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A Guerra Atômica que Não Houve / Kurt Mahr
A Guerra Atômica que Não Houve / Kurt Mahr

 

 

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A Guerra Atômica que Não Houve

 

Nenhum exército equipado com armas terrenas convencionais, por maior que seja, pode enfrentar os recursos da antiqüíssima técnica arcônida. Perry Rhodan sabe disso perfeitamente, e não se preocupa com os remanescentes de uma divisão espacial comandada pelo general Tomisenkow, que investira obstinadamente contra a fortaleza de Vênus. O que causa muita preocupação ao chefe da Terceira Potência é a evolução mais recente da política na Terra.

Com sua permanência no planeta Peregrino, Rhodan perdeu mais de quatro anos. Agora tem de regressar com a maior urgência ao seu mundo, para que não haja a guerra atômica...

 

                            

 

Vista da nave capitania Wladislav Kossygin, a frota se parecia com duas fileiras de pérolas reluzentes, cuidadosamente enfiadas em barbantes, a distâncias sempre iguais.

A frota se deslocava sob o brilho reluzente do Sol. Os pontos luminosos que representavam as naves, projetados nas telas da Kossygin, emitiam uma luz muito mais intensa que a das estrelas destacadas contra o céu negro.

O major Pjotkin se esforçou para reprimir o orgulho que essa visão ameaçava provocar em sua mente.

Era bem verdade que, comparados com outros veículos que povoavam o espaço, essas naves não passavam de patos desajeitados e de longas asas. Uma vez fora do âmbito da gravitação terrestre, possuíam apenas uma reserva de radiações que lhes permitiria realizar uma manobra de desaceleração antes de atingir a órbita de Vênus. O resto, o mais difícil do pouso propriamente dito, ficaria a cargo das asas. A aterrisagem seria aerodinâmica. Tinham que contar com uma perda de cinco por cento. Como a frota possuísse duzentas naves, dez jamais chegariam ao solo de Vênus; ou atingiriam o mesmo sob a forma de um meteorito incandescente. Eram estas as previsões dos cientistas.

O resultado também poderia ser diferente, segundo Pjotkin. Talvez fosse dez por cento.

A frota levava reforços para a expedição do general Tomisenkow. Os reforços consistiam principalmente num suprimento de aço, uma vez que, depois do pouso, as naves não mais estariam em condições de sair de Vênus. Não lhes restaria qualquer reserva de radiações. Juntamente com as quinhentas naves de Tomisenkow, aguardariam a chegada de outra frota de reforço com uma carga de combustível, que voltaria a colocar os patos metálicos em condições de voar.

Pjotkin procurou calcular se mil naves seriam suficientes para reabastecer as quase setecentas que se encontrariam em Vênus. E se fossem? Nesse caso, em vez de setecentas naves, mil ficariam retidas no planeta coberto de selva.

Sessenta por cento da tripulação da frota de Pjotkin era formada por mulheres. Pjotkin ficava se indagando o que os planejadores teriam tido em mente ao comporem dessa forma o pessoal conduzido pela frota. As mulheres eram especialistas: médicas, técnicas, biólogas.

Pretenderiam instalar em Vênus algo parecido com uma base permanente? Uma base que se tornasse independente da Terra em todos os sentidos, inclusive no campo biológico?

Sem dúvida Pjotkin teria encarado sua missão com maior seriedade se soubesse que, para Tomisenkow e sua expedição, o êxito da mesma representava a sobrevivência. Na posição atual dos astros — o Sol se interpunha entre os dois planetas — não havia qualquer comunicação pelo rádio entre Vênus e a Terra. Em nosso planeta ninguém sabia que Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência e comandante da supernave Stardust-III, havia dispersado a expedição de Tomisenkow pelos quatro cantos de Vênus e privado a mesma de quase todos os recursos técnicos.

 

Naquele mesmo instante, a Stardust-III se encontrava em sua viagem de regresso de Vênus à Terra. As componentes motrizes da enorme nave esférica funcionavam a plena potência e, dentro de poucos minutos, aceleraram a nave a um ponto extremamente elevado. Os imensos campos protetores e de absorção de choques fariam com que qualquer quantidade de matéria, desde a minúscula partícula cósmica até a rocha interplanetária, se desfizessem sob o efeito das radiações antes de poderem se tornar perigosas à nave.

Rhodan não apreciava esse tipo de vôo, pois, se utilizando do sistema de microondas, não teria chances para uma rápida localização de qualquer objeto que cruzasse seu caminho. E o rastreamento estrutural, que funcionava com base em princípios pentadimensionais, tinha seu campo de detecção situado a partir de uma unidade astronômica, ou seja, cento e cinqüenta milhões de quilômetros. Era bem verdade que mesmo dentro desse raio o rastreamento era possível; mas perdia todo o sentido, já que, numa distância tão reduzida, o sistema de observação por microondas funcionaria praticamente com a mesma rapidez.

Por isso a Stardust-III se deslocava numa espécie de vôo cego. Nada poderia lhe acontecer, já que os campos protetores lhe forneceriam proteção ininterrupta. Mas ai de quem se pusesse em seu caminho.

 

Na tela do radar da Kossygin surgiu uma estranha mancha verde. Aparecera naquele instante, mas, antes que o operador de radar desse pela sua presença, já havia percorrido a quarta parte do diâmetro da tela.

Num movimento treinado milhares de vezes, a mão do homem se deslocou para baixo e comprimiu a superfície vermelha da chave de alarma. Sereias uivaram e o telecomunicador transmitiu o alarma às duzentas naves que compunham a frota.

Subitamente a voz de Pjotkin soou no alto-falante.

— O que houve, radar?

— Objeto desconhecido aproxima-se da frota. Velocidade... quase igual à da luz!

O operador ouviu a respiração pesada de Pjotkin.

— Que setor de nossa frota está sendo ameaçado? Fale logo, homem!

— O centro.

A voz de Pjotkin se tornou mais fraca quando ele se voltou para outro microfone. O operador de radar ouviu as ordens por ele transmitidas:

— Corrigir rota. Toda força para bombordo. Imediatamente.

O ponto verde quase havia percorrido metade da tela do radar. Aproximava-se inexoravelmente do centro marcado em vermelho, que representava a posição do observador.

O operador de radar conteve a respiração. Se a correção não fosse completada imediatamente...

Mais dois segundos!

O homem cerrou os olhos e se agarrou ao painel, aguardando o choque iminente.

Não houve o choque esperado. A morte surgiu em forma de um raio azul e ofuscante, que transformou a Kossygin num enxame de moléculas e átomos que se disseminaram pelo espaço.

O operador de radar não percebeu nada. Uma morte que surge com a velocidade da luz nem chega a causar uma impressão dolorosa.

 

Na última fração de segundo, Rhodan fora avisado sobre a fileira dupla formada pelas duzentas naves. Num gesto instantâneo, levantou o braço para manobrar algum dispositivo de comando que desencadeasse uma manobra salvadora.

Mas era apenas um movimento reflexivo. Ao se dar conta disso, baixou o braço; a Stardust-III já deixara para trás a frota inimiga.

Imediatamente a nave executou uma manobra de frenagem, utilizando toda a potência de suas componentes motrizes. Uma desaceleração máxima — que representava o valor mais elevado que os neutralizadores poderiam absorver — atingiu em poucos minutos, não uma imobilização absoluta, mas uma redução de velocidade que permitia a observação ótica direta da frota parcialmente destroçada.

O quadro que se apresentava nas telas da Stardust-III era consternador. A fileira dupla de pérolas cintilantes, que o major Pjotkin observara meia hora antes, estava esfacelada. Impelidas pelo pânico, as naves se dispersavam em todas as direções. Apesar disso, ainda se percebia nitidamente a abertura que a Stardust-III fizera naquele front.

Rhodan mandou efetuar a sondagem radiofônica. Pretendia escutar as mensagens trocadas entre as naves. Reconhecera seu formato e por isso sabia que se tratava de uma frota do Bloco Oriental. Apesar disso, prestaria socorro imediato àqueles homens, se não conseguissem se arranjar por si.

Ouviu os informes expedidos das várias naves. O tradutor automático traduziu as mensagens russas para o inglês.

Rhodan ficou sabendo que, no início, a frota era composta de duzentas naves. Trinta e quatro delas — entre elas a nave capitania, que trazia a bordo o major Pjotkin — haviam sido destruídas; evaporaram-se sob o impacto dos campos protetores da gigantesca nave.

Um coronel assumiu o comando. Através de uma série de manobras complicadas voltou a unir as naves numa formação ordenada. Essas manobras consumiram uma quantidade considerável de material radiante. Os remanescentes da frota teriam dificuldades em reduzir a velocidade a um limite que não oferecesse perigo quando atingissem a órbita de Vênus.

Todos os observadores de radar da frota haviam percebido a causa do desastre poucos segundos antes da catástrofe, e agora viram o ponto verde se afastar com velocidade moderada.

Rhodan ouviu uma série de conjecturas sobre o que seria aquele ponto. Uma única pessoa teve a idéia de que poderia se tratar de um veículo da Terceira Potência, mas essa idéia foi logo abafada pelo comandante da frota.

Rhodan compreendeu a manobra. O coronel se veria diante de um problema insolúvel se confessasse que o inimigo dispunha de veículos capazes de atravessar uma frota compacta de naves sem sofrer o menor dano.

Percebia-se que as cento e sessenta e seis naves que restavam estavam em condições de prosseguir viagem sem auxílio de fora. Face à escassez de matéria radiante, não lhes restava outra alternativa senão prosseguir pela rota em que já se encontravam: a de Vênus.

A Stardust-III deixou-as entregues ao seu destino e reiniciou sua viagem.

Rhodan, no entanto, lamentou a destruição das trinta e quatro naves espaciais. Ainda mais que o encontro da Stardust-III com a frota do Bloco Oriental só podia ser atribuído exclusivamente a um acaso por demais infeliz. Era extremamente improvável que dois ou mais objetos, que se deslocassem pelo espaço em trajetórias mais ou menos arbitrárias, viessem se encontrar no mesmo ponto; muito mais improvável do que duas pedrinhas atiradas por pessoas diferentes virem a se chocar.

 

12 de junho.

Moscou.

Dez horas da manhã, tempo local.

O Estado-Maior das forças armadas do Bloco Oriental chegara à conclusão de que o ataque aos principais centros militares e industriais dos dois outros blocos de nações e da Terceira Potência teria de ser marcado para um dos próximos dias.

As condições nunca haviam sido tão favoráveis. O Bloco Oriental instalara sua base em Vênus, e uma poderosa frota com reforços estava a caminho desta base — não se desconfiava da sorte lamentável de Tomisenkow, tampouco da catástrofe que atingira a frota no meio do caminho. Tudo indicava que a Terceira Potência não tomara conhecimento das modificações políticas determinadas pelo novo curso de ação do Bloco Oriental, ou não se interessava pelas mesmas. No início temia-se uma intervenção dos homens de Galáxia, mas esta não se verificara.

Provavelmente isso seria devido ao fato de que Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência, no momento não se encontrava na Terra, nem nas proximidades da mesma.

Em Moscou não se sabia nada sobre o paradeiro de Rhodan.

A grande conferência do Estado-Maior foi realizada no auditório de uma universidade. Todos estavam de acordo sobre os princípios pelos quais se orientaria a ação, e a idéia generalizada de que só faltava discutir alguns detalhes da execução do plano encheu os generais de uma certa euforia.

Um marechal búlgaro apresentou sua tese do cerco estratégico da Federação Asiática. Foi quando um ordenança entrou no recinto com o passo tranqüilo, mas com uma expressão de desassossego no rosto. Trazia um papel na mão e se dirigiu ao marechal Sirov que, sentado numa poltrona do centro da primeira fileira, dirigia a conferência.

Sirov passou os olhos pelo papel. Os que se encontravam mais próximos viram que franziu a testa, levantou os olhos e encarou o marechal búlgaro até que o mesmo estacou em sua fala. Sirov fez um gesto, se levantou e, com o papel na mão, se dirigiu à tribuna que o professor costumava usar para fazer suas preleções. Espantado, mas com a maior solicitude, o búlgaro lhe cedeu o lugar.

Sirov iniciou sua fala sem qualquer intróito:

— Vou ler as notícias vindas de todas as partes do país, que a central recebeu há poucos minutos.

— Primeiro: Às nove horas e trinta e oito minutos, tempo de Moscou, um posto de observações meteorológicas — fez uma pausa significativa, para que todos compreendessem que, sob o disfarce do posto, se ocultava um objeto muito mais importante — situado em Nowaja Sumlja, uma ilha da região ártica, foi arrancado do solo e carregado por um ciclone. O único sobrevivente encontrou um radiotransmissor intacto e enviou a notícia. Informa que, poucos segundos antes do início do fenômeno súbito e inesperado, a escuridão desceu sobre a Terra, como se a noite polar tivesse irrompido com uma antecedência de quatro meses.

“Segundo: Nowosibirsk, oito horas e cinqüenta e um minutos, tempo de Moscou. Um tipo de eclipse solar cai sobre a Terra. A base de foguetes situada nas proximidades da cidade é atacada por uma estranha ausência de gravidade. Os homens saem flutuando pelo ar, as rampas de disparo se soltam de suas bases, os foguetes são tangidos pela tormenta que desaba de repente.

“Terceiro: Molotov, Montes Urais, nove horas e quarenta e quatro minutos, tempo de Moscou. Uma coisa inexplicável obscurece o céu por instantes, provoca um ciclone de violência inacreditável e deixa atrás de si uma faixa de terra calcinada com cerca de um quilômetro de largura. Todas as instalações de mineração e processamento de minérios das usinas Sergej Iljuchin situadas acima do solo foram destruídas.”

Sirov fez uma pausa. Sentiu certa satisfação ao perceber que não era a única pessoa que tinha ficado abalada com essas notícias. O pavor e o desânimo se desenhavam em todos os rostos.

— A explicação destas ocorrências — prosseguiu em tom áspero — provavelmente está na quarta notícia, que vou ler.

“O posto de radar da península de Taimyr, situada no norte da Sibéria, informa ter localizado um objeto esférico de cerca de oitocentos metros de diâmetro, que se desloca sobre o território de nossos Estados nas mais variadas direções e altitudes; ao que tudo indica está sendo dirigido.

“Todos nós estamos lembrados dos fenômenos ligados à súbita ausência de gravidade, registrados na época em que a Terceira Potência começou a se estabelecer no deserto de Gobi. Portanto, sabemos quem é o inimigo que temos diante de nós. Não conhecemos todas as armas de que ele dispõe, mas estamos dispostos a lançar nossas armas contra ele. O tempo das discussões passou; chegou a hora de agir.”

 

12 de junho.

Karaganda.

Cerca de 14 horas, tempo local.

Há meia hora os aparelhos da 23a esquadrilha de caças estão em regime de rigorosa prontidão.

Fala-se num “veículo aéreo inimigo muito grande” que, pelo que se ouve, se diverte em cruzar os céus do país em todas as direções, deixando atrás de si a confusão e a destruição.

Os pilotos estão sentados nos seus aparelhos, com as carlingas abertas. Pelo que se ouve, o inimigo desenvolve uma velocidade extraordinária. Uma vez localizado o veículo inimigo, os aviões terão que decolar imediatamente.

O objetivo é a destruição do inimigo com todos os meios disponíveis.

 

Reginald Bell, companheiro de Rhodan desde os dias do primeiro vôo humano à Lua, dirigia a Stardust-III sem recorrer ao piloto automático. Numa tela fixada acima de sua mesa de comando via-se o mapa do hemisfério norte da Terra. As indicações de rota transmitidas por Rhodan chegavam a ele através de setas e pontos vermelhos projetados nesse mapa.

Rhodan fez o possível para poupar vidas humanas. Sabia que a chamada revolução, que há algum tempo arrancara o Bloco Oriental do seio do grupo das superpotências que buscavam a distensão, só era promovida por umas poucas pessoas ambiciosas. Os quatrocentos milhões de pessoas que habitavam essa região da Terra não podiam ser responsabilizados pela reviravolta.

Mas estavam em guerra, e nem mesmo o mais humano dos comandantes conseguiria evitar toda e qualquer perda de vida.

Rhodan sabia quais eram os pontos vulneráveis do inimigo. Seus agentes estavam espalhados pelos quatro cantos da Terra, e os prisioneiros capturados em Vênus tiveram de lhe dar as informações que desejava, quer quisessem, quer não.

Na região de Baku, a Stardust-III acabara de inutilizar uma usina de reatores que supria de energia elétrica as instalações técnico-militares do litoral do Mar Cáspio.

Rhodan introduziu no mapa projetado uma seta branca que apontava para a Sibéria Ocidental e colocou um ponto vermelho sobre a cidade de Karaganda.

Imediatamente Bell mudou de rota.

 

— Localização a duzentos e dez graus! — berrou a voz nos fones de ouvido. — Altitude: treze mil metros. Pista livre para a decolagem de todos os aparelhos.

A base aérea de Karaganda era uma das mais modernas do Bloco Oriental. O dimensionamento racional das pistas permitia a decolagem simultânea de toda uma esquadrilha de caças.

O capitão Welinskij, um homem de descendência polonesa, comprimiu o botão que fechava a carlinga e imprimiu a potência máxima ao motor. Com a ordem de decolar, os calços das rodas foram afastados automaticamente. A máquina rolou pela pista, aumentou de velocidade e subiu muito antes de atingir o fim da pista.

Welinskij assumiu o comando da esquadrilha.

— Virar para duzentos e dez graus. Altitude de dezoito mil metros.

Não era recomendável que um piloto de caça atacasse da mesma altitude ou mesmo de baixo um adversário superior em forças. Uma diferença de altitude de cinco mil metros aumentaria consideravelmente as chances que tinham Welinskij e seus companheiros de causar algum dano ao inimigo.

Os aviões de caça dispunham de dois mecanismos propulsores inteiramente independentes: um reator de jato, acionado por ocasião da decolagem, que levaria o aparelho rapidamente à altitude desejada, e um dos mecanismos convencionais de turboradiações, que permitiria, em vôo horizontal, uma velocidade de mach 4, ou seja, uma velocidade equivalente a quatro vezes a do som.

Os caças estavam equipados com foguetes e canhões automáticos, rigidamente montados na estrutura. Não haveria caça mais eficiente na Terra, se... há alguns anos o primeiro astronauta americano não tivesse encontrado na Lua os representantes de uma raça estranha, investindo-se na herança de suas conquistas tecnológicas.

— Chaminé para todos os limpa-chaminés! Chaminé para todos os limpa-chaminés! O veículo inimigo desloca-se a uma velocidade de mach 15, de duzentos e dez em direção a zero trinta. Dentro de quinze segundos sobrevoará a cidade. Limpa-chaminés, vocês já podem ver o inimigo. Não aguardem nova ordem de ataque. Confirmem!

Logo se ouviu a voz do comandante da esquadrilha:

— Limpa-chaminés para chaminé. Vemos o inimigo e atacaremos imediatamente. Fim.

Dirigindo-se aos pilotos, prosseguiu:

— Preparem-se, rapazes! Ação individual. Fim.

Welinskij observou o inimigo.

Viu uma parede tremeluzente de fogo surgir acima do horizonte. De início era pequena e bonita; seu aspecto, visto daquela altura, era mais ou menos o de um incêndio na estepe.

Mas cresceu numa velocidade espantosa, parecendo se desprender do solo, e se transformou numa esfera ofuscante. Com um movimento automático, Welinskij colocou os vidros antiofuscantes diante dos óculos de proteção.

— Meu Deus! — murmurou para si mesmo. — Falaram em oitocentos metros! Aquilo ali tem pelo menos dez quilômetros de diâmetro.

Não teve tempo para refletir. Viu a esfera de fogo se aproximar vertiginosamente. Supôs que fosse o inimigo, ou que este se escondesse no seu interior. Disparou todos os foguetes de uma só vez. Mas, de um instante para outro, teve dúvidas se os pequenos projéteis com suas cargas explosivas nucleares seriam capazes de causar qualquer dano àquela bola de fogo.

Dirigiu o avião para o alto. Cerrou os olhos, pois, apesar do vidro antiofuscante, a esfera fez com que lhe ardessem as conjuntivas.

Welinskij foi mais feliz que qualquer dos outros pilotos. Conseguiu manobrar seu aparelho de tal forma que apenas roçou nos gigantescos campos protetores da Stardust-III. O avião se esfacelou, e a força do impacto fez com que o ejetor arremessasse Welinskij mais algumas centenas de metros para o alto. Mas, quando começou a descer, o pára-quedas se abriu, foi atingido pelo ar aquecido e fez com que o capitão balouçasse em direção ao solo, são e salvo.

Os demais aparelhos se precipitaram para cima da bola de fogo. Evaporaram-se nas nuvens causadas pela explosão dos foguetes que eles mesmos haviam disparado poucos segundos antes.

A luta — se é que aquilo podia ser chamado de luta — durou exatamente cem segundos, desde o instante em que surgiu a Stardust-III. Quando chegou ao fim, a 23aesquadrilha de caças deixara de existir.

Só restava um vestígio insignificante: o capitão Welinskij, que, atingido pelo redemoinho causado pela Stardust-III, foi atirado a uma distância tal que pôde se livrar da radiatividade desencadeada pelos foguetes. Inconsciente, continuava em sua descida.

O destino poupara aquele homem para que pudesse contar algo aos homens que lhe haviam confiado a missão.

Mas às vezes o destino parece bastante míope. Se Welinskij contasse o que presenciara, seria considerado um idiota e encaminhado a um psiquiatra.

Enquanto isso acontecia, a fatalidade pôde se abater sobre a Humanidade.

Perry Rhodan observava a aproximação da esquadrilha de caças com um rosto que parecia petrificado. Sabia perfeitamente o que aconteceria se os caças não mudassem de rumo imediatamente.

A Stardust-III deslocava-se a uma velocidade que equivalia a quinze vezes a do som. A uma velocidade daquelas, o impacto dos campos protetores, cujo diâmetro correspondia a dez vezes o da nave, fazia com que as moléculas de ar entrassem em incandescência ou se ionizassem. O resultado era aquela bola de fogo de quase dez quilômetros de diâmetro, cuja visão o capitão Welinskij jamais esqueceria.

Os foguetes disparados pelos caças detonaram na periferia do campo protetor; no interior da nave não chegaram sequer a provocar um tremor, por mais leve que fosse. Mas os pilotos de caça voaram atrás dos projéteis por eles disparados, causando sua própria destruição.

A Stardust-III se manteve na rota, em direção à cidade de Karaganda. Rhodan aproveitou a oportunidade para, pela primeira vez durante aquela missão, fazer uso de uma arma psicológica.

 

A alta oficialidade da base aérea de Karaganda-Leste ficou com os rostos cadavéricos ao tomar conhecimento da destruição total da 23a esquadrilha de caças.

Que inimigo seria aquele?!

A Stardust-III sobrevoou a cidade com velocidade reduzida, produzindo uma tempestade que, em comparação às que haviam sido desencadeadas em outros lugares, podia ser chamada de pouco intensa. As rajadas chegaram à intensidade onze, mas não produziram qualquer dano à cidade ou à base.

Houve, porém, um fato muito mais interessante. A leste da cidade, a imensa nave interrompeu sua viagem, se imobilizou por um instante e começou a subir. Numa altitude de quarenta mil metros voltou a se imobilizar. Parecia pendurada no céu, causando pavor aos habitantes de Karaganda, que não viam mais o sol, e servindo de estímulo aos oficiais da base de Karaganda-Leste.

— Vamos atirar! — sugeriu um deles. — Devíamos disparar todos os foguetes ao mesmo tempo.

A sugestão não foi aceita. Para causarem algum efeito, os foguetes deveriam ser equipados com cargas explosivas nucleares. E o comandante da base achou uma temeridade disparar uma salva de quase cem projéteis desse tipo na direção de um objetivo a apenas quarenta mil metros de altura, isto é, praticamente por cima da cabeça dos habitantes da cidade.

Todavia, o general-de-brigada Chandikarh se declarou disposto a disparar um único foguete contra a Stardust-III.

— Quero que a equipe técnica observe a explosão — disse. — Talvez o fenômeno permita alguma conclusão sobre a forma pela qual podemos atacar o inimigo.

Todos acharam a sugestão bastante razoável. O disparo do foguete foi preparado como se fosse uma experiência difícil, e marcado para as quinze horas e trinta minutos, tempo local, a fim de que a equipe técnica tivesse tempo para instalar seus instrumentos de observação.

— Procure verificar a altura da explosão, fotografe o fenômeno, meça a intensidade luminosa e as emanações radiativas — ordenou Chandikarh. — Depois diga-me o que acha de tudo isso.

Quinze horas.

Sentado na cantina com seus oficiais, Chandikarh tamborilava nervosamente com os dedos, esperando que os últimos minutos passassem. A Stardust-III continuava imóvel. Mas Chandikarh receava que reiniciasse a viagem antes que pudessem realizar a experiência programada.

 

Às quinze horas e três minutos, hora local, Perry Rhodan pôs a funcionar o grande projetor mental. Um enorme campo de influência hipnótica envolveu a cidade de Karaganda e a base de Karaganda-Leste.

 

Às quinze horas e três minutos, dúvidas começaram a surgir na mente do general Chandikarh: valeria a pena realizar a experiência? Ainda às quinze horas e três minutos chegou à conclusão de que devia ser suspensa.

Às quinze horas e quatro minutos, os membros da equipe técnica começaram a sacudir a cabeça, pois já não entendiam as ordens de Chandikarh. Ao mesmo tempo, porém, se tornou perceptível a sensação generalizada de alívio pelo fato de que não teriam mais de atirar contra o inimigo.

Às quinze horas e cinco minutos, Chandikarh disse aos seus oficiais:

— Sejamos francos, senhores. O que temos para opor a um inimigo destes? Ele espalhou o pavor e a devastação em todo o país; e isso, ao que tudo indica, com uma única nave espacial. O que será de nós no dia em que o inimigo lançar mão de duas ou três naves dessas, ou mesmo de uma esquadrilha?

Um major relativamente jovem o interrompeu, falando alto:

— Qualquer um pode adivinhar, general. Nós mesmos seremos destruídos, junto com tudo que possuímos, antes que tenhamos tempo para dar ordem de abrir fogo.

Outros oficiais manifestaram sua concordância em altos brados.

Chandikarh acenou a cabeça.

— Vamos redigir uma resolução — sugeriu. — Toda a oficialidade da base de Karaganda-Leste propõe ao Conselho Supremo do Bloco Oriental a cessação imediata da resistência contra este inimigo e o início de negociações. A experiência pela qual acabamos de passar fez com que constatássemos que seria uma irresponsabilidade continuar a luta e provocar o inimigo. Estamos convencidos de que o Conselho Supremo, mesmo a contragosto, também há de reconhecer que nos defrontamos com alguém contra o qual, com os recursos de que atualmente dispomos, nada podemos.

As palavras de Chandikarh foram recebidas com aplausos. O texto da resolução era relativamente moderado. As idéias que lhe andavam pela cabeça eram bem diferentes. “Façam as pazes com a Terceira Potência, seus cabeças-de-vento”, assim deveria ser o texto. Mas Chandikarh acreditava que a opinião dos outros oficiais não tivesse sofrido uma transformação tão radical como a sua; por isso se contentou com a redação mais suave.

Meia hora depois, o texto foi divulgado na cidade, onde provocou manifestações entusiásticas de apoio. A reação deixou Chandikarh perplexo e fez com que ele vencesse o constrangimento que sentia em transmitir o texto para Moscou.

Às quatorze horas, tempo de Moscou, o Estado-Maior e o Conselho Supremo, reunidos na capital do Bloco Oriental, estavam informados sobre a opinião que subitamente passou a reinar em Karaganda. Palavras duras foram proferidas; chegou-se a falar em motim. Ficou decidido que não se tomaria conhecimento da resolução, e que alguns homens do serviço secreto seriam enviados a Karaganda.

Era de admirar, mas, ao que parecia, ninguém estava compreendendo toda a gravidade da situação. Era bem verdade que ninguém contestava o fato de que o inimigo contava com recursos técnicos mais avançados. Mas, segundo se argumentava, um único veículo inimigo só poderia estar num lugar de cada vez. Se a Terceira Potência acreditava que bastava fazer cruzar uma única nave sobre o território do Bloco Oriental, provocando as maiores tolices para obrigar essa superpotência, armada até os dentes, a dobrar os joelhos, estava redondamente enganada.

 

Perry Rhodan acompanhou os acontecimentos que se desenrolavam em Karaganda e Moscou, na medida que seus instrumentos de observação o permitiram. Não se surpreendeu com nada. A mudança de opinião em Karaganda era inevitável, já que o território da cidade se encontrava sob os efeitos do projetor mental. Por outro lado, os homens do Estado-Maior de Moscou não seriam dignos do posto se, a essa altura, já entregassem os pontos.

Às dezesseis horas, tempo de Karaganda, o major Deringhouse — um jovem desajeitado e impetuoso que dominava o russo graças ao treinamento hipnótico e era um dos melhores elementos de que Rhodan dispunha — saiu da Stardust-III num traje transportador arcônida. O campo de deflexão do traje fez com que Deringhouse se tornasse invisível, e o poderoso neutralizador gravitacional suavizou sua descida. Deringhouse venceu os quarenta mil metros que o separavam do solo em vinte minutos. Enviou a Rhodan o sinal de OK convencionado através do hipertransmissor, para não assumir qualquer risco.

Depois disso, a Stardust-III pôs-se em movimento, permitindo que, depois de uma interrupção de mais de uma hora, o sol voltasse a brilhar no céu de Karaganda. Antes disso, o projetor mental fizera com que a mudança de opinião dos civis e militares de Karaganda fosse protelada. O condicionamento pós-hipnótico só exigia um aumento de potência de quarenta por cento em comparação com a irradiação hipnótica instantânea.

A Stardust-III dispôs-se a cumprir seu primeiro objetivo: inutilizar o potencial militar do inimigo.

 

A voz do marechal Sirov não exprimia a menor reverência. Fedor A. Strelnikov, membro e secretário do Conselho Supremo, a quem essa reverência seria devida, parecia não sentir falta dela.

As últimas notícias eram tão estranhas que ninguém se preocuparia com questões de etiqueta.

— Karaganda, Chulba, Tchyrgaki, Irkutsk, Tchita, Blagoviechtchensk — murmurou Strelnikov, perturbado. — Está notando alguma coisa?

Em vez de responder, o marechal Sirov pegou uma régua e colocou-a sobre o mapa. Se as cidades de Karaganda e Blagoviechtchensk fossem ligadas por uma reta, as de Chulba, Tchyrgaki, Irkutsk e Tchita ficariam nessa reta ou a poucos quilômetros da mesma.

— As resoluções são parecidas, até no texto — prosseguiu Strelnikov. — Pede-se o fim da atividade armamentista, o início de negociações com a Terceira Potência, o restabelecimento das discussões com os governos dos outros blocos com o objetivo de criar um governo único de toda a Terra.

Levantou os olhos do papel que segurava.

— O que acha disto, marechal?

Sirov deu de ombros.

— O senhor deve achar alguma coisa — insistiu Strelnikov.

Sirov abriu a boca para dizer alguma coisa. Mas logo voltou a fechá-la e fez um gesto de contrariedade.

— O que é? — indagou Strelnikov.

Sirov apontou para o mapa.

— Parece que alguém voou pelo trajeto Karaganda—Blagoviechtchensk e hipnotizou todo mundo. É a única explicação que me ocorre. Se achar que é uma tolice, não se zangue. O senhor fez questão de que eu dissesse.

Strelnikov não se zangou.

— Acredita que o inimigo dispõe de recursos como este? — prosseguiu nas suas perguntas. — Acha que lhe basta sobrevoar nosso território uma única vez para desencadear, dentro de poucas horas, uma revolução de que participem mais de quatrocentos milhões de pessoas?

— Vejo-me forçado a admitir esta possibilidade — respondeu Sirov, passando a mão pelo mapa.

Em sua mente prolongou a linha até o litoral do estreito dos Tártaros, que separa a Sibéria da ilha da Sacalina. Qual era a cidade situada no prolongamento da linha?

Komsomolsk.

Strelnikov seguiu seu olhar.

— Está pensando em Komsomolsk? — perguntou.

Sirov fez que sim.

Ficaram calados por algum tempo.

O telefone soou. Sirov levantou o fone e o entregou a Strelnikov. Este deu seu nome e ficou ouvindo. Sirov ouviu uma voz metálica, mas não entendeu uma única palavra. Mas viu que Strelnikov empalidecia. Sua mão estava trêmula quando recolocou o fone.

— O senhor se enganou, marechal — disse. — De Komsomolsk não nos enviaram qualquer resolução que sugira a paz e o início de negociações.

— Ah, é?

— Não. Em Komsomolsk as tropas se amotinaram juntamente com a população e cortaram todas as comunicações com a cidade.

 

Na noite daquele dia, tempo de Moscou, o Conselho Supremo decidiu enfrentar a ameaça com todos os meios disponíveis. Isso significava levar a guerra a toda a Terra.

Só assim poderia se esperar que a gigantesca nave espacial, que traçara estreitas faixas de revolta pelo imenso território do Bloco Oriental, desistisse de seus planos e passasse a cuidar do bem-estar de toda a Humanidade, em vez de interferir nos assuntos internos do Bloco Oriental.

Com todos os meios disponíveis... Isso significava, ainda, o emprego da arma mais recente e terrível que a Humanidade jamais criara com seus próprios recursos: a bomba catalítica de fusão.

Todos estavam perfeitamente lembrados de que Perry Rhodan, quando ainda se encontrava no primeiro degrau da escada que o conduziria ao sucesso, evitara a guerra, envolvendo o planeta com um campo de absorção de nêutrons. Os nêutrons, que deviam provocar a cisão dos átomos de urânio, foram absorvidos por aquele campo. Nenhuma das bombas atômicas chegou a explodir, tampouco as bombas de fusão que seriam detonadas por uma bomba atômica.

As bombas catalíticas não poderiam ser prejudicadas pelo campo de absorção. O processo de fusão propriamente dito não dependia dos nêutrons; a detonação não era conseguida por via indireta, através de uma bomba de fissão.

A decisão de iniciar a guerra foi adotada pela unanimidade dos membros do conselho. O ataque foi marcado para a zero hora do dia 14 de junho, tempo de Moscou. Os militares disporiam de vinte e seis horas para os preparativos.

A sessão do conselho e principalmente a decisão tomada foram estritamente sigilosas. Sabia-se perfeitamente que nem mesmo no último segundo do ataque deveria transpirar qualquer coisa sobre as intenções do conselho.

 

Strelnikov e os outros membros do conselho não se sentiriam tão seguros se soubessem que o segredo em torno da sessão e da resolução não fora nada perfeito.

Todos os discursos, todos os apartes e todas as indicações foram irradiados no recinto da sessão por meio de microfones e alto-falantes. Nada disso chegaria para fora do recinto; mas as palavras, transformadas em impulsos elétricos, atravessaram os condutores situados no interior da sala.

A corrente alternada produz um campo eletromagnético em torno do respectivo condutor, e esse campo retrata os impulsos sob a forma de modulações. Apenas se precisaria de um receptor bastante sensível para captar o campo eletromagnético modulado a uma distância de milhares de quilômetros, onde sua intensidade era centenas de vezes menor que o farfalhar da atmosfera.

Além disso, precisava-se ter conhecimento da situação exata da origem do campo eletromagnético. Só assim o receptor direcional estaria em condições de reprimir o farfalhar atmosférico e, através de um comutador acoplado, selecionar, entre a multiplicidade dos impulsos captados, aqueles que se revestiam de interesse.

Qualquer técnico terreno teria apostado que ninguém seria capaz de construir um receptor desse tipo.

Mas teria perdido a aposta. A bordo da Stardust-III havia vários receptores com essas qualidades. Rhodan entendeu tudo que foi pronunciado naquela sessão, não com a mesma nitidez de quem a presenciasse, mas com uma clareza suficiente para compreender o horror do complô.

Sabia que o Bloco Oriental dispunha de bombas catalíticas de fusão, contra as quais o campo de absorção de nêutrons seria impotente. Poderia fazer partir imediatamente a Stardust-III, que naquele instante se encontrava cem mil metros acima da parte sul dos Montes Urais, e submeter o Conselho Supremo à influência hipnótica.

Mas acreditava que com uma tática diferente alcançaria um êxito maior e mais persuasivo.

 

No dia 13 de junho todo mundo prestou atenção.

Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência, interrompeu os programas de rádio e televisão e dirigiu uma proclamação ao mundo.

Informou todos aqueles que quisessem ouvi-lo sobre os planos do Bloco Oriental.

Perry Rhodan se dispôs a defender a Terra contra qualquer agressor de dentro ou de fora. Uma surpresa especial para Strelnikov e os demais ouvintes ficou reservada para o fim do comunicado.

Em seu televisor, Strelnikov viu o rosto de Rhodan se aproximar dele.

— Preste atenção, Strelnikov — disse Rhodan. — Quero preveni-lo sobre o que farei hoje de noite, se você e seus comparsas não desistirem de seu intento. Para isso farei uma pequena demonstração. Hoje ao meio-dia, mais precisamente, entre as doze e as doze e trinta, hora de Moscou, toda transmissão de energia elétrica, com ou sem fio, será suspensa no território do Bloco Oriental. Dispõe de uma hora e meia para tomar suas precauções.

“Sabe perfeitamente o que isso significa. Faça aterrisar todos os aviões que se encontrem no ar e avise os hospitais. Ou melhor, faça o que quiser. De qualquer maneira, saberá o que vai acontecer com seus foguetes hoje de noite. Sem eletricidade não poderão ser disparados, nem encontrarão o alvo. E a catalise não funciona sem os processos eletrônicos que a regulam.

 

Strelnikov não fez nada. Não valia a pena tomar qualquer providência. Todo mundo ouvira o comunicado ou soubera dele por intermédio de terceiros. Todos sabiam o que teriam de fazer para evitar um acidente.

Pouco antes do meio-dia os médicos largaram os bisturis, os motoristas encostaram seus automóveis, os trens pararam por cautela, e quem tinha de visitar alguém num dos andares superiores de um arranha-céu preferiu subir as escadas para não se arriscar a ficar preso no elevador.

A inteligência de Strelnikov se rebelou contra a possibilidade de que Rhodan pudesse fazer o que prometera. Examinou a pilha de relatórios que tinha diante de si.

A revolta de Komsomolsk se alastrava. As tropas ali estacionadas avançavam terra adentro. Enquanto se mantinham na linha que ligava Blagoviechtchensk a Komsomolsk, eram recebidas de braços abertos. Mas, quando se desviavam dessa linha, avançando na direção norte ou sul, defrontavam-se com a resistência oferecida pelas tropas não submetidas à influência do projetor mental. De qualquer maneira Strelnikov se sentiu abalado ao perceber que mesmo nessas áreas os revoltosos venciam prontamente as resistências que se impunham a eles.

Até parecia que se sentiam tomados por um impulso irresistível, inexistente nos regimentos que continuavam fiéis ao governo.

“Que impulso será este?”, indagou Strelnikov a si mesmo, perplexo. “Um impulso para quê?”

Manteve o televisor ligado e deixou que o programa desfilasse diante dele, sem prestar muita atenção.

Levantou-se, foi à janela e olhou para a rua.

Eram cinco para o meio-dia.

O trânsito parara. Até os pedestres ficaram junto ao meio-fio, aguardando o milagre.

“Que idiotas”, pensou Strelnikov, contrariado. “Mesmo que consiga eliminar a corrente elétrica, será que ele acha que isso será o fim?”

Strelnikov continuou a pensar. Não podia parar de pensar. Era o homem de quem se esperava a iniciativa e as decisões depois da lição de trinta minutos que Rhodan pretendia ministrar ao mundo.

Ouviu-se a voz do locutor:

— Ao meio-dia transmitiremos o toque dos sinos da torre de Spasski.

Mas ninguém ouviu o toque dos sinos. A tela escureceu assim que a torre surgiu no fundo da paisagem formada pelo Kremlim. Parado diante do aparelho, Strelnikov lhe lançou um olhar sombrio.

— Apesar de tudo!... — resmungou.

 

No dia 14 de junho, às nove horas da manhã, tempo local, a Stardust-III pousou em Galáxia, que até então era a única cidade situada nos quarenta mil quilômetros quadrados do território da Terceira Potência, situado no deserto de Gobi.

O Bloco Oriental desistira de seus planos. Strelnikov divulgou a notícia cerca de uma hora depois da falta de energia elétrica. Assim mesmo a Stardust-III continuou a sobrevoar o território inimigo, a fim de verificar se Strelnikov dizia a verdade.

A noite desceu sobre o continente asiático; nenhum foguete saíra das rampas de disparo. A paz fora resguardada. Rhodan tomou providências para que, mesmo em qualquer momento posterior, um ataque de surpresa não pudesse ser coroado de êxito.

A Terra respirou aliviada, primeiro porque Rhodan voltara no momento exato, e depois porque cumprira sua promessa de evitar a guerra.

Quando a Stardust-III pousou, o coronel Freyt, que na ausência de Rhodan exercia as funções de chefe em Galáxia, estava de prontidão.

Uma multidão de espectadores se comprimia nos limites do campo de pouso.

Perry Rhodan saiu da nave em companhia de seu co-piloto, Reginald Bell, e de dois arcônidas, Crest e Thora.

Freyt parecia aliviado, mas não muito feliz, quando Rhodan lhe apertou a mão. Entraram no carro em que Freyt viera e Rhodan perguntou:

— Tem algum problema, coronel?

Freyt hesitou. O carro já havia chegado perto do destino quando resolveu falar.

— Sou acusado de negligência — disse. — Afirmam que não percebi nem preveni em tempo a evolução da política do Bloco Oriental. Acreditam que isso ficava dentro do campo das minhas possibilidades e não compreendem por que não tomei nenhuma providência.

Rhodan acenou com a cabeça.

— É só isso?

Freyt parecia desolado.

— É quanto basta!

Rhodan conhecera os problemas de Freyt depois que a Stardust-III concluíra a transição a partir do planeta Peregrino, e surgira num ponto situado além da órbita de Plutão.

— Tenho que lhe dizer alguma coisa — respondeu Rhodan depois de algum tempo. — E quero que acredite que agi com as melhores intenções.

Freyt o olhou com uma expressão de espanto.

— Nunca seria capaz de duvidar disso.

— Pois espere. Tive que tomar precauções para que, na minha ausência, ninguém abusasse dos recursos técnicos da Terceira Potência, para... bem, para satisfazer suas ambições, ou para qualquer outro fim. Você compreende?

Freyt fez que sim. Começou a compreender por que estivera de mãos atadas. Não gostou muito, mas seu espírito era bastante objetivo para reconhecer que Rhodan tinha razão.

— Você recebeu instruções para interferir na política terrena somente se a Terceira Potência fosse atacada — prosseguiu Rhodan. — Eu não poderia confiar que você se limitaria a estas instruções, acontecesse o que acontecesse. As tentações com que o homem se defronta em nossa cidade são muito grandes. Você ainda não possui um grau de treinamento arcônida que me permita confiar unicamente nas instruções que lhe foram ministradas. Por isso foi submetido a um bloqueio hipnótico, pelo qual ficou preso às minhas instruções. Estava impedido de tomar qualquer providência contra o Bloco Oriental, enquanto nosso território não fosse violado.

Colocou a mão sobre o ombro de Freyt e o olhou com uma expressão séria.

— Sei perfeitamente que não vai gostar de mim por causa disso, Freyt. Mas não pude agir de outra forma. Da próxima vez não será mais necessário. Quanto aos quatro anos e meio que se passaram, o bloqueio hipnótico representa um tipo de álibi para você.

Sorriu, apenas para tentar. Sentiu-se bastante aliviado quando o coronel Freyt retribuiu o sorriso.

 

Uma atividade intensa tomou conta da cidade, cuja população crescera nos últimos anos para oitocentos mil habitantes.

O coronel Freyt estimulara a imigração de técnicos e cientistas. Tomara providências para que a General Cosmic Company construísse as enormes instalações de montagem e iniciasse a produção de naves e caças espaciais concebidos segundo os princípios arcônidas.

A Terceira Potência dispunha de dois cruzadores pesados da classe Terra; eram naves esféricas com duzentos metros de diâmetro. A construção de mais dois cruzadores se encontrava em fase bastante adiantada.

A frota de caças espaciais aumentara para dez esquadrilhas. Eram mil e oitenta aparelhos aptos a enfrentar as condições reinantes no espaço, e que só por si bastariam para garantir à Terceira Potência um predomínio absoluto sobre a Terra.

O exército era formado por dez mil homens. Estavam equipados com armamento arcônida e equivaliam pelo menos a vinte vezes esse número de soldados convencionais.

Rhodan passou os olhos pelos relatórios que Freyt lhe apresentou. Sua inteligência altamente treinada não gastou mais de trinta minutos para incorporar todos os dados. Tudo se passara conforme ele previra.

— Não gosto de usar palavras grandiosas — disse, dirigindo-se ao coronel Freyt. — Mas não posso deixar de constatar uma coisa. Você foi um representante extraordinário. Fico-lhe muito grato.

Freyt não teve tempo para se alegrar com o elogio. Rhodan tinha ordens a dar.

— Avise os governos dos diversos blocos de que... bem... — piscou para Freyt — como direi? Avise-os de que ficaria satisfeito em cumprimentar seus representantes em Galáxia quanto antes.

Freyt anotou.

— Enfatize o quanto antes — recomendou Rhodan. — Isso significa amanhã ou depois. Acrescente que, muito embora a guerra tenha sido impedida, considero a situação extremamente séria, motivo por que se torna indispensável uma série de consultas.

Freyt também anotou este trecho.

— Além disso, quero que designe uma pessoa de confiança para o controle de precisão do hipertransmissor. Quero revezar o homem que exercia essas funções a bordo da Stardust-III. Ficou muito tempo com os olhos abertos. Não há hora marcada para as mensagens do major Deringhouse. Poderá ser anunciado a qualquer momento que queira.

— Deringhouse? — perguntou Freyt, perplexo.

— Sim, Deringhouse. Larguei-o em Karaganda. Quero que ele me ajude a atingir o segundo objetivo do nosso plano. Sabe que devemos contar com as intenções hostis do Bloco Oriental enquanto o atual governo estiver no poder, não sabe?

— Naturalmente.

— Pois bem. Um belo dia prenderemos aqueles cavalheiros de um golpe. E Deringhouse abrirá o caminho para isso.

Em seu subconsciente, o coronel Freyt procurou analisar a impressão que estas palavras lhe causavam.

Representavam um trecho da história mundial. Subitamente, Freyt compreendeu que abismo imenso o separava de Perry Rhodan. Nos últimos quatro anos e meio supusera em várias ocasiões que fazia seu trabalho tão bem feito como Perry Rhodan, e que, com esse poderio imenso, qualquer um poderia dominar a Terra.

Acontece que não era tão fácil. Era necessário conservar em quaisquer circunstâncias a noção do alcance desse poderio. Quem se encontrasse nessa situação ocuparia uma posição bastante exposta e não poderia se dar ao luxo de deixar de cumprir qualquer promessa. Em outras palavras, tornava-se necessário jogar com a profusão das possibilidades como um malabarista que brinca com dez bolas ao mesmo tempo.

Um agente pode fazer muita coisa que é proibida às outras pessoas. Por outro lado, porém, não pode fazer certas coisas que um homem normal consideraria óbvias.

O major Deringhouse trajava uma vestimenta transportadora arcônida que, quando desejasse, o tornaria invisível; mas por outro lado, quando fosse visível, provocaria suspeitas em qualquer um. Deringhouse resolveu iniciar seu trabalho em Karaganda. A cidade com seus habitantes e soldados submetidos a uma influência pós-hipnótica lhe parecia o melhor ponto de partida.

No entanto, não havia dúvida de que mesmo uma pessoa influenciada por Rhodan logo ligaria o aparecimento de uma pessoa em trajes estranhos com o surgimento da Stardust-III nos céus da cidade. Por isso, Deringhouse preferiu deixar passar algumas horas antes de entrar em Karaganda.

Não teria sido difícil a Rhodan influenciar a cidade de tal forma que, mesmo como agente da Terceira Potência, Deringhouse fosse recebido de braços abertos. Mas esse estado de espírito logo se tornaria conhecido em Moscou, e a cautela com que o serviço secreto passaria a agir depois disso teria dificultado desnecessariamente a tarefa de Deringhouse.

Dessa forma, o major resolveu aterrisar, invisível, nas proximidades da aldeia de Plachowskoje, cerca de cento e oitenta quilômetros de Karaganda. Ainda invisível, deu uma volta pela aldeia. Foi quando aconteceu um fato que, posteriormente, provocou nele a idéia de que o próprio destino se empenhara em prestar auxílio a ele e à Terceira Potência.

Plachowskoje era igual a qualquer outra aldeia da região. Ficava à beira da estrada e quase não tinha ruas transversais. As casas, baixas, eram rodeadas de campos imensos, envoltos numa nuvem de pó alimentada ininterruptamente pelas esteiras dos tratores e das máquinas agrícolas.

Deringhouse supôs que o melhor lugar para descobrir alguma coisa sobre o ânimo da população após o ataque da Stardust-III seria o edifício da prefeitura, mas teve algumas dificuldades em descobri-lo em meio às outras casas.

Finalmente o reconheceu por causa de um pequeno quadro de avisos, ao qual estava afixado um único bilhete. No bilhete lia-se o seguinte:

O Conselho Municipal reúne-se hoje de noite, às 20 horas.

O aviso estava manuscrito. Deringhouse acreditava que durante a reunião se falaria nos acontecimentos daquele dia.

O edifício da prefeitura era formado por dois pavimentos. Deu uma volta e viu uma ambulância estacionada, numa área dos fundos do prédio. Pelo letreiro, Deringhouse descobriu que o veículo vinha de Uspenskij.

Isso era de admirar, já que a cidade de Karaganda, muito maior, ficava mais próxima.

Deringhouse entrou no edifício e examinou o pavimento térreo. Não ouviu nenhuma voz e por isso abriu uma das portas que havia no hall de entrada. A porta rangeu. Deringhouse viu uma sala semi-deserta. Só havia uma mesa; atrás dela, um homem assustado se levantou de um salto e com uma expressão de culpa no rosto esfregou os olhos para espantar o sono.

Parecia não se perturbar muito com o fato de não ter visto ninguém que pudesse ter aberto a porta. Suspirou, voltou a sentar e murmurou uma expressão de alívio. Deringhouse recuou, deixando a porta aberta. O homem poderia acreditar que o vento a tivesse aberto. Mas, se ela se fechasse por si, ficaria espantado.

Nesse instante Deringhouse ouviu vozes vindas do andar de cima. Subiu a escada de dois em dois degraus sem se incomodar com o ranger produzido por seus pés. As vozes eram muito altas.

No andar superior havia um hall igual ao do térreo; apenas tinha alguns metros quadrados a menos. As vozes vinham de uma sala cuja porta estava aberta. Um homem de uniforme e outro que parecia um camponês estavam conversando.

Deringhouse parou diante da porta.

— O conselho faz questão de interrogar o homem hoje de noite — anunciou o camponês — sejam quais forem as condições em que se encontre. Falou coisas tão estranhas que talvez tenhamos de avisar o serviço secreto.

O homem de uniforme ergueu os ombros.

— Só posso dizer que o homem está em péssimas condições físicas e mentais. Se for submetido a um interrogatório hoje de noite, provavelmente não resistirá. Mas, se não puder agir de outra forma, paciência.

“É um médico”, constatou Deringhouse. “Deve ser a pessoa que veio na ambulância de Uspenskij.”

— Obrigado — respondeu o camponês. Parecia aliviado. — O senhor poderia ter me causado maiores dificuldades. Mas compreende que...

O médico o interrompeu com um gesto.

— Compreendo. O senhor pode melhorar sua fama na cidade se descobrir um inimigo do Estado e conseguir prendê-lo e entregá-lo ao serviço secreto. Por que acha que alguma coisa não está em ordem com esse homem?

O camponês respondeu sem hesitar.

— Algumas pessoas o viram descer lá fora, de pára-quedas e assento ejetável. Estava inconsciente. Ao ser colocado na maca, abriu os olhos. E a primeira coisa que disse foi o seguinte: “Parem com essa bobagem. Vocês não podem sair vitoriosos dessa luta; o inimigo é poderoso demais.”

— Por certo estava aludindo à nave espacial inimiga que sobrevoou esta região, não é verdade? — disse o médico.

O camponês acenou violentamente com a cabeça.

— Contou algumas coisas confusas sobre uma gigantesca bola de fogo e sobre vários aviões de caça que teriam entrado nas bolas de fogo produzidas por seus próprios foguetes e explodido. Será que uma coisa dessas pode ser verdade? Quem afirma uma coisa dessas é um traidor e um sabotador, não é mesmo?

O médico se mostrou cauteloso.

— Depois saberemos — respondeu.

Deringhouse não estava interessado em saber como prosseguiria a palestra. Provavelmente estariam falando de um dos pilotos de caça que participaram do ataque à Stardust-III. Ao que parecia o homem estava extraindo da série de acontecimentos a única solução aceitável, e por isso estava prestes a ser imprensado entre as engrenagens do serviço secreto.

Onde estaria?

Sem ser notado pelos dois homens que conversavam numa sala de porta aberta, Deringhouse abriu cautelosamente uma série de outras portas. Finalmente entrou numa sala escurecida, da qual saía o ruído de uma respiração irregular.

Havia cortinas diante das janelas para impedir a entrada da luz ofuscante. Deringhouse fechou a porta e esperou até que os olhos se acostumassem à penumbra.

Num dos cantos havia uma cama de campanha bastante primitiva. Sobre a cama estava estendido um homem. Dormia e parecia precisar do sono. O rosto estava arranhado e desfigurado. Apesar disso parecia simpático.

Deringhouse gravou o rosto na memória e saiu da sala com a mesma cautela com que havia entrado. Voltou ao pavimento térreo e, depois de espiar por vários buracos de fechadura, encontrou uma sala um pouco maior, em que cadeiras e bancos se misturavam desordenadamente. Era a sala de reuniões. Por enquanto sabia o suficiente. Saiu do edifício da prefeitura. Para passar o tempo que faltava até o anoitecer, furtou alguns comestíveis da única loja existente na aldeia, tirou um jarro de água límpida do poço e matou a fome e a sede com sua presa de guerra.

Chegou à sala de reuniões muito antes das oito. Ocupou um lugar seguro em cima de um dos armários encostados à parede, onde ninguém esbarraria nele. Os membros do conselho não pareciam ser muito pontuais. Às oito horas só havia dois homens, além de Deringhouse. Os quatorze restantes foram chegando entre as oito e as oito e vinte.

O homem ferido que Deringhouse vira de tarde entrou carregado em sua cama de campanha. Não se percebia qualquer melhora considerável de seu estado. Mas estava acordado e se mostrava bastante interessado.

Os homens o fitaram com uma curiosidade indisfarçada. Finalmente o homem que de tarde conversara com o médico militar abriu a reunião.

E logo passou à ordem do dia.

— Este homem — disse, apontando para o ferido — é, ao que lhe consta, o único sobrevivente do ataque que a 23a esquadrilha de caças de Karaganda desfechou contra a nave espacial inimiga que hoje sobrevoou esta região. As declarações que prestou a respeito do ataque são tão estranhas que achei conveniente que ele as repetisse diante de vocês. Depois deliberaremos sobre o que devemos fazer face às suas declarações.

“Que idiota”, pensou Deringhouse. “Depois de ter ouvido isso, o homem não voltará a manifestar sua opinião.”

O camponês, que devia ser o prefeito da aldeia, se voltou para o ferido.

— Comece a falar! — ordenou. — Indique seu nome e posto e informe tudo que julgar importante. O senhor se encontra diante do Conselho Municipal da aldeia de Plachowskoje que, conforme sabe, terá que deliberar a seu respeito, já que desceu no território desta aldeia.

O ferido se apoiou sobre os cotovelos. Via-se que isso lhe exigia um grande esforço.

— Meu nome é Jaroslav Afimovitch Welinskij — principiou com a voz fraca. — Sou capitão e comandante do 5o esquadrão da 23a esquadrilha de caças, estacionados em Karaganda-Leste. Pelas quatorze e quinze decolei da base, em companhia dos meus companheiros de esquadrilha, a fim de atacar e destruir a nave inimiga que se aproximava da cidade de Karaganda. Nossa missão foi um fracasso. A maior parte, ou melhor, todos os nossos aviões foram destruídos.

Forneceu uma descrição minuciosa da bola de fogo que havia observado, e relatou como os caças se tornaram vítimas dos foguetes por eles mesmos disparados. Concluiu com estas palavras:

— Parecia que para o inimigo isso não passava de uma brincadeira. Não teve de fazer o menor esforço para destruir nossa esquadrilha. Não precisou mexer um dedo. A parede de fogo que espalhou em torno de si provocou a explosão dos foguetes e, com eles, dos nossos caças. Na minha opinião seria uma irresponsabilidade lutar contra um inimigo destes. Não dispomos de nada comparável com os recursos de que ele dispõe. Quem quisesse resistir estaria agindo com o mesmo senso de um menino que pretendesse deter um tanque pesado com as mãos.

O protesto foi súbito e violento, como se viesse por encomenda. Welinskij ouviu os piores insultos; as palavras traidor e sabotador foram as mais suaves.

Deringhouse admirou a coragem daquele homem. Tudo seria muito mais fácil para ele se tivesse relatado a ocorrência em termos menos fortes. Face ao intenso treinamento hipnótico a que fora submetido, Deringhouse sabia o que esperava o capitão: seria denunciado aos serviços de segurança e encaminhado a um dos postos para ser submetido a um interrogatório bastante minucioso.

A decisão de Deringhouse estava tomada.

Mas antes de executá-la queria saber o que aconteceria em seguida.

O chefe do conselho formulou a proposta que todos esperavam: a transmissão de um aviso imediato aos serviços de segurança.

Welinskij não manifestou qualquer oposição. Até o fim respondeu a todas as perguntas com a maior tranqüilidade e objetividade. Depois de hora e meia de interrogatório, as forças o abandonaram. Desmaiou e deixou-se cair na cama.

Foi levado para fora. O chefe do conselho usou o telefone para transmitir o aviso. Das palavras que foram proferidas Deringhouse concluiu que o aviso foi encaminhado ao posto do serviço de segurança sediado em Akmolinsk, não ao de Karaganda.

Ao que parecia, conheciam a notícia de que naquela cidade remava um espírito revolucionário depois que a Stardust-III ali permaneceu por uma hora. Via-se que os camponeses de Plachowskoje continuavam fiéis ao governo.

 

Pela meia-noite o silêncio da grande planície foi interrompido pelos estalos e chiados produzidos pelos rotores de um helicóptero. Um veículo fracamente iluminado desceu do céu nublado e aterrizou na estrada, junto às primeiras casas da aldeia.

O prefeito, mais dois membros do conselho e dois camponeses que carregavam a maca em que se encontrava Welinskij estavam à espera. Welinskij havia acordado.

Deringhouse estava invisível, parado à beira da estrada. Observou o jovem capitão e procurou descobrir como o mesmo se sentia. Mas Welinskij não revelava a menor emoção.

O helicóptero dispunha de um amplo compartimento de carga. Deringhouse não teve a menor dificuldade em entrar sem ser notado e se acocorar junto à cama de campanha de Welinskij.

Ouviu as pessoas conversarem por algum tempo do lado de fora. Mas logo o motor voltou a chiar, os rotores bateram e o aparelho se levantou com um forte solavanco.

“Até aqui tudo bem”, pensou Deringhouse.

É verdade que pretendia ir a Karaganda, mas parece que os acontecimentos tomaram outra direção. Será que a modificação se revelaria útil à sua missão?

Ficou quebrando a cabeça a respeito e chegou à conclusão de que pouco importava o ponto em que iniciaria sua marcha propriamente dita.

De qualquer maneira teria de ir a Moscou, e tanto fazia que partisse de Akmolinsk ou de Karaganda.

O vôo para Akmolinsk não durou mais de trinta minutos. Apesar do barulho causado pelo helicóptero Welinskij adormecera. Só despertou quando sua maca foi retirada do compartimento de carga.

Deringhouse saiu atrás dela, e foi então que aconteceu o primeiro incidente.

A porta do compartimento ficava cerca de metro e meio acima do solo. Os homens que aguardavam o helicóptero conversavam em altas vozes; por isso Deringhouse acreditava que não haveria o menor risco em saltar para fora. Mas não percebeu que, próximo à porta, havia um tipo de encaixe. Ao saltar, ficou com o pé direito preso ali. Tombou para a frente e caiu sobre o ombro do homem que se encontrava mais próximo ao helicóptero.

De início houve uma tremenda confusão. O homem foi atirado para a frente pela força do impacto e arrastou mais algumas pessoas.

Mas logo todos se viraram, de pistola na mão. À luz das lâmpadas que iluminavam o campo de pouso, Deringhouse viu seus rostos decididos e perplexos.

— O que foi isso? — perguntou um deles.

— Alguém saltou sobre as minhas costas — disse o homem sobre o qual Deringhouse havia caído.

— Deixe de bobagens — disse outro. — Não há ninguém aqui além de nós!

— Pois eu lhe digo...

O homem se aproximou cautelosamente da porta e olhou para dentro. O compartimento de carga estava escuro.

— Há alguém aí dentro? — perguntou em voz alta. — Saia!

Não houve resposta. Deringhouse já se levantara e se colocara de pé junto à cabina do piloto. Viu que Welinskij observava tudo com o maior interesse.

— Eu lhe disse que não há ninguém — disse um dos homens que permaneceram de pé.

Mas seu companheiro não se perturbou. Deringhouse não pôde deixar de reconhecer que era um rapaz corajoso. Entrou imediatamente no compartimento de carga e revistou-o. Quando voltou, tinha o rosto ainda mais perplexo.

— É verdade, não há ninguém — disse com a voz baixa.

Os outros riram.

Pegaram a maca de Welinskij e saíram com ela. O homem sobre cujos ombros Deringhouse caíra voltou a cabeça mais de uma vez, lançando olhares desconfiados para o helicóptero.

 

Welinskij passou uma noite desassossegada. Sua cama fora colocada num cubículo com cheiro de mofo que ficava num galpão do campo de pouso. Ninguém se incomodou com ele. Aproveitou o tempo para dormir um pouco.

Pelas sete da manhã serviram-lhe um café reforçado e perguntaram se já estava em condições de levantar.

Experimentou e conseguiu, embora dali a cinco minutos já visse manchas coloridas diante dos olhos.

Foi levado por um longo corredor que dava para outra sala do mesmo galpão. Um major estava sentado atrás de uma escrivaninha.

Welinskij fez continência. O major retribuiu. Os dois homens que haviam acompanhado Welinskij se retiraram.

— Sente-se — disse o major. — Acho que ainda não está muito bom das pernas.

Welinskij sentou; estava surpreso com tamanha gentileza.

— O senhor vai contar a história mais uma vez — disse o major com um sorriso. — Tenho diante de mim o relatório vindo de Plachowskoje, mas não estou entendendo bem.

Welinskij voltou a relatar tudo. Pela terceira vez contou a história por ele vivida.

O major o escutou com muita atenção. Assim que Welinskij terminou, perguntou:

— E daí?

Welinskij estava perplexo.

— Por causa destas declarações — explicou — aquela gente de Plachowskoje fez de mim um traidor e sabotador e me encaminhou ao serviço de segurança.

O major pareceu se divertir com esse fato.

— Meu Deus! — disse, rindo. — Se eu tivesse passado pelo que o senhor passou, teria contado exatamente a mesma coisa. Não vejo onde está a sabotagem ou a traição.

Welinskij não acreditou no que estava ouvindo.

— Está falando sério? — perguntou em tom hesitante, se inclinando para a frente.

O major fez que sim.

— Sem dúvida.

— Quer dizer que posso voltar para Karaganda?

— Não pode, não.

Welinskij se assustou. Não permitiam que voltasse. Quer dizer que havia alguma coisa.

— Seu caso foi muito comentado — prosseguiu o major. — O Conselho Supremo nos enviou um homem de confiança, que vai levar o senhor a Moscou. O conselho pede que relate os acontecimentos em sessão secreta. Evidentemente fará isso como homem livre. Não há motivo para acusá-lo de traição, sabotagem ou derrotismo.

Os ouvidos de Welinskij começaram a zumbir. Mal ouviu a pergunta:

— O senhor concorda?

— Sim... sim, naturalmente.

O major preencheu um formulário. Entregou-o a Welinskij e disse:

— Vá até o galpão C e bata à porta da sala número vinte e cinco. Ali encontrará o homem que deverá levá-lo a Moscou. Mostre-lhe este bilhete. Boa viagem!

Welinskij se sentia confuso. Agradeceu e se retirou. Subitamente esquecera a fraqueza que sentia; estava curioso para ver o homem que o levaria a Moscou.

Viajariam por terra? Por que não iriam...

Quando encontrou o galpão C esqueceu a pergunta. Atravessou o corredor e encontrou a porta com o número vinte e cinco. Bateu.

— Entre! — disse alguém.

Welinskij entrou.

Na sala havia uma mesa e uma cadeira. Sobre a mesa, Welinskij viu um par de solas de bota bem frisadas. Deu um passo para o lado e viu as pernas em que as botas estavam enfiadas e o homem ao qual pertenciam essas pernas.

Seu aspecto não tinha nada daquilo que Welinskij imaginara num elemento de comunicação do Conselho Supremo. Não havia dúvida de que tinha menos de trinta anos. Os cabelos estavam cortados à escovinha, e os olhos emitiam um brilho azulado.

O mais estranho naquele homem era seu equipamento. Usava um traje que parecia uma combinação de vestimenta de mergulhador, alpinista e mecânico. Welinskij nunca vira coisa parecida. Com um certo respeito contemplou as coronhas das armas, que sobressaíam dos coldres existentes na altura do quadril ou na parte superior da coxa.

— Terminou a inspeção? — perguntou o homem, tirando as pernas de cima da mesa.

Welinskij se lembrou do que tinha a fazer. Ficou em posição de sentido e fez continência:

O louro — Welinskij notou que tinha perto de dois metros de altura — fez um gesto displicente.

— Sim, já sei. O prenome é Jaroslav Afimovitch. Capitão-comandante do 5o esquadrão da 23a esquadrilha de caças, estacionada em Karaganda-Leste. Correto?

— Perfeitamente — respondeu Welinskij, perplexo.

— Sou Lub — disse o louro. — Veja bem: não digo que meu nome é Lub. Esqueci meu verdadeiro nome. Os homens que importam me conhecem como Lub. O senhor também me chamará assim.

— Está bem — respondeu Welinskij.

— Iremos juntos a Moscou — prosseguiu Lub.

— Perfeitamente. Permita que lhe faça uma pergunta?

— Naturalmente.

— Por que não vamos de avião? Chegaríamos mais cedo.

Lub deu um sorriso de escárnio.

— É um rapaz esperto, não é? Acontece que iremos por terra.

Welinskij logo formou sua opinião. Nunca vira um homem mais descontraído e lacônico que Lub. Não seria fácil tirar dele alguma coisa que não quisesse revelar.

Apesar disso Welinskij o achou simpático, até muito simpático.

Lub não se demorou muito no aeroporto. Todos pareciam conhecê-lo, pois ninguém lhe pedia que se identificasse. Welinskij o seguiu.

Às dez horas embarcaram num dos modernos trens elétricos da Estrada de Ferro Transiberiana, que os levaria a Moscou, passando por Magnitogorsk e Kufbychev.

— É mais confortável — explicou Lub em termos lacônicos. — Mandei reservar um compartimento só para nós. Até pode dormir.

No momento Welinskij não tinha disposição para isso. Enquanto o trem atravessava a paisagem numa velocidade de trezentos quilômetros por hora, voltou a examinar Lub. Viu que este o percebia e formulou uma pergunta, para se antecipar a uma observação irônica:

— Que terno é esse?

Lub sorriu.

— É um traje especial — respondeu. — Não deixa passar balas ou outras coisas desagradáveis. Além disso, pode executar uma série de truques. Oportunamente lhe mostrarei.

Ao que parecia quis fugir a outras perguntas, pois ligou o televisor que se achava instalado neste como em todos os demais compartimentos do trem sumamente confortável. Um programa insosso se desenrolou diante deles... até o momento em que Perry Rhodan interferiu na rede terrena de televisão e transmitiu sua advertência dirigida ao governo do Bloco Oriental.

Welinskij acompanhou a alocução com os olhos atentos. Mas Lub se reclinou num canto e fez como se achasse aquilo muito tedioso. Quando Rhodan terminou e o programa anterior voltou ao ar, Welinskij disse:

— Será que Strelnikov concordará? Será que tomará em consideração os ensinamentos dos últimos dias?

Lub deu de ombros.

— Como vou saber?

Welinskij se exaltou.

— Será que isso não o comove? Todo mundo deve refletir se vale a pena se engalfinhar com um inimigo destes, ou se é preferível entrar em negociações para salvar a pátria.

Lub sacudiu a cabeça.

— Pois eu, por princípio, não quebro a cabeça sobre estas coisas.

Welinskij achou que a atitude de Lub era repugnante, mas não disse mais uma palavra a este respeito.

Às onze e meia o trem parou em Atbassar, uma pequena localidade onde a parada do trem não era prevista. Lub sorriu.

— Sabe por que o trem parou? — perguntou a Welinskij.

— Para não se encontrar em qualquer lugar no meio da linha quando faltar energia — disse o capitão com toda franqueza.

Lub fez que sim. Depois disse:

— Venha comigo; vamos descer. Welinskij se assustou.

— Por quê?

— Depois explico.

Welinskij obedeceu. Quando desceram foram abordados pelo condutor.

— Aqui a descida não é permitida. Fiquem no trem.

— Não vou ficar coisa alguma — resmungou Lub. — Quero esticar as pernas.

O condutor não tinha qualquer objeção. Lub marchou em companhia de Welinskij pela plataforma arenosa. Examinaram a cabana do guarda-trilhos e contornaram-na.

— Fique aqui mesmo! — ordenou Lub de repente. — Voltarei logo.

Welinskij obedeceu. Lub voltou a contornar a cabana e retornou dali a dois minutos.

— Tudo em ordem — disse com um sorriso. — Vamos andando.

— Para onde? — perguntou Welinskij perplexo.

Lub apontou para os telhados achatados da pequena localidade, que sobressaíam em meio à névoa que cobria a planície.

— Para lá. Gosto de aproveitar os intervalos que me são impostos. Conheço pouca coisa desta terra imensa. Gostaria de ver Atbassar.

— Vamos voltar em tempo? — perguntou Welinskij, preocupado.

Lub deu de ombros.

— Não sei — respondeu.

Foram andando, e fizeram-no sem rebuços. Todo mundo os via, inclusive o solícito condutor, mas ninguém procurou detê-los. Foi outra coisa que deixou Welinskij admirado.

Atbassar ficava cerca de seis quilômetros da estação. Ainda não haviam percorrido a metade da estrada poeirenta e esburacada, quando o chiado dos jatos de um avião se fez ouvir, vindo do leste. Lub levantou o braço e olhou para o relógio. Welinskij o viu estremecer.

— Que idiota! — disse por entre os dentes. — Por que não aterrizou?

Pararam.

Welinskij não saberia dizer o que havia de errado naquele avião. Mas percebeu-o assim que o ponteiro de segundos do relógio de Lub saltou para o número doze.

De um instante para outro o ruído vigoroso dos jatos cessou, já que o suprimento de energia das bombas de combustível, compressores, ativadores e outros componentes importantes do mecanismo foi interrompido. O chiado se transformou num uivo, e este acabou num miserável apito. Um minuto depois das doze, a máquina, que antes era um ponto brilhante no azul do céu, estava transformada numa grande mancha cinzenta.

Lub não respondeu.

O avião passou em disparada por cima da aldeia de Atbassar.

As asas estreitas, concebidas para um deslocamento em alta velocidade, não davam sustentação ao avião. Sua queda foi semelhante à de uma pedra achatada.

Tudo terminou numa labareda ofuscante que surgiu bem além da aldeia de Atbassar, e num estrondo abafado que segundos depois percorreu a planície.

— Que Deus tenha compaixão deles! — disse Lub e voltou a se descontrair.

Quando reiniciaram a marcha, os joelhos de Welinskij estavam trêmulos.

Pela uma e meia chegaram à aldeia. Lub ordenou:

— É preferível que espere aqui. Quero dar uma olhada.

Welinskij estava tão deprimido que não se encontrava em condições de formular qualquer objeção. Sentou na beira da estrada e esperou. Lub foi andando.

Só se sobressaltou uma vez em sua atitude cismarenta. Foi quando, ao meio-dia e meia em ponto, os motores dos tratores entraram em funcionamento com um rugido e transportou uma caravana de enfermeiros e voluntários — mas também de curiosos — em direção ao local em que o avião havia caído.

“Provavelmente Lub não vai encontrar ninguém na aldeia”, pensou Welinskij; mas em face do desastre que testemunhara isso não o preocupou.

Meia hora depois se aproximou aos solavancos uma daquelas carroças motorizadas que, nos últimos anos, vinham sendo usadas pelos camponeses. Lub estava à direção e, quando parou diante de Welinskij, sorriu alegremente como se acabasse de fazer um bom negócio.

— Suba! — disse.

Welinskij subiu e sentou perto de Lub.

— Onde arranjou isso? — perguntou.

— Comprei — foi a resposta.

— Onde pretende ir?

— A Kosgorodok.

Welinskij quase ficou sem fôlego.

— O que vamos fazer em Kosgorodok? Não pretendia me levar a Moscou?

Lub fez que sim.

— Sei que estou pedindo muito — disse. — Mas vamos fazer um acordo. Em Kosgorodok eu lhe digo exatamente o que está havendo. Em compensação você promete que não fará mais perguntas. Combinado?

Welinskij refletiu.

— De acordo — disse depois de algum tempo.

Pelo que dizia Lub, Kosgorodok ficava a pouco mais de duzentos quilômetros de Atbassar. Só chegariam no fim da tarde, isso se não houvesse nenhum enguiço no veículo.

 

O coronel Freyt fez-se anunciar. Rhodan fez com que entrasse imediatamente.

— Já temos a concordância dos governos da Federação Asiática e do bloco da OTAN — disse Freyt. — O Bloco Oriental ainda não acusou o recebimento de nossa nota, nem deu qualquer resposta.

Rhodan acenou com a cabeça.

— Isso era de esperar. Estaremos em três, Freyt. Conseguiu combinar dia e hora?

— Sim senhor. Amanhã, dia 16 de junho, se possível às quatorze horas, tempo local.

— Ótimo. Já confirmou?

— Sim senhor. Fui eu que sugeri esse dia e hora.

Rhodan levantou as sobrancelhas, num gesto zombeteiro.

— Houve alguma objeção?

— Nenhuma — respondeu Freyt com um sorriso.

— Isso representa um bom atestado da nossa reputação.

Freyt se retirou e Rhodan voltou a mergulhar nas suas meditações.

O que realmente o incomodava na situação atual da política terrena não eram os desvios de que o Bloco Oriental se fizera culpado. Os recursos técnicos e psicológicos da Terceira Potência poderiam vencer qualquer atitude deste tipo dentro de poucas horas.

O principal motivo de suas preocupações era a imaturidade humana que se revelava na conduta dos Estados do Bloco Oriental.

Rhodan não era o tipo de homem que se entregava a ilusões. Estava firmemente convencido de que conseguiria abrir os olhos da Humanidade não só através da instalação da Terceira Potência, levada a efeito apesar de todos os obstáculos e hostilidade, mas também através de uma abundância de informações sobre os acontecimentos desenrolados na cidade de Galáxia, que fez fluir para todos os países da Terra através de numerosos canais. Convencera-se de que, recorrendo a um material ilustrativo adequado, conseguiria dentro de um tempo muito reduzido transformar o homem num terreno, isto é, num ser com uma visão realista de sua verdadeira terra natal; o homem se transformaria numa partícula de pó tão impregnada do pensamento galático que consideraria ridículas quaisquer disputas particularistas em sua minúscula pátria, e não perderia tempo com elas.

Mas, qual a realidade atual?

Por ocasião do primeiro vôo tripulado à Lua realizada pelo homem, Rhodan encontrou no satélite de nosso planeta os representantes de uma raça humanóide desconhecida. Vinham de um mundo que eles chamavam de Árcon, e que ficava a trinta e quatro mil anos-luz da Terra. Haviam pousado na Lua com uma nave exploradora e Crest, o chefe científico da expedição, sofria de leucemia.

Rhodan aproveitou a oportunidade. Retornou à Terra em companhia de Crest, a quem prometera a cura, e fez de sua nave, pousada no deserto de Gobi, o centro da Terceira Potência.

Crest foi curado e manifestou sua gratidão, colocando à disposição de Rhodan os recursos criados pela tecnologia arcônida. Rhodan se defendeu dos ataques desfechados pelos blocos de potências terrenas e consolidou seu pequeno Estado. Recorreu ao campo de absorção de nêutrons, uma invenção dos arcônidas, para impedir uma guerra que teria significado o fim da Humanidade.

A nave exploradora arcônida era comandada por uma mulher chamada Thora. Era a mulher mais bela e fascinante que Rhodan já vira. Mas, na opinião da comandante, os homens não passavam de um bando de criaturas semi-selvagens, e foi assim que ela os tratou. No entanto essa humanidade miserável conseguiu, num esforço inaudito e sem que Rhodan o soubesse, destruir a nave arcônida. Quando isso aconteceu, Thora não se encontrava a bordo, e Crest já se radicara na Terra. Thora e Crest sobreviveram à catástrofe, e o produto mais importante de sua civilização que conseguiram salvar foi uma nave auxiliar esférica de sessenta metros de diâmetro, que não poderia realizar a viagem de volta ao seu mundo natal.

Os arcônidas não tiveram outra alternativa senão colaborar com a Humanidade. Precisavam de um veículo apto a enfrentar as condições reinantes no espaço. Para obtê-lo foi criada a General Cosmic Company, dirigida pelo mutante Homer G. Adams.

Surgiram muitos perigos. Alguns deles ameaçavam a Terceira Potência, vindos de um ou de alguns dos blocos de potências roídos pela inveja; outros punham em risco toda a Terra, provocados por inteligências extraterrenas, que haviam encontrado a pista do cruzador destruído e esperavam encontrar em nosso planeta uma presa fácil e abundante.

Sobreviveram a tudo. No sistema Vega, situado a uma distância de vinte e sete anos-luz, ajudaram uma raça desesperada na sua luta contra um grupo de invasores reptilóides. Depois da vitória, encontraram indicações que lhes revelaram pistas do mundo em cuja busca a nave exploradora dos arcônidas se lançara ao espaço: o planeta da vida eterna.

Um poderoso desconhecido fez seu jogo com eles. Conduziu-os a armadilhas e os libertou das mesmas, para que provassem que eram dignos de se tornarem seus herdeiros.

Encontraram o mundo do desconhecido. Era um planeta artificial, que percorria uma trajetória também artificial, realizando no curso de vários séculos um movimento de translação em torno de mais de uma dezena de sistemas solares. Deram a esse planeta o nome de Peregrino. Encontraram o desconhecido e com ele o segredo da vida eterna. Mas ficaram sabendo que a vida eterna só caberia a Rhodan e aos homens que o mesmo julgasse dignos de receberem essa dádiva.

O grande relógio da história galáctica assinalava o fim do tempo dos arcônidas. A vida eterna não seria para eles. Crest e Thora encontraram o mundo que procuravam, mas essa descoberta não lhes trouxe qualquer vantagem.

Rhodan e os terranos seriam os homens do futuro.

Retornaram do planeta Peregrino, depois de terem ficado longe da Terra por alguns meses, segundo sua contagem de tempo.

Mas durante a permanência no planeta Peregrino, onde prevalecia um tempo diferente, a Terra vivera quatro anos e meio. Nesses quatro anos e meio as pessoas ambiciosas haviam se acostumado à idéia de que Rhodan nunca mais regressaria para intervir na política terrena.

A Federação Asiática e o bloco da OTAN se mantiveram na linha de cooperação interestatal já adotada. Mas no Bloco Oriental houvera uma revolução que fez vir à tona os elementos menos recomendáveis.

Dali em diante a discórdia voltou a reinar e, por um triz, teria causado a guerra.

Rhodan se levantou e olhou pela janela.

Contemplou a área verde da cidade. A chuva artificial criara um grande jardim em meio ao deserto.

Era preciso que fizesse os homens compreenderem que teriam de obedecer até que sua inteligência estivesse madura para a missão que a Humanidade tinha que cumprir.

 

Ao chegarem perto de Kosgorodok, que não passava de uma aldeia à margem de um reluzente lago salgado, Welinskij e Lub se instalaram numa cabana desabitada. Ao que parecia ninguém notou sua presença. Ninguém se interessou por eles.

Mais uma vez Welinskij recebeu ordem para esperar enquanto Lub foi à aldeia. Demorou mais que das outras vezes, só voltando ao escurecer.

Welinskij se assustou quando viu na claridade da porta que outro homem acompanhava Lub. Não saberia dizer por que se assustou. Afinal, estava com a consciência tranqüila!

Na cabana não havia luz elétrica, mas Lub trouxera uma vela. Acendeu-a e colocou-a no chão de terra batida. Welinskij viu que o recém-chegado envergava um uniforme de policial e voltou a se assustar.

Além do policial, Lub trouxera outras coisas: um pão achatado e aromático e vários tipos de lingüiça. Colocou tudo isso no chão e disse:

— Daqui a pouco vamos comer. Mas antes disso este homem nos contará uma coisa.

Sentaram em torno da vela. O policial não se fez de rogado. Pôs-se a falar:

— O povo de Plachowskoje entregou um derrotista e sabotador ao serviço de segurança de Akmolinsk. Realmente o homem chegou a Akmolinsk, mas desapareceu de forma misteriosa. Apareceu um homem que, não se sabe como, conseguiu convencer o chefe do serviço de segurança, um major, de que vinha de Moscou e fora incumbido de levar o preso para lá. O major entregou o preso. Quando foi interrogado a este respeito, não soube dar qualquer explicação satisfatória. Além disso, se recusou a admitir que o preso realmente fosse um derrotista. Também não soube explicar essa opinião. Há um detalhe muito importante. O preso foi transportado de helicóptero de Plachowskoje para Akmolinsk. Estava ferido e foi carregado em maca. Quando foi descarregado em Akmolinsk, um dos homens que carregavam a maca recebeu um esbarrão por trás e caiu ao chão. Acontece que ninguém viu o homem que fez isso, e o mesmo nunca foi encontrado.

“Outros elementos do serviço secreto seguiram a pista do desconhecido e do sabotador. Em Akmolinsk os dois tomaram o Expresso Transiberiano com destino a Moscou. Em Atbassar o trem fez uma parada em virtude da advertência sobre a interrupção do fornecimento de energia proferida por Rhodan. O condutor do trem e o guarda-linha são unânimes em afirmar que ninguém saiu do trem durante a parada. Mas alguns passageiros declaram que viram dois homens caminharem em direção à aldeia de Atbassar. Um deles usava trajes esquisitíssimos. É a última notícia que se teve dos dois. Não apareceram em Atbassar. Estão sendo procurados em toda a região.”

O policial se levantou sem que ninguém mandasse. Virou-se, abriu a porta e desapareceu na escuridão. A porta foi fechada atrás dele.

Welinskij notou perfeitamente que o homem se movia como um boneco.

Sentiu que Lub o olhava e virou a cabeça.

— Então? — perguntou Lub.

— Isto é uma... uma... — gaguejou Welinskij.

— É o quê? — perguntou Lub com a voz tranqüila.

— Faz isso para me intimidar — explodiu Welinskij. — Logo percebi que não é o homem pelo qual quer passar. Pretende me impedir de fazer aquilo que é meu dever. O sabotador é o senhor, não eu. É um traidor da...

Lub o interrompeu com um gesto. Nem chegou a se aborrecer.

— Deixe de conversa — disse com toda calma. — Quer insinuar que subornei o policial para que o mesmo imaginasse uma história?

— Isso mesmo. E...

— Pois vá até a aldeia. Kosgorodok conta com dois policiais. Procure o outro e diga quem é. Talvez ele seja bastante inteligente para reconhecê-lo sem uma apresentação. Espere para ver o que fará com você.

Welinskij se levantou.

— É isso mesmo que vou fazer — asseverou em tom áspero. — Depois disso mandarei o policial até aqui, para que tome conta do senhor.

Lub soltou uma gargalhada.

— Seu idiota!

Welinskij saiu.

Mas só deu alguns passos na escuridão. Afinal, por que estava desconfiando de Lub? E se o policial tivesse dito a verdade? Pois ele mesmo não se surpreendera com o curso inesperado que os acontecimentos tomaram em Akmolinsk?

“E se tudo que o policial dissera fosse verdade?...”

Outras indagações surgiram na mente de Welinskij. Só Lub poderia dar a resposta.

Teria subornado o major em Akmolinsk? Que tolice! Nenhum major se deixaria subornar com tanta facilidade.

Mas...

Welinskij deu meia-volta. Voltou a entrar na cabana e, antes que Lub pudesse fazer uma observação sarcástica, disse:

— Está bem... voltei. Deve ser um grande triunfo para o senhor. Mas lhe prometo que irei imediatamente à polícia sem me importar com o que poderá acontecer depois, a não ser que forneça uma explicação plausível sobre tudo que aconteceu desde hoje de manhã.

Lub o encarou.

— Belas palavras, patriota! — respondeu. — Eu lhe prometi que em Kosgorodok saberia tudo, não prometi? Talvez não goste do que vai ouvir. Mas ao pensar a respeito use a cabeça e não o sentimento. Sente-se!

Welinskij obedeceu prontamente.

— Para começar do princípio — iniciou Lub — meu verdadeiro nome é Conrad Ezechiel Deringhouse. A responsabilidade pelo segundo nome, e também pelos outros, cabe a meus pais...

 

Se Strelnikov não demonstrou muita sabedoria política, ao menos deu provas de sua capacidade de reconhecer uma nova situação e reagir à mesma, quando nas primeiras horas da manhã do dia 15 de junho transmitiu suas instruções ao Conselho Supremo.

Já se conformara com a idéia de que não convinha subestimar as forças do inimigo, e se conduziu de acordo com a mesma. Determinou que de nenhuma reunião do conselho deviam participar mais de cem membros. Era pouco menos de um terço da totalidade dos seus componentes.

Dessa forma evitaria que Rhodan conseguisse dominar todo o conselho de uma só vez, através de seus inexplicáveis recursos hipnóticos. O voto de um terço dos membros era necessário para instaurar o debate sobre qualquer problema, e nem isso Rhodan poderia fazer de um golpe.

Strelnikov adotou, sem qualquer subterfúgio, métodos de governo ditatoriais. Dava as ordens e, aos demais membros do conselho, só cabia cumpri-las.

Enviou três divisões a Komsomolsk para reprimir a revolta que eclodira naquela cidade.

E fez outra coisa. Interessou-se pelas estranhas notícias que falavam de um capitão da força aérea que desaparecera de Akmolinsk. Havia a participação de um desconhecido ainda mais suspeito; ninguém sabia quem era ou de onde vinha.

Strelnikov tinha certeza quase absoluta de que se tratava de um dos agentes de Rhodan. Por isso mobilizou todos os recursos para prendê-lo. Sabia que Rhodan fazia muita questão do bem-estar das pessoas que com ele colaboravam, motivo por que o prisioneiro teria um valor inestimável como refém.

Era bem verdade que, pelas informações recebidas até então, era de supor que aquele homem dispunha de duas faculdades: impor sua vontade aos outros e se tornar invisível.

Das primeiras vezes que essa afirmativa foi formulada diante dele, Strelnikov disse que era tolice. Mas, quando os mesmos acontecimentos foram relatados pelas mais diversas pessoas com que os dois se encontravam no caminho, a conclusão que se impunha era exatamente essa, e Strelnikov se conformou com ela.

Dali em diante a polícia e os serviços de segurança receberam instruções de procurarem localizar o capitão Welinskij, vigiá-lo e aguardar até que o estranho aparecesse em sua companhia. Todos foram avisados de que não deveriam atacar o desconhecido pela frente.

Strelnikov nem imaginava que com todas essas instruções — desde a proibição das reuniões do Conselho Supremo em sua totalidade até a ordem de perseguir Welinskij — fez exatamente aquilo que Rhodan e Deringhouse esperavam dele.

Era esta a guerra psicológica num sentido mais elevado.

 

Depois das explanações de Deringhouse, a discussão teve um fim tranqüilo. Deringhouse disse:

— Se tiver vontade de sair correndo para fazer minha caveira em qualquer delegacia de polícia, não demorarei em agarrá-lo. Estamos entendidos?

A ameaça era desnecessária. Deringhouse expusera sua missão e suas idéias com a maior franqueza, sem recorrer a qualquer meio para converter Welinskij à sua opinião.

Este acreditou na sinceridade de Deringhouse e foi de opinião que o plano por ele exposto só poderia ser considerado justo e razoável, até mesmo por um patriota.

Saíram de Kosgorodok e prosseguiram na direção oeste. Viajaram de trem, roubaram helicópteros, andaram alguns quilômetros a pé e percorreram algumas centenas de quilômetros de automóvel.

Nesse meio tempo, já no dia 17 de junho, haviam chegado a Magnitogorsk. Haviam percorrido quase metade do trecho de Akmolinsk para Moscou.

Deringhouse se dirigira a Magnitogorsk com uma intenção bem definida. Tinha certeza de que os setores responsáveis sabiam, ou desconfiavam, de que ele e Welinskij se encontravam naquela cidade, e pretendia lhes dar um osso duro de roer.

De Magnitogorsk saía uma pequena estrada de ferro em direção a Bajmak, que ficava cerca de cem quilômetros ao sul. Qualquer um diria que Bajmak era um lugarejo insignificante, e ninguém saberia dizer por que se deram ao trabalho de construir uma estrada de ferro para lá.

Só Deringhouse e mais umas poucas pessoas sabiam. Em Bajmak era extraído o minério de urânio mais rico que existia na Terra. Até se falava em veios de urânio puro que afloravam nas galerias da mina. Era evidente que o governo se esforçava para guardar o maior sigilo sobre a jazida. Oficialmente dizia-se que em Bajmak haviam sido localizadas jazidas de estanho de proporções reduzidas.

Deringhouse e Welinskij compraram passagem e tomaram o trem para Bajmak. Mais ou menos a meio caminho o trem parou num desvio e deixou passar um comboio carregado de minério. Deringhouse fitou atentamente os carros cobertos de lona. Subitamente, Welinskij puxou-o pelo braço.

— Olhe! — chiou, apontando para a frente do carro.

Olhando pelas portas envidraçadas, que permitiam a visão de todos os carros, Deringhouse viu, dois carros adiante, um homem uniformizado que examinava os documentos dos passageiros. Virou a cabeça e, do lado oposto, a uma distância igual, viu outro policial.

Abriu a janela e olhou para fora. Perto da locomotiva e no fim da composição havia um terceiro e um quarto policial.

— É o fim — disse Welinskij.

Não poderiam sair dessa. O traje de Deringhouse chamaria a atenção de qualquer um e, mesmo que ele se tornasse invisível, Welinskij não dispunha de qualquer documento que o habilitasse a viajar para Bajmak. Além disso, todos os policiais deviam conhecer seu rosto de cor.

Mas Deringhouse não perdeu a calma.

Encontravam-se no terceiro carro a partir da locomotiva. Welinskij viu que seu companheiro enfiou a mão no bolso e passou a mexer numa arma que chamava de projetor mental.

No vagão em que viajavam havia poucos passageiros; apenas três operários sonolentos sentados num banco próximo à porta traseira.

O policial os despertou e pediu seus documentos. Depois de examiná-los, se dirigiu a Deringhouse e Welinskij.

— Não temos documentos — respondeu Deringhouse.

O policial ficou perplexo. Depois de algum tempo disse:

— Vocês não podem estar sem documentos. Vamos logo, mostrem!

Deringhouse deu de ombros.

— Não tenho documentos, e meu amigo também não.

O policial ficou de olhos semicerrados e franziu a testa.

— Escute aqui! — disse, esticando as palavras. — Que traje é esse?

Deringhouse passou os olhos pela sua roupa e respondeu:

— É um traje de alpinista. Acabo de comprar.

— Como é seu nome?

— Lub.

— Só isso?

— Só.

— Como se chama seu amigo?

Deringhouse deixou a resposta a cargo de Welinskij. Este fez o que se esperava dele, embora a contragosto: se assustou e só depois de uma demora altamente suspeita se lembrou de um nome. E por cima de tudo o nome foi este:

— Popoff!

Na Rússia este nome é tão freqüente como Silva entre nós.

O policial logo percebeu a situação com que se defrontava.

— Ah! — exclamou. — Esperem aí! Fiquem sentadinhos!

Com um passo rápido se dirigiu à janela e abriu-a. O apito soou. Os policiais postados de ambos os lados do trem responderam.

O policial que realizara o controle de documentos a partir do carro da frente descera depois de ter concluído o trabalho no segundo carro.

Deringhouse endireitou o corpo e comprimiu o acionador do projetor mental contra o metal plastificado do vagão. Transmitiu a ordem com o máximo de concentração. Só se descontraiu quando o trem se pôs em movimento com um solavanco.

O policial gritou alguma coisa para seu colega. Ao que parecia ainda não percebera que o trem se pusera em movimento. Deringhouse se colocou atrás dele, enlaçou-o pelos joelhos, levantou-o e empurrou-o pela janela. A velocidade do trem ainda era muito reduzida. O policial não se machucaria na queda.

Os outros policiais demoraram em compreender o que estava acontecendo. O trem ganhou velocidade. Nada lhes restou senão gritar e sacudir os punhos.

Deringhouse soltou uma gostosa gargalhada. Não teve a menor dificuldade em tranqüilizar os três trabalhadores por meio do projetor mental. Depois se dirigiu a Welinskij.

— Da próxima vez avise o que pretende fazer — queixou-se este. — Assim poderei me preparar.

Deringhouse continuou a rir.

— Você foi formidável! Agiu exatamente como alguém que tem a impressão de que foi descoberto.

— Dentro de dois minutos o pessoal de Bajmak saberá que estamos para chegar. E então?

— Que saibam! — respondeu Deringhouse. — Era isso mesmo que eu queria.

Welinskij o olhou com uma expressão de perplexidade, mas Deringhouse não lhe forneceu qualquer explicação.

— Assumi um único risco neste jogo — disse. — Não sabia se conseguiria influenciar o maquinista sem poder vê-lo. Mas você viu, consegui.

 

Thora nunca julgara necessário se fazer anunciar a Rhodan; mas desta vez ela agira assim. Durante os trinta segundos que se passaram, desde o anúncio até o momento em que Thora entrou em seu gabinete, Rhodan procurou imaginar que conseqüência o choque sofrido no planeta Peregrino devia ter provocado no espírito da arcônida, pois de repente soube se adaptar aos modos terrenos.

A figura ereta surgiu na porta. Era bela, de uma beleza desconcertante, com seu cabelo muito claro, quase branco, e o brilho vermelho irradiado por seus olhos. Mas ainda se notavam os vestígios da decepção e das provocações que experimentara no planeta Peregrino.

Rhodan convidou-a a sentar.

— Fico satisfeito em vê-la — disse em tom amável. — Faz bastante tempo que não me visita.

Thora ergueu as sobrancelhas.

— Sempre se leva algum tempo para vencer um choque deste — respondeu. Aliviado, Rhodan percebeu que ela zombava de si mesma.

A arcônida tomou lugar à frente de seu interlocutor.

— Vim por um motivo egoísta — confessou. — Gostaria de saber, para me distrair um pouco, o que faz o mundo.

Rhodan relatou os fatos minuciosamente e em tom de conversa.

— Não o compreendo — disse Thora em tom de espanto, assim que Rhodan concluiu seu relato. — No início usa vassoura de ferro e agora prefere enfrentar o Bloco Oriental com um único agente, quando um ataque concentrado resolveria tudo em poucas horas. E a solução seria muito mais convincente.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Thora, não entende a psicologia terrena — disse em tom professoral. — Na minha opinião, Deringhouse não corre o menor perigo. Nada pode lhe acontecer, a não ser que faça uma tolice. Por outro lado posso mostrar à Humanidade em geral, e ao povo do Bloco Oriental em particular, que, para a Terceira Potência, uma revolução desse tipo nem chega a representar um acontecimento que justifique o uso de armas pesadas ou o lançamento de bombas.

Lançou um olhar indagador para Thora.

— Compreende o que quero dizer? Inclinou o corpo para a frente. — A Humanidade deve compreender que Rhodan só precisa fazer isto — passou a mão por cima da mesa — para remover quaisquer dificuldades. Espere aí! — disse, adiantando-se a uma objeção de Thora. — Não quero brilhar à custa dos outros. Apenas quero obrigar a Humanidade a se unir. É este o meu objetivo. Mas não pretendo usar a força; prefiro recorrer a um método especial, para fazer com que a própria Humanidade acabe compreendendo. Se aceitasse suas sugestões, a lembrança que ficaria dos acontecimentos seria a de que os homens foram obrigados pela força bruta a unir-se. E é isso que eu quero evitar.

Thora não soube o que responder. Depois de algum tempo voltou a falar:

— Tem razão, como sempre.

Depois de mais alguns minutos de silêncio perguntou:

— Quais são as perspectivas de voltarmos a Árcon?

A pergunta representou uma surpresa para Rhodan; mas sua mente reagiu instantaneamente. Desde os primeiros dias de sua cooperação com a Terra, Crest e Thora só estavam empenhados em sua volta para Árcon. E, mesmo quando já existiam recursos para isso, Rhodan ficou adiando a realização desse desejo de uma oportunidade para outra, por motivos de segurança terrena. Sentiu que não poderia continuar assim por muito tempo.

— Eu lhe prometi que viajaríamos para Árcon assim que a Terra estivesse em segurança — respondeu.

Conforme era de esperar, Thora não demorou a formular outra pergunta:

— Quando será isso?

— Aguardemos a conferência que se realizará hoje — consolou-a Rhodan. — Se conseguirmos uma união, mesmo imperfeita, poderemos decolar dentro de algumas semanas.

Sabia que não era nada disso. A Terra estaria longe de ser um lugar seguro, mesmo que a conferência que se iniciava fosse coroada de êxito. Mas, consolando Thora, evitou uma discussão acalorada.

— Está bem — suspirou Thora. — Depois de tamanha espera agüentaremos mais algumas semanas.

 

Deringhouse fez o trem parar poucos quilômetros antes de Bajmak e desceu juntamente com Welinskij. Os que pretenderam impedi-lo foram influenciados hipnoticamente para adotarem uma atitude mais razoável.

Afastaram-se dos trilhos cerca de duzentos metros e, andando paralelamente aos mesmos, se aproximaram de Bajmak, ocultos pela vegetação. De um lugar elevado viram que o trem no qual haviam viajado, ao chegar a Bajmak, foi recebido por metade de um batalhão de policiais. Por cerca de quinze minutos reinou uma terrível confusão. Depois disso a tropa policial se dividiu em vários grupos, que se deslocaram para o norte, avançando de ambos os lados da linha férrea.

— Estão à nossa procura — disse Deringhouse.

Prosseguiram em sua marcha. Por um motivo que de início lhes parecia inexplicável os policiais nunca se afastavam mais de cinqüenta metros dos trilhos. Dessa forma nunca encontrariam os sabotadores. Posteriormente Deringhouse veio a saber que, em virtude de suas armas superiores, os policiais receberam ordem para não penetrarem em qualquer área onde a visão não fosse perfeita. O comandante do destacamento policial de Bajmak não estava interessado em enviar duzentos policiais para o interior do matagal, e meia hora depois ver duzentos sabotadores saírem de lá.

Welinskij e Deringhouse atingiram o lugarejo meia hora depois, vindos do sul. Como ninguém os esperasse de lá, conseguiram se aproximar a cem metros do edifício em que funcionava a administração da pretensa mina de estanho sem serem notados. Passaram o tempo que faltava até o escurecer num matagal grande e denso, sem que qualquer dos grupos de policiais que patrulhavam a área os descobrisse.

Só depois das dez horas puseram mãos ao trabalho, do qual por enquanto só Deringhouse tinha uma idéia clara. Welinskij só sabia que no momento adequado devia ser visto por alguém. E Deringhouse não ocultou o fato de que isso representaria a parte mais difícil do trabalho.

— Não se esqueça — avisou ao companheiro. — Eu estou protegido contra as balas, mas você não. Não assuma qualquer risco.

Aproximaram-se cautelosamente do complexo de edifícios. Atrás da maior parte das janelas a luz já se apagara. Só um dos barracos continuava iluminado por uma desagradável luz fluorescente branco-azulada. Deringhouse indicou o lugar em que Welinskij deveria ficar.

— Aqui estará protegido — cochichou. — Voltarei em tempo. Só se mostre o suficiente para que um policial medianamente competente consiga gravar seu rosto.

Welinskij ficou nervoso.

— A quem vou me mostrar? Que diabo!

— A qualquer pessoa. Daqui a pouco haverá gente de sobra nesta área.

 

Frunse, um georgiano, naquela noite de plantão no barraco de vigilância, estava tranqüilamente sentado à mesa que ficava perto da janelinha com o pequeno guichê. Para vencer o sono procurou afundar na leitura de um jornal.

Frunse não era um homem muito instruído, mas possuía uma vontade de ferro. Não falava o russo muito bem, e a leitura do jornal se tornava ainda mais difícil. Mas foi atravessando tenazmente os textos e desviou a idéia de sono de sua mente até vencê-la definitivamente.

Estava entretido na leitura de uma notícia sobre uma estranha mortandade do gado verificada na Sibéria ocidental quando a porta se abriu. Frunse atirou o jornal sobre a mesa e fitou a porta. Estava absolutamente certo de que ninguém se aproximara do barraco. Havia um único caminho que conduzia à porta, e apesar do esforço exigido pela leitura teria percebido se alguém o utilizasse.

A porta tinha fecho automático; não poderia se abrir por si, nem permanecer aberta por tanto tempo.

Frunse se levantou. Sentia um pouco de medo, mas precisava ver o que havia com a porta. Nesse instante ela voltou a se fechar. Depois de hesitar um instante, Frunse voltou à sua cadeira. Uma porta fechada não o preocupava, e o que passou já pertencia ao passado. Mas estava tão irritado que levou alguns minutos fitando os espaços vazios do recinto, como se alguma coisa pudesse estar escondida por ali.

Depois voltou a pegar o jornal.

Pouco depois voltou a se sobressaltar. Ouvira um ruído. Olhou por cima do jornal, mas não viu nada. Só quando voltou a ouvir o mesmo ruído percebeu a direção de onde vinha.

O vigia se ergueu lentamente. Alguns segundos preciosos se passaram antes que compreendesse que aquilo não era obra de um fantasma, mas de alguém que sabia perfeitamente o que queria. Atrás das duas chapas que acabavam de ser retiradas ficava o labirinto de fios do equipamento de segurança, cujo painel central fora instalado na mesa de Frunse. Não entendia nada dos detalhes técnicos da instalação; mas sabia que qualquer invasor, inclusive um sabotador, poderia penetrar nos edifícios da administração e nas galerias sem ser impedido ou mesmo notado se a instalação fosse destruída ou danificada.

Isso não podia acontecer!

Com dois saltos enormes se colocou diante da parede. Estendeu a mão para agarrar o invisível. Mas em vez de agarrá-lo sentiu uma pancada violenta, que o atirou para o lado oposto da sala. Por algum tempo ficou estendido no chão, ofegante.

O medo e a raiva lutaram em sua mente. Olhando para cima, viu que as pontas dos fios embutidos na parede se moviam, ligações eram desfeitas e outras estabelecidas. Não compreendia, mas tinha certeza de que o invisível arruinaria as instalações de tal forma que alguns dias se passariam antes que pudessem ser reparadas.

Frunse rastejou cautelosamente em direção à sua mesa. Apoiando-se em um dos pés, ergueu o corpo, abriu a gaveta e retirou a pistola. Por baixo da mesa fez pontaria em direção ao lugar em que supunha estar o invisível e, num acesso de raiva e coragem, apertou o gatilho.

A descarga provocou um estrondo naquele recinto pequeno. Mas o efeito foi totalmente diferente do que esperava: o estrondo da explosão foi superado pelo ruído metálico do impacto do projétil contra a parede. Seguiu-se um uivo cortante e o estilhaçar do vidro. Ao se voltar, apavorado, percebeu que o tiro disparado para a frente quebrara a vidraça atrás dele.

Mas Frunse era um homem duro, e o fato tranqüilizador de que o estranho nem tomava conhecimento dos seus esforços, mas continuava a trabalhar calmamente, diminuiu o medo de que se sentia possuído. Inclinou-se sobre a mesa e levantou o fone. Discou apressadamente os três algarismos da polícia e gritou:

— Aqui entrou um invisível que está destruindo as instalações do equipamento de segurança.

Deixou cair o fone e voltou a se abrigar atrás da mesa.

O telefonema também não perturbou o invisível. Pelo estalo dos fios partidos e pelo crepitar das faíscas, Frunse percebeu que continuava a trabalhar.

“Você não perde por esperar”, pensou com o ânimo furioso. “Logo será agarrado.”

Mas não tinha nenhuma idéia clara sobre a maneira pela qual a polícia poderia ser mais bem sucedida contra o inimigo invisível do que ele o fora.

Soltou um grito quando, pouco antes do momento em que, pelos seus cálculos, a polícia devia aparecer, os estalos e o crepitar cessaram subitamente e no mesmo instante a porta voltou a se abrir.

— Nãããoo! — gritou Frunse. — Está escapando!

Passou por baixo da mesa e correu à porta. Mas era evidente que na escuridão não via mais do invisível do que vira na sala bem iluminada.

 

Welinskij ouviu as pisadas de muitos pés. Poucos minutos antes ouvira o tiro disparado no barraco e o uivo da bala que ricocheteava.

As pisadas se aproximaram. Vinham da estrada e entraram no caminho que dava para o barraco. Pouco depois os vultos dos policiais em desabalada carreira surgiram na escuridão.

— Nãããoo! — gritou alguém do interior do barraco, no mesmo instante em que Welinskij saía do seu esconderijo. — Está escapando!

Os policiais se aproximaram. Num rápido exame, Welinskij contou oito deles. A escuridão era quase completa, mas viram-no. O grupo estacou. Depois que pelos seus cálculos fora visto o suficiente, Welinskij desapareceu no matagal. Alguém gritou:

— Sigam-no! Vamos! É ele!

Mas do lado do barraco ouviu-se a voz lamurienta de alguém que falava um péssimo russo:

— É aqui, seus idiotas! Foi daqui que ele desapareceu!

Welinskij correu pelo matagal. Estava a quase cinqüenta metros dos policiais quando estes se refizeram da confusão. Dois deles continuaram a persegui-lo. Os outros correram em direção ao barraco.

Subitamente Welinskij percebeu que alguém o segurava pela mão. Assustou-se. Mas Deringhouse ainda pretendia tomar outras iniciativas.

— Abrace-me por trás — ordenou a Welinskij.

Este obedeceu.

— Agora realizaremos um pequeno vôo, para nos afastarmos daqui o mais rápido e o mais longe possível. Neste traje está embutido um gerador que, ligado à potência máxima, produz um campo antigravitacional capaz de suportar nós dois. Para isso devemos dispensar a invisibilidade. Mas de noite isso não será tão perigoso.

Antes que pudesse proferir uma palavra, Welinskij teve a sensação de quem se encontra num elevador que desce em alta velocidade. Seu estômago parecia se levantar um pouco. Assim que se recuperou do susto, viu as luzes da mina bem abaixo do lugar em que estava.

— Não tenha medo — tranqüilizou-o Deringhouse. — Não é muito confortável, mas é melhor que fugir a pé.

— Mas se eu o soltar... — disse Welinskij, falando com dificuldade.

— Nesse caso não acontecerá nada — explicou Deringhouse. — Continuará a voar comigo. Só se der socos ou pontapés em mim será desviado, e assim que abandonar a gravisfera artificial cairá. Portanto, é preferível que continue comigo.

Riu. Mas Welinskij não estava com vontade de rir. Em seu interior o medo do desconhecido, do nunca visto, lutava contra a admiração provocada por esse produto de uma tecnologia incrivelmente desenvolvida.

Depois de algum tempo se acostumou à sensação estranha da ausência parcial de gravidade e começou a se interessar pelo que se passava em torno dele. Pelos contornos pouco nítidos das colinas do sul da cadeia dos Urais, que desfilavam abaixo deles, calculou em duzentos metros a altitude em que voavam e em cem quilômetros por hora a velocidade. A força do deslocamento do ar fora reduzida bastante pelo campo de gravitação artificial. Welinskij não sentia qualquer incômodo, mesmo quando olhava por cima do ombro de Deringhouse.

Pelo que notava, se deslocavam na direção oeste.

 

Embora, na qualidade de perito-militar, o marechal Sirov participasse do Conselho Supremo apenas como um adido, viu-se diminuído como os demais quatrocentos e quinze membros com direito de voto: foi reduzido à simples condição de um receptor de ordens.

Mantinha-se escondido e mudava diariamente de esconderijo.

Todos os dias, sempre numa hora diferente, entre as oito da manhã e o meio-dia, Sirov recebia um chamado telefônico e uma voz desconhecida lhe transmitia as notícias mais recentes. Sempre que fossem importantes ele as transmitia através de mais de vinte canais diferentes, cujo emaranhado geralmente lhe era desconhecido, fazendo-as chegar aos seus subordinados, a fim de que estes tomassem as providências que se fizessem necessárias.

Pelo menos três vezes por dia Sirov recebia um telefonema de um homem que, segundo supunha, era o secretário-geral Strelnikov. Este formulava sugestões de como se devia reagir a esta ou aquela situação e esperava que Sirov considerasse essas sugestões como ordens; o que o marechal fazia com a melhor boa vontade.

Naquele dia, em 18 de junho, Sirov recebeu, logo depois da transmissão das últimas notícias, um chamado de alguém que falava com a voz disfarçada.

— Grande vitória — disse a voz.

— Grande êxito — respondeu Sirov. Eram as senhas combinadas para que Sirov recebesse como ordens tudo que lhe fosse dito em forma de sugestão.

— Temos novidades a respeito do agente de Rhodan — prosseguiu a voz. — Ontem de noite apareceu em Bajmak, na área de Magnitogorsk, pela forma usual e incompreensível. Demonstrou muita autoconfiança. O capitão Welinskij estava com ele. Safou-se mal e mal de um controle realizado num trem. Na noite do mesmo dia o sistema de segurança da mina de urânio foi danificado de tal forma que o pessoal terá que trabalhar pelo menos dois ou três dias para repará-lo.

Naquela voz notava-se um tom de triunfo. De início Sirov ficou admirado com isso; mas logo compreendeu.

— Daí se pode concluir sem a menor dúvida — prosseguiu a voz — que Welinskij e aquele agente tentarão atacar a mina, e isso antes que as instalações de segurança tenham sido reparadas. Portanto, sabemos que nas próximas vinte e quatro horas, ou ainda nas próximas quarenta e oito horas, os dois permanecerão em Bajmak.

Sirov compreendeu.

— Quero que mande seus melhores elementos para lá — disse a voz. — Os dois não devem escapar!

— Entendido — respondeu Sirov. — Providenciarei imediatamente.

— Muito bem. Por enquanto só tivemos conhecimento de um agente que Rhodan introduziu em nosso território. Tudo indica que realmente não haja outro. Logo, parece que no momento não há nenhum perigo para Moscou.

Isso representava certo alívio, não só para Strelnikov.

A palestra terminou com o estalo do fone. Sirov baixou o gancho e discou rapidamente uma seqüência de algarismos que sabia de cor. Transmitiu as instruções de Strelnikov e todas as informações adicionais, e insistiu na necessidade de que Welinskij e o agente fossem capturados de qualquer maneira.

No curso do telefonema Sirov ouviu um ligeiro chiado no pequeno apartamento que ocupava naquele dia. Interrompeu a palestra e se virou. Podia ver a área fronteira à porta; não havia ninguém. Disse para si mesmo que algum ruído da rua devia ter chegado até lá e continuou a falar ao telefone.

Quando terminou o telefonema, ficou sentado mais algum tempo diante do telefone, mergulhado em pensamentos e olhando para a janela encortinada. Depois se levantou para pegar o maço de cigarros que se encontrava no bolso do paletó.

Quando ia se afastando da escrivaninha, ele os viu, os dois.

Um deles era Welinskij. Sirov vira muitos retratos dele e o reconheceu imediatamente. O outro devia ser o agente da Terceira Potência. Era alto e magro, tinha o cabelo louro cortado à escovinha e seu rosto exibia um sorriso irritante.

— Bom dia! — disse o louro com a voz amável. — Entramos de forma um tanto estranha; queira desculpar. Não tivemos outra alternativa. Pensávamos que...

Deu um salto enorme para o meio da sala. Era um salto muito maior que o que Sirov pretendia dar para alcançar a gaveta da escrivaninha.

O marechal teve a sensação de ter sido envolvido num furacão. Numa raiva surda percebeu que o louro alto nem quis recorrer às suas armas, sem dúvida muito superiores; confiava apenas na força dos punhos e na agilidade física.

Mas a raiva de Sirov não adiantou de nada. Levou uma porção de socos doloridos antes que pudesse levantar os braços para se proteger. Quando tentou escapar, Deringhouse lhe bateu com ambos os punhos em cima da cabeça. Sirov tonteou, dobrou os joelhos, não conseguiu se manter de pé e caiu ao chão com um baque.

A respiração de Deringhouse nem chegava a ser mais rápida. Apenas a amabilidade havia desaparecido de seu rosto.

— Não tente isso uma segunda vez! — avisou ao marechal. — Dispomos de outros meios; da próxima vez será um homem morto.

Sirov procurou se levantar. Deringhouse fez um gesto e Welinskij veio em auxílio do marechal, arrastando-o para uma cadeira e segurando-o. Deringhouse saiu da sala. Voltou com um monte de fitas de plástico e as atirou a Welinskij.

— Amarre-o! — ordenou. — Tenha cuidado. Sua segurança depende disso.

Depois, perguntou a Sirov.

— Sabe por que estou aqui?

O marechal não respondeu. Deringhouse esboçou um sorriso zombeteiro.

— Não venha me dizer que seu serviço de informações é tão ineficiente. A conferência dos governos legais das potências terrenas decidiu na tarde de anteontem, em Galáxia, que os objetivos e métodos do atual governo do Bloco Oriental deviam ser condenados e exigiu a punição dos culpados por uma corte mundial. Já deve ter ouvido falar nisso.

A essa altura Sirov já não conseguiu dominar a raiva.

— Não seja ridículo! — fungou. — Em Galáxia podem decidir e exigir o que quiserem. Quem vai se interessar por isso?

— Você — respondeu Deringhouse. — Está em minhas mãos, e delas só sairá para ser entregue ao carcereiro de Galáxia.

Sirov se esforçou para soltar uma risada de escárnio, mas não conseguiu.

— Aliás, você não será o único — prosseguiu Deringhouse em tom indiferente. — Da mesma forma que o encontrei, ainda vou pôr as mãos em algumas outras pessoas. Assim não sentirá tanta solidão.

Sirov lhe lançou um olhar indagador. Deringhouse percebeu que estava interessado em saber como pudera localizar seu esconderijo. Mas não lhe explicou.

— Afinal, você só é um dos pequenos patifes — disse Deringhouse.

Com isso a raiva de Sirov voltou a crescer; mas por mais que forçasse as fitas de plástico, elas não cediam.

À saída do apartamento, Deringhouse transmitiu suas instruções a Welinskij.

— Tenha cuidado! — preveniu-o. — Não caia em qualquer truque. É preferível nem falar com ele. Não devo demorar. Se houver um imprevisto, use o radiador térmico. Infelizmente não posso lhe dar coisa melhor.

Welinskij voltou ao interior da residência e Deringhouse se retirou. Examinou o lugar da porta onde a fechadura fora retirada cuidadosamente com o radiador térmico. Estava oculto sob a maçaneta e só mesmo alguém que olhasse cuidadosamente e de perto notaria alguma coisa.

Ali não haveria qualquer perigo. Mas, se Sirov estivesse sendo vigiado, a coisa seria diferente. Nesse caso...

Que nada! Welinskij possuía uma arma superior e saberia se cuidar. Desde que dispusesse de mantimentos, poderia resistir com o radiador térmico a um exército inteiro enquanto conseguisse manter os olhos abertos.

Até então ele, Deringhouse, já estaria de volta.

Antes de tomar o elevador para descer ao térreo, ativou o campo de deflexão luminosa. Assim que chegou à calçada se elevou a uma altitude de dez metros e voou acima do trânsito.

Seu destino era a central de telecomunicações. Por ali passavam todos os condutos telefônicos de Moscou, inclusive os dos dez ou quinze videofones de que a cidade já dispunha.

Deringhouse tivera a idéia de penetrar na central de telecomunicações enquanto, em companhia de Welinskij, viajava de Magnitogorsk a Moscou, parte de avião, parte de trem ou de carro. Chegando a Moscou, logo transformou a idéia em realidade. Recorreu ao projetor mental para penetrar no edifício e pelo mesmo meio obteve permissão de acompanhar trechos das mensagens do setor oficial F. Recorrera à compulsão hipnótica para obter do diretor a informação de que as mensagens internas do governo eram transmitidas por esse setor.

A tentativa foi coroada de êxito. Depois de dez minutos, descobriu o esconderijo do marechal Sirov. Acompanhara a transmissão das notícias.

Por simples acaso Sirov foi o primeiro a ser descoberto. Poderia ter sido qualquer outro membro do Conselho Supremo.

Deringhouse sabia que, no momento, era mais importante descobrir o esconderijo de Strelnikov, secretário-geral do conselho.

Se conseguisse pôr as mãos nele, o êxito do plano de Rhodan estaria garantido.

Deringhouse não subestimou o risco que correria numa busca a Strelnikov. Para uma pessoa isolada, o exponencial de perigo que envolvia o projeto cresceria com o tempo, por melhor que fosse seu equipamento. Além disso, Deringhouse percebeu pela primeira vez que, ao se unir a Welinskij, arranjara antes um peso que um auxílio.

Aumentou a velocidade e, dez minutos depois que deixara Welinskij, chegou ao edifício da central de telecomunicações.

 

Rhodan procedeu metodicamente. Confiava antes de tudo na força dos seus argumentos. Não havia nenhum problema que o preocupasse tanto como o da união da Humanidade, e facilmente poderia influenciar os membros e representantes dos governos no sentido de concordarem com suas sugestões. No entanto, nada fez para que isso acontecesse.

Agiu de igual para igual. Inscreveu-se na lista dos oradores e a palavra lhe foi concedida em primeiro lugar. Nenhum dos presentes acreditava que aquilo que teria para dizer fosse mais importante que a mensagem que solicitara a conferência.

Quem esperava que Rhodan iniciasse seu discurso com um relato do que fizera nos últimos quatro anos e meio — e houve algumas pessoas que acreditavam que ele utilizaria a conferência como plataforma publicitária — logo viu que estava enganado. Rhodan falou sobre aquilo que, nesse meio tempo, havia acontecido na Terra.

Leu o relatório sobre a revolução no Bloco Oriental, redigido por seus agentes. Vários detalhes chegaram ao conhecimento público pela primeira vez. Tratava-se de fatos que os novos detentores do poder julgavam acobertados pelo segredo.

Rhodan estava consciente dos efeitos que suas revelações produziriam. Por sugestão sua e sem que os delegados se opusessem, a conferência foi irradiada pelas potentes emissoras de televisão da Terceira Potência e retransmitida por todas as emissoras terrenas, com exceção das situadas no território dos Estados que compunham o Bloco Oriental.

Rhodan repetiu as recomendações formuladas aos governos dos blocos de potências durante as conferências panterrenas realizadas alguns anos atrás. Provou que o novo governo do Bloco Oriental nada fizera para cumprir essas recomendações e, mais do que isso, infringira e continuava a infringir as mesmas.

Mas a acusação de maior peso formulada contra os governos do Bloco Oriental foi a de que pretenderam desencadear uma guerra que teria significado o fim da Humanidade, se a Terceira Potência não tivesse interferido a tempo.

As explanações de Rhodan não duraram mais que uma hora. Assim mesmo abrangeram toda a problemática em formulações sucintas e precisas. Ao concluir disse:

— Senhores, sem dúvida temos o direito de levantar a voz em nome daquele grupo de mais de quatrocentos milhões de pessoas, que já haviam começado a acreditar que dentro de poucos anos a Terra seria um mundo da união, e que sofreram uma decepção tão cruel em virtude de uma revolução que não merece esse nome. Quero formular a seguinte proposta: a conferência tomará uma resolução pela qual declarará que os objetivos e métodos do Conselho Supremo do Bloco Oriental são um procedimento criminoso e contrário aos direitos humanos.

A proposta obteve aprovação unânime em primeira votação.

Rhodan desceu da tribuna e deixou que outros tomassem a palavra. Ficou satisfeito ao constatar que os oradores seguintes, sem que o soubessem, se esforçavam para aplainar o caminho para a outra proposta que pretendia formular. Não interferiu nas discussões até que julgou chegado o momento. Foi ao anoitecer daquele dia, quando a conferência ameaçou transbordar da indignação causada pelos métodos desumanos do regime que se instalara no Bloco Oriental, métodos estes que foram examinados sob os ângulos mais variados.

Levantou-se e propôs a criação de uma corte mundial que teria a seu cargo o resguardo dos direitos humanos em todos os pontos do globo. Ainda sugeriu que os homens que detinham o poder no Bloco Oriental fossem denunciados perante essa corte, trazidos à presença do juiz e condenados.

Quando a proposta foi aceita, a grande maioria das pessoas que se encontravam no enorme auditório de Galáxia acreditou que a deliberação não passava de um ato simbólico. Ninguém concebeu a idéia, e muito menos acreditou que Rhodan conseguiria transformar a resolução em realidade, nos seus mínimos pormenores.

Os trabalhos da conferência foram suspensos até a manhã do dia seguinte. Nesse dia foram eleitos os juizes da recém-criada corte mundial. A presidência foi oferecida a Rhodan, mas este não a aceitou. O posto de juiz supremo foi confiado a Frederick Donnifer, um australiano que desempenhava as funções de ministro da justiça do governo de Camberra. E logo se chegou a acordo sobre o preenchimento dos demais cargos, ainda mais que Donnifer formulava propostas que todos julgavam aceitáveis.

Um orador indiano se queixou de que havia um tribunal e um acusado, mas faltava a lei pela qual os juizes poderiam se guiar ao proferir a condenação.

A objeção tinha fundamento. Mas logo se verificou que o código a ser adotado poderia ser a Declaração dos Direitos Humanos promulgada pelas Nações Unidas, que não precisaria ser submetida a qualquer alteração.

Na noite daquele dia o tribunal foi constituído. Num breve discurso, Rhodan ressaltou que em sua opinião o ato representava a criação de mais uma instituição panterrena, que oportunamente seria seguida de outras. A mais importante e provavelmente a última seria o governo panterreno.

A primeira iniciativa, a criação da Federação de Defesa da Terra, não fora bem sucedida, mas valera como primeiro passo.

Decidiu-se que, no dia seguinte, seria discutida a forma de uma cooperação que precederia a constituição da confederação terrena e posteriormente de um Estado federado terreno. Os participantes da conferência se separaram na convicção de terem feito o possível para promover o progresso da Humanidade.

Rhodan providenciara para que seus hóspedes recebessem um tratamento condigno em Galáxia. Tinha certeza de que a profunda impressão que a cidade causava nos visitantes e a hospitalidade que lhes estava sendo dispensada representaria fatores positivos no encaminhamento das negociações.

 

Meia hora se passou sem que Sirov dissesse uma palavra. Welinskij estava sentado atrás dele e descansara a arma de radiações no colo. Sirov não podia vê-lo. De vez em quando, o capitão fumava um cigarro, para matar o tempo e vencer o nervosismo.

Depois de algum tempo Sirov disse:

— Não poderia ao menos explicar o que esse homem e a Terceira Potência pretendem fazer?

Welinskij não achou nada demais em responder à pergunta. Deringhouse o esclarecera a este respeito, mas Welinskij cometeu o erro de se julgar uma espécie de missionário, a quem cabia levar a luz da verdade até mesmo aos corações mais sombrios.

Subitamente Sirov interrompeu seu interlocutor. Inclinou a cabeça para a frente o mais que as fitas de plástico que lhe prendiam os ombros o permitiram.

— Está ouvindo? — cochichou.

Welinskij não ouviu nada.

— Alguém está subindo a escada — disse Sirov. — Quem será? Seu companheiro?

Welinskij se levantou e segurou o radiador térmico.

— Vou dar uma olhada — disse.

Foi na ponta dos pés até a porta e saiu para a área fronteira. Parou junto à entrada da residência e aguçou o ouvido. Percebeu uma série de passos, mas talvez isso não significasse nada. O edifício era grande, e seria de estranhar se naquele instante não houvesse ninguém pelas escadas.

Os passos não se fizeram ouvir nas imediações da porta. Assim que se convenceu disso, Welinskij abriu a porta o suficiente para enfiar a cabeça na fresta. Olhou para a direita e para a esquerda; não havia ninguém. Tranqüilizado, fechou a porta.

No mesmo instante, ouviu um estalo surdo vindo da sala em que Sirov se encontrava. Assustado, deu dois passos largos, se colocou na porta de entrada e olhou para a sala.

Sirov continuava sentado na sua cadeira... mas onde ela estava! O marechal devia ter conseguido movê-la por meio de vários solavancos. Naquele momento a cadeira se encontrava ao lado esquerdo da escrivaninha e caíra para a frente. Sirov estava com o peito encostado ao canto do móvel e teve que desenvolver um esforço tão intenso para manter a cabeça ereta que as veias do pescoço se incharam.

Welinskij levantou o radiador térmico.

— Não faça isso, seu idiota! — fungou Sirov. — Pelo amor de Deus, fique onde está.

Welinskij hesitou. Estava perplexo. Só quando Sirov deixou a cabeça pender para a frente e seu rosto se desfigurou numa careta de deboche percebeu o que realmente estava acontecendo.

Numa espécie de movimento reflexo levantou a pesada arma térmica. O dedo se entortou junto ao gatilho. Mas no mesmo instante foi agarrado por um turbilhão ensurdecedor e seus pensamentos se apagaram.

 

A paciência de Deringhouse foi submetida a uma prova dura. Strelnikov não parecia ser um dos usuários mais assíduos do telefone. No curso de uma hora não chegou a dar sinal de vida.

A não ser que o homem que, no início de cada telefonema, dizia “grande vitória” e obtinha a resposta “grande êxito” fosse Strelnikov. A possibilidade não podia ser desprezada.

Depois de duas horas Deringhouse abandonou seu posto de escuta. Anotara a posição do aparelho que costumava ser usado pela “grande vitória”. Daria uma olhada no local. Se não conseguisse nada, poderia voltar.

Saiu da central de telecomunicações às onze horas e trinta e cinco minutos; dez minutos depois chegou à Rua Vinte e Oito de Outubro, onde ficava o esconderijo de Sirov. Logo viu a aglomeração que se formara diante do prédio e não duvidou um instante que alguma coisa acontecera com o marechal. Estava invisível; entrou cautelosamente pelo largo portal, para não esbarrar em ninguém, e voou pela escadaria em direção ao oitavo andar, onde ficava a residência de Sirov.

Diante da residência notou um grupo de homens uniformizados. Ainda percebeu uma fenda de uns dez centímetros de largura, que descia pela parede do corredor.

Parou no corredor, esperando que os policiais deixassem a porta livre. Ouviu que, no apartamento, houvera uma explosão cercada de circunstâncias bastante estranhas. Ao que parecia, ninguém sabia dizer quem era o ocupante da residência, e ninguém tinha a menor idéia sobre a causa da explosão.

Depois de ter esperado quinze minutos, Deringhouse chegou ã conclusão de que qualquer perda de tempo representaria um risco. Lançou mão do projetor mental. Os policiais obedeceram à ordem que lhes foi transmitida: afastaram-se para o lado, liberando a porta.

No interior do apartamento pelo menos seis policiais se mantinham ativos. Deringhouse obrigou um por um a se submeter à sua vontade e entrou no escritório de Sirov.

No lugar em que antes existia a porta, abria-se um enorme buraco. O soalho estava quebrado e parte do teto desabara por cima da porta. Pelo buraco, via-se o apartamento do nono andar.

Era estranho que a explosão quase não causara nenhum dano no interior da sala. Uma prateleira de livros caíra e seu conteúdo se espalhara pelo chão. Era só.

O livro que fora atirado mais longe estava perto da mão de um homem que a explosão erguera no ar e atirara ao chão.

Era Welinskij.

Deringhouse se abaixou sobre ele, enquanto os policiais, obedecendo ao seu comando hipnótico, se enfileiravam junto à parede. Welinskij estava deitado de bruços. Deringhouse o virou de costas e percebeu à primeira vista que estava morto.

Welinskij!

Deringhouse cerrou o punho. Fora um jovem tão entusiasta e tolo! Não deveria tê-lo deixado a sós com Sirov, a raposa velha.

Mas ia lhes mostrar o que receberiam em troca desse assassinato.

 

Dali a quinze minutos se encontrava novamente na rua. Percebeu o risco que corria. Sirov fugira e era mais que natural que acreditasse que ele, Deringhouse, voltasse nas próximas horas para revezar Welinskij.

Mesmo um homem invisível equipado com uma arma psicológica poderia ser capturado, desde que o número de perseguidores fosse suficiente e estes agissem com bastante habilidade.

No curso dos quinze minutos examinara o buraco aberto pela explosão. Mesmo quem não fosse perito em explosivos perceberia que a carga fora colocada de tal maneira que mais de noventa e cinco por cento do efeito explosivo se desenvolveria verticalmente para cima, a partir da soleira da porta. Welinskij devia estar ali quando a bomba foi detonada ou provavelmente ainda estaria no hall, com a porta entreaberta.

Deringhouse também encontrou o detonador. Era um botão de aparência inofensiva que se encontrava sobre o tampo da escrivaninha. Perto desta se encontrava a cadeira em que Sirov estivera sentado, ainda com os restos das fitas de plástico.

Deringhouse pôde fazer a reconstituição mental dos acontecimentos. Por algum motivo, Welinskij saíra da sala. Pobre-diabo! Nunca deveria ter feito uma coisa dessas. Sirov aproveitou o tempo para escorregar com a cadeira para junto da escrivaninha e, no momento em que Welinskij abriu a porta para entrar, se inclinou para a frente e comprimiu o botão com a testa.

Aquele apartamento devia pertencer ao governo. A bomba fora colocada ali quando foi comprado ou construído pelo governo. Quem colocou a bomba naquele local demonstrou muita habilidade. Qualquer um que se encontrasse num aperto conseguiria fazer com que seu inimigo fosse à porta sob qualquer pretexto. Desde que nesse preciso instante conseguisse colocar a mão, ou qualquer coisa que se movesse, em cima do botão, o caso estaria liquidado.

Para Sirov estava liquidado; e além de tudo o marechal se apossara do radiador térmico de Welinskij.

Deringhouse compreendeu que o incidente exigia uma modificação dos seus planos. A esta hora Strelnikov já devia ter sido prevenido e naturalmente abandonara seu esconderijo; se realmente era a “grande vitória”.

De qualquer maneira Deringhouse resolveu dar uma olhada no esconderijo. Muitas vezes uma pessoa que se vê obrigada a sair às pressas deixa uma pista. Tirou o bilhete com a anotação do bolso e o leu de maneira que ficasse dentro do campo de deflexão.

Era na Rua Kujbyschev. Deringhouse se lembrou de que a rua ficava num bairro da zona leste. Dispôs-se a subir quando notou um movimento acima de sua cabeça. Olhou e viu um trançado fino de fios metálicos, que uma turma de trabalhadores procurava firmar nos telhados de ambos os lados da rua.

Assustou-se. Virou a cabeça e viu que o mesmo trançado cobria a rua em todos os lados. Além disso, em cada esquina, o mesmo descia dos telhados até a rua. E subitamente dezenas de policiais surgiram de ambos os lados daquele trecho de rua.

Era a armadilha perfeita!

Deringhouse não teve ilusões. O alcance de seu projetor mental não ultrapassava cinqüenta metros. A essa distância poderia, quando muito, submeter dez homens à sua vontade, desde que eles estivessem bem juntos.

Imaginou quais seriam as ordens transmitidas a estes policiais. Não deviam sair do lugar. E estavam tão encostados um ao outro que nem mesmo um cachorro de tamanho médio conseguiria passar entre eles. Provavelmente estavam preparados para mobilizar reservas assim que um deles saísse do lugar, deixando uma passagem. Naturalmente nas ruas laterais várias companhias de polícia estariam de prontidão, preparadas para acudir ao primeiro chamado e ajudar a encurralar o homem invisível.

A esse homem invisível seria impossível exercer um domínio mental simultâneo sobre todos os policiais.

E a tela de arame?

Não havia a menor dúvida de que era mantido sob observação. Telas de arame deste tipo costumavam ser fabricadas para as mais variadas finalidades. Submetidas a uma corrente elétrica de reduzida intensidade, indicavam, através de um instrumento não muito complicado, em que ponto eram tocadas. Na altura dos telhados aconteceria a mesma coisa que nas ruas transversais, se procurasse sair da armadilha por lá.

No entanto, não podiam saber se ele se encontrava na armadilha. Portanto, só precisava esperar alguns dias até que os policiais fossem embora e retirassem as telas.

Alguns dias!...

Não podia esperar nem mesmo algumas horas. Cada minuto perdido na atividade dava a Strelnikov novas oportunidades de apagar sua pista.

Também poderia se libertar à força. Ainda possuía o radiador de nêutrons. Poderia abrir uma brecha e escapar.

Mas se lembrou do que acontecera em Vênus. O fogo concentrado das armas automáticas seria dirigido sobre a brecha. Se o campo defensivo do traje recebesse uma solicitação energética muito intensa, tanto o campo de deflexão como o campo de neutralização gravitacional seriam eliminados. Se tornaria visível e teria que se mover no solo.

Sentiu-se tomado pelo nervosismo quando viu que a polícia se preparava para uma operação de grande envergadura. Viu caminhões que evacuavam os moradores das vizinhanças e equipes de operários ocupadas em pregar as janelas desse trecho da Rua Vinte e Oito de Outubro.

Dessa forma, quando se pusessem a revistar as casas, não poderia usar qualquer janela para fugir, sem ser percebido.

O homem que preparara a operação com tamanha rapidez devia ser dotado de uma inteligência extraordinária. Não se esquecera de nenhum detalhe que pudesse representar uma escapatória para o homem invisível dotado de energias hipnóticas.

Não teria mesmo escapatória?

Deringhouse teve uma idéia. De início foi vaga e fugaz; antes que compreendesse, saiu de sua mente. Mas ele a trouxe de volta e fez passar várias vezes pela cabeça. Seria uma possibilidade?

O risco era enorme. Mas antes assumir um risco que perder uma oportunidade.

Afinal, o que poderia lhe acontecer?

 

— O que fizeram em Bajmak foi um truque e nós caímos nele — declarou Sirov.

Seu aspecto não melhorara muito desde o instante em que Deringhouse lhe dera a sova. Não tivera tempo para mudar de roupa. Através de um chamado de emergência, descobriu o esconderijo de Strelnikov e para lá se dirigiu pelo caminho mais rápido.

Quando soube o que havia acontecido, Strelnikov logo procurou retribuir o golpe. Incumbiu um jovem coronel do serviço de segurança de capturar o agente de Rhodan se este, conforme era esperado, voltasse à Rua Vinte e Oito de Outubro.

— É claro que foi um truque — resmungou para Sirov. — Queriam que acreditássemos que a mina de urânio os manteria ocupados por mais alguns dias, quando na verdade já se encontravam em Moscou.

Os olhos de Sirov brilharam.

— Mas conseguimos enganá-los!... — gabou-se.

Strelnikov deu uma ducha fria no seu otimismo.

— Por enquanto — disse. — Só por enquanto.

Sirov se acalmou.

— O que pretende fazer? — perguntou.

— Mandar levá-lo a um lugar seguro — foi a resposta lacônica de Strelnikov.

Sentou atrás da escrivaninha e preencheu um formulário. Sirov viu que colocou sua assinatura embaixo do mesmo.

— Tome isto — ordenou. — Dirija-se ao endereço indicado. De lá será devidamente encaminhado. Depois aguarde minhas instruções.

Sirov fez continência.

— Pegue meu carro — prosseguiu Strelnikov. — Está estacionado na frente da porta. Aí — apontou para o bilhete que Sirov segurava na mão — receberá o tratamento de que precisa. Além disso, lhe darão um uniforme novo, ou então um jogo de trajes civis.

Sirov executou uma meia-volta impecável e se retirou da sala. Strelnikov aguardou até que o ruído dos passos sumiu e deu um telefonema. Ao terminar se reclinou na poltrona e sorriu. Parecia satisfeito.

 

Deringhouse voltou ao prédio em que residira o marechal Sirov.

“Se alguém tiver que morrer”, pensou amargamente, “que seja um deles, não um inocente.”

Os policiais ainda se mantinham ocupados na residência de Sirov. Fez com que o projetor mental exercesse sua influência sobre eles. Deixou para trás sete homens e levou três ao sótão da casa. O elevador fora desligado, provavelmente porque poderia proporcionar ao homem que procuravam uma oportunidade de sair rapidamente e sem ser notado.

No sótão havia várias clarabóias. Deringhouse colocou cada policial junto a uma delas. Ainda estava escondido atrás do campo de deflexão, mas ouviam sua voz e obedeciam às suas ordens.

— Acertem os relógios! — ordenou.

A resposta veio logo. Ao que parecia a polícia moscovita dispunha de excelentes relógios. Não foi necessário corrigir nenhum deles.

— Às doze e quarenta em ponto — prosseguiu Deringhouse — os senhores abrirão as clarabóias e sairão para o telhado. Subam à cumeeira e não deixem que nada os perturbe. Repitam!

A ordem foi repetida. Deringhouse estava satisfeito. Saiu do sótão e flutuou escada abaixo até atingir o térreo.

Não sabia se numa das outras casas havia uma clarabóia que não tivesse sido trancada. Mas acabou vendo uma; no telhado da última casa antes da transversal que se dirigia para o sul. Provavelmente serviria de passagem aos policiais escondidos atrás das cumeeiras dos telhados, com as pistolas automáticas engatilhadas.

Deringhouse não teve a menor dificuldade em penetrar na casa. Sua suposição se confirmou: teve que passar o tempo de espera num canto daquele sótão poeirento, para não esbarrar em qualquer dos policiais que entravam e saíam pela clarabóia.

Uma única vez, quando houve uma pausa, se arriscou a enfiar a cabeça pela abertura para sondar o terreno. Conforme esperava, naquele telhado, ao contrário dos outros, a tela de arame fora estendida ao menos dois metros acima da cumeeira, a fim de que os policiais pudessem se mover livremente por baixo dela. Provavelmente fora presa ao outro lado do telhado por meio de isoladores.

Doze e trinta e cinco.

Muita coisa poderia acontecer. Era possível que algum superior notasse a falta dos três policiais na residência de Sirov e os descobrisse no sótão. Não os deixaria lá, isso era certo.

E então?

Então poderia voltar a quebrar a cabeça, e enquanto fizesse isso Strelnikov se afastaria cada vez mais.

É agora!

Alguns segundos se passaram sem que acontecesse nada. Um policial enfiou as pernas pela clarabóia e saltou para dentro.

O que teria saído errado?

Outro policial entrou pela porta e subiu ao telhado pela clarabóia.

O plano falhara.

Nesse instante começou a gritaria.

— Saiam daí! Desçam do telhado! Ficaram malucos?

Num instante, Deringhouse se aproximou da clarabóia e flutuou suavemente através da mesma. Agachou-se no telhado e olhou para a casa de Sirov. Os três policiais obedeceram às suas ordens. Sem se preocuparem com os gritos de advertência subiram pelo telhado, cuja inclinação não era muito acentuada. Cada um se dirigia diretamente da respectiva clarabóia para a cumeeira. Os outros, que lhes apontavam as pistolas automáticas, pareciam quebrar a cabeça para descobrir atrás de qual deles o agente de Rhodan se escondera.

O plano de Deringhouse era este. Era provável que ninguém soubesse que o pequeno projetor mental, que cabia perfeitamente no bolso, lhe permitia transmitir ordens pós-hipnóticas. Se suas suposições fossem corretas, os outros policiais acreditariam que sempre se encontrava perto dos três colegas que andavam como sonâmbulos. Pensariam que se encontrava no telhado da casa de Sirov, não naquele em que eles mesmos estavam postados.

Às doze horas e quarenta e um minutos, o mais ágil dos três policiais chegou à cumeeira do telhado e tocou na tela metálica. Em algum lugar bem próximo, um instrumento de medida reagiria e desencadearia um alarma, uma sereia ou uma campainha.

E depois...

Deringhouse viu com seus próprios olhos o que aconteceu depois. Ouviu o zumbido e as batidas características dos helicópteros, antes de vê-los subir das ruas próximas. Não pôde deixar de admirar aquela organização, que permitia uma ação tão rápida.

Os pilotos dos helicópteros sabiam perfeitamente em que lugar deviam se postar. Formaram um círculo estreito, poucos metros acima da cumeeira da casa de Sirov. Menos de um minuto se passara desde o momento em que o primeiro policial tocara a tela, e todas as peças começaram a disparar.

Nesse meio tempo, os outros dois policiais também haviam atingido a cumeeira. Caíram sob a primeira salva, escorregaram ruidosamente telhado abaixo e desapareceram atrás da borda.

Os helicópteros continuaram a disparar. Não se interessaram pelos três policiais, mas pelo homem invisível. Posteriormente Deringhouse soube que acreditavam que, apesar de sua invisibilidade, ele seria vulnerável ou, o que muito se aproximava da verdade, que o campo de deflexão poderia ser desativado pela solicitação energética excessiva dirigida ao campo protetor, com o que o homem se tornaria visível.

De qualquer forma sua hora havia chegado. Flutuou para a cumeeira, contornou cuidadosamente um grupo de policiais que olhavam nervosamente para os helicópteros e desceu pelo outro lado do telhado. Chegou ao ponto em que a tela estava presa ao telhado e a arrancou. Acreditava que não haveria qualquer risco. Sem dúvida o dispositivo de alarma, que devia ter sido instalado num posto policial não muito distante, teria sido colocado em atividade permanente em virtude da ação dos três policiais.

Levou um minuto para abrir na tela, muito resistente, uma brecha que permitisse sua passagem. Ninguém se interessou por ele. O último perigo, o da observação direta, foi afastado pela curiosidade que a ação dos helicópteros provocou entre os policiais.

Às doze horas e quarenta e quatro minutos, Deringhouse estava livre. Para fugir a todo risco, desceu a meia altura numa das ruas vizinhas e se dirigiu para os bairros do leste, onde ficava a Rua Kujbyschev.

 

— E agora — disse Strelnikov ao homem de teatro — mande o major entrar. Quero conversar com ele.

O homem obedeceu. Retirou-se; dali a trinta segundos o major Kalenkim entrou. Nunca vira o homem que o chamara; mas sabia que devia executar fiel e prontamente qualquer ordem partida do mesmo.

Fez uma continência impecável.

— Preste atenção — disse Strelnikov. — Quero lhe explicar uma coisa. Pode parecer muito confuso e complicado, mas com sua inteligência...

 

Doze e cinqüenta e nove. Deringhouse penetrou no prédio da Rua Kujbyschev sem ser visto. Tratava-se de um daqueles feios prédios de apartamentos de quinze andares.

O aparelho de que a “grande vitória” se servira nos seus telefonemas ficava no apartamento 13 C.

Deringhouse flutuou para cima. A porta do apartamento estava fechada, e no corredor havia algumas pessoas. Deringhouse esperou até que entrassem em seus apartamentos ou no elevador. Depois abriu a porta, dirigindo o radiador por alguns segundos contra a fechadura. O fluxo neutrônico extremamente intenso provocou uma série de reações nucleares que transformou os materiais da fechadura em outras substâncias que não eram dotadas de qualquer coesão. Quando abriu a porta, uma reluzente poeira metálica radiativa caiu da fechadura.

Deringhouse entrou. Pensara que o apartamento estivesse vazio. Strelnikov tivera tempo de sobra para dar o fora.

Mas, para surpresa sua, viu um homem sentado no chão do hall. Mantinha a cabeça inclinada para a frente e tinha os olhos semicerrados. Uma faixa vermelha se estendia pelo lado direito do rosto.

Era um homem velho, de cabelos brancos. Ao que parecia não notou que a porta se abrira; não se mexia. Sobre seus joelhos havia um bilhete. Deringhouse conseguiu decifrar as letras desajeitadas:

Agente da Terceira Potência! Strelnikov fugiu. Posso dizer onde está. Ele me bateu.

A primeira idéia que acudiu a Deringhouse foi a de que caíra numa armadilha. Quem seria aquele homem?

Procurou avaliar a situação. Pelo aspecto, aquele velho devia ter sido o criado ou o secretário de Strelnikov. Como secretário poderia ter ouvido algumas coisas faladas diante de Strelnikov. Era perfeitamente possível que soubesse da existência de um agente da Terceira Potência e estivesse informado sobre as capacidades extraordinárias de que o mesmo era dotado. Escrevera o bilhete na suposição de que o agente entraria no apartamento como um homem invisível.

Strelnikov batera nele; a cicatriz estava ali. Para se vingar oferecia informações sobre o paradeiro de Strelnikov.

— Levante-se! — disse Deringhouse.

O velho estremeceu; provavelmente estava dormindo.

— Onde... quem...? — gaguejou.

— Estou à sua frente — disse Deringhouse. — Sou o agente da Terceira Potência. Parece que está disposto a me levar ao lugar em que posso achar Strelnikov.

Por um momento teve a impressão de que o velho superestimara sua própria coragem. Tremeu de medo e só se levantou com muito esforço.

— Eu... eu... — gaguejou. Deringhouse veio em seu auxílio.

— Não tenha medo de mim. Como é seu nome?

— Nikolaj.

— Pois bem, Nikolaj. Sabe para onde Strelnikov fugiu?

Nikolaj fez que sim.

— Como ficou sabendo?

— Ouvi a conversa que teve com um jovem oficial que veio a este apartamento.

— Quer me levar para lá? — perguntou Deringhouse.

Nikolaj confirmou com um forte aceno de cabeça.

— Por que lhe bateu? — indagou Deringhouse.

Nikolaj deu de ombros.

— Ao sair disse: “Tome isto por andar me espiando!”, e bateu no meu rosto com um chicote.

Com os olhos chamejantes, Nikolaj fez um movimento distraído da mão em direção ao lado direito do rosto.

Deringhouse respondeu com um aceno de cabeça.

— Esse tipo de gente nunca escapa ao seu destino — murmurou. — Podemos sair logo?

Enquanto desciam no elevador, Nikolaj disse que o esconderijo de Strelnikov ficava em lugar bem próximo. Seria mais prático andarem a pé.

 

O major Kalenkim estava à paisana. Encostado a uma casa de esquina, assumiu a atitude de quem aproveita o último dia de férias para ver a fábrica do lado de fora e ter pena dos pobres-diabos que têm de trabalhar a uma hora daquelas.

Trazia na boca um cigarro que já se apagara há muito tempo. Não era fumante e só usara o cigarro para oferecer uma imagem mais autêntica.

Não precisou de muita paciência. Cerca de quarenta e cinco minutos depois de assumir seu posto, o homem que teria que vigiar desceu a rua e passou a mão direita atrás da cabeça.

O sinal convencionado! O homem era este.

Antes de chegar ao portão da fábrica, dobrou para o lado e seguiu o caminho estreito que ladeava o muro de cerca de três metros de altura que cercava toda a área da fábrica. O major Kalenkim tocou no relógio de pulso que, na verdade, não era nenhum relógio. Com isso estabeleceu um contato que desencadeou o sinal de alarma para os homens que, num ponto mais distante, aguardavam o momento de entrarem em ação.

Abandonou a esquina em que se instalara tão confortavelmente e seguiu o homem que, a intervalos regulares, repetia o sinal convencionado, para assegurar a Kalenkim que tudo continuava bem com ele.

O caminho estreito parecia feito especialmente para acompanhar alguém às escondidas. Pequenos tratores com fileiras de reboques carregados ou vazios passavam sem cessar, e entre eles marchavam os trabalhadores. Três equipes de trabalhadores de construção estavam ocupados em reparar o muro em vários pontos.

Kalenkim tinha boas chances de passar despercebido em meio a tamanha confusão.

O homem que, de tempos em tempos, passava a mão atrás da cabeça passou por um portão lateral e entrou na área da fábrica. Kalenkim o seguiu a uma distância segura. Estava convencido de que dali em diante tudo daria certo.

A enorme caldeira de eliminação de vapor dos reatores da fábrica, que garantiam a esta um suprimento de energia que não dependia da rede urbana, não ficava a mais de cem metros.

 

Enquanto caminhavam, Nikolaj e Deringhouse não trocaram uma palavra. Nikolaj ia à frente, confiante de que o agente o seguia.

Levou-o até o portão de uma fábrica estatal e ao chegar lá dobrou para a esquerda. Ao lado do muro o caminho conduzia a um portão lateral, por onde Nikolaj entrou, em meio à confusão formada pelos veículos e trabalhadores, penetrando no terreno pertencente à fábrica, ao que tudo indicava sem ser percebido.

Dirigiu-se diretamente a uma enorme caldeira metálica que, em local um pouco distante da fábrica propriamente dita, se erguia a uma altura de oitenta metros.

Depois de ter deixado para trás a massa de trabalhadores que poderiam ter ouvido a estranha conversa de Nikolaj com um homem invisível, este disse:

— Strelnikov não está escondido muito no alto, mas na sala de vigilância, situada a meia altura. O elevador externo vai para lá. Está vendo?

Deringhouse viu o elevador e a pequena fileira de janelas que interrompia a lisura da parede metálica a uma altura de cerca de quarenta metros.

— Vamos adiante! — ordenou. Ninguém os deteve quando tomaram o elevador e subiram. Abandonaram o elevador e entraram, com Deringhouse à frente, na primeira das salas de vigilantes.

Nikolaj parecia sentir medo de novo.

— Se ele me vê — cochichou — vai...

— Não tenha medo — disse Deringhouse. — Venha!

Ultrapassada a porta pela qual haviam entrado, havia mais duas portas.

— Para onde devo ir? — perguntou Deringhouse.

Nikolaj não sabia.

— Tentarei aqui — disse Deringhouse e se dirigiu à porta que ficava na parede lateral da sala.

Nikolaj não o viu, mas viu a impressão deixada pelo impacto das botas no plástico macio do soalho. E parou perto da porta.

— Está aberta — disse Deringhouse e a empurrou.

Nikolaj levantou a mão. Parecia ser um gesto inofensivo, como se quisesse se segurar na parede.

Mas, antes que sua mão a alcançasse, o cano de uma arma surgiu diante dele e a voz enérgica de Deringhouse disse:

— Basta, meu velho! Se levantar a mão mais um centímetro, não assistirá ao seu triunfo.

Nikolaj empalideceu. Sua mão começou a tremer, hesitou um pouco e foi baixada. As pisadas de Deringhouse se aproximaram pelo soalho de plástico. O cano da arma atravessou o ar em sua direção.

— Tire a peruca! — ordenou Deringhouse.

Nikolaj hesitou um pouco, mas obedeceu. Contorceu o rosto quando a cabeleira branca saiu.

Por baixo da cabeleira surgiu uma calva reluzente, a calva do secretário-geral Strelnikov.

 

— Respeito sua coragem — disse Deringhouse, depois de ter abandonado a invisibilidade. — Mas devia ter imaginado que o plano não tinha a menor possibilidade de êxito. Dessa forma nunca conseguiria pôr a mão em mim.

Strelnikov recuperara boa parte de seu autocontrole. E sabia que o jogo estava definitivamente perdido.

— Como descobriu? — perguntou.

— Foi de uma forma muito estranha. Você me disse que Strelnikov o havia batido e fez um movimento de mão em direção ao lado direito do rosto. Acontece que o maquilador colocou a cicatriz do lado esquerdo. Isso já me deixou desconfiado. Quando nos dirigíamos para cá notei seu gesto, a mão que passava atrás da cabeça, e descobri o homem ao qual o sinal se dirigia. O que está fazendo agora?

— Está esperando que eu apareça e lhe diga que você está preso no interior da caldeira.

— Para que os gestos?

— Tínhamos de contar com a possibilidade de que você me submetesse a uma influência hipnótica. Só faria aqueles gestos enquanto fosse dono da minha vontade. O major Kalenkim tinha instruções de executar outro plano assim que eu deixasse de fazer os gestos, dando a entender que você havia conseguido dominar meu espírito.

— Os trabalhadores com os tratores e os carros na verdade são policiais, não são?

— São. Iriam trancar a caldeira assim que se encontrasse lá dentro.

— E como eu teria entrado lá? Por um alçapão que fica junto à porta?

Strelnikov fez que sim.

— A chave está aqui — apontou para um botão quase invisível que ficava perto da porta. — Esta porta foi colocada há duas horas. Você teria caído diretamente na caldeira.

Deringhouse acenou com a cabeça.

— Nesse caso eu não teria conseguido ativar o campo de neutralização gravitacional em tempo, ou você teria enchido a caldeira de vapor.

— Era esta a minha intenção. Será que você ainda teria uma chance?

Deringhouse ergueu os ombros.

— Não sei. Provavelmente não. Comprimiu um botão e viu que, diante da porta, uma parte do soalho desapareceu.

— O que pretende fazer? — perguntou Strelnikov.

— O que pretendo fazer é o seguinte — apressou-se Deringhouse a dizer — você encontrará um pretexto plausível para fazer com que os membros do conselho compareçam amanhã, às nove horas da manhã, à Praça das Nações. Há dois dias foi constituída uma corte mundial e decidiu-se a condenação dos homens que detêm o poder no Bloco Oriental. Você e seus comparsas serão julgados.

Strelnikov estava muito sério.

— Só se me hipnotizar.

Deringhouse sacudiu a cabeça.

— Um chefe de Estado hipnotizado não me serve. Você comparecerá a juízo, não voluntariamente, mas na posse plena de suas faculdades mentais; você, os outros quatrocentos e quatorze membros do conselho com direito de voto e os adidos. E principalmente o marechal Sirov. Deste eu faço questão.

Deringhouse lançou um olhar demorado para seu radiador de nêutrons.

— Sabe perfeitamente o que o espera se não cumprir minhas ordens.

Strelnikov baixou a cabeça.

— Para começar — prosseguiu Deringhouse — diga àquele major que está lá embaixo que dê o fora, e isso pelo meio mais rápido possível. E não se esqueça de passar a mão atrás da cabeça quando der a ordem.

 

No dia 18 de junho, Perry Rhodan propôs à conferência que a recém-criada corte mundial fizesse alguma coisa para cumprir a resolução do dia 16: os homens do regime que detinha o poder no Bloco Oriental deviam ser acusados e julgados.

A proposta provocou uma discussão acalorada. Os representantes da Federação Asiática duvidaram da exeqüibilidade do projeto. Os representantes dos Estados da OTAN manifestaram dúvidas de outra espécie.

O motivo verdadeiro foi a sensação desagradável que se apossou da maioria dos representantes ao pensarem que um governo ainda no poder seria convocado a juízo.

De repente se assustaram com a coragem demonstrada dois dias antes, por ocasião da resolução simbólica.

Mas Perry Rhodan demonstrou cabalmente e com certo sarcasmo que uma assembléia como esta se desprestigiaria se tomasse uma resolução e frustrasse sua execução. Prontificou-se a colocar à disposição da corte mundial os recursos técnicos que se tornassem necessários à execução do plano. De noite declarou com uma franqueza contundente:

— Não terão qualquer dificuldade. Já tomamos todas as medidas para realizar a prisão dos membros do Conselho Supremo do Bloco Oriental.

Na manhã do dia 19 de junho, a Stardust-III decolou de Galáxia com sua preciosa carga de membros dos governos de todos os países do mundo. Desenvolvendo grande velocidade, penetrou no território do Bloco Oriental, sem ser atacada, às oito e cinqüenta, tempo de Moscou, desceu cuidadosamente na área imensa da Praça das Nações. Uma rampa energética foi descida, e o presidente da corte mundial, Frederick Donnifer, saiu da enorme nave em companhia de seus aliados e de Perry Rhodan, chefe da Terceira Potência.

Ao que parecia, alguém tomara providências para evitar que algum curioso entrasse na Praça das Nações. A área estava completamente vazia, com exceção de um pequeno grupo de pessoas.

Frederick Donnifer, que ainda não se acostumara à sua elevada posição, lançou os olhos em torno quando pôs os pés no solo; parecia inseguro.

— Um momento! — pediu Rhodan. — Aí vem Deringhouse; quer apresentar seu relatório.

Um homem se destacou do pequeno grupo. Caminhou para o lugar em que se encontrava a delegação.

Deringhouse não deu a menor atenção ao juiz. Dirigindo-se a Rhodan, anunciou:

— Deringhouse relatando. As ordens foram cumpridas. Os membros do Conselho Supremo devem chegar dentro de poucos minutos.

Rhodan deu um sorriso e ordenou:

— Major, repita esta informação perante o senhor Donnifer, presidente da corte mundial.

Donnifer se adiantou. Deringhouse deu meia-volta e, fazendo continência, repetiu seu breve relato. De olhos semicerrados, Donnifer disse:

— Major, tem certeza de que todos virão para cá?

— Certeza absoluta — respondeu Deringhouse.

Voltando-se ligeiramente em direção a Rhodan, prosseguiu:

— Não confiei muito que executassem a ordem de Strelnikov, ainda mais que, de vários quilômetros de distância, perceberão que a Stardust-III pousou na praça. Cada um dos membros do conselho será acompanhado por uma escolta de oficiais devidamente influenciados. Esses oficiais cumprem minhas ordens: trarão seu homem, quer ele queira, quer não.

Nesse instante a primeira limusine preta atravessou o cordão de policiais que isolavam a Praça das Nações. Logo foi seguida de outras. Todas elas descreviam uma curva, se dirigiam à área de estacionamento e deixavam sua carga. Parecia que a gigantesca esfera da Stardust-III não impressionava os homens que se encontravam nos veículos. Notava-se perfeitamente que muitos dos membros do conselho vieram porque sua escolta não lhes deixara outra alternativa.

Deringhouse fez com que os membros do conselho fossem reunidos num lugar. O grupo foi cercado pelos membros das escoltas, para impedir qualquer fuga.

Deringhouse pôs-se a contar. O conselho era formado de quatrocentos e quinze membros com direito de voto e oitenta e nove adidos. Sirov foi um dos últimos que compareceu ao ponto de reunião.

Às nove e quinze, Deringhouse voltou a se aproximar de Frederick Donnifer e anunciou:

— O Conselho Supremo está pronto para receber suas ordens.

Donnifer assumiu posição e, valendo-se de um pequeno microfone ligado a um alto-falante existente nos fundos da praça, disse:

— Os representantes dos Estados pertencentes à Federação Asiática e à OTAN, que em conjunto representam cerca de seis sétimos da Humanidade, decidiram formar uma corte mundial, que já foi constituída. A essa corte cabe resguardar os direitos humanos em todo o mundo.

“Os senhores — num gesto pouco autoritário, apontou o dedo para o grupo dos membros do conselho — são acusados de terem cometido uma violação grosseira e contínua dos direitos humanos das pessoas que habitam o território sob sua autoridade. Intimo-os a se submeterem a esta corte, que deliberará sobre as medidas a serem adotadas em virtude dos delitos que cometeram.

“A conferência dos representantes dos governos fará com que os cidadãos de seu país possam eleger livremente os homens que deverão governá-los. Um governo provisório tomará todos os preparativos para as eleições.”

Nesse instante a porta de saída da Stardust-III se alargou, e o passadiço brilhante cresceu igualmente. Um grupo de cinqüenta robôs de combate arcônidas saiu da nave. De início seus passos foram silenciosos. Mas, ao atingirem o solo, seus pés bateram ruidosamente. Formaram um segundo círculo, mais estreito, em torno dos membros amedrontados do Conselho Supremo.

— Aqui está a prova de que a corte mundial dispõe dos recursos necessários para executar suas decisões — prosseguiu Donnifer.

Não houve a menor hesitação. Diante dos poderosos robôs, a massa compacta dos membros do Conselho Supremo subiu pelo passadiço e desapareceu no interior da Stardust-III.

 

Donnifer tomou as providências necessárias para que o Bloco Oriental não ficasse sem governo na época de transição. Perry Rhodan lhe deu alguns conselhos. No entanto, nem ele nem qualquer outro membro da Terceira Potência participou da escolha dos membros da administração provisória.

A Stardust-III saiu de Moscou às treze horas, tempo local, e chegou a Galáxia no fim da tarde.

Rhodan anunciou que, em comemoração ao êxito notável alcançado pela corte mundial, e ainda em lembrança ao dia em que a primeira nave construída pelo homem — a velha Stardust — se libertou da influência da Terra e voou à Lua, ofereceria um banquete para fazer aquilo que os membros da conferência esperavam desde o primeiro dia.

Preparou um relatório sobre a evolução da Terceira Potência desde o dia de sua formação. Providenciou a apresentação de filmes que proporcionariam aos delegados informações detalhadas sobre os acontecimentos que se desenrolaram nos setores do espaço mais próximos da Terra e nos mais afastados.

A impressão causada pelo relatório foi tamanha que ninguém notou quando, durante a apresentação, um ordenança se dirigiu a Rhodan. Pediu a seu ajudante que lhe desse um pedaço de papel e rabiscou apressadamente algumas palavras. O ordenança pegou o papel e desapareceu.

Pelas onze horas o relatório estava concluído. A onda de aplausos foi dirigida à Terceira Potência com seu imenso acervo de realizações, e especialmente a Perry Rhodan, que em passos comedidos caminhou em direção a uma pequena tribuna.

Quando os aplausos cessaram, começou a falar. Sua voz tinha um tom solene, que dificilmente alguém teria ouvido antes.

— Senhores, não quero abusar de sua atenção — iniciou. Por um instante prestou atenção à confusão desconcertante que os tradutores simultâneos, cada qual agindo numa direção diversa, faziam de suas palavras. — Mas, antes que termine este dia memorável, quero assinalar dois fatos.

“O dia 19 de junho será feriado legal no território da Terceira Potência, em comemoração aos acontecimentos desenrolados hoje e em lembrança ao primeiro vôo do homem à Lua. E, para exprimir sua confiança na breve união de todos os povos da Terra, a Terceira Potência modifica o nome de Galáxia que passa a ser Terrânia.”

Fez uma pausa. Aplausos começaram a irromper, mas Rhodan interrompeu-os com um gesto.

— O segundo acontecimento não é tão agradável — disse em tom áspero. — Como sabem, na Lua existem duas bases. Uma delas está submetida à jurisdição do Bloco Oriental e a outra pertence aos Estados da OTAN.

“Às vinte e duas horas e dez minutos, duzentos foguetes de grande alcance dotados de cargas explosivas de fusão catalítica foram lançados da base do Bloco Oriental em direção à Terra. Sabem perfeitamente que pouquíssimos homens continuarão vivos se os foguetes atingirem o alvo. Pouco importa qual seja o ponto da superfície terrestre em que fica esse alvo.

“Os foguetes deveriam chegar à Terra amanhã, às cinco horas da manhã aproximadamente, tempo local. Mas sinto-me feliz em poder lhes comunicar que uma esquadrilha de caças espaciais, comandada pelo major Nyssen, acaba de chegar ao setor do espaço em que se encontram os foguetes e dentro de poucos minutos provocará sua detonação.”

No mesmo instante a luz se apagou. Na tela gigantesca que permitia a reprodução tridimensional de qualquer filme, surgiu a imagem do espaço com seus bilhões de pontos luminosos.

Perplexos, os membros da conferência se mantiveram em silêncio. Rhodan voltou-se para contemplar a imagem. A cena era filmada por um caça espacial que se encontrava a algumas dezenas de milhares de quilômetros da esquadrilha comandada por Nyssen.

As bombas começaram a detonar. Até então invisíveis, foram se transformando em manchas brancas e luminosas, que logo cresceram de tamanho e ocuparam seu lugar no espaço com a luminosidade de um novo sol. A luz dos duzentos foguetes iluminou o imenso salão com maior intensidade do que as lâmpadas poderiam fazê-lo. Os espectadores cerraram os olhos para suportar a luminosidade.

Rhodan deixou que a imagem agisse no espírito dos espectadores até que a luminosidade começou a se desvanecer. Lentamente desligou o projetor e, com a mesma lentidão, voltou a acender as lâmpadas.

Viu diante de si uma massa de rostos apavorados. Rostos de gente que, em última análise, devia sua salvação ao homem que se encontrava diante deles.

— Acredito — disse Rhodan com a voz tão baixa que mal conseguia ser entendido — que esta projeção provou a todos que a união definitiva da Humanidade constitui uma necessidade premente.

 

                                                                                            Kurt Mahr

 

 

                      

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