Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DESPEDIDA / Mia Couto
DESPEDIDA / Mia Couto

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DESPEDIDA

(poesias)

 

Poema da despedida

 

Não saberei nunca

dizer adeus

 

Afinal,

só os mortos sabem morrer

 

Resta ainda tudo,

só nós não podemos ser

 

Talvez o amor,

neste tempo,

seja ainda cedo

 

Não é este sossego

que eu queria,

este exílio de tudo,

esta solidão de todos

 

Agora

não resta de mim

o que seja meu

e quando tento

o magro invento de um sonho

todo o inferno me vem à boca

 

Nenhuma palavra

alcança o mundo, eu sei

Ainda assim,

escrevo

 

 

Pergunta-me

 

Pergunta-me

se ainda és o meu fogo

se acendes ainda

o minuto de cinza

se despertas

a ave magoada

que se queda

na árvore do meu sangue

 

Pergunta-me

se o vento não traz nada

se o vento tudo arrasta

se na quietude do lago

repousaram a fúria

e o tropel de mil cavalos

 

Pergunta-me

se te voltei a encontrar

de todas as vezes que me detive

junto das pontes enevoadas

e se eras tu

quem eu via

na infinita dispersão do meu ser

se eras tu

que reunias pedaços do meu poema

reconstruindo

a folha rasgada

na minha mão descrente

 

Qualquer coisa

pergunta-me qualquer coisa

uma tolice

um mistério indecifrável

simplesmente

para que eu saiba

que queres ainda saber

para que mesmo sem te responder

saibas o que te quero dizer

 

 

Raiz de Orvalho

 

Sou agora menos eu

e os sonhos

que sonhara ter

em outros leitos despertaram

 

Quem me dera acontecer

essa morte

de que não se morre

e para um outro fruto

me tentar seiva ascendendo

porque perdi a audácia

do meu próprio destino

soltei  ânsia

do meu próprio delírio

e agora sinto

tudo o que os outros sentem

sofro do que eles não sofrem

anoiteço na sua lonjura

e vivendo na vida

que deles desertou

ofereço o mar

que em mim se abre

à viagem mil vezes adiada

 

De quando em quando

me perco

na procura a raiz do orvalho

e se de mim me desencontro

foi porque de todos os homens

se tornaram todas as coisas

como se todas elas fossem

o eco as mãos

a casa dos gestos

como se todas as coisas

me olhassem

com os olhos de todos os homens

 

Assim me debruço

na janela do poema

escolho a minha própria neblina

e permito-me ouvir

o leve respirar dos objectos

sepultados em silêncio

e eu invento o que escrevo

escrevendo para me inventar

e tudo me adormece

porque tudo desperta

a secreta voz da infância

 

Amam-me demasiado

as cosias de que me lembro

e eu entrego-me

como se me furtasse

à sonolenta carícia

desse corpo que faço nascer

dos versos

a que livremente me condeno

 

 

Nocturnamente

 

Nocturnamente te construo

para que sejas palavra do meu corpo

 

Peito que em mim respira

olhar em que me despojo

na rouquidão da tua carne

me inicio

me anuncio

e me denuncio

 

Sabes agora para o que venho

e por isso me desconheces

 

 

Trajecto

 

Na vertigem do oceano

vagueio

sou ave que com o seu voo

se embriaga

Atravesso o reverso do céu

e num instante

eleva-se o meu coração sem peso

Como a desamparada pluma

subo ao reino da inconstância

para alojar a palavra inquieta

Na distância que percorro

eu mudo de ser

permuto de existência

surpreendo os homens

na sua secreta obscuridade

transito por quartos

de cortinados desbotados

e nas calcinadas mãos

que esculpiram o mundo

estremeço como quem desabotoa

a primeira nudez de uma mulher

 

 

Manhã

 

Estou

e num breve instante

sinto tudo

sinto-me tudo

 

Deito-me no meu corpo

e despeço-me de mim

para me encontrar

no próximo olhar

 

Ausento-me da morte

não quero nada

eu sou tudo

respiro-me até à exaustão

 

Nada me alimenta

porque sou feito de todas as coisas

e adormeço onde tombam a luz e a poeira

 

A vida (ensinaram-me assim)

deve ser bebida

quando os lábios estiverem já mortos

 

Educadamente mortos

 

 

Palavra que desnudo

 

Entre a asa e o voo

nos trocámos

como a doçura e o fruto

nos unimos

num mesmo corpo de cinza

nos consumimos

e por isso

quando te recordo

percorro a imperceptível

fronteira do meu corpo

e sangro

nos teus flancos doloridos

Tu és o encoberto lado

da palavra que desnudo

 

 

Despedida

 

Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos

quando anunciaste a despedida

e eu que habitara lugares secretos

e me embriagara com os teus gestos

recolhi as palavras vagabundas

como a tempestade que engole os barcos

porque ama os pescadores

 

Impossível separarmo-nos

agora que gravaste o teu sabor

sobre o súbito

e infinito parto do tempo

 

Por isso te toco

no grão e na erva

e na poeira da luz clara

a minha mão

reconhece a tua face de sal

 

E quando o mundo suspira

exausto

e desfila entre mercados e ruas

eu escuto sempre a voz que é tua

e que dos lábios

se desprende e se recolhe

 

Ali onde se embriagam

os corpos dos amantes

o te ventre aceitou a gota inicial

e um novo habitante

enroscou-se no segredo da tua carne

 

Nesse lugar

encostámos os nossos lábios

à funda circulação do sangue

porque me amavas

eu acreditava ser todos os homens

comandar o sentido das coisas

afogar poentes

despertar séculos à frente

e desenterrar o céu

para com ele cobrir

os teus seios de neve

 


 

Saudades

 

Magoa-me a saudade

do sobressalto dos corpos

ferindo-se de ternura

sói-me a distante lembrança

do teu vestido

caindo aos nossos pés

 

Magoa-me a saudade

do tempo em que te habitava

como o sal ocupa o mar

como a luz recolhendo-se

nas pupilas desatentas

 

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,

tua noite sem remédio

tua virtude, tua carência

eu

que longe de ti sou fraco

eu

que já fui água, seiva vegetal

sou agora gota trémula, raiz exposta

 

Traz

de novo, meu amor,

a transparência da água

dá ocupação à minha ternura vadia

mergulha os teus dedos

no feitiço do meu peito

e espanta na gruta funda de mim

os animais que atormentam o meu sono

 

 
Ser, parecer

 

Entre o desejo de ser

e o receio de parecer

o tormento da hora cindida

 

Na desordem do sangue

a aventura de sermos nós

restitui-nos ao ser

que fazemos de conta que somos

 

 

Para ti

 

Foi para ti

que desfolhei a chuva

para ti soltei o perfume da terra

toquei no nada

e para ti foi tudo

 

Para ti criei todas as palavras

e todas me faltaram

no minuto em que falhei

o sabor do sempre

 

Para ti dei voz

às minhas mãos

abri os gomos do tempo

assaltei o mundo

e pensei que tudo estava em nós

nesse doce engano

de tudo sermos donos

sem nada termos

simplesmente porque era de noite

e não dormíamos

eu descia em teu peito

para me procurar

e antes que a escuridão

nos cingisse a cintura

ficávamos nos olhos

vivendo de um só olhar

amando de uma só vida

 

 

Fundo do mar

 

Quero ver

o fundo do mar

esse lugar

de onde se desprendem as ondas

e se arrancam

os olhos aos corais

e onde a morte beija

o lívido rosto dos afogados

 

Quero ver

esse lugar

onde se não vê

para que

sem disfarce

a minha luz se revele

e nesse mundo

descubra a que mundo pertenço

 

 

Morte silenciosa

 

A noite cedeu-nos o instinto

para o fundo de nós

imigrou a ave a inquietação

 

Serve-nos a vida

mas não nos chega:

somos resina

de um tronco golpeado

para a luz nos abrimos

nos lábios

dessa incurável ferida

 

Na suprema felicidade

existe uma morte silenciada

 

 

Árvore

 

cego

de ser raiz

 

imóvel

de me ascender caule

 

múltiplo

de ser folha

 

aprendo

a ser árvore

enquanto

iludo a morte

na folha tombada do tempo

 

 

Sotaque da terra

 

Estas pedras

sonham ser casa

 

sei

porque falo

a língua do chão

 

nascida

na véspera de mim

minha voz

ficou cativa do mundo,

pegada nas areias do Índico

 

agora,

ouço em mim

o sotaque da terra

 

e choro

com as pedras

a demora de subirem ao sol

 


 

Quissico

 

1.

Deixei o sol

na praia de Quissico

 

De bruços

sobre o Verão

eu deixei o Sol

na extensão do tempo

 

Molhando, quase líquido,

o dia afundava

nas fundas águas do Índico

 

A terra

se via estar nua

lembrando, distante,

seu parto de carne e lua

 

 

2.

Não o pássaro: era o céu

que voava

 

O ombro da terra

amparava o dia

 

A luz

tombava ferida

pingando

como um pulso suicida

um minhas ocultas asas

 

 

Pequeninura do morto e do vivo

 

O morto

abre a terra: encontra um ventre

 

O vivo

abre a terra: descobre um seio

 

                                                                                            Mia Couto

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades