Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O FILHO DA ESTRELA
Era uma vez dois pobres Lenhadores que estavam indo para casa através de uma grande floresta de pinheiros. Era inverno, e fazia um frio terrível.
A neve estava alta no chão e recobria os ramos das árvores; o gelo ia estourando os raminhos mais tenros, enquanto passavam; e quando chegaram à torrente da montanha ela estava pairando no ar, imóvel, pois o Rei do Gelo já a beijara.
O frio era tão intenso que nem mesmo os animais e os pássaros sabiam o que pensar.
- Uuuhh! – rosnou o Lobo, enquanto capengava entre as plantas rasteiras, com o rabo entre as pernas.
– Isso é o que o que chamo de tempo realmente péssimo. Por que será que o governo não faz alguma coisa?
- Piu! Piu! Piu! – chilrearam os Pintarroxos. – A velha Terra morreu e foi embrulhada em uma mortalha branca.
- A Terra vai se casar, e esse é seu vestido de noiva – sussurrou uma Pomba-rola para outra.
Seus pezinhos cor-de-rosa estavam congelados, mas as pombas achavam que era seu dever encarar tudo com certo romantismo.
- Que bobagem! – grunhiu o Lobo. – Estou dizendo que é culpa do Governo, e se não me acreditarem eu as comerei.
O Lobo sempre tomava atitudes muito práticas, e jamais deixou de encontrar bons argumentos.
- Bom, de minha parte – disse o Pica-pau, um filósofo nato -, procuro teorias atômicas para minhas explicações. Quando uma coisa é assim, ela é assim mesmo e, no momento, elas estão muito frias.
E estava terrivelmente frio. Os Esquilinhos, que viviam dentro de um pinheiro muito alto, e os Coelhos se enrolavam em suas tocas, sem ousar se quer olhar para fora. As únicas que pareciam estar se divertindo eram as grandes Corujas chifrudas. Suas penas estavam durinhas com a geada, mas elas não se importavam, e virando seus grandes olhos amarelos, chamavam umas às outras pela floresta:
- Tu-uit! Tu-ú! Tu-uit! Tu-ú! Que tempo ótimo está fazendo!
E ela iam os dois Lenhadores, soprando com força os dedos, e batendo com suas enormes botas ferradas neve congelada. Uma vez eles caíram num monte de neve mais fundo e saíram parecendo dois moleiros quando moem farinha e ficam todos brancos, e outra vez escorregaram no gelo liso da água congelada dos pântanos, a lenha dos feixes, e eles tiveram de apanhá-la e tornar a amarrá-la; e ainda uma outra vez pensaram que estivessem perdidos e ficaram apavorados, pois sabiam o quanto a Neve é cruel para com aqueles que dormem em seus braços. Mas continuaram confiando no bom São Martinho, que zela pelos viajantes, voltaram atrás pisando nas próprias pegadas, e começaram a andar com muita cautela, até chegarem à fímbria da floresta e verem, lá embaixo no vale, as luzes da aldeia onde moravam.
Eles ficaram tão contentes de se salvarem que riram alto e a Terra pareceu-lhes uma flor de prata, e a Lua uma flor de ouro.
No entanto, depois eles ficaram triste, pois se lembraram do quanto eram pobres, e um disse ao outro:
- Por que nos alegramos, se a vida é para os ricos e não para gente como nós? Melhor seria se tivéssemos morrido de frio na floresta, ou que alguma fera selvagem nos tivesse atacado e matado.
- É verdade que alguns têm muito, enquanto outros têm pouco – respondeu seu companheiro. – A injustiça é distribuída por todo o mundo, e não há divisão eqüitativa de nada, a não ser de tristeza.
Mas, enquanto se queixavam de sua miséria, aconteceu uma coisa estranha. Caiu do céu uma estrela muito brilhante e muito bonita. Ela escorregou pelo lado do céu, passando por outras estrelas em seu caminho, e enquanto os dois a observavam deslumbrados, ela pareceu-lhes cair atrás de uma moita de chorões que ficava bem junto a um aprisco não mais distante do que o alcance de uma pedra que arremessassem.
- Ora! Eis ali uma pilha de ouro para aquele que a achar – gritaram eles, e saíram correndo, de tal modo ansiavam eles pelo ouro.
Um deles correu mais rápido do que o outro e passou-lhe a frente, forçando seu caminho pelos chorões até que saiu do outro lado onde – que surpresa! – realmente havia uma coisa dourada na neve branca.
Então ele correu e, curvando-se, pôs as duas mãos em cima dela: era um manto de tecido dourado, curiosamente bordado com estrelas e enrolado com muitas dobras. Ele gritou para seu companheiro que encontrara o tesouro caído do céu, e quando o camarada chegou, ambos ficaram sentados no chão e foram soltando as dobras do manto, a fim de dividirem as moedas de ouro. Mas ai!, não havia lá dentro nem ouro, nem prata nem tesouro de espécie alguma, mas apenas um criancinha adormecida.
Disseram então um ao outro:
- Esse é um final amargo para nossas esperanças, e em sequer boa fortuna nós temos, pois que adianta uma criança a um homem? Vamos deixá-la aqui e continuar nosso caminho, pois nós somos pobres, e já temos nossos próprios filhos, cujo o pão não podemos dar a outros.
- Não, é um ato de maldade deixar a criança para morrer aqui na neve, e muito embora eu seja tão pobre quanto você, e tenha muitas bocas para alimentar, e muito pouco na panela, mesmo assim eu o levarei para casa, e minha mulher há de cuidar dele.
E como muito carinho pegou a criança, enrolou o manto em volta dela para protegê-la do vento impiedoso, e foi descendo a colina para a aldeia, com seu camarada espantado diante de sua imensa tolice e da moleza de seu coração.
- Você ficou com a criança, então me dê o manto, pois é justo que compartilhemos tudo.
- Não, pois o manto não é nem seu nem meu, mas da própria criança – e desejando-lhe que fosse com Deus, foi para sua casa e bateu na porta.
Quando sua mulher abriu a porta e viu que o marido voltara para casa a salvo, ela jogou os braços em
torno do pescoço dele e o beijou, tirou-lhe das costas o feixe de lenha de lenha, limpado a neve de suas botas e pediu-lhe que entrasse.
Porém ele disse:
- Encontrei uma coisa na floresta e trouxe para que você cuide dela – e não arredou pé da soleira da porta.
- O que é? – exclamou ela. – Mostre-me, pois a casa está vazia e temos necessidade de muitas coisas.
E ele, atirando o manto para as costas mostrou-lhe a criança adormecida.
Ai, marido! – murmurou ela. – Será que já não temos bastante filhos, e você ainda precisa trazer um enjeitadinho para nossa lareira? Quem sabe se ele não pode trazer má sorte? Quem zelará por nós? E quem nos alimentará?
Ora, Deus cuida até dos pardais, e os alimenta – respondeu ele.
E os pardais não morrem de fome no inverno? – perguntou-lhe a mulher.
E não é inverno agora? e o marido não respondeu nada, mas não arredou o pé da soleira da porta. Um vento cortante entroupela porta aberta fazendo a mulher tremer. Ela teve um arrepio e disse:
- Por que não fecha essa porta? O vento que entra está gelado, e eu estou com frio.
- Na casa em que o coração é duro não é sempre gelado o vento? – perguntou ele.
A mulher não respondeu nada, mas chegou mais perto do fogo.
Depois de algum tempo ela olhou para ele, como os olhos marejados de lágrimas, e ele logo entrou e colocou a criança nos braços dela; ela a beijou, colocando-a na caminha onde estava deitada o caçula do casal. Na manhã seguinte, o Lenhador pegou o curioso manto dourado e colocou-o em uma grande arca; também guardou um grande fio de contas de âmbar que estava no pescoço da criança.
E assim o Filho-da-Estrela foi criado com os filhos do Lenhador, sentando-se à mesma que eles, sendo seu companheiro de brincadeiras.
A cada ano ele ficava mais bonito, de modo que todos os que moravam na aldeia ficavam maravilhados, pois enquanto os outros eram morenos de cabelos negros, ele era branco e delicado como marfim lavrado, e seus cachos pareciam pétalas de junquilhos. Seus lábios também pareciam pétalas de alguma flor rubra, e seus olhos eram como violetas que nascem junto ao regato de água pura, e seu corpo era como o narciso que cresce no campo onde não chega a foice.
Porém essa beleza o fez mau, pois tornou-o orgulhoso, cruel e egoísta. Os filhos do Lenhador e as outras crianças da aldeia ele desprezava, dizendo que eram de pais humildes, enquanto ele era nobre, já que nascera de um Estrela; e por isso dizia-se amo de todos eles, tratando-os como seus servos. Não tinha piedade para com os pobres, ou os que eram cegos, aleijados, ou de algum modo deficientes, antes atirando pedras neles para espantá-los em direção à estrada , dizendo-lhe que fossem mendigar seu pão em outra parte. De modo que ninguém, a não ser os bandidos, costumavam vir à aldeia para pedir esmolas. Ele parecia, na verdade, enamorado da beleza, debochando dos fracos e feios, menosprezando-os de todo modo. Mas amava a si mesmo, e no verão, quando não havia vento, ficava deitado junto ao poço do pomar do padre, olhando par o fundo a fim de ver seu próprio roso, rindo do prazer que sentia em ser tão belo.
Muitas vezes o Lenhador e sua mulher o repreenderam dizendo:
- Nós não o tratamos como você trata os outros que estão desamparados e não têm quem o socorra.
Por que razão é tão cruel para com todos aqueles que precisam de piedade?
Mas o Filho-da-Estrela não dava atenção às suas palavras, e franzindo a testa e fazendo um muxoxo, voltava para a companhia dos outros meninos, para ser o chefe. Seus companheiros o seguiam, pois ele era lindo, rápido na corrida, sabia dançar, tocar flauta e fazer música. Onde quer que o Filho-da-Estrela os levasse, eles o seguiam, e o que quer que o Filho-da-Estrela lhes mandassem fazer, eles faziam. Quando ele furava com um junco pontudo os olhos da toupeira, eles riam; e quando ele atirava pedras em algum leproso, eles também riam. Em todas as coisas era ele quem os guiava, e seus corações foram ficando tão duros quanto o dele.
- Olhem! Lá está sentada uma mendiga imunda debaixo daquela linda castanheira, com suas folhas verdes. Venham, vamos expulsá-la daqui, pois é feia e mal-enjambrada.
Então ele se aproximou, atirando-lhe umas pedras e caçoou dela; ela ficou apavorada, mas nem por um instante tirou dele o seu olhar. Quando o Lenhador, que estava cortando lenha ali por perto, viu o que o Filho-da-Estrela estava fazendo, veio correndo e repreendeu-lhe, dizendo:
- Você tem mesmo um coração de pedra e não sabe o que é piedade, pois que mal lhe fez essa pobre mulher para que você a trate desse modo?
O Filho-da-Estrela ficou rubro de raiva, bateu com o pé no chão e disse:
- Quem é você para questionar o que eu faço? Eu não sou seu filho para ter de obedecê-lo.
- É verdade – respondeu o Lenhador -, mas eu tive pena de você quando o encontrei na florestas.
Quando a mendiga ouviu essas palavras, deu um grito e caiu desmaiada. O Lenhador carregou-a para sua casa, sua mulher cuidou dela, e quando ela voltou a si do desmaio deles puseram comida e bebida na frente dela e disseram que se reconfortasse.
Sem querer comer nem beber, disse ela ao Lenhador:
- O senhor não disse que a criança foi achada na floresta? E não faz hoje exatamente dez anos?
Então disse o Lenhador:
- Sim, foi na floresta que o encontrei, e faz hoje exatamente dez anos.
- E que sinais encontrou com ele? – gritou ele. – Não trazia ele no pescoço um colar de âmbar?
Não estava ele enrolado em manta de tecido de ouro bordado com estrelas?
- É verdade – respondeu o Lenhador -, foi exatamente assim como disse – e, pegando o colar e a manta na arca, mostrou-os a ela.
- Ele é meu filhinho que eu perdi na floresta. Peço-lhe que mande logo chamá-lo, pois eu tenho andado por todo o mundo à procura dele.
Então o Lenhador e sua mulher saíram e chamaram o Filho-da-Estrela dizendo-lhe:
- Entre em casa, e lá há de encontrar sua mãe, que o espera.
Ele entrou correndo, espantado e muito alegre. Porém ao ver quem esperava lá dentro, ele riu com desdém dizendo: - Bem, aonde esta minha mãe? Pois aqui não vejo ninguém se não essa mendiga.
E a mulher respondeu-lhe.
- Sou eu a sua mãe.
- Esta louca, como pode dizer uma coisa dessas – gritou o Filho-da-Estrela com raiva. – Eu não sou filho seu, pois você não passa de uma mendiga. É muito feia e andrajosa, portanto, sai já daqui, e não me deixe tornar a ver sua cara horrenda.
- Pois você na verdade é meu filhinho, a quem dei à luz na floresta – gritou ela, e caiu de joelhos, estendendo os braços para ele. – Ladrões tiraram-no de mim, e eu fui deixada lá par morrer – murmurou ela -, porém eu o reconheci ao vê-lo, e também reconheci os sinais, a manta de tecido dourado e o colar de âmbar. Portanto eu peço que venha comigo, pois tenho andado pelo mundo inteiro à sua procura. Venha comigo, meu filhinho, pois eu preciso muito do seu amor.
Mas o Filho-da-Estrela não saiu do lugar, e fechou a ela as portas de seu coração. Nenhum som se ouviu mais, a não ser do pranto de dor da mulher.
Finalmente ele dirigiu a palavra à mãe, porém com voz dura e amarga.
- Se na verdade você é minha mãe – disse ele -, melhor seria que se mantivesse afastada, ao invés de aparecer aqui para me envergonhar, considerando, que eu julgava ser filho de um Estrela, e não de uma mendiga, como agora você me diz que sou. Portanto, vá-se embora, e não deixe que eu jamais torne a vê-la.
- Ai, ai , meu filhinho! – chorou ela. – Não podia ao menos dar-me um beijo antes de eu ir embora?
Sofri muito para encotrá-lo.
Não –disse o Filho-da-Estrela. – Você é por demais horrenda de se olhar, eu antes beijaria uma serpente ou um sapo do que você.
Então a mulher se levantou e foi embora para a floresta chorando amargamente, e quando o Filho-da-Estrela viu que ela já tinha ido, ficou contente e correu de volta para seus companheiros, a fim de brincar com eles.
Porém, quando eles o viram aproximar-se, caçoaram dele dizendo-lhe:
Ora, você é tão horrendo quanto um sapo e tão repugnante quanto a serpente. Vá-se embora, pois não vamos permitir que brinque conosco – e expulsaram-no do jardim Filho-da-Estrela.
O Filho-da-Estrela franziu a testa e disse para si:
- Que história é essa que eles estão me dizendo? Eu vou até o poço olhar a água, para que esta me diga o quanto eu sou bonito.
E ele foi realmente até o poço e olhou lá para dentro, mas que surpresa! Seu rosto era de sapo e seu corpo estava todo escamado como o de uma serpente. Então ele se atirou na relva e chorou, dizendo a si mesmo:
- Não há dúvida de que isso me aconteceu porque eu pequei. Pois reneguei minha mãe, mandei-a embora, sendo orgulhoso e cruel. Por isso eu irei procurá-la pelo mudo todo, e não descansarei enquanto não a encontrar.
A filhinha do Lenhador aproximou-se dele e, pousando a mãozinha sobre seu ombro, disse:
- O que importa que você tenha perdido sua beleza?
Fique conosco, pois eu não hei de caçoar de você.
E ele respondeu:
Não, eu fui cruel com minha mãe e foi como castigo que esse mal se abateu sobre mim. É por isso que tenho que partir, andar pelo mundo até encontrá-la e conseguir o seu perdão.
A seguir ele fugiu para a floresta, chamando e pedindo que a mãe viesse ter com ele, mas não obteve resposta. Chamou por ela o dia inteiro e quando, o sol se pôs, deitou-se para dormir em um leito de folhas. Os pássaros e os animais fugiram dele, pois se lembravam de suas crueldades, de modo que ele ficou sozinho, a não ser pelo sapo que ficou ali, olhando, e a serpente, que passou serpenteando por ele.
De manhã ele se levantou, colheu uns bagos amargos das árvores, comeu-os, e tomou o caminho da grande floresta, chorando amargamente. A todos os que encontrava, indagava se acaso haviam visto sua mãe.
Disse ele à Toupeira:
- Você sabe andar debaixo da terra. Pode me dizer se é lá que minha mãe está?
A Toupeira respondeu:
- Você cegou meus olhos. Como poderia eu saber?
Disse ele ao Pintarroxo:
- Você voa acima do topo das mais altas árvores e pode ver o mundo inteiro. Diga aqui, será que consegue ver a minha mãe?
E o Pintarroxo respondeu:
- Você cortou minhas asas para se divertir. Como poderei eu voar?
Ao Esquilinho que morava no tronco do pinheiro e estava solitário ele perguntou:
- Onde esta minha mãe?
- Você matou a minha. Será que esta procurando a sua para matá-la também?
O Filho-da-Estrela chorou, curvou a cabeça, pediu perdão às criaturas de Deus e continuou pela floresta, procurando a mendiga. No terceiro dia ele chegou ao outro lado da floresta e desceu para a planície.
Em todas as aldeias por que passava as crianças caçoavam dele, e os camponeses nem permitiam que ele dormisse nos celeiros, com medo que ele mofasse o trigo, tão nojento parecia, e seus empregados expulsavam-no da terra, sem que ninguém tivesse piedade dele. Tampouco consegui, em lugar algum, notícias de sua mãe, embora já fizesse três anos que ele andava pelo mundo, e muitas vezes lhe parecesse vê-la na estrada logo adiante dele, quando então corria pela estrada toda de pedras, o que lhe deixava os pés em sangue. Mas nunca conseguia alcançá-la, e os que moravam ao longo da estrada negavam que a tivessem visto, ou qualquer pessoa que se parecesse com ela, e ainda caçoavam de seu sofrimento.
Durante três anos ela andou pelo mundo, e no mundo não havia para ele nem amor nem caridade, nem solidariedade ou caridade, pois assim era o mundo que ele construíra para si nos dias de seu grande orgulho.
Certa noite, chegou ela os portões de uma cidade fortemente murada, perto de um rio, e cansado e com os pés machucados como estava, tentou entrar. Mas os soldados que estavam de guarda cruzaram suas alabardas fechando a entrada e disseram, com brutalidade:
- Quais são os seus negócios nesta cidade?
- Estou buscando minha mãe – respondeu ele – e rogo que me deixe passar, pois pode ser que ela esteja nesta cidade.
Porém eles caçoaram do menino, e um deles, sacudindo a barba preta, pousou seu escudo e gritou:
- Para falar a verdade, sua mãe não há de ficar muito contente ao vê-lo, pois você tem aspecto pior do que o do sapo do pântano, ou do que a serpente que se arrasta no charco. Vá-se embora. Sua mãe não mora nesta cidade.
Um outro, que tinha na mão uma bandeira amarela, disse-lhe:
- Quem é sua mãe, e por que anda à sua procura?
- Minha mãe é mendiga como eu, e eu a tratei muito mal. Rogo que me deixem passar para que ela possa me conceder seu perdão, e acaso estiver na sua cidade.
Porém eles não deixaram, e ainda o espetaram com sua lanças.
Quando já ia se afastar, chorando, um outro rapaz, cuja armadura era incrustada com flores douradas e cujo elmo possuía, ao alto, deitado, um leão alado, aproximou-se e perguntou aos soldados quem estava querendo entrar. E eles lhe responderam:
- É um mendigo, filho de uma mendiga, e nós o mandamos embora.
- Ora essa- exclamou ele rindo -, vamos vender esse mostrengo como escravo, e seu preço nos comprará um copázio de vinho doce.
Um velho mal-encarado que passava gritou:
- Eu compro por esse preço.
Depois de pagar, pegou o Filho-da-Estrela pela mão e entrou com ele na cidade.
Depois de passarem por muitas ruas, eles chegaram a um portinha em um parede coberta por um pé de romãs.
O velho tocou a porta com um anel de jaspe lavrado, ela se abriu, e então eles desceram cinco degraus para um jardim cheio de papoulas negras e jarros verdes de argila queimada. O velho então tirou do turbante um lenço de seda estampada, vendou com ele os olhos do Filho-da-Estrela, e então caminhou, guiando o menino à sua frente. Quando o lenço foi tirado de seus olhos, o Menino-Estrela viu-se em um calabouço, iluminado por uma lanterna de cifre.
O velho então colocou à sua frente um pedaço de pão mofado em um prato e disse “Coma” e um pouco de água amarelada em um copo e disse “Beba”; e quando ela acabou de comer e beber, o velho saiu, trancando a porta atrás de si com uma corrente de ferro.
No dia seguinte, o velho, que na verdade era mais hábil mágico da Líbia e aprendera sua arte de um outro, que habitava os túmulos do Nilo, aproximou-se dele e, com o venho franzindo, disse:
- Em um bosque peto das portas desta cidade de Giaours há três moedas de ouro. Uma é de ouro branco, outra de ouro amarelo, e a terceira de ouro vermelho. Hoje você tem de me trazer a de ouro branco, e se não trouxer eu o espancarei com cem chibatadas. Vá logo, e ao anoitecer eu estarei a sua espera na porta do jardim. Traga logo o ouro branco, pois de outro modo as coisas irão mal para você, que é meu escravo, com prado pelo preço de um copázio de vinho doce.
E, vedando os olhos do Filho-da-Estrela com o lenço de seda estampada, ele guiou pela casa e através do jardim de papoulas, até o alto dos cinco degraus de bronze.
O bosque era muito lindo quando visto de fora, parecia cheio de pássaros que cantam e de flores docemente perfumadas, e o Filho-da-Estrela entrou por ele alegremente. Mas aquela beleza não adiantou muito, pois em todo canto que ia havia urzes e espinhos que brotavam do chão e rodeavam, urtigas maldosas que o aferrava, e cardos que o furavam com sus espigões, deixando-o ferido e assustado. Ele nem conseguia encontrar qualquer moeda de ouro branco, como lhe descrevera o Mágico, muito embora a procurasse desde a manhã até o meio-dia, e do meio-dia o anoitecer. Quando o sol se pôs, ele caminhou para casa, corando amargamente, pois sabia o que o esperava.
Mas ao chegar à periferia do bosque ele ouviu, de uma moita, alguém que chorava de dor.
Esquecendo-se de seu próprio sofrimento ele correu até lá, e viu uma Lebre pequena apanhada em uma armadilha que uma caçadora montara para ela.
O Filho-da-Estrela sentiu piedade e libertou-a, dizendo:
- Eu mesmo sou escravo, mas posso dar-lhe a sua liberdade.
E a Lebre respondeu:
- Você me deu a minha liberdade. O que posso dar-lhe em recompensa?
E lhe disse o Filho-da-Estrela:
- Estou procurando uma moeda de ouro branco, mas não a encontrei em lugar nenhum, e se eu não a levar para casa meu amo vai me espancar.
- Venha comigo – disse a Lebre – e eu o levarei até ela, pois sei onde está escondida, e por quê.
E então o menino foi com a Lebre, e que surpresa! Na forquilha do tronco de um grande carvalho ele viu a moeda de ouro branco que procurava. Muito contente, ele a pegou e disse à Lebre:
- O serviço que eu prestei a você me foi muitas vezes recompensado, e a bondade que mostrei você me pagou mais de cem vezes.
- Não – disse a Lebre - , mas assim como você me fez, eu fiz você – e saiu correndo.
O Filho-da-Estrela foi para a cidade.
Na porta da cidade estava sentado um leproso. Sobre o seu rosto estava pendurado um capucho de linho cinzento, e através de dois buracos seus olhos brilhavam como duas brasas rubras. Ao ver chegar o Filho-da-Estrela ele bateu em seu prato de madeira e sacudiu sua campainha, dizendo-lhe:
- dê-me algum dinheiro, senão eu morro de fome. Pois eles me expulsaram da cidade e ninguém tem piedade de mim.
- Ai, ai! – exclamou o Filho-da-Estrela,. – Eu só tenho uma moeda em minha bolsa, e se eu não entregá-la a meu amo ele vai me espancar, pois sou seu escravo.
Porém o leproso pediu e rogou até o Filho-da-Estrela ter piedade e dar-lhe a moeda de ouro branco.
Quando chegou à casa do Mágico, este o fez entrar e perguntou-lhe:
- Está com você a moeda de ouro branco?
E o Filho-da-Estrela respondeu:
- Não, não está.
O Mágico atirou-se sobre ele e surrou, e pondo-lhe na frente de um prato vazio, disse “Coma”, e de um copo vazio, “Beba”, e tornou a atirá-lo no calabouço.
Na manhã seguinte o Mágico chegou para ele e disse:
- Se hoje você não me trouxer a moeda de ouro amarelo, continuará para sempre meu escravo, e eu lhe darei trezentas chibatadas.
Então o Filho-da-Estrela foi para o bosque, e procurou o dia inteiro a moeda de ouro amarelo, mas não a encontrou em lugar nenhum. Ao pôr-do-sol ele se sentou e começou a chorar, mas enquanto chorava a Lebre que ele salvara da armadilha apareceu.
E a Lebre perguntou:
- Por que está chorando? E o que está procurando aqui no bosque?
O Filho-da-Estrela respondeu:
- Estou procurando uma moeda de ouro amarelo que está escondida aqui, e se eu não achar meu amo me bate e me fará para sempre seu escravo.
Venha comigo – gritou a Lebre, e saiu correndo até chegar perto de um laguinho.
No fundo do lago estava a moeda de ouro amarelo.
- Como poderei agradecer-lhe? – disse o Filho-da-Estrela. – Pois sabe que esta é a segunda vez que me socorre.
- Ora, primeiro você teve pena de mim – disse a Lebre, e saiu correndo.
O Filho-da-Estrela pegou a moeda de ouro amarelo, botou-a em sua bolsa, e correu para a cidade.
Mas o leproso o viu chegando e correu ao seu encontro, caindo de joelhos e exclamando:
- Dê-me algum dinheiro, senão eu morro de fome.
O Filho-da-Estrela disse:
- Na minha bolsa eu só tenho uma moeda de ouro, e se eu não entregar a meu amo ele vai me manter como escravo para sempre.
Quando ele chegou na casa do Mágico, este lhe abriu a porta, deixou-o entrar e perguntou: “Trouxe a moeda de ouro?” E o Filho-da-Estrela respondeu “Não, não trouxe”. O Mágico caiu de pancada em cima dele, surrou-o, e, prendeu o com muitas correntes, atirando-o novamente no calabouço.
Na manhã seguinte, o Mágico chegou pare ele e disse:
- Se hoje você me trouxer a moeda de ouro vermelho eu o libertarei, mas se não trouxer, pode te a certeza de que o matarei.
Então o Filho-da-Estrela foi para o bosque e o dia inteiro ele procurou a moeda de ouro vermelho, mas não a encontrou em parte alguma. Ao pôr-do-sol ele se sentou e começou a chorar, mas enquanto estava chorando apareceu a pequena Lebre.
E disse-lhe a Lebre:
- A moeda de ouro vermelho que você esta procurando está na caverna que fica atrás de você.
Portanto, não chore mais, alegre-se.
Como a recompensarei? – exclamou o Filho-da-Estrela. – Pois eis que esta é a terceira vez que você me socorre.
- Ora, antes você sentiu pena de mim – disse a Lebre, e saiu correndo rápido.
E o Filho-da-Estrela entrou na caverna, e no último recanto ele encontrou a moeda de ouro vermelho.
Então ele a enfiou sem sua bolsa e correu para a cidade. O leproso, ao vê-lo chegar, postou-se no meio da estrada e, chorando, disse-lhe:
- Dê-me a moeda de ouro vermelho, se não sou vou morrer.
E o Filho-da-Estrela apiedou-se novamente dele, dando-lhe a moeda de ouro vermelho e dizendo:
- Você precisa mais do que eu.
Mas seu coração estava pesado, porque sabia o triste destino que o aguardava.
Porém ele teve uma grande surpresa, pois quando passou pela porta da cidade os guardas se curvaram diante de e comentaram:
- Como é lindo o nosso senhor!
E uma multidão de cidadãos o seguiu, gritando:
- Sem dúvida, não há ninguém mais bonito neste mundo! E o Filho-da-Estrela chorou, dizendo para si mesmo: - Estão caçoando de mim, fazendo pouco da minha desgraça.
Mas a quantidade de gente era tamanha que ele errou o caminho e se achou, em uma grande praça, onde havia um castelo e um Rei.
Os portões do palácio se abriram e os sacerdotes e os administradores da cidade vieram recebê-lo.
Fazendo profundas referências diante dele, disseram:
- Eis que chegou o nosso senhor por quem estávamos esperando, o filho do nosso Rei.
- Eu não sou filho de rei, mas sim filho de uma pobre mendiga. E como podem dizer que sou bonito, quando eu sei que sou repugnante ao olhar?
E então aquele cuja armadura era incrustada de folhes douradas e tinha um leão deitado e alado em seu elmo, levantou seu escuto e gritou:
- Como pode o meu senhor dizer que não é lindo?
O Filho-da-Estrela olhou e ficou surpreso de ver seu rosto como fora antes, e que ele era novamente atraente. Mas em seus olhos havia algo que jamais houvera antes.
Os sacerdotes e os altos administradores da cidade ajoelharam-se e disseram:
- Foi profetizado há muito tempo que neste dia chegaria aqui aquele que viria a ser o nosso governante.
Portanto, deixem que o nosso senhor tome a coroa e o cetro, e que com justiça e misericórdia ele venha a ser o nosso Rei.
Porém ele respondeu:
- Eu não sou digno, pois reneguei a mãe que me deu a vida, e não poderei descansar enquanto não a encontrar e pedir o seu perdão. Portanto, permitam que eu me vá, pois tenho de perambular por todo o mundo, e não posso ficar aqui, nem que me dêem a coroa e o cetro.
Ao falar, ele virou o rosto para a rua que levava às portas da cidade e , de repente, no meio da multidão que se comprimia atrás dos soldados, ele viu a mendiga que era sua mãe, e ao lado do leproso que ficava sentado junto à estrada.
Um grito de alegria escapou-lhe dos lábios, e ele correu e , ajoelhando-se, beijou s feridas dos pés de sua mãe, molhando-os com suas lágrimas. Ele curvou a cabeça até o chão e, soluçando como se seu coração estivesse a ponto de se partir, disse:
- Mãe, eu a reneguei na hora de meu orgulho. Por favor aceite-me na hora de minha humildade. Mãe, eu lhe dei ódio, peço que me dê amor. Mães, eu a rejeitei, agora peço que receba seu filho.
Mas a mendiga não disse uma só palavra.
Ele então estendeu as mãos e, agarrando os pés branco do leproso, disse-lhe:
- Por três vezes eu lhe dei minha misericórdia. Por favor peça a minha mãe que me fale ao menos uma só palavra.
E o menino soluçou novamente e disse:
- Mãe, meu sofrimento é maior do que posso suportar.
Dê-me o seu perdão e permita que eu volte para a floresta.
A mendiga pousou a mão sobre a cabeça dele e disse-lhe:
- Levante-se.
E o leproso também pousou a mão sobre a cabeça dele e disse-lhe:
- Levante-se.
Ele então pôs de pé e, para sua grande surpresa, eles eram um Rei e um Rainha.
E a Rainha lhe disse:
- Este é seu pai, a quem você socorreu.
E o Rei disse:
- Esta é sua mãe, cujos pés você lavou com suas lágrimas.
E eles enlaçaram seu pescoço, e o beijaram e lavaram-no par ao palácio; vestiram-no com trajes belos e colocaram uma coroa em sua cabeça e um cetro em sua mão, e ele reinou sobre a cidade junto ao rio, da qual veio a ser senhor. Justiça e misericórdia mostrou ele sempre para com todos, mas baniu o Mágico mau, e mandou ricos presentes ao Lenhador e sua mulher, trazendo honrarias a seus filhos. E nunca mais permitiu que ninguém fosse cruel para com pássaros ou animais, ensinando o amor, o carinho e a caridade, dando pão aos pobres e roupa aos nus, e trazendo paz e fartura à sua terra.
Mas não reinou por muito tempo, pois tão grandes haviam sido seus sofrimentos, tão intenso o fogo de sua provação, que ao fim de três anos ele morreu. E o que veio a reinar depois dele, reinou com maldade.
Oscar Wilde
O melhor da literatura para todos os gostos e idades