Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A Fuga de Thora / Clark Darlton
A Fuga de Thora / Clark Darlton

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Fuga de Thora

 

Terceira Potência entrou na posse de um fabuloso legado — a tecnologia dos arcônidas. Dispõe, portanto, dos meios para exercer uma pressão irresistível e conseguir, em curto prazo, a almejada unificação política da Terra. Mas Perry Rhodan julga imprudente seguir o caminho da coação, pois ele — que a essa altura já se tornou imortal — encara as coisas agora sob um ângulo de visão bem diferente que muitos outros — Thora, por exemplo.

Ela, a arcônida, chegou ao fim da paciência e quer retornar a Árcon, custe o que custar. Perry Rhodan, porém, não lhe concede permissão para partir, já que só tenciona estabelecer contato com Árcon à frente de uma Terra unida. E então Thora empreende a fuga...

 

                      

 

Três monstros metálicos, prateados e reluzentes, esticavam as proas cônicas ameaçadoramente no céu perenemente azul do continente asiático. No seu aspecto externo assemelhavam-se àquelas naves espaciais que tinham rompido uma nova era ao realizarem os primeiros vôos entre a Terra e a Lua.

Mas a semelhança era apenas externa.

Produzidas pelo estaleiro espaçonáutico da Terceira Potência, as três naves representavam um novo tipo de destróier: maiores do que os caças espaciais comuns, contavam com uma tripulação de três homens e eram capazes de atingir a velocidade da luz. Seu armamento consistia em canhões de radiação de longo alcance e podiam se envolver em anteparos energéticos que nenhuma potência da Terra tinha condições de despedaçar.

Os três destróieres eram os primeiros exemplares de sua classe e até agora só tinham realizado um único vôo experimental. E como nenhuma deficiência havia sido constatada durante este teste, o maior estaleiro da Terra iniciaria, em breve, a produção em série deste novo modelo.

O extenso campo de provas da Terceira Potência estava deserto sob o calor inclemente do sol da tarde. Na distância cintilavam os arranha-céus de Terrânia, inicialmente chamada de Galáxia, a futura capital da Terra unida. À esquerda, localizava-se o estaleiro, um complexo imenso e aparentemente desordenado, onde extensos galpões se alternavam com construções cupulares.

Com passos mecânicos e regulares, as sentinelas marchavam em torno dos três destróieres. Não olhavam nem para a direita nem para a esquerda, como se soubessem que o seu serviço de patrulha não fazia sentido algum, pois era impossível que alguém chegasse tão perto das naves sem a devida autorização. E não havia intrusos ou estranhos na área deste estaleiro; disso se encarregavam as barreiras eletrônicas.

As sentinelas não trajavam uniformes. Sua vestimenta consistia num tecido metálico curioso, que emitia um brilho prateado à luz do sol. E seus olhos não eram olhos orgânicos e sim lentes de cristal. Não eram homens. Eram robôs.

Com reações desprovidas de qualquer sentimento, obedeciam à ordem de vigiar aquelas três naves espaciais, novinhas em folha. Tinham que ficar de olho em alguém que jamais conseguiria se aproximar. Mas, se os seus cérebros positrônicos registravam este absurdo com espanto ou não, ninguém poderia dizer.

O lago salgado de Goshun ficava à direita, estendendo sua superfície lisa como um espelho até o horizonte. Deste lado, o perigo de uma aproximação indébita era menor ainda, pois o lago se situava inteiramente dentro da zona de bloqueio.

E mesmo assim esta calma era ilusória.

Enquanto a Humanidade em peso se preparava para comemorar o décimo aniversário do primeiro vôo lunar, e os homens, num clima de expectativa crescente, não desviavam o olhar dos televisores, alguém tomou uma resolução. Estava farto de esperar que certas promessas fossem cumpridas, e decidiu agir.

Vindo do sul, um carro se aproximou do campo de provas, deslizando a cem quilômetros por hora pela pista lisa de concreto, limpa e isenta de poeira. Não reduziu a velocidade quando chegou perto da primeira barreira. Os tateadores eletrônicos examinaram o veículo e os ocupantes... e liberaram a passagem.

As duas barreiras seguintes reagiram da mesma forma.

O carro, um elegante modelo esportivo, se dirigiu em linha reta aos três foguetes, reduzindo gradualmente a velocidade. Duas das sentinelas-robô tinham alterado o trajeto da sua ronda mecânica e se aproximaram do carro. Os braços esquerdos, dobrados num ângulo curioso, ocultavam armas energéticas que ninguém conseguia ver. Bastaria o menor impulso para transformar essas criaturas metálicas, aparentemente inofensivas, em máquinas mortíferas, capazes de cuspir energia letal.

Mas este impulso não veio.

Os tateadores eletrônicos examinaram o padrão encefálico daquele ser humano, que tinha descido do carro, e deram-no como “aprovado”. Apresentava as características exigidas. Os dois robôs baixaram os braços e franquearam o caminho. Com um sorriso irônico — ao menos assim parecia — o desconhecido passou pelos robôs e parou a poucos metros deles.

E lá estavam elas, as três naves espaciais. Prontas para partir. Com trinta metros de altura, ainda podiam ser consideradas gigantes — limitada a comparação a outras naves terrenas. O seu interior abrigava tremendas reservas de energia e agregava propulsores fantásticos, que nenhum cérebro humano havia concebido. Com essas naves podia-se atravessar o sistema solar em questão de horas e, se assim se desejasse, alcançar a estrela mais próxima dentro de quatro anos e meio.

Os robôs retomaram o trajeto da sua ronda interrompida. O desconhecido, ou melhor, o seu padrão encefálico não significava qualquer perigo no sentido da programação. O estranho podia passar. Sim, podia fazer até mais do que isso, sem disparar o impulso específico que significava “perigo” para aqueles cérebros positrônicos.

Durante longos minutos, aquele vulto alto ficou parado na solidão do deserto, observando, pensativo, as três naves. O uniforme justo acentuava a esbeltez do corpo e, com um pouco mais de acuidade, podia-se reconhecer que o desconhecido... era uma mulher. Um boné ocultava o cabelo longo e claro, que o sol fazia cintilar em tom quase branco. Os olhos avermelhados revelavam determinação. Mas também uma tristeza mal velada.

Com um último olhar, a mulher contemplou o lago salgado, o enorme estaleiro e a distante cidade de Terrânia. Depois, se dirigiu lentamente à mais próxima das três naves espaciais.

Era o destróier C, designado abreviadamente por D.C.

A escotilha de entrada de D.C. estava fechada, mas uma estreita escada metálica a ligava ao solo. Ao pé dessa escada estava um dos robôs, que nem se mexeu quando a mulher se aproximou e parou diante dele. O braço esquerdo pendia frouxo e imóvel ao lado do corpo. Um brilho morto emanava daquelas lentes de cristal.

A mulher leu a designação na pequena plaqueta que o robô ostentava no peito.

— Ocupe o seu lugar, R.17 — disse ela, num idioma duro e desconhecido. — Vamos decolar para um vôo experimental.

Em vez de se mexer, o robô respondeu, na mesma língua:

— Não recebi nenhuma ordem para realizar um vôo desses.

A mulher fez um gesto impaciente.

— Eu, Thora de Árcon, estou lhe dando esta ordem agora!

R. 17 não reagiu da maneira esperada.

— A ordem de Perry Rhodan prevalece, Thora.

Os olhos da mulher brilharam de raiva. Era como se lançasse chispas de fogo contra o robô renitente.

— Perry Rhodan é um homem, R.17, e eu sou uma arcônida. Portanto a minha ordem vale mais que a de Rhodan.

— Vale mais também que uma ordem de Crest?

Por um instante a mulher vacilou, depois lançou a cabeça na nuca, num gesto de irritação.

— Crest está sob a influência de Rhodan, portanto ele não conta. Por que você pergunta?

— Porque, de acordo com as disposições de Crest, temos que obedecer a todas as ordens de Rhodan, seja qual for o seu teor. Por isso, não podemos agir contra as ordens de Rhodan. Isto é lógico, ou não?

A mulher refletiu durante alguns segundos, depois acenou lentamente.

— Sim, isto soa lógico; você sempre age logicamente, R.17?

— A lógica é a base da minha existência.

— Muito bem — disse a mulher e olhou, pensativa, para os traços quase humanos do robô. — Então responda-me algumas perguntas.

— Com prazer, Thora de Árcon.

— Perry Rhodan chegou a proibir expressamente um novo vôo experimental de D.C.?

— Não.

— Ele, além disso, proibiu que eu participe de tal vôo experimental?

— Não.

Ela acenou, satisfeita.

— Portanto, você agiria contra uma proibição, se levasse essa nave para Vênus, por exemplo?

— Dentro dessas limitações, não.

— Está vendo? — disse Thora e soltou um suspiro de alívio — então você também não vai infringir qualquer regulamento se fizer o que eu estou lhe pedindo.

Parecia que uma expressão de dúvida tinha aparecido no rosto de R.17.

— Mas eu não recebi nenhuma ordem de Rhodan para esse vôo.

— E isso era necessário? — Thora mostrou-se surpresa. — Você está recebendo esta ordem agora, e de mim. Você não está proibido de receber ordens minhas, ou está?

— Não estou, não.

Thora sorriu. O sorriso não teve qualquer influência sobre as regiões psíquicas do robô. Mas a lógica irrefutável daquela pergunta, sim.

— Não, não estou proibido de aceitar ordens suas — repetiu R.17.

— Então podemos partir?

R.17 ainda estava vacilante. Desde que isso fosse possível, não devia se sentir muito bem dentro da sua pele metálica. Mas também não encontrou qualquer argumento lógico que lhe permitisse recusar taxativamente o cumprimento das exigências de Thora. A mulher pertencia àquela raça que o tinha construído. Rhodan era apenas um habitante desse planeta, que se chamava Terra, se bem que era um espécime singular desses habitantes. Por assim dizer, R.17 sentia-se mais chegado a Thora do que a Rhodan, muito embora tivesse que obedecer às ordens deste, em virtude do condicionamento a que Crest o havia submetido. E R.17 jamais deixaria de cumprir essa ordem que o obrigava a prestar obediência. Aliás, nem poderia fazê-lo sem provocar um curto-circuito, que o destruiria totalmente.

Por outro lado, se obedecesse a Thora, não estaria agindo diretamente contra ordens de Rhodan. E, portanto, não estaria correndo perigo.

R.17 acenou.

— Sim, podemos partir. A disposição reza que nenhum estranho deve se aproximar desta nave. Thora de Árcon não é uma estranha.

— Muito bem, então não vamos perder mais tempo. Programe o curso para o planeta Vênus e decole o mais depressa que puder. Quero verificar em quanto tempo podemos alcançar a nossa base no segundo planeta deste sistema. Saber disso pode ser muito útil num caso de emergência.

Meio pesadão, o robô galgou lentamente a escada e abriu a escotilha. Thora esperou, impaciente, que desaparecesse no interior da nave para depois segui-lo apressadamente. Um aperto de botão, e a pesada comporta externa se fechou. O elevador antigravitacional levou Thora e R.17 em poucos segundos para a central de comando, que se situava na proa do destróier.

Sentaram-se nos assentos giratórios.

Enquanto o robô estava calculando o curso, os propulsores começaram a zumbir em regime de aquecimento. E, em algum lugar no interior do destróier, o possante reator iniciou a produção das inconcebíveis quantidades de energia, necessárias para liberar a nave da força de atração da Terra e, mais tarde, projetá-la através do espaço com a velocidade da luz. O automático gerou os campos de gravitação artificiais, que neutralizariam qualquer empuxo devido à aceleração majorada. Aos poucos, todo o complicado mecanismo de uma tecnologia inimaginável entrou em serviço.

Thora pôs-se a esperar. Sabia que seu intento tinha dado certo. Somente mais alguns minutos e esse planeta odiado desapareceria como uma bola azul no mar do infinito. Vênus não passava de uma escala, porque seria loucura rematada querer alcançar a pátria, a mais de trinta mil anos-luz de distância, com uma nave que mal alcançava a velocidade da luz. Mas em Vênus existia uma hiperestação radiofônica e, com auxílio dela, seria possível requisitar de Árcon o envio de uma nave de resgate. R.17 acenou para Thora.

— Está tudo pronto, vamos decolar. Observe a tela de imagem para se inteirar do desempenho de D.C. Rhodan proibiu expressamente voar à velocidade máxima. Autorizou-a apenas para um caso de emergência. Mesmo assim, devemos chegar em Vênus dentro de hora e meia. No momento, o planeta se encontra do outro lado do Sol.

— E qual é a distância?

— Duzentos e trinta e oito milhões de quilômetros.

— E a que velocidade podemos voar?

— A setenta e cinco por cento da velocidade da luz.

Thora não respondeu e continuou a esperar. R.17 agarrou uma alavanca e puxou-a para a frente. Nada parecia acontecer, mas a imagem na tela se modificou rapidamente.

D.C. decolou sem recorrer aos pulso-propulsores. Os projetores antigravitacionais neutralizaram a atração da Terra e os campos repulsores locomoveram a massa da nave espacial, agora desprovida de peso.

O chão embaixo da nave se afastou repentinamente e caiu no infinito. Em velocidade alucinante, edifícios, estradas, rios, cordilheiras e desertos lançavam-se, de todos os lados, em direção ao centro do campo de pouso. O campo de visão se ampliou até que, de repente, o terreno desapareceu, cedendo lugar a uma superfície roxa e escura.

O universo!

Em menos de dez segundos, o destróier havia atravessado a atmosfera da Terra e agora se lançava vertiginosamente espaço adentro.

Por um instante Thora acreditou ter vislumbrado um ponto brilhante no canto direito da tela. Mas sumiu tão fugaz quanto havia aparecido, de maneira que ela não se preocupou mais com essa aparição. Depois, praticamente na direção do vôo, avistou o Sol, cujo brilho intenso estava sendo absorvido por possantes jogos de filtro.

A esta altura, a Terra já tinha se reduzido a um globo, que rodava pacificamente através do céu estrelado. Ficou cada vez menor até que se tornou apenas uma estrela bastante luminosa.

Thora soltou um suspiro. Olhou para o piloto-robô.

R.17 retribuiu o olhar.

— Parece ser uma nave muito boa — constatou.

— Sim, é uma nave muito boa, mas não suficientemente boa para aquilo que eu tenho em mente, R.17.

O robô não fez perguntas. Manteve-se em silêncio e controlou o curso, calculando e corrigindo.

Estavam perigosamente perto do Sol...

 

Já fazia alguns anos que esta estação orbital tripulada girava em torno da Terra.

A tarefa que lhe cabia realizar, em conjunto com duas outras estações, era a de garantir a recepção dos programas da televisão terrena em qualquer parte do mundo. As três estações pairavam a uma altura em que sua velocidade orbital correspondia exatamente à da rotação da Terra. Assim, permaneciam constantemente acima do mesmo ponto da superfície terrestre.

O telegrafista Adams tinha plena consciência da sua responsabilidade quando estabeleceu a ligação com as duas outras estações, a fim de preparar a transmissão do programa de Terra Television.

Hoje fazia mais um ano que a primeira expedição espaçonáutica tripulada havia decolado da América sob o comando do major Perry Rhodan — um homem inteiramente desconhecido até aquela data. A Stardust — era este o nome daquela nave espacial pioneira — pousou na Lua, descobriu a nave naufragada da expedição espacial dos arcônidas e retornou à Terra com Crest, o chefe dessa malograda expedição. E foi assim — o próprio Adams sabia disso — que toda essa história tinha começado.

Mas Adams sabia também que essa história não terminaria tão cedo.

Com um intervalo de segundos, as estações II e I confirmaram o estabelecimento do contato. Adams chamou a Terra. A grande estação transmissora em Terrânia acusou o recebimento da mensagem. Estava tudo pronto para a transmissão, que o mundo inteiro iria ver e ouvir.

O telegrafista Adams recostou-se confortavelmente na sua poltrona. Não tinha mais muito o que fazer, pois, desse momento em diante, tudo se processaria automaticamente. Mas nem por isso Adams deixaria de assistir a essa transmissão. Pois era o próprio Perry Rhodan que, dentro de instantes, iria dirigir a palavra à Humanidade.

Um turbilhão de estrelas apareceu no monitor, transformando-se gradativamente na imagem familiar da Via Láctea, que rodava lentamente através do nada.

Era o símbolo de Terrânia, a capital da Terceira Potência.

Em seguida, a tela apresentou as feições marcantes de um homem. As profundas rugas no rosto e em torno da boca faziam-no parecer mais velho do que devia ser.

— Aqui fala o coronel Michael Freyt, de Terrânia. Ao ensejo de mais um aniversário do primeiro vôo tripulado à Lua, vai lhes dirigir a palavra Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência e amigo dos arcônidas. Peço a sua atenção para este importante pronunciamento.

O rosto de Freyt desapareceu e foi substituído por um outro. Ouviu-se o ligeiro estalo que acompanhava a ligação das instalações de tradução simultânea. Assim que fossem pronunciadas as palavras de Perry Rhodan já estariam sendo traduzidas para todos os idiomas do mundo.

“É até curioso”, constatou o telegrafista Adams, pensativo, “como esse Freyt e Rhodan são parecidos. Bem que podiam passar por irmãos. O mesmo vulto esguio, os mesmos olhos cinzentos, as mesmas rugas em torno da boca e do nariz. Até mesmo o olhar é igual, penetrante e objetivo! Mas Rhodan é o mais moço dos dois, ou será que me engano? Já não deve ser tão jovem, mas não aparenta. Gostaria de saber, como ele consegue. E o uniforme lhe assenta muito bem. Faz anos que ele despiu a farda de um piloto de provas americano e passou a envergar esse uniforme aí. Um rebuliço e tanto, aquele, na época...”

Mas infelizmente Adams perdeu as palavras introdutórias de Perry Rhodan, pois uma campainha de alarma ressoou através da central da estação radiofônica e o arrancou das suas recordações. Levantou-se de um pulo da poltrona e saiu correndo em direção à porta.

Alarma na estação sempre significava perigo.

Mas o caso parecia não ser tão grave assim. O telegrafista de serviço havia captado o eco de um objeto na sua tela de radar. Porém, esse objeto não se identificou e passou com incrível velocidade quase rente à estação, desaparecendo na direção da Lua. E só podia ter vindo da Terra.

— Não se identificou, não foi? — disse Adams, algo surpreso. — Já consultou Terrânia?

— Ainda não.

— Então faça isso ligeirinho! — recomendou Adams. Consolou-se com o fato de que mesmo os discursos mais interessantes invariavelmente começavam com introduções enfadonhas. Certamente não perderia grande coisa, se aguardasse mais um pouco.

A resposta de Terrânia veio imediatamente.

— Daqui nenhuma nave decolou. Forneça dados.

Fornecer dados! Essa era boa. A nave — se é que era uma nave — tinha passado com tamanha velocidade que nada, ou quase nada, pôde ser constatado. Talvez a filmagem automática pudesse jogar luz nesse mistério. O filme estava acabando de sair do revelador.

Mostrou uma nave de uns trinta metros de comprimento e diâmetro reduzido. Assemelhava-se a um torpedo. Velocidade: impossível de ser determinada, mas certamente não inferior a cem quilômetros por segundo.

Adams sacudiu a cabeça, enquanto o seu colega transmitia os dados. Se realmente existisse uma nave dessas, só podia ter sido produzida nos estaleiros misteriosos de Perry Rhodan. E desses se sabia muito pouco. Sabia-se apenas que...

A resposta de Terrânia foi surpreendente:

— Procurem imediatamente obter novos dados da estação lunar. Principalmente quanto ao curso presumível da nave. Estamos também interessados em saber a velocidade com que passou nas proximidades da Lua. Obrigado pela sua ajuda. Aguardamos novas comunicações. De nossa parte, já começamos a investigar o caso.

Isso foi tudo.

O operador de radar olhou para Adams.

— Bem, que acha disso? História estranha, não é?

Adams acenou lentamente com a cabeça.

— Tudo que se relaciona com esse Rhodan é estranho. Só gostaria de saber se essa nave partiu contrariando ordens.

Virou-se e voltou à sua sala, sem tomar conhecimento da expressão espantada do seu colega.

Chegou a tempo de ouvir Perry Rhodan dizer da tela do televisor:

— ...e assim, com o auxílio dos arcônidas, criamos a Terceira Potência que até agora conseguiu apaziguar todos os conflitos entre os dois blocos de poder remanescentes da Terra. Sim, porque após os últimos acontecimentos, não podemos mais considerar o Bloco Oriental como uma potência mundial; temos como certo que, mais dia, menos dia, será anexada pela Federação Asiática. Mas, como as relações políticas entre a Federação Asiática e a OTAN são bastante harmoniosas, não está mais tão longe o dia em que a idéia de um governo mundial possa se transformar em realidade.

“Os senhores todos sabem que o estabelecimento de um governo mundial ocupa lugar de destaque entre os meus objetivos políticos. Os arcônidas, que naufragaram na Lua, tornaram-se nossos aliados. E isto porque, apesar do seu tremendo potencial tecnológico, se viram obrigados a aceitar o auxílio da Terra. Como conseqüência imediata dessa aliança, vi colocado em minhas mãos um poder que me permitiria facilmente implantar o governo mundial pela força. Mas continuo convicto que este seria o caminho errado. O governo mundial, como eu o imagino, deve nascer espontaneamente e ter as condições para uma evolução natural, como qualquer organismo em crescimento; e, podem acreditar, isso vai acontecer dentro de bem pouco tempo. Assim como as diversas nações tiveram que renunciar ao seu orgulho mesquinho para poder se aliar às organizações orientais ou ocidentais, algum dia os dois grandes blocos de poder vão reconhecer que somente uma Terra unida poderá exercer um papel histórico na galáxia.

“Muita coisa foi realizada nesses últimos anos. Graças ao apoio tecnológico dos arcônidas, eles mesmos soberanos de um imenso império estelar a mais de trinta mil anos-luz de distância, a Terceira Potência conseguiu construir uma frota espacial capaz de proteger nosso planeta contra qualquer agressão externa. Já mantemos um vivo intercâmbio comercial com uma raça extraterrena. Há alguns anos, conseguimos repelir uma invasão procedente do universo. No deserto de Gobi, foi erguida a mais moderna metrópole do mundo: Terrânia, a antiga Galáxia. A Terra abandonou, portanto, o seu tradicional isolacionismo e se tornou um fator que os próprios arcônidas não vão poder desprezar... no dia em que descobrirem a Terra.

“Acabo de abordar um assunto que, pela sua importância, precisa ser esclarecido com toda franqueza. Só há dois arcônidas que sabem da existência da Terra: Crest, o cientista-chefe da malograda expedição que encontramos na Lua, e Thora, a comandante daquela expedição. Até hoje, fui bem sucedido nos meus esforços de impedir que esses dois arcônidas estabelecessem contato com Árcon, seu planeta de origem. O meu empenho nesse sentido tem uma explicação muito simples: se os arcônidas, em Árcon, soubessem da existência da Terra, considerariam da maior importância incorporar o nosso planeta ao seu império, porque, aos seus olhos, somos subdesenvolvidos e carentes de apoio político e tecnológico.

“Crest e Thora prometeram adiar o seu retorno a Árcon até que a Terra estivesse pronta para receber os arcônidas. Mas a Terra só estará pronta para este encontro no dia em que puder recepcionar a delegação do Grande Império arcônida como um planeta forte e unido. Mas não haverá uma Terra unida se não houver um governo mundial. Creio que todos compreenderam por que venho dedicando uma atenção toda especial a este problema.

“Há anos que a Terceira Potência está empenhada nos preparativos para a implantação de um governo mundial. E vai chegar o dia em que todas as nações da Terra terão à sua disposição a inconcebível tecnologia arcônida, atualmente em nossas mãos. A General Cosmic Company, fundada por mim, tornou-se sem dúvida alguma o maior fator de poder político-econômico do nosso mundo. Não constitui exagero afirmar que a G.C.C. controla a produção da Terra. Nós determinamos o valor monetário e de câmbio. E posso relevar que a G.C.C. um dia vai introduzir uma nova moeda mundial; dispõe dos meios para isto.

“Depende apenas de vocês e de seus governos para que tudo isso se torne realidade o mais breve possível. Pois o dia X não pode continuar a ser uma data imprevisível do futuro. Entretanto, não pretendo recorrer à força, faço questão de reiterar isto mais uma vez, se bem que não teria a menor dificuldade em implantar o governo mundial por coação.

“Porém não posso mais esperar muito tempo por uma razão bem simples: a cada dia que passa, Crest e Thora pedem com mais insistência que lhes conceda permissão para reverem a pátria. E não posso continuar a me opor a esse justo anseio porque, em nome da Humanidade, eu assumi uma dívida de gratidão com os arcônidas. Sem o fabuloso auxílio tecnológico que recebemos deles, hoje ainda nos encontraríamos nos umbrais da navegação espacial e deveríamos nos dar por felizes se, anos após o vôo pioneiro à Lua, conseguíssemos enviar os primeiros foguetes a Vênus. Portanto, como viram, é bastante exíguo o prazo de que os senhores dispõem para chegar a um acordo político. Mas, assim que o governo mundial tiver sido empossado, vamos poder enfrentar Árcon... e também o desafio representado por uma galáxia inteira.

“Agora passo a esboçar, em linhas gerais, como imagino a constituição de um governo mundial...”

O telegrafista Adams esticou as pernas um pouco mais. Honestamente, não estava muito interessado nos pormenores da organização desse projetado governo mundial. Certo, a idéia em si não era ruim, mas, se os políticos dos dois blocos de poder a topariam, era outra questão. Afinal a rebelião do Bloco Oriental contra Rhodan havia revelado sobejamente quão pouco conformados os políticos do mundo estavam em ter que aceitarem a supremacia tecnológica da Terceira Potência. Seja como for, os militares do Bloco Oriental haviam sofrido uma derrota decisiva em Vênus. Os exércitos desembarcados tinham se perdido nos pântanos e selvas do planeta virginal e foram dados como desaparecidos. E a base de Rhodan havia repelido todo agressor automaticamente, empregando as armas de comando positrônico.

Adams deu um suspiro. Talvez seu colega já soubesse algo de novo a respeito daquela nave misteriosa. Por uns instantes, Adams voltou a prestar atenção no discurso, e ouviu Rhodan dizer que cogitava colocar a frota de caças espaciais existente sob o comando do governo mundial. Adams levantou-se e dirigiu-se à central de radar.

Chegou na hora certa.

Na tela do aparelho que ligava a estação com Terrânia, via-se o rosto excitado de um homem um pouco corpulento, que lutava para recuperar o fôlego. Como um peixe fora d’água, constatou Adams. Depois tentou se lembrar quem era aquele homem. Não lhe era estranho, já o tinha visto alguma vez. Ora, com mil diabos, esse não era Reginald Bell, o amigo de Rhodan? Membro da tripulação do primeiro vôo à Lua e atual ministro da segurança da Terceira Potência?!

Enquanto fechava a porta atrás de si, examinou aquele rosto com mais atenção.

A imagem na tela tridimensional e colorida reproduzia as feições de Bell com fidelidade impressionante.

— Ande ligeiro, sua pata choca! — ofegou Bell, irado. — Eu preciso saber o curso dessa nave que você observou. Será que o raio daquela estação lunar ainda não enviou resposta?

— Acabou de chegar — disse o colega de Adams, tranqüilamente, e consultou um bloco de apontamentos. — Mas por que este rebuliço todo? Será que a nave não teve autorização para decolar?

— Vá a...

Reginald Bell quase que se engasgou ao cortar bruscamente a sua observação que tanto prometia. Mais calmo e objetivo, prosseguiu:

— Logo vai saber se teve ou não autorização. Agora as informações, se não for pedir demais.

— A nave foi localizada e examinada pelos raios tateadores das instalações da Lua, apesar da enorme velocidade que estava desenvolvendo. O curso não sofreu qualquer alteração. Continua orientado mais ou menos em direção ao Sol.

— Em direção ao Sol? — gemeu o homem na tela de imagem. — O que será que essa mulher biruta pretende fazer no Sol?

— Quem? — perguntou o operador de radar, todo ouvidos.

Bell ignorou a pergunta e comentou:

— Por mim pode ficar lá, assando até se tornar digerível! Bloco de gelo de uma figa! Sol!

O telegrafista arreganhou os dentes.

— Posso chamar sua atenção para o fato — disse ele — de que na direção do Sol não existe apenas o Sol.

— O que quer dizer com isso? — berrou Bell, enfurecido, para uma fração de segundos depois se tornar lívido. Como por encanto, o rubor da sua face se transformou num cinza-pálido. — Não apenas o Sol... Caramba! Você tem razão! Por que não disse isso logo? Obrigado pela informação, oportunamente vou lhe mostrar minha gratidão.

— Então diga-me o que está se passando — implorou o operador de radar, exasperado; mas a tela já estava escura.

Bell tinha se despedido à sua maneira.

Adams encolheu os ombros.

— Não leve isso tão a sério, John. Dizem por aí que esse Reginald Bell é esquisito como quê.

O telegrafista ainda não se conformou.

— Que diabo de nave terá sido essa? Parece que a sua decolagem levantou um bocado de poeira!

— A nave nem tanto — vaticinou Adams. — Creio que quem levantou mesmo a poeira foi aquela mulher que Bell citou. Também não é vantagem levantar tanta poeira. Afinal, a nave partiu do deserto de Gobi!

— Piada infame! — comentou o operador de radar, furioso. — Se eu tivesse a menor noção da realidade, poderia ganhar um montão de dinheiro. Eu conheço um pasquim...

Adams franziu a testa e voltou para sua própria central. A transmissão continuava perfeita e Adams se sentou aliviado na poltrona.

Perry Rhodan ainda estava falando.

— ...e hoje, nesta data, não vivemos mais na ilusão de sermos as únicas inteligências no universo. Não estamos sozinhos, muito pelo contrário. Estamos na mesma situação dos habitantes de uma ilha isolada no Pacífico, que até agora se julgaram os únicos homens sobre a face da Terra, e de repente são obrigados a constatar que estão circundados ou mesmo cercados por enormes continentes, povoados por milhões e milhões de pessoas. Haveria algo mais natural para esses homens do que esquecerem suas desavenças mesquinhas e se unirem para enfrentar o desconhecido?

Perry Rhodan fez uma pausa.

No mundo inteiro não houve um único telespectador que tivesse estranhado essa pausa, porque não existe homem que consiga falar ininterruptamente. Mas Adams não se encontrava na Terra e sim na estação orbital III. Além disso, ele sabia daquela nave misteriosa que tinha causado um rebuliço tão grande no ministério da segurança da Terceira Potência. E mais ainda. Adams também sabia que Rhodan dispunha de um exército de mutantes, em cujas fileiras militavam, entre outros, excelentes telepatas.

E Adams não possuía apenas essas informações, possuía também uma rara facilidade de combinar fatos...

Não era possível retirar Rhodan sem mais nem menos de frente das câmaras de televisão; afinal de contas, estava se dirigindo ao mundo. Mas era preciso colocá-lo a par do ocorrido, se fosse importante. E era importante; o comportamento de Bell tinha demonstrado.

Portanto...

Não, realmente não foi difícil para o telegrafista Adams concatenar corretamente os acontecimentos que se desenrolavam na tela.

Perry Rhodan silenciava e parecia estar refletindo. Olhava para um ponto imaginário à sua frente com os olhos ligeiramente cerrados. Era como se estivesse ouvindo uma voz que estava se dirigindo a ele do invisível. Uma ruga profunda apareceu na sua testa. Por um momento, uma expressão de mau humor brilhou nos seus lábios. Dirigiu o olhar novamente para as lentes das câmaras e o tom da sua voz se manteve inalterado quando disse:

— Mas ainda há muitos problemas a resolver, e eu só posso pedir a todos que confiem em mim. Confiem também nos arcônidas, aconteça o que acontecer. Basta que um deles resolva entrar em contato com Árcon para que o perigo de sermos descobertos aumente tremendamente. Pois esta mensagem poderia, por um acaso, revelar a nossa existência a uma das numerosas raças belicosas do universo. E desnecessário salientar o que isso significaria para uma Terra desunida.

“Finalizando, desejo lembrar mais uma vez a todos que hoje não comemoramos apenas mais um aniversário do início da verdadeira navegação espacial, mas também a consolidação definitiva da paz. A Terceira Potência ama a paz. Mas ao mesmo tempo é a sua defensora mais intransigente e, como tal, não hesitará um instante sequer, em empregar, sem a menor contemplação, todo seu poderio para defendê-la, toda vez que se veja ameaçada em qualquer parte do mundo.”

Após esse final um pouco abrupto, Rhodan se inclinou ligeiramente perante o seu auditório invisível e depois se dirigiu rapidamente para uma porta nos fundos, pela qual desapareceu. Esta porta permaneceu nas telas de imagem ainda durante algum tempo, antes que o coronel Freyt aparecesse para anunciar que em breve o ministro da segurança da Terceira Potência, Reginald Bell, ia dirigir a palavra ao mundo, abordando questões de defesa no caso de uma invasão.

Freyt ainda pediu que os telespectadores desculpassem um pequeno intervalo, uma vez que Bell estava sendo retido por alguns assuntos internos.

O telegrafista Adams efetuou as ligações necessárias e depois pôs-se a esperar.

Tinha a impressão de ter se tornado testemunha de acontecimentos sumamente importantes e de conseqüências ainda imprevisíveis.

 

A esta altura, o Sol já era uma imensa bola de gás incandescente, que passava rapidamente à esquerda da nave espacial. As enormes protuberâncias que projetava no universo pareciam querer agarrar o destróier C, mas este era rápido demais para poder ser alcançado pelas turbulentas massas gasosas. Deslocava-se a uma velocidade próxima à da luz.

O robô R.17 ocupava, praticamente imóvel, o assento diante dos controles, a maioria dos quais havia transferido para o comando automático. Só vez por outra procedia a uma ligeira correção do curso, que era influenciado pela tremenda força gravitacional do Sol. R.17 manteve-se em silenciosa expectativa.

Ao passarem pela estação lunar, R.17 havia cumprido a ordem recebida, e anunciado o nome de Thora como comandante do destróier. Mas antes que a estação pudesse responder, já tinha desaparecido no negrume do vazio total.

Desta vez, Thora não admitiria que ninguém a impedisse de realizar o seu intento. Durante dez anos — se computado o curioso lapso de tempo em Peregrino, o planeta da vida eterna — tinha se submetido à vontade férrea de Rhodan. Mas acabou chegando à conclusão que Rhodan nem pensava em permitir que ela e Crest retornassem a Árcon.

Antes de mais nada, Rhodan queria ver implantado o seu ambicionado governo mundial, a fim de não passar por vexame diante dos arcônidas. É claro que perseguia esse objetivo sob o pretexto barato da eterna ameaça de uma invasão.

Bem, se Rhodan não estava disposto a lhe conceder a permissão, paciência, agiria por conta própria para exercer o seu direito inalienável de rever a pátria. Chegar a Vênus já era meio caminho andado, pois lá existia um meio pelo qual poderia se comunicar com o distante planeta Árcon. Era o emissor hiperespacial, que levaria as suas palavras através do universo com velocidade superior à da luz.

E Árcon enviaria uma nave para resgatá-la.

E o seu cativeiro chegaria ao fim...

Neste ponto, algumas dúvidas se infiltraram nos pensamentos de Thora. Não tinha segredado o seu plano a Crest, e ele tinha todo o direito de conhecê-lo. Mas Crest estava do lado de Rhodan. Portanto, teve que agir sozinha.

Todavia...

Segundos transformaram-se em minutos. O Sol diminuía cada vez mais na esteira da nave, enquanto que à frente, em meio às miríades de estrelas, Vênus despontava como um ponto fulgurante que crescia vertiginosamente, transformando-se num disco e, finalmente, num globo branco.

Com olhos ardentes, Thora fitou o planeta que se aproximava. Lá se encontrava o objeto dos seus anseios: a gigantesca estação radiofônica estelar dos colonos arcônidas desaparecidos dez mil anos atrás. No entanto, o fabuloso automatismo da base que haviam construído ainda hoje se encontrava em perfeitas condições de funcionamento.

E isto incluía as terríveis armas defensivas, criadas por uma tecnologia inconcebível, e que protegiam a estação radiofônica e o cérebro positrônico.

Thora conhecia a localização exata da base. Construído de acordo com um projeto arcônida, o destróier apresentava todos os requisitos para ser identificado como nave dos arcônidas pelos raios tateadores da instalação de bloqueio da fortaleza. Não encontraria qualquer obstáculo para pousar. Thora sabia quão estarrecedor era o armamento desta fortaleza, e de que meios o gigantesco cérebro positrônico dispunha para se defender.

Afastou todas as dúvidas e receios do pensamento e disse a R.17:

— Precisamos desacelerar.

— Já estamos desacelerando — respondeu o robô. — Só que não reparou nisso. É que os campos de força neutralizam qualquer alteração. Mas veja, a imagem de Vênus está aumentando apenas lentamente.

Tinha razão.

Aquela esfera luminosa já estava bem próxima, mas na realidade só crescia vagarosamente. A densa camada de nuvens ocultava a superfície, mas Thora se lembrava muito bem que aquilo que no momento não podia ver era um mundo primitivo. Enormes superfícies de água e mares pré-históricos cobriam uma grande parte do planeta Vênus e, assim, se constituía para os homens num imenso labirinto de água, pântanos e selvas gigantescas. E nesses pântanos sem fim viviam enormes sáurios, que somente há poucos séculos tinham conquistado a terra firme.

A selva era praticamente impenetrável. Mesmo com o auxílio dos meios da técnica mais moderna, ali era praticamente impossível percorrer trechos maiores a pé. Quem caísse nessa selva estava perdido. Sucumbiria em breve, vítima dos sáurios, dos pântanos ou das plantas carnívoras.

Para seres humanos a atmosfera venusiana era respirável. Apesar do alto teor de dióxido de carbono, continha oxigênio suficiente para alimentar a corrente sangüínea. Nas camadas superiores a percentagem de impurezas de origem vulcânica e de gases nobres aumentava consideravelmente. E a camada de nuvens, que quase sempre pairava a grande altura, transformava Vênus numa estufa enorme, na qual a vegetação proliferava exuberantemente.

Um dia completo em Vênus tinha a duração de dez dias terrestres. Isto equivalia, portanto, a cento e vinte horas de claridade, seguida de igual período de noite escura. O ano planetário durava 224,7 dias terrestres.

A força gravitacional e a velocidade de liberação eram ligeiramente inferiores às verificadas na Terra. O Sol estava a cento e oito milhões de quilômetros, e fornecia energia calorífica superabundante.

Não era um mundo muito hospitaleiro mas, há milhões de anos, não tinha sido outro o aspecto da Terra. Algum dia, Vênus seria habitado; talvez fossem até os descendentes dos homens que, num futuro remoto, transformariam este planeta fértil num paraíso.

Mas, no momento, Vênus era tudo, menos um paraíso. “O planeta do inferno”, assim Bell o tinha chamado certa vez numa conversa com Thora. Casualmente, a arcônida se lembrou dessa denominação, quando o destróier penetrou nas camadas superiores da atmosfera e começou a baixar lentamente.

A velocidade já era bem reduzida. Vagarosamente as nuvens claras e esfarrapadas deslizavam diante das vigias. Parecia que se deslocavam para cima.

Na tela de radar se delineavam os contornos de enormes e altas cordilheiras. E no planalto de uma dessas cordilheiras localizava-se a base dos antigos arcônidas; e esta base abrigava o cérebro positrônico e a hiperestação radiofônica.

O robô R.17 reassumiu o controle da nave. Orientou-se pelos instrumentos e determinou a posição do alvo. Nenhuma instrução havia sido gravada no seu cérebro que o proibisse de pousar nas proximidades da base venusiana.

De repente, não havia mais nuvens embaixo do destróier. Era como se D.C. tivesse mergulhado num mar de gás e agora estivesse flutuando no fundo. O sol ficou reduzido a uma mancha clara que brilhava através das massas gasosas, nas quais originava violentos turbilhões, mas que só raramente atingiam a superfície do planeta.

Thora olhou para baixo e se arrepiou.

Tinham atravessado um oceano e estavam se aproximando da costa. A visão era surpreendentemente clara e lá longe, no horizonte, amontoavam-se altas cordilheiras, encimadas por cumes achatados. Do sopé até a metade da altura ainda havia vegetação. Daí para cima, só se via a rocha desnuda. De frestas escuras emergia uma cintilação branca. Thora sabia que eram imensas quedas d’água, que alimentavam sem cessar os pantanais nas selvas.

As selvas...

Além das cordilheiras e dos mares, não se via outra coisa senão selvas. Estendiam-se em todas as direções por baixo do destróier... um tapete verde, do qual despontavam algumas rochas isoladas, e rasgado em alguns trechos por vastas superfícies de água, que brilhavam num tom esverdeado e traiçoeiro. Aqui e ali, esta superfície de aspecto tóxico era agitada e uma enorme cabeça aparecia, oscilando indecisa na extremidade de um pescoço longo e esbelto, para, em seguida, desaparecer novamente dentro d’água.

A nave continuou a baixar.

— O alvo está a oitocentos quilômetros de distância — disse R.17 calmamente e sem qualquer emoção. — Vamos pousar ou voltar?

— Vamos pousar... é claro! — respondeu Thora. A sua voz também soava calma, se bem que no seu íntimo rugia uma tempestade difícil de ser amainada. Dentro de poucas horas saberia ao certo se era mais forte e inteligente que Rhodan... ou não.

— Algum sinal dos raios tateadores da estação?

R.17 lançou um olhar aos instrumentos.

— Por enquanto, não.

“Ainda estamos muito longe”, pensou Thora.

Lembrou-se que a zona de bloqueio se estendia num raio de quinhentos quilômetros em torno da fortaleza, incessantemente controlada pelo cérebro positrônico, que examinava todo objeto que se aproximava. Quem fosse reconhecido, mas não tivesse a devida autorização, ficava apenas proibido de tentar o pouso dentro da zona de bloqueio. Mas, se o intruso revelasse ser um estranho, era imediatamente abatido, sem qualquer aviso prévio. Thora sabia que não corria esse perigo, porque o padrão das suas ondas encefálicas a identificaria como arcônida. Mais importante, porém, era o fato de que o destróier era uma nave de características inteiramente arcônidas. O emissor de códigos, que fazia parte do seu sofisticado equipamento, se encarregaria de responder corretamente às perguntas do cérebro positrônico.

— Faltam seiscentos quilômetros — disse R.17, mecanicamente.

Thora olhou de relance para o armário embutido da central. Continha todas as armas de fogo necessárias para o caso de um pouso de emergência em território desconhecido. Encolheu os ombros num gesto displicente. Não precisaria de uma arma. Também, para quê?

— Estamos chegando perto da zona de bloqueio — comentou R.17.

Thora empertigou-se na poltrona e olhou, fascinada, através da vigia para a superfície do fumegante inferno de Vênus. Nada havia se modificado desde a última vez que tinha estado aqui. A nave deslizou por cima de um lago circundado por rochas íngremes, cobertas até o cume por uma vegetação rala.

Atrás dessas rochas se encontrava um daqueles numerosos platôs elevados; eram imensos planaltos que se estendiam bem acima do nível dos pântanos. Nesses platôs, as condições de vida eram razoavelmente suportáveis.

— Desça mais um pouco! — ordenou Thora, mas não sabia por que o disse.

O robô obedeceu sem proferir palavra. Mas a altura não tinha menor influência sobre os raios tateadores da fortaleza. Agarraram aquela nave que, para eles, era estranha e exigiram o código de identificação... mas não receberam nenhuma resposta. E tudo isso se processou de forma inteiramente automática e sem qualquer indício visível. Os instrumentos de D.C. apenas indicaram que a nave havia sido localizada. Mais nada.

Por isso, o que aconteceu em seguida, se constituiu numa surpresa completa.

Na borda do platô, um trecho de rocha deslizou para o lado. Da fresta negra emergiu um cano reluzente, que parecia envolto em espirais coruscantes. Ergueu-se devagar até apontar ameaçadoramente para aquela nave que voava a baixa altitude. A quinhentos quilômetros de distância, correntes de impulsos percorriam complicados aparelhos, abriam e fechavam contatos; ativaram relês e originaram, finalmente, um comando positrônico. Um emissor radiofônico se encarregou de transmitir este comando imediatamente para o canhão desintegrador na zona de bloqueio.

Nem de longe R.17 e Thora tinham contado com a possibilidade de serem derrubados por meio de um tiro direto. O raio energético aniquilador dissolveu o campo estrutural cristalino da nave e sublimou toda a matéria.

Automaticamente, R.17 apertou o botão do dispositivo de ejeção.

A proa do destróier tinha sido decepada como que por um corte de navalha, de modo que praticamente toda a central de comando ficou exposta. Como por um milagre, o abastecimento de energia ainda funcionava. Mas o mecanismo estava emperrado.

Desesperada, Thora agarrou-se aos encostos da poltrona. A nave estava ligeiramente adernada e cambaleava em direção àquele inferno verde. Através da vigia, que se encontrava abaixo dela, Thora vislumbrou que ainda iriam pousar naquele platô... se é que essa queda brusca pudesse ser chamada de pouso.

Talvez as copas das árvores pudessem amortecer o impacto.

“Por quê?”, perguntou Thora a si mesma nos últimos segundos de lucidez, “por que este cérebro-robô mandou nos abater, por quê?”

Depois, o choque violento parecia lhe cravar as pernas no corpo. A dor lancinante ainda lhe atravessou o cérebro antes que perdesse os sentidos de vez. R.17 bateu com a testa nos instrumentos de controle...

 

Reginald Bell se encontrava no centro de operações do Ministério da Segurança da Terceira Potência. Todos os fios da vasta rede de comunicações convergiam para as suas mãos. Em toda a volta da sua mesa cintilavam as lâmpadas de aviso, brilhavam as telas de imagem, zumbiam os videofones. E os comunicados se sucediam sem cessar.

Todos se referiam à inesperada fuga de Thora.

John Marshall, o telepata do Exército de Mutantes, estava em pé ao lado de Bell.

A poucos instantes, havia enviado a sua mensagem mental para Rhodan e agora acabava de receber a confirmação. Com um gesto distraído, enxugou o suor da testa.

John Marshall era australiano e tinha descoberto relativamente tarde que possuía o dom de poder ler os pensamentos de terceiros. Por uma compulsão automática, havia se aliado a Perry Rhodan, tornando-se um dos seus mais importantes colaboradores. A causa da sua faculdade extra-sensorial residia no efeito produzido pela radiatividade cada vez mais intensa da atmosfera da Terra. O número de mutantes já era bastante grande, mas poucas pessoas sabiam disso. Mesmo entre os próprios mutantes, havia muitos que levaram anos até descobrirem as suas capacidades excepcionais.

— Daqui a pouco ele está aí — disse John Marshall a Bell.

Crest, o arcônida, preferiu se manter um pouco afastado nos fundos da sala. Seu vulto alto erguia-se acima das telas de imagem. O cabelo branco destacava-se das paredes escuras, enquanto os olhos albinos emitiam um brilho avermelhado.

Para ele, o incidente com Thora era mais do que embaraçoso. É claro que, no íntimo, podia compreender os motivos que a levaram a fugir. Mas considerava imperdoável que ela tivesse agido de maneira tão leviana. Sua atitude irresponsável ameaçava o sucesso do Projeto Terra.

A raça dos arcônidas tinha atingido — e até atravessado — o ponto culminante da sua evolução. A continuar essa estagnação, essa passividade, o império dos arcônidas, erigido durante milênios, estaria fadado a desmoronar. Decadentes e prepotentes por natureza, os arcônidas algum dia se tornariam vítimas do seu próprio poderio.

Crest havia compreendido isso claramente. Via nos habitantes da Terra os futuros herdeiros do Grande Império arcônida. Estava plenamente convicto que, se algum dia o império fosse entregue a esses homens decididos e que não recuavam diante de nada, estaria em boas mãos. Ao menos melhor do que nas mãos daqueles seres que também pertenciam ao império colonial dos arcônidas, mas que, apesar da sua inteligência, não tinham nada em comum com o homem. Sem dúvida o império estaria mais bem cuidado nas mãos dos terranos do que, por exemplo, nas nadadeiras dos habitantes das Plêiades ou nas asas dos pterodátilos do sistema Rígel. Sem falar, evidentemente, nos tópsidas.

Crest estava procurando sucessores para os arcônidas e acreditava tê-los encontrado nos terranos. Havia submetido Perry Rhodan e Reginald Bell a um treinamento hipnopédico, transmitindo-lhes todo o saber do universo. Sistematicamente, Crest preparava Rhodan para a tarefa que teria de cumprir. No fundo do seu coração, o arcônida denominava o seu plano de Projeto Terra.

E agora a concretização desse plano corria perigo por causa da atitude de Thora.

A porta se abriu e Perry Rhodan entrou na central. Deu um aceno ligeiro a Crest e Marshall, e dirigiu-se a Bell:

— Algo de novo?

— Uma porção de coisas, Rhodan; nem sei por onde começar.

— Sugiro que comece do início. Mas seja breve, não temos muito tempo.

— Thora partiu uma hora atrás com o destróier C. Passou pela Lua na direção de Vênus, sempre emitindo o sinal de identificação. Deve ter levado o piloto-robô a bordo. Não foi detida. Se aumentou a velocidade suficientemente, já deve ter pousado em Vênus.

Rhodan cerrou os olhos.

— Não é difícil entendê-la, Bell. Esperamos demais para cumprir a nossa promessa. Foi apenas a ânsia de rever Árcon, que a levou a fugir.

Crest pigarreou.

— É muito nobre de sua parte, Rhodan, querer desculpar Thora, mas precisamos encarar a realidade. Sejam quais forem os seus motivos, ela não agiu corretamente; cometeu uma injustiça. Se ela conseguir penetrar naquela fortaleza, vai pôr em funcionamento a hiperestação radiofônica. Como ex-comandante da nossa expedição, pode fazê-lo. Agora, pense o senhor mesmo nas conseqüências que isso poderá acarretar.

Rhodan se lembrou, com um arrepio, da invasão dos Deformadores Individuais que havia conseguido rechaçar. A mensagem radiofônica que Thora tencionava enviar de Vênus se irradiaria sem perda de tempo por todo o universo. E bastava que fosse captada por alguma raça estranha e belicosa para que a situação se tornasse extremamente grave. Os seres inteligentes, que casualmente interceptassem essa mensagem, tratariam logo de determinar a direção da sua origem. E qual não seria a sua surpresa ao constatar que existia um sistema habitado neste trecho remoto da Via Láctea! E Inevitavelmente, a Terra seria descoberta. Uma Terra despreparada e desunida, pronta para ser colonizada, no sentido interestelar.

As conseqüências eram imprevisíveis.

— Gostaria de saber o que ela fez para enganar as sentinelas-robô — murmurou Rhodan, pensativo — já tem algum relatório?

— Já! — esbravejou Bell e bateu numa pilha de anotações. — As sentinelas declararam que tudo se passou de maneira inteiramente oficial. Thora se aproximou, falou com o piloto do destróier e depois partiu com ele. Declararam, ainda, que não a impediram de decolar porque não tinham recebido qualquer ordem nesse sentido.

— Claro que não tinham essa ordem! — rosnou Rhodan. — Também, quem teria imaginado que Thora fosse quebrar sua palavra!

Desta vez foi Crest quem a defendeu.

— Ela devia estar supondo que jamais retornaria a Árcon, se não agisse dessa maneira.

— Quer me parecer — respondeu Rhodan, com um ligeiro sorriso — que este não tenha sido o único motivo da fuga de Thora. Lembre-se apenas do planeta da vida eterna. O imortal me concedeu a permissão e me proporcionou os meios para obter uma prolongação da vida. Autorizou-me, ainda, a concedê-la a qualquer terrano que eu julgasse digno. Essa permissão não incluía os arcônidas, porque essa raça já tinha atingido e ultrapassado o ápice da sua evolução. Isso significa que os terranos ainda se encontram no ramo ascendente do desenvolvimento. Thora é orgulhosa e prepotente, Crest. Não conseguiu suportar essa humilhação e quis se vingar à maneira dela. Queria me mostrar que era mais forte do que eu. Só que não tem a menor noção do que está causando com isto. O seu desejo de voltar para Árcon é perfeitamente compreensível, mas a sua estupidez é imperdoável.

— O que vai fazer agora, Rhodan?

Bell ergueu a cabeça; estava interessado na resposta. No mínimo tão interessado quanto Crest. Rhodan disse, com vagar:

— Vou seguir Thora com o destróier A. Agora mesmo. Vou levar John Marshall e Son Okura comigo. Bell, chame um carro. Não preciso de mais nada. Afinal, o equipamento necessário encontra-se a bordo.

Crest fez um gesto de desaprovação, mas depois baixou a mão lentamente e sacudiu a cabeça, resignado. Na convivência com Rhodan já se havia habituado a muita coisa. Esses homens tomavam as suas decisões com uma rapidez... inacreditável!

Bell encarou Rhodan.

— E eu? — perguntou, com a cara de uma criança que não tinha recebido o seu presente de Natal. — Por acaso vou ficar aqui, chupando o dedo?

— Não é uma má idéia — respondeu Rhodan, como que aceitando a sugestão. — Mas fique tranqüilo; você vai nos seguir com o destróier B, assim que for possível. Infelizmente não podemos cancelar as solenidades programadas sem mais nem menos; por isso você vai ter que me substituir. Se não me engano, o coronel Freyt já anunciou o seu discurso na televisão. Espero que você esteja suficientemente preparado.

— Eu? Fazer um discurso na televisão?! — indignou-se Bell, o sangue lhe afluindo ao rosto. — Para falar sobre quê?

— Ora, sobre o que poderia ser? Questões de defesa, evidentemente. Você vai falar sobre as possibilidades de defesa da Terra no caso de uma invasão interestelar. Um tema bastante atual. Assim que as solenidades estiverem encerradas, você parte. Está claro, Bell?

Bell acenou sombriamente.

— Está claro, sim.

Empertigou-se na poltrona e fitou firmemente os olhos cor de aço de Rhodan.

— Mas uma coisa eu lhe digo. Se por causa desse discurso eu chegar tarde para tomar parte naquela algazarra lá em Vênus, você vai ver o que é bom!

— Avise Son Okura — disse Rhodan, sem tomar conhecimento da ameaça de Bell.

— Por que logo Okura? — perguntou Bell, enquanto estabelecia a ligação com o posto de comando do Exército de Mutantes. — Qual a utilidade dele nessa missão?

— Ele é o nosso perceptor de freqüências, como você sabe. Os olhos dele são capazes de reparar todas as ondas invisíveis e, em especial, os raios infravermelhos. Esta faculdade torna Okura um auxiliar indispensável na escuridão. Lembre-se que a noite em Vênus dura cinco dias terrestres. Além disso, Okura tem o raro dom de poder ver radiação de calor. Com isso, consegue reconhecer a impressão calorífica de um objeto que já foi removido há horas. Não há melhor colaborador nessa aventura que Son Okura.

Bell transmitiu suas instruções pelo rádio e depois acenou.

— Sim, é verdade. Mas o fraco dele são as pernas. É uma negação para andar, quanto mais para correr. Aí, um teleportador seria melhor.

— Esse vai com você. Nos destróieres só há lugar para três homens. Até o piloto-robô eu não vou poder levar.

— Por que você não pega uma nave maior?

Rhodan refletiu durante um instante.

— Você está me dando uma boa idéia. Não vai me seguir com o outro destróier e, sim, com uma nave auxiliar. Pode enchê-la de mutantes. Mas estou quase certo que não serão necessários — Rhodan sorriu. — Até que você chegue, já acabou tudo.

Bell respirou com dificuldade, à cata de uma resposta apropriada. Mas ao olhar para Crest pensou duas vezes. Lembrou-se, que o arcônida nunca tinha achado muita graça nas suas pilhérias meio esquisitas.

Portanto, desistiu de dar uma resposta. Limitou-se a encolher os ombros e a dizer, sarcasticamente: — Vamos ver.

 

Enquanto Bell discursava diante das câmaras de televisão, o destróier A estava se projetando espaço adentro. O curso tinha sido programado. Comandada pelo piloto automático, a nave atingiria em breve a velocidade da luz e depois seria novamente desacelerada.

Rhodan estava sentado na poltrona do piloto. O assento à sua direita era ocupado por Marshall, enquanto Okura, o japonês franzino, se encolhia na poltrona à esquerda. Ignorando a existência de lentes de contato e causando sério desgosto aos inovadores fanáticos, o japonês usava óculos, lentes grossas montadas numa armação fina. Era uma verdadeira ironia do destino: justamente o homem que conseguia ver todas as ondas luminosas invisíveis tinha que recorrer a óculos para poder reconhecer os objetos iluminados pela luz normal. Mas a visão de Okura realmente não era das melhores. Estava trabalhando como opticista numa fábrica de máquinas fotográficas, quando os caçadores de talentos de Bell o descobriram, convidando-o a se incorporar ao Exército de Mutantes de Rhodan.

— Será que Thora vai pousar junto à estação? — perguntou Marshall.

— Suponho que sim — respondeu Rhodan, sério. — O objetivo dela é inteirar Árcon da existência da Terra, para que venham apanhá-la. O transmissor se encontra na estação; portanto, ela vai tentar pousar lá.

— Quando me tornei mutante, fui treinado aqui em Vênus — disse Okura, com aquele seu jeito tranqüilo e discreto. — É uma droga de lugar, se me permitem a expressão.

— Não temos opção, Okura — disse Rhodan, acenando. — Por outro lado, creio que não vamos ter muita ocasião de nos expor aos perigos dessa selva. Assim que pousarmos junto da estação, vou dar a minha contra-ordem ao cérebro positrônico. Se Thora ainda não chegou ao transmissor, pode ser detida.

— Só faço votos que não cheguemos tarde demais — murmurou Marshall e cerrou os dentes. — Nem é bom pensar no que poderia acontecer.

Rhodan manteve o olhar fixo em frente, onde Vênus começava a se delinear como um disco luminoso.

— Tem razão — concordou — é inimaginável o que poderia acontecer.

Depois silenciaram.

E tudo transcorreu rapidamente. Vênus tornou-se cada vez maior e depois o destróier penetrou na atmosfera. Determinaram a posição da estação e constataram que a noite venusiana estava para cair. Em breve ficaria escuro... durante cinco longos dias.

No momento, isso não causava maiores preocupações, mas, mesmo assim, Rhodan se sentiu aliviado por ter trazido Okura. Tinha sido uma decisão previdente, que mais tarde pagaria juros.

Rhodan consultou a marcação dos instrumentos.

— Mil e quinhentos quilômetros a oeste. Vamos baixar mais para poder ver alguma coisa. Se ao menos eu soubesse onde Thora se encontra nesse momento!

A selva deslizou rapidamente por baixo da nave em direção a leste, onde já estava escurecendo. Sobrevoaram um pequeno mar pré-histórico, depois uma cordilheira bastante alta e novamente selvas e pântanos. Aos poucos, tornava-se cada vez mais difícil distinguir a paisagem que passava por baixo deles.

— Faltam oitocentos quilômetros. Bem longe, à sua frente, o horizonte ficou difuso e se mesclou à camada de nuvens. Por trás dessa massa leitosa pairava uma mancha vermelha, o sol poente. Somente daqui a cinco dias voltaria a nascer.

— Só mais seiscentos quilômetros — disse Rhodan. — Dentro de cinco minutos atingimos a zona de bloqueio.

Marshall acenou, automaticamente.

— Também não temos o que recear.

Foi nisso que Marshall se enganou. Tanto, quanto Thora antes dele.

Mais uma vez a instalação eletrônica de vigilância da estação dos arcônidas entrou em silencioso funcionamento. Mais uma vez os raios tateadores se lançaram sob o recém-chegado e o examinaram. A ultimação de fornecer o sinal de identificação foi ignorada. A intimação foi repetida, mas o destróier A não respondeu.

Rhodan tinha esquecido que as instalações codificadoras dos três destróieres ainda não haviam sido preparadas positronicamente. Que isso lhe tivesse escapado na pressa de seguir Thora, era compreensível; mas era totalmente imperdoável, se consideradas as conseqüências, mesmo levando em conta que tinha sido o mesmo fato que impedira Thora de alcançar o seu alvo.

Rhodan não conseguiu realizar uma única manobra de esquiva, pois ficou ofuscado pelo raio desintegrador que, subitamente, rompeu a escuridão. Um forte abalo fez estremecer o corpo metálico e arrancou Rhodan do assento. O horizonte girou diante da vigia e a nave começou a tombar.

Felizmente o raio só tinha atingido a popa, destruindo o sistema propulsor. A proa e a central de comando continuavam intactas.

Num gesto automático, o punho de Rhodan golpeou o botão de dispositivo de ejeção.

Ao contrário do que havia ocorrido com o destróier de Thora, o dispositivo funcionou e lançou a central de comando completa para fora da nave. Graças aos protetores antigravitacionais embutidos, a cabina se manteve em posição horizontal. Os jatos de emergência entraram imediatamente em ação, fazendo-a deslizar para o lado, afastando-a da zona de bloqueio. Por isso não foi alvo de novo disparo.

Muito lentamente o teto verde da selva se aproximou.

Vislumbraram a cintilação traiçoeira das poças pantanosas. Um rasgo na parede traseira permitiu que o repentino silêncio na cabina fosse rompido pelo bramido abafado de um sáurio. Lá embaixo, no pântano, divisaram indistintamente algo que se movia, lerdo e pesadão. Okura estremeceu.

— Essas bestas — gemeu — já farejaram a sua presa.

— Suponho — objetou Marshall — que só está falando simbolicamente!

O japonês não deu resposta. Conhecia o planeta Vênus.

O agregado de emergência da central de comando, agora separada da nave, fez os pequenos reatores arcônidas trabalharem sem cessar. As torrentes de corpúsculos que produziam eram suficientes para reduzir drasticamente a velocidade da queda. A cabina baixava muito mais devagar do que se estivesse presa a um pára-quedas.

Olhando para o lado, Rhodan viu algo que despencava, cambaleante. Era o resto do seu destróier, que não teve a mesma boa sorte de cair para fora da zona de bloqueio. Por isso, recebeu um novo disparo, que o atingiu no meio. Num abrir e fechar de olhos a matéria foi transformada em gás.

A cabina continuou a descer lentamente.

— Tomara que a gente não caia no meio de um desses lagos! — murmurou Okura preocupado. Devia ter um verdadeiro pavor dos sáurios.

— Essa cabina foi feita para flutuar — tranqüilizou Rhodan e lançou um olhar crítico ao redor. — Só espero que não falte alguma arma naquele armário. O destróier ainda não estava pronto para entrar em operação. A prova disso é que fomos derrubados. A instalação codificadora estava incompleta. Se o nosso arsenal também não estiver completo...

— E também não dispomos de um transmissor.

— Só temos os rádios nas pulseiras de múltipla utilidade. Mas são fracos demais para podermos alcançar a Terra.

Encontravam-se agora a uns cem metros de altura e já conseguiam divisar o presumível local do pouso. A paisagem não apresentava aspectos muito contrastantes. Não viam nenhum daqueles traiçoeiros lagos pantanosos, somente o teto alto e irregular daquela floresta virginal.

— Não pode nos acontecer grande coisa, ao menos durante o pouso — constatou Rhodan, tranqüilizando os companheiros. — Agora, o que vai acontecer depois...

Deixou em aberto as diversas possibilidades.

As copas mais altas estavam chegando cada vez mais perto. Rhodan sabia muito bem que, quando as atingissem, ainda poderiam estar bem longe do chão propriamente dito. Os troncos dessas enormes árvores primitivas não raro apresentavam um diâmetro de quinze metros e alturas até cento e cinqüenta metros, eram verdadeiros gigantes. Entre elas proliferavam os parasitas da selva tropical, também sensivelmente maiores que seus congêneres na Terra.

O chão da cabina tocou os primeiros galhos e afundou lentamente no leito relativamente fofo das copas. Os reatores ainda estavam funcionando, reduzindo a velocidade da queda.

E depois a cabina parou de baixar.

Jazia, um pouco adernada, no meio daquele mar verde onde havia afundado. O crepúsculo começou a baixar, tingindo as nuvens eternas de negro. O crepúsculo no oeste reluzia como se um imenso incêndio estivesse consumindo este mundo.

Rhodan resolveu não esperar mais e desligou os agregados.

Bruscamente, a cabina recobrou o seu peso normal, carregando os galhos nos quais se apoiava. Alguns não resistiram à súbita sobrecarga, e quebraram. Os outros cederam e a cabina começou a escorregar.

Antes que Rhodan pudesse tomar qualquer contramedida, a cabina inteira tombou para o fundo, capotando e se chocando violentamente por várias vezes contra troncos e galhos. Finalmente, após longos segundos, a queda foi sustada por alguns galhos bem mais grossos que resistiram ao impacto. Surpreendentemente, a central de comando havia chegado ao repouso em posição quase normal.

Somente agora tinham pousado, de fato, em Vênus.

Quando, minutos mais tarde, John Marshall voltou a si e sentiu a forte dor na testa, começou a desconfiar que o fim da perseguição a Thora estava mais longe do que nunca. Ergueu-se e viu que Okura estava inclinado sobre Rhodan, examinando a sua cabeça. Captou os pensamentos do japonês e ficou sabendo, o que se havia passado.

Okura se virou.

— Pelo visto se machucou bastante.

Bateu em cheio com o rosto. Está todo ensangüentado. Só espero que não seja grave...

Marshall se recuperou rapidamente. Ainda ligeiramente zonzo, dirigiu-se a Okura, apoiando-se na parede. Rhodan estava esticado no chão da cabina, respirando fracamente. A pancada devia ter sido violenta.

O japonês cambaleou ligeiramente quando se levantou. O chão estava inclinado e era preciso se habituar a este fato. Okura encontrou ligaduras e medicamentos no pequeno armário embutido da farmácia de bordo. Aplicaram uma injeção revigorante a Rhodan e conseguiram fazê-lo ingerir um remédio contra febre. Quando começou a respirar mais profundamente, os dois homens juntaram as poltronas e colocaram Rhodan sobre esta cama improvisada, entregando-o ao sono benéfico.

Okura ainda medicou o ferimento de Marshall, e só depois tratou de si mesmo.

— É claro que eu fui atingido nas pernas — disse ele, com resignação — é de amargar. Logo no meu ponto fraco. Sempre caminhei com dificuldade, quanto mais agora. Receio que vou ser um fardo durante uma marcha através da selva.

Marshall empalideceu.

— Não pode estar falando sério! Acredita mesmo que precisamos descer naquele inferno lá embaixo? Cheio de sáurios e aranhas gigantes e sei lá o que mais vive nessa mata? Não, nem dez cavalos vão me arrancar desta árvore. Aqui estamos relativamente seguros.

— Concordo — disse o japonês com um sorriso afável. — Na penitenciária também se encontra uma segurança relativa; só que lá ao menos não se perde tempo e nem se morre de fome.

John Marshall não soube o que responder.

Desviou o olhar de Rhodan e olhou através da vigia para aquele crepúsculo difuso e esverdeado.

Podia jurar que uma sombra enorme estava se deslocando lá embaixo. Um bramido prolongado rompeu o silêncio da selva.

Apesar do calor Marshall começou a sentir um frio gélido.

 

Quando, horas mais tarde, Perry Rhodan se mirou no espelho, levou um susto.

Um corte profundo, que ainda sangrava, atravessava-lhe a fronte de lado a lado. Sem aquele organoplasma especial dos arcônidas levaria semanas para cicatrizar. O olho direito, fortemente inchado, desfigurava-lhe as feições, a ponto de torná-lo quase irreconhecível.

Recostou-se com um suspiro e deixou que o japonês lhe enfaixasse novamente a testa.

— Meus melhores amigos não me reconheceriam — murmurou. — Sei que Bell vai ter um motivo para ficar me gozando.

— Vou quebrar os ossos dele todinhos se ele se atrever a fazer isso! — ameaçou Marshall.

Rhodan deu um sorriso fraco.

— Duvido que o consiga, pois estão por demais protegidos por aquelas grossas camadas de banha.

Rhodan esperou que a bandagem fosse completada e depois acrescentou: — Qual é a nossa situação, e o que vamos fazer?

Son Okura retrocedeu meio passo e submeteu sua obra a um exame crítico.

— O seu ferimento não é grave. Mas o fato é que estamos presos no meio desta selva, sem qualquer possibilidade de comunicação com a Terra. Perdemos a nave espacial e, com isso, qualquer meio de estabelecer contato com a cúpula energética da fortaleza venusiana. Portanto, não podemos contar com o auxílio de ninguém. Nossa única chance consiste em alcançarmos a base, ou esperar que Bell nos encontre por uma mera casualidade.

— Mas temos os minitransmissores — observou Marshall.

— Não vão nos adiantar grande coisa, porque seu alcance é muito limitado. Quando a central foi ejetada da nave, ficamos separados dos aparelhos radiofônicos. Que isso nos sirva de lição. Daqui por diante um transmissor vai fazer parte do equipamento obrigatório de todas as cabinas de salvamento ejetáveis. Quanto a Bell, é claro que só podemos entrar em contato com ele se a sua nave passar ao alcance dos nossos minitransmissores. Mas, esperar que isso aconteça, é confiar demais no acaso. Não seria uma temeridade ficar aguardando que ocorra o improvável, enquanto Thora mobiliza todos os horrores do universo? Rhodan acenou, concordando.

— Okura tem razão, Marshall. Só há uma alternativa: é preciso chegar antes de Thora e impedi-la de penetrar na fortaleza. Mas não vejo motivo algum para crer que ela tenha tido mais sorte que nós. Afinal, o codificador da nave dela também não estava ajustado. Resta-nos esperar que ela tenha sobrevivido à queda.

Marshall rosnou, irado:

— Por mim, ela pode ter quebrado o pescoço.

— Eu não diria uma coisa dessas — respondeu Rhodan, num ligeiro tom de censura. — Não se deve desejar mal a ninguém, apenas impedi-lo de cometer algum mal. É uma ilusão pensar que a violência possa ser combatida. E tem mais: Thora pode quebrar o pescoço que isso não nos ajuda em nada. Continuamos presos aqui do mesmo jeito.

— O sentido das minhas palavras não era bem esse — disse Marshall, tentando atenuar sua expressão irrefletida. — O que eu quis dizer é que eu tenho uma raiva dos diabos dessa mulher extraterrena.

Com um sorriso suave, Okura observou:

— Mas só da extraterrena, não é?

Rhodan se levantou algo vacilante e se apoiou na parede. Ainda estava meio tonto daquele longo desmaio. Sob o olhar atento dos dois companheiros, ensaiou os primeiros passos cautelosos e se dirigiu à vigia. Lá fora reinava o negrume da noite venusiana. Mas, mesmo se fosse dia claro, Rhodan não poderia agora ter pensado em sair da cabina. Ainda se sentia fraco demais para enfrentar a estafante marcha através desse mundo primitivo, sem falar nas ameaças desconhecidas que ocultava.

Por outro lado, quanto mais tempo perdesse em esperar, tanto maior se tornava o perigo de um colapso total de tudo o que havia criado até agora. Poderia ser substituído pelo coronel Freyt, certo; mas bastava que se tornasse do domínio público que Rhodan, o chefe da Terceira Potência, não tinha regressado de um vôo a Vênus e que era muito provável que os sáurios o haviam devorado, para que... bem as conseqüências eram inimagináveis. O nacionalismo latente de alguns políticos ambiciosos voltaria à tona e salvaria as pátrias, transformando os futuros terranos novamente em homens. E isto era exatamente o pior que lhes poderia acontecer. Recairiam no estágio das concepções nacionalistas bitoladas, tornando-se presa fácil para qualquer invasor do universo.

Essa conclusão só admitia uma única decisão.

E Rhodan a externou:

— Precisamos procurar chegar à base. Primeiro, vamos dormir durante mais algumas horas, para recuperar as forças, depois partimos. Trajes de exploradores nós não temos, tampouco mantimentos suficientes. Quer verificar o armamento?

Okura abriu o armário embutido. Bem arrumadinhos nos suportes, lá estavam três jeitosos irradiadores de impulsos. E mais nada.

— Ao menos alguma coisa — rosnou Marshall. — Matar sáurios com essas armas é até covardia.

Para Rhodan isto não parecia ser o problema principal.

— Só dispomos disso? Nada de pistolas automáticas ou espingardas?

Olhou ao redor.

— E os víveres e a água?

A expressão de Okura era de pura lamentação.

— Temos alguns concentrados e uns poucos litros de água. Talvez o suficiente para dois ou três dias. Mas podemos viver da caça.

— Engano seu! — Rhodan sacudiu a arma. — O raio energético de uma pistola de impulsos positrônicos queima e gaseifica instantaneamente toda e qualquer matéria. Mesmo de um sáurio não sobraria praticamente nada se o disparo for um pouco excessivo.

— Então — disse Marshall — basta prestar atenção no disparo. É só matar o bicho e suspender fogo. Além disso, como sabem, nunca deixo de andar sem o meu velho e fiel revólver — apontou para o bolso. — Pode ser obsoleto, mas não me desfaço dele, por mais que Bell me goze.

— É o que eu vou fazer agora — resmungou Rhodan. — Não vai me dizer que pretende derrubar um sáurio com este brinquedo?

— Não estou pensando em sáurios. Afinal, existem também animais menores em Vênus. Talvez sejam até mais saborosos.

Okura acenou, satisfeito.

— Marshall não deixa de ter razão. Eu também acredito que vamos conseguir carne. Talvez encontremos até frutas. Lembro-me que, durante o nosso período de instruções aqui em Vênus, serviram-nos frutas em quantidade. Tenho certeza de que vou reconhecê-las, se existirem por aí. Mas eu estou mais preocupado com a água. Afinal, não podemos beber essa porcaria dos pântanos. Faço idéia de como deve estar pululando de bactérias!

— Existe uma substância na farmácia de bordo — disse Rhodan — que substitui a fervura. É só jogar o pozinho na água e as bactérias desaparecem. Depois, é só filtrá-la para retirar as eventuais impurezas tóxicas. Esse processo substitui até a destilação. Agora, se for preciso, nada nos impede de ferver a água. Lenha existe aos montes no chão da floresta.

— É, lenha molhada ou úmida! Não vai nos adiantar grande coisa.

Okura meteu a mão no armário da despensa e exibiu um pequeno pacote.

— Quem é que está falando o tempo todo em lenha? Veja aqui, Marshall. Sabe o que é isso? Argila energética! Rende cem vezes mais que álcool. Com esse negócio aqui podemos preparar três refeições diárias durante três meses. Faltam somente os bifes de sáurios.

Marshall torceu o nariz.

— Nunca na vida comi carne de sáurio! — lamentou-se.

— Então está mais do que na hora de começar — constatou Rhodan e sentou-se novamente no leito improvisado. — Arrumem tudo que possa ser de utilidade e depois vão dormir. Não sei quando vamos ter nova oportunidade para dormir em paz.

Fechou os olhos e, pouco depois, a respiração regular mostrou que Perry Rhodan estava decidido a recuperar as forças para enfrentar a aventura que se avizinhava.

Uma aventura que, de um segundo para o outro, o havia feito regredir da era da mais moderna tecnologia para a pré-história.

 

E lá estavam eles, escorados nos galhos grossos de uma enorme árvore, cinqüenta metros acima do solo traiçoeiro da selva. Cipós da grossura de um braço pendiam de todos os lados, e facilitariam a descida.

Rhodan lançou um último olhar para a segurança da cabina, que agora abandonariam para sempre. Segundo sua estimativa, a base arcônida com a guarnição de robôs devia se situar uns quinhentos quilômetros para oeste. Uma distância que, devido à fauna e flora pré-históricas, se constituía num obstáculo praticamente intransponível.

Verificou se o irradiador de impulsos estava bem preso ao cinto e pendurou no espaço o saquinho que continha a sua ração de água e víveres concentrados. Depois, escolheu o galho mais apropriado para seguir Marshall, que já havia iniciado a descida. Okura forçava a vista, olhando para baixo.

— Estamos com sorte. Há uma pequena clareira. Nenhum sinal de animais.

O próprio Rhodan sempre voltava a ficar fascinado quando tinha ensejo de constatar a facilidade com que esse mutante conseguia enxergar na mais completa escuridão. E agora mal se via um palmo diante do nariz! Em algum lugar, longe daqui, um vulcão devia ter entrado em erupção; talvez na cordilheira mais próxima. Uma débil luminosidade avermelhada penetrava na floresta, emprestando um ligeiro tom rosado a tudo que se via. E isto, na realidade, era praticamente nada.

— Podemos prosseguir daqui — gritou Marshall, lá de baixo. — Esses cipós formam uma verdadeira escada de cordas.

Rhodan tateou com os pés, à procura de um apoio. Encontrou-o e desceu lentamente. Teve a impressão que aqui em cima, nas árvores, talvez pudessem avançar mais rapidamente que no chão enganoso da selva. Mas somente a prática confirmaria isto. Talvez pudessem mudar de método à luz do dia.

Levaram três horas para atingir o chão firme.

Okura consultou a bússola de pulso.

— Temos que prosseguir nessa direção, se não houver algum obstáculo. Pelo que eu consigo ver, não há pântanos por aqui. E o chão está relativamente seco.

Rhodan sentia uma forte dor de cabeça, conseqüência do seu ferimento.

“Mesmo um imortal”, pensou amargurado, “não está livre de sofrer de enxaqueca.”

Enquanto caminhava atrás de Okura, os acontecimentos no planeta da vida eterna se desenrolavam mais uma vez em sua mente. Haviam seguido o rastro que os conduziu, através da galáxia e do tempo, até Peregrino, o planeta solitário. E lá vivia aquele ser imortal do passado, que revelou a ele, Rhodan, parte do segredo da conservação permanente das células. E ainda lhe proporcionou a oportunidade de se submeter ao fisiotron, a ducha celular, que sustava o processo de envelhecimento por um certo período — para ser mais preciso, durante sessenta e dois anos, na contagem de tempo terrestre. E aquele ser determinou que apenas os terranos poderiam se utilizar da ducha celular, se Rhodan assim o permitisse.

Além de Rhodan, somente Bell havia sido contemplado com uma prolongação da vida.

Daqui a sessenta e dois anos Rhodan procuraria de novo aquele ser. Com o auxílio do grande cérebro positrônico, calcularia as coordenadas espaciais exatas daquele planeta errante e o revisitaria. Mas seis decênios constituíam um período de tempo bastante longo. E quanta coisa poderia acontecer até lá...

De repente Okura parou. Forçou a vista como se perfurasse a escuridão ambiente, e esticou a mão para trás, à procura de Rhodan. Marshall havia se chocado contra Rhodan e sufocou uma imprecação.

— O que houve? — Okura sussurrou:

— Algo está se locomovendo lá em frente. Uma sombra grande. Não consigo distinguir exatamente o que é. Ouvir, não se ouve nada.

— Então também não é um sáurio, porque esses a gente ouve a quilômetros de distância.

Rhodan silenciava, os ouvidos aguçados. Instintivamente sua mão se fechou sobre a coronha do irradiador.

O japonês suspirou aliviado.

— Talvez seja um outro animal qualquer. De qualquer maneira, não enxerga tão bem como eu, porque ainda não nos reparou. Está se desviando para a direita, penetrando na floresta. A julgar pelos contornos, tem o tamanho e o aspecto de um gorila. Talvez já existam macacos em Vênus.

— Pelo amor de Deus! — gemeu Marshall.

Rhodan se dirigiu a ele.

— Por quê? Tem algo contra os macacos?

— Não é bem isso, mas, se realmente existirem macacos em Vênus, daqui a cem mil anos nossos colonos vão ter aborrecimentos sem fim com os venusianos... ao menos na minha opinião

Rhodan deu uma risada quase inaudível.

— Queria ter as suas preocupações, Marshall! Não tem outras, por acaso?

Marshall rosnou algo ininteligível, mas não deu resposta. Okura reiniciou a caminhada, seguido de perto por Rhodan, que protegia novamente o rosto com as mãos.

A noite ainda duraria quatro dias terrestres e, se não sofressem atraso por algum motivo inesperado, talvez pudessem percorrer uns cem quilômetros até o nascer do sol.

Uma perspectiva deveras auspiciosa.

Cinco horas mais tarde Rhodan esticou a mão e agarrou o japonês pelo ombro.

— Precisamos descansar, Okura. Se continuarmos a esbanjar nossas forças desse jeito, nunca vamos chegar à base. Assim que descobrir um lugar apropriado, vamos repousar por algumas horas. Talvez encontremos uma clareira.

— Posso fazer uma sugestão? — o japonês parou. — Que tal se subíssemos novamente numa árvore? Tenho certeza que, alguns metros acima do solo, encontramos um galho suficientemente largo para nos acomodar a todos. Aqui embaixo eu teria que ficar de olhos bem abertos o tempo todo, pois a selva deve estar cheia de perigos ocultos. A meu ver, as árvores oferecem uma segurança relativamente maior.

— O que me causa espanto — admirou-se Marshall — é que ainda não encontramos terreno pantanoso pela frente. Tivemos uma sorte incrível.

— Também só percorremos cinco quilômetros — observou Rhodan.

Okura encontrou uma árvore que lhe parecia adequada e foi o primeiro a subir. Dez metros acima do solo encontraram um galho largo, que se estendia horizontalmente através de um emaranhado de cipós. O conjunto formava uma espécie de caverna, na qual os homens se sentiram imediatamente seguros.

Marshall assumiu a função de cozinheiro.

Quando os concentrados começaram a se dissolver na água e o fogo incolor flamejou debaixo da panela, os três homens até que se sentiram bastante confortáveis.

— Estou chegando à conclusão, de que a coisa não está tão ruim assim — observou o australiano alegremente, mexendo a sopa. — Já pensaram como vai ser quando for dia claro? Aí mesmo é que vamos marchar que nem uns andarilhos!

Ninguém viu a expressão cética de Rhodan... Okura talvez, mas Marshall nunca. Rompendo o silêncio que se seguiu, Okura disse:

— Só que ainda vai passar um bocado de tempo até o dia claro chegar!

Sem proferir palavra, Marshall continuou a mexer na sua panela.

 

Meio oculto por véus de nuvens, o sol de Vênus preparava o seu ocaso. Aquela mancha difusa atrás da camada de bruma parecia perder o poder luminoso e por isso tornou-se mais colorida. Os raios de luz, refratados pelas nuvens e névoas, produziram no céu monótono de Vênus um espetáculo que brilhava em todas as cores do espectro. Aos poucos, o vermelho começou a predominar, mergulhando este mundo primitivo num tom rosado, e o inferno verde parecia querer se transformar num paraíso de cores estonteantes. Até mesmo as superfícies pantanosas, de brilho tão traiçoeiro, se apresentavam agora como a palheta furta-cor de um pintor divino que, invisível, zelava pela sua obra em constante modificação.

O mundo de Vênus suspendia a respiração quando a longa noite se iniciava. Era como a rendição da guarda. Os enormes sáurios regressavam das florestas e se ocultavam na segurança do seu antigo elemento. Às dezenas, rolavam por cima dos colmos altos do junco, transformando as cores variadas do pântano num turbulento espectro gigante, que fazia lembrar galáxias coloridas, percorrendo trajetórias infindáveis através do nada, rodando eternamente e procurando em vão por um destino.

À distância, reluziam as rochas desnudas das cordilheiras. Pareciam cobertas por fogo líquido. Entre as rochas cintilavam, prateadas, as quedas d’água. Quando se pulverizavam lá embaixo, no teto da mata virgem, era como se um arco-íris enorme estivesse se alastrando, na tentativa de encobrir o mundo com suas cores transparentes.

Enquanto os sáurios iniciavam o longo repouso noturno, os seres vivos da escuridão começaram a acordar. O curto intervalo da transição chegou bruscamente ao fim, quando o sol desapareceu no horizonte mormacento e candente.

Em vôo silencioso, mas grasnando estridentemente, enormes aves lançavam-se através do crepúsculo, sobre pântanos e florestas, à cata de presa. Gigantescas borboletas noturnas cambaleavam em direção ao sol poente, tentando em vão alcançá-lo.

Na borda do platô, no alto daquelas rochas que se erguiam como uma ilha do mar verde da floresta, alguns homens observavam, emocionados, o soberbo espetáculo da natureza. Não constituía novidade para eles, mas invariavelmente ficavam enfeitiçados toda vez que o contemplavam.

Tempos atrás, haviam trajado uma farda. Mas agora esses uniformes estavam tão esfarrapados que ninguém mais os podia reconhecer. Parecia que apenas os cintos evitavam que esses farrapos despencassem de vez. As calças estavam enfiadas em botas dilaceradas, e alguns dos homens tinham os ombros envoltos em peles grosseiramente trabalhadas. Porque, com o sol poente, a temperatura caía sensivelmente.

Os cabelos eram longos, assim como as barbas emaranhadas. Mas, apesar do aspecto estranho, eram indiscutivelmente homens da Terra longínqua.

Um deles, um sujeito troncudo e forte, de cara larga, protegia a vista com a mão.

— É mais bonito que na Terra — disse, num idioma que soava como russo. — Talvez foi isso que levou os outros a resolverem ficar aqui para sempre.

— E bem provável, general Tomisenkow. Não há outra explicação. Perderam o juízo.

O ex-comandante da expedição do Bloco Oriental, que Rhodan havia desbaratado, sacudiu a cabeça com veemência.

— Não creio que a atitude deles possa ser explicada de maneira tão simples. Deve haver outras razões mais complicadas. Vênus é um mundo selvagem, mas é um mundo livre...

— Por acaso nós não somos livres também? — perguntou um dos homens, meio na espreita.

— Liberdade, e liberdade... será que não existem diferenças? A liberdade não é um conceito da relatividade e do dogma político? A liberdade pode ser imposta, mas também se pode conquistá-la.

— Coisas estranhas, essas que o senhor disse, general! — comentou um outro homem, pensativo, e olhou para a vasta planície que se estendia em direção ao oeste. Lá também se erguiam pequenas ilhas rochosas, e na luz crepuscular via-se que de uma delas subia uma coluna de fumaça. — Não foram justamente os rebeldes que disseram a mesma coisa?

— Foram eles, sim. Mas não se limitaram a palavras; agiram. Tanto assim que se separaram de nós, porque não queriam regressar à pátria depois do fracasso da nossa invasão. Tínhamos ordens de conquistar a base venusiana de Rhodan. Não conseguimos. Rhodan destruiu nossas naves e nos abandonou indefesos nesta selva. Mas ele sabia que o homem pode sobreviver aqui. Os rebeldes também sabem disso. Todo seu plano está baseado nesse fato. E é nesse ponto que reside a diferença entre nós e eles. Nós queremos retornar à Terra com um único intuito: preparar uma nova invasão. Mas os rebeldes decidiram permanecer em Vênus para colonizá-lo. Só que, com os meios escassos de que dispõem, estão fadados a um fracasso. Mas parece que isso eles não entendem.

— Pode ser, mas o fato é que já destacaram a sua gleba e iniciaram o cultivo do solo. Vênus é muito fértil. Tipo da terra ideal para colonos.

— O ponto de vista dos rebeldes é tão válido como qualquer outro — admitiu o general, meio a contragosto. — Mas, apesar disso, continuam sendo amotinados que se recusam a cumprir ordens. E amotinados, a gente costuma enforcar!

O soldado maltrapilho e embrutecido ao lado de Tomisenkow levou a mão instintivamente ao pescoço e se certificou que sua cabeça ainda estava firmemente no lugar previsto pela natureza. Sua mão direita estava fechada em torno da coronha da arma energética que trazia no cinto. Cerrou os olhos ligeiramente e olhou na direção do acampamento dos rebeldes. Ainda havia claridade suficiente para poder reconhecer todos os detalhes através de um bom binóculo. E lá também havia sentinelas, que, por sua vez, estavam olhando para o campo oposto. Eram os únicos homens em Vênus, pertenciam ao mesmo bloco de potências... e apesar disso eram inimigos mortais, e se combatiam com todos os meios de que dispunham.

O general Tomisenkow estava se virando para voltar à sua cabana quando um ofuscante raio luminoso rompeu o crepúsculo. Era como se um relâmpago tivesse atingido o meio do platô, no qual as tropas de invasão, derrotadas e náufragas, haviam se estabelecido. Trovoadas não eram nenhuma raridade em Vênus. Mas a época não era essa.

Com um estrondo avassalador, a onda de choques varreu por cima dos homens derrubando alguns deles. Tomisenkow conseguiu se agarrar a uma árvore. Com olhos arregalados fitou o céu pálido, tentando reconhecer o ponto incandescente que caía lentamente, como um meteoro gigante.

Por todos os fantasmas do inferno... aquilo era uma nave espacial!

Mas não podia ser uma nave de Rhodan.

Pois aquelas diabólicas armas defensivas da fortaleza extraterrena tinham-na atacado e derrubado.

Seria uma nave de suprimentos da pátria?

Claro que era! Não havia outra explicação. Antes que conseguisse tomar uma resolução, um novo raio rompeu a escuridão. Porém, aquela nave que estava caindo não foi mais atingida; desapareceu atrás das copas das árvores altas.

Quando a nova onda de choques tinha passado por cima dele, Tomisenkow voltou correndo.

— Sargento Rabov, pegue alguns dos seus homens e tente encontrar aquela nave derrubada. Pode ser que não haja sobreviventes, mas mantimentos e armas são sempre bem-vindos. Ande ligeiro, antes que escureça de vez.

O sargento, um sujeito pequeno, de cabelos escuros e olhos ágeis, acenou vivamente.

— Vou levar o holofote, general. Vamos encontrar essa nave, pode contar com isso. Não quer vir conosco?

Tomisenkow franziu as sobrancelhas. O que restava da antiga disciplina?! Estava na hora de coibir esses abusos de confiança.

— Tenho coisa mais importante para fazer! — rosnou, irado, e se afastou em direção às cabanas ao pé do pequeno cone rochoso.

Começou a se sentir um solitário no meio de seus homens.

O sargento Rabov acompanhou a retirada brusca do seu comandante com uma expressão impassível. Tinha estreitado os olhos, o que lhe emprestava um aspecto nitidamente mongol. Mas ele não era mongol, e sim um musculoso ucraniano. E muitos dos seus camaradas encontravam-se no acampamento dos rebeldes. Na próxima oportunidade...

Afastou esses pensamentos desagradáveis e seguiu o general a uma grande distância. As sentinelas permaneceram na beira do platô, aguardando o próximo disparo ofuscante.

Mas esperaram em vão.

 

Quando Thora acordou já era noite cerrada.

Suas pernas ainda estavam doloridas e só conseguia mexê-las com dificuldade. Ainda bem que as pontadas agudas que lhe atravessavam os quadris eram suportáveis.

Cautelosamente, Thora apoiou os braços no encosto da poltrona, fez um esforço e conseguiu se levantar. O chão embaixo dos seus pés estava levemente inclinado e tinha que tomar cuidado para não escorregar.

Ligou a iluminação, mas tudo permaneceu escuro. Com um golpe brusco, puxou a alavanca da bateria de emergência para baixo. Imediatamente as lâmpadas se acenderam. E Thora viu o robô R.17.

Não havia mudado de posição, a testa ainda encostada no painel dos instrumentos. O braço direito, dobrado, repousava sobre a mesa estreita em frente aos controles, enquanto o esquerdo pendia, frouxo, dos ombros.

Quando lhe ocorreu que R.17 talvez estivesse morto, Thora se sentiu acometida de uma angustiante solidão. Consertos de pequena monta não constituíam problema para ela. Mas, se uma das complicadas peças positrônicas internas estivesse danificada, R.17 permaneceria para sempre na selva venusiana, se não fosse encontrado antes disso.

Diante da vigia reinava a escuridão. Só lá longe, no horizonte, ainda havia o fraco brilho avermelhado do sol poente. A nave destruída jazia sobre uma clareira. As copas das árvores haviam amortecido o primeiro impacto mas, mesmo assim, era um verdadeiro milagre que a nave tivesse resvalado sem maiores choques até o chão. Somente o último trecho da queda tinha resultado num baque mais violento, que luxou ligeiramente as pernas de Thora e condenou R.17 à imobilidade.

Thora esticou os membros e constatou, satisfeita, que não havia sofrido qualquer fratura. Sua preocupação imediata era o robô. Com movimentos habilidosos, que denotavam uma longa prática, abriu a caixa torácica de R.17 e, com uma lanterna, iluminou aquela confusão de transistores, conexões e outras pecinhas eletrônicas. Até onde pôde constatar nada havia sido inutilizado. Pensativa, Thora recolocou a placa no peito do robô, prendendo-a com os grampos magnéticos. Não havia mais dúvida; já sabia onde estava o defeito. A fronte de R. 17 havia se chocado com violência demasiada contra o painel dos instrumentos.

Thora retirou a tampa de vedação do crânio do robô e mal conseguiu acreditar no que viu. Um dos cabos principais tinha se soltado e agora pendia, inútil, em meio aos minúsculos tubos de arconita.

Thora encontrou material de solda na caixa de ferramentas e, poucos minutos depois, já tinha consertado o defeito. R.17 acordou. Ergueu a cabeça, olhou para Thora e perguntou:

— O que se passou? Eu fiquei desativado.

— Foi um cabo que se soltou, só isso. Fomos derrubados pelos canhões-sentinelas da base. Parece que o codificador não funcionou direito. A base deve ficar a uns quinhentos quilômetros daqui. E agora?

— Vamos esperar — respondeu R.17. Para ele, esta conclusão era evidente. Dispunha de tempo.

— Esperar? Esperar o quê? Esperar que nos encontrem? Vênus é desabitada. Se Rhodan estiver à minha procura, vai voar para a base. Duvido que lhe ocorra a idéia de que eu possa ter sido abatida. Como é que estão os nossos aparelhos radiofônicos?

R.17 se levantou e caminhou, curiosamente inclinado para a frente, em direção a porta da cabina de rádio. Sua postura meio adernada era o efeito do giroscópio de estabilização, novamente em funcionamento. R.17 não precisava se adaptar ao plano inclinado do chão, nem dependia da posição do centro de gravidade.

Thora permaneceu na central e olhou pela vigia, tentando reconhecer os objetos lá fora. Sorte sua que o crepúsculo em Vênus durava cinco vezes mais tempo que na Terra pois, assim, pôde habituar a vista aos aspectos da vizinhança.

A nave jazia, levemente inclinada, numa clareira coberta de pedregulhos. Apenas algumas árvores isoladas formavam a orla de uma floresta, que não era típica das selvas pantanosas das regiões baixas. Só isto já constituía um fato auspicioso, que Thora aceitou com satisfação.

R.17 voltou à central de comando.

— Os aparelhos radiofônicos não funcionam e também não podem ser consertados — constatou, com objetividade. — Assim, não podemos contar com auxílio, a não ser que dêem por nossa falta. Afinal, Rhodan está a par do nosso vôo experimental, suponho eu.

— Não, Rhodan ignorava isso; ao menos até a hora da nossa decolagem. Parti sem permissão, para estabelecer contato com Árcon através da hiperestação em Vênus. Rhodan não queria que Crest e eu regressássemos a Árcon.

O robô estacou no meio da cabina. Cravou os olhos de cristal naquela mulher.

— Infringiu ordens de Rhodan? Sabe que fui condicionado a obedecer apenas Rhodan. Pelo que fez, tornou-se minha adversária.

— Nos encontramos na mesma situação.

— Apesar disso, deve ser punida.

O orgulho de Thora foi duramente atingido. Ela, a arcônida, pertencia à raça dominadora que havia criado esse robô. E agora esse engenho, sua própria criação, lhe dizia que ela merecia ser castigada. Até o poder sobre os robôs Rhodan havia retirado das mãos dos arcônidas!

— Está certo; Rhodan deveria me punir — admitiu ela, evitando soar ilógica. — Mas ele só vai poder fazer isso quando eu chegar à presença dele viva. Portanto, é sua obrigação me levar a Rhodan... para a base venusiana. Porque só lá vamos encontrá-lo.

O robô R.17 reconheceu que a arcônida tinha razão. Acenou com a cabeça — coisa que ele fazia muito bem, pois os engenheiros arcônidas não haviam deixado de dotar os seus robôs com essas reações.

— Muito bem, vamos à base venusiana para esperar por Rhodan.

Isso, é claro, era fácil de dizer e difícil de realizar.

— A partir desse momento, sou responsável pela sua segurança, pela sua vida — constatou R.17, secamente. — A senhora transgrediu a lei de Rhodan e, portanto, é minha prisioneira. A nave está inutilizada, por isso vamos partir o mais depressa possível para não perder tempo.

— E víveres para mim? — lembrou-se Thora, quase perdendo o fôlego de susto.

O robô apontou para os armários embutidos na parede.

— Lá se encontram armas, medicamentos, água e concentrados previstos para uma tripulação de três homens. No caso, dá folgadamente para duas semanas. Vou lhe permitir o uso de uma arma, porque isso serve ao meu propósito.

Thora teve que engolir mais essa. Um robô permitir a ela, a arcônida, o porte de uma arma! Decidiu, no íntimo, que assim que pudesse mandaria transformar R.17 em sucata.

Pegou o irradiador de impulsos e o afixou ao cinto. Depois enfiou os concentrados num pequeno saco, que entregou ao robô, encarregando-se ela mesma de levar os medicamentos. R.17 se ofereceu para carregar o vasilhame de água.

— Vou levar também o holofote — decidiu Thora; estremeceu quando se lembrou daquela selva mergulhada na escuridão que a esperava lá fora. Em outras circunstâncias, Thora teria aguardado o raiar do dia venusiano. Mas tanto o seu procedimento

quanto seu pensamento eram exclusivamente norteados pela obsessão de alcançar a base, custasse o que custasse. E assim resolveu partir em plena escuridão, pois sabia que, a cada minuto que se passava, diminuíam as suas chances de poder entrar em contato com Árcon. Rhodan não ficaria de braços cruzados na Terra, esperando que ela realizasse com sucesso o seu desígnio.

— A escuridão não é problema — tranqüilizou-a R.17. — Consigo ver muito bem no escuro se ligar minha instalação infravermelha. E para enfrentar seres hostis, disponho do meu irradiador de neutrônios — ergueu seu braço esquerdo. — Vou levá-la em segurança para a fortaleza.

Somente agora Thora se recordou, que Vênus era habitado principalmente por sáurios enormes. Estava começando a perder a coragem, mas o desânimo foi logo vencido pela vontade fanática de realizar o seu intento e de se defrontar com Rhodan. Monstro algum conseguiria detê-la.

Lançou um último olhar pela vigia e depois abriu a porta de emergência. Estava ligeiramente emperrada, mas, quando R.17 a forçou com o seu corpo possante, abriu-se com um estridente rangido. A atmosfera venusiana, ainda quente e úmida, penetrou na cabina e, com ela, os odores da natureza.

R.17 foi o primeiro a sair. Desceu a escada estreita e se postou no solo duro e seco, esperando por Thora. Seus olhos artificiais vararam a escuridão e viram tudo como se o sol estivesse pairando no céu escuro, mergulhando a paisagem em luminosa claridade.

É claro que isso Rabov e seu pessoal não podiam saber.

Encobertos pelo manto da escuridão, os homens do Bloco Oriental aproximaram-se cautelosamente daquela nave espacial derrubada. Não sabiam ao certo quem a havia conduzido a Vênus. Essa gente podia pertencer tanto à OTAN quanto à Federação Asiática. Uma luz emanava da vigia de observação. E nessa luz se moviam as sombras de duas pessoas. Era só o que se podia distinguir. Depois, a porta se abriu e dois vultos deixaram a nave, ou aquilo que tinha sobrado dela.

A luz na central permaneceu acesa.

O sargento Rabov fez um sinal aos seus homens. Agarraram as armas e tentaram varar a escuridão com seus olhos. A luz na nave espacial lhes fornecia um ponto de referência, mas nada viam daqueles dois homens que tinham acabado de descer. Deviam ter parado debaixo da nave, pois não se mexiam mais.

Com sua voz desprovida de qualquer emoção, R.17 se dirigiu a Thora:

— Tivemos uma sorte inacreditável. Lá na frente há seres humanos. Consigo vê-los nitidamente. São quatro homens armados. Estão se aproximando de nós. Se eu quiser, posso matá-los.

Thora se refez rapidamente do impacto da surpresa.

— Não, não faça isso! Por que quer matá-los? São inimigos?

— A atitude deles não denota intenções pacíficas. Observaram a queda da nave e agora vieram para saquear. Talvez foram até eles que nos derrubaram.

— Você sabe muito bem que fomos derrubados pela sentinela eletrônica da base — disse Thora, sacudindo a cabeça. — Quem são esses quatro homens? Você consegue reconhecer algum deles?

— Têm o aspecto de quem vive nesta selva há anos.

Como um raio, a intuição invadiu a mente de Thora: eram as tropas de desembarque do Bloco Oriental! E isso significava inimigos potenciais.

Mas seriam inimigos também aqui, nas selvas de Vênus, onde um dependia do outro?

Thora sacudiu os ombros.

— Pode ser que não caiamos no seu agrado, R.17, mas primeiro vamos tratar de saber o que querem de nós. Mantenha-se pronto para intervir, se for preciso. Quero falar com eles. Vamos deixar que se aproximem; afinal de contas, eles não sabem que você os vê.

Thora e o robô observaram em silencio a cautelosa aproximação de Rabov e seus homens. Menos de três passos os separavam, quando Thora disse em inglês, a língua na qual era mais fluente:

— Desejam alguma coisa de nós?

O susto que o sargento levou foi tamanho que ficou inteiramente desnorteado. Podia esperar tudo, menos ser interpelado por uma voz feminina, vinda da escuridão. Tropeçou e se esparramou no chão. Sua arma se chocou estrondosamente contra a rocha. Soltou uma florida imprecação em russo.

Ainda esticado no chão, disse:

— Só viemos para oferecer ajuda. Posso saber quem são?

R.17, que podia ver o sargento perfeitamente bem, respondeu:

— Agradecemos toda ajuda que nos possa prestar. Suponho que os senhores pertençam às tropas do general Tomisenkow.

A esta altura, Rabov já se havia refeito do susto e se levantou. A voz daquele homem na escuridão soava curiosamente dura e mecânica, se bem que o inglês que falava era perfeito. E o sargento entendia inglês muito bem. Portanto, esse pessoal que tinha sido derrubado era da OTAN.

— Sim, somos gente de Tomisenkow.

— Eu não entendi, o que o senhor disse. — constatou R.17, sem qualquer acanhamento. Não tinha competência para interpretar corretamente expressões idiomáticas.

Thora disse rapidamente:

— É claro que precisamos juntar forças, se quisermos sobreviver. Aliás, como é que foi que nos encontrou tão depressa?

Rabov tinha se aproximado lentamente e foi apanhado pelo feixe de luz, que vinha da cabina. Seu aspecto maltrapilho, embrutecido, não era de molde a causar a melhor das impressões, quanto mais despertar confiança. Thora sentiu calafrios ao imaginar o que poderia acontecer se caísse nas mãos de sujeitos tão rudes. Ainda bem que estava acompanhada por R.17; certamente saberia como protegê-la.

Durante os primeiros instantes, Rabov nem prestou atenção no detalhe dos cabelos brancos e dos olhos albinos, avermelhados. Só via a mulher. Fazia muitos meses que ele e seus camaradas não viam uma mulher. Rabov era um sujeito tenaz e valente, mas aquela visão insólita o fez ficar encabulado. Inseguro, trocava constantemente de pé, e finalmente balbuciou:

— Vimos sua nave ser derrubada. Nosso acampamento não é longe daqui. Fomos enviados pelo general Tomisenkow.

— Ótimo! — disse Thora, que instintivamente agarrou a chance que vislumbrou.

— Então nos leve ao seu general. Temos muito o que falar com ele.

Rabov acenou. Depois lembrou-se que ainda havia outras perguntas importantes a fazer.

— Foram os únicos que sobreviveram à queda?

— Fomos os únicos passageiros — respondeu Thora, sem se importar com a surpresa de Rabov. — Vamos logo! Não tenho nenhuma vontade de passar a noite inteira em pé aqui.

O sargento Rabov começou a desconfiar que os papéis haviam sido trocados, mas seu instinto o impedia de se indispor com essa mulher. Por isso ordenou aos seus três companheiros que guardassem as armas e iniciassem a caminhada de volta ao acampamento. Ele mesmo resolveu andar ao lado de Thora, sem dar muita atenção ao outro sobrevivente. Na sua opinião, devia ser o comandante da nave derrubada. Por uma questão de gentileza, Rabov se virou para R.17, que até agora tinha se mantido na escuridão, e disse:

— Espero que não tenha se ferido.

O robô respondeu, com toda objetividade:

— Apenas um cabo se soltou, mas esse defeito conseguimos consertar. Agora, quanto à nave, essa está perdida.

O sargento Rabov necessitou de vários segundos para reparar no aparente absurdo da resposta.

— Um cabo?! — murmurou. Não estava entendendo. — Onde é que esse cabo se soltou?

— Dentro de mim; eu não lhe disse?

Rabov estancou. R.17 que não reagiu com suficiente rapidez, esbarrou contra o sargento. Por pouco Rabov não se esparramou mais uma vez no chão. Tinha a impressão de ter sido abalroado por um tanque ligeiro. Aturdido pela surpresa, se agarrou a Thora que, felizmente, conseguiu se escorar numa árvore.

O braço esquerdo de R.17 se ergueu ameaçadoramente.

— Quem... O quê? — gaguejou Rabov, desconcertado.

Thora se livrou do sargento e sacudiu a cabeça, indignada.

— Não seja tão impetuoso, meu amigo. Meu companheiro é um robô. O que tem isso de tão espantoso?

É claro que o sargento Rabov não conhecia nenhum robô arcônida, mas ele sabia que, na Terra, somente a Terceira Potência possuía robôs. Como é que esse pessoal da OTAN havia conseguido botar as mãos nesses robôs? Ou então, um novo pensamento lhe varou o cérebro, será que esses dois não eram da OTAN? Mas então por que tinham sido derrubados?

Havia algo de podre nessa história, e Rabov resolveu ir direto ao assunto.

— Pertencem à Terceira Potência?

— Duvidou disso? — retrucou Thora e fez um gesto impaciente com a mão que, além de R.17, ninguém mais viu. — Vamos ficar parados aqui eternamente?

Rabov lançou um olhar furtivo na direção onde supunha que estivesse o robô, e pôs-se novamente em movimento.

Uma mulher e um robô... nunca na vida, nem ele nem o general Tomisenkow haviam capturado uma dupla tão estranha.

 

O ruído estranho fez Son Okura acordar.

No primeiro instante, ainda tonto de sono, foi incapaz de se lembrar que tipo de barulho tinha sido esse, e muito menos de imaginar o que o teria produzido. Levou até vários segundos para se lembrar onde estava.

Depois, sua mente se desanuviou. Sim... junto com John Marshall e Perry Rhodan, encontrava-se num galho largo, dez metros acima do solo de Vênus, em meio à selva daquele planeta virginal. A escuridão era total. Em algum ponto no oeste, situava-se a base arcônida, implantada no alto de uma cordilheira. E atrás deles, no leste, jaziam os escombros calcinados da sua nave espacial.

E ouviu novamente aquele barulho.

As pernas lhe doíam bastante, mas isso não preocupava Okura no momento. Ativou a parte mutada de seu cérebro... e, de repente, a noite se tornou dia claro para ele. Podia ver.

A menos de dois metros, encontrava-se Rhodan, meio deitado, as costas recostadas contra um galho não muito grosso. Ao lado dele, numa posição encolhida, estava Marshall, que dormia de boca aberta e roncava. Sua mão direita estava enfiada no bolso e Okura teria apostado a sua ração de água que, mesmo no sono, não largava o coldre daquele revólver obsoleto.

Era um ruído arrastante e vinha da esquerda, onde o enorme tronco da árvore gigante se erguia em direção ao teto da floresta, a mais de cem metros de altura.

Okura manteve-se imóvel, tentando descobrir a origem daquele ruído. Quando a descobriu, ficou mais imóvel do que antes. Por um instante seu coração parou de bater, mas depois o sangue lhe afluiu à cabeça com tal violência que Okura teve a impressão que fosse estourar.

Lentamente, aquela coisa amarela se deslocou sobre a bifurcação do galho e se arrastou, em ondas regulares, em direção aos três homens.

Nunca antes em sua vida Okura tinha visto um verme-lesma venusiano. Era até provável que homem algum antes dele tivesse posto os olhos nesse animal. Vivia oculto nas profundezas das incomensuráveis florestas. De dia, refugiava-se nas cavidades de troncos gigantes apodrecidos, e só abandonava o seu esconderijo à noite. Sua alimentação consistia em todas as matérias orgânicas: plantas, madeira mole... e carne. Tudo que também fosse lento ou, melhor ainda, imóvel, constituía a sua presa.

No entanto, não se podia considerar o verme-lesma como uma fera, ou um animal predador, na acepção costumeira da palavra.

De qualquer maneira bastou o aspecto deste bicho para que o medo estarrecesse Okura, incapaz de realizar o menor movimento. Com olhos arregalados fitou aquele ser horripilante, que se aproximava lentamente dele.

Realmente fazia lembrar uma lesma, ao menos no que dizia respeito à cabeça. Longas antenas, que oscilavam constantemente, estendiam-se para a frente, à procura de algum obstáculo. Na extremidade dessas antenas, constatou Okura, localizavam-se os pequenos olhos. A outra parte do animal era o verme propriamente dito. Um corpo alongado e flexível, sem pernas visíveis. Os movimentos dos diversos segmentos anulares eram responsáveis pela locomoção do verme-lesma.

O que mais infundia pavor era aquela bocarra voraz. Possuía três fileiras de dentes afiadíssimos, capazes de triturar praticamente tudo que conseguissem agarrar. Isso incluía ossos, sem a menor dúvida.

Okura interrompeu suas reflexões, quando viu que o animal parou de avançar. Os olhos nas pontas das longas antenas dirigiam-se ao japonês, como se também fossem capazes de enxergar na escuridão. Talvez até o pudessem. Seja como for, o animal devia ter farejado a sua presa e agora estava tentando descobrir, se esta era suficientemente lenta, para não mais lhe poder escapar.

Okura viu que o verme media, no mínimo, cinco metros de comprimento. Chegou à conclusão que ele e mais um de seus companheiros caberiam folgadamente no interior desse corpanzil, principalmente se a deglutição fosse precedida do devido processo de redução. O pensamento sumamente desagradável de eventualmente ser devorado com toda calma ali no alto daquele galho, restituiu a Okura o raciocínio e a capacidade de ação.

Com um movimento rápido, arrancou o irradiador do cinto e abriu o fecho de segurança; certificou-se que a lâmpada de controle estava acesa e constatou que a energia disponível era suficiente para liquidar dez desses horripilantes animais. A arma na mão devolveu a coragem a Okura, e desalojou o resto do medo angustiante que se tinha aninhado no seu coração. Nenhum ser vivo em Vênus conseguiria resistir a um moderno irradiador de impulsos dos arcônidas.

O verme-lesma parecia ter chegado à convicção que uma tentativa poderia trazer resultados satisfatórios. Os segmentos anulares do corpo voltaram a se locomover, e mais uma vez se fez ouvir aquele ruído arrastante, que havia arrancado Okura do sono. O japonês lançou um olhar preocupado aos dois companheiros, que dormiam profundamente; depois encolheu os ombros. Talvez não se assustassem tanto a ponto de cair da árvore, quando o chiado da descarga os despertasse do sono merecido.

A pequena distância permitiu fazer pontaria precisa e Okura apertou o botão disparador. O fino raio energético acertou em cheio a cabeça daquela criatura estranha, mas perigosa. As antenas, os olhos, aquela boca voraz, e a parte superior do corpo amarelo desapareceram no clarão da chama energética, instantaneamente sublimados. O resto do corpo do verme-lesma se contorceu violentamente, e resvalou do galho, precipitando-se com um estalo de encontro ao solo.

Rhodan acordou numa fração de segundos. Ergueu-se e viu que Okura estava tentando apagar as chamas com o pé, antes que se alastrassem para as folhas secas e os cipós.

— Que foi que houve, Okura?

— Uma espécie de serpente. Rastejou em nossa direção, mas acordei a tempo. Aliás, acho que é boa hora de reiniciarmos a marcha.

Marshall virou o corpo pesadamente para o outro lado.

— Que barulheira é essa? — reclamou, sonolento. — Ainda é noite escura. Será que nunca se consegue dormir em paz?

— Escapou por pouco de dormir em paz para todo o sempre! — explicou Rhodan, com toda calma, e se levantou de vez. — Ainda bem que Okura acordou na hora exata para impedir que o dragão nos devorasse.

— Como é que é?

Marshall ainda estava cansado demais para se inteirar da realidade dos fatos nos pensamentos de Okura.

— É mesmo. Algum monstro. Uma espécie de serpente, se quiser. Okura descobriu o bicho no último segundo e o matou. Será que não ouviu nada?

Marshall se sentou ao lado de Rhodan. Sacudiu a cabeça.

— Como é que eu posso ter ouvido alguma coisa, se eu estava dormindo?

Após essa constatação bastante lógica, tratou de preparar o almoço. Aquele trecho do galho, onde o verme-lesma havia exalado o último alento, ainda estava em brasas e fornecia iluminação suficiente. Meia hora depois, já estavam novamente marchando através da floresta. Okura, de arma na mão, ia na frente e sondava a vizinhança. O chão ainda se apresentava seco. Mas, como o terreno caía constantemente num declive quase imperceptível, era inevitável que dentro em pouco chegassem à região pantanosa. Os três homens aguardavam esse momento com os mesmos receios.

Algo rumorejava na mata, à direita. Marshall, que formava a retaguarda, ergueu a arma mas não encontrou alvo algum naquela escuridão. Algo os acompanhava, a menos de dez metros de distância, atravessando a vegetação densa com passos pesados. Marshall começou a sentir uma ligeira pressão em seu cérebro. Sem muita esperança de obter um resultado positivo, Marshall ativou a sua capacidade telepática... e teve uma surpresa.

Era incrível, mas estava realmente captando os pensamentos de um desconhecido. Eram pensamentos bastante primitivos e superficiais, que se ocupavam principalmente com presa e comida, mas não deixavam de ser pensamentos.

— Tem alguém à direita! — sussurrou, suficientemente alto para que Okura e Rhodan o pudessem ouvir. — Consegue vê-lo?

O japonês olhou na direção indicada e acenou.

— É a mesma sombra que observamos ontem. Aquela silhueta de um gorila. Garanto que é um macaco. Enquanto não nos atacar, não precisamos nos preocupar com ele. Só estou admirado que ele não toma conhecimento de nós. E é impossível que ele não tenha nos reparado.

— Talvez pensa que também somos macacos — murmurou Rhodan e lembrou-se dos quinhentos quilômetros que ainda tinham de percorrer. Aos poucos, começou a se amaldiçoar por ter partido no encalço de Thora tão despreparado e sem qualquer medida de segurança. Por que não havia escolhido uma nave já testada e perfeitamente equipada?

Continuaram a caminhar com disposição, sem se importar com seu acompanhante invisível. Finalmente chegaram às margens de um pequeno lago e acharam o lugar apropriado para passar um novo período de descanso. Um murmúrio distante e abafado vinha da escuridão em frente.

Rhodan perguntou a Okura se conseguia reconhecer alguma coisa.

— Não estou muito certo — respondeu o japonês, vacilante — mas, se os meus olhos não me enganam, lá adiante há uma depressão com alguns pântanos e um curso d’água. Atrás dela, ergue-se uma cordilheira. Consigo ver algumas quedas d’água bastante grandes. E lá em cima, no platô, a floresta é menos densa. Lá vamos poder avançar com maior rapidez.

Resolveram acender uma fogueira. O solo já se apresentava úmido mas, poucos metros acima do solo, encontraram lenha suficientemente seca. As chamas espalharam claridade e lançaram sombras grotescas contra a cortina da noite. Okura mantinha-se vigilante e vasculhava a redondeza sem cessar; mas sua preocupação era infundada. Os animais de Vênus conheciam o fogo apenas sob a forma de vulcões em erupção, e tinham razão para temê-lo.

A água do lago era impotável. Marshall, que preparava a refeição, observou meio desalentado que daqui a pouco teriam que começar a caçar, se não quisessem morrer de fome. Alertou, ainda, que a água estava escasseando. Rhodan tranqüilizou-o, lembrando que o dia venusiano já não estava longe e que lá em frente havia aquelas quedas d’água.

Desta vez não dormiram todos ao mesmo tempo. Revezaram-se e, assim, sempre havia um a vigiar o sono tranqüilo dos outros.

 

Lá pela meia-noite chegaram ao pé daquele paredão quase vertical.

O sol só nasceria daqui a sessenta horas; não era possível esperar tanto tempo. Durante a marcha através da baixada pantanosa Okura havia conseguido abater um pequeno animal com o revólver de Marshall. Com isso, dispunham de carne suficiente para as próximas refeições. E agora, quando se encontravam diante daquele paredão, ouviram ao lado o estrondo de uma enorme queda d’água.

— Um bom lugar para ficar e descansar de verdade — decidiu Rhodan. — Podemos acender outra fogueira e improvisar um muro com alguns desses blocos de pedra. Isso vai nos proporcionar segurança suficiente para uma pausa. E depois vamos subir até aquele platô

Okura olhou para cima. Seus olhos privilegiados vararam a escuridão perene da noite venusiana. Embora a temperatura houvesse baixado sensivelmente, ainda fazia muito mais calor do que numa noite de verão na Terra.

— Não consigo determinar isso com muita precisão — disse Okura mas aquele platô está a trezentos metros acima da baixada, no mínimo.

— E também não temos cordas! — comentou Marshall.

Rhodan liquidou as duas objeções.

— Não temos outra escolha. Além disso, é bom considerar que uma marcha através do platô é bem menos fatigante e perigosa que qualquer caminhada através da selva ou dos pântanos. Se algum dia Vênus for colonizada, os homens só vão poder viver no alto dessas ilhas rochosas. Bem, visto isso, vamos tratar do nosso assado. Marshall, acenda uma fogueira! Okura, desembrulhe sua caça!

Quando as chamas da fogueira se ergueram, constataram que o animal abatido apresentava muito pouca semelhança com uma caça terrestre. Era quadrúpede, mas as quatro pernas eram tão curtas que Okura acabou tendo a impressão de ter caçado um bassê avantajado. E aquele focinho estreito e afilado, fazia lembrar também um cachorro, enquanto que as orelhas, em pé, não tinham muito que ver com um bassê de raça pura. De um rabo, não havia nem sinal. E em lugar de pêlo, o animal possuía apenas pele lisa e escorregadia.

— Parece um porco-espinho de barba feita! — rosnou Marshall, lambendo os beiços furtivamente. — Ninguém gosta mais de animais que eu, mas, um bicho gozado desses, eu não queria ter em casa nem de graça. Vamos tratar de comê-lo!

— Tenho certeza que é bem mais saboroso que aqueles concentrados — comentou Rhodan e pôs-se a observar, interessado, com que habilidade Marshall estava preparando o assado.

Duas horas mais tarde estavam saciados e se recostaram no paredão ligeiramente aquecido, as mãos entrelaçadas sobre os estômagos repletos.

— Excelente! — elogiou Marshall sua própria arte culinária. — Precisamos nos lembrar dessa receita!

— Faltou o sal — murmurou Rhodan e sentiu que estava ficando com sono.

— Podemos chamar esse bicho de porquinho-bassê — sugeriu Okura, não menos sonolento.

Silenciaram. E, de repente, esse silêncio foi interrompido por um tiro.

Ouvir um tiro num planeta não habitado por homens era algo tão surpreendente e fora de propósito que as mentes não registraram esse fato incomum de imediato. Marshall fitava as chamas, perdido em pensamentos. E, para um observador neutro, deveria ter sido interessante acompanhar suas reações.

Marshall apurou os ouvidos, acenou várias vezes com a cabeça, e finalmente disse:

— Alguém devia estar caçando um porquinho-bassê, e acertou logo no primeiro tiro.

Resolveu atiçar o fogo e depois viu os olhos arregalados dos dois companheiros. De repente, ficou lívido:

— Deus do céu, alguém deu um tiro!

De um só salto, Okura estava de pé.

— Impossível! Quem poderia ter sido? Rhodan estava tão perplexo quanto os outros, mas a sua mente funcionava com maior rapidez e com raciocínio mais lógico. Numa fração de segundos, registrou o fato do tiro; concluiu que só poderia ter sido disparado por um homem e que, portanto, havia homens em Vênus; e no mesmo instante descobriu de que tipo de homens se tratava. Ao mesmo tempo, se recordou do aspecto geográfico do local onde as tropas de Tomisenkow haviam desembarcado, e logo em seguida desbaratadas; chamou à memória a sua própria posição, e chegou à mesma conclusão. Lá em cima, naquele platô, viviam os navegantes espaciais, dados como desaparecidos. Acenou para Okura.

— Por que acha que é impossível? Não somos os únicos homens em Vênus. Além disso, também poderia ter sido Thora.

— A arcônida jamais vai lidar com armas de fogo terrestres — disse o japonês, sacudindo a cabeça.

— Então, por exclusão, só restam os homens de Tomisenkow — disse Rhodan.

— O pessoal do Bloco Oriental? — Marshall ainda mantinha a cabeça inclinada. — O que esses caras querem aqui?

— Caçar...

Rhodan foi interrompido por um novo tiro, seguido dos estampidos de uma salva inteira. A resposta não se fez tardar; uma fuzilaria irregular veio de uma outra direção. Aquilo não era uma caçada. Era um combate entre dois grupos que se defrontavam na região. E isso alterava a situação. Rhodan olhou pensativo para aquele paredão, que se erguia quase a pique.

— Não vejo mais sentido em subir ao platô. Se me reconhecem, acabam comigo em três tempos. Pois é a mim que devem sua sorte atual; ao menos, é o que eles pensam. Por outro lado, eles possuem fuzis, e com esses a gente pode caçar. Seu revólver foi útil, Marshall, mas também não vai nos salvar por muito tempo. Portanto, um de nós vai ter que tentar estabelecer contato com eles.

— Uma tarefa arriscada como quê! — murmurou Okura. — Mas eu poderia tentar, porque eu consigo enxergá-los mais cedo do que eles a mim.

— De noite, sim. Eu acho que devemos subir juntos ao platô. Depois, resolvemos o que vamos fazer.

Enquanto arrumavam os seus pertences, ainda ouviram alguns tiros esparsos. Embrulharam o resto da carne em folhas secas, abasteceram-se de água e, finalmente, reduziram a fogueira sem, porém, extingui-la.

— Será que não podíamos dormir mais algumas horas? — quis saber Marshall. — Sei que estamos com pressa, mas também não com tanta assim.

Rhodan inclinou a cabeça e aguçou os ouvidos. Nenhum som veio do alto. O silêncio reinava novamente naquele platô. Rhodan acenou.

— De acordo. Mais cinco horas de sono e depois partimos. Eu só não entendo por que é que estão se batendo. Gostaria de saber qual é o pomo da discórdia.

Okura se estendeu embaixo de uma saliência de rocha e disse:

— O pomo da discórdia é Vênus, ora essa! Como os conheço, eles se engalfinharam porque não chegaram a um acordo quanto ao tipo de sociedade mais adequado para os futuros venusianos.

Rhodan acenou, com uma expressão séria no rosto.

— Pode ser que tenha razão, Okura. Mas, se esse for o caso, estão brigando à toa, porque jamais vai caber a eles resolver este assunto.

— E quem é que não briga por uma coisa dessas? — murmurou Marshall e fechou os olhos. A julgar pela sua expressão, desejava sonhar com bifes de porquinhos-bassê, mas não pensar a respeito de absurdos.

A fogueira se extinguiu lentamente. Escureceu.

E tudo continuou escuro, até que um súbito clarão rompeu as trevas. Mas isso só aconteceu horas mais tarde.

 

Quando o sargento Rabov entregou Thora e o robô no quartel-general de Tomisenkow, ficou admirado com a indisfarçada satisfação demonstrada pelo seu comandante supremo. Depois, em cumprimento às ordens recebidas, se embrenhou na mata à frente de uma patrulha de vinte homens, numa operação de reconhecimento da ilha rochosa dos rebeldes. Se possível devia fazer alguns prisioneiros, pois Tomisenkow queria saber se estavam planejando um ataque contra ele.

O caminho era longo e conduzia através de pântanos, baixadas e florestas, mas Rabov não o estava percorrendo pela primeira vez. Conhecia as marcações que levavam ao platô do inimigo; por isso não tinha dúvidas que encontraria esse caminho sozinho... no momento oportuno.

Mas esse dia ainda não havia chegado.

A patrulha de Rabov não era a única em operação nesta noite. Do lado oposto, um pequeno exército de uns duzentos homens aproximava-se do platô no qual se haviam instalado os rebeldes. Esses homens faziam parte de um outro bando sedicioso das tropas de Tomisenkow. Por razões puramente ideológicas, este bando não era partidário de nenhuma das duas facções, mas representava o pacifismo absoluto. E agora estava empenhado em impingir esse pacifismo aos rebeldes; se preciso, com o emprego da violência.

Um tenente de nome Wallerinski comandava o destacamento.

Wallerinski e seus homens chegaram primeiro. Escalaram a ilha rochosa dos rebeldes e pegaram as sentinelas de surpresa. Fiel aos seus princípios pacifistas, Wallerinski não matou as sentinelas, apenas as aprisionou. Mas isto não o impediu de interrogá-las com todos os requintes da arte de arrancar informações, a fim de que revelassem o esconderijo dos rebeldes.

Uma hora mais tarde, o destacamento de Wallerinski topou com o posto avançado dos rebeldes. Mas o homem não estava dormindo, e conseguiu soltar um tiro de alerta, que acordou o acampamento. Dez minutos depois, o tiroteio começou.

Rabov e seus vinte homens ainda se encontravam a alguns quilômetros do platô dos rebeldes quando ouviram os tiros. Discutiram o fato e chegaram à conclusão que, nas redondezas, deviam existir outros grupos daquele exército desbaratado, e que se combatiam mutuamente.

E essa triste verdade só tinha uma explicação: a culpa era daquela natureza inóspita, que transformava conhecidos em estranhos e impedia que se mantivessem as relações de amizade.

Rabov ia dar a ordem para prosseguir a marcha, quando um dos seus homens veio correndo em sua direção.

Agitado, e quase sem fôlego, o homem balbuciou:

— Luz! Lá na frente há uma fogueira. Pode-se vê-la com toda a nitidez!

— Lá embaixo? — quis saber Rabov.

— Sim, no pé do paredão. Talvez os rebeldes instalaram um posto avançado lá.

— É, um posto avançado com uma fogueira, para que possam ser vistos a quilômetros de distância — disse Rabov com ironia. Tinha certeza que a verdade era bem outra, mas qual seria, não podia imaginar. Senão teria refletido um pouco mais, antes de emitir sua ordem: — Vamos descer, para ver quem são!

E assim, duas horas mais tarde, Rabov olhou para três homens adormecidos, que acordaram imediatamente quando os feixes dos holofotes incidiram nos seus rostos.

Como tinham aspecto bem tratado e não trajavam o uniforme daquele exército desbaratado, Rabov se dirigiu a eles em inglês. Tinha o vago pressentimento que aquela mulher havia mentido ao afirmar que somente ela e o robô se encontravam naquela nave espacial derrubada.

— Estão sob a mira de vinte fuzis! — advertiu — portanto, não tentem agarrar as pistolas. Um dos meus homens vai agora recolher suas armas. Se estiverem de acordo, acenem.

Perry Rhodan reconheceu que tinha cometido um erro fatal. Era realmente um contra-senso querer dormir tranqüilamente num terreno onde se realizava um tiroteio. Agora teria que arcar com as conseqüências. Baixinho, sussurrou para Okura:

— Consegue reconhecer alguma coisa?

— O sujeito não está mentindo, não — cochichou o japonês em resposta. — Estamos cercados, e vejo os fuzis apontados para nós. Podíamos liquidar alguns deles...

— E qual é a nossa chance?

— Bem, eu diria um para dez.

— É muito pouco — sussurrou Rhodan e, depois, disse em voz alta: — Mande vir o seu homem para apanhar as armas. Quem são vocês?

— Vai ficar sabendo disso quando chegar a hora. Foram os senhores que atiraram ainda há pouco?

— Se está se referindo àquele tiroteio, sinto ter que desapontá-lo. Foi realizado lá em cima, no platô.

Sem oferecer resistência, Rhodan deixou que lhe tirassem o irradiador de impulsos do cinto e constatou, com satisfação, que Marshall conseguiu ficar com o revólver oculto no fundo do bolso. Okura não fez uma cara muito feliz, quando lhe retiraram a arma. Pela primeira vez não sorriu.

— Muito bem — disse o homem atrás do holofote — agora vamos conversar um pouco.

Quando emergiu da escuridão, Rhodan conseguiu finalmente vê-lo. Um aspecto pouco alentador, constatou no íntimo, fazendo votos para que outro não o reconhecesse; Não era realmente uma perspectiva muito agradável cair nas mãos daqueles homens que ele, por assim dizer, havia entregue a um destino incerto em Vênus.

— Eu sou o sargento Rabov, do exército do general Tomisenkow — apresentou-se Rabov. — E quem são os senhores?

Essa pergunta exigia uma resposta clara. Ou ao menos uma resposta, pensou Rhodan, que não soasse suspeita.

— Faço parte de uma expedição — disse ele, cauteloso — que recebeu a missão de testar a vigilância da fortaleza venusiana de Rhodan.

— Quem o enviou?

— Ora, quem havia de ser?

— Os americanos?

— É possível.

Rabov considerou isto como uma resposta positiva. Só não conseguia explicar por que aquela moça, lá em cima no platô, havia mentido, e por que esses três se tinham separado dela e do robô.

— Suponho que vieram sozinhos. Foram derrubados?

— Adivinhou.

Rabov refletiu. Ainda não era hora de exibir todos os trunfos. O prisioneiro não precisava saber que ele já havia encontrado os outros sobreviventes. Era sempre bom deixar o adversário na incerteza a respeito da sua situação. Isso era um princípio básico antiqüíssimo e de uma eficiência mais que comprovada. Todavia, era bem interessante ouvir que esse homem admitia pertencer à OTAN, enquanto a mulher afirmava representar a Terceira Potência.

— E onde foi derrubado? Rhodan apontou para leste.

— Lá, em cima da selva. Os canhões nos apanharam.

— Ah! — fez Rabov, sem estar convencido. — Quer dizer que não foram derrubados sobre um platô e sim sobre a selva? E depois vieram para cá a pé?

— Isso mesmo. Há algo de estranho nisso?

Rabov não deu resposta. Estava diante de uma encruzilhada. O que seria mais acertado: levar os prisioneiros ao acampamento de Tomisenkow ou entregá-los, como presente introdutório, nas mãos dos rebeldes, aos quais pretendia se aliar? Além disso, ainda era preciso descobrir quem era aquele terceiro grupo que havia atacado os rebeldes de surpresa. Talvez fosse melhor esperar até que não houvesse mais dúvida quem seria o vitorioso.

A prudência venceu e Rabov tomou sua decisão.

— Vamos levá-los conosco — disse ele a Rhodan. — Vamos andando, homens! Quero ver o que se passou lá em cima. Talvez abocanhemos a parte do leão!

A escalada se revelou demorada e não isenta de perigos.

Alguns dos homens de Rabov serviram de guia, pois conheciam a trilha secreta suficientemente bem para encontrá-la também na escuridão. Rhodan, Marshall e Okura iam no meio, seguidos de Rabov. Os demais soldados da patrulha formavam a retaguarda.

Após sete horas, houve um período de descanso e Rabov avisou que agora não faltava muito para atingirem o platô. Rhodan estava admirado com o comportamento inesperado do sargento. Tinha como certo ser tratado com aspereza e severidade e, no entanto, Rabov mostrava-se reservado e, às vezes, até mesmo gentil. Bem, esse pessoal não sabia quem eram seus prisioneiros mas, mesmo assim, a consideração que lhes dispensavam era surpreendente. Rhodan resolveu não se esquecer desse detalhe.

Notava-se que Marshall queria segredar algo a Rhodan, sentado ao seu lado. Mas a presença constante de Rabov impediu que o fizesse e, assim, Marshall resolveu aguardar uma ocasião mais propícia.

Dez minutos depois, reiniciaram a escalada e meia hora mais tarde alcançaram o platô. Na distância, ouviu-se novamente o pipoquear de tiros. Okura caminhava, agora, ao lado de Rhodan e, na primeira oportunidade, sussurrou rapidamente:

— Quer que eu fuja? Para mim é fácil!

Disso Rhodan não tinha dúvida. O japonês podia enxergar no escuro, e, além disso, nenhum dos três prisioneiros tinha sido manietado. Se Okura permanecesse nas proximidades, poderia intervir a qualquer momento, caso a situação viesse a se tornar crítica.

Rabov havia percebido o cochicho e se aproximou, curioso.

— Preferia que se mantivessem em silêncio — disse em tom cortês, porém firme.

Rhodan deu um aceno afirmativo para Okura e depois se dirigiu a Rabov:

— Não se preocupe, eu o acompanharia também de livre e espontânea vontade. Acha que gostaria de ficar sozinho na selva? Não, se alguém pode me ajudar, é o senhor.

Rabov parecia estar mais tranqüilo.

E de repente Okura desapareceu. Além de Rhodan, ninguém mais percebeu a fuga do japonês, pois cada qual estava cuidando de si, procurando não tropeçar em pedras soltas ou troncos de árvores tombados. Aquele tiroteio distante tinha chegado mais perto. Portanto, os combates prosseguiam.

O terreno em frente já era bem menos acidentado. Na distância havia claridade, como se a floresta estivesse em chamas. Provavelmente o acampamento dos rebeldes havia sido incendiado. A fuzilaria era intensa, entremeada pelas detonações de pequenas granadas. Mais além ouviu-se o ribombar de um canhão.

Rhodan constatou, satisfeito, que não estavam empregando armas atômicas. Era um sinal de que os futuros colonos de Vênus ainda não eram tão civilizados a ponto de recorrerem às últimas conquistas da tecnologia humana.

As primeiras balas passaram, sibilantes, sobre as cabeças dos homens. Sem perda de tempo, todos se jogaram no chão. Rabov estava deitado ao lado de Rhodan, a quem não perdia de vista um instante sequer. O incêndio, que devorava a aldeia dos colonos situada atrás do pequeno bosque, fornecia luz suficiente. As poucas árvores, espalhadas na vizinhança imediata, não ofereciam qualquer possibilidade de abrigo.

— Onde é que está seu japonês? — ofegou Rabov, mexendo nervosamente na pistola. — Não vai me dizer que ele...

— Não está longe daqui — explicou Rhodan, sem mentir. — Talvez resolveu examinar a situação mais de perto. Para ser honesto, eu também não me considero propriamente um prisioneiro seu. Seja sensato, Rabov; é esse o seu nome, não é? Pode ser que estejamos defrontando com um inimigo comum. Devíamos nos unir antes que ele nos obrigue a isso.

— As ordens que recebi não foram no sentido de entrar em combate com o inimigo e, sim, para fazer um reconhecimento geral da situação. Preciso saber quem realizou esse ataque de surpresa ao acampamento dos rebeldes.

— Rebeldes, por quê? — admirou-se Rhodan.

— Amotinaram-se contra Tomisenkow e resolveram permanecer em Vênus, de livre e espontânea vontade, para se tornarem colonos.

— Que mais poderiam fazer? Tomisenkow não está de acordo com essa decisão?

— O general só quer realizar a tarefa de que foi incumbido: conquistar a base venusiana de Rhodan.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Isto é tão absurdo quanto inútil. Na Terra, Rhodan e o Bloco Oriental já selaram a paz. O exército de Tomisenkow foi dado como desaparecido.

Rabov silenciou. Então os rebeldes estavam certos quando resolveram iniciar uma vida nova em Vênus. Mas então quem era esse pessoal que havia assaltado os rebeldes? Um outro grupo do qual nada se sabia?

Rabov decidiu botar as cartas na mesa.

— Não sei quem você é, mas vou lhe dizer uma coisa: você mentiu para mim. Você não pertence à OTAN e sim à Terceira Potência de Rhodan. Por que me ocultou isso?

— O que lhe faz pensar isso?

— Apenas sei que é verdade. Não obstante, você foi derrubado pelos canhões de Rhodan. E isso eu não entendo. Tem alguma coisa contra Rhodan?

— Não contra a pessoa dele — disse Rhodan, numa autocrítica cheia de ironia — apenas contra sua leviandade.

— Essa também não entendi! — Rabov sacudiu a cabeça e olhou para a frente, onde o clarão de uma explosão rasgou o crepúsculo. Alguns tiros pipocaram perigosamente perto. Passos apressados arrastavam-se sobre o pedregal. Contra o horizonte em chamas destacavam-se as silhuetas de homens que corriam em todas as direções. A agitação estava aumentando.

— Como sabe que eu pertenço à Terceira Potência? — perguntou Rhodan e olhou para Marshall. Antes que Rabov pudesse responder, o telepata disse:

— Uma nave foi derrubada sobre outro platô. Rabov foi até lá e encontrou uma mulher e um robô. Os dois se encontram agora nas mãos do general Tomisenkow.

Deliberadamente Marshall não citou nomes, mas Rhodan compreendeu imediatamente que Thora não tinha chegado à fortaleza venusiana. Também tinha fracassado no seu intento. A essa altura, já devia ter revelado a sua identidade e isso tornava a situação mais crítica, porque o general Tomisenkow jamais entregaria voluntariamente um trunfo tão alto.

— Isso é verdade? — perguntou Rhodan, dirigindo-se a Rabov.

O sargento acenou, perplexo.

— Como é que ele sabe disso?

Rhodan ignorou a pergunta.

— Quem é essa mulher?

— Não disse o seu nome, porém admitiu pertencer à Terceira Potência. Mas ela mentiu quando disse que veio apenas na companhia do robô. O senhor estava com ela, e depois se separaram. Por quê?

Rhodan vislumbrou sua chance. Se não descobrissem um elo entre ele e a fuga de Thora, era bem provável que também não fosse reconhecido. Por outro lado, Tomisenkow não sabia que Thora tinha fugido e estava sendo perseguida. E imediatamente reconheceria nela a arcônida.

Uma situação confusa.

Mas, no próximo instante, Rhodan se veria obrigado a interromper seus pensamentos.

Subitamente um fulgor relampejou rente ao seu rosto e o estampido de um tiro quase lhe estourou os tímpanos. Alguém soltou um grito e tombou pesadamente. De toda parte, surgiram vultos indistintos e se lançaram sobre os homens calmamente deitados no chão.

Rhodan viu que Marshall se levantou de um só salto e mergulhou entre os arbustos ao lado. Durante algum tempo, ouviu os passos que se afastaram apressadamente, mas decidiu não seguir o exemplo de Marshall, embora soubesse que dificilmente teria outra oportunidade tão propícia para fugir.

Mas a nova situação exigia que permanecesse junto a Rabov para o que desse e viesse.

Aos gritos selvagens da luta corpo a corpo misturaram-se de repente, exclamações de surpresa. Tornou-se evidente que os atacantes tinham cometido um engano, tomando os adversários por rebeldes. Em voz alta alguém intimou Rabov e seus homens a se renderem. Disse que poderiam ficar de posse das armas, mas que era preciso negociar, antes de continuar com essa carnificina inútil.

Essa proposta pareceu bastante sensata a Rabov. Ordenou a seus homens que cessassem o fogo. Todos obedeceram, menos quatro; mas esses quatro nunca mais poderiam obedecer a ninguém, pois estavam mortos.

O adversário inesperado também havia sofrido baixas mas, nessa confusão generalizada, não era possível determinar prontamente o número exato. Rabov estava novamente do lado de Rhodan, a mão sobre a coronha da pistola automática. Parecia não ter percebido que Marshall havia fugido. Mas também podia ser que soubesse do fato, e só não achava o momento propício para discutir o assunto.

Alguém acendeu um archote primitivo. Um homem alto, de barba negra, atravessou o círculo de luz e parou diante do sargento, no qual devia ter reconhecido o comandante daquele destacamento.

— Quem são vocês? — perguntou, em tom arrogante. — Pertencem aos rebeldes?

— Podia fazer a mesma pergunta ao senhor! — retrucou Rabov. A arma na sua direita apontava para o chão. — O senhor matou quatro dos meus homens!

— Quer dizer que não são rebeldes? É curioso. Então são homens do general Tomisenkow?

— E se for o caso?

— Não melhora em nada a situação... a sua, bem entendido. Não queremos ter nada com ninguém; nem com Tomisenkow, nem com seus adversários!

— Se é assim, por que atacaram os rebeldes?

O outro não deu resposta a esta pergunta. Disse:

— Vamos continuar a conversar na aldeia. Sigam-me até lá. Se forem sensatos, vai ser fácil encontrar uma solução. Os sobreviventes da aldeia já se aliaram a nós.

— A vocês; afinal de contas quem são vocês?

O desconhecido estufou o peito.

— Eu sou Wallerinski, o presidente dos pacifistas.

Rabov acenou lentamente e lançou um rápido olhar para Rhodan. Depois seus olhos fitaram os quatro soldados mortos, vítimas daquele ataque de surpresa.

— Ah! Agora estou entendendo — disse ele, e deu um suspiro. — Quer dizer que vocês são pacifistas? Parece inacreditável, mas até em Vênus já estão realizando um baile de máscaras de dogmas humanos. Todo mundo trocou de papel e se disfarça com mantos alheios. Pacifistas transformaram-se em assassinos e incendeiam uma aldeia. Rebeldes tornam-se colonos pacíficos e são escorraçados da sua gleba. Tropas regulares levam uma vida de bandidos. Realmente é uma situação muito clara e inequívoca!

— O que quer dizer com isso? — vociferou Wallerinski furioso.

Rabov encolheu os ombros.

— Entendeu muito bem o que eu quis dizer! — retorquiu e acrescentou: — Vá lá; vamos acompanhá-lo. Mas vou avisando logo: não vamos permitir que nos trate como prisioneiros!

No íntimo, Rhodan teve de admitir que estava simpatizando com o sargento Rabov.

 

Favorecido pela escuridão, Okura conseguiu se manter perto da patrulha desde o momento de sua fuga. Testemunhou o assalto e o surpreendente armistício e, quando viu Marshall fugir, fez com que o australiano o encontrasse. Juntos, começaram a seguir os dois grupos que marchavam para a aldeia e se vigiavam mutuamente, abertamente desconfiados.

— Devíamos tirar Rhodan do meio daquele pessoal — murmurou Okura, que não conseguiu se livrar de um certo sentimento de culpa. Mas Marshall sacudiu a cabeça.

— Não é o que ele quer. Eu agora consigo captar bem os seus pensamentos, e há mensagens para nós no meio deles. Ele quer ficar junto desse Rabov, porque só esse sabe onde Thora se encontra. No momento, ele não corre perigo. Se a situação se tornar crítica, quer que o libertemos junto com Rabov. Mas, se possível, sem derramamento de sangue.

— E como é que vamos saber se a situação ficou crítica ou não? — objetou o japonês, ainda céptico. — Não gostei nem um pouco desse cara que apareceu por último.

— Wallerinski? É um fanático inofensivo.

— Será que existem fanáticos inofensivos? — observou Okura, que tinha suas dúvidas. — Mesmo o fanático mais burro pode ser perigoso. Por falar nisso, gostaria de saber que causa esse Wallerinski defende tão fanaticamente!

— O pacifismo! — respondeu Marshall sombriamente. — Consegue ver bem agora?

— Lá na frente está a aldeia. Metade foi destruída pelo incêndio e os escombros ainda estão fumegando. Os habitantes fugiram. Se a sua afirmação foi correta, estamos diante da obra de um pacifista.

Havia amargura nas palavras do japonês. Sabia quantos abusos já tinham sido cometidos em nome do pretenso pacifismo. E sabia isso de experiência própria. Hoje, qualquer um encobria as intenções agressivas sob o manto do pacifismo e afirmava que suas ações serviam unicamente à causa da paz. Graças a Deus, as coisas haviam mudado desde que existia a Terceira Potência. Mas, em Vênus, a história da Humanidade ainda se encontrava no limiar.

Okura e Marshall pararam na orla da clareira. Se avançassem mais, corriam o risco de serem descobertos. Mas, mesmo que o japonês perdesse agora Rhodan de vista, Marshall continuaria em comunicação com ele, se bem que essa comunicação era apenas unidirecional. Infelizmente o dom telepático de Rhodan era muito limitado, porém ele sabia que Marshall conseguia captar seus pensamentos. E foi desta maneira que o australiano ficou sabendo de tudo que se passava naquela aldeia, apesar de não poder utilizar o rádio de pulso.

A ampla sala de reuniões estava repleta de homens e também algumas mulheres, que pertenciam ao grupo rebelde. Wallerinski galgou uma mesa, ergueu as duas mãos e pediu silêncio. Lançou um olhar ligeiro para um punhado de prisioneiros no fundo da sala, certificou-se que as saídas estavam devidamente guarnecidas por sentinelas, e depois começou a falar.

— Homens e mulheres! — gritou com uma voz autoritária e nada agradável. — A luta entre nós terminou. Tomamos a resolução acertada de nos unir. De agora em diante, vamos trilhar juntos o caminho do futuro. Queremos que a paz reine em Vênus, mas para que isso se torne realidade é preciso eliminar uma última ameaça, a maior de todas. E essa ameaça é o general Tomisenkow. Insiste em realizar o intento suicida de atacar a base de Rhodan. Foi motivo bastante para nos separarmos dele. Vocês fizeram o mesmo, se bem que por uma razão diferente: querem se tornar colonos pacíficos e melhorar suas condições de vida. Mas antes que possamos nos dedicar ao nosso trabalho, Tomisenkow tem que ser eliminado, e é preciso inculcar nos seus homens a convicção de que nossos objetivos são melhores. E para isso, precisamos de um líder.

Lá da porta alguém gritou:

— Wallerinski é o nosso líder! Vai nos trazer a liberdade!

Rhodan acenou lentamente.

— É assim que começam todas as guerras! — sussurrou, tão baixinho que só Rabov, que estava ao seu lado, pôde ouvi-lo.

O sargento não respondeu. Pressentia que, fatalmente teria que tomar mais uma decisão portentosa. Só não podia imaginar o que essa decisão envolvia.

 

Até nova ordem, o Exército de Mutantes de Perry Rhodan ficou sob o comando de Reginald Bell, ministro da segurança da Terceira Potência. Um dos efeitos da radiação liberada pela bomba atômica de Hiroshima foi uma certa alteração no sangue das vítimas, e, pouco menos de vinte anos após aquele terrível evento, apareceram os primeiros mutantes. Entre eles havia telepatas, aos quais nenhum pensamento dos seus semelhantes ficava oculto. Havia localizadores, que captavam ondas encefálicas e podiam reconhecer o estado de ânimo de terceiros. Havia ainda os telecinetas que, graças à energia da mente, conseguiam locomover matéria através de grandes distâncias. Já os teleportadores empregavam a força do pensamento para se desmaterializarem, o que lhes permitia transportar a si mesmos através de longos percursos.

O único membro extraterreno do exército secreto dos mutantes era Gucky, o rato-castor do planeta Vagabundo. Durante uma escala, esse ser — que não chegava a ter um metro de altura — havia se escondido sorrateiramente a bordo da nave espacial e, a partir desse momento, pertencia ao reduzido círculo dos amigos mais íntimos de Rhodan.

Isso podia parecer estranho mas, apesar do seu aspecto, Gucky não era um animal. Era um ser inteligente, capaz de pensar e raciocinar. Sob a orientação de John Marshall, havia aprendido inglês e até intercosmo: e agora estava apto a se comunicar perfeitamente nesses idiomas. Gucky costumava se sentar diante dos visitantes de Rhodan, apoiando-se na cauda de castor. E todos achavam aquela criatura “muito engraçadinha”. Mas, invariavelmente, levavam um susto tremendo quando de repente, dizia:

— Bem, e o senhor como tem passado, cavalheiro?

E ainda por cima era o melhor telecineta de todo o corpo de mutantes! Foi um custo fazê-lo perder o hábito de brincar voluntariamente com essa faculdade; porém agora já não havia naves espaciais que decolavam sem razão ou canhões de radiação que disparavam sozinhos. Mas não era só isso. Gucky possuía ainda vários outros talentos, entre os quais se destacava uma extraordinária capacidade telepática, ainda mal explorada. Tratava-se, enfim, de um verdadeiro gênio universal.

Entre ele e Bell reinava uma espécie de antagonismo amistoso, fato que se revelava toda vez que se encontravam. Como hoje, quando Bell convocou o Exército de Mutantes para explicar os detalhes da nova missão.

As solenidades foram encerradas com o discurso de Bell e o mundo voltou ao dia-a-dia. Bell se lançou ao trabalho. Estava preocupado. O destróier de Rhodan tinha sido avistado pela estação lunar para, em seguida, desaparecer na direção de Vênus.

E, a partir daquele momento, não havia mais notícias dele ou de Thora. As hiperestações radiofônicas mantinham os receptores ligados noite e dia, porém, nenhum comunicado veio de Vênus. Isso foi o suficiente para que Bell se lembrasse da ordem de Rhodan. Convocou os mutantes, expôs a situação e lhes ordenou que se apresentassem a bordo do girino número cinco, dentro de meia hora.

Aquela nave esférica, designada no código das comunicações pela palavra girino, tinha um diâmetro de sessenta metros, e era capaz de voar com velocidade superior à da luz. Do ponto de vista terrestre, podia ser considerada como a nave espacial perfeita; entretanto, arcônidas a utilizavam apenas como nave auxiliar dos seus couraçados espaciais da classe império.

Bell finalizou sua exposição sucinta, dizendo:

— ...portanto, algo pode ter acontecido a Rhodan. Exijo o máximo empenho de todos e que ajam com rapidez e decisão. Vamos levar cinqüenta soldados-robôs, além de dez caças espaciais com os respectivos pilotos. Alguma pergunta?

Bell olhou ao redor.

— Muito bem, então dentro de trinta minutos; podem se retirar!

Ia sair rapidamente da sala, mas quase esbarrou em Gucky, que estava ocupando o vão da porta.

— Só uma perguntinha — disse o rato-castor, exibindo seu único dente roedor, o que significava que estava rindo.

Mas isto não implicava que também estivesse de bom humor. Bell sabia disso, ao menos devia ter sabido.

— Fale logo, estou com pressa!

— Eu sou membro do Exército de Mutantes e, portanto, vou participar dessa missão. Ou não?

— Você? Quer ir a Vê nus para cometer uma das suas travessuras? E causar confusão geral? Nem pense nisso!

Bell ia forçar a passagem, porém Gucky bloqueou o caminho.

— Vou contar isso a Rhodan! — ameaçou, mudando de tática.

— Por mim, pode contar a ele o que você quiser — grunhiu Bell e tentou em vão levantar o pé. Era como se estivesse pregado ao chão. — Pare com essa brincadeira, seu anão! Prender o meu pé! Isto é insubordinação!

— Posso ir com vocês ou não?

Bell sentiu que o sangue lhe afluía à cabeça. Alguns dos mutantes tinham se aproximado e estavam começando a rir.

— Não pode, não! — decidiu Bell, se bem que agora ainda poderia ter evitado uma derrota ignóbil. — Não mesmo! Essa missão requer homens, não um Mickey Mouse!

Não deveria ter dito isso. Gucky sentia-se mortalmente ofendido toda vez que alguém o apelidava de Mickey Mouse.

Bell sentiu que a pressão no seu pé estava cedendo, mas isto pouco lhe adiantou.

De repente, se tornou leve como uma pluma. Apoiado na cauda de castor, Gucky estava sentado diante dele e o observava fascinado. Exibia o dente solitário num riso manhoso. O pêlo castanho da nuca se eriçou, formando uma gola lanosa.

— É sua palavra definitiva? — estridulou, tremendo de excitação.

A voz de Gucky já era esganiçada por natureza, mas adquiria uma estridência fora do comum quando o seu dono estava emocionado.

— É definitiva, sim! — berrou Bell, a plenos pulmões, apesar de saber que não adiantaria nada e quais seriam as conseqüências. Queixar-se a Rhodan também seria totalmente inútil, pois esse só iria rir dele a valer. Fato é que Gucky tinha umas tantas regalias; e sabia tirar o máximo proveito delas.

Uma ligeira rigidez apareceu no olhar meigo de Gucky, sinal que estava se concentrando. E Bell ficou definitivamente liberto da gravidade... e começou a subir como um balão. Mãos invisíveis abriram a janela, e Bell flutuou para fora.

E lá ficou pairando, trinta metros acima do piso de concreto, sustentado apenas pelas formas telecinéticas de Gucky.

Exibindo um riso triunfante, Gucky bamboleou até a janela, galgou o parapeito com um salto elegante, e pôs-se a observar o amigo, que devolveu o olhar com uma expressão de raiva impotente.

— Como é? — piou Gucky, alegremente. — não vai mudar a sua decisão? Afinal, você tem que admitir que eu sou um aliado bastante capaz.

— É, mas duvido que consiga fazer flutuar um sáurio — resmungou Bell e olhou para baixo, apavorado. Seus pés estavam apoiados em nada. — Além do mais, isso não passa de pura extorsão!

— Que palavra mais feia! — indignou-se Gucky e fez com que Bell caísse dois metros. — Um homem educado não usa um termo desses!

— Não faz idéia dos termos que tenho em mente em relação a você! Está bem; vou pensar no caso. Mas agora me faça entrar!

— Quero saber se vou participar dessa missão, ou não! — insistiu Gucky.

Parecia não tomar conhecimento da presença dos outros mutantes, que acompanhavam o espetáculo com vivo interesse. Nenhum deles ousou interferir, porque Bell poderia se estatelar no fundo. Mas Gucky não via perigo algum; confiava nas suas forças.

Bell deu um aceno convulsivo e tentou encostar as mãos na parede do prédio.

— Está bem; você vem conosco, mas sob uma condição.

— Qual é? — quis saber Gucky, desconfiado, e fez desaparecer o dente.

— Você tem que me prometer que vai se comportar direitinho, e fazer tudo que eu lhe mandar. E nada de travessuras em Vênus! Entendido?

O rato-castor fez Bell pousar suavemente no peitoril e acenou vivamente com a cabeça.

— De acordo. Mas se você não cumprir sua palavra, deixando-me aqui, vou fazê-lo voar para a Lua sem traje espacial!

Sem uma palavra, Bell pulou do peitoril e se dirigiu à porta.

A telepata Betty Toufry corou subitamente e fixou um olhar estarrecido nas costas de Bell.

O ministro da segurança da Terceira Potência devia ter pensado uma imprecação terrível e, ao mesmo tempo, bastante obscena.

 

O general Tomisenkow observou sua visita inesperada com indisfarçada satisfação. Realmente, a sorte o havia bafejado além de qualquer expectativa. Thora havia caído nas suas mãos! Logo Thora, a colaboradora íntima de Rhodan! Logo ela, a arcônida, a quem Rhodan devia todo o seu poder!

Tomisenkow pôs-se a matutar no que tinha acabado de ouvir. Era preciso aprender a lidar Com Thora, a não contrariá-la. Talvez assim pudesse ser levada a revelar, um dia, alguns dos segredos dos arcônidas. Seria tão absurdo imaginar que isso pudesse acontecer? Tomisenkow achava que não. Afinal, a nave de Thora não tinha sido derrubada pelas armas do próprio Rhodan?

— É lastimável, realmente lastimável! — disse o general, cheio de simpatia. — E estão achando que tudo não passou de um engano lamentável?

— Absolutamente não foi um engano — disse R.17, com voz rangente. Parecia que tinha chegado a época da sua revisão anual. Era preciso lubrificar, com urgência, alguns dos mancais da sua laringe artificial. — A instalação eletrônica de vigilância não nos reconheceu.

— Não acha possível que Rhodan mandou derrubá-los de propósito para que não pudessem penetrar na base de Vênus? — perguntou Tomisenkow, ardiloso.

— Isto é absurdo! — objetou Thora. — Rhodan ainda não podia ter chegado aqui!

— Ah! Quer dizer, que ele ainda vem?

Thora mordeu os lábios. Volta e meia cometia o erro de subestimar os homens. Por pouco não se traiu. Agora era tarde demais para tirar Rhodan da jogada.

— É possível — disse ela, procurando uma evasiva. — Tudo é possível. Talvez seja até possível ao senhor explicar por que pretende me deter aqui. Sabe tão bem quanto eu que o meu robô pode destruir todo seu acampamento. Vai me fornecer agora as provisões pedidas e os soldados? Ou quer que eu tente chegar lá sozinha?

— Vai pensar duas vezes antes de empreender algo contra mim, pois sozinha está praticamente indefesa! Só com esse robô, nunca vai chegar à base a mais de quinhentos quilômetros daqui. Portanto, a senhora depende de mim. Bem, quero me aproveitar da sua situação precária. Vou ajudá-la. Vou levá-la à base, caso as barreiras não nos detenham.

— Essas reagem ao padrão dos cérebros arcônidas, portanto, não constituem perigo.

— Ótimo! E, quando estiver diante da base, o que vai fazer, e o que vai acontecer comigo?

— Pode regressar, são e salvo.

O general Tomisenkow deu um sorriso manhoso.

— Quanta generosidade de sua parte, nobre arcônida! Quando Rhodan a salvou na Lua a senhora o recompensou, dando-lhe o poder sobre a Terra. Agora eu a salvo aqui, e está querendo me despachar com uma mera esmola. Aliás, esmola coisa nenhuma! O que pretende me dar já possuo há muito tempo. Segurança? Essa eu tenho! Não, minha cara, se quiser chegar à fortaleza vai ter que pagar um preço condizente... ou pode tentar ir sozinha!

Tomisenkow sabia que Thora jamais chegaria à base sem ajuda, um fato que ele pretendia explorar. Além disso, era seu propósito, separar Thora do robô na primeira oportunidade, para aprisioná-la. Não existia refém melhor do que Thora.

Principalmente se era verdade que Rhodan estava se dirigindo para cá.

Nem por um instante Thora acreditou na sinceridade desse homem. Agora mesmo poderia ter dado uma ordem de aniquilamento total a R.17. Mas, de que lhe valeria isso? Além disso, ela não sabia com que armas os homens de Tomisenkow estavam equipados. Talvez até conseguissem eliminar o robô, e nesse caso ela estaria perdida de fato. Pesou bem as palavras, antes de pronunciá-las:

— Não tenho saída. Vou precisar do seu auxílio. Reconheço, também, que vou ter que pagar por ele. Vamos aguardar o romper do dia. Aí podemos discutir os detalhes. Até lá, peço que me dê um alojamento para mim e o robô.

— Esse também precisa dormir? — perguntou Tomisenkow, com ironia.

Thora sacudiu a cabeça e disse, reservada:

— Ele não. Mas eu preciso.

 

Rhodan, Rabov e seus homens não podiam ser considerados como prisioneiros, na acepção normal do termo. A começar pelo fato de que puderam ficar de posse das armas. Foram alojados numa grande choupana, diante da qual Wallerinski postou imediatamente algumas sentinelas; não para vigiá-los, como afirmou, e sim para protegê-los.

Rhodan pediu a Rabov que lhe devolvesse a arma bem como a dos seus dois companheiros. O sargento anuiu prontamente ao pedido. Talvez pressentia que, num futuro próximo, necessitaria do auxílio desse estranho misterioso.

— O que vai acontecer agora? — perguntou Rhodan. Achava que Rabov devia conhecer melhor a mentalidade dos seus patrícios. — Acredita que o grupo de Wallerinski vai atacar as tropas do general?

— É mais do que certo!

— E não acha que, na posição que ocupa, tem o dever de alertar Tomisenkow?

Rabov vacilou. Aquele grupo de colonos rebeldes, aos quais ele quis se unir, praticamente não existia mais. Detestava Wallerinski por causa das suas frases empoladas. Nesse caso, seria melhor ficar ao lado do general Tomisenkow. Rabov acenou.

— Sei que é meu dever avisá-lo; mas como vou sair daqui sem despertar suspeita?

— Não se preocupe com isso; eu só queria saber de que lado o senhor está. Meus dois amigos vêm nos buscar. Um deles consegue ver mesmo de noite, e vai poder nos conduzir em segurança através da escuridão. E eu recuperei as minhas armas, com as quais eu poderia liquidar essa bagunça toda em questão de segundos... mas para que...

Rhodan se concentrou, esperançoso de que Marshall pudesse captar seus pensamentos agora. Se o conseguisse, então ele e Okura já deviam estar a caminho da aldeia para libertá-lo. Talvez não fosse também má idéia ir ao encontro deles.

Virou-se para Rabov:

— Que sabe daquela mulher e do robô, cuja nave foi destruída sobre o planeta? Ela está em segurança?

— Está sim — Rabov arreganhou os dentes — mas é uma segurança relativa. Faz muito tempo que os nossos homens não vêem uma mulher!

— Então não vão ficar muito contentes com a sua prisioneira! — vaticinou Rhodan, irado. Sabia que, se fosse preciso, o robô poderia transformar Tomisenkow e sua força armada em cinza radiativa; entretanto, violência não resolve problemas. — Diga a seus homens que vamos apanhá-los mais tarde. Não temos mais tempo a perder. Meus amigos já estão nos esperando. Lá na orla da floresta, em direção leste se não me engano.

Rabov deu suas instruções. Depois o sargento e Rhodan saíram da choupana.

Quase no fim da rua ardia uma fogueira, rodeada por alguns homens, cujas silhuetas as chamas revelavam. Provavelmente estavam cansados e preferiam mil vezes estar dormindo.

Perto da choupana não havia ninguém.

Rhodan agarrou a mão de Rabov e confiou mais na sua intuição do que nos seus olhos. Enquanto caminhava, com passos seguros em direção leste, pensava constantemente na sua posição, para que Marshall tivesse mais facilidade em encontrá-lo.

Se Marshall não estivesse dormindo agora.

Aquela aldeia semicalcinada ficou para trás. Lá na frente, em direção ao bosque, estava ficando mais escuro. Uma luz relampejou por alguns segundos. Depois Rhodan ouviu que alguém atravessava os arbustos com passos seguros. Ninguém caminhava assim de noite, a não ser que portasse uma lâmpada e pudesse ver.

— Okura?

— Sim!

Era como se o sopro de uma brisa alcançasse o ouvido de Rhodan através do silêncio da escuridão. Claro, Okura não sabia quem estava com ele. Um descuido de Marshall, não contar esse detalhe ao japonês.

— Sou eu — sussurrou Rhodan. — Rabov está comigo. Vai nos levar ao general Tomisenkow... e a Thora.

Rhodan sentiu que o sargento estremeceu.

— Vou levá-los a quem? — e, como não recebeu resposta, acrescentou: — Thora! Não é a arcônida?

E após mais uma pequena pausa perguntou:

— Quem é o senhor?

— Está tudo em ordem? — perguntou Rhodan e depois se dirigiu ao sargento: — Não se preocupe inutilmente, meu caro Rabov. Apostou no cavalo vencedor do páreo... mas ainda pode escolher outro, se quiser. Leve-nos a Tomisenkow e deixe todo o resto comigo!

E assim aconteceu que três grupos diferentes tencionavam fazer uma visita ao general desaparecido; claro que cada qual por razões próprias... igualmente diferentes.

Bell vinha para procurar Rhodan, cujo paradeiro ele desconhecia.

Wallerinski armou-se de violência para implantar a paz onde não havia guerra.

E Rhodan queria libertar Thora que, por seu lado, não fazia a menor questão de ser libertada por Rhodan. Ao menos não agora.

 

A distância era relativamente pequena; por isso Bell dispensou o salto através do hiperespaço, não acelerando o girino número cinco até a velocidade da luz. A Terra se tornou rapidamente uma estrela brilhante, o Sol passou pela esquerda, e depois Vênus, radioso, dominou o setor do céu diante da proa.

Um estalo acompanhou o desligamento do piloto automático. Bell voltou a assumir o comando da grande nave esférica. Conhecia perfeitamente a localização da base em Vênus e, pelos seus cálculos, havia constatado que ela ainda se encontrava mergulhada na noite venusiana. O sol nasceria somente daqui a quarenta horas.

Aos poucos, Bell começou a ficar intranqüilo.

Se tudo tivesse decorrido normalmente, há muito tempo Rhodan teria enviado alguma notícia. Será que não tinha encontrado Thora na base? E, se não, o que teria acontecido a Thora? Talvez ela nem tivesse se dirigido a Vênus, ousando realizar um vôo interestelar com aquele destróier.

Bell virou a alavanca do intercomunicador e estabeleceu a comunicação visual com a sala radiofônica. Lá, Tanaka Seiko estava de serviço. Seiko era japonês, técnico de altas freqüências, e o rastreador do Exército de Mutantes. Sem o auxílio de qualquer aparelho, conseguia captar as ondas eletromagnéticas e, o que era mais surpreendente, conseguia ouvir as emissões irradiadas por homens, em todas as freqüências de ondas. Não havia homem mais indicado para a estação-receptora da nave.

Seu rosto apareceu na tela de visão.

— Chefe?

Bell gostava de ser chamado assim. Era um sinal de respeito e admiração. Também não era ele o substituto direto de Rhodan? Era algo que encheria qualquer um de justo orgulho.

— Nada, ainda?

— Não captei um pio de Vênus até agora! — Seiko sacudiu a cabeça. — E como se lá não houvesse homem algum.

— O que provavelmente não está certo, porque, se eu me recordo direito, também as tropas desaparecidas do Bloco Oriental possuem aparelhos radiofônicos. Mas, o que me intriga demais, é que nem Rhodan, nem Thora deram sinal de vida até agora; isto é um bocado inquietante!

— Os minitransmissores são fracos demais para essa distância.

— Mas não os aparelhos do destróier!

— Talvez apresentaram algum defeito.

— O quê?! Os aparelhos radiofônicos dos destróieres?

— Quem sabe...

Bell refletia febrilmente, mas não encontrou qualquer explicação. Seria possível?... Não, era melhor nem pensar nisso! Aliás, não havia razão para isso. Pois, quem poderia ter impedido Rhodan de pousar em Vênus? A instalação de vigilância positrônica da hiperestação o reconheceria, evidentemente.

— Está bem, Seiko, mantenha o receptor ligado. E comunique imediatamente qualquer novidade. Vou agora iniciar as manobras de pouso.

Vênus, uma bola brilhante, já tinha se aproximado bastante. O lado direito ainda estava na escuridão. Mediante uma pequena evolução, Bell colocou a nave exatamente sobre a zona da meia luz. Depois, começou a baixar.

Quando o casco da nave entrou em contato com as camadas superiores da densa atmosfera, o girino número cinco foi sacudido por um violento abalo que arrancou Bell da poltrona. Enquanto se levantava, meio aturdido, perscrutando rapidamente os controles, a porta da central se abriu e vários dos mutantes entraram correndo.

Ralf Marten segurou-se na parede.

— O que está se passando com você, Bell? Está querendo nos matar a todos?

Bell lançou um olhar de desprezo para aquele teuto-japonês, esguio e de cabelos escuros.

— Está com medo? Mas, honestamente, eu mesmo não sei o que aconteceu. Espere um momento, Seiko está me chamando.

O rosto do telegrafista estava lívido quando apareceu na tela de imagem. Mexia nos seus aparelhos.

— Mensagens radiofônicas — disse ele, sem interromper os manejos. — Da hiperestação. Deve ser o cérebro positrônico. Recusa a permissão para o pouso.

— O quê? — berrou Bell. Seus cabelos curtos e ruivos se ouriçaram ameaçadoramente e transformaram-se numa verdadeira escova de aço. Uma ira repentina brilhava nos seus olhos. — Que idéia maluca é essa? Pergunte a esse robô idiota qual a razão da sua recusa!

Bem que Seiko tentou, mas seus esforços foram em vão. Com uma obstinação irritante, a instalação do cérebro positrônico enviava constantemente a mesma mensagem, sem tomar conhecimento das tentativas desesperadas do japonês.

— A chave secreta X foi ativada. Qualquer aproximação na atmosfera de Vênus será impedida com o campo repulsor hiper-gravitacional. Repito: a chave secreta X foi ativada...

Repetia essa mensagem incessantemente, como se estivesse gravada numa fita sem fim.

Finalmente Bell desistiu, e ordenou a Seiko que vasculhasse toda gama de freqüências, à procura de algum outro sinal radiofônico. Desligou o intercomunicador e se dirigiu a Marten:

— Nessas condições, Rhodan também não conseguiu pousar. O cérebro positrônico deve ter enlouquecido.

Bell não podia saber que esse procedimento estranho nada mais era do que uma conseqüência lógica dos acontecimentos precedentes. O próprio Rhodan havia programado a chave secreta X no cérebro positrônico durante a sua última visita à base venusiana.

O cérebro tinha recebido a ordem de erigir o campo repulsor indistintamente diante de qualquer um, conhecesse ele o código ou não, se antes tivesse registrado alguma ocorrência que pudesse ser considerada suspeita.

E esse estado de programação havia sido atingido naquele instante em que o cérebro derrubou os dois destróieres. Eram naves da frota de Rhodan, sem dúvida, mas não conheciam o código secreto.

O girino número cinco também era uma nave de Rhodan, e essa conhecia o sinal. Mas agora já era tarde demais. O campo repulsor havia sido erigido e só podia ser novamente eliminado por uma chave especial dentro da fortaleza.

Somente um arcônida, ou o próprio Rhodan, podiam penetrar na base, graças ao padrão característico das suas ondas encefálicas.

E com isto tinha se chegado a um ponto morto, que só poderia ser superado por Thora ou Rhodan, mas nunca por Bell.

No momento talvez fosse até bom que Bell não soubesse disso. Sua raiva daquele cérebro positrônico teria atingido proporções incomensuráveis.

A nave esférica girava em torno de Vênus a uma altura constante. Não podia baixar mais, porque aquele anteparo energético a impedia de fazê-lo. Ver, também não se via nada, já que os aparelhos eram incapazes de perfurar a densa camada de nuvens. Apenas Wuriu Sengu, com sua visão raio-X, conseguia enxergar a superfície do planeta. A sua faculdade de poder trespassar a matéria sólida com o olhar proporcionou-lhe a oportunidade de ver selvas, pântanos, mares e cordilheiras, mas isso em nada contribuía para sair do impasse.

— Agora eu tenho certeza — murmurou Bell, desesperado — que algo aconteceu a Rhodan. Se a culpa for daquele cérebro positrônico, vou transformá-lo em sucata com estas minhas mãos!

Ralf Marten sacudiu a cabeça.

— É um propósito meio difícil de realizar, porque ninguém, repito, ninguém pode pousar em Vênus no momento. O planeta encontra-se totalmente isolado. Não sei o que aconteceu, mas sei que as instalações automáticas da base são de uma confiabilidade a toda prova. Não há poder no mundo que possa impedi-las de cumprir rigorosamente com o seu dever.

— Dever! — gemeu Bell, nervoso. — O que esse monturo idiota de lata entende de deveres? Era sua maldita obrigação ajudar a nós e a Rhodan. Em vez disso... bolas!

Chamou Seiko na central radiofônica.

— Precisa emitir constantemente e procurar estabelecer uma ligação com Rhodan. Deve estar lá embaixo, entre selvas, pântanos e sáurios.

Com um suspiro, que denotava sua profunda aflição, recostou-se na poltrona do piloto e se entregou aos seus pensamentos sombrios.

E por baixo da nave rodava, com infinita lentidão, o planeta encoberto, que se recusou a revelar os seus segredos.

 

Durante a descida do platô notaram os primeiros indícios da aurora.

Longe, no leste, Rhodan vislumbrou um tênue brilho na escuridão impenetrável. Os primeiros raios lançaram-se do horizonte para as camadas superiores das nuvens, tingindo-as num tom róseo. Mas a luminosidade se alastrava muito lentamente e, no momento, era impossível definir a posição do sol atrás daquela faixa de claridade incipiente.

Isto ainda levaria horas.

Durante a marcha através da escuridão da noite venusiana, Okura os havia alertado constantemente contra todos os obstáculos que encontrava e, assim, conseguiram chegar até aqui em segurança. Não havia sinal de possíveis perseguidores, e era mais do que provável que só daqui a algumas horas a sua fuga seria descoberta.

Isso servia aos propósitos de Rhodan. Não tinha a menor intenção de se intrometer na briga daquelas tropas de invasão desbaratadas, as quais, no íntimo, já considerava como os primeiros colonos venusianos. Mas não deixaria de alertar Tomisenkow; se conseguisse chegar até ele. E isto, pensou Rhodan, ainda era meio incerto.

Entre os dois platôs, estendia-se a baixada com seus pântanos traiçoeiros. Rabov disse que a travessia era menos perigosa à noite, porque assim que o dia raiasse os sáurios despertavam e saíam do seu esconderijo à procura de alimento. Disse, ainda, que na grande maioria eram herbívoros, o que, porém, não os impedia de atacarem outros seres vivos, se neles vissem concorrentes ou intrusos indesejáveis.

Rhodan e seus companheiros confiavam plenamente nas suas infalíveis armas energéticas e tranqüilizaram Rabov, que portava apenas a pistola de serviço, com a qual, realmente, não poderia enfrentar aqueles gigantes pré-históricos. Víveres não constituíam preocupação, porque ainda possuíam algumas provisões e alcançariam o acampamento de Tomisenkow dentro de vinte horas, na pior das hipóteses. E, se a água escasseasse, poderiam se reabastecer no rio que atravessava a baixada.

Quando chegaram ao local, onde Rabov os havia capturado de surpresa, já havia claridade suficiente para poder reconhecer a vizinhança imediata. E não ficaram muito satisfeitos com o que viram.

A queda d’água precipitava-se num rio, que corria velozmente e desembocava num imenso lago. Ao longo das margens desse lago, explicou Rabov, serpenteava o caminho através da baixada. A margem era constituída por mata cerrada, da qual se levantava um denso nevoeiro que se mesclava com as nuvens baixas. A leste, uma mancha difusa pairava na neblina mormacenta — o sol.

Havia movimento no lago. Aqui e acolá, via-se um remoinho e depois apareciam os enormes corpos de sáurios dos mais diversos tipos que, de uma maneira geral, apresentavam grande semelhança com aqueles que, em priscas eras, tinham povoado a Terra. Alguns permaneciam na água rasa e começavam a pastar embaixo da superfície. Estes eram os menos perigosos.

Outros, porém, nadavam ou caminhavam pesadamente até a margem, galgavam a terra firme e, bamboleantes, desapareciam na floresta, onde se dedicavam a devorar pequenas árvores sem a menor dificuldade.

Rhodan havia assistido àquela movimentação com olhos semicerrados. Soltou um suspiro e disse a Marshall:

— Até que enfim vai poder verificar se sáurios pensam, e o que eles pensam. Acredita que os cérebros deles são capazes de emitir correntes de pensamentos?

— E por que não? — respondeu o telepata, pensativo. — Tenho para mim que os pensamentos deles não devem lá ser coisa muito sensata ou lógica, mas seria muita presunção negar-lhes qualquer capacidade de pensar. Todo ser vivo pensa, até a formiga. Só o homem tem a pretensão de achar que é o único ser racional. Isto o distingue do animal, mas de forma alguma no sentido positivo. Bem, nós astronautas somos diferentes daqueles que nunca tiraram o pé da Terra. Se tínhamos algum preconceito, o perdemos pelo contato com o universo. Sabemos que a raça dominante de um planeta pode ter o aspecto de um réptil, e isto fez nascer em nós o respeito pelo animal terrestre. Involuntariamente, não vemos num cachorro apenas o animal mas, sim, um verdadeiro ser vivo, que só se distingue de nós, pelo fato de pensar de maneira diferente.

— Quer dizer que vê um parentesco entre a nossa capacidade de aceitar raças estranhas e extraterrenas e o amor que dedicamos ao animal da Terra? — espantou-se Rhodan, apesar de estar começando a imaginar qual seria a conexão.

— Perfeitamente — disse Marshall, em tom convicto. — Pode ser atrevimento de minha parte, mas vou mais longe ainda. Na minha opinião, apenas quem ama verdadeiramente os animais está em condições de avançar universo adentro e estabelecer contato com os habitantes de planetas estranhos. Somente um homem desses possui a compreensão necessária para não recuar horrorizado diante de formas de vida as mais impossíveis. Ao contrário, vai aceitá-las como são e reconhecer que têm os mesmos direitos; fato que, algum dia, poderá ser decisivo no estabelecimento da paz em todo o universo.

Rhodan não deu resposta. Olhou para a selva mormacenta lá embaixo; sabia que outro não tinha sido o aspecto das planícies na Terra, milhões de anos atrás. Naquela era, o animal havia sido o soberano do planeta, porque o homem só apareceu muito mais tarde. Devia a sua existência ao animal, assim como o animal à planta. Sucedendo-se, um substituía o outro, e todos eram interdependentes. Um não existiria se não tivesse havido o outro. E nem um podia passar sem o outro.

E apesar disso, todos viviam da luta entre si...

Rhodan arrancou-se dos pensamentos.

— Não vai haver problemas; não há sáurio que resista aos nossos irradiadores de impulsos. Só espero não ter que matar muitos. Eles pertencem a esse mundo, e esse mundo é deles. Vamos indo.

Rabov ia na frente, seguido de Rhodan, enquanto Marshall e Okura formavam a retaguarda. Alcançaram rapidamente a margem do extenso lago pantanoso, mas Rabov se manteve suficientemente afastado para não terem que atravessar terreno molhado demais. Debaixo das gigantescas árvores, o chão ainda se apresentava relativamente seco, era praticamente impossível que aqui topassem com algum sáurio.

Tudo estava correndo satisfatoriamente, até que contornaram a última enseada, deixando o lago para trás. Não tinham escolha. Teriam que atravessar um capinzal de uns cinco quilômetros de largura, onde só em alguns pontos espalhados se erguia uma árvore solitária. Aqui, o capim atingia uma altura de cinco metros, o que lhes tolhia inteiramente a visão. O chão era úmido e cedia. Caminhavam como que por cima de uma esponja gigantesca, e nem de longe se sentiam tão seguros quanto na selva.

Rabov apontou em direção ao alvo, que se destacava das névoas arroxeadas como um bloco de cor escura.

— Esta é a trilha que costumávamos percorrer; mas só à noite. Daqui a pouco voltamos a pisar em terreno seco.

Apressou os passos para sair o mais depressa possível da zona perigosa. Rhodan o seguiu, vigilante, de arma na mão.

De repente, Rabov emitiu um grito agudo, arrancou a pistola do cinto e disparou o pente inteiro na floresta de capim à sua frente. Depois recuou e esbarrou contra Rhodan, que teve dificuldade para se manter em pé.

Okura esticou o braço e apontou para a frente, onde os colmos do capim subitamente se separaram. Rhodan pensou que o sangue fosse lhe congelar nas veias quando viu o monstro que se arrastava em direção a eles, sem se importar com os projéteis de Rabov, que haviam ricocheteado em sua pele. Devia ter uns dez metros de comprimento e se assemelhava a um dragão pré-histórico. Deslocava-se sobre quatro patas e nas costas ostentava uma crista, constituída por placas ósseas. Os olhos na pequena cabeça brilhavam com uma expressão traiçoeira. Da boca larga do réptil, pendiam tufos de capim e raízes de árvores.

— Um estegossauro — murmurou Rhodan, indeciso. — A rigor, é um herbívoro inofensivo. Se não estivéssemos exatamente no seu caminho...

— Atire logo — implorou Rabov, tremendo como vara verde. — Vai nos esmagar! Eles atacam os homens, eu já vi isso mais de uma vez!

Marshall se afastou um pouco para o lado e ergueu a arma. Rhodan olhou para ele e sacudiu a cabeça.

— Aguarde, Marshall.

Okura parecia compreender que, apesar da situação, Rhodan queria ganhar tempo para fazer uma experiência. Por isso, também se afastou da trilha, mantendo-se quase oculto no capim que a margeava. Rhodan acenou quase imperceptivelmente, nas não desviou o olhar do estegossauro.

O enorme animal arrastava o corpo pesado através do capim, aproximando-se cada vez mais. Seguia os movimentos dos homens com olhos ágeis, porém não fez qualquer menção de atacá-los. Rhodan havia agarrado Rabov pela mão, puxando-o para perto de si. A poucos metros de distância, o sáurio passou pelos homens, sem lhes dedicar maior atenção. Esmagou o capim à sua frente como um rolo compressor, deixando atrás de si uma verdadeira estrada de uns quatro ou cinco metros de largura, pela qual arrastava a cauda couraçada. Segundos depois, voltou a pastar pacificamente.

Quando Rhodan se virou com um sorriso triunfante para Marshall, viu a expressão de espanto no rosto deste.

— Pensou! — murmurou Marshall, ainda aturdido. — Esse bicho pensou!

— E o que foi que pensou?

Marshall sacudiu a cabeça.

— Pensou com tanta clareza que cheguei a acreditar que um homem estivesse diante de mim!

— Diga logo o que o bicho pensou, Marshall! Será que o monstro o desnorteou?

— O que pensou foi o seguinte: “Será que vale a pena esmagar estas pragas nocivas?”

— Pragas nocivas?

Marshall acenou.

— Sim, foi isso que ele pensou; e se referiu a nós!

Rhodan deu um sorriso fraco.

— Não é muito lisonjeiro, mas reforça a teoria a respeito da qual estávamos filosofando ainda há pouco. Que é impressionante, é. Mas vamos embora; não temos tempo a perder. De qualquer maneira, estou satisfeito que não foi preciso matá-lo. O bicho pensou, e por isso merece viver.

Percorreram alguns metros da estrada aberta pelo estegossauro; depois Rabov enveredou pela direita. Não tinha entendido uma única palavra da conversa e devia achar que os seus três companheiros haviam ficado birutas. Mas não se atreveu a fazer perguntas.

Pouco depois, chegaram àquele paredão quase a pique, e iniciaram a escalada. Seguiram por uma trilha bastante batida e duas horas depois alcançaram a beira do platô.

Rabov olhou cuidadosamente ao redor, mas parecia não encontrar o que estava procurando. Um pouco perplexo, virou-se para Rhodan.

— Não vejo as sentinelas. Isto é estranho. Normalmente havia dois homens postados aqui.

— O acampamento de Tomisenkow fica longe? — perguntou Rhodan; já havia recolocado a arma no cinto.

— Uns dez minutos, não mais do que isso.

— Então vamos.

O fato de não ter encontrado sentinelas parecia preocupar Rabov sobremaneira. Simplesmente não lhe entrava na cabeça que Tomisenkow tivesse relaxado de tal maneira sua habitual vigilância. Logo ele, que era a desconfiança personificada.

— Atrás daquelas rochas se encontram as primeiras cabanas — murmurou Rabov, e ia acrescentar mais alguma coisa, porém os acontecimentos que se precipitariam nos próximos segundos impediram que o fizesse.

Era como se o inferno tivesse explodido.

Um silvo agudo fez com que Rhodan e seus dois companheiros se jogassem ao solo, numa fração de segundo. Rabov, porém, não reagiu com a mesma rapidez. Onde estava, foi atingido pela saraivada de uma metralhadora, oculta entre os arbustos. Cambaleou durante uns dois ou três segundos, depois tombou pesadamente ao chão.

Agora estavam sem guia, e teriam que achar sozinhos o caminho que levava a Thora. Rhodan sabia disso. E não precisava se certificar. E sabia também que...

Uma dor lancinante varou-lhe o ombro direito. Era como se alguém o tivesse trespassado com um ferro em brasa. Também tinha recebido um tiro.

O general Tomisenkow devia ter concentrado suas tropas na aldeia, substituindo as sentinelas e postos avançados por uma instalação de defesa automática. E isto significava morte certa para quem tentasse se aproximar da aldeia.

Marshall já sabia o que tinha acontecido. Apesar das balas sibilantes, ergueu-se de um pulo e se aproximou de Rhodan para examiná-lo.

— Felizmente o tiro não afetou nenhum osso. Mas temos que sair daqui. Okura, ajude-me.

Rhodan gemia de dor, contudo tentou auxiliar Marshall e o japonês, quando o arrastaram alguns metros para trás. E, como por encanto, cessou de repente o matraquear das metralhadoras ocultas por toda parte. Rhodan e os companheiros já se encontravam fora da zona de bloqueio.

Rabov estava morto. Nunca mais necessitaria de ajuda. Ao menos, não precisava mais se decidir a favor de Wallerinski ou de Tomisenkow.

Marshall e Okura sentiram-se aliviados quando Rhodan declarou que estava em condições de caminhar sozinho. Por via das dúvidas ampararam-no, um de cada lado, e trataram de colocar distância entre eles e aquela traiçoeira armadilha mortal. Contra esta, nem mesmo os irradiadores de impulsos seriam eficazes, porque não se conseguia discernir alvo algum.

Longe, atrás deles, ouviram uma voz de comando e um tiro solitário. Alguns homens gritaram e depois fez-se novamente silêncio.

— Vamos ficar no platô? — quis saber Marshall.

Rhodan reprimiu suas dores.

— Por enquanto, podemos nos abrigar naquela floresta, à direita. Não consegue descobrir o que esses homens pretendem? Afinal, a distância não é tão grande assim.

— Vou deixar isso para mais tarde, quando tiver sossego suficiente para me concentrar — observou Marshall. — Primeiro, precisamos levá-lo a um lugar seguro e tratar do seu ferimento.

Rhodan resolveu não dar resposta. Sabia que podia confiar nos companheiros; além disso, precisava poupar suas forças.

Penetraram profundamente na floresta que, aqui, não era muito densa e finalmente encontraram uma gigantesca árvore, de tal maneira enleada por trepadeiras que seria fácil galgá-la. Rhodan praticamente dispensou auxílio, pois só precisou da mão esquerda para se alçar pouco a pouco. Vinte metros acima do solo da floresta, encontraram um galho bastante largo e. achatado, que se estendia quase na horizontal, perdendo-se no emaranhado dos galhos vizinhos. Uma verdadeira cortina de cipós pré-históricos oferecia proteção para todos os lados. Haviam encontrado uma cabana natural no alto da árvore e que, mais tarde, ainda poderiam reforçar por meio de galhos flexíveis.

O ferimento de Rhodan não era grave; a bala havia atravessado o ombro de lado a lado. Marshall aplicou um curativo e fez Rhodan tomar um remédio contra febre. Dez minutos depois, a respiração regular do ferido mostrou que tinha caído no profundo sono da convalescença. Mas Okura e Marshall continuavam intranqüilos.

— Bem, cá estamos — disse Okura, sussurrando, a fim de não acordar Rhodan. — Thora caiu nas mãos desse Tomisenkow, e nós estamos trepados nessa árvore como macacos indefesos, e esperamos que aconteça um milagre. E Bell? Deus sabe onde se encontra. Não deve estar se precipitando; também não tem noção que tudo saiu ao contrário. Mas, a essa altura, devia começar a se preocupar um pouco.

É claro que Okura não podia saber que Bell estava bem acima deles, girando em torno de Vênus no girino número cinco, igualmente à espera de um milagre que lhe permitisse o pouso nesse maldito planeta. O aparelho radiofônico estava em funcionamento ininterrupto, tentando estabelecer comunicação com alguém. O receptor permanecia mudo.

Com uma expressão melancólica, Marshall checou as provisões.

Constatou que eram bastante minguadas.

— Não dá para agüentar muito tempo — disse ele — a não ser que voltemos a caçar.

— Só daqui a três ou quatro dias Rhodan vai poder mexer novamente o braço — constatou Okura. — Ao menos até lá devíamos ficar na proteção dessa cabana.

— Ah! — resmungou Marshall e se acomodou. — Eu vou dormir. Vai ficar acordado?

— Se eu não ficar, quem fica? — respondeu Okura, com um sorriso cansado. Ajeitou-se da melhor maneira que pôde, com as costas apoiadas no tronco da árvore, e colocou o irradiador de impulsos sobre os joelhos.

 

Após algumas horas de sono e uma refeição reforçada, Rhodan recuperou a costumeira energia. Graças aos excelentes medicamentos, a ferida sarou, e já começara a cicatrizar. Em instante algum chegou a estar com febre.

Analisaram a situação.

Depois de terem considerado todos os pontos, Rhodan fez um resumo:

— ...portanto, é uma ilusão pensar que podemos estabelecer contato com Tomisenkow. Guarda Thora como a menina dos olhos, e não vai perder a oportunidade de fazer umas tantas exigências para libertá-la. De Bell, não temos notícia alguma. Já deve ter pousado na base há muito tempo; a não ser que o cérebro positrônico ativou a chave secreta X programada por mim. Nesse caso, é claro que não vai poder pousar; aliás, ninguém mais pode pousar em Vênus.

— Se for assim, como vão poder nos resgatar? — perguntou Okura, preocupado.

— Só resta uma única possibilidade: vou ter que alcançar a base a pé, para poder reprogramar o cérebro positrônico. Mas isso fica para depois. Antes, quero libertar Thora.

— Mas o senhor acabou de dizer... — começou Marshall, porém logo emudeceu. Devia ter vasculhado indiscretamente os pensamentos de Rhodan. — Tinha me esquecido dela! — murmurou, concluindo sua observação.

Okura olhou de um para o outro sem entender nada. Não sabia ler pensamentos e, assim, também não sabia a que Marshall estava se referindo. Rhodan notou a perplexidade do japonês e pôs-se a explicar do que se tratava.

— Quando, muitos anos atrás, pousamos pela primeira vez em Vênus, topamos com aquelas focas semi-inteligentes nas margens do mar pré-histórico. Nossos telepatas conseguiram se comunicar com elas, e acabamos por nos dar muito bem com esses seres. Houve até uma ocasião, em que pude auxiliá-los, prestando-lhes um grande favor. Talvez não tenham esquecido isto e estejam prontos a saldar sua dívida de gratidão. Seria um absurdo se quiséssemos todos os três empreender a longa marcha para aquele mar, que se situa no leste. E só um telepata pode se comunicar com estas focas e lhes explicar o que desejamos delas. Vamos discutir os detalhes mais tarde, mas acho difícil que encontremos uma solução melhor.

— Um telepata?! — gemeu Marshall e empalideceu um pouco. — Portanto, está se referindo a mim! Eu... marchar sozinho através dessa floresta?

Brincou nervosamente com a larga pulseira, que abrigava uma série de instrumentos minúsculos.

— Não acha melhor tentar estabelecer comunicação com Bell?

— Isso também, mas se a chave secreta X foi ativada, a tentativa não vai nos ajudar em nada. As focas conhecem o caminho para a base e, portanto, podem nos guiar. Não adianta estrebuchar, Marshall, não vai poder escapar ao seu destino. Okura e eu vamos permanecer aqui, aguardando o seu regresso. Se ocorrer algo de novo em relação a Tomisenkow, vamos deixar uma mensagem para você neste local.

— E as provisões? Vamos viver de quê?

— Tem a sua pistola e pode caçar — tranqüilizou-o Rhodan. — Nós vamos tentar fazer o mesmo com os irradiadores de impulsos.

— Não é necessário — asseverou Okura e puxou uma pesada pistola do bolso. — Não vi razão alguma — acrescentou, como que a se desculpar — para deixar a arma de Rabov cair nas mãos dos homens de Tomisenkow. Essa pistola nos garante mais carne do que podemos comer.

Rhodan acenou, satisfeito.

— Ótimo! Então está tudo decidido, Marshall. Sugiro que agora durma mais algumas horas. Depois vamos discutir os detalhes finais.

 

Já era dia em Vênus. A claridade havia atravessado o teto da floresta, removendo todos os véus ocultantes da noite. A cabana na árvore flutuava num mar de orquídeas multicoloridas, que pareciam enormes águas-vivas boiando num lago verde. Escaravelhos coloridos rastejavam, apressados, sobre os galhos e troncos. Mais acima, ouviam-se os grasnidos e gorjeios dos habitantes alados da selva.

Com certo desânimo, Marshall se despediu de Rhodan e Okura, e desceu do esconderijo. Lá embaixo, ainda parou por um instante, e acenou para os companheiros. Depois se virou e iniciou a longa marcha para leste, em direção àquele mar pré-histórico. Viram-no desaparecer na vegetação cerrada e, pouco depois, já não ouviam mais os passos cautelosos.

Agora Rhodan e Okura estavam sozinhos naquela cabana no alto da árvore.

Por enquanto, estavam condenados à inatividade. Teriam que aguardar o regresso de Marshall. Mas isso poderia levar vários dias. Seria dia claro por mais cento e vinte horas. Se Marshall conseguisse realizar sua tarefa dentro desse prazo, teriam dado um grande passo para a frente. Se não...

Okura brincava distraidamente com a pulseira de utilidade múltipla quando, de repente, ouviu uma voz baixa que emanava do alto-falante do minitransmissor:

— ...chamando Perry Rhodan; atenção, estamos chamando Perry Rhodan; responda Perry Rhodan!

Aquela voz estava se tornando cada vez mais alta, como se o emissor estivesse se aproximando a grande velocidade. Repetia essa mensagem sem cessar.

Rapidamente Okura ligou o rastreador e olhou quase verticalmente para cima. Uma expressão de dúvida se delineou no seu rosto. Rhodan deu um sorriso, que era um misto de contentamento e resignação.

— É a voz de Bell, Okura. Acuse o recebimento da mensagem!

Segundos depois, ouviram Bell soltar um grito alto, que denotava surpresa ao mesmo tempo que alívio.

— Com mil diabos, Rhodan, onde é que você está? Estou procurando você como uma agulha no palheiro. Por que você não entrou em contato antes?

— Calma Bell, uma coisa depois da outra. Onde você se encontra?

— A bordo do girino número cinco e não posso pousar. Aquele maldito cérebro positrônico...

— Bem que desconfiei que fosse isso! — interrompeu Rhodan e suspirou. — Aquela chave secreta foi ativada e ninguém pode pousar em Vênus. É, Bell, não tem remédio; você vai ter que voltar à Terra e aguardar o meu chamado. Vou tentar chegar à base. No momento, você não pode me ajudar!

— E Thora?

— Está em boas mãos — respondeu Rhodan, com um ligeiro traço de ironia.

— Não vou voltar para a Terra! — disse Bell, de repente. Sua voz já soava novamente mais baixa, porque a distância estava aumentando. — Vou circular por aí, até poder pousar. E fim do papo!

Quando Bell dizia fim do papo, nada mais podia alterar o seu ponto de vista. Rhodan sabia disso.

— Muito bem, por mim pode ficar orbitando em torno de Vênus o tempo que quiser. Okura e eu vamos brincar de Tarzan aqui na floresta, enquanto Marshall negocia com as focas venusianas. No momento, está tudo na mais perfeita ordem. Recomendações minhas aos mutantes!

A resposta de Bell veio tão débil que se tornou ininteligível; mas Okura estava pronto a jurar que tinha sido um palavrão.

Rhodan deu um sorriso meio forçado. Voltou a sentir dores. Recostou-se contra aquela cortina de cipós gigantes. Acima da sua cabeça pendia uma orquídea cor de sangue, do tamanho da cabeça de um homem.

— Vai ficar xingando o tempo todo ou eu não o conheço. Não há coisa que ele deteste mais do que ficar de mãos atadas, enquanto os outros estão mergulhados até o pescoço nas aventuras mais malucas.

— E nem pode assistir ao espetáculo! — disse Okura, sorrindo, e apontou para o alto, onde a eterna camada mormacenta pairava acima do teto da floresta.

Rhodan fechou os olhos e acenou.

Pensou no quanto tinha que realizar. Tarefas gigantescas o aguardavam. Havia iniciado a obra da sua vida ainda outro dia, mal tinha lançado a pedra fundamental. Em algum lugar da Via Láctea, o Grande Império estelar dos arcônidas estava começando a desmoronar. Talvez, neste preciso instante, a anos-luz de distância, novas frotas de invasão estivessem decolando, a fim de fazerem uma visita de surpresa à Terra.

No momento não podia agir. O destino tinha lhe tirado a responsabilidade das mãos. Mas Rhodan sabia que, algum dia, essa responsabilidade lhe seria restituída mil vezes mais pesada.

E enquanto os sáurios pastavam nas baixadas, enquanto Thora com mal reprimida raiva negociava o seu preço com Tomisenkow, enquanto Marshall percorria sozinho a solidão da selva e Bell orbitava em torno de Vênus com ira impotente, enquanto tudo isso acontecia, Perry Rhodan dormia o sono da convalescença definitiva; e lá estava Son Okura, atento e vigilante, para que ninguém perturbasse os sonhos do seu amo e senhor.

A hora da decisão, que parecia tão próxima, estava agora mais longe do que nunca, oculta nas brumas de um futuro remoto...

 

                                                                                            Clark Darlton

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades