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VIAGEM PARA A TERRA DO FOGO / Heinz G. Konsalik
VIAGEM PARA A TERRA DO FOGO / Heinz G. Konsalik

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

VIAGEM PARA A TERRA DO FOGO

 

Ele não era daquelas pessoas que, quando chegam ao limite das suas forças, desistem, entregando‑se assim por inteiro ao destino. Nem sequer numa situação como aquela em que se encontrava naquele momento, em que parecia não haver hipótese de escapar ao inferno de água e vento. Porém, e embora se encontrasse em perigo de vida, restava‑lhe sempre uma certeza: cada vez que uma vaga atirava o seu barco para um vale de água revolta, voltando logo de seguida a cuspi‑lo, projectando‑o para os ares, ele pensava: "O meu barco, não se afunda! Por isso, eu também não posso afundar‑me! e  um barco feito do melhor material sintético, com câmaras de espuma no casco, que fazem com que volte sempre a endireitar‑se. e  um barco perfeito, com o qual o mar pode brincar à vontade, projectando‑o das massas de água violentas, depois erguendo‑o para o céu carregado de tempestade e fazendo‑o cair de novo para o mar furioso. O barco voltará sempre a endireitar‑se na superfície da água, como um boneco sempre‑em‑pé. As câmaras de ar garantem‑lhe o equilíbrio. O que importa e  que o casco esteja intacto e que o mar não o destrua, aniquilando assim o barco e o homem."

Prendera‑se ao cadaste com ganchos e com um cinto na barriga e nos ombros. Cada vez que surgia uma vaga que ameaçava despenhar‑se em cima dele com um barulho ensurdecedor, encolhia a cabeça, fechava os olhos, retinha a respiração, agarrava‑se ao eixo do leme que já há muito fora arrancado e rendia‑se às toneladas de água. O pequeno barco girava, dava voltas, depois endireitava‑se e voltava a dançar no mar furioso. Peter von Losskov respirava fundo, olhava para aquele inferno insuportável e para o céu cinzento e triste e depois voltava a agachar‑se perante uma nova vaga coberta de espuma que se aproximava.

A tempestade não surgira inesperadamente. Quando partira do porto nordeste da ilha de Helgoland, cerca de sete horas antes, o guarda da estação meteorológica, que se encontrava no molhe, avisara‑o:

‑ Eu devia obrigá‑lo a ficar em terra! Não vá, Peter! Isto já não tem nada a ver com investigação científica!

Ele rira‑se, acenara com as duas mãos e girara a vela grande e a vela de balão para o vento que soprava com força. Depois, dirigiu‑se a alta velocidade para o mar do Norte. Há já alguns dias que se notava um vento forte, mas só há cerca de uma hora e  que fora confirmada a aproximação de um furacão bastante forte, vindo da Islândia. Toda a costa do mar do Norte fora avisada e os barcos mais pequenos voltavam para trás tentando alcançar um porto seguro, a tempo. Nas fotografias de satélite, o centro do furacão era claramente visível.

Peter von Losskov esperara precisamente por esse momento. Preparou o seu pequeno barco de sete metros, bebeu três grogues e vestiu o seu fato de nylon cor de laranja. Era um fato com duas camadas, equipado com câmaras de ar e um colete de salvação incorporado, insuflável com a ajuda de uma pequena garrafa de ar comprimido.

 

Quando Peter von Losskov chegou à estação meteorológica para se despedir do Dr. Faller, que já trabalhava há dois anos como meteorologista em Helgoland, este levou as mãos à cabeça.

‑ Então e  esta a sua espantosa invenção? ‑ perguntou, depois de lançar um rápido olhar ao barco e ao equipamento de Peter. ‑ Meu Deus! O senhor, sendo um homem do mar, deveria saber como isto vai acabar! Aquilo parece um barco de brinquedo!

‑        Mas não se afunda, doutor! Endireita‑se sozinho. E depois ainda tenho o meu fato.

‑           Uma coisa dessas experimenta‑se num simulador!

‑           Nem o melhor simulador de vento pode substituir o mar. Eu preciso de uma prova válida para poder continuar a acreditar em mim.

‑           E se o mar não o deixar voltar?

‑           Isso e  impossível!

‑           Será necessário que eu lhe fale do que o mar e  capaz?! Uma só onda basta para fazer desaparecer um barco de duzentos metros de comprimento!

‑           É exactamente isso que torna tão vulneráveis esses barcos grandes. Um barco de sete metros, ao contrário, escapa sempre! Experimente pôr numa banheira uma saboneteira e a casca de uma avelã. Sabe o que e  que acontece? A saboneteira enche‑se de água e vai ao fundo, enquanto que a pequena casca de avelã continua sempre à superfície da água. Nunca se afundará!

‑           Isso e  uma comparação estúpida, Peter! ‑ O Dr. Faller apontou para o mais recente mapa meteorológico que acabara de ser concluído. ‑ Aproxima‑se qualquer coisa perigosa... até para as avelãs. Além disso, o senhor e  um homem e não uma casca de avelã! O mar dará cabo de si. Irá afundá‑lo, rasgá‑lo e desfazê‑lo! Sabe bem quantas toneladas pesa uma vaga gigante!

‑           E também sei como eu e o meu barco somos leves. Manter‑nos‑emos sempre à superfície, enquanto as toneladas de água passarão por cima de nós.

Era impossível impedir Losskov. Há três semanas que viera de Hamburgo para Helgoland, precisamente naquele pequeno barco branco, que supostamente não se afundava. Instalara‑se em casa de Jan Breuners no Nordeste da ilha e só foram precisos alguns dias para que ganhasse a sua alcunha: "o doido do continente". Quando boiava em frente à ilha com o seu fato especial, parecia uma laranja. Assustava os pescadores que não tinham sido avisados e que se aproximavam apressadamente para ajudar o náufrago e depois ficavam boquiabertos ao verem que se tratava de um homem que se divertia descontraidamente, recusando qualquer tipo de ajuda. Ele era o principal tema de conversa em todas as tabernas da região, de tal modo que Jan Breuners quase teve vergonha de tê‑lo hospedado em sua casa.

O Dr. Failer, porém, sabia mais do que o resto da população de Helgoland desde o dia em que convidara o "doido" para beber um copo. Ficou admirado ao descobrir que Peter von Losskov era engenheiro naval e fora tenente da marinha. Conhecia o mar tão bem como poucos habitantes locais, que normalmente só tinham estado na duna mais próxima, conheciam Lange Anna e no máximo o mar entre Helgoland e Cuxhaven. Qual deles já dera a volta ao mundo num navio‑escola à vela, ancorara em Singapura ou se envolvera numa pancadaria em Freetown, por causa de uma linda prostituta mulata? Losskov tinha muito para contar, mas do que preferia falar era da sua mais recente ideia que agora tomava conta da sua vida: antes dos famosos descobridores e navegadores como Magalhães, Cook, Vasco da Gama, Colombo ou Vespúcio, tinha de ter havido outros homens a navegar pelos mares desconhecidos e a chegar a terras novas. Assim Thor Heyerdahl, por exemplo, com a ajuda de uma simples jangada, provara que já os Egípcios haviam estado na América e que tinham construído pirâmides no México.

‑           Então, o que mais e  que quer provar? ‑ perguntou

o Dr. Faller, sem compreender. ‑ Já não há nada por descobrir!

‑           Costuma dizer‑se que as pessoas hoje em dia têm tudo, que estão amolecidas e ociosas de mais para, digamos, dar a volta à Terra do Fogo e descobrirem uma nova via marítima, como Magalhães o fez.

‑           Isso e  verdade! Nós metemo‑nos num avião e preferimos ver tudo lá de cima. e  muito mais fácil e menos perigoso. Para quê evocar a Idade Média na era atómica? - O Dr. Faller acendeu um charuto e voltou a encher o copo de Losskov de grogue. ‑ O senhor disse que queria navegar de Hamburgo pela ponta sul da América para as ilhas do Pacífico e depois continuar para o Japão e a China num pequeno barco, com uma tripulação máxima de quatro pessoas e sem grandes meios técnicos?

‑           Exactamente.

‑           E tudo isso só para provar que, por exemplo, já os VIquingues teriam sido capazes de o fazer? Meu caro, o que e  que o mundo ganha com isso?!

‑           Um interessante relato em desenhos e a certeza de que, de vez em quando, ainda existem pessoas que se tornarão imortais através de pequenas aventuras como esta.

‑           Eu não tenho nada contra a investigação, meu amigo. Quando o Piccard mergulhava para o fundo do mar, ele tinha as suas razões. Afinal, e  assim que se descobrem mundos desconhecidos. Ou vejamos então a viagem para a Lua! Foi a concretização de um eterno desejo do ser humano. Agora ao menos sabemos que não existe nenhuma senhora Luna e que esse planeta não se destina a ser um novo paraíso. Mas aquilo que o senhor pretende fazer, Losskov, e  insignificante para a investigação!

‑           Eu vejo as coisas de modo diferente ‑ retorquiu Peter com um ar sonhador. ‑ Enquanto existirem seres humanos, tudo aquilo que e  invulgar os fascinará, e serão atraidos por tudo o que parece inatingível, sendo sempre o seu desejo secreto a grande aventura. Além disso, eu quero pôr à prova o meu fato... "inafundável". ‑ Olhou para o Dr. Faller com um ar interrogativo, como um rapaz que está à espera de um elogio. ‑ Desta forma eu também contribuo para o progresso! Em breve será impossível afogar‑se.

Agora, porém, já não estava tão convencido daquilo que dissera ao Dr. Faller. As enormes vagas que se despenhavam em cima dele, pressionando‑o contra o cadaste, e a força das ondas que o impedia de respirar faziam‑no sentir‑se pequeno e impotente. Não, ele não se afogaria, afinal era igual a uma pequena casca de noz que não podia ir ao fundo... Mas iria ele sobreviver ao forte embate das vagas ou acabaria por ser moído por elas?

O mastro do barco, que agora parecia um fino pauzinho, já há muito que se partira e fora arrastado para o mar. E, como num gesto de reconciliação, o vento voltara a insuflar as velas amarradas e rizadas.

O mastro voara pela tempestade como um pássaro gigante, branco e luminoso, parecendo liberto de gravidade, como se dançasse em êxtase, balançando sobre as ondas espumantes, até desaparecer num vale de água. Losskov observara esse espectáculo com os olhos bem abertos. Deixara de se sentir o senhor dos mares com o seu barco de plástico "inafundável". Só lhe restava esperar que uma vaga gigante o esmagasse. Dali a dois ou três dias, o casco do barco branco seria encontrado e nele achariam um homem morto e esmagado com um fato de nylon cor de laranja que devia supostamente ter evitado que ele se afogasse. E, de facto, ele não se teria afogado; se não, teria sido abatido pelo mar furioso.

Losskov voltou a encolher a cabeça entre os ombros: à sua frente formara‑se um muro de água que cobria o céu. "Acabou‑se", pensou. "Este e  o meu fim. Desta vez, a pressão rasgará os meus pulmões."

Uma forte corrente de ar arrancou‑o para os ares, arrastando‑o em direcção ao muro de água, ergueu o barco e deixou‑o pairar na crista da enorme vaga, enquanto Peter via o mar lá em baixo e um horizonte rasgado por grandes ondas. Parecia voar, arrastado pela tempestade, como acontecera com o mastro e com as velas e, enquanto ele se agarrava a uma vara com as últimas forças, pôde ver mais uma vez essa imagem de uma beleza tão assustadora. Depois, o barco caiu para o abismo girando como um pião. Porém, até mesmo no momento em que mergulhou no mar fervilhante, pensou: "Eu sou "inafundável"... O barco endireita‑se sozinho." Depois o mar cobriu‑o e o mundo afundou‑se.

Dois dias mais tarde, o pequeno barco branco foi avistado por um helicóptero da marinha federal, no mar ainda agitado, a trinta e sete milhas a norte de Helgoland. O barco de salvação aproximou‑se dele e encontrou um homem desmaiado. Dava ainda fracos sinais de vida e não tinha ferimentos visíveis, mas estava num tal estado de arrefecimento que, mesmo que fosse imediatamente transportado de helicóptero para o hospital de Wilhelmshaven, não teria hipóteses de sobreviver.

Nessa noite, o Dr. FaHer soube na taberna o que acontecera a Peter.

‑           Pelo menos ‑ disse ‑, todo este projecto suicida teve uma vantagem: se ele sobreviver, desistirá do plano de dar a volta ao mundo!

 

Peter von Losskov sobreviveu.

Para salvá‑lo foi necessário recorrer ao método de aquecimento rápido. Deram‑lhe um banho quente e ao mesmo tempo uma lenta infusão de 500 ml de Reomacrodex para evitar um colapso durante o reaquecimento. Como previsto, o paciente teve palpitações e nessa altura injectaram‑lhe 40 mg de Dipiridamol. Depois, só restava esperar e ver se Losskov era suficientemente forte para sobreviver a esse tratamento. Quando o tinham encontrado no mar, a temperatura do corpo estava doze graus abaixo do normal, o limite daquilo que o corpo humano consegue aguentar.

Trinta horas depois, Losskov já conseguia falar, e a temperatura do seu corpo estava normalizada. Tinham‑no instalado num quarto individual, onde agora bebia o seu chá quente com rum e mordiscava uma bolacha enquanto ouvia as palavras do médico‑chefe, o Dr. Dehner. Como já era de esperar, aquilo que o médico lhe tinha para dizer não era muito agradável e era quase o mesmo que o Dr. Faller lhe dissera anteriormente.

‑           Eu sei ‑ anuiu Losskov quando o Dr. Dehner concluíra por fim a sua crípica. ‑ Eu sei que sou um doido! Mas apesar de tudo consegui provar que não me afundo!

‑           Afogar‑se ou ser encontrado a flutuar completamente congelado no mar e  exactamente a mesma coisa, se não se tiver em conta a aparência física da pessoa que e  encontrada! - retorquiu o Dr. Dehner. ‑ E, no seu caso, o mar foi até bastante piedoso. Se isto lhe tornar a acontecer nos mares do Sul, a água talvez tenha uma temperatura mais agradável, mas isso não e  suficiente para que sobreviva. Afinal o seu fatinho não o protege de tubarões! Mas porque e  que eu lhe estou a dizer tudo isto quando o senhor conhece tão bem o mar?

‑           De facto, conheço‑o bastante bem.

‑           E isso não o impede de cometer tais disparates?

‑           Posso‑lhe fazer uma pergunta, senhor doutor?

‑           Claro.

‑           Quantas pessoas e  que já morreram nos seus braços?

‑           O que e  que quer dizer com isso? ‑ perguntou o médico, indignado.

‑           Apesar de essas pessoas terem morrido, o senhor continua a tratar os doentes e não desiste da luta contra as doenças. Umas vezes são os vírus, os bacilos, ou sei lá o quê, que são mais fortes, outras e  o senhor que os vence. O seu colega da cirurgia, por exemplo, opera um estômago ou tira os rins e em cada cem operações duas correm mal. Deverá ele, por causa dessas duas vezes, desistir de operar?! E não diga que isso e  completamente diferente, senhor doutor! Qual e  a sua especialidade?

‑           A pancreopatia, ou seja, tudo o que tem a ver com o pâncreas! ‑ respondeu Dehner.

‑           E a mim calhou‑me o mar. Fará sentido discutir acerca disso?

‑           Consigo, de certeza que não! A mim só me interessa saber o que e  que vai acontecer agora.

‑           A mim também! ‑ Losskov riu‑se. ‑ Quanto tempo e  que terei de ficar na cama?

‑           Até o seu organismo se ter normalizado. Mas para o seu próprio bem, eu quase ouso desejar que fique com algum pequeno defeito!

‑           O senhor parece‑me um médico perigoso, doutor! No próximo sábado, vou‑me libertar dos seus cuidados. Está de acordo?

‑           Só se estiver disposto a assumir todas as responsabilidades! ‑ O Dr. Dehner sentou‑se na borda da cama e tirou um pequeno rádio do bolso da bata. ‑ Material de apoio para o quarto número dezoito! ‑ disse. E depois, virando‑se para Losskov, comentou com um sorriso forçado: ‑ Vou‑lhe dar uma injecção que fortalecerá o seu coração e lhe proporcionará um bom sono. E ainda há outra coisa que deveria saber: o senhor tem uma saúde de ferro! Só muito poucos conseguiriam sobreviver a esta aventura! Mas não se orgulhe disso! Nem mesmo a sua maldita saúde dura para sempre.

Um bom jornalista consegue tornar qualquer história um sucesso, até mesmo sobre a vida amorosa de uma bisavó de oitenta anos, e se for um bom profissional até fornece algumas fotografias. Não se pode dizer que Dieter Randler fosse um desses excelentes jornalistas; todavia, possuía uma característica imprescindível na sua profissão: tinha um excelente faro. No seu caso, era um faro para descobrir acontecimentos ou situações que podiam ser transformados em temas de sensação.

Quando, por acaso, soube que Peter von Losskov fora encontrado no mar do Norte, perto de Helgoland, depois de, cheio de coragem e com uma certa estupidez, ter saido para o mar durante um violento furacão, Randler manteve‑se silencioso durante alguns instantes e depois disse para si mesmo: "Tenho a certeza de que isto pode dar uma boa história! A luta solitária de um homem contra o mar."

Meteu‑se no seu pequeno carro desportivo e cerca de hora e meia depois estava em Wilhelmshaven. Ao chegar ao hospital teve de confrontar‑se com o médico de Peter.

‑           O doente precisa de repouso! ‑ exclamou o Dr. Dehner, decidido. ‑ Para além disso, não vejo o que este caso tem a ver com a imprensa. Será assim tão raro alguém naufragar e ser salvo?! Não vale a pena vir para o meu hospital à procura de uma história que lhe ajude nestes maus tempos!

‑           Eu estou aqui como amigo do Peter e não como jornalista. A propósito, não acha que isto dava um belíssimo título: "Doutor Dehner vence a morte por arrefecimento?"

O médico achou melhor não iniciar uma discussão com o jornalista acerca daquilo que era um bom título. Fez um gesto de mão depreciativo.

‑           Pode falar com o seu amigo quando ele sair do hospital ‑ declarou. ‑ Até lá, e isso garanto‑lhe, ele ficará na cama sem ser incomodado! Muito prazer!

‑           Ah! Esse sotaque não e  de Viena? ‑ perguntou Dieter Randler, contente.

O         médico hesitou.

‑           Adivinhe! ‑ respondeu. Depois, afastou‑se a passos rápidos.

Um enfermeiro com um queixo quadrado e ombros largos lançou um sorriso irónico a Randler. Ergueu as suas enormes mãos e mostrou‑as como se fossem obras de arte a leiloar.

- Vamos? - perguntou com um ar simpático, mas ao mesmo tempo duro.

Randler teve de admitir que não havia nada a fazer contra tanta discriminação em relação à imprensa. Nem mesmo uma boa gorjeta ajudava. Assentiu com a cabeça e dirigiu‑se para a saída da clínica. Porém, em baixo, ao chegar à recepção, parou e mostrou um ar desiludido.

‑           Eu sou mesmo estúpido! ‑ disse à enfermeira que estava sentada em frente ao pequeno ficheiro com os nomes dos doentes e que parecia espantada com esta exclamação.

‑ Acabo de sair do quarto do senhor Von Losskov. Peter von Losskov. Ele e  meu amigo de infância. E eu nem sequer me consigo lembrar do número do quarto dele! Que estupidez! Será que são os primeiros sinais de esclerose? Afinal, qual e  que era o número do quarto?

A enfermeira consultou o ficheiro e encontrou o nome.

‑           É o quarto cento e trinta e nove ‑ respondeu ‑, dos pacientes privados do doutor Dehner. Primeiro andar.

‑           É verdade! ‑ Randler levou a mão à testa. ‑ Isso fica do lado de trás, com vista para o jardim!

A enfermeira confirmou e Randler saiu do hospital. Lá fora olhou para a fachada do prédio e ficou satisfeito com aquilo que viu. Depois voltou para a cidade e jantou um bom assado de vaca num restaurante.

 

A meio da noite, Peter von Losskov foi acordado por um estranho barulho vindo da varanda, em frente ao seu quarto. Conseguiu distinguir um vulto no escuro. A porta de vidro mexeu‑se e uma voz sussurrou:

‑           Cala o bico, Peter, e não te assustes! Sou eu, o Dieter. O meu médico aconselhou‑me um pouco de ginástica ao ar livre.

Dieter entrou no quarto, fechou a porta de vidro que dava para a varanda e puxou uma cadeira. Losskov ligou a luz. Era mesmo Randler. O seu sorrisinho era inconfundível.

‑           Tu deves estar completamente bêbedo! ‑ exclamou Losskov. ‑ Este quarto não tem uma porta de entrada?

‑           Sim, mas ela e  vigiada como se se tratasse da entrada para o paraíso! Meu Deus, o que e  que tu fizeste! Será que pelo menos te encontraste com o Neptuno ou engravidaste uma sereia?!

‑           Decidi escrever um livro.

‑           Isso e  horrível! E foi necessário um furacão para tomares essa decisão?

‑           Pretendo provar que o homem, hoje em dia, embora seja frequentemente acusado de não ser capaz de nada, e  tão resistente e corajoso como os famosos navegadores dos séculos passados. A minha ideia consiste em repetir as grandes viagens de Cook ou Vasco da Gama num pequeno barco à vela e sem quaisquer meios técnicos. Apenas com a ajuda das minhas próprias mãos e sobretudo com a vontade de vencer o mar.

‑           Tu dizes isso como se fosse uma coisa muito simples! Nota‑se que nos aproximamos da meia‑noite. Estás a pensar em dobrar o cabo Horne e a Terra do Fogo com aquela casquinha de noz?

‑           Exactamente!

‑           E para isso metes‑te num furacão?

‑           Aquilo foi só um treino.

‑           E foi uma estupidez tão grande que deveria ficar registada para a posteridade! Quando e  que vai ser o momento histórico da tua partida?

‑           Logo que tenha o dinheiro para isso! Preciso apenas de um barco que corresponda aos meus planos.

‑           Mais nada? ‑ Randler passou a mão pelo cabelo de Losskov como que a acalmá‑lo. ‑ Bem, deve haver por aí algum homem rico que porá à tua disposição a sua fortuna. Meu Deus, se eu tivesse sabido antes que era só isto que tinhas para me contar, não teria trepado a maldita parede!

No entanto, até um repórter experiente como Randler às vezes se engana! Quando, por acaso, contou a história do seu amigo Peter numa reunião da redacção do jornal, o redactor‑chefe saltou da cadeira, como se tivesse apanhado um choque eléctrico.

‑           Dieter, isso e  uma mina! Vamos transformar essa história num sucesso! Tenho sessenta linhas à disposição. Todos ao trabalho! Quero que o artigo saia amanhã!

Dieter Randler fez o melhor que pôde, escreveu uma história dramática com um cheiro a mar, um verdadeiro hino ao heroismo moderno e deu‑lhe como titulo: "Jovem cientista quer conquistar o mundo numa casca de noz."

 

O Dr. Dehner apareceu no quarto de Losskov às dez da manhã com um semblante sério, e atirou o jornal para a cama.

‑           Eu não posso fazer mais nada ‑ declarou. ‑ Se quiser, vá para a Terra do Fogo com a sua casquinha de noz. Quem acredita firmemente que dois vezes dois são cinco, não pode ser convencido do contrário.

Losskov pegou no jornal, lançou um olhar ao artigo e abanou a cabeça.

‑           Eu não sei nada acerca disso. A ideia central do artigo nem sequer corresponde à realidade.

‑           Mas conhece o autor?

‑           Sim, e  o Dieter Randler.

‑           Eu também o conheço. Expulsei‑o da clínica, ontem.

‑           Isso foi um erro, senhor doutor. à noite, ele trepou o muro e apareceu no meu quarto.

O Dr. Dehner suspirou.

‑           A partir de agora terei de dar um quarto no andar de cima a pessoas como o senhor.

‑           Então os curiosos utilizarão as escadas de bombeiros. Losskov leu o artigo com calma. Aquilo que Randler escrevia, em principio, estava certo, mas os factos tinham sido transformados numa história sensacional. O médico esperou que Losskov tivesse acabado de ler o artigo.

‑           Antes de o deixar ir embora, gostava de saber uma coisa ‑ proferiu. ‑ O senhor anda à procura de uma equipa que navegue consigo pelos mares e que testemunhe que o senhor e  excepcional! Isso chama‑se uma experiência psicossociológica. Se eu bem entendi, a questão principal e  saber se nós, hoje em dia, somos uns cobardes, ou se afinal não seremos capazes de fazer o mesmo que Cristóvão Colombo?

‑ Eu não diria as coisas de uma forma tão extrema, senhor doutor. Pretendo provar que os Viquingues com os seus barcos eram capazes de alcançar não apenas a América do Norte, isso já foi provado!, mas também os mares do Sul. Em áfrica, foram encontradas máscaras de dança talhadas em madeira que são quase idênticas aos capacetes dos Viquingues! Porque não havemos de pôr a hipótese de que tenha havido barcos viquingues que navegaram ao longo da costa africana, atravessaram o oceano até à costa sul da América e depois, passando pela Terra do Fogo, chegaram ao Pacífico? Naturalmente não existem testemunhos que nos possam dar uma resposta. Apenas sabemos que os Normandos não temiam o mar. Mas esta questão interessa‑me, eu quero analisá‑la, quero repetir esse sonho da conquista do mundo. Eu sei, senhor doutor, que o seu interesse científico vai para a linfogranulomatose, a doença de Hodgkin, embora a progressão nessa área seja quase nula! Porém, o senhor não desiste. E eu também não vou desistir. ‑ Losskov apontou para o jornal. ‑ De resto, há aqui um outro ponto que está incorrecto: "Eu não ando à procura de ninguém para me acompanhar. Pretendo fazer esta viagem sozinho. Sem motor, nem bússola, nada para além de um pouco de tecido no mastro! Os Viquingues também não tinham gasóleo, nem uma bússola." ‑ Dobrou o jornal e colocou‑o na mesa‑de‑cabeceira. ‑ A partir de quando e  que precisa de ter esta cama livre?

‑           Quando o oiço falar assim... acho que seria melhor o senhor continuar na cama! Um tratamento intensivo aos nervos far‑lhe‑ia muito bem. ‑ O Dr. Dehner encolheu os ombros num gesto resignado~ ‑ Pode ir‑se embora quando quiser.

‑           Dentro de duas horas, por exemplo?

‑           Por mim, pode ser!

‑           Quero ir à redacção do jornal conversar com o meu amigo Randler. Se calhar e  melhor ir já guardando uma cama para ele nas urgências!

Quando, pouco depois, Losskov apareceu na redacção para pedir uma justificativa a Randler, este recebeu o seu amigo de braços abertos. Era impossível zangar‑se com uma pessoa tão simpática e alegre.

‑           Acertámos em cheio, Peter! ‑ exclamou Randler, entusiasmado. ‑ Quem diria! Ficámos surpreendidos. A indústria está a morder o anzol! Há três propostas de empresas de bens alimentares. Terás carne em lata, conservas de massa e salame! Para além disso, dar‑te‑ão frutos secos ricos em vitaminas, barras de fruta cristalizada, chocolates e fortalecedores para os músculos e os nervos! Se por acaso te perderes no Pólo Sul, não precisas de ter medo! Proposta número seis: sacos‑camas com um forro inovador e aquecimento a pilhas, que te permitirão pernoitar num icebergue. E também fornecem botas com uma moderna sola de borracha superaderente que parece um íman. Será impossível caíres! Meu Deus, que mais e  que tu queres?! Até o barco já tens no bolso, ou melhor, na água.

‑           Dieter! ‑ Losskov teve de se sentar. ‑ Isto parece inacreditável.

‑           Podes ler as propostas com os teus próprios olhos! De momento ainda estão a ser exploradas para um novo artigo. Se esse artigo sair amanhã, os outros empresários também farão propostas. Afinal, e  impensável que a fábrica de chocolates Doce Fim de Tarde te forneça a alimentação e a fábrica concorrente Pôr do Sol deixe escapar esta oportunidade de fazer publicidade. Peter, nos próximos dias vamos receber uma chuva de ofertas! Ah, e para o barco já temos a proposta de uma empresa de detergentes para a roupa. Apenas exigem que o nome do detergente apareça escrito no barco. Do lado esquerdo e do lado direito, bem legível: "Mil Estrelas."

‑           Nunca! ‑ disse Losskov, alto.

‑           Mas esse nome vale ouro! "Mil Estrelas" até soa muito bem para um barco! O cordame fica a cargo de uma subsidiária dessa empresa, que fabrica abrasivos. A condição que põe e  que nas velas apareça a frase: "A volta ao mundo com os produtos Relâmpago em casa!"

‑           E tu queres que te agradeça por iSSO? ‑ perguntou Losskov, furioso. ‑ Vocês transformaram a minha ideia num

evento popular! Eu não quero nada disso! Não Vou precipitar‑me. Adiarei o projecto por um tempo indefinido.

‑           Isso agora e  impossível! ‑ Randler afastou‑se um pouco do seu amigo. ‑ Tudo está em pleno andamento! Tu agora já não podes desistir! Nós escrevemos claramente no jornal: "Para a realização deste grande projecto realmente só falta um grande investimento...

‑           Isso e  um disparate!

‑           Mas o público gosta de ouvir essas coisas, Peter! As pessoas agora estão do teu lado. Sofrem contigo, navegam contigo, passam fome contigo e contigo estenderão o traseiro por cima do bordo para as ondas o limparem. Meu amigo, tu nem imaginas o que significa tanta fama! Implica certas obrigações! e  como um contrato entre ti e os leitores! Tu deixas de pertencer a ti próprio e passas a ser propriedade pública! Agora, já não podes recuar, se não, provocarias um escândalo. Nada pior do que um louco que de repente se torna normal! Já não podes desistir, Peter! A partir de amanhã apostaremos tudo na aventura da Terra do Fogo!

‑           Mas a Terra do Fogo e  só uma parte de todo o programa e nem sequer constitui um ponto marcante!

‑           Porém, tem potencial para isso! Vende‑se como pão quente! Terra do Fogo... Só o nome basta para fazer florescer a fantasia de qualquer pessoa! Soa a aventura, a novo mundo, perigo e heroismo! Terra do Fogo! Que nome! "O homem que venceu a Terra do Fogo!" Isso fica muito melhor do que: "O homem que venceu uma batalha!"

Randler era imparável. Losskov apercebeu‑se, admirado, que a sua ideia, no fundo sua propriedade, iria ser comercializada mundialmente. Randler tinha razão: não se podia voltar atrás sem arriscar um escândalo. Se recusasse agora, todos diriam que tinha medo. Seria chamado cobarde! E qual e  o homem que gosta de ouvir uma coisa dessas?

‑           Mostra‑me as propostas! ‑ disse Peter. ‑ Se eu quisesse, poderia apresentar queixa contra vocês. Teriam de publicar no vosso jornal que tudo aquilo que escreveram era mentira.

‑           E então? Publicaríamos isso na última página, no canto inferior esquerdo, e por cima apareceria um titulo a vermelho e sublinhado: "A mulher com o superpeito de Los Angeles. Cento e vinte e sete centímetros de volume suspenso!"... Quem e  que dará importância à notícia que está por baixo? Peter, não sejas tão moralista! Tudo o que precisas para concretizar a tua grande ideia está à tua disposição! Que mais e  que tu queres?! As coisas não podiam ser mais fáceis! Se contares apenas com as tuas próprias forças, nunca vais conseguir concretizar o teu sonho! Por amor de Deus, chama o teu barco Mil Estrelas e cola nas velas as letras dos produtos Relâmpago. O que importa e  que te possas dedicar às tuas investigações. Todos os grandes homens tiveram os seus mecenas: Wagner teve o rei bávaro Luís II, Haydn o Esterházy, Goya o duque de Alba e Miguel |ngelo o Médicis. E Peter von Losskov navega à conta de um detergente.... Qual e  o problema? O que importa e  o sucesso. E nós ajudamos‑te a alcançá‑lo!

Losskov teve de admitir que Randler tinha razão. Ergueu‑se e bebeu o uísque que este lhe oferecera.

‑           Se houver alguma coisa, sabes onde me encontrar - declarou. ‑ Estarei em casa.

Depois, foi‑se embora com a esperança de que as coisas não se desenvolvessem da maneira que Randler previa no seu entusiasmo. "É só uma questão de tempo", pensou. "Depois de amanhã ninguém se lembrará de nada. Quem e  que ainda pensará nos Viquingues? E na Terra do Fogo? Isso fica longe de mais; lá em baixo, na ponta da América do Sul, no fim de um continente. Quem e  que se preocupa com a Terra do Fogo? Ninguém!" Enganava‑se.

 

Durante toda a semana, a história de Peter von Losskov ocupou a terceira página do jornal, que era a mais lida. Dieter Randler estava a exceder‑se. Aquilo que inventava acerca da Terra do Fogo aparentava ser excelente jornalismo, mas na verdade tratava‑se de um atrevimento inconcebível. Segundo o artigo, a Terra do Fogo era uma zona rochosa e deserta na ponta sul da América; uma das zonas mais perigosas

da terra ainda não explorada. Randler nem sequer teve escrúpulos em afirmar que houvera marinheiros que a partir do mar tinham avistado animais em enormes cavernas que apenas se conhecia de modelos da fauna de tempos remotos.

"Ainda haverá dragões?", perguntava Randler, ousado, no seu artigo, e respondia com a mesma ousadia: "Este mistério será igualmente resolvido por Peter von Losskov!" O texto incluía uma fotomontagem que mostrava a Terra do Fogo ao fundo e em primeiro plano o mar bravo. Por cima, havia a ilustração de uma antiga lenda: um enorme dragão voador. Tratava‑se, de facto, de uma imagem impressionante.

Uma semana depois, Randler foi visitar Peter. Trazia uma mala cheia de cartas que espalhou no sofá. Depois sentou‑se numa poltrona com um ar extremamente satisfeito.

‑           Está na hora de me louvares, amigo! ‑ anunciou contente. ‑ Aquilo que vês à tua frente são cartas de leitores. Propostas. Comentários. Confirmações. Pedidos.

‑           Há alguma de uma clínica psiquiátrica? ‑ perguntou Losskov, furioso.

‑           Ainda não. Essas aparecerão mais tarde, quando nós escrevermos: "Losskov esquiva‑se!" ‑ Randler apontou para o monte de cartas. ‑ O que tu vês aí e  matéria suficiente para escrever cem romances! Eu nem quis acreditar quando vi essa correspondência toda. Mergulha nessas cartas, Peter! Até existe uma proposta para uma nova canção: "Na Terra do Fogo, na Terra do Fogo, onde o amor arde como uma chama..."

‑ Rua! ‑ exclamou Losskov num tom de voz abafado. - Sai daqui, já! E leva essa mala contigo! Sabias que eu seria absolvido se te estrangulasse agora?

‑ Contenta‑te em servir‑me uma vodca! Com bitter de limão, por favor.

‑ Eu junto‑lhe veneno para ratos.

‑ Ah, e  isso que eu mereço? Trabalhei como um animal para ficares conhecido. Agora só precisas de dizer que a aventura da Terra do Fogo pode começar! A propósito, há também uma carta de um senhor de noventa e dois anos que afirma que há trinta e quatro anos viu um dragão nos Andes, igual àquele que aparece na imagem do jornal. e  interessante, não achas? Claro que falaremos disso no próximo artigo: "Testemunha ocular avisa Peter von Losskov: Os dragões da Terra do Fogo têm um hálito sulfuroso." Estou muito satisfeito.

‑ Eu ainda hei‑de encontrar alguém que dê cabo de ~ Losskov trouxe a garrafa de vodca e outra com o bitter.

‑ e  verdade, a empresa de detergentes telefonou‑me e disse que estava disposta a fornecer o barco.

‑           Aleluia!

‑ E nem sequer és obrigado a chamá‑lo Mil Estrelas! Parabéns. Então como e  que o vais chamar? ‑ perguntou Randler, apreensivo.

‑ Terá um nome simples, como Lorde dos Mares, por exemplo.

‑ Era o que eu imaginava. Os tipos da publicidade são uns génios! Daqui a cinco semanas haverá uma nova goma para a roupa no mercado: "Lorde dos Mares: a goma que resiste a todas as marés!" Parabéns, Peter!

Isto era motivo suficiente para Peter esvaziar a garrafa de vodca juntamente com Randler.

 

Losskov levou quase dois dias para ler todas as cartas e as ordenar. Repartiu‑as em quatro grupos: o primeiro era formado pelos leitores neutros, que se limitavam a dar a opinião acerca do projecto, fazendo sugestões e comentários. No segundo grupo, encontravam‑se as propostas de publicidade que iam desde os suspensórios elásticos, passando pela escova de dentes que funcionava à base de energia solar e pelo rádio de frequência modulada e à prova de água, até à roupa interior impermeável. O grupo número três era constituído pelo pequeno e prestigiado circulo de empresas que tencionavam apoiar o projecto através de donativos e que mandavam propostas detalhadas, e por fim o quarto grupo, do qual faziam parte aqueles que queriam acompanhar Peter von Losskov na conquista dos mares.

Quando Randler leu as cartas deste último grupo, arfou, entusiasmado: noventa e quatro homens e mulheres escreviam a dizer que não temiam nada neste mundo!

Um antigo legionário, que actualmente era guia numa pequena cidade alemã medieval, onde três vezes por semana interpretava o papel de fantasma do castelo, juntara três fotografias à carta, como referência. As imagens mostravam‑no dentro de um jipe, cujo radiador fora enfeitado com uma verdadeira caveira e dois ossos cruzados (legenda: "Os bons tempos no Congo") e um recorte de um jornal já amarelado com o titulo: "Quem e  o misterioso capitão mercenário no Sul?" "Sou eu!", escrevia o leitor. "Pode contar comigo em qualquer situação. Eu faço parte daquela antiga geração que está a desaparecer. Eu desenrasco‑o, onde quer que esteja. Não sei o que e  o medo. Quando os outros fogem, eu começo a gostar da situação! Estou à sua disposição a partir de agora. O meu contrato como fantasma do castelo pode ser revogado a qualquer hora."

Havia também um corretor financeiro que escrevia num estilo sóbrio, claro e conciso, como convém a um homem que lida com o dinheiro. "Proposta: Tomaremos conta de uma ilha desabitada, na qual fundaremos o nosso estado, elaboraremos uma constituição, garantiremos isenção de impostos e, desta forma, atrairemos grandes investimentos. As taxas administrativas desses capitais serão suficientes para obtermos grandes somas para nós."

Seguiam‑se intermináveis contas, colunas com números infinitos, a proposta de fundação de uma estação de rádio com publicidade, o esboço de eventuais selos, tal como de uma bandeira nacional. Era impressionante.

Um açougueiro escrevia: "Para além de ser um excelente cozinheiro, capaz de fazer milagres a partir de uma lata de conservas, sou um homem de um metro e noventa, com uns músculos como um touro, capaz de destroçar o crânio de uma vaca com um simples murro e sou um homem do mar. Em tempos, já fui cortador de carnes num cruzeiro de férias. Porém, e apesar de tudo isto, a minha mulher prefere andar com um pequeno e frágil italiano que, quando eu expiro, quase cai para o lado. Consegue compreender isso? Eu não! Como e  que se pode amar um mosquito quando se tem uma águia?! Isso deprime‑me. Quero ir consigo para a Terra do Fogo caçar dragões! Quem sabe se eles não serão comestíveis e nós poderemos fundar uma empresa de exportação de carnes. Porque não? Se se come caracóis, coxas de rã, formigas grelhadas e sei lá mais o quê, porque e  que não se há de comer costeletas de dragões da Terra do Fogo?! Senhor Von Losskov, eu sou a pessoa que procura! Estou ao seu inteiro dispor!"

Contudo, havia também algumas propostas mais sérias, que Losskov leu com muita atenção. Nunca tencionara incluir outras pessoas naquela aventura, mas quanto mais pensava nisso, mais provável lhe parecia a ideia de levar a cabo a aventura com uma pequena e bem seleccionada equipa. Desse modo, poderia ao mesmo tempo eliminar um perigo que era o maior medo de um marinheiro: a solidão, o sentimento de abandono, o poder do silêncio.

 

Três dias depois, Losskov escolhera três cartas, sem porém ainda ter redigido uma resposta. Tratava‑se de jovens cientistas que realmente só lhe tinham escrito devido à possibilidade de fazer uma pesquisa ao longo da viagem, isso baseado apenas na vaga ideia do projecto que tinham tido a partir do artigo no jornal. Eram cartas redigidas num tom crítico, que mereciam uma resposta séria.

Helena Sydgriff era sueca, estudante de Medicina. Estava interessada no contexto psicológico dessa viagem: Como e  que se comportariam pessoas que, durante vários meses, convivem num espaço reduzido, unidas no bem e no mal e que, juntas, têm de enfrentar situações extremamente críticas?

Era uma questão muito interessante, sobre a qual valia a pena reflectir.

Jan Trosky era um checo de trinta anos, assistente no Instituto de Climatologia, e o seu problema era saber se certas correntes do mar estariam a sofrer alterações, exercendo assim uma influência no clima, que, como era conhecido nos últimos anos, estava a sofrer graves alterações. O mar visto como uma enorme fonte climática, isso já estava provado. Mas, mesmo assim, o mar continuava a ser uma área bastante desconhecida. Trosky citava o triângulo das Bermudas.

Peter von Losskov decidiu também responder a essa carta. E depois havia uma italiana, chamada Lucrezia Panarotti,

estudante de Biologia submarina, que juntava uma fotografia à carta. Era uma pequena mulher frágil, extremamente bonita, que ali se mostrava de biquini. O seu longo cabelo preto esvoaçava ao vento. A preocupação dela era a seguinte:

"O que e  que nós sabemos acerca dos problemas a nível da biologia marinha da Terra do Fogo? Nada! Porquê? Porque aparentemente essa questão não interessou a ninguém até hoje. E, no entanto, o mar perto da Terra do Fogo pode, teoricamente, elucidar‑nos acerca de como o mar realmente deveria ser sob o ponto de vista biológico, e isso permitir‑nos‑ia compreender o que fizemos aos outros mares..."

‑ Se esta for a tua equipa ‑ comentou Randier depois de Losskov ter escolhido as três cartas ‑, certamente que levarás óptimos especialistas a bordo. E naquilo que me diz respeito como jornalista, garanto‑te que duas mulheres bonitas e dois homens fortes que se juntam durante vários meses num barco dão uma óptima história! Estás consciente de que vais levar contigo Helena e Lucrezia, duas mulheres lindas?

‑ Primeiro, quero conhecê‑las e conversar com elas - afirmou Losskov num tom pensativo. ‑ Afinal elas ainda nem estão a bordo! Eu nem sequer tenho um barco! Isto tudo ainda se limita a ser um cenário imaginário. Mas se eu navegar com uma equipa, então também não tentarei escapar à pergunta da Helena Sydgriff: como e  que se comporta uma pessoa que se junta com mais três numa casca de noz, rodeada unicamente por água e tendo de conviver com elas durante semanas? Como eu já disse antes, trata‑se apenas de uma pré‑selecção.

No dia seguinte, Losskov escreveu três cartas, propondo um encontro em Hamburgo.

 

Sem estar consciente disso, acabara de mudar o seu destino e a sua vida.

 

Tinham combinado encontrarem‑se no vestíbulo do Hotel Quatro Estações e depois irem para o bar para conversarem. Helena Sydgriff telefonara a Peter von Losskov depois de ter recebido a resposta. A sua voz era agradável, quente e confortável, e quando falava tinha um interessante sotaque nórdico. Trosky e Lucrezia Panarotti responderam imediatamente por escrito. Enviaram cartas registadas por correio expresso, anunciando que estavam ansiosos por conhecê‑lo, e cada um deles juntava uma fotografia mais recente à carta. Quando Dieter Randler viu a fotografia de Lucrezia, soltou um estalido com a língua. Losskov arrancou‑lha das mãos, furioso.

‑ Esse Jan Trosky e  cá um homem! ‑ exclamou Randler. ‑ Tem um olhar que parece queimar. E uns grandes músculos! Com esse, ninguém se mete!

‑ e  exactamente o tipo de homem que procuro! - Losskov guardou as cartas. ‑ Teremos de enfrentar as mais diversas situações durante esta viagem!

‑ E a doce Lucrezia? Será que ela aguentará? ‑ Randler olhou para cima. Havia uma miniatura do barco Santa Maria pendurada no tecto. Fora o barco com o qual Colombo tentara descobrir o caminho marítimo para a índia. - Ela deve ser resistente. Isso adivinha‑se. Parece ser daquelas mulheres que continuam aos saltos na cama quando tu já estás completamente exausto.

Era quase impossível ter uma conversa séria com Randler. Losskov expulsou‑o de casa e já estava preparado para, no dia seguinte, ver um novo artigo no jornal: "O iate das beldades." Mas Randler não escreveu nada nesse sentido:

apenas publicou uma noticia a dizer que muitas empresas continuavam a mandar‑lhes propostas de apoio ao projecto.

Passava pouco das quatro da tarde, quando Losskov chegou ao Hotel Quatro Estações. Para poderem identificá‑lo, avisara‑os de que vestiria calças castanhas e um blazer de pele de camelo escuro com uma vela de esmalte azul e branco no lado esquerdo.

Quando entrou no hotel, houve logo três hóspedes, um homem e duas mulheres, que saltaram dos seus lugares e vieram ao seu encontro. Quando repararam que se estavam a dirigir todos para a mesma pessoa olharam uns para os outros, espantados. Losskov sorriu e estendeu os braços para cumprimentá‑los.

‑           Sim, sou eu! Fico contente por terem vindo todos. São exactamente como os imaginava.

Helena Sydgriff era uma mulher alta, magra e loira. Os seus olhos pareciam observadores e tinha um ar desportivo, como se fosse uma óptima tenista, por exemplo. Estendeu a mão a Losskov. O seu aperto de mão era forte e ao mesmo tempo sem compromisso.

Era decidida: isso notava‑se pelo seu aperto de mão. Lucrezia Panarotti era completamente diferente. Aproximou‑se a passos leves, calçando os saltos mais altos que Losskov jamais vira. Tinha umas pernas longas e bonitas, ancas estreitas, um corpo maleável e um grande decote que dava nas vistas. O seu cabelo preto esvoaçava de um modo tão selvagem como só um cabeleireiro muito caro o era capaz de arranjar. Não hesitou em abraçar Losskov, permitindo‑lhe cheirar o seu perfume exótico e deixando‑o olhar para os seus olhos pretos e reluzentes. A sua boca entreabriu‑se como uma pétala, mas ela não o beijou. Apenas disse, chegando‑se muito perto do seu rosto:

‑ Está desiludido comigo, não está? Mas não se preocupe. Talvez eu não seja capaz de espremer uma batata crua nas mãos como o seu colega no Barco dos Mortos de Traven, mas garanto‑lhe que sou certamente capaz de rizar a vela de balão num tempo recorde. Sou capaz de muito mais do que os senhores imaginam!

‑ Veremos, Lucrezia ‑ disse Losskov. ‑ Hoje só vamos apresentar‑nos uns aos outros. Ainda falta muito tempo para nos podermos considerar uma equipa. Teremos de superar muitas provas.

‑           Nem imagina como eu sou resistente! ‑ disse ela, rindo‑se, e Losskov lembrou‑se das palavras de Randler.

Jan Trosky tinha uns ombros largos, umas pernas fortes e uns braços ligeiramente compridos de mais. O cabelo ia‑lhe até aos ombros e nas pontas formava ligeiros caracóis. Losskov imaginara‑o mais alto, mas era evidente que aquele homem tinha uma força extraordinária. Fitou Losskov com um olhar crítico e retraído. Notava‑se que achara ridícula a apresentação teatral de Lucrezia.

‑ Tenho muito prazer em estar aqui ‑ pronunciou com uma voz grave. ‑ O que o senhor está a planear pode ser uma grande jogada. Se encontrar as pessoas certas.

Referia‑se a Lucrezia. Porém, ela não parecia ter compreendido a alusão ou então simplesmente a ignorara. Helena, porém, franziu as sobrancelhas.

Losskov esforçou‑se para conseguir ultrapassar esses primeiros minutos.

‑ Antes de irmos para o bar, para nos conhecermos um pouco melhor, deveríamos estar de acordo numa coisa: todos nós somos pessoas que querem realizar um grande sonho!

‑           Bravo! ‑ Jan Trosky deu uma palmada no ombro de Losskov. ‑ Eu chamo‑me Jan Trosky!

‑ Eu sou Helena Sydgriff.

‑ E eu, Lucrezia Panarotti. ‑ O seu cabelo preto esvoaçou na cabeça de perfil clássico. ‑ O meu pai tratava‑me por Luzi. Faleceu há dois anos.

‑ Foi envenenado? ‑ perguntou Trosky. Lucrezia fitou‑o com um ar desiludido.

‑           Caiu ao praticar alpinismo nos Abruzos. Porque haveria ele de ser envenenado...?

‑ Foi só uma ideia. Afinal o nome Lucrezia e  comprometedor. Lucrezia Borgia não tinha problemas com isso.

‑ Que engraçado!

‑ Será assim tão importante divulgarmos os nossos nomes familiares ou alcunhas? ‑ perguntou Helena Sydgriff num tom claramente agressivo. ‑ Portanto, o seu nome e  Luzi. O meu pai chamava‑me Loirinha. E o senhor, Trosky?

‑Fedorento... Peço desculpa por não ter melhor alcunha. O meu pai não tinha sentido de humor. Mas também, que mais e  que lhe restava? Era o guarda‑mor da estação de águas residuais do município.

Losskov piscou‑lhe o olho; Trosky não lhe respondeu. Só aí e  que Peter percebeu que Trosky estava a falar a sério.

‑ Loirinha, Luzi e Fedorento ‑ disse Lucrezia, mexendo ligeiramente as ancas. ‑ Apenas o nosso futuro dono e mestre permanece silencioso.

‑ Em vez de Peter chamavam‑me Peer. ‑ Losskov encolheu os ombros. ‑ O meu pai tinha a mania das coisas nórdicas! Os Losskov, segundo as investigações dele, tinham sido parentes de um rei normando que se chamava Lossokau... ou uma coisa parecida. Isto há centenas de anos.

‑ Então e  daí que provém o seu sonho viquingue de navegar à volta do mundo! ‑ Trosky riu‑se. ‑ Eu já estou a ver que nos vamos dar muito bem.

‑ Veremos! ‑ Helena Sydgriff afastou uma madeixa de cabelo da testa. ‑ Até agora só sabemos que estamos todos dispostos a partir para a aventura. Mas não sabemos se prestamos para Isso...

Dirigiram‑se para o bar e sentaram‑se na mesa reservada, a um canto, deixando Losskov escolher a bebida de boas‑vindas.

‑ Champanhe? ‑ perguntou.

‑ A esta hora da tarde? ‑ Trosky descontraiu‑se. ‑ Eu prefiro tomar um uísque. Posso? No meu país de origem, atrás da "cortina de ferro", o uísque e  uma raridade.

Losskov pediu as bebidas. "Este Trosky e  um individualista", pensou. "É exactamente o contrário daquelas pessoas que seguem as massas. Tem uma cabeça dura. Isso tem as suas vantagens quando se trata de enfrentar um inimigo, sobretudo quando esse inimigo e  o mar!"

‑ Eu não tentarei iludir‑vos ‑ começou Losskov. - Aquilo que nos espera e  tudo menos agradável. A viagem que temos à nossa frente será um sofrimento sem fim, uma luta constante contra o mar e a tempestade, o sol e o frio, a solidão e as agressões que cada um de nós irá acumulando aos poucos. Teremos os nervos à flor da pele e o medo apoderar‑se‑á de nós! Será que suportaremos tudo isso? Não sei.

‑ e  exactamente para obtermos essa resposta que vamos fazer esta viagem ‑ retorquiu Helena Sydgriff, secamente.

‑           Até que ponto e  que o homem e  capaz de suportar uma semelhante carga física e psicológica ao mesmo tempo?

‑           E se acabarmos por nos devorar uns aos outros? - perguntou Trosky. Lucrezia riu‑se alto, mas Losskov sabia que não se tratava de uma piada.

‑           Também e  uma hipótese. ‑ Helena pegou no copo de champanhe com as suas mãos finas mas fortes. ‑ Isso significaria que teríamos perdido. As experiências com seres humanos estão sempre repletas de perigos desconhecidos. e  exactamente isso que as torna tão interessantes...

Losskov lançou um longo olhar a Helena e sentiu que podia contar com ela. "Ela virá connosco", pensou satisfeito. "O meu projecto parece‑lhe seguro."

 

à noite, Dieter Randler apareceu no restaurante, embora Losskov o tivesse avisado: "Eu dou‑te uma sova! Tu só vais conhecer os três quando eu o decidir!" Mas um bom jornalista não se deixa impressionar com esse tipo de ameaças. Assim, Randler apareceu pontualmente logo a seguir ao jantar no restaurante do Hotel Quatro Estações. Tinham acabado de saborear a sobremesa, uma mousse com framboesas.

Ficaram surpreendidos por Randler estar a par de tudo e até conhecer os seus nomes. Cumprimentou Helena, Lucrezia e Jan e apresentou‑se como sendo o melhor amigo de Peter e angariador de fundos. Fazia piadas brincalhonas como, por exemplo: "Como e  que se reconhece um homem do mar? Quando se lhe oferece um arado, ele pensa em arar o oceano!" Quando notou que todos apenas sorriam educadamente, decidiu sentar‑se à mesa.

A noite passou rapidamente. Jan, Helena e Lucrezia estavam cansados e decidiram retirar‑se para os seus quartos. Marcaram encontro com Losskov às onze horas da manhã do dia seguinte, no átrio do hotel. Peter acompanhou‑os até ao elevador e esperou que a porta se fechasse. Antes, porém, Lucrezia ainda lhe mandou um beijo rápido.

‑ Ela e  um espanto! ‑ exclamou Randler, entusiasmado. ‑ Aconselho‑te a não colocares tábuas de madeira no barco. Senão, ela queima‑as com aquele belo traseiro! Mais vale optares por aço!

‑           Estou cansado de mais para te dar um estalo! ‑ respondeu Losskov, calmo.

Juntos, saíram do hotel. Losskov dirigiu‑se para o seu pequeno carro e Randler chamou um táxi. Losskov, porém, foi para casa, enquanto Randler mandou o taxista dar uma volta

pelo quarteirão e depois regressar ao hotel, de onde telefonou a Jan Trosky.

‑ Aqui fala Randler. Já estava deitado, Jan?

‑Não. O que e  que há?

‑ Está despido?

‑ Apenas descalcei os sapatos. Magoam‑me os pés, porque são novos.

‑ Então, desça já! Eu convido‑o a vir comigo e garanto‑lhe que não se arrependerá. Sabe o que e  um triângulo? Eu mostrar‑lhe‑ei St. Paull e ficará a saber. Ao vivo no palco!

‑ Daqui a cinco minutos estou em baixo! ‑ acedeu Trosky, sem hesitar. ‑ Só tenho de voltar a calçar estes malditos sapatos.

O que se passou nessa noite em St. Paull ficou registado de uma forma muito imprecisa na famosa esquadra de David. Não fora nada de extraordinário, com excepção de uma frase que o polícia batera à máquina, com uma certa admiração: "O queixoso declara ter sido agredido por três rufias. Os rufias foram transportados de ambulância para o hospital. A vítima ficou ilesa."

Uma hora mais tarde, Jan Trosky pôde abandonar a esquadra de David. à saída até lhe apertaram a mão, o que lhe causou grande espanto.

No entanto, a questão não estava resolvida. Na manhã seguinte, a Polícia ligou para Peter von Losskov. Apenas para o informar acerca daquilo que se passara. Queriam saber se um tal Jan Trosky, de nacionalidade checa, colaborava num projecto de investigação sob direcção do Sr. Von Losskov.

‑ Isso e  verdade ‑ respondeu Losskov. ‑ Conheci‑o ontem pessoalmente e estamos a planear uma volta ao mundo por via marítima. Aconteceu alguma coisa?

‑ Não foi nada de importante, senhor Von Losskov. - O funcionário era muito discreto. As aventuras de St. Paull faziam sempre parte de um foro íntimo. ‑ Só queríamos obter a sua confirmação.

‑ Porquê? O senhor Trosky está aí com os senhores? Há algum problema com os seus documentos? Porque e  que está interessado nele? Por favor, não me compreenda mal; eu preciso apenas de estar bem informado, dado que estou a planear um trabalho em conjunto com ele.

‑           Tenho a certeza de que o senhor Trosky lhe saberá explicar a situação melhor do que eu! ‑ disse o funcionário, reservado. ‑ O senhor sabe que nós aqui na esquadra de David...

Losskov ficou alarmado. Agradeceu educadamente ao policia e logo a seguir marcou o número da redacção. Antes de mais, queria falar com Dieter Randler. Porém, quando este atendeu o telefone, Losskov reparou logo na sua voz ligeiramente cansada.

‑           O que e  que aconteceu ontem à noite? ‑ perguntou com um tom de voz sério. ‑ Quero que me contes tudo!

‑           Então tu já sabes?

‑           A Polícia telefonou‑me há alguns minutos. Da esquadra de David! Tu ontem regressaste ao hotel e foste com o Jan para St. Paull!

‑           A Polícia disse isso?

‑           Não tentes fugir à minha pergunta! O que foi que aconteceu?

‑           Esse Jan e  uma fábula, Peter! Devias ver a força que ele tem! Nós tinhamos saido de um daqueles sex‑shows, que têm lugar num pátio. Espectacular... O público até podia participar... Enfim, íamos a sair e o Jan trazia uma rapariga consigo, quando um daqueles tipos com barbinha se mete connosco. Dá um empurrão no Jan e diz que quer uma indemnização por o Jan lhe ter dado um murro nas costelas. E enquanto nós, pasmados, olhamos para ele, aparecem mais dois tipos a sorrir como uns imbecis, rodeiam‑nos e dizem: "Nós somos testemunhas! Esse tipo agrediu o Bruno!"

Losskov esperou que ele continuasse.

‑           Eu quis responder qualquer coisa ‑ prosseguiu Randler ‑, como, por exemplo: "Acalmem‑se, amigos. Eu sou da imprensa! Nós temos um tratado de paz convosco", quando nesse preciso momento esse tal Bruno deu um murro no Jan e gritou: "Olha que me pisaste o pé!" Isso então era completamente impossível, dado que a pequena ainda estava encostada ao Jan a fingir que tremia e que estava a morrer de medo. Foi então que o Jan Trosky entrou em acção. Eu digo‑te: aquilo foi uma beleza! Encostou a rapariga à parede, deu um grande murro na cabeça do Bruno que ficou com os olhos tortos, caindo depois redondamente no chão. Os outros dois aproximaram‑se do Jan, mas este pegou neles, agachou‑se, atirou um deles para trás de si com um excelente passo de judo, lançou‑se com a cabeça contra a barriga do outro e deu‑lhe mais dois murros. O Bruno, que entretanto conseguira levantar‑se, foi logo liquidado com dois murros dados com ambos os punhos. Girou como um pião e bateu com a testa contra o muro, o que provocou uma ferida na cabeça. Os três tipos foram parar ao hospital e o Jan, como cidadão exemplar que é, comunicou este incidente à esquadra de David. Foi só isso! Peter, eu garanto‑te que este e  o homem que tu procuras!

‑ E tu passas a ser exactamente o homem que deve desaparecer da minha vista! Se eu pudesse, atirava‑te pela janela! Juro que sim!

‑ A ingratidão e  sempre o agradecimento dos melhores amigos! ‑ Randler bocejou. Dormira apenas duas horas. - Vais ver o Jan esta manhã?

‑Sim.

‑           Então não menciones o assunto! Ele não teve culpa de nada. Foi uma noite péssima para ele. Nem sequer acabou com uma rapariga na cama!

Ao contrário de Randler, que teve de deitar‑se num sofá da redacção, onde dormiu três horas, Trosky parecia fresco e descansado quando apareceu no átrio do hotel, às onze horas da manhã. Cumprimentou Helena Sydgríff que saira do outro elevador, enquanto Lucrezia não aparecia, facto que não surpreendeu Losskov.

Ligou para o quarto dela, para a avisar que estavam à sua espera.

‑ Só mais um minutinho, Peter! Estou a secar o cabelo - respondeu ela.

Losskov observou Trosky discretamente, mas não reparou em nenhuns sinais exteriores de cansaço e decidiu não lhe perguntar nada. Porém, isso nem sequer foi necessário. Quando Helena se dirigiu para o quiosque para comprar o jornal, Jan aproveitou a oportunidade para sussurrar ao ouvido de Losskov.

‑ Na noite passada tive uma grande aventura, Peter! Estive em St. Paull. Afinal como visitante vindo do Leste, tenho de estudar as facetas mais típicas do Oeste! Aquilo que eu vi ontem à noite não existe no Leste. e  impressionante ver o que eles apresentam assim naturalmente no palco... Bem, sabe do que estou a falar! E, depois, houve problemas.

‑ Eu sei. A Polícia telefonou‑me.

‑ Deve estar desiludido comigo, não é? Eu juro‑lhe que agi em autodefesa!

‑ Eu acredito em si. Vamos esquecer o que se passou!

‑ Obrigado! ‑ Trosky sorriu, satisfeito. ‑ Mesmo que sejamos uma equipa, Peer, e embora cada um de nós esteja sempre pronto a ajudar o outro, afinal e  essa a nossa tarefa, cada um de nós deveria manter a sua individualidade! Até agora ninguém disse que íamos viajar num barco de monges e que meditaríamos à volta do mundo.

‑ O que o senhor faz em terra é‑me completamente indiferente ‑ retorquiu Losskov. ‑ Mas quando estivermos a bordo, serei eu quem manda!

‑ De acordo. ‑ Trosky apertou a mão a Losskov. ‑ Eu tenho a óptima sensação de que nos vamos entender muito bem.

Lucrezia Panarotti acabava de sair do elevador. A sua aparição era digna de ser filmada. Trazia um vestido amarelo muito justo, sobre o qual o seu cabelo preto caía como um véu. Era impossível não reparar nela, e quem se cruzasse com Lucrezia ficava parado a observá‑la.

‑ Por onde e  que começamos, então? ‑ perguntou Trosky, quando Helena regressara com o jornal. ‑ Pergunte‑nos aquilo que quiser, Peer. à vontade. Afinal nós ainda somos estranhos. Será que nós combinamos bem? Se a partir das nossas cartas tinha uma ideia completamente diferente de nós, então diga‑o abertamente! Depois, no mar, será tarde de mais para isso. Nessa altura, só haverá uma solução: homem ao mar!

‑ Temos tempo suficiente para nos conhecermos melhor. ‑ Losskov abriu a sua pasta e retirou diversos classificadores de várias cores. ‑ Os preparativos durarão até ao fim do ano. Julgo que partiremos durante o mês de Fevereiro. E, aí, põe‑se logo uma primeira questão: terão disponibilidade em termos de tempo? Teremos de trabalhar juntos e treinar... ‑ Olhou para as duas raparigas. ‑ Eu repito aquilo que já disse anteriormente, mesmo que todos já o saibam:

isto não e  nenhuma excursão. Pode vir a tratar‑se da vida ou da morte!

‑ Eu estou disponível! ‑ declarou Helena Sydgriff de uma maneira seca, como era seu hábito. ‑ O meu pai acha que eu sou doida, mas apesar disso está disposto a investir vinte mil marcos neste projecto. Ele tem uma fábrica de fechaduras e material de construção.

‑ Eu não tenho dinheiro ‑ informou Lucrezia com um semblante infantil. ‑ Mas estou disponível, dado que posso interromper os meus estudos a qualquer momento. Posso até ficar aqui, a partir de agora. Trouxe tudo o que preciso comigo, o que ao todo faz sete malas.

‑ Então, pode ir já deitando fora seis dessas malas, Luzi! No cabo Horne não há recepções nem festas! ‑ Trosky encostou‑se para trás e balançou o seu copo de uísque na palma da mão. Enquanto os outros bebiam sumo de laranja, ele permanecia fiel ao uísque. ‑ Bem, e eu? Posso pedir uma licença ilimitada. Falei com o director do instituto antes de lhe escrever, Peter. Eu sou empregado do Estado. O Estado financia o meu curso. Afinal, como poderia o meu pai pagar os meus estudos com o lugar que tem?! Quem manda em mim e  portanto o Estado! Mas o director do instituto, o professor Karel Novracky, e  uma pessoa muito agradável. Ele dá‑me inteira liberdade. Dentro de quinze dias, poderia voltar para Hamburgo, se e  que está interessado em mim!

‑ Tentaremos trabalhar juntos! ‑ Losskov lançou um olhar a Helena Sydgriff. Ela fitava‑o com um ar interessado e inquiridor, como se lhe quisesse fazer um diagnóstico - Até ao final do ano podem ainda desistir. Bem, comecemos então pela parte mais importante. Luzi, Loirinha e... Fedorento, temos de encontrar um apartamento para vocês.

‑ Porque e  que hesitou antes de dizer Fedorento? ‑ perguntou Jan com um sorriso.

‑ De agora em diante pretendo evitar essa alcunha. - Losskov abriu o primeiro classificador que continha a lista de donativos. ‑ O aluguer e tudo o que for necessário à vossa subsistência será pago pelos donativos dos leitores do jornal. Como eu conheço o Randler, ele continuará a chamar a atenção para o nosso projecto. Mas aviso‑vos já de uma coisa: o champanhe e o uísque serão pagos do vosso bolso! E os perfumes também, Luzi! O fundo de donativos apenas abrange as despesas de uma casa normal. Amanhã, iremos visitar uma fábrica de carne que me propôs a oferta de carne seca preparada segundo um método especial. ‑ Levantou o olhar e reparou nos seus semblantes surpresos, como se sentissem que a grande aventura começara. ‑ Preciso que me tragam uma lista dos instrumentos de investigação que levarão convosco.

‑ Uma grande mala com medicamentos e instrumentos para eventuais intervenções cirúrgicas ‑ disse Helena Sydgriff. ‑ Só isso. Eu não preciso de mais nada. Os meus objectos de investigação são vocês.

Trosky riu‑se.

‑ Tem aí uma tarefa que me parece bastante interessante!

 

Duas semanas mais tarde, voltaram a encontrar‑se em Hamburgo. Desta vez, porém, ficariam definitivamente. Losskov encontrara um apartamento e já o alugara. Tinha quatro quartos, uma cozinha, um vestíbulo, uma casa de banho e um terraço com vista para o rio Elba. Ficava situado numa zona elegante, com mansões e enormes jardins, onde moravam as famílias mais ricas da cidade. Era uma ilha de silêncio, longe da cidade barulhenta. Losskov encontrara o apartamento graças a Randler que, como típico jornalista, estava sempre a par das coisas. Tratava‑se de um prédio antigo que iria ser demolido dentro de um ano. No mesmo lugar, iriam ser construídas casas de alto luxo com apenas dois andares e quatro apartamentos. Até lá, o prédio estava vazio. Embora fosse perfeitamente habitável, o papel de parede e as pinturas deixavam adivinhar que já há muitos anos não fora renovado.

Luzi analisou o apartamento com um olhar crítico.

‑ Quanto tempo e  que viveremos aqui? Até Fevereiro do ano que vem? Então vejam só o que eu vou fazer deste apartamento! Ficarão admirados!

E realmente ficaram admirados. Lucrezia comprou papel de parede e cola, pediu emprestada uma mesa de trabalho, uma trincha e um cortador, arranjou baldes com tinta e começou a misturar e a pintar. Durante vários dias, subiu e desceu o escadote, arrancou o papel de parede antigo, corrigiu as falhas no estuque com uma espátula e massa, e colou papel de parede.

Jan Trosky decidiu ajudá‑la. Era a primeira vez que pegava em papel de parede, batendo‑o ligeiramente com uma escova contra a parede, apertando as juntas e prestando atenção para não deixar fendas. às vezes, não trabalhava tão bem, e o papel de parede formava rugas.

‑ És mesmo tolo, Jan! ‑ dizia Luzi, num tom de voz suave. ‑ Sabes prever as mudanças climáticas no Pólo Sul, mas és incapaz de colar o papel de parede correctamente!

Após uma semana, o apartamento estava perfeito e Jan, Luzi e Loirinha decidiram organizar uma pequena festa. Como ainda não tinham muitos móveis, tiveram de se sentar no chão. Beberam um cocktail preparado por Helena e comeram os espetos que Trosky arranjara. Lucrezia estava muito orgulhosa. Losskov louvara‑a e dera‑lhe um beijinho.

‑ Sinceramente não estava à espera de uma coisa destas! ‑ declarara ele.

Atrás da fachada sedutora de Lucrezia, escondia‑se uma pessoa cheia de energia. Randler, que sempre tinha de comentar tudo, pronunciou‑se:

‑           Estas são as mais perigosas, Peter! Julgas‑te perante uma bonequinha frágil e de repente descobres que ela e  tão dura que mal te aguentas!

Os preparativos estavam agora em pleno andamento. Uma vez por semana, Randier publicava as "Notícias da Terra do Fogo", uma rubrica que entretanto quase se tornara numa parte integrante do jornal. Só havia um problema: Randler publicava fotografias de Peter durante o treino de remo, de Trosky a filtrar a água do mar para a tornar potável ou de Lucrezia e Helena a rizar as velas, o que aumentava drasticamente a participação dos leitores. Helena e Lucrezia acabaram por receber quarenta e quatro propostas de casamento escritas num tom muito sério, entre as quais se encontravam as de três viúvos extremamente ricos. Até mesmo Trosky recebeu nove propostas. "O senhor tem uns músculos...", escrevia uma senhora. "As suas coxas são tão rijas! Temos de nos conhecer melhor. Eu herdei uma empresa de revenda de ferro que e  uma mina. Poderíamos viver juntos, onde quiséssemos! Por mim, até podia ser na Terra do Fogo..."

Em poucas semanas, habituaram‑se de tal maneira uns aos outros que agiam como se já se conhecessem há vários anos. Entretanto, já se tratavam por "tu", falavam abertamente e às vezes até diziam coisas menos agradáveis uns aos outros. Afinal, a sinceridade faz parte de uma verdadeira amizade.

Jan Trosky encontrara uma namorada. Era uma rapariga magra, com uns grandes olhos, que vendia salsichas numa roulotte. Uma noite, depois de uma visita ao cinema, Jan comprara uma salsicha e ela correspondera ao seu sorriso. Limitara‑se a sorrir. às quatro horas da manhã, quando chegou a hora de fechar as roulottes que ainda cheiravam a óleo queimado, a rapariga acabou o trabalho e saiu a pé. Trosky esperava‑a alguns metros adiante, num vão de escada. Ela reparou imediatamente nele, parou e fitou‑o com um olhar vazio.

‑           Ninguém te vem buscar? ‑ perguntou Trosky.

‑           Não ‑ respondeu ela com uma voz infantil.

‑ Não há ninguém à tua espera?

‑Não.

‑ E os teus pais?

‑ Estão em Apensen.

‑ Onde e  que fica isso?

‑ A oeste de Buxtehude.

‑ Ah! Eu chamo‑me Jan.

‑ Eu sou a Anita.

‑           Vives sozinha?

‑           Sim, num quarto mobilado.

Ele pôs o braço à volta dos ombros dela e Anita estremeceu, mas não fugiu.

‑           Tens medo? ‑ perguntou Jan.

‑           Não, mas estou a morrer de sono. O meu trabalho obriga‑me a ficar em pé durante mais de dez horas.

‑ Que horrível!

‑ Mas tem de ser assim. Não quero ser uma prostituta! Eu sei que se assim fosse ganharia muito mais dinheiro, mas não quero. E tu, o que e  que fazes?

‑ Eu preocupo‑me com o clima.

‑ Não digas disparates!

‑ Juro que sim, Anita.

Ela voltou a fitá‑lo com aquele olhar vazio e depois mostrou um ligeiro sorriso.

‑           Não me digas que és um daqueles senhores que costumam fazer a previsão errada do tempo.

‑           Mais ou menos.

‑           Isso e  engraçado! ‑ Anita agarrou o braço dele com mais força. ‑ Qual e  a previsão meteorológica para amanhã?

‑           O Sol vai brilhar como se estivéssemos no paraíso, porque nós nos conhecemos.

Caminharam pela cidade silenciosa ao encontro do nascer do Sol, como se sempre tivesse sido hábito ele vir buscá‑la ao trabalho. O quarto de Anita era pequeno e limpo, a cama confortável e ela repleta de um carinho suave.

‑           A Anita toma estupefacientes ‑ revelou Trosky mais tarde a Losskov quando lhe falou em Anita. ‑ Não dos pesados! Comprimidos, pilulas e drageias. Felizmente ainda não está agarrada à heroína. Estou disposto a ajudá‑la para que ela deixe os comprimidos.

‑ Nós não podemos levá‑la connosco ‑ declarou Losskov de imediato ‑ Isso tem de ficar bem claro. e  melhor dizeres‑lhe agora, já que em Fevereiro estará tudo acabado entre vocês.

‑ Eu não sou capaz de lhe fazer isso. Ela não aguentaria.

‑ E em Fevereiro, Jan, como será? Estás a cometer um grande erro! Todos nós cortámos as nossas relações pessoais antes de entrarmos neste projecto e tu envolves‑te com uma mulher!

‑ Eu não sou ascético. Preciso de uma mulher.

‑ Aqui em Hamburgo, há inúmeras possibilidades de ter uma relação sem compromissos!

‑ Eu preciso disso, como os outros precisam de se barbear. Para mim, e  como se fosse uma questão de cosmética.

‑ E, mais tarde, no barco?

‑ Aí, entreter‑me‑ei a lutar contra o mar! ‑ Trosky riu‑se. ‑ O oceano! Para mim o mar e  feminino: e  a água! - Helena não estava minimamente preocupada com aquilo que Trosky fazia nos seus tempos livres, enquanto Lucrezia, por seu lado, parecia um pouco mais interessada.

‑ Quem e  essa Anita? ‑ perguntou a Losskov. ‑ Mal surja uma ocasião, o Trosky vai para a cama com ela, não é? Mas ela e  assim tão bonita?

‑ Eu não a conheço.

‑ E ninguém se lembra de me perguntar a mim?

Losskov olhou para Luzi com um ar espantado.

‑ O que e  que queres dizer com isso?

‑ Será que eu não existo? Achas que eu não tenho sangue nas veias? Pensa um pouco nisso, Peter!

à noite, Peter falou com Helena Sydgriff acerca daquilo que Lucrezia lhe dissera. Jan estava com Anita e Lucrezia fora para o instituto de beleza fazer uma máscara para o rosto.

‑ Eu já estava à espera que ela dissesse isso ‑ comentou Helena, pensativa. ‑ Há muito tempo que já comecei a fazer os meus apontamentos e há dias que esperava por isto. A Luzi está a sofrer uma forte pressão interior, como se quisesse disparar a qualquer momento. Ela contou‑me que em Roma tinha um namorado que teve de deixar ao vir para cá. Chamava‑se Angelino. A Lucrezia falou‑me abertamente dele. Estavam juntos pelo menos três vezes por semana. E, agora, de repente, ela não tem ninguém. Imagina o que isso quer dizer para uma mulher enérgica como a Lucrezia! Do ponto de vista da medicina, isso e  um verdadeiro problema. "Meu Deus, eu agora seria capaz de me atirar a qualquer homem", disse‑me ela uma vez. "Pode ser magro ou gordo, pequeno ou grande, torto ou direito, o que importa e  que seja um homem!" Eu compreendo‑a perfeitamente. Ela tem um tipo de hormonas para as quais um orgasmo e  como uma cura!

Losskov ficou calado. Olhou para Helena sem saber o que dizer. Estava satisfeito por ela lhe falar nesse tipo de coisas de uma forma tão aberta e desinibida.

‑ Ela poderá talvez representar um perigo para o nosso projecto? ‑ perguntou.

‑ Espero que a imensidão do oceano a acalme.

‑           Achas que eu a deveria mandar de novo para Roma?

‑           Isso só tu e  que podes decidir. Tu e  que mandas. - Os olhos claros de Helena emanavam uma grande calma. - Cada um de nós constitui um problema, Peter. Não podemos saber como e  que reagiremos mais tarde, no mar. O Jan pode transformar‑se num herói e tu num frouxo. Lembra‑te de como a Luzi modificou o nosso apartamento. Temos de consciencializar‑nos de que cada um de nós e  capaz de transformações inesperadas.

‑           Estou muito feliz por te ter connosco ‑ disse Losskov e deu um beijo na mão de Helena. ‑ Admiro a tua maneira cristalina de pensar.

‑           Quem sabe se não estarás enganado ‑ respondeu ela. Mas não retirou a mão. ‑ às vezes o gelo queima.

 

O barco enfim chegara.

Não era o barco com o qual iriam viajar, mas sim um navio gémeo que acabara de ser construído e que na semana seguinte seria levado para o porto de Cannes, onde seria entregue ao seu futuro dono. O responsável pela publicidade da empresa de detergentes telefonara a Losskov e convidara‑o a vir juntamente com a sua equipa ver o barco que lhe iriam oferecer. Estava a ser construído num estaleiro holandês, segundo os métodos mais modernos. O construtor queria explicar os pormenores a Losskov e oferecer‑lhe a oportunidade de fazer as suas experiências com um casco ainda não completo desse modelo.

De tudo aquilo que Losskov contara aos seus amigos antes de partirem para a Holanda, houve um pormenor que fascinou Jan particularmente: o barco não se afundava e endireitava‑se sozinho.

‑ Quer dizer que não nos podemos afundar? ‑ perguntou. ‑ Achas que isso e  possível?! ‑ e  exactamente isso que vamos testar.

‑           Mesmo se depararmos com vento de doze nós, não nos acontecerá nada?

‑           Acontece, sim. Afogamo‑nos.

‑           Mas o barco continua sempre em pé?

‑ Continua! Teoricamente não se pode afundar, desde que as paredes laterais e o chão fiquem intactos. Todo o casco e  feito de espuma de poliéster, como se fosse uma sanduíche. Por isso, a parte superior fica sempre em cima.

O barco estava atracado no pequeno porto do estaleiro holandês. Era branco, com uma listra vermelha, um mastro de aço brilhante e uma cabina em vidro. Era um barco realmente bonito. Losskov aproximou‑se pela ponte, com um ar quase devoto. Lucrezia, por seu lado, exclamou, visivelmente desiludida:

‑ Meu Deus, que coisa mais pequena!

A visita ao interior do barco foi curta. Entraram um depois do outro, passando pela estreita porta que dava para a cabina onde estavam as seis "camas": duas na proa, duas na popa e mais duas que se obtinha juntando os dois bancos e afastando a mesa. Ficaram parados no meio do pequeno espaço que o construtor, um senhor chamado Willem van FIeterword, denominava "salão" com a maior naturalidade, e imaginaram as capacidades artísticas que seriam necessárias para preparar uma refeição na pequena cozinha de bordo. Havia até uma pequena banheira e uma sanita, mas era tudo tão apertado que algumas partes do corpo não podiam exceder uma certa dimensão.

Losskov gostou muito do barco. Passou a mão por ele, deixou que lhe mostrassem a arrecadação, que era realmente grande, foi ver a bomba no poço, a carlinga e o engenho que permitia rizar as velas a grande velocidade. Eram tudo coisas importantes para o caso de depararem com mau tempo, altura em que cada minuto se torna precioso e o mais importante e  preparar o barco para a tempestade.

Concluíram a visita com um óptimo almoço, aguardente holandesa, muitas felicitações e um discurso de agradecimento de Losskov, dirigido à empresa de detergentes que possibilitara a compra daquele magnífico barco. Um membro da direcção que os acompanhara durante a visita entregou‑lhes mais um cheque suplementar, sob os flashes dos repórteres e destinado a financiar eventuais aperfeiçoamentos no barco. Durante a entrega do cheque, posicionaram‑se de tal maneira que em todas as fotografias apareceria o cartaz do mais recente detergente para a roupa.

à noite, a equipa teve finalmente tempo para se dedicar mais de perto ao barco. Losskov, Randler e os outros três tinham regressado ao porto oeste e estavam agora sentados na ponte, baloiçando as pernas sobre a água, enquanto contemplavam o barco.

‑ Eu estava consciente de que se tratava de um barco pequeno - disse Trosky. - Mas ninguém me falou num barco minúsculo como este.

‑ e  uma Friendship vinte e oito. ‑ Losskov decorara os factos previamente. O barco era exactamente como ele o imaginara. ‑ Tem um comprimento de quase oito metros e setenta, dois e oitenta e cinco de largura, um calado de um metro e sessenta, e um deslocamento de três toneladas e meia.

‑ Quem ouve esses números fica com uma óptima ideia do barco! ‑ confessou Randler. ‑ Mas quem lá entra. Peter! e  impossível navegar pelos mares com uma coisa daquelas!

‑ O que e  que nos impede de fazê‑lo? Um barco destes pode ser mais seguro do que um barco gigante de trezentos e cinquenta metros de comprimento. Nunca ouvi dizer que o Queen Elizabeth não se afunda e que se endireita sozinho. Claro que este barquinho dançará nas ondas, mas por outro lado não será um alvo tão fácil para as ondas! Tudo dependerá das nossas forças.

‑ Falta o motor ‑ lembrou‑se Trosky, de repente. Losskov fitou‑o com um ar admirado.

‑ Falta o quê?

‑ Este barquinho não tem motor. Nem mesmo um pequenino! Garanto‑te que o barulhinho do motor por baixo do traseiro em certas alturas pode ser muito reconfortante.

‑ Os Viquingues também não tinham motor ‑ respondeu Losskov com calma.

‑ Nem um poço autopilotado, nem mesmo um depósito para bilhas de gás propano ou uma bússola antiestática! Eles punham o polegar no ar e seguiam.

‑ e  exactamente isso que eu quero. Nós vamos navegar com a ajuda do vento e não de um motor! E dispomos de tudo para garantir a nossa segurança... Nesse aspecto tens razão: já constitui uma enorme vantagem sobre os Normandos.

‑ Tu e  que sabes! ‑ disse Trosky. ‑ Se não quiseres, não levamos motor! Mas imagina que realmente venhamos a precisar dele. Imagina que morremos devido à falta de um motor? Então...

Interrompeu a frase.

‑Então... o quê? ‑ perguntou Lucrezia, sempre atenta.

‑ Então ele mata‑me a mim! ‑ disse Losskov com um ar despreocupado. ‑ Mas pensa bem: no lugar do motor e da gasolina poderemos transportar água potável. Isso será muito mais importante quando estivermos numa calmaria.

‑ Com um motor não haverá calmaria que nos incomode ‑ retorquiu imediatamente Trosky. ‑ Mas está bem, eu não me quero queixar já nesta altura. Nós os quatro nesse barquinho... Vai ser uma Arca de Noé muito especial!

 

No dia seguinte, foi‑lhes entregue um modelo inacabado do barco com um pequeno mastro e uma vela grande de quase dez metros quadrados. Levantara‑se um vento propício para a largada. Um engenheiro do estaleiro, o construtor Willem van Reterword, Dieter Randier e o resto da equipa encontravam‑se na ponte, vestidos de oleados amarelos. O barco, que ainda estava amarrado à ponte, baloiçava nas ondas. Cada um deles trazia o seu colete de salvação por baixo do braço.

‑ Quem e  que me acompanha? ‑ perguntou Losskov.

‑ Eu prefiro ir no barco a motor! ‑ respondeu Randler rapidamente. ‑ Afinal tenho de tirar as fotografias!

‑ Eu vou contigo! ‑ disse Trosky.

‑ E nós? ‑ perguntou Helena Sydgriff.

‑ Vocês ficam no barco a motor a observar como tudo se desenrola. Se algo correr mal, poderão salvar‑nos! Então, vamos a isso!

Losskov pôs o colete de salvação no ombro e dirigiu‑se para o barco. Quando passou por Helena, esta olhou para ele com os seus olhos azul‑claros com um ar preocupado.

‑ Não sejas leviano, Peter! ‑ avisou, baixinho. ‑ Tem cuidado!

‑ Estás com medo, Loirinha?

‑Sim.

Ele hesitou, depois levantou a mão num gesto inseguro e acenou‑lhe.

‑ Obrigado ‑ disse. ‑ e  muito simpático da tua parte.

Teve um sentimento de alegria indescritível quando saltou para o barco e estendeu a mão a Trosky, para o ajudar a entrar. "Ela tem medo que me aconteça algo", pensou. "Ela na realidade não e  aquela intelectual fria que aparenta ser. Obrigado, Helena, tornaste o nosso mundo um pouco mais bonito."

Trosky desceu para o pequeno camarote e voltou a sair imediatamente.

‑ Sem as instalações adequadas, isto tem um ar ainda mais desolador! As paredes parecem‑me extremamente finas. Antigamente, os marinheiros cuspiam o seu tabaco para mascar contra elas... Neste barco, isso seria impossível, pois surgiria logo um buraco na parede.

‑ O poliéster e  um material leve, mas muito resistente - respondeu‑lhe Losskov, rindo‑se. Usou o colete de salvação e encheu‑o com a ajuda das válvulas de pressão. ‑ Além disso, o casco foi construído segundo o método Laminat. Nada o partirá tão facilmente.

‑ As paredes parecem ocas.

‑ Isso são câmaras de ar com espuma que farão com que estejamos sempre direitos! E e  isso que vamos experimentar agora. Tens medo?

‑ Se eu tivesse medo achas que estaria aqui? ‑ retorquiu Trosky com um sorriso. ‑ Nós vamos contornar a Terra do Fogo e o cabo Horne de uma maneira que até Nosso Senhor lá em cima, nos céus, nos vai aplaudir! ‑ Vestiu igualmente o colete de salvação e accionou as válvulas de pressão. Depois, pôs‑se em posição de sentido. ‑ Pronto para a partida, sir. Quer que eu dê o sinal de partida?

Riram‑se e soltaram as sirgas. Depois, esperaram que a corda de nylon que os unia ao barco a motor se esticasse e sentaram‑se no poço. Losskov pegou no remo e o barco afastou‑se, dançando nas ondas.

O trabalho de desamarrar, por si só, já teria sido motivo suficiente para um leigo desistir. O barco parecia um pedaço de papel com o qual o mar brincava. Quando chegaram ao mar aberto, Losskov e Trosky prenderam‑se por um gancho às cordas esticadas no barco de uma ponta à outra. A partir de agora já não podiam utilizar as mãos para se segurar, pois precisariam delas para trabalhar. Trosky desengatou a corda do barco a motor. Depois, içou a vela grande, e o barco disparou como se tivesse sido catapultado. Apanharam o barco a motor que já se encontrava nas enormes ondas e cuja proa se afundava na água, viram o engenheiro do estaleiro na ponte alta e Dieter Randler ao lado, pálido, com um semblante assustado, mas ainda com um resto de coragem que lhe permitia proteger a sua máquina fotográfica com um saco de plástico amarelo. De repente, aperceberam‑se de que o senhor Van Fleterword~Ihes estava~ a tentar comunicar algo através do megafone. Viam‑no colado à balaustrada com as ondas a despenharem‑se sobre ele. Era um verdadeiro homem do mar.

‑ Menos vento para a vela! ‑ berrava Fleterword. - Esse mastro e  apenas provisório! Voltem já! Estão a criar uma situação de perigo!

‑ Isso também eu sei! ‑ resmungou Losskov. Ultrapassou o barco a motor e acenou alegremente. Dentro do barco, atrás dos vidros, reconheceu Lucrezia e Helena. "Olhem bem para isto", pensou. "É isto que vos espera! E o que vocês estão a ver aqui e  uma autêntica brincadeira comparado com aquilo que acontecerá quando estivermos numa verdadeira tempestade. Nessa altura, vocês também estarão presas a ganchos, e as vagas gigantes aparecerão à vossa frente e desabarão sobre o barco. O mar parecerá uma paisagem montanhosa que faz parar a respiração. Eu sei qual e  a sensação! E entre as montanhas há os vales, nos quais o barco cai, como se nunca mais de lá voltasse a sair. Nunca mais! Vocês pensarão que e  o fim, que o mar se fechará por cima do barco, como se vos tivesse engolido, como se deixassem de existir. E, de repente, voltam à superfície da água, encontram‑se na crista espumosa de uma onda e não compreendem como e  que o céu ainda pode existir, como e  que pode haver um horizonte, as nuvens que avançam a alta velocidade e o mar bravo. Perceberão que continuam vivas, capazes de ver e de ouvir tudo o que se passa à volta... até à próxima montanha de água, ao próximo abismo..."

‑ Recolher as velas! ‑ berrou Losskov.

Entretanto, tinham‑se afastado algumas milhas da costa, o mar estava cada vez mais bravo e as vagas batiam com força contra as paredes do barco. A porta que dava para a cabina fora fechada, impossibilitando assim a água de entrar, mas a bomba automática não tinha capacidade suficiente para esvaziar o poço. Havia tanta água no barco que já chegava aos tornozelos de Trosky e Losskov. Uma onda gigante que se despenhara sobre eles tornara‑os assustadoras figuras amarelas, completamente encharcadas.

O barco a motor aproximou‑se deles. O senhor Van Fleterword continuava na balaustrada e berrava através do megafone:

‑ Não cometam nenhum erro! O que e  que pensam que estão a fazer? Isso não são coisas que se façam!

‑ Ainda não viu nada! ‑ gritou Losskov com uma voz rouca. ‑ Repare só naquilo que vai acontecer agora! No cabo Horne não existem leis! Tem de se ser mais ousado do que o mar! ‑ Aproximou‑se de Trosky que rizara as velas e engatara o último cabo. ‑ Estás preparado? ‑ perguntou‑lhe gritando.

Trosky olhou para Peter com um ar inquiridor.

‑ Preparado para quê? ‑ replicou também aos berros.

‑ Para fazermos o pião!

‑ Estou preparado! ‑ Trosky verificou o cinto, os ganchos e o colete de salvação. ‑ E se ficarmos em baixo?

‑ Saímos imediatamente e subimos! ‑ Losskov pegou com as duas mãos no remo. ‑ Preparado?

‑ Preparado, Peter!

Losskov deu a volta ao remo. O barco, que até agora cortara as ondas com a proa, virou‑se contra a direcção do vento. Embora a parte lateral do barco não fosse muito grande, o mar batia agora nela com uma força inacreditável! O senhor Van Fleterword encostou o megafone contra o peito e abriu a boca, escandalizado. Randier, que se encontrava na ponte alta do barco a motor, completamente enjoado e desejoso de morrer o mais rapidamente possível, gemeu e pegou na sua máquina fotográfica. A máquina disparou: quatro fotografias por segundo. Deste modo, aquilo que estava a acontecer no mar ficaria registado na sua câmara, passo a passo.

O pequeno barco foi atirado para cima, as vagas inclinaram‑no, e assim ficou como que pendurado num enorme muro de água. Losskov e Trosky já só apenas estavam presos pelos ganchos às cordas de nylon, baloiçando de um lado para o outro, como bonecos. O barco, porém, não se virava ao contrário, nem a quilha vinha parar ao lado de cima. Endireitava‑se como que movido por uma mão invisível, dançava na crista das ondas, deslizava para dentro dos vales, girava, inclinava‑se para o lado, voltava a subir e era atirado de um lado para o outro como se fosse uma bola. Quando se inclinou para o lado pela sexta vez, o mastro partiu‑se como se de um simples palito se tratasse e foi arrastado por uma enorme vaga pelo tombadilho até ao poço. A vela soltou‑se, insuflando‑se de seguida, rasgou‑se e caiu juntamente com o mastro em cima de Jan Trosky.

Este encolheu‑se; porém, não pôde evitar uma forte pancada na cabeça. "Bolas", foi tudo o que ainda teve tempo de pensar. "Tem de se contar sempre com que isto aconteça. O mastro partiu‑me a cabeça." Depois, desmaiou e caiu, apenas preso pelo gancho do cinto. Foi isso que o salvou. O cordame da vela zurrou pelos ares, afiado como uma faca devido à pressão do vento. Passou por cima de Trosky e só depois se soltou completamente do mastro.

Tornara‑se impossível para Losskov controlar o barco. Pegou em Trosky, levantou a sua cabeça e viu a ferida. Como todas as feridas na cabeça, também esta sangrava abundantemente. A cabeça estava coberta de sangue, de tal forma que parecia que se tratava de um buraco enorme do qual todo o seu sangue estava a escorrer.

Foi necessária muita força e também alguma sorte para dominar o barco que dançava, descontrolado, nas ondas e atá‑lo ao barco a motor. Quando Losskov enfim conseguiu apanhar o cabo e o engatou, Lucrezia, que se encontrava dentro da cabina, deixou‑se cair num banco almofadado e começou a chorar como uma criança. Helena Sydgriff encostou‑se para trás e enterrou as duas mãos no cabelo.

‑ Pára! ‑ ordenou num tom de voz severo. ‑ Pára imediatamente essa choradeira. Se não, eu dou em doida!

‑ Então porque e  que não choras também? ‑ gritou Lucrezia. ‑ Chorar alivia! Mas não, tu preferes ficar doida! - Enterrou a cara nos estofos do banco e continuou a chorar.

Helena ergueu‑se, cambaleou até à escada e viu que Randler estava debruçado sobre a balaustrada a vomitar.

Losskov continuava no seu barco, a segurar a cabeça de Trosky. Nesta altura, era impossível uma aproximação entre os dois barcos e trazer o ferido para bordo do iate.

Depois de duas horas, alcançaram finalmente o molhe do porto do estaleiro e entraram em águas mais calmas. Transferiram imediatamente Losskov e Trosky para o barco a motor e Helena tratou da ferida. Lucrezia agia como se se tratasse de dois amantes seus que tinham regressado da guerra, beijando Peter e Jan alternadamente e chorando de uma forma histérica.

Losskov bebeu uma aguardente e deitou‑se num banco na cabina, completamente exausto. Apesar de tudo, ainda teve forças para sorrir, ao ver o estado em que Randler se encontrava: sentado num sofá, completamente apático, o rosto pálido, quase amarelo e ainda não conseguindo controlar muito bem os seus olhos inchados e vermelhos. O senhor Van FIeterword estava visivelmente ofendido, embora lhe tivessem provado que o seu barco era realmente "inafundável". Porém, aquela simulação fora realmente exagerada, dado que nunca ninguém reagiria de uma forma tão idiota como Losskov o fizera!

‑ Como e  hábito ‑ notou Losskov, ainda antes de atracarem à ponte ‑, os pontos fracos são o mastro e os cabos! Em casos de emergência, não podem ser recolhidos com a mesma velocidade com que destroem um barco.

‑ Foi por isso que montámos o mastro de modo a que ele se dobre em poucos segundos quando ameaça partir‑se. - O senhor Van Fleterword abanou as duas mãos. ‑ Mas nunca chegará a esse ponto! Suponho que o senhor pretende navegar como uma pessoa sensata. Mesmo assim, esta sua insensatez serviu para provar que o barco e  realmente "inafundável"!

‑ Mesmo com a carga máxima?

‑ Mesmo assim. Aquilo que acabou de fazer lá fora, já foi testado na nossa máquina de vento. Como o barco não oferece resistência, e  capaz de suportar qualquer vaga. Depois do que aconteceu, acredita ao menos que estou a dizer a verdade?

‑ Ainda há muito por fazer ‑ comentou Losskov.

Do outro lado, Trosky, que estava deitado num banco almofadado, ergueu a cabeça e começou a praguejar em checo. Passou as mãos pelo corpo, fitou Helena e Lucrezia com pálpebras trémulas e sentou‑se.

‑ Agora calhava bem um uísque, não achas? ‑ perguntou Losskov.

‑ Porque e  que eu estou vivo? ‑ Trosky falava devagar e com dificuldade, e piscava os olhos. Tinha uma imagem difusa de Losskov, e a luz ofuscava‑o. Tratava‑se dos sintomas típicos de um traumatismo craniano. ‑ Mesmo assim, a minha cabeça continua assente no meu corpo. e  impressionante.

‑ O Peter esteve a segurá‑la durante quase uma hora - informou‑o Helena. ‑ De outro modo, ela provavelmente teria sido arrancada.

‑ Isso e  verdade? ‑ Trosky olhou para Losskov. ‑ Tu deste‑me uma vida nova? Queres que passe a chamar‑te paizinho?

Lucrezia riu‑se alto.

‑ Que histérica! ‑ sussurrou Helena.

O ambiente entre eles estava péssimo; a tensão libertava‑se sob forma de agressões mútuas. Nestas alturas, as pessoas chegam a odiar‑se terrivelmente, sem mesmo saberem porquê. e  como se perdessem o controlo sobre os nervos e deixassem de ser responsáveis pelos seus actos.

‑ Ainda há muito por fazer ‑ repetiu Losskov. ‑ Não no barco, mas em nós! No ponto em que as coisas estão, seríamos, no máximo, capazes de ir de Maiorca para Ibiza com o mar calmo e o Sol a brilhar!

‑ Obrigado pelo elogio! ‑ resmungou Trosky. ‑ No barco, esforçar‑nos‑emos por sermos duros como umas pedras e urinarmos contra o vento.

Lucrezia riu‑se de novo num tom histérico. Depois, voltou a chorar e, quando Helena lhe chamou "estúpida", tentou bater‑lhe. Após chegarem aos estaleiros, puseram‑se a caminho do hotel sem trocarem uma palavra, e fecharam‑se nos seus quartos.

Mais tarde, Losskov telefonou para Helena.

‑ O que e  que queres? ‑ perguntou ela num tom rude.

‑ Queria apenas dizer‑te que não te levo a mal se desistires da viagem ‑ declarou Peter.

‑ Mas eu levo‑te a mal tu dizeres um disparate desses! - retorquiu ela e desligou o telefone.

Uma semana depois, Jan Trosky recuperara excepcionalmente bem do acidente. Os médicos até diziam que tinha um crânio de ferro, de modo que a equipa pôde logo iniciar uma nova fase do treino: a convivência numa ilha de salvação.

As fotografias que Randler tirara durante a primeira saída do barco, e que deviam servir para provar que não se afundava, não tinham qualquer préstimo. Ele já estava à espera disso. As imagens estavam completamente tremidas, cinzentas e desfocadas, e tudo o que se conseguia ver era a água ou o mar. O barco só aparecia duas vezes e sempre na margem da fotografia. Além disso, algumas delas estavam cobertas de estranhas manchas.

‑ Nesta altura, eu vomitei sobre a câmara! ‑ explicou Randler. ‑ Eu nunca participaria nessa viagem, nem que me oferecessem um milhão! E eles fazem‑no de livre vontade!

Escreveu um artigo com uma descrição extremamente dramática daquilo que acontecera e até mandou desenhar duas cenas, de modo a que parecesse que houvera um enorme maremoto na costa holandesa.

Para a realização de uma segunda experiência, alugaram um iate e voltaram para o Norte de Helgoland, onde depositaram uma ilha de borracha redonda e amarela na água. Era uma espécie de pequena banheira insuflável com um tecto de tenda bicudo, um farol de socorro, intermitente, saquinhos com alimentos e um pequeno aquecimento a pilhas.

Tinham definido exactamente a tarefa da equipa que seria viver durante uma semana sob condições extremamente precárias e sem ter em conta que havia um barco a motor a vigiá‑los.

‑ Imaginem que à nossa volta só há mar! ‑ disse Losskov. ‑ Mais nada! A costa mais próxima fica a centenas de milhas. e  esta a situação em que estaremos.

‑ Os crentes que levem um livro de cânticos! ‑ disse Trosky. ‑ Da maneira como o Peter está a descrever essa semana, suponho que as coisas vão ficar difíceis! Será que se pode imaginar uma situação dessas? Esse sentimento, essa certeza de que se vai morrer lentamente algures... Isso não se pode simular!

‑ Tens razão! Mas ficaremos a saber como e  que nos

comportamos quando nos vemos obrigados a viver juntos num espaço tão reduzido.

Losskov começou logo por surpreendê‑los. Não foi de barco até à ilha, como os outros; saltou para a água quando se encontravam a alguns metros de distância dela e, munido de um colete de salvação, nadou até lá. Içou‑se para a ilha por meio de uma corda e depois ajudou o resto da equipa que se aproximara de barco.

‑ Espera só! Cá vou eu! - exclamou logo Trosky. Deixou‑se cair para a água, que agora estava muito calma, e nadou com fortes braçadas. Losskov ajudou‑o a subir para a ilha. - Agora, as senhoras! ‑ chamou Trosky. ‑ Oh, esta ilha dá uma óptima cama! Mexe‑se por baixo de nós e adapta‑se à forma do corpo! Venham, minhas queridas!

Helena Sydgriff saltou para a água. Era uma boa nadadora e rapidamente alcançou a ilha. Losskov e Trosky ajudaram‑na a subir. Mal ela tinha chegado, Lucrezia atirou‑se para a água.

O seu cabelo preto esvoaçou como uma bandeira no ar antes de ela mergulhar na água... Tinha‑se a impressão de que uma vela se suspendera no ar durante alguns instantes.

‑ Que lindo! ‑ comentou Trosky, admirado. ‑ Quando uma coisinha destas salta para a água, aposto que até o deus Neptuno perde o seu tridente!

Lucrezia nadava como um peixe. Aproximou‑se a alta velocidade da ilha, como se fosse uma seta. Mergulhava ligeiramente em cada braçada que dava, como se cortasse o mar. Perto da ilha, apareceu à superfície da água, riu‑se e esticou os braços. Trosky ajudou‑a a subir e deu‑lhe uma palmada no traseiro.

‑ Agora já posso imaginar como terá sido a Afrodite quando surgiu da espuma! Os antigos pintores não sabiam mesmo nada! ‑ exclamou. ‑ Pois é, mas agora estamos todos molhados.

‑ E encontramo‑nos entre baia Grande, na Argentina. e as ilhas Falkland, a trezentas e cinquenta milhas da terra firme, sozinhos no mar. e o nosso barco afundou‑se!

‑ Isso e  impossível ‑ disse Trosky, rindo‑se. ‑ O barco não se afunda!

‑ Mas a parede partiu‑se! ‑ Losskov tirou o colete de salvação. ‑ Diabo, isto não e  nenhuma excursão, isto e  a sério! Essa tua boa disposição já vai desaparecer! Querem ficar assim, molhados? Onde estão as toalhas e os roupões! Luzi, dá‑me o secador de cabelo! Quem e  que me ajuda a secar o cabelo?

‑ Está a ficar maluco! ‑ exclamou Trosky.

‑ As roupas levam muito tempo a secar se ficarem com elas no corpo! ‑ Losskov despiu a camisa. Usava um fio de ouro com um medalhão à volta do pescoço. Era um medalhão trabalhado, com flores e trevas gravadas no ouro, e parecia ser muito antigo. ‑ Além disso e  bem provável que assim apanhem uma bela constipação.

‑ Ele tem razão! ‑ Helena Sydgriff também tirou o colete de salvação. Apontou para a direita e depois para a esquerda. ‑ Ali, fica a Argentina e ali as ilhas Falkland. Estou molhada e quero continuar a viver.

‑Ha... Ha! Agora vamos andar por aí todos nus! ‑ exclamou Trosky.

‑ A costa mais próxima fica a trezentas e cinquenta milhas. ‑ Losskov encolheu os ombros. ‑ Tu e  que tens de saber se ficas com as roupas molhadas no corpo ou não.

‑ Eu e  que não fico de certeza! ‑ declarou Helena. - Não gosto nada de ter tosse! E aposto que todos vocês vão apanhar uma grande constipação! Eu, pela minha parte, vou tentar evitar isso.

Despiu a sua blusa molhada, abriu o soutien, tirou as calças e as cuecas e dirigiu‑se, completamente nua e desinibida, até à entrada da ilha. Tinha uma pele branca, um peito rijo e redondo, coxas lisas e musculosas e umas pernas bonitas. Uma penugem loura, quase branca, cobria algumas partes da sua pele.

Trosky olhou para ela com espanto, engolindo em seco duas vezes.

‑ A Terra do Fogo realmente não pode ser muito longe daqui! ‑ exclamou; e pôs‑se a abrir as calças.

Lucrezia também se despiu; o efeito do seu corpo já era conhecido, todos já se tinham habituado à sua beleza. Tratava‑se apenas da confirmação de que a Natureza e  capaz de criar obras‑primas.

Quando estavam nus, perderam todo o pudor. Tinham ultrapassado uma barreira e notaram que fora fácil ultrapassá‑la. A relação entre eles alterara‑se. tornara‑se mais fraternal, longe de qualquer erotismo ou sexualidade. Os músculos de Trosky. o corpo bem constituído de Peter. u ~ rijo e redondo de Helena e a cintura fina de Lucrezia eram simplesmente constatados... Mais nada. Helena trepou para o lado de fora da ilha e estendeu a roupa.

Dieter Randler, que se encontrava no barco a motor, por seu lado, quase que caiu da cadeira quando viu Helena Sydgriff toda nua ao sol. Precipitou‑se para a balaustrada.

‑ Ainda há lugar para mim? ‑ Vou já aí! ‑ gritou.

‑ Cale‑se! ‑ retorquiu‑lhe Helena. ‑ O senhor não existe! Nós estamos perto da baía Grande!

Randler virou‑se, correu para o leme e interpelou o capitão que estava a fotografar aquela bela visão.

‑ O senhor, que e  um homem do mar ‑ disse ‑, ajude‑me! Elucide‑me! O consumo da água do mar pode enlouquecer?

No interior da ilha cavam‑se mutuamente com um pequeno pano. O facto de os seus corpos se tocarem não tinha qualquer efeito neles. Até mesmo Trosky permaneceu calmo. Massajou as costas e as ancas de Lucrezia, sem sentir pequenos choques eléctricos penetrarem‑lhe pelas pontas dos dedos até ao sistema nervoso.

Helena sentara‑se perto da entrada da ilha e desfrutava o sol. A roupa, pendurada nas cordas, esvoaçava ao vento, e a ilha baloiçava calmamente no mar. Losskov também se sentara no chão espesso e duro ao lado de Helena e ocupou‑se da comida para aquela semana. De vez em quando, olhava para ela e admirava a sua beleza fria.

Repartiu os alimentos e a água como se realmente se tratasse de uma situação de emergência. A ilha de plástico era grande; fora concebida para oito pessoas e por isso havia o dobro da comida.

Losskov tirou de um saco de plástico um rádio com uma pilha recarregável com energia solar. Entregou‑o a Trosky, que terminara a sua massagem a Lucrezia e agora era tratado por ela. Sorria, satisfeito, e às vezes gritava propositadamente "ai!", quando ela lhe tocava na barriga ou lhe soprava na nuca num gesto atrevido. Tratava‑se de brincadeiras sem segundas intenções, quase infantis, que lhes davam alegria. Mais tarde, sentaram‑se num circulo, com o rádio no meio, e ouviram a transmissão da opereta Uma Noite em Veneza.

Losskov explicou‑lhes o plano que fizera para a alimentação.

‑ Cada pessoa tem direito a dois copos de água por dia. Para além disso, temos as barras de fruta cristalizada.

‑ Por favor, não! ‑ exclamou Trosky. ‑ Aquelas coisas pegajosas vindas da América? O meu pai costumava dizer que os Americanos ganharam a guerra graças a essas barras de fruta! Cada soldado tinha uma. Os Americanos traziam consigo essas barras, chocolate de cola, Nescafé e bolachas.

‑ Nós também temos tudo isso!

‑ Então, não nos pode acontecer nada! ‑ Trosky bateu com os dois punhos no peito, como se fosse um gorila. - Foi graças a esses alimentos que a Alemanha de Hitler foi derrotada, e será graças a eles que nós venceremos o oceano! Imaginem só até onde os Viquingues teriam chegado se tivessem essa comida americana a bordo!

O primeiro dia foi muito divertido.

Três horas mais tarde, a roupa secara, graças ao vento e ao sol. Lucrezia trepou pela ilha para apanhá‑la. Randler, que continuava no iate, precipitou‑se de novo para a balaustrada e agitou os braços.

‑ Isto e  uma injustiça! ‑ gritou. ‑ Quando as brincadeiras começam, a imprensa e  simplesmente excluída! Deixem‑me ir para essa ilha!

Lucrezia acenou‑lhe, sempre nua, atirou as roupas para dentro da ilha e desapareceu.

Passaram a noite a contar histórias uns aos outros e a fazerem planos. Era difícil fingirem que estavam a trezentas e cinquenta milhas da costa, que estavam completamente isolados! Tentavam esquecer que a alguns metros se encontrava um iate a vigiá‑los.

Quando a noite caiu, Trosky inclinou‑se para Losskov e sussurrou‑lhe ao ouvido:

‑ Até agora consegui aguentar‑me bem. Foi fácil de controlar. Mas agora já não aguento mais! A água e as bolachas acabam por transformar‑se dentro do nosso corpo e depois querem sair!

‑ Estamos sozinhos no oceano.

‑ Mas eu tenho de...

‑ Mais cedo ou mais tarde, todos nós teremos essa necessidade. Até as raparigas.

‑ e  uma situação completamente nova, à qual eu terei de me habituar.

‑ Nós naufragámos e já não temos nada a perder senão as nossas vidas! A vergonha e  o primeiro sentimento que desaparece.

‑ Se as coisas são assim ‑ comentou Trosky em voz alta ‑, então, eu agora vou urinar!

Escorregou de joelhos até à entrada, abriu o fecho das calças, deslizou até à margem da ilha e urinou. Lucrezia pestanejou, mas, quando Trosky acabou, ela própria tomou o seu lugar agarrando‑se a um dos cabos.

‑ Para vocês, será um pouco mais difícil! ‑ disse Trosky para Helena. ‑ Têm de fazer muito mais ginástica! Nós, os homens, somos mesmo uma obra perfeita. Fomos bem pensados. Em compensação, ao mesmo tempo o mar lava‑vos o traseiro.

‑ Se falasses menos serias mais suportável ‑ contrapôs Helena. ‑ Entretanto, já todos nós sabemos que és um porco.

Escorregou até ao lado exterior da ilha e agachou‑se ao lado de Lucrezia, que olhava fixamente para a escuridão da noite e o mar negro. Entretanto, o iate já se encontrava a uma distância de quase cem metros; a ilha de plástico estava a afastar‑se.

‑ Acho‑a ligeiramente irritadiça! ‑ disse Trosky, sem porém ter ficado minimamente ofendido com aquilo que ela dissera. ‑ Até quando está nua, ela continua a ter uma armadura de ferro!

O segundo dia chegou ao fim, e a atmosfera entre eles era ainda relativamente boa. Ouviram dois relatos de futebol no rádio, jogaram às cartas e fizeram outros jogos. Trosky falou das suas viagens ao mar Vermelho e às Maldivas, onde era hábito, e ele jurava que estava a dizer a verdade, as mulheres pendurarem colares de flores à volta do pescoço dos homens e em outras partes do corpo também.

Depois adormeceram, aquecendo‑se mutuamente.

No terceiro dia, houve as primeiras agressões. Ligeiras, mas contínuas e perigosas. Helena apontou no seu caderno:

"Os olhos de Trosky estão a adquirir um brilho fatal. A Luzi parece um gato com cio. O Peter está a ficar resmungão e tem sempre a mania de que sabe tudo. E eu? Durante a noite dou por mim a desejar que o Peter me toque no peito. às vezes, quero aproximar‑me dele, mas isso e  um disparate! Apesar de tudo, e  interessante ver como, depois de dois dias, uma pessoa já começa a revelar o seu verdadeiro carácter."

O quarto dia, porém, tornou‑se um martírio, sobretudo por não terem nada para fazer. O rádio tocava o dia inteiro e Trosky chegou mesmo a dar‑lhe um pontapé. Além disso, começavam a notar a escassez de água potável. Bastava para beberem, mas não era suficiente para se lavarem, de modo que no terceiro dia a pele já estava coberta de pequenos cristais que causavam uma forte comichão. Embora nadassem todos os dias à volta da ilha e a seguir secassem o corpo com toalhas, algumas horas mais tarde já a pele estava de novo coberta de cristais: era a espuma do mar que secava ao sol e se transformava em partículas mínimas, como se se tratasse de poeira.

Agora, estavam sentados no chão de borracha da ilha, de cuecas, e olhavam uns para os outros. Aborreciam‑se. A conversa esgotara‑se. Todos já sabiam o que acontecera a Helena quando fora estudante de Medicina, conheciam a Itália, o país de Lucrezia, a vida de Losskov, que não tinha grandes pontos altos, e as aventuras eróticas de Trosky, das quais tanto se gabava.

No quinto dia, Trosky rejeitou a comida.

‑ Esta comida mete‑me nojo! ‑ gritou.

‑ Estamos a dirigir‑nos para sul, Trosky! ‑ avisou Losskov num tom duro. ‑ Até à costa faltam cerca de duzentas milhas!

Nesse dia, depois de terem nadado, deitaram‑se nus na ilha, como era hábito. Desta vez, porém, Lucrezia tapou a parte de baixo do seu corpo com um pano. O seu olhar parecia estranho.

‑ Tem cuidado! ‑ exclamou. ‑ Eu tenho uma faca. Esse tipo ‑ apontou para Trosky ‑ está a olhar para mim como se me quisesse atacar!

‑ e  isso que ela queria! ‑ gritou Trosky. ‑ Atirem‑na para a água. Ela está tão quente que o mar ferverá!

Dieter Randler veio piorar ainda mais a situação. Como sabia que a comida na ilha de borracha era muito precária, estava constantemente a provocá‑los, mostrando‑lhes a sua comida. De manhã e à noite, quando o iate se aproximava da ilha, sentava‑se ao lado da balaustrada e exibia a comida que tinha no prato: suculentas salsichas ou fiambre com ovo, fígado frito ou uma enorme costeleta. Quando no quinto dia levantou o garfo e mostrou um pernil fumado, gordo e redondo, Trosky já não conseguiu controlar‑se.

‑ Eu mato aquele homem! ‑ berrou. ‑ Eu arranco‑lhe os intestinos!

Saltou para a água e nadou em direcção ao iate. Este, porém, deu meia volta e afastou‑se. Trosky teve de regressar para a ilha e ficou amuado.

‑ Eu acho que esta experiência e  uma grande estupidez! ‑ queixou‑se a Losskov. ‑ O mar está completamente liso! Isso põe‑me doido! Durante a viagem tudo vai ser diferente. O mar estará bravo. O que nós estamos aqui a fazer e  uma simulação completamente estúpida. Vocês metem‑me nojo!

Sete dias mais tarde, a ilha de borracha foi recolhida pelo iate. Trosky procurou imediatamente Dieter Randler. Este fechara‑se na sua cabina e pedia cessar‑fogo com uma enorme garrafa de uísque.

A avaliação final da experiência foi péssima. Cabisbaixos,sentaram‑se no salão do iate, à volta da mesa. Sabiam perfeitamente que tinham falhado e ouviram pacientemente a pergunta, claramente retórica, de Losskov.

‑ E queremos nós dar a volta ao mundo num barco de oito metros e setenta!? Coitadinhos!

‑ Pelo menos, conseguimos livrar‑nos do nosso pudor! - retorquiu Trosky. ‑ Livrámo‑nos disso, tal como também resolveremos os outros problemas. Mas houve uma coisa que provámos, sir! ‑ Levantou‑se bruscamente e pôs‑se em posição de sentido. ‑ Estamos dispostos a tudo!

Losskov sorriu ligeiramente.

Era uma promessa com duplo sentido.

Depois dessa crise na ilha de borracha, Jan Trosky desapareceu durante dois dias em Hamburgo.

‑ Deixa‑o ‑ disse Helena Sydgriff quando Losskov lhe perguntou se não seria melhor exclui‑lo da equipa e procurar outra pessoa. ‑ Não lhe perguntes onde e  que ele esteve. Mais vale que seja assim do que ele aborrecer‑nos com a sua histeria hormonal. Cada um de nós tem os seus problemas! Tu também! Sabes que, quando precisas do Jan, podes contar com ele. Ele não tem medo de nada. Quem me preocupa mais e  a Luzi. O Jan pode desaparecer. Afinal os homens têm a sorte de gozarem de um estatuto especial. Mas quando uma mulher exige o mesmo direito, ela e  imediatamente considerada uma prostituta.

‑ Ah, e  mesmo?! ‑ Losskov não teve coragem de olhar nos olhos de Helena. ‑ Ela falou contigo acerca disso?

‑ Ainda não. Mas ontem à noite embebedou‑se. Bebeu quase uma garrafa inteira de vinho e depois deitou‑se na cama, como que paralisada, a falar com um Angelino qualquer que aparentemente a amava na sua imaginação. Transpirou tanto que eu tive que lavá‑la a seguir. Estava tão embriagada que nem deu por isso. Agora, ainda está a dormir.

‑ Isso realmente e  um problema. ‑ Losskov olhou para Helena com um ar inquiridor. ‑ E tu?

‑ Eu, o quê? ‑ perguntou ela, fingindo que não compreendia.

‑ Nós prometemos que falaríamos de tudo e que seríamos sinceros um com o outro. Especialmente quando se tratasse dos nossos pontos críticos. Teremos de controlar‑nos. Quando estivermos no mar, ainda surgirão bastantes problemas imprevistos. Não poderemos perder o controlo apenas porque precisamos de um homem ou de uma mulher.

‑ Não te preocupes comigo ‑ replicou Helena Sydgriff, friamente. ‑ Eu consigo controlar‑me.

‑ Existem comprimidos para isso?

‑ Tu és um pequeno tolo, Peer.

"Tenho tanta coisa para te dizer", pensou Losskov. "Poderia falar‑te daquilo que sinto e que sonho, dos desejos que transporto dentro de mim. Há três dias, ainda estávamos deitados lado a lado completamente despreocupados e aquecíamo‑nos mutuamente. Mas, agora que regressámos à vida quotidiana, a tua imagem ficou gravada na minha cabeça e mudou de um instante para o outro. De repente, vejo‑te de outra maneira: as curvas do teu corpo, começando pelos teus ombros, passando pelo peito redondo, pela barriga, até às tuas ancas e às tuas coxas. O teu cabelo louro, a penugem quase branca na tua pele que parece cetim quando se aproxima a mão... às vezes sinto um desejo apoderar‑se de mim que só e  controlável com um duche gelado. Fico meia hora a apanhar com a água fria, até estar completamente gelado. Depois, enrolo‑me na minha cama mas, mal me deito, não penso em outra coisa senão em ti: "Agora ela devia estar aqui, ao meu lado." Deverei eu dizer‑te tudo isto? Agora? Vamos falar abertamente dos nossos problemas?! Como e  que eu te posso contar aquilo que vivo contigo nos meus sonhos? São coisas magníficas, fantásticas, lindas... Mas eu não consigo falar delas."

‑ Achas que eu deveria ir ver como está a Luzi? ‑ perguntou Losskov e sentiu‑se um grande cobarde.

‑ Se conseguires aguentar o cheiro a álcool... Os poros dela estão a expirar o álcool. Sim, isso e  mesmo verdade! Eu vi isso uma vez, quando no fim do primeiro ano dos meus estudos estive durante seis semanas em áfrica, na Tanzânia, onde a minha universidade tinha um Centro de Investigação Tropical. Durante um safari passámos por uma aldeia na qual os habitantes tinham abatido um elefante uma semana antes. Tinham comido durante dois dias, até já não poderem comer mais, e depois cortaram o resto do elefante em pedaços e puseram a carne a secar. Isto quer dizer: metade da carne secou e outra metade apodreceu propagando um cheiro horrível por toda aquela zona. Nós levámos dez homens daquela aldeia connosco. Antes de deixarem a aldeia, voltaram a comer a maior quantidade de carne possível, came esta que estava a apodrecer. Aquilo que se seguiu foi horrível. O cheiro a carne podre ficou entre nós durante vários dias! Saía dos poros da pele daqueles dez homens. Nunca consegui explicar isso do ponto de vista médico. Eles deveriam ter morrido de uma intoxicação alimentar, mas nada disso aconteceu! Continuaram vivos e sãos. E até três dias mais tarde, nós, os europeus, ainda tínhamos aquele cheiro horrível e adocicado no nariz! ‑ Olhou para a porta do quarto de Lucrezia. ‑ Entra, se quiseres. Mas não digas que eu não te avisei!

Alguns dias mais tarde, Jan Trosky apareceu de manhã no apartamento de Losskov. Parecia abatido.

‑ Cá estou eu! ‑ exclamou. ‑ Estive com a Anita. Durante dois dias ela não tomou comprimidos, e nem sequer saiu da cama! Pode ser que assim ela deixe de os tomar. Ela e  uma óptima rapariga! Tu podes dizer o que quiseres!

‑ Amanhã iremos de novo para a Holanda! ‑ anunciou Losskov, indiferente àquilo que Jan lhe contara. "Tens tanta sorte", pensou e, de repente, teve inveja de Jan. "Tens uma Anita e ficas dois dias e duas noites com ela. As coisas são tão fáceis para ti. Eu, ao contrário, tenho de me contentar com os meus sonhos com a Helena." ‑ Telefonaram‑me do estaleiro. O casco do barco está tão avançado que já podemos tratar dos pormenores da instalação interior.

‑ Com um motor auxiliar!

‑ Sem um motor auxiliar!

‑ Tu és mesmo teimoso! Quando estivermos numa situação de emergência e precisarmos de um motor, eu dou cabo de ti!

‑ Está bem. Amanhã de manhã, às sete horas, arrancamos.

‑ Levamos as raparigas?

‑ Não, vamos sozinhos.

‑Ainda bem.

‑ Porquê?

‑ Eu tenho a impressão de que elas precisam de estar longe de nós. Quanto tempo e  que ficaremos na Holanda?

‑Uns três dias.

‑ Isso chega para arejarmos as ideias.

 

Na manhã seguinte, partiram no pequeno carro desportivo de Losskov. Enquanto eles já estavam na auto‑estrada, Lucrezia sentava‑se na cama e olhava pela porta aberta para Helena, que estava a pôr a mesa do pequeno‑almoço. Desde que moravam juntos, era sempre ela que o fazia. Luzi costumava fazer um óptimo café, enquanto Trosky ia à padaria buscar pão e crolssants. O pequeno‑almoço era a refeição mais sofisticada; o almoço e o jantar costumavam ser mais simples. Afinal, tinham de poupar o máximo possível.

‑ Eles já devem ir a meio caminho ‑ disse Lucrezia. Espreguiçou‑se como um gato e afastou o cobertor. Como era hábito, estava nua na cama, e as madeixas do seu longo cabelo preto caíam no seu peito. ‑ Eu vou sair daqui a pouco e talvez não volte. ‑ Lucrezia pôs as mãos na nuca. - Pelo menos por hoje. Depende daquilo que eu encontrar. Também e  possível que eu o traga para aqui. Tu importavas‑te com isso? Podes sempre ir para o quarto do Jan se não aguentares o barulho.

‑ Mais vale não voltares ‑ aconselhou Helena, enquanto colocava a manteiga num recipiente adequado. ‑ Vá, levanta‑te! Prepara o teu café à la romana.

‑ e  só isso que tens a dizer?

‑ Sim, porquê?

‑ Eu preciso de fazer isto. Estás a ouvir?! Se eu continuar assim, acabo por me devorar a mim própria! Será que tu não compreendes?

‑ Claro que compreendo. Por isso, e  melhor só regressares quando estiveres satisfeita. Há suficientes hotéis baratos em Hamburgo.

‑ Eu sei que o meu comportamento e  horrível, Helena, mas não consigo controlar‑me. Eu sou mesmo assim. Será que existe uma vacina para isto?

‑ Só se for para te acalmar. Ou, então, dão‑te hormonas masculinas. Mas nesse caso a tua voz ficaria grave e terias pêlos no peito.

‑ Eu estou doente, não estou? Afinal isto e  uma doença! ‑ Lucrezia saltou da cama e andou nua pela casa. - Meu Deus, és mesmo fria, Helena! Tu não consegues imaginar o que eu estou a sentir, pois não? Não há homem que te dê a volta. Porém, também não és lésbica. Então, afinal, o que e  que és? Tu não tens sentimentos? Nunca sentes um arrepio por baixo da pele? Ou será que nunca foste para a cama com um homem?

‑ Fui, fui. Faz o café, minha ninfa!

‑ E então? Como e  que foi? Não correu bem? ‑ Lucrezia ficou parada em frente a Helena.

"Vou ter de lhe dar uma bofetada para ela voltar ao seu estado normal", pensou Helena.

‑ Veste‑te, faz o café e depois vai à procura de um especialista em matéria de hormonas! ‑ disse num tom de voz bruto. ‑ As tuas perguntas são ridículas!

‑ Só mais uma! Por favor... ‑ Lucrezia meteu o dedo no frasco de doce e depois na boca. ‑ Amas o Peer?

Helena ficou parada. Olhou pela janela com um ar pensativo. Lá fora, os ramos de uma árvore verdejante baloiçavam na brisa matinal. As folhas reflectiam o sol como se estivessem cobertas de uma camada de verniz.

‑ Sim ‑ disse num tom decidido. ‑ Eu amo‑o. Mas isso só me diz respeito a mim!

‑ E esse tolo nem dá por isso!

‑ Talvez seja melhor assim... para todos. E agora lava‑te e faz o café, que eu vou buscar o pão.

 

A "Viagem para a Terra do Fogo" ‑ fora este o nome completamente inadequado que Randler dera ao projecto de investigação ‑ infelizmente não estava a avançar com muita rapidez. A culpa não era das empresas que o financiavam,

nem das pessoas que o organizavam, pois Losskov preparara tudo até ao mais ínfimo pormenor. Lucrezia instalara um pequeno laboratório no barco e encomendara redes de plâncton, recipientes de metal resistentes à pressão submarina, que se abriam automaticamente a diferentes profundidades e recolhiam amostras de água. Trosky mandara vir de Praga os instrumentos de que precisava, e montara um aparelho de medição do vento, uma estação meteorológica extremamente sensível com registador automático e mais um engenho misterioso.

‑ Peer, para te explicar o que isto é, seria necessário muito tempo ‑ disse ‑, e de qualquer maneira acabarias por não compreender! e  um pequeno computador que contém dados exactos sobre o clima segundo o lugar, o dia, a hora e o minuto. Qualquer mudança do clima e  aqui registada e comparada com os outros dados. Daí, poder‑se‑á concluir se o clima do nosso planeta se está a alterar e de que forma isso está a acontecer.

 

Helena Sydgriff cumpriu a sua palavra: o equipamento de que necessitava consistia apenas numa única mala repleta de medicamentos, injecções, infusões, ligaduras, pensos adesivos, uma embalagem de gaze e garrafas de plástico. Helena apresentou‑lhes todas as pinças, molas e ganchos que trazia. Eram tudo instrumentos em metal cromado e reluzentes, capazes de confundir completamente um leigo. Dentro da mala, havia mais uma mala pequena que continha o material necessário para uma intervenção cirúrgica.

‑ O que e  isso? ‑ perguntou Trosky, apontando para uma enorme lâmina.

‑ Uma faca para amputar! ‑ respondeu‑lhe Helena. - Com ela, posso cortar tudo o que se tornar desagradável.

‑ Meu Deus! ‑ Trosky recuou um pouco e tapou o seu corpo com as mãos. ‑ Eu desisto desta viagem! Esta senhora vai fazer de nós uns eunucos! E o que e  que acontece se o nosso cérebro não agradar aos outros?

‑ Não me esqueci desse pormenor ‑ retorquiu Helena, fechando a mala. ‑ Trago aqui todo o material necessário. Só no fim e  que se extrai o cérebro com uma colher.

‑ Que reconfortante! ‑ Trosky olhou para Losskov com um ar crítico. ‑ Tu permites que uma mulher destas viaje connosco à volta do mundo?

Para que o projecto não fosse completamente esquecido pelos leitores, Randier publicava semanalmente um artigo em que falava dos preparativos da viagem. Entretanto, o barco já ficara pronto e fora equipado segundo os planos de Losskov. Só faltava levar a comida para bordo. O barco era bonito e tinha um óptimo cordame: a vela grande media 14,5 m2, o traquete 9,9 m2, a genoa I 27,5 m2, a genoa II 19,3 m2 e o traquete para a tempestade 3 m2. O mais impressionante era a vela de balão. Tinha 59 m2, o que lhe permitia avançar a uma velocidade extraordinária em condições de ondulação normal. Nem sequer o mar agitado representava um perigo para aquele barco, dado que o sistema que permitia rizar rapidamente as velas e o mastro dobrável evitavam surpresas desagradáveis no caso de uma brusca mudança de tempo. Estava equipado para enfrentar qualquer situação.

Losskov e a sua equipa deixaram‑se fotografar em frente ao barco, no estaleiro, no dia da vistoria. Era o dia 14 de Dezembro, dez dias antes do Natal, um dia frio de Inverno, mas com muito sol. Dois directores da empresa de detergentes entregaram uma bandeirinha para o topo do mastro e, num gesto simbólico, um boné branco de capitão a Losskov. Como era previsível, o boné trazia o nome do barco bordado a ouro: Lorde dos Mares. E, como que por acaso, a data da publicação dessa fotografia coincidiu com o princípio da campanha publicitária de um novo detergente para a roupa, chamado Lorde dos Mares.

Este fora, porém, o único compromisso a que Losskov cedera. Ao fim de uma longa luta, conseguira que o seu barco não fosse portador de publicidade. Era mais do que suficiente que o jornal publicasse a lista das empresas que financiavam o projecto e que o barco aparecesse em segundo plano num anúncio para o detergente.

‑ Partimos em Fevereiro! ‑ anunciou Losskov. ‑ Até lá, estão dispensados! Voltaremos a encontrar‑nos no dia vinte e cinco de Fevereiro. Nessa altura, veremos qual de vocês realmente comparece!

‑ Duvidas de nós? Isso ofende‑me! ‑ Trosky deu uma palmada no ombro de Losskov. ‑ Tu podes desejar que eu vá para o diabo, mas eu lá estarei, pontualmente!

‑ Vais ficar admirado! ‑ acrescentou Lucrezia.

Dois dias depois, Trosky e Lucrezia viajaram para casa.

Helena Sydgriff por seu lado ficou em Hamburgo.

‑ Não quero que passes o Natal sozinho ‑ explicou a Losskov. ‑ Se estiveres disposto a aturar‑me, eu farei um óptimo bolo sueco para ti.

‑ E o teu pai?

‑ Eu telefonei‑lhe. Por um lado, ele compreende e, por outro, não. Tu sabes como são os pais. Ele até te convidou a vires passar o Natal connosco, mas eu recusei.

‑ Porquê?

‑ Porque isso de certa forma comprometer‑nos‑ia. E eu não quero que tu te sintas preso. Não achas que tenho razão?

Era uma pergunta à qual se podia dar várias respostas. O mais fácil seria não dizer nada e em vez disso agarrá‑la e beijá‑la.

Contudo, Peter hesitou. A voz de Helena era fria, o seu olhar directo e os seus olhos azuis não deixavam transparecer nada que pudesse indicar algum desejo escondido. Quando Helena falava, nunca se sabia se aquilo que dizia deveria ser interpretado no verdadeiro sentido da palavra ou se ela não estava à espera que lhe provassem o contrário. Losskov ainda não a conhecia suficientemente bem para saber avaliar isso.

‑ Infelizmente desta vez não acho que tenhas razão - respondeu, com um ar despreocupado. ‑ Eu gostaria muito de conhecer o teu pai. Afinal vou roubar‑lhe a filha...

O semblante de Helena não se modificou, nem mesmo a sua postura. Estava sentada numa poltrona numa posição descontraída.

‑ Porque e  que dizes que me estás a roubar ao meu pai?

‑ Esta viagem pode acabar mal. Isso já se pôde constatar durante os treinos. e  impossível simular a realidade a cem por cento. E eu acho que o teu pai sabe muito bem que te estás a envolver num projecto perigoso. ‑ Hesitou um pouco e depois juntou toda a sua coragem para dizer: ‑ Os pais normalmente gostam de ver as suas filhas decidirem claramente a que homem e  que pertencem. O que e  que tu achas disso?

Ela sorriu e a sua cara serena adquiriu uma expressão mais suave.

‑ Isso e  uma declaração de amor, Peer?

‑ Raios! Sim, é!

‑ Então faz as coisas como deve ser e dá‑me um beijo! E não e  na testa ou na mão.

"Ora vejam", pensou Losskov. "Atrás de um icebergue pode esconder‑se um verdadeiro vulcão." Sentiu‑se infinitamente feliz.

Mais tarde estavam deitados na cama e fumavam um cigarro, observando através da janela os flocos de neve que caíam silenciosamente. Nevava há duas horas. Nestas alturas, Hamburgo transformava‑se num país de maravilhas cristalino. Dali a algumas horas, porém, este ambiente mágico desapareceria, a neve ficaria suja e acumular‑se‑ia na berma da estrada. Depois a neve enrijecida seria derretida com a ajuda de sal, ficaria líquida e os carros sujariam os peões ao passarem pela lama.

‑ Eu amo‑te! ‑ exclamou Helena, quebrando o silêncio.

Ele virou‑se e pôs a mão no seio firme dela. Gostava de senti‑lo. Já estivera na cama com muitas mulheres, algumas delas raparigas de uma beleza estonteante, mas fora sempre um problema livrar‑se delas. Houvera cenas com lágrimas e infelizmente também alguns sermões. Nunca conseguira acabar uma relação de forma amigável, como certos outros homens o faziam, sem que elas guardassem rancor por muito tempo. Dieter Randler costumava dizer‑lhe: "Tu és o tipo de homem com quem as raparigas querem casar, do qual elas esperam persistência. Tens um ar tão fiel que elas não acreditam quando lhes dizes que as vais deixar. Não podes fazer nada contra isso, Peter. Tu és uma autêntica promessa de casamento ambulante."

‑ às vezes vai‑se para a cama com uma pessoa sem amá‑la ‑ disse Helena e soprou‑lhe o fumo do cigarro para o rosto. ‑ Como a Lucrezia o faz, por exemplo... Mas a ti amo‑te~

‑ Eu também te amo ‑ respondeu ele, de uma forma pouco imaginativa.

‑ Será que eu ainda direi isso quando tivermos voltado da nossa viagem?

‑ Porque não? ‑ Peter apoiou‑se nos cotovelos e observou‑a. O corpo de Helena, branco e com uma suave penugem, era fascinante ‑ excitava‑o e acalmava‑o ao mesmo tempo. Dava‑lhe vontade de possuí‑lo e ao mesmo tempo transmitia uma sensação de conforto. ‑ Achas que deveríamos casar antes da partida?

‑ Isso está fora de questão! e  possível que depois desta viagem nos odiemos e que só queiramos ter a coragem de nos matarmos um ao outro.

‑ Por amor de Deus, o que e  que estás aí a dizer, Helena!

‑ Nós amamo‑nos como pessoas normais, Peter! ‑ Ela deitou‑se de lado e colocou o braço sobre a anca dele. ‑ Se eu voltasse para o consultório amanhã e trabalhasse como médica e se tu tivesses um emprego como engenheiro naval, eu diria para casarmos já, diria que cada dia que passasse sem ti era um dia perdido. Mas as coisas não são bem assim. Em Fevereiro partimos para uma grande aventura que transformará cada um de nós. Não duvides que isso vai acontecer! Descobriremos diferenças inimagináveis entre nós. A nossa alma estará completamente descoberta e a razão deixará de funcionar. Devíamos ter isso sempre em mente e preparar‑nos. e  bom sabermos o que pode acontecer, o que não quer necessariamente dizer que acontecerá! ‑ Helena beijou‑lhe a barriga e acariciou o lado interior das suas coxas. Losskov fechou os olhos, encostou‑se para trás e gozou os arrepios que sentia no corpo, até às pontas dos pés. ‑ Não sabemos o que nos espera. Será que tu ainda serás tu e eu ainda serei eu quando voltarmos? Não posso garantir que serei a mesma pessoa quando voltarmos! Imagina que nós mudamos e depois da viagem tu estás casado comigo e perguntar‑te‑ás: "Como e  que eu poderei viver com esta mulher? Devia tê‑la atirado aos tubarões!"

‑           Cala‑te e vem cá! ‑ disse Peter e agarrou os cabelos dela. ‑ Não digas tantos disparates! Eu amar‑te‑ei sempre e quando voltarmos casamos! Isso está decidido! Está bem?

‑           De acordo. ‑ Ela chegou‑se para mais perto dele e pousou uma perna sobre o seu corpo. ‑ Também pode acontecer que eu me queira ver livre de ti ainda antes de chegarmos à Terra do Fogo!

‑           Isto aqui não e  a Terra do Fogo, isto e  a minha cama! - disse Losskov e puxou‑a para cima de si.

Dois dias antes do Natal apareceu Mister Plump.

Helena fora comprar os ingredientes para o bolo de Natal e estava a estacionar o pequeno carro de Losskov em frente à porta de casa quando cruzou pela primeira vez com o olhar de Mister Plump. Foi um encontro fatal. O seu olhar fascinou‑a, o seu aspecto exterior era irresistível. Helena teve que parar e olhar outra vez para ele. O seu coração bateu com mais força e quando ele, coberto de neve, a fitou com os seus olhos escuros e com um ar suplicante, ela não teve outra escolha e disse com um suspiro:

‑           Não posso fazer nada. Vem comigo!

Mister Plump seguiu‑a, subiu as escadas atrás de Helena e ficou ao lado dela quando tocou a campainha do apartamento de Losskov.

‑           Podemos começar a preparar o bolo! ‑ exclamou, quando Losskov lhe abriu a porta. ‑ Vou fazer areias e espéculos! E biscoitos de canela! Gostas de biscoitos de canela, querido?

‑           Sim, adoro! ‑ Losskov apontou para Mister Plump. - Quem e  ele?

‑           Quis vir comigo.

‑           E tu simplesmente permites que te siga?

Mister Plump parecia não gostar que discutissem por causa dele. Passou por Losskov e entrou no apartamento. Depois olhou à sua volta e instalou‑se no sofá.

‑           Estás a ver? ‑ perguntou Helena e fechou a porta. Agora tenta explicar‑lhe que não pode ficar ali!

‑           Pois explico! Eu não permito uma coisa destas! - Losskov foi para a sala, sentou‑se na poltrona em frente a Mister Plump e olhou para ele com um ar zangado. Mister Plump ignorou o seu olhar, espreguiçou‑se e continuou no sofá. O seu olhar percorreu a sala e parou na porta da cozinha. Levantou um pouco a cabeça e farejou. Na cozinha, Helena estava a desempacotar salsichas.

‑           Mas o que e  isto? ‑ perguntou Losskov num tom de voz menos duro do que pretendia. ‑ Onde e  que já se viu uma coisa destas: entrar num apartamento desconhecido e deitar‑se no sofá assim, sem mais nem menos! Ele vai‑se levantar já e sair desta casa!

Mister Plump não parecia ter muita vontade de aturar este tipo de discursos. Lançou um olhar cheio de desprezo a Losskov, levantou‑se do sofá e dirigiu‑se para a cozinha. Parou na soleira da porta da cozinha e soltou um som estranho. Helena olhou para ele com um ar apaixonado e cortou um pedaço de presunto.

‑           Este e  o cão mais feio que eu já vi! ‑ exclamou Losskov.

‑           Todos os cães são bonitos! ‑ respondeu Helena. - Basta olhar para os seus olhinhos.

‑           Está bem, nesse aspecto tens razão: os seus olhos são mesmo enternecedores.

‑           Isso quer dizer que ele também já te conquistou?

‑           Não me digas que pretendes guardá‑lo?!

‑           Queres mandá‑lo de volta para a rua com a neve e o frio que estão?

‑           Mas de onde e  que ele veio?

‑           Isso pouco importa. Agora está aqui e sente‑se bem connosco. ‑ Mister Plump voltou a latir, apanhou o pedaço de carne e mastigou‑o ruidosamente. ‑ Ele não quer que lhe perguntem de onde vem; só quer saber onde pode ficar.

‑           Mas que lógica mais estranha! Meu Deus, eu gostava de saber que mistura de raças e  esta.

‑           Eu reconheço claramente um cão rasteiro, loulou e terrier. Só não sei onde e  que ele foi arranjar esse nariz achatado...

‑           Impressionante! ‑ Losskov observou como Mister Plump se sentou, estendeu a pata a Helena e assim conquistou definitivamente o coração dela. ‑ Ele cheira tão mal!

‑           Todos os cães cheiram mal quando estão molhados.

‑           Mas este cheira especialmente mal!

‑           E tem todo o direito de cheirar mal! Mister Plump não e  nenhum senhor, e  um mendigo! Quando tiver tomado um banho, até o teu nariz gostará dele.

‑           Acho que o banho e  uma óptima ideia! ‑ Losskov lançou um olhar para Mister Plump, mas este estava mais ocupado com o cheiro da salsicha e da carne. ‑ Se ele realmente for um mendigo, considerará isso uma ofensa e fugirá.

Mister Plump tinha um carácter dividido. Tal como Losskov esperara, não gostou nada de tomar banho. Rosnou e, com uns olhos tristes, ficou imóvel na banheira, deixando‑se molhar e ensaboar, lavar, secar e massajar. Depois do banho retirou‑se, amuado, para o sofá e adormeceu, enrolado, num canto. Mas não parecia querer fugir. Com o pêlo limpinho, ressonava tão melodiosamente que Helena se debruçou sobre ele e lhe deu um beijo no nariz achatado.

‑           E, em Fevereiro, quando nos formos embora, o que e  que faremos com ele? ‑ perguntou Losskov à noite, quando estavam deitados na cama a assistir a um programa de televisão e Mister Plump se espreguiçava aos seus pés.

‑           Ele vai connosco!

‑           Tu queres que este cão navegue connosco pelos oceanos?

‑           Teremos de descobrir se o Mister Plump enjoa. Se não for o caso, passará a ser o número cinco da nossa equipa.

‑E se ele enjoar?

‑           Então, eu dar‑lhe‑ei comprimidos!

Losskov suspirou, deu um beijo no pescoço de Helena e voltou a olhar para a televisão. "Isto já está a começar bem", pensou. "Eu não lhe consigo negar o que quer que seja."

Mas estava muito feliz.

"Eu amo‑a", pensou. "Eu amo‑a tanto, tanto, tanto."

 

No dia 24 de Janeiro voltaram a encontrar‑se. Jan Trosky vinha bronzeado de umas férias na neve e Lucrezia Panarotti, que vestia um casaco em pele de leopardo, estava exaltada como nunca.

‑           Este casaco foi um presente de Natal do Angelino - afirmou, dando uma volta para o exibir. ‑ Ele ofereceu‑mo para me tentar cativar! Imaginem só! Ele disse‑me: "Este casaco e  apenas o princípio! Se tu não participares nessa aventura ridícula, se disseres à tua equipa que afinal não os acompanharás, eu compro uma casa para ti na Via ápia! Podes escolher as jóias que quiseres na Cartier, desde que fiques aqui!"

‑           Então porque e  que não ficaste? ‑ perguntou Helena. O seu tom de voz não era muito educado, mas Lucrezia parecia não ter dado por isso.

‑           Eu fiz uma promessa e tenho de cumpri‑la! Ou será que vocês pensam que eu desistiria dessa viagem por causa de um homem que me quer mimar? Pensam que eu me deixaria comprar por ele? Acham mesmo que eu sou esse tipo de pessoa? ‑ Tirou o casaco de pele de leopardo, atirou‑o para uma cadeira e, olhando para ele, declarou: ‑ Vendam‑no! Deve valer uns vinte e cinco mil marcos! Esse dinheiro faz‑nos falta!

‑           Esta rapariga e  endiabrada! ‑ disse Trosky, impressionado. ‑ Tenho de vos confessar que não estava à espera de que todos regressassem!

‑           Vocês têm uma imagem completamente errada de mim! ‑ Lucrezia fez beicinho. ‑ Eu não compreendo porque e  que toda a gente me considera uma bonequinha! Mas esperem só, que eu ainda vos surpreenderei!

‑           Espero bem que sim! ‑ disse Trosky, rindo‑se. - Bem, agora vou procurar a minha Anita. Ela não sabe que eu chego hoje. Vai ser uma grande surpresa!

 

à noite, Trosky apareceu em casa de Losskov; sentou‑se numa poltrona, com um ar angustiado, disse:

‑           Quero tabaco e um uísque ‑ proferiu. ‑ Uma garrafa inteira, por favor.

‑           Aconteceu alguma coisa entre ti e a Anita? ‑ perguntou Losskov.

‑           Merda!

‑           Encontraste outro homem na cama dela?

‑ Se tivesse sido um homem, eu ao menos poderia atirá‑lo pela janela... Mas, não! ‑ Sentou‑se mais fundo na poltrona e parecia profundamente abatido.

Losskov deu‑lhe um copo de uísque que ele bebeu de uma só vez.

‑ Vim agora do hospital, onde estive com ela. Desde o Natal que ela está internada. Está apática, pálida, destruída. O médico diz que já não há esperanças. O corpo foi completamente envenenado pelos comprimidos, o fígado está estragado, e as células cerebrais foram destruidas. Está no fim. E, no entanto, prometera‑me que nunca mais tomaria comprimidos! Nunca mais! Mas, mal eu me tinha ido embora, ela tomou‑os às toneladas...

Trosky fumava com gestos nervosos e Losskov permaneceu calado. Era impressionante ver como Trosky, um homem de aparência tão dura, ficava abalado com um acontecimento daqueles.

‑ Ela reconheceu‑me e até sorriu ‑ continuou. ‑ E o que e  que eu fiz? Disse‑lhe: "Estás com bom aspecto, querida! O médico diz que em duas semanas tudo isto terá acabado!" E realmente eu não estava a mentir. "Talvez mais duas semanas", dissera o médico. "Ela vai apagar‑se." Depois, falei‑lhe de Praga, dos veados e das montanhas de Tatra. Contei‑lhe as lendas dos ourives e falei‑lhe dos entalhadores de madeira nas montanhas. Ela ficou contente, como uma criança. "Um dia, eu quero ver isso tudo", disse. E eu respondi‑lhe: "Claro, querida. Eu levo‑te comigo!", embora soubesse muito bem que ela iria morrer. Não fiques aí parado, Peter! Dá‑me mais uísque.

Nessa noite, preferiu ficar em casa de Losskov. Não voltou para o apartamento da equipa; ficou a dormir no sofá, com a cabeça no lugar onde normalmente Mister Plump se deitava.

Mister Plump fora com Helena para o apartamento comum. Ficara extremamente indeciso, dado que não se queria separar nem de Peter, nem de Helena. Andara irrequieto de um lado para o outro, até Losskov ter dito:

‑ Vai com a Helena, Plump! Tu és um homem! Tens de protegê‑la! Eu sei tomar conta de mim!

Isso parecia plausível a Mister Plump. Mas, apesar de tudo, quando partiu com Helena, os seus olhos tinham uma expressão tão triste, que Losskov teve que repetir várias vezes para si próprio: "Ele não se vai embora para sempre; voltarei a vê‑lo hoje à noite!"

"E daqui a vinte dias partimos para a nossa viagem! A grande aventura vai começar!"

 

O baptismo do barco foi muito concorrido. Para além dos representantes das empresas que financiavam o projecto, estava também presente a rádio e a televisão e uma produtora de filmes industriais que viera para rodar um filme publicitário para a empresa de detergentes. O barco não se chamava Lordde dos Mares, mas havia inúmeras bandeiras da empresa à volta, o que tornava evidente que o novo detergente Lorde dos Mares tinha algo a ver com aquela viagem. Uma empresa de bolachas mandou uma turma inteira mordiscar as suas bolachas e a seguir abanar as embalagens ao vento, como se fossem pequenas bandeiras coloridas. Havia até mesmo um representante da cidade de Bremerhaven, que proferiu um pequeno discurso e lhes desejou boa sorte, o que causou grande espanto a Losskov. Isto porque a população estava sempre ao corrente dos acontecimentos devido ao empenho de Randler em divulgar o "projecto Terra do Fogo", que já era celebrado como um acontecimento desportivo. Mas as autoridades das cidades de Hamburgo, onde a viagem era preparada, e de Bremerhaven, de onde o barco partiria, tinham ignorado quase por completo esse projecto. Provavelmente, isto devia‑se ao facto de, sob o ponto de vista administrativo, não se saber como classificar o projecto. Não se tratava de um evento cultural, nem de uma competição desportiva, nem havia uma missão científica oficial. Era antes uma ideia louca de um homem, apoiada pela publicidade. Para esses casos, não existe nenhum representante no conselho municipal. O facto de, apesar de tudo, ter comparecido um representante da cidade de Bremerhaven, explicava‑se devido às eleições que se anunciavam para breve. O partido desse representante previa maus resultados, de modo que lhe pareceu oportuno fomentar um pouco mais a sua imagem junto à população.

Losskov e Trosky levaram três dias para preparar o barco para a partida. Tinham trazido todo o material a bordo e enchido o paiol da palamenta até ao último centímetro. Tinham calibrado os pesos, controlado o cordame e os ganchos e ‑ o que era mais importante ‑ tinham verificado a ilha de salvação. A comida fora repensada: menos barras de fruta e, em contrapartida, mais legumes secos e carne seca, que eram mais leves, ocupavam menos espaço e podiam ser deixados de molho antes de serem consumidos.

A única coisa em que ainda não tinham pensado era o que fazer com Mister Plump.

‑           Esse animal tem mesmo de vir connosco? ‑ perguntou Trosky. ‑ Não olhes assim para mim, Helena, eu gosto muito de animais, eu adoro‑os. Numa ilha nas Maldivas, até cheguei a comer um cão assado no espeto num jantar para o qual fora convidado! Mas não compreendo o que este animal faz a bordo!

‑ O Mister Plump e  o nosso talismã! ‑ respondeu‑lhe Helena Sydgriff num tom enérgico. ‑ e  bem possível que em breve ele seja o único ser vivo a dar‑nos alguma alegria!

‑ Este cão ocupará no mínimo um metro quadrado do pouco espaço que temos!

‑ Eu estou disposta a prescindir desse metro quadrado! Ele pode dormir ao meu lado!

‑ E o que e  que ele comerá?

‑ Eu dar‑lhe‑ei um pouco da minha parte! Estás satisfeito?

‑ Ainda não! ‑ Trosky parecia estar a gostar do seu papel de opositor a Helena. ‑ Um cão normal tem as suas necessidades a fazer! Como e  que queres resolver isso? Afinal, ele não se pode sentar na borda, como nós.

‑ Eu já andei a treiná‑lo! ‑ respondeu Helena num tom de voz frio. ‑ O Mister Plump foi habituado a uma pequena caixa com areia.

‑ Então precisará de mais espaço ainda! E de onde e  que queres tirar a areia quando estivermos no mar durante várias semanas? Ou será que exiges que naveguemos de um banco de areia para o outro só por causa do Mister Plump?! Assim até poderíamos fazer um novo mapa náutico com as casas de banho para cães!

Entretanto, isso tudo fora esquecido. Mister Plump estava sentado ao lado de Helena Sydgriff, enquanto eram proferidos os discursos, e não se importava que o fotografassem e filmassem. O nome do barco ainda estava coberto, e havia uma garrafa de champanhe pendurada numa corda. Lucrezia e Helena aproximaram‑se do barco e pegaram na garrafa, acompanhadas pelo som da banda que Randler contratara e que agora tocava uma música de marinheiro num estilo de jazz. Losskov insistira para que as duas mulheres baptizassem o barco em conjunto. "Quero que sejam as duas juntas", dissera. "Mais tarde compreenderão porquê."

‑ Agradeço a todos a ajuda prestada! ‑ exclamou Losskov, depois de a banda ter tocado um trecho para introduzir aquele momento solene. ‑ Ninguém sabe quando e  que regressaremos, nem quando voltaremos a atracar! Também não sabemos quais as aventuras e os perigos que nos esperam. Apenas temos uma certeza: faremos tudo para alcançar a nossa meta! Esperemos que a sorte nos acompanhe durante toda a viagem. Por isso, decidimos baptizar o barco com o nome de duas bonitas mulheres que nos darão sorte: Helena e Lucrezia! O barco chamar‑se‑á Helu!

Helena e Lucrezia lançaram a garrafa de champanhe contra o casco, e o pano que cobria o seu nome foi retirado com a ajuda de uma corda. O nome Helu reluzia em letras douradas ao sol da manhã. Lucrezia bateu palmas e virou‑se para todos os lados, fazendo gestos fotogénicos para as câmaras. Helena deu um beijo amigável na face de Peter. Trosky exibiu grandes sorrisos às câmaras.

‑Helu... ‑ sussurrou para Losskov. ‑ Realmente escolheste um nome extraordinariamente ridículo! Bem poderias ter incluído o meu nome e tê‑lo chamado Troluhe, por exemplo! Isso ao menos soaria um pouco a Wagner e a O Navio Fantasma. Quando e  que mandaste afixar a placa?

‑ Ontem à noite. ‑ Losskov deu‑lhe uma cotovelada nas costelas. ‑ Agora quero ver todos a bordo! Esta encenação já se arrastou o suficiente. ‑ Avançou dois passos e pôs os braços à volta de Helena e Lucrezia. ‑ Vocês vão à frente. Avancem!

A banda de jazz tocou algumas peças improvisadas. Helena e Lucrezia, de braço dado, quiseram ir para bordo do barco, mas antes apareceu Mister Plump. Cheio de dignidade, com o nariz erguido e realçando a sua extrema fealdade, avançou pela ponte para o barco, saltou para o tecto da cabina, cheirou o mastro e olhou para trás, para as pessoas que estavam em terra.

‑ Vejam, ele encontrou o seu tronco de árvore! ‑ exclamou Trosky, entusiasmado. E, de facto, Mister Plump levantou a perna traseira.

Losskov esperou que Helena, Lucrezia e Trosky estivesem a bordo e depois seguiu‑os. Dieter Randler soltara as amarras. Trosky apanhou‑as, Losskov tomou conta do leme, Lucrezia içou o traquete e Helena içou a vela grande. Vestiam fatos de treino brancos com riscas vermelhas laterais, uma oferta de uma empresa de artigos de desporto. Essa empresa aparecera com uma equipa de filmagens que tinha como função realçar nos seus filmes o símbolo da empresa no centro das camisolas.

Em terra, as pessoas batiam palmas, acenavam‑lhes, e a banda tocava uma música de despedida. Lentamente, com as velas meio içadas, o barco deslizou para a foz do rio Weser em direcção ao mar.

Um homem que pertencia à televisão e andava com a câmara ao ombro olhou para Randler com um ar pensativo.

‑ Eles pretendem realmente navegar pelos mares com aquele barquinho?

‑ e  isso que e  fantástico nesta história! ‑ respondeu‑lhe Randler, satisfeito.

‑ Chame‑lhe fantástico, se quiser! ‑ O homem tirou a câmara do ombro. ‑ Eu só sei que vou guardar bem este filme. Poderá ser utilizado para a necrologia.

Logo à partida, provou‑se que Mister Plump era um óptimo cão de bordo. Evitava as partes do barco onde havia o perigo de deslizar e sentava‑se perto de Losskov no poço, ou ficava em baixo, no salão, sentado no banco almofadado. O seu instinto dizia‑lhe que Trosky representava um perigo, por isso tentava evitá‑lo. As raras vezes que se cruzava com ele, olhava‑o com um ar desconfiado e mostrava os dentes.

‑           Ele sabe que tipo de pessoa eu sou! ‑ comentou Trosky, satisfeito. ‑ Nós gostamos um do outro à nossa maneira! E agora cuspam para as mãos e vamos avançar mais rapidamente do que o vento!

Içou todas as velas, de modo que o barco parecia descolar‑se da superfície da água, avançando a uma velocidade vertiginosa.

‑           Que barco maravilhoso! ‑ gritou Trosky para Losskov. - Estou a gostar cada vez mais dele! Quando houver uma tempestade, pareceremos uns peixes‑voadores a saltarmos por cima das ondas!

Levaram um dia inteiro para saírem das águas do rio Weser e das principais rotas marítimas. Navegaram sempre paralelos à costa, em direcção ao canal da Mancha. Passaram pelas ilhas da Frisia Oriental e depois pela cadeia de ilhas da Frísia Ocidental. Cruzaram‑se com um draga‑minas holandês que os saudou com sinais de luzes, aos quais Losskov respondeu com a ajuda de um holofote portátil com uma tampa de plástico. Quando chegaram à zona do banco de Terschelling, caía a noite. Helena lançou a âncora flutuante para a água. Já se sentia o cheiro a carne assada, vindo da cozinha. Hoje era a vez de Lucrezia cozinhar. Preparou espaguete com panados de vitela. Recorreriam às refeições enlatadas e à comida seca apenas depois de terem passado por Cabo Verde, quando estivessem a caminho da América do Sul, e prolongariam esse tipo de alimentação até às ilhas de São Paulo que eram uma crista no Atlântico Norte. Se e  que alguma vez lá chegassem...

‑ Estou a sentir‑me tão bem! ‑ exclamou Trosky, satisfeito. Até atirou um pouco de carne ao cão que, quando o comeu, teve de tossir, dado que estava cheio de pimenta.

Trosky riu‑se às gargalhadas, até que Helena, que ajudara Mister Plump a recuperar a respiração com um pouco de água, lhe disse num tom de voz frio:

‑ Da próxima vez, eu sopro‑te pimenta para os olhos!

Devido a este pequeno incidente, a primeira noite acabou mal. Trosky retirou‑se para o seu camarote, resmungando, e levou consigo uma garrafa de uísque. Olhou para Losskov de soslaio.

‑ Isto promete tornar‑se engraçado ‑ comentou ‑, com tanto sentido de humor a bordo!...

Era uma noite fria, por isso, Losskov decidiu acender o pequeno forno a gás. Sentou‑se à mesa de cartas no salão e desenhou no mapa a rota para o dia seguinte. Depois iniciou um livro de bordo, no qual escreveu o relatório do dia:

"Primeiro dia. O vento estava a nosso favor. Fizemos uma excelente viagem. Não ocorreu nada de especial."

Mister Plump estava sentado ao seu lado e lambia‑lhe o braço esquerdo. Depois, foi para a cabina da proa.

Pouco depois Lucrezia apareceu, vinda da sua cama na proa, e sentou‑se à frente de Losskov. Usava uma camisa de noite que parecia um trapinho: a parte de cima era transparente e justa e a calça muito curta. Encolheu as pernas e, olhando para Helena, tentou compreender como e  que esta era capaz de estar no salão, completamente vestida.

‑ Eu não consigo adormecer ‑ resmungou. ‑ A culpa e  do Mister Plump. Não suporto que ressonem ao meu lado. Fico irritadíssima! E este cão ressona tanto que eu não aguento.

‑ Então eu mudarei de cama juntamente com Mister Plump! ‑ propôs Helena. ‑ Vamos dormir aqui no salão. Podes ficar com a cabina da proa só para ti!

‑           Obrigada! Então, por favor, vai buscar o cão!

Lucrezia bocejou e espreguiçou‑se, apontando o seu peito bicudo para Losskov. Depois saiu do salão como uma sonâmbula.

O barco baloiçava levemente, e Helena estava igualmente a ficar com sono.

‑ Eu já acabei ‑ disse Losskov, fechando os livros. - Amanhã levantamo‑nos às seis horas!

‑ A essa hora ainda será noite.

‑ Mas nós temos de içar as velas! Eu quero chegar o mais rapidamente possível às águas do Sul. Tenho medo do golfo da Biscaia. Ali há sempre problemas em Fevereiro. Depois, quando tivermos passado pela ilha da Madeira, e navegarmos em direcção a Tenerife, o mar estará mais calmo. Isto, se tivermos sorte, claro! ‑ Deu um beijo a Helena e ajudou‑a a afastar a mesa e a juntar os dois bancos para formar uma cama. Quando se foi deitar, encontrou Trosky acordado. O pequeno camarote cheirava a uísque. Trosky ligou a pequena lanterna e olhou para Losskov. Arrotou e afastou‑se um pouco para que Losskov se pudesse deitar ao seu lado.

‑ Esse foi o último uísque que tu bebeste à noite! ‑ declarou Losskov. ‑ Eu não quero ser envenenado pelo teu cheiro enquanto durmo!

‑ Então, vai‑te deitar ao lado da Helena! ‑ respondeu-lhe Trosky. ‑ Ela tem um lugar para ti. E aposto que ficaria muito contente!

‑ Vamos desde já esclarecer uma coisa ‑ proferiu Losskov num tom de voz severo. ‑ Quem manda aqui sou eu! Eu trouxe‑vos para esta viagem, porque quis, e por isso posso deixá‑los em terra quando bem entender!

‑ Teoricamente, sim! ‑ murmurou Trosky. ‑ Mas na prática acho que nenhum de nós permitirá que tu simplesmente nos expulses! Eu pelo menos estou a gostar desta viagenzinha à volta do mundo!

Losskov permaneceu calado. Mas pensou: "Eu deveria ter dado ouvidos a Helena. Ela nunca confiou no Trosky. Ele e  imprevisível. De que e  que me servem os músculos dele, se ele aterroriza as pessoas que estão a bordo!"

 

Na bacia ibérica, entre a costa portuguesa e os Açores, entraram numa calmaria. A temida Biscaia recebera‑os com o seu habitual tempo de Fevereiro: ventos turbulentos, muitas ondas, um céu rasgado de nuvens, muito frio e chuva. Foi um tempo horrível.

Durante essa tempestade, Helena e Lucrezia tiveram de provar que eram capazes de se manterem firmes no convés.

Andavam de um lado para o outro, vestidas com oleados amarelos, e rizavam as velas deixando apenas o traquete. Depois agachavam‑se ao lado de Losskov, que estava ao leme e era molhado pelas ondas, enquanto utilizava todas as suas forças para manter o barco na direcção certa.

Mais tarde, Trosky tomou o lugar de Losskov.

‑ Vão para baixo! ‑ gritou. ‑ Eu trato disto sozinho! Mudem de roupa. Eu nunca gostei de ver pessoas molhadas! ‑ Riu‑se e imediatamente engoliu uma grande quantidade de água, dado que uma nova onda se despenhara sobre ele. Tossiu, praguejou e teve dificuldades em respirar, mas não largou o leme por um segundo sequer.

‑ Nestas situações, ele vale ouro! ‑ notou Lucrezia. Tirou a roupa, secou‑se com uma toalha e sentou‑se à mesa, nua. O barco era agitado de um lado para o outro, de modo que tiveram de segurar‑se à mesa para não escorregarem. - Eu não consigo compreender o Trosky.

 

Já estavam no mar há duas semanas. Tinham passado pela Normandia, onde o vento fora muito fraco, permitindo‑lhes apenas avançar muito lentamente, e na Biscaia tinham deparado com a primeira tempestade. Ao longo da costa espanhola, até ao fim da Galiza, o mar continuara ligeiramente agitado, tornando‑se porém já sensivelmente mais quente. Depois, entraram no oceano Atlântico, onde o céu era azul e o mar parecia retirado de um anúncio publicitário. Losskov escutara a previsão meteorológica no seu pequeno rádio de ondas curtas e franzira as sobrancelhas.

‑ Aproxima‑se mau tempo, vindo dos Açores! ‑ dissera. ‑ Eu já estava a achar estranho isto estar a correr tão bem! Quando por fim chegarmos a Tenerife, ofereço champanhe a todos. Acho que bem o mereceremos, dado que, para além de tudo, nessa altura vocês terão passado o vosso exame de aprendizes...

Porém, Losskov fizera uma previsão errada. O mau tempo dos Açores acabou por se dirigir para norte, e a sul formou‑se uma espécie de vácuo, ou seja, uma calmaria. Quase que não havia vento: era tão fraco que mal agitava as pontas do cabelo de Lucrezia. O barco ficou parado, imóvel, no mar azul. Tinham içado todas as velas, até mesmo a vela de balão com os seus cinquenta metros quadrados. Mas os trapos, como Trosky costumava chamar às velas, permaneciam frouxos e o barco não avançava.

Lucrezia estava deitada no tombadilho a apanhar sol. Como era costume, não vestia nada, e quem estivesse no leme via em frente ao horizonte as suas pernas, o seu peito e a sua cabeça.

‑ A Lucrezia tem de ficar mesmo ali? ‑ resmungou Trosky ao tomar o lugar de Losskov ao leme. ‑ Não achas incomodativo?

‑ Não. De qualquer maneira, não faria sentido proibi‑la de se deitar naquele sítio.

‑ Talvez possa mudar‑se esta situação obedecendo aos seus subtis apelos?

‑Jan!

‑ Eu sei, eu sei: a bordo, não! Mas qualquer dia terá de acontecer, Peer! Esse maldito Angelino do casaco de pele de leopardo habituou‑a a certas coisas que agora naturalmente lhe fazem falta. Meu Deus, olha só para ela! Repara como ela move as pernas! ‑ Puxou a pala do chapéu para a testa e procurou um cigarro no bolso. ‑ Como e  que tu podes ficar indiferente a uma mulher destas?! Será que com toda esta responsabilidade da viagem te tornaste impotente?

Losskov não lhe respondeu.

‑ O que e  que aconteceu à Anita? ‑ perguntou pouco depois.

O rosto de Trosky tornou‑se sério e crispado.

‑ Ela morreu.

‑ Quando?

‑ Um dia antes da nossa partida!

‑ Porque e  que não me disseste nada?

‑ Terias adiado a partida?

‑ Isso teria sido impossível.

‑ Então, para que havia eu de dizer‑te?

‑ Voltaste a visitá‑la?

‑ Sim, três dias antes. O médico disse‑me que ela estava a chegar ao fim. A Anita estava com plena consciência, até sorriu para mim. Parecia um anjo! Nunca mais me vou esquecer dessa imagem. "Ontem sonhei com a Moldávia", disse‑me. Estava tão pálida e tão fraca que lhe custava falar. "A Moldávia e  maravilhosa. Consegui ver tudo aquilo de que me tinhas falado. Estou tão contente por em breve irmos lá juntos..." Apeteceu‑me tanto chorar, Peer! ‑ Trosky juntou os lábios. ‑ Eu paguei o enterro ‑ disse, depois de alguns instantes de silêncio. ‑ Dei o dinheiro ao médico e pedi‑lhe para ele tratar disso. Quis que ela fosse enterrada da melhor maneira, num bonito caixão de madeira de carvalho, com uma cruz de bronze e muitas flores, mesmo que não houvesse ninguém no funeral. Talvez o dono da roulotte tenha comparecido com a mulher. Mas para isso teria de fechar a loja durante meio dia e isso significaria perda de dinheiro. Duvido que tenha lá estado alguém para além do padre. Mas o padre, esse tinha de lá estar. Afinal, eu paguei para isso e paguei também para que tocassem o primeiro andamento da Moldávia de Dvorák, num gravador de cassetes... Toda a primeira parte! Em vida, ela não teve nada para além dos malditos comprimidos. Mas depois da morte foi tratada como uma mulher de respeito, porque eu quis que assim fosse!...

Acendeu um cigarro, deitou o pacote vazio para a água e, olhando para o corpo nu de Lucrezia, dirigiu‑se de novo a Losskov.

‑ Aquela mulher já está a aborrecer‑me, Peer! Ela não pode simplesmente basear‑se no facto de já termos estado nus na ilha de salvação para se pôr assim. Aquilo foi uma situação completamente diferente! Naquela altura, eu não a via da mesma maneira, compreendes? Naquela altura ela era um ser "neutro"! Mas agora há três dias que ela está deitada à minha frente e eu sinto um arrepio no corpo! Agora, reparo nela! E ela sabe disso! Quando e  que atracaremos da próxima vez?

‑ Quando chegarmos a Santa Cruz, em Tenerife.

‑ Nessa altura quero que a expulses do barco e lhe pagues a viagem de volta de avião para Roma!

‑ Isso seria igual a capitular. Eu preferiria que nós conseguíssemos controlar‑nos.

‑ Para sempre, ámen!

Lucrezia espreguiçou‑se, virou‑se de barriga para baixo e olhou para eles. O seu longo cabelo preto, que lhe ia até às ancas, cobria‑a como um sobretudo esfarrapado.

‑ Porque e  que não falam mais alto? ‑ perguntou. - Gostaria de ouvir de que e  que estão a falar! Deve ser extremamente interessante.

‑ E de facto é! ‑ exclamou Trosky com a sua voz grave.

‑ Posso participar na conversa?

‑ Acho que não. Trata‑se de um adestramento. Temos algo a domar...

Durante o jantar, Lucrezia estava sentada de tronco nu à mesa, a beber sumo de laranja através de uma palhinha, quando Trosky olhou para ela com um semblante furioso.

‑ Amanhã, jantarei de rabo descoberto. Afinal, parece serem essas as regras da casa!

‑ Mas eu tenho calor! ‑ Lucrezia tinha o dom de mostrar um semblante de menina assustada quando queria. Os seus olhos ficavam enormes, cheios de inocência. ‑ O meu corpo está carregado de sol.

‑ Tentarei lembrar‑me disso quando tiver frio! ‑ resmungou Trosky. ‑ Nessa altura, dar‑me‑ás um pouco do teu calor.

‑ Pressinto uma grande zaragata... ‑ comentou Helena, mais tarde, quando estavam sentados no salão.

Mister Plump ainda estava deitado em cima, no poço, na brisa morna que se levantara com o cair da noite. Com a âncora flutuante, o traquete e a genoa II içados, o barco dirigia‑se lentamente para sul. As suas luzes reflectiam‑se no mar violeta: vermelho a bombordo, verde a estibordo e uma luz branca e forte no mastro, como se se tratasse de um pequeno farol. Ali, Mister Plump sentia‑se bem. Tornara‑se um verdadeiro marinheiro desde xxxxxx que, durante a tempestade na Biscaia, aprendera a andar sem problemas pelo barco, inclinando‑se ora para um lado, ora para o outro, e acompanhando o ritmo das ondas.

‑ Ele e  tão inteligente! ‑ dissera Helena uma vez, muito orgulhosa. ‑ Isso e  característico dos bastardos.

‑ Então eu devo ser uma das pessoas mais inteligentes do mundo! ‑ resmungara Trosky.

‑ Ninguém disse que isso não era verdade! ‑ respondera Helena. Tinham‑se rido dessa resposta, incluindo Trosky. Apenas o olhar que lançara a Helena deixava adivinhar que não achara graça nenhuma.

‑ O Trosky, aos poucos, está a devorar a Lucrezia nos seus pensamentos ‑ comentou Losskov. ‑ E apenas passaram duas semanas desde a nossa partida! Ele propõe que mandemos a Luzi para casa quando chegarmos a Tenerife.

‑ Então, eu seria a única mulher a bordo.

‑ Terias medo?

‑ Eu acho que deverias antes mandar o Trosky para casa, Peer.

‑ Então, eu seria o único homem entre duas mulheres.

‑ Talvez assim as coisas fossem menos complicadas do que na situação inversa. Eu arranjo‑me com a Luzi, mas com o Trosky não!

‑ Vou pensar nisso ‑ respondeu Losskov. ‑ Receio que, para tirar o Trosky do barco, seja necessária uma intervenção policial. Ele próprio já disse que nunca saíria de livre vontade!

Depois dessa conversa, Losskov voltou para o convés e Helena foi‑se deitar. Mister Plump abanou a cauda quando Losskov se sentou ao lado do leme e olhou para a escuridão da noite clara e quente. O vento tornara‑se mais forte. Se içassem todas as velas, poderiam avançar a alta velocidade.

Losskov recolheu a âncora, içou a vela grande e o traquete e ficou satisfeito por ver o barco deslizar pelo mar como se rolasse sobre carris. Pouco depois, apareceu Trosky e sentou‑se ao seu lado. Vestia umas calças curtas e uma camisola interior sem mangas.

‑ Estava quase a adormecer quando ouvi alguém subir a âncora! O que e  que está a acontecer?

‑ Há uma brisa óptima.

‑           Queres navegar durante a noite?

‑           Gostaria de aproveitar este vento. Assim, amanhã de manhã, quando este vento tiver desaparecido, teremos percorrido um bom trajecto.

‑ E porque e  que não me chamaste? Querias ficar sozinho ao leme, durante toda a noite?

‑           Sinto‑me fresco e descansado.

‑ Nós tínhamos combinado que repartiríamos o trabalho. Queres que eu fique a ressonar na cama enquanto tu trabalhas! O grande herói que permanece acordado e trabalha enquanto os outros ficam a contar os carneirinhos. - Trosky pôs o dedo indicador nas costelas de Losskov. ‑ Tu trabalhaste bastante durante todo o dia. Agora, eu vou tratar disto! Vai dormir! Daqui a quatro horas, acordo‑te.

Losskov fez o que Trosky lhe disse.

‑ Basta manteres o barco em direcção a sudeste ‑ elucidou. ‑ Amanhã de manhã, voltarei a calcular o rumo. E se quiseres aproveitar melhor a força do vento, então...

‑ Pensas que sou algum parvo?! ‑ exclamou Trosky. - Não sabia que tu eras o professor!

‑ Porque e  que encaras tudo de uma maneira tão pessoal? ‑ perguntou Losskov. ‑ Ninguém te quer mal!

‑ Eu sou um bastardo! Foi o que a Helena disse!

‑ Tu e  que a desafiaste a dizê‑lo.

‑ Mas ela estava a falar a sério! Eu não me esqueço dessas coisas! e  muito fácil magoar‑me, Peer! Eu sou uma pessoa muito sensível, embora não pareça!

‑ Tu és muito estranho ‑ replicou Losskov. ‑ Estás dividido em dois. Como se fosses esquizofrénico.

‑ Obrigado! Há mais algum elogio que me queiras fazer?

‑ Por um lado, proporcionas um enterro de primeira à pequena Anita e por outro aterrorizas as pessoas como se fosses um monstro. És capaz de chorar, quando falas da Moldávia, mas queres atirar o Mister Plump para o mar, só para veres como os tubarões o devoram.

‑ A ideia até não e  má de todo! ‑ Trosky sorriu e olhou para Mister Plump. O cão lançou‑lhe um olhar pouco amigável. Não havia nada entre ele e aquele homem grande e estranho. ‑ Tentarei lembrar‑me disso quando chegarmos à zona dos tubarões.

‑ Quem e  realmente o verdadeiro Trosky? ‑ perguntou Losskov.

‑ Aquele que vocês quiserem! A escolha e  vossa! Que mais e  que querem? Eu sou o bode expiatório para qualquer situação! Deveria ser indispensável para vocês! Aconteça o que acontecer, eu sou sempre o culpado!

Afastou Losskov do leme e sentou‑se, de pernas abertas.

‑ Vai‑te embora! Vai dormir! Posso fazer uma pergunta?

‑ à vontade.

‑           A Helena, fria como é, será frígida?

‑           Devias levar um murro!

‑ Mas tu não vais bater‑me, porque no fundo e  uma questão que também te preocupa. Fazer sempre o papel de santo deve ser um divertimento realmente perverso!

Losskov afastou‑se, furioso, decidido em mandar Trosky embora quando chegassem a Tenerife. Helena já estava a dormir e não notou como Mister Plump saltou para a cama dela, enrolando‑se a seus pés. Durante alguns minutos, Losskov ainda ficou a ouvir o barulho do barco a avançar rapidamente pelo mar, depois adormeceu com o barulho da água e os movimentos regulares do barco.

Por volta das duas horas, Lucrezia apareceu no convés. A pouca roupa que vestia era perfeitamente dispensável, dado que deixava transparecer tudo. Trosky olhou para ela com um piscar de olhos.

‑ A nível da biologia marinha não se passa nada! ‑ exclamou. ‑ Não há pirilampos na água, o plâncton está a dormir e os unicelulares estão a tentar transformar‑se em pluricelulares. Ou seja, não há nada de novo no oceano.

‑ Estamos a navegar de vento em popa! ‑ exclamou Lucrezia. Sentou‑se em frente de Trosky num canto do tombadilho. Trosky olhou para ela, irrequieto.

‑ Isso e  normal num barco à vela!

‑           O Peer sabe que estamos a navegar?

‑ e  claro que não! Quero fazer‑lhe uma surpresa, quando chegarmos a Casablanca, amanhã.

‑ As tuas piadas são mesmo parvas! ‑ disse Lucrezia. ‑ Porque será que eu não consigo adormecer?

‑ Isso e  devido à pressão. As caldeiras têm uma válvula para se libertarem da pressão. O homem, porém, tem de se livrar da pressão de outra maneira. Eu considero isso uma injustiça. Olha para os golfinhos, por exemplo. Há pouco, vi um casal a bombordo. Foi uma alegria observá‑los! Saltavam um para cima do outro, de tal forma que eu fiquei cheio de inveja. ‑ Largou o leme, amarrou‑o com uma correia e aproximou‑se de Lucrezia. Os olhos dela tremelicavam. Trosky posicionou‑se em frente às pernas dela e pôs as mãos nas suas finas coxas. Estavam agradavelmente frescas e eram lisas e rijas. ‑ e  melhor eu esclarecer logo à partida que sou um pobre assistente científico e que não me posso dar ao luxo de oferecer casacos de pele de leopardo. Mas acho que não preciso disso, dado que tenho outras vantagens.

‑ Tira as mãos de cima de mim ‑ ordenou Lucrezia, calma mas decidida.

‑ Tenho as mãos no sítio errado? Queres que as faça subir um pouco?

‑Tira‑as, já!

Trosky encolheu os ombros como se quisesse dizer que nesse caso não havia nada a fazer. Tirou as mãos das coxas de Lucrezia e colocou‑as à volta do peito dela. As suas mãos eram tão grandes que o tapavam por completo.

‑ As insónias devido a uma certa razão são péssimas - comentou. ‑ Aposto que a Helena te poderia fazer um relatório médico acerca disso. Mas quem e  que poderá ajudar‑te a curá‑las? ‑ Engoliu em seco e aproximou a cabeça dela.

‑           Sabias que és a mulher mais excitante que eu conheci na vida?

Tentou obrigá‑la a deitar‑se para trás; de repente, sentiu as pernas de Lucrezia darem‑lhe um forte pontapé no peito. Trosky desequilibrou‑se, mas felizmente ainda conseguiu segurar‑se a um cabo, senão teria caído para a água. Depois, Lucrezia deu‑lhe um murro tão forte que durante alguns instantes sentiu falta de ar. Quando finalmente conseguiu soltar um grito, ela desceu rapidamente as escadas para a cabina.

Trosky até julgou tê‑la ouvido rir‑se, porém, talvez fosse impressão sua. O seu sangue disparava pelas têmporas.

‑ Sua malvada! ‑ berrou. ‑ Comigo não! Comigo não! - Foi até ao leme, agarrou~ com as duas mãos e voltou a dirigir o barco para o vento. ‑ Da próxima vez, apanho-te! Nem que te tenha de pregar ao chão! Sua descarada!

Arrancou a camisa do corpo, tirou as calças e ficou nu ao vento. De braços abertos, deixou que o vento lhe soprasse pelo corpo. Isso fez‑lhe bem e acalmou a sua raiva.

Ao nascer do Sol, Losskov apareceu no convés.

Fora acordado por uma forte pancada contra o casco do barco. Primeiro, pensou que se tratasse de um banco de areia, mas, como continuou a ouvir o barulho da água e sentiu o barco baloiçar, concluiu que continuavam dentro de água.

Trosky estava sentado no poço. Amarrara o leme e olhava fixamente para o mar. O vento era moderado e excepcionalmente quente para aquela época do ano. Navegavam com a vela grande e o traquete e avançavam bem, mergulhando a um ritmo regular e cortando as cristas das ondas. Ao olhar para o Sol que estava a nascer, Losskov concluiu que se encontravam na rota certa para a Madeira. Não iriam atracar nessa ilha, mas continuariam mais para sul, até às ilhas Canárias, onde se abasteceriam de água. Losskov escolhera Tenerife como ponto de paragem.

Trosky parecia ainda não ter dado pela sua presença. Estava sentado no banco, de tronco nu, apenas com um cachecol à volta do pescoço e um boné na cabeça, imóvel como uma estátua. Losskov olhou à sua volta. Estava tudo em ordem.

‑ Que barulho foi este? ‑ perguntou.

Qualquer pessoa teria estremecido com a presença inesperada de Losskov. Trosky, porém, permaneceu imóvel e continuou a olhar para as ondas.

‑ O barco bateu contra um golfinho ‑ respondeu com a sua voz grave. ‑ Ou melhor, o golfinho bateu contra o barco!

‑ Isso e  impossível!

‑           Porque e  que e  impossível?

‑           Os golfinhos são animais extremamente inteligentes, quase tão inteligentes como os homens! Podem nadar ao lado de um barco, mas nunca bater contra ele! Porque e  que haveria de acontecer isso?

‑           Talvez fosse uma fêmea que estava interessada em mim!...

Losskov aproximou‑se. Foi nesse instante que viu um pau com uma ponta de ferro afiada deitado ao lado de Trosky. A madeira do pau estava molhada: devia ter sido retirada da água há poucos minutos.

‑           Ah! Então e  isso! ‑ exclamou Losskov, furioso.

‑O quê?

‑           Tu bateste num golfinho com este pau com a ponta de ferro afiada! Isso e  um descaramento!

‑           Não fui eu que trouxe esse pau para bordo!

‑           Tu sabes exactamente que precisamos de um pau desses para nos defendermos dos tubarões!

‑ Por amor de Deus, foi apenas um engano! ‑ Trosky puxou o gorro para a testa. ‑ Eu vi qualquer coisa a sair da água ao meu lado. Como só consegui distinguir uma barbatana e qualquer coisa brilhante a bombordo, quis defender‑me! Afinal também poderia ter sido um tubarão! Felizmente que era apenas um golfinho! Peço desculpas, sir!

‑           Tu achas que eu sou burro ao ponto de te considerar assim tão estúpido? ‑ perguntou Losskov, furioso.

‑           Essa e  uma pergunta à qual eu não posso responder com sinceridade! ‑ Trosky esfregou as duas mãos no peito e espreguiçou‑se, realçando os seus músculos. ‑ Eu senti a necessidade de fazer qualquer coisa, chefe! Qualquer coisa demolidora! Tinha de destruir! Eu não podia dar cabo do barco e como o golfinho apareceu no momento certo... Mas tu não compreendes isso, pois não?

‑Não!

‑           Como poderias tu compreender tal necessidade?! O que e  que tu farias se uma mulher se debruçasse à tua

frente de tal modo que tu só terias de saltar para cima dela?

E se, quando o fizesses, ela se risse de ti! Provavelmente ficarias aborrecido e cantarias uma canção, não é? Mas eu não sou assim! Eu tenho de destruir qualquer coisa! Será que tu não compreendes isso?!

‑ Talvez ‑ retorquiu Losskov, hesitante. ‑ Mas ainda há muita coisa que eu não compreendo.

‑           Tanto barulho por causa de um simples golfinho!

Losskov desceu para os camarotes. Helena estava acordada, mas continuava deitada. Mister Plump instalara‑se aos seus pés, abanava a cauda, e olhou para Losskov com um ar interrogador.

‑           Que barulho foi esse,lá em cima? ‑ perguntou Helena. ‑ O Trosky voltou a ser agressivo?

‑ Onde está a Luzi?

‑ No seu camarote.

‑ Tu ouviste‑a esta noite no convés?

‑ Não, dormi como uma pedra! ‑ Helena endireitou‑se. Como era hábito, dormia nua, devido ao calor que fazia. Losskov olhou para o seu peito. "Se eu agora fosse o Trosky e tivesse a mentalidade dele, atirava‑me para cima dela", pensou. "E ser‑me‑ia indiferente que os outros nos observassem!"

‑ O que e  que aconteceu, Peer?

‑ Não sei. O Trosky parece um doido! Pelo que ele diz, a Luzi esteve lá em cima durante a noite e provocou‑o até aos limites. Depois, fugiu, deixando o Trosky completamente confuso. Para se vingar, ele tentou matar um golfinho totalmente inofensivo.

‑ E isso irrita‑te? ‑ A voz de Helena era fria. A clareza dos seus pensamentos continuava a surpreender Peter. Só quando ela estava junto dele, quando era completamente mulher, e  que deixava de ser fria. Nessas alturas, parecia um vulcão. Losskov sentou‑se. Havia ainda na mesa uma chávena com chá frio. Losskov bebeu‑o em goles pequenos e rápidos.

‑ O que mais me intriga e  a razão pela qual Trosky diz ter feito aquilo: "Eu sinto a necessidade de destruir!" e  uma frase tão ameaçadora! Destruir! O que e  que se passa com aquele homem? Uma mulher escapa‑lhe e ele sente logo a

necessidade imperativa de destruir o que quer que seja! Se prosseguirmos esse raciocínio de uma forma lógica, o que e  que acontecerá, Helena? Ele pensará sempre em destruição logo que algo não lhe agrade! E imaginar que nós temos uma pessoa destas a bordo!

‑ Podes ver‑te livre dele em Tenerife. ‑ Helena sentou‑se, pegou numa T‑shirt e vestiu‑a, cobrindo assim o seu maravilhoso peito. Mister Plump soltou um grande suspiro. Queria dormir mais um pouco. ‑ Não achas que seríamos capazes de continuar a três?

‑ Não! Aqui, nesta zona, talvez fosse possível, mas em breve entraremos noutros mares! Passaremos pela Terra do Fogo e alcançaremos o oceano Pacífico. Isso será duro de mais para vocês!

‑ Apenas por sermos mulheres? ‑ perguntou Helena num tom de censura.

‑ Sim. Mas isso não quer dizer que não sejam tão importantes como nós.

‑ Quer, sim! Vocês e o vosso maldito orgulho masculino! Os homens acham sempre que têm mais força! Até parece que apenas os homens são capazes de grandes feitos. Querem que as mulheres se deitem e esperem que alguém faça uso delas!

‑ Helena!

‑ Eu vou‑te mostrar como se dobra o cabo Horne! Estarei por baixo das velas! Nós não precisamos do Trosky!

‑ Os meus parabéns! Foi um excelente discurso de uma grande feminista! ‑ Trosky encontrava‑se nas escadas. Não tinham dado por ele; devia ter‑se aproximado em silêncio. Nem sequer podiam saber há quanto tempo já lá estava, nem o que e  que ouvira. Só nesse momento Mister Plump reagia. Rosnou baixinho. A inimizade entre ele e Trosky era insuperável. ‑ Estou plenamente convencido de que precisarão de mim! ‑ afirmou Trosky.

Entrou na cabina e encostou‑se à porta do armário. Lançou um longo olhar a Helena e mexeu os lábios. Ela usava uma T‑shirt, mas da cintura para baixo continuava nua.

‑ Não sabia que eras capaz de te aproximar assim, despercebido ‑ declarou Helena.

‑ Veste umas calças! ‑ exclamou Trosky num tom perigoso. ‑ Ainda tenho a outra mulher atravessada na garganta. A propósito, tenho uma coisa a acrescentar ao vosso diálogo: quando há um homem com duas mulheres as coisas nunca correm bem! Ao princípio, talvez dê certo. O homem sente‑se bem sem outro elemento masculino a fazer‑lhe concorrência. Mas depois, as honradas senhoras ficam doidas! Peer, meu santo, tu nunca conseguirás aguentar estas duas durante vários meses! Nunca! Elas vão atacar‑te de todos os lados!

‑ Tu és nojento! ‑ exclamou Helena num tom de voz frio. Vestiu umas cuecas e acariciou Mister Plump. ‑ Será que já não pensas em mais nada?

‑ Eu ao menos digo aquilo que penso! Vocês, hipócritas, nunca exprimem os vossos pensamentos e depois engasgam‑se. Por amor de Deus, sejam sinceros! Somos dois homens e duas mulheres bonitas e estamos sozinhos num pequeno barco no meio do oceano! E continuaremos nesta situação durante vários meses! Agora, a minha pergunta e  a seguinte: qual será o comportamento normal numa situação destas? Será um banho frio, soda na comida e leituras da Bíblia? Ou não será melhor considerarmo‑nos seres com funções biológicas e agirmos consoante essas funções? Como vêem, eu também sou capaz de me exprimir de maneira mais cuidada!

‑ Eu não sou apenas um corpo ‑ respondeu‑lhe Helena, calmamente. ‑ Também possuo um cérebro que pensa de forma racional!

‑ Aí está! ‑ Trosky apontou para Helena. ‑ Tu deverias tratar disso, Peer! Se há aqui uma pessoa a mais, e  a Helena! Ela deveria ser excluida da equipa! Dois homens e uma mulher a bordo... Isso não resulta. e  pior do que um homem e duas mulheres! Eu digo‑te abertamente, Peer, que, se fôssemos só nós três a bordo, não deixaria um centímetro da Lucrezia para ti! Nem um cabelo! Logo que pudesse, partia-te a cabeça e atirava‑te aos tubarões!

‑ Ao menos, ele e  sincero! ‑ reconheceu Helena. - E além disso não tem medo.

‑ Medo de quem? ‑ perguntou Trosky, rindo‑se.

‑           De ti próprio!

‑ Estás a mencionar um ponto muito importante. - Trosky afastou‑se do armário, sentou‑se à mesa, ao lado de Losskov, e olhou para a porta que dava para o camarote de Lucrezia. ‑ O que e  que acontece se eu agora entrar nesse camarote e domar a rapariga?

‑ Não te atrevas! ‑ ameaçou Losskov com calma.

‑ Ah! Se ela tiver trancado a porta, terei de arrombá‑la. Isso não seria muito difícil, já que a porta e  fina.

‑ Enganas‑te. A porta e  feita de poliéster com fibras de vidro. e  resistente à pressão! Tu sabes isso.

‑ Eu consigo abri‑la!

Jan ergueu‑se com esforço.

‑ Senta‑te! ‑ ordenou Losskov sem levantar a voz.

‑ E se eu não te obedecer, o que e  que acontece? ‑ gritou Trosky. ‑ Sabem muito bem que se eu agora decidir tossir com muita força vocês ficam colados à parede! A Helena acabou de descobrir que eu não tenho medo! E realmente eu não tenho medo de nada! De nada e de ninguém! Nem mesmo dessa maldita Terra do Fogo e do cabo Horne! E isso vale muito, não acham? Para vocês, isso constitui um capital! Comigo, vocês têm a certeza de vencerem os mares... Apenas comigo! Sabem isso! Deveriam tratar‑me no mínimo tão bem como tratam esse cão!

Ficou parado a pensar o que Losskov faria se tentasse abrir a porta do quarto de Lucrezia. Peter não olhou para ele. Estava a pensar na melhor maneira de impor disciplina a bordo. "Ele não sabe que eu tirei um curso de judo", pensou. "Fui o terceiro melhor do curso. Embora isso não tivesse sido o suficiente para conquistar um cinto, bastou para eu aprender todas as artimanhas necessárias. Como nunca falámos disso, o Trosky não sabe de nada. Se ele der mais um passo, eu posso agarrá‑lo pelas pernas e atirá‑lo para o canto. Mas o que e  que acontecerá depois? Ainda temos um longo caminho a percorrer até Tenerife. Com este vento fraco, levaremos no mínimo mais quatro dias. Quatro dias num espaço tão reduzido, com um homem que só pensa em vingar‑se? Ainda por cima, existem centenas de oportunidades de vingança neste barco. " Trosky parecia estar a pensar no mesmo e teve receio de agir. Porém, não chegou a tomar uma decisão, dado que naquele momento a porta abriu‑se e Lucrezia entrou no salão. Vestia um biquini minúsculo, tinha o cabelo apanhado no cimo da cabeça e lançava olhares ingénuos à sua volta. O seu dom de mostrar um ar inocente era impressionante.

‑ Houve alguma discussão? ‑ perguntou. ‑ Foi acerca de quê?

‑ Estávamos aqui a questionar se os golfinhos durante o acto da copulação nadam normalmente ou de costas. - Trosky fitou Lucrezia com um olhar furioso.

‑ Seu porco! ‑ disse ela, alegre.

‑ Afinal, o golfinho e  um mamífero, como o homem!

‑ E esse fica sempre de costas? ‑ Lucrezia riu‑se para Trosky, passou por ele baloiçando as ancas e dirigiu‑se, saltitando, para as escadas. ‑ Vou dar um mergulho! ‑ informou, com um ar descontraído. ‑ Quem e  que tem de tratar do pequeno‑almoço, hoje?

‑ Sou eu! ‑ gritou Trosky. ‑ E vou meter veneno no teu café!

Ainda conseguiram ouvir o riso dela quando já estava no convés. Depois mergulhou na água. Atirara‑se para a água com um salto elegante e agora batia com os punhos no barco, num gesto atrevido.

‑ E vocês querem proibir‑me de tocar nesta mulher?! exclamou Trosky. ‑ Isso vai contra as leis da natureza! Confessem que não e  humano!

‑ Tenho de ir para o leme ‑ anunciou Losskov. "Ele não está completamente errado", pensou. "Mas não pode saber disso. Tudo seria completamente diferente se estivéssemos aqui para nos divertirmos." ‑ Temos de definir exactamente o curso do barco! Quando e  que o café fica pronto?

‑ Daqui a uma meia hora! ‑ resmungou Trosky. - O senhor deseja um ovo estrelado com toucinho?

‑ Sim, claro. Tu, porém, não tens direito a isso! Era o que faltava! ‑ Losskov subiu para o convés, sentou‑se no poço e calculou a posição exacta do barco com a ajuda

do sextante. Avançavam lentamente. Trosky deixara apenas o traquete içado. Na água, Lucrezia acompanhava o barco com fortes braçadas. Depois, agarrou‑se a uma corda e deixou‑se puxar pelo barco, rindo‑se para Losskov. Emanava uma enorme vitalidade.

‑ A água está óptima! ‑ exclamou. ‑ Maravilhosa! às vezes até penso que em tempos já fui um peixe!

"Quem me dera que te voltasses a transformar num peixe", pensou Losskov, mas logo de seguida teve vergonha desse pensamento.

‑ Sobe para o barco ‑ ordenou, num tom de voz severo. ‑ Daqui a pouco aumentaremos a velocidade.

Lucrezia riu‑se alegremente. Subiu pela corda para o barco, aproveitando a mão que Losskov lhe estendia.

‑ Obrigada, Peer ‑ disse com um ar inocente. Recuou um passo, arrancou a parte superior do biquini do corpo e agitou‑o no ar como se fosse uma bandeira. ‑ Tens uns braços tão fortes!

Depois afastou‑se, e Losskov seguiu‑a com o olhar, franzindo as sobrancelhas.

 

Levaram exactamente quatro dias para chegar às ilhas Canárias. O vento estivera a seu favor, e o mar, que o barco trespassara com a sua estreita quilha, mantivera‑se ligeiramente ondulado. Durante esse percurso, o barco provara ser um óptimo corredor, mantendo sempre o equilíbrio, mesmo quando uma onda maior o empurrava de lado.

Trosky acalmara, embora Lucrezia continuasse sempre a provocá‑lo, deitando‑se no tecto da cabina ou sentando‑se na balaustrada para pescar. Uma vez, entre a Madeira e as ilhas Selvagens, um peixe enorme mordera o anzol e ela não conseguira dominá‑lo. O animal lutara desesperadamente contra o anzol na sua boca, virara‑se, mergulhara na água, ficara parado e depois voltara a mexer‑se.

‑ Não há ninguém que me ajude? ‑ gritara Lucrezia por fim. ‑ Eu não consigo tirar o peixe da água! Ele vai partir o fio! Venham cá!

Trosky precipitou‑se para perto dela, deu‑lhe uma palmada no traseiro provocante e pegou na cana de pesca. Soltou mais um pouco de fio e viu como o peixe lutava na água.

‑           Olhem só para este peixe! ‑ exclamou Trosky. - e  um pequeno tubarão! Tão novinho!

‑           Aqui não existem tubarões! ‑ disse Helena. ‑ Estamos no oceano Atlântico.

‑           Isto e  um pequeno tubarão! Não faz mal a ninguém! Conseguem ver os pontos no seu corpo? Tem de ser um tubarão! Então, vamos a isso, meu pequenino! Luzi, prepara a rede! Vamos apanhá‑lo e metê‑lo na frigideira!

Foi uma luta que durou quase meia hora. No fim, o pequeno tubarão estava tão cansado que conseguiram apanhá‑lo com a rede e trazê‑lo para bordo. O peixe continuava a mexer‑se com força, tentando escapar; Trosky apenas se riu, retirou uma faca afiada do cinto e espetou‑a na nuca do peixe. Helena virou a cara e foi‑se embora.

‑           A senhorita deve estar prestes a vomitar! ‑ exclamou Trosky, jubilando. Deitou as entranhas do peixe para o mar e pegou nele pela barbatana traseira. Embora já não tivesse as entranhas, o corpo liso e brilhante do peixe ainda estremecia. A cabeça saltou para a frente como se quisesse mordê‑lo. - e  preciso ter uns nervos de aço! ‑ gritou Trosky. ‑ Como os de um peixe! Vejam só os nervos que ele tem! ‑ Bateu com a cabeça do peixe na balaustrada. Após a quinta pancada, o peixe deixou finalmente de reagir. ‑ Hoje eu trato do jantar! ‑ anunciou Trosky. ‑ Há bifes de tubarão com molho de natas! Com temperos suaves. Isto vai ser uma verdadeira injecção de proteínas! Luzi, tem cuidado!

‑           Eu não vou ser capaz de comer esse peixe! ‑ proferiu Helena quando Trosky se afastara. ‑ Tu viste o que aconteceu, Peer? Ele não matou o peixe, ele assassinou‑o! Assassinou‑o de uma forma tão cruel! O animal ainda estava vivo quando ele lhe cortou o corpo!

‑           Se pensares assim, nunca mais poderás comer carne de peixe ‑ comentou Losskov. ‑ Tu achas que os homens que pescam estes peixes verificam a morte de cada um deles com a ajuda de um estetoscópio? Mas, apesar de tudo, tens razão: aquilo que o Trosky fez não era realmente necessário.

‑ Ele agirá sempre assim, até mesmo se se tratar de seres humanos! ‑ disse ela, baixinho. ‑ às vezes, penso que ele e  um monstro com traços humanos. Tenho medo que de repente tire a máscara e que nós nos vejamos perante um monstro!

‑ Quando chegarmos a Tenerife, tudo vai mudar. - Losskov mediu a velocidade do vento; a pequena ventoinha de metal do instrumento girava alegremente ao vento. - Amanhã, à hora do almoço, estaremos em Santa Cruz e eu expulsarei o Jan do barco! Isto realmente não pode continuar assim! Eu vou cancelar o projecto.

‑           Não podes fazer isso, Peer! ‑ Helena olhou para ele com um ar perplexo. ‑ Este projecto foi financiado por donativos. As empresas vão querer o dinheiro de volta. E imagina só a imprensa! Serás motivo de gozo! "Viagem à volta do mundo falha devido a um tarado sexual! O que e  que os Viquingues teriam feito numa situação destas, senhor Losskov?!" Se desistires, estás perdido!

‑           Nós e  que estamos perdidos, se continuarmos esta viagem! Eu temo coisas terríveis, Helena.

‑           O Trosky não e  normal. Eu também já pensei nisso.

‑           Ele e  um psicopata! Um maníaco depressivo! Precisa de ser tratado.

‑           Ou então e  um sádico e está a desempenhar este papel para nos pôr nervosos. Diverte‑se vendo as nossas reacções, que ele já antes previra. Está sempre à espera que nos irritemos, e isso dá‑lhe prazer. Realmente, não sei que tipo de pessoa ele é.

‑           Não deveríamos pensar mais nisso ‑ aconselhou Losskov. ‑ Em Santa Cruz, a viagem para o Trosky acabou.

 

No dia seguinte, alcançaram o porto de Santa Cruz. Ficaram admirados ao verem que um barco a motor da administração do porto se aproximava a alta velocidade. A sua tripulação era constituída por alguns simpáticos espanhóis que lhes acenavam e até içaram uma bandeira alemã em honra da equipa de Losskov. Na ponte, encontrava‑se um elegante oficial com um uniforme e boné brancos. Saudou‑os à maneira militar, como se regressassem de uma missão bem sucedida.

‑           Há qualquer coisa que não está certa! ‑ disse Losskov para Trosky. Tinha um mau pressentimento. Estavam os dois ao leme enquanto as duas raparigas, vestidas de fatos de treino brancos e sentadas por baixo das velas, respondiam aos acenos dos espanhóis. à sua frente, erguia‑se uma enorme montanha com um cume coberto de neve: era o enorme vulcão do Teide, a montanha mais alta de Espanha, que curiosamente ficava numa ilha. A forma desse enorme vulcão extinto era inconfundível e Trosky não hesitou em dizê‑lo.

‑           É o maior peito de mulher que eu jamais vi! Quanto tempo ficaremos aqui? Eu adorava escalar aquela montanha.

‑           Terás tempo suficiente para isso ‑ respondeu Losskov. ‑       Não precisas de te apressar. Mas o que eu gostaria de saber agora e  a razão desta simpática recepção?! Até parece que já estavam à nossa espera.

‑           Eu desconfio que sim! ‑ concordou Trosky e cuspiu para a água. ‑ Navegadores solitários?! Era o que vocês queriam! Estes tipos têm‑nos sob controlo!

E realmente era verdade.

No molhe, até ao qual foram guiados pelo barco a motor, para além dos dois marinheiros vestidos de branco, prontos para apanhar os cabos que lhes atiravam, havia também uma banda com o trajo típico das ilhas Canárias. Algumas câmaras de televisão focavam o pequeno barco branco e repórteres falavam, agitados, para os seus microfones. Pelos fatos que alguns dos homens vestiam, podia concluir‑se que deviam estar também presentes alguns vereadores da cidade. Atrás das cordas e grades separadoras, encontrava‑se uma multidão. Um letreiro com as palavras: "Bem‑vindos a Tenerife!" esvoaçava ao vento.

Quando o Helu deslizou para dentro do molhe, a banda começou a tocar.

‑ Não e  possível! ‑ exclamou Losskov, desiludido. - Eles devem estar a confundir‑nos com alguém!

‑           Nós fomos constantemente vigiados. ‑ Trosky mostrou um grande sorriso. ‑ Lembras‑te dos pequenos aviões que nos sobrevoaram ainda ondem a sul da ilha da Madeira? Nós nem reparámos neles, mas, sem darmos por isso, estávamos a ser constantemente vigiados! Quando viram que não atracámos na ilha da Madeira, para eles ficou claro que teríamos de nos abastecer de água nas Canárias.

‑ Para quem e  que isso ficou claro?!

A pergunta rapidamente obteve uma resposta. Na primeira fila, mesmo em frente dos oficiais de Santa Cruz, um homem acenava vibrantemente.

Era Dieter Randler.

‑ Não e  possível! ‑ exclamou Losskov. ‑ Isto até parece a história da lebre e do ouriço! ‑ Olhou para Trosky com um ar inquiridor. ‑ Tu já sabias disto?

‑ Não fazia a mínima ideia! Mas, quando vi esta gente toda, percebi logo. Vamos ser recebidos como se fôssemos Colombo! Ele por acaso também esteve aqui. Esteve na ilha ao lado, chamada La Gomera. Veio cá com a intenção de buscar água, mas acabou por ficar dois anos, devido à bela Beatrice, a antiga favorita do rei de Espanha, que fora exilada para cá! e  tão simples a história do mundo! A América teria sido descoberta dois anos antes, se Colombo não se tivesse sentido tão bem na cama dessa fogosa mulher! ‑ Trosky riu‑se às gargalhadas. ‑ Pode calhar a qualquer um de nós, meu amigo! Essas coisas estão sempre a acontecer! Gostaria imenso de saber onde e  que nós os dois ficaremos presos por um motivo tão agradável.

 

A ideia de Losskov de deixar Jan Trosky em Tenerife teve de ser posta de parte. Era impossível expor publicamente as querelas entre os membros da equipa e, depois, ter de dizer que o projecto falhara devido a problemas abaixo da linha da cintura. Seria uma capitulação vergonhosa.

Randler estava orgulhoso com a surpresa que organizara. Realizou‑se um banquete num dos melhores hotéis de Tenerife, durante o qual foram proferidos muitos discursos com apertos de mão, fotografias e simpáticas raparigas com os trajos do país, que distribuiram ramos de flores. Quando por fim conseguiram escapar a toda aquela confusão, retiraram‑se para um canto do bar.

‑           Apetece‑me dar cabo de ti! ‑ disse Losskov a Randler. ‑ Para quê tantas festividades à volta da nossa chegada?

‑ Tinha de se fazer um investimento destes! Esta tua viagem tem de contribuir para dar uns trinta a quarenta mil novos leitores ao nosso jornal!

‑           Viajar de barco para Tenerife não e  assim tão difícil! ‑          O que importa e  saber aproveitar ao máximo este acontecimento! Até agora, já houve alguns acontecimentos que pudemos publicar! Tempestades com rajadas de cento e sessenta quilómetros no golfo da Biscaia! A luta pela sobrevivência ao longo da costa dos Açores! Um petroleiro que quase abalroa o pequeno barco! Vocês são já uns verdadeiros heróis!

‑           Meu Deus! Mas tudo isso e  mentira!

‑           "Mentira" e  uma palavra muito dura no meio jornalístico, Peer!

‑           Mas nada daquilo que tu escreveste e  verdade! Imagina se alguém descobrir isso!

Randler bebeu um gole do seu cocktail e, com um ar de desprezo, franziu o nariz.

‑           Houve mau tempo no golfo de Biscaia ou não? ‑ inquiriu.

‑ Era suportável.

‑ Mas choveu torrencialmente. Estás a ver! ‑ Randler mostrou um sorriso vitorioso. ‑ Cruzaram‑se com um petroleiro ou não?

‑           Sim, duas vezes.

‑           Então, aí está! Que mais e  que tu queres?

‑           Mas havia no mínimo três milhas de distância entre nós e eles!

‑           A quem e  que interessam esses números?! Há um pequeno barco e um enorme petroleiro que se cruzam. O que e  que acontece se o petroleiro abalroar o barquinho? Ou se o barquinho for apanhado pela corrente do monstro? Tudo isso e  possível e perfeitamente imaginável! Além disso eu só escrevi: "Quase que o abalroou!" Um jornalista tem de dominar bem a sua língua, meu amigo!

 

Afinal Trosky tivera razão. O Helu realmente fora constantemente acompanhado e observado a partir do ar. Quando decidiram atracar em Santa Cruz para se abastecerem de água, Randler preparara uma festa de recepção. Em Tenerife, uma viagem à volta do mundo num barquinho tão pequeno era considerada uma coisa muito especial, embora a população estivesse habituada às loucuras dos turistas. Além disso, havia duas mulheres bonitas a bordo. Qual era o espanhol que deixaria escapar uma ocasião dessas!? Coragem e beleza constituíam há centenas de anos atributos muito honrados. A beleza aliada à coragem faz derreter qualquer espanhol. Era provável que a imprensa espanhola fosse relatar exaustivamente aqueles acontecimentos. O correspondente do jornal El Dia prometera no mínimo meia página de fotografias.

‑ Isto e  horrível ‑ comentou Losskov mais tarde, enquanto Trosky dançava um tango com Lucrezia, e Randler telefonava para Hamburgo. ‑ Agora não posso expulsar o Trosky!

‑           Acho que não. Isso provocaria um escândalo. ‑ Helena pousou a mão no braço dele. ‑ Qual vai ser a nossa próxima paragem?

‑           As ilhas de Cabo Verde em frente à Mauritânia e ao Senegal.

‑ Então será aí que ele nos deixará.

‑ E se o Randler estiver de novo à nossa espera com uma multidão de pessoas?

‑ Veremos como isto se desenvolve ‑ disse Helena com calma. ‑ Talvez com o tempo as coisas mudem e o Trosky até decida desistir voluntariamente.

‑           Isso e  pouco provável... ‑ respondeu Losskov, preocupado.

 

Permaneceram dois dias em Tenerife, e durante esses dois dias Trosky manteve‑se desaparecido.

Helena, Lucrezia e Losskov visitaram a ilha, foram ver a árvore do dragão que tinha dois mil anos, percorreram as Canadas, uma paisagem estranha e silenciosa de crateras à volta do Teide, visitaram o Sul da ilha, com as rochas nuas e negras, e a costa a norte que parecia um enorme jardim em flor. Foram até ao vale de Orotava, onde Humboldt se ajoelhara e supostamente exclamara: "Senhor, agradeço‑Vos por ter tido a oportunidade de ver uma coisa tão bela!" Mais tarde, sentaram‑se na rebentação de Puerto de la Cruz, comeram um gelado e por trezentas pesetas deixaram‑se retratar por um pintor de rua. Acharam esse lugar maravilhoso. Era a ilha dos bem‑aventurados, como já lhe chamavam na Antiguidade.

Dois dias depois, Trosky voltou a aparecer. Restabelecido, forte e rijo como sempre.

‑           Diabos, aqui em Santa Cruz há um bordel maravilhoso! ‑ exclamou, entusiasmado. ‑ E sabem como e  que lhe chamam? Casa de Pudre! Não se riam, que e  mesmo verdade! Eu perguntei a um taxista, dado que eles costumam saber tudo. Ele compreendeu‑me logo e disse: "Ah, senor, Casa de Pudre? Eu mostro‑lhe!" Sinto‑me bem como mil porcas! Não foi o Goethe quem escreveu isso? Se não foi assim, então foi parecido... Quando e  que prosseguimos a nossa viagem?

Não fazia sentido dizer‑lhe que seria amanhã ou depois... mas sem ele! Teriam de lhe dizer: "Tu ficas aqui, em Tenerife. Podes fazer o que quiseres: apanhar sol, escalar o Teide, correr atrás das belas mulheres de Puerto de la Cruz, já que todas elas estão tão ansiosas por viver aventuras e são tão agradecidas, inspiradas pelos ventos do mar, ricos em iodo. Ou, então, podes ficar com as prostitutas, na tua querida Casa de Pudre. Aliás, podes fazer tudo o que quiseres. Mas para o nosso barco já não voltas!"

Ele nunca compreenderia; pensaria que estavam a brincar, correria para o barco, sentar‑se‑ia no poço e gritaria: "Seus estúpidos, eu estou preso a este poço! Tentem arrancar‑me daqui!"

E tudo isso aconteceria em frente das outras pessoas, que deste modo teriam encontrado um herói solitário!

Losskov olhou para Helena, desesperado, encolheu os ombros e foi‑se embora. Trosky viu‑o afastar‑se.

‑           O que e  que ele tem? ‑ perguntou, admirado. ‑ Não gosta da maneira como repartimos o trabalho? Afinal sou eu quem trabalha e ele colhe os louros! Não me digas que ele está insatisfeito com esta situação! Não era isto que ele queria? O nosso grande viquingue!

‑           Partimos amanhã ‑ anunciou Helena, com uma voz fria, como era hábito. ‑ Ainda há algumas latas de conserva por comprar. Além disso, teremos uma novidade a bordo!

‑           Não! ‑ Trosky ergueu os braços num gesto dramático. ‑ Espero que não seja outra besta como o Mister Plump! Isso eu não aguentaria!

‑           Comprei um gira‑discos para mim ‑ informou Helena. ‑ Funciona a pilhas. Já comprei trinta discos para ouvirmos.

‑           Acho uma óptima ideia! Uma pequena dança de vez em quando certamente ajudará a descontrair‑nos. Um passo à direita, um passo à esquerda e pelo meio...

‑ Comprei discos de Beethoven, Wagner, Tchaikovsky, Schubert e Grieg.

‑ Não! ‑ gritou Trosky. ‑ Não me faças isso, Helena! Música clássica a caminho da Terra do Fogo! Que suplício!

Helena virou‑lhe as costas e foi pelo molhe em direcção à cidade. Trosky sentou‑se num bloco de betão e pôs‑se a observar um navio de mercadorias soviético que mais parecia um barco de observação e informação, equipado com a mais alta tecnologia. Os marinheiros russos destacavam‑se pelo seu bom comportamento quando estavam em terra. Usavam uniformes brancos e eram discretos e educados. Nunca nenhum deles andava sozinho. Mantinham‑se sempre em grupo. Podia ter‑se a certeza de que nunca se envolveriam em pancadarias durante a noite, como era o hábito dos marinheiros americanos e canadianos, isto para não falar da tripulação dos petroleiros.

Lucrezia saiu do barco. Vestia um vestido curto e justo. Era um perigo andar assim pelas ruas.

‑           O que e  que andas aqui a fazer? ‑ perguntou Trosky.

‑           E tu? Onde e  que andaste este tempo todo?

‑           Se eu te contar onde estive, aposto que vais corar, querida! Ou então ficas irrequieta.

‑ Sem comentários! ‑ Lucrezia fez um gesto de mão depreciativo. ‑ Estás informado de que partimos amanhã?

‑           Sim. E onde e  que vais agora?

‑ Ele chama‑se Francisco Hernandez Marquez. e  um nome bonito, não achas?

‑           Se a resistência dele for tão grande como o seu nome, então estás de parabéns!

‑Tu és nojento!

Lucrezia quis ir‑se embora, mas Trosky agarrou‑a pela bainha do vestido.

‑           Um momento, querida! Eu tenho só mais uma pergunta: passa‑se alguma coisa entre o Peer e a Helena?

‑           Porquê?

‑           A moralidade deles assusta‑me. Afinal, a Helena não pode ter gelo nas veias!

‑           O que e  que eu tenho a ver com isso?

‑           Onde e  que eles dormiram durante estas duas últimas noites?

‑           O Peter ficou a bordo e a Helena no Hotel Mencey.

‑           Sozinha?

‑           Claro que sim!

‑           Isso e  assustador! Eu estava à espera que aqui, em Tenerife, finalmente saltassem um para cima do outro! ‑ Virou as costas a Lucrezia e murmurou: ‑ Está bem, querida. Então, vai‑te embora! Diverte‑te, mas não exageres.

Lucrezia conteve uma resposta e depois foi até ao molhe em direcção à cidade. No caminho, cruzou‑se com um grupo de marinheiros soviéticos e ficou admirada por nenhum deles interpelá‑la ou, pelo menos, assobiar. Porém, os marinheiros vermelhos eram treinados para terem um comportamento exemplar em qualquer situação.

 

Na manhã seguinte, Trosky estava a limpar o convés quando Losskov acordou. O barulho da esfregona acordara‑o.

Trosky também dormira a bordo, como Losskov lhe ordenara. As duas raparigas ainda estavam em Santa Cruz. Helena ficara no Hotel Mencey e Lucrezia estava algures com o seu Francisco Hernandez Marquez. Era cedo, de madrugada, e o crepúsculo cobria o mar e a ilha. Nessa altura, ocorria a transição da noite para o dia, durante a qual a Natureza parece estar no momento da sua criação.

‑           Porque e  que estás a limpar o convés a meio da noite? ‑ perguntou Losskov.

‑           Suponho que na altura da partida haverá outra festa! Ontem encontrei o Randler. Ele já inventou um novo título para um artigo no jornal: "A partida para o desconhecido!" Eu disse‑lhe logo que ele era um idiota! Achas que fiz bem?

‑           Fizeste muito bem! ‑ Losskov riu‑se. às vezes achava Trosky realmente simpático. ‑ Deveríamos partir às escondidas.

‑           Se as raparigas chegarem a tempo...

‑           Elas têm ordens para estarem aqui às sete horas da manhã! Nessa altura, poderemos içar as velas e partir! O Randler queria saber qual seria a nossa próxima paragem. Como ele me perguntou a mim, calculei que não lhe tinhas dito.

‑ E o que e  que lhe respondeste?

‑           Disse‑lhe que seria em Barbados!

‑           E ele acreditou em ti?

‑           Não, mas pelo menos parou de fazer perguntas.

‑           Agora até me apetecia louvar‑te.

‑           Nada de sentimentalismos, chefe! ‑ Trosky apoiou‑se no cabo da esfregona e olhou para Losskov com um ar inquiridor. ‑ Tu ainda estás com essa ideia de me deixares aqui?

Losskov tentou permanecer indiferente, mas ficou alerta.

‑           Quem e  que te disse tal coisa? ‑ perguntou.

‑Fui eu que li.

‑Onde?

‑ No teu livro de bordo! Encontrei‑o ontem numa gaveta e fiquei curioso.

‑ Isso e  mentira! ‑ exclamou Losskov, sério. ‑ O meu diário está sempre dentro de uma caixa fechada à chave. Só eu e  que tenho a chave! Tu forçaste a fechadura?

‑ A fechadura estava aberta! ‑ respondeu Trosky.

Lucrezia também foi logo mudar de roupa e voltou para

o convés. Quem olhasse para ela não podia adivinhar que há noites que não dormia. Ria‑se e estava cheia de energia. Trosky deu uma cotovelada a Losskov.

‑ Já viste?! ‑ murmurou, impressionado.

Quando partiram com o traquete, a genoa II e a vela de balão, o céu ainda estava pálido, apenas com uma tira vermelho‑violeta a leste. Havia uma coroa de nuvens à volta da enorme montanha. Avançavam rapidamente em direcção ao mar. As raparigas encontravam‑se por baixo das velas; Losskov, por seu lado, sentara‑se ao leme, e Trosky estava a enrolar os cabos.

‑ Como eles vão ficar surpreendidos! ‑ exclamou. - Quando chegarem ao porto com a banda de música, nós teremos desaparecido! Qual e  o rumo que vamos tomar?

‑ O mais directo! Sempre pela costa sul e depois pelo mar aberto até às ilhas de Cabo Verde. A próxima paragem será a ilha de Santiago. Passaremos a barreira de Cabo Verde. Nessa zona, pode ocorrer um vento muito forte!

O barco avançava bem. O Sol por fim nasceu e fez brilhar a neve no Teide como se a montanha estivesse coberta de cristais e se quisesse despedir deles em nome da ilha na qual se pusera a última hipótese de interromper aquela volta ao mundo.

Aquilo que os esperava agora podia, segundo todas as experiências colhidas até aquela data, ultrapassar a capacidade de resistência do Homem.

 

à parte duas tempestades com as quais tiveram de se confrontar num espaço de sete dias, a viagem correu bem, sem contratempos ou pontos altos. Porém, e devido a essas tempestades, viram‑se obrigados a alterar o rumo e a dar uma grande volta para chegarem às ilhas cabo‑verdianas.

Isso teve uma vantagem: Dieter Randler perdeu‑os de vista.

No próprio dia em que deixaram o porto de Tenerife às escondidas, surgiu um avião no céu que os acompanhou durante algum tempo.

- Eu não tenho culpa de te teres esquecido de a fechar! Mas memorizei bem aquilo que escreveste. Na página sobre Tenerife pode‑se ler: "Primeiro dia. A recepção organizada pelo Randler impossibilita‑me de deixar o Trosky em Tenerife!" São exactamente estas as palavras que utilizaste! Deixar‑me para trás! Tu és um hipócrita, Peter!

‑           Claro que antes que isso acontecesse, teríamos de discutir o assunto.

‑           Claro que sim! E teriam feito uma votação democrática: "Levante a mão quem for a favor! Há alguém que seja contra? Não, ou seja, a proposta foi aceite. Por isso desaparece, Jan Trosky!" ‑ Riu‑se e o seu riso tinha um tom ameaçador. ‑ Até vos vejo à minha frente! Mas fica a saber uma coisa, Peter: eu acompanhar‑vos‑ei até ao fim. Aceitei uma missão científica. Nós até fizemos um contrato. Desta já não te safas! Eu ficar em Tenerife? Será que vocês ainda não me conhecem?!

‑           Não deverias ter feito essa pergunta! ‑ proferiu Losskov muito sério. ‑ A única resposta de que me lembro é: quem me dera que nunca te tivéssemos conhecido!

‑           Isso também dizia o avozinho à avozinha no dia do seu quinquagésimo aniversário de casamento, mas nessa altura já era tarde! Nós os três unimo‑nos como se se tratasse de um matrimónio, e só espero que não seja até que a morte nos separe...

às sete horas em ponto, Helena apareceu num táxi. O motorista carregou uma caixa de papelão na qual se encontravam o gira‑discos e os discos. Helena saudou Losskov e Trosky com um beijo, foi logo mudar de roupa e pouco depois apareceu no convés com um fato de treino.

Lucrezia chegou vinte minutos mais tarde. Um enorme carro branco parou no molhe, Luzi desceu, beijou um homem invisível através do vidro do carro e depois acenou‑lhe, enquanto o carro se afastava. Tudo parecia tão simples que Trosky disse, admirado:

‑           Bravo! Afinal uma pessoa também não chora quando acaba de beber uma garrafa!

‑           Lá está ele outra vez! ‑ exclamou Trosky, furioso. - Será que ele nos quer acompanhar durante toda a viagem à volta do mundo? Imaginem só a fortuna que isso custa!... Quem me dera ter todo esse dinheiro!

‑           Quando iniciarmos a travessia do Atlântico, a perseguição acabará ‑ disse Losskov. ‑ A partir daí, só nos procurarão se não chegarmos ao Brasil.

‑           Onde e  que nos podem procurar? Tu transmites a nossa posição diariamente?

‑           Não, não a transmito nunca!

‑           Isso quer dizer que nós estamos desaparecidos para o resto do mundo?

‑           Mais ou menos. Podemos decidir quando e  que queremos voltar a comunicar. Basta uma transmissão de rádio e voltamos a fazer parte do mundo dos vivos. ‑ Losskov ergueu o olhar para o pequeno avião que agora regressava, mexendo as asas. Era a saudação dos aviadores. Alguém contara a Losskov que, na guerra, era habitual os aviões abanarem as asas ao voltarem de territórios inimigos, quando tinham atingido um avião. ‑ Mas eu apenas pretendo utilizar o rádio numa situação de emergência.

‑           E a que e  que tu chamas uma situação de emergência?

‑           Por exemplo, o caso de tu ficares maluco...

‑           Nesse caso, já não haverá salvação para ninguém! - reflectiu Trosky com um ar taciturno. ‑ Se eu ficar maluco, viro as vossas cabeças ao contrário!

Dieter Randler voltara a perder de vista o pequeno barco. Porém, já elaborara um plano: apanharia o avião de Tenerife para Marrocos, dali para o Sara espanhol, depois para a Mauritânia e por fim para o Senegal, onde voaria a partir de Dacar para as ilhas de Cabo Verde. Nessas ilhas ‑ disso estava certo! ‑, teria a última oportunidade de voltar a ver Losskov e a sua equipa, antes de estes desaparecerem definitivamente na imensidão do oceano.

Randler telefonou para Hamburgo: "Eles desapareceram! Estamos perante um mistério. Eu sei que se defrontaram com duas tempestades, mas isso não basta para que um barco como o Helu se afunde! Afinal nós testámos esse barco.

A única certeza que temos e  que eles vão para a ilha do Sal. Eu lá estarei à espera deles no aeroporto de Pedra Lume!"

Porém, Losskov não foi para a ilha do Sal. Não se aproximou das ilhas cabo‑verdianas do lado da costa africana, mas sim do oceano Atlântico, atracando na ilha de Santiago, perto de uma pequena aldeia de pescadores chamada Tarrafal. Chegaram três dias depois da data prevista, mas a culpa não fora do mar, mas sim de Trosky que atrapalhara os planos.

Tudo começara quando ele tomou o lugar de Losskov ao leme.

‑           Eu exijo uma resposta clara: porque e  que tu me odeias? ‑ disse.

Losskov fitou‑o com um ar perplexo. O barco ia a direito e, devido à luz, parecia estar a trespassar um mar de sangue. O Sol punha‑se numa imensidão de cores como Losskov raramente vira. Parecia uma bola vermelha que fazia reluzir o firmamento e o oceano mais uma última vez, como se fossem vidros graduados com mil facetas, antes de o mar e o céu se unirem no horizonte. Essa transformação mágica da Natureza durava apenas alguns minutos. Depois a luz e as cores desapareceriam.

‑           Cala‑te! ‑ ordenou Losskov. ‑ Olha antes para este maravilhoso pôr do Sol.

‑ O pôr do Sol é‑me indiferente! ‑ Trosky puxou o boné para a testa. ‑ Tu odeias‑me!

‑           Não me digas que vais recomeçar!

‑ Eu nunca acabei. ‑ Losskov fez um gesto depreciativo, mas Trosky insistiu. ‑ Tu odeias‑me por seres alemão e eu checoslovaco!

‑           Nunca ouvi maior disparate!

‑           Eu sei que isso e  verdade. Antes de me teres incluído na tua equipa, andaste a fazer investigações acerca da minha pessoa.

‑           Claro que sim!

‑           Ah, isso quer dizer que confessas que tenho razão?!

‑           É perfeitamente normal fazer‑se uma pequena investigação. Eu recebo a carta de um homem que quer participar nesta viagem e que me parece sensato e naturalmente penso: "Este poderia ser um bom companheiro de viagem! Mas será que isso basta? Quem será esse tal Jan Trosky?" Queria incluir‑te numa equipa onde reine a confiança. Por isso, quis saber se podia confiar em ti. Afinal, tem de se saber mais ou menos de que tipo de pessoa se trata...

‑           E os resultados dessa tua investigação fizeram‑te logo decidir: "Este vai comigo! A meio da viagem, quando estivermos em pleno oceano, dou cabo dele e ninguém dará por nada. Assim, vingo‑me dele."

Losskov olhou para Trosky sem compreender.

‑           Vingar‑me de quê?

‑ De Maio de mil novecentos e quarenta e cinco!

‑ Mas nessa altura tu nem sequer tinhas nascido!

‑ Tu sabes exactamente quando eu nasci. No dia vinte e três de Junho! E tu sabes também que, em Maio de mil novecentos e quarenta e cinco, o meu pai fazia parte da milícia popular que se revoltou contra as forças ocupantes e que liquidava os alemães, onde quer que os encontrasse. Sabes bem que o meu pai era um daqueles patriotas que perseguiam os soldados alemães como se fossem coelhos para caçar.

‑           Eu não sabia de nada disso! ‑ respondeu Losskov. - E, agora, cala a boca!

‑           Não, eu ainda mal comecei!

‑ Por amor de Deus, não vais remexer o passado aqui, em pleno oceano Atlântico! Isso foi há trinta anos! Naquela altura, nós nem sequer tínhamos nascido! Fazemos parte da geração que já nem consegue compreender o que se passou nesses tempos! Para quê então falar nisso?

‑ Naquela altura o meu pai vivia fora de Praga num dos subúrbios ‑ continuou Trosky, decidido. ‑ A minha mãe estava grávida de mim e há meses que o meu pai a mantinha escondida dos soldados alemães. Ela era uma mulher muito bonita. Durante a retirada, os alemães invadiram a nossa casa por quatro vezes. O meu pai servia‑lhes pão e cerveja e depois dava‑lhes um tiro. O vizinho ajudava‑o. Era um homem de oitenta e quatro anos que só conseguia andar com a ajuda de uma bengala, mas que ainda era capaz de disparar o seu revólver. A minha mãe ficava escondida no sótão, aterrorizada e, cada vez que ouvia um tiro, protegia a barriga com as mãos. Ao fim de uma semana, tínhamos catorze alemães mortos na cave. ‑ Trosky olhou para Losskov com um ar irrequieto. ‑ Tu sabias de tudo isto quando me incluiste nesta equipa! Quando soubeste da história de Praga pensaste: "Espera, Jan Trosky! Vais pagar por isso! O castigo colectivo sempre foi uma tradição alemã! Espera até nós estarmos sozinhos! Pensavas que eu não ficaria a saber desta história?"

‑ Vai‑te deitar! ‑ ordenou Losskov, devagar. ‑ Eu não discuto assuntos tão estúpidos. Estás a falar dos nossos pais! Eu nem sei o que o meu pai fazia naqueles tempos!

‑ Ele era oficial?

‑Sim.

‑ E tu nunca lhe perguntaste?

‑           às vezes, perguntava‑lhe. Mas ele só respondia: vamos esquecer isso!

‑           Essa e  a maneira mais fácil: simplesmente esquecer o passado. O meu pai, porém, nunca conseguiu esquecer os catorze alemães mortos! Tornou‑se um verdadeiro herói e até foi condecorado. Mas nunca mais conseguiu rir‑se a sério. "Eu fi‑lo pela tua mãe", dizia‑me. "Tinha medo que lhe acontecesse alguma coisa. Só por isso! Eu tinha medo! Tu sabes o que e  ter medo? A tua geração nunca saberá o que e  ter medo a sério, e por isso nunca nos compreenderá!" Mais tarde, eu pensei muito naquilo que ele me disse, sobretudo durante estas últimas semanas, quando concluí que tu me odeias! Mas eu não tenho medo de ti!

‑           Tu estás completamente doido! ‑ exclamou Losskov. Sentou‑se ao lado do leme, olhou para a bússola e verificou o rumo do barco. O mar cor de fogo estava a empalidecer, o Sol já se pusera e a água brilhava em tons violetas enquanto o céu se repartia em listas cor de laranja, Sentia‑se no ar um cheiro a carne assada, vindo da cozinha. Helena preparara um lombinho de porco, dado que era domingo. ‑ Lembra‑te do bom jantar que te espera, Jan, e pára de dizer disparates!

Trosky murmurou algo incompreensível, passou por Losskov e foi‑se embora. Pouco depois, Helena apareceu no convés, afastando o cabelo suado da testa.

‑           O que e  que ele tem? ‑ perguntou. ‑ Foi até ao forno, olhou para a carne, cheirou‑a e gritou: "Comam essa porcaria sozinhos!" e depois foi para o seu camarote!

‑           Está num daqueles dias difíceis. Desta vez, por razões políticas.

‑           Razões políticas?!

‑           Decidiu atribuir‑me o papel de alemão mauzão com um passado insuperável.

‑           Ele lembra‑se de cada coisa! Qualquer dia ainda diz que és o filho do Frankenstein!

‑           Tudo se resolverá! ‑ Losskov inclinou‑se para a frente, deu um beijo a Helena e só aí e  que ouviu a música vinda do camarote. ‑ O que e  isto?

‑           É a Pastoral de Beethoven. Segundo andamento.

De repente, ouviram algo por baixo dos seus pés. O barulho vinha do camarote de Trosky. Estava a bater com um objecto contra o tecto.

‑           Isso e  por causa do Beethoven ‑ disse Helena, calmamente. ‑ O próximo disco será para ele. e  uma polca da Boémia.

Contudo, não chegaram a ouvi‑la. Trosky subiu as escadas a correr, usando apenas um pequeno calção de banho. O seu corpo estava coberto de uma fina e brilhante camada de suor, e o seu olhar tinha algo de inconstante, irrequieto, instável, louco.

‑ Sabem o que e  ter prazer em matar?! ‑ gritou mesmo antes de Helena poder dizer algo. ‑ Até hoje eu não fazia ideia! Mas agora sei o que e  sentir a saliva nos cantos da boca e ter vontade de destruir! e  isso que eu sinto neste momento! Vou dar cabo daquele horrível gira‑discos barulhento! Vou matar o Beethoven, o Chopin, o Tchaikovsky, o Wagner e o Schubert! De uma só vez! E quando finalmente tivermos silêncio neste barco, chorarei de alegria! ‑ Cerrou os punhos e estendeu‑os em direcção a Helena. ‑ Vou destruir esse gira‑discos! Vou desfazê‑lo até ao último parafuso!

Virou‑se bruscamente e desceu as escadas.

‑           Vai atrás dele! ‑ exclamou Losskov. ‑ Olha que ele concretiza as suas ameaças!

‑           Então, eu destruirei a estação climatológica dele! - respondeu Helena, calmamente. Losskov fitou‑a, admirado.

‑           Vocês ficaram doidos?! Qualquer dia matam‑se todos uns aos outros!

De repente, ouviu‑se um barulho vindo de baixo, um praguejar e depois berros misturados com um ladrar forte e agressivo de Mister Plump. Trosky voltou para o convés e mostrou a sua mão esquerda a Helena.

‑           Ele mordeu‑me! ‑ gritou. ‑ Aquele maldito cão mordeu‑me!

‑           Meu Deus! ‑ exclamou Helena e juntou as mãos. - e  melhor eu ir ver como ele está. O pobre cão pode morrer de septicemia!

‑           O pobre cão em breve vai ser cortado ao meio! Ele mordeu‑me!

‑           Estava apenas a defender o meu gira‑discos.

‑           Ele odeia‑me!

‑           Realmente trata‑se de um cão extremamente inteligente e sensível.

‑           Vocês odeiam‑me! ‑ exclamou Trosky, aproximando‑se de Losskov. ‑ Eis a prova! Só por eu dizer aquilo que penso e sinto e por não ser um hipócrita nojento como vocês, estão ansiosos para que eu seja devorado por um tubarão!

‑           Nesta zona, os tubarões são muito raros ‑ comentou Helena com aquela sua maneira fria e ao mesmo tempo excitante de falar. ‑ Seria um grande acaso um tubarão cheirar‑te! ‑ E depois, virando‑se para Losskov, perguntou: ‑ Como e  que é, Peter? Eu não sei muito acerca de tubarões. Eles também comem escumalha?

‑ Helena! ‑ exclamou Losskov, num tom repreensivo. Depois, engoliu em seco. Não fazia sentido continuarem a provocar Trosky.

‑           Nós nunca deveríamos ter‑nos conhecido! ‑ disse Trosky em voz baixa e olhou para a sua mão esquerda. Mister Plump não o mordera com muita força, apenas pegara na sua mão. Não havia marcas e nem sequer estava a sangrar. Mesmo assim, Trosky agia como se estivesse gravemente ferido. ‑ Que diabo e  que te deu naquela altura para teres de escolher exactamente nós três?! Essa mulher arrogante do Norte e a tarada da italiana...

‑ ... e esse teimoso da Moldávia, cuja cólera quase o sufoca ‑ acrescentou Helena, sem qualquer sinal de ironia. Trosky encolheu os ombros, virou‑se e foi‑se embora.

Meia hora depois, parecia outra pessoa. Saiu do seu camarote, sentou‑se à mesa com um sorriso tímido e até suportou o gira‑discos que tocava uma valsa de Viena. Mister Plump, que estava sentado ao lado de Helena, olhou para ele, zangado, e mostrou‑lhe os dentes.

‑           Ainda resta um pouco de sopa para um pobre maluco? ‑ perguntou.

Como nunca se podia saber como e  que ele iria reagir, não lhe responderam, limitando‑se a dar‑lhe um prato com carne assada e batatas, que tinham sido mantidas quentes dentro do molho. Trosky comeu silenciosamente e bebeu uma lata de cerveja.

- Agradeço humildemente o pão de caridade que me ofereceram! ‑ proferiu.

Losskov ignorou aquela frase. Foi para o convés e ocupou‑se do leme. Lucrezia, que até agora estivera sentada no banco almofadado, com as pernas nuas encolhidas, começou a folhear uma revista americana que comprara em Santa Cruz e que continha histórias eróticas ilustradas com desenhos extremamente libertinos. Helena encheu a tina de água para lavar a louça.

‑           Em Santiago, deixar‑vos‑ei! ‑ declarou Trosky. ‑ Podem ir sozinhos para a Terra do Fogo. Tudo isto foi um grande erro! Não vamos aguentar esta viagem juntos. De que serve um barco que não se afunda, quando as pessoas que se encontram nele se odeiam?

Olhou para Helena e Lucrezia à espera que reagissem, mas elas ficaram quietas.

‑           Nós irritamo‑nos uns com os outros! ‑ prosseguiu Trosky, um pouco mais alto. ‑ E pensar que passou apenas tão pouco tempo desde a nossa partida e que ainda temos tantos meses pela frente! Isto e  impossível! e  impensável! Ainda bem que ainda estamos a tempo de salvar a situação!

Voltou a esperar uma reacção delas. Contudo, nem Lucrezia nem Helena parecia quererem conversar com ele. Trosky amuou, pôs o gorro na cabeça e saiu do salão.

‑           Parvas! ‑ resmungou, mas nem assim conseguiu suscitar uma reacção de Helena.

No poço, Losskov estava sentado no banco de plástico que formava um meio círculo. Amarrara o leme e rizara todas as velas excepto o traquete. O barco deslizava suavemente pelo mar calmo. Era uma noite clara e quente. A lua minguante parecia estar deitada de costas, o que fascinava qualquer pessoa que nunca tivesse estado no Sul. Trosky sentou‑se em frente de Losskov e, com os braços abertos, recostou‑se, contra a balaustrada. Inclinou a cabeça para trás e olhou para o céu negro.

‑           Eu sempre perguntei a mim próprio porque e  que os grandes navegadores normalmente também eram piratas - declarou, depois de um longo silêncio. ‑ O Francis Drake, por exemplo, a quem até foi concedido um título de nobreza pela rainha de Inglaterra. Ou, então, os grandes heróis, os teus ídolos, como por exemplo, Vasco da Gama, Magalhães, Cook, John Cabot, Pedro Alvares Cabral, Almeida, Da Cunha, Queiroz e os outros. Eles também não navegavam pelos mares com muita meiguice. Quem e  que chegou primeiro à Austrália? O pirata inglês William Dampier. E como e  que era aquela história do famoso capitão Bligh e do Bounty? Não vale a pena tentarmos idealizar as coisas! Onde quer que estes grandes senhores aparecessem, os indígenas sofriam. Os navegadores levavam as mulheres estranhas para a cama, recolhiam o ouro e os diamantes e em troca deixavam para trás a Bíblia e a cruz! E, se um comandante não permitisse isso, se não desse um pouco de divertimento aos seus homens, corria o risco de ser enforcado! Porque e  que as tripulações dos barcos se amotinavam? Porque e  que Colombo teve de recorrer ao truque do ovo que fica em pé? Para manter os seus homens calmos e evitar que ficassem doidos. Durante várias e contínuas semanas eles só viam o mar, ouviam o vento e sentiam as calmarias, a água podre, o pão duro, a carne salgada, o peixe ou a farinha bichosa. E não havia uma única mulher a bordo! Isso era pior do que todos os monstros do mar verdadeiros ou imaginários! O ser humano não suporta a monotonia!

‑           Mas eles suportavam‑na! ‑ contrapôs Losskov, calmo. ‑ Descobriram as costas africanas, chegaram à índia, à Austrália, aos mares do Sul, percorreram a costa sul‑americana, foram à índia e ao Ceilão e conseguiram ir até aos mares antárcticos. Apesar de todas as dificuldades! E foi exactamente isso que os transformou em heróis! O facto de terem uma enorme capacidade para aguentarem tudo isso!

‑ E pelo meio matavam e violavam?! ‑ perguntou Trosky.

Losskov respondeu‑lhe em tom de troça.

‑ Mas afinal o que e  que tu queres? Achas que devíamos assaltar uns petroleiros ou uns barcos de mercadorias para tu sentires o tal espírito de navegador antes de chegarmos à Terra do Fogo?

‑           Eu apenas estou a tentar provar, com a ajuda da História, que não sou nenhum monstro! Antigamente era natural alguém libertar‑se das agressões acumuladas. Tu e  que estás a exigir que nós nos comportemos como anjos na terra!

‑ Isso e  uma desculpa?

‑           Eu não preciso de desculpas! ‑ Trosky respirou fundo. ‑ Apenas queria que tu me compreendesses!

‑           Acho que isso vai ser impossível. Tu consideras todas as pessoas à tua volta teus inimigos. ‑ Losskov apontou para a água. ‑ E no entanto nós só temos um único inimigo: o mar!

‑           Eu consigo entender‑me com o mar! ‑ retorquiu Trosky.

‑           Mas contigo próprio, não!

‑           Em Santiago, quero trazer para o barco algo que se possa destruir ‑ declarou Trosky.

Losskov fitou‑o com um ar inquiridor.

‑           Mas que ideia! Em que e  que estás a pensar exactamente?!

‑           Não sei muito bem! Por enquanto ainda não me lembrei de nada. Mas há‑de surgir uma ideia. Eu li algures que

antigamente os marinheiros levavam sacos com palha para os barcos e que atiravam facas contra eles durante a viagem. E o que e  que fazem hoje em dia nas cidades flutuantes, nos porta‑aviões? Imagina que só no porta‑aviões Nimitz vivem cinco mil homens! Qual e  que achas que e  a principal ocupação dos homens que passam vários meses juntos num barco ?O desporto! Eles libertam as tensões através do desporto! E nos paquetes de luxo? Para que e  que pensas que existem os jantares, os bailes, as noites de máscaras, os salões de jogos, os cinemas, os teatros, as palestras e as danças? Apenas para evitar que o tédio dê cabo dos passageiros! Afinal, seria isso que aconteceria se durante toda a viagem os passageiros se confrontassem apenas com a Natureza! O céu e o mar, o sol e o vento... Isso e  para os poetas! Uma pessoa normal não suportaria uma situação dessas! E tu queres que, ao fim destes longos meses no mar, nós deixemos este barco no mesmo estado mental com o qual iniciámos a viagem?! Nesse caso, eu teria avisado Roma que algures perto de Huwa Siwa há quatro santos no mar

‑ Onde e  que queres chegar, Jan? ‑ perguntou Losskov. ‑ Queres ficar em Santiago?

‑ Isso seria um triunfo para ti, não seria?

‑           Seria o melhor para todos nós.

‑           E tu prosseguirias a viagem com as duas raparigas?

‑Sim.

‑ Tu és ainda mais louco do que eu!

‑           Eu até me atreveria a fazer esta viagem sozinho com a Helena.

‑           Isso seria igual a um lento suicídio.

‑           Julgo que esse e  um problema só meu.

‑           Realmente acho que os heróis da insensatez, como tu, deveriam ser sacrificados! Eu sei o que tu pretendes. Durante esta viagem, queres testar até onde vai a resistência do ser humano! Eu posso dizer‑te o resultado agora, já: dura até te partirem a cabeça!

Desceu as escadas para a cabina, deitou‑se no seu camarote e colocou algodão nos ouvidos, para não ouvir o gira‑discos de Helena. Depois de ter batido com a porta do seu camarote, Helena desligara a música, mas isso Trosky já não notou, devido ao algodão nos ouvidos.

Quatro horas mais tarde, pontualmente como era hábito, subiu para o convés para tomar a vez de Losskov. Embora estivessem longe do caminho marítimo mais movimentado, tinham decidido não deixar o barco andar à deriva durante a noite.

‑ Eu acho que a Helena está a chorar! ‑ comunicou Trosky.

‑ Porquê? ‑ Losskov olhou para o mar. ‑ A Helena a chorar? Porquê?

‑ Ela está a dormir com aquele horrível cão ao seu lado. Mas o seu rosto estava húmido.

‑           Por tua causa! ‑ disse Losskov.

‑           Aí está! Porque e  que eu sou tão idiota e te conto isto? Deveria ter imaginado que tu irias reagir assim. Eu sou sempre o culpado de tudo!

‑           Se não fosses tu, ela não teria razão para chorar.

‑ Será que ela tem medo? A Helena e  uma mulher inteligente. Ela sabe que Santiago será a última paragem antes da imensa solidão, e que terá de viver neste inferno até chegarmos ao Brasil.

‑           Eu já disse que, se quiserem, podem todos desistir desta viagem! ‑ protestou Losskov em voz baixa. ‑ Todos! Eu consigo fazer isto sozinho! Talvez seja até melhor e mais seguro assim. Quando sentirem o chão por baixo dos vossos pés, beijem‑no e não saiam mais dele! ‑ exclamou, furioso, e foi‑se embora.

Trosky esperou que ele tivesse desaparecido, içou a genoa II para além do traquete, alterou ligeiramente o rumo do barco para sudeste e instalou‑se no banco.

"Em Santiago comprarei um jogo de xadrez", pensou. "Ou talvez seja melhor comprar um arco, uma flecha e um alvo. e  claro que eu continuarei esta viagem com eles. O Peter não pode ser deixado sozinho. E eu não quero que me chamem cobarde! Isso seria insuportável."

Enquanto Dieter Randler, que agora já se encontrava no aeroporto da ilha do Sal, sobrevoava várias vezes por dia o mar com um pequeno avião de desporto à procura de Peter, a equipa entrou pelo lado norte no porto de Tarrafal da ilha de Santiago.

Era uma manhã agradável. Encontravam‑se todos no convés, navegavam a todo o pano, dado que o vento era fraco, e olhavam para o último pedaço de terra que pisariam antes de enfrentar a imensa solidão do mar. Aquilo que viam não era muito animador: a ilha parecia pobre, e a paisagem, queimada pelo sol, era dominada por tons castanhos e amarelados, com alguns montes, e era árida devido ao clima. Tratava‑se de um pequeno pedaço de terra, no meio da imensidão do mar. Em tempos, aquela ilha tivera uma vegetação rica, mas hoje estava reduzida a uma região ressequida e pobre. Tão pobre que não conseguia subsistir sozinha, mas, ao mesmo tempo, importante de mais para ser ignorada, devido à sua função de sentinela entre a áfrica e a América. A constante presença de barcos americanos e soviéticos no porto da cidade da Praia era prova disso. Oficialmente, eram barcos de pesca; na verdade, estavam repletos de equipamentos electrónicos e tentavam detectar transmissões de rádio. Controlavam sobretudo os submarinos no oceano Atlântico, com a ajuda de aparelhos de sonar que localizavam o inimigo no fundo do mar.

Em Tarrafal não se notava nada disso. A pequena cidade parecia abandonada ao sol, havia algumas galinhas na rua, e a administração do porto nem sequer se deu conta da chegada do barco de Losskcv. As casas tinham um ar inacabado, e o molhe estava a cair aos pedaços. Era uma imagem desoladora.

‑ Talvez as pessoas que vivem aqui compreendam o sentido da vida! ‑ declarou Trosky num tom sarcástico. - Mas, apesar de todas as boas intenções, tenho de vos dizer que aqui, nesta ilha, não fico.

‑ A cidade da Praia fica a alguns quilómetros daqui. E a ilha do Sal até tem um aeroporto internacional. ‑ Losskov guiou o barco para o pequeno porto e dirigiu‑o até a uma ponte, cujo aspecto deixava adivinhar que já não estava em utilização. Os barcos dos pescadores encontravam‑se ancorados, lado a lado, atrás do molhe, num estreito cais. Eram barcos de cores garridas que estavam desbotadas pelo tempo.

No porto, havia alguns homens que não faziam nada e que observaram, curiosos, os estranhos que tinham acabado de chegar. Havia redes de pesca penduradas ao sol, a secar, e em frente de uma velha barraca estavam sentadas quatro mulheres que remendavam algumas redes. As crianças brincavam na areia, entre os barcos e os cestos virados para baixo. Ouvia‑se o barulho de um motor, vindo de uma garagem ao lado, na qual um homem de tronco nu e completamente suado consertava a sua motocicleta.

De repente, como que por magia, apareceu um polícia. Era um dos crioulos cabo‑verdianos que constituíam setenta por cento da população. Usava um uniforme limpo e até ostentava duas pequenas ordens no peito esquerdo. Por azar, dirigiu‑se a Trosky, segurou‑o pelo braço e perguntou‑lhe qualquer coisa.

‑           Larga‑me! ‑ exclamou Trosky. ‑ Senão, eu cuspo‑te para o teu olho preto!

Todavia, como um não compreendia o outro, sorriram. O polícia continuou a falar em crioulo.

‑           Mostre‑me o seu passaporte! ‑ disse. ‑ Mesmo que tenha vindo de barco, o senhor está a entrar no nosso país. Possui um visto? Onde está o seu certificado de vacina? A bandeira no seu barco e  alemã. O senhor e  da Alemanha?

"Alemanha" foi a única palavra que Losskov conseguiu compreender. Assentiu com a cabeça, retirou os documentos do seu saco e estendeu‑os ao polícia.

‑           O senhor fala inglês? ‑ perguntou. ‑ Ou francês?

O polícia abanou a cabeça num gesto negativo e verificou os documentos. Era claramente visível que não sabia tratar daquelas coisas. Apenas tinha a certeza de uma coisa: aquilo não era nenhum passaporte. Nem um visto. Aqueles alemães tinham chegado à ilha de Santiago e provavelmente queriam passear por lá. Como se aquela ilha fosse habitada por selvagens! O polícia sentiu‑se no dever de mostrar uma boa

imagem da sua pátria, a recentemente constituída República de Cabo Verde. Por isso, guardou os documentos e fez um gesto de mão. Era um gesto inconfundível, que em todas as línguas queria dizer: "Sigam‑me!"

‑           Os homens são iguais em toda a parte do mundo, quando lhes e  delegado algum poder! ‑ comentou Trosky, alegre. ‑ Reparem naquilo que vai acontecer agora! Vamos ter de aturar o discurso de um homem gordo e de óculos, sentado a uma secretária, que nos dirá que somos uns miseráveis.

‑ Porque e  que as mulheres vêm connosco? Talvez fosse melhor elas já irem fazendo as compras necessárias! - disse Losskov e parou.

‑           Tenta explicar isso ao polícia! ‑ respondeu Trosky. - Ele interpretará qualquer coisa que digas como desrespeito ao poder!

‑ Deixa‑me tratar disso! ‑ exclamou Lucrezia e aproximou‑se do polícia. Endireitou‑se, realçou o peito e sorriu. O polícia também sorriu e olhou descaradamente para o decote dela.

‑ Que porco! ‑ exclamou Trosky. ‑ Eu sei exactamente o que ele está a pensar agora!

‑           Nós queríamos ir buscar algo para comer! ‑ proferiu Lucrezia num espanhol horrível. Depois enumerou aquilo que queria comprar: água, vinho, carne, milho, farinha de mandioca, batatas, café, feijão, ervilhas, queijo e conservas. Ao mesmo tempo, fazia gestos tão exaustivos que era impossível não compreendê‑la.

O polícia lançou um longo olhar para o peito de Lucrezia e hesitou.

‑ Decide‑te, homem! ‑ exclamou Trosky num tom de voz ameaçador. ‑ Já viste o que havia para ver!

O polícia ergueu a mão. Trosky ficou em estado de alerta.

‑           Se ele tocar na Lucrezia, eu dou‑lhe um murro! Mesmo que isso tenha consequências dramáticas nas relações diplomáticas entre Praga e a cidade da Praia!

‑ Pode ir! Vá fazer as suas compras! ‑ concedeu o polícia com um ar generoso e fez um gesto de mão que devia querer dizer: "Faça favor, Tarrafal está à sua disposição."

‑ Muito obrigada! ‑ disse Lucrezia com um olhar envolvente. Inclinou‑se para a frente e deu um beijo na face do polícia.

‑           Um a zero para ti! ‑ resmungou Trosky. ‑ Não se esqueçam de comprar aguardente! Só nos restam três garrafas de uísque a bordo!

Assim, os homens seguiram o polícia, e Helena e Lucrezia passearam pela avenida ao longo do porto. Trosky deu uma cotovelada a Losskov.

‑           Como e  que vamos pagar? Tens escudos?

‑Não, só dólares.

‑           E eles aceitam dólares?

‑           Claro que sim.

‑           Os polícias também?

‑           Porque e  que falas nos policias?

‑           Suponho que daqui a pouco teremos de preencher um enorme questionário. E consoante aquilo que eles encontrarem por baixo do questionário quando o devolvermos, o nosso caso será tratado em poucos minutos ou só em alguns dias. Por isso e  que eu perguntei.

‑ Logo veremos. Por enquanto, ainda nem sabemos porque e  que nos estão a causar problemas. Os documentos do barco estão em ordem.

‑ Mas não havia dinheiro a acompanhá‑los! Por isso estavam incompletos.

O edifício da Polícia tinha uma bandeira esfarrapada pendurada num mastro pintado de branco. No interior, havia um grande escritório com dois ventiladores que agitavam o ar quente, e um homem magro sentado atrás de uma enorme secretária, que os fitou com um ar severo. O polícia fez uma continência e depois pôs‑se em posição de sentido.

‑           Adivinhaste mal! ‑ comentou Losskov, contente. - Não e  nenhum homem gordo de óculos.

‑           Mas em vez disso um Napoleãozinho arrogante. E isso e  muito pior!

O polícia fez um curto relatório daquilo que se passara e.

mais uma vez, Losskov apenas compreendeu a palavra "Alemanha". O homem atrás da secretária fitou‑os com um ar curioso, apontou para duas cadeiras em frente à sua mesa e esperou que se tivessem sentado. O polícia ficou perto da porta como se quisesse vigiar a única saída da sala.

‑ Alemanha! ‑ pronunciou o chefe da Polícia e sorriu. - Muito bonito! Até houve alguém que me ensinou o vosso hino. ‑ E depois recitou num alemão dificilmente compreensível as seguintes palavras: "Bêbedos hoje, bêbedos amanhã... Muito bonito!"

‑ Meu Deus! ‑ exclamou Losskov baixinho e juntou as mãos no colo. Estava a transpirar. ‑ Quem e  que lhe terá ensinado isto? Se ele um dia descobrir o que e  que está a dizer, os Alemães de certeza que já não serão bem‑vindos nesta ilha!

A conversa que tiveram foi cansativa, mas valeu a pena. Durou três horas, durante as quais o polícia lhes serviu sumo de ananás misturado com uma aguardente branca muito forte, destilada a partir de cana‑de‑açúcar. Entendiam‑se com a ajuda das mãos e dos pés e acabaram por preencher o questionário que felizmente se apresentava em duas línguas, português e inglês, e que no fim levou dois carimbos e foi metido numa caixa juntamente com outros papéis.

‑ Alemanha bonito ‑ disse o polícia, orgulhoso, em alemão. ‑ Espelunca! ‑ acrescentou e olhou para Losskov à espera de um louvor. Alguém devia ter‑lhe ensinado que essa palavra exprimia grande admiração.

‑ Bravo! ‑ exclamou Losskov. Depois apontou para a janela, desenhou um barco à vela. ‑ Temos de voltar para o nosso barco. Vamos continuar a viagem. Para longe! Grande mare!

O homem compreendeu o que Losskov queria dizer. Saltou da cadeira, aproximou‑se e abraçou Losskov e Trosky e depois mandou um berro ao polícia. Este abriu a porta e pôs‑se em posição de sentido. Obviamente que levaria os alemães de volta para o porto.

‑ Devíamos ir à procura da Helena e da Lucrezia! - propôs Trosky. ‑ Afinal elas não conseguirão carregar as compras sozinhas!

Foram até ao porto e dirigiram‑se para a velha ponte. Quando lá chegaram, Trosky soltou um ruído abafado e rasgou a camisa do peito. Losskov parou tão repentinamente que parecia ter levado um murro.

A ponte estava vazia. O Helu desaparecera. Nada deixava adivinhar que há poucas horas ainda ali estivera um barco branco.

‑           Os quatro heróis permitem que lhes roubem o barco! - disse Trosky num tom de voz amargurado. ‑ Ainda bem que pelo menos ainda temos as raparigas!

No entanto, Helena e Lucrezia também tinham desaparecido. Meia hora mais tarde, Losskov e Trosky tinham conseguido averiguar que tinham ido para o barco carregadas de sacos e que a seguir as velas haviam sido içadas rapidamente e o barco saíra do porto.

Os dois comerciantes que tinham vindo para o porto com o resto das mercadorias, dois carrinhos repletos de conservas, vinho, cerveja e duas sacas de farinha e arroz, tinham dado meia volta ao verem o barco partir, furiosos, embora a mercadoria tivesse sido paga.

Um deles falava um inglês muito mau, mas que bastava para que fosse possível compreender o que queria dizer.

‑           Elas pareciam muito apressadas! ‑ explicou. ‑ Partiram a alta velocidade!

‑           Devem ter sido mordidas por algum cão raivoso! Provavelmente foi o Mister Plump. Eu já estava à espera disto! - bramou Trosky, furioso. ‑ Tens alguma explicação para isto, Peer?

‑           Algo aconteceu com o barco!

‑           Claro que sim. Ele desapareceu!

‑ A Helena e a Luzi não foram sozinhas.

‑           Então havia algum pirata a bordo!

‑           Ou algo parecido! O nosso barco foi capturado! Ora aí tens a tua tão desejada emoção! Que grande pirataria!

‑           E isso em pleno dia? No porto?

A Polícia de Tarrafal alarmou a cidade da Praia. Dois barcos a motor iniciaram uma busca e chamaram um helicóptero para Tarrafal.

‑ Nós vamos encontrá‑las! ‑ prometeu um dos polícias em crioulo e mandou traduzir. ‑ Porém, pode levar algum tempo. A costa e  rochosa e tem inúmeras baías e grutas! e  constituída em grande parte por rochas vulcânicas que proporcionam óptimos esconderijos. Teremos de procurar muito cuidadosamente. Mas encontrá‑las‑emos, meus senhores... Tenham paciência! Um barco daqueles não pode desaparecer assim...

‑ O barco não e  a coisa mais importante! ‑ disse Losskov. ‑ Trata‑se sobretudo das mulheres.

‑ Eu quase que lhe posso garantir que encontraremos o barco! ‑ O chefe da Polícia fitou Losskov e Trosky com um olhar triste e depois acrescentou: ‑ Mas será que voltaremos a ver as duas mulheres? Isso só Deus e  que sabe!

‑ E Ele não nos responde! ‑ completou Trosky, baixinho.

Helena e Lucrezia tinham regressado ao barco duas horas mais tarde, carregadas de compras.

Embora a aldeia de Tarrafal, no meio da paisagem vulcânica, tivesse um aspecto extremamente desolador, existiam três pontos de referência: uma igreja do tempo dos Portugueses, um bar e um supermercado que pertencia a um senhor que até falava razoavelmente bem francês e que recebeu Helena e Lucrezia como se fossem duas rainhas numa visita de estado: "A minha loja está ao vosso inteiro dispor, mesdames!" Não se tratava bem de um gesto de generosidade da sua parte, mas antes exprimia a esperança de receber de uma só vez mais dinheiro do que normalmente ganhava num mês inteiro. E a sua intuição estava certa. Helena e Lucrezia compraram tudo o que tinham apontado na lista: desde a água em garrafas de plástico fechadas hermeticamente, até às sopas prontas de farinha de ervilhas e massa de lentilhas. Compraram uma caixa com doze garrafas de uísque para Trosky, e Helena, com o seu espírito prático, até levou dois pacotes de detergente para a roupa.

‑ Quando o Trosky vir o detergente, vai deitá‑lo imediatamente para o mar! ‑ disse Luzi. ‑ Detergente para a roupa! Para ele seria muito mais lógico levar mais seis garrafas de uísque! De qualquer maneira, acho que comprámos coisas a mais!

‑ Eu não quero andar com roupas malcheirosas! ‑ declarou Helena, decidida. ‑ E posso perfeitamente prescindir do álcool!

‑ Queres fazer grandes lavagens de roupa no Atlântico e em frente à ilha do Fogo?

‑           E porque não?

‑ Creio que teremos preocupações muito maiores do que uma gola suja. ‑ Lucrezia encolheu os ombros, resignada. ‑ Mas faz o que bem entenderes! Afinal, tu e  que mandas...

Helena, que estava entretida a ler as instruções numa lata de conserva, virou‑se bruscamente ao ouvir esta frase. Ainda conseguiu ver a expressão maliciosa nos olhos de Lucrezia. Contudo, o seu olhar alterara‑se imediatamente, os seus olhos voltaram a ficar grandes e redondos, adquirindo aquele ar infantil e ingénuo, típico de Lucrezia com o qual costumava despertar o instinto protector dos homens.

‑ O que e  que queres dizer com isso? ‑ perguntou Helena, num tom de voz severo. Luzi encolheu os seus ombros estreitos e sorriu com um ar infantil.

‑ Todos nós já o sabemos.

‑           Sabem o quê?

‑           Não somos cegos!

‑           Mas ligeiramente estúpidos.

‑ e  possível. ‑ Lucrezia mostrou um sorriso malandro. ‑ Mas não suficientemente estúpidos para não percebermos que vocês se amam.

‑           Que ideia mais absurda!

‑ Vocês olham um para o outro como se olhassem para um grande bolo, completamente esfomeados.

‑           Que grande disparate!

‑ Um disparate e  o facto de vocês ainda dormirem em camarotes separados. Se eu pudesse, já estava a dormir com o Peer há muito tempo. Desde a primeira noite a bordo! Mas ele não me quer, ele quer‑te a ti! Por amor de Deus, isso será pecado? Vocês agem como se o barco fosse um convento, e estão a ser ridículos! Façam aquilo com que sonham todas as noites!

‑           Para que tu possas ir para a cama com o Jan sem teres má consciência?

‑           Com o Jan?? Ele não faz o meu género! Eu gosto de homens carinhosos e não daqueles que só querem exibir os seus músculos. ‑ Os olhos infantis de Lucrezia adquiriram um ar sonhador. Era impressionante ver como ela era capaz de modificar o rosto. Mudava de expressão como um camaleão muda de cor. ‑ Mas, tendo em consideração que durante as próximas semanas será impossível conhecer um homem carinhoso...

‑           Se essa e  a tua única preocupação!

‑           Isto e  no mínimo mais preocupante do que os teus problemas com o detergente para a roupa. ‑ Lucrezia andou ao longo das estantes baloiçando as ancas. Parou perto da secção de cosméticos, onde se podia encontrar perfumes baratos e cosméticos, e comprou um grande frasco de perfume de lírios, três bâtons vermelhos, cores para as faces e rimel. ‑ Cada qual com as suas manias! ‑ exclamou, rindo‑se. ‑ Tu lavas a roupa e eu pinto‑me! Meu Deus, isto vai ser uma viagem de doidos! Temos um bêbedo que odeia todos os homens, um viquingue com a moral de um monge, uma dona de casa virgem e uma rapariga doida por homens. Afinal, e  isso que eu sou aos teus olhos, não é?

 

O proprietário do supermercado corou de entusiasmo quando fez a conta. Como Helena pagou em dólares, acrescentou mais uma boa soma ao fazer o câmbio e ofereceu a cada uma delas um lenço de seda com uma pintura a cores berrantes das ilhas de Cabo Verde. Os lenços ainda eram do tempo dos Portugueses, quando o turismo fora uma fonte de rendimento. Desde que as ilhas se tinham tornado independentes em 1975, quase que não havia mais visitantes em Tarrafal, e a loja com as lembranças para os turistas estava coberta de poeira.

‑           Eu mando um moço acompanhar‑vos até ao barco, mesdames - disse o dono da loja. Ele levará a mercadoria até ao porto com a ajuda de um carrinho. Boa viagem! E boa sorte! As senhoras seguem para a Guiné‑Bissau?

‑           Não, vamos para a Terra do Fogo ‑ informou Luzi com um ar contente.

‑           Para onde? ‑ O dono do supermercado parecia desiludido.

‑           Para a Terra do Fogo, passando pelo cabo Horne.

‑           Com aquele pequeno barco à vela?

‑          Sim.

‑           Devem estar a brincar!

‑           Embora não seja uma brincadeira, gostamos daquilo que estamos a fazer!

Enquanto elas desciam a rua, seguidas pelo pequeno e magro rapaz que não devia ter mais de dez anos, o homem seguiu‑as com o olhar. "Há pessoas mesmo muito doidas neste mundo", pensou, olhando com um ar quase triste para as ancas baloiçantes de Lucrezia. "Viajar até à Terra do Fogo num barquinho daqueles! Nunca mais voltaremos a ver estas raparigas tão apetitosas. Que pena." Suspirou, olhou para os dólares que ganhara e decidiu ir nesse mesmo dia para a cidade da Praia depositá‑los no banco.

No caminho de volta, as duas raparigas passaram pelo quartel, onde Trosky e Losskov estavam a chegar ao fim das longas conversações com o chefe da Polícia.

O barco lá estava, isolado no cais, amarrado pelos cabos de nylon. Os poucos barquinhos de pescadores que havia tinham sido trazidos para terra, e os dois únicos barcos um pouco maiores pareciam abandonados. Não se via ninguém na rua, o calor era insuportável e seco e havia uma fina areia no ar que provinha dos temidos ventos Passat do Sara. Era uma areia avermelhada, fina como farinha, que parecia poeira e que se colava a tudo. Cobria as casas e os campos, as ruas e os telhados, os barcos e as árvores, rangia entre os dentes e entrava nas narinas, tapando‑as.

Quando chegaram ao barco, Helena e Lucrezia não deram por nada de anormal; porém, o rapaz ficou parado, olhou fixamente para o barquinho, despejou o conteúdo do carrinho num gesto brusco, deixando cair as caixas para o cais e fugiu sem dizer uma palavra. Helena olhou para o monte de coisas e para o rapazinho em fuga, com um ar desiludido.

‑           Se ele continuar assim, nunca virá a ser director de uma filial ‑ notou Lucrezia. ‑ Primeiro o polícia e depois este rapaz! Não sei porquê, mas tenho a impressão de que não somos bem‑vindas nesta ilha. Bem, então teremos de ser nós a levar as coisas para bordo!

Pegou na caixa com o uísque e colocou‑a no ombro. Helena, por seu lado, levou as caixas com o detergente para a roupa. Mais uma vez ficou surpreendida com a força e robustez do bonito corpo de Lucrezia, que à primeira vista tinha um ar tão frágil. Doze garrafas de uísque não são leves, mas Lucrezia carregou‑as como se se tratasse de um caixote vazio. "É uma mulher resistente", pensou Helena. "Quando entrarmos nas fortes tempestades, poderemos contar com ela. O mesmo não acontece comigo. Eu tenho medo quando penso no cabo Horne e nos ventos fortes da Terra do Fogo."

Subiram a bordo, pousaram as caixas e olharam para o monte de coisas que ainda havia no cais.

‑           O paiol da palamenta não e  extensível! ‑ disse Lucrezia. ‑ Acho que vamos ter problemas com o Peer! Comprámos coisas a mais.

‑           Daqui a quinze dias, o Trosky já terá comido metade disto tudo.

‑           É melhor combinares isso com o Peer, o teu querido!

Foi até às escadas e parou, surpreendida. A porta para o salão estava aberta e no entanto ela lembrava‑se perfeitamente de que Peer a fechara à chave. E apenas Helena tinha a segunda chave.

‑           Eles já chegaram! ‑ exclamou.

‑           Já? ‑ Helena, que queria voltar para o cais para buscar mais caixas, parou.

‑           A porta está aberta!

‑           E eles não nos ouvem?

‑           Isso já veremos. ‑ Lucrezia bateu com o punho no tecto do salão e inclinou‑se para as escadas. ‑ Subam, seus preguiçosos! ‑ gritou. ‑ Não nos deixem carregar tudo sozinhas!

Lá em baixo, nada se moveu. Lucrezia olhou para Helena, encolheu os ombros e abanou a cabeça.

‑           Eu vou tratar deles! ‑ exclamou.

Desceu as escadas, entrou no salão e de repente sentiu duas mãos agarrarem‑na e taparem‑lhe os olhos. Outro par de mãos torceu‑lhe os braços para trás. A porta fechou‑se, e durante alguns segundos Lucrezia ficou paralisada. Depois, os seus músculos contraíram‑se como se fosse um gato selvagem. Mas não tentou defender‑se. Seria impossível soltar‑se. Por isso, ficou parada, sem se mexer, e esperou. Teve nojo. As mãos que lhe tapavam os olhos cheiravam a peixe ou a óleo de fígado.

Ouviu uma voz sussurrar‑lhe algo em crioulo, mas ela não compreendeu nada.

‑ Fala francês? ‑ perguntou uma voz grave atrás dela. Lucrezia ficou aliviada.

‑ Sim! ‑ exclamou, zangada. ‑ Vocês são uns idiotas!

Veremos. Chame a sua colega!

‑ E se eu não o fizer?

‑ Apertamos‑lhe o pescoço e fazemos com que ela venha cá na mesma. Seria uma pena obrigar‑me a fazer isso... Eu não queria matar ninguém! Odeio a violência.

‑ Que traço de carácter tão nobre. Eu, porém, não notei nada dele!

‑ Um assalto não constitui violência.

‑           Não sabia disso! Existem algumas subtis diferenças, não é?

‑ Vai chamá‑la ou não? ‑ perguntou a voz grave atrás dela.

‑ Eu faço tudo para sobreviver!

‑ Mas tenha cuidado para que ela não dê por nada!

‑ Esforçar‑me‑ei para que assim seja.

Os dois homens viraram Luzi para as escadas; ela ouviu a porta a abrir‑se e a bater contra a parede.

‑           Chame‑a!

Lucrezia respirou fundo.

‑ Blondie! ‑ gritou. ‑ Vem cá! Passa‑se algo! ‑ Só nesse instante e  que se lembrou de que os homens que a seguravam provavelmente não compreendiam alemão; ela poderia ter gritado aquilo que quisesse. Porém, não teve hipótese de chamar outra vez. Uma mão forte tapou‑lhe a boca. "Eu podia morder‑lhe", pensou. "Ele gritaria, afastaria a mão da minha boca por um simples reflexo e eu poderia chamar: "Foge! Foge! Assalto!" Mas de que e  que isso serviria? Eles matar‑me‑iam de qualquer maneira. Os actos heróicos só raramente fazem sentido.

‑ Ela vem aí! ‑ disse a voz grave atrás do seu ouvido. - Não se mexam!

Arrastaram Lucrezia para o lado, encostaram‑na à parede do salão e fecharam a porta. Queriam surpreender Helena quando ela entrasse no salão e fosse agarrada, tal como tinham feito com Lucrezia.

Tudo se passou com extrema precisão. Helena desceu apressadamente as escadas. Estava preocupada, porque se Luzi dizia que algo se estava a passar, então isso só podia querer dizer que houvera outra zanga entre Peer e Trosky... E quem sabia quais seriam as consequências?

Helena foi igualmente imobilizada em poucos segundos. Não lhe taparam os olhos; puxaram‑na violentamente do último degrau das escadas para o salão, atirando‑a contra a parede. Durante a queda, ainda conseguiu ver Lucrezia, que estava a ser agarrada por um homem pequeno e gordo com uma careca. E também conseguiu ver o homem que estava a ocupar‑se dela, um jovem alto e magro com um pequeno bigode e longos cabelos pretos encaracolados. Depois caiu no chão, ficou deitada sobre os joelhos e esperou. Pusera os braços à volta da cabeça para se proteger.

‑ Suponho que também fala francês? ‑ disse o homem com a voz grave.

‑ Sim ‑ respondeu Helena. Virou‑se. A porta que dava para o convés tinha sido de novo fechada, e Lucrezia encontrava‑se do lado oposto da sala, encostada à parede. Os dois homens, um de caracóis pretos, e o outro, careca, estavam lado a lado na parte da sala que fazia de cozinha. Lucrezia ergueu as mãos num gesto desesperado.

‑ Eles obrigaram‑me a chamar‑te! ‑ disse em francês. - Senão, ter‑me‑iam estrangulado.

O homem alto, de caracóis, tomou a palavra. A sua voz era agradável, mas fria.

‑           Nós temos um problema ‑ declarou. ‑ E achamos que o vosso barco e  exactamente aquilo de que precisamos para resolvê‑lo. Sabem manejá‑lo?

‑           Não! ‑ respondeu Luzi rapidamente.

‑           Não vale a pena estar a mentir. Primeiro, vou contar‑vos uma pequena história. Já ouviram falar do Chade? e  um país extremamente pobre, algures na áfrica Central. e  natural que não o conheçam! De qualquer maneira, sabe‑se que nesse país milhares de pessoas morrem à fome, que há uma revolução, que as diferentes tribos estão a matar‑se mutuamente e que a França detém o poder nesse país, apenas por motivos estratégicos. Eu era um legionário estrangeiro. Sabem o que isso quer dizer? Mandaram‑me, juntamente com mais duzentos homens supostamente voluntários, para o Chade, para instaurarmos a ordem. Era uma missão que devia antes ser denominada assim: "Apodreçam em nome da França!" Eu decidi desertar. Creio que não tenho de explicar‑vos o que e  que acontece aos legionários que desertam e são apanhados! Felizmente, consegui abrir caminho do Chade pela áfrica até estas ilhas. Se quiserem ter uma ideia daquilo que eu passei, consultem o mapa e verão. E agora, graças a vocês, vou dar o golpe que me garantirá uma vida nova. E isso em Tarrafal! Parece incrível, não acham?! Tenho de ir‑me embora daqui. Não quero ir para longe. Apenas para Maio. Só que para isso não basta um simples barco a motor! Terão de ser vocês duas a levar‑nos para lá.

‑           Isso e  uma loucura! ‑ exclamou Lucrezia e sentou‑se num banco. ‑ Acho que até seria mais seguro irem a nado! Imaginem a agitação que vai haver nesta ilha quando derem pela falta do barco! Afinal nós não viemos sozinhas.

‑           Eu sei ‑ respondeu o homem com o cabelo encaracolado. ‑ Vamos trazer as vossas compras para bordo e partiremos imediatamente. A costa e  rochosa e cheia de baías e grutas. Uma paisagem vulcânica como esta proporciona excelentes esconderijos. Vamo‑nos esconder e esperar que a noite caia, e depois iremos directamente para Maio. Acham que vai haver algum problema?

‑           O senhor não conhece os nossos homens! ‑ disse Helena.

‑           Eu não subestimo ninguém. Nem a mim próprio. - O homem com o cabelo encaracolado abriu bruscamente a porta. O outro, mais pequeno, com a careca, que até agora não dissera nada, subiu as escadas a correr. ‑ Não vale a pena tentarem ganhar tempo! ‑ continuou o primeiro. ‑ Eles não voltarão assim tão rapidamente. O chefe da Polícia e  um tagarela e fica sempre contente quando encontra alguém para interrogar. Quanto mais inocente e  o delinquente, melhor, já que assim ele pode fazer mais perguntas! Para ele, esses interrogatórios substituem a televisão e a vida social, que aqui praticamente não existem. Por isso, minhas senhoras, podem ter a certeza de que os vossos homens ainda vão levar muito tempo até chegar!

‑           Mas seremos observados!

‑           A esta hora, não. ‑ O homem alto, com o cabelo encaracolado, sorriu, satisfeito.

‑           O rapazinho do supermercado! Ele vai contar tudo! Se ele fugiu, deve ter sido porque vos viu!

‑           Ele não vai dizer nada! Eu mostrei‑lhe a minha pistola através da janela. e  um sinal que aqui qualquer pessoa compreende.

O homem da careca voltou, carregado de caixas que depositou na cabina.

‑           Este e  o Jorge Silva ‑ disse o homem mais alto. - O meu nome e  Maurice Depallier... Isto não quer dizer que estes nomes sejam verdadeiros. Mas podem chamar‑nos assim. ‑ Silva voltou a subir. Executava o trabalho sem dizer nada. Devia encarar Maurice como seu superior e parecia gostar de viver na sua sombra. ‑ O que e  que acham de içarmos as velas?

Helena e Lucrezia trocaram um olhar rápido. Depallier reparou nesse olhar e sorriu.

‑           Como e  que se faz isso? ‑ perguntou Helena, calmamente.

‑           Eu já estava à espera desta reacção, minhas senhoras. Posso ajudá‑las? ‑ Avançou dois passos, puxou Helena pela blusa e torceu o seu braço esquerdo para trás, até ela gemer. Helena conseguiu suportar a dor, mas estava no limite. ‑ As mulheres são sensíveis aos gritos, não e  verdade?

‑ Eu não. ‑ Lucrezia cruzou as suas longas pernas. Entretanto, Silva voltou a aparecer, sem fôlego e a transpirar, e colocou a caixa que continha as garrafas de água num canto. E, sem sequer fazer uma pequena pausa, voltou imediatamente a subir. Apesar de tudo, aos poucos o tempo começava a apertar.

‑           Eu cresci entre gritos ‑ continuou Lucrezia. ‑ Quando era pequena, vivia perto de um enorme matadouro e costumava escapar‑me para os pavilhões onde os animais eram mortos. Vocês sabiam que os porcos na hora da morte gritam de uma maneira assustadora? Eles sentem o sangue e adivinham que o seu fim se aproxima. Não são assim tão burros como se costuma dizer. Agora já sabem porque e  que os gritos não me impressionam. Fui habituada a eles desde muito cedo.

Maurice olhou para ela com um ar desiludido, largou Helena e passou a mão pelo cabelo.

‑           Porque e  que as senhoras complicam as coisas? Levem‑nos para Maio e eu prometo que, quando lá chegarmos, deixá‑las‑ei voltar. São sessenta quilómetros de ida e sessenta quilómetros de volta e mais o tempo de espera.

‑           Que tempo de espera? ‑ perguntou Helena.

‑           Teremos de nos esconder durante alguns dias, até que desistam de nos procurar. Uma tempestade viria mesmo a calhar, porque a seguir achariam que já não havia mais nada a fazer e que o barco se tinha perdido. O mar aqui tem quatro mil metros de profundidade... Minhas senhoras, para que suportar dores, se de qualquer maneira terão de levar o barco, já que não têm outra escolha? Não será melhor serem sensatas e guiarem o barco voluntariamente?

Jorge Silva voltou, pousou as caixas e respirou fundo.

‑           Mais uma leva e estará tudo a bordo ‑ disse, em crioulo. ‑ O que e  que elas dizem? ‑ perguntou, olhando para as duas raparigas.

‑           Claro que estão dispostas a fazer o que lhes pedimos ‑

respondeu‑lhe Maurice. ‑ O nosso amigo Jorge está a perguntar ‑ continuou, desta vez em francês, e dirigindo‑se a elas ‑, se será necessário ele cortar o rosto de uma das duas. e  que o Jorge tem um ar muito bondoso e simpático e de certa maneira paternal devido à sua careca, mas na realidade e  um diabo. Um verdadeiro animal selvagem sem sentimentos! E e  um artista com a faca. ‑ Maurice fez uma vénia em frente a Helena e apontou para as escadas. ‑ Podemos partir, madame. Eu ficarei a observá‑las daqui. Se fizerem qualquer sinal ou tentarem sabotar o que quer que seja, eu disparo imediatamente. Lembrem‑se de uma coisa: nós não temos nada a perder, estamos habituados a arriscar tudo. As senhoras, pelo contrário, devem gostar bastante de viver, para não quererem perder esta bela vida devido a um gesto errado.

‑           Está bem, vamos embora! ‑ concordou Lucrezia. - Eu faço tudo para salvar o meu rosto. Mas as coisas não vão correr como o senhor as prevê, Maurice. Repare que estão a chegar mais dois homens com carrinhos carregados de farinha, arroz, batatas e massa, cerveja e latas de conservas.

‑           A senhora não sabe mentir. Infelizmente, eu sei que não compraram mais do que aquilo que está lá fora no cais.

‑           Engana‑se! O próprio dono do supermercado está a chegar com o seu sócio para ver o barco. Por isso, já não lhe resta tempo nenhum!

Silva voltou com o último saco e parecia nervoso.

‑           Temos de partir! ‑ exclamou, sem fôlego, enquanto limpava o suor da careca. ‑ O porto está a ficar cheio.

‑           Para o convés! ‑ A voz de Maurice adquiriu um tom duro, que não permitia discussões. ‑ A todo o pano! E lembrem‑se que eu disparo!

Helena e Lucrezia passaram pelo Sr. Silva, que estava completamente exausto, e subiram as escadas a correr. Soltaram as cordas, depois de terem recolhido a estreita prancha de embarque, e tomaram os lugares que tinham ocupado durante os treinos e em parte durante a viagem. O porto de facto estava a tornar‑se mais movimentado. Como o vento estava favorável, o barco podia avançar a alta velocidade para o mar aberto. Ao longe, já conseguiam distinguir o proprietário do supermercado com o seu sócio e dois carrinhos com mercadorias.

‑           Bastavam‑nos quinze minutos, Helena! ‑ murmurou Lucrezia, que estava no mastro a içar a vela grande. - Achas que devíamos arriscar?

‑           E se ele realmente disparar?

‑           É o risco que temos de correr!

‑           Se obedecermos, voltaremos para cá, sãs e salvas.

- Tu acreditas nisso?

‑           Então, está bem. Vamos tentar! ‑ A vela grande subiu pelas cordas e desdobrou‑se. Bruscamente, o barco mudou de direcção e começou a avançar. Lucrezia precipitou‑se para a frente, soltou a corda e içou a vela de balão. O barco tremeu e depois saiu disparado do pequeno porto, baloiçando perigosamente. Mas, logo a seguir, Helena conseguiu controlar o barco e olhou para as escadas. Maurice Depallier estava deitado no degrau superior com a pistola pronta a disparar. O seu rosto estava contraído e perdera toda a sua beleza.

Entretanto, o dono do supermercado e o seu companheiro tinham chegado ao porto e olhavam, incrédulos, para o barco que se afastava a alta velocidade. O dono da loja bateu com o punho num saco de farinha e parecia já não compreender nada.

‑           Que estupidez! ‑ gritou. ‑ Vão‑se embora e deixam a mercadoria para trás!

‑           O que importa e  que a pagaram ‑ fez notar o companheiro, calmamente. ‑ Para nós, foi um óptimo negócio! Elas de certeza que não voltam. Afinal vão para a Terra do Fogo! Vamos beber um copo para festejar!

‑           Há algo de estranho nesta história! ‑ gritou o dono do supermercado.

‑           E tu tens alguma coisa a ver com isso? Os turistas são sempre um pouco malucos!

‑           Estas raparigas não me pareciam malucas! Alguma coisa está mal!

‑           Queres ir à Polícia?

‑           Sim!

‑           E lá se vai o nosso negócio! ‑ O companheiro pegou no seu carrinho. ‑ Eu acho que devíamos antes voltar para a loja! O que e  que nos interessam os problemas dessa gente! Nós próprios já temos preocupações suficientes. ‑ Pôs a mão na testa para proteger os olhos do sol e, abanando a cabeça, observou o barco que se afastava a alta velocidade. ­- Mas elas levaram a mercadoria que o nosso rapaz as ajudou a carregar. O miúdo não disse nada?

‑           Não. Quando voltou para a loja, foi imediatamente para o armazém empilhar latas de conserva. Não lhe devem ter dado gorjeta. Quando eu lhe perguntei se tinha gostado do barco, sabe o que e  que ele fez? Cuspiu para o chão, o que prova que não recebeu nada!

Ficaram ao lado dos carrinhos a olhar para o barco até este se tornar num pequeno ponto branco no horizonte. Depois, voltaram para a loja, empurrando os seus carrinhos, e só ficaram mais animados quando o sargento da Polícia apareceu no supermercado e berrou:

‑           Onde estão os aldrabões? Venham já falar com o chefe da esquadra! Imediatamente!

‑           Eu já estava à espera disto! ‑ suspirou o dono do supermercado e pôs o seu grande chapéu de palha na cabeça. - Não e  mesmo nada fácil ganhar dólares nesta terra.

 

Avançaram a todo o pano apenas por pouco tempo. Quando já não podiam ser vistos a partir da costa, deram meia volta e dirigiram‑se para a costa leste. Rizaram todas as velas excepto o traquete, e navegaram lentamente ao longo da costa pela água profundamente azul, mantendo‑se sempre na sombra das rochas vulcânicas e contornando as estranhas penínsulas que as correntes de lava tinham formado na água. Aqui, a terra era deserta, hostil, indomável, arrasada pelo fogo há milhares de anos, destruída pelas tempestades e roída pelo mar: havia pedra‑pomes, porosa como uma esponja e lava saída do interior da terra. Ao longo da costa íngreme, tinham‑se formado centenas de grutas enormes, lavadas pelo oceano, que se ofereciam como um óptimo esconderijo para o pequeno barco. Passariam por um dos estreitos túneis de água entre as rochas e esconder‑se‑iam atrás das rochas mais salientes.

‑           A esta hora já eles devem ter dado pela nossa falta - afirmou Helena, que ainda estava sentada ao leme e guiava o barco de maneira segura por entre os recifes de lava. A água era transparente, permitindo‑lhe ver todos os baixios. De qualquer maneira, não fazia sentido provocar um acidente. Seria o fim de toda a expedição, dado que o casco especial do barco com câmaras de espuma, que o tornava "inafundável", não podia ser consertado. Se fosse danificado, o barco ficaria inutilizável. Maurice Depallier estava sentado ao lado de Helena e comportava‑se como se estivesse num paquete de férias. Silva encontrava‑se no tecto dos camarotes e observava com um olhar devorador Lucrezia que, depois de ter rizado as velas, se deitara por baixo do traquete e agitava as suas finas pernas no ar.

‑ Bravo, madame! ‑ exclamou Maurice Depallier quando entraram numa grande gruta, para escapar ao vento. O barco deslizava pela água, entrando cada vez mais fundo na gruta e tornando‑se assim invisível para quem estivesse no mar. Nem mesmo do ar seria possível vê-los, dado que as rochas de pedra‑pomes formavam uma espécie de telhado. ‑ Permaneceremos aqui durante dois ou três dias ou mais. Agora temos tempo.

‑           Suponho que os habitantes da ilha conhecem bem estas grutas.

‑           Elas existem aos milhares ao longo da costa. E de qualquer forma apenas nos procurarão de dia! Temos boas hipóteses de escapar.

Lucrezia, que estivera na proa, aproximou‑se deles e encostou‑se na balaustrada.

‑           Esse homem careca está a devorar‑me com os olhos - disse a Maurice, fazendo tremer as pestanas. ‑ Posso ir lá para baixo?

‑           A partir de agora, podem fazer o que quiserem.

‑           Obrigada. ‑ Lucrezia virou‑se e desceu as escadas. assobiando. Depallier olhou para ela.

‑           Uma vadia, não é?

‑           Não se iluda! ‑ exclamou Helena.

‑           Eu não correria atrás dela. Nem atrás dela, nem atrás de nenhuma mulher. Nunca mais.

‑           E porque não?

‑           Quer ouvir a minha história, madame? Aliás, como e  que se chama?

‑           Helena Sydgriff.

‑           Isso parece‑me germânico.

‑ e  sueco.

‑           Está a ver! ‑ Depallier riu‑se. Nessas alturas parecia um daqueles homens de Saint Tropez, perdido nessa solidão. Era um homem bonito, pondo de parte os seus olhos que podiam emanar uma enorme frieza. Olhos castanhos, sem qualquer sentimento.

‑           E a vadia?

‑           Por favor, chame-lhe Lucrezia Panarotti! Ela e  italiana.

‑           E e  bonita. ‑ Maurice encostou‑se para trás, estendeu os braços para o lado, no espaldar, e olhou para Helena com um ar inquiridor. ‑ Você também e  bonita. Em circunstâncias normais, eu preferia‑a a si a essa Lucrezia.

‑           Obrigada.

‑           O seu cabelo louro, o seu peito, essas ancas, as suas pernas rijas, tudo isso e  sinal de energia. Energia também no amor. Nós, os Franceses, sabemos reconhecer isso, Helena.

‑           Não sei para que está a enumerar as minhas qualidades. Isso não adianta de nada, Maurice.

‑           Eu sei, o seu marido...

‑           Ele não e  meu marido.

‑Olá!... ‑ Depallier voltou a rir‑se. ‑ Será que neste barco se está a repetir a história universal? A bonita Helena raptada por Páris e a perigosa e venenosa Lucrezia de Itália? Que aventura... ‑ Inclinou‑se para a frente e, abanando a cabeça, acrescentou: ‑ Não se preocupe. Ninguém vai tocar em si. Eu tenho outras preocupações. Então, quer ouvir a minha história?

‑           Para quê? Isso mudará alguma coisa no facto de nos terem roubado o barco?

‑           Ficaria a saber quais os motivos que nos levaram a roubá‑lo. ‑ Depallier bateu palmas. ‑ Voilà, olhem para ela. Como eu estava à espera: de cortar a respiração!

Lucrezia aparecera nas escadas. Vestia um biquini dourado, tão pequeno que era admirável que não se rasgasse quando ela se mexia.

Passou por Helena e Maurice como se estivesse num desfile de moda, deitou‑se no convés e encolheu os joelhos. Silva, o careca, observou‑a, fora de si, até Depallier lhe fazer um sinal para desaparecer.

‑           O que e  que acha de escolhermos uma boa garrafa da vossa reserva de vinhos? Reparei que há um óptimo bordeaux a bordo.

‑           O senhor tem uma calma incrível! ‑ Helena passou as mãos pelo cabelo despenteado. ‑ Já imaginou o que estará a passar‑se na ilha por esta altura?

‑           Consegue ver ou ouvir alguma coisa?

‑           Não vai tardar muito.

‑           Mas eles nunca nos descobrirão. Quer venham com barcos, quer com aviões... As coisas só se tornarão perigosas no momento em que sairmos desta gruta para irmos para Maio.

‑           Porque e  que quer ir para Maio?

‑           Em Maio, ser‑me‑á mais fácil esconder‑me e depois poderei ir com um pequeno avião dos Transportes Aéreos de Cabo Verde para o aeroporto internacional da cidade do Sal. Pode parecer estranho, mas e  mesmo assim. Eu tenho muitos amigos em Maio. Porém, depois de tudo por que passei, e nisso incluo estes dias convosco, já não preciso de amigos. Os bons amigos não existem aqui. Aliás... amigos? Será que ainda existem? Eu só conheci a verdadeira amizade na legião. Aquilo era amizade até à morte. E afinal foi exactamente da legião que eu desertei.

‑           Meu Deus, nada de sentimentalismos, por favor. Agora, não!

‑           Devíamos beber qualquer coisa, Helena.

‑           Tragam para mim também! ‑ exclamou Lucrezia. Tinha excelentes ouvidos. ‑ E não me deixem sozinha aqui

em cima por muito tempo. O careca está à espera de uma oportunidade para me atacar.

‑ Eu vou buscar uma garrafa. ‑ Helena levantou‑se. No mesmo instante ouviu‑se o barulho distante de um motor. Depallier apontou com o polegar para cima e sorriu.

‑ e  um helicóptero. Estou impressionado! Parece que estão mesmo empenhados nesta busca. Isso admira‑me. Minhas senhoras, tenho muita pena, mas parece‑me que teremos de passar alguns dias juntos. Pelo menos até que as coisas se tenham acalmado em Tarrafal.

Escutaram o helicóptero que parecia voar muito baixo, mas que, depois de ter dado algumas voltas, voltou a afastar‑se.

‑           Pronto, agora esta zona já foi revistada ‑ comentou Maurice, satisfeito. ‑ Se pensarmos logicamente, eles não voltarão, e nós estamos seguros. Tudo está a correr segundo os meus planos.

‑           Acontecem sempre surpresas, Maurice! ‑ Lucrezia espreguiçou‑se. Do ângulo de Depallier, ela devia parecer irresistível. ‑ O que e  que acontece se eu decidir fugir pelas rochas a meio da noite?

‑           Só faria isso se fosse realmente burra!

‑           Você está cheio de boa‑fé, Maurice. Na sua profissão, isso constitui uma desvantagem, não acha?

‑           Se continuar com essa sua conversa, vejo‑me obrigado a fechá‑la num quarto com o Jorge Silva durante esta noite.

Lucrezia ergueu a cabeça e lançou um olhar fulgurante a Maurice.

‑           Seria capaz disso?

‑           Sim. Por mim, agora pode voltar a vestir‑se. Já vi o seu corpo.

‑           E a isto chama‑se um francês?

Helena voltou com uma bandeja com quatro copos de plástico e uma garrafa aberta de bordeaux. Pousou o tabuleiro numa mesa desdobrável e fez um gesto depreciativo quando viu que Depallier quis fazer um comentário.

‑           Não vale a pena protestar, Maurice! Eu sei que um francês fica arrepiado só com a ideia de beber um bordeaux em copos de plástico. Mas quando nós partimos não podíamos adivinhar que iríamos ter um gourmet a bordo. ‑ Encheu os copos com o vinho vermelho‑escuro e estendeu dois deles a Lucrezia. ‑ Dá um copo ao Silva.

‑           O vinho evaporar‑se‑á sob o seu olhar ardente!

‑           A culpa e  tua.

Esperou que Lucrezia tivesse ido para a proa e depois sentou‑se ao lado de Depallier. Este pegou no seu copo, brindou com Helena e bebeu um grande gole.

‑           Excelente ‑ pronunciou. ‑ Apesar do plástico! Sabe quando e  que eu bebi um bordeaux pela última vez? Há sete meses, num bar em Lagos. Tinha acabado de chegar do Chade, depois de desertar, e devia ter um aspecto horrível. Uma turista americana encontrou‑me na rua, levou‑me para o hotel para a sua cama e manteve‑me durante dez dias como máquina de amor. Em troca, eu podia comer e beber o que me apetecesse. E ao fim dos dez dias ainda me deu mil dólares! Mil dólares! Imagine o que isso era para mim, naquela altura, quando eu era um pobre desertor perseguido! Aquele dinheiro constituía uma hipótese de sobrevivência, Helena! Uma hipótese de atingir a verdadeira liberdade! e  que havia uma coisa que eu finalmente compreendera: quem e  realmente livre não e  o pobre, mas sim aquele que tem os bolsos cheios. ‑ Depallier bebeu mais um grande gole de vinho. - Antigamente eu era assim. Um chacal vadio. Só lentamente voltei a ser uma pessoa normal e lembrei‑me de que o meu pai se chama Jérôme Depallier e e  o dono da Fábrica Depallier. Essa famosa marca de fatos para homem. Um fato Depailier reconhece‑se logo pelo seu corte, pelo tecido e pela sua elegância intemporal.

‑           E o filho desse império e  um legionário.

‑           Era! Depois, transformou‑se num assaltante e ladrão. Mas esses tempos também já passaram. E, graças à sua ajuda. Helena, depois de todos estes contratempos, eu voltarei a fazer parte da civilização como um homem rico e normal. Porém. não regressarei à familia Depallier, pois para eles eu morri! Adoptarei outro nome. Qual? Isso não e  da sua conta! Quero ter sossego na minha nova vida. Passei por tantas

situações horríveis que agora tudo o que quero e  um cantinho no paraíso. ‑ Inclinou‑se para a frente. ‑ Então, quer ouvir a minha história ou não?

‑ Sim! ‑ acedeu Helena, assentindo com a cabeça. - Depois deste prelúdio, sim.

‑ Por favor, madame... ‑ Depallier ergueu o copo. - Encha o meu copo! ‑ Depois, encostou‑se para trás, olhou para Lucrezia, que entretanto voltara a deitar‑se no convés, e acenou‑lhe com o copo na mão.

‑ Tudo começou devido a uma mulher ‑ proferiu. - Que mais podia ser? Uma mulher que era tão bonita como a nossa Lucrezia. Eu amava‑a e fiquei, como se costuma dizer, louco de amor.

Quando um homem conta a sua vida, numa espécie de confissão, nunca deve ser interrompido. Tal como no caso de um doente dos nervos, existe uma regra sagrada que e  deixar falar. Ouvir. Ter paciência. Só fazer um sinal com a cabeça de vez em quando, mas nunca interferir com palavras. Se, porém, houver a necessidade de dizer alguma coisa, deve ser sempre algo de encorajador, que permita ao que fala avançar no seu discurso e abrir mais uma válvula. Deve‑lhe ser transmitida a impressão de que se está realmente a ouvi‑lo e que se está a compreender os seus sentimentos. Há apenas uma coisa que nunca se deve fazer: perguntar pela razão das coisas. Ou até mesmo formar uma barreira de curiosidade ou de crítica. Uma pessoa que se abre desta forma e  igual a um ser que está a perder sangue, apenas com uma pequena, mas importante diferença: no fim, não morre; pelo contrário, sente‑se libertado e aliviado, feliz, exausto, devido a este esvaziar da sua alma. Afinal era isso que pretendia, cuspir o veneno do passado para fora e purificar‑se para tentar um recomeço.

Maurice Depallier bebeu o resto de vinho que havia no seu copo, inclinou a cabeça para trás e depois ficou calado. Parecia petrificado; apenas o ligeiro movimento do seu peito provava que ainda respirava. Lucrezia quis dizer qualquer coisa, mas Helena impediu‑a com um gesto de mão. Olhou para Maurice, que parecia estar prestes a explodir.

‑           Ela chamava‑se Luliane... ‑ disse, de repente. Disse‑o tão repentinamente que Helena estremeceu. ‑ Até consigo vê‑la à minha frente, alta, magra, com o cabelo loiro até às ancas... O seu cabelo parecia ouro em fio. Pode‑lhes parecer ridículo, mas o seu cabelo era realmente assim, não há outra maneira de o descrever. Ela tinha o cabelo mais bonito que eu jamais vi. E o seu corpo era a coisa mais bonita que se pode imaginar. Onde quer que aquela rapariga aparecesse, o Sol brilhava com mais força, as estrelas cintilavam de forma mais misteriosa, o mar ficava mais azul e os jardins floresciam por baixo dos seus pés. Chamava‑se Lilhane e naquela altura tinha apenas dezanove anos. O pai dela trabalhava no matadouro, onde tratava dos resíduos do matadouro, ou seja, das entranhas, das peles sangrentas, dos cascos cortados e dos cornos. Por isso, cheirava sempre a sangue. A mãe começara a beber aos vinte e três anos. Ninguém sabe porquê. Talvez pelo facto de o marido cheirar constantemente a sangue? Quando Lilhane apareceu na minha vida, a sua mãe já era uma alcoólica sem cura, com um fígado destruido e os nervos visuais afectados. ‑ Depallier escorregou um pouco mais para a frente no banco, inclinando a cabeça ainda mais para trás. Baixou os cantos da boca: seria um pequeno sorriso ou a expressão de nojo?

Ficou calado, e Helena não disse nada. Encheu o seu copo de vinho sem dizer uma palavra. Certamente que Maurice conseguia ouvir o vinho a cair no copo, porém não se mexeu. Permaneceu de olhos fechados, a recapitular toda a sua vida.

‑ e  preciso conhecer a família Depallier para compreender a minha história. Os Depallier sempre foram uma família rica, mas algures, na profundidade da sua personalidade, são uns loucos. O mundo que os rodeia e  que não se apercebe disso e quando, às vezes, acontecem coisas estranhas entre este tipo de pessoas, costuma dizer‑se num tom complacente:

os que estão em cima são mesmo assim! Podem‑se dar ao luxo de terem um comportamento desses. Os ricos são todos doidos. Afinal de que e  que viveriam os jornais sensacionalistas se não fossem eles? Mas ninguém sabe que na realidade acontecem verdadeiras tragédias. Acredite em mim, Helena. A história com a Lilhane também foi uma tragédia. A minha mãe tinha um amante, um conde, cuja habilidade consistia em atirar o seu chapéu de uma distância de três metros para o vestíbulo sem nunca falhar o gancho. Ele fazia isso em casa de toda a gente e sempre que surgisse uma oportunidade. Por isso, chamavam‑lhe o Comte de Chapeau. Suponho que a outra das suas qualidades se situava no âmbito da cama. Nunca perguntei isso à minha mãe. A minha irmã mais velha criava cobras que lhe obedeciam. O meu pai até mandou construir expressamente uma casinha para as cobras. A minha irmã lá ficava, dia e noite, sentada ao lado das bacias de vidro a observar com um ar encantado as suas cobras. O meu irmão Raymond participava em corridas de automóveis, sempre num carro pintado de verniz cor‑de‑rosa e com um homossexual ao seu lado. As festas que dava para celebrar as suas vitórias tinham má fama. Prefiro não falar disso agora. Actualmente, está paralítico, depois de um acidente que teve, e vive em Marrocos, num pequeno palácio mouro onde mantém um corpo de bailado com dançarinos nus constituído naturalmente só por rapazes! A minha irmã mais nova fugiu com um cantor de rock. Desde então nunca mais apareceu. E o Jérôme Depallier, o grande patriarca? Esse naturalmente também tem a sua amante, embora já só consiga andar com a ajuda de uma bengala. Foi nessa casa de doidos que por acaso conheci a Lilhane. Ela era amante do meu pai!

Depallier inclinou‑se para a frente e bebeu o copo de vinho de um trago. Depois olhou para Helena e Lucrezia como um artista que está à espera de aplauso.

‑ A minha história aborrece‑as?

‑ e  agora que está a tornar‑se interessante ‑ redarguiu Lucrezia espreguiçando‑se com prazer.

‑ Eu parecia um embriagado depois de ter visto a Lilhane pela primeira vez...

‑ Eu também a consigo ver à minha frente... ‑ murmurou Helena baixinho. ‑ Um diabo com cabelo dourado.

Maurice voltou a recostar‑se.

‑ Um diabo? Isso talvez seja exagerado! A Lilhane ficou ofuscada com a riqueza com que deparou em nossa casa. Ela era uma simples costureira das calças Depailier. O pai cheirava a sangue e a mãe estava sempre bêbeda e, de repente, literalmente da noite para o dia, depara com o brilho de um mundo de sonho. Afinal, devia ser essa a imagem que essa rapariga tinha do nosso mundo. Um apartamento de luxo no Bulevar Hausmann, um carro desportivo vindo de Itália, jóias, peles, vestidos de alta costura, sapatos feitos à mão. e  que quando o meu pai via pernas tão bonitas como as dela abertas, abria os bolsos! Voilà, essa era a Lilhane. Eu conheci‑a numa corrida em Longchamps, por acaso, sem saber que era o meu pai que cobria aquela beldade de ouro. Três dias mais tarde, por volta do meio‑dia, Lilliane tornou‑se minha amante. Também eu lhe abria completamente os meus bolsos. Afinal tinha ficado louco nos seus braços, e aquele anjo dourado cobrava o dobro. Metade da familia Depallier pertencia‑lhe. Mas eu não sabia disso. Ela repartia tão bem o seu tempo, que o pai e o filho nunca ficavam aflitos. Até àquele dia vinte e três de Setembro! Eu acabara de comprar um carro novo e, orgulhoso, queria mostrá‑lo à Lilhane. Queria fazer‑lhe uma surpresa e aparecer a uma hora a que normalmente não costumava estar com ela. E quem e  que eu encontro no apartamento? Apenas com umas cuecas azuis no corpo, apoiando‑se na sua bengala... um corpo horrível, extremamente ridículo? O meu pai! "Eu já calculava que havia outro homem!", gritou. "Mas o meu próprio filho! Isto e  o cúmulo! Maldito estupor!" Quis bater‑me com a bengala, mas eu fugi do apartamento. Ainda consegui ouvir a Lilhane gritar: "Fica Maurice, não te vás embora!" Mas eu fui‑me embora a correr e depois deambulei pelas ruas, completamente fora de mim. O meu anjo e o meu pai... Só de imaginá‑los juntos na cama, talvez até no mesmo dia em que ela estivera comigo... Primeiro o pai e depois o filho ou ao contrário... Era uma visão infernal!

Depallier respirou fundo e cerrou os punhos. Helena reteve a respiração.

‑ à noite ‑ prosseguiu, devagar, mas acentuando bem as palavras ‑, decidi voltar para a Lilhane. Eu tinha de voltar a vê-la. Nessa noite, apunhalei‑a com uma faca de caça. A seguir, passei a noite inteira no carro e fui até Marõelha. às sete da manhã, estava na recepção da legião estrangeira, onde assinei o meu compromisso para com a legião. Tinha a certeza de que assim estaria seguro, de que era inatingível e que continuaria a viver. Mas na verdade estava morto! ‑ Esticou as pernas, pegou na garrafa, levou‑a aos lábios, bebeu o vinho que restava e depois deitou‑a ao mar. ‑ e  esta a minha história! Agora já sabem com quem e  que estão a lidar, minhas senhoras! Nada me conseguirá impedir de sair daqui! A vossa sorte e  serem mulheres. Eu já não consigo matar nenhuma mulher. Se os vossos homens tivessem chegado primeiro, teriam sido eles a levar‑nos, só que eles não teriam regressado. Eu aprendi a matar homens. Afinal, era essa a minha profisSão. Agora, entendem‑me?

‑ Não! ‑ exclamou Lucrezia. Sentou‑se nas pranchas e fitou Maurice com um grande sorriso.

‑ Claro que sim. Agora está tudo explicado! ‑ interveio logo Helena.

‑ E se eu me recusar a ajudá‑lo, Maurice? ‑ Lucrezia pôs os braços à volta das pernas encolhidas e ergueu o olhar em direcção a Depallier. Tinha aquele ar infantil que deixava os homens perplexos. ‑ O que e  que faria? Afinal, ainda agora confessou que seria incapaz de nos matar...

‑ Não e  preciso matar ‑ declarou Depallier pensativamente e olhando para Lucrezia com a cabeça baixa. ‑ Eu aprendi a impor‑me, em áfrica. Vocês nunca teriam forças suficientes para resistir aos meus métodos. Toda a vossa fantasia não e  suficiente para imaginar...

‑ O senhor e  um monstro!

‑ Talvez. Sim, talvez tenha razão! Mas isso tem alguma importância? As senhoras levar‑nos‑ão para onde nós queremos ir. Tudo o resto não interessa.

Levantou‑se com um salto e dirigiu‑se até às escadas, onde se cruzou com Mister Plump que estava a subir para se ir deitar um pouco ao sol. Ao contrário do que seria de esperar, o cão não se mostrou agressivo com Depallier, não agarrou a sua perna, nem mostrou os dentes. Pelo contrário, até abanou a cauda, fitou‑o com um ar fiel e encostou‑se à parede para que Maurice pudesse passar. Helena seguiu esse encontro tão harmonioso com um olhar incrédulo.

‑Traidor... ‑ sussurrou ao cão, quando este chegou perto dela e quis ser acariciado. ‑ Com tudo o que se passou, eu nem sequer me lembrei de ti! Tu devias ter defendido o nosso barco! Mas o que e  que fizeste? Simplesmente, abanaste a cauda! Se calhar, até deste as boas‑vindas aos senhores assaltantes! e  esse o comportamento de um verdadeiro cão de bordo? Vai‑te embora, cobarde! Judas! Vai!

Mister Plump lançou um longo olhar, primeiro a Helena e depois a Lucrezia. Parecia não estar a compreender o motivo daquela descompostura. Para ele, o que contava era o cheiro das pessoas e, como Maurice Depallier cheirava bem, a raiva da sua dona não fazia sentido. Por isso virou‑se, ofendido, e foi‑se deitar no tecto dos camarotes ao lado da bóia de salvação.

‑           Quando partirmos daqui durante a noite ‑ disse Lucrezia baixinho ‑, eu deitarei tinta vermelha para a água. Tinta de óleo que se mantém à superficie durante muito tempo. O helicóptero ou os barcos que nos procurarem irão reparar na mancha na água. Assim pelo menos terão uma pista!

‑           Se e  que ainda nos procurarão nessa altura, Luzi!

‑ O Peer e o Jan não desistem! Isso está claro!

‑           Tudo depende daquilo que as autoridades decidirem ‑ notou Helena. ‑ Quem sabe se daqui a alguns dias o Peter e o Jan não terão perdido todo o apoio...

 

O quartel da Polícia de Tarrafal tornara‑se num quartel‑general. Uma comissão constituída por um comissário, dois subcomissários e um capitão da armada viera da cidade da Praia com um helicóptero. O capitão queria certificar‑se de que seria necessário envolver unidades da armada nessa busca, já que isso normalmente só acontecia em casos excepcionais e apenas era possível com ordens superiores.

Trosky tinha provas irrefutáveis para demonstrar a urgência daquele caso. Tirou uma fotografia a cores do bolso, de

cuja existência Losskov nem sequer sabia. Pela primeira vez e apenas devido à sua aflição, Trosky desvendou o seu segredo.

Era uma fotografia que tirara durante os treinos na ilha de borracha, na qual se via Lucrezia de uma nudez encantadora, sentada na beira da ilha de borracha, acenando com a mão.

‑ Eu entrarei imediatamente em contacto com o quartel‑general! ‑ comunicou o capitão após ter contemplado a fotografia durante longos minutos. ‑ Realmente, trata‑se de um caso de extrema urgência!

O chefe da Polícia de Tarrafal ordenou uma série de medidas nunca antes vistas pela população da cidade. Estava visivelmente orgulhoso por finalmente ter entre mãos um verdadeiro caso e não ter de se limitar apenas a tratar das pequenas intrigas quotidianas, das pancadarias nas tabernas ou dos enganos ao pesar a mercadoria. Agiu como um inspector da Polícia Judiciária nos filmes: interrogou todos os habitantes da zona portuária e convocou para a esquadra da Polícia todas as pessoas que tivessem de alguma forma contactado com as duas senhoras. Foi assim que se ficou a saber que os proprietários do supermercado tinham visto a largada do barco. Um trabalhador conseguira ainda ver de longe que realmente tinham sido apenas as duas mulheres a içar as velas. Os únicos a acompanharem o desenvolvimento dos acontecimentos por completo tinham sido três cães rafeiros que passeavam pelo cais, mas esses não podiam relatar nada. Ninguém interrogou o pequeno rapaz do supermercado... Não se lembraram dele no meio da confusão.

‑ Permanecemos perante um mistério ‑ disse Trosky, depois de terem concluído o interrogatório.

‑ Quem e  que poderia ter interesse no nosso barco? E para ir para onde? O barco dá tanto nas vistas que pode ser reconhecido imediatamente em qualquer porto. Ninguém rouba um barco à vela para o esconder e depois deixá‑lo apodrecer.

‑ Uma coisa e  certa ‑ afirmou o capitão, seguro de si. - Agora que demos alarme, eles não se poderão afastar das ilhas cabo‑verdianas! Serão logo vistos!

‑ E durante quanto tempo pretendem procurar? ‑ perguntou Losskov, preocupado.

‑ Até os termos encontrado! ‑ declarou o capitão, orgulhoso.

‑ Os bandidos pensarão da mesma maneira e jogarão com o tempo. Eles também sabem que, o mais tardar daqui a uma semana, nós desistiremos da busca. ‑ Trosky lançou um rápido olhar a Peter e virou‑se. Até ele sentia o desespero de Losskov. ‑ Queres transmitir para Hamburgo que está tudo acabado?

‑ Não. Ainda não. Eu não perco a esperança.

à noite, ficariam com a certeza de que o primeiro dia estava perdido. A busca à volta de Santiago com a ajuda de barcos da Polícia e de dois helicópteros militares fora interrompida ao cair da noite. Apenas dois barcos da Polícia patrulhavam entre Santiago e Fogo e Santiago e Maio, as ilhas vizinhas, controlando todos os barcos com que se cruzavam. Porém, esta iniciativa devia ser considerada mais como uma prova de boa intenção do que uma acção eficaz, já que era quase impossível controlar toda a zona das ilhas com apenas dois barcos.

No edifício da Polícia de Tarrafal, o chefe da Polícia estava a conduzir uma reunião geral. Afixara um mapa na parede, no qual marcara as áreas que já tinham sido revistadas a partir do mar ou do ar. Trosky olhou para o mapa com um ar desmotivado. Losskov fumava um cigarro após outro com gestos nervosos e bebia a fortíssima aguardente de açúcar que lhe davam. Era previsível que em breve caísse da cadeira.

‑ A costa e  rochosa e tem inúmeras grutas! ‑ pronunciou‑se o chefe da Polícia, solene. Adaptara‑se perfeitamente à sua nova tarefa de um comandante‑geral. ‑ Porém, não proporciona muitos esconderijos. A rebentação e  forte e as correntes imprevisíveis. Durante a maré cheia, o mar bate com toda a força contra as grutas. Só alguém que saiba muito de barcos, seria capaz de superar uma situação dessas. As senhoras sabem manejar bem o barco?

O capitão traduzia aquilo que o chefe da Polícia dizia. Peter von Losskov abanou a cabeça.

‑Não!

‑ Ora, então!

‑ e  claro que elas sabem o mínimo. Treinámos arduamente, sobretudo para situações de emergência. Para o caso de uma avaria. Mas uma situação tão difícil como ter de navegar por entre estreitos túneis e grutas até a mim me colocaria dificuldades.

‑ Isso quer dizer que elas têm de estar algures numa baía! ‑ exclamou o chefe da Policia com um ar triunfante.

‑ Isto, partindo do pressuposto de que os bandidos que levaram o barco não são eles próprios óptimos marinheiros.

‑ Porque haveriam eles de o ser?

‑ Quem haveria de roubar um barco desses sem saber como o manejar?

‑ Está bem! Já compreendi onde quer chegar! ‑ gritou o chefe da Policia. ‑ Está a dizer que um dos nossos pescadores levou o barco!

‑ Até podem ter sido dois ou três.

‑ Aqui só vivem pessoas honestas e pacíficas! O que faria um dos nossos com um barco desses?!

‑ Vendê‑lo!

‑ Onde? ‑ berrou o chefe da Polícia. ‑ No mercado da cidade da Praia? Um barco desses não se pode vender! Já aqui foi dito que uma embarcação como essa dá nas vistas!

‑ Podia ser vendido na Gâmbia ou no Senegal.

‑ Primeiro, tem de se chegar lá! ‑ O capitão da armada interrompeu aquele raciocínio com um gesto de mão. Acha que alguém daqui roubaria um barco tão vistoso como esse e correria tantos riscos para, em seguida, vendê‑lo?

‑ Para dois ou três pobres pescadores, os lucros da venda representariam uma fortuna.

‑ Nada disto faz sentido! ‑ exclamou Losskov agarrando o copo com aguardente com mais força. ‑ Nós estamos aqui a falar e a falar e ninguém pensa naquilo que as raparigas estarão a fazer neste preciso momento. Ou naquilo que lhes aconteceu.

‑ Ainda bem que mencionou isso. ‑ O chefe da Polícia, que estava profundamente ofendido por se ter insinuado que podia ter sido um cabo‑verdiano a roubar o barco, levantou o dedo indicador num gesto demonstrativo. ‑ Nós temos testemunhas oculares que afirmam terem sido as duas senhoras que içaram as velas!

‑           Apenas, porque foram obrigadas a fazê‑lo! ‑ exclamou Losskov, indignado.

‑           Nós partimos desse pressuposto. Mas quem e  que pode provar que isso e  verdade? Não temos provas de que houvesse mais alguém a bordo.

‑           O senhor está a insinuar que as raparigas quiseram...? ‑ gritou Trosky.

‑           Eu apenas estou a enumerar as diferentes hipóteses! - respondeu o chefe da Policia também a gritar. ‑ Quem e  que me diz que este desaparecimento do barco não e  apenas uma farsa!?

‑           Quem nos quiser convencer disso leva um murro! - clamou Losskov, cerrando os punhos.

De repente, perdeu o equilíbrio e escorregou da cadeira. Trosky já estava à espera disso. Deixaram‑no sentado no chão, encostado à parede, e mostraram compreensão pelo seu estado de embriaguez. Nem todos os homens têm nervos para suportar a perda de um barco e de uma mulher bonita sem fraquejarem.

 

Permaneceram quatro dias e quatro noites na gruta. O barco baloiçava tranquilamente na água pouco agitada. Quando a maré estava cheia, o nível da água subia dentro da gruta e o espaço tornava‑se mais reduzido ainda; porém, as vagas grandes e cheias de espuma quebravam‑se sempre do lado de fora, em frente às falésias, antes das colunas de lava. Ainda ouviram algumas vezes os helicópteros que sobrevoavam a zona e, embora não conseguissem ver os barcos que os procuravam, sabiam que eles deviam estar a percorrer a costa.

‑ O que e  que fará se um barco da Polícia entrar nesta gruta? ‑ perguntou Lucrezia num desses dias.

Maurice respondeu com sinceridade:

‑ Não sei. Até agora não considerei essa hipótese. Se isso acontecer, terei de agir espontaneamente. Apenas sei que seria uma situação bastante desagradável.

Passaram os dias na gruta a dormir, nadar, jogar às cartas, pescar e cozinhar. Maurice contava histórias da legião estrangeira e Silva ficava calado, dado que só dominava o crioulo. No entanto, jogava com Lucrezia até à exaustão. Quando ganhava, ficava radiante como uma criança e quando perdia punha‑se a praguejar na sua língua, e uma vez teve tanta raiva que até mordeu no seu boné.

Depallier e Helena jogavam xadrez; porém, o que Maurice mais apreciava era ficarem no salão enquanto Helena tocava os seus discos: o Concerto para Piano n.o 1 de Tchaikovsky, intermezzi de óperas italianas, passagens do Tannhãtfer ou do Lohengrin, sinfonias de Beethoven ou de Brahms, Nocturnos de C'lopin ou peças de grandes cantores com as mais bonitas árias de óperas. Maurice fechava os olhos e as suas mãos mexiam‑se ao ritmo da música. Nessas alturas, mergulhava no seu mundo de sonho.

‑           A Callas costumava ser uma hóspede privada em nossa casa ‑ declarou uma vez, depois de ter ouvido uma ária da Norma ‑, e cantava para os nossos convidados, porque gostava do meu pai e porque o Onassis tinha dez fatos Depailier que lhe ficavam bem. Isso era admirável... Afinal quem e  que jamais viu o Onassis com um fato que lhe ficasse bem?! Até mesmo os seus smokings eram uma vergonha. E nunca mais me esquecerei como o Mano del Monaco cantou um dueto comigo, depois de eu lhe ter implorado. Eu dou um óptimo barítono e, naquela altura, o Mano disse: "Se tiveres aulas regularmente, talvez qualquer dia nos cruzemos nos bastidores, rapaz. Mas para que e  que um Depallier havia de cantar? Eu não me recordo de nenhum filho de milionários que se tivesse tornado um grande cantor de ópera... As pessoas que passam fome e  que se tornam grandes cantores. e  pena, porque tu tens talento!" Quem tinha aulas de canto era a minha mãe, mas isso apenas porque gostava muito do professor. ‑ Depallier acabava sempre por falar da sua família. Parecia odiá‑la profundamente, por ter afogado a sua juventude em ouro.

 

Mister Plump tornara‑se entretanto um caso sério. Sentava‑se no colo de Depallier, dormia aos seus pés, lambia‑lhe as mãos e olhava para Helena com uns olhos tão grandes que esta até comentou:

‑ Maurice, este cão deve ser perverso. Costuma‑se dizer que os animais reconhecem os homens bondosos. Mas o comportamento de Mister Plump e  verdadeiramente escandaloso! Afinal, você e  um assassino e e  doido!

‑ Eu sou vítima de uma mulher.

‑ Isso não desculpa tudo o que fez.

‑ Talvez tenha razão. ‑ Depallier montou o jogo de xadrez. ‑ Mas uma pessoa como eu tem de arranjar uma desculpa qualquer para continuar a viver. Helena, que cor e  que quer?

‑ Branco!

‑ A primeira jogada e  sua. Eu farei a última... Como deve ser. ‑ Riu‑se discretamente. ‑ Vá‑se habituando à ideia de que eu no fim acabo sempre por ganhar, Helena.

 

Durante os dois dias seguintes não ouviram mais nada do exterior. A busca devia estar a ser centrada noutra parte da ilha. Já não se ouvia o barulho encorajador dos helicópteros e nada provava que a busca continuasse. No quarto dia, o vento tornou‑se mais forte, as ondas entravam na gruta ou batiam lá fora nas rochas de lava, e o vento assobiava. Eram ondas de vários metros de altura que se quebravam à entrada da gruta. O barco era agitado com uma força impressionante, aproximando‑se perigosamente das paredes da gruta. Helena lançou mais uma âncora. Serviu‑se de todas as defensas para abafar um possível embate acabando por erguer as mãos num gesto desesperado.

‑ Não posso fazer mais nada, Maurice!

‑ Esta tempestade vale ouro! ‑ respondeu ele, satisfeito.

‑ Mesmo que nos atire contra a parede rochosa da gruta?

‑ Isso não acontecerá. O Silva e eu guardaremos o barco de noite. ‑ Mostrou um grande sorriso. ‑ Imagine o que aconteceria connosco se nesta altura estivéssemos lá fora, no mar!

‑ Seria horrível!

‑ e  exactamente isso que estão a imaginar os nossos perseguidores. Eles acham que e  impossível nós sobrevivermos a esta tempestade! Dirão que o barco se afundou! A busca acabará! Não podia haver nada melhor para nós do que esta tempestade. Agora esquecer‑nos‑ão.

‑ Com que então acha que e  isso que eles pensarão! - proferiu Helena com uma voz calma. "Ele não sabe que este barco não se afunda", pensou satisfeita. "Uma simples tempestade não o consegue afundar. Para isso seria necessário que o casco fosse despedaçado! A partir de agora ele partirá do pressuposto de que já ninguém anda à nossa procura. E, por isso, tudo o que ele fizer será errado. Ele tem a certeza daquilo que diz. Devemos apoiar essa ideia." Por isso, disse: Talvez realmente nos aconteça qualquer coisa se a tempestade piorar.

 

A noite foi dramática. Ninguém dormiu. Tiveram de permanecer todos no convés, ao lado das defensas, com varas na mão para afastar o barco das paredes da gruta quando este se aproximava demasiado. As âncoras de pouco lhes serviam; a água rodopiava dentro da gruta, arrastando o barco ora para a esquerda, ora para a direita. O tecto da gruta era formado por rochas de lava, que há muitos anos tinham sido fundidas pelo calor inimaginável do vulcão, expelidas do interior da terra e que depois se tinham petrificado no mar em formas bizarras. Agora, o vento sibilava por entre as rochas. A gruta tinha o efeito de um funil que ampliava os sons como um megafone, expulsando‑os de seguida pela entrada da gruta, onde chocavam com as enormes ondas e com o oceano que atirava as massas de água contra as rochas que formavam um obstáculo.

Foi uma noite infernal, sem hipótese de protecção, apenas com a esperança de evitar que o barco se despedaçasse, o que poderia custar a vida.

Pela manhã, a tempestade acalmou. Lucrezia e Mister Plump deitaram‑se na cama, exaustos, enquanto Helena preparava um chá e Jorge Silva rezava uma oração na proa, o que era admirável para um gatuno como ele. Persignou‑se e depois apontou a pequena cruz de ouro que trazia à volta do pescoço em direcção ao mar. Maurice Depallier verificou as âncoras e as defensas e depois foi para baixo, onde se deitou num banco almofadado e se pôs a observar Helena. Esta, depois de ter preparado o chá, tirou uma garrafa de rum do armário de parede. Tal como Depallier, também ela estava completamente encharcada, apesar do oleado, que usava há já quase quarenta horas. Pingos de água salgada escorriam do seu cabelo louro.

‑           Você e  uma mulher maravilhosa, Helena ‑ comentou Maurice enquanto tirava as botas que estavam cheias de água. ‑ Primeiro, devia despir‑se. Este chá já não vai safar‑nos de uma constipação. e  uma pena eu tê‑la conhecido nesta situação. Se eu pudesse, teria tratado bem de si.

‑           Eu amo o Peter ‑ disse Helena calmamente. ‑ E só ele.

‑           Isso e  invejável. ‑ Depallier despiu a sua camisola molhada e ficou em tronco nu. ‑ Quer que eu lhe diga uma coisa? Não quer saber porque e  que isto tudo está a acontecer? Não está curiosa?

‑Não.

‑           Trata‑se de dois sacos de pele. De dois grandes sacos de pele, que contêm toda a futura vida de Maurice Depallier.

Entretanto, apareceu Jorge Silva. Estava completamente encharcado e despiu‑se sem qualquer pudor, envolvendo‑se de seguida numa grande toalha que Helena lhe estendeu. Rangia os dentes, como um cão. Lucrezia, que estava deitada na cama e o observava, abanou a cabeça. "Meu Deus", pensou. "Para uma mulher se envolver com um homem destes tem de estar mesmo carente."

O chá com o rum soube muito bem depois daquelas longas horas de luta contra o mar. Silva bebeu‑o como um leitão bebe leite, Depallier bebeu‑o em goles pequenos e rápidos e até Mister Plump saiu da cama e se aproximou abanando a cauda.

‑           Traidor! ‑ murmurou Helena com um ar de desprezo. ‑ Mas espera, que terás aquilo que mereces.

Deitou um pouco de chá com rum no bebedouro do cão, juntou água fria para o arrefecer e depois adicionou mais um pouco de rum. Depallier olhou para ela, admirado.

‑ Este cão e  um alcoólico?

‑ Não! Mas eu quero que se sinta horrivelmente enjoado, para o castigar!

‑ Talvez ele até goste. Um cão embriagado mostra traços humanos. Eu já vi isso na ilha de Córsega, na legião. Havia um bar, cujo dono tinha um cão. Era enorme, com manchas brancas e pretas, um cão maravilhoso. Só que era um verdadeiro alcoólico. Aquele cão bebia mais do que dois homens juntos. E quando estava embriagado punha‑se a dançar e a urinar, andava às voltas com apenas três patas e ia contra as cadeiras. Até arrotava! Nós gostávamos daquele cão como se fosse nosso irmão. Ainda deve estar vivo, se e  que não bebeu até morrer.

Mister Plump bebeu o chá com rum com muito prazer e depois soluçou. O seu corpo começou a ser abanado tão fortemente pelos soluços que quase caía. Decidiu retirar‑se para a cama, onde se enrolou e depois ressonou.

‑ Acho que vou fazer o mesmo ‑ disse Depallier e bebeu a terceira chávena de chá. ‑ Todos nós estamos no limite das nossas forças. Hoje ninguém ficará de vigia durante a noite. Por isso, tenho de pedir desculpas, mas esta noite vejo‑me obrigado a amarrar as senhoras.

‑ Veja lá se e  capaz! ‑ exclamou Lucrezia.

‑ Lucrezia, nós demo‑nos tão bem durante estes últimos dias. Porque e  que agora, de repente, está a causar problemas?

‑ Eu não permito que me amarrem!

‑ E eu não deixo que nada me impeça de alcançar a liberdade que agora vejo mais próxima do que nunca! Prefiro ir pelo seguro!

‑ Então terá de me obrigar! ‑ gritou Lucrezia, levantando‑se com um salto da cama. Parecia um animal selvagem que se sentia ameaçado.

‑ O Jorge Silva tratará disso.

‑ Seu malvado, abusador!

Depallier virou‑se para Helena que tinha uma toalha à volta do cabelo molhado.

‑ Também se recusa, Helena?

‑ Não. Não adiantaria nada.

‑ Seria possível explicar isso à sua amiga?

‑ Eu não fugirei a nado! ‑ gritou Lucrezia. ‑ Prometo que não!

‑ Amarrá‑las será mais seguro. ‑ Depallier sorriu. - Por favor, compreendam que eu faço tudo para conseguir ter uma vida nova, que tanto desejo! Mesmo que me arrisque a ser desprezado pelas senhoras.

Bebeu mais uma última chávena de chá com rum, tirou quatro cordas finas da caixa de ferramentas e fez alguns laços. Esperou que Helena tivesse vestido umas calças secas e uma camisola e depois amarrou‑lhe os braços atrás das costas, deixando as pernas soltas. Lucrezia, no entanto, bufava como uma gata e insultava‑o; Maurice decidiu atar‑lhe igualmente as pernas.

‑ No seu caso, Helena, acho que não preciso de amarrar as pernas ‑ disse. ‑ Acho que e  suficientemente sensata para não se aproveitar disso. Boa noite.

Levou Lucrezia e Helena para o camarote duplo e fechou a porta. Lucrezia deu um pequeno salto e atirou‑se para cima do estreito beliche.

‑ Afinal ele e  mesmo um estupor! ‑ gritou, furiosa. Pode ter o charme que quiser! Onde está o Mister Plump?

‑ Está com ele!

‑ Homens! ‑ Lucrezia fez uma careta que exprimia nojo. ‑ O Mister Plump perdeu toda a minha confiança! O que e  isto?

Na porta, ouviu‑se um arranhar. Helena bateu ligeiramente com a ponta dos sapatos na porta.

‑ O que e  que está a acontecer? ‑ gritou.

‑ O Jorge Silva vai‑se deitar em frente da vossa porta, Helena ‑ respondeu‑lhe Depallier. ‑ Assim, se a quiserem abrir, terão de empurrá‑lo primeiro para o lado. Isso fá‑lo‑á acordar de certeza.

‑ Eu bem dizia que ele e  um canalha! ‑ Lucrezia espreguiçou‑se. Poucos minutos depois, o rum fê‑la adormecer.

 

Tal como Depallier esperara, em Tarrafal, a tempestade alterara muita coisa. Os helicópteros não podiam levantar voo e os barcos da Policia procuravam abrigo no porto. Com aquelas condições climatéricas, era impossível permanecer no mar. As ondas eram mais altas do que o muro do cais e até faziam buracos no dique de pedra. Os barcos de pescadores que ainda se encontravam na água eram rapidamente trazidos para terra; dois pequenos cargueiros que se encontravam no porto dançavam perigosamente na água agitada e ameaçavam soltar‑se dos cabos. Constituíam a maior preocupação dos trabalhadores do porto: se fossem atirados contra o muro ou para a areia, seriam completamente destruidos. A proposta de que poderiam partir contra o vento e esperar no mar alto, foi recusada pelos capitães. Não eram pagos para serem heróis.

‑ Isso quer dizer que se perderam todas as esperanças - concluiu o chefe da Policia com sinceridade.

Enquanto a tempestade ameaçava arrancar os telhados, varria as ruas e o barulho do mar abafava qualquer outro som e as pessoas nem sequer tinham coragem de sair para a rua, Peter e Trosky encontravam‑se no quartel da Polícia e bebiam um vinho do Porto juntamente com o capitão da cidade da Praia, o chefe da Polícia, o comandante de um barco da Polícia e dois pilotos de helicóptero.

‑ Eles não sobreviverão a uma tempestade destas no mar alto ‑ acrescentou o chefe da Polícia. ‑ Nem mesmo se estiverem num esconderijo na costa. A força das ondas atirá‑los‑á contra as rochas e tudo o que restará deles serão estilhaços!

‑ Aquele barco nunca se afunda! ‑ afirmou Peter von Losskov. ‑ O máximo que lhes pode acontecer e  que o mastro se parta. Mas o barco não se afunda!

‑ Isso não e  possível! ‑ retorquiu o chefe da Polícia com um sorriso condescendente. ‑ Todos os barcos se afundam!

‑ Mas este foi construído segundo um método de construção especial.

‑ O oceano dará cabo dele.

‑ Do plástico, não. Nós fizemos várias experiências.

‑           Mas se for atirado contra as rochas...

‑           Então, sim ‑ disse Peter, lentamente. ‑ Esperemos que isso não aconteça.

‑           Mas temos de contar com isso. Há muito tempo que não havia uma tempestade destas! E, assim, de repente! Apareceu tão inesperadamente! Oiça bem o que está a passar‑se lá fora. O mar está a destruir o muro do nosso porto! E os senhores falam num barco que nunca se afunda! Julgo que depois desta tempestade poderemos interromper a busca.

‑ Eu sou contra essa resolução! ‑ protestou Trosky, num tom de voz irritado. ‑ Continuaremos a procurar. Um barco como o Helu não pode desaparecer! Ele irá algures! ‑ Aproximou‑se da janela e olhou para o porto. As vagas tinham vários metros de altura e dobravam‑se sobre o muro do cais. O céu estava amarelo‑pálido, impregnado de areia do deserto.

"Meu Deus", pensou Trosky. "Se realmente estiverem no alto mar só terão uma coisa a fazer: amarrarem‑se e esperarem. O barco não se afunda, mas quem e  que ainda acredita nisso com uma tempestade infernal?"

Afastou‑se da janela e voltou para perto dos outros.

‑ O que e  que acontece se apanharmos os piratas? - perguntou.

‑           Irão para a prisão.

‑           Isso e  supérfluo. ‑ Trosky cerrou os punhos. ‑ Basta deixarem‑me cinco minutos a sós com eles! ‑ Como os outros não lhe responderam, comentou, pensativo: ‑ Como eram simples as coisas, antigamente, quando se apanhava um pirata. Havia uns ganchos no mastro que serviam para os enforcar! E, mesmo assim, eram navegadores cristãos.

 

Na quinta noite, chegara a hora. O mar acalmara‑se:

havia apenas algumas ondas compridas. O vento tinha a velocidade quatro, o céu estava limpo e coberto de estrelas com uma lua em quarto crescente.

‑ e  o tempo perfeito para viajar ‑ declarou Maurice Depallier, satisfeito. ‑ Quando a maré estiver baixa, partiremos. ‑ Era a única maneira de saírem da gruta. O vento, que entrava pelo tecto irregular da gruta, era fraco de mais para fazer avançar o barco. Não dispunham de um motor, e assim voltou a provar‑se que o protesto de Trosky contra a falta de motor fora justificado.

‑ Servir‑nos‑emos do grande remo ‑ disse Depallier. - Quando tivermos saído da gruta haverá mais vento e poderemos sair para o mar alto. ‑ Olhou para Lucrezia com um sorriso sedutor. ‑ O mais tardar, daqui a vinte e quatro horas estarão livres de nós.

‑ Mostre‑me esses tais dois sacos, Maurice ‑ lembrou Helena, enquanto vestia o oleado. O vento soprava com a velocidade quatro, e as ondas eram tão grandes que de certeza algumas delas iriam cobrir o barco.

‑ e  verdade! ‑ Depallier anuiu com a cabeça. ‑ Eu tinha‑lhe prometido isso. A minha nova vida dentro de um saco! ‑ Abriu a porta do paiol da palamenta e tirou de lá um saco de pele já muito gasta que estava fechado com grossas correntes de pele e fivelas. Quando pousou o saco na mesa, ouviu‑se um barulho metálico.

‑ Este e  o novo Depallier! ‑ afirmou, num tom de voz ligeiramente dramático. ‑ Espero bem que este seja diferente, melhor do que o anterior...

De repente, fez‑se silêncio no pequeno salão. Lucrezia, que estava a calçar as botas de borracha, parou de repente e ficou encostada à parede com apenas uma bota calçada. Só Jorge Silva disse algo em crioulo.

‑ Cala‑te! ‑ respondeu‑lhe Depallier bruscamente.

‑ O que e  que ele disse? ‑ perguntou Helena.

‑ Ele acha que não vos deveria mostrar isto.

‑ Talvez tenha razão.

‑ Vocês irão denunciar‑me? Porquê? Eu tratei‑vos bem, deixei‑vos viver, o que não e  assim de tão pouca importância! E deixar‑vos‑ei partir em liberdade. Isso já vale alguma coisa, não acham? ‑ Sentou‑se à mesa, pegou no saco, bateu nele com o punho e dirigiu‑se a Helena: ‑ Abra‑o.

‑Eu? Porquê?

‑ Tem medo de ser culpada de algo?

‑ Isso seria um medo estúpido. ‑ Helena desfez os nós, desatou a fivela e depois abriu o saco. Lançou um rápido olhar para o seu conteúdo e depois largou‑o, encostando‑se para trás.

‑ Então o que e  que vê? ‑ perguntou Depallier.

‑ Moedas em ouro.

‑ Moedas em ouro. Diz isso de uma forma tão simples:

moedas em ouro! Minha querida, você nunca viu uma coisa parecida! Se o director de um museu visse estas moedas, teria um ataque cardíaco! Elas têm cunhos de imperadores romanos, cunhos privados do Rei Sol, Luís XIV, e há também moedas bizantinas, cunhadas em ouro puro, dos tempos dos conquistadores, ouro que pertenceu aos Astecas, aos Incas e aos Maias, e no qual ainda está colado o sangue desses povos desaparecidos. São moedas de cuja existência hoje em dia quase ninguém sabe e que o homem a quem as tirei só as pode ter obtido por vias ilegais. E você diz "moedas"! Isto e  um tesouro com um valor incalculável!

‑ Parabéns, Maurice! ‑ disse Helena, friamente.

‑ Obrigado, madame. ‑ Depallier inclinou‑se para a frente, enterrou as duas mãos no saco, encheu‑as com as moedas de ouro, ergueu‑as e depois deixou cair as moedas com um barulho tilintante para dentro do saco. Repetiu isto várias vezes... Pareciam cascatas de ouro. Os seus olhos brilhavam. ‑ Eu compreendo que haja pessoas que gostem de nadar em ouro ‑ afirmou, devagar. ‑ Realmente, e  uma sensação muito estranha ver todo este ouro e ouvir o seu barulho.

‑ Mas não será fácil começar uma vida nova com isso, Maurice. Quem e  que vai comprar esse ouro todo? Quem souber da existência dessas moedas vai também querer saber de onde e  que elas vieram. E depois será perseguido!

‑ Existem suficientes coleccionadores dispostos a pagar milhões por isto. Esconderão as moedas no cofre e não dirão nada a ninguém. Sobretudo na América. São coleccionadores fanáticos que normalmente agem à margem da lei. Eu nem quero imaginar quantas das obras de arte que desapareceram dos museus não estão agora em casas privadas, em galerias subterrâneas, protegidas como se fossem cofres bancários. ‑ Depallier colocou a mão no saco e lançou um olhar depreciativo a Helena ‑ Adivinhe quantos milhões isto vale!

‑ Não faço ideia. Dois?

‑ O valor do ouro talvez seja esse. Mas eu estou a falar do dinheiro que os coleccionadores dariam por isto! ‑ Depallier ergueu‑se, fechou o saco e depois apoiou‑se nele. - O outro saco contém a mesma quantidade de ouro. Agora, compreende porque e  que eu preciso de vocês e do vosso barco? Em Maio, escapo‑me rapidamente. E um belo dia viverei com calma e tranquilidade algures neste grande e infinito mundo, e não haverá razão para eu dar nas vistas. e  só isso que eu quero: viver em paz. ‑ Pegou no saco e voltou a arrumá‑lo. ‑ Bem, e agora vamos a isto! Todos para o convés! Eu e o Silva ficamos com os remos. A Helena vai navegar e a Lucrezia que se prepare para içar as velas mal sinta a mais ligeira brisa. Suponho que isso acontecerá logo no canal de saída da gruta. E depois navegaremos a todo o pano pelo mar!

‑ Sim, capitão! ‑ Lucrezia passou por ele e ficou parada ao lado das escadas. ‑ Maurice, o senhor e  um egoísta! Pelo menos, poder‑nos‑ia ter dado uma moeda inca. Daria um bonito pingente, uma espécie de talismã que de agora em diante nos protegeria de pessoas como o senhor.

Meia hora mais tarde, encontravam‑se no oceano, de vento em popa e tinham içado a genoa 1 e a vela de balão. O mar estava ainda ligeiramente agitado, mas já não era perigoso. O barco singrava a alta velocidade pelas ondas, afastando‑se cada vez mais da costa rochosa da cidade da Praia em direcção a noroeste. Se continuassem assim, Maurice Depallier chegaria ao seu destino antes do amanhecer, e aquela aventura teria finalmente chegado ao fim. Ao nascer do dia seguinte, aproximaram‑se da ilha de Maio. Conseguiam ver as salinas por entre a bruma, e navegaram ao longo da costa, até Depallier descobrir uma baía deserta rodeada de pequenas rochas fendilhadas.

‑ Dirijam o barco para aquela baía! ‑ berrou. ‑ Helena, você e  uma mulher extraordinária! Eu farto‑me de repetir isso! O seu marido, o seu noivo ou quem quer que ele seja, e  uma pessoa invejável. Eu, pessoalmente, acho que está a ser desperdiçada! Ali, iremos para terra e depois ver‑se‑ão finalmente livres de mim!

Entraram na baía, sempre a sondar, dado que o fundo do mar subia rapidamente e tinha recifes formados por lava arrefecida, cujas pontas mais pareciam gigantescas facas que facilmente poderiam cortar o casco do barco. Chegaram à costa que formava uma espécie de planalto que se estendia pelo mar e onde amarraram o barco. Jorge Silva saltou para terra, apanhou os cabos que Lucrezia lhe lançou e amarrou

‑os à volta de pequenas rochas.

Depallier desceu para a cabina, voltou com os sacos de pele e pousou‑os no chão. Trazia um saco de viagem à volta dos ombros com roupa, as coisas necessárias para se barbear e mais um par de sapatos.

‑           Chegou a hora da despedida! ‑ exclamou.

‑           Não lhe dê um ar tão festivo. ‑ Helena estava encostada ao mastro. ‑ Vá‑se embora!

‑           Nem sequer me deseja sorte?

‑           Estava à espera disso, Maurice?

‑           Eu julgava que nos tivéssemos aproximado um pouco um do outro. Eu fui sincero consigo, talvez até mesmo de mais. ‑ Depallier aproximou‑se da balaustrada. Jorge Silva estava na plataforma de rochas e estendeu‑lhe um pau para ele subir. ‑ Estou a ficar pensativo.

‑           E o dia está a nascer.

‑           É verdade! Durante alguns dias esqueci‑me que as senhoras representam um risco para mim.

Depallier foi para terra, pousou os pesados sacos de pele nas rochas e depois voltou a saltar para o barco. Desceu para a cabina sem dizer uma palavra, voltou com uma faca e com fortes golpes destruiu todo o cordame, tornando impossível içar uma vela. Lucrezia cerrou os punhos, baixou‑se e atirou uma pequena e dura defensa contra Depallier. Este agachou‑se, agilmente, cortou os últimos cabos e depois atirou a faca para o mar.

‑           Que grande canalha! ‑ gritou Lucrezia. ‑ Eu sempre disse que ele era um grande canalha!

Depallier voltou para a plataforma, Silva soltou as cordas que seguravam o barco às rochas e depois, com a ajuda do longo pau, deu um forte empurrão no barco. O Helu afastou‑se da margem, baloiçando nas ondas. Podia‑se guiá‑lo, mas sem velas ficava quase imóvel. Nessa altura, sentiram grande falta do tal motor auxiliar que Peter não quisera instalar. Helena correu até ao leme, endireitou o barco, e Lucrezia lançou a âncora que tocou imediatamente na areia, já que o mar ali não era muito fundo.

Em terra, Maurice Depallier acenou‑lhes uma última vez antes de desaparecer juntamente com Silva por entre as rochas. Levava os sacos ao ombro.

‑           Vá para o inferno! ‑ gritou Lucrezia. Sentou‑se no tecto da cabina e olhou para o oceano. ‑ E agora?

‑           Teremos de reparar os cabos para podermos içar no mínimo uma vela. Proponho que seja a genoa 1 para nos manter melhor ao vento.

‑           Apetece‑me estrangular aquele homem! ‑ exclamou Lucrezia, furiosa. ‑ Imagina o tempo que levaremos para sair daqui... Com um avanço desses, ele conseguirá escapar!

‑           Em vez de o estrangulares, devias investir as tuas forças no conserto das velas. Não vale a pena darmos nós nos cabos, teremos mesmo de os coser! Não podemos arriscar que de repente uma vela voe pelos ares!

Ficaram o dia inteiro a fazer costuras. Tinham treinado durante vários meses a remendar cabos e velas antes de terem iniciado aquela viagem. Nessa altura, todos eles e especialmente Trosky tinham‑se queixado, classificando esse trabalho de completamente inútil. Agora, porém, as raparigas compreenderam a utilidade desse treino. O barco baloiçava nas ondas, à volta da âncora, mas as horas passavam e ninguém aparecia. Deviam estar numa zona completamente deserta. Nem sequer havia barcos de pescadores. Helena até utilizou três foguetes de emergência. Disparou com a pistola sinalizadora uma bala vermelha para o céu azul, sem qualquer sucesso. Não havia sinal de vida, nem em terra, nem no mar.

Coser os cabos era duro; provocava feridas nas mãos, rasgava a pele, e Lucrezia já tinha as pontas dos dedos a sangrar, embora usasse um gancho especial para fazer costuras.

Por volta do meio‑dia, começou a delirar. Helena já estivera à espera dessa reacção. Já antes reparara na expressão contraída da cara de Lucrezia, no cintilar dos seus olhos, nos seus pés, que raspavam o chão, e notara que o seu bonito corpo, quase completamente nu, estremecia de vez em quando. Chegara a altura de libertar toda a tensão. De repente, Lucrezia atirou o cabo para o chão, bateu com os punhos no convés e pôs‑se a gritar num tom histérico. Os seus gritos não eram palavras nem frases articuladas, mas sim sons que se sobrepunham, acompanhados de um forte tremer do corpo e de um oscilar da cabeça. Ficou assim, a gritar, durante alguns minutos, até Helena se levantar, encher um balde de água do mar e esvaziá‑lo em cima dela.

A água fria teve um efeito calmante em Lucrezia. Parou de gritar, deixou a cabeça tombar para a frente e todo o seu corpo caiu para o chão, como se já não tivesse ossos. Helena voltou a pegar nos cabos sem dizer uma palavra, sentou‑se e continuou o trabalho.

Depois de alguns instantes de silêncio, Lucrezia ergueu a cabeça.

‑           Fui mesmo estúpida, não fui? ‑ A sua voz estava rouca e perdera aquele tom erótico.

‑           Esquece. ‑ Helena apontou para a corda. ‑ Continua, Luzi!

‑           O sol. Este calor húmido e pesado. O silêncio. Eu não aguentei mais.

‑           Eu sei.

‑           Tive de gritar.

‑           Fizeste bem, se isso te aliviou.

‑           Agora, sinto‑me vazia. Parecia que ia explodir. Conheces essa sensação?

‑Sim.

‑           Mas tu nunca gritaste, Helena.

‑           Tens a certeza disso?

‑           Quando e  que tu alguma vez soltaste um grito?

‑           Sabias que se pode gritar para dentro de uma almofada? Ou para dentro do pêlo de um cão, do paiol das velas ou de uma loca? às vezes, vocês estavam todos a dormir lá em baixo quando eu gritava, durante os meus turnos da noite.

‑           E eu sempre pensei que nada te podia afectar. Pensava que tu eras feita de pedra. Que não tinhas um coração, mas sim um motor bem oleado dentro de ti.

‑           Isso também e  preciso em certas situações, Luzi.

‑           Eu nunca serei capaz de me conter como tu.

‑           Ninguém exige isso de ti.

‑           Mas de ti, sim!

‑           Se assim não fosse, como e  que nós sairíamos daqui?

Lucrezia voltou a dedicar‑se ao trabalho. Os seus dedos tremiam e ainda não tinham recuperado as forças.

‑           Não contes aos outros o que acabou de acontecer. ‑ pediu, num tom suplicante. ‑ Por favor, Helena!

‑           Ninguém tem nada a ver com isso. Ficará entre nós. - Helena ergueu o olhar para o céu e o sol que ardia sem piedade. Parecia quase impossível que ainda dois dias antes o céu estivesse cinzento e tivesse havido uma violenta tempestade que arrasara tudo o que havia em terra e no mar. ‑ Esta noite já poderemos içar a genoa 1 e partir.

‑           Claro que sim! ‑ Lucrezia segurou com mais força o cabo em que estava a trabalhar. ‑ E se eu delirar de novo, atira‑me para a água.

‑           Não farei nada disso ‑ declarou Helena, calmamente. ‑ Da próxima vez, dar‑te‑ei duas bofetadas. Ficarás a senti‑las durante uma semana.

‑           A mulher de ferro está de volta! ‑ Lucrezia sorriu. - Meu Deus, será preciso um homem muito especial para te conseguir domar!

 

Já era noite quando partiram. Tinham içado a genoa 1 com cabos que tinham estado a arranjar durante todo o dia. O vento estava favorável, e navegaram pelo mar relativamente calmo. Avançaram a uma velocidade moderada e, embora algumas velas a mais tivessem ajudado, ficaram muito contentes ao ver a única vela encher‑se de vento. Quando isso aconteceu, bateram palmas, abraçaram‑se e beijaram‑se.

A única maneira de definirem o rumo era a bússola. Helena dirigia o barco sempre para sudeste e corrigia a direcção sempre que se desviavam. Por volta das três da manhã, Lucrezia apareceu no convés e sentou‑se ao lado de Helena, na cabina. Dormira profundamente durante três horas e queria agora tomar o lugar de Helena.

‑           Tens a certeza de que lá chegaremos? ‑ perguntou.

‑           Na vinda, navegámos em direcção a este, por isso agora temos que ir para leste.

‑           Isso e  tudo o que sabes?

‑           Sim.

‑           Pois bem! E se passarmos ao lado de Santiago?

‑           Então teremos o grande oceano pela frente até à América. ‑ Helena viu a expressão aflita de Lucrezia e riu‑se.

‑ Não te preocupes. Com cada milha que passa entramos em zonas mais movimentadas e provavelmente também na zona onde andam à nossa procura.

‑           Tu realmente acreditas que eles ainda andam à nossa procura?

‑Sim.

‑           Ao fim de seis dias? Aposto que já puseram uma cruz atrás dos nossos nomes. Devem estar a dizer: "Quem e  que paga esta busca? O dever de ser humano? Isso não e  moeda! Não serve para comprar gasolina! Tanta confusão à volta de duas pessoas!"

‑           Pelos vistos tu não conheces bem o Peter. Eu tenho a certeza de que ele e o Trosky não os deixarão em paz até nos terem encontrado.

‑           Ou até os terem fechado algures. ‑ Lucrezia pegou no leme e olhou para o mar. O vento era fraco e o barco baloiçava lentamente pela água com as velas pouco cheias de vento. ‑ Vai‑te deitar, Helena. Devias dormir um pouco.

‑           Eu fico aqui. Não tenho sono.

‑           Qualquer pessoa no teu lugar já teria caído para o lado.

‑           Eu encosto a cabeça para trás e fecho os olhos. De acordo? ‑ Helena inclinou‑se para trás e fechou os olhos. Acorda‑me imediatamente se vires alguma coisa.

Juntou as mãos sobre a barriga e respirou fundo. "Estou

exausta da ponta dos cabelos até aos dedos dos pés", pensou. "Já nem sequer sinto o meu corpo. Mas não posso dizer isto à Lucrezia. Meu Deus, o que será de nós se eu fraquejar agora? A Lucrezia nunca conseguirá enfrentar esta situação sozinha. Nunca!"

O movimento regular do barco fê‑la sentir‑se pesada e imóvel. Tentou não se deixar apoderar por esse sentimento, mas já não tinha forças suficientes. Adormeceu contra a sua vontade e só acordou quando a luz do dia penetrou pelas suas pálpebras.

Era uma manhã cheia de sol. O barco deslizava à deriva pela superfície quase lisa da água. Lucrezia estava deitada ao lado do leme e dormia profundamente. Helena levantou‑se com um salto e pegou na bússola.

Estavam a navegar rumo a norte. Há quanto tempo?

Corrigiu a direcção do barco e esfregou a cara com as duas mãos, para acordar completamente. Não valia a pena correr para a mesa de cartas e consultar os mapas. Navegar sempre fora a tarefa de Peter, e os ângulos e círculos que ele desenhara nos mapas não lhe diziam nada. Poderia tentar calcular a posição do barco com a ajuda de um sextante, mas infelizmente nunca se preocupara em aprender a fazer esses cálculos. Agora que se tratava de voltar a navegar exactamente para sudeste, a única hipótese que lhe restava era confiar nos seus sentimentos e esperar que se cruzassem com um barco. Depois, só teria de disparar as balas vermelhas para o ar.

Meia hora depois, Lucrezia acordou. Ergueu‑se bruscamente como um animal selvagem e olhou com um ar assustado para os olhos calmos de Helena.

‑           Onde e  que estamos?

‑           Não sei. Algures. Estávamos a navegar em direcção a norte quando acordei.

‑           A culpa e  minha.

‑Sim.

‑           Queres que eu peça desculpa ou achas que me devia atirar ao mar?

‑           Nada disso nos ajudaria. Estamos de novo a navegar na direcção correcta. Só não sabemos onde iremos parar. - Helena olhou para o mar. ‑ Chegaremos algures. Resta saber quando.

Navegaram durante todo o dia. O sol queimava e o vento era tão fraco que durante quatro horas quase que não saíram do mesmo lugar. Apenas à tarde, a vela finalmente encheu‑se

de vento e fez o barco avançar.

Ao cair da noite, avistaram terra no horizonte. Havia rochas que se destacavam do mar. Lucrezia dançou como uma louca, abraçou Helena, chorou de alívio e alegria e, quando se aproximaram da costa e julgaram reconhecer a ilha de Santiago, até juntou as mãos como se quisesse rezar.

‑           Chegámos! ‑ exclamou Helena enquanto navegavam ao longo da costa em direcção a norte e contornavam o cabo atrás do qual deveria ficar a cidade de Tarrafal. ‑ Tivemos tanta sorte que parece inacreditável. Isto vai contra todas as regras da náutica! Não sabemos nada acerca de barcos e mesmo assim conseguimos chegar! Luzi, nós devemos ter um anjo protector.

‑           Eu já estou a rezar para ele ‑ respondeu Luzi com uma voz emocionada. ‑ Acho que passei a acreditar em milagres.

Entraram no pequeno porto de Tarrafal sob o pôr do Sol que parecia incendiar a terra e o mar,como Helena nunca o vira antes. Atracaram no mesmo lugar do cais onde tinham estado ancorados anteriormente e empurraram a prancha de embarque para terra. O polícia que apareceu no cais ficou parado como se tivesse levado um murro, olhou para o barco, virou‑se bruscamente e correu até ao quartel da Polícia.

‑           Chegaram! ‑ gritou. ‑ Elas voltaram! Apareceram no cais como se nada tivesse acontecido!

 

Primeiro, tiveram de se submeter a um interrogatório. O chefe da Polícia teve de fazê‑lo, dando assim ao mesmo tempo uma satisfação às autoridades da cidade da Praia devido ao esforço feito e ao dinheiro despendido durante os quatro dias de busca intensiva. O capitão, que ainda estava presente, cumprimentou as senhoras de uma maneira galante, beijando‑lhes a mão, depois de Peter e Trosky terem festejado o reencontro com elas numa sala ao lado.

Helena abraçara Peter e beijara‑o. Era a primeira vez que não tentava esconder os seus sentimentos e ficou pendurada nele como se fosse uma criança. Trosky e Lucrezia ficaram frente a frente, Trosky com uma cara séria e sombria, como era hábito, e com um ar de desprezo.

‑           Se eu te abraçar agora, isso não quer dizer que queira ir para a cama contigo! ‑ declarou Lucrezia com a voz rouca. Trosky franziu as sobrancelhas ao ouvir aquele tom de voz.

‑Está bem!

‑           Seu tonto! ‑ Lucrezia abraçou‑o e beijou‑o enquanto ele parecia menos ágil. Deixou que ela o beijasse e depois, quando Helena largou Peter, pôs o braço à volta dela.

‑           Depois de nos termos lambido exaustivamente ‑ disse Trosky por fim, rindo‑se ‑, seria talvez interessante saber onde e  que as senhoras estiveram.

‑           Em Maio! ‑ exclamou Lucrezia.

‑           Que interessante! Decidiram fazer uma pequena excursão?

‑           Mais ou menos. ‑ Helena afastou o cabelo da cara. - Fomos raptadas e obrigadas a levar o barco para Maio.

‑           Então, afinal foi mesmo isso! Ninguém quis acreditar em mim! ‑ Peter cerrou os punhos.

- E elas conseguiram sobreviver à tempestade! ‑ Trosky pegou nos cabelos compridos de Lucrezia, puxou‑a para perto de si e beijou‑a com tanta força que ela não conseguiu libertar-se dele.

Quando, no fim, já não conseguia respirar, deu‑lhe um pontapé na canela. Trosky gemeu e soltou‑a. ‑ Eu queria apenas comemorar! ‑ disse, ofendido.

Depois de terem bebido duas garrafas de vinho, que o agente da Polícia oferecera para tornar o interrogatório um pouco mais agradável, chegaram à conclusão que Helena e

Lucrezia tinham tido uma sorte incrível.

‑           Eu não compreendo porque e  que o Depallier vos contou tudo isso ‑ disse o capitão, admirado. ‑ Assim já temos a confissão dele. Agora só falta apanhá‑lo!

‑           O Maurice tem um avanço grande de mais. Nunca o conseguirão apanhar. ‑ Helena encostou a cabeça ao ombro de Peter. ‑ Já deve ter deixado as ilhas de Cabo Verde há muito tempo.

‑           É para isso que existe o rádio, madame. ‑ O capitão sorriu com um ar condescendente. ‑ Em breve, saberemos qual o avião que deslocou da cidade do Sal com dois desconhecidos a bordo. Desta forma teremos o seu rasto.

‑ e  muito mais importante descobrir a quem e  que ele roubou as moedas de ouro! ‑ exclamou o pequeno chefe da

Polícia, exaltado. ‑ Ele roubou‑as aqui, na nossa ilha!

Santiago! Quem será o habitante desta ilha que possui um tesouro desses? ‑ O seu rosto estava vermelho e brilhava, coberto de suor. ‑ Isso quer dizer que havia aqui alguém que tinha milhões na cave e nós não fazíamos ideia disso! Milhões a que nem sequer tinha direito! E ainda por cima permite que lhe sejam roubados! E não apresenta queixa! Simplesmente, deixa os ladrões escapar com um tesouro que vale milhões! Não acham isso extremamente suspeito? Teremos de analisar esse caso!

‑           Onde e através de quem? ‑ perguntou Peter von " Losskov. ‑ e  impossível recapitular tudo. O habitante da ilha

a quem roubaram o tesouro deve ter desaparecido há muito tempo.

‑           Porque ele próprio e  um gatuno!

‑           Provavelmente, sim.

‑           Na minha ilha! ‑ O chefe da Policia disse "minha" ilha e os outros não fizeram nenhum comentário, permitindo que se considerasse um orgulhoso soberano, embora a sua área não abrangesse muito mais do que a cidade de Tarrafal. ‑ Isso preocupar‑me‑á até ao fim da minha vida!

Nessa noite ainda souberam que um avião com cinquenta e quatro passageiros partira do aeroporto da cidade do Sal para Lisboa, entre os quais trinta e três estrangeiros todos em viagens de negócios. Obviamente, na lista de passageiros não constava nenhum Maurice Depallier nem um Jorge Silva. O avião aterrara em Lisboa há dez horas. Já não havia hipótese de os encontrar.

‑           Apetece‑me trepar às paredes! ‑ gritou o pequeno chefe da Polícia.

‑           É exactamente isso que vamos fazer. ‑ Trosky levantou‑se. ‑ Mas não vamos trepar às paredes, mas sim ao mastro do nosso barco! Temos de arranjar novos cabos e desapareceremos daqui antes que aconteçam mais imprevistos.

‑           Não têm o direito de se queixar! Nós tratámos os senhores de forma exemplar.

‑           Até ao cancelamento da busca depois da tempestade! Como vê, as raparigas estão vivas!

‑           Quem podia adivinhar isso? ‑ O chefe da Polícia ergueu as mãos, como se quisesse pedir perdão. ‑ Foi um caso realmente excepcional.

A noite caíra, mas mesmo assim foram acordar o comerciante de equipamentos para barcos, compraram cabos novos e substituiram os antigos. De manhã, experimentaram as velas e tudo parecia estar em ordem. O barco estava pronto para partir.

A despedida foi rápida. O capitão, o chefe da Policia, o polícia e um oficial do barco da Policia ficaram no cais para acenar‑lhes. Espantados, deixaram passar um rapazinho com um carrinho de mão que parecia muito apressado. Trosky que se encontrava na prancha de embarque que ainda não fora recolhida, respirou aliviado.

‑ Até que enfim! ‑ disse. ‑ Agora já não falta mesmo nada.

No carrinho de mão, havia apenas um grande fardo de palha.

Losskov, que estivera na cabina, aproximou‑se. Helena e Lucrezia debruçaram‑se para a frente.

‑           Tu e  que pediste isto? ‑ perguntou Losskov, desanimado.

‑           Sim! ‑ respondeu Trosky com um ar teimoso. ‑ Tens algo contra isso?

‑           Palha?

‑           Eu preciso urgentemente de palha.

‑           Queres manter uma cabra a bordo?

‑           Para quê? Nós já temos duas...

‑           Eu ainda lhe dou uma bofetada! ‑ exclamou Lucrezia. ‑ Helena, lembra‑me para fazer isso daqui a pouco!

Losskov afastou‑se para que Trosky e o rapaz pudessem passar por ele com o monte de palha. Depois, Trosky recolheu a prancha de embarque e apanhou os cabos que lhe atiravam. O barco estava agora solto. Peter encostou‑se à balaustrada ao lado de Trosky e esperou. Este olhou‑o de lado.

‑           Há algum problema, capitão?!

‑ Não sei. Já agora podias também trazer um camelo a bordo!

- Esse já cá nós temos! ‑ Trosky foi até ao leme e sentou‑se. ‑ Eu quero construir uma coisa. E para isso preciso

da palha.

‑           Mas porquê exactamente palha?

‑           Depois, verás! ‑ Trosky levantou‑se e ergueu a mão - Içar o traquete! ‑ berrou. ‑ Raios, eu quero ir‑me embora daqui!

O barco deu meia volta e deslizou rapidamente para o mar aberto. Os homens em terra acenavam‑lhes, e Losskov e as raparigas respondiam aos acenos até que eles ficaram tão pequenos que mal os conseguiam distinguir. O barco avançava a alta velocidade para o horizonte inatingível do oceano Atlântico em direcção à América do Sul, para sudeste, sempre visando a sua meta: a Terra do Fogo e o cabo Horne.

Quando não viam nada para além do mar e do horizonte à sua volta, Losskov sentou‑se ao lado de Trosky no banco. As raparigas estavam em baixo. Era a vez de Lucrezia arrumar a cozinha enquanto Helena anotava a partida da ilha no livro de bordo e tratava de Mister Plump.

O cão realmente tornara‑se um caso sério, digno de tratamento psiquiátrico. Desde que Maurice Depallier os deixara já não comia nada, ficava deitado na cama com um olhar triste e não reagia a mimos ou palavras simpáticas. Nem se quer reagiu quando Trosky o invectivou:

‑           Oh, não! Este maldito animal também sobreviveu. Porque e  que não aconteceu alguma coisa pelo menos ao cão?!

Depois de terem partido, aproximara pelo menos o nariz

de um pedaço de carne, mas não o comera. Pousou a cabeça sobre as patas. suspirou profundamente e continuou de luto pelo seu amigo desaparecido.

"Como e  que pode explicar‑se a um cão que o tipo era um ladrão?", pensou Losskov.

‑ Temos de estar conscientes de uma coisa: esperam‑nos quatro semanas de solidão ‑ declarou Losskov. ‑ Se houver calmarias, podem também ser seis ou oito semanas até voltarmos a ver terra firme. Pretendo passar por São Paulo e pela ilha de Fernando Noronha e depois ir para a bacia da Argentina. ‑ Fitou Trosky com um ar inquiridor e ficou calado.

‑           Por mim, está tudo bem ‑ resmungou este. ‑ Tu e  que mandas!

‑           Também podemos saltar de um lugar para o outro, Jan. De Fernando Noronha para o Recife e depois ao longo da costa até às ilhas Falkland. Lá podemos dar uns arranjos ao barco e preparar‑nos para a Terra do Fogo e o cabo Horne.

‑           Porque e  que não vamos pelo caminho mais directo?

‑           O teu monte de palha faz‑me desconfiar.

‑           Também não se destina a acalmar‑te.

‑           Oito ou mais semanas de solidão, Jan! Eu não quero problemas a bordo!

‑           Vais começar de novo com essa conversa? Tens medo que eu delire, não é?!

‑           Confesso que sim!

‑           É para isso que serve a palha! ‑ Trosky sorriu. - Deixa que eu te surpreenda.

‑           Eu não gosto de surpresas a bordo, Jan. Tudo aquilo por que já passámos parece uma brincadeira quando comparado com aquilo que temos pela frente.

‑           Eu sei, meu mestre! E estou‑me nas tintas para os teus sermões! Eu faço aquilo que for preciso. E neste momento e  preciso comer. Estou a morrer de fome.

Mis ter Plump apareceu no convés, olhou para Trosky e mostrou‑lhe os dentes. Isso já constituía uma grande progressão no seu comportamento: voltara a tomar consciência do seu inimigo.

‑           Um dia ainda frito este cão! ‑ resmungou Trosky e puxou o gorro para a testa. ‑ Mas ainda bem que ele existe! Sem estas pequenas guerras, não haveria nada a bordo.

Depois de oito dias de viagem calma, durante os quais avançaram bem, Trosky começou por fim a dedicar‑se ao seu fardo de palha. Dobrou uma verga que trouxera, de modo a formar uma roda e depois pôs‑se a fazer uma rede de fios, nos quais entrelaçava agilmente a palha.

Depois de três dias, Losskov descobriu o que Trosky estava a tentar fazer.

‑ Ele está a construir um grande alvo ‑ disse para Helena e Lucrezia. ‑ Suponho que ele quer atirar flechas. Que <~ o faça à vontade! Prefiro que atire flechas do que fique por aí sentado a tiranizar‑nos.

A vida a bordo tinha entrado numa rotina; todos eles tinham percebido que agora estavam realmente dependentes uns dos outros. Nas próximas semanas, não haveria maneira de fugirem uns aos outros ou de, caso a sua convivência se tornasse numa tortura insuportável, simplesmente deixarem o barco. à sua volta, só havia o mar e o céu e mais nada. Teriam de aceitar e suportar o que quer que acontecesse: sol e nevoeiro, calmarias ou uma tempestade, um calor insuportável ou chuva, um mar calmo ou selvagem com ondas de vários metros de altura. Só havia uma regra: enfrentar tudo Até chegarem à Terra do Fogo. Até ao fim do mundo.

No décimo quarto dia ‑ era um domingo, como Peter von Losskov pôde verificar no seu calendário ‑ Trosky concluiu finalmente o seu trabalho. Atou‑o com cordas à balaustrada e depois fixou no alvo uma grande folha de papel na qual desenhara algo durante a noite.

Helena, que nesse momento apareceu no convés com um bule de chá com limão para Peter e Trosky, virou‑se imediatamente quando viu aquilo que estava desenhado na folha e desapareceu pelas escadas. Chamou Lucrezia, que há três dias começara com os seus trabalhos científicos e estava sentada ao microscópio, observando amostras de água do fundo do mar.

‑           Ele pendurou um desenho no alvo ‑ disse Helena. ‑

Tens de vê‑lo. Eu não compreendo o que se passa na cabeça daquele homem.

Quando subiram ao convés, viram Trosky com um arco e uma flecha, na proa. Parecia muito animado. Lucrezia deitou um olhar para o desenho. Mostrava dois peitos desenhados de uma forma muito naturalista e cujos contornos eram ainda mais reforçados pela luz do Sol. Trosky parecia, sem dúvida, ter um talento para o desenho.

‑           Então, gostas? ‑ gritou.

‑           Eu sempre desconfiei que tu eras um perverso! ‑ exclamou Lucrezia.

‑           Nem vale a pena esforçares‑te e olhares para o espelho... Este peito não e  o teu! Pelo menos não e  só o teu. Também contém um pouco do da Helena. Eu criei um peito perfeito, que e  uma mistura das duas!‑ Brincou com o arco nas mãos. Depois, pegou na flecha, apontou‑a para o alvo e atirou. A flecha cortou o vento e foi parar à borda superior do alvo. Trosky apoiou o arco no joelho à sua volta, à procura de Peter.

‑           Vamos dar prémios, Peter! Quem acertar no bico do peito ganha doze pontos! E cada vez que tiver doze pontos recebe uma garrafa de cerveja! Se tiver doze pontos seis vezes consecutivas, fica com a Luzi!

‑           Não haverá concurso para ninguém! ‑ Losskov aproximou‑se e arrancou o arco das mãos de Trosky antes de este poder segurá‑lo com mais força. Durante alguns segundos, permaneceram num perigoso silêncio.

‑           Dá‑me o arco, Peer ‑ disse Trosky, pouco depois.

‑           Tira o desenho dali!

‑           Não! Eu e  que digo aquilo que quero! Amanhã porei ali a tua cabeça! ‑ Trosky estendeu a mão. ‑ O arco! Eu estou a avisar‑te, Peter! Construí uma coisa que me satisfaz e não permitirei que ma tirem enquanto esta cabeça estiver assente nos meus ombros! Compreendeste?

‑           Perfeitamente!

Losskov pegou numa flecha, colocou‑a no arco, apontou rapidamente e atirou. A flecha soltou‑se e foi directamente para o bico do peito esquerdo. Ninguém aplaudiu. Ficaram silenciosos. Todos olharam para a flecha como se esta realmente tivesse acertado no peito de uma mulher. Helena ficou com o pêlo eriçado.

‑           Doze pontos, Trosky! ‑ disse Peter bem alto. ‑ Deves‑me uma garrafa de vinho. Está bem! Vamos arranjar um

livro em que apontaremos os resultados. Quando chegarmos

a terra, pagaremos as dívidas. ‑ Atirou o arco a Trosky que o apanhou e o deixou cair de seguida.

‑           Desmancha‑prazeres! ‑ disse, baixo. ‑ Mas eu treinarei. Treinarei até ser melhor do que tu!

à noite, quando Helena estava a rizar as velas com Peter, perguntou:

‑           Tinhas de fazer aquilo com as flechas?

‑           Sim. Ele precisa de um adversário, senão, não consegue viver. Acabei por compreender isso.

‑           Passará a odiar‑te ainda mais.

‑           Ele não me odeia, apenas se odeia a si próprio. Não sei porquê.

Na manhã seguinte, Trosky voltou a treinar a atirar as flechas. Concretizara a sua ameaça: desenhara a cabeça de Peter e durante o dia acertou quatro vezes nos seus olhos ou na raiz do nariz.

O sol, o mar, as distâncias infinitas, o silêncio apenas quebrado pelas ondas, o ranger das velas, o barulho do barco a avançar, o sussurrar monótono e contínuo do vento. Sons que em breve já não pareciam sons. Sons que eles nem sequer ouviam, que faziam parte da vida e cuja falta teria sido uma catástrofe. As horas prolongavam‑se infinitamente, apesar do trabalho a bordo e das investigações científicas que tinham iniciado. Peter von Losskov começara a escrever o livro planeado, mas o seu relato deixava adivinhar já a partir das primeiras páginas uma constatação: estavam todos fartos

uns dos outros.

Há muito tempo que tinham compreendido que o barco era pequeno de mais para quatro adultos. Não havia espaço suficiente para uma pessoa se retirar na tentativa de fugir à tentação de bater em alguém. Estavam sempre juntos, viam‑se

constantemente, roçavam‑se sem querer, sentiam‑se, cheiravam‑se e ouviam‑se uns aos outros.

O pior era os fins de tarde, quando Helena punha os seus discos a tocar. Era Tchaikovsky e Beethoven, Wagner e Bruckner e de vez em quando uma opereta.

‑ Quero ouvir música rock! ‑ gritava Trosky.

‑           Música e  cultura! Será que tu não és capaz de compreender isso?! ‑ respondia‑lhe Helena, também aos berros.

Trosky costumava desaparecer no seu camarote ou então ficava sentado, amuado, no convés e dava pontapés a Mister Plump quando este passava inocentemente por ele.

‑           Juro que um dia utilizarei aqueles discos como alvo! - dizia às vezes a Peter. ‑ Quem e  que consegue aguentar uma coisa destas? Sempre bum‑da‑da‑bum... bum‑da‑da‑bum...

O céu e o mar, o sol e, de vez em quando, um pouco de chuva, calmarias durante as quais ficavam quase parados e que eram uma ocasião para Trosky chamar a Peter idiota, por este não ter instalado um motor no barco.

Solidão. Um calor sufocante. Um oceano que parecia chumbo. Lucrezia deitava‑se nua no tombadilho por baixo de um toldo e dormitava. Peter escrevia o seu livro, Helena lia romances ou ouvia os seus discos. Trosky exercitava‑se com o arco e a flecha e, dia sim dia não, mudava o desenho no alvo: ora era a cabeça de Peter, ora a boca de um tubarão, ou então mais um peito de mulher ou a bandeira nacional americana, que costumava durar muito tempo, já que Trosky tentava acertar em cada uma das estrelas.

Quarenta e três dias rodeado apenas por três pessoas e algumas velas, corpos nus e música de Beethoven. Quarenta e três dias a acumular ódio.

Uma noite, Trosky decidiu mudar de alojamento. Instalou‑se no poço.

‑           Agora durmo aqui! ‑ gritou para Losskov. ‑ Sinto nojo só de vos ver! Além disso, tornou‑se impossível para mim ficar quieto na cama quando sinto um cheiro a mulher a penetrar pela parede! Claro que tu não compreendes isso! Mas será que és castrado? Deixa‑me em paz! O teu olhar azul e  enjoativo!

Porém, apesar da atmosfera intensa que viviam e que se assemelhava àquela que antecede uma explosão, o barco mantinha o seu curso. Entrou no mar brasileiro a oeste da ilha de Fernando Noronha. Ali, o mar tinha cinco mil metros de profundidade. Peter elaborara bem o curso e manejava o barco de uma forma excepcional, apesar das inúmeras calmarias e da consequente deriva com a corrente, merecendo assim até a admiração de Trosky.

O quotidiano monótono ajudou a eliminar as últimas inibições que restavam entre eles. Losskov notou isso em si próprio com horror, mas sem forças para se defender. Gritava com Helena quando as batatas estavam mal cozidas, despejava verdura para o mar quando a achava salgada de mais, e Trosky dizia com um ar triunfante:

‑           Até que enfim que ele compreendeu que as mulheres são umas chatas! Salgam demasiado a comida para que nós não paremos de beber!

‑           Porque faria eu isso, seu idiota? ‑ respondeu‑lhe Helena aos gritos. ‑ Afinal nós precisamos de vocês!

‑           Isso e  novidade para mim! Peter, vamos para a cama! Mas isso elas não querem!

No dia seguinte, Losskov recusou‑se a beber o chá, alegando que estava muito forte e amargo.

‑           O chá está como todos os dias ‑ disse Helena.

‑           Mas mais amargo! Se sempre assim foi, então sempre foi amargo!

‑           Entorna‑lhe o chá na cabeça! ‑ gritou Lucrezia, que estava sentada num canto.

‑           A partir de hoje recuso‑me a cozinhar! ‑ exclamou Helena. ‑ Cada um que trate de si próprio.

‑           Que bom! ‑ gritou Trosky. ‑ Agora, elas até entram em greve!

Mais tarde, Losskov entrou no camarote de Helena.

‑           Esquece aquilo que aconteceu, Helena ‑ disse‑lhe. - Eu também não tenho nervos de aço. Lamento o sucedido. e  claro que o chá estava bom.

‑           Estava amargo.

‑           Por favor, não comeces.

‑           Eu provei‑o. Ele realmente estava amargo. Hoje, à hora do almoço, podem comer comida enlatada, se quiserem.

‑           Então, estás decidida a deixar de cozinhar para nós?

‑           Cozinhar? Tu chamas cozinhar a abrir latas de conserva? Isso vocês também sabem fazer sozinhos.

‑           Mas os teus espaguetes são tão bons.

‑           Pede à Luzi para prepará‑los! Como ela e  italiana, deve saber fazê‑los muito bem.

‑           Isso quer dizer que já não queres tratar de nós?

‑Não!

‑           E o que e  que vais fazer então?

‑           Vou ficar a observar‑vos, enquanto dão cabo um do outro!

Porém, no dia seguinte, Helena estava de novo na cozinha a aquecer feijão verde com toucinho, enquanto preparava um pudim de chocolate com molho de baunilha. Quando estavam sentados à mesa, Trosky aparentou não ter vontade de comer.

‑           Agora a comida já não tem sal nenhum! ‑ gritou. - Querem que fiquemos com falta de sal?

‑           Mais uma palavra e eu ponho‑me aos murros. - Losskov cerrou os punhos. ‑ Jan, a comida está excelente!

‑           Para os peixes de certeza que serve.

As mãos de Losskov pareciam dois ganchos quando agarrou Trosky pela camisa. Puxou‑o para perto de si. Trosky olhou, assustado, para os olhos frios de Losskov.

‑           Repete isso! ‑ disse Peter baixinho e com um tom de voz ameaçador. ‑ A comida está boa!

‑           Se a tua felicidade depende disso.... A comida está óptima! ‑ Trosky soltou‑se das mãos de Losskov. ‑ Estás satisfeito? Céus, eu já não vos posso ver à frente!

Derrubou o banco no qual estivera sentado e subiu para o convés.

Pendurou o desenho da banheira americana numa tábua de madeira e pôs‑se a alvejar cada uma das estrelas. Cada vez que acertava numa estrela, dava‑lhe um nome.

‑ Esta eras tu, Potisky! ‑ gritava. ‑ Liquidado! E esta tu, Pslelcek! Vai para o inferno! E agora tu, Kretin Lombaczy! Em cheio, no olho! Que Satanás dê cabo de ti!

Quando Losskov veio para o convés um pouco mais tarde, Trosky acertara em dezanove estrelas. Trosky acenou‑lhe com o arco na mão e apontou para as estrelas.

‑ Estou a liquidar os meus colegas de Praga! ‑ exclamou. ‑ Dá‑me imenso prazer! Agora e  a vez do gordo, Hadeck! Ele era chefe da repartição. Um homem repugnante! Um lambe‑botas! Hadeck, chegou a tua vez!

Losskov sentou‑se ao lado do leme e ergueu o olhar para o céu quente e pálido.

Era o décimo nono dia sem vento. Nunca tinha pensado que isso fosse possível.

"ó céu, estás a dar cabo de nós", pensou. "ó sol, queimas as nossas mentes e tu, oceano, estás a levar‑nos à loucura! Deus dos céus, envia‑nos um pouco de vento. Só um pouco de vento. Estaremos salvos quando sentirmos uma leve brisa nas velas."

Nessa noite, Losskov fez uma descoberta alarmante.

Devido ao calor insuportável que estava no seu camarote, decidira subir para o convés. Ali, encontrou Trosky deitado no poço, onde se instalara recentemente, com as costas viradas para as escadas. Trosky não sentiu Losskov aproximar‑se.

Estava ocupado. Despejara um pouco de pó branco, que guardava numa lata, nas costas da mão esquerda. Olhou para o pó com um ar encantado e depois inspirou‑o pelas narinas. Respirou fundo e susteve‑se durante alguns segundos, como se estivesse a escutar o seu interior.

‑ Que grande snifo! ‑ exclamou Losskov, amargurado.

Trosky virou‑se bruscamente, como se lhe tivessem dado um murro na nuca. Os seus olhos escuros pareciam arder.

‑           Maldito intrometido! ‑ sibilou. ‑ Seu espião! Porque e  que andas por aqui às escondidas?

‑           Desde quando e  que estás metido nisso?

‑           Desde sempre! Não me digas que também e  proibido? ‑ Trosky fechou o casaco de lã que vestia. à noite fazia frio, mas o ar era leve e agradável. Podia‑se respirar com facilidade, ao contrário do que acontecia durante alguns dias quentes e sem vento. ‑ Não podemos tocar nas mulheres, temos pouco álcool e agora nem sequer o tabaco nos e  permitido?

‑           O que eu vi não era tabaco, Jan!

‑           O que era então, parvalhão?!

‑ Não existe tabaco branco.

‑           Ficou dessa cor por causa do sol. ‑ A cara de Trosky estava sombria e parecia pouco disposto a falar.

‑           Dá pelo nome de metilbenzolecognina. Ou seja: cocaína. Onde e  que arranjaste essa porcaria?

‑           Porcaria? Isso e  uma definição muito subjectiva. Não existe nada melhor para aumentar a actividade do cérebro. Quando se consome uma boa quantidade, o sistema nervoso central até rejubila. E nós estamos a precisar disso. Senão, nada se alegra neste barco.

‑           Com que então tu és agarrado à cocaína! ‑ lamentou Losskov.

‑           Eu não lhe chamaria assim. Apenas tento animar‑me um pouco.

‑           Com esse veneno! ‑ gritou Losskov.

‑           Que já existe desde os princípios da humanidade! Os Maias e os Incas atribuíam características divinas à planta da coca. Quando os padres dos Astecas faziam os seus sacrifícios humanos, retirando o coração do peito de jovens extremamente bonitos para oferecê‑lo ao deus do Sol, mastigavam folhas de coca antes de iniciar o ritual. Mastigavam‑nas até o sumo das folhas elevar as suas mentes para os céus. Está bem, eu consumo cocaína ‑ acedeu Trosky e cobriu‑se com um cobertor de lã. ‑ Podes ir contar tudo às mulheres!

‑           No próximo porto, tu deixarás o barco! ‑ ordenou Losskov num tom de voz severo. Trosky ergueu a cabeça e piscou os olhos.

‑           Onde e  que isso será, chefe?

‑           Eu alterarei o rumo e iremos directamente para o Brasil. Logo que avistarmos terra, tu serás expulso do barco! Não importa onde isso será! Compreendeste?

‑           Pensa bem, Peer! ‑ respondeu Trosky, calmamente.

‑           Já não há nada a pensar.

‑           Pensa bem no assunto, capitão!

‑           Tu ainda és capaz de viver sem esse pó branco?

‑           Sou sim, meu amigo. Já o tinha largado. Quando nos conhecemos, eu estava limpo, limpinho. Mas depois comecei a adivinhar o que me esperava nesta viagem e e  o que de facto está a acontecer! Trouxe uma provisão e, quando notei que estávamos todos a começar a odiar‑nos mutuamente, voltei a consumir. Sinto‑me muito bem.

‑           Agora muitas coisas que antes pareciam incompreensíveis tornaram‑se claras. Existem dois Troskys: um deles e  aquele que eu conheci em Hamburgo e no qual confiava e o outro e  aquele que agora está a bordo deste barco - Losskov baixou o olhar para Trosky. Este estava deitado no colchão com um grande sorriso nos lábios. Nos seus olhos cintilava o brilho de um veneno, as pupilas estavam dilatadas e o seu olhar tinha uma rigidez estranha. ‑ Quantas vezes já consumiste hoje?

‑           Foi a primeira vez. Palavra de honra.

‑           Tu ainda tens um sentimento de honra?

Trosky ergueu a cabeça.

‑           Esquece essa pergunta, meu amigo ‑ disse, devagar. - Eu sou muito sensível no que diz respeito à questão da honra, sobretudo quando um alemão fala nisso a um checo! Vai para baixo, palhaço alemão!

Losskov virou‑se sem dizer uma palavra e desceu as escadas. Helena esperava‑o no salão. Vestia uma camisinha leve

e transparente e tinha um fino cachecol de lá à volta dos ombros. A luz da lanterna penetrava pelo fino tecido da camisa

e deixava transparecer a nudez por trás dos véus acariciantes.

‑           Acordei quando ias a subir as escadas ‑ murmurou. - Ouvi‑os a falar. Voltaram a zangar‑se?

‑           Não. ‑ Losskov sentou‑se à mesa, em frente de Helena, e encostou a cabeça para trás contra o espaldar almofadado, num gesto cansado. ‑ Porque e  que os homens têm uns nervos tão fracos? Querem dominar o mundo, o espaço e o átomo. Mas não conseguem dominar‑se a si próprios.

‑           Falaram disso agora, a meio da noite?

‑           Entre outras coisas. Eu aprendi muito. Amanhã, mudarei de rumo.

‑           Em direcção à costa?

‑Sim.

‑           Então e  mesmo por causa do Trosky!

‑           Não. e  por causa do medo. ‑ Fitou Helena com um ar exausto. ‑ De repente, sinto um grande medo no meu interior. Se continuarmos assim, exterminar‑nos‑emos uns aos outros.

‑           Nós dois, também?

‑           Nós também, Helena. E já temos meio caminho andado. Eu amo‑te. Quero dormir contigo. Eu quero viver contigo da maneira que nós dois desejamos. E o que e  que estamos a fazer? Estamos a construir muros invisíveis entre nós, apenas para darmos um exemplo aos outros! Porém, desta maneira estamos a destruir‑nos aos poucos.

‑           E se nos amarmos, Peter?

‑           O Trosky atacará logo a Lucrezia.

‑           E isso seria o fim do mundo?

‑           Seria um caos! O Jan e a Lucrezia... Dois animais selvagens com instintos assassinos!

‑           Não e  tapando uma bomba que se a desactiva. Talvez tudo se torne mais pacífico, se decidirmos obedecer aos nossos sentimentos?

‑           Não sei ‑ disse Losskov, cansado. ‑ Eu só sei uma coisa: tenho de chegar o mais rapidamente possível à costa!

 

Três dias mais tarde,levantou‑se um vento leve. As velas insuflaram‑se e o barco começou a avançar, pondo fim ao baloiçar desgastante. Trosky gritou de alegria e beijou o vento. As inúmeras velas apanhavam o vento, e a proa do barco cortava as ondas longas e cheias de espuma que se aproximavam. O vento durou quatro dias e quatro noites.

‑           Temos de aproveitá‑lo! ‑ decidiu Losskov. ‑ Permitir‑nos‑á recuperar uma parte do tempo perdido! Navegaremos sem parar.

Com esse novo horário, voltaram a fazer os turnos da noite. Cada um deles ficava quatro horas ao leme. Quando era a vez de Trosky ou de Losskov, estes corrigiam o rumo, já que as raparigas não eram capazes de fazer os respectivos cálculos. Porém, logo na segunda noite, houve mais um desentendimento entre Peter e Trosky.

Trosky, que tomara o lugar de Peter ao leme, lançou um olhar para o mapa e para o rumo que estava traçado nele.

‑           O que e  isto? ‑ perguntou.

‑           Eu mudei o rumo.

‑           É o que estou a ver. Esse rumo e  completamente ridículo!

‑ Antes pelo contrário. Eu quero ir para a linha de navegação internacional.

‑ Não era exactamente isso que nós queríamos evitar?

‑ Mas agora tem de ser assim. Eu vou tentar aproximar‑me

de um outro barco para te entregar a ele. Quero que tu deixes este barco!

‑           Ah! Com que então as coisas são assim! ‑ exclamou Trosky.

‑           Sim, são assim!

‑ Isso vai causar‑te problemas. ‑ Trosky fitou Losskov com um olhar melancólico. Mas era um olhar que iludia. Atrás dele, escondia‑se uma certeza perigosa. ‑ Queres ser um herói e no fundo limitas‑te a ser um parvo.

Oito horas mais tarde, quando Losskov voltou a pegar no leme, que antes estivera a cargo de Lucrezia, compreendeu imediatamente que tinham mudado de rumo. O sextante confirmou essa impressão: voltavam a singrar no antigo rumo que ia directamente para a Terra do Fogo.

‑           Eu fiz o que o Trosky mandou ‑ resmungou Lucrezia, enquanto Peter praguejava e tentava orientar o barco para o rumo anterior. ‑ Tomei muita atenção.

‑           A culpa não e  tua. ‑ Losskov sentou‑se no poço e esperou que Helena aparecesse com o pequeno‑almoço e se sentasse ao seu lado. O vento soprava forte, e o barco avançara rapidamente.

‑           Estamos a recuperar tempo, não é? ‑ perguntou Helena.

‑           O Trosky mudou de rumo durante a noite.

Helena olhou com um ar horrorizado para o mar e de seguida para Losskov.

‑           Não e  possível... ‑ balbuciou.

‑           Eu queria ir para a rota internacional. Mas ele voltou a rumar em direcção à Terra do Fogo.

‑           Meu Deus! Qual de vocês matará primeiro o outro?!

‑           Temos de manter a calma até vermos terra ou pelo menos um barco. Nessa altura veremos quem e  o mais forte.

Pouco depois, Trosky voltou para o convés. Dormira apenas cinco horas, mas parecia muito bem‑disposto. Cumprimentou Mister Plump, que fizera as suas necessidades na proa, atirando‑lhe com metade de um limão que estivera a comer e riu‑se às gargalhadas quando o cão lhe mostrou os dentes e desapareceu pelas escadas.

‑           Um dia de despir a camisa! ‑ disse, alegre. ‑ E para o pequeno‑almoço há ovos estrelados com toucinho. E uma Lucrezia, deitada nua na cama com a porta aberta! ‑ Olhou para a bússola e abanou a cabeça afirmativamente. ‑ Eu já estava à espera disto. Voltámos ao antigo rumo. Tu és mesmo teimoso, Peer! Se isto continuar assim, nunca mais chegaremos à Terra do Fogo.

‑           A partir de agora não deixarei mais ninguém tocar no leme!

‑           Nunca mais? ‑ perguntou Trosky com um tom de voz irónico.

‑           Nunca mais.

‑           Aguentarás no máximo quarenta e oito horas! Depois, cairás para o lado! O super‑homem apenas existe no cinema!

‑           Em quarenta e oito horas terei alcançado a rota dos outros barcos.

‑           Talvez. ‑ Trosky sentou‑se num monte de cabos ao lado da caixa de plástico que continha a ilha de salvação de borracha. Despiu a camisola e estendeu o seu tronco musculoso ao sol. "Não há dúvida de que ele e  mais forte do que eu", pensou Losskov. "Por isso terei de esperar até ter alguém que me ajude. Sozinho nunca conseguirei expulsá lo do barco." ‑ Deveríamos fazer um acordo, capitão ‑ pro pôs Trosky.

‑           Quando já se chegou à cocaina não há mais compro missos.

‑           Eu não sou dependente da coca!

‑           Então porque e  que a consomes?

‑           Isso e  outra história que tem a ver com Praga. Eu era estudante quando os Russos invadiram o nosso país em mil novecentos e sessenta e oito e mataram a nossa população com canhões e metralhadoras sob o olhar impávido do resto do mundo, apenas devido ao nosso desejo de liberdade. Na quela altura, eu fazia parte de um grupo de resistência que actuava nas florestas da Boémia e que sabotava as linhas de abastecimento soviético. Não podíamos fazer mais do que isso. Afinal, o resto do mundo abandonara‑nos. Pareciam im potentes perante o poder dos Russos. Apenas nós, os estu dantes, formados em pequenos grupos espalhados pelo país não desistíamos. Vivíamos em cavernas ou grutas e praticávamos aquilo que os Russos descreviam como um acto heróico quando eles próprios o faziam: éramos guerrilheiros! Con segues imaginar uma vida na floresta? Éramos um alvo fácil para todos. Tremiamos com cada ruído que ouvíamos. E um dia houve alguém que trouxe um saco com pó branco. Era cocaina. Nunca lhe perguntámos onde a arranjara. E nin guém quis tocar nela. Até que eu, em primeiro lugar, experi mentei um pouco. Foi incrível. Fiquei corajoso como um leão. Mas, por outro lado, sabia exactamente que se ficasse agarrado a esse veneno seria o meu fim. Sabia que existia o perigo de me tornar num escravo da cocaina e de paralisar o meu cérebro. Aquele sentimento efémero de êxtase podia vir a ter consequências muito graves, como a ruína do meu corpo. ‑ Trosky cuspiu para o mar, como se ainda tivesse o gosto da cocaína na boca. ‑ Eu fui forte e consegui libertar‑me

da droga. Quando o grupo se separou e nós regressámos a Praga como estudantes normais, já que não havia hipótese de salvarmos o nosso país, eu deitei todo o pó que me restava para a sanita. E não senti falta dele até me juntar a vocês.

Foi convosco que voltei a precisar da cocaina. Foi fácil arranjá‑la em Hamburgo. ‑ Trosky mostrou um sorriso amargurado. ‑ Eu tenho um ar mais firme do que aquilo que realmente sou. E prometo‑te que largarei a cocaína quando chegarmos ao nosso destino. e  um compromisso que assumo.

‑           Antes de nós termos contornado o cabo Horne e de nos dirigirmos para terra em Ushuaia já tu tornaste a nossa vida num inferno! Eu quero tentar evitar isso.

‑           Dêem‑me algo para eu fazer! ‑ pediu Trosky e, de repente, a sua voz parecia frágil. ‑ Qualquer coisa de útil. Essas observações climatológicas são um disparate, tal como os micróbios da Luzi! ‑ Eu quero algo de palpável, algo que possa atacar. Não existem tubarões nesta zona?

‑           Acho que sim. Aqui ainda há alguns. Mas mais tarde entraremos numa zona de baleias.

‑           Porque e  que não damos cabo de uma baleia? De uma grande baleia! Quero cortá‑la em pedaços e cozinhá‑la. Seria uma tarefa muito gratificante!

‑ Então caça‑a! ‑ exclamou Losskov, rouco. A vontade de matar que Trosky expressava naquela frase metia‑lhe medo. "Tenho de ir a terra ou encontrar um barco o mais rapidamente possível", pensou. "Quantas milhas e  que conseguiremos percorrer com este vento? Está favorável e deve ter por volta de trinta e cinco nós. Em breve poderá atingir os quarenta nós. Isso pode representar mil milhas em sete dias. Meu Deus, mil milhas! Se o vento continuar assim, ainda teremos quatro semanas pela frente. Mas ele não continuará a soprar com tanta força. Tornar‑se‑á mais fraco ou então transformar‑se‑á numa tempestade. Nos dois casos, perderemos tempo e seremos desviados da nossa rota. Temos de contar com seis se~nanas. Seis semanas com o Trosky? Seis semanas rodeados apenas pelo mar e a partilhar um camarote com um homem que deseja cortar aos pedaços uma baleia?"

Trosky parecia ter lido os pensamentos de Peter.

‑           Estamos a avançar a oito nós. e  bom, não achas? Temos de estar agradecidos pelas coisas boas que nos acontecem.

Losskov não lhe respondeu. Avançavam a alta velocidade pelas ondas.

‑           Então, não há compromisso? ‑ perguntou Trosky.

‑Não, não há.

‑           Está bem. ‑ Trosky levantou‑se e dirigiu‑se para a proa, mas quando passou por Peter ainda disse num tom ameaçador: ‑ e  isso que torna os alemães tão antipáticos:

pensam sempre que têm razão!

Durante o resto do dia, Trosky não falou com mais ninguém, nem mesmo com Mister Plump, quando este lhe mostrou os dentes. Só no final do seu turno da noite e  que quebrou esse silêncio ameaçador. Losskov estava ao leme, após ter substituido Helena.

‑           Quer dizer que eu serei excluido desta equipa? - Trosky encolheu o queixo. ‑ Nem sequer posso fazer o meu turno da noite?

‑           Não, nós conseguiremos tratar disto sozinhos.

‑           Eu nem sei porque e  que não dou cabo de ti.

‑           Isso causar‑te‑ia muitos problemas. ‑ Losskov abriu a parte de cima do seu oleado. Trazia uma pistola, pronta a disparar, presa no cinto.

‑           Com que então já chegámos a esse ponto ‑ comentou Trosky, engolindo várias vezes de seguida, como se tivesse falta de ar.

‑           Sim. Chegámos demasiado longe!

Trosky fitou Losskov em silêncio durante alguns segundos e depois foi para a proa e sentou‑se no cabrestante. Permaneceu imóvel, a observar o mar que ora se tornava verde, ora preto, no crepúsculo, parecendo repugnante e ameaçador, fundindo‑se com o céu através das ondas.

Não era apenas Trosky quem mudava de dia para dia. Lucrezia sucumbia igualmente à monotonia desgastante.

Passou a andar sempre nua no barco.

‑           Quanto tempo e  que o santo do teu homem aguenta istO? ‑ disse, um dia, para Helena. ‑ Será que e  necessário eu saltar para cima dele?

‑           Tu merecias uma sova! ‑ respondeu Helena.

Isto foi apenas o início. Lucrezia tornara‑se rebelde e respondia de forma rabugenta a Losskov, quando este lhe dizia algo como:

‑ Ajusta o pequeno traquete!

‑           Não, não me apetece! Vem cá e fá‑lo tu próprio!

Depois agarrava‑se ao mastro numa posição provocante, quase indecente, e esperava que Peter viesse buscá‑la. Mas ele não vinha. Helena fazia o trabalho de Lucrezia, enquanto Trosky se ria às gargalhadas.

‑           A luta das nossas gracinhas! ‑ gritava. ‑ Que prazer observá‑las!

A vida a bordo tornara‑se cada vez mais desgastante, o ambiente cada vez mais pesado e a maneira como se tratavam de dia para dia mais rude. Ocorriam explosões de comportamento inesperadas, provocadas por bagatelas ridículas, como, por exemplo, os arrotos de Trosky ou os seus peidos depois de um almoço constituído por batatas fritas, ovos mexidos e cebolas.

‑ Porco! ‑ gritava Losskov e cerrava os punhos.

‑           Eu sou o dono dos meus intestinos! ‑ respondia Trosky.

Losskov também estava a tornar‑se agressivo. Verificou, assustado, que começava a compreender Trosky, quando este disparava com arco e flecha contra cabeças ou peitos de mulheres. às vezes, até tinha vontade de dizer: "Passa‑me o arco e a flecha!", mas conseguia sempre dominar‑se e acabava por fazer outra coisa qualquer, como, por exemplo, esculpir figuras bizarras em madeira.

Quando Trosky pescava, utilizava pequenos peixes como iscas e ficava contente quando um peixe maior engolia um mais pequeno. Quando conseguia pescar um peixe maior, matava‑o com um pau e sentia uma grande satisfação ao fazê‑lo.

As coisas tornavam‑se mais dramáticas quando Helena tocava os seus discos. Trosky corria pelo convés, tapava os ouvidos e berrava:

‑ Socorro! Socorro! Bum‑da‑da‑bum! Bum‑da‑da‑bum! Porque e  que ninguém dá cabo desse Beethoven?!

O barco atravessava o Atlântico a todo o pano. A força do vento era de quarenta nós e o mar estava agitado, mas não era perigoso. às vezes, o poço enchia‑se de água, quando as vagas mais altas se quebravam sobre o barco, sacudin do‑o. Trosky propôs que rizassem a genoa e continuassem apenas com o traquete. Losskov, porém, recusou essa ideia

‑ Temos de aproveitar o vento ao máximo! ‑ gritou pa ra a outra ponta do convés, onde se encontrava Trosky.

- Eu tenho o barco sob controlo!

Tinham passado apenas cinco dias desde que Trosky mudara o rumo do barco. Losskov aguentara‑se durante três noites; depois caíra para o lado e dormira dezanove horas. Durante esse tempo, Trosky voltara a desviar o barco, rumo à Terra do Fogo, apesar dos protestos de Helena.

‑           Não te aproximes do leme, rapariga! ‑ gritava, zangado, quando ela tentava entrar no poço. ‑ Eu bato‑te, garanto que o farei! A tua carinha bonita não te adiantará de nada. Podes ir chamar o teu queridinho e pedir‑lhe que te ajude, mas tenho a certeza de que ele não te servirá de nada durante as próximas horas. Agora sou eu quem manda neste barco!

E assim foi. Helena sacudiu Losskov e tentou acordá‑lo aos gritos, mas sem sucesso. Peter dormia como se tivesse sido anestesiado. Quando por fim acordou e subiu para o convés, estava uma manhã clara e calma com uma brisa leve e o mar calmo. Trosky acenou‑lhe alegremente.

‑           Bem‑vindo, capitão! O barco está em ordem. Não há nada de anormal a relatar. Está tudo anotado no livro de bordo.,

‑           Até mesmo o novo rumo? ‑ Losskov sentou‑se ao lado de Trosky.

‑ Claro que sim. Mais tarde, ficarão admirados ao verem que navegámos em ziguezagues pelo oceano. Dirão que devíamos ser malucos. Ou então que estávamos bêbedos. - Trosky ergueu‑se e afastou‑se do leme. Fora Losskov quem se recusara a trazer aparelhos modernos a bordo. Por isso, não tinham registador de desvio de rota, nem um piloto automático. Tudo tinha de ser feito manualmente. ‑ Agora podes voltar para a tua rota.

‑           Já nos afastámos muito dela, não é? ‑ perguntou Losskov com calma.

‑ Estamos a dirigir‑nos directamente para a Terra do Fogo! Não há caminho mais directo!

Peter olhou para o Sol, calculou a posição do barco e anotou‑a, juntamente com a data, no mapa. O que Trosky dizia era verdade. Estavam a navegar em direcção a sudoeste. Passariam por entre a costa brasileira e a plataforma de Bromley e entrariam na bacia argentina que tinha mais de setecentos metros de profundidade. Se continuassem nessa rota, veriam surgir as ilhas Falkland a estibordo e a Jórgia do Sul a bombordo. Passando entre as duas chegariam ao cabo Horne.

Quando ocorreria isso? Dali a vinte ou trinta dias?

‑           Então o que e  que achas? ‑ perguntou Trosky num tom de voz irónico, quando Peter acabara as suas anotações.

‑           Continuaremos neste percurso! ‑ Losskov fitou Trosky com um ar amargurado. ‑ Não estou a desistir, mas quero simplesmente chegar o mais rapidamente possível ao nosso destino. Mas garanto‑te que ajustaremos contas quando estivermos em terra.

 

à tarde, Trosky estava a pescar, encostado à balaustrada, quando de repente soltou um grito. A grossa cana de pesca vergara‑se com tanta força que quase o arrancara para o mar, e Trosky viu‑se obrigado a apoiar as pernas com toda a força contra a balaustrada.

‑           Apanhei‑o! ‑ berrava. ‑ Apanhei‑o! e  um tubarão! Consegui apanhá‑lo!

‑           Nesta zona não existem tubarões! ‑ respondeu‑lhe Losskov, que estava no poço.

‑           Mas eu consegui apanhar um, seu parvo! Vem cá ajudar‑me!

Peter amarrou o leme e correu para perto de Trosky. Helena e Lucrezia também apareceram no convés; Lucrezia estava nua, como era hábito em dias de sol. Agarrou imediatamente na cana de pesca e segurou‑a juntamente com Trosky. Felizmente, a linha era suficientemente grossa para não se partir.

Peter olhou para o peixe. Tratava‑se realmente de um tubarão que tentava soltar‑se, fazendo movimentos bruscos. A sua barriga clara virou‑se para cima, emergindo da água, depois voltou a mergulhar. Tinha uma força impressionante. Helena também ajudou a agarrar na cana de pesca, e assim os três seguraram‑na juntos, medindo forças com o tubarão.

‑           Isto e  inacreditável! ‑ exclamou Losskov. ‑ Não há terra por perto, mas existem tubarões! O que e  que ele estará a fazer aqui?

‑           Quis transmitir‑me os cumprimentos da tia Vasca de Karlsbad! ‑ balbuciou Trosky. ‑ Onde e  que está o arpão? Mata‑o! Se não, este maldito animal ainda nos vence!

Losskov afastou‑se a correr, voltou com o arpão e observou o tubarão que lutava desesperadamente pela liberdade. Contudo, quanto mais se mexia, mais o gancho pontiagudo se emaranhava no seu palato.

‑           Ataca! ‑ berrou Trosky. ‑ Tenho as mãos a tremer. Losskov inclinou‑se para a frente com o arpão na mão direita. Apontou‑o para a água, reuniu toda a força no ombro direito e esperou que o tubarão voltasse a surgir à superfície da água. Nesse preciso instante, quando o enorme peixe estava no ar, na horizontal à sua frente, Losskov atirou o ferro mortífero.

‑           Acertaste! ‑ gritou Trosky. ‑ Fantástico! O arpão está encravado no seu corpo. Agora dêem‑lhe linha!

Trosky cortou a grossa linha do anzol com a faca, o tubarão afastou‑se rapidamente, o fio do arpão desenrolou‑se a alta velocidade; depois, quando o animal se julgou enfim livre, houve um grande empurrão que quase lhe rasgou o corpo. A linha rangeu e esticou‑se como a corda de um instrumento.

O tubarão voltou a aparecer à superfície da água com o arpão preso nas costas. Trosky debruçara‑se sobre a balaustrada e observava o peixe que lutava desesperadamente.

‑           Vem ter comigo ‑ disse, rouco. ‑ Meu amigo, tu já és meu. Eu esperei por ti. Esperei durante todo este tempo...

A luta pela sobrevivência durou mais de duas horas, no fim das quais finalmente as forças do peixe estavam esgotadas. Trosky recolheu a linha do arpão com a respiração ofegante e, quando o tubarão se aproximou do barco olhando para ele com uns olhos pequenos, frios e assassinos, Trosky atirou um fio de aço com um gancho para a sua nuca e puxou‑o para bordo com a ajuda do pequeno sarilho. O animal fazia movimentos bruscos com o seu corpo pesado, mexendo as barbatanas.

‑           Cuidado! ‑ exclamou Losskov. ‑ Ele ainda pode atacar‑te. Espera, que eu vou matá‑lo.

Trosky, porém, não esperou. Aproximou‑se do peixe com uma longa faca na mão. O seu rosto brilhava, coberto de suor, e o seu sorriso parecia artificial e sem expressão, como se usasse uma máscara. Pousou os dois pés sobre o arpão. O tubarão, que estava deitado de lado, fez um movimento brusco, tentando levantar‑se.

‑           Comigo, não! ‑ exclamou Trosky com um tom de voz estranhamente monótono. Agachou‑se e esfaqueou o animal. Primeiro, espetou a faca nos seus olhos, depois na nuca e a seguir várias vezes no pescoço, no corpo e sobretudo na barriga. Havia sangue por todo o lado e Trosky tinha os braços vermelhos até aos cotovelos. Porém, não parava de apunhalar o tubarão e, quando por fim o tinha morto e apenas os nervos do peixe estremeciam, levantou o braço, espetou a faca na barriga do animal e abriu‑a com um golpe. Helena teve de reprimir os vómitos, tapando a boca com as mãos. Lucrezia desapareceu pelas escadas. Trosky, por seu lado, ficou ajoelhado em frente do tubarão, no meio de uma enorme poça de sangue e de carne, com a respiração ofegante, e olhou para Losskov.

‑ Ele e  meu ‑ balbuciou Trosky com uma voz rouca.

‑ Ninguém quer tirar‑to.

‑ Eu consegui vencê‑lo. Ele tem mais de três metros.

‑ Levanta‑te e vai lavar‑te! ‑ disse Losskov.

Trosky abanou a cabeça.

‑ O tubarão e  meu!

‑           Eu tomo conta dele, Jan.

Trosky parecia satisfeito. Levantou‑se, passou por cima do enorme peixe morto, deixou cair a faca e foi até à proa, onde tirou água do mar com a ajuda de um balde pendurado numa corda. Teve de se lavar cinco vezes de seguida, retirando o sangue da pele, e depois foi para baixo, a fim de mudar de roupa. Os nervos do peixe ainda estremeciam de vez em quando. Os intestinos saiam do seu corpo cortado.

‑ Tenho medo ‑ balbuciou Helena, que ainda estava enjoada. ‑ Peer, eu tenho tanto medo...

 

Ao cair da noite, o tubarão tinha‑se transformado num novo alvo para Trosky. Estava pendurado numa corda e Trosky atirava facas contra o seu cadáver.

Acertava quase sempre com a faca na carne, com o que ficava visivelmente satisfeito.

 

Passaram‑se mais vinte e dois dias.

Sempre rodeados pelo mar e pelo céu com sol ou chuva. Os dias eram quentes e húmidos e as noites frias. Viviam numa enorme solidão. O barco baloiçava pelo mar, que durante as tempestades ficava coberto de uma espuma branca e, quando não havia vento, parecia uma enorme massa uniforme e azul. Sentiam ódio por tudo o que os rodeava, uma raiva cega ao verem‑se uns aos outros... Era a ruína de quatro seres humanos que se encontravam sobre alguns metros quadrados de plástico e de madeira, alumínio e vidro, numa imensa solidão.

Entretanto, o tubarão estava completamente desfeito devido às facadas que levara de Trosky. Porém, continuava pendurado na popa a apodrecer ao sol. Devido ao clima húmido, a carne não secava, decompondo‑se aos poucos. Nem sequer o vento conseguia eliminar o cheiro adocicado a carne podre que se sentia em todo o barco, até mesmo na cabina, e que se colava às paredes.

Helena e Lucrezia tentaram várias vezes cortar a corda na qual estava pendurado o cadáver, mas Trosky empurrava‑as para o lado e até chegou a tentar bater em Luzi.

‑           Este peixe e  meu! ‑ berrou.

Por fim, Losskov conseguiu cortar o tubarão ao meio com a ajuda de um machado que atirou contra o cadáver apodrecido. Trosky soltou um berro, atirou‑se para cima de Losskov e empurrou‑o para trás.

‑           Seu estúpido! ‑ exclamou. ‑ Seu invejoso! Só porque tu não tens um peixe, destróis o meu. Mas eu aviso‑te: a partir de agora não tocas mais no meu peixe! Quem se aproximar dele, leva com uma faca no corpo!

‑           Eu não aguento mais este cheiro! ‑ gritou Losskov.

‑           Mas eu suporto‑o! Para mim, o vosso cheiro e  muito pior!

Peter calculava a posição do barco várias vezes ao dia. Aproximavam‑se das ilhas Falkland. A temperatura estava a descer, mesmo quando o Sol brilhava com toda a força. A água do mar tornara‑se fria, dado que se aproximavam do Pólo Sul, embora este ainda estivesse a milhares de milhas de distância. O pior eram as noites. Tinham de vestir grossas camisolas e gorros de lá por baixo dos oleados que eram obrigados a usar devido às ondas que mudavam bruscamente. Quando nascia um dia quente que fazia subir as temperaturas, voltavam a despir os oleados.

Num desses dias, Lucrezia conseguiu cortar a corda na qual estava pendurado o cadáver do tubarão e deitá‑lo para o mar, enquanto Trosky comia uma sopa de massa no salão. O cadáver estava tão podre que rebentou ao cair na água. Lucrezia ficou tão enjoada que teve de respirar fundo, até se sentir um pouco melhor.

 

Todos estavam habituados aos berros de Trosky, mas aquilo que ouviram nesse dia foi diferente. Trosky apareceu no convés de barriga cheia e satisfeito. A primeira coisa que fez foi olhar para o lugar onde costumava estar pendurado o cadáver. Porém, o tubarão desaparecera. Restava apenas o poste e algumas cordas cortadas.

O grito que Trosky soltou nem parecia humano. O seu rosto, com uma barba selvagem de três semanas, contraiu‑se de uma maneira horrível. Precipitou‑se para a proa, olhou para o mar e depois uivou como um lobo.

Lucrezia, que estava na cabina, refugiou‑se no seu camarote e trancou a porta.

Losskov pousou a sua pistola na mesa e deu outra a Helena que estava sentada num canto, aterrorizada.

‑ Juntos conseguiremos enfrentar esta situação! ‑ gritou, num tom de voz duro. ‑ Meu Deus, eu serei capaz de disparar contra ele!

‑           Isso transformar‑te‑ia num assassino!

‑           Estaria a agir em autodefesa, Helena.

‑           Como e  que mais tarde vais explicar o que se passou?

‑           Mais tarde? Quem e  que se lembrará de falar disso? - Riu‑se, amargurado. ‑ Direi simplesmente que uma vaga enorme o arrastou para o mar. Direi que ele não teve cuidado suficiente, que não apertou bem o seu cinto de segurança, que o vento soprava a quarenta e cinco nós e as vagas despenhavam‑se sobre o barco. Quem e  que será capaz de provar que tudo isto não e  verdade?! Eu poderia até anotar este acontecimento no livro de bordo.

‑           Tu não serias capaz de matar um ser humano. Sabes muito bem que não serias capaz!

Lá em cima, Trosky continuava a chorar. De repente, precipitou‑se em direcção às escadas e desceu‑as apressadamente. Reparou imediatamente na pistola de Peter e em Helena que pegou na dela.

‑           Quem e  que foi? ‑ berrou Trosky com uma voz rouca. ‑ Foi aquela vadia com cio! Só pode ter sido ela! Ela estava sozinha lá em cima enquanto nós comíamos a nossa sopa! ‑ Ficou parado perto das escadas, cerrou os punhos e olhou para a porta do camarote de Lucrezia. ‑ Sai daí, sua estúpida! A porta não te serve de nada! Eu arrombo‑a com um simples pontapé!

‑ Primeiro, terás de lá chegar! ‑ disse Losskov com uma voz fria.

‑           E vocês pensam que podem impedir‑me disso com as vossas pistolas? ‑ Trosky riu‑se às gargalhadas. O tom de loucura que se ouvia nesse riso causou arrepios a Peter. - Vocês querem mesmo disparar contra mim?

Trosky avançou um passo. Losskov levantou a pistola e apontou‑a para o peito de Trosky. Este ficou imóvel.

‑           Eu amaldiçoo‑vos! ‑ clamou, rouco. ‑ Que todos me oiçam: eu amaldiçoo‑vos! Quero que morram! Tanto me faz o que irá acontecer‑me, mas quero que vocês morram da maneira mais cruel possível! - De repente, começou a chorar. Sentou‑se ao lado de Helena no banco, encostou a cabeça para trás, abriu a boca e soluçou como uma criança. O seu corpo estremecia, e a saliva escorria pelos cantos da boca para a sua barba selvagem.

Era uma imagem horrível, que teria suscitado compaixão se não se tratasse de Trosky.

‑           Apanharemos outro peixe ‑ animou‑o Losskov. - Perto da Terra do Fogo há zonas com milhares de peixes. Existem focas. Ilhas inteiras povoadas por focas! E até mesmo pequenas baleias. Em breve, entraremos numa zona de baleias.

‑           Este foi o meu primeiro tubarão ‑ gemeu Trosky. - Lutei com ele durante três horas. Ele pertencia‑me.

‑           Mas o cadáver dele já estava a decompor‑se!

‑           Isso e  razão para deitá‑lo fora? Nós também estamos a decompor‑nos. E alguém nos atira para o mar?

‑ Isso ainda terá de ser decidido ‑ afirmou Losskov.

‑ Quando a água potável chegar ao fim, teremos de decidir o que fazer. Talvez tenhamos de mudar de rumo, em direcção às ilhas Falkland. As calmarias atrasaram‑nos quase três semanas e a água já não chega para irmos até ao cabo Horne sem parar.

‑           Mas os estúpidos dos teus amigos viquingues foram capazes de fazê‑lo, não foram? ‑ gritou Trosky. ‑ Eles bebiam urina, ou o quê?

‑           Talvez eles tivessem tido mais sorte e um vento mais favorável, Jan. Queres um uísque?

‑           Vai‑te lixar!

‑           Se isso te tornar mais sensato...

Trosky fitou Losskov com uns olhos vermelhos. Depois, levantou‑se do banco, lançou mais um último olhar para a porta trancada, atrás da qual Lucrezia estava deitada na cama, a tremer, e voltou a subir para o convés. Helena encostou‑se para trás com um suspiro. O revólver caiu da sua mão, resvalando para o chão.

‑           Eu rezei ‑ disse, devagar. ‑ Tu realmente terias disparado?

‑           Não. ‑ Losskov baixou a cabeça. ‑ Eu não sei.

‑           Mas eu sei que eu teria disparado! ‑ Helena fechou os olhos e o seu corpo estremeceu. ‑ Eu teria mesmo disparado. Por isso e  que eu rezei.

No dia seguinte, Trosky vingou‑se de Lucrezia.

Tudo aconteceu muito rapidamente, sem qualquer palavra ou gesto que o deixasse prever.

De repente, Trosky encontrava‑se ao lado de Lucrezia, que estava deitada ao sol. Desta vez era ele quem trazia uma pistola. Disparou contra Losskov, que correu do poço para a popa, e a bala passou ao lado. Trosky não acertara de propósito, mas aquele tiro servia de aviso. Com uma força enorme, Trosky agarrou Lucrezia; ela soltou um grito estridente, tentando defender‑se. Trosky conseguiu com apenas uma mão atirar o corpo dela contra o convés e agarrar a sua cabeça pelos longos cabelos. Depois, atirou‑se para cima dela, pôs os joelhos entre as suas pernas, estendeu as suas coxas e por um momento pousou a pistola no chão para abrir as calças.

Os gritos de Lucrezia tornaram‑se estridentes, quase inumanos. Losskov aproximou‑se, mas Trosky tinha de novo a arma na mão. Pressionou Lucrezia para baixo com o peso do seu corpo e disparou. A bala só não acertou em Peter porque este tropeçou e caiu para o lado. Helena apareceu nas escadas e, quando viu o que se passava, agachou‑se imediatamente,tentando desviar‑se do tiro que Trosky disparara contra o tecto da cabina.

‑           Tem de se pagar por tudo na vida! ‑ gritou Trosky fora de si. ‑ E agora chegou a altura de eu ajustar contas pelo que fizeram ao meu tubarão!

Com a pistola numa mão e segurando a cabeça de Lucrezia com a outra, Trosky apoderou‑se do corpo nu de Lucrezia com uma ferocidade quase animalesca. Os gritos de Lucrezia transformaram‑se num gemido; depois, desistiu de lutar contra ele. Espreguiçou‑se, e deixou cair os braços para o lado, permitindo a Trosky agir.

Quando ele enfim a largou, Lucrezia parecia morta. Assemelhava‑se a uma bonita boneca a quem se arrancara os membros.

Trosky olhou para ela e, de repente, ajoelhou‑se, beijou carinhosamente as pálpebras dos seus olhos fechados, a sua boca, o pescoço, o peito e todo o seu corpo. A seguir, deu‑lhe

uma grande bofetada.

‑           Pronto, era só isto! ‑ proferiu com uma indiferença assustadora. Abotoou as calças e deitou a pistola aos pés de Losskov. ‑ E agora podes dar‑me um tiro, meu amigo. Eu não fujo.

Losskov baixou‑se e apanhou a arma, deixando‑a porém pendurada na mão.

‑           Vai‑te embora! ‑ disse, devagar.

‑           O que e  que foi? ‑ Trosky posicionou‑se de pernas abertas em frente a Lucrezia que ainda não se movera. - Porque e  que não disparas? Tens escrúpulos por eu estar desarmado? Os animais selvagens também não têm arma para se defenderem quando são caçados e mesmo assim os caçadores matam‑nos! Eu sou um animal selvagem e tu podes matar‑me à vontade, Peer!

‑           Vai‑te embora! ‑ repetiu Losskov.

Trosky hesitou um instante, depois passou em passos lentos por Losskov, como se estivesse à espera que este o atacasse a qualquer momento, dando‑lhe por exemplo um forte empurrão e atirando‑o para o mar. Esta era a grande oportunidade de Losskov de se ver livre de Trosky sem grandes problemas. Bastava continuar a navegar a todo o pano. Se Trosky caísse para a água, nunca alcançaria o barco a nado, já que este avançava a alta velocidade.

Ao chegar às escadas, Trosky ficou parado.

‑           Eu não sei de que e  que tu estás à espera ‑ declarou. ‑ Nunca mais terás uma oportunidade destas!

Mal Trosky desaparecera pelas escadas, Lucrezia levantou‑se com um salto, correu até à popa, desceu as escadas que normalmente serviam para tomar banho no mar, pendurou‑se a um degrau e deixou o seu corpo flutuar nas ondas. Dez minutos depois, voltou para o convés, abanou‑se como um cão e torceu o cabelo.

‑           Eu tinha de me lavar depois disto ‑ comunicou a Losskov, que lhe atirou uma toalha. ‑ Agora já me sinto melhor. Que besta!

 

A meio dessa noite, Helena acordou. Alguém fizera barulho no salão. Levantou a cabeça e julgou ver Lucrezia a passar para o camarote de Trosky. Era uma sombra clara...

Helena esperou alguns segundos e depois correu nas pontas dos pés para o convés. Peter Losskov estava sentado no poço. Atara o leme e estava a ler um livro à luz de uma lanterna a pilhas.

‑ A Luzi foi para o camarote do Jan! ‑ disse, sem fôlego. ‑ Agora mesmo, há alguns segundos.

‑ Finge que não viste nada! Que ela o mate à vontade!

‑ Duvido que o mate ‑ expressou‑se Helena, num tom de voz sarcástico. ‑ Ela estava nua...

A partir dessa noite, Lucrezia e Trosky passaram a habitar juntos um camarote.

‑ Agora as frentes estão bem definidas ‑ afirmou Trosky a Losskov. ‑ Estabelecemos o equilíbrio. Não vale a pena teres vergonha e fazeres o papel de moralista. Vai ter com a tua Helena e goza uns bons momentos antes de morrermos todos neste maldito oceano!

 

Três dias depois, houve uma tempestade. Com apenas o pequeno traquete içado, o barco dançava nas vagas enormes, caía para enormes vales de água e voltava a disparar para cima em direcção ao céu cinzento. Caía de um lado para o outro, o mastro afundava‑se no mar bravo; o barco, porém, não se afundava, dado que o lastro o mantinha sempre direito e as câmaras esponjosas no casco duplo faziam com que voltasse sempre para a superfície. O oceano tentava dar cabo deles, sem piedade, lançando ondas enormes para cima do barco. Losskov e Trosky encontravam‑se no poço, presos aos cintos de segurança e atados a cordas pelas quais podiam correr por todo o barco, em caso de emergência. Quando uma vaga surgia no horizonte, apoiavam‑se contra o leme e encolhiam a cabeça. Nessas alturas, o barco ficava na vertical e era lançado para o ar, para um vazio cinzento e sibilante; em seguida, caía para a profundeza agitada e devoradora.

‑ Este maldito oceano não vai apanhar‑nos! ‑ gritava Trosky com um ar triunfante para o ouvido de Losskov. - Nós vamos mostrar‑lhe que somos mais fortes!

Fitou Losskov, encharcado e com um olhar brilhante. O seu rosto, coberto pela barba selvagem, emanava força e coragem. Era um homem que com cada onda que os ameaçava se tornava mais forte, capaz de se rir numa altura em que os outros ficavam aterrorizados.

"Ele realmente e  louco", pensou Losskov, agachando‑se ao ver uma onda aproximar‑se. Porém, estava feliz por ele existir e se encontrar ao seu lado nessa altura.

 

Será um ser humano capaz de sobreviver a uma tempestade que dura sete dias e sete noites?

Conseguirá o seu coração e o seu cérebro suportar tanta agitação num mar bravo e cheio de espuma, tornando‑se num objecto indolente entregue a forças desenfreadas da Natureza, sendo rodeado pelo barulho ensurdecedor das vagas e o uivar da tempestade, apenas com um único e pequeno consolo: "Sobreviveremos! Não nos podemos afundar! O mar pode partir os nossos ossos, mas nós ficamos à superficie!"

Será um homem capaz de aguentar tudo isso? Durante sete dias e sete noites?

Eles aguentaram. Helena e Lucrezia, sempre presas por ganchos na cabina, e Losskov e Trosky no poço, pendurados entre os cabos, agachando‑se cada vez que uma onda se despenhava sobre o barco e aconchegando‑se o mais possível um ao outro para reduzirem ao mínimo a superfície deles, e separando‑se de novo logo de seguida, para tentarem desesperadamente manter manualmente o barco sobre as ondas, arriscando as suas vidas constantemente.

O medidor de vento falhava. A sua escala chegava apenas até aos sessenta e cinco nós, quando nessa altura o vento já soprava no mínimo a oitenta nós. Isso representava uma velocidade do vento de mais de cem milhas! Nessa situação, não valia a pena pensar em navegar ou tentar definir a posição do barco. Já não havia sol, apenas um céu cinzento uivante, que de vez em quando era trespassado por pedaços de nuvens, para o qual o oceano uivava.

Foram sete dias e sete noites.

A partir do quinto dia, Trosky e Losskov revezaram‑se; cada um dormia cinco horas. Pode parecer absurdo, mas eles realmente dormiam. Amarravam‑se à cama e ficavam inconscientes mal se deitavam. Helena ou Lucrezia tinham de acordá‑los, e eles subiam, meio tontos, para o convés, onde eram recebidos por enormes vagas que atiravam grandes quantidades de água para a cabina.

‑           Já há muito que devemos ter passado pelas ilhas Falkland ‑ disse Losskov ao sexto dia. ‑ A tempestade sopra para sudeste. Estamos a aproximar‑nos da Terra do Fogo!

‑           E e  lá que queremos ir! ‑ berrou Trosky contra o vento. Nem sequer era possível ouvir o seu riso; apenas era visível no seu rosto. ‑ O cabo Horne está a preparar‑nos uma recepção adequada. O maldito do cabo sabe como deve tratar um homem do mar!

‑           Será que os icebergues também o sabem? ‑ gritou Peter para o ouvido de Trosky. Este olhou para ele admirado.

‑           Porquê os icebergues?

‑           Com o vento que há, e  possível que o gelo seja arrastado até aqui. Até mesmo nesta altura do ano!

‑           Mas o vento está a soprar na direcção oposta!

‑           Nós estamos a aproximar‑nos do gelo.

Cobriram‑se com um oleado e agacharam‑se no poço.

O mar despenhava‑se por cima deles, esmagando‑os como se

fosse um enorme punho. As bombas de água tinham atingido o limite das suas capacidades. A água chegava aos joelhos de

Trosky e Losskov.

‑           O que e  que diz o boletim meteorológico? ‑ gritou Trosky.

‑ Forte tempestade. E temperaturas a descer. Isso preocupa‑me.

‑ Quando e  que utilizaste o rádio pela última vez? - Trosky olhou para Losskov com um ar assustado, como se tivesse descoberto algo de horrível. ‑ Meu Deus, só agora e  que me lembrei disso! Será que a nossa posição e  conhecida?

‑ Não, desde Tenerife que não demos sinal.

‑ Desde Tenerife. . .? ‑ Trosky engoliu em seco. ‑ Tu estás completamente doido?

‑           O rádio serve apenas para situações de emergência, e até agora ainda não surgiu nenhuma! Os Viquingues também não tinham rádio.

‑           Meu Deus! Seu imbecil! ‑ Trosky agachou‑se. Uma vaga enorme despenhou‑se sobre o barco. ‑ Isso quer dizer que nós já não existimos para o resto do mundo! Peer, céus, será que tu não entendes? Há várias semanas que nós já não fazemos parte do mundo dos vivos! Estamos mortos para o resto do mundo! Devorados pelo oceano Atlântico! Deixámos de existir! ‑ O olhar de Trosky voltou a mostrar um tremelicar perigoso. ‑ Há muito tempo que já fomos esquecidos.

‑           O Dieter Randler está à nossa espera em Ushuaia.

‑           Nós nunca lá chegaremos!

‑           Quem e  que diz isso? ‑ Losskov tentou cobrir‑se mais ainda com o oleado. ‑ Depois desta tempestade, o Sol voltará a brilhar. Isso e  uma lei da Natureza que também e  válida no cabo Horne. E basta aparecer o Sol para sabermos onde nos encontramos. Nessa altura, teremos conseguido. Já falta pouco, Jan. Devemos estar a dirigir‑nos para o cabo Horne.

‑           Desde Tenerife que ele não dá sinal de vida... ‑ murmurou Trosky. ‑ Quem será capaz de compreender isso?

"Os Viquingues também não tinham rádio..." Meu Deus... Riu‑se de uma maneira histérica, deu um murro na barriga de Losskov, saiu de debaixo do oleado e foi ao longo da corda até às escadas. Depois soltou o gancho e deixou‑se cair para dentro da cabina.

‑           Sabem que agora nos tornámos numa espécie de "holandeses errantes" ‑ gritou para as raparigas que ficaram horrorizadas. ‑ Sim, e  verdade! Agora somos uns fantasmas! Peer fez com que deixássemos de ser seres vivos!

Despiu o oleado, sentou‑se ao lado do rádio e ligou a bateria. Os ponteiros de controlo oscilavam de um lado para o outro. Era sinal de que a máquina funcionava.

‑           Eu vou dar noticias do Além. Quer o nosso viquingue lá em cima queira, quer não!

Enviou a mensagem de socorro, mas ninguém lhe respondeu. Tentou vezes sem fim. Porém, era como se a tempestade engolisse todos os sinais.

‑           Eu sabia que isto iria acontecer! ‑ exclamou Trosky e teve de desistir, resignado. ‑ Tenho a horrível sensação de que demos cabo de nós próprios.

Na oitava noite, ninguém ficou no poço e o leme tinha simplesmente sido amarrado. O barco dançava no mar por entre as enormes vagas e estavam todos a dormir nos camarotes, dado que tinham ouvido no rádio que a tempestade iria amainar e que o centro se deslocaria para o mar de Schouten. Precisamente nessa noite, em que todos pensavam por fim ter superado a grande prova, o barco foi abalado por uma forte pancada.

Trosky, que estava a dormir profundamente ao lado de Lucrezia, com a sua grande mão pousada no peito dela, despertou repentinamente e sentou‑se. Lucrezia virou‑se para o lado, ainda meio a dormir.

‑           O que e  que há? ‑ murmurou. ‑ Tu sabes o que é...

‑           O que eu ouvi não foi nenhuma onda! ‑ Trosky estava bem acordado. O barco movimentava‑se de uma forma estranha, diferente do habitual. Trosky tinha uma grande sensibilidade para esse tipo de coisas. ‑ O barco bateu contra algo.

‑           Terá sido outro tubarão?

‑           Não sejas parva! ‑ Passou por cima do corpo nu de Lucrezia e pegou nas calças. No mesmo instante, ouviram alguém bater à porta.

‑           Todos para fora! ‑ gritou Losskov. ‑ Estamos a meter água!

‑           Bem me parecia ‑ disse Trosky. ‑ Meu Deus, eu senti o que estava a acontecer.

Abriu bruscamente a porta e viu Helena vestida com um oleado a correr para o topo da proa. A parede, que era resistente à água, tinha já um buraco. Losskov encontrava‑se nas escadas e estava a vestir uma camisola.

‑           Que grande porcaria! ‑ gritou ao ver Trosky.

‑           Onde e  que é?

‑           No topo da proa! Ainda não sei o que está a acontecer lá fora. Apenas sei que temos um rombo.

‑           Mas nós somos "inafundáveis"! ‑ disse Trosky com um sarcasmo amargurado na voz. ‑ O cabo Horne deve ser de outra opinião.

Correram para o convés e não foi difícil descobrir o que acontecera. O barco encontrava‑se numa zona com enormes pedaços de gelo. Aquilo que viam até parecia engraçado: os inúmeros blocos de gelo de variadas formas dançavam sobre a superfície preta da água. Parecia um puzzle desfeito com uma largura não superior a trezentos metros e um comprimento de cerca de quatrocentos metros. Formava uma pequena mancha branca naquele enorme oceano e era proveniente da região polar sul, de uma distância de milhares de milhas. Até poderia chamar‑se‑lhe uma colónia migratória de pedaços de gelo que se perdera no mar. E foi exactamente em direcção a ela que o barco fora arrastado, esbarrando contra um dos pedaços de gelo.

Uma ponta do gelo encravara‑se na proa como um machado, permitindo que a água entrasse no barco que, entretanto, já estava ligeiramente adornado para a frente. Parecia que ia mergulhar no mar.

Trosky correu para a frente e debruçou‑se sobre a balaustrada. O buraco já estava abaixo do nível da água e o topo da proa enchera‑se de água. Aproximou‑se a passos lentos de Losskov, que entretanto soltara o leme e dava ordens a Helena e a Lucrezia. Mandou‑as içar o genoa II para além do traquete, permitindo assim que o barco aproveitasse melhor o vento e avançasse por entre os pedaços de gelo. Já não valia a pena tentar desviar‑se. Encontravam‑se no meio do gelo, mas entre cada um dos pedaços havia espaço suficiente para se poder contorná‑los.

‑           Qual o cântico que sabem cantar? ‑ perguntou Trosky amargurado. ‑ No Titanic cantaram A minha alma eleva‑se,

Senhor, mas infelizmente eu não conheço a letra dessa música.

‑           A parede do barco aguenta‑se! ‑ exclamou Losskov, decidido. ‑ Não iremos afundar‑nos!

‑           Diz isso ao mar!

‑           Apenas há água no topo da proa!

‑           O barco tem o focinho na água!

‑           Dentro de alguns minutos teremos achicado tanto que poderei pôr uma bomba de água suplementar na proa. Então vocês terão que dar à bomba manualmente. Eu necessitarei das baterias para outros fins.

‑           Estou a compreender! ‑ Trosky mostrou um sorriso forçado. ‑ Agora, de repente, lembraste‑te de que tens um rádio.

‑           Nós não iremos afundar‑nos! ‑ gritou Losskov, nervoso. ‑ Mesmo que a proa do barco esteja dentro de água nós continuaremos a navegar.

‑           E daremos a volta ao cabo Horne?! Será que existe um Prémio Nobel para a megalomania?

Trosky voltou para a proa. A bomba estava a funcionar bem e o barco endireitava‑se aos poucos, mas era provável que o mar ganhasse aquela batalha. O barco fora construído com o fim de nunca se afundar. Fora submetido a várias provas; contudo, nunca ninguém acreditara seriamente que algo acontecesse. Assim, as três bombas de que dispunham tinham um tamanho que satisfazia mais a vista do que as verdadeiras necessidades em situação de emergência. Trosky voltou para o poço. Losskov conseguira atravessar a zona de gelo sem danificar mais o barco. Tinham de novo o mar sem obstáculos pela frente. Analisaram a zona circundante com a ajuda de um holofote e Peter pareceu confiante.

‑           Eu vou para o lado de fora tentar tapar o buraco ‑ declarou Trosky. ‑ Não conseguiremos resistir contra a pressão de água. ‑ Despiu‑se e hesitou um pouco. O ar estava frio e a água tinha apenas alguns graus de temperatura. ‑ Se daqui a pouco vires um pedaço de gelo com uma forma um pouco estranha, serei eu.

Passou por cima da balaustrada, avançou pelos cabos das defensas e depois voltou a subir rapidamente. Lucrezia deu‑lhe

um roupão e secou o seu corpo. Trosky tremia de frio.

‑           Eu só consegui apalpar o buraco. e  suficientemente grande para caberem duas mãos nele. Se o mar se acalmar, poderemos tapá‑lo amanhã.

‑ Como? ‑ perguntou Losskov. Era uma pergunta simples, mas ao mesmo tempo muito complexa. Trosky ficou calado. Helena apareceu com um grande copo de uísque na mão, o qual Trosky bebeu de uma só vez.

‑           Que material e  que temos à disposição? ‑ perguntou.

‑           Nenhum.

‑           Isso e  impossível! ‑ balbuciou Trosky.

‑           O barco e  inafundável.

‑           Ao menos uma lona! E alcatrão! Posso tentar tapar o buraco com uma lona coberta de alcatrão. Assim, poderemos vedar a parede do lado de dentro depois de termos retirado toda a água do barco.

‑           Eu não tenho alcatrão. Apenas tenho três placas de fibra de vidro e um balde com cola especial para poliéster que, porém, só pode ser utilizada sobre superfícies secas.

‑ e  a solução! Colaremos uma placa do lado de dentro do buraco! E depois navegaremos o mais rapidamente possível para a costa... Não importa que costa! Nem que seja terra habitada por pinguins!

‑           E como e  que podemos evitar que a água entre no barco enquanto o estivermos a esvaziar?

‑           Eu prego tábuas do lado de fora! ‑ gritou Trosky.

‑           Pregos num casco de plástico?

‑           Mais tarde taparemos os buracos provocados pelos pregos com fita‑cola!

‑ Podemos tentar ‑ concordou Losskov. ‑ Rizem todas as velas! Se Deus estiver connosco, mandar‑nos‑á sol amanhã.

Mas Deus não os ajudou. Proporcionou‑lhes outra tempestade.

Enquanto no rádio anunciavam que o tempo iria acalmar, cada vez mais vagas batiam contra o barco e lançavam a água para o convés. A força das ondas fazia aumentar o tamanho do buraco. A pressão da água era tão forte que Helena de vez em quando subia as escadas, avançava ao longo de uma corda até ao poço e gritava para Losskov:

‑           Tenho medo que a parede da proa se parta! Já está a deixar passar a água. A Luzi está a bombear no salão.

‑ A parede vai aguentar‑se! ‑ gritou Losskov através da tempestade. ‑ Não tenhas medo, Helena!

Depois de ela ter aparecido pela terceira vez, Trosky perguntou:

‑ Tu realmente acreditas que vai aguentar‑se?

‑           Não, o mar pode dar cabo de toda a parede.

‑ Isso quer dizer que este e  o nosso fim?

‑ Ainda não. Por enquanto, o barco está inteiro.

‑ Até quando?

Losskov apontou para cima, para o céu.

‑           Pergunta‑Lhe a Ele!

Trosky mostrou um ar teimoso.

‑ Vai para baixo! ‑ berrou. ‑ Eu fico a segurar o leme sozinho! Manda o sinal de SOS!

‑ Se e  que alguém nos ouvirá!

‑ Agora devemos estar mais próximos da Terra do Fogo.

‑           Segundo os meus cálculos, estamos a aproximar‑nos rapidamente do arquipélago dos Estados.

‑           Isso seria maravilhoso!

‑           Se não tivermos em conta os recifes à volta. ‑ Losskov segurou‑se à corda. ‑ E mesmo que nos oiçam... quem e  que nos virá buscar com esta tempestade? Quem e  que nos encontrará aqui? Eu nem sequer sei qual a nossa posição. Encontramo‑nos algures no oceano Atlântico, a norte do arquipélago dos Estados ou então mais longe, perto do cabo Horne. Onde e  que nos poderão procurar?

‑ Experimenta! ‑ gritou Trosky. Uma nova vaga empurrou‑o contra a parede do poço. Quando toda a espuma branca acabara de escorrer, a sua cabeça emergiu da água. Tinha a boca aberta e tentava apanhar ar. ‑ Basta que nos oiçam! e  a nossa única esperança, Peer!

Losskov ficou sentado durante uma hora ao lado do rádio dando sinais de SOS. Atrás dele, Helena e Lucrezia davam à bomba tentando tirar a água do chão que entrava por fendas da proa.

‑S‑O‑S... ‑ dizia Losskov. ‑ Aqui barco à vela Helu. D‑J trezentos e quarenta e oito. Quatro pessoas a bordo. Duas mulheres e dois homens. Fala Peter Losskov, Hamburgo. S‑O‑S... S‑O‑S... Temos um rombo... Estamos a meter água na proa... A parede não está a vedar... S‑O‑S... S‑O‑S... Eu não sei quanto tempo o barco ainda aguentará... Em breve a bomba de água já não servirá de nada... S‑O‑S... S‑O‑S... Encontramo‑nos perto do arquipélago dos Estados. Estamos a ir com o vento para sudeste.

Peter esperou. Nos auscultadores ouviam‑se vários barulhos e ruídos. Depois um leve assobio. E, pelo meio, muito difícil de ouvir e pouco clara... uma voz!

‑           Eles estão a ouvir‑nos! ‑ gritou Losskov. ‑ Conseguem ouvir‑nos!

Repetiu a mensagem em inglês, sempre intercalando o SOS, o sinal internacional de socorro. A voz que se ouvia, muito baixinha e ao longe, respondia‑lhes em espanhol. Depois falou em inglês, um inglês muito precário e interrompido por interferências.

‑ Aqui Pablo Cerroso. Pablo Cerroso. Encontro‑me em Rio Gallegos. Sou amador. Rio Gallegos. Onde e  que estão? Recebi o vosso S‑O‑S! Dêem‑me a vossa posição!

‑ Um amador de rádio! ‑ exclamou Losskov, respirando pesadamente. ‑ Apenas ele. Todos os outros ficam calados. Está em Rio Gallegos. Meu Deus, eu preciso de um barco! Um barco grande e forte que consiga alcançar‑nos e que nos salve! E tinha de nos calhar um simples amador! - Riu‑se, amargurado, e voltou a falar para o rádio.

‑           Posição incerta. Algures perto do arquipélago dos Estados ou mais a sul. S‑O‑S... S‑O‑S... Pablo, vá buscar ajuda! Se não, nós morremos afogados! Pablo, avise o maior número de pessoas possível! Consegue ouvir‑me, Pablo.. .?

Não houve resposta. Apenas um assobiar e estranhos barulhos. Losskov virou‑se para as raparigas. A água no chão do salão estava a subir; já tinha um palmo de altura e elas não paravam de dar à bomba.

Losskov conseguiu estabelecer contacto por mais três vezes. Uma vez era um barco a motor chamado La Paloma, ele próprio em situação de perigo, a outra era um cargueiro de nome Cordoba III, que indicou a sua posição. Encontrava-se a duzentos e cinquenta milhas de distância do Helu, isto partindo do pressuposto de que realmente se encontravam onde Losskov pensava. O terceiro barco com o qual entraram em contacto foi o barco a motor Prince Polignac que lutava contra uma tempestade a norte das ilhas Wollaston. Encontrava‑se muito perto deles, mas como haveria de encontrá‑los?

‑           Estamos a tentar encontrá‑los ‑ consolava‑os um dos ocupantes do Prince Polignac. ‑ Vamos dirigir‑nos para o arquipélago dos Estados onde alarmaremos a Guarda Costeira. Deus esteja convosco.

A parede da proa aguentou todo o dia seguinte. Trosky ficou admirado, dado que entretanto o buraco tornara‑se tão grande que já não havia hipóteses de tapá‑lo, nem mesmo com bom tempo. O Helu estava perdido, isso já todos tinham compreendido. Porém, continuava à superfície do mar, com a proa mergulhada na água, fazendo o convés parecer um trampolim. Já não fazia sentido navegar com o traquete. Losskov mandou rizar a vela, mantendo‑se porém perto do mastro, pronto para tentar restabelecer o balanço em situações de perigo.

Durante uma das suas horas de folga, Trosky dirigiu‑se para o convés e afixou‑se com um gancho à corda.

‑           O que e  que há? ‑ perguntou Losskov. ‑ Estamos a meter água?

‑           Não. Eu só queria dizer‑te que és um tipo fantástico.

‑           E para isso expões‑te aqui ao perigo?

‑           Acho que vale a pena.

‑           Está bem! ‑ Losskov mostrou um sorriso forçado. Estava dentro do poço preso a quatro ganchos, completamente encharcado. ‑ Daqui a pouco, eu venho cá para cima e digo‑te que tu és um tipo simpático. Que vamos esquecer tudo o que se passou...

‑           Eu não vim aqui para pagar dívidas! ‑ comentou Trosky rapidamente. ‑ Nem penses nisso! Eu só quero sobreviver!

O Prince Polignac não apareceu. Nem sequer deu uma resposta. Apenas o amador do Rio Gallegos voltou a dar sinal, quando no terceiro dia Losskov voltou a emitir o seu sinal de SOS.

‑ Aqui Pablo! Aqui Pablo! Alarmei tudo e todos. Continuo a solicitar ajuda para vocês. Mas qual e  a vossa posição?

‑ Eu não sei! ‑ A voz de Losskov tremia. ‑ Já não tenho meios para me orientar. Desde hoje que nem sequer um compasso temos! O mar está a brincar connosco. Teremos de abandonar o barco. Apesar de estarmos a retirar a água com a ajuda de uma bomba, o barco está a encher. Pablo, o senhor e  a nossa única esperança! Não pare de chamar! Mobilize tudo e todos!

‑ Eu faço o que puder. Se ao menos soubéssemos onde se encontram!

à noite, o leme partiu‑se. Uma vaga gigante ergueu o barco para o céu e fê‑lo cair para um vale de água. Até mesmo Trosky, que normalmente insultava o mar e se agarrava com toda a força ao gancho, soltou um grito selvagem. Depois, não conseguiu ver nada durante alguns instantes e, quando voltou a emergir, compreendeu que o barco, embora ainda se mantivesse à superfície da água, estava praticamente inutilizável.

Trosky dirigiu‑se pela corda até às escadas e caiu para a cabina. Losskov e as duas raparigas estavam presas às varas para esse efeito.

‑           Eu sei ‑ disse Losskov e pôs o braço à volta de Trosky. ‑ O leme desapareceu. Tu, lá em cima, não conseguiste ouvir a pancada, mas agora um dos camarotes também está a meter água.

‑           Quanto tempo iremos aguentar assim? ‑ Trosky olhou para as raparigas. Durante aqueles últimos dias, os seus rostos tinham adquirido feições duras e rijas.

‑           Temos mais três horas. ‑ Losskov esfregou os olhos. - Teremos de ir para a ilha de salvação. Ainda bem que treinámos. Cada um de nós leva um saco com comida e água.

Subiram para o convés, fixaram‑se aos ganchos e prepararam a ilha de borracha. As enormes vagas empurravam‑nos de um lado para o outro, mas, quando enfim tinham metido tudo em sacos de plástico, conseguiram segurar a ilha de todos os lados. Losskov tentou recapitular aquilo que levavam consigo: provisões constituídas por pão endurecido, água em latas, barras de fruta cristalizada, chocolate de cola sem açúcar, tostas, carne em latas, bolachas e polpa de fruta. Tinham também comprimidos contra dores e febre, pomada para feridas, ligaduras e pensos adesivos, cobertores, cordas, pistolas de sinalização, coletes de salvação, lanternas manuais a baterias, duas luzes de socorro vermelhas, camisolas, cachecóis, botas de pele, casacos, um rádio transístor... A ilha ficaria cheia.

Eram quatro seres humanos e um cão nas mãos de Deus. Helena e Lucrezia entraram na ilha. Mister Plump encontrava‑se ao lado da estrada a uivar e hesitava.

‑           Vá, seu fedelho! ‑ exclamou Trosky e deu um pontapé a Mister Plump. O pequeno cão caiu para a frente, bateu contra o colchão de ar e teria caído para o mar, se Losskov não o tivesse apanhado. Peter atirou‑o para a ilha, antes que a onda seguinte se aproximasse.

‑           Agora já reina a atmosfera certa entre nós! ‑ exclamou Trosky, satisfeito. ‑ A Blondie já está com aquele olhar assassino! e  a tua vez, Peer!

‑ E tu?

‑           Eu salto para dentro da ilha quando a próxima onda me tentar arrastar do convés. ‑ Olhou para o mar e avistou uma vaga enorme que se aproximava do barco. ‑ Atenção! Soltem os cabos! ‑ Desatou as cordas que amarravam a ilha ao barco, saltou para dentro dela, caindo para cima de Helena e Lucrezia e ainda disse: ‑ Pardon, mesdames.

Depois, uma vaga enorme apoderou‑se da ilha e arrastou‑a

do convés para o mar. Caíram para a água, Losskov fechou bruscamente a entrada e depois o oceano tomou conta da ilha, fazendo‑a dançar na crista das ondas e entregando‑se a jogos cruéis: Quem seria mais forte? O homem ou a Natureza?

Era a Natureza.

Mister Plump teve tanto medo que mordeu a perna de Trosky. Este porém nem sequer o sentiu, já que também estava apavorado e isso o tornava insensível à dor.

‑           Vamos conseguir! ‑ exclamou, de repente. ‑ Agora, nenhuma tempestade nos pode fazer mal. Para o mar nós somos leves como uma bola. Podemos estar descansados.

Ficaram deitados, apinhados no chão de borracha, respirando pesadamente e esperaram. Esperavam por quê? Que a ilha se rasgasse? Ou que chocassem com o barco? Por uma vaga que os atirasse tão fundo para um vale de água que a próxima vaga os despedaçasse e o oceano os devorasse?

Losskov rastejou até à entrada e abriu‑a um pouco. Não esperara ainda conseguir ver o barco, mas este encontrava‑se a uma distância bastante curta e era atirado para o ar e de seguida caía para os vales de água, voltando porém sempre à superfície, dado que as câmaras de ar ainda o conseguiam manter à superfície da água. Era uma morte lenta e horrível, que poderia durar várias horas. O barco ainda não desistira.

Losskov voltou para o seu lugar e tapou‑se com um cobertor. Tinha frio, dado que, tal como os outros, estava completamente encharcado. Embora a ilha tivesse ficado um pouco mais quente devido ao calor dos seus corpos, continuavam a tremer, dado que não era apenas o frio que os fazia tremer, mas também os nervos, que vibravam como se levassem pequenos choques eléctricos.

‑           O barco ainda se encontra à superfície da água? - perguntou Helena.

Losskov abanou a cabeça afirmativamente.

‑           Está a bombordo e continua a lutar. ‑ Fechou os olhos e encostou a cabeça para o lado. ‑ Apetece‑me chorar.

‑           Achas que abandonámos o barco cedo de mais? - perguntou Trosky.

‑           Não. Tanto no barco como aqui na ilha, estamos sempre à mercê do mar. Nós já não podemos fazer nada. Apenas nos resta uma luzinha no topo da ilha, que durará até as pilhas acabarem, e a esperança de que alguém nos veja. Esperemos que aquele Pablo em Rio Gallegos tenha conseguido fazer algo. E que a tempestade acabe em breve.

‑           Não achas tudo isso muito pouco? ‑ Trosky deu um pontapé ao cão que, cheio de medo, se tentara deitar no seu colo. Mister Plump ganiu e foi ter com Lucrezia que o segurou nos braços. Helena tentou dar um pontapé a Trosky, mas este agarrou‑lhe o pé e riu‑se. ‑ E se ninguém nos procurar?

‑           Chegaremos a algum lugar.

‑           Claro que sim. Mas, até lá, ter‑nos‑emos transformado em múmias apodrecidas. Nos jornais ler‑se‑á: "Encontrou‑se uma ilha de plástico na Nova Zelândia com os restos mortais de quatro pessoas. Não foi possível identificá‑los. Deve tratar‑se de uma antiga jangada de borracha da década passada. - Trosky riu‑se às gargalhadas, soltou a perna de Helena e despiu o oleado. Tirou as calças e as botas e ficou deitado nu ao lado de Lucrezia. ‑ Acho que nos deveríamos todos despir. Não sou nada amigo de constipações, acho que e  uma doença estúpida perante a qual o homem capitula.

Losskov voltou a olhar várias vezes pela abertura da entrada.

‑           Agora já não consigo ver o barco ‑ disse, à terceira vez. ‑ Isso não quer dizer que se tenha afundado, o que representaria mais uma esperança para nós! Imaginem que o barco continua a flutuar pelo oceano e o encontram. Saberão onde devem procurar‑nos!

‑           Ele e  mesmo um optimista! ‑ exclamou Trosky. - Deve ser daquelas pessoas que dizem ao carrasco: "Toma, toma, que a faca não está bem afiada."

‑           O mais importante e  que continuamos vivos! ‑ Helena abriu um saco de plástico e tirou uma garrafa. Ergueu‑a e

abanou‑a pelos ares. ‑ e  conhaque, amigos! Acho que o

merecemos.

‑           Ela e  mesmo uma santa! ‑ gritou Trosky e estendeu as duas mãos em direcção à garrafa. ‑ Se me deixares beber um grande trago podes dar‑me um pontapé.

 

Décimo quinto dia.

O mar estava calmo. Fazia calor, embora estivessem a dirigir‑se para sul, o que podiam reconhecer a partir do Sol. A bússola que tinham trazido estava avariada devido à água que entrara pelo vidro por uma pequena racha. Podiam apenas orientar‑se com a ajuda do Sol ou das estrelas, o que queria dizer apenas aproximadamente.

A ilha era muito apertada, por isso, estavam encostados uns aos outros. o que lentamente se tornava insuportável. Trosky estava lá fora, sentado na borda da ilha. Tinha um chapéu de linho na cabeça e tentava apanhar peixes. Com algum engenho, transformara um alfinete num gancho e atraía os primeiros peixes com a ajuda de pedacinhos de salsicha de lata. Matava os peixes grandes com uma pancada na nuca e os pequenos esmagando‑lhes a cabeça entre o dedo indicador e o polegar, pendurando‑os de seguida num gancho para servirem de isco.

‑           Ele e  tão cruel! ‑ comentou Helena para Losskov e estremeceu. ‑ Há outras maneiras de matar um peixe.

‑           Ele dir‑te‑á que esta e  a mais rápida e a segura.

Comiam os peixes crus. Tinham um sabor horrível, mas assim poupavam a pouca comida que lhes restava. No nono dia Trosky atirou os peixes cortados para a ilha e disse:

‑           Tenho de adquirir a patente desta receita: peixes suavemente salgados!

Estava nu, e o seu corpo encontrava‑se coberto de cristais de sal devido à forte evaporação. Pegou num peixe que acabara de apanhar, rasgou‑o, retirou‑lhe as entranhas com os dedos, raspou a carne ao longo do seu corpo coberto de sal e atirou‑a a Lucrezia. Quando esta deitou a carne para o mar, enojada, ele riu‑se às gargalhadas.

‑           Vejam como ela está satisfeita! Até dispensa uma especialidade como esta! Vocês não acham que vivemos como na terra das delícias?!

às vezes acontecia que ele vinha para o interior da ilha, pegava em Lucrezia, deitava‑a de barriga para baixo e saltava para cima dela. Quando isto acontecera pela primeira vez, Lucrezia tentara defender‑se desesperadamente, mas depois todos se habituaram àquele comportamento de Trosky. Já não tinham vergonha, e os conceitos morais que lhes tinham sido ensinados tinham‑se perdido. Quando Trosky se rebolava para perto de Lucrezia, Helena e Peter estavam sentados ao lado a ler ou a ouvir música no rádio ou então nadavam no mar, sempre atados à ilha por uma corda.

Um dia, quando Trosky nadava sozinho no mar, Lucrezia comentou para Losskov:

‑           Ele sabe nadar, mas não nada muito bem. De certeza que não sabe nadar longas distâncias. Ele próprio me disse isso.

‑           Não tenhas medo ‑ respondeu Losskov sem compreender. ‑ Ele está preso à corda.

‑           Se cortássemos a corda...

‑           Luzi! ‑ Losskov fitou‑a, escandalizado. ‑ Esquece isso! Rapidamente!

‑           Eu odeio‑o! Odeio‑o! Quando ele está deitado em cima de mim, eu gostaria de ser uma bomba que explode juntamente com ele! às vezes, lembro‑me de um filme japonês que vi: havia duas pessoas a fazerem amor e, quando ele atinge o climax, ela espeta‑lhe uma enorme faca nas costas.

Olhou para o mar, onde Trosky se deixava embalar pelas ondas, mergulhava, voltava à superfície e ria‑se, satisfeito.

‑Agora... ‑ disse Lucrezia, devagar. ‑ Agora poderíamos cortar a corda. A corrente arrastar‑nos‑ia a uma velocidade que ele não conseguiria acompanhar. Peer, e  só um simples corte com a faca e estamos livres dele! Por favor! Tu, que és o homem!

‑           Mas não sou nenhum assassino! ‑ Pôs o braço à volta dos ombros dela, tentando acalmá‑la. Lucrezia começou a tremer e chorou baixinho. ‑ Tu falaste sobre isto com a Helena?

‑           Sim. Ela está à espera que o Trosky se apodere dela também... O que e  que tu farias se isso acontecesse?

Losskov ficou calado. "Sim, o que e  que eu faria?", perguntou a si próprio. "Acabaria por matar o Trosky?"

Durante alguns instantes pensou o que aconteceria se não os encontrassem, se a comida e a água chegassem ao fim e já não tivessem forças para pescar e apanhar a água da chuva que era o único meio de escaparem à morte por sede.

Era um pensamento tão horrível que Losskov preferiu esquecê‑lo imediatamente e repetir a sua "frase de motivação" que parecia um longo poema que tinha de decorar:

‑           Eles estão à nossa procura. Eles vão‑nos encontrar. Eles têm de nos encontrar.

Trosky nadou até à ilha, saiu da água e esticou os músculos. Agarrou Lucrezia, puxou‑a para perto de si pelos longos cabelos pretos e deitou‑se sobre ela.

‑ Estes banhos são tão rejuvenescedores! ‑ disse, contente. ‑ Diabos, eu sinto‑me como seis bois de cornos compridos.

Enquanto estava deitado em cima de Lucrezia, esta fitava Peter von Losskov com uns olhos grandes. "Dá‑me uma faca", gritava o seu olhar. "Por favor, dá‑me uma faca. Uma faca comprida que chegue até ao seu coração!"

 

Vigésimo sétimo dia.

Helena e Lucrezia começaram a ter as primeiras úlceras no corpo.

Embora tomassem banho regularmente e logo a seguir limpassem o corpo com toalhas turcas, o sal do mar pegava‑se

à pele. Estava em todo o lado. Não só nas ondas, como também no ar, nas finas gotas de água vindas das vagas. Colava‑se a tudo, ao princípio, invisível, e depois, quando a água se evaporara, tornava‑se visível numa fina camada branca.

A pele queimava, rachava, ficava vermelha e começava a sangrar. O sal estava em todo o lado, corroendo os poros, as feridas, as mucosas... Não havia maneira de lhe escapar. Helena, que era médica, cobriu as primeiras feridas com pomada. Mas de que e  que isso servia? A água salgada era mais forte e destruia sistematicamente a pele.

‑ Esta variante nem e  assim tão má ‑ declarou Trosky quando depois de dois dias raspava a crosta de sal do seu corpo com a ajuda das costas de uma faca. ‑ Não iremos morrer à sede, nem chegaremos a terra em forma de esqueletos. Conservar‑nos‑emos bem salgados para a posteridade.

‑ Precisamos de chuva. ‑ Losskov ergueu o olhar para o céu azul. O Sol brilhava ininterruptamente, de manhã à noite. Mesmo assim o ar estava fresco; fazia cerca de quinze graus centígrados e o mar parecia‑lhes frio. Há vários dias que já não tomavam banho. Vestiam calças e camisolas e só se despiam à noite, quando se deitavam um ao lado do outro, corpo contra corpo, por baixo dos cobertores e transpiravam. ‑ Céus, como seria bom tomar um banho de chuva agora!

‑           E dois dias depois estamos de novo cobertos de sal. Trosky, que entretanto tinha uma barba forte e comprida, passou as mãos pelo cabelo e depois mostrou‑as a Losskov. Por baixo das unhas havia cristais de sal, como se tivesse metido a mão em açúcar. ‑ Eu sou uma salina viva! Aposto que se eu agora engravidasse a Lucrezia, ela daria à luz um saleiro!

‑           Tem de chover! ‑ exclamou Losskov tão alto como se quisesse que o céu o ouvisse. ‑ Já deveria ter chovido! Há nove dias que não cai um pingo do céu e isso e  completamente anormal nesta zona!

‑           Nesta zona! Em que zona e  que estamos? e  verdade que este e  o vigésimo sétimo dia da nossa gloriosa viagem numa ilha de borracha em direcção à Terra do Fogo?

‑ Sim.

‑           Tenho a certeza de que os Viquingues teriam inveja de nós. Nunca lhes ocorreria uma ideia destas. ‑ De repente, Trosky fitou Losskov com um olhar chamejante. ‑ Quanto tempo e  que ainda aguentaremos isto?

‑           Muito tempo.

‑           Isso não e  uma resposta. ‑ Trosky inclinou‑se para Losskov. ‑ Vamos falar um pouco no futuro?

‑           Por mim, sim.

‑           Continuaremos assim durante mais cem dias.

‑           Que disparate!

‑           Cem dias! ‑ insistiu Trosky, parecendo muito seguro. ‑ A comida acabou, a água também, apenas resta a água da chuva, mas essa também não e  suficiente. Não nos estamos a dirigir para a Terra do Fogo, mas em vez disso estamos a cruzar o oceano Atlântico a sul, em direcção à costa africana. Achas que isso e  impossível?

‑           É pouco provável.

‑           Tu és um verdadeiro diplomata. Conheces a verdade, mas sabes exactamente como a hás‑de esconder. Portanto, áfrica. Isso quer dizer mais cem dias. Sem comida, sem água.. Apenas quatro seres humanos e um cão. Espera! O cão, não! Esse teremos morto e comido depois de vinte dias.

‑           Errado! Antes disso, terias de matar a Helena.

‑           Até mesmo a querida Loirinha tem fome, e os teus fracos abraços não chegam para alimentá‑la. Suponhamos então que já passaram cem dias. E, quanto mais dias passam, mais evidente se torna que quatro pessoas a bordo são de mais! Estás a compreender o que eu quero dizer?

‑           Acho que sim ‑ disse Losskov com cuidado. Tinha medo de provocar Trosky. O seu olhar era alarmante. Bastaria dizer uma palavra errada e haveria berros e gritos, zangas e ameaças. O inferno estava sempre iminente.

‑           O que e  que achas? ‑ perguntou Trosky. - Pensas que sobreviverás? e  mesmo por isso que estou a falar contigo sobre o futuro. Queria avisar‑te de que serei o último sobrevivente neste paraíso de borracha!

Losskov respirou fundo. Sentiu o coração apertado, como que envolvido por cadeias. Respirava com dificuldade.

‑ Tu queres matar‑nos um depois do outro?

‑           Sim. E tu serás o primeiro. ‑ Trosky sorriu. O seu rosto com a barba selvagem, coberta de cristais de sal, transformou‑se numa máscara assustadora, parecida com os fetiches que os caçadores de cabeças da Nova Guiné têm espetados em varas ao lado das suas cabanas. - e  bom que saibas uma coisa, Peer: não podes fugir daqui. ‑ Fez um gesto largo sobre o infinito do oceano. ‑ Ou talvez até possas. Podes! Voluntariamente. Se fores um verdadeiro cavalheiro. Assim teremos uma pessoa a menos a beber água. Guardar‑te‑ão

na memória como um grande senhor.

‑           E depois matarás as raparigas.

‑           Imaginemos que já se passaram cento e vinte e um dias. Choveu, por isso temos água, mas falta‑nos algo para o estômago. Não há peixe que morda o anzol e a fome está a dar cabo de nós. Não se pode comer cobertores ou sacos de plástico, nem latas de conserva ou cordas de nylon. E sapatos só o Charlie Chapím comia nos seus filmes. Pode‑se sobreviver, afinal a água não falta...

‑           Pára imediatamente, Jan! ‑ exclamou Losskov. ‑ Se não, eu bato‑te!

‑           Porque e  que o homem foge sempre à verdade? Porque e  que nunca quer saber realmente qual e  a verdade nua e crua? Peer, a próxima será a Helena! Daqui a cento e vinte dias ela terá emagrecido um pouco, mas mesmo assim restará suficiente carne no seu corpo.

‑           Estás a esquecer que eu poderia agir antes de ti! - ameaçou Losskov num tom de voz duro. ‑ A maneira como tu encaras o futuro e  alarmante.

Deixou Trosky sentado à entrada e virou‑se.

‑           De que e  que estão a falar? ‑ chamou Helena de dentro da ilha.

‑           Estávamos a falar de receitas de cozinha para nos animarmos! ‑ exclamou Trosky alegremente. ‑ Dá imenso prazer quando se está esfomeado.

Na noite do vigésimo sétimo dia, Losskov dormiu com a sua pistola. Escondeu‑a num cobertor que servia de almofada. Trosky, que não deixou escapar esse detalhe, sorriu.

- Isso e  só a partir do centésimo dia ‑ avisou. Apenas Peter o compreendeu. ‑ Nós só vamos no vigésimo sétimo.

 

Quadragésimo primeiro dia.

A água tornara‑se escassa; da comida restava apenas o chocolate, as barras de fruta cristalizada, algumas bolachas com sabor a mofo, torradas amolecidas e três latas com pão de centeio. Além disso, Helena guardara cuidadosamente num saco três latas com massa e carne de vaca, duas latas com salsichas e duas embalagens a vácuo com batatas descascadas. Guardava essas preciosidades como se fosse a mãe delas. Dormia ao lado da comida como se se tratasse de um tesouro.

Quem quisesse aproximar‑se dessa comida durante a noite, tinha de passar por cima dela, o que ela notaria imediatamente atacando quem o tentasse.

Ela estava alarmada. No trigésimo sexto dia, depois de

uma discussão com Losskov acerca de Mister Plump, durante

a qual Trosky calculara que, se partilhassem entre si a comida e a água que o cão consumia, poderiam prolongar a vida

por mais um terço do tempo, Jan gritara num dos seus famosos acessos de raiva:

‑ Isto e  um nojo! Até fico maldisposto! Tenho de beber qualquer coisa, senão vomito! ‑ Rastejou até ao canto onde Helena guardava a comida, mas esta vedou‑lhe o caminho e quis empurrá‑lo para o lado. ‑ Sai do meu caminho, sua prostituta! ‑ berrou Trosky e empurrou‑a para o lado. Pegou na garrafa de conhaque e levou‑a à boca. Bebeu três longos goles antes de Losskov conseguir arrancar‑lha dos lábios. A garrafa caiu no chão, e Trosky atirou‑se com um grande berro para o chão, lambendo a poça de conhaque que se formara no chão de plástico.

‑           Tu bateste‑me! ‑ exclamou a seguir e fitou Losskov

de cima para baixo como se procurasse o lugar certo para o

atacar. ‑ Este homenzinho ridículo bateu‑me! Bateu‑me a

mim, Jan Trosky! Vais pagar por isto!

No quadragésimo primeiro dia, o mar estava bastante calmo. Os seus corpos estavam cobertos de uma crosta de sal e cheios de úlceras, e eram atormentados por dores de barriga e alucinações. Lucrezia, apática, estava deitada no seu cobertor e apenas se dirigia para a entrada da ilha para fazer as suas necessidades, enquanto Helena guardava o saco com a comida e as garrafas com a água da chuva como se se tratasse de um tesouro. Parecia que ia acontecer exactamente aquilo que Trosky previra: não iriam morrer de sede, dado que o céu lhes fornecia toda a água necessária. Morreriam de fome.

Entretanto, já há muito tempo que tinham desistido de tentar calcular para onde a ilha estava a dirigir‑se. Quando o vento girava, também a ilha se girava. Ora a corrente os arrastava para norte, ora para leste e depois, durante vários dias, para sul.

‑           Nós somos a medusa amarela no mar alto, lá, lá, lá! - gritava Trosky. ‑ Vamos para a América, para áfrica, para Hong Kong e para o Havai. Só a Terra do Fogo e  que não vemos, porque por ela já há muito que passámos! ‑ Olhou à sua volta com um ar louco, levantou a ponta da barba e esperou que batessem palmas. ‑ Isto e  que e  uma cantiga, não acham?! Deveriam escrevê‑la na parede para os nossos descendentes. e  o hino nacional dos loucos a caminho do cabo Horne. Porque e  que estão todos a olhar para mim dessa maneira?! Com esses olhos de carneiro mal morto! Seus mal‑humorados!

Nós somos a medusa amarela no mar alto, lá, lá, lá!

A luzinha que piscava intermitentemente no topo da tenda há muito tempo que parara de piscar. Os contactos estavam oxidados, as baterias vazias e o mecanismo fora corroído pelo sal. Uma vez, no trigésimo terceiro dia, Trosky julgou ver os mastros de um barco no horizonte. Losskov não os via, mas Trosky gritava como um animal e quis que lhe dessem a pistola de sinalização.

Colocou o foguete vermelho na ponta da pistola, levantou o braço e disparou. No entanto, tudo o que aconteceu foi um pequeno dique, mais nada. O foguete permaneceu na pistola.

‑           Que porcaria! ‑ berrou Trosky. ‑ Porque e  que isto não dispara! Eu estou a ver um barco! Um barco!

Tentou disparar e falhou de novo. O foguete não se incendiou. Losskov tirou cuidadosamente a pistola da mão frouxa de Trosky.

‑           A pólvora está húmida ‑ disse. A sua voz parecia rouca. O sal dava igualmente cabo do céu da boca e da garganta. Trosky fitou‑o.

‑           Isso quer dizer que já não temos meios de chamar a atenção?

‑           Suponho que não.

‑           Os barcos passam por nós e não podemos fazer nada?

‑Não.

‑Nada?

‑           Podemos acenar! Gritar! E esperar que vejam esta mancha amarela no mar. Nem sequer podemos fazer fumo, porque os cartuchos também estão molhados. Tudo está molhado, até mesmo os nossos ossos.

‑           Então de que e  que estamos à espera? ‑ berrou Trosky e agarrou‑se às cordas.

‑           Estamos à espera de um milagre ‑ retorquiu Losskov, com um ar sério. ‑ Eu voltei a acreditar em milagres.

 

Quadragésimo primeiro dia, algures no oceano Atlântico.

Helena mudara completamente. Quase que não falava com Losskov e, quando este estava deitado ao seu lado, apenas sussurrava:

‑           Não me toques! ‑ Ou, então, dizia mais baixinho e de uma forma mais penetrante: ‑ Seu cobarde! Permites que essa besta faça o que quiser! Ele tem de desaparecer daqui! Será que tu não compreendes isso? Ele tem de desaparecer! Sai do meu caminho, cobarde!

Sair do caminho. Numa ilha redonda e minúscula que baloiçava no meio do mar.

 

Em Ushuaia, na Terra do Fogo, Dieter Randler esperava há dois meses por um sinal de vida do Helu.

Depois de ter perdido o seu rasto, tentara mobilizar todas as pessoas possíveis. Contudo, para além de algumas palavras simpáticas por parte das autoridades, não conseguira alcançar nada. Tanto em Dacar, como em Buenos Aires, ouviam pacientemente o que tinha a dizer e depois perguntavam com um sorriso:

‑           Mister Losskov tem um rádio a bordo?

‑           Sim! ‑ respondia Randler. Adivinhava a pergunta que se iria seguir.

‑           Então porque e  que ele não dá notícias?

‑           Como e  que ele pode, se o barco se afundou?

‑           E o que e  que podemos fazer se lhe aconteceu algo? Onde e  que devemos procurar? E, acima de tudo, o que e  que devemos procurar? Os destroços de um barco? Cadáveres a flutuar em coletes de salvação? Já olhou para o mapa?

‑           Aquele barco e  inafundável!

‑           Então será encontrado.

‑           Mas pode estar a flutuar por aí, perdido.

‑           Nesse caso tenho a certeza de que Mister Losskov enviaria um sinal de SOS. E nessa altura será encontrado e salvo. Ele deu alguma noticia?

Randler teve de admitir que não tinha argumentos para iniciar uma busca, que naturalmente custaria muito dinheiro. Sobretudo era‑lhe impossível responder a uma pergunta básica: onde, naquele enorme oceano, se encontrava o Helu? E porque e  que Peter não dava notícias pelo rádio?

A redacção do jornal em Hamburgo foi a tal ponto indelicada que chamou ao seu repórter Randler "um grande boi".

‑           Desde o início que eu tinha um mau pressentimento! exclamou o redactor‑chefe, irritado, ao telefone.

Randler encontrava‑se na administração portuária de Ushuaia, na Terra do Fogo, onde depois de quatro horas de espera conseguira enfim entrar em contacto com Hamburgo.

‑           Dois homens sozinhos sim, isso poderia dar certo - prosseguiu o chefe. - Mas quando eu vi as duas mulheres, fiquei logo arrepiado. Eu não deveria ter‑lhe dado ouvidos! Foi dinheiro atirado pela janela fora. Está bem, isso até conseguiríamos superar. Mas toda esta história que o senhor começou terá de ser concluida. Dieter! O senhor vai escrever um necrológio dramático a esses quatro loucos! Com tudo o que for preciso, para o tornar mais dramático. "As últimas horas dos heróis do Atlântico", ou qualquer coisa parecida. Quero que se concentre sobretudo nas raparigas. O mais dramático possível, Randler!

‑           E se eles ainda estiverem vivos?

‑           Isso não me interessa!

O chefe bateu com o punho na mesa. Randler conseguiu ouvir, mesmo em Ushuaia, e imaginou perfeitamente a situação: o chefe Pfeiffer, gordo, com os óculos na testa, sentado numa secretária coberta de fotografias. Do lado esquerdo, a fotografia da Sra. Pfeiffer, que em tempos fora cantora de revistas ‑ pelo menos era o que se dizia ‑ e que casara com o Sr. Pfeiffer para se vingar dele, por este ter escrito uma má crítica sobre o seu espectáculo. Ao lado, uma fotografia do editor, o que não era compreendido pelos colegas, dado que nenhum deles sabia que ele mantinha uma relação com a Sra. Pfeiffer, o que por seu lado garantia uma posição vitalícia ao Sr. Pfeiffer. E, agora, ele batia com o punho na mesa e as fotografias voavam pelo ar e a moldura com a fotografia de Yvonne Pfeifter oscilava. Randler viu esta imagem como se estivesse no cinema.

‑           Ainda está aí, Dieter? ‑ berrou o redactor‑chefe.

‑Sim.

‑           Então, o que e  que vai acontecer agora?

‑           Eles estão apenas desaparecidos!

‑           Mas isso pode dar uma óptima história! Pode ser bem aproveitada. O senhor pode especular: onde e  que eles estão, porque e  que aí estão e o que e  que estarão a fazer todos juntos? Ha... ha... ha! Uma viagem marítima tão dramática... Randler, isso e  um material precioso! e  melhor do que qualquer necrológio! Isto pode dar uma história espectacular! Escreva!

Randler não escreveu. Alugou um quarto em Ushuaia, fazendo preces para que o pior não tivesse acontecido.

"Vou ficar na Terra do Fogo por alguns tempos", telegrafou para Hamburgo. E a redacção respondeu: "Está bem. Cuidado para não queimares o traseiro!"

Era uma piada irónica que se referia ao clima de um país cujos montes estão eternamente cobertos de neve e têm enormes glaciares. Uma terra no fim do mundo, estranha, como nenhum pintor seria capaz de imaginar.

 

Um dia o pedido de socorro de Pablo Cerroso chegou à administração portuária de Ushuaia: "Barco à vela, Helu, encontra‑se em perigo! Está a meter água! SOS! Posição completamente desconhecida. Algures perto do arquipélago dos Estados."

 

Dieter Randler empenhou‑se ao máximo. Pediu a todas as instituições oficiais que estavam ao seu alcance que iniciassem uma busca e enviou imediatamente uma mensagem telegráfica para Hamburgo. A resposta foi rápida: "óptimo! Publicaremos página de titulo com barra vermelha: '~Os solitários na tempestade. Quero relatório diário pelo telefone!"

Dieter Randler foi com um helicóptero da Guarda Costeira até ao cabo Horne e com um hidroavião para o arquipélago dos Estados.

Não havia sinal de Losskov. Nem sequer pelo rádio. Apenas tinham uma certeza: quando o pedido de socorro fora enviado todos eles ainda estavam vivos. O barco andava perdido. Estava a meter água ‑ isso podia querer dizer muita coisa. Se o barco não se enchesse completamente de água, aguentar‑se‑ia à superfície. Mesmo durante uma tempestade. O Helu era como uma rolha.

Enquanto a tempestade durasse, seria impossível encontrar o barco; mas, logo que se acalmasse um pouco, três aviões levantariam voo e controlariam todos os quadrados do mapa durante vários dias seguidos. As autoridades de Ushuaia deram o alarme a todos os barcos que se encontravam na zona do cabo Horne, do arquipélago dos Estados e da Jórgia do Sul. Segundo os cálculos efectuados à base da velocidade do vento e das correntes, o barco deveria encontrar‑se algures nessa zona do Atlântico Sul: era apenas um ponto branco, quase impossível de ser avistado no meio das cristas de espuma brancas.

‑           O senhor está consciente de que as hipóteses de os encontrarmos são muito reduzidas? ‑ perguntou o chefe da administração portuária de Ushuaia a Randler.

Este abanou a cabeça afirmativamente. Há quatro dias que não mudava de roupa e só dormia apenas algumas horas, sentado, enquanto os aviões eram abastecidos e revistados. As mensagens de rádio dos outros barcos não eram nada animadoras. Visibilidade reduzida e uma ondulação muito forte. O vento soprava a quarenta e cinco nós e em certas zonas atingia quase a velocidade de um furacão, sendo então a visibilidade igual a zero.

Pablo, em Rio Gallegos, também não tinha novidades. A última coisa que ouvira fora o grito desesperado de Losskov:

"Temos de abandonar o barco! O leme partiu‑se. Estamos a meter água num camarote. Não consigo controlar o barco."

‑           Os senhores têm de levar em consideração que eles dispõem do melhor equipamento para situações de emergência que existe actualmente no mercado ‑ suplicava Randler às entidades argentinas. ‑ A ilha de salvação e  amarela e tem uma luz de socorro. Se eles abandonaram o barco, têm grandes hipóteses de sobrevivência! Os senhores têm de continuar a busca!

‑           Não podemos fazer mais do que estamos a fazer. Se ao menos tivéssemos uma vaga ideia da posição deles...

Era o eterno mistério, a pergunta crucial: onde e  que se encontrava o Helu?

Randler ficou calado. Nessa altura, deviam estar na ilha de borracha, algures no oceano. Estremeceu ao imaginar a cena.

Quanta água teriam levado? Durante quanto tempo teriam comida? As raparigas estariam a aguentar emocionalmente tudo aquilo? Qual seria o estado de espírito deles? Quando e  que chegariam ao ponto de exaustão em que permaneceriam silenciosos e morreriam aos poucos?

Depois de quarenta e quatro dias, as buscas haviam terminado. Dieter Randler tentou convencer todas as entidades oficiais, embora já soubesse a resposta que lhe iriam dar.

‑ Depois de quarenta e quatro dias, já não resta esperança ‑ diziam‑lhe em toda a parte. ‑ Os barcos naquela zona não nos dão noticias. O tempo está normal e as ondas até são relativamente pequenas. O porta‑aviões britânico Essex, que de momento se encontra naquela zona, mandou sobrevoar as redondezas durante uma semana. Sem qualquer resultado. A tripulação do Helu pode ser considerada perdida.

Apesar de tudo, Randler permaneceu na Terra do Fogo.

‑ Eu recuso‑me a acreditar que eles não voltem a aparecer! ‑ gritou, quando falava ao telefone com Pfeiffer, o redactor‑chefe em Hamburgo. ‑ Eu conheço suficientemente bem o Peter von Losskov.

‑ Veja se compreende que o oceano Atlântico não e  nenhuma banheira! ‑ berrou igualmente Pfeiffer. ‑ Quarenta e quatro dias! Isso não e  brincadeira!

Pela primeira vez, Randler sentiu ódio ao ouvir o tom de voz que se utilizava na sua redacção. Até agora ele não fora diferente, afinal fazia parte da sua profissão ser‑se bruto, se bem que nunca chegara a ser tão cruel como aquele repórter americano que estendeu o seu microfone aos lábios sangrentos de um condutor entalado na cabina de motorista e perguntou: "O senhor sabe que daqui a pouco vai morrer? Diga‑nos: qual e  a sensação? Em que e  que está a pensar? Ainda tem medo da morte?"

No quadragésimo quinto dia, Randler pagou do seu próprio bolso o aluguer de um hidroavião com o qual voou até ao cabo Horne e depois sobrevoou toda a zona. Estava um dia bonito e calmo com um céu limpo, uma verdadeira excepção. A água parecia um pano azul.

Sobrevoaram o mar até que o ponteiro da gasolina sinalizou que tinham que regressar.

‑ Não vale a pena ‑ disse o piloto, um inglês que pertencia à administração argentina da Terra do Fogo. ‑ Não digo isto por causa dos quarenta e cinco dias... Isso até seria possível. Mas quem e  que sabe onde eles estão?

Esta pergunta era repetida vezes sem fim. E depois a frase perante a qual Randler se calava, por ser tão lógica: "Eles conheciam os perigos que teriam de enfrentar. Arriscaram‑se voluntariamente. Aquilo que aconteceu era o risco que eles tinham assumido. Existe apenas um responsável pelo que aconteceu: os quatro ocupantes do barco."

 

Sexagésimo nono dia.

Continuavam vivos.

Mas como e  que sobreviviam?

Trosky estava sentado à entrada da ilha e gritava. Helena e Lucrezia, cobertas de úlceras, estavam deitadas nos cobertores, apáticas e silenciosas, com o olhar fixo no céu. Losskov lavava‑as de vez em quando, sacrificando uma tigela de água da chuva para tirar o sal das feridas e racionava a comida: duas bolachas por dia, um pedacinho de chocolate, metade de uma torrada amolecida e um gole de água. O sal no céu da boca ardia, fazendo crescer a vontade de beber até à loucura. Tornava‑se cada vez mais difícil engolir o que quer que fosse.

Losskov dava de comer às raparigas como se fossem recém‑nascidos, pousava as cabeças delas no seu colo e esperava que tivessem engolido as bolachas. Depois, dava‑lhes cuidadosamente a água, olhando para cada gota desperdiçada como se fossem diamantes a deslizar pelos lábios. Lucrezia estava fraca de mais para segurar o copo. Os seus lábios, o rosto e as articulações estavam inchadas, as órbitas dos olhos inflamadas e a pele rasgada pelo sal e ferida.

Durante três dias, Trosky observou Mister Plump, cabisbaixo e rangendo os dentes, enquanto este comia a sua parte da comida: uma bolacha, um pouco de torrada, um gole de água e um pedaço de chocolate. Trosky mexia os dedos, nervoso, virava‑se e olhava para o mar, ou então ia para a água onde ficava pendurado nas cordas, a flutuar ao lado da ilha. Ali permanecia até começar a tremer de frio. Depois, saía da água e enrolava‑se num cobertor.

Nesse sexagésimo nono dia, Trosky parecia especialmente mal‑humorado. Há dois dias que Losskov observava preocupado como a loucura se apossava de Trosky, como já não tinha forças para lutar contra ela, como aquele ser completamente destruído estava a caminho de uma catástrofe.

‑ Eu tenho fome! ‑ gritou Trosky e bateu palmas. - Fome! Fome! Fome! ‑ Estava sentado na borda da ilha e abanava as pernas na água enquanto gritava cada vez mais alto. ‑ Vamos ter carne, carne, carne e só falta pouco, pouco, pouco! ‑ Repetia esta frase vezes sem fim. ‑ Muita carne, carne, carne. Estamos ricos, ricos, ricos!

Com um salto, voltou para a ilha e deu um pontapé na barriga de Losskov que perdeu o equilíbrio e caiu, agarrando‑se a Helena. A ilha baloiçou fortemente e Trosky soltou um grito estridente, mais estridente ainda do que o berro de Lucrezia quando esta viu como ele agarrara Mister Plump com umas mãos que mais pareciam alicates e o apertou contra o seu corpo.

‑ Temos carne! ‑ exclamou. ‑ Carne! Carne! Carne!

‑ Jan! ‑ gritou Losskov. Tentou levantar‑se, mas a pancada que levara na barriga paralisara‑lhe as pernas. Ficou deitado em cima de Helena, sem se mexer, atirou‑se para o lado, procurou uma pistola, encontrou‑a ao lado da lata com as bolachas, engatou‑a, apontou‑a para Trosky e carregou no gatilho. Tal como acontecera com a pistola de sinalização, também agora se ouviu apenas um pequeno estalido e mais nada. As munições estavam húmidas e a pistola avariara‑se com a água salgada.

Trosky riu‑se alto, ergueu Mister Plump para o ar e pousou a mão esquerda na sua cabeça. O pequeno cão adivinhava o seu destino, gania e tentava morder Trosky, esperneando. desesperado. Fitou Trosky com os seus olhos grandes e tristes, que eram a única expressão do sofrimento daquele ser. Até tentou ladrar, embora também estivesse rouco e corroído pelo sal. Quis morder a mão esquerda de Trosky que segurava a sua barriga.

‑           Temos carne! ‑ insistiu Trosky, de repente muito calmo. ‑ Vamos continuar a viver.

Losskov fechou os olhos. Ouviu‑se um barulho arrepiante quando Trosky torceu a nuca do pequeno Mister Plump. Foi apenas um pequeno gesto com a mão direita, a que se encontrava na cabeça do cão.

Trosky rastejou até à entrada da ilha, estendeu o cão morto para fora e fez um corte com uma faca. Tirou‑lhe o pêlo, cortou‑o aos pedaços e depois mordeu na parte que lhe pertencia, uma magra coxa do cão. O sangue escorria‑lhe pelos cantos da boca, descendo pelo pescoço e depois pelo peito peludo. A sua barba era trespassada por riscos vermelhos. Parecia não dar conta disso. Virou‑se para Losskov, que estava completamente enjoado, e atirou‑lhe o resto do cão para cima da barriga.

‑           Carne! ‑ gritou Trosky. ‑ Carne! Uma semana de vida...

Comia como um animal selvagem e esfomeado e, de facto, era quase isso que ele era. Arrancava a carne do cão com os seus dentes fortes e devorava‑a com um olhar brilhante.

Helena estava deitada por baixo de um cobertor e não se mexia. Losskov não sabia se ela compreendera o que se passara, ou se nem sequer tinha a capacidade de se aperceber daquilo que acontecia à sua volta. Quando Peter a alimentava, ela comia e bebia com gestos quase mecânicos. Losskov arrastava‑a para a borda da ilha quando ela tinha de fazer as suas necessidades; de resto, ficava deitada de olhos fechados sem responder a qualquer pergunta.

‑           Ninguém quer esta carne? ‑ inquiriu Trosky. ‑ Se vocês não quiserem, ele fica todo para mim!

‑           Faz o que quiseres! ‑ respondeu Losskov.

‑           Seus hipócritas hipersensíveis! ‑ Trosky meteu o resto de Mister Plump num saco de plástico. ‑ Comem filet mignon e salsichas de porco! Mas quando se trata de um cãozinho estúpido ficam cheios de pena! Animal e  animal e carne e  carne. A mim soube‑me muito bem!

‑           Uma especialidade de Praga, eu sei. ‑ Losskov apalpava o seu corpo. As entranhas doíam‑lhe devido ao pontapé que levara. Porém, voltou a ter sensibilidade nas pernas e conseguiu mexê‑las.

Trosky fitou‑o com uns olhos grandes e limpou o sangue da barba.

‑           Eu não vou esquecer‑me daquilo que disseste, seu parasita germânico! ‑ gritou, com a respiração ofegante. - O próximo serás tu: carne e  carne.

 

Septuagésimo segundo dia.

A loucura reinava entre eles. No próprio cérebro, em cada gesto de mão, no soprar do vento, no barulho das ondas, no baloiçar da ilha de borracha, no barulho dos cobertores, até mesmo na respiração. Sempre a loucura.

Lucrezia e Helena aproximavam‑se lentamente do fim. As úlceras nos seus corpos estavam cada vez piores, e Losskov questionava‑se como era possível ainda haver humidade naqueles corpos ressequidos. Lavava‑as todos os dias, na medida do possível, com água da chuva.

‑           A água serve para beber! ‑ berrou Trosky, um dia. - Se desperdiçares mais uma gota sequer, eu parto‑te a cabeça!

Havia algumas horas que estava sentado à entrada da ilha a observar Losskov, sem deixar escapar qualquer movimento. O seu olhar era frio e esfomeado. Os seus olhos movimentavam‑se de um lado para o outro e constituíam o único movimento no seu rosto imóvel.

Aproximavam‑se agora de uma zona mais quente. Era possível sentir a força do sol, o mar que ficava mais calmo e a temperatura da água que subia. Já não adiantava de nada orientarem‑se pelo Sol ou pelas estrelas. Afinal o que e  que representa o Sul ou o Norte quando se está rodeado de milhares de milhas de água?

‑ Quem sabe se não vamos parar às ilhas Fiji? ‑ troçou Trosky uma vez, num dia de muito calor. ‑ Talvez já estejamos no oceano Pacifico e nem sequer saibamos isso.

De vez em quando, até mesmo Trosky mostrava o seu fraco. Nessas alturas, ficava sentado à entrada da ilha, olhava para o mar coberto de espuma branca e chorava alto. Ou então ficava em pé, com o corpo todo direito, e berrava, libertando‑se de todo o seu ódio, do medo, da sua força de viver e da sua horrível impotência.

Com a mesma rapidez, podia voltar a transformar‑se, tornando‑se um animal ameaçador que ficava quieto a observar Losskov com um olhar frio, ou que media exactamente os pedaços de bolacha e que contava os pingos de água, lambendo as gotas do pescoço de Lucrezia, quando esta não tinha força suficiente para as ingerir deixando‑as escapar pelos cantos da boca.

Neste septuagésimo segundo dia, Trosky parecia calmo. Estava sentado, encostado à parede de plástico e cantarolava uma melodia. Losskov já conhecia o texto: "Carne, carne, carne... Estamos ricos, ricos, ricos..." Aquela cantiga alertava‑o. Por isso,ficava atento a cada movimento de Trosky, a cada estremecer, ao jogo das suas mãos e aos dedos dos seus pés, que se contraíam.

"A erupção do vulcão está iminente", pensou. "Ele está a preparar‑se. A loucura está a juntar as energias."

Sentou‑se em frente de Helena num gesto defensivo. Tal como Lucrezia, ela dormia um sono constante. O esgotamento contínuo estava a dar cabo delas... Apenas os seus corações continuavam a bater. Porém, em breve, estes também teriam de desistir. Deixariam simplesmente de bater, como um motor sem combustível.

As raparigas nem sequer o sentiriam, tal como também já não sentiam as úlceras no corpo. Os nervos tinham deixado de reagir.

Losskov não estava preparado para aquilo que aconteceu, embora instintivamente mantivesse a maior distância possível de Trosky. Distância: uma palavra ridícula quando se trata de alguns centímetros de espaço. De repente, Trosky saltou, silenciosamente, como um tigre, para cima de Losskov. Os seus olhos cintilavam, a boca estava contraída, e juntos caíram para a entrada da ilha, agarrados um ao outro e incapazes de qualquer gesto a não ser apertarem‑se cada vez mais um de encontro ao outro.

‑ Carne! ‑ balbuciou Trosky, rouco. ‑ Carne, mais carne...

Losskov sentiu um arrepio. Chegara a hora decisiva. Deixou‑se cair para trás, para a água, arrastou Trosky consigo e pressionou‑o para baixo da água. Trosky tentou defender‑se. No punho direito, agarrava uma faca com a qual queria atacar Losskov; porém, por baixo de água, já não tinha forças suficientes para acertar no corpo de Peter. Voltou à superfície, soltou um berro animalesco, procurou Losskov, que surgiu ao seu lado, e atirou‑se para cima dele. Era uma luta desesperada e selvagem. Losskov mergulhou, agarrou as pernas de Trosky, que se mexia violentamente, e voltou a puxá‑lo para baixo de água, onde, com as últimas forças, pôs os braços à volta das ancas de Trosky e as agarrou, enquanto os seus pulmões se inchavam, ameaçando explodir. Soltou um único grito de medo. Sentiu uma horrível falta de ar do peito até à cabeça, que parecia querer despedaçá‑lo; porém, continuou a agarrar as pernas de Trosky e apenas voltou à superfície da água quando estava quase a sufocar.

Trosky voltou mais uma última vez à superfície, com os olhos abertos e grandes. A sua cabeça dançava na espuma das ondas como se estivesse separada do resto do corpo e, de repente, a sua mão voltou a surgir, agarrada à faca. Losskov saltou de novo para cima dele, mergulhou‑o na água e martelou com os punhos na sua cabeça. Atirou‑o para longe com um pontapé, nadou até à ilha, que flutuava lentamente, pendurou‑se a uma corda e esperou.

Trosky não voltou a aparecer. As ondas rolavam regularmente e tapavam‑no. Seria arrastado pelas correntes e iria voltar à superfície da água algures, longe da ilha; mas isso já ninguém veria e nunca ninguém o iria encontrar.

Losskov encostou a testa contra a ilha e chorou. Ficou pendurado no exterior até ao momento em que sentiu como os seus músculos se tinham contraído na água fria.

"Serei eu um assassino?", pensou. "Será que eu me transformei num assassino? Que Deus seja minha testemunha: o Trosky queria matar‑me! Queria comer‑me, tal como comeu o Mister Plump! Não havia outra saída."

Entrou na ilha com um grande esforço e deitou‑se no chão. Atrás dele, Helena ergueu a cabeça.

‑ Ele já cá não está? ‑ perguntou, com um grande esforço. Eram as suas primeiras palavras desde há alguns dias. Losskov tinha o corpo todo a tremer, devido ao frio e ao susto.

‑ Sim ‑ gemeu. ‑ Sim, ele desapareceu.

‑ Agora, já podemos morrer calmamente.

‑Sim.

‑ Nós vamos morrer, não vamos?

‑ Vamos.

‑ Dá‑me a tua mão! ‑ Ela procurou a mão dele e levou‑a à sua boca ferida e coberta de crostas. ‑ Eu estou completamente calma. Já reparaste?

Ele acenou em concordância e começou a chorar. As lágrimas correram pelo seu rosto, aproximou‑se ainda mais dela, deitou‑se ao seu lado e abraçou o seu corpo coberto de úlceras. O cabelo louro dela, que nas últimas semanas crescera muito, cobriu os seus olhos.

‑ Eu amo‑te ‑ afirmou ela com uma voz fraca. ‑ Estou tão feliz por estares aqui. Morrer também pode ser bonito, Peer.

A noite caiu e eles continuavam vivos.

O próximo dia nasceu e eles ainda conseguiam ver a luz.

Mas já não sabiam que era o Sol. Simplesmente viam uma luz. Uma luz forte e intensa.

 

No septuagésimo quarto dia, o cargueiro Liberté retirou‑os  do mar.

A ilha foi arrastada até ao navio por uma barcaça e depois içada com uma roldana. Envolveram Peter von Losskov, Helena Sydgriff e Lucrezia Panarotti em cobertores e levaram‑nos para o camarote do capitão. Tinham descoberto a ilha por acaso. O ajudante de cozinha vira algo de amarelo a flutuar na água quando fora deitar os restos da cozinha para o mar.

‑ Existem baleias amarelas? ‑ perguntou, sem compreender o que tinha visto.

‑ Não faças perguntas tão estúpidas! ‑ respondeu‑lhe o cozinheiro irritado.

‑ Se existem baleias brancas, porque e  que não há‑de haver amarelas? Eu vi uma delas lá fora. Consegui apenas ver a cabeça.

Ao ouvir isto, o capitão alarmou a tripulação e mandou darem meia volta. O barco aproximou‑se a alta velocidade do objecto amarelo.

‑ e  uma ilha de salvação... ‑ declarou um oficial. Pôs os binóculos de lado e passou a mão pelos olhos. ‑ Meu Deus, uma ilha por aqui! Eu adivinho o que iremos encontrar.

Uma hora mais tarde, depois de ter bebido dois conhaques, de que realmente precisou após ter visto os corpos a serem lavados, tratados com pomadas e enfaixados em ligaduras, conseguiu novamente falar:

‑ e  impressionante ver o que o corpo humano e  capaz de aguentar. ‑ Depois de lançar um longo olhar aos três sobreviventes, que estavam a dormir profundamente, acrescentou: ‑ Nunca mais serão as mesmas pessoas. Se e  que sobreviverão.

Eles sobreviveram.

 

Foram transportados por um hidroavião para um hospital

de Buenos Aires, onde permaneceram durante seis semanas.

Ficaram juntos num quarto. De um lado Helena, do outro

Lucrezia, e no meio Losskov. Juntos deram os primeiros passos e foram para o jardim da clínica.

Dieter Randler viveu os melhores momentos da sua carreira de repórter. Os seus relatos emocionavam os leitores e o Sr. Pfeiffer mal conseguia conter‑se de entusiasmo. Chegou mesmo a gerar‑se uma polémica entre os médicos sobre as possibilidades de eles sofrerem danos irreversíveis, enquanto Pfeiffer dava especial ênfase a uma pergunta: "Devemos ter pena de pessoas que brincam desta maneira com a sua própria vida? Devemos admirá‑las ou entregá‑las ao seu destino? Porque e  que eles são heróis? Será que apenas aquilo que e  fora do vulgar e alcança os extremos tem valor nos nossos tempos? Os heróis da Terra do Fogo? Não, os tentadores de Deus da Terra do Fogo!"

‑ Isto vai ser o acontecimento jornalístico do século! - jubilava Pfeiffer. ‑ Vamos transformar isto num grande sucesso aqui em Hamburgo! O Randler e  uma lesma! Manda‑me

relatórios médicos! Temos de levantar a polémica: como e  que a idiotice pode transformar‑se num acto heróico? E assim pode‑se aproveitar para falar das guerras...

 

O procurador da República de Buenos Aires fechou as actas referentes ao caso Jan Trosky. As declarações eram irrefutáveis: num acesso de loucura, Trosky saltara para o mar e fora arrastado pela corrente. Quem vira os três sobreviventes pouco depois de terem sido encontrados, compreendia perfeitamente que uma pessoa naquelas circunstâncias era capaz de ultrapassar voluntariamente a barreira para a morte.

Losskov, Helena e Lucrezia aterraram em Hamburgo num dia solarengo de Outono. No aeroporto de Fuhlsbúttel, um grupo de jornalistas esperava‑os, e as câmaras de televisão estavam preparadas para a chegada dos três.

Lucrezia olhava à sua volta com os seus olhos grandes e pretos, mas vazios; respondia a todas as perguntas apenas abanando a cabeça e depois tapou o rosto com as mãos.

Helena parecia cansada.

‑ Não tenho nada a dizer! ‑ exclamou para os microfones dos repórteres. ‑ Estou viva e e  isso que importa!

Losskov olhou para todos os lados. As câmaras de televisão estavam apontadas para ele, os flashes das máquinas fotográficas reluziam como relâmpagos, e os microfones rodeavam‑no como cobras.

‑ Antes de mais vamos à pergunta mais importante: como e  que se sente? ‑ O repórter olhou com um ar entusiasmado para Losskov, como se este fosse uma diva de peito nu.

‑           Pessimamente! ‑ respondeu Losskov, alto. Os jornalistas riram‑se.

‑           Uma resposta muito clara! ‑ As enormes câmaras de televisão rodeavam o rosto magro de Losskov. ‑ Qual foi a sua maior experiência nesta viagem?

Losskov mostrou um sorriso sarcástico. "A minha maior experiência? Estas pessoas têm coragem de me perguntar uma coisa dessas?", pensou. Olhou melhor para os rostos que o rodeavam: eram lisos e gordos. Pareciam máscaras, ansiosas por sensações, já que a própria vida era tão aborrecida.

‑           A minha maior experiência? O homem sem máscara - declarou Losskov, calmamente. ‑ O homem completamente despido. Despido de tudo aquilo a que nós costumamos chamar, cheios de orgulho, humanidade. O homem no estado zero! Consegue compreender isso?

‑           Não! ‑ disse o repórter de televisão.

‑           Eu já estava à espera disso! ‑ Losskov levantou os dois braços e com um grande gesto afastou todos os microfones à sua volta. ‑ Somos todos umas bestas!

Com a ajuda dos punhos abriu caminho por entre a multidão, foi ter com Lucrezia, levantou‑a do sofá em que estava sentada e apertou‑a contra si. Com o outro braço agarrou Helena.

‑           Deixem passar! ‑ clamou, alto e com uma voz dura. - Queremos sair daqui! Não respondemos a mais ninguém.

Estavam em transmissão directa pela televisão. O repórter olhou para a câmara e pediu a compreensão dos telespectadores.

‑           Ouviram as palavras de Peter von Losskov! Os horríveis acontecimentos, sobre os quais ainda falaremos mais pormenorizadamente, tiveram nele consequências mais graves do que se previa. Peter von Losskov ainda se encontra sob efeito de choque. Provavelmente, irá para uma clínica psiquiátrica para ser tratado e ficará sob observação. Desejamos muita sorte a Losskov e às duas mulheres. Uma coisa e  certa: pela primeira vez, o homem conseguiu sobreviver por força própria setenta e cinco dias e noites no mar, conseguiu enfrentar o oceano Atlântico numa pequena ilha de borracha! Trata‑se de um recorde único. Os três aventureiros da Terra do Fogo conseguiram‑no e como vemos estão em óptimo estado, apesar de tudo...

Dois dias depois, Lucrezia Panarotti foi levada para uma clínica psiquiátrica. Recusava‑se a andar. Queria ficar deitada ou então rastejava pelo chão. Voltou a mostrar a sua beleza estonteante, a pele ficou lisa, o cabelo voltou a brilhar como seda, mas os seus olhos grandes e pretos ficaram mortos e o seu olhar vazio.

Quando Losskov e Helena Sydgriff casaram, Lucrezia foi levada numa cadeira de rodas para a igreja. Ficou sentada na primeira fila e sorriu para Peter e Helena, sem porém os reconhecer. Entoava as cantigas como todos os outros, mas com um texto diferente.

‑           Carne ‑ cantava. ‑ Carne, carne, carne...

Habitava um bonito quarto na clínica, juntamente com uma mulher que se julgava a Ana Bolena e dizia que fora decapitada pelo seu marido, Henrique VIII.

‑ Dói‑me a nuca! ‑ exclamava às vezes. ‑ O machado estava ferrugento. De certeza que vou ter borbulhas no pescoço. Vê lá se consegues ver alguma...

às vezes ficavam sentadas à janela, uma em frente à outra e acendiam fósforos.

‑           É a tua vez! ‑ dizia Lucrezia e esfregava as mãos, contente. ‑ Tu tens de morrer primeiro! e  a tua vez. O Trosky vai devorar‑te...

Hoje em dia, gosta de ficar à janela, a olhar para o jardim, para os ramos que baloiçam ao vento.

‑           O Sol! O Sol vermelho! ‑ diz, encantada. ‑ Conseguem ouvir o mar?

às vezes, arranca a roupa do corpo, deita‑se nua ao sol e abana as pernas no ar.

‑           Eu adoro o sol, o mar e o vento.

E de repente começa a chorar. Uiva como a tempestade na Terra do Fogo.

 

                                                                                            Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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