, aos fins-de-semana, vestia-se à cowboy: chapéu de abas largas, botas de cano alto e meio salto, cinturão largo com aplicações de prata e, lenço com um nó ao pescoço.

       

        Carlotta Adrian, tinha a porta aberta, esperando que ele se aproximasse com todo o seu ar western.

          - Oh, Harv! - exclamou. - Estou tão feliz por ver-te! Tenho estado todos estes dias desejando que aparecesses.

       

        - Olá Carlotta! Não sabia se te apanharia livre para um passeio a cavalo.

       

        - Deves ter partido de noite, para chegares tão cedo.

       

        - Está visto. Quero aproveitar todo o dia de hoje para uma bela cavalgada... Mas, para já, estou cheio de fome. Tens pequeno almoço para mim?

       

        - Certamente. Entra. Ainda bem que vieste, Harv! Estou metida numa terrível confusão.

        

        - Confusão?

       

        -Sim, a mãe e eu metemo-nos numa «fria ».

         Harvey Delano passou-lhe o braço em redor dos ombros, protetoramente, e, sondou:

       

        -Que diabo aconteceu?

       

         - Conheces Arthur Cushing?

       

        A voz do rapaz tornou-se áspera:

       

        - Sim, sei muita coisa a respeito desse tipo e até me constou que tinhas andado com ele.

       

        - Sim, andamos a fazer esqui... nada mais. Imagina, Harv, Artur foi assassinado, ontem à noite.

       

        - O quê?... Bem era o que ele andava a merecer! Que sucedeu?

       

        -Não sei como contar-te o que se passou mas parece que alguém desta casa pode tê-lo morto.

       

        - Alguém desta casa? De que estás  falando?

       

         - Da possibilidade de a minha mãe o ter morto a tiro.

       

        - Por acidente?

        - Não.

       

        - Queres dizer que a tua mãe e Cushing andavam metidos um com o outro?

       

        - Oh, não! Nada disso!

       

        -A tua mãe está cá em casa?

       

         - Não. Saiu.

       

        -  Muito bem, Carlotta. Vamos a desenrolar tudo isso... e depressa.

       

        - Escuta. Tenho de explicar-me claramente. Não quero crer que a mãe esteja envolvida no crime, mas há provas circunstanciais e materiais que dão a todo o caso um aspecto muito grave.

       

        - Um homicídio é sempre um caso grave. As autoridades acusaram a tua mãe de ter morto esse patife?

       

        - Têm andado a fazer perguntas por todo o lado e as suspeitas recaem sobre a minha mãe...         ou sobre mim.

        

         - Okay! Que queres que eu faça? Quanto tempo temos, antes que a prendam?

       

        -Não sei. A mamãe foi falar com Perry Mason.

       

         - Referes-te ao advogado... ao meu colega?

       

        - Sim,.

       

        - Ele está a viver nesta localidade?

       

        - Sim, Veio aqui passar alguns dias, para fazer esqui. Alojou-se num bangalô de um cliente.

       

        - E qual é a opinião de Mr. Mason a respeito da situação?

       

        - Não sei. Só me aconselhou a não abrir a boca... A não dizer uma palavra às autoridades... E foi o que fiz. Calei-me como uma ostra.

       

        Com uma careta de dúvida, Delano observou:

         - Bem sei que- Perry Mason é um grande advogado e que alcançou uma invejável celebridade, mas não sei se deva aprovar essa atitude que te aconselhou. Compreendes? Ele está acostumado a defender criminosos... gente de uma outra classe, diferente da tua.

        O fato de surgir no tablado em vossa defesa, só aumentará as suspeitas a vosso respeito.

       

        - Bem, Harv... Creio que ele pensa que a minha mãe matou Artur e, por isso, planejou estabelecer a confusão das autoridades de maneira que estas não saibam a quem dar voz de prisão.

       

        - Mas como diabo podem vocês ser suspeitas desse homicídio?

       

        - Estou convencida de que a minha mãe não o matou, mas pensa que eu o tenha feito... e procura defender-me... Ou então, foi ela, também na intenção de proteger-me.

       

        - Isso não está me cheirando bem, Carlotta. Quanto tempo temos para esclarecer o assunto, antes que a tua mãe apareça por aí?

       

        - Não sei Talvez meia hora.

       

        Delano deixou-se cair numa cadeira e, perguntou:

       

        -Qual de vocês duas Mr. Mason defende?

       

         - Até agora, parece ocupar-se da defesa de nós ambas.

       

        -Isso não é muito bom.

       

        - Bem sei.

       

        - Mataste Cushing, Carlotta?

       

        - Santo Deus! Não o matei. Julgas-me capaz disso? Limitei-me a esbofeteá-lo e fugi.

       

        - E a tua mãe matou-o?

       

        - É o que parece, mas não tenho a certeza. Se o fez, foi para salvar-me de uma confusão... por pensar que... bem... que eu corria qualquer risco. Uma coisa é certa. Aquilo que fez aponta-a como criminosa.

       

        - Conta isso.

        

         - Eu saí de casa de Arthur, danada com um seu atrevimento e, na estrada, tive o pneu furado. Tive de vir para cá a pé. Contudo, alguém parece ter saído desta casa para rondar a casa de Arthur. Foi ao meu carro, e atirou com um revólver para a erva que ladeia a beira da estrada. Tornou a ir à vivenda de Artur e voltou para cá.

       

        «A mãe tentou deixar-me fora do assunto, mas o xerife... »

       

        - Seria melhor que começasses pelo princípio. Depois, dizes-me o que queres que faça.

       

        - Oh, Harv! Não quero que faças coisa alguma. Só desejo que compreendas. Estou aterrorizada, pois não quero que o meu nome venha nos jornais.

       

        - Só compreendo, depois de me explicares o que aconteceu .

       

        - Ontem à noite, fui jantar com Arthur que me convidara para ver um filme com cenas de esqui que andamos a fazer.

       

        - E depois?

       

        - Depois de a governanta sair ele começou a mostrar-se... indecente comigo. Dei-lhe uma bofetada e vim-me embora,.

       

        - Por que raio foste jantar com ele?

       

        - Porque, quando andávamos a esquiar, Artur caiu e partiu o ilíaco. Estava numa cadeira de rodas e não tinha quem lhe fizesse companhia. Pediu-me para jantar com ele e ver o filme de 16 milímetros...

       

        - E depois?

       

        - Entrei no carro e vim para casa... mas fiquei no meio do caminho, com um furo num pneu.

       

        - Que horas eram?

       

        - Bem... disse a toda a gente que isso ocorrera por volta das onze, mas penso que já fosse cerca da uma hora da manhã.

       

        -Por que mentiste a respeito da hora, Carlotta?

       

         - Tive de fazê-lo. Compreenderás, quando te tiver contado o resto da história.

       

        - Muito bem.Que venha o resto.

       

        - Por volta das duas da manhã, a mãe pensou em mim e espreitou pela janela, para a garagem, e viu-a aberta, sem o carro. Nesse mesmo momento, ouviu um grito de mulher, provindo da vivenda de Arthur. Portanto, pensou que eu ainda lá estivesse e ficou preocupadíssima.

       

        - Que mais fez?

       

        - Foi até à vivenda de Artur e encontrou-o morto. Entrou em pânico e voltou para casa. Evidentemente, achou-me deitada e eu espantei-me por vê-la de pé, àquela hora

       

        « Contei-lhe o que se passara comigo e, só então, ambas compreendemos que as nossas pegadas tinham ficado impressas na fina camada de gelo que se formara depois da meia-noite.»

       

        - Por conseguinte, o xerife sabe que ela esteve na casa de Cushing?

       

        - Sabe que uma mulher andou por lá e que as pegadas foram impressas depois de ter-se formado a película de gelo... E agora, vem o pior, Harv! Lembras-te da última vez que aqui estiveste e me ensinaste a manejar uma arma?

       

        - Sim. Que tem isso a ver com o caso?

       

        - Deixaste aqui o revólver para que eu pudesse praticar a atirar ao alvo. Pois bem, guardei-o no porta-luvas do carro.

       

        - Santo Deus! Quem sabe que o tinhas nesse lugar?

       

        - A mãe sabia que ele se achava ali. Viu-o, quando tirei as luvas, há coisa de dois ou três dias. Agora esse compartimento está vazio e tudo indicia que a arma que encontraram na erva, é o teu revólver.

       

        Delano, com uma expressão de contrariedade, indagou:

       

        - Quando voltaste para casa, já se formara a fina camada de gelo?

       

        - Sim.... e fez-me escorregar muitas vezes, quando voltei a pé para casa. Evidentemente, o xerife detectou essa minha pista e a de outra mulher que foi da vivenda de Arthur até ao carro, e deste voltou para lá, também pela estrada. Depois, parece que veio na direção da nossa casa. É uma confusão, Harv, que não se consegue entender bem, com tantas idas e voltas.

       

        A estrada tinha muitos rastos de automóveis?

        - Sim. Ontem foi sábado e andaram muitos carros com esquiadores por todo o lado.

       

        -As pegadas, junto à vivenda de Cushing, eram suficientemente nítidas para poderem ser identificadas?

       

         - Creio que não conseguirão ir mais além do que provar que se tratava de sapatos de mulher.

       

          - O xerife levou os sapatos da tua mãe?

       

        - Não, porque a mãe opôs-se a que lhe desarrumassem a sapateira, sem um mandado de busca. Tem ali montes de calçado meu e dela, malas de mão e outras coisas...

       

        - Que fez ela com os sapatos que tinha calçado?

       

        - Limpou-os cuidadosamente, assim como a todos os outros que, de resto, só tinham pó.

       

        - Isso leva-me a crer que a tua mãe se encontra numa situação pouco agradável. Terá ido a casa de Cushing e discutido, com ele?

       

        - Não sei. Se isso aconteceu, só posso dizer que, quando saí de casa, deixei-o furioso de raiva.

       

        -E quanto à arma?

        -O xerife provou que foi o meu revólver que serviu para matar Cushing?

       

        - Ainda não, mas não deve tardar.

       

        Nesse momento bateram à porta. Carlotta, branca como a cal, olhou para Harvey Delano, e este encorajou-a:

       

        - Ânimo. Vai ver quem é.

       

        Quando a porta se abriu, recortaram-se na entrada o xerife Elmore e os seus três adjuntos.

       

        - Lamento vir incomodá-la, Miss Carlotta, mas não tenho outro remédio - desculpou-se o xerife. Trago um mandado de busca... Aqui o tem.

        

        Olhou para Harvey, interrogativamente.

       

        - É Mr. Delano, advogado - apressou-se Carlotta a apresentar.

       

        Harvey deu um passo em frente e inquiriu:

         - Posso saber qual é o objetivo desse mandado de busca?

       

        - Evidentemente, revistar a casa, à procura de provas materiais que corroborem as circunstâncias já detectadas. O mandado está em ordem, como o senhor poderá verificar, de maneira que lhe peço que se afaste para o lado e deixe manobrar os meus homens. A sua mãe está em casa, Miss Carlotta?

       

        - Não. Ainda não voltou.

       

        - Muito bem - indicou Elmore - Toca a revistar a casa.

       

        - Um momento - interpôs-se Harvey Delano - Ainda não verifiquei a natureza desse mandado de busca.

       

        - Mas eu já fiz e está em ordem - retrucou o xerife - Sente-se nesta sala e não saia daqui, nem toque em coisa alguma, enquanto damos uma vista de olhos pela casa.

       

        Carlotta olhou para Harvey, desolada, mas o namorado encolheu os ombros.

       

        - Não posso opor-me a um processo legal - justificou.

       

        Elmore deixou um dos seus adjuntos a vigiar o par enquanto com os outros, começou a busca.

         - Isto é um ultraje! - protestou Carlotta.

       

        - Foi cometido um homicídio - justificou o adjunto - O xerife está fazendo o melhor que pode.

        O público responsabiliza-o pelos resultados...

       

        Interrompeu-se por Elmore ter entrado no quarto, com uma caixinha de compacto na mão.

       

        - Aqui está um estojo com um diamante. Tem as iniciais CA e uma gravação interior: « De Arthur para Carlotta, com amor ». Sabe alguma coisa a este respeito, Miss Adrian?

       

        A jovem trocou um rápido olhar com Harvey e respondeu:

       

        - Foi um presente que Arthur me deu, pelos meus anos.

       

        - Arthur Cushing?

        -  Sim.

       

        - Quando o usou pela última vez?

       

        - Creio que ontem à noite. Devo tê-lo perdido... talvez quando saí do carro.

       

        - Pois é deveras estranho. Acabo de encontrá-lo, dentro de uma bota de montar, bem escondido, pois fora empurrado para a biqueira e comprimido com uma boa porção de algodão.

       

        - Está louco? - espantou-se Carlotta. - Esse compacto é meu, e não o escondi em parte alguma!

       

        - Então, quem o meteu na biqueira da bota?

       

        - Não sei. Não posso responder-lhe a essa pergunta.

       

        - Vou ser franco consigo, Miss Adrian. Ao revistar a vivenda de Cushing, encontrei resíduos deste compacto num sapato do morto e no chão, junto a uma das rodas da sua cadeira de inválido. Também aí se encontravam fragmentos do espelhinho de um estojo semelhante. Ora, este que aqui vê e diz ser seu, também tem o espelho quebrado. Que tem a dizer?

       

        Mordendo os lábios, Carlotta respondeu:

        - Nada.

       

        - Mas tem de haver uma explicação lógica para tudo isto, não acha?

       

        - Talvez alguém tenha encontrado o meu estojo de pó compacto e...

       

        - Foi escondê-lo numa bota de montar, dentro de sua casa? - troçou Elmore.

       

        Harvey Delano não encontrou qualquer argumento oportuno e o xerife insistiu:

       

        -Nada tem a explicar, Miss Adrian?

        Carlotta, desnorteada, replicou:

       

          -O meu advogado, Mr. Mason, aconselhou-me a não fazer comentários  , Tenho uma explicação para todos os meus atos, mais só a exporei no lugar e momento oportunos.

       

        - Creio que este é o lugar e o momento apropriado.

       

        Carlotta abanou a cabeça e mordeu os lábios.

         - Muito bem. Reconhece estes sapatos? - Inquiriu, recebendo-os da mão de um dos adjuntos.

       

        - Certamente. Pertencem a minha mãe.

        - Quer experimentar calçá-los?

       

        - Para quê?

       

        - Quero ver se também lhe servem.

       

        - É natural que sirvam. A minha mãe e eu calçamos as mesmas medidas.

       

        - Já alguma vez usou estes sapatos?

        

         - Sim, é possível. As vezes, usamos os sapatos uma da outra.

       

        -Estou a ver. E usou estes, recentemente?

       

        - Não.

       

        -Muito bem. Vou levá-los comigo, como prova.

       

        -Prova de quê? - interveio Harvey Delano. Apresentam alguma particularidade?

       

        - Isso é comigo. Vamos embora, rapazes. Isto é para si, Miss Adrian.-

       

        E o xerife Elmore estendeu-lhe uma folha de papel manuscrita, onde se lia:

        

         « Eu, Bert Elmore, eleito e empossado xerife deste Condado, tendo feito uma busca à casa de Mrs. Belle Adrian, mantenho, presentemente, em meu poder um par de sapatos de senhora e um estojo de compacto de tom geral, com um diamante incrustado e uma gravação: De’ Arthur para Carlotta, com amor. »

       

        Meteu o recibo nas mãos da jovem, e saiu, ignorando o facto de Harvey Delano ter aberto a boca, para falar.

       

        Perry Mason, Della Street e Paul Drake, estavam sentados em conferência com Carlotta Adrian e Harvey Delano. Este último, no seu traje de cowboy que lhe contrastava com o ar frágil e a tez pálida, mostrava-se confuso, sem saber que dizer. Carlotta lamentou-se:

       

        - Mas que desgraça! Nem posso acreditar. Pensar que prenderam a mãe...

       

        - Já era de esperar que o fizessem - observou Mason - Pensa que ela esteve, ontem à noite... ou esta madrugada, na vivenda de Arthur Cushing?

       

        - Não respondas a essa pergunta - atalhou Harvey.

       

        - Com os diabos! - impacientou-se Mason - Tratemos de pôr as cartas Na mesa.

       

        - Lamento, Mr. Mason - replicou Delano, corando. - Como amigo de Carlotta e- seu advogado, não permito que ela seja envolvida no crime.

        

         - Um momento...   Está a representar Carlotta Adrian?

       

        - Sim. Pode haver um conflito de interesses entre ela e a mãe e não convém que sejam defendidas por um mesmo advogado. O senhor representa Belle e eu encarrego-me da defesa de Carlotta. Por isso, aconselhei-a a não prestar declarações, seja a quem for e nem mesmo ao senhor. Até este momento, a Polícia só prendeu Mrs. Adrian. Carlotta deverá ser chamada a testemunhar acerca dos acontecimentos da noite passada,.

       

        - E depois, isso que tem?

       

        -Quero-a numa posição em que possa defender-se de qualquer acusação. Não posso consentir que a impliquem num crime, só para que Mr. Mason possa, mais facilmente, proteger os interesses da sua cliente.

         Virando-se para Carlotta, Mason, sondou-

       

        - Tomou essa decisão, Miss Adrian?

       

        - Bem, sim, Mr. Mason. O senhor defende a minha mãe e Harvey representará os meus interesses.

       

        - Como queiram - retorquiu Perry Mason, erguendo-se da cadeira e dirigindo-se para a porta. - Boa noite.

        

        Saiu, seguido, de Della Street e de Paul Drake que, talvez desajeitadamente, deixou que a porta batesse com o vento.

       

        No exterior, o advogado comentou:

       

        - A inexperiência pode aproximar um homem da burrice. Harvey não percebeu que a mãe está tentando proteger a filha e que esta, tomando a mesma posição, prova que nem uma nem outra são culpadas, embora não o saibam agora, colocando-se em campos separados...

        

         - Que sucede? - interessou-se Drake - se os interesses respectivos entram em, conflito.

        

         - Só sei que eu tenho a minha cliente, e que Delano ficou com a dele.

        

        O gabinete particular de Perry Mason parecia o quartel-general de um candidato político, em dia de eleições. Uma bateria de escriturários, contratados para coordenação de vários elementos informativos, quatro operadores telefônicos ocupados com comunicações exteriores, quatro secretárias, também requisitadas temporariamente, atarefavam-se em registrar as informações, na medida em que iam chegando, quase ininterruptamente, por aquelas quatro vias.

       

        Uma hora antes, Mason explicara a sua teoria:

         - O Vale do Urso fica a cento e noventa quilômetros de Los Angeles e os que aí vivem nada têm de comum com os de cá. Arthur Cushing tinha amigos nesta cidade e interesses no Vale do Urso. Mas não contava com amigos pessoais nessa região.

       

        « Partamos agora do princípio de que Mrs. Adrian falou verdade, quando disse estar em casa e ter ouvido um grito de mulher do outro lado do lago, e que Carlotta, a essa hora, já regressara da vivenda de Cushing e, se achava deitada.

       

        «Portanto, nenhuma delas gritou. Quem o fez foi uma outra mulher, suficientemente íntima de Cushing para ir visitá-lo às duas e meia da manhã. Admitindo essa intimidade, torna-se possível que esteja presente no seu enterro.

       

        «Se tem automóvel, é possível que também compareça, esta tarde, ao funeral. A nossa intenção é verificarmos se esse mesmo carro esteve no Vale do Urso, na manhã de domingo passado.»

       

        - Mas não terás tempo de verificar todas estas chapas mineralógicas, Perry - objetou Drake - Os condutores dos automóveis nunca mais acabam.

       

        - Não precisamos verificar a identidade de todos os proprietários dos carros. Basta-nos tentar encontrar a coincidência de números de matrícula, ou seja, de carros que estiveram no Vale do Urso e que se apresentem no cemitério.

       

        A dois quilômetros dali, um pretensioso funeral citadino decorria com a presença de uma pequena multidão de gente bem encasacada; o caixão, contendo os restos mortais de Arthur Cushing estava depositado sobre um estrado florido; um pastor religioso terminara um fastidioso sermão e um coro, escondido, cantara brandamente, Ao som da música do órgão, naquela atmosfera perfumada e solene, as pessoas acotovelavam-se, com um, ar constrangido... talvez pelo aperto.

       

        No exterior, os detetives de Paul Drake atarefavam-se no parque de estacionamento, compilando as matrículas dos automóveis. Depois de preencherem uma folha de papel, corriam a recitar a sua lista a uma das cabinas públicas do cemitério.

       

        Mason, Della Street e Paul Drake comparavam esses números com os da lista que já possuíam, procurando uma duplicação. Encontraram quatro.

       

        Dez minutos mais tarde, Drake, trabalhando em colaboração com um seu amigo da Polícia, obteve a identidade e morada dos quatro proprietários daquelas viaturas.

       

        Um destes era um funcionário, do Estado residente no Vale do Urso; outro, um jovem que fora amigo de Arthur Cushing, costumava fazer esqui com ele e até se evolvera numa aventura comum que dera escândalo.

        O terceiro era uma ela, uma mulher que vivia nos arredores, a cerca de vinte quilômetros da cidade. O quarto,também do sexo feminino, era Marion Keats, que residia mesmo em Los Angeles, no n.º 2316 da Huntless Avenue.

       

        Pouco depois, Drake obteve informações mais pormenorizadas. A mulher que vivia nos subúrbios tinha quarenta e sete anos, fora amiga da mãe de Arthur e costumava acusar Dexter Cushing de ter morto aquela, devido a negligência e crueldade para com a jovem esposa.

       

        Sempre se mostrara hostil ao milionário, mas, de certa maneira, dedicava uma espécie de afeição maternal a Arthur Cushing, procurando desculpá-lo de sua vida de indolente dissipação, atribuindo este defeito a uma má educação paterna.

       

        O relatório acerca de Marion Keats descrevi-a como sendo uma jovem de vinte, e quatro anos, um metro e sessenta e oito de altura, sessenta e cinco quilos de peso, olhos cinzentos escuros e cabelo preto.

       

        -  O meu palpite, vai para essa Marion Keats decidiu Mason.

       

        Drake precisou:

       

        - Vive num prédio de apartamentos. O dela é o

         314. Que fazemos?

       

        - Só há uma coisa a fazer: malhar o ferro enquanto está quente. Neste momento deve estar  saindo do funeral... decerto, chocada emocionalmente. Talvez tenhamos a sorte de « arrancar-lhe » alguma coisa!

        

        Drake concordou, observando:

       

        - Deve ter sido ela quem gritou; quem atirou com o espelho pelos ares, contra a janela, estilhaçando os vidros; quem puxou o gatilho da arma... mas não estou a vê-la admitir-nos qualquer desses fatos.

       

        - Evidentemente, estamos perante provas apenas circunstanciais. A Acusação da Procuradoria do Distrito baseou-se na teoria de que uma mulher discutiu com Arthur Cushing e que este, pegando num pesado espelho de mesa, decorativo e antigo, lho atirara à cabeça. Ela reagiu matando-o.

       

        - E então? Que vês de errado nessa teoria?

       

        - Se Artur tinha o hábito de forçar as moças a certos atos sexuais,  seria mais natural pensar-se que fora uma delas quem lhe atirara com o espelho... e não ele para punir a reação de pudicícia feminina.

       

        - Nisso há muita verdade, Perry. As mulheres, quando se danam, costumam atirar com coisas, o que já é menos comum nos homens.

       

        - Mas suponha, «  Chefe » - interveio Della Street - que Marion Keats; se recusa a discutir o assunto consigo.

       

        - Vou tentar fazê-la falar e, uma coisa é certa, enfio-lhe uma intimação nas mãos para interrogá-la... a ferro e fogo no tribunal. Terei de transformá-la em bode expiatório. Este é um desses casos em que, um advogado de Defesa não pode chamar o seu próprio cliente ao banco das testemunhas.

       

        «Mesmo que Belle Adrian fale verdade, a acusação crucificá-la-ia, demonstrando que a história que ela conta é totalmente contrária à versão dos investigadores da Polícia.»

       

        - E se Mrs. Adrian permanecer calada, que lhe sucede?

       

         - Bem...  o júri também acaba por considerá-la culpada. Só nos resta tentarmos implicar uma outra mulher.

       

        Queres que vá contigo? - ofereceu-se Drake.

         - Sim, mas ficarás do lado de fora da porta. Quando ouvires uma pancada no painel, tocas a campainha, e, mal ta abram, entrega a contrafé. Faz de conta, Paul, que não me conheces.

       

        «O meu primeiro interrogatório no tribunal será já amanhã, na audiência preliminar; porém, antes disso, preciso de sondar essa Marion e ver como reage; só depois poderei optar por um método de aproximação adequado.

       

         - Portanto, queres que fique à porta, aguardando o teu sinal?

       

        - Sim... se é que consigo entrar no apartamento.

        - Essa Marion não vai apreciar a sua visita, « Chefe » - observou Della - Prepare-se para o pior. É muito capaz de fazer uma cena dos diabos e acusá-lo de qualquer atentado ao pudor... Tenha cuidado!

       

        - Tem razão, minha amiga! mas esta é uma dessas ocasiões em que ser cuidadoso não conduz a solução alguma.

       

        Ao ver o edifício de- apartamentos, Drake resmungou:

       

        - Não vai ser fácil. É um prédio de esnobes, convictos de que o dinheiro dá classe. O recepcionista insistirá em telefonar a Marion Keats, antes de deixar-nos subir... e ela dir-lhe-á não estar disposta a receber seja quem for.

       

        - Contudo, Paul, temos de arranjar maneira de chegar até ela. Mesmo esta intimação não passa de um blefe Marion está fora do Estado onde o crime foi cometido; teria sido preciso procurar-se um juiz de lá para endossar a intimação a um magistrado daqui. Mas estes pormenores já têm passado despercebidos a muitos advogados. Não creio que Marion Keats tenha cursado Direito. Basta que assine no verso do original. Portanto, não discutas com ela. Entrega-lhe a cópia, e põe-te a andar com o original assinado.

       

         - Certo, Perry.

       

        Entraram no átrio do edifício de apartamentos e o recepcionista olhou-os, erguendo as sobrancelhas, numa expressão de superioridade... apenas supraciliar.

       

        - Não há dúvida - murmurou Mason para Drake. - Não tem alta classe, só tem rendas altas. Até o funcionário é um esnobe sintético.

       

         - Qual vai ser o teu método de aproximação?

         - Loquaz e monetário.

       

        Ao acercarem-se do balcão, o homem indagou:

         - Boa tarde. Quem desejam visitar?... Têm entrevista marcada?

       

        - Não. Estamos aqui como representantes do governo.

       

        As sobrancelhas do indivíduo ainda mais se arquearam e as suas maneiras indicavam ter ficado muito mais distanciado.

       

        Do Departamento de Impostos de Renda?

         - Não - corrigiu Mason - Somos de um departamento que distribui subsídios governamentais.

       

        Abrindo a carteira, Mason extraiu uma nota de dez dólares e elucidou:

       

        - Da maneira a alcançar-se uma maior equidade entre patrões e empregados, o governo decidiu, começar a distribuir alguns subsídios. Aqui tem o seu.

       

        Olhando por cima do ombro, para certificar-se de que não estava ali mais alguém, o recepcionista sondou:

        - Que devo fazer em troca desse « subsídio »?

       

        - Nada, precisamente. Se não fizer coisa alguma, terá outros dez dólares, logo que desçamos ao átrio.

        - Receio não estar entendendo bem...

       

        - É natural. Queremos falar com um inquilino que habita um apartamento do terceiro piso, mas não desejamos ser anunciados. Se o formos, esse seu subsídio não vai além de dez dólares.

       

        - Tenho de comunicar com o inquilino, caso contrário ele queixa-se e eu sou despedido.

       

        Mason manteve-se silencioso e o recepcionista acrescentou:

       

        - Mas posso tentar um expediente. Só anuncio a vossa visita... depois de terem alcançado a porta. Explicarei que uns cavalheiros entraram por aqui dentro de repente e que subiram no elevador antes que eu pudesse detê-los. Tive de esperar que o indicador luminoso do mesmo me indicasse a que piso subiram para, em seguida, informar o inquilino...

       

        - Esplêndido, mas não diga que somos « cavalheiros ». Fale no singular.

       

        - Um só cavalheiro?

       

        - Sim. Gomo lhe paguei dez dólares e vou pagar-lhe outros dez, tenho direito ao título de cavalheiro.

        O meu parceiro prefere dispensar esse titulo. Vamos atuar como se não nos conhecêssemos.

       

        - Qual é o apartamento?

       

        -De Marion Keats, salvo erro, o 314

        

         - Sim,, é esse.

       

        - Sim,... quê?

       

        -  Sim,, sir. É esse.

       

        - Bem. Assim já está melhor.

       

        Drake passou pela frente do balcão, logo atrás de Mason e entraram no elevador onde o advogado indicou ao preto ascensorista, de jaqueta vermelha e botões dourados:

       

        - Terceiro piso.

       

        - Com os diabos! - comentou Drake, em voz baixa.

        - Não sei como conseguiste!

       

        - Pressenti poder manipular aquele sujeito. Todos estes figurões arrogantes, que levantam muito as sobrancelhas que se dão ar de uma importância que não têm, são fundamentalmente hipócritas... Gostam do seu teatrinho... e a hipocrisia é uma porta entreaberta para o suborno.

       

        O ascensorista coçou a carapinha e olhou para Mason, interessado.

       

        - Creio que está a falar de um tipo que eu conheço comentou, com um sorriso.

       

        Sim. Referia-me ao Governador do Estado.

         - Bem me parecia - concluiu o preto, alargando o sorriso, com uma larga fileira de dentes brancos.

        

        Depressa o advogado e o detetive percorreram o corredor até ao apartamento número 314.

       

        Segundos depois, a porta abria-se.

       

        A morena de corpo bem formado, quase atlético, fitou-os especulativamente. Mason achou-a deveras atraente e notou, pelo aspecto dos seus olhos e nariz, que estivera a chorar.

       

        Quem são? - indagou Marion Keats.

         Sorrindo atenciosamente, Mason apresentou-se:

       

        -Sou advogado... Perry Mason... e venho falar-lhe de Arthur Cushing.

       

        -As visitas costumam ser previamente anunciadas.

       

         - Bem sei, mas as circunstâncias e o motivo da minha visita também não são costumeiras.

       

        - Porquê?

       

        - Porque pensei que talvez não lhe conviesse, Miss Keats, que o gerente deste edifício ficasse a par desta minha visita.

       

        Marion não o convidou a entrar e, bloqueando a porta com o corpo, sondou:

       

        - Que pretende saber acerca de Mr. Cushing, Mr. Mason?

       

        -Prefere discutir o assunto no corredor?

       

        - Certamente.

       

        O telefone começou a tocar, Marion franziu o cenho

        e pediu, impacientemente:

       

        -Espere um minuto, Mr. Mason... por favor.

       

        Enquanto Marion corria para o aparelho e levantava o auscultador, Mason infiltrou-se no aposento.

       

        Num tom zangado, Marion admoestava:

       

        - Pensei que o seu dever era evitar situações como estas. O cavalheiro a que se refere já está aqui e entrou contra os meus desejos. Mande subir imediatamente um   mandalete... ou chame um polícia.

       

        Virando-se para Mason, quase gritou:

        - Eu disse-lhe para esperar no corredor.

       

        - Lamento incomodá-la, Miss Keats, mas, decerto, não  sabe o que pretendo perguntar-lhe. Se o soubesse, não  quereria atender-me no corredor.

       

        - Que quer saber?

       

        Esteve no funeral de Arthur Cushing?

         - Certamente. Ele era meu amigo.

       

        - Bem sei... e também sei que esteve no Vale do Urso, na noite em que ele foi assassinado.

       

        -Diz isso, como uma pergunta?

       

         - Não. Fiz uma afirmação.

       

        - E isso o que tem? Gosto de fazer esqui.

       

        - Qual o grau de intimidade das suas relações com Cushing?

       

        - Que tem o senhor com isso?... Como advogado, quem, representa no processo?

       

        - Belle Adrian.

       

        - Mrs. Adrian foi acusada de ter morto Arthur.

       

        - Precisamente,.

       

        - E eu, não tenho coisa alguma a dizer-lhe, Mr. Mason,

       

        - Bem... No presente momento, estou interessado em averiguar, em pormenor, a vida íntima de Arthur Cushing.

       

        -Evidentemente, está à procura de um bode expiatório para tentar atenuar as acusações contra a sua cliente, Contudo, nada tenho a dizer-lhe e só prestarei declarações ao procurador do Distrito... Para já, fique ciente de que espero que Mrs. Adrian seja condenada.

       

         - Vive aqui sozinha, Miss Keats?

       

         - O senhor já ouviu o que eu disse ao recepcionista. Um mandalete ou um polícia estarão aqui, dentro de segundos.

       

        - Muito bem - cedeu Mason, encostando-se à porta - lamento tê-la perturbado tanto... A audiência preliminar é já amanhã. Pensei que quisesse falar comigo, antes de sujeitar-se ao meu interrogatório.

       

        - Não pense que vai interrogar-me. Não tenciono comparecer no tribunal.

       

        Mason bateu no painel da porta e perguntou ainda:

        - Há quanto tempo conhecia Cushing?

       

        - Como já lhe disse, só prestarei informações ao procurador do Distrito. Queira sair, Mr. Mason...

       

        A campainha da porta tocou e Marion exclamou, triunfalmente:

       

        - Aí está ele!

       

        Ao abrir, encarou com Drake, que lhe introduziu na mão uma folha de papel dobrada, ao mesmo tempo que recitava:

       

        - Aqui tem a cópia de uma intimação para comparecer na audiência preliminar do julgamento de o Povo versus Belle Adrian, acusada de homicídio. Terá de apresentar-se no tribunal às dez da manhã. O original fica em meu poder- concluiu, depois de exibi-lo.

       

        Feito isto, virou as costas e retirou-se.

       

        - É um ultraje - protestou Marion. - Nada sei acerca desse caso.

       

        Pela porta aberta, Mason chamou Drake.

       

        - Não se vá já embora, senhor oficial de justiça, desejo ouvir, da boca da interessada, Miss Marion Keats se deseja comparecer no tribunal ou se tenciona desrespeitar a validade de uma intimação.

       

        Virando-se para a mulher, acrescentou:

       

        - A sua atitude, Miss Keats, é francamente anti-cooperativa. Apesar disso, elucido-a de que esta intimação não poderá forçá-la a estar presente na audiência, sem que um juiz a considere válida. Porém, nada me impede de ir procurar esse juiz. Só que tal diligência me fará perder algum tempo.

       

        - Obrigada por avisar-me disso.

       

        - Apenas a advirto de que a não cooperação pode ser-lhe prejudicial, particularmente no caso de fugir, antes que um juiz valide a intimação. Não se esqueça, Miss Keats, de que é uma testemunha essencial.

       

        - Essencial para quê?

       

        - Bem... Só poderei dizer-lhe, quando estiver sentada no banco das testemunhas.

       

        - Nada sei acerca do caso e aquilo que possa declarar em tribunal só poderá contribuir para  enterrar ainda mais a sua cliente.

       

        - Muito bem. Se não quer apresentar-se na audiência, terei de sujeitar o original da intimação a um juiz, para que a valide. Naturalmente, os jornais interessar-se-ão pela sua recusa e não deixarão de especular acerca dos motivos que a levam a recear depor.

       

        - Mas isso é um ultraje! - repetiu Marion, furiosa.

       

        - A minha cliente também se considera ultrajada por ter sido acusada de um crime que não cometeu. Só espera que lhe seja feita justiça... e a Justiça condena os cidadãos que se furtam a cooperar com a Lei, muito especialmente num caso de homicídio. Por vezes, esses cidadãos arriscam-se a ser suspeitos do crime por essa  causa...

       

        -Nada sei do que se passou... a não ser por aquilo que li nos jornais. Todas as provas indicam que o assassinato foi cometido por Mrs. Adrian ou pela filha. Espero, que a culpada seja condenada. Mr. Arthur Cushing era um homem encantador, cheio de magnetismo pessoal...

       

        - Sim... Continue,

       

        -Nada tenho a acrescentar.

       

         - Como queira...

       

        Voltando-se para Paul Drake, Mason sublinhou:

         - Terá de relatar, senhor Oficial de Diligências, que, perante a recusa de Miss Keats a prestar declarações, ver-me-ei na necessidade de inquiri-la, em tribunal, como testemunha material,

        

        -Nada tenho a dizer... - repetiu Marion.

       

         - Nesse caso, leia os jornais da manhã de amanhã, com as minhas declarações, antes de o juiz Norwood, nomeado para presidir a esta causa, a inquirir acerca da sua relutância em colaborar com a Justiça.

       

        - Muito bem, irei - resolveu Marion - Que devo fazer, agora?

       

        - Para poupar o trabalho ao juiz, basta que assine o seu nome no verso do original da intimação... tal como se endossa um cheque. Dessa maneira, já prova desejar cooperar com a Lei.

       

        Marion pegou no original, que Drake logo lhe estendeu, e assinou irritada.

       

        Ao devolver-lhe a folha de papel, ameaçou:

       

         - Tudo isto sairá muito caro à sua cliente, Mr. Mason. Farei tudo quanto puder para prejudicá-la... e provarei a um advogado esperto que não sou de estofo a deixar-me intimidar!

       

        Quando Perry Mason e Paul Drake atravessaram o átrio, o recepcionista justificava-se:

       

        - Lamento imenso, Miss Keats, mas os dois indivíduos passaram por diante do balcão, sem prestarem a mínima atenção aos meus protestos. Antes que eu conseguisse contornar o balcão, já eles subiam no elevador... A culpa foi do ascensorista. Não devia tê-los conduzido ao terceiro piso, antes de ver o meu sinal... Mas bem sabe como são esses rapazes negros... Não deixarei de admoestá-lo devidamente... Sim, entraram um logo atrás do outro, mas não me pareceu que viessem juntos... Não, Miss Keats, eu não disse dois cavalheiros. Disse apenas um cavalheiro... O mandalete, quando o chamei, não atendeu o telefone... Quer que eu chame a Polícia?... Muito bem, Miss Keats. lamento sinceramente o que aconteceu.

       

        Quando o recepcionista desligou, Mason estendeu-lhe a segunda nota de dez dólares.

       

        - Aqui tem o resto do seu subsídio do Estado.

       

        O petulante funcionário guardou-o no bolso, sem agradecer. Então, tirando, uma nota de vinte dólares, Mason elogiou:

       

        - Você desembaraçou-se muito bem.

        

         - Arrisquei o meu emprego, foi o que foi, por violar o regulamento deste edifício.

       

        Mason, ainda com a nota de vinte dólares entre os dedos, permaneceu calado.

       

        - Agora, que mais pretende de mim? - sondou o recepcionista..

       

        - Costuma estar de serviço, da parte da tarde?

        

         - Sim. De tarde, entro às duas e mantenho-me no meu posto até à meia-noite.

       

        - Estava também de serviço, no sábado passado?

        - Sim.

        

         - Miss Keats é uma mulher muito atraente, cheia de personalidade. Naturalmente, o senhor costuma notar isso, não?

       

        - Que quer insinuar?

       

        Agitando a nota de vinte dólares, Mason prosseguiu:

         - Estou certo de que, na tarde de sábado passado, você deve tê-la visto sair.

       

        - Caso a tenha visto... isso dá-me direito, a esses vinte dólares?

       

        - Sim, se me der uma outra informação.

       

        - Qual?

       

        -A dos telefonemas que ela fez nesse dia.

        - Está muito enganado a meu respeito, sir. Não  sou o gênero de pessoas que « dão à dica » informações confidenciais.

       

        Tranqüilamente, Mason extraiu da carteira outra nota de vinte dólares e juntou-a à primeira.

       

        - Certamente que não   ... se uma informação dessas for realmente confidencial ... mas não creio que o seja.

       

         - Muito bem, sir. Vou ajudá-lo, porque o senhor é realmente um cavalheiro... mas terá de proteger-me, em caso de isso degenerar em confusão.

       

        - Certamente.

       

        - Pois bem, Miss Keats é uma mulher de « alto coturno » e não pode passar despercebida a qualquer homem que se preze. Não costumo andar a espiar a vida dos inquilinos, mas, na minha posição, também não fecho os olhos.

       

        -Certamente - repetiu Mason, olhando de relance para Paul Drake - Que sucedeu no sábado passado?

       

         - Miss Keats estava visivelmente preocupada com qualquer coisa. Começou por sair e entrar, uma boa meia dúzia de vezes, e acabou por fechar-se no apartamento, certamente à espera de um telefonema. Este chegou, pouco antes das nove e meia da noite; quinze minutos depois, Miss Keats telefonou para a garagem, para que lhe tirassem o automóvel e o pusessem à porta do edifício. Desceu e saiu com uma pequena mala de viagem. Depois, saltou para o carro e partiu.

       

        -Não sabe para onde foi?

       

         - Está visto que não!

       

        - Mas sabe de onde lhe telefonaram, não é verdade?

       

        Olhando para os quarenta dólares que gostaria de juntar aos vinte que já embolsara, o recepcionista encolheu os ombros e respondeu:

       

        - Foi um telefonema de longa distância... de um sítio chamado Vale do Urso.

       

        -Telefonema de homem ou de mulher?

       

        - De mulher.

       

        - Que disse ela?

       

        - Nunca ouço as comunicações telefônicas dos inquilinos.

       

        - Nesse caso, como sabe que se tratava de uma chamada feita por uma mulher?

       

        - Porque a voz era feminina... Foi o telefonema mais curto que ouvi na minha vida. Por isso, ouvi-o... antes de desligar.

       

        - Que disseram elas?

       

        - Quando a telefonista informou tratar-se de uma chamada de longa distância, do Vale do Urso, para Miss Keats, fiz a ligação para o 314. Quando Miss Keats atendeu, a mulher do outro lado do fio limitou-se a dizer:

       

        «- É Miss Keats?... Agora, Marion! «E desligou.»

       

        - Só isso?

       

        - Só. Fiquei espantado. Depois disso, Miss Keats telefonou para a garagem e pediu o carro.

       

        Mason entregou-lhe as duas notas de vinte dólares.

         - Não se esqueceu de nada? - perguntou o advogado.

       

        -Não. Quanto mais penso no caso, creio que é o senhor quem deve ficar-me agradecido... e dizer-me « obrigado ».

       

        Perry Mason,, Paul Drake e Della Street achavam-se instalados numa suite de quatro quartos, na « Estalagem do Vale do Urso », temporariamente adaptada, a escritório, com secretárias, cadeiras e duas máquinas de escrever  portáteis. Della Street estava sendo assistida por uma datilógrafa.

       

        Porque Dexter Cushing era um, banqueiro de renome, com eminentes relações políticas e financeiras, e também porque o famoso advogado Perry Mason teria de enfrentar o procurador do Distrito local, toda a comunidade da região mostrava-se profundamente interessada nos debates que se prenunciavam.

       

        Mason considerou:

       

        - Mesmo carregando no acelerador a fundo, são precisos, pelo menos, três horas e quarenta e cinco minutos para um automóvel vir de Los Angeles aqui.

       

        Drake confirmou com um aceno de cabeça e o advogado continuou:

        

        -  Portanto, se Marion Keats saiu do seu apartamento por volta das nove e quarenta e cinco dá noite, não teria cá chegado antes da uma e meia da manhã.

       

        «Por outro lado, Sam Burris declarou ter acordado cerca das duas da manhã.

       

        «A arma, encontrada perto do carro de Carlotta e que lhe fora emprestada por Harvey Delano, está presentemente identificada como sendo a que matou Arthur Cushing.»

       

        Drake, coçou o nariz e observou:

       

        -Delano nada teve a ver com o crime. Detestava Cushing, mas uma data de testemunhas concedera-lhe um álibi indestrutível que o iliba de qualquer responsabilidade. Nem sequer pode ser considerado cúmplice indireto.

       

        «O gerente da casa de material desportivo, que fornece as munições para o clube de tiro, declarou que Delano andara a ensinar Carlotta a atirar ao alvo e que, quando lhe emprestara o revólver, dera-lhe instruções quanto à maneira de cuidar dele, depois de utilizá-lo. isto passou-se na carreira de tiro e outras pessoas presenciaram a cena.

       

        «Desta maneira, a arma do crime só fica diretamente relacionada com Carlotta e Mrs. Belle Adrian. «A filha afirma ter guardado o revólver no porta-luvas do carro que abandonou na estrada, mas isso pode ser considerado um meio de ela tentar proteger a mãe.

         Após uma pausa, Drake, indagou:

       

        - Irá Delano pôr Carlotta no banco das testemunhas? Tudo indica que a filha procurou defender a mãe com as declarações que prestou ao xerife... mas conseguirá agüentar-se no balanço, quando a interrogarem no tribunal?

       

        - Decerto, Delano não irá cometer uma tal imprudência - objetou Mason Acusação não teria dificuldade em desmentir Carlotta. A versão que ela relatou ao xerife está crivada de inexatidões... e a própria moça tem consciência disso.

       

        «Elmore considerou-as mentiras intencionais. Ao ser « espremida » no banco das testemunhas, Carlotta acabará por meter os pés pelas mãos e será culpada de perjúrio... Não! Harvey Delano não cairá num, erro tão desastroso,. »

       

        - É lógico, Perry. De resto, a pista deixada por Carlotta, a partir do automóvel, prova que ela não voltou para casa antes da meia-noite. As pegadas foram impressas depois de o solo ter sido coberto pela fina camada de gelo.

       

        - Na realidade, essas pegadas de pequenos sapatos de salto alto, provam, que ela mentiu quanto à hora de regresso a casa.

       

        - Precisamente. O procurador do Distrito vai realçar esse fato. Demonstrará que Carlotta mentiu ao declarar ter saído da vivenda de Cushing às onze horas e poderá admitir a hipótese de ela só tê-lo feito às duas da manhã.

       

        «Concluirá que a mãe ficou furiosa com essa « vadiagem » e decidiu pôr o assunto em pratos limpos com Cushing. Ao pedir-lhe contas, teria sido recebida com uma gargalhada trocista... e ainda mais se enfureceu.

       

        «Sabendo que Carlotta tinha o revólver no porta-luvas do carro, foi buscá-lo, voltou à vivenda e matou o « lobo mau ». No meu entender, esta será a tese do procurador do Distrito.»

       

        - É possível - concedeu Mason, ironicamente. Mas, depois de Belle Adrian ter assassinado Cushing, que fez à arma do, crime?

       

        - Atirou-a para onde pensou, estupidamente, que ninguém, a encontraria.

       

        - E para fazê-lo, voltou para junto do carro que a filha abandonara na estrada? Não tinha o lago mesmo ali, à mão?

       

        - Realmente, não faz muito sentido - reconheceu Drake - De resto, Belle Adrian, não teria podido regressar ao carro sem deixar rasto na estrada. A história só se tornaria lógica, se admitíssemos que foi Carlotta quem assassinou Cushing.

       

        «Mrs. Adrian ouviu um grito de mulher, pensou na filha e foi verificar se o carro já se achava na garagem. Vendo esta vazia, ficou preocupada, vestiu-se, dirigiu-se à vivenda e encontrou Cushing morto. Então, procurando saber o que acontecera a Carlotta, meteu-se pela estrada e deparou com o carro abandonado.»

       

        - E, em vez de regressar logo para casa, teria voltado à vivenda... onde já sabia que Cushing fora assassinado?

       

        -Bem... realmente é pouco provável, mas não obsta a que seja possível. Talvez quisesse proteger a filha, procurando recolher qualquer objeto susceptível de incriminá-la, como, por exemplo, o estojo de compacto.

       

        - Achas essa teoria satisfatória, Paul?

       

        - Francamente, Perry, é a única que explica o fato de o revólver ter sido encontrado na erva, perto do automóvel.

       

        - Bem... Se essa teoria te satisfaz, provavelmente também será aceita pelo júri.

       

        - Dessa maneira, Perry, serás obrigado a atirares com Carlotta aos « bichos »!

       

        - Paciência. Ela não é minha cliente. Apenas represento Mrs. Belle Adrian. Mas ainda há outra explicação em que, não pensaste, Paul.

       

        - Qual?

       

        - A arma podia não estar no porta-luvas como Carlotta declarou para proteger a mãe.

       

        - Queres dizer que a tua cliente já tinha o revólver em seu poder quando, pela primeira vez, foi à vivenda de Cushing?

       

        - Tal e qual.

       

        - Com os diabos, Perry! isso significa premeditação da parte de Belle, visto que já ia armada, quando foi pedir contas a Cushing. Sendo assim, matou-o e...

       

        -... e em vez de atirar a arma ao lago, ou para qualquer outro local distante, foi despojar-se dela perto do carro abandonado?

       

        - Continua a não fazer sentido, a menos que a mãe quisesse comprometer a filha num homicídio do primeiro grau... Mas a verdade, é que todos os fatos, revólver e pegadas, confluem para a dedução que fiz.

       

        - Naturalmente, será esse o cavalo de batalha do procurador do Distrito. Escuta, Paul: precisamos averiguar dois fatos fundamentais.

       

        -Quais?

        

        - Quem, foi a mulher que gritou e qual foi a pessoa que deixou pegadas de sapatos de salto alto, desde o automóvel até à vivenda de Cushing, tendo voltado pelo mesmo caminho... ou desde a vivenda até ao carro, regressando, depois, àquela... E, já agora, Paul, preciso que mandes fazer um espelho exatamente igual, em peso e tamanho, àquele que foi destruído em casa de Cushing.

       

        Praticamente toda a comunidade do Vale do Urso comparecera no tribunal para assistir à primeira audiência preliminar.

       

        O juiz Raymond Norwood, não insensível à presença dos jornalistas das principais cidades do Estado da Califórnia, tomara um ar de grande dignidade, como convinha em ocasião tão importante.

       

        O banqueiro Dexter Cushing contratara um advogado, Creston Ives, para cooperar com a Acusação.

        O procurador do Distrito, Darwin Hale, não se mostrara ressentido com isso, devido à grande influência financeira e política de Dexter Cushing. Convinha-lhe manter-se nas boas graças do importante capitalista, atirando para trás das costas qualquer melindre, pela imposição de tal colaborador.

       

        Contudo, Creston Ives, apesar da reputação que granjeara como advogado, não era um casuístico forense, experiente em debates no tribunal, mais sim um perito em impostos, em questões econômicas e administrativas. Darwin Hale não esperava grande auxílio da parte de Ives, em matéria criminal... e a causa nada tinha de cível.

       

        Dexter Cushing andara a badalar, por todo o lado, que Belle Adrian fora, indubitavelmente, tutora do assassinato de seu filho, pelo que ele empenharia todos os seus esforços e influência para que a ré fosse condenada. Os jornais divulgaram estas declarações e Mason chegou a admirar-se como o banqueiro não receava um processo por calúnia e difamação. Para todos os efeitos, antes de uma sentença, em julgamento final com a presença de um júri, não haveria condenação alguma. Muito menos naquela audiência preliminar que apenas se destinava a averiguar a existência de provas suficientes para que o processo ascendesse a uma instância superior. Contudo, os homens cujo valor se traduz em dinheiro pensam que este tudo pode comprar, incluindo um processo por difamação... e talvez calúnia, caso a ré acabasse por ser absolvida.

       

        O procurador do Distrito, Darwin, Hale, tivera, ainda muito recentemente, um notório triunfo político local, de que muito se ufanava. Agora que Dexter Cushing lhe dava o seu apoio, já entrevia uma mais eminente posição política e isso dava-lhe um ânimo extra. Portanto, entrou na sala de audiências como um gladiador convicto de que não deixaria de derrotar Perry Mason, apesar de toda a celebridade que este alcançara em todas as suas anteriores causas.

       

        Desta maneira, Hale expôs a intenção da Acusação de provar a culpabilidade de Belle Adrian, proferindo um discurso preambular violento.

       

        Em contrapartida, Mason mostrava-se tranqüilo e, dir-se-ia, sonolento, quase completamente alheio ao discurso do procurador do Distrito.

       

        Este chamou a sua primeira testemunha, o dr. Alexander Jeffrey. Depois de ajuramentado, o médico sentou-se no banco das testemunhas e Darwin Hale perguntou-lhe:

       

        - Conhecia, em vida, Mr. Arthur Cushing?

       

        - Sim, sir.

       

        - Em que qualidade?

       

        - Tive ocasião de tratá-lo de uma fratura, resultante de um acidente na prática de esqui.

       

        - Que espécie de tratamento lhe ministrou?

       

        - Fiz-lhe a redução de uma fratura do osso ilíaco, mais precisamente da espinha ilíaca posterior, um pouco abaixo da crista ilíaca.

       

        - Que meios utilizou na redução dessa fratura?

         - A única maneira de reduzir uma fratura do ilíaco é a imobilização total da anca e parcial da coxa. Para tal utilizei compressas de gesso e ligaduras complementares.

       

        - Quando tornou a ver o seu paciente, Doutor?

       

        - Fui chamado a casa de Mr. Cushing no dia três do corrente, por volta das quatro e meia da manhã.

       

        - Em que condições o encontrou?

       

        - Estava morto.

       

        - Em resultado da queda que sofrera?

       

        - Não. Em resultado de um ferimento de bala que lhe penetrara no peito.

       

        - Pode expor, Doutor, qual o seu cálculo para determinação da hora da morte?

       

        - Pelo que vi, no momento do primeiro exame, e pelo que confirmei, no decurso da autópsia, direi que Arthur Cushing morreu entre as duas e as três da mesma manhã.

       

        - Durante a autópsia, conseguiu recuperar o projétil?

       

        - Sim, evidentemente! - respondeu o médico, admirado com a infantilidade da pergunta - No meu exame post mortem, extraí uma bala de calibre 38, proveniente de uma arma portátil, provavelmente um revólver.

       

        - A morte foi instantânea?

       

        - Sim, visto que atingiu o coração, causando grande hemorragia interna e externa.

       

        - Que fez, Doutor Jeffrey, à bala que extraiu do corpo da vítima?

       

        - Entreguei-a, para análise, a um perito de balística, depois de devidamente identificada. Ele verificou... - Não pode declarar isso, Doutor - observou Hale, benevolente - Trata-se de « ouvir dizer ».

         Em seguida, concedeu a Mason:

       

        - A Defesa pode contra-interrogar a testemunha.

         Mason, brandamente, inquiriu:

       

        - Sabe quando se verificou a fratura do ilíaco de Mr. Cushing?

       

        - Sim. Fui chamado ao hospital, cerca de meia hora depois do acidente.

       

        - Há quanto tempo se verificou esse acidente?

       

        - Cerca de quinze dias antes do meu paciente ter sido assassinado.

       

        -Ele estava se recuperando bem?

       

         - Muito bem.

       

        - E achava-se numa cintura de gesso?

       

        - Sim, para assegurar uma total imobilização da cintura e, também parcialmente, da coxa direita.

       

        - E essa cintura cobria-lhe todo o ilíaco?

       

        - Não. Apenas rodeava a parte superior do ilíaco. Para baixo, a imobilização parcial da coxa era conseguida por meio de ligaduras normais.

       

        - E o púbis?

       

        - O púbico não fora lesionado.

       

        - Portanto, o seu paciente poderia praticar atos sexuais?

       

        - Bem... não de uma maneira normal.

       

        -E tinha possibilidades de deslocar-se a pé?

       

         - Apenas com o auxílio de muletas.

       

        -E sem elas?

       

        - Não

       

        -Mas podia movimentar-se numa cadeira de rodas?

       

        - Obviamente.

       

        - Movia os braços e os ombros?

       

        - Sim. Só não podia movimentar facilmente a coxa direita... e a perna do mesmo lado.

       

        - Por conseguinte, era capaz de sentar-se e deitar-se?

       

        - Sim, mas com uma facilidade relativa... digamos, cautelosamente..

       

        - E quanto à hora da morte, Doutor? Poderia Arthur Cushing ter morrido por volta das... ora vejamos... uma hora e meia da manhã?

       

        O dr. Alexander Jeffrey abanou  a cabeça e disse secamente:

       

        - Não.

       

        - Porquê?

       

        - Porque pude partir do princípio que ele jantara às nove e um quarto da noite.

       

        - Em que se baseou para poder partir desse princípio?

       

        -- Nas declarações da governanta que cozinhou e serviu o jantar.

       

        - E a hora da refeição permitiu-lhe, Doutor, calcular a hora da morte?

       

        - O processo da digestão é um indicativo quase preciso. Os alimentos no intestino de Mr. Cushing indicavam que a morte teria ocorrido cerca de cinco horas após a ingestão da última refeição.

       

        Gelidamente, Mason concluiu:

       

        - Portanto, Doutor, o senhor nada sabe acerca da hora da morte, a não ser baseado no que ouviu dizer.

       

         - Não, Sir. Isso não é correto. Pessoalmente, quando encontrei o cadáver, fui de opinião que a morte ocorrera duas ou três horas antes desse mesmo momento.

       

        - Mas, quando o interroguei a esse respeito, o senhor baseou a sua conclusão na hora da ingestão dos alimentos.

       

        O médico mudou de posição, como se a cadeira fosse desconfortável e explicou:

        

        - Bem... a temperatura do corpo... que é um dos fatores determinantes... Bem... pareceu-me que Mr. Cushing morrera cerca de duas horas antes de eu fazer meu primeiro, exame.

       

        - Ah! A temperatura do corpo... -  considerou Mason, pensativamente - Por agora, é tudo, Doutor.

        O dr. Alexander Jeffrey levantou-se e ia abandonar o banco das testemunhas, quando o procurador do Distrito o deteve:

       

        - Um momento - pediu, sorrindo -  Mr. Mason tem, a reputação de ser uma espécie de demônio nos seus contra-interrogatório. Por conseguinte, Doutor, penso que seria conveniente esclarecer o assunto, de maneira a expurgá-lo de qualquer insinuação. Vou fazer-lhe mais uma ou duas perguntas em re-interrogatório direto. Quero que esta matéria fique bem, explícita.

       

        E Hale ergueu o queixo para Mason, como a indicar que não se achava minimamente intimidado com a reputação do seu opositor, e olhou em redor para os rostos que o miravam amigavelmente, quase com aplauso.

       

        Não só Darwin Hale conhecia a maioria dos assistentes, como cidadãos do Vale do Urso, mas também contava com o seu apoio moral, visto ser uma personalidade importante da região.

       

        Era como se dissesse: « Reparem bem, meus amigos, como isto agora vai ser esmagador.»

       

        - Como Mr. Mason insinuou, o seu cálculo, Doutor, quanto à hora da morte baseou-se em « ouvir dizer », por ter partido do princípio que a vítima ingerira os últimos alimentos às nove e um quarto da noite. Não foi isso?

       

        - Sim, Sir.

       

        - Mas, depois, o senhor declarou, claramente, que o seu primeiro exame lhe indicara que Mr. Cushing morrera cerca de duas horas antes de tê-lo visto na noite do crime. Portanto, essa sua conclusão é totalmente independente daquilo que tenha ouvido dizer à criada, não é verdade?

       

        - Bem... sim,.

       

        - Portanto, esse seu cálculo nada tem que ver com a ingestão dos alimentos, não é assim?

       

         - Certamente. Baseei-me na temperatura do cadáver.

       

        Com um ar de triunfo e sorrindo sarcasticamente para Mason, Hale proferiu, destacando as palavras:

         - É tudo! Espero, Mr. Mason, que tenha percebido a afirmação da testemunha.

       

        - Perfeitamente - replicou Mason, afavelmente - Creio que consegui perceber as declarações do dr. Jeffrey... Com isso, senhor procurador do Distrito, concluiu o interrogatório direto da testemunha?

       

        - Definitivamente! Nada mais tenho a perguntar-lhe, Doutor.

       

        - Um instante - cortou Mason - Já que entrou em pormenores técnicos, Mr. Hale, e fez um comentário acerca da minha reputação como contra-inquiridor, julgo-me, na obrigação de fazer mais algumas breves perguntas.

       

        - Faça o favor - motejou Hale - Mas de nada lhe servirão as suas costumeiras artes diabólicas. Já...

        O juiz Norwood interrompeu, bruscamente, o procurador do Distrito observando:

       

        - Atenção, cavalheiros! Vamos acabar, desde já, com trocas de palavras desagradáveis entre os advogados. O sarcasmo pode transformar-se em acrimônia e tal degeneração dos debates é atentatória à dignidade do Tribunal. A experiência ensinou-me que, em tais circunstâncias, compete ao juiz cortar o mal pela raiz. Por conseguinte, não quero ouvir aqui mais réplicas quizilentas. Queira contra-interrogar a testemunha, Mr. Mason.

       

        - Muito bem, senhor Doutor Juiz - concordou Mason, humildemente, como se tivesse sido ele o culpado da agressão verbal e  não Hale.

       

        Virando-se para o médico, perguntou:

       

        - Diga-me, Doutor Jeffrey: não é verdade que, baseado na temperatura do cadáver, o senhor declarou ter concluído, logo no seu primeiro exame, que a morte teria ocorrido entre duas ou três horas antes do momento em que o viu?

       

        - Exatamente.

       

        - Para que essa sua declaração não seja gratuita, torna-se necessário, Doutor, que elucide o Tribunal acerca do princípio científico, em que se baseou.

       

        Agitando-se na cadeira, Alexander Jeffrey elucidou:

         - A temperatura de um cadáver sofre um certo grau de arrefecimento. Por outras palavras mais inteligíveis, Mr. Mason, o corpo humano, enquanto vivo é um maravilhoso exemplo, de ar condicionado. Com exceção de estados anormais que, provocam febre, causados por uma, infecção, o corpo mantém, quase sempre, a temperatura constante de 36,7º C.

       

        «Depois de morto, o corpo esfria, gradualmente, até um certo ponto, e essa descida de temperatura fornece a um médico experiente uma indicação, deveras precisa quanto à hora da morte.»

       

        - Obrigado, Doutor, por essa sua amável explicação.

       

        O médico, acenou com a cabeça, em sinal de benévola aceitação do agradecimento, como um sábio recebendo o aplauso de um néscio.

       

        Brandamente, Mason indagou:

       

        - Segundo me consta, Doutor... queira corrigir-me se eu estiver em erro... a temperatura de um cadáver decresce a uma média de 0,4º C, por hora, após a morte... Não é assim?

       

        O dr. Jeffrey ficou surpreendido com o conhecimento que Mason provava possuir acerca da, matéria e coçou o pescoço, por baixo da nuca.

       

        - Bem, é mais ou menos isso.

       

        - Mais ou menos, porque depende da temperatura ambiente... Não é o que pensou, mas não quis dizer, Doutor?

       

        Jeffrey reagiu mal à insinuação e retorquiu:

         - Não achei necessário entrar em pormenores pouco inteligíveis por parte dos leigos em medicina.

       

        - Ah! Considera, Doutor, que todas as pessoas presentes neste Tribunal, são totalmente ignorantes, a ponto de não saberem que graus centígrados são uma medida de temperatura?

       

        - Não disse isso?

       

        - Não saberão as     pessoas presentes neste Tribunal o que significa uma descida de temperatura? - Certamente que o sabem, mas não vejo em que isso possa interessar...

       

        - Já vai ver, Doutor. Quando o senhor examinou, pela primeira vez o corpo de Arthur Cushing, determinou que a temperatura era exatamente 16,1º C abaixo da normal num corpo vivo de 36,7º C., não, é verdade?

       

        - Bem,... não foi bem assim. O que agora presume é incorreto.

       

        - Nesse caso, em que consiste a incorreção do meu cálculo?

       

        - Na realidade, eu não, tomei a temperatura do cadáver, no primeiro momento em que o vi. Só depois de ele ter sido removido para a morgue, cerca de uma hora depois, tive oportunidade de verificar a temperatura do corpo com um termômetro.

       

        - Ah! Só lhe tomou a temperatura uma hora depois?

       

        - Foi o que eu disse.

       

        - E disse muito bem! Por conseguinte, essa temperatura que mediu com um termômetro só poderia indicar-lhe que a morte ocorrera três horas antes; descontou uma e concluiu as duas horas a que se referiu?

       

        - Sim... foi isso.

       

        - Por que hesitou na resposta, Doutor?

       

        - Quis assegurar-me de que tinha compreendido bem a pergunta.

       

        - E já a compreendeu?

       

        - Sim.

       

        Hale interveio para sublinhar:

       

        - A prova de que a testemunha compreendeu está em ter-lhe respondido, Mr. Mason. Não compreendo por que motivo a Defesa se encarniça nesta dança das temperaturas.

       

        Mason fez ouvidos de mercador e prosseguiu:

         - Portanto, Doutor, está agora a testemunhar que a temperatura do cadáver, quando na realidade a mediu, era de 24,3º C?

       

        - Eu não referi esse número.

       

        - Mas, como as pessoas presentes neste Tribunal devem, pelo menos, saber somar e diminuir, devem-no ter entendido, visto que declarou ter calculado a hora da morte em cerca de três horas antes do seu exame do cadáver, na morgue. Ou as minhas contas estão erradas?

       

        - Bem... parecem-me certas.

       

        - Tem dúvidas acerca da exatidão do cálculo aritmético, Doutor?

       

        - Bem... não. Está exato.

       

        - Mas, ainda há pouco, quando testemunhou... e fê-lo sob juramento... não declarou que o arrefecimento post mortem de um, corpo é de 0,4º C, por hora, aproximadamente.?

       

        -  Limitei-me a concordar com o seu cálculo.

       

         - Portanto, achou-o correto, não é verdade, Doutor?

       

        - Sim... Em princípio, sim.

       

        - Nesse caso, Doutor Jeffrey, a diferença entre a temperatura normal de um corpo vivo de 36,7º C, e a que verificou no cadáver, quando o examinou na morgue, de 34,4º C é de 2,4º C. Ora, mesmo qualquer leigo entre as pessoas presentes, em que me incluo, desde que aptas a efetuar uma operação aritmética de divisão, qualquer leigo, repito, se dividir essa diferença de 2,4º C pelo arrefecimento de 0,4º C por hora, obterá um resultado de seis horas e não de três. Dessa maneira, a morte de Artur Cushing não teria ocorrido entre as duas e as três horas da manhã, mas entre as onze horas e a meia-noite.

       

        - Não, Mr. Mason. A sua conclusão é incorreta.

       

         - Porquê? Fiz mal as contas?

       

        -  Aritmeticamente, estão exatas, mas o arrefecimento  post mortem de um corpo não depende  unicamente do padrão citado. Depende de outras circunstâncias.

       

        - Ah! -  fingiu-se Mason: admirado - A que circunstâncias se refere, Doutor?

       

        - A temperatura ambiente, como o senhor mesmo referiu há pouco.

         

         - Tem razão, Doutor Jeffrey. Já me esquecia de eu próprio ter mencionado esse condicional,... Então, temos de considerar a temperatura ambiente. Quando esta é superior ou inferior à normal, ou seja, à média de 24º C o arrefecimento decresce ou aumenta, respectivamente. Se bem me lembro dos meus estudos de medicina forense, essa média deve ser considerada com uma maior latitude. Digamos que a temperatura ambiente padrão pode estabelecer-se entre 20 e 28º C.

       

        « Isto significa que, quando se verificam temperaturas inferiores a 20º C e superiores a 28º C, o arrefecimento, por hora, de um cadáver é já sensivelmente menor ou maior respectivamente. Por outras palavras, arrefece mais lentamente ou mais aceleradamente, em relação à temperatura ambiente.

       

        «Tomou, estes fatores em consideração, Doutor Jeffrey?»

       

        - Evidentemente. Tive o cuidado de efetuar os cálculos que se impunham, em relação à temperatura ambiente.

       

        - Pode explicar ao Tribunal como efetuou esses cálculos?

       

        - Senhor Doutor Juiz - protestou Hale - A Defesa está a prolongar escusadamente, esta audiência preliminar, embrenhando-se em pormenores de uma tecnicidade absolutamente dispensável...

       

        -  Dispensável? - espantou-se Mason - Porventura a Acusação considera dispensável a determinação da hora da morte?

       

        - Não, mas o dr. Alexander Jeffrey é uma testemunha idônea e de indiscutível qualificação profissional. As suas declarações, quanto à hora da morte...

       

        - ... podem pecar por excesso ou defeito - cortou Mason -  Errare humanum est. Mesmo os mais ilustres sábios têm cometido erros na análise dos fenômenos acerca dos quais se

        pronunciaram... só mais tarde corrigidos.

       

        Voltando a encarar o médico, o advogado inquiriu:

        - Que temperatura ambiente tomou em consideração?

       

        - Inicialmente, a temperatura do quarto era mantida por um termostato que estava regulado para uma constante de 24º C. Mas, como a janela se encontrava partida, entrando por ela o ar da madrugada, admiti que o arrefecimento do corpo fosse muito mais acelerado.

       

        - Mediu a temperatura do ar, no exterior?

       

        - Não precisei fazê-lo. Regulei-me pelo boletim meteorológico que indicava uma temperatura de 4º C negativos. Obviamente, o ar exterior, penetrando pela vidraça quebrada, acelerou o arrefecimento, do corpo. Foi por isso que não tomei em consideração o cálculo errôneo de seis horas e, optei pelas três.

       

        «Em circunstâncias normais, num ambiente, fechado a uma temperatura de 24º C, o, corpo necessitaria de seis horas para atingir a temperatura registrada de 24,3º C ou seja, 16,1º C abaixo da normal de 36,7º C de um corpo vivo. Com a penetração, do ar exterior, de 4º C negativos, o cadáver teria arrefecido, muito mais rapidamente. Em conseqüência, reduzi o cálculo de seis horas para três horas, determinando o momento da morte entre ais duas e as três da manhã. Isto o satisfas, Mr. Mason?»

       

        - Não completamente, Doutor Jeffrey. Se o Tribunal me permite, peço seja lida a explicação da testemunha quanto ao comportamento, do corpo humano em relação à temperatura, ambiente... o trecho que comparava o mesmo corpo a um aparelho de ar condicionado.

       

        - Queira ler esse trecho - determinou o juiz, virando-se para o escrivão.

       

        Este levou algum tempo procurando as declarações; que registrara, enquanto indignadamente, Hale apontava para as horas que se escoavam, como se o contra-interrogatório fosse absolutamente dispensável.

       

        Finalmente, o escrivão leu:

       

        «Defesa: Para que essa declaração não seja gratuita, torna-se necessário, Doutor, que elucide o Tribunal acerca do princípio científico em que se baseou.

       

        « Testemunha,: A temperatura, de um cadáver sofre um certo grau de arrefecimento. Por outras- palavras mais inteligíveis, Mr. Mason, o corpo humano, enquanto vivo, é um maravilhoso exemplo de ar condicionado ... »

       

        - É quanto basta - indicou Mason - Muito obrigado, senhor Doutor Juiz. Bem me parecia que o Doutor Jeffrey tem em devida consideração a eficiência do sistema de ar condicionado. É óbvio, pela leitura das suas declarações, agora reproduzidas em Tribunal, que o sistema de ar condicionado, regulado por um termostato, tende a manter a temperatura, ambiente para quefoi ajustado. Isto significa que, se a temperatura começa a baixar imediatamente o sistema entrando em funcionamento produz maior calor, de modo a manter a temperatura, para que foi regulado.

       

        «Por ventura, Doutor, verificou se o aparelho de ar condicionado estava avariado?»

       

        O médico olhou para o procurador do Distrito, como a pedir-lhe auxílio, mas o representante da Acusação fingiu-se muito atarefado a manusear uns papéis.

       

        - Não... não creio que estivesse avariado -  respondeu Hale, nervosamente.

       

        - Nesse caso,, Doutor, a partir do momento em que a janela foi quebrada, o sistema de ar condicionado aumentou a emissão de calor para dentro da sala, tendendo a manter a temperatura regulada no termostato para 24º C.

       

        «Mesmo que não o conseguisse completamente, deve ter ” combatido denodadamente ” a penetração de ar de 4º C negativos.

       

        «Note-se que a janela não estava completamente escancarada. Apenas tinha uma vidraça partida. Assim, o ar a 4º C negativos não predominou completamente no ambiente interior onde o sistema de ar condicionado se esforçava por manter os 24º C para que tinha sido regulado o termostato.

       

        «Desta maneira se demonstra a inanidade do cálculo que estabelece o momento da morte entre as duas e as três horas da manhã. Logicamente, aquela ocorreu muito mais cedo, talvez à uma ou uma e meia... tempo este que, dadas as circunstâncias e carência de elementos positivos, por parte da perícia, se torna impossível determinar com precisão.»

       

        «Mas uma coisa é certa: Mr. Arthur Cushing não foi assassinado, às duas da manhã e, sim muito antes.»

         - Um momento, um momento - interveio Hale, pondo-se de pé. - A Defesa está a agarrar-se desesperadamente a pormenores técnicos de temperatura baseando-se num sistema de ar condicionado que ninguém sabe se estava a funcionar devidamente.

       

        - Tem outra maneira, Mr. Hale, de determinar a hora de morte, sem ser por meio da temperatura do corpo, já que este processo não lhe convém, por contrariar, em absoluto, o cálculo da testemunha?

       

        - Certamente que tenho e, já aqui foi exposta.

        O dr. Jeffrey baseou-se na digestão dos alimentos... processo este muito mais eficiente e preciso.

       

        - Seria preciso e eficiente, se a testemunha tivesse em que fundamentar o seu cálculo... mas partiu do princípio de que a última refeição da vítima se efetuara às nove e um quarto da noite. Ora, essa informação está invalidada pelo fato de basear-se em « ouvir dizer ».

       

        - Lá volta a Defesa a emaranhar-nos com malabarismos técnicos - gritou Hale, exaltado.

       

        - Senhor procurador do Distrito! - interveio o juiz Norwood, de cenho cerrado e expressão de censura. Parece que a Acusação se esqueceu da minha recomendação prévia e que o Tribunal se opõe a expressões que degradem a dignidade dos debates.

       

        - Peço desculpa, senhor Doutor Juiz, mas...

       

        O rosto de Norwood sombreou-se ainda mais, e isso bastou para que Hale se silenciasse, sentando-se, desalentado.

       

        Mason, com uma brandura inesperada, prosseguiu:

        - Desde que a Acusação não pôde, através da sua testemunha, estabelecer o momento da morte, a não ser baseando-se na temperatura, fica demonstrado que Arthur Cushing não podia ter sido assassinado entre as duas e as três horas da manhã.

        

         - Um momento - interrompeu Hale - A Defesa não pode demonstrar que o ar gélido exterior, penetrando pela janela, não tenha anulado, completamente, a ação do sistema de ar condicionado. Apenas especula com deduções não comprovadas.

       

        - Exatamente, tal como a Acusação! De resto, a inexatidão das deduções da testemunha ressalta pelo fato de não se saber, sequer, em que momento a janela foi quebrada.

       

        Virando-se para o médico, Mason inquiriu:

       

        - Sabe quanto tempo antes da morte... ou depois da morte... uma dás vidraças da janela foi estilhaçada?

         - Certamente. Isso ocorreu no momento da morte, ou melhor, quando da luta que, imediatamente, a precedeu.

       

        - Como sabe isso, Doutor?

        

        - Ora essa! Disse-me o procurador do Distrito, Mr. Hale.

       

        - Ah, sim? E ele explicou-lhe como obtivera essa informação?

       

        - Obteve-a da testemunha Sam Burris que ouviu o ruído de vidros quebrados, instantes antes do estampido do tiro.

       

        - Estou a ver. Nesse caso, o senhor, Doutor Jeffrey, veio a este Tribunal depor, sob juramento, baseando-se no que ouviu dizer do procurador do Distrito que, por sua vez, acreditou nas declarações de uma testemunha não ajuramentada? Não acha que se trata de uma repetição de « ouvir dizer »?

       

        «Resumindo, o senhor, Doutor Jeffrey, estribando-se em duas informações por « ouvir dizer »... e numa terceira, proveniente da criada que serviu a refeição à vitima, permite-se testemunhar, sob juramento, quanto à hora da morte? Não acha que se coloca numa situação perigosa que quase aflora as raias do perjúrio?»

       

        - Bem... Eu observei isso mesmo ao procurador do Distrito, mas ele afiançou-me que a Defesa...

         Alexander Jeffrey calou-se e Mason concluiu:

         -... que a Defesa seria incapaz de descobrir a imaterialidade do seu testemunho?

       

        - Bem... foi mais ou menos isso.

       

        - Objeção - interpôs Hale - a conversa entre a Procuradoria do Distrito e a testemunha não é para aqui chamada... Eu, pessoalmente...

       

        - Objeção rejeitada - resmungou o juiz Norwood, tornando a franzir o sobrolho - Queira prosseguir, Mr. Mason.

       

        - Quer dizer, Doutor Jeffrey, que o procurador do Distrito colocou na sua boca declarações inconsistentes, na intenção de confundir a Defesa e, dessa maneira, ludibriar o Tribunal?

       

        - Bem... eu não disse isso!

       

        - Mas sabe que assim foi, não é verdade?

        - Bem... eu...

       

        O médico tornou a calar-se, fitando atentamente as biqueiras dos sapatos.

       

        -Nada mais tenho a perguntar-lhe, Doutor - finalizou Mason, com um suspiro de enfastiamento.

       

        Depois, erguendo os olhos para Hale, indagou:

         - Não deseja, senhor Procurador do Distrito, voltar a re-interrogar, diretamente a sua testemunha?

         Abespinhado, Hale retorquiu:

       

        - O senhor conduz o seu caso... o eu conduzo o meu como muito bem entendo.

       

        - Assim é - reconheceu Mason, num tom conciliatório.

       

        Mas logo acrescentou, mordaz::

         - Graças a Deus!

       

        Reprimindo um sorriso, o juiz levantou-se e determinou:

       

        - Chegou a altura de fazermos um intervalo. A audiência prosseguirá dentro de dez minutos.

       

        Mrs. Betsy Burris possuía um temperamento agudamente inquisitivo e sempre manifestara um interesse intenso pela personalidade alheia.

       

        Os acontecimentos diários, discutidos nos jornais, pareciam-lhe pálidos e descoloridos, em relação àquilo que ela própria averiguava acerca da vida dos cidadãos.

       

        Durante os dez minutos de intervalo da audiência, Mrs. Burris sentiu-se numa posição de destaque, devido ao relacionamento do seu marido com o processo em causa. Por isso, em conversa com Hazel Perris, mulher do carniceiro local, não se coibiu de fazer alguns comentários críticos ao decurso dos debates.

       

        Replicando à observação de Mrs. Perris de que as Adrian eram gente honrada, pelo que não se justificava estarem envolvidas num caso de crime, Mrs. Burris objectou:

       

        - Talvez seja, justamente porque são honradas, que se envolveram nele.

       

        - Que queres dizer com isso, Betsy?

       

        - Bem sabes, Hazel, o gênero de « galo doido » que Arthur sempre fora.

       

        - Que tem isso a ver com o caso?

       

        - Como te comportarias, Hazel, se fosses jantar com um homem que, em seguida, tentasse forçar-te a fazeres « porcarias »... que não te apetecessem nesse momento?

       

        - Referes-te a... - sondou Mrs. Perris, esboçando um discreto gesto pornográfico.

       

        -... a isso e a outra coisa ainda pior... Que lhe fazias?

       

        - Ferrava-lhe com o rolo da massa, para que « aquilo » lhe amolecesse.

       

        - Bem... foi o que Carlotta lhe fez, mas não tinha o rolo da massa à mão, Atirou-lhe com o tal espelho à cabeça.

       

        - Não pode ser, Betsy. Se a garota lhe tivesse dado com o espelho na « cachola », o tipo ficava todo amolgado e cortado pelos vidros. Para uma mulher atirar com um espelho tão pesado... como consta que aquele era e que foi parar bem longe... teria precisado de utilizar ambas as mãos. Ora, não é verdade que o teu marido ouviu o ruído de vidros quebrados, imediatamente antes do estampido do tiro? Se Carlotta tinha as mãos ocupadas com o espelho, quem disparou a arma?

       

        - Bem sabes, Hazel, que, às vezes, Sam faz imensas confusões...   propositadas. Quando lhe convém, « torce » os fatos.

       

        - E achas que o fez, neste caso, apesar de ser tão grave? Pensas que tenta proteger ... ?

       

        - Só te digo que, na minha opinião, Carlotta ferrou uma rija estalada no patife; depois, atirou-lhe com o espelho que foi embater na vidraça da janela e, finalmente, pôs-se a andar dali para fora. Evidentemente, ao chegar a casa, contou tudo à mamãzinha. Belle ficou danada, enfiou um revólver na algibeira e resolveu dizer « duas coisas » a Artur. Este atirou-lhe com a moldura envidraçada e, nesse momento, a arma que Belle empunhava disparou-se.»

       

        - Não, Betsy! Nos nossos dias, isso não faz sentido! Mesmo que Carlotta se tivesse « embrulhado », de todas as maneiras possíveis com o tipo, não iria fazer queixas à mãe... nem Belle se lembraria de « limpar », a tiro, as habilidades sexuais da filha. Ninguém me convence de que ela tenha ido a casa de Arthur, às duas da manhã. Não te esqueças de que Belle é uma senhora... Teria preferido esperar pela manhã.

       

        Mrs. Burris ia replicar com qualquer argumento, mas calou-se, deliberadamente. Só após uma pausa acrescentou:

       

        - Sei umas coisas... mas não posso dizer-te... e, agora, se me dás licença, tenho de ir falar com o meu marido.

       

        O seu ar reservado, com os lábios firmemente cerrados, contrastava com a sua proverbial tendência palradora. Rodou sobre os calcanhares e misturou-se com a multidão que atulhava o átrio e os corredores do edifício do tribunal.

       

        Quando Mrs. Perris se virou para trás, deu de caras com o xerife Elmore.

       

        -  Está muito pensativa, Hazel! - comentou este, significativamente.

        

        Agindo por um súbito impulso, Mrs. Perris agarrou-o por um cotovelo e arrastou-o para um canto do corredor onde não estava ninguém.

       

        - Diga-me uma coisa, Bert Elmore: você « apertou » bem com Sam Burris?

       

        - Certamente. Arranquei-lhe tudo cá para fora. Foi assim que consegui estabelecer o elemento tempo.

        - Não estou a referir-me à hora do crime. Estou a perguntar-lhe, Bert, se lhe « sacou » tudo quanto ele sabe acerca do que, se passou em casa de Arthur Cushing.

       

        - Creio que me contou tudo quanto sabia.

         - Muito bem, Bert. O problema é seu. Contudo, se eu fosse a si, iria interrogar Betsy a esse respeito.

       

        - Que quer dizer com isso, Hazel?

       

        - Que ela sabe certas coisas que não quer andar a ventilar por aí. Suponho que Sam lhe mandou travar a língua. Porém, pelo pouco que ela se descaiu comigo,, compreendi que está absolutamente convencida de que Belle Adrian matou aquele mulherengo.

       

        - Como chegou você a essa conclusão, Hazel? Betsy precisou algum fato?

       

        - Não precisou fatos, mas insinuou saber coisas que mais ninguém sabe... a não ser o marido. De resto, as suas maneiras eram reprimidas... bem contrárias ao seu temperamento tagarela.

       

        - Acha que seria conveniente eu sujeitar Betsy a um interrogatório?

       

        - Meu bom Bert! Eu não passo da mulher do açougueiro desta cidade. O xerife é você. Só lhe digo que Betsy sabe qualquer coisa e que Sam lhe mandou calar o « bico ».

       

        - Obrigado, Hazel - rosnou Elmore, afastando-se bruscamente, em direção ao gabinete onde o procurador do Distrito, Darwin Hale se achava em conferência com Creston. leves, coadjutor da Acusação.

       

        No fim do intervalo, o juiz Raymond Norwood reabriu a audiência e Hale chamou a depor um perito de balística do Departamento de Homicídios de Los Angeles, especialmente convocado para assistir às investigações da Polícia do Condado.

       

        - Examinou a bala que causou a morte de Arthur Cushing? - indagou o procurador do Distrito.

       

        - Sim, sir, assim como a arma que a desfechou. Esta é um revólver Colt especial de calibre 38, com o nº 740818. Não há dúvida, pela análise dos riscos provocados no projétil pelas estrias do cano, que a bala foi disparada por essa arma.

       

        O perito apresentou várias fotografias comprovativas das conclusões dos testes efetuados, e Hale propôs ao tribunal que aquelas fossem apensas ao processo, como provas da Acusação.

       

        - Queira a Defesa contra-interrogar - concedeu Hale, num tom de desafio.

       

        Mason surpreendeu toda a gente ao declinar o seu direito de contra-interrogatório.

       

        Sem esconder o espanto, Hale chamou a testemunha seguinte:

       

        - Harvey Delano.

       

        Este, pálido e magricela, com os fracos ossos escondidos por um casaco que dir-se-ia ter sido cortado para um homem avantajado, ainda parecia mais ridículo. do que quando se « mascarava » de cowboy.

       

        - Cumpre-me informar o Tribunal - prefaciou Darwin Hale - de que a presente testemunha é hostil à Acusação. É advogado e foi contratado para representar os interesses de Miss Carlotta Adrian,, filha da ré.

       

        Bruscamente, rodou para enfrentar Delano e disse:

        - Chamo a sua atenção para um revólver da marca Colt especial  de calibre 38 que foi apenso ao processo como prova material A. Pergunto-lhe se alguma vez viu essa arma.

       

        Harvey Delano estava evidentemente preparado para o interrogatório e respondeu:

       

        - Como advogado de Miss Carlotta Adrian, recuso-me a trair qualquer confidência da minha cliente.

         - Não estou a pedir-lhe que traia uma confidência da sua cliente. Não sugeri, Mr. Delano, que divulgasse qualquer segredo que ela lhe tenha transmitido. Apenas peço que testemunhe um fato. Já tinha visto este revólver?

       

        E Hale exibiu a arma, teatralmente.

        - Sim.

       

        - A quem, pertence?

        - É meu.

       

        - Quando o viu pela última vez?

       

        Delano umedeceu os lábios com a língua e olhou, constrangido, para o juiz. Depois respondeu ao procurador do Distrito:

        

        - Emprestei essa arma a Miss Adrian, que não só é minha cliente, mais também minha amiga pessoal.

       

        - Pelo que sabe, este revólver estava na posse da  sua cliente, na noite do dia dois e madrugada do dia três do corrente mês?

       

        - Não sei.

       

        - Ignora o fato de a arma ter estado em poder da  sua cliente?

       

        - Não sei se Miss Carlotta Adrian a tinha em seu poder nos dias mencionados pela Acusação.

       

        - Em que data lhe emprestou o revólver?

        - No domingo da semana passada.

       

        - É tudo! - suspirou Hale - A Defesa pode contra-interrogar.

       

        - Neste momento - disse Mason - não tenho perguntas a fazer à testemunha, reservando o meu contra-interrogatório para mais tarde, se assim o entender por conveniente.

       

        O adjunto do xerife, George Carter, que encontrara a arma, testemunhou em seguida, explicando como a achara no meio das ervas que circundam a beira da estrada, entre a casa das Adrian e a vivenda de Cushing.

        Informou que o revólver fora lançado, precisamente, a dez metros e setenta e dois centímetros, medidos a partir da porta do automóvel que se encontrava abandonado na estrada.

       

        No seu contra-interrogatório, Mason limitou-se a inquirir:

       

        - Disse dez metros e setenta e dois centímetros?

        - Sim, sir.

       

        - Detectou pegadas de sapatos femininos, entre a porta do automóvel e o local onde o revólver jazia?

        - Não.

       

        - Procurou-as?

       

        - Sim, mas, evidentemente, o revólver não foi lá depositado. Foi atirado pelo ar.

       

        - Porventura tomou a precaução de pesar essa arma?

       

        - Não considerei necessário tomar essa precaução, porque sei que um Colt Especial pesa cerca de um quilo... um quilo e cem gramas, quando muito.

       

        - Por que diz « quando muito »?

       

        - Porque qualquer homem normal pode atirar um volume, com esse peso a dez metros.

       

        - Ah! E o senhor, Mr. George Carter, considera Miss Carlotta Adrian,... ou a ré, Mrs. Belle Adrian... como sendo homens normais?

       

        - Não as considero homens... mas há mulheres muito fortes.

       

        - E classifica as duas senhoras mencionadas como sendo muito fortes?

       

        - Não sei. Nunca tive oportunidade de medir forças com elas.

       

        Ergueu-se um rumor de risota entre a assistência que o juiz Norwood logo silenciou, após algumas pancadas do maço sobre a secretária. Mason, com um sorriso benévolo inquiriu:

       

        - No seu entender, uma mulher com a compleição física das referidas senhoras, teria força muscular para projetar um volume de um quilo quase onze metros, sem ter aberto as pernas para firmar-se bem no solo?

       

        - Objeção - interpôs Hale - A pergunta requer uma opinião da testemunha e não a afirmação de um fato.

       

        Objeção aceita - decidiu o juiz - Queira a Defesa formular a pergunta noutros termos.

         Mason perguntou:

       

        - Detectou no solo impressões de pegadas, afastadas e com saltos femininos bem cravados na lama coberta por uma película de gelo?

       

        - Não.

       

        - Mas inspecionou a estrada e a margem, não é verdade?

       

        - Sim.

       

        - E não viu tais vestígios de pegadas?

       

        - Não. Não estavam lá. A arma pode ter sido atirada de dentro do carro, através da janela aberta.

        - Não, Mr. George Carter! Uma mulher normal, sentada dentro de um automóvel, não teria força para atirar com um revólver de um quilo a quase onze metros de distância, a menos que se tratasse de uma campeã olímpica de lançamento de peso.

       

        - Limitei-me a apresentar fatos - justificou-se o adjunto do xerife - Nem sequer sei se teria sido uma mulher quem projetou o revólver a essa distância, como também não sei se, na altura em que alguém o tenha feito, o solo já se encontrava coberto pela película de gelo.

       

        - Exatamente, Mr. George Carter. Esse seu raciocínio é pertinente. Nada prova que tenha sido uma mulher quem atirou com um revólver de um quilo a quase onze metros de distância. Contudo, pela carência de pegadas afastadas e profundamente impressas na estrada, na margem e na erva, é evidente que, se alguém o fez, isso ocorreu antes de o solo ter ficado coberto pela fina camada de gelo,... portanto, antes da meia noite. Obrigado, Mr. Carter. É tudo.

       

        Foi a vez de o pai da vítima, Dexter Cushing, ser chamado a depor. Depois de prestar juramento, testemunhou que a moldura quebrada, que lhe exibiam, pertencera a um espelho, pesado e antigo, que ele mantivera durante muito tempo arrecadado numa garagem. Fora Dexter quem sugerira a Arthur que pendurasse esse espelho numa das paredes da vasta sala da vivenda do Vale do Urso, mas não sabia se o filho aceitara essa sugestão.

       

        - Contra-interrogatório - indicou Darwin Hale.

       

        Aparentemente sem grande interesse, Mason perguntou:

       

        - Arthur Cushing era seu filho único?

        - Sim.

       

        - Era o seu único herdeiro?

        - Sim.

       

        - O senhor é viúvo?

         - Sim.

       

        - Está intensamente interessado nos resultados deste caso?

       

        - Sim - quase gritou Dexter, exaltado.

         - Contratou um advogado... o proeminente Mr. Creston Ives, para coadjuvar o procurador do Distrito na Acusação?

       

        - Sim.

       

        - Está a pagar, do seu bolso, os salários de Mr. Ives?

       

        - Sim.

       

        - E, naturalmente, está ansioso por ver a ré ser acusada de homicídio?

       

        - Só espero que seja executada, quanto antes, na câmara de gás.

       

        - Apenas porque deseja ver vingada a morte do seu filho?

       

        - Sim. Se for preciso, gastarei todo o meu dinheiro, até ao último centavo, para que a assassina do meu rapaz não se fique a rir. Hei de vê-la arder no inferno!

       

        - E pensa que a ré foi a assassina de seu filho?

          - Estou tão certo disso como de estar aqui, neste momento.

       

        - Não há certeza, sem provas concludentes - sentenciou Mason - O senhor, Mr. Cushing, dispõe-se a gastar uma fortuna para ver Mrs. Belle Adrian condenada, mesmo que esteja inocente. Por outras palavras, supondo que a ré não tenha cometido esse crime, o senhor, Mr. Cushing, persiste em forçar a sua condenação, deixando, desse modo, o verdadeiro assassino impune... e a rir-se de si e de toda a gente, não é isso? Nunca pensou nessa hipótese, Mr. Cushing?

       

        - Trate dos seus negócios, Mr. Mason, que eu saberei tratar dos meus.

       

        - O meu único interesse - replicou Mason – é provar que a ré está na  verdade inocente do crime que lhe imputam.

       

        - E o meu, é vê-la sufocar, envenenada, na câmara de gás! - gritou Dexter Cushing, espumando pelos cantos da boca.

       

        - Está, portanto, desenvolvendo todos os seus esforços com esse objetivo, mesmo contra a integridade da Justiça?

       

        - Espere pelas provas e verá!

       

        - Espere pelas provas e verá! - retorquiu Mason, como um eco, no mesmo tom de voz.

       

        Depois, voltando a falar brandamente, concluiu:

         - Obrigado. É tudo.

       

        Cushing saltou da cadeira, mas Mason, como se acabasse de lembrar-se de outra pergunta, deteve-o:

         - Um momento, Mr. Cushing. Pode responder mesmo de pé. Conhece uma Marion Keats?

       

        - Não!

       

        - Nunca ouviu falar dela?

        - Não.

       

        - Obrigado.

       

        E, com um gesto de tédio, Mason mandou-o embora, repetindo:

       

        - Obrigado. É tudo.

       

        Logo a seguir, o procurador do Distrito convocou:

        - Nora Fleming.

       

        Esta era uma loira, bastante atraente, que desempenhara as funções de governanta na vivenda de Arthur Cushing. Não parecia uma profissional vulgar. Tinha a pele bem tratada, grandes e belos olhos azuis e falava tão baixo que se tornava difícil compreender o que dizia.

       

        Depois das formalidades habituais da identificação e juramento, declarou que Arthur Cushing lhe informara ter uma convidada para jantar, na noite do dia dois do corrente.

       

        - Quem era essa convidada? - perguntou Hale.

        - Carlotta Adrian.

       

        - A filha única da ré?

         - Sim.

       

        - Esse jantar realizou-se?

        - Sim.

       

        - Como se encontrava Carlotta e Arthur Cushing, sentados à mesa?

       

        - Um em frente do outro. Mr. Cushing estava, evidentemente, na sua cadeira de rodas.

       

        - Quando o jantar terminou, que sucedeu?

       

        - Levantei a mesa, para que Mr. Cushing pudesse instalar um projetor de filmes de 16 milímetros. Miss Carlotta sentou-se ao seu lado e eu despedi-me e fui-me embora para minha casa.

       

        - Vive no Vale do Urso?

       

        - Sim... isto é, vivia num quarto alugado, numa pensão, a meio quilômetro da vivenda de Mr. Cushing e também à borda do lago.

       

        - Já lá não vive?

       

        - Regressei a Los Angeles, logo após a morte de Mr. Cushing.

       

        Pegando numa blusa, Hale perguntou a Nora Fleming:

       

        - Conhece esta peça de vestuário?

        - Sim.

       

        - Que sabe a seu respeito?

       

        - É a blusa que Miss Carlotta Adrian usava, na noite do jantar.

       

        - Nota algumas alterações no tecido, em relação à primeira vez que a viu?... Examine-a atentamente.

       

        - Sim... A blusa está rasgada no peito e tem uma manga descosida, na altura do ombro.

       

        - Mas achava-se em perfeitas condições, quando viu Carlotta Adrian com ela, durante o jantar?

       

        - Certamente.

       

        - A que horas deixou a vivenda de Arthur Cushing?

        - Por volta das dez e um quarto. lavei toda a louça, menos dois copos de balão que se achavam sobre a mesa... com conhaque francês. Mr. Cushing disse nada mais precisar de mim e dispensou os meus serviços. Informei-o de que voltaria, como de costume, às oito e meia do dia seguinte, para preparar-lhe o pequeno almoço.

       

        - Quando saiu, que estavam eles a fazer?

         - Tinham as luzes apagadas e viam a projeção de um filme, com paisagens da montanha e gente a esquiar.

       

        - A que horas, habitualmente, Arthur Cushing tomava o pequeno almoço?

       

        - Por volta das nove.

         - Contra-interrogatório - indicou Hale.

        Mason olhou para Nora Fleming, pensativamente. Depois, indagou:

        

         - É Miss ou Mrs. Fleming?

        - Mrs. Fleming.

       

        - É casada?

        

        - Estou separada do meu marido.

        -  Judicialmente?

       

        - Não. Vivemos cada um para seu lado. Ele quis a sua liberdade e eu a minha.

       

        - Quanto tempo viveu aqui, no Vale do Urso?

        - Dois meses.

       

        - Há quanto tempo já conhecia Arthur Cushing?

        - Há seis meses.

       

        - Já tinha trabalhado para ele, antes de vir para cá?

        - Não. Uma amiga apresentou-me Mr. Cushing e ele ofereceu-me o emprego.

       

        - Já tinha visto o espelho antigo que se partiu, na noite da morte de Arthur Cushing?

       

        - Sim,. Estava na garagem. O pai de Arthur... de Mr. Cushing, sugeriu-lhe, que o espelho ficaria bem na sala que é muito ampla e serve ao mesmo tempo de quarto de dormir mas ele remeteu-o à garagem, depois de ver o efeito que fazia na sala. Era um « monstro »!

         - Pegou-lhe alguma vez?

       

        - Sim, para limpá-lo por detrás, quando o penduramos na parede, só para ver se condizia com o ambiente.

       

         - É um objeto pesado?

       

        - Muito pesado.

       

        - Sabe qual é o seu peso?

       

        - Não.

        

        - Muito bem, Mrs. Fleming... ou prefere que a trate por Miss Fleming?

       

        - Geralmente tratam-me por Miss Fleming.

       

         - Muito bem. - repetiu Mason, erguendo um grande embrulho que se encontrava a seu lado e começando a libertá-lo do papel envolvente - Tenho aqui um espelho do mesmo peso e dimensões daquele que foi destruído em casa de Arthur Cushing. Foi mandado fazer especialmente para este efeito e...

       

        - Objeção! - interpôs Hale, levantando-se - Isto é um golpe de teatro, montado... encenado, não se sabe para quê.

       

       

        - Pode explicar, Mr. Mason, a intenção da Defesa- interveio o juiz Norwood.

       

        - Certamente, senhor Doutor Juiz. De acordo com as dimensões e peso do espelho, registrados no processo, e divulgados na imprensa, mandei fazer este fac-símile para auxiliar as testemunhas que tenham de responder a algumas particularidades; a ele referentes.

       

        - Assegura ao Tribunal, Mr. Mason, que ais dimensões e peso são exatos, em relação, ao espelho destruído?

       

        - Certamente, senhor Doutor Juiz.

       

        - Objeção rejeitada - decidiu Norwood - Que a testemunha responda à pergunta.

       

        - Sim - confirmou Nora Fleming, depois de Mason lhe ter passado para as mãos o fac-símile do espelho.

        - Tem o mesmo tamanho e peso, segundo me parece. Só que esta moldura não apresenta o mesmo trabalho de talha antiga.

       

        - Obrigado, Miss Fleming... Para esclarecimento do Tribunal e evitar o trabalho de verificar-se o registro no processo, este fac-símile do espelho pesa, tal como o original, dezessete quilos e meio. Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha.

       

        Então, o juiz Norwood, com um profundo suspiro de cansaço, anunciou:

       

        - Chegou o momento de interrupção do julgamento, para almoço. A audiência será reaberta às duas horas. A ré permanecerá sob custódia do xerife.

       

        Mason, Della e Paul reuniram-se na suíte do hotel onde os esperava um almoço frugal, previamente, encomendado.

       

        Pondo a mão no ombro de Drake, Mason indicou:

        - Preciso, Paul, que mandes seguir Nora Fleming, passo a passo. Não é uma governanta profissional. Não me parece que tenha sido  amante de Cushing, mas talvez possamos explorar qualquer segredo, nas relações entre ambos. Sabes alguma coisa a seu respeito?

       

        - As averiguações dos meus operadores esbarraram com dados de boa conduta moral. Foi datilógrafa de uma empresa; casou com o gerente e deixou de trabalhar na casa. Separou-se do marido... porque este fugiu com outra, para Nova Iorque. Durante algum tempo, viveu de uma pensão que o tipo lhe enviava mensalmente. Não sabemos se ainda a recebe... mas não aqui, no Vale do Urso. Não vem pelo banco nem pelo correio. Talvez ele a deposite, em nome da mulher, noutro banco qualquer. Na pensão onde vive, a quinhentos metros da vivenda, tem um quarto muito arrumado e o seu comportamento é exemplar. Averiguamos que Cushing sempre que metia uma  « manhosa » lá em casa, tinha o cuidado de afastar Nora Fleming, dispensando-a do serviço.

       

        Mason considerou:

       

        -  Quando ela declarou só estar trabalhando para Artur, há dois meses, mas já o conhecer há seis, notei que Dexter Cushing franziu as sobrancelhas, de maneira suspeita. Provavelmente, começou a digerir mentalmente o que eu lhe disse, quanto à inocência de Belle Adrian e à possibilidade de o assassino ficar impune. É um tipo impulsivo, apesar de ter dado excelentes provas de sua capacidade para os negócios.

       

        - Suspeitas da governanta?

       

        - Suspeito de muita coisa que ficou por esclarecer. O momento da morte situou-se pouco depois da meia-noite. A película de gelo começou a formar-se um pouco antes, isolando a vivenda, no que respeita a pegadas. Todas as que ficaram impressas depois da meia-noite, foram detectadas pelos homens do xerife. São tipos acostumados a caçar na montanha e a seguir pistas.

       

        «Nora Fleming disse ter ido para casa; Carlotta confirma que ela deixou a vivenda ... »

       

        - Mas podia ter voltado para trás e assassinado Arthur Cushing - insinuou Drake.

       

        - Não poderia tê-lo feito, sem deixar rasto no solo.

        - Mas nota, Perry, que a vivenda de Cushing era de Um Só Piso. Um tiro, através da janela de rés-do-chão, não deixa pista.

       

        - Uma bala - objetou Mason -teria aberto um orifício na vidraça e nenhum estilhaço apresentava a mínima perfuração. O xerife Elmore não é homem para ter deixado « passar  » um vestígio desses. De resto, Cushing estava sentado na cadeira de rodas, de costas virados para a janela e foi atingido no peito.

       

        - Podia alguém ter rodado a cadeira, depois de o tipo estar morto.

       

        - Não, Paul. A cadeira não foi movida, depois de a janela e o espelho terem sido quebrados. Dei-me ao cuidado de examinar, cuidadosamente, as rodas dessa cadeira. Os pneus não são do tipo de bicicleta, com câmaras de ar. A sua matéria é de uma borracha macia. Se alguém rodasse a cadeira, esses pneus ficariam com resíduos de vidro incrustados, o que não se verificou.

       

        «Além disso, a sala é ampla. Mesmo que Cushing estivesse virado de frente para a janela, um atirador teria de ser bastante experiente para atingi-lo em pleno coração, através dos arbustos e de uma vidraça, a uns sessenta metros, visto que ninguém poderia acercar-se mais da casa, sem deixar pegadas no solo de terra batida, coberto pela película de gelo.»

       

        O advogado interrompeu-se quando o criado veio levantar a travessa e os pratos, só deixando os copos e as garrafas de cerveja. Mason deu-lhe dois dólares de gorjeta e, depois de o empregado sair, prosseguiu:

       

        - Tem de haver uma explicação para o motivo que levou alguém a atirar aquele espelho pelo ar. E será nesse motivo que terei de fundamentar a Defesa.

       

        - Não há muito para especular a esse respeito. Os fatos apenas indicam que o espelho foi projetado pela sala, estilhaçou-se... e nada mais.

       

        - Teria, realmente, sido atirado pelos ares, para atingir Cushing.

       

        - Bem, Perry, o procurador do Distrito baseia-se na teoria de que o próprio Cushing atirou com o espelho contra uma outra pessoa.

       

        - Ok, Paul. Veremos isso no tribunal. Tens mais alguma informação para mim?

       

        - Verifiquei todos os telefonemas que foram feitos para o apartamento de Marion Keats, provenientes daqui. O único que pode interessar-te... pois excluo os de um clube de esqui, de há mais de uma semana, a comunicar não terem vagas para alojamento... foi feito de uma cabina telefônica exterior. Essas cabinas públicas. estão abertas, vinte e quatro horas por dia.

       

        - Alguém telefonou para Marion, às nove e vinte, de uma dessas cabinas?

       

        - Sim. e é tudo quanto pudemos averiguar.

         Mason concluiu, pensativamente:

        

         - Isso significa que alguém deve ter estado a espiar a vivenda de Cushing; alguém que avisou Marion Keats de que Arthur Cushing estava jantando com Carlotta.

        

        - E, nestas circunstâncias, não nos é possível descobrir quem foi.

       

        - Que mais averiguaste, Paul?

       

         - O xerife inspecionou o automóvel, de ponta a ponta, e detectou impressões digitais de Carlotta, da mãe e uma outra, muito nítida, de um polegar, no manípulo da porta direita. O meu operador conseguiu obter uma cópia fotográfica dessa impressão digital.

        - Que mais?

       

        - Uma informação de última hora que poderá ser importante: o xerife está, neste momento, a interrogar Mrs. Betsy Burris.

       

        - Talvez haja alguma discrepância, entre as declarações de Sam Burris e as da mulher. Provavelmente, o procurador do Distrito desejará tê-las aclaradas, antes da audiência desta tarde.

       

        Alisando o cabelo com a mão, Mason acrescentou, após uma pausa:

       

        - Não precisará de chamar Mrs. Burris ao banco das testemunhas. Bastar-lhe-á interrogar novamente o marido. Mais alguma coisa?

       

        - Nada mais, a não ser que o xerife está a « espremer » Betsy Burris, há mais de uma hora, com um taquígrafo e uma datilógrafa a registrarem e a compararem as declarações do marido e da mulher.

       

        O telefone tocou e Della estendeu o fone a Paul Drake. Pouco depois, este anunciava:

       

        - Um dos meus homens acaba de transmitir-me uma notícia preocupante.

       

        - Fala..

       

        - O procurador do Distrito está almoçando, aqui, na estalagem, no restaurante por baixo de nós. Recebeu uma chamada telefônica do xerife e ficou radiante. Transmitiu-a a Creston Ives e ambos parecem ter ganho a sorte grande. Estão acabando de almoçar às pressas para irem para o tribunal.

       

        - Mrs. Burris - interveio Della Street - tem fama de falar pelos cotovelos e não deve ter conseguido calar-se acerca do que viu na vivenda de Cushing. Um binóculo só serve a uma pessoa, de cada vez. Deve ter visto qualquer coisa num, dos momentos em que o marido não estava a observar a cena...

       

        - Sim, devia, e também pode dar-se o caso de Sam Burris ter mandado a mulher guardar segredo de qualquer pormenor que pudesse implicar, ainda mais, uma das Adrian aparentemente, ele tem procurado ajudá-las... não sei bem porquê.

       

        - Que vou fazer, Perry? - perguntou Drake.

       

         - Quando se requer uma carteira de motorista, o requerente tem de apor no pedido de licença, assim como na carta que lhe é passada, a impressão digital do polegar direito... Se quem imprimiu aquela dedada no manípulo da porta do carro das Adrian não for canhoto, talvez possamos descobrir a sua identidade.

       

        - Esperemos que o não seja - resmungou Paul - Que queres que faça? Que ponha, agora, os meus homens a consultar os registros de requerimentos de carteiras de motoristas?... Tem piedade, Perry.

       

        - O que tenho é uma acusada inocente a defender. Temos de dar tudo por tudo, para conseguirmos salvá-la. Esse teu operador que obteve uma fotografia da dedada latente, terá de expedir, imediatamente, para Los Angeles, pelo tele-transmissor fotográfico, uma imagem dessa impressão digital. Porás um dos teus homens da Agência a compará-la com as que estão, nos arquivos das licenças de condução... Serve-te dos teus conhecimentos na Polícia... O teu, informador « oficial » será principescamente recompensado...

       

        - E cá, no Vale do Urso?

       

        - Mandas o teu outro operador proceder à mesma busca... Ou melhor, entrega-lhe uma reprodução dessa dedada e pede-lhe que convença um dos polícias de trânsito, daqui, a interceptar o carro de Marion Keats, quando ela se acercar do tribunal. Alegará tratar-se de uma mera verificação de carta de condução. Bastará que compare a impressão digital da carta com a da fotografia. Faz-se à vista desarmada e não demora mais de meio minuto... Telefona-lhe já e autoriza-o a gastar o dinheiro, que for preciso.

       

        - Ok, Perry - animou-se Drake, lançando-se ao telefone.

       

        Soaram nervosamente, repetidas pancadas na porta.

          - Quem quer que seja - comentou Della, indo abrir - deve estar tremendamente apressada.

       

        Carlotta Adrian, irrompeu na sala e correu para Perry Mason.

       

        - Não agüento mais, Mr. Mason! - explodiu ofegante - Acho que o melhor é contar-lhe tudo quanto se passou...

       

        - Um momento, Miss Adrian - interrompeu-a Mason. - Você tem um advogado.

       

        - Oh!... Harvey é bom rapaz, mais não tem muita prática profissional... Confio nele, mas, francamente, trata-se da vida da minha mãe.

       

        - Ponhamos o assunto em pratos limpos, Carlotta. Dispensa os serviços de Harvey Delano?

       

        - Santo Deus! Não!

       

        - Nesse caso, não posso falar consigo, sem ser na presença do seu advogado.

       

        -Mas, se ele estivesse aqui, não me deixaria...

       

        - E ele está aqui! - disse o próprio Delano, entrando na sala. -  Que diabo se passa, Carlotta?

       

        - Vim dizer a Mr. Mason certas coisas... que acho que ele deve saber, para melhor poder defender a mãe.

        

        -Nesse caso, devias tê-las dito a mim e eu transmiti-las-ia a Mr. Mason,... Não confias na minha opinião?

       

         - Confio em ti, Harvey, e sei que estás a fazer tudo quanto podes para proteger-me. Infelizmente, pressinto estares convencido de que a minha mãe matou Arthur.

       

        - Esse é um assunto que não devemos discutir no presente momento e, muito menos, diante de estranhos. - Mas Mr. Mason, não é um estranho. Ele representa os interesses...

       

        -... dá tua mãe e eu represento os teus... E, na realidade, tu não pensas que ela matou Cushing?

       

         - Já não sei o que pensar. Quis protegê-la, porque admiti essa hipótese, mas nunca tive uma certeza...

       

        - Cala-te, Carlotta! Estás a falar demais. Felizmente, eu te vi vir para cá e cheguei a tempo. Não podes recorrer a um advogado, quando tens a mim...

       

        Mason declarou:

       

        - Ainda bem, Delano, que corrobora o meu ponto de vista. Tinha acabado de dizer isso mesmo a Miss Adrian. Só não percebo por que motivo tenta evitar que a sua cliente me esclareça, na sua presença, de quaisquer pormenores que possam contribuir para a defesa de Mrs. Adrian.

       

        - Porque sei o que estou a fazer...

       

        - Saberá mesmo? - sondou Mason, com um sorriso escarninho.

       

        -Está a criticar o meu procedimento?

       

        -Apenas perguntei... Não critiquei.

       

         Carlotta interveio, desesperada:

       

        - Oh, Harvey Quero dizer-te uma coisa... quero dizer-te em frente de Mr. Mason...

       

        - Diz  primeiro a mim, confidencialmente. Depois verei se deverei transmiti-la a Mr. Mason.

       

        - Parece - comentou este, pondo-se de pé - que a sua cliente não confia em si, completamente, visto estar a par de fatos que lhe ocultou.

       

        - Trate dos seus assuntos, que eu trato dos meus- retorquiu Delano, exasperado - Eu próprio proibi Carlotta de contar-me tudo quanto sabe a respeito do crime... antes de verificar qual a intenção do procurador do Distrito. Se Carlotta não for incomodada, como suspeita, quero-a fora do assunto, aconteça o que acontecer.

       

        Mason dirigiu-se à porta, escancarou-a e sublinhou:

        - Miss Adrian tem vinte e um anos. Atingiu a maturidade mental. Pode escolher os advogados que entender... assim como os amigos. A responsabilidade é dela. Contudo, se o senhor se interpõe,, a responsabilidade passa a ser sua, como amigo e advogado. Muito boa tarde!

       

        - Ah! Ele é isso? -  vociferou Delano, num desafio.

       

        - Muito boa tarde! - repetiu Mason, despedindo-se.

       

         - Anda, Carlotta - rugiu Delano, agarrando-a por um braço e saindo de rompão.

       

        - Que pena! - murmurou Della Street, mal a porta se fechou.

       

        - O tipo é demasiado « frango » na profissão - comentou Drake - Mas está cheio de  « proa ». Não quer reconhecer a sua própria incompetência, nem a tua experiência, Perry.

       

        Mason, semicerrou os olhos, pensativo e acabou por resmungar:

       

        - Gostaria de saber o motivo...

       

        - O que Carlotta desejava comunicar-lhe, « Chefe »?- perguntou Della Street.

       

        - Não, minha amiga. Gostaria de conhecer o motivo por que Delano proibiu Carlotta de contar o que sabe.

       

        Quando a audiência foi reaberta, às duas horas, a atmosfera era de emocionante expectativa, visto o procurador do Distrito ter feito correr o rumor de que apresentaria provas esmagadoras para a condenação da ré.

       

        Na realidade,, tanto Darwin Hale como Creston Ives não conseguiam reprimir um entusiasmo quase eufórico.

       

        Della Street aproximou-se de Perry Mason, e entregou-lhe um bilhete, segredando:

       

        - De Paul.

       

        O advogado desdobrou, o papel e franziu o cenho, ao ler:

        

         «Lamento, Perry, mas a impressão digital não é dela.»

       

        Mason. tornou a dobrar o bilhete e guardou-o no bolso das calças.

        

         - Ok, Della. Resta-nos uma outra hipótese. Diga a Paul que compare a fotografia daquela dedada com o polegar da governanta de Cushing, Nora Fleming.

       

        Nesse momento, o juiz Alexander Norwood entrou na sala, e todos se levantaram. Della Street ainda cochichou,:

       

        - Como poderá Paul tirar essa impressão digital a Nora Fleming?

       

        - É o melhor detetive que conheço e expedientes não lhe faltam - respondeu Mason.

       

        O juiz sentou-se, pesadamente, e Della afastou-se para transmitir o recado a Drake que se achava à porta da sala de audiências.

       

        Todos se sentaram, exceto Darwin Hale, que anunciou:

       

        - A minha próxima testemunha, senhor Doutor Juiz, será o xerife Bert Elmore, deste Condado. Possivelmente, terei de voltar a chamá-lo a depor. Por agora, apenas necessito que ele preste declarações acerca de um assunto recentemente averiguado.

       

        - Muito bem - anuiu o juiz.

       

        O xerife Elmore sentou-se na cadeira das testemunhas e Hale, com uma satisfação triunfal no rosto, que não conseguia disfarçar, perguntou:

       

        - No domingo, dia três do corrente, teve ocasião de revistar a casa que é propriedade de Mrs. Belle Adrian e por ela habitada, durante alguns períodos do ano?

        

        - Sim, sir.

       

        - Essa senhora é a ré nesta causa, não é verdade?

        - Sim, sir.

       

        - A busca que efetuou, xerife, estava devidamente legalizada?

       

        - Sim, sir. Fui munido de um mandado, assinado pelo juiz da Administração local.

       

        - Qual foi o resultado dessa sua busca, xerife Elmore?

       

        - Encontrei um pequeno estojo de pó compacto, de  tom geral, que tinha o espelho quebrado.

         - Onde encontrou esse objeto?

       

        - Escondido no interior da biqueira de uma bota de montar.

       

        - Tem essa caixinha consigo?

       

        - Sim, sir. Tomei-a à minha guarda e passei o respectivo recibo de posse.

       

        - Pode entregar-me o objeto que encontrou?

         - Certamente - disse o xerife, levantando-se e estendendo-o ao procurador do Distrito.

       

        Este virou-se para Norwood, e solicitou:

       

        - Peço ao Tribunal, senhor Doutor Juiz, que este estojo de pó compacto seja apensa ao processo, como prova... Ora vejamos: a arma é a  prova A; a bala, é a prova B, portanto esta será a prova C.

       

        - A Defesa não faz qualquer objeção - declarou Mason.

       

        Que mais encontrou, xerife? - indagou Hale.

       

        - Um par de sapatos de senhora.

        

         - Que tinham esses sapatos de fora de comum?

       

        - Todos os restantes sapatos, embora limpos de pó, tinham sido engraxados há mais tempo. Este par a que me refiro fora engraxado recentemente e polido à pressa. Foi isso que me chamou a atenção. Não apresentava o mesmo brilho dos outros. A graxa ainda se colava à pressão do dedo, por estar bastante fresca.

        

         - Que mais lhe chamou a atenção para esses sapatos?

       

        - A sola do sapato direito apresentava uma mancha castanha, junto da biqueira exterior. Mandei analisar essa mancha, na minha presença, por um perito da Polícia, e verificou-se ter sido produzida por sangue.

       

        «Além disso, ambas as solas apresentavam, exteriormente, marcas impressas por matéria rija e perfurante; em alguns dos alvéolos, foram detectados minúsculos resíduos de vidros quebrados... quase em pó.»

        

        - Pôde identificar esses resíduos de vidro?

       

        - Sim, sir.

        - Como?

       

        - Pela análise espectroscópica, efetuada pelo mesmo perito e na minha presença.

       

        De onde provinham os tais resíduos?

       

        Do espelho que fora estilhaçado e cujos fragmentos juncavam o chão da vivenda da vítima, Mr. Arthur Cushing.

       

        - Não seria possível tratar-se de fragmentos pulverizados de um outro espelho qualquer? - inquiriu Hale, erguendo a voz.

       

        - Não, sir. A análise espectroscópica provou que se tratava de um espelho antigo. Atualmente, a composição do vidro e da película metálica, destinada à reflexão da imagem, ou seja, a dos espelhos modernos, é muito diferente.

       

        Voltando-se para o juiz Norwood, Hale Requereu.

       

        - Peço que estes sapatos sejam apensos ao processo, como constituindo as provas D1 e D2.

       

        Olhou para Perry Mason e este limitou-se a dizer:

        - Não faço objeção.

       

        - O quê? - espantou-se o procurador do Distrito.

       

         - Eu disse: « não faço objeção » - confirmou Mason. - Nada obsta a que os sapatos sejam apensos, como prova, ao processo.

       

        A Acusação ficou tão surpreendida com a não oposição da Defesa, que Hale, durante alguns breves minutos, conferenciou com Ives, receando que Mason tivesse algum trunfo na mão, em relação aos vidros que se haviam incrustado nas solas dos sapatos de Belle Adrian.

       

        Ainda com suspeitas de uma armadilha de Mason, Hale perguntou ao xerife:

       

        - Tem a certeza de que analisou bem os vidros espalhados no chão da vivenda de Cushing?

       

        - Absoluta.

       

        - Encontrou algum fragmento de vidro, furado por uma bala?

       

        - Não encontrei nenhum vidro que me permitisse concluir que a janela tivesse sido perfurada por uma bala.

       

        -  E examinou atentamente os pneus da cadeira de rodas?

       

        - Sim, sir.

        - Esses pneus tinham sido marcados por corte ou perfuração de vidros?

       

        - Não, sir.

       

        - Nem sequer apresentavam vestígios de vidro pulverizado por esmagamento?

       

        - Portanto, a sua investigação levou-o a concluir que a cadeira não foi rodada, depois do estilhaçamento de quaisquer vidros?

       

        - A cadeira ficou imobilizada, depois dos vidros partidos - confirmou o xerife, peremptoriamente. - Isso prova que, estando a vítima de costas para a janela e ninguém tendo rodado a cadeira, depois do estilhaçamento de vidros, a bala que lhe causou a morte não foi disparada através da vidraça?

       

        - Prova-o concludentemente - afirmou Elmore, com convicção.

       

        - Muito bem, xerife. Queira, agora, descrever ao Tribunal o seu exame da cena do crime. Que encontrou no chão da sala?

       

        - Estava juncada de vidros diversos; precisamente, de cinco espécies diferentes.

       

        - Pode enunciá-las?

       

        - Sim, sir. Em primeiro lugar, citarei os vidros de um espelho que embateu na base da janela, quebrando-lhe uma das vidraças; em segundo lugar, os fragmentos da mesma vidraça. Estas duas espécies de vidros, do espelho e da janela, caíram tanto no interior da sala, como no exterior. Na realidade, encontramos pedaços de vidraça e de espelho, no solo de terra batida, fronteiro à referida janela.

       

        - Muito bem. Já citou duas espécies de vidros. Quais foram as outras três que detectou, no seu exame ao local do crime?

       

        - Aparentemente, quando o espelho foi atirado contra a janela, ou, durante uma luta sub- seqüente, também se partiu a moldura envidraçada de uma estampa colorida. Os fragmentos desse vidro, muito menos espesso do que, o da vidraça da janela, também se espalharam pelo chão.

       

        - Que outras duas espécies de vidros encontrou, Xerife?

       

        - Um pequeno espelho, de forma circular, partido em dois fragmentos, pertencente a um estojo...

       

         - Um momento, Xerife - interrompeu Hale - Deixemos essa especificação para mais tarde. Encontrou, portanto, dois pedaços de um pequeno espelho. Estavam longe ou perto do morto?

       

        - Estavam junto dos pés do cadáver.

       

        - Muito bem, Xerife. Pode agora dizer ao Tribunal que outro objeto recolheu de casa de Mrs. Adrian, quando da sua busca oficial.

       

        - Tomei posse e passei o respectivo recibo de um pequeno estojo de pó compacto de ouro, com um diamante e as iniciais CA, tendo no interior da tampa a gravação: « De Arthur para Carlotta, com amor ». Estava praticamente vazia, embora ainda com resíduos de compacto de tom geral.

       

        - Encontrou esse objeto completo, ou faltava-lhe alguma peça?

       

        - Faltava-lhe o espelho interior.

       

        Teatralmente, Hale levantou-se e entregou a Norwood o estojo de pó de Carlotta e um espelhinho circular cujas duas metades tinham sido justapostas e fixadas com fita adesiva transparente.

       

        - Peço-lhe, senhor Doutor Juiz, se digne tentar ajustar esse espelho... restaurado por reajustamento dos dois fragmentos... à caixinha de compacto.

       

        Em seguida, explicou:

       

        - O Xerife Elmore confiara-me esse estojo, e os dois pedaços do espelho, para eu efetuar a mesma experiência...

       

        - O espelho ajusta-se à caixa - confirmou o juiz.

         - Peço ao Tribunal - disse Hale - que o estojo de compacto e o respectivo espelho restaurado; constituam as provas E1 e E2, para junção ao processo.

       

        Norwood olhou para Mason, interrogativamente, mas o advogado limitou-se, a sorrir, declarando:

       

        - A Defesa nada tem a objetar.

       

        O juiz ergueu as sobrancelhas e, encolhendo os ombros, aquiesceu:

       

        - Sejam apensas ao processo as provas E1 e E2.

          Darwin Hale e Creston Ives entreolharam-se, dubitativamente, não conseguindo interpretar a passividade de Mason perante provas tão esmagadoras.

       

        Por fim, o procurador do Distrito perguntou a Elmore:

       

        - Qual foi a quinta espécie de vidros que examinou, na sala de Mr. Cushing?

       

        - Fragmentos de um copo de balão, que se encontravam junto da roda direita da cadeira, não muito longe do calcanhar da vítima.

       

        - Tinham alguma particularidade?

       

        - Sim, sir. A análise pericial determinou que esse copo de balão, quebrado durante a luta, contivera álcool do tipo conhaque... europeu.

       

        - Só encontrou um copo desse formato?

         - Encontrei outro, intacto, sobre a mesa. Esse não se partira nem contivera bebida alguma.

       

        Então, numa atitude de quem vai esclarecer um mistério, Darwin Rale virou-se para Alexander Norwood e informou:

       

        - A Acusação, senhor Doutor Juiz, possui uma outra prova fundamental que desejaria, juntar ao processo. Trata-se, de um pedaço de vidro, proveniente do espelho, que foi encontrado cravado no pneu do automóvel de Mrs. Adrian. Contudo, neste momento, o xerife não o tem em seu Poder, pelo que só mais tarde poderá ser apresentado ao Tribunal. Por isso, há pouco, anunciei tencionar tornar a ouvir o testemunho de Mr. Elmore, em interrogatório direto.

       

        - Nessa altura - anuiu Norwood - o pedido da Acusação será considerado.

       

        Virando-se, para o xerife, Hale dispensou-o, sorridente:

       

        - Muito obrigado, Mr. Elmore.

       

        Em seguida proferiu, olhando para a assistência:

         - A Defesa, pode contra-interrogar.

       

        Com inexplicável tranquilidade, Mason perguntou:

        - Não declarou, há instantes, Xerife, que um copo de balão fora quebrado durante a luta travada na noite do crime?

       

        - Sim, sir.

       

        - Quando se verificou essa luta?... Antes ou depois de o copo ter sido quebrado?

       

        - Se o copo se quebrou em resultado da luta - respondeu Bert Elmore, sorrindo friamente - a luta começou antes de ele ter-se quebrado.

       

        - Precisamente, Xerife. E os fragmentos desse copo estavam junto da roda direita da cadeira de rodas?

        - Sim... e juntos ao calcanhar do morto.

       

        - Porventura examinou as solas dos sapatos de Mr. Cushing?

       

        - Certamente.

       

        - Apresentavam vestígios de vidro pulverizado? Estavam riscadas ou incrustadas por qualquer espécie de vidro fragmentado?

       

        - Não apresentavam qualquer desses vestígios.

       

        - Mas, numa luta, um homem instalado numa cadeira de rodas, não pode manter-se totalmente imóvel. Está certo, Xerife, de que o pneu direito da cadeira, de rodas ... de uma matéria macia, como aqui foi declarado ... não estava incrustado de fragmentos de vidro desse copo de balão?

       

        - Não apresentava o menor indício de ter sido riscado ou perfurado por vidros.

       

        - Nesse caso, quando se verificou a luta entre dois contendores, Mr. Cushing não tomou parte nela. - Evidentemente, já estava morto - respondeu Elmore, como se o problema não apresentasse qualquer complexidade.

       

        - Quer dizer que a sua investigação provou que a luta ocorreu depois da morte de Mr. Cushing?

       

        - Assim foi... aparentemente. Não há prova em contrário.

       

        - Um dos contendores seria o assassino, não é verdade?

       

        - É essa a conclusão da investigação.

       

        - Sendo assim, quem foi o outro interveniente na luta?

       

        - Bem... - hesitou Elmore - Isso não sei dizer.

       

        - Mas não ficou estabelecido, Xerife, que só foram detectadas pistas de pegadas femininas, a abandonar a vivenda de Mr. Cushing?

       

        - Sim, Mr. Mason. Esse é um fato material. Apenas apontei fatos físicos materiais e provas circunstanciais evidentes. Nada inventei.

       

        - Não tenho a menor dúvida da sua competência e integridade, Xerife. Temos os fatos... e apenas pretendo esclarecer o fenômeno. Tem a certeza de que examinou bem o rasto desse alguém que saiu da vivenda de Mr. Cushing, após a meia-noite?

       

        -O meu exame foi o mais minucioso possível.

       

         -De que natureza era esse rasto?

       

        -Pegadas dos sapatos de Mrs. Adrian... Perdoe, Mr. Mason, isto é uma conclusão minha e não um fato... Direi, pois, que encontrei pegadas que partiram de casa de Mrs. Adrian e se dirigiram para a vivenda de Mr. Cushing.

       

        «Outras pegadas, aparentemente da mesma pessoa que usava sapatos femininos, depois de terem terminado um percurso até à entrada da vivenda, contornaram-na, desaparecendo na soleira da porta de serviço, nas traseiras. A partir daí, descobri novo rasto das mesmas pegadas, em direção à casa de Mrs. Adrian.

       

        - Pela estrada?

       

        - Por uma espécie de atalho que contorna a margem do lago.

       

        - E foram esses os únicos rastos que encontrou, Xerife?

       

        - Não, Mr. Mason. Detectei outros rastos de pegadas, impressas no solo por sapatos femininos, que se dirigiam da vivenda de Mr. Cushing para o automóvel abandonado na estrada, retrocedendo, depois, do automóvel para a vivenda... ou Vice versa.

       

        - Por outras palavras - reconstituiu Mason - a pessoa que conduzia o automóvel de Mrs. Adrian. parou o carro, saiu dele e dirigiu-se à vivenda de Mr. Cushing. Depois, voltou, pela mesma estrada, até ao automóvel e, daí, seguiu para a casa de Mrs. Adrian. Não é isso?

       

        - Precisamente.

       

        - Pode afirmar, Xerife, que todas essas pegadas foram impressas pelos sapatos de uma mesma pessoa?

       

        - Bem... eram semelhantes, da mesma medida de pé, com saltos altos.

        

        - Tanto as que bordejaram o lago como as que seguiram pela estrada?

       

        - Pelo estado do solo, pareciam idênticas.

       

        - Mas, Xerife, confirmaria que detectou dois rastos diferentes: um pela estrada e outro pelo atalho, ambos de ida e volta, não é isso?

       

        - Exatamente.

       

        - E não viu outras pegadas que não fossem de sapatos femininos?

       

        - Bem. Evidentemente, ficaram impressas outras pegadas: as de Sam Burris quando foi investigar o que ocorrera na vivenda, depois de ter sido acordado pelo estilhaçar da vidraça e Pelo tiro... e as minhas e de dois dos meus adjuntos. Mas, Mr. Mason, posso afiançar-lhe que tomei especiais cuidados para que as nossas pegadas não se cruzassem  nem se sobrepusessem às anteriores, impressas por calçado feminino.

       

        - Por conseguinte, Xerife, ficamos cientes de que houve uma luta na vivenda de Mr. Cushing, ulterior à morte deste, e que só duas pessoas intervieram nessa luta. Uma dessas pessoas teria sido a mulher, fosse ela quem fosse, que se dirigiu da casa de Mrs. Adrian para a vivenda de Cushing; a outra, alguém singular ou plural, que deixou idêntico rasto, desde o automóvel, na estrada, até à mesma vivenda. Concorda com este raciocínio, Xerife Elmore?

       

        - Certamente. É a única interpretação possível dos fatos materiais.

       

        - Obrigado, Xerife. Por agora, é tudo.

       

        Hale trocou um olhar com Ives e, não conseguindo esconder o seu gáudio pelo golpe imediato, anunciou:

       

        - A minha próxima testemunha é Mrs. Betsy Burris.

         Pareceu ligeiramente desiludido, por não notar, nas expressão e atitude de Perry Mason, o efeito que esperava.

       

        Mrs. Betsy Burris era uma mulher alentada, alta e de carnes fortes, que se dirigiu para a cadeira das testemunhas, com uma das mãos sobre o peito volumoso. Sentou-se e foi mandada reerguer-se para o cumprimento das formalidades de identificação e juramento.

       

        Quando se instalou na cadeira, mostrou sentir-se pouco à vontade, como se o assento fosse imensamente desconfortável. Olhou para o procurador do Distrito e ficou à espera que este a interrogasse.

       

        Hale sorriu-lhe, animadoramente, e perguntou:

       

        - As primeiras horas da manhã do dia três deste mês, teve ocasião de observar a vivenda do falecido Mr. Arthur Cushing?

       

        - Sim, sir.

        

        - Por que motivo efetuou essa observação?

       

         - O meu marido tinha acabado de ouvir...

       

        - Deixe de lado o seu marido, Mrs. Burris. Não interessa o que ele ouviu, mas aquilo que a senhora sabe, de seu conhecimento próprio. Por que motivo observou a vivenda de Mr. Cushing?

       

        - Porque o meu marido me acordou.

       

        - E ele disse-lhe alguma coisa?

       

        - Sim. Disse-me que...

       

        - Bem... Para evitarmos objeções por parte da Defesa, omitamos aquilo que o seu marido lhe tenha dito. Relate apenas o que a senhora fez, depois de ele lhe ter referido o que ouvira.

       

        - Levantei-me e olhei para a vivenda do nosso vizinho.

       

        - Do vosso vizinho, Mr. Cushing?

       

        - Sim.

       

        - Que horas eram, nesse momento?

       

         - Cerca das duas e meia da manhã.

       

         - E que viu, Mrs. Burris?

       

        - Notei que todas as janelas estavam iluminadas.

       

        - Usou algum instrumento óptico para melhorar a sua visão, a distância?

       

         - Sim, servi-me, de um binóculo.

       

        - E que viu, por meio desse binóculo?

       

        - Uma janela com a vidraça inferior partida.

       

        - Que mais?

       

        - Vidros no chão, do lado de fora da janela, a brilharem com reflexo da luz que provinha de dentro da sala.

       

        -  A janela tinha cortinas?

       

        - Não. Estavam corridas para os lados. Por isso vi, nitidamente, que a vidraça estava quebrada.

       

        - E ouviu alguma coisa?

        

         - Bem... Logo que me levantei da cama, ouvi um grito de mulher.

       

        -  Conseguiu identificar esse grito? Por seu conhecimento próprio, sabe quem soltou esse grito?

       

        - Não sir. Quando o ouvi, não podia adivinhar quem gritara.

       

        - E, depois disso, viu alguém, no local?

       

        - Sim, sir. Dez ou quinze minutos depois...

       

        - Pode identificar a pessoa que viu, nessa altura? - cortou Hale, impacientemente, como se a testemunha fosse demasiado palradora.

       

        - Bem... a pessoa que eu vi, cerca de um quarto de hora depois, era Mrs. Belle Adrian.

       

        - A ré, nesta causa...

       

        E, com um ar acusador, o procurador do Distrito apontou para Belle Adrian, especificando:

       

        - A ré que se encontra sentada, por detrás do advogado da Defesa?

       

        - Sim, sir... - respondeu Betsy Burris, hesitante e parecendo encolher-se na cadeira. - Sim, era Mrs. Adrian.

       

        - Pode contra-interrogar - concedeu Darwin Rale, olhando para Perry Mason, com uma expressão de desafio.

       

        Também sorrindo animadoramente para a testemunha, Mason elucidou-a:

       

        - O procurador do Distrito teve o cuidado de poupar à Defesa o trabalho de objetar contra declarações « por ouvir dizer ». Contudo, Mrs. Burris, não a constrangerei, impedindo-a de satisfazer a curiosidade do Tribunal. Pode pois reproduzir, abertamente, aquilo que, ouviu do seu marido, Mr. Sam Burris, no momento em que foi acordada. Que foi que ele lhe disse, quando a despertou e a levou a erguer-se do leito?

       

        - Sam disse-me ter ouvido o ruído de vidros quebrados e um estampido que lhe parecera ser um tiro. O meu marido levantara-se da cama, assomara à janela, mas nada conseguira ver do que se passava lá fora.

       

        - A senhora não ouviu esse ruído de vidros quebrados, logo seguido de um tiro?

       

        - Não, sir. Estava a dormir e tenho o sono muito pesado.

       

        - E o seu marido tem o sono leve?

       

        - Não, mas, desta vez, acordou.

       

        - A senhora... desculpe-me, Mrs. Burris... não será um pouco surda?

       

        - Eu?... Nem pensar! Até ouço melhor do que o meu marido... Pelo menos quando lhe convém, Sam costuma... Cala-te boca!... A verdade é que ele acordou, ouviu aqueles ruídos e eu continuei a dormir, sem dar por nada.

       

        - Contudo, depois de o seu marido acordar, a senhora levantou-se e foi espreitar pela janela. Por que se deu a esse incômodo?

       

        - Naturalmente, como qualquer outra pessoa, tive curiosidade de ver o que se passava.

       

        - Tinha o hábito de observar a casa do seu vizinho?

        - As vezes, calhava. Só da nossa casa se pode ver aquela janela da sala. Por esse motivo, Mr. Cushing, bastante descuidado, não costumava correr as cortinas. Não lhe passava pela cabeça que, alguém pudesse espiá-lo.

        

        - Que foi que viu, Mrs. Burris, nessas várias ocasiões? - sondou Mason, sem manifestar um interesse especial.

       

        - Objeção - interpôs Hale. - A pergunta é incompetente, irrelevante e imaterial. Não é própria do contra-interrogatório.

       

        - Objeção mantida - determinou o juiz.

         Mason encolheu os ombros e inquiriu:

       

        - Na noite, já aqui referida, viu Mrs. Belle Adrian?

       

        - Sim, sir.

       

        - Viu mais alguém, além dela?

       

         - Não, sir.

       

        - Conseguiu distinguir o que ela estava a fazer?

       

        - Bem... Andava na sala e passou, duas vezes, pela frente da janela.

       

        - Com o seu binóculo, não viu se ela mexia os lábios ou fazia qualquer gesto, como se estivesse a falar com outra pessoa?

        

         - Não, sir. Mrs. Adrian, tinha a boca fechada. Pareceu-me muito preocupada, a andar para trás e para diante, curvando-se e endireitando-se.

       

        -  E depois?

        

        - Disse ao meu marido que o melhor era ele dar um pulo até lá, e ver o que se passava. Sam, foi e encontrou...

       

        - Bem, a senhora não pode testemunhar aquilo que o seu marido encontrou. Será ele quem terá de revelá-lo, quando for interrogado. São regras, compreende?... Embora eu tenha muito gosto em ouvi-la, Mrs. Burris, temos de observar certos modus operandum, certas normas forenses. Muito obrigado, minha senhora. Quis apenas esclarecer alguns pormenores...

       

        - Nada mais quer perguntar à testemunha? sondou Hale, perante o súbito silêncio de Mason. Brandamente, este confirmou:

       

        - Terminei o contra-interrogatório.

       

        - Muito bem. Nesse caso, chamarei Mr. Sam Burris. Evidentemente, senhor Doutor Juiz, a Acusação tem estado, simplesmente, a tentar dar ao Tribunal uma imagem do que terá acontecido na noite do crime. O objetivo desta audiência preliminar limita-se a provar que se tratou, indubitavelmente, de um homicídio do primeiro grau, pois não é admissível que se tratasse de legítima defesa, visto a vítima estar enferma, numa cadeira de rodas e parcialmente imobilizada; também, porque o assassino se premunira de uma arma de fogo, com a intenção de matar. Por outro lado, a Lei determina que uma audiência preliminar se destina, unicamente, a provar terem havido motivo e oportunidade para o assassino cometer o crime. A condenação verificar-se-á numa instância ulterior, perante um, júri...

       

        - Obrigado, senhor Procurador do Distrito - interrompeu o juiz Norwood, enfadado - Porém o Tribunal não precisa que lhe ensinem a interpretar a Lei. Não tendo ainda chegado a fase das alegações, escusa, Mr. Hale, de alongar-se em extensos preâmbulos, de resto desnecessários, visto que, tal como mencionou, não se está perante um júri. Queira, pois, fazer o favor de prosseguir com o seu interrogatório direto.

       

        De crista caída, Darwin, Hale ajeitou vários papéis sobre a sua mesa e chamou Sam Burris.

       

        Este, depois de identificar-se e prestar juramento, sentou-se na cadeira das testemunhas, com o ar de um gato, surpreendido por uma tempestade e encharcado até aos ossos: uma tempestade de emoções e de humilhação.

       

        O procurador do Distrito olhou-o gélida e impiedosamente.

       

        - Teve ocasião de espiar o que se passava na vivenda de Mr. Arthur Cushing, na noite do dia dois do corrente, ou, mais precisamente, na madrugada do dia três?

       

        - Sim, sir.

       

        - A que horas?

       

        - Por volta das duas e meia da manhã... talvez duas e vinte e cinco, segundo creio, pois julgo ter ouvido o relógio da cozinha bater a meia hora, logo a seguir a eu ter acordado.

       

        - Por que motivo acordou, àquela hora da manhã?

       

        - Por que ouvi o ruído de uma vidraça a estilhaçar-se, logo seguido de um estampido que tanto poderia ser de um escape de automóvel como de um tiro. Quando uma pessoa desperta subitamente, a sua imaginação tem sempre tendência para dramatizar; alertei a minha mulher, tentei adormecer novamente, mas o meu espírito mantinha-se alerta.

       

        - Quando acordou, não foi espreitar à janela, para tentar averiguar o que se passava?

       

        - Sim, mas nada consegui ver, nessa altura. Por isso tornei a deitar-me.

       

        - Um momento, Mr. Burris. Tentemos coordenar as suas ações, cronologicamente. O senhor tornou a deitar-se, depois de ter falado com a sua mulher?

       

        - Bem...   creio que fiz confusão. Espreitei pela janela, nada vislumbrei de anormal e tornei a estender-me na cama. Como não conseguisse reconciliar o sono, falei a Betsy que custou a acordar. Foi nessa altura que ambos ouvimos um grito de mulher. Decidimos ir à janela...

       

        - Queira falar no singular, Mr. Burris. Quem está a depor é o senhor e não Mrs. Burris. Que viu pela janela?

       

        - As luzes acesas na vivenda do meu vizinho. Então, disse a Betsy...

       

        - Não interessa o que lhe disse. Descreva apenas o que fez, em seguida.

       

        - Olhei para a vivenda e fui buscar um binóculo.

       

         - Que viu, auxiliado por esse instrumento óptico?

       

         - Uma vidraça da janela partida e estilhaços de vidro no chão, do lado de fora. Só mais tarde, notei que, dentro da sala, estava um espelho quebrado.

       

        - E que mais?

       

        - Bem...   pareceu-me ver uma mulher andar lá dentro.

       

        - Pareceu-lhe?... Não tem a certeza?

       

         - Sim, tive a certeza.

       

        - Reconheceu essa mulher?

       

        Aparentemente contrafeito, Sam Burris confirmou:

         - Sim. Era Mrs. Adrian.

       

        - Mrs. Belle Adrian, a ré, na presente causa?

       

        - Sim, sir.

       

        - Por que não mencionou esse fato, anteriormente, na ocasião em que foi interrogado pela primeira vez? O senhor, Mr. Burris, tem estado a tentar proteger a acusada?

       

        - Um momento - interveio Mason, suavemente. A Acusação está a contra-interrogar a própria testemunha, censurando-a em termos incisivos, o que é contra as normas do debate forense.

       

        - Aceito a objeção - apoiou Norwood.

       

        Mas, senhor Doutor Juiz, limito-me a tentar esclarecer a situação. Se não o fizer neste momento, a Defesa não deixará de fazê-lo durante o contra-interrogatório.

       

        - Precisamente, senhor Procurador do Distrito. Bem sabe que essa atuação é da competência da Defesa.

         Mason perguntou, calmamente:

       

        - Por que pensa que tenciono fazer isso?

       

        - Bem sabe que não deixará de fazê-lo! - começou Hale a exaltar-se.

       

        - Presentemente - redargüiu Mason, - não entrevejo qualquer motivo para perguntar à testemunha por que motivo não prestou, logo de início, à Procuradoria do Distrito informações que obviamente esta negligenciou pedir-lhe. Não sendo perguntada, uma testemunha não tem de fazer declarações por auto-recreação. Porventura, o senhor, Mr. Hale perguntou a Mr. Burris se ele vira Mrs. Adrian, dentro da vivenda de Arthur Cushing?

       

        O procurador do Distrito hesitou e Mason insistiu:

        - Fez-lhe essa pergunta, Mr. Hale?

       

        - Não estou no banco das testemunhas para que o senhor se permita contra-interrogar-me. - Queira perguntar-lho, agora, Mr. Mason... já que está tão interessado na resposta... se ele viu a ré, no interior da vivenda da vítima.

        

        E Hale esboçou um sorriso sarcástico, sabendo, de antemão, que a resposta só prejudicaria a Defesa. Mas Mason modelou a pergunta, noutros termos:

       

        - Porventura o procurador do Distrito cometeu a negligência de não lhe perguntar se, por acaso, vira Mrs. Adrian na vivenda de Arthur Cushing?

       

        - Essa pergunta insinua uma crítica - objetou Hale indignado - Mr. Mason está levando a testemunha a ridicularizar a ação da Procuradoria do Distrito.

       

        - A proposta foi sua, Mr. Hale, no sentido de eu tomar a meu cargo a inquirição da testemunha. A Acusação delegou na Defesa, a função da sua própria competência. Perante esse convite...

       

        - Eu não o convidei... Desafiei-o a fazer a pergunta, Mr. Mason.

       

        - E eu fi-la. Portanto, Mr. Hale, por que motivo protesta tão acaloradamente?

       

         Basta, meus senhores - interveio o juiz Norwood - Fosse por cortesia ou por desafio, o certo é que a Acusação delegou na Defesa o direito de interrogar a testemunha. Objeção rejeitada.

       

        Dirigindo-se a Sam Burris, o juiz inquiriu-

       

        - O procurador do Distrito perguntou-lhe, Mr. Burris, se na noite do crime, vira Mrs. Adrian, dentro da casa de Mr. Cushing?

       

        - Não, senhor Doutor Juiz. Certamente que, se ele mo tivesse perguntado, eu ter-lhe-ia mencionado esse fato. Sei que devo relatar toda a verdade, mas não iria acusar, voluntariamente, uma pessoa, sem ter perguntado, tanto mais que poderia ter-me enganado. Já me tem acontecido fazer confusões...

       

        «Além do mais, Mrs. Adrian é uma excelente pessoa que muito considero. É possível que ela tenha lá estado... foi isso que, nessa altura, me pareceu... mas estou certo de que não assassinou Arthur Cushing e não foi ela a mulher que gritou. Penso que ela estava a... »

       

        - Não interessa o que o senhor pensa - interrompeu-o, Hale - Só tem de responder ao que lhe perguntam.

       

        - Isso foi o que, eu fiz, quando me interrogaram pela primeira vez - redarguiu Sam Burris, com um ar inocente.

       

        - Está a pretender ser incorreto com o Tribunal?

       

        - Oh, não, sir!

       

        - Então veja o que diz! - admoestou Hale, rubro de raiva.

       

        - A Acusação continua a desempenhar o papel da Defesa, contra-interrogando a sua própria testemunha? inquiriu Mason, simulando espanto.

       

        O procurador do Distrito, sem responder, cerrou os punhos, reabriu as mãos e respirou fundo, para recuperar a calma perdida, Depois, inquiriu:

       

        - Que fez, Mr. Burris, depois de ter reconhecido a ré?

       

        - Falei disso a minha mulher e decidimos...

         - Queira exprimir-se no singular. Já lho disse e torno a repetir-lhe. Só perguntei aquilo que o senhor fez?

       

        - Já respondi. Falei a minha mulher.

       

        Soou um breve rumor de risota na sala e Hale enrubesceu.

       

        -Não interessa o que o senhor disse à sua mulher, quero saber o que fez, em seguida. Foi a algum lado?

       

        - Sim, sir. Dirigi-me à vivenda do meu vizinho.

       

        - Com que intenção?

       

        - De ver se algo corria mal.

       

        - E que viu?

       

        - A vidraça da janela partida, e estilhaços de vidro espalhados pelo chão, além dos que já vira do lado de fora. Encontrei Arthur Cushing sentado na cadeira de rodas, com a cabeça encostada para trás e ligeiramente inclinada sobre um dos ombros. Tinha sangue no peito da camisa... e corri a avisar o xerife Elmore.

       

        - Viu algum rasto?

       

        - Não. Nessa altura não reparei nisso.

       

        - Depois de ter alertado o xerife, voltou à cena do crime?

       

        - Não tornei a voltar lá. Ele não me deixou acompanhá-lo, de maneira que voltei para casa.

       

        - Viu o xerife isolar o local, com uma corda estendida sobre estacas?

       

        - Vi começarem a fazer isso, mas o Xerife mandou-me embora, para que, não houvesse sobreposição de pegadas.

       

        - É capaz de identificar rastos?

       

          - Sim... sou caçador.

       

        - E viu algumas pegadas, além das suas e das do  xerife?

       

        - Sim, sir. Vi as dos seus dois adjuntos que o acompanhavam.

       

        - Refiro-me a pegadas femininas.

       

        - Sim, também notei algumas.

       

        - De que direção provinham essas pegadas de mulher?

       

        -Do atalho que bordeja o lago.

       

        -E esse atalho, aonde vai dar?

       

         - Ao outro lado do lago.

       

        - Conhece alguma casa, desse lado?

       

         - Várias... pelo menos seis, nas proximidades.

       

          Qual a mais próxima?

       

        - A de Mrs. Adrian.

       

        - Não é verdade, Mr. Burris, que o xerife lhe perguntou de quem eram essas pegadas e que o senhor lhe respondeu que não sabia?

        

        - Sim, sir.

       

        - Então mentiu-lhe... ou atreve-se a negar?

       

        - Eu não me atrevo a negar coisa alguma que seja verdade e, por isso, não menti.

       

        - Então o senhor, Mr. Burris, viu a ré em casa de Mr. Cushing e não avisou o xerife de que as pegadas, que provinham da casa dela, eram da própria Mrs. Adrian.

       

        - Eu não sabia que aquelas pegadas provinham de casa de, Mrs. Adrian, mas, apenas, do atalho; nem sequer sabia se Mrs. Adrian tinha vindo por esse atalho ou pela estrada. Não me competia acusar fosse quem fosse, sem ter uma certeza. Quem estava a investigar o crime era Bert Elmore e não eu. Ele já me mandara embora, por duas vezes, dizendo que eu estava ali, a mais.

       

        - Mas sabia que a ré tinha estado naquela casa. Por que não informou o xerife? Quis proteger Mrs. Adrian?

       

        - Objeção - interpôs Mason - Lá volta a Acusação a contra-interrogar, agressivamente, a própria testemunha, tentando implicá-la em crime de obstrução à Justiça, senão de cumplicidade.

       

        - Objeção mantida - determinou Norwood.

         Hale, contrariado, prosseguiu:

       

        - E não viu as mesmas pegadas femininas, contornando a casa?

       

        - Não reparei nelas, com atenção.

         - Porquê? Não reparou ou não quis reparar?

         - Objeção - repetiu Mason - O contra-interrogatório não compete à Acusação. Nesta inquirição, os papéis das partes estão invertidos, contra as normas do debate forense.

       

        O juiz Norwood observou:

       

        - Queira Mr. Hale evitar essa irregularidade. Não lhe compete causticar a própria testemunha.

       

        - Mas é uma testemunha hostil - justificou o procurador do Distrito.

       

        - Seja como for, foi o senhor quem a convocou, em nome da Acusação. Pode inquiri-la, utilizando perguntas incisivas sobre a matéria em causa, mas não pode violentar-lhe a moral. Portanto, prossiga noutros termos mais moderados, Mr. Hale. O Tribunal já o avisou mais do que uma vez, nesse sentido.

       

        - Muito bem, - rouquejou o procurador do Distrito, reprimindo o despeito - O senhor, Mr. Burris, quando entrou na vivenda de Mr. Cushing, viu um pequeno espelho, de formato circular, proveniente de um estojo de compacto?

       

        - Não, sir.

       

        - Não viu pó de compacto, espalhado pelo chão, particularmente sobre um dos pés do morto?

       

        - Não, sir. Não dei por isso. A minha idéia era pôr-me a andar dali para fora o mais depressa possível e avisar o xerife.

       

        - Não viu a moldura de um espelho quebrada, rodeada de estilhaços do mesmo espelho?

       

        - Sim, isso vi. A moldura ainda tinha pedaços do espelho, agarrados aos cantos.

       

        - Viu algum automóvel estacionado perto da vivenda?

       

        - Não sir.

       

        - Nem rasto de pneus.

       

        - Nessa altura, não vi rasto algum. Só vi as marcas de um rodado, muito mais tarde, já à luz do dia. Eram de um automóvel que tinha, lá estado, antes de se formar a película de gelo.

       

        - Viu mais alguma coisa no local ou nas proximidades que lhe chamasse a atenção?

       

        - Não, sir. O xerife cercara o local, em volta da vivenda e eu...

       

        - Refiro-me à sua estada na vivenda, antes da chegada do xerife. Que mais viu, dentro da casa?

       

        - Bem,... entrei pela cozinha e notei que tudo estava devidamente arrumado, porque Miss Nora Fleming...

       

        - Não interessa falar de Miss Fleming. Que mais viu na sala onde se encontrava a vítima?

       

        - Uma gravura caída no chão, com o vidro da moldura quebrado. Ah! Também reparei num copo de balão, sobre a mesa, com uma mancha vermelha no rebordo, Pensei que fosse sangue, mas, depois de ter saído, compreendi que deveria ser um pouco de batom de quem se servira do copo. Esse copo estava ao lado da máquina de projetar.

       

        - Em que posição se encontrava a cadeira?

       

         - De pé.

       

        - Não é isso! - exasperou-se Hale - Para onde se achava virada?

       

        -Estava virada de costas para a janela.

        

          - A que distância da janela?

       

        - Não medi.

       

        - Não é capaz de fazer um cálculo?

       

        - Bem... aí a uns três metros e meio, quatro metros... ou talvez mais. Não liguei a esses pormenores. A minha intenção era...

       

        - Não interessa a sua intenção. Quero que me responda, com precisão, ao que lhe pergunto.

       

        - É o que estou a tentar fazer.

       

        - Muito bem. Não é verdade, Mr. Burris, que o xerife Elmore o mandou para casa?

       

         - Sim,, sir.

       

        - Nesse caso, por que foi falar a Mrs. Adrian?... Porque foi lá a casa dela, não é verdade?

       

        - Objcção, por a pergunta ser incompetente, irrelevante e imaterial - observou Mason.

       

        - Estou, unicamente, a demonstrar a parcialidade da testemunha.

       

        - Na forma de contra-interrogatório?

       

         - É uma testemunha hostil...

       

        - Já foi ouvida essa explicação que, de modo algum, justifica a irregularidade, em debate forense... Mas não se canse, Mr. Hale. A Defesa aceita, como certa, a declaração de que Mr. Burris foi a casa de Mrs. Adrian. Essa visita não prejudica a ré e só abona a decisão da testemunha. Agora, Mr. Hale, já está disposto a prosseguir, mas em termos de interrogatório direto?

       

        Sufocando a irritação, o procurador do Distrito sugeriu:

       

        - Talvez fosse oportuno, senhor Doutor Juiz, fazer-se um intervalo de dez minutos.

       

        - Muito bem - concordou Norwood. - Considero a sugestão pertinente. A audiência é interrompida por dez minutos.

       

        Quando o juiz saiu da sala, Belle Adrian debruçou-se sobre a balaustrada do seu estrado e fincou os dedos no braço de Mason, e segredando:

       

        - Que deve ter ficado a pensar de mim, Mr. Mason?

        - Que foi uma louca - redargüiu o advogado, asperamente - Uma pessoa que induz o seu defensor a basear-se em mentiras, comete a mais desastrosa das loucuras... Não sabia que Sam Burris a tinha visto, em  casa de Cushing?

        

         - Sim, mas não pensei...

       

        - Ele tentou exercer chantagem sobre si?

       

         - Que quer dizer com isso?

       

        - Pediu-lhe dinheiro para não testemunhar contra si?

       

        - Santo Deus! Nunca me falou em dinheiro. Disse-me estar a agir por uma questão de boa vizinhança.

       

         - Essa sua ingenuidade podia ter-lhe saído cara.Sam Burris poderia extorquir-lhe, a pouco e pouco, tudo quanto possui, mal a senhora estivesse prestes a ser condenada. Mesmo que a considerassem inocente, por falta de provas, o processo poderia ser reaberto, com o testemunho acusatório de Burris. Com essa ameaça, o seu estimado vizinho, manteria suspensa, sobre si, uma « espada de Damocles », enquanto a senhora lhe fosse pagando... para ele não cortar o fio que sustinha a sua precária liberdade. Está a compreender, Mrs. Adrian? Só uma louca cairia numa tal armadilha!

       

        - E agora, Mr. Mason, que vai acontecer?

       

        - Tem uma probabilidade em mil de salvar-se da câmara de gás... Agora, seja totalmente franca comigo. Que foi que aconteceu?

       

          - Não sabia onde estava Carlotta e, como o carro não se achava na garagem, pensei que ainda se encontrasse em casa de Cushing e que tivesse sido ela quem gritara. Vesti-me, à pressa e corri à vivenda. Encontrei Cushing morto e, logo compreendi que não se suicidara. Vi, no chão, o estojo de pó de Carlotta e meti-o no bolso. Procurei outras provas que pudessem incriminá-la e reparei no copo de balão manchado de batom. Lavei-o, na cozinha, e o repuz sobre a mesa, servindo-me da própria toalha, para não deixar nele as minhas impressões digitais. Julguei ter procedido bem, Mr. Mason, na convicção de que Carlotta assassinara Cushing. Só compreendi que estava errada, quando, me apercebi de que ela supunha o mesmo a meu respeito. Juro-lhe que é toda a verdade! E agora, sabendo, que foi lá para proteger Carlotta, o procurador do Distrito... Santo Deus!... É a minha filha quem se arrisca a ser condenada! Que, posso fazer, Mr. Mason?

       

        - Rezar por ela... e por si. Entretanto, coragem! Enquanto há vida, há esperança.

       

        Depois de reaberta a audiência, Darwin Hale que, aparentemente, estivera a planejar com Creston Ives uma nova estratégia, anunciou:

       

        - Desejo, agora, tornara chamar o xerife, Elmore ao banco das testemunhas.

       

        - Muito bem - anuiu o juiz.

       

        Bert Elmore testemunhou, pormenorizadamente, a maneira como examinara o automóvel que Carlotta abandonara na estrada, na noite do crime.

       

        - Esse seu exame à viatura foi minucioso?

       

        - Sim, sir.

       

        - Encontrou alguma particularidade no pneu, traseiro esquerdo?

       

        - Sim. Estava vazio.

       

        - Determinou a causa desse esvaziamento?

        

         - Sim, sir. Fora provocado por um pedaço de vidro que se lhe incrustara, atingindo a câmara-de-ar.

       

        - Tem esse vidro consigo?

       

        - Sim, sir.

       

        - Peço ao Tribunal - propôs Hale - que este fragmento de vidro seja apenso ao processo, como prova F.

         - Não objeção - declarou Mason.

       

        Tendo Norwood determinado se cumprisse a formalidade, Hale indicou, secamente:

       

        -  Contra-interrogatório.

       

        Mason encarou Bert Elmore, com simpatia.

       

        - Diga-me, Xerife: conseguiu identificar a proveniência desse pedaço de vidro?

       

        - Sim, sir. Proveio do espelho quebrado. Foi feita a respectiva análise espectrográfica que confirmou esse fato.

       

        - Muito bem. Quando examinou o automóvel, detectou nele impressões digitais?

       

        - Sim, sir. Encontramos impressões digitais de Mrs. Adrian, de, Miss Carlotta Adrian e uma outra ainda, de pessoa não identificada.

       

        - Essa última dedada era recente?

        - Bem... sim.

       

        - Tão recente como as anteriores?

       

         - Aparentemente, sim. Tecnicamente, é difícil precisar a antiguidade de uma impressão digital.

       

        - Mas teria sido impressa há mais de vinte e quatro horas, antes do exame dactiloscópico?

       

        - Não foi possível definir a data de impressão... mas esta pode ter sido efetuada no mesmo dia que as de Miss Carlotta, já que tanto uma como as outras apresentavam as mesmas características.

       

        - Essa dedada, Xerife, encontrava-se no manípulo da porta direita do carro?

       

        -Sim.

       

        - Foi revelada e fotografada convenientemente?

       

         - Está visto! Tal como as outras.

       

        - Tem a fotografia dessa impressão digital, em seu poder?

       

        - Sim, sir.

       

        - Deixe-me examiná-la, para avaliar a sua nitidez.

         Bert Elmore estendeu a fotografia a Mason e este analisou-a cuidadosamente.

       

        - É um trabalho perfeito, Xerife! Obrigado.

       

        E Mason devolveu-a, com afabilidade. Virando-se para Norwood, solicitou:

       

        - Pela importância de que esta fotografia poderá vir a revestir-se, para o esclarecimento da verdade, peço ao Tribunal que a mesma seja apensa ao processo, como prova G.

       

        - Objeção - interpôs Hale - Essa impressão digital não é da ré nem sequer de Miss Carlotta Adrian. Portanto, nada tem a ver com a presente causa.

       

        - Tem e muito - retorquiu Mason - Se à Acusação só interessam as provas que julga poderem incriminar a ré, a Defesa tem o direito de recolher aquelas que possam indigitar uma outra pessoa, verdadeiramente culpada, provando, assim, a inocência da injustamente acusada.

       

        - Objeção aceite - decidiu Norwood.

       

        - Já agora, Xerife - prosseguiu Mason, - voltando ao fragmento de espelho que teria provocado o furo da câmara-de-ar, pode explicar ao Tribunal como foi ele removido?

       

        - Cortei, com uma faca, a borracha do pneu, junto ao vidro, mas só de um dos lados, até o expor completamente à vista. Dessa maneira consegui retirá-lo intacto.

       

        - Analisando o rasto da rodagem desse pneu, poder-se-ia notar que já ia vazio, quando do momento do arranque?

       

        - Bem... O pneu foi-se esvaziando gradualmente, durante cerca de uma centena de metros. Contudo, quem conduzia o carro não se apercebeu imediatamente do furo, visto que ainda percorreu cerca de duzentos metros, com o pneu « em baixo ».

       

        - Obrigado, Xerife. Não tenho mais perguntas a fazer-lhe.

       

        - Nesse caso, senhor Doutor Juiz - propôs Darwin Hale - chegou a altura de se mandar apresentar a ré a julgamento no Tribunal Superior, visto que se reuniram provas mais do que suficientes para indicá-la como culpada de homicídio em primeiro grau. Provou-se a existência de crime. e tudo indica que a ré foi a sua autora.

        

         - Um momento, senhor Doutor Juiz! - interveio Mason.- A Defesa tem o direito de fazer as suas alegações.

       

        - Certamente, Mr. Mason - concordou Norwood.

       

        - Contudo, senhor Doutor Juiz, antes de entrarmos nessa fase definitiva, desejo chamar uma testemunha: Miss Marion Keats.

       

        Quando esta se sentou na cadeira, Mason declarou:

        - Devo advertir o Tribunal que se trata de uma testemunha hostil.

       

        Pela maneira como Marion olhava para Hale, tornava-se evidente que já tinham conferenciado o bastante para total segurança da jovem. Virou-se para Mason e encarou-o desafiadoramente.

       

        - Por que diz que a sua testemunha é hostil, Mr. Mason? - perguntou Hale, com um esgar cínico.

       

        - Basta olhar para ela! ... Ora diga-me, Miss Keats... ou Mrs. Keats?...     É solteira, casada ou já deixou de sê-lo?

       

        - Sou casada, mas estou separada do meu marido.

       

         - Quer dizer que é Mrs. Keats, mas faz-se passar por Miss Keats?

       

        - Cada qual usa o nome que lhe apetece, desde que  não o faça com intenções fraudulentas.

       

        - Muito bem. Conhecia Arthur Cushing?

       

        - Fui-lhe apresentada por uma amiga comum e sucedeu  termos esquiado juntos, algumas vezes.

       

        - Estava aqui, no Vale do Urso, na manhã do dia três do corrente?

       

        - Sim - respondeu, com indignação. - E isso o que  tem?

       

        - E esteve no funeral de Arthur Cushing, em Los Angeles?

       

        - Sim... e, isso o que tem? - repetiu, com extrema irritação.

       

        - Há quanto tempo conhecia Cushing?

       

        - Há seis meses.

        - Teve ocasião de esquiar com ele várias vezes?

       

        - Certamente. Frequentavamos o mesmo clube.

         Subitamente, Mason saltou da cadeira, dirigiu-se para a morena, apontou-lhe o indicador aos olhos e intimou-a.-

       

        - Grite! Grite bem alto!

       

        Tanto Hale como Ives ergueram-se em simultâneos protestos. A assistência, rompeu em exclamações e comentários ruidosos e Norwood teve dificuldade em restabelecer o silêncio, ameaçando evacuar a sala.

       

        Quando o público se calou e, Hale, ainda de pé, procurava justificar a objeção, Mason, insistiu: - Grite, Marion Keats! Tem medo de gritar?

         - Vá para o diabo! - murmurou ela, para Mason, logo desafiando-o, em voz normal:

          - Se tem tanto empenho em ouvir-me a berrar, aqui vai...

       

        - E soltou um grito. Depois, motejou:

        -Gostou, ou quer que ainda berre mais alto?

       

         Simulando um estado de intenso nervosismo, virou-se para Norwood e declarou:

       

        - Estou psicologicamente transtornada. O expediente de Mr. Mason faz parte de uma campanha para destruir a minha reputação, começando por uma irregularidade, que cometeu com uma intimação para forçar-me a vir aqui. Tenho direito a ser representada por um advogado. Peço, portanto, senhor Doutor Juiz, para impedir o prosseguimento deste interrogatório, tanto mais que nada sei acerca do crime.

       

        - Certamente que tem o direito a ser assistida por um advogado, Miss Keats. Queira regressar com ele amanhã, às dez da manhã... Tem mais alguma testemunha a ser ouvida, Mr. Mason?

       

        - Gostaria de poder encerrar já o meu caso, mas há certas matérias que a Acusação abordou, feridas de notórias lacunas de fatos e de carência de provas que, aparentemente, o procurador do Distrito, preferiu omitir.

       

        -  Que quer dizer com isso? -  indignou-se, Hale. Não omiti prova alguma!

       

        - Omitiu, sim. Por exemplo, não apensou ao processo a cadeira de rodas em que o cadáver foi encontrado.

       

        - Mas apresentei todos os fatos referentes a essa cadeira que, de resto, é um móvel demasiado volumoso para ser trazido para o Tribunal. Se um homem é encontrado morto num celeiro, não se traslada o celeiro para dentro de uma sala de audiência, a fim de ser apenso a um processo. Além, disso, não vi razões para...

        

        - Exatamente. o mal foi esse de não ver razões para considerar a cadeira uma prova. Contudo, é uma das mais importantes provas circunstanciais deste caso. Ora, o procurador do Distrito parece ter-se contentado com o testemunho do xerife de que não havia fragmentos nem poeira de vidro incrustados nos pneus.

       

        - Muito bem,- retorquiu Hale, ironicamente - Se a Defesa rejubila com a introdução dessa prova no processo, tê-la-á.

       

        «Xerife Elmore, queira apresentar a cadeira de rodas.»

       

        - Vai prosseguir o seu interrogatório direto?- indagou Mason.

       

        - Certamente.

       

        Bert Elmore trouxe a cadeira, que se achava numa sala anexa, e colocou-a ao lado do escrivão que efetuou o devido registro, como prova apensa ao processo.

       

        - E agora, Mr. Mason, encerra o seu caso?- perguntou Hale, como se acabasse de dar um presente a um garoto, apenas para satisfazer-lhe um capricho.

       

        - Ainda não. Quero interrogar Sam Burris, como testemunha da Defesa.

       

        - Muito bem - aquiesceu Hale, com um gesto de enfado. - Como a testemunha já prestou juramento, pode ser ouvida imediatamente.

       

        Mason apontou para o pneu de uma das rodas, que estava manchado de sangue, e inquiriu:

       

        - Foi nesta cadeira, Mr. Burris, que viu sentado Arthur Cushing, quando o senhor penetrou na cena do crime?

       

        - Sim, sir.

       

        - Vê, agora, nela alguma diferença, em relação à primeira vez que a observou?

       

        - Não, sir.

       

        - Há pouco, ouviu a testemunha Marion, Keats gritar, nesta sala?

        

        - Bem... aquilo não chegou a ser um verdadeiro grito. Para mim, um grito tem de ser mais forte do que um gemido, para ouvir-se mais distintamente.

       

        - É um pouco surdo, Mr. Burris?

       

        - Creio que ouço o bastante para fazer a minha vida. Estou a ouvi-lo, a si, nitidamente, mas o som que Miss Keats emitiu aqui, não foi o berro que, ouvi na noite do crime.

       

        - Quero precisar bem esse pormenor. Não é verdade, Mr. Burris, que anteriormente declarou à Polícia e também nesta audiência, que não ouvira grito algum, no momento em que alguém, atirara com o espelho a Arthur Cushing?

       

        - Não responda a essa pergunta - opôs-se Hale. - Ela exige uma conclusão da testemunha. A Defesa sabe perfeitamente que o espelho não foi atirado contra Mr. Cushing. Foi, sim, atirado pela vítima, num esforço desesperado de autodefesa, no momento em que a assassina o atingiu com um, tiro.

       

        «Obviamente, ela não podia projetar pelo ar um objeto tão pesado ao mesmo tempo que empunhava a arma com que perpetrou o homicídio.

       

        -  Objeção aceita - concordou o juiz Norwood.

         - Nesse caso - replicou Mason - reformularei a pergunta: Quando ouviu o tal grito, Mr. Burris? Antes ou depois de o espelho ter sido quebrado?

       

        - Bem... é difícil Precisar a ordem das coisas, quando se acorda estremunhado, a meio da noite...

       

        -  Compreendo, mas peço-lhe que faça um esforço de memória..

       

        - Bem... acho que o som do espelho a quebrar-se foi bastante anterior ao grito. Sim... foi isso mesmo. Fui acordado pelo estilhaçar de vidros. Tornei a adormecer e, só mais tarde, ouvi o grito que voltou a acordar-me.

       

        - Quanto mais tarde, em medida de tempo? Cinco minutos?

       

        Sam Burris ficou pensativo e respondeu:

       

        - Não sei... não posso precisar. Talvez uns dez minutos ou mesmo um quarto de hora...Francamente, não tenho a certeza dos minutos exatos.

       

        - Creio que o senhor, Mr. Burris, tem consciência de que o grito... tal como inicialmente declarou, quando a sua memória estava muito mais fresca... foi muito ulterior ao ruído do espelho quebrado. Contudo, perante os fatos apresentados pela Acusação, vê-se agora compelido a considerar absurda essa sua primeira impressão. Não será isso?

       

        - Efetivamente  estou convencido de que o grito soou, pelo menos, cerca de um quarto de hora depois do ruído do espelho.

       

        -  Mas não tem maneira de afirmar se o espelho foi atirado por alguém contra Cushing, ou se o foi por este, para defender-se de alguém que procurava agredi-lo, não é assim?

        

        - Exatamente. Não posso afirmar o que não vi.

        - É óbvio! - resmungou Hale, secamente. A Acusação não tem a menor dúvida de que o espelho foi atirado por Cushing, num ato de autodefesa.

       

        - Nesse caso - observou Mason - o espelho foi atirado contra alguém que se encontrava entre a janela e a cadeira de rodas. Para tal, Arthur Cushing teria feito rodar a cadeira, de maneira a encarar o agressor.

       

        - Foi assim que a acusação reconstituiu a luta que precedeu o crime - confirmou Hale, mas num ar de desafio a qualquer contradição.

       

        - Ah! - admirou-se Mason - Mas julguei ter-se já chegado à conclusão de que a cadeira de rodas não se movera!

       

        - Bem... podia ter sido rodada antes que o espelho atingisse a janela.

       

        Então Perry Mason, propôs:

       

        - Penso ser possível verificar-se esse fato, de forma a não deixar dúvidas. Basta que se faça um teste experimental. Portanto, sugiro que Mr. Burris se sente na cadeira de rodas, na mesma posição em que encontrou a vítima... ou seja, sem se mover da cintura para baixo.

       

        O juiz Norwood anuiu à sugestão e Sam Burris sentou-se na cadeira e imobilizou-se.

         - Agora - continuou Mason - com os pés, tal como os tinha Arthur Cushing, sem mexer as pernas e as ancas, queira pegar nesse fac-símile do espelho quebrado. Evidentemente, terá de fazê-lo com ambas as mãos.

       

        Sam Burris obedeceu e pousou o espelho sobre os joelhos.

       

        Confirma, ter visto a cadeira de rodas a cerca de quatro metros da janela?

       

        - Sim, a três ou quatro metros... Não medi.

         - Muito bem. Agora, Mr. Burris, sem se movimentar da cintura- para baixo e só usando a força dos seus braços e espáduas, tente atirar com o espelho para trás, por cima da cabeça, e atingir com ele, a secretária do juiz.

       

        - Um momento, um momento! - protestou Hale, erguendo-se de um salto - Que palhaçada é essa? O teste não pode ser realizado nessas condições! O Advogado da Defesa, com esse expediente teatral, apenas pretende...

       

        - Norwood interveio:

       

        - Certamente, Mr. Mason, não desejo ver espelhos quebrados de encontro à mobília do Tribunal.

       

        Mason elucidou:

       

        - Mr. Burris, na posição em que se encontra, nunca conseguiria projetar o espelho de mais de dezessete quilos até à secretária embora esta esteja a menos de três metros da cadeira de rodas. Nas circunstâncias que indiquei, tal proeza é absolutamente impossível, dado o peso do espelho.

       

        «Ora, Mr. Cushing não era tão possante como Mr. Burris. Se este for incapaz de fazê-lo, muito menos tê-lo-ia conseguido a vítima.

       

        - Mas Cushing foi capaz de atirar com o espelho que se quebrou contra a janela - teimou Hale.- Tenho a certeza disso, visto que assim o atestam as Provas circunstanciais.

       

        - Então, queira Mr. Burris levantar o espelho e fazer essa tentativa..

       

        Sam ergueu-o acima da cabeça e logo o repousou sobre os joelhos, com uma careta.

       

        - É impossível - resfolegou.

       

        - Eu próprio quero tentar o teste - decidiu Norwood, perante o espanto da assistência.

       

        Desceu do estrado e substituiu Burris na cadeira de rodas.

       

        - Não, senhor Doutor Juiz! - exclamou Hale, alarmado

       

        Mas Norwood não lhe deu ouvidos. Levantou o espelho e balançou-o, ligeiramente, no alto dos braços. Ficou corado com o esforço e também teve de desistir.

       

        - É realmente impossível! - confirmou, sorrindo para Burris, com a compreensão mútua de dois atletas vencidos. - A incapacidade alegada pela testemunha não foi simulada.

       

        - Mas, senhor Doutor Juiz... -  insistiu Hale, com exasperação.

       

         - As provas circunstanciais apresentadas pela Acusação estão viciadas, precisamente por não ter sido feito o necessário teste! - cortou Norwood, fitando o procurador do Distrito com um, ar de censura. - É evidente que Cushing não podia ter atirado com o espelho, nas condições imaginadas pela Acusação... Muito menos dessa maneira teria atingido a janela.

       

        «Agora, como Miss Keats pretende consultar o seu advogado e o Tribunal tenciona inspecionar as premissas no local do crime, a audiência será adiada para amanhã, às dez horas da manhã.»

       

        Quando os espectadores saíram da sala, Paul Drake esgueirou-se até Junto a Mason e confidenciou:

       

        - Uma coisa não nos correu bem, Perry. Marion Keats, depois da nossa visita ao apartamento, correu a falar com o procurador do Distrito e foi este, exatamente, quem a convenceu a sentar-se no banco das testemunhas, em vez de tentar invalidar a intimaação que lhe entregáramos. Darwin Hale disse a Marion que respondesse a algumas perguntas e, seguidamente, pedisse para consultar,um advogado.

       

        «Portanto, tudo foi previamente combinado. Marion contratou esse Lansing e relatou-lhe a conversa com Hale que lhe daria todo o apoio, se te acusassem de desrespeito pela ética forense.

       

        «Achas que, com Isso, conseguirão « tramar-te », Perry?»

       

        - É improvável, mas não é impossível! Portanto, Hale, « fez-se » com Marion para me « entalarem » com um processo disciplinar.

       

        - A conspiração incluiu a promessa de Hale de deixar Marion fora do caso, se ela conseguisse com a sua queixa contra o teu procedimento, colocar-te em maus lençóis.

       

        Mason semicerrou os olhos, pensativo e a seguir indicou:

       

        - Trabalha-me essa história da impressão digital. Se eu não lograr abrir uma saída por essa porta, ficarei irremediavelmente encurralado. Anda logo, Paul!

       

        Della Street, Perry Mason e Paul Drake entraram na suite da « Estalagem do Vale do Urso », transformada em escritório, e foram recebidos pela assistente de Della que logo anunciou:

       

        - Telefonou um tal George Lansing. Disse ser advogado e pede-lhe Mr. Mason, que entre em contacto com ele, imediatamente, pois trata-se de um assunto de máxima urgência, referente a Marion Keats.

       

        - Sei quem é esse pássaro e também me convém falar-lhe. Por favor, faça a ligação.

       

          Momentos depois, pelo fone, soou uma voz seca e fanhosa:

       

        - Mr. Mason?... Escute, colega... Represento Miss Marion Keats a quem você impingiu uma intimação para comparecer no julgamento do caso Povo versus Adrian.

       

         - E depois?

       

        - Devo adverti-lo, caro colega, de que «pisou o risco » ao usar esse truque da, intimação...

       

        - A minha opinião, Lansing, não coincide, com a sua. Mais alguma coisa?

       

        - Vai sair-lhe cara a maneira como induziu a minha cliente a assinar o verso do original da intimação. É contra a ética...

       

        -Deixe-se de lérias, Lansing.

       

         - Já o avisei, Mason..

       

        - E eu aviso-o, meu caro Colega, de que quero Marion Keats amanhã, às dez horas, no tribunal, para ser ouvida como testemunha.

        

        - Lá estará, mas você não conseguirá obrigá-la a depor. Mal se atreva a chamá-la,, interporei contra si uma acusação fundamentada em irregularidade ética. Obviamente, você tentou interrogá-la, particularmente e, como ela se recusasse a falar, serviu-se da intimação apenas com o objetivo de intimidá-la... Um estratagema muito próximo da chantagem. A Ordem dos Advogados...

       

        -... ficaria com uma hérnia umbilical de tanto rir, se você relatasse essa « laracha ». Para seu bem, Lansing, faça, desta vez, um esforçozinho por pensar depressa. Ela contou-lhe tudo, quanto ao seu envolvimento no caso Cushing?

       

        - Certamente. Nada teve a ver com o crime.

       

         - Confessou-lhe ter ocultado provas circunstanciais e, dessa maneira, obstruído o curso da Justiça?

       

        -  Não ocultou prova alguma. O fato de, em tempos, ter sido apresentada a Cushing, não pode implicá-la no crime.

       

        - Ah... Só se tratou de uma mera apresentação?... Não tornaram a encontrar-se?

       

        - Sim, ocasionalmente, nas pistas de esqui.

       

         - Só nas pistas... e apenas para fazerem esqui?

       

         - Que está você a insinuar, Mason?...        Já lhe conheço a manha de disparar tiros para o ar, a ver se um pato lhe cai aos pés, na passagem.

       

        - A opinião é sua... e o funeral também, caso se lembre de esquiar com ela. Fica enrolado numa, bola, não de neve, mas de ridículo. Onde se encontra, neste momento, Lansing?

       

        - No meu escritório.

       

        - E onde se situa esse seu coito de desportos de Inverno?

        

         - No « Equitable Bank Building ».

         

        - Mesmo defronte deste hotel?

       

        - Sim.

       

        -  Ainda bem. Encurta-me os passos. Espere por mim. Vou já ter aí consigo.

       

        - Nesta altura, não acho conveniente falar no assunto...

       

        - Não foi você quem me telefonou? Agora, falará. Estarei aí em menos de dois minutos.

       

        Mason dirigiu-se ao edifício de escritórios, subiu ao terceiro andar, viu a tabuleta negra com letras douradas de George Lansing, empurrou a porta e entrou.

       

        Uma jovem secretária, corada e rechonchuda, com um decote que quase lhe descia ao umbigo, levantou-se de salto, e perguntou:

       

        - É Mr. Perry Mason?

       

         - Em carne e osso.

       

        - Mr. Lansing não pode recebê-lo neste momento... mas...

       

        - Diga ao seu patrão, que não posso dar-me ao luxo de perder tempo. Se ele levar muito a pensar numa resposta, acrescente que Marion Keats está afundada, até às sobrancelhas, num homicídio de primeiro grau. Dou-lhe dez segundos para receber-me. Caso contrário, amanhã fará figura de parvo, no tribunal.

       

        - Mas Mr. Lansing disse-me... - começou a objetar a secretária.

       

        - Se está apaixonada por ele... o que duvido, pois, pela maneira como se decota, parece-me uma adolescente de bom gosto... não faça caso do que, ele lhe disse.

       

        - Bem, Mr. Mason, queira esperar um Instante. Vou dar o seu recado a Mr. Lansing.

       

        - Faça isso! Dê-lhe todo e sem omissões.

       

        A moça rodou sobre os saltos altos e sumiu-se por uma porta. Reapareceu, prontamente, seguida por um sujeito ossudo, de rosto cadavérico e tez amarelada, na casa dos sessenta anos.

       

        - Como está, Mr. Mason -  saudou o esqueleto vestido, logo abordando o assunto: - Como advogado de Miss Keats...

       

        - Não gaste saliva, Lansing - cortou Mason, cinicamente, olhando de soslaio para a gorduchinha, - pois pode faltar-lhe para outras coisas. Vim dar-lhe uma oportunidade de não fazer figuras tristes.

       

        Pela porta entreaberta do gabinete interior, surgiu Marion Keats que, ultrapassando a garota, colocou-se ao lado de Lansing.

       

        - Se Mr. Mason me deixar explicar-lhe...- sugeriu, nervosamente.

       

        - Volte lá para dentro, Miss Keats! - ordenou o advogado descarnado, sem sequer virar a cabeça, para a cliente.

       

        - Não vim aqui falar consigo, Miss Keats - precisou Mason, secamente - Apenas tenciono, convencer o seu advogado a não cometer um erro irreparável...

       

        Você, Lansing, está farto de ver-me agir em casos criminais. Se, a sua cliente não comparecer, amanhã, no tribunal, às dez horas em ponto, atiro-a. aos lobos e não há esquis que a salvem... muito menos, da primeira página dos jornais.

       

        Simulando indignação, Lansing gaguejou no seu tom fanhoso:

       

        - Peço-lhe... peço-lhe que se retire, Mason. Não posso admitir...

       

        - Essa sua atitude, Lansing, só prova que você raciocina ao retardador. incomoda-me a vir aqui explicar-lhe por que motivo mandei entregar à sua cliente uma intimação, embora, tencionasse dar-lhe, uma aberta de « safar-se », sem ter de sentar-se no banco das testemunhas. Você manda-me sair dos seus domínios e, depois, não se queixe.

       

        - Hei  de queixar-me ao procurador do Distrito ameaçou Lansing, com a ossada da mão estendida e trêmula.

       

        - E verá o tiro sair-lhe pela culatra. Boa tarde.

         Mason dirigiu-se para a saída e, num ato mecânico, de quem está amestrada acompanhar à porta os visitantes, a moça roliça correu atrás dele.

       

        Apreciando o panorama que o decote « rasgado » exibia, exuberantemente, Mason advertiu-a:

       

        - Olhe que se constipa. E saiu.

       

        Ao chegar à suite do hotel, Drake indagou:

        - Que tal correu a tua incursão, Perry?

       

        - Tentei fazer blefe com as míseras cartas que tinha, mas não sabia que Marion Keats se achava no gabinete de Lansing, quando falei com ele ao telefone.

         - O teu blefe não resultou?

       

        - Creio que falhou, por um triz. Com Marion presente, não pude melhorar o jogo. Depois, aquele idiota é mais lento a pensar do que uma lesma a tentar levantar vôo. Devia ter posto a cliente a andar, antes que eu chegasse.

       

        - Só lhe deste dois minutos e arrancaste daqui desarvorado... Vais ver-te em palpos de aranha, se ele te acusar, no tribunal do truque da intimação?

       

        - A menos que consiga dar a este caso uma reviravolta de cento e oitenta graus.

       

        O telefone tocou e Drake atendeu, comunicando, pouco depois  :

       

        - Isto talvez te ajude, Perry: a tal impressão digital, latente no manípulo da porta do carro, corresponde ao polegar direito de Nora Fleming. Portanto, a governanta improvisada, sempre era mais do que isso... E há  mais...

       

        - Quê?

       

        - Sam Burris identificou a morena lânguida que ele surpreendeu, várias vezes, « enrolada » com Cushing. - Quem é ela?

       

        Marion Keats!

       

        Depois de reaberta a audiência, às dez horas do dia seguinte, o juiz Alexander Norwood, convidou: - Queira proceder, Mr. Mason, ao interrogatório direto da testemunha de Defesa, Miss Marion Keats.

       

         - Certamente, senhor Doutor Juiz, mas a testemunha nomeou um defensor e este deve estar presente..

       

        Do fundo da sala, George Lansing esticou o esqueleto para levantar-se e aproximou-se da área reservada aos advogados e testemunha, declarando:

       

        Represento Miss Keats e protesto contra o fato de ela se encontrar aqui, visto que o seu comparecimento apenas se deve a um expediente condenável por abuso de direitos profissionais.

       

        Carregando o sobrolho, o juiz inquiriu:

       

        - Abuso de direitos profissionais?...           De que natureza?

       

        - O advogado da Defesa - prosseguiu Lansing - entregou à testemunha uma intimação, unicamente com o objetivo de transformá-la em bode expiatório desta causa e iludir o Tribunal e a Imprensa, para dessa maneira, confundir as provas já acumuladas contra a ré.

       

        «Miss Keats nada sabe acerca do presente caso, a não ser pela leitura dos jornais, não conhece o local do crime, bastando este fato para não poder estar nele implicada. Somente se lhe pode apontar ter conhecido Artur Cushing, em vida, na qualidade de companheiro na prática de esqui.

       

        «O expediente engendrado pelo Advogado da Defesa é atentatório à ética forense, podendo considerar-se, como uma « táctica de diversão » para obter efeitos sensacionalistas, através dos meios de comunicação.

       

        «Trata-se, por conseguinte, de uma artimanha com intenções fraudulentas que irá acarretar à minha constituinte gravíssimos prejuízos morais e, quiçá, consideráveis danos materiais.

       

        «Por esse motivo, solicito ao Tribunal seja considerada nula a força imperativa da intimação, podendo Miss Keats, desde já, abandonar a sala, sem prestar testemunho. »

       

        Fitando Mason, com as sobrancelhas arqueadas, numa expressão de espanto, Norwood, inquiriu:

       

        - Está preparado, Mr. Mason, para refutar esta grave acusação que parte de um considerado elemento do foro?

       

        - Evidentemente, senhor Doutor Juiz. Só não a classifico de acusação gratuita, porque é minha intenção basear-me nela para processar o autor da calúnia e da difamação que acaba de ser-me feita, em público.

       

        «Contudo, é também minha intenção evitar que o prosseguimento dos debates seja interrompido por uma intervenção que só tem por objeto impedir que uma testemunha fundamental seja ouvida no presente momento.

       

        «A Defesa pretende, unicamente, fazer algumas breves perguntas a Miss Keats, referentes à causa em debate. No decurso deste interrogatório direto procurar-se-á provar que... precisamente ao contrário do que aqui foi declarado, pelo Advogado Mr. Lansing... a testemunha, se encontra diretamente relacionada com o homicídio de Arthur Cushing. E, a fazer-se essa prova, então se verá de onde partiu o expediente de mistificação. »

       

        _ Chamo a sua atenção, Mr. Mason - advertiu Norwood - para o fato de esse seu propósito implicar uma grave, acusação contra a testemunha e também contra o Advogado que a representa. Se não conseguir materializá-la confirmativamente, recairá sobre si, Mr.Mason, toda a responsabilidade do ato de violação da ética profissional de que acabou de ser acusado.

       

        -  Tenho plena consciência, senhor Doutor Juiz, da gravidade dessa falsa denúncia por parte do Advogado da testemunha. Por isso, no decurso do meu interrogatório, cumprir-me-á demonstrar que a referida acusação mais não é do que uma calúnia urdida com a finalidade premeditada de subtrair a testemunha à sua audição em julgamento.

       

        - As palavras do Advogado da Defesa - replicou Lansing - ofendem-me pessoalmente e, desde já, solicito ao Tribunal lhe seja movido um processo disciplinar.

       

        - Francamente, Mr. Lansing! - admirou-se o juiz - A sua solicitação é incoerente, visto que o Tribunal só instaura processos disciplinares, quando o próprio Tribunal foi alvo de desrespeito, ou ofensa. O seu caso, Mr. Lansing, restringe-se, quando muito e se fundamentado, à competência da Ordem dos Advogados, não tendo cabimento na decorrente audiência. O senhor, que anda por cá há tantos anos, não vai decerto considerar-se tribunal e alegar ignorância das normas que nos regem!

       

        «Por outro lado, Mr. Mason já declarou acarretar com a responsabilidade da sua conduta. Por conseguinte, Mr. Lansing, a sua solicitação não será atendida por incoerente.

       

        «Queira a Defesa interrogar a testemunha que convocou. »

       

        -   Virando-se para Marion, Mason inquiriu:

         - Diga-me, Miss Keats, quando foi consultar, pela primeira vez, o seu advogado Mr. George Lansing?

       

        Este apressou-se a intervir:

       

        - Não responda, Miss Keats. Tem o privilégio do segredo profissional,

       

         - Não, Mr. Lansing. Terá de refrescar a sua memória quanto à lei. O privilégio de sigilo profissional], entre um advogado e o seu consulente, só abrange a matéria discutida entre ambos, mas não existe benefício de confidência, quanto à data da consulta.

       

        «Portanto, Mr. Lansing, já que representa Miss Keats, queira informar o Tribunal da data em que a sua cliente o consultou, pela primeira vez, acerca da causa em debate,»

       

        - Não fui convocado para depor nesta causa. Apenas represento a testemunha. Nesta base, nada tenho a responder a tal respeito. De resto, nem sequer prestei juramento.

       

        - Muito obrigado, Mr. Lansing - disse Mason, sarcasticamente - Porém, a testemunha foi intimada a depor nesta causa já foi ajuramentada. Responda à pergunta, Miss Keats.

       

        Marion virou-se para Lansing e protestou:

       

        - O senhor assegurou-me que eu poderia comparecer aqui, sem correr o risco de ser interrogada.

       

        - Bem... baseei-me na matéria formal. Ninguém poderá interrogá-la no sentido de implicá-la no crime. Furiosa, muito hirta na cadeira, Marion voltou-se para a frente, olhando para o teto e mordendo o lábio superior, com notória revolta.

       

        - Não responda precipitadamente - aconselhou Lansing. - Estou aqui para proteger os seus direitos e interporei todas as objeções necessárias e pertinentes, para evitar que responda às perguntas que lhe forem feitas e possam vir a prejudicá-la.

        

        Mason indagou:

       

        - Não é verdade, Miss Keats, que a senhora já tinha consultado Mr. George Lansing acerca desta causa em curso e que, ele a aconselhou a exteriorizar, no Tribunal... quando da sua primeira presença nesta sala... uma crise de histeria, a fim de justificar o seu pedido para ser representada por um advogado...

       

        - Objeção! - gritou Lansing. - Essa insinuação é ofensiva.

       

        - Negue-a, se é capaz! - desafiou Mason, erguendo a voz.

       

        Receando que Perry Mason tivesse provas de que Marion já estivera no seu consultório, antes da primeira audiência a que ela comparecera, Lansing reduziu-se ao silêncio.

       

        Logo Mason inquiriu, mudando de tom:

       

        - Não é verdade que essa farsa foi montada no sentido de tentar evitar que a senhora, Miss Keats, fosse interrogada acerca da sua amiga íntima, Nora Fleming, governanta em Casa de Artur Cushing?

       

        - Objeção! - tornou a gritar Lansing, erguendo os braços - Lá está o Advogado da Defesa a « pescar em águas turvas », procurando implicar Miss Keats num crime a que é totalmente alheia, somente com o objetivo de confundir o Tribunal e o público, desviando assim, as provas já acumuladas contra a ré.

       

        - - « Aguas turvas »! - sublinhou, Mason - Concordo plenamente com Mr. Lansing.

       

        Norwood interrompeu-o para indagar:

       

        - Tem a certeza, Mr. Mason, de que a pergunta que há pouco formulou é pertinente com a causa em debate?... O Tribunal determina que a Defesa explicite as suas intenções, antes de ouvir a resposta da testemunha.

       

        - Muito bem, senhor Doutor Juiz - cedeu Mason, com simulada humildade - A Defesa está preparada para provar que a testemunha estava apaixonada, por Arthur Cushing e que este, sendo homem de muitas amantes, provocou no espírito daquela um estado de intenso ciúme.

       

        «Espera também provar que a testemunha, Miss Keats, combinou com a sua amiga Nora Fleming uma maneira de ser informada, por telefone, do momento em que Cushing se encontrasse a sós com outra mulher. »

       

        - Objeção - interpôs Lansing, muito pálido.- A Defesa está a tentar...

       

        - Rejeitada! - cortou o juiz, asperamente - Neste momento, a Defesa não está a interrogar a testemunha, mas sim a satisfazer um esclarecimento determinado pelo Tribunal. O senhor, como Advogado de Miss Keats, devia estar atento ao que aqui se passa.

       

        «Queira prosseguir, Mr. Mason.»

         Este continuou, brandamente:

       

         - A Defesa espera ainda provar que, por volta das nove horas e vinte, minutos do dia dois do corrente, Nora Fleming, após ter servido o jantar a Mr. Cushing e a Miss Carlotta Adrian, mas antes de lavar a louça e despedir-se, se ausentou sub-repticiamente da vivenda, para entrar numa cabina pública, sita a cem metros da vivenda, e daí avisar telefonicamente Miss Keats daquele encontro a dois, de natureza possivelmente romântica.

       

        «E provar, finalmente, que Miss Keats recebeu esse telefonema no seu apartamento número 314 do terceiro piso de um edifício, sito na «  Huntless Avenue », número 21316... e que o teor da referida comunicação se resumiu a um breve aviso convencional... especificamente: «Miss Keats?... Marion!»... após o que a testemunha se apressou a telefonar para, a garagem do mesmo edifício de apartamentos, para que lhe atestassem o depósito do automóvel e lho colocassem à porta.

       

        «Foi assim que Marion Keats, rodando a toda a pressa, chegou ao Vale do Urso onde, tal como já estava previamente combinado, se encontrou com Nora Fleming.

       

        «Esta entrou para o carro de Marion Keats e ambas se dirigiram à vivenda de, Arthur Cushing, pela estrada de circunvalação do lago que passa por diante da casa de Mrs. e Miss Adrian. Dessa maneira, encontraram o automóvel de Miss Carlotta Adrian, abandonado naquela estrada.

       

        «Então, a testemunha Marion Keats, acompanhada por Nora Fleming, dirigiram-se, a pé, até à vivenda de Arthur Cushing onde, penetraram às duas horas da manhã, ou seja, à hora aproximada a que Mr. Sam Burris ouviu um grito estridente, de mulher... »

       

        - Isso é uma acusação infame! - urrou Lansing, que adquirira uma tez esverdeada. - É o maior abuso de liberdade, casuística que. jamais presenciei em debates forenses!

       

        «O Advogado da Defesa não pode provar o mínimo fato, atrás exposto, pela simples razão de que Miss Keats é totalmente alheia às circunstâncias da morte de Mr. Cushing. A exposição de Mr. Mason não só é difamatória, mas também caluniosa, por inteiramente falsa. Não existe prova alguma ... »

       

        - Pare já - interrompeu Mason, erguendo a voz, conquanto sem exaltação - afirmo peremptoriamente que a impressão do polegar de Nora Fleming se encontra no manípulo da porta do carro de Miss Carlotta Adrian... Ora  repare, Mr. Lansing! Quer melhor prova do que a própria expressão de Marion Keats?

       

        E apontou para a testemunha que se tornara branca como a cal e pareceu enterrar-se na cadeira.

       

        - E essa expressão, - concluiu, Mason - corresponde evidentemente a uma confissão completa.

         - :Não! - gritou a morena atlética, pondo-se de pé  - Não pode atirar com isso para cima de mim! Estou totalmente inocente, em relação ao crime! Quando entrei na vivenda, já Arthur estava morto. Eu...

       

        Calou-se, subitamente, e Mason sorriu para Norwood, sublinhando:

       

        - A espontânea declaração da testemunha prova o seu envolvimento no caso...     Queira sentar-se, Miss Keats. Não tenho o menor empenho em continuar a interrogá-la.

       

        «Apenas desejo provar a inanidade das acusações aqui proferidas, em Tribunal, pelo seu Advogado. Mas também, não exercerei represálias legais contra a atitude reprovável de Mr. Lansing. As suas declarações difamatórias e caluniosas dever-se-ão, certamente, a um raciocínio deficiente na análise dos fatos e a um, estado mental de momentânea irresponsabilidade. »

       

        Sentando-se. com um gesto de enfado, Perry Mason deu a entender ter terminado o interrogatório da testemunha.

       

        Lansing, passando a mão esquelética sobre o crânio calvo, mais se assemelhava a um cadáver recém-desenterrado.

       

        - Então, Mr. Lansing? - sondou Norwood.

       

        - Senhor Doutor Juiz... Eu... Não sei que diga! Isto constituiu uma verdadeira surpresa para mim. O procurador do Distrito afiançou-me que... Isto é... creio que Miss Keats, vítima de uma crise de histeria, causada por fortes comoções psíquicas, prestou uma declaração que, pelo seu estado de momentânea insanidade, não poderá ser considerada confissão.

       

        «Em conseqüência, sugiro ao Tribunal se, processe o adiamento da presente audiência, para que, a minha cliente seja observada por um especialista e assistida, medicamente, em conformidade com o seu estado.»

       

        - A audiência é adiada para amanhã - resolveu o juiz. - Não deseja, Mr. Mason, como disse, continuar a interrogar a testemunha, não é verdade?

       

        - Não! - Gemeu Marion Keats, angustiada - Vou contar tudo! Só quero que me deixem em paz!

       

        «Artur Cushing, durante algum tempo, manteve relações íntimas comigo, sempre prometendo casar. Porém, vim a saber que já enganara outras com a mesma promessa, só tendo intenção de, entretanto, possuí-las.

       

        «Por essa razão, combinei com Nora Fleming que me avisasse da primeira ocasião em que ele se encontrasse, a sós, com outra mulher, na vivenda.

        

        «Nora telefonou-me no sábado à noite. Vim para cá e encontramos o carro dessa Carlotta na estrada. A minha amiga, abriu a porta do automóvel e comentou:

       

        «- Aquela cabra largou aqui o carro ainda não há muito tempo. O motor ainda está quente.

       

        «Então pegou numa caixinha de compacto que se achava caída no assento e achou que... »

       

        - Que caixinha? - quis precisar o juiz.

       

        - Um estojo, de tom geral, em ouro, com um diamante ao meio. Nora achou que aquele objeto poderia revelar algum interesse. Abriu-o e ambas lemos uma gravação: « De Arthur para Carlotta, com amor ». Fiquei furiosa e...

       

        - Nesse estado de fúria - interrogou Norwood- a senhora que fez?

       

        - Bem... fiquei como louca e decidi ir caçá-los no ninho. Peguei no estojo e ordenei a Nora que ficasse ali à minha espera. Fui à vivenda e, disposta a surpreender Arthur com a amante, entrei, silenciosamente, pela porta  traseira.

       

        -  Matou Arthur Cushing?

       

        - Não, meu Deus! Quando entrei na sala, já ele estava morto. Aterrorizada, soltei um grito... tão forte que Nora ouviu-o, na estrada,... e deixei cair o estojo de pó no chão.

       

        «Preocupada, a minha amiga saltou para o meu carro e veio buscar-me à vivenda. Ainda a tremer, consegui explicar-lhe:

       

        «- Arthur foi assassinado. «E Nora decidiu:

       

        --- ” Raspemo-nos ” daqui, quanto antes! »

       

        - A vidraça da janela e o espelho já estavam quebrados? - indagou Norwood.

       

        - Sim. Havia vidros por todo o lado.

         Lansing ainda titubeou:

       

        - Senhor Doutor Juiz! Posso jurar-lhe que estava completamente alheio a este assunto...

       

        Alexander Norwood nem sequer olhou para ele, como se o advogado não tivesse falado nem sequer existisse. Fitando Marion, considerou:

       

        - É provável, Miss Keats, que nos tenha contado a verdade. Por outro lado, temos de esclarecer um fato que ainda se reveste de grande complexidade: Carlotta Adrian afirmou que o revólver se encontrava no porta-luvas do automóvel, quando fora visitar Cushing.

       

        «Logicamente, a senhora, Miss Keats, teve motivo e oportunidade de apoderar-se dessa arma e utilizá-la para matar o homem que a traíra      ... ao mesmo tempo que implicava, no crime a sua rival ...»

       

        - Não, não senhor Doutor Juiz! Não fiz tal coisa!

       

         - Mas reconhece, ao menos, ter tido oportunidade e motivo para cometer esse homicídio?

       

        - Sim, reconheço isso, mas não o cometi! Estou inocente!

       

        - Tinha as luvas calçadas, para conduzir o seu carro?

       

        - Sim. Fazia muito frio.

       

         Por isso não deixou impressões digitais no automóvel de Miss Adrian, quando...

       

        - Nunca toquei no carro dela. Só Nora é que...

         Calou-se, constrangida.

       

        Vou fazer-lhe uma pergunta, Miss Keats: jura nunca ter aberto o porta-luvas?

       

        Erguendo o queixo e fitando o juiz, bem nos olhos, Marion confessou:

       

        - Sim, abri. Depois de Nora ter encontrado o estojo de pó compacto, senti-me impelida a revistar o porta-luvas...

         Lansing voltou a intervir:

       

        - Não responda a mais perguntas, Miss Keats. Não está em estado mental de ser interrogada. Sugiro que abandone a cadeira das testemunhas ... »

       

        - Esse foi o único conselho acertado que me deu, Mr. Lansing- retorquiu Marion, num tom mais de desprezo do que de recriminação.

       

        E, pondo-se de pé, correu para a saída, por entre a multidão que emitia um clamor de surpresa.

       

        Depois de o juiz Norwood ter restabelecido a ordem, com pancadas do maço de madeira sobre o tampo da secretária, gritou para Bert Elmore:

       

        - Faça o favor, Xerife, de deter Miss Marion Keats e mantê-la sob a custódia da Polícia. Entretanto, o Tribunal fará um, intervalo e agora peço aos senhores Advogados que me acompanhem ao gabinete.

       

        Quando Perry Mason entrou na suite do hotel, encontrou Della Street e Paul Drake à sua espera, naturalmente interessados no que se passara no gabinete do juiz.

       

        Limpando a testa com um lenço, Mason resmungou:

         - Estou pelos cabelos! Pensei que nunca mais conseguiria ver-me livre dos repórteres fotográficos, dos jornalistas e dos homens da rádio, e da televisão. O velho Cushing é realmente muito poderoso, para atrair tanta gente ao Vale do Urso.

       

        - Não o interrogaram a ele, mas a si, « Chefe » - observou Della.

       

        - Queriam que eu lhes dissesse o que está a acontecer neste momento. Dentro de um quarto de hora, talvez meia hora, já eles o terão descoberto, por si próprios.

       

        - Queres dizer que não os informaste da solução do caso, Perry? - estranhou Drake.

       

        - Pois não. Só lhes dei umas « pistas », para que fossem eles a deduzi-la.

       

        - Mas por que diabo, Perry, não lhes ofereceste a solução, « de bandeja »? Ainda não tens a certeza absoluta de quem foi o autor do crime?

       

        - Eu tenho, mas não me convém apresentar-me como sendo o cérebro que desvendou o caso. Não quero aparecer como vendedor da minha teoria, para que não pensem que a mercadoria pode ser de má qualidade. Forneci-lhes alguns elementos e tenho a certeza de que chegarão às mesmas conclusões a que cheguei.

       

        «Para já, o juiz Norwood também não tem dúvidas. Quando lhe apontei um ou dois fatos, no tribunal e no gabinete, ficou com, o caso esclarecido. Está, neste momento, a alinhavar o relatório do processo e não tarda que o remate com linha forte, em ponto de, casear.»

        - Em que baseaste as tuas conclusões, Perry?

       

        - Na reanálise de algumas premissas, o que me permitiu ver, através de um novo prisma, as provas circunstanciais que Darwin Hale só soube emaranhar, ao ponto de ficar embaraçado nelas.

       

        - Que premissas?

       

        - Para começar, os rastos de pegadas. Há três, em direção à vivenda de Cushing, dirigindo-se aos fundos e só um a sair dela, pela porta da frente.

       

        - Essa é a de Carlotta, não é verdade?

        - Sim.

       

        - Nesse caso, foi Carlotta quem o matou? Pelo menos, ela torna-se a mais lógica suspeita...          Autodefesa e...

       

        - Não. Tratou-se de um homicídio premeditado, perpetrado com toda a deliberação e com um propósito bem definido. O espelho é uma das provas mais concretas a esse respeito. Ninguém o atirou contra Arthur Cushing e este também não o atirou contra ninguém.

       

        - Sendo assim, para que o quebraram?

       

        - Por duas razões, Paul. A primeira, destinou-se a fornecer ao assassino um pedaço de vidro com que pudesse furar o pneu dianteiro do carro de Carlotta; a outra teve a finalidade de fazer suficiente ruído para que Sam, Burris pudesse alegar ter acordado, quando o ouviu quebrar-se... antes do estampido do tiro.

       

        - Como poderia o assassino ter a certeza de que Burris iria acordar com o ruído de vidros quebrados, a uma distância de mais de cem metros e com as janelas fechadas? Repara, Perry, que a mulher de Burris... que ouve melhor do que ele... nem sequer acordou com o tiro...

       

        - Por isso mesmo. Sam Burris ouviu todos esses ruídos, porque foi ele quem disparou a arma do crime e, em seguida, partiu a janela.

       

        - Estás louco? Ele não podia ter ido à vivenda, sem deixar rastos.

       

        - Mas deixou-os, não é verdade?

       

        - Sim, mas só depois de ter acordado com o estilhaçar de vidros e  com o tiro...

       

        - Como sabes quando é que esses fatos tiveram lugar?

       

        - Bem... a mulher de Burris testemunhou-o...

       

        - Nada disso! Ela só foi acordada pelo marido e apenas ouviu um grito de mulher, um quarto de hora ou mais, depois. Foi Sam quem lhe falou do que ouvira e, evidentemente, ela acreditou-o.

       

        «Naquele sábado, durante a tarde , Sam Burris foi à garagem de Cushing e tirou o espelho. Partiu-o em qualquer lugar e, guardou os vidros e a moldura, num saco ou numa cesta. Mais tarde, quando Carlotta já estava na vivenda, dirigiu-se ao carro da moça e esvaziou-lhe parte do pneu dianteiro. Abriu-lhe um corte com uma faca, até à câmara-de-ar, e introduziu o pedaço de vidro, de maneira que, quando o automóvel começasse a andar, o vidro não deixasse de perfurá-la.

       

        «Tirou o revólver do porta-luvas e foi postar-se, a distância, de vigilância à vivenda.

       

        «Quando Carlotta saiu, já se começara a formar a película de gelo, sobre o solo, mas ainda com pouca espessura.

       

        «Então, Burris, levando os vidros consigo, matou Cushing com um tiro, partiu a janela e espalhou, por dentro da casa, os pedaços de vidraça e os vidros do espelho. Também lançou alguns para o exterior e atirou com a gravura emoldurada ao chão. Dessa maneira, dava a idéia de que houvera luta. Também partiu o copo de balão por que Cushing estivera a beber, mas deixou intacto, sobre a mesa, aquele que apresentava uma marca de batom, para, assim, incriminar Carlotta. Eu sabia que Mrs. Adrian lavara esse copo de balão. Portanto, se Burris o vira com a marca de batom, estivera lá antes de Mrs. Adrian. Feito tudo isto, foi para casa, meteu-se na cama e, instantes depois, acordou a mulher. Cerca de dez minutos depois, ouviu-se um grito feminino, grito esse que Betsy Burris também ouviu distintamente.

        

        «E Mrs. Adrian, preocupada por não ver o carro na garagem, pensou que teria sido Carlotta quem soltara o mesmo grito. Foi à vivenda e Betsy Burris viu-a a rondar a casa; depois, a andar na sala.

       

        «Só restava a Sam Burris fingir que ia investigar o que se passara. É um homem do campo, habituado a seguir pistas. Por conseguinte, não iria duplicar as suas próprias pegadas. Meteu-se na garagem de sua casa e esperou alguns minutos, até que achou oportuno ir avisar o xerife.

       

        «Quando este começou a investigar os rastos, encontrou, naturalmente, o de Sam Burris, mas pensou que as suas pegadas só tivessem sido impressas na fina camada de gelo, quando o homem fora investigar o local... o que, nunca acontecera. Aquelas já lá estavam, deixadas logo a seguir ao crime.»

       

        - E não achas estranho que Burris tenha ido a casa das Adrian, para tentar protegê-las, se ele próprio já tentara incriminar Carlotta?

       

        - Essa foi a sua pincelada de mestre no quadro que se dera ao trabalho de compor. Ninguém poderia suspeitar que ele fosse o assassino, visto que procurava, aparentemente, eliminar do caso as duas principais suspeitas. Além disso, o seu objetivo era ainda outro. implantava no, espírito de Mrs. Adrian a convicção de que fora a filha quem cometera o crime... e, no de Carlotta, a crença de que a assassina fora a mãe.

       

        - Miss Belle Adrian, ao tentar proteger a filha, ainda mais a comprometeu, ao esconder o compacto no interior da biqueira da bota de montar. E o aparecimento de Nora Fleming e de Marion Keats, envolvendo-se no caso, ainda mais contribuiu para que ninguém suspeitasse da identidade do verdadeiro criminoso.»

       

        - Mas que raio de motivo tinha Burris para assassinar Cushing, de uma maneira tão maquiavélica?

       

        - Isso, Paul, tem a ver com a psicologia do camponês que estava a ser alvo da troça local, por ter-se deixado enganar por Cushing. Aceitara um sinal pela venda dos seus terrenos, por um preço irrisório. Depois, verificou que Cushing ia fazer com eles uma fortuna. Contudo, só Arthur Cushing figurava como comprador, visto que Dexter se alheara da urbanização turística, limitando-se a emprestar o dinheiro ao filho. Morrendo este, o negócio ficava sem efeito, pelas leis que nos regem...

         Sam, Burris não só recuperaria as suas terras, como poderia negociar a referida urbanização... e ficaria rico, sem que mais ninguém, pudesse considerá-lo um matuto ingênuo.

       

        - E agora, Perry, que vai acontecer, além da prisão de Burris?

       

        - Mrs. e Miss Adrian vão processar Dexter Cushing por aquilo que ele declarou no tribunal e aos jornais: calúnia e difamação. O banqueiro terá de pagar um chorrilho de dinheiro pelo mal que lhes fez... e pelos danos que ainda lhes poderiam advir, incluindo a câmara de gás, para uma delas, e a prisão para a outra, por cumplicidade. Desses muitos milhares de dólares poderemos, legitimamente, cobrar os nossos honorários. Portanto, pau, tudo valeu a pena!

       

        E, agora, toca a fazer as malas e a ” cavarmos ” daqui antes que os repórteres nos caiam em cima. Numa altura destas, o único refúgio para um advogado é o seu próprio gabinete de trabalho. Toca a andar!»

 

                                                                                            Erle Stanley Gardner

 

 

                      

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