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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ALIMENTO DOS DEUSES / H. G. Wells
O ALIMENTO DOS DEUSES / H. G. Wells

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ALIMENTO DOS DEUSES

 

A AURORA DO ALIMENTO

A DESCOBERTA DO ALIMENTO

Em meados do século dezenove, tornou-se abundante, pela pri­meira vez nesta nossa terra, uma classe de homens, em sua maioria já tendendo para a velhice, conhecidos como "cientistas", embora eles detestem extremamente essa classificação. Detestam tanto a palavra que ela foi cuidadosamente excluída das colunas de Na­tureza, publicação particular e representativa da classe desde o início, como se fosse... aquela outra palavra que serve de base a toda linguagem realmente indecente deste país. Mas o grande público e a imprensa sabem o que fazem, e "cientistas" ficou, e quando eles recebem qualquer tipo de publicidade, o mínimo que os cha­mamos é de "distintos cientistas", "eminentes cientistas" e "conhe­cidos cientistas".

Sem dúvida, tanto o Sr. Bensington quanto o Professor Redwood já eram bastante merecedores de quaisquer dessas clas­sificações antes de chegarem à maravilhosa descoberta de que trata esta história. O Sr. Bensington era membro da Real Sociedade e ex-presidente da Sociedade de Química, e o Professor Redwood ensinava Fisiologia na Faculdade de Bond Street da Universidade de Londres e já fora rudemente atacado, repetidas vezes, pelos antiviviseccionistas. Ambos viviam uma vida de distinção acadêmi­ca desde a juventude.

Eram, decerto, pessoas de aparência nada imponente, como de fato o são todos os verdadeiros cientistas. Há mais imponência pessoal no ator de maneiras mais contidas do que em toda a RealSociedade. O Sr. Bensington, baixo e muitíssimo calvo, andava li­geiramente encurvado; usava óculos de aros de ouro e botas de feltro cheias de furos, devido aos seus numerosos calos, e o Pro­fessor Redwood tinha uma aparência absolutamente comum. Até descobrirem o Alimento dos Deuses (como devo insistir em chamá-lo), levavam vidas de tão eminente e estudiosa obscuridade que é difícil encontrar alguma coisa para contar aos leitores.

O Sr. Bensington ganhara suas esporas (se se pode empregar tal expressão para um cavalheiro que usava botas de feltro esbura­cadas) pelas esplêndidas pesquisas sobre os Alcalóides Mais Tóxicos, e o Professor Redwood ascendera à eminência... não me lembro exatamente como ascendera à eminência. Só sei que era muito eminente, só isso. Mas imagino que se tratava de um volumoso tra­balho sobre Tempos de Reação, com numerosas lâminas de gráfi­cos esfigmográficos (submeto-me a correcões) e uma admirável ter­minologia nova que fez o trabalho por ele.

O público em geral pouco ou nada via de qualquer desses dois cavalheiros. Às vezes, em lugares como o Real Instituto e a Socie­dade das Artes, via-se algo do Sr. Bensignton, ou pelo menos de sua rosada calvície e uma ponta do colarinho e do casaco, e ouviam-se fragmentos de uma conferência ou relatório que ele imaginava ler audivelmente; e lembro-me de uma vez — um meio-dia no irre­cuperável passado — quando a Associação Britânica estava em Dover, em que fui à seção C. ou D., ou qualquer outra letra, que instalara sua sede num bar, e acompanhei por mera curiosidade duas senhoras de aparência muito séria e com embrulhos, que en­traram por uma porta marcada "Bilhar" e "Sinuca" para uma cho­cante escuridão, quebrada apenas pelo círculo de uma lanterna mágica com os gráficos de Redwood.

Eu via as transparências da lanterna irem e virem, e ouvia uma voz (esqueci o que dizia), que julgo fosse a do Professor Redwood, o chiado da lanterna e outro som, que me mantiveram ali, ainda por pura curiosidade, até que as luzes se acenderam inesperada­mente. E então percebi que o tal som era o mastigar de pãezinhos,, sanduíches e outras coisas que os Associados Britânicos reunidos tinham ido comer ali, ocultos pela escuridão da lanterna mágica.

E Redwood, lembro-me, continuou falando depois que as luzes se acenderam, e indicando o lugar onde seu diagrama devia estarvisível na tela — e lá estava mesmo, assim que se restaurou a es­curidão. Lembro-me dele como do homem moreno mais comum, parecendo ligeiramente nervoso, com um ar de quem está preocupa­do com outra coisa e fazendo aquilo naquele momento apenas por um inexplicável senso de dever.

Também ouvi Bensington certa vez — nos velhos tempos — numa conferência educacional em Bloomsbury. Como os químicos e botânicos mais eminentes, era muito autoritário em relação ao ensino — embora eu ache que ele perderia o juízo, de medo, diante de uma classe de internato comum, em meia hora — e até onde posso me lembrar hoje, propunha um aperfeiçoamento do método heurístico do Professor Armstrong, pelo qual, ao custo de trezen­tas ou quatrocentas libras de aparelhos, total abandono de outros estudos e atenção integral de um professor de talento excepcional, uma criança média poderia, com uma forçada e completa dedicação, aprender em dez ou doze anos quase tanta química quanto se pode aprender num desses duvidosos livrinhos didáticos de alguns xelins, tão comuns na época...

Pessoas bastante comuns, como vêem, os dois, fora de suas ciências. Ou, quando muito, do lado imprático do comum. E vocês descobrirão que assim são os "cientistas", como classe, em todo o mundo. O que é grande neles constitui uma dor de cabeça para seus colegas cientistas e um mistério para o grande público; e o que não é, é evidente.

Não há dúvida quanto ao que não é grande neles, pois nenhuma raça humana tem tão óbvia pequenez. No que se refere às relações humanas, vivem num mundo tacanho; suas pesquisas im­plicam infinita atenção e uma reclusão quase monástica; e o que sobra não é muito. Ver algum descobridorzinho de grandes coisas, estranho, tímido, deformado, grisalho e cheio de importância, ri­diculamente enfeitado com a larga fita de uma ordem de Cava­lheiros e oferecendo uma recepção a seus irmãos humanos; ler o desespero de Natureza diante da "negligência para com a ciência" quando o anjo das homenagens natalícias esquece a Real Sociedade; ouvir um incansável liquenologista comentar o trabalho de outro incansável liquenologista — essas coisas obrigam-nos a compreen­der a invariável pequenez dos homens.

E além disso o recife de ciência que esses "cientistazinhos" construíram e estão construindo é tão maravilhoso, tão portentoso, tão cheio de misteriosas promessas apenas entrevistas para o po­deroso futuro da humanidade! Eles não parecem compreender o que estão fazendo. Mesmo o Sr. Bensington, quando escolheu há muito tempo sua vocação, quando consagrou sua vida aos alcalói­des e compostos afins, teve sem dúvida algum sinal da visão—- mais que um sinal. Sem uma grande inspiração, em busca de glórias e posições que só um cientista pode esperar, que jovem daria sua vida a essa obra, como os jovens dão? Não, eles devem ter visto a glória, devem ter tido a visão, mas tão de perto, que os cegou. O esplendor cegou-os piedosamente, e pelo resto de suas vidas eles podem segurar a luz do saber confortavelmente — para que pos­samos ver.

Talvez isso explique o toque de preocupação de Redwood, e o fato de ele ser — disso não pode mais haver dúvida hoje — diferente entre seus colegas; e essa diferença era que ainda guarda­va algo da visão.

O Alimento dos Deuses é o nome que dou à substância que o Sr. Bensington e o Professor Redwood criaram juntos; e, levan­do-se em conta o que ele já fez, e tudo que certamente ainda fará, não há dúvida de que não exagero. Mas o Sr. Bensington não gos­taria mais de chamá-lo por esse nome, calmamente, do que de sair de seu apartamento na Sloane Street vestindo escarlate real e com uma coroa de louros. A expressão foi apenas um primeiro brado de entusiasmo dele. Chamou-o de Alimento dos Deuses em seu en­tusiasmo, e durante mais ou menos uma hora, no máximo. Depois disso, concluiu que estava sendo absurdo. Quando pensou pela primeira vez naquilo que via, percebeu, por assim dizer, um pano­rama de enormes possibilidades —- possibilidades literalmente enor­mes — mas diante de tal visão deslumbrante, após um olhar de pasmo, fechou decididamente os olhos, como cabia a um "cientista" consciencioso. Depois disso, Alimento dos Deuses pareceu-lhe umnome tão berrante que chegava à indecência. Surpreendeu-se por ter usado a expressão. Mas apesar de tudo isso permanecia nele algo daquele momento de descortino, que brotava de vez em quando

—        Realmente, sabe — disse, esfregando as mãos e rindo nervoso — isso tem um interesse mais que teórico.   Por exemplo — confiou, aproximando o rosto do professor, e baixando  muito a voz — talvez, se adequadamente tratado, vendesse... Precisamen­te — disse, afastando-se — como Alimento.  Ou pelo menos como um ingrediente alimentar. Supondo-se, é claro, que seja palatável. Algo que não podemos saber enquanto não o prepararmos.

Voltou-se no tapete diante da lareira e estudou cuidadosamen­te os buracos em seus sapatos de pano.

—        O nome? — disse, erguendo o olhar em resposta a uma pergunta. — De minha parte, inclino-me à boa e velha alusão clás­sica.  Torna... torna a res científica... Dá-lhe um toque de velha dignidade.  Estive pensando... não sei se você achará um absurdo meu... De vez em quando pode-se usar sem dúvida um pouco de fantasia...   Herakleoforbia.    Hem?  O Alimento  de um  possível Hércules? Sabe que poderia. . .   É claro que, se acha que não... Redwood refletia, fitando o fogo, e não fez objeção.

— Acha que serviria?

Redwood balançou a cabeça gravemente.

— Podia ser Titanoforbia, sabe. Alimento de Titãs... Prefe­re o primeiro? Tem mesmo certeza de que não acha um pouco...

 Não.  

 Ah! Isso me agrada.

E assim, deram-lhe o nome de Herakleoforbia durante toda a pesquisa e no relatório — o relatório, que jamais foi publicado, devido aos inesperados acontecimentos que perturbaram todos os seus arranjos — está invariavelmente escrito assim. Preparam subs­tâncias afins, antes de darem com aquela que suas especulações ha­viam previsto, e referiram-se a elas como Herakleoforbia I, Hera­kleoforbia II e Herakleoforbia III. É à Herakleoforbia IV que eu — insistindo no nome original dado por Bensington — chamo aqui de Alimento dos Deuses.

A idéia fora do Sr. Bensington, mas como havia sido sugerida por uma das contribuições do Professor Redwood à publicação Transações Filosóficas, ele muito corretamente consultara esse ca­valheiro antes de levá-la adiante. Além disso, tratava-se, como pes­quisa, de um trabalho tanto fisiológico quanto químico.

O Professor Redwood era um desses cientistas viciados em grá­ficos e curvas. Vocês sabem — se são da espécie de leitor que eu gosto — o tipo de documento científico a que me refiro. É um tra­balho no qual não se pode ver pé nem cabeça, e no fim vêm cinco ou seis longos diagramas dobrados, que se abrem e apresentam traços peculiares em ziguezague, raios exagerados ou coisas sinuosas inexplicáveis chamadas "curvas suavizadas", traçadas sobre ordena­das e partindo de abcissas — coisas assim. A gente fica intrigado olhando aquilo um longo tempo, e termina desconfiado de que não apenas não entende, mas de que o próprio autor tampouco enten­de. Mas na verdade, sabem, muitos desses cientistas compreendem muito bem o significado de seus relatórios, e é simplesmente um defeito de expressão que cria o obstáculo entre nós.

Inclino-me a achar que o pensamento de Redwood se processava em traços e curvas. E após seu monumental trabalho sobre Tempos de Reação (pede-se ao leitor não científico que aguente um pouco mais, pois tudo ficará claro como a luz do dia) e ele começou a produzir curvas suavizadas e esfigmografias sobre o Crescimento, e foi na verdade um de seus relatórios sobre isso que deu a idéia ao Sr. Bensington.

Redwood, como sabem, estivera medindo todo tipo de coisas que crescem: gatinhos, cachorrinhos, girassóis, cogumelos, feijoeiros e (enquanto a esposa não pôs um fim à coisa) o seu bebê, e de­monstrara que o crescimento se desenvolvia não num ritmo regular, ou, nos termos dele, assim:

 

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mas   com  impulsos  e  intervalos  desse tipo:

 

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e que ao que parecia nada crescia regular e constantemente; mais ainda: até onde podia perceber, nada podia crescer assim: era como se primeiro toda coisa viva precisasse acumular força, crescesse com vigor apenas por um determinado tempo, e depois tivesse de esperar um período para poder tornar a crescer. Na linguagem obscura e altamente técnica do "cientista" deveras minucioso, Redwood sugeria que o processo do crescimento provavelmente exi­gia a presença no sangue de considerável quantidade de alguma substância necessária que se formava muito devagar, e quando essa substância era consumida pelo crescimento, só se renovava com muita lentidão; enquanto isso, o organismo tinha de marcar passo. Comparara essa substância desconhecida ao óleo nas máquinas. Um animal em crescimento é mais ou menos como uma máquina, dizia ele, que pode mover-se por um certo tempo, e tem de ser reabastecido para poder tornar a funcionar. ("Mas por que não se pode abastecer a máquina de fora?" dissera o Sr. Bensington, quando lera o relatório.) E talvez se descobrisse que tudo isso, dissera Redwood, com a deliciosa e nervosa falta de sequência de sua classe, muito provavelmente lançava alguma luz sobre o mistério de certas glândulas desprovidas de duetos. Como se elas tivessem alguma coisa a ver com aquilo!

Num comunicado posterior, Redwood fora mais adiante. Fornecera uma abundância de diagramas — exatamente como trajetórias de foguetes — e a essência — até onde havia alguma — era que o sangue dos cachorrinhos e gatinhos, a seiva dos girassóis e o suco dos cogumelos, no que ele chamava de a "fase de cresci­mento", diferiam na proporção de certos elementos de seu sangue e seiva quando não estavam crescendo.

Quando o Sr. Bensington, após virar os diagramas de lado e de cabeça para baixo, começara a perceber qual era a diferença, fora tomado de grande espanto. Porque, sabem, era provável que a diferença se devesse à presença da mesmíssima substância que ele tentara isolar recentemente, em suas pesquisas sobre os alcalóidesmais estimulantes para o sistema nervoso. Depusera o comunicado de Redwood na prancheta de leitura, que oscilava inconveniente­mente no braço da poltrona, tirara os óculos de aros de ouro, ba­fejara-os e limpara-os com muito cuidado.

— Por Júpiter! — dissera.

Depois, recolocando os óculos, voltara-se para a prancheta de leitura, que no mesmo instante, ao tocar o seu braço o braço da poltrona, emitira um rangido canalha e jogara o comunicado, com todos os seus diagramas misturados e amassados, no chão.

— Por Júpiter! — dissera o Sr. Bensington, comprimindo a barriga contra o braço da poltrona, com paciente indiferença aos seus hábitos de conforto, e depois, estando o panfleto ainda fora de seu alcance, pusera-se de quatro para pegá-lo.   E fora no chão que lhe ocorrera a idéia de chamá-lo Alimento dos Deuses...

Pois, sabem, se ele estivesse certo e Redwood também, então, injetando-se ou administrando-se aquela sua nova substância no alimento, acabar-se-ia com a "fase de repouso", e em vez de o crescimento processar-se assim:

 

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continuaria sempre (se estão me acompanhando) assim:

 

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Na noite que se seguiu à sua conversa com Redwood, o Sr. Bensington mal pôde pregar o olho. Pareceu mergulhar numa espécie de modorra, mas foi apenas um momento; depois sonhou que cavava um enorme buraco na terra e despejava toneladas e toneladas de Alimento dos Deuses, e a terra inchava e inchava, etodas as fronteiras dos países explodiam, e toda a Real Sociedade de Geografia trabalhava, como uma poderosa corporação de alfaia­tes, afrouxando o equador.

Foi sem dúvida um sonho ridículo; mas mostra o estado de excitação mental em que entrara o Sr. Bensington — e o verdadeiro valor que dava à sua idéia — muito melhor que qualquer das coisas que disse ou fez quando desperto e em guarda. Senão, eu não o teria mencionado, porque em geral não acho nenhum inte­resse em as pessoas contarem seus sonhos umas às outras.

Por uma singular coincidência, Redwood também tivera um sonho naquela noite, e seu sonho fora assim:

 

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Era um diagrama traçado em fogo sobre o longo pergaminho de um abismo. E ele (Redwood) achava-se de pé num planeta, diante de uma negra plataforma, fazendo uma conferência sobre o novo crescimento agora possível, para o Mais que Real Instituto de Forças Primordiais, forças que anteriormente, mesmo no cresci­mento das raças, impérios, sistemas planetários e mundos, tinham sido assim:

 

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E mesmo, em alguns casos, assim:

 

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E explicava-lhes muito lúcida e convincentemente que tais métodos lentos, retrógrados, sairiam de moda muito rapidamente, com sua descoberta.

Ridículo, sem dúvida! Mas também isso mostra...

Não sugiro nem por um momento que os sonhos devem ser encarados como significativos ou proféticos de qualquer modo, a não ser como já afirmei categoricamente.

 

A FAZENDA EXPERIMENTAL

O Sr. Bensington propôs originalmente experimentar o mate­rial, assim que pudesse prepará-lo de fato, em girinos. Para come­çar, sempre se experimenta esse tipo de coisa em girinos; pois para isso é que os girinos existem. E combinou-se que seria ele quem realizaria as experiências, e não Redwood, porque o laboratório deste estava ocupado com o aparato balístico e animais necessá­rios para uma pesquisa sobre a Variação Diurna na Frequência das Marradas dos Bezerros Machos, um estudo que proporcionava cur­vas de um tipo anormal e desnorteante, e a presença de aquários com girinos era extremamente indesejável enquanto essa pesquisa estivesse em andamento.

Mas quando o Sr. Bensington comunicou à sua prima Jane algo que tinha em mente, ela impôs um imediato veto à entrada de qualquer número considerável de girinos, ou de quaisquer dessas cobaias, no apartamento deles. Não fazia qualquer objeção ao uso, por ele, de um dos quartos do apartamento para experiências quí­micas não explosivas, que no que lhe dizia respeito não davam em nada; e deixara-o ter um fogão a gás, uma pia e um armário her­meticamente trancado, a salvo da tempestade semanal de limpeza da qual ela não abria mão. Tendo conhecido pessoas viciadas em bebida, encarava a preocupação dele em obter distinção nas socie­dades eruditas como um excelente substituto para a outra forma mais vulgar de depravação. Mas qualquer tipo de coisas vivas em quantidade, "coleantes" quando vivas, e malcheirosas quando mortas, ela não podia e não iria suportar. Disse que essas coisas certa­mente seriam insalubres, e Bensington era notoriamente um homem frágil — bobagem dizer que não. E quando Bensington tentara ex­plicar a enorme importância da possível descoberta, ela dissera que estava tudo muito bem, mas se consentisse em deixá-lo bagunçar a casa, tornando-a desconfortável (e tudo se resumia a isso), tinha certeza de que ele seria o primeiro a queixar-se.

O Sr. Bensington pôs-se a andar de um lado para outro da sala, indiferente aos calos, e falou-lhe com muita firmeza e raiva, sem o menor efeito. Disse que nada devia obstruir o Progresso da Ciên­cia, ao que ela respondeu que o Progresso da Ciência era uma coisa, e ter um monte de girinos no apartamento, outra; ele disse que na Alemanha era fato indiscutível que um homem com uma idéia da­quelas teria imediatamente à disposição vinte mil pés cúbicos de la­boratório perfeitamente equipado, ao que ela respondeu que se sen­tia e sempre se sentiria feliz por não ser alemã; ele disse que aqui­lo o tornaria famoso para sempre, ao que ela respondeu que o mais provável era que adoecesse, tendo um monte de girinos num apar­tamento como o deles; ele disse que era o senhor em sua casa, ao que ela respondeu que, a cuidar de um monte de girinos, preferia ir ser zeladora numa escola; e então ele lhe pediu que fosse razoá­vel, ao que ela pediu que ele fosse razoável, e desistisse daquela bobagem de girinos; ele disse que ela devia respeitar suas ideias, ao que ela respondeu que, se fossem malcheirosas, não as respeitaria; e então ele perdeu todo controle e disse — apesar das observações clássicas de Huxley sobre o assunto — um palavrão. Não muito feio, mas o suficiente.

E depois disso ela ficou muitíssimo ofendida e exigiu des­culpas, e a perspectiva de algum dia experimentar-se o Alimento dos Deuses em girinos, no apartamento deles, desapareceu completamente no pedido de desculpas.

Portanto, o Sr. Bensington teve de pensar numa outra forma de realizar as experiências sobre alimentação necessárias para demons­trar sua descoberta, assim que isolasse e preparasse a substância. Por alguns dias, meditou na possibilidade de hospedar os girinos com alguma pessoa digna de confiança, mas depois, vendo casualmente uma frase num jornal, desviou os pensamentos para uma Fazenda Experimental.

E frangos. Assim que pensou na coisa, idealizou-a como uma granja de aves. Teve uma súbita visão de frangos crescendo desen­freadamente. Imaginou um cenário de gigos e galinheiros, gigos cada vez mais desmesurados e galinheiros cada vez maiores. Os frangos são tão acessíveis, tão facilmente alimentados e observados, tão mais enxutos para segurar e medir, que para esse fim os girinos lhe pareciam agora, em comparação, animais muito selvagens e descontrolados. Ficou muito intrigado tentando compreender por­que não pensara em frangos, em vez de girinos, desde o início. En­tre outras coisas, isso teria poupado toda aquela encrenca com a prima Jane. E quando sugeriu isso a Redwood, o outro concordou inteiramente com ele.

Redwood disse estar convencido de que os fisiologistas experimentais cometiam um grande erro trabalhando tanto com animaizinhos imprestáveis. Era exatamente como fazer experimentos em química com uma quantidade insuficiente de material; os erros de observação e manipulação tornavam-se desproporcionalmente gran­des. Era extremamente importante agora que os homens de ciência afirmassem seu direito a ter material grande. Por isso é que ele fazia sua atual série de experiências com Bezerros Machos na Fa­culdade de Bond Street, apesar de certas inconveniências para os estudantes e professores de outras matérias, causadas por sua in­cidental imprudência nos corredores. Mas as curvas que estava obtendo eram excepcionalmente interessantes, e quando publicadas justificariam sobejamente sua escolha. De sua parte, não fosse pela inadequada verba destinada à ciência no país, jamais trabalharia, se pudesse, com algo menor que uma baleia. Mas receava que um Viveiro Público em escala suficiente para tornar isso possível fosse no momento, pelo menos no país, uma exigência utópica. Na Ale­manha ...  Etc.

Como os bezerros de Redwood exigiam sua atenção diária, a escolha e preparação da Fazenda Experimental couberam em gran­de parte a Bensington. Todas as despesas também, ficou subenten­dido, correriam por sua conta, pelo menos enquanto não se conse­guisse uma verba. Conseqüentemente, ele alternava seu trabalho no laboratório do apartamento com a procura da fazenda, subindo e descendo as linhas férreas que partem de Londres para o sul, e seus óculos, sua simples calvície e suas botas de feltro laceradas encheram de vãs esperanças muitos donos de inúmeras propriedades indesejáveis. Ele punha anúncios em vários jornais diários e em Natureza, procurando um casal responsável (casado), pontual, ativo e acostumado com aves para administrar inteiramente uma Fazenda Experimental de três acres.

Encontrou o lugar que parecia precisar em Hickleybrow, perto de Urshot, em Kent. Era um lugarzinho isolado e estranho, num vale cercado por velhos bosques de pinheiros, negros e intimidan­tes à noite. Um montinho bossudo isolava-o do crepúsculo, e um sombrio poço com um telheiro caindo aos pedaços apequenava a casa. A pequena habitação não tinha trepadeiras, várias janelas es­tavam quebradas e o galpão da carroça lançava uma mancha negra ao meio-dia. A casa ficava a dois quilómetros e meio da aldeia, e sua solidão era muito duvidosamente aliviada por uma ambígua família de ecos.

O lugar impressionou Bensington como eminentemente adequa­do às exigências da pesquisa científica. Ele percorreu as instalações desenhando gigos e galinheiros com o braço estendido, e achou que a cozinha podia acomodar uma série de incubadeiras e chocadei­ras com um mínimo de alterações. Ficou com o lugar na hora; no caminho de volta a Londres, parou em Dunton Green e contratou um casal aceitável que atendera aos anúncios, e naquela mesma noite conseguiu isolar uma quantidade suficiente de Herakleoforbia I que mais que justificava tais compromissos.

O casal aceitável que se destinava a ser, sob a supervisão do Sr. Bensington, os primeiros distribuidores na terra do Alimento dos Deuses, era não apenas visivelmente muito idoso, mas tam­bém extremamente sujo. O Sr. Bensington não notou esse último ponto, porque nada destrói tanto os poderes de observação geral quanto a vida da ciência experimental. Chamavam-se Skinner, Sr. e Sra. Skinner, e o Sr. Bensington entrevistou-os numa salinha de janelas hermeticamente fechadas, com um espelho de consolo de lareira manchado e algumas raquíticas calceolárias.

A Sra. Skinner era uma mulherzinha bem velha, sem touca, com os cabelos brancos, sujos, muito puxados para trás, esticando um rosto que começara sendo principalmente — e agora, com a perda dos dentes e do queixo, e o engelhamento de tudo mais, ter­minara sendo quase exclusivamente — nariz. Vestia-se de cor de ardósia (até onde seu vestido tinha alguma cor), remendado num lu­gar com flanela vermelha. Recebera-o e falara com ele reservada­mente, olhando-o pelos lados e por cima do nariz, enquanto o Sr. Skinner fazia, segundo ela, alguma alteração em sua aparência. A velha tinha um dente que lhe atrapalhava a fala, e juntava nervo­samente as duas engelhadas mãos compridas. Disse ao Sr. Bensing-ton que cuidara de galinhas durante anos, e sabia tudo sobre incubadeiras; na verdade, eles próprios haviam dirigido uma granja de aves em certa época, e a empresa só fracassara no final por falta de alunos.

— É os aluno que paga — disse a Sra. Skinner.

O Sr. Skinner, quando apareceu, revelou ser um homem de cara larga, com um cicio e uma vesguice que o obrigava a olhar por cima da cabeça dos outros, chinelos esburacados que despertaram a simpatia do Sr. Bensington, e uma manifesta falta de botões. Fe­chava o casaco e a camisa com uma das mãos e riscava desenhos na toalha preta e dourada da mesa com o indicador da outra, enquanto o olho livre observava a espada de Dâmocles, por assim dizer, com uma expressão de triste distanciamento.

—        Não quer etha fathenda pra ganhar dinheiro. Não, thenhor. Dá no methmo, thenhor. Ethperiênthia. Prethithamente.

Disse que podiam ir para a fazenda imediatamente. Não faziam nada em Dunton Green, a não ser um pouco de costura.

—        Não é o bom lugar que eu achava que era, e o que eu ganho mal vale a pena — disse. — Athim, the for conveniente pro thenhor que a gente vá...

E dentro de uma semana o Sr. e a Sra. Skinner achavam-se instalados na fazenda, e o carpinteiro de Hickleybrow diversificava o trabalho de construir gigos e galinheiros com uma sistemática discussão sobre o Sr. Bensington.

 Ainda não vi muito ele — disse o Sr. Skinner. — Math até onde pude ver, me parethe meio maluco.

 Eu achei ele um pouco doido — disse o carpinteiro de Hickleybrow.

 Pegou a mania de galinha — disse o Sr. Skinner. — Ó meu Deuth! É como the ninguém maith thoubethe nada de galinha, thó ele.

—        Ele parece com uma galinha — disse o carpinteiro de Hickleybrow. — Com aqueles óculo dele.

O Sr. Skinner aproximou-se do carpinteiro de Hickleybrow e falou de um modo confidencial, um olho triste olhando a aldeia distante, enquanto o outro reluzia de maldade.

—        Elath tem de ther medida todo thanto dia... todo thatito dia, ele dithe. Pra ve rthe tão cretendo direito. Ora, theu... hem? Todo thanto dia... todo thanto dia.

E o Sr. Skinner erguia a mão para rir por trás dela de uni modo refinado e contagioso, e sacudia muito os ombros — e só o outro olho não participava da risada. Então, duvidando que o car­pinteiro houvesse pegado a essência da coisa, repetiu num murmú­rio penetrante:

 Medida.

 É pior que nosso antigo governador; macacos me morda se não é — disse o carpinteiro de Hickleybrow.

O trabalho experimental é a coisa mais tediosa do mundo (a não ser os relatórios sobre ele nas Transações Filosóficas), e pare­ceu ao Sr. Bensington que um longo tempo havia decorrido até que seu primeiro sonho de enormes possibilidades foi substituído por uma migalha de realização. Instituíra a Fazenda Experimental em outubro, e só em maio começaram os primeiros sinais de sucesso. Experimentara a Herakleoforbia I, II e III, e falhara; havia pro­blemas de ratos na Fazenda Experimental, e havia problemas com os Skinner. A única maneira de conseguir que o homem fizesse al­guma coisa que lhe mandavam era despedi-lo. Então, esfregava o queixo não barbeado — andava sempre não barbeado, mas, mila­grosamente, nunca barbado — com a mão espalmada, e olhava o Sr. Bensington com um olho, enquanto o outro passava por cima dele, e dizia:

— Ooohh!   Therto,   thenhor...  the ethtá falando thério... Mas afinal o sucesso despontou. E seu anúncio foi uma carta na comprida e fina letra do Sr. Skinner.

"A nova Raça saiu" — escrevia ele — "e não me agrada muito o jeito deles. Estão crescendo muito demais, diferentes da ninhada igual antes das ordens do senhor. Os últimos, an­tes que a gata papasse eles, eram uns pintos muito bonitos, mas esses estão crescendo que nem cardo. Nunca vi. Eles bi­cam com tanta força nas botas da gente que não consigo tirar as medidas certas que nem o senhor pediu. Uns verdadeiros gigantes, e comendo que nem gigantes também. Vamos precisar de milho muito em breve, pois o senhor nunca viu esses pintos comer. Maiores que garnisés. Se for nesse passo, vão se tomar ave de exposição, enormes como são. Passei um susto essa noite, pensando que a gata estava dando em cima deles, e quando olhei pela janela, juro que vi ela entrando por baixo do arame. Os pintos estavam do lado de fora e bicando tudo, famintos, quando saí, mas não vi nem sinal da gata. Por isso, dei milho para eles, e fechei tudo em segurança. Fico muito agradecido se me informar se a alimentação deve continuar segundo as ordens. A comida que o senhor prepa­rou já quase se acabou, e eu não gosto de preparar mais por causa do acidente com o pudim. Com os melhores votos de nós dois, e solicitando a continuação dos estimados favores,

Respeitosamente seu,

ALFRED NEWTON SKINNER."

A alusão final referia-se a um pudim de leite ao qual se misturara um pouco de Herakleoforbia II, com resultados dolorosos e quase fatais para os Skinner.

Mas o Sr. Bensington, lendo nas entrelinhas, viu naquele excesso de crescimento o alcance de sua meta havia muito buscada. Na manhã seguinte, desembarcou na estação de Urshot, trazendo na mala que tinha na mão um suprimento do Alimento dos Deuses su­ficiente para todos os pintos de Kent.

Era uma manhã luminosa e linda, em fins de maio, e os calos estavam tão melhores que ele decidiu cruzar Hickleybrow a pé até a fazenda. No todo, eram uns cinco quilômetros, atravessando o parque e a aldeia, e depois perlongando as verdes veredas das re­servas de caça de Hickleybrow. As árvores mostravam-se todas salpicadas com as verdes lantejoulas da primavera avançada, as sebes cheias de alsinas e candelárias, as matas de jacintos azuis e orquídeas púrpura, e por toda parte ouvia-se um grande alarido de pássaros, tordos, melros, papos-roxos, tentilhões e muitos outros; num canto ensolarado do parque, pendiam samambaias, e viam-se gamos saltando.

Essas coisas levaram o Sr. Bensington de volta ao seu primeiro e esquecido prazer na vida; diante dele, a promessa de descoberta tornava-se luminosa e alegre, e parecia-lhe que na verdade devia ter chegado ao dia mais feliz de sua vida. E quando viu no ensolarado galinheiro, no barranco arenoso à sombra dos pinheiros, os pintos alimentados com a comida que preparara para eles, gigantescos e desajeitados, já maiores que muitas galinhas casadas e assentadas, e continuando a crescer, ainda com a primeira plumagem amarela e macia (apenas com uma leve risca marrom nas costas), teve cer­teza de que chegara o seu dia mais feliz.

Por insistência do Sr. Skinner, entrou no galinheiro; mas de­pois de ser bicado uma ou duas vezes nos buracos das botas tornou a sair, e ficou olhando os monstros por trás da tela de arame. Colava o rosto na tela, e acompanhava os movimentos dos bichos co­mo se nunca tivesse visto um pinto antes em sua vida.

 O que eleth vai ther quando crether, não the pode nem penthar — disse o Sr. Skinner.

 Do tamanho de um cavalo — disse o Sr. Bensington.

 Bem perto — disse o Sr. Skinner.

— Várias pessoas poderiam almoçar só com uma asa! — disse o Sr. Bensington. — Cortariam nas juntas como carne de açougue.

 Math eleth não vai continuar crethendo dethe jeito — disse o Sr. Skinner.

 Não?

 Não — disse o Sr. Skinner. — Eu conhetho ethe tipo.

Eleth cometha grande, math não continua athim, gratha ath Deuth:

Não!

Fez-se uma pausa.

—        É oth cuidado — disse o Sr. Skinner modestamente. O Sr. Bensington voltou subitamente os óculos para ele.

— A gente tinha unth quathe tão grande como ethss aí no ou­tro lugar — disse o Sr. Skinner, com o olho melhor devotamente voltado para cima e soltando-se um pouco. — Eu e a patroa.

O Sr. Bensington fez a inspeção geral de hábito nas instalações, mas apressou-se a voltar ao novo galinheiro. Sabem, era tão mais do que ele ousara esperar, na verdade. O curso da ciência é tão tortuoso e lento; após as claras promessas e antes da realização prática há sempre anos e anos de manobras intricadas, e ali — ali estava o Alimento dos Deuses funcionando, antes de um ano de teste! Parecia bom demais — bom demais. Não mais teria aquela esperança adiada, que é o pão de cada dia da imaginação científica! Pelo menos, era o que lhe parecia então. Voltou e olhou os estupendos pintos repetidas vezes.

— Deixe-me ver — disse. —- Têm dez dias. E comparados com um pinto comum, eu diria... cerca de seis ou sete vezes maiores...

— É hora de apertar oth parafutho — disse o Sr. Skinner à sua mulher. —- Ele tá alegre que nem uma criantha com o jeito que a gente tratou aqueleth pinto no galinheiro de lá... alegre que nem uma criantha.

Curvou-se confidencialmente para ela.

— Acho que é aquela comida velha dele —- disse por trás da mão, e emitiu um ruído de riso abafado na cavidade faríngea.

O Sr. Bensington era realmente um homem feliz nesse dia. Não estava com disposição para encontrar defeito em detalhes ad­ministrativos. A luz do sol certamente destacava mais vividamente o acumulado desleixo do casal Skinner do que ele jamais notara antes. Mas seus comentários eram os mais delicados possíveis. O cercado de muitos galinheiros estavam quebrados, mas ele pareceu achá-los muito satisfatórios quando o Sr. Skinner explicou que fora uma raposa, ou cachorro, ou alguma coisa que fizera aquilo. O Sr. Bensington mostrou que a incubadeira não fora limpa.

—        Isso não foi mesmo, não, senhor — disse a Sra. Skinner com os braços cruzados, sorrindo astutamente por trás do nariz. — Nós não teve tempo de limpar ela desde que chegou aqui...

Ele subiu para ver os buracos de ratos que segundo Skinner içariam a aquisição de uma ratoeira — certamente eram enor­mes — e descobriu que o quarto onde se guardava o Alimento dos Deuses misturado com farinha e farelo se achava em vergonhosa desarrumação. Os Skinner eram do tipo de gente que encontra utilidade para pires rachados, latas velhas, jarras de conservas e caixas de mostarda, e o lugar estava cheio dessas coisas. Num can­to, um grande monte de maçãs que Skinner guardara apodrecia, e de um prego na parte inclinada do teto pendiam várias peles de coelhos, nas quais ele pretendia experimentar seu talento de peleteiro. ("Não tem muita coitha thobre pele e outrath coitha que eu não thaiba", dissera Skinner.)

O Sr. Bensington sem dúvida franziu o nariz criticamente di­ante daquela bagunça, mas não criou nenhum caso desnecessário, e mesmo quando encontrou uma vespa regalando-se num boião pela metade de Herakleoforbia IV limitou-se a observar brandamente que sua substância ficaria melhor vedada do que exposta ao ar da­quele jeito.

E desviou-se dessas coisas imediatamente, para observar — algo que estivera em sua mente por algum tempo:

—        Sabe, Skinner, creio que vou matar um desses pintos... como um espécimen. Creio que o mataremos esta tarde, e o levarei para Londres comigo.

Fingiu olhar dentro de outro boião e tirou os óculos para limpá-los.

 Eu gostaria — disse — eu gostaria muito de ter uma relíquia...   um momento...  dessa raça particular, neste dia parti­cular. A propósito, você não dá carne a esses pintos?

Oh, não, thenhor — disse Skinner. — Garanto ao thenhor: noth thabe muito bem cuidar de ave de todo tipo pra father uma coitha detha.

Tem certeza de que não joga fora o resto de sua comida... acho que vi os ossos de um coelho espalhados na outra ponta do galinheiro ...

Mas quando foram examiná-los, descobriram que se tratava dos ossos bem maiores de um gato, roídos e deixados muito limpos e secos.

 

 Isso aí não é nenhum pinto — disse Jane, a prima do Sr. Bensington. — Ora, eu acho que conheço um pinto quando vejo um — acrescentou esquentada. — Para começar, é grande demais para um pinto, e depois, você vê perfeitamente que não é um pinto. Parece mais uma abetarda que um pinto.

 De minha parte — disse Redwood, deixando relutantemente que Bensington o arrastasse à discussão — devo confessar que, considerando todos os indícios...

— Oh! Se o senhor faz isso — disse Jane, a prima do Sr. Bensington — em vez de usar os próprios olhos como qualquer pessoa sensata...

 Bem, mas realmente, Srta. Bensington...

 Oh! Vamos! — disse a prima Jane. — Vocês homens são todos iguais.

 Considerando todos os indícios, ele sem dúvida se encaixa na definição... não há dúvida de que é anormal e hipertrofiado, mas ainda assim... especialmente quando se sabe que foi gerado do ovo de uma galinha normal... Sim, creio, Srta. Bensington, te­nho de admitir... isso, até onde se pode chamá-lo de alguma coisa, é uma espécie de pinto.

 Quer dizer que é um pinto? — perguntou a prima Jane.

 Eu creio que é um pinto — disse Redwood.

 Que BESTEIRA! — disse Jane, a prima do Sr. Bensington, e soltou um "Oh!" dirigido a Redwood. — Não tenho paciência com você. — E voltou-se subitamente e deixou a sala batendo a porta.

 E  é  um alívio muito grande para mim vê-lo,   também, Bensington — disse Redwood, quando a repercussão da batida da porta morreu. — Apesar de ser tão grande.

Sem qualquer estímulo do Sr. Bensington, sentou-se na poltrona baixa diante da lareira e confessou atos que mesmo num ho­mem não científico seriam indiscretos.

— Vai achar isso um tanto rude de minha parte, Bensington, eu sei — disse — mas a verdade  é que pus um pouco...   não muito... mas um pouco dessa coisa na mamadeira do meu bebê há quase uma semana!

 Mas e se...! — exclamou o Sr. Bensington.

 Eu sei — disse Redwood, e lançou uma olhada ao pinto gigante no prato em cima da mesa. — Deu tudo certo, graças a Deus. — E apalpou os bolsos em busca de cigarros. Forneceu de­talhes fragmentários. — O pobrezinho não ganhava peso...   desesperadamente ansioso.  Winkles, um paspalho pavoroso...  ex-aluno meu... inútil... A Sra. Redwood... confiança irrestrita em Winkles...  Você sabe, um homem que parece uma rocha...  lá em cima ... Nenhuma confiança em mim, claro... Ensinei a Win­kles ... Eu mal era admitido no berçário... Tinha-se de fazer al­guma coisa... Esgueirei-me quando a babá tomava o desjejum... cheguei à mamadeira.

 Mas ele vai crescer — disse o Sr. Bensington.

 Está crescendo.  Quase um quilo na  semana passada... Você devia ouvir Winkles. Cuidados, disse.

— Deus do céu! É o que Skinner diz! Redwood tornou a olhar o pinto.

 O problema é o acompanhamento — disse. — Não me deixam entrar no berçário, porque tentei estabelecer uma curva do crescimento de Georgina Phyllis... sabe... e como vou fazer para dar-lhe uma segunda dose...

 E precisa?

 Está chorando há dois dias... não se acostuma mais com a comida comum. Precisa de mais um pouco agora.

 Fale com Winkles.

 Ao diabo com Winkles! — disse Redwood.

 Você podia chegar a Winkles e dar-lhe uns pós para a criança...

 É mais ou menos isso que vou ter de fazer — disse Redwood, apoiando o queixo no punho e fitando o fogo.

Bensington ficou parado algum tempo, alisando o peito do pinto gigante.

— Vão ser frangos monstruosos.

 Vão — disse Redwood, ainda com os olhos no fulgor da lareira.

 Grandes como cavalos — disse Bensington.

—        Maiores — disse Redwood. — É exatamente isso!

Bensington desviou os olhos do espécimen.

—        Redwood   —   disse  —   esses   frangos   vão   causar   uma sensação.

Redwood acenou com a cabeça para o fogo.

 E por Júpiter! — disse Bensington, voltando-se de repente com um reluzir dos óculos. — O seu menino também!

 É  exatamente nisso  que  estou pensando  —  disse  Redwood .

Reclinou-se para trás, suspirou, jogou o cigarro quase inteiro no fogo e enfiou as mãos nos bolsos das calças.

 É precisamente nisso que estou pensando. Essa Herakleoforbia vai ser uma coisa estranha para controlar. O ritmo em que esse pinto deve ter crescido...

 Um menino crescendo nesse ritmo — disse o Sr. Bensing­ton, lentamente, e olhava o pinto enquanto falava. — Ora! Vai ficar grande!

 Vou lhe dar doses decrescentes — disse Redwood. — Ou, pelo menos, Winkles vai dar.

 É uma experiência um tanto exagerada demais.

 Demais.

 Contudo, sabe, devo confessar...  algum bebê vai ter de experimentá-la mais cedo ou mais tarde.

— Oh,  nós   a experimentaremos em  algum  bebê...   sem dúvida.

—        Exato —- disse Bensington, e veio postar-se sobre o tapete, tirando os óculos para limpá-los. — Até ver esses pintos, Redwood, não creio que tenha sequer começado a compreender...  coisa al­guma ...  das possibilidades do que estamos fazendo. Mal começo a perceber...  as possíveis consequências...

E mesmo então, sabem, o Sr. Bensington estava muito longe de ter qualquer idéia da mina que aquele trenzinho detonaria.

 

Isso aconteceu em princípios de junho. Durante algumas semanas, Bensington ficou impedido de revisitar a Fazenda Experi­mental, devido a uma severa bronquite, e Redwood fez uma rápida visita necessária. Voltou com a aparência ainda mais ansiosa do que quando partira. No todo, havia sete semanas de crescimento constante e ininterrupto...

E então as vespas iniciaram sua carreira.

Só em fins de julho, e quase uma semana antes de as galinhas fugirem para Hickleybrow, foi que se matou a primeira vespa. A notícia saiu em vários jornais, mas não sei se chegou ao Sr. Bensington, e muito menos se ele a relacionou com a generalizada las­sidão de método que predominava na Fazenda Experimental.

Pouca dúvida pode haver hoje de que, enquanto o Sr. Skinner alimentava os pintos do Sr. Bensington com Herakleoforbia IV, várias vespas transportavam com a mesma industriosidade — talvez mesmo mais — quantidades da mesma pasta para seus reben­tos de início do verão nos bancos de areia além dos bosques de pi­nheiros vizinhos. E não pode haver discussão alguma sobre o fato de que esses primeiros rebentos encontraram na substância o mes­mo crescimento e favor que as galinhas do Sr. Bensington. É da natureza da vespa atingir a maturidade efetiva antes da ave do­méstica, e de todas as criaturas que, graças à generosa negligência dos Skinner, partilhavam dos benefícios com que o Sr. Bensington cumulava suas galinhas, foram as vespas as primeiras a fazer uma certa figura no mundo.

Foi um caseiro chamado Godfrey, na propriedade do Tenente-Coronel Rupert Hick, perto de Maidstone, que encontrou e teve a sorte de matar o primeiro desses monstros dos quais a história guarda algum registro. Ele atravessava, afundado até os joelhos em samambaias, uma clareira no bosque de faias que diversifica o parque do Tenente-Coronel Hick, e levava sua espingarda — muito afortunadamente para ele uma espingarda de dois canos — no om­bro, quando avistou a coisa. Disse que a viu descendo contra a luz, e não pôde vê-la claramente, mas que, ao se aproximar, fazia um zumbido "como o de um carro a motor". Admite que ficou assustado. A coisa era, evidentemente, do tamanho de uma coruja de celeiro, ou maior, e para seu olho experiente o vôo e particular­mente o nebuloso bater das asas devem ter parecido estranhamente diferentes dos de um pássaro. O instinto de autodefesa, imagino, misturou-se ao longo hábito quando, como ele diz, "passou fogo no mesmo instante".

O desusado da experiência provavelmente afetou-lhe a mira; de qualquer forma, perdeu a maior parte da descarga, e a coisa apenas caiu por um momento, com um irado "Uzzzz" que denunciou imediatamente a vespa, e depois tornou a voar com todas as suas listas reluzindo contra a luz. O caseiro diz que ela se voltou contra ele. De qualquer forma, disparou o segundo cano a menos de vinte metros, largou a espingarda, correu um ou dois passos e abaixou-se, para evitá-la.

A vespa chegou, está convencido, a um metro dele; caiu no chão, tornou a voar e a cair uns trinta metros adiante, talvez, e rolou estrebuchando, o ferrão entrando e saindo na última agonia. Ele tornou a disparar os dois canos contra ela, antes de aventurar-se a chegar perto.

Quando mediu a coisa, descobriu que tinha sessenta centíme­tros com as asas abertas, e o ferrão sete centímetros. O abdômen fora arrancado, mas ele calculou o comprimento da criatura da cabeça ao ferrão em trinta e nove centímetros — o que está muito perto do correto. Os olhos multifacetados eram do tamanho da moeda de um pêni.

Esse foi o primeiro aparecimento confirmado das vespas gigantes. No dia seguinte, um ciclista que descia o morro entre Sevenoaks e Tornbridge por pouco não passou por cima de um desses gigantes, que se arrastava pela estrada. A passagem dele pareceu assustá-lo, e o bicho levantou vôo com o barulho de uma serraria. A bicicleta saiu da estrada, no impulso da hora, e quando ele con­seguiu olhar para trás a vespa afastava-se voando acima das ma­tas em direção a Westerham.

Após pedalar inseguro por algum tempo, ele freou, desmontou —- tremia de modo tão violento que caiu sobre o veículo ao fazer isso — e sentou-se na beira do caminho para recuperar-se. Preten­dia ir até Ashford, mas não foi além de Tornbridge nesse dia...

Depois disso, muito curiosamente, não há registro de qual­quer vespa gigante avistada durante três dias. Descobri, consultan­do as condições do tempo desse período, que foram dias nublados e frios, com chuvas esparsas, o que talvez explique esse intervalo. No quarto dia, porém, houve um céu azul e um sol brilhante, e uma explosão de vespas como o mundo certamente jamais vira antes.

Quantas vespas enormes surgiram nesse dia, é impossível calcular. Existem pelo menos cinquenta histórias de suas aparições. Uma vítima, um merceeiro, descobriu um desses monstros numa barrica de açúcar e atacou-o violentamente com uma pá. Jogou-o no chão por um momento, mas a vespa o ferroou através da sola da bota, antes de ele tornar a golpeá-la e dividir-lhe o corpo em duas metades. Ele morreu primeiro.

A mais sensacional das cinquentas aparições foi sem dúvida a da vespa que visitou o Museu Britânico por volta do meio-dia, descendo do azul sereno sobre um dos inúmeros pombos que se ali­mentam no pátio daquele prédio e voando para a cornija, a fim de devorar sua vítima à vontade. Depois disso, arrastou-se uma vez mais pelo telhado do museu, entrou na cúpula do salão de leitura por uma clarabóia, zumbiu lá dentro por algum tempo — houve um estouro entre os leitores — e afinal encontrou outra janela e tor­nou a desaparecer com um súbito silêncio da observação humana.

A maioria das outras histórias é sobre simples passagens ou descidas. Um piquenique foi dispersado em Aldington Knoll, e todo os seus doces e geléias consumidos, e um cachorrinho foi morto e despedaçado perto de Whitstable, diante das vistas de sua dona...

As ruas, nessa noite, ressoavam com o clamor, os cartazes dos jornais foram dedicados exclusivamente, em letras gigantescas, à "Vespa Gigante de Kent". Editores e subeditores agitados subiam e desciam escadas tortuosas, berrando coisas sobre as vespas. E o Professor Redwood, saindo da faculdade em Bond Street às cinco, acalorado devido a uma acirrada discussão com seu comitê sobre o preço dos bezerros, comprou um jornal vespertino, abriu-o, mu­dou de cor, esqueceu inteiramente os bezerros e o comitê, e tomou um cabriole direto para o apartamento de Bensington.

Pareceu-lhe que o apartamento estava ocupado, com total exclusão de qualquer outro objeto concreto, pelo Sr. Skinner e sua voz, se na verdade se pode chamá-lo ou à sua voz de objetos concretos!

A voz era muito aguda, descaindo nas notas de angústia.

— Nóth não pode ficar, thenhor. Já ficamoth ethperando que ath coitha melhorathe, e thó the tornou pior, thenor. Não é thó ath vethpa, não thenhor, tem também ath lacrainha grande thenhor... dethe tamanho, thonhor. (Indicou todo o comprimento da mão, e mais uns seis centímetros do punho gordo e sujo.) Elath quathe cautha um ataque na Thra. Thkinner, thenhor. E eth ath coitha tão aninhada perto doth galinheiro, thenor, e crethendo. E a trepadeira, thenhor, que a gente plantou perto da pia, thenhor... the meteu pela janela e agarrou ath perna da Thra. Thkinner, thenhor, É aquela comida do thenhor. Em toda parte que ethpalhamo ela, thenhor, thó um pouquinho, tudo crethe maith, thenhor, dó que um dia penthei que qualquer coitha podia crether. Nóth não pode ficar nem maith um mêth, thenhor. Ath vida da gente vale maith, thsnhor. Methmo que ath vethpa não pique a gente, vamo ther thufocado pela trepadeira, thenhor. Não pode imaginar, thenhor... thó indo lá pra ver, thenhor... — Volveu o olho superior para a cornija acima da cabeça de Redwood. — Como vamo thaber, the­nhor, the oth rato não comeu também! É o que eu maith pentho, the­nhor, não vi nenhum rato grande, thenhor, math como vamoth tha­ber! Nóth ficou athunthtado muitoth diath por cautha dath lacrainha que vimo... parethia até lagothta... duath dela, thenhor, e o modo athuthtador como a trepadeira tá crethendo. E athim que eu trioube dath vethpa... athim que thoube delato, thenhor, eu com­preendi. Thó ethperei cothturar um botão que tinha tholtado, e vim logo pra cá. Methmo agora, thenhor, tou morto de preocupa-thão, thenhor. Como vou thaber o que tá acontethendo com a Thra. Thkinner, thenhor! A trepadeira tá the ethtentendo pra todo lado, que nem uma cobra, thenhor... Deuth me livre, math prethitho vigiar ela, thenhor, e thaltar pra fora do caminho dela!... e athlacrainha cada veth maior, e ath vethpa... ela não tem uma caixa de primeiroth thocorro, thenhor... the alguma coitha acontether...

—        Mas as galinhas — disse o Sr. Bensington. — Como estão as galinhas?

— Nóth deu de comer a elath até ontem, Deuth me livre — disse o Sr. Skinner. — Math hoje de manhã nóth não teve cora­gem, thenhor. O barulho dath vethpa era uma coitha terrível, the­nhor. Elath tava thaindo... dethenath dela. Dethe tamanho. Eu dithe pra ela: é thó pregar um ou doith botão, que não potho ir pra Londres athim, e vou ver o Thr. Benthington e ethplicar tudo pra ele. E vothê fique netha thala até eu voltar, eu dithe, e fique com ath janela fechada o mais que puder, eu dithe.

 Você foi tão malditamente desleixado...   — disse Redwood.

 Oh! Não diga uma coitha detha, thenhor — disse Skinner. —       Agora,  não, thenhor. Não  comigo athim tão dethethperado, thenhor, pela Thra. Thkinner, thenhor. Oh, não diga! Não tenho ânimo pra dithcutir com o thenhor. Deuth me ajude, thenhor, não tenho, não. Fico thó penthando noth rato... Como vou thaber the eleth não pegou a Thra. Thkinner enquanto eu tou aqui!

 E você não fez uma medição de todas essas belas curvas de crescimento! — disse Redwood.

 Eu tava muito perturbado, thenhor — disse o Sr. Skinner.

—        The thoubethe o que a gente pathou... eu e a patroa! Tudo nethe último mêth. A gente não thabia o que penthar, thenhor. Com ath galinha crethendo demaith, e ath lacrainha, e a trepadeira. Não thei the falei pro thenhor... a trepadeira...

 Já nos disse isso — disse Redwood. — O problema, Bensington, é saber o que nós vamos fazer.

 O que nós vamos fazer? — perguntou o Sr. Skinner.

 Você precisa voltar para a Sra. Skinner — disse Redwood.

—        Não pode deixá-la sozinha lá a noite toda.

—        Thothinha, não, thenhor, eu, não. Nem que tivethe deth Thra. Thkinner lá. É o Thr. Benthington...

—- Bobagem — disse Redwood. — As vespas ficarão quietas de noite.

 Mas e oth rato?

 Não há rato nenhum — disse Redwood.

 

O Sr. Skinner podia ter esquecido sua principal ansiedade, A Sra. Skinner não perdera seu tempo.

Por volta das onze horas, a trepadeira, que estivera discretamente ativa o dia todo, começou a subir para a janela e tapá-la, e quanto mais escuro ficava dentro de casa, mais claramente a Sra. Skinner via que sua posição logo se tornaria insustentável. E tam­bém que vivera séculos desde que Skinner partira. Espiou algum tempo pela janela, por entre os agitados tentáculos da trepadeira, e depois, muito cautelosamente, foi abrir a porta do quarto de dor­mir e escutar...

Tudo parecia quieto; e assim, segurando as saias bem alto, a Sra. Skinner saltou para dentro do quarto, e, tendo primeiro dado uma olhada debaixo da cama, trancou-se lá e agiu com a metódica rapidez de uma mulher experiente que faz as malas para partir. A cama não fora feita, e o quarto estava juncado de pedaços de trepadeira que Skinner serrara para poder fechar a janela à noi­te, mas essa desarrumação não tinha importância. Ela enrolou suas coisas num lençol decente. Pôs todo o seu guarda-roupa e uma ja­queta de belbutina que Skinner usava nos momentos de mais ce­rimônia, e também uma jarra de picles que não fora aberta, e até aí tudo bem. Mas também juntou duas das latas hermeticamente fechadas de Hsrakleoforbia IV que o Sr. Bensington trouxera em sua última visita. (Era uma mulher boa e honesta — mas também era avó, e ficara com o coração ardendo ao ver tão bom crescimen­to desperdiçado num bando de pintos.)

Tendo embalado tudo isso, pôs a touca, tirou o avental, amar­rou a sombrinha com um novo cadarço de sapato, e após ficar à escuta, por um longo tempo, junto à porta e à janela, abriu a porta e aventurou-se no perigoso mundo. Trazia a sombrinha debaixo do braço e agarrava a trouxa com mãos ásperas e decididas. Usava sua melhor touca domingueira, e as duas papoulas que brotavam entre os esplendores de fitas e contas da touca pareciam instiladas com a mesma coragem trêmula que a possuía.

As feições em volta da base do nariz da Sra. Skinuer franziam-se com determinação. Ela estava cheia daquilo tudo. Sozinha ali! Skinner que voltasse, se quissesse.

Saiu pela porta da frente, não porque desejasse ir para Hickleybrow (dirigia-se para Cheasing Eyebright, onde morava sua filha casada), mas porque a de trás estava obstruída pela trepadei­ra, que vinha crescendo tão furiosamente desde que ela virara a lata do alimento perto de suas raízes. Ficou à escuta algum tempo e fechou a porta da frente com muito cuidado atrás de si. Na es­quina da casa, parou e fez um reconhecimento...

Uma extensa cicatriz na encosta do morro além do bosque de pinheiros assinalava o ninho das vespas gigantes, e ela a estudou com muita atenção. As idas e vindas matinais haviam acabado, não se via vespa alguma, e a não ser por um som dificilmente mais au­dível que uma serra a vapor em funcionamento entre os pinhos, tudo estava em silêncio. Quanto às lacrainhas, não via nenhuma, Lá embaixo, no meio dos repolhos, alguma coisa se movia, de fato, mas provavelmente seria um gato à caça de passarinhos. Ficou olhando naquela direção por algum tempo.

Adiantou-se uns poucos passos além da esquina, avistou o galinheiro dos pintos gigantes e tornou a parar.

— Ah! — disse, e balançou lentamente a cabeça ao vê-los. A essa altura, eles estavam da altura de emas, mas evidentemente com corpos muito mais grossos — algo inteiramente maior. Eram todas galinhas, cinco ao todo, agora que dois frangos se haviam matado um ao outro. Ela hesitou ao ver a atitude abatida das aves. — Pobrezinhas! — disse, e depôs a trouxa. — Elas precisa de água. As bichinha não comeu nada nessas vinte e quatro horas! E com um apetite daqueles, ainda por cima! — Levou o fino dedo à boca e meditou.

E então, aquela mulher suja fez o que me parece um ato bastante heróico de piedade. Deixou a trouxa e a sombrinha no meio do caminho de tijolos, foi ao poço, levou nada menos que três bal­des de água para o cocho vazio das galinhas, e enquanto elas se amontoavam em volta da água, abriu muito de mansinho a porta do galinheiro. Após isso, tornou-se extremamente ativa: tornou a pegar a trouxa, passou por cima da sebe no fundo do pomar, atra­vessou os campos (a fim de evitar o ninho das vespas) e subiu a tortuosa estrada em direção a Cheasing Eyebright.

Subia arquejando a encosta; e à medida que prosseguia, pa­rava de vez em quando para descansar a trouxa, recuperar o fôlego e olhar a pequena cabana ao lado do bosque de pinheiros lá embaixo. E quando, afinal, ao aproximar-se do topo do morro, viu à distância várias vespas baixando maciçamente em direção ao oeste, isso a ajudou muito a seguir em frente.

Logo deixou a clareira e entrou na aléia de altos barrancos além (que lhe parecia um lugar mais seguro), e assim subiu por Hickleybrow até chegar à chapada. Ao pé da chapada, onde uma grande árvore dava um ar de proteção, descansou por algum tempo num pontilhão.

E depois prosseguiu, com muita determinação...

Espero que possam imaginá-la com sua trouxa branca, uma espécie de formiga negra ereta, andando apressada pela estradinha branca que atravessava as encostas, sob o tórrido sol de uma tarde de verão. Adiante seguia, atrás do resoluto e incansável nariz, as papoulas da touca oscilando perpetuamente, as botas de primavera tornando-se cada vez mais brancas com o pó dos baixios, Flip, flap, flip, flap — faziam suas passadas no silencioso calor do dia, e persistentemente, incuravelmente, a sombrinha buscava escapar do cotovelo que a retinha. A ruga da boca, embaixo do nariz, franzia-se em extrema resolução, e de vez em quando ela dizia à sombri­nha que subisse ou dava na trouxa, que agarrava firmemente, um puxão vingativo. E às vezes seus lábios murmuravam fragmentos de uma projetada discussão com Skinner.

E distante, quilômetros e quilômetros distante, um campaná­rio e uma encosta coberta de mata desfrutavam insensivelmente do vago azul, assinalando de modo cada vez mais distinto o recanto onde Cheasing Eyebright abrigava-se do tumulto do mundo, pouco ou nada se importando com a Herakleoforbia escondida naquela trouxa branca, que avançava tão persistentemente para seu ordeiro retiro.

 

Até onde posso presumir, as frangas chegaram a Hickleybrow cerca de três horas da tarde. A chegada delas deve ter sido um caso sério, embora não houvesse ninguém na rua para ver. O berro violento do pequeno Skelmersdale parece ter sido o primeiro anúncio de que havia alguma coisa fora do comum. A Srta. Durgan, do Correio, estava na janela como sempre, e viu a galinha que pegara a infeliz criança em rápida fuga rua acima, com sua vítima, perseguida de perto por outras duas. Vocês conhecem o passo gin­gado das atléticas e emancipadas frangas de hoje! Conhecem a agu­da insistência da galinha faminta! Aquelas aves tinham Plymouth Rock, disseram-me, e mesmo sem a Herakleoforbia isso já dá uma raça vistosa e de passo largo.

Provavelmente a Srta. Durgan não foi tão tomada de surpre­sa. Apesar da insistência do Sr. Bensington em manter tudo em segredo, rumores sobre o grande frango que o Sr. Skinner estava pro­duzindo circulavam pela aldeia havia já algumas semanas.

— Senhor! — ela gritou. — Era o que eu pensava.

Parece ter agido com grande presença de espírito. Agarrou a sacola lacrada de cartas que aguardava para seguir para Urshot e precipitou-se pela porta afora imediatamente. Quase ao mesmo tem­po, o Sr. Skelmersdale aparecia lá embaixo, brandindo um regador pelo bico e com o rosto muito pálido. E é claro que em poucos mo­mentos todo mundo na aldeia corria para a porta ou a janela.

O espetáculo que era a Srta. Durgan correndo de um lado para outro da estrada, com a correspondência do dia todo de Hickleybrow na mão, fez parar a galinha que se apoderara do pequeno Skelmersdale. Ela parou, num momento de indecisão, e de­pois voltou-se para os portões abertos do quintal de Fulcher. Esse instante foi fatal. A segunda franga pulou rápida, capturou a crian­ça com o bico certeiro e saltou o muro do jardim do vicariato.

—        Charoc, choc, choc, choc, choc! — berrou a galinha de trás, atingida em cheio pelo regador que o Sr. Skelmersdale atirara, e bateu asas enlouquecida por sobre a cabana da Sra. Glue, indo cair no campo do médico, enquanto o resto das gargantuescas avesperseguiam a galinha que se apoderara da criança pelo gramado do vicariato.

 Bom Deus! — gritou o vigário, ou (segundo alguns) algu­ma coisa muito mais viril, e correu, brandindo o taco de croque e gritando, para deter a caçada.

 Pare, sua desgraçada! — gritou o vigário, como se frangas gigantes fossem a coisa mais banal do mundo.

E depois, ao constatar que não podia interceptá-la, jogou o taco com toda força e pontaria, fazendo-o descrever uma graciosa curva que passou a mais ou menos um palmo da cabeça do pequeno Skelmersdale e atingiu a lanterna de vidro da estufa. Ouviu-se um barulho de estilhaços. A estufa nova! A linda estufa nova da mu­lher do vigário!

Aquilo assustou a galinha. Teria assustado a qualquer um. Ela largou sua vítima num loureiro português (do qual o menino acabou sendo extraído, amarrotado, mas, a não ser pelas roupas menos delicadas, ileso), deu um salto batende as asas por sobre o telhado dos estábulos de Fulcher, enfiou a pata num lugar onde as telhas estavam podres e caiu, por assim dizer, do infinito sobre a calma contemplativa do Sr. Bumps, o paralítico — que, hoje está provado além de qualquer dúvida, desceu correndo, nessa ocasião única de sua vida, toda a extensão do pomar e entrou em casa sem qualquer ajuda, fechou a porta atrás de si e imediatamente retornou à sua resignação cristã e à desvalida dependência da esposa...

O resto das frangas foi desviado pelos jogadores de croque, e atravessaram o pomar do vigário até o campo do médico, e a quinta também terminou indo ao encontro delas cacarejando desconsolada após uma tentativa malsucedida de entrar nos canteiros de pepinos do Sr. Witherspoon.

Parece que ficaram por algum tempo ali, como quaisquer galinhas, ciscando e cacarejando rneditativamente, e então uma deu uma bicada e logo outra numa colméia das abelhas do médico, após o que partiram num trote galináceo atravessando os campos em direção a Urshot, e a rua de Hickleybrow não as viu mais. Perto de Urshot, elas realmente encontraram comida em quantidade ade­quada num campo de couves-nabo, e ficaram bicando por algum tempo com grande deleite, até que sua fama as alcançou.

A principal reação imediata àquela espantosa irrupção de galinhas gigantes na mente humana foi provocar uma extraordinária e apaixonada vontade de berrar, gritar e jogar coisas, e em muito pouco tempo quase todos os homens disponíveis de Hickleybrow, e várias mulheres também, saíam com uma notável variedade de artigos de açoitar e bater nas mãos — para dar início à caçada às galinhas gigantes. Enxotaram-nas para Urshot, onde havia uma festa rural, e Urshot recebeu-as como a glória que coroava um dia feliz. Começaram a atirar nelas perto de Findon Beeches, mas a princípio apenas com espingardas de chumbo. É claro que aves daquele ta­manho podiam absorver uma quantidade ilimitada de grãos de chumbo sem inconveniência. Dispersaram-se em algum ponto perto de Sevenoaks, e perto de Tornbridge uma delas correu cacarejan­do por algum tempo, muito excitada, um pouco à frente e paralela ao barco expresso da tarde — para grande pasmo dos que viajavam nele.

E por volta das cinco e meia duas delas foram apanhadas com muita habilidade por um dono de circo em Turnbridge Wells, que as atraiu para dentro de uma jaula, deixada vazia pela morte de um dromedário viúvo, espalhando bolos e pães...

 

Quando o infeliz Skinner desembarcou do trem do sudeste em Urshot naquela tarde, já quase caíra a noite. O trem estava atrasa­do, mas não demasiado — e foi o que ele disse ao chefe da esta­ção. Talvez notasse uma certa expansão nos olhos do homem. Após a mais mínima hesitação, e com um movimento de mão confiden­cial do lado da beca, perguntou se acontecera "alguma coitha" na­quele dia.

— Que quer dizer? — perguntou o chefe da estação, um ho­mem de voz dura e enfática.

 Vethpath e coithas athim.

 Nós não tem muito tempo pra pensar em vespa — disse o chefe de estação conciliadoramente. — Todo mundo teve muito trabalho com suas galinha danada. — E informou-o sobre as gali­nhas, como se poderia quebrar a janela de um político adversário.

—        Não teve notíthia da Thra. Thkinner? — perguntou Skin­ner, em meio àquela chuva de incisivas informações e comentários.

—- Graças a Deus! — disse o chefe de estação, como se mes­mo ele estabelecesse um limite em algum ponto em questão de conhecimento.

—        Vou ter de thair por aí perguntando por ela — disse o Sr. Skinner,   esgueirando-se para  fora do alcance das generalizações com que o chefe de estação concluía seus comentários sobre a res­ponsabilidade ligada à alimentação exagerada das galinhas.

Ao cruzar Urshot, o Sr. Skinner foi saudado por um queima­dor de cal dos poços de Hankey, que lhe perguntou se procurava suas galinhas.

—        Não thoube da Thra. Thkinner? — ele perguntou.

O queimador de cal — cujas frases exatas não devem interes­sar-nos — manifestou seu superior interesse em galinhas...

Já estava escuro — tão escuro, pelo menos, quanto pode ser uma límpida noite de junho inglês — quando Skinner — ou sua cabeça, de qualquer modo — surgiu no bar dos Jolly Drovers e disse:

 Olá!  Vothês thoube alguma coitha detha hithtória dath minha galinha, não thoube?

 Oh, se soube! — disse o Sr. Fulcher. — Ora, parte dessa história desabou no telhado de meu estábulo e outra fez um buraco na estufa da mulher do vigário...

Skinner entrou.

 Eu queria uma coitha um pouco reconfortante — disse. — Gim quente com água é o que eu prefiro. —- E todos começaram a falar-lhe sobre as frangas. — Deuth do théu! — disse Skinner. — Vothês não thoube nada da Thra. Thkinner, thoube?

 Isso a gente não soube, não! — disse o Sr. Witherspoon. — Não pensamos nela. Não pensamos nada em nenhum de vocês dois.

 Você não tava em casa hoje? — perguntou Fulcher, acima de uma caneca.

—- Se uma daquelas maldita galinha bicou ela — começou o Sr. Whitherspoon, e deixou todo o horror às imaginações dos outros...

Pareceu ao grupo, no momento, que seria um fim interessante para o movimentado dia, ir com Skinner e ver se alguma coisa tinha acontecido à Sra. Skinner. Nunca se sabe a sorte que se pode ter quando ocorrem acidentes. Mas Skinner, de pé no balcão, bebendo seu gim quente com água, um olho vagando por cima das coisas no fundo do bar e o outro fixado no Absoluto, não captou a psicolo­gia do momento.

—- Therá que não teve nenhum problema com nenhuma dath vethpa grande hoje em algum lugar? — perguntou, com uma maneira elaboradamente distanciada.

— A gente tava muito ocupado com suas galinhas — disse Fulcher.

 De qualquer forma, acho que todath já the recolheu agora — disse Skinner.

 Quê? As galinhas?

—        Eu tava penthando maith era nath vethpa —- disse Skinner. E então, com um ar de circunspecção, que teria despertadodesconfiança num bebê de uma semana, e acentuando pesadamen­te a maioria das palavras que escolhia, perguntou:

—        Eu acho que ninguém thoube de qualquer outra coitha grande, thoube? Cachorroth ou gatoth grande, ou qualquer coitha athim? Parethe que the tá aparecendo galinha e vethpa grande...

Riu com uma bela pretensão de estar falando por falar.

Mas uma expressão preocupada surgiu nos rostos dos homens de Hickleybrow. Fulcher foi o primeiro a dar ao pensamento condescendente deles a forma concreta das palavras.

 Um gato que nem as galinhas... — disse.

 Sim!  — disse  Witherspoon. — Um gato que  nem   as galinha...

 Era o mesmo que um tigre — disse Fulcher.

 Mais que um tigre — disse Witherspoon.

Quando afinal Skinner tomou a solitária vereda pelos campos ondulantes que separavam Hickleybrow do sombrio baixio coberto de pinheiros, em cujas sombras a gigantesca trepadeira envolvia si­lenciosamente a Fazenda Experimental, percorreu-a sozinho.

Viram-no assomar distintamente sobre a linha do horizonte, contra a cálida e límpida imensidão do céu do norte — pois até então o interesse público ainda o acompanhava — e tornar a mergulhar na noite, na escuridão da qual aparentemente jamais emer­giria. Desapareceu — um mistério. Ninguém sabe até hoje o que lhe aconteceu depois que transpôs o morro. Quando, mais tarde, os dois Fulcher e Witherspoon, movidos por suas imaginações, su­biram o morro e o procuraram, a noite já o engolira inteiramente.

Os três homens ficaram parados juntos. Da mata escura que escondia a Fazenda de suas vistas, não vinha som algum.

—        Tá tudo bem — disse o jovem Fulcher, pondo um fim ao silêncio.

— Não tou vendo luz nenhuma — disse Witherspoon.

—        Não se pode ver daqui.

—        Tá nublado — disse o Fulcher mais velho. Meditaram por algum tempo.

—        Se alguma coisa desse errado, ele já tinha voltado — disse o jovem Fulcher, e isso pareceu tão óbvio que afinal o velho Fulcher disse "Bem", e os três foram para casa, para a cama — pen­sativos, admito...

Um pastor de ovelhas perto da fazenda de Huckster ouviu um guincho no meio da noite, mas pensou que fossem raposas, e pela manhã um de seus cordeiros estava morto e fora arrastado até a metade do caminho de Hickleybrow e parcialmente devorado...

A parte inexplicável disso tudo é a ausência de qualquer resto indiscutível de Skinner!

Muitas semanas depois, entre as ruínas carbonizadas da Fazenda Experimental, descobriu-se uma coisa que pode ou não ser um omoplata humano, e em outra parte das ruínas achou-se um osso comprido muito roído, e igualmente duvidoso. Perto do passa­diço que subia em direção a Eyebright encontrou-se um olho de vidro, e muita gente ficou sabendo assim que Skinner devia muito de seu encanto pessoal àquele bem. O olho fixava o mundo com o mesmo e inevitável distanciamento, a mesma e severa melancolia que era a redenção de um rosto fora isso mundano.

E nas ruínas uma pesquisa industriosa descobriu os anéis metálicos e as coberturas carbonizadas de dois botões de roupa de baixo, três botões soltos inteiros, e um daquele tipo metálico quese usa nas aberturas menos conspícuas da economia humana. Esses restos foram aceitos por pessoas em cargos de autoridade como con­clusivos de que Skinner fora destruído e espalhado, mas para minha própria convicção, e em vista de sua característica idiossincrasia, devo confessar que preferiria menos botões e mais ossos.

O olho de vidro, decerto, tem um ar de extrema convicção, mas se é realmente de Skinner — e nem a Sra. Skinner sabia ao certo se aquele olho imóvel dele era de vidro — alguma coisa o mudou de um castanho líquido para um confiante azul. O omoplata é extremamente duvidoso, e eu gostaria de compará-lo com os scapulae de alguns dos animais domésticos mais comuns antes de admitir que seja humano.

E onde estão as botas de Skinner, por exemplo? Por mais perverso e estranho que seja o apetite de um rato, será concebível que as mesmas criaturas que só comeram a metade de um cordeiro iriam devorar Skinner todo, cabelos, ossos, dentes e botas?

Interroguei minuciosamente tantos quantos pude daqueles que conheceram bem Skinner, e todos concordam em que não podem imaginar qualquer coisa comendo-o. Era o tipo de pessoa — segundo me disse um homem do mar aposentado, que mora numa das cabanas do Sr. W. W. Jacobs, em Dunton Green, e de manei­ras significativamente reservadas, o que não é incomum naquela região — que seria "rejeitado de algum modo", e quanto ao ele­mento devorador, seria "capaz de sufocar um incêndio". Achava que Skinner estaria tão a salvo numa jangada quanto em qualquer parte. O marinheiro aposentado acrescentou que não desejava dizer o que quer que fosse contra Skinner; fatos eram fatos, só isso. E antes de confiar a feitura de suas roupas a Skinner, o marinheiro aposentado observou que preferiria ser posto a ferros. Essas obser­vações certamente não apresentam Skinner como um objeto apetitoso.

Para ser inteiramente franco com o leitor, não creio que ele tenha jamais voltado à Fazenda Experimental. Creio que vagou, ex­perimentando longas hesitações, pelos campos da gleba de Hickleybrow, e finalmente, quando começou o clamor, adotou a lei do menor esforço, saindo de suas perplexidades e caindo no anonimato.

E incógnito, deste ou de outro mundo por nós desconhecido, permaneceu obstinada e indiscutivelmente até hoje...

 

OS RATOS GIGANTES

Duas noites após o desaparecimento do Sr. Skinner, o médico de Podbourne andava fora, tarde da noite, dirigindo sua carruagem de um só assento. Estivera acordado a noite toda, ajudando outro cidadão anônimo a entrar neste nosso curioso mundo; e, cumprida a sua tarefa, voltava para casa numa disposição bastante sonolen­ta. Eram cerca de duas horas da manhã, e a lua minguante nascia. A noite estival fora fria, e uma névoa branca e baixa tornava tudo indistinto. O médico ia inteiramente só — pois o cocheiro estava de cama — e nada havia para ver de nenhum dos lados, a não ser um vago esboço de sebe que cruzava o fulgor amarelo de suas lanternas, e nada para ouvir, a não ser as batidas dos cascos do cavalo e o ranger e o eco na sebe das rodas. O cavalo era tão digno de confiança quanto ele próprio, e não admira que tenha co­chilado...

Vocês conhecem aquela modorra intermitente, quando se está sentado, a cabeça caída, balançando ao ritmo das rodas, o queixo no peito, e de repente um súbito estremeção faz erguê-la de novo.

Pitter, litter, patter.

— Que foi isso?

Pareceu ao médico que ouvira um fino guincho bem perto. Por um momento, ficou bastante desperto. Disse uma ou duas palavras de imerecida repreensão ao cavalo, e olhou em volta. Tentou                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            convencer-se de que ouvira o guincho distante de uma raposa —- ou talvez uma pequena lebre agarrada por um furão.

Suish, suish, suish, pitter, patter, suish...

— Que foi isso?

Achou que estava se deixando dominar pela imaginação. Deu de ombros e disse ao cavalo que prosseguisse. Ficou à escuta, mas nada ouviu.

Ou havia alguma coisa?

Teve a estranhíssima impressão de que alguma coisa acabara de espiá-lo por cima da sebe, uma estranha cabeçorra. De orelhas redondas! Forçou os olhos, mas nada pôde ver.

— Tolice! — disse.

Aprumou-se, com a idéia de que tivera um pesadelo, aplicou no cavalo um levíssimo toque com o chicote, falou com ele e tor­nou a olhar por cima da sebe. O fulgor de sua lanterna, contudo, juntamente com a neblina, tornava as coisas indistintas, e não con­seguia ver nada. Ocorreu-lhe, diz hoje, que não podia haver nada ali, pois se houvesse o cavalo se esquivaria dela. Mas apesar de tudo isso seus sentidos permaneceram nervosamente despertos.

Então ouviu bem distintamente um abafado ruído de pés que se perseguiam ao longo da estrada.

Não quis acreditar em seus ouvidos. Não podia olhar para trás, porque a estrada exatamente naquele ponto fazia uma curva sinuosa. Açoitou o cavalo e tornou a olhar para os lados. E então viu bem claramente, num ponto onde o raio da lanterna passava por cima de um trecho da sebe, as costas encurvadas de... um grande animal, não sabia dizer qual, correndo em rápidos saltos convulsivos.

Ele diz que pensou nas velhas histórias de bruxaria — a coisa era tão diferente de qualquer animal que conhecia — e agarrou as rédeas com mais força, temendo o medo do cavalo. Apesar de um homem culto, admite que se perguntou se aquilo podia ser alguma coisa que seu cavalo não via.

À frente, e aproximando-se recortada contra a lua nascente, erguia-se a silhueta da aldeiazinha de Hankey, o que era reconfor­tante, embora ele não visse nenhuma luz, e estalou o chicote, tor­nou a falar e, num átimo, os ratos o atacaram!

Passara o portão, e, ao fazê-lo, o primeiro rato veio saltando pela estrada, A coisa caiu sobre ele saltando da imprecisão para a mais distinta clareza, o focinho pontudo, ávido, de orelhas redondas, o corpo longo exagerado pelos movimentos; e, o que o impres­sionou em particular, as patas dianteiras róseas e palmípedes do animal. O que deve ter tornado a coisa mais horrível para ele, no momento, foi que não tinha idéia de que o animal fosse algum dos que conhecia. Não o reconheceu como um rato, devido ao tamanho. O cavalo deu um salto, quando a coisa caiu na estrada a seu lado. A pequena aléia despertou em tumulto, ao estalar do chicote e o berro do médico. Tudo então aconteceu rapidamente.

Ratle-clate, clach, clate.

O médico, como devem imaginar, levantou-se, gritou para o cavalo e golpeou com toda a sua força. O rato encolheu-se e desviou-se de modo bastante tranquilizador de sua chicotada — ao ful­gor da lanterna, ele viu o pêlo arrepiar-se sob o golpe — e chicoteou outra vez e mais outra, sem dar atenção nem saber do segun­do perseguidor, que ganhava terreno a seu lado.

Soltou as rédeas e olhou para trás, descobrindo o terceiro rato também na perseguição...

O cavalo deu um pulo para a frente. A carruagem saltou so­bre uma vala. Durante um frenético minuto, tudo pareceu ir aos trancos e barrancos...

Foi pura sorte o cavalo cair em Hankey, e não antes ou de­pois de ultrapassar as casas.

Ninguém sabe como o cavalo caiu, se tropeçou ou se o rato ao lado realmente acertou-lhe uma daquelas cortantes investidas com os incisivos (dadas com todo o peso do corpo); e o médico só des­cobriu que ele próprio fora mordido quando já estava dentro da casa do oleiro, e muito menos soube quando ocorrera a mordida, embora estivesse mordido e seriamente — um longo corte como o de duplo machado que lhe houvesse arrancado duas tiras parale­las de carne do ombro esquerdo.

Estava de pé na charrete um momento, e no outro já saltara no chão e, com o tornozelo seriamente machucado, embora não soubesse disso, chicoteava furiosamente o terceiro rato, que voava direto para cima dele. O homem mal se lembra do salto que deve ter dado por cima da roda quando a charrete parou, tão devastado­ramente quentes e rápidas suas impressões se precipitaram. Eu pessoalmente acho que o cavalo deve ter recuado, com o rato mor­dendo-lhe a garganta, e caído de lado, levando  tudo consigo; eque o médico saltou, por assim dizer, instintivamente. Quando a charrete virou, a lanterna se espatifou, causando de repente uma explosão de óleo em chamas, um espocar de branca labareda no meio da luta.

Foi a primeira coisa que o oleiro viu.

Ele ouvira o barulho da chegada do médico e — embora a memória deste nada disso registrasse — berros alucinados. Apres­sara-se a deixar a cama, e enquanto fazia isso ouviu o tremendo estrondo, seguido do clarão diante da janela.

—        Ficou mais claro que o dia — ele diz. Ficou parado, com um porrete na mão, olhando pela janela uma pesadelesca transformação da conhecida estrada à sua frente.  O negro vulto do médico brandindo o chicote dançava contra a chama. O cavalo escoiceava indistintamente, meio oculto pela chama, com um rato na garganta. Na escuridão, contra o muro do cemitério, os olhos de um segundo monstro reluziam perversamente. Outro — um simples vulto negro de olhos rubros e patas dianteiras cor de carne, agarrava-se inse­guro ao muro contra o qual saltara ao clarão da lanterna que ex­plodia.

Vocês conhecem o focinho pontudo de um rato, aqueles dois dentes agudos, aqueles olhos impiedosos. Vistos ampliados quase seis vezes, e ainda mais pela escuridão, o espanto e os saltitantes efeitos de um incêndio, devem ter sido uma visão aterrorizante para o oleiro — ainda meio adormecido.

Então o médico aproveitou a oportunidade, a momentânea folga proporcionada pelo fogo, e sumiu das vistas do oleiro, baten­do na porta embaixo com o cabo do chicote.

O oleiro não o deixou entrar enquanto não encontrou uma luz.

Há quem censure o homem por isso, mas até conhecer melhor a minha própria coragem, hesito em juntar-me a eles.

O doutor berrava e esmurrava a porta...

O oleiro diz que ele chorava de terror quando finalmente a porta se abriu.

—        Passe o ferrolho — arquejou o médico. —- Passe o ferro­lho. — E nada mais conseguiu dizer.   Tentou dirigir-se à porta, para ajudar, mas afundou numa cadeira ao lado do relógio, enquanto o oleiro trancava a porta.

— Não sei o que são! — repetiu várias vezes. — Não sei o que são! — Dava um tom elevado ao "são".

O oleiro quis dar-lhe um uísque, mas ele não queria ficar sozinho, apenas com uma trêmula luz, naquele momento.

Só depois de muito tempo foi que o dono da casa conseguiu fazê-lo subir.

E quando o fogo se extinguiu os ratos voltaram, pegaram o cavalo morto, arrastaram-no pelo cemitério até os terrenos da olaria e comeram-no até o amanhecer, pois ninguém ousava perturbá-los mesmo então...

 

Redwood foi ver Bensington por volta das onze horas da manhã seguinte com a "segunda edição" de três vespertinos na mão.

Bensington ergueu o olhar de uma acabrunhada meditação sobre as esquecidas páginas do romance mais absorvente que o bi­bliotecário de Brompton Road conseguira arranjar-lhe,

—        Alguma novidade? — perguntou.

— Dois homens ferroados perto de Chartham.

 Deviam  ter-nos  deixado   fumigar aquele  ninho.   Deviam mesmo.  É culpa deles mesmos.

 É culpa deles, sem dúvida — disse Redwood,

 Soube de alguma coisa sobre a compra da fazenda?

 A imobiliária — disse Redwood — é uma coisa com uma boca grande e feita de madeira grossa. Diz que há alguém inte­ressado na casa... sempre diz, você sabe... e não quer compreen­der que é urgente. "É uma questão de vida ou morte", eu disse, "não compreende?" Ela entrecerra os olhos e diz: "Então por que não chega até as outras duzentas libras?" Eu preferia viver num mundo de concretas vespas do que ceder à estupidez obstrucionista  da­quela ofensiva criatura.  Eu...

Fez uma pausa, sentindo que uma frase como aquela poderia com muita facilidade ser estragada pelo contexto.

—        É  demais esperar — disse Bensington — que uma das vespas...

—- A vespa não tem mais idéia de utilidade pública do que uma...  do que uma imobiliária — disse Redwood.

Falou algum tempo de imobiliárias, solicitadores e gente desse tipo, da injusta e irrazoável forma como tantas pessoas, tantas vezes, chegam de algum modo a falar desses cálculos comerciais ("De todas as coisas excêntricas deste mundo excêntrico, a mais excên­trica, em minha opinião, é o fato de que, enquanto esperamos honra, coragem e eficiência de um médico e de um soldado como algo indiscutível, um solicitador ou um agente imobiliário não apenas podem, como se espera que exibam apenas uma espécie de imbe­cilidade gananciosa, gordurosa, obstrutiva e exagerada..." etc.) — e depois, bastante aliviado, encaminhou-se para a janela e ficou olhando o tráfego da Rua Sloane.

Bensington largara o romance mais excitante que se podia conceber na mesa. Juntou os dedos das mãos com muito cuidado e olhou-os.

 Redwood — disse — estão falando muito de nós? — Não tanto quanto eu esperaria.

 Não estão nos denunciando de modo algum?

 Nem um pouco. Mas, por outro lado, não apontam o que digo que se deve fazer.   Escrevi ao Times, sabe, explicando essa coisa toda...

 Vamos ao Daily Chronicle — disse Bensington.

 E o Times publicou um longo editorial sobre o assunto... um editorial de muita classe, bem escrito... com três expressões latinas típicas do Times... uma delas é status quo... e soa como a voz de Alguém Impessoal, da Maior Importância, mas com dor de cabeça de gripe e falando através de cobertas e cobertas de feltro, sem conseguir qualquer alívio.   Lendo-se nas entrelinhas, você sabe, fica bastante claro que o Times considera inútil entrar em detalhes, e que alguma coisa (indefinida, é claro) tem de ser feita imediatamente.  De outro modo, consequências ainda mais in­desejáveis ... terminologia do Times, você sabe, para mais vespas e ferrões. Um artigo inteiramente de estadista!

— E enquanto isso esse grandismo se espalha de todas as formas desagradáveis.

— Precisamente.

— Pergunto-me se  Skinner tinha razão sobre aqueles ratos grandes...

— Oh, não! Isso seria demais — disse Redwood. Veio postar-se ao lado da cadeira de Bensington.

 A propósito — disse, com a voz ligeiramente abaixada — como ela...? — Indicou a porta fechada.

 A prima Jane? Simplesmente nada sabe sobre isso.   Não nos relaciona com a coisa e não quer ler as notícias. "Vespas gi­gantes!" diz.  "Não tenho paciência para ler os jornais."

 Isso é muita sorte — disse Redwood.

 Suponho... a Sra. Redwood...?

 Não — disse Redwood — no momento acontece... está terrivelmente preocupada com a criança. Você sabe, ele continua.

 Crescendo?

 Sim. Ganhou mais um quilo e trezentos gramas em dez dias.   Já está com quase vinte e seis quilos.   E tem apenas seis meses!   Naturalmente é um tanto alarmante!

 Saudável?

 Vigoroso.  A babá pediu demissão porque ele chuta muito forte.   E tudo nele, é claro, logo fica pequeno.   Tudo, você sabe, tem de ser feito de novo, roupas e tudo. O carrinho de bebê... uma coisa leve...  quebrou uma roda, e ele teve de ser trazido para casa no carrinho de mão do leiteiro.  Sim.  Uma verdadeira multi­dão ... E pusemos Georgina Phyllis no berço dele, e ele na cama dela.   A mãe...  naturalmente alarmada.   Orgulhosa a princípio, e inclinada a elogiar Winkles.  Agora, não. Sente que a coisa não pode ser natural. Você sabe.

 Eu imaginava que você ia dar-lhes doses decrescentes.

 Experimentei.

 Não funcionou?

 Ele berra.  O berro de uma criança normal já é alto e incômodo; é para o bem da espécie que é assim... mas desde que ele está sob o tratamento com a Herakleoforbia...

 Hum — disse Bensington, olhando os dedos com mais resignação do que a que até então demonstrara.

 Praticamente, essa coisa tem de vir à luz.  As pessoas saberão dessa criança, a ligarão com nossas galinhas, e tudo chegará aos ouvidos de minha mulher.  Não tenho a mais remota idéia de como ela reagirá.

—        É difícil — disse o Sr. Bensington — fazer qualquer pla­no, com certeza.

Tirou os óculos e limpou-os cuidadosamente.

 É outro exemplo —- generalizou — do que acontece continuamente.  Nós... se na verdade posso adotar o adjetivo... ho­mens científicos...  sempre trabalhamos, claro, por um resultado teórico...  um resultado puramente teórico.   Mas incidentalmente desencadeamos forças...   novas forças. Não devemos controlá-las e ninguém mais pode. Praticamente, Redwood, a coisa está fora de nossas mãos. Nos fornecemos o material...

 E eles — disse Redwood, voltando-se para a janela — ficam com a experiência.

— No que se refere a esse problema lá em Kent, não estou disposto a me preocupar mais.

— A menos que nos aborreçam.

—        Exatamente.  E se gostam de ver-se às voltas com solicitadores, rábulas, obstruções legais e considerações de peso as mais idiotas, para deixarem várias dessas novas espécies de piolhos bem estabelecidas...    As   coisas   sempre   estiveram   numa   bagunça, Redwood.

Redwood traçou uma linha torta e embaraçada no ar.

 E nossa verdadeira preocupação, neste momento, é  com nosso rapaz. — Voltou-se e veio fitar o seu colaborador. — Que acha dele, Bensington? Você pode olhar esse caso com maior dis­tanciamento que eu.  Que devo fazer a respeito dele?

 Continue alimentando-o.

 Com Herakleoforbia?

—        Com Herakleoforbia.

— E aí ele crescerá.

— Crescerá, pelo que posso calcular com base nas galinhas e vespas, até uns dez metros e meio... com tudo nas proporções certas...

E então que fará?

—        Isso — disse o Sr. Bensington — é exatamente o que torna a coisa tão interessante.   

— Diabos, homem! Pense nas roupas dele! E quando esti­ver adulto —- disse Redwood — será apenas um solitário Gulliver num mundo de pigmeus.

O Sr. Bensington tinha o olho gordo sobre seu anel de ouro.

 Por que solitário? —  perguntou, e repetiu, ainda mais sombriamente: — Por que solitário?

 Mas você não sugere...

— Eu disse — disse o Sr. Bensington, com a autocomplacência de um homem que produziu um bom e significativo axioma — por que solitário?

—        Querendo dizer que se pode produzir outras crianças...?

—        Não querendo dizer nada além de minha pergunta. Redwood começou a andar pela sala.

—        Claro — disse. — Podíamos... Mas mesmo assim! Aonde vamos chegar?

Bensington evidentemente gostava de sua linha de distanciamento altamente intelectual.

—        O que mais me interessa, Redwood, em tudo isso, é pensar que o cérebro na cabeça dele também estará, no que se refere ao meu raciocínio, uns dez metros e meio acima do nosso nível... Que é que há?

Redwood estava parado à janela e olhava um cartaz de notí­cias num carrinho de mão de jornal que subia a rua chocalhando.

 Que é que há? — repetiu Bensington, levantando-se. Redwood soltou uma violenta exclamação.

 Que é? — perguntou Bensington.

— Vou buscar um jornal — disse Redwood, descendo.

— Por quê?

—        Vou buscar um jornal. Alguma coisa...  não peguei di­reito...  Ratos gigantes...!

— Ratos?

 Sim, ratos.   Skinner tinha razão, afinal!

 Que quer dizer?

 Como diabos vou saber enquanto não vir um jornal? Gran­des Ratos! Bom Deus!   Imagino se ele foi comido! — Procurou o chapéu, e decidiu sair sem ele.

Enquanto se precipitava para baixo, descendo dois degraus de cada vez, ouvia os fortes berros dos jornaleiros.

— Caso horrive em Kent... caso horrive em Kent. Médi­co... comido por rato. Caso horrive... caso horrive... ratos... comido por ratos extchupendo. Todo detalhe...  caso horrive.

 

Cossar, o famoso engenheiro civil, encontrou-os na grande entrada dos prédios de apartamentos, Redwood segurando o jornal cor de rosa à distância e Bensington, nas pontas dos pés, lendo por cima de seu braço. Cossar era um homem de corpo grande, com membros magnos e deselegantes casualmente dispostos em ângulos convenientes do tronco, e um rosto semelhante a uma escultura abandonada na primeira fase como demasiado não promissora para conclusão. O nariz ficara quadrado, e a queixada projetava-se além da parte de cima. Respirava ruidosamente. Poucas pessoas consideravam-no bonito. Tinha o cabelo inteiramente escorrido, e a voz, que pouco usava, saía guinchada, em geral num tom de irado protesto. Usava uma casaca cinza e um chapéu de seda em todas as ocasiões. Vasculhou um abissal bolso nas calças com a imensa mão vermelha, pagou ao cocheiro e subiu decididamente arquejante os degraus, um exemplar do jornal rosa agarrado pelo meio como o raio de Júpiter na mão.

 Skinner? — perguntava Bensington, indiferente à sua aproximação.

 Nada sobre ele — disse Redwood. — Deve ter sido comi­do.  Os dois. É horrível demais... Olá, Cossar!

 É essa coisa de vocês? — perguntou Cossar, brandindo o jornal. — Bem, por que não a detêm? — perguntou. — Não pode ser controlada! — disse Cossar. — Comprar o lugar! — exclamou. — Que idiotice!  Queimem-no!  Eu sabia que vocês bagunçariam isso. Que devem fazer? Ora... o que estou lhes dizendo! Vocês? Subam a rua até a casa do armeiro, claro. Por quê? Para comprar armas! Sim... há só uma loja.  Peguem oito armas!   Espingardas. Não espingardas para elefantes.. não! São grandes demais.  Nem fuzis do  exército...   são pequenos demais.   Digam que  é para matar... matar um touro. Digam que é para atirar em búfalos. Estão vendo? Hem? Ratos! Não! Como diabos vão entender isso?... Porque queremos oito. Consigam muita munição. Não arranjem espingardas sem munição... Não! Levem tudo num coche para... onde é o lugar? Urshot? Para Charing Cross então. Há um trem... Bem, o primeiro trem que parte depois das duas. Acham que podem fazer isso! Muito bem. Autorização? Peguem oito no Correio, é claro. Autorização para espingardas, vocês sabem. Não para caça. Por quê? São ratos, homem. Você... Bensington. Tem um telefone? Sim. Vou telefonar para cinco de meus amigos em Ealing. Por que cinco? Porque é o número certo! Aonde vai, Redwood? Pegar um chapéu? Bobagem. Pegue o meu. Precisa de armas, homem... não de chapéus. Tem dinheiro? Bastante? Está bem.  Até logo. Onde fica o telefone, Bensington?

Bensington girou nos calcanhares obedientemente e conduziu-o.

Cossar usou o instrumento e tornou a pô-lo no lugar.

 Depois, há as vespas — disse. — Enxofre e nitro darão conta disso.   Obviamente. Gesso de Paris.  Você é químico. Onde posso arranjar toneladas de enxofre em sacos que se possam carregar? Para quê? Ora, Deus abençoe meu coração e minha alma! Para fumigar o ninho,  é claro!  Creio que tem de ser enxofre, hem? Você é químico.   Enxofre é melhor, hem?

 Sim, eu diria enxofre.

 Nada melhor?   Certo.   Isso é trabalho de vocês.   Tudo bem.  Arranjem, o máximo de enxofre que possam... salitre para fazê-lo queimar. Mandar para onde? Charing Cross. Imediatamen­te. E providenciem para que mandem mesmo. Acompanhem o em­barque. Mais alguma coisa? — Pensou um momento. — Gesso de Paris... qualquer tipo de gesso... tapar o ninho... os buracos... vocês sabem.  Isso é melhor eu arranjar..

 Que quantidade?

 Que quantidade de quê?

 Enxofre.

 Uma tonelada. Estão vendo?

Bensington ajeitou os óculos com a mão trêmula de determinação.

 Certo — disse, muito sucinto.

 Têm dinheiro no bolso? — perguntou Cossar. — Ao diabo com os cheques.  Podem não conhecer vocês.  Paguem em dinheiro. Obviamente. Onde fica seu banco? Está certo. Pare no ca­minho e tire quarenta libras... em notas e em ouro. — Outra me­ditação. — Se deixarmos esse serviço para as autoridades públicas, teremos toda Kent em pedaços — disse. — Agora há... mais algu­ma coisa? Não! El!

Estendeu a mão imensa para um coche, que se tornou obviamente ávido para servi-lo ("Coche, senhor?", perguntou o cocheiro. "Obviamente", disse Cossar); e Bensington, ainda de cabeça des­coberta, desceu os degraus e preparou-se para subir no veículo.

—- Eu acho — disse, com a mão no avental do cocheiro e um súbito olhar às janelas de seu apartamento — que devo avisar à minha prima Jane...

— Terá mais tempo de contar a ela quando voltar — disse Cossar, empurrando-o para dentro do coche com a mão imensa es­palmada em suas costas.

"Sujeitos inteligentes", pensou, "mas sem nenhuma iniciativa Prima Jane, vejam só! Eu a conheço. Uma maçada, essas primas Janes! O país está infestado delas. Suponho que terei de passar toda a bendita noite cuidando para que eles façam o que sabem perfeitamente que deviam ter feito desde o princípio. Imagino se é a pesquisa que os deixa assim, ou a prima Jane, ou o quê?"

Afastou esse obscuro problema, meditou por algum tempo olhando o relógio e decidiu que só tinha tempo de passar num res­taurante e fazer uma refeição antes de ir procurar o tal gesso de Paris e levá-lo a Charing Cross.

O trem partia às três e cinco, e ele chegou a Charing Cross às quinze para as três. Encontrou Bensington em acirrada discussão entre dois policiais e o cocheiro de sua carroça do lado de fora, e Redwood no escritório de bagagens envolvido em alguma obscuri­dade técnica a respeito da munição. Todos diziam não saber nada nem ter qualquer autoridade, como fazem os caros funcionários do Sudeste quando nos pilham apressados.

"Pena que não possam fuzilar todos esses funcionários e arran­jar uma turma nova", pensou Cossar com um suspiro. Mas o tem­po era demasiado curto para qualquer coisa fundamental, e assim ele passou como um tufão por essas controvérsias menores, desen­terrou de um obscuro esconderijo o que podia ser ou não o chefe da estação, percorreu as instalações segurando-o e dando ordensem seu nome, e deixou a estação com todos e tudo embarcado antes que o funcionário se desse plena conta das quebras das mais sagradas rotinas e regulamentos que se cometiam.

 Quem era ele? — perguntou o alto funcionário, alisando o braço que Cossar agarrara, e sorrindo com as sobrancelhas fran­zidas.

 Era um cavalheiro, senhor — disse um carregador — de qualquer forma.   Ele e todos os companheiro dele viajou de primeira classe.

 Bem, nós embarcamos ele e suas coisas com muita prontidão... seja quem for — disse o alto funcionário, esfregando o braço com algo que se aproximava da satisfação.

E enquanto se encaminhava lentamente de volta, piscando à luz do dia, a que não estava acostumado, àquele digno retiro em que os funcionários superiores de Charing Cross se protegem da importunidade do vulgo, ainda sorria de sua desusada energia. Era uma revelação muito recompensadora de suas possibilidades, apesar da rigidez no braço. Desejou que alguns daqueles malditos críti­cos de cadeira da administração da ferrovia tivessem visto aquilo.

Às cinco horas daquela tarde, o espantoso Cossar, sem qualquer aparência de pressa, já havia desembarcado todo o material para seu combate ao grandismo insurgente em Urshot e dirigia-se para Hickleybrow. Comprara duas barricas de parafina e uma carga de gravetos em Urshot; muitos sacos de enxofre, oito grandes espingardas para caça graúda e munição, três armas leves de carre­gamento pela cultura, com munição de chumbo fino para as vespas, uma machadinha, dois podões, uma picareta e três pás, dois rolos de corda, algumas garrafas de cerveja, soda e uísque. De Londres tinha vindo uma grosa de pacotes de veneno para ratos e pro­visões frias para três dias. Tudo isso ele transportara num trols de carvão e numa carroça de feno da maneira mais natural possí­vel, com exceção das armas e da munição, que haviam sido enfia­das embaixo do  banco da charrete do Red Lion que conduziaRedwood e os cinco homens escolhidos, vindos de Ealing a chamado de Cossar.

O engenheiro conduzira todas essas transações com um invencível ar de normalidade, apesar de Urshot se achar em pânico com os ratos, e de terem de dar a todos os cocheiros um pagamento es­pecial. Na aldeia, todas as loias estavam fechadas, mal se via uma alma na rua, e quando ele batia numa porta abria-se uma janela. Mas Cossar parecia achar que a realização de negócios através de janelas abertas era um método inteiramente legítimo e óbvio. Final­mente, ele e Bensington pegaram a charrete do Red Lion com o trole para alcançar a bagagem. Alcançaram-na um pouco depois da encruzilhada, e assim chegaram primeiro a Hickleybrow.

Bensington, com uma espingarda entre os joelhos, sentado ao lado de Cossar na charrete, demonstrava um espanto que vinha germinando havia muito tempo. Tudo que fazia era sem dúvida, como insistia Cossar, a coisa óbvia a fazer, apenas...! Na Inglaterra tão raramente se faz o que é óbvio. Ele olhou dos pés do vi­zinho até as mãos ousadas nas rédeas. Cossar, aparentemente, ja­mais havia conduzido um veículo antes, e mantinha a lei do menor esforço, seguindo pelo meio da estrada, por alguma idéia sem dú­vida bastante óbvia, mas certamente incomum.

"Por que não fazemos todos o que é óbvio?", perguntava-se Bensington. "Como ficaria o mundo se todos o fizessem! Imagino por exemplo por que não faço um monte de coisas que sei que seria direito fazer... coisas que quero fazer. Será todo mundo assim, ou é algo peculiar meu?" Mergulhou em obscura especulação sobre a vontade. Pensou nas complexas e organizadas futilidades do dia-a-dia, e em contraste com elas as coisas simples e manifestas a fazer, as doces e esplêndidas coisas a fazer, que algumas incríveis influên­cias nunca nos permitem fazer. A prima Jane? Percebia que ela era importante no assunto, de algum modo sutil e difícil. Por que de­vemos afinal comer, beber e dormir, ficar solteiro, ir a um lugar, deixar de ir a outro, tudo por deferência para com a prima Jane? Ela se tornava simbólica, sem deixar de ser incompreensível.

Um passadiço e uma vereda que atravessava os campos atraíram seu olhar e lembraram-lhe aquele outro dia, tão recente no tempo, tão remoto em suas emoções, em que fora andando de Urshot até a Fazenda Experimental, para ver os pintos gigantes. O destino brinca conosco.

—        Tchec, Tchec — disse Cossar. — Levante-se.

Era uma tarde quente, sem uma brisa, e a poeira amontoava-se espessa nas estradas. Viam-se poucas pessoas, mas o gamo além dos limites do parque pastava em profunda tranquilidade. Avista­ram umas duas vespas despojando uma groselheira pouco além de Hickleybrow, e uma outra que se arrastava de um lado para outro na porta da pequena mercearia na rua da aldeia, tentando encontrar uma entrada. Mal se via o merceeiro lá dentro, com uma velha espingarda de caçar aves na mão, observando as manobras do inseto. O cocheiro do vagonete parou diante do Jolly Drovers e informou a Redwood que sua parte do acerto fora cumprida. Juntaram-se a ele, nessa afirmação, os cocheiros da carroça e do trole. Não apenas o afirmavam, mas recusavam-se a deixar que os cavalos fossem mais adiante.

—        O ratão é doido por cavalo — repetia o cocheiro do trole. Cossar examinou a controvérsia por um momento.

 Tirem as coisas desse vaganote — disse, e um de seus homens, um maquinista alto e sujo, obedeceu.

 Dê-me aquela espingarda — disse Cossar.  Postou-se entre os cocheiros. — Não queremos que vocês conduzam.  Podem dizer o que quiserem, mas queremos esses cavalos.

Eles continuaram a contestar, mas ele continuou falando. — Se tentarem atacar-nos, atiro em suas pernas, em defesa própria. Os cavalos vão.

Deu o incidente por encerrado. — Suba na carroça, Flack — disse a um homenzinho atarracado e rijo. — Boon, pegue o trole. Os dois cocheiros esbravejaram.

 Vocês cumpriram suas obrigações para com seus empregadores — disse Redwood. — Fiquem aqui na aldeia até voltarmos. Ninguém os censurará, visto que temos armas. Não desejamos fazer nada injusto ou violento, mas esse negócio tem pressa.   Pagarei se alguma coisa acontecer aos cavalos, não receiem.

 Isso está acertado — disse Cossar, que raramente fazia promessas.

Deixaram o vaganote para trás, e os dois homens que não conduziam veículos seguiram a pé.   Em  cada ombro, apoiava-seuma espingarda. Era a expediçãozínha mais curiosa para uma es­trada rural inglesa, parecendo mais um grupo ianque em jornada para o oeste nos bons tempos dos índios.

Subiram a estrada até chegarem, numa elevação ao lado do passadiço, à vista da Fazenda Experimental. Ali encontraram um pequeno grupo de homens com uma ou duas espingardas — os dois Fulchers achavam-se entre eles — e um deles, um estranho de Maidstone, destacava-se dos outros, olhando o lugar com um bi­nóculo de teatro.

Esses homens voltaram-se e olharam o grupo de Redwood.

 Alguma novidade? —- perguntou Cossar.

 As vespas continua pra lá e pra cá — disse o velho Fulcher.

— Mas eu não vejo o que elas carrega.

— A trepadeira se meteu no meio dos pinheiro — disse o homem com a lorgnette. — Não tava lá hoje de manhã. A gente pode ver ela crescendo diante dos olho.

Sacou um lenço e limpou as lentes de seu binóculo com cuida­dosa deliberação.

—        Imagino que os cavaleiro vai descer lá — aventurou Skelmersdale.

 Vêm conosco? — perguntou Cossar.

 Skelmersdale pareceu hesitar.

 É serviço pra noite toda,

 Skelmersdale decidiu que não ia.

 Tem ratos por aqui? — perguntou Cossar.

—        Tinha um nos pinheiro, hoje de manhã, acho que caçando coelho.

Cossar apertou o passo para alcançar seu grupo.

Bensington, observando a Fazenda Experimental com a mão em pala acima dos olhos, podia avaliar agora o vigor do Alimento. Sua primeira impressão foi de que a casa era menor do que julgara, bem menor; a segunda foi perceber que toda a vegetação entre a casa e o bosque de pinheiros se tornara extremamente grande. O te­lheiro sobre o poço mal apontava em meio a tufos de grama de uns bons dois metros e meio de altura, e a trepadeira enroscava-se em torno da chaminé e gesticulava com rígidos tentáculos em direção ao céu. Suas flores formavam vívidas manchas amarelas, distintamentevisíveis como pequenos pontos separados, àquela distância de um quilômetro e meio. Um grande cabo verde enroscava-se na grande cerca de arame do galinheiro gigante, e lançava galhos folhudos em volta de dois pinheiros mais afastados dos outros. Quase da metade da altura destes eram as moitas de urtiga que cercavam o barracão da carroça. Toda a perspectiva, à medida que se aproximavam, tornava-se cada vez mais sugestiva de uma investida de pigmeus num canto esquecido de algum grande jardim.

Havia grande atividade no ninho das vespas, segundo perceberam. Um enxame de vultos negros entrecruzava-se no ar acima da colina cor de ocre além dos pinheiros, e de vez em quando uma delas projetava-se no céu com incrível velocidade e partia em algu­ma busca distante. Ouvia-se o zumbido delas a quase um quilômetro de distância da Fazenda Experimental. A certa altura um desses monstros de raias amarelas voou em direção a eles e pairou por um tempo observando-os com os grandes olhos múltiplos, mas a um tiro inofensivo de Cossar, fugiu. Lá embaixo, num canto do campo, à direita, várias arrastavam-se sobre alguns ossos despedaçados, prova­velmente os restos do cordeiro que os ratos haviam trazido da fa­zenda de Huxter. Os cavalos ficaram muito agitados ao se aproxi­marem de tais criaturas. Nenhum membro do grupo era muito en­tendido em guiar carroça, e foi preciso pôr um homem para segurar cada animal e encorajá-lo com a voz.

Nada viam dos ratos quando se aproximaram da casa, e tudo parecia inteiramente silencioso, a não ser pelo aumento e diminui­ção do "uuuuzzzz, uuuuzzzuuu" do ninho de vespas.

Levaram os cavalos para o quintal, e um dos homens de Cossar, vendo a porta aberta — toda a parte do meio fora roída —, entrou. Ninguém deu pela falta dele por algum tempo, pois o resto ocupava-se com os dois barris de parafina, e o primeiro indício que tive­ram de que ele se separara foi o estampido de uma espingarda e o zumbido da bala. "Pan, pan", os dois canos, e parece que a pri­meira bala varou a barrica de enxofre, saindo do outro lado e en­chendo o ar de pó amarelo. Redwood ficara de arma na mão e dis­parou contra uma coisa cinzenta que saltou a seu lado. Viu de relance uns largos quartos traseiros, a longa cauda escamosa e as com­pridas solas das patas traseiras de um rato, e disparou o segundo cano. Viu Bensington cair, enquanto o animal desaparecia dobran­do a esquina da casa.

Então, por algum tempo, todos ficaram de arma na mão. Du­rante três minutos, as vidas pouco valeram na Fazenda Experimen­tal, e os estampidos das espingardas encheram o ar. Redwood, pouco ligando para Bensington em sua excitação, correu em perseguição e foi derrubado para a frente por um monte de fragmentos de tijolos, argamassa, reboco e ripas podres, que voaram para ele quando uma bala arrombou a parede.

Viu-se sentado no chão com sangue nas mãos e nos lábios, e uma grande quietude pairava em tudo à sua volta.

Depois, uma voz gorda observou de dentro de casa.

— Jesus!

 Olá! — disse Redwood.

 Olá você! — respondeu a voz.   E em seguida: — Vocês pegou ele?

Redwood sentiu voltar-lhe um sentimento de dever e amizade.

 O Sr. Bensington está ferido? — perguntou.

O homem lá dentro ouviu mal.

 Por vocês, eu tava — disse a voz.

Tornava-se cada vez mais claro para Redwood que devia ter atingido Bensington. Esqueceu os cortes no rosto, levantou-se e vol­tou. Encontrou Bensington sentado no chão e esfregando o ombro. O outro olhou-o por cima dos óculos.

—        Nós o atigimos, Redwood — disse. — E depois: — Ele tentou saltar em cima de mim, e me derrubou. Mas disparei-lhe os dois canos, e, nossa!, como doeu em meu ombro!

Surgiu um homem na porta.

 Acertei nele uma vez no peito e outra no lado — disse.

 Onde estão as carroças? — perguntou Cossar, aparecendo no meio de um monte de folhas de trepadeira gigantes.

Tornou-se evidente, para espanto de Redwood, primeiro, que ninguém recebera um tiro, e segundo, que o trole e a carroça haviam-se afastado cinquenta metros, e estavam agora com as rodas presas em meio às embaraçadas distorções do pomar de Skinner. Os cavalos haviam deixado de escavar o chão com as patas. Entre eles e os animais, o barril de enxofre estourado jazia na estrada sob uma nuvem de pó. Redwood indicou-o a Cossar e encaminhou-se para lá.

—        Alguém viu aquele rato? — gritou Cossar, seguindo-o. — Acertei nele uma vez entre as costelas, e uma na cara, quando se voltou para mim.

Foram alcançados ali por dois homens, quando olhavam preocupados as rodas presas.

— Eu matei o rato — disse um dos homens.

 Pegaram-no? — perguntou Cossar.

 Jim Bates encontrou ele logo depois da sebe.   Peguei ele na hora em que dobrava a esquina... Um tiro atrás do ombro...

Quando tudo tornou a entrar num pouco de ordem, Redwood foi olhar o imenso corpo deformado. A fera jazia de lado, com o corpo levemente curvado. Os dentes roedores, ultrapassando a quei­xada recuada, davam-lhe ao focinho uma aparência de colossal de­bilidade, de fraca avidez. Não parecia nem um pouco feroz ou terrí­vel. As patas dianteiras lembraram-lhe mãos magras e emaciadas. A não ser por um buraco bem visível, com as bordas queimadas, de cada lado do pescoço, a criatura achava-se absolutamente intata. Ele meditou algum tempo sobre esse fato.

 Devem ter sido dois ratos — disse afinal, afastando-se.

 E o outro, que todo mundo acertou... foi embora.

- Tenho absoluta certeza de que meu tiro...

Um tentáculo da trepadeira, empenhado naquela misteriosa busca de algo a que se agarrar que constitui uma característica dos tentáculos, curvou-se em direção ao seu pescoço e fez com que ele se apressasse a afastar-se.

"Zuuuummmm", vinha o zumbido do ninho de vespas dis­tante.

"Zuuuummmm."

 

O incidente deixou o grupo alerta, mas não amedrontado.

Guardaram seus mantimentos na casa, que fora evidentemente saqueada pelos ratos após a fuga da Sra. Skinner, e quatro dos ho­mens levaram os cavalos de volta a Hickleybrow. Arrastaram o rato morto através da sebe e puseram-no numa posição em que pudesseser visto das janelas da casa, e incidentalmente deram com um enxa­me de lacrainhas gigantes na vala. Essas criaturas dispersaram-se rapidamente, mas Cossar esticou as pernas incalculáveis e conseguiu matar várias com as botas e a coronha da espingarda. Depois, dois dos homens conseguiram cortar vários dos principais troncos da tre­padeira — cilindros imensos, de mais de meio metro de diâmetro, que saíam ao lado da pia nos fundos; e enquanto Cossar punha a casa em ordem para passarem a noite, Bensington, Redwood e um dos eletricistas auxiliares percorriam cautelosamente os galinheiros, em busca de buracos de ratos.

Passaram londe das urtigas, pois esse mato gigante ameaçava-os com espinhos venenosos de bem uns três centímetros de comprimen­to. Depois, contornando o passadiço destruído a dentadas, chegaram de repente à imensa garganta cavernosa da toca de rato mais a oeste, um buraco malcheiroso que logo os fez alinharem-se.

 Espero que saiam — disse Redwood, com uma olhada ao telheiro do poço.

 Se não saírem... — refletiu Bensington.

—        Sairão — disse Redwood.

Meditaram.

—        É preciso arranjar algum tipo de chama se vamos entrar — disse Redwood.

Subiram um pequeno sendeiro de areia branca que atravessava o bosque de pinheiros e foram parar à vista dos buracos de vespas.

O sol se punha então, e as vespas voltavam definitivamente para casa; suas asas, àquela luz dourada, criavam auréolas girantes em torno delas.   Os três homens espiavam de debaixo das árvores—     não tinham nenhuma vontade de ir até a borda do bosque — e viam os tremendos insetos pousarem, arrastarem-se um pouco, entra­rem e desaparecerem.

—        Vão se aquietar dentro de algumas horas — disse Redwood.

—        É como se voltássemos a ser meninos.

—        Não podemos perder esses buracos — disse Bensington — mesmo que a noite seja escura. A propósito... sobre a luz...

—        Lua cheia — disse o eletricista. — Eu olhei.

Voltaram e consultaram Cossar.

Ele disse que "obviamente" deviam levar o enxofre, o azoto e o gesso de Paris para o bosque antes do crepúsculo, e para issosepararam-se e levaram os sacos. Após os gritos necessários e as instruções preliminares, não se disse mais uma palavra, e à medi­da que o zumbido do ninho de vespas ia morrendo, mal se ouvia um som, a não ser o ruído das passadas, os pesados arquejos de homens carregados e o impacto dos sacos no chão. Revezavam-se todos nesse trabalho, com exceção do Sr. Bensington, visivelmente incapaz. Ele ficou de guarda no quarto de Skinner com uma espin­garda, vigiando a carcaça do rato morto; quanto aos outros, reveza­vam-se para descansar do transporte dos sacos e manter guarda dois de cada vez às tocas de ratos atrás das moitas de urtigas. Os sacos de pólen das urtigas estavam maduros, e de vez em quando a vi­gilância deles era avivada pela deiscência desses sacos, que explo­diam exatamente como o estampido de uma pistola, e grãos de pólen do tamanho de chumbo de caça espalhavam-se por toda a volta.

O Sr. Bensington sentava-se à sua janela numa dura poltrona alcochoada com crina de cavalo, coberta por um sujo forro, que dera um toque de distinção social à sala de estar dos Skinner duran­te muitos anos. Descansava a espingarda, com a qual não estava acostumado, no batente da janela, e seus óculos ora observavam o vulto escuro do rato morto no crescente crepúsculo, ora vaga­vam em torno numa curiosa meditação. Sentia-se um débil cheiro de parafina do lado de fora, pois uma das barricas estava vazando, e esse cheiro misturava-se com um odor menos desagradável que vinha da trepadeira serrada e esmagada.

Do lado de dentro, quando voltava a cabeça, uma mistura de fracos odores domésticos, cerveja, queijo, maçãs podres e botas velhas como motifs predominantes, trazia-lhe muitas recordações dos desaparecidos Skinner. Ficou olhando o quarto na penumbra por algum tempo. Os móveis achavam-se em grande desordem — talvez causada por algum rato inquisitivo —, mas um casaco pendu­rado num cabide na porta, uma navalha e alguns pedaços de papel sujos, e um pedaço de sabão que endurecera durante anos de desuso, transformando-se num cubo pétreo, lembravam a personalidade par­ticular de Skinner. Ocorreu a Bensington, com uma compreensão inteiramente nova, que com toda probalidade o homem fora morto e devorado, pelo menos em parte, pelo monstro que agora jazia morto ali na crescente escuridão.

Pensar aonde podia conduzir uma descoberta aparentemente inofensiva da química!

Ali estava ele, na acolhedora Inglaterra, e apesar disso em infinito perigo, sentado, sozinho com uma espingarda numa casa es­cura e em ruínas, distante de todo conforto, o ombro terrivelmente machucado por um coice de espingarda, e... por Júpiter!

Percebia agora como mudara profundamente, para ele, a ordem do universo. Viera direto para aquela experiência espantosa sem sequer dizer uma palavra à prima Jane!

Que estaria ela pensando dele?

Tentou imaginar e não conseguiu. Tinha a extraordinária sensação de que ela e ele se haviam separado para sempre, e jamais voltariam a encontrar-se. Sentia que dera um passo e entrara num mundo de novas imensidões. Que outros monstros não esconderiam aquelas sombras que se adensavam?... As extremidades das urtigas gigantes destacavam-se nítidas e negras contra o verde pálido e âmbar do céu ocidental. Estava tudo quieto, quieto demais, na verdade. Perguntava-se por que não ouvia os outros além da esquina da casa, As sombras agora no telheiro da carroça eram de um negror abissal.

—        Pan... Pan... Pan...

Uma sequência de ecos e um grito.

Um longo silêncio.

Pan – e um descendo de ecos.

Quietude.

Então, graças a Deus!, Redwood e Cossar emergiram da inaudí­vel escuridão, e o primeiro gritava:

—        Bensington!   Bensington!   Acabamos com outro dos ratos. Cossar liquidou outro dos ratos!

 

Quando a Expedição acabou de restaurar suas forças, a noite já descera inteiramente. As estrelas mostravam-se em seu brilho máximo, e uma crescente claridade para os lados de Hankey anuncia­va a lua.  Mantivera-se a guarda sobre as tocas dos ratos, mas osguardas haviam-se transferido para a encosta do morro acima deles, achando que era um lugar mais seguro para disparar. Agachavam-se ali, sob um orvalho um tanto copioso, enfrentando a frieza com uísque. Os outros repousavam na casa, e os três chefes discutiam as tarefas noturnas para os homens. A lua nasceu por volta da meia-noite, e assim que clareou as chapadas, todos, com exceção dos guardas na toca de ratos, partiram em fila indiana, chefiados por Cossar, em direção ao ninho de vespas.

Nesse caso, acharam a tarefa excepcionalmente fácil, espantosamente fácil. A não ser por tratar-se de um trabalho mais demo­rado, não foi coisa mais séria do que o seria qualquer ninho de vespa. Havia perigo, sem dúvida, perigo de vida, mas isso não apareceu na portentosa colina. Enfiaram o enxofre e o azoto, ta­param firmemente os buracos e atearam fogo. Então, num im­pulso comum, todo o grupo, com exceção de Cossar, voltou-se e correu atravessando as longas sombras dos pinheiros. Mas, vendo que Cossar ficara atrás, todos pararam, formando um bolo, a cem metros, numa vala conveniente, que oferecia proteção. Apenas por um ou dois minutos a noite de lua, toda em preto e branco, pesou com aquele zumbido abafado, que se elevou até um rugido, num tom profundo e abundante. Mas o barulho atingiu o auge e morreu, e depois, quase incrivelmente, a noite ficou silenciosa.

—        Por Júpiter! — disse Bensington, quase num sussurro. — Conseguimos!

Todos permaneciam atentos. A encosta do morro acima do negro entrelaçado de pinheiros parecia clara como o dia e descolori­da com a neve. O gesso nos buracos positivamente brilhava. O corpo desengonçado de Cossar adiantou-se para eles.

—        Até agora... — ele disse.

— Crac... pan!

Um tiro veio de perto da casa, e depois... silêncio.

— Que foi isso? — perguntou Bensington.

 Um dos ratos botou a cabeça de fora — sugeriu um dos homens.

 A propósito, deixamos nossas espingardas lá em cima — disse Redwood.

 Junto aos sacos.

Todos tornaram a voltar para o morro.

 Devem ser os ratos — disse Bensington.

 Obviamente — disse Cossar, roendo as unhas.

 Pan!

 Olá! — disse um dos homens.

E então, de repente, soaram um grito, dois tiros, um grito alto que era quase um berro, três tiros em rápida sucessão e um estilhaçar de madeira. Todos esses sons foram bastante claros e baixos na imensa quietude da noite. Depois, por alguns instantes, não hou­ve nada, a não ser uma pequena e abafada confusão vinda do lado das tocas dos ratos, e depois outro berro alucinado... Todos eles se viram de repente correndo a toda pressa para pegar as armas.

Dois tiros.

Bensington viu-se, de arma na mão, atravessando a toda os pinheiros, atrás de umas costas que sumiam. É curioso que o principal pensamento que lhe ocorreu nesse momento tenha sido o desejo de que a prima Jane pudesse vê-lo. Suas botas esburacadas voavam em loucas passadas, e ele tinha o rosto distorcido numa permanente ca­reta, que lhe franzia o nariz e mantinha os óculos no lugar. E tam­bém mantinha o cano da espingarda projetado para a frente, enquan­to voava pelo terreno marchetado de luar. O homem que fugira da casa encontrou-os em plena corrida — largara a sua espingarda.

 Olá - disse Cossar, e agarrou-o nos braços. — Que é isso?

 Eles saiu junto — disse o homem.

 Os ratos?

 Sim, seis.

 Onde está Flack?

 Lá embaixo.

 Que é que ele está dizendo? — perguntou Bensington, resfolegante, sem que lhe dessem atenção.

 Flack está lá embaixo.

 Caiu.

 Eles saiu um atrás do outro.

 Quê?

 Eles atacou. Eu disparei os dois canos primeiro.

 Deixou Flack?

 Eles vinha em cima da gente.

—        Vamos — disse Cossar. — Você vem conosco.  Onde está Flack?  Mostre-nos.

Todo o grupo adiantou-se. O homem que fugira soltava mais detalhes da luta. Os outros se apinhavam à volta dele, com exceção de Cossar, que conduzia.

 Onde estão?

 Talvez eles voltou pra toca.   Eu dei o fora.   Eles correu pras toca.

 Que quer dizer?  Vocês ficaram atrás deles?

 Nós entrou nas toca deles. Vimos eles saindo, sabe, e tentamos cortar a saída. Eles passou por a gente feito coelho. A gente correu pra baixo e disparou. Eles deu a volta depois de nosso pri­meiro tiro e de repente veio contra nós. Atacou nós.

 Quantos?

 Uns seis ou sete.

Cossar conduziu-os à borda do bosque de pinheiros e parou.

 Quer dizer que pegaram Flack? — perguntou alguém.

 Um tava em cima dele.

 Você não atirou?

 Como podia?

 Todos com as armas carregadas? — perguntou Cossar por sobre o ombro.  Houve um movimento de confirmação.

 Mas Flack... — disse um.

 Quer dizer...  Flack... — disse outro.

 Não há tempo a perder — disse Cossar, e gritou: — Flack! — enquanto seguia na frente. A força toda avançou em direção às tocas dos ratos, o homem que fugira um pouco atrás.  Atravessa­ram o matagal de crescimento exagerado e contornaram o corpo do segundo rato morto.  Estendiam-se numa linha aberta, cada homem com a espingarda apontada para a frente, e espiavam em volta, ao límpido luar, à procura de alguma sinistra forma abatida, algum vulto agachado.   Logo encontraram a espingarda do homem  que fugira.

— Flack! — gritou Cossar. — Flack!

 Ele passou pelas urtiga correndo e caiu — disse o homem que fugira.

 Onde?

 Por ali assim.

— Onde ele caiu?

O homem hesitou e conduziu-os cortando as longas sombras negras por um espaço e voltou-se judiciosamente.

 Mais ou menos aqui, eu acho.

 Bem, não está aqui agora.

 Mas a espingarda dele...

 Diabos! —- gritou Cossar. — Para onde foi tudo? — Deu um passo em direção às sombras negras na encosta, que assinala­vam as tocas, e ficou olhando.   Depois tornou a praguejar. — Se o arrastaram para dentro...

E assim ficaram, jogando uns para os outros fragmentos de pensamentos. Os óculos de Bensington reluziam como diamantes, enquanto ele olhava de um para outro. Os rostos dos homens pas­savam da fria nitidez para uma misteriosa obscuridade, quando eles os voltavam para a lua ou os ocultavam dela. Todos falavam, nenhum completava uma frase. Então, de repente, Cossar escolheu sua linha de ação. Sacudiu braços e pernas para todos os lados e expeliu ordens em bombardeios. Era óbvio que queria lanternas. Todos, com exceção, dele, encaminharam-se para casa.

 Você vai entrar nas tocas? — perguntou Redwood.

 Obviamente — disse Cossar.

Deixou claro mais uma vez que deviam pegar as lanternas da carroça e do trole e trazerem-nas.

Bensington, compreendendo isso, partiu pelo sendeiro que passava pelo poço. Olhou por cima do ombro e viu a gigantesca figu­ra de Cossar parada, como se olhasse as tocas pensativamente. A essa visão, Bensington parou por um instante e voltou-se a meio. Todos deixavam Cossar...

O engenheiro podia cuidar de si mesmo, claro!

De repente, Bensington viu uma coisa gritar um "Ei" sem fôle­go. Num segundo, três ratos haviam-se projetado do escuro emaranhado da trepadeira em direção a Cossar. Por três segundos, o engenheiro não os viu, e depois tornou-se a coisa mais ativa do mundo. Não disparou sua espingarda. Aparentemente, não teve tempo para fazer mira, ou sequer pensar em fazer; esquivou-se de um rato que saltava, e esmagou-lhe a nuca com a coronha da arma. O monstro deu um salto e caiu sobre si mesmo.

O vulto de Cossar sumiu entre a grama alta, e depois ele tor­nou a se erguer, correndo em direção a outro dos ratos e brandindo a espingarda acima da cabeça. Um débil grito chegou aos ouvidos de Bensington, e depois ele viu os dois ratos restantes saltando cada um para um lado, e Cossar perseguindo-os em direção à toca.

A coisa toda fora um jogo de sombras difusas; a ilusória cla­ridade da lua exagerava os três monstros atacantes e tornava-os irreais. Em alguns momentos, Cossar parecia colossal, e em outros, invisível. Os ratos cruzavam o olhar de Bensington com súbitos saltos inesperados, ou corriam com movimentos tão rápidos dos pés que pareciam andar sobre rodas. Tudo acabou em meio minuto. Só Bensington assistiu. Ele ouvia os outros atrás de si, afastando-se em direção à casa. Gritou algo incompreensível e voltou correndo para junto de Cossar, enquanto os ratos sumiam.

Alcançou-o diante das tocas. À luz da lua, a distribuição de sombras que constituía o rosto do engenheiro sugeria calma.

—        Olá — disse Cossar. — Já de volta? — Onde estão as lanternas?   Já voltaram todos para suas tocas.   Quebrei o pescoço de um que passava por mim... Está vendo? Ali! — E apontou com o dedo magro.

Bensington estava espantado demais para conversar...

As lanternas pareceram demorar um tempo interminável para chegar. Afinal apareceram, primeiro um olho luminoso, que não piscava, precedido por um oscilante fulgor amarelo, e depois, piscando de vez em quando, dois outros. Em volta delas vinham pe­quenas figuras com pequenas vozes, e depois sombras enormes. O grupo parecia um ponto inflamado na gigantesca terra de sonhos do luar.

 Flack — diziam as vozes. — Flack.

Uma frase iluminadora flutuou até eles.

 Se trancou no sótão.

Cossar era cada vez mais maravilhoso. Mostrou grandes flocos de algodão e enfiou-os nos ouvidos... Bensington perguntava-se por quê. Depois carregou a espingarda com uma carga de um quarto de pólvora. Quem mais teria pensado nisso? O pasmo culminou com o desaparecimento das solas das botas de Cossar pela toca central acima.

Ele ia de quatro, com duas espingardas, cada uma pendendo de um lado de um cordão passado embaixo do queixo, e o mais confiável de seus auxiliares, um homenzinho escuro de rosto sério, devia segui-lo curvado, segurando uma lanterna sobre a cabeça. Ele fizera tudo parecer tão sadio, óbvio e adequado quanto o sonho de um lunático. O algodão, ao que parecia, destinava-se a abafar a concussão das espingardas; o homem também o pusera. Obviamen­te! Contanto que os ratos dessem as costas a Cossar, nenhum mal poderia acontecer-lhe, e assim que se voltassem, ele veria os olhos e dispararia entre eles. Como os bichos teriam de descer o cilindro da toca, Cessar dificilmente poderia deixar de acertá-los. Era, ele insistia, o método óbvio, um pouco tedioso talvez, mas absoluta­mente seguro. Quando o auxiliar curvou-se para entrar, Bensington notou que um bolo de cordão fora amarrado à cauda de seu casaco. Com aquilo, puxaria as cordas, se fosse necessário arrastar para fora os corpos dos ratos.

Bensington notou que o objeto que ele levava na mão era o chapéu de seda de Cossar.

Como aquilo chegara ali?

Era uma coisa para fazê-lo lembrado, de qualquer modo.

Em cada uma das tocas adjacentes permanecia um pequeno grupo com uma lanterna no chão iluminando a entrada, e um homem ajoelhado fazia mira no redondo vazio diante dele, esperan­do qualquer coisa que emergisse.

Houve uma interminável expectativa.

Então, ouviram o primeiro tiro de Cossar, como uma explosão numa mina.

Os nervos e músculos de todos contraíram-se ouvindo-o, e pan! pan! pan! —- os ratos haviam tentado um ataque, e mais dois estavam mortos. O homem que segurava o rolo de cordão comunicou um puxão.

— Matou um lá dentro — disse Bensington — e quer a corda.

Viu a corda enfiar-se no buraco, e parecia animada de uma inteligência serpentina — pois a escuridão tornava invisível o cordão. Afinal ela parou de rastejar, e houve uma longa pausa. Então o que parecia a Bensington o monstro mais esquisito de todos arras­tou-se lentamente para fora do buraco, e revelou ser o pequeno ma­quinista que saía de costas. Depois dele. e abrindo sulcos profundos, surgiram as botas de Cossar, e em seguida as suas costas, ilu­minadas pela lanterna...

Só restava um rato vivo agora, e o pobre e condenado desgraçado entocara-se nos mais fundos recessos, até que Cossar e a lan­terna tornaram a entrar e matá-lo, e finalmente o engenheiro, ver­dadeiro furão humano, percorreu todas as tocas para certificar-se.

— Pegamos todos — disse ao grupo quase assustado, afinal. — E se eu não fosse um idiota cabeça-oca teria tirado a camisa, Obviamente. Apalpe minhas mangas, Bensington! Estou ensopado de suor. É muito difícil pensar em tudo. Só uma talagada de uís­que pode salvar-me de um resfriado.

 

Houve momentos naquela noite maravilhosa em que pareceu a Bensington que fora destinado pela natureza a uma vida de fan­tástica aventura. Isso se aplicava em particular a mais ou menos uma hora depois de ter tomado um uísque puro.

—        Não volto mais para a Sloane Street — confiou ao maquinista alto, louro e sujo.

— Volta não, hem?

—        Não se procupe — disse Bensington, acenando sombriamente a cabeça.

O esforço de arrastar os sete ratos mortos à pira funerária ao lado da moita de urtigas deixara-o banhado de suor, e Cossar indi­cara a óbvia reação física do uísque para salvá-lo de um resfriado fora isso inevitável. Comeram uma espécie de jantar de salteador na velha cozinha de tijolos, com a fila de ratos mortos jazendo ao luar junto aos galinheiros lá fora, e após uns trinta minutos de re­pouso, Cossar despertou-os todos para as tarefas que ainda tinham de cumprir. "Obviamente", como dizia, tinham de "varrer o lugar. Nada de lixo — nada de escândalo. Vêem?" Excitou-os com a idéia de fazer a destruição completa. Quebraram e lascaram todo fragmento de madeira dentro da casa; fizeram trilhas de lenha em toda parte onde brotava mato bravo; ergueram uma pira para os corpos dos ratos e encharcaram-nos com parafina.

Bensington trabalhou como um operário de escavações consciente. Sentiu uma espécie de clímax de exaltação e energia lá pelas duas horas. Quando, na obra de destruição, brandia um ma­chado, mesmo os mais bravos fugiam de suas vizinhanças. Depois a perda temporária dos óculos deixou-o um pouco sóbrio, e termi­nou encontrando-os no bolso do casaco.

Os homens passavam de um lado para outro diante dele — homens tisnados, enérgicos. Cossar movia-se entre eles como um deus.

Bensington bebia aquele prazer da camaradagem humana que se apodera dos exércitos vitoriosos e das expedições decididas — e nunca daqueles que vivem a vida dos sóbrios cidadãos nas ci­dades. Depois que Cossar tomou seu machado e mandou-o carre­gar lenha, ele ficou andando ds um lado para outro, dizendo que eram todos "bons camaradas". E assim continuou — muito depois de reconhecer a fadiga.

Finalmente, tudo ficou pronto e teve início o derramamento da parafina. A lua, privada agora de todo o seu magro séquito noturno de estrelas, brilhava alta sobre a madrugada.

—        Queimem tudo — disse Cossar, indo de um lado para outro — queimem o chão e arrasem tudo.  Vêem?

Bensington tomou consciência dele, vendo-o agora muito magro e horrível nos pálidos primórdios da madrugada, passando apres­sado com a queixada projetada e uma tocha chamejante na mão.

—        Sai daí! — disse alguém, puxando o braço de Bensington.

A silenciosa madrugada — os pássaros não cantavam ali —encheu-se de repente de um tumultuoso estrelejar; uma chamazinha vermelha, abafada, correu pela base da pira, transformou-sc em azul acima do solo e ergueu-se às alturas, folha a folha, pelo tronco de uma urtiga gigante. Um som de canto misturava-se ao crepitar...

Eles agarraram suas espingardas no canto da sala de estar de Skinner e correram todos. Cossar vinha atrás, com passadas pesa­das ...

Depois ficaram parados, olhando a Fazenda Experimental lá atrás. Toda ela ardia; a fumaça e as chamas saltavam como uma multidão em pânico das portas e janelas, e de mil fendas e racha­duras no telhado.  Incêndio era com Cossar! Uma grande coluna defumaça, entremeada de línguas rubras como sangue e vívidos cla­rões, precipitava-se para os céus. Era como um imenso gigante er­guendo-se de repente, estirando-se para cima e abruptamente abrin­do os grandes braços de um lado a outro do céu. Àquilo devolvia-lhes a noite, escondendo e obliterando inteiramente a incandescên­cia do sol que se erguia atrás. Toda Hickleybrow logo tomou co­nhecimento daquela estupenda coluna de fumaça, e subiu o morro, em vários trajes de dormir, para vê-los voltar.

Atrás, como um fantástico cogumelo, a coluna de fumaça os­cilava e adejava, subindo, subindo para o céu — fazendo as cha­padas parecerem baixas e todos os outros objetos mesquinhos, e no primeiro plano, chefiados por Cossar, os responsáveis por aquela traquinagem seguiam o caminho, oito figurinhas negras que se apro­ximavam cansadas, de armas nos ombros, atravessando o prado.

Quando Bensington olhou para trás ocorreu-lhe ao cérebro exausto, e nele ecoou, uma fórmula conhecida. Qual era? "Você acendeu hoje...?" "Você acendeu hoje...?"

E então lembrou-se das palavras de Latimer: "Acendemos neste dia uma tal Vela na Inglaterra que homem algum jamais apa­gará de novo..."

Que homem era Cossar, sem dúvida! Ficou admirando as cos­tas do outro por um instante, e sentia-se orgulhoso por ter segurado aquele chapéu. Orgulhoso! Embora ele fosse um eminente pesquisador e Cossar apenas se empenhasse na ciência aplicada.

De repente, começou a sentir frio e a bocejar muito, e a dese­jar estar calidamente enfiado na cama em seu apartamentinho que dava para a Sloane Street. (Nem adiantava agora pensar na prima Jane). As pernas tornavam-se fios de algodão, e os pés chumbo. Perguntava-se se alguém lhes arranjaria café em Hickleybrow. Não ficava acordado a noite toda fazia trinta e três anos.

 

E enquanto esses oito aventureiros lutavam com ratos em torno da Fazenda Experimental, quatorze quilômetros além, na aldeia de Cheasing Eyebright, uma velha com um excesso de nariz lutava comgrandes dificuldades à luz de uma trêmula vela. Tinha um abridor de lata de sardinha numa mão, e na outra uma lata de Herakleoforbia, que resolvera abrir ou morrer. Lutava incansavelmente, gru­nhindo a cada novo esforço, enquanto do outro lado do frágil tabique a voz do pequeno Caddles chorava.

— Abençoado seja — disse a Sra. Skinner; e então, com seu único dente mordendo o lábio num êxtase de determinação: — Sai logo!

E afinal, jab!, uma nova porção de Alimento dos Deuses li­bertou-se para descarregar seus poderes de gigantismo sobre o mundo.

 

AS CRIANÇAS GIGANTES

Por algum, tempo, ao menos, o círculo crescente de consequências residuais da Fazenda Experimental deverá deixar o foco de nossa narrativa — o modo como, por um longo tempo, o poder de gigantismo, em fungos e cogumelos, na grama e no mato, irra­diou-se daquele centro calcinado, mas de modo nenhum obliterado. Tampouco podemos contar aqui como as enlutadas solteironas, as duas galinhas sobreviventes que causaram maravilha num espetáculo, passaram os anos que lhe restavam em desovada celebrida­de. O leitor faminto de detalhes completos pode procurar os jor­nais da época, volumosos e indiscriminados arquivos do moderno Anjo do Registro. Nosso caso é com o Sr. Bensington, e o foco da perturbação.

Ele retornou a Londres e descobriu-se um homem muitíssimo famoso. Numa noite o mundo todo mudara em relação a ele. Todos compreendiam. A prima Jane, ao que parecia, sabia de tudo; as pessoas na rua sabiam de tudo; os jornais, de tudo e um pouco mais. Encontrar a prima Jane foi terrível, é claro, mas quando tudo aca­bou, não tão terrível assim, afinal. A boa mulher tinha limites até para seu poder sobre os fatos; era claro que havia refletido e acei­tado o Alimento como algo na ordem das coisas.

Adotou a linha do rabugento cumprimento do dever. Desa­provava enormemente, era evidente, mas não proibia. A fuga de Bensington, como deve tê-la considerado talvez a houvesse abala­do, e o pior que fazia era tratá-lo com amarga persistência de umresfriado que ele não apanhara e de um cansaço que havia muito esquecera, e comprar-lhe uma espécie de conjunto de roupa de baixo higiênico, de pura lã, que se podia virar pelo avesso em parte, e em parte não, e tão difícil de enfiar para um homem dis­traído como... Sociedade. E assim, por algum tempo, e até onde essa conveniência lhe deixava tempo, ele ainda continuava a parti­cipar do desenvolvimento desse novo elemento na história huma­na, o Alimento dos Deuses.

A mente do público, seguindo suas misteriosas leis de seleção, escolhera-o como único Inventor e Promotor responsável por aquela nova maravilha; não queria saber de Redwood, e deixou sem um protesto que Cossar seguisse seu impulso natural em direção a uma obscuridade enormemente prolífica. Antes que percebesse a mu­dança nessas coisas, o Sr. Bensington já era, por assim dizer, desnu­dado e dissecado nas inscrições nos tapumes. Sua calvície, sua curiosa cor rósea e seus óculos de ouro tornaram-se um patrimônio nacional. Jovens decididos, com grandes câmaras de aparência cara e uma aparência geral de completa autoridade, apoderavam-se do apartamento por breves e frutíferos períodos, explodiam flashes que o inundavam durante horas de denso e insuportável vapor, e retiravam-se para encher páginas de revistas em cadeia com suas admiráveis fotos do Sr. Bensington de corpo inteiro e à vontade em seu segundo melhor casaco e seus sapatos esburacados. Outras pessoas de maneiras decididas, de idades e sexos vários, apareciam e falavam coisas sobre o Comidão — fora a revista satírica Punch quem primeiro chamara a coisa de "Comidão" — e depois reproduziam o que elas próprias tinham dito como palavras dele à en­trevista. O negócio, tornou-se uma verdadeira obsessão para Broadbeam o popular humorista. Ele farejava outra daquelas malditas coisas que não podia entender e agitava-se terrivelmente para "aba­fá-la com risadas". Viam-no nos clubes, uma grande e desajeitada presença, com os sinais do óleo queimado à meia-noite visíveis no rosto enorme e doentio, explicando a todos a quem conseguia agarrar pelo botão do paletó:

— Esses sujeitos científicos, sabe, não têm senso de humor, sabe. É isso que é. A tal ciência.... mata o humor.

Suas piadas com Bensington tornaram-se ataques malignos...

Uma empreendedora - agência de recortes de jornais enviou aBensington um longo artigo sobre ele, de uma revista de seis pence. intitulado "Um Novo Terror", e ofereceu-lhe providenciar cem da­queles incômodos por um guinéu; duas moças extremamente en­cantadoras, totalmente desconhecidas, visitaram-no e, para muda in­dignação da prima Jane, tomaram chá com ele e depois enviaram-lhe seus livros de aniversário para a sua assinatura. Bensington acos­tumou-se rapidamente a ver seu nome associado às ideias mais es­tapafúrdias na imprensa, e a descobrir nas revistas artigos escritos sobre o Comidão e ele próprio, num tom de absoluta intimidade, por pessoas das quais nunca ouvira falar. Fossem quais fossem as ilusões que alimentara em seus dias de obscuridade sobre os pra­zeres da fama, eles se desfizeram absolutamente e para sempre.

A princípio — com exceção de Broadbeam — o tom da opinião pública era inteiramente isenta de qualquer toque de hostilidade. Não pareceu ocorrer a ninguém, como mais que uma simples supo­sição de brincadeira, que qualquer outra quantidade de Herakleoforbia fosse tornar a escapar. E não pareceu ocorrer à opinião pú­blica que o crescente grupinho de bebês então alimentados com a substância acabaria crescendo mais do que a maioria de nós já cres­ceu, O tipo de coisas que agradava à opinião pública eram as caricaturas de políticos eminentes após um prato de Comidão, os usos das ideias nos tapumes, e exibições edificantes como as vespas mortas que haviam escapado do fogo e as galinhas restantes.

O público não se dava ao trabalho de olhar além disso, até que se fizeram esforços bastante vigorosos para voltar sua atenção para as consequências mais remotas; e mesmo então, por algum tempo, o interesse do público pela ação foi apenas parcial. "Há sempre alguma coisa nova", dizia o público — um público tão empanturrado com novidades que sçria informado de que a terra esta­va sendo cortada como se corta uma maçã sem a menor surpresa, e apenas comentando: "Imagino o que vão fazer depois disso".

Mas havia uma ou duas pessoas fora do público, por assim dizer, que já tinham dado essa olhada mais além, e alguns, aparentemente, se assustaram com o que viram. Havia o jovem Caterham, por exemplo, primo do Conde de Pewterstone e um dos mais pro­missores dos políticos ingleses, que, correndo o risco de ser tomado por novidadeiro, escreveu um longo artigo no Século Dezenove eDepois sugerindo a total supressão do alimento.  E — em alguns de seus estados de espírito — havia Bensington.

 Eles   parece  que não  compreendem...   — ele disse   a Cossar.

 Não, não compreendem, não.

 E nós? Compreendemos? Às vezes, quando penso no que significa...  Essa pobre criança de Redwood...  e, é claro, seus três... doze metros de altura, talvez!...

 Vá em frente! — gritou Cossar, convulsionado por um deselegante pasmo e aguçando a voz mais que nunca. — É claro que você vai em frente com essa coisa!   Para que pensa que foi feito? Para vagabundar entre as refeições?  Sérias consequências — gri­tou   —   veja   você!   Enormes!   Obviamente.   Obviamente.   Ora, homem, é a única oportunidade que você algum dia terá de uma con­sequência séria! E quer tirar o corpo fora! — Por um momento, sua indignação tirou-lhe a fala. — É decididamente perverso! — disse afinal, e repetiu numa explosão. — Perverso!

Mas Bensington trabalhava em seu laboratório, agora, com mais emoção do que zelo. Não sabia se desejava ou não sérias consequências para a sua vida; era um homem de gostos discretos. Tratava-se de uma descoberta maravilhosa, claro, muito maravi­lhosa, mas... Já se tornara proprietário de vários acres de pro­priedade escorchada, desacreditada, perto de Hickleybrow, a um preço de quase noventa libras o acre; e às vezes dispunha-se a julgar isso consequência tão séria da química especulativa quanto qualquer um poderia desejar. Evidentemente, estava famoso — muitíssimo famoso. Mais que satisfatória, completamente mais que satisfatória, era a fama que conquistara.

Mas o hábito da pesquisa era forte nele...

E em alguns momentos, raros momentos no laboratório, sobretudo, descobria mais que o hábito e os argumentos de Cossar a im­peli-lo ao trabalho. Aquele homenzinho de óculos, encarapitado, talvez com os sapatos rasgados enroscados nas pernas do tamborete e as mãos na pinça de pesos da balança, tinha de novo um clarão daquela visão da adolescência, uma percepção momentânea do eter­no desdobrar-se da semente que fora semeada em seu cérebro; via por assim dizer no céu, além das formas e acidentes grotescos do presente, o mundo futuro de gigantes, e todas as coisas poderosasque o futuro reservava — vagas e esplêndidas, como um palácio reluzente visto de repente na passagem de um raio de sol distante... E acabava ficando com ele, como se aquele esplendor dis­tante jamais houvesse reluzido em seu cérebro, e não percebesse nada à frente além de sombras sinistras, imensos declives e trevas, inóspitas imensidões, coisas frias, bárbaras e terríveis.

 

Em meio aos complexos e confusos acontecimentos, os impac­tos do grande mundo externo que constituíam a fama do Sr. Bensington, acabou destacando-se uma figura brilhante e ativa, que se tor­nou quase, por assim dizer, um líder e mestre de cerimônias de tais aparências aos olhos do Sr. Bensington. Era o Dr. Winkles, o con­vincente jovem médico que já apareceu nesta história como o meio pelo qual Redwood pôde transmitir o Alimento a seu filho. Mesmo antes da grande irrupção, era evidente que os pós misteriosos que Redwood lhe dera haviam despertado imensamente o interesse desse cavalheiro, e assim que as primeiras vespas apareceram, eie somou dois e dois.

Era o tipo de médico que, por suas maneiras, moral, métodos e aparência se podia descrever sucinta e definitivamente como "em ascensão". Grande e louro, com uns duros olhos cor de alumínio, alertas, superficiais, e cabelos parecendo giz empapado, traços regu­lares e musculosos em volta da boca barbeada, porte ereto e movi­mentos enérgicos, rápido e móvel nos calcanhares, usava casacas compridas, gravatas de seda negra e abotoaduras e correntes de ouro puro, e seus chapéus de seda tinham uma forma e abas especiais que o faziam parecer mais sábio c melhor que qualquer um. Pa­recia tão jovem ou velho quanto qualquer adulto. E após aquela primeira e maravilhosa explosão, apegou-se a Bensington, Redwood e ao Alimento dos Deuses com um tão convincente ar de proprietá­rio que às vezes, apesar do testemunho em contrário da imprensa, Bensington inclinava-se a encará-lo como o inventor original da coisa toda.


—        Esses acidentes — dizia Winkles, quando Bensington. insi­nuava os perigos de outros descontroles — não são nada. Nada. A descoberta é que é tudo.  Adequadamente desenvolvida e mani­pulada, sadiamente controlada, temos...  temos algo deveras por­tentoso nesse nosso alimento... Devemos trazê-lo de olho... Não devemos deixar que saia de nosso controle de novo, e.... não devemos abandoná-lo.

Ele, certamente, não pretendia fazer isso. Vivia agora quase todo dia na casa de Bensington. Este, olhando da janela, via a im­pecável e esplêndida equipagem entrando na Sloane Street, e após um intervalo incrivelmente breve Winkles entrava na sala com mo­vimentos leves, fortes, e impregnava-a toda, e apresentava algum jornal, dava informações e fazia observações.

—        Bem — dizia, esfregando as mãos — como vamos indo? — E passava à discussão em pauta.

— Sabe — disse um dia — o Caterham falou sobre o nosso material na Associação da Igreja?

— Deus do céu! — disse Bensington. — Ele é primo do Primeiro-ministro, não é?

 Sim — disse Winkles — um jovem muito capaz... muito capaz.  Bastante  equivocado,   sabe,  violentamente  reacionário...mas inteiramente capaz.  E evidentemente está disposto a capitali­zar esse nosso material.   Adota uma linha bastante enfática.   Fala de nosso propósito de usá-lo nas escolas elementares...

 Nossa proposta de usá-lo nas escolas elementares!

 Eu disse alguma coisa a esse respeito outro dia... muito de passagem...   uma coisinha na Politécnica.   Tentando deixar claro que o material é realmente muitíssimo benéfico.   Nem um pouco perigoso, apesar daqueles primeiros acidentezinhos, que não podem de modo algum ocorrer de novo...  Você sabe que seria uma coisa muito boa... Mas ele pegou a coisa.

— Que disse você?

—        Simples bobagens óbvias.  Mas, como vê...! Ele pegou a coisa com toda gravidade.  Trata-a como um ataque. Diz que já há desperdício suficiente de verbas públicas nas escolas públicas sem isso.   Conta as velhas histórias sobre lições de piano de novo... você sabe. Diz que ninguém deseja impedir os filhos das classes baixas de conseguir uma educação adequada à condição delas, masdar-lhes um alimento desse tipo será destruir inteiramente nelas o senso de proporção. Expande-se sobre o tema. Pergunta de que adianta fazer pobres de dez metros. Acredita mesmo, sabe, que terão dez metros.

 E teriam — disse Bensinglon — se déssemos nosso  alimento regularmente.   Mas ninguém falou...

 Eu falei alguma coisa.

 Mas, meu caro Winkles...

 Serão maiores, é claro — interrompeu Winkles, com um ar de quem conhece a coisa toda, e desencorajando as grosseiras idéias de Bensington. — Indiscutivelmente maiores. Mas ouça o que ele diz! Isso os tornará mais felizes?   Eis a questão.   Curioso, não é? Torná-los-á melhores? Respeitarão mais a autoridade propriamen­te constituída?  É justo para com as próprias crianças?   É curioso como gente dessa espécie se preocupa com a justiça... em relação a quaisquer arranjos futuros. Diz que mesmo hoje o custo para ali­mentar e vestir as crianças é maior do que muitos pais podem con­seguir, e se se permitir esse tipo de coisa...! Hem? Como vê, ele transforma minha simples observação de passagem numa pro­posta positiva.  E aí calcula quanto custará um par de calças para um rapagão de uns vinte metros. Como se realmente acreditasse... Dez libras, calcula, para a mais simples decência. Homem curioso, esse Caterham!   Tão concreto!   O honesto e esforçado pagador de impostos terá de contribuir para isso, diz. Diz que temos de consi­derar os Direitos do Pai. Está tudo aqui.  Duas, colunas.  Todo pai tem o direito de ver o filho crescer até o seu próprio tamanho...

"Depois, vem a questão da acomodação escolar, o custo das carteiras e formulários maiores, para nossas Escolas Nacionais já muito sobrecarregadas. E para conseguir o quê? Um proletariado de gigantes famintos. E conclui com um trecho muito sério, dizen­do que se essa alucinada sugestão... mera fantasia passageira minha, sabe, e deturpada ainda por cima... se essa alucinada su­gestão sobre as escolas não der em nada,; isso não encerrará o assunto. Trata-se de um alimento estranho, tão estranho que lhe parece a ele quase perverso. Foi espalhado descuidadamente... é o que ele diz... e pode espalhar-se de novo. Uma vez que o toma, é veneno se não se continuar tomando. (“É mesmo", disse Bensing­ton). Em suma, ele propõe a formação de uma Sociedade Nacionalpara Preservação da Proporção Adequada das Coisas. Estranho? Hem? As pessoas estão se apegando à ideia como se fosse alguma coisa.

—        Mas que propõe fazer?

Winkles deu de ombros e ergueu as mãos.

 Formar uma sociedade — disse — e criar confusão. Querem declarar ilegal a fabricação dessa Herakleoforbia... ou pelo menos divulgar o seu conhecimento.   Escrevi uma coisinha para mostrar que a idéia de Caterham sobre o material é muitíssimo exagerada, muitíssimo exagerada de  fato,  mas isso não parece contê-lo.   É curioso como as pessoas estão se voltando contra a coisa.  E a As­sociação Nacional de Temperança, a propósito, fundou um ramo de Temperança no Crescimento.

 Hum! — disse Bensington, e esfregou o nariz.

 Depois de tudo que aconteceu tinha de haver esse clamor.

Em vista disso, a coisa é... espantosa.

Winkles andou pela sala por algum tempo, hesitou e partiu.

Tornou-se evidente que tinha alguma coisa no fundo da mente, algum aspecto de crucial importância para ele, que esperava expor. Um dia, quando Redwood e Bensington se achavam juntos no apar­tamento, ele lhes proporcionou um vislumbre daquela alguma coisa que mantinha em reserva.

— Como vai indo isso? — perguntou, esfregando as mãos.

— Estamos redigindo uma espécie de relatório.

 Para a Real Sociedade?

 Sim.

 Hum — disse Winkles, muito profundamente, e dirigiu-se ao  tapete  da lareira. — Hum.   Mas...   Eis   a questão. Vocês deviam?

 Devíamos o quê?

 Tornar público?

 Não estamos na Idade Média — disse Redwood.

 Eu sei.

 Como diz Cossar, a troca de saber...  eis o verdadeiro método científico.

 Na maioria dos casos, sem dúvida.  Mas... Esse é excepcional.

— Devemos apresentar toda a coisa à Real Sociedade na forma devida — disse Redwood.

Winkles retornou ao assunto numa ocasião posterior.

—        Trata-se, sob muitos aspectos, de uma Descoberta Excepcional.

— Isso não tem importância.

— É o tipo de conhecimento que poderia prestar-se facilmen­te a graves abusos... graves perigos, como diz Caterham. Redwood nada disse.

— Mesmo por descuido, vocês sabem...

- Se formássemos uma comissão de pessoas dignas de con­fiança para controlar a fabricação do Comidão... da Herakleofoibia; devo dizer... poderíamos...

Parou, e Redwood, com um certo desconforto íntimo, fingiu não ter visto nenhum tipo de interrogação...

Fora dos apartamentos de Redwood e Bensington, Winkles, apesar da inconclusividade de suas instruções, tornou-sé uma des­tacada autoridade no Comidão. Escrevia cartas defendendo o seu uso; fazia notas e artigos explicando suas possibilidades; saltava irrelevantemente nas reuniões de associações científicas e médicas para falar dela; identificava-se com ela. Publicou um panfleto in­titulado "A Verdade Sobre o Comidão", no qual minimizava todo o caso de Hickleybrow, reduzindo-o a quase nada. Afirmou que era absurdo dizer que o Comidão faria as pessoas terem dez metros de altura. Isso era um "óbvio exagero". Fá-los-ia maiores, claro, mas só isso...

Dentro daquele íntimo círculo de dois era sobretudo evidente que Winkles estava extremamente ansioso para ajudar na fabrica­ção da Herakleoforbia, na correção de quaisquer provas tipográficas que houvesse de qualquer documento em preparação sobre o assun­to — para fazer qualquer coisa, na verdade, que levasse à sua par­ticipação nos detalhes da fabricação da Herakleoforbia. Falava-lhes o tempo todo que sentia que se tratava de uma Grande Coisa, com grandes possiblidades. Se eles pelo menos fossem... "salva­guardados de algum modo". E afinal, um dia, pediu diretamente para que lhe dissessem como se fabricava a substância.

—        Estive pensando no que você disse — disse Redwood. — E então? — perguntou Winkles, radiante.

 É o tipo de conhecimento que poderia prestar-se facilmen­te a graves abusos — disse Redwood.

 Mas não vejo onde isso se aplica — disse Winkles.

 Aplica-se — disse Redwood.

Winkles pensou nisso mais ou menos um dia. Depois foi a Redwood e disse estar em dúvida sobre se devia dar pós sobre os quais nada sabia ao filho dele; parecia-lhe que era extraordinaria­mente como assumir responsabilidade no escuro. Isso deixou Red­wood preocupado.

 Você viu que a Sociedade para Supressão Total do Comidão alega ter vários milhares de membros — disse Winkles, mu­dando de assunto. — Rascunharam uma lei. Conseguiram com que o jovem Caterham a adotasse...  de muito boa vontade. Falam sé­rio. Estão formando comissões locais para influenciar os candida­tos. Querem impor penas à preparação e armazenamento de Herakleoforbia sem licença especial, e tornar crime... sujeito a prisão, sem alternativa...  ministrar o Comidão...   é como o chamam, vocês sabem... a qualquer pessoa com menos de vinte e um anos.

Mas existem sociedades colaterais, vocês sabem. Todo tipo de gen­te. A Sociedade para Preservação das Antigas Estaturas diz que vai pôr o Sr. Frederick Harrison no conselho. Sabem que ele escre­veu um ensaio sobre o assunto; diz que é vulgar, e em total desar­monia com a Revelação da Humanidade encontrada nos ensina­mentos de Comte. É o tipo de coisa que o século dezoito não po­deria produzir mesmo em seus piores momentos. A idéia do Alimento jamais passou pela cabeça de Comte...  o que demonstra como é realmente perversa. Diz que ninguém que entendeu real­mente Comte...

 Mas você não quer dizer  — disse Redwood, alarmado de tal modo que abandonara o seu desdém.

 Não farão tudo isso — disse Winkles. — Mas a opinião pública é a opinião pública, e os votos são votos. Todos podem ver que vocês estão com uma coisa perturbadora. E o instinto humano é contra qualquer perturbação, vocês sabem. Ninguém parece acre­ditar na idéia de Caterham, de pessoas com dez metros de altura, que não poderão entrar numa igreja ou numa assembléia, ou em qualquer instituição social ou humana. Mas apesar disso não estão com a mente muito tranquila a respeito. Percebem que há alguma coisa, algo mais que uma simples descoberta...

 Isso existe em toda descoberta — disse Redwood.

 De qualquer modo, estão ficando...  inquietos. Caterham continua martelando sobre o que pode acontecer se a coisa se soltar de novo. Eu repito e repito que isso não acontecerá nem poderá acontecer. Mas... aí está!

E passejou pelo quarto por algum tempo, como se pretendesse reabrir a questão do segredo, mas depois pensou melhor e saiu.

Os dois cientistas entreolharam-se. Por algum tempo, apenas seus olhos falaram.

—        Se acontecer o pior — disse Redwood afinal, numa voz forçadamente calma — darei o Alimento a meu pequeno Teddy com minhas próprias mãos.

 

Só alguns dias depois disso foi que Redwood abriu seu jornal e descobriu que o Primeiro Ministro prometera instituir uma Real Comissão sobre o Comidão. Isso o fez precipitar-se, de jornal em punho, para o apartamento de Bensington.

—        Creio que Winkles está fomentando discórdias sobre o ma­terial. Faz o jogo de Caterham. Não pára de falar do assunto, e do que vai fazer, e isso assusta as pessoas. Se continuar assim, creio realmente que atrapalhará nossas pesquisas. Do jeito que já está... com esse problema sobre meu garotinho...

Bensington manifestou o desejo de que Winkles não continuasse.

 Você notou como ele passou a chamar o material de Comidão?

 Não gosto desse nome — disse Bensington, com um olhar por sobre os óculos.

 É exatamente o que ele é... para Winkles.

 Por que ele continua insistindo nisso? Não é dele!

 É uma coisa chamada surto — disse Redwood. — Eu não compreendo. Se não é dele, todos estão começando a pensar que é. Não que isso importe.

 No caso dessa agitação ignorante, ridícula,  tornar-se... séria — começou Bensington.

 Meu menino não pode passar sem a substância — disse Redwood. — Não sei o que posso fazer agora.  Se acontecer o pior...

Um ligeiro ruído proclamou a presença de Winkles. Ele se fez visível no meio da sala, esfregando as mãos.

— Eu gostaria que você batesse antes de entrar — disse Bensington, com um olhar maligno por sobre os óculos de ouro.

Winkles mostrou-se cheio de desculpas. Depois voltou-se para Redwood.

—        Estou satisfeito por encontrá-lo aqui — começou. — A verdade é que...

—        Você soube da Real Comissão? — interrompeu Redwood.

— Sim — disse Winkles, com a corda toda. —- Sim.

— Que acha disso?

 Uma coisa excelente — disse Winkles. — Deve deter todo esse clamor. Ventilar a coisa toda. Calar Caterham. Mas não foi por isso que vim aqui, Redwood. O caso é...

 Eu não gosto dessa Real Comissão — disse Bensington.

 Posso assegurar a vocês que dará tudo certo. Devo dizer... não creio que seja uma quebra de confiança...  que com muita possibilidade eu posso ter um lugar na comissão...

 Ooom — disse Redwood, olhando o fogo.

 Posso pôr a coisa toda nos eixos. Posso deixar perfeitamente claro, primeiro, que o material é controlável, e, segundo, que só um milagre pode fazer com que torne a acontecer uma catástrofe como a de Hickleybrow. É isso que é preciso, uma garantia dada coro autoridade. Claro, eu poderia falar com maior confiança se sou­besse ... Mas isso é inteiramente outra questão. E neste momento há outra coisa, outro probleminha, sobre o qual desejo consultá-los. A-ham. O caso é... Bem... acontece que me encontro numa pe­quena dificuldade, e vocês podem me ajudar a sair.

Redwood ergueu as sobrancelhas e sentiu-se secretamente contente.

 O problema é... altamente confidencial.

 Prossiga — disse Redwood. — Não se preocupe com isso.

 Confiaram-me recentemente uma criança... filho de... de um Excelso Personagem. — Winkles tossiu.

 Você está progredindo — disse Redwood.

 Devo confessar que é em grande parte devido a seus pós... e à reputação de meu sucesso com seu menino... Existe, não posso disfarçar, um forte sentimento contra o seu uso. E no entanto, des­cubro entre os mais inteligentes... Deve-se agir discretamente so­bre essas coisas, vocês sabem... pouco a pouco. Contudo, no caso de Sua Serena Al... quer dizer, desse novo pacientezinho meu. Na verdade... a sugestão veio do pai... Senão eu nunca...

Pareceu a Redwood que ele estava embaraçado.

 Eu achava que você tinha certa dúvida sobre a conveniência de usar esses pós — disse Redwood.

 Só uma dúvida passageira.

 Não propõe interromper.. .

 No caso de seu menino? Certamente que não!

 Até onde posso ver, isso seria assassinato.

 Eu não faria isso por nada no mundo.

— Você terá os pós — disse Redwood.

 Creio que você não poderia...

—        Não se preocupe — disse Redwood. — Não existe uma receita. Não adianta, Winkles, se perdoa a minha franqueza. Eu mesmo prepararei os pós para você.

— Está bem, talvez — disse Winkles, após um momentâneo e duro olhar a Redwood — está bem. — E depois: — Posso asse­gurar-lhe que na verdade não dou a mínima.

 

Quando Winkles saiu, Bensington foi postar-se no tapete da lareira e olhou de cima para Redwood.

 Sua Serena Alteza! — observou.

 Sua Serena Alteza! — disse Redwood.

 É a Princesa de Weser Dreiburg!

 Não mais que uma terceira prima.

 Redwood — disse Bensington. — É curioso de dizer, eu sei, mas... você acha que Winkles compreende?

 O quê?

 O que fizemos exatamente.

 Será que ele realmente compreende —- disse Bensington, bai­xando a voz e mantendo o olhar na direção da porta — que na família... a família de sua nova paciente...

— Continue — disse Redwood.

 Que sempre esteve, quando nada, um pouco abaixo... abaixo...

 Da média?

 Sim. E assim com muito tato e sem distinção, de qualquer tipo, ele vai produzir um personagem real... um personagem real de fora... desse tamanho. Você sabe, Redwood, não estou certo senão há algo quase... de traição ...

Transferiu os olhos da porta para Redwood. Redwood fez um gesto momentâneo — erguendo o indicador — para o fogo.

 Por Júpiter! — disse. — Ele não sabe.

 Aquele homem — disse Redwood — não sabe nada. Essa era a qualidade mais exasperante dele quando estudante. Nada. Pas­sava em todos os exames, sabia todos os fatos... e tinha quase tan­to conhecimento quanto uma estante giratória contendo a Enciclo­pédia do Times.  E não sabe nada agora.  É Winkles e incapaz de assimilar realmente qualquer coisa não imediata e diretamente re­lacionada com seu ego superficial. É absolutamente desprovido de imaginação, e consequentemente incapaz de saber. Ninguém poderia passar em tantos exames e vestir-se tão bem, ser tão composto, e ter tanto êxito como médico sem essa precisa incapacidade. É isso. E apesar de tudo que viu, ouviu e lhe contaram, lá está ele... não tem a mínima idéia do que está preparando. Tem um surto, e está explorando-o bem no Comidão, e alguém lhe deu acesso a esse no­vo bebê real...  e isso é mais explosivo que nunca! E o fato de que Weser Dreiburg terá de acabar enfrentando um problema de uma Princesa de dez metros e tanto não apenas não lhe entrou na cabeça, como tampouco podia entrar... não podia!

 Haverá uma briga feia! — disse Bensington.

 Dentro de um ano, mais ou menos.

 Assim que percebam que ela não pára de crescer.

 A menos que, como costumam fazer, abafem a coisa.

 É muita coisa para abafar.

 Um bocado!

 Imagino o que farão.

 Nunca fazem coisa alguma...  tato real.

 Terão de fazer alguma coisa.

— Talvez ela faça.

 Oh, Senhor! Sim.

 Eles a suprimirão. Sabe-se de tais coisas.

Redwood explodiu numa desesperada gargalhada.

- A realeza redundante...  o bebê saltando na Máscara de Ferro! — disse. — Terão de pô-la na mais alta torre do velho cas­telo de Weser Dreiburg, e ir fazendo buracos nos tetos à medida que ela vá crescendo de andar em andar!... Bem, eu estou no mes­mo apuro. E Cossar e seus três garotos. E... Bem, bem!

 Vai haver uma briga feia! — repetiu Bensington, não aderindo à risada. — Uma briga terrível. Suponho que você já exa­minou a coisa toda, Redwood. Tem plena certeza de que não seria mais sábio avisar Winkles, ir desabituando seu menino aos poucos e... confiar no Triunfo Teórico?

 Eu gostaria que você passasse meia hora no quarto de crianças lá em casa quando o Alimento tarda um pouco — disse Redwood, com uma nota de exasperação na voz. — Aí não falaria assim,  Bensington.   Além disso...   Imagine  avisar  Winkles!... Não! A onda dessa coisa nos apanhou desprevenidos, e quer este­jamos com medo ou não, temos de nadar.

 Suponho que temos — disse Bensington, olhando os bicos dos sapatos. — Sim. Temos de nadar. E seu menino também, e os de Cossar... ele deu o Alimento a todos três. Não faz nada pela metade...  é tudo ou nada! E Sua Serena Alteza. E tudo. Vamos continuar fabricando o Alimento. Cossar também. Estamos apenas na alvorada do começo, Redwood. É evidente que se seguirá todo tipo de coisas. Coisas grandes, monstruosas. Mas não posso imagi­ná-las, Redwood. A não ser...

Examinou as unhas dos dedos. Olhou Redwood com olhos brandos, através dos óculos.

—        Estou meio convencido — arriscou — de que Caterham tem razão. Às vezes. Isso vai destruir as proporções das coisas. Vai deslocar... Que é que não vai deslocar?

— Desloque lá o que deslocar — disse Redwood — meu garotinho tem de receber o Alimento.

Ouviram alguém subindo apressadamente. E Cossar enfiou a cabeça dentro do apartamento.

—        Olá! — disse, ao ver a expressão deles. E entrando: — Bem?

Falaram-lhe da Princesa.

—        Questão difícil! — ele observou. — Nem um pouco. Ela crescerá. Seu garoto crescerá. Todos os outros a quem ministramos o Alimento crescerão. Tudo. Como qualquer coisa. Qual é o pro­blema? Está tudo bem.  Até uma criança veria isso. Qual é o pro­blema?

Tentaram esclarecê-lo para ele.

 Não  ir em frente! — guinchou. — Mas...!  Não po­dem largar agora. É para isso que foram feitos. Foi para isso que Winkles foi feito. Está tudo bem. Muitas vezes me perguntei para que servia Winkles. Agora está óbvio. Qual é o problema? Pertur­bação! Obviamente.   Revirar as coisas"? Revirar tudo.   Definitiva­mente ... revirar toda preocupação humana. Claro como água. Vão tentar deter a coisa, mas chegaram  tarde demais. Estão sempre atrasados. Vão em frente e iniciem o máximo que puderem. Gra­ças a Deus por ter um uso para vocês.

 Mas o conflito! — disse Bensington. — A tensão! Não sei se você já imaginou...

 Você devia ser algum tipo de vegetalzinho, Bensington — disse Cossar. — Isso era o que você devia ser. Uma coisa que bro­tasse num rochedo. Aí está você, temível e maravilhosamente cons­truído, e só pensa que foi feito apenas para sentar-se e comer sua comida. Acha que este mundo foi feito apenas para velhas andarem por aí passando o esfregão? Bem, de qualquer modo, não podem parar agora, têm de continuar.

— Suponho que temos — disse Redwood. — Devagar...

—        Não! — disse Cossar, num berro imenso. — Não! Façam o máximo que puderem, e o mais rápido que puderem. Espalhem-no por aí!

Foi inspirado por um acesso de espirituosidade. Parodiou uma das curvas de Redwood com um vasto círculo do braço.

— Redwood! — disse, indicando a alusão — faça-o ASSIM!

 

Aparentemente, existe um limite no crescimento infantil para o orgulho materno, e este, no caso da Sra. Redwood, foi atingido quando seu rebento completou o sexto mês de existência terrestre, quebrou o luxuoso carrinho de bebê e foi trazido para casa, berran­do, na carroça do leiteiro. O jovem Redwood nessa época pesava vinte e cinco quilos, media quase um metro e levantava uns trinta quilos. Foi levado para o quarto das crianças, no andar de cima, pela cozinheira e a arrumadeira. Depois disso, a descoberta foi apenas questão de dias. Uma tarde, Redwood voltava do laborató­rio para casa e encontrou a infeliz esposa mergulhada nas fasci­nantes páginas de O Poderoso Átomo. Ao vê-lo, ela pôs o livro de lado, precipitou-se para ele e explodiu em lágrimas em seu ombro.

—        Diga-me o que fez com ele — gemia. — Diga-me o que fez.

Redwood tomou-lhe a mão e conduziu-a até o sofá, tentandopensar numa linha de defesa satisfatória.

—        Está tudo bem, querida — disse. — Está tudo bem. Você está apenas um pouco exausta. É aquele carrinho de bebê barato. Providenciei para que um homem que faz cadeiras de rodas venha com algo mais resistente amanhã. . .

A Sra. Redwood olhou-o lacrimosa por cima de seu lenço.

 Um bebê numa cadeira de rodas? — soluçou.

 Bem, por que não?

 É como um aleijado.

— É como um jovem gigante, minha cara, e você não tem de que se envergonhar dele.

—        Você fez alguma coisa com ele, Dandy? — ela disse. — Posso ver no seu rosto.

— Bem, o que fiz não deteve o crescimento dele, de qualquer modo — disse Redwood, impiedoso.

 Eu sabia — disse a Sra. Redwood, e embolou o lenço numa mão. Olhou-o com uma súbita mudança de severidade. — Que fez com nosso filho, Dandy?

 Que há de errado com ele?

 Está tão grande. É um monstro.

 Bobagem. É um garoto tão normal e sadio quanto qualquer mulher já teve. Que há de errado com ele?

 Veja o tamanho dele.

 Está tudo bem. Veja os animaizinhos franzinos  à nossa volta! Ele é o bebê mais lindo...

 Lindo demais — disse a Sra. Redwood.

 Não vai continuar assim — disse Redwood, tranquilizadoramente. — Foi apenas um impulso que tomou.

Mas sabia perfeitamente bem que o bebê continuaria crescendo. E continuava. Quando fez um ano, media pouco menos de um metro e meio, pesava cinquenta e quatro quilos, e era tão grande, na verdade, quanto um querubim da Basílica de São Pedro no Va­ticano; seus puxões afetuosos nos cabelos e nas faces dos visitantes tornaram-se o assunto de West Kensington. Usavam uma cadeira de inválido para empurrá-lo de um lado para outro do quarto de crianças, e sua babá especial, uma jovem musculosa que acabava de formar-se na profissão, levava-o para tomar ar num carrinho Panhard de oito cavalos de força especialmente construído para sa­tisfazer às suas necessidades. Era sob todos os aspectos uma sorte Redwood ter uma ligação de testemunha especializada, além de seu professorado.

Quando se superava o impacto causado pelo tamanho do pequeno Redwood, ele era — disseram-me pessoas que costumavam vê-lo quase todo dia rodando devagar por Hyde Park — uma cri­ança singularmente brilhante e bonita. Raramente chorava ou pre­cisava de chupeta. Em geral, agarrava um enorme chocalho, e às vezes saía saudando os choferes de ônibus e policiais ao longo das balaustradas como "Papá!" e "Babá!" de um modo sociável e democrático.

 Lá vai o bebezão do Comidão — dizia o chofer de ônibus

— Parece com saúde — observava o passageiro da frente.

 Alimentado na mamadeira — explicava o chofer. — Diz que é de quatro litros e meio, e teve de ser feita especialmente para ele.

—        De qualquer modo, tem muita saúde — concluía o passageiro da frente.

Quando a Sra. Redwood compreendeu que aquele crescimen­to na verdade prosseguiria indefinida e logicamente — e compreendeu isso pela primeira vez quando chegou o carrinho a motor — entregou-se a um ataque de sofrimento. Declarou que jamais que­reria entrar no quarto de crianças de novo, desejou estar morta, de­sejou o filho morto, desejou todo mundo morto, desejou jamais ter-se casado com Redwood, desejou que ninguém jamais se casasse com ninguém; depois acalmou-se um pouco e retirou-se para seu quarto, onde se alimentou quase exclusivamente de ensopado de frango durante três dias. Quando Redwood veio censurá-la, ela jo­gou os travesseiros para todos os lados, chorou e assanhou os cabelos.

 Ele está bem — disse Redwood. — Está muito melhor por ser grande. Você não gostaria que ele fosse menor que os filhos dos outros.

 Quero que ele seja como as outras crianças, nem menor nem maior. Queria que fosse um belo menininho, como Georgiana Phyllis, e gostaria de criá-lo direito, de uma maneira direita, e aí está ele — e a voz da infeliz mulher falhou — usando sapatos de adultos e sendo conduzido por... bubu!...  Gasolina! Nunca vou poder amá-lo — gemeu. — Nunca! É demais para mim! Jamais posso ser uma mãe para ele, como pretendia ser!

Mas afinal conseguiram levá-la ao quarto de crianças, e lá es­tava Edward Monson Redwood ("Pantagruel" foi um nome que só se deu depois) balançando-se numa cadeira de balanço especialmente reforçada e sorrindo e dizendo "gu" e "uau". E o coração da Sra. Redwood tornou a aquecer-se para o filho, e ela o tomou nos braços e chorou.

—        Fizeram alguma coisa com você — soluçava — e você vai crescer sem parar, mas o que eu puder fazer para criá-lo direito, eu farei, diga lá o seu pai o que disser.

E Redwood, que ajudara a trazê-la até a porta, desceu o cor­redor bastante aliviado.

(Eh! Mas é um serviço sujo esse de ser homem — sendo as mulheres o que são!)

 

Antes do fim do ano, havia, além do veículo pioneiro de Redwood, um bom número de carrinhos de bebê motorizados na zona oeste de Londres. Disseram-me que esse número chegava a onze; mas pesquisas mais cuidadosas forneceram provas dignas de confiança de apenas seis dentro da área metropolitana naquela época. Parecia que a substância agia diferentemente nos diferentes tipos de constituição. A princípio, a Herakleoforbia não fora adaptada para injeção, e não pode haver dúvida de que uma proporção bastante considerável de seres humanos não pode absorver a substância no curso normal da digestão. Ela foi dada, por exemplo, ao filho mais novo de Winkles; mas ele parece ter sido tão incapaz de crescer quanto, a crer em Redwood, o pai de obter conhecimentos. Outros ainda, segundo a Sociedade para Supressão Total do Comidão, fo­ram de algum modo inexplicável corrompidos por ela, e morreram ao contraírem doenças infantis. Os filhos de Cossar adaptaram-se a ela com espantosa avidez.

É claro que uma coisa dessas nunca vem com aplicação absolutamente simples na vida humana; o crescimento, em particular, é coisa complexa, e todas as generalizações têm de ser um tanto im­precisas. Mas a lei geral do Alimento parecia ser a seguinte: quan­do podia ser absorvido de alguma forma no sistema, estimulava-o quase no mesmo grau em todos os casos. Aumentava o ritmo de crescimento de seis a dez vezes, e não passava disso, por mais He­rakleoforbia que se tomasse a mais. Descobriu-se que o excesso da substância, além do mínimo necessário, conduzia de fato a pertur­bações mórbidas da alimentação, a cânceres e tumores, ossificações e coisas assim. E uma vez iniciado o crescimento em larga escala, logo se tornava evidente que só podia continuar nessa escala, e era imperativa a contínua administração de Herakleoforbia em doses pequenas, mas suficientes.

Se fosse interrompida durante o período de crescimento, registrava-se primeiro uma vaga agitação e angústia, depois um período de voracidade — como no caso dos jovens ratos de Hankey — e depois a criatura sofria uma espécie de anemia generalizada, adoe­cia e morria. As plantas sofriam do mesmo modo. Isso, no entanto,aplicava-se apenas ao período de crescimento. Assim que se atingia a adolescência — nas plantas isso era representado pela formação dos primeiros botões — a necessidade e apetite pela Herakeoforbia diminuíam, e tão logo a planta ou animal ficavam inteiramente adul­tos, tornavam-se totalmente independentes de qualquer outro abas­tecimento do alimento. Achavam-se, por assim dizer, completamente estabelecidos na nova escala. E tanto que, como demonstrou o caso das urtigas em volta de Hickleybrow e a relva no lado de bai­xo, as sementes produziam rebentos gigantes do mesmo tipo.

E afinal o pequeno Redwood, pioneiro da nova raça, a primei­ra criança a comer o alimento, já se arrastava pelo seu quarto de criança, destruindo os móveis, mordendo como um cavalo, beliscan­do como um vício, e berrando balbucios gigantes com a "Babá" a "Mamã", e com o "Papá" um tanto apavorado e assustado, que pu­sera aquele malfeito em andamento.

A criança nascera com boas intenções.

—        Padda ser bom, Padda ser bom — dizia, quando as coisas quebráveis voavam à sua volta. "Padda" era o seu modo de dizer "Pantagruel", o apelido que Redwood lhe dera. E Cossar, ignoran­do certas Luzes Antigas, que terminaram criando problemas, co­meçou, após um conflito com os regulamentos sobre construções lo­cais, a erguer num terreno baldio junto à casa de Redwood, um confortável e iluminado quarto de brinquedos, sala de aula e creche para seus quatro meninos; a sala tinha dezoito metros quadrados, e doze metros de altura.

Redwood apaixonou-se por essa creche grande à medida que a construía com Cossar, e seu interesse pelas curvas diminuiu, co­mo jamais sonhara que diminuiria, diante das prementes necessi­dades do filho.

 Há muita coisa — dizia — na preparação de uma creche.

Muita. As paredes, as coisas dentro dela, todas elas falarão a essa nossa novamente, um pouco mais, um pouco menos eloquente­mente, e ensinarão ou deixarão de ensinar mil coisas.

 Obviamente — disse Cossar, apressando-se a estender a mão para pegar o chapéu.

Trabalhavam juntos harmonicamentò, mas Redwood era quem fornecia a maior parte da teoria educacional necessária.

Pintaram as paredes e madeiras com animado vigor; na maior parte, predominava um branco levemente cálido, mas havia faixas de cores brilhantes e límpidas para ressaltar as linhas simples da construção,

 Precisamos de cores límpidas — disse Redwood, e pôs num lugar uma nítida faixa horizontal de quadrados, em que o carmim e o púrpura, o laranja e o limão, os azuis e verdes, em muitos tons e nuanças, faziam-se honra. As crianças gigantes deviam arrumar e rearrumar esses quadros ao seu bel prazer.

 As decorações devem seguir a mesma linha — disse Redwood. — Devem primeiro captar a gama de todas as cores, e de­pois afastar isso. Não há por que desviá-los em favor de qualquer cor ou desenho particulares.

Depois: — O lugar deve ser cheio de interesses — disse Red­wood. — O interesse é alimento para uma criança, e o vazio é tor­tura e morte a fome. Ela deve ter figuras em abundância. — Não havia figuras penduradas na sala, para qualquer uso permanente, mas molduras vazias, dentro das quais os quadros viriam e seriam transferidos para uma pasta assim que sua novidade passasse. Uma janela dava para a extensão da rua, e além disso, para maior inte­resse, Redwood colocara acima do telhado da creche uma câmara obscura que dava para a Kensington High Street e um trecho não pequeno dos Jardins.

Num canto, um digníssimo instrumento, um ábaco, de um me­tro e meio quadrado, peça especialmente reforçada de ferro fundido com cantos arredondados, aguardava as incipientes computações dos jovens gigantes. Havia poucos cordeiros de pelúcia e ídolos que tais; em vez deles, Cossar, sem explicações, trouxera um dia em três carroças um grande número de brinquedos (todos um pouco grandes demais, para que as crianças não os engolissem) que po­diam ser amontoados, arrumados em filas, rolados, mordidos, cho­calhados, batidos um no outro, apalpados, desmontados, abertos, fechados, espancados e sujeitos a experiências ilimitadas. Havia muitos cubos de madeira de cores diversas, oblongos e cubóides, de porcelana polida, de vidro transparente e de borracha da Índia; ha­via lousas e pranchetas; cones, cones seccionados e cilindros; esferóides achatados nos pólos e alongados longitudinalmente, bolas de várias substâncias, sólidas e ocas, muitas caixas de tamanhos e formasdiversas, com tampas de gonzos, ou aparafusadas, ou de en­caixe, e uma ou duas para fechar e trancar; havia tiras de elástico e couro, e vários objetos duros e compactos que podiam erguer-se e sugerir a forma de um homem.

—        Dê isso a eles — disse Cossar. — Um de cada vez. Essas coisas, Redwood arrumou-as num armário num canto.

De um lado da sala, a uma altura conveniente para uma criança de dois a dois e meio metros, havia um quadro-negro no qual os jo­vens poderiam desabrochar, em giz branco e de cor; e perto, uma espécie de bloco de desenho do qual se podiam arrancar sucessiva­mente as folhas, nas quais desenhariam com carvão; e havia uma pequena carteira, com grandes lápis de carpinteiro de vários graus de consistência, e um copioso abastecimento de papel, no qual as crianças poderiam primeiro garatujar, e depois desenhar mais or­denadamente. E além disso, Redwood encomendara, tão adiante al­cançava sua imaginação, tubos especialmente grandes de tinta líqui­da e caixas de pastel para a época em que fossem necessários. In­cluíra um ou dois barris de plasticine e barro de modelar.

—        A princípio, ele e o tutor modelarão juntos —- disse — e quando ele estiver mais habilitado, copiará modelos e talvez animais. E isso me lembra: devo também fazer para ele uma caixa de ferramentas! E depois tem os livros. Preciso procurar um monte de livros para pôr ao alcance dele, e precisam ter o tipo grande. Agora, de que espécie de livros ele vai precisar? Preciso alimentar a imagi­nação dele. isso, afinal, é o coroamento de toda educação. O coroamento...  como os hábitos mentais e de conduta sadios levam ao trono. Falta de imaginação é brutalidade; uma imaginação baixa é luxúria e covardia; mas uma imaginação nobre é Deus andando de novo pela terra. Ele deve sonhar também, com uma graciosa terra de fadas e com todas as coisinhas mimosas da vida, no devido tem­po. Mas deve alimentar-se sobretudo da esplêndida realidade; terá narrativas de viagens por todo o mundo, viagens e aventuras, e so­bre o modo como o mundo foi conquistado; terá histórias de feras, grandes livros esplêndida e limpidamente escritos sobre animais, pássaros, plantas e répteis, grandes livros sobre as profundezas do céu e o mistério dos mares; terá histórias e mapas de todos os im­périos que o mundo já viu, ilustrações e histórias de todas as tri­bos, hábitos e costumes dos homens. E deve ter livros e ilustraçõespara despertar seu senso de beleza, sutis quadros japoneses para fazê-lo amar as belezas mais sutis dos pássaros, trepadeiras e flo­res caindo; e quadros ocidentais, também, quadros de homens e mulheres graciosos, doces grupos e amplas paisagens de terra e de mar. Ele terá livros sobre a construção de casas e palácios; plane­jará salas e inventará cidades...

 Acho que devemos dar a ele um teatrinho.

 E depois tem a música!

Redwood pensou bem nisso e concluiu que seu filho poderia começar melhor com uma harmônica de som puro e uma oitava, a qual se poderia depois ampliar.

—        Ele vai tocar isso primeiro, cantando a acompanhar-se, e a aprender as notas — disse — e depois...

Olhava fixamente o batente da janela acima e mediu com o olhar as dimensões da sala.

—        Terão de montar o piano dele aqui dentro — disse. — Tra-zê-lo em pedaços.

Mergulhou em suas preparações, uma figurinha escura pensa­tiva. Se vocês pudessem vê-lo ali, ter-lhes-ia parecido um homem de vinte centímetros entre objetos comuns de quarto de criança. Um grande tapete — na verdade um tapete turco — de doze me­tros quadrados, no qual o jovem Redwood logo estaria engatinhan­do, estendia-se até o radiador elétrico protegido por grades que iria aquecer toda a peça. Um homem de Cossar pendurava-se em meio aos andaimes acima, pregando a grande moldura que iria abrigar os quadros transitórios. Um bloco de mataborrão para espécimens de plantas, do tamanho de uma porta de casa, estava recostado à pare­de, e dele projetava-se um gigantesco talo, a borda de uma folha ou algo assim, e uma flor de morrião branco, tudo daquele tamanho gigantesco que em breve tornaria Urshot famosa em todo o mundo botânico...

Uma espécie de incredulidade abateu-se sobre Redwood, pa­rado em meio a todas aquelas coisas.

—        Se isso está realmente prosseguindo... — disse, olhando fixamente o teto distante.

De longe, chegou-lhe um som como o de um touro Mafficking, quase como em resposta.

—        Está prosseguindo sem dúvida — disse. — Evidentemente.

Seguiram-se sonoras pancadas sobre uma mesa, e depois um imenso berro:

 Gulu! Buzu! Bzz.. .

 O melhor que posso fazer — disse Redwood, seguindo alguma linha divergente  de pensamento — é dar-lhe lições eu mesmo.

As batidas tornaram-se mais insistentes. Por um momento, pareceu a Redwood que haviam pegado o ritmo do pulsar de uma máquina, a máquina que teria imaginado para o grande trem de acontecimentos que se abatia sobre ele. Depois, uma série decres­cente de batidas mais nítidas desfez esse efeito, e repetiu-se.

—        Entre — ele gritou, percebendo que alguém batia, e a porta, suficientemente grande para uma catedral, abriu-se lentamente um pouco. O guincho novo deixou de ranger e Bensington apareceu na abertura, radiante benevolamente sob a destacada calvície e por so­bre os óculos.

— Aventurei-me a vir vê-lo — sussurrou de uma maneira confidencial e furtiva.

— Entre - disse Redwood, e ele entrou, fechando a porta atrás de si.

Adiantou-se alguns passos com as mãos às costas, e espiou co­mo um pássaro as dimensões à sua volta. Esfregou o queixo pen­sativamente.

—        Toda vez que entro aqui — disse, com um tom abafado na voz — parece-me... grande.

— Sim — disse Redwood, inspecionando tudo de novo tam­bém, como numa tentativa de manter a impressão visível. — Sim. Eles também vão ser grandes, você sabe.

—        Eu sei — disse Bensington, com um tom que era quase de medo. — Muito grandes.

Entreolharam-se quase, por assim dizer, apreensivos.

—        Muito grandes mesmo — disse Bensington, esfregando o pau do nariz, e olhando duvidosamente Redwood, em busca de uma expressão confirmatória. — Todos eles, você sabe... terrivelmente grandes. Parece-me que não sou capaz de imaginar... mesmo com isso... até onde vão ser grandes.

 

A MINIMIFICÊNCIA DO SR. BENSINGTON

Foi quando a Real Comissão sobre o Comidão preparava seu relatório que a Herakleoforbia começou realmente a demonstrar sua capacidade de vazamento. E a prematuridade desse segundo surto foi tanto mais infortunada, ao menos na opinião de Cossar, quan­to o rascunho do relatório, que ainda existe, mostra que a Comis­são já tinha, sob a tutela daquele habilíssimo membro, o Dr. Stephen Winkles (F. R. S., M. D., F. R. C. P., D. Sc, J. P., D. L., etc), decidido que eram impossíveis os vazamentos acidentais, e preparava-se para recomendar que a entrega do preparo do Comi­dão a uma comissão qualificada (sobretudo Winkles), com total controle sobre sua venda, era o bastante para satisfazer a todas as objeções razoáveis à sua livre difusão. Essa comissão teria o mono­pólio absoluto. E deve-se sem dúvida considerar como parte da ironia da vida o fato de que a primeira e mais alarmante dessa se­gunda série de vazamentos ocorreu a cinquenta metros de uma pe­quena cabana em Keston, ocupada durante os meses de verão pelo Dr. Winkles.

Pouca dúvida pode haver agora de que a recusa de Redwood a revelar a Winkles a composição da Herakleoforbia IV despertara neste cavalheiro uma nova e intensa atração para a química analítica. Ele não era um manipulador especializado, e por isso, prova­velmente, julgou conveniente realizar seu trabalho não nos labora­tórios excelentemente equipados que tinha à sua disposição em Lon­dres, mas sem consultar ninguém, e quase numa atmosfera de segredo, num precário laboratoriozinho de jardim no estabelecimen­to de Keston. Parece não ter demonstrado nem grande energia nem grande capacidade em sua busca; na verdade, presume-se que aban­donou a pesquisa após trabalhar nela intermitentemente, por cerca de um mês.

Esse laboratório de jardim, em que se fez o trabalho, tinha um equipamento muito rudimentar, formado por uma torneira com água corrente, que escoava por um cano que ia dar num poço sob um amieiro, num canto isolado da terra devoluta pouco além da sebe do jardim. O cano estava rachado, e o resíduo do Alimento dos Deuses escapou pela rachadura para uma pequena poça entre as moitas, bem a tempo para o despertar da primavera.

Tudo fervilhava de vida naquele sujo cantinho: ovas de rãs por toda parte, tremulando com girinos que acabavam de estourar seus gelatinosos invólucros; pequenos caracóis que se arrastavam para a vida, e sob a verde casca dos talos dos juncos as larvas de um grande besouro d'água lutavam para deixar os ovos. Duvido que o leitor conheça a larva do besouro chamado (não sei por que) Dytiscus. É uma coisa articulada e de aparência estranha, muito musculosa e rápida em seus movimentos, e dada a nadar com a ca­beça dentro d'água e a cauda para fora; é do tamanho da junta de um polegar humano, ou maior — uns cinco centímetros, quer di­zer, para aqueles que não comeram o Alimento — e tem duas afia­das mandíbulas que se fecham na frente da cabeça, mandíbulas tu­bulares, com pontas agudas, através das quais suga o sangue de suas vítimas.

Os primeiros a conseguirem os grãos do Alimento foram os girinos e as lesmas d'água; os girinozinhos em particular, pois gos­tavam da coisa, lançaram-se a ela com avidez. Mas mal um deles começou a crescer e alcançar uma posição conspícua no mundo dos girinos, e a experimentar um ou outro irmão menor como comple­mento de sua dieta vegetariana, quando nhac!, uma das larvas de besouro enfiou-lhe os ferrões no coração, e naquela estria vermelha a Herakleoforbia IV, em estado de solução, passou para o corpo de outro cliente. A única coisa que tinha uma chance com aqueles monstros de conseguir uma parte do Alimento eram os juncos, o es­corregadio limo verde na água e a vegetação na lama do fundo. Uma limpeza do estúdio acabou levando um novo fluxo do Alimento para o poço, fê-lo transbordar e levou toda aquela sinistra expansão da luta pela vida ao poço vizinho à sombra do amieiro.

A primeira pessoa a descobrir o que se passava foi um certo Sr. Lukey Carrington, um professor especial de ciência pertencente ao Conselho Educacional de Londres, e, nos momentos de folga, especialista em algas de água doce, um homem que, certamente, não deve ser invejado por sua descoberta. Ele fora passar o dia em Keston Common, a fim de encher alguns tubos de espécimens para posterior exame, e chegou, com mais ou menos uma dúzia de tu­bos arrolhados chocalhando levemente nos bolsos, à duna arenosa; e desceu ao poço, com uma bengala na mão. Um rapaz do jardim, parado no alto da escada da cozinha, aparando a sebe do Dr. Winkles, viu-o naquele recanto pouco frequentado, e achou-o, a ele e à sua ocupação bastante inexplicáveis e interessantes para observá-lo com muita atenção.

Viu o Sr. Carrington baixar-se à beira do poço, apoiando a mão no tronco do velho amieiro, e olhar a água, mas certamente não pôde apreciar a surpresa e prazer com que o homem contem­plou as grandes e desconhecidas bolhas e fios do limo algáico no fundo. Não se viam girinos — já tinham sido todos mortos a essa altura — e parecia que o Sr. Carrington nada vira de incomum além da vegetação excessiva. Arregaçou a manga até o cotovelo, curvou-se para a frente e mergulhou fundo o braço para pegar um espécimen. A mão tateante desceu. No mesmo instante reluziu na sombra debaixo das raízes da árvore uma coisa...

Zaz! A coisa enterrara suas presas no braço dele — uma forma bizarra, de um palmo ou mais, parda e cheia de gomos como um escorpião.

A feia aparição, e a penetrante e surpreendente dor da mordida, foram demais para o equilíbrio do Sr. Carrington. Ele sentiu que caía e gritou bem alto. E tombou, de cara para baixo, chuá!, dentro do poço.

O rapaz viu-o desaparecer, e ouviu o espadanar da luta dentro d'água. O infeliz tornou a aparecer no campo de visão do rapaz, sem chapéu e encharcado, e berrando!

Nunca antes o rapaz ouvira berros de um homem.

O espantoso estranho parecia tentar arrancar alguma coisa do lado do rosto, onde se viam estrias de sangue. Abriu os braços emdesespero, saltou no ar como uma criatura frenética, correu violen­tamente dez ou doze metros e caiu e rolou no chão, sumindo das vistas do rapaz.

Num átimo, o jovem já descera da escada e atravessara a sebe — por sorte com a tesoura de podar ainda na mão. Ao varar as moitas de tojo, diz hoje que ainda estava meio inclinado a voltar, temendo ver-se às voltas com um lunático, mas a posse da tesoura deu-lhe coragem.

—        Eu podia vazar os olhos dele — explicou — de qualquer modo.

Assim que o Dr. Carrington o avistou, seu comportamento tornou-se logo o de uma pessoa sã mas desesperada. Levantou-se com esforço, tropeçou, tornou a ficar de pé e foi ao encontro do rapaz.

—        Veja! — gritou. — Não posso me livrar delas!

E com uma tontura de horror, o rapaz viu que, agarradas à face do Sr. Carrington, ao seu braço nu e à sua coxa, e açoitando-o furiosamente com seus esguios e musculosos corpos, três daquelas horríveis larvas enterravam fundo as grandes mandíbulas em sua carne e sugavam-lhe a vida. Elas demonstravam uma firmeza de buldogues, e os esforços do Sr. Carrington para arrancar o mons­tro do rosto haviam servido apenas para lacerar a carne à qual o bicho se grudava, e encharcar o rosto, o pescoço e o paletó de um vermelho vivo.

— Vou cortar ele — gritou o rapaz. — Aguenta aí, senhor.

E com o ímpeto de sua idade em tais casos, decepou uma a uma as cabeças das atacantes do Sr. Carrington.

—        Opa! — dizia o rapaz, fazendo uma careta à medida que cada uma caía à sua frente. Mesmo então, tão forte e determinada era o poder delas, as cabeças decepadas ainda ficaram algum tem­po grudadas, ainda ferozmente mordendo e sugando, o sangue es­correndo por trás dos pescoços. Mas o rapaz acabou com isso, com mais alguns golpes da tesoura — um dos quais atingiu o Sr. Car­rington.

— Eu não podia me livrar delas — repetia o Sr. Carrington, e ali ficou por algum tempo, oscilando e sangrando profusamente. Passava as mãos trêmulas nos ferimentos e examinava o resultado desse exame em suas palmas. Depois dobrou os joelhos e caiu de cabeça, desmaiado, aos pés do rapaz, entre os corpos ainda saltitantes de suas inimigas derrotadas. Por muita sorte, o rapaz não pensou em jogar-lhe água no rosto — pois havia ainda mais horro­res sob as raízes do amieiro —- e em vez disso voltou, passando pelo poço, e foi ao jardim com a intenção de pedir ajuda. E lá en­controu o jardineiro-cocheiro e contou-lhe o caso.

Quando retornaram ao Sr. Carrington, encontraram-no senta­do, zonzo e fraco, mas em condições de avisá-los sobre o perigo no poço.

 

Essas foram as circunstâncias que deram ao mundo o primeiro aviso de que o Alimento estava novamente à solta. Dentro de mais uma semana, Keston Common achava-se em plena atividade como o que os naturalistas chamam de centro de disseminação. Dessa vez não houve ratos nem vespas, mas pelo menos três aranhas d'água, várias larvas de libélulas que terminaram desabrochando deslum­brando toda Kent com seus adejantes corpos cor de safira, e um limo sujo e gelatinoso que inchava pelas bordas do poço e enviava suas pegajosas massas verdes até a metade do caminho do jardim da casa do Dr. Winkles. E teve início um crescimento de juncos, cavalinhas e outras vegetações, que só acabaram com a secagem do poço.

Logo tornou-se claro para a opinião pública que dessa vez não havia simplesmente um centro de disseminação, mas vários. Havia um em Ealing, disso não há dúvida hoje, e de lá vinha a praga de moscas e aranhas vermelhas; um em Sunbury, que produzia ferozes e enormes enguias, que vinham para terra e devoravam ovelhas; e um em Bloomsbury, que deu ao mundo uma nova raça de baratas de uma espécie terrível —- numa velha casa em Bloomsbury, muito habitada por coisas indesejáveis. De repente, o mundo viu-se diante das experiências de Hickleybrow, tudo de novo, com todo tipo de monstros conhecidos em vez das galinhas, ratos e vespas gigantes. Cada centro explodia com suas próprias fauna e flora característi­cas locais...

Sabemos hoje que todos, nesses centros, se correspondiam com um dos pacientes do Dr. Winkles, mas isso não ficou claro, de mo­do algum, na época. O Dr. Winkles foi a última pessoa a incorrer em algum ódio na questão. Houve, muito naturalmente, pânico, e uma apaixonada indignação; mas era uma indignação não contra o Dr. Winkles, e sim contra o Alimento, e não tanto contra o Ali­mento quanto contra o infeliz Bensington, que desde o primeiro instante a imaginação popular insistira em encarar como única pes­soa responsável por aquela nova coisa.

A tentativa de linchá-lo que se seguiu é apenas um desses acontecimentos explosivos que avultam enormemente na história, quando não passam, na realidade, de ocorrências ao menos significativas.

A história da explosão é um mistério. O núcleo do motim certamente veio de um comício anti-Comidão em Hyde Park, organizado por extremistas do grupo de Caterham, mas parece que nin­guém na verdade o propôs, ninguém insinuou sequer o ultraje a que tantos assistiram. Trata-se de um problema para M. Gustave le Bon, um mistério na psicologia das massas. Permanece o fato de que, por volta das três horas da tarde de domingo, uma multidão notavelmente grande e apavorante de Londres, inteiramente des­controlada, rolou pela Thursday Street abaixo na firme intenção de dar a Bensington uma morte exemplar, que servisse de advertência a todos os pesquisadores científicos, e chegou mais perto da reali­zação de seu objetivo do que qualquer multidão já chegou desde que se derrubaram as balaustradas de Hyde Park nos tempos vito­rianos. A multidão chegou tão perto de seu objetivo, na verdade, que por uma hora ou mais uma palavra teria selado o destino do infeliz cavalheiro.

O primeiro sinal que ele teve da coisa foi o barulho do povo lá fora. Dirigiu-se à janela e olhou, sem nada compreender do que era iminente. Durante um minuto, talvez, viu-os fervilhando em torno da entrada, afastando uma dezena de impotentes policiais que lhes barravam o caminho, antes de compreender plenamente sua importância no caso. Ocorreu-lhe num clarão que aquela multidão trovejante e oscilante vinha atrás dele. Achava-se inteiramente só no apartamento — por sorte, talvez — pois a prima Jane fora a Ealing tomar chá com um parente do lado materno, e ele não tinha mais idéia de como conduzir-se em tais circunstâncias do que da etiqueta no Dia do Julgamento.  Ainda corria de um lado para outro do apartamento, perguntando aos móveis o que fazer, girando chaves em fechaduras e tornando a abri-las, dando corridas a por­tas e janelas e ao quarto — quando o porteiro veio vê-lo. 

—        Não tem um momento a perder, senhor — disse. — Eles conseguiu o número do senhor no quadro do saguão! Estão subin­do direto pra cá!

Fez o Sr. Bensington correr pelo corredor, que já ecoava com o crescente tumulto na grande escadaria, fechou a porta atrás e introduziu-o no apartamento defronte com sua duplicata da chave.

— É a única chance da gente — disse.

Escancarou uma janela, que se abria para um poço de venti­lação e mostrou uns ganchos de ferro na parede que formavam a mais rude e perigosa escada, para servir como saída de incêndio dos apartamentos superiores. Empurrou o Sr. Bensington pela ja­nela, mostrou-lhe como agarrar-se, e seguiu-o escada acima, aguilhoando-o e batendo-lhe nas pernas com o molho de chaves quando ele desistia de subir. Parecia às vezes a Bensington que teria de subir aquela escada vertical para sempre. Acima, o parapeito parecia inacessivelmente distante, mais de um quilômetro talvez; abaixo... Não queria pensar no que havia abaixo.

— Firme! — gritou o porteiro, e agarrou-lhe o tornozelo. Era horrível ter o tornozelo agarrado daquele jeito, e o Sr. Bensington grudou-se com mais força ao gancho de ferro acima, como quem se afoga, e deu um fraco guincho de terror.

Percebeu que o porteiro quebrara uma janela, e depois pare­ceu saltar uma grande distância para o lado, e ouviu o barulho de uma guilhotina de janela deslizando no trilho. O homem berrava alguma coisa.

O Sr. Bensington volveu cuidadosamente a cabeça até poder vê-lo.

— Desça seis degraus — ordenou o porteiro.

Toda aquela movimentação parecia muito idiota, mas com muito, muito cuidado, o Sr. Bensington baixou um pé.

—        Não me puxe! — gritou, quando o porteiro se preparava para ajudá-lo da janela aberta.

Parecia-lhe que alcançar a janela, da escada, seria um feito bastante respeitável para uma raposa voadora, e foi mais com a idéiade um decente suicídio do que com qualquer esperança de realizá-lo que deu finalmente o passo, e o porteiro, muito sem cerimônia, puxou-o para dentro.

 Precisa ficar aqui — disse o porteiro. — Minhas chaves não serve aqui. É uma fechadura americana. Vou sair e bater a porta atrás de mim e ver se dou com o servente deste andar. O senhor tem de ficar trancado. É a multidão mais apavorante que eu já vi. Se pelo menos eles pensar que o senhor saiu, quem sabe não se contenta em quebrar suas coisas?...

 O indicador na porta diz que estou  em casa — disse Bensington.

 O diabo que diz! Bem, de qualquer modo, é melhor eles não me encontrar. ..

Desapareceu com uma batida da porta.

Bensington ficou novamente entregue à sua própria iniciativa.

Ela o levou para baixo da cama.

E ali ele acabou sendo encontrado por Cossar.

Bensington estava quase em coma, de terror, quando foi encontrado, pois Cossar arrombara a porta com o ombro, saltando contra ela do outro lado do corredor.

—        Saia daí, Bensington — ele disse. — Está tudo bem. Sou eu. Precisamos sair disso. Estão ateando fogo no prédio. Os portei­ros estão fugindo. Os criados se foram. Foi uma sorte eu pegar o homem que sabia onde você estava. Veja isso!

Bensington, espiando de debaixo da cama, tomou conhecimen­to de umas roupas inexplicáveis no braço de Cossar, e, vejam só!, uma touca negra na mão.

 Estão vasculhando tudo — disse Cossar. — Se não atea­rem fogo ao prédio, virão aqui. As tropas talvez não cheguem em menos de uma hora. Na multidão, cinquenta por cento são malfeitores, e quanto mais mobiliados os apartamentos em que entrarem, mais gostarão. Obviamente... Pretendem fazer um saque. Ponha essa saia e essa touca, Bensington, e saia comigo.

 Quer dizer?... — começou Bensington, pondo a cabeça para fora, como uma tartaruga.

 Quero dizer que você vai pô-las e sair! Obviamente! — E com súbita veemência arrastou Bensington debaixo da cama e começou a vesti-lo para sua nova personificação de idosa mulher do povo.

Arregaçou as calças dele e fez com que descalçasse os chinelos, tirou-lhe o colarinho, o paletó e o colete, enfiou-lhe uma saia negra pela cabeça e pôs-lhe um corpete de flanela vermelha e um casaco por cima. Fê-lo tirar os óculos demasiado característicos e meteu-lhe a touca na cabeça.

—        Você podia ter nascido uma velha — disse, enquanto amarrava os laços.

Depois vieram as botinas de elástico nos lados — um terrível aperto para os calos — e o xale, e o disfarce estava completo.

—        Ande de um lado para outro — disse Cossar, e Bensington obedeceu. — Vai dar.

E foi com esse disfarce, tropeçando desajeitadamente nas saias a que não estava acostumado, gritando femininas imprecações con­tra si mesmo num estrambótico falsete para sustentar o papel, e contra a multidão uivante que queria linchá-lo, que o descobridor original da Herakleoforbia IV desceu o corredor de Chesterfield Mansions, misturou-se com a inflamada e indisciplinada multidão e desapareceu inteiramente do fio de acontecimentos que constituem a nossa história.

Nunca mais, após essa fuga, voltou a meter-se no estupendo desenvolvimento do Alimento dos Deuses, ele, que de todos fora o que mais fizera, para começar.

 

O homenzinho que deu início a essa coisa toda sai da história, e depois de algum tempo deixou também o mundo das ativi-dades significativas. Mas como iniciou a coisa toda, parece justo dar à sua saída uma página intercalar de atenção. Pode-se imagi­ná-lo em seus últimos dias como Turnbridge Wells o conheceu. Pois foi em Turnbridge Wells que reapareceu, após um temporário ano­nimato, assim que compreendeu plenamente como fora transitória, inteiramente excepcional e sem sentido aquela fúria da massa. Reapareceu debaixo da asa da prima Jane, tratando-se de choque nervoso e abstendo-se de qualquer outro interesse; e totalmente indi­ferente, segundo parecia, às batalhas que se travavam então sobre os novos centros de disseminação, e sobre os Bebês do Alimento.

Tomou aposentos no Hotel Hidroterapêutico de Mount Glory, onde existem instalações bastante extraordinárias para banhos; banhos carbonados, banhos creosotados, tratamentos galvânico e farádico, massagem, banhos de pinho, banhos de amido e cicuta, banhos de rádio, banhos de luz, banhos de calor, banho de farelo e agulhas, banhos de alcatrão, e todos os tipos de banhos; e dedi­cou o espírito a esse sistema de tratamento curativo, que ainda era imperfeito quando ele morreu. Às vezes saía num veículo de alu­guel, com um casaco de gola de foca, e às vezes, quando os pés lhe permitiam, caminhava até as Pantiles, e ali bebericava água calibeada sob o olhar da prima Jane.

Os ombros curvados, a cor rosada, os óculos reluzentes tor­naram-se uma "característica" de Turnbridge Wells. Ninguém se mostrava nem um pouco rude com ele, e na verdade o lugar e o hotel pareciam muito contentes por terem a distinção de sua pre­sença. Nada poderia roubar-lhe essa distinção agora. E embora ele preferisse não acompanhar o desenvolvimento de sua grande invenção nos jornais diários, mesmo assim, quando atravessava o sa­guão do hotel ou descia as Pantiles e ouvia o sussurro "Lá está ele! É ele!", não era aborrecimento que lhe amaciava a boca e bri­lhava por um momento em seus olhos.

Aquela figurinha, aquela miúda figurinha, lançara o Alimen­to dos Deuses ao mundo! Não se sabe o que é mais espantoso: a grandeza ou a pequenez desses homens científicos e filosóficos. Aí o vêem nas Pantiles, no casaco com gola de pele. Parado sob a vi­trina de louça onde a primavera brota, segura e beberica o copo de água calibeada. Tem um olho fixo por cima do aro dourado, com uma expressão de inescrutável severidade, na prima Jane.

— Hum! — diz, e beberica.

Assim marcamos nossa recordação, assim focalizamos e fotografamos esse nosso grande descobridor pela última vez, e deixa­mo-lo, um simples ponto em nosso primeiro plano, e passamos ao quadro maior que se desenvolveu à sua volta, à história de seuAlimento, de como as Crianças Gigantes, espalhadas por toda parte, cresceram dia a dia num mundo demasiado pequeno para elas, e de como a rede de leis e convenções do Comidão, que a Comissão do Comidão tecia já então, se estreitou cada vez mais em volta delas, a cada ano de seu crescimento.   Até...

 

O ALIMENTO NA ALDEIA

A CHEGADA DO ALIMENTO

Nosso tema, que começou tão compactamente no gabinete do Sr, Bensington, já se espalhou e ramificou para todos os lados, e daqui para a frente nossa história é uma história de disseminação. Acompanhar ainda o Alimento dos Deuses é localizar as rami­ficações de uma árvore em perpétua ramificação; em pouco tempo, num quarto de vida, o Alimento negaceou e expandiu-se a partir de sua fonte original, na fazendinha perto de Hickleybrow, espa­lhando-se, ele, a história e a sombra de seu poder, por todo o mundo. Muito rapidamente, transpôs as fronteiras da Inglaterra. Em breve, na América, em todo o continente europeu, no Japão, na Austrália, e afinal em todo o mundo, a coisa prosseguia em direção ao seu objetivo estabelecido. Agia sempre devagar, por vias indiretas e enfrentado resistência. Era o grandismo insurgente. Apesar do preconceito, apesar da lei e da regulamentação, apesar de todo o obstinado conservadorismo que forma a base da ordem formal da humanidade, o Alimento dos Deuses, uma vez posto em andamento, prosseguiu em sua marcha sutil e invencível.

Os Filhos do Alimento cresciam sem parar durante todos esses anos; era o fato fundamental da época. Mas são os vazamentos que fazem a história. As crianças que o tinham comido cresceram, e em breve havia mais crianças crescendo; e nem todas as melhores intenções do mundo conseguiram deter outros vazamentos e mais outros. O Alimento insistia em escapar com a pertinácia de uma coisa viva.  A farinha tratada com a substância desfazia-se com otempo seco, quase intencionalmente, num pó impalpável, que se levantava e viajava na mais leve brisa. Ora era um novo inseto que abria caminho para um temporário e fatal desenvolvimento, ora um novo surto que brotava dos esgotos, de ratos e outras pestes que tais. Durante alguns dias, a aldeia de Panbourne, em Berkshi­re, lutou contra formigas gigantes. Três homens foram mordidos e morreram. Havia pânico, havia luta, e o mal que despontava era novamente reprimido, sempre deixando algo atrás, nas coisas mais obscuras da vida, transformado para sempre. Depois mais outro surto agudo e surpreendente, um rápido crescimento de matos monstruosos, uma disseminação ao acaso pelo mundo dos cardos, das baratas, que os homens combatiam com espingardas, ou uma praga de moscas poderosas.

Houve algumas lutas estranhas e desesperadas em lugares obscuros.  O Alimento gerou heróis da causa da pequenez...

E os homens absorviam tais acontecimentos em suas vidas, e enfrentavam-nos com os expedientes do momento, e diziam-se uns aos outros que não havia "mudança alguma na ordem essencial das coisas". Após o primeiro grande pânico, Caterham, apesar de seu poder de eloquência, tornou-se uma figura secundária no mun­do político, ficando nas mentes humanas como um expoente de uma opinião extremada.

Só muito lentamente ele conseguiu abrir caminho para uma posição central nos assuntos públicos.

— Não houve mudança alguma na ordem essencial das coisas —o eminente líder do pensamento moderno, Dr. Winkles, era bastante claro sobre isso — e os expoentes do que se chamava naquele tempo de Liberalismo Progressista tornaram-se muito sentimentais sobre a insinceridade essencial de seu progresso. Seus sonhos pare­ciam tratar inteiramente de pequenos países, pequenos idiomas, pe­quenas famílias, cada uma auto-sustentada em sua fazendinha. Criou-se a moda do pequeno e arrumado. Ser grande era ser "vul­gar", e gracioso, arrumado, mignon, miniatura "miudamente per­feito", tornaram-se as palavras-chave da aprovação crítica...

Enquanto isso, discretamente, sem pressa como são as crianças, os Filhos do Alimento, crescendo num mundo que se transformava para recebê-los, ganhavam força, estatura e conhecimento, torna­vam-se individuais e com propósitos próprios, ascendiam lentamente em direção às dimensões de seu destino. Acabaram parecendo parte do mundo, e as pessoas perguntavam-se como eram as coisas antes deles. Chegavam aos ouvidos dos homens histórias das coisas que os meninos gigantes podiam fazer, e eles diziam: "Maravilho­so!" — sem uma centelha de espanto. Os jornais populares fala­vam dos três filhos de Cossar, e contavam que as espantosas crian­ças erguiam grandes canhões, lançavam massas de ferro a centenas de metros e saltavam seis metros. Dizia-se que estavam cavando um poço mais profundo que qualquer poço ou mina já feitos por mãos humanas, em busca, dizia-se, de tesouros escondidos na Terra desde o seu início.

Essas crianças, diziam as revistas populares, arrasarão montanhas, estenderão pontes sobre os mares, farão uma colmeia de túneis sob a terra. "Maravilhoso!", dizia a gentinha. "Não é? Que monte de vantagens a gente vai ter!" E prosseguiam com suas vidas como se não houvesse um Alimento dos Deuses na Terra. E na ver­dade aquelas coisas eram apenas os primeiros indícios e promessas dos poderes dos Filhos do Alimento. Tratava-se ainda de meras brin­cadeiras para eles, nada mais que o primeiro emprego de uma força na qual não surgira qualquer propósito. Eles próprios não sabiam o que eram. Eram crianças, crianças crescendo lentamente, de uma nova raça. A força gigante crescia dia a dia — mas a vontade gi­gante ainda precisava transformar-se em propósito e meta.

Observando-os numa curta perspectiva de tempo, esses anos de transição têm a aparência de uma única ocorrência consecutiva; mas na verdade ninguém viu a aproximação do grandismo no mundo, como ninguém em todo o mundo viu, senão séculos depois, o Declínio e Queda de Roma. Os que viveram essa época achavam-se demasiado mergulhados nos acontecimentos para vê-los em con­junto como uma única coisa. Pareceu mesmo a homens sábios que o Alimento dava apenas ao mundo uma safra de irrelevâncias incontroláveis e sem relação, que talvez agitassem e perturbassem da fato, mas nada mais podia fazer à ordem e ao tecido estabelecidos, da humanidade.

Para um observador, pelo menos, a coisa mais maravilhosa em todo aquele período de tensão crescente é a invencível inércia da grande massa do povo, sua quieta persistência em tudo que ignorasse as enormes presenças, as promessas de coisas ainda mais enormes, que cresciam entre eles. Do mesmo modo como muitos rios são mais lisos, parecem mais tranquilos, correm fundos e fortes, na beira mesma da catarata, assim tudo que é mais conservador no homem parecia assentar-se quietamente em serena ascendência na­queles últimos dias. A reação tornou-se popular, houve rumores sobre a falência da ciência, a morte do progresso, o advento dos mandarins, rumores de tais coisas em meio aos passos ecoantes dos Filhos do Alimento. As espalhafatosas e inúteis revoluções de an­tigamente, aquela imensa multidão de idiotas caçando algum mo-narquinha idiota e outros que tais, haviam de fato morrido e desa­parecido; mas a transformação não morrera. Apenas se transfor­mara. O novo vinha à sua própria moda, e além da compreensão comum do mundo.

Contar plenamente a sua vinda seria escrever uma grande his­tória, mas por toda parte havia uma cadeia de acontecimentos pa­ralelos. Portanto, contar como foi a sua vinda num lugar é contar alguma coisa do todo. Aconteceu que uma semente perdida da Imensidão caiu na bela aldeiazinha de Cheasing Eyebright, em Kent, e pode-se tentar contar a história de sua estranha germina­ção ali, e da trágica futilidade que se seguiu — seguindo-se um fio, por assim dizer, para mostrar a dirsção na qual todo o grande tecido se desenrolou da bobina do Tempo.

 

Cheasing Eyebright tinha, evidentemente, um vigário. Há vi­gários e vigários, e de todos o que eu gosto menos é o vigário ino­vador, o reacionário profissional, progressista e sarapintado. Mas o Vigário de Cheasing era um dos menos inovadores, um homenzinho muito digno, gorducho, maduro e conservador. Vale a pena recuar um pouco em nossa história para falar dele. O homem combinava com a sua aldeia, e pode-se imaginá-los melhor juntos como se apresentavam, no fim de tarde em que a Sra. Skinner — devem lembrar-se de sua fuga! — trouxe o Alimento consigo, sem o suspeitar, para aquelas rústicas paragens.

A aldeia apresentava o seu melhor aspecto então, à luz do Ocidente. Estendia-se no vale abaixo dos bosques de samambaias de Hanger, um pontilhado de cabanas com telhados de palha e de ti­jolos vermelhos, cabanas com pórticos treliçados e fachadas com filas de pyracanthus, que se juntavam cada vez mais à medida que a estrada descia dos teixos ao lado da igreja em direção à ponte. O vicariato surgia não muito ostensivamente entre as árvores adian­te da taverna, um frontão de princípios da era georgiana patinado pelo tempo, e a torre da igreja erguia-se alegre na depressão feita pelo vale na linha de mortos. Um regato serpeante, uma tênue inter­mitência de azul-celeste e espuma, reluzia em meio a densas mar­gens de juncos e salgueiros soltos c pendentes, no centro de um si­nuoso pendão de prado. Toda a perspectiva tinha aquela aparên­cia curiosamente inglesa de maduro cultivo, aquele jeito de imó­vel conclusão que macaqueia a perfeição, ao calor do crepúsculo.

E também o Vigário parecia maduro. Habitual e essencialmen­te maduro, como se tivesse sido um bebe maduro, nascido numa classe madura — um maduro e suculento menininho. Podia-se ver, mesmo antes de ele o mencionar, que frequentara uma escola pública coberta de hera em seu anedotário, com magníficas tradições, associações aristocráticas e sem laboratórios de química, e passara de lá para uma venerável faculdade do mais maduro gótico. Tinha poucos livros com menos de mil anos; e desses, Yarrow e Ellis, e bons sermões pré-metodistas, constituíam a maior parte. Era um homem de altura moderada, parecendo um pouco baixo devido às suas dimensões equatoriais, e um rosto que fora maduro desde o início achava-se agora climatericamente maduro. Uma barba de Davi ocultava-lhe a redundância do queixo; não usava corrente de relógio por refinamento, e seus modestos hábitos clericais eram feitos por um alfinete do West End... Sentava-se com uma das mãos em cada perna, piscando para sua aldeia em beatífica apro­vação. Acenava-lhe a palma gorducha. Seu rebanho tornava a cantar.  Que mais podia alguém desejar?

— Achamo-nos num local privilegiado — dizia, pondo a coisa em termos moderados. — Estamos numa fortaleza das montanhas — acrescentava. E explicava a si mesmo, extensamente: — Estamos fora de tudo.

Pois estavam falando, ele e seu amigo, dos horrores da época, da democracia, da educação secular, dos arranha-céus, dos carros a motor, da invasão americana, da literatura barata popular e do desaparecimento de todo gosto.

—        Estamos fora disso tudo — repetiu, e no momento mesmo em que falou, os passos de alguém que se aproximava ofenderam-lhe os ouvidos, e ele se voltou e olhou-a.

Imaginem o trêmulo mas constante avanço da velha, a trouxa agarrada na mão nodosa, o nariz (que era toda a sua feição) franzido em esfalfada resolução. Vejam as papoulas acenando fatidi-camente sobre a touca, e as botinas de elástico brancas de poeira por baixo das parcas saias, apontando com irrevogável e lenta alter­nância para leste e oeste. Embaixo do braço, cativa inquieta, agita­va-se e escorregava uma sombrinha dificilmente valiosa. Que havia ali para dizer ao Vigário que aquela grotesca figura velha era — pelo menos no que se referia à aldeia — nada menos que o Frutífero Acaso e o Imprevisto, a Bruxa que os fracos chamam de Destino? Mas para nós, vocês entendem, não passava da Sra. Skinner.

Como estava muito carregada para fazer um cumprimento, ela fingiu não ver o Vigário e seu amigo, e passou a três metros dele, determinada, descendo em direção à aldeia. O Vigário observou sua lenta passagem em silêncio, amadurecendo uma observação enquan­to isso...

O incidente pareceu-lhe sem qualquer importância. As velhas aere perennius, carregavam trouxas desde que o mundo era mundo. Que diferença fizera isso?

—        Estamos fora disso tudo — disse o Vigário. — Vivemos numa atmosfera de coisas simples e permanentes, nascimento e la­buta, simples tempo de plantar e simples tempo de colher.  O baru­lho deixa-nos de lado. — Era sempre grande quanto ao que chama­va de coisas permanentes. — As coisas mudam — dizia — mas a humanidade... aere perennius.

Assim era o Vigário. Adorava uma citação clássica sutilmente inapropriada. Lá embaixo, a Sra. Skinner, deselegante mas resoluta, envolvia-se curiosamente com o pontilhão de Wilmerding.

 

Ninguém sabe o que o Vigário pensou das bufas-de-lobo gi­gantes.

Sem dúvida foi dos primeiros a descobri-las. Espalhavam-se a intervalos, acima e abaixo da estrada entre a chapada próxima e a extremidade na aldeia, um caminho que ele frequentava diariamen­te em sua ronda habitual. No todo, surgiram do princípio ao fim bem uns trinta desses fungos anormais. O Vigário parece tê-los olhado severamente, e mexido na maioria deles com sua bengala tima ou duas vezes. Uma vez tentou medir com os braços, mas o fungo estourou ao seu abraço.

Falou deles a várias pessoas, que disseram que eram "Maravilhosos!", e relatou pelo menos a sete pessoas a famosa história da laje que fora erguida do piso da adega por um surto de fungos embaixo. Procurou em seu Sowerby para ver se era Lycoperdon coelatum ou giganteum — como todos da sua espécie, desde que Gilbert White se tornara famoso, estudava botânica. Alimentava a teoria de que giganteum era um nome inadequado.

Não se sabe se ele observou que aquelas esferas brancas fica­vam na rota mesma que a velha do dia anterior havia trilhado, ou que a última da série brotava a menos de dez metros do portão da cabana dos Caddles. Se observou tais coisas, não fez qualquer ten­tativa de registrar sua observação. A observação que fazia de ques­tões botânicas era daquele tipo inferior que as pessoas chamam de "observação especializada" — busca-se uma certa coisa definida e ignora-se tudo mais. E nada fez para relacionar aquele fenóme­no com a notável expansão do bebê dos Caddles, que já se pro­cessava havia algumas semanas, na verdade desde que os pais tinham ido num domingo à tarde, um mês ou mais atrás, visitar a sogra e ouvir o Sr. Skinner (agora morto) gabar-se de sua criação de galinhas.

 

O crescimento das bufas-de-lobo, após a expansão do bebê dos Caddles, realmente devia ter aberto os olhos do Vigário.  O últimofato já lhe caíra diretamente nos braços, no batismo — quase asso­berbando-o...

A criança berrava com ensurdecedora violência quando a água fria que selava sua divina herança e seu direito ao nome de Alberi Edward Caddles caiu-lhe na testa. A mãe já não podia carregá-lo, e Caddles, realmente cambaleando, mas sorrindo em triunfo para os pais quantitativamente inferiores, levou-o de volta aos bancos ocupados pelo seu grupo.

— Nunca vi uma criança dessa! — disse o Vigário.

Essa fora a primeira insinuação pública de que o bebê dos Caddles, que iniciava sua carreira terrena com pouco menos de três quilos e meio, pretendia afinal ser um crédito para os pais. Muito em breve ficou claro que pretendia ser não apenas um crédito, mas uma glória. E dentro de um mês a glória deles brilhava tão inten­samente que chegava a ser inconveniente em relação a pessoas na posição dos Caddles.

O açougueiro pesou o bebê onze vezes. Era homem de poucas palavras, e logo se livrou deles. Da primeira vez, disse: "É um meninão"; da vez seguinte: "Por minha honra!"; na terceira: "Ora, hum!"; e daí por diante simplesmente soprava fortemente a cada vez, coçava a cabeça e olhava a sua balança com uma desconfiança sem precedentes. Todos vinham ver o Bebezão — assim era chamado por concordância universal — e a maioria dizia: "É um colosso". Quase todos observavam a ele: "Eles fizeram!" A Srta. Fletcher adianta­va-se e dizia que "jamais fizera", o que era inteiramente verdade.

Lady Wondershot, a tirana da aldeia, chegou no dia posterior à terceira pesagem, e inspecionou minuciosamente o fenômeno através de uns óculos que encheu a criança de uivante terror.

— É uma criança extraordinariamente grande! — ela disse à mãe, em voz alta e instrutiva, — Você deve tomar cuidados extraordinários com ela, Caddles. Certamente não vai continuar assim, alimentado em mamadeira, mas devemos fazer o que pudermos por ela.   Vou mandar-lhe mais flanelas.

Veio o médico medir a criança com uma fita, e anotou os números num caderninho, e o velho Sr. Drifthassock, que tinha uma fazenda em Up Marden, desviou um vendedor de esterco três quilômetros para vê-la. O vendedor perguntou a idade da criança três vezes, e acabou dizendo que estava assombrado.   Deixou quededuzissem como e porque estava assombrado; aparentemente, o ta­manho da criança assombrava-o. Também disse que ela devia ser inscrita numa exposição infantil. Durante todo o dia, fora do horário escolar, vinham meninos dizendo:

—        Por favor, Sra. Caddles, hum, podemos dar uma olhada em seu bebê, por favor, tia?

Até que a Sra. Caddles foi obrigada a pôr um fim àquilo. E em meio a todas essas cenas de pasmo surgia a Sra. Skinner, que ficava parada sorrindo, um pouco ao fundo, com as mãos nodosas nos cotovelos, sorrindo, sorrindo por baixo e em torno do nariz, com um sorriso de infinita profundidade.

—- Dá até à megera da avó uma aparência bastante agradá­vel — dizia Lady Wondershot. — Embora eu sinta muito que ela tenha voltado à aldeia.

Certamente, como acontece com quase todos os bebês das cabanas, o elemento caridoso já surgira, mas a criança logo deixou claro, com seus berros colossais, que no que se referia ao enchi­mento de sua mamadeira, não se chegara ainda nem perto do ne­cessário.

O bebê tinha direito a nove dias de admiração, e todos admi­ravam-se alegremente com seu espantoso crescimento duas vezes esse tempo ou mais. E então, vocês sabem, em vez de passar para um plano recuado e dar lugar a outras maravilhas, continuou a crescer mais que nunca.

Lady Wondershot ouvia a Sra. Greenfield, sua governanta, com infinito pasmo.

— Caddles está lá embaixo de novo. Não tem comida para a criança! Minha cara Greenfield, isso é impossível. A criatura come como um hipopótamo! Estou certa de que não pode ser verdade.

—        Eu sem dúvida espero que não estejam explorando a senhora, minha senhora — disse a Sra. Greenfield.

— É tão difícil saber com essa gente — disse Lady Won­dershot. — Agora eu quero, minha boa Greenfield, que você mesma vá lá esta tarde e veja... veja que ele tome sua mamadeira. Mesmo grande como é, não posso imaginar que precise de mais de três litros por dia.

—        Não tem nada  de precisar,  minha senhora — disse a Sra. Greenfield.

A mão de Lady Wondershot tremeu, com aquele tipo de emo­ção do caixa, aquela fúria de suspeita que se agita em todo verda­deiro aristocrata à idéia de que possivelmente as classes baixas -— mesquinhas como seus superiores — estão afinal — o que mais dói — marcando pontos.

Mas a Sra. Greenfield não pôde observar nenhum indício de peculato, e emitiu-se a ordem para um aumento diário na ração do bebê dos Caddles. Mal partira a primeira remessa, e Caddles já tornava a voltar à casa-grande em estado de abjeto vexame.

—        A gente toma o maior cuidado com ele, Sra. Greenfield, juro por Deus, mas ele estoura tudo! Os botão voou com tanta força, tia, que um quebrou um vidro da janela e outro me pegou bem aqui, tia.

Lady Wondershot, ao saber que a espantosa criança havia realmente estourado todas as suas lindas roupas de caridade, decidiu que precisava falar pessoalmente com Caddles. Ele se apresentou a ela com o cabelo molhado às pressas e alisado a mão, agarrando-se ao chapéu como se fosse um salva-vida, e tropeçou no tapete de pura angústia mental.

Lady Wondershot gostava de provocar Caddles. Era o seu ideal de pessoa da classe baixa, desonesto, fiel, abjeto, industrioso, e inconcebivelmente incapaz de responsabilidade. Disse-lhe que se tratava de um assunto sério, a maneira como seu filho ia indo.

—        É o apetite dele, minha senhoria — disse Caddles, com um tom crescente. —- Conter ele, minha senhoria?  A gente não pode, não.  Ele fica lá esperneando, berrando, agoniando.  Nós não tem coragem, minha senhoria.  Se tivesse, os vizinho entrava...

Lady Wondershot consultou o médico da paróquia.

 O que desejo saber — disse — é se é direito que essa crian­ça receba uma quantidade tão extraordinária de leite?

 A dieta adequada para uma criança dessa idade — disse o médico da paróquia — é de um a dois litros em cada vinte e quatro horas. Não vejo porque exijam da senhora que forneça mais. Se fornecer, é por sua própria generosidade.  Evidentemente, pode­mos tentar a quantidade legítima por alguns dias.  Mas a criança, tenho de admitir, parece por algum motivo ser fisiologicamente diferente.  Possivelmente, o que se chama um Mutante.  Um caso de hipertrofia geral.

 Não é justo para as outras crianças da paróquia — disse Lady Wondershot. — Estou certa de que vamos ter queixas se isso continuar assim.

 Não vejo como se esperar que alguém forneça mais que a quantidade reconhecida.   Podemos insistir em que a criança passe com isso, ou, se não quiser passar, mandá-la como um caso para a enfermaria.

 Suponho — disse Lady Wondershot, refletindo — que fora o tamanho e o apetite, você não acha mais nada anormal... nada monstruoso?

— Não. Não, não acho. Mas sem dúvida, se o crescimento continuar, encontraremos graves deficiências morais e intelectuais. Quase se pode profetizar isso com base na lei de Max Nordau. Um talentosíssimo e celebradíssimo filósofo, Lady Wondershot. Ele des­cobriu que o anormal é... anormal, uma descoberta valiosíssima, e que vale muito a pena ter em mente. Acho-a da máxima utilidade na prática. Quando encontro alguma coisa anormal, digo logo: "Isso é anormal". — Os olhos do médico tornaram-se profundos, a voz baixou, e suas maneiras beiraram a confidência íntima. Er­gueu rigidamente uma das mãos: — E trato-a dentro desse espírito — disse.

 

O Vigário muxoxeou para os componentes de seu desjejum — um dia depois da chegada da Sra. Skinner.   Tornou a muxoxear.

— Mas que é isso? — E assestou os óculos no jornal com um ar geral de protesto. — Vespas gigantes! Para onde está indo o mundo?... Jornalista americanos, suponho! Ao diabo com essas novidades! As groselhas gigantes já chegam para mim. Tolice! — continuou, e engoliu o café de vez, olhos grudados no jornal, estalando os lábios de incredulidade. — Bah! — exclamou, rejei­tando a insinuação inteiramente.

Mas no dia seguinte tinha mais. Quando se dirigiu ao seu passeio habitual, ainda muxoxeava com a história absurda que otal jornal queria fazê-lo acreditar. Vespas, vejam vocês... matando um cachorro! Incidentalmente, ao passar pelo local da primeira safra de bufas-de-lobo, observou que a relva crescia demasiado ali, mas não relacionou isso de modo algum com o assunto que o di­vertia.

—        Certamente teríamos sabido de alguma coisa — disse, — Whitstable não fica a mais de trinta quilômetros daqui.

Mais adiante, encontrou outra bufa-de-lobo, da segunda safra, erguendo-se como um ovo de roço em meio à grama anormalrnente endurecida.

A coisa ocorreu-lhe num clarão.

Não fez sua ronda habitual nessa manhã. Em vez disso, do­brou ao lado do segundo pontilhão e dirigiu-se à cabana dos Caddles.

—        Onde está esse bebé? — perguntou, e, ao vê-lo: — Deus do céu!

Subiu a aldeia abençoando o seu coração e encontrou o mé­dico que descia a passos largos.   Agarrou-lhe o braço.

—        Que significa isso? — perguntou. — Viu o jornal estes últimos dias?

O médico disse que vira.

— Bem, que é que há com aquela criança? Que é que está havendo com tudo, vespas, bufas-de-lobo, bebês, hem? Que é que os faz crescer tanto assim? Isso é a coisa mais inesperada. Em Kent também!  Se fosse na América, bem...

 É um pouco difícil dizer exatamente do que se trata — disse o médico. — Até onde consigo detectar os sintomas...

 Sim?

—        Trata-se de hipertrofia... hipertrofia geral.

— Hipertrofia?

 Sim.  Geral... que afeta as estruturas do corpo... todo o organismo. Posso dizer que em minha mente, aqui entre nós, estou  quase   convencido de  que  é   isso...   Mas  precisamos  ter cuidado.

 Ah — disse o Vigário, bastante aliviado por descobrir que o médico estava à altura da situação. — Mas como está se espalhando desse jeito, por toda parte?

 Isso aí — disse o médico — é difícil de dizer.

 Ushot.  Aqui.  É m caso bastante claro de disseminação.

 Sim - disse o médico. — Sim.  Acho que é.   Tem uma forte semelhança, de qualquer modo, com uma espécie de epidemia. Provavelmente hipertrofia epidêmica define o caso.

 Epidêmica! — disse o Vigário. — Não quer dizer que é contagioso?

O médico sorriu delicadamente e esfregou as mãos.

 Isso eu não saberia dizer.

 Mas!... — exclamou o Vigário, de olhos arregalados. — Se é transmissível... afeta... a nós!

Deu uma larga passada estrada acima e voltou-se.

—        Acabo de vir de lá — exclamou. — Não era melhor eu...? Vou  pra  casa   agora   mesmo  tomar  um  banho  e  fumigar  mi­nhas roupas.

O médico ficou olhando-o afastar-se por um momento, e depois deu meia-volta e dirigiu-se para a sua casa.. .

Mas a caminho reíletiu que a cidade já tinha um caso havia um mês, sem que ninguém contraísse a doença, e após uma pausa de hesitação decidiu ser tão corajoso quanto deve ser um médico e enfrentar o risco como um homem.

E na verdade foi bem aconselhado por esse último pensamento. Crescimento era a última coisa que poderia algum dia acontecer-lhe. Ele podia ter comido... e o Vigário também... Herakleoforbia às carradas. Pois o seu crescimento acabara, terminara para os dois cavalheiros, para sempre.

 

Foi um ou dois dias após essa conversa, ou seja, um ou dois dias após o incêndio da Fazenda Experimental, que Winkles foi ver Redwood e mostrou-lhe uma carta insultante. Tratava-se de uma carta anônima, e um autor devia respeitar os segredos de seu caráter. "O senhor simplesmente assume o crédito por um fenô­meno natural", dizia a carta, "e tenta promover-se com sua carta ao Times. O senhor e seu Comidão! Permita-me que lhe diga que esse seu alimento de nome absurdo tem apenas a mais acidental ligação com aquelas grandes vespas e ratos. A simples verdade é que existe uma epidemia de hipertrofia — hipertrofia contagiosa — que o senhor tem tanto poder de controlar quanto de controlar o sistema solar. A coisa é tão antiga quanto as montanhas. Houve hipertrofia na família de Anak. Inteiramente fora de seu alcance, em Cheasing Eyebright, existe atualmente um bebê..."

—        Uma letra trêmula, cheia de altos e baixos.  Um velho cavalheiro, aparentemente — disse Redwood. — Mas é estranho um bebê...

Leu mais algumas linhas e teve uma inspiração.

—        Por Júpiter! — disse. — É a minha sumida Sra. Skinner! Caiu sobre ela de repente na tarde do dia seguinte.

Ela se empenhava em colher cebolas na pequena horta diante da cabana da filha, quando o viu entrar pelo portão do jardim. Ficou por um instante "avexada", como dizem as pessoas da roça, depois cruzou os braços e, segurando defensivamente o pequeno molho de cebolas sob o cotovelo esquerdo, esperou que ele se apro­ximasse. Abriu e fechou a boca várias vezes; resmungou com o único dente que lhe restava, e a certa altura fez um súbito cum­primento, como o piscar de um arco voltaico.

 Achei que ia encontrá-la — disse Redwood.

 Eu achava que o senhor podia — ela disse, sem prazer.

 Onde está Skinner?

 

 Ele nunca escreveu pra mim, não, senhor, nem uma vez só, nem nunca chegou perto de mim desde que vim pra cá, senhor.

 Não sabe o que é feito dele?

 Como ele não escreveu, não sei, não, senhor — e deu um passo para a esquerda, com a idéia não muito decidida de barrar a Redwood a porta do celeiro.

— Ninguém sabe o que foi feito dele — disse Redwood.

— Eu acho que ele sabe, senhor — disse a Sra. Skinner.

— Mas não diz.

— Ele toda vida foi muito bom pra cuidar dele mesmo e deixar quem tava perto e gostava dele no aperto, aquele Skinner. Esperto que nem ele só — disse a Sra. Skinner.

—        Onde está a criança?  — perguntou  Redwood abruptamente.

Ela disse que não entendia.

—        A tal criança de que ouvi falar, a criança à qual você está dando nossa substância...  a criança que pesa quinze quilos.

As mãos da Sra. Skinner trabalhavam, e ela deixou cair o molho de cebolas.

—        De fato, senhor — protestou — mal sei do que o senhor tá falando.   Minha filha, senhor, a Sra. Caddles, tem um bebê, senhor. — E fez um agitado cumprimento e tentou parecer inocen­temente surpresa, inclinando o nariz para um lado.

— É melhor me deixar ver esse bebê, Sra. Skinner — disse Redwood.

A Sra. Skinner desmascarou um olho para ele ao seguir na frente em direção ao celeiro.

—        É claro, senhor, que podia ter um pouco numa latinha de Nicey que eu dei ao pai dele pra trazer da fazenda, ou talvez um pouco que eu trouxe por acaso comigo, por assim dizer. Fiz as malas naquela pressa toda...

— Hum! — disse Redwood, depois de brincar com o bebê por algum tempo. — Oom!

Disse à Sra. Caddles que o bebê era uma bela criança de fato, coisa que chegava bem à inteligência dela — e depois disso igno­rou-a completamente. Ela acabou deixando o celeiro — de pura insignificância.

 Agora que o fez começar, terá de continuar a dar-lhe, você sabe — disse à Sra. Skinner. Voltou-se para ela abruptamente. — Não o espalhe por aí desta vez — disse.

 Espalhar por aí, senhor?

 Oh! Você sabe.

Ela indicou que sabia através de gestos convulsivos.

—        Você não disse nada a essa gente daqui? Os pais, o senhor das terras e outros assim na casa-grande, o médico, ninguém?

A Sra. Skinner balançou a cabeça.

— Se eu fosse a senhora, não falaria — disse Redwood.

Foi até a porta do celeiro e examinou o mundo em volta. A porta do celeiro ficava entre a ponta da cabana e uns chiqueiros abandonados, e, através de um portão de cinco barras, via-se a es­trada. Além havia um alto muro de tijolos cheio de hera, goivos e coucelos, encimado por cacos de vidro. Além do canto do muro, uma ensolarada tabuleta entre galhos verdes e amarelos destacava-seem meio aos vivos tons das primeiras folhas mortas, e anunciava que "Os Invasores destes Bosques Serão Processados". A negra sombra de um buraco na sebe deixava à vista um trecho de arame farpado.

—        Hum! — disse Redwood, e depois, numa nota mais profunda: — Oom!

Ouviu-se um barulho de cascos de cavalos e depois um som de rodas, e os animais de Lady Wondershot apareceram. Ele marcou os rostos do cocheiro e do palafreneiro quando a equipagem se aproximou. O cocheiro era um belo espécimen, cheio e agradá­vel, e conduzia a carruagem com uma espécie de dignidade sacra­mental. Outros poderiam duvidar de suas vocações e posições no mundo, mas ele, pelo menos, estava seguro — conduzia a viatura de sua senhoria. O palafreneiro sentava-se ao seu lado de braços cruzados e um rosto cheio de certezas inflexíveis. Depois, tornou-se visível a própria grande dama, com um chapéu e uma mantilha desdenhosamente deselegantes, espiando tudo através de seus óculos. Duas jovens enfiavam os pescoços pelas janelas e olhavam também.

O Vigário, que passava do outro lado, tirou o chapéu de sua descuidada testa de Davi...

Redwood permaneceu de pé na entrada por um longo tempo, após a passagem da carruagem, as mãos cruzadas às costas. Olha­va a encosta verde-cinza da chapada e o céu coberto de nuvens, e voltava ao muro dos cacos de vidro. Voltou-se para as frias som­bras dentro do celeiro, e em meio às manchas e borrões de cores contemplou a criança gigante naquela penumbra rembrandtesca, nua, a não ser por uma fralda de flanela, sentada num enorme feixe de palha e brincando com os dedos dos pés.

—        Começo a ver o que fizemos — disse.

Ficou meditando, e o jovem Caddles, seu próprio filho e a ninhada de Cossar misturavam-se em sua meditação. De repente, deu uma risada.

—        Bom Deus! — disse, a algum pensamento passageiro.

Acabou despertando e falou à Sra. Skinner.

—        De qualquer modo, ele não deve ser torturado por uma interrupção no alimento,  isso, pelo menos, nós podemos evitar. Voumandar uma lata para a senhora a cada seis meses. Deve bastar-lhe, sem dúvida.

A Sra. Skinner resmungou alguma coisa sobre: "Se acha assim, senhor", e "Provavelmente foi metido na trouxa por engano... se bem que não tá fazendo nenhum mal pra ele", e assim, por meio de vários gestos trêmulos, indicou que entendia.

Assim, a criança continuou crescendo.

E crescendo.

— Na prática — disse Lady Wondershot — ele devorou todo bezerro da região. Se me vier qualquer outro desses desse tal Caddles...

 

Mas mesmo um lugar tão escondido como Cheasing Eyebright não podia apoiar-se muito tempo na teoria da hipertrofia — conta­giosa ou não — em vista do crescente zum-zum sobre o Alimento. Em pouco tempo, houve penosas explicações para a Sra. Skinner — explicações que a reduziram a mudos resmungos de seu único dente—           e finalmente ela foi obrigada a refugiar-se na convergência uni­versal da culpa na dignidade da viuvez inconsolável. Voltou os olhos — que obrigou a ficar lacrimosos — para a irada Lady da Mansão, e enxugou a espuma de sabão das mãos.

— Minha senhora esquece o que eu tou aguentando. — E deu continuação a esse tom de advertência com uma observação ligei­ramente desafiante: — É NELE, madama, que eu penso dia e noite.

—        Comprimiu os lábios e sua voz achatou-se e falhou: — É assim, madama. — E, tendo-se estabelecido nesse terreno, repetiu a afir­mação que sua senhoria recusara antes: — Eu não tinha mais idéia do que dei ao menino, madama, do que qualquer outro podia ter...

Sua senhoria voltou a mente para direções mais esperançosas, censurando Caddles, é claro, enquanto isso. Emissários cheios de diplomáticas ameaças entraram nas agitadas vidas de Bensington e Redwood. Apresentavam-se como Conselheiros Paroquiais, fleumáticos e apegando-se fonograficamente a declarações pré-estabelecidas.

—        Nós o respensabilizamos, Sr. Bensington, pelo dano causa­do à nossa paróquia.  Nós o responsabilizamos.

Uma firma de advogados, com um nome que era uma serpen­te — Banghurst, Brown, Flapp, Codlin, Brown, Tedder e Snoxton, e aparecia invariavelmente sob a forma de um pequeno cavalheiro ruivo e de ar astuto, com um nariz adunco —, disse vagas coisas sobre danos, e houve um personagem muito cortês, o agente de sua senhoria, que caiu de repente um dia sobre Redwood e perguntou:

—        Bem, senhor, que propõe fazer?

Ao que Redwood respondeu que propunha interromper o fornecimento do Alimento para a criança, se ele ou Bensington conti­nuassem a ser chateados devido àquele assunto.

 Estou dando a substância de graça — disse — e a criança berrará até deixar sua aldeia em ruínas antes de morrer, se não permitirem que receba a substância. A criança está em suas mãos, e têm de mantê-la.   Lady Wondershot não pode ser sempre Lady Abundância e Providência Terrena de sua paróquia sem às vezes enfrentar uma responsabilidade, você sabe.

 O malfeito está feito — decidiu Lady Wondershot, quan­do lhe contaram — com expurgos — o que Redwood dissera.

 O malfeito está feito — ecoou o Vigário.

Embora, na verdade, o malfeito estivesse apenas começando.

 

O MOLEQUE GIGANTE

A criança gigante era feia —- insistia o Vigário.

—        Ele sempre foi feio...   como têm de ser todas as coisas exageradas.

Suas opiniões haviam-no afastado de um julgamento justo nesse caso. A criança foi submetida a muitos instantâneos, mesmo naquele rústico retiro, e o testemunho claro dessas fotos contraria o Vigário, atestando que o jovem monstro era a princípio quase bonito, com uma copiosa mecha de cabelos caindo-lhe até a testa e muita disposição a sorrir. Em geral Caddles, que tinha um físico frágil, aparece sorrindo atrás do bebê, a perspectiva acentuando sua relativa pequenez.

Após o segundo ano, as bonitas feições da criança tornaram-se mais sutis e contestáveis. Ela começou a crescer, como seu infeliz avô sem dúvida teria dito: "Muito demais". Perdeu as cores e desenvolveu uma crescente tendência a ser, apesar de colossal, um tanto raquítico. Era delicado, em escala imensa. Os olhos e al­guma coisa no rosto tornaram-se mais finos, tornaram-se, como diz o povo: "interessantes". O cabelo, após um corte, começou a em­baraçar-se num emaranhado.

—        É a raça degenerada surgindo nele — disse o médico da paróquia, indicando essas coisas.  Mas até onde estava certo nisso, e até onde a distância do jovem para a sanidade ideal resultava do fato de viver inteiramente num celeiro caiado, devido ao senso decaridade de Lady Wondershot, temperado pela justiça, é algo aberto à discussão.

As fotografias dele que o apresentam dos três aos seis anos mostram-no tornando-se um jovem de olhos graúdos e cabelos lou­ros, com um nariz truncado e um olhar amistoso. Paira nos lábios aquela nunca distante promessa de um sorriso que todas as foto­grafias dos primeiros bebês gigantes apresentam. No verão, usa roupas frouxas de pano de colchão amarrado com cordão; geral­mente tem na cabeça uma dessas cestas que os operários usam para guardar suas ferramentas, e está descalço. Num retrato, dá um sorri­so largo e tem na mão um melão mordido.

Os retratos de inverno são menos numerosos e satisfatórios. Ele usa tamancos imensos, sem dúvida de pau de samambaia, e (como demonstram fragmentos da inscrição "John Stickels, Iping") sacos no lugar de meias; as calças e o casaco são inquestionavel­mente feitos dos restos de um tapete de padronagem alegre. Por baixo disso, vêem-se grosseiras faixas de flanela; cinco ou seis metros de flanela enrolam-se, como um xale, no pescoço. A coisa em sua cabeça é provavelmente outro saco. Ele olha fixo, às vezes sorrindo, às vezes um tanto tristemente, para a câmara. Mesmo com apenas cinco anos, vê-se aquela ruga meio caprichosa, acima dos suaves olhos castanhos, que caracterizava o seu rosto.

Desde o início, declarava sempre o Vigário, foi um grande embaraço na aldeia. Parece ter tido um impulso proporcional para brincar, muita curiosidade e sociabilidade, e além disso havia nele um certo anseio — sinto dizer — por sempre mais comida, Apesar do que a Sra. Greenfield chamava de uma ração alimentar "exces­sivamente generosa" da parte de Lady Wondershot, exibia o que o médico logo percebeu ser o "apetite criminoso". Demonstra muito conclusivamente as piores experiências de Lady Wondershot com as classes inferiores a descoberta de que, apesar de uma ração ali­mentar desbragadamente além do que se sabia ser a necessidade máxima até mesmo de um adulto, a criatura roubava. E o que roubava comia com deselegante voracidade. Sua manzorra passa­va por cima dos muros do jardim; ele cobiçava até o pão nos car­rinhos do padeiro. Os queijos sumiam do sótão da loja de Marlow, e jamais um cocho de porcos estava a salvo dele. Um lavrador, andando por seus campos de nabos, encontrava o grande rasto dospés dele e os indícios de sua fome roedora, um nabo roído aqui, outro ali, e os buracos tapados com astúcia infantil. Comia um nabo como outros devoram um rabanete. Tirava e comia maçãs de uma árvore, quando não havia ninguém por perto, como as crianças normais colhem amoras numa moita. Num aspecto, pelo menos, essa escassez de provisões era boa para a paz de Cheasing Eyebright — durante muitos anos, ele comeu cada grão do Ali­mento dos Deuses que lhe davam...

Indiscutivelmente, a criança era problemática e deslocada.

— Ele andava sempre por aí — dizia o Vigário. Não podia frequentar a escola; não podia ir à igreja, devido às óbvias limita­ções de seu conteúdo cúbico. Fez-se algum esforço para satisfazer o espírito daquela "idiotíssima e destrutiva lei" — cito o Vigário — a Lei da Educação Primária de 1870, fazendo-se com que se sen­tasse do lado de fora da janela aberta, enquanto se dava a aula lá dentro. Mas sua presença ali destruía a disciplina das outras crian­ças, que ficavam pondo a cabeça para fora e espiando-o, e toda vez que ele falava todas elas riam. Tinha uma voz tão estranha! Assim, deixaram-no ficar à solta.

Tampouco insistiram em que fosse à igreja, pois suas imensas proporções eram de pouca valia para a devoção. Contudo, nisso poderia ter tido uma tarefa mais fácil; há bons motivos para ima­ginar que era algum ponto daquela grande carcaça havia os germes do sentimento religioso. A música atraía-o, talvez. Ficava muitas vezes no cemitério ao lado da igreja, nas manhãs de domingo, an­dando de mansinho por entre as sepulturas, depois que a congre­gação entrava, e sentava-se durante todo o ofício junto ao pórtico, ouvindo, como se fica à escuta junto a uma colméia.

A princípio, demonstrou certa falta de tato; as pessoas lá dentro ouviam os grandes pés rondando inquietos o seu lugar de adoração, ou percebiam o vulto do rosto dele espiando através dos vitrais, meio curioso, meio invejoso; e às vezes um simples hino pegava-o desprevenido e ele uivava lugubremente num gigantesco esforço de uníssono. Ao que o pequeno Sloppet, que acionava os foles do órgão e era porteiro, bedel, sacristão e sineiro da igreja nos domingos, além de ser carteiro e limpador de chaminés a se­mana toda, saía muito rígida e valentemente e mandava-o embora. Sloppet, alegra-me dizê-lo, sentia ter de fazer isso — pelo menos,em seus momentos mais conscienciosos. Era como mandar um ca­chorro para casa quando se inicia um passeio, disse-me.

Mas a formação intelectual e moral do jovem Caddles, apesar de fragmentária, foi explícita. Desde o princípio, o Vigário, a mãe e todo mundo combinaram-se para deixar-lhe claro que não devia empregar sua gigantesca força. Era um infortúnio com o qual teria de se haver o melhor possível. Precisava dar atenção ao que lhe diziam, fazer o que lhe mandavam, ter cuidado para jamais quebrar coisa alguma nem ferir coisa alguma. Não devia sobretudo sair pisando nas coisas, esbarrando nelas nem sacudindo-as. Devia sau­dar respeitosamente a fidalguia e ser grato pelo alimento e as rou­pas que ela lhe reservava de suas riquezas. E ele aprendeu tudo isso submissamente, sendo por natureza e hábito uma criatura ensinável e só por alimentação e acidente gigantesca.

Para com Lady Wondershot, nesses primeiros dias, ele demonstrava o mais profundo pavor. Ela descobrira que podia falar me­lhor com ele quando usava saias curtas e segurava o rebenque, com o qual gesticulava e mostrava-se sempre um pouco desdenhosa e estridente. Mas às vezes o Vigário bancava o amo, um Davi miúdo, de meia-idade e quase sem fôlego, apedrejando um Golias infantil com censuras, repreensões e ordens ditatoriais. O monstro estava agora tão grande que aparentemente não podiam lembrar-se de que era apenas uma criança de sete anos, com todo o desejo de aten­ção, diversão e novas experiências de uma criança, com todo o anseio de resposta, atenção e afeto de uma criança, e toda a capa­cidade de dependência e irrestrita apatia e infelicidade de uma criança.

O Vigário, descendo a rua da aldeia numa ensolarada manhã, encontrava uns desgraciosos cinco metros e meio do Inexplicável, tão fantástico e desagradável para ele quanto uma nova forma de dissidência, andando meio trôpego ao seu lado com o pescoço espi­chado, procurando, sempre procurando as duas necessidades bási­cas da infância: alguma coisa para comer e alguma coisa para brincar.

Surgia então uma expressão de furtivo respeito nos olhos da criatura e um esforço para tocar na mecha emaranhada de cabelos.

De um certo modo limitado, o Vigário possuía imaginação — pelo menos, uns restos — e com o jovem Caddles ele adotou a linhade imaginar as imensas possibilidades de danos pessoais que tão imensos músculos deviam possuir. E se desse nele uma súbita lou­cura...! Um simples lapso de desrespeito...! Contudo, o homem verdadeiramente corajoso não é aquele que não sente medo, mas aquele que o vence. Toda vez que lhe ocorriam tais idéias, o Vigá­rio sempre subjugava sua imaginação. E sempre falava ao jovem Caddles bravamente num bom e claro tom prático:

—        Está se comportando, Albert Edward?

E o jovem gigante, esgueirando-se junto ao muro e corando muito, respondia:

—        Sim, senhor... tentando.

— Trate de se comportar — dizia o Vigário, e passava por ele no máximo com uma leve aceleração da respiração. E por respeito à sua virilidade adotou como regra nunca olhar um perigo às costas, uma vez passado, fosse o que fosse que lhe ocorresse.

Precariamente, o Vigário dava ao jovem Caddles uma educação particular. Nunca ensinou o monstro a ler — não era necessá­rio —, mas ensinou-lhe os pontos mais importantes do catecismo, o dever para com o próximo, por exemplo, e sobre aquela divindade que o puniria com extrema vingança se ele um dia se aventurasse a desobedecer ao Vigário e a Lady Wondershot. As lições eram dadas no pátio do Vigário, e os passantes ouviam a enorme e ins­tável voz infantil zumbindo os ensinamentos básicos da Igreja ofi­cial.

—        Honrar e obedecer ao Rei e sempre submeter-me à autori­dade dele.   Submeter-me a todos os meus governadores, professo­res, pastores e amos. Comportar-me humildemente e reverentemente com todos os meus superiores...

Acabou-se percebendo que o efeito do gigante em crescimento sobre os cavalos não acostumados com ele era semelhante ao de um camelo, e disseram-lhe que se mantivesse longe da estrada, não apenas do matagal das bordas (onde seu sorriso paspalho, por cima do muro, exasperava extremamente sua senhoria), mas inteiramen­te longe. A essa lei, ele nunca obedeceu completamente, devido ao enorme interesse que a estrada lhe despertava. Mas transformou o que tinha sido um recurso constante num prazer furtivo. Limi­taram-no afinal quase inteiramente a velhas pastagens nas chapadas.

Não sei o que ele teria feito, não fossem as chapadas. Ali, havia espaços onde podia vaguear por quilômetros e quilômetros, e nesses espaços vagueava mesmo. Arrancava galhos das árvores e fazia imensos e loucos buquês, até que eles proibiram também isso; pegava as ovelhas e as punha em filas certinhas, das quais elas logo saíam (e ele sempre ria gostosamente disso), até que o proibiram; escavava o gramado, fazendo grandes buracos ao acaso, até que o proibiram...

Errava pelas chapadas até o monte acima de Wreckstone, porém não ia mais longe, porque ali encontrava terras cultivadas, e as pessoas, em vista das depredações que ele fazia em suas planta­ções de tubérculos, e inspiradas além disso por uma espécie de hostil timidez que seu desgrenhado aparecimento frequentemente provocava, sempre o expulsavam com cães a latir. Ameaçavam-no e açoitavam-no com chicotes. Ouvi dizer que às vezes lhe davam tiros de espingarda. Em outra direção, chegava a ver Hickleybrow. De cima de Thursley Hanger, tinha uma visão da ferrovia de Londres, Chatham e Dover, mas os campos arados e uma suspeita aldeia im­pediam-no de chegar mais perto.

Após algum tempo, surgiram avisos em tabuletas, grandes tabuletas com letras enormes, que lhe barravam o caminho em todas as direções. Ele não sabia ler o que as letras diziam: "In­terditado", mas em pouco tempo entendeu. Era visto frequentemen­te nessa época, pelos passageiros da ferrovia, sentado, o queixo apoiado nos joelhos, na chapada junto às minas de giz, onde depois o puseram a trabalhar. O trem parecia inspirar-lhe uma vaga emo­ção de amizade, e às vezes ele acenava a enorme mão para o com­boio, e às vezes fazia-lhe uma rústica e incoerente saudação.

 Grande — dizia um passageiro. —- Um dos filhos do Comidão. Dizem, senhor, que são inteiramente incapazes de fazer al­guma coisa por si mesmos... pouco mais que um idiota, na ver­dade, e um grande fardo para a localidade.

 Pais muito pobres, me disseram.

 Vive da caridade dos fidalgos locais.

Todos olhavam inteligentemente o distante monstro agachado durante algum tempo.

—        Era bom dar um basta nisso — sugeria alguma mente de pensamento espaçoso. — É bom ter alguns milhares deles nos im­postos, hem?

E geralmente havia alguém sábio o bastante para dizer a esse filósofo:

—        Está mais ou menos certo, senhor — num tom animado.

 

Ele tinha seus dias ruins.

Houve, por exemplo, o problema com o rio.

Fazia barquinhos com jornais inteiros, uma arte que aprende­ra observando o menino dos Spender, e punha-os a navegar pelo rio abaixo, grandes chapéus de papel emborcados. Quando desapa­reciam embaixo da ponte que assinalava o limite dos terrenos estri­tamente privados da Mansão Eyebright, ele soltava um grande grito e atravessava correndo o novo campo de Tormat — Senhor! como os porcos de Tormat disparavam a correr, transformando sua fofa gordura em duro músculo! —, para ir encontrar os barcos no vau. Os barcos de papel passavam perto do relvado próximo, bem em frente da Mansão Eyebright, bem debaixo dos olhos de Lady Wondershot!   Jornais dobrados desfazendo-se!   Um belo espetáculo!

Ganhando coragem com a impunidade, iniciou uma infantil engenharia hidráulica. Escavou um enorme porto para suas frotas de papel, usando uma velha porta de telheiro como pá, e como ninguém observava suas operações no momento, idealizou um en­genhoso canal que incidentalmente inundou a neveira de Lady Wondershot, e finalmente represou o rio. Represou-o de um lado a outro com algumas vigorosas portadas de terra — deve ter traba­lhado como uma avalanche — e lá veio abaixo uma espantosa inun­dação através da sebe, levando de roldão a Srta. Spinks, seu ca­valete e a mais promissora aquarela que ela já iniciara, ou, pelo menos, levando o cavalete e deixando-a molhada até os joelhos e em consternada fuga para a casa. Dali as águas precipitaram-se pelo pomar adentro, e, através da porta verde, na aléia e de volta ao leito do rio, na vala de Short.

Enquanto isso, o Vigário, interrompido em sua conversa com o ferreiro, pasmava ao ver angustiados peixes fora d'água saltando de algumas poças residuais, e montes de mato verde no leito do rio onde dez minutos antes havia dois metros e meio, ou mais, de lím­pida e fria água.

Depois disso, horrorizado com as consequências de seus pró­prios atos, o jovem Caddles fugiu de casa por dois dias e noites. Vol­tou apenas a insistentes pedidos da fome, para suportar com estóica calma uma avalanche de violentas repreensões, mais proporcionais ao seu tamanho do que qualquer outra coisa que já se abatera sobre ele na Aldeia Feliz.

 

Imediatamente após esse caso, Lady Wondershot, procurando adições exemplares aos abusos e jejuns que infligira, emitiu um ukase. Emitiu-o primeiro ao seu mordomo, e com tanta rapidez que o fez saltar. Ele tirava a mesa do desjejum e ela olhava pela janela francesa que dava para o terraço onde os gamos vinham ser alimen­tados.

— Jobbet — disse, com sua voz mais imperiosa. — Jobbet, essa coisa deve trabalhar pelo seu sustento.

E deixou claro não apenas para Jobbet (o que era fácil), mas para todos os demais na aldeia, inclusive o jovem Caddles, que nessa questão, como em tudo mais, falava sério.

 Mantenham-no ocupado — disse Lady Wondershot. — É essa a ordem para o Sr. Caddles.

 É a ordem, imagino, para toda a humanidade — disse o Vigário. — Os deveres simples, a modesta ronda, tempo de plan­tar e colher...

 Exatamente — disse Lady Wondershot. — O que eu sem­pre digo. Satanás sempre encontra algum malfeito para mãos desocupadas. Pelo menos entre as classes inferiores. Sempre educa­mos nossas criadas nesse princípio. Que o poremos a fazer?

Isso era um pouco difícil. Pensaram em muitas coisas, e enquanto pensavam puseram-no a trabalhar um pouco, usando-o em lugar de um mensageiro a cavalo para levar telegramas e recados quando se precisava de maior rapidez; também carregava baga­gens, caixotes e coisas assim com muita conveniência, numa grande rede que lhe arranjaram. O jovem parecia gostar da ocupação, en­carando-a como uma espécie de brincadeira, e Kinkle, o agente de Lady Wondershot, vendo-o mover uma rocha para ela um dia, teve a brilhante idéia de pô-lo na pedreira de giz de sua senhoria em Thursley Hangsr, próximo de Hickleybrow. A idéia foi posta em prática, e pareceu que tinham resolvido o problema.

Ele trabalhou na mina de giz, a princípio com o entusiasmo de uma criança que brinca, e depois pelo efeito do hábito, cavando, carregando, fazendo toda a parte de suspender as cargas para os vagões, conduzi-los cheios pelas linhas abaixo até o desvio, e levar os vazios pelo arame de uma grande roldana, e finalmente operando toda a pedreira sozinho.

Disseram-me que Kinkle fez dele realmente um ótimo negócio para Lady Wondershot, consumindo, como fazia, pouquíssimo mais que sua alimentação, embora isso nunca contivesse a denúncia que ela fazia da "Criatura" como um parasita gigante de sua caridade.

Nessa época, ele usava uma espécie de chambrão de saco, calças de couro remendadas, tamancos com cravos de ferro. Trazia às vezes na cabeça uma coisa esquisita, um gasto chapéu de apiário, mas em geral andava de cabeça descoberta. Movia-se pela mina com poderosa determinação, e o Vigário, em suas rondas habituais, lá chegava ao meio-dia e encontrava-o comendo envergonhado sua vasta ração de comida de costas para todo mundo.

A comida era-lhe trazida todo dia, uma papa de cereais com cascas, num pequeno vagão de ferrovia, como um daqueles que vi­via perpetualmente enchendo de giz, e ele transportava essa carga para um velho forno de secagem e devorava-a. Às vezes, misturava a ela um saco de açúcar. Às vezes, sentava-se chupando uma pedra desse sal que se dá às vacas, ou comendo um grande cacho de tâ­maras, com caroços e tudo, dessas que se vêem nos carrinhos de mão, em Londres. Para beber, dirigia-se ao riacho além do sítio queimado da Fazenda Experimental, em Hickleybrow, e mergu­lhava a cabeça na água. Foi pelo fato de ele beber desse jeito, apósa comida, que o Alimento dos Deuses terminou disseminando-se, espalhando-se primeiro em imensos juncos à beira do rio, e depois em grandes rãs, trutas ainda maiores e carpas encalhadas, e final­mente numa fantástica exuberância de vegetação por todo o valezinho.

Após mais ou menos um ano, aquelas coisas estranhas e monstruosas no campo defronte ao ferreiro se tornaram tão grandes, e, desenvolveram-se em peixe-serra e besouros tão apavorantes — os meninos chamavam-nos de besouros a motor — que obrigaram Lady Wondershot a exilar-se no exterior.

 

Mas em breve o Alimento ia entrar numa nova fase de efeito nele. Apesar das instruções simples do Vigário, destinadas a mol­dar do modo mais completo e terminante a modesta vida natural adequada a um camponês gigante, ele começou a fazer perguntas, a querer saber coisas, a pensar. À medida que passava da infância à adolescência, tornava-se cada vez mais evidente que sua mente tinha seus próprios processos — fora do controle do Vigário. O re­ligioso fez, o melhor que pôde para ignorar esse fenômeno pertur­bador, mais ainda assim, sentia-o ali.

A matéria para as ruminações do jovem gigante estava à sua volta. Muito involuntariamente, com suas visões espaçosas, sua constante indiferença às coisas, viu sem dúvida o bastante da vida humana, e à medida que se tornava claro que também ele, a não ser por aquela desajeitada grandeza, era humano, deve ter vindo a compreender cada vez mais o quanto lhe interditava a sua melan­cólica distinção. O burburinho social da escola, o mistério da reli­gião, partilhado em tão belas roupas, e que exalava uma melodia tão doce, os cantos joviais da taverna, as salas calidamente ilumi­nadas a vela e lareira, às quais olhava da escuridão, ou também os gritos de alegria, o vigor do exercício elegante numa coisa que não compreendia bem, e que se centrava no campo de cricket — tudo isso deve ter gritado alto em seu coração ávido de companhia. Pa­rece que, à medida que a adolescência o alcançava aos poucos, elecomeçava a ter um interesse bastante considerável nos atos dos na­morados, naquelas preferências e acasalamentos, naquelas intimidades tão fundamentais para a vida.

Um domingo, mais ou menos à hora em que surgiam as estrelas, os morcegos e as paixões da vida campestre, achava-se na Avenida do Amor um jovem casal, "dando-se uns beijinhos". A aléia era densamente protegida por sebes, em direção ao Upper Lodge. Os dois proporcionavam-se pequenas emoções, tão seguros no cálido e silencioso crepúsculo quanto quaisquer namorados po­deriam estar. A única interrupção concebível que julgavam possí­vel tinha de aparecer bem à vista na aléia acima; a sebe de três metros e meio, que seguia em direção às silenciosas chapadas, pare­cia-lhes uma garantia absoluta.

E então, de repente — incrivelmente — viram-se suspensos e separados.

Descobriram-se pendurados cada um por um indicador e um polegar sob as axilas, e com os perplexos olhos castanhos do jo­vem Caddles vasculhando-lhes as acaloradas e coradas faces. Fica­ram naturalmente mudos com as emoções da situação.

—- Por que vocês gostam de fazer isso? — perguntou o jovem Caddles.

Imagino que o embaraço continuou até que o galã, lembrando-se de sua condição de macho, ordenou veementemente, com altos brados e blasfêmias viris, como cabia à ocasião, ao jovem Caddles que os pusesse no chão, sob pena de castigos. Ao que o jovem Caddles, lembrando-se de sua educação, os pôs cortesmente no chão e com muito cuidado, convenientemente próximos, para que pudes­sem reiniciar seus abraços. E, tendo hesitado algum tempo acima deles, tornou a desaparecer no crespúsculo...

— Mas eu me senti muito idiota — confiou-me o galã. — A gente mal podia ver um ao outro. Pegado assim. A gente tava se beijando, o senhor sabe. E o estranho é que ela pôs a culpa de tudo em mim. Me chamou de um nome feio e mal quis falar comigo até em casa...

O gigante embarcava em investigações, não podia haver dúvidas. Sua mente, tornou-se claro, disparava perguntas. Ele as fa­zia a poucas pessoas, por enquanto, mas elas o perturbavam. Ima­gina-se que a mãe às vezes era submetida a interrogatórios.    

Ele aparecia no quintal atrás da casa da mãe, e, após uma cuidadosa inspeção do terreno, em busca de galinhas e pintos, sen­tava-se lentamente, recostando-se no celeiro. Num minuto os pintos, que gostavam dele, cobriam-no de bicadas, catando a lama musgosa de giz nas costuras de suas roupas, e se um vento anunciava chuva, o gato da Sra. Caddles, que nunca perdia a confiança nele, assu­mia uma forma sinuosa, corria para casa, subia no trilho do fogão e passava para a sua perna, para o seu corpo, até o ombro, medita­va um pouco, e depois, zás, recomeçava. Às vezes enfiava-lhe as garras no rosto, de pura alegria, mas ele nunca ousava tocá-lo, de­vido ao peso incerto de sua mão numa criatura tão frágil. Além disso, gostava que lhe fizessem cócegas. Após algum tempo, fazia algumas desajeitadas perguntas à mãe.

— Mãe — dizia —, se é bom trabalhar, por que todo mundo não trabalha?

A mãe erguia o olhar para ele e respondia.

—        É bom pra gente que nem nós.

Ele pensava um pouco.

Por quê — E não obtendo resposta: — Pra que serve o trabalho, mãe? Por que eu corto giz e a senhora lava roupa, todo santo dia, enquanto Lady Wondershot anda por aí na carruagem, mãe, e viaja pra longe, para essas terra estrangeira  bonita que eu mais a senhora nunca que vamo ver, mãe?

 Ela é uma dama.

 Oh — dizia o jovem Caddles, e mergulhava em profunda meditação.

 Se não fosse por esses fidalgo pra fazer a gente trabalhar para eles — dizia a Sra. Caddles —, como nós pobre ia ganhar a vida?

Isso tinha de ser digerido.

 Mãe — ele tentava de novo —, se não tivesse fidalgo nenhum, as coisas não ia ser do povo como eu e a senhora? E se fosse...

 Deus proteja esse menino! — dizia a Sra. Caddles. Com a ajuda de uma boa memória, tornara-se uma individualidade exube­rante e vigorosa desde que a Sra. Skinner morrera. — Desde que Deus levou sua pobre e querida avó, não tem jeito de segurar você. Não faça pergunta, que não vai ouvir mentira. Se eu começasse a responder para você a sério, seu pai ia ter de ir pedir o sustento a outra pessoa... quanto mais acabar com a lavagem de lavar a roupa.

— Tá bem, mãe — ele dizia, após um olhar mediativo a ela. — Eu não queria chatear.

E afastava-se pensativo.

 

E ainda pensava quatro anos depois, quando o Vigário, ago­ra não mais maduro, mas maduro demais, o viu pela última vez. Imaginem o velho cavalheiro visivelmente um pouco mais velho, a cinta frouxa, um pouco embrutecido e enfraquecido no pensamento e na fala, com um tremor nas mãos e nas convicções, mas com o olho ainda rútilo e alegre apesar de toda a encrenca que o Alimento causara à sua aldeia e a si mesmo. Assustara-se e perturbara-se algumas vezes, mas não estava vivo e ainda o mesmo? E quinze anos, uma bela amostra da eternidade, haviam dado um emprego ao problema.

— Foi uma perturbação, admito — dizia — e as coisas estão diferentes. Diferentes de muitas formas. Houve tempo em que até um menino podia capinar, mas agora é preciso um homem com um machado e um pé-de-cabra... pelo menos em alguns pontos das moitas. E nós, gente antiquada, ainda estranhamos todo este vale, mesmo o que era antes o leito do rio, antes da irrigação, coberto de trigo... como está este ano... de sete metros e meio de altura. Usavam a velha foice aqui há vinte anos, e traziam a colheita em carroças.... com uma alegria simples e honesta. Talvez houves­se uma farrinha simples, uma festinha inocente, para encerrar... Pobre querida Lady Wondershot... não gostou dessas inovações. Muito conservadora, a pobre dama querida! Tinha um toque do século dezoito, é o que eu sempre disse. A linguagem, por exem­plo ... um vigor franco...

"Morreu relativamente pobre. Aquele mato grande em seu jar­dim. Não era uma dessas mulheres que fazem jardinagem, mas gostava de ver seu jardim em ordem...  as coisas crescendo ondeeram plantadas e como eram plantadas... sob controle... O modo como as coisas cresciam foi inesperado... perturbou as idéias dela... Não gostava da perpétua invasão desse jovem monstro... pelo menos, começou a imaginar que ele vivia olhando-a, boqui­aberto, por cima do muro... Não gostava do fato de ele ser quase do tamanho da casa dela. Destoava do seu senso de proporção. Pobre dama querida! Eu esperava que vivesse tanto quanto eu. Foram os grandes besouros que tivemos durante um ano que a de­cidiram. Eles vinham das larvas gigantes... coisas nojentas, do tamanho de ratos... na relva do vale... E as formigas sem dú­vida também pesaram. Como tudo estava revirado e não havia paz nem quietude em parte alguma, ela disse que achava que tanto podia estar em Monte Carlo quanto em qualquer outra parte. É se foi. Disseram-me que jogava muito imprudentemente. Morreu no hotel, lá. Fim muito triste. Exílio... Não... não o que se con­sidera... Uma líder natural de nosso povo inglês... Desenraizada. Logo!

"Contudo, afinal" — repisava o Vigário — "tudo se reduz a muito pouca coisa. As crianças não podem correr livremente por aí" como antes, com as mordidas e tudo mais. Talvez esteja bem assim... Havia conversas... como se essa coisa fosse revolucio­nar tudo... Mas há alguma coisa que desafia todas essas forças da Nova... Não sei, é claro. Não sou um desses filósofos moder­nos... explicam tudo com éter e átomos. Evolução. Lixo desse tipo. O que digo é uma coisa que os elogios não incluem. Uma questão de razão... não de compreensão. Madura sabedoria. Natureza hu­mana. Aere perennius... Chame o que quiser."

E assim, afinal, chegou à última vez.

O Vigário não teve premonições do que já estava tão próximo dele. Deu sua costumeira caminhada, por Farthing Down, como fizera por dezenas de anos, e dirigiu-se ao lugar de onde podia observar o jovem Caddles. Subiu a encosta até a crista onde ficava a mina de giz, um pouco esfalfado — havia muito perdera o atlético passo cristão de outras eras —, mas Caddles não estava em seu trabalho. Então, contornando a moita de fetos gigantes que começava a obscurecer e sombrear o Hanger, deu com o imen­so vulto do monstro sentado no morro — meditando, por assim dizer, sobre o mundo. Tinha os joelhos encolhidos, a face apoiadana mão, a cabeça um pouco de lado. Sentava-se de costas para o Vigário, de modo que não se podia ver aqueles olhos perplexos. Devia estar muito concentrado, pelo menos sentava-se muito imóvel...

Não se voltou. Não soube que o Vigário, que desempenhara um papel tão grande na formação de sua vida, olhava-o então pela última de inúmeras vezes — não soube sequer que ele estava ali. (Assim é que ocorrem tantas despedidas.) O Vigário ficou impressionado, no momento, pelo fato de que, afinal, ninguém na Terra tinha a mínima idéia do que aquele enorme monstro pensava quan­do julgava que devia descansar de seus labores. Mas estava dema­siado indolente para seguir esse novo tema nesse dia; recaiu da su­gestão nas velhas trilhas de seu pensamento.

— Aere perennius — murmurou, andando vagarosamente para casa por um sendeiro que não mais seguia direto cruzando o relvado como antes, mas serpeava em circuitos para evitar novos tufos de grama gigante. — Não! Nada mudou. As dimensões nada são. A ronda simples, a tarefa comum...

E naquela noite, inteiramente sem dor e sem o saber, ele próprio seguiu a rota comum — saindo do Mistério da Transformação, que passara a vida a negar.

Enterraram-no no cemitério de Cheasing Eyebright, perto do maior teixo, e a modesta lápide com seu epitáfio que terminava com: Ut in Principio, nunc est et semper — foi quase imediatamen­te escondida das vistas humanas por um alastramento de grama cinza gigante, grossa demais para a foice ou as ovelhas, que avan­çou sobre a aldeia como um nevoeiro, da fértil umidade dos pra­dos do vale, onde o Alimento dos Deuses estivera atuando.

 

A COLHEITA DO ALIMENTO

O MUNDO ALTERADO

A transformação brincou com o mundo, à sua nova moda, du­rante vinte anos. Para a maioria das pessoas, essas coisas novas vieram aos poucos, dia a dia, de uma maneira bastante notável, mas não tão abruptamente que as esmagasse. Mas para um homem, pelo menos, todo o acúmulo dessas duas décadas da obra do Alimento seria revelado de repente e espantosamente num só dia. Convém-nos torná-lo por esse dia e dizer alguma coisa do que ele viu.

Esse homem era um prisioneiro, um condenado à prisão per­pétua — seu crime não nos interessa—, a quem a lei julgara conveniente perdoar após vinte anos. Numa manhã de verão, o pobre desgraçado, que deixara o mundo como um jovem de vinte e três anos, viu-se novamente jogado da cinzenta simplicidade do traba­lho e disciplina que se tornara a sua vida numa deslumbrante li­berdade. Puseram-lhe roupas às quais não estava acostumado; o cabelo já crescia havia algumas semanas, e ele o partia havia al­guns dias; e ali estava ele parado, numa espécie de trêmula e desa­jeitada novidade de corpo e alma, piscando com os olhos e na verdade com a alma também, novamente do lado de fora, tentando entender aquela coisa incrível: estar afinal de novo por algum tem­po no mundo dos vivos, e apesar de todas as outras coisas terríveis, inteiramente despreparado. Era tão afortunado que tinha um irmão suficientemente ligado às suas distantes lembranças comuns para vir encontrá-lo e apertar-lhe a mão, um irmão a quem deixara menino, e que era agora um barbudo homem próspero — e do qual até osolhos lhe eram desconhecidos. Juntos, ele e aquele estranho de seu sangue desceram à cidade de Dover pouco falando um com o outro e sentindo muitas coisas.

Sentaram-se por algum tempo num bar, um respondendo às perguntas do outro sobre fulano e sicrano, revivendo estranhas opiniões antigas, pondo de lado intermináveis novos aspectos e perspectivas, e depois chegou a hora de irem para a estação tomar o trem de Londres. Seus nomes e as coisas pessoais que tinham a discutir não interessam à nossa história, mas apenas as transforma­ções e toda a estranheza que a pobre alma de volta descobria no mundo outrora conhecido.

Ainda em Dover, pouco observara, além da boa qualidade da cerveja de caneca — jamais tomara um gole de tal cerveja, e isso lhe trouxera lágrimas de gratidão aos olhos.

—        A cerveja continua boa — dissera, julgando-a infinitamen­te melhor.

Só quando o trem passou por Folkestone foi que pôde lançar um olhar além de suas emoções mais imediatas e ver o que acontecera ao mundo.   Olhava para fora da janela.

—        Tá fazendo sol — disse pela décima segunda vez. — Eu não podia ter um tempo melhor. E então ocorreu-lhe pela primeira vez que havia novas desproporções no mundo. — Por Deus — exclamou, pondo-se ereto e parecendo animado pela primeira vez. — Mas não é mesmo uns cardo enorme que tão crescendo ali no barranco, junto daquelas retama?  Será que é cardo mesmo?   Ou me esqueceu?

Mas eram cardos, e o que ele tomava por altas moitas de reta­ma era a grama nova, e em meio a essas coisas uma companhia de soldados britânicos — com os casacos vermelhos de sempre — travava escaramuças segundo as orientações do manual e treina­mento, parcialmente revisado após a Guerra dos Bóeres. E aí, pam!, entraram num túnel, e depois na Sandling Junction, agora imersa e escura — tinha as lâmpadas acesas — numa grande moita de rododendros que se espraiara de algum jardim vizinho e estendia-se enorme pelo vale acima. Havia um trem de carga no desvio de Sandgate cheio de troncos de rododendro, e aí foi que o cidadão que voltava ouviu falar pela primeira vez do Comidão.


Enquanto voltavam a ganhar velocidade por uma região que parecia absolutamente imutada, os dois irmãos esforçavam-se em suas explicações. Um mostrava-se cheio de ávidas perguntas, con­tundentes, enquanto o outro jamais pensara, jamais se preocupara em ver as coisas como um fato singular, e era alusivo e difícil de acompanhar.

— É esse tal de Comidão — disse, raspando o fundo de seus conhecimentos. — Você não sabe? Não disseram pra vocês, ne­nhum deles? Comidão? Você sabe... Comidão. A eleição foi só sobre isso. Uma coisa aí científica. Ninguém nunca contou pra vocês?

Achava que a prisão fizera do irmão um terrível paspalho, por não saber daquilo.

Disparavam um no outro perguntas e respostas. Em meio a esses fragmentos de conversas, havia intervalos em que olhavam pela janela. A princípio, o interesse do homem nas coisas era vago e generalizado. Sua imaginação se ocupava do que os velhos fulano e sicrano diriam, como fulano e sicrano estariam agora, como ele diria a Deus e ao mundo certas coisas que apresentariam seu "trancafiamento" a uma luz moderada. O tal Comidão apare­ceu primeiro como um parágrafo curioso no jornal, e depois como uma fonte de dificuldade intelectual com o irmão. Mas acabou ocorrendo-lhe que o tal Comidão surgia persistentemente em qual­quer tópico  que  abordava.

Naquele tempo, o mundo era uma colcha de retalhos de tran­sição, de modo que aquele grande fato novo chegava até ele numa série de impactos de contraste. O processo de transformação não fora uniforme; espalhara-se de um centro de disseminação aqui, outro acolá. O país estava em remendos; grandes áreas onde o Alimento ainda não chegara, e áreas onde já se achava na terra e no ar, esporádico e contagioso. Era um ousado motivo novo infiltrando-se em ares antigos e venerandos.

O contraste era realmente muito vívido na linha de Dover a Londres nesse tempo. Por algum tempo, atravessaram a região rural que ele conhecera desde a infância, os pequenos campos re~ tangulares, divididos por sebes, apropriados para serem arados por cavalos pigmeus, as estradinhas com largura para três carroças, os olmos,  carvalhos   e   choupos pontilhando   os   campos,   pequenasmoitas de chorões na beira dos rios, medas de feno não mais altas que os joelhos de um gigante, cabanas de bonecas com vidraças de diamante, as tortuosas ruas das aldeias, as casas maiores dos pequenos grandes, os barrancos da ferrovia cobertos de flores, es­tações parecendo jardins, e todas as coisinhas do desvanecido sé­culo dezenove ainda resistindo contra a imensidão. Aqui e ali via-se uma mancha de cardos gigantes semeados e despedaçados pelo vento, desafiando o machado; aqui e ali, uma bufa-de-lobo de três metros ou os talos crestados de um trecho queimado de grama gigante; mas era só o que havia para dar uma ideia da chegada do Alimento.

Por uns trinta quilômetros, nada mais houve para prenunciar de qualquer modo a estranha grandeza do trigo e do mato dele ocultos a menos de vinte quilómetros de sua estrada, do outro lado, no vale de Cheasing Eyebright. E então, afinal, começaram os sinais do Alimento. A primeira coisa impressionante foi o grande viadu­to novo de Thornbridge, onde o pântano do abafado Medway (de­vido a uma gigantesca variedade de Chara) começava a estender-se naquela época. Depois, novamente o campo, e em seguida, à medida que a mesquinha imensidão multitudinária de Londres se espalhava sob sua névoa, os sinais da luta do homem para manter o grandismo afastado tornavam-se abundantes e incessantes.

Naquela região sudeste de Londres, naquela época, e em volta do lugar onde viviam Cossar e seus filhos, o Alimento insur­gira-se misteriosamente numa centena de pontos; a vida pequena prosseguia, em meio aos portentos diários que só a deliberação de seu aumento, o lento crescimento paralelo do hábito com sua pre­sença, haviam despojado de advertência. Mas o cidadão que voltava olhava para fora, e via pela primeira vez os fatos do Alimento estra­nho e dominante, as áreas escorchadas e enegrecidas, as grandes e disformes defesas e preparações, os quartéis e arsenais que aquela sutil e persistente influência forçara na vida humana.

Ali, numa escala mais ampla, a experiência da primeira Fa­zenda Experimental repetira-se várias vezes. Fora nas coisas infe­riores e acidentais da vida — sob os pés e em locais desertos, irre­gular e irrelevantemente — que a vinda de uma nova força e novos problemas primeiro se declarara. Havia grandes quintais e cerca­dos malcheirosos onde uma selva invencível de mato fornecia combustível para maquinarias gigantes (gente do povo íà ver a clangorosa oleosidade e gratificar os homens com uma moeda de seis pence); estradas e trilhos para grandes motores e veículos, estradas feitas com as fibras entrelaçadas de cânhamo hipertrofiado; torres con­tendo sirenas de vapor que soavam de repente e avisavam o mundo sobre uma nova insurgência de répteis, ou, o que era mais estranho, veneráveis torres de igrejas equipadas com um alarme mecânico. Havia pequenas cabanas de refúgio, pintadas de vermelho, e abri­gos de guarnições, cada um com sua galeria de tiro de fuzil de tre­zentos metros, onde os fuzileiros treinavam diaramente com muni­ção fragmentária contra alvos  em forma  de  ratos monstruosos.

Seis vezes, desde a época dos Skinner, houvera surtos de ratos gigantes — sempre provindos dos esgotos do sudoeste de Londres — e agora eles eram um fato tão aceito quanto os tigres no delta ao lado de Calcutá...

O irmão do homem comprara um jornal, mais ou menos despreocupadamente, em Sandling, e afinal o jornal acabou atraindo a atenção do outro. Ele abriu as páginas das folhas, às quais não estava acostumado — pareciam-lhe menores, mais numerosas e com tipos diferentes dos jornais de épocas anteriores — e viu-se diante de inúmeras fotos de coisas tão estranhas que chegavam a ser desinteressantes, e com grandes colunas de matéria impressa cujos títu­los, em sua maior parte, eram tão sem sentido como se estivessem escritos numa língua estrangeira: "Grande Discurso do Sr. Caterham"; "As Leis do Comidão".

—        Quem é esse tal de Caterham? — ele perguntou, numa tentativa de iniciar conversa.

— Ele é legal — disse o irmão.

 Ah! Um político desses aí, hem?

 Vai derrubar o governo. E já era mais que tempo.

 Ah! — Ele refletiu. — Supondo que aquela turma toda que eu conhecia, Chamberlain, Rosebery, essa turma toda... Quê? O irmão agarrara-lhe o pulso e apontava para fora da janela.

 Lá estão os Cossar! — Os olhos do prisioneiro libertado seguiram a direção do dedo e viram...

 Deus do céu! — ele gritou, pela primeira vez realmente esmagado pelo espanto. O jornal caiu-lhe em definitivo esquecimen­to  entre os pés. Através das árvores, via distintamente, parada numa atitude à vontade, as pernas bem separadas e a mão seguran­do uma bola como para jogá-la, uma gigantesca figura humana com bem uns doze metros de altura. A figura reluzia ao sol, vestida num traje de metal trançado e com um largo cinto de aço. Por um momento, centralizou toda a sua atenção, e depois seu olhar foi atraído por outro gigante mais distante, que se preparava para agarrar a bola, e tornou-se visível que toda a área da grande baía nos morros ao norte de Sevenoaks fora arrasada para fins gigan­tescos.

Um valado de barrancos imensos dominava a mina de giz, na qual ficava a casa, uma gigantesca e acachapada forma egípcia que Cossar construíra para os filhos quando a Creche Gigante cum­prira sua função, e atrás havia um grande telheiro escuro, que po­deria cobrir uma catedral, do qual vinha um martelar titânico para os ouvidos. Depois sua atenção saltou de volta para o gigante, quando a grande bola de madeira revestida de ferro voou da mão dele.

Os dois homens levantaram-se e olharam. A bola parecia do tamanho de um barril.

—        Pegou! — gritou o homem da prisão, quando uma árvore escondeu o lançador.

O trem permitiu que vissem essas coisas apenas uma fração de minuto, e depois passou por algumas árvores e entrou no túnel de Chislehurst.

 Meu Deus! — tornou a dizer o homem da prisão, quando a escuridão se fechou sobre eles. — Ora! Aquele sujeito era do tamanho de uma casa!

 É os menino de Cossar — disse o irmão, acenando com a cabeça alusivamente — que causa esse barulho todo...

Tornaram a emergir da escuridão e descobriram novas torres de sirenes, mais cabanas vermelhas, e depois as mansões amontoadas dos subúrbios. A arte de colar cartazes nada perdera naquele intervalo, e de incontáveis tabiques, das esquinas das casas, das cercas e de uma centena de pontos assim vantajosos vinham os apelos policrômicos da grande eleição do Comidão. "Caterham", "Comidão" e "Jack Matador de Gigantes" repetiam-se vezes sem conta, e mostruosas caricaturas e distorções, uma centena de variedades de deformação das grandes e reluzentes figuras pelas quais haviam passado tão perto apenas alguns minutos antes...

 

O irmão mais novo pretendera fazer uma coisa magnífica, comemorar aquele retorno à vida com um jantar num restaurante de qualidade indiscutível, um jantar que seria seguido por toda a lu­minosa sucessão de impressões que o Music Hall daquele tempo tanto podia proporcionar. Tratava-se de um plano que valia a pena, para varrer as nódoas mais superficiais da prisão, com sua exibi­ção de livre indulgência; mas quanto ao segundo ponto, o plano foi mudado. O jantar permaneceu de pé, mas já havia um desejo mais poderoso que o apetite de espetáculos, já mais eficiente para desviar a mente do homem do sombrio preconceito sobre seu passa­do do que qualquer teatro — uma enorme curiosidade e perplexi­dade em relação ao tal Comidão e aos seus filhos, àquele novo e portentoso gigantismo que parecia dominar o mundo.

— Não vejo pé nem cabeça neles — disse. — Me aperreia.

O irmão tinha aquela sutileza mental que pode pôr de lado até uma prevista hospitalidade.

— É sua noite, meu velho — disse. — A gente tenta entrar no comício no Palácio do Povo.

E finalmente o homem da prisão teve a sorte de ver-se meti­do no meio de uma compacta multidão, olhando de longe um pequeno palanque intensamente iluminado, sob um órgão e uma ga­leria. O órgão tocara alguma coisa que fazia os pés marcharem, à medida que o povo se aglomerava mais perto; mas parara de tocar agora.

Mal o homem da prisão se instalou num lugar e encerrou uma discussão com um estranho importuno que distribuía cotoveladas, quando surgiu Caterham. Emergiu de uma sombra para o meio do palanque, o mais insignificante pigmeuzinho, lá longe, um vulto negro tendo como rosto um borrifo cor-de-rosa — de perfil, via-se o nariz aquilino muito característico —, uma figurinha que arrastava atrás de si, da maneira mais inexplicável, uma ovação. Uma ova­ção que começou lá longe, cresceu e espalhou-se.  Um pequeno estralejar de vozes, primeiro em torno do palanque, que de repente explodiu numa chama de som e varou a massa dentro e fora do prédio. Como aplaudiam! Hurra! Hur-ra!

Nenhum de todos aqueles milhares aplaudiu como o homem da prisão. As lágrimas escorriam-lhe pelas faces, e só parou de aplaudir afinal porque a coisa o sufocara. É preciso ficar tanto tem­po na prisão quanto ele para compreender, ou mesmo ter uma idéia, do que significa para um homem soltar os pulmões numa multidão. (Mas apesar de tudo isso ele nem sequer fingiu para si mesmo saber o motivo de tais emoções.) Hurra! Ó Deus! Hur-ra!

E então caiu um silêncio. Caterham baixara a uma conspícua paciência, e pessoas subordinadas e inaudíveis diziam e faziam coisas formais e insignificantes. Era como ouvir vozes em meio ao barulho das folhas na primavera. "Uauauaua. . ." Que importava? As pessoas na audiência falavam umas com as outras. "Uauauaua..." prosseguia a coisa. Aquele paspalho grisalho nunca acabaria? Interrupções? Era claro que havia interrupção. "Ua, ua, ua, ua..." Mas ouviremos Caterham melhor?

Enquanto isso, pelo menos, podia-se olhá-lo, e esticar-se nas pontas dos pés e estudar a perspectiva distante das fei­ções do grande homem. Era fácil de desenhar aquele homem, e o mundo já podia estudá-lo à vontade nas lâmpadas das lareiras e nos pratos das crianças, em medalhas e flâmulas anti-Comidãos, nas ourelas de sedas e algodões de Caterham, e nos forros de bons e antigos chapéus ingleses Caterham. Ele impregna toda a cari­catura dessa época. Pode-se vê-lo como marinheiro, ao lado de um anacrónico canhão, uma arma rotulada "Novas Leis do Comidão" na mão; enquanto no mar espoja-se o enorme e feio monstro amea­çador, o "Comidão"; ou está de armadura da cabeça aos pés, a cruz de São Jorge no escudo e no elmo, e um covarde e titânico Calibã sentado entre as profanações dos "Novos Regulamentos do Comidão"; ou desce voando como Perseu e salva uma acorrentada e linda Andrômeda (intitulada visivelmente acima da cinta de "Civilização") de um monstro marinho trazendo em cada um dos vá­rios pescoços e garrafas as palavras "Irreligião", "Egoísmo Esma­gador", "Mecanismo", "Monstruosidade", e coisas que tais. Mas era como "Jack Matador de Gigantes" que a imaginação popular o  considerava mais bem caracterizado, e era  no sentido de umcartaz de Jack Matador de Gigantes que o homem da prisão amplia­va miniatura distante.

O "Uauauaua" encerrou-se abruptamente.

Acabou. Está se sentando. Sim! Não! Sim! É Caterham! "Caterham!  Caterham!" E vieram os aplausos.

É preciso uma multidão para fazer um tal silêncio após tal ex­plosão de aplausos. Um homem sozinho no deserto — a quietude de uma espécie de dúvida, mas ele se ouve respirar, mover, ouve todo tipo de coisas. Ali, a voz de Caterham era a única coisa que se ouvia, uma coisa muito vívida e clara, como uma luzinha brilhando num recesso de veludo negro. Ouvir de fato! Ouvia-se-o como se ele falasse junto à gente.

Era estupendamente eficaz para o homem da prisão, aquela figurinha gesticulante envolta numa auréola de luz, uma auréola de sons magníficos e ondulantes; atrás dele, parcialmente oculto por assim dizer, sentavam-se seus seguidores no palanque, e no primeiro plano via-se uma ampla perspectiva de costas e perfis, uma vasta e multitudinária atenção. Aquela figurinha parecia absorver a substância de todos eles.

Caterham falou de nossas antigas instituições. "Silênciosilênciosilêncio", rugia a multidão. "Silêncio! Silêncio!", disse o homem da prisão. Falou de nosso antigo espírito de ordem e justiça. "Silêncio-silêncio!", rugiu a multidão. "Silêncio! Silêncio!", gritou o homem da prisão, profundamente comovido. Caterham falou da sabedoria de nossos ancestrais, do lento desenvolvimento de venerá­veis instituições, de tradições morais e sociais que se ajustavam às nossas características nacionais inglesas como a pele se ajusta à mão. "Silêncio! Silêncio!", gemeu o homem da prisão, com lágrimas de excitação escorrendo pelo rosto. E agora todas essas coisas iam ser metidas no cadinho. Sim, no cadinho! Porque três homens em Lon­dres, fazia vinte anos, julgaram conveniente misturar algo indescri­tível numa garrafa, toda a ordem e santidade das coisas — gritos de "Não! Não!" — Bem, se não era para ser assim, eles próprios deviam esforçar-se, deviam dar adeus à hesitação — nesse ponto houve uma rajada de aplausos. Deviam dar adeus à hesitação e às meias medidas.

— Ouvimos falar, cavalheiros — gritou Caterham — de urti­gas que se tornam urtigas gigantes.   A princípio, não são mais queoutras tantas urtigas, plantinhas que uma firme mão pode agarrar e arrancar; mas se as deixamos... se as deixamos, elas crescem com tal poder de venenosa expansão que é preciso machado e corda, que é preciso arriscar a vida e os membros, que é preciso luta e angústia. . . homens podem morrer em seus sentimentos, homens podem ser mortos em seus sentimentos...

Houve uma agitação e interrupção, e depois o homem da prisão tornou a ouvir a voz de Caterham, soando clara e forte:

—        Aprendam do Comidão com o próprio Comidão e... — fez uma pausa — arranquem a urtiga antes que seja tarde demais.

Parou e ficou de pé, limpando os lábios.

—        Um cristal — gritou alguém — um cristal — e aí veio aquele rápido surto de tumulto trovejante, até que todo mundo parecia estar aplaudindo.

O homem da prisão deixou afinal o salão, maravilhosamente emocionado e com aquela expressão no rosto que assinala os que tiveram uma visão. Ele sabia, todos sabiam; suas ideias não eram mais vagas. Voltara a um mundo em crise, para a decisão imediata de uma questão estupenda. Devia desempenhar sua parte no gran­de conflito como um homem — como um homem livre e respon­sável. O antagonismo apresentava-se como um- quadro. De um lado, aquelas gigantescas figuras vestidas de malhas da manhã — via-os agora a uma luz diferente — e do outro, aquela criatu-rinha vestida d-e negro e gesticulante à luz da ribalta, aquele pig­meu com seu ordenado fluxo de melodiosa persuasão, sua vozinha maravilhosamente penetrante, John Caterham — "Jack Matador de Gigantes". Deviam unir-se todos para "arrancar a urtiga" antes que fosse "tarde demais".

 

Os mais altos, mais fortes e mais vistos de todos os filhos do Alimento eram os três filhos de Cossar. O quilômetro e meio, mais ou menos, onde haviam passado a infância tornara-se tão entrincheirado, tão escavado e tortuoso em volta, tão coberto de telhei­ros, imensos modelos de armar e todos os brinquedos de seus poderes em desenvolvimento, que não se assemelhava a qualquer outro local da Terra. E havia muito tornara-se demasiado pequeno para as coisas que eles procuravam fazer. O filho mais velho era um forte planejador de engenhos sobre rodas; fizera para si mesmo uma espécie de gigantesca bicicleta, para a qual nenhuma estrada no mundo tinha espaço, nenhuma ponte poderia aguentar. E lá ficava ela, uma coisa grande com rodas e máquinas, capaz de fazer trezentos e cinquenta quilómetros por hora, inútil, a não iser de vez em quando, quando ele montava nela e lançava-se para a fren­te e para trás pelo atravancado pátio de trabalho. Pretendera sair nela pelo pequeno mundo; fizera-a com essa intenção, quando era ainda apenas um garoto sonhador. Agora os dentes das engrena­gens cobriam-se de uma ferrugem vermelha como feridas, onde o esmalte descascara.

— Primeiro precisa fazer uma estrada para ela, filhinho — dizia Cossar —, antes de fazer isso.

Assim, certa manhã, de madrugada, o jovem gigante e os irmãos começaram a trabalhar para construir uma estrada em volta do mundo. Parecem ter tido uma premonição da oposição iminente, e trabalharam com notável vigor. O mundo descobriu-os com demasiada rapidez, estendendo aquela estrada reta como o vôo de uma bala em direção ao Canal Inglês, alguns quilómetros já terra­plenados e socados. Detiveram-nos antes do meio-dia, uma imensa multidão de pessoas excitadas, proprietários de terra, agentes imo­biliários, autoridades locais, advogados, policiais e até soldados.

 Estamos construindo uma estrada — explicou o mais velho.

 Construa uma estrada como quiser — disse o principal advogado no local —, mas, por favor, respeite os direitos dos outros.

Vocês já infringiram os direitos de vinte e sete proprietários privados; sem falar nos privilégios especiais e propriedade de um con­selho distrital urbano, nove conselhos paroquiais, um conselho mu­nicipal, duas usinas de gás e uma ferrovia...

 Deus! — disse o garoto Cossar mais velho.

 Têm de parar com isso.

 Mas vocês não querem uma boa e reta estrada em lugar de todas essas aleiazinhas esburacadas?

 Não digo que não seria vantajoso, mas...

 Não é para ser feita — disse o garoto Cossar mais velho, pegando suas ferramentas.

 Não desse jeito — disse o advogado —, certamente.

 Como deve ser feita?

A resposta do advogado principal foi complicada e vaga.

Cossar desceu para ver a traquinagem que os filhos haviam feito dessa vez, e reprovou-os severamente, sorriu demais e pareceu sentir-se bastante alegre com o caso.

 Vocês meninos devem esperar um pouco — gritou-lhes —- antes de fazerem essas coisas.

 O advogado nos disse que devemos primeiro preparar um plano, obter autorização especial e esse tipo de chateação. Disse que levaria anos.

 Nós vamos ter um plano em breve, meninos — gritou Cos­sar, pondo a mão na boca para gritar. — Não se preocupem.  Por enquanto, é melhor brincarem e fazerem modelos das coisas que querem fazer.

Eles fizeram o que o pai lhes dissera, como filhos obedientes. Mas, apesar de tudo isso, os filhos de Cossar pensaram um pouco.

—        Está tudo muito bem — disse o segundo ao primeiro —, mas eu não quero ficar a vida toda brincando e fazendo planos. Quero fazer alguma coisa real, você sabe. Não viemos a este mundo fortes como somos só para brincar por aí nesse pedacinho bagunçado de chão, você sabe, e dar passeiozinhos e ficar longe das ci­dades. — Pois a essa altura estavam proibidos em todos os bur­gos e distritos urbanos. — Ficar sem fazer nada é ruim. Não po­demos descobrir alguma coisa que o povinho quer que seja feita e fazer para eles... só pelo gosto de fazer? Um monte deles não tem casas para morar. Vamos construir uma casa para eles perto de Londres, que abrigue montes e montes deles e seja tão confortável e bonita, e vamos construir uma estradinha aonde vão fazer seus ne­gócios ... uma bela estradinha, tão boa quanto possível. Vamos fazê-la tão limpa e bonita que nenhum deles poderá viver sujo e feito animais como a maioria vive agora.  Bastante água para se la­varem, teremos... você sabe, são tão sujos hoje, que nove em dez de suas casas não têm banheiros, os pulhazinhos sujos! Você sabe, os que têm banheiros cospem insultos contra os que não têm, emvez de ajudá-los a ter... e os chamam de grande sujos. Você sabe. Vamos alterar tudo isso. Faremos luz elétrica, cozinharemos e la­varemos para eles e tudo. Imagine! Fazem com que suas mulhe­res ... mulheres que vão ser mães... se arrastem por aí escovan­do chãos! Podíamos fazer isso muito bem. Podíamos represar uni vale naquela cadeia de morros ali e fazer um belo reservatório, e podíamos fazer uma casa grande aqui para gerar nossa eletrici-dade e ter tudo lindo, lindo. Não podíamos? E depois, talvez nos deixassem fazer outras coisas.

 Sim — disse o irmão mais velho —, podíamos fazer isso muito bem para eles.

 Então vamos Jazer — disse o segundo irmão.

 Eu não me importo — disse o irmão mais velho, e olhou em volta à procura de uma ferramenta à mão.

E isso levou a outra terrível chateação.

Num átimo, multidões agitadas estavam em cima deles, mandando que parassem, por mil razões, mandando que parassem sem razão nenhuma — multidões balbuciantes, confusas e variadas. A casa que estavam construindo era alta demais — não podia ser segura. Era feia; interferia com a saída das casas de tamanho nor­mal do bairro; era antibairro; era contrária aos Regulamentos de Construção Locais; infringia o direito da autoridade local de ba­gunçar as coisas com um diminuto e caro fornecimento de energia elétrica próprio; interferia com os interesses da companhia de água local.

Funcionários do Conselho de Governo Local levantaram-se com obstruções judiciais. O advogadozinho tornou a aparecer para representar cerca de uma dúzia de interesses ameaçados; os pro­prietários de terra locais apareceram na oposição; pessoas com mis­teriosas reclamações alegavam estar sendo despojadas a preços exor­bitantes; os sindicatos de todos os ofícios da construção civil eleva­ram, vozes coletivas; e um círculo de negociantes de todo tipo de material de construção tornou-se uma associação. Extraordinárias associações de pessoas com visões proféticas de horrores estéticos formavam-se para proteger a paisagem do lugar onde iam construira grande casa, do vale onde iam represar a água. Esses últimos eram, definitivamente, os piores de todos, para os garotos Cossar. Num instante, a linda casa deles era apenas como um pedaço de pau jogado num ninho de vespas.

—- Eu não fiz! — disse o garoto mais velho.

— Não podemos prosseguir — disse o segundo irmão.

 Animaizinhos podres, eles são — disse o terceiro irmão. — Não podemos fazer coisa alguma.

 Mesmo quando é para o conforto deles próprios, E tería­mos feito uma casa tão bonita para eles.

 Parecem viver suas vidinhas idiotas atravessando um o ca­ minho do outro — disse o garoto mais velho. — Direitos, leis, regulamentos e patifarias: é como um jogo de pelicanos...  Bem, de qualquer modo, terão de viver em suas sujas casinhas idiotas por mais algum tempo.  Está bastante claro que nós não podemos con­tinuar com isso.

E os filhos de Cossar deixaram a grande casa inacabada, uai simples buraco com alicerces e o início de uma parede, e voltaram mal-humorados para seu grande cercado. Após algum tempo, o bu­raco encheu-se de água, e com a estagnação vieram o mato e os bichos rasteiros; e o Alimento, ou jogado ali pelos filhos de Cossar, ou soprado pelo vento, impôs o crescimento à sua maneira usual. Ratazanas-d'água assolaram a região e criaram uma confusão dos diabos, e um dia um fazendeiro pegou seus porcos bebendo aque­la água, e no mesmo instante, com grande presença de espírito — pois sabia do grande porco de Oakham — matou-os todos. Da­quela profunda poça foi que vieram os mosquitos, mosquitos terrí­veis, cuja única virtude foi que os filhos de Cossar, após serem pi­cados por eles durante algum tempo, não puderam suportá-los mais; escolheram uma noite de luar, em que a lei e a ordem se achavam na cama, e esgotaram toda a água para o rio que corria por Brook.

Mas deixaram o mato grande, as grandes ratazanas-d'água e todo tipo de indesejáveis coisas grandes ainda vivas e procriando-se no local que haviam escolhido, no local em que a casa grande da gente pequena poderia ter chegado aos céus...

 

Isso foi na infância dos filhos, mas agora eles estavam quase homens. E as cadeias estreitavam-se à sua volta a cada ano de crescimento. A cada ano que cresciam, o Alimento espalhava-se e as coisas grandes multiplicavam-se, aumentava a tensão e a angús­tia. O Alimento fora a princípio, para a grande massa da huma­nidade, uma maravilha distante, mas agora chegava à soleira de todos como uma ameaça, comprimindo e distorcendo toda a ordem natural da vida. Obstruía isso, derrubava aquilo, transformava os produtos naturais, e transformando esses produtos acabava com os empregos e lançava os homens para fora de seus trabalhos às centenas de milhares; ignorava fronteiras e transformava o mundo do comércio num mundo de cataclismos; não admira que a humanidade o odiasse.

E como é mais fácil odiar às coisas animadas que às inanima­das, aos animais mais que às plantas, e aos irmãos homens mais completamente que a qualquer animal, o temor e os problemas engendrados pelos cardos gigantes e as folhas de relva de quase dois metros, pelos insetos terríveis e os roedores semelhantes a tigres, transformaram-se todos num grande poder de antipatia que visava com certeira objetividade aquele bando disperso de seres humano? grandes, os Filhos do Alimento. Esse ódio tornou-se a força central nos assuntos políticos. As antigas linhas partidárias foram atravessa­das e totalmente desfeitas sob a insistência desses problemas mais novos, e o conflito se travava agora entre o partido dos contempo-rizadores, que defendiam a nomeação de políticos pequenos para controlar e regulamentar o Alimento, e o partido da reação, pelo qual falava Caterham, cada vez com mais sinistra ambiguidade, cristalizando sua intenção primeiro numa frase ameaçadora, e de­pois noutra, ora dizendo que se devia "podar a sarça", ora que de­viam descobrir uma "cura para a elefantíase", e finalmente, na véspera da eleição, que deviam "arrancar a urtiga".

Um dia os três filhos de Cossar, que não eram mais meninos, mas homens, sentaram-se entre as montanhas de seu inútil traba­lho e discutiram todas essas coisas à sua maneira. Tinham estado a trabalhar o dia todo numa série de grandes e complicadas valas que o pai os mandara fazer, e agora, ao crepúsculo, sentavam-se no jardinzinho diante da casa grande e olhavam o mundo e descan­savam, enquanto os pequenos criados lá dentro não vinham avisar que a comida estava pronta.

Vocês devem imaginar aqueles vultos poderosos, de uns doze metros no mínimo, reclinados num trecho de grama que pareceria uma moita de juncos a um homem comum. Um sentava-se e raspava o barro das imensas botas com uma viga de ferro que tinha na mão; o outro apoiava-se num cotovelo; o terceiro desbastava um pinheiro, deixando o ar cheiroso de resina. Não vestiam roupas comuns, mas trajes de baixo feitos de corda trançada e vestes ex­ternas feitas de fios de alumínio forrados; os calçados eram de ma­deira e ferro, e as fivelas, botões e cinturões da indumentária de aço laminado. A grande casa de um só piso em que viviam, de uma imensidão egípcia, meio construída com monstruosos blocos de giz e meio escavada na rocha viva do morro, tinha um frontão de uns trinta metros de altura, e além, as chaminés e rodas, os guindastes e coberturas dos trabalhos erguiam-se maravilhosamente contra o céu. Através de uma janela circular na casa, via-se uma calha da qual pingava sem parar um metal derretido, que caía em gotas medidas num receptáculo que não se via. O lugar era cerca­do e rudemente fortificado por monstruosos barrancos de terra es­corados com aço, tanto na crista das chapadas acima como de um lado a outro do fundo do vale. Era preciso algo de tamanho nor­mal para assinalar a natureza da escala. O trem que vinha choca­lhando de Sevenoaks e cruzou a visão deles, acabando por mer­gulhar no túnel e desaparecer, parecia em contraste um brinquedinho automático.

 Interditaram toda a mata deste lado de Ightham — disse um deles — e transferiram a tabuleta que estava ao lado de Knockholt mais de três quilômetros para cá.

 Era o mínimo que podiam fazer — disse o mais novo, após uma pausa.  — Estão tentando tirar o vento das velas de Caterham.

 Não basta para ele e.... e é quase demais para a gente — disse o terceiro.

 Estão nos isolando do Irmão Redwood. Da última vez que fui visitá-lo, os avisos vermelhos haviam-se arrastado um quilômetro e meio, em ambos os sentidos. A estrada até ele, ao longo das chapadas, não é mais que uma linha estreita. — Pensou um pouco. — Que aconteceu com nosso Irmão Redwood?

—        Por quê? — perguntou o irmão mais velho.

O outro arrancou um galho de seu pinheiro.

—        Ele parecia...   como se não estivesse acordado.  Parecia não escutar o que eu dizia.   E falou alguma coisa sobre...  amor.

O caçula bateu com a viga no lado da sola de ferro e riu. — O Irmão Redwood — disse — tem sonhos. Nenhum deles falou por algum tempo.  Depois o irmão mais velho disse:

— Então, irmãos — disse —, nossa juventude estará acabada, posso suportar. Creio que no fim vão traçar uma linha em torno de nossas botas e dizer que devemos viver dentro desse limite.

O irmão do meio afastou um monte de galhos de pinheiro com a mão e mudou de posição.

 O que estão fazendo agora não é nada, em comparação com o que farão quando Caterham estiver no poder.

 Se ele conseguir — disse o mais velho, fitando os pés.

O irmão do meio parou de cortar e dirigiu o olhar para os grandes barrancos que os protegiam.

 Então, irmãos — disse —, nossa juventude estará acabada, e como o pai Redwood nos disse há muito tempo, devemos aca­bar como homens.

 Sim — disse o mais velho. — Mas que significa isso, exa-tamente?   Que significa...  quando chegar esse dia de encrenca?

Também ele olhou as rudes e vastas imitações de trincheiras em sua volta, olhando não tanto para elas, como através delas e por sobre os morros para as inumeráveis multidões além. Algo da mesma espécie ocorreu à mente de todos eles, uma visão da gente pequena vindo à guerra, numa inundação, a gente pequena incan­sável, incessante, maligna...

 Eles são pequenos — disse o caçula — mas são incontáveis como as areias do mar.

Têm armas...  têm armas que os nossos irmãos de Sunderland fizeram.

— Além disso, irmãos, a não ser pelos roedores, a não ser por pequeno acidentes com coisas ruins, que vimos nós de matanças?

— Eu sei — disse o irmão mais velho. — Apesar de tudo... nós somos o que somos. Quando chegar o dia da encrenca, deve­mos fazer o que temos de fazer.

Fechou o canivete com um estalido — a lâmina era do ta­manho de um homem — e usou seu novo cajado de pinheiro para levantar-se. De pé, voltou-se para a acachapada e cinzenta imensi­dade da casa. A cor púrpura do crepúsculo bateu nele quando se levantou, bateu na malha e nas fivelas em torno do pescoço, e aos olhos do irmão ele pareceu de repente encharcado de sangue...

Quando o jovem gigante se levantou, uma negra figurinha fez-se visível contra aquela incandescência ocidental no alto do barran­co que pairava acima do cume da chapada. Os membros negros acenavam em gestos desajeitados. Alguma coisa, no movimento dos braços, sugeriu pressa à mente do jovem gigante. Ele acenou com o tronco de pinheiro em resposta, encheu todo o vale com seu imenso "Olá!", lançou um "Tem algum problema" aos irmãos e partiu em passadas de seis metros para encontrar o pai e ajudá-lo.

 

Aconteceu também que um jovem, que não era gigante, descarregava o espírito contra os filhos de Cossar exatamente nessa hora. Vinha transpondo os morros além de Sevenoaks, juntamen­te com um amigo, mas era só ele quem falava. Na sebe, quando vinham andando, tinham ouvido um penoso guincho e corrido a sal­var três filhotes de chapim do ataque de duas formigas gigantes. Fora essa aventura que originara a conversa.

— Reacionário? — ele dizia, quando chegaram à vista do acampamento de Cossar, — Quem. não seria reacionário? Veja aquele quadrado de terra, aquele espaço da terra de Deus outrora suave e belo, despedaçado, profanado, desentranhado! Aqueles te­lheiros! Aquele grande catavento! Aquela monstruosa máquina cheia de engrenagens! Aqueles diques!   Veja aqueles três monstrosagachados  ali, tramando  algum  desagradável malfeito.   Veja... veja toda a Terra!

O amigo olhou-lhe o rosto.

 Você esteve dando ouvidos a Caterham — disse.

 Estive usando meus olhos.  Olhando um pouco a paz e a ordem do passado que deixamos para trás.  Esse imundo Alimento é a última encarnação do Demônio, empenhado como sempre na ruína de nosso mundo.  Pense no que deve ter sido o mundo antes de nossos dias, o que ainda era quando nossas mães nos tiveram, e veja-o agora!   Pense em como essas encostas outrora sorriam sob a safra dourada, como as sebes, cheias de meigas florezinhas, dividiam o modesto pedaço desse homem  do daquele, como as casas de fazenda pontilhavam a Terra e a voz dos sinos das igre­jas, daquela torre  ali, parava todo inundo a cada sabá, para a prece do sabá.   E hoje, todo ano, aparecem cada vez mais matos monstruosos,   roedores   monstruosos,  e   esses   gigantes   crescendo à nossa volta, espalhando-se sobre nós, atrapalhando  tudo que é útil e sagrado em nosso mundo. Ora, aí... Veja!

Apontou, e os olhos do amigo acompanharam a linha do dedo branco.

— Uma das pegadas deles. Está vendo! Afundou quase um metro, uma esparrela para cavalo e cavaleiro, uma armadilha para os incautos. Lá está um rosa brava esmagada; aí está a grama arrancada e um cardo pisoteado, o cano de esgoto de um lavrador partido e o barranco da estrada desmoronado. Destruição! É o que eles estão fazendo no mundo todo, com toda a ordem e decência que o mundo dos homens criou. Espezinhando tudo. Reação! Que mais resta?

 Mas... reação. Que espera fazer?

 Parar com isso! — exclamou o jovem de Oxford. — Antes que seja tarde demais.

Mas...

Não é impossível — gritou o jovem de Oxford, dando um salto na voz. — Queremos mão firme, queremos um plano sutil, uma mente resoluta.  Temos usado de rodeios e mão fraca; perde­ mos tempo e  contemporizamos, e o Alimento cresceu e cresceu. E no entanto, mesmo agora...

Parou por um momento.

 Isso é um eco de Caterham — disse o amigo.

 Mesmo agora.   Mesmo agora há esperança...   esperança abundante, se ao menos soubermos o que queremos e o que pre­tendemos destruir. O grosso do povo está conosco, muito mais do que estava há poucos anos; a lei está conosco, a constituição e a or­dem da sociedade, o espírito das religiões estabelecidas, os costu­mes e hábitos da humanidade estão conosco... e contra o Alimen­to. Por que deveríamos contemporizar?  Por que deveríamos men­tir?   Nós o odiamos, não o queremos; por que então deveríamos aceitá-lo?  Você pretende apenas ficar choramingando e obstruindo passivamente, sem fazer nada...  até que o tempo se escoe? — Parou de repente e voltou-se. — Veja aquela moita de urtigas ali. No meio delas há lares...  desertos...  onde outrora famílias de gente simples viviam suas vidas honestas! E ali — girou para onde os jovens Cossar murmuravam uns com os outros sobre seus res­sentimentos. — Veja-os! E eu conheço o pai deles, uma espécie de besta feroz, com um vozeirão intolerante, uma criatura que arre­meteu contra o nosso mundo demasiado piedoso nos últimos trinta anos ou mais. Um engenheiro! Para ele, tudo que consideramos caro e sagrado nada significa.  Nada.  As esplêndidas tradições de nossa raça e terra, as nobres instituições, a venerável ordem, a lar­ga e lenta marcha de precedente a precedente que fez o nosso povo inglês grande e esta ensolarada ilha livre...  tudo isso não passa de conversa fiada, liquidada. Qualquer parlapatice sobre o futuro vale todas essas coisas sagradas. . . Esse tipo de homem faria pas­sar um bonde sobre a sepultura da mãe, se achasse que era a linha mais barata para a passagem do bonde...  E você pensa em con­temporizar, em fazer algum plano de compromisso, que lhe per­mita viver à sua moda enquanto isso... essa maquinaria... vive à dela! Digo-lhe que não há esperança... não há esperança! É o mesmo que fazer tratados com um tigre! Eles querem coisas mons­truosas... nós as queremos sãs e doces. É uma coisa ou outra.

 Mas que se pode fazer?

 Muita coisa!  Tudo! Deter o Alimento! Eles ainda estão dispersos, esses gigantes, ainda estão imaturos e desunidos  É acor­rentá-los, amordaçá-los, açalmá-los. Detê-los a qualquer custo. Será o mundo deles ou nosso! Deter o Alimento. Trancafiar esses ho­mens que o fazem. Fazer qualquer coisa para deter Cossar! Você parece não se lembrar... uma geração... só é preciso sujeitar uma geração e depois... Depois podemos arrasar esses montes aqui, aterrar as pegadas deles, tirar as desagradáveis sirenes das torres de nossas igrejas, esmagar nossas espingardas de elefante, e volver nossos rostos de novo para a antiga ordem, a madura civili­zação para a qual a alma do homem está preparada.

 É um esforço e tanto!

 Para um fim e tanto. E se não fizermos? Não vê a perspectiva que temos diante de nós, clara como o dia? Por toda parte os gigantes  crescerão e se multiplicarão;  por toda parte farão e disseminarão o Alimento. A relva se tornará gigantesca em nossos campos, o mato em nossas sebes, os roedores no mato, os ratos nos esgotos. Mais e mais e mais. Isso é só o começo. O mundo dos insetos se insurgirá contra nós, o mundo das plantas, os próprios peixes do mar assoberbarão e afundarão nossos navios. Tremendos matagais obscurecerão e esconderão nossas casas, cobrirão nossas igrejas, esmagarão e destruirão toda a ordem em nossas cidades, e nos tornaremos não mais que fracos vermes sob o tacão da nova raça. A humanidade será assoberbada e afundada em coisas de sua própria lavra! E tudo isso por nada! Tamanho! Simples tamanho! Aumento e da capo. Já temos de abrir caminho em meio aos pri­meiros inícios desse tempo futuro.  E tudo que fazemos é dizer: "Como é conveniente!" Resmungar e não fazer nada. Não! — Er­gueu a mão. — Que façam o que têm de fazer! É o que eu também farei! Sou a favor da reação...  da irrestrita e destemida reação. A menos que se pretenda comer esse Alimento também, que mais resta a fazer no mundo? Perdemos tempo com meias medidas por muito tempo. Você! Perder tempo com meias medidas é um hábito seu, seu círculo de existência, seu espaço e tempo. Eu, não. Sou contra o Alimento, com todas as minhas forças e objetividade con­tra o Alimento. — Voltou-se ao sentir o resmungo de discordância do companheiro. — Qual é a sua posição?

 É um assunto complicado...

 Oh! Maria-vai-com-as-outras! — disse o jovem de Oxford, bastante irado, brandindo todos os membros. — O meio termo é nada. É uma coisa ou outra. Comer ou destruir. Comer ou des­truir? Que mais resta a fazer?

 


OS AMANTES GIGANTES

Ora, na época em que Caterham fazia campanha contra es filhos do Comidão, antes da eleição que iria — em meio às mais trágicas e terríveis circunstâncias — levá-lo ao poder, aconteceu que a Princesa gigante, a Serena Alteza cuja primeira nutrição desempenhara uma parte tão grande na brilhante carreira do Dr. Winkles, veio do reino de seu pai para a Inglaterra, numa ocasião julgada importante. Estava prometida, por razões de Estado, a um certo Príncipe — e o casamento deveria transformar-se num acontecimento de importância internacional. Os rumores e a imaginação colaboraram na história, e falou-se muita coisa. Insinuava-se de que o Príncipe recalcitrava, dizendo que não o fariam parecer um idio­ta — pelo menos não a tal ponto. O povo simpatizava com ele. E este é o aspecto mais significativo do caso.

Ora, pode parecer estranho, mas a verdade é que a Princesa gigante, quando veio para a Inglaterra, não sabia da existência de quaisquer outros gigantes. Vivera até então num mundo onde o tato é quase uma paixão, e a reserva o ar que se respira. Tinham oculta­do tudo dela; haviam-na protegido da visão ou suspeita de qual­quer forma gigantesca, até a hora de sua vinda para a Inglaterra. Até conhecer o jovem Redwood, não tinha a mínima idéia de que houvesse algo como outro gigante no mundo.

No reino do pai da Princesa, havia grandes planaltos e mon­tanhas desertos, onde ela se acostumara a correr livremente. Ado­rava mais a aurora e o crepúsculo, e todo o grande espetáculo davida ao ar livre, que qualquer outra coisa no mundo, mas em meio a um povo ao mesmo tempo tão democrático e tão veementemente leal como os ingleses, sua liberdade foi muito restringida. As pessoas vinham em carros, em excursões de trem, em multidões organizadas, para vê-la; percorriam de bicicleta grandes distâncias para ficar olhando-a, e ela precisava acordar muito cedo se queria passear em paz. Foi ao aproximar-se a alvorada, naquela manhã, que o jovem Redwood a encontrou.

O Grande Parque perto do palácio onde ela se hospedava estendia-se por uma dezena ou mais de quilômetros, para o oeste e para o sul dos portões ocidentais do palácio. Os castanheiros das aléias alcançavam muito acima de sua cabeça. Cada um, quando passava por eles, parecia oferecer uma mais abundante riqueza de botões. Por algum tempo, ela se contentou com a vista e o cheiro, mas afi­nal foi conquistada por tais ofertas, e ocupou-se tanto em escolher e colher que só percebeu o jovem Redwood quando ele já estava quase em cima dela.

Ela andava entre os castanheiros, com o amante predesti­nado aproximando-se, imprevisto, insuspeitado. Enfiava as mãosen­tre os galhos, quebrando-os e juntando-os. Estava sozinha no mundo. E então...

Ergueu o olhar, e no mesmo instante estava acasalada.

Temos de pôr nossa imaginação da altura dele, para ver a be­leza que ele viu. A inabordável grandeza que impede nossa ime­diata simpatia com ela não existia para ele. Lá estava ela, uma mo­ça graciosa, o primeiro ser criado que já parecera um par para ele, leve e esbelta, vestindo trajes leves, a fresca brisa da madrugada amoldando o vestido de sutis dobras contra as firmes linhas de seu corpo, e com um grande buque de galhos floridos de nogueira nas mãos. A gola do vestido abria-se, revelando a alvura do pescoço e uma suave e sombreada redondeza que sumia de vista em direção aos ombros. A brisa soltara-lhe uma mecha dos cabelos também, e açoitava os fios castanhos, de pontas avermelhadas, contra o ros­to. Os olhos eram de um amplo azul, e os lábios repousavam sem­pre numa promessa de sorriso, quando ela estendia o braço entre os galhos.

Ela se voltou para ele com um susto, viu-o e por algum tem­po os dois se olharam. Para ela, a visão dele era tão espantosa, tãoincrível, que chegava a ser, pelo menos por alguns momentos, terrível. Surgira-lhe com o impacto de uma aparição sobrenatural; quebrara toda a lei estabelecida do seu mundo. Era um jovem de vinte e um anos então, de porte esbelto, com a pele morena e a gra­vidade do pai. Vestia roupas de um sóbrio e macio couro marrom, folgadas, e um culote marrom, que lhe davam belas formas. Anda­va com a cabeça descoberta independente do tempo que fizesse. Ficaram olhando um para outro — ela incredulamente pasmada, e ele com o coração disparado. Foi um momento sem prelúdio, o encontro fundamental de suas vidas.

Para ele, a surpresa fora menor. Estivera buscando-a, mas mesmo assim o coração batia-lhe depressa. Aproximou-se dela, len­tamente, com os olhos em seu rosto.

 Você é a Princesa — disse. — Meu pai me falou. Você é a Princesa a quem deram o Alimento dos Deuses.

 Sou a Princesa... sim — ela disse, com olhos maravilha­dos. — Mas... que é você?

 Sou o filho do homem que criou o Alimento dos Deuses.

 O Alimento dos Deuses!

 Sim, o Alimento dos Deuses.

 Mas...  — Seu rosto demonstrava infinita perplexidade.

—        Quê? Não entendo.  Alimento dos Deuses?

— Você não sabia?

—        Alimento dos Deuses? Não!

Ela se descobriu tremendo violentamente. As cores abandona­ram-lhe o rosto. — Eu não sabia — disse. — Você quer dizer...?

—        Ele esperou. — Quer dizer que existem outros...  gigantes?

Ele repetiu: — Você não sabia?

E ela respondeu com o crescente pasmo da compreensão: — Não!

Todo o mundo e todo o significado do mundo mudavam para ela. Deixou cair um galho de nogueira.

—        Você quer dizer — repetiu estupidamente — que existem outros gigantes no mundo? Que um alimento...

Ele compreendeu o pasmo dela.

— Não sabe de nada? — exclamou. — Nunca ouviu falar de nós? Você, a quem o Alimento tornou afim de mim?

Ainda havia terror nos olhos que o olhavam. Ela levou a mão à garganta e deixou-a cair de novo.

—        Não.

Parecia-lhe a ela que ia chorar ou desmaiar. E então, num instante, controlou-se começou a falar e a pensar com clareza.

—        Esconderam tudo isso de mim — disse. — É como um sonho. Eu sonhei... sonhei essas coisas. Mas ao despertar... não.

Diga-me! Que é você? Que é esse Alimento dos Deuses? Diga-me devagar... e com clareza. Por que esconderam isso de mim, o fato de que não estou só?

 

—        Diga-me — ela pediu, e o jovem Redwood, trêmulo e exci­tado, dispõe-se a falar-lhe (de uma maneira pobre e fragmentária por algum tempo) do Alimento dos Deuses e dos filhos gigantes que se achavam dispersos pelo mundo.

Vocês devem imaginá-los, corados e espantados, comunican­do-se através de intermináveis frases ouvidas pela metade, faladas pela metade, repetindo, fazendo pausas de perplexidade e novos recomeços — uma conversa maravilhosa, em que ela despertava da ignorância de toda a sua vida. E muito vagarosamente tornou-se-lhe claro que não era uma exceção à ordem da humanidade, mas parte de uma irmandade dispersa, que havia comido o Alimento e crescido para sempre além dos limites das pessoas abaixo de seus pés. O jovem Redwood falou de seu pai, de Cossar, dos Irmãos dispersos por todo o país, da grande alvorada de mais amplo sig­nificado que chegara afinal à história do mundo.

—        Estamos  no princípio de um princípio — ele disse. — Esse mundo deles é apenas o prelúdio do que o Alimento criará. Meu pai acredita — e eu também — que chegará um tempo em que a pequenez terá deixado inteiramente o mundo humano.  Em que os gigantes andarão livremente por esta terra — a terra deles — fa­zendo coisas maiores e mais esplêndidas.   Mas isso...  isso ainda está por vir. Não somos sequer a primeira geração disso... somos os primeiros experimentos.

 E eu nada sei — ela disse — dessas coisas!

 Há  momentos em que  quase me parece que chegamos cedo demais.   Suponho que alguém tinha de vir primeiro.   Mas o mundo não estava preparado para nossa vinda e para a vinda de todas as grandes coisas, menos importantes, que derivaram sua gran­deza do Alimento,  Tem havido trapalhadas; tem havido conflitos. O povo pequeno odeia a nossa espécie...  São duros conosco por serem tão pequenos...   E porque nossos pés são pesados sobre as coisas que constituem a vida deles.   Mas  de qualquer  modo odeiam-nos agora, não aceitam nenhum de nós... só começariam a perdoar-nos se pudéssemos encolher até o tamanho deles...  Sen­tem-se felizes em casas que são celas de prisão para nós; as cida­des deles são pequenas demais para nós; padecemos em suas vias estreitas; não podemos orar em suas igrejas...  Vemos por cima de seus muros e suas proteções; olhamos sem querer para dentro de suas janelas nos  andares superiores; violamos seus costumes; suas leis não passam de uma rede em volta de nossos pés... Toda vez que tropeçamos, ouvimo-los gritar; toda vez que erramos con­tra seus limites ou nos estendemos para qualquer ato espaçoso... Nossos ritmos descontraídos são vôos alucinados para eles, e tudo que julgam grande e maravilhoso não passa de pirâmides de bone­cas para nós.  A pequenez de método, aplicação e imaginação deles obstaculiza e derrota nossos poderes. Não há máquina que se com­pare com o poder de nossas mãos, nenhuma ferramenta que se adeque às nossas necessidades. Eles mantêm nossa grandeza em ser­vidão através de mil laços invisíveis.  Somos mais fortes, homem a homem, cem vezes; mas estamos desarmados; nossa própria gran­deza nos torna devedores; eles reclamam a terra em que pisamos; impõem impostos à nossa maior necessidade de alimento e abrigo, e por todas essas coisas temos de labutar com as ferramentas que esses  anões  podem  fazer-nos...   e satisfazer a imaginação  anil deles...

"Eles nos encerram, de todos os modos. Mesmo para viver, temos de cruzar as barreiras deles. Mesmo para encontrar você aqui, hoje, passei um limite. Tudo que é razoável e desejável na vida eles põem fora de nosso alcance. Não podemos entrar nas cidades; não podemos cruzar as pontes; não podemos pisar nos campos arados  deles ou  nas reservas da caça que eles  matam.Estou isolado agora de todos os Irmãos, exceto os três filhos de Cossar, e mesmo para lá a passagem se estreita cada dia mais. Seria de pensar que buscam uma oportunidade de fazer algo ainda pior contra nós...

—        Mas somos fortes — ela disse.

— Devíamos ser fortes... sim. Sentimos... todos nós... sei que você também deve sentir... que temos o poder, poder para fazer grandes coisas, poder insurgente dentro de nós. Mas antes que possamos fazer qualquer coisa... — lançou a mão num gesto que parecia varrer o mundo.

 Mesmo achando que estava sozinha no mundo — ela disse, após uma pausa — pensei nessas coisas. Sempre me ensinaram que a força era quase um pecado, que é melhor ser pequeno do que grande, que toda a verdadeira religião se destinava a proteger o fraco e o pequeno, a encorajar o fraco e o pequeno, a ajudá-los a multiplicarem-se e multiplicarem-se, até finalmente se arrastarem uns sobre os  outros, a sacrificar toda a nossa força  pela causa deles.  Mas...  sempre duvidei do que ensinavam.

 Esta vida — ele disse —, estes nossos corpos não são para morrer.

 Não.

 Nem para viver futilmente.  Mas se não fizermos isso, já está claro para todos os irmãos  que virá um conflito.   Não sei que tipo de conflito terá de vir, para que essa gente pequena nos deixe viver como precisamos viver.   Todos os Irmãos pensaram nisso. Cossar, de quem lhe falei, também ele pensou nisso.

 Eles são muito pequenos e fracos.

— À maneira deles. Mas você conhece todos os meios de morte que têm nas mãos, e feitos para as mãos deles. Por cente­nas de milhares de anos, esse povinho, cujo mundo invadimos, es­teve aprendendo a matar uns aos outros. São muito capazes nisso. São muito capazes sob muitos aspectos. E além disso, sabem en­ganar e mudar de repente.. . Eu não sei... Vem aí um conflito. Você... talvez você seja diferente de nós. Para nós, certamente, o conflito vem... o que eles chamam de guerra. Nós a conhe­cemos. De certa forma, nos preparamos para ela. Mas você sabe... esse povinho!... nós não sabemos matar, pelo menos não quere­mos matar...

— Veja! — ela interrompeu, e ele ouviu o som de um corno. Ele se voltou na direção dos olhos dela, e descobriu um carro a motor amarelo, com o motorista de óculos de dirigir escuros e passageiros vestidos de peles, tossindo, pulsando e zumbindo ressentido em seus calcanhares. Afastou o pé, e o mecanismo, com três furiosos bufidos, reiniciou seu barulhento caminho em direção à cidade.

—        Obstruindo a estrada! — subiu até ele o protesto.

Então alguém disse:

—        Veja! Você viu! Lá está a Princesa monstro além das árvores.

E todos os rostos, com aqueles óculos de dirigir, se voltaram para olhar. -     — Ora — disse outro. — Assim não dá...

— Tudo isso — ela disse — é mais espantoso do que posso dizer.

—        Não lhe terem dito... — ele disse, e deixou a frase incom­pleta.

— Até você me encontrar, vivi num mundo em que eu era grande... sozinha. Tinha criado uma vida para mim mesma... para isso. Pensava que era vítima de alguma estranha aberração da natureza. E agora meu mundo desmoronou, em meia hora, e vejo outro mundo, outras condições, possibilidades mais amplas... companhia...

—        Companhia — ele respondeu.

— Quero que você me fale mais sobre isso, muito mais — ela disse. — Sabe, isso me passa pela mente como uma história inven­tada. Mesmo você... dentro de um dia, talvez, ou de vários dias, acreditarei em você.   Agora... agora estou sonhando... Escute!

A primeira badalada do relógio acima do palácio distante che­gava até eles. Ambos contaram mecanicamente.  "Sete."

—        Essa — ela disse — é a hora em que devo voltar, Devem estar levando minha tigela de café para o salão onde durmo. Os pequenos funcionários e   criados...   você nem   sonha como são sérios... estarão se agitando para cumprir seu deverezinhos.

—        Ficarão imaginando... Mas preciso falar com você.

Ela pensou um pouco.

— Mas eu também preciso pensar. Agora quero pensar sozi­nha, pensar nessa mudança nas coisas, afastar a antiga solidão, e pensar em você e nesses outros de meu mundo... Devo ir. Voltarei hoje para meu lugar no castelo, e amanhã, quando a madru­gada chegar, tornarei a vir...  aqui.

 Estarei aqui à sua espera.

 Vou sonhar e sonhar o dia todo com esse novo mundo que você me deu.   Mesmo agora, mal posso acreditar...

Deu um passo para trás e estudou-o dos pés ao rosto. Seus olhos encontraram-se e prenderam-se por um momento.

—        Sim — ela disse, com um pequeno riso que era um meio soluço. — Você é real.  Mas é muito maravilhoso! Você acha... mesmo... ? E se manhã eu vier aqui e descobrir que você é um... pigmeu como os outros!... Sim, preciso pensar. E assim, por hoje, como faz o povinho...

Estendeu a mão, e pela primeira vez tocaram-se um ao outro. As mãos agarraram-se firmemente, e os olhos tornaram a en­contrar-se.

—        Até logo — ela disse — por hoje. Até logo! Até logo, Irmão Gigante!

Ele hesitou, com alguma coisa não dita, e afinal respondeu-lhe simplesmente.

—        Até logo.

Seguraram-se as mãos por algum tempo ainda, estudando os rostos um do outro. E muitas vezes, depois de separarem-se, ela se voltou meio em dúvida para ele, ali parado no lugar onde se haviam encontrado...

Ela entrou em seus aposentos do outro lado do grande pátio do palácio como quem anda em um sonho, arrastando na mão um imenso galho de castanheiro.

 

Esses dois encontraram-se no todo quatorze vezes, antes do início do fim. Encontravam-se no Grande Parque, ou nos morros e entre as gargantas das charnecas, cruzadas de poeirentas estradase cobertas de urzes, com sombrias matas de pinheiros, que se es­tendiam para o sudoeste. Encontraram-se duas vezes na grande aveni­da de castanheiros, e cinco junto à ampla fonte ornamental que o rei, bisavô dela, mandara construir. Havia um lugar onde um grande gramado aparado, pontilhado de altas coníferas, descia graciosa­mente até a beira d'água, e ali ela se sentava. Ele se deitava aos seus joelhos e olhava para cima, para o rosto dela, e conversava, falando-lhe de todas as coisas que haviam acontecido, da obra que seu pai se estabelecera, e do grande e espaçoso sonho do que seria o povo gigante um dia. Geralmente, encontravam-se no início da madru­gada, mas uma vez encontraram-se ali à tarde, e terminaram encon­trando uma multidão de xeretas em volta, ciclistas, pedestres, espiando de entre as moitas, farfalhando (como farfalham os pardais à nossa volta nos jardins de Londres) em meio às folhas mortas da mata atrás, deslizando pelo lago em botes em direção a um ponto onde pudessem vê-los,  tentando aproximar-se deles e ouvi-los.

Foi o primeiro sinal que tiveram do enorme interesse que seus encontros estavam despertando no campo. E uma vez — foi na sétima, e isso desencadeou o escândalo — encontraram-se na ventosa charneca sob um límpido luar, e ali ficaram falando em sussurro pois a noite era cálida e silenciosa.

Muito em breve passaram da compreensão de que neles e através deles formava-se na Terra um novo mundo de gigantismo, a partir da contemplação da grande luta entre grande e pequeno, da qual estavam claramente destinados a participar, para interesses ao mesmo tempo mais pessoais e mais amplos. Toda vez que se encontravam, conversavam e olhavam-se um ao outro, emergia uns pouco mais de seus subconscientes para o consciente o fato de que havia algo mais caro e maravilhoso que a amizade entre eles, algo que andava entre eles e fazia-os darem-se as mãos. E em pouco tempo chegaram à palavra e descobriram-se enamorados, os Adão e Eva de uma nova raça no mundo.

Pisaram ao mesmo tempo no maravilhoso vale do amor, com seus profundos e quietos lugares. O mundo mudou à volta deles, com a mudança de estados de espírito, até tornar-se afinal, por assim dizer, uma beleza de tabernáculo em volta daqueles encon­tros, e as estrelas não eram mais que flores de luz aos pés de seu amor, e a aurora e o crepúsculo as coloridas cortinas ao lado. Deixaram de ser seres de carne e osso um para o outro e para si mes­mos: passaram a um tecido corpóreo de ternura e desejo. Deram a isso, primeiro, sussurros, e depois silêncio, e aproximaram-se e olha­ram-se um ao outro nos rostos enluarados e sombreados sob o in­finito arco do céu. E os negros e imóveis pinheiros negros erguiam-se à sua volta como sentinelas.

O soar dos passos do tempo foram calados e reduzidos ao silêncio, e parecia-lhes que o universo pendia imóvel. Só ou­viam seus corações, batendo forte. Pareciam estar vivendo juntos num mundo onde não havia morte, e na verdade assim era com eles. Parecia-lhes que sondavam, e na verdade sondavam, esplen­dores bem ocultos, no coração mesmo das coisas, onde ninguém chegara antes. Mesmo para almas mesquinhas e pequenas o amor é uma revelação de esplendores. E aqueles eram amantes gigantes, que haviam comido o Alimento dos Deuses...

Pode-se imaginar a crescente consternação daquele mundo ordeiro quando se soube que a Princesa prometida ao Príncipe, a Princesa, Sua Serena Alteza!, com sangue real nas veias!, encontra­va-se — encontrava-se frequentemente — com o hipertrofiado re­bento de um plebeu professor de química, uma criatura sem tí­tulo, sem posição, sem riqueza, e conversava com ele como se não houvesse Reis e Princesas, ordem, reverência — nada, a não ser gigantes e pigmeus neste mundo; conversava com ele e, era sim­plesmente certo, o tinha como namorado.

 Se esses sujeitos dos jornais pegarem isso! — arquejava Sir Arthur Poodle Bootlik. ..

 Disseram-me...

 Uma nova história lá em cima — dizia o primeiro palafreneiro, mordiscando as coisas da sobremesa. — Até onde vejo essa tal Princesa...

Dizem... — dizia a mulher que cuidava da papelaria ao lado da entrada principal do palácio, onde os pequenos americanos arranjam entradas para os Aposentos Oficiais...

E depois:

—        Estamos  autorizados a negar...   —  disse  "Pícaro" em Mexericos.

E assim estourou a encrenca toda.

 

—        Dizem que temos de nos separar — disse a Princesa ao seu namorado.

—— Mas por quê? — exclamou ele, — Que nova loucura essa gente enfiou na cabeça?

Você sabe — ela perguntou — que me amar...   é alta traição?

 Minha querida — ele gritou — e isso importa? Que significam para nós o direito... um direito sem sombra de razão... a traição e a lealdade deles?

 Você vai ouvir — ela disse, e falou-lhe das coisas que lhe tinham contado. — Apareceu-me o mais estranho homenzinho...  com uma voz suave e lindamente modulada, um homenzinho de movimentos macios, que deslizou para dentro  da sala como um gato, e erguia a bela mãozinha branca assim, sempre que tinha al­guma coisa importante a dizer.   Era calvo, mas não, decerto, in­teiramente, e o nariz e as faces eram coisinhas róseas e gorduchas, a barba aparada em ponta da maneira mais adorável. Fingiu emo­cionar-se várias vezes, e os olhos reluziam.   Sabe, ele é bastante amigo da família real aqui, chamava-me de sua querida jovem, e mostrou-se perfeitamente simpático desde o começo.  "Minha cara jovem", disse, "sabeis que... não deveis...” várias vezes, e de­pois: "Tendes um dever".

- Onde fazem homens desses?

— Ele gosta disso — ela disse.

 Mas não vejo...

 Disse-me coisas sérias.

 Você não crê — ele disse, virando-se para ela abruptamente — que haja alguma coisa no que ele lhe disse?

 Há alguma coisa com toda certeza — ela disse.

 Você quer dizer...

 Quero dizer que, sem o saber, temos pisoteado as mais sagradas concepções do povinho. Nós, realeza, somos uma classe à parte.   Somos prisioneiros adorados, brinquedos de desfile. Paga­mos a adoração com a perda de...  nossa liberdade elementar. E eu devia casar-me com aquele Príncipe... Mas você nada sabe dele. Bera, um Príncipe pigmeu.   Ele não importa...  Parece que isso estreitaria os laços entre meu país e outro.  E este também... sairia lucrando. Imagine! Fortalecer os laços! — E agora?

 Querem que eu continue com a coisa...  como se nada houvesse entre mini e você.

 Nada!

—        Sim.   Mas não é só isso.  Ele disse...

— Seu especialista em tato?...

— Sim. Ele disse que seria melhor para você, melhor para todos os gigantes, se nós dois nos abstivéssemos de conversar um com o outro. Foi como ele pôs a coisa.

 Mas que podem fazer eles se não obedecermos?

— Ele disse que você poderia ter sua liberdade.

 Eu!

 Ele disse, enfaticamente: "Minha cara jovem, seria melhor, seria mais digno, se vocês se separassem voluntariamente". Foi só o que disse.  Com ênfase no voluntariamente.

 Mas!... Que têm esses desgraçadinhos com o lugar onde namoramos, e como namoramos?  Que têm eles e o mundo deles a ver conosco?

 Eles não pensam assim.

 É evidente — ele disse — que você ignorou tudo isso.

 Parece-me absoluta idiotice.

 Que as leis deles nos acorrentem! Que nós, como a primeira fonte de vida, sejamos obstruídos pelos velhos compromissos deles, pelas instituições sem sentido deles! Oh!... Ignoremos isso.

 Eu sou sua.  Até agora... sim.

 Até agora?   Isso não é tudo?

 Mas eles...  se quiserem nos separar...

 Que podem fazer?

 Não sei.  Que podem fazer?

 Quem se importa com o que possam fazer, ou com o que farão?  Eu sou seu e você é minha.   Que mais há? Eu sou seu e você é minha... para sempre. Acha que as regrinhas deles vão me deter,   as   proibiçõezinhas   deles,   os   avisos   vermelhos   deles   de fato!... e ficar longe de você?

 Sim.   Mas mesmo assim, que podem fazer?

 Você quer dizer — ele disse — o que nós vamos fazer?

 Sim.

 Nós? Nós podemos continuar.

 Mas se tentarem nos impedir?

Ele cerrou os punhos.   Olhou em torno, como se o povinho já viesse impedi-los.  Depois deu-lhe as costas e olhou o mundo.

—        Sim — disse. — Sua pergunta foi a certa.   Que podem fazer?

 Aqui nesta torrinha — ela disse, e parou.

Ele pareceu examinar toda a terrinha.

 Estão em toda parte.

 Mas nós podíamos...

 Para onde?

— Podíamos partir.   Podíamos  atravessar os mares a  nado juntos. Além dos mares...

—        Nunca estive além dos mares.

 Existem montanhas grandes e desertas, em meio às quais não pareceríamos maiores que o povinho, existem vales distantes e desertos, existem lagos ocultos e planaltos cobertos de neve jamais pisados por pés humanos.   Lá...

 Mas para chegarmos lá teremos de abrir caminho lutando dia após dia, através de milhões e milhões de pessoas.

 É nossa única esperança. Nesta terra lotada não há reduto, não há abrigo.   Que lugar existe para nós entre essas multidões? Os pequenos podem esconder-se uns dos outros, mas onde vamos nós nos esconder?   Não há lugar onde possamos comer, dormir. Se fugíssemos... eles seguiriam nossos passos dia e noite.

Ele teve uma idéia.

 Existe um lugar — disse — mesmo nesta ilha.

 Onde?

 O lugar que nossos Irmãos construíram daquele lado. Fizeram grandes contrafortes em torno da casa, no norte, sul, leste e oeste; cavaram profundos fossos e lugares ocultos, e mesmo ago­ra... um deles veio a mim bem recentemente. Disse... não prestei muita atenção ao que ele disse então. Mas falou em armas. Pode ser que lá...... encontremos abrigo... Há muitos dias — acrescen­tou, após uma pausa — não vejo nossos irmãos... Querida!   Esti­ve  sonhando, esquecendo!   Os dias  passaram e eu só fiz olhar para você... Devo ir a eles, falar com eles, e falar-lhes de você e de todas as coisas que pairam sobre nós. Se nos ajudarem, podem ajudar-nos. Então de fato poderíamos ter esperança. Não sei até onde o reduto deles é forte, mas sem dúvida Cossar deve tê-lo feito forte. Antes disso tudo... antes de você me aparecer, lembro-me agora... sentia-se a encrenca fermentando. Houve uma eleição... quando todo o povinho acerta as coisas contando as cabeças. Deve ter acabado já. Havia ameaças contra a nossa raça, contra toda a nossa raça, isto é, menos você. Preciso ver nossos Irmãos. Preciso dizer a eles tudo que aconteceu entre nós e tudo que nos ameaça.

 

Não voltou a encontrar-se com ela por algum tempo. Deviam encontrar-se naquele dia, por volta do meio-dia, num grande trecho do parque que ficava dentro de uma curva do rio, e enquanto ela esperava, olhando sempre para o sul, protegendo os olhos com a mão, ocorreu-lhe que o mundo estava muito quieto, na verdads taciturnamente quieto. E então percebeu que, apesar do avançado da hora, seu costumeiro séquito de espiões voluntários havia falta­do ao encontro. Olhando para um lado e para outro, não via nin­guém, e nem um bote cruzava a prateada curva do Tamisa. Tentou descobrir uma razão para aquela estranha quietude no mundo...

Então, visão grata para ela, avistou o jovem Redwood bem longe, numa abertura entre as árvores que delimitavam sua pers­pectiva.

Logo as árvores e o esconderam, mas ele acabou atravessan­do-as e tornando a aparecer. Ela viu que havia alguma coisa diferente, e então percebeu que ele corria de uma maneira estranha, e depois que mancava. Fez um gesto para ela, ao aproximar-se. Seu rosto tornou-se mais visível, e ela viu com infinita preocupa­ção que ele piscava a cada passada. Ela corria agora em direção a ele, a mente cheia de perguntas e um vago temor. Ele se aproxi­mou e falou, sem cumprimentá-la.

 Devemos separar-nos —- arquejava.

 Não — ela respondeu. — Por quê? Que é que há?


—        Mas se não nos separarmos!... É agora.

— Que é que há?

—        Eu não quero separar-me — ele disse. — Apenas... — interrompeu-se de repente para perguntar: — Você não se separará de mim?

Ela enfrentou os olhos dele com um olhar firme.

 Que aconteceu? — insistiu.

 Nem por uns tempos?

 Que tempo?

 Anos, talvez.

 Separar-nos!   Não!

 Você pensou? — ele insistiu.

 Não me separarei. — Ela tomou a mão dele. — Mesmo que isso significasse a morte, agora, eu não o deixaria partir.

 Mesmo que significasse a morte — ele disse, e ela sentiu que  apertava  os  seus  dedos. Ele olhou em volta, como se receasse ver o povinho aproximar-se enquanto falava.   E depois: — Pode significar a morte.

 Agora me diga — ela pediu.

 Tentaram impedir a minha vinda.

 Como?

 Quando saí de minha oficina, onde fabrico o Alimento dos Deuses para os Cossar armazenarem em seu acampamento, encontrei um pequeno agente da polícia... um homenzinho vestido de azul, com luvas brancas... que me mandou parar. "Este caminho está fechado!", disse. Não dei muita importância, contornei minha ofi­cina até outra estrada, em direção  ao oeste,  e lá estava outro guarda: "Esta estrada está fechada!", disse, e acrescentou: "Todas as estradas estão fechadas!"

 E então?

 Discuti algum tempo com ele.  "São vias públicas!", eu disse. "É isso mesmo", ele disse. "Vocês as estragam para o público". "Muito bem", eu disse, "vou pelos campos", e aí saltaram outros de trás de uma sebe e disseram: "Esses campos são particulares". "Ao diabo com seu público e particulares", eu disse. "Vou ver a minha Princesa", e me abaixei e o peguei com toda a deli­cadeza. ... O homenzinho escoiceava e berrava... e o afastei do ca­minho.  Num instante, todos os campos à minha volta pareciam fervilhar de homenzinhos correndo. Vi um cavalo cavalgando a meu lado e lendo alguma coisa enquanto cavalgava... berrando-a. Acabou, deu meia-volta e galopou para longe de mim... de cabeça baixa. Não consegui saber o que era. E então, atrás de mim, ouvi o estalar das espingardas.

 Espingardas!

 Espingardas...  do mesmo jeito que atiram nos ratos. As balas cruzavam o ar com um som de coisas dilacerando-se: uma me atingiu na perna.

— E você?

—        Vim encontrar você aqui e deixei-os berrando e atirando atrás de mim.  E agora...

— Agora?

—        Isso é só o começo.   Eles pretendem que nos separemos. Neste momento, estão vindo atrás de mim.

— Não nos separarão.

— Não. Mas se não vamos nos separar... você deve vir co­migo para onde estão nossos Irmãos.

 Para que lado? — ela disse.

 Para leste. É por ali que meus perseguidores virão. Logo, este é o caminho que devemos tomar. Por esta avenida de árvores. Deixe-me ir na frente, para que, se estiverem esperando... — Deu um passo, mas ela o agarrou pelo braço.

— Não — ela gritou. — Vou junto a você, agarrada a você. Talvez seja da realeza, talvez seja sagrada. Se o segurar... quisesse Deus que pudéssemos voar, com meus braços à sua volta... pode ser que não atirem em você...

Agarrou o ombro dele e tomou-lhe a mão enquanto falava; comprimia-se mais contra ele.

—        Pode ser que não atirem em você — repetiu, e com um súbito arroubo de ternura ele a tomou nos braços e beijou-lhe a face.  Segurou-a por algum tempo. — Mesmo que seja a morte — ela sussurrou. Envolveu-lhe o pescoço com os braços e ergueu o rosto até o dele. — Querido, beije-me mais uma vez.

Ele a puxou para si. Beijaram-se em silêncio, nos lábios, e por mais um momento permaneceram abraçados. Depois, de mãos dadas, ela tentando sempre manter seu corpo colado ao dele, partiram, para buscar alcançar o acampamento de refúgio dos filhos de Cossar antes que a perseguição do povinho os alcançasse.

E enquanto cruzavam os grandes espaços do parque atrás do castelo, surgiram cavaleiros galopando de entre as árvores, tentan­do inutilmente manter o passo com as gigantescas passadas deles. Por fim, à frente dos dois surgiram casas das quais saíam homens com armas. Ao verem isso, e embora ele procurasse seguir em frente e estivesse mesmo disposto a lutar e abrir caminho, ela o fez virar em direção ao sul.

Enquanto fugiam, uma bala passou silvando por cima deles.

 

O JOVEM CADDLES EM LONDRES

O jovem Caddles, ignorando inteiramente a tendência dos acontecimentos, ignorando as leis que se fechavam sobre todos os Irmãos, ignorando mesmo que houvesse um Irmão seu na terra, escolheu exatamente esse momento para deixar a mina de giz e ir ver o mundo. Sua meditação dera finalmente nisso. Não havia res­postas para todas as suas perguntas em Cheasing Eyebright; o novo Vigário era ainda menos esclarecedor que o antigo, e o enigma de seu inútil esforço chegara afinal às dimensões da exasperação. "Por que tenho de trabalhar neste poço dia após dia?", perguntava. "Por que me encerraria dentro de limites e deixaria que me recusassem todas as maravilhsas do mundo além deles? Que fiz eu, para ser condenado a isso?"

E um dia levantou-se, espigou as costas e disse em voz alta:

—        Não! Não aceito. — E então, com grande vigor, amaldiçoou a mina.

Em seguida, como tinha poucas palavras, buscou expressar seus pensamentos em atos. Pegou um vagão cheio pela metade de giz, ergueu-o e jogou-o, despedaçado, contra outro. Depois pegou toda uma fila de vagões vazios e virou-os por um barranco abaixo. Atirou uma imensa rocha de giz sobre eles, e depois arrancou uns doze metros de trilhos com um poderoso pontapé. Assim deu iní­cio à deliberada destruição da mina.

—        Trabalhar todos os meus dias — disse — nisso!

Foram uns espantosos cinco minutos para o pequeno geólogo que, em sua preocupação, ele esquecera. A pobre criaturinha esquivou-se de duas pedradas por um triz, saiu pela esquina oeste e fugiu através do morro, com a sacola batendo nas costas e as per­nas embaraçando-se nos calções folgados, apertados nos joelhos, dei­xando atrás uma trilha de equinodermes cretáceos, enquanto o jo­vem Caddles, satisfeito com a destruição que conseguira, corria atrás dele para cumprir sua missão no mundo.

— Trabalhar nessa velha mina até morrer, apodrecer e fe­der! ... Que verme pensavam que vivia em meu corpo gigante? Cavar giz Deus sabe para que fim idiota! Eu, não!

A direção da estrada e da ferrovia, talvez, ou o simples acaso, voltaram-no para Londres; e para lá ele foi correndo, atravessando as chapadas e cruzando os prados na tarde quente, para infinito pasmo do mundo. Nada significava para ele que avisos rasgados em vermelho e branco, contendo várias palavras, pendessem de todos os muros e celeiros; ele nada sabia da revolução eleitoral que projetara Caterham, "Jack Matador de Gigantes", ao poder. Nada significava para ele que toda delegacia policial tivesse o que era conhecido como ukase de Caterham em seu quadro de avisos naquela tarde, proclamando que nenhum gigante, nenhuma pessoa de mais. de dois metros e meio poderia afastar-se mais de sete quilômetros de seu "lugar de locação" sem permissão especial. Nada sig­nificava para ele que em sua esteira policiais deixados para trás, e não pouco satisfeitos com isso, lhe acenassem com papéis de adver­tência. Ia ver o que o mundo tinha para mostrar-lhe, pobre cabeça-de-pau incrédulo, e não pretendia deixar que pessoas agitadas, ber­rando-lhe "Ei!", lhe barrassem o curso. Desceu através de Rochester e Greenwich em direção a uma crescente agregação de casas, andando agora mais devagar, olhando em volta e balançando seu imenso machado.

O povo de Londres soubera antes alguma coisa a seu respeito, que era meio idiota mas delicado, e maravilhosamente controlado pelo agente de Lady Wondershot e o Vigário; que, à sua maneira, obtusa, reverenciava as autoridades e lhes era grato pelos cuidados que lhe dispensavam, e essas, coisas todas. Assim, quando soube­ram, pelos cartazes dos jornais naquela tarde, que também ele estava "em greve", isso pareceu a muitos um ato combinado deliberadamente...

 Pretendem testar nossa força — diziam os homens  nos trens que voltavam do comércio para casa.

 É uma sorte a gente ter Caterham.

 É uma reação à proclamação dele.

Os homens nos clubes estavam mais bem-informados. Reu­niam-se em torno da mesa ou conversavam em grupos em suas sa­las de fumar.

— Ele não tem armas. Teria ido para Sevenoaks se estivesse disposto a lutar.

—        Caterham cuidará dele...

Os caixeiros das lojas diziam aos fregueses. Os garçons nos restaurantes roubavam um momento para uma leitura nos vesper­tinos entre os pedidos. Os cocheiros liam tais notícias logo após as de corridas...

Os cartazes do principal vespertino do governo eram ostensi­vos, com manchetes sobre "Erradicar a Urtiga". Outros esperavam tirar efeito de: "O Gigante Redwood Continua a Encontrar-se com a Princesa". O Eco adotou uma linha própria: "Rumores de Re­volta dos Gigantes no Norte da Inglaterra. Gigantes de Sunderland Partem para Escócia". A Gazeta de Westminster soava sua nota de alarme usual: "Cuidado, Gigantes", e tentava provar que isso talvez servisse para unificar o Partido Liberal — nessa época muito dividido entre sete líderes intensamente egoístas. Os últimos jor­nais caíram na uniformidade. "Gigantes na Estrada de New Kent", proclamavam.

—        O que eu quero saber — dizia o pálido jovem na casa de chá — é porque não temos notícia alguma dos jovens Cossar. Se­ria de julgar que eles, sobretudo, estivessem metidos nisso...

— Dizem que outro desses jovens gigantes se soltou — dizia a moça do bar, enxugando um copo. — Eu sempre disse que eram coisas perigosas para andar por aí. Desde o princípio... Deviam pôr um fim. De qualquer modo, espero que não apareça por aqui.

 Eu bem que ia gostar de dar uma espiada nele — dizia o jovem no bar, inquieto. E acrescentava: — Eu vi a Princesa.

 Acha que eles vai ferir ele? — perguntava a moça do bar.

— Podem ser obrigados — dizia o jovem no bar, acabando seu copo.

Em meio a um milhão de tais comentários, o jovem Caddles chegou a Londres...

 

Sempre penso no jovem Caddles como o viram em New Kent Road, o crepúsculo cálido sobre seu rosto perplexo e de olhar fixo. A estrada estava apinhada de seu variado tráfego, ônibus, bondes, carroças, troles, ciclistas, motores e uma multidão maravilhada — ociosos, mulheres, babás, mulheres fazendo compras, adolescentes aventureiros — reunida atrás de seus pés, que se moviam com cau­tela. Os tapumes estavam cobertos por toda parte com os cartazes rasgados das eleições. Uma babel de vozes rugia em volta dele. Viam-se os fregueses e caixeiros, amontoando-se nas portas das lo­jas, rostos que surgiam e desapareciam nas janelas, os pequenos moleques de rua que corriam e gritavam, os policiais encarando tu­do aquilo muito rígida e calmamente, os operários batendo em andaimes, a fervilhante miscelânea do povinho. Gritavam-lhe vagos encorajamentos, vagos insultos, os lugares-comuns imbecis da épo­ca, e ele os olhava lá embaixo, aquela multidão de criaturas vivas que nunca imaginara haver no mundo.

Agora que entrara mesmo em Londres, tinha de reduzir o pas­so cada vez mais, pois o povinho se amontoava muito à sua volta. A multidão tornava-se mais densa a cada passo, e finalmente parou numa esquina, aonde duas grandes ruas convergiam, e a multidão despejou-se à sua volta e fechou-o.

Ali ficou ele, com os pés um pouco afastados, as costas para uma grande taverna duas vezes a sua altura e terminando num car­taz contra o céu, olhando os pigmeus lá embaixo e imaginando, tentando, não duvido, confrontar tudo aquilo com as outras coisas da vida, com o vale entre as chapadas, os namorados noturnos, o canto na igreja, o giz no qual martelava diariamente, e com o ins­tinto e a morte e o céu, tentando juntar tudo num todo coerente esignificativo. Franziu as sobrancelhas. Ergueu a pata enorme para coçar o grosso cabelo e gemeu alto:

—        Não estou vendo o sentido.

Seu sotaque não era familiar. Um grande balbucio correu o espaço aberto, um balbucio em meio aos sinos dos bondes, que abriam obstinadamente caminho através da massa, ergueu-se como papoulas vermelhas em meio ao trigo.

 Que foi que ele disse?

 Disse que não via.

 Perguntou onde estava o mar?

— Perguntou onde tinha uma cadeira.

— Quer uma cadeira.

— Esse maldito bastardo não pode se sentar numa casa ou algo assim?

—        Pra que vocês serve, seu povinho abelhudo? Que vocês tá fazendo... pra que vocês serve? Que vocês tá fazendo aqui, seu povinho abelhudo, enquanto eu tou cortando giz pra vocês, na mi­na de giz lá embaixo?

Sua voz esquisita, a voz que fora tão ruim para a disciplina escolar em Cheasing Eyebright, impôs silêncio à multidão, soando e pondo-os todos em tumulto no fim. Ouviu-se um engraçadinho gritando: "Discurso! Discurso!"

—        Que é que ele tá dizendo? — foi o fardo na opinião pú­blica, e emitiu-se o palpite de que estava bêbedo.

— Ei, ei, ei! — berravam os condutores de ônibus, trilhando um perigoso caminho. Um marinheiro americano bêbado vagueava perguntando:

—        Mas que é que ele quer?

Um negociante de trapos, de rosto parecendo couro, em cima de sua carroça, pairava acima do tumulto devido à sua voz.

—        Vá pra casa, seu maldito Gigante! — berrava. — Vá pra casa! Maldita coisa perigosa! Será que não vê que tá assustando os cavalo? Pra casa com você!   Será que ninguém se lembrou de di­zer a lei pra ele?

E o jovem Caddles olhava por sobre todo aquele clamor, per­plexo, expectante, sem dizer mais nada.

Descendo uma rua lateral vinha uma fila de solenes policiais enfiando-se habilidosamente no tráfego.

—        Recuem — diziam as vozinhas. — Mexam-se, por favor. O jovem Caddles percebeu uma figurinha de azul-escuro batendo-lhe nas canelas.

Olhou para baixo.

 Quê? — perguntou, curvando-se.

 Não pode ficar por aqui — gritou o inspetor. — Não. Não pode ficar por aqui — repetiu.

 Mas pra onde eu vou?

 Volte pra sua aldeia. Lugar de locação. De qualquer mo­do, agora... tem de se mexer. Tá atrapalhando o tráfego.

 Que tráfego?

 Na rua.

 Mas pra onde vai o tráfego? De onde vem? Que significa isso? Tá todo mundo me rodeando. Que é que eles quer? Que é que eles tá fazendo? Eu quero entender. Tou cansado de cortar giz e ficar só. Que é que eles faz por mim enquanto eu corto giz? Quero entender aqui e já.

 Sinto muito. Mas não tamos aqui para explicar esse tipo de coisa. Tenho de pedir que se mexa.

 Você sabe?

 Tenho de pedir a você que se mexa...  se faz favor...

Aconselho você, energicamente, a voltar pra casa. A gente ainda não recebeu instruções especiais... mas é contra a lei. Dê o fora daqui. Dê o fora.

O pavimento à sua esquerda tornou-se convidativamente vazio, e o jovem Caddles seguiu vagarosamente seu caminho. Mas ago­ra soltara a língua.

—        Eu não entendo — resmungava. —- Eu não entendo. — Apelava em sua parca linguagem à cambiante multidão que conti­nuava a seu lado e atrás. — Eu não sabia que tinha lugar como esse. Que vocês todo faz consigo mesmo? Pra que é isso tudo? Pra que é isso tudo e onde é que eu entro?

Já concebera uma nova palavra chave. Jovens espirituosos dirigiam-se uns aos outros da seguinte maneira: "Olá, Arry O'Cock. Pra que tudo isso? Hem? Pra que esse barulho todo?"

Ao que brotava uma competitiva variedade de respostas, em sua maior parte grosseiras. A mais popular e mais adequada para uso geral parecia ser "Cala a boca", ou, numa voz de desdenhoso distanciamento:

— Vá-se!

 

Que buscava ele? Queria alguma coisa que o mundo dos pigmeus não dava, alguma meta que o mundo dos pigmeus impedia-o de atingir, impedia-o até de ver claramente. Era o gigantesco lado social daquele solitário e bronco monstro clamando por sua raça, pelas coisas afins dele, por algo que pudesse amar e algo a que pudesse servir, por um propósito que pudesse compreender e uma ordem a que pudesse obedecer. E, vocês sabem, tudo isso era obtuso, rugia obtusamente dentro dele, não podia sequer, se encontrasse um companheiro gigante, achar escoamento e expressão na fala. Toda a vida que conhecia era a chata rotina da aldeia, toda a fala que conhecia era a fala das cabanas, que falhava e morria ao sim­ples esboço de suas mínimas necessidades de gigante. Nada sabia de dinheiro, o monstruoso simplório, nada sabia do comércio, das com­plexas convenções sobre as quais se erguia a tessitura social do povinho. Precisava, precisava... O que quer que precisasse, nunca encontrou satisfação.

Vagueou durante todo o dia e a noite de verão, ficando com fome mas ainda não cansado, observando o variado tráfego das diferentes ruas, as inexplicáveis atividades daqueles seres infinitesimais. No agregado, aquilo parecia-lhe apenas confusão...

Diz-se que pescou uma mulher de sua carruagem em Kensington, uma dama em vestido de noite do tipo mais elegante, que a escrutinizou minuciosamente, a cauda e os ombros, e recolocou-a em seu lugar — um tanto descuidadamente — com o mais profun­do suspiro. Isso eu não posso garantir. Durante mais ou menos uma hora, observou pessoas lutando por lugares nos ônibus no fim de Piccadilly. Viram-no assomar sobre Kennington Oval por alguns instantes à tarde, mas quando viu como aqueles densos milhares seempenhavam com o mistério do criket e o ignoravam inteiramen­te, afastou-se com seu gemido.

Voltou a Piccadilly Circus entre as onze e as doze da noite, e descobriu um novo tipo de multidão. Aqueles estavam visivelmente muito decididos: cheios de coisas que, por motivos inconce­bíveis, poderiam fazer e de outras que não poderiam. Olhavam-no, gozavam-no e seguiam adiante. Os cocheiros, com olhos de abu­tres, seguiam-se uns aos outros continuamente ao longo da fervilhante calçada. Pessoas saíam de restaurantes ou neles entravam, graves, decididas, dignas, ou delicada e agradavelmente excitadas, ou atentas e vigilantes — fora do alcance do mais astuto garçom que já nascera. O grande gigante, de pé em sua esquina, espiava todos eles. "Pra que tudo isso?", murmurava num subtom imenso e triste. "Pra que tudo isso? É todos tão sério. Que é que eu não entendo?"

E nenhum deles parecia ver, como ele, a ébria desgraça das mulheres pintadas na esquina, a esfarrapada miséria que se esgueirava pelas sarjetas, a infinita futilidade de toda aquela atividade. A infinita futilidade! Nenhum deles parecia sentir a sombra daquela necessidade gigante, aquela sombra do futuro, que cruzava seus caminhos...

Do outro lado da rua, no alto, letras misteriosas acendiam-se e apagavam-se, letras que poderiam, se as soubesse ler, ter dimensionado para ele o interesse humano, ter-lhe falado das necessida­des e características fundamentais da vida como o povinho a con­cebia. Primeiro vinha um flamejante T.

Depois seguia-se um U

TU

Depois P

TUP

Até que afinal se completava, estampado no céu, a animada mensagem a todos que sentiam o fardo da seriedade da vida:

TUPPER, VINHO TÔNICO QUE DÁ VIGOR

 

Plac! e desaparecia na noite, sendo seguida no mesmo lento desdobramento por um segundo apelo universal:

SABONETE DE BELEZA

 

Não, reparem bem, simples produtos químicos de limpeza, mas algo, como dizem, "ideal"; e depois, completando o tripé da vidinha:

PÍLULAS AMARELAS DE YANKER

 

E nada mais havia senão Tupper de novo, em chamejantes le­tras púrpura, plac, plac, plac, cruzando o vazio.

T       U       P        P  .   .   .

Nas primeiras horas da madrugada, parece que o jovem Caddles chegou à escura quietude de Regenfs Park, passou por cima dos trilhos e deitou-se numa encosta gramada perto de onde as pessoas patinam no inverno, e ali dormiu por mais ou menos uma hora. Por volta das seis horas da manhã, conversava com uma mulher enlameada que encontrara dormindo numa vala perto de Hampstead Heath, perguntando-lhe muito seriamente para que ela achava que servia...

 

As andanças de Caddles por Londres chegaram ao auge no segundo dia de manhã. Pois então sua fome o venceu. Hesitou num lugar onde os pães com aquele cheiro quente eram jogados numa carroça, e aí, muito quietinho, ajoelhou-se e iniciou o assalto. Es­vaziou a carroça, enquanto o homem da padaria fugia para chamar a polícia. Depois, com uma braçada de pães, ainda comendo, ele seguiu seu caminho em busca de outra loja para continuar a refeição. Acontece que era uma daquelas temporadas em que o traba­lho é escasso e a comida cara, e a multidão do bairro simpatizava mesmo com um gigante que tomava a comida que eles próprios desejavam. Aplaudiram a segunda fase de sua refeição, e riram de sua estúpida careta para o policial.

 Eu tchava com fome — ele disse, com a boca cheia.

 Braivo — gritou a multidão. — Braivo!

Depois, quando iniciava sua terceira padaria, foi detido por meia dúzia de policiais que lhe martelavam com cassetetes as canelas.

— Olhe aqui, meu bom gigante, você vem comigo — disse o policial no comando. — Não pode se afastar de casa assim. Vamos pra casa comigo.

Fizeram o que puderam para prendê-lo. Disseram-me que um trole corria a rua acima e abaixo nessa hora, transportando rolos de correntes e cabos de navios para servir de algemas naquela gran­de prisão. Não se pensava então em matá-lo.

—        Ele não faz parte da conspiração — dissera Caterham. — Não terei sangue inocente em minhas mãos.

A princípio, Caddles não entendera o alcance dessas atenções. Quando entendeu, disse aos policiais que deixassem de ser idiotas e partiu em grandes passadas, que os deixavaram para trás. As pada­rias ficavam em Harrow Road, e ele atravessou o canal London para St. John's Wood e sentou-se num jardim particular para espalitar os dentes; mas logo foi assaltado por outra força de policiais.

 Vocês me deixa em paz — rugiu, e vagou pelo jardim, estragando vários gramados e chutando uma ou duas cercas abai­xo, enquanto os enérgicos policiais o seguiam, alguns pelo jardim, alguns pela rua em frente às casas. Tinham uma ou duas espingardas, mas não fizeram uso delas. Quando ele chegou à Edgware Road, havia um novo tom e um novo movimento na multidão, e um polícia montada cavalgou por cima do pé dele e foi derrubado por isso.

 Vocês me deixa em paz — disse Caddles, enfrentando a multidão de respiração presa, — Não fiz nada pra vocês.

Nessa hora, estava desarmado, pois deixara sua machadinha de giz em Regenfs Park. Mas então, pobre-diabo, parece ter sentido a necessidade de alguma arma, Votlou em direção ao pátio de mercadorias da Great Western Railway, arrancou o poste de uma alta lâmpada, uma formidável maça para ele, e jogou-o no ombro. E encontrando a polícia ainda disposta a chateá-lo, voltou pela Edgware Road em direção a Cricklewood e tomou mal-humorado o rumo norte,

Vagueou até Waltham, depois voltou para oeste e depois novamente para Londres, e chegou de novo, atravessando cemitérios e o morro de Highgate, por volta do meio-dia, à vista da cidade. Dobrou para o lado e sentou-se num jardim, recostado numa casa que dava para toda Londres. Estava sem fôlego, e tinha o rosto abaixado, e agora as pessoas não mais se amontoavam à sua voltacomo haviam feito quando chegara a Londres pela primeira vez, mas escondiam-se nos jardins vizinhos e espiavam de lugares se­guros. Sabiam agora que a coisa era mais feia do que haviam pensado.

—        Por que eles não deixa eu em paz? — rosnava o jovem Caddles. — Eu preciso comer. Por que eles não deixa eu em paz?

Sentava-se de cara fechada, mordendo os nós dos dedos e olhando Londres lá embaixo. Todo o cansaço, preocupação, perple­xidade e ira impotente de suas andanças chegavam-lhe ao auge.

 Eles não vale nada — murmurava. — Eles não vale nada. E não quer deixar eu em paz, e fica me atrapalhando. — E repetia-se, sem parar, que eles não "valia" nada. — Uuh! Povinho! — Mordia os nós dos dedos com mais força e aumentava a carranca. — Cortar giz pra eles — murmurava. — E o mundo todo é só deles! Eu não entro... em lugar nenhum. — Finalmente, com um espasmo de nauseada cólera, viu a forma agora conhecida de um policial montado no muro do jardim. — Me deixa eu em paz — rosnou o gigante. — Deixa eu em paz.

 Eu tenho de cumprir meu dever — disse o pequeno poli­cial, com um rosto pálido e decidido.

 Deixa eu em paz. Eu preciso viver tanto quanto você. Pre­ciso comer. Deixa eu em paz.

— É a lei — disse o policialzinho, sem se aproximar mais. —- Não é a gente que faz a lei.

—        Nem eu — disse o jovem Caddles. — Vocês, povo peque­no, fez tudo isso antes deu nascer. Você e suas lei! O que eu devo enão devo fazer. Não tem comida pra eu comer a não ser que trabalhe como escravo, não tem descanso, não tem casa, nada, e vem você aí dizer pra eu...

 Eu não tenho nada com isso — disse o policial. — Não é comigo que você tem de discutir. Eu só faço cumprir a lei. — E passou a outra perna por cima do muro, parecendo disposto a des­cer. Outros policiais surgiram atrás dele.

 Eu não tenho briga com você, veja lá — disse o jovem Caddles, segurando forte a enorme maça de ferro, o rosto pálido, e um comprido dedo explanatório para o policial. — Eu não tenho nenhuma briga com você. Mas... você deixa eu em paz.

O policial tentou ser calmo e despreocupado, com a monstruosa tragédia visível diante dos olhos.

 Me dê a proclamação — disse para um seguidor fora do vistas, e entregaram-lhe um pedacinho de papel branco.

 Deixa eu em paz — disse Caddles, carrancudo, tenso e pronto.

 Isto aqui quer dizer — disse o policial, antes de ler — vá pra casa. Vá pra sua mina de giz. Senão, vai se machucar.

Caddles deu um rosnado inarticulado.

Depois, quando a proclamação já fora lida, o policial fez um sinal. Quatro homens com fuzis surgiram e tomaram posições de afetada tranquilidade ao longo do muro. Usavam o uniforme da polícia dos ratos. Ao ver as armas, o jovem Caddles inflamou-se de cólera. Lembrou-se da ferroada dos rendeiros de Wreckstone.

 Vocês vai atirar com essas coisas em mim? — perguntou, apontando, e pareceu ao policial que ele estava com medo.

 Se você não voltar logo pra sua mina...

Então, num instante, o policial havia-se lançado de costas con­tra o muro, e dezoito metros acima dele o grande poste de eletricidade desceu trazendo-lhe a morte. Pam, pam, pam — pipocaram os pesados fuzis, e praac!, voaram o muro, o solo e o subsolo do jar­dim. Alguma coisa voou com eles deixando gotas vermelhas nas mãos de um dos atiradores. O fuzileiro correu abaixado de um lado para outro e voltou-se bravamente para tornar a disparar. Mas o jovem Caddles, já atingido duas vezes no corpo, girara para ver quem o atingira com tanta força nas costas. Pam! Pam! Ele teve uma visão das casas, das pessoas abaixando-se nas janelas, tudooscilando terrível e misteriosamente. Parece que deu três passos cambaleantes, ergueu e baixou a imensa maça, e levou as mãos ao peito. Fora ferroado e retorcia-se de dor.

Que era aquilo, quente e úmido, em sua mão?

Um homem, espreitando da janela de um quarto de dormir, viu o rosto dele, viu o olhar fixo, com uma careta de chorosa consternação, diante do sangue na mão, e depois seus joelhos dobra­ram-se e ele desabou por terra, a primeira das urtigas gigantes a cair sob o punho decidido de Caterham, exatamente o último que o político pensava que lhe viria às mãos.

 

OS DOIS DIAS DE REDWOOD

Assim que Caterham viu chegar o momento de agarrar sua urtiga, tomou a lei nas mãos e mandou prender Cossar e Redwood.

Redwood estava disponível. Sofrera uma operação no lado e os médicos haviam-no afastado de todos os males até assegurarem sua convalescença. E agora tinham-no liberado. Ele acabava de sair da cama, e achava-se sentado numa sala aquecida por uma lareira, com um monte de jornais em volta, lendo pela primeira vez sobre a agitação que jogara o país nas mãos de Caterham, e sobre o pro­blema que aumentava entre a Princesa e seu filho. Foi na manhã do dia em que o jovem Caddles morreu, e em que o policial tentou deter o jovem Redwood, que ia ao encontro da Princesa, Os últi­mos jornais que Redwood recebera só vagamente prefiguravam essas coisas iminentes. Ele relia tais primeiras alumbrações de tragé­dia com o coração pesado, vendo a sombra da morte cada vez mais perceptíveis nelas, e tentando ocupar assim a mente enquanto não vinham novas notícias. Quando os policiais seguiram o criado en­trando na sala, ele ergueu os olhos avidamente.

— Pensei que era um jornal vespertino que viera cedo — disse. E então, levantando-se e mudando rapidamente de modos, perguntou: — Que significa isso?

Depois disso, não teve mais notícia alguma por dois dias.

Tinham vindo com um veículo para levá-lo, mas quando se tornou evidente que estava doente, decidiram deixá-lo por um dia ou mais, até poderem removê-lo em segurança, e sua casa foi tomada pela polícia e convertida numa prisão temporária. Era a mes­ma casa em que nascera o Gigante Redwood, e na qual se tinha dado Herakleoforbia pela primeira vez a um ser humano e Red­wood estava viúvo e morava sozinho havia oito anos.

Tornara-se um homem grisalho, com uma pequena barba pontuda e olhos castanhos ainda vivos. Tinha um porte esbelto e uma voz suave, como sempre tivera, mas suas feições apresentavam ago­ra aquela indefinível aparência que resulta do muito pensar sobre coisas importantes. Para o policial encarregado de prendê-lo, aque­la aparência era um impressionante contraste com a enormidade de seus crimes.

—        Taí esse sujeito — disse o policial no comando para seu subordinado mais próximo. — Fez tudo que pôde pra estourar tu­do, e tem uma cara de um tranquilo cavalheiro rural; e lá tá o Juiz Hangbrow, que mantém tudo direitinho e em ordem pra todo mundo, e com uma cara de cachorro. E os modo deles! Um é todo consideração, e outro só rosnados e roncos. O que prova a gente, não é, que a gente não deve se guiar pelas aparências, seja lá o que a gente faça.

Mas esse elogio à consideração de Redwood terminou sendo destroçado. Os policiais logo descobriram que era encrenqueiro até deixarem-lhe claro que não adiantava fazer perguntas ou pedir jor­nais. Na verdade, fizeram uma espécie de inspeção em seu gabi­nete, e levaram todos os seus papéis. A voz de Redwood ergueu-se em advertência.

 Mas não vêem — repetiu vezes sem conta —, é meu filho, meu único filho, que está nessa encrenca. Não é com o Alimento que me incomodo, mas com o meu filho!

 Eu bem que gostava de contar ao senhor — disse o policial. — Mas as ordem da gente é severa.

 Quem deu as ordens?

 Ah, isso aí, senhor... — disse o policial, e dirigiu-se para a porta.

 Ele fica andando de um lado pra outro da sala — disse o segundo policial, quando o superior desceu. — Tá certo. Vai tirar a coisa do pensamento um pouco, andando.

 Espero que tire — disse o policial principal. — A verdade é que não vi a coisa desse jeito antes, mas esse tal gigante que con­tinua com a Princesa, você sabe, é filho desse homem aí.

Os  dois  entreolharam-se  e  ao  terceiro  policial  por   algum tempo.

—        Então é um pouco duro pra ele — disse o terceiro policial.

Tornou-se claro que Redwood ainda não aprendera direito ofato de que uma cortina de ferro caíra entre ele e o mundo externo. Ouviam-no dirigir-se à porta, experimentar a maçaneta e sacudir a fechadura, e depois a voz do policial de plantão no patamar dizen­do-lhe que não adiantava fazer isso. Depois ouviam-no forçando as janelas, e viam os homens do lado de fora olhando para cima.

—        Desse jeito não adianta — disse o segundo policial. Depois Redwood começou a tocar a sineta. O policial superior

subiu e explicou com toda paciência que não adiantava tocar a sineta daquele jeito, e se ela fosse tocada sem necessidade agora, poderia ser ignorada quando ele precisasse de alguma coisa.

—        Qualquer  coisa razoável, senhor — disse o policial. — Mas se o senhor tocar ela como protesto, vamos ser obrigados, se­nhor, a desligar.

A última frase que o policial ouviu foi a aguda voz de Redwood:

—        Mas você pelo menos podia me dizer se meu filho...

 

Depois disso, Redwood passou a maior parte de seu tempo nas janelas.

Mas elas pouco lhe ofereciam da marcha dos acontecimentos lá fora. Dificilmente passava um coche, uma carroça de comerci­ante, a manhã inteira. De vez em quando passavam alguns homens — sem qualquer aparência indicadora de acontecimentos — ou um grupo de crianças, uma babá e uma mulher indo às compras, e as­sim por diante. Chegavam ao cenário à direita ou à esquerda, su­bindo ou descendo a rua, com uma exasperante sugestão de indife­rença a quaisquer interesses mais amplos que os seus próprios; des­cobriam com surpresa a casa guardada por policiais e desapareciam na direção oposta, onde os grandes feixes de uma hidrângea gigante pendiam sobre a calçada. De vez em quando vinha um homem, fazia uma pergunta ao policial e obtinha uma curta resposta...

As casas defronte pareciam mortas. Uma vez apareceu uma criada na janela de um quarto, e olhou para fora por algum tempo, e ocorreu a Redwood fazer-lhe sinais. Ela observou seus gestos por algum tempo, parecendo interessada, e deu-lhe uma vaga resposta; depois olhou por cima do ombro de repente e desaparceu. Um ve­lho saiu trôpego do número 37, desceu os degraus e desapareceu para a direita, absolutamente sem erguer o olhar. Durante dez mi­nutos, o único ocupante da rua foi um gato...

Com tais acontecimentos, aquela interminável manhã se estendeu .

Por volta das doze horas ouviram-se berros de jornaleiros na rua vizinha; mas também isso passou. Ao contrário do que costu­mavam fazer, evitavam a rua de Redwood e baixou-lhe uma sus­peita de que a polícia montava guarda no fim da rua. Tentou abrir a janela, mas isso trouxe imediatamente um polícia ao quarto...

O relógio da igreja paroquial bateu doze horas, e após um abismo de tempo — uma.

O almoço foi um acinte.

Comeu um bocado e desarrumou o prato um pouco, para que o tirassem; bebeu uísque à vontade, e depois pegou uma cadeira e voltou à janela. Os minutos expandiam-se em cinzentas imensidões, e por algum tempo é possível que tenha dormitado...

Despertou com a vaga impressão de impactos ao longe. Percebeu um chocalhar das janelas, como o tremor de um terremoto, que durou mais ou menos um minuto e passou. Depois de um si­lêncio, voltou..., e passou de novo. Ele imaginou que poderia ser apenas a passagem de algum veículo pesado pela rua principal. Que mais poderia ser?...

Após algum tempo, começou a duvidar de que ouvira o tal som.

Começou a discutir interminavelmente consigo mesmo. Por que, afinal, fora preso? Caterham estava no cargo havia dois dias — o tempo suficiente — para arrancar sua Urtiga! Arrancar a Ur­tiga! Arrancar a Urtiga Gigante! O refrão, uma vez iniciado, can­tava-lhe na mente e não se deixava afastar.

Que poderia Caterham fazer, afinal? Era um homem religioso. De certa forma, estava comprometido a não exercer violência sem motivo.

Arrancar a Urtiga! Talvez, por exemplo, a Princesa devesse ser presa e enviada para o exterior. Poderia haver encrenca com o seu filho. E nesse caso!... Mas por que fora preso? Por que era necessário mante-lo na ignorância de uma coisa como aquela? A coisa sugeria...  algo mais abrangente.

Talvez, por exemplo, quisessem pegar todos os gigantes pelos calcanhares. Deveriam ser presos todos juntos. Houvera insinua­ções a esse respeito nos discursos eleitorais. E daí?

Sem dúvida tinham prendido Cossar também?

Caterham era um homem religioso. Redwood aferrava-se a isso. O fundo de sua mente era uma cortina negra, e nessa cortina sur­gia e desaparecia uma palavra — uma palavra escrita em letras de fogo. Ele lutava perpetuamente contra a palavra. Era sempre como se estivesse começando a ser escrita na cortina e nunca se com­pletasse.

Enfrentou-a afinal. "Massacre!" Lá estava a palavra em toda a sua brutalidade.

Não! Não! Não! Era impossível! Caterham era um homem religioso, um homem civilizado. E além disso, após todos aqueles anos, após todas aquelas esperanças!

Redwood levantou-se de um salto, andou pelo quarto. Falou consigo mesmo, berrou.

—        Não!

A humanidade certamente não era tão louca assim — certamente que não! Era impossível, incrível, não podia ser. De que adiantaria matar os gigantes humanos quando o gigantismo em to­das as coisas inferiores havia chegado inevitavelmente? Não po­diam ser tão loucos assim.

—        Tenho de afastar tal idéia — disse em voz alta. — Afastar tal idéia! Absolutamente!

Parou de chofre.  Que era aquilo?

Não havia dúvida de que as janelas tinham estremecido. Foi olhar a rua. Defronte, viu a instantânea confirmação de seus ou­vidos. Num quarto do número 35 estava uma mulher, de toalha na mão, e à mesa da sala de jantar do número 37 via-se um homem


atrás de um grande vaso de avencas hipertrofiadas, ambos olhando para fora e para cima, ambos inquietos e curiosos. Também, ele via agora bem claro que o policial da calçada ouvira igualmente. Não era sua imaginação.

Voltou-se para o quarto, que escurecia.

— Canhões — disse. Pensou. — Canhões.

Trouxeram-lhe um chá forte, como estava acostumado a tomar. Era evidente que a governanta fora posta a par. Depois de bebê-lo, sentiu-se agitado demais para sentar-se por mais tempo, e ficou a passear pela sala. A mente tornava-se mais capaz de pensar com sequência.

O quarto tinha sido seu gabinete por vinte e quatro anos. Fo­ra mobiliado quando de seu casamento, e todo o equipamento es­sencial datava dessa época, a grande e complexa escrivaninha, a cadeira giratória, a poltrona junto à lareira, a estante giratória, o anexo de escaninhos indexados que enchiam os recessos de trás. O vívido tapete turco, os tapetes e cortinas de fins da época vitoriana haviam-se esmaecido e ganho um tom de magnífica dignidade, e o cobre e o latão reluziam cálidos ao fogo. Luzes elétricas haviam substituído o abajur de outros tempos; essa era a principal altera­ção no equipamento original. Mas entre essas coisas sua ligação com o Alimento deixara traços abundantes. Numa parede, acima dos lambris, estendia-se uma fileira de fotos e fotogravuras emoldura­das em negro, mostrando seu filho e os filhos de Cossar, e outras dos filhos do Alimento em várias idades e em meio a ambientes variados. Até o rosto vago do jovem Caddles tinha seu lugar naque­la coleção. Num canto, havia um feixe de pendões da grama do prado gigante, vinda de Cheasing Eyebright, e na escrivaninha viam-se três cabeças vazias de papoulas, do tamanho de chapéus, e as varas das cortinas eram talos de grama. E a tremenda caveira do grande porco de Oakham pendia, como um portentoso adorno do aparador de lareira, com uma jarra chinesa em cada cavidade ocular, o focinho baixado em direção ao fogo...

Foi às fotografias que ele se dirigiu, e em particular às de seu filho.

Elas traziam de volta incontáveis lembranças de coisas que haviam desaparecido de sua mente, dos primeiros dias do Alimen­to, da tímida presença de Bensington, da prima Jane dele, de Cossar e o trabalho noturno na Fazenda Experimental. Essas coisas voltavam-lhe agora bem pequenas, vívidas e distintas, como coisas vistas através de um telescópio num dia de sol. E depois havia a creche gigante, a infância gigante, as primeiras tentativas dos jovens gigantes para falar, seus primeiros sinais claros de afeição.

Canhões?

Invadiu-o irresistivelmente, arrasadoramente, o fato de que lá fora, naquele maldito silêncio e mistério, seu filho, os de Cossar e todos os gloriosos primeiros frutos de uma época mais grandiosa se achavam naquele momento mesmo — lutando. Lutando pela vi­da! Naquele momento mesmo seu filho poderia estar num sombrio dilema, acuado, ferido, vencido...

Voltou-se num movimento brusco das fotos e andou de um lado para outro da sala, gesticulando.

— Não pode ser! — gritava. — Não pode ser! Não pode terminar assim! Que foi isso?

Parou, atacado de rigidez.

O tremor nas janelas recomeçara, e então houve uma explosão — uma vasta concussão, que abalou a casa. A explosão pare­ceu demorar um século. Devia ter sido muito perto. Por um mo­mento, pareceu que algo atingira a casa acima dele — um enorme impacto, que provocou um tilintar de vidros caindo, e depois uma quietude que terminou afinal com um distante e nítido som de pés correndo na rua lá embaixo.

Esses pés libertaram-no do rigor. Voltou-se para a janela e viu-a estrelada e quebrada.

O coração batia-lhe forte com a sensação de perigo, de ocorrência conclusiva, de alívio. E novamente a compreensão de impo­tente confinamento desceu à sua volta como uma cortina!

Nada via do lado de fora, a não ser que a pequena lâmpada elétrica defronte não estava acesa; nada ouvia, após o primeiro si­nal de um amplo alarme. Nada podia somar para interpretar ou ampliar aquele mistério, a não ser uma flutuante claridade averme­lhada que terminou surgindo no céu para os lados do sudeste.

Essa luz expandia-se e desaparecia. E depois ele duvidava que se houvesse expandido. Insinuara-se nele muito gradualmente com o escurecer. Tornou-se o fato predominante em sua longa noite de apreensão. Às vezes, parecia-lhe que ela tinha o tremular que seassocia a chamas dançantes; outras, imaginava que não era mais que o reflexo normal das luzes noturnas. Expandia-se e desaparecia por todas aquelas longas horas, e só desapareceu definitivamente quando foi de todo submersa pela maré crescente da madrugada. Queria aquilo dizer...? Que quereria dizer? Quase certamente era alguma espécie de incêndio, próximo ou distante, mas ele não po­dia sequer dizer se era fumaça ou nuvem o que raiava o céu. Mas por volta de uma hora teve início um tremular de holofotes, que cruzavam aquele róseo tumulto, um tremular que continuou pelo resto da noite. Que podia significar? Que significava? Ele via ape­nas aquele céu manchado e agitado, e a sugestão de uma imensa explosão para ocupar a mente. Não houve outros sons, outras cor­ridas, nada, a não ser um grito que só poderia ter sido os esforços de bêbados distantes...

Não acendeu as luzes de seu quarto! Ficou de pé diante de sua janela quebrada, uma silhueta angustiada e ligeiramente escura para o policial que olhava repetidas vezes dentro do quarto e exortava-o a repousar.

Por toda a noite Redwood permaneceu na janela, olhando a ambígua variação do céu, e só com a vinda da alvorada ele obede­ceu ao cansaço e deitou-se na pequena cama que lhe haviam prepa­rado entre a escrivaninha e o fogo que morria na lareira, sob a caveira do grande porco.

 

Durante trinta e seis longas horas Redwood permaneceu prisioneiro, trancado e isolado do grande drama dos Dois Dias, en­quanto o povinho na aurora do grandismo combatia os Filhos do Alimento. E então, de repente, a cortina de ferro tornou a erguer-se e ele se viu junto do próprio centro da luta. -A cortina ergueu-se tão inesperadamente como descera. No fim da tarde, foi atraído à ja­nela pelo barulho de um coche, que parou na frente da casa. Um jovem apeou, e um minuto depois estava à sua frente, na sala — um jovem de compleição leve, de uns trinta anos talvez, bem bar­beado, bem vestido, de boas maneiras.

 Sr. Redwood — começou —, estaria disposto a ir ver o Sr. Caterham? Ele necessita de sua presença com muita urgência.

 Necessita de minha presença?.... — Uma pergunta brotou na mente de Redwood, uma pergunta que, por um momento, ele não conseguiu fazer. Hesitava. Depois, numa voz falha, perguntou: — Que foi feito de meu filho? — E esperou, de respiração presa, a resposta.

 Seu filho, senhor? Seu filho está passando bem. Pelo me­nos é o que presumimos.

 Está passando bem?

—        Foi ferido, senhor, ontem. O senhor não soube?

Redwood deixou passar essa hipocrisia. Não tinha mais a voztingida pelo medo, mas pela cólera.

 Você sabe que eu não soube. Sabe que eu não soube de nada.

 O Sr. Caterham receava, senhor... Era um momento de rebelião. Todos... tomados de surpresa. Ele o prendeu para salvá-lo, senhor, de qualquer desventura...

- Ele me prendeu para impedir-me de dar qualquer aviso ou conselho ao meu filho. Continue. Diga-me o que aconteceu. Tiveram êxito? Mataram todos?

O jovem deu um ou dois passos em direção à janela, e vol­tou-se.

 Não, senhor — disse concisamente.

 Que tem a me dizer?

 Podemos provar, senhor, que esta luta não foi planejada por nós. Eles nos pegaram... totalmente despreparados.

 Quer dizer?

 Quero dizer, senhor, que os gigantes...  em certa medi­da... resistiram.

O mundo transformou-se para Redwood. Por um momento, algo parecido à histeria apoderou-se dos músculos de seu rosto e de sua garganta.

—        Ah! — O coração saltava para o júbilo. — Os gigantes resistiram!

— Houve terríveis combates... terrível destruição. Tudo não passa de um hediondo mal-entendido... No norte e nas midlands morreram gigantes... Em toda parte.

— Estão, lutando agora?

 Não, senhor. Ergueu-se uma bandeira de trégua.

 Deles?

 Não, senhor. O Sr. Caterham enviou a bandeira de trégua.A coisa toda não passa de um hediondo mal-entendido. É por isso que ele quer falar com o senhor, e apresentar-lhe sua posição. Eles insistem, senhor, em que o senhor intervenha...

Rdwood interrompeu.

 Sabe o que aconteceu ao meu filho? — perguntou,

 Ele foi ferido.

 Conte-me! Conte-me!

 Ele e a Princesa apareceram...  antes que o... o movimento para cercar o campo de Cossar se completasse... o reduto de Cossar em Chislehurst. Eles apareceram de repente, senhor, va­rando um denso maciço de aveia gigante, perto de River, diante de uma coluna de infantaria... Os soldados haviam estado nervo­sos o dia todo, e isso provocou pânico.

 Atiraram nele?

 Não, senhor. Fugiram.  Alguns  atiraram nele...  alucinadamente ... contra as ordens.

Redwood deu uma nota de negação.

 É verdade, senhor. Não pelo seu filho, não vou mentir, mas pela Princesa.

Sim. Isso é verdade.

— Os dois gigantes correram gritando para o acampamento. Os soldados correram para todos os lados, e aí alguns começaram a atirar.  Dizem que o viram cambalear...

 Uhh!

 Sim, senhor. Mas sabemos que não está seriamente ferido.

 Como?

— Ele mandou a mensagem, senhor, dizendo que estava passando bem!

 Para mim?

 Para quem mais, senhor?

Redwood ficou por quase um minuto com os braços fortemente cruzados, absorvendo essa informação. Então, sua indigna­ção encontrou uma saída.

—        Como foram idiotas ao fazerem isso, como cometeram um erro de cálculo e meteram os pés pelas mãos, gostariam que eu pensasse que não são assassinos intencionais. E além disso...  O resto?

O jovem assumiu um ar de interrogação.

— Os outros gigantes?

O jovem não mais fingiu não entender. Baixou o tom.

—        Treze, senhor, estão mortos.

—        E outros feridos?

— Sim, senhor.

— E Caterham — arquejou — quer se encontrar comigo!... Onde estão os outros?

 Alguns chegaram ao reduto durante os combates, senhor... Parecem ter sabido...

 Bem, é claro que sabiam. Não fosse por Cossar... Cossar está lá?

 Sim, senhor. E todos os gigantes sobreviventes também... os que não chegaram ao reduto durante os combates foram ou es­tão indo para lá sob a bandeira da trégua.

 Isso quer dizer — disse Redwood — que vocês foram vencidos.

 Não estamos vencidos. Não, senhor. Não pode dizer que estamos vencidos. Mas seus filhos violaram as regras da guerra. Uma vez na noite passada, e outra vez hoje. Depois que retiramos nosso ataque. Esta tarde eles começaram a bombardear Londres...

 Isso é legítimo!

— Têm disparado granadas cheias de veneno!

— Veneno?

 Sim. Veneno. O Alimento...

 Herakleoforbia?

 Sim, senhor. O Sr. Caterham, senhor...

 Estão vencidos! É claro que isso os vence. É Cossar! Que podem esperar fazer agora? Que adianta fazer qualquer coisa ago­ra? Vão respirá-lo na poeira de cada rua. Que mais há contra que lutar? Regras da guerra, veja só! Céus, homem! Por que iria eu ao seu saco de vento explodido? Ele fez o seu jogo. . .  assassinou e meteu os pés pelas mãos. Por que iria eu?

O jovem ficou parado, com um ar de vigilante respeito.

 E verdade, senhor — interrompeu — que os gigantes insistem em  que verão o senhor. Não aceitam  outro embaixador além do senhor. A menos que vá até eles, receio, senhor, que have­rá mais derramamento de sangue.

 De seu lado, talvez.

 Não, senhor... de ambos os lados. O mundo decidiu que essa coisa deve ter fim.

Redwood olhou em volta o gabinete. Pousou os olhos por um momento na fotografia do filho. Voltou-se e deparou-se com a expectativa do jovem.

—        Sim — disse afinal —, eu irei.

 

Seu encontro com Caterham foi inteiramente diferente do que previra. Vira o homem apenas duas vezes em sua vida, uma vez num jantar e outra no saguão da Câmara, e sua imaginação estive­ra ativa não com o homem, mas com a criação dos jornais e ca­ricaturistas, o legendário Caterham, Jack Matador de Gigantes. Perseu e tudo o mais. O elemento de personalidade humana veio desarrumar tudo isso.

Ali estava não o rosto das caricaturas e retratos, mas de um homem desgastado e sem dormir, enrugado e tenso, com as escleróticas amarelas, a boca um pouco enfraquecida. Ali, na verdade, estavam os olhos castanho-avermelhados, o cabelo negro, o perfil aquilino do grande demagogo, mas havia também outra coisa que suavizava todo desdém e retórica premeditados. Aquele homem es­tava sofrendo, sofrendo agudamente, sob enorme tensão. Desde o início, pareceu estar personificando a si mesmo. E acabou, com um simples gesto, o mais leve movimento, revelando a Redwood que se mantinha à custa de drogas. Levou o polegar ao bolso do colete, e, após mais algumas frases, pôs de lado a ocultação e levou o tabletezinho aos lábios.

Além disso, apesar das tensões sobre ele, apesar do fato de estar errado, e ser mais novo que Redwood uns doze anos, aindatinha aquela estranha qualidade, aquela alguma coisa — chamam isso de magnetismo pessoal, na falta de melhor termo — que lhe abrira caminho até aquela desastrosa eminência. Com isso Redwood não contara. Desde o início, no que se referia ao curso e con­dução da conversa, Caterham prevaleceu sobre Redwood. Toda a qualidade da primeira fase de seu encontro foi determinada por ele, todo o tom e os procedimentos também. Isso se deu como se fosse algo indiscutível. Todas as esperanças de Redwood desvaneceram-se em presença dele. Apertou a mão do visitante antes que este se lembrasse de que pretendia barrar essa familiaridade; deu o tom da conferência desde a partida, seguro e claro, como uma busca de expedientes sob uma catástrofe comum.

Se cometeu algum erro foi quando, repetidas vezes, o cansaço venceu sua atenção imediata, e o hábito dos comícios o arrebatou. Mas continha-se logo — durante toda a entrevista os dois ficaram de pé — e desviava o olhar de Redwood, começando a esgrimir e a justificar. A certa altura chegou a dizer "Cavalheiros!"

Discretamente, expansivamente, começou a falar...

Houve momentos em que Redwood deixou mesmo de sentir-se como um interlocutor, em que se tornou o simples ouvinte de um monólogo. Tornou-se o espectador privilegiado de um fenôme­no extraordinário. Percebia algo quase como uma diferença de es­pécies entre ele mesmo e aquele ser cuja bela voz o envolvia, que falava, falava. Aquela mente à sua frente era tão poderosa, e tão limitada. De sua impulsiva energia, de seu peso pessoal, de seu in­vencível esquecimento de certas coisas, brotava na mente de Red­wood a mais grotesca e estranha das imagens. Em vez de um anta­gonista que era uma criatura irmã, um homem a quem se pudesse responsabilizar moralmente, e ao qual se pudesse fazer apelos ra­cionais, via Caterham como uma coisa, algo como um monstruoso rinoceronte, por assim dizer, um rinoceronte civilizado, gerado da selva das questões democráticas, um monstro de irresistíveí arreme­tida e invencível resistência. Em todos os arrasadores conflitos da­quele emaranhado, era supremo. E além? Aquele homem era um ser supremamente adaptado para abrir caminho em meio às multidões humanas. Para ele não havia falha tão importante quanto a autocontradição, ciência tão significativa como a reconciliação dos "in­teresses". As realidades econômicas, as necessidades topográficas, as minas mal tocadas dos expedientes científicos não existiam mais para ele que as ferrovias ou fuzis ou literatura geológica para o seu protótipo animal. O que existia eram reuniões, núcleos dirigen­tes, e votos — acima de tudo votos. Era o voto encarnado — milhões de votos.

E agora, na grande crise, com os gigantes derrotados mas não vencidos, aquele voto-monstro falava.

Era tão evidente que mesmo agora ainda tinha de aprender tudo. Não sabia que existiam leis físicas e leis econômicas, quantidades e reações que toda a humanidade que vota nemine contradicente não pode eliminar com o voto, e que só se desobedecem ao preço da destruição. Não sabia que existem leis morais que não podem ser dobradas por nenhuma força de encanto pessoal, ou que são dobradas apenas para voltar com vingativa violência. Diante das granadas do Dia do Julgamento, era evidente para Redwood que aquele homem, se teria protegido atrás de algum voto curiosa­mente evitado na Câmara dos Comuns.

O que mais preocupava a sua mente agora não eram os pode­res que mantinham o reduto lá no sul, nem a derrota e a morte, mas o efeito dessas coisas sobre a sua Maioria, a realidade funda­mental de sua vida. Tinha de derrotar os gigantes ou soçobrar. Não estava absolutamente desesperado. Naquele momento de seu fra­casso máximo, com sangue e tragédia nas mãos, com os gigantescos destinos do mundo pairando e desmoronando sobre ele, era capaz de acreditar que, com a pura aplicação de sua voz, explicando, qualificando e reafirmando, poderia ainda reconstituir seu poder. Estava intrigado e perturbado, sem dúvida, cansado e sofrendo, mas se ao menos conseguisse manter-se de pé, se ao menos pudesse prosseguir falando...

Enquanto falava, parecia a Redwood avançar e recuar, dila­tar-se e contrair-se. A parte de Redwood na conversa era do tipo mais subsidiário, cunhas, por assim dizer, enfiadas de repente. "Tudo isso é bobagem." "Não." "Não adianta sugerir isso." "Então por que começou?"

É duvidoso que Caterham o tenha realmente ouvido, afinal. Contornando tais interpolações, seu discurso fluía na verdade como um rápido rio em torno de uma rocha. Ali estava aquele homem incrível, em seu tapete oficial junto à lareira, falando, falando comenorme poder e habilidade, falando como se uma pausa em sua fala, sua explicação, sua apresentação de opiniões e luzes, conside­rações e expedientes, permitisse alguma influência antagónica saltar para a vida — para a vida vocal, único ser que podia compreender. Ali permanecia, em meio aos esplendores ligeiramente fanados da sala oficial em que um homem após outro haviam sucumbido à crença de que um certo poder de intervenção era o controle criati­vo de um império...

Quanto mais falava, mais se confirmava a sensação de estupenda futilidade que Redwood sentia. Compreenderia aquele ho­mem que, enquanto ficava ali falando, todo o grande mundo se movia, que a invencível maré do crescimento fluía e fluía, que não havia hora alguma além das parlamentas, ou quaisquer armas nas mãos dos Vingadores do Sangue? Do lado de fora, escurecendo toda a sala, uma única folha de trepadeira da Virgínia gigante batia indiferente na vidraça.

Redwood ansiava por encerrar aquele espantoso monólogo, por escapar para a sanidade e a sensatez, para aquele acampamento sitiado, a fortaleza do futuro, onde, no núcleo mesmo do grandismo, os filhos se reuniam. Por isso suportava aquela conversa. Tinha a curiosa impressão de que, a menos que cessasse aquele monólogo, acabaria vendo-se transportado por ele, de que tinha de lutar con­tra a voz de Caterham como se luta contra uma droga. Os fatos se haviam alterado e continuavam alterando-se sob aquele sortilégio.

Que dizia o homem?

Como Redwood tinha de comunicar tudo aquilo aos Filhos do Alimento, percebia de certa forma que era importante. Teria de ouvir e guardar seu senso de realidade tão bem quanto pudesse.

Muita coisa sobre culpa pelo sangue derramado. Aquilo era eloquência. Não importava. E depois?

O homem sugeria uma convenção!

Sugeria que os Filhos do Alimento sobreviventes capitulassem e se separassem, formando uma comunidade própria. Havia precedentes, disse, para aquilo.

— Nós lhes destinaremos um território...

— Onde? — interpôs Redwood, curvando-se para discutir.

Caterham agarrou-se a essa concessão. Voltou o rosto para o de Redwood, e sua voz baixou a uma persuasiva razoabilidade. Issopodia ser decidido.   Segundo ele, tratava-se de uma questão intei­ramente secundária.   Depois foi em frente e estipulou:

—        E com exceção deles e do lugar onde estão, temos absoluto controle, o  Alimento  e os Frutos do Alimento devem ser sufocados...

Redwood descobriu-se barganhando:

 A Princesa?

 Ela fica de fora.

 Não — disse Redwood, lutando para retornar ao antigo pé. — Isso é absurdo.

 Isso fica para depois.   De qualquer modo, concordamos com que a produção do Alimento deve parar...

 Eu não concordei com nada.  Eu nada disse...

 Mas num planeta, termos duas raças de homens, uma gran­de, uma pequena!   Considere o que aconteceu!   Considere que é apenas um antegosto do que pode terminar acontecendo se esse Alimento seguir seu curso. Considere tudo que o senhor já trouxe sobre este mundo.  Se deve haver uma raça de gigantes, crescendo e multiplicando-se...

 Não me cabe discutir — disse Redwood. — Devo ir aos nossos filhos. Quero ir ver o meu filho. Foi por isso que vim aqui.

Diga-me exatamente o que oferece.

Caterham fez um discurso sobre os seus termos.

Os Filhos do Alimento recebiam uma grande reserva — na América do Norte, talvez, ou na África — onde poderiam viver suas vidas à sua maneira.

 Mas isso é insensatez — disse Redwood. — Existem hoje outros gigantes no exterior.   Por toda a Europa...  aqui e ali.

 Poderia haver uma convenção internacional.   Não é impossível. Na verdade já se falou de algo assim... Mas nessa reser­va eles podem viver suas vidas à sua maneira.  Podem fazer o que quiserem, podem fabricar o que queiram. Ficaremos satisfeitos se fizerem coisas para nós.   Podem ser felizes. Pense!

 Contanto que não haja mais filhos.

— Precisamente. Os filhos são para nós. E também, senhor, salvaremos o mundo, nós o salvaremos absolutamente dos frutos de sua terrível descoberta. Não é tarde demais para nós. Apenas, es­tamos empenhados em temperar as medidas com a piedade.  Nestemomento mesmo estamos incendiando os lugares que as granadas deles atingiram ontem. Podemos sufocá-lo. Acredite-me quando digo que podemos sufocá-lo. Mas dessa forma, sem crueldade, sem injustiça...

—        E se os Filhos não concordarem?

Caterham olhou diretamente o rosto de Redwood pela primeira vez.

 Têm de concordar!

 Não creio que o façam.

 Por que não concordariam? — ele perguntou, num espan­to belamente entonado.

— Suponha que não concordem!

—        Que pode haver então a não ser a guerra?   Não podemos deixar que isso  continue.   Não podemos, senhor.  Os senhores, homens científicos, não têm imaginação? Não têm piedade?   Não podemos deixar o nosso mundo ser espezinhado sob uma crescente manada de tais monstros e dos monstruosos crescimentos que seu Alimento provocou.  Não podemos e não podemos!   Pergunto-lhe, senhor, que pode haver além da guerra?  E lembre-se... isso que aconteceu é só o começo! Isso foi uma escaramuça.   Um simples caso de polícia. Não se engane com a perspectiva, com a grandeza imediata dessas coisas mais novas.  Temos a nação atrás de nós... a humanidade. Atrás dos milhares que morreram há milhões. Não fosse pelo receio do banho de sangue, senhor, atrás de nossos pri­meiros ataques se estariam formando outros ataques, mesmo agora.

Quer possamos matar esse Alimento ou não, não há dúvida de que podemos matar seus filhos!  O senhor conta muito com as coisas de ontem, com os acontecimentos de uma simples dezena de anos, com uma batalha. Não tem senso do lento curso da história. Ofere­ço essa convenção para salvar vidas, não porque ela possa mudar o inevitável fim. Se o senhor pensa que suas pobres duas dúzias de gigantes podem resistir a todas as forças de nosso povo e de todos os povos estrangeiros que virão em nossa ajuda, se pensa que pode transformar a humanidade de um golpe, numa única geração, e al­terar a natureza e a estatura do homem... — Estendeu um braço. — Vá a eles agora, senhor.   Veja-os, apesar de todo o mal que causaram, agachados entre seus feridos...

Parou, como se tivesse visto o filho de Redwood por acaso. Seguiu-se uma pausa.

 Vá até eles — disse.

 É o que eu quero fazer.

 Então vá agora...

Voltou-se e apertou o botão de uma campainha; de lá de fora, em imediata resposta, veio um som de portas abrindo-se e pés correndo.

A conversa encerrara-se. A exposição acabara. Abruptamente, Caterham pareceu contrair-se, encolher-se num homem de cara ama­rela, esfalfado, de estatura mediana e meia-idade. Adiantou-se, com se estivesse deixando um quadro, e com uma completa presun­ção daquela amistosidade que jaz por trás de todos os conflitos pú­blicos de nossa raça estendeu a mão a Redwood.

Como se fosse bastante natural, Redwood trocou um aperto de mão com ele pela segunda vez.

 

O CERCO GIGANTE

Redwood acabou encontrando-se num trem que ia para o sul, atravessando o Tâmisa. Teve uma breve visão do rio reluzindo às luzes do comboio, e da fumaça que ainda subia do lugar onde caíra a granada na margem norte, e onde se organizara uma vasta mul­tidão para queimar a Herakleoforbia no chão. A margem sul esta­va escura, por algum motivo não havia luzes nem nas ruas; só se viam claramente as silhuetas das altas torres de alarme e os negros vultos dos prédios de apartamentos e escolas. Após um minuto de penetrante escrutínio, ele deu as costas à janela e mergulhou em pensamentos. Nada mais havia para ver ou fazer até ver os Filhos...

Estava cansado pelas tensões daqueles últimos dois dias; pare­cia-lhe que suas emoções deviam ter-se exaurido, mas fortalecera-se com café forte antes de partir, e seus pensamentos fluíam diáfanos e claros. Sua mente tocava muitas coisas. Tornava a examinar, mas agora à luz dos acontecimentos concretizados, a maneira pela qual o Alimento entrara e se desdobrara no mundo.

"Bensington achava que poderia ser um alimento excelente para os bebês", murmurou consigo mesmo, com um débil sorriso. Depois, veio-lhe à mente, tão vívidas como ainda perturbadoras, as suas próprias dúvidas, depois que se comprometera dando-o ao seu filho. Desde então, com uma constante e ininterrupta expan­são, apesar de todos os esforços humanos, para ajudar e atrapalhar, o Alimento espalhara-se por todo o mundo humano.  E agora?

—        Mesmo que os matem a todos — sussurrou — a coisa está feita.

O segredo de sua fabricação era largamente conhecido. Isso fora obra sua. Plantas, animais, uma multidão de angustiantes crianças em crescimento conspirariam irresistivelmente para obrigar o mundo a tornar a voltar ao Alimento, acontecesse o que aconte­cesse na luta atual.

—        A coisa está feita — disse, a mente oscilando além de todo o seu  controle para ficar no destino atual dos Filhos e do seu filho.  Iria encontrá-los exauridos pelos esforços da batalha, feridos, famintos,  à  beira  da  derrota,   ou  ainda bravos e esperançosos, prontos para o conflito ainda mais sombrio do amanhã?...   Seu filho estava ferido!   Mas enviara uma mensagem!

Sua mente voltou à entrevista com Caterham.

Foi despertado dos pensamentos pela parada do trem na esta­ção de Chislehurst. Reconheceu o lugar pela enorme torre de alar­me contra ratos que dominava Camdem Hill, e a fileira de cicutas gigantes que perlongavam a estrada...

O secretário particular de Caterham veio vê-lo do outro vagão e disse-lhe que quase um quilômetro à frente a linha fora despedaçada, e o resto da viagem teria de ser feito num carro a motor. Redwood desceu numa plataforma iluminada apenas por uma lan­terna de mão e varrida pelo frio vento da noite. Os habitantes haviam-se refugiado em Londres no início do conflito do dia ante­rior — que se tornara no mesmo instante impressionante. O homem que o conduzia levou-o pelos degraus abaixo até onde um carro a motor aguardava, com os faróis acesos — as únicas luzes à vista — entregou-o aos cuidados do motorista e despediu-se.

—        O senhor fará o melhor que puder por nós — disse, imitando os modos de seu patrão, ao segurar a mão de Redwood.

Assim que Redwood pôde ser envolvido em mantas, partiram noite adentro. Num momento estavam parados, e no momento se­guinte o carro descia silenciosa e rapidamente a encosta da estação. Dobraram numa esquina e noutra, seguiram as voltas de uma aveni­da de vilas, e então a estrada estendeu-se à frente. O motor ronca­va na velocidade máxima, e a negra noite passava correndo ao lado deles. Tudo era muito escuro à luz das estrelas, e todo mundo agachava-se misteriosamente e sumia sem um som. Nenhuma aragemmovia as coisas que passavam voando ao lado, na estrada; as desertas e pálidas vilas de ambos os lados, com suas negras janelas não ilu­minadas, lembravam-lhe um desfile de caveiras. O motorista a seu lado era um homem calado, ou atacado de mudez pelas condições da viagem. Respondia às breves perguntas de Redwood em mo­nossílabos, e arrufado. Cruzando os céus meridionais, os raios dos holofotes faziam silenciosos passes; o único sinal de vida em todo aquele mundo despedaçado em torno da máquina em disparada.

A estrada acabou sendo flanqueada de ambos os lados por gigantescos brotos de abrunheiros bravos, que a tornavam muito escura, e pela alta relva e as grande candelárias, as enormes urti­gas mortas, gigantes, do tamanho de árvores, tremulando ao passa­rem, sombrias, e as silhuetas acima deles. Depois de Keston, che­garam a um morro, e o motorista diminuiu a marcha. No topo, parou. O motor latejou e parou.

—        Ali — ele disse, e apontou com o grande dedo enluvado uma coisa negra e deformada, diante dos olhos de Redwood.

À distância, segundo parecia, o grande barranco, encimado pelo clarão do qual brotavam os holofotes, erguia-se contra o céu. Os raios iam e vinham entre as nuvens e a terra montanhosa em volta deles, como se seguissem misteriosas encantações.

—        Eu não sei, não — disse o motorista, afinal, e era claro que temia prosseguir.

Afinal, um holofote desceu do céu sobre eles, parou por assim dizer com um estremeção, escrutinou-os, um olhar cegante mais confundido que mitigado por um ou outro talo de mato no meio. Eles permaneceram sentados com as luvas acima dos olhos, tentando olhar por baixo delas e enfrentar a luz.

—        Vá em frente — disse Redwood após algum tempo.

O motorista ainda tinha suas dúvidas, tentou manifestá-las, mas reduziu-as a um novo:

—        Eu não sei, não.

Afinal, aventurou-se a seguir.

—        Lá vamos nós — disse, e ligou de novo o motor, seguido atentamente pelo grande olho.

A Redwood pareceu por um longo tempo que não estavam mais na Terra, mas passando a um estado de palpitante pressa através de uma nuvem luminosa. Tof, tof, tof, seguia a máquina, e repetidamente — obedecendo a não sei que impulso nervoso — o motorista tocava sua buzina.

Entraram na bem-vinda escuridão de uma avenida ladeada por cercas altas, desceram a um buraco e passaram algumas casas até tornarem a entrar naquela luz cegante. Então, por algum tempo, a estrada corria livre por uma chapada, e eles pareceram pender, la­tejando, na imensidão. Mais uma vez o mato gigante ergueu-se à sua volta, passando rápido. E então, muito repentinamente, assomou junto a eles a figura de um gigante, brilhando luminosamente, onde o holofote o pegava por baixo, negro contra o céu.

—        Ei, vocês! — ele gritou. E: — Parem! Não há mais estrada à frente... É o pai Redwood?

Redwood levantou-se e deu um vago grito à guisa de respos­ta, e então viu Cossar na estrada a seu lado, agarrando-lhe ambas as mãos com as suas e puxando-o para fora do carro.

—        Que é do meu filho? — perguntou Redwood.

—- Ele está passando bem — disse Cossar. — Não atingiram nada sério nele.

 E seus rapazes?

 Bem.  Todos eles, bem.  Mas tivemos de lutar para isso.

O gigante dizia alguma coisa ao motorista. Redwood afastou-se, enquanto a máquina manobrava, e então, de repente, Cossar desapareceu, tudo desapareceu, e ele ficou em absoluta escuridão por algum tempo. O clarão seguia o carro de volta à crista do morro de Keston. Ele olhou o pequeno veículo afastar-se naquela auréo­la branca. Tinha um efeito curioso, como se o carro não se mo­vesse e a auréola, sim. Urn grupo de árvores gigantes destroçadas pela guerra surgiu em descarnadas e feridas gesticulações e foi no­vamente tragado pela noite... Redwood voltou-se para o vago vulto de Cossar e apertou-lhe a mão.

 Trancaram-me  e mantiveram-me em total  ignorância — disse — durante dois dias inteiros.

 Disparamos o Alimento contra eles — disse  Cossar. — Obviamente!   Trinta tiros.  Hem?

 Estou vindo a mando de Caterham.

 Eu sei disso. — Riu com uma nota de amargor. — Supo­nho que ele está limpando tudo.

 

 Onde está meu filho? — perguntou Redwood.

 Está bem.   Os gigantes estão esperando sua mensagem.

 Sim, mas meu filho...

Passou com Cossar por um longo túnel inclinado, iluminado de vermelho a instantes e depois escuro, e foi sair no grande fosso do abrigo que os gigantes haviam construído.

A primeira impressão de Redwood foi de uma enorme arena, cercada por rochedos muito altos e com o chão muito desarruma­do. Estava escuro, a não ser pelos reflexos passantes dos holofotes do vigilante, que giravam perpetuamente acima, e por um fulgor vermelho que ia e vinha num canto distante, onde dois gigantes tra­balhavam juntos em meio a um clangor metálico. Contra o céu, quando surgia o clarão, seu olhar captou os contornos familiares dos velhos telheiros de trabalho e de brinquedos feitos para os filhos de Cossar. Pendiam agora, por assim dizer, na beira de um roche­do, estranhamente destruídos e distorcidos pelos canhões do bom­bardeio de Caterham. Havia sinais de imensas bases de canhões lá em cima, e perto viam-se montes de poderosos cilindros, que talvez fossem munição. Por todo o amplo espaço abaixo, vultos de grandes engenhos e outros incompreensíveis espalhavam-se em vaga desordem. Os gigantes apareciam e desapareciam entre aquelas massas e na luz incerta; eram grandes vultos, não desproporcio­nais às coisas em meio às quais se moviam. Alguns empregavam-se ativamente, outros sentavam-se ou deitavam-se como para chamar o sono, e um bem perto, que tinha o corpo enfaixado, jazia numa rude padiola de galhos de pinheiro e estava sem dúvida dormindo. Redwood espiou aquelas vagas formas, seus olhos iam de um vulto a outro.

—        Onde está meu filho, Cossar?

E então, viu-o.

Seu filho sentava-se à sombra de uma grande muralha de aço. Apresentava-se como um vulto negro, reconhecível apenas pela posição — não se viam as feições. Sentava-se apoiando o queixo na mão, como exausto e mergulhado em pensamentos. A seu lado, Redwood descobriu o vulto da Princesa, apenas uma vaga sugestão, e ao retornar o fulgor do ferro distante, viu por um momento, iluminada de vermelho e terna, a infinita meiguice do seu rosto som­breado. Estava de pé, olhando o namorado com a mão apoiada na parede de aço.  Parecia que lhe sussurrava alguma coisa. Redwood quis ir juntar-se a eles.

 Depois — disse Cossar. — Primeiro, a sua mensagem.

 Sim — disse Redwood — mas...

Parou. Seu filho erguia a cabeça agora e falava com a Prince­sa, mas num tom demasiado baixo para que eles ouvissem. O jovem Redwood erguia o rosto e ela se curvava sobre ele, e olhava para o lado antes de falar.

—        Mas se estamos vencidos — ouviram a voz murmurada do jovem Redwood.

Ela parou, e o fulgor vermelho mostrou seus olhos brilhantes de lágrimas não vertidas. Curvou-se mais sobre ele e falou ainda mais baixo. Havia algo de tão íntimo e privado na atitude deles, em suas vozes baixas, que Redwood, Redwood que não pensara em nada durante dois dias senão no filho, sentiu-se um intruso ali. Conteve-se abruptamente. Pela primeira vez em sua vida, talvez, compreendeu quanto um filho pode significar mais para um pai do que um pai jamais significará para um filho; compreendeu toda a predominância do futuro sobre o passado. Ali, entre aqueles dois, não havia lugar para ele. Seu papel já fora desempenhado. Voltou-se para Cossar, naquela compreensão instantânea. Seus olhos encon­traram-se. Sua voz mudara para o tom de uma cinzenta resolução.

—        Vou transmitir minha mensagem agora — disse. — Depois... haverá bastante tempo.

O fosso era tão enorme e tão atravancado que o caminho até o lugar onde Redwood poderia falar a todos eles foi longo e tortuoso.

Ele e Cossar seguiram uma descida íngreme, que passava por baixo de um arco de maquinaria embricada, e assim chegaram a um enorme e profundo passadiço que cruzava o fundo do fosso. Essa passadiço, largo e vazio, e no entanto relativamente estreito, cons­pirava com tudo em volta para acentuar o senso de pequenez de Redwood. Tornava-se, por assim dizer, uma garganta escavada. Bem acima, separados dele por penhascos de escuridão, os holofo­tes giravam e ardiam, e os vultos reluzentes iam e vinham. Vozesgigantes chamavam-se umas às outras lá em cima, reunindo os gi­gantes para o Conselho de Guerra, para ouvir os termos que Caterham enviara. O passadiço ainda se inclinava para baixo, em direção à negra vastidão, às sombras, mistérios e coisas inconcebí­veis, para as quais Redwood descia lentamente com passadas relu­tantes, e Cossar com um passo confiante...

Os pensamentos de Redwood estavam ocupados...

Os dois homens entraram na total escuridão, e Cossar pegou o companheiro pelo pulso. Seguiam agora devagar, obrigatoriamente.

Redwood foi levado a falar.

 Tudo isso — disse — é estranho.

 Grande — disse Cossar.

 Estranho.  E é estranho que seja estranho para mim... eu que sou, num certo sentido, o princípio disso tudo. É... — Parou, lutando com o fugidio significado, e lançou um gesto invisível em direção ao penhasco. — Não pensei nisso antes. Estive ocupado, e os anos passaram. Mas aqui eu vejo...  é uma nova geração, Cossar, e novas emoções e novas necessidades. Tudo isso, Cossar...

O outro via agora seu vago gesto para as coisas em volta deles.

— Tudo isso é juventude.

Cossar não respondeu, e suas passadas irregulares continuaram.

 Não é nossa juventude, Cossar. Eles estão assumindo as coisas.   Estão iniciando com base em suas próprias emoções, sua próprias experiências, à sua  própria  maneira.   Nós fizemos um novo mundo, mas não é nosso.  Este grande lugar...

 Eu o planejei — disse Cossar, com o rosto próximo.

 Mas e agora?

 Ah!   Dei-o a meus filhos.

Redwood sentiu o frouxo aceno do braço que não podia ver.

É isso.   Estamos acabados... ou quase acabados.

 A mensagem!

 Sim. E depois...

 Acabamos.

 Bem...?

 É claro que estamos fora disso, nós, dois velhos — disse Cossar, com seu tom familiar de súbita cólera. — É claro que estamos. Obviamente.  Cada um tem seu próprio tempo. E agora... é o tempo deles que começa. Está certo. A turma da escavação. Fazemos nosso trabalho e partimos. É para isso que serve a morte. Esgotamos todos os nossos cerebrozinhos, todas as nossas emoçõezinhas, e depois tudo recomeça de novo. Novo e novo. Perfeita­mente simples.   Qual é o problema?

Deteve-se para orientar Redwood em alguns degraus

—        Sim — disse Redwood —, mas a gente se sente... Deixou a frase incompleta.

—        É para isso que serve a morte. — Ouviu Cossar insistin­do abaixo. — De que outro modo se poderia fazer a coisa? É para isso que serve a morte.

 

Após ínvias curvas e subidas, chegaram a uma saliência de onde se podia ter uma visão de maior extensão do fosso dos gigantes, e da qual Redwood poderia fazer-se ouvir por todos eles reunidos. Os gigantes já se haviam juntado embaixo e à sua volta, em diferentes níveis, para ouvir a mensagem que ele tinha a transmitir. O filho mais velho de Cossar estava de pé no barranco acima observando o que os holofotes revelavam, pois te­miam uma violação da trégua. Os operadores do grandes aparelho do canto se destacavam nítidos contra a sua própria luz; estavam quase despidos; volviam os rostos para Redwood, mas com uma vigi­lante olhada de vez em quando às posições que não podiam abando­nar. Ele via aquelas figuras mais próximas numa flutuante indistinção, às luzes que se acendiam e apagavam, e os mais distantes ainda mais indistintamente. Eles surgiam e desapareciam nas pro­fundezas de uma grande escuridão. Pois aqueles gigantes não tinham mais luz que a que não podiam deixar de ter no fosso, para que seus olhos pudessem ver efetivamente qualquer força atacante que saltasse sobre eles da escuridão em volta.

De vez em quando um fulgor casual selecionava e revelava esse ou aquele grupo de vultos altos e fortes, os gigantes de Sunderland, cobertos de placas de metal, e outros vestidos de couro, corda trançada ou malha metálica, segundo determinavam suas condições. Sentavam-se, ou apoiavam-se nas mãos ou permaneciam de pé entre máquinas e armas tão poderosas quanto eles mesmos, e todos os rostos, surgindo e desaparecendo do visível para o invi­sível, tinham olhos fixos.

Ele fez um esforço para começar e não começou. Então, por um momento, o rosto de seu filho fulgurou numa quente insurgência do fogo, o rosto do filho erguido para ele, tão terno quanto forte; e com isso ele encontrou uma voz que chegasse a eles todos, falando por assim dizer por sobre um abismo ao seu filho.

—        Venho a mando de Caterham — disse. — Ele me enviou a vocês para comunicar-lhes os seus termos.

Fez uma pausa.

 São termos impossíveis, eu sei, agora que os vi aqui, todos juntos; são termos impossíveis, mas eu os trouxe, a vocês, porque queria vê-los todos... e a meu filho. Uma vez mais... queria ver o meu filho...

 Diga-lhes os termos — disse Cossar.

 Eis o que Catherham propõe.   Quer que se separem e deixem este mundo!   

- Para ir para onde?

 Ele não sabe. Uma grande região do mundo, muito vaga, deve ser destinada... E vocês não devem fazer mais o Alimento, nem ter filhos, viver à sua maneira o tempo que lhes restar de vida, e depois acabar para sempre.

Parou.

 E é só isso?    

 É só isso.

Seguiu-se um grande silêncio. A escuridão que ocultava os gigantes parecia olhá-lo pensativamente.           

Sentiu tocarem-lhe o cotovelo, e Cossar adiantou-lhe uma cadeira — um estranho fragmento de móvel de boneca em meio àque­las empilhadas imensidades. Sentou-se e cruzou as pernas, depois pôs uma atravessada sobre o joelho da outra e segurou nervosa­mente a bota, sentindo-se pequeno, constrangido e agudamente visível numa posição absurda.

Então, ao som de uma voz, tornou a esquecer-se.

        Vocês ouviram, Irmãos — disse a voz que vinha das trevas.

E outra respondeu:

 Ouvimos.

 E a resposta, Irmãos?

 A Caterham?

 É não!

 E então?

Houve um silêncio de alguns segundos. Então uma voz disse:

 Essa gente está certa.  Quer dizer, do ponto de vista deles.

Estavam certos ao matar tudo que crescesse mais que a espécie deles, animais, plantas e todo tipo de coisas grandes que surgiam. Estavam certos ao tentar nos massacrar. Estão certos agora ao dizerem que não devemos casar nossa espécie.   Do ponto de vista deles, estão certos. Eles sabem... e é hora de também nós saber­mos ... que não se pode ter pigmeus e gigantes juntos num mesmo mundo.   Caterham disse isso repetidas vezes...  claramente...  o mundo é deles ou nosso.

 Não somos nem meia centena agora — disse outro — e eles são incontáveis milhões.

 Que sejam.  Mas é como eu disse.

Outro longo silêncio.

 Devemos morrer então?

 Deus me livre!

 Eles? — Não.

—        Mas isso é o que Caterham diz!  Quer que vivamos nossas vidas, morramos um a um, até ficar um só, e esse último morrerá também, e eles abaterão todas as plantas e matos gigantes, matarão toda a subvida gigante,  queimarão os vestígios do  Alimento... darão um fim a nós e ao Alimento para sempre. Então o pequeno mundo dos pigmeus estará salvo, fazendo bondades e crueldades pigméias uns aos outros; talvez possam até atingir uma espécie de milênio pigmeu, pôr fim à guerra, superpovoação, sentar-se numa cidade mundial para praticar artes pigméias, adorando-se uns aos outros até o mundo começar a congelar...

Num canto, uma folha de ferro caiu no chão com o som de um trovão.


—        Irmãos, nós sabemos o que pretendemos fazer.

Num estralejar de luz dos holofotes, Redwood viu sérios ros­tos juvenis voltarem-se para o seu filho.

— Hoje é fácil fazer o Alimento. Seria fácil fazermos o Ali­mento para todo o mundo.

— Você quer dizer, Irmão Redwood — disse uma voz vinda das trevas — que o povinho deve comer o Alimento.

— Que mais se pode fazer?

 Nós não somos nem meia centena, e eles são milhões.

 Mas nós resistimos.

 Até agora.

— Se Deus quiser, podemos resistir mais.

 Sim.   Mas pense nos mortos.

Outra voz tomou a palavra.

 Os mortos — disse. — Pensem nos que não nasceram...

 Irmão — veio a voz do jovem Redwood —, que pode­mos fazer, a não ser lutar contra eles e, se os vencermos, obrigarmos a que tomem o Alimento?  Não poderão deixar de tomá-lo então. E se renunciarmos à nossa herança e fizermos essa loucura que Caterham sugere! Suponham que pudéssemos. Suponham que desistamos dessa grande coisa que se agita dentro  de nós, repudie­mos essa coisa que nossos pais fizeram por nós, que o senhor, pai, fez por nós, e passemos, quando chegar a nossa hora, à decompo­sição e ao nada!  Que haverá então? Esse mundinho deles vai ser o que era antes?  Eles podem combater o grandismo em nós, que somos filhos de homens, mas poderão vencer?   Mesmo que des­truam até o último de nós, que haverá então? Isso os salvará? Não!

Pois o grandismo está lá fora, não apenas em nós, não apenas no Alimento, mas no propósito de todas as coisas!    É da natureza de todas as coisas, é parte do espaço e do tempo. Crescer e continuar crescendo, do primeiro ao último que existe, eis a lei da vida. Que outra lei pode haver agora?

 Ajudar aos outros?

 Crescer.   Ainda é crescer.   A menos que os ajudemos  a fracassar...

—        Eles lutarão duro para vencer-nos — disse uma voz.

E outra:

 E daí?

 Eles lutarão — disse o jovem Redwood. — Se recusarmos esses termos, não duvido de que lutarão.   Na verdade espero que se abram e lutem. Se afinal oferecem paz, é apenas para melhor nos pegar desprevenidos.  Não se enganem, Irmãos; de um modo ou de outro eles lutarão. A guerra começou, e devemos combater até o fim. A menos que sejamos sábios, podemos acabar descobrindo que vivemos apenas para fazer-lhes armas melhores contra nossos filhos e nossa espécie.  Isso, até agora, foi apenas o alvorecer da batalha. Todas as nossas vidas serão uma batalha. Alguns de nós morrerão na batalha, alguns de nós serão emboscados. Não existe vitória fácil, nenhuma vitória que não seja mais que meia derrota para nós. Fiquem certos disso.  E daí?  Se mantivermos nosso reduto, se ao menos deixarmos atrás de nós uma hoste combatente para lutar quando nos formos!

 E amanhã?

 Espalharemos o Alimento, saturaremos o mundo com  o Alimento.

 E se eles chegarem a termos?

 Nossos termos são o Alimento. Não é como se grandes e pequenos pudessem viver juntos num acordo perfeito. É uma coisa ou outra. Que direito têm os pais de dizer: meu filho não terá outra luz além daquela que eu tive, não crescerá mais do que o que eu cresci?   Falo por vocês, Irmãos?

Responderam-lhe murmúrios de assentimento.

 E aos  filhos que  serão  mulheres,  assim como aos que serão homens — disse uma voz das trevas.

 Mais ainda... serão mães de uma nova raça...

 Mas na próxima geração deverá haver grandes 6 peque­nos — disse Redwood, com os olhos no rosto do filho.

 Por muitas gerações.  E os pequenos atrapalharão os grandes, e os grandes pressionarão os pequenos.  Assim tem de ser, pai.

 Haverá conflito.

 Conflito interminável. Mal-entendido interminável.  Toda a vida é isso. Grandes e pequenos não se entendem um ao outro. Mas em todo filho nascido de homem, pai Redwood, oculta-se uma se­mente de grandismo...  à espera do Alimento.

—        Então vou voltar a Caterham e dizer a ele...

— O senhor vai ficar conosco, pai Redwood. Nossa resposta seguirá para Caterham ao amanhecer.

—        Ele diz que lutará....

— Que seja — disse o jovem Redwood, e os irmãos murmuraram seu assentimento.

—        O ferro espera — gritou uma voz, e os dois gigantes que trabalhavam no canto começaram um rítmico martelar que criava uma poderosa música para a cena. O metal fulgurava muito mais luminoso que antes, e dava a Redwood uma visão mais clara do acampamento que a que já tivera. Viu o espaço oblongo em toda a sua extensão, com as grandes máquinas de guerra prontas e à dis­posição.   Adiante,   num   nível    mais   alto,   ficava   a   casa    de Cossar. À sua volta mexiam-se os jovens gigantes, imensos e belos, reluzindo em suas malhas, em meio aos preparativos para o ama­nhã. A visão deles exaltou-lhe o coração.   Eram tão fortes, e tão à vontade!   Tão altos e graciosos!   Tão firmes em seus movimentos!   Lá estava seu filho entre eles, e a primeira das gigantes, a Princesa...

Brotou-lhe dentro da mente o mais curioso contraste, uma lembrança de Bensington, muito brilhante e pequeno — Bensington com a mão no meio da macia plumagem do peito do primeiro pinto grande, de pé naquele seu quarto comodamente mobiliado, olhando dubiamente por cima dos óculos enquanto a prima Jane batia na porta...

Tudo isso ocorrera num ontem de vinte e um anos.

E então, de repente, uma estranha dúvida assaltou-o, a de que aquele lugar ali e o grandismo eram apenas o material de um sonho; que sonhava e acordaria num instante, descobrindo-se de novo em seu gabinete, os gigantes massacrados, o Alimento suprimido, e ele próprio um prisioneiro trancafiado. Na verdade, que mais era a vida além daquilo — ser sempre um prisioneiro trancafiado! Aqui­lo era a culminação e o fim de um sonho. Acordaria em meio à sangueira e à batalha, para descobrir que seu Alimento era a mais tola das fantasias, e suas esperanças e fé num mundo melhor não passavam de uma película colorida sobre um fosso de insondável decomposição.   A pequenez invencível!...

Tão forte e profunda foi essa onda de desalento, essa sugestão de desilusão iminente, que ele se levantou. Ficou de pé e compri­miu os punhos fechados contra os olhos, e assim quedou-se por um momento, temendo tornar a abri-los e ver, para que o sonho já não tivesse passado...

As vezes dos filhos gigantes falavam-se umas às outras, um subtom à clangorosa melodia de ferreiros. Sua maré de dúvida refletiu. Ouvia as vozes dos gigantes; ainda ouvia seus movimen­tos em volta. Era real, sem dúvida era real — tão real quanto atos de despeito. Mais real, pois essas coisas grandes, pode ser, são coisas que vêm, e a pequenez, a bestialidade e a enfermidade dos homens são coisas que vão.   Abriu os olhos.

—        Pronto! — gritou um dos dois ferreiros, e ambos soltaram seus martelos.

Uma voz soou acima. O filho de Cossar, de pé no grande barranco, voltara-se e falava agora a todos eles.

—        Não é que queiramos expulsar o povinho do mundo — disse — a fim de que nós, que não estamos mais que um passo além da pequenez deles, possamos ter o mundo deles para sem­pre. É pelo passo que lutamos, e não por nós mesmos... Para que fim, Irmãos, estamos aqui?   Para servir ao espírito e ao propósi­to que foi instilado em nossas vidas. Lutamos não por nós mes­mos... pois somos apenas as mãos e olhos momentâneos da vida do mundo. Assim nos ensinou o senhor, pai Redwood.  Através de nós e do povinho o espírito vê e aprende.  De nós, pela palavra, nascimento e atos, ele deve passar...  para vidas ainda maiores. Esta terra não é local de repouso; esta terra não é lugar de diversão, senão deveríamos na verdade entregar nossas gargantas à faca do povinho, pois não teríamos mais direito a viver que eles. E eles, por sua vez, deviam ceder às formigas e aos répteis.  Lutamos não por nós mesmos, mas pelo crescimento, crescimento que prossegue para sempre. Amanhã, quer vivamos ou morramos, o crescimento ven­cerá através de nós. Esta é a lei do espírito para todo o sempre. Cres­cer segundo a vontade de Deus! Crescer para fora dessas fendas e gretas, para sair dessas sombras e trevas, para a grandeza e a luz! Maiores! — disse, falando com lenta deliberação. — Maiores, meus irmãos! E depois...   ainda maiores. Crescer e tornar  a crescer. Crescer finalmente até a companhia e compreensão de Deus. Crescer... até que a terra não passe de um escabelo... Até que o es­pírito tenha expulsado o temor para o nada, e se espalhado... — Girou o braço para o céu — até lá!

Sua voz calou-se. O branco clarão de um dos holofotes girou e por um momento caiu sobre ele, de pé e gigantesco, com a mão erguida contra o céu.

Por um instante brilhou, olhando lá em cima, destemidamente, as profundezas estreladas, vestido de malha, jovem e forte, de­cidido e imóvel. Depois a luz passou e ele não era mais que uma grande silhueta negra contra o céu estrelado, uma grande silhueta negra que ameaçava com um gesto poderoso o firmamento do céu e toda sua multidão de estrelas.

 

                                                                                            H. G. Wells

 

 

                      

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