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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Fortaleza das Seis Luas / K. H. Scheer
A Fortaleza das Seis Luas / K. H. Scheer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Fortaleza das Seis Luas

 

Com o auxílio de seus mutantes, Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência, conseguiu não apenas conquistar um gigantesco couraçado espacial, mas ainda expulsou os invasores em forma de réptil do planeta principal do sistema Vega.

Mas os comandantes da frota tópsida sabem perfeitamente que para o ditador de seu mundo qualquer derrota representa um crime imperdoável. Por isso, retiram-se com os remanescentes de sua frota para os confins do sistema Vega, onde constroem A FORTALEZA DAS SEIS LUAS, destinada a servir de base a um novo ataque.

Porém mais uma vez não se lembraram dos mutantes de Perry Rhodan — nem de Crest, o arcônida.

 

                        

 

O chiado e trovejar estridentes, provocados pela manobra de ejeção, tiveram o efeito duma chibatada física e psíquica. Suportaram o efeito arrasador da potência mecanizada com uma calma estóica, enquanto namoravam a idéia de fazer o vôo de aproximação com o maior conforto possível.

Assim que os mecanismos de propulsão ajustaram os minúsculos caças espaciais para o empuxo máximo, e o dispositivo positrônico de direção automática foi regulado para o alvo predeterminado, chegou o momento de descontração.

Dessa forma atravessaram, em queda livre e numa velocidade aproximada à da luz, o gigantesco sistema planetário de uma estrela que, segundo o pronunciamento categorizado dos astrônomos, distava vinte e sete anos-luz da Terra, de onde provinham aqueles homens.

Aqueles três homens não pertenciam à classe de gente que costuma refletir sobre o acerto ou desacerto das ordens que recebem. Além disso, tudo indicava que o vôo de patrulhamento da pequena esquadrilha de caças espaciais era realmente necessário. Então, por que dar tratos à bola?

A nave S-7, a capitania da esquadrilha que acabava de ser ejetada, mantinha-se em posição de espera nas proximidades do trigésimo oitavo planeta do gigantesco sol Vega. Mantinha as comportas abertas, prontas para receber os caças, e os comandos dos projetores de raios de sucção eram manobrados por homens de confiança e bons camaradas. Uma vez cumprida a missão, o ingresso dos três caças a bordo seria uma simples operação de rotina. Uma vez na nave-capitânia, os tripulantes disporiam de todas as amenidades de um serviço de bordo bem organizado.

Os três homens que haviam sido designados para empreender a longa viagem eram elementos de destaque, que só por um acaso quase inacreditável chegaram a ver de perto o gigantesco sistema planetário de Vega, poucos anos depois de terem visto pela primeira vez a luz de seu mundo distante.

O major Deringhouse exercia as funções de comandante da patrulha espacial. Os sargentos Rous e Calvermann pertenciam ao grupo de pilotos de caça que já haviam realizado mais de cinqüenta ataques contra as naves singulares duma raça estranha.

Decolaram com um sentimento de autoconfiança. Nem de leve pensaram nos perigos que sem dúvida os aguardavam nas proximidades do quadragésimo planeta. Confiavam na grande aceleração dos caças que se deslocavam à velocidade da luz, na força dos seus nervos, e principalmente nos canhões de raios de impulso, embutidos rigidamente na ponta dos caças.

Depois de descansarem cerca de doze horas nos seus assentos reclinados, o dispositivo automático detectou e localizou o quadragésimo planeta.

Logo despertaram. Perceberam nitidamente quatro das seis luas. A lua número quatro acabara de surgir de trás da bola brilhante e avermelhada que era o quadragésimo planeta. Esse mundo situava-se nos confins do sistema Vega. Por isso devia estar morto e desabitado, mal sendo atingido pelos raios solares, embora estes fossem emitidos por uma enorme fornalha atômica existente numa estrela que podia ser considerada a maior estrela do setor norte do firmamento, isso para quem se encontrasse na Terra.

Quando o grito estridente de Rous foi transmitido pelo telecomunicador que trabalhava a velocidade superior à da luz, o mecanismo propulsor do caça de Calvermann já havia sido transformado numa tocha atômica que cuspia raios.

O corpo de Calvermann contorcia-se na pequena cabina, cheia de vapores e gases incandescentes. O capacete de pressão, que por pura comodidade havia sido atirado para trás, obedeceu ao impulso automático do mecanismo de compensação, encaixando-se com uma forte pancada no suporte magnético embutido na altura do pescoço.

Com isso o traje espacial de Calvermann fechou-se hermeticamente. Tudo funcionava perfeitamente até então; só o corpo de Calvermann falhou. Além disso, também o componente mais importante de um caça espacial — o potentíssimo mecanismo propulsor — deixou de funcionar.

E foi assim que um caça gravemente danificado começou a se precipitar em parafuso na direção do quadragésimo planeta, tão próximo, que sua força gravitacional já não podia ser evitada.

O abalo estrutural sofrido pela máquina logo inutilizou o dispositivo positrônico de direção. Além disso, o aparelho de condicionamento de ar não funcionava, e o reator de emergência deixou de fornecer energia. Apenas o aparelho de comunicação audiovisual continuava a funcionar. Era alimentado por um pequeno carregador de emergência.

Poucos minutos depois do impacto direto ainda reinava uma temperatura de três mil duzentos e dezoito graus centígrados no interior da cabina do sargento Calvermann. Se não estivesse protegido pelo traje espacial, o calor já teria transformado seu corpo em cinzas.

Da forma que estava, praticamente não sentiu o calor, ainda mais que a cápsula incandescente logo irradiou o mesmo para o vácuo do espaço.

Por trás do astronauta reduzido à impotência, as fúrias do inferno pareciam estar soltas.

O major Deringhouse e o sargento Rous lutavam encarniçadamente para defender sua pele. Enquanto conseguissem fazer uso adequado das vantagens estruturais dos minúsculos caças, extremamente rápidos e fáceis de manobrar, pouco ou nada lhes poderia acontecer. Todavia, não lhes poderia acontecer aquilo que havia levado Calvermann à beira do abismo — um impacto casual de um dos numerosos canhões de radiações do inimigo, surgido inesperadamente das profundezas do hiperespaço.

O major Deringhouse, um homem jovem, alto e esguio, estava de costas para a chapa de blindagem de radiações, que o separava do compartimento de máquinas de seu caça.

Praticamente o aparelho consistia apenas numa longa cela em forma de torpedo que, além da cabina do piloto, de dimensões modestas, só abrigava grandes mecanismos propulsores e conjuntos auxiliares. Os caças não tinham condições de oferecer alojamentos confortáveis ao piloto.

Não passavam de vespas espaciais repletas de armas. Podiam ser conduzidas a bordo de naves espaciais muito maiores para ocasionalmente desempenharem missões especiais.

A mais importante dessas missões consistia no reconhecimento de determinados setores do espaço, onde os veículos maiores não podiam penetrar.

Deringhouse já não confiou exclusivamente nas telas óticas e goniométricas do seu localizador automático. Onde quer que lançasse os olhos, via enxames de unidades inimigas que, numa manobra tresloucada, haviam saltado diretamente para o interior do sistema planetário Vega.

Só assim tornou-se possível a surpresa total. Não havia possibilidade de detectar a tempo qualquer espaçonave que, durante a aproximação, se mantivesse no hiperespaço pentadimensional.

O pequeno grupo de combate espacial de Deringhouse encontrara-se justamente no ponto em que a esquadrilha de espaçonaves dos tópsidas, uma classe de seres não-humanos, penetrara no universo normal.

Mais uma vez Deringhouse viu o feixe de raios, que se deslocava em sua direção a velocidade pouco inferior à da luz. Os seres extraterrenos tinham pontaria precisa, um fato que já se deduzira das excelentes posições de fogo das naves inimigas apresadas. Deringhouse não teve outra alternativa senão bater em retirada. O conversor de rumo uivou, o jato de estibordo cuspiu fogo e a nave saiu da linha de tiro.

O rosto do sargento Rous surgiu na pequena tela do intercomunicador. Estava branco como cera. Os lábios pareciam traços sem sangue, distorcidos pelos reflexos produzidos pela lâmina do capacete de pressão.

Rous encontrava-se a menos de mil quilômetros atrás do caça do chefe da esquadrilha. Mas adiante, entre, acima e abaixo dos dois caças, viam-se os pontinhos luminosos que representavam as gigantescas naves espaciais dos tópsidas, para cujo comandante os três caças pareciam mosquitos inoportunos. E as três naves que Deringhouse e Rous já haviam conseguido destruir no curso da sua desesperada ação de defesa em nada modificaram a situação. Os destroços incandescentes das três naves tópsidas atingidas por disparos de impulso derivaram na direção do quadragésimo planeta, tal qual o caça de Calvermann. A imensa força gravitacional do gigantesco planeta nada representava para uma nave intacta, mas exercia uma influência tremenda sobre as danificadas, cujos mecanismos propulsores haviam sido postos fora de funcionamento. Além disso, a velocidade de todas as naves inimigas era tão reduzida que a força cada vez mais intensa da gravidade não podia ser considerada um fator desprezível, face à energia cinética desenvolvida pelas naves em movimento.

O aparelho de Calvermann ficou sujeito aos efeitos da mesma lei. O fato é que não fora intenção de Deringhouse passar pelas luas a serem investigadas a uma velocidade próxima à da luz, pois dessa forma as condições para a telefotografia seriam as piores possíveis.

O chefe da esquadrilha assumira um grande risco. Sabia-se que o inimigo instalara sua base nas seis luas do quadragésimo planeta. Ao menos essa base estava sendo instalada, o que explicava o repentino aparecimento dos reforços vindos do hiperespaço.

No momento em que se verificou o abalo estrutural quadridimensional, Deringhouse lembrou-se de que as notícias teriam de ser levadas de qualquer maneira à nave-capitânia, que se mantinha à espera, de onde seriam transmitidas a Perry Rhodan, chefe da audaciosa expedição.

Naquele momento pensou na única coisa razoável: a sobrevivência. O inimigo não teria a menor compaixão.

Ouviu o som estridente partido do débil envoltório energético que protegia seu caça. O disparo de radiações de uma das naves gigantescas, que mal conseguia avistar, só fora percebido no último instante; devia ter a potência de um sol em miniatura.

— Estamos devagar, muito devagar — berrou o alto-falante do telecomunicador.

O instrumento dos arcônidas, que funcionava a velocidade superior à da luz, continuava a transmitir com toda perfeição. Seus impulsos sobrepostos não podiam ser atingidos por qualquer tipo de interferência normal.

— Estou metido num montão — continuou a berrar Rous. — Qualquer hora destas me apanham. Os tiros já não são disparados a esmo. Dentro de cinco minutos no máximo estou no centro de um fogo cruzado. E agora?

Deringhouse voltou a mudar violentamente o curso de seu caça. De tanto que teve que manobrar para se esquivar dos disparos do inimigo, mal conseguia colocar seu aparelho em posição de tiro.

Rous ouviu um gemido abafado. Logo se ouviram estas palavras:

— Continue no meio do montão; não saia. Assim que voarmos em linha reta, seremos atingidos. Não conseguiremos acelerar com bastante rapidez para escapar aos disparos. Como vai Cal...?

— Está descendo em parafuso. Caiu na área de influência do número quarenta. Mal consigo vê-lo.

Deringhouse voltou-se. O uivo furioso de seu depósito de energia constituía indício claro e evidente de que dificilmente seria possível absorver a força da inércia gerada pelas manobras tresloucadas. Por certo o limite de desempenho já fora excedido algumas vezes. Se o instrumento de absorção de pressões viesse a falhar em virtude da sobrecarga, ele, Deringhouse, se esfacelaria em átomos por ocasião da próxima manobra de esquiva. Tratava-se de uma lei física que não podia ser desprezada, ainda mais por um organismo relativamente débil.

A visão das naves dos tópsidas através das telas do aparelho de observação global só se tornava possível quando as torres giratórias relampejavam com os disparos. Mas, geralmente, quando a claridade o atingia, alguns segundos ou mesmo minutos já haviam se passado. As naves penetravam no sistema Vega em largos intervalos, para não se expor a qualquer risco.

— Vamos escapar em direção a Vega — transmitiu Deringhouse. — Devagar. Mudar progressivamente de rumo, apenas com direção manual. Estarão em condições de calcular qualquer manobra do autômato com base nos princípios conhecidos. Vou...

Ouviu o grito de Rous. Desta vez a coisa chamejante, ofuscante, infinitamente longa, veio numa trajetória inclinada e descendente. Deslocava-se em velocidade quase igual à da luz, e por isso só se tornou perceptível no último instante.

Já não valia a pena recorrer à localização energética.

Deringhouse voltou a erguer o caça por meio dos jatos de popa. A velocidade reduzida, que mal atingia cinco mil quilômetros por segundo, permitia curvas relativamente estreitas. Sobretudo para um piloto de caça espacial, que não se impressionaria em absoluto com uma curva de uns vinte mil quilômetros de raio. A uma velocidade mais elevada esse raio teria de atingir milhões de quilômetros.

Aqui, no espaço vazio e aparentemente infinito, as distâncias não importavam mais. Encolhiam-se e, à medida que se aumentava a velocidade, transformavam-se em nada.

O localizador reagiu. Na tela do rastreador energético, cujo tamanho não excedia o da palma de uma mão, surgiram os contornos característicos de uma nave tópsida. Era comprida e fina como um lápis. O centro, visivelmente abaulado. Deringhouse já sabia que o inimigo — descendentes de uma raça de répteis, cujo raciocínio de que eram dotados funcionava de forma diferente do homem — montara nessa parte abaulada os mecanismos propulsores e as máquinas mais importantes da nave. Os homens e os arcônidas, que a eles se assemelhavam, preferiam a montagem na popa.

O microcérebro positrônico do caça trabalhou com uma rapidez inacreditável. Mediu a distância, calculou o tempo de percurso do tiro de radiações e determinou o ponto diante da nave inimiga para o qual devia ser apontado o canhão. Tudo isso só levou uma fração de segundo. Sem o dispositivo positrônico, Deringhouse nunca conseguiria acertar, pois o inimigo mantinha uma velocidade de cerca de quinhentos quilômetros por segundo, e se deslocava num outro plano do espaço.

Assim que a luz verde piscou, Deringhouse comprimiu obstinadamente e com um grito histérico o mecanismo de disparo do canhão de impulso, que a rigor era grande e potente demais para o pequeno caça.

Soltou ainda um grito e fechou os olhos, ofuscados pela incandescência deslumbrante, quando o raio de impulso, que tinha a grossura de um homem, saiu do bocal daquele cano estranho, emitindo um rugido primitivo.

Não percebeu as energias atômicas subitamente liberadas, que deslizavam pelo espaço à velocidade da luz, e que, além da força tremenda do impacto, ainda encerravam o calor de um sol.

A nave que acabara de ser localizada encontrava-se a uma distância ridícula: apenas trinta mil quilômetros.

A furiosa trepidação do caça ainda não havia cessado quando lá adiante o impacto ocorreu com uma precisão enorme. Deringhouse só percebeu o ponto incandescente, que aumentou num crescendo vertiginoso, até se transformar numa nuvem energética de tonalidade violeta.

Rous berrou algumas palavras incompreensíveis. Eram os gritos loucos, de alegria, de um homem perseguido, que naquela altura só pensava numa coisa: fugir, colocar-se em segurança.

Deringhouse passou vertiginosamente pela extremidade da bola de gases atômicos. Não se via mais nada da grande nave tópsida; a única coisa que sobrava era aquele pequeno sol artificial.

Um furacão rugia em seu envoltório protetor, formado de unidades energéticas pentadimensionais. Mal havia passado e acostumado os olhos ao negrume do Universo, Deringhouse teve de esquivar-se de outro tiro.

O sargento Rous encontrava-se atrás dele. Dali a alguns segundos seu caça passou, expelindo fogo pela popa. Só então Deringhouse compreendeu que com a destruição da nave tópsida abrira um caminho.

Com um rápido movimento reflexivo empurrou para a frente o regulador do mecanismo de propulsão. Só a aceleração muito superior dos caças poderia salvá-los. À razão de quinhentos quilômetros por segundo ao quadrado, alcançariam a velocidade da luz em cerca de dez minutos.

Num louco ziguezague disparou atrás de Rous. Bem à frente e à sua direita reluzia a gigantesca massa vermelha do quadragésimo planeta de Vega. O sol de seu mundo só tinha nove planetas, enquanto essa estrela gigantesca tinha quarenta e dois.

Deringhouse viu-se rodeado por uma filigrana de raios térmicos branco-azulados. O inimigo disparava furiosamente, embora soubesse que, com as manobras loucas que os caças executavam, só por acaso conseguiriam um impacto direto.

— Calvermann, o que houve? — gritou Deringhouse no telecomunicador de bordo, com a voz desesperada. — Calv, responda, Calv, estamos nos afastando, Calvermann.

O alto-falante soou na cabina do caça que continuava a descer em parafuso. As palavras de Deringhouse saíram nítidas do receptor embutido no capacete.

Alguns segundos depois, os dois pilotos ouviram a respiração difícil de Calvermann. Ao mesmo tempo as telas de seus telecomunicadores iluminaram-se. Concluíram que Calvermann ainda estava vivo.

Quando o rosto desfigurado do companheiro surgiu na tela, Deringhouse teve de reprimir um gemido. A transmissão foi realizada no espaço tridimensional, reproduzindo as cores naturais.

A pele escura, quase negra, do rosto de Calv estava coberta de manchas e estrias vermelhas.

— Descompressão explosiva — as palavras soaram debilmente no receptor. — Que diabo! Tirei o capacete. Sinto pontadas no pulmão. O ar foi arrancado da minha boca. Dêem o fora. Vamos logo, dêem o fora!

As últimas palavras eram quase incompreensíveis. O capacete de Calvermann bateu contra o dispositivo positrônico de captação, embutido no emissor. Só seus olhos escuros, semicerrados numa expressão de dor, continuavam nas telas de imagem.

— Você está penetrando na atmosfera — gritou Deringhouse com a voz desesperada. — Sua velocidade não é suficiente para entrar em órbita. Como vai seu jato-propulsor?

Calv limitou-se a rir. Foi um riso áspero, que mais parecia uma tosse, mas um riso. E dizia mais que muitas palavras.

— Dêem o fora. Lembranças ao chefe. Na terceira lua há uma pequena base dos tópsidas. Mal consegui reconhecê-la. Dêem o fora. Nem pensem em arrancar-me da minha máquina. Quando chegarem aqui, já estarei lá embaixo. Dêem o fora!

A última palavra parecia uma súplica. Seus olhos fecharam-se.

— Rous, continue a se afastar — ordenou Deringhouse em tom apressado. — Vou buscá-lo. Terei de alojá-lo na cabina. Daremos um jeito. Vou...

Um impacto cruel atirou-o contra os cintos largos da poltrona. O mecanismo propulsor de seu caça, que já havia atingido setenta e cinco por cento da velocidade da luz, uivou antes de parar sob uma série de ruídos retumbantes.

Deringhouse ouviu o chiado do mecanismo de absorção de pressões. Apesar disso voltou a ser comprimido de encontro aos cintos. O espaço salpicado de estrelas transformou-se numa centrífuga que descrevia uma rotação vertiginosa. Nas telas de seu aparelho de observação global surgiu um círculo de fogos de artifício. O caça descrevia um vertiginoso movimento de rotação em torno de seu eixo longitudinal.

Uma luminosidade vermelho-clara penetrou na cabina. Deringhouse teve a impressão de sentir a temperatura interna, embora seu traje espacial pudesse resistir às mais elevadas temperaturas.

Teve a mesma sorte de Calvermann, ao qual um instante antes pretendia dar socorro, com a única diferença de que não sofrerá nenhuma descompressão explosiva. Sua cabina pressurizada permaneceu intacta, e o condicionador de ar também continuava a funcionar.

Não fosse isso e seu caça seria transformado, no espaço de poucos segundos, num montão de destroços. Atrás da nave, que se deslocava numa velocidade tremenda, partículas de gases incandescentes enchiam o espaço.

Deringhouse levou algum tempo para ouvir os gritos desesperados do sargento.

Rous interrompera imediatamente sua pesada manobra de aceleração. Ia atravessando o espaço em queda livre. A menos de mil quilômetros, o aparelho do chefe de sua esquadrilha balouçava pelo vácuo.

— Tudo bem — respondeu Deringhouse pelo telecomunicador. — Tudo bem. Não estou ferido. Ainda estão atirando?

— Não. Mas seu aparelho gira que nem um pião — trovejou a voz do sargento no alto-falante. — Se continuarem a nos perseguir, eles nos agarrarão durante a manobra de salvamento. Estabilize essa geringonça. Vou calcular minha manobra.

Deringhouse não disse mais nada. Com alguns movimentos de mão, pôs a funcionar a centrífuga de alta rotação do mecanismo estabilizador.

Aos poucos conseguiram controlar e equilibrar o caça atingido na popa. O impacto não podia ter sido muito forte. Devia ser um tiro de raspão que penetrou no fraco envoltório protetor. Apesar disso, fora o bastante para inutilizar aquela máquina ultra-sensível.

Bem longe, à sua frente, Rous, cuja máquina só se tornava visível pela luminosidade intensa dos jatos de correção, iniciava as difíceis manobras de aproximação. Teria de reduzir a velocidade e se colocar bem ao lado da máquina de Deringhouse. Só assim o chefe poderia ser colocado a bordo de seu caça.

— Calv! O que houve com Calv? — a voz saiu do alto-falante de Rous como se fosse um sopro. — Pretendia buscá-lo.

O sargento cerrou os dentes. Sabia tão bem quanto Deringhouse que não havia mais possibilidade de socorrer o piloto. O inimigo ocupava o setor do espaço em que ele se encontrava. O quadragésimo planeta ia se tornando cada vez menor.

Deringhouse esperou calmamente pelo subordinado, que naquele instante se transformara em amigo. Rous era um elemento de confiança. Tudo dependia dos tópsidas os deixarem em paz.

Enquanto o sargento se esforçava para equilibrar sua máquina por meio de pequenas correções de empuxo, alguns milhões de quilômetros atrás deles um objeto incandescente mergulhou na espessa atmosfera venenosa de um planeta hostil a qualquer forma de vida.

O capacete pressurizado de Calvermann continuava visível na tela do telecomunicador. Seus olhos amortecidos mantinham-se fixos sobre a tela. Não sentia mais nada, mas seus lábios sorriam.

 

 

Chamavam-no de Thort. Pouco importava qual fosse o nome do soberano. A única coisa que interessava aos homens, que haviam pousado no planeta principal do sistema Vega, era que do outro lado da mesa de negociações estivesse um interlocutor investido dos poderes necessários. E no presente caso acontecia precisamente isso.

No curso das prolongadas negociações, Perry Rhodan, antigo piloto da Força Espacial dos Estados Unidos e o primeiro homem a dominar a lua terrestre, não perdeu por um instante sua calma proverbial e sua nítida superioridade.

Desta vez o antigo major da Força Espacial dos Estados Unidos não admitira nenhuma solução de compromisso. Os seres inteligentes que habitavam o oitavo planeta de Vega, chamado de Ferrol, haviam solicitado ajuda militar, prometendo a conclusão de um acordo comercial.

Perry Rhodan achou que já havia chegado a hora de levar a termo o tratado.

Encontravam-se na chamada sala das decisões, situada no Palácio Vermelho, considerado a construção mais monumental da capital dos ferrônios. A capital costumava ser designada pela palavra Thorta, derivada do título conferido ao soberano.

Rhodan sentiu-se decepcionado ao saber que o Thort, considerado um soberano onipotente, recorrera ao seu conselho de ministros. Ao que parecia tinha as mãos ligeiramente amarradas. Dessa forma as negociações arrastaram-se por alguns dias ferrônios.

A comissão de homens terrenos era pequena. Dela faziam parte unicamente Perry Rhodan, Reginald Bell, ministro da segurança da Terceira Potência, e um observador, o mutante John Marshall, cujas qualidades telepáticas lhe permitiriam conhecer perfeitamente os pensamentos e o estado de espírito dos ferrônios que participassem das negociações. Para Marshall seria fácil transmitir diretamente a Rhodan as idéias por ele captadas, ainda que se tratassem de idéias encobertas.

Rhodan mantinha um perfeito autodomínio. Suas idéias, observações e objeções eram bem ponderadas e convincentes.

Não tinha a intenção de lograr os ferrônios. Desejava um acordo limpo, inequívoco e moralmente inatacável.

No momento, Thort estava examinando os contratos bem redigidos. Era um direito que lhe cabia. Tanto física como psiquicamente, Reginald Bell era o extremo oposto de seu comandante. A desconfiança e um toque de contrariedade brilhavam nos seus olhos claros, aparentemente descoloridos.

Só Marshall era a atenção em pessoa. Não tinha tempo para descansar. A sucessão de pensamentos dos participantes da reunião devia ser observado ininterruptamente, segundo ordenara Rhodan. Ao menos nesse ponto quis ter certeza.

Ninguém, e muito menos as pessoas que ali estavam refletindo, desconfiava da atividade daquele homem esbelto com o uniforme verde-claro da Terceira Potência. Um homem comum acharia bastante estranho tanto o distintivo que trazia do lado esquerdo do peito, na altura do ombro, como o capacete de rádio abaulado, com a tela do microtelevisor aberta para o lado.

Tratava-se de objetos que nesse acabamento singular não foram concebidos pela ciência terrena, nem construídos pela tecnologia dos terráqueos.

Ao que parecia, no momento era este o fator dominante no cérebro de Rhodan. Já não havia muita coisa a dizer sobre os tratados. Mas o comandante sentiu os impulsos irresistíveis do subconsciente que dele costumavam apossar-se em momentos como este.

Ele, um homem nascido na Terra, via-se diante dos representantes de uma raça totalmente estranha, num planeta longínquo, que realizava suas evoluções em torno de um sol gigantesco situado a vinte e sete anos-luz do mundo a que pertencia.

Esse fato só por si convidava à reflexão, talvez à contrição. Rhodan, um homem conhecido por sua autocrítica implacável, reconhecera logo no início das negociações, com uma nitidez martirizante, que seu lugar não era este.

Seu lugar não era este porque a Humanidade, tão distante ainda, procurava adivinhar as leis naturais que os ferrônios já haviam descoberto e vinham utilizando há milênios.

Como poderia ter acontecido isso? Como era possível que um homem se visse subitamente diante de um soberano que dominava praticamente um sistema solar inteiro e uma gigantesca frota espacial?

Quando voltou a pensar em tudo isso, Rhodan sentiu um sabor amargo sobre a língua. Sem que o percebesse, seus olhos dirigiram-se a Bell. Aquele homem de pequena estatura parecia não conhecer qualquer tipo de inibição. Naquele instante objetou no seu ferrônio arranhado que não gostava nem um pouco do terceiro parágrafo do chamado protocolo de trocas. Ouviram-no e respeitaram-no, como se fosse o representante de uma raça dotada de inteligência infinitamente superior.

Rhodan pigarreou. John Marshall esboçou um sorriso quase imperceptível. Percebera o que se passava na cabeça do comandante. Era precisamente essa a qualidade de seu caráter que o ajudara a conquistar tamanho êxito entre os homens. Seus companheiros adoravam-no, na Terra distante era considerado o principal fator de poder.

Rhodan não devia pensar em certas minúcias do seu passado, se não quisesse se arriscar a lançar uma luz difamadora sobre seus próprios sucessos.

Naquele dia de um passado não muito longínquo, quando ainda era um modesto major, altamente especializado, da Força Espacial dos Estados Unidos, decolara na primeira nave espacial de propulsão nuclear construída pelo homem, num vôo tripulado para a Lua. Foram quatro homens, todos eles pertencentes aos primeiros grupos de astronautas que há anos vinham sendo treinados em manobras de acoplamento e vôos orbitais que duravam várias semanas. A Lua já fora atingida então por duas sondas robotizadas, uma russa e outra americana. Só faltava o homem.

Essa situação modificou-se naquela data. A Stardust penetrara no espaço, e Perry Rhodan, chefe da primeira expedição lunar, realizara um pouso perfeito e sem incidentes.

A Humanidade nunca teria despertado do seu torpor se pouco antes não tivesse pousado na Lua a gigantesca nave de uma estranha raça espacial.

Era bem verdade que se tratava de um simples pouso de emergência dos arcônidas, nome que se dava aos habitantes do longínquo planeta de Árcon. Não haviam penetrado no sistema solar para trazer a felicidade aos homens, muito menos para combatê-los. Tudo não passava de uma coincidência, mas essa coincidência faria com que Perry Rhodan servisse de catalisador do poderio galático exercido pelo homem terreno.

Rhodan descobrira os ocupantes da nave gigantesca, cujo chefe científico foi conduzido à Terra em virtude da grave enfermidade de que padecia.

Ninguém melhor que Rhodan percebera a superioridade infinita da ciência e da tecnologia dos arcônidas. Enquanto a Humanidade se encontrava no limiar da guerra nuclear, nas profundezas da Via Láctea existia uma raça que há dezenas de milênios erigira um gigantesco império espacial, dotado de um ativo comércio interestelar e de grandiosos centros administrativos.

Com uma clareza martirizante, Rhodan percebeu que além dos homens existiam outras raças, de nível mental infinitamente superior. Teve uma reação coerente com as características de sua personalidade. Contrariando as ordens que recebera, pousou com a Stardust em pleno deserto de Gobi.

Os equipamentos arcônidas que trazia a bordo protegeram-no contra visitas indesejáveis.

Dali em diante, a Terceira Potência passou a existir sobre a Terra.

Rhodan evocou a luta implacável pela sobrevivência, forma pela qual a guerra nuclear fora impedida por meio da supertécnica arcônida. Demorou bastante para que os ataques desfechados contra sua base fossem suspensos.

Todavia, a Humanidade conseguiu destruir a nave espacial exploradora dos arcônidas, estacionada na Lua, fazendo uso das novas bombas H. Dessa forma os dois únicos sobreviventes do cruzador espacial dos arcônidas viram-se forçados a permanecer na Terra em companhia de Rhodan. Transmitiram-no seu saber. Nisso havia certa dose de interesse, pois algum dia os arcônidas desejariam regressar ao seu mundo.

A dificuldade eram os transportes. Na época só restava uma nave auxiliar do cruzador espacial destruído, na qual o comandante escapara à destruição. Essa nave auxiliar que, com seus sessenta metros de diâmetro era um artefato gigantesco para as concepções terrenas, desenvolvia velocidade superior à da luz, mas seu raio de ação não ultrapassava quinhentos anos-luz. E o mundo dos arcônidas ficava a uma distância de trinta e quatro mil anos-luz.

Com isso estavam isolados. Rhodan realizara seu trabalho para superar as dificuldades geradas pelas limitações terrenas. Dentro de pouco tempo conseguira montar um pequeno Estado na Ásia Central, em pleno deserto de Gobi.

Foi quando surgiram as primeiras notícias inquietadoras sobre os acontecimentos que se desenrolavam no sistema Vega, situado a pouca distância. Rhodan sabia que a posição galáctica da Terra corria grave perigo, uma vez que o emissor automático de emergência, embutido no cruzador espacial, destruído pelos homens, transmitia sinais de socorro a velocidade superior à da luz. Há muito Rhodan contava com o surgimento de seres estranhos, nem que viessem apenas para satisfazer a curiosidade.

Nem poderia ser diferente, pois nas profundezas do espaço galático existia um império interestelar conhecido como Grande Império. Fora construído pelos arcônidas. Planetas inteiros foram abertos à colonização. As disputas pelo poder realizadas entre os arcônidas e outras raças foram travadas com recursos apavorantes, isso numa época em que o homem ainda habitava as cavernas.

Assim que recebeu notícias sobre a localização dos seres estranhos, Rhodan agiu sem perda de tempo. Dirigiu-se ao sistema Vega a bordo da nave auxiliar arcônida. Esse artefato esférico recebera o nome de Good Hope.

Rhodan apenas pretendia verificar o que estava acontecendo no sistema Vega, situado a vinte e sete anos-luz da Terra. Receava que uma raça estranha pudesse ter captado e localizado a origem dos sinais de emergência, emitidos pelo cruzador arcônida destruído.

Era de estranhar que as naves invasoras surgissem nas proximidades do sistema Vega, e não perto do Sol. Rhodan vira nisso uma espécie de prazo de tolerância. Acreditava que possivelmente os seres extraterrenos tivessem cometido algum engano nos seus cálculos positrônicos.

Era isso mesmo! Assim que a Good Hope chegou perto da estrela gigante, foi “condignamente” recepcionada. As naves espaciais de duas raças diferentes” fizeram sua aparição. Uma delas residia no sistema Vega. Já era conhecida face aos relatos das expedições arcônidas realizadas em tempos bastante remotos.

Eram os ferrônios. Provinham do oitavo planeta, denominado Ferrol, semelhante à Terra. Os veículos espaciais em forma de ovo dos ferrônios foram reconhecidos imediatamente. Acontece que ainda havia aquelas naves alongadas e de centro abaulado.

Crest, o cientista arcônida, também identificara estas. Eram artefatos construídos por uma raça absolutamente inumana, que há cerca de mil anos do calendário terreno estava empenhada em minar o poderio do Grande Império através de revoltas e ataques-relâmpago, desfechados contra redutos afastados.

Crest dera a esses descendentes de répteis o nome de tópsidas. Seu mundo ficava a uma distância de oitocentos e quinze anos-luz, no sistema Orion-Delta.

Suas naves, de velocidade superior à da luz, haviam penetrado no sistema de Vega, onde supunham encontrar uma nave arcônida que emitia sinais de emergência. Fora um erro de cálculo.

Contra sua vontade, Rhodan se vira envolvido numa violenta batalha espacial, que a Good Hope teria vencido galhardamente, se de repente não tivesse surgido um gigantesco couraçado arcônida, que desfechou um tiro arrasador contra a nave de dimensões muito mais reduzidas.

Não perceberam em tempo que o couraçado representava uma presa dos seres inumanos. Rhodan refugiou-se no nono planeta do sistema, entrou em contato com o chefe dos ferrônios e, num golpe extremamente arriscado, conseguiu apoderar-se do couraçado estacionado no oitavo mundo.

Após isso, as tropas tópsidas foram desalojadas da área central desse mundo, sem qualquer derramamento de sangue, através de uma única atuação do Exército de Mutantes. Todavia, acabaram instalando-se nas seis luas do longínquo planeta número quarenta.

Era essa a situação no momento em que Perry Rhodan esforçava-se para concluir o tratado comercial.

Se refletisse nos antecedentes, chegaria à conclusão de que, se não tivesse encontrado por acaso a supertécnica dos arcônidas, ainda seria piloto da Força Espacial dos Estados Unidos.

Os ferrônios, que para Reginald Bell eram “um tanto subdesenvolvidos”, estavam alguns milênios à frente da Humanidade no que dizia respeito às conquistas técnico-científicas. Mas não dominavam a técnica da navegação espacial a velocidade superior à da luz; provavelmente seus cérebros não sabiam pensar em termos do plano pentadimensional.

Rhodan sentiu-se um tanto envergonhado. Mas, o que se encontrava em jogo era a transformação da Humanidade num dos elementos do poder galático. A presença dos tópsidas constituía uma prova flagrante da fraqueza da Terra, e da força que teria de adquirir a curto prazo se quisesse sobreviver.

Há alguns anos ainda teria sido inconcebível o contato de Rhodan com os representantes de outra raça espacial. Agora via-se diante dos ferrônios atarracados, bastante parecidos com os homens. Até parecia que nunca fora diferente. A descoberta de inteligências estranhas fora um choque. Mas agora as considerações pragmáticas estavam levando a melhor.

Os produtos da indústria ferrônia deviam representar um valor imenso na Terra. Tudo dependia da manutenção das relações que estavam sendo estabelecidas.

Não haveria o menor problema se Rhodan não soubesse que nas seis luas do quadragésimo planeta estavam alojados os representantes de uma raça totalmente estranha à sua. Era este o único fato que obscurecia o desenrolar dos acontecimentos. E era um fato que não devia ser subestimado.

Cinco das oito naves auxiliares encontravam-se em viagem. O supercouraçado que estivera em poder dos tópsidas tinha a bordo doze dessas naves auxiliares de sessenta metros de diâmetro. Cada uma delas tinha o tamanho e a força da velha Good Hope, que a essa altura não passava de um montão de destroços guardados num dos hangares do nono planeta de Vega.

A nave S-7, comandada pelo major Nyssen, estava estacionada nas proximidades do trigésimo oitavo planeta. Era imprescindível averiguar os movimentos táticos e estratégicos realizados pelo invasor.

 

As palavras cochichadas chegaram ao seu ouvido. Perry Rhodan despertou sobressaltado do automartírio dos seus pensamentos. Evidentemente o mutante Marshall não conseguira estabelecer contato direto com a consciência de Rhodan. Por isso pôs-se a cochichar.

Rhodan virou os olhos claros. Não modificou a posição do corpo.

— A base comercial terrena que estamos planejando incomoda o senhor — cochichou o mutante, cujas capacidades supersensoriais eram conseqüência da explosão atômica de Hiroshima.

Além de Marshall, havia dezesseis mutantes a bordo do couraçado arcônida. Foi difícil separar das massas humanas esses seres que sofriam os efeitos retardados das intensas radiações. Antes de tudo era necessário localizá-los. Marshall pertencia aos mutantes positivos, que só sofreram alterações no plano espiritual e alcançaram a revelação dos seus dons através da auto-observação.

Agora estava sondando cuidadosamente o conteúdo do pensamento dos mais importantes ferrônios. Não estavam de acordo! Era o que Rhodan receava. Ninguém gosta de acolher em sua terra o representante de uma grande potência, menos ainda um soberano como Thort.

— Vamos aguardar — respondeu Rhodan com a voz baixa. — Eles acabarão reconhecendo que sem uma base não conseguirão se arranjar. Já chegou alguma notícia da nossa nave?

Marshall respondeu com uma ligeira sacudidela da cabeça. Não. Ao que parecia os mutantes que lá se encontravam ainda não haviam ouvido nada, pois de outra forma Marshall teria sido informado imediatamente.

Reginald Bell soltou um suspiro abafado. Uma raiva contida chamejava nos seus olhos. Mais uma vez lutava para conservar o autodomínio, esquecendo que ficava bem aos homens demonstrar uma boa dose de discrição e autodomínio num lugar como Ferrol.

— Tomara que não resolvam tomar novamente esse banho de vapor, resmungou em voz baixa. — O que será que ainda têm que pensar?

Lançou um olhar furioso em direção ao vulto encolhido do Thort. Já fazia muito tempo que o soberano exercia o poder. Ainda não se sabia quem seria seu sucessor. O cargo não era hereditário.

Rhodan procurou captar o olhar do velho ferrônio. A pele azul-pálida daqueles seres já não incomodava os homens. Também não reparavam no contraste representado pelos espessos cabelos cor de cobre.

Os olhos muito pequenos e encovados, que ficavam muito atrás da enorme testa protuberante, representavam um aspecto muito mais desagradável para o homem.

Era bem verdade que essa característica talvez fosse uma resultante biológica do gigantesco sol ofuscante e escaldante. Os olhos estavam protegidos contra as radiações ultravioletas, e a cabeleira espessa protegia o crânio contra as queimaduras. As coisas não poderiam ser diferentes; dificilmente a Natureza comete um engano.

Apesar disso, aqueles olhos quase invisíveis incomodavam Rhodan. Não havia possibilidade de atingir o olhar de um ferrônio. Era dificílimo adivinhar seus pensamentos.

Ao que parecia, alguma coisa estava atraindo a atenção do Thort. Seu crânio ergueu-se. A minúscula boca contorceu-se num sorriso amável. Também este tinha um aspecto estranho.

— Estou sendo aguardado a bordo da minha nave — ressaltou Rhodan. — Será que podia chegar a uma decisão? Ainda existe algum ponto obscuro?

Rhodan falava bem a língua dos ferrônios. O treinamento hipnótico dos arcônidas continuava a dar mostras de suas excelentes qualidades. Sem ela os homens nunca teriam sido capazes de compreender, num espaço de apenas três anos, a tecnologia imensamente superior dos arcônidas, quanto menos dominá-la. Mas, os únicos homens que haviam sido submetidos ao treinamento global foram Rhodan e Reginald Bell. Os pilotos, por exemplo, só foram instruídos no seu setor especializado. Bastava que soubessem lidar com seus caças e entendessem alguém que lhes falasse em termos de matemática pentadimensional.

— Pedimos mais um pouco de paciência — respondeu o Thort. — O tratado acarretará mudanças profundas na vida de todos os ferrônios. Nossa indústria, que em grande parte foi destruída pela invasão, mal está começando a funcionar. Teremos de estudar se as relações comerciais entre seu mundo e o nosso devem ser controladas pelo Estado ou se podemos consentir num sistema de trocas livres, não submetidas ao controle estatal.

Finalmente, o homem estava falando claro. Rhodan compreendeu perfeitamente os problemas que o Thort estava enfrentando. De qualquer maneira, tratava-se de assunto interno dos ferrônios. Para Rhodan não importava que tipo de leis fossem promulgadas sobre a matéria.

— Sugiro um prazo de reflexão. Seu sol é poderoso e escaldante. O senhor se incomodaria se passássemos as horas do meio-dia no ambiente favorável de nossa nave?

Com um sorriso acrescentou:

— Pedimos sua compreensão. A força gravitacional de seu mundo é de 1,4 g, isto é, 0,4 g a mais do que estamos acostumados.

O Thort levantou-se imediatamente. Lossos, cientista-chefe dos ferrônios e membro do Conselho Legislador Ministerial, estava interessado no limite de resistência do organismo humano. Era um gesto reconfortante.

Reginald Bell e Marshall colocaram os capacetes-rádio. Fizeram uma continência modelar.

— Os senhores serão avisados por nosso oficial de comunicações, Chaktor — avisou o Thort. — O tratado será concluído ainda hoje.

— É evidente que não nos intrometeremos nos seus assuntos internos — asseverou Rhodan. — Permite que indague em que fase está o reparo das unidades de sua frota que foram danificadas. As notícias recebidas dos meus pilotos de reconhecimento não são nada tranqüilizadoras. O comando de sua frota espacial devia se preparar para enfrentar novas dificuldades.

O rostinho do Thort anuviou-se.

— Estamos montando os canhões de radiações, construídos segundo suas instruções — explicou um dos oficiais da frota espacial. — A nossa indústria está trabalhando a todo vapor. Será que poderia ceder-nos logo os dados para a fabricação dos projetores energéticos dos arcônidas?

Bell pigarreou. O ligeiro olhar que lançou para Rhodan era supérfluo.

— Uma vez assinado o tratado, poderemos falar sobre isso — lembrou Rhodan com um sorriso gentil. — Permitem que me despeça?

Voltaram a fazer continência e retiraram-se. O Thort não disse uma palavra, seus olhos seguiram aqueles seres, os quais não sabia de onde vinham. Rhodan apresentara-se como um arcônida.

Tudo isso tinha por fim apenas manter em segredo a posição galáctica da Terra. Rhodan não estava disposto a expor a Humanidade, ainda vacilante, às dificuldades causadas por uma falha eventual. Neste ponto, era um egoísta empedernido.

Saíram pelo labirinto de corredores. Lá fora o ar do planeta Ferrol, respirável para o homem, parecia ferver. Vega, o sol gigante, resplandecia em todo esplendor num céu quase sem nuvens. Despejava torrentes de radiações ultravioletas extremamente rigorosas. Rhodan cerrou os olhos.

A temperatura média à sombra devia ser ligeiramente superior a quarenta e sete graus.

— Chega — disse Rhodan com a voz exausta. — A força da gravidade juntamente com este calor torna-se quase insuportável. Daqui a uma hora teremos cinqüenta e três graus à sombra.

Estava andando em direção ao planador que o aguardava, quando um uivo suave o fez estacar. Viu que Marshall se imobilizara. Por certo o mutante estaria captando uma mensagem telepática vinda do couraçado.

Bell fitou o céu com os olhos semicerrados. O uivo suave cresceu até se transformar num trovejar e logo num bramido ensurdecedor.

Um objeto que parecia brilhar numa incandescência branca surgiu de detrás da cadeia de montanhas mais próxima.

As massas atmosféricas deslocadas comprimiam-se diante da gigantesca esfera. Parecia que um meteoro estava caindo diretamente sobre o porto espacial da capital.

As moléculas de ar, incandescentes, eram rompidas pelos feixes de impulsos saídos dos jatos direcionais. A imobilização quase total da nave foi tão rápida que não houve necessidade de esclarecer Rhodan o grau de desaceleração aplicado pelo piloto.

Com um ruído estrondoso, as massas de ar penetraram no vácuo formado atrás da nave.

— Se não for o Nyssen, engulo meu capacete — berrou Bell fora de si. — Quem dera que esse sujeito aprendesse a realizar um pouso decente.

— É um pouso a moda dos arcônidas — disse Rhodan, esticando as palavras. — Estou lembrado de que você já conseguiu pousos bem piores.

— Foi por necessidade — resmungou Bell. — Ora, o que houve com Nyssen? Esta é a S-7.

Bell começou a correr.

O mutante despertou da sua rigidez. Havia uma expressão séria em seu rosto estreito.

— É um pouso de emergência. Nyssen traz Deringhouse a bordo. Queimaduras graves. Dizem que o inferno está às soltas nas seis luas. Nyssen desistiu de um regresso normal. Saltou da órbita do trigésimo oitavo planeta até aqui. Na minha opinião foi um ato arriscado.

Rhodan não disse mais nada. Seu corpo esguio disparou sobre as pedras bem polidas da área situada junto à entrada. Dali a alguns segundos o planador subiu. Os ferrônios usavam minúsculos propulsores radiais semi-automatizados para possibilitar a decolagem vertical.

Na produção de excelentes micro-reatores nucleares chegavam a ser mais avançados que os arcônidas com sua supertecnologia. Conseguiam realizar, num volume correspondente a uma caixa de fósforos, um processo de fusão nuclear perfeitamente controlado. Eis o motivo pelo qual Rhodan insistia num tratado de comércio e de trocas. A Humanidade bem que estava precisando de uns artefatos desse tipo.

O aparelho ferrônio disparou pouco acima das massas de edifícios da capital. O piloto estava encolhido atrás da estranha alavanca dupla de direção. Havia uma singularidade: o suprimento de energia era controlado com o pé. Provavelmente os homens teriam feito o contrário.

O aparelho ultrapassou os controles radiogoniométricos do espaçoporto. As superpotências terrenas utilizavam uma técnica meticulosa para controlar os espaçoportos, mas os ferrônios haviam transformado os mesmos num verdadeiro santuário, que só podia ser atingido depois de passar por vários tipos de controle.

Diante das janelas ovais da cabina abriu-se a imensidão do espaçoporto central dos ferrônios. Esses seres quase humanos alojados num habitat distante haviam realizado uma obra grandiosa.

Só há cinco dias ferrônios Rhodan dera ordem para que a nave apresada, até então cuidadosamente guardada no hangar escavado na montanha, fosse transferida para o espaçoporto central. A partir dali a cidade ganhara mais um fator de altitude.

Aquilo que se erguia sobre o solo na extremidade norte do campo de pouso era a própria imagem do superlativo. As comparações corriqueiras já não se prestariam à descrição daquele objeto enorme e empolgante.

A Stardust-III, nome com o qual Perry Rhodan batizara a nave em homenagem ao primeiro foguete lunar tripulado e lançado da Terra, não era apenas um símbolo de grandeza científica e supermaturidade tecnológica. Também era um símbolo de poder incomensurável; de um poder que colonizou e pacificou pela força uma extensão galáctica incompreensível para a mente humana. Todavia, para esse fim foram construídos couraçados espaciais da classe império. Não foi por esse motivo que se empreendeu a construção extremamente custosa e laboriosa desse titãs do espaço. Foram concebidos e criados para destruir mundos inteiros.

Por um instante Rhodan procurou a nave auxiliar S-7, que acabara de pousar. Poucos minutos antes, ao ver a nave esférica durante a manobra arriscada do pouso, a mesma lhe parecera grande, inexpugnável e ameaçadora.

Agora, que a Stardust-III cobria toda a linha do horizonte, a nave auxiliar, que antes lhe parecera tão grandiosa, fora degradada num nada. Embora com seu diâmetro de sessenta metros representasse uma massa respeitável sobre as pernas telescópicas estendidas, causavam uma impressão miserável ao lado do supergigante.

A parte esférica do couraçado media pelo menos oitocentos metros de diâmetro. Jamais qualquer outra raça da galáxia construíra naves espaciais desse tamanho e potência.

O planador aproximou-se. A nave auxiliar foi crescendo, enquanto a massa imensa da Stardust-III já não podia ser abrangida com a vista. Era necessário torcer o pescoço para ver as cúpulas polares superiores.

Era uma verdadeira massa azulada de aço arcônida que se erguia por cima do plástico ultra-resistente do pavimento da pista. Era um monstro, um ente cujas máquinas titânicas conferiam uma potência que lhe permitiria suprir de energia qualquer dos planetas do sistema solar.

Quando o planador pousou, a parede lisa da blindagem externa que envolvia a esfera ergueu-se diante dele. Muito acima da cabeça dos homens que acabavam de descer começou a protuberância que cercava a linha equatorial do gigantesco objeto esférico.

Era ali que se alojavam os mecanismos propulsores do couraçado. As aberturas dos jatos que tinham o tamanho de crateras estavam fechadas. Apesar disso, a qualquer momento a Stardust-III estaria pronta para uma decolagem de emergência.

Formava a espinha dorsal da frota dos tópsidas. Perry Rhodan ainda não conseguira compreender como os seres reptilídeos e inumanos conseguiram se apoderar daquela supernave. De qualquer maneira tripularam-na e utilizaram-na para seus fins agressivos. Só os mutantes que trabalhavam sob as ordens de Rhodan, dotados de capacidades supersensoriais, conseguiram derrotar a tripulação tópsida de tal forma que a Stardust-III não foi danificada.

Dali em diante a Terceira Potência, comandada por Rhodan, possuía um artefato ao qual só os produtos equivalentes dos arcônidas poderiam fazer face. Mas não era disso que se tratava. O longo braço do Grande Império nunca chegaria até ali, e a partir de então nunca estaria em condições de atingir o sistema Vega. Não restava a menor dúvida: a raça dos arcônidas, antes tão arrojada, estava fadada a desaparecer. A degenerescência espiritual daqueles seres já progredira tanto que eram raros os que ainda conservavam as excelentes qualidades dos seus antepassados ávidos de conquistas. Crest e Thora pertenciam a esse grupo.

Bell e Marshall desapareceram entre as colunas imensas formadas pelos suportes das naves. Cada um dos pratos circulares em que os suportes se apoiavam cobria uma área de mais de quinhentos metros quadrados. Não havia nada que pudesse servir de comparação à grandiosidade dessa nave, que Rhodan, depois de uma reflexão objetiva, avaliara em cem bilhões de dólares. O custo do supergigante ultrapassava o das frotas marítimas e aéreas de ambas as guerras mundiais.

Rhodan caminhou devagar. Quando mergulhou na enorme sombra projetada pela nave, onde o envoltório esférico cobria totalmente o sol Vega, viu que um homem gravemente ferido estava sendo transportado às pressas.

A nave auxiliar S-7, que acabara de pousar, expeliu a tripulação, que discutia animadamente. Os homens pareciam pálidos e esgotados.

O vulto pequeno e ressequido do major Nyssen desprendeu-se da confusão. Segurava o capacete-rádio por baixo do braço. Seus cabelos ralos estavam empapados de suor.

Fez uma ligeira continência. O gesto com que pegou o cigarro que lhe era oferecido parecia uma fuga para o secundário.

O rosto magro de Rhodan irradiava uma tranqüilidade benfazeja. Piscando os olhos, contemplou a altura de mais de sessenta metros da S-7, que com alguma boa vontade poderia ser abrigada sob a forma esférica do supercouraçado. Esperou. Nyssen aproximou-se.

— Tivemos um tempo quente — disse o baixote entre duas tragadas. — Foi quente demais para os pequenos caças. O sargento Calvermann tombou. Foi um dos meus melhores homens.

Nyssen não poderia conferir um elogio mais significativo ao americano. Rhodan continuava calado. Sentia que Nyssen estava fervendo por dentro.

— Aqueles répteis instalaram-se nas seis luas do quadragésimo planeta. A maior dessas luas está sendo transformada febrilmente numa fortaleza cósmica. Os outros cinco blocos de pedra servem principalmente como baluartes protetores; provavelmente só disporão de pequenas guarnições e de um ótimo equipamento de localização. Uma esquadrilha de reforço dos tópsidas saltou diretamente para dentro do sistema. De repente Calvermann, Rous e Deringhouse viram-se no meio da confusão. Enviara-os para uma missão-relâmpago de reconhecimento. Rous pegou Deringhouse. Fui ao encontro deles uma hora-luz, tomei a bordo a máquina deles e dei um hipersalto até a órbita de Ferrol. É só. Colhemos um excelente material ótico.

Era um relato lacônico para um acontecimento de tamanho vulto. Nyssen não era homem de muitas palavras. Supunha que assim mesmo deviam entendê-lo.

Rhodan respondeu com um gesto de cabeça. Logo formulou a grande pergunta:

— E Deringhouse, será que conseguirá escapar?

Nyssen deu de ombros; parecia cansado. O cigarro foi atirado sobre o pavimento do espaçoporto.

— Seu caça foi atingido por um raio térmico. Devíamos reforçar as capas protetoras dos aparelhos. Sofreu graves queimaduras.

— Descanse, Nyssen. Alguém se encarregará de levar sua nave para o hangar. Muito obrigado!

Rhodan seguiu com os olhos o comandante que se afastava a passos rápidos; parecia pensativo. Depois caminhou pesadamente em direção à comporta de entrada da nave, que se encontrava aberta. Ainda teria de percorrer uns quatrocentos metros para atingir o pólo inferior, onde ficava a comporta. Por cima de sua cabeça erguia-se a catedral de aço da Stardust-III.

— Gostaria de conhecê-los em combate — disse o sargento Rous. — Já teve notícias do major Deringhouse?

Nyssen sacudiu a cabeça. Os robôs arconídicos preparados para a interpretação do material ótico passaram em disparada. Desapareceram no tremeluzir suave do campo antigravitacional, que os elevou suavemente para o interior da nave.

— Daqui a pouco o tempo vai esquentar, Rous — profetizou Nyssen, com os olhos entreabertos. — Esses caras ainda dispõem de alguns trunfos. Quero ver como é que desta vez o velho vai utilizar seus mutantes. Precisam de uma base a partir da qual possam operar. Não acha?

A indagação pesava no ar escaldante do planeta Ferrol. O sargento Rous engoliu em seco. Preferiu não responder. Pensou vagamente em certo vale tranqüilo situado na parte ocidental dos Alpes franceses. Ali tivera muito mais sossego.

 

O homem inconsciente jazia imóvel na banheira especial. O corpo queimado estava coberto até o pescoço por um líquido leitoso, o soro biossintético de ativação celular. O organismo do major Deringhouse recebia o seu suprimento de oxigênio através de um aparelho robotizado de respiração, que também controlava a circulação e, se necessário, a estimulava.

Os médicos de bordo, Dr. Haggard e Dr. Manoli, falavam pouco.

— Ele vai escapar — dissera o Dr. Haggard.

Mas logo o rosto daquele gigante louro assumiu uma expressão séria. Em seus olhos claros lia-se a contrariedade. Depois de algum tempo prosseguiu:

— Do ponto de vista médico tudo isto é muito agradável. Preferiria que nunca mais entrasse um ferido neste hospital. Peço-lhe que não o desperte. Permanecerá em sono hipnótico por doze horas. A dor causada por queimaduras de terceiro grau não é nada agradável.

Perry Rhodan refletiu sobre estas palavras lacônicas. Haggard e Manoli já haviam se afastado. Só o robô-médico ficou de vigia, junto àquele homem que passara por um verdadeiro inferno nos confins do sistema Vega.

Fora uma temeridade penetrar com um minúsculo caça espacial na falange espessa de naves inimigas, a fim de fazer o possível para executar a missão confiada àqueles homens.

Os lábios de Rhodan estreitaram-se. Ninguém desconfiava dos pensamentos estranhos que lhe passavam pela mente, nem mesmo Bell que se mantinha em silêncio atrás do comandante, contemplando o ferido com uma expressão preocupada.

— Este homem viu o diabo — cochichou o baixote. — Devemos fazer o possível para que isso não se repita.

Rhodan fitou os olhos claros do amigo.

Há quatro anos voara para a Lua em companhia de Bell. Ali encontraram os arcônidas. Eles se conheciam muito bem; haviam passado juntos pelo duro aprendizado da Força Espacial dos Estados Unidos.

— Faremos o que pudermos — disse Rhodan em tom arrastado. — Vamos embora. Fui feliz; apesar de tudo Deringhouse teve sorte.

— Como? — espantou-se Bell com aquela formulação. — Você foi feliz?

— Isso mesmo — respondeu Rhodan com um riso indiferente. — Ainda existem pessoas que têm consciência. Eu sou uma delas. Não pense que considero a morte de Calvermann uma simples fatalidade. Não foi necessária nem inevitável. Não devia ter ordenado os vôos regulares de reconhecimento.

E antes que Bell respondesse:

— Deixe pra lá.

— Crest e Thora esperam-no na pequena sala de cálculos — disse Bell em tom deprimido.

Lançaram mais um olhar para o piloto do caça, que jazia em profundo sono hipnótico, e retiraram-se.

Junto à divisão médica começava o labirinto de corredores e conveses. A Stardust-III era uma verdadeira metrópole desconcertante Só as salas de máquinas abrigadas no seu gigantesco envoltório não tinham igual em qualquer das usinas da Terra.

As esteiras transportadoras levaram-nos ao setor do eixo central, onde ficava o poço do elevador. No interior do couraçado sempre havia um em cima e um embaixo, que era criado pelos reguladores automáticos de força gravitacional, mesmo quando a nave se deslocava em queda livre. Isso apenas representava um ponto insignificante no conjunto das conquistas tecnológicas totalmente desconhecidas na Terra.

Subiram trezentos metros no elevador antigravitacional de paredes polidas. A central de energia, embutida numa bola de aço blindada, ficava no centro geométrico do compartimento exterior. Os arcônidas haviam feito um trabalho cuidadoso, muito embora as gigantescas naves da classe império já tivessem sido construídas há alguns milênios. No longínquo planeta de Árcon ninguém se lembrava dos programas de construção espacial do passado. Os tempos áureos daquele povo galáctico pertenciam ao passado; aquela raça estava irremediavelmente fadada ao desaparecimento.

Restava saber qual das numerosas raças que sobravam assumiria a herança dos arcônidas e lhe daria novo desenvolvimento. O Grande Império era um colosso sobre pés de barro. A revolta rugia em quase todos os setores conhecidos da Via Láctea. O povo de Árcon não dispunha da energia necessária para reunir as unidades da frota espacial que ainda restavam para pôr um fim duro, mas rápido, ao caos.

Anos atrás a Humanidade não conhecia essa situação. O homem pensava que estivesse só no Universo; tinha a pretensão de ser o único ser inteligente em toda a Via Láctea feita por Deus. Era uma conclusão totalmente errônea. Havia inúmeras raças inteligentes, muitas delas absolutamente inumanas.

Os dois robôs de vigilância postados diante da pequena sala de cálculo fizeram continência. Rhodan não lhes deu atenção. Seus pensamentos estavam ocupados com coisa muito mais importante. A comporta abriu-se. Viram diante de si uma sala oval com os controles da calculadora semipositrônica de reserva. Fora concebida como equipamento de emergência, mas também desempenhava funções setoriais do grande dispositivo positrônico central.

Crest, o cientista arcônida cujo rosto irradiava uma estranha juventude, estava de pé junto aos comandos codificados. Sua figura alta e magra tinha algo de impressionante, mas o que impressionava mais eram os olhos inteligentes com seu brilho avermelhado.

Estes olhos eram a única coisa que indicava sua verdadeira idade. Os cabelos esbranquiçados não constituíam uma indicação segura. Esses cabelos e a cor dos olhos contavam-se entre os traços característicos de sua raça.

Crest era um pouco mais alto que Rhodan. Pelo aspecto exterior não se distinguia dos seres humanos. Só uma radiografia revelaria algumas diferenças anatômicas de pouca importância.

Acenou com a cabeça, muito sério e compenetrado. Rhodan não gostou da sua atitude retraída que, depois da amizade prolongada entre ambos, não correspondia à índole do arcônida.

A mulher jovem que se encontrava ao seu lado corporificava exatamente aquilo que sempre fora. Thora, comandante da nave exploradora destruída há quatro anos, ainda não perdera sua teimosia. Era bem verdade que, segundo supunha Rhodan, essa atitude reservada e descortês só servia para encobrir uma teimosia fingida. Já desistira de fazer com que Rhodan compreendesse que os homens não passavam de uns seres simiescos que, por acaso, adquiriram um pouco de esperteza. Jamais aplicara a palavra inteligência em relação aos mesmos.

Rhodan parou no centro da sala. Seu olhar abrangia tudo. Crest, o maior dos cientistas espiritualmente ativos de uma raça cósmica degenerada, inclinou o crânio alto e estreito. Rhodan não estava disposto a aguardar o fraseado interminável. Quando Crest resolvesse tomar a palavra, a fala seria extensa.

Thora comprimiu os lábios. Conhecia a expressão fria nos olhos daquele homem magro. A expressão dominadora, tão conhecida, voltara aos olhos de Rhodan. Só há pouco tempo ficara sabendo que, em certas condições, possuía o dom de uma sugestão quase compulsiva. Durante o treinamento hipnótico recebido dos arcônidas esse dom se tornara mais pronunciado, embora já ao tempo em que era piloto espacial Rhodan fosse conhecido como um homem que sabia se impor aos subordinados.

— OK, sejamos breves. Disponho de cinco minutos — disse com um sorriso gelado. — Querem me explicar que, se os arcônidas não tivessem aparecido, os homens até hoje estariam voando à Lua nos seus ridículos foguetes de combustível líquido. Querem dizer ainda que, sem os senhores, seríamos de uma pequenez risível, que foi só por um acaso lamentável que sua nave pousou na lua terrena. Queiram desculpar, mas já conheço essa cantoria. Está bem: os senhores me transmitiram seu saber imenso. Mas foi só. No momento encontramo-nos no oitavo mundo do sistema Vega. Lá fora, no espaço, os representantes de uma raça não-humana ou não-arcônida estão à espreita. Não tenho tempo a perder.

— Seu bárbaro!

Rhodan inclinou o corpo sem dizer uma palavra. As narinas daquela mulher alta tremiam. O estranho amor-ódio que existia entre ela e Rhodan voltou a festejar um dos seus triunfos.

— Muito obrigado. Geralmente foram os bárbaros que, graças ao espírito sadio e ao corpo vigoroso, pacificaram e reergueram os impérios decaídos depois de uma submissão passageira. Vamos deixar isso de lado, Thora?

Crest manteve-se calado.

— Queremos pedir que não se esqueça das nossas exigências. Acho que está informado a respeito das mesmas, não está? — chiou a comandante.

— A senhora as formulou por escrito — disse Rhodan com um pigarro.

Bell sorriu.

A bela mulher fechou os olhos. Só as mãos tremiam.

Rhodan interrompeu o silêncio:

— Sinto desapontá-la. Este couraçado foi recapturado por nós. Por isso não posso lhe conceder nenhum poder de comando sobre o mesmo. Além disso, não existe a menor possibilidade de retirar a Stardust-III do sistema Vega para transportá-los de volta ao seu mundo.

— Temos direito a isso. O senhor vai...

— Não vou coisa alguma, com sua licença — retrucou Rhodan, repelindo aquelas palavras ásperas. — O que está em jogo é a existência da Humanidade. A Terra fica a apenas vinte e sete anos-luz daqui. De uma hora para outra pode ser descoberta pelos invasores tópsidas. Tudo indica que esses sujeitos perceberam que cometeram um pequeno erro de cálculo. Estão procurando. E não estou disposto a arriscar. Entendeu?

— Leve-nos para Árcon, e poderá contar com o auxílio da frota do Império — interveio Crest em voz baixa. — Vejo que minha missão falhou. Tudo indica que não há mais possibilidade de encontrar o planeta, cujos habitantes, pelo que dizem, conhecem o segredo da vida eterna. Leve-nos para casa.

— Sinto muito, mas nem penso em colocar a única nave espacial de grandes dimensões de que dispomos no centro conturbado da galáxia, onde se travam lutas ferozes entre raças revoltadas. Enquanto a Humanidade não se tiver tornado forte e unida, considerarei a existência da Terra como o segredo número um. Em vez de atender às suas exigências, tenho que providenciar para que os tópsidas desapareçam do sistema Vega. Temos de evitar a descoberta da Terra.

— Seria bom que procurasse lembrar-se de que a Humanidade que pretende endeusar não se reveste da menor importância no quadro dos acontecimentos galácticos — disse Thora em tom zombeteiro.

— É uma questão de opinião — ressaltou Rhodan.

Uma ruga profunda desenhou-se em sua testa.

— Crest, o senhor é o chefe científico da expedição malograda dos arcônidas. Aguarde até que consigamos expulsar os tópsidas do sistema Vega. Depois veremos o resto. E agora, com sua licença, vou me retirar. Os cinco minutos passaram.

Rhodan olhou para o relógio. Já dissera tudo que devia ser dito.

— Quer dizer que haverá derramamento de sangue — disse Crest com um riso amargo. — Sabe perfeitamente quanto prezo os homens. Não existe outra raça que tenha tantas afinidades com a nossa. Se acredita que dentro de poucos anos poderá assumir a herança de meu povo, está redondamente enganado. Não tem condições para isso.

Rhodan parou por baixo da escotilha que se abria. Virou-se lentamente.

— O senhor ainda se admirará, Crest! Não nos confunda com essa gente cansada pertencente à sua raça. Um dia destes o planeta Terra desempenhará um papel importante no âmbito da galáxia. Assim que dispuser do necessário apoio, terei muito prazer em levá-los a Árcon. Peço-lhe que aguarde e não se esqueça de que, se não fosse o auxílio decisivo dos homens, já estaria morto.

— Por que teve que dizer uma coisa dessas? — perguntou Bell, quando entravam no elevador. Como Rhodan permanecesse calado, prosseguiu em tom contrariado: — Não acho conveniente lembrar aos arcônidas ou a quem quer que seja os benefícios que lhes fazemos. Se eles não tivessem aparecido, até hoje não saberíamos como é o Universo além do nosso sistema solar.

O rosto de Rhodan assumiu uma expressão séria. Bell tinha razão. Mas não poderia ter agido de outra forma.

— Essa gente terá de se acostumar com a idéia de que não somos apenas espertos. Nem penso em mandar a Stardust-III para o centro desse caos galáctico. Árcon está fadado ao desaparecimento, tal qual o império por ele controlado. Há séculos estão brigando em torno de insignificâncias, e nós não sabíamos de nada. Agora, que essas inteligências não-humanas com um nível de desenvolvimento infinitamente superior surgiram tão perto do nosso planeta, acho que nestas condições não podemos considerar os melindres dos arcônidas. Mais alguma objeção?

Rhodan impeliu seu corpo para fora do campo antigravitacional do elevador. Encontrava-se diante do setor residencial dos oficiais do couraçado. Parou diante da porta da cabina de comando, guardada por robôs.

— Cuide da S-7. Tenho o que fazer por aqui. Temos um bom barbeiro a bordo? Prefiro um que entenda de perucas.

— Chamarei o médico — gemeu Bell. — Fique tranqüilo; está tudo OK. A cabina é bem fresca. Vou...

Rhodan exibiu o sorriso que o tornara conhecido entre os pilotos da Força Espacial dos Estados Unidos. Ultimamente aparecia poucas vezes em seu rosto. Reginald Bell logo se controlou. Em seus olhos surgiu uma expressão perscrutadora. O corpo baixo enrijeceu-se. Não falou mais em médico.

— Você está tramando alguma coisa — cochichou lentamente. — O que é?

— Temos um fazedor de perucas a bordo ou não temos?

— Garanto que não. Dispomos de trezentos especialistas que passaram pelo treinamento hipnótico setorial dos arcônidas.

— OK, está liquidado. Cuide da S-7. Nyssen já terminou.

O silêncio foi rompido por um trovejar retumbante. No setor F os reatores HHe, destinados ao suprimento de energia dos projetores de campos energéticos, haviam sido postos a funcionar. A tela junto à porta da cabina de comando mostrava que a nave auxiliar S-7, recém-pousada, desaparecera do solo. Havia sido abrigada no gigantesco compartimento de comportas da nave-mãe.

O trovejar dos reatores cresceu de intensidade. A Stardust-III cobriu-se com a cúpula energética de elevada potência, que deixava perplexos os ferrônios, acostumados a tanta coisa. Era formada de unidades energéticas espacialmente superpostas. Por isso a estrutura de um campo de defesa desse tipo jamais seria compreendida por um ferrônio. Seus cérebros não foram feitos para isso. Atingiram a navegação espacial à velocidade da luz, e tinham de se contentar com isso.

Rhodan prestou atenção ao zumbido profundo das máquinas. Estavam abrigadas no pavilhão energético B, a mais de duzentos metros abaixo do ponto em que se encontrava.

Uma vez levantado o campo energético, a Stardust-III estava hermeticamente isolada do mundo exterior.

— Encontramo-nos na cantina. Esqueça essa história do cabeleireiro.

O homem esbelto desapareceu. Bell permaneceu imóvel diante da porta que se fechava. Os dois robôs arcônidas de combate não se mexeram. Já haviam registrado o modelo das ondas cerebrais de Bell e constatado que era inofensivo.

Finalmente afastou-se, resmungando uma praga. Não compreendia o que um cabeleireiro teria que ver com os últimos acontecimentos. Uma fortaleza cósmica estava sendo construída nas seis luas do quadragésimo planeta de Vega. Um homem da tripulação tombara numa ação contra a mesma... e o comandante pedia um cabeleireiro.

Para Bell era demais. Berrou para um inocente robô de reparos, que acabara de receber instruções de trocar uma tela de imagem defeituosa.

O major Nyssen surgiu mais ao longe. Fez um gesto e entrou em sua cabina. Em conformidade com as ordens emitidas, um período de repouso acabara de ter início a bordo do couraçado. Todos os tripulantes que não estivessem de sentinela eram obrigados a dormir. O planeta Ferrol desgastava as forças do corpo e do espírito.

Lá longe algumas das naves em forma de ovo dos ferrônios dispararam para o céu límpido. Pertenciam ao tipo das unidades que haviam sido destroçadas sob os golpes dos tópsidas.

Bell parou de cismar. Os pensamentos de Rhodan eram impenetráveis. Ao chegar a essa conclusão, apenas obedecia a um princípio seguido por milhões de oficiais de todos os tempos.

 

A grande cabina com seus compartimentos separados parecia antes uma pequena central de controle que um recinto destinado à habitação. As inúmeras telas estavam apagadas. O equipamento de comunicação de bordo fora desligado e os sinais de luz que costumavam acender-se e apagar-se numa sucessão febril também deixaram de funcionar.

Perry Rhodan estava só, tão só como qualquer comandante de uma grande frota costuma estar desde o início da era tecnológica.

Nenhum comandante podia se dar ao luxo de travar discussões intermináveis com seus subordinados. Tinha de manter uma certa distância, cuidando ao mesmo tempo para que a muralha do silêncio determinada pelas exigências militares não fosse interpretada como uma manifestação de arrogância e inacessibilidade.

Rhodan tinha um talento psicológico inato. Mesmo que não dispusesse de treinamento especial, saberia que num momento destes precisava estar só.

Sobre a mesa dobrável havia um pequeno aparelho de intercomunicação audiovisual de fabricação ferrônia. Era uma das maravilhas das oficinas micromecânicas de um povo que neste ponto até sobrepujava os arcônidas aparentemente inexcedíveis.

O aparelho, do tamanho de um punho cerrado, estava funcionando. A microtela oval mostrava linhas claras, que a interferência provocada pelo equipamento de distorção transformava em figuras disformes.

Demorou alguns segundos até que o sincronizador pudesse ser ativado. A imagem começou a fixar-se. O rosto pequeno de um ferrônio apareceu na tela. Mal se viam os olhos, profundamente encovados por baixo da testa protuberante. Em compensação as platinas do uniforme eram perfeitamente reconhecíveis.

Chaktor, oficial de ligação incumbido dos contatos entre o Thort e Perry Rhodan, inclinou a cabeça.

— Pois não.

— Seu equipamento de distorção está funcionando, Chaktor?

— Perfeitamente. Mas não devíamos falar por muito tempo. O que posso fazer pelo senhor?

— Preciso falar imediatamente com o senhor?

— Em sua nave? Os tratados ainda não foram assinados.

— No momento isso não tem importância. Tenho outros problemas. Prepare o assunto sobre o qual já conversamos. Quer indicar um lugar de encontro?

Chaktor refletiu por alguns segundos. A tensão desenhava-se em seu rosto.

— No lugar de sempre. E à mesma hora da última vez. Concorda?

— Espere por mim. Mais uma coisa: recorra ao seu serviço secreto para arranjar cerca de cinco perucas. Compreende o que quero dizer?

— Como é mesmo? — disse o oficial da força espacial dos ferrônios em tom de espanto.

— Trata-se de cabelo artificial, de um substituto da cobertura capilar craniana. Preste atenção...!

Rhodan levou alguns minutos até que seu interlocutor compreendesse tão estranho desejo. Quando desligou o intercomunicador e o trancou no pesado cofre de seu camarote, não havia o menor sinal de emoção em seu rosto.

Alguma coisa se iniciara, alguma coisa que num tempo mais ou menos longo conduziria a missão Vega a um desfecho definitivo.

Numa atitude comedida caminhou em direção ao armário de armamentos. Os produtos mais ou menos mortais da supertecnologia arcônida estavam presos aos seus suportes, sob a proteção de um pequeno campo energético. Rhodan removeu o anteparo por meio de uma chave de sinais codificados.

Dentro de alguns instantes segurou a pesada arma de serviço. Tratava-se de um desintegrador totalmente desconhecido em Ferrol, cujo raio de impulso produzia a desagregação total da estrutura de um campo cristalino.

Antes de recolher-se ao seu leito pneumático, Rhodan voltou a ligar os instrumentos de controle. As telas minúsculas começaram a mostrar os setores mais importantes da gigantesca nave. A transmissão sonora estava regulada para o nível de espionagem.

Por alguns instantes escutou a palestra do pessoal que se encontrava de serviço. Conversavam sobre as seis luas do quadragésimo planeta.

Com um sorriso sombrio interrompeu o funcionamento da aparelhagem, destinada exclusivamente ao comandante. Não havia a menor dúvida: podia confiar nos seus homens. Agora tudo dependia da capacidade de reação dos ferrônios.

 

Envergavam capas marrom-escuras, que iam até os pés, do tipo usado pelos montanheses do planeta Ferrol, geralmente considerados selvagens e rebeldes.

Especialmente Bell, com sua estatura pequena e atarracada, poderia perfeitamente ser confundido com um sicha.

Com Rhodan a coisa já se tornava mais problemática. Todos sabiam que depois da retirada precipitada dos invasores tópsidas, surgira em Ferrol um movimento de resistência contra os homens que haviam pousado no planeta.

Círculos bastante amplos do oitavo mundo do sistema Vega não queriam se conformar com as concessões que o Thort fazia aos forasteiros. Era evidente que todos estavam dispostos a dispensar-lhes sua gratidão. E também queriam negociar e ganhar dinheiro; naturalmente.

Mas alguns dos ferrônios mais influentes opunham-se à instalação de uma base comercial dos homens, que reivindicavam soberania completa sobre o território abrangido pela base.

Com isso seria inevitável que sobre o planeta Ferrol surgisse uma cabeça-de-ponte de uma raça forasteira. Apesar de tudo Rhodan não abriu mão de sua exigência. O governo ferrônio poderia aceitar ou rejeitar a proposta.

A conclusão do contrato era iminente. Com isso os grupos oposicionistas começaram a fermentar. A televisão ferrônia, controlada pela gigantesca emissora de Thorta, transmitira discussões violentas entre os representantes do governo e a oposição. A decisão teria de ficar a cargo do soberano.

Reginald Bell conhecia o desenrolar dos acontecimentos. Acompanhara-os com grande preocupação e ficara surpreso quando Perry Rhodan em pessoa falou pelas emissoras de TV dos planetas habitados pelos ferrônios. Na oportunidade evocara de forma pouco gentil o auxílio prestado pelos homens. Com isso provocou a raiva dos opositores.

No entender de Bell, esse discurso fora o maior erro cometido desde a criação da Terceira Potência. Rhodan limitara-se a sorrir, liquidando as objeções de seus colaboradores com um simples gesto.

Agora, que a declaração pública de Rhodan também havia sido transmitida pela imprensa gravada dos ferrônios, encontravam-se na iminência de outro acontecimento estranho.

 

As duas luas do planeta principal estavam escondidas por trás de densas camadas de nuvens. A última estrela acabara de desaparecer. A irrupção repentina das primeiras ventanias anunciava um dos furacões que, no clima áspero de Ferrol, não constituía nenhuma raridade.

Fazia algumas horas que o sol Vega desaparecera atrás da curvatura do planeta. O frescor da noite irrompera de golpe. Para os ferrônios já fazia um frio terrível.

Encontravam-se num bairro mal afamado da capital. Pouco depois dos subúrbios começava a área dos estaleiros espaciais. Os últimos nativos fugiram da tormenta iminente, descendo as escadas íngremes que davam para os subterrâneos, uma das características daquelas ruas.

Rhodan lançou os olhos pela viela; tiritava de frio. O mutante John Marshall inclinou a cabeça, perscrutando a escuridão.

— Está chegando? — perguntou Rhodan com a voz baixa. — Não gostaria de ficar aqui por muito tempo. Vejo muita gente duvidosa.

— Neste instante alguém está pensando que seria preferível evitar os sichas.

Marshall deu uma risadinha.

Bell praguejou com a voz baixa. O cano em espiral de sua arma desenhava-se nitidamente por baixo da capa.

— Isto é uma loucura — queixou-se. — Dentro de dez minutos o inferno estará às soltas por aqui. Será que esse Chaktor não poderia ter escolhido outro lugar?

— Não. Seria impossível aparecermos num lugar público, não acha? E na nave terá de aparecer o menos possível. John, preste atenção ao que se passa na mente de Chaktor. Por recomendação minha filiou-se oficialmente a um dos grupos de resistência ferrônia. Procure detectar qualquer idéia de traição que surgir em sua cabeça. Se isso acontecer, o homem não terá mais qualquer valor para nós.

Bell virou-se lentamente. Seu rosto largo enrijeceu sob o capuz que descia por cima da testa.

— O quê? O homem pertence a um dos grupos de resistência?

— Isso mesmo. Silêncio! Marshall está ouvindo alguma coisa.

Um vulto atarracado envolto na luz débil de uma lanterna destacou-se da escuridão ameaçadora. Uma cantoria desafinada vinha do botequim mais próximo.

O vulto estranho parou. Parecia adivinhar que o homem que se encontrava em companhia de Rhodan era um dos telepatas do Exército de Mutantes.

— É ele — cochichou Marshall. — Ao que parece está bastante preocupado. Não se sente muito à vontade. Quer dar o fora daqui o quanto antes. É só no que está pensando.

Rhodan deu o sinal luminoso e o vulto aproximou-se. Poucos segundos depois o rosto de Chaktor tornou-se visível. Esconderam-se atrás de um trecho de muro que avançava para a rua. John Marshall ficou de sentinela. Era impossível que alguém se aproximasse sem ser notado pelo eficientíssimo telepata.

— Ande depressa — fungou o ferrônio recém-chegado. — Acho que fui observado quando saí do meu planador. Por aqui as paredes têm olhos e ouvidos.

Rhodan foi breve. Não havia muito que dizer, já que a situação vinha sendo preparada há algumas semanas.

— Trouxe as perucas?

Chaktor pôs a mão embaixo da capa.

— São cinco. Foi muito difícil conseguir este tipo de cabelo. Por que precisa disso?

Naquela escuridão os olhos de Chaktor transformaram-se em cavernas sem fundo. Bell apertou a coronha de sua arma. Mais adiante voltaram a surgir pessoas uniformizadas. Tudo indicava que pertenciam à tripulação de uma nave espacial ferrônia. Também desapareceram no interior do botequim.

— Veremos — disse Rhodan. — Seus homens estão prontos?

— Disponho de vinte homens. Todos eles já viajaram sob meu comando.

— São de confiança?

— Sem dúvida — asseverou o ferrônio. Lançou um olhar de constrangimento para o vulto do telepata que se desenhava na escuridão. Chaktor sabia perfeitamente o que poderia esperar de Marshall.

— Chaktor, tenha confiança em nós — disse Rhodan, levantando a voz. — Sabe perfeitamente que não temos o menor interesse em interferir na história do seu povo. Os grupos de resistência não estão com a razão! Não verá nenhum dos nossos homens, além dos que guarnecerem nossa base comercial. Se o soberano de seu mundo não tivesse solicitado auxílio militar, já teria desaparecido do sistema Vega.

Sem dizer uma palavra, o ferrônio estendeu as mãos espalmadas. Era um sinal de concordância. Marshall deu um ligeiro aceno com a cabeça. Era evidente que Chaktor ainda não se esquecera de que devia a vida aos homens. Durante o primeiro contato com o inimigo não-humano, Rhodan o encontrara perdido no espaço; era um náufrago. Dali em diante passara a ser um aliado fiel de Rhodan.

— Minha mão será a sua. Quais são as instruções?

— O senhor iniciará o ataque conforme combinamos. Utilize o armamento comum.

Chaktor estremeceu. Suas mãos contorceram-se.

— Acontece que nossas armas são mortais. Quer sacrificar seus homens?

— Tomaremos nossas providências em relação aos seus emissores de raios térmicos. Não se preocupe. Faça tudo para que o acontecimento chegue ao conhecimento do povo. Não se esqueça de que contamos com sua atuação. Não pense que conseguirá convencer o comando da frota tópsida com meias medidas. Se houver a menor falha, nosso plano estará fadado ao insucesso.

Tenha sempre em mente os princípios da lógica linear. Só eles são convincentes.

— Aí vem gente — interveio Marshall. — É uma patrulha. Estão entrando no botequim.

— Apresse-se — cochichou Chaktor. — Quer que entre em contato com o senhor depois que tudo estiver terminado?

— Como está o ambiente entre os seus companheiros?

— Estive com eles todos os dias. Ouviram os debates, e também a exposição do senhor.

— Ótimo! Era o que eu queria. Por hoje é só, Chaktor. Poderá regressar em segurança?

Dali a alguns segundos o vulto atarracado desapareceu. Rhodan seguiu-o com os olhos sem fazer um movimento.

— Cada palavra proferida aqui representa um morto a menos — disse em tom grave. — John, que tal as idéias que trazia em mente?

— Tudo correto. Suas palavras foram sinceras. Acho... aí vem a patrulha!

Rhodan não perdeu tempo. Os micro-reatores dos trajes arcônidas começaram a zumbir. Produziram um campo antigravitacional que fez com que os homens se desprendessem do solo. Pouco depois três corpos quase invisíveis voaram por cima dos telhados baixos.

Bem ao longe o brilho da cúpula energética da Stardust-III tomava toda a linha do horizonte. No momento em que o furacão desabou com toda a fúria, uma pequena brecha abriu-se na imensa estrutura.

O cientista arcônida aguardava Rhodan junto à grande comporta localizada na parte inferior da nave. O rosto de Crest parecia sério e reservado.

Quando Rhodan tirou a capa, pondo à mostra o traje arcônida, Crest começou a falar. O tom de sua voz era mais que sarcástico:

— O senhor perdeu uma conversa interessante. Gostaria de saber para que nos serve um couraçado da classe império em perfeitas condições. Se dependesse de mim...

— Acontece que não depende de você — advertiu-o Rhodan. — Crest, o senhor já examinou os dados que lhe forneci?

O arcônida limitou-se a acenar com a cabeça.

— E daí?

— Além da rigorosa exatidão das coordenadas de deslocamento, os detalhes do respectivo sistema solar também são corretos. Essa estrela realmente possui planetas.

— Queira gravar os dados em microfita. Utilize um dos carretéis automáticos. Não basta que a coisa pareça genuína; deve ser genuína. Muito obrigado!

— O senhor está brincando com fogo! — disse uma voz feminina.

Thora surgira repentinamente. Seu cabelo quase branco emitia uma fosforescência produzida pela luz ofuscante da imensa cúpula protetora.

Rhodan virou a cabeça. Ao reconhecer os fascinantes olhos escuros de Thora, conteve um sorriso.

— É o que os homens vivem fazendo desde o início de sua história. Também seus antepassados apreciavam o risco, Thora. Foi por isso que chegaram a alcançar o poder. Posso confiar na senhora?

Thora fitou-o prolongadamente. Depois confirmou com um aceno de cabeça:

— Tenho a impressão de que o senhor está mesmo interessado em proteger a vida de seus homens — disse pausadamente. — Acontece que com isso arrisca muita coisa.

Rhodan preferiu não responder. Ao que parecia, os dois arcônidas tinham se metido numa situação embaraçosa.

— Peça aos três mutantes que compareçam à minha presença — disse Rhodan, dirigindo-se a Bell. — Estarei no meu camarote. Logo depois nos encontraremos na sala dos oficiais para discutir a situação.

Bell lançou um olhar perplexo para o chefe, enquanto este desaparecia na comporta inferior.

 

Vieram em três: dois homens e uma mulher jovem e morena, de compleição delicada.

André Noir, filho de franceses, corpulento de aspecto bonachão, era natural do Japão. Enquanto Ishi Matsu era uma filha genuína dessa pátria terrena, André só adotara alguns dos seus costumes. Era um dos elementos mais importantes do Exército de Mutantes criado por Rhodan.

André era considerado um hipno. Uma vez concluídos os testes finais, realizados nos campos de treinamento situados no planeta de Vênus, estava em condições de impor sua vontade a qualquer ser vivo.

John Marshall era o terceiro elemento do grupo. Devia incumbir-se da vigilância telepática, contando com o auxílio da japonesa.

Quando o capitão Klein entrou na sala, Ishi Matsu começou a tiritar. Os dirigentes da Terceira Potência também se encontravam presentes.

No momento Klein desempenhava as funções de oficial de armas do couraçado; além disso, era perito em armas de todos os tipos. Acabara de concluir seu trabalho. Tinha o rosto enegrecido, e os cabelos finos junto à testa pareciam chamuscados.

Ao entrar, um cheiro desagradável de plástico queimado espalhou-se pela sala. O aspecto dos objetos que trazia na mão não era bom. Tratava-se de três daqueles uniformes verde-claros que Perry Rhodan mandara adotar.

Dois deles apresentavam, na altura do peito, horríveis perfurações de tiro, queimadas nas bordas. O terceiro parecia ter caído por engano num reator nuclear em pleno funcionamento.

O furo tomava a metade da largura do busto. Ali a fibra artificial não estava apenas queimada, mas carbonizada e reduzida a uma série de bolhas.

Rhodan aproximou-se. Examinou cuidadosamente os uniformes abertos sobre a mesa. Um sorriso indiferente brincava em seus lábios.

— Ótimo, Klein. Foi um trabalho bem feito. Será que acreditarão?

O capitão Klein parecia respirar com dificuldade. Lançou um olhar quase ofendido sobre seu interlocutor.

— Se houvesse alguém dentro destes uniformes, a esta hora teríamos de lamentar três mortos. Os furos pequenos foram produzidos pelos legítimos super-radiadores ferrônios. Trata-se de armas que funcionam com base em impulsos térmicos super-exatos, conforme o princípio das radiações luminosas ultra-reforçadas. Acho que já conheço essas coisas.

— E aquilo ali?

Bell engoliu em seco. Klein reprimiu uma risadinha:

— Este furo enorme? Foi causado por um dos produtos da tecnologia dos arcônidas. Regulei o foco para a terceira graduação. Embora o desprendimento de energia fosse mínimo, o material de prova logo entrou em ebulição. Se isto não tiver um aspecto genuíno, quero...

— Está bem — interrompeu Rhodan.

Depois voltou-se para a mutante empalidecida, que vira à luz juntamente com seus companheiros de sofrimento, ao tempo da explosão de Hiroshima.

— Sinto muito, Ishi, mas tenho de lhe pedir que vista esta coisa horrível. O Dr. Haggard preparará sua pele, para que pareça totalmente queimada. A mesma coisa será feita com os peitos heróicos de Marshall e André Noir. Não precisa ficar pálido, André!

— Será que estou ficando? — perguntou o homem corpulento, engolindo em seco e fitando os uniformes.

— Parece que sim. Ishi, o plano será executado com a exatidão de um segundo. A senhora “fugirá” da nave, usando um planador ferrônio. John e André “perseguem-na” num veículo idêntico. Trará sob a roupa todos os micro-reatores arcônidas. Pode ter certeza absoluta de que as cúpulas protetoras individuais geradas pelos mesmos não deixarão passar um único raio.

— Tomara que não! — murmurou Marshall, que se tornara um tanto pálido.

Bell contorceu os lábios, num gesto de satisfação. Das outras vezes Marshall costumava ser o homem que nunca perdia o sangue-frio.

— John, o senhor atirará com uma arma arcônida sobre a espiã fugitiva. Dirija a pontaria sobre o busto; por medida de precaução, utilize a potência mínima. Ishi Matsu será atingida no momento em que sair do planador. Logo após o senhor e André serão atacados e abatidos por elementos da resistência ferrônia. Caiam de acordo com o figurino e acendam imediatamente os cartuchos de fumaça, para que as perfurações de tiro produzam os respectivos efeitos óticos. Logo a seguir serão “resgatados” antes que alguém possa revistá-los. É tudo que têm a fazer. Mais alguma pergunta?

Rhodan olhou em torno, com uma expressão tranqüila no rosto. Não estava disposto a tolerar o menor engano.

— Para que servirá tudo isso? — indagou Haggard, o médico.

— Oportunamente o senhor saberá, doutor. Preciso de uma prova irrefutável e com todas as aparências de autenticidade de que três dos meus homens foram mortos. John, o senhor, que é o mais alto e magro de todos, fará o papel de arcônida. Manoli colará em sua cabeça uma das perucas de cabelos brancos. Faço questão de que o público ferrônio chegue à conclusão de que no curso dos acontecimentos foram mortos não apenas dois elementos das minhas tropas de apoio, mas também um verdadeiro arcônida. Daqui a duas horas voltaremos a nos encontrar. Os dois planadores já estão lá fora. Dr. Haggard, faça o favor de preparar a pele dos três. Enquanto isso Crest poderá aprontar os reatores da cúpula protetora.

Retiraram-se sem dizer uma palavra. Não tinham perguntas a formular. O plano ousado de Rhodan, que punha em jogo um sistema planetário, começou com a exatidão cronométrica de um disparo de foguete.

A conferência entre oficiais e tripulantes começou pouco depois. Os homens foram informados sobre tudo. Mas por enquanto ninguém entendia bem qual seria a finalidade de tudo aquilo. Ao concluir, Rhodan observou em tom vivo:

— ...servirá para proteger suas vidas e evitar qualquer danificação de nossas preciosas naves espaciais. Naturalmente já sabem que os tópsidas têm de ser expulsos do sistema Vega. Vamos fazer com que isso aconteça. Farei o possível para que possamos consegui-lo sem derramamento de sangue. O espírito do homem é seu bem supremo. Portanto, devemos valer-nos dele. Muito obrigado!

Foi só. Não era de estranhar que dali a alguns minutos os boatos ressoassem pelos inúmeros compartimentos da Stardust-III.

Enquanto isso, uma atividade febril desenvolvia-se no setor médico da nave. Folhas de pele cultivada foram retiradas do seu elemento bioquímico e submetidas a queimaduras. Após isso foram coladas sobre a pele sadia dos mutantes que participariam da ação. Depois disso Marshall não se sentiu bem... em sua pele.

 

Fazia duas horas da escala de tempo terrena que a imensa bola incandescente do sol de Vega começara a subir acima da linha do horizonte.

Como a contagem ferrônia do tempo fosse muito complicada, adotaram a sombra móvel de uma ponte de torre característica como elemento de referência.

Envolto nos trajes amplos e arejados de um operário de estaleiro, Chaktor não tirava os olhos da sombra estreita que a ponta da antena da torre de teledireção projetava sobre a planície.

O espaçoporto ficava bem ao leste. No ponto em que Chaktor se encontrava o tráfego era pouco intenso. A ampla estrada de planadores estava praticamente vazia sob os raios escaldantes do sol gigante.

Os vinte homens de que dispunha estavam colocados em posições estratégicas, bem protegidas. As construções titânicas dos enormes pavilhões de montagem formavam um ótimo pretexto para que alguns grupos de pessoas conversassem nas suas proximidades. Pesados veículos de transporte estavam sendo carregados pela aparelhagem automática. Após isso dirigiam-se ao espaçoporto, onde a frota comercial do planeta de Ferrol já reiniciara suas atividades.

A sombra aproximava-se do último moirão da direita da cerca que limitava o grande complexo. Quando o atingisse, teria chegado o momento combinado.

Chaktor lançou um olhar para os planadores estacionados nas proximidades. Ele e seus homens só podiam contar com os dois veículos para colocar-se em segurança.

Sob a ampla capa, a sineta de seu micro-rádio fez um clique. Respondeu em voz baixa, sem inclinar a cabeça.

O minúsculo alto-falante transmitiu sons ferrônios. Chaktor sentiu o líquido salino que lhe encheu a boca. A química do organismo dos ferrônios não possibilitava qualquer transpiração através dos poros cutâneos.

A voz revelava uma forte dose de autodomínio. Assim mesmo parecia encerrar um comando e uma ameaça velada.

— Estamos esperando. Você não poderá deixar de cumprir sua missão. Os veículos estão prontos. Já está vendo alguma coisa?

Chaktor sabia perfeitamente que não poderia permitir-se o menor engano. Era o chefe do movimento de resistência em pessoa que estava falando com ele. Ninguém conhecia seu nome; mas Chaktor tinha certeza de que pertencia aos círculos mais íntimos do Thort.

— Ainda não — respondeu o comandante da frota espacial. — Mas tenho certeza de que virá. Minha retirada estará garantida.

— Está tudo preparado. Faça um serviço bem feito.

Com estas palavras, a troca de mensagens chegou ao fim. Chaktor lançou um olhar em direção aos seus homens. Eram os únicos que sabiam que ele, Chaktor, na verdade, não pertencia aos grupos oposicionistas. Essa circunstância também representava um enorme foco de perigo. Todos esses elementos teriam que desaparecer, uma vez concluída a ação.

Voltou a olhar para a sombra que ia deslizando. Assim que a sombra pontuda tocou o moirão, um pontinho reluzente surgiu bem ao longe. Chaktor retesou o corpo. Seus homens crisparam os dedos em torno das armas ocultas sob suas vestes. Fingindo uma indiferença total, Chaktor passou por outro grupo de operários do estaleiro. Teve o cuidado de voltar o rosto para o outro lado. Estavam chegando! Logo veriam se Perry Rhodan havia calculado bem ou mal.

Chaktor era um excelente comandante de destróier. Não havia praticamente nada que pudesse abalá-lo, desde que se encontrasse no espaço vazio.

Mas aqui, no solo do oitavo planeta, sentia-se inseguro e constrangido. Dirigiu os olhos flamejantes para o pontinho que crescia rapidamente. Subitamente o uivar estridente do mecanismo propulsor atingiu-o sob a forma de sucessivas vagas sonoras.

Chaktor começou a caminhar mais depressa. Lá adiante, junto à estrada larga, havia uma área livre e desimpedida. Era ali que a máquina teria de pousar.

A figura achatada do planador passou em disparada. Atrás dos estranhos instrumentos de controle via-se uma mulher jovem de uniforme estraçalhado, que aparentemente sofrera graves queimaduras no rosto.

Ishi Matsu sabia que se encontrava num jogo arriscado, onde a menor falha poderia custar-lhe a vida.

Pôs a mão apressadamente no reator nuclear do tamanho de um punho fechado, produzido pela tecnologia arcônida. Já estava funcionando há alguns minutos. O campo energético gerado pelo mesmo era praticamente invisível, mas quem observasse bem não deixaria de notar o ligeiro tremeluzir. Fazia votos de que lá embaixo não houvesse nenhum observador atento.

O jogo incluía alguns fatores desconhecidos, que por isso mesmo não poderiam ser computados. Quando forçou a máquina ferrônia a uma rápida descida, tinha o rosto coberto de suor.

As torres dos silos de abastecimento ergueram-se diante dela. Enquanto com os pés acionava os controles de energia, regulando os jatos dianteiros de frenagem para a potência máxima, notou na tela do visor traseiro alguma coisa que se aproximava com um ruído uivante. Sentiu-se dominada pelo pânico.

Bastaria que John Marshall pousasse um pouco mais cedo atrás dela, que disparasse uma fração de segundo antes do tempo, para que uma rodinha da engrenagem cuidadosamente montada se quebrasse.

Quando seu planador tocou o solo num impacto por demais violento, soltou um grito estridente. Sob o impulso dos seus reflexos inconscientes voltou a acionar a plena potência os quatro jatos inferiores.

A máquina empinou com um rugido, subiu alguns metros em linha sinuosa e, voltando a bater estrondosamente no solo, acabou encontrando sua posição de repouso.

Estonteada, Ishi Matsu continuou presa aos cintos do assento do piloto. Levou alguns segundos até que o silêncio repentino atingisse sua consciência. O crepitar e estalar do material em distensão eram os únicos sons que enchiam a acanhada cabina de quatro pessoas.

Ainda confusa, captou os impulsos gerados pelos pensamentos dos ferrônios que se comprimiam lá fora. Era natural; o pouso acidentado chamara a atenção das pessoas que não deviam participar da execução do plano.

Poucos segundos depois percebeu as ondulações características de Chaktor. Encontrava-se num estado de pânico total.

Levantou-se com um gemido e com um pontapé abriu a porta da cabina. A luz ofuscante do sol penetrou pela abertura. Lá fora viu numerosos ferrônios que corriam de um lado para outro, entre eles alguns homens semi-agachados que seguravam as armas de radiações.

Chaktor gritou alguma coisa que não conseguiu entender em meio ao berreiro dos curiosos. Só percebeu que surgira uma gravíssima situação de perigo.

Numa série de quedas, Ishi atingiu o solo. No mesmo instante ouviu acima de sua cabeça o rugido do jato de um planador absolutamente idêntico ao seu. Desta vez o pouso foi impecável. Foi rápido e exigia o máximo do material, mas realizado com toda perícia. Não era a primeira vez que Marshall manejava os controles de um aparelho desse tipo.

Ishi começou a correr. Pontos incandescentes atravessavam o ar escaldante do planeta Ferrol. Os operários do estaleiro gritavam de pavor enquanto fugiam aos tiros de radiações daqueles vinte homens, os únicos que deviam agir por ali.

A reação de Chaktor fora instantânea. Teria de impedir a todo custo que algum homem inocente e desejoso de prestar auxílio saísse ferido.

De forma que seus homens dispararam cautelosamente seus tiros de advertência. Ishi recuperara o autocontrole. Enquanto tropeçava segundo era previsto, atirando para a frente a cápsula de plástico que trazia bem à vista, a escotilha do segundo planador abriu-se.

Marshall logo percebeu a situação confusa. Sem dizer uma palavra ergueu a pesada arma arcônida.

O chiado quase imperceptível dos super-radiadores ferrônios foi superado pelo rugido do emissor de impulsos. As moléculas de ar comprimidas brilharam numa estranha incandescência, ao longo da trajetória do tiro. Ishi viu o raio energético azul-violeta aproximar-se vertiginosamente, gerando um calor solar.

O grito estridente não foi fingido. Quando o raio comprimiu seu corpo como se fosse uma garra incandescente, a estabilidade do campo energético não impediu que a força do impacto a fizesse rodopiar. Nesse instante a moça transformou-se numa tocha acesa.

Ishi caiu em silêncio. Seus nervos haviam resistido até o último instante, mas agora sucumbiram à tensão.

Chaktor atirou tranqüilamente. Antes que Marshall pudesse apontar novamente sua arma, tombou ao lado de André Noir. Mais um tiro disparado com a arma do hipnomutante, e a parte dianteira do planador semidestruído transformou-se numa massa derretida.

Mais de cinqüenta curiosos que haviam fugido em pânico viram que um ferrônio envolto em trajes largos pegou o objeto que aquela mulher atirara para a frente antes de tombar.

Depois de disparar mais alguns tiros de advertência, os homens do grupo de Chaktor recolheram-se aos planadores que os aguardavam. Os jatos rugiram, impelindo-os para o alto, deixando para trás três corpos inermes e um montão de metais derretidos.

O corpo de Marshall fumegava. Olhou o corpo retorcido da moça por entre as pálpebras semicerradas. André jazia perto dele.

— Acenda o cartucho de fumaça, rapaz! — cochichou. — Muito bem. O que houve com Ishi?

— Está inconsciente — respondeu André. — Fique com esse pé esquerdo quieto. Tomara que a cúpula energética dela não tenha falhado.

— Que nada! Cuidado! Essa gente está se aproximando. Obrigue-os a se manterem a distância até que chegue o chefe. Era só o que faltava!

As tremendas energias hipnóticas de André começaram a entrar em funcionamento. Os ferrônios desejosos de prestar socorro, que se aproximavam correndo, estacaram de repente. Acabaram voltando. Outros mostraram-se hesitantes.

— Muito bem — cochichou Marshall. — Está funcionando. Vê-se que você aprendeu alguma coisa, gorducho. Que tal se sente como cadáver?

André praguejou baixinho. Alguns objetos explodiram à sua frente. A máquina atingida continuava a arder, gerando um calor tremendo.

— Santo Deus, quem dera que o chefe viesse logo! — gemeu André. — Quase não agüento mais. Essa gente faz questão de nos ajudar.

— Só faltam cinco minutos. Temos de esperar até que Chaktor se encontre em segurança. Ishi está despertando. Tomara que...

Marshall ficou calado. Olhou ansiosamente para a delicada japonesa. A moça só fez um ligeiro movimento de mão. Logo compreendeu que uma pessoa cujo corpo apresenta lesões de tamanha gravidade costuma ficar bem quietinha.

Daqui por diante Ishi Matsu não cometeria qualquer engano!

 

O rosto de um nativo surgiu na minúscula tela do aparelho ferrônio. Chaktor voltara a envergar o uniforme cinza da frota espacial.

Suas respostas foram cochichadas, precisas e lacônicas. Rhodan voltara a estar a sós consigo mesmo, o interlocutor distante e os instrumentos de controle desligados.

— O Thort ficou atônito — murmurou. — As investigações já foram iniciadas. Não se deixe pegar.

— Seus homens estão bem? — indagou Chaktor com a voz nervosa.

— Naturalmente. Tudo em ordem. Fizeram um trabalho bem feito. Ninguém saiu machucado. Pegou o carretel com os registros?

— Ele foi interpretado, mas continua em meu poder. Sou um dos líderes do movimento de resistência.

— Ótimo! Era isso que eu queria. Ainda hoje será iniciada a execução do plano C. Darei imediatamente ordem para decolar. Cuide logo dos alojamentos. Como é mesmo o nome daquele sujeito?

— Chren-Tork. Por algum tempo exerceu as funções de representante do comandante-chefe da frota tópsida. É um elemento muito importante. Nossos homens agarraram-no quando se preparava para fugir.

— É deste que eu preciso. É inteligente? Sabe desenvolver um raciocínio lógico?

— Sem dúvida. Esses seres são feitos quase que exclusivamente de lógica. Não conhecem sentimentos no sentido que nós emprestamos ao termo.

— Tanto melhor. Providencie para que esse Chren-Tork tenha conhecimento do ataque desfechado contra nossos homens. Faça chegar às suas mãos material fotográfico que retrate os pretensos mortos. Deve formar sua própria opinião. Não fale demais. Isso daria na vista. Faça com que acredite que o senhor pertence ao movimento de resistência. Uma vez feito isso, conduza o tópsida à minha presença para ser interrogado.

— Enfrentarei dificuldades tremendas. Os prisioneiros encontram-se sob a jurisdição de uma comissão de investigações científicas.

O gesto de impaciência de Rhodan tornou-se visível na tela de imagem de seu interlocutor.

— Tratarei disso junto ao Thort. Farei com que o senhor seja incumbido da apresentação. A única coisa que exijo é que compareça à minha nave. É só. Mais alguma pergunta?

Chaktor fez que não. Rhodan ainda acrescentou:

— A coisa está ficando séria. Não perca o sangue-frio no último instante e continue a confiar em mim. Nunca se esqueça de que é melhor ter uma base comercial minha em Ferrol do que enfrentar uma invasão tópsida vinda do espaço. Sabe perfeitamente que a frota dos senhores nada pode fazer. Não está à altura de enfrentar os recursos tecnológicos dos seres reptilídeos.

Chaktor sentira na própria carne a verdade dessas palavras.

— Vou desligar. Aguarde as ordens que o Thort lhe transmitirá ainda hoje. Depois da execução do plano C voltarei a dar-lhe cobertura. Obrigado.

Rhodan interrompeu a ligação. O microtransmissor ferrônio voltou a ser trancado no cofre. Poucos instantes depois o oficial de serviço chamou. O rosto de Bell apareceu numa das telas.

— A S-7 está pronta para decolar.

Rhodan tomou o elevador do eixo central e foi aos hangares das naves auxiliares. O major Nyssen parecia descansado e descontraído, tal qual seus homens.

A comunicação de Nyssen foi transmitida numa fala lacônica e entrecortada. Rhodan recapitulou com a voz baixa:

— Nyssen, preciso confiar no senhor. Sua nave auxiliar tem um raio de ação de cerca de quinhentos anos-luz. Siga exatamente os cálculos e salte para o espaço interestelar. Transmita sua mensagem com a potência máxima. O código é conhecido. Mas não transmita qualquer texto em linguagem comum. Isso daria na vista. Uma vez terminada a troca de mensagem por hiperondas, retorne imediatamente.

Nyssen fez continência. Um sorriso ligeiro brincou em seus lábios estreitos.

— Vamos torcer para que tudo dê certo. Se minha transmissão for captada e localizada pelo goniômetro, poderemos ter alguma chance.

— A mensagem será captada, pode ter certeza. Só estão esperando por isso. Portanto, devemos fazer-lhes o favor de revelar a posição galáctica de nosso mundo por meio duma mensagem direcional imprudente. Pode decolar!

Rhodan acompanhou a manobra de ejeção, que dentro da atmosfera ferrônia não oferecia a menor dificuldade. A pressão reinante no interior do couraçado era igual à pressão externa.

A enorme S-7 foi expelida pelo campo de impulsão magnético, por entre os trilhos energéticos. Lá fora, o dispositivo antigravitacional, inteiramente automatizado, logo criou condições de imponderabilidade.

Poucos segundos depois os mecanismos propulsores da nave auxiliar começaram a rugir. Desenvolvendo uma velocidade vertiginosa, a mesma subiu para o céu matutino. Quando o rugir cessou, a S-7 já havia desaparecido.

As estações ferrônias de medição de impulsos de rádio registraram a partida da nave arcônida, previamente anunciada. Era só. Os vôos eram tão corriqueiros, que essa missão especial não despertava a menor atenção.

O capitão Klein aguardava na sala de comando.

— Dentro de uma hora haverá uma conferência no Palácio Vermelho — anunciou. — A notícia acaba de chegar.

— Pode confirmar. O que dizem os órgãos de segurança dos ferrônios?

— Estão realizando uma busca febril para localizar os autores do “atentado”. O governo formula acusações violentas contra a oposição, que é acusada de intransigência. A conclusão do acordo é mais certa do que nunca.

— Matamos dois coelhos de uma só cajadada — disse Rhodan com um sorriso sombrio. — Thora, faça o favor de preparar o tradutor simultâneo. Daqui a pouco teremos visita.

Thora ergueu as sobrancelhas, numa atitude indagadora.

— Visita? Serão os ferrônios?

— Não, é outra gente. Tem certeza de que os oficiais de patente elevada da frota tópsida dominam o intercosmo?

— Tenho certeza absoluta. O sistema Delta-Orion, administrado pelos tópsidas, pertence ao Grande Império.

— Pertenceu! — retificou Rhodan em tom áspero. — Essa gente já os passou para trás, e os senhores nem se incomodam com isso. Já pensaram no que isso vai dar? Topsid incorporará os sistemas planetários periféricos. Com isso seu reino se fortalecerá consideravelmente no terreno político e econômico. E quais são as providências que diante disso se tomam em Árcon, seu formidável mundo natal?

Thora permaneceu calada. O cientista Crest baixou a cabeça antes de responder com a voz débil:

— O senhor sabe perfeitamente que perdemos a iniciativa da raça humana.

— Apenas quis lembrar-lhes esse fato. Confie em nós, Crest. Seu Grande Império tem necessidade premente de amigos fortes e fiéis. Viajamos na mesma nave. Acho que não está interessado em ver seu império debilitado, roído progressivamente por raças inteligentes não-humanas. Dentro de pouco tempo deixarão de roer e passarão a devorar, o que se tornará muito doloroso. Peço-lhe que daqui por diante se atenha estritamente às minhas instruções. Os problemas que temos de enfrentar são os seguintes...

 

O robô arcônida de combate não era muito ambicioso. Por outro lado, as inibições e os sentimentos eram-lhe tão estranhos quanto as reflexões que um ser dotado de raciocínio orgânico poderia realizar a qualquer tempo. Em compensação dispunha de um cérebro positrônico cuidadosamente programado, que registrava de forma indelével tudo que era importante para um robô de quatro braços especializado.

Foi assim que os mecanismos multiarticulados que lhe serviam de braços assumiram instantaneamente a posição de fogo, quando o setor individual do cérebro positrônico captou os primeiros impulsos emitidos por um ser estranho.

Reginald Bell franziu a testa. Um olhar ligeiro em direção a John Marshall deixou-o ciente de que aquele que estavam procurando não podia estar muito longe.

Uma sentinela ferrônia fez continência. Passaram por ele, atravessaram o corredor que se seguiu e chegaram ao pavilhão circular das “jaulas”, situado em nível inferior.

Bell parou. Um cheiro adstringente subia de lá. Se não houvesse mais nada que pudesse revelar a existência de algo completamente estranho, essa exalação quase dolorosa o teria feito.

— Nunca devíamos falar mal de um ser verdadeiramente inteligente. Não é culpado de ter um organismo diferente do nosso. Mas um fedor destes também já é demais.

Bell engoliu em seco. Depois ficou calado. Aproximou-se cautelosamente da amurada que ladeava o corredor circular.

O enorme campo de prisioneiros ficava na menor das duas luas de Ferrol. Era um mundo morto, totalmente estéril, que tornava impossível a fuga para quem não dispusesse de amplos recursos técnicos. Os ferrônios haviam se recusado a abrigar em seu mundo os tópsidas aprisionados nas batalhas mais recentes.

Mas o verdadeiro motivo da localização do campo de prisioneiros na pequena lua residia num fato que provocava sentimentos bastante estranhos em Perry Rhodan. Ali se realizavam experiências biomédicas. Não se falava muito nisso, ainda mais que o Thort não admitia a menor discussão a esse respeito.

Bell passou os olhos pela sala circular. As inteligências reptílicas haviam sido trancadas em cubículos em forma de jaula que dispunham de fechaduras reforçadas e grades elétricas de alta tensão.

Um miar e assobiar estridente subiu das profundezas sombrias. Corpos fortes, revestidos de escamas marrom-escuras, debatiam-se contra as altas grades.

— É por causa da alimentação! — explicou o comandante em tom categórico.

John Marshall pigarreou. Seu rosto moreno tinha um aspecto imponente sob a peruca branca. A testa fora modificada por meio duma plástica bem cuidada, tendo ficado mais elevada. Dessa forma o telepata transformara-se num genuíno arcônida. Bell sentiu-se incomodado com a postura rígida e compenetrada de John. Lançou um olhar de cólera para seu companheiro esbelto.

Lembrou-se das palavras de Rhodan, segundo as quais ele, Bell, jamais poderia corporificar um arcônida. Por isso figurou como pretenso comandante de pretensos povos auxiliares provenientes de um planeta colonial de Árcon.

— O senhor acha correto dispensar um tratamento destes a prisioneiros de guerra? — perguntou Marshall em tom áspero.

O comandante olhou-o sem compreender. As palavras que acabara de ouvir ultrapassavam a capacidade de entendimento de um ferrônio.

Chaktor fez um sinal de advertência. O gesto quase chegava a ser uma súplica. O mutante resolveu ficar calado. Lá embaixo prosseguia a alimentação. Era um espetáculo horrível e deprimente aos olhos de um homem.

O robô de combate ainda mantinha abaixados os braços com as armas. Perto dele havia muitas celas situadas ao nível do corredor circular. Eram mais confortáveis, dispondo até de instalações sanitárias.

Placas escritas em caracteres ferrônios indicavam quem se encontrava atrás das grandes portas gradeadas.

Eram as celas individuais de oficiais tópsidas de elevada patente, que por este ou aquele motivo se tornaram prisioneiros.

Bell aproximou-se lentamente. Atrás da porta gradeada um corpo marrom-escuro saltou do leito mesquinho. O estranho ser, em cujo uniforme escuro se viam estranhas insígnias, manteve-se num canto da cela, imóvel mas em posição de saltar.

Os olhos esféricos, grandes e reluzentes, encravados num crânio de réptil largo e achatado, que não apresentava a menor cobertura capilar, mantinham-se numa atitude de vigilância. O corpo esguio, cuja altura correspondia aproximadamente à de um homem, possuía dois braços e duas pernas. Nos lugares em que a pele estava à mostra via-se nitidamente uma formação de escamas de coloração marrom-escura. Os pés, de movimentos aparentemente muito lentos, estavam enfiados em envoltórios em forma de botas.

Essa criatura parecia uma figura de pesadelo, mas era dotada de uma inteligência superior. Não havia a menor dúvida de que a Humanidade estaria irremediavelmente perdida se ficasse exposta à investida inesperada desses seres.

Bell empalideceu um pouco. Os representantes de duas formas de evolução totalmente diferentes fitavam-se em silêncio.

Também John Marshall parecia perturbado. Sentiu nitidamente, até nitidamente demais, o que ia pela consciência daquele ser estranho. O que predominava era o medo e o pânico. Marshall concluiu que provavelmente os ferrônios haviam realizado experiências nada agradáveis com esses descendentes de répteis. O tópsida, um ser de aparência tão assustadora, vindo de um sistema solar situado a uma distância de oitocentos e quinze anos-luz, estava mergulhado num oceano de temores.

— O nome é Chren-Tork. É um oficial de estado-maior, um dos chamados tubtor. Isso corresponde aproximadamente à graduação de um comandante de cruzador — explicou o guia ferrônio.

Bell parou junto à grade. O corpo esguio do réptil curvou-se, pronto para saltar. Só Marshall percebeu que se tratava de um gesto instintivo de autodefesa.

Bell era diferente dos ferrônios com sua pele azul. O tópsida sentiu um perigo indefinido.

Chren-Tork ficou à espreita. Seus olhos grandes abrangiam tudo. Como oficial do estado-maior da frota tópsida sabia perfeitamente quem causara o terrível fracasso. Todavia, percebeu que esses seres atarracados não eram arcônidas, pois estes tinham cabelo diferente e um corpo mais longo. Apesar disso achou que Bell poderia ser perigoso.

Subitamente John Marshall penetrou no campo de visão do tópsida. Com um agudo assobio de pavor Chren-Tork recolheu-se apressadamente ao canto mais afastado de sua cela. Marshall aproximou-se mais.

Chren-Tork já sabia quem tinha diante de si. Era o representante do Grande Império, contra o qual Topsid se rebelara numa série de lutas sangrentas. O jogo de esconder chegara ao fim. Nem mesmo ele, Chren-Tork, com seu aspecto apavorante, conseguiria impressionar o representante do planeta Árcon. As duas raças já se conheciam há vários milênios.

Aquele ser não-humano sabia perfeitamente que o arcônida lhe era superior sob todos os aspectos, não apenas no que dizia respeito às gigantescas naves.

— Chren-Tork, Tubtor do Reino dos Três Sóis — principiou Marshall em tom frio, falando um intercosmo impecável.

Aprendera a língua corrente da Via Láctea através do processo arcônida de treinamento hipnótico.

— É o senhor? Faça o favor de responder. Sei perfeitamente que fala e entende o intercosmo.

A resposta veio em forma de uma série de sons agudos e estridentes. Apesar disso era perfeitamente compreensível. Embora as palavras não passassem de um chiado, transmitiam uma resposta perfeitamente inteligível e bem refletida. Aquele ser reptilídeo era muito inteligente.

— Por que menciona este fato? É óbvio.

— O senhor virá comigo. Meu comandante quer interrogá-lo a bordo de sua nave.

Chren-Tork pensou que sua última hora tivesse chegado. O corpo musculoso curvou-se ainda mais.

— Sou prisioneiro destes seres primitivos. O senhor não tem nenhum direito...

— Tenho, sim — respondeu Marshall em tom indiferente. — O senhor está submetido à jurisdição do Império. Abra a porta.

A ordem foi dirigida ao carcereiro ferrônio. Subitamente Chren-Tork viu diante de si o cano de uma arma mortal. Já conhecia o desintegrador arcônida.

— Esta arma é discreta e silenciosa — observou Bell com uma contração bonachona dos lábios. Também sabia falar o intercosmo. — Saia. Aliás, sou do mundo que o senhor confundiu com este planeta.

Bell deu uma risadinha. O jogo estava começando. Marshall percebeu que o interesse do tópsida despertara subitamente. Concluiu que há tempo o estado-maior tópsida desconfiava de que um pequenino erro fizera com que calculassem erroneamente a área em que se situava o objetivo, motivo por que haviam escolhido mal o inimigo que atacaram. Agora veio a confirmação em forma de uma observação aparentemente leviana.

Chren-Tork saiu para o corredor. Não caminhava propriamente, mas impulsionava o corpo para a frente numa série de movimentos elásticos. Bell passou a língua pelos lábios ressequidos.

Logo percebeu o gesto rápido de Marshall. O tópsida mordera a isca.

Diante da grande comporta do campo de pouso Chaktor confirmou a entrega daquele prisioneiro importante. Os ferrônios possuíam uma burocracia que metia vergonha à guerra de papéis dos terráqueos. Durou uma eternidade até que deixassem o tópsida atravessar a passagem transparente para entrar na pequena nave.

Poucos minutos depois o veículo decolou. O prisioneiro estava agachado num assento dobrável. Um robô de combate apontava-lhe a arma em atitude ameaçadora.

A pequena lua foi sendo deixada para trás pela nave ferrônia que fazia a ligação com o planeta. Por alguns segundos Bell contemplou a luminosidade ofuscante do mecanismo propulsor de elevada potência. Depois dirigiu-se nervosamente a Marshall:

— Será que mordeu mesmo a isca? Esse tipo me dá medo.

— A mim não dá mais. É ele que está com medo, e é o quanto basta. Cuidado! Chaktor está entrando no jogo.

Ao perceber as palavras cochichadas do ferrônio que passava como que por acaso, o tópsida logo se acalmou. Se pudesse sorrir, ele o teria feito.

Era claro que Chren-Tork estava informado sobre o movimento de resistência ferrônio. Os elementos oposicionistas haviam espalhado a notícia no campo de prisioneiros lunar.

Seus olhos cintilantes acompanharam o oficial ferrônio. Acontece que não ouviu as palavras que o telepata vigilante proferiu com a voz baixa:

— OK, o contato foi estabelecido. Acredita que Chaktor é um inimigo dos arcônidas.

Bell deixou-se cair na poltrona.

Pouco depois o ar do planeta Ferrol começou a uivar no revestimento da nave. As antenas rastreadoras brincavam na cúpula da nave. Antes que a nave de ligação se preparasse para pousar, Rhodan já havia sido avisado.

— Estão chegando — disse Crest com a voz nervosa. — Não acredite que conseguirá enganar uma inteligência de tamanha superioridade com uma série de simples afirmativas e dados falsificados. Conheço os tópsidas. Não têm sentimentos. Logo, a possibilidade da prática de qualquer ato inspirado em razões sentimentais está totalmente excluída. Eu, por exemplo, poderia sentir que seria preferível abandonar o sistema Vega e voar para algum lugar onde tenha melhores chances. Um tópsida jamais faria uma coisa destas. O senhor terá de oferecer trunfos bem melhores, Rhodan!

— Aguarde — tranqüilizou-o o comandante. — Nossa máquina já começou a funcionar.

— O senhor não passa mesmo de um bárbaro — disse Thora por entre os dentes. Havia uma expressão de contrariedade em seu rosto. — Lança mão de recursos estranhos; de recursos primitivos, quase chego a dizer.

Rhodan exibiu seu sorriso tão característico, que não dizia nada mas era por demais cheio de conteúdo.

— São recursos muito primitivos — confirmou em tom grave. — Justamente por isso nunca acreditarão que um arcônida seria capaz de um procedimento desses, não é? O senhor não acaba de afirmar que essa gente raciocina com uma lógica inflexível? Justamente por isso devem acreditar que o joguinho por mim desenvolvido é genuíno.

Thoraabriua boca. Crest franziu a testa; parecia surpreso.

— É uma teoria bastante arriscada — observou apressadamente. — Tem certeza do que está dizendo? O senhor não é nenhum arcônida.

— Por que mandei arranjar estas perucas? Aquele réptil não perceberá uma diferença tão insignificante. Paraele um arcônida é um ser alto, esbelto e de pele macia. Tem cabelos brancos na cabeça e olhos pequenos e avermelhados. Reunirei todas estas características. Mais alguma objeção?

Crest ficou calado; estava perplexo. O ligeiro sorriso de Rhodan começou a desgastá-lo psiquicamente.

Alguns segundos depois a nave pousou. Bell anunciou sua chegada pelo radiofone.

— Tudo em ordem por aqui. Não demonstre muita cortesia. Chaktor também deve vir. Conseguiu estabelecer contato com o tópsida?

— Por várias vezes. Fizemos de conta que não percebemos nada. O réptil já se sente muito mais seguro.

— É isso mesmo que queremos. Apressem-se.

 

O interrogatório foi realizado na sala de comando da Stardust-III. Rhodan e alguns talentos parapsicológicos do Exército de Mutantes ofereceram algumas surpresas bem estudadas, que, ao que tudo indicava, jamais poderiam ter chegado ao conhecimento do tópsida.

Quando resvalou para fora da nave, sob a vigilância de robôs, Chren-Tork encontrava-se num estado de esgotamento físico e psíquico. Nem desconfiava de que por mais de uma hora sua vontade estivera sujeita aos efeitos paralisantes de um projetor mental arcônida.

Após isso chegara a vez de Kitai Ishibashi, um mutante positivo japonês, dotado de um irresistível poder de sugestão. Era impossível que o oficial do estado-maior tópsida jamais desconfiasse de que não estava agindo por sua livre e espontânea vontade.

Acontece que em seu cérebro fora gravado um pensamento e um substrato ideológico que o obrigava a pautar suas reações exatamente pela vontade de Rhodan.

Quando o corpo reptílico apareceu na tela do instrumental de observação ótica externa, Rhodan tirou lentamente a peruca bem ajustada. Sem dúvida qualquer observador humano teria percebido que essa profusão de cabelos embranquecidos não passava de imitação. Mas para o réptil isso não seria possível. Rhodan sabia que causara uma impressão profunda.

— Nossa atuação terminou — murmurou o comandante. — Agora tudo depende de Chaktor. Basta que descubram suas verdadeiras intenções, ou que não reconheçam as qualidades que quer aparentar, para que nossos esforços sejam vãos.

— Não deixarão de lançar mão de um couraçado — observou Crest com a voz tranqüila. — Aliás, o senhor desempenhou muito bem seu papel de comandante arcônida.

Lá fora Chaktor ordenou a um comando ferrônio que Chren-Tork fosse colocado num veículo de superfície. No dia seguinte retornaria à pequena lua. Todavia, segundo os planos de Rhodan isso não devia acontecer.

— Vivo dizendo que o homem é uma criatura admirável. Apenas tem de ser dirigido e orientado — disse Rhodan com um sorriso cansado. — Dispomos de todos os talentos e capacidades. Apenas precisamos de tempo para aprimorar nossas qualidades. É por isso que os tópsidas nunca devem descobrir a Terra. Ao menos não devem descobri-la antes que a Humanidade amadureça e alcance a união. Em virtude disso torna-se necessário que esses elementos sejam desalojados do sistema Vega. A cada instante ocorrem alterações estruturais na contextura do espaço quadridimensional. Dali se conclui que esses sujeitos ficam vagando alegremente pelo Universo. Dentro de poucas horas saberemos se nossa atuação foi bem sucedida.

— Mas se...

— Neste caso não haverá outra alternativa senão um ataque decisivo — interveio Rhodan em tom indiferente, interrompendo a exposição de Crest. — É claro que de qualquer maneira teremos que aparecer. Não temos outra alternativa senão reforçar a atividade de nossos agentes. Apesar disso a luta não será tão séria como seria sem as providências que adotamos. Concorda comigo?

Crest permaneceu calado. Não conseguia acompanhar os planos de Rhodan. Só mesmo os homens estariam em condições de montar um jogo tão complicado.

Lá fora o veículo militar ferrônio afastou-se. Nele se encontrava um oficial do estado-maior tópsida, que a essa altura estava convencido de que o mundo de Rhodan ficava no sistema solar de Capela, situado a uma distância de apenas quarenta e cinco anos-luz. Pelo que diziam, Rhodan provinha do quinto planeta. Os respectivos dados astronáuticos haviam sido cuidadosamente preparados, e a atuação dos mutantes Marshall, Noir e Ishi Matsu fez com que chegassem às mãos dos membros do movimento de resistência.

Tudo dependia da habilidade de Chaktor, que teria de convencer os tópsidas estacionados nas seis luas do quadragésimo planeta de que valia a pena atacar imediatamente o pretenso mundo de Rhodan, para eliminar a raiz do perigo com um golpe de surpresa. Feito isso, poderiam voltar-se contra os ferrônios, relativamente indefesos.

Será que os tópsidas eram realmente seres dotados de um raciocínio frio e inflexível, segundo afirmara Crest? Se fossem, o plano não poderia falhar. Rhodan lembrara-se de tudo, até dos detalhes mais insignificantes.

Seria muito mais simples lançar-se ao ataque com o couraçado arcônida. Mas o acaso poderia pregar-lhes alguma peça. Se a Stardust-III sofresse avarias graves, a existência da Humanidade forçosamente correria um risco considerável.

Rhodan ainda não estava em condições de arriscar tudo; por enquanto a Terra não era capaz de construir naves do tipo da Stardust-III. Havia um lapso de tempo que tinha de ser superado.

Foi a conclusão a que chegou Rhodan, um homem que sabia desenvolver um raciocínio coerente.

Num movimento quase inconsciente raspou com as unhas a camada de plástico tão cuidadosamente elaborada que lhe cobria a testa. O Dr. Haggard esforçara-se bastante.

— Teremos de criar, no âmbito do Exército dos Mutantes, uma divisão de máscaras capaz de trabalhar em bases científicas — raciocinou em voz alta. — Bell, anote isto. Na Terra existem peritos de primeira ordem.

Atravessou a grande sala de comando, deixando os ombros pender para a frente. Os presentes seguiram-no com a vista sem proferir uma única palavra. Ao chegar à pesada escotilha blindada olhou para o relógio.

— Ordene as providências necessárias para colocar a nave em condições de decolar. Pouco antes do nascer do sol avançaremos para o centro do sistema. Lançaremos mão de todos os recursos de que dispomos. Capitão Klein!

O homem esbelto assumiu posição de sentido. Em seu rosto via-se uma expressão de profundo respeito.

— Sim senhor!

— Avise o Thort de Ferrol. Avise-o de que julgo absolutamente necessário a realização de um vôo de reconhecimento com o poderoso couraçado, já que as medições estruturais por nós efetuadas fazem suspeitar de que os tópsidas planejam um ataque de surpresa contra o nono mundo do sistema. As fortalezas ferrônias devem ser avisadas. Decolaremos exatamente duas horas antes do pôr do sol.

Klein fez continência sem proferir uma palavra.

— Mais uma coisa! — Rhodan exibiu seu sorriso constrangedor. Bell já conhecia a expressão implacável que aqueles olhos claros assumiram naquele instante.

— Pouco depois do anoitecer Chaktor fugirá num destróier ferrônio. O tópsida estará com ele. Evidentemente qualquer tentativa de explicar a fuga bem sucedida pecaria pela falta de lógica.

— Como? — disse Thora com a voz ofegante. Já não entendia mais nada.

— Não teria a menor lógica, se este couraçado veloz se encontrasse em Ferrol — explicou Rhodan em tom suave. — Chaktor não iria longe. Nossa aceleração é milhares de vezes maior e nosso potencial de combate excede a do destróier em bilhões de vezes. O comando da frota tópsida jamais acreditaria que Chaktor teria escapado contra nossa vontade naquela lesma. Nem que levasse uma vantagem de dez horas. Por isso teremos de justificar o êxito da fuga. Decolamos e desaparecemos no espaço. Se não estivermos aqui, não poderemos sair em perseguição dos fugitivos. Bell, decolaremos com uma potência elevada, mesmo que com isso o espaçoporto dos ferrônios fique reduzido a um montão de ruínas. O prisioneiro tópsida terá de ouvir perfeitamente que a Stardust-III vai embora. Só assim poderemos ter certeza de que o grande jogo em que estamos empenhados será bem sucedido.

Os presentes mantiveram-se em silêncio. Rhodan cumprimentou-os com um aceno de cabeça e retirou-se.

— Que coisa! — exclamou Klein. — Nunca teria tido uma idéia dessas.

Reginald Bell piscou os olhos em direção às luminárias. Seu nariz enrugou-se.

— O cérebro dele vai se transformando num computador — disse em tom preocupado. — Quase chego a acreditar que conseguiremos enganar aqueles répteis. Se, conforme está previsto, Nyssen ainda avisar pelo rádio de que uma gigantesca frota está avançando em direção ao sistema Vega, o almirante dos tópsidas não se sentirá muito bem. Se estivesse no lugar dele evacuaria imediatamente aquelas luas, que afinal não são tão importantes, para lançar um ataque de surpresa contra aquilo que acredita ser nosso mundo. Os dados falsificados me dariam uma indicação exata do lugar em que teria de procurar. Aliás; qualquer estrategista do estado-maior recomendaria aproveitar a oportunidade resultante do fato de estar o planeta desguarnecido temporariamente de qualquer contingente de naves mais potentes. É um plano diabólico, mas não deixa de ser arriscado.

— Antes de mais nada será necessário que captem a mensagem radiofônica de Nyssen — disse Thora com certa ironia. — Até parece que o senhor acredita que os desígnios humanos sempre têm de se cumprir, não é?

Bell distinguiu-a com um olhar significativo.

— A senhora nunca aprende — suspirou. — Se Rhodan mandasse alguma coisa no seu formidável império, esses tipos indolentes que são seus concidadãos ficariam bem admirados. Não demorariam nada em despertar de seus sonhos artísticos.

Thora retirou-se.

Bell contemplou-a com um sorriso sarcástico.

 

Cerca de uma hora depois do pôr do sol Tako Kakuta, um homem dotado da capacidade formidável da teleportação individual saltara diretamente para o interior da prisão.

No mesmo instante o mutante positivo japonês soltou um gemido de pavor. Os homens de Chaktor agiram conforme fora previsto, mas não se afastaram das instruções terminantes que mandavam poupar a vida dos guardas inocentes.

O traje arcônida que envergava dispunha de um campo de deflexão de raios luminosos que o tornava invisível aos olhos normais. Encontrava-se num canto escondido da pequena casa de sentinelas situada nas proximidades do espaçoporto, e que só fora concebida como casa de detenção para prisioneiros em trânsito.

Havia poucas celas. Uma delas fora destinada ao tópsida. Tako Kakuta viu os guardas tombarem. Os disparos de impulsos saídos dos super-irradiadores ferrônios eram de uma luminosidade ofuscante, mas praticamente não causavam qualquer ruído. Funcionavam em base puramente térmica, segundo o princípio da luz ultra-reforçada reunida em feixes estreitos, quase sem nenhuma dispersão.

Tako estava a ponto de gritar, de dar expressão ao horror de que se sentia possuído. Antes que o fizesse, Chaktor veio correndo pelo corredor estreito. A porta da cela abriu-se de um golpe. Chren-Tork, muito nervoso, surgiu na abertura. Foi assim que Tako compreendeu as palavras apressadas trocadas entre o tópsida e o oficial ferrônio. O tópsida falava o idioma ferrônio muito bem. Essa raça também dispunha de métodos especiais de aprendizado, que lhes permitiam adquirir num tempo muito curto o domínio de qualquer língua.

Tako aproximou-se mais. Ninguém o via, ninguém o ouvia. Nem mesmo Chaktor sabia que Perry Rhodan confiara a um dos seus mutantes as funções de vigia secreto.

— Faça o que quiser — disse Chaktor com a voz abafada. — Já deve saber pela TV que somos contra a permanência dos arcônidas em nosso planeta. Venho por ordem do movimento de resistência. Se eu o libertar, arrisco minha cabeça.

— O Thort está informado sobre isso? — perguntou o réptil, falando ponderadamente.

— Não. Será destituído assim que tivermos firmado um acordo com o comando de sua esquadra espacial. Não queremos nem os senhores nem os arcônidas por aqui. Abandone nosso sistema, garanta-nos a celebração de tratados, e os ajudaremos a conseguir a derrota definitiva de seus inimigos.

— Mas como? Eu não posso decidir sobre isso.

— Sei perfeitamente. Ofereço-lhes os dados galactonáuticos sobre a posição do planeta de onde provêm os arcônidas que pousaram aqui. Não vêm de Árcon, mas de um mundo colonial que conquistou sua independência sob o comando de Rhodan.

— Então é por isso que desenvolvem uma atividade tão surpreendente — chiou o tópsida em tom nervoso. — Isso nos deixou admirados. Em Árcon estão dormindo há muito tempo. Liberte-me. Garanto-lhe que entraremos em negociações. Dispõe de uma nave espacial bastante veloz?

— Tenho um destróier novo. Rhodan decolou antes do pôr do sol em direção ao nono planeta. Temos de aproveitar a oportunidade, do contrário nunca conseguiremos fugir. O senhor dispõe de uma oportunidade única. Já soube que a traição de uma mulher arcônida fez chegar às nossas mãos os dados galactonáuticos? Não estou mentindo.

— Já soube. Contaram na prisão. Não fale tanto.

— O senhor tem de garantir que suas forças se retirarão do nosso sistema — insistiu Chaktor. — De outra forma não poderei libertá-lo; seria um absurdo.

— Garantimos — disse o réptil.

Tako Kakuta deu um sorriso amargo. Tudo aquilo era transparente demais para ser levado a sério. O tópsida lutava febrilmente pela vida. Naquele instante teria concordado com qualquer coisa.

— Não pense em nos lograr. Terá de entrar em acordo conosco, não com o Thort. É muito fraco e transige demais. Preferimos entrar em acordo com o senhor a permitir que Rhodan transforme nosso mundo progressivamente numa propriedade sua. Estamos à mercê desse homem. Os senhores têm de agir imediatamente. Sabemos de fonte segura que Rhodan colocou em prontidão toda sua frota espacial.

Está se dirigindo ao nosso sistema. Se não partir imediatamente, seu povo estará perdido.

Chren-Tork recebeu a notícia surpreendente sob a forma duma onda de pânico.

— Quero provas! — gemeu.

— O senhor as terá. O contrato entre seu povo e o nosso está garantido?

Tako notou que a arma de Chaktor continuava apontada contra o corpo do tópsida. A conversa apressada terminou tão de repente como havia começado.

Chaktor nem olhou para os guardas mortos. Perry Rhodan lhe entregara um projetor mental arcônida, que lhe teria permitido livrar-se dos homens sem causar-lhes qualquer dano. Mas ao que tudo indicava houve complicações inesperadas.

Os ferrônios desapareceram juntamente com o oficial do estado-maior tópsida com a graduação de tubtor.

Tako aguardou mais alguns minutos. Depois concentrou-se sobre um ponto externo do espaçoporto e desmaterializou-se mediante suas inacreditáveis energias espirituais. Era um tipo de transferência do corpo para outro ponto. Os arcônidas já sabiam há tempo que as forças parapsicológicas constituem um dos melhores meios de dominar as unidades energéticas pentadimensionais.

No espaçoporto o ar cintilou ligeiramente. Tako Kakuta materializou-se junto à pista de decolagem em que estava estacionado o destróier novinho em folha de Chaktor.

Também aqui tudo parecia em ordem. Os guardas haviam sido informados de que Chaktor decolaria para um rápido vôo de reconhecimento.

Apesar do campo defletor de luz, Tako tiritou de frio. Nuvens espessas voltavam a se acumular por cima das montanhas situadas nas proximidades. A tormenta rotineira daquela hora do dia estava para desabar.

Assim que as primeiras rajadas de vento varreram as pistas, Chaktor surgiu num carro deslizador. Alguns instantes depois três ferrônios desapareceram na nave em forma de ovo. Um deles era muito maior que seus acompanhantes.

O mutante retirou-se antes que a nave iluminasse os jatos de popa e disparasse para o céu escuro. Sentiu uma ligeira onda de calor, uma profusão de luz de um enorme poder ofuscante e um ruído ensurdecedor que terminou numa série de ribombos, que acabaram sendo suplantados pelas rajadas cada vez mais violentas.

Tako vira o suficiente. A fuga fora bem sucedida. Com um ligeiro salto de teleportação transportou-se para o edifício baixo que Perry Rhodan mandara erigir na zona limítrofe da cúpula protetora. No momento o anteparo energético não existia. Tako pôde entrar livremente na sala comprida.

Ishi Matsu, uma telepata extremamente competente do Exército de Mutantes, ergueu os olhos. Já há tempo captara as vibrações cerebrais de Tako.

— Lá fora fez muito barulho. Deu tudo certo?

Tako limitou-se a acenar com a cabeça. Logo sentou diante do aparelho de comunicação audiovisual que trabalhava a velocidade superior à da luz. O hipercomunicador arcônida não teria nenhuma dificuldade em atingir o couraçado, estacionado num ponto longínquo do espaço.

Quando a tempestade se transformou num furacão e uma chuva fortíssima caiu, Tako começou a falar.

— Chamo a Stardust-III. Tako falando. Chamo...

Os robôs de combate postados junto à porta cuidavam para que as duas pessoas solitárias não fossem perturbadas. Com exceção da tempestade, tudo continuava em silêncio do lado de fora. A fuga do tópsida ainda não havia sido notada.

 

A mensagem de Kakuta fora recebida há três horas, tempo de bordo. Os instrumentos extremamente potentes da Stardust-III chegaram mesmo a localizar o destróier fugitivo, embora o mesmo se encontrasse a mais de cinqüenta milhões de quilômetros de distância, no espaço interplanetário de Vega.

Longe do supergigante, o nono planeta descrevia sua órbita pré-traçada em torno do gigantesco sol flamejante. O couraçado mantinha-se quase imóvel no negrume do espaço vazio.

Rhodan sabia que o novo modelo de destróier dos ferrônios precisava de cerca de vinte e duas horas tempo de bordo para alcançar a velocidade da luz. As outras naves ferrônias levavam cerca de cem horas. Nessas condições era impossível que Chaktor fosse alcançado por qualquer das unidades da frota espacial dos ferrônios. Nesse ponto não tinha nada a temer.

Apenas acontecia que o próprio Rhodan ainda não poderia aparecer nas proximidades do mundo central. A fuga fora descoberta há muito tempo. Segundo Tako Kakuta avisou pelo hipercomunicador, o Thort estava todo alarmado, procurando se comunicar com Rhodan pelo rádio. No entanto, os ferrônios não dispunham de instrumentos que funcionassem a velocidade superior à da luz, e assim também neste ponto Rhodan podia esquivar-se. Não via nem ouvia nada.

As telas da gigantesca nave estavam em plena atividade. A tripulação de trezentos homens encontrava-se de sobreaviso. Só os homens da sala de rádio estavam de prontidão. Todos os postos estavam ocupados com uma guarnição dobrada.

Aparentando uma calma inexplicável e enervante, Rhodan se mantinha junto às telas diagramáticas do sensor estrutural dos arcônidas. Tratava-se de um aparelho de elevada eficiência, capaz de medir e localizar os inevitáveis abalos estruturais ocorridos no espaço quadridimensional.

O sensor havia reagido diversas vezes. Todas as medidas de posição indicavam o quadragésimo planeta do sistema. Isso significava que os tópsidas continuavam empenhados em reforçar suas posições. Por certo as naves que chegavam traziam materiais de abastecimento do sistema tópsida, situado a oitocentos e quinze anos-luz.

Rhodan aguardava, cada vez mais impaciente.

Oito horas depois da fuga de Chaktor os potentes hiperreceptores do couraçado finalmente reagiram. Os cálculos positrônicos instantâneos revelaram que a transmissão de hiperondas vinha exatamente do setor espacial em que se localizaria o pretenso sistema planetário dos arcônidas. O raio direcional provinha do sistema de Capela.

Era ao menos a conclusão a que se chegava, prolongando-se a linha imaginária que une os sóis de Vega e Capela. A força com que a mensagem era recebida era justamente a que resultaria de uma transmissão a plena potência do emissor da nave auxiliar, realizada num dos planetas do sistema de Capela.

Rhodan dirigiu-se com passos rígidos ao autômato decodificador. Seu rosto parecia indiferente.

Ficou parado atrás do interpretador. O mecanismo positrônico estava decifrando os grupos de símbolos que acabavam de ser captados. O código escolhido era um dos mais aperfeiçoados. Acontece que Rhodan sabia perfeitamente que o inimigo já conhecia as respectivas chaves. Em certa época o código fora usado pela frota imperial.

— Decodificação concluída; texto em linguagem comum — soou a voz do locutor mecânico.

“Almirante de esquadra Nyssen para Sua Eminência, o Grande Administrador Rhodan. Ordem no 3/1219 recebida. S-7 chegou era perfeitas condições sob o comando de Tsen. Ordenamos alarma geral em Capela 5. Frota equipada, objetivo conhecido. Coordenadas de salto calculadas e programadas. Forças disponíveis: vinte e dois couraçados classe império, trinta e um cruzadores classe árcon, setenta e sete cruzadores ligeiros, cento e uma unidades menores. Decolo dentro de sete horas tempo oficial galático. Solicito novas instruções e confirmação presente mensagem. Assinado Nyssen, almirante de esquadra.”

Foram exatamente estas as palavras que o autômato berrou para dentro da grande sala.

Rhodan voltou-se com uma expressão indiferente. Só depois de alguns segundos os outros descobriram seu sorriso bonachão:

— Então — disse, esticando as palavras. — Nyssen promoveu-se a almirante, e de mim fez um eminente grande administrador.

— Nunca vi tamanha desfaçatez! — gritou Thora fora de si. Seu corpo tremia. — Como se atreve a usar os títulos honrosos de minha raça para atingir seus objetivos? Seu bárbaro! Sua coisa subdesenvolvida! Vou...

Calou-se ao ver que os ombros de Crest tremiam. O grande cientista estava encolhido numa poltrona, perto de um representante ruivo da raça humana, e ocultava o rosto nas mãos. Enquanto isso Bell berrava de um jeito pouco condizente com o respeito que deve ser dispensado ao ministro da segurança da Terceira Potência.

Thora recuou apavorada. Seus lindos olhos chamejavam. A essa altura já estava ficando para trás, sua inteligência falhava. E o pior de tudo era que até Crest havia perdido sua seriedade compenetrada.

— Eu o odeio! — gritou, rubra de raiva.

O capitão Klein acompanhou a arcônida, totalmente abatida, quando a mesma se retirou da sala de rádio.

— Graças a Deus! — suspirou Rhodan. — Não é uma mulher admirável? Ao menos está sendo honesta, e é o que mais prezo. Até poderia ser uma mulher do nosso planeta.

Subitamente Crest ergueu os olhos. Um sorriso matreiro brincou em torno dos lábios daquele homem idoso.

— Perry, acho que este foi o maior elogio que o senhor poderia ter feito a uma mulher da minha raça, não foi?

Os homens nunca haviam visto seu comandante tão embaraçado como se encontrava naquele instante. Todos permaneceram em silêncio.

— Esqueça-se disso — disse Rhodan, que sentia a garganta seca.

Seus olhos brilhavam. Subitamente voltou-se aos telegrafistas do hipercomunicador.

— Transmitam a seguinte resposta pelo raio direcional: “Rhodan ao almirante de esquadra Nyssen. Decole assim que os preparativos estiverem concluídos. Alarma número um para toda a esquadra. Prepare-se para um ataque maciço contra unidades tópsidas. Espere-me nas proximidades do trigésimo oitavo planeta de Vega. Faça a nave mensageira retornar. Assinado Rhodan, Grande Administrador de Capela 5.”

Alguns minutos depois a mensagem codificada foi transmitida pelos formidáveis raios direcionais do couraçado. Era a única coisa que podiam fazer.

— Isto é de enlouquecer — resmungou Reginald Bell. — Com quantos couraçados Nyssen diz que vai aparecer por aqui? Com vinte e dois? Escute aí, chefe, para mim...

— Isso não importa — interrompeu-o Rhodan em tom suave. — A única coisa que importa é que a mensagem de Nyssen tenha sido captada nas seis luas. Sob o ponto de vista técnico isso é perfeitamente possível. Com essa distância a dispersão é suficiente para isso. Nyssen avançou quinhentos anos-luz pelo espaço afora. Uma vez que os tópsidas conhecem o código, o terreno estará preparado quando Chaktor chegar lá. E se, acima de tudo, isso ainda apresentar os dados sobre aquilo que seria nosso mundo, duvido que haveria um comandante de esquadra que não reagiria favoravelmente. Nós os venceremos, porque seu raciocínio se desenvolve por linhas estritamente lógicas. É só. Não deve haver mais nenhuma troca de mensagens pelo rádio. Isso poderia provocar suspeitas. Duas são o suficiente.

— O que acontecerá se os tópsidas não tiverem captado e decifrado as mensagens? — indagou Crest em tom preocupado.

— Captaram e decifraram, sim! Conhecem a chave do código, mas esse fato poderia não ter chegado ao nosso conhecimento. Portanto, não há nisso qualquer motivo para desconfiança. E o raciocínio deve dizer-lhes que nunca poderíamos ter vindo do cansado planeta de Árcon. Os habitantes do mesmo já não têm ânimo para se lançar a uma empresa deste tipo. Se o almirante dos tópsidas for inteligente, desocupará a área o quanto antes. Sabe perfeitamente que nem sequer está em condições de enfrentar nossa Stardust-III. E o que se dirá quando surgir toda uma frota de naves deste tipo? Bell!

O baixote sobressaltou-se. Já conhecia esse tom de voz.

— Dentro de cerca de dez horas, tempo de bordo, partiremos de volta para o planeta Ferrol. Chegando lá, ouviremos o relato da fuga de Chaktor, e sairemos imediatamente em sua perseguição. Antes que chegue ao quadragésimo planeta, nós estaremos lá. Suas manobras de aceleração e desaceleração levam quarenta horas. Nós fazemos tudo isso em vinte minutos. Crest, queira acompanhar-me à sala de cálculo. Quero saber quando Chaktor poderá chegar com seu destróier. Não seria nada mau se chegássemos um pouco antes.

— Pretende realizar o hipersalto? Rhodan refletiu ligeiramente.

— É preferível não fazê-lo. Faremos uma perseguição normal aproximadamente à velocidade da luz. Dessa forma Chaktor se manterá na nossa dianteira. Só poderemos compensar a desvantagem com nossa manobra de desaceleração, que é muito mais rápida. Com isso passaremos por ele sem vê-lo. Bell, prepare os homens para algumas horas bem difíceis. É só.

Rhodan retirou-se da sala de rádio. Mais uma vez acompanharam-no com os olhos sem dizer uma palavra.

— Se este homem não conseguir unir a Humanidade, ninguém mais o conseguirá — constatou o Dr. Haggard laconicamente. — Venha comigo, Manoli. Bem que eu sabia que toda essa história não se desenrolaria sem algumas medidas “pacíficas”.

— De qualquer maneira...

— Sim, eu sei — interrompeu-o o grande pesquisador médico, que havia descoberto o soro antileucêmico. — O custo teria sido muito maior se não tivesse arriscado este jogo. É uma idéia maluca, inconcebível.

O homem corpulento sacudiu a cabeça e foi caminhando em direção à escotilha blindada.

 

Ferrol, o oitavo mundo do sistema Vega e o planeta principal da raça intelectual ali radicada, levara menos de vinte e quatro horas de tempo terreno para colocar no espaço todas as unidades de sua frota.

Tratava-se de uma quantidade enorme daquelas naves em forma de ovo, que haviam falhado tão miseravelmente por ocasião do primeiro ataque dos tópsidas.

Não dispunham de cúpulas protetoras energéticas. O armamento era extremamente pobre, pois não possuíam canhões de radiação dotados de impulsos que funcionavam à velocidade da luz. Poucas eram as unidades equipadas com armas térmicas arcônidas.

Além disso, as naves ferrônias eram muito lentas e a sua flexibilidade era tão reduzida que não permitia as manobras que se tornavam necessárias durante os combates. Quase noventa e nove por cento das unidades disponíveis precisavam de cem horas de tempo terreno para atingir a velocidade da luz. Isso resultava da densidade reduzida dos impulsos utilizados. Tais desvantagens não eram compensadas pela qualidade excelente dos mecanismos propulsores.

Para o Thort de Ferrol a fuga de Chren-Tork era a maior catástrofe da história. Quando Rhodan partiu para o espaço na Stardust-III, uma série de implacáveis atividades policiais e investigações secretas tivera início em Ferrol e no mundo colonial vizinho, Rofus.

A verdadeira oposição lançara mão de meios criminosos para derrubar o governo legítimo dirigido pelo Thort.

Rhodan não assistira a esses acontecimentos. Além disso, não achara aconselhável que naquele momento o Thort já fosse informado sobre as funções de duplo agente exercidas por Chaktor. Aliás, isso pouco tinha a ver com o verdadeiro movimento de resistência.

A frota ferrônia encontrava-se no espaço, formada em profundidade. Isso representava uma cobertura insignificante e tecnicamente deficiente para um único couraçado arcônida que, à plena potência dos seus mecanismos propulsores, atingia a velocidade da luz em apenas dez minutos.

Face à enorme extensão do sistema Vega, o quadragésimo planeta ficava a uma distância média de cerca de quarenta e oito bilhões de quilômetros do sol. Em queda livre e a 99,5% da velocidade da luz a Stardust-III levaria cerca de 48,8 h de tempo standard, incluídas as manobras de aceleração e desaceleração, para atingir o quadragésimo mundo.

Com a transição para o mundo do supercontínuo pentadimensional isso teria sido questão de poucos segundos. Face aos aspectos do planejamento global, Rhodan teve de abster-se desse procedimento. Teria sido sobremaneira arriscado aproximar-se das seis luas numa única nave espacial. Ninguém sabia quantas unidades tópsidas se encontravam por lá.

Pela natureza das coisas a frota dos seres não-humanos não teria a menor chance contra o supergigante arcônida. Só mesmo uma coincidência tola poderia ocasionar um impacto efetivo. Uma coincidência tola ou então uma ironia do destino.

Rhodan lembrava-se de tudo. Não excluía a possibilidade de que os tópsidas se tivessem apoderado de outras naves espaciais arcônidas. Afinal, por algum tempo tiveram a Stardust-III em seu poder.

Essas reflexões foram o motivo principal da ampla manobra diversionista. Ainda acontecia que a tripulação era suficiente para guarnecer o supercouraçado, mas não possibilitaria o emprego simultâneo das oito naves auxiliares.

Os trezentos tripulantes bem treinados eram suficientes apenas para manobrar o couraçado. As grandes naves auxiliares teriam de permanecer nos hangares. Quando muito seria possível realizar uma ação rápida com um grupo de caças espaciais, mas os respectivos tripulantes fariam falta nas operações da nave.

Tratava-se de problemas reais, que não podiam ser solucionados apressadamente.

 

Num espaço de pouco mais de quarenta e oito horas o gigante esférico avançara para além da órbita do trigésimo nono planeta. Nas telas de posicionamento o quadragésimo planeta já aparecia sob a forma dum ponto luminoso.

A interpretação matemática da fuga de Chaktor já fora realizada. O cérebro positrônico de bordo apurara todos os dados. Neste ponto não haveria qualquer falha.

Segundo esses dados, já deviam ter passado pelo destróier de Chaktor, embora este contasse com uma vantagem de quase vinte e quatro horas. Enquanto a Stardust-III ainda se deslocava a uma velocidade próxima à da luz, Chaktor já devia ter iniciado as manobras de desaceleração há 20,3 h.

Segundo a interpretação matemática, isso significava que sua mensagem radiofônica, dirigida ao comandante da frota tópsida, devia ter sido captado cerca de quarenta e quatro horas antes de sua chegada.

Essas quarenta e quatro horas representavam a diferença entre o tempo de aceleração e desaceleração e a mensagem que percorria o espaço à velocidade da luz. Também este fato fora considerado a bordo da Stardust-III.

A nave auxiliar S-7, comandada pelo major Nyssen, retornara a Ferrol pouco antes da decolagem do couraçado. Nyssen tivera que forçar ao extremo as máquinas da pequena nave. De qualquer maneira, as duas transições realizadas a plena potência foram coroadas de êxito. A resposta de Rhodan, transmitida pelo hipercomunicador, havia sido captada corretamente a bordo da S-7. Apesar disso a ordem para a decolagem imediata da frota de Capela também devia ter sido captada nas seis luas do quadragésimo planeta.

Era uma situação desesperada, cheia de incógnitas. A equação cambaleante exigia solução imediata. Os tópsidas tinham de ser desalojados do sistema Vega; de outra forma, mais dia menos dia, localizariam a Terra.

 

Há uma hora de tempo de bordo, Perry Rhodan encontrava-se num dos postos de combate. Diante dele reluziam as telas da sondagem ótica de trezentos e sessenta graus. Além disso, havia as telas da localização energética e dos rastreadores de velocidade superior à da luz.

Os instrumentos já forneciam um desenho nítido do planeta que crescia vertiginosamente. Bem atrás da nave a estrela gigante de Vega pendia no negrume do Universo, reduzida a uma bola luminosa aparentemente inofensiva.

Só os instrumentos ultra-sensíveis conseguiam distinguir o quadragésimo planeta dos inúmeros pontos luminosos que se viam no céu. A Via Láctea incluía bilhões de sóis. Muitos deles se encontravam no campo de visão. Naquele torvelinho havia um mundo que não possuía luminosidade própria. Era o planeta número quarenta, um gigante de gases gélidos, que recebia pouquíssimo calor do distante sol de Vega.

— A desaceleração será iniciada dentro de oito segundos — soou a voz metálica vinda dos alto-falantes do autômato direcional.

Rhodan levantou os olhos. Havia uma abundância perturbadora de instrumentos e aparelhos de controle. Todavia, Rhodan poderia comandar as unidades mais importantes da nave a partir do seu assento de piloto de espaldar alto. Perto dele Reginald Bell descansava no assento do co-piloto.

O capitão Klein fora incumbido do comando da central de combate. A central de máquinas já avisara que tudo estava preparado. A central energética estava pronta para a direção manual. As armas haviam sido colocadas em posição de tiro.

A superfície lisa da parte exterior da esfera estava coberta com numerosas protuberâncias. Não havia ninguém nas torres de armas. A direção de fogo inteiramente automatizada comandava tudo. O capitão Klein sabia que dispunha de um poder que nenhum homem jamais tivera em mãos. Os instrumentos de comando eram de dimensões minúsculas. Poderiam parecer ridículos. Mas um botão comprimido poderia significar bilhões de mortes. As naves da classe império representavam verdadeiros monstros criados pelos arcônidas. Eram capazes de destruir mundos inteiros. Com seu auxílio fora levantado o Grande Império.

Decorridos exatamente oito segundos, um ruído ensurdecedor encheu a Stardust-III. As unidades energéticas números um e dois entraram em funcionamento com todos os circuitos de força. Um instante depois luzes intermitentes davam conta da ereção do necessário campo de compressão e absorção.

Rhodan comandava a nave com movimentos de mão que revelavam uma segurança fantástica. Na tela gigante que ficava diante dele brilhava o setor do espaço situado diante da nave.

— Localização ao comandante — soou uma voz saída de um alto-falante. — Naves estranhas no vermelho 32 graus, vertical verde 18,5 graus. Exatamente sessenta e duas unidades, formação densa. Velocidade segundo cálculo positrônico 2: 118 km/seg. Fim.

Rhodan não se perturbou. Parecia não notar a testa suarenta de Bell.

Os mecanismos propulsores começaram a urrar na protuberância circular da nave arcônida. Reações nucleares extremamente complexas foram controladas pelo mecanismo automático com uma precisão tamanha que a força de empuxo dos vários mecanismos propulsores atingiu uma sincronização perfeita. Não houve o menor desvio, não se percebeu a mais ligeira sacudidela da nave.

Ninguém sentiu a força da inércia que teria de se manifestar a uma desaceleração de quinhentos quilômetros por segundo quadrado. Os campos de absorção mantiveram as relações de peso em exatamente l g. Era o valor da gravidade normal da Terra.

Torrentes cintilantes de luz precipitaram-se no espaço. As partículas expelidas deslocavam-se à velocidade da luz, mas a velocidade da nave reduzia-se a cada segundo que passava.

Notou-se um fenômeno estranho. Quando a Stardust-III ainda se deslocava a uma velocidade próxima à da luz, parecia que os feixes de impulsos ficavam grudados nos bocais dos jatos energéticos. À medida que a velocidade se reduzia, a luminosidade ofuscante ia tomando a dianteira da nave. Por fim empalideceram no espaço.

Depois de um longo vôo quase totalmente silencioso, a Stardust-III transformara-se num montão de máquinas uivantes.

Os rapidíssimos movimentos de comando de Rhodan desencadeavam verdadeiras reações em cadeia. Bastava comprimir um botão para que dispositivos semi-automáticos cuidadosamente programados despertassem, desdobrando um impulso singular em milhares de comandos mais detalhados.

Um número cada vez maior de reatores despertava para a vida. Era a primeira vez que os homens se encontravam a bordo de um couraçado espacial em plena ação.

Numa atitude devota, prestavam atenção aos ruídos ensurdecedores.

Novos anúncios de localização foram transmitidos pelos alto-falantes.

— Estamos correndo para o meio deles — disse Bell pelo radiocomunicador. Era o único meio de contato possível em meio a esse barulho infernal. Todos os homens usavam os capacetes com os microtransmissores e receptores. Os oficiais ainda possuíam um microcomunicador visual.

— Eles também já perceberam isso — respondeu Rhodan. — Quero ver se têm respeito por nós. Capitão Klein, aguarde permissão para abrir fogo. Localização, descobriu o destróier de Chaktor?

— Bem atrás de nós uma nave solitária se encontra no espaço. O desempenho energético indica que a propulsão é realizada por um mecanismo de quanta.

— São eles. Vamos atravessar a linha. Quando Chaktor chegar, deveremos estar muito ocupados. Os tópsidas farão questão de escoltá-lo.

Um gemido soou no alto-falante do capacete. Logo a voz de Crest fez-se ouvir.

— Não arrisque demais, Perry. Quem lhe garante que a mensagem em que Chaktor comunica a fuga foi interpretada da forma prevista?

— É o instinto, meu amigo, o faro. Os homens têm isso. Nas seis luas já estão informados sobre o pretenso ataque de minha esquadra estacionada em Capela. Se não me engano muito, a posição perdida ainda é mantida porque fazem questão de levar Chaktor e o tópsida que acaba de fugir. Para conseguir isso, o comandante da esquadra tópsida lança mão da maior parte das unidades de que dispõe. Klein, dentro de três minutos será transmitida a permissão para abrir fogo. Ali nos encontraremos a uma distância de apenas dez segundos-luz. Crest, será que a densidade de eficácia das nossas armas de radiação tem este alcance?

— O senhor não sabe de nada! — soou a voz de Thora, que vibrava numa excitação entremeada de orgulho. — Está brincando com um instrumento de poderio de que não entende coisa alguma.

— A senhora vai ver uma coisa — prometeu Rhodan com a voz resmunguenta.

Seu rosto estava transformado numa máscara inexpressiva. Os olhos estavam grudados na tela que tinha diante de si.

As ligeiras ordens transmitidas pelo rádio cessaram. Só as máquinas titânicas continuaram a emitir seu rugido.

A Stardust-III já estava envolta na cúpula protetora pentadimensional. As unidades energéticas normais-universais não representavam nenhum perigo para a nave. Em virtude de sua estrutura, essa arma defensiva absorvia ou refletia qualquer força de nível inferior, quer se tratasse de corpos materiais estáveis ou de reações nucleares que desencadeavam um calor solar. E a nave ainda oferecia outras surpresas.

A cúpula penetrava quase cem quilômetros no espaço. As naves tópsidas também puderam ser identificadas oticamente na tela frontal. Sua velocidade era bem inferior à da luz. Por isso a luminosidade dos mecanismos propulsores era visível rápida e perfeitamente.

Desenvolvendo ainda metade da velocidade da luz, o couraçado aproximou-se vertiginosamente das naves inimigas dispostas em forma de cunha defensiva. Desta vez as coisas ficariam sérias. Todos sabiam.

A aproximação foi rápida; tão rápida que seria impossível desviar-se. A única coisa era romper a formação.

— Os répteis estão seguindo uma tática errada — disse alguém. — Se estivesse no lugar deles, já teria parado, feito meia-volta e partido na direção oposta. Só verão em nós uma sombra que passará num instante.

— Quem foi que disse isso? — soou a voz retumbante de Rhodan nos alto-falantes dos capacetes.

— O major Deringhouse.

— Mesmo que tivesse razão, deveria ter calado a boca. Está pronto?

— Pronto para a ejeção. Desta vez já conheço a confusão. Fui atacado nesta mesma área juntamente com Rous e Calvermann. É aqui que começa o setor de decolagem dos tópsidas.

Tudo levou apenas alguns segundos. Foi tão rápido, óbvio e fatal que só lhes restava esperar e, se necessário, gritar.

A velocidade da Stardust-III ainda era de oitenta mil quilômetros por segundo. Com os jatos chamejantes a nave precipitou-se em direção à frota tópsida, atingiu-a e rompeu suas formações.

Isso não durou mais de um segundo. A positrônica de tiro de Klein reagira dois segundos antes que atingissem as linhas inimigas. Com os dez dedos comprimiu os botões que emitiam um brilho fosco.

Rhodan ouviu Bell gritar. Ao rugido terrível das torres que disparavam misturou-se tamanho uivo e chiado que até parecia que o Universo estava acabando.

Os sentidos mal conseguiram captar o objeto que surgiu de sopetão. Foi muito rápido. Só perceberam que um cruzador tópsida penetrou em sentido exatamente oposto no campo de defesa estrutural da Stardust-III.

Juntamente com o uivo estridente percebeu-se uma nuvem energética violenta que ofuscava os olhos bem diante da nave. A mesma não conseguiu romper o anteparo. Foi atirada para fora da trajetória, deslocada com uma força tremenda e parcialmente neutralizada.

Do cruzador tópsida não se via mais nada. Só o compartimento blindado do setor exterior da nave ressoou como um enorme sino.

Bem atrás da Stardust-III duas nuvens incandescentes pendiam no espaço. Ainda mais ao longe via-se o que Klein havia feito com seus dedos tão débeis.

Dezessete pequenos sóis haviam surgido no espaço. As nuvens de gases em expansão eram a única coisa que sobrava das naves atingidas. Se não fossem elas, ninguém teria dado pela destruição das naves.

A Stardust-III havia rompido a linha densa das formações inimigas.

— Oh, não! — gemeu o capitão Klein. Estava com uma expressão de perplexidade no olhar. Não conseguiu proferir mais que este “oh, não”.

— O que é que o senhor pensava? — gritou Thora pelo rádio. Tinha o rosto desfigurado. — Acreditava que os técnicos de minha raça teriam montado uns esguichos de água nesta nave? Sabe lá com o que está lidando?

— Preparar ataque — soou a voz retumbante de Rhodan. — Klein, ligue o mecanismo de bombas gravitacionais. O objetivo é a terceira lua. Lá não existe vida; está desabitada. Só há uma estação tópsida de rastreamento espacial. Dispare quando a nave se encontrar em posição oposta à da lua. Aproximar-nos-emos a três segundos-luz.

O quadragésimo planeta começou a brilhar diante da nave que ainda desenvolvia velocidade bastante elevada. Já aparecia com o tamanho de uma abóbora. Rhodan iniciara a manobra de aceleração no último instante, para atacar com a maior velocidade possível. Das naves tópsidas não se via mais nada.

Dali a pouco o quadragésimo mundo de Vega encheu toda a tela frontal. Percebiam-se quatro das seis luas. A de número três, que era o menor dos satélites, estava emergindo da sombra do planeta.

Os rastreadores de pontaria, manejados por Klein, estavam em pleno funcionamento. Um ligeiro sinal de luz indicava que a nave se encontrava em posição de fogo. O tiro não poderia deixar de atingir o alvo.

Klein esperou mais alguns segundos. Logo a pequena lua assumiu uma posição firme na tela redonda do mecanismo automático de comando de tiro. Mais uma vez moveu um dos dedos. Apenas um, e este comprimiu um minúsculo botão.

Das torres de armamentos da região polar da nave desprenderam-se duas figuras em espiral que emitiam uma luminosidade pálida, e nada tinha em comum com aquilo que nós entendemos por bomba.

Deslocavam-se à velocidade da luz e não eram constituídas de matéria. Nem pertenciam ao universo normal, pois situavam-se num plano energético mais elevado.

Antes que o couraçado, que naquela altura desenvolvia velocidade inferior à da luz, passasse pela lua, esta se desfez em meio a uma luminosidade imensa.

Não entrou em incandescência, nem explodiu. Simplesmente desapareceu de sua trajetória, como se nunca tivesse existido.

As duas bombas gravitacionais dissolveram a matéria e, seguindo uma lei peremptória da hipermatemática, lançaram-na ao hiperespaço. Era a arma mais potente da Stardust-III e representava o estágio mais avançado da evolução da ciência arcônida.

A menos de cinco milhões de quilômetros além da trajetória do planeta a nave espacial imobilizou-se.

A manobra de desaceleração consumira dez minutos. E nesses dez minutos aconteceram coisas que deixaram atônito o próprio Crest.

— Esperaremos aqui — disse Rhodan com a voz ofegante, como se tivesse realizado um enorme esforço físico. — Mesmo que os tópsidas sejam desumanos, malvados e não sei mais o quê, uma coisa destas eu não faço mais uma vez. Ficaremos à espera numa velocidade muito reduzida; pouco importa o que pensem a respeito. Devemos aguardar o pouso de Chaktor. Klein, só atire se formos atacados. Entendido?

— Nem tenha dúvida — respondeu Klein com a voz entrecortada. — Santo Deus, se não pudesse justificar-me perante minha consciência com o fato de termos sido atacados, não sei se conseguiria ficar sentado mais um segundo nesta cadeira.

— Comunicado da divisão de logística — disse a voz de Thora. — Nossa espera passiva tem fundamento lógico. Desde que o comandante dos tópsidas esteja informado sobre a anunciada chegada de nossa frota, ele compreenderá o motivo de nossa inatividade. Considerará a destruição da lua desabitada uma simples demonstração de força. Motivo fundamental: esperamos a chegada de nossa frota. Portanto, não teríamos motivo de assumir qualquer risco antes disso.

Rhodan deu uma risadinha. A mesma não passava de uma horrível contorção dos lábios, expressão de um enorme nervosismo.

Nem mesmo Perry Rhodan contara com tamanha eficácia do armamento da nave. E já se acostumara a pensar em termos de superlativo. Acontece que a realidade os transformara numa insignificância.

Poucos instantes depois a Stardust-III reiniciou seu movimento, que em caso de necessidade poderia ser acelerado mediante o emprego da potência máxima dos propulsores. Não se via qualquer nave tópsida. Só junto ao planeta distante o localizador energético constatou a existência de forças maciças.

— Muita coisa acontecerá nas cinco luas que restaram — disse Bell com a voz áspera. — A relação de forças foi gravemente afetada. Mesmo que a lua número três tenha sido muito pequena, sua destruição causará fortes tremores de terra. Alguns dias se passarão até que tudo volte a se ajeitar.

— É justamente nisso que ponho minha esperança — cochichou Rhodan. — Santo Deus, por que não vão embora? Por que me obrigam a pôr em ação este couraçado? Deviam desaparecer, reconhecendo que contra uma nave espacial como esta não existe defesa eficaz.

— O senhor se esquece da mentalidade tópsida — respondeu Crest com a voz baixa. — Admirar-se-ão do senhor não realizar uma série ininterrupta de ataques, pois sabe perfeitamente que nada lhe pode acontecer. Nem tenha dúvida, conheço essas inteligências.

— Seja como for, não voltarei a atacar — disse Rhodan em tom firme, comprimindo os lábios. — Deringhouse e Nyssen, seus caças estão prontos para entrar em ação? Os mutantes encontram-se a bordo?

— Tudo preparado — surgiu a voz de Nyssen no intercomunicador.

— Obrigado! Tako e Ras Tshubai, não deixem de tirar Chaktor da armadilha em que se meteu. O fogo da Stardust-III lhes dará cobertura até que chegue o momento de saltar. Seus radiogoniômetros estão em ordem? Sem eles nunca os encontraremos.

Tudo havia sido verificado. Quatro homens solitários sentados nas cabinas de dois minúsculos caças espaciais aguardavam o momento do engajamento final. Desta vez a palavra estaria com eles, os inconcebíveis.

 

Vira com os próprios olhos o monstro chamejante, quando este cuspia seu fogo mortal. Dali em diante Chaktor sabia perfeitamente de que lado devia se manter.

Quando seu destróier, que se deslocava com velocidade cada vez menor, passou pelo local do desastre, teve de empenhar toda sua habilidade de comandante para escapar às nuvens de gases incandescentes. Após isso assistira à destruição do astro desabitado.

Aguardaram-no com o que restava da frota e, unidos numa falange cuidadosamente fechada, acompanharam-no até a sexta lua do planeta, que era o maior satélite do gigante de gases gélidos.

A ação desenvolvera-se numa pressa excessiva. A troca de mensagens radiofônicas entre o oficial tópsida Chren-Tork, recém-libertado, e o comando da esquadra assumira formas febris nos últimos momentos que precederam o pouso.

Os répteis estavam empenhados em transformar a lua numa fortaleza. Os trabalhos estavam no início, tudo era muito primitivo. Chaktor notou perfeitamente que o posto avançado dos tópsidas ainda era bastante vulnerável. As unidades geradoras de energia ainda não estavam funcionando. O suprimento era realizado provisoriamente pelos geradores das naves espaciais.

Não se via mais nenhuma nave cargueira. As que tinham vindo já deviam ter sido mandadas de volta.

Chaktor e o outro membro do movimento de resistência ferrônio foram literalmente arrancados da pequena nave. Mal lhes deram tempo para colocar os trajes espaciais.

Ao ver-se separado de seu companheiro de forma tão inesperada e violenta, Chaktor percebeu que sua vida pendia por um fio. Antes que desaparecesse no túnel e a comporta de ar se fechasse atrás dele, ainda ouviu os gritos do outro homem.

Viu-se numa grande sala sextavada em que havia numerosos aparelhos de comando. Um cheiro acre e opressivo enchia o ar, demasiadamente pobre em oxigênio para os pulmões de Chaktor, que respirava com dificuldade. Ao ver os vultos que deslizavam ao seu lado, sentiu-se tomado de pânico.

Era claro que não sabia distinguir aquelas criaturas inumanas. Só os uniformes davam alguma indicação da identidade de cada uma delas. O silvo estridente do campo de ultra-som maltratou seus ouvidos. Mais adiante Chren-Tork falava a outro tópsida. Chaktor viu que se tratava de Crek-Orn, almirante e chefe da esquadra invasora tópsida.

Em conformidade com as regras de disciplina extremamente rígidas, Crek-Orn tinha poder de vida e morte sobre seus subordinados. Não havia nada que pudesse ser contraposto a uma ordem sua. Só o ditador distante ficava acima dele.

— Pare! — soou a voz estridente de um guarda armado.

Chaktor ficou imóvel diante do formato estranho das mesas de comando. Sabia que tinha no bolso a pequena cápsula com a fita magnética que continha a programação. Nela se encontravam os dados referentes ao sistema de Capela.

Dedos finos e duros como aço cravaram-se em seus braços. Mal conseguia se mover. Seguravam-no inexoravelmente. Faltava-lhes tudo aquilo que caracteriza os homens ou os seres quase-humanos. Seu pensamento era condicionado exclusivamente pelos objetivos. Não conheciam o menor traço humano, que sempre depende de uma certa dose de sentimento. Para Chaktor apenas eram cruéis. Eles mesmos se julgavam apenas inteligentes. Era uma diferença.

Quando se ouviu o rugido e o chão começou a oscilar, saltaram dos seus assentos baixos. Ordens foram proferidas pela boca do almirante. Os abalos foram diminuindo, até que o próximo tremor teve início. Chaktor desconfiava de que aquilo tinha alguma ligação com a destruição da terceira lua.

Continuou esperando. Os sinais estridentes de alarma começaram a soar. Lá fora as naves espaciais dispararam para o vazio, que começava no vácuo reinante ao nível do solo. Chaktor riupara dentro. Sentiu-se muito mais aliviado ao ver o tópsida que se aproximava. Não havia a menor dúvida de que a gigantesca Stardust-III se aproximava.

— Os dados. Estão com o senhor? — chiou a voz de Chren-Tork.

— Exijo um contrato escrito. Antes disso não posso revelar...

Foi atirado ao solo. Dedos duros e flexíveis estraçalharam seu uniforme. Poucos segundos depois o almirante segurava o rolo de fita. Alguns oficiais levaram-na às pressas. Mais uma vez Chaktor teve vontade de rir. Sem dúvida os dados seriam submetidos a um teste eletrônico.

Depois foi arrastado para junto do comandante. Chaktor viu os olhos frios e fulgurantes do réptil. Chren-Tork funcionou como intérprete.

— O que pode informar sobre a próxima chegada de uma frota arcônida vinda do sistema que costuma designar como Capela?

— Rhodan enviou um mensageiro — gemeu Chaktor, machucado pelos dedos dos guardas.

— Diga a verdade. Seu subordinado está sendo interrogado. Seu cérebro morrerá, mas contará tudo. Eu o previno.

O rosto de Chaktor contorceu-se.

— Estou dizendo a verdade. O mensageiro saiu numa pequena nave esférica. Soube da mulher que me entregou os dados retirados do banco de memória da nave espacial. Ela foi morta. Rhodan aguarda a frota. O Thort foi informado.

Seguiram-se discussões acaloradas entre os oficiais do estado-maior. Crek-Orn, que era responsável pela frota, tomou sua decisão de um instante para outro.

— Isso confirma a mensagem que conseguimos decifrar — ponderou o oficial recém-libertado em atitude respeitosa. — Dali se conclui que o mundo desse Rhodan ficará desguarnecido de naves de maior porte. Peço licença para assinalar que...

Crek-Orn fez sinal para que se calasse. As normas inflexíveis da lógica revelavam-lhe que não conseguiria manter as seis luas.

Novas mensagens continuaram a chegar. A Stardust-III passou em velocidade vertiginosa pela órbita do quadragésimo planeta, mas não atacou.

— Estão aguardando. A chegada da frota deve estar iminente.

— Qual foi o depoimento do outro ser primitivo?

O comandante lançou um olhar para Chaktor. Poucos minutos depois obteve a informação. Um oficial entrou e disse laconicamente:

— O cérebro do outro ferrônio continha os dados que já conhecemos. Rhodan aguarda reforços. Trata-se de couraçados pesados da classe império e de cruzadores da classe árcon.

Só mais tarde Chaktor soube que seu companheiro já estava morto. Ninguém deu atenção aos seus protestos violentos pela falta de conclusão do acordo que lhe fora prometido. Foi arrastado para fora da sala e introduzido numa nave espacial através duma comporta situada ao nível do solo. Não viu mais os responsáveis.

 

Com o silvo estridente dos trilhos de ejeção era inevitável que surgissem alguns g de força gravitacional. Era impossível ativar o campo de absorção no interior da comporta.

Os minúsculos caças dispararam espaço afora. Seus mecanismos propulsores despertaram subitamente.

Ao lado deles a massa imensa da Stardust-III deslizava pelo negrume do espaço. Era um vulto fantasmagórico, um signo do poder.

O major Deringhouse conhecia todos os detalhes da situação. O grande planeta ficava em posição lateral e “inferior”. A sexta lua surgia diante dos bicos dos caças.

Deringhouse e Nyssen engatilharam os canhões de impulso. Só a cobertura do couraçado proporcionava alguma possibilidade de êxito à missão que lhes fora confiada.

Atrás de Deringhouse o mutante Tako Kakuta estava agachado num assento provisório. Alguns instrumentos não totalmente indispensáveis tiveram de ser retirados para conseguir mais um lugar naquele caça de um homem.

Mais à esquerda a máquina de Nyssen corria pelo espaço por entre as luas. Praticamente só era reconhecível pela luminosidade brilhante desprendida pelo mecanismo propulsor. Sem eles os pequeninos caças não passariam de sombras quase imperceptíveis. Eram minúsculos, mas muito velozes.

Os contornos do couraçado desenharam-se nas telas do caça tripulado por Nyssen. Rhodan, que, face à velocidade reduzida da nave, conseguira descrever uma curva rápida, também se deslocava em direção à sexta lua. Dessa forma dava cobertura aos caças e desviava a atenção das estações rastreadoras.

— Preparem-se — ouviu-se a voz de Deringhouse no radiofone. — Kakuta e Tchubai, atenção: o salto será executado precisamente dentro de sessenta e dois segundos. Terão de vencer uma distância de cerca de trinta e dois mil quilômetros. Não poderemos aproximar-nos mais. Acham que conseguirão?

A pergunta se justificava, pois não fora possível determinar antecipadamente a distância que teria de ser vencida.

— Santo Deus, trinta e dois mil quilômetros! — gemeu o africano. — Isso consumirá uma força tremenda. Ainda terei de levar o equipamento. Mas darei um jeito.

— OK — disse o japonês laconicamente. — Ainda bem que passamos pelo treinamento rigoroso em Vênus. Atualmente minha capacidade-limite é de cinqüenta mil quilômetros. Mas terei de transportar dois trajes especiais. Aproximem-se o mais que puderem. Está bem?

Deringhouse limitou-se a acenar com a cabeça.

Aceleraram para o máximo de quinhentos quilômetros por segundo ao quadrado. Assim que a sexta lua surgiu na tela frontal, foi crescendo rapidamente.

— Localização — soou a voz nos alto-falantes de capacete. Era Rhodan. — Cuidado. Estão enviando naves para o espaço. Não entrem em suas linhas de tiro. Darei a volta. Boa sorte.

A Stardust-III mudou de rumo. Descreveu uma curva de alguns milhões de quilômetros. O gigante passou rente à sexta lua. Enquanto isso dois objetos minúsculos desceram em direção ao astro que tinha as dimensões do Mercúrio do sistema solar.

Deringhouse sabia que um único impacto poderia pô-lo fora de combate. O suor porejou em sua testa. O dispositivo automático de refrigeração de seu capacete começou a funcionar.

— Aguardem mais um pouco! — berrou Deringhouse no microfone de capacete. — Só estão de olho na Stardust. Atenção, Ras e Tako: assim que eu avisar, saltem ao mesmo tempo.

Ras Tshubai já ligara o micro-reator de seu traje de combate arcônida.

Viu o rosto de Kakuta na tela que se estendia diante do piloto. O japonês também estava preparado. Os dois homens começaram a se concentrar.

— É perto da grande cúpula avermelhada — transmitiu Tako. — Identificou o objetivo, Ras?

Mais alguns segundos se passaram. Deringhouse forçou a ponta do caça para baixo. No chamejar dos jatos viu as fortalezas que se aproximavam vertiginosamente. Perto dele — perigosamente perto — a máquina de Nyssen disparou em direção à superfície da lua.

Já se encontravam muito mais perto do que previam. Ainda não estavam atirando contra eles. A cerca de cinco mil quilômetros da superfície, Nyssen apontou o polegar para baixo. O bramido dos canhões de impulso rigidamente montados nas máquinas superou o uivo do mecanismo propulsor. Deringhouse também atirou.

Duas trajetórias luminosas desenharam-se sobre a superfície lunar. Aproximaram-se das fortalezas numa velocidade tresloucada, atingiram-nas e trouxeram consigo a morte e a destruição. Naves explodiam, massas de metal derretido subiam para o vácuo. Finalmente tudo aquilo passou.

— Saltem! — gritou Deringhouse.

No mesmo instante forçou o nariz do caça para cima. Atrás dele a lua ia caindo no espaço.

Quando olhou para trás, Tako Kakuta havia desaparecido. Parecia que o assento de emergência sempre estivera vazio.

— Meu companheiro já desapareceu — soou a voz nervosa de Nyssen. — Tudo em ordem?

— Tudo em ordem. Chegaram bem. Mas vou tratar de dar o fora. Lá embaixo o pessoal já está acordando.

Para a defesa tópsida era tarde. Quando a fortaleza ainda intacta abriu fogo, os dois caças já se haviam transformado em minúsculos pontos luminosos que corriam atrás da Stardust-III, que voltara à sua posição do outro lado do planeta.

 

O funcionamento do micro-reator de Ras Tshubai era inteiramente silencioso. O minitransformador também não produzia o menor ruído. O campo defletor de raios luminosos tornava-o invisível também aos olhos de um tópsida. Tudo não passava de um truque. Desde que se encontrava a bordo da nave capitania dos tópsidas, desligara a poderosa capa protetora destinada à manutenção da pressão exterior. O ar era respirável.

Há cinco horas o almirantado tópsida estava reunido na nave. Não havia dúvida de que estavam sendo tomados os últimos preparativos para a decolagem. As ordens expedidas acumulavam-se. As chaves de comando eram estranhas e perturbadoras. Ras Tshubai teve que desistir do plano de modificar a regulagem automática da nave capitania para provocar um hipersalto incontrolável.

Além disso, não conseguia aproximar-se do gigantesco computador. Em compensação fizera alguma coisa que se encontrava no âmbito das suas possibilidades.

Há algumas horas Crek-Orn, o comandante tópsida, encontrava-se sob os efeitos de um projetor mental arcônida. Sugeriram-lhe que se lançasse imediatamente, fossem quais fossem as circunstâncias, ao ataque do sistema de Capela, onde supunha situar-se o mundo de Rhodan. Empenhando todas as forças disponíveis naquela operação.

Ras também cuidara para que o comandante da invasão seguisse estritamente os dados que lhe haviam sido fornecidos por Chaktor. Com isso fizera o que estava ao seu alcance para compensar a desregulagem do dispositivo automático que não pudera ser levada a efeito.

Ras só tinha que cuidar para não ser descoberto por acaso. Era um trabalho complicado, mas não colocava sua vida em perigo. Poderia abandonar o local a qualquer momento. Uma parede não representaria o menor obstáculo.

Há pouco menos de uma hora o mutante soubera que o comandante da esquadra ordenara a programação das coordenadas de salto. Os autômatos de regulagem estavam trabalhando em todas as naves tópsidas, que se encontravam prontas para decolar. Os dados fundamentais foram transmitidos pelo cérebro eletrônico da nave capitania. Ras Tshubai não compreendia por que Crest fizera tanta questão de que justamente essa operação fosse acompanhada atentamente. Também Rhodan se admirara ligeiramente com o desejo do cientista arcônida, mas não formulara qualquer objeção. Por isso o teleportador continuou a observar. As horas passavam. Aos poucos a missão transformava-se num verdadeiro martírio.

Depois de se terem materializado exatamente no ponto combinado, Tako Kakuta desapareceu imediatamente. Sob seu traje espacial trazia outro exemplar da mesma espécie. O japonês estava incumbido de encontrar o ferrônio Chaktor e ajudá-lo a escapar são e salvo.

Até então Ras não recebera nenhuma notícia de seu companheiro. A nave capitania dos tópsidas tinha cerca de quatrocentos metros de comprimento. Não seria fácil encontrar Chaktor. Ainda acontecia que nem sabiam se o ferrônio se encontrava a bordo. Podia estar preso ou ter sido morto em outro lugar.

Tako Kakuta procurava desesperadamente. Há horas vagava pelos corredores e procurava ouvir qualquer sinal do pequeno receptor que bem antes da missão fora ajustado para as vibrações cerebrais de Chaktor.

Se um dos telepatas tivesse penetrado na nave tópsida, tudo estaria resolvido dentro de dez minutos. Acontece que só os dois teleportadores conseguiram alcançar a sexta lua. E eles não possuíam dons telepáticos. Tako bem que gostaria que John Marshall estivesse por ali.

No seu ouvido direito havia uma maravilha da micromecânica ferrônia. Fora fácil alojar o receptor e o transmissor. O perigo de algum contato não desejado crescia de minuto para minuto.

Tako parou ofegante. O pequeno instrumento preso ao pulso esquerdo reagira ligeiramente, mas voltara a perder o contato.

— Está ouvindo, Tako? — foi como um sopro no seu micro-receptor. — É Ras. Está na hora. Decolarão dentro de dez minutos. Já o encontrou?

— Tive que me desviar — cochichou Tako. — Tudo em ordem com você?

— Tudo perfeito. Ainda estou mantendo o homem sob o projetor mental. Estou transmitindo a idéia de que a frota de Capela deve chegar de um instante para outro. Acha que a idéia é dele. Está furioso, exigindo a maior pressa. Não quer ser destruído na lua. Estou aguardando. Continue a procurar.

Tako voltou a avançar no corredor que se esvaziara. Depois de dar alguns passos o instrumento voltou a reagir. Isso significava que Tako se encontrava muito próximo. O alcance do micro-rastreador não ultrapassava dez metros.

O mutante continuou a avançar, cada vez mais cauteloso. Não viu nenhuma sentinela. Em compensação o corredor se estreitava. Numerosas portas abriam-se para a direita e para a esquerda.

Tako parou diante de uma delas. Foi aqui que o instrumento reagiu com maior intensidade. O chiado suave poderia tornar-se perigoso. Por isso desligou o rastreador de ondas. Bateu cautelosamente contra o metal frio: três batidas breves, duas longas, três breves.

Chaktor saltou fora de si. O sinal combinado voltou a soar. Respondeu, invertendo a ordem, das batidas. Já sabia que um dos mutantes de Rhodan se encontrava do lado de fora.

Tako agiu com pressa e reflexão. Sabia que não adiantaria procurar o mecanismo da fechadura, motivo por que a arrancou com o desintegrador. A porta abriu-se.

Não falaram muito. Enquanto Chaktor ficou de sentinela, com a arma na mão, Tako tirou seu traje espacial. Por baixo dele trazia um equipamento exatamente igual.

— Coloque isso, rápido. O senhor sabe como deve fazer — cochichou apressadamente. — Depressa, não temos muito tempo. Há sentinelas por aí?

— Ninguém preocupou-se comigo. Tem alguma coisa para beber?

— Pegue o aparelho de sucção do refrigerador. Há um litro de um líquido. É só. Mais depressa, ali vem gente.

Chaktor trabalhava à luz de uma pequena lâmpada. Se fosse descoberto a essa hora, estaria perdido. Lá fora alguns corpos esguios passaram deslizando. Antes que Chaktor terminasse e Tako pudesse controlar o ajustamento do traje, o rugido tremendo começou a soar.

— Estão decolando. Que situação maldita! — surgiu uma voz alta demais nos receptores de Tako. — Já estão prontos?

— Iremos até a sala de comando. Espere-nos — respondeu Tako esgotado. — Tenho de recuperar-me. Eles têm um campo de absorção de pressão?

— Naturalmente. Também não querem ser feitos em pedaços. Espero por vocês.

Poucos minutos depois estavam a caminho.

Quando encontraram uma oportunidade favorável, a frota tópsida já havia mergulhado no espaço. Entraram na sala de comando, passando pela escotilha que se abriu automaticamente. Encontraram Ras Tshubai no ponto combinado.

Não podiam se ver, apenas sentir-se. Mantendo-se bem próximos uns aos outros, podiam conversar em voz baixa.

— Não falem muito — disse Ras, que já não mantinha o projetor mental dirigido contra o almirante. — Chaktor, o senhor sabe manejar esse traje? Se cometer qualquer engano, estará perdido.

— Sei — disse a voz trêmula do ferrônio. — O que pretende fazer? Não se esqueça de que não sou tão forte como os senhores.

— Bem atrás de nós há uma escotilha de emergência. Já investiguei. O corredor que se abre atrás dela leva a um hangar de botes salva-vidas. Vamos cortar a parede externa com o desintegrador e deixaremos que o ar nos leve para o espaço.

Sem maiores dificuldades atingiram o compartimento com os pequenos botes salva-vidas. Quando a escotilha interna se fechou atrás deles, estavam praticamente seguros. Enquanto isso a velocidade das naves tópsidas ia crescendo a cada segundo que passava. Dentro de menos de três horas atingiriam a velocidade da luz. Depois iniciariam a transição espacial.

Viram diante de si a parede externa da nave. Numa cabina aberta, três tópsidas estavam sentados juntos aos quadros de comando. Prestavam atenção às instruções vindas pelo alto-falante.

— Não posso fazer nada por eles — disse Ras Tshubai com a voz abafada. — Estão prontos?

Seu desintegrador, que desagregava qualquer estrutura, começou a funcionar a plena potência. A parede começou a brilhar, tornou-se transparente e subitamente desapareceu.

Chaktor ainda chegou a ouvir os gritos estridentes dos tópsidas que se encontravam de sentinela. Logo foi agarrado pela sucção explosiva do ar que escapava pela abertura. Foi atirado para o espaço com tamanha violência que gritou para dar vazão ao pavor.

Dali a alguns segundos tudo havia passado. A nave capitania fora reduzida a um ponto brilhante seguido por inúmeros pontos menores que corriam pelo espaço interestelar. Já haviam saído do sistema planetário Vega.

Três homens indefesos vagavam pelo espaço. Só podiam contar com seus potentes emissores.

Naturalmente não sentiam que se deslocavam espaço afora a uma velocidade imensa. Conservavam a velocidade que a nave desenvolvia no momento em que dela foram expelidos. O ajustamento preciso de uma grande nave a essa velocidade devia constituir um problema matemático. Mas Rhodan conseguiria resolvê-lo. Ras não tinha a menor dúvida.

 

“Atenção. Transição será realizada exatamente dentro de 10,2375726 segundos”, soou o aviso do autômato.

Perry Rhodan manteve-se encurvado diante da tela de localização ótica. Haviam alcançado a velocidade da luz, tal qual a frota fugitiva dos tópsidas.

— Se der o salto agora, estará seguindo a programação resultante dos cálculos por mim realizados — disse Crest. Seu rosto estava indiferente. Nos seus olhos havia uma dureza descomunal. Rhodan começou a estranhar. Lançou um olhar perscrutador para o cientista.

— Só lhe pedi que conferisse os dados elaborados por mim e os gravasse em fita. Acho...

Rhodan não concluiu a frase. O salto dos tópsidas foi realizado com a exatidão de uma fração de segundo. O ribombar tremendo da cúpula energética até causava problemas a uma nave como a Stardust-III.

Quando a situação voltou ao normal, mais de trezentas unidades da frota tópsida haviam desaparecido sem deixar o menor vestígio.

Rhodan olhou para o relógio.

— Dentro de poucos segundos chegarão ao sistema de Capela. Sua programação foi excelente. Estamos livres deles. Resta saber o que farão naquele sistema deserto. Naturalmente logo perceberão que caíram num logro.

Crest afastou-se devagar.

— Não voltarão! E não saberão como conseguimos afastá-los. Uma vez que se guiaram exatamente pelos meus dados, saltarão do hiperespaço para o núcleo do sol de Capela. Sinto muito, Perry! Sou um arcônida e represento o Grande Império. Apenas cumpri o meu dever. O senhor não tem nenhuma responsabilidade por isso.

Saiu. Rhodan parou estupefato. Thora acompanhou o homem de sua raça. Havia um certo mistério em seus olhos, quando disse com a voz arrastada:

— Meus antepassados sempre agiram assim, Perry. Não acredite que conseguirá criar um império estelar apenas com belas palavras. Ninguém o conseguiu, ninguém o consegue e o senhor também não conseguirá. Cuidarei de Chaktor, que está exausto.

Rhodan lançou um olhar para Bell.

— Ainda teremos de aprender alguma coisa — disse o Dr. Haggard depois de um instante. — Em princípio ela tem razão.

— Sou um ser humano e nunca deixarei de sê-lo, doutor — disse Rhodan com a voz grave. — Esperemos, Só por meio da inteligência tornou-se possível a retirada dos tópsidas sem qualquer derramamento de sangue. No futuro poderemos agir da mesma forma. Bell, vamos voltar ao sistema.

O homem esbelto retirou-se. Apenas seus ombros estavam ligeiramente encurvados. Pensava na gigantesca estrela chamejante de Capela, e numa frota imensa que atingira o objetivo com uma exatidão excessiva.

 

                                                                                            K. H. Scheer

 

 

                      

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