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Um Capitão de Quinze Anos - Vol. I / Julio Verne
Um Capitão de Quinze Anos - Vol. I / Julio Verne

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Um Capitão de Quinze Anos

Volume I

 

Quando a decisão e a audácia habitam um corpo jovem geram a abnegação e o heroísmo. Pelos vastos mares, nem sempre pacíficos, do grande mundo. Entre a Nova Zelândia e as Américas, oceano afora, Dick, um jovem de quinze anos não se deixa amedrontar. O desaparecimento do seu capitão deixou-lhe nas mãos uma grande tarefa! como levar a bom porto a missão que, só a ele, se poderá entregar? Como fazer aportar o Philgrin? e salvar quem à sua guarda ficou? Porque, não só os perigos do grande oceano, também, a bordo, poderosas forças se lhe vão opor. 

 

A VIAGEM FATAL

O PATACHO «PILGRIM»

No dia 2 de Fevereiro de 1873 estava o patacho «Pilgrim» por 43° 57 minutos de latitude sul e 165 ° 19 minutos de longitude oeste do meridiano de Greenwich.

Navio de quatrocentas toneladas, aparelhado em São Francisco para a grande pesca nos mares austrais, pertencia a James W. Weldon, rico americano da Califórnia, o qual desde muitos anos confiara dele o comando ao capitão Hull.

O «Pilgrim» era um dos mais pequenos mas dos melhores navios da flotilha que James W. Weldon mandava todos os anos para além do estreito de Béringue, até aos mares boreais, e desde as paragens da Tasmânia ou do Cabo Horn até ao oceano Antárctico. Era navio de boa marcha, e, por ter aparelho muito leve, podia aventurar-se com pouca gente a manobrar por entre as grandes e impenetráveis massas de gelo do hemisfério austral. O capitão Hull sabia safar-se bem, como dizem os marinheiros, navegando por entre os gelos que durante o Verão se encontram nas proximidades da Nova Zelândia ou do Cabo da Boa Esperança, por latitude muito inferior à que chegam nos mares setentrionais do Globo. Aludimos, bem entendido, às pequenas massas de gelo, gastas já pelos choques e corroídas pela água de temperatura relativamente elevada e o maior número das quais vão fundir-se no Pacífico ou no Atlântico.

Sob o comando do capitão Hull, bom marinheiro e um dos mais hábeis arpoadores da flotilha, havia uma tripulação composta de cinco marinheiros e de um praticante. Era pouca gente para a pesca da baleia, que exige pessoal muito numeroso, tanto para a manobra das embarcações como para o corte dos animais capturados; mas James W. Weldon, seguindo o exemplo de outros armadores, achava mais económico não embarcar em São Francisco senão o número de marinheiros que fosse estritamente necessário para a manobra do navio. Na Nova Zelândia não faltavam arpoadores, marinheiros de todas as nacionalidades, desertores ou não, os quais procuravam contratar-se pela estação, servindo como hábeis pescadores. Terminado o tempo útil, pagava-se-lhes e desembarcavam-se, e eles lá iam esperar que, no ano seguinte, viessem outros baleeiros valer-se dos seus serviços. Por este método havia melhor emprego da gente disponível e tirava-se mais proveito da sua cooperação.

Assim se fez a bordo do «Pilgrim». O patacho fizera a estação da pesca no círculo polar antárctico, mas não tinha o carregamento completo de barris de azeite e de barbas de baleia. Naquela época já a pesca era difícil. Os cetáceos, por muito perseguidos, tornavam-se cada vez mais raros. A baleia ordinária, que tem o nome de nord-caper no oceano boreal e se chama sulpher-boltone nos mares do sul, desaparecia de dia para dia; os pescadores viam-se pois obrigados a lançar-se sobre a fin-back ou jubarte, grande mamífero cujos ataques não são isentos de perigos.

Foi o que fez o capitão Hull durante o tempo que esteve na pesca, contando, porém, na sua próxima viagem ir até mais alta latitude, e, se preciso fosse, chegar até à vista das terras de Clara e de Adélia, cuja descoberta, contestada pelo americano Wilkes, pertence definitivamente ao ilustre comandante do «Astrolábio» e da «Zelosa», o francês Dumont d'Urville.

Em suma, a estação não fora feliz para o uPilgrim». No princípio de Janeiro, isto é, pelos meados do Estio austral, apesar de não ser chegada ainda a época da volta para os baleeiros, o capitão Hull foi obrigado a deixar as paragens da pesca. A gente que contratara a mais dera-lhe muito que fazer, e por isso tratou de se ver livre dela.

O «Pilgrim» soltou rumo para o noroeste, em demanda da Nova Zelândia, que avistou a 15 de Janeiro. Chegou a Waitemata, porto de Auckland, no golfo de Chouraki, na costa leste da ilha setentrional, e desembarcou os pescadores que tinha ajustado.

A tripulação não estava satisfeita. Faltavam, pelo menos, duzentos barris de azeite para completar a carga do «Pilgrim». Nunca a pesca fora tão má. O capitão Hull voltava quase tão contrariado como o caçador emérito que pela primeira vez erra todos os tiros. O seu amor-próprio estava irritado, e não podia perdoar àqueles que, pela sua insubordinação, foram a causa de tão escassa colheita.

Foi em vão que tentou recrutar em Auckland nova companha para a pesca. Todos os marinheiros disponíveis tinham já embarcado a bordo de outros navios baleeiros. Perdeu, pois, a esperança de completar o carregamento do «Pilgrim», e dispunha-se a partir de Auckland quando uma pessoa a quem ele não podia deixar de satisfazer lhe pediu passagem a seu bordo.

Mrs. Weldon, mulher do dono do «Pilgrim», estava então em Auckland, com Jack, seu filho, criança de cinco anos, e com um dos seus parentes, o primo Béné-dict. James Weldon, a quem os negócios chamaram à Nova Zelândia, levara para ali os três, contando trazê-los depois consigo para São Francisco. Mas, na ocasião em que toda a família ia partir, Jack adoeceu gravemente, e seu pai, obrigado por negócios urgentes, teve de sair de Auckland, deixando a mulher, o filho e o primo Bénédict.

Decorreram três meses, três longos meses de separação e de angústias para Mrs. Weldon. Entretanto restabeleceu-se o seu filhinho, e já se dispunha para partir quando lhe anunciaram a chegada do «Pilgrim».

Ora, naquela época, Mrs. Weldon para voltar a São Francisco tinha de ir à Austrália, a fim de embarcar num dos navios da companhia transoceânica Golden Age, que fazem a carreira de Melburne ao istmo de Panamá, tocando em Papeiti; e teria de esperar em Panamá que partisse o vapor americano que estabelece a comunicação regular entre o istmo e a Califórnia. Disto resultavam demoras e baldeações, sempre incómodas para uma senhora e uma criança. Foi pois em boa ocasião que o «Pilgrim» veio fundear em Auckland. Mrs. Weldon não hesitou e pediu ao capitão Hull que lhe desse lugar a bordo e a levasse para São Francisco, bem como ao filho, ao primo Bénédict e a Nan, preta já idosa, que a servia desde a infância. Três mil léguas marítimas a percorrer a bordo de um navio de vela era muito! O navio do capitão Hull, porém, estava bem arranjado, e a monção era ainda favorável de um e do outro lado do equador. O capitão Hull pôs imediatamente os seus aposentos à disposição da sua passageira, porque desejava que durante a viagem, a qual devia durar quarenta a cinquenta dias, Mrs. Weldon fosse acomodada do melhor modo possível a bordo do navio baleeiro.

Havia para Mrs. Weldon algumas vantagens em fazer a viagem nestas condições e o único inconveniente provinha da circunstância de o «Pilgrim» ser obrigado a ir descarregar em Valparaíso, no Chile. Mas isto feito, era seguir depois pela costa americana com os terrais, que tornam aquelas paragens muito agradáveis.

Mrs. Weldon era senhora animosa, a quem o mar não apavorava. Tinha então trinta anos e boa saúde; habituada aos incómodos das longas viagens, porque muitas fizera, acompanhando o seu marido, não receava meter-se a bordo de um navio de medíocre tonelagem. Tinha o capitão Hull por excelente marinheiro, em quem James W. Weldon depositava grande confiança. O «Pilgrim» era navio seguro, de bom pé e muito acreditado entre os baleeiros americanos. A ocasião era boa; convinha aproveitá-la, e Mrs. Weldon aproveitou-a.

O primo Bénédict, bem entendido, devia acompanhá-la. Era ele excelente pessoa, e, apesar de contar então cerca de cinquenta anos de idade, não seria prudente deixá-lo sair só. Mais comprido que alto, mais esguio que magro, de cara ossuda, cabeça enorme e farta de cabelos, denunciando na sua interminável pessoa uma dessas criaturas inofensivas e boas, que toda a vida são crianças, e acabam de velhos, como se fossem macróbios entregues ainda aos cuidados das aias.

«Primo Bénédict», que assim lhe chamavam todos, até mesmo aqueles que não pertenciam à sua família, e efectivamente era ele daquelas pessoas que parecem aparentadas com toda a gente, era incapaz de se livrar do mais insignificante perigo sem auxílio estranho. Não se podia chamar importuno, pelo contrário, mas era incómodo para os outros e para si mesmo. Vivendo bem com todos, sujeitando-se a tudo, esquecendo-se de comer ou de beber, se lhe não davam de beber ou de comer, insensível ao frio como ao calor, mais parecia pertencer ao reino vegetal que ao animal. Era como uma árvore sem frutos e sem folhas, que não pudesse alimentar, nem dar abrigo, mas cujo âmago fosse bom.

Tal era primo Bénédict. Teria de boa vontade prestado serviços a toda a gente se, como diria Prudhomme, fosse capaz de os prestar!

Finalmente a sua própria fraqueza o fazia estimado. Mrs. Weldon considerava-o como uma criança: como um irmão mais velho de Jack.

Deve dizer-se que o primo Bénédict não era ocioso, nem livre de ocupações; pelo contrário, trabalhava, e a sua única paixão, a história natural, prendia-o completamente.

Dizer «história natural» é dizer muito, pois é sabido que as diferentes partes que compõem esta ciência são a zoologia, a botânica, a mineralogia e a geologia; ora o primo Bénédict não era botânico, nem mineralogista, nem geólogo. Seria pois um zoólogo em toda a extensão da palavra, um Cuvier do Novo Mundo, que decompusesse os animais pela análise e os recompusesse pela síntese, um destes conhecedores profundos, versados no estudo dos quatro tipos aos quais a ciência moderna refere toda a animalidade: os vertebrados, os moluscos, os articulados e radiarios? Destas quatro divisões, o ingénuo mas estudioso sábio teria observado as diversas classes e investigado as ordens, as famílias, as tribos, os géneros, as espécies e as variedades que as distinguem?

Não.

Ter-se-ia entregado ao estudo dos vertebrados, mamíferos, pássaros, répteis e peixes?

Também não.

Seriam os moluscos, desde os cefalópodes até aos briozoários, que tiveram a preferência, e na malacologia não haveria segredos para ele?

Tão-pouco.

Seria pois o estudo dos radiários, equinodermes, aca-lefos, pólipos, briozoários, entomozoários, espongiários e infusórios que lhe tivesse queimado as pestanas?

Não foi.

Como da zoologia só falta citar a divisão dos articulados, é claro que foi a esta divisão que se aplicou o primo Bénédict.

Efectivamente assim foi, mas convém precisar que no ramo dos articulados se contam seis classes: os insectos, os miriápodes, os aracnídeos, os crustáceos, os cirrípedes e os anelídeos.

Ora, cientificamente falando, o primo Bénédict não sabia distinguir os vermes da terra das sanguessugas, os percevejos dos baianos, as aranhas dos lacraus, os camarões das raninas, os mourões(1) das escolopendras.

Mas, finalmente, o que era o primo Bénédict? Era um simples entomologista, nada mais.

Dir-se-á, porém, que, na sua acepção etimológica, a entomologia é a parte das ciências naturais que compreende todos os articulados. Falando na generalidade, assim é, mas o costume tem admitido uma significação mais restrita àquela palavra, a qual não se aplica, por consequência, senão ao estudo propriamente dito dos insectos, isto é: todos os animais articulados, cujo corpo, formado de anéis ligados uns aos outros, sucessivamente, forma três segmentos distintos, e, porque têm três pares de pernas, receberam o nome de hexápodes.

Ora, como primo Bénédict tinha restringido o seu estudo aos articulados desta classe, era por isso apenas entomologista.

Deve, porém, ter-se presente que nesta classe de insectos contam-se não menos de dez ordens: os ortópteros(2), os neurópteros(3), os himenópteros(4), os lepidópteros(5), os hemípteros(6), os coleópteros(7), os dípteros(8), os ripípteros(9), os parasitas(10) e os tisanuros(11). Em algumas destas ordens, na dos coleópteros, por exemplo, conhecem-se trinta mil espécies, e sessenta mil na dos dípteros; não faltam, portanto, assuntos para estudo, e neste há matéria bastante para ocupar toda a vida de um homem, e toda a vida do primo Bénédict foi inteiramente consagrada à entomologia.

 

*.1 Também se chamam julos; conservámos o nome português antigo que lhe dá a zoologia de Cuvier, traduzida em português e revista por Brotero.

2. Tipos — Gafanhotos.

3. Tipos — Mirmeleão, libelinha.

4. Tipos — Abelhas, vespas, formigas.

5. Tipos — Borboletas.

6. Tipos — Cigarras.

7. Tipos — Besouros, pirilampos.

8. Tipos — Mosquitos, moscas.

9. Tipos — Estilopes.

10. Tipos — Ácaros.

11. Tipos — Lepismas.

 

A esta ciência dedicava ele todas as horas, todas, sem excepção, porque até mesmo quando dormia sonhava em «hexápodes». Não se podiam contar os alfinetes que trazia pregados nas mangas e na gola do casaco, na copa do chapéu e no rebuço do colete. Quando primo Bénédict voltava de um passeio científico, o chapéu, principalmente, era como uma caixa de história natural, completamente cheia, tanto interna como externamente, de insectos espetados em alfinetes.

Finalmente, ter-se-á dado completa ideia deste homem singular quando se disser que foi unicamente por amor à entomologia que ele acompanhou Mr. e Mrs. Weldon à Nova Zelândia. Ali enriqueceu a sua colecção com alguns exemplares raros, e por isso tinha pressa de voltar, para os classificar nos armários do seu gabinete em São Francisco.

Como Mrs. Weldon e seu filho voltassem para a América a bordo do «Pilgrim», era natural que primo Bénédict os acompanhasse. Mas não podia Mrs. Weldon contar com ele em qualquer situação embaraçosa. Felizmente a viagem era fácil, o tempo bom, o navio seguro e o capitão merecia toda a confiança.

Durante os três dias que o «Pilgrim» esteve fundeado em Waitemata, Mrs. Weldon fez apressadamente todos os preparativos para a viagem, porque não queria retardar a partida do patacho. Despediu os criados indígenas que a serviam em Auckland, e a 22 de Janeiro embarcou a bordo do «Pilgrim», com Jack, primo Bénédict e Nan.

O primo Bénédict levava numa caixa especial toda a sua curiosa colecção de insectos. Nesta colecção viam-se alguns exemplares de novos estafilinos, coleópteros carniceiros, cujos olhos estão colocados na parte superior da cabeça, e os quais até então se julgava que pertenciam exclusivamente à Nova Caledónia.

Tinham-lhe recomendado muito uma aranha venenosa, kapito, dos Maores, cuja mordedura é quase sempre mortal para os indígenas; mas uma aranha não pertence à ordem dos insectos propriamente ditos; agrupa-se entre os aracnídeos, e portanto tinha pouco ou nenhum valor para primo Bénédict, que pouco caso fez dela. O melhor objecto da sua colecção era um notável estafilino da Nova Zelândia.

Fácil é de crer que primo Bénédict, pagando bom prémio, segurou toda a sua colecção, que para ele tinha mais valor do que a carga de azeite e de barbas de baleia que o «Pilgrim» tinha no porão.

Na ocasião da partida, quando Mrs. Weldon e os seus companheiros de viagem entravam na tolda do patacho, o capitão Hul, aproximando-se, disse à sua passageira:

 — Mrs. Weldon, é sem dúvida sob sua responsabilidade que empreende esta viagem a bordo do «Pilgrim»?

 — Porque me faz essa pergunta, Mr. Hull?

 — Porque não tive ordens de Mr. Weldon a este respeito, e porque um patacho não pode dar garantias de uma boa viagem como um paquete, feito especialmente para transportar passageiros.

 — Se meu marido aqui estivesse, julga Mr. Hull que ele hesitaria um instante em embarcar com sua mulher e seu filho a bordo do «Pilgrim»?

 — Não, Mrs. Weldon, não hesitaria decerto. O «Pilgrim», apesar desta vez não ter sido muito feliz, é um bom barco! Tenho a certeza disso, conheço-o como um marinheiro pode conhecer o navio em que embarca há muitos anos. O que eu disse, Mrs. Weldon, foi para ressalvar a minha responsabilidade, para lhe repetir que, a bordo deste navio, não encontrará as comodidades a que está habituada.

 — Como se trata unicamente de comodidades — respondeu Mrs. Weldon —, não tem dúvida. Não sou das passageiras mais difíceis de contentar, das que a toda a hora se queixam da pequenez dos beliches e do mau serviço da mesa.

Mrs. Weldon, depois de ter olhado para Jack, cuja mão segurava, acrescentou:

 — Partamos, Mr. Hull.

Deram-se as ordens para largar; mareou-se o pano, o «Pilgrim» navegou para sair do golfo e voltou depois rumo para a costa da América.

Três dias depois, o patacho, obrigado por ventos contrários e frescos de leste, cingiu de bolina, com amura a bombordo.

No dia 2 de Fevereiro o capitão Hull estava por mais alta latitude que desejava e na posição de quem mais parece querer montar o Cabo Horn do que chegar-se para a costa da América.

 

DICK SAND

O mar estava sereno e, salvo pequenas contrariedades, a navegação fazia-se em condições muito regulares.

Mrs. Weldon alojara-se a bordo do «Pilgrim» tão comodamente quanto era possível. Não havendo, na tolda à ré, nem tombadilho, nem gaiuta, teve a passageira de se contentar com a câmara do capitão Hull, modesto alojamento de um marinheiro; e para isto foi preciso que o capitão insistisse para ela aceitar. Naquele pequeno espaço estavam Mrs. Weldon, seu filho Jack e a velha Nan. Ali jantavam, na companhia do capitão e do primo Bénédict, para quem se improvisara um camarote à amurada.

O comandante do «Pilgrim» alojou-se num camarote da proa, que pertenceria ao piloto se o houvesse a bordo; mas, como se sabe, o patacho navegava em tais condições que podia dispensar um outro oficial.

A tripulação do «Pilgrim» era composta de marinheiros bons e experimentados e muito unidos pela conformidade de ideias e de costumes. Era a quarta estação de pesca que faziam juntos; todos americanos de Oeste, conhecidos de longa data e pertencentes ao mesmo litoral do Estado da Califórnia. Tinham muitas atenções para Mrs. Weldon, a mulher do seu patrão, a quem eles estimavam muito. Deve dizer-se que, largamente interessados nos lucros do navio, haviam navegado até então tirando sempre bons ganhos. Se em razão do pequeno número o trabalho era maior, também maior era a paga quando, no fim da viagem, se ajustavam as contas. Desta vez, porém, os lucros seriam pequenos, e por isso eles, com razão, praguejavam contra a gente que embarcara em Nova Zelândia.

Havia um único homem a bordo que não era de origem americana, mas cuja nacionalidade se não conhecia: chamava-se Negoro, falava inglês regularmente e exercia no patacho o modesto emprego de cozinheiro.

O cozinheiro do «Pilgrim» tinha desertado em Auckland; Negoro, que então estava desempregado, ofereceu-se para o substituir. Era homem taciturno, pouco comunicativo, não se chegando muito para os outros, mas desempenhando regularmente o seu ofício. O capitão parecia ter acertado ajustando Negoro, que nunca dera motivo para ser repreendido. Contudo, o capitão lastimava-se por não ter tido tempo de se informar a seu respeito. A fisionomia de Negoro, ou, antes, o seu olhar, não lhe agradava muito, e, tratando-se de meter um indivíduo desconhecido na restrita e íntima vida de bordo, deviam empregar-se todas as cautelas.

Negoro teria quarenta anos. Magro, musculoso, de estatura meã, cabelos escuros e trigueiro, parecia homem robusto. Via-se pelas observações, que raras vezes fazia, que tivera alguma instrução. Nunca falava do seu passado nem da sua família. Donde vinha e onde tinha vivido, ninguém o podia adivinhar. Qual seria o seu futuro, também não era fácil de saber. Revelava unicamente a intenção de desembarcar em Valparaíso. Era um homem extraordinário. Não era marinheiro e parecia até mais alheio às coisas do mar do que geralmente costumam ser os cozinheiros que têm embarcado. Contudo, o balanço não o incomodava, como acontece às pessoas que nunca navegaram, circunstância muito para apreciar num cozinheiro de bordo.

Em suma, via-se pouco. Durante o dia estava na cozinha, em frente do fogão de ferro fundido, que ocupava grande espaço. À noite, logo que apagava o fogão, Negoro ia para o lugar que lhe estava destinado no alojamento da marinhagem, deitava-se e dormia.

A tripulação do «Pilgrim», como se disse já, compunha-se de cinco marinheiros e de um praticante. Tinha este quinze anos e era enjeitado. Abandonado, desde que nasceu, fora recolhido pela caridade pública e por ela educado.

Dick Sand, que assim se chamava, devia ser oriundo do Estado de Nova Iorque e sem dúvida da capital deste mesmo Estado. O nome de Dick, abreviatura de Richard, foi dado ao enjeitadinho porque aquele nome era o da pessoa caridosa que o recolheu duas ou três horas depois de ele ter nascido. O nome de Sand(1) é uma recordação do lugar em que foi encontrado, na ponta de Sandy-Hook que forma a entrada do porto de Nova Iorque, na embocadura do Hudson. Dick Sand, quando tiver atingido todo o seu desenvolvimento físico, não deve exceder a estatura regular; contudo, é de constituição robusta. Não se pode duvidar que é de origem anglo-saxónia, e, apesar de ser trigueiro, tinha olhos azuis muito vivos. O mester de marinheiro dispusera-o para as lutas da vida. Na sua fisionomia inteligente mostrava-se a energia; não tinha os traços da audácia, tinha os da ousadia. Citam-se muitas vezes as três palavras seguintes, de um verso incompleto de Virgílio:

«Audaces fortuna juvat...»

mas citam-se incorrectamente. O poeta disse:

«Audentes fortuna juvat...»

 

*1. Sand significa areia em inglês.

 

É é aos ousados e não aos audazes que a fortuna quase sempre sorri. O audaz pode ser irreflectido; o ousado pensa primeiro e age depois: tal é a diferença.

Dick Sand era audentes. Aos quinze anos sabia já resolver e levar a cabo o que em seu espírito tivesse decidido fazer. O seu ar, vivo e sério ao mesmo tempo, atraía a atenção de toda a gente; não dissipava gestos nem palavras, como fazem geralmente os rapazes da sua idade.

Desde muito cedo, na idade em que ainda se não discutem os grandes problemas da vida, viu ele qual era a sua miserável condição, e a si mesmo prometeu lutar e vencer.

E assim foi: era quase homem na idade em que outros são crianças.

Desembaraçado e hábil em todos os exercícios corporais, Dick Sand era dos entes bem-fadados que depressa aprendem, que tudo fazem e tudo conseguem.

Educado pela caridade pública, como atrás se disse, esteve primeiro num asilo, onde há sempre, na América, lugar para as criancinhas abandonadas. Aos quatro anos Dick aprendia a ler, a escrever e a contar, numa das escolas do Estado de Nova Iorque que as subscrições de caridade sustentam generosamente.

Aos oito anos o gosto pela vida do mar, que em Dick era inato, faziam-no embarcar como moço de convés num navio que navegava para os mares do sul. A bordo deste navio aprendia ele a arte de marinheiro, como se deve aprender quando se é ainda muito novo. Pouco a pouco foi-se instruindo sob a direcção dos oficiais, que se interessavam muito por Dick. Assim o moço do convés progredia sempre, esperando sempre mais. A criança que, desde o princípio da sua carreira, vê que o trabalho é a lei da vida, que de muito cedo sabe que deve ganhar o pão com o suor do seu rosto — preceito da Bíblia, que é a lei da humanidade —, está provavelmente destinada para as grandes coisas, porque um dia virá em que juntará à vontade a força para as executar.

Foi quando Dick Sand era ainda moço de bordo que o capitão Hull o viu. Afeiçoou-se-lhe o capitão e mais tarde fê-lo conhecido do seu armador, James W. Wel-don, que tomou muito interesse pelo enjeitado e mandou-o para São Francisco, a fim de completar a sua educação, fazendo-o seguir a religião católica, à qual pertencia sua família.

Durante o curso dos estudos, Dick Sand mostrou maior predilecção pela geografia e pelas viagens, esperando a idade própria para aprender a parte da matemática que se refere à navegação. À parte teórica da instrução que recebia não se esquecia ele de juntar a prática. Foi como praticante que embarcou pela primeira vez a bordo do «Pilgrim». Os bons marinheiros devem conhecer a grande pesca, como as navegações grandes, porque habilitam para todas as eventualidades da vida marítima. Dick Sand partia a bordo de um navio de James W. Weldon, o seu benfeitor, comandado pelo homem que o protegera, o capitão Hull. Estava, pois, em excelentes condições.

Dizer até que ponto chegaria a sua dedicação pela família Weldon seria supérfluo. Melhor será deixar falar os factos. Compreende-se, porém, o contentamento do jovem marinheiro quando soube que Mrs. Weldon embarcaria a bordo do «Pilgrim». Mrs. Weldon fora para ele uma boa mãe. Dick considerava Jack como um irmão mais novo, respeitando-o sempre como filho do rico proprietário de navios. Não ignoravam os seus protectores que a boa semente por eles lançada não caíra em terreno ingrato. O reconhecimento do pobre órfão era cada vez maior, e se um dia fosse preciso dar a sua vida por aqueles que o tinham mandado instruir e ensinado a amar a Deus, não hesitaria um momento em fazê-lo. Em poucas palavras, tinha quinze anos e pensava como se tivesse trinta. Tal era Dick Sand.

Sabia Mrs. Weldon quanto valia o seu protegido: por isso podia, sem cuidado, confiar-lhe Jack. Dick Sand acariciava a criancinha, a qual, conhecendo que ele a estimava, gostava de estar com ele. Durante as horas de ócio, que as há às vezes em viagem, quando se navega com bom mar e vento galerno, Dick e Jack estavam quase sempre juntos. O jovem praticante mostrava a Jack tudo quanto da sua arte o pudesse interessar. Era sem receio que Mrs. Weldon via Jack, acompanhado por Dick Sand, subir pelas enxárcias, trepar ao cesto de gávea, e descer como uma seta pelos brandais. Dick Sand ou o precedia ou o seguia, sempre pronto a segurá-lo se os tenros bracinhos de Jack fraquejassem naqueles exercícios. Tudo isto era de grande proveito para Jack, a quem a doença tinha enfraquecido; a bordo do «Pilgrim», porém, recuperara depressa forças, graças a esta ginástica quotidiana e às saudáveis brisas do mar.

Assim corriam as coisas, assim ia a viagem, e, se o tempo fosse mais favorável, nem os passageiros nem a tripulação do «Pilgrim» teriam razão de se queixar.

Entretanto a constância do vento por leste não deixava de preocupar o capitão Hull, que não via o navio em boa rota e receava, mais tarde, perto do trópico de Capricórnio, encontrar calmas que ainda mais o contrariariam, sem falar da corrente equatorial, que irresistivelmente o levaria para oeste. Inquietava-se principalmente por Mrs. Weldon e pelas demoras, de que ele decerto não era responsável. Pensava até em aconselhar à sua passageira que fosse para bordo de algum vapor que se encontrasse no caminho navegando para a América. Infelizmente estava em latitudes muito elevadas, onde não cruzam os vapores da carreira do Panamá, e naquela época ainda não eram tão frequentes, como depois se têm feito, as comunicações pelo Pacífico entre a Austrália e o Novo Mundo.

As coisas tinham pois de correr à vontade de Deus. Parecia que nada vinha perturbar esta monótona viagem quando se deu o primeiro incidente, justamente no dia 2 de Fevereiro, na latitude e longitude indicadas no princípio desta história.

Dick Sand e Jack, pelas nove horas da manhã, como o tempo estivesse claro, tinham subido para os vaus de joanete de proa. Dali dominavam todo o navio e o vasto espaço do oceano. À ré o círculo do horizonte era, às suas vistas, apenas interceptado pelo mastro grande e pelas velas deste mastro, a vela grande-latina e o gafe-tope; para a proa via-se, como se estivesse estendido sobre as ondas, o gurupés com as suas velas, as quais, caçadas ao portar pela esteira, pareciam três asas de desigual grandeza; por debaixo deles enfunava-se o traquete e o velacho; acima deles estava o joanete, cuja testa ia sempre a bater por coar o vento. O patacho navegava de bolina cerrada com amuras a bombordo.

Dick Sand estava explicando a Jack a razão por que o «Pilgrim», por estar bem alastrado, não corria perigo de fazer da quilha portaló(1), apesar de ir muito inclinado para sotavento, quando Jack o interrompeu, perguntando-lhe:

 — Que vejo eu além?

 — Vê alguma coisa? — perguntou Dick Sand, pondo-se de pé sobre os vaus.

 — Vejo — tornou Jack, designando um ponto no mar, entre o estai da bujarrona e a baluma da giba.

Dick Sand olhou com atenção para o ponto indicado e imediatamente gritou:

 — Um casco à tona de água! Pela proa, um pouco para estibordo!

 

*1. Fazer da quilha portaló significa virar. (N. do T.)

 

À TONA DE AGUA

Ao grito de Dick Sand acudiu toda a tripulação. A gente que não estava de quarto correu para o convés; o capitão Hull saiu do camarote e dirigiu-se para a proa.

Mrs. Weldon, Nan e até o indiferente primo Bénédict vieram encostar-se à amurada para ver o casco que se avistara.

Só Negoro não saiu da cozinha; de toda a tripulação foi ele o único, como sempre, a quem a vista de um casco à tona de água não parecia interessar.

Todos olharam atentamente para o objecto flutuante, que as ondas balouçavam a três milhas do «Pilgrim».

 — Que será aquilo? — perguntou um marinheiro.

 — Uma jangada sem gente — respondia outro.

 — Quem sabe — observou Mrs. Weldon — se naquela jangada, que além vemos à mercê das ondas, estarão alguns náufragos?

 — Veremos — respondeu o capitão Hull —, mas aquilo não é uma jangada, é um casco adornado.

 — Talvez seja algum monstro marinho, algum mamífero de dimensões colossais — lembrou primo Bénédict.

 — Não creio — opinou o praticante.

 — Então o que julgas ser, Dick? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Um casco adornado, exactamente o que disse o capitão, Mrs. Weldon. Até me parece que vejo luzir o cobre da carena.

 — É verdade — afirmou o capitão Hull. Depois, viran-do-se para o homem do leme, ordenou-lhe:

 — Põe o leme de encontro, Bolton; deixa arribar uma quarta; governa a passar perto do casco.

 — Vai arribado — declarou o timoneiro.

 — Mas — continuou primo Bénédict —, estou ainda pelo meu dito. Aquilo é com toda a certeza um animal.

 — Então será um cetáceo forrado de cobre — respondeu o capitão Hull —, porque também, com toda a certeza, vejo luzir o cobre...

 — Em todo o caso, primo Bénédict — acrescentou Mrs. Weldon —, há-de convir que o cetáceo está morto, porque é certo que não faz o menor movimento.

 — Ora, minha prima — respondeu Bénédict, teimando sempre —, não seria a primeira vez que se vê uma baleia a dormir à tona de água.

 — Efectivamente assim é — admitiu o capitão Hull —, mas o que além está não é uma baleia, é um navio.

 — Veremos — teimava Bénédict, que, apesar de tudo, teria dado de boa vontade todos os mamíferos dos mares árcticos e antárcticos por um gafanhoto de espécie rara.

 — Andar assim, Bolton, andar assim — recomendou de novo o capitão Hull para o timoneiro. — Não arribar mais; não quero atracar com o navio, quero passar perto dele. Se atracássemos com aquele casco, ele pouco perderia, e nós podíamos ter avaria grossa. Orça um pouco, Bolton!... Orça ainda mais!

A proa do «Pilgrim», que ia direita ao navio adornado, desviou para barlavento.

O patacho estava ainda a uma milha do casco avistado. Os marinheiros não deixavam de o observar com interesse. Talvez que ele tivesse carregação de valor, que fosse possível baldear para bordo do «Pilgrim». Como é sabido, em casos de salvamento, a terça parte do valor da carga pertence aos salvadores, e neste caso, se o carregamento não estivesse avariado, a tripulação do «Pilgrim» teria apanhado boa maré, como se costuma dizer. Seria a compensação da má pesca que fizeram.

Um quarto de hora depois o casco estava a meia milha do «Pilgrim».

Era um navio, não havia dúvida; mostrava o costado de estibordo, adornado a tocar com a trincheira na água, e estava por tal modo inclinado que seria impossível andar de pé na tolda. Da mastreação nada restava; das mesas das enxárcias pendiam unicamente alguns cabos e os colhedores dos ovéns; na amura de estibordo via-se um grande rombo.

 — Aquele navio foi decerto abalroado — afirmou Dick Sand.

 — Sem dúvida — acrescentou o capitão Hull —, e só por milagre é que não está no fundo.

 — Se foi abalroado — observou Mrs. Weldon — „ é natural que a tripulação fosse salva pelo outro navio.

 — Sim, Mrs. Weldon, é natural — respondeu o capitão Hull —, excepto se a tripulação depois do choque não tentou salvar-se nos próprios escaleres, por ter o navio abalroador continuado o seu caminho, o que infelizmente acontece algumas vezes.

 — Parece incrível! É realmente grande desumanidade, Mr. Hull!

 — Pois é como lhe digo, Mrs. Weldon, é como lhe digo, e não são raros os casos. Quanto à tripulação daquele navio, o que me faz crer que ela o abandonou é não ver um único escaler a bordo, e, a não ser que tivesse sido salva, o que em minha opinião é mais crível é que ela tentou demandar a terra. Mas a esta distância da América ou das ilhas da Oceânia, receio muito que não tivesse conseguido o seu intento!

 — Talvez — continuou Mrs. Weldon — fique para sempre ignorado o segredo daquela catástrofe; contudo, não será impossível que se encontre ainda alguém a bordo.

 — Julgo que não é provável — respondeu o capitão Hull.

— Se lá houvesse alguém, perceberia que nos aproximámos e decerto já nos teria feito qualquer sinal. Enfim, veremos. Ainda mais de ló, Bolton! Mais de ló! — gritou o capitão, indicando ao mesmo tempo com a mão onde queria orçar.

O «Pilgrim» estava aproximadamente a três amarras de distância do casco desmastreado, que não havia dúvida tinha sido abandonado pela guarnição.

Nesta ocasião Dick Sand, com um gesto imperioso, impôs silêncio a todos.

 — Ouçam! — disse ele. Todos prestaram atenção.

 — Parece-me que ouvi ladrar.

Efectivamente ouviu-se um ladrido longínquo dentro do outro navio. Estava lá pois um cão, preso talvez, porque era possível que as escotilhas estivessem completamente fechadas, o que não se podia saber de modo algum, porque ainda não se via a tolda.

 — Ainda que ali não haja senão um cão, nós o salvaremos, Mr. Hull — disse Mrs. Weldon.

 — Sim, sim — acrescentou Jack —, há-de ser salvo, e por esse motivo passará a ser muito nosso amigo... Mamã, vou buscar um torrão de açúcar para dar ao cão.

 — Sossega, meu filho — disse Mrs. Weldon, sorrindo. — Creio que o pobre animal deve estar a morrer de fome e que preferirá um pedaço de carne ao torrão de açúcar.

 — Então há-de dar-se-lhe a minha sopa — continuou Jack. — Passo bem sem ela.

Os ladridos ouviam-se distintamente, e os dois navios não estariam a mais de trezentos pés quando apareceu, trepando à trincheira de estibordo, um enorme cão, ladrando desesperadamente.

 — Howick — disse o capitão Hull, voltando-se para o contramestre do «Pilgrim» —, atravesse o navio e arrie imediatamente o bote ao mar.

 — Espera! Espera! — disse Jack para o cão, que parecia responder com um ladrido abafado.

O pano do «Pilgrim» foi rapidamente mareado, de modo que o navio ficou quase imóvel e a menos de meia amarra de distância do casco.

Arriou-se o bote imediatamente, e nele embarcaram o capitão Hull, Dick Sand e dois marinheiros.

O cão ladrava sempre, tentando suster-se, mas caindo na tolda repetidas vezes. Parecia que os latidos não se dirigiam àqueles que iam em seu socorro. Seriam pois para os marinheiros ou passageiros encerrados a bordo do navio em que ele estava?

«Estará a bordo algum náufrago que tenha sobrevivido à catástrofe?», pensava Mrs. Weldon.

Algumas remadas mais e o bote do «Pilgrim» atracaria ao navio adornado.

De repente, porém, o cão fez notável mudança. Àqueles ladridos, que pareciam chamar pelos seus salvadores, sucederam-se outros, furiosos. A mais violenta cólera excitava sem dúvida o animal.

 — Que terá aquele cão? — perguntava o capitão Hull, enquanto o bote passava pela popa do navio, a fim de ir atracar à parte da ponte que estava submersa.

O que o capitão Hull não pôde ver, o que não foi notado a bordo do «Pilgrim», é que a fúria do cão se manifestou precisamente no momento em que Negoro saía da cozinha e se dirigia para o castelo de proa.

O cão conhecia o cozinheiro, e reconheceu-o então? Não é crível.

Seja como for, porém, Negoro, depois de ter olhado para o cão sem manifestar a menor surpresa, conquanto tivesse franzido o sobrolho, entrou para o alojamento da marinhagem.

O bote, entretanto, passara junto da popa do navio, em cujo painel estava unicamente pintado este nome: «Waldeck».

«Waldeck», sem designação da praça a que pertencia; mas pela forma do casco e por certos sinais que os marinheiros descobrem à primeira vista, o capitão Hull reconheceu que o navio era de construção americana. O nome confirmava-o. Era o casco de um grande brigue de quinhentas toneladas.

Na amura do «Waldeck», um grande rombo indicava o lugar por onde fora abalroado. Em consequência da inclinação do navio, estava aquela abertura a cinco ou seis pés acima do nível da água, o que explicava perfeitamente a razão por que o brigue não tinha soçobrado.

Na tolda, que o capitão Hull via de vante a ré, não estava ninguém.

O cão, que saltara da trincheira, deixou-se escorregar até à escotilha grande, que estava aberta, e, ora da parte de dentro, ora de fora dela, ladrava sempre.

 — Este animal não está só a bordo! — notou Dick Sand.

 — Decerto! — concordou o capitão Hull.

O bote prolongou-se então com a amurada de bombordo, quase toda metida na água. Com ondulação forte, o «Waldeck» ter-se-ia submergido em poucos minutos.

A tolda do brigue estava varrida de popa à proa. Restavam apenas uns fragmentos do mastro grande e do traquete, quebrados dois pés acima das enoras; deviam ter caído por efeito do abalroamento, levando enxárcias, brandais e cabos de laborar. Contudo, tão longe quanto a vista podia alcançar, nada se avistava em torno do «Waldeck», o que parecia indicar que a catástrofe acontecera havia dias.

 — Se alguns desgraçados sobreviveram à colisão — disse o capitão Hull —, é provável que tenham morrido de fome e de sede, porque a água invadiu os paóis. Não há com certeza a bordo senão cadáveres!

 — Não me parece! — exclamou Dick Sand. — Se houvesse só cadáveres, o cão não ladrava assim. Nada. Aqui há gente viva!

O animal, chamado pelo praticante, deixou-se escorregar até ao mar e a muito custo nadou para o bote. Parecia extenuado.

Logo que o recolheram, precipitou-se para um balde que continha água doce, desprezando o pedaço de pão que Dick Sand lhe ofereceu.

 — Estava a morrer à sede! — disse Dick Sand.

O bote procurou lugar favorável para atracar mais facilmente ao «Waldeck», e para isso teve de se afastar algumas braças. O cão julgou que os seus salvadores não queriam ir a bordo, porque agarrou Dick Sand pela jaqueta, e recomeçou com mais força os seus ladridos lamentosos.

Perceberam o que ele queria. A sua pantomina e linguagem era tão clara como pode ser a de um homem. O bote chegou-se para o navio e atracou junto ao turco de bombordo, onde os dois marinheiros o amarraram, enquanto o capitão Hull, Dick Sand e o cão saltavam para a tolda e não sem custo trepavam até à escotilha grande, que se abria entre os fragmentos dos dois mastros.

Por esta escotilha desceram ambos ao porão do «Waldeck», o qual, meio de água, não continha mercadoria de espécie alguma. O brigue navegava em lastro, lastro de areia, que correra a bombordo, mantendo por consequência o navio inclinado.

No porão não havia nada para salvar.

 — Aqui não está ninguém! — afirmou o capitão Hull.

 — Ninguém — confirmou o praticante, depois de ter descido até onde era possível.

Mas o cão, que estava na tolda, ladrava sempre e parecia chamar mais insistentemente a atenção do capitão.

 — Subamos — disse o capitão Hull ao praticante. Ambos subiram para a tolda.

O cão, correndo para eles, parecia querer levá-los para o tombadilho.

Seguiram o cão.

Ali, na câmara, viram então cinco corpos, cinco cadáveres talvez, estendidos no chão.

À luz do dia, que se infiltrava pela gaiuta, o capitão viu que eram cinco pretos.

Dick Sand, correndo de um para outro, percebeu que os desgraçados ainda respiravam.

 — Vamos já para bordo! — ordenou o capitão Hull.

Chamaram os dois marinheiros, que tinham ficado no bote, os quais ajudaram a transportar os náufragos para fora do tombadilho.

Não custou pouco, mas dois minutos depois os cinco náufragos estavam deitados no paneiro da embarcação, sem que nenhum deles tivesse consciência dos esforços que se tentavam para os salvar. Algumas gotas de um licor cordial e água administrada com prudência podiam, talvez, chamá-los à vida.

O «Pilgrim» mantinha-se a meia amarra de distância do casco e por isso o bote não levou muito tempo a chegar.

Deitaram uma retenida do lais da verga do traquete, e cada um dos pretos, içados separadamente, descansou enfim na tolda do «Pilgrim».

Acompanhava-os o cão.

 — Desgraçados! — exclamou Mr. Weldon, vendo aqueles corpos inertes.

 — Vivem, Mrs. Weldon! E havemos de os salvar! Afirmo que os havemos de salvar — assegurou Dick Sand.

 — Que lhes aconteceu então?... — perguntou primo Bénédict.

 — Em eles podendo falar — respondeu o capitão Hull —, saberemos. Agora é preciso que bebam água com rum.

Depois, voltando-se, chamou:

 — Negoro!

Ao ouvir este nome o cão levantou-se, pronto a acometer. Tinha o pêlo eriçado e a boca aberta. O cozinheiro, porém, não vinha.

 — Negoro! — repetiu o capitão Hull. Negoro saiu enfim da cozinha.

Apenas apareceu na tolda, o cão correu para ele, querendo mordê-lo.

Com uma pancada dada com o poker o cozinheiro repeliu o animal, cuja raiva os outros marinheiros conseguiram refrear.

 — Conhece por acaso esse cão? — perguntou o capitão Hull ao cozinheiro.

 — Eu? — respondeu Negoro. — Nunca o vi!

 — É singular! — murmurou Dick Sand.

 

OS NÁUFRAGOS DO «WALDECK»

A escravatura pratica-se ainda em grande escala em quase toda a África Equinocial. Apesar da atenta vigilância dos cruzadores ingleses e franceses, vários navios carregados de escravos saem todos os anos das costas africanas, transportando nos seus bojudos porões centenas e centenas de negros para os mais diversos pontos do mundo, e, custa dizê-lo, do mundo civilizado.

Não o ignorava o capitão Hull. Ainda que aquelas paragens não fossem frequentadas pelos negreiros, o capitão Hull perguntava a si mesmo se os negros que salvara não seriam os únicos que tivessem sobrevivido da carregação de escravos que o «Waldeck» fosse vender a alguma colónia do Pacífico.

Se assim fosse, aqueles homens podiam considerar-se livres desde já, só pelo facto de terem pisado o seu navio. Hull ardia em desejos de os informar da verdade.

Entretanto, a bordo do «Pilgrim» prodigalizavam-se aos náufragos os mais diligentes cuidados, que se justificavam dado o estado de fraqueza em que esses infelizes se encontravam.

Mrs. Weldon, ajudada por Nan e Dick Sand, tinha-lhes dado a beber algumas gotas de água, da qual estavam privados havia dias; isto e pequena porção de comida foi quanto bastou para os reanimar.

O mais idoso dos cinco pretos — teria sessenta anos — passado pouco tempo estava em estado de falar, e pôde, por consequência, responder em inglês às perguntas que lhe fizeram.

 — O navio que os transportava foi abalroado por outro? Sabe alguma coisa a esse respeito? — foi a primeira pergunta que o capitão Hull fez.

 — Sim, senhor — respondeu o preto. — Há dez dias que isso aconteceu. Foi numa noite escura. Estávamos todos a dormir...

 — Mas o que é feito da tripulação do «Waldeck»? — prosseguiu o capitão.

 — Já não se encontrava a bordo, senhor, quando eu e os meus companheiros subimos para a tolda.

 — Talvez que a tripulação tivesse podido saltar para bordo do navio que abalroou o «Waldeck»? — sugeriu o capitão Hull.

- — Sim, talvez, e oxalá que assim tenha acontecido efectivamente.

 — E o navio, depois do choque, não tentou recolhê-los a bordo?

 — Não, senhor.

 — Teria ido a pique?

 — Não foi a pique — declarou o velho preto, sacudindo a cabeça —, porque o vimos fugir, apesar de ser noite.

Este facto, confirmado por todos os náufragos do «Waldeck», pode parecer incrível, mas é verdadeiro. Há capitães que, depois de uma terrível colisão, devida à sua imprudência, continuam a navegar, desprezando os desgraçados que eles lançaram a uma morte aflitiva, não tentando sequer prestar-lhes socorro!

Que os cocheiros nas ruas públicas façam o mesmo e deixem aos outros o cuidado de reparar o mal que fizeram, é condenável, apesar de haver a certeza de que as vítimas terão socorros prontos. Mas que haja homens que deixem outros abandonados no meio do mar, é incrível e é infame!

Contudo, o capitão Hull sabia de muitos casos de tão grande desumanidade, e podia por isso afirmar a Mrs. Weldon que tais factos, por monstruosos que parecessem, infelizmente não eram raros.

Depois continuou perguntando:

 — De onde vinha o «Waldeck»?

 — De Melburne.

 — Então vocês não são escravos?

 — Não, senhor, não somos escravos!... — respondeu vivamente o preto, que aparentava ter sessenta anos, pondo-se de pé. E acrescentou, não sem um certo orgulho:

 — Somos súbditos do estado de Pensilvânia e cidadãos da América livre.

 — Pois, meus amigos, creiam que não perderam a sua liberdade passando para bordo do patacho americano «Pilgrim».

Efectivamente, os cinco pretos vindos de bordo do «Waldeck» pertenciam ao estado de Pensilvânia. O mais velho, vendido na África quando tinha seis anos, e transportado depois para os Estados Unidos, estava livre, havia muito tempo, pelo acto de emancipação. Os seus companheiros, muito mais novos que ele, filhos de libertos antes do seu nascimento, nasceram já livres; nunca nenhum branco tivera sobre eles o direito de propriedade. Não falavam a linguagem de preto, que nunca emprega o artigo e só conhece o infinito dos verbos, linguagem que desapareceu desde a guerra contra a escravidão. Aqueles negros haviam, pois, deixado livremente os Estados Unidos e livremente para lá voltavam.

Tinham-se ajustado, segundo disseram ao capitão Hull, como trabalhadores, com um inglês que possuía vastos terrenos em exploração perto de Melburne, na Austrália Meridional. Estiveram lá três anos, colhendo bons resultados para si, e no fim do contrato quiseram voltar para a América.

Embarcaram no «Waldeck», pagando passagem. Saíram de Melburne a 5 de Dezembro, e dezassete dias mais tarde, durante a noite, escura e medonha, foram abalroados por um grande vapor.

Estavam deitados. Alguns segundos depois do choque, que foi terrível, correram para a tolda.

Já então o «Waldeck» estava desarvorado e adornado; não foi, porém, a pique, porque a água não encheu o porão.

O capitão e marinheiros do «Waldeck» tinham desaparecido todos, uns porque se precipitassem ao mar, outros porque tivessem lançado a mão ao aparelho, turcos, escaleres, etc, do navio abalroador, o qual, depois do choque, continuou a navegar e nunca mais voltou.

Ficaram, pois, sós os cinco pretos, a bordo de um casco meio soçobrado, e ainda a duzentas milhas da terra mais próxima.

O mais velho de todos chamava-se Tom. A sua idade, o seu carácter enérgico e a sua experiência, provada em muitas circunstâncias de uma longa vida de trabalhos, deram-lhe muito naturalmente o lugar de chefe entre os companheiros que com ele se encontravam.

Os outros pretos eram homens de vinte e cinco a trinta anos de idade; chamavam-se Bat(1), filho de Tom, Agostinho, Acteão e Hércules. Todos quatro de constituição vigorosa, teriam valido bom preço nos mercados da África Central. Ainda que tivesse sofrido muito eram, contudo, magníficos espécimes de excelente raça, e aos quais a educação liberal, recebida nas muitas escolas da América do Norte, dera já a sua feição característica.

 

*1. Bat é abreviatura de Bartolomeu.

 

Tom e os seus companheiros estavam, pois, sós a bordo do «Waldeck», depois da abalroação, não tendo meio de pôr em condições de navegar aquele casco inerte, sem mesmo poder abandoná-lo, porque as duas únicas embarcações que havia a bordo foram destruídas quando os navios colidiram. Estavam, pois, reduzidos a esperar que passasse algum navio, enquanto o casco, à tona de água, era levado pela acção das correntes, e esta acção explicava o motivo por que o «Waldeck» fora encontrado tão longe da sua derrota, pois, tendo saído de Melburne, devia estar em latitude muito mais baixa.

Durante os dias que decorreram entre o sinistro e o momento em que o «Pilgrim» avistou o navio naufragado, os cinco negros sustentaram-se de alimentos que encontraram na despensa da câmara; mas não tendo podido ir ao paiol do vinho, porque a água o invadira completamente, não tinham nenhuma bebida espirituosa, e sofreram por isso atrozmente. As quartolas de água que vinham na tolda despedaçaram-se com o choque. Desde a véspera que Tom e os seus companheiros, torturados pela sede, estavam sem sentidos. O «Pilgrim» chegou, pois, muito a tempo.

Tal foi a narrativa que Tom fez, em poucas palavras, ao capitão Hull. Não se podia duvidar do que dizia o velho preto. Os seus companheiros confirmaram tudo quanto ele disse, e os factos vinham em favor destes desgraçados.

Um outro ente teria falado com a mesma franqueza, se a fala fosse a sua voz. Era o cão, que a vista de Negoro impressionava tão desagradàvelmente. Havia decerto entre aqueles dois seres uma antipatia inexplicável.

Dingo — assim se chamava o cão — era de raça dos mastins, peculiar à Nova Holanda; contudo, não foi ele trazido da Austrália pelo capitão do «Waldeck». Dois anos antes, Dingo, perdido e quase morto de fome, foi encontrado no litoral da costa ocidental da África, próximo à entrada do Zaire. O capitão do «Waldeck» recolheu o belo animal, que, pouco sociável, parecia sempre saudoso do antigo dono, de quem violentamente tivesse sido separado, e o qual não se encontraria decerto naquelas paragens desertas. — S. V. — Estas letras, gravadas na coleira, eram tudo quanto relacionava Dingo com um passado inteiramente misterioso e que em vão se teria tentado descobrir.

Dingo, animal grande e forte, maior que os cães dos Pirenéus, era soberbo espécime da sua raça. Quando se endireitava e entesava a cabeça, igualava a estatura de um homem. Pela sua agilidade e força muscular, podia acometer sem medo as onças e as panteras, e não recearia a luta com os ursos.

Dingo tinha pêlo espesso, cauda comprida, farta e direita, como a do leão, era de cor arruivascada, tendo apenas no focinho algumas malhas brancas. Quando se encolerizasse, devia ser temível, e por isso Negoro não ficou contente com o acolhimento que lhe fez este vigoroso exemplar da raça canina.

Contudo, Dingo, se não era sociável, também não era mau. Parecia triste. Uma observação fizera Tom, a bordo do «Waldeck»: era que o cão parecia não gostar de pretos. Não lhes fazia mal, mas evitava-os. Talvez que os indígenas da costa africana, onde ele andara perdido, lhe tivessem dado maus tratos.

Assim, conquanto Tom e os seus companheiros fossem bons, Dingo não se chegava para eles. Durante os dez dias que os náufragos passaram a bordo do «Waldeck», o cão andou sempre afastado, não sabendo eles de que se sustentou, mas tendo também sofrido sedes cruéis.

Tais eram os náufragos daquele casco, que o primeiro golpe de mar submergiria, e que só teria levado cadáveres para as profundezas do oceano se a chegada inesperada do «Pilgrim», retardado pelas calmas e pelos ventos contrários, não tivesse dado ao capitão Hull a ocasião de fazer tão humanitária obra. Para a completar, tinha ele de repatriar os náufragos do «Waldeck», os quais haviam perdido com o naufrágio as economias de três anos de trabalho. Era o que o capitão Hull tencionava fazer. O «Pilgrim», depois de descarregar em Valparaíso, seguiria pela costa da América até ao litoral da Califórnia. Aí, Tom e os seus companheiros seriam bem recebidos por James W. Weldon — assim o garantia a sua generosa esposa — e, bem providos de tudo quanto lhes fosse necessário para a viagem, seguiriam para o Estado de Pensilvânia.

Os náufragos, tranquilos pelo seu futuro, agradeceram a Mrs. Weldon e ao capitão Hull. Deviam-lhes muito, sem dúvida, e, apesar de serem uns pobres negros, esperavam pagar mais cedo ou mais tarde esta dívida de reconhecimento.

 

S. V.

O «Pilgrim» entretanto continuava a navegar, esforçando-se em ganhar para leste. A persistência das calmas não deixava de preocupar o capitão Hull, não porque tivesse importância a demora de mais uma ou duas semanas, numa viagem da Nova Zelândia a Valparaíso, mas pelo cansaço que tal demora podia produzir à sua passageira.

Mrs. Weldon, porém, não se queixava e encarava com resignação esta contrariedade.

No mesmo dia, 2 de Fevereiro, pela noite, perdeu-se de vista o casco abandonado.

O capitão Hull tratou antes de tudo de alojar o mais convenientemente possível Tom e os seus companheiros. A coberta da tripulação, disposta avante em forma de gaiuta, era pequena. Acomodaram-se, pois, debaixo do castelo. Aquela gente, habituada aos trabalhos rudes, contentava-se facilmente com tudo, e como o tempo estava bom, quente e saudável, o alojamento servia-lhes admiravelmente para toda a viagem.

A vida de bordo, perturbada um instante na sua monotonia por aquele incidente, de novo voltou ao seu curso regular.

Tom, Agostinho, Bat, Acteão e Hércules desejavam tornar-se úteis. Mas quando o vento é constante, o pano uma vez braceado, nada há que fazer.

Se se tratava de virar de bordo, o velho preto e os seus companheiros corriam em auxílio da tripulação, e é forçoso dizer que, se o colossal Hércules deitava a mão a um cabo, percebia-se imediatamente. Este vigoroso preto, de seis pés de altura, valia bem por três homens!

Jack entretinha-se a olhar para o gigante, de quem não tinha medo; e, quando Hércules lhe pegava ao colo, como se o pequenino fosse um boneco de cortiça, a alegria de Jack era imensa.

 — Levanta-me bem alto — pedia Jack.

 — Lá vai, muito alto! — acedia Hércules.

 — Sou pesado?

 — Como uma pena. Nem o sinto!

 — Então levanta-me mais! Até onde chegarem os teus braços.

E Hércules, com os dois pezinhos de Jack numa das mãos, passeava com ele, como faria um ginasta no circo. Jack, vendo-se em grande altura, gritava muito e tentava fazer-se pesado, o que Hércules nem sequer percebia.

Tinha pois Jack dois amigos, Dick Sand e Hércules, mas não tardou que a estes juntasse um terceiro.

Foi Dingo.

Disse-se que Dingo era pouco sociável, porque não gostava da gente do «Waldeck». A bordo do «Pilgrim» era porém outra coisa. Jack soube fazer-se estimar por Dingo, ao qual agradava brincar com Jack. Viu-se então que Dingo era daqueles cães que têm predilecção especial pelas crianças. Jack não lhe fazia mal; o seu maior prazer era transformar Dingo em cavalo, e pode-se afirmar que valia muito mais que os quadrúpedes de papelão, embora tenham rodas nas patas. Jack cavalgava o cão, que tudo deixava fazer pacientemente; o peso de Jack era para ele como a metade do peso de um jóquei para um cavalo de corridas.

Mas que grande brecha se fazia todos os dias no açúcar da despensa!

Em pouco tempo Dingo era o favorito de toda a tripulação.

Só Negoro evitava encontrar-se com ele, cuja antipatia era tão grande como inexplicável.

Jack não desprezava, por amor a Dingo, Dick Sand, seu antigo amigo. O tempo que o praticante não aplicava ao serviço do navio passava-o com Jack.

Mrs. Weldon via com grande satisfação aquela intimidade.

Um dia, a 6 de Fevereiro, falava Mrs. Weldon com o capitão Hull a respeito de Dick Sand, e o capitão fazia os maiores elogios do jovem praticante.

 — Asseguro — dizia o capitão a Mrs. Weldon — que aquele rapaz há-de vir a ser um grande marinheiro! Tem o instinto das coisas do mar, e com este instinto supre a teoria que lhe falta. Espanta o que ele sabe, principalmente quando se pensa que tem tido pouco tempo para aprender.

 — É preciso acrescentar também — fez notar Mrs. Weldon — que é muito bom rapaz, muito superior ao que é de esperar na sua idade, e que nunca mereceu ser repreendido, pelo menos desde que o conhecemos.

 — Sim, é muito bom rapaz — confirmou o capitão Hull — e merecidamente estimado e apreciado por todos.

 — Quando acabar esta viagem, sei que é intenção do meu marido mandá-lo seguir o curso de navegação, para que possa obter depois a carta de piloto.

 — E faz muito bem, porque Dick Sand há-de honrar um dia a marinha americana.

 — Este pobre órfão começou tristemente a sua vida — observou Mrs. Weldon. — Foi educado no meio dos trabalhos.

 — É verdade, mas foram-lhe proveitosas as lições. Compreendeu que precisava de trabalhar, e vai a bom caminho.

 — Certamente, vai pelo caminho do dever!

 — Olhe para ele — continuou, o capitão Hull. — Está ao leme, não tira os olhos da testa do traquete; não se distrai e por isso não toca nunca com o navio em vento.

Governa como os velhos marinheiros. Bons princípios, Mrs. Weldon, bons princípios! Para ser grande nesta arte é preciso começar de criança. Quem nunca embarcou como moço, não será nunca marinheiro consumado, pelo menos na marinha mercante. É preciso ver tudo e em tudo aprender para que no homem do mar tudo seja ao mesmo tempo instintivo e pensado — a resolução que se deve tomar, como a manobra que se tem a fazer.

 — Contudo, capitão Hull — observou Mrs. Weldon —, não faltam bons oficiais na marinha de guerra.

 — Não, certamente, mas na minha opinião os melhores começaram todos a sua carreira muito cedo, sem falar de Nelson e de muitos outros. Os piores não são os que começaram por moços.

Neste momento saía da escotilha primo Bénédict, sempre absorto, e sempre tão pouco deste mundo como será o profeta Elias, quando voltar à Terra.

Primo Bénédict começou a divagar pela tolda, penetrando com a vista as fendas das amuradas, procurando debaixo das capoeiras e passando a mão sob as costuras da tolda, onde o breu estava estalado.

 — Então, primo Bénédict — perguntou Mrs. Weldon —, continua passando bem?

 — Muito bem... mas já tenho bastantes desejos de chegar a terra.

 — O que procura debaixo desse banco, Sr. Bénédict? — -perguntou o capitão Hull.

 — Procuro insectos — respondeu Bénédict. — Pois que quer que eu procure senão insectos?

 — Insectos? Parece-me que não será no mar que há-de enriquecer a sua colecção.

 — E porque não?... Não é impossível achar a bordo algum exemplar de...

 — O primo Bénédict — atalhou Mrs. Weldon — deve maldizer o capitão Hull, porque tem o seu navio tão asseado que o primo nada pode descobrir nas suas explorações.

O capitão Hull riu-se.

 — Mrs. Weldon exagera — disse este —, contudo, parece-me que perde o seu tempo procurando pelos camarotes.

 — Bem sei — disse primo Bénédict, encolhendo os ombros.

 — Mas no porão do «Pilgrim» — continuou o capitão Hull — talvez encontre algumas baratas, bichinhos aliás pouco interessantes.

 — Quê? Pouco interessantes! Esses ortópteros noctívagos, que mereceram as maldições de Virgílio e de Horácio! — retrucou primo Bénédict, endireitando-se. — Pouco interessantes esses parentes próximos do periplaneta orientalis e do kakerlac americano, e que habitam...

 — Que infestam... — corrigiu o capitão Hull.

 — Que reinam a bordo... — replicou com altivez primo Bénédict.

 — Amável realeza!...

 — O senhor não é entomologista?

 — Nunca fui.

 — Primo Bénédict — disse Mrs. Weldon, sorrindo —, não nos deseje ver devorados por amor da ciência!

 — Não desejo, prima, não — respondeu o ardente entomologista —, o que quero unicamente é juntar à minha colecção algum exemplar raro, que lhe faça honra.

 — Não está satisfeito com as conquistas que fez na Nova Zelândia?

 — Muito satisfeito, prima Weldon. Fui até muito feliz por ter obtido um dos novos estafilinos que até aqui só se encontravam a algumas centenas de milhas mais longe, na Nova Caledónia.

Neste momento, Dingo, que brincava com Jack, aproximou-se, pulando, do primo Bénédict.

 — Vai-te! Vai-te! — disse este, repelindo o cão.

 — Oh! Sr. Bénédict! Gosta das baratas e despreza os cães! — exclamou o capitão Hull.

- E um cão tão bom como este — disse Jack, agarrando com as mãozinhas a cabeça de Dingo.

 — Sim... não digo que não!... — admitiu Bénédict. — Mas, que querem, se este animal não realizou as esperanças que o seu encontro me prometia.

 — Ora, com efeito! — exclamou Mrs. Weldon. — Contava poder classificá-lo entre os dípteros ou na ordem dos himenópteros?

 — Não — volveu primo Bénédict, com gravidade. — Mas não será verdade que Dingo, conquanto seja de raça neozelandesa, foi encontrado na costa ocidental da África?

 — É verdade — respondeu Mrs. Weldon. — Tom muitas vezes o ouviu dizer ao capitão do «Waldeck».

 — Pois bem, eu pensei, esperei até... que este cão traria no pêlo alguns espécimes de hemípteros especiais da fauna africana.

 — Ainda bem que não os trouxe! — exclamou Mrs. Weldon.

 — É que podiam ser — acrescentou primo Bénédict — algumas pulgas penetrantes ou irritantes... de nova espécie...

 — Ouves, Dingo? — disse o capitão Hull. — Ouves? Faltaste ao teu dever!

 — Catei-o, mas debalde — prosseguiu, com pesar, Bénédict —, pois não lhe encontrei um único insecto...

 — E se o tivesse achado tê-lo-ia imediata e desapiedadamente morto — afirmou o capitão Hull.

 — Saiba — respondeu secamente primo Bénédict — que Sir John Franklin tinha escrúpulo de matar o mais pequeno insecto, ainda que fosse um moscardo, cujos ataques são mais para temer que os da pulga; e, contudo, creio que convirá que Sir John Franklin era homem do mar como há poucos!

 — Certamente — concordou, inclinando-se, o capitão Hull.

 — Um dia, depois de ter sido terrivelmente mordido por um díptero, soprou-o, dizendo-lhe, sem sequer o tratar por tu: «Ide! O mundo é muito grande para, para mim!»

 — Ah! — exclamou o capitão Hull.

 — É como lhe digo!

 — -Pois bem, Sr. Bénédict — redarguiu o capitão Hull —, já outro antes de Sir John Franklin havia dito o mesmo!

 — Antes!

 — É verdade, foi o tio Tobias.

 — Era entomologista? — perguntou com vivacidade primo Bénédict.

 — Nada, não! O tio Tobias de Sterne pronunciou precisamente as mesmas palavras, sacudindo um mosquito que o importunava, mas que ele tratou com pouca cerimónia. «Vai-te, pobre diabo, disse-lhe ele, o mundo é muito grande para ti e para mim!»

 — Grande homem era o tio Tobias! — disse primo Bénédict. — Já morreu?

 — Creio que sim — respondeu com muita seriedade o capitão Hull —, se alguma vez existiu.

Todos se riram olhando para primo Bénédict.

Nestas e outras conversações semelhantes, que quase sempre caíam sobre algum ponto de entomologia, se acaso primo Bénédict tomava parte nelas, se iam passando as longas e fastidiosas horas daquela contrariada viagem. O mar sereno sempre, mas os ventos escassos obrigavam o patacho a navegar de bolina. O «Pilgrim» pouco ganhava; era já tempo de chegar às paragens onde os ventos reinantes lhe seriam favoráveis.

Deve dizer-se que primo Bénédict tentou iniciar o jovem praticante nos mistérios da entomologia, mas Dick Sand mostrou-se muito refractário para este estudo. Não achando em quem melhor pudesse empregar o seu tempo, o sábio quis ensinar os negros, mas estes nada entendiam. Tom, Acteão, Bat e Agostinho abandonaram a escola, de sorte que o professor ficou só com Hércules, que lhe parecia ter disposição natural para distinguir os parasitas dos tisanuros.

O colossal preto vivia pois no mundo dos coleópteros, carniceiros, caçadores, cavadores, cicindelas, sirfos, escaravelhos de todas as espécies, tenebriões, gorgulhos e coccinelas, estudando na colecção do primo Bénédict, não sem que este receasse ver os seus delicados espécimes entre os dedos de Hércules, que tinham a dureza e a força de uma turquês. Mas o colossal discípulo ouvia tão docilmente as lições do professor, que só por isso valia a pena arriscar alguma coisa.

Enquanto primo Bénédict se entretinha deste modo, Mrs. Weldon não deixava Jack desocupado. Ensinava-lhe a ler e a escrever. Os primeiros elementos da arte de contar aprendia-os com o seu amigo Dick Sand.

Aos cinco anos de idade é-se ainda muito pequenino, e melhor se faz a instrução por meios práticos do que por lições teóricas, necessariamente mais difíceis.

Jack não aprendia a ler por abecedário, mas por meio de letras, impressas com tinta encarnada sobre cubos de madeira, com os quais brincava, formando palavras. Muitas vezes, Mrs. Weldon compunha com alguns cubos uma palavra, misturava-os e dava-os a Jack para os dispor na ordem devida.

O pequenino gostava muito deste modo de aprender a ler. Passava muitas horas do dia, ora na câmara, ora na tolda, a arrumar e a desarrumar as letras do seu alfabeto.

Um dia, porém, provocou isto um incidente tão extraordinário e tão inesperado que merece ser referido com todas as particularidades.

Na manhã de 9 de Fevereiro, Jack, meio estendido sobre o convés, brincava, formando uma palavra, que Tom adivinharia, depois de baralhar as letras. Tom tinha as mãos nos olhos, para não fazer trapaça. Nada devia ver e nada via do que Jack estava a fazer.

As diversas letras, em número de cinquenta, umas eram maiúsculas, outras minúsculas. Alguns cubos tinham algarismos; serviam para ensinar a formar os números como outros ensinavam a formar as palavras.

Os cubos estavam dispostos em certa ordem sobre o convés e Jack ia tirando, ora um, ora outro, para compor a palavra. Grande trabalho, na verdade.

Dingo, que andava à roda de Jack havia não muito tempo, parou. Fixou os olhos, levantou a pata direita e agitou a cauda convulsivamente. De repente, lançou-se sobre um dos cubos de madeira, pegou-lhe com os dentes e foi largá-lo no convés, a alguns passos de distância de Jack.

Neste cubo estava uma letra maiúscula — a letra S.

 — Dingo! Dingo! — exclamou Jack, receando que o seu S fosse engolido pelo cão.

Mas Dingo voltou e, recomeçando no mesmo manejo, pegou num outro cubo e foi colocá-lo junto ao primeiro.

Este segundo cubo tinha um V maiúsculo.

Jack desta vez deu um grito, ao qual acudiram Mrs. Weldon, o capitão Hull e o praticante, que andavam a passear na tolda. Jack contou-lhes então o que acabava de acontecer.

 — Dingo conhecia as letras! Dingo sabia ler! Não havia dúvida! Jack tinha visto.

Dick Sand tentou apanhar as letras, a fim de as dar ao seu amigo, mas Dingo mostrou-lhe os dentes.

O praticante, porém, conseguiu apoderar-se dos dois cubos e repô-los no jogo.

Dingo arremessou-se novamente, pegou nas mesmas letras e tornou a pô-las de lado. Desta vez, porém, assentou as duas mãos sobre elas, decidido a guardá-las. As outras letras do alfabeto eram para ele como se não existissem.

 — Isto é maravilhoso! — disse Mrs. Weldon.

 — É muito extraordinário — concordou o capitão Hull, olhando atentamente para as duas letras.

- S. V. — disse Mrs, Weldon, — S. V. — repetiu o capitão Hull. — São precisamente as mesmas letras que Dingo tem na coleira!

Depois, virando-se subitamente para o preto, perguntou-lhe:

 — Tom, não disse que havia pouco tempo que este cão pertencia ao capitão do «Waldeck»?

 — Sim, senhor — respondeu Tom. — Dingo estava a bordo havia dois anos, se tanto.

 — E não me contou também que o capitão do «Waldeck.» encontrara o cão na costa ocidental da África?

 — .Sim, senhor, perto do Zaire. Ouvi-lho dizer muitas vezes.

 — Assim — continuou o capitão Hull —, nunca se soube a quem pertenceu, nem donde veio?

 — Nunca.

 — Pior é encontrar um cão perdido que uma criança. O cão não tem papéis nem se sabe explicar.

O capitão Hull calou-se. Parecia reflectir.

 — Aquelas letras despertam-lhe alguma lembrança? — perguntou Mrs. Weldon ao capitão Hull, depois de o ter deixado por alguns instantes entregue às suas reflexões.

 — Sim, Mrs. Weldon, uma lembrança, ou antes uma aproximação...

 — Qual é?

 — Aquelas letras podem ter um determinado sentido e fixar-nos sobre a sorte de um viajante intrépido.

 — Que quer dizer? — inquiriu Mrs. Weldon.

 — Quero dizer que em 1871 — há por consequência dois anos — um viajante francês partiu, seguindo as indicações da Sociedade de Geografia de Paris, com a intenção de atravessar a África de oeste para leste. O seu ponto de partida era exactamente a foz do Zaire, e o seu ponto de chegada devia ser, tanto quanto fosse possível, em Cabo Delgado, nas embocaduras do Rovuna, cujo curso devia seguir. Este viajante francês chamava-se Samuel Vernon.

— Samuel Vernon! — repetiu Mrs. Weldon.

 — Sim, e estes dois nomes começam exactamente pelas duas letras escolhidas por Dingo entre todas; as mesmas que estão gravadas na coleira.

 — É verdade — disse Mrs. Weldon. — E que é feito

desse viajante?

 — Partiu efectivamente — respondeu o capitão Hull —, mas nunca mais se soube dele.

 — Nunca? — perguntou o praticante.

 — Nunca — repetiu o capitão Hull.

 — O que conclui de tudo isto? — interrogou Mrs. Weldon.

 — Que Samuel Vernon não chegou com toda a certeza à costa oriental da África, ou porque tivesse sido prisioneiro dos indígenas, ou porque tivesse morrido.

 — E o cão?

 — O cão seria dele, e mais feliz que seu dono, se a minha hipótese é verdadeira, teria conseguido voltar para o litoral, perto do Zaire, pois que foi aí, na época em que estes factos se deviam ter dado, que o capitão do «Waldeck» o encontrou.

 — Mas — observou Mrs. Weldon — sabe se esse viajante francês, quando partiu, ia acompanhado por um cão? Ou é simples suposição da sua parte?

 — Efectivamente é simples suposição — respondeu o capitão Hull. — Mas é certo que Dingo conhece as duas letras S e V, que são as iniciais dos dois nomes do viajante francês. As circunstâncias, porém, em que o animal aprendeu a conhecê-las, não as sei eu explicar; mas, repito, conhece as letras muito bem, e, repare, empurra-as com as patas e parece, até, desejar querer que as vejamos.

Não podia haver ilusão a respeito das intenções de Dingo.

 — Samuel Vernon ia só quando partiu do Zaire? — perguntou Dick Sand.

— Não sei — volveu o capitão Hull —, mas é provável que ele levasse consigo alguns indígenas.

Neste momento apareceu Negoro, que saía da cozinha. Ninguém dera por ele e ninguém pôde observar o olhar que ele lançou sobre o cão quando viu as duas letras, que este parecia guardar. Mas Dingo, vendo o cozinheiro, deu logo mostras de grande furor.

Negoro entrou no alojamento da tripulação, fazendo para Dingo um gesto de ameaça.

 — Ali há grande mistério! — murmurou o capitão Hull, que nada perdera desta cena.

 — Mas, senhor — disse o praticante —, não é espantoso que um cão conheça as letras do alfabeto?

 — Não é, não — respondeu Jack. — A mamã conta-me muitas vezes a história de um cão que sabia ler e escrever, e que até jogava o dominó.

 — Meu filho — disse, sorrindo, Mrs. Weldon —, esse cão, que se chamava Munito, não era erudito como julgas. Acreditando no que me contaram, não sabia ele distinguir, umas das outras, as letras com que compunha as palavras. O seu dono, que era americano e muito hábil, tendo notado que Munito tinha ouvido delicado, dedicou-se-lhe a exercitar-lho, conseguindo efeitos maravilhosos.

 — Como fazia ele então isso, Mrs. Weldon? — perguntou Dick Sand, a quem a história interessava quase tanto como a Jack.

 — Da seguinte maneira: quando Munito devia «trabalhar» perante o público, punha letras semelhantes a estas ordenadas sobre uma mesa. Sobre ela andava o cão de um para o outro lado, esperando que se escolhesse a palavra, ou fosse em voz alta ou em segredo; havia só uma condição essencial: era que o dono soubesse qual era a palavra escolhida.

 — E quando o dono não estava presente? — quis saber O praticante.

— O cão nada podia fazer — elucidou Mrs. Weldon —, e a razão é esta: as letras estavam expostas sobre a mesa e Munito andava por diante delas. Quando chegava em frente da letra que devia tirar para formar a palavra, parava, porque ouvia o ruído — imperceptível para os outros — de um palito que o americano quebrava dentro da algibeira. Este ruído era para Munito o sinal para abocar a letra e vir dispô-la convenientemente.

 — Eis o grande segredo! — exclamou Dick Sand.

 — Era este com efeito o segredo — continuou Mrs. Weldon —, mas muito simples, como tudo que respeita à prestidigitação. Na falta do americano, Munito não teria sido o que foi. Admira-me pois que Dingo, não estando aqui o dono, se efectivamente Samuel Vernon foi o dono, saiba distinguir as duas letras.

 — E com efeito — ponderou o capitão Hull — é para espantar, mas é ainda mais notável que neste caso se trata de duas determinadas letras, e não de uma palavra escolhida ao acaso. Mas o cão que batia à portaria do convento para se apoderar da comida reservada para os pobres pedintes, o outro que tinha com um seu semelhante o encargo de mover um torno em dias alternados e que se recusava a trabalhar quando lhe não competia, estes dois cães iam mais longe pela inteligência, a qual é predicado do homem. Estamos em presença de um facto indiscutível. De todas as letras daquele alfabeto, Dingo escolheu só duas: S e V; as outras parece que lhe são desconhecidas. É preciso, pois, concluir que por uma razão qualquer, que nos escapa, a sua atenção foi guiada particularmente para aquelas letras.

 — Ah! capitão Hull — observou o jovem praticante —, se Dingo pudesse falar!... Talvez nos dissesse a significação das duas letras e a razão por que mostra os dentes ao mestre cozinheiro.

 — E que dentes! — respondeu o capitão Hull, exactamente na ocasião em que Dingo abria a boca e mostrava as suas enormes presas.

 

BALEIA à VISTA

Como é natural, este extraordinário incidente foi mais de uma vez o assunto das conversações na câmara do «Pilgrim», entre Mrs. Weldon, o capitão Hull e o jovem praticante. Este, principalmente, tinha instintiva desconfiança de Negoro, cuja conduta continuava, no entanto, a não merecer censura.

Na proa as conversas eram semelhantes, mas as consequências diferentes. Entre a marinhagem, Dingo era um cão que sabia ler e talvez escrever melhor do que alguns dos marinheiros de bordo. Se não falava é porque tinha razões para andar calado.

 — Um belo dia — dizia Bolton —, um belo dia, vocês verão: o cão vem perguntar-nos aonde vai a proa, e se o vento está oés-noroeste, e há-de responder-se-lhe.

 — Não há animais que falam? Porque não há-de o cão fazer outro tanto se tiver vontade? É mais difícil falar com o bico do que com a boca!

 — É verdade — admitiu o contramestre Howick —, mas isso nunca se viu.

Aquela gente ficaria espantada se soubesse que, pelo contrário, não era caso novo, e que um sábio dinamarquês tinha um cão que pronunciava distintamente cerca de vinte palavras; mas entre dizê-las e compreendê-las havia um abismo. Evidentemente, este cão, cuja glote podia emitir sons regulares, ligava tanto sentido às palavras que dizia como ligam os papagaios e as pegas às que pronunciam. A frase nos animais é uma espécie de canto ou de grito falado, tirado de língua estranha e cujo sentido é para eles imperceptível.

Seja porém como for, o certo é que Dingo se tornou o herói de bordo, mas não tinha orgulho por isso. Muitas vezes o capitão Hull recomeçou a experiência. Os cubos de madeira, do alfabeto, punham-se diante de Dingo e invariavelmente, sem erro e sem hesitação, as letras S e V eram separadas pelo notável animal, enquanto as outras nem sequer lhe atraíam a atenção. Esta experiência foi repetida mais de uma vez em presença do primo Bénédict sem que este lhe ligasse grande importância.

 — -Contudo — dignou-se ele dizer um dia —, não se julgue que só os cães são inteligentes. Outros animais os igualam, seguindo apenas o próprio instinto. Os ratos, por exemplo, que abandonam o navio em mau estado e em risco de ir a pique; os castores, que prevêem as cheias e se abrigam delas levantando diques; os cavalos de Nicomedes, de Scanderberg e de Ópio, cuja dor pela morte dos seus donos foi tal que não resistiram a ela e morreram; os burros, tão notáveis pela sua memória, e tantos outros irracionais, que fazem honra à animalidade! Não se têm visto pássaros tão admiravelmente ensinados que escrevem sem erros as palavras que lhes ditam os mestres, catatuas que contam tão bem como qualquer calculista de observatório as pessoas reunidas numa sala? Não houve um papagaio — custou cem escudos de ouro! — que recitava, sem se enganar, ao cardeal seu dono, todo o Símbolo dos Apóstolos? Finalmente, não se deve elevar muito o legítimo orgulho dos entomologistas quando se vêem simples insectos dar provas de inteligência superior e afirmar eloquentemente o axioma: In minimis, maximus Deus? As formigas que ensinaram os edis das grandes cidades, argironetas aquáticas, que fabricam sinos de mergulhadores sem nunca terem aprendido a mecânica; as pulgas, que puxam carrinhos, que fazem exercícios como soldados e dão fogo às peças como os bons artilheiros de West Point?(1) Não me parece, pois, que Dingo mereça tão grandes elogios, e, se acaso conhece tão bem o alfabeto, é sem dúvida porque pertence a uma espécie de mastins não classificada ainda na ciência zoológica, o canis alphabeticus da Nova Zelândia.

Apesar destes e doutros discursos semelhantes do desdenhoso entomologista, Dingo nada perdia da estima pública e continuava a ser considerado como um fenómeno nas conversas à roda da abita.

É contudo muito provável que Negoro não participasse do entusiasmo que havia a bordo por Dingo. Talvez que o achasse inteligente de mais. Seja porém como for, o certo é que o cão continuava a mostrar a mesma animosidade contra o cozinheiro, e talvez Dingo tivesse sofrido grande mal se a si mesmo não fosse capaz de se defender e não estivesse, além disso, protegido pela simpatia de toda a tripulação.

Negoro evitava mais do que nunca encontrar-se com Dingo, mas Dick Sand não deixara de observar que, depois do incidente das duas letras, a antipatia recíproca do homem e do cão tinha aumentado. Era inexplicável.

A 10 de Fevereiro, o vento nordeste, que até então soprara, depois das fastidiosas calmas que imobilizaram o «Pilgrim», abonançou sensivelmente. O capitão Hull teve, pois, a esperança de que se fizesse qualquer mudança na direcção das correntes atmosféricas. O patacho navegaria, finalmente, tendo ventos de feição. Contava apenas dezanove dias de viagem; a demora não era muito considerável e o «Pilgrim», com bom vento do través e todo o pano pargo, facilmente recuperaria o tempo perdido.

 

*1. Escola militar do Estado de Nova Iorque.

 

Mas tinha ainda de esperar alguns dias antes de encontrar os ventos bem firmes pelo quadrante noroeste.

Aquela região do Pacífico estava quase sempre deserta: nenhum navio aparecia por aquelas paragens. Eram latitudes abandonadas pelos navegadores, e os baleeiros dos mares austrais ainda julgavam cedo para atravessar o trópico. Com excepção do «Pilgrim», que circunstâncias especiais obrigaram a abandonar as paragens piscosas, não era provável que outro navio passasse por aquela latitude, vindo das mesmas regiões.

Os paquetes transpacíficos, como se disse já, não procuravam paralelo tão elevado nas suas carreiras entre a Austrália e o continente americano.

Contudo, e talvez mesmo porque o mar estava deserto, não se devia deixar de observar o horizonte. Por muito monótono que o mar possa parecer aos espíritos menos atentos, não deixa contudo de ser infinitamente variado para quem o sabe observar. As mais insignificantes mudanças encantam a imaginação de quem sabe compreender a poesia do mar. Uma alga marinha que flutua, ondulando, um ramo de sargaço com a sua tenuíssima esteira à superfície das águas, um pedaço de madeira, cuja história despertaria a curiosidade, bastam para prender a atenção. Ante esta grandeza imensa o espírito não pára. A imaginação alarga-se. Cada molécula de água, que a evaporação eleva incessantemente do mar para a atmosfera, tem em si talvez o segredo de mais de uma catástrofe. Ditosos aqueles que nos seus íntimos pensamentos sabem interrogar os mistérios do oceano, espíritos que, da sua superfície sempre em movimento, se erguem às grandes alturas do céu.

A vida manifesta-se por toda a parte, tanto acima como abaixo da superfície das águas. Os passageiros do «Pilgrim» tiveram ocasião de ver cardumes de pequenos peixes perseguidos pelos bandos de aves que durante o Inverno fogem do áspero clima dos pólos, e, mais de uma vez, Dick Sand, discípulo neste ponto, como em muitos outros, de James W. Weldon, mostrou a sua rara habilidade em atirar com a espingarda ou à pistola, matando alguns dos rápidos voláteis.

Aqui procelárias brancas(1), ali outras com as asas orladas de cinzento-escuro; algumas vezes viam-se passar bandos de feijões-frades(1) ou de pinguins(1), cujo andar em terra é tão pesado como feio. O capitão Hull disse que os pinguins se servem dos cotos como barbatanas, excedendo a nadar os peixes mais rápidos, a ponto de os marinheiros confundirem algumas aves com os bonitos(2).

Em mais elevada altura os albatrozes, ou carniceiros-do-cabo(1), librados nas suas grandes asas, cuja envergadura tem dez pés de comprimento, vinham como que pousar à superfície da água e com o bico procurar nela alimento.

Tudo isto formava um espectáculo variado, que só os espíritos rebeldes para compreender os encantos da natureza achariam monótono.

Naquele dia, Mrs. Weldon passeava à popa do «Pil-grim» quando um fenómeno muito notável lhe chamou a atenção. As águas do oceano fizeram-se vermelhas quase subitamente. Seria fácil de acreditar que se tinham tingido de sangue; aquela cor inexplicável estendia-se até onde a vista alcançava.

Dick Sand e Jack estavam nesse momento junto de Mrs. Weldon.

 

*1. Aves aquáticas.

2. Peixes.

 

 — Vês, Dick — disse ela ao jovem praticante —, esta cor tão extraordinária da água do oceano Pacífico? Será causada por alguma erva marinha?

 — Não é, Mrs. Weldon — respondeu Dick Sand —, esta cor é produzida por muitas miríades de pequenos crustáceos, que ordinariamente servem para sustentar os grandes mamíferos do mar. Os pescadores chamam a isto o manjar da baleia.

 — Crustáceos! — repetiu Mrs. Weldon —, mas são tão pequenos que bem se poderiam chamar insectos do mar. Talvez que o primo Bénédict gostasse de os coleccionar. Primo Bénédict?! — gritou Mrs. Weldon.

Bénédict surdiu da escotilha quase ao mesmo tempo que o capitão Hull.

 — Primo Bénédict — disse Mrs. Weldon —, veja esta imensa extensão avermelhada do oceano; estende-se até onde os olhos podem ver.

 — Olá! — exclamou o capitão Hull. — Isto é o manjar da baleia. Sr. Bénédict, excelente ocasião para estudar esta espécie de crustáceos.

— Ora!... — desdenhou o entomologista.

— Não desdenhe — observou o capitão Hull. — Não tem razão para afectar tal indiferença! Aqueles crustáceos que além vê, se acaso não estou em erro, formam uma das seis classes dos articulados, e como tais...

 — Ora, adeus!... — tornou primo Bénédict, abanando a cabeça.

 — Com efeito!... Parece-me muito desdenhoso para entomologista.

 — Entomologista! Pois seja entomologista! — admitiu primo Bénédict —, mas principalmente hexapodista, entende, capitão Hull, tome nota disto...

 — Já vejo que aqueles crustáceos não lhe despertam interesse; mas olhe que o caso seria diferente se o Sr. Bénédict tivesse estômago de baleia. Que grande banquete ali tinha! Mrs. Weldon, quando nós, os baleeiros, andamos à pesca, e vemos o mar coalhado destes crustáceos, não temos tempo se não para preparar arpéus e linhas, porque com certeza a baleia não anda longe.

 — -Mas como é possível que animaizinhos tão pequenos possam sustentar outros tão grandes? — perguntou Jack com curiosidade.

 — Diga-me, meu menino — volveu o capitão Hull — : não se fazem excelentes sopas com farinhas diversas? Fazem. A natureza tudo previu. Quando uma baleia flutua no meio de águas vermelhas, está a comer a sopa. Não tem mais que fazer senão abrir a enorme boca para penetrarem nela, de uma só vez, miríades de crustáceos. As grandes lâminas que lhe revestem o paladar estendem-se como redes de pescador. Nada pode dali sair, e grande quantidade de crustáceos se abisma no vasto estômago, como a sopa do seu jantar, Jack, entra para o seu estômagozinho.

 — Olha, Jack — observou Dick Sand —, que a senhora baleia não perde tempo em os descascar, a um por um, como tu fazes aos camarões!

 — É na ocasião em que a grande comilona se está regalando — continuou o capitão Hull — que é mais fácil chegar perto dela, sem lhe causar desconfiança. É a ocasião favorável para com bom êxito a arpoar.

No mesmo instante, e como para dar razão ao capitão Hull, ouviu-se um marinheiro gritar de cima do castelo:

 — Uma baleia por bombordo da proa!

O capitão Hull endireitou-se e exclamou:

 — Uma baleia!

Impelido pelo instinto de pescador, correu para a proa.

Mrs. Weldon, Jack, Dick Sand e primo Bénédict seguiram o capitão imediatamente.

Com efeito, a quatro milhas por barlavento, uma espécie de cachão que se via no mar indicava a presença de um grande mamífero marinho, a nadar no meio das águas vermelhas. Os baleeiros não se haviam enganado.

A distância era, porém, ainda grande para que se pudesse conhecer a espécie a que pertencia o mamífero. As espécies são realmente muito distintas.

Pertenceria por acaso à espécie das baleias ordinárias, procuradas de preferência pelos pescadores do mar do Norte? Aqueles cetáceos, sem barbatana dorsal e cuja pele reveste grossa camada de gordura, atingem às vezes oitenta pés de comprimento, apesar de, em média, não excederem sessenta. Um só de tais monstros dá cem barris de óleo.

Seria um hump-back, da espécie dos baleinópteros — designação esta cuja terminação lhe devia ter valido a estima do entomologista? Têm estes cetáceos barbatanas dorsais brancas, de extensão igual a metade do seu comprimento, parecendo asas, o que faz supor que pudessem voar.

Ou estaria à vista um fin-back, mamífero que também se conhece pelo nome de jubarte, o qual tem barbatana dorsal e cujo comprimento iguala às vezes o da baleia ordinária?

Nem o capitão Hull nem a sua gente podiam dizer coisa concreta a respeito do enorme mamífero, mas olhava para ele, com mais vontade de o apanhar que de o admirar.

Se os relojoeiros não podem entrar em salas onde haja relógios, sem que os tente a vontade de lhes dar corda, com mais razão os baleeiros devem sentir-se arrastados pelo imperioso desejo de apanhar uma baleia. Diz-se que os caçadores de caça grossa porfiam mais do que os que só atiram à caça miúda. Quanto maior é o animal, maior é o desejo de o caçar. Que de emoções devem sentir os caçadores de elefantes e os pescadores de baleias! Acrescia a tudo isto que a tripulação do «Pilgrim» se encontrava pouco satisfeita, por voltar da pesca com a carregação incompleta.

Diligenciava o capitão Hull reconhecer o animal que se tinha avistado, o que não era fácil, em razão da distância a que estava; contudo, a vista exercitada do marinheiro não se enganava vendo alguns sinais fáceis de distinguir de longe.

Os jactos, isto é, as colunas de vapor de água que a baleia lança, deviam decerto chamar a atenção do capitão Hull e dar-lhe a completa certeza da espécie a que pertencia o cetáceo.

— Não é uma baleia ordinária! — afirmou ele —, se o fosse, lançaria jactos mais altos, mas de menor volume. Se o ruído que o jacto fizer na ocasião de ser expelido imitar a detonação de uma peça de artilharia a grande distância, então inclino-me a acreditar que aquele cetáceo pertence à espécie do hump-back; mas não me parece, e, escutando bem, percebe-se que o ruído é de natureza diferente. Qual é a tua opinião, Dick? — perguntou o capitão Hull ao jovem praticante.

 — Tenho quase a certeza, capitão — respondeu Dick Sand —, de que é uma jubarte. Veja como atira para o ar aquela coluna líquida! Não lhe parece que naquele repuxo há mais água que vapor condensado? E, se assim é, tenho razão, porque, se não me engano, é sinal característico da jubarte.

 — É verdade, Dick — confirmou o capitão Hull. — Não há dúvida, é uma jubarte que vemos a flutuar sobre aquelas águas vermelhas.

 — É admirável! — exclamou Jack.

 — É verdade, meu menino! Mas se a enorme baleia, que está ali a almoçar sossegadamente, soubesse que estão baleeiros tão perto...

 — Quase que me atrevo a afirmar que é colossal — observou Dick Sand.

 — É, com toda a certeza — concordou o capitão Hull, em quem o entusiasmo ia crescendo pouco a pouco. — Dou-lhe pelo menos setenta pés de comprimento.

 — Bastava — acrescentou o contramestre — meia dúzia de baleias como aquela para encher um navio como o nosso.

 — Decerto — aprovou o capitão, saindo ao gurupés para melhor ver o cetáceo.

 — E com aquela, se a apanhássemos — continuou o contramestre —, meteríamos a bordo metade do carregamento que nos falta.

 — Sim, sim — murmurou o capitão Hull.

— Tudo isso é verdade — disse Dick Sand —, mas... é perigoso algumas vezes atacar as grandes jubartes!

 — Perigosíssimo — confirmou o capitão Hull. — É necessário ter muito cuidado na aproximação daqueles baleinópteros, porque, com as formidáveis caudas que têm, podem facilmente escangalhar a mais bem construída canoa. Mas, também, o muito que se aproveita compensa o trabalho.

 — Quem apanha uma jubarte — declarou um marinheiro — faz boa presa.

 — E que dá dinheiro — reforçou outro.

 — Seria pena se não lhe disséssemos a razão por que estamos aqui, e não lhe fizéssemos os nossos cumprimentos...

Evidentemente, os marinheiros animavam-se com a vista da baleia. Se era uma carregação de barris de óleo que andava a flutuar perto deles!

Quem os ouvisse julgaria que nada mais havia a fazer senão arrumar os barris no porão do «Pilgrim».

Alguns marinheiros trepados à enxárcia do traquete soltavam gritos de contentamento. O capitão não dizia nada; roía as unhas. Havia uma espécie de íman irresistível que atraía o «Pilgrim» e toda a sua tripulação.

 — Mamã — disse Jack —, gostava de ter aquela baleia para ver como é.

 — Ah! Quer ter aquela baleia? E porque não? — disse o capitão Hull, cedendo enfim aos seus íntimos desejos. — Faltam-nos, é verdade, os pescadores auxiliares; mas nós também somos homens e prestamos para alguma coisa...

 — Certamente! — gritaram os marinheiros a um tempo.

 — Não será a primeira vez que vou arpoar, e vocês vão ver se eu sei ainda lançar o arpéu!

 — Hurra! Hurra! Hurra! — foi a resposta da marinhagem.

 

PREPARATIVOS

É fácil de acreditar que a vista do prodigioso mamífero produzisse grande excitação na tripulação do «Pilgrim». A baleia que flutuava naquelas águas vermelhas parecia enorme. Capturá-la e com ela completar o carregamento era realmente para tentar. Podiam pescadores deixar escapar tão boa ocasião?

Mrs. Weldon entendeu, porém, que devia perguntar ao capitão Hull se não havia perigo para a sua gente e para ele em ir atacar uma baleia naquelas condições.

 — Não há perigo, Mrs. Weldon — asseverou o capitão Hull. — Tem-me acontecido mais duma vez perseguir baleias só com uma embarcação, e consegui sempre pescá-las. Repito, não há perigo para nós, nem o haverá por consequência para Mrs. Weldon.

Mrs. Weldon, tranquilizada, não insistiu mais.

Depois o capitão Hull começou os preparativos para pescar a jubarte. Sabia por experiência própria que a pesca deste baleinóptero oferece dificuldades e queria por consequência preveni-las. A pesca tornava-se menos fácil, porque, conquanto o «Pilgrim» tivesse a lancha nos picadeiros, entre o mastro grande e o mastro do traquete, e mais três baleeiras, duas das quais andavam suspensas nos turcos, a bombordo e a estibordo, e a terceira na popa, a guarnição do patacho não chegava para guarnecer mais do que uma delas.

Habitualmente empregavam-se as três baleeiras na perseguição dos cetáceos, mas, como ficou dito, para reforçar a tripulação do «Pilgrim» contratava-se gente na Nova Zelândia.

Nas circunstâncias presentes, o «Pilgrim» tinha unicamente os cinco marinheiros, isto é, o estritamente indispensável para guarnecer uma baleeira. Não se podia aproveitar o serviço de Tom e dos seus camaradas, que de boa vontade se tinham oferecido, porque a manobra de uma canoa de pesca exige gente especialmente adestrada. O mau governo ou os maus remadores podiam comprometer a segurança da embarcação durante o ataque.

Por outro lado, o capitão Hull não queria abandonar o navio sem deixar a bordo um homem da tripulação, pelo menos, que lhe merecesse confiança. Era preciso prever todas as eventualidades.

Obrigado, pois, o capitão a guarnecer a baleeira com a sua gente, entregou o «Pilgrim» a Dick Sand.

 — Dick — disse-lhe o capitão — ficas encarregado do navio durante a minha ausência, que espero seja curta.

 — Sim, senhor — volveu o praticante.

Dick Sand teria preferido tomar parte na pesca, que para ele tinha grandes atractivos, mas compreendeu imediatamente que os braços de um homem valiam mais que os seus na manobra da pequena embarcação, e que só ele podia substituir o capitão Hull a bordo do «Pilgrim».

Ficou, pois, satisfeito.

A guarnição da baleeira compunha-se de cinco homens, entrando neste número o contramestre Howick: quase toda a tripulação do «Pilgrim». Os quatro marinheiros eram para os remos, Howick governaria com o remo armado na popa, como é de uso em embarcações deste género, porque os lemes vulgares não têm acção tão pronta, e quando se inutilizam os remos dos lados, o da popa, bem manejado, põe a embarcação fora da acção das pancadas da cauda do monstro.

Restava o capitão Hull. Para este estava reservado o lugar de arpoador que, como ele dizia, não era a primeira vez que exercia. A ele competia lançar o arpéu, vigiar quando se desenrolava a comprida linha que o fixa, e finalmente acabar de matar o animal às lançadas, logo que este voltasse extenuado à superfície das águas.

Os baleeiros empregam algumas vezes armas de fogo para este género de pesca. Por meio de um engenho especial, uma espécie de canhão de pequenas dimensões, montado a bordo do navio ou na proa da embarcação, lançam eles ou o arpéu, que leva fixado o cabo, ou balas explosivas, as quais produzem grandes estragos no corpo do animal.

O «Pilgrim» não tinha destes aparelhos. São máquinas dispendiosas, difíceis de manejar, e os pescadores, pouco amigos de inovações, preferem empregar as armas primitivas, isto é, o arpéu e a lança, dos quais se servem com grande habilidade.

Era, pois, pelos meios correntes, atacando a baleia à arma branca, que o capitão Hull ia tentar a pesca da jubarte, avistada a cinco milhas de distância do seu navio.

O tempo devia favorecer a expedição. O mar, sereno como estava, propiciava as manobras da baleeira; o vento tendia a acalmar, e, como era natural, o «Pilgrim» não se afastaria abatendo.

Arriou-se a baleeira de estibordo e saltaram para ela os quatro marinheiros.

Howick meteu-lhe dentro dois grandes arpéus e duas lanças com as pontas aguçadas. A estas armas juntou cinco peças de cabo macio, mas resistente, a que os baleeiros chamam linha, e cujo comprimento é de seiscentos pés. Não é muito, porque não raras vezes sucede que estes cabos, ligados uns aos outros pelos chicotes, não dão ainda filame bastante à baleia quando ela profunda.

Tais foram os poderosos engenhos que se dispuseram na proa da embarcação.

Howick e os quatro marinheiros estavam prontos; aguardavam só a ordem para largar.

Havia ainda na baleeira um lugar desocupado: era o do capitão Hull.

É evidente que a tripulação do «Pilgrim», antes de sair de bordo, atravessou o navio. Por outras palavras, dispôs o pano de modo que as velas, contrariando a acção umas das outras, mantinham o patacho quase estacionário. No momento de embarcar, o capitão Hull lançou mais uma vez a vista sobre o navio, para se certificar de que tudo estava em boa ordem, os cabos com volta e o pano bem mareado. Como deixava o jovem praticante a bordo durante a sua ausência, que poderia durar algumas horas, queria, e com razão, que Dick Sand não tivesse de manobrar, a não ser para caso muito urgente.

Na ocasião de largar fez-lhe as suas últimas recomendações.

 — Dick — disse o capitão — :, deixo-te só. Olha por tudo. Se por acaso for necessário marear o navio, porque nos tenhamos afastado muito perseguindo a jubarte, Tom e os seus companheiros podem servir. Recomendando-lhes bem o que devem fazer, estou certo de que tudo farão.

 — Certamente, capitão Hull — afirmou o velho Tom —, o Sr. Dick pode contar connosco.

 — É preciso alar algum cabo? — perguntou Hércules, arregaçando as mangas.

 — Por enquanto não preciso de nada — respondeu, sorrindo, Dick Sand.

 — Pois nós estamos às suas ordens — continuou o colosso.

 — Dick — tornou o capitão Hull —, o tempo está belo, o vento caiu completamente e não há sinais de refrescar; mas, toma conta: aconteça o que acontecer, não arries embarcação alguma ao mar e não abandones o navio.

 — Isso está sabido.

 — Se for necessário que o «Pilgrim» vá ter connosco, faço-te imediatamente sinal, içando a bandeira americana na vara de um croque.

 — Vá descansado, capitão, que eu não perco de vista a baleeira — assegurou Dick Sand.

 — Muito bem — continuou o capitão Hull. — Ânimo e prudência! Estás feito piloto, é preciso que honres o posto que tens agora. Olha que com a tua idade ainda ninguém o teve.

Dick Sand não respondeu, mas sorriu-se e o rubor subiu-lhe às faces. O capitão Hull compreendeu o rubor e o sorriso.

 — Belo rapaz! — dizia o capitão. — Todo ele é modéstia e alegria!

Por aquelas instantes recomendações se via claramente que, conquanto não houvesse risco em sair do navio, o capitão não o deixava sem cuidado, apesar de ser por pouco tempo. Mas o irresistível instinto do pescador, e sobretudo o louco desejo de completar o carregamento de óleo, não deixando de satisfazer aos fornecimentos a que se tinha obrigado James W. Weldon, em Valparaíso, tentavam-no a aventurar-se. O mar, sereno como estava, prestava-se admiravelmente para a pesca do cetáceo que tinham à vista. Nem a tripulação nem ele podiam resistir a tal tentação. A viagem tornar-se-ia boa, e esta consideração valia por todas no espírito do capitão Hull.

O capitão dirigiu-se para o portaló.

 — Estimarei que seja feliz! — desejou Mrs. Weldon.

 — Obrigado, Mrs. Weldon!

 — Não faça muito mal à baleia — recomendou Jack. — Não, meu menino, não faço — respondeu o capitão

Hull.

 — Prenda-a sem lhe fazer doer!

— Sim, fique descansadinho; hei-de pegar-lhe só... com dois dedos...

 — Às vezes — observou primo Bénédict — encontram-se insectos muito raros no dorso desses mamíferos.

 — Pois, Sr. Bénédict — volveu rindo o capitão Hull —, dou-lhe licença para entomologizar a jubarte, quando ela estiver atracada ao «Pilgrim».

Depois, voltando-se para Tom, disse-lhe: — Tom, conto consigo e com os seus companheiros para nos ajudarem a cortar a baleia, quando a tivermos amarrada ao navio, o que não tardará muito.

 — Estamos à sua disposição--declarou o velho preto.

 — Muito bem — continuou o capitão Hull. — Dick, estes homens ajudar-te-ão a preparar os barris vazios. Enquanto estamos fora, iça-os para a tolda. É trabalho que fica adiantado.

 — Tudo se fará, capitão!

Para quem ignora, convirá dizer que a jubarte, depois de morta, devia ser rebocada para o «Pilgrim», e bem amarrada no costado de estibordo. Depois os marinheiros, calçados com grandes botas de rompões, instalados sobre o dorso do enorme cetáceo, cortá-lo-iam metodicamente em tiras paralelas, na direcção da cabeça para a cauda. Estas tiras seriam depois cortadas em pequenas talhadas de pé e meio de comprimento, depois ainda divididas em quantidades menores, e estas metidas em barris, que seriam por último arrumados no porão.

Habitualmente o navio baleeiro, quando finda a pesca, navega de maneira que dê fundo o mais depressa possível, a fim de terminar todos os trabalhos. A tripulação vai para terra e é lá que faz derreter a gordura, que pela acção do calor deixa livre toda a parte útil, isto é, o óleo(1).

 

*1. Nesta operação, a gordura da baleia perde pouco mais ou menos um terço do peso.

 

Mas nas circunstâncias em que estava o «Pilgrim», o capitão Hull não pensava em voltar para trás com o fim de concluir esta operação. Só em Valparaíso contava ele derreter a gordura que obtivesse desta última pesca, e, como o vento não tardaria a puxar para oeste, esperava por isso avistar a costa da América dentro de vinte dias, tempo este que não comprometeria os bons resultados da pesca.

Chegou o momento de largar. O «Pilgrim», antes de atravessar, aproximou-se do lugar onde a jubarte se mostrava pelos jactos de vapor.

A jubarte nadava sempre no meio da vasta extensão da água avermelhada pelos crustáceos, abrindo automaticamente a enorme boca e absorvendo por cada trago miríades de animálculos.

Diziam os práticos de bordo que não havia receio de que ela lhes escapasse. Era sem a menor dúvida o que os pescadores chamam baleia de combate.

O capitão Hull saltou por cima da borda e desceu pela escada de cabo para a proa da baleeira.

Mrs. Weldon, Jack, primo Bénédict, Tom e os seus companheiros despediram-se novamente do capitão, desejando-lhe boa sorte.

Dingo, levantando-se sobre as patas e pondo a cabeça por cima do talabardão, parecia também despedir-se da marinhagem.

Depois todos se dirigiram para vante, a fim de não perderem uma só das interessantes peripécias daquela pesca tão cheia de atractivos.

Largou a baleeira, e pelo esforço dos quatro remos, vigorosamente puxados, afastou-se do «Pilgrim».

 — Toma conta, Dick, vigia bem! — gritou pela última vez o capitão Hull ao praticante.

 — Vá descansado, capitão.

 — Olho no navio, olho na baleeira, meu rapaz! Não te esqueças.

 — Sim, senhor capitão — respondeu Dick Sand; e foi para o leme.

Já a frágil canoa distava muitas centenas de pés do navio e ainda o capitão Hull, erguido na proa, porque já não se podia fazer ouvir, renovava as suas recomendações por gestos os mais expressivos.

Foi então que Dingo, ainda com a cabeça sobre o talabardão, soltou um uivo lamentoso, que teria impressionado até mesmo as pessoas menos supersticiosas.

Este uivo fez estremecer Mrs. Weldon.

 — Dingo — disse ela —, Dingo! Então é assim que tu animas os teus amigos? Vamos, ladra de outro modo e nada de tristezas!

Mas o cão não ladrou; deixou-se cair para dentro e foi vagarosamente deitar-se junto de Mrs. Weldon, cujas mãos lambeu.

 — Não mexe o rabo!... — murmurou Tom. — Mau sinal! Mau sinal!...

Mas quase repentinamente Dingo levantou-se e soltou um rugido de cólera.

Mrs. Weldon voltou-se.

Negoro saíra da cozinha e dirigia-se para a proa, com a intenção, sem dúvida, de ver as manobras da baleeira.

Dingo, cheio de grande mas inexplicável furor, arremeteu para o cozinheiro.

Negoro deitou a mão a um espeque e pôs-se em guarda.

O cão ia saltar-lhe.

 — Aqui, Dingo, aqui já! — gritou Dick Sand, deixando o seu lugar e correndo para a proa do navio.

Mrs. Weldon, por sua parte, diligenciou também acalmar o cão.

Dingo obedeceu, ainda que com relutância, e voltou, rosnando sempre, para junto do praticante.

Negoro não dissera uma única palavra, mas empalidecera, e, deixando cair o espeque, voltou para a cozinha.

 — Hércules — ordenou então Dick Sand —, vigia bem aquele homem!

— Vigiá-lo-ei — respondeu simplesmente Hércules,

fechando as mãos enormes.

Mrs. Weldon e Dick Sand voltaram de novo a sua atenção para a baleeira, que voava puxada pelos seus quatro remos.

Era já apenas um ponto negro no meio do mar.

 

A «JUBARTE»

O capitão Hull, como baleeiro consumado que era, nada devia deixar ao acaso. A pesca de uma jubarte é difícil. Não se deve, pois, desprezar nenhuma precaução, e nenhuma se desprezou.

O capitão Hull principiou por navegar de modo que atacasse a baleia por sotavento, a fim de que a aproximação da embarcação se não denunciasse pelo mais pequeno ruído.

Howick dirigia a baleeira, seguindo a curva que desenhava na água a mancha vermelha, e no meio da qual flutuava a jubarte.

O contramestre era marinheiro de grande serenidade de ânimo, que inspirava muita confiança ao capitão Hull. Não havia a recear que ele hesitasse ou se distraísse.

 — Atenção ao governo, Howick — ordenou o capitão Hull. — Vamos diligenciar surpreender a jubarte e não nos descubramos senão já ao alcance do arpéu.

 — Está claro — respondeu o contramestre. — Vou seguir a orla da água vermelha e quanto possível conservar-me por sotavento.

 — Muito bem — tornou o capitão Hull. — Rapazes, pouca bulha com os remos.

Estes, previamente forrados, quase que se não sentiam.

 

A embarcação, habilmente governada pelo contramestre, chegara à grande mancha produzida pelos crustáceos. Os remos de estibordo vogavam na água verde e límpida, ao passo que os do bombordo, quando se levantavam do líquido vermelho, pareciam escorrer sangue.

 — Olha lá! Vinho e água! — disse um dos marinheiros.

 — É verdade — concordou o capitão Hull —, mas água que se não bebe e vinho que se não pode tragar. Vamos, rapazes! Nada de conversas e piquem a voga!

A baleeira, dirigida pelo contramestre, deslizava sobre aquelas águas gordurosas como se estivesse flutuando em óleo.

A jubarte não fazia o menor movimento; parecia até que não vira ainda a embarcação, a qual descrevia um círculo em volta dela.

O capitão Hull, fazendo o circuito, afastava-se do «Pilgrim», que pela distância parecia diminuir pouco a pouco de grandeza.

É de efeito extraordinário a rapidez com que os objectos diminuem no mar. Parece que se olha para eles pela objectiva de um óculo. Provém a ilusão óptica evidentemente de não haver pontos de referência naquele vastíssimo espaço. Assim aconteceu ao «Pilgrim», que, por diminuir a olhos vistos, parecia mais distante do que realmente estava.

Uma hora depois de ter saído de bordo, o capitão Hull achava-se precisamente por sotavento da baleia, de tal modo que esta ocupava um ponto equidistante entre o navio e a pequena embarcação.

Chegara o momento de se aproximarem. Convinha fazer o menor ruído possível. Não seria difícil atacar o animal pelo lado e arpoá-lo estando a curta distância, antes mesmo de lhe despertar a atenção.

 — Remem mais devagar, rapazes — recomendou o capitão Hull, baixando a voz.

— Parece-me — observou Howick — que a menina ouviu alguma coisa! Sopra agora menos!...

 — Silêncio! Silêncio! — repetiu o capitão Hull. Cinco minutos depois a baleeira estava a menos de

meia amarra(1) da jubarte.

O contramestre, de pé sobre o paneiro, governava por modo que se aproximava do mamífero, evitando, porém, com o maior cuidado, passar ao alcance da formidável cauda, da qual bastaria uma só pancada para destruir a embarcação.

À proa, o capitão Hull, com as pernas abertas para melhor se equilibrar, tinha na mão o instrumento com que ia vibrar o primeiro golpe. Era de esperar da sua habilidade que o arpéu penetrasse na massa volumosa que emergia das águas.

Perto do capitão, numa selha, estava colhida a primeira das cinco linhas, bem amarrada ao arpéu; nesta linha ir-se-iam emendando sucessivamente as outras quatro, se o cetáceo profundasse muito.

 — Pronto, rapazes? — perguntou em voz baixa o capitão Hull.

 — Prontos — respondeu Howick, agarrando o remo vigorosamente.

 — Aproxima-te! Aproxima-te!

O contramestre obedeceu, e a baleeira foi passar a menos de dez pés de distância do cetáceo.

Este não se movia; parecia dormir. As baleias que são surpreendidas durante o sono oferecem mais fácil presa, e não é raro que o primeiro golpe as fira mortalmente.

 — Tanta imobilidade é para admirar! — pensou o capitão Hull. — É impossível que esteja a dormir... Isto faz-me desconfiar de alguma coisa.

 

*1. A amarra é medida especial da marinha; tem cento e vinte braças,

ou duzentos metros.

 

O contramestre, que pensava do mesmo modo, procurava ver o lado oposto do animal.

Não era, porém, ocasião para reflectir, se não para atacar.

O capitão Hull, agarrando o arpéu pelo meio da haste, balanceou com ele repetidas vezes, a fim de ter mais certeza de acertar, apontando para a jubarte; depois arremessou-o com toda a força do seu braço.

 — Cia! Cia! — gritou ele; e os marinheiros, ciando com os remos ao mesmo tempo, fizeram recuar a baleeira, a fim de a porem fora do alcance do rabo do cetáceo.

Mas nesta ocasião, por um grito do contramestre, todos compreenderam a razão por que a baleia se conservara por tanto tempo e tão extraordinariamente imóvel à superfície do mar.

Com efeito, a jubarte, depois de ferida pelo arpéu, quase se virara sobre o lado, descobrindo o baleote que ela amamentava.

Esta circunstância — não o ignorava o capitão Hull — devia fazer mais difícil a captura da jubarte. A mãe ia defender-se mais furiosamente, tanto por ela, como para proteger o filhinho, se tal diminutivo é aplicável a um animal que não tinha menos de vinte pés de comprimento.

Contudo, como era para recear, a jubarte não se arremessou imediatamente sobre a embarcação; não houve, pois, ocasião de cortar a linha que prendia o arpéu. Pelo contrário, como acontece a maior parte das vezes, a baleia, seguida pelo baleote, mergulhou, seguindo logo uma linha oblíqua; depois elevou-se por um salto enorme e continuou nadando entre águas com extrema rapidez.

Antes, porém, dela mergulhar, o capitão Hull e o contramestre tiveram tempo de a ver e, consequentemente, de lhe dar o devido valor.

Aquela jubarte era realmente dos maiores baleinópteros conhecidos. Da cabeça até à cauda media vinte e quatro pés, pelo menos. A pele, de cor cinzenta-amarelada, tinha manchas de pardo-escuro.

Custava na verdade, depois de um ataque tão felizmente principiado, ter de abandonar tão boa presa.

Começara a perseguição ou, melhor dizendo, o reboque. A baleeira, cujos remos tinham sido desarmados, voava sobre as ondas como uma seta.

Howick conservava-se imperturbável, apesar das rápidas e terríveis oscilações da embarcação. O capitão Hull, com os olhos pregados na sua presa, não cessava de repetir:

 — Governa bem, Howick! Governa bem!

Podia haver a certeza de que o contramestre não deixaria um momento de governar bem.

Como, porém, a baleeira não corria tanto como a baleia, a linha do arpéu desenrolava-se com tal velocidade que era para recear que, pelo atrito, pegasse fogo a bordo da baleeira; por isso o capitão Hull teve o cuidado de molhar a linha, enchendo de água a selha em que estava colhida.

A jubarte parecia não querer parar na sua corrida, nem sequer moderá-la.

Emendou-se segunda linha no chicote da primeira, a qual foi levada com a mesma velocidade.

Cinco minutos depois foi preciso emendar a terceira linha, que também desapareceu nas águas.

A jubarte não parava. Evidentemente o arpéu não penetrara em qualquer parte vital do corpo do cetáceo. Podia-se observar, pela inclinação mais pronunciada da linha, que o animal, em vez de vir à superfície, mais se abismava nas profundezas do mar.

 — Diabo! — exclamou o capitão Hull. — Esta endemoninhada come-nos as cinco linhas.

 — E leva-nos para boa distância do «Pilgrim» — observou o contramestre.

 — Mas ela há-de vir respirar! — tornou o capitão Hull.

— Não é peixe, e precisa de ar como qualquer de nós.

 — Talvez que suprimisse a respiração para correr melhor — -disse rindo um dos marinheiros.

A linha continuava ainda a desenrolar-se com a mesma rapidez.

À terceira linha foi necessário juntar a quarta, o que fez desconfiar os marinheiros da futura parte da presa.

 — Diabo! Diabo! — murmurou o capitão Hull. — Nunca vi isto! Leva o demónio no corpo.

Enfim, corria já na quinta linha e estaria por metade quando pareceu abrandar.

 — Bem, bem! — exclamou o capitão Hull. — A linha já não está tão rija. A jubarte já se cansou.

Nesta ocasião o «Pilgrim» estava a mais de cinco milhas de distância da baleeira.

O capitão Hull içou uma bandeira na vara de um croque. Era o sinal convencionado para se aproximar.

E quase ao mesmo tempo Dick Sand, ajudado por Tom e pelos seus companheiros, bracearam as vergas, de bolina cerrada.

Mas o vento estava fraquíssimo e incerto. Eram aragens apenas. O «Pilgrim» teria, com certeza, grande dificuldade de alcançar a baleeira, se acaso pudesse alcançá-la.

Neste meio tempo, como era de prever, a jubarte veio respirar à superfície da água com o arpéu fixado no costado. Estava quase imóvel, parecendo que esperava pelo baleote, que nesta carreira furiosa se distanciara.

O capitão Hull mandou remar com força, a fim de se aproximar dela, e em pouco tempo estava a curta distância.

Desarmaram-se dois remos, e os homens que os manejavam pegaram em compridas lanças, assim como o capitão Hull, para ferirem o animal.

Howick manobrou então habilmente, pronto sempre a fazer guinar a embarcação no caso de a baleia vir a acometê-la.

 — Atenção! — gritou o capitão Hull. — Não dêem golpes no ar. Golpes certeiros, rapazes. Vamos a ela, Howick?

 — Estou pronto! — respondeu o contramestre. — Mas há uma coisa que me inquieta! É que este animal, depois de ter fugido do modo que vimos, tão rapidamente, está agora tranquilo, como se nada fosse com ele.

 — É verdade, Howick. Tens razão: é para estranhar!

 — Será bom desconfiarmos!

 — Sim, é, mas vamos para avante.

O capitão Hull animava-se cada vez mais.

A embarcação aproximava-se sempre. A jubarte não fazia senão girar no mesmo lugar. O baleote não estava ali. Talvez que ela o procurasse.

Repentinamente fez um movimento com a cauda e afastou-se cerca de trinta pés.

Iria fugir novamente, e seria preciso continuar aquela interminável perseguição sobre as águas?

 — Atenção! — exclamou o capitão Hull. — Vai ganhar distância para arremeter contra nós! Governa bem, Howick! Governa bem!

A jubarte tinha-se virado e apresentava-se de frente à baleeira. Depois, impelindo-se por meio das enormes barbatanas, precipitou-se para diante.

O contramestre, que já esperava este ataque directo, de tal modo fez girar a embarcação que a jubarte passou sem lhe tocar.

O capitão Hull e os dois marinheiros brandiram-lhe vigorosas lançadas, procurando ferir-lhe algum órgão essencial.

A jubarte parou e lançou a grande altura duas colunas de água e sangue, e novamente se voltou para a embarcação, quase aos saltos, diga-se assim. Só vê-la fazia medo.

Aqueles marinheiros eram pescadores denodados. Por isso não perderam o ânimo em tal ocasião.

Howick evitou ainda desta vez, com grande destreza, o ataque da jubarte, guinando com a embarcação.

Três novas lançadas foram três novas feridas feitas no cetáceo. Mas este, ao passar, bateu por tal modo a água com a enorme cauda, e levantou tão grande vaga, que o mar ficou como se tivesse embravecido de repente.

A baleeira esteve a ponto de ir a pique; a água que entrou por cima da borda chegava quase às bancadas.

 — Os baldes, peguem nos baldes! — ordenou o capitão Hull.

Os outros dois marinheiros deixaram os remos e começaram a esgotar rapidamente a baleeira, enquanto o capitão cortava a linha, que já era inútil.

Engano! O animal, furioso com a dor, não cuidava em fugir. Chegava-lhe a ocasião de atacar e a sua agonia começava a ser terrível.

Uma terceira vez o cetáceo virou em roda, como dizem os marinheiros, e novamente se precipitou sobre a embarcação.

Mas a baleeira, meia de água, não manobrava com a mesma facilidade. Em tais condições, como se evitaria o choque que a ameaçava?

Não podia dar pelo leme e não podia fugir.

Demais, por muito depressa que a embarcação caminhasse, a rápida jubarte alcançá-la-ia facilmente.

Não era ocasião de atacarem, mas a de se defenderem.

O capitão Hull não se iludiu.

O terceiro ataque do animal não pôde, pois, ser evitado. Ao passar, roçou apenas na baleeira com a enorme barbatana dorsal, mas com tal força que Howick caiu.

As três lanças, infelizmente desviadas pela oscilação, resvalaram e não a feriram.

 — Howick, Howick! — exclamou o capitão, que com grande dificuldade se mantivera de pé.

— Cá estou — respondeu o contramestre, levantando-se.

Percebeu, porém, que, quando caiu, o remo da popa se quebrara pelo meio.

 — Arma o outro remo! — disse o capitão Hull.

 — Não há — respondeu Howick.

Nesta ocasião viu-se, a curta distância, a água agitar-se.

Era o baleote que reaparecera. A jubarte viu-o e correu para ele.

Esta circunstância ia dar à luta carácter ainda mais terrível. A jubarte ia bater-se por ambos.

O capitão Hull olhou para o lado onde estava o «Pilgrim» e agitou freneticamente a vara de croque, que tinha a bandeira.

Que podia fazer Dick Sand que não tivesse já feito ao primeiro sinal do capitão? As velas do «Pilgrim» estavam mareadas e o vento começava a enfuná-las. Infelizmente, o patacho não tinha hélice que auxiliasse a acção do pano, não podendo por consequência andar com mais velocidade. Arriar uma embarcação ao mar e, ajudado pelos negros, correr em socorro do capitão, seria perder muito tempo; demais, o praticante recebera ordem para não sair de bordo, acontecesse o que acontecesse; contudo, arriou o escaler da popa e levou-o a reboque, a fim de que, se fosse necessário, o capitão e os seus companheiros se salvassem nele.

Entretanto a jubarte, cobrindo o baleote com o seu corpo, voltou à carga. Desta vez atacou directamente a embarcação.

 — Atenção, Howick!... — ordenou mais uma vez o capitão Hull.

Mas o contramestre estava por assim dizer desarmado; em vez de uma alavanca, cujo comprimento daria força, não tinha mais do que um remo relativamente curto.

Tentou virar de bordo.

Impossível.

Os marinheiros compreenderam que estavam completamente perdidos.

Levantaram-se todos, e todos deram um grito terrível que foi ecoar, talvez, a bordo do «Pilgrim»!

O monstro bateu com a cauda no fundo da baleeira.

A embarcação, projectada para o ar com irresistível violência, caiu, feita em pedaços, no meio das águas furiosamente agitadas pelos saltos que dava a baleia.

Os infelizes marinheiros, ainda que gravemente feridos, talvez tivessem forças para nadar ou para se sustentarem, agarrando-se a algum dos destroços de baleeira.

O capitão Hull ainda atirou um remo ao contramestre.

Mas a jubarte, no último grau de furor, voltou, talvez já nas vascas de terrível agonia, sacudindo com violência as águas agitadas em que nadavam os desgraçados tripulantes da baleeira.

Durante alguns minutos não se via senão uma tromba líquida, espadanando água para todos os lados.

Um quarto de hora mais tarde, quando Dick Sand, que, seguido dos negros, se precipitara para o escaler, chegou ao local da catástrofe, tinham já desaparecido todos os pescadores.

Viam-se apenas os restos da baleeira, flutuando à superfície das águas tintas de sangue.

 

O CAPITÃO SAND

A primeira impressão que sentiram os passageiros do «Pilgrim» ao ver aquela pavorosa catástrofe foi um sentimento em que havia ao mesmo tempo pesar e horror. Não podiam esquecer a morte do capitão Hull e dos cinco marinheiros. Aquela cena medonha passara-se quase debaixo dos olhos dos que estavam a bordo do «Pilgrim», sem que nada tivessem podido fazer para salvar o capitão e os outros tripulantes. Não puderam chegar a tempo para os recolher a bordo, feridos, é certo, mas vivos ainda, nem para opor o costado do «Pilgrim» aos formidáveis arremessos da jubarte. O capitão Hull e os homens que o acompanhavam tinham desaparecido para sempre nas profundezas do mar.

Quando o patacho chegou ao lugar do sinistro, Mrs. Weldon ajoelhou e, pondo as mãos, disse:

 — Rezemos.

Jack, chorando, ajoelhou junto de sua mãe. A criança tinha percebido tudo quanto se havia passado. Dick Sand, Nan, Tom e os companheiros inclinaram a cabeça. Todos repetiram a oração que Mrs. Weldon elevava a Deus, encomendando à sua bondade infinita aqueles que havia poucos momentos tinham sido chamados perante Ele.

Depois, Mrs. Weldon, voltando-se para os seus companheiros, recomendou:

— Agora imploremos do céu força e ânimo para nós! E, na verdade, era tão grave a situação em que se encontravam que não pediam de mais, por muito que pedissem, Àquele que tudo pode.

O navio em que estavam não tinha já nem capitão que o dirigisse nem marinheiros que o manobrassem. Estava no meio do imenso oceano Pacífico, a centenas de milhas das terras mais próximas e à mercê dos ventos e das ondas.

Que fatalidade foi a que trouxe a baleia à vista do «Pilgrim»! Que maior fatalidade ainda levou o infeliz capitão Hull, habitualmente tão prudente, a sacrificar tudo para completar o carregamento do seu navio! E que catástrofe, entre as mais raras, nos anais da grande pesca, era esta, da qual não escapou um único homem! Terrível fatalidade!

Não havia mais do que um marinheiro a bordo do «Pilgrim»!

Um único! Dick Sand, praticante ainda, um jovem de quinze anos apenas!

Capitão, contramestre, marinheiros, toda a tripulação, enfim, se resumia agora nele.

A situação tornava-se difícil, por haver a bordo uma passageira com o seu filho. Havia também alguns pretos, boa gente, valentes e zelosos, prontos para fazer tudo quanto lhes fosse ordenado, mas ignorando os mais simples rudimentos da arte de marinheiro.

Dick Sand ficara imóvel, com os braços cruzados, olhando para o lugar onde tinha desaparecido o capitão Hull, o seu protector, e por quem ele tinha afeição filial. Percorria com a vista o horizonte, esperando descobrir algum navio, ao qual pedisse socorro, ou, pelo menos, entregasse Mrs. Weldon.

Não abandonaria o «Pilgrim» sem tudo tentar para o conduzir a porto de salvamento, onde Mrs. Weldon e seu filho ficariam livres de maiores riscos. Depois,

nada mais teria a recear por aqueles a quem se votara de corpo e alma.

O oceano estava deserto. Desde a desaparição da jubarte nada mais viera perturbar a superfície das águas. Em volta do «Pilgrim», só céu e mar. Sabia o praticante que se achava fora das derrotas dos navios mercantes, e que os baleeiros navegavam ainda longe dali, nas paragens da pesca.

Contudo, era preciso encarar a situação de frente, e ver as coisas tais elas se apresentavam. Foi o que fez Dick, rogando a Deus, do fundo do seu coração, protecção e auxílio!

Que resolução deveria tomar?

Quando assim pensava apareceu Negoro na tolda, que ele deixara logo depois do desastre. O que teria sentido — ele que era um enigma — à vista de tão irreparável desgraça, ninguém o poderia dizer. Tinha visto o fatal acontecimento, sem fazer um gesto sequer, sem sair da sua habitual mudez. Havia seguido avidamente, com o olhar, todos os pormenores. Mas, se em tal momento alguém o tivesse observado, admirar-se-ia de ver que naquele rosto impassível nem um só músculo se contraiu. Fingindo que não tinha ouvido, não correspondeu à piedosa súplica de Mrs. Weldon pela tripulação submergida.

Negoro caminhou para a ré, dirigindo-se para Dick Sand, que se conservava imóvel. Parou a três passos do praticante.

 — Quer falar comigo? — perguntou Dick Sand.

 — Desejo falar ao capitão Hull — respondeu Negoro friamente — ou, na sua falta, ao contramestre Howick.

 — Bem sabe que ambos morreram! — disse o praticante.

 — Quem é então que nos comanda? — perguntou Negoro com modo insolente.

 — Eu! — respondeu Dick Sand sem hesitar.

— O senhor! — redarguiu Negoro, encolhendo os ombros. — Um capitão de quinze anos!...

 — É verdade, um capitão de quinze anos! — repetiu o praticante, avançando para o cozinheiro.

Este recuou.

 — Lembre-se bem! — interveio Mrs. Weldon. — Lembre-se de que aqui a bordo há uma pessoa que comanda... É o capitão Sand, e bom será que todos saibam que ele se fará respeitar!

Negoro inclinou-se, murmurou algumas palavras que se não puderam ouvir, e voltou para o seu lugar.

Como se vê, Dick tinha já resolvido o que devia fazer.

Entretanto o patacho, pela acção do vento, que começava a refrescar, passou o vasto espaço onde estavam os crustáceos.

Dick Sand examinou o pano, depois baixou os olhos, pressentindo o peso da responsabilidade, mas conhecendo que era necessário ter força para a suportar. Olhou para os que ficaram do «Pilgrim», os quais tinham naquele momento as vistas fixadas sobre ele. E, conhecendo nos seus olhares que podia contar com eles, assegurou-lhes que contassem também com a sua dedicação.

Dick Sand havia consultado a sua consciência.

Se sabia diminuir ou aumentar de pano ao patacho segundo as circunstâncias, empregando para isso os braços de Tom e dos seus camaradas, não possuía ainda todos os conhecimentos necessários para determinar o ponto pelo cálculo.

Com mais quatro ou cinco anos, Dick Sand conheceria bem a vela mas difícil arte náutica! Saberia fazer uso do sextante, instrumento com que todos os dias o capitão Hull tomava a altura dos astros! Saberia contar no cronometro a hora do meridiano de Greenwich, e dela, pelo ângulo horário, deduzir a longitude! O Sol aconselhá-lo-ia todos os dias. A Lua, os planetas, dir-lhe-iam: «O teu navio está aqui, neste ponto do oceano!» O firmamento, onde as estrelas se movem como os ponteiros de perfeitíssimo relógio, que nenhum abalo pode perturbar e cuja exactidão é absoluta, o firmamento marcar-lhe-ia as horas e as distâncias! Pelas observações astronómicas fixaria quotidianamente, como o seu capitão, o lugar do «Pilgrim», com a aproximação de uma milha, a derrota seguida e a que se devia seguir.

Por ora, só pela estima, isto é, pelo andamento medido pela barquinha e pelo rumo da agulha, correcto da variação e do abatimento, sabia ele traçar o seu caminho.

Contudo, não desanimou. Mrs. Weldon compreendera perfeitamente tudo quanto agitava o coração resoluto do jovem praticante.

 — Obrigada, Dick — disse ela, sem querer mostrar na voz a mais leve comoção. — O capitão Hull morreu; a marinhagem desapareceu com ele. O destino do navio está nas tuas mãos, Dick! Tu o salvarás, e aqueles que nele ainda existem.

 — Sim, Mrs. Weldon — respondeu Dick Sand —, sim! Fá-lo-ei com o auxílio de Deus!

 — Tom e os seus companheiros são homens bons e com os quais podes contar.

 — Bem sei. Farei deles marinheiros e com eles manobrarei o navio. Com bom tempo tudo é fácil, mas com mau tempo... com mau tempo... havemos de lutar... e havemos de a salvar, Mrs. Weldon, e a Jack e a todos, enfim! Sim! Sinto que o posso fazer.

E repetiu:

 — Com o auxílio de Deus!

 — Podes saber, Dick, qual é agora a posição do «Pilgrim»? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Muito facilmente — respondeu o praticante. — Basta-me ver a carta, onde o capitão Hull marcou ontem o ponto.

 — E sabes a que rumo deitar?

 — Deito rumo de leste. Por aí demora o lugar na costa da América para onde era o nosso destino.

— Mas, Díck — tornou Mrs. Weldon —, creio que compreendes que esta catástrofe pode e deve até modificar os nossos primeiros projectos. Não se trata já de levar o «Pilgrim» para Valparaíso. O porto mais próximo na costa da América é agora o porto do nosso destino.

 — Sem dúvida, Mrs. Weldon — respondeu o praticante —, e deste modo não receie nada. A costa da América estende-se muito para o sul, e por isso não deixaremos de a avistar.

 — Onde fica ela? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Ali — respondeu Dick Sand, apontando com o dedo para o lado de leste, que marcou pela bússola.

 — Muito bem, Dick! Que vamos para Valparaíso ou para qualquer outro ponto do litoral, é indiferente! O que importa é dar com a terra.

 — Fá-lo-emos, Mrs. Weldon, espero que a hei-de desembarcar em lugar seguro — respondeu o praticante —, e não perdi ainda a esperança de encontrar, logo que chegue à costa, alguns barcos de cabotagem. Ah! Mrs. Weldon, o vento começa a firmar-se pelo noroeste. Se Deus o conservar assim, andaremos a caminho e bem! Com o vento largo todo o pano serve, desde a giba até à vela grande!

Dick Sand falava com a confiança do marinheiro que tem bom navio, seguro e obediente a todas as manobras. Corria já para o leme e ia chamar os seus companheiros para marcar o pano convenientemente, quando Mrs. Weldon lhe lembrou que, antes de tudo, devia conhecer a posição do «Pilgrim».

E era, com efeito, a primeira coisa a fazer. Dick Sand foi buscar à câmara a carta, onde estava marcado o ponto da véspera, e mostrou a Mrs. Weldon que o patacho se encontrava por 43 ° e 35 minutos de latitude sul e 164 ° e 13 minutos de longitude oeste de Greenwich, porque durante as últimas vinte e quatro horas pouco tinha andado.

Mrs. Weldon, inclinada sobre a carta, via os traços que figuravam a terra, à direita do vasto oceano; era

o litoral da América- do Sul, muralha imensa lançada entre o Pacífico e o Atlântico, desde o Cabo Horn até às praias da Colômbia. Contemplando aquela carta, onde se via um oceano inteiro, julgar-se-ia que era obra fácil restituir à pátria os passageiros do «Pilgrim». Ilusão, mas ilusão que se reproduz invariavelmente em quem não está habituado com as escalas das cartas marítimas. E, com efeito, a Mrs. Weldon parecia que a terra devia estar à vista do «Pilgrim», como estava no pedaço de papel que tinha sob os seus olhos!

Contudo, naquela página branca, o «Pilgrim», representado em escala exacta, seria mais pequeno que o mais microscópio infusório! Ponto matemático, sem dimensões apreciáveis, pareceria perdido, como realmente estava, na imensidade do oceano Pacífico!

Dick Sand não teve a mesma impressão que Mrs. Weldon. Sabia quanto a terra estava afastada e quantas centenas de milhas mediam a distância que o separava dela. Tinha, porém, tomado a sua resolução; a responsabilidade fizera-o homem.

Chegara o momento de executar. Era preciso aproveitar o noroeste, que refrescava. Ao vento contrário sucedera O vento favorável, e algumas nuvens espalhadas no zénite, sob a forma de cirros, indicavam que teria duração.

Dick Sand chamou Tom e os seus companheiros.

 — Meus amigos — disse-lhes ele — -, não temos a bordo outra tripulação senão vocês. Não posso manobrar sem que vocês me auxiliem. Bem sei que não são marinheiros, mas vejo que têm braços afeitos ao trabalho. Se os puserem ao serviço do «Pilgrim», poderemos governá-lo. A nossa salvação depende da boa ordem com que tudo caminhar.

 — Sr. Dick — respondeu Tom —, seremos agora os seus marinheiros. Não nos faltará a boa vontade, e tudo quanto puderem fazer homens comandados pelo senhor, o faremos nós.

— Muito bem, Tom — -aprovou Mrs. Weldon.

 — Muito bem — repetiu Dick Sand —, mas é preciso ser prudente. Não farei força de vela para não arriscar alguma coisa. Será melhor andar um pouco menos, mas com mais segurança. Assim o exigem as circunstâncias. Eu lhes indicarei o que cada um tem a fazer, quando manobrarmos. Pela minha parte, fico ao leme enquanto o cansaço me não obrigar a deixá-lo. De tempos a tempos, algumas horas de sono bastarão para me dar novo alento. Mas durante essas horas é preciso que algum de vocês vele em meu lugar. Tom, vou ensinar-te a cartear a agulha. Não é difícil. Prestando atenção saberás, em pouco tempo, governar o navio.

 — Quando quiser, Sr. Dick — respondeu o preto.

 — Bem — prosseguiu o praticante —, conserva-te aqui, junto de mim, ao leme, até que venha a noite; e se o cansaço me vencer, já me poderás substituir por algumas horas.

 — E eu — perguntou Jack —, não posso ajudar o meu amigo Dick?

 — Sim — disse Mrs. Weldon, apertando o filho nos braços —, tu aprenderás também a governar, e tenho a certeza de que enquanto estiveres ao leme teremos bom vento!

 — Sim! Sim! Prometo isso — respondeu Jack, pulando e batendo com as mãozinhas uma na outra.

 — Sim — acrescentou sorrindo o praticante —, os bons moços sabem conservar o vento de feição, dizem os velhos marinheiros.

Depois, dirigindo-se para Tom e para os outros pretos, declarou:

 — Vamos bracear as vergas mais pelo redondo. Só têm a fazer o que eu lhes disser.

 — Às suas ordens — respondeu Tom —, às suas ordens, capitão Sand!

 

OS QUATRO DIAS SEGUINTES

Dick Sand, promovido a capitão do «Pilgrim», não perdeu um instante, e tudo fez para pôr o navio a caminho. É claro que os passageiros só tinham uma única esperança: a de chegar a qualquer ponto do litoral da América, quando não fosse a Valparaíso. O que Dick Sand pensava fazer era apreciar a direcção e a velocidade do «Pilgrim», a fim de fazer o cálculo pela estima, e marcar na carta o caminho indicado pela barquinha e pela bússola. A bordo havia uma patent-loch(1) de mostrador e da hélice, que dava com bastante aproximação a velocidade para um determinado tempo. Este útil instrumento, de fácil emprego, prestava muito bom serviço, e os pretos já sabiam fazer uso dele.

Subsistia, pois, uma só causa de erros — as correntes. Para combater tal causa, a estima era insuficiente, e só as observações astronómicas dariam dela conta exacta. Ora estas observações não as podia ainda fazer o jovem praticante.

Dick Sand pensou primeiro em reconduzir o «Pilgrim» para a Nova Zelândia. A viagem era menos longa, e tê-la-ia feito se o vento, que até então fora contrário, se não tivesse tornado favorável. Mais valia pois dirigir-se para a América.

 

*1. Barquinha de patente.

 

O vento, que tinha rondado quase dezasseis quartas, soprava agora do noroeste, mostrando tendência para refrescar. Convinha aproveitá-lo, andando quanto fosse possível. Dick Sand dispôs-se a marcar o pano, de modo que levasse o vento quatro quartas para ré do través.

Num patacho, um mastro do traquete tem quatro velas redondas: o traquete, no mastro-real; logo acima, o velacho, no mastaréu deste nome; depois, no mastaréu do joanete, o joanete e o sobre.

No mastro grande não tem tanto pano. No mastro-real, anda a vela grande, latina, e por cima, caçado na carangueja, o gafetope.

Entre os dois mastros, nos estais que sustentam para avante o mastro grande e o respectivo mastaréu, há ainda três velas triangulares.

Finalmente, à proa, no gurupés, envergam-se a vela de estai, a bujarrona e a giba.

As três velas de proa, a latina, o gafetope e as velas de estai de entre mastros são manejáveis da tolda, donde podem ser içadas ou arriadas. Pelo contrário, a manobra do pano redondo do mastro do traquete exige mais hábito da vida do mar, porque é necessário trepar pelas enxárcias ao traquete, ao velacho, aos vaus de joanete e às encapeladuras deste mastaréu, ou seja para largar ou ferrar o pano ou para meter nos rizes as velas que os têm. Daqui a indispensável agilidade para andar sobre os estribos de cabos, que se estendem por baixo das vergas, a necessidade de saber trabalhar com uma das mãos, segurando-se com a outra, manobra perigosíssima para quem não estiver habituado. As oscilações de bombordo a estibordo e de popa à proa, e as sapatadas das velas debaixo de vento fresco, têm atirado mais de um homem ao mar. Era, por consequência, operação perigosíssima para Tom e para os seus camaradas.

Felizmente, o vento estava bonançoso e o mar plano. Tanto o balanço de bombordo a estibordo como o de popa à proa tinham amplitude moderada.

Quando Dick Sand, ao sinal do capitão Hull, se dirigiu para o teatro da catástrofe, o «Pilgrim», em velas de proa, vela grande, traquete e velacho, estava atravessado; para o marear de bolina, o praticante teve de alar por sotavento os braços de proa e caçar alguma escota que estivesse folgada. Os negros facilmente o ajudaram, a fazer esta manobra.

Agora, porém, ia bracear largo do vento e aumentar de pano, largando o joanete e o sobre, o gafetope e as velas de estai de entre mastros.

 — Olá, meus amigos — disse o praticante aos cinco pretos —, façam o que lhes vou dizer, e tudo se fará bem.

Dick Sand ficou ao leme.

 — Tom — gritou ele —, larga depressa esse cabo!

 — Larga?... — perguntou Tom, que não compreendera a expressão.

 — Sim, tira-lhe volta daí! E tu, Bat... faz o mesmo a esse outro! Bom... ronda primeiro... Ala agora! Ala por cima!

 — Assim? — perguntou Bat.

 — Assim mesmo. Muito bem. Vamos, Hércules, ala com força! Vamos, ala à uma!

Dizer a Hércules ala com força era talvez imprudência, porque o gigante, mesmo sem querer, podia quebrar tudo.

 — Está bom, basta! — exclamou Dick Sand, sorrindo. — És capaz de deitar a mastreação abaixo.

 — Eu não puxei muito! — declarou Hércules.

 — Pois bem, finge só que puxas! É quanto basta! Bem, folga agora... larga da mão!... Dá volta... assim! Bom! Agora, todos juntos, além... puxem pelos braços de proa a barlavento.

Todas as vergas de proa, cujos braços de sotavento se tinham largo, giravam lentamente. O vento, actuando melhor sobre as velas, imprimiu maior velocidade ao navio.

Dick Sand mandou então folgar as escotas das velas de proa e chamou depois os pretos para a ré.

 — O que está feito, amigos, está bem feito. Agora vamos ao mastro grande. Mas não rebentes por aí alguma coisa, Hércules.

 — Farei o melhor que puder — respondeu o colosso, sem querer obrigar-se a muito.

Esta manobra era mais fácil. Arriou-se sobre volta a escota da retranca, e a vela grande, recebendo o vento mais normalmente, juntou a sua poderosa acção à das velas de avante.

Içou-se o gafetope, o qual ferrava no calcês, mas, porque estava naquela ocasião apenas carregado, bastou alar pela adriça, amurá-lo e depois caçá-lo. Mas Hércules alou tão bem, como o seu amigo Acteão e Jack, que se juntara a eles, que a adriça rebentou.

Os três caíram de costas, sem felizmente se magoarem. Jack estava contentíssimo.

 — Não é nada, não é nada! — exclamou o praticante. — Amarrem um chicote ao outro e icem com cautela.

Tudo isto foi feito à vista de Dick Sand, sem que ele deixasse o leme. O «Pilgrim» navegava já rapidamente com proa de leste. Era mantê-lo naquela direcção. Nada mais fácil, porque, estando certo o vento, as guinadas não eram para recear.

 — Muito bem, meus amigos! — disse Dick Sand. — Antes de findar a viagem, estão vocês marinheiros!

 — Far-lhe-emos as diligências, capitão Sand — volveu Tom.

Mrs. Weldon também lhes dirigiu algumas palavras agradáveis e, a seguir, elogiou Jack, por ter trabalhado tão bem.

 — Creio, menino Jack — gracejou Hércules, sorrindo —, creio que foi o menino quem rebentou a adriça! Que boa mãozinha que tem! Sem o menino nada teríamos feito.

Jack, cheio de orgulho, sacudiu a mão de Hércules.

O «Pilgrim» ainda podia puxar com mais pano. Estavam ferradas algumas velas, cuja acção não era para desprezar nas circunstâncias em que navegava. O joanete, o sobre, as velas de estai de entre mastros, deviam por certo aumentar o andamento do patacho, e Dick Sand resolveu largá-las.

Esta manobra, mais difícil que as outras que se tinham feito, não o era, contudo, por causa das velas de estai, que se podiam içar, amurar e caçar da tolda, mas pelas velas redondas do mastro do traquete. Para as largar era necessário subir acima dos vaus, e, como Dick Sand não queria sacrificar ninguém da sua improvisada tripulação, subiu ele.

Chamou Tom para o leme, mostrando-lhe como devia governar. Distribuiu depois as adriças e as escotas do joanete e do sobre por Hércules, Bat, Acteão e Agostinho. Subir pelas enxárcias do traquete, agarrar-se às arreigadas, tornar a subir pela enxárcia do velacho e passar além dos vaus de joanete, era para Dick coisa de pouca importância. Num momento estava ele sobre o estribo do joanete, largando as bichas que seguravam a vela para a verga.

Trepou depois até à verga de sobre, cuja vela largou também.

Logo que acabou, Dick Sand deitou as mãos a um brandal e deixou-se escorregar por ele até chegar ao convés da embarcação.

Aqui, sob as suas indicações, caçaram-se as duas velas. Também se içaram, amuraram e caçaram as velas de entre mastros. Feito isto, estava acabada a manobra.

Hércules desta vez não fez avaria.

O «Pilgrim» navegava com todo o pano, mas Dick Sand ainda podia largar os cutelos e a varredoura; era, porém, difícil, nas circunstâncias em que se encontrava, meter dentro rapidamente estas velas, se caísse algum aguaceiro. Decidiu, pois, o praticante deixá-las na enxárcia.

Dick rendeu Tom, que estava ao leme.

O vento refrescava. O «Pilgrim», um pouco inclinado para estibordo, corria sobre a superfície do mar, deixando após de si esteira tão bonita que bem mostrava a beleza das suas linhas de água.

 — Vamos a caminho, Mrs. Weldon, e com bom vento. Deus queira que ele não mude!

Mrs. Weldon, fatigada por tantas emoções, apertou a mão do praticante, desceu para a câmara e caiu em profundo abatimento.

A nova tripulação do patacho ficou em cima, velando pronta a obedecer às ordens de Dick Sand, isto é, a modificar a mareação do pano, consoante as variações do vento; mas enquanto este se conservasse constante nada havia que fazer.

Que era feito de primo Bénédict?

Estudava, com o auxílio da lupa, um articulado que por fim conseguira encontrar a bordo, um simples ortóptero, cuja cabeça se sumia no toracete, insecto de élitros achatados, abdómen arredondado, asas longas, da família das blattas e da espécie das baratas da América.

Foi procurando na cozinha de Negoro que Bénédict fez tão precioso achado, e exactamente no momento em que o mestre cozinheiro ia esmagar implacàvelmente o insecto. Irritou-se por isto o entomologista, mas Negoro não fez caso.

Primo Bénédict saberia da mudança que se dera a bordo desde que o capitão Hull e os seus companheiros começaram a pesca da jubarte? Sabia. Encontrava-se mesmo na tolda quando o «Pilgrim» chegou ao lugar onde estavam os destroços da baleeira. Fora, pois, testemunha ocular do triste fim da tripulação do patacho.

Julgar que tão funesta catástrofe o não impressionara seria fazer injustiça ao seu bom coração. A comiseração por outrem, que toda a gente sente, sentia-a ele também. Afligira-o a situação de sua prima, e por isso foi apertar-lhe a mão, como para lhe dizer: Não tenha medo! Ainda cá estou! Fiquei eu!

Depois, primo Bénédict voltou ao camarote, para sem dúvida reflectir nas consequências do desastroso acontecimento e nas medidas enérgicas que convinha tomar em tais circunstâncias.

Mas no caminho encontrou a barata em questão, e como a sua pretensão — aliás justificada contra certos entomologistas — era provar que as baratas de um certo género, notáveis pelas suas cores, têm hábitos muito diferentes das baratas propriamente ditas, entregou-se ao estudo, e esqueceu-se de que houvera a bordo do «Pilgrim» um capitão chamado Hull, e que este infeliz perecera, pouco tempo antes, juntamente com a tripulação! A barata absorvia completamente primo Bénédict! Admirava-a tanto e tanto a estimava como se ela fosse um escaravelho de ouro.

A vida de bordo retomara o seu curso regular, conquanto todos tivessem ficado, por muito tempo, impressionados por tão triste quanto inopinada desgraça.

Dick Sand, durante aquele dia, tudo fez, a fim de tudo ter preparado para as mais insignificantes eventualidades. Os negros obedeciam-lhe, cheios de zelo. A bordo do «Pilgrim» reinava a melhor ordem. Havia razão para esperar que tudo caminharia sem estorvo.

Negoro, pela sua parte, não fez nenhuma outra tentativa para se subtrair à autoridade de Dick Sand. Parecia tê-lo tacitamente reconhecido. Ocupado como sempre na acanhada cozinha, aparecia tanto como dantes. Dick Sand estava disposto a prendê-lo no porão, até ao fim da viagem, à menor infracção de disciplina. Bastava um sinal de Dick Sand para Hércules deitar as mãos às goelas do cozinheiro. Se tal acontecesse, Nan, que sabia cozinhar, substituiria Negoro. Este reconhecia que não era indispensável, e como, além disto, era vigiado de perto, entendeu que não devia dar motivo algum para procederem contra ele.

O vento, conquanto refrescasse para a noite, não foi tanto que obrigasse a fazer alteração no pano do «Pil-grim». A mastreação estava segura por bem conservado massame de ferro, de modo que o «Pilgrim» podia ainda assim aguentar mais vento.

Usa-se, às vezes, durante a noite, diminuir o pano e principalmente o pano alto, como as velas de estai, de entre mastros, gafetope, sobres e algumas vezes joanetes. É isto prudente quando se receia vento de rajadas ou tempo de aguaceiros; mas Dick Sand julgou poder dispensar tal precaução. O estado da atmosfera era bom, e como o jovem praticante tencionava velar toda a noite em cima da tolda, por tudo e para tudo olharia. Como ia, caminhava mais. Lá lhe tardava achar-se em paragens menos desertas.

Disse-se que a barquinha e a bússola eram os únicos instrumentos de que Dick Sand se podia servir para estimar o caminho percorrido pelo «Pilgrim».

O praticante fez deitar a barquinha de meia em meia hora, e notou as indicações dadas pelo instrumento.

Havia a bordo duas agulhas ou bússolas. Uma estava na bitácula, para serviço do homem do leme. A rosa desta, esclarecida pela luz do dia até ao pôr do Sol, e durante toda a noite alumiada por duas lanternas laterais, indicava a todos os instantes a proa do navio, isto é, a direcção que ele devia seguir.

A outra agulha era uma bússola invertida, fixada num dos vaus da câmara que fora do capitão Hull. Sem sair da câmara, o capitão via se o rumo que ele tinha dado era exactamente seguido, e se o homem do leme, por inabilidade ou negligência, deixava andar o navio às guinadas.

Não há navios empregados em viagens de longo curso que não tenham pelo menos duas agulhas de marear e três cronómetros. É preciso comparar estes instrumentos entre si, e consequentemente verificar as indicações que derem.

O «Pilgrim» estava bem provido a este respeito, e Dick Sand recomendou à sua gente que tomasse bastante cuidado nas agulhas, que tão necessárias lhe eram.

Infelizmente, na noite de 12 para 13 de Fevereiro, enquanto o praticante vigiava de quarto e ao mesmo tempo fazia leme, ocorreu um desagradável acidente. A bússola invertida, que estava fixa por um arco de cobre a um vau da câmara, desprendeu-se e caiu; porém, só no dia seguinte se deu por tal.

Como faltou a virola? Era inexplicável. Seria possível, porém, que estivesse oxidada, que um balanço mais seco de bombordo a estibordo ou de popa a proa a desligasse do vau. O mar durante a noite estivera mais picado. Fosse como fosse, o certo é que a bússola se desmanchou de modo que não se podia consertar.

Dick Sand ficou pouco satisfeito, e viu-se reduzido dali em diante unicamente às indicações da agulha da bitácula. Ninguém evidentemente tinha responsabilidade do fracasso que sucedeu à agulha da câmara, mas o certo é que o acidente podia ter graves consequências. O praticante tomou depois todas as precauções para pôr a agulha da bitácula ao abrigo de qualquer desastre.

Até então, exceptuando este acontecimento, tudo ia bem a bordo do «Pilgrim».

Mrs. Weldon, vendo a serenidade de Dick Sand, recuperou a antiga confiança, ainda que não tivesse nunca desesperado. Confiança na suprema bondade de Deus, e, como católica sincera e religiosa, fortificava-se pelas orações.

Dick Sand arranjara as coisas de modo que passava as noites ao leme. Dormia cinco ou seis horas durante o dia e era quanto lhe bastava, porque não se sentia fatigado. Enquanto dormia, Tom e seu filho Bat revezavam-se ao leme e, graças aos conselhos de Dick, iam-se fazendo, pouco a pouco, sofríveis timoneiros.

Muitas vezes Mrs. Weldon conversava com o praticante, e Dick Sand ouvia os conselhos daquela inteligente senhora.

Todos os dias Dick mostrava a Mrs. Weldon a derrota percorrida, feita unicamente pela direcção e velocidade aparentes do navio.

 — Veja, Mrs. Weldon — repetia-lhe Dick muitas vezes —, continuando este vento, não deixaremos de avistar a costa da América do Sul. Não posso afirmar, mas creio que, quando o nosso navio chegar à vista da terra, não estará muito longe de Valparaíso.

Mrs. Weldon não duvidava de que o rumo que o navio levava era bom, e que os ventos de noroeste o favoreciam. Mas quão afastado da América lhe parecia que ainda estava o «Pilgrim»! Quantos perigos entre ele e a terra firme, não contando com os que podiam sobrevir pela mudança do estado do mar ou do céu!

Jack, despreocupado como todas as crianças da sua idade, tinha voltado aos seus brinquedos habituais, correndo na tolda e entretendo-se com Dingo. Achava que o seu amigo Dick não brincava tanto com ele como dantes; mas Mrs. Weldon fez-lhe perceber que era preciso não distrair o jovem praticante das suas ocupações. Jack cedera às razões de sua mãe e não incomodava o capitão Sand.

Assim corriam as coisas a bordo. Os negros trabalhavam com inteligência e, pouco a pouco, iam adquirindo a prática de marinheiros. Tom fazia naturalmente de contramestre. Os seus camaradas tê-lo-iam escolhido para esse cargo. Comandava o quarto, enquanto o praticante repousava, e tinha consigo seu filho Bat e Agostinho. Acteão e Hércules acompanhavam Dick Sand.

Assim, enquanto um governava, estavam os outros vigiando a vante.

Ainda que aquelas paragens fossem pouco frequentadas, e as abordagens pouco para temer, o praticante exigia rigorosa vigilância durante a noite. Acendia os faróis de navegação, isto é, a luz Verde a estibordo e a luz encarnada a bombordo. Procedia com muito acerto.

Contudo, durante as longas noites que Dick Sand passou encostado à roda do leme, sentiu algumas vezes uma irresistível prostração apoderar-se dele. Era cansaço, de que ele não fazia caso.

Aconteceu que durante a noite de 13 para 14 de Fevereiro, Dick Sand, sentindo-se muito fatigado, foi descansar por algumas horas, indo substituí-lo ao leme o velho Tom.

O céu estava carregado de nuvens, as quais sob a influência do frio da noite tinham engrossado. A atmosfera estava muito escura, e tanto que não se podiam ver os topes dos mastros perdidos nas trevas. Hércules e Acteão estavam de vigia, à proa.

À ré, a luz da bitácula dava apenas vaga claridade, que fazia reflectir suavemente as guarnições de metal da roda do leme. Os faróis de navegação, projectando a luz lateralmente e para vante, deixavam a tolda na mais profunda obscuridade.

Pelas três horas da manhã produziu-se uma espécie de fenómeno de hipnotismo, sem que o velho Tom tivesse consciência de tal acontecimento. Os olhos de Tom, que se haviam fixado sobre a parte luminosa da bitácula, perderam subitamente o sentimento da visão, e Tom caíra em profunda sonolência anestésica.

Somente não via, como nada sentiria se o tivessem puxado ou beliscado.

Não deu, pois, por uma sombra que se arrastava mansamente sobre a tolda. Era Negoro.

Chegado à ré, o cozinheiro colocou debaixo da bitácula um objecto pesado que trazia na mão.

Depois de ter observado por pouco tempo o disco luminoso, retirou-se sem ser visto.

Se, no dia seguinte, Dick Sand descobrisse o objecto colocado por Negoro debaixo da bitácula, tê-lo-ia tirado imediatamente.

Era um pedaço de ferro, cuja influência alterou as indicações da agulha, que, desviada, em vez de marcar o norte magnético, que naquele lugar não coincidia com o norte do mundo, marcava o nordeste.

Havia portanto o desvio de quatro quartas, ou, por outras palavras, de meio ângulo recto.

Tom, quase ao mesmo tempo, acordou do torpor em que estava. Viu a agulha. Acreditou e devia acreditar que o «Pilgrim» se tinha afastado do caminho.

Girou pois com o leme para pôr a proa do navio a leste... Julgava que ia bem.

Mas pelo desvio da agulha, que Tom não suspeitava, a proa, diminuída de quatro quartas, ia rumo de sueste.

E de tal arte que o «Pilgrim», que pela acção do vento favorável podia seguir na direcção desejada, caminhava com o erro de quarenta e cinco graus no seu rumo!

 

A TEMPESTADE

Durante a semana que se seguiu a este último acontecimento, isto é, de 14 a 21 de Fevereiro, nenhum outro incidente perturbou a vida de bordo. O vento pelo quadrante noroeste refrescava pouco a pouco e o «Pilgrim», se tinha singraduras de cento e sessenta milhas, tinha outras muito maiores, o que já não era mau para um navio da sua grandeza e para as circunstâncias em que navegava.

Dick Sand supunha que o patacho se aproximava das paragens mais frequentadas pelos navios que querem passar de um para o outro hemisfério. Esperava, pois, encontrar algum desses navios com a firme intenção ou de mudar os passageiros, ou de lhe pedir alguns marinheiros e talvez um oficial. Mas, apesar da activa vigilância, nenhum navio se avistou: o mar continuava

deserto.

Não deixava este facto de causar admiração a Dick Sand. Tinha ele atravessado várias vezes o Pacífico por aquelas paragens, quando ia pescar para os mares austrais. Pela latitude e longitude que lhe dava a estima, era raro não aparecerem navios ingleses ou americanos, vindos do Cabo Horn para o equador ou dirigindo-se para a ponta extrema da América do Sul.

Mas o que Dick Sand ignorava, o que mesmo não podia saber, é que o «Pilgrim» estava na mais alta latitude, isto é, mais ao sul do que supunha. Duas eram as razões.

A primeira, devida às correntes, cuja velocidade e direcção o praticante não podia apreciar, e que afastaram o navio do seu caminho.

A segunda provinha do desvio da bússola, causado pela mão criminosa de Negoro. A bússola não dava indicações exactas, e Dick Sand não podia achar os erros, porque tinha perdido a agulha da câmara. Assim, acreditando que navegava ao rumo de leste, seguia para o sueste! Olhava para a agulha repetidas vezes, e mandava deitar a barquinha com regularidade. Só estes dois instrumentos empregava para dirigir o «Pilgrim» e medir o caminho percorrido. Mas bastava isto?

Entretanto o praticante tranquilizava quanto podia Mrs. Weldon, a quem os incidentes da viagem deviam às vezes inquietar.

 — Havemos de chegar, Mrs. Weldon! Havemos de chegar! — repetia ele. — Que avistemos a costa da América mais para o norte ou mais para o sul é indiferente, o que importa é chegar lá; mas havemos de chegar.

 — Não duvido, Dick.

 — Na verdade, eu estaria mais sossegado se Mrs. Weldon não viesse a bordo, se apenas por mim respondesse — afirmou o praticante.

 — Mas — tornou Mrs. Weldon —, se o primo Bénédict, Jack, Nan e eu não tivéssemos tomado passagem no «Pilgrim», se também Tom e os seus companheiros não tivessem sido recolhidos, não haveria aqui senão duas pessoas, tu e Negoro?... Que te teria acontecido, então, achando-te só, em companhia de um homem tão mau, e em quem não tens confiança?... Que teria sido feito de ti?

 — Teria começado — respondeu resolutamente Dick Sand — por inutilizar Negoro.

 — E manobrarias só?

— Sim, sozinho... com o auxílio de Deus!

A firmeza destas palavras alentava Mrs. Weldon, a qual muitas vezes se sentia inquieta contemplando Jack! Se a mulher não queria mostrar o que sentia a mãe, não podia contudo evitar que íntima tristeza lhe oprimisse o coração!

Mas se o praticante não estava bastante adiantado no estudo da astronomia náutica, de modo que pudesse fazer o ponto pelo cálculo, tinha contudo o faro de marinheiro para conhecer o tempo. A aparência da atmosfera, por um lado, e por outro as indicações do barómetro, diziam-lhe que se precavesse. O capitão Hull, como bom meteorologista, ensinara-o a ler este instrumento, cujos prognósticos são muito certos, mas se o barómetro sobe durante dois ou mais dias, ainda que chova, e depois desce logo que chega o bom tempo, este durará muito pouco, e vice-versa. Eis em poucas palavras o que contêm as indicações relativas à observação do barómetro(1):

 

*1. Resumido do Dicionário Ilustrado, de Vorepierre.

1.o Quando, depois de longo período de bom tempo, o barómetro desce precipitada e continuamente, é sinal de chuva; e o mercúrio pode descer tendo sido longo o período de bom tempo, sem que haja mudança no estado aparente da atmosfera. Neste caso, quanto maior é o espaço de tempo entre a descida do barómetro e a chegada da chuva, maior será a duração do tempo chuvoso.

2.o Se, pelo contrário, durante o tempo chuvoso e de já longa duração, o barómetro começa a subir lenta e regularmente, é certo que voltará o bom tempo e que durará tanto mais quanto maior for o intervalo entre a sua chegada e o princípio da subida barométrica.

3.o Nos dois casos precedentes, se a mudança de tempo segue imediatamente o movimento da coluna barométrica, essa mudança terá curta duração.

4.o Se o barómetro sobe lenta e continuamente durante dois, três ou mais dias, anuncia bom tempo, ainda que não cesse de chover durante esses dias, e vice-versa;

5.o Na Primavera e no Outono a descida rápida do barómetro pressagia vento. No Verão, estando o tempo muito quente, denuncia trovoada. No Inverno, depois das grandes geadas, o rápido abaixamento da coluna barométrica anuncia mudança de vento, degelo e chuva; porém, a subida barométrica que vem durante a geada, que já tenha alguma duração, prognostica neve.

6.o Nunca se devem interpretar as oscilações rápidas do barómetro como presságio de tempo seco ou chuvoso de longa duração. Estas indicações são dadas exclusivamente pela alta ou baixa, se for lenta e contínua.

7.o Se pelo fim do Outono, depois de tempo chuvoso e ventoso muito prolongado, a coluna barométrica se eleva, há indício certo da mudança de vento para o pólo elevado e aproximação de neve.

Tais são as consequências que em geral se podem tirar das indicações de tão precioso instrumento.

Tudo isto sabia perfeitamente Dick Sand, e tinha-o verificado em diversas circunstâncias da sua vida de marinheiro, o que o habilitava, por consequência, a precaver-se contra qualquer eventualidade.

Aconteceu que, pelos fins de Fevereiro, Dick Sand começou a preocupar-se com as oscilações do barómetro, cuja leitura fazia repetidas vezes. A coluna barométrica baixava lenta e continuamente, pressagiando chuva; mas porque esta tardava em cair, concluiu Dick Sand que o mau tempo teria grande duração. Assim devia acontecer.

Mas, em vez da chuva, veio vento, o qual refrescou tanto que tinha já a velocidade de sessenta pés por segundo ou trinta e uma milhas por hora(1).

 

*1. Cinquenta e sete quilómetros e meio.

 

Dick Sand tomou então algumas precauções para não arriscar a mastreação e o pano do «Pilgrim».

Tinha já ferrado o sobre, o gafetope e a giba, e resolveu ferrar o joanete, arriar a bujarrona e meter o velacho mos segundos.

Esta última operação apresentava algumas dificuldades para uma tripulação pouco experimentada. Não podia contudo hesitar, e ninguém hesitou. Dick Sand, acompanhado por Bat e Agostinho, trepou e conseguiu, mas com dificuldade, ferrar o joanete. Se o tempo fosse menos ameaçador, teria deixado as duas vergas cruzadas, mas, prevendo que seria obrigado a acachapar o mastaréu, e talvez mesmo arriá-lo ao convés, arriou por isso as duas vergas. Quando o vento sopra com muita violência, é necessário não só diminuir de pano, mas também de mastreação; alivia o navio, que, menos carregado por cima, não se fatiga tanto com os balanços de bombordo a estibordo ou de popa à proa.

Feito este primeiro trabalho — no qual se empregaram duas horas —, Dick Sand e os seus companheiros trataram de reduzir a superfície do velacho, metendo-o nos segundos rizes. Não tinha o «Pilgrim» gávea partida, isto é, gávea e sobregávea, como a maior parte dos navios modernos, o que facilita a manobra. Era pois necessário trabalhar segundo o velho sistema, isto é, andar sobre os estribos, puxar para si e agarrar o pano, batido e açoutado pelo vento, e amarrá-lo com os rizes. Foi difícil, longa e perigosa a manobra; mas fez-se, e o velacho, reduzido, aliviou muito o «Pilgrim».

Desceram Dick Sand, Bat e Agostinho. O «Pilgrim» estava então nas condições que o estado do vento exigia, e que é conhecido pela qualificação de «vento duro».

Durante os três dias que se seguiram, 20, 21 e 22 de Fevereiro, a força e a direcção do vento não tiveram mudança sensível; o barómetro porém continuava a descer, e neste último dia notou o praticante que ele se conservava abaixo de vinte e oito polegadas e sete décimos(1).

 

*1. Os barómetros ingleses e americanos contam-se por polegadas e décimos. Vinte e oito polegadas e sete décimos correspondem a setecentos e vinte e oito milímetros.

 

Não mostrava tendência para subir. O aspecto da atmosfera era mau e extremamente ventoso. Névoas grossas cobriam o céu, e tão cerrado estava, tão profunda era a camada de nuvens, que não se podia enxergar o Sol, e até seria difícil designar onde ele nascia e onde se ocultava.

Dick Sand começou a inquietar-se. Não deixava a tolda e dormia pouco; mas a sua energia moral dava-lhe forças para esconder no fundo do coração as maiores angústias.

No dia 23 de Fevereiro o vento pareceu abonançar; Dick Sand, porém, não se iludiu. Fez bem, porque pela tarde o vento refrescou mais e o mar tornou-se mais alteroso.

Pelas quatro horas, Negoro, que raras vezes se via, saiu da cozinha e subiu ao castelo da proa. Dingo dormia decerto, porque não rosnou, como costumava.

Negoro, calado como sempre, demorou-se meia hora observando o horizonte.

As vagas, já muito alterosas, sucediam-se umas às outras, mas não rebentavam ainda; contudo, eram grandes de mais para o vento que fazia. Devia-se supor que havia mau tempo para oeste, não muito longe, e o qual não se demoraria em chegar àquelas paragens.

Negoro contemplou a vasta extensão do mar, tão profundamente agitado em volta do «Pilgrim». Depois lançou o seu olhar frio para a atmosfera.

Era inquietador o cariz do céu. As nuvens corriam com diferentes velocidades; as mais altas iam mais velozes do que as das camadas inferiores. Era preciso prever o caso, aliás muito provável, de se abaixarem essas pesadas massas e tornar-se em iminente tempestade, ou talvez mesmo em temporal desfeito, o que era por enquanto só vento muito duro, isto é, a deslocação do ar com velocidade de quarenta milhas por hora.

Ou porque Negoro não fosse homem que se assustasse, ou porque nada entendesse do aspecto do tempo, é certo que ele não se mostrou impressionado. Contudo, brincou-lhe nos lábios um sorriso de maldade. Dir-se-ia mesmo que mais lhe agradava que aborrecia aquele estado do tempo. Subiu de uma vez ao gurupés e foi até ao pau da bujarrona a fim de estender a vista, como se procurasse ver alguma coisa no horizonte. Depois desceu sossegadamente, e sem dizer uma palavra, sem fazer um gesto, voltou para o alojamento da tripulação.

Em tais conjunturas, porém, havia uma circunstância feliz, e que todos a bordo deviam ter notado: era que o vento, por muito violento que fosse ou viesse a ser, era favorável e levava rapidamente o «Pilgrim» para a costa da América. Se o tempo continuasse o mesmo, e não se desencadeasse a tempestade, a navegação continuaria a fazer-se sem risco, e os verdadeiros perigos surgiriam unicamente na ocasião de demandar a terra num ponto mal determinado da costa.

Era o que já preocupava Dick Sand. Como navegaria ele, logo que enxergasse a terra, se não encontrasse piloto prático da costa? No caso em que o mau tempo o obrigasse a arribar a algum porto, como e para onde iria ele, se a costa lhe era desconhecida? Era ainda cedo para se inquietar com esta eventualidade. Quando chegasse a hora do perigo, chegaria a ocasião de resolver, e Dick Sand resolveria então.

Durante os treze dias que mediaram entre 24 de Fevereiro e 9 de Março, o estado da atmosfera não teve alteração sensível. O céu conservou-se sempre carregado de nuvens grossas. O vento abonançava durante algumas horas, mas tornava a soprar com a mesma violência. O barómetro subiu duas ou três vezes, mas foi subida de poucos décimos e tão rápida que não podia indicar mudança de tempo e diminuição de vento. Depois a coluna barométrica tornava a descer e nada fazia esperar o próximo fim do vendaval.

As grandes trovoadas, que então rebentaram, inquietaram Dick Sand. Mais de uma vez os raios caíram no mar, não muito longe do patacho. Chuva torrencial e turbilhões de vapores muito condensados envolviam o «Pilgrim» em espesso nevoeiro.

Durante muitas horas, o homem de vigia nada podia lobrigar pela proa fora. Caminhavam pois à aventura.

Ainda que o navio se portasse muito bem com o mar, jogava contudo bastante. Mrs. Weldon, felizmente, suportava o balanço sem se incomodar. Jack, pelo contrário, sofria muito, e por isso ela lhe prodigalizava todos os cuidados que podia.

Primo Bénédict estava tão incomodado como as baratas da América, suas companheiras. Passava o tempo a estudar como se estivesse no seu gabinete em São Francisco.

Felizmente também, Tom e os seus companheiros, pouco sensíveis ao enjoo, puderam continuar a prestar auxílio ao jovem praticante — completamente afeito a todos os movimentos desordenados do navio que corre com o tempo.

O «Pilgrim» navegava rapidamente com o pano já reduzido, mas Dick Sand previa que era necessário diminuí-lo ainda mais; desejava porém conservar as velas em cima enquanto não houvesse perigo. Pela sua estima, a costa não devia estar longe. Vigiava-se muito e com muito cuidado; o praticante, porém, não confiava nos olhos dos seus companheiros para descobrir os primeiros sinais de terra. Efectivamente, quem não estiver habituado a interrogar o horizonte com a vista, por melhor que esta seja, não pode distinguir as primeiras sombras da terra, principalmente quando as brumas a envolvem. Por isso Dick Sand vigiava também, e muitas vezes subia até aos vaus de joanete, para ver melhor. Mas a costa da América não aparecia ainda.

Causava-lhe isto espanto, e Mrs. Weldon percebeu-o por algumas palavras que escaparam a Dick.

A 9 de Março, o praticante estava à proa, ora observando o mar e o céu, ora vendo a mastreação do «Pilgrim», que começava a fatigar-se pela força do vento.

 — Não vês nada, Dick? — perguntou ela, no momento em que ele largava o óculo.

 — Nada, Mrs. Weldon, absolutamente nada — respondeu o praticante —, contudo, o horizonte parece querer aliviar um pouco, talvez por efeito deste vento violentíssimo, mas que ainda vai refrescar mais.

 — E na tua opinião, Dick, a costa da América ainda está longe?

 — Não pode estar e, se alguma coisa me espanta, é não a avistar ainda.

 — Mas o navio tem sempre navegado em boa rota? — tornou Mrs. Weldon.

 — Sempre, desde que o vento se fixou para o quadrante noroeste — respondeu Dick Sand —, isto é, desde o dia em que perdemos o nosso infeliz capitão e a sua gente! Foi a 10 de Fevereiro, estamos a 9 de Março, há por consequência vinte e sete dias!

 — Mas nessa época a que distância estávamos da costa? — inquiriu Mrs. Weldon.

 — A quatro mil e quinhentas milhas, pouco mais ou menos. Se há coisas sobre as quais eu tenha dúvida, neste número não tenho, posso garanti-lo, com a aproximação de vinte milhas.

 — E qual tem sido a velocidade do navio?

 — Tem sido, termo médio, cento e oitenta milhas por dia desde que o vento refrescou — elucidou o praticante. — Por isso me surpreende que a terra não esteja à vista. E o que é mais extraordinário ainda é não encontrarmos um só dos muitos navios que andam ordinariamente por estas paragens.

— Não te enganarias na tua estima, Dick? — tornou Mrs. Weldon.

 — Não, Mrs. Weldon; não era possível enganar-me. A barquinha deitou-se sempre de meia em meia hora, e eu mesmo vi. Vou fazê-la deitar novamente, e verá que neste momento vamos andando dez milhas por hora, o que dá para a singradura mais de duzentas milhas!

Dick Sand chamou Tom e deu-lhe ordem para deitar a barquinha — operação em que o velho preto já estava muito prático.

A barquinha, bem aimarrada no extremo da linha, foi lançada ao mar.

Tinham apenas corrido vinte e cinco braças quando a linha afrouxou rapidamente nas mãos de Tom.

 — Ah! Sr. Dick! — exclamou ele.

 — Que foi, Tom?

 — Rebentou a linha!

 — Rebentou! — exclamou Dick Sand. — E foi-se a barquinha!

Tom mostrou o chicote do pedaço da linha que lhe

ficara na mão.

Era, com efeito, verdade. Não foi, porém, o nó que a prendia que se desfez, porque a linha estava rebentada pelo meio, apesar de ser linho entrançado. Era, pois, condição essencial que os cordões estivessem coçados, e estavam-no efectivamente, assim o verificou Dick Sand.

 — Mas estariam coçados pelo uso? — perguntava desconfiado, a si mesmo, Dick.

Seja como for, é certo que a barquinha estava perdida e que Dick não tinha outro meio de avaliar com exactidão a velocidade do navio. O único instrumento que possuía era a bússola, cujas indicações ignorava que eram falsas!

Mrs. Weldon viu-o tão melancólico por causa deste incidente que não insistiu mais e, cheia de tristeza, desceu para o camarote.

Mas se a velocidade do «Pilgrim» e, por consequência, o caminho que percorria não podia ser estimado, era contudo fácil avaliar que o andamento do navio não diminuíra.

No dia seguinte, 10 de Março, o barómetro desceu a vinte e oito polegadas e dois décimos(1). Era prenúncio de um desses temporais em que o vento chega a atingir a velocidade de sessenta milhas por hora.

 

*1. Setecentos e nove milímetros.

 

Urgia diminuir ainda mais o pano, a fim de não pôr em risco a segurança do navio.

Dick Sand resolveu arriar ao convés o mastaréu de joanete e o do gafetope e ferrar todo o pano, deixando apenas a vela de estai e o velacho nos últimos.

Chamou Tom e os seus companheiros para que o ajudassem a fazer aquela difícil operação, a qual, infelizmente, não podia executar-se com rapidez.

O tempo, porém, exigia pressa, porque o temporal já se desencadeava com violência.

Dick Sand, Agostinho, Acteão e Bat subiram para a gávea, enquanto ficaram Tom governando ao leme, e Hércules no convés, pronto para arriar os andrébelos quando lhe fosse ordenado.

Depois de numerosos esforços, os mastaréus de joanete e de gafetope foram arriados, mas os pobres pretos muitas vezes correram o risco de ser arremessados ao mar, tão fortes eram as pancadas que sacudiam a mastreação por efeito de balanço. Depois que se meteu o velacho nos últimos e a vela grande foi para a gaxeta, o patacho não levava outro pano além da vela de estai e do velacho sobre a pega.

Apesar, porém, de o pano estar já muito reduzido, o «Pilgrim» continuava a correr com excessiva velocidade.

No dia 12 o tempo carregou mais e mostrou pior cariz. Nesse dia, desde a madrugada, Dick Sand viu, não sem receio, o barómetro descer até vinte e sete polegadas e nove décimos(1).

Era um temporal desfeito e tão grande que o «Pilgrim» não podia já com o pouco pano que ainda levava largo!

Dick Sand, vendo que o velacho se ia rasgar, mandou

que o ferrassem.

Foi em vão. Uma rajada mais forte caiu nesse momento sobre o navio e fez o velacho em estilhas. Agostinho, que se encontrava em cima da verga, foi atingido com a escota de bombordo. Ferido, mas levemente, pôde descer para a tolda.

Dick Sand, extremamente inquieto, tinha um único pensamento: era que o navio, levado com tal fúria, ia-se perder de um momento para o outro, porque, segundo a estima, os escolhos da costa não deviam estar longe. Foi para a proa, mas, não vendo nada que lhe parecesse terra, voltou para o leme.

Pouco tempo depois Negoro apareceu na tolda. Então, repentinamente, como sem se lembrar, estendeu o braço para um ponto do horizonte. Dir-se-ia que avistara alguma terra alta envolvida pelas brumas!

Sorriu maliciosamente mais uma vez, e, sem dizer nada do que vira, retirou-se para o seu alojamento.

 

*1. Setecentos e dezasseis milímetros.

 

NO HORIZONTE

Nesta ocasião o vendaval tomava a sua feição mais terrível, a da tempestade. O vento rondara para o sudoeste, o ar deslocava-se com a velocidade de noventa milhas(1) por hora.

 

*1. Cerca de cento e sessenta e sete quilómetros.

 

Era, com efeito, uma dessas tempestades que fazem garrar e dar à costa todos os navios que estão fundeados, e às quais, mesmo em terra, não resistem as mais sólidas construções. Tal foi a tempestade que em 25 de Julho de 1825 devastou Guadalupe. Quando as pesadas peças de vinte e quatro são arrebatadas dos respectivos reparos, julgue-se do que poderá acontecer a um navio que não tem outro ponto de apoio senão o mar embravecido! E, contudo, é à sua mesma mobilidade que o navio deve a salvação! Cede aos impulsos do vento e, sendo bem construído, pode afrontar os mais violentos golpes de mar! Neste caso estava o «Pilgrim».

Poucos minutos depois de o velacho se ter rompido, a vela de estai foi também levada pelo vento. Dick Sand não pensou em envergar e largar a polaca, pequena vela feita de lona muito forte, a qual teria servido para ajudar o navio a governar melhor.

O «Pilgrim» corria, pois, em árvore seca; o vento que actuava sobre o casco, sobre a mastreação e aparelho, bastava para dar ao patacho excessiva velocidade. Parecia algumas vezes que ele ia saltar das ondas, e era para crer que apenas lhes tocava de leve. Em tais condições os balanços do navio, produzidos pelas enormes vagas, que a tempestade levantava, eram medonhos. Havia motivo para temer que metesse algum grande golpe de mar pela popa. As montanhas de água corriam mais do que o patacho, ameaçando engoli-lo se ele não fugisse depressa. O perigo é sempre grande para qualquer navio que corre com o tempo.

Mas o que se devia fazer para prevenir esta eventualidade? Não era possível aumentar a velocidade do «Pilgrim», por isso que não se podia largar pano. Era pois indispensável governar bem, tendo cuidado com o leme. Dick Sand não o abandonava. Tinha-se amarrado pela cintura, a fim de não ser levado por algum golpe de mar. Tom e Bat, amarrados também, estavam prontos a correr em auxílio de Dick. Hércules e Acteão, agarrados às abitas, vigiavam pela proa fora.

Mrs. Weldon, Jack, primo Bénédict e Nan conservavam-se, por ordem do praticante, nos camarotes. Mrs. Weldon teria preferido vir para a tolda. Mas Dick Sand opôs-se formalmente. Seria expor-se sem necessidade.

Todas as escotilhas estavam hermeticamente fechadas. Era de esperar que elas resistissem, se o navio embarcasse grandes golpes de mar; mas se por fatalidade cedessem sob o peso das enormes massas de água, o navio soçobraria. Felizmente, a carga estava bem estivada e não se deslocava, apesar de o patacho inclinar bastante.

Dick Sand reduzira ainda mais o número de horas que tinha destinadas para dormir, e por isso Mrs. Weldon, receando que ele adoecesse, obrigou-o a descansar algum tempo.

Foi também quando Dick estava deitado, na noite de 13 para 14 de Março, que ocorreu novo incidente.

Tom e Bat estavam à ré, quando Negoro, que vinha raras vezes para a popa, se aproximou e quis entabular conversação com eles; porém, Tom e seu filho não lhe responderam.

De repente, com um balanço mais forte, Negoro caiu e teria ido para o mar se não se tivesse agarrado à bitácula.

Tom deu um grito, julgando que a bússola se tinha quebrado.

Dick Sand, que estava acordado, ouviu o grito, saiu do seu alojamento e correu para a popa.

Negoro estava já de pé, mas conservava na mão o pedaço de ferro que ele tirara debaixo da bitácula, e que escondeu antes que Dick Sand o visse.

Tinha, portanto, Negoro interesse em que a agulha retomasse a sua verdadeira direcção? Sim; porque lhe servia o vento sudoeste que então soprava!

 — Que aconteceu? — perguntou o praticante.

 — Aconteceu que o maldito cozinheiro do inferno caiu sobre a bitácula! — respondeu Tom.

A estas palavras, Dick Sand, extremamente agitado, inclinou-se sobre a bitácula... Estava inteira, e a agulha, alumiada pelas duas lanternas, descansava nos dois círculos concêntricos.

O coração do praticante pulsou de novo. A avaria na única agulha que havia a bordo seria uma desgraça irreparável.

Mas o que Dick Sand não pôde observar foi que, desde que se tirou o pedaço de ferro da bitácula, a agulha retomou a sua posição normal e indicava com exactidão o norte magnético, como devia ser indicado naquele meridiano.

Se não se podia fazer Negoro responsável pela queda, que parecia involuntária, Dick Sand tinha, no entanto, razão para se admirar de que o cozinheiro estivesse àquelas horas na ré do navio.

 — Que faz aí? — perguntou Dick Sand.

 — O que quero — respondeu Negoro.

— Que diz? — gritou Dick Sand, não podendo reprimir um movimento de cólera.

 — Digo — volveu o cozinheiro — que não há regulamento que me proíba de passear aqui à ré.

 — Mas faço eu esse regulamento — replicou Dick —, e iproíbo-o de voltar aqui.

 — Está bem! — respondeu Negoro.

E este homem, sempre senhor de si, fez um gesto ameaçador.

O praticante tirou um revólver da algibeira e disse, dirigindo-se para o cozinheiro:

 — Negoro, saiba que este revólver não me deixa nunca, e que ao primeiro acto de insubordinação lhe faço saltar os miolos!

Ao mesmo tempo, Negoro sentiu-se irresistivelmente curvar até ao convés.

Foi porque Hércules lhe pôs simplesmente a pesada mão sobre o ombro.

 — Capitão Sand — perguntou o gigante —, quer que atire este maroto pela borda fora? É bom petisco para os peixes, que são de boa boca!

 — Ainda não — respondeu Dick Sand.

Negoro levantou-se logo que a mão do preto deixou de lhe carregar sobre o ombro, mas, quando passou por diante de Hércules, murmurou:

 — Negro maldito, tu mas pagarás!

Entretanto o vento rondava, ou pelo menos parecia ter saltado quarenta e cinco graus; e contudo, coisa notável, que impressionou o praticante, o mar não indicava tal mudança. O navio seguia ao mesmo rumo, mas o vento e as vagas, em vez de virem directamente da popa, vinham de avante da alheta de bombordo — situação esta muito perigosa porque expõe o navio a receber maus golpes de mar. Dick Sand teve, pois, de arribar quatro quartas para continuar a correr com o tempo.

Por outro lado, a sua imaginação estava mais sobressaltada que nunca. Perguntava a si mesmo se não haveria alguma relação entre a queda de Negoro e a avaria da agulha da câmara? O que tinha vindo fazer ali o cozinheiro? Teria ele algum interesse em que a segunda agulha se inutilizasse? Que interesse podia ser esse? Nada disto se explicava. Não desejaria Negoro, como todos, chegar o mais cedo possível à costa da América?

Quando Dick Sand falou deste incidente a Mrs. Wel-don, esta, conquanto desconfiasse também de Negoro, até certo ponto, não achou motivo plausível para supor uma criminosa premeditação do cozinheiro.

Negoro foi, por prudência, muito vigiado; não desatendeu as ordens do praticante, e nunca mais se atreveu a vir à ré, onde, demais a mais, o serviço não o chamava e onde Dingo fora alojado como sentinela permanente.

Passou a semana sem que a tempestade diminuísse. O barómetro desceu ainda mais. Desde o dia 14 até 26 nunca houve um recalmão que se aproveitasse para largar o pano. O «Pilgrim» corria para o nordeste com velocidade não inferior a duzentas milhas em vinte e quatro horas, e contudo a terra não aparecia! E a terra era a América, que se estende como imensa barreira entre o Atlântico e o Pacífico, na extensão de cento e vinte graus!

Dick Sand pensava se acaso teria enlouquecido, se teria ainda o sentimento da verdade, se não navegava havia tempo em direcção errada. Não! Não podia enganar-se tanto. O Sol, apesar de coberto pelas nuvens, nascia-lhe sempre pela proa e ocultava-se para o lado da popa! Mas foi então a terra que desapareceu? A terra da América, sobre a qual o seu navio se ia perder talvez, onde estava ela? Ou fosse o continente do sul ou o do norte, porque tudo era possível naquele caos, o «Pilgrim» não deixaria de avistar um ou outro! O que acontecera desde o começo da medonha tempestade? O que era que acontecia ainda, porque a costa tão desejada, ou fosse a salvação ou a perda, não aparecia?

Devia Dick Sand supor que a bússola o enganava, mas os erros não os podia verificar desde que perdera a agulha da câmara. Assaltou-o este receio, único que explicava a ausência da terra!

Por isso Dick Sand, quando não estava ao leme, não tirava os olhos da carta! Era porém inútil interrogá-la, porque não lhe podia ela decifrar o enigma que Negoro engendrara, e que era tão incompreensível para Dick como seria para qualquer outra pessoa!

No dia 21 de Março, pelas oito horas da manhã, produziu-se um incidente muito grave.

Hércules, que estava de vigia à proa, gritou:

 — Terra! Terra!

Dick Sand saltou para o castelo. Hércules, porque não tinha a vista de marinheiro, não se poderia ter enganado?!

 — Terra? — perguntou Dick Sand. — Onde?

 — Ali — respondeu Hércules, apontando para um ponto quase imperceptível no horizonte, na direcção do nordeste.

A custo se ouviam as vozes, entre os rugidos do mar e o zunido do vento.

 — Viste a terra? — perguntou o praticante.

 — Vi — assegurou Hércules, afirmando com a cabeça. E estendeu a mão para a amura de bombordo.

O praticante olhava, mas não avistava nada.

Mrs. Weldon, que tinha ouvido o grito de Hércules, subiu para a tolda, apesar da promessa em contrário que havia feito.

 — Mistress!... — exclamou Dick Sand.

Mrs. Weldon, não podendo fazer-se ouvir, tentou ver a terra e parecia que tinha concentrados todos os sentidos nos seus olhos. Era de crer que a mão de Hércules indicasse mal o ponto do horizonte que pretendia designar, pois nem Mrs. Weldon nem o praticante conseguiram ver a terra.

Mas, de repente, Dick Sand estendeu também a mão.

— Sim! Sim, é terra! — disse então.

Via-se uma espécie de pico elevado, aparecendo por entre as nuvens. Os olhos de Dick Sand, olhos de marinheiro, não o enganavam.

 — Enfim! — exclamou ele. — Enfim!

Dick agarrava-se à borda com esforço febril. Mrs. Weldon, segura por Hércules, não deixava de olhar aquela terra quase inesperada.

A costa formada pela terra alta que se avistava demorava então por bombordo à distância de dez milhas. Quando aclarou, viu-se melhor por uma aberta das nuvens. Era talvez algum promontório do continente americano. O «Pilgrim», em árvore seca, como ia, não podia orçar, mas não deixaria de se chegar para terra.

Era questão de poucas horas. Seriam, quando isto se passou, oito horas da manhã; por consequência era provável que antes do meio-dia o «Pilgrim» estivesse próximo da terra avistada.

A um sinal de Dick Sand, Hércules conduziu Mrs. Weldon para a ré, porque sozinha não teria resistido à violência do balanço de popa à proa.

O praticante demorou-se ainda à proa, mas por pouco tempo, e voltou para o leme, onde estava o velho Tom.

Descobriu, enfim, a costa, tão tardiamente vista e tão ardentemente desejada! Mas via-a com pavor.

Com efeito, nas condições em que se encontrava o «Pilgrim», isto é, correndo com o tempo, a terra por sotavento era o naufrágio com todos os seus horrores.

Passaram duas horas. O promontório ficava então pelo través do navio.

Nesta ocasião viu-se Negoro no convés. Olhava para a costa com grande atenção; sacudiu a cabeça como homem entendido, e voltou para o seu posto, depois de ter pronunciado um nome, que ninguém pôde ouvir.

Dick Sand procurava avistar a costa, que devia aparecer por detrás do promontório.

Passaram mais duas horas. O promontório demorava já pela alheta, e a costa ainda se não via!

O horizonte, porém, estava mais leve; uma terra alta, como a América, coroada pela cordilheira dos Andes, devia avistar-se a mais de vinte milhas.

Dick Sand pegou no óculo e correu com ele o horizonte para o lado de leste.

Não viu nada!

Às duas horas da tarde os últimos vestígios da terra tinham já desaparecido pela popa do «Pilgrim». Para a proa o óculo não conseguia descobrir o contorno de uma costa, alta ou baixa.

Um grito escapou então a Dick Sand. Abandonou a tolda e desceu precipitadamente à câmara, onde estava Mrs. Weldon, Jack, Nan e primo Bénédict.

 — Uma ilha! Era uma ilha! — disse ele.

 — Uma ilha, Dick! Mas qual pode ser? — perguntou Mrs. Weldon.

 — A carta no-lo dirá! — respondeu o praticante. E foi buscar a carta.

 — Ela aqui está, Mrs. Weldon, aqui! — disse ele. — Aquela terra que avistámos não pode ser senão este ponto perdido no meio do Pacífico! Não pode ser senão a ilha de Páscoa. Não há outra nesta altura.

 — E já nos fica para a ré? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Fica pela popa, muito a barlavento de nós!

Mrs. Weldon olhava com muita atenção para a ilha de Páscoa, que na carta se representava por um ponto quase imperceptível.

 — E a que distância está a ilha da costa da América?

 — A trinta e cinco graus.

 — Que representam?...

- — Mais de duas mil milhas.

 — Parece pois que o «Pilgrim» não tem andado, por isso que estamos tão afastados do continente!

 — Mrs. Weldon — respondeu Dick Sand, passando a mão pela fronte, como para concentrar as suas ideias -, não sei... não posso explicar este incrível atraso. Não sei, repito, não o posso explicar, salvo se as indicações da agulha têm sido erradas! Mas esta ilha não pode ser outra senão a ilha de Páscoa, porque nós corremos à popa ao rumo do nordeste; e devemos dar graças aos céus por nos terem permitido corrigir a nossa derrota. Sim, é a ilha de Páscoa! Está ainda a duas mil milhas da costa! Sei finalmente para onde nos impeliu a tempestade, e, quando abonançar, aproximar-nos-emos do continente americano com probabilidades de nos salvarmos! Agora já o nosso navio não está perdido na imensidade do oceano Pacífico!

A confiança de que dava mostras o praticante comunicou-se a todos que o ouviam, até mesmo a Mrs. Weldon. Parecia que aquela pobre gente, enfim, ao cabo de todos os seus trabalhos, e que o «Pilgrim», achando-se a barlavento do porto do seu destino, só aguardava ocasião propícia para entrar!

A ilha de Páscoa — o verdadeiro nome é Val-hou — •, descoberta por David em 1686, visitada por Cook e La Pérouse, está na latitude sul de 27 ° e por 112 ° de longitude este. Se o patacho fora levado de mais de quinze graus para o norte, era evidentemente devido à tempestade do sudoeste, diante da qual fugia.

O «Pilgrim» estava, portanto, a duas mil milhas da costa; contudo, sob a acção do vento tão forte, devia em menos de dez dias chegar a qualquer ponto do litoral da América do Sul.

Não seria provável que o vento abonançasse, e que se pudesse largar algum pano quando se reconhecesse a terra?

Tal era a esperança de Dick Sand. Dizia ele que o temporal, que durava havia muitos dias, acabaria cansado; e agora que, pela marcação da ilha de Páscoa, conhecia exactamente a sua posição, tinha razões para acreditar que, senhor do navio, saberia conduzi-lo a lugar seguro.

O conhecimento daquele ponto isolado no meio do mar, como se fosse um favor da Providência, dera confiança a Dick Sand; se continuava a navegar ao capricho do temporal, que ele não podia dominar, ao menos não navegava às cegas.

O «Pilgrim», porque era solidamente construído e bem aparelhado, pouco sofreu com os choques impetuosos do mar. As avarias reduziam-se unicamente à perda do velacho e da vela de estai — perda que aliás seria fácil de reparar. Não abrira água nem pelo fundo nem pelos altos. As bombas funcionavam optimamente. A este respeito não havia nada a recear.

Restava, pois, o interminável temporal, sem dar indício de moderar os seus furores. Se Dick Sand podia com o seu navio lutar contra a tormenta, não podia mandar abonançar o vento, abater o mar e serenar o céu. A bordo era ele «senhor depois de Deus»; fora dali, só Deus dominava os ventos e as ondas.

 

TERRA! TERRA!

A confiança de Dick Sand ia ser em parte justificada. No dia seguinte, 27 de Março, a coluna de mercúrio elevou-se no tubo barométrico. A oscilação não foi rápida, nem muito grande, alguns décimos apenas, mas a progressão parecia continuar. O temporal diminuía evidentemente, e, se o mar continuava excessivamente alteroso, notava-se que o vento enfraquecia à proporção que rondava para o oeste.

Dick Sand não podia pensar em largar o pano. A mais pequena vela teria sido levada; contudo esperava que antes de vinte e quatro horas poderia içar a polaca.

Durante a noite o vento abonançou muito e o navio foi menos sacudido pelos balanços, que pareciam desligá-lo.

Os passageiros começaram a reaparecer na tolda. Já não havia risco de serem levados pelo mar.

Mrs. Weldon foi a primeira que saiu da câmara, onde Dick Sand por prudência a obrigou a estar enquanto durou o temporal. Veio conversar com o praticante, que uma vontade sobrenatural tornara apto para resistir a tantas fadigas. Magro, pálido, apesar de queimado, devia sentir-se fraco, pela privação do sono, tão necessário na sua idade. Contudo, aquela constituição robusta a tudo resistia. Talvez que mais tarde viesse a pagar tantas provações! Não era, porém, a ocasião para desanimar.

Dick Sand conhecia bem isso e Mrs. Weldon veio encontrá-lo mais enérgico que nunca.

Demais, Sand tinha confiança em si, e a confiança não se ordena, mas domina.

 — Dick, meu filho, meu capitão! — disse Mrs. Weldon, apertando a mão do praticante.

 — Ah! Mrs. Weldon — exclamou Dick Sand, sorrindo —, desobedece ao seu capitão! Deixa a câmara e vem para a tolda, apesar de todos os pedidos que ele lhe fez!

 — Sim, desobedeço-te — -tornou Mrs. Weldon —, porque pressinto que a tempestade acalmou ou vai acalmar!

 — Acalma com efeito. Não se engana. Desde ontem que o barómetro não desce e o vento abonança; por isso acredito que as nossas privações já passaram.

 — O céu te ouça, Dick. Tens sofrido muito, meu filho! Tu, tens feito...

 — A minha obrigação, Mrs. Weldon.

 — Mas vais enfim descansar?

 — Descansar! — respondeu o praticante. — Não tenho necessidade de descansar, Mrs. Weldon! Graças a Deus, sinto-me bem, e já agora é indispensável levar isto ao fim. Nomeou-me capitão, serei capitão até desembarcar todos os passageiros do «Pilgrim».

 — Dick — tornou Mrs. Weldon —, meu marido e eu nunca esqueceremos o que tu fizeste.

 — Foi Deus quem tudo fez — afirmou Dick Sand. — Tudo!

 — Dick, repito-te, pela tua energia moral e física, mostraste-te homem e digno de comandar, e dentro de pouco tempo, logo que concluíres os teus estudos — meu marido não me há-de contrariar —, comandarás os navios da casa James W. Weldon!

 — Eu... Eu!... — exclamou Dick Sand, cujos olhos se velaram de lágrimas.

 — Dick — prosseguiu Mrs. Weldon —, tu já eras nosso filho adoptivo; agora és mais, porque és o salvador de tua mãe e do teu irmão Jack! Meu querido Dick, abraço-te por meu marido e por mim!

Desejaria a animosa senhora não se comover quando apertou o praticante nos seus braços, mas o seu coração trasbordava. As impressões de reconhecimento que Dick Sand sentia, qual é a pena que poderá descrevê-las?! Perguntava a si mesmo se dar a vida pelos seus benfeitores era bastante, e aceitava de antemão todas as provações que o futuro lhe tivesse reservadas.

Depois desta conversa, Dick Sand sentia-se mais fortalecido. Fosse o vento mais brando, de modo que pudesse largar algum pano, e não teria dúvida de dirigir o navio para qualquer porto, onde finalmente desembarcaria sãos e salvos todos aqueles que conduzia a seu bordo.

A 29, tendo o vento diminuído, Dick Sand fez largar o traquete ao velacho, a fim de aumentar a velocidade do «Pilgrim», mantendo-o a navegar.

 — Vamos, Tom, vamos! — gritou Dick, logo que subiu para a tolda, ao amanhecer. — Tenho necessidade de vocês.

 — Estamos todos prontos, capitão Sand — respondeu o velho Tom.

 — E prontos para tudo — acrescentou Hércules. — Não havia nada a fazer enquanto durou o temporal; parece-me que os braços se iam enferrujando!

 — Se soprasses com a tua grande boca — disse Jack —, aposto que teria tanta força como o vento.

 — Isso é boa ideia, Jack! — respondeu Dick Sand rindo. — Quando houver calma, Hércules há-de soprar!

 — Porque não, Sr. Dick! — replicou o preto, enchendo as bochechas como se fosse um Bóreas gigante.

 — Agora — continuou o praticante —, vamos começar por envergar o velacho de sobresselente, porque o que tínhamos na verga foi levado pela tormenta. Não é difícil, mas é necessário que se faça.

 — E há-de fazer-se — asseverou Acteão.

— Posso ajudar? — perguntou Jack, sempre disposto para a manobra.

 — Sim, Jack — respondeu o praticante. — Tu vais para a roda do leme com Bat, para o ajudares a governar.

É supérfluo dizer que Jack ficou cheio de orgulho por ser moço do governo a bordo do «Pilgrim».

 — Mãos à obra — tornou Dick Sand —, e, tanto quanto for possível, não nos exponhamos.

Os pretos, guiados pelo praticante, começaram o trabalho. Envergar uma gávea oferecia dificuldades para Tom e para os seus camaradas. Primeiro havia de içar-se a vela enrolada, e depois se fixaria na verga.

Porém, Dick Sand -mandou com tal acerto e foi tão bem obedecido que, depois de uma hora de trabalho, a vela estava envergada, caçada e içada nos segundos rizes.

O traquete, que pôde ser ferrado antes de o temporal se declarar, bem como a vela de estai, largaram-se sem dificuldade apesar da força do vento.

Enfim, naquele dia, às dez horas da manhã, já o «Pilgrim» navegava com o traquete, velacho e vela de estai.

Dick Sand não julgara prudente largar mais pano. As velas, que levava largas, garantiam, enquanto o vento não abonançasse mais, singraduras de duzentas milhas; era quanto bastava para chegar à costa da América em menos de dez dias.

O praticante estava satisfeitíssimo quando voltou para o leme e retomou o seu posto, depois de ter agradecido a Jack, o moço de governo do «Pilgrim». Já não navegava à mercê do mar. Ia em boa rota. Compreendem a alegria de Dick Sand todos aqueles que conhecem as coisas do mar.

No dia seguinte as nuvens corriam ainda com a mesma velocidade, deixando, porém, grandes claros, por onde os raios do Sol desciam até à superfície das águas. O «Pilgrim» ainda de vez em quando embarcava alguma água.

Era magnífica aquela luz vivificante! Algumas vezes eclipsavam-na grandes massas de vapores, que caminhavam para leste, depois aparecia de novo, tornava a desaparecer ainda; mas o tempo melhorava sempre.

Abriram-se as escotilhas para ventilar o interior do navio. O ar salubre penetrava no porão, na câmara e no alojamento da tripulação. O pano, que estava húmido, estendeu-se a enxugar sobre as antenas. Baldeou-se a tolda. Dick Sand não queria que o seu navio fundeasse sem ir limpo. Algumas, mas poucas horas, empregadas todos os dias neste serviço, bastavam, e sem cansar a tripulação, para chegar com o navio asseado.

Conquanto o praticante não tivesse barquinha, tinha contudo a prática bastante de estimar, pela vista, o andamento do navio. Não duvidava pois avistar a terra dentro de sete dias, e desta opinião fez ele participar Mrs. Weldon, depois de lhe ter mostrado na carta a posição provável do «Pilgrim».

 — A que ponto da costa aportaremos, meu caro Dick? — perguntou ela.

 — A este, Mrs. Weldon — respondeu o praticante, indicando a longa faixa da costa que se estende do Peru ao Chile. — Não sei calcular melhor. Aqui está a ilha de Páscoa, que deixámos a oeste, e pela direcção do vento, que foi constante, concluo que marcaremos a costa a leste. Os ancoradouros são em grande número por toda esta costa, mas precisar aquele que avistaremos não me é possível agora.

 — Muito bem, Dick, seja qual for o ponto que se avistar, será visto com alvoroço!

 — Decerto, Mrs. Weldon, e nele encontrará meios de seguir imediatamente para São Francisco. A Companhia de Navegação do Pacífico tem um serviço muito bem organizado em toda a costa, e os seus vapores fazem escala por todos os portos principais. Ser-lhe-á, pois, muito fácil, Mrs. Weldon, tomar passagem para a Califórnia.

— E tu tencionas levar o «Pilgrim» para São Francisco? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Sim, depois de a ter desembarcado. Se encontrarmos um oficial e tripulantes, iremos a Valparaíso descarregar, como era intenção do capitão Hull. Depois voltaremos para o nosso porto de amarração. Mas isto retardá-la-á muito, e apesar de eu ter muita pena de me separar de Mrs. Weldon...

 — Bem, Dick — tornou Mrs. Weldon. — Veremos mais tarde o que convém fazer. Parecia-me que receavas os perigos da terra?

 — E são para temer com efeito — respondeu o praticante —, mas espero encontrar navios nessas alturas, e admiro-me até de ainda os não ver. Um só que passasse bastaria; comunicávamos com ele e dele saberíamos qual era a nossa posição, o que facilitaria a chegada do «Pilgrim» à terra,

 — Não há práticos nesta costa? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Devem encontrar-se — respondeu Dick Sand —, mas muito mais perto da terra. É necessário aproximarmo-nos mais.

 — E se não encontrarmos pilotos?... — tornou Mrs. Weldon, insistindo, para saber como o praticante resolveria as dificuldades que se apresentassem.

 — Em tal caso, Mrs. Weldon, ou o tempo se conserva claro, o vento regular, e eu costeio a terra, muito perto, para descobrir porto seguro, ou o vento refresca, e então...

 — Então? Que farás tu, Dick?

 — Nas condições em que está o «Pilgrim», uma vez chegado para a terra, seria difícil fugir para o mar.

 — Mas que farás tu messe caso? — repetiu Mrs. Weldon.

 — Ver-me-ei obrigado a encalhar — declarou o praticante, cuja fronte se anuviou um instante. — Ah! Seria cruel extremidade. Deus no-la afaste! Mas repito, Mrs. Weldon, a aparência do céu está tranquilizadora e é impossível que um navio ou um barco de pilotos nos não veja! Portanto, não desanimar! Levamos a proa à terra, havemos de avistá-la dentro de pouco tempo!

Dar com o navio à costa é dura extremidade, a qual o mais valente marinheiro não encara sem pavor! Por isso, Dick Sand não queria pensar em tal, enquanto lhe sorrissem algumas probabilidades de escapar ao perigo. Durante alguns dias houve de novo alternativas no estado da atmosfera, que inquietaram muito o praticante. O vento mantinha-se muito fresco, e as oscilações da coluna barométrica indicavam que ele tendia a refrescar. Dick Sand pensava que talvez tivesse ainda de correr em árvore seca. Tinha tão grande empenho de conservar largo, pelo menos o velacho, que resolveu não meter esta vela dentro, enquanto não tivesse risco de a perder. Mas para garantir a segurança dos mastros fez tesar as enxárcias e os brandais. Importava não agravar a situação, que se tornaria perigosíssima se o «Pilgrim» desarvorasse.

Uma ou duas vezes também, a subida do barómetro fez recear que o vento mudasse e se fixasse para leste. Seria então necessário navegar de bolina.

Novos motivos de ansiedade para Dick Sand. Que faria ele tendo o vento contrário? Bordejar? Mas, se a tal fosse obrigado, que de delongas e riscos de ser arrastado para mais longe!

Estes receios, felizmente, não se realizaram. O vento, depois de ter variado durante alguns dias, soprando, ora do norte, ora do sul, fixou-se no oeste; mas era sempre vento duro, que fatigava muito a mastreação.

Chegara o dia 5 de Abril. Mais de dois meses se tinham passado desde a partida do «Pilgrim» da Nova Zelândia. Durante vinte dias, foram os ventos contrários e as calmas que lhe retardaram a marcha; depois achou-se em condições favoráveis para seguir rapidamente para o seu destino. Enquanto durou o temporal, a velocidade do patacho foi grande. Dick Sand não a estimava em menos de duzentas milhas por dia, termo médio. Por que razão não se avistava ainda a costa? Fugiria ela diante do «Pilgrim»? Era inexplicável.

E, contudo, nenhuma terra se avistava ainda no horizonte, apesar de um dos pretos estar sempre de vigia nos vaus de joanete.

Muitas vezes Dick Sand subia também, e lá em cima, de óculo assestado, procurava descobrir qualquer aparência de montanhas. A cordilheira dos Andes é muito elevada; era pois acima das nuvens que se devia procurar algum pico que emergisse das brumas do horizonte.

Mais de uma vez Tom e os seus companheiros foram enganados por falsos indícios de terras. Eram vapores, afectando formas caprichosas, que se levantavam no último plano. Aconteceu até que os pretos teimavam nas suas afirmações, mas, passado tempo, reconheciam que tinham sido enganados por uma ilusão de óptica. A suposta terra deslocava-se, mudava de forma e por fim desfazia-se completamente.

A 6 de Abril, porém, não houve dúvida, não a podia haver. Eram oito horas da manhã. Dick Sand subira aos vaus de joanete. Nesse momento as névoas condensavam-se sob a influência dos raios solares, e o horizonte estava limpo.

Da boca de Dick Sand escapou-se, enfim, o grito tão ansiosamente esperado.

 — Terra! Terra pela proa!

A este grito todos correram para a tolda: Jack, curioso como todas as crianças da sua idade; Mrs. Weldon, cujos cuidados cessavam com a chegada; Tom e os seus companheiros, que iam finalmente pisar de novo o solo da América, e até primo Bénédict, que esperava fazer uma rica colecção de novos insectos.

Só Negoro não apareceu. Todos viram então o que Dick Sand já tinha visto, uns distintamente, outros com os olhos da imaginação.

O praticante, habituado como estava a observar o horizonte no mar, não se iludia, e uma hora depois verificou-se que não se enganara.

À distância de cerca de quatro milhas para o lado de leste, desenhava-se uma costa baixa, ou pelo menos tinha essa aparência. Devia dominá-la a alta cordilheira dos Andes, mas a última zona de nuvens não deixava ver as cumeadas das montanhas.

O «Pilgrim» corria directa e rapidamente sobre a costa, a qual se estendia a olhos vistos.

Duas horas depois distava dela apenas três milhas. Esta parte da costa terminava ao nordeste por um cabo bastante elevado, que encobria uma pequena enseada. Pelo contrário, para o sudoeste alongava-se, formando estreita língua de terra.

Raras árvores coroavam rochas escarpadas e pouco altas, as quais se destacavam então sobre o céu, mas era evidente, pelo carácter geográfico do país, que a elevada cadeia dos Andes devia formar o fundo do quadro.

Nenhuma habitação, nenhum porto, nenhuma embocadura de rio que pudesse servir de refúgio aos navios.

O «Pilgrim» corria direito para a terra. Com o pano reduzido que levava e vento de travessia, Dick Sand não podia orçar com o navio.

Na proa floreava larga faixa de recifes, sobre os quais o mar estendia alvos lençóis de espuma. Viam-se as ondas, desenrolando-se, chegarem até meia altura das rochas. A ressaca devia ser enorme.

Dick Sand, depois de estar no castelo a observar a costa, voltou para a ré, silencioso, e foi para o leme.

O vento refrescava mais. O patacho estava apenas a uma milha da terra.

Dick Sand viu então uma espécie de pequena angra, na qual resolveu abicar, mas antes de chegar a ela tinha de atravessar uma linha de recifes, entre os quais seria difícil descobrir um canal. A rebentação indicava que a água saltava por toda a parte.

Dingo, que naquela ocasião andava na tolda, de vante para ré, correu para a proa e, vendo a terra, ladrou tristemente. Dir-se-ia que o cão conhecia o litoral e que o seu instinto lhe recordava tristes lembranças. Negoro ouviu-o, sem dúvida, porque um irresistível sentimento o arrastou para fora da cozinha, e, ainda que receasse o cão, veio encostar-se à amurada.

Felizmente para Negoro, Dingo, cujos latidos sempre tristes se dirigiam para a terra, não o via.

Negoro olhava para a rebentação sem dar mostras de susto. Mrs. Weldon, que o observava, julgou ver que Negoro corara e que as suas feições se contraíram.

Conheceria Negoro aquele ponto do continente para onde os ventos tinham levado o «Pilgrim»?

Dick Sand neste momento deixou o leme, que entregou a Tom. Viu ainda a pequena angra que se abria, pouco a pouco; depois, dirigindo-se para Mrs. Weldon, disse-lhe com voz firme:

 — Perdi toda a esperança de encontrar refúgio! Antes de meia hora o «Pilgrim» estará sobre os escolhos. É inevitável dar à costa. Não levarei o meu navio a porto de salvamento! Sou obrigado a perder o patacho para a salvar; mas, Mrs. Weldon, entre a sua salvação e a do navio, não hesito!

 — Fizeste tudo quanto estava ao teu alcance, Dick? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Tudo! — afirmou o praticante.

E imediatamente começou os preparativos necessários para encalhar.

Antes de tudo foram postos, a Mrs. Weldon, Jack, primo Bénédict e Nan, cintos de salvação. Dick Sand, Tom e os pretos, como hábeis nadadores, prepararam-se para ganhar a terra a nado, se acaso tivessem de se lançar ao mar.

Hércules devia particularmente tomar conta em Mrs. Weldon. O praticante encarregava-se de Jack. Primo Bénédict, muito tranquilo, apareceu na tolda trazendo a tiracolo a sua caixa de entomologista. O praticante recomendou-o a Bat e a Agostinho. Quanto a Negoro, o seu aspecto, singularmente sereno, dizia claramente que ele não necessitava do auxílio de ninguém.

Dick Sand, por suprema precaução, mandou pôr sobre o castelo doze barris do carregamento, cheios de óleo de baleia.

O óleo, lançado ao mar exactamente no momento em que o «Pilgrim» estivesse sobre a arrebentação, devia acalmá-lo por algum tempo, lubrificando, por assim dizer, as moléculas da água. Esta operação facilitaria talvez a passagem do navio entre os recifes.

Dick Sand nada queria desprezar de quanto pudesse concorrer para a salvação de todos.

Tomadas as necessárias precauções, o praticante retomou o seu lugar ao leme.

O «Pilgrim» estava a duas amarras da costa, isto é, quase a tocar nas pedras; o costado de estibordo banhava-se na escuma branca da ressaca. A cada momento o praticante esperava sentir a quilha do navio bater em algum rochedo do fundo.

De repente, Dick Sand percebeu, ipela mudança na cor da água, que um estreito canal passava entre os recifes. Era preciso sem hesitar seguir atrevidamente por ele, a fim de ir encalhar o mais perto possível da praia.

Não hesitou. Com uma guinada, meteu o navio pelo estreito e sinuoso canal. Neste lugar o mar estava ainda mais furioso e as ondas ressaltavam para a tolda.

Os pretos estavam na proa, próximo dos barris, esperando as ordens do praticante.

 — Despejem o óleo! Despejem! — gritou Dick Sand. Sob a acção do óleo, que se deitava com abundância, o mar sossegou como por encanto, mas pronto a tornar-se mais furioso, instantes depois.

O «Pilgrim» deslizou rapidamente sobre as águas lubrificadas e pôs a proa direita para a terra.

Subitamente sentiu-se um choque. O navio, levantado por uma onda formidável, tinha encalhado, e a mastreação caiu, sem ferir ninguém.

O casco do «Pilgrim», aberto pelo choque, foi invadido pela água, com grande violência. Mas a praia estava a menos de meia amarra, e uma fiada de pedras pequenas e negras dava fácil passagem.

Assim, dez minutos depois, todos que o «Pilgrim» trazia a bordo tinham desembarcado junto das rochas.

 

O QUE CONVINHA FAZER

Em seguida a uma viagem contrariada ao princípio por calmas e favorecida depois pelos ventos dos quadrantes noroeste e sudoeste, a qual durou setenta e quatro dias, o «Pilgrim» deu à costa.

Contudo, Mrs. Weldon e os seus companheiros deram graças à Providência logo que se encontraram salvos. Foi com efeito sobre um continente e não numa das funestas ilhas da Polinésia que a tempestade os lançou. A repatriação dos náufragos, qualquer que fosse o ponto da América do Sul em que estivessem, não devia apresentar grandes dificuldades.

O «Pilgrim» estava completamente perdido. Era apenas um casco de pouco ou nenhum valor, que a rebentação desfaria dentro de poucas horas. Seria impossível salvar alguma coisa. Se Dick Sand não teve o prazer de levar o navio intacto ao seu dono, ao menos aqueles que vinham a bordo estavam sãos e salvos em terra hospitaleira, e entre eles a mulher e o filho de James Weldon.

Pelo que dizia respeito ao conhecimento do lugar onde o patacho naufragou, assunto era este de não fácil resolução. Seria, como supunha Dick Sand, a costa do Peru? Talvez, porque Dick Sand sabia, pelas marcações que fez na ilha de Páscoa, que o «Pilgrim» tinha sido levado para o nordeste pela acção dos ventos e também pela influência das correntes da zona equatorial.

Dos quarenta e três graus de latitude, chegara até aos quinze. Era, pois, muito importante fixar bem e o mais depressa possível o ponto da costa em que o patacho se perdera. Aceitando-se como certo que aquela costa era a do Peru, os portos, as aldeias ou as vilas não faltavam, e, consequentemente, seria fácil alcançar qualquer ponto habitado. A parte do litoral onde o navio naufragara parecia de todo deserta.

Era uma estreita praia de areia, semeada de pedras escuras, da qual se erguia a rocha escarpada e cortada por sulcos irregulares. Aqui e ali ladeiras suaves davam acesso para a eminência.

Do lado do Norte, talvez a um quarto de milha do lugar do naufrágio, abria-se a embocadura de um pequeno rio, que se não avistou do mar. Nas suas margens cresciam numerosos rizóforos, espécie de mangueiras essencialmente distintas das suas congéneres da índia.

No alto do rochedo — viu-se pouco depois — havia uma espessa floresta, cujos tufos de verdura, ondulantes à vista, se estendiam até às montanhas que formavam o fundo do quadro. Se primo Bénédict fosse botânico, quantas árvores novas para ele teriam provocado a sua admiração!

Viam-se as altas adansónias, árvores a que erradamente se tem atribuído longevidade extraordinária e cuja casca se assemelha à sienite egípcia, os tamarindos, pimenteiras de espécie rara, e centenas de outros vegetais, que os Americanos não estão habituados a ver na região boreal do novo continente.

Mas — circunstância muito notável — entre estas várias espécies florestais não se encontrou um exemplar da numerosa família das palmeiras, que conta mais de mil espécies, profusamente espalhadas por toda a superfície do Globo.

Sobre a praia esvoaçavam muitas aves, soltando gritos estrídulos, a maior parte das quais, pertencentes às diferentes variedades de andorinhas, tinham plumagem negra com reflexos azulados e a parte superior da cabeça de cor ruiva-acastanhada. Aqui e ali viam-se algumas galinhas do mato. Mrs. Weldon e Dick Sand notaram que aqueles diversos voláteis não pareciam muito selvagens. Deixavam aproximar-se-lhes sem nada recearem. Não teriam ainda aprendido a temer o homem e seria por acaso aquela costa tão abandonada que a detonação das armas de fogo nunca ali se tivesse ouvido?

Na orla dos escolhos passeavam alguns pelicanos da espécie do pelicanominori, os quais se entretinham enchendo de peixes o saco que têm na mandíbula inferior.

Algumas gaivotas, vindas do mar, giravam em roda do «Pilgrim».

Estas aves eram os únicos seres vivos que pareciam frequentar aquele lugar, exceptuando, porém, grande número de insectos, que primo Bénédict decerto descobriria. Jack desejava muito saber o nome do país em que estava, mas as aves e os insectos não o podiam dizer; para lhe responder seria, pois, necessário perguntá-lo aos indígenas. Não os havia ou não se viam. Tão-pouco se encontravam sinais de habitação, cabana ou choça, nem ao norte, para além do pequeno rio, nem para o sul, nem finalmente para a parte superior da rocha, entre as árvores da espessa floresta. Não se via no ar um fumozinho sequer. Nem um sinal, vestígio ou pegada, indicava que aquela porção do continente fosse visitada por seres humanos.

Dick Sand estava cada vez mais surpreendido.

 — Onde estamos, onde podemos estar? — perguntava ele. — Pois que não há aqui ninguém?

Ninguém, na verdade, e seguramente, se algum indígena se aproximasse, Dingo tê-lo-ia sentido e anunciado ladrando. O cão percorria a praia de um para outro lado, com o focinho levantado, a cauda caída, rosnando surdamente, e muito extraordinário no aspecto, não denunciando, porém, a aproximação de homens ou de animais.

 — Dick, olha para Dingo! — advertiu Mrs. Weldon.

— É verdade, tem alguma coisa de extraordinário — respondeu o praticante. — Parece que procura um rasto.

 — Muito extraordinário, é verdade! — murmurou Mrs. Weldon.

Depois continuou:

 — Que faz Negoro?

 — Faz o mesmo que Dingo — respondeu Dick Sand. — Anda de um para outro lado!... Aqui está livre. Não tenho o direito de lhe dar ordens. O seu serviço terminou quando acabou o «Pilgrim»!

Efectivamente, Negoro andava sobre a areia, voltava-se, contemplava a praia e as rochas, como quem procura reunir e fixar todas as suas lembranças. Conheceria ele aquele sítio? Provavelmente recusar-se-ia a responder a esta pergunta se lha fizessem. O melhor era não atender àquela personagem tão pouco sociável. Dick vira-o encaminhar-se para o lado do pequeno rio, e, logo que desapareceu na curva da rocha, nunca mais pensou nele.

Dingo ladrou quando o cozinheiro chegou à praia, mas calou-se pouco depois.

Era ocasião de pensar no mais instante. O que urgia mais era escolher um refúgio, um abrigo qualquer onde pudessem provisoriamente dormir e comer. Depois se pensaria e decidiria o que imais convinha fazer.

A alimentação não dava cuidado. Sem falar dos recursos que a região devia oferecer, a despensa do navio ficara despejada em proveito dos náufragos. O mar, aqui e ali, por entre os escolhos que a vazante descobriu, arrojara grande quantidade de objectos. Tom e os seus companheiros tinham apanhado barricas de bolacha, latas de conservas alimentícias e barris de carne salgada, que a água não havia ainda avariado. A alimentação do pequeno grupo estava pois garantida por mais tempo que o necessário para chegar a qualquer aldeia ou povoação. Sob este ponto de vista nada havia a recear.

Os diversos salvados estavam postos em sítio onde não chegava a preia-mar.

Não faltava a água doce. Em primeiro lugar, Dick Sand teve o cuidado de mandar Hércules buscar uma pequena quantidade de água. Mas o vigoroso negro trouxe aos ombros uma quartola de pura e boa água do rio, que na baixa-mar ficava perfeitamente potável.

Lume, se fosse necessário, não faltaria; havia nas proximidades madeira seca e raízes de mangueiras, para fornecer o combustível de que se carecesse. O velho Tom, fumador insaciável, tinha consigo, em caixa hermeticamente fechada, uma porção de isca, e, quando se quisesse, petiscaria fogo ainda que fosse com os sílex da praia.

Só faltava encontrar a gruta onde se abrigasse o pequeno grupo, para o caso de ser conveniente descansar antes de se pôr a caminho.

Foi Jack quem encontrou o abrigo que se procurava. Brincando junto à rocha, numa curva que ela fazia, Jack descobriu uma dessas cavernas, limpas e nuas, que o mar cava em rochedos, quando as ondas, engrossadas pela fúria das tempestades, rebenta nas costas.

A criança estava satisfeitíssima. Chamou a mãe, dando gritos de alegria, e mostrou-lhe com ar de triunfo a sua

descoberta.

 — Muito bem, .meu Jack! — disse Mrs. Weldon. — Se fôssemos Robinsons, destinados a viver largo tempo sobre esta praia, não nos esqueceríamos decerto de dar o teu nome à tua gruta.

A gruta tinha dez pés de profundidade e outros tantos de largura; mas para Jack era uma caverna enorme; bastava porém para abrigar os náufragos, e Mrs. Weldon e Nan viram com satisfação que estava perfeitamente seca. Por ser quarto crescente, as marés eram mortas; por consequência, a água não chegaria à base do rochedo e menos ainda à gruta. Era, pois, quanto bastava para descansar algumas horas.

Dez minutos depois estavam todos estendidos sobre um tapete de vareques. Negoro veio também juntar-se ao grupo e tomar parte na refeição, que seria feita em comum. Indubitavelmente Negoro não julgara conveniente aventurar-se só pela espessa floresta, por entre a qual se sumia aquele sinuoso rio.

Era uma hora da tarde. Carne de conserva, bolacha, água doce com algumas gotas de rum, de uma pequena quartola que Bat salvou, foi o jantar.

Negoro comeu, mas não tomou parte na conversação, na qual se discutiam as medidas que exigia a situação dos náufragos. Sem contudo o parecer, prestou muita atenção e por certo aproveitou do que ouviu.

Durante este tempo Dingo, que não fora esquecido, guardava a gruta. Podia-se estar ali sem receio. Nenhum ser vivo apareceria na praia sem que o fiel animal desse aviso.

Mrs. Weldon, que tinha Jack reclinado sobre os braços e quase adormecido, disse, dirigindo-se a Dick Sand:

 — Dick, agradeço em nome de todos a dedicação que por nós tens mostrado, mas ainda te resta alguma coisa que fazer. Serás o nosso guia em terra, como foste o nosso capitão a bordo. Tens toda a nossa confiança. Fala! Que devemos fazer?

Mrs. Weldon, a velha Nan, Tom e os seus companheiros olhavam para o jovem praticante. Negoro também olhava para ele com extraordinária insistência. Evidentemente, a resposta de Dick Sand interessava-o particularmente.

Depois de reflectir um pouco, Dick Sand respondeu:

 — .Mrs. Weldon, o que mais importa é saber, antes de tudo, em que lugar estamos. Julgo que o nosso navio veio dar com a terra na parte do litoral da América que forma a costa peruana. Os ventos e as correntes trouxeram-no até esta latitude. Mas estamos nós na província meridional do Peru, isto é, na parte menos habitada que confina com os Pampas? Talvez.

Tenho até mais razão para crer em tal, vendo esta praia deserta e que deve ser pouco frequentada. Neste caso, é provável que estejamos muito distantes da mais próxima aldeola, o que será muito penoso.

 — Mas que devemos fazer? — repetiu Mrs. Weldon.

 — A minha opinião é que se não deixe este abrigo sem estarmos bem certos da nossa situação. Amanhã, depois de termos repousado esta noite, dois de nós irão à descoberta. Os que forem tratarão, sem se afastar muito, de encontrar alguns indígenas e de obter deles os possíveis esclarecimentos, depois do que voltarão para esta gruta. É impossível que num raio de dez ou doze milhas não se encontre ninguém.

 — Mas temos de nos separar! — objectou Mrs. Weldon.

 — Parece-me necessário — respondeu o praticante. — Mas se nada pudermos saber, se a região for completa-mente deserta, então veremos o que será melhor fazer.

 — E quem deve ir à descoberta? — perguntou Mrs. Weldon depois de reflectir.

 — É o que resta decidir — redarguiu Dick Sand. — Penso contudo que Mrs. Weldon, Jack, o Sr. Bénédict e Nan não devem sair desta gruta. Bat, Hércules, Acteão e Agostinho ficarão também, enquanto Tom e eu iremos ver se alguma coisa descobrimos. Negoro, sem dúvida, prefere ficar aqui? — acrescentou Dick Sand, olhando para o cozinheiro.

 — Provavelmente fico — respondeu Negoro, que não era homem que se obrigasse a muito.

 — Levaremos Dingo connosco — disse ainda o praticante. — Ser-nos-á útil durante a nossa exploração.

Dingo, ouvindo pronunciar o seu nome, apareceu à entrada da gruta, e parecia aprovar por ligeiros latidos os projectos de Dick Sand.

Mrs. Weldon ficou pensativa logo que ouviu a proposta do praticante. Custava-lhe muito a ideia da separação, ainda que por pouco tempo. Não poderia acontecer que as tribos índias, que frequentavam o litoral, tanto ao norte como ao sul, soubessem do encalhe do «Pilgrim», e, no caso de virem alguns ladrões para roubar os despojos do naufrágio, não seria melhor que todos estivessem reunidos para os repelir?

Esta objecção merecia ser realmente discutida.

Caiu, porém, ante os argumentos de Dick Sand, o qual observou que os índios da América não se deviam confundir com os selvagens da África ou da Polinésia, e que provavelmente as suas agressões não seriam para recear. Mas internarem-se naquele território sem saber a que província da América do Sul pertencia, nem a que distância se estava da povoação mais próxima, era exporem-se a -muitas fadigas. A separação tinha inconvenientes, sem dúvida, mas muito menores do que caminhar cegamente por entre florestas, que se prolongavam até à base das montanhas que se viam lá -muito ao longe.

 — Não julgo que esta separação dure muito, e ouso afirmar que será por pouco tempo. Se no fim de dois dias, quanto muito, Tom e eu não tivermos encontrado habitações nem habitantes, voltaremos para esta gruta; mas isto é inverosímil, e creio que não andaremos mais de vinte milhas pela terra dentro sem que saibamos exactamente a nossa situação geográfica. Posso ter-me enganado na estima, e não é para admirar, faltando-me os meios astronómicos, que estejamos em latitude mais alta ou mais baixa.

 — Certamente... tens razão, meu rapaz! — respondeu Mrs. Weldon, ansiosa.

 — E o que pensa o Sr. Bénédict deste projecto? — perguntou Dick Sand.

 — Eu? — volveu primo Benédict.

 — Sim, qual é a sua opinião?

 — Eu... não tenho opiniões — respondeu primo Bénédict. — Acho tudo bom, e farei tudo quanto quiserem. Querem ficar aqui um ou dois dias? Não me desagrada.

Empregarei o tempo em estudar a praia sob o ponto de vista entomológico.

 — Faz a tua vontade — disse então Mrs. Weldon a Dick Sand. — Ficaremos nós, e tu partirás com Tom.

 — Está dito — acrescentou primo Bénédict o mais tranquilamente que é possível. — Vou fazer os meus cumprimentos aos insectos destes sítios.

 — Não se afaste muito, Sr. Bénédict — aconselhou o praticante. — Olhe que bem lho recomendamos. — Não se preocupe por minha causa.

 — E sobretudo não nos traga muitos mosquitos! — acrescentou Tom.

Poucos minutos depois, o entomologista, com a sua preciosa caixa de folha a tiracolo, saiu da gruta.

Quase ao mesmo tempo, Negoro saía também. Parecia muito natural a este homem não se ocupar senão de si; e quando primo Bénédict trepava pelas ladeiras da rocha, a fim de ir explorar a orla da floresta, Negoro voltava para o lado do rio, afastava-se vagarosamente, e pela segunda vez desaparecia, trepando pelas ribanceiras.

Jack continuava a dormir. Mrs. Weldon, deixando-o sobre os joelhos de Nan, desceu para a praia, seguida por Dick Sand e pelos seus companheiros. Tratava-se então de ver se o estado do mar permitiria ir ao «Pilgriim», onde ainda estavam muitos objectos que lhes podiam ser úteis.

Os recifes em que encalhara o patacho estavam completamente descobertos. No meio dos destroços de toda a espécie avultava o casco do navio, que a água na preia-mar tinha quase imerso. Não deixou isto de causar espanto a Dick Sand, porquanto sabia que as marés crescem pouco no litoral americano do Pacífico. O fenómeno, porém, podia explicar-se pela fúria do vento de encontro à costa.

Revendo o seu navio, Mrs. Weldon e os seus companheiros sentiram tristíssima impressão. Ali tinham vivido muitos dias, fora ali que muito sofreram!

O aspecto do infeliz navio, quase quebrado, sem mastros e sem velas, deitado sobre um lado, como que privado de vida, pungia-lhes o coração.

Era, porém, necessário ir até ao barco, antes que o mar acabasse de o desfazer.

Dick Sand e os negros entraram facilmente, depois de se terem içado para a tolda por meio de alguns cabos que pendiam da amurada do «Pilgrim». Enquanto Tom, Hércules, Bat e Agostinho tiravam da despensa tudo que podia ser aproveitado, tanto comestíveis como líquidos, o praticante foi até à câmara. Graças a Deus, a água não tinha penetrado até aquele lugar do navio, porque a popa ficara emersa depois do encalhe.

Dick Sand encontrou na câmara quatro carabinas em bom estado, excelentes «Remingtons» da fábrica de Purdey & C.a, assim como cerca de cem cartuchos, cuidadosamente arrumados nas respectivas cartucheiras. Era quanto bastava para armar a sua gente e pô-la em estado de resistir se, contra todas as previsões, os índios os atacassem no caminho.

Não deixou tão-pouco o praticante de lançar mão de uma pequena lanterna, mas os mapas, que estavam guardados no seu alojamento avante, ficaram completamente avariados pela água e incapazes de servir.

Havia também a bordo do «Pilgrim» algumas machadinhas, que serviam para cortar as baleias. Dick Sand escolheu seis, que destinou para completar o armamento dos seus companheiros, e não se esqueceu de trazer uma inofensiva espingarda de criança, que pertencia a Jack. Quanto aos outros objectos que tinham ficado no navio, ou estavam perdidos, ou já não podiam servir. Era desnecessário trazer muito para poucos dias de viagem. De víveres, armas e munições estavam providos com abundância. Contudo, Dick Sand, por opinião de Mrs. Weldon, não quis deixar de trazer consigo todo o dinheiro que havia a bordo — cerca de quinhentos dólares.

Era pouco, realmente! Mrs. Weldon trouxera soma superior àquela, mas não se encontrou.

Quem, senão Negoro, os teria precedido na visita a bordo do navio e seria capaz de se apoderar do pecúlio do capitão Hull e de Mrs. Weldon? Ninguém, senão ele, com toda a certeza, se tornava suspeito. Contudo, Dick Sand ainda hesitou. O que Dick sabia de Negoro, o que dele pensava, era que tudo se devia recear daquela natureza concentrada, a quem os males alheios faziam sorrir. Negoro era mau, mas, porque era mau, devia concluir-se que fosse ladrão? Repugnava ao carácter de Dick Sand ir tão longe. E, contudo, podiam as desconfianças recair sobre outra pessoa? Não, os honestos pretos não tinham saído da gruta, ao passo que Negoro fora visto a passear pela praia. Só ele, pois, devia ser o culpado. Dick Sand resolveu, pois, interrogar Negoro, e em caso de necessidade revistá-lo logo que ele voltasse.

O Sol descia para o horizonte. Naquela data ainda não tinha passado o equador para ir levar calor e luz ao hemisfério boreal, mas não tardaria muito. Baixou, pois, quase perpendicularmente à linha circular, onde o mar e o céu se confundem. Durou pouco o crepúsculo e a obscuridade fez-se prontamente, o que firmou o praticante na ideia de que ele se chegara a terra num ponto do litoral situado entre o trópico de Capricórnio e o equador.

Mrs. Weldon, Dick Sand e os pretos voltaram para a gruta, onde deviam repousar algumas horas.

 — A noite há-de ser ainda tormentosa — observou Tom, mostrando o horizonte carregado de nuvens espessas.

 — É verdade — confirmou Dick Sand —, temos vento muito fresco. Mas o que nos importa agora, se o nosso infeliz navio está perdido! A tempestade não nos fará dano.

 — Seja feita a vontade de Deus! — disse Mrs. Weldon.

Combinou-se que durante aquela noite, que ameaçava ser escuríssima, cada um dos negros vigiaria alternadamente à entrada da gruta. Além disto, contava-se com Dingo.

Deu-se então pela falta de primo Bénédict.

Hércules chamou-o com toda a força dos seus vigorosos pulmões, e quase ao mesmo tempo viu-se o entomologista descer pela rocha, com risco de quebrar a cabeça.

Primo Bénédict estava literalmente furioso. Não encontrara um único insecto novo na floresta, nem um só que fosse digno de figurar na sua colecção. Escorpiões, escolopendras e outros miriápodes, tudo quanto se quisesse e até mais, tudo havia. Mas, como se sabe, primo Bénédict não se entusiasmava com os miriápodes.

 — Não valia a pena — dizia ele — ter andado cinco ou seis mil milhas, ter apanhado uma tempestade e naufragar, para no fim de tudo não encontrar um único dos hexápodes americanos que dão honra aos museus ento-mológicos! Não! Para isto não valia a pena!

Em conclusão, primo Bénédict propôs que saíssem daquele sítio. Não queria ficar nem mais uma hora naquela detestável praia.

Mrs. Weldon sossegou-o. Deram-lhe esperanças de que seria mais feliz no dia seguinte. Todos se iam abrigar na gruta, para dormir até ao romper do Sol, quando Tom notou que Negoro ainda não tinha voltado, apesar de já ser noite fechada.

 — Onde estará ele? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Que nos importa isso! — disse Bat.

 — Importa, pelo contrário — replicou Mrs. Weldon. — Gostaria mais de o ver aqui.

 — Sem dúvida, Mrs. Weldon — interveio Dick Sand —, mas se ele nos deixou por sua própria vontade, não sei de que modo o obrigaremos a voltar! Quem sabe se ele não tem razões para fugir de nós?

E, chamando de parte Mrs. Weldon, Dick Sand comunicou-lhe todas as suspeitas que tinha. Não se espantou, porém, sabendo que Mrs. Weldon as tivera igualmente.

Só num ponto divergiam.

 — Se Negoro reaparecer — afirmou Mrs. Weldon —, é porque escondeu o seu roubo em lugar seguro. Na minha opinião, o melhor que temos a fazer, porque não podemos convencê-lo, será ocultar as nossas suspeitas, e deixá-lo acreditar que de coisa alguma desconfiamos.

Mrs. Weldon tinha razão e Dick Sand acabou por concordar com ela.

No entanto, Negoro foi chamado muitas vezes... Não respondeu. Ou estava já muito longe para ouvir ou não quis responder.

Os negros não lastimaram a perda de Negoro; mas, como bem dissera Mrs. Weldon, talvez ele fosse mais para temer estando longe do que perto! E como explicar que Negoro se quisesse aventurar sozinho por aquele território desconhecido? Ter-se-ia, pois, afastado, ou andaria em vão procurando, por aquela noite escura, o caminho da gruta?

Mrs. Weldon e Dick Sand não sabiam o que pensar. Fosse, porém, como fosse, não podiam, para esperar Negoro, privar-se do repouso, que a todos era tão necessário.

Neste momento o cão, que corria sobre a praia, ladrou com força.

 — Que é isso, Dingo? — perguntou Mrs. Weldon.

 — É necessário sabê-lo — declarou o praticante. — Talvez seja Negoro que volta...

Imediatamente Hércules, Bat, Agostinho e Dick Sand se dirigiram para a embocadura do rio.

Chegados à margem, nada viram, nem ouviram. Dingo calou-se.

Dick Sand e os companheiros voltaram para a gruta.

Arranjou-se tudo do melhor modo possível.

Os pretos dispuseram-se para vigiar alternadamente, fora da gruta, mas Mrs. Weldon, inquieta, não pôde dormir. Parecia-lhe que aquela terra, tão ardentemente desejada, não lhe dava o que ela tanto esperava: segurança para os seus e repouso para si.

 

HARRIS

No dia seguinte, 7 de Abril, Agostinho, que vigiava quando nasceu o Sol, viu Dingo correr ladrando para o lado do rio. Quase ao mesmo tempo, Mrs. Weldon, Dick Sand e os pretos saíram da gruta.

Havia, pois, alguma coisa extraordinária.

 — Dingo pressentiu homem ou animal — disse o praticante.

 — Em todo o caso não é Negoro — observou Tom —, porque então Dingo ladraria com furor.

 — Se não é Negoro, onde estará ele? — perguntou Mrs. Weldon, lançando para Dick Sand um olhar que só ele compreendeu. — Se não é Negoro, quem será então?

 — Vamos sabê-lo, Mrs. Weldon — respondeu o praticante.

Depois, voltando-se para Bat, Agostinho e Hércules, ordenou:

 — Armem-se e venham comigo!

Cada um dos pretos pegou numa espingarda e numa machadinha; na culatra das «Remingtons» entrou um cartucho, e armados deste modo dirigiram-se todos os quatro para a margem do rio.

Mrs. Weldon, Tom e Acteão ficaram à entrada da gruta, de onde Jack e Nan não tinham saído.

Nascia então o Sol. Os seus raios, interceptados pelas

altas montanhas que ficavam para leste, não feriam ainda as rochas, mas para o lado do poente a luz da manhã cintilava no mar até ao horizonte.

Dick Sand e os seus companheiros seguiram a praia, cuja curva se apertava na embocadura do rio.

Ali Dingo, imóvel e como que pronto a arremeter, ladrava sempre.

Evidentemente vira ou sentira algum indígena.

Com efeito, não era a Negoro, o seu implacável inimigo de bordo, a quem desta vez o cão se dirigia.

Um homem aparecia naquele momento no lugar onde acabava a rocha. Caminhava vagarosamente pela margem, e por gestos familiares tentava sossegar Dingo. Não se importava de afrontar a cólera do valente animal.

 — Não é Negoro! — disse Hércules.

 — Não perdemos na troca! — continuou Bat.

 — Não! — Concordou o praticante. — É provavelmente algum indígena, que nos evitará a tristeza da separação. Vamos, pois, saber exactamente onde estamos!

E os quatro, pondo as armas ao ombro, encaminharam-se rapidamente para o desconhecido.

Este, vendo-os aproximar, mostrou-se surpreendido.

Não esperava encontrar estrangeiros naquele lugar da costa. Evidentemente, não vira os destroços do «Pilgrim»; se os visse, a presença dos náufragos teria para ele fácil explicação. Durante a noite, o mar acabara de destruir o casco do navio, do qual só restavam alguns pedaços, que flutuavam à tona de água.

No primeiro momento o desconhecido, vendo dirigirem-se para ele os quatro homens armados, fez um movimento como para retrogradar. Trazia a arma a tiracolo, mas passou-a rapidamente para a mão e da mão para o ombro. Percebe-se com facilidade que não estivesse perfeitamente tranquilo.

Dick Sand fez-lhe um gesto de saudação, que o desconhecido sem dúvida compreendeu, porque, depois de uma pequena hesitação, continuou a caminhar.

Dick Sand pôde então vê-lo bem.

Era um homem vigoroso, de quarenta anos de idade, quando muito, olhar vivo, barba e cabelos grisalhos, tez queimada, como a dos nómadas, que vivem sempre ao ar livre da floresta ou da planície. Uma espécie de camisola de pele curtida servia-lhe de casaco, chapéu de abas largas, botas até ao joelho e esporas assentes em tacões de prateleira.

O que Dick Sand percebeu imediatamente — não se enganava — foi que não tinha diante de si um índio vagabundo dos Pampas, mas um desses aventureiros, pouco recomendáveis, que se encontram frequentes vezes nas mais remotas regiões. Pelo seu aspecto e pela cor arrui-vada de alguns cabelos da barba, parecia que o desconhecido devia ser de origem anglo-saxónica. Em todo o caso não era nem índio nem espanhol.

E disto houve a confirmação quando Dick Sand lhe disse em inglês:

 — Seja muito bem-vindo.

O desconhecido respondeu na mesma língua e sem pronúncia mesclada:

 — Outro tanto digo eu.

E dirigiu-se para o praticante, cuja mão apertou. Aos negros fez um gesto, sem lhes dirigir palavra.

 — São ingleses? — perguntou ele ao praticante.

 — Somos americanos — respondeu Dick Sand.

 — Do Sul?

 — Do Norte.

Esta resposta pareceu agradar-lhe, porque apertou mais vigorosamente a mão do praticante, e desta vez bem à americana.

 — Posso saber porque se encontram nesta costa? Mas, sem esperar que o praticante lhe respondesse, o

desconhecido tirou o chapéu e cumprimentou.

Mrs. Weldon, que viera até à margem do rio, encontrava-se então em frente dele.

Foi ela quem respondeu.

— Somos náufragos. O nosso navio perdeu-se ontem sobre aqueles recifes que além vê!

No rosto do desconhecido, que com a vista procurava o navio naufragado, transpareceu um sentimento de dó.

 — Nada resta do navio — disse Dick Sand. — Esta noite o mar destruiu-o completamente.

 — A nossa primeira pergunta — continuou Mrs. Weldon — será para saber onde estamos.

 — Estão na costa da América do Sul — respondeu o desconhecido, mostrando-se surpreendido pela pergunta. — -Pois podem ter alguma dúvida a semelhante respeito?

 — Sim, podemos, porque a tempestade desviou-nos da nossa rota — respondeu Dick Sand. — Mas perguntarei eu também: qual é precisamente a nossa posição? É na costa do Peru, como eu penso?

 — Não! É mais para o sul! Naufragaram na costa da Bolívia.

 — Ah! — exclamou Dick Sand.

 — Exactamente na região meridional da Bolívia que confina com o Chile.

 — Então que ponta é aquela? — interrogou Dick Sand, designando o promontório que lhes demorava ao norte.

 — Não sei dizer o nome — respondeu o desconhecido. — Conheço em parte o interior da região, porque a tenho percorrido muitas vezes, mas esta é a primeira vez que visito a costa.

Dick Sand reflectia no que acabava de ouvir, mas admirava-se pouco, porque a estima podia e devia mesmo tê-lo enganado, por causa das correntes; o erro porém não era muito grande. Julgava-se entre os vinte e sete e os trinta graus de latitude pelas marcações que fizera na ilha de Páscoa, e foi na latitude de vinte e cinco graus que encalhou.

Não era impossível que o «Pilgrim» tivesse desvio tão relativamente pequeno, numa tão longa viagem. Nada autorizava a duvidar das asserções do desconhecido, e porque aquela costa era a da baixa Bolívia, não havia motivo de espanto, por ser tão deserta.

 — Então — disse Dick Sand —, pelo que lhe ouvi, devo concluir que estamos a grande distância de Lima.

 — Oh! Lima está longe... para além! Muito para o norte!

Mrs. Weldon, desconfiada pelo desaparecimento de Negoro, observava o recém-chegado com muita atenção. Mas nem nos modos, nem pela maneira de se expressar, descobriu coisa alguma que a fizesse suspeitar da boa-fé do desconhecido.

 — Parece-me que não é de origem peruana? — disse Mrs. Weldon, que acrescentou: — Suponho que esta pergunta não será indiscreta.

 — Sou americano — informou o desconhecido, esperando que Mrs. Weldon lhe dissesse o seu nome.

 — Chamo-me Mrs. Weldon — respondeu esta.

 — E eu, Harris. Nasci na Carolina do Sul. Há vinte anos que troquei o meu país pelos Pampas da Bolívia. Tenho, pois, grande satisfação de ver compatriotas meus.

 — Habita nesta parte da província, Sr. Harris? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Não, Mrs. Weldon, vivo no sul, na fronteira do Chile, mas agora dirijo-me a Atacama, que fica para o nordeste.

 — Estaremos por acaso nos limites do deserto desse nome? — perguntou Dick Sand.

 — Exactamente, o deserto estende-se muito para além das montanhas que vemos no horizonte.

 — O deserto de Atacama? — repetiu Dick Sand.

 — Justamente — confirmou Harris. — Aquele deserto é como se fosse outro país, nesta vastíssima América do Sul, da qual difere em muitos pontos. É mesmo a região mais notável e a menos conhecida deste continente.

 — Viaja só? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Não é a primeira vez que faço esta viagem! — respondeu o americano. — A duzentas milhas daqui há uma herdade importante, a hacienda de San Felice, que pertence a um dos meus irmãos. Lá vou eu para tratar dos meus negócios. Se me querem acompanhar, asseguro-lhes que serão bem recebidos e que não lhes faltarão os meios de se transportarem para a cidade de Atacama. Meu irmão terá muito gosto em os poder servir.

Estes oferecimentos tão espontâneos não podiam deixar de dispor bem os ânimos a favor do americano, que continuou, dirigindo-se para Mrs. Weldon, e apontando com a mão para Tom e para os seus companheiros:

 — Estes pretos são seus escravos?

 — Já não temos escravos nos Estados Unidos — respondeu Mrs. Weldon. — O Norte há muito que aboliu a escravatura e o Sul seguiu-lhe o exemplo.

 — Ah! É verdade — volveu Harris. — Esquecia-me de que a guerra de 1862 acabara com esta grave questão. Peço perdão a esses homens — continuou Harris, metendo o bocadinho de ironia que os Americanos do Sul não dispensam nunca quando falam com pretos. — Mas vendo estes gentlemen ao seu serviço, julguei...

 — Não estão e nunca estiveram ao meu serviço, senhor — explicou gravemente Mrs. Weldon.

 — Honrar-nos-íamos muito em a servir, Mrs. Weldon — disse Tom —, mas bom é que o Sr. Harris saiba que a ninguém pertencemos. Fui escravo, é verdade, e como tal vendido em África, quando tinha apenas seis anos, mas meu filho Bat, que ali vê, nasceu de pai liberto, e os meus companheiros tiveram pais que eram homens livres.

 — Felicito-os — respondeu Harris, mas de um modo que Mrs. Weldon achou pouco sério. — Na Bolívia também não temos escravos. Nada pois têm a temer, e podem andar por aqui tão livremente como nos Estados da Nova Inglaterra.

Nesta ocasião Jack, acompanhado por Nan, saía da gruta, esfregando os olhos. Vendo sua mãe, correu para ela. Mrs. Weldon beijou-o com ternura.

— Que bonita criança! — disse o americano, aproximando-se de Jack.

 — É meu filho — declarou Mrs. Weldon.

 — Oh! Mrs. Weldon, tem sofrido duplamente, por ver o seu filhinho exposto a tantos incómodos.

 — Deus quis salvá-lo, assim como a nós, Sr. Harris -

respondeu Mrs. Weldon.

 — Dá-me licença que o beije? — perguntou Harris.

 — Com muito gosto.

Mas a cara do «Sr. Harris» não agradou a Jack, porque se abraçou a sua mãe.

 — Então — observou Harris — não quer que o beije! Meto-lhe medo?

 — Desculpe-o, senhor — disse Mrs. Weldon. — É timidez de criança.

 — Não importa! Ainda havemos de ser amigos. Quando estivermos na hacienda, montará um pónei muito bonito, e que servirá de medianeiro entre nós.

Mas o oferecimento do «bonito pónei» não seduziu o pequeno Jack.

Mrs. Weldon, muito contrariada, tratou de desviar a conversa. Convinha não desgostar quem tão obsequiosamente oferecia os seus serviços.

Enquanto isto se passava, Dick Sand reflectia na inesperada mas oportuna proposta de ir até à hacienda de San Felice. Tinham, conforme o que dissera Harris, de caminhar mais de duzentas milhas por florestas e planícies, viagem muito fatigante, porque faltavam os meios de transporte.

O praticante fez algumas observações a tal respeito, e esperou a resposta que lhe ia dar o americano.

 — A viagem é longa, com efeito — admitiu Harris —, mas além, a algumas centenas de passos da margem, tenho um cavalo, que ponho à disposição de Mrs. Weldon e de seu filho. Para nós não é difícil nem incómodo fazer o caminho a pé. Demais, quando lhes falei em duzentas milhas, era seguindo, como já fiz, o curso do rio; mas, se atravessarmos a floresta, encurtaremos o caminho oitenta milhas pelo menos. Ora, caminhando dez milhas por dia, chegaremos à hacienda sem grandes demoras.

Mrs. Weldon agradeceu ao americano.

 — Não pode agradecer-me melhor do que aceitando — afirmou Harris. — Conquanto eu nunca tivesse atravessado a floresta, creio que não me perderei. Tenho muita prática de caminhar nos Pampas. Há, porém, uma questão mais grave: é a dos víveres. Só tenho o que me era estritamente indispensável para chegar até à hacienda de San Felice.

 — Sr. Harris — retorquiu Mrs. Weldon —, felizmente temos víveres em grande abundância, e podemos reparti-los.

 — Muito bem, Mrs. Weldon; parece-me que tudo se arranjará do melhor modo possível, e que nada mais temos a fazer senão partir.

Harris dirigia-se para a margem, com a intenção de ir buscar o cavalo ao sítio- onde o deixara, quando Dick Sand o fez parar, fazendo-lhe uma pergunta.

Não agradava muito ao praticante abandonar o litoral para se embrenhar no interior da região através da interminável floresta. Em tudo se revelava marinheiro, e melhor e mais à sua vontade se acharia subindo ou descendo a costa.

 — Sr. Harris — observou ele —, em vez de caminharmos cento e vinte milhas pelo deserto de Atacama, porque não seguiremos de preferência o litoral? Distância por distância, não será melhor chegar à cidade mais próxima, quer seja ao norte, quer para o sul?

 — Mas, meu amigo — respondeu Harris, franzindo ligeiramente o sobrolho —, parece-me que nesta costa, que eu mal conheço, se não encontra cidade a menos de trezentas ou quatrocentas milhas.

 — Ao norte, certamente, mas para o sul?...

 — Para o sul — replicou o americano —, é necessário descer até ao Chile. Ora o caminho é quase tão longo, e, no seu lugar, preferiria contornar os Pampas da República Argentina. Pela minha parte, ainda que com muita pena, não podia acompanhá-los.

 — Os navios que vão do Chile para o Peru não passam à vista desta costa? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Não — informou Harris —, conservam-se ao largo. Por certo não avistaram nenhum.

 — Efectivamente não encontrámos — disse Mrs. Weldon. — Dick, tens mais alguma pergunta a fazer ao Sr. Harris?

 — Uma só, Mrs. Weldon — respondeu o praticante, que lhe custava muito a ceder. — Perguntarei ao Sr. Harris em que ponto julga que poderemos encontrar navio que nos leve a São Francisco?

 — Não sei dizer, meu amigo — volveu o americano. — Tudo quanto sei é que lhes proporcionaremos na hacienda de San Felice os meios de irem até à cidade de Atacama, e de lá...

 — Sr. Harris — esclareceu então Mrs. Weldon —, não suponha que Dick Sand hesite em aceitar os seus oferecimentos!

 — Não, Mrs. Weldon, não hesito — acudiu o praticante —, mas não posso evitar de me lastimar por não termos naufragado alguns graus para o norte ou mais para o sul. Estaríamos próximos de qualquer porto, e esta circunstância, facilitando a nossa repatriação, evitaria o incómodo, ainda que de boa vontade, do Sr. Harris.

 — Não receie incomodar-me, Mrs. Weldon — tornou Harris. — Repito: são raras as ocasiões de me encontrar com compatriotas. Tenho pois grande prazer em poder agora obsequiá-los.

 — Aceitamos o seu oferecimento, Sr. Harris — disse então Mrs. Weldon —, mas não queria privá-lo do seu cavalo. Ando bem a pé.

 — E eu também — respondeu Harris, cortejando. — Habituado às longas caminhadas através dos Pampas, não serei eu quem retardará a caravana. Mrs. Weldon e seu filho Jack servir-se-ão do meu cavalo. É, porém, possível que no caminho encontremos alguns criados da hacienda, que nos cederão as cavalgaduras em que vierem.

Dick Sand percebeu que se fizesse novas objecções desagradava a Mrs. Weldon.

 — Sr. Harris — perguntou então Dick —, quando partimos?

 — Hoje mesmo. A estação má começa em Abril e é necessário, tanto quanto for possível, que antes disso tenhamos chegado à hacienda de San Felice. Em suma, o caminho através da floresta, além de ser o mais curto, é também o mais seguro. É menos exposto que a costa às correrias dos índios nómadas, que são ladrões insaciáveis.

 — Tom, meus amigos — disse Dick Sand, voltando-se para os negros —, temos de fazer os preparativos para a partida. Escolhamos entre as provisões de bordo as que forem de mais fácil transporte, e façamos pequenos pacotes, que cada um de nós carregará.

 — Sr. Dick — retorquiu Hércules —, se quer, eu carrego tudo.

 — Não, Hércules — respondeu o praticante. — É melhor dividirmos os fardos.

 — É robustíssimo — comentou Harris, dirigindo-se para Hércules e olhando-o como se este estivesse à venda.

 — Na costa de África valeria bom dinheiro.

 — Valho quanto peso — respondeu Hércules, rindo.

 — Os compradores terão de correr bem se me quiserem deitar a mão.

Estava tudo combinado. Para apressar a partida trabalhavam todos. Só restava cuidar dos mantimentos necessários à pequena caravana para a jornada desde a costa até à hacienda, isto é, para doze dias de marcha.

 — Mas antes de partirmos, Sr. Harris, antes de aceitarmos a sua hospitalidade, peço-lhe que aceite a nossa, que de boa vontade lha oferecemos.

 — Aceito, Mrs. Weldon, aceito com muito gosto! — respondeu Harris com satisfação.

— Daqui a pouco tempo o almoço estará pronto.

 — E eu aproveitarei esse pouco tempo para ir buscar o meu cavalo, que decerto já almoçou.

 — Quer que o acompanhe? — perguntou Dick Sand ao americano.

 — Como quiser — acedeu Harris. — Venha, quero que conheça o curso daquele rio.

Partiram ambos.

Entretanto Hércules foi procurar o entoimologista. Primo Bénédict pouco se lhe dava do que acontecia. Procurava sobre a rocha um insecto, «que se não encontrava», e que não descobriria com certeza.

Hércules trouxe consigo Bénédict. Mrs. Weldon disse-lhe que a partida fora decidida e que era necessário caminhar doze dias pelo interior do território.

Primo Bénédict respondeu que estava pronto a partir e que o seu maior prazer era atravessar a América, contanto que o deixassem «fazer colecções» pelo caminho.

Mrs. Weldon, auxiliada por Nan, ocupou-se do almoço. Excelente precaução para quem tinha de caminhar.

Harris e Dick Sand tinham voltado o ângulo que fazia a rocha. Seguiram pela margem cerca de trezentos passos, até onde estava um cavalo preso a uma árvore, o qual, vendo o dono, relinchou.

Era um animal robustíssimo e de espécie desconhecida a Dick Sand. Tinha pescoço comprido, lombo curto, garupa alongada e testa quase chata; mostrava porém os caracteres distintivos das raças a que se atribui origem árabe.

 — Como vê — disse Harris — -é um bom cavalo, e pode ter a certeza de que não fraquejará no caminho.

Harris desprendeu o cavalo, pegou-lhe pelas rédeas e desceu a margem do rio, seguido por Dick Sand. Este lançara rápido olhar tanto sobre o rio como para as florestas que revestiam as duas margens. Nada viu que o inquietasse.

Contudo, logo que se aproximou mais do americano, fez-lhe subitamente e sem que Harris o esperasse a seguinte pergunta:

 — Sr. Harris, não encontrou esta noite um homem chamado Negoro?

 — Negoro? — respondeu Harris, como quem não compreende o que se lhe diz. — O que é esse Negoro?

 — Era o cozinheiro de bordo — tornou Dick Sand. — Desapareceu...

 — Talvez se afogasse?... — lembrou Harris.

 — Nada, não! — continuou Dick Sand. — Ainda ontem à tarde esteve connosco, mas durante a noite deixou-nos, e provavelmente foi seguindo pela margem deste rio. Por isso perguntei se o não vira para esse lado, visto que de lá veio.

 — Não encontrei ninguém — replicou o americano —, e se o seu cozinheiro se embrenhou só pela floresta, arrisca-se muito a perder-se. Talvez o encontremos no caminho.

 — Sim... talvez — admitiu Dick Sand.

Quando Harris e Dick chegaram à gruta, o almoço estava pronto. Compunha-se, como a ceia da véspera, de conservas alimentícias, corned beef e bolacha. Harris comeu com grande apetite.

 — Vejo — disse ele — que não morreremos de fome. Não direi outro tanto daquele pobre diabo, o cozinheiro, de quem o nosso jovem amigo me falou.

 — Ah! Dick Sand contou-lhe — disse Mrs. Weldon — que não tornámos a ver o cozinheiro?

 — Contei, Mrs. Weldon — acudiu o praticante. — Desejava saber se o Sr. Harris o tinha encontrado.

 — Não encontrei, não — repetiu Harris. — Mas deixemos o desertor e ocupemo-nos da partida! Quando Mrs. Weldon quiser!

Todos pegaram nos fardos que lhes estavam destinados. Mrs. Weldon, ajudada por Hércules, montou a cavalo, e o ingrato Jack, com a sua espingardinha a tiracolo, escarranchou-se, sem agradecer a quem punha à sua disposição tão bom ginete.

Jack disse então a sua mãe que sabia guiar perfeitamente o cavalo.

Deram-lhe as rédeas para segurar, e assim seguiu, acreditando que era ele o verdadeiro chefe da caravana.

 

NO CAMINHO

Não foi sem apreensões, aliás sem fundamento, que Dick Sand, depois de ter andado cerca de trezentos passos pela margem do rio, entrou enfim na floresta, onde, por veredas difíceis, ele e os seus companheiros tinham de caminhar durante uns doze dias.

Pelo contrário, Mrs. Weldon estava cheia de confiança, ela, mulher e mãe, a quem os perigos deviam duplamente inquietar.

Dois motivos, qual deles o mais forte, concorreram para a tranquilizar: o primeiro, porque naquela região dos Pampas não eram muito para recear os indígenas e os animais; o segundo, porque sob a direcção de Harris, que parecia guia seguro, não se arriscava a perder-se na floresta.

Eis a ordem em que deviam marchar e a qual se devia manter, tanto quanto possível, durante toda a jornada.

Dick Sand e Harris, armados, este com a sua comprida espingarda, aquele com uma carabina «Remington», iam na frente.

Depois Bat e Agostinho, igualmente armados, cada um com a sua carabina e uma machadinha.

Seguiam-se a estes Mrs. Weldon e Jack, a cavalo, e logo depois Nan e Tom.

Acteão, com a quarta carabina, e Hércules, com um machado à cinta, fechavam a marcha.

Dingo andava de um para o outro lado, como que farejando. Tinha visivelmente mudado de procedimento desde o naufrágio do «Pilgrim». Parecia agitado, e, sem quase cessar, dava uivos surdos, mais lamentosos que enraivecidos. Todos notavam isto, mas ninguém sabia explicar o motivo.

No que diz respeito ao primo Bénédict, fora impossível, como a Dingo, determinar-lhe ordem de marcha. A não ser que o levassem amarrado, não seria o entomologista que a ela se sujeitaria. Com a caixa de folha a tiracolo, rede na mão, lupa ao pescoço, ora caminhando adiante, ora ficando para trás, metendo-se por entre as plantas, procurava ortópteros ou qualquer outro insecto de nome terminado em «ptero», arriscando-se a ser mordido pelas serpentes venenosas.

Na primeira hora, Mrs. Weldon, inquieta, chamou-o repetidas vezes. Nada conseguiu.

 — Primo Bénédict — disse-lhe ela enfim —, peço-lhe muito seriamente que não se afaste de nós. Pela última vez lhe digo que se não esqueça do meu pedido.

 — Mas se eu vir algum insecto? — objectou o obstinado entomologista.

 — Se vir algum insecto, deixe-o ir em paz, senão* obriga-me a mandar-lhe tirar a sua caixa!

 — Quê? Tirar-me a caixa! — exclamou primo Bénédict, como se o ameaçassem de lhe tirar as entranhas.

 — A caixa e a rede! — acrescentou inexoravelmente Mrs. Weldon.

 — Também a rede, prima? E porque não irão os óculos? Não faz isso! Não se atreve a fazer isso!

 — E é verdade, os óculos também. Agradeço-lhe, primo, por me haver lembrado o meio de o cegar, e por consequência de o obrigar a ser cauteloso.

Desta tríplice ameaça resultou que o rebelde primo se conservou mais sossegado durante uma hora aproximadamente; mas tempo depois afastava-se outra vez, como o teria feito se não tivesse nem rede, nem caixa, nem óculos. Era pois melhor deixá-lo andar à vontade. Hércules encarregou-se de o vigiar, o que naturalmente ficou no número das obrigações a seu cargo. Tinha ordem de proceder como primo Bénédict procedia com os insectos, isto é, em caso de necessidade, agarrá-lo e conduzi-lo tão delicadamente como o entomologista fazia ao mais raro dos lepidópteros.

Depois disto, ninguém mais pensou no primo Bénédict. A caravana, como se sabe, ia bem armada; mas Harris repetia que não tinham a recear senão o encontro, aliás pouco agradável, dos índios nómadas. Em todo o caso, porém, as disposições que haviam tomado bastariam para os conter em respeito.

As veredas da cerrada floresta, se tal nome se lhes podia dar, mais eram estreitíssimos caminhos para animais do que para homens. A muito custo se avançava por elas. Por isso, Harris, calculando em dez milhas a média do andamento por cada dia de jornada, calculara com muita exactidão.

O tempo estava bom. O Sol, quase no zénite, dardejava perpendicularmente os seus raios. Na planície haveria intolerável calor; mas ali, sob aquelas ramagens impenetráveis, o sol suportava-se fácil e impunemente.

A maior parte das árvores da floresta eram desconhecidas, tanto de Mrs. Weldon como dos seus companheiros, brancos ou pretos. Os entendidos, porém, veriam que mais era para notar a qualidade do que a grandeza. Aqui a bauínia, ou pau-ferro; ali o molompó, idêntico ao pterocarpo, madeira resistente e leve, própria para fazer canoas e remos, e de cujo tronco saía resina em abundância; além as tatajubas, cheias de matéria corante, e os guiáiacos, medindo alguns doze pés de diâmetro, mas assim mesmo inferiores aos guiáiacos comuns.

Dick Sand, enquanto caminhava, pediu a Harris que lhe dissesse os nomes das diversas árvores.

 — Nunca desembarcou no litoral da América do Sul?

— perguntou-lhe Harris antes de satisfazer ao pedido do praticante.

 — Nunca — respondeu este —, nunca tive ocasião, durante o curso das minhas viagens, de visitar esta costa, e ainda não encontrei ninguém que a conhecesse.

 — Mas já viu as costas da Colômbia, do Chile ou da Patagónia?

 — Também não.

 — Mas Mrs. Weldon conhece provavelmente esta região do novo continente? — perguntou Harris. — Os Americanos não receiam viajar e talvez...

 — Não, Sr. Harris — atalhou Mrs. Weldon —, os interesses comerciais de meu marido têm-no chamado sempre para a Nova Zelândia, e nunca o acompanhei para outra parte. Nenhum dos que estamos aqui conhece esta região da baixa Bolívia.

 — Pois vão ver um país bem extraordinário, e que faz grande diferença do Peru, do Brasil ou da República Argentina. A flora e a fauna da terra em que estamos fariam a admiração dos naturalistas. Ah! Podem dizer que naufragaram em bom lugar, e se ao acaso se devem favores...

 — Creio que não foi o acaso, mas Deus quem nos conduziu para aqui.

 — Deus! Sim, Deus!... — disse Harris, em tom de quem não admite a intervenção da Providência nas coisas deste mundo.

Como, pois, ninguém da caravana conhecia o país ou as suas produções, Harris, obsequiosamente, mostrou as árvores mais notáveis da floresta.

Era realmente para lastimar que no primo Bénédict, o entomologista, não houvesse seus laivos de botânico, porque, se não tinha até então encontrado insectos raros ou novos, teria feito, com toda a certeza, magníficas descobertas para a botânica. Havia ali grande quantidade de vegetais de todas as grandezas, cuja existência era desconhecida nas florestas do Novo Mundo. Primo Bénédict decerto deixaria o seu nome ligado a algum facto deste género. Mas não gostava da botânica, nem mesmo a conhecia. Tinha aversão às flores, porque algumas delas prendiam os insectos nas suas corolas ou os envenenavam com sucos tóxicos.

A floresta em muitos sítios era pantanosa; sob os pés dos caminhantes corriam delgados fios de água, que iam provavelmente alimentar os afluentes do pequeno rio. Alguns destes, por serem mais largos, não puderam ser atravessados senão em pontos vadeáveis.

Nas margens dos ribeiros cresciam grandes moitas de caniços, aos quais Harris deu o nome de papiros. Não se enganava. Aquelas plantas herbáceas vegetavam abundantemente na parte mais baixa das encostas húmidas.

Passados os brejos, o mato espesso tornava a cobrir os estreitos caminhos da floresta.

Harris fez notar a Mrs. Weldon e a Dick Sand belos ébanos, mais grossos que o ébano comum, os quais dão madeira mais dura que a do comércio. Apesar de já longe do mar, encontravam-se ainda grande número de mangueiras. Uma espécie de musgo lhes vestia os troncos até aos ramos. A sombra copada destas árvores e os seus deliciosos frutos fazem com que elas sejam muito apreciadas; contudo, Harris contou que nenhum indígena se atreve a plantá-las. «Quem semeia uma mangueira, morre!», tal é a superstição no país.

Durante a segunda metade do primeiro dia de jornada, a pequena caravana, depois de descansar, começou a subir um terreno ligeiramente inclinado. Não eram ainda os declives das primeiras montanhas, mas uma altura ligeiramente ondulada, que ligava a planície à serra.

Aí as árvores estavam menos juntas e por vezes reunidas em grupos; a marcha seria, pois, mais fácil se o solo não estivesse coberto de plantas herbáceas. Dir-se-ia que se caminhava nos juncais da índia. A vegetação seria ali talvez menos luxuriante do que era no vale do pequeno rio, mas era muito superior à das regiões temperadas do Velho e do Novo Mundo. O anil crescia exuberantemente, e, acreditando Harris, esta leguminosa era a planta que mais invadia a região. Quando se deixava qualquer campo inculto, aquele parasita, tão desprezível como os cardos e as urtigas, cobria-o rapidamente.

Parecia que a estas florestas faltava uma árvore, que aliás devia ser vulgaríssima nesta região do novo continente: era a árvore da borracha. Efectivamente, o ficus prinoides, a castilloa elástica, a cecropia peltata, a collophora utilis, a cameraria latifolia, e principalmente a syphonia elástica, que pertencem a famílias diferentes, abundam na América Meridional; e, contudo, era para notar que nenhuma se visse por aqueles sítios.

Ora aconteceu que Dick Sand tinha prometido ao seu amigo Jack mostrar-lhe as árvores da borracha. Foi, pois, grande a decepção para o pequenino, que imaginava ver as bolas, os bonecos e os balões de cauchu brotando das árvores, e não pouco se lastimava por isso.

 —  paciência — disse-lhe Harris. — Perto da hacienda encontraremos centenas de árvores da borracha.

 — E bonitas? — perguntou Jack.

 — Sim, muito bonitas. Mas, enquanto não chegamos lá, quer o menino refrescar-se comendo um bom fruto?

Dizendo isto, Harris colheu de uma árvore alguns frutos, tão saborosos como pêssegos.

 — Tem a certeza, Sr. Harris, de que estes frutos não fazem mal?

 — Mrs. Weldon, vou tranquilizá-la já — respondeu o americano, dando uma grande dentada num dos frutos que colhera. — É manga — explicou.

Jack, sem se fazer rogado, seguiu o exemplo de Harris, declarando que aquelas «pêras» eram excelentes. A árvore foi muito dizimada. Pertenciam aquelas mangueiras à espécie cujos frutos, maduros em Março e em Abril, e mais tarde em Setembro, estavam por consequência em excelentes condições para se colherem.

— É muito bom, é muito bom! — afirmou Jack, com a boca cheia. — Mas Dick prometeu-me as árvores da borracha se eu tivesse juízo, e eu quero-as.

 — E vê-las-ás, Jack — disse Mrs. Weldon —, que já to assegurou o Sr. Harris.

 — .Mas — tornou Jack — Dick também :me prometeu outra coisa.

- — Sim! Então o que foi que lhe prometeu o amigo Dick? — perguntou Harris, sorrindo.

 — Beija-flores.

 — Tê-los-á também; mas mais longe, muito mais longe! — afirmou Harris.

O facto é que Jack tinha direito a reclamar algumas destas lindas avezinhas num país em que elas deviam abundar. Os índios, que sabem enfeitar artisticamente os cabelos, deram os mais poéticos nomes a estes primores da raça volátil. Chamam-lhes os «raios» ou «cabelos do Sol». Aqui é «o rei das flores», ali é «a flor do céu que, voando, vem acariciar a flor da terra», noutra parte é «um diadema de pedras preciosas, brilhando à luz do dia». É de crer que a imaginação dos índios saiba dar uma nova e poética nomenclatura a cada uma das cento e cinquenta espécies que constituem a maravilhosa tribo dos chupa-méis.

Contudo, por muito numerosos que fossem os beija-flores nas selvas da Bolívia, Jack tinha por enquanto de se contentar com a promessa de Harris. Segundo dizia o americano, ainda estavam perto da costa, e aquelas avezinhas não procuravam os desertos que ficavam próximos do oceano. Não fugiam do homem; na hacienda ouvia-se durante o dia constantemente o seu canto e o zunido das suas asinhas.

 — Ah! Quem me dera já lá! — exclamou Jack.

O meio mais seguro de chegar à hacienda de San Felice era não se demorarem no caminho, e Mrs. Weldon e os seus companheiros não perdiam senão o tempo absolutamente indispensável para repousarem.

A floresta começava a mudar de aspecto. Entre as árvores, já menos juntas, abriam-se num e noutro lugar grandes clareiras. O solo mostrava-se, rompendo o tapete de verdura; era de granito cor-de-rosa e escuro, semelhante a lâminas de lápis-lazúli. Nalguns pontos abundava a salsaparrilha, planta de tubérculos carnosos, a qual se enredava por modo inextricável. Era bem preferível a floresta com os seus estreitos caminhos.

Antes de anoitecer, a pequena caravana estava a oito milhas aproximadamente do seu ponto de partida. Caminhara-se até ali sem incidente algum e até sem grande fadiga. Foi o primeiro dia de jornada; provavelmente os seguintes seriam mais custosos.

De comum acordo decidiu-se parar no ponto onde tinham chegado. Não se pensava, é certo, em estabelecer um acampamento, mas simplesmente em arranjar sítio onde pudessem dormir. Um homem de sentinela, rendido de duas em duas horas, bastaria para vigiar durante a noite. Nem os indígenas nem as feras eram para recear.

O melhor abrigo que se encontrou foi uma mangueira imensa, cujos ramos grandes e frondosos formavam como que uma cobertura natural. Em caso de necessidade seria fácil dormir sobre a folhagem. À chegada, porém, do pequeno grupo, ouviu-se em cima da árvore um concerto insuportável.

É que a mangueira servia de poleiro a uma colónia de papagaios cinzentos, bulhentos e palradores, voláteis ferozes, os quais não se podem julgar pelos que na Europa se encontram domesticados.

Gritavam tanto que Dick Sand pensou em lhes dar um tiro para os obrigar a calar ou a fugir. Mas Harris dissuadiu-o, dizendo-lhe que naquelas solidões era melhor não serem descobertos pela detonação de uma arma de fogo.

 — Passemos sem ruído — concluiu ele —, e passaremos sem perigo.

Em seguida preparou-se a ceia sem que fosse necessário cozer os alimentos; compunha-se de conservas e de bolacha. Um arroio, que serpeava por entre as ervas, forneceu água potável, a qual não se bebeu sem se lhe deitar algumas gotas de rum. A sobremesa deu-a a mangueira, dos seus frutos sucosos, que se não colheram sem que os papagaios protestassem, soltando gritos desagradáveis.

No fim da ceia começava a noite. As sombras subiam lentamente do solo para o cimo das árvores, cuja folhagem se destacava como fino recorte sobre o fundo mais luminoso do céu. As primeiras estrelas que se viram pareciam flores de brilhantes, cintilando nas pontas dos últimos ramos. O vento caiu com o dia; não se ouvia o mais ligeiro sussurro na folhagem. Os papagaios calaram-se. A natureza ia adormecer e convidava os seres animais a acompanhá-la no seu profundíssimo sono.

Os preparativos para a noite deviam ser simplicíssimos.

 — Não acendemos fogueira? — perguntou Dick Sand ao americano.

 — Para que serviria isso? — volveu Harris. — As noites, felizmente, não estão frias, e esta mangueira enorme evitará a evaporação do solo. Não temos que temer nem a frescura nem a humidade. Repito-lhe, meu jovem amigo, o que ainda há pouco lhe disse: passemos incógnitos, e, tanto quanto for possível, sem fogueiras e sem tiros.

 — Penso — -opinou Mrs. Weldon — que nada temos a recear dos índios, nem mesmo desses vagabundos dos bosques, de que nos falou o Sr. Harris. Mas não haverá outros vagabundos de quatro patas, aos quais a vista do fogo afastaria?

 — Mrs. Weldon — respondeu o americano —, dá muita importância às feras deste país! Mais temem elas o homem do que o homem as teme a elas.

— Estamos num bosque — observou Jack — e nos bosques há sempre bichos!

— Mas nenn todos os bosques são iguais, nem são iguais todos os bichos! — respondeu Harris, rindo. — Imagine que está num grande parque. E, na verdade, não é sem razão que os índios dizem deste país: «Ès como el paraíso!»

 — -E serpentes? — lembrou Jack.

 — Não, meu Jack — -acudiu Mrs. Weldon —, não há serpentes. Podes dormir descansadinho.

 — Mas há leões? — continuou Jack.

 — Nem a sombra deles! — informou Harris.

 — Então há tigres?

 — Pergunte à sua mamã se ela ouviu dizer alguma vez que houvesse tigres neste continente.

 — Nunca ouvi — confirmou Mrs. Weldon.

 — Bravo! — disse primo Bénédict, que por acaso ouvira a conversação. — .Se não há tigres nem leões no Novo Mundo, o que é certíssimo, encontram-se contudo onças e pumas.

 — E são maus? — quis saber Jack.

 — Assim, assim! — respondeu Harris. — Mas não se arreceiam deles os indígenas, e nós somos bastantes. Olhe! Bastaria Hércules para estrangular ao mesmo tempo duas onças, uma em cada mão!

 — Então, Hércules, toma muito sentido — recomendou Jack — -, e se vier algum animal para nos morder...

 — Mordo-o eu primeiro, menino Jack — prometeu Hércules, mostrando a sua magnífica dentadura.

 — Sim, Hércules vigiará — disse o praticante — -, mas os seus camaradas e eu rendê-lo-emos.

 — Não, Sr. Dick — interveio Acteão. — Hércules, Bat, Agostinho e eu somos bastantes. É necessário que descanse toda a noite.

 — Obrigado, Acteão — agradeceu Dick Sand —, mas devo também...

 — Dick, deixe que esses rapazes vigiem! — disse Mrs. Weldon.

— Eu também hei-de fazer sentinela! — acrescentou Jack, cujos olhos se fechavam com sono.

 — Pois sim, Jack — acedeu Mrs. Weldon, que o não queria contrariar.

 — Mas — tornou ainda a dizer Jack —, se não há leões nem tigres na floresta, há lobos talvez!

 — Oh! Lobos que não valem de nada! — respondeu o americano. — Nem lobos são, mas uma espécie de raposas, ou mais propriamente de cães selvagens, a que dão o nome de guarás.

 — E mordem, os guarás} — perguntou Jack.

 — Qual! Bastava uma dentada de Dingo para os matar!

 — Apesar de tudo — prosseguiu Jack, bocejando —, os guarás são lobos, porque assim se chamam!

Depois disto, Jack adormeceu nos braços de Nan, que se tinha encostado ao tronco da mangueira. Mrs. Weldon, deitada junto dela, deu um último beijo no filhinho, e por fim os seus olhos fecharam-se também.

Pouco depois, Hércules trazia para o acampamento primo Bénédict, que se afastara para dar começo a uma caçada aos piróforos. São os cucuyos, ou moscas luminosas, com que as elegantes enfeitam os penteados, como se fossem pedras preciosas. Estes insectos, que lançam luz viva e azulada por duas manchas situadas no toracete, são numerosíssimas na América do Sul. Primo Bénédict contava fazer deles grande provisão, mas Hércules não lhe deu tempo, e, apesar das suas recriminações, o vigoroso negro trouxe consigo o entomologista. Hércules tinha recebido aquela ordem e cumpriu-a militarmente — o que salvou grande número de moscas luminosas de serem encarceradas na caixa de folha.

Passados alguns minutos, exceptuando o gigante, que velava, todos dormiam profundamente.

 

CEM MILHAS EM DEZ DIAS

Acontece frequentemente aos viajantes ou àqueles que vagueiam pelos bosques e que neles têm dormido ao ar livre serem acordados por gritos tão caprichosos quanto extraordinários. Nestes concertos matinais ouve-se cacarejar, grunhir, grasnar, rir, uivar e quase «falar», se se pode admitir esta palavra para complemento da série dos diversos sons.

São os macacos que saúdam por tal modo o romper da madrugada. Vê-se o mariquinha, o sagui de cara mosqueada, o mono pardo, de cuja pele os índios se servem para cobrir as fecharias das espingardas, os saitaias, fáceis de reconhecer pelos dois compridos penachos de pêlo, e muitos outros espécimes desta numerosa família.

Destes diversos quadrúmanos, os mais notáveis, incontestavelmente, são os guaribas, de cauda preênsil e cara de Belzebu. Quando o Sol nasce, o mais experimentado do bando entoa com voz forte e sinistra um salmo monótono. É o barítono da companhia. Os jovens tenores repetem depois a sinfonia matinal. Dizem então os índios que os guaribas estão «rezando padre-nossos».

Mas naquele dia os macacos não fizeram a costumada oração, porque não se ouviram; contudo, a voz destes animais pode ser escutada de muito longe, porque é produzida pela vibração rápida de uma espécie de tambor ósseo, formado pelo engrossamento do osso hióide do pescoço.

Fosse qual fosse a razão, o certo é que nem os guaribas, nem os saitaias, nem os outros quadrúmanos daquela floresta imensa entoaram o concerto da manhã.

Não teria este facto agradado aos indígenas, não porque eles gostem daquele género de música coral, mas pela caçada que fazem aos macacos, em razão de ser excelente a carne destes animais, principalmente quando é defumada.

Dick Sand e os seus companheiros não sabiam dos hábitos dos guaribas, aliás teria sido para eles objecto de surpresa o facto de os não ouvirem. Levantaram-se uns depois dos outros, reparados de forças pelas horas de repouso, sem que nenhum sinal de alarme os tivesse perturbado.

Não foi Jack o último a acordar. O seu primeiro cuidado foi perguntar a Hércules se havia comido algum lobo durante a noite, mas, como nenhum aparecera, Hércules, por consequência, não tinha almoçado ainda.

Todos estavam em jejum, como Hércules. Depois da oração da manhã, Nan ocupou-se do almoço.

Este foi como a ceia da véspera, mas, com o apetite aguçado pelo ar matinal da floresta, todos comeram bem. Convinha adquirir forças para a jornada, e pela primeira vez primo Bénédict compreendeu que o comer não era um acto indiferente e inútil da vida. Declarou, porém, que não tinha vindo «visitar» aquele país para andar com as mãos nas algibeiras, e que se Hércules continuasse a não deixar apanhar os cucuyos e outras moscas luminosas, Hércules teria de se haver com ele.

Esta ameaça não pareceu assustar demasiadamente o gigante. Contudo, Mrs. Weldon chamou-o de parte, e disse-lhe que talvez fosse melhor deixar primo Bénédict andar de um para o outro lado, com a condição, porém, de nunca o perder de vista. Não convinha privar completamente primo Bénédict de prazeres tão naturais na sua idade.

Às sete horas da manhã a pequena caravana pôs-se a caminho, dirigindo-se para leste e conservando a ordem de marcha adoptada no dia anterior.

Era sempre a mesma floresta. Sobre aquele solo virgem, onde o calor e a humidade se combinam para activar a vegetação, era bem de julgar que o reino vegetal se mostrasse em toda a sua grandeza. O paralelo daquela vasta região quase se confundia com as latitudes tropicais, e durante certos meses do Estio o Sol, quando passava pelo zénite, dardejava perpendicularmente os seus raios. Havia, por consequência, grande quantidade de calor acumulado naquelas terras, cujas camadas inferiores se conservavam húmidas. Nada, pois, mais belo do que esta sucessão de florestas ou, antes, esta floresta sem fim.

Contudo, Dick Sand não deixara de notar que, segundo Harris, estavam na região dos Pampas, e pampa, na língua quíchua, significa «planície», e, se a memória o não enganava, Dick Sand julgava que tais planícies têm os seguintes caracteres: carência de água, ausência de árvores, falta de pedras, abundância de cardos, durante a estação das chuvas, cardos que no tempo do calor se tornam quase como arbustos, e formam então matagais impenetráveis, e, finalmente, algumas árvores e arbustos espinhosos, dando este conjunto um aspecto de aridez e desolação.

Nada disto, porém, se viu desde que a pequena caravana, guiada pelo americano, deixara o litoral. A floresta estendia-se até aos limites do horizonte. Não era, pois, o pampa, como imaginara o jovem praticante. Teria a natureza caprichado, como dissera Harris, em fazer daquela região do Atacama um território privilegiado, do qual Dick Sand não sabia mais senão que formava um dos mais vastos desertos da América do Sul, entre os Andes e o oceano Pacífico?

Naquele dia, Dick Sand fez a este respeito algumas perguntas ao americano, e mostrou-lhe a surpresa que lhe causava o extraordinário aspecto do pampa.

Mas Harris desenganou-o imediatamente, dando-lhe sobre aquela região da Bolívia exactas particularidades, provando assim o seu profundo conhecimento do país.

 — Tem razão, meu jovem amigo — disse Harris ao praticante. — O verdadeiro pampa é tal como lho têm descrito os livros de viagem, isto é, uma planície imensa, muito árida, cuja jornada através dela é a maior parte das vezes impossível. Faz lembrar as nossas planícies da América do Norte, com a diferença, porém, de que estas são um pouco mais pantanosas. Tal é o pampa do rio Colorado, tais são os «Uanos» do Orenoque e da Venezuela. Aqui, porém, estamos num país cuja aparência a mim mesmo me espanta. É a primeira vez que eu percorro este caminho atravessando esta altura, caminho que tem a vantagem de abreviar a nossa viagem. Mas, se o não vi ainda, sei contudo que faz extraordinário contraste com o verdadeiro pampa. Este vê-lo-ia, não entre a cordilheira de oeste, e as altas serras dos Andes, mas para além das montanhas, na parte oriental do continente, que se estende até ao Atlântico.

 — Teremos pois de atravessar a cadeia dos Andes?

 — perguntou Dick Sand, com muito interesse.

 — Não, meu amigo — volveu o americano, sorrindo.

 — Disse-lhe «vê-lo-ia» e não «vê-lo-á». Sossegue, que não deixaremos esta alta planura, da qual as maiores alturas não excedem mil e quinhentos pés. Se fosse necessário atravessar as cordilheiras com os únicos meios de transporte de que dispomos, não me teria arriscado a semelhante aventura.

 — E com efeito — declarou Sand —, melhor seria seguir ao longo pela costa.

 — Antes isso, cem vezes! — replicou Harris. — Mas a hacienda de San Felice está situada para aquém da cordilheira.

Tanto a primeira como a segunda parte da nossa viagem não terão, pois, dificuldades.

 — E não receia perder-se nestas florestas, que pela primeira vez atravessa? — perguntou Dick Sand.

 — Não receio. Sei que ela é como um mar imenso, ou, antes, como o fundo de um mar, onde nem os marítimos poderiam tomar alturas dos astros e conhecer a sua posição; mas, habituado a viajar pelos bosques, sei procurar o caminho unicamente pela disposição de certas árvores, pela direcção das suas folhas, pelo movimento ou composição dos terrenos e por mil outras particularidades, que decerto lhe escapam. Tenha a certeza de que os hei-de conduzir aonde devem parar!

Tudo isto dizia Harris com certa franqueza. Dick Sand e o americano, à frente da caravana, falavam muitas vezes um com o outro sem que ninguém entrasse na conversação. Se o praticante tinha algumas inquietações, que o americano não conseguia dissipar, preferia guardá-las para si.

Os dias 8, 9, 10, 11 e 12 de Abril passaram-se sem incidente notável. Não caminhavam mais de oito a nove milhas em doze horas. Os momentos destinados às refeições ou ao repouso sucediam-se regularmente, e, embora a fadiga já se fizesse sentir, o estado sanitário era ainda muito satisfatório.

Jack começava a sofrer daquele viver no bosque, a que não estava acostumado. Demais a mais não cumpriram as promessas que lhe fizeram. Os bonecos de borracha, os beija-flores, tudo parecia recuar constantemente. Também lhe tinham falado dos mais belos papagaios do mundo, os que deviam abundar naquelas riquíssimas florestas. Onde estavam, pois, os papagaios de penas verdes, quase todos oriundos daquelas regiões; as araras de cabeça despida de penas, de longas caudas pontiagudas, de cores brilhantes e cujos pés nunca pousam na terra; os camindés, mais especialmente vistos nos países tropicais; os periquitos multicolores, de cabeça emplumada, e, finalmente, todas as aves parreiras, das quais dizem os índios que falam ainda a língua das tribos extintas?

Jack só via os papagaios cinzentos, de cauda encarnada, que superabundavam sob as árvores, mas estes papagaios já ele os vira. Para todas as partes do mundo têm sido levados. Nos dois continentes enchem as casas com as suas garrulices insuportáveis, e de toda a família das psitácaras são os que mais facilmente aprendem a falar.

Deve dizer-se que, se Jack não estava contente, primo Bénédict não estava mais satisfeito. Tinham-lhe dado alguma liberdade durante a marcha para andar de um para outro lado; mas não encontrou nenhum insecto digno de figurar na sua colecção.

À noite os piróforos obstinavam-se em não lhe aparecer, nem em o atrair pelas fosforescências dos seus tora-cetes. A natureza parecia brincar com o infeliz entomologista, que começava a estar de mau humor.

Durante mais quatro dias continuou a marcha para o nordeste, nas mesmas condições. A 16 de Abril contavam-se não menos de cem milhas percorridas desde a costa. Se Harris se não tinha perdido — e ele afirmava que não — a hacienda de San Felice estava apenas a vinte milhas do ponto onde descansaram naquele dia. Antes de quarenta e oito horas a pequena caravana teria abrigo cómodo, onde poderia, finalmente, descansar de todas as fadigas.

Contudo, apesar de o planalto ter sido quase todo atravessado, não se encontrou um único indígena na extensa floresta.

Dick Sand, sem nada dizer, lastimava-se por não ter podido encalhar noutro ponto do litoral. Mais para o sul ou imais para o norte, as vilas, as aldeias ou as plantações não faltariam, e Mrs. Weldon e os seus companheiros teriam mais cedo encontrado abrigo.

Mas se a região parecia abandonada pelos homens, os animais reapareciam com mais frequência nos últimos dias.

Ouviam-se algumas vezes gritos longos e tristes, que Harris atribuiu a alguns dos corpulentos tardígrados, hóspedes habituais daquelas vastas regiões cobertas de matas, os quais têm o nome de preguiças.

No mesmo dia, durante o descanso, ouviu-se um silvo agudo, que, por ser extraordinário, não deixou de inquietar Mrs. Weldon.

 — Que é isto? — perguntou ela, levantando-se sobressaltada.

 — É uma serpente! — exclamou Dick Sand, correndo para a frente de Mrs. Weldon com a carabina engatilhada.

Era para recear, com efeito, que algum réptil se tivesse arrastado por entre as ervas até ao lugar onde descansavam. Não seria para espantar que fosse uma enorme sucuriúba, espécie de jibóia, que algumas vezes mede quarenta pés de comprimento.

Mas Harris chamou imediatamente Dick Sand, a quem os negros iam seguindo, e tranquilizou Mrs. Weldon.

Segundo a opinião do americano, o silvo que se ouvira não era de uma sucuriúba, por isso que esta serpente não assobia; indicava porém a presença de certos quadrúpedes inofensivos, mas muito numerosos naquele território.

 — Descanse — recomendou ele — e não faça nenhum movimento que possa assustar estes animais.

 — Mas que animais são? — perguntava Dick Sand, que se impusera o dever de obrigar o americano a falar, e o qual, aliás, não se mostrava muito renitente em lhe responder.

 — São antílopes, meu jovem amigo — esclareceu Harris.

 — Oh! Então quero vê-los! — exclamou Jack.

— É muito difícil, meu amigo — declarou o americano —, é muito difícil.

 — Talvez possamos tentar aproximar-nos desses antílopes que assobiam — tornou Dick Sand.

 — Qual! Não andaria três passos — respondeu o americano, sacudindo a cabeça — sem que fugissem! É melhor deixá-los!

Tinha porém razão de ser a curiosidade de Dick Sand. Quis ver e, com a carabina na mão, meteu-se por entre as moitas. Imediatamente uma grande quantidade de gazelas graciosas, de chavelhos curtos e aguçados, passou com a velocidade de uma tromba. Porque tinham pêlo de cor ruiva muito viva, pareciam, tal era a sua rapidez, uma nuvem de fogo que passava por debaixo do alto arvoredo da floresta.

 — Já o tinha prevenido! — disse Harris, quando o praticante voltou.

Se foi realmente impossível distinguir aqueles antílopes, tão ligeiros na carreira, não aconteceu outro tanto a um outro bando de animais, que apareceu no mesmo dia. Estes viram-se imperfeitamente, é certo, mas a sua aparição foi causa de animada discussão entre Harris e alguns dos seus companheiros.

O rancho, cerca das quatro horas da tarde, parara um instante junto de uma clareira, quando três ou quatro animais de grande altura desembocaram do mato, que estava a cem passos de distância, e fugiram imediatamente, correndo com incrível velocidade.

Apesar das recomendações do americano, o praticante desta vez, tendo firmado bem a pontaria, fez fogo sobre um dos animais; mas, no momento em que a carabina se disparava, foi rapidamente desviada por Harris, e Dick Sand, apesar de bom atirador, errou o alvo.

 — Não faça fogo! Não faça fogo! — ordenou o americano.

 — São girafas! — exclamou Dick Sand, respondendo assim à observação de Harris.

— Girafas! — repetiu Jack, endireitando-se no selim. — .Onde estão elas?

 — Girafas! — -disse também Mrs. Weldon. — Enganaste-te decerto, Dick. Não há girafas na América.

 — E, com efeito — acrescentou Harris, que parecia muito perturbado —, não pode haver girafas neste país!

 — .Mas então?... — estranhou Dick Sand.

 — Não sei realmente o que pense! — respondeu Harris. — Não o teriam enganado os olhos, meu amigo, e não serão avestruzes os animais que viu?

 — .Avestruzes! — -repetiram. Dick Sand e Mrs. Weldon, olhando-se muito admirados.

 — .Sim — disse Harris.

 — Mas as avestruzes são aves — replicou Dick Sand —, e por consequência não têm quatro patas.

 — -Mas eu julguei que os animais que fugiram tão rapidamente eram bípedes!

 — .Bípedes! — volveu o praticante.

 — -Pois parece-me ter visto muito bem animais de quatro patas — declarou então Mrs. Weldon.

 — E eu também — acudiu o velho Tom, cujas palavras foram confirmadas por Bat, Acteão e Agostinho.

 — Avestruzes de quatro patas! — exclamou Harris, rindo. — Isso seria engraçadíssimo.

 — Por isso nós julgámos que eram girafas e não avestruzes.

 — Não, meu amigo! Viu mal com toda a certeza. A sua ilusão explica-se pela rapidez com que aqueles animais fugiram. Mais de uma vez os caçadores se têm enganado, e na melhor boa-fé.

O que dizia o americano era plausível. Entre um avestruz de grande estatura e uma girafa de mediana grandeza, vistos a certa distância, o engano seria fácil. Ou seja um bico, ou um focinho, ambos estão no extremo de longuíssimos pescoços, deitados para trás; pode pois dizer-se que um avestruz é uma meia girafa. Só lhe faltam as pernas do quarto traseiro. Portanto, este bípede e aquele quadrúpede, passando inesperada e rapidamente, podem ser confundidos um com o outro.

Mas a melhor prova de que Mrs. Weldon e os outros se enganavam é que na América não há girafas.

Dick Sand fez então a seguinte reflexão:

 — Julgava que os avestruzes, como as girafas, não se encontravam no Novo Mundo.

 — Pois não, meu amigo — respondeu Harris —, e a América do Sul possui uma espécie particular. A esta espécie pertence o nandu, que foi justamente o que viu!

Harris dizia a verdade. O nandu é um pernalta muito comum nas planícies da América do Sul; a carne deste animal, quando novo, é saborosa. Robusto, de grandeza que algumas vezes excede a dois metros, tem o bico direito, as asas compridas e formadas por penas espessas, tufadas e de cor azulada, os pés têm três dedos com unhas — o que principalmente os distingue dos avestruzes da África.

Estas exactíssimas particularidades deu-as Harris, que parecia ser muito conhecedor dos nandus. Mrs. Weldon e os seus companheiros convenceram-se, afinal, de que se tinham enganado.

 — Mas — acrescentou Harris — é muito possível encontrarmos novos bandos de avestruzes. Se assim for, olhem melhor, para não confundirem outra vez com quadrúpedes! E sobretudo, meu amiguinho, lembre-se das minhas recomendações e não torne a fazer fogo, seja qual for o animal! Não temos necessidade de caçar para nos alimentarmos, e, repito-lhe, importa muito que a detonação de uma arma não revele a nossa presença nesta floresta.

Dick Sand, porém, ficara pensativo. Uma dúvida se lhe levantou no espírito.

No dia seguinte, 17 de Abril, continuou a marcha. O americano afirmou que dentro de vinte e quatro horas a pequena caravana estaria por certo a descansar na hacienda de San Felice.

— Lá, Mrs. Weldon — acrescentou ele —, será tratada com todos os cuidados devidos a uma senhora, e com poucos dias de repouso ficará completamente restabelecida das fadigas da jornada. É provável que não encontre na herdade o luxo a que está habituada na sua casa em São Francisco, mas verá que nas nossas plantações não faltam boas comodidades. Não somos absolutamente selvagens.

 — Sr. Harris — respondeu Mrs. Weldon —, só temos agradecimentos a dar-lhe em troca do seu generoso auxílio, mas são agradecimentos sinceros. É, porém, tempo de chegarmos!

 — Vai muito cansada, Mrs. Weldon?

 — Vou, mas pouco importa. O pior é que Jack vai enfraquecendo pouco a pouco. A febre começa a atacá-lo a horas certas!

 — O clima nestas alturas é muito sadio; contudo, deve dizer-se que, em Março e em Abril, reinam aqui febres intermitentes.

 — Assim é — confirmou então Dick Sand —, mas a natureza, sempre previdente, pôs o remédio junto ao mal.

 — Como, meu amigo? — perguntou Harris, que parecia não ter compreendido.

 — Pois não estamos na região onde se encontram as árvores da quina? — disse Dick Sand.

 — Tem razão. Aqui há as árvores que produzem a preciosa casca febrífuga.

 — Admiro-me — prosseguiu Dick Sand — de não as termos visto ainda.

 — Meu jovem amigo — replicou Harris —, essas árvores não são fáceis de distinguir. Conquanto, pela maior parte das vezes, sejam altas, tenham folhas grandes, flores cor-de-rosa e aromáticas, não se descobrem facilmente. Estão disseminadas pelas florestas, e os índios que apanham a quina só as conhecem por estarem sempre cobertas de folhas.

— Sr. Harris — pediu Mrs. Weldon — -, se vir uma dessas árvores, mostre-ma.

 — Certamente, Mrs. Weldon, mas na hacienda há sulfato de quinino, que é melhor para cortar as febres do que a casca da árvore.(1)

Passou-se sem incidente o último dia da jornada. Veio a noite e pararam como era costume. Não tinha chovido até então, mas o tempo ia mudar, porque uma evaporação quente elevou-se do solo, transformando-se em espesso nevoeiro.

Começava então a estação das chuvas. Felizmente, no dia seguinte, confortável abrigo seria hospitaleiramente proporcionado à pequena caravana. Poucas horas restavam já a passar.

Apesar de, segundo dizia Harris, que fundamentava o seu cálculo na duração da viagem, não poderem estar a mais de seis milhas da hacienda, tomaram-se todas as precauções indispensáveis para a noite. Tom e os companheiros velariam, uns após outros. Dick Sand cuidou em que nada fosse esquecido. Não queria menos do que dantes deixar a sua habitual prudência, porque uma suspeita terrível entrara no seu espírito; mas nada quis dizer.

Pararam junto de um pequeno bosque de árvores altas e frondosas. Mrs. Weldon e os seus, a quem a fadiga dominava, dormiam já, quando foram sobressaltados por um grito enorme.

— Que é isto? — perguntou vivamente Dick Sand,

pondo-se de pé primeiro que os outros.

 — Sou eu! Sou eu! — respondeu primo Bénédict.

 — Que tem? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Fui mordido!

 

*1. Antigamente reduzia-se esta casca a pó, o qual tinha o nome de «pó dos jesuítas», porque os jesuítas de Roma receberam da sua missão da América considerável quantidade dele.

 

— Por uma serpente talvez? — disse, assustada, Mrs. Weldon.

 — Nada, não! Não foi serpente, mas um insecto — explicou primo Benédict. — Ah! Mas apanhei-o, apanhei-o!

 — Pois bem, pise-o — aconselhou Harris — e deixe-nos dormir descansados, Sr. Bénédict.

 — Pisar um insecto! — exclamou primo Bénédict. — Isso não! É necessário ver primeiro que insecto é.

 — Algum mosquito! — sugeriu Harris, encolhendo os ombros.

 — Qual! É mosca — elucidou primo Bénédict —, e mosca que deve ser muito rara!...

Dick Sand, que tinha acendido uma pequena lanterna, aproximou-se de primo Bénédict.

 — Ora graças à Providência! — exclamou este. — Tenho a compensação de todas as minhas decepções! Fiz enfim uma descoberta!

O pobre homem delirava de prazer. Olhava para a mosca com ar triunfante. Seria capaz de a beijar.

 — Mas o que é? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Um díptero, prima, um famoso díptero!

E primo Bénédict mostrou uma mosca mais pequena do que uma abelha, de cor escura, e listrada de amarelo na parte inferior do corpo.

 — Não é venenosa? — perguntou Mrs. Weldon.

 — Não, prima, não é, pelo menos para o homem; mas para os antílopes, como para os búfalos, e até mesmo para os elefantes, é caso diferente! Ah! Que adorável insecto!...

 — Mas não nos dirá como se chama essa mosca? — perguntou Dick Sand.

 — Esta mosca — respondeu o entomologista —, esta mosca que eu tenho aqui, entre os meus dedos, esta mosca... chama-se tsé-tsé, famoso díptero que faz honra a um país e que até hoje ainda não foi visto na América!...

Dick Sand não se atreveu a perguntar a primo Bénédict qual era a parte do mundo onde unicamente se encontrava aquele temível insecto.

Passado este incidente, todos continuaram o sono interrompido. Dick Sand, porém, apesar da fadiga que o prostrava, não pôde dormir.

 

A PALAVRA TERRÍVEL

Era tempo de chegar. Grande abatimento impossibilitava Mrs. Weldon de continuar por mais tempo uma viagem feita em tão penosas condições. O seu filho, muito vermelho, durante os acessos da febre, pálido nos intervalos, fazia pena de ver. Mrs. Weldon, extremamente inquieta, não quis abandonar Jack, nem mesmo aos cuidados de Nan. Tinha-o meio deitado nos braços.

Era tempo de chegar! Mas, pelo que dizia o americano, na tarde do dia que então começava, 18 de Abril, a pequena caravana estaria abrigada na hacienda de San Felice.

Doze dias de jornada para uma senhora, doze noites passadas ao ar livre, era para abater Mrs. Weldon, por muito forte que fosse. Mas pior era ainda para uma criança, e a doença de Jack, a quem faltara o mais simples tratamento, bastou para o prostrar completamente.

Dick Sand, Nan, Tom e os seus camaradas sofreram as fadigas da viagem.

Os víveres, conquanto começassem a rarear, não tinham faltado ainda e estavam bem conservados.

Harris parecia afeito às longas caminhadas por entre as florestas; não se mostrava cansado. Dick Sand, porém, notou que à proporção que se aproximavam da hacienda Harris parecia mais preocupado, e que o seu parecer era menos franco, quando o contrário seria mais natural.

Era, pelo menos, a opinião do jovem praticante, cada vez mais desconfiado do americano. E, contudo, que interesse teria Harris em os enganar? Dick Sand não o sabia dizer, mas vigiava muito de perto o seu guia.

O americano provavelmente percebia que estava já mal visto por Dick Sand, e era sem dúvida esta desconfiança que o fazia ainda mais taciturno junto do seu «jovem amigo».

Continuou a marcha.

Na floresta menos cerrada, as árvores destacavam-se em grupos e já não formavam bosques impenetráveis. Seria o verdadeiro pampa de que falara Harris?

Correram as primeiras horas do dia sem que nenhum incidente viesse agravar as inquietações de Dick Sand. Ele notou, no entanto, dois factos, que talvez não tivessem grande importância, mas naquelas conjunturas nenhuma particularidade se devia perder.

Foi o procedimento de Dingo o que primeiramente atraiu muito especialmente a atenção do praticante.

Efectivamente, Dingo, que durante todo o caminho parecia seguir um rasto, mudou quase repentinamente. Até então andara sempre com o focinho no chão, a maior parte das vezes farejando as ervas e os arbustos onde parava, ou se ladrava era tão tristemente que parecia querer exprimir penas ou saudades.

(Naquele dia, porém, os ladridos do extraordinário animal eram mais agudos, e às vezes mais furiosos, como quando via Negoro no convés do «Pilgrim».

Uma suspeita passou pelo espírito de Dick Sand, a qual lha confirmou Tom, dizendo-lhe:

 — É notável, Sr. Dick! Dingo não fareja a terra como fazia ainda ontem. Anda com o focinho levantado, está agitado e tem o pêlo hirto! Parece que de longe lhe dá o faro de...

 — Negoro, não é verdade? — atalhou Dick Sand, agarrando o braço do velho preto e fazendo-lhe sinal para falar em voz baixa.

— Negoro, sim, Sr. Dick. Não será possível que ele tenha seguido as nossas pisadas?

 — É possível, Tom, e até mesmo que não esteja agora muito longe.

 — Mas... porquê? — perguntou Tom.

 — Porquê? Ou Negoro não conhecia a região, e nesse caso tinha interesse em não nos perder de vista...

 — Ou então?... — disse Tom, que olhava para o praticante cheio de ansiedade.

 — Ou então — prosseguiu Dick — conhecia-a e...

 — Mas como poderia Negoro conhecer esta região? Ele nunca aqui veio!

 — Nunca aqui veio? — murmurou Dick Sand. — Enfim, o facto incontestável é que Dingo ladra como se aquele homem, que ele detesta, se tivesse aproximado de nós!

E, interrompendo-se para chamar o cão, que, depois de hesitar, correu para ele, disse:

 — Negoro! Negoro!

Um uivo furioso foi a resposta de Dingo. Aquele nome fez sobre o cão o efeito do costume, e Dingo avançou como se Negoro estivesse escondido por detrás das moitas.

Harris, que, tudo tinha visto, aproximou-se do praticante.

 — Que quer Dingo? — inquiriu.

 — Oh!... Nada ou quase nada, Sr. Harris — respondeu Tom, ironicamente. — Pedíamos notícias do nosso companheiro de bordo, aquele que se perdeu!

 — Ah! — disse o americano. — O cozinheiro do navio, de quem já me falaram?

 — Exactamente — explicou Tom. — Quem vir Dingo dirá que Negoro anda perto.

 — Como poderia ele chegar até aqui? — prosseguiu Harris. — Que eu saiba, nunca ele veio a estes sítios!

 — Decerto, salvo o caso de o ter ocultado! — sugeriu Tom.

 — Seria para admirar — continuou Harris —, mas, se querem, podemos bater o mato. É possível que o homem tenha necessidade de socorro e que esteja em grande aflição...

 — É inútil, Sr. Harris — retorquiu Dick Sand. — Se Negoro soube vir até aqui, sabe ir para diante. É homem desembaraçado!

 — Como quiser...

 — Vamos, Dingo, cala-te — ordenou Dick Sand, para dar por finda a conversação.

A segunda observação feita pelo praticante dizia respeito ao cavalo do americano.

Não parecia dar-lhe o «cheiro da cavalariça», como acontece aos animais da sua espécie.

Não sorvia o ar, não apressava o passo, não dilatava as ventas nem relinchava, sinais estes que indicam o fim de uma jornada. Observando-o bem, via-se que estava tão indiferente como se a hacienda, à qual tinha ido muitas vezes, e que devia conhecer, estivesse ainda a alguns centos de milhas.

«Não dá sinal de cavalo que chega a casa», pensava o praticante.

E, contudo, pensando no que Harris havia dito na véspera, restavam apenas seis milhas a caminhar, e destas, às cinco horas da tarde, quatro estariam andadas, com toda a certeza.

Mas se o cavalo não dava mostras de estar próximo da cavalariça, de que aliás devia gostar, não havia, tão-pouco, sinais de proximidade de uma grande plantação, tal como devia ser a hacienda de San Felice.

Mrs. Weldon, indiferente, como então estava, a tudo quanto não dizia respeito ao seu filho, ficou impressionada por ver ainda a região tão deserta. Nem um indígena, nem um moço da hacienda a tão curta distância! Ter-se-ia enganado Harris? Não! Repeliu esta ideia. Nova demora seria a morte do seu Jack!

Todavia, Harris caminhava sempre na frente, mas observando o bosque, ora para a direita, ora para a esquerda, como quem não está certo de si... ou do caminho que trilha!

Mrs. Weldon fechou os olhos para o não ver.

Depois de percorrerem uma planície de uma milha de extensão, a pequena caravana caminhou de novo por entre as árvores de outra floresta, a qual não era contudo tão espessa como a que ficava para oeste.

Às seis horas da tarde tinham chegado a um bosque cerrado, pelo qual parecia ter passado um bando de grandes animais.

Dick Sand olhou muito atentamente em volta dele.

Numa altura que não excedia muito o tamanho de um homem, os ramos estavam arrancados ou quebrados; ao mesmo tempo as ervas, violentamente afastadas, mostravam no terreno, um pouco alagadiço, pegadas que não eram de onças ou de pumas.

Seriam talvez das preguiças ou dalguns outros tardígrados, cujos pés tinham deixado sinais no solo? Mas como explicar, neste caso, os ramos quebrados a tal altura?

Os elefantes poderiam, sem dúvida, deixar semelhantes vestígios, marcar tão largas pegadas, e fazer tão grande abertura nas impenetráveis selvas. Mas não se encontram elefantes na América. Estes enormes paquidermes não são oriundos do Novo Mundo, nem tão-pouco se têm podido aclimatar nele.

A hipótese, pois, de que os elefantes tivessem por ali passado era inadmissível.

Fosse, porém, como fosse, Dick Sand não disse o que aquele facto inexplicável lhe fazia pensar. A tal respeito nem sequer interrogou o americano. Que se devia esperar de um homem que tentara fazer-lhe acreditar que as girafas eram avestruzes? Harris teria dado sobre o caso qualquer explicação mais ou menos bem imaginada e que em nada mudaria a situação.

Em todo o caso, a opinião de Dick a respeito de Harris estava formada. Convencia-se de que ele era um malvado!

Esperava apenas ocasião para pôr bem em relevo a sua deslealdade e para lhe pedir contas. Essa ocasião — tudo o indicava — estava próxima.

Qual era porém o fim secreto de Harris? Qual era o futuro que se antolhava aos náufragos do «Pilgrim»? Dick Sand pensava repetidas vezes que a sua responsabilidade não acabara com o naufrágio. Competia-lhe, e mais do que nunca, atender à salvação daqueles que o encalhe lançara à costa! Aquela mulher com o seu filho, os negros, todos os seus companheiros de infortúnio, enfim, era ele quem os devia salvar! Mas se alguma coisa podia tentar a bordo, se a bordo podia proceder como marinheiro, ali, no meio das terríveis provações que previa, que devia fazer?

Dick Sand não quis fechar os olhos perante a terrível realidade, que de momento para momento se tornava evidente. Capitão do «Pilgrim», apesar de ter quinze anos, era ele quem tornaria a comandar nas presentes conjunturas. Mas nada quis dizer que pudesse atemorizar a pobre mãe, antes de chegar a ocasião de proceder conforme as circunstâncias aconselhassem.

Nada disse nem mesmo quando, precedendo a caravana a cerca de cem passos de distância, chegou à margem de uma larga ribeira e viu grandes animais correndo por entre as ervas altas da encosta.

 — Hipopótamos! Hipopótamos! — ia ele a dizer.

Eram, com efeito, estes paquidermes de enorme cabeça, focinho largo e grosso, boca guarnecida de dentes formidáveis, pernas curtas, e cuja pele é de cor ruiva-escura! Mas hipopótamos na América!

Continuaram, mas com muito custo, caminhando durante o dia. O cansaço começava a retardar até mesmo os mais fortes. Era tempo de chegar, ou seria forçoso parar novamente.

Mrs. Weldon, preocupada com o seu filho Jack, não sentia talvez a fadiga, mas tinha todas as suas forças esgotadas. Todos mais ou menos estavam fatigados.

Dick Sand resistia pelo excesso de energia moral que lhe vinha do sentimento do dever.

Pelas quatro horas da tarde, o velho Tom encontrou entre as ervas um objecto que lhe atraiu a atenção. Era uma arma, uma espécie de faca de forma particular, que tinha a lâmina recurvada e encabada num cabo quadrangular, toscamente lavrado.

Tom levou a faca a Dick Sand, que lhe pegou, examinou-a e mostrou por fim ao americano, dizendo:

 — . Os indígenas não devem estar longe!

 — Não devem, não — respondeu Harris —, contudo...

 — Contudo?... — repetiu Dick Sand, fixando os olhos em Harris.

 — Devíamos estar perto da hacienda — tornou Harris, hesitando —, e não reconheço...

 — Perdeu-se? — perguntou com vivacidade Dick Sand.

 — Não, não estou perdido... A hacienda não deve ficar agora a mais de três milhas. Quis vir pelo caminho mais curto através da floresta, e fiz mal, talvez.

 — Talvez — admitiu Dick Sand.

 — Farei melhor, penso eu, em ir andando adiante — sugeriu Harris.

 — Não, Sr. Harris, não nos separemos — replicou Dick Sand, com modo decidido.

 — Como quiser! — tornou o americano —, mas durante a noite ser-me-á difícil guiá-los.

 — Não importa! — disse Dick Sand. — Pararemos. Mrs. Weldon não se oporá a passar mais uma, a última noite, debaixo das árvores, e amanhã, depois do Sol nascer, continuaremos a caminhar. Duas ou três milhas percorrem-se numa hora.

 — Seja assim — respondeu Harris.

Neste momento Dingo ladrava furiosamente.

 — Aqui! Dingo, aqui! — chamou Dick Sand. — Tu bem sabes que não há ninguém e que estamos num deserto. ..

Decidiu-se que se fizesse a última paragem.

Mrs. Weldon deixou que os seus companheiros resolvessem sem pronunciar uma única palavra. Jack, prostrado pela febre, descansava nos seus braços.

Procurou-se o melhor lugar para passar a noite.

Foi sobre um pequeno bosque que Dick Sand tratou de dispor tudo para poderem dormir. Tom, que se ocupava juntamente com Dick dos preparativos, parou de repente, gritando:

 — Sr. Dick... Veja!... Veja!...

 — Que é, Tom? — perguntou Dick Sand, com a placidez de quem está prevenido para tudo.

 — Ali... Ali... — indicou Tom —, naquelas árvores... manchas de sangue!... No chão, membros mutilados!...

 — Cala-te, Tom, cala-te!

Efectivamente, pelo chão estavam mãos cortadas, e, junto a estes restos humanos, cangas quebradas e uma cadeia rebentada.

Felizmente, Mrs. Weldon nada vira deste horrendo espectáculo.

Harris conservava-se desviado, e quem o tivesse visto naquele momento ficaria impressionado com a mudança que nele se operara. Havia na sua fisionomia traços de ferocidade.

Dingo, que se aproximara de Dick Sand, ladrava enraivecido diante dos restos ensanguentados.

O praticante enxotou-o, mas não sem muito custo.

Entretanto o velho Tom, vendo as cangas e a cadeia quebrada, ficou imóvel, como se os pés estivessem pregados ao chão. Com os olhos demasiadamente abertos e as mãos hirtas, olhava, e murmurava estas incoerentes palavras:

 — Já vi... já vi... estes ferros... Era muito pequenino... Vi!...

É que, sem dúvida, as recordações da sua infância o assaltavam vagamente... Fazia diligência para se lembrar!... Ia falar!...

— Cala-te, Tom! — repetiu Dick Sand. — Por Mrs. Weldon, por todos nós, te peço que te cales!

E o praticante levou consigo o velho negro.

Escolheu-se a alguma distância daquele lugar um outro em que pernoitassem.

Preparou-se a refeição, mas pouco se comeu dela. Havia mais cansaço do que fome. Estavam todos sob uma indizível impressão de desassossego, que era quase terror.

Caiu a noite. Em pouco tempo as trevas eram profundas. O céu estava coberto de nuvens de trovoada. Para o lado do oeste, no horizonte, viam-se, por entre as árvores, brilhar relâmpagos de calor. O vento acalmara completamente; nem uma folha sequer se agitava nas árvores. Aos ruídos do dia sucedera absoluto silêncio. Era fácil de acreditar que a atmosfera, pesada e saturada de electricidade, se tornara imprópria para a transmissão do som.

Dick Sand, Agostinho e Bat velavam juntos. Diligenciavam naquela noite profunda ver alguma claridade ou ouvir algum ruído que lhes fosse suspeito. Nada, porém, perturbava o silêncio e a obscuridade da floresta.

Tom, não amedrontado, mas absorvido pelas suas recordações, com a cabeça inclinada, continuava imóvel, como ferido por um golpe imprevisto.

Mrs. Weldon acalentava o filho nos braços, e só nele pensava.

Primo Bénédict dormia talvez, porque era o único que não sentia a impressão geral. As suas faculdades para pressentir não iam muito longe. De repente, pelas onze horas, ouviu-se um rugido prolongado e grave, acompanhado por uma espécie de urro mais agudo. Tom pôs-se de pé, estendendo a mão para uma mata espessa, que distava uma milha quando muito.

Dick Sand agarrou-o pelo braço, mas não pôde evitar que Tom gritasse:

— Leão! Leão!

O velho negro reconhecera o rugido que tantas vezes ouvira quando era criança.

 — É o leão! — repetiu ele.

Dick Sand, não podendo já dominar-se, correu de punhal na mão para o lugar onde ficara Harris...

O americano, porém, já tinha desaparecido, levando consigo o cavalo.

Houve como que uma revelação no espírito de Dick Sand... Não estava onde supunha!

Não foi a costa da América que o «Pilgrim» avistara! Não foi a ilha de Páscoa que o praticante marcou, mas outra ilha, demorando precisamente a oeste do continente em que estavam, como a ilha de Páscoa fica a oeste da América!

A bússola enganara-o durante uma parte da viagem. É conhecida a razão! Arrastado com a tempestade, seguindo rumo errado, devia ter montado o Cabo Horn, e do oceano Pacífico passado para o Atlântico! A velocidade do seu navio, que só imperfeitamente podia estimar, tinha duplicado, sem que se soubesse, pela força do temporal.

Eis a razão por que as árvores da borracha, as quinas, os produtos da América do Sul, faltavam a este continente, que não era nem o planalto de Atacama, nem o pampa da Bolívia!

Eram girafas, e não avestruzes, que fugiram na clareira! Eram elefantes que atravessavam a mata espessa! Eram hipopótamos, cujo repouso ao abrigo das ervas altas Dick Sand perturbara! Era a tsé-tsé, o díptero que Bénédict apanhou, a temível tsé-tsé, cujas mordeduras matam os animais das caravanas!

Era, finalmente, o rugido do leão, que ressoava nos bosques! As cangas, as correntes, a faca de forma especial, eram os utensílios do mercador de escravos! Aquelas mãos mutiladas eram de cativos!

Negoro e Harris deviam estar conluiados!

E estas palavras terríveis, adivinhadas por Dick Sand, saíram, enfim, dos seus lábios:

 — A África! A África Equatorial! A África dos negreiros e dos escravos!

 

                                                                                            Julio Verne

                              Volume II

 

 

                      

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