Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CONDESSA DE CHARNY 5º Volume / Alexandre Dumas
A CONDESSA DE CHARNY 5º Volume / Alexandre Dumas

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CONDESSA DE CHARNY

5º Volume

 

A revolução sanguinolenta

       A revolução de 1789, isto é, a dos Necker, dos Sicyes e dos Bailly terminou em 1790, a dos Barnave, dos Mirabeau, dos Lafayette teve o seu fim em 1791.

       A grande revolução, a revolução sanguinária, a revolução dos Danton, dos Marat, dos Robespierre começava.

       Reunindo o nome destes três homens, não queremos confundir em uma só apreciação, pelo contrário, representam as suas individualidades bem distintas as três faces dos três anos que vão decorrer.

       Danton está encarnado em 1792.

       Marat em 1793.

       Robespierre em 1794.

       Demais os acontecimentos que vão seguir-se melhor nos demonstrarão o que eram estes homens; examinemos os acontecimentos e por eles veremos como lhe fazem face a Assembléia Nacional e a Comuna.

       O que narramos é da história, porque quase todos os personagens desta história, com pequenas excepções, dispuseram e figuraram a tempestade revolucionária.

       O que é feito dos três irmãos Charny, Jorge, Isidoro e Olivier?

       Morreram.

       O que é feito da rainha e de Andréia?

       Estão presas.

       O que é feito de Lafayette?

       Anda fugido.

       A 17 de Agosto Lafayette tinha convidado o exército a marchar sobre a capital para restabelecer a constituição, destruir o 10 de Agosto e restabelecer o rei.

       Lafayette, o homem leal, tinha perdido a cabeça como os outros; o que ele queria era conduzir directamente os prussianos e os austríacos a Paris.

       O exército repeliu-o por instinto, como dezoito meses depois repeliu Dumouriez.

       A história teria unido os nomes destes dois homens, se Lafayette detestado pela rainha, não houvesse tido a ventura de ser preso pelos austríacos e enviado a Olmutz.

       O cativeiro fez esquecer a deserção.

       A 18, Lafayette passou a fronteira.

       A 21 os inimigos de França, os aliados da realeza, contra os quais se vai fazer o 2 de Setembro; os austríacos que Maria Antonieta chamara em seu socorro, durante aquela clara noite em que a lua, passando pelos vidros da câmara da rainha, ia baixar sobre o seu leito, os austríacos atacavam Longwy.

       Depois de vinte e quatro horas de bombardeamento, Longwy rendeu-se.

       Na véspera de se render na outra extremidade da França levantava-se a Vendeia.

       O pretexto para esse levantamento era a obrigação dos eclesiásticos de prestarem juramento.

       Para fazer face a estes acontecimentos, a Assembléia nomeava Dumouriez para comandar o exército de Este e decretava a acusação de Lafayette.

       Também se decretava que todas as casas, excepto os edifícios públicos de Longwy, fossem destruídas logo que a cidade tornasse a entrar no poder da nação francesa.

       Fazia uma lei, que bania no território francês todo o padre, que não tivesse prestado juramento.

       Autorizava as visitas domiciliárias.

       Confiscava e punha à venda os bens dos emigrados.

       Entretanto, o que fazia a Comuna?

       Já dissemos quem era o seu oráculo: Marat.

       A Comuna guilhotinava na praça do Carroussel.

       Dava-lhe uma cabeça por dia, era muito pouco; mas numa brochura, que apareceu nos fins de Agosto, os membros do tribunal explicam o enorme trabalho, que haviam tido para obterem este resultado apesar de pouco satisfatório.

       É verdade que a brochura era assinada por Fouquier-Tinville.

       Vede pois com que sonhava a Comuna; agora mesmo vamos assistir à realização do seu sonho.

       Na noite do dia 23 é que apresentou o seu programa.

       Seguida por uma turbamulta, apanhada nos bairros mais ínfimos, a Comuna apresentou-se à meia-noite na Assembléia Nacional.

       O que exigia ela?

       Que os presos de Orleans fossem conduzidos a Paris para serem guilhotinados.

       Mas os presos de Orleans não tinham sido sentenciados.

       Esta falta, porém, não era sensível para a Comuna, que prescindia de tal formalidade.

       Demais, a festa do dia 10 de Agosto ia servir-lhe de auxílio.

       Sergent, artista da Comuna, e o director da festa, tinha já posto em cena a procissão da pátria em perigo, e vimos como se saiu.

       Desta vez Sergent há-de exceder-se.

       Trata de encher de luto, de vingança, de sede de sangue, a alma de todos aqueles que perderam no dia 10 de Agosto um ser, que lhe era querido.

       Defronte da guilhotina, que funcionava na praça do Carroussel, mandou construir uma pirâmide coberta de crepe, e na qual estavam escritos os assassínios de que acusam os realistas, a matança de Nancy, a matança de Nantes, a carnificina de Montauban, a carnificina do Campo de Marte.

       A guilhotina dizia: eu mato.

       A pirâmide dizia: Mata!

       Era um domingo, 27 de Agosto, cinco dias depois da insurreição da Vendeia, feita pelos padres; quatro dias depois da tomada de Longwy, da qual o general Clairfayt acabava de tomar posse em nome de Luís XVI. Foi então que a procissão se pôs em marcha às oito horas da noite, para aproveitar a misteriosa majestade, que as trevas dão a todas as coisas.

       Adiante, entre nuvens de perfumes queimados em todo o trânsito, iam viúvas e os órfãos do 10 de Agosto, vestidos de branco com os cintos pretos, levando em uma arca, feita pelo modelo da arca antiga, a petição que vimos ditada pela Srª. Roland, e escrita pela Keralio, cujas folhas ensangüentadas tinham sido encontradas no Campo de Marte, petição que desde o dia 17 de Julho de 1791, pedia a República.

       Depois seguiam-se gigantescos sarcófagos pretos, fazendo alusão aos carros cheios de cadáveres, que se enchiam nas Tulherias, e que transportavam para os diferentes bairros, gemendo com o peso dos cadáveres.

       Depois bandeiras de luto e de vingança, pedindo morte por morte.

       Seguia-se a lei, estátua colossal, de espada à cinta.

       Era seguida pelos juízes dos diferentes tribunais, à frente dos quais marchava o tribunal revolucionário do dia 10 de Agosto, aquele que se desculpava por fazer cair só uma cabeça em cada dia.

       Atrás dos tribunais ia a Comuna, a mãe sangrenta daquele tribunal, conduzindo nas suas fileiras a estátua da Liberdade, da mesma altura do que a da lei.

       Finalmente, fechava a marcha a Assembléia, levando as coroas cívicas que talvez consolem os mortos, mas que são insuficientes para os vivos.

       Tudo isto marchava lentamente, no meio dos sombrios cânticos de Chénier e da música severa, de Gossec, marchando lentamente como a vingança, mas como ela, com passo seguro.

       Parte da noite de 27 para 28 passou-se no complemento desta festa expiatória, festa fúnebre, da multidão, durante a qual a populaça, mostrando os punhos às Tulherias vazias, ameaçava as prisões, fortalezas de segurança, que tinham dado aos reis e aos realistas, em troca dos seus palácios e castelos.

       Finalmente, apagado o último lampião, reduzido a fumo o último archote, retirou-se o povo.

       Só ficaram as duas estátuas da Lei e da Liberdade para guardarem o imenso sarcófago.

       Mas como ninguém as guardasse a elas, ou fosse imprudência, ou sacrilégio, durante a noite, tiraram às estátuas os hábitos inferiores.

       No dia seguinte as duas pobres deusas eram menos do que mulheres.

       O povo vendo isto, deu um grito de raiva, acusou os realistas, correu à Assembléia, pediu vingança, apoderou-se das estátuas, tornou a vesti-las e levou-as em triunfo para a praça de Luís XV.

       Mais tarde, para ali as seguiu o cadafalso, que lhes deram no dia 21 de Janeiro uma terrível satisfação do ultraje, que lhes fora feito a 28 de Agosto.

       A 28 de Agosto a Assembléia fez a lei sobre as visitas domiciliárias.

       Começava a correr entre o povo o boato da junção dos exércitos prussiano e austríaco e da tomada de Longwy pelo general Clairfayt; por esta forma o inimigo chamado pelo rei, pelos nobres e pelos padres marchava sobre Paris, e supondo que nada o fizesse parar podia estar ali em seis dias de marchas.

       O que sucederia então a essa Paris, em ebulição como uma cratera e cujos choques abalavam o mundo havia três anos?

       O que tinha dito a carta de Bouillé, insolente gracejo, de que se tinham rido tanto e que ia tornar-se uma realidade.

       “Não ficaria pedra sobre pedra.”

       Ainda havia mais, falava-se como em coisa certa de um julgamento geral terrível, que depois de ter destruído Paris destruiria os parisienses.

       De que maneira e por quem seria dada esta sentença?

       Dizem-no os escritos do tempo.

       A mão sanguinolenta da Comuna vê-se claramente nesta legenda, que em lugar de escrever o passado, conta o futuro.

       E porque não se há-de dar crédito à legenda?

       Eis o que se lia numa carta achada nas Tulherias a 10 de Agosto, e que lemos no arquivo, onde ainda existe:

      

       “Os tribunais chegam atrás dos exércitos: juízes emigrados vão de caminho instaurando, no acampamento do rei da Prússia, os processos dos jacobinos e preparam-lhes as forcas. Portanto, quando os exércitos prussiano e austríaco chegarem a Paris está instaurado o processo, dada a sentença e só restará pô-la em execução.”

      

       Demais, para confirmar o que diz a carta, eis o que se lê no boletim oficial da guerra.

      

       “A cavalaria Austríaca aprisionou nos arredores de Sarrelouis os maiores patriotas e os republicanos conhecidos. Alguns hulanos apanharam membros da municipalidade, cortaram-lhes as orelhas e pregaram-lhas na testa.”

      

       Se se cometiam actos tais numa província inofensiva, o que sucederia na Paris revolucionária?

       O que lhes fariam não era segredo.

       Eis a notícia que por toda a parte se espalhava, contando-se pelas esquinas, derramando-se de cada centro para as extremidades.

       Levantar-se-á um grande trono para os reis aliados à vista do montão de ruínas, que terá sido Paris.

       Toda a população parisiense será empurrada, arrastada, levada cativa a chicote aos pés do trono.

       Ali, como no juízo final, será feita escolha entre os bons e os maus.

       Os bons, isto é, os realistas, os nobres; os padres, passarão à direita, e ser-lhes-á entregue a França para fazerem dela o que bem lhes parecer.

       Os maus, isto é, os revolucionários, passarão à esquerda, e ali acharão a guilhotina, instrumento inventado pela revolução, e pelo qual a revolução há-de morrer.

       A revolução, isto é, a França, não só a França, porque isso nada seria, pois que os povos são feitos para servir de holocausto às idéias, mas o pensamento da França.

       E por que motivo foi a França a primeira a pronunciar a palavra liberdade? Julgou proclamar uma causa santa: a luz dos olhos, a vida das almas. Disse: “Liberdade para a Europa; liberdade para o mundo.” Julgou fazer uma coisa grande emancipando a terra, mas ao que parece Deus condena-a; enganou-se; a Providência é contra ela; julgando-se inocente e sublime, era criminosa e infame; julgando cometer uma grande acção, cometeu um crime; portanto julgam-na, condenam-na, decapitam-na, arrastam-na às gemónias do universo, e o universo, pela salvação do qual ela morre, aplaude a sua morte.

       Não havia exemplo semelhante na história dos povos.

       Um único o de Jesus Cristo crucificado pela salvação do mundo, e morrendo no meio dos escárnios e insultos do mundo.

       Mas finalmente para sustentá-lo contra o estrangeiro, esse pobre povo encontra talvez algum apoio em si mesmo.

       Aqueles que ele adorou, aqueles a quem enriqueceu, aqueles a quem pagou, talvez o defendam.

       Não.

       O seu rei conspira com o inimigo, e do Templo onde está encerrado continua a corresponder-se com os prussianos e austríacos.

       A sua nobreza marcha contra ele às ordens dos príncipes.

       Os seus padres fazem revoltar os camponeses.

       Nas prisões onde estão metidos, os presos batem as palmas às derrotas da França.

       Os prussianos, entrando em Longwy, fizeram soltar gritos de alegria no Templo, na Abadia e na Force.

       Por isso Danton o homem das resoluções extremas, entrou bramindo na Assembléia.

       O ministro da justiça julga a justiça impotente e vem pedir que lhe dêem força, e então a justiça procederá apoiada na força.

       Danton sobe à tribuna, sacode a sua juba de leão, e estende a mão potente, que em 10 de Agosto arrombou as portas das Tulherias.

       – É preciso uma convulsão nacional, que faça retrogradar os déspotas – disse ele; – até aqui só temos tido uma guerra simulada mas não é de tão miserável brinquedo que se deve tratar agora. É mister que o povo corra, role em massa contra os inimigos para os exterminar de um só golpe. É mister ao mesmo tempo amarrar todos os conspiradores, para os impedir de fazerem mal.

       E Danton pede o recrutamento em massa, as visitas domiciliárias, as pesquisas nocturnas, com pena de morte contra todo aquele que se opuser às operações do governo provisório.

       E Danton obtém quanto pede.

       E se mais houvesse pedido mais obteria.

      

       “Nunca – diz Michelet – povo algum esteve mais próximo da morte. Quando a Holanda, ao ver Luís XIV às suas portas, não teve outro recurso senão inundar-se, esteve em menor perigo; tinha por si a Europa. Quando Atenas viu o trono de Xerxes sobre o rochedo de Salamina, perdeu terra, lançou-se a nado, e não teve senão água por pátria, esteve em menor perigo; esteve toda sobre a sua poderosa frota, organizada pelo grande Temístocles, e mais feliz do que a França, não tinha a traição no seu seio.”

      

       A França estava desorganizada, dissolvida, traída e entregue.

       A França estava como Efigénia sob o cutelo de Calchas.

       Os reis só esperavam a sua morte para soprarem nas velas o vento do despotismo.

       Estendia os braços aos deuses e os deuses estavam surdos.

       Mas, finalmente, quando sentiu tocá-la a mão da morte, por uma contracção violenta e terrível, dobrou-se sobre si mesma, depois, vulcão da vida, fez rebentar das suas entranhas esta chama, que pelo espaço de meio século esclareceu o mundo.

       É verdade que houve uma nódoa de sangue, que manchou este Céu.

       Vamos tocar nesta nódoa de sangue de 2 de Setembro, vamos ver quem derramou esse sangue, e se ele deve ser imputado à França.

       Mas primeiro, para fecharmos este capítulo, reproduzamos duas páginas de Michelet.

       Reconhecemo-nos impotentes ao pé deste gigante, e, como Danton, chamemos a força em nosso socorro.

       Vejam:

      

       “Paris parecia uma praça forte; tinha o aspecto de Lille ou de Estrasburgo. Por toda a parte corpos de guarda, sentinelas, precauções militares e prematuras, pois o inimigo ainda estava a cinqüenta léguas de distância. O que era mais sério, verdadeiramente tocante, era o sentimento de solidariedade, profunda, admirável, que se revelava por toda a parte; todos se falavam, todos oravam pela pátria, todos se faziam recrutadores, iam de casa em casa oferecendo armas, o que tinham a quantos podiam vestir farda; todos eram oradores, todos pregavam, todos discutiam, todos entoavam cânticos patrióticos. Quem deixava de ser autor no momento singular? Quem não imprimia? Quem não fixava nas paredes? Quem não era actor no grandioso espectáculo? Representavam-se as mais ingénuas cenas, em que todos figuravam; em toda a parte, nas praças, nos teatros de alistamento, nas tribunas, em volta das quais se inscreviam, tudo eram cânticos, gritos, lágrimas de entusiasmo ou de despedida, e por cima de tudo isto uma grande voz troava repercutindo em todos os corações, voz muda, e por isso mesmo mais profunda, a própria voz da França, eloqüente em todos os seus símbolos, patética no que havia de mais trágico, o estandarte santo e terrível do perigo da pátria desenrolado nas janelas do palácio do município, estandarte imenso, que flutuava ao vento e parecia fazer sinal às legiões populares para marcharem à pressa dos Pireneus ao Escalda, do Sena ao Reno."

       “Para se saber o que era este momento de sacrifício, seria mister ver em cada cabana, em cada habitação a patética separação das esposas, a dor cruel das mães, naquele segundo parto, mais cruel cem vezes do que aquele em que o filho fizera a primeira partida das suas entranhas ensangüentadas; haveria mister ver a pobre velhinha, com os olhos secos, o coração torturado, juntar à pressa alguma pobre roupa que o filho tem de levar, as parcas economias, os cobrezitos poupados pelo jejum e que a si mesma roubou para o filho, para esse dia de extrema dor.”

       “Dar os filhos a essa guerra, que se anunciava com tão fracas probabilidades de vantagem, imolá-los àquela situação extrema e desesperada, era mais do que a maior parte delas podia fazer; sucumbiam a estes pensamentos, ou então, por uma reacção natural, caíam em actos de furor, nada poupavam, nada temiam; em tal estado de espírito, nenhum terror tinha poder; que terror pode haver para quem deseja a morte?”

       “Contaram-nos que num dia, sem dúvida em Agosto ou Setembro, um bando destas mulheres furiosas encontraram Danton na rua, injuriaram-no como injuriariam a própria guerra, lançando-lhe em rosto toda a revolução, todo o sangue que se derramasse e a morte dos filhos, amaldiçoando-o, e pedindo a Deus que fizesse recair tudo sobre a cabeça dele. Danton não se admirou, e apesar de sentir em volta de si as unhas delas, voltou-se bruscamente, olhou para as mulheres e teve dó delas. Danton tinha muito ânimo, subiu a um marco e para as consolar, começou a injuriá-las na sua linguagem; as suas primeiras palavras foram violentas, burlescas, obscenas; e as mulheres ficaram interditas. O furor de Danton, verdadeiro ou simulado, desconcerta o furor delas; o prodigioso orador, instintivo e calculado, tinha por base popular um temperamento sensual e forte, todo feito para o amor físico, onde dominava a carne e o sangue. Danton, acima de tudo, era homem, havia nele muito do leão e do cão, bastante do touro, a máscara metia medo; a sublime fealdade de um rosto transtornado, tornava as suas palavras sacudidas, dardejadas pelo acesso, uma espécie de aguilhão selvagem.”

       “As massas, que prezam a força, sentiam diante dele o receio e simpatia que faz experimentar todo o ser poderosamente gerado, e demais sob aquela máscara violenta, furiosa, sentia-se bater um coração; acabava-se por desconfiar de uma coisa, era que aquele homem terrível, que só falava por ameaças, no fundo era um bom homem. As mulheres amotinadas em redor dele sentiram confusamente tudo isto e deixaram-no falar-lhes, dominá-las, assenhorear-se delas, e fez delas tudo quanto quis. Explicou-lhes grosseiramente para que serve a mulher, para que serve o amor, para que serve a geração; que se não geravam os filhos para si, mas para a pátria. Chegando a este ponto, elevou-se de repente, e deixando de falar para os outros, parecia que falava para si. Todo o coração lhe saiu, dizem, do peito com palavras de uma ternura violenta pela França, e pelo rosto singular, picado de bexigas parecendo as escórias do Vesúvio ou do Etna, começaram a correr-lhe grossas bagas, e essas bagas eram lágrimas. As mulheres não puderam conter-se; choraram a França, em lugar de chorarem os filhos, e soluçando fugiram, tapando a cara com os aventais.”

      

       Ó grande historiador, que vos chamais Michelet, onde estais?

       Em Nervi!

       Ó grande poeta que vos chamais Hugo, onde estais?

       Em Jersey!

 

A véspera do dia 2 de Setembro

       Quando a pátria se acha em perigo, tinha dito Danton, a 28 de Agosto, na Assembléia Nacional, tudo pertence à pátria.

       A 29, às quatro da tarde, ouvia-se tocar a rebate.

       Sabia-se do que se tratava; iam começar as visitas domiciliárias.

       O aspecto de Paris mudou a este rufar do tambor, como se fosse tocado por uma vara mágica.

       De populosa que era tornou-se deserta.

       Fecharam-se as lojas e as ruas foram ocupadas por patrulhas de sessenta homens.

       As barreiras foram guardadas e o rio também.

       As visitas começaram à uma hora da madrugada.

       Os comissários das secções batiam às portas da rua em nome da lei.

       E abriam-lhes as portas da rua.

       Batiam às portas de cada quarto, sempre em nome da lei.

       E abriam-lhes as portas de cada quarto.

       Abriam à força as portas das casas que não estavam habitadas.

       Apanharam duas mil espingardas e prenderam três mil pessoas.

       Tinham precisão de terror e conseguiram fazê-lo.

       Desta medida também nasceu uma coisa em que não haviam pensado, ou talvez tivessem pensado muito.

       As visitas domiciliárias abriram aos pobres as habitações dos ricos; os seccionários armados, que seguiam os magistrados, puderam contemplar atónitos as riquezas dos magníficos palácios, que ou eram habitados pelos donos, ou de que eles estavam ausentes, e isto não os iniciou à pilhagem, mas aumentou neles o ódio aos ricos.

       Foram tão pequenos os roubos, que Beaumarchais, então preso, conta que, apanhando certa mulher uma rosa nos seus magníficos jardins da rua de Santo António, quiseram lançá-la ao rio.

       E é de notar que isto sucedia no momento em que a Comuna acabava de decretar que aqueles que vendessem prata seriam punidos com a pena capital.

       Portanto eis a Assembléia substituída pela Comuna, que decretava a pena de morte.

       Acabava de dar a Chaumette o direito de abrir as prisões e de soltar os presos.

       Arrogava-se o direito de perdoar.

       Finalmente, acabava de ordenar que se afixasse à porta de cada prisão a lista dos presos, que continha.

       Era apelar para o ódio e para a vingança.

       Qualquer podia guardar a porta em que estava encerrado o seu inimigo.

       A Assembléia viu para que abismo a levavam.

       Iam, mau grado seu, molhar as mãos em sangue.

       E então quem?

       A Comuna, sua inimiga!

       A mais pequena coisa podia pois fazer rebentar terrível luta entre os dois poderes.

       Esta causa apareceu em conseqüência de uma nova crueldade da Comuna.

       A 20 de Agosto, dia das visitas domiciliárias, a Comuna, em conseqüência do artigo de um jornal, chamou à barra Girey-Dupré, um dos Girondinos mais ousados, porque era um dos mais moços.

       Girey-Dupré refugiou-se no ministério da guerra, porque não teve tempo para refugiar-se na Assembléia.

       Huguenin, presidente da Comuna, mandou atacar o ministério da guerra para lhe tirar à força o jornalista girondino.

       Ora a Gironda tinha a maioria na Assembléia, e esta, insultada em um dos seus membros, levantou-se altamente indignada.

       Chamou também à barra o presidente Huguenin.

       No dia 30 a Assembléia publicou um decreto, que dissolvia a municipalidade de Paris.

       Um facto, que prova o horror que o roubo ainda causava nessa época, contribuiu para o decreto que a Assembléia acabava de aprovar.

       Um membro da Comuna, ou um indivíduo que se dizia membro dela, tinha conseguido abrir o guarda-móveis e dele tirou uma pequena peça de artilharia, de prata, dádiva feita pela cidade a Luís XIV quando menino.

       Cambon, que tinha sido nomeado guarda dos bens públicos, soube deste roubo e chamou à barra o acusado; o homem não negou, não se desculpou e contentou-se com dizer: que receando que fosse roubado este objecto precioso, julgara que estava mais seguro em sua casa do que na de outro qualquer.

       Esta tirania da Comuna era insuportável, Louvet, o homem das iniciativas corajosas, era o presidente da secção da rua dos Lombardos e fez com que a sua secção declarasse que a Comuna estava incursa no crime de usurpação.

       Vendo-se apoiada, a Assembléia decretou então que o presidente da Comuna, Huguenin, que não queria comparecer à barra fosse a ela arrastado à força, e que dentro de vinte e quatro horas seria nomeado pelas secções de uma nova Comuna.

       O decreto foi promulgado a 30 de Agosto, às cinco horas da tarde.

       Contemos as horas, porque desde as cinco da tarde do dia 30 de Agosto, caminhámos para a carnificina do dia 12 de Setembro, e cada hora faz dar um passo para a deusa ensangüentada, de braços torcidos, de cabelos desgrenhados, chamada Terror.

       Todavia a Assembléia, por um resto de temor da sua formidável inimiga, declarava no acto de a dissolver, que ela bem merecera da pátria, o que não era na verdade muito lógico.

        Ornandum, tollendum! – dizia Cícero a propósito de Octávio.

       A Comuna fez como Octávio, deixou-se coroar, mas não consentiu que a dissolvessem.

       Passadas duas horas depois da publicação do decreto, Tallien, um triste escrivão, gabando-se de ser o homem de Danton, Tallien, secretário da secção das Termas, propôs que se marchasse contra a secção dos Lombardos.

       Ah! Desta vez era decerto a guerra civil; não era o povo contra o rei, os burgueses contra os aristocratas, as choupanas contra os castelos, as casas contra os palácios; era a secção contra secção, chuço contra chuço, cidadão contra cidadão.

       Ao mesmo tempo Marat e Robespierre, o último como membro da Comuna, o primeiro como amador, elevaram a voz.

       Marat pedia que fosse imediatamente aniquilada a Assembléia Nacional.

       Isto não causou admiração; todos estavam costumados a ver-lhe fazer semelhantes moções.

       Mas Robespierre, o denunciante vago e astuto, propôs que se pegasse nas armas, e não só que defendessem, mas que atacassem.

       Era mister que Robespierre sentisse grande força na Comuna para se pronunciar assim!

       Com efeito, a Comuna estava muito forte, porque naquela mesma noite, Tallien, seu secretário, foi à Assembléia com três mil homens armados de chuços.

       “A Comuna – disse ele – e só a Comuna, fez reassumir aos membros da Assembléia o grau de representantes de um povo livre; a Comuna fez publicar um decreto contra os padres conspiradores, e prendeu estes homens com quem ninguém se atrevia a tocar; a Comuna, ajuntou ele finalmente, terá purgado em poucos dias da sua presença o solo da liberdade.”

       Assim foi na noite de 30 e 31 de Agosto que a Comuna proferiu a primeira palavra de carnificina, na presença da mesma Assembléia, que acabava de a dissolver.

       Quem é que pronunciou esta primeira e tremenda palavra?

       Já o sabemos, foi Tallien, o homem que há-de fazer o 9 Thermidor.

       A Assembléia, é preciso fazer-lhe justiça, levantou-se.

       Manuel, o procurador da Comuna, conheceu que se tinham excedido muito; mandou prender Tallien e exigiu que Huguenin fosse dar uma satisfação à Assembléia.

       E todavia Manuel, apesar de mandar prender Tallien, de exigir que Huguenin desse satisfação, sabia muito bem o que ia suceder, porque eis o que fez o pobre pedante, espírito curto, mas coração honrado.

       Tinha na Assembléia um inimigo pessoal.

       Beaumarchais, grande escarnecedor, tinha zombado de Manuel; ora Manuel pensou que se Beaumarchais fosse morto com os mais, poderiam atribuir este assassínio a uma baixa vingança do seu amor próprio.

       Correu à abadia e mandou chamar Beaumarchais.

       Este, vendo-o, quis desculpar-se e dar explicações à sua vítima literária.

       – Não se trata de literatura, nem de jornalismo, nem de crítica; a porta está aberta, escape-se hoje, senão quer ser assassinado amanhã.

       O autor do Fígaro não esperou que lho repetissem.

       Meteu-se pela porta entreaberta e desapareceu.

       Supondo que ele tivesse apupado Callot de Herbois, comediante, em vez de ter criticado Manuel, autor, Beaumarchais era morto.

       Chegou o dia 31 de Agosto, este grande dia, que devia decidir entre a Assembléia e a Comuna.

       Isto é, entre os moderados e os terroristas.

       A Comuna queria conservar-se a todo custo.

       A Assembléia tinha-se demitido em favor de uma nova Assembléia.

       Era naturalmente a Comuna quem devia vencer.

       Demais, o movimento favorecia-a.

       O povo, sem saber aonde queria ir, queria ir a alguma parte.

       Impelido no dia 20 de Junho, lançado mais longe a 10 de Agosto, sentia uma vaga precisão de sangue e de destruição.

       É mister dizer, que Marat de um lado e Hébert do outro, lhe faziam andar a cabeça à roda.

       Só Robespierre, querendo recobrar a sua popularidade muito abalada, aconselhava a paz, apesar da França inteira querer a guerra. Não houve, nem o próprio Robespierre, quem se não fizesse novelista, e pelo absurdo das suas notícias, não ultrapassasse as mais absurdas.

       “Um partido poderoso – tinha ele dito – oferece o trono ao duque de Brunswick.”

       Quais eram neste momento os três partidos poderosos que lutavam?

       A Assembléia, a Comuna e os Jacobinos.

       E rigorosamente a Comuna e os Jacobinos poderiam ser considerados como um só partido.

       Não era nem a Comuna, nem os Jacobinos, Robespierre era membro do clube e da municipalidade e não era capaz de se acusar a si mesmo.

       Esse poderoso partido era portanto a Gironda.

       Já dissemos que Robespierre ultrapassava em absurdos os mais absurdos novelistas.

       Com efeito, que coisa poderá haver mais absurda do que acusar a Gironda, que tinha declarado guerra à Prússia e à Áustria, de oferecer o trono ao general inimigo.

       E quais eram os homens a quem acusavam?

       Os Vergniaud, os Roland, os Clavières, os Servan, os Gensonné, os Gaudet, os Barbaroux, não só conhecidos como bons patriotas, mas também as pessoas mais honestas da França.

       Mas há momentos, em que um homem como Robespierre diz tudo o que lhe vem à boca.

       E o pior é que há momentos em que o povo crê tudo.

       Estava-se a 31 de Agosto.

       O médico, que tivesse entre os seus dedos o pulso da França, teria sentido neste dia aumentarem-lhe a cada momento as pulsações.

       No dia 30, às quatro horas da tarde, a Assembléia tinha dissolvido a Comuna.

       O decreto ordenava que as secções haviam de nomear um novo conselho geral dentro de vinte e quatro horas.

       Por conseqüência, o decreto devia ser executado no dia 31 às quatro horas da tarde.

       Mas as vociferações de Marat, as ameaças de Hébert e as calúnias de Robespierre tornaram a Assembléia tão odiosa, que as secções não se atreveram a votar.

       Tomavam por protesto que o decreto não lhes tinha sido notificado oficialmente.

       A 31 de Agosto, a Assembléia foi informada de que o seu decreto da véspera não tinha sido executado, nem sequer o seria.

       Era mister apelar para a força. Quem sabia se a força seria pela Assembléia?

       A Comuna tinha por si Santerre, pelas relações de seu cunhado Panis; Panis era de mais a mais o fanático de Robespierre, que tinha proposto a Rebecqui e a Barbaroux nomear um ditador, e que lhe tinha dado a entender que era necessário que esse ditador fosse o Incorruptível.

       Santerre eram os bairros; os bairros eram o irresistível poder do Oceano.

       Os bairros tinham arrombado as portas das Tulherias, e muito melhor arrombariam as da Assembléia.

       Demais, a Assembléia temia, se se armasse contra a Comuna, ver-se abandonada não só pelos patriotas extremos, por aqueles que queriam a revolução a todo custo, mas também, o que era pior, ser sustentada contra a sua vontade pelos realistas moderados.

       Neste caso estava completamente perdida.

       Às seis horas foi a Assembléia avisada de que havia grande movimento em redor da Abadia.

       Acabavam de prender um Montmorin.

       O povo julgou que era o ministro que tinha assinado os passaportes, com que Luís XVI tentara fugir.

       Dirigiu-se amotinado à prisão, ameaçando fazer justiça por suas mãos se o Sr. de Montmorin não fosse condenado à morte.

       Custou muito fazer-lhe compreender a razão e atender à verdade.

       Durante toda a noite houve nas ruas de Paris terrível fermentação.

       Conhecia-se que o menor acontecimento seria capaz de no dia seguinte fazer tomar a esta fermentação proporções gigantescas.

       Este acontecimento, que diligenciamos contar com todos os pormenores, por ser um rasgo característico de um herói da nossa história, que há muito perdemos de vista, agitava-se nas prisões do Châtelet.

 

Em que novamente se encontra o Sr. Beausire

       No fim do dia 10 de Agosto tinha sido instituído um tribunal especial para sindicar dos roubos que pudessem ter sido cometidos nas Tulherias.

       O povo como conta Peltier, tinha fuzilado duzentos ou trezentos ladrões, que tinham sido apanhados em flagrante; mas devemos acreditar que a par destes havia outros tantos, ou mais, que tinham ocultado os roubos.

       No número desses honrados industriosos, achava-se o nosso antigo conhecido o Sr. Beausire, antigo oficial de sua majestade.

       As pessoas que conhecem os antecedentes do amante da jovem Oliva, do pai do menino Toussaint, não ficarão admirados de o encontrarem no fim deste grande dia, em que tinham que dar contas, não à nação, mas aos tribunais, da parte que nele haviam tomado.

       Com efeito, o Sr. Beausire havia entrado nas Tulherias envolto com a turbamulta.

       Era um homem de muito bom senso para cometer a loucura de ser o primeiro a entrar num sítio onde se corria perigo, mesmo de roldar com os outros.

       Não eram as opiniões patrióticas do Sr. Beausire que o levavam ao palácio dos reis, nem para ali chorar sobre a queda da realeza nem para aplaudir o triunfo do povo. Não, o Sr. Beausire ia ali como amador; elevado acima dessas fraquezas humanas, que se chamam opiniões, só tinha um fim, era ver se aqueles, que acabavam de perder um trono, não teriam perdido ao mesmo tempo alguma jóia mais portátil e mais fácil de se salvar.

       Entretanto para salvar as aparências, o Sr. Beausire tinha enfiado na cabeça um boné encarnado, tinha-se armado com um enorme sabre, e havia tingido as mãos no sangue do primeiro morto que encontrara, de sorte que este lobo, seguindo o exército conquistador, este abutre, adejando depois do combate sobre o campo de batalha, podia ser tomado por um vencedor.

       Foi com efeito por um vencedor que o tomaram aqueles que o ouviram gritando: Matem os aristocratas! e que o viram barafustando debaixo das camas, abrindo armários, até gavetas de cómodas para ver se estaria escondido nelas algum aristocrata.

       Mas ao mesmo tempo, e para desgraça do Sr. Beausire, achava-se nas Tulherias um homem que não gritava, que não procurava debaixo das camas, que não abria os armários, mas que, tendo entrado no meio do fogo, apesar de não estar armado juntamente com os vencedores, apesar de não ter vencido ninguém, passeava com as mãos atrás das costas, como se faz num jardim público em qualquer noite de festa, frio e tranqüilo, com o seu fato preto muito asseado e contentando-se em elevar de tempos a tempos a voz para dizer:

       – Não esqueçais, cidadãos, que não é digno matar as mulheres, nem tocar nas jóias.

       Enquanto àqueles que se contentavam com matar homens ou lançar móveis pelas janelas, não se julgava com direito de lhes dizer nada.

       Tinha conhecido logo à primeira vista que o Sr. Beausire não era destes.

       Portanto, às nove horas e meia, Pitou, que, como já sabemos, tinha obtido, a título de posto de honra, a guarda do vestíbulo do relógio, viu dirigir-se para ele, descendo a escada, uma espécie de gigante, colossal e lúgubre, que falando-lhe em política, mas como se tivesse recebido a missão de pôr em ordem a desordem e a justiça na vingança, lhe disse:

       – Capitão, não tarda que desça um homem de boné encarnado, sabre em punho e gesticulando muito; prendê-lo-á, mandará que lhe dêem busca pois furtou um estojo de diamantes.

       – Sim, Sr. Maillard – respondeu Pitou levando a mão ao chapéu.

       – Ah! Ah! – disse o antigo porteiro – conhece-me, meu amigo?

       – Julgo que o conheço – respondeu Pitou; – não se chama Maillard? Tomámos juntos a Bastilha.

       – É possível – disse Maillard.

       – Além disso, também estivemos em Versalhes nos dias 5 e 6 de Outubro.

       – Com efeito, lá estive.

       – Parece-me que sim, e a prova é que teve um duelo à porta das Tulherias com um guarda que não o queria deixar entrar.

       – Então – disse Maillard – há-de fazer o que lhe disse, não é assim?

       – Isso e outra qualquer coisa, tudo o que quiser. Ah! O senhor é um patriota!

       – Disso me gabo – respondeu Maillard – e é por essa razão que não devemos permitir que desonrem o nome, a que temos direito! Eis o nosso homem.

       Com efeito, neste momento, o Sr. Beausire descia a escada, agitando a grande catana e gritando: Viva a nação.

       Pitou fez sinal a Tellier, e a Maniquet, os quais, sem afectação se colocaram à porta, e ele foi esperar o Sr. Beausire no último degrau da escada.

       Este tinha percebido as precauções tomadas, e sem dúvida lhe deram cuidado essas disposições, porque parou, e como, se lhe tivesse esquecido alguma coisa, fez um movimento para tornar a subir.

       – Perdão! – disse Pitou – a saída é por aqui.

       – Ah! É por aqui?

       – E como há ordem de evacuar as Tulherias, tenha a bondade de sair.

       Beausire empertigou-se e continuou a descer a escada.

       Chegando ao último degrau, levou a mão ao boné, afectando o garbo militar.

       – Saibamos, camaradas – disse ele – passa-se por aqui ou não se passa?

       – Sim – disse Pitou – mas primeiramente tem que se sujeitar a certa formalidade.

       – Mas para quê, meu belo capitão?

       – É necessário que lhe dêem busca, cidadão.

       – Que me dêem busca!

       – Sim.

       – Dar busca a um patriota! Um vencedor, um homem que acaba de exterminar os aristocratas!

       – É a ordem que recebi – respondeu Pitou – portanto, camarada, embainhe a sua grande espada, que para nada serve agora, pois que os aristocratas estão mortos, e sujeite-se de bom grado, aliás terei de empregar a força.

       – A força – replicou Beausire... – Ah! Falas assim porque tens às tuas ordens vinte homens, porque, se estivéssemos sós...

       – Se estivéssemos sós, cidadão – disse Pitou – eis o que eu faria; agarrava no seu pulso com a mão esquerda, e tirando-lhe a espada com a direita parti-la-ia com o pé, porque não é digna de ser tocada por um homem de bem, a espada que foi empunhada por um ladrão.

       E Pitou, pondo em prática a sua teoria, agarrou no pulso do suposto patriota, tirou-lhe a espada e partiu-lha debaixo do pé, atirando para longe o punho.

       – Um ladrão! – exclamou o homem do boné encarnado; – um ladrão! Eu, o Sr. Beausire!

       – Passem revista a este homem – disse Pitou, entregando Beausire à sua gente.

       – Pois bem, procurem – disse ele, estendendo os braços como uma vítima – procurem.

       Não era precisa a permissão de Beausire para se proceder à busca, mas, com grande admiração de Pitou, e principalmente de Maillard, debalde lhe voltaram as algibeiras, e revolveram até as partes mais secretas; apenas se lhe encontrou um baralho de cartas, cujas figuras mal se percebiam, tão velho era, mas que estava certo, e uma pequeníssima soma de soldos.

       Pitou olhou para Maillard.

       Este encolheu os ombros, como se quisesse dizer:

       – Que quer?

       – Torne a dar busca – disse Pitou, que, como sabemos tinha por principal qualidade a paciência.

       Tornaram a procurar, mas a segunda busca foi tão inútil como a primeira; não se achou mais do que o baralho de cartas e onze soldos.

       O Sr. de Beausire triunfava.

       – E então – disse ele – sempre ficará desonrada uma espada por ter sido tocada pela minha mão?

       – Não senhor – respondeu Pitou – e a prova é que, se não ficar satisfeito com as desculpas que vou dar-lhe, um dos meus soldados lhe emprestará a sua e dar-lhe-ei quantas satisfações exigir.

       – Obrigado, mancebo – disse ele – obrou em conseqüência de uma instrução, e um antigo militar como eu, sabe que as instruções são uma coisa sagrada. Agora previno-o de que a Srª. Beausire deve estar em cuidado pela minha longa ausência, e se me é permitido retirar-me...

       – Sem dúvida – disse Pitou – está livre.

       Beausire cumprimentou com naturalidade e saiu.

       Pitou procurou Maillard, e não o vendo, perguntou:

       – Viram Maillard?

       – Parece-me – disse um dos soldados – que o vi subir a escada.

       – E não se enganou – disse Pitou – porque ele aí vem.

       Com efeito Maillard descia a escada e, graças às suas longas pernas, galgando os degraus dois a dois, depressa chegou abaixo.

       – E então – perguntou ele – achou alguma coisa?

       – Nada – respondeu Pitou.

       – Pois eu fui mais feliz, achei o estojo.

       – Então não tínhamos razão.

       – Pelo contrário, tínhamos razão.

       E Maillard, abrindo o estojo, mostrou um relógio de ouro, a que faltavam todas as pedras preciosas que dantes o ornavam.

       – Mas – disse Pitou – que quer isso dizer?

       – Isto quer dizer que o tratante desconfiou, e que tirando só os diamantes deitou fora o relógio.

       – Mas os diamantes?

       – Decerto achou meio de os esconder.

       – Oh! Que maroto!

       – Há muito que saiu? – perguntou Maillard.

       – Quando o senhor vinha descendo a escada transpunha ele a porta do pátio do meio.

       – E para que lado tomaria?

       – Parece-me que foi para o lado do cais.

       – Adeus, capitão.

       – Então já se retira, Sr. Maillard?

       – Quero ter a consciência tranqüila – disse o antigo porteiro.

       E abrindo como um compasso as compridas pernas, foi na pista de Beausire.

       Pitou ficou muito preocupado pelo que se acabava de passar, e ainda estava sob a influência desta preocupação, quando julgou reconhecer a condessa de Charny, e foi então que se passaram os acontecimentos, que contamos no seu lugar competente, não julgando dever complicá-los com um incidente, que na nossa opinião, devia ocupar outro lugar.

 

O purgante

       Por mais rápida que fosse a marcha de Maillard, não lhe foi possível apanhar Beausire, que tinha por si três circunstâncias favoráveis.

       Em primeiro lugar, dez minutos de avanço, depois a escuridão, e finalmente o grande número de pessoas, que transitavam de um para outro lado, e por entre as quais ele se meteu.

       Mas chegado ao cais das Tulherias o ex-porteiro do Châtelet continuou a caminhar; morava como já dissemos no bairro de Santo António, e tinha de seguir o cais até à Grève.

       No Pont-Neuf e no Pont-au-Change havia grande afluência de povo, porque tinham exposto os cadáveres na praça do palácio da justiça, e todos eram ali chamados pela esperança ou antes pelo receio de acharem ali um pai, um parente, um amigo.

       Maillard foi seguindo este caminho.

       À esquina da praça do palácio da justiça, tinha Maillard um amigo que era farmacêutico, a que naquela época se chamava ainda boticário.

       Maillard entrou na loja do seu amigo, assentou-se e começou a falar nos negócios, no meio dos cirurgiões, que andavam de um para outro lado, reclamando do farmacêutico adesivo, ungüentos, ataduras, finalmente tudo quanto é necessário para o tratamento dos feridos.

       Porque entre os mortos, reconhecia-se de tempos a tempos, por um gemido, algum desgraçado que ainda respirava, o qual era tirado imediatamente de entre os cadáveres, aplicavam-se-lhes todos os socorros e eram depois levados ao Hotel Dieu.

       Havia uma grande azáfama na loja do digno boticário.

       Mas Maillard não incomodava, pois era sempre recebido com prazer; em tais dias um patriota da têmpera de Maillard é muito estimado; por conseqüência, o boticário recebeu Maillard com toda a afabilidade, e ele, assentando-se e encolhendo as pernas, fez-se o mais pequenino que lhe era possível.

       Estava assim havia um quarto de hora quando entrou uma mulher de trinta e sete a trinta e oito anos, a qual sobre o trajo da mais abjecta miséria, conservava certo aspecto da antiga opulência, certo garbo, que traía a sua aristocracia, senão nativa, ao menos estudada.

       Mas o que impressionou Maillard foi a semelhança desta mulher com a rainha.

       A sua admiração foi de tal natureza, que teria dado um grito, se não tivesse sobre si o maior poder.

       A mulher levava pela mão um rapazito que teria sete a oito anos.

       Aproximou-se com certa timidez, procurando ocultar a miséria do fato, o que ainda a tornava mais saliente.

       Durante algum tempo foi-lhe impossível fazer-se ouvir tão grande era a concorrência; finalmente dirigindo-se ao dono do estabelecimento, disse:

       – Senhor, preciso de um purgante para meu marido!

       – Que purgante quer? – perguntou o boticário.

       – Aquele que lhe parecer, contanto que não custe mais de onze soldos.

       Esta quantia era precisamente a soma achada nas algibeiras do Sr. Beausire.

       – Mas por que motivo não há-de o purgante custar mais de onze soldos?

       – Porque é o dinheiro que meu marido pôde dar-me.

       – Faça uma mistura de ruibarbo e de jalapa e dê-a à cidadã; – disse o boticário ao seu primeiro ajudante.

       O primeiro ajudante foi fazer a preparação, enquanto o boticário aviava outras receitas.

       Mas Maillard, que não tinha distracção alguma, dedicou toda a atenção à mulher, que pedia o purgante por onze soldos.

       – Aqui tem, cidadã – disse o primeiro ajudante – aqui está o purgante.

       – Vamos, Toussaint – disse a mulher com voz pausada, que parecia ser-lhe habitual – dá os onze soldos, meu filho.

       – Aqui estão – disse o rapazito.

       E pôs a mão sobre o balcão.

       – Vem, mamã Oliva – disse ele – vem depressa, o papá espera. E puxando pela mãe, repetiu:

       – Vem, mamã Oliva, vem.

       – Perdão, senhora – disse o ajudante – mas aqui só estão nove soldos.

       – Como, só nove soldos! – disse a mulher.

       – Ora conte bem – disse o rapazito.

       A mulher contou e com efeito só havia nove soldos.

       – Que fizeste aos dois soldos, meu menino? – perguntou a mulher.

       – Não sei... Vamo-nos embora, mamã.

       – Tu deves sabê-lo, pois da minha mão recebeste o dinheiro.

       – Perdi-os – respondeu o rapazito; – vamos.

       – Tem um filho lindo, cidadã – disse Maillard – parece ter muita inteligência, mas é preciso tomar cuidado para que não dê em ladrão.

       – Em ladrão, senhor – disse a mulher muito admirada; – mas por quê?

       – Porque não perdeu os dois soldos, pois os tem escondidos dentro do sapato.

       – Eu – disse a criança – não tenho tal.

       A mamã Oliva, apesar dos gritos de Toussaint, descalçou-lhe o pé esquerdo e achou os dois soldos dentro do sapato.

       Deu os dois soldos ao ajudante, e saiu puxando pelo pequeno e ameaçando-o com um castigo que parecia terrível aos circunstantes, senão se lembrassem de quanto devia mitigá-lo a ternura maternal.

       O acontecimento, pouco importante em si mesmo, teria decerto passado despercebido no meio das circunstâncias graves em que se achavam, se a semelhança da mulher com a rainha não tivesse impressionado Maillard.

       Desta precaução resultou dizer ele ao seu amigo boticário quando o viu um momento desocupado:

       – Reparou?

       – Em quê?

       – Na semelhança da cidadã que daqui saiu.

       – Com a rainha? – disse o boticário rindo.

       – Ah! Também notou?

       – Há muito tempo.

       – Como, há muito tempo?

       – Sim, é uma semelhança histórica.

       – Não compreendo.

       – Não está lembrado da célebre história do colar?

       – Como quer que um porteiro do Châtelet esqueça tal história?

       – Então deve lembrar-se de uma certa Nicola Legay, conhecida pela menina Oliva.

       – Oh! Sim; representou para com o cardeal de Rohan o papel de rainha.

       – E que vivia com um tratante, um homem cheio de dívidas, um homem chamado Beausire.

       – Hein? – disse Maillard, pulando como se o tivesse mordido uma serpente.

       – Chamava-se Beausire – afirmou o boticário.

       – E é ao tal Beausire que ela chama seu marido?

       – É sim.

       – E é para ele o purgante que a cidadã levou.

       – O maroto talvez apanhasse alguma indigestão à força de comer e beber.

       – Um purgante! – repetiu Maillard, como quem busca descobrir um segredo e não quer perder o fio das idéias.

       – Sim um purgante – afirmou o boticário.

       – Ah! – disse Maillard, batendo na testa – encontrei o homem.

       – Que homem?

       – O dos onze soldos.

       – Mas quem é o homem dos onze soldos?

       – Ora! É o tal Beausire.

       – E diz que o encontrou?

       – Sim, se souber onde mora.

       – Onde mora sei eu.

       – Bom, então onde é?

       – Na rua da Judiaria, n.º 6.

       – É perto daqui?

       – São dois passos.

       – Muito bem! Já não me admira...

       – O quê?

       – Que o pequeno Toussaint roubasse dois soldos à mãe.

       – Como! Não se admira?

       – Não; é filho do tal Beausire, não é verdade?

       – É o seu retrato vivo.

       – Oh! Filho de gato mata rato; mas, querido amigo – continuou o Sr. Maillard – diga-me com a mão na consciência quanto tempo é preciso para que o purgante comece a fazer efeito?

       – Seriamente, deseja saber?

       – Sim, seriamente.

       – São precisas duas horas.

       – É quanto me basta.

       – Toma tanto interesse pelo Sr. Beausire.

       – Tanto que, receando que ele esteja mal, vou buscar...

       – O quê?

       – Dois enfermeiros. Adeus, querido amigo.

       E saindo da botica do seu amigo com um sorriso nos lábios, o único que jamais desenrugou aquele lúgubre rosto, tomou o caminho das Tulherias.

       Pitou estava ausente.

       Devemos estar lembrados de que ele no jardim seguira atrás de Andréia, que procurava o conde de Charny.

       Mas, na ausência do capitão, Maillard encontrou Maniquet e Tellier, que guardavam a porta.

       Ambos o reconheceram.

       – Ah é o Sr. Maillard? – perguntou Maniquet – então encontrou-o?

       – Não, mas sei onde é a toca.

       – Oh! É uma ventura – disse Tellier – porque sou capaz de apostar que tinha consigo os diamantes.

       – Pode apostar, cidadão – disse Maillard – porque ganha.

       – Muito bem – disse Maniquet – mas como se hão-de apanhar?

       – Com o seu auxílio podemos apanhá-los.

       – Oh! Cidadão Maillard, estamos às suas ordens.

       Maillard fez sinal aos dois oficiais para se aproximarem.

       – Escolham-me entre a sua guarda dois homens de confiança.

       – Como valentes?

       – Como honrados.

       – Oh! Então é escusado escolher, pode ser qualquer deles, disse Désiré.

       Depois voltando-se para a porta, bradou:

       – Dois homens para um serviço!

       Levantaram-se doze homens.

       – Vem cá, Boulanger – disse Maniquet.

       Aproximou-se um dos homens.

       – E tu também, Molicar.

       Perfilou-se o segundo ao lado do primeiro.

       – Quer mais gente, Sr. Maillard? – perguntou Tellier.

       – Bastam-me dois homens, venham meus valentes.

       Os dois homens seguiram Maillard.

       Maillard conduziu-os à rua da Judiaria e parou em frente da porta n.º 6.

       – É aqui – disse ele – subamos.

       Os dois soldados, guiados por Maillard, subiram a escada até ao quarto andar.

       Ali foram guiados pelos gritos de Toussaint, que ainda lastimava a correcção não maternal, mas paternal; porque a mãe batera-lhe; mas Beausire, vista a gravidade do caso, julgou dever intervir ajuntando alguns sopapos às pancadas que Oliva dava brandamente e como que contra vontade, no seu querido filho.

       Maillard quis abrir a porta.

       O fecho estava corrido.

       Bateu.

       – Quem é? – perguntou Oliva.

       – Abra em nome da lei – respondeu Maillard.

       Seguiu-se um diálogo em voz baixa, cujo resultado foi calar-se Toussaint, julgando que por causa dos dois soldos, que tinha roubado, a justiça se incomodava, enquanto Beausire, apesar de pouco tranqüilo, procurava tranqüilizar Oliva.

       Finalmente a Srª. Beausire decidiu-se, e abriu a porta no momento em que Maillard ia bater segunda vez.

       Os três homens entraram, causando grande terror a Oliva e a Toussaint, o qual foi esconder-se atrás de uma velha cadeira de palha.

       Beausire estava deitado; ao pé dele, em cima da mesa, alumiada por um velho candeeiro, estava uma garrafa, que Maillard viu com grande prazer estar despejada.

       Como Beausire tinha tomado o purgante, só faltava esperar pelo efeito dele.

       Pelo caminho Maillard havia explicado a Boulanger e a Molicar do que se tratava, de sorte que, entrando no quarto de Beausire, já sabiam o que deviam fazer.

       Portanto Maillard, depois de os ter postado, um de cada lado da cama de Beausire, disse-lhes:

       – Cidadãos, o Sr. de Beausire é exactamente como a princesa das Mil e uma Noites, que só falava quando a obrigavam, mas que, de cada vez que abria a boca deixava cair dela um diamante. Não deixem pois cair uma só palavra da boca do Sr. Beausire sem saber o que contém. Vou esperá-los à municipalidade; quando ele já não tiver nada que dizer, conduzi-lo-ão a Châtelet, onde o recomendarão da parte do Sr. Maillard, e irão depois ter comigo, levando o que ele tiver dito, à municipalidade.

       Os dois guardas nacionais inclinaram-se em sinal de obediência e colocaram-se à cabeceira da cama do Sr. Beausire.

       O boticário não se havia enganado; passadas duas horas, começou o efeito do purgante.

       O efeito durou mais de uma hora mas foi muito satisfatório.

       Às duas horas da madrugada, viu Maillard chegarem os seus dois homens.

       Traziam, pouco mais ou menos, o valor de cem mil francos em belos diamantes.

       Maillard depositou em seu nome e no dos dois guardas nacionais os diamantes sobre a secretária do procurador da Comuna, o qual lhe entregou um atestado, certificando que os cidadãos Maillard, Molicar e Boulanger tinham bem merecido da pátria.

 

O primeiro de Setembro

       Ora eis o que sucedera em conseqüência do acontecimento trágico-cómico, que acabámos de contar.

       O Sr. Beausire conduzido ao Châtelet tinha sido entregue a um júri encarregado especialmente de sindicar dos roubos cometidos no dia 10 de Agosto e seguintes.

       Não havia meio de negar, o réu fora apanhado em flagrante.

       Portanto, limitou-se a confessar humildemente a sua falta, e a implorar a clemência do tribunal.

       O tribunal mandou informar sobre os precedentes do acusado.

       Como a informação não lhe fosse favorável, foi condenado à exposição e a cinco anos de galés.

       O Sr. de Beausire debalde alegou que fora arrastado a este roubo por sentimentos honrosos, isto é, pela esperança de assegurar um futuro tranqüilo a sua mulher e a seu filho, e pelo desejo de se tornar homem honrado; nada disto foi capaz de comover o tribunal, e como dele não se podia apelar, a sentença devia ser executada no dia imediato ao da sua condenação.

       Ora, a desgraça permitiu que na véspera da execução da sentença, isto é, na véspera do dia em que o Sr. de Beausire devia ser exposto, entrasse para a prisão um dos seus antigos camaradas de trapaça; depois de se reconhecerem, seguiram-se as confidências.

       O recém-chegado dizia que fora preso em conseqüência de uma conspiração perfeitamente organizada que devia rebentar na praça de Grève, ou no palácio.

       Os conjurados deviam reunir-se em grande número, sob pretexto de verem a primeira exposição, que se realizasse naquela época; as exposições eram feitas ou na Grève, ou na praça do palácio; e ao grito de: Viva o rei! Vivam os prussianos! Morra a nação! deviam apoderar-se do palácio da municipalidade, chamar em seu socorro a guarda nacional, cujos dois terços eram realistas, abolirem a Comuna e operarem desta forma a contra-revolução.

       Infelizmente o preso amigo do Sr. Beausire, é que devia dar o sinal, e como os outros conjurados ignoravam a sua prisão haviam de ir à praça no dia da exposição do condenado, e como não ouvissem a ninguém gritar: Viva o rei! Vivam os prussianos! Morra a nação! não podia verificar-se o movimento.

       – E isto é tanto mais para lastimar – ajuntou o preso – porquanto nunca houve movimento mais bem organizado e com tantas probabilidades de ser bem sucedido.

       A prisão do amigo do Sr. Beausire por mais de um motivo era deplorável, pois que do meio do tumulto o condenado podia escapar e fugir.

       O Sr. de Beausire, apesar de não ter opinião, propendia contudo para a realeza; começou pois por deplorar amargamente, pelo rei, e por si, que não se verificasse o movimento.

       De repente bateu na testa.

       Acabava de ser iluminado por uma idéia súbita.

       – Mas – disse ele ao seu camarada – a primeira exposição que deve realizar-se é a minha.

       – Sem dúvida e então?

       – E dizes que não sabem da tua prisão?

       – Decerto que não.

       – Então os conjurados hão-de reunir-se como se não estivesses preso?

       – Sem dúvida.

       – De sorte que se alguém desse o sinal ajustado, a conspiração havia de rebentar?

       – Sim; mas quem queres tu que o dê estando eu preso, e sem poder ter comunicações para fora da prisão?

       – Eu – disse Beausire, no tom de Medeia na tragédia de Corneille.

       – Tu?

       –Sim, eu. Hei-de ser exposto, não é assim? Pois bem, gritarei: Viva el-rei! Vivam os prussianos! Morra a nação! Parece-me que não é muito difícil.

       O companheiro de Beausire ficou maravilhado.

       – Sempre disse – exclamou ele – que eras homem de génio.

       Beausire inclinou-se.

       – E se fizeres o que dizes – continuou o preso realista – não só hás-de ser solto e perdoado, mas também, como hei-de declarar que se deve a ti o bom êxito da conspiração, podes desde já contar com a bela recompensa que hás-de receber.

       – Não é disso que se trata – respondeu Beausire com ar desinteressado.

       – Ora essa, meu amigo! Aconselho-te a que não recuses a recompensa.

       – Se me aconselhas... disse Beausire.

       – Faço mais, convido-te a aceitá-la, e, se tanto for preciso, até o ordeno – ajuntou majestosamente o realista.

       – Pois aceitarei – disse Beausire.

       – Está bem – disse o conspirador – amanhã havemos de almoçar juntos, o director da prisão não há-de recusar este favor a dois amigos, e havemos de beber uma garrafa de vinho pelo bom êxito da conspiração.

       Beausire ainda tinha algumas dúvidas sobre a complacência do director da prisão, relativamente ao almoço do dia seguinte; mas almoçasse ou não com o seu amigo, estava decidido a cumprir a promessa que lhe tinha feito.

       Com grande satisfação sua foi-lhes dada a licença para almoçarem juntos.

       Foi servido o almoço aos dois amigos; mas não se limitaram a despejar só uma garrafa, veio segunda, terceira e quarta.

       À quarta já o Sr. Beausire estava um realista furioso. Felizmente foram buscá-lo para o conduzirem à praça de Grève antes que encetasse a quinta.

       Subiu ao carro, como se fosse a um carro triunfante, olhando desdenhosamente para essa multidão, a que ia causar terrível surpresa.

       Na esquina da ponte de Nossa Senhora, era esperado na passagem por uma mulher e uma criança.

       O Sr. Beausire conheceu a pobre Oliva lavada em lágrimas e o jovem Toussaint, o qual vendo seu pai entre os soldados gritou:

       – É bem feito, para que me bateu ele?

       Beausire enviou-lhe um sorriso de protecção, a que certamente teria juntado um gesto de mais majestade, se não tivesse as mãos presas atrás das costas.

       Sabia-se que o condenado expiava um roubo feito nas Tulherias, e como eram sabidas as circunstâncias em que fora feito e descoberto, ninguém sentia por ele compaixão.

       Portanto, quando o carro parou ao pé do pelourinho, a guarda teve muito trabalho para conter o povo.

       Beausire olhou para todo este movimento, para este tumulto, para esta multidão com um certo ar, que queria dizer:

       – Daqui a pouco vereis.

       Quando ele apareceu sobre o pelourinho, retumbou um hurra geral; todavia quando o carrasco despiu a manga do condenado, lhe pôs à mostra o ombro e se abaixou para tirar da fornalha o ferro em brasa, sucedeu o que sempre sucede, isto é, todos se calaram diante da suprema majestade da justiça.

       Beausire aproveitou a ocasião, e reunindo todas as suas forças, com voz sonora e retumbante, exclamou:

       – Viva o rei! Vivam os prussianos! Morra a nação!

       Por maior que fosse o tumulto, que o Sr. Beausire esperasse, o resultado excedeu muito as suas esperanças, e não foi um grito, foi um bramido que lhe respondeu.

       Toda a multidão deu um rugido e precipitou-se sobre o pelourinho.

       Desta vez a guarda não teve força para proteger o Sr. de Beausire, as fileiras foram rotas, o cadafalso invadido, o carrasco lançado abaixo do estrado, o condenado arrancado, não se sabe como, do poste e arremessado no devorador formigueiro que se chama multidão.

       Ia ser morto, esmagado, feito em pedaços, quando felizmente do alto da escada do palácio da municipalidade onde presidia à execução, se precipitou um homem cingido com uma banda.

       Era o procurador da Comuna, era Manuel.

       Neste homem havia um grande sentimento de humanidade, que algumas vezes era obrigado a ocultar, mas que se lhe escapava em circunstâncias como esta.

       Com grande custo chegou onde estava Beausire, estendeu a mão sobre ele, e com voz forte, disse:

       – Em nome da lei, reclamo este homem!

       O povo hesitou em obedecer; Manuel desenrolou a sua banda, e fê-la flutuar por cima da multidão bradando:

       – A mim, todos os bons cidadãos!1 Correram vinte homens, que se agruparam em volta dele.

       Beausire foi tirado, meio morto, das mãos do povo.

       Manuel fê-lo transportar para o palácio da municipalidade, mas dentro em pouco foi o palácio ameaçado seriamente, tão grande era o desespero do povo.

       Manuel apareceu à janela e disse:

       – Este homem é culpado, é certo, e de um crime para que não há perdão. Nomeai entre vós um júri, o qual se reunirá numa das salas do palácio da câmara e decidirá da sorte do criminoso. Seja qual for a sentença será executada; haja porém uma sentença.

       Não é curioso que na véspera do dia da mortandade das prisões, um dos homens acusados dessa mortandade use com perigo da vida tal linguagem?

       Há anomalias em política; explique-as quem puder.

       Este compartimento tranqüilizou a multidão; passado um quarto de hora, anunciaram a Manuel que estava escolhido o júri popular.

       O júri constava de vinte e um membros.

       Os vinte e um membros apareceram às janelas.

       – Estes homens são vossos delegados? – perguntou Manuel ao populacho.

       A resposta foi baterem palmas.

       – Está bem – disse Manuel – como há juízes far-se-á justiça.

       E como tinha prometido, instalou o júri numa das salas do palácio.

       O Sr. de Beausire, mais morto do que vivo, compareceu perante o tribunal improvisado.

       Procurou defender-se, mas o seu segundo crime estava tão bem provado como o primeiro, com a diferença de que, na opinião do povo, era mais grave.

       Gritar “viva o rei!” quando o rei, reconhecido por traidor, estava preso no Templo.

       Bradar “vivam os prussianos!” quando eles acabavam de tomar Longwy e estavam, quando muito, a sessenta léguas da capital.

       Gritar “morra a nação!” quando esta se estorcia no seu leito de morte; era isto um crime inaudito, que merecia supremo castigo.

       Portanto, o júri decidiu que o culpado não só seria condenado à morte, mas que para ligar a esta morte a vergonha que a lei tinha separado dela substituindo a guilhotina à forca, o Sr. Beausire, por revogação da lei, seria enforcado.

       E enforcado na mesma praça onde perpetrara o crime.

       Por conseqüência, o carrasco recebeu ordem de levantar a forca no mesmo cadafalso onde estava o pelourinho.

       A vista deste trabalho, e a certeza de que o criminoso não podia escapar, acabou de acalmar o povo.

       Eis pois um acontecimento que, como dissemos no fim de um dos capítulos precedentes, preocupava a Assembléia.

       O dia que se seguia era um domingo, circunstância agravante, e a Assembléia conheceu que tudo caminhava para a mortandade: a Comuna queria manter-se a todo preço, e a carnificina, isto é, o terror era um dos meios mais seguros para o conseguir.

       A Assembléia recuou diante da resolução novamente tomada.

       Publicou o seu decreto.

       Levantou-se então um dos membros da Assembléia e disse:

       – Não basta publicardes o vosso decreto; há dois ao promulgá-lo, dissestes que a Comuna bem merecera da pátria; o elogio é um vago, porque pode vir um dia em que digais que a Comuna bem mereceu da pátria, mas que todavia tal ou tal dos membros da Comuna não é compreendido no elogio, então será perseguido tal ou tal membro; é pois preciso dizer: não a Comuna, mas os representantes da Comuna.

       A Assembléia votou que os representantes da Comuna tinham bem merecido da pátria.

       Ao mesmo tempo que Robespierre emitia este voto, fazia à Comuna um longo e enérgico discurso, no qual dizia que, tendo a Assembléia, por infames manobras, feito perder ao conselho geral a segurança pública, o conselho geral devia retirar-se e empregar o único meio, que lhe restava para salvar o poder, isto é, entregar o poder ao povo.

       Robespierre era ambíguo e vago, mas terrível.

        Entregar o poder ao povo!

       Que significava esta frase?

       Era aceitar o decreto da Assembléia sujeitando-se à reeleição. Não era provável.

       Era depor o poder legal, e depondo-o declarar por esta mesma deposição que a Comuna, depois de ter feito o 10 de Agosto, se considerava impotente perante a continuação da grande obra revolucionária e encarregava o povo de a concluir?

       Ora, o povo sem freio, encarregado, com o coração cheio de vingança, de continuar a obra do 10 de Agosto, era a mortandade dos homens, que tinham combatido contra ele no dia 10 de Agosto, e que depois deste dia estavam encerrados nas diversas prisões de Paris.

       Eis o estado de Paris no 1.º de Setembro à noite, isto é, o estado em que se acha a atmosfera, quando sobre ela pesa uma tempestade, e quando se sentem, sobre todas as cabeças, os relâmpagos, e o raio.

 

Durante a noite de 1 para 2 de Setembro

       No 1.º de Setembro, às nove horas da noite, o oficioso de Gilberto – o título de criado tinha sido abolido como anti-republicano – o oficioso de Gilberto entrou no quarto dizendo:

       – Cidadão Gilberto, a sege está esperando à porta.

       Gilberto pôs um chapéu de abas largas, abotoou o casaco e dispôs-se para sair.

       Mas à porta estava um homem embuçado num capote e também com um chapéu de abas largas.

       Gilberto recuou um passo; na escuridão e em tais circunstâncias, todos são inimigos.

       Porém uma voz benévola pronunciou estas palavras:

       – Sou eu, Gilberto.

       – Cagliostro! – exclamou o doutor.

       – Bem; já se esqueceu de que não me chamo Cagliostro, mas sim o barão Zanone; é verdade que para o senhor não mudo de nome, nem de coração, querido Gilberto, e serei sempre pelo menos assim o espero, José Bálsamo.

       – Oh! Sim – respondeu Gilberto – e a prova é que ia a sua casa.

       – Disso desconfiava eu – disse Cagliostro – e é a razão por que venho aqui; deve pensar que, em ocasiões como a actual, não faço o que acaba de fazer o Sr. de Robespierre, não parto para o campo.

       – Pois eu receava não o encontrar, e dou-me por muito feliz com a sua presença; entre.

       – Aqui estou; agora diga o que pretende – respondeu Cagliostro, seguindo o doutor à casa mais retirada.

       – Assente-se, mestre.

       Cagliostro assentou-se.

       – Sabe o que se passa? – perguntou Gilberto.

       – Quer dizer, o que vai passar-se – respondeu Cagliostro – porque na ocasião estão todos sossegados.

       – Tem razão, mas está-se dispondo o quer que seja de terrível, não é assim?

       – Terrível, diz o senhor, mas o que é terrível, torna-se às vezes necessário.

       – Mestre – disse Gilberto – quando pronuncia tais palavras com o seu incrível sangue frio, realmente faz-me estremecer.

       – Que quer, Gilberto? Não sou mais de que um eco, já lho disse, eco da fatalidade.

       Gilberto baixou a cabeça.

       – Está lembrado, Gilberto, do que lhe disse no dia em que o vi em Bellevue, a 5 de Outubro, e quando lhe predisse a morte do marquês de Favras?

       Gilberto estremeceu.

       Ele, tão forte na presença dos homens e dos acontecimentos, sentia-se fraco como uma criança perante aquele misterioso personagem.

       – Já lhe disse – continuou Cagliostro – que o rei, se tivesse no seu pobre cérebro um grão de espírito de conservação, fugiria.

       – Pois bem – disse Gilberto – ele fugiu.

       – Ah! Sim; mas eu tinha-o dito enquanto ainda era tempo, e quando ele o quis fazer, como sabe, já não o era. Também sabe que ajuntei que se o rei, a rainha, os nobres resistissem, nós faríamos uma revolução.

       – Oh! – disse Gilberto com um suspiro – desta vez ainda tem razão, porque a revolução fez-se.

       – Não foi completa – replicou Cagliostro – mas fez-se meu caro Gilberto; também deve estar lembrado de que lhe falei num instrumento inventado por um amigo meu, o doutor Guillotin. Não passou pela praça do Carroussel? Lá está defronte das Tulherias esse instrumento, o mesmo que fiz ver à rainha no castelo de Taverney, numa garrafa; deve estar lembrado, pois estava lá um rapazote, mas já era amante da menina Nicola; a propósito, o marido de Nicola, o amável Sr. Beausire, acaba de ser condenado à forca, e lá está ela erguida defronte do palácio da municipalidade.

       – Sim – disse Gilberto – a guilhotina começou a funcionar, mas ainda não estão satisfeitos com a sua expedição, pois lhe ajuntam espadas, lanças e punhais.

       – Ouça-me – disse Cagliostro – há-de concordar numa coisa, e é que temos de tratar com teimosos e cruéis; deram-se aos aristocratas toda a sorte de advertências, que não serviram para nada: tomou-se a Bastilha, de nada serviu; fez-se o 20 de Junho, de nada serviu; fez-se o dia 10 de Agosto, de nada serviu; meteu-se o rei na Abadia, na Force, em Bicêtre, mas isto de nada serviu; o rei no Templo alegra-se com a tomada de Longwy pelos prussianos! Os aristocratas gritam na Abadia: “viva o rei! vivam os prussianos!” bebem vinho de Champanhe nas barbas do pobre povo, que bebe água; comem iguarias nas barbas do desgraçado povo, que não tem pão.

       Até o próprio rei da Prússia, a quem se escreveu dizendo-lhe:

       “Tomai conta, se passais de Longwy, um passo de mais no coração da França será a sentença de morte do rei.”

       Responde:

       “Por mais horrorosa que seja a situação da família real, os exércitos não devem retroceder; de toda a minha alma desejo chegar a tempo para salvar o rei de França, mas primeiro do que tudo é meu dever salvar a Europa.”

       E marcha sobre Verdum... É preciso acabar com isto.

       – Acabar com quê?! – exclamou Gilberto.

       – Com o rei, com a rainha e com os aristocratas.

       – Então quer assassinar o rei, a rainha e os aristocratas?

       – Oh! Não, isso seria um grande crime. É preciso julgá-los, condená-los, executá-los publicamente, como se fez a Carlos I; mas o que importa é desembaraçarmo-nos deles, o mais depressa possível.

       – E quem decidiu isso? Vejamos – exclamou Gilberto – foi a consciência, foi a honradez, foi a inteligência deste povo, em que fala? Quando tinha Mirabeau como génio, Lafayette como lealdade, Vergniaud como justiça, se tivesse vindo dizer-me, em nome dos seus homens, é preciso matar, eu teria estremecido, como hoje estremeço, mas teria duvidado. Hoje porém em nome de quem vem dizer-me isso? Em nome de um Hébert, negociante falido, de um Collot-d’Herbois, comediante apupado, de um Marat, espírito doente, a quem o médico manda sangrar todas as vezes que pede cinqüenta mil, cem mil, duzentas mil cabeças? Deixe-me, caro mestre, desconfiar desses homens medíocres, que precisam de crises rápidas e patrióticas. Esses maus taumaturgos, esses retóricos impotentes, que só se regozijam com as destruições rápidas, que se julgam mágicos hábeis, desfizeram a obra de Deus; só acham belo, grande, sublime, fazer retroceder o grande rio da vida, que alimenta o mundo, exterminado com uma palavra, com um gesto, fazendo desaparecer com um sopro o obstáculo vivo, que a natureza tinha gasto trinta, quarenta e cinqüenta anos a criar. Esses homens, querido mestre, são miseráveis, e o senhor não pertence a tal número.

       – Meu caro Gilberto – disse Cagliostro – está enganado, chama a tais indivíduos homens; faz-lhe muita honra, não são mais do que instrumentos.

       – Instrumentos de destruição.

       – Sim, mas em benefício de uma idéia, Gilberto, é a emancipação dos povos, é a liberdade universal, é a república, não a francesa, Deus me defenda de semelhante idéia, que é egoísta, mas a fraternidade do mundo. Não, esses homens não têm génio, mas têm o que é mais inexorável, o que é mais irresistível do que tudo isto, têm o instinto.

       – O instinto de Átila.

       – Precisamente, o instinto de Átila, que se intitulava o Martelo de Deus, e que vinha com o sangue bárbaro dos Hunos, dos Alanos e dos Suevos reformar a civilização humana, corrompida por quatrocentos anos de reinado dos Neros, dos Vespazianos e dos Heliogabalos.

       – Mas, finalmente – disse Gilberto – resumamos, em lugar de estar a falar em generalidades; onde o conduzirá a matança?

       – Oh! A uma coisa muito simples; a comprometer a Assembléia, a Comuna, o povo, todo Paris. É preciso manchar Paris de sangue, para que Paris, o cérebro da França, o pensamento da Europa, a alma do mundo, para que Paris, conhecendo que não há para ela perdão possível, se levante como um só homem, e expulse o inimigo do terreno sagrado da pátria.

       – Mas o senhor, que não é francês, o que tem com isso?! – exclamou Gilberto.

       Cagliostro sorriu.

       – É possível que o senhor, inteligência superior, uma organização potente, diga a um homem: Não te intrometas nos negócios da França, porque não és francês? Acaso os negócios da França, não são negócios de todo o mundo? Acaso a França pobre egoísta trabalha só para si? Acaso Jesus morreu só para os Judeus? Com que direito iria dizer a um apóstolo: “Tu não és Nazareno?” Ouça, Gilberto; discuti todas essas coisas com um génio muito mais forte do que o meu, do que o seu, com um homem ou um demónio chamado Althotas, num dia, em que ele calculava o sangue que era preciso derramar primeiro que o Sol se levantasse sobre a liberdade do mundo. Pois os raciocínios daquele homem não abalaram a minha convicção. Marchei, marcho, hei-de marchar, derrubando tudo o que encontrar diante de mim, gritando com voz sossegada, com olhar sereno: “Ai dos obstáculos, sou o porvir!”

       Vejo porém que tem que pedir-me o perdão de alguém, não é assim? Concedo-lhe o perdão que requer: diga-me o nome daquele ou daquela que pretende salvar.

       – Quero salvar uma mulher, que nem eu nem o senhor podemos deixar morrer.

       – Quer salvar a condessa de Charny?

       – Quero salvar a mãe de Sebastião.

       – Bem sabe que é Danton quem pode abrir e fechar as prisões.

       – Sim, mas também sei que pode dizer-lhe abra ou feche tal porta.

       Cagliostro levantou-se, chegou à secretária e traçou sobre um bocado de papel uma espécie de sinal cabalístico, e apresentando o papel a Gilberto, disse:

       – Aqui tem, meu caro, vá procurar Danton e peça-lhe o que quiser.

       Gilberto levantou-se.

       – Mas depois – perguntou Cagliostro – que tenciona fazer?

       – Depois do quê?

       – Depois dos dias que vão decorrer, quando chegar a vez do rei?

       – Tenciono fazer-me nomear, se puder, da nova convenção, e opor-me com todas as minhas forças à morte do rei.

       – Está bem – replicou Cagliostro – obra segundo os ditames da sua consciência; mas prometa-me uma coisa.

       – Qual é?

       – Já lá vai o tempo em que prometia sem condições.

       – Nesse tempo não vinha dizer-me que um povo se curava com o assassínio, uma nação com a carnificina.

       – Há-de prometer-me que depois de julgado e executado o rei, seguirá o conselho que eu lhe der.

       Gilberto estendeu-lhe a mão.

       – Todo o conselho que vier do senhor será precioso para mim.

       – E será seguido? –perguntou Cagliostro.

       – Juro que sim, se não for contra a minha consciência.

       – Gilberto é injusto – disse Cagliostro – tenho-lhe oferecido muito, e nunca exigi nada.

       – É verdade, e agora mesmo acaba de me conceder uma vida, que é mais preciosa do que a minha.

       – Pois vá, e que o génio da França, da qual é um dos mais nobres filhos, o guie.

       Cagliostro saiu; Gilberto seguiu-o.

       Gilberto meteu-se na sege, que estava à porta, e dirigiu-se ao ministério da justiça.

       Era ali onde estava Danton.

       Danton, como ministro da justiça, tinha pretexto especioso para não aparecer na Comuna.

       Demais, que precisão tinha de aparecer? Marat e Robespierre estavam lá.

       Robespierre não havia de consentir que Marat lhe passasse adiante: presos à matança, marchavam com o mesmo passo.

       Demais, vigiava-os Tallien o homem de Danton.

       Este esperava duas coisas:

       Supondo que se decidisse pela Comuna, um triunvirato com Marat e Robespierre;

       Supondo que a Assembléia se decidisse por ele, a ditadura como ministro da justiça.

       Não queria Robespierre e Marat.

       A Assembléia porém não o queria a ele.

       Quando o doutor Gilberto lhe foi anunciado, estava com ele a mulher, ou antes, digamos melhor, a mulher estava aos pés dele.

       A carnificina já era tão sabida, que a mulher estava aos pés de Danton suplicando-lhe que não a permitisse, que se opusesse.

       E quando se verificou a carnificina, a pobre senhora morreu de dor.

       Danton não lhe podia fazer compreender uma coisa, que todavia era bem clara.

       Era que ele nada podia contra as decisões da Comuna, sem uma autoridade concedida pela Assembléia.

       Com a Assembléia havia probabilidade de vitória.

       Sem a Assembléia era certa a derrota.

       – Morre! Morre! Se tanto é preciso – gritava a pobre senhora – mas poupa a carnificina.

       – Um homem como eu – dizia Danton – não morre inutilmente. Quero morrer mas quando a minha morte for útil à pátria.

       Anunciaram o Dr. Gilberto.

       – Não sairei daqui – disse a Srª. Danton – sem me prometeres que hás-de fazer todo o possível para impedir este abominável crime.

       – Então fica – disse Danton.

       A Srª. Danton deu três passos para trás, e deixou o marido ir ao encontro de Gilberto.

       Danton conhecia de vista e de reputação o ilustre médico.

       Foi ao encontro dele.

       – Ah! Doutor – disse Danton – chega a propósito, e se eu soubesse a sua morada, tê-lo-ia mandado chamar.

       O doutor cumprimentou Danton, e vendo uma senhora lavada em lágrimas, inclinou-se.

       – Aqui tem – disse o ministro – aqui tem minha mulher, a mulher do cidadão Danton, do ministro da justiça, que julga que sou assaz forte, eu só, para impedir os srs. Marat e o Sr. Robespierre, incitados pela Comuna, de fazerem o que quiserem, quero dizer, para impedir que eles matem, exterminem e destruam.

       Gilberto olhou para a Srª. Danton.

       Ela chorava com as mãos postas.

       – Senhora – disse Gilberto – permite-me que beije as suas mãos misericordiosas?

       – Bom – disse Danton – tens um reforço no doutor, Madalena.

       – Oh! Diga, senhor – exclamou a pobre mulher – que se ele permite um tão miserável crime, lança uma nódoa de sangue em toda a sua vida.

       – E se fosse só isso – disse Gilberto – se essa nódoa ficasse só na fronte de um homem, e que julgando que essa nódoa útil ao seu país, necessária à França, esse homem se imolasse, lançando a honra no abismo, como Décio lançou nele o corpo, não seria nada; o que importa em acontecimentos, como os actuais, a vida, a reputação, a honra de um cidadão? É porém uma mancha na fronte da França.

       – Cidadão – disse Danton – quando o Vesúvio trasborda, diga-me se há uma mão assaz potente para fazer recuar o Oceano?

       – Quando um homem se chama Danton, não se pergunta onde está tal homem, opera.

       – Oh! – disse Danton – é um insensato, e vou dizer-lhe aquilo que nunca confessaria a mim mesmo. Sim, tenho a vontade, tenho o génio! Sim, se a Assembléia quisesse, teria a força; sabe porém o que vai suceder? O que sucedeu a Mirabeau, o seu génio não pôde triunfar da sua reputação.

       Não sou o fanático Marat para inspirar terror à Assembléia, não sou o incorruptível Robespierre para lhe inspirar confiança; a Assembléia há-de negar-me os meios de salvar o estado; sofrerei a pena da minha má reputação, hão-de dizer em voz baixa que sou um homem sem moral, ao qual se não pôde dar nem por três dias um poder absoluto, inteiro, arbitrário; hão-de nomear alguma comissão de pessoas honradas, e durante este tempo começará a matança, e, como diz, o sangue de um milhar de culpados, o crime de trezentos ou quatrocentos bêbados, há-de correr sobre as cenas da revolução uma cortina vermelha, que há-de esconder as suas sublimes virtudes. Pois não – ajuntou Danton com um gesto magnífico – não há-de suceder assim. Serei eu o acusado e afastarei da França a maldição, que só pesará sobre a minha cabeça.

       – E eu? E teus filhos? – exclamou no auge do desespero a desgraçada senhora.

       – Tu – disse Danton – tu hás-de morrer, já o disseste, e não poderás ser acusada como minha cúmplice; enquanto a meus filhos, se chegarem a ser homens e se tiverem o coração do pai, usarão o meu nome com a cabeça altiva; mas se forem fracos e me renegarem, tanto melhor; os fracos não são da minha raça, e nesse caso sou eu que desde já os renego.

       – Mas ao menos – exclamou Gilberto – peça a tutoridade à Assembléia.

       – Julga que estive esperando pelo seu conselho? Mandei chamar Thuriot e Tallien, Srª. Danton, veja se já vieram e mande entrar Thuriot.

       A Srª. Danton saiu apressada.

       – Vou tentar fortuna diante do Sr. Gilberto – disse Danton – será testemunha ante a posteridade de que ao menos tentei.

       Neste momento tornou a abrir-se a porta.

       – Aqui está o cidadão Thuriot – disse a Srª. Danton.

       – Vem cá – disse Danton, estendendo a larga mão àquele que representava a seu lado o papel que o ajudante de campo desempenha ao lado do general. Há dias disseste na tribuna uma coisa magnífica. A revolução francesa não é só para nós, é para todo o mundo, e devemos dar conta dela a toda a humanidade. Pois então vamos tentar um último esforço para salvar esta revolução e para a conservar pura.

       – Fale – disse Thuriot.

       – Amanhã, quando se abrir a sessão, sei o que ali hás-de pedir.

       “Que seja elevado a trezentos o número de membros do conselho geral da Comuna, de maneira que, mantendo os eleitos do dia 10 de Agosto, possam os antigos ser assinados pelos modernos, e constituamos sobre uma base firme a representação de Paris, engrandecendo a Comuna, mas neutralizando ao mesmo tempo o seu poder. Se não passar esta proposta, se não puderes fazer compreender o meu pensamento, então entende-te com Lacroix, dize-lhe que entre francamente na questão, que proponha a pena de morte para todos aqueles que, directa ou indirectamente, recusarem executar ou se opuserem por qualquer forma às ordens dadas e às medidas tomadas pelo poder executivo; se a proposta passar, da ditadura, o poder executivo sou eu, reclamo-o, e se não quiserem dar-mo, tomo-o à força.”

       – Depois o que fará? – perguntou Gilberto.

       – Depois – respondeu Danton – pego numa bandeira, e em lugar do ensangüentado, o hediondo demónio da matança, que mando para as suas trevas, invoco o génio nobre e sereno das batalhas, que bate sem medo nem cólera, que encara em paz a morte; pergunto a todos esses bandos se é para assassinar homens desarmados que se reuniram; declaro infame todo aquele que ameaçar as prisões; talvez que alguns aprovem a matança, mas os assassinos são poucos: aproveito o entusiasmo que reina em Paris, envolvo o pequeno número dos assassinos no turbilhão dos voluntários, verdadeiros soldados, que só esperam uma ordem para partir, e levo-os para a fronteira, isto é, contra o inimigo.

       – Faça isso – disse Gilberto – e fará uma coisa grande, sublime, magnífica.

       – Oh! Meu Deus – disse Danton com indiferença, e encolhendo os ombros – não há nada mais fácil; ajudem-me e verão.

       A Srª. Danton beijou as mãos do marido.

       – Oh! Hão-de ajudar – dizia a virtuosa senhora – quem não será da tua opinião ouvindo-te falar assim?

       – Sim – respondeu Danton – infelizmente porém não posso falar assim, porque se me ouvissem, seria por mim que começaria a matança.

       – Pois bem – disse vivamente a Srª. Danton – melhor é morrer desse modo.

       – Falas mesmo como mulher. Morrendo eu o que seria da revolução entre aquele louco sanguinário chamado Marat, e o falso utopista que se chama Robespierre? Não, não devo, não quero morrer ainda, porque devo impedir a matança, e se o não puder conseguir, quero afastar da França esta nódoa e tomá-la sobre mim. Chama Tallien.

       Este entrou.

       – Tallien – disse-lhe Danton – pode ser que a Comuna me escreva amanhã convidando-me a ir à municipalidade; como é secretário da Comuna, arranje as coisas de maneira que eu possa provar que não recebi a carta de convite.

       – Diabo – disse Tallien – como hei-de arranjar isso?

       – Não sei. Disse-lhe o que desejo e o que quero; pertence pois ao senhor arranjar os meios. Venha, Sr. Gilberto, visto ter alguma coisa que me pedir.

       E abrindo a porta de um pequeno gabinete fez entrar Gilberto e seguiu-o.

       – Vejamos, doutor – perguntou Danton – em que lhe posso ser útil?

       Gilberto tirou da algibeira o papel, que lhe entregara Cagliostro, e apresentou-o a Danton.

       – Ah! Vem recomendado por ele; em que lhe posso ser útil? Que deseja?

       – A soltura de uma senhora, que está presa na Abadia.

       – Como se chama?

       – A condessa de Charny.

       Danton pegou num pedaço de papel e escreveu a ordem de soltura.

       – Aqui tem – disse ele – desejaria poder salvar todos os infelizes um por um.

       Gilberto inclinou-se.

       – Tenho o que desejava – disse ele.

       – Vá, Sr. Gilberto, se alguma vez carecer de mim, venha procurar-me imediatamente; sempre me julgarei feliz quando o obsequiar.

       Depois, empurrando-o brandamente para fora do gabinete, murmurou:

       – Ah! Se ao menos tivesse por vinte e quatro horas metade da reputação de homem honrado!

       E fechou a porta sobre Gilberto, dando um suspiro e limpando o suor, que lhe corria da fronte.

       Munido do precioso papel, que lhe restituía a vida de Andréia, Gilberto correu à Abadia.

       Apesar de já ser meia-noite, ainda alguns grupos estacionavam ao pé da prisão.

       Apresentou a ordem ao director.

       A ordem dizia que pusesse imediatamente em liberdade a pessoa que Gilberto designasse.

       O médico designou a condessa de Charny, e o director deu ordem a um chaveiro para que conduzisse o cidadão Gilberto ao quarto da presa.

       Gilberto seguiu o chaveiro, subiu atrás dele três lanços de escada e entrou num quarto alumiado por uma lamparina.

       Uma senhora, vestida de luto, pálida como o mármore, estava assentada ao pé da mesa, lia um pequeno livro de encadernação de chagrin, ornado com uma cruz.

       Ao lado dela ardia na chaminé um resto de fogo.

       Apesar do ruído que a porta fez ao abrir, não levantou a cabeça; apesar da bulha que Gilberto fez aproximando-se, não levantou os olhos.

       Parecia absorvida pela leitura, ou antes pelos pensamentos, porque Gilberto esteve diante dela dois ou três minutos sem lhe ver voltar uma página.

       O chaveiro retirara-se, puxando a porta para si.

       – Senhora condessa – disse Gilberto passado um instante.

       Andréia levantou os olhos, olhou por uns momentos sem ver, pois o véu do pensamento interceptava-lhe a pessoa que tinha diante de si; todavia foi-se esclarecendo gradualmente.

       – Ah! É o Sr. Gilberto – disse Andréia – que me quer?

       – Minha senhora, correm sinistros boatos a respeito das prisões.

       – Bem sei – disse Andréia – querem assassinar-nos; mas bem sabe, Sr. Gilberto, que estou pronta para morrer.

       Gilberto inclinou-se.

       – Venho buscá-la, minha senhora.

       – Vem buscar-me? – repetiu Andréia admirada: para me conduzir aonde?

       – Aonde quiser, minha senhora; está livre.

       E apresentou-lhe em seguida a ordem de soltura assinada por Danton.

       Leu-a, mas em vez de a entregar ao doutor conservou-a na mão.

       – Devia desconfiar disto, doutor – disse ela tentando sorrir.

       – De quê, minha senhora?

       – De que vinha para me impedir que eu morra.

       – Minha senhora, há no mundo uma existência mais preciosa para mim do que nunca foi a de meu pai, ou de minha mãe; é a sua.

       – E é essa a razão por que já faltou uma vez à sua palavra?

       – Não faltei à minha palavra, pois lhe enviei o veneno.

       – Por meu filho.

       – Não lhe tinha dito por quem o enviaria.

       – De sorte que se lembrou de mim, Sr. Gilberto, e foi por minha causa que entrou no covil do leão e se muniu com um talismã, que abre as portas das prisões.

       – Já lhe disse – minha senhora – que enquanto eu viver, hei-de evitar que se exponha à morte.

        – Oh! Contudo, desta vez – disse Andréia com um sorriso mais profundo do que o primeiro – desta vez tenho a certeza de que vou morrer.

       – Tentarei tudo para a salvar.

       Andréia, sem responder, rasgou em quatro a ordem de soltura e lançou-a no lume.

       – Experimente – disse ela.

       Gilberto deu um grito.

       – Sr. Gilberto – disse ela – renunciei à idéia do suicídio, mas não renunciei à da morte.

       – Oh! Senhora!... – exclamou Gilberto.

       – Senhor, decididamente quero morrer.

       Gilberto deixou escapar um gemido.

       – Tudo o que lhe exijo, Sr. Gilberto, é que procure o meu corpo e que o salve dos ultrajes, a que não escapou enquanto vivo. O Sr. de Charny repousa nos carneiros do castelo de Boursonne; foi ali que passei os únicos dias felizes da minha vida, desejo pois repousar ao pé dele.

       – Oh! Minha senhora, em nome do Céu, suplico-lhe...

       – E eu, senhor, em nome da desgraça imploro-lhe este favor.

       – Está bem, minha senhora – disse Gilberto – já me disse uma vez que em tudo lhe devo obedecer; retiro-me, mas não me dou por vencido.

       – Não se esqueça de qual é o meu desejo – disse a condessa.

       – Se não a salvar, farei o que me pede.

       E cumprimentando-a pela última vez, retirou-se.

       A porta fechou-se sobre ele com o som lúgubre que é peculiar às portas das prisões.

 

O dia 2 de Setembro

       Sucedeu o que Danton previra.

       Logo que se abriu a sessão, Thuriot fez na Assembléia a proposta que o ministro da justiça formulara na véspera.

       A Assembléia não a compreendeu.

       Em lugar de a votar às nove da manhã, a Assembléia discutiu-a, e quando procedeu à votação era uma hora depois do meio-dia.

       E Era muito tarde.

       Aquelas quatro horas retardaram um século a liberdade da Europa.

       Tallien foi mais esperto.

       Encarregado pela Comuna de dar ordem ao ministro da justiça, para ir à municipalidade, escreveu:

      

       Sr. ministro,

       “Logo que receber esta, apresentar-se-á no palácio da municipalidade.”

      

       Mas em lugar de pôr o sobrescrito para o ministro da justiça, dirigiu-o ao ministro da guerra.

       Esperavam Danton.

       Foi Servan que se apresentou muito embaraçado, perguntando o que queriam.

       Não lhe queriam absolutamente nada.

       Desfez-se o engano; mas a peça estava pregada.

       Já dissemos que a Assembléia votando à uma hora, votara tarde.

       Com efeito, a Comuna, que não demorava os seus negócios, tinha aproveitado o tempo.

       Que pretendia a Comuna?

       Queria a carnificina e a ditadura.

       Eis como procedeu.

       Como Danton tinha dito, os assassinos não eram numerosos.

       Na noite de 1 para 2 de Setembro, enquanto Gilberto tentava inutilmente tirar Andréia da Abadia, Marat enviava os seus cães aos clubes e às secções.

       Apesar de muito enraivecidos, tinham produzido pouco efeito nos clubes, e de quarenta e oito secções, somente duas, a secção de Robespierre e a do Luxemburgo, tinham votado a carnificina.

       Quanto à ditadura, a Comuna bem sabia que não podia apoderar-se dela se não com o socorro destes três nomes:

       Marat, Robespierre, Danton.

       Eis porque tinha mandado ordem a Danton para ir à municipalidade.

       Já vimos que Danton tinha previsto o golpe.

       Danton não recebeu carta, e por conseqüência não compareceu.

       Se a tivesse recebido, se o erro de Tallien não a fizesse ir parar ao ministro da guerra, em lugar de ir ter às mãos do ministro da justiça, talvez se não atrevesse a desobedecer.

       Não o vendo chegar, teve a Comuna de tomar um partido.

       Decidiu que se nomeasse uma junta de vigilância.

       A junta porém não podia ser nomeada senão de entre os membros da Comuna.

       Tratava-se todavia de fazer entrar Marat, na junta da matança; que era o verdadeiro nome que lhe pertencia.

       Mas como o haviam de conseguir? Marat não era membro da Comuna.

       Foi Panis quem se encarregou do negócio:

       Pelo seu patrono Robespierre, pelo seu cunhado Santerre tinha ele bastante peso na municipalidade; é fácil pois de compreender que Panis, ex-procurador, espírito falso e duro, pobre autor de alguns versos ridículos, não podia ter por si mesmo influência alguma: mas por causa de Robespierre e de Santerre, tinha tal peso na municipalidade que foi autorizado a escolher três membros para completar a junta de vigilância.

        Panis não se atreveu a exercer este poder.

       Tomou por adjuntos três dos seus colegas; Sergent, Duplaint, Jourdeuil.

       Estes também tomaram por adjuntos mais cinco:

       Deforgues, Lenfant, Guermeur, Leclerc e Dufort.

       O documento original tem estas quatro assinaturas: Panis, Sergent, Duplaint e Jourdeuil.

       Porém à margem lê-se um nome.

       É o de Marat, que não tinha direito a fazer parte da junta, por não ser membro da Comuna.

       Com este nome ficava entronizado o homicídio.2

       Vejamo-lo estender-se com todo o seu espantoso poder.

       Já dissemos que a Comuna não fizera como a Assembléia: não esteve com demoras.

       Às dez horas estava instaurada a junta de vigilância, e já tinha dado a sua primeira ordem.

       Essa primeira ordem foi para transferir da prefeitura para a Abadia vinte e quatro presos.

       Desses presos oito ou nove eram padres, isto é, usavam o mais execrando hábito, o mais odiado de todos o hábito dos homens que tinham organizado a guerra civil na Vendeia e no Meio-Dia.

       O hábito eclesiástico.

       Mandaram-nos buscar à prisão pelos federados de Marselha e Avinhão, meteram-nos nas seges a quatro e quatro, e partiram.

       O sinal da partida fora dado pelo terceiro tiro de peça de alarme.

       Era fácil de compreender a intenção da Comuna; aquela procissão lenta e fúnebre exaltaria a cólera do povo, e era provável que, no caminho, ou à porta da Abadia, seriam detidas as carruagens, a escolta seria forçada, os presos seriam assassinados, e então a carnificina seguiria o seu curso.

       Começando no caminho ou à porta da prisão, não pararia facilmente.

       Foi no momento em que as seis seges saíam da Comuna, isto é, da prefeitura de polícia, que Danton se lembrou de entrar na Comuna.

       A proposta feita por Thuriot tornara-se inútil; já dissemos que era muito tarde para aplicar à Comuna a decisão que acabava de ser tomada.

       Restava a ditadura.

       Danton subiu à tribuna; infelizmente estava só. Roland julgara-se muito honrado para acompanhar o seu colega.

       Procuraram com a vista Roland; não estava, ali.

       Viam a força, mas pediam inutilmente a moralidade.

       Manuel acabava de anunciar à Comuna o perigo de Verdun. Tinha proposto que os cidadãos alistados acampassem no Campo de Marte, naquela mesma noite, para o dia seguinte, logo ao amanhecer poderem marchar contra o inimigo.

       A proposta de Manuel foi bem recebida.

       Outro membro tinha proposto, visto a urgência do perigo, que se desse o tiro de alarme e se tocasse a rebate.

       Posta a votos a segunda proposta, também, foi aprovada.

       Era uma medida nefasta, homicida, terrível nas circunstâncias em que se achavam. O tambor, os sinos, a artilharia produzem um retumbar sombrio, vibrações fúnebres até nos corações mais sossegados; com muita razão o produziram portanto, em corações já tão violentamente agitados.

       Demais tudo aquilo era calculado.

       Ao primeiro tiro devia ser enforcado o Sr. Beausire.

       Anunciámos já, com a tristeza que anda anexa à perda de tão interessante personagem, que o Sr. Beausire foi enforcado quando soou o primeiro tiro.

       Ao terceiro tiro deviam as carruagens sair da prefeitura de polícia.

       O canhão ribombava de dez em dez minutos; aqueles que acabavam de ver enforcar o Sr. Beausire chegavam pois a tempo de ver os presos e de tomarem parte no assassínio.

       Tallien punha Danton ao facto de tudo o que se passava na Comuna.

       Sabia por conseqüência o perigo de Verdun, sabia a decisão do acampamento do Campo de Marte, sabia que se ia disparar o canhão de alarme e que se ia tocar a rebate

       Para replicar a Lacroix, que devia pedir a ditadura, tomou o pretexto da pátria em perigo, e propôs que fosse votado: que todo aquele que não quisesse servir, ou entregasse as armas, que fosse punido com pena de morte.

       Depois para não haver engano sobre as suas intenções, para não confundirem os seus projectos com os da Comuna, disse:

       “O rebate, que vamos ouvir, não é um sinal de perigo, é o sinal de carregar sobre os inimigos da pátria. Para os vencer, senhores, carecemos de audácia, de audácia e mais audácia, e a França será salva!”

       Estas palavras foram acolhidas com estrepitosos aplausos.

       Então Lacroix, levantando-se e pedindo a palavra, disse:

       “Seja punido com a morte todo aquele que, directa ou indirectamente recusar executar, ou se opuser, por qualquer maneira, às ordens dadas e às medidas tomadas pelo poder executivo.”

       A Assembléia compreendeu perfeitamente que o que dela exigiam era a ditadura.

       Aprovou na aparência, mas demorou a decisão, nomeando uma comissão de girondinos para redigir os decretos.

       Infelizmente, como Roland, os girondinos eram pessoas muito honradas para terem confiança em Danton.

       A discussão durou até às seis horas da tarde.

       Danton impacientou-se; queria o bem e obrigavam-no a deixar fazer o mal.

       Disse uma palavra em voz baixa a Thuriot e saiu.

       Que lhe disse ele?

       O lugar em que poderia encontrá-lo no caso da Assembléia lhe confiar o poder.

       Onde poderia encontrá-lo?

       No Campo de Marte, no meio dos voluntários.

       Qual era a sua situação no caso de lhe ser confiado o poder?

       Fazer-se reconhecer ditador por esta massa de homens armados, não para a matança, mas para a guerra, tornar a entrar com eles em Paris, e levar como em uma imensa rede os assassinos até à fronteira.

       Esperou até às cinco horas da tarde.

       Ninguém o procurou.

       O que sucedia entretanto às seges, em que iam os presos?

       Sigamo-las; vão lentamente, portanto depressa as alcançaremos.

       A princípio as seges em que iam fechados protegeram-nos.

       O instinto do perigo fez com que se mostrassem o menos possível às portinholas; mas os encarregados de os proteger eram os próprios que denunciavam; a cólera do povo não subia bastante depressa, e incitavam-no com palavras.

       – Olhem – diziam eles – eis os traidores, os cúmplices dos prussianos, eis os que entregam as nossas cidades, eis os que hão-de matar as suas mulheres e seus filhos se os deixarem aqui e forem para a fronteira.

       E todavia isto era impotente; os assassínios, como Danton tinha dito, eram poucos; era grande a cólera, muitos os gritos e ameaças, mas nada mais.

       Seguiam a linha do cais, o Pont-Neuf, a rua Dauphine, sem poderem cansar a paciência dos presos, sem poderem empurrar até ao assassínio a mão do povo.

       Estavam em Bussy, perto da Abadia. Ainda era tempo.

       Se deixassem recolher à prisão aqueles infelizes, se os matassem depois de entrarem, claro ficava que era uma ordem reflectida da Comuna e não a indignação espontânea do povo que os matava.

       A fortuna porém correu em socorro das más intenções, dos projectos sangrentos.

       Em Bussy havia um desses teatros, onde se faziam os alistamentos voluntários.

       Havia ali grande multidão.

       As seges tiveram de parar.

       A ocasião era bela, e se a deixassem passar, não se apresentaria outra.

       Um homem afastou a escolta, que não se opôs, subiu ao estribo da primeira carruagem com a espada na mão, e metendo-a muitas vezes ao acaso para dentro da carruagem, retirou-a cheia de sangue.

       Um dos presos levava uma bengala e com ela tentou aparar os golpes. Tocou por acaso na cara de um dos homens da escolta.

       – Ah! Marotos – exclamou este – nós protegemo-los e em paga levamos! A mim! Camaradas!

       Uns vinte homens, que só esperavam por este brado, saíram então de entre a multidão, armados com chuços e grandes facas amarradas em paus. Meteram as lanças e os paus pelas portinholas, e então começaram a ouvir-se gritos de dor, e a ver o sangue das vítimas correr pelo fundo das seges, deixando na rua um largo rasto.

       O sangue pede sangue. Começou a matança, que ia durar quatro dias.

       Os presos, que estavam na Abadia desde pela manhã, tinham notado nas fisionomias dos guardas e por algumas palavras que a estes tinham escapado, que se preparava alguma coisa sombria. Além disto, uma ordem da Comuna tinha feito adiantar uma hora a comida.

       O que queria dizer esta mudança nos hábitos da prisão? Com certeza alguma coisa funesta.

       Esperavam pois com ansiedade.

       Às quatro horas, o murmúrio longínquo da multidão começou a bater, como as primeiras vagas de uma maré, contra as muralhas da prisão; alguns presos começaram a ver seges por entre as grades das janelas que dão para a rua de Sainte-Marguerite.

       Então os bramidos de raiva e os gritos de dor começaram a entrar na prisão; o brado: “Aí vêm os assassinos!” espalhou-se pelos corredores, entrou nos quartos e penetrou nas mais profundas masmorras.

       Depois ouviu-se o grito:

       “Os suíços! Os suíços!”

       Na Abadia estavam cento e cinqüenta suíços. Com grande custo tinham sido defendidos da cólera do povo no dia 10 de Agosto; a Comuna conhecia o ódio do povo pelos uniformes encarnados.

       Era pois uma excelente maneira de levar o povo à matança, o fazê-lo começar pelos suíços.

       Gastaram quase duas horas na matança destes cento e cinqüenta infelizes.

       Morto o último, que foi o major Reading, cujo nome já mencionámos, chamaram os padres.

       Os padres responderam que estavam prontos para morrer, mas que queriam confessar-se.

       A exigência pareceu justa ao povo.

       O povo concedeu-lhe duas horas.

       Em que foram empregadas aquelas duas horas?

       Em formar um tribunal.

       Mas quem formou o tribunal? Quem o presidiu?

       Maillard.

 

Maillard

       O homem de 14 de Julho, o homem de 5 e 6 de Outubro, O homem de 20 de Agosto, devia também ser o homem de Setembro.

       Porém o porteiro de Châtelet devia querer dar ao assassínio um andamento solene com aparência de legalidade.

       Queria que os aristocratas fossem mortos.

       Mas queria que fossem mortos debaixo de toda a legalidade.

       Mortos em conseqüência de uma sentença dada pelo povo, que se considerava como único juiz infalível.

       Antes que Maillard instalasse o seu tribunal, já tinham sido mortas perto de duzentas pessoas.

       Só uma tinha escapado.

       O abade Sicard.

       Dois outros presos, saindo por uma janela no meio do tumulto, tinham-se encontrado no meio da junta da secção, que fazia as suas sessões na Abadia.

       Eram o jornalista Pariseau e Lachapelle, intendente da casa do rei.

       Os membros da secção fizeram assentar os fugitivos no meio deles e salvaram-nos assim.

       Não havia porém que agradecer aos assassinos, se estes dois últimos lhes escapavam.

       Já dissemos que uma das peças curiosas dos arquivos da polícia era a nomeação de Marat para a junta de vigilância.

       Outra não menos curiosa é o registro da Abadia, ainda hoje todo manchado com o sangue dos assassínios, que salpicava até os membros do tribunal.

       Procurai ver o registro, e a cada instante encontrareis nas margens:

        “Morte por sentença do povo, ou absolvido pela sentença do povo.”

       Esta última nota é assinada por Maillard e repetida quarenta e três vezes.

       Logo, Maillard salvou na Abadia a vida de quarenta e três pessoas.

       Agora, enquanto começa a exercer as suas funções, às nove ou dez horas da noite, sigamos dois homens, que saem dos Jacobinos e se encaminham para a rua de Sainte-Anne.

       São o grande sacerdote e o seu adepto, o mestre e o discípulo:

       Saint-Just e Robespierre.

       Saint-Just, que nos apareceu na noite da recepção de três novos adeptos na loja da rua Plâtrière.

       Saint-Just de tez duvidosa, demasiado clara para homem, muito pálida para mulher, de gravata alta e dura, mais frio do que o seu mestre.

       Quanto ao mestre, ainda sentia algumas emoções nestes combates de política em que o homem, a paixão com a paixão para o discípulo, o que se passa não é mais do que uma grande partida de xadrez.

       O resultado porém, do jogo, é a vida.

       Cuidado não ganhe ele, vós que jogais contra ele, pois será inflexível e nunca perdoará aos que perderem.

       Tinha dito pela manhã que provavelmente iria ao campo.

       O pequeno quarto de Saint-Just, mancebo, até poderíamos dizer ainda criança, talvez lhe parecesse mais seguro do que o seu, na terrível noite de 2 para 3 de Setembro.

       Ambos entraram em casa perto das onze horas.

       É inútil dizer em que falavam aqueles dois homens.

       Falavam no morticínio.

       Com a diferença porém de que um falava com a sensibilidade de um filósofo da escola de Rousseau; o outro com a sequidão de um matemático da escola de Condillac.

       Robespierre, como o crocodilo da fábula, algumas vezes chorava aqueles a quem condenava.

       Entrando em casa, Saint-Just tirou o chapéu, que pôs em cima de uma cadeira, tirou a gravata e despiu o casaco.

       – Que fazes? – perguntou-lhe Robespierre.

       Saint-Just olhou para ele tão admirado, que Robespierre repetiu:

       – Pergunto-te o que fazes?

       – Vou deitar-me – respondeu o mancebo.

       – Mas para que te vais deitar?

       – O que faz a gente quando se deita? Dormir.

       – Como? – exclamou Robespierre – lembras-te de dormir numa tal noite?

       – Porque não?

       – Quando caem ou vão cair milhares de vítimas, quando esta noite vai ser a última para tantos homens, que agora ainda respiram, mas que amanhã terão cessado de viver, tu pensas em dormir?

       Saint-Just, ficou por um instante pensativo.

       Depois, como se durante este curto momento de silêncio tivesse tirado do fundo do coração nova convicção, disse:

       – Sim, é verdade, sei isso, mas também sei que é um mal necessário, pois que tu mesmo o autorizaste. Imagina uma febre amarela, uma peste, um tremor de terra, e enumera uma infinidade de homens que caem sem benefício algum para a sociedade, ao passo que da morte dos nossos inimigos resulta segurança para nós. Aconselho-te pois a que te recolhas a tua casa, e a que te deites como eu e procures dormir como eu vou dormir.

       E dizendo estas palavras, o impassível e frio político meteu-se na cama.

       – Adeus – disse ele – até amanhã.

       E com efeito adormeceu.

       O seu sono foi tão longo, tão sossegado, tão pacífico como se não se passasse em Paris coisa alguma extraordinária.

       Adormeceu às cinco horas e meia da noite e acordou às seis da manhã.

       Saint-Just, acordando, viu entre si e a claridade uma espécie de sombra, era Robespierre.

       Julgou que Robespierre saíra na véspera e que voltara pela manhã.

       – Que é que te traz aqui tão cedo? – perguntou Saint-Just.

       – Eu não saí desde ontem – respondeu Robespierre.

       – Como! Não saíste?

       – Não.

       – Como! Não saíste?

       – Não.

       – Não dormiste?

       – Não.

       – Então como passaste a noite?

       – Em pé, com a cabeça encostada aos vidros, escutando a bulha da rua.

       Robespierre dizia a verdade. Ou por medo, ou por remorso, não tinha dormido sequer uma hora, sequer um minuto.

       Quanto a Saint-Just, não houve diferença entre o seu sono dessa noite e o das noites precedentes.

       Do outro lado porém do Sena, no centro mesmo da Abadia, havia um homem, que tinha dormido tanto como Robespierre.

       Esse homem estava encostado ao último postigo, que dava para o pátio, e quase perdido na penumbra da imensa sala.

       Eis o espectáculo que apresentava o interior daquela casa, transformada em tribunal.

       Em redor de uma vasta mesa carregada de espadas, de pistolas, e alumiada por duas lâmpadas de cobre, estavam assentados doze homens.

       Pelos seus rostos pálidos, figuras robustas, barretes encarnados, pelas lãs que lhe cobriam os ombros, reconhecia-se que eram homens do povo.

       Presidia-os um indivíduo, que estava com a cabeça descoberta, e trajava casaca preta e colete branco.

       Talvez fosse o único que soubesse ler e escrever; tinha diante de si papel, penas e um tinteiro.

       Estes homens eram os juízes da Abadia, juízes terríveis, que davam sentenças sem apelação, que no mesmo instante eram executadas por uns cinqüenta carrascos, armados de espadas e de chuços e que esperavam no pátio, nadando em sangue.

       O presidente era o porteiro Maillard.

       Tinha ido ali por livre vontade, ou mandado por Danton, que queria fazer nas outras prisões, nos Carmelitas, no Châtelet, na Force o que este fez na Abadia; salvar algumas pessoas?

       Ninguém o sabia.

       A 4 de Setembro, Maillard desapareceu; nunca mais se tornou a ver, nunca mais se ouviu falar nele, parecia ter morrido afogado em sangue.

       Entretanto, desde a véspera às dez horas presidia ao tribunal.

       Tinha chegado, arranjado a mesa, escolhido ao acaso doze juízes, tinha-se assentado, colocado seis juízes à direita, outros seis à esquerda, e a matança tinha continuado, mas desta vez com alguma regularidade.

       Lia-se no registro o nome de um preso, os chaveiros iam buscá-lo, Maillard contava a história da sua prisão; se o preso era condenado, Maillard contentava-se em dizer:

       – À Force!

       Então abria-se a porta, que dava para o pátio, e o condenado sucumbia aos golpes dos assassinos.

       Se, pelo contrário, o preso era absolvido, então levantava-se o negro fantasma, punha-lhe a mão sobre a cabeça e dizia:

       – Soltem-no.

       E o preso estava salvo.

       No momento em que Maillard se apresentava à porta da prisão, saiu-lhe ao encontro um homem.

       Às primeiras palavras que trocaram, Maillard reconheceu-o e em sinal, senão de submissão, pelo menos de condescendência, inclinara-se.

       Era homem de estatura gigantesca.

       Depois, entrando na prisão, arranjada a mesa, estabelecido o tribunal, disse:

       – Conserve-se aí, e quando aparecer a pessoa por quem se interessa faça-me sinal.

       O homem encostou-se à parede, e estava ali desde a véspera, mudo e imóvel, esperando.

       Este homem era Gilberto.

       Tinha jurado a Andréia não a deixar morrer, e procurava cumprir o seu juramento.

       No momento a que chegámos, tinha o tribunal interrompido as suas funções por um instante.

       Das quatro às seis horas da manhã, os assassinos e os juízes repousaram um pouco.

       Às seis comeram.

       Durante estas duas horas, três homens, os enterradores enviados pela Comuna, tinham chegado e tinham levado os cadáveres.

       Como porém no pátio havia a altura de três polegadas de sangue coalhado, como os pés escorregavam nele, como era necessário muito tempo para o lavar, trouxeram uns cem molhos de palha, que espalharam pelo pátio, cobrindo-o com o fato das vítimas, principalmente com o uniforme dos suíços.

       O fato e a palha absorviam o sangue.

       Mas enquanto dormiam juízes e assassinos, os presos velavam agitados pelo terror.

       Todavia, quando cessaram os gritos, tiveram um instante de esperança.

       Talvez só houvesse um certo número de condenados, designado aos assassinos; talvez que o assassínio se limitasse aos suíços.

       A esperança, porém, pouco durou, naqueles cérebros agitados.

       Às seis horas e meia da manhã tornaram a começar os gritos e a chamada.

       Então desceu um carcereiro, e disse a Maillard que os presos estavam prontos para morrer, mas pediam que os deixasse ouvir missa.

       Maillard encolheu os ombros, mas anuiu ao que queriam.

       Demais, estava tão ocupado a ouvir as felicitações que a Comuna lhe dirigia pela voz de um seu deputado.

       Este homem era um indivíduo baixo, de figura agradável, com uma pequena cabeleira.

       Era Billaud-Varennes.

       – Honrados cidadãos – disse ele aos assassinos – acabais de purgar a sociedade de grandes criminosos. A municipalidade não sabe como vos há-de agradecer: decerto deviam pertencer-vos os despojos dos mortos, isto porém pareceria um roubo: como indemnização desta perda, estou encarregado de oferecer a cada um de vós vinte e quatro libras que vos serão pagas imediatamente.

       E com efeito Billaud-Varennes, no mesmo instante, fez distribuir aos assassinos o salário do seu sanguinolento trabalho.

       Eis o que tinha acontecido, e o que explica esta gratificação da Comuna.

       Durante a noite de 2 de Setembro, alguns dos matadores não tinham meias nem sapatos, porquanto olhavam com inveja para o calçado dos aristocratas, e disto resultou mandarem pedir à Comuna a permissão de calçarem os sapatos dos mortos.

       A Comuna deferiu esta petição.

       Maillard, porém, logo percebeu que se julgavam dispensados de pedir.

       Por conseqüência pilhavam tudo.

       Não só sapatos e meias, mas tudo o que lhes parecia bom.

       Maillard não gostou desta ladroeira, e deu parte à Comuna.

       Esta era a causa da embaixada de Maillard e do silêncio em que era ouvida.

       Durante esse tempo os presos ouviam missa.

       O padre que a dizia era o abade Lenfant, pregador da capela real.

       O que ajudava à missa era Rastignac, escritor religioso.

       Eram dois anciãos de cabelos brancos, de rosto venerando, e cujas palavras exprimindo a resignação e a fé, tiveram benéfica influência sobre todos os desgraçados.

       No momento em que todos estavam de joelhos, recebendo a bênção do abade Lenfant, começou a chamada.

       O primeiro nome pronunciado foi o de um padre.

       Fez um sinal, acabou a sua oração e seguiu os que iam buscá-lo.

       Ficou outro, que continuou a fúnebre exortação.

       Depois chegou a vez dele.

       Os presos ficaram sem ter quem lhes ministrasse as consolações espirituais.

       Então começou entre estes homens uma conversação sombria, terrível, singular.

       Discutiam sobre a maneira de receber a morte e sobre as probabilidades de um suplício mais ou menos longo.

       Uns queriam apresentar a cabeça, para que caísse de um só golpe.

       Outros diziam que era melhor levantar os braços para que a morte fosse instantânea.

       Outros que era mais seguro porem as mãos atrás das costas, porque deste modo não apresentariam resistência alguma.

       Um mancebo saiu do grupo, dizendo:

       – Vou saber o que é melhor.

       E subiu a uma pequena torre, cuja janela de grades dava para o pátio, para estudar a morte.

       Depois voltou, dizendo:

       – Os que morrem mais depressa são os que têm a ventura de ser feridos no peito.

       Neste momento ouviram-se estas palavras seguidas de um suspiro:

       – Meu Deus! Vou ter convosco!

       Um homem acabava de cair e debatia-se sobre os degraus.

       Era o Sr. Chantereine, coronel da guarda constitucional do rei.

       Tinha levado três facadas no peito.

       Os presos então pegaram em facas, mas servindo-se delas com hesitação só conseguiram que um fosse morto.

       Entre os presos havia três mulheres.

       Duas jovens aflitas abraçadas a dois anciãos.

       Uma senhora vestida de luto, sossegada, resignada, orando e sorrindo.

       As jovens eram as meninas de Cazotte e de Sombreuil.

       Os anciãos eram os pais delas.

       A senhora vestida de luto era Andréia.

       Chamaram o Sr. de Montmorin.

       O Sr. de Montmorin, como o leitor deve estar lembrado, era aquele que tinha dado os passaportes para a fuga do rei; o Sr. de Montmorin era tão impopular, que já na véspera um mancebo estivera para ser morto por ter o mesmo apelido.

       O Sr. de Montmorin não tinha querido ouvir as exortações dos padres; ficara no seu quarto, furioso, desesperado, chamando os seus inimigos, pedindo armas, abalando os varões das janelas, desfazendo entre os dedos uma mesa de carvalho, cujas tábuas tinham duas polegadas de grossura.

       Tiveram de empregar a força para o levarem perante o famoso tribunal.

       Entrou pálido, com os olhos inflamados e com os braços hirtos.

       – À Force! – disse Maillard.

       O antigo ministro tomou a palavra no sentido que a devia ter, e julgou que se tratava de uma transferência.

       – Presidente – disse ele a Maillard – espero que me mande dar uma sege para me levar à Force, para assim escapar aos ultrajes dos assassinos.

       – Mande chamar uma sege para o Sr. conde de Montmorin, disse Maillard com toda a política.

       Depois, dirigindo-se ao ex-ministro:

       – Tenha a bondade de se assentar enquanto não chega a sege, Sr. conde de Montmorin.

       O conde assentou-se resmungando.

       Passados cinco minutos, anunciaram que a sege estava pronta.

       Este anúncio era feito por um comparsa, que compreendeu a parte que tinha a representar neste drama.

       Abriu-se a porta fatal, a que dava para a morte, e por ela saiu o Sr. de Montmorin.

       Mas apenas tinha dado três passos caiu ferido com mais de vinte punhaladas.

       Depois, seguiram-se outros presos, cujos nomes caíram no abismo do esquecimento.

       No meio de todos estes nomes obscuros, completamente desconhecidos, apenas um só se tornou notável, causando sensação.

       Foi o de Jacques Cazotte.

       De Cazotte, o iluminado, que dez anos antes da revolução tinha predito a cada um a sorte que o esperava, autor do Diabo amoroso, de Olivério, das Mil e uma frioleiras, imaginação louca, alma extática, coração ardente, que tinha abraçado com ardor a causa da contra-revolução, e que nas cartas ao seu amigo Pouteau, empregado na secretaria da lista civil, tinha exprimido opiniões, que, na hora a que se havia chegado, eram punidas com a morte.

       A filha servia-lhe de secretária, e quando o pai foi preso, Isabel Cazotte pedira para quinhoar a prisão com ele.

       Se a alguém era permitido ter opiniões realistas, era decerto a este cidadão de oitenta anos, cujos pés estavam enraizados na monarquia de Luís XIV, e que para adormecer o duque de Borgonha havia feito as duas canções, que se tornaram populares: No centro das Ardenas e Comadre, é preciso aquecer a cama.

       Mas estas razões só poderiam dar-se a filósofos e não a assassinos.

       Portanto, Cazotte estava já condenado antes de ser ouvido.

       Vendo o ancião de cabelos brancos, olhos inflamados e cabeça inspirada, Gilberto afastou-se da parede e fez um movimento para lhe sair ao encontro.

       Maillard viu este movimento.

       Cazotte avançava encostado à filha.

       Entrando ali, a menina Cazotte, compreendeu que estava na presença dos seus juízes.

       Então, afastando-se do pai, foi com as mãos postas implorar àquele tribunal sanguinário, com palavras tão doces que os juízes começaram a hesitar.

       A pobre menina conheceu que sob aquelas cascas grossas havia corações; mas que era preciso, para os tocar, descer até aos abismos. E guiada pela compaixão, neles se arremessou de cabeça baixa. Aqueles homens, que não sabiam o que eram lágrimas, choraram!

       Maillard enxugou com as costas da mão os olhos secos que, havia vinte e quatro horas, contemplavam a matança sem se abaixarem.

       Levantou-se e pôs a mão sobre a cabeça de Cazotte.

       – Soltem-no – disse ele.

       A jovem hesitava.

       – Não tenha medo, menina, seu pai está salvo – disse Gilberto.

       Levantaram-se dois juízes e acompanharam Cazotte até à rua, com medo de que algum erro fatal restituísse à morte a vítima, que acabavam de lhe tirar.

       Cazotte, ao menos por esta vez, estava salvo.

       As horas corriam e continuava a matança.

       Tinham trazido para o pátio bancos para os espectadores. As mulheres e os filhos dos assassinos tinham direito a assistir ao espectáculo. Demais, como os autores não se davam por satisfeitos, apesar de serem pagos queriam também ser aplaudidos.

       Às cinco horas da tarde, foi chamado o Sr. de Sombreuil.

       Este era como Cazotte, um realista muito conhecido, e era tanto mais impossível salvá-lo, quando sendo governador dos Jacobinos no dia 14 de Julho, havia atirado sobre o povo.

       Era uma dessas recordações que as massas guardam no fundo do coração.

       Os filhos estavam em país estrangeiro, no exército inimigo.

       Um deles, por tal forma se havia portado no cerco de Longwy, que tinha sido condecorado pelo rei da Prússia.

       Apareceu, nobre e resignado, de cabeça levantada, e com os cabelos brancos que lhe chegavam à farda, encostado também ao braço da filha.

       Desta vez nem Maillard se atreveu a dá-lo por inocente.

       Fazendo porém um esforço, disse:

       – Inocente ou culpado, julgo que seria indigno do povo se tentassem manchar as mãos no sangue deste velho.

       A menina de Sombreuil ouviu estas nobres palavras, que hão-de ter o seu peso na balança divina. Segurou o querido pai e puxou-o para a porta da vida, gritando: Salvo! Salvo!

       Não tinha sido pronunciada sentença alguma, nem condenando, nem absolvendo.

       As cabeças de dois ou três assassinos apareceram ao postigo para perguntarem o que deviam fazer.

       O tribunal ficou em silêncio.

       – O que quiserem.

       – Então – gritaram os assassinos – que a jovem beba à saúde da nação.

       Foi então que um homem de mangas arregaçadas e o rosto feroz, apresentou um copo à menina de Sombreuil, uns dizem que de sangue, outros, que simplesmente de vinho.

       A menina de Sombreuil gritou: “Viva a nação!” molhou os beiços no líquido, fosse ele qual fosse, e assim salvou o pai.

       Decorreram mais de duas horas.

       Depois a voz de Maillard, tão impassível evocando os vivos, como era a de Ninos evocando os mortos, pronunciou estas palavras:

       – A cidadã Andréia de Taverney, condessa de Charny!

       A este nome sentiu Gilberto dobrarem-se-lhe as pernas, faltar-lhe o coração.

       Uma vida, para ele mais importante do que a sua própria, ia ser julgada, ia ser condenada ou absolvida.

       – Cidadãos – disse Maillard aos membros do terrível tribunal – a que vai comparecer diante de vós é uma pobre senhora, outrora dedicada à Austríaca, mas cuja dedicação a Austríaca, ingrata como uma rainha, pagou com a ingratidão; tudo perdeu com esta amizade, fortuna e marido; ides vê-la vestida de luto, e a quem deve esse luto? À presa do Templo. Cidadãos, peço-vos a vida desta senhora.

       Os membros do tribunal fizeram um sinal de assentimento.

       Só um disse.

       – É preciso ver.

       – Então – disse Maillard – olhai!

       Com efeito, abriu-se a porta, e nas profundidades do corredor distinguiu-se uma mulher vestida de luto, com um véu preto tapando-lhe o rosto, e que avançava só e com passo firme.

       Parecia uma aparição desse mundo fúnebre, donde como diz Hamlet, ainda não voltou viajante algum.

       Aquela aparição fez estremecer os juízes.

       Chegada ao pé da mesa levantou o véu.

       Nunca pareceu aos olhos dos homens beleza mais incontestável e também mais pálida.

       Parecia uma divindade de mármore.

       Todas as vistas se cravaram nela; Gilberto ficou ansioso.

       Dirigiu-se a Maillard, e com voz ao mesmo tempo suave e firme, disse:

       – Cidadão, vós é que sois o presidente?

       – Sim, cidadã – respondeu Maillard admirado – porque, em vez de interrogar, era interrogado.

       – Sou a condessa de Charny, mulher do conde de Charny, morto no infame dia 10 de Agosto; sou uma aristocrata, uma amiga da rainha; mereci a morte e venho recebê-la.

       Os juízes deram um grito de surpresa.

       Gilberto empalideceu e coseu-se o mais possível com a parede, esperando escapar assim às vistas de Andréia.

       – Cidadãos – disse Maillard, que viu o espanto de Gilberto – esta mulher é louca, e a morte do marido fez-lhe perder a razão; deplorai-a e velemos pela sua vida: a justiça do povo não pune insensatos.

       Levantou-se e quis pôr a mão sobre a cabeça de Andréia, como fazia àqueles que declarava inocentes.

       Mas Andréia afastou a mão de Maillard e bradou:

       – Estou em todo o meu juízo, e se quereis perdoar a alguém, fazei esse favor a quem vo-lo pedir e que o mereça; mas não a mim, que não sou digna dele e que o recuso.

       Maillard voltou-se para Gilberto e viu este com as mãos postas.

       – Esta mulher é louca, repetiu este; soltem-na.

       E fez sinal a um membro do tribunal para a fazer sair pela porta da vida.

       – É inocente – gritou um membro do tribunal – deixai passar.

       Todos se afastaram para deixar passar Andréia; sabres, pistolas e lanças tudo se abaixou diante daquela estátua de luto.

       Mas depois de dar dez passos, enquanto Gilberto encostado à janela a via retirar, parou.

       “Viva o rei! – exclamou ela; – viva a rainha! Infâmia sobre o 10 de Agosto!”

       Gilberto deu um grito e saiu a correr para o pátio.

       Vira brilhar a folha de uma espada; mas, rápida como o raio, tinha desaparecido no corpo de Andréia.

       Chegou a tempo para a receber nos braços.

       Andréia voltou para ele os olhos já amortecidos e conheceu-o.

       – Bem lhe tinha dito que morreria, mau grado seu.

       Depois, com voz pouco ininteligível.

       – Ame Sebastião por nós ambos.

       Finalmente, com voz mais enfraquecida:

       – Ao pé dele, não é assim? Ao pé do meu esposo, eternamente.

       E expirou.

       Gilberto tomou-a nos braços e levantou-a.

       Cinqüenta braços nus e sujos de sangue ameaçaram-no ao mesmo tempo.

       Mas Maillard apareceu atrás dela, pôs-lhe a mão na cabeça e disse:

       – Deixai passar o cidadão Gilberto, que leva o cadáver de uma pobre mulher morta por engano.

       Todos se afastaram, e Gilberto carregado com o cadáver de Andréia, passou pelo meio dos assassinos, sem que um tentasse fechar-lhe a passagem, tão grande era o poder de Gilberto sobre a multidão.

 

O que se passava no Templo durante a carnificina

       A Comuna, autorizando a carnificina de que acabámos de dar um esboço, apesar do seu constante desejo de aterrar a Assembléia e a imprensa, tinha grande receio de que sucedesse alguma desgraça aos presos que estavam encerrados no Templo.

       Com efeito nas circunstâncias em que estavam as coisas, Longwy tomada, Verdun atacada, o inimigo a cinqüenta léguas de Paris, o rei e a família eram preciosos reféns para garantirem a vida dos mais comprometidos.

       Por conseqüência foram enviados ao Templo alguns comissários.

       Quinhentos soldados armados não eram suficientes para defender a prisão, que eles mesmos talvez abrissem. Alguém achou meio de a defender, meio mais seguro do que todas as lanças e espadas de Paris.

       Era cercar o Templo com uma fita tricolor, na qual se lia esta inscrição:

      

        “Cidadãos, vós, que ao desejo da vingança sabeis reunir o amor da ordem, respeitai esta barreira; é ela necessária à nossa vigilância e à nossa respeitabilidade!”

      

       Singular época em que se despedaçavam fortes portas, em que se quebravam valentes grades, e em que ajoelhavam diante de uma fita!

       O povo ajoelhou diante da fita tricolor do Templo e beijou-a. Nem um só a transpôs.

       O rei e a rainha não sabiam o que se passava em Paris a 2 de Setembro. É verdade que em volta do Templo havia fermentação maior do que a ordinária; não se admiraram, porém, porque já estavam habituados a estas crises.

       O rei jantava às duas horas. Jantou pois às duas horas como nos tempos normais; depois do jantar, desceu ao jardim, como costumava, com a rainha, com a princesa Isabel, com a princesa real e com o delfim.

       Durante o passeio aumentavam os clamores que se ouviam extraordinariamente.

       Um dos membros da municipalidade que seguia o rei, chegou-se ao ouvido de um dos seus colegas e disse-lhe, em voz tão baixa que Cléry não pudesse ouvir:

       – Fizemos mal em consentir neste passeio.

       Eram quase três horas, isto é, precisamente o momento em que começavam a matar os presos transferidos da Comuna para a Abadia e quando se disparava o canhão de alarme.

       O rei só tinha ao pé de si Cléry e Hue.

       O pobre Thierry, que vimos no dia 10 de Agosto ceder o seu quarto à rainha para nele ter uma conferência com Roederer, estava na Abadia e devia ser morto no dia 3.

       Parece que também era opinião do outro membro da municipalidade que tinham feito mal em deixar sair a família real, porque ambos deram ordem para que se recolhesse no mesmo instante aos seus aposentos.

       Foram obedecidos.

       Mas apenas se haviam reunido na câmara da rainha, entraram dois membros que não estavam de serviço naquele dia.

       Então um deles, egresso capucho, chamado Mateus, dirigiu-se ao rei, e disse-lhe:

       – Senhor, ignora o que se passa? A pátria está no mais iminente perigo.

       – Como quer que saiba coisa alguma aqui? – respondeu o rei; – estou preso e em segredo.

       – Então vou dizer-lhe o que não sabe; isto é que o inimigo entrou em Champagne, e que o rei da Prússia marcha sobre Châlons.

       A rainha não pôde reprimir um movimento de alegria.

       Apesar de muito rápido, o membro da municipalidade surpreendeu aquele movimento.

       – Oh! Sim – disse ele dirigindo-se à rainha – sim, sabemos que nós, nossas mulheres, nossos filhos havemos de morrer; mas por tudo ficareis responsáveis. Morrereis primeiro do que nós, e o povo será vingado!

       – Sucederá o que for da vontade de Deus – respondeu o rei; – tenho feito tudo pelo povo, não tenho nada de que me acusar.

       Então o mesmo membro voltando-se para o Sr. Hue, que estava ao pé da porta, disse:

       – Enquanto a ti, a Comuna encarregou-me de te prender.

       – A quem? – perguntou o rei.

       – Ao seu escudeiro.

       – Ao meu escudeiro! Qual deles?

       – Este.

       E designou Hue.

       – Hue! – disse o rei; – de que é acusado?

       – Isso não é comigo; há-de ser levado daqui esta tarde, e os seus papéis hão-de ser selados.

       Depois, saindo e dirigindo-se a Cléry, disse:

       – Tome cuidado e veja como se porta, pois lhe sucederá o mesmo, se não andar direito.

       No dia seguinte, 3 de Setembro, às onze horas da manhã, o rei estava reunido com a sua família no quarto da rainha quando um membro da municipalidade deu ordem a Cléry para subir ao quarto do rei.

       Manuel e alguns membros da Comuna já lá estavam.

       Todos os rostos exprimiam visivelmente grande inquietação. Manuel, como já dissemos, não era homem sanguinário e tinha um partido moderado, mesmo na Comuna.

       – Que pensa o rei da prisão do seu escudeiro? – perguntou Manuel.3

       – Sua majestade está com muito cuidado – respondeu Cléry.

       – Não lhe há-de suceder mal algum – respondeu Manuel – todavia estou encarregado de dizer ao rei que não torna a voltar e que o conselho se encarrega de o substituir. Pode participar esta medida ao rei.

       – Tenha a bondade, senhor – respondeu Cléry – de me dispensar de dar ao rei uma notícia, que sei lhe há-de ser dolorosa.

       Manuel reflectiu um instante.

       – Está bem – disse ele – vou ter com ele ao quarto da rainha.

       Com efeito desceu e falou ao rei.

       O rei ouviu com o seu sossego ordinário a notícia que o procurador da Comuna tinha a dar-lhe.

       Depois, com o rosto impassível que tinha no dia 20 de Junho e a 10 de Agosto, e que devia ter até ao cadafalso, respondeu:

       – Está bem, senhor, e dou-lhe os meus agradecimentos. Servir-me-á o escudeiro de meu filho, e se o conselho até isto me negar, servir-me-ei a mim mesmo.

       Depois, fazendo um ligeiro movimento com a cabeça, acrescentou:

       – A tudo estou resolvido.

       – Tem alguma reclamação a fazer? – perguntou Manuel.

       – Falta-nos roupa – disse o rei – o que é uma grande privação. Julga poder obter da Comuna que nos forneça aquilo de que carecermos?

       – Darei parte ao conselho – respondeu Manuel.

       E vendo que o rei não lhe perguntava notícias, saiu.

       À uma hora o rei mostrou desejos de passear.

       Durante estes passeios, surpreendiam sempre algum sinal de simpatia, feito de alguma janela, e isto era para eles uma consolação.

       Os membros da municipalidade não consentiram que a família real descesse.

       Às duas horas puseram-se à mesa.

       No meio do jantar ouviu-se o rufar dos tambores e muitos gritos.

       Os gritos aproximavam-se do Templo.

       A família real levantou-se e reuniu-se no quarto da rainha.

       O motim cada vez se aproximava mais.

       Qual era a causa de semelhante bulha?

       Estavam assassinando na Force, assim como tinham feito na Abadia.

       Com a diferença porém, que em lugar de Maillard era Hébert quem presidia.

       Portanto a matança era mais terrível.

       E todavia ali era mais fácil salvar os presos.

       Na Force havia menos presos políticos do que na Abadia, os assassinos não eram tantos, e os espectadores não estavam tão encarniçados.

       Mas em vez de ser como na Abadia, onde Maillard dominava a matança; ali era a matança que dominava Hébert.

       Na Abadia salvaram-se quarenta e duas pessoas, na Force nem seis.

       Entre os presos da Force estava a princesa de Lamballe.

       Vimo-la passar nos três últimos livros, que escrevemos, no Colar da Rainha, no Ângelo Pitou, e na Condessa de Charny, como a sombra dedicada de Maria Antonieta.

       Tinham-lhe muito ódio, chamavam-lhe a conselheira da Austríaca. Era sua confidente, sua amiga dedicada, alguma coisa mais, talvez, pelo menos, dizia-se; mas sua conselheira nunca.

       A delicada donzela de Sabóia, com a sua boca pequenina, com sorriso constante, era capaz de amar; assim o provou, mas aconselhar, aconselhar uma mulher viril, teimosa, dominadora como a rainha, repetimo-lo, isso nunca.

       À rainha tinha-a amado, como amara as Srª.s de Guémené, de Marsan e de Polignac; mas leviana e inconstante em todos os seus sentimentos, talvez lhe tivesse feito sofrer tanto como amiga, quanto a Charny amante.

       Com a diferença porém de que o amante tinha-se cansado, a amiga porém conservara-se sempre fiel.

       Ambos morreram por aquela a quem tinham amado.

       Devem lembrar-se dessa noite, que historiamos, no pavilhão de Flora. A Srª. de Lamballe recebia em sua casa, e a rainha via em casa da Srª. de Lamballe aqueles que não podia ver no palácio.

       Suleau e Barnave nas Tulherias. Mirabeau em Saint-Cloud.

       No 1.º de Agosto ainda ela estava em Inglaterra, e lá podia ter ficado gozando longa vida. A meiga e boa criatura, sabendo porém que as Tulherias estavam ameaçadas, foi ocupar o seu lugar junto da rainha.

       A 10 de Agosto, conduzida ao Templo com a rainha, foi logo transferida para a Force.

       Ali percebeu que o fardo excedia as suas forças. Tinha querido morrer conjuntamente com a rainha; assim talvez não lhe custasse a morte.

       Longe da rainha, não se sentia com força de morrer; esta não era da têmpera de Andréia.

       Estava doente de terror.

       A pobre criatura não ignorava o mal que lhe queriam. Encerrada em uma das casas altas da prisão com a Srª. de Navarra, tinha visto, na noite de dois para três, partir a Srª. de Tourzel.

       Isto equivalia a dizer-lhe:

       – Fica para morrer.

       Deitada sobre a cama, tapando a cabeça com a roupa, como faz uma criança quando tem medo, desmaiava a cada instante, e quando tornava a si, dizia:

       – Oh! Meu Deus, cuidei que já era a morte.

       E ajuntava:

       – Se a morte for como um desmaio! Não é, nem doloroso, nem difícil.

       A morte porém estava em toda a parte, no pátio, à porta, nas casas inferiores.

       Os gritos chegavam aos seus ouvidos: cheirava-lhe a sangue.

       Às oito horas da manhã abriu-se a porta.

       O seu medo porém desta vez foi tão grande que nem desmaiou, nem tapou a cabeça com a roupa.

       Voltou a cabeça e viu dois guardas nacionais.

       – Vamos, levante-se, senhora – disse brutalmente um deles – é necessário ir à Abadia.

       – Oh! Senhores – respondeu a princesa – não me é possível sair da cama, estou tão fraca que me seria impossível andar.

       Depois ajuntou com uma voz que mal se percebia:

       – Se é para me matarem, melhor é que seja aqui.

       Um dos homens disse-lhe então ao ouvido, enquanto o outro vigiava a porta:

       – Obedeça, senhora, queremos salvá-la.

       – Então retirem-se, para que me vista.

       Os homens retiraram-se.

       A Srª. de Navarra ajudou-a a vestir, ou antes vestiu-a.

       Passados dez minutos, os dois homens tornaram a entrar.

       A princesa estava pronta.

       Porém não podia andar.

       A pobre senhora estava num grande tremor.

       Encostou-se ao braço do guarda nacional, que lhe tinha falado ao ouvido, e desceu a escada.

       Chegando abaixo, achou-se de repente na presença do tribunal de sangue.

       Como já dissemos Hébert era o presidente.

       À vista daqueles homens de mangas arregaçadas, que se tinham constituído juízes, à vista daqueles homens manchados de sangue, que se tinham feito algozes, desmaiou.

       Interrogada três vezes, três vezes desmaiou sem poder responder.

       – Mas já lhe disse que a queria salvar – repetiu o homem que já lhe tinha falado.

       Esta promessa deu-lhe alguma força.

       – Como se chama? – perguntou Hébert.

       – Maria Luísa, princesa de Sabóia.

       – A sua qualidade?

       – Superintendente da casa da rainha.

       – Está ao facto das tramas da corte na noite de 10 de Agosto?

       – Não sei se houve tramas no dia 10 de Agosto, se as houve sou completamente estranha a elas.

       – Jure a liberdade, a igualdade, ódio ao rei, à rainha e à realeza.

       – Facilmente jurarei as duas primeiras coisas; as outras não me é possível, pois são contrárias ao meu coração.

       – Jure – disse o guarda nacional – aliás morre.

       A princesa estendeu as mãos, e por um instinto deu um passo para a porta.

       – Mas jure – disse o protector.

       Então como se temesse, pelo receio da morte, pronunciar aquele odioso juramento, pôs as mãos na boca, para comprimir as palavras que dela pudessem sair, mau grado seu.

       Por entre os dedos passaram alguns gemidos.

       – Jurou – disse o guarda nacional – que queria salvá-la.

       Depois, ajuntou em voz baixa:

       – Saia depressa, pela porta que está diante de si. Brade: “Viva a nação!” E está salva!

       Saindo achou-se nos braços de um assassino que a esperava.

       Era o grande Nicolau, o mesmo que tinha cortado a cabeça aos dois oficiais em Versalhes.

       Desta vez tinha prometido salvar a princesa.

       Arrastou-se para o que quer que era de informe e ensangüentado, dizendo-lhe em voz baixa:

       – Grite: “Viva a nação!” mas grite de maneira que se ouça.

       A princesa sem dúvida assim o ia fazer, quando, por desgraça, abriu os olhos.

       Achava-se defronte de um monte de cadáveres, sobre o qual um homem batia com os pés, fazendo escorrer sangue de todas as partes, como fazem os camponeses quando pisam uvas.

       – Que horror!

       Este grito não foi ouvido.

       Diz-se que o Sr. de Penthièvre, seu cunhado, tinha dado cem mil francos para a salvar.

       Empurraram-na para a estreita passagem que vai da rua de Saint-Antoine para a prisão, e que se chama a boca de saco dos padres, quando um miserável, um cabeleireiro chamado Charlot, que acabava de assentar praça de tambor num regimento de voluntários, lhe fez saltar o chapéu com a lança.

       Quereria somente tirar-lhe o chapéu ou quereria feri-la no rosto?

       O caso é que o sangue correu.

       O sangue provoca mais sangue.

       Um homem atirou uma pedrada à princesa.

       A pedra feriu-a na nuca.

       Estrebuchou, caiu e ficou de joelhos.

       Já não havia meio de a salvar.

       De todos os lados estavam espadas alçadas, chuços apontados.

       A princesa nem sequer deu um grito; estava morta na realidade desde que pronunciara as últimas palavras.

       Apenas expirou, talvez mesmo que ainda estivesse viva, precipitaram-se sobre ela. Num instante rasgaram-lhe o fato até à camisa, e palpitante ainda, achou-se nua.

       Um sentimento obsceno tinha presidido à sua morte e era a causa de assim a despirem.

       Queriam ver-lhe o belo corpo, a que as mulheres de Lesbos teriam rendido culto.

       Nua como Deus a tinha criado foi exposta sobre um marco.

       Colocaram-se quatro homens diante do marco, lavando e enxugando o sangue que corria por sete feridas.

       Um quinto apontava com uma vara para as belezas que, diziam, tinham outrora sido causa do seu favor, assim como agora tinham sido por certo a causa da sua morte.

       Ficou assim exposta desde as oito horas até ao meio-dia.

       Finalmente, um historiador cansa-se deste curso de história escandalosa feita sobre um cadáver.

       Veio um homem e cortou-lhe a cabeça.

       Ai! Aquele pescoço flexível e longo como o do cisne apresentava pouca resistência.

       O homem que cometeu este crime, talvez mais odioso sobre um cadáver do que sobre um ente vivo, chamava-se Grison. A história é a mais inexorável das divindades. Arranca uma asa; escreve um nome e o nome é votado à execração da posteridade.

       Este homem foi guilhotinado depois como capitão de uma quadrilha de ladrões.

       Outro, chamado Rodi, abriu-lhe o peito e arrancou-lhe o coração.

       Um terceiro, por nome Momin, tirou-lhe outra parte do corpo.

       Era por causa da sua amizade à rainha que assim mutilavam a pobre senhora?

       Era preciso que a rainha fosse muito odiada.

       Espetaram em lanças os três pedaços, que lhe tinham cortado do belo corpo, e encaminharam-se para o Templo.

       Uma multidão imensa seguia os três desalmados assassinos, e além de algumas crianças e de uns poucos de homens bêbados, vomitando sangue e injúrias, todos guardavam profundo silêncio.

       No caminho passaram pela loja de um cabeleireiro.

       Entraram.

       O homem que levava a cabeça foi pô-la em cima de uma mesa.

       – Frize-me esta cabeça – disse ele – vai ver a sua ama ao Templo.

       O cabeleireiro frisou os magníficos cabelos da princesa.

       Depois tornaram a pôr-se a caminho, com grande algazarra.

       Eram estes os gritos que a família real tinha ouvido quando estava à mesa.

       Os assassinos aproximavam-se; incitava-os a abominável idéia de mostrarem à rainha a cabeça, o coração e – o que é inacreditável – essa outra parte daquele belo corpo.

       Apresentaram-se pois no Templo.

       A fita tricolor fechava-lhes a passagem.

       Estes malvados, assassinos e profanadores, não se atreveram a saltar por cima de uma fita.

       Pediram para que uma deputação de seis assassinos, três dos quais levassem os pedaços do corpo, entrassem no Templo e torneassem a torre para mostrarem à rainha aquelas ensangüentadas relíquias.

       O requerimento era tão razoável, que foi deferido sem discussão.

       O rei estava assentado e fingia jogar o gamão com a rainha. Aproximando-se assim sobre pretexto do jogo, podiam ao menos dizer algumas palavras, sem que os membros da municipalidade os ouvisse.

       De repente viu o rei que um deles fechava vivamente a porta e que correndo para a janela puxava as cortinas.

       Era um tal Danjou, antigo seminarista, espécie de gigante, a quem chamavam, por causa da sua gigantesca estatura, o abade de seis pés.

       – Que há de novo? – perguntou o rei – e para que fecha a porta e corre as cortinas?

       O membro da municipalidade, vendo que a rainha estava com as costas voltadas para ele, fazia sinal ao rei para que não o interrogasse.

       Os gritos, porém, as injúrias, as ameaças chegavam-lhe aos ouvidos, apesar das portas e das janelas estarem fechadas. O rei logo viu que se passava alguma coisa terrível e pôs a mão sobre o ombro da rainha, para que se conservasse no seu lugar.

       Neste momento bateram à porta, e ainda que contra a vontade, Danjou foi obrigado a abrir.

       Eram os oficiais da guarda e alguns membros da municipalidade.

       O rei assustado perguntou:

       – Queiram dizer-me, senhores, a minha família está em segurança?

       – Sim – respondeu um homem com uniforme de oficial da guarda nacional. Mas espalhou-se o boato de que não está ninguém na Torre e de que fugiram todos. Portanto queiram chegar à janela para sossegar o povo.

       O rei, que ignorava o que se passava, não viu inconveniente em obedecer.

       Fez pois um movimento para chegar à janela.

       Mas Danjou deteve-o.

       – Não faça tal, senhor – disse ele.

       Depois, voltando-se para os oficiais da guarda nacional, disse:

       – O povo deve mostrar mais confiança nos seus magistrados.

       – Está bem – disse o oficial da guarda nacional – o que se quer é que cheguem à janela. É para lhes fazer ver o coração e a cabeça da princesa de Lamballe, e para lhes mostrar como o povo trata os seus tiranos. Aconselho-os a que cheguem à janela, se não querem que lhes tragam tudo aqui.

       A rainha deu um grito e caiu desmaiada.

       Todavia não tinha visto nada.

       O rei levantou-se ao grito da rainha, e vendo-a pálida e moribunda nos braços da princesa Isabel e da princesa real, disse:

       – Ah! Senhor, podia ter poupado tão grande desgosto à rainha.

       Depois apontando para o grupo das três senhoras, ajuntou:

       – Veja o que fez!

       O guarda nacional encolheu os ombros e saiu cantando a Carmagnole.

       Às seis horas entrou um homem para contar ao rei dois mil e quinhentos francos.

       Era o secretário de Pétion.

       Vendo a rainha em pé e imóvel, julgou que era em sinal de respeito por ele, e teve a bondade de lhe dizer que se assentasse.

       “Minha mãe sempre assim, estava – diz a princesa real nas suas Memórias – porque depois desta horrorosa cena, ficou em pé e imóvel, sem ver coisa alguma do que se passava no quarto”.

       O terror tinha-a tornado em estátua.

 

Valmy

       Agora afastemos por um instante os olhos destas horríveis cenas de carnificina, e sigamos nos grandes desfiladeiros de Argonne um dos personagens da nossa história, no qual neste momento descansam os destinos da França.

       É Dumouriez.

       Como já vimos, Dumouriez, saindo do ministério, reassumira o seu posto de general em actividade, e depois da fuga de Lafayette, recebeu o título de comandante em chefe do exército.

       Esta nomeação foi uma espécie de milagre de intuição da parte das diferentes facções.

       Com efeito Dumouriez era detestado por umas, e desprezado por outras; porém, mais feliz do que foi Danton no dia 2 de Setembro, reconheceu-se que podia salvar a França.

       Os girondinos que o nomearam, odiavam a Dumouriez; tinham-no feito entrar no ministério, e o general depois não fizera caso deles. Todavia, foram buscá-lo ao exército do Norte e nomearam-no comandante em Chefe.

       Os Jacobinos não só odiavam se não que também desprezavam Dumouriez. Contudo conheceram que a primeira ambição daquele homem era a glória, e que ele havia de vencer ou morreria. Robespierre, que não se atrevia a sustentá-lo, pela má reputação do general, fez com que Couthon sustentasse.

       Danton nem odiava nem desprezava Dumouriez. Era um destes homens de têmpera forte, que julgam as coisas de alto, que não curam das reputações e que estão prontos a aproveitar os próprios vícios, se os vícios, lhes podem dar os resultados, que as virtudes lhes recusam.

       Porém Danton, apesar de conhecer o partido que podia tirar de Dumouriez, desconfiava da estabilidade dele. Enviou-lhe dois homens; um foi Fabre d'Églantine, isto é, o seu pensamento; o outro foi Westermann, isto é o seu braço.

       Entregaram todas as forças da França àquele homem, o que parece um paradoxo, pois quase todos o alcunhavam de intrigante.

       O velho Cucker, soldado alemão, que tinha mostrado a sua incapacidade no começo da campanha, foi mandado a Châlons para levantar recrutas.

       Dillon, soldado valente, general distinto, mais elevado do que Dumouriez na hierarquia militar, recebeu ordem de lhe obedecer.

       Kellermann também foi posto às ordens daquele homem, a quem a França aflita entregava a espada, dizendo-lhe:

       “Só a ti conheço capaz de me defender; defende-me pois”.

       Kellermann rosnou, praguejou, mas obedeceu.

       Porém obedeceu mal. Foi preciso ouvir o estampido da artilharia para o tornar o que realmente era, um filho dedicado à pátria.

       Mas por que razão os aliados, cujas marchas deviam ser seguidas até Paris, paravam de repente depois da tomada de Longwy, e depois de se render Verdun?

       Entre eles e Paris estava levantado um espectro.

       O espectro era Beaurepaire.

       Beaurepaire, antigo oficial de carabineiros, tinha formado o batalhão de Marne e Loire, que comandava. No momento em que o inimigo pôs o pé em território francês, atravessou ele a França a marche-marche de Oeste a Leste.

       Encontrou no caminho um deputado patriota que voltava para a terra.

       – Que hei-de dizer da parte de vocês às suas famílias? – perguntou o deputado aos soldados.

       – Que morremos – respondeu uma voz.

       – Nenhum espartano marchando para as Termópilas deu resposta mais sublime.

       O inimigo chegou diante de Verdun, como já dissemos. Foi a 30 de Agosto de 1792. A 31 intimou a cidade para que se rendesse.

       Beaurepaire e os seus soldados queriam combater até à morte.

       O conselho de defesa, composto por camaristas e pelos principais habitantes da cidade, ordenou-lhes que se rendesse.

       Beaurepaire sorriu-se desdenhosamente.

       – Fiz juramento de antes morrer do que render-me. Sobreviverei à vossa vergonha e desonra, se assim o quereis, mas fico fiel ao meu juramento. Eis a minha resolução inabalável: Morro.

       E fez saltar os miolos.

       Este espectro era tão grande e mais terrível do que o gigante Adamastor.

       Então, os soberanos aliados, que julgavam pelo que lhes diziam alguns emigrados, que a França ia fugir diante deles, viram que a coisa era outra.

       Viam esta terra de França tão fecunda e povoada, transformada num deserto como tocada por vara mágica. Os cereais tinham desaparecido como se a terra os houvesse engolido.

       Só o camponês armado estava de pé no rego que sulcara. Os que tinham espingardas haviam pegado nas espingardas; os que só tinham fouces haviam pegado nas fouces; e os que unicamente tinham forcados haviam pegado nos forcados.

       Além disto o tempo tinha-se declarado pela França. Uma chuva copiosa molhava os homens, encharcava as terras e desfazia os caminhos.

       É verdade que esta chuva tanto caiu para uns como para outros, tanto para os franceses como para os prussianos.

       Porém era em socorro dos franceses e era hostil aos prussianos.

       O camponês, que para o inimigo só tinha a espingarda, o forcado ou a fouce, ou pior do que tudo isto, frutos verdes, o camponês tinha para os seus compatriotas escondido o copo de vinho, a garrafa de cerveja enterrada no celeiro e a palha seca, verdadeira cama do soldado, espalhada pelo chão.

       Cometeram-se faltas sobre faltas, e Dumouriez foi o primeiro que as cometeu; nas suas Memórias conta ele tanto as suas como as dos outros.

       Tinha escrito à Assembléia Nacional: os desfiladeiros de Argonne são as Termópilas da França; podeis porém estar descansados, mais feliz do que Leónidas, decerto não morrerei.

       E fez mal em guardar os desfiladeiros de Argonne porque um deles foi tomado e ele viu-se obrigado a retirar.

       Dois dos seus tenentes estavam perdidos. E ele também estava separado e quase perdido só com 15000 homens, e estes em tal desmoralização, que por duas vezes fugiram adiante de 1500 hussards. Só ele não desanimou, conservou sempre confiança e até alegria, escrevendo aos ministros: “Respondo por tudo”. E com efeito, perseguido, torneado, cortado, reuniu-se com os 10000 homens de Bournouville, e com os 15000 de Kallermann. Tornou a recobrar os seus generais perdidos e a 19 estabeleceu-se no campo de Saint-Menchould, estendendo à direita e à esquerda as mãos sobre 76000 homens, quando os prussianos só tinham 70000.

       É verdade que aquele exército muitas vezes murmurava. Às vezes, estava dois ou três dias sem pão.

       Então Dumouriez envolvia-se com os soldados e dizia-lhes amavelmente:

       – Meus amigos, o famoso marechal de Saxe fez um livro sobre a guerra, no qual diz que ao menos uma vez por semana é necessário fazer com que falte o pão aos soldados, para, em caso de necessidade, se tornarem menos sensíveis a esta privação.

       “Estamos neste caso, e somos menos dignos de lástima do que os prussianos, que estão defronte de nós, que passam às vezes quatro dias sem comer pão e que comem os cavalos que lhes morrem. Os meus soldados têm presuntos, arroz e farinha. Façam bolos, que a liberdade os cozerá!”

       Além disto ainda havia outra coisa pior; era a escória de Paris, a canalha de 2 de Setembro, que tinha sido empurrada para o exército. Todos estes miseráveis tinham ido cantando o Çá ira, gritando que não consentiriam de nenhum modo, nem dragonas, nem chapéus de plumas, nem hábitos de S. Luís.

       Chegaram assim ao campo, mas ficaram admirados por se verem isolados. Ninguém respondeu nem às suas ameaças, nem às suas proposições.

       O general anunciou uma revista para o dia seguinte.

       No dia seguinte os recém-chegados, por uma manobra de antemão preparada, acharam-se entre a cavalaria numerosa e hostil, pronta a acutilá-los, e a artilharia ameaçadora, pronta a metralhá-los.

       Então Dumouriez dirigindo-se a estes homens, que formavam sete batalhões, disse-lhes:

       – Vós outros, a quem não quero chamar nem soldados, nem cidadãos, nem meus filhos, vede diante de vós esta cavalaria, na vossa retaguarda a artilharia, isto quer dizer que estais entre o ferro e o fogo.

       “Tendes-vos desonrado por toda a sorte de crimes, e eu não consentirei aqui nem assassinos nem algozes. À menor desordem mando-vos fazer em pedaços. Se vos emendardes, se vos conduzirdes como este valente exército, em que tivestes a honra de ser admitidos, achareis em mim um bom pai. Sei que entre vós há malvados encarregados de vos impelir ao crime, despedi-os vós mesmos ou declarai-me quem são. Uns ficam responsáveis pelos outros”.

       E não só aqueles homens curvaram a cabeça e tornaram-se excelentes soldados; não só expulsaram os indignos, mas até fizeram em pedaços o miserável Charlot, que tinha ferido a princesa de Lamballe, e que lhe tinha espetado a cabeça numa lança.

       Foi nesta situação que esperaram Kellermann, sem o qual não se podia fazer nada.

       A 19 Dumouriez recebeu parte de que ele estava a duas léguas dali, à sua esquerda.

       Dumouriez enviou-lhe imediatamente as suas ordens.

       Mandou-lhe dizer que no dia seguinte fosse ocupar o campo entre Dampierre e l'Élise, atrás de Lauve.

       O sítio foi muito bem designado.

       Ao mesmo tempo que Dumouriez enviava esta ordem a Kellermann, via desenvolver diante de si sobre as montanhas da Lua o exército prussiano; de sorte que os prussianos achavam-se entre ele e Paris e portanto mais pertos de Paris do que ele.

       Havia toda a probabilidade de que os prussianos quisessem travar batalha.

       Por conseqüência, Dumouriez mandou dizer a Kellermann que tomasse posições de combate sobre as alturas do moinho, entre Valmy e Gizaucourt.

       Kellermann confundiu o seu campo com o campo do combate. Fez alto nas alturas de Valmy.

       Foi um grande erro.

       Nesta posição Kellermann não podia voltar-se sem fazer passar o seu exército por um estreito e grande desfiladeiro.

       Não podia dobrar sobre a esquerda de Dumouriez sem atravessar um imenso pântano.

       Não podia voltar para a direita senão por um vale profundo, onde seria esmagado.

       A retirada não lhe era possível.

       Seria isto o que tinha pretendido o velho soldado alsaciano?

       Um belo sítio para morrer ou vencer.

       Brunswick olhava atónito para os franceses.

       – Os que ali estão – disse ele ao rei da Prússia – estão decididos a não recuar.

       Mas fizeram crer ao exército prussiano que Dumouriez estava cortado, e asseguraram-lhe que este exército de vagabundos e miseráveis, como lhes chamavam os emigrados, se dispersaria aos primeiros tiros, que se disparassem.

       Tinham-se descuidado de fazer ocupar as alturas de Gizaucourt pelo general Chazot, que estava postado no caminho de Châlons, alturas donde teriam batido os prussianos pelo flanco.

       Os prussianos aproveitaram o descuido, e postaram-se ali.

       O dia nasceu muito enevoado. Mas pouco importava, porque os prussianos sabiam onde estava o exército francês.

       Estava nas alturas de Valmy e não podia estar noutra parte.

       Sessenta bocas de fogo foram disparadas ao mesmo tempo.

       Atiraram ao acaso, mas atiravam sobre as massas, e portanto pouco importava a pontaria.

       Muito custou a este exército, que sabia perfeitamente atacar, mas que não era capaz de esperar a pé firme, suportar o fogo.

       Demais o acaso foi contra os franceses.

       Os obuses dos prussianos incendiaram algumas carretas de pólvora.

       Os condutores saltaram dos cavalos para se colocarem ao abrigo da explosão.

       Tomaram-nos por fugitivos.

       Kellermann guiou o cavalo para este sítio, onde tudo era confusão e desordem.

       De repente viu-se cair ele e o cavalo como feridos por um raio.

       O cavalo fora atravessado por uma bala; o cavaleiro, felizmente não teve nada. Montou noutro cavalo, e reuniu os batalhões, que estavam em desordem.

       Davam onze horas da manhã e o nevoeiro começava a dissipar-se.

       Kellermann viu os prussianos, que formavam sossegadamente em três colunas para atacarem a plataforma de Valmy.

       Formou os seus soldados também em três colunas, e correndo toda a linha, bradou:

       – Soldados, nem um tiro; esperai o inimigo e recebei-o à baioneta.

       Depois, espetando o chapéu na ponta da espada, exclamou:

       – Viva a nação!

       Ao mesmo tempo todo o exército imitou o seu exemplo; todos os soldados espetaram os chapéus nas espadas, bradando: Viva a nação! O nevoeiro dissipou-se então de todo, e Brunswick viu aquele espectáculo extraordinário, singular, inaudito.

       Trinta mil franceses, imóveis, com a cabeça descoberta, agitando as armas e respondendo ao fogo do inimigo com o grito de “Viva a nação!”

       Brunswick abanou a cabeça. Se ele estivesse só, o exército prussiano não teria dado um passo; mas estava ali o rei; ele queria a batalha a todo o transe, era mister obedecer.

       Os prussianos avançaram com firmeza, o rei da Prússia e Brunswick seguiram-no com a vista.

       Transpuseram o espaço que os separava dos inimigos com a firmeza de um velho exército de Frederico.

       Cada homem parecia ir preso por um anel de ferro ao que o precedia.

       De repente parecia que a serpente se partira pelo meio, mas os soldados logo tornaram a unir-se.

       Passados cinco minutos, estava de novo partida e outra vez ligada.

       Vinte peças de Dumouriez tomavam-nos de flanco com um fogo mortífero.

       A cabeça não podia subir puxada continuamente para trás pelas convulsões do corpo que estava sendo esmagado pela metralha.

       Brunswick viu que era uma batalha perdida, e mandou tocar a retirar.

       O rei porém mandou carregar, pôs-se à frente dos soldados, e levou a sua dócil e valente infantaria até debaixo do fogo de Kellermann e do Dumouriez.

       Ele caiu sobre as linhas francesas.

       O quer que era de luminoso e esplêndido adejava sobre o exército da França.

       Era a fé.

       Brunswick disse:

       “Depois das guerras da religião nunca se viram fanáticos como estes”.

       Eram deveras fanáticos sublimes, fanáticos pela liberdade.

       Os heróis de 93 vinham começar esta grande conquista da guerra, que devia terminar pela conquista os espíritos.

       A 20 Dumouriez salvava a França.

       No dia seguinte a Convenção emancipava a Europa, proclamando a república!

 

O dia 21 de Setembro

       A 21 de Setembro, ao meio-dia, antes que fosse conhecida em Paris a vitória alcançada na véspera por Dumouriez, abriram-se as portas da sala do Manejo, e viu-se entrar lenta e solenemente, lançando uns aos outros olhares interrogadores, os setecentos e quarenta e nove membros que compunham a nova Assembléia.

       Destes só duzentos eram da antiga Assembléia.

       A Convenção nacional tinha sido eleita sob a impressão das notícias de Setembro. Poderia julgar-se que fosse uma Assembléia reaccionária; mas ainda tinham sido eleitos muitos nobres; tendo um pensamento democrático, convidados os criados a votarem, alguns tinham votado nos amos.

       Os novos deputados eram quase todos burgueses, médicos, advogados, professores, padres ajuramentados, literatos, jornalistas e negociantes.

       O espírito de toda esta gente era irrequieto e Vacilante; quinhentos representantes, pelo menos, não eram girondinos, nem montanheses. Os acontecimentos é que deviam determinar o lugar que ocupariam na câmara.

       Todos eram unânimes neste duplo ódio.

       Ódio contra os dias de Setembro.

       Ódio contra quase todos os deputados de Paris, que tinham sido a causa dos acontecimentos daqueles dias.

       E parecia que o sangue derramado corria pelo meio da sala do Manejo e isolava os montanheses do resto da Assembléia.

       O próprio centro, como para se afastar do regato, vermelho, pendia para a direita.

       É porque a montanha (referimo-nos aos homens e aos sucessos que acabam de ocorrer) apresentava um aspecto terrível.

       Primeiro, nos bancos inferiores estava toda a Comuna.

       Acima da Comuna estava a célebre junta de vigilância.

       Depois, da junta de vigilância como uma hidra de três cabeças, estavam três rostos terríveis, três máscaras profundamente caracterizadas.

       Primeiro do que todos, a fria e impassível figura de Robespierre, com a pele que parecia pergaminho, a testa curta e os olhos piscos e tapados pelos óculos, de mãos estendidas sobre os joelhos, à maneira das figuras egípcias talhadas no mais duro de todos os mármores, no pórfiro, Robespierre, que parecia ser o único que tinha a chave do enigma da revolução, mas a quem ninguém se atrevia a perguntar coisa alguma.

       Junto a ele Danton, com o rosto transtornado, boca à banda, com a sua máscara imóvel, caracterizado por uma sublime lealdade, com o corpo fabuloso, metade homem, metade touro, quase simpático apesar de tudo isso, porque se sentia o que fazia bater aquele coração, profundamente patriótico, coração a que as mãos sempre obedeciam, ou para derrubar um inimigo, que estivesse em pé, ou para o levantar, se estivesse no chão.

       Depois, ao lado daqueles dois rostos de tão diferente expressão, atrás deles, por cima deles aparecia, não um homem, não é possível à criatura humana assumir tanta fealdade, mas um monstro, uma quimera, uma visão terrível e ridícula.

       Marat.

       Marat, de cor acobreada, manchado de sangue e de bílis, de olhos indolentes, boca largamente rasgada, disposta para lançar, ou antes para vomitar a injúria, com o nariz torcido, vaidoso, aspirando pelas ventas abertas o bafo da popularidade.

       Marat, trajando como o mais esfarrapado dos seus admiradores, com um lenço sujo à roda da cabeça, com os sapatos cheios de tombas, com umas calças muito grosseiras e cheias de lama, com uma camisa, que deixava ver o descarnado peito; com uma gravata preta, sebenta; com as mãos grosseiras, sempre ameaçadoras, e nos intervalos das suas ameaças, metendo os grossos dedos pelas crinas que lhe cobriam a cabeça.

       Este todo, tronco do gigante sob pernas de anão, era hediondo, e quem o via queria logo afastar dele os olhos com horror.

       Mas os olhos não se afastavam tão depressa que não lessem sobre tudo: 2 de Setembro, e então a vista ficava fixa nele como sobre outra cabeça de Medusa.

       Eis os homens que os girondinos acusavam de aspirarem à ditadura.

       Eles, pela sua parte, acusavam os girondinos de quererem federalismo.

       Dois homens que estão presos por opiniões e interesses diferentes à narração que empreendemos, estavam assentados nos dois lados da câmara.

       Billot e Gilberto.

       O Dr. Gilberto na extrema direita, entre Lanjuinais e Kersaint.

       Billot na extrema esquerda, entre Thuriot e Couthon.

       Por que assim digamos, os membros da antiga Assembléia legislativa, escoltavam a revolução.

       Iam abdicar solenemente e entregar os poderes, de que estavam munidos, nas mãos dos seus sucessores.

       Francisco de Neufchâteau, último presidente da Assembléia, subiu à tribuna e tomou a palavra:

      

       “Representantes da nação, a Assembléia legislativa acabou os seus trabalhos e depõe o poder nas vossas mãos.”

       “O fim dos vossos esforços será dar aos franceses liberdade, justiça e paz. A liberdade, sem a qual não podem viver; a justiça, o mais firme fundamento da liberdade; a paz, o único fim da guerra.”

       “LIBERDADE, JUSTIÇA, PAZ, estas três palavras foram gravadas pelos gregos no templo de Delfos.”

       “Vós as gravareis em todo o terreno da França”.

      

       A Assembléia legislativa tinha durado um ano e viu três acontecimentos enormes e terríveis: O 20 de Junho, o 10 de Agosto, os 2 e 3 de Setembro.

       Deixava à França a guerra com duas potências do Norte.

       A guerra civil da Vendeia.

       Uma dívida de duzentos milhões de assinados.

       E a vitória de Valmy, ganha na véspera, e ainda de todos ignorada.

       Pétion foi nomeado presidente por aclamação.

       Condorcet, Brissot, Rabant, Saint-Étienne, Vergniaud Camus e Lasource foram nomeados secretários.

       Cinco girondinos por cada seis.

       Quase toda a Convenção, excepto trinta ou quarenta membros, queria a república.

       Mas os girondinos tinham decidido numa reunião, em casa da Srª. Roland, que não se admitiria discussão sobre a mudança de governo, senão em tempos e também certo lugar.

       Isto é, depois de se apoderarem das comissões da constituição.

       Mas em 20 de Setembro, no mesmo dia da batalha de Valmy, outros combatentes davam também uma batalha decisiva.

       Saint-Just, Lequínio, Panis, Billaud-Verennes, Collot D'Herbois e alguns outros membros da futura Assembléia jantavam no Palais-Royal.

       Resolveram que no dia seguinte a palavra República seria lançada aos seus inimigos.

       – Se a levantarem – disse Saint-Just – estão perdidos, porque fomos nós os primeiros que pronunciámos tal palavra. Se não a aceitam perdidos estão, porque opondo-se a este desejo do povo serão esmagados pela impopularidade, que reuniremos sobre as nossas cabeças.

       Collot-d’Herbois encarregou-se da moção.

       Portanto, logo que Francisco Neufchâteau entregou os poderes da antiga Assembléia à nova, Collot-d’Herbois pediu a palavra.

       Foi-lhe concedida.

       Subiu à tribuna e disse:

      

       “Cidadãos representantes, proponho que o primeiro decreto da Assembléia, que acaba de se reunir, seja a abolição da realeza”.

       Mal foram pronunciadas estas palavras elevou-se na sala e nas tribunas uma aclamação estrondosa.

       Só se levantaram dois opositores, dois republicanos muito conhecidos.

       Barrére e Quinette.

       Pediram que esperasse pelo voto do povo.

      

       “O voto do povo? Para quê? – perguntou admirado um pobre cura de aldeia – para que serve deliberar, quando todos estão de acordo?”

       “Os reis são na ordem moral o que os monstros são na ordem física; as cortes são as oficinas de todos os crimes; a história dos reis é o martirológio das nações”.

      

       Perguntaram quem era o homem que acabava de fazer aquela curta mas enérgica história dos reis.

       Poucos o conheciam. Chamava-se Grégoire.

       Os girondinos sentiram o golpe, que tão certamente lhes era dirigido.

       Iam ser preferidos pelos montanheses.

       – Não acaba a sessão enquanto não estiver redigido o decreto – gritou do seu lugar Ducos, o amigo e discípulo de Vergniaud. O decreto não carece de ser discutido, depois dos esclarecimentos do dia 10 de Agosto. Todas as considerações que podem fazer-se ao vosso decreto da abolição da realeza serão a história dos crimes de Luís XVI.

       Portanto, o equilíbrio achava-se restabelecido, os montanheses tinham pedido a abolição da realeza, mas os girondinos tinham pedido com instância o estabelecimento da república.

       A República não foi decretada; foi votada por aclamação unânime.

       Não só se lançavam no futuro para fugirem do passado, mas até iam buscar o que não conheciam pelo ódio que tinham àquilo que conheciam.

       A proclamação da República respondia a uma grande necessidade popular.

       Era a consagração da longa luta, que o povo tinha sustentado desde as Comunas; era a abolição da Jacquerie, dos Maillotins, da Liga, da Fronda, da Revolução, era o povo coroado em detrimento da realeza.

       Dir-se-ia, tão grande era a liberdade com que cada cidadão respirava, que acabavam de tirar do peito de todos o peso da realeza.

       As horas de ilusão foram curtas, mas magníficas; julgavam proclamar somente uma República e acabavam de consagrar uma revolução.

       Não importa, tinham feito uma grande coisa, que ia por mais de um século abalar o mundo.

       Os verdadeiros republicanos, ao menos os mais puros, aqueles que queriam a república isenta de crimes, aqueles que no dia seguinte iam ornar a fronte com o triunvirato, Danton, Robespierre e Marat, os Girondinos, estavam no cúmulo da alegria.

       A República era a realização do seu mais querido voto; acabavam, graças a ela, de recuperar, sobre as ruínas de vinte séculos, o tipo dos governos humanos.

       A França tivera uma Atenas no tempo de Francisco I e Luís XIV, com eles a tornar-se uma Esparta.

       Era um sonho belo, sublime.

       Para o festejarem, reuniram-se à noite em casa do ministro Roland, onde se achavam Vergniaud, Gaudet, Louvet, Pétion, Boyer-Fonfrède, Barbaroux, Gensonné, Grangeneuve, Condorcet; convivas que, no fim de um ano, deviam reunir-se num banquete ainda mais solene.

       Ali, voltando todos as costas ao dia seguinte, fechando os olhos ao futuro, lançaram voluntariamente o véu sobre o Oceano desconhecido onde entravam, e onde ouviam bramir esse abismo que, semelhante ao Maelstrom das fábulas orientais, devia engolir quando não fosse o navio, ao menos os pilotos e os marinheiros.

       Por todos eles o seu pensamento incarnara, tomara um corpo, uma forma, um aspecto; a jovem república, como Minerva, saía armada com o capacete e com a lança.

       Que mais se podia pedir?

       Durante as duas horas que durou o solene banquete, houve uma infinidade de elevados pensamentos, atrás dos quais se agrupavam grandes acontecimentos; estes homens falavam na sua vida como numa coisa que já não lhes pertencia, mas sim à nação; se fosse preciso, até a fama abandonariam.

       Havia mesmo alguns que na sua louca embriaguez viam abrir-se-lhe diante dos olhos os horizontes azulados e infinitos, que só em sonhos aparecem.

       Estes eram mancebos ardentes, que na véspera tinham entrado na mais poderosa de todas as lutas, na luta da tribuna.

       Eram Barbaroux, Rabecqui, Ducos, e Boyer-Fonfrède.

       Havia outros que pensavam e faziam alto no meio do caminho, recobrando forças para o que lhes faltava andar.

       Eram os que se tinham curvado sob os trabalhosos dias da legislativa.

       Eram os Gaudet, os Gensonné, os Grengeneuve, os Vergniaud.

       Havia finalmente outros, que, vendo-se chegados ao termo da sua carreira, compreendendo que a sua popularidade os abandonava, deitados à sombra das tenras folhas da nova árvore republicana, perguntavam com melancolia se valia bem a pena, tornarem a levantar-se, cingir os rins, pegar novamente no bordão dos viageiros para irem tropeçar no primeiro obstáculo.

       Eram Roland e Pétion.

       Mas aos olhos de todos aqueles homens qual era o chefe do futuro, qual era o principal autor, qual seria o futuro moderador da jovem república?

       Era Vergniaud.

       No fim do jantar, encheu o copo, levantou-se e disse:

       – Amigos, uma saúde.

       Todos se levantaram.

       – À eternidade da república!

       Todos repetiram:

       – À eternidade da república!

       Ia levar o copo à boca, quando a Srª. Roland exclamou:

       – Espere!

       Tinha ao peito uma rosa fresca, que acabava de abrir como a nova era, em que entravam.

       Tomou-a, e como teria feito uma ateniense no copo de Péricles, desfolhou-a no copo de Vergniaud.

       Vergniaud sorriu tristemente, despejou o copo e voltou-se para Barbaroux, que estava à sua esquerda, dizendo:

       – Ai de mim! Grande receio tenho de que esta alma generosa se engane; não são folhas de rosa, mas ramos de cipreste que temos de deitar esta noite no nosso vinho. Bebendo como brinde a uma República, cujos pés estão banhados no sangue de Setembro, Deus sabe se esta saúde é feita à nossa morte; não importa, porém – ajuntou ele, lançando para o Céu um olhar sublime – ainda que em lugar deste vinho fosse o meu sangue, bebê-lo-ia à liberdade e à igualdade.

       – Viva a República! – repetiram em coro todos os convivas.

       No momento, pouco mais ou menos em que Vergniaud fazia esta saúde, e em que os outros convivas lhe respondiam com o grito de “Viva a República” tocavam as trombetas defronte do Templo, e seguia-se um grande silêncio.

       Então do seu quarto, cujas janelas estavam abertas, o rei e a rainha puderam ouvir um membro da municipalidade que, com voz firme, sonora, retumbante, proclamava a abolição da realeza e o estabelecimento da República.

 

A lenda do rei mártir

       Tem-se visto com que imparcialidade temos, servindo-nos sempre da forma do romance, posto aqui perante os olhos dos nossos leitores o que houve de terrível, de cruel, e de bom, de grande e belo nos homens e nos acontecimentos que se sucederam.

       Hoje os homens de que falámos, estão mortos; só os acontecimentos – imortalizados pela história – os acontecimentos que não morrem, estão ainda de pé.

       Não importa; nós podemos evocar da sepultura todos esses cadáveres que nela estão deitados, e dos quais poucos morreram tendo preenchido os fins da sua vida; podemos dizer a Mirabeau, tribuno, levanta-te; a Luís XVI, senhor, levantai-vos; levantai-vos vós todos, a quem chamavam Favras, Lafayette, Bailly, Fournier o Americano, Jourdain corta-cabeças, Maillard, Théroigne de Méricourt, Barnave, Bouillé, Gamain, Pétion, Manuel, Danton, Robespierre, Marat, Vergniaud, Dumouriez, Maria Antonieta, a Srª. Campan, Barbaroux, Roland, a Srª. Roland, o rei e a rainha, artistas, operários, tribunos, generais, assassinos, e publicistas, levantai-vos, e dizei se não vos apresentei à minha geração, ao povo, principalmente às mulheres, isto é, às mães de nossos filhos, a quem de todo o coração quero contar a história.

       Nós podemos dizer aos acontecimentos ainda de pé nos dois lados da estrada que temos percorrido: “Grande e luminoso dia 14 de Julho; sombrias e ameaçadoras noites de 5 e 6 de Outubro; sangrenta borrasca do Campo de Marte, em que a pólvora se misturou com o raio e o estampido dos canhões com o ribombar do trovão; profética invasão de 20 de Junho; terrível vitória de 10 de Agosto; execrável memória dos dias 2 e 3 de Setembro, tentei absolver-vos ou condenar-vos?”

       E os homens e os acontecimentos responderão:

       – Procuraste a verdade sem ódio, sem paixão; conservastes-te fiel a todas as glórias do passado, insensível a todos os deslumbramentos do presente, confiado em todas as promessas.

       Sede absolvido, se não louvado.

       Pois bem! O que temos feito, não como juiz escolhido, mas como narrador imparcial, vamos fazê-lo até ao fim, do qual, cada passo mais nos aproxima rapidamente; corremos pelo declive dos acontecimentos, e há pouco onde parar desde 21 de Setembro, dia da morte da realeza, até 21 de Janeiro, dia da morte do rei.

       Ouvimos a proclamação da República, feita debaixo das janelas da prisão real pela voz forte do membro da municipalidade Lubin, e esta proclamação levou-nos ao Templo.

       Entremos pois no sombrio edifício, que encerra um rei tornado homem, uma rainha que ficou rainha, uma virgem que virá a ser mártir, e duas pobres crianças, inocentes pela idade; senão pelo nascimento.

       O rei estava no Templo, e quiseram tornar-lhe vergonhosa a prisão, que ocupava?

       Não.

       Pétion teve primeiramente a idéia de o transportar ao centro da França, de lhe dar Chambord e de o tratar como rei deposto.

       Supondo que todos os soberanos da Europa impunham silêncio aos ministros, aos seus generais, aos seus manifestos, e se contentavam de ver o que se passava em França, sem quererem intrometer-se na política interna dos franceses, essa deposição, de 10 de Agosto, essa existência num belo palácio, num belo clima, no meio do que se chama o jardim da França, não era decerto um castigo bem cruel para o homem que expiava não só as suas faltas, mas as de Luís XV e de Luís XIV.

       A Vendeia acabava de levantar-se. Objectou-se portanto que poderia dar-se algum golpe atrevido pelo Loire.

       A razão pareceu mais que suficiente, e nunca mais se falou em Chambord.

       O Luxemburgo, palácio florentino de Maria de Médicis, com a sua polidez, com os seus jardins rivais dos das Tulherias, era uma residência não menos conveniente para um rei deposto, que a de Chambord.

       Objectaram que o palácio tinha subterrâneos, que davam para as Catacumbas. Talvez que isso não passasse de um pretexto da Comuna, que queria ter o rei debaixo da mão; não era um pretexto um tanto ou quanto plausível.

       A Comuna votou pois pelo Templo.

       Por isto entendia-se, não a torre do Templo, mas o palácio, antiga comendadoria dos chefes de uma ordem, uma das casas de recreio do conde de Artois.

       No momento de trasladação, talvez mais tarde, depois de Pétion conduzir a família real ao palácio, depois de ali estar instalada, quando Luís XVI fazia as suas disposições de arranjo de casa, chegou uma denúncia à Comuna; em conseqüência disso enviaram Manuel para mudar a última vez a determinação da municipalidade e para ser substituído o castelo pela torre. Manuel chegou a examinar o local destinado para residência de Luís XVI e de Maria Antonieta e desceu muito envergonhado.

       A torre estava incapaz de ser habitada; ocupada só por uma espécie de porteiro, apresentava lugar insuficiente, quartos estreitos, e leitos imundos e cheios de bichos.

       Havia em tudo isso mais fatalidade do que premeditação infame da parte dos juízes.

       A Assembléia Nacional pela sua parte, não tinha regateado a respeito das despesas do rei. O rei comia muito; não é uma censura que lhe fazemos; é do temperamento dos Bourbons serem grandes comilões; porém o rei comia em ocasiões impróprias. O rei comia e com grande apetite, enquanto nas Tulherias estavam matando os seus servidores; não só os juízes que lhe lançavam em rosto o comer em ocasiões de aflição, mas o que é mais grave, a história, a implacável história registrou-o nos seus arquivos.

       A Assembléia Nacional tinha votado 500.000 libras para despesas de cozinha do rei.

       Durante os quatro meses que o rei esteve no Templo, a despesa foi de 40.000 libras por mês.

       Trezentos e trinta e três francos por dia; verdade é que em assinados, mas nessa época nos assinados perdia-se apenas 6 ou 8 por cento.

       Luís XVI tinha no Templo três criados e treze empregados de ucharia.

       O seu jantar constava todos os dias de quatro entradas, de dois assados, cada um de três peças, de quatro pratos de meio, de três compotas, de três pratos de fruta, de meia garrafa de Bordéus, meia garrafa de malvasia e de meia garrafa de Madeira.

       Ele e o delfim eram os únicos que bebiam vinho; a rainha e as princesas só bebiam água.

       Por este lado, materialmente, o rei não era digno de lástima.

       Mas o que lhe faltava era ar, onde passear, sol e sombra.

       Habituado às caçadas de Compiègne e de Rambouillet, aos parques de Versalhes e do grande Trianon, Luís XVI achou-se de repente reduzido, não a um pátio, não a um jardim, não a um passeio, mas a um terreno seco, nu, com quatro canteiros de erva seca, com algumas árvores miseráveis e desfolhadas pelo vento do Outono.

       Todos os dias, às duas horas, o rei passeava ali com a sua família. Enganámo-nos: todos os dias era ali o rei passeado com a sua família.

       Era inaudito, cruel, feroz; mas menos feroz, menos cruel do que os subterrâneos da inquisição em Madrid, do que o segredo do conselho dos Dez em Veneza, do que as masmorras de Spielberg.

       Notai bem isto: não desculpamos a Comuna, assim como não desculpamos os reis; dizemos porém que o Templo não era mais do que uma represália, terrível, fatal, porque de um julgamento faziam uma perseguição, de um culpado, um mártir.

       Qual era porém o aspecto dos diferentes personagens, que empreendemos seguir nas fases principais da sua vida?

       O rei, com a vista míope, as faces encovadas, os beiços caídos, com andar pesado e balanceando, parecia um bom rendeiro ferido por algum revés; a sua melancolia era a de um agricultor, a quem uma tempestade destruísse as sementeiras.

       A atitude da rainha era, como sempre, altiva e soberanamente provocadora, tinha inspirado amor no tempo da sua grandeza, na hora da sua desgraça inspirou dedicação.

       Piedade não, a piedade nasce da simpatia, e a rainha nada tinha de simpática.

       A princesa Isabel, com o seu vestido branco, símbolo da pureza da sua alma e do seu corpo, com os cabelos louros, agora mais lindos porque não andavam empoados, com uma fita azul na cintura, parecia o anjo da guarda de toda a família.

       A princesa real, apesar dos encantos da sua idade, causava pouco interesse; toda Austríaca como sua mãe, toda Maria Antonieta e Maria Teresa, já tinha o olhar, o desprezo, a fereza das raças reais e das aves de presa.

       O pequeno delfim, com os cabelos de ouro, com a tez branca, um pouco doente, era interessante; tinha todavia o olhar duro, compreendia tudo, seguia as indicações que lhe dava a mãe, e tinha às vezes ditos, que chegavam a arrancar lágrimas, dos olhos dos seus algozes.

       A pobre criança chegou a impressionar o próprio Chaumette, essa fuinha de focinho comprido, essa doninha de óculos.

       – Hei-de mandá-lo educar – dizia ele ao Sr. Hue escudeiro do rei – mas é preciso afastá-lo da família, para que perca a idéia da jerarquia.

       Com efeito a Comuna era ao mesmo tempo cruel e imprudente, cruel por rodear a família real de maus tratos, de vexames e até de injúrias.

       Imprudente, por deixar presenciar o espectáculo da sua crueldade.

       Todos os dias mandavam para o Templo guardas novos, sob o nome de municipais; entravam inimigos encarniçados do rei, saíam inimigos de Maria Antonieta, mas quase todos deplorando o rei, deplorando as crianças, glorificando a princesa Isabel.

       De feito, o que viam no Templo? Em lugar do lobo, da loba e dos lobinhos, viam uma família de burgueses, a mãe um pouco altiva, uma espécie de Elmira, que nem sequer sofria que lhe tocassem no vestido, mas de tiranos nem sinal.

       Como passava a família os dias no Templo? Digamo-lo, segundo Cléry.

       Lancemos em primeiro lugar a vista sobre a prisão, que depois a dirigiremos sobre os presos.

       O rei estava encerrado na torre pequena.

       A torre pequena ficava encostada à grande, sem comunicação interior: formava um quadrilongo, flanqueado por duas torrinhas, numa das quais havia uma escada, que do primeiro andar ia dar a uma galeria sobre a plataforma.

       Na outra torrinha ficavam os gabinetes, que correspondiam a cada andar da torre.

       O corpo do edifício tinha quatro andares; o primeiro constava de uma antecâmara, uma casa de jantar, e um gabinete onde havia uma biblioteca de mil e quinhentos volumes.

       O segundo andar era dividido, quase da mesma maneira; a casa maior era o quarto da rainha e do delfim; a outra casa, separada da primeira por uma antecâmara muito escura, era ocupada pela princesa real e pela princesa Isabel.

       Era preciso atravessar esta antecâmara para entrar no gabinete da torrinha, que não era outra coisa senão o que os ingleses chamam Walter-Closett, e era comum à família real, aos membros da municipalidade e aos soldados.

       O rei habitava no terceiro andar, com a mesma divisão de casas, aproximadamente. Dormia na câmara grande. O gabinete da torrinha servia-lhe de gabinete de leitura; ao lado ficava uma cozinha separada por uma casa escura, e era a que tinham habitado nos primeiros dias, antes que fossem separados do rei, os srs. de Chamilly e de Hue, e em que depois da partida deste último tinham posto selos.

       O quarto andar estava fechado.

       Em baixo ficavam as cozinhas, de que não se serviam.

       Agora vejamos como a família real vivia neste estreito palácio.

       O rei levantava-se ordinariamente às seis horas da manhã; fazia a barba a si. Cléry penteava-o e vestia-o. Depois de vestido e penteado, passava ao gabinete de leitura, isto é, à biblioteca dos arquivos da ordem de Malta que, como já dissemos, continha mil e quinhentos, talvez possamos dizer mil e seiscentos volumes.

       Um dia o rei, procurando ali livros, mostrou com o dedo ao Sr. de Hue as obras de Voltaire e de Rousseau.

       O rei disse em voz baixa:

       – Veja! São estes os dois homens que deitaram a perder a França.

       Entrando na biblioteca, Luís XVI ajoelhava e rezava cinco ou seis minutos, depois lia até às nove horas. Entretanto, Cléry arranjava o quarto do rei, preparava o almoço e descia ao quarto da rainha.

       Ali assentava-se o rei e passava o tempo traduzindo Virgílio ou alguma ode de Horácio.

       O rei tinha-se aplicado ao latim para continuar a educação do filho.

       Esta casa era muito pequena e a porta estava sempre aberta.

       O membro da municipalidade estava no quarto de dormir e pela porta aberta via o que o rei fazia.

       A rainha não abria a porta senão quando chegava Cléry, e isto para que, estando fechada, o membro da municipalidade não pudesse entrar no quarto.

       Então Cléry penteava o príncipe, arranjava a toilette da rainha, e passava ao quarto da princesa Isabel e da princesa real para fazer o mesmo serviço.

       Este momento de toilette, rápido e precioso ao mesmo tempo, era aquele em que Cléry podia participar à rainha e às princesas o que se passava fora; um sinal que ele fazia, indicava que tinha alguma coisa que dizer; a rainha ou uma das princesas conversava então com o membro da municipalidade, e Cléry aproveitava a distracção deste para dizer depressa o que tinha a dizer.

       Às onze horas, a rainha, as duas crianças e a princesa Isabel subiam ao quarto do rei, onde estavam servindo o almoço; entretanto Cléry arranjava os quartos da rainha e das princesas. Um homem e uma mulher por apelido Tison que para ali foram, sob pretexto de ajudarem a Cléry no seu serviço, mas realmente para servirem de espiões da família real e dos membros da municipalidade, fingiam ajudar o escudeiro do delfim.

       Um deles, o marido, antigo comissário das barreiras, era um velho duro e mau, incapaz de possuir sentimento algum de humanidade.

       A mulher amava muito uma filha que tinha, e enlevada por este amor denunciou a rainha com a esperança de tornar assim a ver a filha.

       Às dez horas da manhã descia o rei ao quarto da sua esposa e ali passava o dia; ocupava-se quase exclusivamente na educação do delfim, fazia-lhe repetir alguma passagem de Corneille ou de Racine, dava-lhe lição de geografia e exercitava-o em desenho de perspectiva em que era hábil.

       Havia três anos que a França estava dividida em departamentos, e era com especialidade esta geografia que o rei ensinava ao seu filho.

       A rainha, pela sua parte, curava da educação da princesa real, educação que algumas vezes interrompia para cair em sombrias e profundas meditações; então a princesa real, para a deixar toda entregue àquela dor desconhecida, que ao menos tinha o lenitivo do pranto, afastava-se nos bicos dos pés, fazendo sinal ao irmão para que estivesse calado.

       A meditação da rainha durava mais ou menos tempo; aos cantos das pálpebras apareciam as lágrimas, que, deslizando pela face iam cair-lhe sobre as mãos emagrecidas, e então a prisioneira quase sempre livre no domínio imenso do pensamento, no campo ilimitado das recordações, saía de repente do seu sonho, e olhando em volta de si, tornava a entrar de cabeça curvada na sua prisão.

       Ao meio-dia, as três princesas entravam no quarto da princesa Isabel para mudarem de vestido.

       O pudor da Comuna tinha reservado este momento para a solidão; nenhum membro da municipalidade seguia as presas.

       À uma hora, descia a família real ao jardim.

       Era sempre acompanhada por quatro membros da municipalidade e por um chefe da legião da guarda nacional.

       Como no Templo haviam muitos operários ocupados em demolir as casas e em construir paredes novas, os presos não podiam andar senão pela rua dos castanheiros.

       Cléry também acompanhava a família real e dava algum exercício ao delfim, jogando com ele a péla.

       Às duas horas subiam à torre: Cléry servia o jantar e todos os dias a estas horas, Santerre ia ao Templo acompanhado por dois ajudantes de campo, e visitava então escrupulosamente os quartos do rei e da rainha.

       O rei dirigia-lhe a palavra algumas vezes.

       A rainha nunca.

       Tinha esquecido o 20 de Junho e quanto devia àquele homem.

       Depois do jantar desciam ao primeiro andar: o rei jogava as damas ou o gamão com a rainha.

       Então jantava Cléry.

       Às quatro horas o rei acomodava-se para dormir a sesta numa marquesa ou numa grande poltrona. Então seguia-se o mais profundo silêncio; as princesas pegavam num livro ou nalguma obra de agulha, e todos ficavam imóveis, até o pequeno delfim.

       Luís XVI passava da vigília ao sono quase sem transição.

       As necessidades físicas, já o dissemos, imperavam no rei.

       O rei dormia regularmente a sesta por hora e meia ou por duas horas.

       Quando acordava, continuava a conversação, chamava-se Cléry, que nunca estava longe e vinha ensinar a ler o delfim. Acabada a lição, conduzia o príncipe ao quarto da princesa Isabel, e ali jogava com ela a péla.

       Chegada a noite, todos se assentavam a uma mesa: a rainha lia então em voz alta alguma coisa própria para divertir as crianças; a princesa Isabel substituía a rainha quando estava cansada.

       A leitura durava até às 8 horas. A esta hora ceava o delfim no quarto da princesa Isabel; a família real assistia a esta ceia, enquanto o rei, pegando numa colecção do Mercúrio que achara na biblioteca, divertia-se a fazer com que os filhos adivinhassem charadas e enigmas.

       Depois do delfim cear, a rainha fazia-o rezar esta oração:

       “Deus Omnipotente, que me criastes e resgatastes, adoro-vos; conservai a vida de meu pai e das pessoas da minha família; protegei-nos contra nossos inimigos: dai à Srª. de Tourzel forças para suportar o que sofre por nossa causa”.

       Depois da oração, Cléry, despia e deitava o delfim; uma das princesas ficava com ele até que adormecesse; era neste momento que Cléry, se tinha algumas notícias que dar à família real lhe dizia o que sabia.

       No Templo não entrava jornal algum; mas todos os dias por ali passava um pregoeiro, que anunciava as notícias; Cléry ouvia-as e contava-as ao rei.

       Às nove horas ceava o rei.

       Cléry levava numa bandeja a ceia da princesa, que estava ao pé da cama do delfim. Depois da ceia, o rei entrava no quarto da rainha, dava-lhe, assim como a sua irmã, a mão em sinal de despedida, abraçava as crianças e retirava-se à biblioteca, onde lia até à meia-noite.

       As princesas fechavam-se nos seus quartos; um dos membros da municipalidade ficava na casa que separava os dois quartos; o outro acompanhava o rei.

       Cléry colocava então a sua cama junto da do rei; este esperava para se deitar que chegasse o membro da municipalidade, que entrava de serviço, para ver se o conhecia e se já o tinha visto.

       Os membros da municipalidade eram rendidos às onze horas da manhã, às cinco da tarde e à meia-noite.

       Este género de vida, sem mudança alguma, durou até 30 de Setembro.

       Bem se vê que era triste a situação, e tanto mais digna de compaixão porquanto era resignadamente suportada.

       Portanto os mais desalmados tornavam-se dóceis ao ver isto.

       Iam ali para vigiar um tirano abominável, que tinha arruinado a França, assassinado os franceses, e chamado os estrangeiros, e uma rainha, que tinha reunido as lubricidades de Messalina às devassidões de Catarina II.

       E encontravam um bom homem, vestido grosseiramente, que se confundia com o seu escudeiro, que comia bem, bebia bem, jogava o gamão, ensinava latim e geografia ao filho e dava charadas e enigmas a decifrar a sua mulher e a sua irmã.

       Uma senhora, sem dúvida soberba e desdenhosa, mas digna, sossegada, resignada, ainda mais bela ensinando a filhinha a bordar, o filho a rezar, falando docemente aos criados, e tratando o escudeiro por meu amigo.

       Os primeiros momentos eram de ódio. Cada um destes homens, vindo com sentimento de animosidade começava a dar curso a estes sentimentos, e a pouco e pouco ia-se compadecendo.

       Saindo de sua casa pela manhã ameaçador e com a cabeça levantada, recolhia-se à noite triste e cabisbaixo.

       A mulher esperava-o curiosa.

       – Ah! És tu? – dizia ela.

       – Sim – respondia ele laconicamente.

       – E então viste o tirano?

       –Vi.

       – É muito feroz?

       – Parece um rendeiro do Marais.

       – Que faz ele? Há-de estar desesperado, maldizendo a república...

       – Passa o tempo a ensinar os filhos a jogar o gamão com a irmã, e a decifrar enigmas para distrair a mulher.

       – Então o desgraçado não tem remorsos?

       – Vi-o comer, e come como um homem que tem a consciência tranqüila; vi-o dormir, e afianço que não tem pesadelos.

       Então a mulher do membro da municipalidade também se tornava pensativa.

       – Mas então – dizia ela – não é tão cruel e culpado como se diz?

       – Quanto a culpado, não sei; cruel, afianço que não é.

       – Pobre homem! – dizia a mulher.

       Eis o que sucedia, quanto mais a Comuna abatia o preso, quanto mais queria mostrar que era um homem como outro qualquer, mais compaixão causava àqueles que o reconheciam por seu semelhante.

       Esta compaixão às vezes manifestava-se directamente ao rei, ao delfim e à rainha.

       Um dia, estava um canteiro fazendo buracos nas ombreiras da antecâmara para ali colocar enormes ferrolhos. Enquanto o canteiro almoçava, divertia-se o delfim a brincar com a ferramenta.

       Então o rei tomou o martelo e o escopo das mãos do menino, e, como serralheiro hábil que era, ensinou-lhe a servir-se daquela ferramenta.

       O canteiro, do sítio em que estava assentado e onde comia o seu pão e um pedaço de queijo, viu admirado o que se passava.

       Não se tinha levantado na presença do rei ou da rainha.

       Levantou-se diante do homem e da criança.

       Depois, aproximando-se ainda com a boca cheia, mas com o chapéu na mão, disse:

       – Está bem! Quando sairdes desta torre, podeis gabar-vos de terdes trabalhado na vossa própria prisão.

       – Ah! – respondeu o rei – quando e como sairei?

       O delfim pôs-se a chorar, o canteiro enxugou uma lágrima. O rei deixou cair o martelo e o escopo, e retirou-se ao seu quarto, onde por muito tempo passeou de um lado para o outro.

       Noutro dia, um soldado estava de sentinela à porta do quarto da rainha.

       Era um homem grosseiro, mal vestido, mas asseado.

       Cléry estava só no quarto lendo.

       A sentinela olhava para ele com profunda atenção.

       Passado um instante, Cléry vendo que o seu serviço o chamava a outra parte, levantou-se e quis sair.

       Mas a sentinela, apresentando-lhe a arma, disse-lhe em voz baixa, tímida, e quase trémula:

       – Não se passa.

       – Por quê? – perguntou Cléry.

       – Porque me deram ordens para o não perder de vista.

       – A mim! – disse Cléry; – decerto está enganado.

       – Não é o rei?

       – Ah! Não conhece o rei?

       – Nunca o vi, senhor; e a falar a verdade, antes queria vê-lo em outra parte e não aqui.

       – Fale baixo – disse Cléry.

       Depois, designando uma porta continuou:

       – Vou entrar naquele quarto e então verá o rei, está assentado ao pé da porta a ler.

       Cléry entrou no quarto e disse ao rei o que acabava de se passar.

       Então o rei levantou-se e passeou de uma casa para outra, para que o pobre homem o visse à sua vontade.

       Portanto, não duvidando de que era por sua causa que o rei se incomodava, disse a Cléry:

       – Ah! Senhor! Como o rei é bom; quanto a mim, não posso acreditar de maneira alguma que fizesse todo o mal que nos dizem.

       Outra sentinela, colocada no fim da rua do jardim, por onde passeavam, fez um dia compreender à família real que tinha algumas notícias a dar-lhe.

       Na primeira volta do passeio ninguém lhe entendeu os sinais.

       Mas na segunda volta, chegou-se a ele a princesa Isabel para ver se queria falar-lhe.

       Mas, fosse timidez ou respeito, o mancebo, que tinha figura distinta, ficou calado.

       Porém dos olhos escaparam-se-lhe duas lágrimas, e apontou com o dedo para um monte de entulho, onde provavelmente estava escondida uma carta.

       Cléry, sob pretexto de procurar o quer que fosse para o delfim, começou a revolver o entulho; porém os membros da municipalidade, desconfiando sem dúvida do que fazia, mandaram-no retirar e proibiram-lhe, sob pena de ser separado do rei, de tornar a falar às sentinelas.

       Mas nem todos eram assim. Muitos tinham o ódio e a vingança tão arraigados no coração, que este espectáculo de uma desgraça real, suportada com tanta resignação, não os comovia.

       Assim, por contraste aos exemplos de tristeza e de enternecimento, que apontamos, o rei e a rainha tiveram algumas vezes que suportar grosserias, insultos e até ameaças.

       Um dia um membro da municipalidade de serviço ao pé do rei, chamado James, professor de inglês, fez o propósito de andar atrás do rei, como se fora a sua sombra, e não o deixava.

       O rei entrou no seu gabinete de leitura, o membro da municipalidade entrou também e assentou-se.

       – Senhor – disse então o rei com a sua doçura habitual – os seus colegas estão no costume de me deixar só, porque ficando a porta aberta podem ver o que faço.

       – Os meus colegas – respondeu James – fazem o que entendem e eu o que quero.

       – Far-lhe-ei observar – replicou o rei – que a casa é tão pequena que mal podem estar aqui duas pessoas.

       – Então passe para outra maior – respondeu brutalmente o membro da municipalidade.

       O rei levantou-se sem dizer mais nada e entrou no seu quarto vendo-o seguir o professor inglês, que continuou a observá-lo até ao momento em que foi rendido.

       Uma manhã o rei tomou o membro da municipalidade, que estava de guarda, por aquele que vira na véspera; já dissemos que à meia-noite eram rendidos.

       Foi ter com ele e disse-lhe com ar de interesse:

       – Tenho muita pena de que se esquecessem de o vir render – disse o rei.

       – Que quer dizer? – perguntou brutalmente o guarda.

       – Quero dizer que deve estar cansado.

       – Senhor – respondeu-lhe o guarda, que se chamava Meunier – venho aqui para vigiar o que faz e não para que se ocupe do que faço.

       Depois, enterrando o chapéu na cabeça e aproximando-se do rei, ajuntou:

       – Ninguém, e o senhor menos do que qualquer outro, tem o direito de se intrometer comigo.

       Uma vez a rainha aventurou-se a dirigir a palavra a um membro da municipalidade.

       – Em que bairro mora, senhor? – perguntou ela a um desses homens que assistia ao jantar.

       – O meu bairro é a pátria – respondeu este desdenhosamente.

       – Mas parece-me – respondeu Maria Antonieta – que a pátria é a França.

       – Sim – replicou o membro da municipalidade – menos a parte em que está o inimigo, que chamaste.

       Alguns dos comissários nunca falavam do rei, da rainha, das princesas ou do delfim sem ajuntarem alguma palavra obscena ou alguma praga grosseira. Um dia um dos membros da municipalidade chamado Turlot, disse a Cléry em voz mais alta para que o rei ouvisse:

       – Se o carrasco não guilhotinasse esta família sagrada, eu mesmo a guilhotinava.

       Saindo para o passeio, o rei e a família real tinham de passar por muitas sentinelas, algumas das quais estavam postadas no interior da torre.

       Quando passavam os membros da municipalidade e os chefes, as sentinelas apresentavam armas.

       Mas quando passava o rei, ou descansavam as armas, ou voltavam as costas.

       O mesmo faziam os guardas do serviço exterior; quando o rei passava cobriam-se e assentavam-se.

       Mas os insultos ainda iam mais longe.

       Certo dia uma sentinela, não contente com apresentar a arma aos membros da municipalidade e de não a apresentar ao rei, escreveu na porta da prisão:

      

       “A guilhotina está permanente e espera o tirano Luís XVI”.

      

       A invenção era nova e por isso teve imitadores.

       Dentro em pouco as paredes do Templo, e principalmente as da escada por onde subia e descia a família real, foram cobertas de inscrições no género desta:

      

       “A Srª. Veto há-de dançar”.

       “Nós ensinaremos o porco gordo”.

       “Abaixo o cordão vermelho! É necessário estrangular os lobinhos!”

      

       Depois passaram a fazer desenhos que designavam a sua significação.

       Um destes desenhos representava um homem na forca.

       Por baixo liam-se estas palavras:

      

       “Luís tomando um banho de ar”.

      

       Mas os atormentadores mais encarniçados eram dois comensais do Templo.

       Um era o sapateiro Simão, o outro o porta-machado Rocher.

       Simão acumulava, não só era sapateiro, mas também guarda; não só guarda, mas um dos comissários encarregados de inspeccionar os trabalhos e dependências do Templo.

       Com este tríplice título nunca saía da torre.

       Este homem, a quem as crueldades exercidas sobre o delfim tornaram célebre, era o insulto personificado; todas as vezes que aparecia diante dos presos era para os injuriar.

       Se o escudeiro reclamava alguma coisa em nome do rei, então replicava:

       – Vamos com isso; que o Capeto peça de uma vez tudo o que precisa; não estou por sua causa para subir duas vezes a escada.

       Rocher esse não era mau homem; no dia 10 de Agosto tinha à porta da Assembléia Nacional tomado o delfim e fora pô-lo sobre a mesa do presidente.

       Rocher, de seleiro, que era, passou a oficial no exército de Santerre, depois a porteiro da torre.

       Usava uniforme de porta-machado com bigodes e barbas compridas, um boné de pêlo na cabeça, uma larga espada ao lado, e um cinto com um grande molho de chaves.

       Tinha sido colocado na torre por Manuel, e estava ali mais para velar sobre o rei e sobre a rainha, para impedir que lhe fizessem mal, do que para lho fazer. Parecia-se com uma criança a quem dão a guardar uma gaiola com passarinhos, recomendando-lhe que não consinta que lhes façam mal, e que se distrai em arrancar-lhe as penas.

       Quando o rei pedia para sair, era Roeher quem se apresentava à porta, mas não abria senão depois do rei ter esperado muito, revolvendo um grande molho de chaves, depois, puxando os ferrolhos com fracasso e depois de aberta a porta, descendo rapidamente, ia pôr-se ao pé do postigo com o cachimbo na boca, e a cada pessoa que saía, principalmente às senhoras, lançava-lhes ao nariz uma baforada de fumo.

       Estas miseráveis fraquezas tinham por testemunhas os guardas nacionais, que em lugar de se oporem a estes vexames, muitas vezes tomavam cadeiras, como para assistirem a um espectáculo.

       Isto animava Rocher, que ia dizendo por toda a parte:

       – A Maria Antonieta fazia-se soberba, mas obriguei-a a humilhar-se; a Isabel e a pequena fazem-me a sua cortesia; o postigo é tão pequeno que não podem deixar de se curvar.

       Depois ajuntava:

       – Todos os dias lanço-lhes no nariz a uma ou a outra, uma baforada do meu cachimbo. A irmã perguntou o outro dia aos nossos comissários:

       – Porque está o Rocher sempre a fumar?

       – Naturalmente porque gosta – responderam eles.

       Há em todas as grandes expiações, entre o suplício infligido aos pacientes e a morte, um homem que lhes faz beber o vinagre e o fel.

       Para Luís XVI chamava-se Rocher ou Simão; para Napoleão chamava-se Hudson-Lowe.

       Mas quando o condenado sofreu a pena, depois que o paciente acabou com a vida, são estes homens que poetizam o seu suplício, que santificam a sua morte.

       Santa Helena seria Santa Helena sem o seu carcereiro de farda encarnada?

       O Templo seria o Templo sem o porta-machado e sem o sapateiro?

       Eis os verdadeiros personagens da lenda; por isso pertencem às longas e sombrias narrações populares.

       Mas por mais desgraçados que fossem os presos, restava-lhes uma consolação.

       Estavam juntos.

       A Comuna porém resolveu separar o rei da sua família.

       A 26 de Setembro, cinco dias depois de proclamada a república, Cléry soube por um membro da municipalidade que o quarto, que destinavam ao rei, no grande pátio, dentro em pouco estaria pronto. Cléry com bastante dor transmitiu esta notícia a seu amo.

       Mas este, com o seu ânimo habitual, respondeu:

       – Procura saber com antecedência o dia dessa triste separação e dá-me parte.

       Mas Cléry, como não soube nada, nada pôde dizer ao rei.

       No dia 29, às seis horas da manhã, entraram seis membros da municipalidade no quarto da rainha, no momento em que toda a família ali estava reunida; iam, por ordem da Comuna, tirar aos presos as penas, o papel e a tinta.

       A visita foi passada não só às casas, mas às próprias pessoas dos presos.

       – Quando precisar de alguma coisa – disse um dos membros da municipalidade chamado Charbonnier – o seu escudeiro descerá e escreverá o que quiser num registro, que ficará na sala do conselho.

       O rei e a rainha não fizeram a menor observação; deram tudo o que tinham em si.

       As princesas e os criados seguiram o exemplo.

       Foi só então que Cléry, por algumas palavras que apanhou a um dos membros, soube que o rei seria transferido naquela mesma noite para a torre grande.

       Ele disse à princesa Isabel o que tinha dito ao rei.

       Não se passou nada de novo até à noite. A cada ruído, a cada porta que se abria, palpitavam os corações dos presos, que estavam com as mãos estendidas e unidas em ansioso aperto.

       O rei demorou-se mais do que costumava no quarto da rainha, mas afinal teve que se retirar.

       Finalmente abriu-se a porta e entraram os seis membros da municipalidade, que tinham vindo pela manhã, e apresentaram ao rei uma nova ordem da Comuna.

       Era a ordem oficial para ser transferido para a torre grande.

       Desta vez a impassibilidade do rei falhou.

       Aonde o conduziria aquele novo passo? À via terrível e sombria.

       Portanto as despedidas foram longas e dolorosas.

       Entravam no misterioso e desconhecido.

       Por isso despediram-se em convulsões e lágrimas.

       Finalmente, foi o rei obrigado a acompanhar os membros da municipalidade. Nunca a porta, fechando-se sobre ele, soltou um som tão lúgubre.

       Era tal a pressa de causar aos presos esta nova dor, que nem tempo deram para se acabar de preparar o quarto do rei.

       A pintura e a cola fresca davam ao quarto um cheiro insuportável.

       O rei deitou-se, sem deixar ouvir uma queixa.

       Cléry passou a noite numa cadeira ao pé dele.

       Pela manhã Cléry, segundo o costume, vestiu o rei; depois quis dirigir-se à pequena torre para vestir o delfim.

       Mas um dos membros da municipalidade, chamado Véron, opôs-se-lhe e disse:

       – Não pode ter comunicação com os outros presos.

       O rei não torna a ver seus filhos.

       Cléry desta vez não teve ânimo para transmitir a fatal notícia ao rei.

       Às nove horas, o rei, que ignorava o rigor da sua posição, pediu para ser conduzido para onde estava a sua família.

       – Não temos ordem para isso – disse um dos comissários.

       O rei insistiu, mas eles não responderam e retiraram-se.

       O rei ficou só com Cléry; o rei assentado e Cléry encostado à parede; ambos se mostravam aflitos.

       Passada meia hora, entraram dois membros da municipalidade.

       Seguiu-os o servente de um café, que levava ao rei um pedaço de pão e uma limonada.

       – Senhores – perguntou o rei – não poderei jantar com a minha família?

       – Saberemos o que a Comuna determina, disse um deles.

       – Mas se não é permitido descer, não o poderá fazer o meu escudeiro? Meu filho está a seu cargo, e nada obsta a que ele continue a servi-lo.

       O rei pedia isto tão simplesmente e com tão pouca animosidade, que aqueles homens, admirados, não sabiam que responder-lhe.

       Aquele tom, aquelas maneiras, aquela resignação estavam tão longe daquilo que esperavam que olhavam uns para os outros como aturdidos.

       Contentaram-se com responder que o negócio não dependia deles e retiraram-se.

       Cléry ficou imóvel, encostado à parede, e olhando para o amo com profunda aflição.

       Viu o rei pegar no pão, que lhe tinham levado, e parti-lo ao meio.

       Depois dando-lhe metade:

       – Meu pobre Cléry – disse o rei – parece que se esqueceram do seu almoço. Tome metade do meu pão, a outra metade é suficiente para mim.

       Cléry recusou, mas como o rei tanto insistisse, tomou o pão, porém, ao pegar-lhe não pôde deixar de chorar.

       O rei também chorou.

       Às dez horas, os membros da municipalidade acompanharam os operários, que trabalhavam no quarto em que o rei estava preso.

       Então um dos membros, chegando-se ao rei com certa compaixão, disse:

       – Senhor, acabo de assistir ao almoço da sua família e estou encarregado de lhe participar que todos estão de saúde.

       O rei sentiu o coração aliviado, a compaixão daquele homem fez-lhe bem.

       – Obrigado – respondeu ele – e, para ser completo o favor, peço-lhe que também diga à minha família que estou bom. Mas agora diga-me se poderei obter alguns livros, que deixei no quarto da rainha. Se me for permitido, grande favor faz enviando-mos.

       O membro da municipalidade tinha muita vontade de aceder ao desejo do rei, mas ficou embaraçado, porque não sabia ler.

       Finalmente, confessou o seu embaraço a Cléry, pedindo-lhe que o acompanhasse para lhe dizer quais eram os livros que o rei queria.

       Cléry era feliz. Tinha assim meio de levar à rainha notícias do marido.

       Luís XVI fez-lhe sinal com os olhos.

       Esse sinal continha todas as recomendações possíveis que podia fazer-lhe.

       Cléry achou a rainha no seu quarto com a princesa Isabel e com os filhos.

       As senhoras choravam.

       O delfim começava também a chorar, mas as lágrimas depressa secam nos olhos das crianças.

       Vendo entrar Cléry, a rainha, a princesa Isabel, e a princesa real interrogaram-no, não com voz mas com gestos.

       O delfim correu para ele, dizendo:

       – É o meu bom Cléry.

       Infelizmente, Cléry só podia dizer algumas palavras reservadas. Os membros da municipalidade tinham entrado com ele no quarto.

       A rainha porém não pôde conter-se e dirigindo-se directamente a eles, disse:

       – Oh! Senhores, seja-nos concedido o favor de estarmos todos os dias com el-rei, quando mais não seja, só por alguns instantes.

       As outras senhoras não falavam, mas punham as mãos.

       – Senhores – disse o delfim – deixem tornar para aqui o meu pai, e eu pedirei a Deus pelos senhores.

       Os membros olhavam uns para os outros sem responderem. Este silêncio arrancava suspiros e ais dos peitos das senhoras.

       – Oh! – dizia aquele que tinha falado ao rei – por minha vida, ao menos hoje ainda hão-de jantar juntos.

       – E amanhã? – perguntou a rainha.

       – Senhora – respondeu o membro da municipalidade – a nossa conduta é subordinada às ordens da Comuna. Amanhã havemos de fazer o que a Comuna nos ordenar.

       Depois, voltando-se para os seus colegas, perguntou:

       – São desta opinião, cidadãos?

       Estes fizeram com a cabeça um sinal de adesão.

       A rainha e as princesas, que esperavam este sinal com ansiedade, deram um grito de alegria.

       Maria Antonieta pegou nos filhos e apertou-os contra o coração.

       A princesa Isabel, levantando as mãos ao Céu, deu graças a Deus.

       Esta alegria por muito inesperada arrancava pranto e suspiros como se fosse uma dor.

       Um dos membros da municipalidade não pôde conter as lágrimas.

       Simão, que estava presente, disse:

       – Parece-me que os diabos das mulheres são capazes de me fazer chorar.

       Depois, dirigindo-se à rainha, disse:

       – Não chorava assim, quando mandou assassinar o povo no dia 10 de Agosto.

       – Ah! Senhor – respondeu Maria Antonieta – o povo está muito enganado a respeito dos nossos sentimentos. Se nos conhecesse melhor, decerto faria como aquele senhor, choraria por nós.

       Cléry pegou nos livros, que o rei pedia, e saiu. Tinha pressa de dar a boa notícia ao amo; mas os membros da municipalidade também tinham pressa.

       O jantar foi servido no quarto do rei. Toda a família real para lá foi levada. Foi um jantar de festa. Julgavam ter conseguido muito por conseguirem mais um dia.

       Com efeito, tinham conseguido muito, porque nunca mais se tornou a falar na ordem da Comuna, e o rei continuou, como dantes, a ver a sua família durante o dia e a comer na companhia dela.

 

Mestre Gamain reaparece

       Na mesma manhã do dia em que estas coisas se passavam no Templo, um homem que trajava carmanhola e barrete vermelho e andava encostado a uma muleta, apresentou-se ao ministro do interior.

       Roland, por muito acessível que fosse, era obrigado a ter, como se fosse ministro de uma monarquia, em lugar de ser ministro de uma república, porteiros na sua ante-sala.

       O homem da muleta, da carmanhola e do barrete vermelho, foi pois obrigado a parar na ante-sala do porteiro, que lhe fechava a passagem, dizendo:

       – Que pretende, cidadão?

       – Desejo falar ao cidadão ministro – respondeu o homem da muleta.

       Havia quinze dias que os títulos de cidadão e cidadã, tinham substituído o tratamento de senhor e senhora.

       Os porteiros sempre são porteiros, isto é, personagens muito tolos, insolentes e pretensiosos; falamos, bem entendido, dos porteiros dos ministérios.

       O porteiro respondeu em tom protector:

       – Meu amigo, saiba uma coisa, e é que não se fala assim ao cidadão ministro.

       – Mas então como se fala ao cidadão ministro, cidadão porteiro? – perguntou o homem da muleta.

       – Oh! Fala-se-lhe quando se tem um bilhete de audiência.

       – Julgava que isso sucedia, como se diz, na época do tirano, mas no tempo da república, num tempo em que todos os homens são iguais, isso cheira-me um tanto a aristocracia.

       Esta observação fez reflectir o porteiro.

       – E não é muito agradável – continuou o homem da muleta – vir de Versalhes para prestar serviço ao ministro e não ser recebido por ele.

       – Então vem prestar serviço ao cidadão Roland?

       – Venho sim.

       – Mas que género de serviço vem prestar-lhe?

       – Venho denunciar-lhe uma conspiração.

       – Bem; é coisa de que temos sempre por cá abundância.

       – Ah!

       – Vem pois de Versalhes para isso?

       – Venho sim.

       – Pois pode voltar para Versalhes.

       – Pois voltarei, mas o seu ministro há-de arrepender-se de não me ter recebido.

       – É a ordem que tenho. Escreva-lhe e volte com uma ordem de audiência. Assim pode a coisa arranjar-se.

       – É a sua última palavra?

       – Sim, cidadão.

       – Parece que é mais difícil ser admitido à presença do cidadão Roland, do que obter audiência de sua majestade Luís XVI.

       – Que diz?

       – O que disse está dito.

       – Vejamos, o que diz?

       – Digo que houve um tempo em que eu entrava nas Tulherias quando queria.

       – Como?

       – E bastava para isso dizer o meu nome.

       – Então como se chama? É o rei Frederico Guilherme, ou o imperador Francisco?

       – Não; não sou um tirano, um negociante de escravos, um aristocrata; sou simplesmente Nicolau Cláudio Gamain mestre dos mestres.

       – Mestre de quê?

       – De serralharia. Não conhece Nicolau Cláudio Gamain, antigo mestre serralheiro do Sr. Capeto?

       – Como, o cidadão, é que é...

       – Nicolau Cláudio Gamain.

       – Serralheiro do ex-rei Luís?

       – Isto é, mestre de serralharia do rei, entenda bem, cidadão.

       – Era isso o que eu queria dizer.

       – Pois sou eu em carne e osso.

       O porteiro olhou então para os camaradas como para os interrogar.

       Estes responderam com um gesto afirmativo.

       – Então – disse o porteiro – isso é outra coisa.

       – O que é que entende por outra coisa?

       – Entendo que vai escrever o seu nome num bocado de papel, e que vou levá-lo imediatamente ao cidadão ministro.

       – Escrever, escrever, já não era o meu forte antes dos patifes me envenenarem. Agora porém ainda é pior. Veja em que estado me pôs o arsénico.

       E Gamain mostrou as pernas torcidas, a espinha vertebral desviada, e a mão contraída como uma garra.

       – Como! Foram eles que o puseram nesse estado? Pobre homem.

       – Eles mesmos; venho denunciar isso ao ministro, assim como outras coisas mais. Como dizem que se vai fazer o processo daquele patife, o que tenho a dizer talvez seja útil à nação, nas circunstâncias em que se acha.

       – Pois bem, assente-se e espere, cidadão; vou dizer o seu nome ao cidadão ministro.

       E o porteiro escreveu num bocado de papel:

       “Cláudio Nicolau Gamain, antigo mestre serralheiro do rei, pede ao cidadão ministro uma audiência para lhe fazer uma revelação importante”.

       Depois entregou o papel a um dos seus camaradas, cuja posição especial era anunciar quem vinha.

       Passados cinco minutos, voltou o outro porteiro, dizendo:

       – Venha comigo, cidadão.

       Gamain fez um esforço, que lhe arrancou um grito de dor, levantou-se e seguiu o porteiro.

       O porteiro conduziu Gamain, não ao gabinete oficial do ministro, do cidadão Roland, mas ao gabinete do ministro verdadeiro, a cidadã Roland.

       Roland estava em pé encostado à chaminé.

       O porteiro anunciou o cidadão Nicolau Cláudio Gamain.

       Este apareceu à porta.

       O mestre serralheiro nunca tivera, mesmo no tempo da sua melhor saúde e mais elevada fortuna, um físico muito vantajoso.

       Mas a doença, de que era vítima, e que era um reumatismo articular, torcendo-lhe os membros e desfigurando-lhe o rosto, nada tinha ajuntado à beleza da sua fisionomia.

       O resultado foi que nunca homem honrado e, – importa dizê-lo, ninguém melhor do que o ministro Roland merecia o título de homem honrado – dizemos pois que disso resultava nunca se ter achado um homem honrado de rosto perfeito e tranqüilo em presença de um patife mais vil e imundo.

       Por conseqüência o primeiro sentimento do ministro foi uma profunda repugnância.

       Mediu o cidadão Gamain da cabeça aos pés, e vendo que ele tremia encostado à muleta, um sentimento de piedade para com os seus semelhantes, supondo todavia que o cidadão Gamain fosse semelhante do cidadão Roland, um sentimento de compaixão fez com que as primeiras palavras que o ministro dirigiu ao serralheiro fossem:

       – Assente-se, cidadão, parece-me estar incomodado.

       – Oh! Muito – respondeu Gamain assentando-se. – Estou assim desde que a Austríaca me envenenou.

       A estas palavras um sentimento de profunda repugnância contraiu o rosto do ministro, que trocou um olhar de indefinível expressão com a Srª. Roland, metida no vão da janela.

       – E foi para denunciar esse envenenamento que veio aqui? – perguntou o ministro.

       – Para lhe denunciar isso e mais alguma coisa.

       – E traz a prova das suas denúncias?

       – Ah! Quanto a isso, bastará vir comigo às Tulherias, que lá lhe mostrarei o armário.

       – Que armário?

       – O armário onde o patife escondia o seu tesouro. Oh! Eu devia ter desconfiado disso, quando, acabado o trabalho, a Austríaca com a sua voz melíflua me disse: “Aqui tens, Gamain, estás suado, e isto há-de fazer-te bem”. Eu devia ter desconfiado que o vinho tinha veneno.

       – Veneno!

       – Sim – respondeu Gamain com expressão de profundo ódio – porque os homens que ajudam os reis a esconder os seus tesouros não vivem muito tempo.

       Roland aproximou-se de sua mulher e interrogou-a com os olhos.

       – Isto tem algum fundamento – disse ela. Agora é que me recordo do nome deste homem: era o serralheiro predilecto do rei.

       – E o tal armário?

       – Quanto a isso pergunte-o a ele.

       – A respeito do tal armário? – replicou Gamain, que tinha ouvido. Ah! eu vou dizer-lhes o que é. É um armário de ferro fechado com uma fechadura de segredo, e no qual estão escondidos os papéis e o ouro do cidadão Capeto.

       – E como conhece a existência desse armário? – perguntou Roland com curiosidade.

       – Porque ele me mandou buscar e ao meu companheiro a Versalhes, para fazer servir uma fechadura, que ele tinha feito, mas que não estava capaz.

       – Mas esse armário sem dúvida foi arrombado e roubado no dia 10 de Agosto?

       – Oh! – disse Gamain – não corria esse perigo.

       – Como, não corria esse perigo?!

       – Não; desafio a quem quer que seja, a não ser ele ou eu para que o ache, e principalmente para que o abra.

       – Está certo disso?

       – Certo e certíssimo: está tal qual, como na hora em que saí das Tulherias.

       – E em que época ajudou o rei Luís XVI a fechar o tal armário?

       – Não o posso dizer precisamente, mas foi três ou quatro meses antes da partida de Varennes.

       – E como foi a coisa? Vamos, meu amigo, desculpe-me, o caso parece-me tão extraordinário, que merece que eu saiba todos os pormenores antes de proceder à investigação do tal armário.

       – Oh! Os pormenores são fáceis de dar, cidadão ministro: O Capeto mandou-me buscar a Versalhes; minha mulher não queria deixar-me sair, a pobre mulher tinha um pressentimento. Ela dizia-me: “O rei está em má posição, vais comprometer-te por sua causa”. Mas eu respondi-lhe: “Visto mandar-me procurar para negócios do meu ofício, e como é meu discípulo, devo ir”. “Bom – respondeu ela – olha que neste negócio anda política; não tem o rei mais nada que fazer neste momento senão fechaduras”.

       – Seja breve, meu amigo – disse Roland. De sorte que apesar da opinião de sua mulher?...

       – Oh! Melhor teria feito se lhe desse ouvidos, porque decerto não estaria no estado em que estou; mas hão-de pagar-mo.

       – Então...

       – Ah! Sim, tornemos ao armário.

       – Sim, meu amigo, e nada de episódios, todo o meu tempo pertence à república, e o tempo é curto.

       – Então ele mostrou-me a fechadura de um cofre, que tinha feito, mas que não estava capaz, porque, se estivesse, não me teria mandado chamar, o traidor.

       – E mostrou-lhe uma fechadura, que não servia? – replicou o ministro, insistindo para manter Gamain na questão.

       – Ele perguntou-me:

       “–Porque não anda ela, Gamain?”

       – Respondi-lhe: “Senhor, é preciso que eu veja a fechadura.”

       – Ele disse: “Tens razão”.

       – Então examinei a fechadura, e disse-lhe:

       “– Sabe por que não anda?”

       “– Não – respondeu ele – e foi para mo dizeres que te mandei chamar”.

       – Pois bem, ela não servia. Siga bem o meu raciocínio, porque, não sendo tão forte em serralharia como o rei, talvez não lhe seja possível compreender-me, e primeiramente é preciso que lhe diga que diferença há entre uma fechadura de cofre e uma fechadura, por exemplo, de porta.

       – Isso para mim é o mesmo – respondeu Roland; – como disse, não sou tão forte em serralharia como o rei, e não conheço a diferença que há entre as diversas fechaduras.

       – A diferença eu lha vou fazer tocar com o dedo.

       – Não é preciso.

       – A razão por que a fechadura não fechava! Quer também que lho diga?

       – Faça o que quiser – disse Roland, que começava a crer que o melhor era abandonar Gamain à sua prolixidade.

       – Pois bem, não fechava porque a lingüeta da fechadura topava com uma mola de segredo, entende?

       – Perfeitamente – disse Roland, que não percebia uma palavra.

       “– Agora percebo – disse-me o rei. Então faze o que eu não soube fazer; não és tu o meu mestre?”

       “– Oh! Senhor, não só sou o seu mestre, mas o mestre dos mestres”.

       – E depois?

       – Depois, atirei-me ao trabalho, enquanto o Sr. Capeto conversava com o meu rapaz, que sempre desconfiei ser um aristocrata disfarçado. No fim de dez minutos, estava a fechadura pronta. Então desci com a porta de ferro para o que era destinada a fechadura, e disse ao rei:

       “– Está pronta, senhor.”

       “– Então vem comigo, Gamain.”

       Eu segui-o; ele conduziu-me primeiro ao seu quarto depois a um corredor escuro, que dava para a alcova do delfim. Ali era tão grande a escuridão, que teve de acender uma vela. Nessa ocasião, disse-me o rei:

       “– Pega nesta luz, Gamain, e alumia-me.”

       – Ele tomava a liberdade de me tratar por tu. Então levantou um pano do forro, atrás do qual havia um buraco, com dois pés e meio de diâmetro. Depois, como notasse o meu espanto, disse:

       “– Fiz este segredo para guardar dinheiro; agora, Gamain, é preciso pôr-lhe esta porta de ferro para que destinei a fechadura.”

       “– Isso não há-de levar muito tempo – respondi.”

       – Pus a porta no seu lugar e empurrei-a, ela fechava-se por si. Depois caía o forro no seu lugar. E boas-noites, nada de armário.

       – E julga, meu amigo – perguntou Roland – que o armário não tinha outro fim senão o de ser um cofre forte, e que o rei se tivesse dado a tanto trabalho só para esconder dinheiro?

       – Espere: ele queria enganar-me; o tirano julgava-se mais fino do que eu. Eis o que se passou:

       “– Ora vamos – disse o rei – ajuda-me a contar o dinheiro, que quero meter neste armário”.

       E contámos dois milhões de luíses, que metemos em quatro sacos de couro; mas enquanto eu contava o dinheiro vi com o rabo do olho o escudeiro que trazia papéis e mais papéis.

       – Que dizes a isto, Madalena? – perguntou Roland a sua mulher, chegando-se para ela de maneira que Gamain não o ouvisse.

       – Digo que esta revelação é da mais alta importância, e que não se deve perder um só instante.

       Roland tocou a campainha.

       Apareceu o porteiro.

       – A carruagem está pronta? – perguntou o ministro.

       – Está sim, cidadão.

       – Mande-a chegar.

       Gamain levantou-se.

       – Ah! – disse ele muito vexado; não me quer mais nada, cidadão?

       – Porque me diz isso?

       – Porque manda chegar a carruagem: pois os ministros no tempo da república ainda têm carruagem?

       – Os ministros de todos os tempos hão-de ter carruagem: a carruagem para um ministro não é luxo, é economia.

       – Economia de quê?

       – Economia de tempo; da coisa mais cara e preciosa que há no mundo.

       – Então quer que volte aqui?

       – Para quê?

       – Para quê? Para o conduzir onde está o armário e mostrar-lho.

       – É escusado.

       – Como! É escusado?

       – Decerto, pois acabo de mandar chegar a carruagem para ir lá.

       – Mas para ir aonde?

       – Às Tulherias.

       – Pois vamos lá?

       – Já.

       – Ainda bem.

       – Mas a propósito – disse Roland.

       – De quê?

       – A chave?

       – Que chave?

       – A do armário; é provável que Luís XVI a não deixasse na porta.

       – Decerto, pois não é tão estúpido como parece, o gordo Capeto.

       – Então leve ferramenta.

       – Para quê?

       – Para abrir o armário.

       Gamain tirou da algibeira uma chave nova.

       – E então que é isto? – perguntou ele.

       – Uma chave.

       – A chave do armário, que fiz de cor; tinha-a estudado bem, desconfiando que um dia me seria precisa, o que não me enganei.

       – Este homem é um grande miserável – disse a Srª. Roland ao marido.

       – Julgas pois...– disse este com hesitação.

       – Julgo que não temos direito na nossa posição, de recusar qualquer informação, que a fortuna nos envie para chegar ao conhecimento da verdade.

       – Aqui está, aqui está – dizia Gamain mostrando a chave.

       – E julga – disse Roland com repugnância que lhe não era possível encobrir – que essa chave, feita de memória, depois de passados dezoito meses, abrirá o armário?

       – Sim, cidadão, e sem dificuldade, assim o espero. Para que sou eu o mestre dos mestres?

       – A carruagem do cidadão ministro está à porta – disse o porteiro.

       – Queres que vá contigo? – perguntou a Srª. Roland.

       – Decerto, se houver papéis, a ti é que os hei-de confiar. Não és tu a pessoa mais honrada que conheço?

       Depois voltando-se para Gamain, disse:

       – Venha.

       Gamain seguiu resmungando:

       – Não te tinha eu jurado que mo havias de pagar, meu Capeto!

       – Pagar o quê?

       O bem que o rei lhe tinha feito.

 

A retirada dos prussianos

       Enquanto a carruagem do cidadão Roland roda para as Tulherias; enquanto Gamain acha o armário oculto; enquanto, conforme a promessa que tinha feito, a chave que fizera de memória abre com maravilhosa facilidade o armário de ferro; enquanto o armário de ferro patenteia o depósito fatal, que lhe fora confiado, e que, apesar dos papéis entregues pelo rei à Srª. Campan, havia de ter cruel influência sobre os destinos dos presos do Templo; enquanto o ministro Roland leva esses papéis para casa, os lê um por um, procurando em todos eles uma prova da venalidade, tão denunciada por Danton, vejamos o que faz o antigo ministro da justiça.

       Dizemos o antigo ministro da justiça, porque a primeira coisa que Danton fez nos Jacobinos, o primeiro acto com que ele se estreou na Convenção, foi pedir a demissão.

       Tinha subido à tribuna e dissera:

      

       “Antes de exprimir a minha opinião sobre o primeiro decreto, que a Convenção deve promulgar, seja-me permitido resignar no seu seio as funções que me tinham sido confiadas pela Assembléia legislativa. Recebi-as ao som do canhão. Agora está feita a junção dos exércitos, está operada a junção dos representantes, não sou mais do que mandatário do povo e é nesta qualidade que vou falar”.

      

       Danton poderia juntar a estas palavras: “A junção dos exércitos está feita, e os prussianos foram batidos”, porque estas palavras foram pronunciadas a 21 de Setembro, e a 20, isto é, na véspera, verificara-se a batalha de Valmy.

       Mas Danton não o sabia.

       Contentou-se pois em dizer:

      

       “Desfaçamos estes vãos fantasmas de ditadores, com que quiseram afrontar o povo: declaremos que não há constituição – senão a que por ele foi aceita. Até hoje tem sido agitado, era preciso despertá-lo contra os tiranos; agora que as leis sejam tão terríveis contra aqueles que as violaram, quanto foi o povo aniquilando a tirania! Que eles castiguem todos os culpados! Abjuremos toda e qualquer exageração, declaremos que a propriedade territorial e industrial será eternamente mantida”.

      

       Danton, com a habilidade ordinária, respondia em duas linhas aos dois grandes receios da França.

       A França receava pela sua liberdade e pela sua propriedade.

       E coisa singular, quem mais receava pela propriedade eram os novos proprietários.

       Eram aqueles que tinham comprado na véspera e que ainda deviam metade da sua aquisição.

       Eram estes que se haviam tornado conservadores, muito mais do que os antigos nobres, do que os antigos aristocratas, do que os antigos proprietários, pois estes preferiam a sua vida aos seus imensos domínios, e a prova é que tinham abandonado principalmente todos os bens para salvarem a vida, ao passo que os compradores de bens nacionais, os proprietários da véspera preferiam à vida um pequeno canto de terra, defendiam-na com a espingarda na mão, e não havia nada no mundo que os fizesse emigrar.

       Um dia, nos Jacobinos, Chalot soltara uma palavra imprudente, que não tinha escapado aos proprietários. Tinha dito que se Marat não aconselhava a divisão da propriedade, é porque não julgava os homens assaz virtuosos.

       Era preciso fazer esquecer essa impressão, riscar aquela imprudência; tranqüilizar não só os que eram proprietários da véspera, mas também os que iam sê-lo no dia seguinte.

       Porque o grande pensamento da revolução era este:

       É mister que todos os franceses sejam proprietários; a propriedade nem sempre torna o homem melhor, mas torna-o mais digno, dando-lhe o sentimento da independência.

       Portanto, todo o génio da revolução resumia-se nestas palavras de Danton:

       “Abolição de toda a ditadura”;

       “Conservação de toda a propriedade”;

       Como ponto de partida:

       O homem tem direito de se governar a si mesmo.

       Conclusão:

       O homem tem direito de conservar o fruto da sua livre actividade.

       E quem vinha dizer isto?

       O homem do 20 de Junho, do 10 de Agosto, do 2 de Setembro, isto é, o gigante da tempestade e da destruição.

       O gigante fazia-se piloto e deitava ao mar estas duas âncoras de salvação das nações:

       A liberdade e a propriedade.

       A Gironda porém não o compreendeu; a Gironda tinha invencível repugnância pelo... como diremos? – pelo fácil Danton.

       Vimos que lhe recusou a ditadura, quando ele a pedia para evitar a carnificina.

       Levantou-se pois um girondino, e em vez de aplaudir o homem de génio, que acabava de formular os dois grandes receios da França e de a tranqüilizar, formulando-os, gritou a Danton:

       – Todo aquele que tentar consagrar a propriedade, compromete-a; até o tocar-lhe para a tornar firme é abalá-la. Portanto a propriedade é anterior a todas as leis.

       A Convenção elaborou estes dois decretos:

      

       “Não pode haver outra Constituição, senão a adoptada pelo povo.”

       “A segurança das pessoas e das propriedades está sob a salvaguarda da nação.”

       Isto era e não era assim.

       Não há nada mais terrível em política do que o quase.

       A demissão de Danton foi aceita.

       O homem que se julgava assaz forte para tomar a responsabilidade dos actos de Setembro, isto é, o terror de Paris, o ódio do povo das províncias, a execração do mundo, era um homem decerto bem poderoso.

       Efectivamente dirigia-se ao mesmo tempo os fios da diplomacia, da guerra e da paz.

       Dumouriez, e por conseqüência o exército, estava nas suas mãos.

       A notícia da história de Valmy chegou a Paris, e causou grande alegria. Chegara ali nas asas da águia, e por conseqüência era considerada mais definitiva do que na realidade era.

       Daqui resultava que um receio supremo, a França passava a uma suprema audácia.

       Os clubes só respiravam guerras e batalhas.

       Visto ter sido vencido o rei da Prússia, porque não estava ele preso, amarrado, ou pelo menos na outra margem do Reno?

       Eis o que todos diziam em voz alta.

       E em voz baixa:

       É muito simples, Dumouriez é um traidor; está vendido aos prussianos.

       Dumouriez já recebia uma recompensa de um grande serviço feito à ingratidão.

       O rei da Prússia porém não se considerava batido.

       Tinha atacado as alturas de Valmy e não as pudera tomar; eis tudo.

       Cada exército conservou o seu campo.

       Os franceses, que desde o começo da campanha constantemente tinham retirado, perseguidos por pânicos, por derrotas e reveses, tinham feito frente ao inimigo: nada mais.

       A perda de homens fora quase igual.

       Eis o que se não podia dizer à França, a Paris, à Europa, pela necessidade que os franceses tinham de uma grande vitória; mas eis o que Dumouriez mandava dizer a Danton por Westermann.

       Os prussianos não tinham sido batidos, nem tão-pouco tinham retirado; tanto que doze dias depois de Valmy, ainda estavam nos mesmos acampamentos.

       Dumouriez tinha escrito para saber se devia aceitar algumas propostas do rei da Prússia, no caso dele as apresentar.

       Esta pergunta teve duas respostas.

       Uma do ministério, soberba, oficial, ditada pelo entusiasmo da vitória.

       Outra prudente e tranqüila, mas dada só por Danton.

       A carta do ministério era altiva.

       Dizia:

      

       “A república não trata com o inimigo senão depois de ter evacuado o seu território”.

      

       A de Danton dizia:

       “Contanto que os prussianos evacuem o território, negociai com eles seja por que preço for”.

      

       Negociar não era coisa fácil na disposição de espírito em que se achava o rei da Prússia: quase ao mesmo tempo em que chegava a Paris a notícia da vitória, chegava a Valmy a notícia da abolição da realeza e da proclamação da república.

       O rei da Prússia estava furioso.

       Aquela invasão, feita com o fim de salvar o rei da França e que até ali só tivera como resultado o 10 de Agosto, o 2 e o 21 de Setembro, isto é o cativeiro do rei, a carnificina dos nobres e a abolição da realeza, tinha feito entrar Frederico Guilherme nos seus acessos do mais sombrio furor.

       Queria combater, custasse o que custasse, e tinha dado ordem, para se travar uma batalha decisiva no dia 29 de Setembro.

       Como se vê estava longe de abandonar o território da república.

       A 29, em lugar do combate, houve um conselho.

       Demais Dumouriez estava pronto para tudo.

       Brunswick, muito forte em palavras, era muito prudente quando se tratava de lhe substituir os factos; Brunswick ainda era mais inglês do que alemão, tinha casado com uma irmã da rainha de Inglaterra, e por isso tanto recebia inspirações de Berlim, como de Londres.

       Se a Inglaterra o decidisse a bater-se, batia-se com os dois braços, um pela Prússia, outro pela Inglaterra.

       Mas, se os ingleses, meus senhores, não desembainhassem a espada, estava ele pronto a embainhar a sua.

       Ora a 29, Brunswick apresentou no conselho cartas de Inglaterra e da Holanda, que mostravam que estas potências recusavam unir-se à coalizão.

       Além disso, Custine marchava sobre o Reno e ameaçava Coblentz; e tomada Coblentz, a porta para tornar a entrar na Prússia estava fechada ao rei.

       Depois, havia uma coisa mais grave, mais séria do que tudo isto; por acaso este rei da Prússia tinha ali uma amante, a condessa de Lichenau.

       Ela tinha seguido o exército como todos os outros, como Goethe, que esboçava no carro de sua majestade prussiana as primeiras cenas do Fausto; a condessa contava com um famoso passeio militar, e queria ver Paris.

       Em Spa teve ela conhecimento da batalha de Valmy, e dos perigos que correra o seu real amante.

       A bela condessa receava soberanamente duas coisas: as balas dos franceses e os sorrisos das francesas.

       Escreveu cartas sobre cartas, e o post-scriptum destas cartas, isto é, o resumo do pensamento daquela que as escrevia, era a palavra: Volta!

       O rei da Prússia na realidade só era retido pela vergonha de abandonar Luís XVI.

       Todas estas considerações operaram sobre ele, porém as mais importantes foram as lágrimas da bela condessa e o perigo que corria Coblentz.

       Todavia, não deixou de insistir para que soltassem Luís XVI; Danton deu-se pressa em lhe enviar todas as ordens da Comuna, mostrando que o preso estava rodeado de bons tratamentos.

       Isto bastou ao rei da Prússia, que como se vê, não era difícil de contentar.

       Os amigos do rei da Prússia afirmam que antes de se retirar fez com que Dumouriez e Danton lhe dessem a sua palavra de salvarem o rei.

       Não há nada que prove esta asserção.

       A 29 de Setembro o exército prussiano operou a sua retirada e andou uma légua.

       A 30 outra légua.

       O exército francês escoltava-o como para lhe fazer as honras do país, acompanhando-o.

       Todas as vezes que os soldados franceses queriam atacar, os homens de Danton tratavam de os puxar para trás.

       Que saíssem de França era tudo o que Danton queria.

       A 29 de Outubro estava satisfeito este patriótico desejo.

       A 6 de Novembro o canhão de Jammapes anunciava o juízo de Deus sobre a revolução francesa.

       A 7 abria a Gironda o processo do rei.

       Uma coisa quase semelhante tinha-se passado seis semanas antes.

       A 20 de Setembro tinha ganho Dumouriez a batalha de Valmy.

       A 21 era proclamada a república.

       Cada vitória tinha sido coroada, e fazia dar à França mais um passo no caminho da revolução.

       Desta vez era o passo mais terrível. Aproximavam-se do fim ignorado ainda, tendo, durante três anos, caminhado às escuras.

       Que viam no horizonte? Um cadafalso. E ao pé dele? Um rei.

       Naquela época toda material, e em que os interesses superiores do ódio e da destruição suplantavam as idéias elevadas de alguns espíritos superiores, em que um homem como Danton, isto é, que tomava sobre si os ensangüentados dias de Setembro, era acusado de ser o chefe dos indulgentes, era muito difícil que a idéia prevalecesse sobre o facto.

       Ora, eis o que não compreenderam os homens da Convenção, ou que só compreenderam certos homens, uns claramente, outros por instinto.

       O que se devia fazer era o processo da realeza e não o do rei.

       A realeza era uma abstracção sombria; um mistério ameaçador, em que ninguém cria: um ídolo dourado por fora: um desses níveos sepulcros, de que fala Cristo, e que são por dentro cheios de vermes e de podridão.

       Mas o rei era outra coisa. Era um homem pouco interessante nos dias da prosperidade, mas que tinha engrandecido nos dias de cativeiro. A sua sensibilidade tinha-se desenvolvido com as desgraças que o feriam, e até sobre a rainha o prestígio da adversidade tornara-se tal, que, ou fosse nova intuição, ou fosse arrependimento, a prisioneira do Templo chegara, não a amar – aquele pobre coração torturado devia ter perdido quanto contivera de amor, como vaso rachado que a pouco e pouco perde o líquido que contém; – mas a adorar, a venerar, no sentido religioso da palavra, aquele rei, aquele príncipe, aquele homem, cujos apetites materiais, cujos instintos inferiores, tantas vezes lhe tinham feito subir o sangue ao rosto.

       Um dia, entrando o rei no quarto da rainha, achou-a a lavar o quarto do delfim que estava doente.

       Parou à porta, deixou pender a cabeça para o peito e disse suspirando:

       – Oh! Senhora! Que trabalho para uma rainha de França! Oh! Se em Viena vissem o que está fazendo! Oh! Quem diria que unindo a minha sorte com a sua, a faria descer tão baixo?

       – E não tem em nenhuma conta – respondeu Maria Antonieta – a glória de ser a mulher do melhor e do mais perseguido dos homens?

       Eis o que respondia a rainha, isto sem testemunhas, julgando não ser ouvida de um pobre escudeiro, que seguia o rei, e que, semelhante a pérolas pretas, guardava estas palavras para fazer um diadema, não para a cabeça do rei, mas para a cabeça do condenado.

       Outro dia, encontrando o rei sua irmã a princesa Isabel, que, por não ter tesoura, cortava com os dentes a linha de um vestido da rainha, que estava cosendo, disse-lhe:

       – Ai, minha irmã, que contraste com a linda casa de Montreuil, onde não lhe faltava nada!

       – Ai, meu irmão – respondeu a santa princesa – acaso posso lastimar alguma coisa, quando, compartilho as suas desgraças?

       E tudo isto era conhecido, tudo isto se espalhava, tudo isto bordava de arabescos a sombria lenda do mártir.

       A realeza, ferida de morte, mas o rei conservado vivo, era um pensamento grande e potente, que só entrou na cabeça de poucos homens, e que não se atreveram, tão impopular era, a exprimi-lo.

       – Este povo precisa que o salvem – diz Danton nas Carmelitas – mas não carece que o vinguem.

       – Sem dúvida, é preciso julgar o rei – diz Gregório à Convenção, mas ele tem feito tanto para ser desprezado, que não há lugar para o ódio.

       Paygne escreveu:

      

       “Quero que se faça o processo, não de Luís XVI, mas de todos os reis. Desses indivíduos temos um em nosso poder, ele nos esclarecerá sobre a conspiração geral. Há também fortes prevenções contra o Sr. Guebfe, eleitor do Hanover, na sua qualidade de rei de Inglaterra; se o processo geral da realeza demonstrar que ele compra os alemães, paga com dinheiro inglês ao Landgrave de Hesse o execrando traficante de carne humana, será uma justiça para com a Inglaterra estabelecer bem esse facto. A França, tornada republicana, tem interesse em tornar universal a revolução. Luís XVI é muito útil para demonstrar a todos a necessidade das revoluções”.

      

       Por conseqüência, os espíritos elevados, Thomas Paygne, e os grandes corações, Danton e Gregório, estavam de acordo neste ponto.

       Não se devia pois fazer o processo do rei, mas sim o dos reis, e sendo necessário, chamar como testemunha para esse processo Luís XVI.

       A França republicana, isto é maior, devia proceder em seu nome e em nome dos menores, isto é, dos povos submetidos à realeza.

       Então a França não julgaria como juiz terrestre, seria um juiz divino, pairaria nas esferas superiores, e a sua palavra não subiria até ao trono como um salpico de lama e de sangue, cairia como um raio sobre os reis.

       Suponde este processo público, apoiado por provas, começando por Catarina II, assassina do marido e verdugo da Polónia;

       Suponde as particularidades daquela vida monstruosa, posta a público como o cadáver da princesa de Lamballe, e isto em vida;

       Vede a Pasifaa do norte amarrada ao pelourinho da opinião pública, e dizei se semelhante processo não seria de grande instrução para os povos.

       Que afinal o que há de bom no que se não fez, é poder-se fazê-lo ainda.

 

O processo

       Os papéis do armário de ferro, entregues por Gamain, a quem a Convenção concedeu uma pensão de 1.200 libras por esta bela acção, que morreu cheio de reumatismo e pungido de dores, que cem vezes lhe fizeram lastimar a guilhotina, a que tinha ajudado a subir o seu real discípulo, o armário de ferro, com grande despeito do Sr. e da Srª. Roland, nada continha contra Dumouriez nem contra Danton.

       Só comprometia o rei e os padres.

       Denunciava o limitado e ingrato espírito de Luís XVI, que só odiava os que o tinham querido salvar.

       Necker, Lafayette, Mirabeau!

       Também não continha nada contra a Gironda.

       A discussão sobre o processo começou a 13 de Novembro.

       Quem abriu essa discussão terrível? Quem se fez porta-machado da montanha? Quem adejou por cima da sombria Assembléia como Anjo do extermínio? Quem se arrojou a tal?

       Foi um mancebo que a 20 de Julho de 1792, isto é, quatro meses antes, escrevia a um seu amigo esta singular carta:

      

       Meu caro Dubigny:

       Depois que estou em Paris ardo numa febre republicana, que me devora e consome: envio pelo mesmo correio a sua irmã uma carta; é uma desgraça não poder ficar em Paris, pois me sinto fadado para as idéias do século; companheiro de glória e de liberdade, pregue nas suas secções que o perigo o inflama, vá visitar Camilo Desmoulins, abrace-o da minha parte, mas diga-lhe que nunca mais me tornará a ver, diga-lhe que estimo o seu patriotismo, mas que o desprezo a ele, porque lhe penetrei na alma e percebi que desconfiou de mim entretanto, peça-lhe que não abandone a boa causa e recomende-lhe isto bem, pois ainda não tem a audácia da virtude. Adeus. Sou superior à desgraça, tudo suportarei, mas hei-de dizer a verdade; são todos uns fracos, que nunca souberam apreciar-me; a minha palma há-de florescer e há-de obscurecê-los, infames! Sou um maroto, um celerado, porque não tenho dinheiro para lhes dar; arranquem-me o coração e comam-no, tornar-se-ão o que não são: Grandes! Ó Deus! Será preciso que Bruto feneça esquecido longe de Roma! Entretanto, o meu partido está tomado: se Bruto não matar outros, matar-se-á a si.

       Adeus.

      

       Mas quem era este rapaz que se apelidava Bruto?

       Um mancebo de vinte e quatro anos enviado à Convenção antes da idade requerida.

       Nascera numa das partes mais selvagens da França, em Nièvre; havia nele a seiva áspera e amarga, que faz, senão os grandes homens, pelo menos, os homens perigosos; era filho de um pobre soldado que em conseqüência de trinta anos de serviço, fora elevado à Cruz de S. Luís, enobrecido como tal com o título de cavaleiro; era por natureza triste e grave; a sua família tinha poucos bens no departamento de Aisne, em Blérancourt, e habitava uma modesta casa que estava longe da mediocridade dourada de Horácio.

       Enviado a Reims para estudar direito, foi mau estudante, e mau poeta; fez um poema à maneira do Orlando Furioso, e da Donzela, intitulado o Organt. Publicado sem sucesso em 1789, foi o poema reimpresso em 1792, porém da mesma maneira sem sucesso.

       Tinha pressa em sair da sua província, como se pode ver pela carta, que citámos. Foi procurar Camilo Desmoulins, o célebre jornalista, que tinha na sua mão os futuros poetas desconhecidos.

       Este homem de espírito, de brio e desenvolto, viu uma manhã entrar em sua casa um estudante soberbo, pedante, cheio de pretensões, de palavras lentas e graduadas, caindo a uma e uma como as gotas de água que passam por uma rocha; quanto ao rosto, tinha olhos azuis, e a tez branca e pálida: a sua estada em Reims talvez tivesse dado ao estudante em direito a escrofulosa doença, que os reis tinham pretensão de curar em Reims, no dia da sagração; a barba ficava-lhe perdida no meio de uma enorme gravata, apertada, quando todos a traziam larga e flutuante, como para dar ao carrasco a facilidade de a desatar, a figura era ridícula, automática e parecendo uma máquina, se não se tornasse terrível como um espectro, e tudo isto coroado com uma testa tão estreita que os cabelos quase lhe nasciam ao pé dos olhos.

       Camilo Desmoulins viu pois uma manhã entrar em sua casa esta esquisita figura, que logo se lhe tornou antipática.

       O mancebo leu-lhe os versos, e entre outros pensamentos sociais, disse-lhe que o mundo estava vazio desde o tempo dos romanos.

       Os versos pareceram-lhe maus, o pensamento falso, e zombou do poeta, e o poeta filósofo, teve de retirar-se à sua solidão de Blérancourt, batendo à Tarquínio – diz Michelet, o grande retratista desta espécie de homens – as papoulas com uma chibata, vendo talvez numa Desmoulins, noutra Danton.

       Mas chegou-lhe a vez; a vez nunca falta a certos homens.

       A sua idéia, o seu burgo, a sua pequena cidade estava muito ameaçada de perder um mercado com o qual ganhava muito.

       O mancebo, apesar de não conhecer Robespierre, escreveu-lhe pedindo que apoiasse a reclamação comunal, que lhe remetia, oferecendo ao mesmo tempo para poder ser vendida toda a sua pequena fortuna. O que fazia rir Camilo Desmoulins, fazia pensar Robespierre; chamou para junto de si o jovem fanático, estudou-o e reconheceu-lhe a têmpera desses homens, com que se fazem as revoluções, e pela sua influência nos jacobinos fez com que fosse nomeado membro da Convenção, apesar de não ter a idade marcada na lei.

       O presidente do corpo eleitoral, João de Brey, protestou, e com o protesto apresentou a certidão do baptismo.

       Com efeito o rapaz só tinha vinte e quatro anos e três meses.

       Mas a influência de Robespierre fez desaparecer esta reclamação.

       Foi em casa desse rapaz que Robespierre passou a noite de 2 de Setembro.

       Foi esse rapaz que dormiu, enquanto Robespierre não pregou olho.

       Esse rapaz era Saint-Just.

       – Saint-Just – dizia-lhe um dia Camilo Desmoulins – sabes o que Danton diz de ti?

       – Não.

       – Diz que trazes a cabeça como a de um Santo Sacramento.

       Um pálido sorriso contraiu a boca feminina do moço.

       – Bem – disse Saint-Just – e eu hei-de fazer-lhe trazer a dele como S. Dinis.

       E cumpriu a palavra.

       Saint-Just desceu lentamente do cume da montanha, subiu lentamente à tribuna e pediu a palavra.

       Pediu – enganámo-nos – não pediu, ordenou a morte.

       Foi atroz o discurso que pronunciou aquele rapaz pálido com lábios de mulher.

       Assina-o quem quiser, imprima-o quem puder, que a nós falece-nos o ânimo.

       – O rei não deve ser julgado demoradamente – disse ele – deve ser morto.

       Deve ser morto, porque não há leis para o julgar; ele mesmo as destruiu. Deve ser morto, como um inimigo, pois que só os cidadãos são julgados; para julgar o tirano, seria preciso dar-lhe primeiro o foro de cidadão. Deve ser morto, como um criminoso, apanhado em flagrante delito, com a mão no sangue; demais, a realeza é um delito eterno; um rei está fora da natureza; entre o povo e o rei não há nenhuma relação natural.

       E falou assim uma hora sem se animar, sem se esquentar, com voz e gestos de pedante, e rematando cada frase com estas palavras, que caíam com um peso singular, e que produziam nos ouvintes uma impressão igual à do ferro da guilhotina.

        “Deve ser morto”.

       O discurso produziu um efeito terrível; não houve um só juiz que não sentisse, ao ouvi-lo, penetrar-lhe até ao coração o frio do aço.

       O próprio Robespierre se assustou ao ver o seu discípulo, o seu pupilo plantar, tanto além dos postos republicanos, os mais avançados, o sanguinolento estandarte da revolução.

       Desde então, o processo não só foi decidido, mas Luís XVI foi condenado.

       Quem tentasse salvar o rei expunha-se à morte.

       Danton teve esta idéia, mas faltou-lhe o ânimo para a pôr em prática. Tivera bastante patriotismo para reclamar o nome de assassino não teve porém bastante estoicismo para aceitar o de traidor.

       O processo começou a 11 de Dezembro.

       A 7 tinha ido ao Templo um membro da municipalidade à frente de uma deputação para falar ao rei.

       Aí leu aos presos uma sentença, que ordenava que lhes tirassem as facas, navalhas de barba, tesouras, canivetes, finalmente todos os instrumentos cortantes, que é costume tirar aos condenados.

       Entretanto a mulher de Cléry foi vê-lo; levava na sua companhia uma amiga. Como de costume mandaram descer o escudeiro à casa do conselho. Ela fingiu que falava com o marido em negócios domésticos, mas enquanto falava em voz alta a amiga dizia em voz baixa:

       – Terça-feira que vem é o rei levado à Convenção. Vai começar o processo. O rei poderá escolher advogados. Tudo isto é certo.

       O rei tinha recomendado a Cléry que não lhe ocultasse nada. Por pior que fosse a notícia, o fiel servidor tomou a resolução de lha dizer. À noite, enquanto o despia, participou-lhe o que sabia.

       Até ajuntou que enquanto durasse o processo tinha a Convenção decidido separá-lo da família.

       Quatro dias restavam a Luís XVI para combinar com a rainha os meios de se corresponderem. Cléry oferecia-se a arriscar tudo para o conseguir.

       O rei ia responder quando entrou o membro da municipalidade.

       No dia seguinte, quando o rei se levantou, não teve Cléry tempo de continuar a conversação. O rei subiu com o filho para almoçar com as princesas, Cléry seguiu-os. Depois do almoço, conversou muito com a rainha, e um olhar doloroso desta indicou a Cléry do que se tratava.

       O rei pôde ainda agradecer-lhe a fidelidade e dedicação.

       – Continue – disse ele – a fazer a diligência para descobrir o que querem fazer de mim. Não receie afligir-me. Combinei com a minha família não nos darmos por sabedores do que se passa para o não comprometer.

       Porém, quanto mais se aproximava o dia do processo, mais desconfiados se tornavam os membros da municipalidade, e Cléry não pôde dar aos presos outras notícias senão as que continha um jornal, que alcançou.

       Este jornal continha o decreto que mandava comparecer o rei a 11 de Dezembro na sala da Convenção.

       A 11 de Dezembro, logo às cinco horas da manhã, começaram a tocar os tambores em Paris.

       As portas do Templo abriram-se para dar passagem à cavalaria e à artilharia. Se a família real ignorasse o que estava para acontecer, decerto se assustaria com esta bulha; todavia fingiu que não sabia, e pediu explicações aos comissários de serviço.

       Estes negaram-se a dá-las.

       Às nove horas, o rei e o delfim subiram ao quarto das princesas para almoçarem.

       Passaram juntos mais uma hora, mas à vista dos membros da municipalidade. No fim de uma hora tiveram de se separar.

       O delfim não sabia nada; tinham querido poupar-lhe esta dor. Adorava o pai, que se fizera criança, para ser seu companheiro nos brinquedos, e se tornara estudante, para ser professor. O menino insistiu nessa ocasião para jogar com o pai; este, apesar da sua crítica sorte, quis dar-lhe essa satisfação.

       O delfim perdeu todas as partidas, e ficou três vezes no n.º 16.

       – Maldito n.º 16! – exclamou ele – creio que me acarreta desgraça.

       O rei nada respondeu, mas o facto impressionou-o como um funesto acontecimento.

       Às onze horas, enquanto o rei ensinava o filho a ler, entraram dois membros da municipalidade, e disseram a sua majestade que iam buscar o delfim para o levar a sua mãe.

       O rei quis saber os motivos desta espécie de rapto.

       Os comissários contentaram-se com responder-lhe que executavam as ordens do conselho da Comuna.

       O rei abraçou o filho e encarregou Cléry de o levar a sua mãe.

       Cléry levou o menino e voltou.

       – Onde deixou meu filho? – perguntou o rei.

       – Nos braços da rainha – respondeu Cléry.

       Neste momento entrou um dos comissários.

       – Senhor – disse ele – o cidadão Chambon (era o sucessor de Pétion), maire de Paris está no conselho e não tarda aqui.

       – Que me quer ele? – perguntou o rei.

       – Não sei – respondeu o membro da municipalidade; – e saiu, deixando o rei só.

       O rei passeou muito pelo quarto e depois assentou-se à cabeceira do leito. O membro da municipalidade estava com Cléry na casa próxima e dizia-lhe, talvez por ironia:

       – Não me atrevo a entrar no quarto do preso com medo de que ele me interrogue.

       Todavia era tal o silêncio, que reinava no quarto, que o comissário ficou com cuidado por não sentir o rei. Entrou brandamente e achou Luís XVI tapando a cara com as mãos e muito preocupado. Todavia, sentindo de repente abrir a porta, voltou-se e perguntou em voz alta:

       – Que me quer?

       – Receava – respondeu o membro da municipalidade – que estivesse incomodado.

       – Muito obrigado – respondeu o rei; – não estou incomodado, mas sensibilizou-me em extremo a maneira por que me tiraram meu filho.

       O membro da municipalidade retirou-se.

       Já era uma hora, quando apareceu o maire. Ia acompanhado pelo novo procurador da Comuna, Chaumette, pelo secretário, Coulombeau, por muitos membros da municipalidade, por Santerre e pelos ajudantes de ordens deste.

       O rei levantou-se.

       – Que me quer, senhor? – perguntou ele dirigindo-se ao maire.

       – Venho aqui – respondeu o maire – em virtude de um decreto da Convenção.

       O secretário desenrolou o papel e leu:

       “Decreto da Convenção Nacional, que ordena que Luís Capeto...”

       A esta palavra o rei interrompeu-o, dizendo:

       – Capeto não é o meu nome, mas sim de um dos meus antepassados.

       Depois, como o comissário quisesse continuar a leitura, acrescentou:

       – É inútil, senhor, pois já li o decreto num jornal.

       Então voltando-se para o comissário, disse:

       – Teria desejado, que os comissários me tivessem deixado meu filho durante as duas horas, que passei a esperá-los, tornando-me mais agradável o tempo que esperei. Não me admiro porém, este tratamento é a continuação do que recebo há quatro meses. Vou segui-lo, não por obedecer à Convenção, mas porque os meus inimigos dispõem da força.

       – Então venha – disse Chambon.

       – Só peço tempo para pôr um casaco, por cima deste fato; Cléry o meu casaco!

       Cléry entregou ao rei o que ele pedia.

       Chambon saiu adiante, o rei seguiu-o.

       No fundo da escada o rei lançou um olhar inquieto para as espingardas, para as lanças e sobretudo para os cavaleiros azuis, cuja organização ignorava.

       Depois lançou um último olhar para a torre e partiu.

       Chovia.

       O rei ia numa carruagem e parecia senhor de si.

       Passando pelas portas de Sain-Martin, e pelas de Saint-Denis, perguntou qual delas tencionavam demolir.

       Entrando nos Bernardos, Santerre pôs-lhe a mão no ombro e levou-o à barra, ao mesmo lugar, e à mesma cadeira, onde tinha jurado à Constituição.

       Todos os deputados tinham ficado assentados no momento da entrada do rei.

       Só um, quando o rei passava por defronte dele, se levantou e o cumprimentou.

       O rei admirado voltou-se e conheceu Gilberto.

       – Bons-dias, Sr. Gilberto – disse o rei.

       Depois dirigindo-se a Santerre:

       – Conhece o Sr. Gilberto? Noutro tempo foi o meu médico. Não lhe há-de querer mal por me ter cumprimentado, não é assim?

       Procedeu-se ao interrogatório.

       Ali o prestígio da desgraça começou a desaparecer diante da publicidade.

       O rei não só respondeu às perguntas que lhe foram dirigidas, mas respondeu mal, hesitando, negando, chicanando, como poderia fazer um advogado de província advogando uma questão de serventia rural.

       O rei não se dava bem com o aparato público.

       O interrogatório durou até às cinco horas.

       Às cinco horas foi o rei conduzido à sala das conferências, onde esperou pela carruagem.

       O maire chegou-se ao rei, e perguntou:

       – Quer tomar alguma coisa?

       – Muito obrigado – disse o rei – não quero nada.

       Mas pouco depois, vendo um granadeiro puxar por pão e dar metade dele a Chaumette, procurador da Comuna, aproximou-se deste e disse-lhe:

       – Quer ter a bondade de me dar um bocado do seu pão?

       Como falasse baixo, Chaumette recuou e disse-lhe:

       – Fale em voz alta, senhor.

       – Oh! Posso falar em voz alta – disse o rei com um sorriso triste – Peço um bocado de pão.

       – Com todo o gosto – respondeu Chaumette.

       E ofereceu-lhe o pão.

       – Aqui tem, tire o que quiser, é um almoço de espartiata. Se tivesse uma raiz dar-lhe-ia metade.

       Desceram ao pátio.

       Os que ali estavam, vendo o rei, entoaram a canção da Marselhesa:

 

Q'un sang impur abreuve nos sillons!

      

       Luís XVI empalideceu e entrou na carruagem.

       E pôs-se a comer, mas só a côdea do pão. Ficava-lhe nas mãos o miolo e não sabia o que fazer dele.

       – Ah! – disse o rei – é mal feito desperdiçar assim o pão, quando é tão raro.

       – Como sabe que é raro, se nunca lhe falta? – perguntou Chaumette.

       – Sei que é raro porque este que me deram cheira um pouco a terra.

       – Minha avó – replicou Chaumette – costumava dizer: “Rapaz, não se deve perder uma migalha de pão, porque não és capaz de fazer nascer outra igual”.

       – Sr. Chaumette – replicou o rei – segundo me parece, sua avó era uma mulher de juízo.

       Depois ambos se calaram.

       Daí a pouco perguntou o rei:

       – Que tem, senhor, está tão pálido?

       – Efectivamente – respondeu Chaumette – não me sinto bem.

       – Talvez que lhe cause enjôo o balanço da carruagem – observou o rei.

       – Talvez.

       – Nunca embarcou?

       – Fiz a guerra com Lamothe-Picquet.

       – Lamothe-Picquet era um valente.

       E o rei calou-se.

       Em que pensava ele? Na sua bela marinha vitoriosa na Índia; no seu porto de Cherburgo, conquistado ao Oceano; no esplêndido uniforme de almirante, tão diferente do que trajava naquela hora; na sua artilharia que salvava todos os dias de prosperidade.

       Estava longe de tudo isto o pobre Luís XVI.

       Metido naquela carruagem incómoda, caminhando a passo por entre ondas de povo, com a barba crescida, trajando um casaco pardo, e dizendo com essa memória automática das crianças e dos Bourbons:

       – Esta é a rua de tal; aquela é a rua de tal; estoutra é a rua de tal.

       Chegando à rua de Orleans, disse:

       – Ah! Esta é a rua de Orleans.

       – Diga a rua da Igualdade – responderam-lhe.

       – Oh! Sim, por causa do Sr. infante...

       E não acabou, calou-se, e desde a rua da Igualdade até ao Templo não anunciou mais palavra.

 

A lenda do rei mártir

       O primeiro cuidado do rei, logo que chegou ao Templo, foi pedir que o conduzissem a sua família.

       Responderam-lhe que não havia ordem para isso.

       Luís compreendeu que, como os condenados à morte, era posto de segredo.

       – Previnam ao menos a rainha de que cheguei – disse ele.

       E sem fazer caso dos quatro membros da municipalidade, pôs-se a ler.

       O rei ainda tinha uma esperança, e era que à hora da ceia se reuniria com a família.

       Debalde esperou, não apareceu ninguém.

       – Ao menos – disse o preso – meu filho passará a noite no meu quarto pois está aqui o que lhe pertence?

       Infeliz! Nem ao menos a respeito do filho tinha a certeza, que afectava ter.

       Não responderam a essa pergunta, como tinha sucedido com as outras.

       – Vamos – disse o rei – então deitemo-nos.

       Cléry despiu o rei, como costumava.

       – Oh! Cléry – disse o rei – estava longe de esperar as perguntas que me fizeram.

       E com efeito, quase todas as perguntas feitas ao rei versavam sobre o armário de ferro, e como o rei ignorasse a traição de Gamain, estava longe de pensar que o armário tivesse sido descoberto.

       Todavia, logo que se deitou, adormeceu com essa tranqüilidade que em certas circunstâncias parecia letargia.

       Não sucedeu o mesmo à sua família.

       Esta maneira de tratarem o rei era para ela muito significativa.

       Era o segredo dos condenados.

       De mais a mais o delfim tinha o seu leito no quarto do rei.

       A rainha deitou o menino na sua cama e esteve toda a noite de pé à cabeceira do leito.

       A sua dor era tão sombria, esta atitude parecia-se tanto com a da estátua de uma mãe, ao pé do túmulo do filho, que a princesa Isabel e a princesa real resolveram passar ali a noite assentadas em cadeiras.

       No dia seguinte, pela primeira vez, implorou a rainha os seus guardas.

       Pediu duas coisas:

       Ver o rei e receber os jornais para estar ao facto do processo.

       Estas duas súplicas foram levadas ao conselho.

       Uma, a dos jornais, foi recusada.

       A outra foi concedida, mas só em parte.

       A rainha não podia ver o marido, nem a irmã o irmão.

       Mas os filhos podiam ver o pai, com a condição de que não veriam mais nem a mãe nem a tia.

       Participou-se este ultimatum ao rei.

       Reflectiu um instante.

       Depois, com a sua habitual resignação, respondeu:

       – Não, por maior que seja a ventura que me daria a presença de meus filhos, renunciarei a ela; além disso, o grande negócio que me ocupa, impedir-me-ia de lhes prestar os devidos cuidados; nada, ficarão com sua mãe.

       Em conseqüência desta resposta, fizeram a cama do delfim no quarto da rainha, que nunca mais deixou os filhos até ao dia em que foi condenada pelo tribunal revolucionário, assim como o rei o foi pela Convenção.

       Era preciso procurar meios de se comunicarem.

       Foi Cléry quem se encarregou de organizar as correspondências, sendo ajudado nisso por Turgy, criado das princesas.

       Turgy e Cléry encontravam-se no exercício das suas funções.

       A vigilância porém dos membros da municipalidade tornava impossível falarem-se.

       O que unicamente podiam dizer era:

       – O rei passa bem.

       A rainha e as princesas passam bem.

       Todavia Turgy habilmente conseguiu entregar um bilhete a Cléry.

       – Deu-mo a princesa Isabel envolto no seu guardanapo – disse ele.

       Cléry foi imediatamente levar o bilhete ao rei.

       As letras tinham sido traçadas a bico de alfinete.

       Havia muito tempo que as princesas não tinham nem papel, nem penas, nem tinta.

       Continha o seguinte:

      

       “Nós passamos bem, meu irmão; escreva-nos”.

      

       O rei respondeu, porque depois que se abrira o processo tinham-lhe restituído penas, papel e tinta.

       Depois entregou o bilhete aberto a Cléry.

       – Leia, meu pobre Cléry – disse ele – e verá que não contém coisa que possa comprometê-lo.

       Cléry recusou respeitosamente lê-lo e tornou a dá-lo ao rei, conforme este lho entregara.

       Passados dez minutos tinha Turgy a resposta.

       No mesmo dia Turgy, passando pelo quarto de Cléry, atirou para dentro um novelo de fio.

       Dentro do novelo ia um bilhete da princesa Isabel.

       Cléry enrolou o fio em redor de um bilhete e meteu-o no armário da louça.

       Turgy tirava-o e metia as respostas no mesmo sítio.

       Porém todas as vezes que o seu escudeiro lhe dava novas provas de fidelidade o rei abanava a cabeça tristemente, dizendo:

       – Tome cuidado, olhe que se compromete.

       O meio era com efeito muito precário.

       Cléry procurou outro.

       Os membros da municipalidade entregavam as velas em pacotes atados com um nastro.

       Cléry foi ajuntando cuidadosamente o nastro, e logo que teve porção suficiente, participou ao rei que tinha um meio de tornar a correspondência mais activa.

       Esse meio era entregar o nastro à princesa Isabel, e como a janela do quarto desta ficava por cima da do quarto de Cléry, podia à noite atar os bilhetes ao nastro e do mesmo modo receber as respostas.

       Além disso, à mesma fita podiam atar-se penas, papel e um vidro com tinta, o que dispensaria as princesas de escreverem com bicos de alfinetes.

       Por esta forma eram mais regulares as notícias.

       Todavia, a posição do rei tinha piorado muito depois que comparecera na Convenção.

       Acreditava-se geralmente em duas coisas:

       Ou que, segundo o exemplo de Carlos I, cuja história o rei muito bem sabia, o rei recusaria responder à Convenção;

       Ou que, se respondesse fá-lo-ia feramente em nome da realeza, não como um acusado, que se sujeita a uma sentença, mas como um cavalheiro que aceita um desafio e levanta a luva.

       Infelizmente Luís XVI não era de natureza assaz real para tomar qualquer destes dois partidos.

       Respondeu, como já dissemos, mal, timidamente, desastradamente, e acabou por pedir um advogado.

       Depois de uma deliberação tumultuosa, que se seguiu à partida do rei, foi-lhe então concedido o advogado.

       No dia seguinte, quatro membros da Convenção foram ao Templo perguntar ao rei que advogado escolhia.

       – O Sr. Target – respondeu o rei.

       Os comissários retiraram-se e preveniram o Sr. Target da honra que lhe fazia o rei.

       Coisa inaudita, incrível, este homem de grande valor, antigo membro da Constituinte, um dos que tivera parte mais activa na redacção da Constituição, teve medo.

       Recusou timidamente, mostrando-se fraco, empalidecendo de receio perante o seu século, para corar de vergonha perante a posteridade.

       Mas no dia imediato àquele em que o rei compareceu na Convenção recebeu o presidente a seguinte carta:

       

       “Cidadão presidente:

       Ignoro se a Convenção concederá um defensor a Luís XVI; se assim suceder desejo que Luís XVI saiba que, se me escolher, estou pronto a aceitar essa missão. Não peço que deis parte do meu oferecimento à Convenção; estou longe de me considerar personagem de grande importância para que ela se ocupe de mim; mas fui chamado duas vezes ao conselho daquele que foi meu senhor, no tempo em que isso era a ambição de todos; devo-lhe o mesmo serviço, quando isso era uma função, que muitos julgam perigosa.

       Se conhecesse meio possível de lhe fazer saber as minhas intenções, não tomaria a liberdade de me dirigir a vós.

       Lembrei-me, porém, de que, pela vossa posição, tereis, melhor do que ninguém, meio de lhe participar este oferecimento”.

       “Sou com respeito, etc., etc.”

        “Malesherbes”.

      

       Chegaram ao mesmo tempo duas representações no mesmo sentido.

       Uma de certo advogado de Troyes, chamado Sourdat.

       “Sou – dizia ele – levado a defender Luís XVI pela convicção que tenho da sua inocência”.

       Outra de uma tal Olímpia de Gouges, célebre improvisadora meridional, que ditava as suas comédias, porque, diziam, não sabia escrever.

       Olímpia de Gouges fizera-se advogada das mulheres, queria que lhes dessem os mesmos direitos que aos homens, que pudessem ser eleitas deputadas, discutir as leis, assim como declarar a paz e a guerra.

       Apoiava a sua pretensão com uma palavra sublime:

       – Porque não hão-de as mulheres subir à tribuna; não sobem também ao cadafalso?

       E com efeito a ele subiu a pobre criatura, mas no momento em que lhe foi lida a sentença, tornou-se mulher, isto é, fraca, e querendo aproveitar o benefício da lei, declarou-se grávida.

       O tribunal fê-la passar por uma consulta de médicos e de parteiras.

       O resultado da consulta foi que se havia gravidez era muito recente para que se pudesse conhecer.

       Diante do cadafalso tornou-se homem e morreu como deve morrer uma mulher da sua qualidade.

       Enquanto a Malesherbes, era o mesmo Lamoignon do Malesherbes, que tinha sido ministro com Turgot, e que com ele caíra; era homem baixo, de 70 a 72 anos, de figura vulgar, e até caricata, e estava longe de fazer julgar – diz Michelet – que fosse capaz de mostrar um heroísmo dos tempos da antiguidade.

       Diante da Convenção nunca tratou o rei senão por senhor.

       – O que é que te dá o atrevimento de assim falares diante de nós? – perguntou um dos membros da Convenção.

       – O desprezo da morte – respondeu simplesmente Malesherbes.

       E com efeito, desprezava bem a morte, para a qual marchou conversando com os seus companheiros, e como se devesse, segundo a expressão de Guillotin, sentir uma ligeira fresquidão quando a recebesse. O porteiro de Monceaux, para onde eram levados os corpos dos supliciados, certificou singularmente este desprezo.

       Na algibeira das calças do corpo do decapitado achou o relógio; marcava duas horas.

       Segundo o seu costume, tinha-lhe dado corda ao meio-dia, isto é, precisamente à hora que saiu para o cadafalso.

       O rei, na falta de Target, escolheu Malesherbes e Tronchet, e estes, como o tempo era pouco, tomaram por adjunto o advogado Deséze.

       A 14 de Dezembro anunciaram ao rei que tinha permissão para comunicar com os seus advogados, e que naquele mesmo dia receberia a visita do Sr. Malesherbes.

       A dedicação deste ancião impressionou-o muito.

       Vendo aproximar-se com uma simplicidade sublime aquele ancião de setenta e dois anos, o coração do rei quase que estalou, e abrindo os braços e lavado em lágrimas, disse:

       – Meu caro Sr. de Malesherbes, por favor, venha abraçar-me.

       E depois de o ter afectuosamente apertado ao coração, continuou:

       – Sei qual é a sorte que me está reservada; e espero a morte, com toda a tranqüilidade estou preparado para a receber! Marcharei para o cadafalso com passo firme.

       O rei, depois de algumas dificuldades suscitadas pelos membros da municipalidade, pôde, finalmente, em virtude do decreto da Convenção, comunicar secretamente com os seus defensores.

       A 15 de Dezembro anunciaram uma deputação.

       Era composta por quatro membros da Convenção.

       Era Valazé, Cochon, Grandpré e Duprat.

       Vinte e um deputados tinham sido nomeados para examinarem o processo do rei. Todos quatro faziam parte dessa comissão especial.

       Traziam ao rei o acto de acusação e as peças relativas ao seu processo.

       A verificação destas peças levou todo o dia.

       Cada uma das peças foi lida pelo secretário.

       Lida cada uma das peças, Valazé dizia:

       – Tem conhecimento deste papel?

       O rei respondia sim ou não.

       Estava tudo dito.

       Passados alguns dias, voltaram os mesmos comissários, e leram ao rei cinqüenta e uma peças novas, que ele assinou como as precedentes.

       Ao todo cento e cinqüenta e oito peças, de que lhe deixaram cópia.

       Neste tempo foi o rei atacado por uma fortíssima constipação.

       Lembrou-se do cumprimento de Gilberto no momento de entrar na Convenção.

       Mandou pedir à Comuna que consentisse que fosse visitado pelo seu antigo médico.

       A Comuna não consentiu.

       – Não beba o Capeto água gelada – disse um dos seus membros – que já não se constipa.

       Era a 26 que o rei havia de aparecer pela segunda vez à barra da Convenção.

       Tinha a barba muito crescida.

       Luís pediu as suas navalhas. Foi isso objecto de negociação. Afinal foram-lhe dadas com a condição de que se serviria delas diante de quatro membros da municipalidade.

       A 25 às onze horas, o rei começou a fazer o seu testamento.

       Esta peça é por tal forma conhecida, que apesar de comovente e cristã, não a queremos de forma alguma consignar aqui.

       Dois testamentos têm atraído a nossa atenção.

       O testamento de Luís XVI, que se achava em face da república, e só via a realeza.

       E o testamento do duque de Orleans, que se achava em face da realeza e só via a república.

       Citaremos apenas uma frase do testamento de Luís XVI, Cada qual vê – dizem – não segundo na realidade das coisas, mas segundo o ponto de vista em que está colocado.

      

       “Termino – escreveu o rei – declarando perante Deus e os homens que não tenho de que acusar-me por nenhum dos crimes que me assacam”.

      

       Mas como foi que Luís XVI, a quem a posteridade deu uma reputação de homem honrado, reputação que talvez deva a essa frase, sendo perjuro a todos os seus juramentos, fugindo para o estrangeiro, e deixando um protesto contra os juramentos feitos; tendo discutido, anotado, e, apreciado os planos de Lafayette e de Mirabeau; quase a comparecer perante Deus, e pronto, como ele diz, a ser julgado; crendo por conseqüência em Deus, na sua justiça, na remuneração das boas e más acções, pôde dizer:

        “Que não tinha que acusar-se pelos crimes que lhe assacavam?”

       Pois bem, a própria construção da frase explica isto perfeitamente.

       Luís XVI não diz:

       – Os crimes, que me assacam são falsos.

       Diz:

       – Não tenho que acusar-me pelos crimes, que me assacam.

       E isso não é a mesma coisa.

       Luís XVI, no momento de caminhar para o cadafalso, mostrou que ainda era discípulo do Sr. de Lavauguyon.

       Dizer:

        Os crimes, que me assacam são falsos, era negar esses crimes.

       E Luís XVI não podia negá-los.

       Dizer: Não tenho que acusar-me pelos crimes que me assacam.

       Era em rigor: Os crimes existem, mas não me acuso deles.

       E porque não se acusava?

       Porque estava colocado, como há pouco dissemos, no ponto de vista da realeza.

       Porque os reis, pela sua elevada posição, pelo sagrado da sua legitimidade, pelo direito divino, em que consideram, não vêem os crimes, e sobretudo os crimes políticos, sob o ponto de vista em que os julgam os outros homens.

       Assim, para Luís XI a revolta contra o pai não é um crime, é a guerra a bem do público.

       Assim, para Carlos IX, o S. Bartolomeu não é um crime, é uma medida aconselhada pela salvação pública.

       Assim, aos olhos de Luís XVI, a revogação do édito de Nantes não é um crime, é simplesmente uma razão de Estado.

       O próprio Malesherbes, que então defendia o rei, sendo outrora ministro e querendo reabilitar os protestantes, achou em Luís XVI uma resistência obstinada.

       – Não – respondeu-lhe o rei – não: a proscrição dos protestantes é uma lei de Estado, é uma lei de Luís XIV; não ultrapassemos os limites.

       – Senhor – respondeu Malesherbes – a política nunca deve prevalecer contra a justiça.

       – Mas – exclamou Luís XVI – como homem que não percebe, como é que a revogação do édito de Nantes é um atentado contra a justiça? A revogação do édito de Nantes não foi para a salvação do Estado?

       Assim, para Luís XVI a perseguição dos protestantes, excitada por uma velha devota e por um juiz odiento, aquela medida atroz, que fez correr sangue a jorros nos vales Cevelones, que acendeu as fogueiras de Nimes, de Alby, de Béziers, não era um crime, era, pelo contrário, uma razão de Estado.

       Além disso, havia ainda outra coisa, que era preciso examinar no ponto de vista real.

       É que um rei, nascido quase sempre de uma estrangeira, é quase sempre estrangeiro para o seu povo.

       Governa e nada mais.

       E como o governa?

       Por intermédio dos seus ministros.

       Por esta razão, o povo não só não é digno de ser seu parente, não é digno de ser seu aliado, mas nem sequer é digno de ser governado directamente pelo rei. Ao passo que os soberanos estrangeiros são parentes e aliados do rei, que não tem parentes nem aliados no seu reino.

       Bourbons de Espanha, Bourbons de Nápoles, de Itália, todos são da mesma origem.

       Henrique IV era primo de Luís XVI.

       O imperador de Áustria era seu cunhado; os príncipes de Sabóia eram seus aliados.

       Luís XVI era saxónio por parte da mãe.

       Ora, lembrando-se o povo de impor a Luís XVI condições, que este julgou que não era do seu interesse seguir, a quem chamou Luís XVI contra os seus vassalos revoltados?

       Aos seus primos, aos seus cunhados, aos seus aliados; para ele, os espanhóis e os austríacos não eram inimigos da França, pois que eram parentes e amigos dele; e no ponto de vista da realeza, o rei é a França.

       O que vinham defender aqueles reis?

       A causa santa, inatacável, quase divina, da realeza.

       Esta era a razão porque Luís XVI não se acusava pelos crimes, que lhe assacavam.

       Portanto, o egoísmo real fez nascer o egoísmo popular, e o povo, que tinha levado o ódio à realeza, a ponto de suprimir Deus, por lhe dizerem que a realeza emanava de Deus, tinha também, em virtude de alguma razão de Estado, apreciado, sob o seu ponto de vista, e fizera o 14 de Julho, os 5 e 6 de Outubro, o 20 de Junho e o 10 de Agosto.

       Não dizemos o 2 de Setembro, pois não foi o povo que o fez, foi a Comuna.

 

A lenda do rei mártir

       Chegou o dia 26 e encontrou o rei preparado para tudo, mesmo para a morte.

       O rei tinha feito o seu testamento na véspera, e receava, não se sabe porquê, ser assassinado quando no dia seguinte fosse à Convenção.

       A rainha sabia que o rei ia à Convenção pela segunda vez.

       O movimento das tropas, o rufar dos tambores assustá-la-iam em extremo, se Cléry não tivesse achado meio de lhe participar a causa.

       Às dez horas da manhã, partiu o rei, guardado por Chambon e Santerre.

       Chegado ao local do edifício onde funcionava a Convenção, teve que esperar uma hora.

       O povo vingava-se de ter tido por antecâmara, pelo espaço de quinhentos anos, o Louvre, as Tulherias e Versalhes.

       Realizava-se uma discussão, a que o rei não podia assistir.

       Uma chave, entregue por ele, no dia 12, a Cléry, tinha sido apanhada nas mãos do escudeiro.

       Lembraram-se de experimentar a chave no armário de ferro e servia-lhe.

       A chave tinha sido apresentada a Luís XVI, que respondera:

       – Não a conheço.

       Segundo a probabilidade, ele mesmo é que a tinha forjado.

       Foi nestas pequenezas que o rei não teve grandeza alguma.

       Acabada a discussão, o presidente anunciou à Assembléia que o acusado e os seus defensores estavam prontos para comparecer.

       Deu-se ordem para Luís XVI entrar na sala.

       Entrou o rei, acompanhado por Malesherbes, por Tronchet e por Desèze.

       – Luís – disse o presidente – a Convenção decidiu que seria hoje ouvido.

       – O meu advogado vai ler-lhes a minha defesa – disse o rei.

       Seguiu-se profundo silêncio; toda a Assembléia compreendia que se devia dar algumas horas de atenção àquele rei, cuja realeza aniquilavam, àquele homem, cuja vida cortavam.

       Além disso, a Assembléia, onde havia espíritos superiores, talvez esperasse ver suscitada uma grande discussão; prestes a deitar-se no sepulcro ensangüentado, talvez que já envolta na mortalha, a realeza ia levantar-se de repente, aparecer com a majestade dos moribundos, e dizer algumas palavras, que a história registra e que os séculos repetem.

       Não sucedeu porém assim; ao contrário de toda a expectativa, o discurso do advogado Desèze foi simplesmente um discurso de advogado.

       Era contudo bela a defesa daquela causa, a defesa daquele herdeiro de tantos reis, que a fatalidade levava perante o povo, não só em expiação dos seus próprios crimes, mas para expiar os crimes e as faltas de uma raça inteira.

       Parece-nos que se naquela ocasião fôssemos o advogado Desèze não teríamos falado como ele falou, mas sim com mais alma.

       Devia apelar para S. Luís, para Henrique IV, e estes dois grandes chefes da raça é que deviam lavar Luís XVI das fraquezas de Luís XIII, das prodigalidades de Luís XIV e da devassidão de Luís XV.

       Não aconteceu porém assim.

       Desèze não procurou comover. Não se tratava de ser conciso, mas poético; era necessário dirigir-se ao coração e não ao raciocínio.

       Mas talvez que, acabado este discurso, Luís XVI, tomasse a palavra, e já que ia defender-se, o fizesse como rei, digna, grandiosa e nobremente.

       “Senhores – disse ele – acabam de lhes expor os meus meios de defesa, portanto não os repetirei: falando-lhes talvez pela última vez, declaro que a minha consciência não me acusa de coisa alguma, e que os meus defensores lhes disseram a verdade.”

       “Nunca receei que a minha conduta fosse examinada publicamente, mas estala-me o coração por encontrar no acto de acusação que quis fazer derramar o sangue do povo, e sobretudo o serem-me atribuídas as desgraças do dia 10 de Agosto.”

       “Confesso que as multiplicadas provas, que em todos os tempos dei, do meu amor pelo povo, e a maneira por que me conduzi, me pareciam dever provar que receava pouco expor-me para poupar o seu sangue e para afastar de mim semelhante imputação.”

      

       Ora, enoja ver o sucessor de sessenta reis, o neto de S. Luís, de Henrique IV, de Luís XIV não achar outra coisa que responder ao seus acusadores.

       Quanto mais a acusação era injusta no vosso entender, senhor, mais eloqüente devia tornar-vos a indignação.

       Devíeis deixar alguma coisa à posteridade, quando mais não fosse uma sublime maldição sobre os vossos carrascos.

       Portanto, a Convenção admirada, perguntou:

       – Não tem mais nada a juntar à sua defesa?

       – Não – respondeu o rei.

       – Pode retirar-se.

       Luís retirou-se.

       O rei foi conduzido a uma das salas contíguas à Assembléia.

       Ali abraçou o Sr. Desèze; e como o advogado estivesse em suor, mais pela comoção do que pela fadiga, Luís XVI aconselhou-lhe que mudasse de camisa, e ele mesmo aqueceu a que o advogado vestiu.

       Às cinco horas, voltou ao Templo.

       Naquela mesma tarde foi procurado pelos seus defensores no momento em que se levantava da mesa.

       Ofereceu-lhes alguns refrescos, que só Desèze aceitou.

       – Então, senhor de Malesherbes – disse o rei – bem vê que não me tinha enganado quando lhe disse que a minha condenação estava decidida, muito antes de eu ser ouvido.

       – Senhor – respondeu Malesherbes – ao sair da Assembléia fui rodeado por pessoas, que afirmaram que não morrereis, senão no meio delas e dos seus amigos.

       – Conhece essas pessoas, senhor? – perguntou o rei.

       – Pessoalmente não as conheço, mas se as tornar a ver, talvez conheça alguma.

       – Pois bem, faça diligência por encontrar algumas, e diga-lhes que nunca lhes perdoarei a mínima gota de sangue derramada por minha causa. Não quis que se derramasse quando podia conservar-me o trono e a vida, muito menos o quero agora, que já fiz o sacrifício tanto de um como da outra.

       O Sr. de Malesherbes prometeu voltar à Convenção logo que saísse do Templo, e efectivamente demorou-se muito pouco com o rei e saiu para cumprir a ordem, que lhe fora dada.

       Chegou o 1.º de Janeiro de 1793.

       Preso e no segredo, Luís XVI só tinha na sua companhia um único servidor.

       Pensava tristemente neste isolamento quando Cléry se lhe aproximou da cama.

       – Senhor – disse ele em voz baixa – peço licença de lhe apresentar os meus ardentes votos pelos fins das desventuras de vossa majestade.

       – Aceito os seus desejos, Cléry – disse o rei estendendo-lhe a mão.

       Cléry pegou na mão do rei e cobriu-a de beijos e de lágrimas.

       Depois o rei levantou-se e vestiu-se.

       Neste momento entraram os membros da municipalidade.

       Luís procurou entre eles aquele, cuja fisionomia denotava alguma compaixão, e aproximando-se dele, disse-lhe:

       – Oh! Senhor, faça-me um grande obséquio.

       – O que é?

       – Ir saber notícias da minha família e apresentar-lhe os meus bons desejos pelo ano que começa.

       – Eu vou – respondeu o membro da municipalidade muito enternecido.

       – Obrigado – disse o rei; – espero que Deus lhe pagará o favor que me faz.

       – Mas – disse o outro membro a Cléry – porque não pede o preso que o deixem ver a sua família? Agora, que já estão acabados os interrogatórios, parece-me que não haverá dificuldade para o conseguir.

       – Mas a quem se há-de o rei dirigir?

       – À Convenção.

       Passado um instante, voltou o membro que tinha ido ao quarto da rainha.

       – Senhor – disse ele – a sua família agradece os seus votos e dirige-lhe os dela.

       O rei sorriu tristemente e disse:

       – Que dia de ano bom!

       À noite, Cléry participou ao rei o que lhe dissera o membro da municipalidade.

       O rei reflectiu um instante, e depois de alguma hesitação, disse:

       – Não, daqui a alguns dias não me hão-de recusar essa consolação; quero esperar.

       A religião católica inflige aos seus eleitos terríveis macerações do coração.

       A sentença devia ser promulgada a 16.

       O Sr. de Malesherbes esteve muito tempo com o rei, e saiu ao meio-dia dizendo que voltaria o mais depressa possível a dar-lhe conta do que se passasse.

       A votação devia recair sobre três questões terrivelmente simples:

       1.º Luís é culpado?

       2.º A decisão da Convenção deve ser submetida à ratificação do povo?

       3.º Qual deve ser a pena?

       Era porém preciso, para que o futuro visse bem que, se não se votava sem ódio, ao menos votava-se sem medo, era preciso que a votação fosse nominal.

       Um girondino, por nome Birotteau, pediu que cada representante subisse à tribuna e desse em voz alta o seu voto.

       Um montanhês, Leonardo Bourdon, foi mais longe; pediu que fossem assinados os votos.

       Finalmente, um deputado da direita, chamado Royer, pediu que as listas fizessem menção dos ausentes em comissão, e que todos os que estavam ausentes sem ser em comissão, fossem censurados e os seus nomes enviados aos departamentos.

       Começou então a grande e terrível sessão, que devia durar três dias e três noites.

       A sala apresentava singular aspecto, pouco em harmonia com o que se ia passar.

       O aspecto da sala não dava idéia alguma do drama terrível.

       O fundo tinha sido transformado em camarotes, onde as mais lindas mulheres de Paris, cobertas de veludo e de peles, tomavam gelados.

       Os homens cumprimentavam-nas, conversavam com elas, voltavam aos seus lugares, e dali faziam sinais; parecia um espectáculo.

       O lado da montanha, principalmente, fazia-se notar pela sua elegância; era entre os montanheses que tinham assento os milionários: o duque de Orleans, Lepelletier de Saint-Fargeau, Hérault de Séchelles, Anacharsis Clootz, o marquês de Châteauneuf.

       Todos estes senhores tinham tribunas reservadas para as suas amantes, que chegavam cobertas de fitas tricolores, com bilhetes, ou com cartas de recomendação aos porteiros, que lhes franqueavam as tribunas.

       As galerias reservadas para o povo estiveram constantemente cheias; bebia-se ali e comia-se como nas casas de pasto, e conversava-se como nos clubes.

       Ao primeiro quesito: Luís é culpado?

       Seiscentas e oitenta e três vozes responderam:

       – Sim.

       Ao segundo quesito: A decisão da Convenção deve ser submetida à ratificação do povo?

       Duzentas e oitenta e uma vozes votaram pela apelação para o povo.

       Quatrocentas e vinte e três votaram contra.

       Depois chegou o terceiro quesito, o quesito grave, o quesito supremo: Qual deve ser a pena?

       Quando chegaram a este quesito eram oito horas da noite do terceiro dia, dia do mês de Janeiro, triste, chuvoso e frio.

       Todos estavam aborrecidos, fatigados, impacientes; a força humana, tanto nos actores como nos espectadores, sucumbia a quarenta e cinco horas de permanência.

       Cada deputado subiu à tribuna e pronunciava uma destas quatro palavras:

       A prisão, o exílio, a morte com apelação para o povo, ou a morte simplesmente, sem apelação.

       Tinha-se proibido qualquer sinal de aprovação, ou de reprovação, todavia quando nas galerias ouviam outras palavras que não fossem morte, murmuravam.

       Filipe-Igualdade subiu à tribuna e disse:

       – Unicamente ocupado do meu dever, convencido de que todos aqueles que intentaram, ou que de futuro intentem contra a soberania do povo merecem a morte, voto pela morte.

       Depois de pronunciadas estas palavras, seguiram-se murmúrios, assobios, e apupada.

       No meio deste acto terrível, apareceu Duchâtel, um deputado que estava doente; vendo-o aparecer com o barrete de dormir, e com um chambre vestido, a Assembléia pôs-se a rir.

       Disse duas palavras: a Assembléia estremeceu.

       O moribundo vinha votar pela morte.

       Vergniaud, presidente no dia 10 de Agosto, ainda era presidente a 17 de Janeiro.

       – Cidadãos – disse ele – ides exercer um grande acto de justiça; espero que a humanidade vos aconselhará a guardar o mais profundo silêncio; depois da justiça falar, deve fazer-se ouvir a humanidade.

       E leu o resultado do escrutínio.

       De setecentos e vinte e um votantes, trezentos e oitenta e sete votam pela morte; uns sem apelação, outros com apelação.

       Havia pois mais pela morte do que pelo exílio cinqüenta e três votos.

       Tirando porém destes cinqüenta e três votos os quarenta e seis, dos que tinham votado pela morte com apelação, restava somente pela morte imediata uma maioria de sete votos.

       – Cidadãos – disse Vergniaud com inflexão de profunda dor – declaro em nome da Convenção que a pena que ela pronuncia contra Luís Capeto é de morte.

       Foi na noite de sábado 19, que se votou a pena de morte, mas só no domingo, 20, às três horas da manhã, é que Vergniaud pronunciou a sentença.

       Entretanto Luís XVI, privado de toda a comunicação, sabia contudo que a sua sorte se decidia, e só, longe de sua mulher e de seus filhos, que tinha recusado ver para mortificar a alma, como um anacoreta mortifica a carne, entregava com indiferença, pelo menos na aparência perfeita, a sua vida ou a sua morte nas mãos do Omnipotente.

       No domingo pela manhã, às seis horas, entrou o Sr. de Malesherbes. O rei já estava levantado, mas estava encostado a uma mesa tapando o rosto com as mãos.

       O ruído que o seu advogado fez ao entrar tirou-o da meditação em que estava.

       – E então? – perguntou o rei.

       O advogado não teve força para responder; mas o rei, pelo abatimento do rosto, logo viu que estava tudo acabado.

       – Condenado à morte – disse Luís; – estava certo disso.

       Então abriu os braços e apertou contra o peito o Sr. de Malesherbes, que estava lavado em lágrimas.

       – Sr. de Malesherbes – disse ele – afirmo-lhe que há dois dias tenho constantemente investigado se durante o meu reinado mereci a censura de meus vassalos. Pois juro-lhe com toda a sinceridade do meu coração, como um homem que vai aparecer perante Deus, que sempre desejei a felicidade do meu povo, e que nunca formei um só voto que lhe fosse contrário.

       Tudo isto se passava diante de Cléry, que estava lavado em pranto; mas o rei, tendo dó dele, levou o Sr. de Malesherbes para o seu gabinete, onde se demorou uma hora.

       Depois saiu, abraçou o seu defensor, pediu-lhe que voltasse à tarde, e despediu-se.

       As lágrimas borbulhavam nos olhos do rei.

       – Este bom velho comoveu-me muito – disse ele a Cléry; – mas o que tem?

       Esta pergunta era motivada por um tremor geral que se apoderara de Cléry, desde que o Sr. de Malesherbes, ao entrar, lhe dissera que o rei tinha sido condenado à morte.

       Então Cléry para ocultar, quanto lhe fosse possível, ao rei o estado em que se achava, preparou tudo o que era necessário para o rei fazer a barba.

       O rei pôs o sabão, e Cléry estava diante dele com a bacia nas mãos.

       De repente foi o rei acometido por grande palidez; Cléry, receando que estivesse incomodado, pôs de parte a bacia e dispunha-se a sustê-lo, mas o rei pegou-lhe nas mãos e disse-lhe:

       – Vamos, vamos, ânimo!

       E barbeou-se tranqüilamente.

       O rei esteve no seu quarto até à hora do jantar; às duas horas abriu-se a porta, era o conselho executivo que vinha intimar a sentença ao preso.

       À frente do conselho vinham Garat, ministro da justiça; Lebrun, dos negócios estrangeiros; Grouvelle, secretário do conselho; o presidente e o procurador geral, o síndico dos departamentos, o maire e o procurador da Comuna, o presidente e o acusador público do tribunal criminal.

       Santerre ia adiante de todos.

       – Anuncia o conselho executivo! – disse ele a Cléry.

       Cléry dispunha-se a obedecer; mas o rei, que tinha sentido passos, poupou-lhe o trabalho: abriu a porta e apareceu no corredor.

       Então Garat, com o chapéu na cabeça, tomou a palavra e disse:

       – Luís, a Convenção Nacional encarregou o conselho executivo provisório de lhe intimar os decretos de 15, 16, 17, 19 e 20 de Janeiro; o secretário do Conselho vai lê-los.

       Então Grouvelle desenrolou o decreto e leu com voz trémula:

 

Artigo 1.º

      

       “A Convenção declara Luís Capeto, último rei dos franceses, culpado da conspiração contra a liberdade da nação, e de atentado contra a segurança geral do Estado.”

 

Art. 2.º

      

       “A Convenção Nacional decreta que Luís Capeto sofrerá pena de morte.”

 

Art. 3.º

      

       “A Convenção Nacional declara nulo o acto de Luís Capeto levado à barra pelos seus advogados, e qualificado de apelação para a nação, da sentença contra ele dada pela Convenção.”

 

Art. 4.º

      

       “O conselho executivo provisório notificará o presente decreto a Luís Capeto, e tomará as medidas de polícia e de segurança necessárias para assegurar a execução da sentença dentro de vinte e quatro horas, contadas depois de feita a intimação, e dará conta de tudo à Convenção Nacional, logo depois de executada.”

      

       Durante a leitura, o rosto do rei conservou-se perfeitamente tranqüilo, a sua fisionomia só indicou dois sentimentos completamente distintos.

       A estas palavras: culpado de conspiração, um sorriso de desprezo contraiu-lhe os lábios, e a estas: sofrerá pena de morte, dirigiu ao Céu um olhar, que parecia pôr o condenado em comunicação com Deus.

       Acabada a leitura, o rei deu um passo para Grouvelle, pegou no decreto, dobrou-o, meteu-o na carteira, da qual tirou outro papel, que entregou a Garat dizendo:

       – Sr. ministro da justiça, rogo-lhe queira entregar imediatamente esta carta à Convenção Nacional.

       E como o ministro hesitasse:

       – Vou lê-la disse o rei.

       E leu a seguinte carta com uma voz, que contrastava com a de Grouvelle.

      

       “Peço três dias para me preparar a comparecer perante Deus. Peço para isto autorização para ver livremente a pessoa, que eu indicar aos comissários da Convenção, e que esta pessoa esteja ao abrigo de todo o receio e de todo o cuidado pelo acto de caridade, que desempenhe comigo.”

       “Peço para ser desembaraçado da contínua vigilância, que o conselho geral estabeleceu há dois dias.”

       “Peço para neste intervalo poder ver a minha família sem testemunhas; desejava também muito que a Convenção Nacional se ocupasse já da sorte da minha família e que permitisse que ela se retirasse livremente para aonde julgasse a propósito.”

       “Recomendo à beneficência da nação todas as pessoas que estavam ao meu serviço; há muitas que tinham empregado toda a sua fortuna nos seus cargos, e como não têm outras rendas, devem estar na miséria; nos recolhimentos e hospícios havia muitas mulheres, velhos e crianças que viviam do que eu lhes dava.”

       “Feita na torre do Templo, a 20 de Janeiro de 1793.”

       “Luís.”

      

       Garat pegou na carta.

       – Senhor – disse ele – esta carta vai já ser entregue à Convenção.

       Então o rei puxou de novo pela carteira e dela tirou uma tira de papel.

       – Se a Convenção me conceder o que peço, eis aqui a morada da pessoa que desejo.

       Efectivamente no papel estava escrita a morada pela letra da princesa Isabel.

      

       “O Sr. Edgeworth de Firmont, rua do Bac, n.º 483.”

      

       Depois, como não tivesse mais nada que dizer nem que ouvir, o rei deu um passo para trás como no tempo em que dava audiência, indicando com este movimento que a audiência estava terminada.

       Os ministros e todas as pessoas que os acompanhavam saíram.

       – Cléry – disse o rei ao seu escudeiro, o qual para se suster, tinha sido obrigado a encostar-se à parede – pede o meu jantar.

       Cléry passou à casa de jantar para executar a ordem do rei; achou ali dois membros da municipalidade, que lhe deram um decreto pelo qual era proibido ao rei servir-se de facas e de garfos.

       Só uma faca devia ser confiada a Cléry para cortar o pão e a carne a seu amo na presença de dois comissários.

       A ordem foi repetida ao rei, porque Cléry não se quis encarregar de lha participar.

       O rei partiu o pão com os dedos e a carne com a colher.

       Contra o seu costume, comeu pouco, e o jantar só durou alguns minutos.

       Às seis horas anunciaram o ministro da justiça; precedia-o Santerre.

       O rei levantou-se para o receber.

       – Senhor – disse o ministro da justiça – entreguei a sua carta à Convenção, e ela encarregou-me de lhe notificar a seguinte resposta:

      

       “É livre a Luís chamar o ministro do culto que lhe parecer.”

       “Ver a sua família livremente e sem testemunhas.”

       “A nação magnânima e sempre justa, ocupar-se-á da sorte da sua família.”

       “Aos credores da sua casa serão concedidas justas indemnizações.”

      

       O rei fez um movimento com a cabeça e o ministro retirou-se.

       Mas os membros da municipalidade fizeram-no parar.

       – Cidadão ministro – disseram eles – como poderá Luís ver a família?

       – Em particular – respondeu Garat.

       – É impossível; por um decreto da Comuna, nós não o podemos perder de vista nem de dia nem de noite.

       A coisa com efeito era intrincada. Todavia conciliou-se tudo, decidindo-se que o rei veria a família na casa de jantar, de maneira que pudesse ser visto pelas vidraças, mas podia fechar a porta para não ser ouvido.

       Entretanto, o rei dizia a Cléry:

       – Veja se ainda aí está o ministro da justiça e chame-o.

       O ministro entrou.

       – Esqueceu-me perguntar – disse o rei – se o Sr. Edgeworth de Firmont estava em casa e quando poderei vê-lo.

       – Trouxe-o na minha carruagem; está no conselho e já aí vem.

       Efectivamente, neste momento aparecia à porta o Sr. Edgeworth de Firmont.

 

A lenda do rei mártir

       O Sr. Edgeworth de Firmont era o confessor da princesa Isabel.

       Havia perto de seis semanas que o rei, prevendo a sua condenação, pedira à irmã conselho sobre a escolha do padre que devia acompanhá-lo, e a princesa lavada em lágrimas, recomendou-lhe o abade de Firmont.

       Este digno eclesiástico, inglês de origem, tinha escapado à carnificina de Setembro, e tinha-se retirado a Choisy-le-Roi, com o nome de Essex. A princesa, que estava ao facto disto, tinha-o mandado prevenir e esperava que estivesse em Paris no momento da condenação.

       Não se enganara.

       O abade de Firmont recebeu a missão com uma alegria resignada, pois não ignorava o perigo que corria o padre não ajuramentado que acompanhasse o rei ao cadafalso.

       Portanto a 21 de Dezembro escrevia a um dos seus amigos de Inglaterra:

      

       “O meu desgraçado amo lembrou-se de mim para dispor à morte. Se a iniqüidade do seu povo o levar a cometer tal parricídio, eu mesmo disponho a morrer, porque estou convencido de que o furor popular não me há-de deixar sobreviver a esta horrível cena. Estou porém resignado; a minha vida nada é, se, perdendo-a, puder salvar aquele a quem sirvo.”

      

       Tal era o homem que só devia desamparar Luís XVI no momento, em que este deixasse a terra pelo Céu.

       O rei mandou-o entrar para o seu gabinete, e dirigindo-se aos comissários disse:

       – Tenham a bondade de me conduzir à minha família.

       – Não é possível – disse um dos comissários; – mas se o deseja virá ela aqui.

       – Pois bem, contanto que a possa ver no meu quarto, livremente e sem testemunhas.

       – No seu quarto não, mas na casa de jantar.

       – Mas parece-me que o decreto da Convenção me permite vê-la sem testemunhas.

       – É verdade: ninguém o ouvirá, porque a porta estará fechada, mas pelos vidros não o perderemos de vista.

       – Está bem, mande descer a minha família.

       Os comissários saíram e o rei passou à sala de jantar.

       – Cléry – disse o rei – traga uma garrafa com água e um copo, para o caso da rainha ter sede.

       Havia em cima da mesa uma garrafa com água gelada, que um membro da Comuna tinha censurado ao rei.

       Cléry portanto só ali pôs um copo.

       – Traga água comum – disse o rei: – a rainha não está costumada à água gelada e podia fazer-lhe mal. Diga ao Sr. abade de Firmont que não saia do meu gabinete; a sua presença poderia produzir grande impressão na rainha.

       Às oito horas e meia abriu-se a porta.

       A rainha vinha adiante trazendo o filho pela mão; seguia-se-lhe a princesa Isabel e a princesa real.

       O rei abriu os braços, e todos ao mesmo tempo neles se lançaram chorando.

       Cléry saiu e fechou a porta.

       Durante alguns minutos reinou profundo silêncio, interrompido só por suspiros.

       Depois a rainha fez um movimento para levar o rei para o seu quarto.

       – Não – disse ele – só aqui a posso ver.

       A família real já sabia qual fora a sentença, mas ignorava os seus pormenores.

       Então o rei tudo lhe contou, desculpando os que o faziam morrer, e mostrando à rainha que nem Pétion, nem Manuel tinham votado pela morte imediata.

       A rainha não podia falar, porque lhe embargavam a voz os soluços.

       Deus dava uma indemnização ao pobre preso; fazia com que na sua última hora todos o adorassem, até a rainha.

       Como se pode ver na parte romântica desta obra, a rainha facilmente se deixava arrastar para o lado pitoresco da vida.

       Tinha essa imaginação viva, que, muito mais do que o temperamento material, torna as mulheres imprudentes. A rainha durante toda a sua vida foi imprudente; imprudente nas suas amizades, imprudente nos seus amores.

       O seu cativeiro no Templo salvou-a no ponto de vista moral. Voltou às puras e santas afeições de família, de que a tinham afastado as paixões da sua mocidade; e como fazia tudo apaixonadamente, veio a amar apaixonadamente na desgraça aquele homem, que achara vulgar nos dias da prosperidade.

       Varennes e o 10 de Agosto tinham-lhe mostrado o rei como um homem sem iniciativa, sem resolução, quase fraco. No Templo começou a perceber que não só como mulher julgara mal o marido, senão que como rainha tinha julgado mal o rei.

       No Templo viu-o sossegado, paciente aos ultrajes, doce e firme como Cristo. Portanto, por isso mesmo que muito o desprezara, muito o amou depois.

       – Ai de mim! – disse o rei ao abade de Firmont; amá-la eu tanto! E ser por ela tão ternamente amado!

       Nesta última entrevista a rainha deixou-se arrastar por um sentimento, que se parecia com o remorso. Quis levar o rei para o seu quarto, para estar um instante a sós com ele, e como visse que não era possível levou-o para o vão de uma janela.

       Ia sem dúvida lançar-se-lhe aos pés e pedir-lhe perdão, mas o rei, que a compreendeu, não consentiu, e tirando o testamento da algibeira, disse:

       – Leia, minha muito amada mulher.

       E apontou-lhe para o seguinte parágrafo:

       “Peço a minha esposa que me perdoe todos os males, que sofreu por minha causa, todos os desgostos que poderia causar-lhe durante a nossa união, assim como pode estar certa de que não guardo reserva contra ela, se julgar ter alguma coisa de que se acusar.”

       A pobre rainha pegou nas mãos do marido e beijou-as. Havia um perdão bem misericordioso naquela frase, como pode estar certa de que não guardo reserva contra ela, uma grande delicadeza nestas palavras, se julgar ter alguma coisa de que se acusar.

       Assim morria perdoada a pobre Madalena real; o seu amor pelo rei, apesar de tardio, valia-lhe a misericórdia divina e humana e o perdão era-lhe dado não em voz baixa e misteriosamente, como uma indulgência de que o rei se envergonhava, mas alta e publicamente.

       Quem se atrevia agora a acusar aquela, que ia apresentar-se à posteridade com a auréola do martírio e com o perdão do seu marido?

       Ela conheceu isto; compreendeu que desde aquele momento, estava forte perante a história; mas tornou-se mais fraca na presença daquele a quem amava tão tarde e a quem muito sentia não ter amado mais cedo.

       Não eram lágrimas, não eram palavras que se escapavam do peito da desgraçada senhora; eram soluços, eram gritos entrecortados. Dizia que queria morrer com seu marido, e que, se lhe recusassem essa graça, deixar-se-ia morrer de fome.

       Os membros da municipalidade, que não ouviam nada, mas que pelos gestos compreendiam que aquele que ia morrer é que consolava os que sobreviviam, não se puderam conter; primeiramente afastaram a vista, mas como ouviam gemidos, tornaram-se francamente homens e puseram-se a chorar.

       Aquela cena pungente e dolorosa durou duas horas menos um quarto.

       Finalmente, às dez horas e um quarto, o rei foi o primeiro a levantar-se. Então, mulher, filhos, irmã, agarraram-se a ele como os frutos a uma árvore. O rei e a rainha levavam o delfim pela mão; a princesa real à esquerda de seu pai, levava-o agarrado pela cintura: a princesa Isabel, do mesmo lado que a sobrinha, tinha pegado no braço do rei; a rainha, e era a que tinha direito a mais consolações, porque era a menos pura, tinha passado o braço ao pescoço do marido, e todo aquele grupo doloroso caminhava no meio de gemidos, de soluços e de gritos, por entre os quais só se ouviam estas palavras:

       – Havemos de tornar a ver-nos não é assim?

       – Sim, sim, fique descansada.

       – Amanhã às oito horas?

       – Prometo que sim.

       – Mas porque não há-de ser às sete horas? – perguntou a rainha.

       – Pois será às sete horas – respondeu o rei, – mas... Adeus... Adeus...

       E pronunciou este adeus com voz tão expressiva, que se conhecia que as suas forças estavam esgotadas.

       O mesmo sucedia à princesa real, que deu um suspiro e caiu desmaiada.

       A princesa Isabel e Cléry levantaram-na.

       O rei sentia que lhe competia ser forte.

       Arrancou-se dos braços da rainha e do delfim, e entrou no seu quarto, gritando:

       – Adeus! Adeus!

       Depois fechou a porta.

       A rainha soluçando foi colocar-se à porta, não se atrevendo a pedir ao rei que abrisse, mas chorando e dando ais profundos.

       O rei teve ânimo de não sair.

       Os membros da municipalidade convidaram a rainha a retirar-se, afirmando-lhe que no dia seguinte poderia ver seu marido às oito horas.

       Cléry queria levar a princesa real até ao quarto da rainha, mas ao segundo degrau, os membros da municipalidade obrigaram-no a retirar-se.

       O rei já estava com o seu confessor no gabinete da torre, e o confessor contava-lhe a maneira como tinha sido conduzido ao Templo.

       Eis o que contou o abade:

       Prevenido pelo Sr. de Malesherbes de que o rei havia de recorrer a ele no caso de ser condenado, o abade de Firmont, com perigo de vida, voltara a Paris, e depois da sentença esperara na rua do Bac.

       Às quatro horas da tarde, apresentara-se em sua casa um desconhecido, que lhe entregara um bilhete do Conselho executivo, concebido nestes termos:

      

       “Tendo o Conselho executivo de comunicar ao cidadão Edgeworth de Firmont um negócio de mais alta importância, convida-o a comparecer no lugar das sessões.”

      

       O desconhecido tinha ordem para acompanhar o padre. À porta esperava-os uma carruagem.

       O abade partiu com o desconhecido.

       A carruagem parou nas Tulherias.

       O abade achou os ministros em conselho. Logo que ele apareceu, levantaram-se.

       – É o Sr. abade Edgeworth de Firmont? – perguntou Garat.

       – Sim – respondeu o abade.

       – Bem – continuou o ministro; – tendo-nos Luís Capeto testemunhado o desejo de que o acompanhe nos seus últimos momentos, nós mandámos procurá-lo para saber se quer prestar-lhe o serviço que ele exige do senhor.

       – Já que o rei se lembrou de mim, é meu dever obedecer-lhe.

       – Nesse caso – disse o ministro – venha comigo ao Templo.

       E entrou com o abade na sua carruagem.

       Acabando o abade de falar – disse o rei:

       – Senhor, esqueçamos tudo para só pensarmos na minha salvação.

       – Senhor – respondeu o abade – estou pronto a fazer quanto me for possível, e espero que Deus suprirá o meu pouco mérito. Mas não seria uma grande consolação para vossa majestade ouvir missa e comungar?

       – Sim – respondeu o rei – e acredite que compreenderia todo o valor de semelhante graça. Mas há-de expor-se a esse ponto?

       – Isso é comigo e tenho a peito provar a vossa majestade que sou digno da honra que me fez, escolhendo-me para seu consolador. Dê-me o rei carta branca e eu respondo por tudo.

       – Vá, senhor – disse o rei.

       O abade Edgeworth inclinou-se e saiu, pedindo para ser conduzido à sala do Conselho.

       – Que quer? – perguntaram os membros da municipalidade.

       – Aquele que vai morrer amanhã deseja antes de morrer ouvir missa e comungar.

       Os membros da municipalidade olharam atônitos uns para os outros: nem sequer passava pela idéia a possibilidade de lhes pedirem semelhante coisa.

       – Mas aonde é – disseram eles – que se há-de achar a esta hora um padre e ornamentos de igreja?

       – O padre já nós temos, sou eu; quanto aos paramentos, a igreja mais próxima os fornecerá.

       Os membros da municipalidade hesitaram.

       – Mas – disse um deles – se fosse um engano?

       – Que engano? – perguntou o abade.

       – Se, sob pretexto de fazerem comungar o rei, quisessem envenená-lo?

       O abade olhou fixamente para aquele que emitia esta dúvida.

       – Não se admire – continuou o membro – a história oferece-nos bastantes exemplos a este respeito para nos aconselhar que sejamos circunspectos.

       – Senhor, quando aqui entrei fui apalpado escrupulosamente para verem se eu trazia veneno. Se amanhã o tiver, só dos senhores o poderei ter recebido.

       Convocaram os membros, que estavam ausentes e deliberaram.

       O que o rei queria foi concedido debaixo de duas condições:

       A primeira era que o abade faria um requerimento, que assinaria.

       A segunda que a cerimónia estaria acabada no dia seguinte às sete horas.

       O abade fez o requerimento e assinou-o.

       Depois foi dizer ao rei que os seus desejos estavam satisfeitos.

       O abade esteve com o rei desde as dez horas até à meia-noite; chegada essa hora, disse o rei:

       – Estou cansado e desejo dormir, porque preciso adquirir forças para amanhã.

       Depois chamou Cléry.

       O escudeiro apareceu, despiu o rei, e quis enrolar-lhe os cabelos.

       Mas o rei disse-lhe com um sorriso:

       – Não vale a pena.

       Depois deitou-se, e quando o escudeiro ia correr as cortinas, disse-lhe:

       – Cléry, chama-me às cinco horas.

       Apenas pousou a cabeça no travesseiro, logo adormeceu, tão poderosas eram naquele homem as necessidades materiais.

       O Sr. de Firmont deitou-se na cama de Cléry.

       Este passou a noite numa cadeira.

       O sono de Cléry foi aflito.

       Logo que se levantou, a primeira coisa que o escudeiro fez foi acender o lume.

       A bulha que fez acordou o rei.

       – Já são cinco horas, Cléry? – perguntou ele.

       – Senhor, já deram em muitos relógios, mas no do castelo ainda não.

       Então Cléry chegou-se ao leito.

       – Dormi bem, e bastante precisava, o dia de ontem fatigou-me horrivelmente. Onde está o Sr. de Firmont?

       – Está deitado na minha cama.

       – Então onde dormiste?

       – Nesta cadeira.

       – Tenho pena, pois decerto ficaste incomodado.

       – Oh! Senhor, acaso podia lembrar-se de mim em semelhante momento!

       – Ai, meu pobre Cléry!

       E estendeu-lhe a mão, em que o pobre escudeiro pegou lavado em pranto.

       O fiel servidor começou então a vestir o rei pela última vez.

       Depois de vestido penteou-o.

       Entretanto, Luís XVI tirou um sinete do relógio e meteu-o na algibeira da vestia, pôs o relógio sobre o fogão, e tirando um anel do dedo, meteu-o na mesma algibeira em que guardara o sinete.

       No momento em que Cléry vestia a casaca, que era a mesma da véspera, o rei tirou dela a sua carteira, a luneta, e a caixa de rapé, e pôs tudo em cima do fogão ao lado da bolsa; todos estes preparativos eram feitos diante dos membros da municipalidade, que tinham entrado no quarto do rei, logo que viram luz.

       Deu meia hora, depois das cinco.

       – Cléry – disse o rei – acorde o Sr. de Firmont.

       O Sr. de Firmont já estava acordado e levantado, ouviu a ordem dada a Cléry e portanto entrou.

       O rei cumprimentou-o e pediu que o seguisse ao seu gabinete; entretanto Cléry arranjava o altar.

       Era a cómoda do quarto coberta com uma toalha.

       Quanto aos paramentos da igreja e vestimentas do oficiante, tinham sido achadas, conforme dissera o abade Edgeworth, na primeira igreja a que se dirigiram.

       Esta igreja era a dos Capuchos do Marais, ao pé do palácio de Soubise.

       Preparado o altar Cléry foi prevenir o rei.

       – Poderá ajudar à missa? – perguntou-lhe Luís.

       – Parece-me que sim, ainda que não sei bem as respostas.

       Então o rei deu-lhe um livro de missa, que abriu no introitum.

       O Sr. de Firmont já se estava paramentando no quarto de Cléry.

       Cléry tinha colocado diante do altar uma grande cadeira e diante desta uma almofada; mas o rei fez-lha tirar e foi ele mesmo buscar outra mais pequena de que se servia ordinariamente para rezar as suas orações.

       Logo que entrou o sacerdote, os membros da municipalidade, que sem dúvida receavam manchar-se com o contacto de um homem da igreja retiraram-se para a casa próxima.

       Eram seis horas, quando começou a missa.

       O rei ouviu-a, desde o princípio até ao fim, de joelhos e no mais profundo recolhimento.

       Depois da missa, o rei comungou, e o abade Edgeworth, deixando-o entregue às suas orações, foi ao quarto de Cléry despir os paramentos.

       O rei aproveitou esse momento para agradecer a Cléry e para se despedir dele, depois entrou no seu gabinete.

       O abade de Firmont foi ter com ele.

       Cléry assentou-se em cima da cama a chorar.

       Às sete horas saiu o rei do gabinete e chamou Cléry.

       Cléry correu.

       O rei conduziu-o ao vão de uma janela e disse-lhe:

       – Há-de entregar este sinete a meu filho e este anel a minha mulher; diga-lhes que os deixo com muita pena. Este papel encerra os cabelos de todos os membros da nossa família, também lho entregará.

       – Mas – perguntou Cléry – vossa majestade não quer tornar a ver a sua família?

       O rei hesitou um instante como se o coração o abandonasse para ir ter com ela.

       Mas, por último, disse:

       – Não, decididamente, não. Sei muito bem que tinha prometido vê-la esta manhã, mas quero poupar-lhe a dor de tão cruel separação. Cléry, dir-lhe-á quanto me custa partir sem receber os seus últimos abraços.

       E dizendo estas palavras enxugou as lágrimas.

       Depois com a mais dolorosa expressão, acrescentou:

       – Cléry, há-de fazer-lhes as minhas últimas despedidas, não é assim?

       E tornou a entrar no seu gabinete.

       Os membros da municipalidade tinham visto o rei entregar a Cléry os diferentes objectos, que enumerámos. Um deles reclamou-os mas outro propôs que deixassem Cléry depositário deles até à decisão do conselho.

       Esta proposta prevaleceu.

       Passado um quarto de hora o rei tornou a sair do gabinete.

       – Cléry – disse ele – pergunte se é possível servir-me duma tesoura.

       E tornou para o gabinete.

       – O rei pode servir-se de uma tesoura? – perguntou Cléry aos membros da municipalidade.

       – Para que a quer?

       – Não sei.

       – Pois pergunte-lho.

       Um dos membros entrou no gabinete e achou o rei de joelhos diante do abade de Firmont.

       – Pediu uma tesoura – disse ele; – para que é?

       – Para Cléry me cortar os cabelos.

       O membro da municipalidade desceu à sala do Conselho.

       Deliberaram por espaço de meia hora e por último recusaram.

       O membro subiu e disse:

       – O conselho recusou.

       – Não lhe pegaria, e Cléry corta-me os cabelos na sua presença. Peço-lhe que vá dizer isto.

       O membro tornou a descer, expôs o que o rei lhe dissera, mas o conselho persistiu em recusar.

       Então um dos membros da municipalidade chegou-se a Cléry e disse-lhe:

       – Parece-me que é tempo de te dispores a acompanhar o rei ao cadafalso.

       – Para quê, meu Deus? – perguntou Cléry muito trémulo.

       – Para o ajudares a despir; não és seu escudeiro?

       – Oh! Não é preciso – disse outro – o carrasco exerce bem essas funções.

       O dia começava a despontar, e já em todas as secções de Paris se ouvia tocar o tambor.

       Este som penetrava na torre e gelava o sangue do abade de Firmont e de Cléry.

       Mas o rei, mais sossegado do que eles, escutou por um instante; depois disse com todo o sangue frio:

       – Provavelmente é a guarda nacional que começa a reunir.

       Passado algum tempo, entraram no Templo os destacamentos de cavalaria. Ouviu-se o tropel dos cavalos e as vozes dos oficiais.

       O rei escutou de novo e com o mesmo sossego.

       – Parece-me que se aproximam – disse ele.

       Das sete às oito horas da manhã, foram, sob diversos pretextos bater à porta do gabinete, e de cada vez o abade Edgeworth temia que fosse a última.

       Mas de todas as vezes o rei ia à porta, respondia tranqüilamente às pessoas que iam interrompê-lo, e voltava para os pés do seu confessor.

       O abade não via as pessoas que iam importunar o preso, mas ouvia-as.

       Uma vez ouviu uma que dizia:

       – Oh! Oh! Tudo isso era bom quando era rei, mas agora já não o é.

       O rei voltou com a mesma tranqüilidade e disse simplesmente:

       – Veja como esta gente me trata, meu padre; porém é necessário sofrer.

       Bateram de novo e o rei foi à porta.

       Desta vez voltou dizendo:

       – Esta gente em toda a parte vê punhais e veneno. Muito mal me conhecem. Matar-me seria uma fraqueza. Julgam que não sei morrer.

       Finalmente, às nove horas, aumentando a bulha, abriram-se as portas com estrondo e Santerre entrou acompanhado de sete ou oito membros da municipalidade e com dez gendarmes, que formou em duas linhas.

       A este movimento, saiu o rei do gabinete sem que fosse preciso baterem-lhe à porta.

       – Vêm buscar-me?

       – Sim, senhor.

       – Peço um minuto.

       E tornando a entrar fechou a porta.

       – Desta vez está tudo acabado, meu padre, disse ele, lançando-se de joelhos diante do confessor; dê-me a sua última bênção e peça a Deus que me dê forças até ao fim.

       Dada a bênção, o rei pôs-se em pé, e abrindo a porta do gabinete dirigiu-se aos membros da municipalidade e aos gendarmes que estavam no quarto.

       Todos tinham o chapéu na cabeça.

       – O meu chapéu, Cléry – disse o rei.

       Cléry lavado em pranto apressou-se em obedecer.

       – Há entre os senhores – perguntou o rei – algum membro da Comuna? É o senhor julgo eu.

       E dirigiu-se a um membro da municipalidade chamado Jacques Roux, padre ajuramentado.

       – Que quer? – perguntou este.

       O rei tirou da algibeira o seu testamento.

       – Peço-lhe que entregue este papel à rainha... a minha mulher.

       – Não viemos aqui para ser teus criados, mas para te conduzir ao cadafalso.

       O rei recebeu a injúria com a mesma humildade, com que Cristo a receberia, e com a mesma doçura que o homem Deus; voltando-se para outro membro da municipalidade chamado Gabeau, perguntou:

       – E o senhor também me recusa este favor?

       E como este hesitasse, o rei acrescentou:

       – Oh! Pode lê-lo; contém disposições que desejo que a Comuna conheça.

       O membro pegou-lhe.

       Então, vendo Cléry, o qual, receando como o escudeiro de Carlos I, que seu amo tremesse de frio e julgassem que era medo, lhe apresentava o chapéu e o casaco, disse-lhe:

       – Não, Cléry, quero só o chapéu.

       Cléry deu o chapéu ao rei, que aproveitou esta ocasião para lhe apertar pela última vez a mão.

       Depois, com esse tom de comando, que na sua vida tão raras vezes havia tomado, disse:

       – Partamos, senhores!

       Foram as últimas palavras que pronunciou na prisão.

       Na escada encontrou Mathay, porteiro da torre, que na antevéspera achara no seu quarto assentado diante do fogo, e a quem dissera com mau modo que saísse dali.

       – Mathay – disse o rei – antes de ontem fui um pouco arrebatado consigo, não me queira mal.

       Mathay não lhe respondeu e voltou-lhe as costas.

       O rei atravessou o primeiro pátio a pé, e atravessando-o voltou-se duas ou três vezes para dizer adeus com a vista ao seu único amor, a sua esposa; à sua amizade, a sua irmã; à sua única alegria, os seus filhos.

       À entrada do pátio achava-se uma carruagem pintada de verde: à portinhola estavam dois gendarmes. Quando o rei se aproximou, um deles meteu-se dentro da carruagem, depois entrou o rei, que fez sinal ao abade para se assentar a seu lado. O outro gendarme também entrou e fechou a portinhola.

       Correram então dois boatos.

       Sendo o primeiro, que um desses gendarmes era um padre disfarçado.

       O segundo, que ambos os gendarmes tinham recebido ordem de assassinar o rei à primeira tentativa que ele fizesse para o salvar.

       Nenhuma destas asserções tinha fundamento.

       A carruagem partiu às nove horas e um quarto.

       Ainda uma palavra sobre a rainha, sobre a princesa Isabel e sobre as duas crianças de quem o rei, ao partir se despedira com a vista, através das paredes da prisão.

       Na véspera à noite, depois da entrevista, ao mesmo tempo grata e terrível, a rainha apenas tivera tempo para despir e deitar o delfim. Deitou-se vestida em cima da cama, e durante aquela longa noite de Inverno a princesa Isabel e a princesa real ouviram-na tiritar de frio e de dor.

       Às seis horas e um quarto abriu-se a porta da alcova das princesas; tinham ido ali buscar um livro de missa.

       Então toda a família se preparou, crendo que, conforme a promessa feita na véspera pelo rei, dentro em pouco iria ter com ele; mas correu tempo, e a rainha e as princesas, sempre de pé, ouviram bulha por diversas vezes, a qual produziu nelas o mesmo efeito que produzira no confessor, e em Cléry, escudeiro do rei. Ouviram abrir e fechar portas; ouviram os gritos do populacho, que rondava a saída do rei, finalmente sentiram o tropel dos cavalos e o rodar da artilharia.

       Então a rainha caiu sobre uma cadeira dizendo:

       – Foi-se sem nos dizer adeus!

       A princesa Isabel e a princesa real puseram-se de joelhos.

       Tinham esperado que fosse só o exílio ou a prisão, e essa esperança esvaiu-se; depois tinham esperado que fosse concedida a apelação, e essa esperança desfez-se; finalmente, esperavam ainda um golpe desesperado, durante o trânsito, e essa esperança também ia desaparecer.

       – Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! – gritava a Rainha – e este último apelo de desespero à divindade era tudo quanto ela podia dizer.

       Entretanto ia rodando a carruagem.

       As ruas estavam quase desertas; as lojas fechadas, e não aparecia pessoa alguma nem às portas nem às janelas.

       Um decreto da Comuna proibia aos cidadãos que não fizessem parte da milícia armada, atravessarem as ruas, que desembocavam no boulevard, ou aparecerem às janelas quando passasse o rei.

       Uma atmosfera pesada e chuvosa só deixava ver uma floresta de lanças, no meio das quais brilhavam algumas baionetas. Na frente da carruagem, ia cavalaria e na frente desta tambores.

       O rei queria falar com o seu confessor, mas não o podia fazer por causa da bulha.

       O abade de Firmont emprestou ao rei o seu breviário.

       À porta de Saint-Denis levantou a cabeça, parecendo-lhe que havia grande movimento entre a multidão.

       Com efeito, uma dúzia de mancebos, desembocando da rua de Beauregard, acabavam de se precipitar com a espada em punho entre esta multidão, gritando:

       – A nós os que querem salvar o rei.

       Três mil conjurados deviam responder àquele brado levantado pelo barão de Batz, aventureiro conspirador.

       Deu corajosamente o sinal; de mais de três mil conjurados só lhe responderam doze.

       O barão de Batz e os conjurados aproveitaram a confusão causada pela sua tentativa e escaparam-se pelas ruas próximas ao arrabalde de Saint-Denis.

       Fora este movimento que distraíra o rei das suas orações: mas foi de tão pequena importância, que a carruagem nem sequer parou.

       Só parou quando chegou ao seu destino.

       Logo que o rei percebeu que tinha cessado o movimento, inclinou-se ao ouvido do sacerdote e disse-lhe:

       – Se não me engano já chegámos.

       O abade de Firmont ficou silencioso.

       Neste momento, um dos três irmãos Sanson, carrascos de Paris, foi abrir a portinhola.

       O rei, detendo-o e pondo a mão sobre o joelho do abade de Firmont, disse em tom de comando:

       – Recomendo-lhe este senhor; depois da minha morte preserve-o de qualquer injúria; é ao seu cuidado que o confio.

       Entretanto tinham-se chegado os outros dois algozes.

       – Sim, sim – disse um deles – deixe-o por nossa conta; vamos agora ao que interessa.

       Luís apeou-se.

       Então os ajudantes do carrasco quiseram despi-lo.

       Mas Luís repeliu-os desdenhosamente e começou a despir-se só.

       Por um instante ficou o rei só no meio do círculo que se tinha feito: tirou o chapéu, a gravata e a sobrecasaca.

       Depois aproximaram-se os algozes.

       Um deles tinha na mão uma corda.

       – Que quer? – perguntou o rei.

       – Quero amarrá-lo.

       – Oh! Isso nunca, tal não consentirei.

       Os executores elevavam a voz; ia travar-se aos olhos do público uma luta, corpo a corpo, que ia tirar à vítima o mérito de seis meses de coragem e de resignação, quando um dos irmãos Sanson, comovido, mas obrigado a executar a sua terrível obrigação, aproximou-se em tom respeitoso e disse:

       – Senhor, com este lenço.

       O rei olhou para o seu confessor.

       Este fez um esforço para falar e disse:

       – Senhor, será mais uma semelhança entre vossa majestade e o Deus que vai ser a recompensa do vosso martírio.

       O rei levantou os olhos para o Céu com suprema expressão de dor, e disse:

       – Sim, é preciso o seu exemplo para se poder sofrer uma tal afronta.

       E voltando-se para os carrascos, estendeu-lhe resignado as mãos e disse:

       – Façam o que quiserem, despejarei o cálix até às fezes.

       Os degraus do cadafalso eram altos e escorregadios; subiu-os encostado ao sacerdote. Por um instante sentiu este o peso do corpo do rei no seu braço, e receou alguma debilidade no último momento.

       Mas, chegando ao último degrau, o rei escapou-se por assim dizer da mão do seu confessor, como a alma se lhe ia escapar do corpo, e correu para o outro lado da plataforma.

       O rei estava muito vermelho e animado.

       Os tambores rufavam e ele impôs-lhe silêncio com um olhar.

       Pronunciou com voz forte as seguintes palavras:

       – Morro inocente de todos os crimes que me imputam; perdôo aos autores da minha morte, e peço a Deus que o sangue que ides derramar não caia nunca sobre a França.

       – Rufai, tambores! – gritou uma voz, que por muito tempo se julgou ser a de Santerre, mas que foi do Sr. de Beaufranchet, conde de Oyrt, filho de Luís XV e da cortesã Morphise.

       Era tio natural do condenado.

       Os tambores rufaram.

       O rei bateu o pé.

       – Calai-vos – disse com voz terrível – ainda tenho, que falar.

       Mas os tambores continuaram a rufar.

       – Façam o seu dever, berravam os homens, que cercavam o cadafalso, dirigindo-se aos executores.

       Estes atiraram-se ao rei, que voltou a passos lentos para o cutelo, olhando para o ferro, cujo desenho ele mesmo tinha dado havia um ano.

       Depois as suas vistas dirigiram-se para o sacerdote, que orava de joelhos à borda do cadafalso.

       Seguiu-se um movimento uniforme atrás dos dois postes da guilhotina; a redouça girou, sentiu-se uma pancada e não se viu mais do que um grande jacto de sangue.

       Então um dos executores, agarrando na cabeça do executado mostrou-a ao povo, aspergindo o cadafalso com o sangue real.

       A esta vista os homens das lanças deram brados de alegria, e precipitando-se molharam no sangue, uns as lanças, outros as espadas, e os que tinham lenços também os ensoparam.

       Depois deram o brado de: “Viva a república!”

       Mas pela primeira vez, este grande grito que tinha feito estremecer de alegria os povos, extinguiu-se sem eco.

       A república tinha na fronte uma dessas nódoas fatais que nunca se apagam.

       Acabava, como disse mais tarde um grande diplomata, de cometer mais que um crime, acabava de cometer um erro.

       Em Paris houve profundo sentimento, que em alguns degenerou em desespero.

       Uma mulher afogou-se no Sena, um cabeleireiro degolou-se, um livreiro endoideceu, um oficial morreu duma apoplexia.

       Quando se abriu a sessão, leu o presidente a carta de um homem que pedia que lhe fosse entregue o corpo de Luís XVI para o enterrar ao pé do de seu pai.

       Restavam o corpo e a cabeça separados um da outra.

       Vejamos que fim tiveram.

       Não conhecemos narrações mais terríveis do que o próprio texto de uma acta.

       Eis a que foi lavrada no dia da execução.

 

Acta do enterro de Luís Capeto

      

       “A 21 de Janeiro de 1793, II ano da república francesa, nós abaixo assinados, administradores dos departamentos de Paris, munidos de poderes pelo conselho geral do departamento, em virtude das ordens do conselho executivo provisório da república francesa, dirigimo-nos às nove horas da manhã a casa do cidadão Récaves, cura de Santa Madalena, e encontrando ali o dito cura, perguntamos-lhe se tinha dado cumprimento às ordens recomendadas na véspera pelo conselho executivo e pelo departamento para o enterro de Luís Capeto. Respondeu-nos que tinha executado o que fora ordenado pelo conselho executivo e pelo departamento, e que estava tudo preparado.”

       “Dali, acompanhados, pelos cidadãos Redard e Damoreau, ambos coadjutores da paróquia de Santa Madalena encarregados pelo cidadão cura de procederem ao enterro de Luís Capeto, dirigimo-nos ao cemitério da dita paróquia, situado na rua d'Ànjou-Saint-Honoré, onde reconhecemos terem sido executadas as ordens por nós dadas na véspera ao cidadão cura, em virtude da comissão que tínhamos recebido do conselho geral do departamento.”

       “Pouco depois foi deposto no cemitério na nossa presença, por um destacamento de gendarmaria a pé, o cadáver de Luís Capeto, que reconhecemos, tendo a cabeça separada do tronco; notámos que a cabeça tinha os cabelos cortados pelo lado de trás, e que o cadáver não trazia gravata nem casaca, nem sapatos. Trazia camisa, vestia de cor parda, calções e meias da mesma cor.”

       “Assim vestido, foi deposto num caixão; desceram-no à cova, que imediatamente encheram, e tudo foi disposto e executado segundo as ordens dadas pelo conselho executivo provisório da república francesa, e tudo assinámos com os cidadãos Récaves, Renard, e Damoreau, cura e coadjutores de Santa Madalena.”

      

                        “Leblanc, administrador do departamento.”

                        “Dubois, administrador do departamento.”

                        “Damoreau, Rócaves, Renard.”

      

       Portanto, Luís XVI foi morto e enterrado a 21 de Janeiro de 1793.

       Tinha de idade trinta e nove anos, cinco meses e três dias.

       De reinado dezoito anos.

       Esteve preso cinco meses e oito dias.

       O seu último desejo não foi cumprido, e o seu sangue não só caiu sobre a França, mas sobre toda a Europa.

 

A desordem

       A morte de Luís XVI deixou a França rodeada de inimigos. Todas as potências quebraram as suas relações com ela, e à Prússia, do Império, e ao Piemont, que já a guerreavam, uniram-se a Inglaterra, a Holanda e a Espanha.

       As que ainda se conservavam neutrais eram a Suécia e a Dinamarca, porque não distraíam as suas vistas da Rússia, que se ia entretendo em desmembrar a Polónia.

       Terrível era a posição da França.

       Odiada pelas outras nações depois da carnificina de Setembro, e principalmente depois da execução do rei, achava-se por assim dizer, cercada por toda a Europa como se fosse uma simples cidade. A Inglaterra atacava-a pelos Pirinéus, o Piemont e a Áustria pelos Alpes, a Holanda e a Prússia pelo norte dos Países-Baixos.

       Só por um único ponto do alto do Reno até ao Escalda, avançavam contra a república francesa duzentos e cinqüenta mil combatentes.

       Os exércitos franceses eram repelidos em toda a parte, Miaczinski tinha sido obrigado a abandonar Aix-la-Chapelle, e havia retirado sobre Liège, Steinge, e Neuilly, tendo recuado até Liburgo. Miranda, que estava sitiando Maestricht, recolhera para Tongres. Valence e Dampierre, reduzidos a tentar uma retirada, tinham perdido uma grande parte do material do seu exército.

       Mais de dez mil homens haviam desertado do exército, espalhando-se pelo interior do país. Finalmente, a Convenção que tinha posto toda a sua esperança em Dumouriez, enviou-lhe ordem para que abandonasse as margens do Biesboos, onde estava preparando um desembarque na Holanda, para ir tomar o comando do exército estacionado no Mosa.

       A França, como se fosse um corpo animado, sentia em Paris, que era o coração da república, cada golpe que a invasão, a derrota ou a traição lhe vibrava aos membros mais afastados.

       Cada vitória enchia todos de alegria.

       Aos reveses sucediam-se brados de terror.

       Grande foi pois o tumulto motivado pela notícia da derrota dos exércitos franceses.

       A 9 de Março houve na Convenção uma sessão muito agitada e tumultuosa, e Danton sempre pronto a propor coisas que pareciam impossíveis, mas que sempre se efectuavam, subindo à tribuna, exclamou:

       Faltam-vos os soldados, dizeis vós! Ofereçamos a Paris uma ocasião de salvar a França, peçamos-lhe trinta mil homens, e mandemo-los a Dumouriez, e assim não só salvaremos a França, mas ficará a Bélgica segura e conquistaremos a Holanda.

       Esta proposta foi recebida com estrepitosos aplausos e produziu singular entusiasmo.

       Todas as secções abriram registros, e foram avisados todos os seus membros para se reunirem à noite.

       Para evitar qualquer distracção, deu-se ordem para se fecharem os espectáculos públicos.

       Na casa da municipalidade foi içada uma bandeira preta como sinal de perigo.

       Antes da meia-noite estavam arrolados nos registros trinta e cinco mil nomes.

       Sucedeu porém desta vez, como sucedera nos dias de Setembro; os voluntários quando iam inscrever os seus nomes, pediam que antes de partirem fossem punidos os traidores.

       Os traidores, para eles, eram os contra-revolucionários.

       Esta palavra porém, era susceptível de toda a latitude, que lhe quisessem dar os partidos exaltados, que naquela época dilaceravam a França.

       Verdadeiramente os traidores eram sempre os mais fracos.

       Ora, como naquela ocasião os mais fracos eram os girondinos, resolveram os montanheses que fossem somente traidores os girondinos.

       A 10 de Março, nem um só deputado da montanha faltou à sessão.

       Os jacobinos armados acabavam de entrar nas galerias, depois de terem mandado sair as mulheres, quando se apresentou o maire acompanhado pelos conselheiros da municipalidade.

       Vinha participar o grande número de voluntários que se tinham inscrito, e ao mesmo tempo repetia o pedido feito na véspera, para ser nomeado um novo tribunal extraordinário, que julgasse os traidores no mais curto prazo de tempo.

       A Assembléia pediu em altos brados que fosse nomeada uma comissão especial para dar imediatamente o seu parecer sobre o assunto.

       Com efeito, reuniu-se a comissão, e Roberto Lindei participou à Assembléia o seguinte resultado:

       “Que ia ser nomeado um tribunal, composto de nove juízes que decidiriam independentemente de formalidades, e procurariam por toda e qualquer maneira obter a convicção dos crimes; que seria dividido em duas secções sempre permanentes, e que se procederia a pedido da Convenção, ou de seu motu-próprio, contra todos aqueles que procurassem desvairar o povo.”

      

       Era muito ilimitado, era infinito, como se vê, o poder deste tribunal.

       Os girondinos conheceram que era a sua sentença de extermínio, e por isso bradaram todos:

       – Antes queremos morrer do que consentir em que se estabeleça uma tal inquisição veneziana.

       Os montanheses, em resposta a esta exclamação, pediram votos em altas vozes.

       – Sim – gritou Féraud – sim, votemos para dar a conhecer ao mundo quais são os homens que pretendem assassinar a inocência em nome da lei.

       Procedeu-se com efeito à votação e contra o que todos esperavam, decidiu a maioria:

       1.º Que houvesse jurados;

       2.º Que os jurados fossem escolhidos em número igual pelos departamentos;

       3.º Que fossem nomeados pela Convenção.

       No momento em que estas três propostas acabavam de ser aprovadas, ouviu-se grande vozearia.

       A Convenção não se mostrou admirada, pois estava acostumada às visitas populares.

       Todavia o presidente ordenou que fossem saber o que pretendiam.

       Era uma deputação de voluntários que, tendo-se juntado no Terreiro, pedia vénia para fazer desfilar a sua gente na presença da Convenção.

       Abriram-se as portas, que imediatamente deram entrada a mais de seiscentos bêbados armados todos de espadas, pistolas, espingardas e chuços e que pediam em altos berros a morte dos traidores.

       – Sim – respondeu Collot-d’Herbois, um façanhudo montanhês – sim, meus amigos, apesar das intrigas, salvar-vos-emos a vós e à liberdade.

       E olhou para os girondinos de uma maneira, que bem lhes dava a entender que não estavam ainda livres de perigo.

       Depois de fechada a sessão, correram os montanheses todos aos seus clubes, propondo que os traidores fossem declarados fora da lei e mortos naquela mesma noite.

       O ministro Louvet morava na rua de Saint-Honoré, próximo dos jacobinos.

       Sua mulher, ouvindo grande vozearia, saiu à rua, entrou no clube e ouvindo a proposta foi participá-la ao marido.

       Louvet armou-se e saiu imediatamente para reunir os amigos; achou-os porém todos ausentes e o criado de um disse-lhe que estava em casa do maire Pétion.

       Dirigiu-se pois a casa do maire, e com efeito encontrou-os ali muito tranqüilos deliberando sobre uma proposta, que contavam fazer aprovar na seguinte sessão.

       Louvet dá-lhes parte do ocorrido, diz-lhes o que estão tramando os jacobinos, e propõe-lhes que se adopte também alguma medida enérgica.

       Logo que acabou de falar, Pétion levantou-se com a sua costumada impassibilidade, foi à janela, abriu-a, olhou para o Céu, estendeu o braço, e tirando para dentro a mão encharcada, disse:

       – Está chovendo; esta noite não há novidade.

       Pela janela, meia aberta, entraram as últimas vibrações do sino que dava as dez horas.

 

O dia 10 de Março

       Eis pois o que se passava em Paris naquele mesmo dia e na véspera; eis o que se estava passando durante aquela noite e é o motivo por que, no meio do silêncio e da escuridão, as casas destinadas a abrigar os vivos, tornadas mudas e sombrias, pareciam unicamente sepulcros povoados de mortos.

       Patrulhas numerosas de guardas nacionais marchando em silêncio e precedidas por vedetas de baioneta calada; magotes de cidadãos das secções, armados conforme cada um tinha podido, e encostando-se uns aos outros, percorriam as ruas.

       Além destes, algumas patrulhas de gendarmes rondavam em todos os recantos e faziam fechar as lojas que se encontravam abertas.

       Tudo isto era feito, porém com tais precauções, que bem se via quanto desconfiavam uns dos outros.

       As patrulhas não se cruzavam sem trocarem santo e senha. E ainda assim, depois de passarem, iam olhando para traz, como se receassem ser de improviso atacadas pela retaguarda.

       Naquela noite, em que Paris estava entregue a um desses terrores horríveis, tantas vezes repetidos; naquela noite, em que se tramava em segredo dar cabo dos revolucionários frouxos, que depois de votarem pela morte do rei não queriam votar pela da rainha; naquela noite, repetimos, atravessava Paris a passos tímidos uma mulher embrulhada num mantelete de chita sarapintada, e de rosto coberto com um capuz.

       Quem era a heroína que assim se aventurava pelas ruas de Paris em noite tão terrível?

       É o que mais tarde saberemos.

       Caminhava encostada às casas da rua de Saint-Honoré, metendo-se nos vãos das portas ou nos recantos todas as vezes que deparava com alguma patrulha, contendo a respiração quando esta passava, e quando a via distante, prosseguia o caminho a passo precipitado.

       Já tinha andado sem mau encontro a rua de Saint-Honoré, quando, depois de voltar a esquina da rua Grenelle, se viu de repente no meio de uma patrulha de voluntários, os quais, tendo participado do jantar do Terreiro, tinham exaltado o seu patriotismo com copiosos brindes.

       A pobrezinha, logo que viu os voluntários, deu um grito e tentou escapar pela rua do Coq.

       – Olá! Cidadã! – gritou o chefe dos voluntários, pois os dignos patriotas, obedecendo à necessidade tão natural do homem de ter quem o comande, já tinham escolhido chefes. – Olá! Onde vais tu?

       A mulher não respondeu, e continuou a fugir precipitadamente.

       – Apontem! – disse o chefe – é um homem disfarçado, é um aristocrata que foge!

       E em seguida, o som dos gatilhos de duas ou três espingardas manejadas por mãos algum tanto vacilantes, deu a conhecer à pobre mulher que a ordem fatal ia ser executada.

       – Não! Não! – exclamou ela parando logo e voltando atrás, – não, cidadão, está enganado, não sou homem.

       – Pois então chega à fala – disse o chefe – e responde-me categoricamente. Onde vais tu tão depressa, bela ave nocturna?

       – Eu, cidadão, não vou a parte nenhuma... volto para a minha casa.

       – Ah! Voltas para tua casa.

       – Sim.

       – Pessoas de bem não costumam voltar para casa tão tarde, cidadã.

       – Fui visitar uma parente minha que está doente.

       – Coitadinha! – disse o chefe fazendo um gesto, que assustou aquela que fora interrogada; – e onde está o bilhete?

       A mulher ficou pasmada.

       – O bilhete! O que significa isso, cidadão? Que quer dizer o que me pede?

       – Não leste o decreto da municipalidade?

       – Não.

       – Nem ao menos o ouviste apregoar?

       – Também não. Oh! Meu Deus! Que diz o decreto?

       – Minha rica, já não se diz meu Deus diz-se Ente Supremo.

       – Perdão! Foi engano... É um costume antigo.

       – É mau costume, é costume de aristocrata.

       – Pois bem, eu tratarei de me emendar, cidadão. Mas ia dizendo...

       – Dizia que o decreto da municipalidade determina que, depois das dez horas da noite, não se possa sair à rua sem bilhete de civismo. Vens prevenida com ele?

       – Não.

       – Deixaste-lo em casa da parenta.

       – Não sabia que não se podia sair sem o bilhete.

       – Pois então vamos até à primeira estação que encontrarmos, lá darás as tuas explicações ao capitão, e se forem satisfatórias, terás dois soldados para te escoltarem até casa, quando não, lá ficarás até que se saiba quem és. Ombro esquerdo frente, ordinário, marche!

       O grito de susto que preferiu a presa, logo deu a conhecer ao chefe dos voluntários que a pobre mulher muito receava o tal exame.

       – Oh! Oh! – disse ele – estava capaz de jurar que apanhámos algum pássaro mais fino. Vamos, vamos para a frente, minha fidalguinha.

       E o chefe, pegando no braço da cativa, enfiou-o no seu e foi-a levando apesar dos seus gritos e lamentações, para a estação do palácio da Igualdade.

       Tinham chegado próximo à barreira dos Sargentos, quando de repente um mancebo de elevada estatura, e embuçado num capote, desembocou da rua dos Petits-Champs, no momento em que a presa suplicava aos guardas que a soltassem. O chefe, sem querer ouvi-la, arrastou-a brutalmente. A mulher deu um grito motivado pelo susto e pela dor.

       O mancebo, que viu a luta e ouviu os gritos, atravessou logo a rua e achou-se em frente do grupo.

       – Que bulha é esta, que pretendem dessa mulher? – perguntou ele ao que parecia o chefe.

       – Não é da tua conta, não te intrometas onde não te chamam, mete-te com a tua vida e deixa-me.

       – Quem é essa mulher, cidadãos, e que pretendem dela? – repetiu o mancebo em tom mais imperioso.

       – E tu, quem és, que assim nos interrogas?

       O mancebo abriu o capote e deixou ver as dragonas e uma farda militar.

       – Sou oficial – disse ele – como podem ver.

       – Oficial... De quê?

       – Da guarda cívica.

       – E que temos nós com a guarda cívica? – respondeu um dos do bando. – Nós cá não conhecemos oficiais da guarda cívica.

       – Que diz ele? – perguntou outro voluntário com a inflexão de voz vagarosa e sarcástica própria do popular parisiense quando se vai esquentando.

       – Digo – redargüiu o mancebo; – que se as dragonas não podem obrigá-los a respeitar o oficial, a minha espada os obrigará a respeitar as dragonas.

       Ao tempo que dizia estas palavras, o defensor da jovem mulher deu um passo atrás, e desembaraçando-se das dobras do capote, fez brilhar ao clarão do candeeiro uma larga e rija espada de infantaria. E logo, com um movimento rápido, que bem mostrava estar habituado às lutas daquela natureza, agarrando o chefe dos voluntários pela gola do jaleco e apontando-lhe a espada ao peito, disse:

       – Agora conversemos como bons amigos.

       – Porém, cidadão... – disse o chefe dos voluntários procurando soltar-se.

       – Olha que te aviso que ao menor movimento teu ou dos teus homens, atravesso-te com a espada.

       Durante este tempo, dois dos homens ainda tinham a mulher agarrada.

       – Perguntaste-me quem eu era – continuou o mancebo – e não tinhas direito para o fazer, porque não estás à frente de uma patrulha regular. Contudo vou satisfazer-te: chamo-me Maurício Lindey, fui comandante de uma bataria no 10 de Agosto, sou tenente da guarda nacional e secretário da secção dos Irmãos e Amigos. Será isto bastante?

       – Ah! Cidadão tenente – respondeu o chefe ainda subjugado pela espada, cuja ponta se lhe ia tornando cada vez mais sensível – isso é outro caso. Se és na realidade o que dizes, isto é, um bom patriota...

       – Ora ainda bem, lá me queria parecer que acabaríamos por nos entender depois de algum cavaco – disse o oficial. – Agora responde, por que motivo gritava esta mulher e o que querias tu?

       – Vamos levá-la à casa da guarda.

       – Por que razão?

       – Porque não traz bilhete de civismo, e o último decreto da municipalidade manda que sejam presos os indivíduos, que forem encontrados nas ruas de Paris depois das dez horas, sem bilhete de civismo. Esqueceste porventura que a pátria está em perigo, e que a bandeira preta foi içada na casa da municipalidade?

       – O motivo por que a bandeira preta ondeia na casa da municipalidade em sinal da pátria estar em perigo, é porque duzentos mil escravos estão marchando contra a França – replicou o oficial – e não porque uma mulher anda fora pelas ruas de Paris. Porém, não importa, cidadãos; em vista do decreto da municipalidade, estão no seu direito, e se me tivessem dado logo essa resposta, a nossa explicação teria sido mais breve e menos complicada. É bom ser patriota, mas também não é mau ser cortês, parece-me que os oficiais, que os cidadãos devem respeitar primeiro do que todos, são os que eles próprios elegeram. Agora podem levar a mulher.

       – Oh! Cidadão – exclamou, agarrando o braço de Maurício, a mulher, que durante toda a contenda havia mostrado grande aflição. – Oh! Cidadão! Não mo abandone assim à mercê desses homens grosseiros e embriagados.

       – Pois bem – disse Maurício – aqui está o meu braço, acompanhá-la-ei com eles até à estação.

       – À estação – repetiu a mulher com susto – à estação! E por que motivo me conduz à estação, se eu não fiz mal a ninguém?

       – Não é porque tenha feito mal – disse Maurício – que a levam para a estação, nem porque suponham que seja capaz de o fazer; é porque o decreto da municipalidade determina que ninguém possa sair sem o bilhete, que não traz.

       – Mas senhor, eu não sabia...

       – Cidadã, encontrará na estação pessoas muito capazes, que tomarão em consideração as razões que tem a alegar, e de quem nunca deve recear, podendo ir tranqüila.

       – Senhor – disse a jovem mulher, apertando com força o braço do oficial – não são só insultos que eu temo, é a morte: se me levam à estação, estou perdida.

 

A mulher misteriosa

       Foi de tal modo expressiva a voz da desconhecida quando disse a Maurício que estava perdida se a levassem à estação, que o mancebo estremeceu.

       As palavras da desconhecida vibraram-lhe no coração como uma chama eléctrica.

       Depois de alguns momentos de hesitação, voltou-se para os voluntários, que estavam consultando sobre o que lhes competia fazer.

       Envergonhados por terem cedido a um só homem, estavam tratando dos meios de tirar a desforra, o que não era dificultoso, pois eram oito contra um; três armados com espingardas, os outros com pistolas e chuços.

       Maurício só tinha a espada, portanto a luta não podia ser igual.

       A desconhecida percebeu do que se tratava, porque deu um suspiro e deixou pender a cabeça para o peito como que desmaiada.

       Maurício conservava ainda a espada desembainhada; para ele o número era coisa a que não dava importância.

       Combatido pelos sentimentos de humanidade, que o induziam a dar protecção ao fraco, e pelos seus deveres de patriota, que lhe aconselhavam que entregasse a mulher, não sabia a que se decidisse.

       Quando assim estava irresoluto, cintilaram uns poucos de canos de armas, e ouvira-se a marcha compassada de uma patrulha à esquina da rua dos Bons-Enfants.

       O chefe da patrulha que chegava, vendo um ajuntamento, mandou fazer alto e bradou com voz forte:

       – Quem vem lá?

       – Camarada! – respondeu Maurício, e ajuntou: parece-me que é o Lorin.

       O indivíduo assim nomeado avançou e aproximou-se a passo dobrado seguido por oito soldados.

       – Ah! És tu, Maurício – disse o cabo de esquadra: que andas a fazer pelas ruas a estas horas, maganão?

       – Saí neste instante da secção dos Irmãos e Amigos.

       – Sim, e agora vais para a das irmãs e amigas; isso já eu sabia.

      

                       Eu irei, oh! minha bela,

                       quando a meia-noite der,

                       com devoção e cautela,

                       às escuras, sem temer,

                       abrir portas que te fecham,

                       nem sequer ver-te me deixam.

      

       – Então! Adivinhei?

       – Não, meu amigo, estás completamente enganado; voltava direito para casa quando encontrei esta cidadã lutando para se livrar das mãos dos cidadãos voluntários; acudi-lhes e perguntei-lhe o motivo por que pretendiam prendê-la.

       – Bem se vê que não tens perdido os bons costumes, – disse Lorin:

      

                       De cavaleiros franceses,

                       eis seu timbre, sua nobreza.

      

       E depois, voltando-se para os voluntários:

       – E qual era a razão por que queriam prender esta mulher – perguntou o cabo da esquadra que era todo dado às musas.

       – Já dissemos ao tenente – respondeu o chefe do bando – que é por não trazer bilhete de civismo.

       – Olhem que grande crime! – disse Lorin – e por isso fizeram tamanho sarapatel?

       – Não sabes então qual é a ordem que deu a municipalidade? – perguntou um dos voluntários.

       – Bem sei! Bem sei! Porém há outro decreto que anula esse de que falas.

       – Que decreto é?

       – É este:

      

                       Pelo amor decretado está no Pindo,

                       e no Parnaso, monte às musas dado,

                       que à graça, à mocidade, a um gesto lindo,

                       não pode ser o trânsito vedado,

                       de senhas, ou bilhetes desistindo.

      

       – Então que me dizes a este decreto, cidadão? Parece-me que não é falto de galantaria.

       – Sim, mas não me parece que sirva para o caso. Em primeiro lugar, ainda não vi no Moniteur; em segundo não estamos nem no Pindo, nem no Parnaso; e em terceiro, finalmente, pode muito bem acontecer que a cidadã não seja jovem, nem engraçada, e que não tenha lindo gesto.

       – Aposto, pelo contrário, que é lindíssima – respondeu Lorin. – Vejamos, cidadã, mostra a este que fui eu quem ganhei, para trás o teu capuz para que todos possam ajuizar se estás ou não compreendida no decreto.

       – Ah! Senhor – disse a mulher encostando-se a Maurício. – Protegeu-me há pouco contra os meus inimigos, livre-me agora dos seus amigos.

       – Vejam como ela se esconde – disse o que comandava os voluntários. – Cá por mim ninguém me tira da cabeça que é alguma espiã dos malditos aristocratas, alguma velhaca, ou alguma perdida dessas que andam vadiando de noite pelas ruas.

       Estas palavras fizeram muita impressão na desconhecida.

       Obrigou Maurício a dar um passo, e disse-lhe com voz muito comovida:

       – Oh! Senhor, olhe para mim, e diga-me se o meu rosto inculca alguma daquelas coisas que acaba de ouvir?

       E deitando o capuz para trás fez-lhe ver um rosto encantador.

       O mancebo nem sequer em sonhos tinha visto coisa que pudesse igualar o que acabava de ver.

       Maurício ficou atónito e como que assombrado.

       – Lorin – disse ele em voz baixa ao cabo de esquadra – faz com que te entreguem esta mulher para a levares para a tua estação; podes fazê-lo porque estás à frente de uma patrulha regular.

       – Percebo – respondeu o cabo de esquadra – a bom entendedor meia palavra basta.

       E voltando-se para a desconhecida:

       – Ora vamos, minha bela, visto não querer mostrar-nos se estás ou não compreendida no decreto que citei, é preciso que nos acompanhe.

       – Que o acompanhe? – disse o chefe dos voluntários.

       – Sim, pois vamos levar a cidadã à estação, em que estamos, que é na casa da câmara, e lá indagaremos quem seja.

       – Nessa não caio eu – disse o chefe dos voluntários – eu é que a apanhei, comigo é que há-de ir.

       – Cidadãos! Cidadãos! – disse Lorin – não me façam esquentar.

       – E que temos nós com as tuas esquentações?

       – Podem custar-lhes caro.

       – Nós, é que somos os verdadeiros soldados da república, pois que enquanto aqui ficam a patrulhar pelas ruas, vamos nós às fronteiras derramar o nosso sangue.

       – Pois tomem cuidado, olhem que podem derramá-lo antes de lá chegar; e para não lhes suceder tal desgraça dou-lhes de conselho que sejam mais corteses.

       – A cortesia é boa para aristocratas, e nós cá timbramos em ser verdadeiros sem cuecas.

       – Não digam tolices, nem indecências diante desta senhora – respondeu Lorin. – Talvez seja alguma inglesa. Não leve a mal esta minha suposição, linda avezinha das trevas – continuou o cabo de esquadra voltando-se para a desconhecida:

      

                       Já um poeta o disse e nós agora,

                       indigno eco, o vamos repetindo;

                       é um ninho a Inglaterra,

                       de cisnes cor de marfim,

                       no meio das águas mansas,

                       duma lagoa sem fim.

      

       – Ah! Agora te apanhei, meu taful – disse o chefe dos voluntários; – acabas de confessar que és um assalariado pela Inglaterra, um agente de Pitt...

       – Cala-te tolo: como não percebes nada de versos, vou falar-te em prosa. Dá-me atenção: como vês, somos pacíficos guardas nacionais, porém somos todos filhos de Paris, e como tais, quando nos chega a mostarda ao nariz damos para baixo como cegos.

       Maurício voltou-se então para a desconhecida e disse:

       – Senhora, veja o estado a que isto chegou por sua causa, vai travar-se uma luta, vai correr o sangue de dez ou doze homens. Pese em sua consciência se merece tanto sacrifício a causa que defende.

       – Senhor – respondeu com as mãos postas a desconhecida – só uma coisa posso dizer-lhe, e é que são três as desgraças que a minha prisão pode causar; peço-lhe que antes de se apartar de mim me atravesse o coração com uma espada, e que lance o meu corpo ao Sena.

       – Está bem, senhora – respondeu Maurício; – tome sobre mim toda a responsabilidade.

       E largando a mão da jovem, que tinha entre as suas, disse, voltando-se para os guardas nacionais.

       – Cidadãos, como seu oficial, como patriota, como francês, ordeno-lhes que dêem protecção a essa mulher. E tu, Lorin, se algum destes canalhas disser uma só palavra, dá-lhe para baixo.

       – Preparar! Apontar! – disse Lorin.

       – Ah! Meu Deus! Meu Deus! – disse a desconhecida puxando o capuz, e encostando-se a um marco de pedra – Meu Deus! Protegei-o.

       Os voluntários quiseram resistir. Um deles deu um tiro de pistola e atravessou com a bala o chapéu de Maurício.

       – Calar baionetas! – gritou Lorin. – A eles rapazes!

       Travou-se então no meio das trevas uma briga, que durou alguns instantes. Apesar do estampido de dois ou três tiros, e dos gritos e blasfémias, ninguém acudiu. Apenas duas ou três janelas se abriram, mas logo se tornaram a fechar.

       Os voluntários, que eram menos e mal armados, num instante ficaram gravemente feridos, os outros quatro estavam arrumados à parede, tendo cada um deles uma baioneta apontada ao peito.

       – Ora bem – disse Lorin – agora tenho esperanças de que hão-de ficar mansos como cordeiros. Tu, cidadão Maurício, ficas encarregado de levar essa mulher à estação da municipalidade. Olha que me respondes por ela.

       – Não te dê cuidado – respondeu Maurício.

       E acrescentou a meia voz:

       – Hás-de dar-me o santo e a senha.

       – Essa é uma dos diabos – respondeu Lorin, coçando na orelha. – O santo e a senha!... Não sei se...

       – Então tens medo de que eu abuse?

       – Também pouco se me dá – respondeu Lorin – faze deles o que te parecer.

       – Então dizes–mo ou não?

       – Espera que já te falo; vou primeiramente pôr a andar estes peraltas. E olha que antes de nos afastarmos quero dar-te um conselho de amigo.

       – Pois vai que eu espero.

       E Lorin voltou-se para os guardas nacionais, que ainda estavam de guarda aos voluntários.

       – Digam-me se já estão satisfeitos? – perguntou ele.

       – Sim, girondino do diabo – respondeu o chefe.

       – Estás enganado, meu amigo – respondeu o cabo de esquadra com todo o sossego – aqui onde nos vês somos muito melhores patriotas do que tu, pois somos do clube dos Termópilas, de cujo patriotismo ninguém se atreverá a duvidar.

       Depois, voltando-se para os seus soldados, com voz de trovão, continuou:

       – Larguem os cidadãos.

       – Parece-me contudo – disse o chefe dos voluntários – que não podes duvidar de que a mulher é suspeita...

       – Se fosse suspeita teria procurado evadir-se durante a nossa briga.

       – Parece-me que o cidadão Termópila tem razão – disse um dos voluntários.

       – Contudo se for suspeita, daqui a pouco o saberemos, porque o meu amigo vai levá-la à estação, enquanto nós vamos beber à saúde da nação.

       – O quê? Nós vamos beber! – disse o chefe dos voluntários.

       – Vamos, sim, porque tenho as goelas muito secas, e quero levá-los a uma taberna asseadíssima, onde costumo ir, à esquina da rua do Louvre.

       – E porque não falaste logo assim? Todos estamos arrependidos por ter duvidado do teu patriotismo; e para provar o que digo, abracemo-nos em nome da nação e da lei.

       – Pois sim abracemo-nos – disse Lorin.

       E os voluntários e guardas nacionais abraçaram-se com entusiasmo. Naquele tempo havia tanta facilidade em dar um abraço como em dar uma cutilada.

       – Agora, amigos, vamos à rua do Louvre – gritaram todos ao mesmo tempo.

       – E nós ficamos aqui – disseram os feridos com voz lastimosa; – assim nos abandonaram sem dó?

       – Dessa não sou eu capaz! Abandonar – disse Lorin – uns valentes como vocês, que sucumbiram pelejando pela pátria; verdade é que foi contra patriotas, mas isso não importa, porque, foi engano. Entretanto cantem a Marselhesa, que sempre é uma distracção:

      

                       Alons, enfants de la patrie,

                       Le jour de gloire est arrivé!

      

       Depois, aproximando-se de Maurício, que esperava com a desconhecida à esquina da rua do Coq, enquanto os voluntários e patriotas, de braços dados, se dirigiam para a praça da Igualdade, disse-lhe:

       – Maurício, vou dar-te um conselho que te prometi. Em vez de ires com essa cidadã, que todavia julgo encantadora, é melhor que venhas connosco, porque podes comprometer-te; eu cá sempre desconfiei das mulheres bonitas, que vagueiam pelas ruas de Paris à meia-noite...

       – Oh! Senhor – disse a desconhecida – não me julgue pelas aparências.

       – Ora, lá se serviu da palavra senhor, o que é um grande erro, percebe cidadã? E estou a repreendê-la e a tratá-la na terceira pessoa!

       – Pois sim, cidadão, prometo que hei-de corrigir-me; mas deixa o teu amigo continuar a obra de caridade que começou.

       – Qual?

       – A de acompanhar-me até minha casa para livrar-me de algum mau encontro.

       – Maurício; Maurício! Vê em que te metes, olha que é um grande comprometimento.

       – Bem sei; mas que queres tu que faça? Se eu abandonar esta mulher, não dará dois passos sem que seja presa por alguma patrulha.

       – É verdade, senhor, quero dizer cidadão, se for contigo escaparei de grandes perigos.

       – Não a ouves? Diz que escapará de grandes perigos; logo, receia muito.

       – Ora vamos, meu querido Lorin, sejamos justos; se é uma aristocrata, o mal está feito, porque a defendemos; se é uma patriota devemos-lhe protecção.

       – Perdão, perdão, meu querido, mas sempre te direi, nem que pese a Aristóteles, que a tua lógica é muito estúpida. Estás como aquele que diz:

      

                       Íris minha razão roubou inteira,

                       e quer em mim agora achar prudência.

      

       – Lorin – disse Maurício – peço-te que não me quebres os ouvidos com as tuas citações poéticas. Agora falemos sério; queres ou não dar-me o santo e a senha?

       – Olha, Maurício, colocas-me na colisão ou de sacrificar o meu dever à amizade, ou a amizade ao meu dever. Mas afinal de contas quem paga é o dever, pois será o sacrificado.

       – Pois então decide, ou uma coisa ou outra; mas há-de ser já.

       – Prometes não abusar?

       – Prometo.

       – Isso só não me serve, jura.

       – Mas sobre que hei-de jurar?

       – Sobre o altar da pátria.

       Lorin tirou o chapéu, e apresentou-o a Maurício com o laço para cima; e Maurício como se fosse na pedra da ara, prestou, com toda a seriedade, o juramento exigido sobre aquele altar improvisado.

       – Bom, agora eu te digo, o santo e a senha são: Gallia e Lutecia. Alguns, como já me sucedeu, hão-de dizer-te Gallicia e Lucrecia; não faças porém caso, porque todas essas palavras são romanas.

       – Obrigado, Lorin – disse Maurício.

       Depois voltando-se para a desconhecida:

       – Agora estou à sua disposição cidadã.

       – Boa jornada! – disse-lhe Lorin, tornando a encaixar na cabeça o que servira de altar da pátria; – e fiel às suas propensões anacreônticas, retirou-se cantarolando:

      

                       Enfim, minha Leonor, tu conheceste

                       esse gozo encantado que temias;

                       inda sonhando-o, desejando-o mesmo!

                       Tu, que até a gozá-lo o receavas,

                       diz-me agora, Leonor, que hás nele achado

                       Que possa haver-te sustos inspirado?

 

Um beijo a olhos fechados

       Maurício, quando se viu só com a desconhecida, ficou um tanto perturbado.

       O receio de ser logrado, os atractivos de tão grande beleza, e uma espécie de remorso por ter faltado aos seus deveres de republicano exaltado, tudo isto o fez hesitar no momento de oferecer o braço à mulher misteriosa.

       – Para onde a hei-de acompanhar, cidadã? – perguntou Maurício.

       – Ah! Vou para muito longe.

       – Mas para que lado se dirige?

       – Para o lado do jardim botânico.

       – Muito bem, quando quiser podemos ir.

       – Oh! Meu Deus! – disse a desconhecida – custa-me muito o incómodo que lhe dou; e se não fosse a desgraça que me sucedeu, e o grande perigo a que me vejo exposta, decerto não me atreveria a abusar assim de tanta generosidade.

       – Mas, finalmente, minha senhora – disse Maurício, esquecendo no calor da conversa de servir-se do tratamento decretado pela república – diga-me porque anda a tais desoras pelas ruas de Paris? Parece-me que somos as únicas pessoas que transitam pelas ruas.

       – A razão já lhe disse: fui fazer uma visita ao bairro de Roule. Não soube o que hoje aconteceu, porque o sítio é muito retirado.

       – Sim – resmungou Maurício – esteve em casa de algum ex-fidalgo, foi visitar algum aristocrata. Confesso, cidadã, que está fazendo escárnio da minha condescendência em a proteger.

       – Eu! Por que motivo?

       – Não pode deixar de ser; tem por protector um republicano, que está atraiçoando a sua própria causa; acha pouco?

       – Mas – disse com vivacidade a desconhecida – sou tão boa republicana como o cidadão o pode ser.

       – Se assim é, cidadã, para que se serve de mistérios? Porque não diz francamente donde vem?

       – Oh! Senhor! Para que é tanta insistência?

       A desconhecida pronunciou com tanta expressão de pudor a palavra senhor, que Maurício julgou ter adivinhado os sentimentos, que ela ocultava.

       – Não pode deixar de ser – disse consigo – esta mulher volta de alguma entrevista amorosa.

       E esta idéia, sem saber porquê, magoou-lhe o coração.

       Desde esse momento não deu mais palavra.

       Iam então próximos à rua de la Varrerie. Até ali só tinham encontrado três ou quatro patrulhas, que sem dificuldade os deixaram passar, depois de Maurício lhes dizer o santo e a senha; mas finalmente encontraram uma, cujo oficial era um pouco mais impertinente.

       Neste caso, além do santo e da senha, Maurício disse o nome e a morada ao oficial.

       – Quanto a ti – respondeu este – estou satisfeito, mas a cidadã...

       – Então que tens que dizer à cidadã?

       – Quem é?

       – É... Minha irmã.

       O oficial deixou-o passar.

       – É casado? – perguntou a desconhecida.

       – Não, cidadã; porque me faz essa pergunta?

       – Porque se o fosse – respondeu ela rindo – podia ter dito que era sua esposa.

       – Minha senhora – replicou o mancebo – o nome de esposa é um título sagrado, que não se deve dar a qualquer, e como deve compreender, eu não tenho a honra de a conhecer.

       Desta vez foi a desconhecida que ficou silenciosa e sentiu grande aperto no coração.

       Iam atravessando a ponte Maria.

       A desconhecida quanto mais caminho adiantava, mais apressava o passo.

       Passaram depois a ponte Tournelle.

       Chegando ao cais de S. Bernardo – disse Maurício:

       – Parece-me que está no seu bairro, minha senhora?

       – Não há dúvida, cidadão; mas é aqui principalmente, que mais preciso do seu socorro.

       – Na verdade, minha senhora, é singular exigir que eu não seja indiscreto, quando tudo concorre para provocar a minha curiosidade. Parece-me que este seu procedimento não é de pessoa generosa, e contudo parece-me que bastante mereço a sua confiança. Não me fará a honra de dizer-me quem é?

       – Eu, senhor – respondeu a desconhecida sorrindo – sou uma mulher a quem salvou de grande perigo e que lhe há-de ser grata.

       – Não exijo tanto; dispenso tanta gratidão e antes queria saber como se chama.

       – Não me é possível dizê-lo.

       – Contudo, se a tivessem levado à estação havia de dizê-lo por força.

       – Nunca! Nunca! – exclamou a desconhecida.

       – Nesse caso, seria presa.

       – A tudo estou resignada.

       – Porém uma prisão hoje...

       – É o caminho para o patíbulo, bem o sei.

       – E preferia o patíbulo?

       – Antes a morte de que ser traidora... Dizer o meu nome seria uma traição.

       – Oh! Bem pensava que o papel que estou representando está em pouca harmonia com as minhas idéias republicanas.

       – O papel que está representando é o de um homem generoso. Encontrou uma pobre mulher insultada por alguns homens grosseiros, interveio, e apesar dela pertencer à classe do povo, para não a tornarem a insultar, acompanhou-a até ao miserável bairro, onde ela reside, e nada mais.

       – Na aparência assim é; quanto a ser do povo, acreditá-lo-ia, se não a tivesse visto, se não ouvisse as suas expressões; mas pela sua beleza e pelo seu espírito facilmente se conhece ser pessoa fina; é precisamente a distinção das suas maneiras, que procura disfarçar com esse trajo que me fez acreditar que saiu a estas horas para algum fim misterioso; não me responde... pois bem, não falemos mais nisso. Ainda fica muito longe a casa?

       Saíam então da rua do Sena e entravam na rua dos Fossos de Saint-Victor.

       Neste ponto a desconhecida parou e disse:

       –Vê além aquele edifício escuro? – e apontou para uma casa situada além dos muros do jardim botânico; quando lá chegarmos, temos de nos separar.

       – Dê-me as suas ordens, senhora, que estou pronto a obedecer-lhe.

       – Então está enfadado comigo?

       – Eu! Nem por pensamentos; se bem que, se o estivesse, pouco lhe devia importar.

       – Pelo contrário, importava-me, pois ainda me resta pedir-lhe um favor.

       – Qual é?

       – É uma despedida franca e afectuosa... Uma despedida de amigo.

       – Uma despedida de amigo! É extrema a honra que me faz. Deve porém confessar que é singular pretender que nos apartemos como amigos, e não me dizer o nome e morada para ter o gosto de a tornar a ver.

       A desconhecida desta vez não replicou.

       – Entretanto – continuou o mancebo – peço-lhe que acredite que, se descobri uma parte de seu segredo, foi involuntariamente.

       – Estou chegada ao meu destino – disse repentinamente a desconhecida.

       Estavam então à entrada da rua de Saint-Jacques, rua imunda e escura, toda cortada por becos, e onde havia muitas fábricas de curtumes.

       – Mora aqui? –perguntou Maurício bastante admirado.

       – Sim, senhor.

       – Não acredito.

       – Pois deve acreditar. Adeus, valente cavaleiro, generoso protector.

       – Adeus, minha senhora – respondeu com alguma ironia; – mas para que eu fique descansado, diga-me se já não receia perigo algum.

       – Nenhum.

       – Se assim é, retiro-me.

       E cortejando com frieza, Maurício recuou dois passos.

       A desconhecida não se moveu e disse:

       – Não era assim que eu desejava que nos despedíssemos. Vamos, Sr. Maurício, dê-me a sua mão.

       Maurício tornou a chegar-se e estendeu a mão.

       Percebeu porém que a desconhecida procurava enfiar-lhe no dedo um anel.

       – Oh! Cidadã, que faz? Perde um anel!

       – Oh! Meu amigo, porque não aceita?

       – Não aceito porque tenho mais um vício que não sabe, sou ingrato.

       – Peço-lhe, senhor... Meu amigo, não nos separemos assim. Diga-me o que exige, o que pretende de mim?

       – Para ficar pago? – disse o mancebo com ironia.

       – Não – respondeu a desconhecida com encantadora expressão – mas para me perdoar o segredo, que não posso confiar-lhe.

       Maurício, vendo cintilar na escuridão dois lindos olhos, sentindo o estremecimento da mão, que apertava entre as suas, ouvindo aquela voz suplicante, passou de repente para um sentimento de exaltação.

       – Quer saber o que pretendo? – exclamou; – pretendo tornar a vê-la.

       – É impossível.

       – Ainda que seja uma só vez, por uma hora, ou por um minuto.

       – Digo-lhe que é impossível.

       – Deveras? – perguntou Maurício. – É certo que nunca mais a tornarei a ver?

       – Não é possível – respondeu tristemente a desconhecida.

       – Oh! Realmente, minha senhora, vejo que está escarnecendo de mim.

       E dizendo isto, sacudiu a cabeça com um gesto de um homem, que procura resistir ao pensamento que o arrebata.

       A desconhecida contemplava-o com indizível expressão de dor. Bem se via que percebia o sentimento que tinha inspirado.

       – Ouça-me – disse ela passado um momento de silêncio, apenas interrompido por um suspiro de Maurício – quer jurar-me pela sua honra que fechará os olhos, e assim os conservará, desde o instante em que eu lho disser que tenha contado sessenta segundos?...

       – E se assim o prometer qual será o resultado?

       – O resultado será dar-lhe uma prova da minha gratidão, prova que nunca darei a ninguém, mesmo que houvesse outro homem capaz de fazer de mim o que o senhor fez, o que decerto não será fácil.

       – Mas, finalmente não poderei saber...?

       – Não, confie em mim e saberá.

       – Oh! Minha senhora, não sei como lhe chame, se anjo, se demónio.

       – Vamos à minha proposta, jura?

       – Sim, juro, que hei-de eu fazer?

       – Suceda o que suceder, não os abrirá... ainda quando sentisse uma punhalada?

       – Pela minha honra, tanta exigência causa-me espanto.

       – É preciso.

       – Pois bem, juro que não abrirei os olhos suceda o que suceder.

       E fechou os olhos, mas tornando logo a abri-los disse:

       – Por Deus, deixe-me ver o seu rosto mais uma vez, uma só.

       A desconhecida deitou o capuz para trás com um sorriso que não era isento de afectação.

       O mancebo pôde então contemplar segunda vez os compridos canudos de cabelo de cor de ébano, as lindas sobrancelhas, os olhos aveludados e lânguidos, o nariz perfeitamente aquilino, e os beiços vermelhos e nacarados como o coral.

       – Oh! Como é formosa? – murmurou Maurício.

       – Agora feche os olhos – disse a desconhecida.

       Maurício assim o fez.

       Depois ela voltou-o como lhe conveio.

       De repente, sentiu o mancebo um hálito aromático, pelos seus lábios, roçaram uns lábios, deixando entre os seus o anel que ele rejeitara.

       A sensação foi tão rápida como o pensamento, ardente como as chamas.

       Maurício sentiu profunda e inesperada dor, pois que o efeito do beijo fora tal que lhe calara intimamente no coração, e dele lhe fizera vibrar todas as fibras.

       Moveu-se arrebatadamente e estendendo os braços para a frente.

       – Não seja perjuro! – gritou uma voz já distante.

       Maurício tapou os olhos com as mãos para resistir à tentação de os abrir.

       Deixou de contar e de pensar; ficou imóvel e a custo sustendo-se em pé!

       Passado um instante, ouviu a bulha de uma porta, que se fechava a distância de cinqüenta ou sessenta passos; depois tudo entrou no silêncio.

       Foi então que tirou as mãos dos olhos, abriu-os e olhou em volta de si como um homem que acorda.

       E talvez se persuadisse de que tinha acordado, e de que não era mais do que sonho o que sucedera, se não conservasse ainda entre os beiços o anel que tornava real e verdadeira aquela aventura.

 

A tentativa

       Maurício Lindey, logo que pôde orientar-se achou-se no meio de uns poucos de becos imundos, e debalde procurou conhecer onde estava; a noite tornara-se novamente sombria; a lua que parecia ter brilhado um instante para deixar ver a formosura da desconhecida, tornou a ser envolta pelas nuvens.

       O mancebo depois de fazer algumas diligências para saber qual fosse a porta por onde desaparecera a desconhecida, vendo que eram baldadas, decidiu retirar-se a sua casa na rua de Roule.

       Chegando à rua de Saint-Antoine, admirou-se Maurício da infinidade de patrulhas que giravam nas proximidades do Templo.

       – Que novidades temos? – perguntou ele ao comandante de uma patrulha que voltava de uma diligência.

       – Oh! As novidades não são pequenas – respondeu o sargento – quiseram, nem mais nem menos, que roubar-nos esta noite a loba com toda a sua ninhada...

       – Uma patrulha de ex-fidalgos, que tinham sabido santo e senha, introduziram-se no Templo com fardas de caçadores da guarda nacional e eram os que deviam efectuar o rapto. Felizmente o indivíduo que fazia de cabo de esquadra traiu-se a si mesmo, o maldito, tratando o oficial por senhor.

       – Irra! A coisa tem que se lhe diga – respondeu Maurício; – e prenderam os tais aristocratas?

       – Qual! A patrulha pôde fugir para a rua e cada um dispersou para seu lado.

       – E não há esperança de apanhar os tais patuscos!

       – Oh! De todos o que mais conviria apanhar era o suposto cabo de esquadra... Um figurão alto e magro, que tivera a lábia de iludir um dos membros da municipalidade a ponto de se introduzir entre a guarda. O maldito sempre nos fez dar às gâmbias atrás dele! Não sei como diabo se sumiu, o caso é que o perdemos de vista na rua da Madalena.

       Maurício em outra qualquer ocasião teria perdido a noite acompanhando os patriotas nas suas diligências; mas como não era o amor da pátria o único, que lhe ocupava o coração naquele momento, achou mais acertado recolher-se a casa.

       Continuou pois o seu caminho, e dentro em pouco se lhe desvaneceu do espírito a notícia, que lhe acabavam de dar.

       É verdade que as supostas tentativas de rapto tinham-se tornado tão freqüentes, e os próprios pátriotas sabiam tão bem para que fins políticos, que a maior parte não lhes dava apreço.

       Entrando em casa, achou Maurício o seu oficioso, como então se chamava aos criados, dormindo a sono solto.

       Acordou-o com todas as atenções devidas a um seu semelhante, pediu-lhe que puxasse as botas, e depois mandou-o retirar, para poder entregar-se aos seus pensamentos.

       Pouco depois, meteu-se na cama, e, cedendo ao cansaço, em pouco esqueceu em pacífico sono, as preocupações daquele dia.

       Logo que na manhã seguinte acordou, achou uma carta na mesa, que tinha à cabeceira da cama.

       O papel era perfumado e a letra era fina, elegante e desconhecida.

       Examinou com escrupulosa atenção o sinete, que tinha por divisa esta palavra inglesa Nothing, nada.

       Abriu a carta e leu estas palavras:

      

       “Muito obrigada!”

       “Gratidão eterna em troca de um eterno esquecimento.”

      

       Como no quarto não havia campainha, por ser uma recordação de servilismo, Maurício chamou pelo criado.

       O criado de Maurício tinha sido baptizado havia trinta anos, pouco mais ou menos, com nome de João: porém em 1792 lembrou-se de mudar o nome por um nome republicano e chamava-se Ssevola.

       – Ssevola; – perguntou Maurício – sabes de quem é esta carta?

       – Não sei cidadão.

       – Quem ta entregou?

       – O cidadão porteiro.

       – E quem foi que lha entregou?

       – Como não traz marca do correio, foi decerto algum moço de recados.

       – Vai dizer ao porteiro que lhe peço o favor de vir falar-me.

       O porteiro subiu, por ser Maurício, que era de todos muito estimado, quem o mandava chamar; porém logo declarou que se fosse outro qualquer inquilino havia de dar-se ao incómodo de descer.

       O porteiro chamava-se nada menos do que o cidadão Aristides.

       Maurício começou a interrogá-lo a respeito da carta.

       A carta fora trazida por um homem desconhecido, pela volta das oito horas.

       Por mais que o mancebo indagasse e variasse as perguntas, nenhuma outra resposta pôde obter do porteiro.

       Maurício afinal rogou-lhe que aceitasse dez francos, e também lhe pediu que, se o homem tornasse a aparecer, procurasse segui-lo disfarçadamente, para depois lhe dizer onde entrava.

       É escusado dizermos que o homem não voltou, com o que Aristides ficou muito satisfeito, pois não lhe agradava muito o ter de seguir um seu semelhante.

       Maurício, logo que se viu só, amarrotou a carta enraivecido, tirou o anel do dedo, pô-lo em cima da mesa de cabeceira, e voltou-se para a parede com a louca pretensão de tornar a adormecer.

       Passada porém meia hora, estava ele aos beijos ao anel, que tinha uma bela safira, e tornava a ler a carta.

       A carta denunciava claramente que era de origem aristocrática.

       Estava Maurício todo entregue a este exame quando de repente sentiu abrir a porta.

       Enfiou à pressa o anel no dedo e escondeu a carta debaixo do travesseiro.

       Não queria que se soubesse que um patriota como ele estava relacionado com pessoas, que lhe dirigiam cartas, cujo cheiro bastava para denunciar quem as escrevia.

       O mancebo, que assim acabava de entrar, era um patriota, que trajava com a maior elegância.

       Vestia uma carmanhola de pano da melhor qualidade, calções de caxemira, meias muito finas de seda em riscas, e um barrete frígio tão airoso com uma cor vermelha tão bonita, que seria capaz de causar inveja ao próprio Paris.

       Tinha à cintura um par de pistolas da fábrica de Versalhes e uma espada direita e curta.

       – Olé, dormes, Bruto – disse o recém-chegado – quando a pátria está em perigo? Olha que isso não é bonito.

       – Estás enganado, Lorin – respondeu Maurício – não estava dormindo, estava sonhando.

       – Oh! Então sonhas acordado? Ah! Sim já percebo.

       – Pois cá estou eu que ainda não pude perceber...

       – Ora mete-me o dedo na boca.

       – Que diabo estás a dizer?

       – Ora! Falo na mulher.

       – Qual mulher?

       – Ora, faze-te de novas! A mulher da rua de Saint-Honoré, a mulher da patrulha, a desconhecida por quem tu e eu arriscámos as nossas cabeças ontem à noite.

       – Ah! Sim – disse Maurício, que percebia muito bem o que o amigo queria dizer, mas fingia não o entender; – a mulher desconhecida.

       – Essa mesma; quem era ela?

       – Não sei.

       – Era bonita?

       – Nem por isso – respondeu Maurício, estendendo desdenhosamente os beiços.

       – Alguma pobre mulher que tinha ido debalde em procura do amante.

      

                       De muitos males o homem

                       Poderá viver isento.

                       Porém a paixão d'amor

                       Causa sempre o seu tormento.

      

       – Pode ser – respondeu Maurício, a quem esta idéia, que ele próprio já tivera, não agradava muito agora, e antes quisera que a sua bela desconhecida fosse uma conspiradora do que uma mulher apaixonada por outro.

       – E onde mora?

       – Não sei.

       – Estás brincando! Não sabes! É impossível!

       – Por quê?

       – Porque a acompanhaste a casa.

       – Fugiu-me quando chegámos à ponte Maria.

       – Fugir-te a ti?! – exclamou Lorin soltando uma gargalhada estridente; – uma mulher escapar-se das tuas mãos, essa não engulo eu!

      

                       Contra o abutre que a persegue

                       pode a pomba achar defesa!

                       Ou a gazela contra o tigre

                       Que a tem nas garras já presa?

      

       – Lorin – disse Maurício – porque não te acostumarás tu a falar como a outra gente? A tua horrível poesia produz-me ataques de nervos.

       – A falar como a outra gente! Pois a meu ver parece-me que falo melhor do que toda a gente. Falo como o cidadão Dumouriez em prosa e em verso. Pelo que diz respeito à minha poesia, dir-te-ei, meu caro, que existe uma certa Emília a quem ela não desagrada; mas voltemos à tua.

       – À minha poesia?

       – Não, à tua Emília.

       – Também eu tenho uma Emília? Não o sabia.

       – Ora vamos, confessa a verdade, a tua gazela tornou-se em tigre e arreganhou-te o dente, de sorte que ficaste desesperado, mas também mais apaixonado.

       – Ora essa! Eu apaixonado! – disse Maurício rindo-se com desdém.

      

                       Sim os golpes que amor despede

                       Não queirais dissimular,

                       Inda mais que os de Jove

                       O peito vão penetrar.

      

       – Lorin – disse Maurício pegando numa chave fêmea – declaro-te que se tornas a dizer um único verso, faço-te acompanhamento de assobio.

       – Então falemos de política, que foi para isso que eu aqui vim. Já sabes o que sucedeu?

       – Sei que esteve para se evadir a viúva Capeto.

       – Só isso!

       – Então que mais há?

       – Está em Paris o afamado Filipe de Taverney Casa-Vermelha.

       – Que dizes! – exclamou Maurício sentando-se na cama.

       – Digo-te que está em Paris.

       – Mas quando entrou?

       – Ontem à noite.

       – Como?

       – Com o uniforme de caçador da guarda nacional. Uma mulher, que se julga ser alguma aristocrata, levou-lhe o fato para lá da barreira: pouco depois voltaram ambos de braço dado. A sentinela das portas, que tinha visto passar a mulher com a trouxa, vendo-a voltar sem ela e acompanhada, desconfiou de alguma marosca e deu parte para que os seguissem.

       Assim se fez; desapareceram porém na rua de Saint-Honoré; meteram-se num palácio, que tinha serventia para os Campos Elísios; depois era uma vez o Taverney Casa-Vermelha e a sua cúmplice.

       O palácio vai ser demolido, e o dono perde a cabeça na guilhotina; mas não é com isto que se há-de fazer com que o tal patusco não torne a empreender a mesma tentativa, que lhe falhou há quatro meses, e que esta noite tentou pela segunda vez.

       – E não poderá ser apanhado?

       – Como? Se o maldito muda de forma como o deus Proteu; sabes o trabalho em que se viu Aristeu para apanhar a tal figura:

      

                        Pastor Aristoeus fugiens Peneia tempe

      

       – Toma conta, olha que te faço acompanhamento.

       – Vê em que te metes, que a injúria não é feita a mim, mas ao grande Virgílio.

       – Tens razão, se não te der na mania traduzir, vai a coisa bem. Mas tornemos ao tal amigo Casa-Vermelha.

       – É preciso confessar que é um dos homens dos diabos, destemido até ao último ponto.

       – Oh! Não há dúvida, para empreender tais empresas, é mister ser dotado de grande coragem.

       – Ou talvez o domine grande amor.

       – Pois também dás crédito à tal paixão do cavaleiro pela rainha?

       – Porque não hei-de acreditar? Pelo menos todos o dizem. Não se têm apaixonado tantos por ela? Que admiração é que mais este cedesse aos seus atractivos? Não se diz até que seduziu Barnave!

       – Mas para o cavaleiro se arrojar a tais empresas, necessariamente se corresponde com os presos do Templo.

       – Pode ser.

      

                       Contra o amor nada valem,

                       muro alto – forte prisão,

                       ferrolhos causam-lhe riso,

                       brônzeas grades nada são.

      

       – Maldita mania!

       – Ah! Tens razão.

       – Então acreditas no que se diz?

       – E porque não hei-de acreditar?

       – É porque, segundo essa conta, teve a rainha nada menos do que duzentos apaixonados.

       – Olha que grande coisa para uma mulher dotada de tanta formosura! Não digo que ela correspondesse a todos; toda a gente vê o Sol, mas ele para todos é indiferente.

       – Então que providências se têm tomado para obstar a nova empresa?

       – Anda tudo aceso em busca dele, e se desta vez tiver habilidade para escapar à matilha, que o persegue, digo que é o diabo em pessoa.

       – E que diz a municipalidade?

       – Vai publicar uma ordem para que em todas as casas haja uma lista das pessoas, que nelas habitam. Vai realizar o sonho dos antigos. Mas isso de pouco serve; o bom era que houvesse no coração dos homens um postigo, para se saber o que eles são.

       – Famosa idéia! – exclamou Maurício.

       – O quê, abrir uma janela no coração dos homens?

       – Não, mas mandar pôr uma lista em todas as portas, para saber o nome dos moradores.

       Maurício aprovava a lembrança, porque esperava descobrir mais facilmente a sua desconhecida.

       – Eu cá – disse Lorin – já aposto que esta medida há-de fornecer uma fornada, pelo menos de quinhentos aristocratas. Ah? Esquecia-me dizer-te uma coisa. Esta manhã foi ao nosso clube uma comissão de voluntários, acompanhados pelos nossos patuscos da noite passada e que eu só larguei quando não puderam agüentar mais vinho; vinham ornados com grinaldas e coroas de perpétuas.

       – Ora essa! – respondeu Maurício rindo – e quantos eram?

       – Seriam uns trinta, aproximadamente, e traziam ramalhete ao peito.

       “Cidadãos do clube das Termópilas – disse o orador – nós como verdadeiros patriotas, desejando muito a união de todos os franceses, vimos aqui fraternizar convosco.”

       – E depois?

       – Depois fraternizaram, e para solenizar o acto ergueu-se um altar da pátria, servindo de altar a banca do presidente adornada de garrafas de água, nas quais encaixaram ramalhetes. Como tu eras herói da função, foste chamado três vezes, mas como não respondesses e fosse necessário coroar alguma coisa, teve essa honra o busto de Washington.

       Logo que Lorin acabou de contar isto, ouviu-se grande rumor na rua, e a pouco e pouco foi-se aproximando o som dos tambores, que tocavam a rebate, o que naquele tempo não era de admirar, por ser freqüentíssimo.

       – Que novidades teremos? – perguntou Maurício.

       – Andam proclamando o decreto da municipalidade.

       – Vou para a minha secção – disse Maurício, saltando fora da cama e chamando o criado para o ajudar a vestir.

       – Pois eu vou para casa deitar-me – disse Lorin; – a noite passada só dormi duas horas, por causa dos malditos voluntários. Se houver alguma sarrafusca pequena deixa-me dormir; mas se for coisa séria, vai chamar-me.

       – Mas para que é todo esse luxo? – perguntou Maurício, examinando o vestuário de Lorin.

       – É que para vir a tua casa tenho de passar por uma rua, onde se abre uma janela sempre que eu passo.

       – E não receias que te tomem por um peralvilho?

       – Eu! Isso tinha que ver. Todos sabem que sou um verdadeiro patriota. Mas sempre se deve fazer algum sacrifício pelo belo sexo. O culto da pátria não exclui o do amor; pelo contrário, anda um anexo ao outro:

      

                       A república ordenou

                       Que a Grécia se imitaria,

                       E o altar da liberdade

                       Junto ao das graças seria.

      

       Maurício ia pegar na chave.

       – Olha que se te atreves a patear estes versos, vou denunciar-te como aristocrata; faço com que te rapem a cabeça para andares com a calva à mostra. Adeus, querido amigo.

       Lorin estendeu a mão a Maurício, o jovem secretário respondeu-lhe com cordialidade, e Lorin retirou-se compondo in mente uns versos para a sua bela.

 

O secretário do clube das Termópilas

       Enquanto Maurício se vestia a toda a pressa para ir ao clube, de que era secretário, tratemos de dar a conhecer os antecedentes deste homem, que dotado de bons sentimentos e de um coração sensível, era contudo um republicano exaltado.

       O mancebo falara a verdade quando na véspera dissera à desconhecida que se chamava Maurício Lindey e que morava na rua de Roule.

       Pertencia a uma família de legistas, que deviam a sua ilustração aos nomes de Molé e de Maupeou. O pai que durante toda a vida se queixara do despotismo, morrera de susto no dia da tomada da Bastilha, a 14 de Julho de 1789.

       Deixou o filho independente, e republicano decidido.

       Quando começou a revolução, achava-se Maurício com todos os requisitos de um jovem atleta pronto para entrar na arena.

       E a arena revolucionária carecia de fortes contendores.

       Maurício fortalecera as suas idéias republicanas, freqüentando os clubes e devorando a imensidade de livros que então se publicavam.

       Não conhecia outra realeza mais do que a do mérito.

       A sua simpatia era toda pelo povo.

       Mas as maneiras de Maurício eram uma negação dos seus sentimentos; a organização dele era por assim dizer aristocrática.

       Quanto ao físico, era um moço de elevada estatura, de vinte e cinco a vinte e seis anos e musculoso como Hércules; era, numa palavra, um tipo dessa formosura francesa, que parecia indicar que os Francos pertencem a uma raça particular. Tinha fronte espaçosa, olhos azuis, cabelos castanhos e ondeados, faces rosadas e lindos dentes.

       Era respeitado por todos; o seu nome era muito popular; sabia-se que recebera educação liberal e que professava princípios ainda mais liberais do que a educação que recebera e por todos estes motivos estava à frente de um partido composto por todos os rapazes patriotas da classe média.

       Todavia alguns exaltados consideravam-no frouxo, e um tanto adamado. Porém, eram obrigados a desdizer-se quando viam a facilidade com que despedaçava os mais fortes cacetes, ou quando sentiam entre os olhos um soco de Maurício, que os fazia ir rebolando na distância de vinte passos ou mais.

       O mancebo tornara-se distinto em muitas ocasiões pelo seu civismo e valor.

       Tinha assistido à tomada da Bastilha, tinha acompanhado a expedição de Versalhes, tinha-se batido como um leão no dia 10 de Agosto, e naquele memorável dia, depois de matar alguns suíços, voltou-se para os patriotas, porque tão odiosos eram os assassinos chamados patriotas, como os inimigos da república de farda encarnada.

       Maurício naquela ocasião para poupar a efusão de sangue e para induzir os defensores do castelo a entregarem-se, teve a coragem de se arrojar à boca de uma peça, a que ia dar fogo um artilheiro parisiense.

       Foi o primeiro que entrou no Louvre por uma janela, apesar do fogo de fuzilaria de cinqüenta suíços e de outros tantos aristocratas.

       Quando por fim apareceu no castelo o sinal para a capitulação, já a terrível espada de Maurício tinha retalhado mais de dez uniformes.

       Depois, quando viu que os patriotas matavam a sangue frio os prisioneiros, que tinham deposto as armas, e que de joelhos pediam que lhes poupassem as vidas, começou a acutilá-los com furor, feito que lhe ganhou uma reputação digna dos tempos heróicos da Grécia e de Roma.

       Logo que se declarou a guerra, Maurício alistou-se, no posto de tenente, e foi na primeira leva de mil e quinhentos voluntários, que a capital mandava contra os invasores, e à qual deviam seguir-se todos os dias levas de mil e quinhentos homens que foram pontualmente expedidos.

       Na primeira batalha em que entrou, que foi a de Jemmaps, recebeu uma bala, que lhe entrou pelo ombro, indo achatar-se-lhe na espádua. O representante do povo, que acompanhava o exército e era conhecido de Maurício, deu-lhe ordem para se ir tratar a Paris.

       Maurício voltou à capital, onde esteve um mês de cama, em conseqüência da febre, que lhe sobreveio ao ferimento.

       Em Janeiro foi proclamado por unanimidade chefe do clube das Termópilas, composto de cem mancebos, que tinham pedido para pegar em armas para se oporem a qualquer tentativa a favor do rei Luís XVI.

       Maurício assistiu à execução do rei com porte digno, com o rosto carregado, e talvez fosse o único entre a grande multidão, que aplaudia a morte do rei, que não proferiu uma única palavra quando viu cair a cabeça do rei mártir. Apenas o algoz pegou na cabeça decepada, brandiu a terrível espada, mas desta vez não fez coro com os patriotas exaltados, que bradaram: Viva a nação!

       Era pois este o homem que se dirigia para a rua Lepelletier, e cujo verdadeiro carácter melhor daremos a conhecer nos episódios que se vão seguir.

       Maurício chegou à secção de que era secretário, seriam dez horas.

       A sessão era tumultuosíssima. Tratava-se de dirigir uma mensagem à Convenção para que se tomassem medidas enérgicas, que reprimissem as maquinações dos girondinos.

       Maurício era esperado com impaciência.

       A audácia com que o Taverney Casa-Vermelha voltava a Paris, era o assunto de todas as conversações.

       Prometera-se um prémio a quem o entregasse.

       Os patriotas estavam convencidos de que a volta de Casa-Vermelha tinha conexão com a tentativa feita na véspera no Templo.

       Não se ouvia senão imprecações e ameaças contra os aristocratas.

       Nesta sessão o que muito admirou a todos, foi Maurício permanecer frio e indiferente; redigiu habilmente a proclamação, e despachou o que tinha que fazer em três horas.

       Logo que se fechou a sessão, pôs o chapéu e, saindo, dirigiu-se à rua de Saint-Honoré.

       Ali chegado, tomou Paris a seus olhos outro aspecto.

       Dirigiu-se à esquina da rua do Coq, onde na véspera encontrara a desconhecida, que procurava livrar-se da hostilidade dos voluntários.

       Parou em todos os sítios, onde com ela parara, seguiu até à ponte, e em breve chegou à rua de Saint-Victor.

       – Pobre louquinha! – disse consigo Maurício – não se lembrou de que o segredo só duraria enquanto durasse a noite. Agora facilmente darei com a porta por onde desapareceu e até pode ser que a veja nalguma janela.

       Entrou depois na antiga rua de Saint-Jacques e tomou a mesma posição, em que na véspera o colocara a desconhecida.

       Fechou por um momento os olhos; pensando talvez, pobre louco! que sentiria nos lábios o calor do beijo da véspera.

       Tornou a abrir os olhos e viu os dois becos, um à direita outro à esquerda:

       Os becos eram imundos e mal calçados. Pelo meio deles havia uma larga regueira, para desaguamento das águas, atravessada por pranchas, que davam serventia de um para outro lado.

       As casas eram irregulares, muitas de madeiras e algumas construídas sobre toscas arcadas.

       Quase todas eram esburacadas e podres.

       Por toda a parte se notava miséria e a hediondez do trabalho grosseiro.

       Havia contudo alguns quintais guarnecidos de valados, ou de estacaria: poucos eram fechados por muros.

       Também havia muitos telheiros, debaixo dos quais se viam peles de animais a enxugar.

       Já se vê que no meio de tanta porcaria o ar seria ali infeccionado.

       Maurício contudo observou isto minuciosamente, e depois de gastar duas horas nada descobriu.

       Penetrou naquele labirinto, mas teve de voltar atrás para se orientar.

       No fim porém de mil diligências e trabalhos, ficou sabendo tanto como dantes.

       Nem sequer a menor coisa indicava o rasto da desconhecida.

       – Não tenho que duvidar – disse Maurício a si mesmo – foi um sonho. Não é possível que um covil tão imundo sequer por um instante dê abrigo à minha fada da noite passada.

       O nosso austero republicano era na realidade muito mais poético do que o seu amigo Lorin, e para prova bastará dizer que voltou com esta idéia para conservar na sua imaginação a auréola, que vira resplandecer na cabeça da desconhecida.

       Contudo, Maurício retirou-se entregue ao desespero.

       – Adeus – disse ele – bela misteriosa; trata-me como um louco ou como uma criança. Sempre fui muito tolo em acreditar que podias morar aqui. Em tudo isto apenas vejo alguma intriga de amor.

       E retirou-se.

 

À busca

       À hora que Maurício retirava embuçado para casa, uns poucos de membros da municipalidade, acompanhados por Santerre, procediam a uma busca rigorosa na torre grande do Templo.

       O maior rigor da busca foi nos quartos do terceiro andar, onde, como já sabemos, estava encerrada a rainha, a princesa real, a princesa Isabel e o delfim.

       Num dos quartos da torre estavam a rainha, as princesas e o delfim vestidos de luto.

       A mais velha das duas senhoras, que era a rainha, estava lendo junto de uma mesa.

       A princesa Isabel estava entretida a bordar.

       A princesa real, que então tinha catorze anos, estava em pé ao lado da cama do delfim, que estava doente.

       Procederam a uma busca por toda a parte; uns apalpavam as camas, outros desembrulhavam trouxas, e aqueles que não tinham em que se ocupar, mediam insolentemente com os olhos as desventuradas presas.

       Estas porém caprichavam em não levantar a cabeça, como se para elas fosse indiferente o que se passava.

       A mais velha das senhoras que era alta, pálida e formosa, parecia prestar toda a sua atenção ao livro que lia, apesar de ser muito provável que só estivesse lendo com os olhos e não com o espírito.

       Um dos membros, indignado por tanto desdém, chegou-se à presa, arrancou-lhe brutalmente o livro das mãos e atirou-o ao chão.

       A senhora, sem dizer palavra, estendeu o braço, pegou noutro volume, abriu-o e pôs-se a ler.

       Ao ver aquele movimento, que fez estremecer a senhora, que estava bordando, a princesa real correu para a rainha, e abraçando-lhe a cabeça murmurou a chorar:

       – Pobre mãe! Pobre mãe!

       A rainha chegou a boca à cara da menina, como para a beijar e disse-lhe ao ouvido:

       – Maria, na boca do fogão está um bilhete, vê se o tiras de lá.

       – Basta de abraços! São de mais! – exclamou brutalmente o membro da municipalidade, puxando pela menina e arrancando-a dos braços da mãe.

       – Senhor – perguntou a menina com toda a candura – acaso também decretaria a Convenção que as filhas não possam abraçar suas mães?

       – Não, mas decretou que seriam punidos os traidores, os estrangeiros, os aristocratas, e vimos aqui para as interrogar. Vamos, responde, Maria Antonieta.

       A rainha interpelada com tamanha grosseria, nem sequer se dignou olhar para quem lhe falava.

       Voltou a cara para o lado, e às faces, cavadas pelas lágrimas e pelo sofrimento, assomou leve rubor.

       – É impossível – continuou o mesmo membro – que não estejas ao facto da tentativa na noite passada. Quem foi o autor dela?

       A rainha não se dignou responder.

       – Responde Antonieta – disse então Santerre aproximando-se da rainha, sem reparar no horror que causava à infeliz a vista do homem, que na manhã de 21 de Janeiro fora ao Templo buscar Luís XVI para o conduzir ao cadafalso. – Responde. Esta noite houve uma conspiração para te livrar do cativeiro, que estás sofrendo por vontade do povo, enquanto não recebes o castigo dos teus crimes. Dize-nos o que sabes a respeito da conspiração.

       Maria Antonieta horrorizou-se ouvindo a voz forte de Santerre, e procurou evitá-lo recuando a cadeira. Todavia não respondeu à pergunta que lhe fora feita, e Santerre não colheu melhor resultado de que o membro da municipalidade.

       – Então não queres responder? – exclamou Santerre batendo o pé com violência.

       A presa continuou a ler.

       Santerre voltou-lhe as costas enfurecido; o poder daquele homem, que estava à frente de oitenta mil homens, desfazia-se perante a dignidade de uma fraca senhora, a quem ele facilmente faria decepar a cabeça, mas que não era capaz de curvar à obediência.

       – E tu Isabel, quererás responder? – perguntou à outra presa, que tendo largado o bordado tinha posto as mãos e parecia estar orando.

       – Não o posso fazer – respondeu ela – porque não sei de que se trata.

       – Com todos os diabos! – exclamou Santerre com impaciência – parece-me que não falo em grego; digo que houve ontem uma tentativa para as soltar e que devem conhecer os culpados.

       – Daqui para fora não temos comunicação alguma; portanto não é possível que saibamos o que fazem a nosso favor, nem contra nós.

       – Muito bem – respondeu o membro da municipalidade – agora vamos ver o que sabe o teu sobrinho.

       E dizendo isto chegou-se à cama do delfim.

       Ouvindo esta ameaça, Maria Antonieta levantou-se de repente.

       – Senhor – disse ela – meu filho está doente, não o acorde.

       – Então, responde tu.

       – Como hei-de responder, se nada sei.

       O membro da municipalidade foi direito à cama da criança, que fingia, como dissemos, estar a dormir.

       – Vamos? Vamos! Acorda, Capeto – disse ele sacudindo-o asperamente.

       O menino abriu os olhos e sorriu.

       Os membros da municipalidade cercaram logo o leito.

       A rainha, apesar da aflição e do susto em que estava, fez sinal à filha, e esta aproveitando a ocasião, passou furtivamente ao quarto imediato, abriu a boca do fogão, tirou para fora o bilhete, queimou-o logo e voltando para onde estava, com um olhar sossegou a mãe.

       – Que desejam de mim? – perguntou o menino.

       – Queremos saber se ouviste alguma coisa na noite passada.

       – Nada ouvi, dormi toda a noite.

       – Gostas então muito de dormir?

       – Sim, porque quando estou a dormir, sonho.

       – E em que sonhas?

       – Sonho que estou vendo meu pai, que me mataram.

       – Logo, nada ouviste? – interrompeu Santerre com vivacidade.

       – Nada.

       – Estes lobinhos na verdade estão bem amestrados pela loba – disse o membro da municipalidade cheio de furor; – mas não há dúvida que a conspiração existiu.

       A rainha sorriu.

       – A Austríaca está fazendo escárnio de nós! – exclamou o membro da municipalidade. – Pois bem, já que assim o quer, executaremos com todo o rigor o decreto da municipalidade. Levanta-te, Capeto.

       – Que tenção é a sua? – gritou a rainha fora de si. – Não vê que meu filho está doente e com febre? Querem porventura matá-lo?

       – Teu filho – respondeu o membro da municipalidade – ocasiona um desassossego perpétuo ao conselho administrativo do Templo. É o ponto de mira dos conspiradores todos. Ainda conservam a esperança de levá-los daqui todos juntos. Pois bem, que venham agora. Tison!... Chamem Tison.

       Tison era uma espécie de jornaleiro, que tratava dos trabalhos domésticos mais grosseiros da prisão.

       Apareceu logo.

       Era homem de quarenta anos, trigueiro, de feições grosseiras e ordinárias, e cabelo preto e encarapinhado, que lhe chegava às sobrancelhas.

       – Tison – disse Santerre – quem veio ontem trazer de comer às presas?

       Tison disse um nome.

       – Quem trouxe a roupa?

       – Foi minha filha.

       – Tua filha não é lavadeira?

       – Não há dúvida.

       – E foste tu quem a inculcaste às presas?

       – Fui, sim; tanto faz ganhar ela esse dinheiro como outra qualquer; e demais, já não é o dinheiro dos tiranos, é o da nação, visto que é a nação que paga por elas.

       – Já te disseram que era preciso examinar escrupulosamente a roupa.

       – E então! Quem será capaz de dizer que não cumpro o meu dever? E tanto assim, que ontem vinha um lenço em que tinham feito dois nós, e fui logo levá-lo ao conselho, que ordenou a minha mulher, que o desatasse e engomasse para entregar à Srª. Capeto sem lhe dizer coisa alguma.

       A rainha estremeceu quando ouviu a história do lenço com dois nós; os olhos reanimaram-se-lhe, e a princesa Isabel e ela olharam uma para a outra.

       – Tison – disse Santerre – tua filha é uma cidadã de cujo patriotismo não há a menor suspeita; porém, à cautela, de hoje em diante, fica proibida de entrar no Templo.

       – Oh! Meu Deus – disse Tison assustado – que é isso que me estás dizendo! Então não poderei tornar a ver minha filha senão quando sair!

       – Não tornas mais a sair – disse Santerre.

       Tison olhou em volta de si como espantado, sem fitar a vista em objecto algum, e de repente:

       – Não hei-de tornar a sair! – exclamou ele. – Ah! Assim é que me tratam? Pois bem! Quero sair por uma vez. Dou a minha demissão: não sou nenhum traidor, nem aristocrata, não há pois motivo para me prenderem. Digo-lhe que quero sair.

       – Cidadão – disse Santerre – obedece às ordens da municipalidade e cala-te: olha que se assim não fizeres, passas mal, sou eu que to digo. E desde já te aviso que estás muito bem vigiado.

       Durante este tempo, a rainha, pensando que se tinham esquecido dela, ia a pouco e pouco cobrando ânimo, e tratava de tornar a deitar o filho.

       – Diz à tua mulher que suba – disse o membro da municipalidade a Tison.

       Este obedeceu sem proferir uma única palavra. As ameaças de Santerre haviam-no tornado manso como um cordeiro.

       A mulher de Tison subiu.

       – Anda cá cidadã – disse Santerre – nós precisamos de ti: vamos passar para a saleta e enquanto lá estivermos, tu hás-de apalpar as presas.

       – Ó mulher sabes que mais – disse Tison – não querem que a nossa filha torne ao Templo.

       – O quê? Pois não querem que a nossa filha aqui torne? Então não tornaremos mais a ver a nossa filha?

       Tison abanou a cabeça.

       – Que dizem a isto?

       – Digo que havemos de dar conta ao conselho do Templo e que é o conselho que há-de decidir. Entretanto...

       – Entretanto – continuou a mulher – quero ver a minha filha.

       – Leva de rumor! – bradou Santerre – mandamos chamar-te para apalpar as presas; apalpa-as e depois veremos.

       – Mas... Contudo...

       – Oh! Oh! – gritou Santerre franzindo o sobrolho – querem fazer-me perder a paciência!

       – Faze o que manda o cidadão general, mulher.

       – Já te disse que depois veremos.

       E Tison olhou para Santerre, sorrindo-se humildemente.

       – Pois bem – respondeu a mulher – estou pronta a apalpá-las.

       Os homens saíram.

       – Minha querida senhora Tison – disse a rainha – acredite...

       – Não acredito nada, cidadã Capeto – respondeu a nojenta mulher rangendo os dentes – senão que tu tens sido a causa de todas as desgraças do povo. Livra-te pois que eu encontre em teu poder coisa que me pareça suspeita.

       Quatro homens ficaram, ao pé da porta, para prestar auxílio à mulher de Tison, caso a rainha resistisse.

       A primeira apalpada foi a rainha.

       Encontrou-se-lhe um lenço em que tinha dado três nós, e que infelizmente parecia ser a resposta ao outro que Tison mencionara, e além do lenço um lápis, um escapulário e um pedaço de lacre.

       – Ah! Bem me parecia a mim – disse a mulher de Tison; – já eu tinha dito aos membros da municipalidade que a Austríaca escrevia; ainda não há muitos dias que ia um pingo de lacre no vidro do castiçal.

       – Oh! Senhora – disse a rainha com voz suplicante – mostre unicamente o escapulário...

       – Pois sim! – respondeu a mulher – espera por isso. Queres que eu tenha dó de ti!... E eles têm-no de mim?... Privam-me de ver a minha filha!

       À princesa Isabel e à princesa real nada se encontrou.

       A Tison chamou os membros da municipalidade, que tornaram a entrar com Santerre à frente; entregou-lhes os objectos que tinha achado em poder da rainha, os quais passaram de mão em mão e deram lugar a infinitas conjecturas: o lenço com três nós deu particularmente que fazer às imaginações dos perseguidores da raça real.

       – Agora – disse Santerre – vamos ler-te o decreto da Convenção.

       – Que decreto? – perguntou a rainha.

       – É um decreto que ordena que sejas separada de teu filho.

       – Então sempre é verdade existir semelhante ordem?

       – Sim. A Convenção tem o maior interesse na conservação da saúde de uma criança que a nação entregou à sua guarda, e por isso não quer que permaneça na companhia de uma mãe tão depravada como tu és...

       Os olhos da rainha relampejaram.

       – Mas diga-me ao menos de que me acusam, tigres que são!

       – Nada há mais fácil – disse um dos membros da municipalidade, – é de...

       E em seguida proferiu uma acusação infame, semelhante às que Suetonio fez a Agripina.

       – Oh! – exclamou a rainha, erguendo-se pálida e cheia de indignação – desta acusação apelo eu para o coração de todas as mães!

       – Vamos! Vamos! – disse o membro da municipalidade – tudo isso é muito bom, porém já lá vão duas horas que aqui estamos e não queremos perder o dia todo. Levanta-te, Capeto e vem connosco.

       – Nunca! Nunca! – gritou Maria Antonieta, pondo-se entre os membros da municipalidade, e o desventurado delfim, e pronta a defender a todo o transe a cama, como a fêmea do tigre defende o covil; – nunca consentirei que me levem o meu filho.

       – Oh! Senhores – disse a princesa Isabel suplicando de mãos postas com admirável expressão; – senhores, em nome do Céu tenham compaixão de duas mães!

       – Declarem, tudo – disse Santerre – confessem os nomes e os projectos dos seus cúmplices, expliquem-nos o que significavam os nós que tinha o lenço que a filha de Tison trouxe com a roupa e os que deram no lenço que tinhas na algibeira, e então deixar-te-emos o filho.

       A princesa Isabel olhou para a rainha como pedindo-lhe que fizesse o terrível sacrifício.

       Porém a rainha, enxugando com altivez uma lágrima que lhe brilhava como um diamante na extremidade das pálpebras exclamou:

       – Adeus, meu filho; lembre-se sempre de seu pai, que está no Céu e de sua mãe, que em breve irá reunir-se-lhe; reze todas as noites e todas as manhãs a oração que lhe ensinei. Adeus, meu filho.

       Deu-lhe um último beijo, e endireitando-se logo com modo frio e inflexível, continuou:

       – Nada sei, façam o que lhes aprouver.

       Mas para suportar semelhante cena fora preciso que a rainha tivesse forças superiores às que podem caber num coração de mulher e especialmente de mãe. Caiu desfalecida numa cadeira, enquanto levavam o menino, que chorava e estendia-lhe os braços, porém sem dar um único grito.

       A porta fechou-se depois de saírem os membros da municipalidade que levavam o príncipe, e as três mulheres ficaram sós.

       Houve um instante de silêncio apenas interrompido por alguns soluços.

       A rainha foi a primeira que falou, perguntando:

       – E o bilhete minha filha?

       – Queimei-o, conforme disse, minha mãe.

       – Sem o leres?

       – Sem o ler.

       – Digamos pois adeus à nossa derradeira esperança! – murmurou a princesa Isabel.

       – Oh! Tem razão, tem razão, minha irmã, já é muito sofrer.

       E voltando-se para a filha:

       – Mas reparaste na letra, ao menos, Maria?

       – Sim, minha mãe, de relance.

       A rainha levantou-se, foi à porta, para ver se alguém a espreitava, pegou num gancho do cabelo, aproximou-se da parede, tirou de uma greta um papelinho dobrado do feitio de um bilhete, e mostrando-o à princesa, perguntou:

       – Procure bem na sua lembrança antes de me responder, minha filha; a letra era porventura semelhante a esta?

       – Sim, sim, minha mãe – gritou a princesa – sim era a mesma!

       – Louvado seja Deus! – exclamou a rainha ajoelhando com fervor. – Ele, que pôde escrever esta manhã é sinal que está salvo. Graças, meu Deus! Graças! Um amigo tão fiel era bem digno de um dos vossos milagres.

       – De quem fala, minha mãe? – perguntou a princesa real. – Que amigo é esse? Diga-me o seu nome, para eu pedir a Deus por ele nas minhas orações.

       – Sim; tem razão, minha filha; não esqueça nunca o nome que vou dizer-lhe, pois é o nome de um valente e honrado cavalheiro; de um homem que não é movido por vistas ambiciosas, pois foi preciso que viesse acometer-me a desgraça para se mostrar. Afastou-se de mim enquanto fui rainha de França, e correu a expor a vida para socorrer-me quando me viu desgraçada. Foi irmão da minha mais fiel, mais dedicada e mais desinteressada amiga, que por mim tudo perdeu, até a vida. Pobre e santa Andréia! A paga dos serviços dele será talvez a que hoje dão a tudo quanto é virtude, uma morte terrível... Mas... Se ele morrer... Oh! Lá no Céu lho agradecerei... Chama-se...

       A rainha olhou previamente em roda do quarto e baixando a voz, disse:

       – Chama-se Filipe de Taverney Casa-Vermelha. Ore por ele!

 

Os supostos contrabandistas

       A tentativa do rapto, apesar de malograda, pois nem sequer chegara a executar-se, levava ao maior excesso o furor dos exaltados.

       O facto, que mais comprovava a realidade da tentativa, era a denúncia, que a junta de segurança pública tinha recebido, a respeito da entrada de muitos emigrados por diversos pontos da fronteira.

       Era fora de dúvida que esses indivíduos, que assim arriscavam as cabeças, não o faziam sem um fim, e esse fim, não podia ser outro senão o livramento da família real.

       Nestas circunstâncias um membro da Convenção, chamado Osselin, fez uma proposta para ser condenado à morte todo o emigrado que se atrevesse a voltar a França, todo o francês a quem se provasse que tinha procurado emigrar, todo o indivíduo que coadjuvasse a emigração, ou a volta de um emigrado: finalmente todo o cidadão que desse asilo a qualquer emigrado.

       Esta proposta foi aprovada sem discussão e imediatamente promulgada.

       Era precursora da horrível lei do Terror.

       Logo que constou o regresso a Paris de Taverney Casa-Vermelha que era considerado como emigrado poderosíssimo e activo, puseram-se em prática as medidas de maior severidade.

       Ordenou-se uma rigorosa pesquisa a todas as casas suspeitas.

       Destas buscas só resultou a prisão de algumas mulheres de emigrados, e de alguns velhos, que não procuravam subtrair ao cutelo do algoz os poucos dias que lhes restavam.

       As secções não tiveram mãos a medir, e por conseqüência o secretário das Termópilas, que era um dos mais influentes, não teve tempo para pensar na sua desconhecida.

       A sua primeira resolução, quando saiu da rua Velha de Saint-Jacques, fora procurar esquecer-se dela, porém como bem dissera o seu amigo Lorin:

      

                       Do que queremos esquecer

                       Não nos devemos lembrar;

                       Querer esquecer apenas serve

                       Para nos fazer recordar.

      

       Maurício encerrava no seu peito todas as circunstâncias da aventura e a ninguém confiara, nem sequer a Lorin, o segredo do seu coração, que todavia não escapara à penetração do amigo.

       Lorin, que conhecia o génio alegre de Maurício, ao vê-lo triste e pensativo, logo desconfiou que ele era vítima de alguma travessura do Cupido magano.

       Convém notar de passagem, que durante os dezoito séculos da monarquia, poucas épocas houve tão mitológicas como foi o ano de 1793.

       Filipe de Taverney Casa-Vermelha não fora preso e nem sequer já se falava nele.

       A rainha, depois da morte do marido, e de lhe arrebatarem o filho, continuava a sua vida de lágrimas na companhia da filha e da cunhada.

       O jovem delfim começava a sofrer nas mãos do sapateiro Simão o martírio, que o levou em dois anos para a companhia dos pais.

       Houve então alguns momentos de sossego.

       Entretanto o vulcão montanhês dispunha-se a envolver na lava os pobres girondinos.

       Maurício para se distrair da inactividade forçada, a que se via obrigado, entregou-se inteiramente à paixão que sentia pela desconhecida; tornou a ler a carta, beijou mil vezes a linda safira, e apesar dos protestos que fizera, determinou pôr em prática mais outra tentativa para descobrir a sua amante, jurando porém que seria a última.

       Maurício lembrou-se de ir pedir informações ao seu colega, o secretário da secção do jardim botânico. Porém a desconfiança que tivera de que a sua desconhecida estava comprometida nalguma política, impediu-o de dar semelhante passo.

       Maurício estremecia só com a idéia de poder comprometer com alguma indiscrição, por mínima que fosse, a misteriosa mulher.

       Resolveu pois empreender só a descoberta, sem aventurar-se a pedir informações.

       O plano traçado pelo mancebo para a descoberta era em extremo simples.

       Os primeiros indícios devia obtê-los pelas listas existentes nas portas das casas.

       Depois orientar-se-ia consultando os porteiros.

       Na sua qualidade de secretário de uma secção, era-lhe lícito interrogar qualquer pessoa.

       Verdade é que não sabia o nome da bela desconhecida, mas esperava que algum acaso o descobrisse.

       Tinha para si que uma mulher dotada de tanta formosura não podia deixar de ter um nome em harmonia com a sua extraordinária beleza.

       Confiava pois em que o nome lhe havia de servir de guia.

       Maurício vestiu uma carmanhola de pano escuro; pôs na cabeça o barrete vermelho, e partiu para a descoberta.

       Levava na mão um nodoso cacete, dos que então se usavam, e que na mão dele equivalia à maça de Hércules.

       Por esta forma ia completamente seguro, e muito mais ainda por levar na algibeira a sua nomeação de secretário da rua Pelletier.

       Voltou pois à rua de Saint-Victor, tomou pela rua Velha de Saint-Jacques e foi lendo a custo, porque já era quase noite, os nomes escritos em letras mais ou menos toscas nas portas das casas.

       Tinha já lido umas cem listas sem ter encontrado o nome da sua desconhecida nem alguém que se assemelhasse àquela que a sua imaginação fantasiava, quando um sapateiro do seu cubículo observara o gesto de impaciência que fizera o leitor, abriu a porta e saindo fora com o seu tirapé e sovela, dirigiu a palavra a Maurício, olhando para ele por cima dos óculos.

       – Precisas alguma informação, a respeito dos inquilinos desta casa, cidadão? Se queres, estou pronto a dar-te quantas precisares.

       – Agradecido – balbuciou Maurício; – procuro o nome de um amigo.

       – Pois dize-me como se chama, que talvez te possa esclarecer; conheço quase todos os habitantes do bairro; onde morava o teu amigo?

       – Parece-me que morava na rua Velha de Saint-Jacques; desconfio porém que se mudou.

       – Mas como se chama? Preciso saber-lhe o nome.

       Maurício, depois de hesitar um instante, disse o primeiro nome que lhe ocorreu.

       – Chama-se Reinaldo.

       – E qual é a sua ocupação?

       – Oficial de curtidor.

       – Pois então – disse um indivíduo, que tinha parado a ouvir a conversa e olhava para Maurício com certa desconfiança – seria melhor que te dirigisses ao mestre da fábrica em que o teu amigo trabalha.

       – É verdade – disse o sapateiro; – os mestres sabem, ou pelo menos têm obrigação de saber, os nomes dos oficiais, e aqui está o cidadão Dixmer, que é director de uma fábrica de curtumes, onde trabalham mais de sessenta operários, e portanto talvez possa dar-te algumas informações.

       Maurício voltou-se para examinar o indivíduo, que o sapateiro designava.

       Viu um homem muito alto, de cara franca e trajando como um burguês abastado.

       – Contudo – disse o director da fábrica – é preciso como muito bem disse o cidadão sapateiro, que saiba o nome do indivíduo, que procuras.

       – Já te disse que se chama Reinaldo.

       – Isso é o nome; mas o apelido? Todos os oficiais são conhecidos pelos apelidos.

       – Pois o apelido é que eu ignoro – respondeu Maurício, que já não ia gostando de tantas perguntas.

       – Ora essa! – disse o fabricante com um sorriso cheio de ironia – é possível que não saibas o apelido do teu amigo, cidadão?

       – Não sei; e onde está o motivo de admiração?

       – Tens razão; mas desse modo é provável que não atines com ele.

       E dizendo estas palavras, despediu-se de Maurício, e depois de dar alguns passos entrou numa casa da rua Velha de Saint-Jacques.

       – O caso é que não sabes o apelido... – disse o sapateiro.

       – Não sei não! – gritou Maurício, que estava desejando um pretexto para desabafar a raiva que o oprimia: então que queres dizer na tua?

       – Nada, cidadão, nada, queria somente dizer que visto não saberes o apelido do teu amigo, decerto não atinas com ele.

       E dizendo isto, o cidadão sapateiro tornou a encafuar-se no cubículo.

       Maurício esteve tentado a sovar o cidadão sapateiro, porém o que valeu ao pobre homem foi o ele verificar ser já velho.

       Se tivesse ao menos vinte anos, era muito provável que Maurício lhe desse uma demonstração escandalosa da igualdade perante a lei, e da desigualdade perante a força.

       Maurício deixou o cidadão sapateiro, e continuou as suas pesquisas, porque já se ia aproximando a noite.

       Entrou na primeira travessa que encontrou, examinou as portas uma por uma, deitou a cabeça por cima das estacadas, espreitou por cima dos muros, procurou ver pelos buracos das fechaduras, e bateu inutilmente a muitas portas dalgumas casas que não tinham gente.

       O mancebo gastou duas horas nestas diligências inúteis.

       Davam nove horas, era noite fechada e reinava o maior sossego; no bairro cessara já todo o movimento.

       Maurício, já sem esperança, ia retirar-se, quando viu brilhar uma luz no fundo de um corredor escuro. Entrou imediatamente, apesar da escuridão, sem reparar, quando se dirigia para a entrada, numa cabeça, que o estava espreitando por entre umas árvores, que ficavam ao pé de um muro, e que em seguida desaparecera.

       Passados três segundos depois de ter desaparecido a pessoa que o estava espreitando, saíram três homens de uma porta, que havia no mesmo muro.

       Os três homens correram para o corredor, em que o mancebo se aventurara ao passo que outro indivíduo, sem dúvida para maior segurança, fechou a porta sobre si.

       Maurício deparou com um pátio no fim do corredor.

       A luz que avistara, saía de uma janela que deitava para o pátio.

       Bateu à porta de uma casa de aparência pobre e solitária, porém logo à primeira argolada apagou-se a luz.

       Maurício tornou a bater, mas como ninguém viesse abri-la, percebeu que intencionalmente lhe não respondiam.

       Depois, como não quisesse bater debalde, tornou a atravessar o pátio e entrou novamente no corredor.

       No mesmo instante, abriu-se sem bulha a porta da casa, saíram por ela os três homens, e ouviu-se um assobio.

       Maurício voltou-se e viu três vultos, na distância de duas ou três vezes o tamanho do pau que levava.

       Apesar das trevas, que o envolviam, pôde distinguir, porque os olhos se lhe tinham habituado já à escuridão, o reflexo sinistro de dois ferros.

       Maurício conheceu que estava cercado: quis fazer sarilho com o pau para se defender; porém o corredor era tão estreito que não era possível fazê-lo girar, e no momento em que o intentava, recebeu na cabeça uma pancada, cuja violência o atordoou. Era uma agressão inesperada dos quatro homens, que tinham saído da porta do muro.

       Os sete homens juntos caíram sobre Maurício ao mesmo tempo, e apesar da resistência desesperada do mancebo, deitaram-no por terra, amarraram-lhe as mãos e taparam-lhe os olhos.

       Maurício não dera um único grito, não bradara por socorro; e ainda que o tivesse feito, ninguém lhe teria acudido naquele bairro deserto.

       Foi portanto amarrado sem dizer palavra.

       Reflectiu porém que, se quisessem matá-lo logo, não estariam com o trabalho de lhe vendar os olhos, e na idade que Maurício tinha então qualquer demora era uma esperança.

       Chamou pois em seu auxílio toda a sua presença de espírito e esperou.

       – Quem és tu? – perguntou uma voz ainda cansada da luta.

       – Sou um homem que, se quiseres, pode ser assassinado imediatamente.

       – Nada, és um homem morto se levantares a voz, quer seja para chamar, quer para gritar.

       – Se quisesse gritar, não estaria calado até agora.

       – E quererás responder às minhas perguntas?

       – Conforme forem.

       – Quem te mandou aqui?

       – Ninguém.

       – Vieste por teu livre arbítrio?

       – Vim.

       – Mentes.

       Maurício bramiu de furor, e fez todos os esforços para se soltar, porém foi impossível.

       – Nunca minto – respondeu ele.

       – Será assim; contudo não deixas de ser um espião.

       – E vocês uns canalhas cobardes.

       – Nós, cobardes!

       – Sim, e muito cobardes, pois não se pejaram de atacar em número de sete ou oito um homem só, e por cima de tudo insultarem esse homem depois de manietado. Cobardes, muito cobardes!

       Estas palavras do mancebo, longe de excitarem o furor dos seus agressores, pelo contrário acalmou-o, pois que assim declarara a nobreza dos seus sentimentos. Se na realidade eu fosse um espião, teria pedido misericórdia.

       – O que dissemos não se pode chamar insulto – disse uma voz menos áspera, mas mais imperiosa do que as outras. – Nestes infelizes tempos, em que vivemos, pode qualquer ser espião, sem por isso deixar de ser homem de bem. Contudo, sempre se arrisca a vida.

       – Ora abençoado seja quem pronunciou tais palavras; prometo responder-lhe com lealdade.

       – Por que motivo vieste a este bairro?

       – Vim procurar uma mulher.

       Esta resposta excitou um murmúrio de incredulidade.

       – Mentes – respondeu a mesma voz – neste bairro não moram mulheres que mereçam a pena andar à procura delas. Diz quais eram as tuas intenções, aliás morres.

       – Enganas-te, se julgas que me metes medo – respondeu Maurício; – estou convencido de que não me hás-de matar sem mais nem mais, salvo se fores um assassino.

       E dizendo isto, Maurício fez um último esforço para desembaraçar as mãos; mas de repente sentiu no peito uma impressão de frio e uma dor aguda.

       Recuou involuntariamente.

       – Ora ainda bem que lhe sentiste a ponta – disse um dos homens. – Toma pois cuidado, ainda restam depois do bico oito polegadas de bom ferro.

       – Pois então acaba – respondeu Maurício resignado.

       – Dizes-nos quem és? – perguntou a tal voz branda e imperiosa.

       – Ah! Queres saber o meu nome?

       – Quero.

       – Sou Maurício Lindey.

       – O quê! – bradou outra voz – Maurício Lindey, o patriota exaltado! Maurício Lindey, secretário da secção Lepelletier!

       Estas palavras foram ditas com tanta violência, que Maurício logo compreendeu que a sua sorte estava dependente da resposta que ele desse.

       Como porém era incapaz de praticar uma vilania, negando quem era, respondeu com voz firme:

       – Sim, sou isso que dizes: sou Maurício Lindey, secretário da secção Lepelletier; Maurício Lindey, o patriota, o revolucionário, o jacobino; finalmente, Maurício Lindey, que considera o dia mais feliz da sua vida aquele, em que morrer pela liberdade!

       A esta resposta seguiu-se um silêncio sepulcral.

       O mancebo esperava a cada instante que lhe cravassem no peito o ferro, de que apenas sentira a ponta.

       – Será verdade o que avançaste – disse passados alguns instantes, uma voz, que parecia comovida. – Toma sentido, não mintas.

       – Para te certificares, procura nas minhas algibeiras e acharás a minha nomeação. Examina a minha roupa e nela verás a minha marca: um M e um L.

       Apenas o mancebo acabou de falar, sentiu pegarem-lhe por baixo dos braços, e assim o foram levando por espaço de algum tempo. Percebeu que abriram uma porta e depois outra; a segunda porém era muito estreita, porque os homens que o levavam tiveram bastante dificuldade em transpô-la.

       Ainda conversavam em voz baixa.

       – Estou perdido – disse o mancebo consigo; – vão atar-me uma pedra ao pescoço e deitam-me por algum alçapão, que vá dar ao rio Bièvre.

       Passado porém um instante, conheceu que os indivíduos, que o levavam, subiam alguns degraus. Sentiu uma atmosfera mais temperada e sentiu-se assentado numa cadeira.

       Ouviu fechar uma porta à chave e o ruído dos passos dos indivíduos que se retiravam.

       Julgou que o deixavam só. Aplicou o ouvido com toda a atenção, de que é susceptível um homem que está em perigo de vida, e pareceu-lhe ouvir dizer a voz que tanto o impressionara:

       – Deliberemos.

 

Reaparece a desconhecida

       Passou-se um quarto de hora, que foi um século para Maurício.

       E muito natural era a sua impaciência; a sua vida, estando na força da idade, e podendo aspirar a um brilhante futuro, estava dependente da decisão de uns poucos de homens, que já o tinham querido matar.

       Percebeu que o tinham fechado num quarto, mas não sabia se estava guardado à vista.

       Tentou outra vez soltar-se, fez um esforço violento, mas nada conseguiu: a corda magoou-o.

       O que mais dificultava a sua posição era ter as mãos amarradas atrás das costas, por isso que não as podia levar aos olhos.

       Se por acaso visse onde estava, talvez lhe fosse possível escapar-se.

       Como porém ninguém se opusesse às diversas tentativas que fez para se soltar concluiu que estava só.

       Pareceu-lhe que pisava areia ou terra forte; o cheiro activo e agradável que sentia indicou-lhe a presença de substâncias vegetais; julgou que estaria nalguma estufa ou coisa semelhante.

       Finalmente, decidindo-se a dar alguns passos, encontrou um muro, voltou-lhe as costas para poder apalpar com as mãos, e quase que deu um grito de alegria ao depararem-se-lhe instrumentos de agricultura.

       Depois de muita dificuldade conseguiu examinar os instrumentos, que o acaso lhe deparara.

       Desde então tornava-se a sua evasão uma questão de tempo.

       Se o acaso ou a providência lhe concedesse cinco minutos, e se entre tantos instrumentos pudesse encontrar um que cortasse, estava salvo.

       Deu com uma enxada.

       Custou-lhe muito, em conseqüência da maneira por que estava amarrado, voltá-la de maneira que o ferro ficasse para cima.

       Segurou depois o ferro de encontro à parede com o pé; depois foi cortando, ou para melhor dizer, foi gastando a corda que lhe prendia as mãos.

       A operação não podia deixar de ser difícil, porque o ferro de uma enxada pouco corta.

       Estava muito fatigado, e inundou-se-lhe a testa de suor quando lhe pareceu sentir passos de pessoas, que se aproximavam; reuniu todas as forças, e dando um forte puxão, conseguiu quebrar a corda pela parte mais gasta.

       Não pôde conter uma exclamação de prazer.

       Ao menos assim tinha a certeza de poder lutar antes de morrer.

       Maurício tirou a venda que lhe tapava os olhos.

       Não se tinha enganado.

       O sítio em que estava era uma espécie de pavilhão, onde resguardavam do tempo algumas plantas exóticas.

       A um canto estavam arrumados os instrumentos de horticultura e entre eles a enxada que tão bom serviço lhe prestara.

       Examinou o sítio em que estava com toda a atenção, viu defronte de si uma janela, e correu para ela, mas deu com uma grade de ferro; pela parte de fora estava um homem armado com uma clavina.

       No lado oposto do jardim havia um quiosque, jogando com o pavilhão onde se achava Maurício.

       A janela tinha as tabuinhas corridas, e por elas saíam os raios de uma luz.

       Correu à porta para escutar, mas viu que esta também estava guardada por uma sentinela.

       Eram as passadas dessa sentinela, que ele sentira.

       Nesse momento ouviu muitas vozes.

       Saíam do fundo do corredor, e era evidente que a deliberação se tornara em acalorada discussão.

       Maurício porém não ouvia tudo o que se dizia.

       Só lhe chegavam ao ouvido algumas palavras soltas, e entre elas ouviu pronunciar as palavras, espião, punhal e morte.

       Maurício ainda prestou maior atenção.

       Neste momento abriu-se uma porta e então ouviu distintamente:

       – Sim – dizia uma das vozes; – não temos que duvidar, é um espião; descobriram alguma coisa, e mandaram-no aqui para surpreender os nossos segredos; se o pusermos em liberdade arriscamo-nos a ser denunciados.

       – Mas se ele comprometesse a sua palavra de honra? – disse uma voz.

       – Quanto à sua palavra – disse uma voz – não há-de pôr dúvida em a dar; mas depois com a mesma facilidade faltará a ela.

       – É ele porventura algum fidalgo – disse outra voz – para que possamos fiar-nos na sua palavra de honra?

       Maurício bramia de raiva, por ver que havia gente que se persuadia de que só um fidalgo era capaz de não faltar à fé jurada.

       – Mas como nos há-de denunciar se não nos conhece?

       – É verdade que não nos conhece e não sabe o que aqui fazemos; sabe porém que existimos, e se aqui voltar é provável que seja bem acompanhado.

       Este argumento ficou sem réplica.

       – Visto isso – disse a voz que parecera a Maurício ser a do chefe – estão resolvidos?

       – Quantas vezes será preciso dizer que sim?

       – Na verdade, estranho tanta magnanimidade; aposto que, se a junta de segurança pública nos apanhasse, não estaria com tantas cerimónias.

       – Digam-me, ainda persistem na sua opinião?

       – Decerto, e esperamos que não nos fará oposição.

       – Eu só disponho do meu voto. Votei para que o soltassem. São seis, votaram pela morte; que morra.

       O suor que manava da fronte de Maurício cessou de repente.

       – É provável que ele estrebuche e grite – disse a mesma voz.

       – Tiveram o cuidado de afastar a Srª. Dixmer? – perguntou outra voz.

       – Ela não sabe nada.

       – Onde está?

       – No pavilhão.

       – A Srª. Dixmer – disse consigo Maurício; – começo a compreender. Estou em casa do mestre curtidor, que me falou na rua de Saint-Jacques e que me deixou por eu não lhe poder dizer o apelido do meu amigo. Mas que demónio de empenho poderá ter o maldito mestre em me assassinar?

       Maurício procurou entre os instrumentos de agricultura e achou uma estaca com a ponta de ferro.

       – Está bem – disse ele consigo – ao menos antes que me matem sempre darei cabo de dois ou três.

       E deitou a mão à inocente estaca, que ia servir de arma mortífera.

       Depois colocou-se atrás da porta, de maneira que ficasse encoberto por ela quando entrassem.

       Era tal o estado de ansiedade, em que estava, que podia contar distintamente as pulsações do coração.

       De repente estremeceu, ouvindo dizer uma voz:

       – Se querem seguir o meu conselho, o melhor é matá-lo da janela com um tiro.

       – Nada, nada – disse outra voz – não queremos bulha; o estrondo do tiro pode ser-nos fatal. Ah! Está aí Dixmer; e a sua mulher?

       – Está lendo; fui agora espreitar pelas tabuinhas; não tem a menor desconfiança do que se passa.

       – Dixmer, o seu voto é que há-de resolver a questão; é de parecer que o aviemos com um tiro ou com uma punhalada?

       – Vamos! – repetiram ao mesmo tempo cinco ou seis vozes.

       Maurício era um verdadeiro filho da revolução; tinha um coração de bronze, e pode-se dizer que era verdadeiro ateu.

       Quando porém ouviu proferir a palavra vamos, pelo lado oposto da porta, que unicamente o separava da morte, persignou-se involuntariamente como fazia na sua infância quando sua mãe o ensinava a rezar.

       Aproximaram-se as passadas, rangeu a chave na fechadura e abriu-se a porta vagarosamente.

       Enquanto isto sucedia, Maurício reflexionava assim:

       – Se perco tempo em brigar com eles, não posso escapar à morte. O melhor é atacá-los de improviso, depois fujo para o jardim, de lá para o beco, e assim talvez escape.

       E logo, arremetendo como um leão, e dando um grito ameaçador, deitou por terra os dois homens, que vinham na frente e que julgando-o amarrado, estavam longe de esperar semelhante ataque. Afastou os outros, passou pelo meio deles, viu no fundo do corredor uma porta aberta de par em par, saiu por ela, galgou dez degraus e, achou-se no jardim, e procurando a porta acertou com ela.

       Estava fechada à chave e tinha os fechos corridos.

       Maurício puxou os fechos, mas não pôde abrir a porta, por não estar a chave na fechadura.

       Enquanto fazia estas diligências, os homens que o perseguiam chegaram à porta da casa, e logo o viram.

       – Lá está – bradaram eles – atire-lhe, Dixmer; atire-lhe e mate-o!

       Maurício bramiu de raiva.

       Era horrível ver-se fechado num jardim cujos muros tinham dez palmos de altura.

       Entretanto avançaram os assassinos.

       Só estavam distantes de Maurício uns trinta passos, e o mancebo procurou em volta de si alguma coisa que pudesse servir-lhe de tábua de salvação.

       Deparou-se-lhe o quiosque, e viu brilhar luz por dentro das tabuinhas da janela.

       Levado pelo desespero, deu um pulo enorme, saltando uma altura de sete palmos, empurrou as tabuinhas, meteu-se pela janela quebrando os vidros, e foi cair num quarto onde uma mulher estava lendo ao pé do fogão.

       A mulher levantou-se assustada e gritou por socorro.

       – Arreda-te, Genoveva, põe-te de lado, gritou Dixmer, quero matá-lo.

       E dizendo estas palavras, levou a espingarda à cara e apontou para Maurício.

       Mas a mulher, logo que olhou para o mancebo deu um grito de espanto, e em vez de se pôr de lado como lhe ordenara o marido, cobriu-o com o corpo.

       Este movimento fez com que Maurício dirigisse toda a sua atenção para a generosa senhora que assim o protegia.

       Ficou pasmado.

       Tinha diante de si a desconhecida, por causa de quem acabava de correr tantos perigos.

       – A senhora! – exclamou o mancebo.

       – Silêncio – respondeu ela.

       Depois, voltando-se para os homens, que queriam matar Maurício disse:

       – Não hão-de matá-lo!

       – É um espião! – disse Dixmer – e como tal deve morrer.

       – Ele, um espião! Venha cá, Dixmer, vou provar-lhe que está enganado!

       Dixmer aproximou-se da mulher, que lhe disse algumas palavras ao ouvido.

       O mestre curtidor mal a ouviu ergueu a cabeça com vivacidade e disse:

       – Pois foi este?

       – Foi – respondeu Genoveva.

       – Não me enganas?

       A jovem em lugar de responder, voltou-se para Maurício e ofereceu-lhe a mão com um sorriso.

       – Foi o meu salvador – disse ela.

       Dixmer reassumiu de novo a singular expressão de frieza e serenidade, e com calma encostou a espingarda à parede.

       – Agora muda o caso de figura – disse ele.

       E fazendo sinal aos companheiros para que o seguissem, disse-lhes algumas palavras e desapareceram.

       Entretanto Genoveva dizia a Maurício.

       – Esconda o anel, todos aqui o conhecem.

       Maurício tirou imediatamente o anel do dedo e meteu-o no bolso do colete.

       Passado um instante, tornou Dixmer a entrar no pavilhão.

       – Venho pedir-lhe desculpa, cidadão – disse ele. Não sabia o muito que lhe era obrigado! Minha mulher, apesar de ter gravado no coração o serviço que lhe prestou, não me soube dizer o seu nome; portanto espero que me perdoará.

       – Não falemos mais no passado; só lhe peço que diga por que motivo se empenhavam tanto em matar-me?

       – É um grande segredo – respondeu Dixmer – mas como estou muito certo da sua lealdade, vou confiar-lho.

       Depois de alguns instantes de reflexão, Dixmer continuou:

       – Como já sabe, sou director de uma fábrica de curtumes. Os ácidos que emprego no preparo das peles são de contrabando. Os contrabandistas que mos fornecem souberam que tinha havido uma denúncia contra eles; por conseqüência, quando vi que andava tirando informações pelo bairro, tive algum receio.

       Os contrabandistas, a quem participei os meus temores, espreitaram-no, e tendo-o visto entrar no corredor, adquiriram a convicção de que queria perdê-los e foi essa a razão que queriam a sua morte a todo o transe.

       – Sim, sim, isso sei eu de mais; ouvi a deliberação que tiveram, e ainda não me esqueci da espingarda.

       – Mas eu já lhe pedi perdão – replicou Dixmer.

       – Eu já lho dei.

       – Para lhe mostrar agora a muita confiança que faço da sua lealdade, vou contar-lhe todos os meus segredos. Tenho por sócio um tal Morand, e ambos contamos com as desordens deste tempo para alcançarmos uma brilhante fortuna. Arrematámos o fornecimento das mochilas para o exército, e todos os dias aprontamos mil e quinhentas ou duas mil. O estado anárquico em que se acha o país por tal forma dá que fazer à municipalidade, que nem sequer tem tempo para verificar as nossas contas; e confessar-lhe-ei que nestas alturas, a cifra para nós vale dez, e como as matérias primas que empregamos entram aqui por contrabando, ganhamos duzentos por cento.

       – Safa! – exclamou Maurício – a pechincha é famosa. Agora compreendo o medo que tiveram de ver denunciado o seu segredo. Como porém sabe quem eu sou parece-me que nada receará da minha parte.

       – Tanto assim é – respondeu Dixmer – que nem sequer exijo do senhor a promessa de guardar segredo.

       E dizendo isto, pôs-lhe a mão no ombro sorrindo.

       – Agora, visto estarmos sós, vou perguntar-lhe o que procurava neste bairro. Fica porém entendido que, se é segredo, não quero obrigá-lo a descobri-lo.

       – Parece-me porém que já o disse – balbuciou Maurício.

       – Sim – disse que andava procurando uma mulher, ou coisa que o valha.

       – Perdoe, cidadão – respondeu Maurício – devo explicar-lhe a minha conduta. Confessarei que na verdade andava a procurar uma mulher, que encontrei uma noite e que me asseverou morar neste bairro. Não me foi possível ver-lhe o rosto, não sei como se chama, nem sequer ao certo onde ela mora. Sei unicamente que estou louco de amores por ela.

       – E que sinais pode dar da tal mulher?

       – É muito baixa.

       Genoveva era alta.

       – Que mais?

       – É loura e pareceu-me alegre.

       Genoveva, tinha o cabelo preto e olhos grandes e pensativos.

       – Pareceu-me, finalmente – continuou Maurício – que seria costureira de casa de alguma modista, e foi por isso que vesti este trajo popular, julgando assim agradar-lhe mais no caso de a encontrar.

       – Essa explicação não deixa nada a desejar – observou Dixmer.

       Genoveva, ouvindo este diálogo, ficara perturbada, e para disfarçar voltou o rosto para a parede.

       – Pobre cidadão Lindey! – disse Dixmer rindo – que maus momentos lhe fizemos passar.

       – Não falemos mais nisso – respondeu Maurício, julgando que era tempo de se retirar; – esqueçamos o que se passou; agora faça o favor de ensinar-me o caminho.

       – O quê! Quer retirar-se? – exclamou Dixmer – e julga que o havemos de consentir? Nada! Nada! Convidei para cear os valentes rapazes que queriam dar-lhe cabo da pele... Ceará com eles e verá que não são tão malvados como parecem.

       Maurício pulou de alegria por poder passar mais algumas horas ao pé de Genoveva; todavia disse:

       – Não sei se deva aceitar.

       – Que está dizendo? – replicou Dixmer; – não sabe se deve aceitar... Posso afirmar-lhe que todos são bons e leais patriotas. Demais, só acreditarei que realmente nos perdoou depois de nos termos assentado à mesma mesa, e participado do mesmo pão.

       Genoveva não dizia nada.

       – Na verdade – replicou o mancebo – receio incomodá-lo, cidadão, e não sei se devo, vista a desordem do meu vestuário.

       Genoveva olhou timidamente para o mancebo.

       – O nosso oferecimento – disse ela – é feito do coração.

       – Pois então aceito, cidadã.

       – Bom – disse o mestre curtidor; – vou sossegar os meus companheiros; entretanto, fique aqui, meu amigo.

       Dixmer saiu.

       Genoveva e Maurício ficaram sós.

       – Ah! Senhor – disse Genoveva procurando dar às suas palavras o tom de repreensão – repare que faltou à sua palavra.

       – Pois quê! – exclamou Maurício – julga acaso que a minha conduta possa comprometê-la! Ah! Se assim é, sou muito culpado, e com toda a humildade imploro o seu perdão; vou retirar-me e nunca mais...

       Neste momento reparou Genoveva que o mancebo tinha a camisa manchada de sangue.

       – Jesus! – exclamou ela – estará ferido?

       Com efeito a fina camisa de Maurício, que contrastava com a grosseria do seu trajo, estava manchada de sangue.

       – Não é coisa de cuidado, minha senhora; foi um dos contrabandistas que me picou com o punhal.

       Genoveva fez-se muito pálida.

       Passados alguns instantes, pegando na mão do mancebo, disse-lhe:

       – Salvou-me a vida, e eu ia sendo a causa involuntária da sua morte.

       – Tudo dou por bem empregado, visto que a encontrei; e estou certo de que nunca pensou que eu andasse por aqui procurando outra pessoa.

       – Acompanhe-me – disse Genoveva interrompendo-o... – Vou dar-lhe roupa branca. Não quero que apareça assim aos nossos convivas; essa vista afligi-los-ia.

       – Não se incomode – disse Maurício dando um suspiro.

       – Cumpro um dever, e cumpro-o com muito gosto.

       E Genoveva levou Maurício a um quarto elegante e de gosto, como decerto ninguém esperaria encontrar no estabelecimento de um curtidor.

       – Sirva-se do que aqui está – disse ela; – faça de conta que está em sua casa.

       E abrindo as gavetas onde estava a roupa, retirou-se.

       Maurício mudou de camisa e saiu do quarto.

       Dixmer já o esperava.

       –Vamos! Vamos! – disse ele; – a ceia está na mesa; só esperávamos pelo senhor.

 

A ceia

       Quando Maurício entrou com Dixmer e Genoveva na casa de jantar, já a ceia estava na mesa, mas ainda ali não estava nenhum dos convidados.

       Daí a pouco foram entrando; eram seis.

       Quase todos eram moços, de fisionomia agradável e vestiam no rigor da moda.

       Dois ou três usavam carmanholas e barretes vermelhos.

       Dixmer apresentou-lhes Maurício, dizendo-lhes como se chamava e em que se empregava.

       Depois, voltando-se para Maurício, disse:

       – Os que aqui vê são todos amigos, que me ajudam no meu negócio; depois que a revolução nivelou todas as jerarquias, vivemos aqui em perfeita igualdade. Comemos à mesma mesa duas vezes ao dia, e formamos todos uma mesma família. Vamos! Para a mesa! Cidadãos!

       – Então não esperamos pelo Sr. Morand? – disse Genoveva com timidez.

       – Tens razão – respondeu Dixmer.

       Depois, voltando-se para Maurício:

       – O cidadão Morand é meu sócio; tem a seu cargo a escrituração, fazer os pagamentos e a cobrança; por conseqüência, tem muito trabalho, e nem sequer pode estar pronto a horas; vou porém mandar-lhe recado.

       Naquele instante abriu-se a porta e entrou o cidadão Morand.

       Era um homem baixo, de cabelo preto e sobrancelhas muito espessas; os olhos pretos e brilhantes estavam encobertos por uns óculos verdes, semelhantes aos que usam as pessoas que têm a vista cansada.

       Maurício ouviu Morand pronunciar algumas palavras, conheceu logo que era dele a voz suave e imperiosa, que durante a discussão, que se dera sobre a sorte dele, opinara sempre pelos meios suaves.

       Trajava casaca parda com grandes botões, colete de seda branca e tinha uma camisa muito fina, que se divertia em amarrotar algumas vezes, mostrando assim uma mão tão branca e delicada, que Maurício muito se admirou de que ela pudesse ser de um mestre curtidor.

       Assentaram-se todos.

       O cidadão Morand ficou à esquerda de Genoveva, Maurício à direita.

       Dixmer assentou-se defronte da esposa.

       Os outros convivas colocaram-se indistintamente em redor da mesa, que era oblonga.

       A ceia era lauta.

       Dixmer presidia à ceia com a maior franqueza e mostrava apetite de um homem de trabalho.

       Os operários, pelo menos assim se diziam, não lhe ficavam atrás.

       O cidadão Morand, pelo contrário, falava pouco, não comia quase nada e raras vezes bebia vinho.

       Maurício, lembrado sem dúvida das palavras que ouvira, logo sentiu por ele grande simpatia.

       A única coisa que lhe dava que fazer a respeito de Morand, era a idade.

       Parecia-lhe às vezes um homem de vinte e cinco anos, outras vezes afigurava-se-lhe ter quarenta e cinco.

       Dixmer quando se assentou à mesa, julgou conveniente explicar a razão por que ali se encontrava um estranho.

       Fê-lo com ingenuidade e franqueza.

       É verdade que os convidados não pareciam difíceis de contentar, porque satisfez a todos.

       Maurício olhava para ele com admiração.

       – Pela minha honra – dizia consigo o mancebo – custa-me a acreditar o que vejo. É possível que seja este o homem, que correu atrás de mim com os olhos chamejantes, voz ameaçadora e uma clavina na mão?

       Porém, quanto mais ouvia aquela voz suave, pura e harmoniosa, quanto mais olhava para aquele rosto, em que se reflectia a tranqüilidade de uma alma sem remorsos, mais se convencia o mancebo de que uma criatura tão perfeita não era capaz de faltar aos seus deveres, e sentia então certo prazer ao lembrar-se que tanta formosura pertencia só ao bom burguês que ali estava rindo ingenuamente das vulgares chocarrices que dizia.

       Finalmente, começou a falar-se em política, e não podia decerto deixar de ser este o assunto da conversação, numa época, em que a política entrava em tudo.

       De repente, um dos comensais, que até ali estivera calado, perguntou pelas presas do Templo.

       Maurício, sem querer, estremeceu ouvindo a voz do indivíduo, que fizera a pergunta.

       Conheceu que era o homem que optara, pelos meios violentos, que o ferira com a faca, e que depois votara pela morte.

       Contudo, esse indivíduo, que era um honrado curtidor e bom chefe de família, segundo disse Dixmer, logo atraiu a si as simpatias de Maurício pois passou a expender as idéias mais patrióticas, e os princípios mais revolucionários.

       O mancebo dizia que em alguns casos era inclinado às medidas de rigor, que então eram tão usadas e das quais Danton era o herói.

       Maurício, dizia consigo que, se se tivesse achado no caso daquele homem, não teria assassinado o indivíduo suspeito de espião, mas tê-lo-ia largado no jardim e com armas iguais ter-se-ia batido lealmente com ele, como seu adversário, e sem lhe conceder misericórdia.

       Reflectiu porém que seria exigir muito querer que um oficial de curtidor praticasse aquilo que só uma pessoa dos seus sentimentos seria capaz de fazer.

       O tal homem, que optara pelos meios violentos, falou a respeito do Templo e mostrou-se admirado por estar a guarda das presas entregue a um conselho permanente, susceptível de ser peitado, e a alguns membros da municipalidade, cuja fidelidade já por algumas vezes se tentara subornar.

       – Tem razão – replicou Morand – mas devemos confessar que os tais membros da municipalidade têm-se até aqui portado bem provando que são dignos da confiança, que neles tem depositado a nação, e a história há-de mostrar que não foi Robespierre o único homem digno do epíteto de incorruptível.

       – Não há dúvida, não há dúvida – replicou o indivíduo dos meios violentos; – mas o que tem sucedido até aqui, não pode dizer-se que sempre assim sucederá. Aí temos também a guarda nacional; as companhias das diversas secções são chamadas cada uma pela sua vez a fazer serviço no Templo e para lá vão indistintamente: ora diga-me, não será possível existirem numa companhia oito ou dez patuscos desembaraçados que se lembrem uma noite de degolar as sentinelas e de dar fuga aos presos?

       – Está enganado – disse Maurício; – já se demonstrou, cidadão, que esse meio não serve, pois há três semanas tentaram pô-lo em prática e falhou o plano.

       – Mas porque falhou? – disse Morand – porque um dos aristocratas, de que se compunha a patrulha, cometeu a imprudência de tratar por senhor não sei a quem.

       – E também – disse Maurício – que queria mostrar a boa organização da polícia da república, porque já se sabia que Taverney Casa-Vermelha tinha entrado em Paris.

       – Ora essa! – exclamou Dixmer.

       – Sabia-se que o Casa-Vermelha tinha entrado em Paris? – perguntou Morand com indiferença. – E sabiam a maneira como ele havia entrado?

       – Sabia-se com toda a exactidão!

       – Ah! Com os diabos! – disse Morand olhando fixamente para Maurício. – Tenho curiosidade de saber como isso foi, pois até agora nada temos ouvido com certeza a esse respeito. Porém o cidadão, como secretário de uma das principais secções de Paris, deve estar bem informado.

       – Assim é – disse Maurício – e o que vou contar-lhe, é em todos os pontos verdadeiro.

       Os convidados todos, e até a própria Genoveva, pareceram prestar a maior atenção ao que ia dizer o mancebo.

       – Ora pois – disse Maurício – Filipe de Taverney Casa-Vermelha vinha da Vendeia, segundo consta, e havia atravessado toda a França com a costumada felicidade: chegou ainda de dia à barreira de Roule, e esperou fora das portas até às nove horas da noite. Às nove horas, uma mulher disfarçada com trajo de mulher do povo, saiu por aquela barreira e levou a Taverney um uniforme de atirador da guarda nacional; passados uns dez minutos, voltou de braço dado com ele; a sentinela, que a tinha visto sair sozinha, teve algumas suspeitas quando viu que voltava acompanhada. Avisou logo a estação, saiu a guarda, e os dois criminosos, vendo-se perseguidos, refugiaram-se num palácio, por onde se evadiram por outra porta que deitava para os Campos Elísios. Diz-se que uma patrulha partidária dos tiranos esperava por Taverney à esquina da rua Barre-du-Bec; o resto da história já é sabida.

       – Ah! Ah! – disse Morand – isso que acaba de narrar é curiosíssimo.

       – E muito positivo – redargüiu Maurício.

       – Sim, assim parece; mas a mulher, não se sabe o que foi feito dela?

       – Não; sumiu-se e ignora-se completamente quem ela seja.

       O sócio do cidadão Dixmer e o próprio cidadão Dixmer pareceram respirar mais desafogadamente.

       Genoveva enquanto durava a narração do acontecimento, conservara-se pálida, imóvel e muda.

       – Mas – disse o cidadão Morand com a mesma frieza – quem pode asseverar que Taverney Casa-Vermelha formava parte da tal patrulha que causou tamanho reboliço no Templo?

       – Um membro da municipalidade meu amigo, que estava de serviço naquele dia no Templo, foi quem o conheceu.

       – Sabia-lhe então os sinais?

       – Tinha-o visto noutro tempo.

       – E que casta de homem é, quanto ao físico, esse tal Casa-Vermelha? – perguntou Morand.

       – É um homem de vinte e cinco a vinte e seis anos, de pequena estatura, cabelo louro e fisionomia agradável; tem belos olhos e dentes magníficos.

       Seguiu-se um silêncio profundo.

       – Pois bem! – disse Morand; – por que motivo não prendeu o seu amigo da municipalidade o suposto Taverney Casa-Vermelha logo que o conheceu?

       – Em primeiro lugar, porque não sabia que ele estivesse em Paris, e pensou que poderia ser alguém que se parecesse com ele; em segundo lugar, porque o tal meu amigo, é algum tanto frouxo, e como estava em dúvida, fez o que fazem os homens cautelosos e tíbios, deixou-se ficar.

       – Aposto que não procederia como ele, cidadão? – disse Dixmer rindo estrondosamente.

       – Confesso que não – respondeu Maurício; – antes preferia enganar-me do que deixar escapar um homem tão perigoso como Taverney Casa-Vermelha.

       – E que teria feito? – perguntou Genoveva.

       – O que teria feito, cidadã – disse Maurício – oh! Assevero-lhe que não levava muito tempo: mandava fechar todas as portas do Templo: ia direito à patrulha, deitava a mão ao pescoço de Taverney, e dizia-lhe: “Filipe de Taverney Casa-Vermelha, estás preso como traidor à nação”; e uma vez que eu lhe tivesse lançado a mão, dou-lhe a minha palavra que não o largava mais.

       – E depois que teria sucedido? – perguntou Genoveva.

       – Sucedia unicamente que seriam processados tanto ele como os cúmplices, e que a estas horas já teriam sido guilhotinados.

       Genoveva estremeceu, e olhou assustada para Morand.

       Porém este não deu mostras de ter reparado na acção de Genoveva pois acabou de despejar o copo com todo o vagar, e disse:

       – O cidadão Lindey tem razão; é o que deviam ter feito, mas infelizmente não o fizeram.

       – E – perguntou Genoveva – sabe-se o que é feito de Taverney?

       – Não está má pergunta – disse Dixmer – é de crer que não quisesse ficar para ver o fim à função, e percebendo que estava frustrada a tentativa, e provável que saísse logo de Paris e por certo a estas horas, está muito longe.

       – E talvez que até de França – acrescentou Morand com toda a placidez.

       – Nada, nada – disse Maurício.

       – É impossível! Pois teve a imprudência de ficar em Paris?! – exclamou Genoveva.

       – Não arredou daqui pé.

       Esta opinião foi recebida com um movimento geral de admiração.

       – Isso não passa de uma conjectura que fazes, cidadão – disse Morand – e nada mais.

       – Nada, é um facto que assevero.

       – Oh! – disse Genoveva – confesso que custa a acreditar no que diz, cidadão; seria imperdoável tamanha imprudência.

       – A cidadã é mulher, e como tal facilmente compreenderá que haja um motivo que possa muito mais para com um homem como Taverney que todas as considerações de segurança individual.

       – E que motivo será esse, que pode mais do que o receio de perder a vida por uma maneira tão horrível?

       – O que há-de ser, cidadã – disse Maurício – senão o amor?

       – O amor! – repetiu Genoveva.

       – Sem dúvida. Pois não sabia que Filipe de Taverney está namorado de Maria Antonieta?

       Ouviram-se duas ou três risadas de incredulidade, que ressoaram timidamente e como forçadas. Dixmer olhou para Maurício, como procurando ler-lhe no fundo do coração.

       Os olhos de Genoveva umedeceram-se de lágrimas, e Maurício percebeu que um arrepio lhe fizera estremecer o corpo.

       O cidadão Morand entornou o copo de vinho que naquele instante ia levando à boca, e por certo Maurício se teria assustado ao notar-lhe a palidez, se naquela ocasião não tivesse concentrado em Genoveva toda a sua atenção.

       – Está comovida, cidadã? – perguntou Maurício.

       – Não disse há pouco que eu devia compreender isso por ser mulher? Pois assim é, e nós as mulheres, quando vemos uma dedicação semelhante, ainda que seja por uma causa contrária aos nossos princípios, sempre nos enternecemos.

       – E a dedicação de Filipe de Taverney ainda é muito mais meritória do que se pensa – disse Maurício – pois asseveram que só tem queixas da rainha.

       – Sabe que mais, cidadão Lindey? – disse o homem dos meios violentos – acho-o muito indulgente para com o tal Taverney...

       – Senhor! – disse Maurício, empregando, talvez de caso pensado, o tratamento que já não estava em uso – eu estimo os indivíduos de carácter nobre e valoroso, o que não obsta contudo a que me bata contra eles quando os encontro nas fileiras dos meus adversários. Ainda espero encontrar um dia Filipe de Taverney.

       – E... – disse Genoveva.

       – E se o encontrar... lutarei com ele...

       À ceia estava acabada.

       Genoveva deu o exemplo de retirada, levantando-se da mesa.

       A este tempo deu horas o relógio.

       – Meia-noite – disse Morand friamente.

       – Meia-noite! – bradou Maurício – meia-noite já!

       – Aí está uma exclamação que muito gosto me dá – disse Dixmer – pois mostra que não lhe aborreceu a nossa companhia, e faz-me esperar que nos tornaremos a ver. Esta casa que se lhe franqueia é de um bom patriota, e espero que o cidadão em breve conheça que também é de um bom amigo.

       Maurício cumprimentou, e virando-se para Genoveva, perguntou:

       – E a cidadã também dá licença que eu volte?

       – Não só dou licença, mas até lho peço – disse Genoveva.

       E cumprimentando, recolheu ao seu quarto.

       Maurício despediu-se de todos os convidados, cumprimentando mais particularmente Morand que muito lhe agradara, apertou a mão a Dixmer, e retirou-se mais contente do que pesaroso do resultado de tantos acontecimentos diversos por que passara naquela noite.

       – Que intempestivo encontro este! – disse Genoveva depois da retirada de Maurício, desatando a chorar na presença do marido que a acompanhara ao quarto.

       – Não digas tal! O cidadão Maurício Lindey, patriota bem conhecido, secretário de uma secção, puro, estimado e popular, é uma aquisição preciosíssima para um pobre curtidor que tem em casa fazenda de contrabando – respondeu Dixmer sorrindo.

       – Dessa forma, pensa, meu amigo?... – perguntou Genoveva.

       – Penso que é um alvará de patriotismo que nos dá, e um selo de absolvição que ele impõe na nossa casa; e creio que desta noite em diante até o próprio Filipe de Taverney aqui estaria a salvo.

       E Dixmer beijando a mulher na testa com modos mais próprios de pai do que de marido, deixou-a no pavilhão que lhe pertencia exclusivamente, e dirigiu-se para a parte do edifício em que habitava juntamente com os convivas que lhe vimos em volta da mesa.

 

O sapateiro Simão

       Começara o mês de Maio. Um dia claro fazia dilatar os peitos já cansados de respirar os gelados nevoeiros do Inverno, e os raios quentes e vivificantes do Sol davam de chapa sobre as negras muralhas do Templo.

       Os soldados da guarda riam e fumavam junto ao postigo interno, que separa a Torre do jardim.

       Porém as três prisioneiras, apesar de um dia tão lindo, não aceitaram o convite que se lhes fez para descerem a passear no jardim; a rainha, desde a morte do marido, teimava em não sair do seu quarto, para não ter de passar em frente da porta do quarto do segundo andar, que fora habitado pelo rei.

       Desde o fatal dia 21 de Janeiro, quando alguma vez por acaso se lembrava de querer tomar ar, era sempre na plataforma da Torre, cujas ameias haviam sido tapadas com tabuinhas.

       Os guardas nacionais, que estavam de serviço, tinham sido avisados de que a família real tinha licença de sair ao passeio, porém o dia todo passou sem que ela se utilizasse de tal licença.

       Pela volta das cinco horas, um homem veio abaixo e aproximou-se do sargento comandante da guarda.

       – Ah! Ah! És tu, tio Tison? – disse o sargento, que parecia um guarda nacional de génio faceto.

       – Sim, cidadão, sou eu, e trago-te da parte do membro da municipalidade Maurício Lindey, teu amigo, que está lá em cima, esta licença que o conselho do Templo concedeu a minha filha para vir fazer uma visita à mãe esta tarde.

       – E vais-te embora na ocasião em que tua filha está para chegar, pai desumano? – disse o sargento, fazendo um gesto de fingida piedade.

       – Ah! Cidadão sargento, não é por minha vontade que saio. Esperava poder ver também a minha pobre filha, de quem estou separado há dois meses, e abraçá-la... Oh! Bem do coração, como um pai abraça a filha. Mas qual história! O serviço, o endiabrado serviço obriga-me a sair. Tenho de ir fazer o meu relatório perante o município. Lá está à porta uma sege e dois soldados de polícia à minha espera; e logo havia de ser na ocasião em que a minha Sofia está para chegar!

       – Infeliz pai! – disse o sargento.

      

                       Desta sorte o amor da pátria querida

                       Do sangue em ti sufoca a rija voz;

                       Esta, bradando geme, aquele implora.

                       Imolando ao dever...

      

       – Ouve cá, Tison, se acaso encontrares lá por fora uma consoante à voz, faze favor de ma trazer, que me está fazendo muita falta.

       – E tu, cidadão sargento, quando minha filha chegar para visitar a sua pobre mãe, que está morta de saudades, deixa-la passar?

       – A ordem é formal – respondeu o sargento, no qual o leitor conheceu por certo o nosso amigo Lorin – nada tenho pois a objectar: logo que tua filha aqui se apresente, deixá-la-ei passar.

       – Muito obrigado, valente Termópila, muito obrigado! – disse Tison.

       E saiu para ir apresentar o seu relatório perante o município, rosnando por entre os dentes:

       – Ah! Que felicidade vai gozar hoje minha pobre mulher!

       – Sabes que mais, sargento – disse um guarda nacional, que vira sair Tison e percebera muito distintamente as palavras que ele proferira; – sempre há coisas que fazem arrepiar.

       – Quais são essas coisas, cidadão Devaux? – perguntou Lorin.

       – Uma delas – respondeu o compassivo guarda nacional – é ver aquele homem de tão duro aspecto, aquele coração de bronze, aquele desapiedado guardião da rainha, a chorar de prazer e de pena ao mesmo tempo por se lembrar que a mulher há-de ver a filha, e que lhe é vedada essa fortuna! São coisas, meu sargento, em que a gente não pode demorar muito o pensamento, porque na realidade fazem entristecer.

       – Não há dúvida, e bem se vê que o homem de quem falas, e que daqui saiu tão pesaroso, não pensa em certas coisas.

       – Em que querias tu que ele pensasse?

       – Em quê? Devia lembrar-se que também há três meses que a mulher que ele atormenta sem dó está privada da vista do filho. Mas uns lamentam a própria infelicidade, esquecendo-lhes a dos outros. Verdade seja que a mulher que ele está encarregado de guardar foi a rainha – continuou o sargento com certo modo irónico – e uma rainha não tem jus a ser tratada com as mesmas atenções que são devidas à mulher de qualquer jornaleiro...

       – Contudo, deves confessar que são coisas muito tristes – disse Devaux.

       – Tristes, sim, mas necessárias – respondeu Lorin – e o melhor será, como tu disseste, não demorar nelas o pensamento.

       E em seguida começou a cantarolar:

      

                       Ontem a formosa Nize,

                       Num bosque ameno e frondoso,

                       Solitária caminhava,

                       Com garbo gentil, donoso...

      

       Lorin estava neste ponto da sua canção bucólica, quando de repente se ouviu um grande motim na direcção do lado esquerdo da guarda: eram pragas, ameaças e choros.

       – Que bulha é aquela? – perguntou Devaux.

       – Parece voz de criança – respondeu Lorin aplicando o ouvido.

       – E com efeito – replicou o guarda nacional – é a voz de algum pobre rapazinho em quem estão batendo: irra! Este serviço não presta para quem tem filhos.

       – Então cantas ou não? – disse uma voz rouca, que parecia de homem embriagado.

       E logo a mesma voz começou a cantar, como que para dar exemplo.

      

                       Jurara madame Veto,

                       Degolar Paris em peso...

      

       – Não – respondeu a criança – não quero cantar.

       – Então cantas?

       E a mesma voz repetiu:

      

                       Jurara madame Veto...

      

       – Não, respondeu a criança, não, e não.

       – Ah! Meu velhaquete– disse a mesma voz roufenha.

       Ouviu-se o silvo de uma correia no ar, e logo um grito de dor, que soltou a criança.

       – Ah! Com todos os diabos! – disse Lorin – é o infame Simão que está batendo no pequeno Capeto.

       Alguns dos guardas nacionais encolheram os ombros, dois ou três fingiram rir, Devaux ergueu-se e afastou-se.

       – Bem dizia eu – resmungou consigo – que quem é pai não deve entrar de serviço aqui.

       De repente, abriu-se uma porta baixa, e o príncipe, fugindo ao açoute do seu guarda, saiu a correr pelo pátio fora: porém atrás dele veio zunindo um objecto pesado, que resvalou nas lajes e lhe deu numa perna.

       – Ai! – gritou o menino.

       E com a força da pancada, caiu.

       – Traze-me já a minha forma, mostrengo, quando não...

       O menino levantou-se e abanou a cabeça como para dizer que não.

       – Ah! Ele é isso... – gritou a mesma voz – espera, que eu já te digo.

       E o sapateiro Simão desembocou do seu cubículo como uma fera do seu covil.

       – Olá! Olá! – disse Lorin franzindo o sobrolho – aonde vamos nós com tanta pressa, mestre Simão?

       – Vou castigar aquele lobinho – respondeu o remendão.

       – Castigá-lo, por que motivo? – perguntou Lorin.

       – Por que motivo?

       – Sim.

       – Porque o garoto não quer de modo nenhum cantar como bom patriota, nem trabalhar como bom cidadão.

       – E então! Que tens tu com isso? – respondeu Lorin; – foi porventura para lhe ensinares a cantar que a nação te confiou o Capeto?

       – Ora essa! – disse Simão muito admirado; – peço-te que me digas, cidadão sargento, para que te metes no que não é da tua conta.

       – É da minha conta, sim, porque sou um homem de bem! E todo o homem que tem sentimentos e vê bater numa criança deve opor-se a que lhe batam.

       – Ora! É filho do tirano.

       – Mas é uma criança, e não teve parte nos crimes do pai; é uma criança sobre quem não pesa culpa alguma e por conseqüência não há motivo nenhum para a castigar.

       – E eu digo-te que mo deram para fazer dele o que eu quisesse. Quero que cante a cantiga de Senhora Veto, e há-de aprendê-la.

       – E não sabes, meu biltre – disse Lorin – que Senhora Veto é a alcunha que puseram à mãe dessa criança; o que dirias tu se alguém quisesse obrigar um filho teu a cantar que és um canalha?

       – Eu! – berrou Simão – ah! Malvado sargento aristocrata.

       – Está bom! Nada de invectivas – disse Lorin – eu não sou o Capeto... Não é a mim que tu me hás-de fazer cantar por força.

       – Hei-de fazer-te encarcerar, malvado ex-fidalgo.

       – Tu – disse Lorin – fazer-me encarcerar a mim? Pois vê se consegues fazer encarcerar um Termópila.

       – Bem, bem, quem viver verá; entretanto, Capeto, apanha a forma e vem fazer o teu sapato, senão...

       – E eu – exclamou Lorin, empalidecendo de raiva, e adiantando-se para ele com os punhos fechados e os dentes a ranger – digo-te que não há-de apanhar a forma, nem há-de fazer sapatos, percebes, desavergonhado?

       – Sim, sim, bem vejo que tens um grande sabre ao lado, mas tenho tanto medo dele como de ti. Puxa por ele se te atreves, e verás.

       – Oh! Que raiva – gritou Lorin encolerizado.

       Naquele momento entravam duas mulheres no pátio: uma delas tinha na mão um papel, e dirigiu-se à sentinela.

       – Meu sargento – gritou a sentinela – é a filha de Tison, que pretende falar à mãe.

       – Deixa-a passar que tem licença do conselho do Templo – respondeu Lorin sem se tirar donde estava, com receio de que, voltando as costas ao sapateiro, este aproveitasse a ocasião para bater no menino.

       A sentinela deixou passar as duas mulheres; porém ainda bem não tinham subido quatro degraus da sombria escada, deram com Maurício Lindey, que descia a passear um instante pelo pátio.

       O dia já ia escurecendo, de sorte que não lhe era possível distinguir-lhes as feições.

       Maurício fê-las parar.

       – Quem são cidadãs – perguntou ele – e que pretendem?

       – Sou Sofia Tison – disse uma das mulheres. – Concederam-me licença para visitar minha mãe, e venho vê-la.

       – Sim – disse Maurício; – mas a licença foi só para ti, cidadã.

       – Trouxe esta amiga comigo para me acompanhar no meio de tantos soldados.

       – Muito bem; a tua amiga não pode subir.

       – Como quiser, cidadão – disse Sofia Tison apertando ao mesmo tempo a mão à amiga, a qual, arrumada de encontro à parede, parecia tomada de susto e perturbada.

       – Cidadãos sentinelas – bradou Maurício levantando a cabeça e dirigindo a palavra aos soldados que estavam colocados no patamar de cada um dos andares – deixem passar a cidadã Tison unicamente. A amiga que vem com ela esperará na escada; tomem sentido que ninguém a insulte.

       – Sim, cidadão – responderam as sentinelas.

       – Podem subir – disse Maurício.

       As duas mulheres passaram.

       Maurício saltou os quatro ou cinco degraus que ainda tinha a descer e saiu apressadamente para o pátio.

       – Que temos cá por baixo – disse ele aos guardas nacionais – e que bulha é esta? Ouvem-se gritos de criança tão agudos que chegam até à saleta das presas.

       Simão, acostumado a tratar com os membros da municipalidade, pensou, quando viu Maurício, que encontraria nele apoio, e por isso, respondeu:

       – Queres saber o que é? É este traidor, este aristocrata, este ex-fidalgo, que se opõe a que dê uma sova no Capeto.

       E designou Lorin com o punho fechado.

       – Sim, com os demónios, oponho-me – disse Lorin desembainhando o terçado – e se tornas a chamar-me outra vez ex-fidalgo, aristocrata ou traidor, enfio-te de lado a lado.

       – Que é isso? Ameaças-me! – gritou Simão; – oh! Da guarda! Oh! Da guarda!

       – A guarda sou eu – disse Lorin; – e dou-te de conselho que não me chames, porque se eu me chegar a ti, é para te dar cabo da pele.

       – Acode-me, cidadão municipal, acode-me: bradou Simão já seriamente assustado das ameaças de Lorin.

       – O sargento tem razão – respondeu friamente o membro da municipalidade, que Simão chamava em seu socorro; – tu és um cobarde que desacreditas a nação batendo numa criança!

       – E se tu soubesses o motivo por que ele lhe dá, Maurício! É porque o menino se nega a cantar a Senhora Veto; por não querer um filho insultar a mãe.

       – Que perverso! – disse Maurício.

       – Também tu? – exclamou Simão; – já vejo que estou rodeado de traidores.

       – Ah! Grande maroto – disse o membro da municipalidade, agarrando Simão pelas goelas e tirando-lhe a correia da mão; – vê lá se podes provar que Maurício Lindey é um traidor.

       E dizendo isto, fustigou os ombros do remendão com o tirapé.

       – Fico-lhe obrigado, senhor – disse o menino que havia presenciado estoicamente esta cena; – porém quem há-de pagar as custas sempre hei-de ser eu.

       – Anda cá, Capeto – disse Lorin; – anda cá, meu menino, se ele tornar a bater-te, chama por nós, que lá iremos castigar aquele carrasco. Vamos! Vamos! Meu Capetozinho, volta para a Torre.

       – Digam-me, vós que me protegeis, por que razão me chamais Capeto? – disse o menino; – sabeis muito bem que o meu nome não é Capeto.

       – Como assim! Pois não é o teu nome? – perguntou Lorin; – como te chamas tu?

       – Chamo-me Luís Carlos de Bourbon. Capeto era o nome de um dos meus antepassados. Eu sei a história de França; foi meu pai quem ma ensinou.

       – E queres tu obrigar a fazer chinelos a uma criança a quem um rei ensinou a história de França! – exclamou Lorin. – Que lembrança!

       – Oh! Podes ir descansado – disse Maurício para o menino – que eu hei-de dar conta de quanto se passou.

       – E eu também – disse Simão. – E direi por exemplo, que em lugar de uma única mulher, a quem se havia concedido licença para entrar na Torre, deixaste passar duas.

       Naquele mesmo instante, saíam efectivamente da torre as duas mulheres e Maurício correu para elas.

       – Então, cidadã – disse ele, dirigindo-se à que lhe ficava mais próxima – viste tua mãe?

       Sofia Tison interpôs-se imediatamente entre o membro da municipalidade e a sua companheira.

       – Sim, cidadão, muito obrigada – respondeu ela.

       Maurício tinha grande desejo de ver a amiga da rapariga, ou pelo menos de ouvir-lhe a voz; porém estava embuçada num manto de capuz e parecia resolvida a não dizer palavra; até lhe pareceu que tremia.

       Tanto receio causou desconfiança a Maurício.

       Voltou precipitadamente acima, e apenas entrou na primeira sala, viu pela porta de vidraça que a rainha estava metendo na algibeira uma coisa, que lhe pareceu um bilhete.

       – Oh! Oh! – disse ele consigo – dar-se-á o caso que me lograssem?

       Chamou pelo colega.

       – Cidadão Agrícola – disse ele – entra no quarto de Maria Antonieta e não a percas de vista.

       – Olé! – exclamou o membro da municipalidade – pois então...?

       – Entra já, repito, e sem demora de um instante, de um segundo sequer.

       O membro da municipalidade entrou no quarto da rainha.

       – Chama a mulher de Tison – disse Maurício para um guarda nacional.

       Não eram passados cinco minutos quando chegou a mulher de Tison radiante de alegria.

       – Estive com minha filha – disse ela.

       – Onde? – perguntou Maurício.

       – Aqui mesmo, nesta ante-sala.

       – Muito bem. E tua filha não te pediu que a deixasses falar à Austríaca?

       – Não.

       – Não entrou no quarto dela?

       – Não.

       – E enquanto tu estiveste falando com tua filha não saiu pessoa alguma do quarto das presas?

       – Como querias que eu reparasse! Só tinha olhos para ver a minha filha, de quem estava separada há dois meses.

       – Vê se te lembras...

       – Ah! Sim, agora me recordo...

       – De quê?

       – A menina saiu.

       – Quem, a Maria Teresa?

       – Sim.

       – E falou com tua filha?

       – Não.

       – E não apanhou coisa nenhuma do chão?

       – Quem, minha filha?

       – Não, a filha de Maria Antonieta.

       – Apanhou sim, o lenço que tinha deixado cair.

       – Ah! Desgraçada! – exclamou Maurício.

       E lançando mão da corda de um sino, tocou apressadamente.

 

O bilhete

       Os outros dois membros da municipalidade de serviço subiram imediatamente. Vinham acompanhados de um destacamento da guarda.

       Fecharam todas as portas, e colocaram duas sentinelas à saída de cada um dos quartos.

       – Que pretende, senhor? – disse a rainha para Maurício logo que entrou; – estava para me ir deitar haverá coisa de cinco minutos, quando de repente o cidadão municipal (designando Agrícola) entrou precipitadamente no meu quarto sem me dizer sequer ao que vinha.

       – Minha senhora – disse Maurício cortejando – o meu colega nada podia dizer-lhe, porque o negócio é unicamente comigo.

       – Com o senhor? – perguntou Maria Antonieta olhando admirada para Maurício, cujas boas maneiras a haviam de alguma sorte cativado; – então que deseja?

       – Ora, o que é que desejo? Que faça o favor de entregar-me o bilhete que estava escondendo quando eu entrei na saleta.

       A princesa real e a princesa Isabel estremeceram; a rainha tornou-se muito pálida.

       – Está enganado, senhor – respondeu ela – eu nada escondi.

       – Mentes, Austríaca! – bradou Agrícola.

       Maurício agarrou com vivacidade no braço do seu colega.

       – Devagar, meu caro colega – disse ele – deixa que eu fale com a cidadã. Sabes que tenho algum jeito para letrado.

       – Pois fala tu; mas não a poupes, com todos os diabos!

       – Escondeste um bilhete, cidadã – disse Maurício com severidade; – é preciso entregá-lo.

       – Mas que bilhete?

       – O que trouxe a filha de Tison, e que a cidadã, sua filha (Maurício apontou para a jovem princesa), apanhou quando deixou cair o lenço.

       As três mulheres olharam espavoridas umas para as outras.

       – Ah! Senhor – disse a rainha – isto ultrapassa os limites da tirania; e com mulheres! Com mulheres!

       – Não confundamos as coisas – disse Maurício com firmeza. – Nós não somos nem juízes, nem carrascos, somos apenas uns vigias, isto é, concidadãos seus, a quem foi incumbido guardá-las. Recebemos para isso instruções, e faltar a elas seria uma traição. Cidadã, peço-lhe que entregue o bilhete que escondeu.

       – Senhores – disse a rainha com altivez – já que são nossos vigias, dêem a competente busca e não nos deixem dormir também esta noite.

       – Deus nos livre de pôr as mãos em mulheres. Vou mandar avisar o município e esperaremos as ordens. Contudo não se deitarão, terão a bondade de dormir em cadeiras de braços, e nós aqui ficaremos de guarda... Depois, se for preciso, começarão as pesquisas.

       – O que foi que sucedeu? – perguntou a Tison, metendo pela janela a cara espantada.

       – Sucedeu que tu, cidadã, serviste há pouco de capa a uma traição e assim te privaste de tornar a ver tua filha.

       – De ver a minha filha... Que estás tu dizendo, cidadão? – perguntou a Tison, sem perceber ainda claramente o motivo por que não tornaria a ver a filha.

       – Digo que tua filha não veio para te visitar, mas sim para trazer uma carta à cidadã Capeto, e que não há-de tornar a entrar aqui.

       – Mas se ela aqui não voltar, não tornarei mais a abraçá-la, visto que nos é proibido sair.

       – Desta vez não te poderás queixar de ninguém porque a culpa foi tua – respondeu Maurício.

       – Oh! – gritou a pobre mãe – por minha culpa! – que estás dizendo? Pois foi por minha culpa? Não sucedeu mal nenhum, sou eu quem o afirmo. Oh! Se eu pensasse que tinha havido alguma novidade, mal de ti, Antonieta, que bem caro mas pagarias!

       E chegada ao auge da desesperação fez um gesto de ameaça para a rainha.

       – Não ameaces – disse Maurício; – vê antes se consegues o que nós pretendemos por meios persuasórios; pois tu és mulher, e a cidadã Antonieta, que também é mãe, se compadecerá certamente das penas de uma mãe. Olha que amanhã tua filha será presa, e logo encarcerada... E depois, se se descobrir alguma coisa (e tu bem sabes que sempre se descobre alguma coisa quando há bons desejos), está perdida, ela e a sua companheira.

       A Tison, cujo susto aumentava a cada palavra que proferia Maurício, olhou para a rainha com semblante desvairado.

       – Ouves, Antonieta!... A minha filha!... A ti deverei a perda da minha filha.

       A rainha pareceu assustar-se também, não das ameaças, mas sim da desesperação da sua carcereira.

       – Venha, Srª. Tison – disse ela – tenho que dizer-lhe.

       – Olá! Não queremos suborno! – exclamou o colega de Maurício; – não somos suspeitos, com os demónios! Fale perante a municipalidade! Sempre perante a municipalidade!

       – Deixe-lhe fazer a vontade, cidadão Agrícola – disse Maurício ao ouvido do seu companheiro – contanto que alcancemos o nosso fim, pouco importam os meios.

       – Dizes bem cidadão Maurício... mas...

       – Vamos para trás da porta de vidraça, cidadão Agrícola e se queres um conselho, voltemos as costas; estou certo de que a pessoa para com quem vamos ter esta atenção não nos fará arrepender do nosso procedimento.

       A rainha ouviu estas palavras, que de propósito haviam sido proferidas de maneira que fossem percebidas, e olhou agradecida para o mancebo.

       Maurício voltou as costas com indiferença, e foi colocar-se pela parte de fora da porta de vidraça. Agrícola acompanhou-o.

       – Vês aquela mulher que além está? – disse para Agrícola; – como rainha, é uma grande criminosa; como mulher tem uma alma grande e nobre. Sempre é bom despedaçar as coroas, porque o infortúnio purifica...

       – Com mil diabos, que bem que tu falas, cidadão Maurício – respondeu Agrícola. – Gosto de vos ouvir falar, tanto a ti como ao teu amigo Lorin. Isso que disseste agora também são versos?

       Maurício sorriu.

       Durante esta conversa, a cena que Maurício antevira ocorria pela parte de dentro da porta de vidraça.

       A Tison aproximara-se da rainha.

       – Senhora – lhe disse a rainha – o estado de desesperação em que a vejo despedaça-me o coração; não quero privá-la da presença de sua filha, sei quanto isso custa; porém, deve reflectir que se fizer o que exigem aqueles homens, pode muito bem ser que ocasione igualmente a perda dela.

       – Faça o que eles dizem! – bradou a mulher de Tison – faça o que eles dizem!

       – Mas espere, senhora, deixe ao menos que lhe diga de que se trata.

       – De que se trata? – perguntou a carcereira com rudeza.

       – Sua filha trouxe consigo uma amiga.

       – Sim, uma costureira como ela; não quis vir só com medo dos soldados.

       – A amiga de sua filha tinha-lhe entregado um bilhete; a sua filha deixou-o cair, a Maria passava por acaso e apanhou-o. É provavelmente um papel insignificantíssimo, porém gente mal intencionada poder-lhe-á descobrir algum sentido. Não ouviu dizer ao membro da municipalidade que sempre se descobre alguma coisa quando há bons desejos?

       – E depois? E depois?

       – E depois, mais nada: quer que eu entregue o papel; exige que eu sacrifique um amigo, quando tal sacrifício não lhe restituirá talvez a sua filha?

       – Faça o que eles dizem! – gritou a mulher – faça o que eles dizem!

       – Mas olhe que o papel pode comprometer a sua filha – disse a rainha – repare no que lhe estou dizendo!

       – A minha filha é como eu, boa patriota – bradou com fúria. – Graças a Deus! Os Tisons são bem conhecidos; faça o que eles dizem.

       – Meu Deus! – exclamou a rainha – quanto eu desejaria poder convencê-la!

       – Minha filha! Quero que me seja restituída a minha filha! – replicou a Tison batendo com o pé no Chão. – Dá-me o papel, Antonieta, dá-me o papel!

       – Aqui está, senhora.

       E dizendo isto entregou a rainha à miserável criatura um papel, que ela agitou alegremente no ar gritando:

       – Venham, venham, cidadãos da municipalidade! Aqui está o papel! Tomem-no e restituam-me minha filha.

       – Sacrificaste os nossos amigos, minha irmã – disse a princesa Isabel.

       – Não, minha irmã – respondeu a rainha com tristeza – as sacrificadas somos nós unicamente. Aquele papel não compromete ninguém.

       Maurício e o seu colega acudiram aos gritos da Tison, que lhes entregou logo o bilhete. Abriram-no e leram o seguinte:

      

       “Para o lado do oriente, ainda existe um amigo”.

      

       Maurício sobressaltou-se apenas correu a vista pelo papel.

       Parecia conhecer a letra.

       – Oh! Meu Deus – pensou ele – será a letra de Genoveva? Mas não; é impossível, estou louco! Parece-se com a dela, não há dúvida; mas que relações poderiam existir entre a rainha e Genoveva?

       Voltou-se e viu que Maria Antonieta estava olhando para ele. A Tison procurava ansiosamente ler a sua sentença nos olhos de Maurício.

       – Acabas de praticar uma boa acção – disse ele para a Tison: – e vós, cidadã, uma bela acção – continuou dirigindo-se à rainha.

       – Pois senhor, se assim é – respondeu Maria Antonieta – siga o senhor o meu exemplo, queime esse papel, e fará um acto de caridade.

       – Estás brincando, Austríaca – disse Agrícola; – queimar esse papel que poderá servir talvez para apanharmos uma ninhada inteira de aristocratas; estás enganada.

       – E o melhor será queimá-lo com efeito – disse a Tison – porque pode servir de grande comprometimento para minha filha.

       – Não há dúvida, para tua filha, e para os mais implicados – disse Agrícola tirando das mãos de Maurício o papel, que este decerto teria queimado se porventura não estivesse acompanhado.

       Dali a dez minutos foi o bilhete depositado sobre o bufete dos membros da municipalidade, os quais passaram imediatamente a abri-lo e a fazer-lhe comentários.

       – “Para o lado do oriente ainda existe um amigo!” – disse uma voz – que significa isto?

       – A coisa é bem clara – respondeu um, que tinha presunção de saber geografia; – para o lado do oriente, é erro de ortografia; quiseram pôr para o lado de Lorient, que é uma vila pequena da Bretanha, situada entre Vannes e Quimper. Sou de voto que se lance fogo à tal vila, se com efeito ainda encerra em si aristocratas amigos da Austríaca.

       – E o caso é tanto mais perigoso – disse outro – porquanto, sendo Lorient um porto de mar, presta-se a servir de ponto de comunicação com a Inglaterra.

       – Eu proponho – disse um terceiro – que se nomeie uma comissão para ir a Lorient tirar uma devassa.

       Esta moção provocou um sorriso na minoria, e inflamou o zelo da maioria; decretaram logo que seria mandada imediatamente uma comissão a Lorient para vigiar os aristocratas.

       Maurício tinha tido notícia da deliberação.

       – Não sei onde será o oriente de que se trata – pensou ele consigo – mas do que eu tenho toda a certeza é que para o lado da Bretanha não fica ele.

       No dia seguinte a rainha, que, como já dissemos, não descia ao jardim para não passar em frente do quarto onde o marido estivera encarcerado, pediu licença para subir à plataforma da torre, a tomar ar em companhia da filha e da princesa.

       A licença foi concedida imediatamente, porém logo após a rainha Maurício subiu também, e chegando acima, parou encoberto com uma espécie de guarita, que servia para resguardar a saída da escada, e ali esperou escondido o resultado do bilhete que apreendera na véspera.

       A rainha começou por passear de um para outro lado indiferentemente com a princesa Isabel e a filha; porém, passado um instante, parou, ao passo que as duas princesas continuaram o seu passeio, e voltando-se para leste olhou atentamente para uma casa, em cujas janelas se divisavam várias pessoas, e entre elas uma, que tinha na mão um lenço branco.

       Maurício puxou por um óculo que trazia na algibeira, e enquanto o estava graduando, a rainha fez um aceno, como para fazer entender aos indivíduos que estavam na janela que se tirassem para dentro.

       Contudo Maurício pôde observar uma cabeça de homem, de cabelos louros e tez pálida, que havia cortejado a rainha com todo o respeito e humildade.

       Por detrás desse homem, estava uma mulher meio encoberta com o vulto dele.

       Maurício assestou-lhe o óculo, e parecendo-lhe ter conhecido as feições de Genoveva, fez involuntariamente um movimento, que o descobriu.

       No mesmo momento a mulher, que também tinha na mão um óculo, retirou-se precipitadamente, levando consigo o mancebo.

       Seria na realidade Genoveva?

       Acaso conhecera ela também Maurício?

       Ou ter-se-iam retirado os dois curiosos unicamente em obediência ao aceno que lhes fizera a rainha?

       Maurício esperou um instante, para ver se o mancebo e a rapariga tornavam a aparecer.

       Mas como visse que ninguém assomava novamente à janela, recomendou a maior vigilância ao seu colega Agrícola, desceu apressadamente a escada, e foi postar-se de atalaia à esquina da rua de Portefoix, a ver se saíam os curiosos que avistara à janela.

       Porém, foi debalde, porque ninguém apareceu.

       Maurício então, não podendo por mais tempo resistir à tentação de esclarecer as dúvidas, que fizera nascer em seu espírito a teima da companheira da rapariga Tison em não querer ser vista, em não falar, deliberou-se a ir à rua Velha de Saint-Jacques e lá se apresentou efectivamente com a mente desvairada pelas desconfianças que o haviam assaltado.

       Quando entrou, estava Genoveva vestida com um penteador branco e assentada debaixo de um caramanchão de jasmineiros, onde tinha por costume almoçar.

       Deu afectuosamente, como sempre, os bons dias a Maurício, e convidou-o a tomar uma chávena de chocolate na sua companhia.

       Dixmer que chegou entretanto, mostrou a maior satisfação por ver Maurício a hora tão inesperada, e nem lhe deu tempo para tomar a chávena de chocolate que aceitara, pois entusiasmado como sempre pelo seu negócio, exigiu que o seu amigo secretário da secção Lepelletier o acompanhasse num giro pelas oficinas, ao que Maurício anuiu.

       – Quero comunicar-lhe, meu querido Maurício – disse Dixmer enfiando o braço no do mancebo e conduzindo-o consigo – uma notícia da maior importância.

       – Política? – perguntou Maurício, sempre preocupado com a mesma idéia.

       – Oh! Meu caro cidadão – respondeu Dixmer rindo – julga porventura que tratemos de política aqui? Não; é uma notícia puramente industrial, graças a Deus! O meu honrado amigo Morand, que é, como já lhe disse, um químico distintíssimo, descobriu finalmente uma receita para dar ao marroquim uma cor vermelha tal como ainda não houve até hoje, por isso que é inalterável. É essa preparação que eu quero mostrar-lhe. E demais terá ocasião de ver trabalhar Morand, que é um artista de mérito em toda a extensão da palavra.

       Maurício não percebia muito bem como era possível ser artista de marroquim vermelho; contudo aceitou o convite e acompanhou Dixmer: atravessaram as oficinas, e chegados a um quarto mais reservado, viu o cidadão Morand entregue à sua tarefa.

       Estava em trajo de trabalho, com os óculos verdes do costume e parecia na realidade ocupado com todos os seus sentidos em transformar para vermelho a cor amarelada de uma pele de carneiro.

       Ao dizer de Dixmer estava-se regozijando num banho de cochonilha.

       Cumprimentou Maurício com um aceno de cabeça, sem interromper o seu trabalho.

       – Então, cidadão Morand – perguntou Dixmer ao seu sócio – o que me diz?

       – Este processo, só por si, pode dar-nos de lucro cem libras por ano – disse Morand. – Mas já lá vão oito dias que não prego olho, os ácidos têm-me estragado a vista.

       Maurício deixou Dixmer com Morand e voltou para onde estava Genoveva, dizendo consigo:

       – Sempre é forçoso confessar que este cargo de membro da municipalidade seria capaz de embrutecer um herói. Oito dias passados no Templo são o suficiente para qualquer se chegar a persuadir que é aristocrata e ir denunciar-se a si próprio. Bom Dixmer! Honrado Morand! Bela Genoveva! Como foi possível que desconfiasse de vós um único instante?

       Genoveva estava à espera de Maurício, e o seu sorriso tão suave fez desvanecer completamente todas as suspeitas, que efectivamente concebera.

       Mostrou-lhe como sempre, o mesmo modo dócil, afável e encantador.

       As horas que Maurício passava ao lado de Genoveva eram as únicas em que vivia realmente.

       Em todo o resto do tempo estava entregue aos acessos da febre a que se poderia dar o nome de febre de 1793, que trazia Paris dividida em dois campos e tornava a existência um combate de cada hora.

       Pela volta do meio-dia, despediu-se de Genoveva e regressou ao Templo.

       No fim da rua de Saint-Avoye encontrou Lorin que saía da guarda; ia de cerra-fila ao oficial, mas saiu da forma e veio ter com Maurício, em cujo semblante vinha impressa ainda a felicidade que sempre lhe causava a vista de Genoveva.

       – Ah! – disse Lorin, apertando com cordialidade a mão do amigo:

      

                       A languidez ocultas, mas em vão,

                       Conheço o que desejas – que deliras; –

                       O silêncio tu guardas, mas suspiras.

                       Tens o tirano amor no coração.

      

       Maurício levou a mão à algibeira para procurar a chave.

       Era o sistema que havia adoptado para pôr termo às dissertações poéticas do amigo.

       Porém este percebeu o movimento e fugiu rindo.

       – É verdade! – disse Lorin, voltando atrás depois de ter dado alguns passos – tu ainda tens mais três dias de serviço no Templo. Recomendo à tua protecção o pequenito Capeto.

 

Amor

       Ao cabo de algum tempo Maurício encontrava-se muito feliz e muito infeliz; sempre isso sucede no princípio de uma grande paixão.

       Os trabalhos diários da secção Lepelletier, as visitas à noite à rua Velha de Saint-Jacques e algumas sessões do clube dos Termópilas, tais eram as suas ocupações habituais.

       Não desconhecia contudo que o resultado do costume que tomara de ver Genoveva todas as noites era ver-se entregue a um amor sem esperança.

       Genoveva era uma mulher meiga e franca na aparência destas que apertam sem dificuldade a mão de um amigo, e lhe aproximam a testa dos lábios com a confiança de uma irmã, ou com a ignorância de uma virgem, mas para quem as palavras de amor soam como se fossem blasfémias, e os desejos materiais parecem um sacrilégio inaudito.

       Genoveva colocada no meio das flores, que cultivava e a igualavam em frescura e fragrância, separada do marido e inteiramente alheia a quanto dizia respeito aos trabalhos em que ele se ocupava, tornara-se para Maurício um enigma vivo, cuja significação ele não se atrevia a indagar.

       Uma tarde, tendo ficado como de costume em companhia dela, e estando ambos assentados ao pé da mesma janela por onde entrara uma noite tão estrepitosamente, Maurício depois de largo silêncio, durante o qual Genoveva contemplava atentamente uma estrela fulgurante que assomara no firmamento azulado, abalançou-se a perguntar-lhe por que motivo, sendo tão moça ainda, se achava ligada a um homem que já havia passado o meridiano da vida, e que bem dava a conhecer ter sido de educação e nascimento vulgares; por que razão, tendo maneiras tão elegantes e um génio tão poético, estava casada com um sujeito, que parecia dar toda a sua atenção unicamente ao trabalho de pesar, estender e tingir as peles em que negociava.

       – E por que razão finalmente – prosseguiu Maurício – vejo eu na casa de um mestre curtidor esta harpa, este piano e estas pinturas, que, segundo me confessou, são obra sua? Como se acham aqui reunidos todos estes atributos da aristocracia, que detesto noutras mulheres, mas que me parecem adoráveis na senhora?

       Genoveva dirigiu para Maurício um olhar cheio de candura.

       – Agradeço-lhe – disse ela – a pergunta que me faz, pois mostra que é um homem delicado, e que nunca procurou indagar coisa alguma a tal respeito, o que me tem feito admirar.

       – Nunca, minha senhora – respondeu Maurício. – Tenho um amigo que me é afeiçoado, que daria a vida por mim se preciso fosse; tenho cem camaradas, sempre prontos a seguir-me aonde eu quiser conduzi-los; mas quando se trata de uma mulher, e especialmente de uma mulher como Genoveva, só do meu coração confio semelhante segredo.

       – Agradeço-lhe Maurício – respondeu ela. – Dir-lhe-ei pois, eu mesma, tudo quanto deseja saber.

       – Primeiro que tudo qual era o seu apelido antes de casada?

       Genoveva percebeu que era o egoísmo do amor que motivara esta pergunta e sorriu.

       – Genoveva du Treilly – respondeu ela.

       Maurício repetiu:

       – Genoveva du Treilly.

       – Minha família – prosseguiu Genoveva – ficara sem fortuna depois da guerra da América, em que tomaram parte meu pai e meu irmão mais velho.

       – Eram nobres ambos? – perguntou Maurício.

       – Não, não – respondeu Genoveva corando.

       – Disse-me, todavia que o seu apelido em solteira era Genoveva du Treilly.

       – Sem a partícula du, Sr. Maurício; minha família era rica, mas não pertencia de maneira alguma à classe da nobreza.

       – Vejo que desconfia de mim – disse o mancebo rindo.

       – Oh! Não, não – replicou Genoveva. – Meu pai, enquanto esteve na América, travou amizade com o pai do Sr. Morand; o Sr. Dixmer era quem tratava dos negócios do Sr. Morand. Este, vendo a nossa casa arruinada e sabendo que o Sr. Dixmer possuía uma fortuna independente, apresentou-o a meu pai que mo apresentou em seguida a mim. Conheci que o casamento já estava tratado, e entendi que era esse o desejo da minha família; não tinha então, nem havia sentido nunca amor por pessoa nenhuma; aceitei. Há já três anos que estou casada com Dixmer, e devo confessar-lhe que durante esses três anos, a conduta de meu marido para comigo tem sido tão boa, que, apesar da diferença que notou nos nossos gostos e idades, ainda não tive um único instante de arrependimento.

       – Mas – disse Maurício – quando casou com o Sr. Dixmer, ainda ele não possuía esta fábrica?

       – Não; residíamos então em Blois. Depois do dia 10 de Agosto, comprou o Sr. Dixmer esta casa e as oficinas a ela anexas, e para evitar que eu fosse incomodada pelo bulício dos operários, ou que pudessem ferir-me a vista objectos que repugnassem aos meus hábitos, que são, como disse, algum tanto aristocráticos, deu-me para habitar este pavilhão, onde vivo sozinha, retirada e feliz, quando um amigo, como o Sr. Maurício, vem participar da minha alegria, dos meus sonhos...

       E estendeu a mão a Maurício, que a beijou com grande ardor.

       Genoveva corou ligeiramente, e retirando a mão, continuou:

       – Agora já sabe como vim a ser esposa de Dixmer.

       – Sim – replicou Maurício olhando fixamente para Genoveva – mas ainda não me disse como foi que o Sr. Morand se tornou sócio do Sr. Dixmer.

       – É muito simples – respondeu Genoveva. – O Sr. Dixmer, como lhe disse, tinha alguma fortuna, mas não era suficiente para tomar sobre si uma fábrica tão importante como esta. O filho do Sr. Morand Sénior, que, como já lhe disse, havia sido protector e amigo de meu pai, contribuiu com metade do capital para a empresa, e como era versado em química, muito concorreu pelos seus conhecimentos e actividade para dar ao negócio do Sr. Dixmer uma extensão imensa.

       – E – perguntou Maurício – o Sr. Morand também é pessoa a quem muito estima, não é verdade, minha senhora?

       – O Sr. Morand é um homem digníssimo a todos os respeitos, e possui o coração mais bem formado que existe na terra – respondeu Genoveva.

       – Se as provas que tem do que assevera – respondeu Maurício algum tanto irritado por ver a importância que Genoveva dava ao sócio do marido – não são outras senão o ter ele concorrido com metade do capital para o estabelecimento do Sr. Dixmer, e ter inventado uma tinta nova para o marroquim, há-de permitir-me que lhe observe que o elogio que dele faz é demasiado pomposo.

       – Tem-me dado muitas outras provas – respondeu Genoveva.

       – Contudo, é muito novo ainda, não é verdade? – perguntou Maurício; – se bem que os óculos verdes de que usa, obstem a que se conheça com exactidão a idade que tem.

       – Tem trinta e cinco anos.

       – E há muito tempo que o conhece?

       – Desde a nossa mocidade.

       Maurício mordeu os beiços. Sempre desconfiara que Morand amava Genoveva.

       – Ah! – respondeu Maurício – agora vejo por que a trata com tanta familiaridade.

       – Sem nunca exceder certos limites, como tem visto – respondeu Genoveva sorrindo – e parece-me que uma familiaridade, que a amizade autoriza, não precisa explicação.

       – Oh! Peço desculpa, minha senhora – disse Maurício; – bem deve saber que os objectos demasiado vivos também causam ciúmes, e a minha amizade é ciosa da que parece ter ao Sr. Morand.

       Calou-se.

       Genoveva ficou também silenciosa.

       Não se tratou mais de Morand, e quando Maurício naquela noite se despediu de Genoveva ia mais apaixonado do que nunca, porque já tinha ciúmes.

       Por muito que a paixão cegasse o pobre moço, havia na história que Genoveva lhe contara muita lacuna, muita hesitação, e muita reticência, a que não dera valor na ocasião de a ouvir, mas que lhe vinham agora à memória e lhe atormentavam singularmente o espírito, não podendo desvanecer completamente as suas dúvidas, a liberdade que lhe dava Dixmer de conversar com Genoveva quantas vezes queria, nem a espécie de solidão em que os deixava todas as noites.

       Havia mais ainda: depois que Maurício se tornara de alguma forma comensal da casa, não só o deixavam em plena liberdade com Genoveva, que na verdade estava resguardada dos desejos do mancebo pela sua pureza de anjo, mas servia-lhe até de escolta quando ela precisava às vezes dar alguma volta pelo bairro.

       Ao passo que tinha adquirido toda esta familiaridade na casa, uma coisa havia que muito o admirava, e era que quanto mais procurava (talvez para melhor sondar os sentimentos que lhe supunha por Genoveva) travar conhecimento com Morand, cujo espírito e maneiras delicadas o tinham cativado muito, apesar de todas as suas prevenções, mais aquele homem excêntrico parecia fugir de Maurício.

       Este queixava-se amargamente a Genoveva de semelhante procedimento, pois não duvidava que Morand tivesse adivinhado que eram rivais, e que fosse o ciúme quem o afastasse dele.

       – O cidadão Morand tem-me ódio – disse ele um dia a Genoveva.

       – Ao senhor! – disse Genoveva encarando-o com admiração; – ao senhor! Pois Morand tem-lhe ódio?

       – Tem, com toda a certeza.

       – Porque o há-de ele odiar?

       – Quer que lho diga? – perguntou Maurício.

       – Quero, sim – respondeu Genoveva.

       – Pois bem... É porque eu...

       Maurício calou-se. Ia para dizer: é porque eu a amo.

       – Não posso dizer-lhe o motivo – continuou Maurício corando.

       O indomável republicano, quando estava ao pé de Genoveva, era tímido e envergonhado como uma donzela.

       Genoveva sorriu.

       – Diga antes – respondeu ela – que não existe simpatia entre ambos, e então acreditá-lo-ei. O senhor tem um carácter ardente, um espírito brilhante e maneiras distintas. Morand é simplesmente um negociante enxertado num químico. É mui tímido e modesto... E a sua timidez dá causa a que não tenha sido o primeiro a dirigir-lhe a palavra.

       – Ora essa! Pois eu exijo porventura que seja o primeiro a dirigir-me a palavra para que ele se me ligue? Até aqui sou eu que tenho feito a diligência mais de cinqüenta vezes, sem que tenha sido correspondido. Não – prosseguiu Maurício abanando a cabeça – não, essa não é por certo a razão.

       – Pois então qual é?

       Maurício preferiu ficar calado.

       No dia imediato àquele em que tivera esta explicação com Genoveva, apresentou-se em casa dela pela volta das duas horas, e encontrou-a vestida para sair.

       – Ah! Em boa hora veio – disse Genoveva – porque vai acompanhar-me.

       – Aonde vai? – perguntou Maurício.

       – Vou a Auteuil. O tempo está lindo e desejo dar um passeio; iremos de carruagem até para lá das portas, ali deixá-la-emos, e andaremos a pé até Auteuil, e depois, quando eu tiver concluído o que tenho que fazer em Auteuil, voltaremos do mesmo modo até à carruagem...

       – Oh! – exclamou Maurício com alegria – que dia tão agradável me proporciona!

       Partiram ambos; e tendo chegado além de Passy, apearam-se, e continuaram na sua digressão a pé.

       Quando chegaram a Auteuil, Genoveva parou.

       – Espere por mim à entrada da tapada – disse ela; – quando tiver concluído o meu negócio, virei ter com o senhor.

       – A casa de quem vai? – perguntou Maurício.

       – A casa de uma amiga.

       – Onde eu não posso acompanhá-la?

       Genoveva abanou a cabeça rindo.

       – É impossível – disse ela.

       Maurício mordeu os beiços.

       – Pois bem, – disse ele – esperarei.

       – Tem alguma dúvida? – perguntou Genoveva.

       – Nenhuma – respondeu Maurício. – Demora-se muito?

       – Se pensasse que o incomodava, ou se soubesse que tinha destino hoje – disse Genoveva – não lhe teria pedido o favor de vir comigo; não lhe teria pedido para me acompanhar ao...

       – Ao Sr. Morand – interrompeu Maurício com vivacidade.

       – Não, o Sr. Morand, como muito bem sabe, está na fábrica de Rambouillet, e só volta à noite.

       – Foi então esse o motivo por que fui preferido?

       – Maurício – disse Genoveva meigamente – não posso demorar-me porque está uma pessoa à minha espera; se lhe causa transtorno esperar que eu volte, vá-se embora para Paris; peço-lhe unicamente que mande para aqui a carruagem.

       – Não, não, minha senhora – respondeu prontamente Maurício – aqui fico às suas ordens.

       Dizendo isto, cortejou Genoveva, que deu um suspiro e entrou em Auteuil.

 

Encontro

       Maurício foi esperá-la no sítio aprazado e começou a passear de um para outro lado, divertindo-se em decepar com a bengala à imitação de Tarquínio, as flores que erguiam a cabeça acima das moitas de erva ou de cardos que encontrava diante de si.

       O passeio de Maurício limitava-se contudo a um pequeno espaço, pois não se afastava do ponto de partida, como geralmente sucede às pessoas que têm a imaginação muito preocupada.

       Genoveva demorou-se coisa de uma hora, que a Maurício pareceu um século, e chegou finalmente, caminhando risonha para ele. Maurício, pelo contrário, foi ao encontro dela com o sobrolho carregado.

       O nosso pobre coração é por tal forma organizado, que parece querer procurar motivos de desgosto em plena felicidade.

       Genoveva, sorrindo, deu indolentemente o braço a Maurício.

       – Aqui estou – disse; – peço-lhe perdão, meu amigo, por o ter feito esperar.

       Maurício respondeu com uma inclinação de cabeça, e entranharam-se ambos numa linda alameda, que ia ter por um atalho à estrada real.

       Era uma deliciosa tarde de Primavera, daquelas em que cada planta esparge na atmosfera a sua emanação, e os pássaros, imóveis sobre as árvores ou saltando por entre as brenhas, entoam o hino de amor a Deus; era finalmente uma daquelas tardes que parecem destinadas a viver eternamente na lembrança de quem as gozou.

       Maurício ia calado e Genoveva pensativa; esta entretinha-se a desfolhar as flores de um ramalhete que levava na mão, que havia enfiado no braço de Maurício.

       – Que tem hoje para estar tão triste? – perguntou Maurício de repente.

       Genoveva poder-lhe-ia responder:

       “É a minha felicidade”.

       Porém fitou nele o seu olhar suave e poético.

       – E o senhor também não está acaso hoje mais triste do que de costume?

       – Eu – respondeu Maurício – tenho razão para estar triste, porque sou infeliz; mas a senhora...

       – O senhor, infeliz?

       – Certamente; não tem percebido que padeço às vezes a ponto de me tremer a fala? Outras vezes estando a conversar consigo ou com seu marido, não tem reparado que me levanto de repente e que me vejo obrigado a sair para respirar ar livre, a fim de diminuir a opressão que sinto no peito?

       – Mas – perguntou Genoveva com certo enleio – a que atribui semelhante padecimento?

       – Se fosse uma menina da moda – disse Maurício rindo tristemente – dizia-lhe que eram ataques de nervos.

       – E agora também está incomodado?

       – Muito – respondeu Maurício.

       – Pois então voltemos depressa.

       – Já, minha senhora?

       – Decerto.

       – Ah! É verdade – murmurou o mancebo – já me esquecia de que o Sr. Morand há-de voltar esta noite de Rambouillet, e já vai anoitecendo.

       Genoveva olhou para ele de maneira, como que para o repreender.

       – Oh! Outra vez! – disse ela.

       – A culpa é sua. Para que elogiou tanto o Sr. Morand noutro dia?

       – E será porventura proibido dizer, na presença de uma pessoa que se estima – perguntou Genoveva – o conceito que se forma de outro homem também estimável?

       – Muito grande deve ser a estima que por ele tem, para obrigá-la a apressar desse modo o passo a fim de não tardar alguns minutos.

       – Está hoje sobremaneira injusto para comigo, Maurício Acaso não passei na sua companhia uma parte do dia?

       – Tem razão e conheço que sou na verdade demasiado exigente – respondeu Maurício com veemência. – Vamos ao encontro do Sr. Morand, vamos.

       Genoveva começou a enfadar-se.

       – Sim – disse ela – vamos ao encontro do Sr. Morand. Aquele amigo pelo menos nunca me causou o menor desgosto;

       – Amigos assim são entes preciosos – disse Maurício sufocado pelo ciúme; – quem me dera alguns semelhantes a ele!

       Tinham chegado naquele momento à estrada real. O horizonte estava avermelhado; o Sol ia desaparecendo e os seus últimos raios faziam cintilar os enfeites dourados do zimbório dos Inválidos. No Céu brilhava já a primeira estrela, a mesma que Genoveva havia contemplado algumas noites antes.

       Genoveva largou o braço de Maurício com tristeza e resignação.

       – Porque insiste em penalizar-me? – disse ela.

       – Ah! – respondeu Maurício – é porque não tenho a habilidade de certas pessoas que eu conheço; não sei tornar-me amável.

       – Maurício! – exclamou Genoveva.

       – Oh! Minha senhora, se é verdade que ele tem bom génio, e nunca se altera, é porque não padece como eu.

       Genoveva tornou a encostar a nívea mão sobre o braço musculoso de Maurício.

       – Peço-lhe que não torne a falar – disse ela com voz trémula; – oh! Não torne a falar.

       – Porque motivo?

       – Porque me incomoda o som da sua voz.

       – Pois até o som da minha voz a incomoda?

       – Cale-se, por Deus lho peço!

       – Obedecerei, minha senhora.

       E dizendo isto, o fogoso mancebo limpava o suor, que lhe umedecia a fronte.

       Genoveva conheceu que não era fingido o padecimento de que ele se queixara. As organizações do género da de Maurício são mais fáceis de impressionar-se do que o vulgar dos homens.

       – É meu amigo, Maurício – disse Genoveva olhando-o com expressão celestial – um amigo para mim mui precioso; faça, Maurício, com que eu não perca um tal amigo.

       – Oh! – exclamou Maurício – as saudades não haviam de durar muito tempo.

       – Está enganado – respondeu Genoveva – haviam de durar muito, sempre!...

       – Genoveva! Genoveva! – gritou Maurício – tenha compaixão de mim!

       Genoveva sobressaltou-se.

       Era a primeira vez que ouvia Maurício proferir o seu nome com tão profunda expressão.

       – Pois bem – continuou Maurício – já que adivinhou o meu segredo, permita que lhe diga quanto sinto. Genoveva; oh! Ainda que eu soubesse que me fulminava com um olhar seu, nem assim me calaria: preciso falar, Genoveva.

       – Senhor – disse ela – pedi-lhe em nome da nossa amizade que se calasse; renovo agora a minha súplica, e espero que me atenderá por consideração para comigo. Nem mais uma palavra, em nome do Céu, nem mais uma palavra!

       – A amizade!... A amizade!... Ah! Se a amizade que me tem é igual à que tem ao Sr. Morand, não quero semelhante amizade, Genoveva; é de outra natureza o sentimento que eu exijo.

       – Basta – disse a Srª. Dixmer com gesto de rainha – basta Sr. Lindey; aqui está a nossa carruagem, faça o favor de me acompanhar até casa de meu marido.

       Maurício tremia de febre e de agitação, e quando Genoveva, para entrar na carruagem, que estava com efeito a distância de poucos passos, lhe encostou a mão ao braço, pareceu ao mancebo que lhe queimavam o braço. Subiram ambos para a carruagem; Genoveva tomou lugar no assento do fundo e Maurício no de diante.

       Assim atravessaram Paris sem proferirem palavra, nem um nem outro.

       Genoveva, durante o trajecto, tinha conservado constantemente o lenço nos olhos.

       Quando chegaram à fábrica, Dixmer estava trabalhando no seu gabinete; Morand regressara havia pouco de Rambouillet e estava mudando de fato.

       Genoveva, ao entrar no quarto, estendeu a mão a Maurício, dizendo-lhe:

       – Adeus, Maurício, assim o quis.

 

Rompimento

       Maurício não respondeu, foi direito a um retrato de Genoveva, em miniatura, que estava pendurado por cima do fogão, tirou-o do seu lugar, beijou-o com ardor, apertou-o contra o coração, tornou a colocá-lo onde estava e saiu.

       Maurício achou-se em casa sem saber por onde fora; parecia-lhe um sonho quanto se acabara de passar, e por mais que procurasse, não atinava com o que fizera ou dissera, nem com o motivo do seu procedimento. Há momentos na vida em que a alma mais serena, mais senhora de si, obedece voluntariamente aos impulsos das potências subalternas da imaginação.

       Foi pois de corrida que Maurício voltou para casa; despiu-se sem a ajuda do criado, não respondeu à cozinheira, que lhe oferecia de cear, e pegando nas cartas que tinham vindo para ele durante o dia, leu-as todas, umas após outras, sem perceber palavra do que diziam. O nevoeiro do ciúme ainda lhe ofuscava a razão.

       Às dez horas deitou-se maquinalmente, como fizera tudo mais desde que deixara Genoveva; apenas deitado, sucedeu-lhe o que sempre acontece em casos tais; logo que se sentiu na cama e cedeu ao torpor que lhe causara o golpe que recebera nas suas esperanças e adormeceu, ou para melhor dizer, perdeu todo o sentimento da existência até ao dia seguinte.

       Foi então acordado pela bulha que lhe fez o oficioso abrindo a porta do quarto: vinha este, conforme o costume, abrir as janelas de Maurício, que deitavam para um grande jardim, e trazer flores.

       Era moda cultivar flores em 1793, e Maurício era doido por elas; todavia, nem sequer se dignou de olhar para as que lhe apresentavam: assentou-se na cama, e encostando a cabeça à mão, tratou de se recordar dos acontecimentos do dia antecedente.

       Maurício procurou interrogar-se a si próprio para conhecer o motivo do seu mau humor da véspera; o único que lhe ocorria era o ciúme que tinha tido de Morand, mas era-lhe forçoso confessar que tinha escolhido mau pretexto, visto que o homem de quem tinha ciúmes estava em Rambouillet, ao passo que ele, a sós com a mulher a quem amava, gozava em liberdade do encanto da companhia dela, a que ainda dava maior valor a amenidade de um formosíssimo dia de Primavera.

       Nem a ida a Auteuill, nem a demora de Genoveva por mais de uma hora na casa a que ele a acompanhara lhe haviam causado o menor abalo: o seu único e constante tormento era a idéia do amor de Morand por Genoveva: esta idéia não passava de uma fantasia do seu cérebro, ou de uma louca suspeita da sua imaginação, por isso que nunca um gesto, nem um olhar, nem uma palavra sequer do sócio Dixmer tinha dado uma aparência de realidade a semelhante suposição.

       A voz do criado pôs termo à sua meditação.

       – Cidadão – disse ele, apontando para as cartas que estavam abertas em cima da mesa; – já escolheu as que são para guardar ou quer que as queime todas?

       – Queimar o quê? – perguntou Maurício.

       – As cartas que o cidadão leu ontem à noite antes de se ir deitar.

       Maurício já se não lembrava de ter lido uma única delas.

       – Queime-as todas – respondeu ele.

       – Aqui tem as que vieram hoje, cidadão – disse o oficioso.

       Entregou um maço de cartas a Maurício e foi deitar as outras no fogão.

       Maurício, ao pegar no maço, percebeu pelo tacto que uma das cartas vinha fechada com lacre, e pareceu-lhe sentir um perfume que lhe não era desconhecido.

       Procurou entre as cartas e encontrou um sinete e uma letra que o fizeram estremecer.

       Aquele homem, tão valente quando se tratava de arrostar qualquer perigo, estava prestes a desmaiar pela simples vista de uma carta.

       O oficioso aproximou-se para lhe perguntar o que sentia; porém Maurício com um aceno mandou-o retirar.

       Tendo ficado só, começou a revolver a carta em todos os sentidos: tinha um pressentimento de que era portadora de más novas, mas hesitava em abri-la com receio do que ia ler.

       Revestiu-se contudo de ânimo, abriu-a e leu o que segue:

      

       “Cidadão Maurício.

       É forçoso que rompamos as nossas relações, visto que parece querer transpor os limites da amizade. É homem honrado, cidadão, e agora, que já decorreu o espaço de uma noite sobre o que ontem se passou entre nós, facilmente deve compreender que é impossível continuar a freqüentar esta casa. Espero que procurará alguma desculpa que motive para com meu marido este rompimento. Se eu vir chegar hoje mesmo uma carta sua para o Sr. Dixmer, ficarei certa de que só me resta lamentar a perda de um amigo infelizmente alucinado, e que todas as conveniências sociais me proíbem tornar a ver.

       Adeus para sempre.

       Genoveva”

      

       “P. S. – O portador espera pela resposta”.

      

       Maurício chamou pelo criado.

       – Quem trouxe esta carta?

       – Um cidadão moço de recados.

       – E está aí?

       – Está.

       Maurício nem suspirou, nem hesitou. Saltou imediatamente fora da cama, enfiou umas calças, assentou-se à carteira, pegou na primeira folha de papel que encontrou e que era um papel com o carimbo da secção, e escreveu:

      

       “Cidadão Dixmer.

       Eu era seu amigo, e ainda o sou, mas não posso continuar a visitá-lo...”

      

       Maurício procurou um motivo que servisse de pretexto para não tornar a visitar o cidadão Dixmer, e apenas um único lhe ocorreu ao pensamento; era o mesmo que naquela época teria vindo à imaginação de qualquer pessoa. Continuou pois sem hesitação redigindo a carta:

      

       “Tem-se espalhado certos boatos acerca da frouxidão de sentimentos pela causa pública. Não pretendo acusá-lo, nem estou incumbido de defendê-lo. Receba pois as minhas despedidas, e fique certo de que os seus segredos nunca sairão do meu coração”.

      

       Maurício não se cansou em ler esta carta, que fora escrita como dissemos, sob a impressão da primeira idéia que lhe havia ocorrido. O efeito que ela havia de produzir não era duvidoso.

       Dixmer que era um excelente patriota como Maurício tinha tido ocasião de ver pelos seus discursos, de certo se afligiria ao recebê-la: era provável que a esposa e o cidadão Morand também participassem do seu enfado, e sendo assim, nem sequer responderia, deixando que o esquecimento viesse qual negro véu encobrir o passado para o transformar em lúgubre porvir.

       Maurício assinou, fechou a carta, entregou-a ao oficioso e este ao moço de recados, que partiu imediatamente.

       Foi só então que o nosso republicano soltou um leve suspiro; acabou de se vestir, pegou nas luvas e no chapéu e foi para a secção.

       Pobre Bruto! Esperava poder recobrar o seu antigo estoicismo no tumulto dos negócios públicos.

       Os negócios públicos representavam uma face terrível: estava-se preparando o dia 31 de Maio. O terror, semelhante a uma torrente, começara a precipitar-se do alto da Montanha, e procurava deitar por terra a barreira que lhe tinham levantado os Girondinos moderados, e audazes, que haviam tido o atrevimento de pedir o castigo dos assassinos de Setembro e de lutarem por um instante para salvar a vida do rei.

       Enquanto Maurício se entregava ao trabalho com todo o ardor que lhe dava a febre que há pouco lhe devorava o coração e agora a cabeça, o portador da carta voltara à rua Velha de Saint-Jacques, e entregara-a em casa de Dixmer, onde todos ficaram cheios de susto e de espanto.

 

Suspeitas

       A carta depois de ter passado pelas mãos de Genoveva, foi entregue a Dixmer.

       Dixmer abriu-a e leu-a sem a entender bem de princípio, e depois mostrou-a ao cidadão Morand, que, tendo acabado de a ler, encostou a cabeça à mão com modo pensativo.

       Na situação em que se achavam colocados Dixmer, Morand e os seus companheiros, situação completamente desconhecida de Maurício, mas que os nossos leitores já adivinharam por certo, aquela carta devia necessariamente produzir o efeito de um raio.

       – Será ele homem honrado? – perguntou Dixmer.

       – É sim – respondeu Morand sem hesitar.

       – Não importa! – replicou o indivíduo que havia opinado pelos meios violentos – muito mal fizemos, como vê em não o matar.

       – Meu amigo – disse Morand – lembre-se de que estamos lutando com a violência, e que a condenamos como um crime. Seja qual for o resultado de tudo isto, fizemos muito bem em não assassinar um homem, e demais, ainda o repito, estou persuadido de que Maurício tem um coração nobre e honrado.

       – Sim, mas como o tal coração nobre e honrado pertence a um exaltado republicano, pode muito bem ser que julgue um crime, caso tenha descoberto alguma coisa, não sacrificar a própria honra sobre o que eles chamam altar da pátria.

       – Mas – perguntou Morand – julga porventura que ele saiba alguma coisa?

       – Então não percebeu o que ele diz? Fala de segredos, que nunca lhe sairão do coração.

       – Os segredos a que ele se refere são evidentemente os que lhe confiou, a respeito do nosso contrabando; nem ele sabe outros. Porém – continuou Morand – teria ele alguma desconfiança por ocasião da entrevista de Auteuil? Foi ele quem acompanhou a sua esposa.

       – Eu mesmo tinha dito a Genoveva que o levasse consigo, para maior segurança.

       – Olhem – disse Morand – em breve saberemos se as nossas suspeitas são fundadas. Segundo a escala, o nosso batalhão entra de guarda ao Templo no dia 2 de Junho, que é daqui a oito dias; o Sr. Dixmer é capitão e eu sirvo debaixo das suas ordens: se o batalhão, ou a nossa companhia, tiver contra ordem como teve outro dia o batalhão da Rutte-des-Moulins, que Santerre substituiu pelo batalhão dos Grevilliers, é sinal que descobriram tudo, e só nos restará fugir de Paris, ou morrer com as armas na mão. Mas se as coisas seguirem o seu curso regular...

       – Estamos igualmente perdidos – atalhou Dixmer.

       – Porque diz isso?

       – Ora essa! Pois não era da cooperação daquele membro da municipalidade que dependia tudo? Não era ele quem devia franquear-nos, sem o saber, o caminho para chegarmos até junto da rainha?

       – É verdade – disse Morand com tristeza.

       – É forçoso, pois – disse Dixmer encrespando o sobrolho – renovar a todo o custo as nossas relações com ele.

       – Mas se se negar a isso, se tiver receio de se comprometer? – disse Morand.

       – Espere – respondeu Dixmer – vou interrogar a Genoveva; foi ela a última pessoa de nós que esteve com ele, talvez que possa dizer-nos alguma coisa.

       – Dixmer – disse Morand – confesso-lhe que é com muito custo que vejo Genoveva envolvida nas nossas tramas; não porque receie que ela nos comprometa, Deus me livre de tal pensamento, mas porque a partida que estamos jogando é arriscadíssima, e tenho vergonha e dó de ver aventurar nela a cabeça de uma mulher.

       – A cabeça de uma mulher – respondeu Dixmer – pesa o mesmo que a de um homem sempre que a astúcia, a candura, ou a beleza puderem servir tão bem ou melhor do que a força, o poder ou o ânimo! Genoveva participa das nossas convicções e simpatias, Genoveva há-de seguir a nossa sorte.

       – Vá pois, querido amigo – respondeu Morand; – disse o que me cumpria dizer. Vá, Genoveva é por todos os motivos digna da missão que lhe confiou, ou, por melhor dizer, de que ela própria se incumbiu. É com as santas que se fazem as mártires.

       E dizendo isto estendeu a branca e delicada mão para Dixmer, que lha apertou nas suas mãos robustas.

       Dixmer, tendo recomendado a Morand e aos seus companheiros que estivessem mais alerta do que nunca, deixou-os para ir ter com Genoveva.

       Estava esta assentada ao pé de uma mesa e ocupada em bordar.

       Voltou-se quando sentiu abrir a porta e deu com Dixmer.

       – Ah! É o senhor, meu amigo? – disse ela.

       – Sou – respondeu Dixmer com modo sereno e risonho; – recebi neste instante uma carta do seu afeiçoado Maurício, que não posso entender. Olhe, leia, e diga-me depois qual é a sua opinião a este respeito.

       Genoveva pegou na carta sem poder disfarçar o tremor da mão, apesar de todo o império que tinha em si, e leu.

       Dixmer acompanhou com a vista a leitura linha por linha.

       – E então? – disse ele logo que ela acabou.

       – Se quer o meu parecer, dir-lhe-ei que estou persuadida de que o Sr. Maurício Lindey é um homem de bem – respondeu Genoveva com a maior placidez – e que dele nada tem que recear.

       – Julga que não sabia quem eram as pessoas que foi visitar a Auteuil?

       – Estou certa de que não sabe.

       – Qual será então o motivo de tão repentino rompimento?

       – Não sei – disse Genoveva; – não me lembra de lhe ter achado diferença alguma.

       – Tome sentido no que me está dizendo, Genoveva; porque, como bem deve perceber, as respostas que vai dar-me influirão gravemente sobre todos os nossos planos.

       – Espere um pouco – disse Genoveva, com uma agitação bem patente, apesar de todos os esforços que fazia para conservar um ar indiferente; – espere um pouco...

       – Muito bem! – disse Dixmer deixando perceber uma leve contracção nos músculos do rosto; – muito bem, trate de recordar-se de tudo quanto se passou, Genoveva.

       – Sim – replicou ela – sim, agora me lembro: ontem estava de mau humor; o Sr. Maurício – continuou ela depois de alguma hesitação – é algum tanto tirânico nas suas amizades... e já por vezes temos estado arrufados semanas inteiras.

       – Parece-lhe então que isto não passará de um simples arrufo? – perguntou Dixmer.

       – É provável.

       – Genoveva, é escusado dizer-lhe que na posição em que nos achamos, não basta uma probabilidade, é necessário uma certeza.

       – Pois bem! Meu amigo... Estou certa de que é como lho digo.

       – A vista disso, esta carta não é mais do que um pretexto para não tornar a vir aqui?

       – Meu amigo, como é possível que me obrigue a dizer-lhe semelhantes coisas?

       – Diga, Genoveva, diga – respondeu Dixmer – porque também só a uma mulher como a senhora eu faria tais perguntas.

       – Sim, é um pretexto – disse Genoveva abaixando os olhos.

       – Ah? – exclamou Dixmer.

       E passado um instante de silêncio, tirou do peito a mão com que tinha comprimido as pulsações, e, encostando-se à cadeira da mulher, disse para esta:

       – Preste-me agora um serviço, querida amiga.

       – Qual é? – perguntou Genoveva virando-se para o marido admirada.

       – Evite até a sombra do perigo; pode muito bem ser que Maurício esteja mais ao facto dos nossos segredos do que nós julgamos. Isto, que nos parece não passar de um pretexto, pode muito bem ser uma realidade. Escreva-lhe duas palavras.

       – Eu! – disse Genoveva sobressaltada.

       – Sim, a senhora; diga-lhe que foi quem abriu a carta e que exige uma explicação; ele virá aqui, interrogá-la-á e facilmente conhecerá o que moveu a escrevê-la.

       – Oh! Não, por certo – exclamou Genoveva – não devo fazer isso que diz: e não o farei.

       – Querida Genoveva, como é possível que ainda a façam hesitar ridículas considerações de amor próprio, quando se trata de levar a cabo uma empresa como esta em que estamos empenhados?

       – Já lhe dei o meu parecer a respeito de Maurício – respondeu Genoveva; – é honrado, de génio cavalheiroso, mas é tirânico, e eu não quero obedecer a outro senhor que não seja o meu marido.

       Esta resposta foi proferida com tanta tranqüilidade e firmeza, que Dixmer logo conheceu que seria baldado insistir naquela ocasião; não disse por conseguinte mais palavra, olhou disfarçadamente para Genoveva, correu a mão pela testa e saiu.

       Morand esperava-o ansiosamente. Dixmer contava-lhe palavra por palavra quanto se passara.

       – Está bom – respondeu Morand – deixemos ficar as coisas como estão e não falemos mais nisso. Para evitar o menor desgosto a sua mulher, nem ofender o amor próprio de Genoveva, sou capaz de abandonar...

       – Está louco – disse ele olhando-o fixamente – ou não pensa decerto uma única palavra do que diz.

       – Pois então, Dixmer, julga?...

       – Julgo que nem o senhor nem eu devemos submeter os nossos sentimentos ao impulso do coração. Olhe, Morand, nem o senhor, nem eu, nem Genoveva podemos dispor das nossas vontades. Nós somos entes designados para a sustentação de um princípio, e os princípios costumam muitas vezes esmagar os entes que se propõem sustentá-los.

       Morand estremeceu e ficou calado, parecendo meditar dolorosamente.

       Assim deram umas poucas de voltas pelo jardim sem dizer uma única palavra.

       Até que finalmente Dixmer despediu-se de Morand.

       – Tenho algumas ordens a dar – disse ele com voz muito sossegada. – Deixo-o, Sr. Morand.

       Morand apertou a mão a Dixmer e ficou a olhar para ele por algum tempo.

       – Pobre Dixmer – disse ele consigo – muito receio que afinal seja ele quem mais se aventure nesse negócio.

       Dixmer voltou efectivamente para a oficina, deu algumas ordens, tornou a ler os periódicos, mandou fazer uma distribuição de pão e de combustível aos pobres da secção, e acabado isto, foi largar o fato de trabalho e vestir-se para sair.

       Dali a uma hora, Maurício foi interrompido em meio das suas leituras e alocuções, pela voz do oficioso, que lhe dizia ao ouvido:

       – Cidadão Lindey, está lá em casa um indivíduo que afirma ter coisas importantíssimas que tratar consigo.

       Maurício voltou para casa, e ficou sobremaneira admirado, quando, ao entrar no quarto, deu com Dixmer assentado, e entretido a folhear os periódicos. Já Maurício perguntara ao criado, pelo caminho, quem seria o sujeito que o procurava, mas o criado que nunca vira o mestre curtidor, nenhuma informação lhe pôde dar a tal respeito.

 

Explicações

       Maurício, logo que avistou Dixmer, parou no limiar da porta, e corou sem querer.

       Dixmer levantou-se e estendeu-lhe a mão sorrindo.

       – Então que mal lhe fiz, e que disparate foi aquele que me escreveu? –perguntou ele ao mancebo. – Digo-lhe na verdade que me feriu cruelmente, meu querido Maurício. Chamar-me mau patriota! Aposto que não é capaz de repetir semelhante acusação na minha cara; confesse antes, que inventou um pretexto para não voltar a minha casa.

       – Estou pronto a confessar quanto quiser, meu caro Dixmer, porque o seu procedimento para comigo foi sempre de homem de bem, mas não posso alterar a resolução que tomei, porque é irrevogável.

       – Como é isso então? – perguntou Dixmer – pois acaba de confessar que não tem motivo algum de queixa, e apesar disso abandona-me?!

       – Meu caro Dixmer, certifico-lhe que não me resolvi a fazer o que fiz, e a privar-me de um amigo como o senhor, sem que para semelhante passo concorressem fortíssimas razões.

       – Sim, mas em todo o caso – replicou Dixmer sorrindo – essas razões não são as que mandou dizer. Aquela carta não passava de um pretexto.

       Maurício pensou um instante.

       – Queira ouvir-me, Sr. Dixmer – disse ele; – na época em que vivemos, uma dúvida como a que emiti na minha carta, pode e deve inquietá-lo; eu conheço-o bem, e faltaria aos deveres que me impõe a honra se não procurasse tranqüilizar o seu espírito. Sim, cidadão Dixmer, as razões que lhe dei não são mais que um pretexto.

       A fisionomia do negociante, em vez de serenar depois daquela confissão, tornou-se pelo contrário mais sombria.

       – Mas, enfim, qual é o verdadeiro motivo, não mo dirá? – disse Dixmer.

       – Não lho posso dizer – replicou Maurício – e contudo estou certo de que se o soubesse não deixaria de aprová-lo.

       Dixmer instou.

       – Exige então que lho diga? – perguntou Maurício.

       – Sim – respondeu Dixmer.

       – Pois bem – continuou Maurício, que muito estimava ter ocasião de se aproximar da verdade – o caso é este: o senhor é casado com uma mulher nova e formosa, e apesar da bem merecida reputação da castidade de que goza sua esposa, há quem tenha interpretado mal as minhas idas a sua casa.

       Dixmer empalideceu.

       – Deveras! – exclamou ele; – nesse caso, meu caro Maurício, o esposo deve agradecer-lhe o mal que faz ao amigo.

       – É escusado dizer-lhe – replicou Maurício – que a minha fatuidade não chega a ponto de me fazer recear que as minhas visitas possam ser perigosas para o seu descanso ou para o de sua mulher, mas é certo que podem dar origem a calúnias e muito bem sabe que quanto mais absurda é qualquer calúnia, mais facilmente se acredita.

       – Que criancice! – disse Dixmer encolhendo os ombros.

       – Chame-lhe criancice, se quiser – respondeu Maurício; – porém, assim de longe não deixaremos de ser amigos, porque nenhum motivo de queixa teremos um do outro, ao passo que de perto...

       – De perto o que sucederia?

       – Poderíamos acabar por ter algum desgosto.

       – Pois julga, que eu pudesse acreditar...

       – E porque não?... – disse o mancebo.

       – Mas por que razão me escreveu em vez de me dizer tudo isso, Maurício?

       – Foi justamente para evitar o que entre nós se está passando neste momento.

       – Magoa-o então o ver que sou tão seu amigo, que vim aqui pedir-lhe uma explicação? – disse Dixmer.

       – Oh! Pelo contrário – exclamou Maurício – e juro-lhe que me considero muito feliz por ter tido ainda esta ocasião de estar com o meu amigo antes de deixarmos de nos ver.

       – Deixarmos de nos ver, cidadão! E eu que o estimo tanto! – replicou Dixmer pegando na mão do mancebo e apertando-a entre as suas.

       Maurício estremeceu.

       – O Morand – continuou Dixmer que muito bem percebera o estremecimento de Maurício, mas que fingiu não ter reparado nele; – o Morand ainda esta manhã me dizia: “Faça toda a diligência para que torne a visitar-nos o nosso amigo Sr. Maurício”.

       – Ai, senhor – disse o mancebo carregando o sobrolho e retirando a mão – não julgava estar tão bem visto do cidadão Morand.

       – Duvida do que lhe digo? – perguntou Dixmer.

       – Eu? – respondeu Maurício – nem acredito nem duvido, porque não é coisa que me dê cuidado; ia a sua casa, Sr. Dixmer, para visitá-lo e a sua mulher; não ia procurar o cidadão Morand.

       – Bem se vê que o não conhece, Maurício – disse Dixmer; – Morand tem uma alma nobre.

       – Não duvido – disse Maurício sorrindo tristemente.

       – Tornemos agora ao assunto da minha visita – continuou Dixmer.

       Maurício inclinou a cabeça como para indicar que nada mais tinha que dizer, e que o escutava.

       – Dizia eu que se tinha falado a seu respeito.

       – Sim, cidadão – respondeu Maurício.

       – Pois bem, falemos com franqueza. Para que há-de fazer caso da tagarelice de alguma comadre ociosa? Não lhe resta porventura a sua virtude?

       – Eu sou mais moço do que o senhor – disse Maurício já admirado de tanta teimosia – mas vejo as coisas debaixo de diferente ponto de vista. Por isso lhe declaro que a reputação de uma mulher como Genoveva, nunca devia dar causa nem sequer à tagarelice de uma comadre ociosa. Consinta, portanto, meu caro Sr. Dixmer, que persista na minha primeira resolução.

       – Ora vamos – disse Dixmer – que já está na maré de confessar tudo, confesse mais outra coisa.

       – O quê? – perguntou Maurício corando. – Que pretende que eu confesse?

       – Que não foi a política, nem o que se espalhou a respeito da freqüência das suas visitas, que o obrigou a deixar a minha casa?

       – Que seria então?

       – O segredo que descobriu.

       – Que segredo? – perguntou Maurício com uma expressão de curiosidade tão ingénua, que logo sossegou o mestre curtidor.

       – Aquele negócio do contrabando, que descobriu na noite em que travámos conhecimento de modo tão singular. Estou persuadido de que nunca pôde perdoar-me semelhante fraude, e que me julga mau republicano por empregar produtos ingleses na minha fábrica.

       – Meu caro Dixmer – disse Maurício – juro-lhe que nas minhas idas a sua casa nunca me lembrei que estava em casa de um contrabandista.

       – Deveras?

       – Deveras.

       – Não tem portanto outro motivo para deixar de me visitar além do que já me disse?

       – Pela minha honra lho afirmo.

       – Pois bem, Maurício – replicou Dixmer levantando-se e apertando a mão do mancebo – ainda espero que há-de abandonar essa resolução, que tanto nos magoa a mim e aos meus.

       Maurício cortejou-o e não respondeu; era uma última negativa.

       Dixmer saiu desesperado por não ter podido conservar as suas relações com aquele homem, que nas suas circunstâncias lhe podia ser tão útil e talvez que até indispensável.

       E já era tempo.

       Maurício sentia-se agitado por mil desejos contrários. Dixmer pedia-lhe que voltasse a sua casa; era possível que Genoveva lhe perdoasse.

       Para que havia de desesperar?

       Lorin, no seu lugar, teria para contestar a sua conduta, uma chusma de aforismos tirados dos seus autores favoritos.

       Mas ainda restava a carta que Genoveva lhe escrevera despedindo-o tão positivamente, e que tinha levado consigo para a secção, juntando-a sobre o coração com o bilhete que dela recebera no dia seguinte àquele em que a tinha livrado da gente que a estava insultando, finalmente, e mais que tudo isso, restava ainda o pertinaz ciúme que o pobre mancebo tinha daquele detestável Morand, que fora a principal causa do seu rompimento com Genoveva.

       Maurício sustentou pois inexoravelmente a sua resolução.

       Contudo, não foi com indiferença que se viu privado de ir fazer a sua visita quotidiana à rua Velha de Saint-Jacques, e quando deu a hora em que costumava encaminhar-se para o bairro de Saint-Victor apoderou-se dele profunda melancolia, e desde esse instante passou por todas as fases da esperança e da saudade.

       Todas as manhãs esperava receber, ao acordar, uma carta de Dixmer, e a si próprio confessava que apesar de ter resistido às instâncias que este lhe fizera verbalmente, não deixaria de ceder a uma carta; quando saía era sempre com a esperança de encontrar Genoveva, e já de antemão formava mil planos para ter um pretexto para falar-lhe: e à noite, quando voltava a casa, vinha sempre esperando o mensageiro que lhe trouxera uma manhã o bilhete que dera origem aos tormentos que padecia.

       Outras vezes também, em horas de desespero, bramia de furor com a lembrança de estar sofrendo semelhante tortura sem se vingar do indivíduo que lhe dera causa, e como a razão primária de todos os seus desgostos era Morand, formava então o projecto de ir desafiá-lo.

       Mas o sócio de Dixmer era tão débil e tão pacato, que para um colosso como Maurício seria uma cobardia ir insultá-lo ou provocá-lo.

       Lorin fizera algumas tentativas para distrair o amigo das penas que este teimava em negar que existissem.

       Quanto a prática e a teoria lhe tinham podido sugerir, fizera Lorin para restituir ao amor da pátria aquele coração tão magoado por outro amor.

       Mas, apesar da gravidade das circunstâncias, que decerto teriam arrastado consigo Maurício para o centro do turbilhão político, se outra fora a disposição do seu espírito, não pôde conseguir que o moço republicano recobrasse aquela actividade que o tornara herói em 14 de Julho e 10 de Agosto.

       Os dois sistemas, que durante o espaço de dez meses, se tinham conservado em presença um do outro, contentando-se apenas com ataques de pouca importância e preludiando alguns tiroteios, estavam finalmente próximos a vir às mãos, e era para todos bem evidente que a luta em que iam empenhar-se havia de ser de morte para um dos dois.

       Aqueles dois sistemas, nascidos na própria revolução, era o da moderação, que representavam os girondinos, isto é, Brissot, Pétion, Vergniaud, Valazé, Lanjuinais, Barbaroux, etc., etc.; e o do terror, ou da Montanha, representado por Danton, Robespierre, Chénier, Fabre, Marat, Collot-d’Érbois, Hébert, etc., etc.

       Depois do dia 10 de Agosto, a influência, como sempre sucede, parecia inclinar-se para o partido moderado. O ministério formava-se com ministros do ministério transacto e indivíduos que entravam de novo no gabinete. Os ministros que tinham saído e foram de novo chamados, eram Roland, Servien e Clavières; os novos, eram Danton, Monge e Le Brun.

       À excepção de um único, que representava no meio dos seus colegas o elemento enérgico, todos os outros ministros representavam o partido moderado.

       Quando dizemos moderado, deve entender-se que falamos relativamente.

       O 10 de Agosto tivera eco no estrangeiro, e a coalizão apressara-se a marchar, não em socorro de Luís XVI, mas do princípio da realeza abalada fortemente na sua base. Então tinham retumbado as palavras ameaçadoras de Brunswick, e, como facto terrível, Longwy e Verdun tinham caído em poder do inimigo.

       Deu-se então a reacção terrorista; Danton sonhara os dias de Setembro e realizara esse sonho sanguinolento, que mostrou ao inimigo a França toda cúmplice de um grande assassínio, pronta a lutar, pela sua existência comprometida, com toda a energia do desespero.

       Setembro salvara a França, mas pusera-a fora da lei.

       Salva a França, a energia tornou-se inútil e o partido moderado adquiriu algumas forças. Quis então fazer recriminações a esses dias terríveis. Foram pronunciadas as palavras de homicídio e assassínio e um novo termo veio juntar-se ao vocabulário da nação, o de Setembrista.

       Danton aceitara-a. Como Clovis, curvara por um instante a cabeça ao baptismo de sangue, mas para a erguer mais alta e ameaçadora. Apresentava-se outra ocasião de espalhar o terror já passado; era o processo do rei. A violência e a moderação entraram, não em luta de pessoas mas de princípios. A experiência das forças relativas fizera-se no prisioneiro real. A moderação fora vencida e a cabeça de Luís XVI caíra no cadafalso.

       Como o 10 de Agosto, o 21 de Janeiro deu à coalizão toda a sua energia. Foi ainda o mesmo homem que lhe opuseram, mas não a mesma fortuna. Dumouriez, contido nos seus progressos pela desordem de todas as administrações, que impedia que lhe chegassem socorros de homens e de dinheiro, declara-se contra os jacobinos, que acusa como causa de desorganização, adopta o partido dos girondinos, e perde-os ao declarar-se seu partidário.

       Então a Vendeia levanta-se, os departamentos ameaçam; os infortúnios trazem traições e as traições infortúnios. Os jacobinos acusaram os moderados e quiseram feri-los no dia 10 de Março; mas a muita precipitação da parte dos seus adversários salvou-os, e talvez que também a chuva, que fizera dizer a Pétion, profundo anatomista do espírito parisiense:

       “Chove; não haverá nada esta noite”.

       Porém, depois do dia 10 de Março, tudo pressagiava a ruína para os girondinos: Marat, acusado e absolvido, levado em triunfo, Robespierre e Danton reconciliaram-se como se reconciliam o tigre e o leão para derrubar o touro, que devem devorar; Henriot, o Setembrista, é nomeado comandante geral da guarda nacional. Tudo pressagiava o dia terrível, que devia romper, na fúria da tempestade, o último dique que a revolução opunha ao Terror.

       Maurício, em qualquer outra circunstância, teria tomado nos acontecimentos que se preparavam uma parte activa, como era próprio do seu carácter vigoroso e do seu exaltado patriotismo; mas feliz ou infelizmente para Maurício, nem as prédicas de Lorin, nem os terríveis sucessos das ruas tinham podido afugentar do seu espírito a única idéia que o preocupava, e, quando chegou o dia 31 de Maio, o terrível sitiador da Bastilha e das Tulherias estava deitado na cama, consumido por essa febre do amor, que é capaz de deitar por terra a mais forte organização, mas que um simples olhar consegue desvanecer e que se cura com uma palavra.

 

O dia 31 de Maio

       Na manhã do famigerado 31 de Maio, em que os sinos e tambores tocando a rebate, atroavam os ares desde o romper da alva, o batalhão de Saint-Victor entrou de guarda ao Templo.

       Depois de preenchidas todas as formalidades do estilo e de postadas as sentinelas, chegaram os membros da municipalidade de serviço, e logo após eles um reforço de quatro peças de artilharia veio fazer companhia às que estavam postas à porta do Templo.

       Juntamente com a artilharia, chegou Santerre, com as suas dragonas de lã amarela, e uma farda, que oferecia à vista, nas numerosas nódoas de gordura que a esmaltavam, um atestado de patriotismo do seu dono. Passou revista ao batalhão que achou em boa ordem, e em seguida contou os membros da municipalidade, que eram só três.

       – Por que motivo estão aqui presentes unicamente três membros da municipalidade? – perguntou ele; – qual é o mau cidadão que faltou?

       – O indivíduo que aqui falta, cidadão general, não é nenhum tíbio – respondeu o nosso antigo conhecido Agrícola; – é o secretário da secção Lepelletier, o chefe dos valentes Termópilas, o cidadão Maurício Lindey.

       – Bem, bem – disse Santerre, – conheço tão bem como tu o patriotismo do cidadão Maurício Lindey: todavia se dentro de dez minutos não se apresentar no seu posto, nem por isso deixará de ser notado na relação dos ausentes.

       E Santerre passou a dar ordens.

       Na distância de alguns passos do general, na ocasião em que ele proferia as palavras acima, estavam um capitão de atiradores e um soldado; este, encostado à arma e aquele assentado numa peça.

       – Ouviu – disse a meia voz o capitão para o soldado; – o Maurício ainda não chegou.

       – Sim, mas não tardará por aí, se é que não anda metido em algum motim.

       – Se ele não vier – disse o capitão – hei-de postar-me de sentinela na entrada e como provavelmente ele há-de subir à torre, poderei dar-lhe uma palavra de passagem.

       No mesmo momento entrou um homem, que pela faixa tricolor mostrava ser membro da municipalidade: este indivíduo que não era conhecido do capitão nem do soldado, atraiu-lhe particularmente a atenção.

       – Cidadão general – disse o recém-chegado dirigindo-se a Santerre – peço-te que me recebas para substituir o cidadão Maurício Lindey, que está doente; aqui está o atestado, do médico; o meu dia de serviço era de hoje a oito dias, troquei com ele: daqui a oito dias entrará ele de serviço em meu lugar.

       – Se o Capeto e as Capetas ainda viverem de hoje a oito dias – disse um dos membros da municipalidade.

       Santerre aprovou com um sorriso o gracejo do zeloso cidadão; e depois voltando-se para o substituto de Maurício, disse:

       – Está bem; vai assinar o teu nome no registro em lugar de Maurício Lindey e declara na casa das observações o motivo da troca.

       O capitão e o atirador tinham olhado um para o outro como desagradavelmente surpreendidos.

       – Ainda daqui a oito dias – disseram eles em voz muito baixa.

       – Capitão Dixmer – bradou Santerre – vá ocupar o jardim com a sua companhia.

       – Venha, Morand – disse o capitão para o atirador, seu companheiro.

       O tambor rufou, e a companhia comandada pelo mestre curtidor, marchou a ocupar a posição que lhe fora designada.

       Os soldados ensarilharam armas, e concluído isto, romperam a forma e começaram a passear aos grupos em diferentes direcções.

       O local em que passeavam era o mesmo jardim onde, em vida de Luís XVI, a família real ia às vezes tomar ar. Era um jardim nu, árido, assolado e completamente despido de flores, de árvores e de verdura.

       Em distância de uns vinte e cinco passos, naquela parte do muro que deitava para a rua Porte-Foin, existia uma espécie de barracão, que a previdente municipalidade deixara edificar para maior comodidade dos guardas nacionais que entravam de guarda no Templo, os quais, no dia de tumulto, em que era proibido sair, achavam ali de comer e de beber.

       Tinha havido grandes empenhos para obter a administração daquela tabernazinha interna, e acabara por ser concedida a uma mulher chamada Plumeau, viúva dum habitante dos bairros, que fora morto no dia 10 de Agosto.

       O barracão, construído de tábuas e taipa, estava situado no centro de um alegrete, de que ainda se viam alguns vestígios numa bancada de buxo.

       Constava de um único quarto de uns doze pés quadrados, por baixo do qual havia uma adega, para onde se descia por degraus grosseiramente cortados na terra.

       Era ali que a viúva Plumeau arrecadava os líquidos e comestíveis que tinha para a venda; e no serviço do estabelecimento revezavam-se ela e a filha, que era uma criança de doze a quinze anos.

       Os guardas nacionais, logo que acabaram de estabelecer o seu acampamento, começaram, como já dissemos, uns a passear pelo jardim, outros a conversar com os carcereiros; alguns a admirar os desenhos traçados nos muros, os quais representavam todos alguma idéia patriótica, como por exemplo, o rei enforcado, e este letreiro por baixo:

      

       “O Sr. Veto tomando um banho de ar”.

      

       Ou o rei guilhotinado, com esta legenda:

      

       “O Sr. Veto cuspindo no saco”.

      

       Outros, finalmente, dirigiram-se à viúva Plumeau a fim de lhe dar conhecimento das combinações gastronómicas que lhes sugeria o apetite.

       Entre estes últimos figuravam o capitão e o atirador, de que já falámos.

       – Ah! Capitão Dixmer – disse a taberneira – tenho um vinho de Saumur famoso.

       – Muito bem, cidadã Plumeau, porém o vinho de Saumur, no meu fraco entender, não tem graça nenhuma, quando não é acompanhado de queijo de Brie – respondeu o capitão, o qual antes de emitir este parecer, tinha olhado com toda a atenção para as prateleiras, procurando com a vista o queijo que acabava de gabar.

       – Ai, capitão, parece que nem de propósito; neste mesmo instante me compraram o bocado que ainda restava.

       – Pois então – disse o capitão – visto não haver queijo de Brie, não se beberá o vinho de Saumur: e nota, cidadã, que a despesa que vinha fazer não era pequena, pois tencionava convidar toda a companhia.

       – Meu capitão, peço-te que me concedas cinco minutos e vou num pulo buscar o queijo a casa do cidadão carcereiro, que também o vende para me tirar a freguesia; é verdade que hei-de pagá-lo por mais do seu valor, porém tu, que és tão bom patriota, não deixarás de indemnizar-me.

       – Sim, sim, vai – respondeu Dixmer – e nós, enquanto estiveres fora, vamos lá baixo à adega escolher o vinho.

       – Faz de conta que estás em tua casa, capitão.

       E dizendo isto, a viúva Plumeau partiu a correr para o lado da casa do carcereiro, enquanto o capitão e o atirador, tendo acendido primeiramente uma vela, levantavam o alçapão e desciam para a adega.

       – Bom! – disse Morand depois de curto exame – a adega prolonga-se na direcção da rua Porte-Foin, tem de fundo uns nove ou dez pés, e não tem obra de pedreiro.

       – Qual é a natureza do terreno? – perguntou Dixmer.

       – Chão barrento. São terras levadiças; como o jardim tem sido revolvido em várias épocas, não há receio de encontrar rocha.

       – Vamos depressa! – exclamou Dixmer, – já ouço os tamancos da nossa vivandeira; pegue em duas dessas garrafas de vinho e subamos.

      

       Chegavam ambos à entrada do alçapão quando a Plumeau apareceu trazendo o famoso queijo de Brie, pedido com tanta insistência.

       Atrás dela vinham alguns atiradores atraídos pela aparência do queijo.

       Dixmer tomou a presidência; ofereceu umas vinte garrafas de vinho aos soldados da sua companhia, e enquanto bebiam, o cidadão Morand narrou-lhes o sacrifício de Curtio, o desinteresse de Fabrício, e o patriotismo de Bruto e Cassio, e em honra da verdade devemos dizer que todas essas histórias foram recebidas quase com tanto agrado como o queijo de Brie e o vinho de Anjou distribuído por Dixmer.

       Deram onze horas.

       Era às onze horas e meia que deviam ser rendidas as sentinelas.

       – Não é ordinariamente do meio-dia à uma hora que a Austríaca sai a passeio? – perguntou Dixmer a Tison, que por acaso ia passando pela frente do barracão.

       – Do meio-dia à uma hora, exactamente – respondeu este; – e em seguida cantarolou:

      

                       Subiu a senhora à torre

                       Mironton, tonton, mirontene,

                       Subiu a senhora à torre

                       Com gesto grave e solene

      

       Esta chistosa facécia foi aplaudida pelos guardas nacionais.

       Dixmer fez a chamada dos indivíduos da sua companhia, a quem tocava entrar de quarto das onze e meia à uma e meia, recomendou-lhes que aviassem o almoço e mandou aprontar Morand para se colocar conforme tinha ajustado, no último andar da torre, na mesma guarita, atrás da qual se tinha escondido Maurício no dia em que surpreendeu os sinais que tinham sido feitos à rainha numa janela da rua Porte-Foin.

       Quem tivesse reparado em Morand quando lhe foi intimada esta ordem tão natural, e que ele já esperava, tê-lo-ia visto mudar de cor, apesar de ter o rosto meio encoberto pelas compridas melenas pretas.

       De repente um rumor surdo ecoou pelos pátios do Templo e ouviu-se em distância uma espécie de furacão de gritos e bramidos.

       – Que será aquilo? – perguntou Dixmer a Tison.

       – Oh! Oh! – respondeu o carcereiro – não é nada; algum tumultozinho que os marotos dos Brissotinos provocaram por despedida, antes de marcharem para a guilhotina.

       O motim ia aumentando a cada instante; ouvia-se o rodar da artilharia, e um grupo de indivíduos passou pela proximidade do Templo berrando:

       – Vivam as secções! Viva Henriot! Fora os Brissotinos! Fora os Rolandistas! Fora a Srª. Veto!

       – Bom, bom! – disse Tison esfregando as mãos; – vou abrir as portas à Srª. Veto para que possa ir gozar sem obstáculo do amor que lhe consagra o seu povo.

       E foi-se aproximando do postigo da torre.

       – Olá! Tison! – bradou uma voz formidável.

       – Meu general! – respondeu este parando logo.

       – Não há passeio hoje – disse Santerre – as presas não saem do quarto.

       Esta ordem não admitia réplica.

       – Muito bem – disse Tison – nesse caso menos trabalho terei hoje.

       Dixmer e Morand olharam tristemente; e enquanto não dava a hora a que este último havia de entrar de sentinela (se bem que inutilmente depois daquela ordem), foram ambos passear como por acaso entre o barracão e o muro que deitava para a rua Porte-Foin.

       Ali começou Morand a medir distâncias dando passos geométricos, isto é de três pés cada um.

       – Que distância há? – perguntou Dixmer.

       – Sessenta a setenta e um pés – respondeu Morand.

       – Quantos dias são precisos?

       Morand reflectiu um instante, riscou com uma varinha sobre a areia uns traços geométricos, que logo apagou, e respondeu:

       – Hão-de ser precisos sete dias pelo menos.

       – Maurício entra de serviço de hoje a oito dias – disse Dixmer a meia voz; – é preciso que daqui até lá tenhamos feito as pazes com ele.

       Deu a meia hora. Morand, suspirando, pegou na espingarda e foi, acompanhado de um cabo de esquadra, render a sentinela da plataforma da torre.

 

Dedicação

       No dia imediato àquele em que se tinham passado as cenas que acabámos de narrar, ou por outra, no dia 1 de Junho, às dez horas da manhã, estava Genoveva assentada no lugar do costume ao pé da janela, e a si própria perguntava qual seria a razão por que lhe pareciam os dias tão tristes e tão compridos, e por que motivo via agora com susto aproximar-se a tarde, quando dantes a desejava tão ansiosamente.

       Pensava nas noites, que para ela se passavam tão tristes actualmente, e que tão felizes haviam sido quando nelas se entretinha em recordar-se do dia que tinha decorrido, e em esperar pelo dia que havia de seguir-se.

       No meio da sua meditação lançou por acaso os olhos para uma magnífica caixa de cravos raiados e vermelhos, que durante o Inverno tirara da estufa em que Maurício tinha estado preso para os ver desabrochar no seu quarto.

       Maurício tinha-a ensinado a conservá-los na caixa de mogno em que estavam plantados, tinham sido regados, desbastados por ela mesma à vista de Maurício, e de tarde, quando ele chegava, sempre ela se comprazia em lhe fazer notar os progressos que as mimosas flores tinham feito durante toda a noite, e que eram devidos aos seus cuidados fraternais. Mas, desde que Maurício tinha deixado de aparecer, os infelizes cravos haviam sido desprezados, e agora, privados de tratamento e de cultura, os pobres botões desfalecidos e vazios inclinavam-se amarelados por cima da balaustrada a que se encostavam já quase murchos.

       Genoveva compreendeu, à vista das flores, qual era o motivo da sua tristeza. Viu que sucede às flores o mesmo que acontece com certas amizades, que sendo alimentadas e cultivadas com assiduidade, causam a alegria do coração, até que um dia um capricho ou uma desgraça corta a amizade pela raiz, e o coração, que ela animava se contrai definhado e esmorecido.

       Foi então que sentiu bem a terrível dor que lhe oprimia o coração; o sentimento que tinha querido combater, e que não pudera superar ainda, vivia no íntimo do seu pensamento, e lhe dizia mais do que nunca que só deixaria de existir quando o coração deixasse de palpitar; teve então um momento de desespero, porque conheceu que a luta se lhe tornava cada vez mais difícil e impossível, inclinou a cabeça, beijou uma das flores tão queridas e começou a chorar.

       Estava ainda enxugando as lágrimas quando o marido entrou no quarto.

       Porém Dixmer vinha tão preocupado, que não percebeu os indícios da crise dolorosa que sua mulher tinha experimentado, nem reparou sequer em que ainda tinha os olhos vermelhos.

       Verdade seja que Genoveva, apenas avistou o marido, levantou-se com vivacidade, e correndo para ele de maneira que ficasse com as costas voltadas para a janela, livrou-se de lhe dar a luz no rosto.

       – Então? – perguntou ela.

       – Nada de novo; não foi possível falar com Ela, nem escrever-lhe, nem sequer vê-la.

       – O quê – perguntou Genoveva – mesmo apesar de todo o barulho que houve em Paris?

       – Pois foi justamente todo aquele barulho que aumentou a vigilância dos guardas; recearam que no meio da agitação geral houvesse alguma tentativa contra o Templo, e na ocasião em que sua majestade estava para subir à plataforma, ordenou Santerre que não deixassem sair a rainha, nem a princesa Isabel, nem a princesa real.

       – Pobre Taverney! Que pena havia de ter.

       – Ficou desesperado quando viu que lhe escapava aquela ocasião de lhe falar. Transtornou-se-lhe o parecer a ponto tal, que me vi obrigado a puxá-lo de parte para evitar que se percebesse.

       – Mas – perguntou Genoveva – não havia no Templo nenhum membro da municipalidade conhecido?

       – Devia lá estar um, mas não tinha vindo.

       – Quem era?

       – O cidadão Maurício Lindey – respondeu Dixmer, procurando dar à voz um tom de indiferença.

       – E por que motivo não tinha comparecido? – perguntou Genoveva da mesma forma.

       – Estava doente.

       – Doente, ele?

       – Sim, e acho que bastante mal, pois sendo, como sabe, tão bom patriota, foi obrigado a pedir a outro que o substituísse na guarda do Templo.

       – Que pena!

       – Também ainda que ele lá estivesse – replicou Dixmer – nem por isso o caso mudava de figura. Pode ser mesmo que evitasse falar-me, visto estarem quebradas as nossas relações.

       – Parece-me, meu amigo – disse Genoveva – que está exagerando a gravidade da situação. Maurício deixou de vir aqui por esquisitice de génio, ou por algum motivo talvez bem frívolo, mas não se tornou por isso nosso inimigo. A quebra de relações não destrói a civilidade, e creio que, se ele visse que se dirigia a falar-lhe, ter-lhe-ia poupado metade do caminho.

       – Genoveva – disse Dixmer – para alcançar de Maurício o que nós esperávamos, não bastam relações de pura civilidade, nem talvez o conseguisse uma amizade verdadeira.

       E dizendo isto, Dixmer suspirou sentidamente, mostrando pela alteração da fisionomia, ordinariamente tão serena, quanto o magoava aquele assunto.

       – Porém – disse submissamente Genoveva – se julga o Sr. Maurício tão necessário para os projectos que tem em vista...

       – Dir-lhe-ei mais – respondeu Dixmer – não tenho esperança alguma de os poder levar a cabo sem ele.

       – Pois sendo assim, porque não vai procurar novamente o cidadão Lindey?

       Julgava ela que designando assim o mancebo pelo apelido não mostrava tanta suavidade na inflexão de voz como quando o designava simplesmente pelo nome.

       – Não – respondeu Dixmer abanando a cabeça, – não, já fiz tudo quanto podia. Se fosse novamente procurá-lo decerto se admiraria de tanta insistência, e talvez chegasse a desconfiar de alguma coisa; não; e demais, quer que lho diga, Genoveva, estou percebendo tudo isto muito melhor do que a senhora: Maurício está ferido no coração.

       – Ferido? – perguntou Genoveva, assustada. – Oh! Meu Deus! Que quer dizer? Fale meu amigo.

       – Quero dizer o que a senhora sabe tão bem como eu, e é que o nosso rompimento com o cidadão Lindey não foi ocasionado por um simples capricho!

       – Qual é então a causa a que atribui semelhante rompimento?

       – A soberba talvez – disse Dixmer com vivacidade.

       – A soberba!...

       – Sim, pode muito bem ser que aquele honrado burguês de Paris, meio aristocrata togado, que ainda conserva todas as susceptibilidades, apesar da capa de patriotismo, julgasse, lá de si para si, que um republicano como ele, tão poderoso na sua secção, no seu clube e na sua municipalidade, descia da sua dignidade honrando-nos com a sua amizade, a nós, simples fabricantes de peles. Talvez se persuadisse que o tratávamos com pouca consideração.

       – Mas – replicou Genoveva – concedendo que assim fosse, parece-me que o passo que deu devia ter remediado tudo isso.

       – Sim, por certo, dado o caso de ser eu o culpado, mas pelo contrário a culpa foi sua...

       – Minha? E como julga possível, meu amigo, que eu tenha culpas para com o Sr. Maurício? – perguntou Genoveva com admiração.

       – Ora! Quem sabe? Com o carácter que ele tem... Não foi porventura a senhora que me disse que ele era dotado de espírito fantástico? Ainda persisto na minha idéia que tive, Genoveva, fez mal em não escrever a Maurício.

       – Eu! – exclamou Genoveva; – é possível que pense em... O senhor?

       – Penso, sim – respondeu Dixmer – e digo-lhe mais, durante estas três semanas, que têm decorrido desde que se interromperam as suas relações com ele, tenho pensado muito nisso.

       – E...? – perguntou Genoveva timidamente.

       – E julgo que não pode dispensar-se de o fazer.

       – Oh! – exclamou Genoveva – não, não, Dixmer, não exija de mim semelhante coisa.

       – Sabe muito bem, Genoveva, que não costumo exigir coisa alguma da senhora, peço unicamente. Peço-lhe pois, percebe? que escreva ao cidadão Maurício.

       – Porém... – disse Genoveva.

       – Ouça-me – replicou Dixmer interrompendo-a; – Maurício nunca se queixou do meu procedimento para com ele; o motivo da desinteligência procede pois da senhora, e das duas uma, ou teve origem nalguma ofensa muito grave, ou não passa de alguma criancice.

       Genoveva não respondeu.

       – Se a desinteligência foi motivada por criancice, seria loucura da sua parte tomá-la a sério, e dado o caso que tivesse origem nalguma ofensa grave, note bem que estamos chegados a ponto tal, que não devemos olhar a considerações de dignidade nem sequer de amor próprio; não nos é lícito sacrificar os interesses da causa que defendemos a amuos de crianças. Faça portanto um esforço, escreva um bilhete ao cidadão Maurício Lindey e ele voltará.

       Genoveva reflectiu um instante.

       – Mas – disse ela – não haverá meio algum de conseguir com menos comprometimento, a sua reconciliação com o Sr. Maurício?

       – Comprometimento, disse a senhora? Parece-me, pelo contrário, que é muito natural o meio que proponho.

       – Para mim decerto que não, meu amigo.

       – Muito teimosa é, Genoveva!

       – Serei, mas far-me-á justiça de dizer que é a primeira vez que assim me julga.

       Havia já alguns instantes que Dixmer tinha puxado pelo lenço e o estava amarrotando entre as mãos; levou-o agora à cara, para limpar o suor que lhe caía da testa.

       – É verdade – disse ele – e por isso ainda mais me admiro.

       – Meu Deus! – exclamou Genoveva – será possível, Dixmer, que não tenha percebido o motivo por que resisto a obedecer-lhe, e que queira obrigar-me a dizê-lo?

       Ao proferir estas palavras, abaixou a cabeça sobre o peito, e deixou pender os braços para os lados, como já cansada da discussão.

       Dixmer pegou na mão de Genoveva, obrigou-a a, levantar a cabeça, e olhando para ela fixamente rompeu numa gargalhada, que decerto teria parecido bem formada a Genoveva, se naquela ocasião ela própria estivesse menos agitada.

       – Já percebo o caso – disse ele: – tem razão, é verdade. Eu estava cego. Apesar de todo o seu juízo, minha querida Genoveva, e do tacto tão fino que possui, acreditou numa banalidade, pensou que Maurício era capaz de se apaixonar pela senhora.

       Genoveva sentiu no coração uma impressão de frio mortal. A ironia do marido, a respeito do amor que por ela tinha Maurício, e cuja violência ela avaliava bem, porque conhecia o carácter do mancebo, tanta impassibilidade quando se tratava daquele amor, que ela compartilhava no fundo do coração, como lho diziam os secretos remorsos que lho dilaceravam, horrorizou-a. Nem teve ânimo para o encarar, nem força para lhe responder.

       – Adivinhei, não é verdade? – continuou Dixmer. – Pois bem, sossegue, Genoveva, conheço Maurício; é um republicano indómito, e o único amor que tem no coração é o amor da pátria.

       – Está bem certo do que diz? – perguntou Genoveva cravando os olhos no marido.

       – Sem dúvida alguma – respondeu Dixmer; – se Maurício lhe tivesse amor, em vez de romper comigo, ter-se-ia esmerado em agradar-me para me enganar mais facilmente. Se Maurício lhe tivesse amor, não teria desistido da entrada que aqui tinha como amigo íntimo, pois é o título com que geralmente se encobrem traições de tal natureza.

       – Falemos sério! – exclamou Genoveva – peço-lhe que não graceje com semelhantes coisas.

       – Não estou gracejando, minha senhora, digo-lhe que Maurício não lhe tem amor, mais nada.

       – E eu digo-lhe que está enganado.

       – Se assim é – replicou Dixmer – digo-lhe que Maurício é um homem honrado, visto que preferiu deixar de vir aqui a trair a confiança que nele depositava um amigo; ora, sendo os homens honrados coisa raríssima, Genoveva, acho que devemos fazer toda a diligência para conservar a amizade daquele que o acaso nos deparou. Escreverá pois a Maurício, sim, Genoveva?

       – Oh! Meu Deus! – disse ela.

       E apertou a cabeça com as mãos, pois via que o apoio em que tinha posto a sua esperança para o momento do perigo lhe faltava de repente e a precipitava em lugar de a deter.

       Dixmer olhou para ela um instante, e depois, fingindo um sorriso, disse:

       – Vamos querida amiga, deixemos esse amor próprio de mulher; se por acaso Maurício tornar a fazer-lhe essa declaração, receba-a com uma risada, como recebeu decerto a primeira. Conheço-a bem, Genoveva, tem um coração bem formado; confio na senhora.

       – Oh! – bradou Genoveva deixando-se escorregar pela cadeira e ajoelhando; – Oh! Meu Deus! Quem pode confiar nos outros, quando ninguém pode confiar em si?

       Dixmer tornou-se pálido como se o sangue todo lhe houvera afluído ao coração.

       – Genoveva – disse ele – conheço que fiz mal em suscitar esta questão, que tanta pena lhe causou. Era melhor ter-lhe dito simplesmente: Genoveva, estamos numa época em que são precisos grandes sacrifícios; consagrei à rainha, nossa bemfeitora, não só o meu braço e a minha cabeça, mas também a minha felicidade. Outros darão por ela a vida; eu faço mais ainda do que se desse a vida por ela, porque exponho a minha honra; e a perda da minha honra será apenas mais uma lágrima no meio do mar de desgostos que em breve há-de cobrir toda a França. Porém a minha honra nada periga, entregue como está, a uma mulher como a minha Genoveva.

       Era a primeira vez que Dixmer lhe descobria assim os pensamentos sem rebuço.

       Genoveva ergueu a cabeça e olhou para ele cheia de admiração, e logo, levantando-se vagarosamente, deu a testa a beijar.

       – Assim o quer? – perguntou ela.

       Dixmer fez sinal afirmativo.

       – Dite, pois – disse ela – e pegou na pena.

       – Nada – respondeu Dixmer – quero servir-me do préstimo daquele honrado mancebo, mas não quero enganá-lo; e como a sua reconciliação connosco há-de realizar-se em conseqüência de uma carta que ele há-de receber de Genoveva, desejo que a carta seja realmente de Genoveva e não minha.

       Dixmer beijou novamente a mulher na testa, agradeceu-lhe e saiu.

       Foi então que Genoveva escreveu a tremer o seguinte:

      

       “Cidadão Maurício.”

      

       “Sabe muito bem quanto meu marido o estimava. Será possível que o tenha esquecido nestas três semanas de separação, que nos tem parecido um século? Venha, aqui o esperamos; o seu regresso será para nós uma verdadeira felicidade.”

       “Genoveva”.

 

A deusa Razão

       Maurício estava realmente doente, conforme mandara dizer ao general Santerre.

       Desde que não saía de casa, Lorin tinha ido visitá-lo regularmente e procurava por todos os modos distraí-lo, porém a tudo Maurício resistira. Há doenças de que ninguém deseja curar-se.

       No primeiro dia de Junho chegara ele por volta da uma hora.

       – Que grandes novidades temos hoje? – perguntou Maurício; – vens muito puxado!

       E com efeito, Lorin vestia esmeradamente; trazia barrete vermelho, carmanhola e uma faixa tricolor, onde brilhavam dois instrumentos, a que então chamavam galhetas do abade Maury, e que antes e depois daquela época sempre foram designados pelo simples nome de pistolas.

       – Em primeiro lugar – disse Lorin – temos a queda dos girondinos, que a estas horas se está efectuando a toque de caixa. Neste momento, em que estou falando, estão-se aquecendo balas ardentes na praça do Carroussel; temos, além disso, uma grande e solene função para a qual venho convidar-te, e que há-de verificar-se depois de amanhã.

       – Mas hoje que temos? Dizias que vinhas buscar-me?

       – Sim; hoje realiza-se o ensaio geral.

       – Qual ensaio?

       – O ensaio geral da grande função.

       – Meu caro amigo – disse Maurício – sabes muito bem que não saio há oito dias; por conseqüência, não estou ao facto do que se tem passado e preciso muito que me informes.

       – Como! Pois não te disse já?

       – Nada me disseste.

       – Parece-me, meu caro, que não ignoras que Deus foi suprimido agora interinamente, e substituído pelo Ente Supremo.

       – Sim, sei isso muito bem.

       – Pois bem, julga-se ter havido alguma desconfiança de que o Ente Supremo seja moderado, rolandista ou girondino.

       – Lorin, não brinques com coisas sagradas; sabes muito bem que não gosto disso.

       – Que queres meu rico! Se este é o espírito do século. Eu não desgostava do Deus antigo, e um dos motivos era porque já estava acostumado com ele. Agora, pelo que diz respeito ao Ente Supremo, desconfio que tenha realmente algumas culpas, e bem se vê que, depois de subir ao poder, tudo tem ido de mal a pior; finalmente, os nossos legisladores decretaram-lhe a demissão.

       Maurício encolheu os ombros.

       – Podes encolher os ombros à tua vontade – disse Lorin.

      

                       Invocando uma sã filosofia.

                       Nós, de Momo verdadeiros partidários,

                          In Partibus mandamos que da Folia

                       Também o culto tenha sectários.

      

       – E aí tens – continuou Lorin – porque vamos passar a adorar a deusa Razão.

       – E tu também entras nessas momices? – perguntou Maurício.

       – Ai, meu amigo, se tu conhecesses como eu a deusa Razão, serias um dos seus mais entusiastas partidários. Ouve, quero que a conheças, hei-de apresentar-te a ela.

       – Deixemos essas loucuras: sabes muito bem quanto estou triste.

       – Mais um motivo, com os demónios! Far-te-á esquecer a tristeza. Olha que é boa rapariga. Mas é verdade! Tu conheces perfeitamente a deusa austera que está para ser coroada de louros pelos parisienses, e mostrada pelas ruas num carro de papelão dourado! E... Aposto que não adivinhas.

       – Como queres tu que adivinhe?

       – É a Artemísia.

       – A Artemísia – repetiu Maurício procurando recordar-se, mas sem se lembrar de pessoa alguma com semelhante nome.

       – Sim, uma rapariga alta, morena, com quem eu travei conhecimento o ano passado... no baile de máscaras da Ópera; por tal sinal que tu foste cear connosco e embebedaste-la.

       – Ah! sim, é verdade – respondeu Maurício – agora me lembra; e é ela?...

       – É ela a que reúne o maior número de probabilidades. Apresentei-a a concurso, e os Termópilas todos me prometeram que votariam nela. Daqui a três dias, há-de realizar-se a eleição geral. Hoje temos um banquete preparatório; esta noite vamos entornar vinho de Champagne; pode ser que depois de amanhã tenhamos de derramar sangue! Mas dê por onde der, ou Artemísia há-de ser deusa, ou me há-de levar o diabo! Anda, vem daí, pedir-lhe–emos que te deixe vestir-lhe a túnica com que há-de representar.

       – Muito obrigado. Há coisas neste mundo que sempre me repugnaram.

       – Repugna-te vestir uma deusa? Irra, meu amigo! Nem todos dirão como tu. Pois bem, se queres, para te divertir, eu me encarregarei de lhe vestir a túnica e tu lha despirás.

       – Lorin, estou doente, e além de ter perdido a minha alegria incomoda-me a alegria dos mais.

       – Com efeito! Olha que me assustas Maurício; já não brigas, já não ris; dar-se-á o caso que estejas conspirando?

       – Eu! Prouvera a Deus!

       – Queres dizer: “prouvera à deusa Razão!”

       – Deixa-me, Lorin; não posso, nem quero sair! Estou bem na cama e aqui fico.

       Lorin coçou a cabeça.

       – Bom! – disse ele – já te percebo.

       – O que percebes tu?

       – Vejo que estás à espera de alguma deusa Razão.

       – Com todos os diabos! – gritou Maurício – um amigo como tu, sempre é um ente muito incómodo; vai-te embora, homem, quando não lanço-te a minha maldição a ti, e à tua deusa.

       – Pois amaldiçoa, amaldiçoa...

       Maurício já ia levantando a mão para realizar a ameaça, porém foi interrompido pelo criado, que vinha entregar uma carta dirigida ao cidadão seu amo.

       – Cidadão Cévola – disse Lorin – em má hora vieste interromper teu amo, olha que estava sublime.

       Maurício estendeu a mão com indolência para pegar na carta, porém apenas lhe tocou estremeceu, e aproximando-a dos olhos com avidez, pareceu devorar com a vista a letra e o sinete, e logo, enfiando, como se estivesse para desmaiar, rasgou excitado o sobrescrito.

       – Oh! Oh! – murmurou Lorin, – quer parecer-me que é negócio importante.

       Maurício já não ouvia; lia com toda a atenção as quatro linhas que Genoveva traçara. Leu e tornou a ler umas poucas de vezes, e afinal correu as mãos pela testa, e deixando-as cair inertes, ficou a olhar para Lorin com modo espantado.

       – Com os demónios! – disse Lorin – penso que a tal cartinha traz notícias de grande importância.

       Maurício tornou a ler a carta pela quinta vez, e sentiu que lhe subia a cor ao rosto; umideceram-se-lhe os olhos, exalou profundo suspiro, e de repente, esquecendo que estava doente e ainda fraco, saltou precipitadamente para fora da cama.

       – Traze-me o fato! – disse ele para o criado, que tinha ficado pasmado; – dá-me o fato, meu querido Cévola. Ai, meu pobre Lorin, meu bom Lorin, era isto que eu esperava todos os dias, mas confesso que já começava a desanimar. Anda depressa, um calção branco, uma camisa de tira, penteia-me imediatamente e faz-me a barba.

       O criado executou com a maior prontidão as ordens de Maurício, e num abrir e fechar de olhos, penteou-o e fez-lhe a barba.

       – Oh! Vou tornar a vê-la, vou tornar a vê-la! – exclamava o mancebo. – Na verdade, Lorin, nunca tive um dia mais feliz.

       – Meu pobre Maurício – disse Lorin – parece-me que precisas mais do que nunca ir fazer a visita que te aconselhava.

       – Oh! Querido amigo – bradou Maurício – desculpa-me, porque realmente não sei da minha razão.

       – Pois então aceita a minha; – disse Lorin rindo do detestável trocadilho.

       O mais extraordinário foi Maurício achar-lhe também graça.

       O contentamento que sentia tinha-o tornado indulgente.

       Não ficou só nisto.

       – Aqui tens – disse ele cortando de uma laranjeira um ramo cheio de flores – oferece este ramo em meu nome à benemérita viúva de Mausoléu.

       – Agora sim – exclamou Lorin – eis aqui uma galantaria de muito bom gosto, e desde já estás perdoado. E demais a mais, desconfio que estás realmente namorado, e sempre tive o maior respeito pelas grandes paixões.

       – Pois sim, é verdade, estou namorado – replicou Maurício trasbordando de alegria –estou namorado, e agora posso confessá-lo, visto que ela também me ama, porque se me não tivesse amor não me mandaria chamar, não é assim, Lorin?

       – Não há dúvida – respondeu indulgentemente o adorador da deusa Razão; – acautela-te Maurício, tu tomas o caso tanto a peito que me assustas...

      

                       Amor, às vezes duma formosura

                       É horrível traição, quando é fingido.

                       Desse gaiato a quem chamam Cupido;

                       Ri a mais modesta da nossa brandura.

      

       – Bravo! Bravo! – gritou Maurício batendo palmas.

       E logo, deitando a correr, galgou a escada em quatro pulos, e tomou apressadamente o caminho que tantas vezes trilhara, e que ia dar à rua Velha de Saint-Jacques.

       – Parece que me deu palmas, Cévola? – perguntou Lorin.

       – Deu sim, cidadão, nem é para admirar, porque os versos que disseste são muito bonitos.

       – Então está ele muito mais doente do que eu supunha – disse Lorin.

       E dizendo estas palavras, saiu também, porém com passo mais vagaroso. Artemísia não era Genoveva.

       Apenas Lorin apareceu na rua de Saint-Honoré com o seu ramo de flores de laranjeira na mão, logo uma chusma de jovens cidadãos, a quem ele costumava distribuir, décimas ou pontapés, conforme a disposição de espírito em que se achava, o seguiram respeitosamente, pensando naturalmente que era algum dos tais virtuosos, que, segundo uma proposta de Saint-Just, deviam ser brindados com um fato branco e um ramo de flores de laranjeira.

       Como o cortejo ia em progressivo aumento, tão pouco usual era, mesmo naquela época, ver um homem virtuoso, foi na presença de alguns mil jovens cidadãos que se realizou a oferta do ramo a Artemísia; e esta pública demonstração de respeito causou tal inveja em algumas outras Razões, que também pretendiam encontrar um concurso, que logo adoeceram com enxaquecas.

       A festa realizou-se efectivamente, no dia 10 de Novembro, na igreja de Nossa Senhora de Paris, mas a deusa não foi a Artemísia do nosso Lorin, apesar dos Termópilas votarem nela, em massa cerrada, sem exclusão do secretário Maurício Lindey; a deusa foi a distinta cantora Maillard, da ópera.

       Construiu-se no interior da igreja uma montanha de madeira pintada, no altar da qual se ergueu o templo da deusa Razão, alumiado pelo facho da Verdade. As autoridades, acompanhadas por um coro de donzelas vestidas de branco, tomaram lugar junto da montanha.

       A Razão saiu do templo e desceu a receber a homenagem dos assistentes. Em seguida, foi em procissão à Convenção com grande séquito e ao som das músicas. Trajava vestido branco e manto azul celeste, toucava-a o gorro da Liberdade e empunhava uma lança.

       Na Convenção, o cortejo foi acolhido com aplausos, mandando o presidente assentar a seu lado a deusa, e decretando a Assembléia a pedido da Comuna, que a antiga igreja metropolitana se ficasse chamando o templo da Razão. A deusa foi reconduzida ao Templo, onde se cantou o hino da Liberdade, hino Formosíssimo de Chenier e cuja música foi composta por Gossec.

       A festa, a que não faltou decência, foi árida, fria, e em breve haviam de se lhe seguir outras verdadeiramente ridículas, completamente torpes, positivas bacanais, quando, às primeiras deusas da Razão, que tinham sido representadas por uma cantora distinta e por mulheres de oficiais municipais, os vis hebertistas substituíram as mulheres públicas e os maiores devassos ocuparam o lugar do verdadeiro povo.

 

O filho pródigo

       Maurício ainda que tivesse asas, não teria caminhado mais depressa.

       As ruas estavam atulhadas de gente, porém Maurício, apenas notou esta circunstância quando viu que era tal o apertão que não podia correr à sua vontade; dizia-se em todos os grupos que estavam sitiando a Convenção, que a majestade do povo tinha sido ofendida nas pessoas dos seus representantes que estavam coactos, e todos estes boatos pareciam ter algum fundamento, porque os sinos tocavam a rebate e de vez em quando ouviam-se tiros de artilharia.

       Mas que importavam a Maurício naquele momento o estrondo da artilharia e o toque dos sinos? Que tinha ele com a coacção dos deputados, visto não ser com ele? Deixavam-no correr, era quanto lhe bastava.

       Durante a corrida ia pensando que Genoveva estava provavelmente à sua espera na janela que deitava para o jardim, para o saudar, apenas o avistasse, com o seu sorriso encantador.

       Era natural que Dixmer também tivesse sido avisado do seu regresso, e então havia de estender a Maurício a alentada mão, que tão franca e lealmente apertava a de um amigo.

       Estava inclinado a ser amigo de Dixmer, naquele dia até lhe parecia que já gostava de Morand com os óculos verdes, que encobriam uns olhos tão falsos.

       Contudo, o pobre Maurício tinha-se enganado nos seus cálculos, como sempre sucede dezenove vezes em cada vinte, ao homem que julga as coisas unicamente pelo seu coração.

       Em lugar daquele doce sorriso, que Maurício esperava ver assomar aos lábios de Genoveva, logo que ela o avistasse, tinha esta resolvido consigo mesma não passar dos limites da simples civilidade, persuadindo-se que assim opunha uma barreira à torrente que ameaçava invadir-lhe o coração.

       Tinha subido, por conseqüência, para o seu quarto no primeiro andar; resolvida a não aparecer em baixo senão quando fosse chamada.

       Também ela se enganava nos seus cálculos.

       O único que não se tinha enganado era Dixmer: estava espreitando a vinda de Maurício por uma janela de rótula, e ria ironicamente.

       O cidadão Morand estava ocupado com toda a pachorra em tingir de preto uns rabinhos destinados a serem cosidos em umas peles de gato brancas, para imitar arminho.

       Maurício empurrou a portinha do beco, para entrar familiarmente pelo jardim; a campainha pregada na porta tiniu como era costume e deu sinal da entrada de Maurício.

       Genoveva, que estava de pé por dentro da janela cerrada estremeceu e deixou cair a cortina, que tinha levantado.

       Já se vê que a primeira sensação que Maurício experimentou ao entrar em casa de Dixmer foi uma decepção nas suas esperanças. Não só Genoveva não o esperava à janela do quarto baixo, mas, quando entrou na saleta, onde se tinha despedido dela, não a encontrou e teve de mandar recado, como se as três semanas que tinham decorrido o houvessem tornado estranho à casa.

       Sentiu um aperto de coração.

       Foi Dixmer quem primeiro apareceu a Maurício: Dixmer veio correndo ao encontro de Maurício, e abraçou-o com exclamações de alegria.

       Logo depois, desceu Genoveva; tinha esfregado as faces para as fazer vermelhas, porém, antes de chegar ao fim dos vinte degraus que tinha a escada, já estava descorada.

       Maurício, apenas viu aparecer Genoveva à entrada da porta, caminhou risonho para ela, a beijar-lhe a mão, e foi então que notou quanto estava mudada.

       Ela também reparou com susto na magreza de Maurício, bem como no fogo e no brilho do olhar.

       – Até que finalmente aparece! – disse ela sem poder comprimir a agitação da voz.

       Tinha projectado dizer-lhe com voz indiferente:

       – Muito bons–dias, cidadão Maurício, já não há quem tenha o gosto de o ver!

       Pois a variante ainda pareceu muito fria a Maurício; e contudo que diferença!

       Dixmer pôs termo aos exames e recriminações recíprocas. Deu ordem para que pusessem o jantar na mesa, pois eram quase duas horas.

       Maurício, ao entrar na casa de jantar, logo viu que o esperavam, porque o seu talher já estava posto.

       Foi então que chegou o cidadão Morand, vestido com a mesma casaca parda e o mesmo colete de cetim. Trazia como sempre os óculos verdes, grandes melenas pretas e a inseparável tira na camisa.

       Maurício tratou-o com a maior afabilidade possível, pois quando o via de perto sempre lhe parecia um ente muito menos perigoso do que se lhe afigurava quando estava longe dele.

       E na verdade, como seria possível que Genoveva pudesse gostar do tal químico? Era preciso estar muito namorado e muito louco para ter uma lembrança tão disparatada.

       Nem era ocasião própria para ter ciúmes. Maurício tinha no bolso do colete o bilhete de Genoveva, e o coração, palpitando de encontro a ele.

       Genoveva tinha recuperado a sua serenidade. As mulheres são por tal forma organizadas, que a impressão do momento presente consegue quase sempre fazê-las esquecer as recordações do passado e os receios do futuro.

       Genoveva sentia-se feliz, e por conseqüência tornou-se senhora de si, tranqüila e indiferente, se bem que afável ao mesmo tempo; Maurício não tinha bastante finura para perceber o motivo desta indiferença, que Lorin teria sem dúvida explicado com alguma citação dos seus poetas favoritos.

       Foi o assunto da conversa a deusa Razão: a queda dos girondinos e o culto novo, em virtude do qual o património do Céu passava para mãos femininas; eram então os dois acontecimentos mais notáveis. Dixmer afirmou que não teria desgostado que oferecessem a Genoveva uma dignidade tão inapreciável.

       Maurício deu uma risada. Porém Genoveva foi do mesmo parecer do marido, e Maurício ficou a olhar para eles ambos, pasmado de ver até que ponto o patriotismo era susceptível de desviar a imaginação de um homem tão sisudo como Dixmer, e de uma mulher de génio tão poético como Genoveva.

       Maurício sorriu: as palavras de Morand eram cruéis sarcasmos contra as tais patriotas fêmeas, que mais tarde foram designadas pela alcunha horrenda de lambedoras da guilhotina.

       – Ah! Cidadão Morand – disse Dixmer – respeitemos o patriotismo, mesmo nos seus desvarios.

       – Quanto a mim – disse Maurício – a respeito de patriotismo, acho que as mulheres sempre são suficientemente patriotas quando não são demasiado aristocráticas.

       – Tem muita razão – disse Morand; – confesso francamente que tão desprezível me parece uma mulher quando quer afectar maneiras varonis, quanto me parece cobarde o homem que dirige um insulto a uma mulher, ainda que essa mulher seja a sua maior inimiga.

       Morand acabava de atrair Maurício mui naturalmente para um assunto bastante melindroso. Maurício por um aceno, tinha respondido afirmativamente; estava aberta a discussão.

       Então Dixmer, semelhante a um arauto pronto a dar sinal para o combate, interpôs-se perguntando:

       – Espere um pouco, cidadão Morand; não exceptuará porventura as mulheres que são inimigas da nação?

       A esta réplica, dada à resposta de Morand e ao aceno de Maurício, seguiu-se um silêncio de alguns segundos.

       Foi Maurício quem rompeu o silêncio.

       – Não exceptuemos ninguém, – disse ele com tristeza – as mulheres que foram outrora inimigas da nação bem castigadas estão sendo hoje.

       – É às presas do Templo que alude, à Austríaca, à irmã e à filha do Capeto? – perguntou Dixmer com tanta velocidade, que tirou toda a expressão às palavras.

       Morand descorou antes de ouvir a resposta do jovem membro da municipalidade, e quem lhe tivesse podido seguir os movimentos da mão naquele momento, ter-lhe-ia visto por certo um sulco ensangüentado aberto no peito pelas unhas.

       – É a elas exactamente que aludo – disse Maurício.

       – Pois quê? – perguntou Morand com voz sumida – será verdade o que por aí dizem, cidadão Maurício?

       – O que dizem? – perguntou o mancebo.

       – Que as presas estão sendo cruelmente maltratadas por aqueles mesmos indivíduos que deviam protegê-las.

       – Há homens – disse Maurício – que são indignos do nome de homens. Há cobardes que nunca entraram num combate e que procuram ocasião de dar tratos aos vencidos, para se persuadirem a si próprios que são vencedores.

       – Oh! O cidadão Maurício não pertence a essa classe de homens, disso tenho eu toda a certeza – exclamou Genoveva.

       – Minha senhora – respondeu Maurício – eu, que lhe estou falando, estive de guarda junto ao cadafalso em que morreu o rei. Tinha empunhado o meu sabre, e teria morto por minha mão todo aquele que intentasse acudir-lhe. E contudo, quando ele se aproximou do lugar onde estava, tirei involuntariamente o meu chapéu, e voltando-me para a força do meu comando:

       “Cidadãos – disse eu – previno-os de que enfio com o meu sabre o primeiro que dirigir um insulto ao ex-rei”.

       – Oh! Eu emprazo a todos que lá estavam para que digam se da minha companhia saiu uma voz. Também fui eu que escrevi por meu punho o primeiro dos dez mil editais que foram afixados em Paris quando o rei voltou de Varennes, e que diziam:

      

       “Todo aquele que tirar o chapéu ao rei será espancado: o que o insultar será enforcado”.

      

       – Pois bem – continuou Maurício, sem reparar na sensação que as suas palavras causavam no auditório – dei provas, como já disse de que sou bom e leal patriota, que detesto os reis e os seus partidários, mas declaro que apesar da minha crença política, a qual não é mais do que uma convicção íntima, e apesar da certeza que tenho de que a Austríaca muito concorreu para as desgraças que afligem a França, nunca consentirei que homem algum, nem o próprio Santerre, insulte a ex-rainha na minha presença.

       – Cidadão – interrompeu Dixmer abanando a cabeça como para desaprovar tanta ousadia – sempre é preciso que tenha muita confiança entre nós para se abalançar a proferir aqui semelhantes palavras.

       – Aqui e em toda a parte, Dixmer, e direi mais: Pode ser que ela morra no mesmo cadafalso em que morreu o marido, porém a mim não me mete medo uma mulher, e sempre hei-de respeitar um ente mais fraco do que eu.

       – E a rainha – perguntou Genoveva timidamente – deu-lhe alguma vez, Sr. Maurício, mostras de apreciar tanta delicadeza, a que por certo não está acostumada?

       – A presa tem-me agradecido por várias vezes as atenções que tenho por ela, minha senhora.

       – Sendo assim, é natural que ela estime ver chegar os dias em que lhe toca o serviço.

       – Penso que sim – respondeu Maurício.

       – Pelo que vejo – disse Morand a tremer como uma mulher – tendo o cidadão Maurício confessado uma coisa de que ninguém se gaba hoje em dia, isto é, que tem o coração generoso, também não persegue as crianças.

       – Eu! – respondeu Maurício – pergunte ao infame Simão quanto pesa o braço do membro da municipalidade diante de quem ele teve o atrevimento de bater no pequenino Capeto.

       Esta resposta ocasionou um movimento espontâneo: ergueram-se respeitosamente todos quantos estavam à mesa de Dixmer, à excepção de Maurício, que ficou assentado, bem longe de suspeitar que fosse a causa de tamanho rasgo de admiração.

       – Então que é isso? – perguntou ele muito espantado.

       – Pareceu-me que tinham chamado por mim lá da oficina – respondeu Dixmer.

       – Não, não – disse Genoveva. – Também me pareceu o mesmo, mas foi engano.

       Todos se assentaram de novo.

       – Ah! É pois, o cidadão Maurício – disse Morand com voz trémula – o membro da municipalidade de que tanto se falou, e que tão denodadamente defendeu uma criança?

       – Pois foi coisa em que se falasse? – perguntou Maurício com ingenuidade quase sublime.

       – Oh! Que nobre coração! – disse Morand, levantando-se ao mesmo tempo da mesa para reprimir a explosão dos seus sentimentos, e dirigindo-se para a oficina com o pretexto de ter de concluir um trabalho urgente.

       – Sim, cidadão – respondeu Dixmer – sim, falou-se no que praticou, e devo-lhe dizer que todos os homens briosos e valentes louvaram o seu procedimento, apesar de não o conhecerem.

       – É melhor que continue a não ser conhecido – disse Genoveva – a glória que dos nossos elogios poderia resultar-lhe seria perigosa em demasia.

       E desta sorte, em tão singular conversa, cada um dos interlocutores tinha contribuído, sem se aperceber disso, com o seu contingente de heroísmo, de dedicação e de sensibilidade.

       Para de tudo haver, até o amor tinha erguido o seu brado.

 

Os mineiros

       Quando se estavam levantando da mesa, foi Dixmer avisado de que o seu tabelião o esperava no gabinete; pediu desculpa a Maurício, como sempre costumava quando tinha de o deixar para ir aviar algum negócio, e foi ter com o tabelião.

       Tratava-se da compra de uma casa na rua da Cordoaria, em frente do jardim do Templo. Esta aquisição que fazia Dixmer era mais pelo terreno do que pelo edifício, porque o prédio estava a cair em ruínas, e ele tencionava reedificá-lo.

       O proprietário da casa não tinha posto grandes dificuldades à conclusão do ajuste; o tabelião tinha ido procurá-lo na manhã daquele dia, e convencionara com ele dar-lhe dezenove mil e quinhentos francos. Acabava de lhe levar o contrato para assinar e vinha receber a soma que havia de ser entregue em troca do prédio: o proprietário devia despejar a casa naquele mesmo dia, para que os operários pudessem tomar conta dela no dia seguinte.

       Dixmer e Morand, depois de assinado o contrato, foram com o tabelião à rua da Cordoaria, para verem imediatamente a sua nova aquisição, pois tinha sido comprada a casa sem que a tivessem examinado.

       Era um prédio situado no local onde existe o n.º 29, pouco mais ou menos, tinha três andares e águas-furtadas.

       O andar térreo havia sido alugado noutro tempo a um negociante de vinhos, e tinha magníficas adegas subterrâneas.

       O proprietário gabou especialmente as adegas; era a parte mais notável da casa; Dixmer e Morand mostraram fazer pouco apreço das tais adegas, e contudo ambos eles, como por condescendência, foram, acompanhados do proprietário ver os subterrâneos.

       O proprietário não tinha mentido, mas geralmente é costume; as adegas eram excelentes, uma delas havia sido construída mesmo por baixo da rua da Cordoaria, ouvindo-se o rodar das carruagens por cima da abóbada.

       Dixmer e Morand não mostraram grande valor àquela parte do prédio, e até falaram em mandar atulhar os subterrâneos, os quais eram certamente muito úteis para um negociante de vinhos, mas não tinham serventia alguma para simples cidadãos, que apenas queriam a casa para habitação.

       Depois dos subterrâneos foram ver o primeiro andar, daí o segundo, e depois o terceiro; do terceiro avistava-se inteiramente o jardim do Templo; estava, segundo o costume, ocupado pela guarda nacional, que havia tomado posse dele desde que a rainha deixara de lá ir passear.

       Dixmer e Morand viram a sua patroa, a viúva Plumeau, fazendo com a usual actividade as honras da tasca; mas é de supor que não tivessem grande desejo de ser vistos por ela também, porque se conservaram encobertos pelo proprietário, que lhes estava fazendo notar o encanto de uma vista tão variada e agradável.

       O comprador desejou ver também as águas-furtadas.

       O proprietário não esperava provavelmente semelhante exigência, e por isso não trazia consigo a chave; mas, cativado pela vista de um maço de assinados que já havia lobrigado, desceu com a maior prontidão a buscá-la.

       – Não me tinha enganado no meu cálculo – disse Morand – esta casa serve admiravelmente para o nosso fim.

       – E que tal lhe parece a adega?

       – É um auxílio que nos dá a Providência e que sempre nos poupará dois dias de trabalho.

       – Julga que ficará paralela à adega da taberna?

       – Inclina mais para a esquerda, mas não importa.

       – Porém – perguntou Dixmer – como fará para abrir o caminho subterrâneo com certeza de ir sair justamente onde pretende?

       – Não lhe dê isso cuidado, caro amigo, bem sei o que hei-de fazer.

       – Não seria conveniente aproveitarmos a ocasião para fazer daqui sinal de que estamos alerta?

       – Sim, mas a rainha não poderá ver da plataforma, nem que o fizéssemos das águas-furtadas, porque duvido que elas alcancem à altura da plataforma.

       – Não importa – respondeu Dixmer – pode ser que Toulan ou Maudy o vejam de alguma fresta, e não deixarão de avisar sua majestade.

       E Dixmer, em seguida, atou uns poucos de nós na ponta de uma cortina de paninho branco e deixou-a pender para fora da janela, como se tivesse sido impelida pelo vento.

       Acabado isto, saíram ambos para o patamar da escada a esperar pelo senhorio, que devia trazer a chave das águas-furtadas, tendo previamente fechado a porta do quarto, para que o honrado cidadão não se lembrasse de tirar para dentro a ondeante cortina.

       As águas-furtadas, como muito bem dissera Morand, não alcançavam à altura da torre.

       Resultava deste inconveniente uma dificuldade e uma vantagem: a dificuldade era de não poder haver comunicação com a rainha por meio de sinais; e a vantagem era que esta mesma impossibilidade afastava toda e qualquer desconfiança. As casas muito elevadas eram geralmente mais vigiadas.

       – Seria preciso procurar meio de lhe mandar dizer por Maudy ou Toulan, ou pela rapariga da Tison, que esteja prevenida – disse Dixmer a meia voz.

       – Hei-de pensar nisso – respondeu Morand.

       Voltaram abaixo; o tabelião estava esperando na sala com o contrato já assinado.

       – Está muito bem – disse Dixmer – a casa agrada-me, pode entregar ao cidadão os dezenove mil e quinhentos francos em que concordámos e dê-lhe o recibo para assinar.

       O senhorio contou o dinheiro com todo o escrúpulo e firmou o recibo.

       – Sabe, cidadão – disse Dixmer – que a cláusula principal deste contrato é que a casa me será entregue esta noite mesmo, para eu poder mandar logo de manhã para aqui os trabalhadores?

       – E não hei-de faltar ao ajuste, cidadão; pode levar consigo as chaves: antes das oito horas da noite estará completamente despejada.

       – Ah! É verdade – respondeu Dixmer – não me disse, que o prédio tinha saída para a rua de Porte-Foin?

       – Sim, cidadão – respondeu o proprietário; – porém mandei-a tapar, porque, como tenho apenas um único oficioso, era demasiado trabalho para o pobre diabo ter de acudir a duas portas. Contudo está por tal forma tapada que em menos de duas horas poder-se-á abrir novamente. Os cidadãos querem vê-la?

       – Obrigado; não é necessário incomodar-se – replicou Dixmer – é-me indiferente que ela exista ou não.

       E ambos se despediram, depois de terem pela terceira vez, recomendado ao senhorio que não esquecesse a sua promessa de dar o prédio despejado às oito horas da noite.

       Pela volta das nove horas voltaram ambos, seguidos em distância por cinco ou seis indivíduos, nos quais ninguém fez reparo graças à confusão que reinava em Paris.

       Entraram primeiro os dois: o senhorio tinha cumprido a sua palavra; a casa estava despejada.

       Fecharam as portas das janelas com todo o cuidado: feriram lume e acenderam velas, que Morand havia trazido na algibeira.

       Os cinco ou seis homens entraram então um por um.

       Eram os comensais do mestre curtidor, os mesmos contrabandistas que tinham querido uma noite matar Maurício, e que posteriormente se haviam tornado seus amigos.

       Trancaram as portas e desceram à adega.

       A adega que tão desprezada tinha sido de dia, havia-se tornado de noite a parte mais importante da casa.

       Ouvia-se, como bem tinha dito o senhorio o rodar das carruagens por cima da abóbada, prova evidente de que a adega ficava efectivamente por baixo da rua.

       Trataram imediatamente de tapar todas as frestas, para que não se lembrasse algum curioso de espreitar para dentro.

       E acto contínuo, Morand levantou um tonel vazio, puxou por uma carteira tirou um papel, e com um lápis começou a riscar figuras geométricas.

       Enquanto estava assim preocupado, os seus companheiros, capitaneados por Dixmer, saíram da casa, seguiram pela rua da Cordoaria fora, e à esquina da rua Beauce pararam ao pé de uma carruagem fechada. Dentro da carruagem estava um homem, que, sem dizer palavra, distribuiu a cada um deles um instrumento de gastador; uma enxada a um, a outro um alvião, a este uma alavanca, àquele uma pá, etc.

       Cada um deles escondeu o instrumento que lhe tinha sido entregue debaixo do casacão ou do capote. Isto feito, voltaram os mineiros para a casa donde haviam saído, e a carruagem desapareceu.

       Morand já tinha concluído o seu trabalho.

       Foi em direitura a um dos cantos da adega.

       – Cave aqui – disse ele.

       E logo, sem demora, começou a obra do livramento.

       A situação das presas do Templo tinha-se tornado de dia para dia mais crítica e dolorosa. Houve contudo um instante em que a rainha, a princesa Isabel, e a princesa real tiveram um vislumbre de esperança.

       Dois membros da municipalidade, Toulan e Lepitre, movidos de compaixão pelas augustas cativas, tinham mostrado desejos de as obsequiar.

       As pobres senhoras, pouco acostumadas a tais provas de simpatia, tinham desconfiado deles a princípio; mas quem espera sempre, ao fim de muito tempo acaba por não desconfiar.

       E demais, que receio podia ter a rainha, separada do filho pela prisão, e do marido pela morte? O de subir ao cadafalso como ele? Com a continuação de encarar constantemente este seu fim provável, já semelhante idéia lhe não dava abalo.

       A primeira vez que Toulan e Lepitre tornaram a entrar de serviço a rainha disse-lhes que se na realidade lhe eram afeiçoados, pedia que lhe contassem os pormenores da morte do rei.

       Era para eles bem penosa a prova que lhes pediam da sua simpatia. Lepitre presenciara a execução e por isso obedeceu à ordem da rainha.

       A rainha pediu os periódicos que tinham dado conta da execução. Lepitre prometeu-lhe que os traria quando entrasse novamente de serviço; os dias de serviço repetiam-se de três em três semanas.

       Enquanto o rei foi vivo, iam para o Templo quatro membros da municipalidade. Depois da morte do rei, nunca mais foram senão três; um vigiava de dia, e os restantes de noite.

       Toulan e Lepitre imaginaram então um ardil, para ficarem sempre de guarda juntos durante a noite.

       As horas da guarda eram tiradas à sorte, escrevia-se num papelinho a palavra dia, e em outros dois noite. Misturavam-se as sortes dentro de um chapéu, e o acaso designava os indivíduos que tinham de vigiar durante a noite.

       Todas as vezes que Lepitre e Toulan entravam de guarda, escreviam a palavra dia nos três papelinhos e apresentavam o chapéu ao membro da municipalidade que desejavam afastar.

       Este metia a mão na urna improvisada e tirava necessariamente uma sorte que dizia dia. Toulan e Lepitre rasgavam então as outras duas, queixando-se do azar, que sempre lhes deparava o serviço nocturno, que era o mais fastidioso.

       A rainha apenas conheceu que podia confiar-se dos seus dois guardas, tratou de os fazer entrar em relações com Filipe de Taverney.

       Combinou-se então uma tentativa de fuga. A rainha e a princesa Isabel deviam evadir-se, disfarçadas com trajos de membros da municipalidade, e munidas de bilhetes de civismo, que se lhes haviam de alcançar.

       Quanto aos dois meninos, isto é, a princesa real e o delfim, como os conspiradores tinham observado que o homem encarregado de acender os candeeiros no Templo trazia sempre na sua companhia duas crianças da mesma idade que os príncipes, resolveram que Turgy, de quem ainda não falamos, vestiria o fato do homem dos candeeiros e levaria consigo a princesa real e o delfim.

       Diremos agora em duas palavras quem era Turgy.

       Turgy era um antigo criado da ucharia, que tinha vindo para o Templo com parte do pessoal do palácio das Tulherias, porque o rei teve de princípio um serviço de mesa sofrivelmente organizado. No primeiro mês dispendeu a nação trinta ou quarenta mil francos com o custeamento da mesa real.

       Porém, como bem se pode imaginar, semelhante prodigalidade não podia durar muito. O município pôs-lhe termo. Despediu copeiros, cozinheiros, e até bichos da cozinha.

       Um único servente foi conservado, e foi justamente Turgy.

       Turgy era pois o medianeiro natural entre as cativas e os seus partidários, por isso que lhe era concedido sair, e por conseqüência podia levar bilhetes e trazer as respostas.

       Os bilhetes em geral vinham enrolados nas rolhas das garrafas de amendoada destinadas à rainha ou à princesa Isabel. Eram escritos com limão, e os caracteres conservavam-se invisíveis, até serem aproximados do fogo.

       Estava tudo pronto para a fuga, eis senão quando sucedeu um dia pegar Tison na rolha de uma das garrafas para acender o cachimbo. À medida que o papel ia ardendo, viu ele que iam aparecendo letras.

       Apagou-o logo, e levou o fragmento meio queimado ao conselho do Templo; lá chegaram-no ao fogo novamente, mas apenas puderam ler algumas palavras sem nexo, por faltar metade do papel, que tinha sido reduzido a cinzas.

       Conheceram contudo que era a letra da rainha. Interrogaram Tison, e este deu conta de ter observado que Lepitre e Toulan procuravam às vezes obsequiar as presas. Os dois comissários foram então denunciados à municipalidade e não puderam voltar mais ao Templo.

       Restava ainda Turgy.

       Mas a desconfiança tinha chegado ao maior auge; nunca o deixavam só com as princesas. Tinha-se tornado impraticável qualquer comunicação com o exterior.

       Um dia a princesa Isabel entregou a Turgy, para limpar, uma faquinha com cabo de oiro, que lhe servia para partir fruta.

       Turgy teve algumas suspeitas, e ao limpar a faca puxou pelo cabo. Este saiu do seu lugar e dentro vinha um bilhete.

       O bilhete era um alfabeto completo de sinais.

       Turgy restituiu a faca à princesa Isabel, porém um membro da municipalidade que estava presente, arrancou-lha das mãos e examinou-a também, separando igualmente o cabo da folha: o bilhete felizmente já lá não estava, mas apesar disso o membro apreendeu a faca.

       Foi então que o incansável Filipe de Taverney planeou esta segunda tentativa, que estava próxima a executar-se por meio da casa que Dixmer comprara.

       A pouco e pouco tinham as cativas perdido a esperança. Naquele dia, a rainha, aterrada pelos gritos que ressoavam na rua, e conhecendo pelas palavras que ouvia que se tratava de decretar a acusação dos girondinos, últimos sustentáculos do partido moderado, tinha-se conservado entregue à mais profunda tristeza.

       Mortos os girondinos, ficava a família real sem um único defensor na Convenção.

       Às sete horas puseram a ceia na mesa. Os membros da municipalidade examinaram os pratos todos, como sempre costumavam, desdobraram os guardanapos, sondaram o pão, um deles com o garfo, e o outro com os próprios dedos, mandaram partir os biscoutos e as nozes, tudo isto para evitar que chegasse algum bilhete às mãos das presas. Concluídos todos estes exames convidaram a rainha e as princesas a assentarem-se à mesa, dirigindo-lhes estas palavras:

       – Viúva Capeto, podes comer.

       A rainha abanou a cabeça como para significar que não tinha vontade.

       Mas ao mesmo tempo a princesa real correu para ela, fingindo querer abraçá-la, e disse-lhe em voz baixa:

       – Venha para a mesa, minha senhora, parece-me que Turgy nos está fazendo sinais.

       A rainha estremeceu e levantou a cabeça.

       Turgy estava defronte dela, com o guardanapo posto no braço esquerdo, e tocando em um dos olhos com a mão direita.

       Levantou-se logo sem mais dificuldade e foi assentar-se à mesa no seu lugar do costume.

       Os dois membros da municipalidade estavam presentes à ceia: era-lhes proibido deixarem as princesas um único instante só com Turgy.

       Os pés de Maria Antonieta e da princesa Isabel tinham-se encontrado por baixo da mesa e apertavam-se mutuamente.

       Como a rainha estava com a cara voltada para o lado onde estava Turgy, não lhe escapou nenhum dos gestos do criado.

       E demais eram gestos tão naturais, que não podiam inspirar, nem de facto inspiraram, desconfiança alguma aos membros da municipalidade.

       Acabada a ceia, foi a mesa levantada com as mesmas cautelas com que havia sido posta; até os menores bocados de pão foram apanhados e examinados, e feito isto saiu Turgy primeiro, e depois dele os membros da municipalidade, mas a mulher de Tison essa ficou.

       O génio daquela mulher havia-se tornado feroz desde que a tinham separado da filha, cujo destino nunca mais soubera.

       Todas as vezes que a rainha abraçava a princesa real, tinha tais acessos de raiva, que parecia louca; e por isso a rainha, avaliando em seu coração maternal aquelas penas de uma mãe, detinha-se freqüentes vezes quando ia para gozar da consolação, única que lhe restava ainda, de apertar a filha de encontro ao peito.

       Tison veio buscar a mulher, mas ela declarou que só se retiraria depois de verificar que se encontrava deitada a viúva Capeto.

       A princesa Isabel despediu-se então da rainha e foi para o seu quarto.

       A rainha despediu-se e deitou-se, bem como a princesa real; a mulher Tison pegou no castiçal e retirou-se.

       Os membros da municipalidade já estavam deitados nos leitos de campanha, que mandavam armar à noite no corredor.

       Um pálido raio de lua tinha vindo visitar as presas, e, introduzindo-se por uma fresta da janela, descrevia uma diagonal dali até aos pés da cama da rainha.

       Durante um instante tudo permaneceu em sossego e silêncio dentro do quarto.

       Depois girou uma porta devagarinho sobre os gonzos: uma sombra interceptou o raio de luz e aproximou-se da cabeceira do leito; era a princesa Isabel.

       – Viu? – perguntou ela em voz baixa.

       – Sim – respondeu a rainha.

       – E percebeu?

       – Percebi tão bem, que nem me atrevo a acreditá-lo.

       – Vejamos, repitamos os sinais.

       – Em primeiro lugar levou a mão aos olhos para indicar que havia novidade.

       – Depois mudou o guardanapo do braço esquerdo para o braço direito, e isto quer dizer que se trata do nosso livramento.

       – Em seguida levou a mão à testa em sinal de que o auxílio que ele nos prognostica provém do interior e não é devido a estrangeiros.

       – E quando lhe pedia que não esquecesse amanhã a amendoada que tinha encomendado, atou dois nós no lenço.

       – Vê-se pois que ainda desta vez é Filipe de Taverney. Que nobre coração!

       – É sem dúvida – disse a princesa Isabel.

       – Está dormindo, minha filha? – perguntou a rainha.

       – Não, minha mãe – respondeu a princesa real.

       – Pois então ore por quem sabe.

       A princesa Isabel voltou de manso para o seu quarto, e durante cinco minutos ouviu-se apenas o sussurro da voz da princesa, que dirigia a Deus no meio do silêncio da noite uma prece, que, apesar de partir de um anjo, não devia ser atendida.

       Era nessa mesma ocasião que se davam as primeiras enxadadas na casa da rua da Cordoaria, na direcção indicada por Morand.

 

                                                                                            Alexandre Dumas

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades